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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Um / Richard Back
Um / Richard Back

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Um

 

E se o espaço mudasse de posição e o tempo se curvasse e pudéssemos nos conhecer como seremos daqui a vinte anos? E se pudéssemos conversar, face a face, com as pessoas que fomos no passado, com as pessoas que somos em vidas paralelas, em mundos alternativos? O que lhes diríamos, o que lhes perguntaríamos? Em que sentido mudaríamos se soubéssemos aquilo que nos espera além do espaço e do tempo?

                   

Já percorremos juntos, não é mesmo, um longo caminho caro leitor?

Quando nos conhecemos, há 25 anos, eu era piloto de avião, extasiado com o vôo, à procura de significados por trás de instrumentos e de dados como a velocidade do ar. Há vinte anos, nossa viagem nos levou a um modelo de vida nas asas de uma gaivota. Há dez anos, encontramos o salvador do mundo, descobrimos que esse salvador éramos nós mesmos. No entanto, até onde você podia saber, leitor, eu era uma alma solitária com a cabeça cheia de rumos e altitudes, escondida atrás de uma cortina de palavras. E você tinha razão.

Era seguro, assim pensava eu, afirmar que descobri algumas respostas achadas por você, que passei longe de outras que você não descobriu. Está começando a entender como o mundo funciona? Eu estou. Você tem se sentido inquieto e solitário com o que aprendeu? Eu também. Você procurou, a vida inteira, o amor verdadeiro? Também fiz isso, achei essa pessoa e, em A ponte para o sempre apresentei-o a minha mulher, Leslie Parrish-Bach.

Agora escrevemos juntos, Leslie e eu. Tornamo-nos RiLes-chardlie, e não sabemos mais onde termina um de nós e o outro começa.

Por causa de A ponte para o sempre, nossa família de leitores tornou-se ainda mais chegada. Aos aventureiros que voaram comigo em livros anteriores, vieram somar-se aqueles que anseiam pelo amor e aqueles que o descobriram: nossas vidas refletem a deles, é isso que nos dizem repetidamente em cartas.

Em geral, lemos a correspondência na cozinha. Um de nós lê em voz alta, enquanto o outro prepara a refeição-surpresa para o dia. Já rimos tanto com as cartas de alguns leitores a ponto de deixar cair a salada dentro da sopa. Outras cartas serviram para fornecer o sal de nossas lágrimas.

Um dia, para servir de gelo, chegou esta:

“Lembra-se do diferente Richard sobre quem você escreveu em A ponte para o sempre, aquele que se recusou a trocar suas muitas mulheres por Leslie? Achei que você gostaria de receber notícias minhas, pois fui eu quem fugi, e sei o que aconteceu a seguir.”

Os paralelos que ele nos contou eram assombrosos. Esse homem é um escritor. Um único livro lhe rendera uma repentina fortuna, e ele enfrentara os mesmos problemas com o imposto de renda que eu. Havia desistido de procurar uma só mulher e preferira muitas delas.

Foi então que encontrou aquela que o amava tal como ele era, e ela o colocou diante de uma opção: ou ela seria a única mulher de sua vida ou não teria nada a ver com a vida dele, a mesma opção que Leslie um dia me fizera encarar, a mesma bifurcação na estrada.

Diante da encruzilhada, eu tomara o caminho da esquerda, escolhendo o afeto e o futuro cálido que, segundo eu esperava, viria com ele.

Já ele virou para a direita. Fugiu da mulher que o amava, abandonou suas casas e aviões para o governo e correu, como eu quase fizera, para a Nova Zelândia. Em sua carta, dizia:

“...a literatura vai indo bem, possuo casas e carros em Auckland, Madri e Cingapura, posso viajar para qualquer lugar deste mundo, menos para os Estados Unidos. Ninguém ameaça pôr as mãos em mim. “Mas ainda penso em minha Laura. Fico pensando no que teria acontecido se eu lhe tivesse dado uma oportunidade. Poderia ser o que A ponte para o sempre me diz. Vocês dois ainda estão juntos? Será que tomei a decisão certa? E você?”

O homem é multimilionário, seus desejos se concretizam, tem o mundo a seus pés. Mas enxuguei uma lágrima que me rolava dos olhos e, levantando o olhar, dei com Leslie debruçada sobre a mesa, com o rosto enterrado nas mãos.

Durante muito tempo eu imaginara que o homem era uma fantasia, uma sombra a viver em alguma dimensão insólita no podia-ter-sido, alguém que eu inventara. Depois da carta dele, sentimo-nos inseguros, vacilantes, como se uma campainha nos chamasse e não soubéssemos como responder.

Então, por coincidência, reli um estranho livreto de física A interpretação multimundos da física quântica. Com efeito, muitos mundos, diz ele, A cada instante o mundo que conhecemos se divide numa quantidade infinita de outros mundos, de futuros diferentes e passados distintos.

De acordo com a física, o outro Richard não desapareceu na encruzilhada onde modifiquei minha vida. Ele existe, neste exato momento, num mundo alternativo que desliza ao lado deste em que estamos. Naquele mundo, também Leslie Parrish escolheu uma vida diferente: Richard Bach não é seu marido, é um homem que ela deixou escapar ao descobrir que o que ele tinha a oferecer não era amor e alegria e sim interminável padecimento.

Depois disso, meu subconsciente levou para a cama um exemplar fantasma de A interpretação multimundos, leu-o noite após noite, cutucou-me enquanto eu dormia.

E se vocês dessem um jeito de encontrar o Richard e a Leslie que eram, dizia ele, antes de terem cometido os piores erros e os melhores acertos? E se pudessem adverti-los, agradecer-lhes, perguntar-lhes qualquer coisa que ousassem? E se pudessem conhecer eus alternativos? O que poderiam eles saber a respeito da vida, sobre a juventude, o envelhecimento e a morte, a carreira, o amor e o patriotismo, sobre a guerra e a paz, sobre responsabilidades, escolhas e conseqüências, a respeito do mundo que vocês consideram real?

Vá embora, eu falei.

Pensa que não pertence a este mundo, com suas guerras e destruição, com seu ódio e violência? Por que vive aqui?

Quero dormir, avisei.

Boa noite, respondeu ele.

Mas as mentes-fantasmas nunca dormem, e em sonhos eu ouvia páginas viradas.

Agora estou acordado, e não consigo afastar aquelas coisas da cabeça. As escolhas que fazemos realmente mudam nossos mundos? E se a ciência afinal estiver certa?

Vínhamos descendo em nosso hidravião de neve e arco-íris, procedentes do norte, sobrevoando montanhas da cor de lembranças antigas, tocadas pela bruma. Aos poucos surgiu diante de nós a cidade, uma vasta panqueca de concreto, assando ao sol de verão, a sobremesa que encerraria um prolongado vôo.

— Quanto falta, meu bem? — perguntei pelo interfone. Leslie levou a mão ao receptor de navegação de radar e rádio, e surgiram números brilhantes no painel de instrumentos.

— Cinqüenta e uma milhas para norte — disse ela. — Faltam 19 minutos. Quer a torre de Los Angeles?

— Obrigado — respondi, sorrindo. Quanto havíamos mudado, desde que nos tínhamos conhecido! Leslie, a quem voar antes aterrorizava, agora era ela própria uma aviadora. Eu, que antes tinha medo do casamento, já estava casado há 12 anos e me sentia ainda como um namorado.

— Alô, torre de Los Angeles — falei ao microfone. — Aqui é Martin Seahawk Quatro Quatro Quatro Alfa, no rumo sul de Santa Mônica. — Em particular, chamávamos nosso hidravião de Growly. Ao controle do tráfego aéreo dávamos o nome oficial.

Como é possível que sejamos os felizardos, pensei, levando uma vida que em crianças tomávamos como sonhos? Em menos de meio século de desafio e aprendizado, de ensaio e erro, cada um de nós tinha passado, com esforço, de tempos duros para um lindo presente que superava nossos sonhos.

— Martin Tríplice Quatro Alfa no contato de radar. — Soou uma voz em nossos fones.

— Há tráfego ali — avisou Leslie. — E ali também.

— Estou vendo. — Olhei para ela também, para aquela atriz transformada em parceira de aventura. Os cabelos louros emolduravam-lhe as curvas suaves do rosto, refletindo luzes e sombras, os olhos azuis de mar que verificavam, sérios, o céu à nossa volta. Que rosto maravilhoso aquela mente moldara!

— Martin Tríplice Quatro Alfa — disse o controle de Los Angeles —, passe para quatro seis quatro cinco.

Quais eram as probabilidades de nos encontrarmos, essa mulher extraordinária e eu, de que nossos caminhos se cruzassem e se juntassem, como acontecera? Quais as possibilidades de nos transformarmos de estranhos em almas irmãs?

Agora estávamos voando juntos, convidados a Spring Hill, um encontro de pesquisadores exploradores dos limites do pensamento criativo: ciência e consciência, guerra e paz, o futuro de um planeta.

— Aquilo não foi para nós? — perguntou ela.

— Foi, sim. Que número ele disse?

Ela virou-se para mim, com um sorriso nos olhos.

— Tente lembrar-se — retrucou.

— Quatro seis quatro cinco?

— Isso mesmo — confirmou Leslie. — Não precisamos confiar na memória um do outro, não é?

Essas palavras foram as últimas que escutei antes que o mundo mudasse.

 

O transponder é uma caixa preta no painel de instrumentos do hidravião, com janelinhas onde aparece um código de quatro algarismos. Ajustando algarismos nessas janelinhas, somos identificados a quilômetros de distância, em salas na penumbra: número da aeronave, rumo, altitude, velocidade, tudo quanto importa aos controladores do tráfego aéreo diante de suas telas esverdeadas.

Naquela tarde, talvez pela milésima vez em minha carreira de piloto, estendi a mão para modificar aqueles algarismos em suas janelinhas. Quatro na primeira, sãs na segunda, quatro na terceira, cinco na última. Enquanto ainda olhava para baixo, atento a essa tarefa, ouvi um zumbido esquisito que começou num dó grave e cresceu até ultrapassar o limite da audição; a seguir veio um baque, como se tivéssemos entrado numa forte corrente ascendente, um estralejante clarão de luz âmbar na cabine.

— RICHARD! — gritou Leslie.

Ergui a cabeça de repente, e dei com Leslie de boca aberta e olhos arregalados.

— Um pouco de turbulência — avisei —, um pouco de... — Então eu mesmo vi, e parei no meio da frase.

Los Angeles havia desaparecido.

Não se via mais a cidade que se estendia por todo o horizonte, as montanhas à sua volta, o véu de névoa de 160 mil quilômetros.

Tudo sumira.

O céu ganhara um azul de flores silvestres, profundo, fresco e frio. Lá embaixo não havia pistas, telhados e shopping-centers, e sim um mar ininterrupto, um espelho do céu. Um mar de um azul de amor-perfeito, não o azul-escuro de alto-mar, mas todo feito de baixios, como se um banco de areia, azul-cobalto, se estendesse a quase dois metros de profundidade, um desenho de prata e ouro.

— Cadê Los Angeles? — perguntei. — Está vendo...? Me diga o que está vendo.

— Água! Estamos sobre o mar! — arquejou Leslie. — Richie, o que aconteceu?

— Não sei — respondi, em total perplexidade. Verifiquei os instrumentos, e cada ponteiro apontava para onde devia apontar. A velocidade do ar era a mesma, o rumo mantinha-se em 135 graus na bússola. Agora, porém, a bússola magnética se mexia de um lado para outro em sua caixa, sem se importar para onde ficava o norte ou o sul.

Leslie experimentou botões, premiu comutadores.

— Os transmissores não funcionam — avisou, já com uma ponta de medo na voz. — Estão ligados, mas não mostram...

Realmente. Os dados de navegação eram linhas brancas e indicações de off. O painel de loran mostrava uma coisa que nunca tínhamos visto: perda de sinal.

Nossas mentes também se esvaziaram. Ficamos calados por um momento.

— Você viu alguma coisa antes... da mudança, Leslie?

— Não. Vi! Eu estava à procura de outros aparelhos. Houve um silvo, você escutou? Aí, um brilho amarelo, uma... uma onda de choque por todos os lados, que logo desapareceu, junto com tudo mais! Onde estamos?

Fiz a melhor exposição possível.

— O avião não apresenta problemas, a não ser o transmissor e o loran. Mas a bússola magnética parou... O único instrumento de um avião que não pode deixar de funcionar pifou! Não sei onde estamos,

— O controle de Los Angeles? — sugeriu Leslie de repente.

— Isso! — Premi o botão do microfone. — Alô, controle de Los Angeles, Martin Tríplice Quatro Alfa. — Baixei o olhar, à espera da resposta. Aquele banco de areia submerso estava como que gravado com uma vasta retícula cambiante, como se riachos serpenteantes corressem por ali, correntes incrivelmente entrelaçadas, ribeiros dos quais partiam incontáveis afluentes, cada qual nítido e distinto, todos ligados entre si, refulgindo a pouco mais de um metro sob a superfície.

— Alô, controle de Los Angeles — repeti —, aqui fala o hidravião Martin Quatro Quatro Quatro Alfa, como está a escuta? — Aumentei o volume, e a cabine encheu-se de estática. O rádio funcionava, mas ninguém se comunicava através dele conosco. — Alô qualquer estação que esteja na escuta de Martin Seahawk Tríplice Quatro Alfa, favor chamar nesta freqüência.

Estática. Nem uma só palavra.

— Não sei mais o que fazer — avisei a Leslie.

Por instinto, fiz com que o avião subisse, à procura de uma visão mais ampla, à espera que a altitude nos proporcionasse algum sinal do paradeiro do que tínhamos perdido.

Alguns minutos depois, havíamos descoberto com certeza algumas coisas estranhas: por mais que subíssemos, o altímetro não indicava mudança — o ar naquele lugar não ficava mais rarefeito com a altitude. Embora eu subisse a cerca de dez mil pés, o instrumento continuava a indicar o nível do mar.

Por toda parte, o horizonte era um só, sem sinal de montanhas, nuvens ou ilhas, um barco, qualquer coisa viva.

Leslie bateu com o dedo no marcador de combustível.

— Parece que não estamos gastando combustível — comentou. — Será possível?

— É mais provável que a bóia esteja presa. — O motor aumentava ou diminuía de rotação à medida que eu mexia nos comandos, mas nosso marcador de combustível se fixara logo abaixo de meio tanque.

— É isso mesmo — falei, balançando a cabeça, — O marcador de combustível também deu defeito. Talvez tenhamos ainda duas horas de vôo, mas prefiro economizar o que ainda temos.

— Onde vamos pousar? — perguntou Leslie, perscrutando o horizonte.

— Isso faz diferença?

O mar reluzia em suas cores esplêndidas, seus desenhos caprichosos.

Puxei o manete para trás e o hidravião começou a descer, lentamente. Enquanto descíamos, observávamos o estranho panorama. Devia haver um milhão de vezes um milhão de trilhas refulgentes no fundo do mar, caminhos brilhantes e foscos, largos e estreitos, retos e quebrados, cada qual ligado, mediante percursos complicados, a todos os outros.

Existe uma razão, pensei. Alguma coisa traçou essas linhas. Seriam elas caminhos? Estradas submersas?

Leslie pegou-me a mão.

— Richie, talvez estejamos mortos. Quem sabe batemos em alguma coisa no ar, ou então algo bateu em nós, tão depressa que nem percebemos?

O perito em morte da família sou eu, e nem pensara na... Seria possível que ela tivesse razão? E o que Growly está fazendo aqui? Nada do que li a respeito de morte diz que ela sequer muda a pressão do óleo.

— Isso não pode ser a morte! — exclamei. — De acordo com os livros, quando morremos há um túnel de luz, uma sensação incrível de amor, e um grupo de pessoas que vêm se encontrar conosco... Se nos demos ao trabalho de morrer juntos, os dois ao mesmo tempo, você não acha que eles dariam um jeito de se encontrar conosco em tempo?

— Talvez os livros estejam errados — disse Leslie. Passamos a voar mais baixo, em silêncio. Como era possível que a alegria e as perspectivas de nossas vidas tivessem chegado ao fim assim tão subitamente? Não era impossível, pensei, mas era difícil de acreditar.

— Você se sente morto? — perguntou Leslie.

— Não.

— Nem eu.

Sobrevoamos baixo os canais paralelos, à procura de afloramentos de coral ou troncos flutuantes antes de amerissarmos. Mesmo morto, ninguém quer arrebentar o avião numa pedra.

E que maneira estúpida de acabar com uma vida! Sequer sabemos o que aconteceu, nem mesmo como foi que morremos!

— A luz dourada, Leslie, a onda de choque! Não pode ter sido uma bomba atômica? Será que fomos as primeiras baixas da Terceira Guerra Mundial?

Leslie pensou no assunto.

— Não acredito nisso. A coisa não vinha em nossa direção, estava se afastando. E teríamos sentido alguma coisa.

Continuamos em silêncio. Tristes. Muito tristes.

— Não é justo! — exclamou Leslie. — A vida tinha ficado tão bonita! A gente trabalhava tanto, superava tantos problemas... estávamos apenas no início da vida boa.

— Bem, se estamos mortos, morremos juntos — suspirei. — Ao menos essa parte de nossos sonhos aconteceu.

— E dizem que a vida passa, todinha, como um filme em nossa frente. Você viu sua vida toda num segundo?

— Ainda não — respondi. — E você?

— Nada. Outra coisa que dizem é que tudo fica preto. Isso também está errado!

— Como é possível que tantos livros... que nós estivéssemos enganados? — indaguei. — Lembra-se de nossas experiências de deixar o corpo, à noite? A morte deveria ser assim, sempre assim, só que seria uma sensação sem fim, não estaríamos de volta pela manhã.

Eu sempre acreditara que morrer faria sentido, que seria uma oportunidade racional e criativa de chegar a um novo conhecimento, uma prazerosa libertação dos limites da matéria, uma aventura para além das muralhas das crenças grosseiras. Nada nos advertira de que a morte significa sobrevoar um oceano infinito, destituído de vida.

Podíamos pousar. Não havia rochas, nem sargaços, nem cardumes. O mar estava calmo e claro, o vento mal agitava a superfície. Impulsionei o manete para a frente e o fiel Growly subiu, preparando-se para uma suave descida.

Leslie apontou os dois caminhos coruscantes.

— Aqueles dois parecem ser amigos. Sempre Juntos.

— Talvez sejam pistas de pouso, Leslie. Parece mais conveniente alinhar na direção deles. Vamos pousar no ponto exato onde eles se juntam, certo? Está pronta?

— Acho que sim.

Olhei pelas janelas laterais, verificando o trem de pouso.

— Estamos com as rodas retraídas para uma amerissagem, os flaps baixados...

Começamos a última curva lenta, deslizando na direção daquele lugar esquisito, e o mar inclinou-se graciosamente, bem devagar, em nossa direção. Flutuamos durante um longo momento, a poucos centímetros da superfície, e reflexos pastéis coloriram a fuselagem branca.

A quilha roçou nas ondas e o hidravião transformou-se numa lancha de corrida, voando numa nuvem de borrifos. O murmúrio do motor foi abafado pelo ímpeto da água à medida que eu puxava o manete para trás e diminuíamos de velocidade.

Nesse instante, a água desapareceu, o avião sumiu. À nossa volta, borrados, passavam telhados, manchas de tijolos vermelhos e palmeiras, e bem à frente surgiu a parede de um imenso edifício cheio de janelas.

— CUIDADO!

Uma fração de segundo depois estávamos parados dentro do edifício, atordoados mas incólumes, de pé num comprido corredor. Estendi as mãos para minha mulher na mesma hora, segurando-a.

— Você está bem? — perguntamos ao mesmo tempo, sem fôlego.

— Estou! — dissemos. — Sem um arranhão! E você? Estou!

Não havia vidros partidos na janela no fim do corredor, nenhum buraco na parede pela qual tínhamos entrado como um foguete. Não se avistava vivalma, nem se ouvia ruído algum no prédio.

Fui tomado de frustração.

— Que droga está acontecendo?

— Richie, eu conheço esse lugar — disse Leslie, com assombro no olhar. — Já estivemos aqui antes!

Olhei em volta. Um saguão com muitas portas, um tapete vermelho-alaranjado, portas de elevadores bem à nossa frente, palmeiras em vasos. A janela do saguão dava para ensolarados telhados vermelhos, monos dourados mais adiante, uma enevoada tarde azul.

— É um... está parecendo um hotel. Não me lembro de hotel nenhum...

Ouvi um tilintar suave, e uma seta verde acendeu-se sobre as portas do elevador.

Observamos enquanto as portas se abriam com um zumbido. Dentro do elevador havia um homem anguloso e todo músculos, ao lado de uma bela mulher que vestia uma blusa desbotada debaixo de uma jaqueta da Marinha, calças jeans e um gorro. O homem nada tinha de especial, mas o rosto da mulher era espantoso.

Senti minha mulher arquejar a meu lado, percebi que seu corpo se retesava. Do interior do elevador, mal nos dirigindo um olhar, saíram o homem e a mulher que tínhamos sido 16 anos antes, as duas pessoas que éramos no dia em que nos conhecemos.

 

Detivemo-nos estupefatos, petrificados, boquiabertos. A Leslie mais jovem murmurou um muito obrigada ao Richard que eu fora. A seguir, mal se contendo para não correr, ela se apressou na direção de seu quarto.

— Leslie! Espere! — gritou minha Leslie.

A jovem parou e se virou, à espera de ver uma amiga, mas não pareceu nos reconhecer. Com a janela às nossas costas, devíamos estar na sombra, ou em silhueta.

— Leslie — chamou minha mulher, simpática, caminhando em sua direção. — Pode me dar um momento?

O Richard mais moço, enquanto isso, passou por nós, em direção ao seu quarto. O fato de a mulher que o acompanhara no elevador ter-se encontrado com amigos não era com ele.

E não sabermos o que está acontecendo, pensei comigo, não nos impede de sermos os controladores da situação. Senti uma coisa esquisita, ao ver aqueles dois andando em direções opostas quando sabíamos que estavam destinados a passar o resto da vida juntos.

Deixei que Leslie fosse em busca de sua vida anterior, enquanto eu corria na direção do rapaz.

— Com licença — falei, atrás dele. — Richard?

Ele se virou, chamado tanto por minhas palavras quanto pelo som de minha voz, tomado de curiosidade. Lembrei-me da jaqueta que ele usava, cor de pele de camelo. Tinha no forro um rasgão que eu costurara uma dúzia de vezes, sem sucesso. A seda, ou independente do que fosse, não parava de ser cortada pela linha.

— Preciso me apresentar? — perguntei.

Ele me olhou, e nos olhos grandes apareceu alguma coisa como um tranqüilo autocontrole.

— O quê!

Escute — comecei, o mais calmo possível. — Nós também não estamos compreendendo. Estávamos num avião, uma coisa esquisita bateu em nós e...

— Você é...? — Sua voz sumiu e ele ficou ali, parado, pasmo. Evidentemente, aquilo para ele era um choque, mas me senti estranhamente irritado com o sujeito. Quem poderia dizer de quanto tempo dispúnhamos para ficar juntos, se minutos ou menos, se horas ou menos, e ele perdia tempo, recusando-se a acreditar no que deveria ser óbvio?

— A resposta é sim — respondi. — Eu sou o homem que você será daqui a alguns anos. Por algum motivo estamos aqui, e foi-nos dada uma oportunidade que todo mundo deseja mas nunca consegue ter.

O choque transformou-se em desconfiança.

— Qual era o apelido que mamãe me dava? — perguntou, apertando os olhos.

Suspirei e respondi.

— Qual era o nome de meu cachorro quando eu era menino, e que fruta gostava de comer?

— Richard, pare com isso! — exclamei. — Lady não era um cachorro, era uma cadela e comia damascos. Você tinha uma luneta astronômica de 12,5 centímetros. O espelho estava lascado porque um dia você deixou cair um alicate quando estava consertando alguma coisa nele, com o tubo virado para cima e não para baixo, havia uma passagem secreta na cerca perto da janela de seu quarto, uma abertura com dobradiças pela qual você podia passar quando não queria usar o portão...

— Muito bem — disse ele, olhando para mim como se eu fosse o resultado de um número de ilusionismo. — Não duvide de que você possa continuar a lembrar essas coisas.

— Indefinidamente. Rapaz, você não pode fazer uma só pergunta a seu respeito que eu não seja capaz de responder, e com meus 17 anos a mais tenho mais respostas do que você tem perguntas!

Ele olhou para mim. Um garoto, pensei, sem nenhum fio de cabelo branco. Um pouco de grisalho nos cabelos há de lhe cair bem.

— Pretende perder o tempo que tivermos em conversa aqui no corredor? Sabe que naquele elevador você acabou de se encontrar com a mulher com quem vai... a pessoa mais importante de sua vida e você nem sabe que se encontrou com ela?

Ela? — Ele olhou para o corredor. — Mas ela é linda! Como é que ela...

— Como, não sei, mas ela o acha atraente. Creia no que digo.

— Certo, acredito. Acredito! — Tirou a chave do aparta mento do bolso da jaqueta. — Vamos entrar.

Nada fazia sentido, mas tudo estava correto. Não estávamos em Los Angeles, e sim em Carmel, Califórnia, outubro de 1972, terceiro andar do Holiday Inn. Antes mesmo que ele metesse a chave na fechadura, eu sabia que o quarto estava cheio de modelos de gaivotas, a controle remoto, construídos para um filme que vínhamos rodando na praia. Alguns dos modelos faziam evoluções maravilhosas, mas outros tinham caído de ponta-cabeça e quebrado. Eu havia levado os destroços para o quarto, a fim de recolá-los.

— Vou chamar Leslie — avisei. — Veja se consegue arrumar isso aqui um pouco, está certo?

— Leslie?

— É a... Bem, há duas Leslies. Uma é a mulher com quem você acabou de subir no elevador, ansiosa para que você achasse um jeito de falar com ela. A linda é a mesma mulher 16 anos depois, minha esposa.

— Não consigo acreditar nisso!

— Por que não arruma o quarto um pouco? — propus. — Voltamos daqui a pouco.

Encontrei Leslie no corredor, alguns apartamentos adiante, de costas para mim, conversando com seu ego mais jovem. Enquanto eu caminhava em sua direção, uma camareira saiu do apartamento ao lado, indo na direção do elevador, empurrando um carrinho com roupa suja. Sem prestar atenção, ela empurrou o pesado carrinho na direção de minha mulher.

— Cuidado! — gritei.

Tarde demais. Leslie virou-se ao ouvir minha voz, mas o carro atingiu-a de lado, passou através de seu corpo como se ela fosse feita de ar, seguido pela camareira, que a pisoteava, sorrindo para a moça.

— Ei! — exclamou a jovem Leslie, alarmada.

— Oi! — respondeu a camareira. — Bom dia!

Corri para Leslie.

— Está bem?

— Muito bem. Acho que ela não... — Virou-se para a moça. — Richard, quero apresentá-lo a Leslie Parrish. Leslie, esse é meu marido. Richard Bach.

Achei graça do formalismo da apresentação.

— Como vai? — disse à moça. — Pode me ver? Ela riu, com um brilho nos olhos.

— Pensa que é diáfano? — Nenhum choque, nenhuma suspeita. A jovem Leslie devia ter considerado tudo aquilo um sonho e resolvera se divertir um pouco.

— Estou só verificando — respondi. — Depois do que acabou de acontecer, não tenho certeza de que faço parte deste mundo. Aposto que...

Levei a mão à parede, desconfiando que a mão atravessaria o reboco. Foi o que aconteceu, e o pulso entrou até o papel de parede. A jovem Leslie riu a valer.

— Acho que somos fantasmas — comentei.

Então foi por isso que não morremos ao chegar, atravessando a parede do hotel, pensei.

Com que rapidez nos ajustamos a situações inacreditáveis! Se caímos de um cais, logo percebemos que estamos debaixo da água. Movemo-nos de maneira diferente, respiramos diferente, mas em meio segundo estamos adaptados, embora possamos não gostar da água fria.

O mesmo acontecia ali. Estávamos mergulhados em nosso passado, surpresos por havermos caído nele, fazendo o melhor que podíamos naquele lugar esquisito. E a melhor coisa que podíamos fazer era juntar aqueles dois, poupar-lhes a perda dos anos que havíamos desperdiçado antes de concluirmos que éramos almas irmãs.

Era estranho estar conversando com ela, como se nos encontrássemos de novo pela primeira vez. Que coisa esquisita, pensei. Ela é Leslie, mas não tenho nenhuma história em comum com ela!

— Quem sabe se, em vez de ficarmos aqui... — Apontei para o corredor. — Richard nos convidou para o apartamento dele. Podemos conversar um pouco lá, acertar as coisas sem que carrinhos com roupa suja nos atropelem...

Ela olhou de relance para o espelho do corredor.

— Eu não pretendia me encontrar com ninguém. Estou um horror — disse, ajeitando os longos cabelos louros debaixo do gorro.

Olhei para minha mulher e não pudemos deixar de rir.

— Ótimo! — exclamei. — Foi nosso último teste com você. Se Leslie Parrish um dia olhar para um espelho e disser que está bem, nesse caso não será a verdadeira Leslie Parrish!

Caminhei na frente em direção ao apartamento de Richard, e bati à porta, sem pensar. Os nós de meus dedos, é claro, sumiram na madeira sem nenhum ruído.

— Acho melhor você bater — falei à jovem Leslie.

Ela bateu, pancadinhas alegres e ritmadas, para mostrar que seu toque era não só eficaz como musical.

A porta abriu-se logo Richard segurava uma gaivota feita de balsa, com um metro de envergadura. No olhar que dirigiu à moça havia uma curiosa mistura de ansiedade e medo.

Olá! — falei. — Richard, quero apresentá-lo à Leslie Parrish, sua futura mulher. Leslie, esse é Richard Bach, seu futuro marido.

Ele encostou a gaivota na parede e apertou a mão da moça formalmente.

O brilho divertido nem por um instante deixou-lhe os olhos enquanto ela o olhava, apertando-lhe a mão com a maior gravidade possível.

— Muito prazer em conhecê-lo.

— E Richard, esta é minha mulher, Leslie Parrish-Bach.

— Como vai? — cumprimentou ele.

Ficou parado por alguns instantes, olhando de uma das Leslies para outra e para mim, como se um grupo de crianças batesse à sua porta no dia das bruxas.

— Vamos entrar — falou, por fim. — O apartamento está uma bagunça...

E ele falava sério. Se o limpara, nada se notava. Gaivotas de balsa, módulos de controle remoto, baterias, folhas de balsa, lixo nos caixilhos das janelas, tudo cheirando a tinta.

Ele havia colocado na mesinha quatro copos de água, três saquinhos de flocos de milho e uma lata de amendoins. Se nossas mãos atravessam as paredes, pensei, é possível que não tenhamos muito sucesso com os flocos de milho.

— Para sua tranqüilidade de espírito, Miss Parrish — começou ele —, já fui casado, mas nunca mais volto a me casar. Não estou entendendo absolutamente quem são essas pessoas, mas lhe asseguro que não tenho a mínima intenção de lhe fazer qualquer proposta...

— Ah, meu Deus! — exclamou minha mulher, em voz baixa, olhando para o teto. — O discurso anticasamento.

— Por favor, Wookie — sussurrei. — Ele é um rapaz simpático, só está assustado. Não vamos...

— Wookie? — admirou-se a jovem Leslie.

— Desculpe — respondi. — É um apelido que saiu de um filme que vimos juntos há muito... daqui a muito tempo. — Comecei a ter a impressão de que talvez a conversa não seria fácil.

— Vamos começar pelo início — disse minha mulher, organizando o inverossímil. — Richard e eu não sabemos como foi que chegamos aqui, nem quanto tempo isso vai durar, não sabemos para onde vamos. Tudo que conhecemos são vocês, sabemos do passado e do futuro de vocês... ao menos os próximos 16 anos.

— Vocês dois vão se apaixonar um pelo outro — falei. — Já estão apaixonados, só que não sabem que cada um de vocês é a pessoa que o outro amaria se se conhecessem. Neste exato momento, vocês acham que não há no mundo ninguém que seja capaz de compreender vocês ou de amá-los. Mas há, e estão um diante do outro!

A jovem Leslie sentou-se no chão, encostou-se num sofá e reprimiu um sorriso. Apoiou o queixo nos joelhos.

— Temos alguma influência nesse nosso amor, ou se trata de um destino irrecorrível?

— Boa pergunta — disse Leslie. — Vamos lhes contar aquilo de que nos lembramos do que aconteceu. — Fez uma pausa, concatenando as idéias. — Depois vocês deverão fazer o que julgarem acertado.

O que nós lembramos, pensei. Lembro-me deste lugar, lembro-me de ter visto Leslie por acaso no elevador, ficar depois anos sem revê-la. Mas não me lembro de nenhum encontro aqui neste apartamento com futuras Leslies, nem de nenhum futuro Richard me mandando arrumar as coisas.

O jovem Richard sentou-se numa cadeira, olhando para a jovem Leslie. Para ele, a beleza física dela raiava o limiar da dor. Ele se sentia acanhado diante de mulheres bonitas, e nem por um momento lhe passou pela cabeça que ela estivesse tão acanhada quanto ele. Não era de admirar que tivessem passado anos antes que começassem a se conhecer.

— Quando nos conhecemos, as aparências nos bloquearam, outras pessoas nos impediram inclusive de tentar conhecer um ao outro — disse Leslie. — Aconteceram-nos coisas terríveis durante anos, antes de nos reencontrarmos.

Cometemos, separados, erros que jamais teríamos cometido juntos — acrescentei. — Mas, agora, que vocês sabem... não percebem? Não precisam cometer os mesmos erros!

— Quando nos reencontramos — prosseguiu Leslie —, tinham-se passado anos. Tudo que podíamos fazer era juntar os pedaços e rezar para que conseguíssemos construir a vida bela que víamos que podíamos ter juntos. Se tivéssemos nos conhecido antes, não precisaríamos passar por toda aquela recuperação. É claro que nos encontramos antes, vimo-nos no mesmo elevador em que vocês subiram. Só que não tivemos coragem ou perspicácia suficiente... — Leslie sacudiu a cabeça. — Não tínhamos aquilo quer era preciso ter para sabermos o que poderíamos ser um para o outro.

— Por isso, achamos que vocês são malucos por não caírem um nos braços do outro agora mesmo — continuei —, dar graças a Deus por terem se encontrado e começar a modificar a vida de vocês, para ficarem juntos. Desperdiçamos tanto tempo quando éramos vocês, passamos por cima de tantas oportunidades de fugir de desastres e seguirmos juntos.

— Desastres? — perguntou Richard.

— Isso mesmo — confirmei. — Vocês estão no meio de vários neste exato momento. Só que ainda não sabem.

— Você sobreviveu — disse ele. — Acha que sabe todas as respostas?

Por que ele assumia uma atitude tão defensiva? Caminhei um pouco, olhando para ele.

— Temos algumas respostas, mas o importante para você é saber que ela sabe a maioria dessas respostas e que você tem respostas para ela. Juntos, nada conseguirá parar vocês!

— Parar-nos como? — perguntou a jovem Leslie, surpresa com a intensidade de meus sentimentos, desconfiando, finalmente, de que talvez aquilo não fosse um sonho.

— Impedir que vocês vivam o amor supremo — disse minha mulher —, impedir que alcancem juntos uma vida tão maravilhosa aue ficarão incapazes de imaginar um sem o outro!

Como era possível que aqueles dois resistissem à dádiva imensa que lhes oferecíamos? Quantas vezes temos a oportunidade de conversar com as pessoas em quem nos transformaremos, aquelas que conhecem cada um dos erros que haveremos de cometer?

Minha mulher estava sentada no chão, ao lado de Leslie, como uma gêmea mais velha.

— Na privacidade deste quarto, onde estamos a sós, precisamos lhes dizer uma coisa: apesar de todos os seus erros, cada um de vocês é uma pessoa extraordinária. Vocês têm se apegado a um senso de dever, a uma ética interior, mesmo quando proceder assim é difícil, perigoso, ou quando as pessoas consideram vocês esquisitos. É essa esquisitice que os distingue. Ela os toma solitários. Além disso, faz com que cada um seja perfeito para o outro.

Os dois escutavam com tamanha atenção que eu nada con seguia perceber em seus rostos.

— Ela não tem razão? — perguntei. — Digam-nos para sumir se isto é absurdo. Se não for verdade, podemos ir embora, Temos nosso próprio probleminha para resolver...

— Não! — disseram os dois, em uníssono.

— Uma coisa vocês já nos disseram — comentou a jovem Leslie. — É que vamos viver mais 16 anos! Não haverá guerras, não chegará o fim do mundo. Mas... talvez seja essa a pergunta que quero fazer. Nós sobrevivemos a esta época, ou melhor, vocês sobreviveram?

— Pensam que sabemos o que está acontecendo? — perguntei. — Errado! Sequer sabemos se estamos mortos ou vivos. Tudo que sabemos é que, por alguma razão, é possível, sem que o universo se desmorone, que nós, vindos do futuro de vocês, os encontremos, chegados de nosso passado.

— Queremos uma coisa de vocês — disse Leslie.

A jovem ergueu os olhos, os mesmos olhos tão bonitos.

— O que é?

— Somos nós que viemos procurá-los, somos nós que pagamos por nossos erros, que tiramos proveito do esforço de vocês. Somos nós que nos orgulhamos de suas melhores escolhas e que nos entristecemos com as errôneas. Somos os melhores amigos de vocês, além de vocês mesmos. Independentemente do que acontecer, não se esqueçam de nós, não nos traiam!

— Sabem o que aprendemos? — perguntei. — Tranqüilidade a curto prazo, em troca de problemas a longo prazo, não é boa coisa. O caminho fácil não é o melhor. — Virei-me para meu ego mais jovem. — Sabe quantas propostas assim hão de lhe acontecer entre sua idade e a nossa?

— Muitas?

— Isso mesmo — assenti.

— Como é que evitamos as escolhas erradas? — perguntou ele. — Tenho a impressão de que já segui pelo caminho fácil algumas vezes.

— É de se esperar — respondi. — As opções erradas são tão importantes quanto as corretas. Às vezes, ainda mais.

— Não são muito agradáveis — retrucou ele.

— Não, mas elas...

— Vocês são o único futuro que temos? — perguntou a jovem Leslie de repente, interrompendo-se na ânsia de fazer a pergunta, e sem motivo aparente senti uma pontada de medo.

— Vocês são nosso único passado? — perguntou minha mulher.

— É claro... — disse Richard.

— Não! — Olhei para ele, atônito. — Claro que não! É por isso que não nos lembramos de qualquer um de nós no Holiday Inn de Carmel! Não lembramos porque isso não aconteceu a nós, aconteceu a vocês!

As implicações dispararam como feixes de laser por todos no apartamento, modificaram-nos para o resto de nossas vidas. Estávamos ali dando aos dois o melhor do que tínhamos, mas seria possível que fossem apenas um de nossos passados, um dos caminhos que conduziam às pessoas que somos? Por um instante havíamos significado segurança para eles, tínhamos confirmado que sobreviveriam. Mas, seria crível que não fôssemos o inevitável futuro que os esperava, que podia haver outras opções para eles, caminhos diferentes dos que tínhamos seguido?

— Não importa que sejamos o futuro de vocês ou não — disse minha mulher. — Não virem as costas para o amor que... — Leslie parou no meio da frase, olhando para mim com um ar de susto. O quarto estremecia, um ronco surdo sacudia o edifício.

— Terremoto? — sugeri.

— Não. Não é um terremoto — disse a jovem Leslie. — Não estou sentindo nada. Richard?

O rapaz balançou a cabeça.

— Nada.

Para nós, o apartamento inteiro se sacudia agora, em freqüências baixas que se aceleravam a cada segundo.

Minha mulher pôs-se de pé num salto, em pânico. Tendo sobrevivido a dois grandes terremotos, não estava nada interessada num terceiro. Peguei-lhe a mão.

— Os mortais aqui neste quarto não sentem nenhum terremoto, Wookie, e nós, fantasmas, não nos importamos com a queda de escombros... .

Neste instante o quarto começou a se agitar convulsivamente, tinta azul-claro num misturador de tintas. O ruído tornava-se cada vez mais intenso, os jovens se espantavam com o que estava acontecendo a Leslie e a mim. A única coisa sólida era minha mulher a meu lado, apressando-se, gritando para os dois.

— Fiquem juntos! — bradou ela.

Num piscar de olhos o quarto de hotel desapareceu com um solavanco, engolfado num ruído de motor e espadanar de água. Borrifos batiam com força no vidro, e ali estávamos de novo na cabine de nosso hidravião, os ponteiros dos instrumentos se agitando, o mar raso batendo sob nós, o Seahawk já leve, pronto para voar.

Leslie gritou de alívio e deu uma pancadinha carinhosa no painel do avião.

— Alô, Growly! Como é bom rever você!

Puxei o manche em minha direção, e em poucos segundos nossa pequena nave apartou-se da água, deixando para trás um véu de borrifos, e aquelas linhas complicadas do leito marinho se distanciaram. Como era tranqüilizador estar de volta ao ar!

— Foi o Growly que decolou! — falei. — O Growly nos tirou de Carmel! Mas, em sua opinião, o que foi que empurrou o manete para a frente? O que foi que começou a decolagem?

A resposta veio antes que Leslie pudesse falar, dada por uma voz às nossas costas.

— Fui eu.

Viramos no mesmo instante, surpresos. De repente, a trezentos pés de altitude e sobre um mundo que não conhecíamos, tínhamos um passageiro a bordo.

 

Imediatamente minha mão preparou-se para empurrar o manche para a frente, imobilizar a intrusa contra o encosto do assento.

— Não se assustem! — disse ela. — Sou amiga! — Ela riu.

— Não fiquem com medo, logo de mim!

Minha mão relaxou, mas não muito.

— Quem...? — começou Leslie, olhando para a mulher.

Nossa passageira, que vestia jeans e uma blusa xadrez, tinha a pele morena, cabelos cor de tinta nanquim que lhe caíam até os ombros, olhos pretos como a meia-noite.

— Meu nome é Pye, e sou para vocês o que vocês são para aqueles que deixaram em Carmel. — Encolheu os ombros, corrigindo-se. — Vezes vários milhares.

Desacelerei o motor, e o barulho diminuiu.

— Como foi que... — falei. — O que está fazendo aqui?

— Achei que poderiam ficar preocupados — comentou.

— Vim para ajudar.

— O que significa vezes vários milhares? — perguntou Leslie. — Você sou eu no futuro?

Ela assentiu com a cabeça, chegando-se mais para a frente.

— Sou ambos vocês. Não venho do futuro, mas de... —

Neste ponto ela cantarolou uma curiosa nota dupla. — ...de um presente alternativo.

Eu estava ansioso por saber como ela podia ser nós dois, o que era um presente alternativo, mas acima de tudo desejava saber o que nos havia acontecido.

— Sabe o que foi que nos matou? Onde estamos? — perguntei.

— Morte? — retrucou. — Vocês não estão mortos. Por que imaginam isso?

— Não sei — respondi. — Estávamos nos preparando para aterrissar quando, de repente, houve um zumbido forte e a cidade desapareceu, só isso. O que era civilização vaporizou-se em meio segundo e ficamos sozinhos sobre um oceano que não existe no planeta Terra. E quando pousamos estávamos transformados em fantasmas à procura de nosso próprio passado, das pessoas que éramos quando nos conhecemos, e só elas podem nos ver, as pessoas nos atropelam com carrinhos com roupa suja, nossos braços atravessam as paredes... — Dei de ombros, desanimado. — A não ser por isso, não imaginamos por que pensaríamos que estamos mortos.

A mulher riu.

— Bem, vocês não estão mortos.

Olhei para minha mulher e senti uma onda de alívio.

— Nesse caso, o que foi que aconteceu conosco? — perguntou Leslie.

— É uma coisa relacionada com a eletrônica — explicou —, uma antiga profissão minha. — Olhou para nosso painel de instrumentos e franziu a testa. — Vocês têm aqui transmissores de altíssima freqüência. Receptor de loran, os transmissores, o transponder, pulsos de radar. Poderia ter sido uma interação. Raios cósmicos... — Examinou os instrumentos e fez uma pausa. — Houve um forte clarão dourado?

— Isso!

— Interessante — comentou ela, com um sorriso. — A possibilidade de isso acontecer é de uma em trilhões! — Ela era toda simpatia. — Não devem contar com fazerem essa viagem muitas vezes.

— E a possibilidade de voltarmos? É de uma em trilhões? — perguntei. — Temos um encontro em Los Angeles amanhã. Vamos chegar a tempo?

— Tempo?— Ela se virou para Leslie. — Você está com fome?

— Não. Virou-se para mim.

— Está com sede?

— Não.

— Por que acham que não sentem fome nem sede?

— Nervosismo — respondi. — Tensão.

— Medo! — disse Leslie.

— Você está com medo? — perguntou Pye. Leslie pensou um momento, depois sorriu.

— Agora, não.

Eu não podia dizer o mesmo. Não sou grande apreciador de mudanças.

Pye virou-se para mim.

— Quanto combustível está consumindo? O ponteiro permanecia imóvel.

— Nenhum! — respondi, compreendendo de repente o que se passava. — O Growly não está usando combustível algum, não estamos consumindo nada porque combustível, fome e sede são coisas relacionadas com o tempo, e aqui o tempo não existe!

Pye anuiu.

— O movimento é uma coisa relacionada ao tempo — objetou Leslie —, e nós estamos em movimento.

— Estamos mesmo? — Pye ergueu as sobrancelhas, interrogativamente, virando-se para mim.

— Não me olhe — respondi. — Estamos nos movendo apenas de faz-de-conta? Estamos nos movendo somente...

Pye me dirigiu um sinal de incentivo, como se dissesse que eu estava “esquentando”.

— ...na consciência?

Ela levou o dedo à ponta do nariz e abriu-se num sorriso.

— Exatamente! Tempo é o nome que vocês dão ao movimento da consciência. Todo possível acontecimento capaz de ocorrer no espaço e no tempo acontece agora, ao mesmo tempo, simultaneamente. Não há passado, nem futuro, apenas o agora, ainda que sejamos obrigados a utilizar uma linguagem temporal para conversar. É como... — Ela olhou para o teto, à procura de uma comparação. — É como a aritmética. Assim que você passa a conhecer o sistema, sabe que todos os problemas numéricos já estão respondidos. O princípio da aritmética já conhece a raiz cúbica de seis, mas podemos levar um pouco do que chamamos de tempo, alguns segundos, para descobrir o que sempre foi.

A raiz cúbica de oito é dois, pensei, a raiz cúbica de um é um. Raiz cúbica de seis. Está entre um e dois, para mais.,. Um vírgula oito? E realmente, enquanto eu fazia o cálculo, sabia que a resposta já estava à espera desde que eu fizera a pergunta.

— Todos os acontecimentos? — perguntou Leslie. — Todo fato possível capaz de acontecer já aconteceu! Não há futuro?

— Nem passado — disse Pye —, nem tempo. Leslie estava aturdida.

— Então, por que passamos por todas essas experiências nesse... nesse tempo de faz-de-conta, se tudo já está feito?

— O importante não é que tudo já esteja feito, mas sim o fato de dispormos de opções infinitas — respondeu Pye. — Nossas escolhas nos levam a experimentar as coisas que fazemos, e com a experiência compreendemos quem somos.

— Onde é que acontece isso tudo? — perguntei. — Haverá no céu algum armazém enorme, com prateleiras para todos esses possíveis acontecimentos? E podemos escolher um ou outro?

— Não um armazém, um lugar, ainda que você tenha a impressão de ser um lugar — explicou. — Onde imagina que ele possa localizar-se?

Balancei a cabeça e virei-me para Leslie. Ela também fez um gesto negativo.

Pye repetiu a pergunta, teatral.

— Onde? — Olhando dentro de nossos olhos, ela levantou a mão e apontou para baixo.

Olhamos. Lá embaixo, debaixo da água, revoluteavam aqueles caminhos intermináveis no leito do mar.

— O desenho? — perguntou Leslie. — Debaixo da água? Ah! Nossas escolhas! O desenho é o caminho que seguimos, as voltas que demos! E todas as outras possíveis voltas que poderíamos ter dado, que demos durante...

— ...existências paralelas? — perguntei, vendo as peças do quebra-cabeça se juntarem. — Existências alternativas!

O desenho espraiava-se majestosamente lá embaixo. Arregalamos os olhos, assombrados.

— Sobrevoamos, subimos mais alto — falei, sentindo a voz trêmula com a carga de respostas —, e temos uma perspectiva! Vemos todas as escolhas, todas as bifurcações, as encruzilhadas. Mas quanto mais baixo voamos, mais perdemos perspectiva. E quando pousamos, desaparece nossa perspectiva de todas as demais opções! Focalizamos em detalhes: detalhes diários, horários, de minutos, e nos esquecemos das vidas alternativas!

— Que bela metáfora vocês construíram para explorar quem são — disse Pye. — Um desenho de riscos debaixo de águas sem fim. Vocês precisam voar de um lado para outro em seu hidravião, a fim de visitar seus egos alternativos, mas é um instrumento criativo, e funciona.

— Nesse caso, aquele mar lá embaixo não é um mar de verdade, não é? — perguntei. — Aquele desenho não existe de modo concreto.

— Nada no espaço-tempo existe de modo concreto — respondeu ela. — O desenho é um auxílio visual que vocês elaboraram, é sua maneira de compreender existências simultâneas. A metáfora é ligada ao vôo porque vocês entendem de vôo. Quando pousam, o hidravião flutua sobre o desenho, apartado dele, distante, e vocês se tornam observadores, são como fantasmas em seus mundos alternativos. Podem aprender com os outros aspectos de vocês sem participarem, considerando reais os ambientes em que eles vivem. Quando descobrem o que precisam descobrir, lembram-se do hidravião, empurram o manete para a frente e são lançados ao ar, retornam à perspectiva ampla

— Fomos nós que imaginamos... esse desenho? — perguntou Leslie.

— Há tantas metáforas para vidas no espaço-tempo quanto assuntos que a fascinam — explicou Pye. — Se vocês gostas sem de fotografia, sua metáfora poderia ter lançado mão de planos de foco. O foco torna um ponto definido e todos os demais indistintos. Focalizamos numa determinada existência e pensamos que só existe ela e nada mais. Mas todos aqueles outros aspectos, os distintos, que consideramos sonhos, fantasias e desejos frustrados, são realíssimos também. Somos nós que escolhemos o foco.

— Não é de admirar que sejamos fascinados pela física — comentei —, com a mecânica quântica, a anulação do tempo. Nada disso é possível, tudo isso é verdadeiro! Não há vidas passadas, nem vidas futuras, concentramo-nos num ponto, acreditamos que esteja se movendo e inventamos o tempo? Nos envolvemos numa vida e passamos a acreditar que só ela existe? Isso é verdade, Pye?

— Bem perto — respondeu.

— Então podemos seguir voando — disse Leslie —, podemos ir além do ponto em que deixamos Richard e Leslie jovens em Carmel, pousar na frente deles e descobrir se ficaram juntos. Podemos ver se pouparam aqueles anos que desperdiçamos!

— Você já sabe — comentou Pye.

— Não sabemos! — exclamei. — Fomos puxados... Pye sorriu.

— Eles têm escolhas, também. Um lado deles se assusta e foge de um futuro carregado demais de comprometimento. Num outro lado, tornam-se amigos mas nunca amantes, em outro se tornam amantes mas nunca amigos, em outro casam-se e se divorciam, em outro resolvem ser almas irmãs um do outro, casam-se e amam-se para sempre.

— Somos como turistas — disse eu. — Não construímos a paisagem, apenas escolhemos a parte dela que desejamos ver.

— Muito bem — falei —, suponhamos que voem para um ponto do desenho onde pousamos e impedimos nossa mãe de conhecer nosso pai. Se não se encontram, como seria possível nascermos?

— Não, Richard — respondeu Leslie —, isso não nos impediria de nascer. Nós nascemos naquela parte do desenho em que eles realmente se encontraram, e isso nada pode mudar.

— Nada, então, é predeterminado? — perguntei. — Não há destino?

— É claro que o destino existe — respondeu Pye —, mas ele não o empurra para onde você não quer ir. São vocês que escolhem. Compete a vocês traçar o destino.

— Então, Pye, gostaríamos de ir para casa — falei. — O que fazemos para voltar?

Ela sorriu.

Voltar para casa é fácil, é como saltar de um tronco flutuante. Seu desenho é psíquico, mas o caminho de volta é espiritual. Guiem-se pelo amor... — Pye calou-se de repente. — Desculpem a aula. Gostariam de ir agora?

— Por favor.

— Não! — disse Leslie. Falava a Pye, mas segurava minha mão, seu jeito de pedir que eu ouvisse o comentário que ia fazer. — Se eu compreendi bem o que você disse, as pessoas que éramos, a caminho de Los Angeles, estão paradas no tempo. Podemos retornar a elas a qualquer momento que quisermos.

— Claro que podemos — retruquei —, mas no momento seguinte vem nossa explosão de raios cósmicos e pronto, retornamos aqui!

— Não — discordou Pye. — No instante em que vocês voltam ao hidravião, um milhão de variáveis se alteram, e qualquer uma dessas variáveis impedirá que o fato se repita. Já querem ir?

— Não — insistiu Leslie. — Quero aprender aqui, Richie, quero compreender! Se só temos uma oportunidade em um trilhão, e se a oportunidade é esta, devemos ficar!

— Pye, se ficarmos, podemos nos machucar, descambar para alguma outra época, podemos nos ferir, embora sejamos fantasmas? — perguntei.

— Podem escolher isso, se assim desejarem — respondeu.

— Escolher isso? — A resposta me pareceu perigosa. Tenho uma atitude de racionalidade em relação às minhas aventuras. Voar para dentro do inteiramente desconhecido não é aventura, é loucura. Virei-me para minha mulher, um pouco nervoso. — Meu amor, acho que seria melhor voltarmos.

— Ah, Richie, quer mesmo abrir mão dessa oportunidade? Não foi sobre isso que você sempre leu, não foi o fascínio de toda a sua vida, vidas simultâneas, futuros alternativos? Pense no que aprenderíamos! Não vale a pena correr um certo perigo?

Suspirei. O passado de Leslie é, todo ele, feito de escolhas corajosas em busca da verdade e de princípios. Ela acenava para o explorador que havia em mim.

— Vamos, minha querida — concordei. — Está certo. A atmosfera estava carregada de riscos subestimados. Sentia-me como um aluno de aeroclube antes de uma aula de acrobacias lentas sem cinto de segurança.

— Pye, afinal de contas, quantos aspectos de cada um de nós existem? — perguntei.

Ela riu, olhou pela janela do hidravião para o desenho lá embaixo.

— Quantos você imagina existirem? Não há como contar.

— Todo aquele desenho nos representa? — espantou-se Leslie, atônita. — Até onde vemos, até onde podemos chegar, o desenho representa nossas escolhas!

Pye anuiu com a cabeça.

Ainda nem começamos, pensei, e já é difícil acreditar.

— E as outras pessoas, Pye? Quantas vidas podem existir no universo?

Ela me olhou, perplexa, como se não compreendesse minha pergunta.

— Quantas vidas no universo, Richard? — perguntou. — Uma.

 

— Tem certeza de que não há um mapa? — perguntei. Pye sorriu. — Claro.

Grande parte da atividade aeronáutica consiste na leitura de cartas, pensei. Põe-se um pontinho em nosso papel: é ali que se está. Outro ponto: é para ali que se quer ir. Entre os dois, uma torrente de ângulos, cálculos de rumo e de tempo. Agora, numa região infinita que nunca tínhamos visto, a bússola não funcionava, e não dispúnhamos de uma carta.

— Seu guia aqui é a intuição — avisou Pye. — Um nível em você sabe tudo o que há para saber. Encontre esse nível peça para ser guiado e confie em que será conduzido aonde mais precisa ir. Tente.

Leslie fechou os olhos imediatamente, e logo relaxou a meu lado, enquanto voávamos fazendo todo o possível para seguir as instruções. O terreno desdobrava-se sereno, sob nós, nossa estranha passageira mantinha-se em silêncio, e minha mulher estava tão quieta que dava a impressão de haver adormecido.

— Vire à direita — disse Leslie baixinho, por fim. Não me informou que descrevesse uma curva brusca ou suave, nem quartos graus.

Preferi fazer a curva suavemente. Virei o manche e o hidravião começou a se inclinar graciosamente.

— Basta isso... — disse ela, após um instante. As asas estabilizaram-se outra vez.

— Desça uns quinhentos pés.

Diminuí a velocidade e nos aproximamos um pouco mais das ondas.

Isso não é tão estranho assim, pensei. Os psíquicos quando tentam recordar outras vidas buscam o caminho sentindo o que parece ser o certo, transpondo paredes, passando por portas, até chegarem. Por que julgar esquisito que esse mesmo poder seja usado para conduzir o Seahawk, para levá-lo a localizar nossas vidas alternativas que o guia interior desejava que encontrássemos? E se não der certo, o que temos a perder?

— Para a direita, outra vez — orientou Leslie. E logo a seguir: — Para a frente. Desça mais quinhentos pés.

— Com isso vamos ficar bem junto da água — repliquei. Ela assentiu, ainda de olhos fechados.

— Prepare-se para amerissar.

Não houvera mudança alguma lá embaixo: uma complexidade infinita até onde a vista alcançava. Turbilhões iridescentes, interseções e paralelas cediam lugar a fusões, encontros e divergências, que passavam de tons pastéis ao negro e, depois, para coruscações de prata. Sobre tudo isso refulgia o mar cristalino daquele mundo estranho.

Virei-me para Pye, mas tudo que obtive como resposta foi uma expressão que indicava “espere e verá”.

— Vire à direita — disse Leslie — ...agora estabilize de novo. Estamos quase chegando. Um pouco para a esquerda... foi demais... um pouquinho à direita... Desligue o motor, pouse!

Desliguei o hidravião, e a quilha tocou as ondas imediatamente. Leslie abriu os olhos ao escutar o espadanar da água, e ficou tão atenta quanto eu, enquanto o mundo se dissolvia em borrifos. O Seahawk desapareceu, e com ele, Pye. Leslie e eu nos precipitamos, juntos, num crepúsculo dourado, passando por árvores numa margem de rio, atravessando as paredes de uma velha casa de pedra.

Paramos na sala de estar, baça e cinzenta. Teto baixo, uma lareira num canto, soalho velho de tábuas corridas, um caixote de laranjas fazendo as vezes de mesa, um castigado piano de armário encostado na parede. Até a luz naquela sala era cinzenta.

Numa cadeira antiga, à frente do piano, sentava-se uma moça magra. Tinha os cabelos louros e compridos, as roupas surradas. Á estante de música diante dela estava cheia de grossos volumes de peças de Beethoven, Bach, Schumann, Brahrns. Ela tocava, de cor, uma sonata de Beethoven, e do instrumento quase aos pedaços emanava uma música maravilhosa.

Leslie observava tudo isso à beira das lágrimas.

— É minha casa — sussurrou. — A casa em Upper Black Eddy! Richie, aquela sou eu!

Olhei, assombrado. Minha mulher me contara que a família não tinha muito o que comer quando na sua juventude, mas aquela moça estava à beira da inanição. Não era de admirar que raramente Leslie voltasse os olhos ao passado. Se o meu tivesse sido tão triste, tampouco eu gostaria de relembrá-lo.

A moça não se virou, continuando a tocar como se estivesse no céu.

Uma mulher surgiu na porta da cozinha. Prestou atenção à música, com a testa franzida de preocupação. Trazia na mão um envelope aberto. Era uma mulherzinha de traços bonitos, porém tão magra e mal vestida quanto a moça.

— Mamãe! — murmurou Leslie. — Tão jovem, tão bonita! — Mordeu o lábio para reprimir um soluço.

A mulher esperou a música terminar.

— Meu bem, isso é lindo, é muito bonito mesmo, e tenho orgulho de você — disse às costas da moça, balançando a cabeça com tristeza. — Sei que se esforça muito. Mas isso não tem futuro...

— Mãezinha, por favor...

— Você precisa ser realista — prosseguiu a mãe. — Há muitos pianistas. Você lembra o que o pastor lhe disse, que a irmã dele nunca conseguiu viver disso. E depois de tantos anos dedicados à escola!

— Ah, mamãe! — A moça levantou os braços, exasperada. — Não venha com essa história da irmã do pastor de novo! Será que ninguém pára para pensar que a irmã do pastor é péssima pianista? Que ela não consegue ganhar a vida com o piano porque é horrível?

A mãe não deu atenção às suas palavras.

— Sabe quantos anos você terá de estudar no conservatório? Sabe quanto isso custa?

A moça endureceu o semblante, olhou firme para as partituras, assentiu com determinação.

— Sei exatamente quanto custa. Tenho três empregos atualmente, mamãe, e vou conseguir o dinheiro.

A mulher suspirou.

— Não fique zangada comigo, meu bem. Só estou querendo ajudar. Não quero que você desperdice essas oportunidades maravilhosas, como eu fiz, para depois passar a vida toda se arrependendo. Mandei sua fotografia para Nova York porque sabia que essa poderia ser a sua salvação. O que importa é que você ganhou! Eles aceitaram você! — Colocou o envelope junto das partituras. — Pelo menos dê uma olhada. Aqui está sua oportunidade de se transformar em modelo de uma das maiores agências de Nova York, e acabar com essa luta sem fim. Trabalhar como garçonete, fazendo faxinas em casas de família, se matando de trabalhar!

— Não estou me matando de trabalhar!

— Olhe só para você! Está magra como um palito. Pensa que pode continuar assim por muito tempo, fazendo toda a semana da faculdade em dois dias, indo e voltando de Filadélfia porque não tem dinheiro para ficar lá mais de uma noite por semana? Não vai agüentar muito tempo. Só tem 17 anos e está exausta! Por que não dar ouvidos à razão?

A moça manteve-se quieta, em silêncio. A mãe olhava-a, balançando a cabeça, atônita.

— Qualquer moça adoraria ser modelo, e você quer desperdiçar essa oportunidade! Meu bem, ouça. Tente, durante cerca de um ano, economize, e depois poderá continuar com o piano, se ainda quiser.

A moça pegou o envelope, devolveu-o à mãe, por cima do ombro, sem olhar.

— Não quero ir para Nova York — disse, tentando controlar a raiva. — Não me interessa se ganhei ou não. Não quero ser modelo. E não me importa dar duro se for preciso para fazer o que gosto.

A mãe pegou a carta, já sem paciência.

— Será que esse piano é tudo em que você consegue pensar?

— É!

A moça abafou com as mãos qualquer possibilidade de diálogo, enchendo a sala com os sons que lia nas páginas à sua frente. Seus dedos ora eram borboletas, ora se transmudavam em aço. Com braços tão finos, pensei, de onde ela tira tanta força?

A mãe observou-a por um momento, tirou a carta do envelope, deixou-a aberta sobre o caixote de laranjas e saiu pela porta dos fundos.

Mas a moça continuou a tocar. No dia seguinte seria o recital em Filadélfia. A música teria de ser perfeita e magnífica. Na madrugada seguinte ela acordaria às quatro, para começar uma viagem de setenta quilômetros, seis horas a pé, de ônibus e de bonde. Teria aulas o dia inteiro e tocaria no recital de noite.

Depois dormiria na estação rodoviária, até a hora de voltar às aulas no dia seguinte, para economizar o dólar que pagaria numa pousada.

Leslie deixou-me de repente, indo postar-se ao lado da moça, que não lhe deu atenção.

Olhei, fascinado, para as partituras no piano. Como era estranho, pensei! Eram novas. São os mesmos livros... cujas páginas amareladas tenho virado em nosso piano atualmente.

Por fim a moça virou-se para Leslie — um rosto pálido c belo, de traços finos como os da mãe. Os olhos azuis falseavam, ressentidos.

— Se você é da agência de modelos — disse, prestes a extravasar a fúria —, a resposta é não. Obrigada, mas não.

Leslie sacudiu a cabeça.

— Não sou da Conover.

A moça olhou-a durante um longo instante, depois pôs-se de pé, boquiaberta e estupefata.

— Você... sou eu! — arquejou. — Você sou eu! Não é? Minha mulher anuiu com a cabeça.

A moça continuou a olhá-la.

— Mas você está crescida!

Como estivera assustada por trás daquela rude independência! Agora, punha-se de pé, cercada por sua miséria e seus sonhos, os olhos voltados para o futuro. Olhou em silêncio para minha mulher, e finalmente a pétrea muralha de resolução se rompeu.

Caiu de novo na cadeira, enterrando o rosto nas mãos.

— Ajude-me, — gritou. — Por favor, ajude-me!

 

Minha mulher ajoelhou-se ao lado da criança que ela fora, olhando para ela e falando com mansidão.

— Está tudo bem — disse à moça, consoladora. — Vai dar tudo certo. Você é uma moça de muita sorte. É mesmo!

A moça empertigou-se, olhou para ela sem acreditar no que ouvia, e afastou as lágrimas com as mãos.

— Eu, de sorte? Você chama isso de sorte? — Quase começou a rir, tomada de esperança, apesar dos soluços.

— Sorte, talento, privilégio. Você descobriu aquilo de que gosta! Pouquíssimas pessoas descobrem isso na sua idade. Algumas, nunca. Mas você já sabe.

— Música.

Minha mulher concordou.

— Você tem muitos dons: é inteligente e talentosa, ama a música e possui uma força de vontade inabalável. Nada é capaz de detê-la!

— Mas por que preciso ser tão pobre? Se ao menos... Este piano é uma... Escute! — Dedilhou o teclado quatro vezes, oito notas em oitavas velocíssimas. Até eu podia perceber que havia cordas quebradas dentro da caixa do instrumento. — Duas teclas estão mudas, e não temos dinheiro nem para... — A moça bateu com um punho nas teclas amareladas. — Por quê?

— Para que você possa provar que a força de vontade, o amor e o trabalho duro podem tirá-la da pobreza e do desespero. E algum dia, talvez, poderá transmitir isso a alguma outra jovem que viva nas mesmas dificuldades. E quando ela disser, “Ah, para você é fácil dizer isso, porque é uma pianista famosa, é rica, mas eu... Não tenho nem o suficiente para comer, e preciso me exercitar nessa porcaria de...”, você poderá transmitir a sua experiência, ajudar essa jovem a ir em frente.

A moça pensou um pouco.

— Estou choramingando, e nem sei por quê. Detesto choramingações.

— Não há nada demais em dasabafar comigo — disse Leslie.

— Eu vou conseguir ir em frente? Vou ter sucesso? — perguntou.

— As escolhas são suas, mais do que você suspeita. — Leslie lançou-me um olhar de soslaio. — Se nunca abrir mão daquilo que lhe é importante, se isso for tão importante que você se disponha a se esfalfar para consegui-lo, prometo-lhe uma vida cheia de sucessos. Uma vida difícil, porque fazer alguma coisa melhor do que a maioria não é fácil, mas uma vida ótima.

A moça olhou-a um tanto perplexa.

— Eu poderia ter uma vida fácil e ruim?

— Essa também é uma escolha.

Um brilho de malícia luziu-lhe nos olhos.

— E uma vida fácil e alegre? Ambas riram.

— Talvez — disse Leslie. — Mas não escolheria uma vida fácil, não é?

A moça olhou para ela, concordando.

— Quero fazer exatamente o que você fez.

— Não — respondeu Leslie, sacudindo a cabeça com um sorriso contristado. — Não creio que possa. Você deve seguir seu próprio rumo, traçar seu próprio caminho.

— Você é feliz?

— Sou!

— Então quero fazer o que fez.

Leslie examinou a moça por um momento, resolveu contar o pior:

— Nem sempre minha vida foi fácil. Houve vezes em que foi tão difícil que perdi a vontade de viver. Muitas vezes. Algumas vezes tentei acabar com a vida...

Lágrimas repentinas brotaram nos olhos da moça.

— Eu também!

— Eu sei — disse Leslie. — Sei como é difícil para você permanecer viva.

— Mas você conseguiu sair disso. Como?

Leslie levantou-se e virou-se, com vergonha de encará-la.

— Aceitei o emprego com a Conover. Desisti do piano. A moça também se levantou, atônita, incapaz de acreditar.

— Mas, como? E... e aquela história de amor e força de vontade?

Leslie virou-se novamente.

— Sei como você está vivendo em Filadélfia, dormindo na rodoviária, usando o dinheiro da pousada e da comida para comprar músicas. Mamãe teria um troço se soubesse. Você passa o tempo todo à beira do desastre.

A moça concordou.

— Fiz a mesma coisa. Foi então que perdi um dos empregos e caí no abismo... Não consegui achar outro trabalho logo, nem passando fome consegui manter a situação. Por isso, cheguei à conclusão de que mamãe estava certa.

“Resolvi que podia tirar um ano, trabalhar dia e noite, poupar tudo quanto pudesse, resolvi que poderia ganhar dinheiro suficiente para obter meu mestrado... — A frase acabou em lembranças melancólicas.

— Mas você não fez nada?

— Não... fiz muito. O sucesso me atingiu como uma tempestade: propostas para ser modelo, depois televisão. Em um ano eu estava em Hollywood assinando contrato com a Twentieth Century-Fox, para fazer filmes. Mas eu fazia o que não gostava, e por isso não parecia sucesso. Por outro lado, eu podia agora ajudar minha família, de modo que nunca conseguia justificar o egoísmo de abandonar tudo e voltar à minha música. Mas nunca resolvi ficar, eu só ia ficando... uma decisão passiva. Mais tarde, entendi que estivera tentando, sempre, abandonar aquele mundo de espetáculos. Sabotei a carreira tantas vezes que nem merecia tê-la.

Seguiu-se um longo silêncio. As duas pensavam nas implicações daquelas palavras.

— O sucesso foi uma vida ruim, acredite ou não — continuou Leslie. — Eu sempre achava que não tinha nada a ver com aquilo, que eu era uma impostora. A maioria das pessoas que têm sucesso rápido sente-se assim, mas eu não sabia disso na época, sentia-me só. Não podia dizer a ninguém. Como poderia me queixar das coisas boas que me estavam acontecendo? — Leslie suspirou. — É isso. Quando abandonei a música, tive aventura, desafio, emoção, aprendi muito...

A moça interrompeu-a admirada.

— Mas o que há de errado com isso? Não me parece uma coisa ruim!

— Eu sei — anuiu Leslie. — Por isso era tão difícil compreender, era tão difícil sair. No entanto, anos depois, entendi que ao renunciar à música renunciei à oportunidade de uma vida tranqüila e feliz, fazendo aquilo de que realmente gostava. Renunciei àquela vida durante muito tempo, pelo menos.

Fiquei surpreso ante essas palavras. Leslie nunca me contara. Só agora eu percebia o que ela poderia ter sido, o que ela havia posto de lado ao saltar da música para o gelo de sua carreira em Hollywood.

A moça parecia inteiramente confusa.

— Bem, isso aconteceu com você, mas aconteceria comigo? O que devo fazer?

— Só há uma pessoa no mundo capaz de responder essa pergunta: você mesma. Descubra o que realmente deseja e faça isso. Não passe vinte anos de sua existência vivendo passivamente, quando pode decidir agora mesmo seguir o rumo que deseja. O que você realmente quer?

A moça não titubeou.

— Quero aprender. Quero ser a melhor no que faço. Quero dar ao mundo alguma coisa bela!

— Você há de fazer isso. Que mais deseja?

— Quero ser feliz. Não desejo ser pobre.

— Sei. O que mais? A moça animou-se.

— Quero acreditar que há uma razão para viver, uma coisa que faça sentido, um princípio que me ajude a suportar os momentos difíceis e também os bons. Não se trata de religião, porque já tentei, tentei mesmo, e em vez de respostas, tudo que escuto é “Tenha fé, minha filha.”

Leslie franziu o cenho, recordando-se.

— E, além disso — continuou a moça, subitamente acanhada —, quero acreditar que há no mundo uma outra pessoa tão solitária quanto eu. Quero acreditar que vamos nos encontrar, e que... vamos amar um ao outro, e que nunca mais estaremos sozinhos!

— Escute — falou minha mulher, olhando-a nos olhos com muita intensidade. — Tudo o que você disse, tudo aquilo em que quer acreditar, já é verdade. Você poderá não encontrar alguma coisa durante algum tempo, e até poderá demorar mais para achar outras coisas, mas isso não impede que sejam verdadeiras neste exato instante!

— Até uma pessoa para amar? Haverá mesmo alguém para mim? Ele também é verdade?

— Ele se chama Richard. Quer conhecê-lo?

— Conhecê-lo agora? — espantou-se.

Leslie estendeu a mão da moça para mim. Saí de trás dela, satisfeito com o fato de aquele aspecto de uma pessoa tão querida desejar me conhecer.

Ela me olhou, aturdida.

— Olá — saudei-a, um pouco perturbado também. Como era estranho ver aquele rosto, tão diferente do da mulher que eu amava, e ao mesmo tempo tão igual!

— Você parece muito... assim... muito adulto para mim. — Ela achara, por fim, uma maneira delicada de dizer velho.

— Na época em que me conhecer, vai gostar de homens mais velhos — respondi.

— Não amo homens mais velhos! — disse minha mulher, passando o braço em volta de minha cintura. — Eu amo este homem mais velho...

A moça olhou-nos, assim abraçados.

— Não sei se está direito perguntar, mas vocês são realmente felizes juntos? — Por seu tom, percebia-se que ela achava difícil acreditar nisso.

— Mais felizes do que você consegue imaginar — respondi

— Quando vou conhecê-lo? Onde? No conservatório? Deveria eu dizer-lhe a verdade? Que isso levaria mais vinte anos, um casamento desfeito, outros homens? Que antes de nos conhecermos, aquela jovem, ao lado de seu velho piano, teria de viver tudo quanto já vivera e mais a metade? Olhei para minha mulher.

— Ainda vai levar bastante tempo — disse ela, amável. -Ah.

Menina valente, pensei. Ainda vai levar bastante tempo, devia ter feito com que ela se sentisse mais solitária que nunca. A moça voltou-se para mim.

— E o que você resolveu ser? — perguntou. — Também é pianista?

— Não. Sou aviador...

A moça olhou para Leslie, pesarosa.

— ...mas estou aprendendo a tocar flauta.

Era visível que flautistas amadores não a impressionavam. Ela deixou a questão de lado, resolvida a procurar meu lado mais emocionante, e aproximou-se de mim.

— O que pode me ensinar? O que é que você sabe?

— Sei que todos nós estamos na escola. Alguns dos cursos obrigatórios são: idade, aparência, relações com outras pessoas, alimentação e moradia — respondi com segundas intenções. Ela sorriu, como que culpada, percebendo que eu tomara conhecimento de sua vida tão pobre. — Sabe o que sei mais?

— O quê?

— Nem discussões, nem argumentos, nem fatos modificam seu modo de pensar. Para nós é fácil resolver seus problemas, todo problema é simples depois de o ter solucionado. Mas nem mesmo seu futuro ser, que se materializa diante de você e lhe diz, palavra por palavra, o que você há de fazer nos próximos trinta anos, há de alterar sua maneira de pensar. A única coisa capaz de alterá-la é seu próprio entendimento das coisas, individual, pessoal e exclusivo!

Os olhos da moça brilharam.

— Quer que eu aprenda isso com você? — Riu. — Escutei isso a vida inteira. Toda minha família me acha obstinada e esquisita. Achariam péssimo ouvir alguém me incentivar.

— Por que acha que viemos vê-la? — perguntou Leslie.

— Por que estão com medo que eu me mate? — perguntou a moça. — Porque gostariam que algum eu futuro de vocês os tivesse visitado nessa idade para dizer “Não se preocupem, vocês vão sobreviver”. Não é isso? Leslie concordou.

— Exatamente.

— Mas, em vez disso, sou eu quem lhes diz: Não se preocupem — continuou a moça. — Prometo sobreviver. Mais que isso, prometo que ficarão felizes por eu ter vivido, prometo que sentirão orgulho de mim!

— Tenho orgulho de você! — disse Leslie. — Nós dois temos. Minha vida esteve em suas mãos, e você não me deixou morrer, não desistiu quando tudo ao redor era desespero. Talvez não tenhamos vindo para lhe ensinar coisa alguma, talvez tenhamos vindo só para lhe agradecer por ter aberto o caminho. Por possibilitar a Richard e a mim encontrarmos um ao outro e sermos felizes.Talvez tenhamos vindo para lhe dizer que a amamos.

O mundo começou a tremer à nossa volta. O cenário cinzento ficou borrado, estávamos sendo arrastados.

Ela pressentiu que íamos embora, afastou as lágrimas dos olhos.

— Vou revê-los?

— Esperamos que sim — respondeu Leslie, e agora era ela quem soluçava.

— Obrigada por virem! — gritou a moça. — Obrigada! Devemos ter desaparecido para ela, pois em meio à névoa nós a vimos encostar-se ao velho piano, de cabeça baixa. Depois sentou-se na cadeira e os dedos começaram a mover-se sobre as teclas.

 

A sala tosca desapareceu em meio ao espadanar da água e do ronco do motor.

Pye largou o manete, recostou-se no banco de trás e ficou a nos observar, toda solidariedade

— Ela teve uma vida tão difícil! — lamentou Leslie, enxugando os olhos. — Era tão solitária! É justo que recebamos a recompensa da coragem e do esforço dela?

— Lembre-se de que foi ela quem escolheu aquela vida — retrucou Pye. — E escolheu as recompensas, também.

— Que quer dizer? — indagou Leslie.

— Ela não faz parte de você agora?

Claro, pensei. O prazer que a música lhe proporcionava, sua personalidade obstinada, até mesmo seu corpo, trabalhado e modelado por anos de decisões... Por acaso tudo isso não estava ali a nosso lado, naquele exato momento?

— Acho que sim — respondeu Leslie. — Mas fico pensando o que terá acontecido a ela...

— Aconteceu a ela tudo — disse Pye. — Ela ficou com a música e não ficou, viajou para Nova York e não viajou, é uma famosa concertista, matou-se, é professora de matemática, é uma estrela de cinema, é uma ativista política, é embaixadora na Polônia. A cada reviravolta da vida de uma pessoa, a cada vez que ela toma uma decisão, torna-se geradora de todas as suas pessoas alternativas que se seguem. Você é uma das filhas dela... A única filha dela na sua vida, Leslie, no mundo que você conhece.

Estabilizei o hidravião a algumas centenas de pés acima do nível do mar, e puxei o manete para a velocidade de cruzeiro. Não havia necessidade de uma altitude maior quando o mundo inteiro era uma pista de pouso.

Lá embaixo, os desenhos passavam, velozes, trilhas e cores intermináveis sob a água.

— Complicado, não? — perguntei.

— É como uma tapeçaria — disse Pye. — Fio por fio, é simples. Mas tente tecê-la a metros... As coisas se emaranham.

— Sente falta das pessoas que já foi? — perguntei à nossa guia. — Sente falta de nós?

Pye sorriu.

— Não vivo no espaço-tempo. Estou sempre com vocês. Como sentir falta de vocês se nunca estamos afastados?

— Mas, Pye, você tem um corpo — insisti. — Pode não ser exatamente igual ao nosso, mas tem uma determinada dimensão, um certo aspecto...

— Não, não tenho corpo. Vocês percebem minha presença, e acham melhor percebê-la como um corpo. Poderiam ter escolhido inúmeras outras percepções. Todas são úteis, mas nenhuma verdadeira.

Leslie virou-se para olhá-la.

— Por exemplo, que percepção superior poderíamos ter escolhido?

Virei-me também e vi uma estrela branco-azulada de pura luz, um arco voltaico na cabine. O mundo tornou-se incandescente.

Viramos o rosto com um arranco. Fechei os olhos com força, mas aquele clarão persistiu, cauterizante. A seguir, desvaneceu-se. Pye tocou nossos ombros e pudemos vê-la de novo.

— Desculpe — falou. — Como fui descuidada! Vocês não podem ver-me como eu sou, não podem tocar-me como sou. Sequer podemos falar com palavras e dizer a verdade. A linguagem não consegue decrever... Para mim dizer eu e não pretender dizer vocês-nós-todos-espírito-Um é o mesmo que falar mentiras, mas não utilizar palavras equivale a perder essa oportunidade de conversarmos. É melhor mentiras bem-intencionadas do que o silêncio, ou não mencionar coisa alguma...

Meus olhos ainda estavam ofuscados pela luz.

— Meu Deus, Pye, quando vamos aprender a fazer isso?

— Vocês já são isso — riu ela. — O que tiveram de aprender no espaço-tempo foi manter suas luzes apagadas!

Fiquei mais perplexo do que nunca, e um tanto nervoso por depender daquela criatura. Por mais simpática que se mostrasse, ela controlava nossas vidas.

— Pye, quando quisermos voltar dessas pessoas alternativas, essas que visitamos, como poderemos fazer o hidravião se mover para nos levar embora? Como será possível estarmos em dois lugares ao mesmo tempo?

— Vocês não estão em dois lugares ao mesmo tempo, estão em toda parte ao mesmo tempo. Não precisam do hidravião ou dos desenhos. O que ocorre é que vocês lhes dão forma através da imaginação. E seu mundo adquire a forma que sua imaginação lhe dá.

— Imagino levar minha mão ao manete? Como posso levar a mão ao manete se estou inteiramente em outro mundo? Se você não o tivesse empurrado para a frente, estaríamos presos em 1952!

— Não. É você que governa seus mundos, não são eles quem o governam. Gostaria de tentar outra vez?

Leslie pôs a mão em meu joelho e assumiu os controles.

— Experimente, querido. Feche os olhos, diga-me para onde devo voar.

Recostei-me no assento e fechei os olhos.

— Siga em frente — comandei, sentindo-me um pouco bobo. Poderia perfeitamente ter dito “Suba constantemente”.

O motor embalou-nos durante algum tempo. Então, embora eu nada visse, surgiu um súbito propósito na escuridão.

— Vire à direita — falei. — Bem para a direita.

Senti o avião inclinar-se para o lado. A seguir, vi fios luminosos, um fino feixe de névoa que se estendia verticalmente, atravessado por um outro, horizontal. Estávamos à esquerda do ponto em que se cruzavam, aproximando-nos do centro.

— Certo. Continue assim.

A cruz começou a descer, pôs-se a entrar em foco.

— Desça um pouco. Mais à esquerda...

Agora a imagem em minha mente era clara como os ponteiros em uma aproximação por instrumentos, e tão precisos quanto eles. Como nossa imaginação parece real!

— Desça um pouco. Estamos em trajetória de aproximação, bem rumo ao alvo. Um pouco para a esquerda. Devemos estar quase pousando, não é?

— Faltam alguns pés — respondeu Leslie.

— Certo. Agora. Desligue o motor. — Ouvi as ondas roçarem a quilha de nosso barco voador. Ao abrir os olhos, vi o mundo desaparecer, envolto em borrifos. Nesse instante tudo se transformou num negrume móvel, baças formas prateadas que estremeciam na escuridão, e por fim paramos. Ar livre, noite.

Achávamo-nos num vasto campo de concreto... uma base aérea! Luzes azuis de rolagem nas extremidades, pistas a distância, caças a jato parados na área de estacionamento, formas prateadas ao luar.

— Onde estamos? — sussurrou Leslie.

Os caças, fileiras após fileiras, eram Sabrejets norte-americanos F-86F. Imediatamente percebi onde estávamos.

— Esta é a base aérea Williams, no Arizona. Escola de com bate aéreo. Estamos em 1957. Eu costumava vir para aqui de noite, só para ficar perto dos aviões.

— Por que estamos sussurrando? — perguntou ela. Naquele instante, um jipe da polícia da Aeronáutica fez uma curva ao final de uma fileira de aparelhos, patrulhando, e veio em nossa direção. Diminuiu a marcha, contornou um caça estacionado à nossa direita e parou.

Não podíamos ver o policial, mas escutávamos sua voz.

— Com licença, senhor. Quer fazer o favor de mostrar sua identificação?

Alguém respondeu em voz baixa, umas poucas sílabas que não conseguimos entender.

— É comigo que ele está falando — falei a Leslie. — Eu me lembro disso...

— Ótimo, senhor. Estamos apenas verificando. Está tudo certo.

Logo depois o jipe deu marcha à ré para se afastar do avião, engatou uma primeira, roncou e deu a volta do outro lado do caça. Se o motorista nos viu, não deu sinal disso. Antes que pudéssemos nos afastar, os faróis haviam-se transformado em sóis fulgentes a investir em nossa direção.

— CUIDADO! — gritei, mas era tarde demais. Leslie gritou.

O jipe atingiu-nos de frente, atropelou-nos sem um instante de hesitação e desapareceu ao longe, ainda acelerando.

— Ah — falei. — Esqueci-me. Desculpe!

— A gente demora a se acostumar! — respondeu Leslie, sem fôlego.

Apareceu um vulto no nariz do avião.

— Quem está aí? Você está bem?

O homem usava um traje de vôo de náilon escuro. Ele próprio parecia um fantasma ao luar. Asas de piloto bordadas no dólmã, distintivo de segundo-tenente.

— Vá você lá — murmurou Leslie. — Vou ficar por aqui. Balancei a cabeça e abracei-a.

— Estou bem — respondi. — Posso me aproximar, senhor? — Sorri, achando graça por falar como um cadete depois de tantos anos.

— Quem é?

Para que ele precisava fazer aquele tipo de pergunta?

— Tenente, sou o segundo-tenente Bach, Richard D., A-0 Três-Zero-Oito-Zero-Sete-Sete-Quatro!

— É você, Mize? — Ele riu. — O que está fazendo aqui, que nem um bobalhão?

Phil Mizenhalter, pensei. Grande sujeito! Daqui a dez anos estará morto, abatido com seu F-105 no Vietnã.

— Não sou Mize — respondi. — Sou Richard Bach, sou você vindo do futuro, trinta anos a contar desta noite.

Ele perscrutou a escuridão.

— Você é quem?

Se vamos fazer isso mais vezes, pensei, é melhor nos acostumarmos a essa pergunta.

— Sou você, tenente. Sou você com um pouco mais de experiência. Sou aquele que cometeu todos os erros que você cometeu, e que não se sabe como, sobreviveu.

Ele se aproximou um pouco, inspecionando-me na escuridão, ainda achando que se tratava de uma brincadeira.

— Eu vou cometer erros? — exclamou. — Difícil de acreditar!

— Chame-os de experiências inesperadas de aprendizado.

— Não vou cometer erros se você me avisar — retrucou.

— Você já cometeu um erro enorme. Ingressou na carreira militar. O melhor a fazer seria dar o fora agora mesmo. O melhor, não. O sensato.

— Ah! — exclamou ele. — Acabei de me formar na escola de vôo! Ainda não consigo acreditar que sou um piloto da Força Aérea, e você vem com essa história de dar o fora. Muito boa, essa! O que mais sabe?

— Muito bem. No passado de que me lembro, achei que estava usando a Força Aérea para aprender a voar. Na verdade, era a Força Aérea que estava me usando, e eu não sabia.

— Mas eu sei! — replicou ele. — Acontece que gosto de meu país, e se for preciso lutar para mantê-lo livre, quero participar da briga!

— Lembra-se do tenente Wyeth? Fale-me sobre o tenente Wyeth. — Ele me olhou de soslaio, contrafeito.

— O nome dele era Wyatt — corrigiu. — Instrutor de treinamento preliminar de vôo. Alguma coisa aconteceu a ele na Coréia, e ficou meio doido. Diante de toda nossa turma, escreveu em letras grandes no quadro: ASSASSINOS! Depois, virou-se, olhou-nos de cara feia e disse: “São vocês!” O nome dele era Wyatt.

Encostei-me na asa do avião.

— Sabe o que vai aprender em seu futuro, Richard? Vai descobrir que o tenente Wyatt era a pessoa mais sã que você conheceu na Força Aérea.

Ele sacudiu a cabeça, triste.

— Sabe, de vez em quando fico pensando como seria um encontro meu com você, como seria uma conversa com o homem que serei daqui a trinta anos. Você não é como ele De jeito nenhum! Ele se orgulha de mim!

— Também me orgulho de você. Mas não pelos motivos que imagina. Se me orgulho, é porque sei que você está fazendo seu trabalho da melhor maneira que é capaz. Mas não me orgulha o fato de que o melhor que sabe fazer é se apresentar como voluntário para matar pessoas, metralhar, bombardear e lançar napalm sobre aldeias cheias de mulheres e crianças aterrorizadas.

— Nunca vou fazer isso! O que vou fazer é tomar parte em combates aéreos, em missões de interceptação e defesa.

Fiquei em silêncio.

— Bem, a defesa aérea é o que eu gostaria de fazer... Continuei a olhá-lo, no escuro.

— Ora, estou servindo a meu país e farei qualquer coisa que...

— Você pode servir a seu país de milhares de outras maneiras. Vamos, por que está aqui, realmente? Será que é suficientemente honesto para pelo menos admitir a verdade para si mesmo?

Ele hesitou por um momento.

— Eu quero voar.

— Você estava aprendendo a voar antes de entrar para a Força Aérea. Poderia ter voado Piper Cubs e Cessnas.

— Eles não são... rápidos o bastante.

— Não são como os aviões que aparecem nos cartazes de recrutamento, não é? Os Cessnas não são como os aviões do cinema.

Silêncio.

— Não.

— Então, por que está aqui?

— É uma coisa que tem a ver com alto desempenho... — Ele se conteve, procurando agora ser o mais honesto possível. — Os caças de combate têm uma atração... Uma coisa relacionada com uma sensação maravilhosa, que nada mais tem, uma sensação de realização!

— Fale-me sobre essa sensação.

— Ela vem de um... um domínio da situação. Quando vôo nesse aparelho... bem, não estou enfiado na lama até a cintura, não estou preso a mesas ou edifícios, nem a coisa alguma na Terra. — Então afagou carinhosamente a asa do caça. — Movo-me mais depressa que o som, a quarenta mil pés de altitude.. Praticamente nenhum outro ser vivo já esteve ali. Alguma coisa dentro de mim sabe que não somos criaturas presas ao chão, diz que nós não temos limites, e é voando num avião desses que quase consigo tomar concreto aquilo que acredito ser verdade. Por acaso, é um caça.

Claro. Fora esse o motivo que me levara a desejar a velocidade, o deslumbramento e o uivo da turbina. Jamais formulara aquilo em palavras, nunca articulara a idéia. Apenas a sentira.

— Detesto quando penduram bombas em aviões — continuou. — Mas nada posso fazer. Se não fossem as bombas, não haveria um aparelho como esse.

Sem você, pensei, a guerra morreria. Toquei de leve a asa do caça. Até hoje, considero-o o mais belo avião já construído.

— Lindo — falei. — Isca.

— Isca?

— Os aviões de caça são a isca. Você é o peixe.

— E o que é o anzol?

— O anzol há de matá-lo quando você descobrir. O anzol é o fato de que você, Richard Bach, um ser humano, é pessoalmente responsável por todo homem, toda mulher e toda criança que virá a matar com esta máquina.

— Eu? Um momento! A responsabilidade não é minha, não tenho nada a ver com decisões desse tipo. Obedeço a ordens, mas...

— A guerra não é desculpa, a Força Aérea não é desculpa, as ordens não são desculpa. Cada assassínio o perseguirá até o dia de sua morte, a cada noite você acordará aos gritos, matando cada um deles de novo, sempre, sem parar.

Ele retesou-se.

— Escute, sem a Força Aérea, se formos atacados... Estou aqui para proteger nossa liberdade*.

— Você disse antes que estava aqui porque queria voar, e por causa da sensação de realização.

— Minha capacidade como piloto protege meu país...

— É isso que os outros também dizem, palavra por palavra. Os soldados russos, os chineses, os árabes, os soldados sem importância da nação sem importância. Eles aprendem a proclamar que Eles Confiam em Nós, Defendamos a Pátria Contra Eles. Mas Eles, Richard, é você.

Sua arrogância desapareceu de repente.

— Lembra-se dos aeromodelos? — perguntou, quase humilde. — Foram mil aeromodelos, e um pedacinho de mim voou em cada um deles. Lembra-se das árvores em que eu subia, olhando para baixo? Eu era o pássaro, ansioso em poder voar. Lembra-se do primeiro vôo, naquele festival de aviação? Não fui a mesma pessoa durante dias! Aliás, nunca mais fui a mesma pessoa.

— Faz parte do planejamento — respondi.

— Planejamento?

— Assim que você aprendeu a ver, imagens. Assim que aprendeu a escutar, histórias e hinos. Assim que aprendeu a ler, livros, cartazes, bandeiras, filmes, estátuas e tradições, aulas de história, juramento à bandeira. Há Nós e há Eles. Eles nos farão mal se não formos vigilantes, desconfiados, zangados, se não nos armarmos. Obedeça a ordens, faça o que mandarem, defenda seu país.

“Estimule a curiosidade dos meninos por máquinas que se movimentam: automóveis, navios, aviões. Depois, coloque diante deles as mais esplêndidas dessas máquinas maravilhosas e mágicas, num único lugar: nas forças armadas de todo país do mundo. Arraste os motoristas para tanques de milhões de dólares, faça com que os amantes do mar comandem cruzadores nucleares, ofereça aos candidatos a aviadores, a você, Richard, os mais velozes aviões da história, produzidos em seu próprio país, e você passa a usar esse capacete reluzente, pinta seu nome do lado de fora da carlinga!

“E eles o estimulam: Você t competente mesmo? É resistente mesmo? E eles o elogiam: Elite! Asas indomáveis! Eles o envolvem em bandeiras, espetam asas em seu bolso, pregam distintivos em seus ombros, penduram em medalhas no peito, apenas porque você faz o que lhe é ordenado.

“Não estou falando de idiotas, Richard, estou falando de você, engolindo a isca e sentindo-se orgulhoso disso. Orgulhoso como um belo marlim azul em seu lindo uniforme azul, fisgado por esse maravilhoso avião, puxado pela linha em direção à sua própria morte, sua própria morte agradecida, orgulhosa, patriótica, honrada, inútil, estúpida. Você vai morrer, lentamente, pregado na cruz de sua própria responsabilidade pessoal.

“E os Estados Unidos não se importarão, a Força Aérea não se importará e o general que deu as ordens também não se importará. Só você há de se importar, eternamente, com o fato de haver assassinado as pessoas que vai assassinar. Você, elas e as famílias delas. Grande realização Richard...

Virei-me e me afastei, deixando-o junto à asa do caça. Serão as vidas a tal ponto determinadas pela doutrinação, pensei, que não há possibilidade de mudança? Porventura eu mudaria, eu daria ouvidos a mim mesmo se fosse ele?

Ele não levantou a voz, nem gritou. Falou como se não tivesse notado que eu me afastara.

— O que quer dizer quando afirma que sou responsável?

Que sensação esquisita! Eu estava conversando comigo mesmo, mas aquela mente não era mais minha, não tinha como mudá-la. Só podemos transformar nossas vidas na eternidade in-finitesimal que é o nosso agora. Se nos afastamos um momento daquele agora, já se trata da decisão de outra pessoa!

Esforcei-me por ouvir o que ele dizia.

— Quantas pessoas vou matar?

Retrocedi para ir falar com ele.

— Em 1962, você será mandado à Europa com a 478ª Esquadrilha Tática de Caças. O episódio será chamado de “a crise de Berlim”. Vai decorar as rotas para dois alvos, um primário e outro secundário. Há uma possibilidade de que, daqui a cinco anos, você lance uma bomba de cinqüenta megatons sobre a cidade de Kiev.

Fiquei a observá-lo.

— A cidade é conhecida principalmente por sua indústria editorial e cinematográfica, mas o importante para você serão as oficinas ferroviárias no centro da cidade e as fábricas de máquinas-ferramentas nas cercanias.

— Quantas pessoas...?

— Haverá em Kiev, naquele inverno, 866.000 pessoas, e se você obedecer às ordens, os poucos milhares que sobreviverem a seu ataque desejarão estar mortos.

— Oitocentos e sessenta e seis mil pessoas?

— Pavios curtos, o orgulho nacional em jogo, a segurança do mundo livre. Um ultimato após o outro...

— Eu lançarei... eu lancei a bomba? — Estava muito tenso, ouvindo seu futuro.

Abri a boca para dizer que não, os soviéticos recuaram, mas fiquei tonto de raiva. Algum ego alternativo, de um holocausto passado e diferente, agarrou-me pelo pescoço e falou com ferocidade. Era uma voz cortante, rouca, desesperada em sua tentativa de convencê-lo.

— Claro que lançou! Não contestei a ordem, tal como você não contestou! Pensei: se estamos em guerra, é o presidente que dispõe de todos os fatos, é ele quem toma as decisões, ele é o responsável. Nem por um instante pensei, até decolar, que o presidente não pode ser responsável pelo lançamento da bomba porque o presidente não sabe pilotar um avião! — Esforcei-me para me controlar, perdido. — O presidente não distingue uma chave de lançamento de míssil de um pedal de leme, ele não pode ligar o motor, não pode taxiar até a pista... Sem mim ele seria um idiota inofensivo em Washington, e o mundo permaneceria o mesmo sem a guerra nuclear que ele inventou. Mas, Richard, esse idiota tinha a mim! Como ele não sabia matar um milhão de pessoas, fiz isso para ele! A arma dele não era a bomba, era eu! Na época não juntei os fatos: pouquíssimas pessoas no mundo sabiam fazer essas coisas, e sem nós não seria possível haver guerra alguma! Destruí Kiev, pode acreditar nisso? Incinerei um milhão de pessoas porque um maluco qualquer... me mandou fazer isso!

O tenente estava boquiaberto, a me olhar.

— Por acaso a Força Aérea ensinou-lhe ética? — sibilei. — Você algum dia teve um curso chamado Responsabilidade dos pilotos de caças? Nunca teve, nem terá. Tudo o que a Força Aérea lhe disse é que obedecesse a ordens, que fizesse o que lhe era ordenado. A Força Aérea não diz que você deve viver com a sua consciência. Você obedece à ordem de acabar com Kiev, e seis horas depois um sujeito de quem você seria amigo, um piloto chamado Pavel Tchemov, obedece às ordens que ele recebeu e põe fim à existência de Los Angeles. Todo mundo morre. Se você mata a si mesmo quando assassina os russos, por aue matá-los, então!

— Mas eu... eu prometi obedecer a ordens!

No mesmo instante, o louco largou meu pescoço, desesperado, e desapareceu. Tentei raciocinar de novo com o tenente.

— O que hão de fazer com você se não obedecer às ordens? Dirão que não é um profissional? Submeterão você à corte marcial? Vão matá-lo? Isso seria pior do que o que fará à cidade de Kiev?

Durante um longo momento, ele me olhou em silêncio.

— Se você pudesse me dizer qualquer coisa — falou, por fim —, e eu prometesse lembrar-me do que falou, o que me diria? Que está envergonhado de mim?

Dei um murro na asa do avião.

— Ah, garoto, seria muito mais fácil para mim se você simplesmente teimasse, insistisse em que está com a razão ao obedecer a ordens. Por que precisa ser tão cordato?

— Porque sou o senhor!

Encostei-me no metal frio e enterrei o rosto nas mãos. Senti um toque no ombro, e levantando o olhar vi o brilho de cabelos dourados ao luar.

— Apresenta-me? — disse Leslie. As sombras revelavam uma feiticeira na noite.

Empertiguei-me logo, captando apenas um vislumbre do que ela pretendia.

— Este é o tenente Bach. Quero apresentá-lo a Leslie Parrish. Sua companheira, sua futura mulher, aquela por quem esteve procurando, aquela que você encontrará ao fim de muitas aventuras, no começo da serenidade feliz.

— Como vai? — cumprimentou ela.

— Eu... ah... Como vai? — respondeu ele, hesitante. — Você disse... minha mulher?

— No tempo oportuno — respondeu Leslie.

— Tem certeza de que se refere a mim?

— Existe, neste momento, uma Leslie jovem — disse ela — que está começando a carreira, imaginando quem será você, onde está, quando vão se encontrar...

O rapaz a encarava com assombro. Durante anos sonhara com ela, a amara, soubera que em algum lugar escondido do mundo ela estava à sua espera.

— Não posso acreditar nisso. Você veio de meu futuro?

— Um de seus futuros — retrucou Leslie.

— Mas como podemos nos encontrar, onde você está agora?

— Não poderemos nos encontrar enquanto você estiver na Força Aérea! Num determinado futuro, jamais nos encontraremos.

— Mas se somos companheiros um do outro, devemos nos encontrar! Os companheiros nascem para passar a vida juntos!

Leslie recuou um pouco, afastando-se dele.

— Talvez não.

Nunca esteve tão linda como esta noite, pensei. E como ele anseia por saltar no tempo para encontrá-la!

— Jamais pensei que alguma coisa pudesse... Qual é o poder capaz de afastar duas pessoas que nasceram uma para a outra? — perguntou ele.

Era minha mulher quem falava? Ou seria uma Leslie alternativa, vinda de seu próprio futuro diferente?

— Meu querido Richard — disse ela —, naquele futuro em que você bombardeia Kiev, e seu amigo russo, o piloto, bombardeia Los Angeles? O estúdio da Twentieth Century-Fox, onde estarei trabalhando, fica a mais ou menos um quilômetro e meio do ponto zero. Estarei morta um segundo após a queda da primeira bomba. — Virou-se para mim, com um darão de terror na expressão, sentindo que o objetivo de nossas vidas estava perdido. Há alguns futuros, clamava aquela outra Leslie... Nem sempre as pessoas que nasceram uma para a outra se encontram!

Coloquei-me a seu lado, enlaçando-a, amparando-a enquanto passava o terror.

— Não podemos modificar isso — avisei.

Ela concordou, já sem angústia, entendendo a situação antes de mim.

— Tem razão — disse com tristeza, e virou o rosto para o tenente. — A escolha não é nossa. É sua.

Havíamos dito tudo quanto sabíamos. Ele estava a par de tudo que sabíamos.

Em algum ponto de nosso futuro simultâneo, Leslie fez o que Pye nos indicara. O momento da despedida havia chegado. Fechando os olhos, imaginando o mundo dos desenhos sob a água, ela empurrou o manete do Seahawk para a frente.

O céu noturno, os caças e toda a base estremeceram à nossa volta, como também o próprio tenente, que dizia “Esperem...!”.

E desapareceram.

Meu Deus, pensei. Ante a ordem de algum presidente, mulheres, crianças e homens, amantes e padeiros, atrizes e músicos, comediantes, médicos e bibliotecários... o tenente mataria todos, sem misericórdia. Gatinhos e pássaros, árvores, flores e fontes, livros, museus e obras de arte... ele calcinará sua própria alma irmã, e nada que possamos argumentar é capaz de detê-lo. Ele sou eu, mas não posso detê-lo!

Leslie leu meu pensamento, segurou-me a mão.

— Richard, querido, escute. Talvez não pudemos detê-lo. Mas talvez consigamos.

 

Leslie manteve o manete à frente, e o Martin ganhou suavemente o céu. A cem pés de altitude acima dos desenhos, ela colocou o avião em velocidade de cruzeiro, estabilizando-o.

Embora voássemos com um tempo esplêndido, sobre águas reluzentes, o desespero tomava conta da cabine — o assombro ante o fato de seres humanos inteligentes poderem ser arrastados a uma guerra suicida. Era como se a idéia fosse nova para nós, como se a amarga resignação tivesse sido despedaçada por um exame mais detido da sandice que aquilo representava. Voamos durante muito tempo em silêncio.

— Pye — perguntei por fim —, entre todos os pontos onde poderíamos pousar num desenho que se estende até o infinito, por que escolhemos justamente esses passados? Por que Leslie ao piano e Richard junto de seu caça?

— Não adivinham? — replicou, devolvendo a pergunta para nós.

Refleti sobre os dois episódios. O que tinham em comum?

— Ambos eram jovens e estavam perdidos?

— Perspectivas? — sugeriu Leslie. — Ambos haviam chegado ao momento em que precisavam lembrar do poder das escolhas...

Pye assentiu.

— Exatamente.

— E a finalidade desta viagem é aprendermos perspectiva? — perguntei.

— Não, não havia finalidade alguma — respondeu ela. — Vocês caíram aqui por coincidência.

— Ah, Pye! — exclamei.

— Não acredita em coincidência? Então precisa acreditar que você foi o responsável, que navegou para este lugar com a precisão de um fóton, saindo do centro de seu sol até a ponta de uma agulha.

— Bem, é evidente que eu não estava navegando.. — retruquei. As palavras ganharam sentido, e me virei para Leslie.

Havia entre nós uma brincadeira particular, a de que Leslie, que no chão não possui nenhum senso de direção, sabe melhor do que eu para onde ir quando estamos no ar.

— A navegadora sou eu — avisou ela, com um sorriso.

— Ela acha que está brincando — disse Pye. — Mas sem ela você não teria conseguido, Richard. Sabe disso?

— Sou eu quem sente fascínio por percepção extra-sensorial, por viagens para fora do corpo e experiências de semimorte — retruquei. — Leio os livros, estudo página por página até altas horas. Leslie raramente lê os livros, mas lê mentes, vê nosso futuro...

— O que é isso, Richard! Sou uma cética, e sabe disso! Sempre fui cética com relação à vida extraterrena. -

— Sempre? — perguntou Pye.

— Bem... já aprendi que às vezes ele tem razão — respondeu Leslie. — Ele vem com uma idéia esquisita qualquer, e na semana seguinte ou no ano seguinte a ciência descobre a mesma coisa. Por isso, aprendi a encarar essas idéias dele, por mais loucas que pareçam, com uma certa dose de respeito. E eu gostaria das voltas e reviravoltas estranhas da mente dele, mesmo que a ciência nunca as corroborasse, pois são idéias fascinantes. Mas eu é que sempre fui a prática, a que tem os pés na terra.

— Sempre? — perguntei.

— Ah... Isso não vem ao caso — retrucou, lendo meu pensamento. — Eu era uma garotinha. E não gostava daquele tipo de coisa, tanto que parei.

— Leslie está dizendo que era dotada de uma intuição tão intensa que ficava assustada — comentou Pye. — Por isso, bloqueou seu dom e faz o quanto pode para mantê-lo bloqueado. Os céticos práticos não gostam de se assustar com poderes estranhos.

— Minha querida navegadora — falei. — Não é de espantar! Não foi você quem quis voltar quando Los Angeles desapareceu, fui eu. Não sou eu quem é capaz de empurrar o manete de um hidravião que não enxergo, é você!

— Não seja bobo — protestou ela. — Eu jamais estaria pilotando um hidravião, jamais estaria pilotando avião algum se não fosse você! A viagem a Los Angeles foi idéia sua...

Leslie tinha razão. Fora eu quem a seduzira, levando-a a deixar a casa e as flores, com aquele convite de Spring Hill. Mas idéias são como a vida para nós dois — mudança e desenvolvimento, tensão e relaxamento, crise e alegria. Do céu caem perguntas fascinantes, despertando respostas, a nos incitar a decifrar isso, exprimir aquilo, ir ali, fazer isso, ajudar acolá. Nenhum de nós dois é capaz de resistir a idéias.

Imediatamente fiquei a imaginar se poderíamos descobrir respostas, explorar, naquele mundo estranho, outras coisas além de nossas vidas anteriores.

— Pye, de onde vêm as idéias? — perguntei, testando-a.

— Dez graus à esquerda — disse ela,

— Como? — espantei-me. — Não, idéias. Elas simplesmente... aparecem nas horas mais estranhas. Por quê?

— A resposta a qualquer pergunta que possa fazer se encontra no desenho. Faça aquela inclinação de vinte graus para a esquerda, agora, e pouse.

Eu sentia em relação à nossa amiga avançada o mesmo que antes havia sentido em relação aos instrutores de vôo — enquanto estivessem a meu lado no avião, eu não tinha medo de tentar qualquer pirueta que pedissem.

— Certo, querida? — perguntei à minha mulher. — Está pronta para mais?

Leslie concordou, ansiosa por mais aventuras.

— Que idéia maravilhosa essa, explorar idéias!

Virei o hidravião como Pye pedira, conferindo detalhes: rodas levantadas, flaps baixados. Reduzi a velocidade.

— Dois graus à direita, alinhe com aquela faixa amarela brilhante debaixo da água... Diminua a velocidade só um pouquinho — disse nossa guia. — Isso! Desligue o motor. Perfeito!

 

O lugar onde paramos parecia um serão no inferno. Labaredas crepitavam e rugiam em fornalhas, monstruosos caldeirões, com uma substância derretida, suspensos por pontes rolantes, movimentavam-se sobre uma congestionada planície de aço de dez quilômetros quadrados.

— Meu Deus... — exclamei.

Uma empilhadeira elétrica do tamanho de um carrinho de golfe deteve-se no corredor mais próximo de nós, e dela desceu uma jovem delicada, de macacão e capacete, para nos levar a nosso destino. Poderia ter-nos cumprimentado, mas qualquer palavra se perderia na balbúrdia de ferro e fogo. Um caldeirão inclinou-se, e centelhas azuis jorraram dos moldes de lingotes atrás dela, transformando-a numa silhueta.

Ela não tinha mais que a altura de meu peito.

— Que lugar, hem? — comentou, a título de apresentação, gritando para se fazer ouvir, ao mesmo tempo em que nos entregava capacetes e óculos escuros. Falava como se tivesse orgulho daquele lugar. — É provável que não precisem disso, mas se a gerência nos descobrir sem eles... — Riu e passou o dedo, maliciosa, pelo pescoço, fazendo um sinal para que a seguíssemos.

— Mas não podemos nos comunicar... — Eu comecei. Ela sacudiu a cabeça.

— Está bem. Podem vir por aqui.

Olhei para Leslie: quem é? Ela entendeu o que eu queria saber, deu de ombros e sacudiu a cabeça negativamente.

— Diga, como é seu nome? — gritei.

A moça parou por um momento, surpresa.

— Vocês me dão tantos nomes, todos tão formais! — Sacudiu os ombros e sorriu. — Chamem-me de Tink. — Conduziu-nos, a passos rápidos, na direção de uma rampa que ficava junto à parede mais próxima do local gigantesco, ao mesmo tempo em que mostrava algumas coisas. — O minério vem por correias transportadoras até os criados, do lado de fora. Depois ele é lavado, enquanto é transportado até o funil principal...

Leslie e eu nos entreolhamos, perplexos. Esperava-se que soubéssemos o que estava acontecendo?

— .. é despejado em um dos cadinhos... há 25 nessa área... e aquecido a 1.650 graus. Aí, uma ponte rolante levanta o cadinho e o traz para cá.

— Do que está falando? — perguntei.

— Se o senhor deixar as perguntas para mais tarde, é provável que eu responda a maioria delas enquanto lhe explico os procedimentos.

— Mas nós não...

A moça apontou para cima.

— Na ponte rolante infunde-se gás xenônio no minério fundido, que a seguir é despejado nessas fôrmas, revestidas com vinte mícrons de condrito pulverizado. — Sorriu e levantou a mão, já prevendo nossa pergunta. — Não, o condrito não é usa do para gerar o cristal, apenas facilita a retirada dos lingotes das fôrmas!

Os lingotes não eram de aço, mas de uma espécie de vidro, que ao resfriarem passavam de alaranjado para transparente.

Várias séries de robôs industriais davam forma a blocos quase invisíveis, transformando-os em tarugos, cubos e losangos, do mesmo modo que os lapidadores cortam diamantes.

— Os blocos são aparados e energizados aqui — explicou Tink, enquanto passávamos. — Cada um é diferente do outro, naturalmente...

Nossa misteriosa guia fez-nos subir por uma rampa em curva, até uma câmara pneumática.

— E aqui fica a área de acabamento — apontou mais orgulhosa do que nunca. — Era isto que estavam esperando para ver!

Portas deslizavam, abrindo-se, ao nos aproximarmos delas, e fechavam-se após a nossa passagem.

Desaparecera o barulho. O andar não podia ser mais silencioso, nem mais ordeiro e limpo. Entre as paredes colossais viam-se, enfileiradas, mesas com tampo de feltro, e sobre cada uma delas repousava um cristal polido. O lugar mais se assemelhava a um silencioso ateliê de arte que a uma oficina numa indústria pesada. As pessoas trabalhavam concentradas e em silêncio, debruçadas sobre as mesas. Seria aquela a sala de acertos finais da montagem de espaçonaves?

Retardamos o passo e nos detivemos junto a uma mesa. Um jovem corpulento, sentado numa cadeira giratória, diante de alguma coisa que se parecia com um torno de revólver, inspecionava um bloco de cristal maior do que eu. Por cima de seu ombro, víamos uma delicada estrutura de luzes coloridas no interior do cristal, minúsculos raios laser embutidos, uma rede caprichosa de brilhantes filamentos. O rapaz premiu botões na máquina, e dentro do vidro ocorreram modificações sutis.

Toquei Leslie, apontei para o bloco de cristal e fiz um sinal, tentando lembrar-me. Onde já teríamos visto aquelas coisas antes?

— Ele está verificando se todas as conexões foram feitas — explicou Tink, num murmúrio quase inaudível. — Basta um filamento solto, e toda a unidade deixa de funcionar.

O homem virou-se ao ouvi-la, e deu conosco a olhá-lo.

— Olá! — saudou-nos, simpático. — Bem-vindos!

— Olá! — respondemos. — Por acaso o conhecemos? Ele sorriu, e gostei imediatamente dele.

— Conhecer, conhecem. Querem saber se se lembram de mim? Provavelmente, não. Meu nome é Atkin. No passado fui o montador de seu avião, em outra época seu mestre Zen... Ah, creio que não se lembra. — Deu de ombros, em nada aborrecido, todo simpatia.

Procurei palavras para me expressar.

— O que... O que estamos fazendo aqui?

— Vejam. — Apontou para um visor binocular montado perto do cristal.

Leslie abaixou-se.

— Puxa vida! — exclamou.

— O que foi?

— Isso é.. Não é vidro, Richie. São idéias! É como uma teia de aranha, todas estão interligadas!

— Explique melhor.

— Não se trata de palavras — disse ela. — Mas acho que a gente deve exprimir isso em palavras.

— Que palavras você usaria, então, Leslie? Tente me dizer.

— Ah! — fez ela, fascinada. — Veja só aquilo!

Diga — pedi. — Por favor.

— Muito bem. vou tentar... E sobre como é difícil fazer as escolhas corretas e sobre como e importante nos atermos ao nosso melhor conhecimento... E que nós realmente sabemos o que é o mais certo! — Leslie olhou para Atkin. — Sei que não estou fazendo justiça a essa maravilha. — Voltou a olhar pelo visor. — Por favor, leia esse cristal para nós.

Atkin sorriu mais uma vez.

— Está indo muito bem — elogiou ele, olhando por seu próprio visor. — Eis o que diz: Uma pequenina mudança hoje acarreta-nos um amanhã profundamente diferente. São grandes as recompensas para aqueles que optam pelos caminhos duros e difíceis, mas essas recompensas acham-se ocultas pelos anos. Toda escolha é feita inteiramente às cegas, e o mundo não nos dá garantia alguma. E logo depois disso, está vendo? A única maneira de se evitar todas as escolhas assustadoras consiste em deixar a sociedade e se tornar um ermitão, e também isso é uma escolha assustadora. E essa parte está conectada à seguinte: O bom caráter advém de seguirmos nosso supremo senso de retidão, de confiarmos nos ideais sem sequer estarmos certos de que darão certo. Um dos desafios de nossa aventura na terra consiste em nos elevarmos acima de sistemas mortos... guerras, religiões, nações, destruições... recusarmos a fazer parte deles, e em vez disso exprimirmos o que temos de melhor dentro de nós.

— Que coisa maravilhosa! — exclamou Leslie, ainda contemplando o cristal. — Ah, Richie, escute isso! Ninguém é capaz de resolver problemas para aqueles cujo problema consiste em não desejarem que os problemas sejam solucionados l Li este trecho direito? — perguntou a Atkin.

— Perfeito!

Leslie voltou ao visor, satisfeita por estar começando a entender.

Não importa qual seja nossa habilitação ou nosso merecimento, nunca alcançaremos uma vida melhor até conseguirmos imaginá-la para nós próprios e permitir-nos tê-la. Deus sabe que isso é verdade!

É este o aspecto de uma idéia quando se fecha os olhos!” Leslie olhou para Atkin com verdadeira admiração. “Está tudo ali, todas as ligações, todas as respostas a todas as perguntas que se podem fazer sobre ela. A gente pode acompanhar as ligações em qualquer direção que desejar. Que coisa linda!

— Obrigado — disse Atkin. Virei-me para nossa guia.

— Tink?

— Sim?

— As idéias vêm de uma fundição? De uma siderúrgica?

Elas não podem ser feitas de ar, Richard — respondeu, muito séria, de testa franzida. — Não podemos utilizar algodão-doce! Uma pessoa entrega a vida àquilo em que acredita. As idéias dessa pessoa devem sustentá-la, têm de suportar o peso das perguntas que ela própria faz e ainda o peso de cem, mil ou dez mil críticos, incrédulos e detratores. As idéias dessa pessoa precisam se manter de pé, de suportar a pressão de todas as conseqüências que gerarem.

Sacudi a cabeça, admirado com a vastidão da sala, com as centenas de mesas. É verdade que nossas melhores idéias sempre nos chegam prontas e completas, mas eu não estava preparado para aceitar que elas provinham de uma...

— Se já é ruim fracassarmos quando renunciamos àquilo em que acreditamos — disse Tink —, pior ainda é verificarmos que as idéias que defendíamos estavam erradas. — Tink franziu o cenho para mim, sincera e resoluta. — É claro que as idéias vêm de uma fundição! E não de uma fundição de aço! O aço vergaria.

— Isso é maravilhoso! — assombrou-se Leslie, absorta de novo no cristal, olhando pelo visor como o comandante de um submarino olharia pelo periscópio. — Escute isso: O comércio é idéia e escolha expressadas. Olhe em torno de você neste momento: tudo que você vê e toca foi, um dia, uma idéia invisível, até alguém resolver dar-lhe existência. Não podemos dar dinheiro a um necessitado ego alternativo em outras crenças de espaço e de tempo, mas podemos dar idéias que ele pode transformar em uma fortuna, se assim desejar. Meu amor, venha olhar. — Leslie voltou-se para Atkin. — Estou atônita. Tudo aí é tão exato, tão bem articulado!

— Fazemos o que podemos — respondeu ele, modesto.

— E este cristal é um desafio. Trata-se de uma idéia central... chama-se Escolhas... E se uma idéia central apresenta defeitos é preciso parar tudo em sua vida até que ela seja reparada. Nosso trabalho não consiste em fazer com que vocês parem, mas sim ajudá-los a avançar.

Sua voz desapareceu aos poucos no momento em que ajeitei os olhos ao visor, pois os desenhos no interior do cristal absorveram inteiramente minha atenção.

Eram, ao mesmo tempo, conhecidos e estranhos. Conhecidos porque eu estava certo de já ter visto aquilo antes, já contemplara a mesma cena de olhos fechados atingido por idéias meteóricas. O estranho era que a matriz de raios luminosos e planos iridescentes transformavam-se em pensamentos.

É curioso como lançamos redes sobre idéias, pensei. Em todas as línguas, do árabe ao zulu, da caligrafia à taquigrafia, da matemática à música, da pintura à pedra lavrada; em tudo, da teoria do campo unificado a uma maldição, de um prego a um satélite artificial, tudo que se expressa é uma rede em torno de uma idéia.

Um rutilante brilho âmbar atraiu-me a atenção. Expressei a idéia em voz alta, da melhor maneira que pude.

— Coisas ruins não são o pior que nos pode acontecer. O que de pior nos pode acontecer é o nada. — Olhei para Atkin.

— Cheguei perto?

— Palavra por palavra — respondeu ele.

No cristal, o âmbar converteu-se em azul anil.

— Uma vida fácil nada nos ensina. No fim, é o aprendizado que importa: o que aprendemos e como nos desenvolvemos.

Isso mesmo! — concordou Atkin.

Surgiu uma linha verde-esmeralda numa das faces do cristal, atravessando-o de um lado a outro:

— Traçamos nossas vidas pelo poder de nossas escolhas. Quando nossas escolhas acabam sendo feitas passivamente, é que nos sentimos mais desamparados. Quando não fomos nós mesmos que traçamos nossas vidas. Foi isso que você disse à jovem Leslie! Podemos ter desculpas, ou podemos ter saúde, amor, longevidade, compreensão, aventura, riqueza felicidade.

Um terceiro nível conectava os dois planos, parecia reforçar a estrutura.

— Ao começarmos a vida, cada um de nós recebe um bloco de mármore, bem como as ferramentas com que transformá-lo numa escultura. — Paralela cambiante: — Podemos arrastar esse bloco intacto, podemos transformá-lo em fragmentos, podemos dar-lhe uma forma maravilhosa. — Um outro plano paralelo: — De todas as outras vidas restam exemplos para que os vejamos, vidas terminadas e não acabadas, luzes-guias e advertências. — Um outro nível a ligar o último ao primeiro: Ao se aproximar o fim da vida, nosso trabalho no mármore está quase concluído, e com nossos últimos golpes de cinzel podemos polir e dar acabamento ao que começamos anos atrás. Podemos realizar o progresso mais visível no fim, mas para isso precisamos ver além da aparência da idade.

Eu estava absorto como um beija-flor diante de uma rosa.

Geramos nosso próprio meio. Obtemos exatamente aquilo que merecemos. Como invectivar a vida que nós próprios criamos? Quem terá a culpa, a quem cabe o louvor, senão a nós mesmos? Quem pode mudá-la, a qualquer tempo, senão nós?

Fiquei olhando pelo visor ao acaso, encontrando corolários em todos os novos ângulos.

Qualquer idéia poderosa é de todo fascinante e de todo inútil até resolvermos usá-la.

Claro, pensei. O que há de interessante nas idéias é a utilização que delas se faz. No instante em que nós mesmos as experimentamos, que a atiramos para longe da margem onde eram “e se”, transformando-se em mergulhos ousados em rios espumantes, perigosas ou divertidas.

No momento em que me afastei do visor, o bloco de cristal sobre a mesa converteu-se num objeto muito engenhoso. Percebi seu atrativo potencial, mas perdi o domínio sobre o que ele significava, sobre a emoção e poder à espera de utilização. Se fosse uma idéia na mente, não havia como entendê-la.

— ...do mesmo modo como as estrelas, os cometas e os planetas atraem a poeira através da gravidade — explicava Atkin a Leslie, feliz por conversar com alguém que sentia tanto fascínio por seu trabalho —, assim também atuam os centros de pensamento, atraindo idéias de todos os tamanhos e pesos, desde centelhas de intuição até sistemas tão complexos que sua exploração exige toda uma vida. — Atkin voltou-se em minha direção. — Terminou?

Indiquei que sim, e sem ao menos uma palavra de despedida ele premiu uma chave em sua máquina, e o cristal desapareceu. Leu meu pensamento.

— Não desapareceu — comentou. — Está numa dimensão diferente.

— Já que estão aqui — perguntou Tink —, há alguma coisa que vocês gostariam de transmitir a um aspecto diferente de vocês?

Pestanejei.

— O que quer dizer?

— Aprenderam alguma coisa que podem dar a um ego alternativo para ser desenvolvido? Se desejassem modificar uma vida, permitir que alguém recebesse de presente um pensamento de vocês, que pensamento seria esse? Saltou-me à mente um provérbio.

— Não há desastre que não possa tornar-se uma bênção, nem bênção que não possa se transformar em desastre.

Tink olhou de relance para Atkin, sorrindo com orgulho.

— Que pensamento interessante! Deu certo em seu caso?

— Se deu certo? — respondi. — Já o usei até gastar! Não avaliamos o bem e o mal com a mesma rapidez que o fazíamos. Nossos desastres têm sido, às vezes, as melhores coisas que nos aconteceram. E muita coisa que jurávamos ser bênçãos têm sido os mais terríveis desastres.

— O que faz alguma coisa ser boa ou ruim? — indagou Atkin, casualmente.

— O que é bom nos torna felizes a longo prazo, o ruim nos leva à infelicidade.

— O que chama de longo prazo?

— Anos. A vida inteira.

Atkin assentiu, e nada mais disse.

— De onde vêm as suas idéias? — perguntou Tink. A indagação foi acompanhada de um sorriso, mas por trás dele percebi que a pergunta era da máxima importância para ela.

— Promete não rir?

— A menos que seja engraçado.

— Da fada do sono — falei. — As idéias nos ocorrem quando estamos pregados no sono, ou no momento em que despertamos e não conseguimos ainda escrever.

— Então há uma fada do chuveiro — disse Leslie —, e também a fada da caminhada, a fada da natação e a fada do jardim. As melhores idéias surgem nos momentos mais improváveis, quando estamos molhados dos pés à cabeça, enterrados até os joelhos na lama ou quando não dispomos de um bloco de anotações... Sempre que nos for mais difícil registrá-las. Mas como são da maior importância para nós, damos um jeito de reter muitas delas. Se algum dia encontrarmos a fada das idéias, aquela gracinha, vamos matá-la de abraços, de tanto que a amamos. Diante dessas palavras, Tink cobriu o rosto com as mãos e rompeu em lágrimas.

— Ah, obrigada, muito obrigada! — soluçou. — Esforço-me tanto para ajudar... Eu também amo vocês!

Fiquei atônito.

— É você a fada das idéias?

Ela anuiu com a cabeça, continuando a esconder o rosto.

— É Tink quem dirige este lugar — disse Atkin calmamente, reajustando os parâmetros de sua máquina em zero. — E leva o trabalho muito a sério.

Tink enxugou os olhos com as pontas dos dedos.

— Sei que vocês me dão esses nomes bobos — comentou. — Mas, de um modo ou de outro, vocês prestam atenção. Sabem por que quanto mais idéias têm, mais idéias lhes ocorrem? Porque a fada das idéias sabe que se tornou importante para vocês! Do mesmo modo que ela é importante para vocês, também vocês são importantes para ela. Digo a todo mundo aqui que precisamos dar o melhor de nós, porque essas idéias não ficam simplesmente flutuando no espaço nulo, elas chegam até alguém! — Tink procurou o lencinho.— Desculpem as lágrimas. Não sei o que aconteceu comigo. Atkin, quero que esqueça que isso aconteceu...

Encarou-a, sério.

— Esquecer o quê, Tink?

Ela se virou para Leslie, explicando-se aos tropeções.

— É preciso que vocês saibam que não existe neste andar uma única pessoa que não seja mil vezes mais sábia que eu...

— A palavra-chave é simpatia — disse Atkin. — Todos nós fomos professores, gostamos deste trabalho e há momentos em que mostramos nele alguma habilidade, mas nenhum de nós tem o encanto, a simpatia de Tink. Sem isso, a melhor idéia do universo é como um vidro morto, e ninguém ligará para ela. Mas vocês recebem uma idéia da fada do sono, uma idéia tão simpática que não conseguem resistir, e então ela ganha vida, passa de um mundo para outro.

Essas duas pessoas podem ver-nos, pensei, de modo que ambas devem ser egos alternativos, aspectos que escolheram caminhos diferentes no desenho sob as águas. Mesmo assim, era inacreditável. A fada das idéias somos nós! Será possível que diferentes níveis de nós próprios passem existências inteiras tornando o conhecimento cristalino, na esperança de que o encontremos em nosso mundo?

Naquele momento, uma máquina, que não seria maior que um cão pastor, chegou até onde estávamos, com um zumbido, rolando sobre esteiras de borracha. Trazia nos braços mecânicos um lingote de cristal, ainda informe. Com as juntas a estalar devido ao peso, depôs o lingote, com cuidado, sobre a mesa de Atkin. A seguir, emitiu dois sinais sonoros, suaves, retornou ao corredor e retomou a direção de onde viera.

— É deste lugar que vêm... todas as idéias? As invenções? As respostas? — perguntei.

— Nem todas — respondeu Tink. — Não aquelas respostas que você obtém a partir de sua própria experiência. Só as inusitadas, que assustam e surpreendem, aquelas nas quais você tropeça quando não se acha hipnotizado pela vida cotidiana. Tudo que fazemos é passar pelo crivo possibilidades infinitas, separando aquelas que sabem que vocês apreciarão.

— E também idéias para histórias? — indaguei. — Idéias para livros? Fernão Capelo Gaivota surgiu daqui?

— A história sobre a gaivota era perfeita para você — disse Tink, franzindo a testa —, mas você era um escritor principiante, e não lhe daria atenção.

— Tink, eu estava prestando atenção! Seus olhos fuzilaram.

— Não me venha com essa! Você queria escrever, mas só se não precisasse dizer alguma coisa esquisita demais. Tive de fazer o impossível para chamar-lhe a atenção.

— O impossível?

— Foi preciso uma experiência psíquica para conseguir isso

— respondeu a doce alma, revivendo sua frustração —, e não gosto de recorrer a expedientes assim. Mas se eu não tivesse gritado o título para você, se não tivesse feito a história passar como um filme diante de seus olhos, o pobre Fernão estaria condenado!

— Você não gritou nada.

— Bem, senti-me com se tivesse gritado, depois de tudo que fiz pra chegar até você.

Com que então, fora a voz de Tink que eu escutara! Aquela noite escura, há não tanto tempo, que não gritava o nome, mas o pronunciava com toda calma possível: Fernão Capelo Gaivota. E eu quase morto de medo, ouvindo o nome e sem ver quem o pronunciava.

— Obrigado por acreditar em mim — agradeci.

— Não há de quê — respondeu ela, apaziguada. — Mas aquela foi a última idéia para um livro que você recebeu de mim através de estratagemas psíquicos.

— Não precisamos mais de fogos de artifício — aleguei.

— Confiamos em você.

Atkin sorriu, virando-se para sua banca de trabalho.

— Tchau para vocês — despediu-se. — Até a próxima. — Ele parecia perceber alguma coisa muito engraçada nisso. Sacudiu a cabeça, rindo e perscrutando o vidro informe.

— Vamos revê-la? — Mentalmente, Leslie estendia a mão para o manete do hidravião.

A diretora da fundição de idéias levou a mão ao canto do olho.

— Claro que sim. Até lá, vou gravar anotações a respeito de todas as idéias que enviarmos. E lembrem-se: não acordem depressa demais... Façam muitas caminhadas, nadem bastante e tomem muitos banhos de chuveiro!

Despedimo-nos, e a sala derreteu-se, desvaneceu-se num caos com o qual já nos familiarizávamos. No instante seguinte, estávamos realmente de volta ao Martin, decolando da água, com a mão de Leslie no manete de potência. Pela primeira vez desde que havíamos iniciado aquela estranha aventura, decolamos felizes, em vez de agoniados.

— Pye, que coisa boa! — comentou Leslie. — Muito obrigada!

— Fico contente por ter feito vocês tão felizes antes de ir embora.

— Você já vai? — perguntei, subitamente alarmado.

— Por algum tempo — disse ela. — Vocês já sabem como encontrar os aspectos que desejam ver, os locais de aprendizado. Leslie sabe como se afastar quando chega a hora da partida, e você também aprenderá, Richard, quando passar a confiar em seus instintos. Não precisam mais de guia. — Sorriu como sorriem os instrutores para um aluno antes de seu primeiro vôo solo. — As possibilidades são infinitas. Não resistam a ser atraídos para aquilo que mais lhes interessa, explorem juntos. Havemos de rever-nos.

Um sorriso, um clarão azul intenso, e Pye sumiu.

 

— A paisagem não parece tão encantadora sem ela aqui, não é mesmo? — perguntou Leslie, olhando para os desenhos sob o mar. — Não acha que estão mais escuros? Estavam mesmo. O mar, que era rutilante, ganhara uma aparência amedrontador, Até as cores tinham mudado. As tonalidades pastel, douradas e prateadas tinham dado lugar a tons escarlates e marrons, as trilhas estavam agora negras como breu. Mexi-me no assento, inquieto.

— Gostaria que tivesse havido mais tempo para perguntas, antes que ela fosse embora.

— O que dá a ela tanta certeza de que podemos fazer isso sozinhos? — perguntou Leslie.

— Se ela é um aspecto avançado de nós, deve saber.

— Hum....

— Podemos escolher um ponto e ver o que acontece, não acha?

Leslie concordou.

— Quero fazer, como Pye recomendou, escolher alguma coisa importante, encontrar o que for de mais importante. — Leslie fechou os olhos, concentrando-se.

Passaram-se alguns minutos, e ela os abriu.

— Nada! Não estou sendo atraída para coisa alguma, não é esquisito? Vou assumir o comando e você tenta.

Imediatamente, senti-me tenso. Não é medo o que estou sentindo, pensei, é cautela. Trata-se de uma reação natural, o impulso de lutar ou fugir transformou-se em tensão no ser hu mano do século XX.

Respirei fundo, fechei os olhos, relaxei por um momento e logo a seguir fui tomado de uma ânsia desesperada de aterrissar.

— Desligue o motor! Agora! Pouse!

 

Encontramo-nos ao luar, a alguns metros de distância de uma tenda grosseira. O teto era feito de peças de couro costuradas, com as emendas impermeabilizadas com piche; as paredes eram de tecido cor de terra, que adquiria um matiz avermelhado à luz dos archotes de sentinelas. Do deserto ao redor vinha o bruxuleio de centenas de fogueiras na areia, vozes ébrias, ásperas e fortes, o retinir e o escoicear de cavalos.

Na entrada da tenda postavam-se dois guardas, que teríamos tomado por centuriões se não estivessem tão maltrapilhos. Cobertos de cicatrizes e cansados, eram homens baixos, com túnicas mal-ajambradas, presas com fivelas de bronze, e capacetes. Calçavam botas de couro e traziam espadas curtas e punhais à cinta.

Fogo e escuridão. Estremeci. Em que foi que nos metemos?

Olhando para as sentinelas, virei a cabeça para Leslie, peguei-lhe a mão. Eles não nos viam, mas que estardalhaço ela faria se eles nos pudessem enxergar!

— Tem alguma idéia sobre o que estamos fazendo aqui? — murmurei.

— Não, meu amor, quem pousou foi você — sussurrou ela. Perto dali, dois homens começaram a brigar, gritando e investindo um contra o outro.

— Imagino que a pessoa que precisamos ver está dentro da tenda — falei.

Leslie olhou para ela, apreensiva.

— Se se trata de um aspecto alternativo de você, não há por que nos preocuparmos, não é?

— Talvez não tenhamos de encontrar essa pessoa. Acho que houve um engano. Vamos embora.

— Richie, há um motivo para estarmos aqui, alguma coisa que devemos aprender. Não está curioso para saber do que se trata?

— Não — respondi. Eu sentia tanta curiosidade em relação à pessoa no interior da tenda quanto a que sentiria pela aranha no meio de uma teia de trinta metros. — Tenho maus pressentimentos.

Leslie hesitou um pouco, olhou em volta, inquieta.

— Você tem razão. Só uma olhadinha rápida, e vamos embora. Só quero ver quem...

Antes que eu a pudesse deter, ela atravessou a parede da tenda. Um segundo depois, ouvi seus gritos.

Corri atrás dela, e vi um vulto monstruoso tentando agarrar-lhe o pescoço, com uma faca na mão.

— NÃO!

Dei um salto para a frente no momento exato em que o agressor de Leslie caía através de seu corpo. Surpreso, ele deixou a faca cair sobre o tapete.

O homem era baixo, atarracado e muito ágil. Tomou a pegar a arma antes mesmo que ela parasse de rolar, pôs-se de pé e investiu contra mim sem uma palavra. Saltei de lado, da melhor maneira possível, mas ele percebeu o movimento e me atingiu em cheio no estômago.

Não me movi, enquanto ele atravessava meu corpo, como uma pedra através de chamas, indo bater num dos madeiros que sustentavam a tenda. A coluna inclinou-se e o teto ficou frouxo.

Tendo perdido a faca no choque, o homem deu meia-volta, sacudiu a cabeça, tirou um segundo punhal da bota e voltou a investir, aos saltos. Atravessou meu corpo à altura do ombro, e terminou caindo sobre um tamborete de madeira, de arestas agudas, derrubando um castiçal.

Não tardou para que estivesse novamente de pé. Seus olhos eram estreitas fendas coléricas, e os braços curvavam-se em nossa direção como os de um lutador, ainda o punhal na mão. Agora, porém, em vez de atacar, aproximou-se lentamente, atento, examinando-me. Não ultrapassava o ombro de Leslie, mas aqueles olhos tinham um brilho assassino.

De repente ele virou-se, levou a mão à gola da blusa de Leslie e a puxou para baixo, num gesto relâmpago, e pôs-se a olhar, estupefato, para a mão vazia.

— Agora, chega! — falei.

O homem virou-se num salto, passando a faca por minha cabeça.

— NADA MAIS DE VIOLÊNCIA! — gritei.

Ele parou, fitando-me. O que seus olhos tinham de mais assustador não era a crueldade, mas sim a inteligência. Quando aquele homem se punha a destruir, nada acontecia por acaso.

— Você fala? — perguntei, embora não esperasse que ele soubesse inglês. — Quem é você?

Ele fez uma carranca, resfolegando. Então, para minha surpresa, respondeu. Qualquer que fosse sua língua, nós nos entendíamos!

Bateu no peito.

— At-Elah — disse, orgulhoso. — At-Elah, o Flagelo de Deus!

— At-Elah? — admirou-se Leslie. — Átila?

— Átila, o huno?

O guerreiro riu de meu choque. Depois seus olhos se estreitaram outra vez,

— Guarda! — berrou,

Uma das sentinelas postadas à porta logo entrou, com o punho encostado ao peito, à guisa de saudação, Átila fez um gesto em nossa direção.

— Não me avisou que eu teria convidados — disse, calmo. O soldado assumiu uma expressão de terror, correndo os olhos pela tenda.

— Mas não há convidado algum, Grande Comandante!

— Não há um homem aqui? Nem uma mulher?

— Não há ninguém.

— É só, Deixe-me sozinho.

O guarda saudou-o, virou-se e saiu rapidamente em direção à porta. Átila, no entanto, foi mais rápido. Sua mão saltou como uma cobra dando o bote e enterrou o punhal, com um baque surdo, nas costas do guarda.

O efeito foi espantoso, como se o golpe não tivesse matado o guarda, e sim o dividido em dois. O corpo caiu praticamente sem barulho na entrada, enquanto seu fantasma seguia de volta ao posto, sem saber que tinha morrido.

Leslie olhou-me, aterrorizada.

O assassino retirou o punhal do corpo.

— Guarda! — gritou novamente o assassino. O outro sentinela apareceu. — Tire isso daqui,

Ouvimos a saudação, e depois o corpo sendo arrastado Átila voltou em nossa direção, metendo o punhal ensangüentado na bainha, presa à bota.

— Por que? — perguntei.

Ele deu de ombros, sacudindo a cabeça num gesto de desdém.

— Se meu guarda não enxerga o que eu vejo em minha própria tenda,.

— Não — insisti. — Por que é tão perverso! Por que tantas mortes, tanta destruição? Não só esse homem, mas cidades inteiras, povos inteiros que você destrói, sem razão alguma!

Átila encheu-se de desprezo.

— Covarde! Quer que eu não leve em conta as agressões de um império do mal? Os imperialistas romanos e seus lacaios? Infiéis! Deus me manda varrer os infiéis da terra, e eu obedeço às ordens de Deus! — Seus olhos reluziram. — Ai de vós, terras do Ocidente, pois lançarei sobre vós meu flagelo; sim, o flagelo de Deus matará vossos varões; sob as rodas de minha carruagem cairão vossas mulheres, sob os cascos de meu cavalo, vossas crianças!

— A palavra de Deus! — falei. — Sílabas vazias, mais poderosas que flechas, pois ninguém se atreve a opor-se a elas. Com que simplicidade os espertos usurpam o poder aos tolos!

Seus olhos se arregalaram.

— Você está usando minhas palavras!

— Primeiro, tome-se impiedoso — prossegui, chocado com o que dizia —, depois afirme ser o Flagelo de Deus, e seus exércitos acabam com aqueles demasiado rústicos para imaginar um Deus de bondade, demasiado assustados para desafiar um Deus maléfico. Grite que Deus promete mulheres, laranjas, vinho, todo o ouro da Pérsia quando seus soldados morrerem com o sangue dos infiéis na espada, e tem-se então uma força que transforma cidades em escombros. Para ganhar poder, convoque a palavra de Deus, pois é ela que mais facilmente converte o medo em raiva contra qualquer inimigo que você escolher.

Entreolhamo-nos, Átila e eu. Aquelas eram as palavras dele. Tinham sido também minhas. Ele sabia. E eu também.

Como fora fácil ver-me em Tink e Atkin, naqueles mundos de suave criatividade, como era difícil ver-me naquele poço de ódio. Por tanto tempo eu carregara o antigo guerreiro enjaulado dentro de mim, trancafiado em sua masmorra portátil, que me recusava a reconhecê-lo quando o via a plena luz.

Ele me deu as costas, caminhou alguns passos, parou. Pela primeira vez, percebi que ele achava que talvez estivesse perdendo a razão. Não podia matar-nos, não podia obrigar-nos a ir embora. Sua única alternativa era argumentar, defender suas atitudes.

— Sou tão temido quanto Deus! — advertiu.

O que acontece à inteligência quando passa a acreditar nas mentiras que inventa para outrem? É lançada a loucos turbilhões, sugada por vórtices tenebrosos?

Calada até então, Leslie tomou a palavra, triste e serena.

— Se o senhor crê que o poder vem do medo, acaba preso juntamente com aqueles que vivem com medo. Não se trata de uma gente das mais inteligentes, At-Elah, e creio que seja uma escolha que não faz justiça à sua inteligência! Se ao menos o senhor usasse essa inteligência para..

— Cale-se, MULHER! — berrou.

— O senhor é temido por aqueles que respeitam o medo — prosseguiu ela, impávida. — Poderia ser amado pelos que respeitam o amor.

Ele endireitou a cadeira, ainda me encarando, de costas para Leslie. Uma cólera gélida marcava cada linha de seu rosto, enquanto ele citava suas escrituras.

— Disse Deus: “Arrasarei vossas torres e reduzira vossas muralhas a ruínas, e de vossa cidade não restará pedra sobre pedra*” Estas são as ordens de Deus. Não me cabe amar ordens.

Se a raiva era capaz de entrar em ebulição, esse homem era um caldeirão.

— Odeio Deus. Odeio o que Ele ordena. Mas não escuto nenhum outro Deus!

Ficamos em silêncio.

— Esse Deus de amor de vocês nunca levanta Sua espada contra mim, jamais me mostra sua face! — Atila pôs-se de pé, levantou a enorme cadeira com uma das mãos e arrojou-a ao chão. A cadeira desfez-se em fragmentos. — Se Ele é tão poderoso, por que não se põe em meu caminho?

Cólera é medo, isso eu sabia. Toda pessoa colérica é uma pessoa amedrontada, que teme alguma perda. E eu jamais vira alguém com tanta raiva quanto aquele espelho de meu próprio guerreiro selvagem, meu lutador interior trancafiado.

— Por que está tão assustado? — perguntei. Ele me fitou com fogo nos olhos.

— Como se ATREVE! — gritou. — Como se ATREVE! Chamar At-Elah de assustado! Vou mandar que o cortem em pedacinhos para as raposas!

Cerrei os punhos, desesperado.

— Mas não pode tocar em mim, At-Elah! Não pode me ferir, nem eu posso feri-lo, sou seu próprio espírito, que vem do futuro, daqui a dois mil anos!

— Não pode me ferir? — perguntou ele.

— Não!

— Mas me feriria, se pudesse!

— Não.

Ele pensou nisso durante um longo momento.

— Por quê? Eu sou a Morte, o Flagelo de Deus!

— Por favor, nada mais de mentiras! — pedi. — Por que está tão assustado?

Se não tivesse despedaçado a cadeira, ele a teria destruído novamente.

— Porque estou sozinho num mundo louco! — rugiu. — Não existe amor! Deus é mau, Deus é cruel!  E para ser rei, preciso ser o mais cruel de todos os homens. Deus ordena: mate ou morra! De repente, ele suspirou fundo e sua fúria se dissipou. — Estou sozinho com monstros — sussurrou, tão baixo que mal o escutamos. — Nada tem sentido...

— É muito triste — disse Leslie, com angústia na expressão. — Não agüento mais. — Virou-se e atravessou a parede da tenda.

Demorei-me mais num instante, a olhá-lo. Aquele era um dos homens mais selvagens da história, pensei. Teria nos matado, se pudesse. Ainda assim, eu sentia pena dele!

Segui Leslie, e a encontrei junto da clareira do deserto, diante do fantasma do guarda assassinado. Ela, tomada de angústia, nada via; ele era todo confusão, contemplando seu próprio corpo jogado numa carroça, perplexo com o que tinha acontecido.

— Pode me ver, não pode? — gritou o homem para Leslie. — Não estou morto, não é? Porque... estou aqui! Veio para me levar ao paraíso? Você é a minha mulher?

Leslie não respondeu.

— Está pronta para ir embora? — perguntei-lhe. O homem deu meia-volta ao ouvir minha voz.

— NÃO! Não me leve!

— Leslie, empurre o manete — pedi.

— Faça isso você, desta vez — respondeu ela, cansada. — Não consigo pensar.

— Não sou bom nisso, como você sabe.

Leslie não deu sinal de ter-me escutado e manteve-se imóvel, fitando o deserto.

É melhor eu tentar, pensei. Relaxei o máximo que pude, imaginei o Seahawk a nosso lado, estendi a mão para o manete.

Nada.

Growly, pensei, VAMOS!

— Mulher! — gritou o huno-espírito — Venha aqui! Minha mulher não se mexeu, e o homem veio em nossa direção, com ruídos metálicos, subitamente resoluto. Mortais não nos podem tocar, pensei, mas o que dizer de fantasmas de guardas bárbaros?

Interpus-me entre ele e Leslie.

— Não consigo tirar-nos daqui — disse a ela, desesperado. — Você precisa tentar!

O guarda investiu.

Com que rapidez se processa em nós a reversão, quando somos ameaçados! A antiga mente de Átila assumiu o controle num instante eram minhas as perversas aptidões do homem da tenda. Nunca se defenda. Quando atacado, ataque!

Numa fração de segundo, atirei-me contra o rosto do soldado, abaixando-me no último instante para atingi-lo abaixo dos joelhos. Com efeito, ele era sólido, tal como eu.

Abaixo dos joelhos não é leal, pensei. Ao inferno com a leal dade, respondeu aquela mente primitiva.

O homem cambaleou, e com dificuldade pôs-se de pé, um segundo antes que eu o atingisse com quanta força tinha, na nuca, dando-lhe um golpe por trás.

Não é esportivo bater por trás!

Mate!, aplaudiu o brutamontes interior.

Eu já me preparava para usar a mão como um machado, debaixo de seu queixo, quando o mundo se vaporizou a meu redor, reconverteu-se na cabina trovejante de nosso hidravião que decolava. Luz! Um mar limpo e um céu claro lavaram aquela cena lúgubre.

— Richard, pare! — gritou Leslie.

Detive a mão em pleno ar, antes que ela atingisse à toa o altímetro. Virei-me para ela, com os olhos ainda brilhando como os de um mastim.

— Você está bem?

Ela fez um gesto positivo, abalada, com a mão ainda no manete, e fez o Seahawk ascender.

— Eu não sabia que ele era capaz de tocar em nós.

— Era um fantasma, assim como nós — respondi. — Deve ser essa a diferença.

Afundei no assento, incrédulo. Átila canalizara todas suas escolhas na direção do ódio e da destruição, em nome de um deus perverso que não existia. Por que?

Voamos em silêncio por algum tempo. Meus mecanismos precisavam de tempo para se recompor. Por duas vezes eu me vira como um destruidor — moderno tenente e general antigo —, e não sabia por quê. Por acaso os veteranos de uma força armada, mesmo em tempo de paz, são perseguidos pelo espectro do que podia ter acontecido?

— Átila, o rei dos hunos, eu? — espantei-me. — E ainda assim, comparado com o piloto que incinerou Kiev, Átila era um gatinho!

Leslie ficou a pensar. Por fim, perguntou:

— O que estamos aprendendo aqui? Que os fatos são simultâneos, mas que a consistência evolui? Uma vez, em sua vida atual, você deixou que o governo o treinasse como assassino. Agora isso seria impossível. Você mudou, você evoluiu! — Pegou-me a mão. — Talvez Átila faça parte de mim também, faça parte de todo mundo que algum dia teve um pensamento de morte. Talvez seja por isso que nos esquecemos de outras vidas quando nascemos, para que possamos começar de novo. concentrar-nos em agir melhor dessa vez.

Agir melhor como, quase perguntei, e ouvi expressando amor antes que a interrogação se concretizasse em palavras.

— Tem razão, querida.

Eu tinha a impressão de que o hidravião estava maculado, manchado por nosso último pouso. Águas limpas reluziam lá embaixo.

— Você se importa se eu tomar um banho rápido, se eu limpar o Growly?

Leslie olhou-me interrogativamente.

— Um simbolismo, acho.

Ela me beijou no rosto, entendendo meu pensamento.

— Até você descobrir como é que se pode viver a vida de outra pessoa, que tal ser responsável pela vida de Richard Bach e deixar que Átila seja responsável pela dele?

Tocamos as ondas a meia velocidade, sem parar, sentindo os borrifos a 80 quilômetros por hora. Esguichos de neve grossa deixavam esteiras brancas enquanto eu manobrava o leme, para a esquerda e a direita, afugentando a lembrança daquela vida torpe.

Puxei o manete para trás, pretendendo fazer com que a nuvem de borrifos diminuísse e nós amerisássemos, ao diminuir a velocidade. Foi o que aconteceu, mas, naturalmente isso nos levou a outro mundo.

 

Ao pararmos, um campo relvado se estendia à nossa volta, como um lago esmeraldino, cercado de montanhas, que refletia o crepúsculo de nuvens escarlates. Suíça, pensei num átimo. Pousamos num cartão-postal da Suíça. A distância, no vale, via-se um bosque, casas repentinas, tetos muito inclinados, a torre de uma igreja. Uma carroça na estrada da aldeia, puxada não por um trator ou um cavalo, mas por uma espécie de vaca.

Não se avistava vivalma. Nenhum caminho, nem mesmo uma trilha. Apenas aquele lago de relva, pontilhado de flores silvestres, meio emoldurado por alcantis rochosos.

— Você acha que, por acaso... — falei. — Onde estamos?

— Na França — respondeu Leslie. — Veja. — Apontou para uma fenda na rocha, onde um velho estava ajoelhado no chão, ao lado de uma pequena fogueira. Estava soldando. Faíscas branco-amareladas chispavam na rocha em torno dele.

— O que um soldador pode estar fazendo aqui, Leslie? — O que ele está consertando?

— Não está soldando nada. Está rezando. — Saiu na direção do homem e eu a segui, resolvido a manter-me calado. Leslie agia como se conhecesse tanto o local quanto o homem.

Mais de perto, verifiquei que ela estava com a razão. Não se tratava de um maçarico de acetileno. Não havia som nem fumaça, e uma coluna refulgente, da cor do sol, pulsava a cerca de um palmo de altura e a menos de um metro do ancião.

— ...e ao mundo darás, tal como recebeste — pronunciou uma voz que vinha da luz. — A todos que anseiam por conhecer a verdade de onde viemos, a razão de existirmos e o caminho que se estende na direção de nossa morada eterna.

Paramos alguns metros atrás do homem, transfixados pela visão. Eu já vira aquele esplendor uma vez, havia muitos anos. Ficara aturdido com um único vislumbre acidental daquilo que até hoje ainda chamo de Amor, e a luz que contemplávamos naquele momento era a mesma. Tanta era sua resplendência que transformava o mundo numa nota de pé de página, um opaco asterisco. Havíamos pousado ali no momento em que a vida daquele homem estava sendo transformada para sempre.

No instante seguinte, a luz desaparecera. Sob o ponto em que ela brilhara jaziam laudas de papel dourado, um texto em suntuosa caligrafia.

O homem continuou ajoelhado, de olhos cerrados, sem tomai consciência de nossa presença.

Leslie adiantou-se, estendeu a mão para o manuscrito fúlgido e pegou-o. Espantou-me que sua mão não atravessasse o pergaminho.

Embora esperássemos runas ou hieróglifos, encontramos as palavras em inglês. Claro, pensei. O velho as leria em francês, um persa em farsi. É o que ocorre quando se trata de uma revelação — o que importa não é a língua, e sim a comunicação de idéias.

Vós sois criaturas da luz, lemos. Da luz viestes, para a luz irás, e a cada passo que dais cerca-vos a luz de vosso ser infinito.

Leslie virou uma página.

Por escolha vossa habitais agora um mundo que vós construístes. Aquilo que tendes no coração transformar-se-á em verdade, f aquilo que mais amais, nisso vós vos transformareis.

Outra página.

Não temais, nem vos turbeis com a aparência que são as trevas, com o disfarce que é o mal, com o manto vazio que é a morte. Pois escolhestes essas coisas como desafio, pois elas são as pedras em que afiais o gume de vosso espírito. Sabei que em toda vossa volta está a realidade do amor e que a cada momento, ao alcance de vossas mãos está o poder de transformar vosso mundo através do que aprendestes.

Eram muitíssimas as páginas, centenas delas. Nós as passávamos com reverência. Quem escreveu essas palavras, pensei, era uma alma avançada.

Sois a vida, inventando a forma. Não vos matam mais as espadas ou anos do que as portas que atravessais, passando de um cômodo a outro. Cada cômodo vos dá uma palavra que pronunciar, cada passagem é uma canção para cantardes.

Olhei para Leslie, cujos olhos estavam tão marejados quanto os meus. Se aquele texto era capaz de nos comover tanto, a nós, pessoas do século XX, pensei, que efeito não teria exercido sobre as pessoas daquele século, o ... XII!

Virávamos as páginas, rapidamente. Não havia uma só palavra de ritual, nenhuma instrução relativa a culto, nenhuma invocação de fogo e destruição sobre inimigos, nada de desastres para os incréus, deuses cruéis como o de Átila, era um texto escrito para o benevolente ser interior. Não mencionava igreja alguma, nem organizações, bispos, sacerdotes ou rebanhos; nenhuma referência a orações, coros, liturgia ou dias santificados.

Fossem aquelas idéias divulgadas naquele século, pensei, e ter-se-ía uma chave para o reconhecimento do poder sobre a fé, e o terror desapareceria. Com elas, o mundo poderia evitar a Idade Média!

O velho abriu os olhos, viu-nos e pôs-se de pé. Não demonstrava medo, como se houvesse lido aquele texto até o fim. Olhou-me de relance, depois ficou contemplando Leslie por um longo momento.

— Sou Jean-Paul le Clerc. E vocês são anjos.

Antes mesmo que me recuperasse do espanto, enquanto Leslie ainda o olhava, assombrada, o homem riu, contente.

— Notaram a Luz?

— Inspiração! — exclamou minha mulher, entregando-lhe as páginas douradas.

— Realmente, inspiração. — Ele fez uma mesura, como se ela, ao menos, fosse um anjo. — Essas palavras são a chave da verdade para qualquer pessoa que as leia, são a vida para quem lhes der ouvidos. Quando eu era menino, a Luz prometeu que as páginas viriam ter às minhas mãos na noite em que vocês aparecessem. Agora sou velho, e vocês vieram, tal como elas.

— Elas mudarão o mundo — comentei.

O velho me olhou de uma maneira estranha.

— Não.

— Mas foram-lhe dadas...

— ...como uma prova — disse ele.

— Prova?

— Viajei muito — falou. — Estudei os textos sagrados de cem religiões, de Catai até as terras nórdicas. — Seus olhos piscaram. — E, apesar de meus estudos, aprendi. Toda grande religião começa com a luz. No entanto, só os corações conservam a luz. Páginas escritas não podem fazê-lo.

— Mas o senhor tem nas mãos... — comecei. — Deve lê-las. É maravilhoso!

— O que tenho nas mãos é papel. Se entregarmos essas palavras ao mundo, serão amadas e compreendidas por aqueles que já conhecem essa verdade. Antes, porém, precisaremos lhes dar um nome. E isso representará a morte delas.

— Não. Dar um nome a algo de belo representa matá-lo? — perguntei.

O velho me olhou com surpresa.

— Dar nome a uma coisa não faz mal algum. Dar nome a essas idéias equivale a criar uma religião.

— Por quê?

Ele sorriu, estendendo-me o manuscrito.

— Entrego essas páginas a você...?

— Richard.

— Entrego a você, Richard, essas páginas que vieram diretamente da Luz do Amor. Quer passá-las, por sua vez, ao mundo, a povos ansiosos por conhecer o que dizem, às pessoas que não tiveram o privilégio de estar neste lugar no momento em que houve a dádiva? Ou deseja conservar esse texto apenas para você?

— Quero divulgá-lo, naturalmente!

— E que nome dará à sua dádiva?

O que ele estará querendo dizer, pensei.

— Isso é importante?

— Se você não o fizer, outros o farão. Chamarão a isso o livro de Richard.

— Entendo. Isso mesmo. Darei a elas um nome qualquer... 3.3 páginas.

— E você protegerá As Páginas! Ou permitirá que outras pessoas as alterem, que modifiquem nelas seja lá o que for que não compreenderem, qualquer coisa de que não gostarem?

— Não! Não poderá haver mudança alguma! Elas foram da-Jas pela Luz! Nada de mudanças!

— Realmente? Nem mesmo uma linha aqui e ali, por bons motivos? “A maior parte das pessoas não compreende?” “Isso pode ofender certas pessoas?” “A mensagem não está clara?”

— Nada de mudanças!

O velho arqueou a sobrancelha, inquisitivo.

— Quem é você para insistir?

— Eu estava aqui quando foram entregues! Eu as vi surgir da Luz, com meus próprios olhos!

— Portanto — disse ele —, você se tornou o Guardião das Páginas?

— Não é preciso que seja eu. Pode ser qualquer pessoa, desde que prometa não haver modificações.

— Mas alguém será o Guardião das Páginas?

— Acho que sim.

— E com isso temos o começo do sacerdócio Paginista. Aqueles que sacrificarem a vida para proteger uma escola de pensamento tornam-se seus sacerdotes. No entanto, qualquer nova ordem, qualquer novo caminho, é mudança. E a mudança representa o fim do mundo tal como ele existe.

— Essas páginas não representam nenhuma ameaça — falei. — São amor e liberdade!

— E o amor e a liberdade são o fim do medo e da escravidão.

— Claro! — respondi, atônito. Aonde estaria ele querendo chegar? Por que estava Leslie silenciosa? Por acaso ela não concordava que aquilo era...

— Os que lucram com o medo e a escravidão ficarão satisfeitos com a mensagem das Páginas?

— Provavelmente não, mas não podemos deixar que essa... luz... se perca!

— Promete proteger a luz? — perguntou ele.

— Claro que sim!

— E os demais Paginistas, seus amigos, a protegerão também?

— Sim.

— E se os que tiram proveito do medo e da escravidão convencerem o rei desta terra que você é perigoso, se avançarem sobre sua casa, chegarem com espadas, como você protegerá as Páginas?

— Eu as levarei daqui! Fugirei!

— E quando for seguido, apanhado, encurralado?

— Se precisar lutar, lutarei — respondi. — Há princípios mais importantes do que a vida. Vale a pena morrer por algumas idéias.

O velho suspirou.

— E assim tiveram início as Guerras Paginistas. Couraças, espadas, escudos e bandeiras, cavalos e fogo, sangue nas ruas. Não serão guerrinhas! A você se juntarão milhares de crentes fervorosos, dezenas de milhares, rápidos, fortes e hábeis. Mas os princípios das Páginas desafiam os governantes de toda nação que mantêm o poder através do medo e das trevas. Outras dezenas de milhares de pessoas lutarão contra vocês.

Por fim comecei a entrever o que Le Clerc desejava dizer.

— Para ser conhecido — continuou ele —, para distinguir-se de outros grupos, vocês precisarão de um símbolo. Que símbolo escolherão? Que sinal aplicarão em seus estandartes?

Meu coração contristou-se diante do peso de suas palavras, mas insisti.

— O símbolo da luz — respondi. — O sinal será uma chama.

— E assim sucederá — disse ele, lendo uma história que não fora escrita — que o Sinal da Chama se chocará com o Sinal-da-cruz nos campos de batalha do leste da França, e a Chama prevalecerá, numa vitória gloriosa, e as primeiras cidades edificadas sob o signo da Cruz serão arrasadas pelo fogo purificador dos exércitos de vocês. Com isso, a Cruz se juntará ao Crescente, e, juntas, suas legiões combinadas brotarão do sul, cem mil homens em armas a se oporem a seus oitenta mil.

Ah, pare, pensei em dizer. Sei o que vem em seguida.

— E para cada homem, mulher ou criança da Cruz e do Crescente que vocês matarem a fim de proteger a dádiva que receberam, cem outros odiarão seu nome. Todo irmão, filho, esposa, pai e amigo dos mortos odiarão os Paginistas e suas amaldiçoadas Páginas pelo assassínio do ente querido. E todo irmão, filho, esposa, pai e amigo de um Paginista odiará cada cristão e sua maldita Cruz, cada muçulmano e seu amaldiçoado Crescente pela morte do ente querido!

— Não! — exclamei. Cada uma de suas palavras era verdadeira.

— E durante as guerras, serão erigidos altares. Em torno das Páginas, serão construídas catedrais e cúpulas. Os que buscarem a compreensão e o crescimento espiritual ver-se-ão sobrecarregados com novas superstições e novos limites: sinos e símbolos, regras e cantos, cerimônias, preces e paramentos, incenso e oferendas de ouro. O ouro se transformará na essência do Paginismo. Ouro para construir templos maiores, ouro para que espadas convertam os incréus e salvem-lhes as almas.

— E quando você morrer, Primeiro Guardião das Páginas, ouro para a fabricação de efígies suas. Haverá estátuas imensas, grandiosos afrescos. pinturas que darão a essa cena o prestígio da arte. E veja, entretendo nessa tapeçaria: aqui a Luz, ali as Páginas, acolá o céu se abrindo para o Paraíso. Aqui se vê Richard, o Grande, ajoelhado em sua armadura reluzente; aqui, ela, o maravilhoso Anjo da Sabedoria, com as Páginas Sagradas nas mãos; ali, o idoso Le Clerc, em sua humilde morada nas montanhas, testemunhando a visão.

Ufa, pensei. Impossível!

Mas nada havia de impossível. Era inevitável.

— Divulgue essas páginas para o mundo, e eis que no mundo nascerá outra poderosa religião, outro sacerdócio, outros Nós e outros Eles, uns contrapostos a outros. Daqui a cem anos, um milhão de pessoas terão morado pela verdade que temos nas mãos; dentro de mil anos, dezenas de milhões. Tudo por causa desse papel.

Não havia em sua voz sinal algum de amargura, nem mostrava pessimismo ou cansaço. Jean-Paul le Clerc transmitia a sabedoria de toda uma vida, a plácida aceitação do que havia aprendido, Leslie estremeceu.

— Quer meu casaco? — perguntei-lhe.

— Não, meu amor, obrigada. Não é o frio.

— Não é o frio — repetiu Le Clerc. Abaixou-se, pegou um graveto em brasa da fogueira e o encostou nas páginas douradas. — Mas isso a aquecerá.

— Não! — bradei, arrancando-lhe as páginas das mãos. — Vai queimar a verdade?

— A verdade não pode ser queimada. A verdade fica à espera do momento em que alguém se disponha a encontrá-la — retrucou ele. — O que queimará são estas páginas. Cabe a você escolher. Gostaria que o Paginismo se torne a próxima religião deste mundo? — Ele sorriu. — Vocês serão santos da igreja...

Olhei para Leslie e vi em sua expressão o mesmo horror que eu sentia em mim.

Leslie pegou o graveto e levou-o aos cantos do pergaminho. Logo tínhamos um fogaréu sob os dedos, e deixamos que os fragmentos calcinados caíssem ao chão. Queimaram durante mais um pouco e se apagaram.

O velho suspirou de alívio.

— Que noite abençoada! — disse. — É muito raro termos a oportunidade de salvarmos o mundo de uma nova religião! — A seguir, voltou-se para minha mulher, sorrindo, esperançoso. — Teremos salvado mesmo?

Leslie também sorriu para ele, com os olhos cheios de amor.

— Salvamos, sim. Não há em nossa história, Jean-Paul le Clerc, uma só palavra a respeito dos Paginistas ou de suas guerras.

Entreolharam-se durante algum tempo, e depois, com uma mesura em nossa direção, o velho virou-se e subiu a montanha, no escuro.

As páginas ainda queimavam em minha mente, eu continuava a ver aquela inspiração transformada em cinzas.

— Mas, e aqueles que precisavam saber o que as páginas tinham a ensinar? — perguntei a Leslie. — Não temos o direito de saber o que estava escrito ali?

— Ele tem razão — respondeu ela. — Quem quiser descobrir a verdade e a luz pode fazê-lo sozinho.

— Não tenho tanta certeza. Às vezes precisamos de um mestre.

— Experimente isso — disse Leslie. — Faça de conta que, nonesta, profunda, e sinceramente, você deseja saber quem é, de onde veio e por que está aqui. Faça de conta que nunca desejará descansar até descobrir.

Assenti e imaginei-me dono de uma determinação inabalável, ansioso por descobrir, esquadrinhando bibliotecas e revistas antigas, correndo atrás de palestras e seminários, mantendo diários de minha esperança e de minhas especulações, anotando intuições, meditando no alto de montanhas, seguindo pistas fornecidas por sonhos e coincidências, perguntando a estranhos — tudo aquilo que faço quando aprender alguma coisa é o que mais importa.

— Certo.

— Agora — disse Leslie —, você consegue imaginar que não descobre!.

Puxa! Como essa mulher é capaz de me fazer ver as coisas! Curvei-me diante dela.

— Minha Senhora Le Clerc, Princesa do Saber. Leslie fez uma lenta mesura, na escuridão.

— Senhor Richard, Príncipe da Chama!

No silêncio da montanha, tomei-a em meus braços, e as estrelas não estavam mais lá no alto, mas à nossa volta. Havíamo-nos integrado às estrelas, a Le Clerc, às páginas e ao amor que infundiam, a Pye, a Tink, a Atkin e a Átila, tínhamos atingido a unicidade com tudo quanto existe, quanto existiu ou quanto existirá. Unicidade.

 

Enquanto voávamos imersos em tranqüila felicidade, quilômetros e mais quilômetros passaram sob nós.

Um luminoso brilho coralino apareceu sob o mar, como se nos magnetizasse, e Leslie inclinou lateralmente o Martin em volta dele.

— Que coisa bonita — comentou. — Vamos pousar?

— O que diz sua intuição? O que estamos procurando encontrar?

— O que for mais importante. Concordei com a cabeça.

Aterrissamos num lugar que eu Juraria ser a Praça Vermelha depois do escurecer. Debaixo de nossos pés, pedras redondas, à direita, muralhas gigantescas, iluminadas por refletores; cúpulas bizantinas, douradas, contra o céu de inverno. Não havia dúvida. Estávamos bem no centro de Moscou, sem guia nem passaporte.

— Oh! — exclamei.

De volta para casa, a multidão cassava por nós, protegida por sobretudos e casacos de pele, os olhos fechados devido aos flocos de neve.

— Essas pessoas dão-lhe alguma pista de onde estamos? — perguntou Leslie. — Ou vamos fingir que são nova-iorquinos com gorros de pele?

O lugar não era tão congestionado quanto Nova York, e faltava ali o medo que se infiltra nas pessoas com o cair da noite. Afora isso, porém, era difícil dizer qual a diferença existente entre aquela gente e os americanos.

— Não se trata dos gorros, Leslie. Parecem russos, tanto como o dia depois de quinta-feira é certamente a sexta.

— Poderiam ser americanos? — perguntou Leslie. — Se esta cidade fosse Minneapolis e víssemos essas pessoas, diríamos: russos! Eu pareço uma russa?

Olhei para ela, inclinando a cabeça. Se a visse naquela multidão soviética, de olhos azuis, malares proeminentes, cabelos louros...

— Vocês, russas, são bonitas!

— Spasibo — agradeceu ela, coquete.

De repente, a não mais de seis metros de distância, um casal parou, de braços dados, fitando-nos como se fôssemos marcianos de tentáculos, caídos de um céu de azeviche.

Os outros transeuntes dirigiram-lhes olhares aborrecidos, por pararem de repente, e se desviaram deles. O casal não lhes deu atenção. Tinham os olhos fixos em nós. enquanto seus concidadãos nos atravessavam sem um olhar, como se fôssemos hologramas invisíveis projetados no caminho.

— Olá! — saudou Leslie, com um ligeiro aceno. Nada. Continuaram a nos fitar como se nada entendessem.

Porventura nossa estranha capacidade de entender qualquer idioma falhava na União Soviética?

— Olá! — experimentei. — Como vão? Estão à nossa procura?

A mulher foi a primeira a se recuperar. Os cabelos escuros caíam em cascatas debaixo do gorro de pele, e seus olhos curiosos nos inspecionavam.

— Estamos? — perguntou, com um sorriso meio espantado. Aproximou-se devagar, ainda segurando o braço do homem.

— Nesse caso, boa noite!

O homem mostrava-se cauteloso. Não era tão espontâneo como a esposa diante de encontrar estranhos.

— Vocês são americanos — disse ele.

Eu não percebera que estava prendendo a respiração, até tornar a respirar.

— Como sabe? — perguntei. — Estávamos falando sobre isso agora mesmo!

— Vocês parecem americanos.

— Como é isso? Haverá alguma coisa do Novo Mundo em nossos olhos?

— Seus sapatos. Conhecemos os americanos pelos sapatos. Leslie riu.

— E como é que identificam os italianos?

O homem hesitou, com um sorriso quase imperceptível.

— Os italianos não precisam de identificação — disse. — Basta olhar as mãos deles...

Rimos todos. Que coisa estranha, pensei, que menos de um minuto depois de nos conhecermos, nós quatro já agimos como se fôssemos amigos.

Contamos a eles quem éramos e o que tinha acontecido, mas creio que foi nosso insólito estado de irrealidade que os convenceu de que éramos reais. No entanto, nossa nacionalidade americana fascinou Tatiana e Ivan Kirilov tanto quanto sermos aspectos alternativos deles, vindos de um mundo alternativo.

— Por favor, venham à nossa casa! — convidou Tatiana.

— Não fica muito longe...

Eu sempre achara que tínhamos escolhido os soviéticos como adversários por serem eles tão parecidos conosco, bárbaros maravilhosamente civilizados. No entanto, o apartamento dos Kirilov nada tinha de bárbaro. Era quase tão aconchegante e alegre quanto nós próprios o teríamos tornado.

— Por favor, entrem — falou Tatiana, levando-nos para a sala. — Por favor, fiquem à vontade.

Uma gata malhada cochilava no sofá.

— Está se sentindo melhor hoje Petruchka? — Ela sentou-se perto da gata, colocou-a no colo e acariciou-a.

Petruchka olhou-a de relance, enroscou-se como uma bola e preparou-se para dormir.

Janelões davam para o Leste, à espera do sol da manhã. Enormes estantes cobriam a parede oposta, com discos e fitas da mesma música que ouvíamos em casa: Bartok, Prokofiev, Bach; A Crowd of One, de Nick Jameson, Private Dancer, de Tina Turner. Muitos livros, três prateleiras sobre consciência, morte e percepção extra-sensorial. Faltavam os computadores. Como eles conseguiam viver sem computadores?

Ivan era engenheiro aeronáutico, membro do Partido, e chegara a um cargo bastante alto no Ministério da Aviação.

— Para o vento relativo, tanto faz se voamos em asas soviéticas ou americanas — comentou ele. — Se aumentamos muito o ângulo de ataque, entramos em estol, não é?

— Não com asas americanas — respondi, sério. — As aeronaves americanas nunca entram em estol.

— Ah, eu sei — disse ele, assentindo com a cabeça. — É, nós experimentamos as suas asas que não estolam. Mas nunca conseguimos atrair passageiros para um avião que não conseguia pousar! Tínhamos de pegar asas americanas com redes, mandá-las de volta a Seattle...

Nossas esposas não prestavam atenção à conversa.

— Nos últimos vinte anos fiquei louca — disse Tatiana. — Nenhuma organização, nenhum esforço. O governo não queria que coisa alguma funcionasse bem demais. Alegam que menos eficiência representa mais trabalho, mais empregos para as pessoas. Eu digo, significa burocracia demais! Quanto mais simplicidade melhor, não precisamos viver com tanta bagunça. Principalmente no departamento de cinema, pois trabalhamos em comunicação! Eles riem, dizem “Tenha calma, Tatiana.” Mas agora vem a perestroika, vem a glasnost, e as coisas andam!

— Agora você não precisa mais de calma? — perguntou o marido.

— Vanya, agora faço o melhor que posso, estou calmíssima, posso simplificar! — respondeu ela.

— Gostaríamos de poder simplificar nosso governo — comentou Leslie.

— O governo de vocês está começando a ficar parecido com o nosso, o que é ótimo — falei —, mas o nosso começa a ficar parecido com o de vocês, o que é péssimo!

— É melhor sermos parecidos do que acabarmos um com o outro — retrucou Ivan. — Mas vocês viram os jornais. Não podemos acreditar que seu presidente tenha pronunciado essas palavras!

— A respeito do Império do Mal? — perguntou Leslie. — Esse presidente se torna um pouco teatral e exagera em seus discursos...

— Não — disse Tatiana. — Xingar-nos foi bobagem, mas isso já aconteceu há muito tempo. Agora, hoje, leiam! — Ela achou o jornal, procurou a notícia que queria — Está aqui. — Leu para nós. — A mancha temporária de radiação em solo estrangeiro é melhor do que a mancha permanente do comunismo nas mentes das crianças americanas. Sinto orgulho pela coragem e pelo apoio de meus concidadãos, e prometo uma firme liderança, em nome de Deus e de acordo com Sua vontade, até termos conduzido o mundo à vitória final da liberdade.

Meu sangue gelou. Quando o Deus do ódio entra em cena, estávamos aprendendo, cuidado!

— Do que se trata? — quis saber Leslie. — Radiação temporária? Vitória final da liberdade? Do que ele está falando?

— Ele diz que conta com grande apoio popular — respondeu Vladimir. — O povo americano quer destruir o povo soviético?

— Claro que não — respondi. — Mas é assim que os presidentes falam. Sempre dizem que contam com o pleno apoio do povo, e a menos que haja uma multidão gritando e atirando pedras contra a Casa Branca no noticiário da televisão, esperam que acreditemos nisso.

— Nosso pequeno mundo estava crescendo — disse Tatiana. — Ultimamente vínhamos imaginando se não gastávamos demais para nos defender dos americanos, mas agora... essas palavras são loucas! Em vez de gastarmos demais em defesa, talvez não estejamos gastando o suficiente. Como é que saímos dessa terrível... desse círculo vicioso? Isso nunca acaba! Todos nós corremos sem parar. Quando se sabe que chega?

— Imaginemos que você herdasse uma casa que nunca tivesse visto — propus. — Aí você vai visitar sua casa e descobre que todas as janelas estão cheias de...

— Armas! — concluiu Ivan, espantado. Como podia um americano conhecer a mesma história que um russo inventara para si próprio? — Metralhadoras, fuzis e canhões, mísseis, apontados para outra casa, do outro lado de um campo. E essa casa também tinha as janelas cheias de armas, com canhões assestados! Essas casas dispõem de armas suficientes para se destruírem cem vezes! O que faríamos se herdássemos uma casa dessas?

— Fez um gesto, estendendo-me a palma da mão, como a indicar que eu terminasse a história.

— Conviveríamos com as armas e chamaríamos isso de paz? — perguntei.

— Comprar mais armas porque o dono da outra casa comprou mais armas? A pintura está descascando nas paredes, o teto está cheio de goteiras, mas as armas estão azeitadas e apontadas! Leslie?

“Portanto, a questão é a seguinte: é mais provável que o vizinho atire se tirarmos as armas de nossas janelas ou se instalarmos mais armas?

— Se tirássemos algumas armas das janelas — disse Tatiana —, de modo que só possamos matá-lo noventa vezes, isso o fará atirar porque seu poderio é maior que o nosso? Não acredito. Por isso, retiro uma arma pequena, das antigas.

— Unilateralmente, Tatiana? Sem um tratado? Sem anos de negociações? Você vai desarmar-se unilateralmente enquanto ele dispõe de todos aqueles canhões e foguetes apontados para seu quarto?

Ela sacudiu a cabeça, desafiadora.

— Unilateralmente!

— Faça isso e depois convide seu vizinho para o chá — disse o marido. — Sirva-lhe bolinhos e comente com ele: “ouça, acabei de herdar esta casa de meu tio. Talvez o senhor não gostasse dele, nem ele do senhor, mas nada tenho contra o senhor. Por acaso seu teto tem goteiras como o meu?” O que faz o vizinho? Se ele for os Estados Unidos, come nossos bolinhos, e depois volta para casa e atira em nós? — Ivan virou-se e sorriu para mim. — Os americanos são loucos, Richard. Você é tão doido assim? Depois de comer nossos bolinhos, volta para casa e atira em nós?

— Os americanos não são doidos — retruquei. — Somos espertos.

Ele me olhou de soslaio.

— Está convencido de que os Estados Unidos estão gastando bilhões em mísseis e sistemas avançados de orientação? Nada disso. Estamos economizando bilhões. Como?, vai perguntar. — Olhei-o nos olhos, sem sorrir,

— Como? — perguntou ele.

— Ivan, nossos mísseis não têm sistema de orientação algum! Não instalamos neles nem foguetes. Só ogivas nucleares. O resto é tinta e papelão. Muito antes de Tchernobil, já havíamos percebido uma coisa: não importa onde as ogivas explodam!

Ele me olhou, solene como um juiz.

— Não importa?

Eu o pegara em minha armadilha. Balancei a cabeça.

— Nós, americanos espertos, percebemos duas coisas. Primeiro, que onde quer que instalássemos um silo de míssil não estávamos construindo um local de lançamento, e sim um local de impacto! Assim que tirávamos a primeira pá de terra do local, sabíamos que vocês o considerariam um alvo para quinhentos megatons. Tchernobil foi um acidente nuclear insignificante do outro lado do mundo, que não equivalia a um centésimo de uma ogiva nuclear, mas seis dias depois estávamos jogando leite fora em Wisconsin, livrando-nos dos raios gama de vocês!

O russo arqueou a sobrancelha.

— Então, vocês compreenderam... Fiz um gesto de anuência.

— Já que dez milhões de megatons, de um lado e de outro, explodirão, que importância tem o local onde explodirão? Todo mundo vai morrer mesmo! Para que gastar bilhões de dólares em foguetes e computadores? Ao primeiro míssil russo lançado contra nós, vamos lhes dar uma lição, explodiremos Nova York, o Texas e a Flórida, e pronto, vocês estão condenados! Enquanto isso, vocês gastam o que não têm construindo mísseis. — Olhei para ele, com ar astuto. — Onde pensa que arranjamos o dinheiro para construir a Disneylândia?

Tatiana olhava-me boquiaberta.

— Segredo absoluto, Tatiana — respondi. — Meus antigos companheiros da Força Aérea hoje são generais, do Comando Estratégico de Mísseis. Os únicos mísseis americanos com motores de verdade são os MRP.

— MRP? — admirou-se ela, olhando para o marido. Ambos ocupavam altas funções no partido, mas nenhum deles ouvira falar de um MRP.

— Mísseis de Relações Públicas. De vez em quando disparamos um, para impressionar...

— E quatrocentas máquinas fotográficas tiram fotografias — disse Ivan. — Essas fotos aparecem na televisão, não para os americanos, mas para os soviéticos!

— Claro — anuí. — Nunca se admiraram do fato de todas as fotografias de mísseis em nossos noticiários parecerem o mesmo foguete? É que são o mesmo foguete!

Tatiana olhou para o marido, que, eu jurava, não tinha na expressão o mais leve sorriso, e caiu na gargalhada.

— Se o KGB estiver na escuta — falei —, e captando apenas o lado em russo dessa conversa, o que estarão pensando?

— E se a CIA estiver na escuta, ouvindo a metade em inglês? — perguntou Ivan.

— Se a CIA estiver na escuta, estamos fritos! — respondi.

— Hão de chamar-nos de traidores, por divulgarmos o Grande Segredo Americano: não vamos bombardeá-los, vamos levá-los à falência de tanto construírem peças de foguetes!

— Se nosso governo descobrir... — disse Tatiana.

— ...não precisará mais construir míssil algum — completou Leslie. — Podem ficar sentados calmamente e desarmados. Não podemos atacar porque nossos mísseis têm pedras no lugar de motores. Bem, acho que poderíamos despachá-los para Moscou, fazer com que disparem, a controle remoto, mas de que adianta...

— ...seis dias depois morremos todos, vítimas de nossa própria radiação — falei. — Bombardeamos vocês e perdemos o jogo de futebol da segunda-feira à noite! Ouçam, vocês dois, a primeira regra do capitalismo é Criar Consumidores. Acham, por um minuto que seja, que desperdiçaríamos consumidores preciosos, que perderíamos a receita da indústria de cosméticos, da publicidade? Pelo amor de Deus! Não compreendem?

Ivan suspirou, olhando para Tatiana. Ela fez um gesto ligeiro.

— A URSS também tem seus segredos — disse ele. — Par? ganharmos a corrida armamentista, é preciso que os Estados Unidos nos subestimem, que não percebam as mudanças. Os Estados Unidos devem acreditar que para a União Soviética a ideologia é mais importante que a economia.

— Vocês estão construindo submarinos, porta-aviões — disse eu. — Seus mísseis têm motores que funcionam.

— Claro. Mas por acaso a CIA notou que nossos submarinos não transportam mísseis, já ficou a imaginar por que nossos submarinos possuem escotilhas de vidro? — Ivan fez uma pausa e olhou de novo para a mulher. — Devemos contar a eles?

Tatiana assentiu com firmeza.

— Os submarinos trazem lucros... — começou ele.

— ... passeios turísticos em águas profundas! — acrescentou ela. — O primeiro país que puder levar turistas ao leito marinho ficará rico!

— Pensam que construímos porta-aviões? — perguntou Ivan. — Pensem bem. Não se trata de porta-aviões, são condomínios flutuantes! Cidades sem poluição, com as maiores quadras de tênis do mundo, auzeiros para qualquer parte a que se desejar ir. Ar condicionado, talvez.

— O programa espacial... Sabe quantas pessoas estão na fila a fim de subir ao espaço, fazer um vôo de dez minutos, dispostas a pagar o preço que pedirmos? — indagou ele, irônico. — No dia em que a União Soviética abrir falência, vai fazer calor na Sibéria!

Foi minha vez de espantar-me.

— Vocês vão vender passeios espaciais? E o comunismo

— E daí? — retrucou Ivan, dando de ombros. — Os comunistas também gostam de dinheiro.

Leslie virou-se para mim.

— Não lhe falei?

— O que foi que ela lhe disse? — perguntou Ivan.

— Falei a ele que a guerra fria acabou com uma minissérie da televisão chamada Amerika. Pela primeira vez, nós, americanos, assistimos ao que era, supostamente, o objetivo da União Soviética: ocupar os Estados Unidos, substituir nosso sistema pelo de vocês. — Leslie dava a impressão de se impacientar à simples menção do assunto. — Levantamo-nos da poltrona, depois de 16 horas de televisão, quase mortos de chateação, incapazes de acreditar que algum povo, algum sistema político podia ser tão enfadonho. Era preciso ver com nossos próprios olhos, de modo que o turismo em direção à Rússia triplicou da noite para o dia.

— Éramos tão chatos assim? — perguntou Tatiana.

— Não no sentido que estão pensando — respondi. — Há no sistema soviético aspectos que são realmente chatos... mas a maior parte da política americana também mata de chateação! O que resta, de ambos os lados, não é tão ruim. Vocês sacrificam a liberdade pela segurança, nós sacrificamos a segurança pela liberdade. Vocês não têm pornografia, mas nós não temos leis contra o direito de viajar para onde se quiser. Estas são as nossas escolhas. Mas ninguém é tão chato que tenha chegado a hora de acabar com o mundo!

— Em qualquer conflito — disse Leslie —, podemos nos defender ou podemos aprender. A corrida armamentista tornou o mundo um lugar impossível de se viver. O que aconteceria se preferíssemos aprender? Se em vez de falarmos vocês me assustam, disséssemos voeis me interessam?

— Achamos que, aos poucos, bem devagar, o mundo está resolvendo tentar isso — falei.

O que estávamos procurando aprender com eles ali?, pensei. Eles somos Nós? Americanos são soviéticos são chineses são africanos são árabes são asiáticos são escandinavos são indianos? Diferentes expressões do mesmo espírito, engendradas por diferentes opções, diferentes caminhos no desenho infinito da vida no espaço-tempo?

Nossa conversa foi além da meia-noite, enquanto falávamos sobre aquilo de que gostávamos e de que não gostávamos com relação às superpotências em que vivíamos. Rimos muito durante nossa entrevista coletiva particular, falando a respeito de mísseis de papelão e navios-condomínios, discorrendo sobre turismo espacial. Sentíamo-nos como velhos amigos, percebendo que tínhamos amado aqueles dois durante toda nossa vida.

Que modificação causou o fato de conhecê-los! Depois daquela noite, já não seríamos capazes sequer de pensar em começar uma guerra contra Tatiana e Ivan Kirilov, tanto como não pensaríamos em disparar um lança-chamas contra nós próprios. Todo medo que pudéssemos ter deles desapareceu quando deixaram de ser estereótipos do Império do Mal para se transformar em seres viventes como nós, em pessoas que tentavam também entender o sentido das coisas. Para nós quatro, o círculo vicioso tinha chegado ao fim.

— Aqui na União Soviética temos uma história a respeito do lobo e do coelho bailarino — disse Ivan, pondo-se de pé para demonstrar sua versão de uma dança popular.

— Psiu! — exclamou Tatiana, levantando as mãos para pedir silêncio. — Ouçam!

Ele olhou para ela, surpreso.

A noite lá fora começara a gemer, num ruído cavo e lento, como se toda a cidade sentisse dores.

Ouviam-se sirenes, centenas delas, cada vez mais intensas a cada instante, sacudindo as janelas.

Tatiana ficou de pé num salto, de olhos arregalados.

— Vanya! — gritou. — Americanos!

Corremos para as janelas. Por toda a cidade brilhavam holofotes.

— Isso não pode ser verdade! — exclamou Leslie.

— Mas é verdade! — respondeu Ivan. Voltou-se para nós, estendendo as mãos num gesto de angústia. Depois correu a um armário, tirou dele dois sacos de lona, entregou um à mulher, e os dois saíram correndo, deixando a porta aberta.

Daí a um momento ele reapareceu, olhando-nos com uma expressão de incredulidade.

— O que estão esperando? — gritou. — Só temos cinco minutos! Venham!

Descemos correndo, nós quatro, dois lances de escadas e nos metemos na balbúrdia das ruas, uma multidão aterrorizada que se acotovelava na direção de entradas do metrô. Pais carregavam os filhos pequenos, crianças agarravam-se nos casacos dos adultos para acompanhá-los, velhos procuravam de todos os modos seguir em frente. Algumas pessoas mostravam-se apavoradas, empurravam e gritavam, outras andavam calmamente, cientes de que era inútil fugir.

No meio da multidão, Ivan segurou Tatiana e afastou-se da massa desesperada. Estava sem fôlego.

— Vocês... Richard e Leslie — disse, reprimindo as lágrimas, sem raiva nem ódio contra nós. — Vocês são as únicas pessoas que podem ir embora. — Parou para recobrar o fôlego, balançando a cabeça. — Não venham conosco. Vão... voltem para o lugar de onde vieram. — Fez um gesto de cabeça, esforçou-se por sorrir. — Voltem para o mundo de vocês e contem a eles. Expliquem o que é isso! Não deixem isso acontecer! — Ivan puxou Tatiana pela mão e os dois desapareceram na multidão.

Leslie e eu continuamos, invadidos por um impotente desespero, naquela rua de Moscou, vendo o pesadelo se tornar real, sem nos importarmos se íamos embora, se vivíamos ou morriamos. Por que contar a nosso mundo? Seu mundo nada ignorava, Ivan: sabia disso e mesmo assim se matou. Seria o nosso mundo diferente?

E então a cidade estrondejou, estremeceu, fundiu-se em água que batia no pára-brisa do hidravião. Durante muito tempo, depois da decolagem, Leslie manteve a mão no manete, e ninguém disse uma só palavra.

 

— Por quê? — exclamei. — O que pode haver de tão maravilhoso no assassínio em massa que durante dez mil anos ninguém na história do mundo descobriu alguma solução melhor para os problemas do que matar todos que discordam? Será esse o limite da inteligência humana, ainda somos homens de Neanderthal? Og tem medo, Og mata! Será... Não consigo acreditar que todo mundo tenha sido sempre tão... estúpido!  Que ninguém jamais...

A frustração impede o fim das frases. Olhei para Leslie, para as lágrimas em seu rosto. A mesma causa que me levara a uma fúria sem fim, nela provocara uma tristeza infinita.

— Tatiana... — disse ela, abalada como se tivéssemos esperado as bombas. — Ivan... Que pessoas... Ah, meu Deus! — Rompeu em soluços.

Peguei os controles e segurei a mão dela. Como gostaria que Pye estivesse ali! O que ela diria para mitigar nossa cólera e nossas lágrimas?

Maldição, pensei, precisamos morrer assim como idiotas? Apesar de toda a beleza que podemos alcançar, de toda a grandeza que tantos já atingiram, será crível que a morte sobre venha quando um imbecil qualquer aperta um botão e acaba com a luz? Não haverá alguém naquele desenho lá embaixo que já tenha imaginado alguma coisa...

Ouvi ou imaginei?

Vire à esquerda. Siga em frente até o desenho se tornar âmbar.

Não saberia dizer se Leslie ouvira as palavras ou não, mas ela não perguntou por que tínhamos feito a curva ou para onde íamos. Tinha os olhos fechados, e ainda assim as lágrimas rolavam-lhe pelo rosto.

Apertei a mão de Leslie, despertando-a do desespero.

— Vamos, meu amor — falei. — Acho que vamos ver como é um mundo sem guerras.

Verifiquei as rodas, puxei o manete para trás. A quilha tocou a água, o mundo transformou-se em borrifos e...

Estávamos de cabeça para baixo, provavelmente a seis mil pés de altitude, o avião com o nariz apontado para baixo.

Por uma fração de segundo passou por minha mente a idéia de que nosso hidravião se descontrolava, mas logo percebi que não era Growly que descia a pique. Estávamos num potentíssimo avião de caça.

A carlinga era pequena. Se Leslie e eu não fôssemos fantasmas, não caberíamos ali como estávamos, um ao lado do outro, atrás do piloto.

Bem à nossa frente, isto é, quinhentos pés abaixo, outro caça manobrava, tentando escapar desesperadamente. O que víamos pelo pára-brisa gelou-me o sangue: um círculo brilhante superposto às asas do outro aparelho, o ponto reluzente de nosso visor de mira bem em cima de sua carlinga.

Um mundo sem guerras? Depois do que havia acontecido em Moscou, estávamos prestes a ver alguém ir pelos ares!

Uma metade de mim encolheu-se, horrorizada, a outra a tudo assistia impassível. Isto não e um avião a jato, notou a segunda metade, também não é um Mustang, um Spitfire ou um Messerschmitt, isto não é nenhum avião que já tenha existido. O piloto de caça que eu fora também observava, aprovador. Boa técnica, pensei. O piloto buscara o alvo, aproximara-se dele, acompanhara o alvo como se estivesse colado nele, investira novamente.

Leslie estava rígida a meu lado, a respiração presa, com os olhos pregados no avião lá embaixo, enquanto a terra se aproximava velozmente. Passei o braço ao redor dela, apertei-a com força.

Se eu pudesse pegar o manche e desviar o avião, se pudesse puxar o manete para trás, teria feito isso. Havia barulho demais na carlinga para gritar alguma coisa a um piloto absorto no ataque.

Nas asas do avião enquadrado em nosso visor viam-se as estrelas vermelha e azul da República Popular da China. Ah, meu Deus, pensei, por acaso a insânia espalhou-se para todos os mundos existentes? Estamos em guerra com a China também?

O avião chinês assemelhava-se em tudo a um aparelho de acrobacias, pintado de azul-claro na parte de baixo, de verde e marrom na de cima. E apesar de todo o ruído e da ação, nosso indicador da velocidade do vento indicava apenas 550 quilômetros por hora. Se isto é uma guerra, pensei, onde estão os jatos? Em que ano estamos?

O alvo deu uma guinada, com tanta força que das pontas das asas saíram trilhas de vapor. Nosso piloto guinou também, não sendo apanhado de surpresa. Não sentimos a aceleração da gravidade que atuava sobre ele, mas víamos seu corpo esmagado pela compressão.

Sou eu, pensei. Sou um piloto outra vez. Malditas forças armadas! Quantas vezes terei de cometer o mesmo erro? Estou prestes a matar uma pessoa, e hei de me arrepender disso o resto de minha vida...

O alvo virou com força para a direita, e a seguir, desesperado, inverteu a curva. Caiu exatamente dentro do círculo brilhante de nosso visor de mira, e o eu-alternativo apertou o gatilho no manche. Metralhadoras dispararam, fogos de artifício instalados nas asas, e imediatamente saiu um jato de fumaça branca da coberta do motor do avião que ia à frente. Nosso piloto falou duas palavras.

— Peguei! — disse. — Quase... — A voz era de Leslie! Não era um Richard alternativo que pilotava aquela máquina, era uma Leslie alternativa!

No visor, piscou uma mensagem: ALVO DANIFICADO.

— Droga! — exclamou a mulher. — Vamos, Linda... Em vez de afastar-se, ela acelerou e aproximou-se ainda mais do alvo que fora atingido, apertou o gatilho e disparou uma longa rajada. Sentimos o cheiro de pólvora na nacela.

Agora a fumaça branca transformou-se em negra, e o óleo do motor de sua vítima atingiu nosso pára-brisa.

ALVO DESTRUÍDO.

— Agora sim! Agora sim! — disse a pilota. Ouvimos o rádio, baixo.

— Líder Delta, guine para a direita! Agora! Agora/ Saia para a imitai

A mulher não virou a cabeça para olhar, jogou o manche para a direita, mudou de direção como se sua vida dependesse daquilo. Tarde demais.

No mesmo instante nosso pára-brisa ficou negro, coberto de óleo quente de motor, e uma fumaça escura irrompeu da coberta do motor, que tossiu e parou. A hélice cessou de girar.

Soou uma campainha na nacela, como o sinal que encerra um assalto de boxe. ABATIDO, foi a mensagem que surgiu no visor de mira.

Imediatamente tudo serenou, e só se ouvia o silvo do vento do lado de fora, a fumaça que saía do depósito de óleo no motor.

Virei a cabeça para olhar atrás de nós, e o que vi foi um avião que se precipitava, rugindo, sobre nós, irmão gêmeo daquele que acabáramos de despachar. Seu piloto ria e acenava, feliz.

Nossa pilota levantou o visor do capacete e acenou de volta.

— Ora, dane-se, Xiao — resmungou. — Você vai pagar por isso!

O outro passou por nós, numa mancha indistinta de cores berrantes. Depois o nariz de seu avião se levantou, descrevendo uma apertada curva ascendente, a fim de encontrar nosso ala, que investia contra ele, louco por vingança. Em meio minuto, as duas aeronaves, traçando semicírculos uma em volta da outra, tinham sumido de vista.

Não havia chamas em nossa carlinga, apenas um fio de fumaça que subia agora do depósito de óleo, e para uma pessoa que tinha acabado de perder uma batalha, nossa comandante estava mais que calma.

— Líder Delta! — veio pelo rádio. — Sua câmara está desligada! Uma luz aqui avisa que você foi abatida. Diga-me que não é verdade!

— Desculpe, chefe — disse ela. — Às vezes se ganha, às vezes se perde. Foi Xiao Xien Ping, ele me pegou.

— Desculpe, desculpe. Conte isso a seus fãs. Apostei dez dólares em que Linda Albright voltaria hoje com uma tríplice vitória, e agora eles bateram asas! Onde vai aterrissar?

— Xangai Três é o mais próximo. Posso ir para o Dois, se você quiser.

— Vá para o Três mesmo. Ligue para mim quando pousar, certo?

— Tudo bem. — A voz dela parecia infeliz. — Sinto muito, chefe. — A voz suavizou-se. — Não se pode ganhar todas.

O céu estava límpido, com apenas uns fiapos de cúmulos de verão, e tínhamos altitude mais que suficiente para planar até o aeroporto. Mesmo com o motor parado e com o vidro coberto de óleo, não seria difícil aterrissar.

— Xangai Três — chamou ela —, aqui é Líder Delta Estados Unidos. Peço permissão para pouso.

A torre de controle estivera à espera de sua chamada.

— Líder Delta Estados Unidos, tem permissão para pouso de emergência.

— Obrigada. — Ela suspirou, afundando no assento. Atrevi-me, então, a lhe falar:

— Você se importa de me explicar o que está acontecendo?

Se eu fosse ela, teria tomado um susto suficiente para saltar do avião, mas Linda Albright respondeu com raiva, pouco se lixando para quem tinha falado.

— Perdi um dia para nós — respondeu, zangada, esmurrando o painel. — Todo mundo diz que sou a superestrela e coisa e tal, e acabo de perder dez pontos nas semifinais internacionais! Não me interessa o ala, não me interessa ninguém, eu nunca mais... Eu vou olhar olhar olhar olhar para trás de mim! — Linda soltou o ar dos pulmões, com força, e logo atentou para o que estava dizendo. Virou a cabeça depressa, para olhar atrás... para nós. — Quem são vocês?

Expliquei-lhe, e assim que ela acabou os procedimentos de aproximação, já havia aceito o que dizíamos, como se as pessoas de universos paralelos a visitassem com freqüência. Ela continuava com o pensamento voltado para os dez pontos.

— Isso é um esporte aqui? Vocês transformaram os combates aéreos num esporte! — indaguei.

— Dizem que sim — respondeu, carrancuda. — Aerojogo. Mas não é um jogo, é uma grande indústria! Assim que uma pessoa sai das ligas locais, ou quase isso, torna-se um profissional nas redes de televisão mundiais. Eu o derrubei nas simples do ano passado, derrubei Xiao Xien Ping em 26 minutos, mas droga! Acabei de deixar esse sujeito me pegar, só porque não prestei atenção, e virei jornal de ontem! — Linda baixou a alavanca do trem de pouso com violência, como se isso alterasse o acontecido.

— O trem de pouso está puxado e preso — disse ela, furiosa.

A função do ala consiste em se manter na espreita em combate, mas seu ala a avisara tarde demais. O caça chinês surgira de repente, vindo em direção do sol, e a pegara numa única passagem.

Fizemos a aproximação final em direção à larga pista branca. As rodas roçaram de leve o concreto, paramos junto a uma linha vermelha perto do fim da pista, acompanhados por câmaras de televisão.

O que havia à nossa volta era menos um aeroporto que um enorme estádio, com imensas arquibancadas de ambos os lados de pistas duplas, Deviam estar ali cerca de duzentas mil pessoas, e dez telões gigantescos mostravam a mesma imagem.

Perto da linha vermelha estavam dois outros caças americanos e o avião chinês que Linda abatera. Tal como o nosso, cada aparelho estava todo coberto de óleo negro, da coberta do motor até a empenagem. Equipes de mecânicos trabalhavam nos outros aviões, limpando-os, trocando os geradores de fumaça e óleo. Os outros, porém, não tinham fileiras de marcas de vitórias pintadas sob o nome do piloto, na carlinga.

Um repórter aproximou-se, apressado, acompanhado por três operadores de câmara.

— Odeio essa parte — disse a pilota. — Nesse exato minuto, no mundo inteiro, o canal da guerra está noticiando que Linda Albright levou a pior, derrubada por trás por algum novato qualquer. — Suspirou. — Ora, muito bem. Linda, agüente firme e sorria.

No momento seguinte o pequeno avião tinha sido focalizado em close-up, um mosquito sob microscópios. Nos enormes telões surgiu a imagem de Linda no momento em que ela abria a cabine e tirava o capacete, sacudindo os cabelos ruivos. Estava aborrecida, insatisfeita consigo. Não aparecíamos na imagem.

— A Campeã Classe A americana Linda Albright! — anunciou o repórter ao microfone. Falava um inglês perfeito. — Vitoriosa na excelente batalha contra Chung Li Huan, vítima infeliz de Xiao Xien Ping, de Szechwan! Pode falar sobre suas batalhas de hoje, Srta. Albright?

Do outro lado da linha vermelha acotovelava-se uma multidão de torcedores do aerojogo, a maioria deles com chapéus e jaquetas que traziam insígnias de esquadrões de caça, na maior parte chineses. Degustavam o momento, olhando para os telões e saboreando a oportunidade de ver ali Linda Albright em carne e osso. Como era bom vê-la, aquela celebridade! Sob sua imagem nos telões surgiu o nome LINDA ALBRIGHT, uma fileira de notas, em geral 9,8 e 9,9, mais uma fileira de caracteres chineses. A multidão silenciou.

— O honorável Xiao conta-se entre os mais valentes jogadores que ornamentam os céus do mundo — disse ela, enquanto suas palavras eram traduzidas através de alto-falantes. — Estendo minha mão em respeito à coragem e à perícia desse grande piloto! Os Estados Unidos da América se sentirão muito honrados se uma pessoa humilde como eu conquistar o direito de defrontar-se com ele novamente nos céus de nosso belo país.

Ser uma estrela do aerojogo exigia mais que saber o momento exato de apertar o gatilho. A multidão delirou.

O entrevistador levou a mão ao fone no ouvido, fez um sinal com a cabeça.

— Muito obrigado, Srta. Albright. Estamos gratos por sua visita ao Estádio Três, esperamos que se divirta durante sua visita à nossa cidade e desejamos-lhe boa sorte na continuação desses jogos internacionais! — Virou-se para a câmara. — Passamos agora para Zuan Kai Lee, que se acha num avião na zona quatro, onde se desenrola neste momento uma importante batalha...

Os telões focalizaram uma vista aérea, três caças chineses que procuravam interceptar oito americanos. Ou os três tinham autoconfiança infinita ou estavam desesperados em busca de pontos e glória, mas assistir àquela demonstração de coragem era uma coisa magnetizadora. Todos os olhos se voltaram para a ação no momento em que ela teve início, e o estádio calou-se.

A batalha era transmitida de câmaras instaladas em cada um dos 11 caças, e ainda por aviões da rede de televisão. O diretor de televisão dispunha de uma dúzia de imagens, à sua escolha. E mais outras viriam. Da pista subiram num ronco ensurdecedor duas esquadrilhas de quatro caças chineses, apressando-se para participar da batalha, modificar a perspectiva de derrota antes que o embate da zona quatro se tornasse apenas parte da história desportiva.

Linda Albright desafivelou as correias do ombro e desceu do avião, muito garbosa num traje de seda cor de fogo, justo como uma malha de bailarina. Vestia uma jaqueta de cetim azul com estrelas brancas, com um lenço listrado de vermelho e branco.

Esperamos enquanto um jornalista gravava com ela uma entrevista de dez minutos. Seu treinamento decerto compreendera aulas de tato e cortesia, tanto quanto de acrobacias e manejo de armas. Para cada pergunta, tinha uma resposta inesperada, ao mesmo tempo modesta e segura. Quando chegou ao fim da entrevista, uma verdadeira multidão pressionava-a com outras perguntas, estendia-lhe programas do torneio em chinês, no qual aparecia uma foto dela em página inteira, pedindo autógrafos. Linda assinou o nome várias vezes antes de sair dali.

— Se é isso que acontece quando ela perde num país estrangeiro — comentou Leslie —, como será quando vence em sua própria terra?

A polícia ajudou-a a abrir caminho até uma limusine, e meia hora depois estávamos a sós e em tranqüilidade. O estádio-aeroporto aparecia emoldurado numa das janelas da suíte de cobertura do hotel, a cidade e o rio em outra. Era uma cidade muito parecida com a imagem que fazíamos de Xangai, porém maior, mais alta e mais moderna. A televisão mostrava cenas das disputas do aerojogo daquele dia, e fazia comentários.

Linda Albright mexeu no console de controles, desligando a televisão, e caiu no sofá.

— Que dia!

— Como foi que aconteceu? — perguntou Leslie. — O que a fez...

— Quebrei minhas próprias regras — respondeu a Leslie alternativa. — Viaje sempre atrás! Xiao é um magnífico piloto, poderíamos ter tido uma batalha maravilhosa, mas...

— Não — disse minha mulher. — O que eu queria saber era outra coisa. Como foi que os jogos começaram? E por quê? O que significam?

— Vocês são de outra época, certo? — disse a pilota. — Alguma utopia onde não há competição, não c? Um mundo sem guerra? Muito monótono!

— Não somos de um mundo sem guerras — respondi —, e ele não é monótono, é estúpido. Morreram milhares de pessoas, milhões. A política nos assusta, as religiões causam guerras...

Ela afofou uma almofada atrás da cabeça.

— Milhares de nós morremos, também — disse, chateada. — Quantas vezes pensa que já fui morta em minha carreira? Não muitas depois que me profissionalizei (bato na madeira!), mas dias como o de hoje de vez em quando acontecem. Em 1980, toda a equipe americana aérea foi abatida... a equipe inteira, durante três dias seguidos! Sem cobertura aérea durante três dias, podem imaginar o que aconteceu na parte terrestre e naval! Os poloneses e os romenos... Bem... — Linda levantou as mãos, balançando a cabeça. — Não havia como detê-los, varreram-nos da competição internacional. Três divisões. Isso significa trezentos mil competidores! Riscaram do mapa toda a equipe americana. Zero!

Referir-se ao episódio pareceu minorar sua fúria com o que tinha acontecido naquele dia.

— Não que estivéssemos sozinhos na derrota — continuou. — Os poloneses aniquilaram a União Soviética, acabaram com o Japão e Israel. Quando, por fim, derrotaram o Canadá e ganharam o troféu de ouro, podem imaginar o que houve. Os poloneses enlouqueceram, o país inteiro entrou em delírio. Chegaram a comprar um canal próprio só para comemorar! — Narrando tudo isso, ela parecia orgulhosa, por algum motivo.

— Você não compreende — disse Leslie. — Nossas guerras não são jogos. Não matamos os competidores apenas no papel. Em nossas guerras, as pessoas morrem de verdade!

O ânimo dela abateu-se.

— Nas nossas também isso acontece, de vez em quando. No aerojogo ocorrem colisões aéreas. Ainda no ano passado, os ingleses perderam um navio nos jogos navais, durante uma tempestade. O navio e toda a tripulação. E os jogos terrestres são os piores, pois utilizam máquinas velozes em terreno difícil. Se quer minha opinião, quando estão sendo televisados demonstram mais coragem do que bom senso. Mas sempre haverá acidentes mesmo.

— Não entende o que Leslie disse? — perguntei. — Não estamos falando de jogos. Na vida real, as coisas se tomam mortalmente sérias para nós.

— Ora, para nós também são sérias na vida real — insistiu ela. — Temos agora o caso da estação marciana com os soviéticos, no próximo ano haverá a missão de Alfa do Centauro, praticamente todos os cientistas do mundo estão envolvidos com ela. Enquanto houver nações, enquanto todos estiverem tentando realizar alguma coisa, a vida será perigosa e mortalmente séria! Mas, afinal de contas, uma atividade na qual estão envolvidos muitos trilhões de dólares não vai parar por causa de alguns acidentes.

— Não há mesmo jeito de fazer você entender, não é? — retrucou Leslie. — Não nos referimos a acidentes, nem a jogos ou competições. Estamos falando de assassinatos deliberados, premeditados, por atacado.

Linda sentou-se e olhou para nós, estupefata.

— Meu Deus! — exclamou, de repente. — Você se refere à guerra! — A idéia era tão absurda que ela nem pensara na possibilidade.

De um instante para outro, mostrou-se compadecida, preocupada.

— Ah, desculpem. Nunca imaginei... Nós também tivemos guerras, faz muito tempo. Guerras mundiais, até entendermos que a seguinte significaria o fim de todos nós.

— O que vocês fizeram? Como pararam?

— Não paramos. Nós mudamos. — Linda sorriu, lembrando-se. — Foram os japoneses que começaram tudo, vendendo carros. Há trinta anos, a Matsumota começou a participar de corridas aéreas nos Estados Unidos... Num golpe de publicidade, instalaram o motor dos carros Sundai num avião de corridas. Colocaram microcâmaras nas asas do avião, para as corridas aéreas nacionais, fizeram algumas excelentes tomadas e as transformaram nos primeiros anúncios do Sundai Drive. Ninguém tomou conhecimento de que eles terminaram em quarto lugar, e as vendas do Sundai dispararam.

— Isso transformou o mundo?

— Aos poucos, sim. Logo depois disso, Gordon Bremer, o promotor de espetáculos aéreos, teve a idéia de instalar microcâmaras de televisão e canhões computadorizados em aviões, redigiu as regras e ofereceu grandes prêmios a pilotos de combate. A coisa virou um programa local durante cerca de um mês, mas de repente o combate aéreo virou um esporte de grande audiência, uma coisa que nunca se viu. É um jogo de equipe, que reúne toda a estratégia do caratê, do xadrez, da esgrima e do futebol americano em três dimensões, muito veloz e barulhento, com toda a aparência de enorme perigo.

O que quer que atraíra Linda Albright para esse esporte ainda a fascinava. Não era de admirar que fosse uma campeã.

— Aquelas microcâmaras colocavam os torcedores bem dentro das carlingas, não havia nada igual! Era como se, toda semana, acontecesse o Kentucky Derby, as 500 milhas de Indíanápolis e o Superbowl num único espetáculo. Quando Bremer passou a transmitir o show em cadeia nacional, foi como se tivesse ateado fogo num rastilho. Em pouco tempo era o segundo esporte em audiência nos Estados Unidos, logo depois era o primeiro, e aí a coisa passou a ser televisada para o mundo inteiro. Um sucesso!

— Dinheiro — disse Leslie.

— Bote dinheiro nisso! Cidades compravam licenças para inscrever equipes de combate aéreo, depois surgiram equipes nacionais. E não demorou muito para começarem as competições internacionais, uma espécie de olimpíada aérea, e foi quando as coisas realmente mudaram. Dois bilhões de televisores ligados durante sete dias, enquanto todos os países que dispunham de aviões combatiam feito loucos. Alguns países pagaram suas dívidas externas com a receita daquela primeira competição.

Ouvíamos fascinados.

— Não podem imaginar com que rapidez isso aconteceu. Cada cidade onde houvesse um aeroporto organizou sua equipe amadora, e daí a alguns anos garotos de favelas eram ídolos esportivos. Se você se considerasse rápido, vivo e corajoso, se estivesse interessado em ser uma estrela da televisão, ganhava mais dinheiro do que um presidente consegue imaginar.

“Enquanto isso”, prosseguiu Linda, “a Força Aérea estava perdendo seus melhores elementos. Assim que completavam seu tempo de serviço, os pilotos largavam a Força Aérea e aderiam ao jogo. Evidentemente, ninguém se alistava mais. Quem deseja ser um oficial mal remunerado, obrigado a obedecer a disciplina militar em alguma base aérea nos cafundós do mundo, cercado sobretudo por homens, acumulando horas em simuladores que representam mais tensão e exames do que vôos, treinando em aviões enormes e perigosos, e ainda mais com a certeza de que será um dos primeiros a morrer quando começar uma guerra? Poucos!

Claro, pensei. Se houvesse equipes de demonstração aérea quando eu era garoto, uma oportunidade de voar com emoção e glória em outros aparelhos que não fossem os militares, o jovem Richard não se teria alistado na Força Aérea.

— Mas, se corre nisso tanto dinheiro assim, por que vocês estão utilizando aviões a pistão? — perguntei. — Estão voando aviões de, vamos ver, uns 600HP. Por que não usam jatos? Se a Força Aérea quisesse capitalizar...

— Os aviões têm 900HP — informou a pilota. — Os jatos são muito enfadonhos. A velocidade de ataque chegava a duas vezes a do som. Uma batalha curta durava meio segundo, uma longa podia chegar a 30 segundos, e durante a maior parte do tempo não se avistavam os aviões. Para quem estava vendo pela televisão, bastava piscar um olho que perdia o momento principal. Depois de se acostumarem com a novidade, os espectadores rejeitaram os jatos. Não é fácil torcer por um técnico universitário que voa um computador supersônico dotado de asas.

— Entendo o que era capaz de atrair pilotos, levando-os a sair da Força Aérea — disse Leslie. — Mas no caso do Exército e da Marinha, seria diferente.

— Não por muito tempo. O Exército dispunha de tantos tanques e soldados na Europa que eles pensaram: por que não instalar algumas câmaras neles e tirar proveito de toda essa agitação? E, evidentemente, as Marinhas não iam ficar de fora. Entraram na dança com toda vontade: duas semanas de jogos navais naquele primeiro ano. Deram àquilo o nome de Jogos Terceira Guerra Mundial, mas a participação militar era pesada e um pouco enfadonha. Na televisão não se ganha com réplicas incapazes de pensar por si ou com máquinas que não funcionam, ganha-se atingindo alvos. A novidade envelheceu depressa.

“Foi então que a indústria privada criou equipes civis para os jogos terrestres e navais, mais leves, mais rápidas e mais hábeis. Os militares acabaram alijados dos jogos. Não conseguiam manter nas fileiras soldados, condutores de tanques e comandantes de navios, quando o dinheiro e a fama estavam nas equipes civis de combate.

Notei quatro luzes que piscavam no telefone de Linda. Ela não lhes deu atenção.

— Em breve não restava mais ninguém para lutar. Ninguém se interessava por luta, quando havia tanto o que planejar e tanta necessidade de treinamento para os jogos. Era inútil planejar uma guerra que talvez só acontecesse num futuro remoto, quando havia vantagens imediatas em combater agora e, além-mar, ganhar bastante dinheiro!

— Mas as forças armadas não deixaram de existir — falei. — Como foi que...

— Por fim, acabaram, sim. Foram obrigadas. Os governos continuaram a destinar verbas para seus exércitos, por questão de hábito, durante alguns anos, mas a rebelião tributária pôs fim a isso. As pesadas e enferrujadas máquinas militares, assim como seus modos convencionais, transformaram-se numa grande piada.

— E assim as forças armadas acabaram — comentei. — Graças a Deus!

— Não! — replicou ela. — As pessoas as recuperaram.

— As pessoas o quê? — admirou-se Leslie.

— Nós adoramos as forças armadas! — exclamou Linda. — Todo ano, preencho a área destinada a elas em meu formulário de imposto de renda, e lhes destino uma fortuna, a maior parte do imposto que pago. Porque elas mudaram! Primeiro, começaram a ficar mais leves, livraram-se de tanta burocracia e pararam de gastar tanto dinheiro em porcarias. Compreenderam que a única possibilidade de conseguirem recursos era fazer alguma coisa que os jogos não podiam fazer. Um trabalho perigoso e emocionante, um trabalho que exigisse os recursos de toda a nação: colônias no espaço! Dez anos depois a estação marciana estava em operação, e agora estamos atacando o trabalho na colônia de Alfa do Centauro!

Isso poderia dar certo, pensei. Nunca passara pela minha cabeça que pudesse haver outra alternativa para a guerra senão a paz total. Estava enganado.

— Isso poderia dar certo! — falei a Leslie.

— Dá certo — respondeu ela. — Está dando aqui.

— E há outra coisa — disse Linda. — O que os jogos representaram para a economia! Havia uma demanda gigantesca de qualidade nos jogos. Mecânicos, técnicos, pilotos, estrategistas, planejadores, grupos de apoio... O dinheiro envolvido é inacreditável, um jogador pode ganhar milhões para sua equipe, um campeão é capaz de ganhar dezenas de milhões. Quando se chega a ser um supercampeão. Bem. juntando os ganhos básicos e os prêmios por vitória, ganhamos mais dinheiro do que conseguimos gastar. Há perigo suficiente para nos conservar felizes, às vezes um pouco mais que o suficiente. Principalmente na rodada de abertura, ninguém quer ficar para trás, são 48 combatentes se engalfinhando na tela...

A campainha da porta tocou, com som melodioso.

— Há cobertura de imprensa suficiente para os mais vaidosos do mundo, como eu — disse Linda, indo atender. — E, naturalmente, ninguém precisa adivinhar quem poderá vencer a próxima guerra, tudo que fazemos é esperar o dia 21 de junho e vê-la pela televisão. Muitas pessoas apostam nos favoritos, é claro. Às vezes a gente tem a impressão de que se transformou num cavalo de corrida... — Linda abriu a porta.

O homem estava escondido atrás de uma cascata de flores de primavera.

— Coitadinha — ouvimos sua voz. — Não precisamos de um pouco de carinho esta noite?

— Krys! — Linda enlaçou-o com força, e o portal emoldurou dois vultos em reluzentes trajes de vôo, borboletas pousadas em flores.

Olhei para Leslie, perguntando em silêncio se não seria a hora de nos despedirmos. A Leslie alternativa ficaria embaraçada em continuar uma conversa com pessoas que seu amigo não conseguia ver. Mas quando voltei os olhos para a porta, entendi que esse problema não existiria. O homem era eu.

— Meu querido, o que está fazendo em... — disse Linda. — Você devia estar em Taipé, estava cumprindo o terceiro período em Taipé!

O homem deu de ombros e olhou para suas botas de vôo, esfregando-as no tapete. Não nos notara.

— Mas foi um combate espetacular, Lindie! — comentou. Ela ficou pasma.

— Você foi abatido?

Só danificado. O líder do esquadrão dos Estados Unidos é um piloto incrível. — Fez uma pausa, caiu na gargalhada. — Mas não o suficiente. Ele se esquece de que fumaça branca não é fumaça preta. Em último recurso, solto as rodas, baixo os flaps, uso velocidade total, faço um tonneau rápido ao completar a curva, e pronto, ali está ele bem em meu visor. Pimba! Foi por sorte, mas o diretor disse que ficou ótimo na tela. Um combate de 21 minutos! A essa altura, Taipé está fora do meu raio, por isso chamo o Xangai Três. Só ao pousar é que vi seu avião estacionado, preto como uma ovelha negra! Assim que minha entrevista acabou, achei que minha mulher precisava de um pouco de ânimo... — Nesse instante, ele lançou os olhos em nossa direção, viu-nos e virou-se para Linda. — Ah! A imprensa. Desculpe. Quer que eu saía um pouco?

— Não são da imprensa — disse ela, observando suas reações. Depois dirigiu-se a nós. — Richard e Leslie, este é meu marido, Krysztof Sobieski, o Campeão Polonês Número Um!

O homem era menos alto que eu, os cabelos mais escuros. Usava uma jaqueta vermelha e branca, na qual estava gravado Pohzki Aereokgasz. Não fossem esses detalhes, era como se eu estivesse fitando meu próprio reflexo sobressaltado. Cumprimentamos o homem e explicamos quem éramos, da maneira mais simples possível.

— Entendo — disse ele, inquieto, mas nos aceitando porque Linda nos aceitara. — O lugar de vocês, de onde vieram, é parecido com o nosso?

— Não — respondi. — Temos a impressão de que vocês construíram seu mundo em torno de jogos. Como se seu planeta fosse uma feira, uma espécie de parque de diversões. Há de compreender que para nós ele parece um tanto extravagante.

— Você acabou de me dizer que todo o mundo de vocês está construído em torno da guerra, da guerra de verdade, o assassínio em massa, deliberado e premeditado, um planeta voltado para a autodestruição — atalhou Linda. — Bem, extravagância é isso

Krysztof apressou-se a explicar.

— Nosso mundo lhe parece um parque de diversões, mas por aqui há muito trabalho, prosperidade. Até mesmo a indústria de armamentos está auferindo altos lucros, mas os aviões, os navios e os tanques são produzidos com canhões de festim, lança-chamas e armas computadorizadas que só assinalam os “tiros” certeiros. Por que combater, por que nos matarmos por nada, se podemos ter as mesmas lutas só pela televisão e continuar vivos para gastar o que ganhamos? Não faz sentido nos matarmos por causa de apenas uma batalha. Por acaso os atores se matam só para fazer um filme? Os jogos representam uma grande indústria. As apostas nos Jogos envolvem elevadas quantias. Algumas pessoas dizem que apostar dinheiro não d bom. Mas é melhor apostarmos, achamos, que... como dizer... nos desintegrarmos. — Krysztof conduziu a mulher ao sofá, e ficou segurando sua mão enquanto conversávamos. — E Linda não disse o alívio que é não odiar quem quer que seja! Hoje vi que minha mulher foi derrubada pelo piloto chinês. Por acaso sou tomado de fúria, odiando o homem que a abateu, odiando os chineses, odiando a vida? A única coisa que eu detestaria é estar na pele desse homem da próxima vez que Linda o enfrentar no ar. Ela é a Campeã Americana Número Dois... — deteve-se ao vê-la franzir a testa, — Ela não lhes contou, não foi mesmo?

— Vou ser a última se não tomar cuidado com o que acontece à minha volta. Nunca me senti tão boba, Krys. Nunca me senti tão... Está tudo bem, e de repente vejo piscar a luzínha ABATIDA, e pronto! O motor pára! E Xiao passando por mim. rindo a valer...

Ficamos ali bastante tempo, fazendo perguntas e respondendo outras. Mas as luzes que de início haviam piscado ocasionalmente no console do telefone se tomaram mais insistentes. Por fim, as campainhas dos telefones soaram, um dilúvio de chamadas em inglês e polonês: produtores, diretores, chefes de equipes, autoridades municipais, solicitações da imprensa e da televisão, convites urgentes. Se aqueles dois vivessem em nosso mundo, diríamos que eram estrelas do rock numa turnê.

Tanta coisa para perguntar, pensei, mas não só eles precisavam se preparar para o dia seguinte, como tinham de conversar, dormir.

Levantamo-nos enquanto ainda estavam ao telefone, e despedimo-nos deles em silêncio, com um aceno. Linda cobriu o fone com a mão.

— Esperem mais um pouco! Só vamos... Também Krys cobriu o fone.

— Esperem! Nós jantamos mais tarde! Por favor, fiquem!

— Obrigada, mas não — disse Leslie. — Vocês já nos deram muita atenção.

— Felizes aterrissagens para vocês — desejei. — E Sr. Albright-Sobieski, de agora em diante, vamos prestar mais atenção às nossas costas, certo?

Ela cobriu o rosto, simulando vergonha, corando. E o mundo deles desapareceu.

De volta ao ar, começamos a conversar animadamente sobre Linda, Krys e a época deles, uma esplêndida alternativa às constantes guerras e preparativos para guerras que manietavam nosso próprio mundo em sua Idade Média tecnológica.

— Esperança! — exclamei.

— Contraste! — disse Leslie. — Isso nos faz ver o quanto estamos perdendo, quanta criatividade estamos desperdiçando em medo, desconfiança e guerra!

— Quantos outros mundos haverá, lá embaixo, tão criativos como o deles? — comentei. — Haverá mais mundos parecidos com o nosso ou com o deles?

— Talvez sejam todos criativos por aqui! Vamos pousar!

 

O sol era uma esfera de fogo brando avermelhado num céu violeta. Duas vezes maior que o sol que conhecíamos, porém menos brilhante. Mais próximo, porém tão quente quanto o nosso, ele envolvia a paisagem numa suave luz dourada. O ar recendia ligeiramente a baunilha.

Estávamos numa encosta, num ponto em que a floresta se transformava numa campina pontilhada de minúsculas flores prateadas. Lá embaixo estendia-se, de um lado, um oceano quase tão escuro como o céu, e no qual desaguava um rio diamantino. Do outro lado alongava-se, até onde podíamos avistar, uma larga planície que terminava em colinas e vales virgens. Era como se revistássemos o Éden, deserto e sereno.

À primeira vista, juraríamos que estávamos abandonados numa Terra intocada pela civilização. Porventura as pessoas teriam se transformado em flores?

— Isto é... Parece jornada nas estrelas — comentou Leslie. Um céu estranho, uma terra estranha e linda.

— Não há vivalma — observei. — O que estamos fazendo num planeta ermo?

— Não pode ser ermo. Temos de estar aqui, em algum lugar.

Um exame mais detido mostrou que tínhamos nos enganado. Na paisagem distante discernia-se alguma coisa como um tenuíssimo tabuleiro de xadrez, leves linhas escuras formando quarteirões de uma cidade, traçando retas e ângulos, como se no passado tivessem existido rodovias para um tráfego que há muito se desvanecera.

Minha intuição raramente falha.

— Já sei o que aconteceu. Descobrimos Los Angeles, só que chegamos atrasados um milhão de anos! Está vendo? Era ali que ficava Santa Mônica. Beverly Hills era ali. Acabou a civilização!

— Talvez — disse Leslie. — Mas Los Angeles nunca teve esse céu, ou teve? Ou duas luas? — Ela apontou para cima.

Sobre as montanhas, realmente flutuavam uma luz verme lha e uma amarela, cada uma delas menor do que a lua da Terra, uma nascendo na frente da outra.

— Hum... Não é Los Angeles — falei, convencido. — jornada nas estrelas.

Um movimento na mata do outro lado.

— Olhe!

O leopardo caminhava em nossa direção, vindo das árvores. O pêlo, cor crepúsculo, era cheio de malhas. Achei que fosse um leopardo por causa das manchas, embora o animal fosse do tamanho de um tigre, com redondos olhos dourados de tigre. Movia-se com certa dificuldade, esforçando-se por subir o morro, e ouvíamos sua respiração ofegante.

Não há, naturalmente, nenhuma possibilidade de ele nos ver ou atacar, pensei. Não parece estar com fome, ainda que, tratando-se de tigres, nunca se possa ter certeza.

— Richie, ele está ferido!

A andadura esquisita não se devia ao fato de se tratar de uma criatura alienígena, e o animal fora esmagado por alguma força terrível. Ele se arrastava, tomado de dor, como se sua vida dependesse de atravessar a clareira e chegar até a floresta atrás de nós.

Corremos para ajudá-lo embora sem saber o que fazer, mesmo que fôssemos de carne e osso.

De perto, vimos como o animal era gigantesco. Quase da altura de Leslie, aquele gato imenso devia pesar uma tonelada.

Percebíamos o sofrimento em sua respiração e sabíamos que o infeliz não dispunha de muito tempo de vida. Havia sangue seco no dorso e nos flancos, e o animal sofrera fraturas internas. Caiu, rastejou um pouco e voltou a cair entre as flores prateadas. Nos últimos minutos de sua vida, pensei, por que tenta com tanto desespero chegar àquelas árvores?

Leslie ajoelhou-se ao lado da grande cabeça do animal.

— Richie, o que podemos fazer? — Seu olhar traduzia angústia. — Coitado! Não podemos ficar aqui parados, sem fazer nada! — Estendeu a mão para consolar o exausto animal, mas evidentemente a mão passava através do pêlo, nem a criatura poderia ter sentido seu toque.

— Está tudo bem. amor — respondi. — Os tigres escolhem destinos, tal como nós, precisam chegar ao fim da vida tanto quanto nós... — Eram palavras verdadeiras, pensei, mas em nada consolavam.

— Não! Não podemos ter vindo até aqui para ver esse animal... Para assistir à sua morte? Richie, não!

A fera estremeceu na grama.

— Querida, há uma razão. Sempre há uma razão. Só que não a conhecemos neste momento.

A voz que veio da beira da floresta era clara como a luz do sol, mas soou como um trovão pela campina.

— Tyeen!

Viramos a cabeça para olhar.

À beira das flores havia uma moça. A princípio julguei que fosse Pye, porém tinha a pele mais clara que a nossa guia, e os cabelos avermelhados eram mais compridos. Ainda assim, parecia-se tanto com nossa guia extraterrena quanto com minha mulher: as mesmas faces, o mesmo queixo reto. Usava um vestido verde-claro, e sobre ele uma capa de tonalidade esmeralda-escura, até o chão.

Enquanto a olhávamos, ela pôs-se a correr na direção do animal ferido.

A criatura agitou-se, ergueu a cabeça, lançou um último urro débil na direção dela.

A moça alcançou-o num redemoinho de verdes, ajoelhou-se a seu lado, sem medo, tocou-o de leve, e suas mãos quase sumiram junto daquela imensa cara.

— De pé, agora... — sussurrou.

O animal esforçou-se para obedecer, mas as patas não se firmavam.

— Moça, parece que ele está muito machucado — falei. — Com toda certeza não vamos poder fazer muita coisa...

Ela não escutou. De olhos fechados, aproximou-se lentamente da cabeça do animal e afagou-o de leve. A seguir, abriu os olhos e falou.

— Tyeen! Filhinha, de pé!

Com outro urro, o tigre levantou-se, atirando grama para todos os lados. Respirando fundo, agigantou-se sobre a mulher ajoelhada entre as flores.

Ela se levantou também e passou o braço pelo pescoço do animal, tocando-lhe as feridas e alisando-lhe o pêlo.

— Gata boba, Tyeen — disse ela. — Parece que não sabe nada. Não é sua hora de morrer...

Desaparecera o sangue coalhado, nem havia mais poeira sobre a enorme e exótica criatura. O animal olhou para a moça, fechou os olhos por um instante e passou o focinho no colo dela.

— Eu a convidaria para ficar — disse a moça —, mas filhotes com fome não querem saber disso, não é? Vai. Vai, vai logo.

O animal emitiu um grunhido como o de um dragão, demonstrando relutância.

— Vai! E tenha cuidado nos penhascos, Tyeen! Você não é um cabrito-montês!

O gigantesco animal virou a cabeça na direção dela. Depois sacudiu-se e saiu, atravessando graciosamente a campina, desaparecendo entre as árvores.

A mulher ficou a observar o animal sumir, e a seguir voltou-se para nós, com toda naturalidade.

— Adora alturas — disse, resignando-se àquela tolice. — Sente-se atraída pelas alturas, mas não entende que nem toda pedra suporta seu peso.

— O que foi que você fez? — perguntou Leslie. — Pensamos que... Ela parecia tão mal, achamos que...

A moça virou-se e saiu na direção do alto do morro, fazendo um sinal para que a seguíssemos.

— Os animais saram depressa — comentou. — Mas às vezes precisam de um pouco de carinho, para ajudar. Tyeen é uma velha amiga.

— Nós também devemos ser velhos amigos, já que você nos pode ver — falei. — Quem é você?

Ela me examinou enquanto caminhávamos. Aquele rosto harmonioso, cujos olhos eram de um verde mais profundo que o de sua capa, examinou-me por um instante com a rapidez de um raio laser, lendo minha alma. Quanta inteligência naqueles olhos! Nada de pretensão nem artifícios.

Sorriu, como se de repente tudo se encaixasse.

— Leslie e Richard! — exclamou. — Eu sou Mashara! Como nos conhecia? Onde nos havíamos encontrado? O que ela significava para aquele lugar, e o que o lugar significava para ela? Minhas perguntas tornaram-se indistintas. Que espécie de civilização vive ali, invisível? Quais são os seus valores? O que aprendeu e que a nossa civilização não sabe? Quem é essa pessoa?

— Eu sou você em minha dimensão — disse ela, como se estivesse escutado minhas indagações. — Quem o conhece aqui o chama de Mashara. — Ela gracejava, dizendo-nos a verdade.

— Que dimensão é esta? — perguntou, Leslie. — Onde fica este lugar? Quando foi que...

Ela riu.

— Também quero fazer umas perguntas.

Pouco além da beira da campina ficava uma casa que não era maior que uma cabana de montanha, feita de pedras, sem argamassa, mas dispostas umas sobre as outras de tal forma que entre elas não entraria uma carta de baralho. Se havia vidraças nas janelas, não as víamos. Tampouco havia porta.

Uma família de aves seguia em fila indiana pelo quintal. Uma criatura emplumada e encarapitada num galho abriu os olhos por um momento ao nos aproximarmos, fechando-os de novo para dormir.

Ela nos convidou a entrar, passando pela porta primeiro. No interior, um animal que parecia ser uma jovem lhama, da cor de uma nuvem de verão, dormitava num tapete de folhas e palha perto da janela. Teve curiosidade suficiente para esticar as orelhas em nossa direção, mas não para se pôr de pé.

Não havia estufa, despensa, cama, mas ainda assim o lugar dava uma sensação de calor e segurança. Se eu fosse obrigado a adivinhar, diria que Mashara era a fada boa da floresta.

Levou-nos para bancos junto de uma mesa perto de uma ampla janela, da qual se descortinava um largo panorama de árvores, na campina e no vale.

— Meu espaço-tempo é paralelo ao de vocês — explicou. — Mas é claro que sabem disso. Planeta, sol, galáxia e universo diferentes. Só que é o mesmo Agora.

— Mashara, aconteceu alguma coisa de terrível aqui, há muito tempo? — indagou Leslie.

Percebi o que ela estava pensando. As linhas na terra, o planeta transformado num ermo, animais destemidos. Seria Mashara a última sobrevivente de uma civilização que no passado dominara aquele planeta?

— Vocês se lembram! — disse ela. — Mas terá sido isso ruim para uma civilização que consome florestas, oceanos e ar, que estraga o mundo do leito marinho até a estratosfera, que envenena a vida por atacado, será ruim essa civilização perecer? Será ruim para um planeta curar a si mesmo?

Pela primeira vez senti-me pouco à vontade naquele lugar. Imaginei como teriam sido seus últimos dias, gritando e gemendo para morrer.

— Será bom para qualquer espécie de vida morrer? — perguntei.

— Não morrer — respondeu Mashara, após um instante —, mas mudar. Havia em vocês certos aspectos que escolheram aquela sociedade. Aspectos que se compraziam nela, aspectos que buscavam desesperadamente mudanças. Alguns venceram, outros perderam, todos aprenderam.

— Mas o planeta recuperou-se — retrucou Leslie. — Olhe só para ele! Rios e ar puro, árvores e flores... É lindo!

— O planeta recuperou-se, as pessoas não. — Mashara virou o rosto. — Não conseguiram adiar a própria morte por tempo suficiente para construir uma colônia nas estrelas.

Percebi que ela não tinha vaidade, não havia modéstia nela. Havia apenas a verdade do que acontecera.

A lhama pôs-se de pé, saindo lentamente pela porta.

— A evolução tornou a civilização o administrador desse planeta. Cem mil anos depois, o administrador se convertera não em defensor, mas em destruidor; não em protetor, mas em parasita. Assim, a evolução retirou sua dádiva, passou por cima da civilização, salvou o planeta da inteligência e entregou-o ao amor.

— Este... é seu trabalho, Mashara? Salvar planetas? — perguntou Leslie.

Ela assentiu.

— Salvar este. Para o planeta, sou paciência e proteção, sou compaixão e compreensão. Sou os objetivos supremos que os antigos viam em si próprios. Uma cultura magnífica em tantos sentidos, uma bela sociedade, atraiçoada por sua cobiça e falta de visão. Ela consumiu as florestas e as transformou em desertos, devorou a alma das terras em minas e lixo, sufocou o ar e os oceanos, esterilizou o mundo com radiação e venenos. Teve milhões de oportunidades para mudar, mas não quis. No solo, cavava luxos para uns poucos, trabalho para os restantes e sepulturas para os filhos de todos. Por fim, os filhos não concordaram, mas os filhos tinham chegado tarde demais.

— Como pode toda uma civilização ter sido tão cega! — exclamei. — O que você está fazendo agora... Você tinha a resposta!

Mashara virou-se para mim, o amor implacável.

— Não tenho a resposta, Richard. Eu sou a resposta.

Ficamos em silêncio por muito tempo. O sol tocou o horizonte, mas a noite ainda demoraria a cair.

— O que aconteceu às pessoas? — perguntou Leslie.

— Nos anos derradeiros, quando viram que era tarde demais, as pessoas fabricaram ecologistas reconstrutores planetários, construíram- nos em seus domos, ensinaram-nos a restaurar a terra, mandaram que saíssemos pelo mundo a fim de trabalhar num ar que não podiam mais respirar. A última atitude delas, desculpando-se ao mundo, foi dar-nos os domos para que salvássemos o que pudéssemos da vida. Depois, saíram todas juntas para o veneno, onde antes ficavam as florestas. — Mashara baixou o olhar. — E desapareceram.

A imagem era dolorosa, e ficamos, Leslie e eu, a escutar o eco de suas palavras, imaginando o que devia ter sido aquilo, a solidão e a tristeza que aquela mulher decerto suportara. As imagens demoraram a se dissipar.

Ela havia dito aquilo com tanta displicência!

— Mashara, eles a fabricaram? Você é um computador? — perguntei.

O rosto formoso voltou-se em minha direção, sem expressão.

— Posso ser descrita como um computador. Você também. Já enquanto eu fazia a pergunta seguinte, uma parte de mim sabia que estava perdendo o que havia de mais importante num estranho chauvinismo proteico.

— Você... — comecei. — Mashara, você é viva?

— Considera isto impossível? — retrucou ela. — Faz diferença se a humanidade fulge através de átomos de carbono ou de silício? Existe alguma coisa que tenha nascido humana?

— Claro! Os piores... até os destruidores, até os assassinos são humanos — respondi. — Podemos não gostar deles, mas são seres humanos.

Ela fez um gesto negativo.

— Um ser humano é uma expressão da vida, que traz a luz e reflete o amor, em qualquer dimensão que ele resolva tocar, em qualquer forma que deseje assumir. A humanidade não é uma descrição física, Richard, é uma meta espiritual. Não é uma coisa que nos é dada, é algo que conquistamos.

Uma idéia atordoante, forjada na tragédia daquele lugar. Por mais que eu tentasse ver Mashara como uma máquina, um computador, uma coisa, não conseguia. Não era a química de seu corpo que lhe definia a vida e sim a profundidade de seu amor.

— Acho que estou habituado a considerar que todas as pessoas são humanas — falei.

— Talvez deva reformular seus conceitos — sugeriu ela. Uma parte de mim encarou a mulher através da névoa de seu novo rótulo. Um computador! A curiosidade prevaleceu sobre a delicadeza, mas eu precisava colocá-la à prova.

— Quanto é 13.297 dividido por 2,32379001?

— Precisa saber?

Fiz que sim. Mashara suspirou.

— É 2462,407402584828063981... Quantas casas decimais deseja?

— Incrível! — exclamei.

— Como sabe que não estou inventando?

— Desculpe. Mas é que... você parece tão...

— Quer um teste final? — perguntou.

— Richard — interrompeu Leslie, num tom acautelador. A mulher dirigiu um olhar agradecido à minha mulher, mas estendeu a mão.

— Sabe qual é o teste final da vida, Richard?

— Não... Há sempre uma linha divisória entre...

— Responde uma pergunta minha?

— Claro que sim.

Ela me olhou firme nos olhos, a fada boa da floresta, sem medo do que estava por vir.

— Diga-me. O que você sentiria se eu morresse neste instante?

Leslie sobressaltou-se. Fiquei de pé, num salto.

— Não!

Senti-me atravessado por uma onda de pânico, com medo de que o maior amor que nosso ser alternativo podia escolher fosse se autodestruir, para que pudéssemos sentir a perda da vida que era ela.

— Mashara, não!

Não houve um único som. Ela tombou, leve como uma flor, e ficou imóvel, petrificada como a morte, os olhos verdes fixos no local onde eu estivera.

Leslie correu para ela — o fantasma de uma pessoa junto ao fantasma de um computador — e amparou-a com a mesma suavidade com que a fada boa amparara o grande felino que amava.

— E como você se sentirá, Mashara, quando Tyeen, seus filhotes, as florestas, os mares e o planeta que você recebeu para amar morrerem com você? Haverá de lhes honrar as vidas como honramos a sua? — indagou Leslie.

Lentamente, a vida retornou à forma, a cabeça maravilhosa virou-se para encarar a irmã que vinha de um tempo diferente. Espelhos uma da outra, os mesmos valores altivos brilhando em mundos alternativos.

— Eu os amo — disse Mashara, sentando-se aos poucos, virando-se para nós. — Jamais pensem... que não me importo...

Leslie sorriu, com tristeza.

— Como poderíamos contemplar seu planeta e achar que você é indiferente? Como podemos amar nossa própria terra sem amar você, querida administradora?

— Vocês devem ir embora — disse Mashara, de olhos fechados. E depois, num murmúrio: — Vão se lembrar?

Peguei a mão de minha mulher e fiz um gesto afirmativo.

— As primeiras flores que plantarmos a cada ano, as primeiras árvores, serão para Mashara — avisou Leslie.

A lhama entrou de mansinho pela porta, de orelhas em pé, olhos escuros, o focinho de veludo demonstrando preocupação pela mulher que significava o lar. Da última vez que a vimos, a fada boa da floresta abraçava o animal, e chorava.

A casinha dissolveu-se em borrifos e luz, enquanto Growly se lançava mais uma vez acima dos desenhos.

— Que mistério! — exclamei. — Um dos mais maravilhosos seres humanos que já conhecemos é uma máquina!

 

Voamos envoltos pelo amor de Mashara, suavizados com as imagens do seu belo planeta. Como pareceu bom ter amigos em outros mundos além do nosso!

Parte de nossa exploração fora fonte de alegria, outra parte tinha sido horrenda, mas as curvas de nosso aprendizado ascendiam com firmeza. Tínhamos visto e sentido coisas que não poderíamos ter imaginado nem em cem existências. Queríamos mais.

Os desenhos ganharam uma coloração rosa-claro, as trilhas fulgiram numa tonalidade dourada. Olhei para Leslie. Ela assentiu com a cabeça.

— Pronta para pousar?

— Quando quiser.

— Está pronta para o que der e vier?

— Creio que sim... — Leslie respirou fundo e juntou forças, olhando decidida para a frente.

 

Ao desaparecer a nuvem de borrifos, permanecíamos no interior do hidravião, flutuando suavemente na água. Olhamos em volta, perplexos. Aquilo não era um oceano, e os desenhos tinham sumido!

Era um lago de montanha, pinheiros e bétulas que desciam até a margem cor de mel, plácido como o deserto, a água reluzindo debaixo de nós, sol arrancando chispas na areia. Durante alguns instantes, tentamos adivinhar o que acontecia

— Leslie! — exclamei. — É aqui que treino pousos na água, este é o lago Healey! Saímos dos desenhos!

Ela olhou ao redor, buscando algum sinal que desmentisse minhas palavras.

— Tem certeza?

— Absoluta. — Olhei em volta de novo. Encostas íngremes e muito arborizadas à esquerda, árvores baixas na extremidade do lago. Para além das árvores seria o leito do vale.

— Viva! — exclamei, mas a palavra pareceu oca. Virei-me para Leslie. Seu rosto era uma máscara de desapontamento.

— Ah, sei que devia estar contente, mas acontece que estávamos só começando a aprender, ainda havia tanto o que descobrir!

Leslie tinha razão. Também me senti logrado, como se as luzes se tivessem acendido e os atores abandonado o palco antes do fim da peça.

Baixei o leme, apertei o pedal para tomar a direção da praia, e então percebi Leslie prender a respiração.

— Veja! — Apontava para alguma coisa.

Um pouco à frente na extremidade da asa direita, com o bico enfiado na areia, havia um anfíbio Martin.

— Ah! Ah! Mais uma prova — falei. Todo mundo treina aqui. Realmente, estamos em casa.

Empurrei o manete à frente, e suavemente seguimos na direção do outro hidravião.

Não havia nenhum movimento, nem sinal de vida. Desliguei o motor e completamos em silêncio os poucos metros que faltavam. A proa roçou de leve a areia, a sessenta metros da outra máquina.

Tirei os sapatos e desci. A água chegava a meus tornozelos. Ajudei Leslie a descer. Depois ergui a proa do avião e puxei-o um pouco mais para a terra.

Leslie caminhou na direção do outro Seahawk, enquanto eu prendia a âncora na areia.

— Olá! — gritou. — Olaf

— Não há ninguém? — perguntei, indo ao seu encontro. Leslie não respondeu. Estava parada junto do outro avião, olhando para dentro da cabine.

O avião era gêmeo do Growly, e tinha a mesma pintura de neve e arco-íris que tínhamos criado. O interior da cabine era da mesma cor. O mesmo tecido, o mesmo carpete no chão. Nada diferia, nem mesmo o vidro quebra-luz e as letras pregadas no painel de instrumentos.

— Coincidência? — perguntou Leslie. — Outro hidravião exatamente igual ao Growly

— Esquisito. Muito esquisito. — Toquei a coberta do motor. Ainda estava quente.

— Ah! Ah!... — comentei, sentindo invadir-me uma sensação esquisita. Peguei Leslie pela mão e voltamos juntos para nosso próprio avião.

No meio do caminho, ela se deteve e virou-se.

— Olhe só para isso! Não há pegada alguma, além das nossas. Como é que uma pessoa pode pousar, descer do avião, desaparecer e não deixar nenhum vestígio?

Ficamos entre os dois Growlys, perplexos.

— Tem certeza de que estamos em casa? — perguntou Leslie. — Parece que ainda estamos nos desenhos.

— Uma réplica do lago Healey? — perguntei. — E como é que nós deixamos pegadas, se somos fantasmas?

— Tem razão. E se pousarmos no desenho, teremos de encontrar algum aspecto alternativo de nós próprios — concordou Leslie. Ela ficou em silêncio por um momento, olhando em volta. — Mas talvez haja um motivo para não vermos ninguém aqui.

— Se continuamos no desenho, é um teste. Como parece não haver ninguém por aqui, a lição poderia ser de que estejam mesmo aqui, em alguma outra forma. Não podemos estar separados de nós mesmos. Nunca estamos sozinhos, a menos que acreditemos nisso.

Um clarão de raio laser de rubi brilhou a três metros, e ali estava nossa alter-ego indiana, de jeans pretos e blusa xadrez.

— Por que eu a amo? Porque você se lembra! — Estendeu os braços para Leslie.

— Pye! — exclamou minha mulher, correndo para abraçá-la. Naquele lugar, estivéssemos ou não no desenho, não éramos fantasmas, e ao se abraçarem elas tocaram pessoas sólidas.

— Que bom revê-la! — disse Leslie. — Não pode imaginar por onde estivemos! As coisas mais lindas, e as mais feias... Ah, Pye, há tanto para lhe contar, tantas coisas que precisamos saber!

Pye virou-se para mim.

— Que bom você ter voltado! — falei, abraçando-a também. — Por que foi embora tão de repente?

Ela sorriu, caminhou até a beira da água e sentou-se de pernas cruzadas. Bateu na areia, num sinal para que sentássemos ao lado dela.

— Porque eu tinha certeza do que iria acontecer — respondeu. — Quando se ama alguém e se confia nela, quando se sabe que essa pessoa está pronta para aprender e crescer, a gente a solta. Como vocês poderiam aprender, sentir suas experiências, se soubessem que eu estava junto, como um escudo entre vocês e suas escolhas? Pye virou-se para mim, sorridente. — Isto é mesmo o lago Healey alternativo. O avião é para lazer.

Você me fez lembrar do quanto gosto de voar, e por isso dupliquei seu Growly, fiz uns treinos e procurei achá-los Uma surpresa, não é, pousar de rodas baixadas na água? — Percebeu meu horror e levantou a mão. — Lembrei-me a tempo! Um pouquinho antes de pousar, recorri à perícia do meu aspecto mais versado em hidraviões, e você gritou recolher rodas! Obrigada. — Pye pôs a mão no ombro de Leslie. — Como você foi perspicaz ao notar que não deixei pegadas na areia. Foi para lhe lembrar que deve escolher seu próprio caminho, seguir seu supremo sentido de dever, e não o de outra pessoa. Mas você já sabe disso.

— Ah, Pye, como podemos seguir nosso supremo sentido de dever — disse Leslie —, o que podemos fazer num mundo que... Conheceu Ivan e Tatiana?

Pye fez um gesto afirmativo.

— Nós os amamos! — exclamou Leslie, com a voz embargada. — E foram americanos que os mataram! Pye, fomos nós!

— Não foi você, querida. Como pode pensar que seria capaz de matá-los? — Pye levantou o queixo de Leslie, olhou dentro de seus olhos. — Lembre-se, nada no desenho é fortuito, nada é destituído de razão.

— Que possível razão? — repliquei. — Você não estava lá, não sentiu o terror! — A noite em Moscou precipitou-se como que numa catadupa. Era como se tivéssemos assassinado nossa própria família na escuridão.

— O desenho não é cruel — disse ela, suavemente. — É um esquema de todas as possibilidades, de absoluta liberdade de escolha. — Pye tocou meu joelho. — Richard, o desenho é um livro aberto. Cada acontecimento é uma palavra, uma oração, parte de uma história sem fim. Cada letra permanece para sempre na página. O que muda é a consciência, e ela escolhe o que ler e o que deixar sem ler. Quando você chega a uma página sobre a guerra nuclear, desespera-se ou aprende o que o texto tem para lhe ensinar? Você morre por ler a página, ou passa para outras páginas, mais sábio?

— Nós não morremos — respondi. — E esperamos que estejamos mais sábios.

— Vocês dividiram uma página com Tatiana e Ivan Kirilov, e ao chegarem ao fim da leitura, a página foi virada. Ela ainda existe, neste exato momento, esperando para mudar o coração de alguém que desejar lê-la. Mas depois de ter aprendido, você não precisa reler a página. Você a passou, e eles também o fizeram.

— Fizeram? — perguntou Leslie, com uma ponta de esperança.

Pye sorriu.

— Linda Albright não lhe lembrou um pouco Tatiana Kirilov? Por acaso Krysztof não lhe lembrou, de certa forma, seu amigo Ivan? Os pilotos do aerojogo não transformaram a guerra, que de terror que era passou a ser um entretenimento? Não salvaram o mundo deles da destruição? Quem você pensa que eles são?

— Os mesmos que leram aquela página conosco a respeito de uma noite terrível em Moscou?

— Isso! — concordou Pye.

— E eles são nós, também? — perguntei.

— Isso! — Os olhos de Pye brilharam. — Você e Leslie. Linda e Tatiana e Mashara e Jean-Paul e Átila e Ivan e Atkin e Pye, nós todos, somos uma só pessoa!

Minúsculas ondas batiam na areia, e ouvíamos o murmúrio suave do vento nas árvores.

— A cada vez que vocês pousam no desenho, concentram-se numa página — disse ela. — Há uma razão para eu os ter encontrado, uma razão para vocês terem encontrado Átila. Preocupam-se com a paz e a guerra? Nesse caso, pousam em páginas que lhes proporcionam uma visão melhor da paz e da guerra. Temem que se separem, ou que morram e percam um ao outro? Então pousarão em vidas que lhes ensinarão a respeito de separação e de morte, e aquilo que aprenderem mudará o mundo à volta de vocês para sempre. Amam o planeta e receiam que a humanidade o esteja destruindo? Escolhem ver o pior e o melhor do que pode acontecer, aprendem que tudo depende da escolha individual de vocês.

— Está afirmando que criamos nossa própria realidade? — perguntei. — Sei que se diz isso com freqüência, mas...

Pye riu, e apontou o horizonte a leste.

— É madrugada bem cedo — disse, com a voz ganhando subitamente um tom misterioso. — Escuridão. Estamos numa praia como esta. O primeiro sinal do alvorecer. Frio.

Estávamos a seu lado, no frio e na escuridão com ela, vivendo a história que narrava.

— Diante de nós está o cavalete e a tela, e temos nas mãos as tintas e os pincéis. — Diante daqueles olhos escuros, sentíamo-nos como que hipnotizados. Eu sentia a paleta na mão esquerda, os pincéis na direita, pincéis com ásperos cabos de madeira.

— Agora a luz aumenta no céu, vêem? — perguntou. — O céu está se transformando em fogo, caí um manto de ouro, prismas de gelo fundem-se em tons escarlates, convertem-se no nascer do sol...

Estonteados, víamos as cores.

— Pintem! — disse Pye. — Captem esse alvorecer em suas telas! Absorvam essa luz através de seus olhos, transportem-na para a tela! Depressa, agora, depressa! Vivam a madrugada com seus pincéis!

Não sou pintor, mas em minha mente eu sentia aquele ímpeto maravilhoso, transformado em pinceladas ousadas na tela. Imaginava o cavalete de Leslie, via sua própria aurora, de magnífica delicadeza, raios cuidadosos mesclados a uma explosão de cor.

— Pronto? — perguntou Pye. — Guardaram os pincéis? Assentimos com um gesto.

— O que criaram?

Eu devia ter pintado nossa mestra, aquele momento.

— Duas auroras muito diferentes — falou Leslie.

— Não são duas auroras — retrucou Pye. — São duas pinturas! O artista não cria a aurora, cria...

— Ah, sim, é claro! — exclamou Leslie. — O artista cria a pintura!

Pye concordou.

— A aurora é a realidade, a pintura é a maneira como a representamos? — perguntei.

— Exatamente! — concordou Pye, — Se cada um de nós precisasse criar nossa própria realidade, pode imaginar o caos tedioso que resultaria? A realidade ficaria limitada àquilo que cada um de nós conseguisse inventar!

Concordei com a cabeça. Como criar a aurora se eu nunca a tivesse visto? O que fazer com um negro céu noturno para começar o dia? Por acaso eu teria imaginado um céu? Ou o dia e a noite?

A realidade nada tem a ver com nossa estreita maneira de ver — continuou Pye. — A realidade é o amor expressado, o amor puro e perfeito, intocado pelo espaço e pelo tempo.

— Já se sentiram assim, em uníssono com o mundo, com o universo, com tudo que existe, z um grau tal que são invadidos pelo amor? — Pye olhou para Leslie e para mim. — Isso é a realidade. Isso é a verdade. O que fazemos dela compete a nós, tal como a pintura da aurora compete ao artista. No mundo de vocês, a humanidade afastou-se desse amor. Ela vive o ódio, lutas pelo poder. Continuem, e ninguém verá a aurora. O alvorecer sempre existirá, naturalmente, mas as pessoas nada saberão a seu respeito, e por fim até a lembrança de sua beleza desaparecerá.

Ah, Mashara, pensei, porventura seu passado será nosso futuro?

— Como podemos levar o amor a nosso mundo? — perguntou Leslie. — Há tantas... ameaças, tantos Atilas.

Pye deteve-se por um momento, à procura de uma história que pudesse elucidar a questão. Por fim, desenhou na areia um pequeno quadrado.

— Digamos que vivemos num lugar terrível, a Cidade das Ameaças — disse, tocando o quadrado. — Quanto mais permanecemos ali, menos gostamos do lugar. Há violência, destruição, não gostamos das pessoas, não apreciamos suas escolhas, não temos nada a ver com o lugar. A Cidade das Ameaças não é o nosso lar! — Traçou uma linha ondulada que, saindo do quadrado, descrevia volteios sem fim. Na extremidade dessa linha, desenhou um círculo. — Por tudo isso, um dia arrumamos nossas coisas e vamos embora, à procura da Cidade da Paz. — Acompanhou com o dedo todas as curvas e voltas da estrada serpenteante. — Seguimos para a esquerda e para a direita, tomamos estradas largas e atalhos, acompanhamos o mapa de nossas maiores esperanças, e por fim chegamos aqui, a essa cidadezinha tão agradável.

Paz era o círculo na areia, e foi ali que parou o dedo de Pye. Enquanto falava, fincava na areia gravetinhos verdes, simulando árvores.

— Conseguimos uma casa em Paz e, à medida que começamos a conhecer as pessoas, percebemos que elas têm os mesmos valores que nos trouxeram para cá. Cada qual descobriu sua própria estrada, seguiu seu próprio mapa, vindo de onde estava para esse lugar onde não se imagina a destruição, onde as pessoas escolheram o amor, a alegria e a bondade... que canalizam para o próximo, para a cidade, para o próprio mundo. — Encarou-nos quase acanhada. — As pessoas de Paz aprenderam que o ódio é o amor sem os fatos. Por que dizermos mentiras que nos separam e nos destroem quando a verdade é que somos uma só pessoa? Quem mora na Cidade das Ameaças está livre para escolher a destruição, mas nós preferimos a Paz. Ouvíamos sua explicação atentos.

— Com o tempo — continuou ela —, os habitantes da Cidade das Ameaças talvez se cansem da violência, talvez sigam seus próprios mapas para Paz, façam a mesma escolha que fizemos: deixar para trás a destruição. Se todos tomarem essa decisão, a Cidade das Ameaças se transformará numa cidade fantasma. — Traçou um oito no chão, uma suave estrada entre Paz e a Cidade das Ameaças. — E um dia, os habitantes de Paz, curiosos, visitam as ruínas da Cidade das Ameaças e descobrem que, tendo os destruidores saído dali, a realidade mais uma vez se tornou visível: correntes frescas em vez de venenosas, exuberantes florestas novas que brotam de clareiras e minas a céu aberto, o gorjeio de aves no ar puro. — Pye plantou outros gravetinhos na Cidade das Ameaças. — E os habitantes de Paz retiram a tabuleta pendurada na entrada da cidade, a tabuleta que diz “Cidade das Ameaças”, e a substituem por outra: “Bem-Vindos a Amor.” E alguns retornam para remover os escombros, reconstruir as ruas feias, e prometem que a cidade fará jus a seu novo nome. Escolhas, meus queridos, estão vendo? Tudo se resume a escolhas.

Naquele momento, naquele local estranho, o que ela dizia fazia sentido.

— O que vocês podem fazer? — perguntou. — Na maior parte dos mundos, o que faz as coisas mudarem não são milagres repentinos. A mudança vem com o lançamento de um frágil e trêmulo fio entre países: os primeiros aerojogos amadores no mundo de Linda Albright, os primeiros bailarinos, cantores ou filmes soviéticos exibidos a platéias americanas no mundo de vocês. Lentamente, lentamente, não deixem de escolher a vida.

— Por que não da noite para o dia? — perguntei. — Não há nada que diga que é impossível uma coisa mudar depressa.

— É claro que uma mudança rápida é possível, Richard — respondeu Pye. — As mudanças ocorrem a cada segundo, independente de nossa percepção. No desenho, as mudanças iá estão feitas. Seu mundo, com seu primeiro fio de esperança de um futuro pacífico, é tão verdadeiro quanto seu mundo alternativo que acabou em 1962, quanto o primeiro dia da última guerra. Diferentes passados, futuros diferentes. Cada um de nós escolhe o destino de nosso mundo. As mentes devem mudar antes dos acontecimentos.

— Então, o que falei ao tenente é verdade! — exclamei. — Um de meus futuros em 1962 era que os soviéticos não retrocederam. Muitos de nós pensávamos que isso era inevitável. E comecei uma guerra nuclear.

— Claro. O desenho apresenta milhares de caminhos que acabam num determinado fim naquele ano, milhares de Richards alternativos que escolheram experiências de morte. Você não fez essa escolha.

— Não, espere — respondi. — Nos mundos alternativos que não sobreviveram ao desastre, não havia uma porção de gente? Quando foram pelos ares, essas pessoas se congelaram, se vaporizaram, foram comidas por formigas ou o quê?

— Qualquer coisa dessas. Mas, Richard, foram eles que escolheram a destruição do mundo em que viviam! Alguns escolheram passivamente, pois não se importavam. Alguns escolheram isso porque acreditavam que a melhor defesa é o ataque. Alguns escolheram porque se julgaram incapazes de resistir. Um dos meios de se optar por um futuro consiste em crer que ele é inevitável. Quando escolhemos a paz — disse ela, indicando o círculo com as minúsculas árvores —, nós vivemos em paz.

— Haverá um meio de conversar com as pessoas que moram lá, um modo de conversar com nossas formas alternativas quando precisarmos saber o que aprenderam? — perguntou Leslie.

— Você está fazendo isso agora — respondeu Pye com um sorriso.

— Mas como podemos fazê-lo — insistiu Leslie —, sem sairmos pulando de um lugar para outro num hidravião e sem entrarmos numa dimensão diferente e encontrar você, o que só ocorreu porque acertamos com a oportunidade certa em um trilhão?

— O que você quer é um meio de conversar com uma forma alternativa sua que puder imaginar?

— Por favor — pedi.

— Não há nada de misterioso nisso — respondeu ela —, mas funciona. Imagine a forma alternativa que quer encontrar, Richard, faça de conta que pergunta a ele qualquer coisa que desejar saber. Faça de conta que escuta a resposta.

— Parece fácil demais — falei.

— E é. Tente.

De repente, fiquei nervoso.

— Eu? Agora?

— Por que não?

— Devo fechar os olhos?

— Se quiser.

— Nenhum ritual, não é?

— Se o ritual lhe for mais agradável... — admitiu Pye. — Respire fundo, imagine uma porta que se abre para uma sala cheia de luzes multicores, veja a pessoa movendo-se na luz ou numa névoa. Ou esqueça as luzes e a névoa e faça de conta que ouve uma voz. Às vezes é mais fácil para nós ouvir sons que visualizar uma imagem. Ou esqueça luzes ou sons, apenas deixe que o que aquela pessoa sabe invade seu ser. Ou esqueça a intuição e imagine que a próxima pessoa com quem você conversar lhe dará a resposta que procura, e pergunte. Ou pronuncie uma palavra que seja mágica para você. Imagine o que bem desejar.

Escolhi a imaginação, e uma palavra. De olhos fechados, imaginei que, quando falasse, veria diante de mim uma forma alternativa minha que me diria o que eu precisava saber.

Relaxando, vi cores suaves. Quando eu pronunciar a palavra, verei essa pessoa, pensei. Não há pressa.

As cores passavam, nuvens atrás de meus olhos.

— Unicidade — falei.

Numa fração infinitesimal de segundo pude ver, antes de compreender que o verde era um campo de feno, e o azul era o céu. O homem estava parado ao lado da asa de um antigo biplano estacionado no campo de feno, quase em silhueta contra o sol. Eu não lhe podia ver o rosto, mas a cena era tranqüila como um verão de Iowa, e ouvi sua voz como se ele estivesse sentado conosco ali na beira do lago.

— Todo ato humano é uma metáfora, Richard, antes de ser um ato — falou Pye. — Antes que passe muito tempo, você precisará recorrer a tudo quanto sabe a fim de desmentir as aparências, precisará lembrar-se de que Leslie não está apenas empurrando o manete em seu hidravião interdimensional, passando de um mundo para outro. Você necessita da força dela, Leslie necessita de suas asas. Juntos, vocês voam.

A cena dissipou-se, e abri os olhos, sobressaltado.

— Alguma coisa? — quis saber Leslie.

— Muita! — respondi. — Mas não sei ao certo como usá-lo. — Contei-lhe o que eu tinha visto e ouvido. — Não consigo entender.

— Você vai compreender quando precisar — disse Pye. — Quando você faz isso, quando adquire o conhecimento antes da experiência, nem sempre ele faz sentido de imediato.

Leslie sorriu.

— Nem tudo que temos aprendido por aqui é prático.

Pye retraçou o oito que tinha desenhado na areia.

— Nada é prático até compreendermos. Há certos aspectos de vocês que o cultuariam como a um Deus porque você pilota um Martin Seahawk. Há outros que se você próprio pudesse ver, juraria serem mágicos.

— Como você — falei.

— Como qualquer mágico — respondeu ela —, pareço fazer magia porque você não sabe o quanto treinei! Sou um ponto de consciência que se expressa no desenho, tal como você. E tal como você, nunca nasci e nunca poderei morrer. Até mesmo separar a mim de você implica uma diferença inexistente.

— Tal como você é a mesma pessoa que foi há um segundo ou há uma semana — prosseguiu Pye. — Tal como é a mesma pessoa que será daqui a um instante ou daqui a uma semana, também é a mesma pessoa que você foi há uma vida passada, aquela que é numa vida alternativa, aquela que você será daqui a cem vidas, no que chama de seu futuro.

Pye sacudiu a areia das mãos e levantou-se.

— Preciso ir andando — falou. — Vocês têm mais aventuras juntos, ainda. Não se esqueçam dos pintores e do alvorecer. Não importa o que suceder, independente das aparências, a única realidade é o amor. — Estendeu a mão para Leslie, abraçou-a.

— Querida Pye — disse Leslie. — Como é ruim vê-la ir embora!

— Ir embora? Posso desaparecer, meus queridos, mas jamais posso abandoná-los! Quantos de nós estão aqui, afinal?

— Um só, querida — respondi, despedindo-me dela com um abraço.

Pye riu.

— Por que amo vocês? Porque vocês se lembram... — E com isso, desapareceu.

Leslie e eu ficamos sentados por longo tempo na areia, ao lado do desenho de Pye, traçando o oito que ela riscara, apreciando suas cidadezinhas, as florestas e a história que ela contara.

Por fim, caminhamos até o Growly, enlaçados. Puxei a corda da âncora, ajudei Leslie a subir para a cabine, empurrei o avião para dentro da água e subi a bordo. O Martin balançava devagar, empurrado pela brisa. Liguei o motor.

Quando o motor esquentou, nossa verificação de decolagem estava pronta.

— O que virá a seguir, Leslie?

— É estranho, querido. Quando pousamos aqui e achamos que tínhamos saído do desenho, fiquei tão triste ao pensar que estava tudo terminado! Agora sinto exatamente o contrário. Voltar a ver Pye completou alguma coisa em mim. Aprendemos tantas coisas, e tão depressa! Gostaria de parar, voltar para casa e pensar nessas coisas, entender o que significam...

— Eu também, Leslie!

Olhamos um para o outro por muito tempo, e concordamos sem uma só palavra.

— Certo, querida. Vamos para casa. Só precisamos descobrir como fazer isso.

Levei a mão ao manete e o empurrei. Nada imaginei, nem tentei visualizar coisa alguma. O motor do Growly roncou, e o hidravião saltou para a frente. Por que esse ato simples era tão difícil quando eu não podia ver o manete com os olhos?, pensei. Logo eu!

Assim que o Growly levantou da água, o lago desapareceu, e estávamos mais uma vez no ar, sobrevoando todos os possíveis mundos existentes.

 

Lá embaixo estendiam-se os desenhos, misteriosos como sempre, sem setas apontando direções, nem sinais de espécie alguma. - Tem alguma idéia sobre como chegar lá, Leslie?

— Seguir a intuição, exatamente como temos feito até agora? — perguntou ela.

— A intuição é genérica demais, muito cheia de surpresas — respondi. — Não saímos à procura de Tink e de Mashara... ou de Átila. Será que a intuição pode levar-nos ao lugar exato no qual estávamos a caminho de Los Angeles?

Aquilo parecia um daqueles horríveis testes de inteligência, fáceis quando se conhece a resposta, mas capaz de levar uma pessoa à loucura na busca da solução.

Leslie tocou meu braço.

— Richard, da primeira vez que pousamos no desenho, não encontramos Atila, Tink ou Linda. Podíamos reconhecer-nos. Em Carmel, quando nos conhecemos, éramos jovens na época... Mas quanto mais voávamos...

— Certo! Quanto mais voávamos, mais nos modificávamos. Sugere que olhemos para trás, para ver se alguma coisa parece familiar? Claro!

Leslie assentiu.

— Podemos tentar isso. Onde é atrás?

Olhamos em todas as direções. O desenho estendia-se, coruscante, em todos os sentidos, mas não havia um sol, estrelas, tempo. Nada que nos guiasse.

Subimos em espiral, examinando o desenho em busca de algum sinal de onde tínhamos estado. Bem lá embaixo, e à nossa esquerda, vi então a orla rosada e amarela do ponto onde havíamos achado Pye.

— Leslie, veja... — Inclinei a asa de Growly para que ela pudesse ver. — Não parece...?

— Cor-de-rosa. Rosa e dourado! — exclamou ela. Olhamos um para o outro, com uma leve esperança, viramo-nos para as cores que reconhecíamos e subimos de novo.

— É ali. E mais adiante, depois do cor-de-rosa, não é aquele verde, Richie? Onde encontramos Mashara?

Inclinamo-nos para a esquerda, na direção dos primeiros sinais familiares que víamos no desenho.

O avião seguia em frente, uma minúscula libélula no vasto céu, e por fim avistamos o negrume ligado a Átila. Parecia que voávamos há horas desde a decolagem.

— Quando Los Angeles desapareceu, a água estava azul, com trilhas douradas e prateadas, lembra-se? — disse Leslie, apontando para o horizonte à nossa frente. — Aquilo será...? É! — disse ela, com um brilho de alívio nos olhos. — Não é tão difícil. É difícil?

É difícil, pensei comigo.

O desenho era gigantesco. Por fim, atravessamos a orla de ouro e prata, que se estendia diante de nós até onde a vista alcançava. Em algum ponto ali estava uma área exata, de alguns metros, onde a quilha do Growly tinha de tocar no desenho, a porta para nossa própria época. Onde?

Continuamos a voar, esquadrinhando o desenho à procura dos dois caminhos brilhantes que nos levaram a nosso primeiro encontro, em Carmel. Havia milhões de caminhos lá embaixo, muitos milhões de paralelas e interseções.

— Ah, Richie — disse minha mulher finalmente, com desalento. — Nunca vamos achar aquele lugar!

— Claro que vamos. — No entanto, no íntimo eu receava que ela tivesse razão. — Não chegou a hora de experimentarmos a intuição? Não temos muitas opções. Para qualquer lado que olhemos, parece sempre o mesmo lugar.

— Está certo, Richie. Você ou eu?

— Você — respondi.

Leslie relaxou no assento, fechou os olhos e ficou em silêncio durante alguns momentos.

— Vire à esquerda. — Porventura ela percebia a aflição em sua voz? — Complete a curva para a esquerda e desça...

 

A taverna estava quase vazia. Havia um homem sozinho na extremidade do balcão, e um casal de cabelos brancos num reservado.

O que estaremos fazendo num bar; pensei. Odiei os a vida inteira, atravessava ruas para evitá-los.

— Foi um engano — falei. — Vamos sair daqui. Leslie pôs a mão em meu braço, evitou que eu saísse.

— Muitos lugares pareceram errados quando pousamos, querido. Tink foi um engano? E o lago Healey? — Caminhou na direção do balcão, virou-se para olhar o casal idoso no reservado, e seus olhos se arregalaram.

Fui ficar ao lado dela.

— Incrível! — murmurei. — Somos nós, não há dúvida, mas... — Balancei a cabeça.

Mas mudados. O rosto da mulher era tão vincado quanto o do homem, e a boca tão dura quanto a dele. O velho era encovado, cor de cinza. Não eram tão idosos como parecia à primeira vista, mas alquebrados. Sobre a mesa havia duas garrafas de cerveja, sanduíches e batatas fritas. Entre os dois estava, com a capa virada para baixo, um exemplar de nosso último livro. Conversavam.

— O que está achando disso? — perguntou Leslie, também num sussurro.

— Um casal alternativo, em nossa própria época, lendo nosso livro num bar?

— Por que não nos vêem, Richie?

— Provavelmente estão bêbados. Vamos embora. Leslie não levou em consideração minhas palavras.

— Talvez devêssemos conversar com eles, mas acho horrível me meter, eles parecem tão fechados! Vamos sentar ali perto um pouco e escutar.

— Escutar? A conversa dos outros, Leslie?

— Acha que não devemos? Então aborde-os e me aproximarei assim que perceber que desejam companhia.

Examinei o casal.

— Talvez você tenha razão, querida.

Entramos no reservado ao lado do deles e nos sentamos no canto, de modo que pudéssemos observar-lhes os rostos.

O homem tossiu e bateu no livro que estava diante da mulher.

— Eu poderia ter escrito isso! — comentou ele, enquanto mastigava o sanduíche. — Poderia ter escrito tudo que está neste livro!

A mulher suspirou.

— Talvez pudesse mesmo, Dave.

— Ora, se poderia! — O homem tossiu de novo. — Escute, Lorraine, o sujeito pilota um velho biplano. E daí? Eu comecei a tirar o breve, você sabe disso. Quase solei. O que há de tão difícil em pilotar um avião velho?

Eu não tinha escrito que era difícil, pensei. Escrevi que eu estava numa roda-viva quando percebi que minha vida não estava indo em nenhuma direção.

— Há outras coisas no livro além de aviões velhos — retrucou a mulher.

— Ora, ele não passa de um grande mentiroso. Ninguém ganha a vida assim, levando pessoas para passear e decolando de campos de feno. É tudo inventado. E a mulher dele? Vai ver que inventou também. Nada daquilo é verdade. Não percebe?

Por que ele era tão incrédulo? Se eu lesse um livro de um aspecto alternativo meu, não me reconheceria nas páginas? Se ele é um aspecto de mim, pensei, por que não partilhamos os mesmos valores? O que faz ele num bar, bebendo cerveja e, ainda por cima, comendo o cadáver moído e frito de algum boi infeliz?

Era uma criatura infeliz e, pela aparência, fazia bastante tempo que estava assim. Tinha o mesmo rosto que eu via no espelho todos os dias, com a diferença de que as rugas nele eram tão marcadas e fundas que davam a impressão de que tentara mutilar o rosto com uma faca. Havia nele um quê de atormentado, uma sensação de angústia, e tive vontade de me afastar dele, sair dali.

Leslie percebeu minha inquietude, e segurou minha mão por cima da mesa, pedindo-me paciência.

— Mas, mesmo que sejam inventados, o que tem isso, Davey? É só um livro. Por que ficar tão zangado?

O homem acabou o hambúrguer e pegou uma batata frita do prato dela.

— Só estou dizendo que você me encheu a paciência para ler esse livro, e li. E não vi nada de tão especial nele. Eu podia ter feito tudo que esse camarada fez. Não sei por que você acha esse livro tão... sei lá o quê.

— Não acho que ele seja nada. Acho só que é exatamente isso que você acabou de dizer, acho que fica a impressão de que o livro se refere a nós.

O homem olhou para ela, surpreso, mas a mulher ergueu a mão.

— Se você tivesse continuado na aviação, quem sabe? E você também escrevia, lembra-se? Trabalhava no Courier e escrevia contos à noite. Exatamente como esse homem.

— Bah! — fez o homem. — Contos à noite! E em que isso deu? Rejeições, uma caixa cheia de papeletas de rejeição. Quem está interessado nisso?

A voz da mulher era quase consoladora.

— Talvez você tenha desistido cedo demais.

— É possível. Digo-lhe que poderia perfeitamente ter escrito aquele negócio da gaivota que ele escreveu! Quando era menino, costumava ir para o cais e ficava olhando as aves. Ficava imaginando que eu tinha asas...

Eu sei, pensei. Você se comprimia contra as pedras, fazia o possível para sumir de vista, e elas voavam tão perto que você ouvia o vento em suas asas, como se fossem espadas emplumadas. Então, elas se detinham no ar, mergulhavam como morcegos, livres no céu, e lá continuava você, ancorado nas pedras sólidas.

Subitamente, fui tomado de compaixão pelo homem, senti os olhos marejarem enquanto observava aquele rosto macerado.

— Eu poderia ter escrito aquele livro, cada uma de suas palavras. — Ele tossiu de novo. — Hoje em dia estaria rico.

— É... — concordou a mulher.

Ela calou-se, terminando o hambúrguer. O homem pediu outra cerveja, acendeu um cigarro, e por algum tempo desapareceu atrás de uma cortina de fumaça azul.

— Dave, por que você deixou de voar, se gostava tanto?

— Nunca lhe contei? Foi simples. Ou se pagava uma fortuna para aprender, custava mais ou menos vinte dólares por hora no tempo em que se vivia uma semana com vinte dólares, ou se trabalhava como um escravo, polindo aviões dias e dias, bombeando gasolina de manhã à noite para conseguir um vôo. Nunca fui escravo de homem nenhum. A mulher não respondeu.

— Você faria isso? — perguntou ele, — Gostaria de voltar para casa cheirando a gasolina e a cera, todas as noites, em troca de um vôo por semana? Naquele ritmo, eu levaria um ano para tirar meu breve. — O homem suspirou. — Eles chamam a gente de manicaca. “Manicaca, limpe esse óleo.” “Manicaca, varra o hangar.” “Manicaca, despeje o lixo.” Comigo, não! — Deu uma tragada no cigarro, como se queimasse a própria recordação. — O Exército também não era muito melhor — disse, em meio à nuvem de fumaça —, mas ao menos me pagava em dinheiro. — Olhou para o outro lado do bar sem nada ver, com a cabeça em outro tempo. — A gente saía para manobras, e às vezes os caças desciam sobre nós como se fossem lanças voadoras, você sabe como é. Desciam, arremetiam e sumiam de vista, e eu ficava pensando se não devia ter me alistado na Força Aérea, Gostaria de ter sido piloto de caça.

Nada disso, pensei. O Exército foi uma opção inteligente, Dave. No Exército, em geral, só se mata uma pessoa de cada vez.

O homem suspirou outra vez e tossiu.

— Não sei. Talvez você tenha razão em relação ao livro. Poderia ser eu. É claro que poderia ter sido você, pois era suficientemente bonita para ser uma atriz de cinema. — Deu de ombros. — Realmente, eles passaram por muitos momentos difíceis naquele livro. É claro que foi tudo por culpa dele. — O homem fez uma pausa, deu outra longa tragada no cigarro, com um ar triste. — Não os invejo pelo que passaram, mas realmente invejo a maneira como as coisas acabaram.

— Não fique melancólico por minha causa! Fico satisfeita por não ser eles! A vida que levam tem umas coisas boas, mas é tudo muito instável, coisas que desconheço. Se eu fosse ela, não conseguiria dormir. Tivemos uma boa vida, você e eu... bons empregos, nunca estivemos desempregados ou falidos, nem um só dia, nem nunca estaremos. Temos uma boa casa, algumas economias. Não somos as pessoas mais espetaculares do mundo, talvez não sejamos nem as mais felizes, mas eu o amo, Dave... O homem riu e bateu na mão dela.

— Amo você tanto, que nem imagina...

— Ah, David! — disse ela, balançando a cabeça.

Ficaram em silêncio por muito tempo. Como haviam mudado para mim, apenas naquele breve período em que eu estava perto deles! Por mim, Dave jamais teria começado a fumar, mas eu gostava dele. Tinha passado da aversão à solidariedade por um lado meu que nunca havia conhecido. O ódio é o amor sem os fatos, dissera Pye. Se detestamos uma pessoa, não haverá fatos que, se conhecêssemos, mudariam nossa opinião?

— Sabe o que vou lhe dar em nosso aniversário de casamento? — perguntou a mulher.

— O que poderá ser?

— Aulas de vôo!

O homem olhou para a mulher como se ela tivesse perdido o juízo.

— Você ainda pode fazer isso, Davey. Sei que pode... Ficaram em silêncio por algum tempo.

— Droga. Não é justo — retrucou ele.

— Nada é justo — disse a mulher. — Mas você sabe como são essas coisas, às vezes eles dizem seis meses, e o tempo vai passando, as pessoas vivem anos!

— Lorraine, tudo passou tão depressa] Ontem mesmo me alistei no Exército, e isso foi há trinta anos! Por que não dizem à gente que a vida passa tão depressa?

— Dizem — respondeu ela.

O homem suspirou.

— E por que não prestamos atenção?

— Faria alguma diferença?

— Faria agora — respondeu ele. — Se eu pudesse viver de novo, sabendo disso.

— O que você diria a nossos filhos, agora, se tivéssemos filhos? — perguntou ela.

— Eu lhes diria que pensassem em tudo. Realmente quero fazer isso? Não importa o que a gente faz, o que importa é a gente querer!

A mulher olhou para ele, surpresa. Parece que ele não fala assim com freqüência, pensei.

— Eu lhes diria que não há nada de engraçado em a gente chegar aos últimos seis meses de vida — disse o homem — e ficar imaginando o que aconteceu ao que você tinha de melhor. O que aconteceu ao que havia de importante? — O homem tossiu e franziu a testa, apagando o cigarro no cinzeiro. — Eu lhes diria que ninguém pretende viver em... mediocridade, mas essas coisas acontecem, garotos, acontecem, a menos que vocês pensem em tudo que fazem, a menos que vocês tornem cada escolha a melhor que sabem fazer.

— Você devia ter sido um escritor, Davey. Ele fez um gesto de discórdia...

— É como se no fim houvesse um teste-surpresa: sinto orgulho de mim? Dei minha vida para me tomar a pessoa que sou neste exato momento! O que paguei valeu a pena? — De repente, ele dava a impressão de estar terrivelmente cansado.

Lorraine tirou um lenço de papel da bolsa, encostou a cabeça no ombro dele e enxugou uma lágrima. O marido amparou-a, afagou-a, enxugou os próprios olhos e os dois ficaram em silêncio, só quebrado pela insistente tosse dele.

Talvez fosse tarde demais para ele dizer aos filhos, pensei, mas ao menos ele contou a alguém. Dissera à mulher e a nós, à distância de uma mesa e de um universo. Ah, Dave...

Quantas vezes eu imaginara aquele homem, quantas vezes havia testado minhas decisões com referência a ele: se eu responder não a este teste, se jogar com segurança, como me sentirei quando olhar para trás e ver o que fiz? A algumas escolhas era fácil dizer não: não quero roubar bancos, não quero me viciar em coisa alguma, não quero trocar minha vida por uma emoção barata. Mas a decisão quanto a enfrentar qualquer aventura real era avaliada segundo a visão dos olhos dele: quando eu me lembrar disso, ficarei feliz por ter ousado ou por não ter agido assim? Agora ele estava ali em pessoa, dizendo-nos.

— Coitados! — compadeceu-se Leslie. — Somos nós, Richie, desejando havermos tido uma vida diferente?

— Trabalhamos demais — respondi. — Temos muita sorte de termos um ao outro. Seria bom dedicarmos mais tempo e desfrutar o que somos, ficarmos um pouco mais quietos juntos.

— Eu também! Sabe, meu amor, podemos diminuir nosso ritmo — disse ela. — Não somos obrigados a ir a conferências, fazer filmes e assumir dez projetos ao mesmo tempo. Acho que não precisávamos nem mesmo brigar com a receita federal. Talvez devêssemos ter saído daqui, ido para a Nova Zelândia e ficar de férias o resto da vida, como você quis fazer.

— Acho bom não termos feito isso, querida. Acho bom termos ficado. — Olhei para ela, lembrando-me com amor de todos aqueles anos em que estávamos juntos. Por mais trabalhosos que tivessem sido, representavam também a maior alegria de minha vida.

Tempos duros, tempos bons, falou Leslie com os olhos. Tampouco eu os trocaria por coisa alguma.

— Vamos tirar umas longas férias quando voltarmos — propus, ganhando uma nova perspectiva com a observação daquele casal no fim do caminho.

Ela concordou.

— Vamos reformular nossas vidas.

— Sabe o que estou pensando, Davey, meu amor? — perguntou Lorraine, com um sorriso triste.

Ele pigarreou e sorriu também.

— Nunca sei o que você está pensando.

— Acho que devemos pegar este guardanapo aqui — disse ela, metendo a mão na bolsa — e este lápis, e relacionar o que mais queremos fazer e transformar esses seis meses nos melhores de nossa vida. O que iríamos fazer se não houvesse médicos para controlar-nos? Já que eles admitem que não podem curar você, com que direito vêm nos dizer o que devemos fazer com o tempo que nos resta? Sugiro que façamos essa lista e depois aproveitemos o tempo.

— Você é doida mesmo.

— Aulas de vôo, finalmente... — começou ela a relacionar.

— Ora, pare com isso, querida.

— Foi você mesmo quem disse que poderia fazer tudo o que esse sujeito fez — disse ela, apontando o livro. — É só para nos divertirmos. Vamos. O que mais?

— Bem, sempre tive vontade de viajar, ir à Europa, talvez, e já que estamos sonhando...

— À Europa, mas onde? Algum lugar em especial?

— Itália — sugeriu ele, como se expressasse um desejo secreto.

Ela arqueou as sobrancelhas e anotou a sugestão do marido.

— E antes de irmos, eu gostaria de aprender um pouco de italiano, para podermos conversar com as pessoas lá.

A mulher levantou o olhar, surpresa, detendo o lápis no ar por um instante.

— Vamos comprar uns livros de italiano — disse, escrevendo. — Há também aulas em cassetes. — Olhou para ele. — O que mais? A lista é de tudo que você quiser.

— Ah, não temos tempo. Devíamos ter feito isso...

— Devíamos, uma pinóia — retrucou ela. — Não faz sentido ficarmos com saudade de um passado que não podemos recuperar. Por que não desejarmos coisas que ainda podemos fazer?

Ele pensou nisso por um momento, e sua expressão melancólica logo desapareceu. Foi como se ela lhe tivesse insuflado vida nova.

— Isso mesmo! Está na hora! Acrescente aí: surfar!

— Surfar? — admirou-se ela, arregalando os olhos.

— O que o médico dirá sobre isso? — perguntou ele, com um brilho travesso no olhar.

— Vai dizer que não é saudável — respondeu ela, rindo. E anotou no guardanapo. — O que mais?

Leslie e eu rimos um para o outro.

— Eles podem não nos ter ensinado a voltar para casa, mas nos mostraram o que devemos fazer quando chegarmos lá — comentei.

Leslie assentiu com a cabeça, empurrou o manete invisível para a frente e o bar sumiu num turbilhão.

 

De volta ao ar, pusemo-nos à procura de alguma pista que o desenho pudesse oferecer, qualquer sinal que mostrasse uma maneira de voltar para casa. As trilhas seguiam todas as direções ao mesmo tempo.

— Será que vamos passar o resto da vida entrando e saindo da intimidade das pessoas, em busca de nós próprios? — perguntou Leslie.

— Não, meu amor, já vamos sair daqui — menti. — Tem de haver uma saída! Basta termos paciência para esperarmos até encontrar a chave, seja qual for.

Ela olhou para mim.

— Neste exato momento, você está bem mais seguro de si do que eu. Por que não escolhe um local para tentarmos?

— Intuição, uma última vez? — concordei.

— Assim que fechei os olhos, percebi para onde devíamos ir.

— Siga em frente! Prepare-se para o pouso.

Ele estava sozinho, jogado na cama de um quarto de hotel. Meu gêmeo, um gêmeo idêntico, apoiado num cotovelo, olhando pelas janelas abertas. Não podíamos estar longe de casa.

As altas portas de vidro emolduravam uma sacada que dava para um campo de golfe, ladeado por densos arvoredos. Nuvens baixas, um contínuo tamborilar de chuva no telhado. Ou era fim de tarde, ou as nuvens estavam tão pesadas e escuras que o dia se convertera em crepúsculo.

Nós nos achávamos numa sacada semelhante, do outro lado do quarto, olhando através de portas de vidro, abertas.

— Tenho a impressão de que ele está numa profunda depressão, não acha? — murmurou Leslie.

Concordei com a cabeça.

— É estranho ele estar deitado ali, sem fazer nada. Onde está Leslie?

Ela balançou a cabeça, olhando para o homem, preocupada.

— Eu me sinto um pouco... constrangida nessa situação — falou. — Acho que você deve conversar com ele, a sós.

O homem se mantinha imóvel, mas não estava dormindo.

— Vá lá, amor — insistiu Leslie. — Fale com ele. Acho que precisa da sua ajuda.

Apertei-lhe a mão e entrei no quarto, sozinho.

Ele olhava para o céu cor de chumbo, e mal virou a cabeça quando surgi. Ao lado dele, sobre a colcha, havia um computador. A luzinha indicava que estava ligado, mas a tela nada mostrava.

— Olá, Richard — cumprimentei-o. — Não se assuste. Eu sou..

— Eu sei — suspirou ele. — A projeção de uma mente perturbada. — Virou os olhos de novo para a chuva.

Pensei numa árvore, atingida por um raio e derrubada ali sem poder se mexer.

— O que aconteceu? — perguntei. Não houve resposta.

— Por que está tão deprimido?

— Não deu certo. Não sei o que aconteceu — respondeu ele. — Ela me deixou.

— Leslie? Deixou você?

O vulto na cama fez um vago gesto de assentimento.

— Bem, ela avisou que se eu não saísse de casa, ela sairia, pois não me suportava mais. Pode ter sido eu quem se distanciou, mas foi ela quem largou o casamento.

Impossível, pensei. O que seria capaz de fazer uma Leslie alternativa dizer que não o suportava mais? Havíamos atravessado tantos períodos difíceis juntos, minha Leslie e eu, anos de luta, desesperadas tentativas de nos salvarmos da falência, épocas em que nos sentíamos tão cansados que queríamos desistir, tão pressionados que havíamos perdido a perspectiva e a paciência, épocas em que havíamos discutido. Mas nunca tinha sido sério, jamais nos separáramos, nunca alguém dissera: se você não sair, saio eu. Eu não conseguia imaginar uma coisa daquelas! O que poderia ter acontecido na vida deles, que fora muito pior que aquilo que nos sucedera?

— Ela se recusa a falar comigo. — A voz estava tão abatida quanto ele. — Falo uma frase, e ela desliga.

— Afinal de contas, o que você fez? Deu para beber ou viciou-se em drogas? Você..

— Não seja burro! — respondeu, irritado. — Eu sou eu — Fechou os olhos. — Vá embora. Deixe-me em paz.

— Desculpe-me. Foi bobagem minha. É que estou atônito. Não consigo imaginar o que possa ter separado vocês dois. Só pode ter sido uma coisa monumental!

— Não! Coisinhas, foi tudo coisinhas pequenas! Há uma montanha de trabalho por ser feito... impostos, contabilidade, filmes, livros e mil solicitações que vêm do mundo inteiro. Tudo precisava ser feito, e direito, de acordo com ela. Há anos ela me prometeu que minha vida nunca mais seria a balbúrdia que era antes de ela me conhecer. E falava sério. — Ele continuou a falar, satisfeito por poder conversar com alguém, mesmo que fosse a projeção de sua própria mente. — Não tenho cabeça para detalhes, nunca tive, e ela se incumbe de fazer tudo, manipulando três computadores com uma das mãos e duzentos formulários, especificações e prazos com a outra. Ela há de cumprir aquela promessa mesmo que tenha de se matar, está entendendo?

Eu ouvia em silêncio.

Ele estava ressentido, amargurado.

— Ela não tem tempo para mim, não tem tempo para outra coisa a não ser o trabalho. Não posso ajudá-la porque não sei fazer nada direito. Fiz tanta bagunça antes que ela morre de medo de eu voltar a fazer a mesma coisa.

“Aí lembro a ela que este mundo é feito de ilusões, não se pode levá-lo tão a sério, e que acho que vou trabalhar no avião. É uma simples verdade, mas quando saio, ela olha para mim como se quisesse me matar! — Continuou deitado na cama como se estivesse num divã de analista. — Ela mudou, a tensão a fez mudar. Não é mais charmosa, engraçada ou bonita como antes. É como se estivesse dirigindo um trator o dia todo, numa obra de terraplenagem; é tanta papelada que precisa estar pronta em 15 de abril ou 30 de dezembro ou 26 de setembro que se ela parar um pouco, acaba sepultada pelo papelório, aí eu pergunto o que foi que aconteceu com nossa vida e ela berra: “Bem se você carregasse um pouco dessa carga aqui, poderia descobrir!”

Se eu não soubesse que ele era eu, teria dito que aquele homem estava delirando.

No entanto, certa vez, por pouco eu não tomara aquele caminho, ficara quase tão maluco como ele parecia agora. É tão fácil se perder num furacão de detalhes, protelar as coisas mais importantes da vida porque se tem certeza de que nada pode ameaçar um amor tão bonito, e depois um dia descobrir que a própria vida se transformou num pormenor e que no processo a gente se tornou um estranho para a pessoa a quem mais ama.

— Já passei por isso — falei, forçando um pouco a verdade. — Não se importa se lhe fizer uma pergunta?

— Qualquer uma. Pergunte. Nada me afeta. É o fim de nós dois. Ela não me tolera mais. — Deu de ombros, e continuou: — Não foi minha culpa. Coisinhas, minúcias, realmente podem ser fatais, mas se tratava de nós!  Éramos as pessoas que nós dois tínhamos procurado no mundo inteiro, almas irmãs! Você consegue imaginar? Eu volto um pouco a meus hábitos, fico uns dias meio preguiçoso, e ela se queixa de que estou arranjando mais trabalho para ela, quando já está se afogando! Ela prepara uma lista de coisinhas que quer que eu faça, e esqueço de alguma coisa, de uma bobagem qualquer, como trocar uma lâmpada, e ela me acusa de descarregar tudo em cima das costas dela. Está entendendo o que quero dizer?

“Está certo que eu devia ajudar, mas o tempo todo? E mesmo que eu não ajude, isso é razão para acabarmos com nosso casamento? Não deveria ser. Mas as coisas vão se acumulando, uma pedrinha, mais outra pedrinha e de repente a ponte desaba, e nada mais pode repô-la no lugar. Pedi a ela que deixasse dessa mania, mas nããão! Antes nosso casamento era amor e respeito, agora é tensão, trabalheira sem fim e raiva. Ela não consegue ver o que é mais importante! Ela...

— Rapaz, diga-me uma coisa — falei, interrompendo o monólogo.

Ele parou de se lamentar, olhou para mim, surpreso por eu ainda estar ali.

— Por que sua mulher deveria amá-lo? O que você tem de tão espetacular para ela ficar apaixonada por você?

Ele franziu a testa, abriu a boca, mas não pronunciou uma palavra. Era como se eu fosse um bruxo que lhe tivesse roubado o dom da fala. Depois desviou os olhos para a chuva.

— Qual foi mesmo a sua pergunta? — inquiriu, após algum tempo.

— O que você tem de tão espetacular para ela ficar apaixonada por você? — repeti, paciente.

Ele pensou de novo e desistiu.

— Não sei.

— Você é carinhoso com ela?

Ele balançou a cabeça, num gesto quase imperceptível.

— Agora não sou mais. Mas é difícil a gente ser se...

— É compreensivo, dá-lhe apoio?

— Francamente? — Pensou um pouco mais. — Não.

— É comunicativo, sabe conversar?

— Às vezes. Bem, raramente. Não.

— É aberto, sensível aos sentimentos dela?

— Não posso dizer que seja. — Rilhou os dentes. — Não. Pensava antes de responder cada pergunta minha. Fiquei a imaginar se ele reunia coragem para responder, ou se a honestidade o compelia a buscar as verdades mais profundas.

— É comunicativo, fascinante, divertido, interessante, esclarecedor... atencioso, entusiasta?

Ele sentou-se pela primeira vez, olhando para mim.

— Às vezes. Bem, quase nunca. — Fez uma longa pausa. — Não.

— É romântico? É solícito? Faz agrados a ela?

— Não.

— Cozinha bem? Deixa as coisas em ordem dentro de casa?

— Não.

— É prestativo, inspira confiança, resolve problemas?

— Não.

— Um hábil homem de negócios?

— Não.

— Para ela, você é um abrigo nas horas difíceis?

— Não.

— É amigo dela?

Ele pensou mais tempo para responder.

— Não — disse por fim.

— Se você tivesse aparecido com todos esses defeitos ao primeiro encontro, acredita que ela desejaria um segundo?

— Não.

— Então, por que ela não o deixou antes? Por que ela ficou?

Seu olhar para mim foi carregado de dor.

— Porque é casada comigo!

— É provável.

Ficamos em silêncio, pensando sobre o caso.

— Você conseguirá mudar, transformar todos esses nãos em respostas positivas?

Ele olhou para mim, exausto.

— Claro que é possível. Eu era o melhor amigo dela, eu era... — Fez uma pausa, tentando lembrar-se do que era.

— Essas coisas, essas qualidades lhe fariam mal se você as recuperasse? Será que treiná-las... de alguma forma o diminuiria!

Não.

— Tornaria você infeliz?

— Não.

— O que perderia se as praticasse?

— Nada!

— O que ganharia?

— Ganharia? — perguntou. Fez uma lista, lentamente. — Amor. Paz. Romance. Participação. Auto-respeito. Conhecimento. Desenvolvimento. Compreensão. Prazer. Orgulho. Felicidade...

— Então...

— Então? — perguntou. A mente ainda voltada para os ganhos.

— Então, o que vai fazer?

Pôs-se de pé num salto, imaginando.

— Mudar! — disse, com o rosto banhado de nova luz. Por que não pude pensar nessas coisas sozinho? — perguntou. Olhou para mim. — Bem, na verdade acho que pensei.

— Você levou anos escorregando para onde está, abandonado por uma mulher que não o suporta mais. Quantos anos levará para subir de volta?

A pergunta apanhou-o de surpresa.

— Nenhum. Eu apenas mudei.

— Tão depressa?

— Não é preciso tempo para mudar assim que se compreende o problema. Se alguém lhe entrega uma cascavel, você não leva muito tempo para largá-la, não é? Por acaso vou ficar com essa cascavel na mão? Só porque ela sou eu? Não, obrigado!

— Muita gente faria isso.

— Não sou muita gente. Estive deitado aqui dois dias, imaginando que as pessoas apaixonadas que fomos, a Leslie e o Richard que fomos, haviam fugido para um futuro feliz e diferente, juntos, e nos deixado nesta dimensão desgraçada, na qual sequer podemos conversar. Eu tinha certeza absoluta de que a culpa era dela, e não conseguia achar uma saída porque, para as coisas melhorarem, ela teria de mudar. Mas agora... Se a culpa é minha, posso mudar a situação! E se eu mudar, e permanecer mudado por um mês e ainda continuarmos infelizes, aí poderemos falar sobre mudar Leslie! — Olhou para mim como se eu fosse um brilhante terapeuta. — Sabe de uma coisa?, quero fazer algumas perguntas. Por que precisei que você viesse a mim, não sei de onde? Por que eu mesmo não me fiz essas perguntas? Há meses!

— Por que não fez? — perguntei.

— Não sei. Burrice. Desatenção. Fiquei tão ocupado em ter ressentimentos contra ela, e todos os problemas... era como se ela estivesse causando esses problemas, em vez de estar tentando resolvê-los, e eu sentia piedade de mim, pensando em como uma pessoa que eu tinha amado tanto pudera mudar assim. — Sentou-se na cama, enterrou a cabeça nas mãos por um instante.

— E agora que de repente percebeu a verdade, não vai se esquecer de fazer essas perguntas a si mesmo de vez em quando? Ele ergueu os olhos, rindo.

— Agora que de repente percebi a verdade, não vou precisar de fazer essas perguntas. Eu mudei, lembre-se. Isso significa que estou me comportando de maneira diferente. Isso significa que me ocuparei em fazê-la feliz, serei um verdadeiro companheiro, dividirei a carga. E quando ela está feliz... — Sorriu, lembrando-se. — Ah, você não faz idéia!

— Imprestáveis sem consideração não se transformam em anjos da noite para o dia. Por que ela haveria de acreditar nessa sua mudança?

No entanto, eu podia ver a mudança. Não mais abatido e inerte, ele estava sentada de pernas cruzadas na cama, escutando, pensando, participando de nossa conversa, cheio de esperança.

— Você tem razão. Não há nenhum motivo para ela acreditar na minha mudança. Ela poderá levar dias para perceber, ou meses, ou pode não perceber nunca. Talvez nunca mais queira me ver. — Parou de pensar nisso, por um momento entristeceu-se de novo, depois olhou para mim. — A verdade é que minha mudança diz respeito a mim. O que Leslie notar ou o que sentir diz respeito a ela.

— Se ela não quiser conversar com você, como vai dizer-lhe o que lhe aconteceu?

— Não sei. Precisarei descobrir uma maneira. Talvez ela perceba por minha voz. — Estendeu a mão para o telefone e discou um número. — Vamos descobrir.

Era como se eu já tivesse desaparecido, tão absorto ele estava no telefonema, tão impregnado de um futuro que quase tinha perdido.

— Alô, meu amor, se quiser desligar, vou entender. — Mas aprendi uma coisa que acho que você vai querer saber. — Fez uma pausa momentânea, e continuou. — Não, você tem razão, não é esse o problema. O problema sou eu. Sou eu que preciso mudar, e já mudei! Estive errado, fui egoísta e injusto com você, e não posso esperar para lhe dizer como estou arrependido! — Fez nova pausa. — Isso mesmo, arrependido de verdade! Eu a amo com todo meu coração e quero ajudar a fazer com que a vida se torne bonita para nós outra vez... e... estou pensando se você teria tempo para um encontro com seu marido antes de nunca mais voltar a vê-lo.

 

Enquanto ele falava, esgueirei-me para o balcão e beijei minha Leslie. Apertamo-nos um contra o outro, tão felizes por estarmos juntos, tão contentes por sermos nós!

— Eles ficarão juntos? — perguntei. — Pode alguém fazer, dessa maneira, muitas mudanças tão radicais?

— Assim espero, querido. Acredito nele porque não se defendeu. Ele procurou se modificar!

— Sempre imaginei que os companheiros ideais têm um amor incondicional, desse que nada pode separar.

— Incondicional? — indagou. — Se eu for cruel e detestável sem razão, e se o ofender você continuará a me amar? Se o enganar, se for para a cama com o primeiro homem que passar pela rua, se arriscar sem hesitar nosso último centavo e chegar em casa embriagada, apesar disso tudo, você me trataria com carinho?

— Quando você propõe esse caminho, talvez meu amor pudesse vacilar. O mais nós somos ameaçados, eu penso, o menos nos amamos. Interessante, para se amar alguém de modo incondicional, não se deve importar-se com o que ele é ou o que tem!

— Também penso assim — concordou Leslie.

— Então me ame condicionalmente, por favor. Me ame quando eu for a melhor pessoa, acalme-se se eu for desatencioso e enfadonho.

— Eu o amarei. Aja da mesma forma, por favor. Olhamos para dentro do quarto mais uma vez e vimos o outro Richard ainda ao telefone. Sorrimos, cupidos triunfantes.

— Por que não tenta a decolagem desta vez? — sussurrou Leslie. — Faz muito tempo que você não tenta, e devia ter certeza de ser capaz disso, antes de voltarmos para casa.

Olhei para ela, estendi a mão, naquele instante de lucidez, na direção de nosso manete invisível, visualizei-o debaixo de minha mão e o empurrei para a frente.

Nada. Não houve nenhum ondular de montanhas ou árvores, o mundo à nossa volta não estremeceu.

— Ah, Richie, é fácil — disse Leslie, ainda sorrindo. — Basta focalizar no sentido vertical.

Antes que eu lhe pudesse pedir que explicitasse o procedimento, passo a passo, antes que eu tentasse de novo, veio aquele conhecido zumbido trêmulo, com o universo se tornando indistinto ao passar de uma para outra dimensão. Leslie já empurrara o manete para a frente.

— Deixe-me tentar outra vez — falei.

— Certo, amor. Vou puxá-lo para trás. Vamos parar, para você tentar outra vez. É só focalizar...

Naquele exato instante, ganhamos o ar, com o mar sob nós. No momento em que ela fez retroceder o manete, o motor engasgou, tossiu e logo foi tarde demais.

O Martin subiu um pouco, e a seguir embicou para a água.

Eu sabia que seria uma violenta amerissagem. O que não esperava era o estrondo, a explosão de uma bomba de 45 quilogramas dentro da carlinga.

Uma força monstruosa arrebentou meu cinto de segurança como se fosse um barbante, atirando-me para fora, através do vidro, e fui cair de cara na água, dura como pedra. Quando emergi, arquejante, lá estava o Martin de cabeça para baixo, a 15 metros de distância, com a cauda para o ar, soltando uma nuvem de vapor do motor quente e submerso.

Não!, pensei. Não! Não! Mergulhei na direção do avião, nosso belo e reluzente Growly branco, meio indistinto debaixo da água, mergulhei na direção da cabine despedaçada e que afundava. Suportando a pressão nos ouvidos, agarrando-me à fuselagem despedaçada, arranquei fora o que restava da capota, soltei o cinto de Leslie. Seu corpo estava inerte e mole. O vestido branco flutuava etereamente em volta dela, os cabelos dourados boiavam languidamente. Tirei-a da carlinga e comecei a subir para a superfície opaca, tão distante de nós agora. Ela está morta. Não, não, não. Tomara que eu morra, que meus pulmões arrebentem, quero me afogar!

Uma mentira me impelia a continuar: Você não tem certeza de que está morta, você precisa tentar.

Está morta.

Você precisa tentar!

Uma chance em mil. Ao chegar à superfície, eu estava esgotado.

— Está tudo bem, amor — arquejei. — Vamos conseguir... Um barco de pesca, com dois enormes motores de popa, quase passou por cima de nós. Um imenso costado a toda velocidade, sufocando-nos em espuma. Um homem saltou ao mar, através da cortina de água, puxando uma corda de segurança. Dentro da água há não mais de dez segundos, ele gritou:

— Peguem os dois! Puxem!

Eu não era um fantasma, nem estava num sonho. Aquilo era uma pedra de verdade, dura como gelo contra meu rosto. Eu não estava assistindo impessoalmente a uma cena, eu era a cena, e não havia ninguém mais para assistir.

 

Eu estava deitado sobre a sepultura dela, na encosta que ela havia plantado com flores, e soluçava. Debaixo de mim, grama fria. Na lápide em que eu encostava o rosto, uma única palavra: Leslie.

O vento de outono, eu não o sentia. Em minha terra, e em meu próprio tempo, nada me importava. Completamente sozinho e abandonado, três meses após o acidente, ainda me encontrava estupefato. Era como se uma cortina de palco, de trinta metros, houvesse caído sobre mim, cheia de pesos, sufocando-me, prendendo-me, asfixiando-me numa sensação de perda e aflição. Nunca havia tomado consciência da coragem necessária a uma pessoa para não se matar quando morre a esposa, o marido! Mais coragem do que eu tinha. Ela exigia o cumprimento de todas as promessas que eu havia feito a Leslie.

Quantas vezes havíamos feito planos. Morrer juntos. Independente do que acontecer, vamos morrer juntos.

— Mas no caso de isso não suceder — advertira-me ela —, se eu morrer primeiro, você deve ir em frente. Prometa!

— Prometo, se você prometer...

— Não! Se você morrer, não terá sentido eu continuar viva. Quero ficar com você.

— Leslie, como pode esperar que eu lhe prometa continuar a viver, se você não fizer a mesma promessa? Isso não é justo. Vou prometer, já que há uma possibilidade de isso acontecer, por uma razão. Mas não vou prometer se você não o fizer também.

— Uma razão? Que razão pode ser?

— É uma questão teórica, mas talvez nós dois possamos descobrir um meio de solucioná-la. Talvez venhamos a aprender um modo de estarmos juntos, não importa que nos tenham ensinado... que a morte é o nosso fim. Talvez seja apenas uma perspectiva diferente, uma hipnose, e poderíamos nos desipnotizar. Se pudermos aprender a superar isso, que bom seria escrever! Não sou eu só que compro livros a respeito da morte, não se trata de curiosidade mórbida, trata-se de estudar um problema, um desafio criativo. E você não concorda que o amor seja a motivação capaz de nos ensinar a solução? Ela rira.

— Meu querido! Adoro o jeito como sua cabeça lida com coisas assim! Mas você está entendendo o que quero dizer, não é? Não só é você quem lê livros sobre a morte, como também é um escritor. Por isso, se houver uma possibilidade dessa desipnotização, haverá um motivo para ficar vivo se eu morrer. Poderia aprender e escrever a respeito. Não há sentido algum em eu continuar por aqui se você se for. Não seria capaz de escrever sem você. Por isso, prometa! Richard Bach, se eu morrer primeiro e você se matar... eu lhe aviso: eu o assassino!

Minha mulher, ou seu lado cético, encarava nossas conversas com muitas reservas.

— Escute isso. — Eu lia para ela, repetindo um trecho de um livro sobre a morte. — “...e enquanto eu estava sozinha em nossa sala, sofrendo desesperadamente a morte do meu querido Robert, um livro caiu da estante, por si só. Dei um salto, de tão assustada que fiquei, e quando o ergui do chão, as páginas se abriram, e meu dedo tocou numa frase, 'Estou com você!', sublinhada pela própria caneta dele...”

— Muito interessante — comentara ela.

— Você duvida? Você é uma pessoa incrédula?

— Richard, já lhe falei, se você morrer...

— O que pensariam as pessoas? — Eu a censurara. — Viajamos por aí dizendo e escrevendo... pelo amor de Deus... que o desafio da vida no espaço-tempo consiste em utilizar a força do amor para transformar o desastre em algo de glorioso, e um minuto depois de minha morte você pega sua Winchester e se mata?

— Não creio que eu me importasse com a opinião alheia numa hora como...

— Você não crê que se importasse! Leslie!

E assim conversávamos, repetidamente. Nenhum dos dois suportava a idéia de viver sem o outro, mas por fim, cada um prometera, exausto, que não haveria suicídio algum.

Agora me arrependia de cada palavra. Secretamente, acreditara que, se não morrêssemos juntos, eu morreria primeiro. E sabia que seria capaz de saltar a cerca do outro mundo para este, como um animal a transpor uma cerca de arame farpado, a fim de estar com ela. Mas deste mundo para o outro...

Continuei deitado na grama, encostado na acetinada lápide congelada. O que sei a respeito da morte exigiria toda uma biblioteca; e o que Leslie sabia a respeito caberia em sua bolsa de noite, sobrando espaço para a carteira e o caderno de telefones. Como eu fora tolo em fazer aquela promessa!

Certo, nada de suicídio. No entanto, sua morte me deixara menos cuidadoso do que eu fora. Tarde da noite, trafegando pelas estreitas ruas da ilha, eu dirigia o velho sedan Torrance dela em velocidade mais adequada a carros esporte, sem prender o cinto de segurança, a me recordar.

Gastava dinheiro prodigamente. Cem mil dólares por um Honda Starflash — setecentos cavalos de força numa estrutura de 550 quilos, cem mil dólares para voar como um louco nos espetáculos aéreos de fim de semana, shows aéreos para gente do interior.

Nada de suicídio, eu prometera. Mas nunca havia dito à minha mulher que não voaria para vencer.

Coloquei-me de pé com esforço, caminhei pesadamente de volta à nossa casa. Antes, o crepúsculo detonava fogos de artifício no céu, Leslie era uma flutuante nuvem de alegria na qual o fim do dia fazia com as flores que ela plantara, me apontando isso, mostrando aquilo. Agora, por toda parte era tudo cinza.

Pye avisara-nos que seríamos capazes de encontrar o caminho de volta para nosso próprio tempo. Por que não contara que o caminho para casa era um acidente no mar, e que um de nós teria de morrer?

De dia, eu estudava meus livros sobre a morte, e comprava outros mais. Tantas pessoas se haviam acidentado de encontro àquela parede! No entanto, ela só havia sido cruzada num sentido, daqui para lá. Se Leslie estava comigo, olhando ou ouvindo, não dava o menor sinal. Nenhum livro despencava de nossas estantes, nenhum quadro balançava na parede.

De noite, eu levava o travesseiro e o saco de dormir para o tablado. Não suportava a idéia de dormir em nossa cama sem ela.

O sono, antes minha escola, minha sala de conferências, minha campânula de aventuras extraterrenas, era agora feito de sombras perdidas, excertos de filmes mudos. Eu percebia um vislumbre de Leslie, chegava para perto dela... e acordava sozinho, desolado. Droga! Ela devia ter estudado!

Eu revivia aqueles vôos loucos sobre o desenho, vezes sem conta, repetia-os mentalmente apesar da dor que provocavam, como um detetive examinando o cadáver em busca de pistas. Devia haver uma resposta, em algum lugar. Se não houvesse, eu morreria, com ou sem promessa.

Aquela noite estava mais brilhante que todas as demais. Estrelas rodopiavam por horas a fio, refulgentes como aquela noite na França antiga...

Sabei que eternamente, diante de vós, segue a luz do amor, e que a cada momento está em vossas mãos o poder de transformar o mundo através do que aprendestes.

Não temais, nem vos turbe a aparência das trevas, do manto vazio que é a morte.

Vosso mundo é uma miragem, tanto quanto qualquer outro mundo. Vossa unicidade no amor i uma realidade, e miragens não podem modificar a realidade. Não vos esqueçais. Não importa a aparência...

Aonde quer que fordes, estão aqui juntos, em segurança com quem amais, no ponto de toda perspectiva.

Focalize no sentido vertical! É só focalizar... Amor e coragem podem tirar uma pessoa de qualquer desespero.

Apreciai os desastres... são as provas que trazem os maiores galardões.

Ignorai as aparências. Tu necessitas da força dela. Ela, de tuas asas. Juntos, voais!

Esmurrei as tábuas do tablado furioso. O espírito violento de Átila se liberava para me ajudar.

Não me importa que tenhamos nos acidentado, pensei, sequer acredito que tenhamos nos acidentado, não nos acidentamos, droga! Não me importa o que tenha visto ou ouvido ou tocado ou provado, não me importa coisa alguma senão a vida! Ninguém está morto ninguém está enterrado ninguém está sozinho eu sempre estive com ela estou com ela agora estarei sempre ao seu lado e ela comigo e nada nada nada tem o poder de se interpor entre nós!

Escutei a voz de Leslie, um fiapo de seu grito:

— Richie! É verdade!

Não houve acidente algum, a não ser em minha mente, e me recuso a aceitar essa mentira como verdade. Não aceito esse tal de lugar, não aceito esse tal de tempo, não há essa porcaria de Honda Starflash, a Honda nem mesmo fabrica aviões, nunca fabricou e jamais fabricará, recuso-me a aceitar que não tenho os mesmos poderes psíquicos que ela, conheço mil livros, e ela nenhum, droga, vou segurar aquele manete e hei de fazer o maldito avião atravessar o teto se for preciso, ninguém se acidentou, ninguém foi atirado fora, isso é apenas mais um pouso no meio daquela droga de desenho e já estou cheio dessas histórias de morte e sofrimento, cheio de chorar em seu túmulo, e eu VOU mostrar a ela que posso fazer isso, não é impossível...

Solucei, tomado de uma furiosa alegria, de uma força imensa que brotava de mim, Sansão empurrando as colunas que impediam o mundo de desabar. Senti-o mexer-se, como ferros que se dobrassem, terremotos que estilhaçassem os alicerces da casa. As estrelas tremeram, borraram-se. Nesse instante, empurrei a mão direita para a frente.

A casa desapareceu. A água do mar estrondejou e subiu numa cortina de borrifos sob nossas asas, enquanto o Growly se libertava das ondas, livrava-se das águas e subia para seu elemento.

— Leslie! Ah, Leslie! Você voltou! Estamos juntos! O rosto dela estava banhado de lágrimas e de riso.

— Richie. Meu amor querido! — exclamou. — Você conseguiu, eu o amo, VOCÊ CONSEGUIU!

 

Meu marido deixou o outro Richard sentado na cama, falando ao telefone com a sua Leslie, e veio ficar comigo na sacada.

Beijou-me e apertamo-nos um contra o outro, tão felizes por estarmos juntos, tão contentes por sermos nós!

— Por que não tenta a decolagem desta vez? — perguntei. — Faz muito tempo que você não tenta, e devia ter certeza de ser capaz disso, antes de voltarmos para casa.

Ele levou a mão ao manete de Growly, porém nada aconteceu. Por que aquilo era tão difícil para ele?, pensei. Havia caminhos demais naquela cabeça, ao mesmo tempo.

— Richie, é fácil. Basta focalizar no sentido vertical. Levei a mão ao manete, empurrei-o para que ele visse, e no mesmo instante começamos a nos mover. A sensação é a mesma de quando se termina uma cena num filme e começam a desmontar o cenário: as paredes transformam-se em lonas ondulantes, rochas são esponjas levíssimas, carros pesados entram dentro do palco para carregar tudo dali.

— Deixe-me tentar outra vez — falou Richie.

— Certo, amor. Vou puxá-lo para trás. Vamos parar, para você tentar outra vez. É só focalizar.

Surpreendeu-me que estivéssemos quase voando. Assim que puxei o manete para trás, o Growly deu um salto no ar. De repente, lá estava a água debaixo de nós. O motor engasgou algumas vezes, como acontece quando faz frio demais para ele pegar. Subimos, mas então o nariz voltou a apontar para baixo. Richard segurou os controles, mas era tarde demais.

Tudo parecia estar acontecendo em câmara lenta. Caímos na água bem devagar; aos poucos, sobreveio uma tempestade de ruído branco, como se eu arrastasse o dedo sobre uma agulha de estéreo com o volume ao máximo; lentamente, havia água por toda parte. Lentamente, a cortina desceu e tudo escureceu.

Quando o mundo ressurgiu, estava verde pastoso, sem ruído algum. Richard segurava-se ao avião, debaixo da água, arrancando pedaços dele, tentando freneticamente soltar alguma coisa, enquanto tudo afundava.

— Richie, não. Estamos com um sério problema, precisamos conversar sobre ele! Não há nada no avião que seja importante, está chegando um barco para nos salvar...

No entanto, de vez em quando ele mete uma idéia na cabeça, e a ordem mais conveniente não lhe importa, tudo que quer é retirar do avião a jaqueta velha ou qualquer outra coisa. Parecia terrivelmente perturbado.

— Está certo, amor. Faça como quiser. Vou esperar você.

Vi-o se agitar durante algum tempo, encontrar o que estava procurando e sair nadando para cima. Que sensação esquisita! O que ele arrastava do avião não era a jaqueta, era eu, inerte, com os cabelos se arrastando, como um rato afogado.

Flutuando a uns dois metros acima do mar, vi-o empurrar minha cabeça para fora da água.

Está tudo bem, amor — arquejou. — Vamos conseguir...

O barco de pesca estava quase em cima dele, aproximando-se de lado. completando os últimos metros, assim que um sujeito se atirou pela borda, com uma corda amarrada à cintura. Havia tamanho pânico no rosto de Richard, uma pessoa tão querida, que não tive coragem de olhar.

Quando virei o rosto, havia uma luz maravilhosa, o amor que se estendia diante de mim. Não era o túnel de que ele tanto me falara, mas parecia ser, pois, em comparação com aquela luz, tudo mais parecia preto como piche, e não havia outra direção senão a que conduzia àquele amor estonteante.

A luz dizia não se preocupe, com uma certeza tão prodigiosa, suave e perfeita que confiei nela com todo meu ser.

Dois vultos se encaminhavam em minha direção. Um deles, um adolescente, tão familiar... Parou a certa distância e ficou imóvel, observando

O outro aproximou-se mais. Era um homem mais velho, com a minha altura. Eu conhecia aquele jeito de andar.

— Alô, Leslie — saudou ele, por fim. Era uma voz profunda e áspera, maltratada por anos de fumo.

— Hy! Hy Feldman, é você? — Transpus correndo os últimos degraus, jogamo-nos nos braços um do outro e nos abraçamos, rodando em círculos, misturando nossas lágrimas felizes.

Eu não tinha em todo o mundo um amigo mais querido ao que esse homem, que se pusera a meu lado no passado, no tempo em que muitos outros me haviam virado as costas. Nunca começava um dia sem uma visita a Hy.

Afastamo-nos, olhando um para o outro, com sorrisos tão largos que quase não cabiam em nossos rostos.

— Meu querido Hy! Ah, meu Deus, que coisa maravilhosa! Não posso acreditar! É tão bom ver você de novo!

Quando ele morrera, três anos antes... Que choque e que dor aquela perda me causara! E eu tinha ficado tão zangada... No mesmo instante, recuei, fitando-o.

— Hy, estou furiosa com você!

Ele sorriu, os olhos brilhando como antes. Eu o adotara como meu sábio irmão mais velho; ele me escolhera para ser sua irmã obstinada.

— Ainda está com raiva?

— Claro que ainda estou com raiva! Que atitude feia, enganar-me daquele jeito! Eu o amava! Confiava em você! Você prometeu que não ia fumar outro cigarro em toda sua vida, mas logo se esqueceu e destruiu dois corações com seus cigarros, Hy Feldman, porque destruiu o meu também! Já parou para pensar nisso? Quanta dor você causou a todos nós, que o amávamos, fazendo uma coisa que o tiraria de nós tão cedo. E por um motivo tão estúpido!

Ele baixou os olhos, humilde, olhando-me de soslaio, através daquelas sobrancelhas hirsutas.

— Pedir desculpa faz alguma diferença?

— Não. Hy, você poderia ter morrido por uma boa razão, por uma boa causa, e eu teria compreendido, sabe disso. Poderia ter morrido lutando pelos direitos humanos ou para salvar as baleias, os oceanos ou as florestas. Poderia ter morrido salvando a vida de um estranho. Mas morreu por fumar cigarros, depois de ter prometido que iria parar!

— Nunca mais. — Hy riu para mim. — Prometo...

— Grande promessa! — retruquei. Mas não pude deixar de rir.

— Parece que passou muito tempo, Leslie?

— É como se fosse ontem.

Hy pegou-me a mão, apertou-a e nos viramos para a luz.

— Vamos. Há uma pessoa aqui de quem você sente saudades há mais tempo do que de mim...

Parei. De repente, não pude pensar em ninguém senão Richard.

— Hy, não posso, preciso voltar. Richard e eu estamos no meio de uma aventura das mais extraordinárias, estamos vendo coisas, aprendendo... Não vejo a hora de lhe contar! Mas aconteceu uma coisa horrível. Quando o deixei, ele estava tão perturbado! — Agora, também eu era tomada de um frenesi. — Preciso voltar!

— Leslie — falou, apertando-me a mão. — Leslie, pare. Tenho uma coisa a lhe dizer.

— Não! Ah, Hy, por favor, não diga! Você vai me dizer que estou morta. Não é mesmo?

Hy assentiu com a cabeça, com aquele sorriso triste dele.

— Mas, Hy, não posso largar Richard, desaparecer sem mais nem menos e nunca mais voltar! Não sabemos viver um sem o outro!

Hy olhou para mim, compreensivo, mas o sorriso desaparecera.

— Nós conversamos sobre a morte, sobre como ela deve ser, provavelmente — contei a ele. — Nunca tivemos medo da morte, o que temíamos era ficar separados. Planejamos que daríamos um jeito de morrer juntos, e isso teria acontecido se não fosse... Pode imaginar? Não sei nem mesmo o que aconteceu!

— Houve uma razão para aquilo, Leslie.

— Bem, não sei qual foi essa razão, e se soubesse, não ligaria para ela. Não posso largá-lo!

— Já pensou que talvez ele precise aprender alguma coisa que jamais aprenderia se você estivesse com ele? Uma coisa importante?

Sacudi a cabeça.

— Nada é tão importante. Se fosse, teríamos nos separado antes.

— Vocês estão separados agora.

— Não! Não aceito isso!

Naquele momento, vi o rapazinho encaminhando-se em nossa direção, as mãos nos bolsos, e de cabeça baixa. Era alto e magro, de um acanhamento que eu percebia até em seu andar.

Eu não conseguia desviar os olhos, mas vê-lo me dilacerava de tal forma o coração que era quase insuportável.

Nesse momento ele levantou a cabeça, e aqueles travessos olhos negros brilharam de novo, depois de tantos anos.

Ronnie!

Meu irmão e eu tínhamos sido inseparáveis na infância, e agora nos agarrávamos um ao outro, aos prantos, desesperados de alegria por estarmos juntos outra vez.

Eu tinha vinte anos e ele dezessete, quando morreu num acidente, e eu pranteara aquela perda até os quarenta. Ronnie fora um jovem tão intensamente cheio de vida que era impossível imaginá-lo morto. Eu nunca tinha conseguido acreditar que ele tivesse partido, durante todos aqueles anos. Com sua morte, eu deixara de ser confiante e resoluta para me tornar uma criatura perdida, pensando eu mesma na morte. Que laços vigorosos existiam entre nós!

Agora estávamos juntos outra vez, e nossa felicidade era tão avassaladora quanto fora a dor que eu sentira.

— Você não mudou nada — disse-lhe, por fim, olhando-o com admiração, entendendo por que nunca era capaz de assistir a um filme de James Dean sem chorar: o rosto do ator se assemelhava demais ao de meu irmão. — Como pode ter a mesma aparência depois de todo esse tempo?

— Ah, foi para que você me reconhecesse — riu Ronnie, o pensamento voltado para outras idéias que tivera para nosso reencontro. — Pensei em vir sob a forma de um cachorro velho ou algo parecido, mas... Bem, até eu percebi que não era hora de brincadeiras.

Brincadeiras. Eu é que tinha sido a pessoa séria, esforçada, determinada, inabalável. Ele havia concluído que nossa pobreza era tamanha, que de nada adiantaria lutar, e preferira o caminho do humor, rindo e pregando peças, enquanto eu me mostrava seriíssima, até ter, às vezes, vontade de esganá-lo. No entanto, Ronnie era simpático, engraçado, bonito, saía-se bem de qualquer situação. Todos o amavam, principalmente eu.

— Como vai mamãe? — perguntou.

Percebi que ele sabia, mas desejava ouvir de mim.

— Ela está bem, só que ainda sente saudades suas. Finalmente, aceitei o fato de você ter partido... há cerca de dez anos, acredita? Mas ela nunca conseguiu. Nunca.

Ronnie suspirou.

Tendo recusado a crer que ele estivesse morto, agora eu não conseguia acreditá-lo a meu lado. Que coisa extraordinária, estar com ele outra vez!

— Ah, tenho tantas coisas para lhe contar, tanto para perguntar...

— Não lhe falei que havia uma coisa extraordinária à sua espera? — intrometeu-se Hy, feliz por nós dois. Passou o braço em meu ombro, e o mesmo fez Ronnie. Abracei-os pela cintura, e nós três avançamos mais na direção da luz, enlaçados.

— Ronnie! Hy! Este é um dos dias mais felizes de minha vida! — exclamei, novamente atordoada de alegria.

Vislumbrei então o que nos esperava adiante.

— Ah...!

Surgiu à nossa frente um vale maravilhoso. Um rio estreito reluzia entre campos e florestas, recobertos dos ouros e escarlates outonais. A distância, branquejavam cascatas de trezentos metros de altura, silenciosas. Era de tirar o fôlego, tal como da primeira vez que eu vira...

— O parque Yosemite? — perguntei.

— Sabemos que você adorou — concordou Hy —, de modo que imaginamos que gostaria de sentar aqui e conversar.

Achamos um arvoredo ensolarado e nos sentamos num tapete de folhas. Ficamos a olhar um para o outro, invadidos de pura alegria. Por onde começar, pensei, por onde?

Uma outra parte de mim sabia e fez a pergunta que me perseguia havia anos.

— Ronnie, por quê? Sei que foi um acidente, sei que você não morreu deliberadamente. Mas estive aprendendo a respeito do quanto controlamos nossa vida, e não posso evitar pensar que, em algum nível, você preferiu partir quando aquilo aconteceu.

Ele respondeu como se já houvesse pensado no assunto tanto quanto eu.

— Foi uma escolha malfeita — disse, tranqüilo. — Eu achava que tinha começado tão mal naquela vida que jamais conseguiria torná-la melhor. Apesar de todas minhas brincadeiras, eu era uma alma carente, sabia disso? — Em seu rosto apontou o conhecido sorriso brincalhão, que usava para encobrir a tristeza.

— Acho que, no fundo, no fundo, eu sabia — respondi, sentindo o coração dilacerar-se outra vez —, e foi isso que nunca pude aceitar. Como podia se sentir infeliz, se todos o amávamos tanto?

— Eu não gostava de mim tanto quanto você, não achava que eu merecesse amor ou, aliás, qualquer outra coisa, Leslie. Ao olhar para o passado agora, sei que poderia ter levado uma vida feliz, mas na época eu não via isso. — Ronnie desviou o olhar. — Não que eu tenha saído de casa para me matar, você sabe, mas por outro lado, também não tentei viver com muito empenho. Não encarava a vida com o mesmo ardor que você. — Balançou a cabeça. — Escolha malfeita.

Estava mais sério do que eu jamais o vira. Como era estranho e maravilhoso ouvi-lo conversar daquela maneira. Em poucas palavras, dissipava-se a perplexidade e a dor de décadas inteiras.

Ele sorriu para mim, timidamente.

— Fiquei de olho em você. Durante algum tempo, julguei que viesse se juntar a mim logo, logo. Depois, vi você superar o sofrimento, percebi que eu também poderia ter feito aquilo, e desejei... bem, era uma vida dura. Eu devia ter enfrentado tudo de outro modo. Mas aprendi bastante. Desde então, tenho usado o que aprendi.

— Ficou de olho em mim? Você sabe o que vem acontecendo em minha vida? Sabe de Richard? — Emocionou-me imaginar que ele conhecesse meu marido, aquela pessoa tão sensacional.

Ronnie anuiu com a cabeça.

— Está tudo ótimo. Sinto-me feliz por você! Richard!

De repente, voltou o pânico. Como eu podia ficar sentada ali, daquele jeito? O que havia comigo?

— Ele está preocupado comigo, você sabe. Pensa que me perdeu, que perdemos um ao outro. Não posso ficar, por mais que eu ame vocês dois, não posso! Compreendem, não é mesmo? Preciso voltar para ele, mas agora sabemos que haveremos de nos rever...

— Leslie, Richard não poderá ver você — disse Hy.

— Por quê?

O que sabia ele, que coisa terrível eu não havia levado em conta? Que eu era agora o fantasma de um fantasma? Seria eu...

— Você está dizendo... está querendo dizer que estou realmente morta? Que isso não é uma agonia, que não posso decidir voltar, que estou morta!  Nada posso fazer?

Hy assentiu. Parei, atordoada.

— Mas Ronnie esteve comigo, disse que ficou de olho em mim, que esteve lá o tempo todo...

— Mas você não podia vê-lo, podia? Você não sabia que ele estava lá.

— Às vezes, em sonhos...

— Em sonhos, é claro, mas...

Senti um súbito alívio

— Ótimo!

— É esse tipo de casamento que você quer, Leslie? Richard a encontrará quando dormir e se esquecerá de você a cada manhã? Em vez de preparar-se para encontrá-lo quando ele vier para cá, para impressioná-lo com o que aprendeu, você prefere flutuar à volta dele sem ser vista?

— Hy, por tudo que conversamos sobre a morte e sobre superar a morte, a respeito de nossa missão juntos em outras existências... até onde ele sabe, eu morri num desastre de avião e isso foi o fim de tudo! Ele há de pensar que tudo aquilo em que crê está errado!

Meu velho amigo olhou-me com incredulidade. Por que ele não compreendia?

— Hy, nós fomos pobres, nós fomos solitários, suportamos momentos dificílimos, fomos tão maltratados que chegamos a imaginar por que insistíamos em viver. Por quê? Para ficarmos juntos. E ainda não tínhamos acabado! É como escrever um livro e abandoná-lo no meio de uma palavra, no meio do capítulo 17 de um livro de 24 capítulos. Não se larga tudo simplesmente e se faz de conta que o livro acabou! Vamos permitir que ele seja publicado, uma coisa inútil, sem fim? Recuso-me a aceitar isso.

“E aí chega um leitor que deseja descobrir o que foi que aprendemos, deseja ver com que criatividade, com que coragem, utilizamos o que sabíamos para vencer os desafios que nos foram impostos, e no meio do livro o texto acaba e vem uma nota do editor: Nesse ponto o hidravião acidentou-se, e ela morreu, de modo que o livro ficou por terminar.

— A vida da maioria das pessoas não chega a terminar. A minha, por exemplo — disse Hy.

— Tem toda razão! — retruquei. — Nesse caso, você sabe qual é a sensação. Não vamos abandonar nossa história no meio!

Hy sorriu, calidamente.

— Você quer que sua história diga que depois do acidente Leslie voltou dos mortos e que viveram felizes para sempre?

— Não seria o pior trecho de toda a literatura. — Todos rimos. — É claro que eu gostaria que o livro contasse como foi que fizemos isso, explicasse os princípios que empregamos, para que alguma outra pessoa pudesse fazer o mesmo.

Essas palavras tinham sido pronunciadas como brincadeira, mas de repente ocorreu-me que aquilo poderia ser mais um teste, mais um dos desafios do desenho!

— Escute, Hy — falei —, Richard tem tido razão a respeito de muitas coisas que, à primeira vista, parecem loucura. Você conhece a “lei cósmica” dele, a respeito de enfocar as coisas no pensamento e fazer com que se concretizem. Por acaso a lei cósmica mudou de repente, porque nos acidentamos? De um momento para o outro, será possível que eu focalize alguma coisa no pensamento, uma coisa tão importante, e que essa coisa não aconteça? — Percebi que ele começava a ceder.

Hy sorriu.

— As leis cósmicas não mudam. Apertei-lhe a mão.

— Por um momento, tive a impressão de que você ia tentar me deter.

— Ninguém na terra teve força para deter Leslie Parrish. O que a faz pensar que alguém consiga fazê-lo aqui?

Levantamo-nos, e Hy deu-me um abraço de despedida.

— Estou curioso. Se fosse Richard que tivesse morrido, e não você, Leslie, você teria permitido que ele se fosse, teria confiado em que ele estaria bem durante todo o tempo que fosse necessário para você terminar sua própria vida?

— Não. Eu meteria uma bala na cabeça. — Cabeça-dura... — comentou ele.

— Sei que não faz sentido. Nada faz sentido, mas preciso voltar para ele. Não posso deixá-lo, Hy. Eu o amo!

— Eu sei. E lá vai você...

Virei-me para Ronnie. Meu precioso irmão e eu nos apertamos com força e em silêncio. Como era difícil afastar-me dele!

— Eu o amo — falei, mordendo o lábio para não chorar, e recuando. — Amo vocês dois. Sempre amarei vocês. E vamos nos reencontrar, não é mesmo?

— Você sabe que sim — disse Ronnie. — Vai morrer e sair à procura de seu irmão de novo, e quando vir um cachorro velho...

Tive de rir, apesar das lágrimas.

— Nós também a amamos — falou.

Eu jamais imaginara que aquele dia pudesse acontecer. Apesar de meu ceticismo, sempre acreditara que Richard tivesse razão, que houvesse no universo mais de uma vida. Agora eu sabia. Agora, com o que eu havia aprendido no desenho e com a morte, afastava-me dali sabendo com certeza. Sabia também que um dia nós entraríamos juntos naquele fulgor maravilhoso. Mas não agora.

Voltar à vida não foi impossível, sequer chegou a ser difícil. Uma vez ultrapassada a muralha que pressupõe que jamais nos atrevemos ao impossível, avistei o desenho na tapeçaria, tal como Pye havia dito. Fio por fio, passo a passo! Eu não estava retornando à vida, estava regressando a um foco da forma, e a forma é um foco que modificamos a cada dia.

Encontrei meu querido Richard num mundo alternativo que, por uma razão ou por outra, ele tomara como real. Estava atirado no chão, sobre minha sepultura. Sua dor era concreta como se fosse uma cúpula de cristal que o envolvesse; não estava mais propenso a me escutar do que estaria para um jantar de cerimônia ou para conversa fiada.

Fiz força contra a cúpula.

— Richard.

Nada.

— Richard, estou aqui!

Ele soluçava, encostado na lápide. Não havíamos combinado que nada de lápides?

Querido, estou com você neste mesmo momento em que você está chorando no chão, estarei com você quando adormecer e quando acordar. Tudo que nos separa é a sua convicção de que estamos separados!

Flores silvestres sobre o túmulo diziam-lhe que a vida recobre o próprio local no qual a morte é só aparência, mas ele não lhes escutava a mensagem, nem a minha.

Por fim, ele se arrastou, mortificado, na direção da casa, carregando consigo sua cúpula de aflição, um cárcere móvel. Não se deu conta do ocaso, que lhe bradava que o que se assemelha à noite é o mundo aprestando-se para um alvorecer já existente, e jogou o saco de dormir no tablado.

Quantos gritos pode um homem recusar-se a ouvir? Sena aquele homem meu marido, meu querido Richard, convicto de que nada acontece por acaso, da queda de uma folha até o nascimento de uma galáxia? Clamando de angústia em seu saco de dormir, sob as estrelas?

— Richard; — chamei. — Você tem razão. Teve razão todo o tempo! O acidente não ocorreu por acaso, morrer não é uma tragédia! Perspectiva! Você já sabe tudo de que necessita para que nos reunamos outra vez. Lembra-se? Focalize. Não estamos terminados, nossa história não se acabou. Nós temos... tanto... por que... viver. Você pode! Mudei A moral Meu querido Richard. AGORA!

A cúpula de cristal sobre ele estremeceu, rachou nos cantos. Fechei os olhos, focalizei com todo meu ser. Nenhuma dor, nenhum sofrimento, nenhuma separação. Pensei em nós dois na carlinga intacta do Growly, flutuando sobre o desenho, senti que voávamos juntos.

Ele sentiu a mesma coisa! Fez força para empurrar o manete! Tinha os olhos fechados, e cada uma das fibras de seu corpo fremiu de encontro àquela simples alavanca. Eu ansiava por poder colocar minha mão sobre a dele, facilitar aquela tarefa para ele tão difícil.

Como se tivesse estado hipnotizado e saísse do transe, agora, por pura força de vontade, ele se crispou, jogou toda sua energia contra as próprias convicções, que se curvaram meio centímetro. Um centímetro.

Meu coração quase se rompia com o dele. Acrescentei minhas forças às suas.

— Meu querido! Não estou morta, jamais estive! Estou com você neste momento! Estamos juntos!

O cristal despedaçou-se em volta dele, fragmentando-se. O motor do Growly girou, pegou. Os ponteiros dos instrumentos mexeram-se ligeiramente.

Richard prendia a respiração, as veias pulsando em seu pescoço, em seu rosto. Tinha a expressão fechada, lutando por modificar o que havia tomado como a verdade. Ele recusava o acidente. Apesar de todos os indícios ao contrário, ele rejeitava minha morte.

— Richie! — gritei para ele. — É verdade! Por favor, é, sim! Nós podemos voar! Ainda!

E então o manete cedeu, o giro do motor transformou-se num trovão, uma cortina de água levantou-se sob nós.

Que maravilha vê-lo! Seus olhos se abriram no momento em que o Growly deixou a água.

Ouvi, finalmente, sua voz num mundo que partilhávamos outra vez.

— Leslie! Ah, Leslie! Você voltou! Estamos juntos!

— Richie. Meu amor querido! — exclamei. — Você conseguiu, eu o amo, VOCÊ CONSEGUIU!

 

Uma boa maneira de arranjar encrenca, ao se pilotar um avião, consiste em puxar o manche para trás, depois da decolagem, e deixá-lo preso ali. No entanto, estávamos invadidos pela alegria da ressurreição, e mesmo que as asas do Growly caíssem, teríamos subido como foguetes.

Eu a abraçava, sentindo seus braços em volta de mim enquanto ganhávamos altura.

— Leslie! — exclamei. — Não estou sonhando! Você não está morta!

Ela não tinha morrido, não estava enterrada numa encosta, achava-se a meu lado, esplêndida como o nascer do sol. Não era aquele momento que era de sonho, o sonho tinha sido durante aqueles meses, quando eu acreditara que ela houvesse morrido, meses de luto solitário naquele tempo alternativo.

— Muito obrigado por ter voltado, querida! — agradeci. — Sem você, era... O mundo parou. Nada me importava! — Eu ainda não podia acreditar que o pesadelo tivesse acabado, e aproximei-me dela ainda mais, para ver-lhe os olhos, tocar-lhe o rosto. — Onde esteve?

Leslie riu, apesar das lágrimas.

— Eu estava com você! Quando afundamos, observei-o debaixo da água. Vi quando puxou meu corpo do interior do avião. Pensei que estivesse à procura da jaqueta e mal pude acreditar quando vi do que se tratava! Eu estava bem ali a seu lado, mas você não podia me ver, só via meu corpo!

Ela estivera a meu lado.

Depois de tudo quanto tínhamos aprendido juntos, o que me levara a esquecer, subitamente, e confundir as aparências com a realidade? Minha primeira palavra diante de sua morte fora NÃO! Uma palavra, a verdade instantânea. Por que não prestei atenção? Como teria sido diferente se eu tivesse me recusado a acreditar imediatamente, e não mais tarde!

— Eu poderia tê-la ajudado, se me apegasse ao que sabia ser a verdade...

Leslie balançou a cabeça, negativamente.

— Seria um milagre se você não se concentrasse no que viu após o desastre. E mais tarde, o medo e a tristeza foram como uma redoma à sua volta. Eu não conseguia chegar a você. Se tivesse sido mais rápida, talvez...

— Droga! Um teste desses, fracassei!

— Você não fracassou! — Leslie abraçou-me de novo. — Você foi maravilhoso! Apesar de tudo, superou a si mesmo, empurrou o manete do Growly pela primeira vez, percebe isso? E estamos juntos!

Com que rapidez, naquele horrendo mundo da morte-de-Leslie, eu começara a esquecer sua voz, sua vida. Tocá-la agora era a delícia de reencontrar o amor.

— Tenho tanto para lhe contar, querido! Sei que se passou cerca de uma hora, mas houve tanta...

— Uma hora? Meu amor, foram meses! Três meses e uma semana!

— O que o faz pensar assim? Não estive longe nem um dia. Foi um tempinho de nada! — De repente, ela prendeu a respiração, com os olhos brilhando. — Ah, Richard, eu vi Ronnie! Foi como se ele nunca tivesse morrido, não mudou nada. E meu amigo Hy? Encontrou-se comigo primeiro, disse-me que estava tudo bem, que você e eu estaríamos juntos em breve, independente do que acontecesse. E logo após o acidente, apareceu aquela belíssima luz, exatamente como você se refere em seus livros...

Costumeiramente, eu safa de casa durante uma hora para fazer compras, voltava e levávamos mais uma hora para contar tudo o que havia acontecido no tempo em que tínhamos estado afastados um do outro, o que sentíamos, o que tínhamos visto e pensado. Imaginei agora que aquela aventura gigantesca exigiria semanas de narrativa.

— É um lugar maravilhoso, Richard! Se não fosse por sua causa, eu nunca quereria sair de lá! — Ela tocou-me o rosto. — Diga-me, teria feito diferença para você se soubesse que eu estava bem, que me sentia feliz, que estava na companhia de pessoas que amo?

— Se soubesse que você estava em segurança e feliz. Se, em vez de morte, fosse uma... uma transferência, como se estivesse viajando antes de mim, mudando-se para uma nova cidade, uma nova casa, aprendendo os costumes, as ruas e conhecendo as pessoas, enquanto eu terminava nosso trabalho aqui, isso teria ajudado um pouco. Mas aquilo não foi como uma transferência. Não há correios, nem telefone, nenhum meio de saber!

— Se não fosse seu sofrimento, acho que poderíamos ter conversado — disse Leslie. — Se você não estivesse sofrendo tanto, poderíamos ter nos encontrado em meditações, em sonhos.

— Da próxima vez, vou me lembrar. Saberei que você está comigo, independente do que acontecer.

— Há tanta coisa a aprender com isso, tantos enigmas a resolver, querido. Por exemplo, é como se tivessem se passado trinta anos desde que Ronnie morreu. Se temos tantas vidas, como é possível que ele estivesse lá, à minha espera? Por que não estava ele longe, em alguma outra... encarnação?

— Mas ele está, tal como nós estamos. Leslie. Olhe só lá embaixo. — Os desenhos multiplicavam-se. Não tinham, nem nunca teriam fim. — Todas aquelas vidas ao mesmo tempo, vidas posteriores e também vidas intermediárias. Ainda não acredita? Não crê que seja verdade?

— Não sei, mas sei que é verdade que voltei a ver meu irmão. Ele era um garoto sempre brincalhão, você sabe, e continuava agora do mesmo jeito. Disse que... — Leslie caiu no riso. — Disse que da próxima vez que nos encontrarmos... ele vai aparecer... como um... — Leslie não conteve o riso, até chorar.

— Um o quê?

— ...como um cachorro velho!

Não compreendi, mas independente do que Ronnie tivesse dito, aquilo tornava a irmã tão feliz, que ri junto com ela. Como era bom rir outra vez!

Nos desenhos lá embaixo, pensei, devia haver aspectos alternativos nossos que não haviam conseguido dar o salto para o reencontro. Não comentei nada com Leslie a fim de impedir o rompimento de nossas paixões outra vez.

Contamos o que havia acontecido a nós dois, juntamos as pecas. Nem tudo fazia sentido, mas uma parte, sim.

— Parecia tão real! — comentei. — Enfim eu não era um fantasma, não atravessava paredes, as pessoas me viam, me conheciam, nossa casa era exatamente a mesma. — Nesse momento, pensei na casa. — Não de todo... — disse, percebendo agora o que tinha deixado de observar durante aqueles meses. — Era nossa casa, mas era diferente, e nunca questionei essa diferença. E o carro... Parecia um Chrysler dos antigos, mas era um Torrance. Não é esquisito?

— Se você tivesse passado a vida lá, sem ter acabado de visitar dez vidas alternativas, se estivesse convencido, desde o dia em que nasceu, que o mundo com Torrances modelo 1976 é o único existente, e se nos acidentássemos, e eu morresse nesse mundo, você teria conseguido sair dele? Mesmo que para nos reunirmos outra vez? Você seria capaz de algum dia superar a crença na morte?

— Que pergunta! — exclamei. — Não sei.

— Richie, quase que não conseguimos! Mesmo depois de tudo o que aprendemos, quase não conseguimos!

Ela olhou o labirinto lá embaixo.

— Fomos capturados aqui? Está tão afastado do ponto inflexível quanto para superar a morte.

Agora, outra vez em segurança juntos, após passarmos pelo pior teste de nossas vidas, olhamos um para o outro, um só pensamento na memória: antes que ocorra mais alguma coisa, precisamos descobrir o caminho de casa.

— Lembra do que Pye falou? — perguntei. — O nível é psíquico, mas o caminho de volta é espiritual? Ela falou que você se conduz por confiança. — Arqueei a sobrancelha, contudo, pensativo acerca disso. Como nos conduziremos por esperança? Esperamos voltar para casa, por que não estávamos lá?

— Ela não disse esperança, querido. Ela falou conduzir-se pelo amor!

Olhamos um para o outro, subitamente assustados. Paramos de imaginar coisas.

— Leslie... — comecei.

Ela acabou a frase antes que eu pudesse dizer qualquer outra palavra.

— É mesmo, amor, precisamos voltar para casa!

 

Pye tinha razão, era fácil. Como é fácil ser conduzido pelo amor!

Para aquelas duas pessoas que viajavam para a reunião em Los Angeles, o pequeno planeta em que viviam podia ser uma miragem, mas era a miragem deles, a tela que haviam escolhido para nela pintar o alvorecer, tal como o viam, e os dois amavam aquele planeta. Concentramo-nos naquele amor.

— Está pronto, Richie?

Peguei-lhe a mão, e juntos tocamos os manches à nossa frente. Era como se o Growly se tivesse tornado um ser vivente. Não era minha mão que movia os controles, e o toque de Leslie era leve como o meu. De olhos fechados, focalizamos nossos corações naqueles dois, que procuravam seu próprio mundo, e fomos conduzidos.

Passado algum tempo, o Growly diminuiu a velocidade e, inclinando-se, começou a descrever uma curva ampla.

Abri os olhos e vi Leslie abrindo os dela. Debaixo da água, no meio de todas as torceduras e reviravoltas do desenho, estendia-se um oito dourado.

Entreolhamo-nos, espantados. Era o mesmo caminho tortuoso que Pye tinha desenhado na areia, a estrada entre a Cidade das Ameaças e a Cidade da Paz!

— Lembra-se de que Pye disse que nada há de mal em dar pistas a outros aspectos de nós... — comentei.

— ...e aquilo é a nossa pista! — exclamou Leslie. — Querida Pye!

Assim que deixamos de nos concentrar no amor, ficamos por nossa própria conta, como se um encantamento se tivesse quebrado. Mais uma vez o Growly transformou-se, passando de parceiro a servo, pedindo orientação. Levei o manche para a direita, a fim de continuarmos a descrever o círculo sobre o sinal dourado. O vento roçava a superfície da água e fazia o símbolo estremecer.

— Rodas recolhidas, flaps baixados.

Seria fácil pousar o hidravião sobre aquela marca dourada. Mantive-o a poucos centímetros sobre a água, contra o vento, confiando na velocidade de estol do Seahawk. A poucos metros do local, desliguei o motor e o Growly pousou.

No mesmo instante, os desenhos desapareceram, e estávamos no interior de outro Growly, sobrevoando Los Angeles.

No entanto, não éramos os pilotos. Mais uma vez voávamos como passageiros, no banco de trás, viajando como fantasmas. A nossa frente estavam sentadas as duas pessoas que tínhamos sido, perscrutando o céu à procura de outros aviões, ajustando o código do transponder para a aproximação de Santa Mônica. Leslie, a meu lado, sentiu vontade de gritar, mas tapou a boca com a mão.

— Quatro, seis, quatro, cinco? — perguntou o piloto Richard.

— Isso — respondeu sua mulher. — Não precisamos confiar na memória um do outro, não é?

Não nos tinham visto.

Assim que empurrei para a frente, com toda força, nosso manete fantasmagórico, senti a mão de Leslie sobre a minha e percebi que ela estava tomada pelo mesmo tenor. Numa alucinante câmara lenta, retivemos a respiração, enquanto a cena se desmanchava e sumia.

Mais uma vez nos vimos cortando as águas em meio aos desenhos, e um toque no manche atirou-nos ao ar.

Olhamos um para o outro, com espantado desalento, e ao mesmo tempo voltamos a respirar.

— Eu tinha certeza de que aquele lugar seria o único em que poderíamos pousar sem nos transformar em fantasmas! — disse Leslie.

Olhei para baixo enquanto fazíamos a curva, encontramos o símbolo dourado e marcamos o lugar.

— Está bem ali, e não conseguimos voltar para casa, Leslie! Olhei de relance para trás, na esperança de ver Pye. Não era de perspicácia ou compreensão que precisávamos agora, apenas de instruções simples. No entanto, ela não estava ali. O sinal dourado debaixo das ondas era uma fechadura de segredo que nos permitiria voltar a nosso próprio tempo, mas não sabíamos a combinação dos números.

— Não há saída, querido. Onde quer que pousemos, somos fantasmas!

— A não ser no lago Healey...

— Pye estava lá — disse ela. — O lago não conta.

— ...e no acidente,

— O acidente? — indagou Leslie. — Eu era um fantasma. Nem você podia me ver! — Pôs-se a refletir, à procura da solução do problema.

Descrevi uma curva para a esquerda em redor do sinal, a fim de mantê-lo à vista de meu lado do avião. Dava a impressão de estar temeluzindo debaixo da água, sumindo. Debrucei-me em sua direção, atento. Estava perdendo a nitidez, realmente. Pye! Socorro!, pensei. Sem a marca, não faria diferença conhecermos a combinação ou não. Comecei a memorizar o local onde ela se encontrava.

— ...mas eu não era um fantasma-observador — continuou Leslie.—Eu acreditava que tivesse morrido por causa do acidente! Eu era um fantasma real. Richie, você tem razão, o desastre foi real!

— Nenhum desses mundos é real, meu bem — respondi, continuando a memorizar o local. — São só aparências, todos eles... — Duas bifurcações para a esquerda, seis para a direita, duas quase retas à frente. O sinal estava sumindo depressa, e eu não queria contar isso a Leslie.

— Aquele mundo era real para você!—disse Leslie.—Você acreditava que estava vivo, e portanto não era um fantasma! Era um tempo paralelo, mas você enterrou meu corpo, morava numa casa, pilotava aviões, dirigia carros e conversava com pessoas...

De repente, compreendi o que ela estava dizendo. Olhei para ela, aturdido.

— Para voltarmos para casa, você quer acidentar o avião de novo? Pye disse que encontraríamos o caminho, e que seria fácil, seria como saltar de um tronco! Não disse coisa alguma sobre acidentar o Growly...

— Realmente, não disse. Mas houve alguma coisa naquele acidente Por que você não virou um fantasma depois dele? O que houve de diferente naquele pouso em particular?

— Lançados fora! — exclamei. — Nós dois fomos atirados para fora do avião. Não amerissamos simplesmente, não éramos observadores impessoais flutuando na superfície, estávamos submersos no mar!

Olhei o mar de novo, e vi o último fulgor do ouro a se dissolver. Dei uma volta em torno do local que eu memorizara.

— Vale a pena tentar?

— O quê? O que você pretende é...? Enquanto ainda estivermos voando, você pretende saltar ao mar!

Mantive os olhos fixos no ponto onde estivera o símbolo.

— Isso! Começamos a pousar, reduzimos a velocidade e aí, antes que o avião toque na água, pulamos porta afora!

— Meu Deus! Richard, isso mete medo!

— O desenho é um mundo metafórico, e a metáfora funciona, não vê? Para nos integrarmos a qualquer tempo que seja, para levá-lo a sério, precisamos submergir nele. Lembra-se do que Pye comentou a respeito de flutuarmos sobre o desenho, distanciados dele? Ela disse que voltar para casa seria fácil como saltar de um tronco. Ela nos estava ensinando a fazer a viagem. O Growly é o tronco!

— Não posso fazer isso, Richie! Não posso fazer isso...

— Vamos devagar, contra o vento. A velocidade vai cair para uns 50 quilômetros por hora. Acho melhor saltar do avião do que cair com ele... — Fiz a curva a fim de proceder à aproximação final, preparei-me para o pouso

Leslie seguiu-me o olhar.

— O que está vigiando?

— A marca sumiu. Não quero perder de vista o lugar onde ela estava.

— Sumiu? — Leslie olhou por cima de meu ombro, na direção do local, agora vazio. — Muito bem, Richie. Se você saltar, eu salto. Mas assim que fizermos isso, não haverá como voltar!

Engoli em seco, sem tirar os olhos do local onde teríamos de pousar.

— Precisaremos soltar os cintos de segurança, abrir a capota, sair da cabine e saltar. Pode fazer isso?

— Talvez seja melhor a gente soltar os cintos e abrir a capota agora, querido.

Soltamos os cintos, e um segundo depois ouvi o rugido do vento, no instante em que abri a capota. Minha garganta secou novamente.

Leslie aproximou-se de mim e beijou-me no rosto.

— Rodas recolhidas, flaps baixados. Estou pronta. É só dar o sinal.

 

Estávamos tensos, retesados, vendo a água crescer em nossa direção.

— Prepare-se, Leslie.

— Quando tocarmos na água, é subir e saltar, certo? — disse Leslie, ensaiando o ato mentalmente.

— Isso mesmo!

— Não se esqueça! — falou Leslie, segurando com força o puxador da capota.

— Nem você, independente do que acontecer.

As ondas roçaram a quilha do hidravião. Fechei os olhos, para não ser enganado pelas aparências.

CAPOTA.

Senti Leslie empurrá-la para cima ao mesmo tempo que eu, com o vento rugindo.

SALTAR!

Atirei-me para fora, e nesse instante abri os olhos. Tínhamos pulado não para dentro da água, e sim para o ar vazio, estávamos despencando juntos, sem pára-quedas, em cima de Los Angeles.

— LESLIE!

Ela estava de olhos fechados, não me ouvia por causa do vento.

— Ilusões, falei para mim mesmo, estou vendo ilusões.

Houve nesse instante um baque, como se tivéssemos batido contra uma parede de almofadas. Abri os olhos e dei com nós dois na cabine do Growly. A distância, um silencioso casulo de luz dourada explodiu e desapareceu.

No momento em que Leslie abriu os olhos, estávamos singrando os ares, seguros como gatos num tapete.

— Richie, conseguimos! — gritou ela, atirando os braços ao redor de meu pescoço, jubilante. — Conseguimos! Você é um gênio!

— Qualquer coisa em que acreditássemos serviria — respondi, com modéstia, embora não tivesse certeza disso. Se ela insiste em que foi uma solução genial, pensei, não há por que objetar.

— Não importa — disse ela, exultante. — Estamos de volta!

Seguíamos no rumo de 142 graus. A bússola magnética apontava firme para sudeste, os instrumentos de navegação zumbiam, os números alaranjados brilhavam no loran. O banco traseiro estava vazio. Sob nós só víamos agora ruas e telhados de edifícios; a única água era a das reluzentes piscinas azuis.

Leslie apontou para dois aviões a distância.

— Há tráfego ali. E ali também.

— Estou vendo.

Olhamos para os rádios ao mesmo tempo.

— Devemos tentar...?

Leslie balançou a cabeça, afirmativamente, com os dedos cruzados.

— Alô, torre de Los Angeles, aqui é Martin Tríplice Quatro Alfa. Estamos em seu radar?

— Positivo. Contato de radar de Tríplice Quatro Alfa. Comunique mudanças de altitude.

O controlador de vôo não perguntou onde tínhamos estado, nada disse a respeito de termos desaparecido de sua tela durante quatro meses. Não ouvi o coro de vivas e hurras na carlinga do Growly.

Leslie tocou-me o joelho.

— Diga-me o que você viu quando nós...

— Um céu azul como se fosse feito de flores, água semelhante ao ar, águas rasas sobre uma estranha areia riscada, Pye, Jean-Paul, Ivan e Tatiana, Linda e Krys...

Leslie levantou a mão, rindo.

— Tudo bem. Não foi um sonho. Então, aconteceu mesmo Seguimos para Santa Mônica como crianças que vão para uma colônia de férias.

— E se for verdade, Richie? E se soubéssemos, neste exato momento, que todo mundo, em toda parte, é algum aspecto de quem somos, e que somos um aspecto deles? Como alteraremos o caminho de nossas vidas?

— Boa pergunta — respondi A marca de 40 milhas acendeu no loran. Baixei um pouco o nariz do avião, preparei-o para a descida. — Boa pergunta...

Aterrissamos na ampla pista única do aeroporto de Santa Mônica, taxiamos o anfíbio para o estacionamento e desligamos o motor. Eu quase esperava que a cena desse um salto de mil anos assim que o avião parou, mas nada disso aconteceu. Estava tudo normal: dezenas de outros aviões estacionados ao redor, o barulho do trânsito em Centinela Boulevard, a velha fábrica de aviões Douglas, gigantesca, num dos lados do aeroporto.

Ajudei minha mulher a descer do avião. Ficamos alguns momentos imóveis, sentindo a superfície de nosso planeta, em nosso próprio tempo, abraçados um ao outro.

— Está assustada? — murmurei no ouvido de Leslie. Ela recuou um pouco, para me ver melhor, e balançou a cabeça, afirmativamente.

Tirei nossa bagagem do avião, puxamos a coberta da capota sobre o pára-brisa, esticando-a.

Do outro lado da interseção do estacionamento, um servente afastou-se de um Luscombe Silvaire que estivera polindo, e subiu num caminhão de gasolina cor de cereja, que veio parar com um rangido de freios na frente do Martin.

O rapaz não era mais velho do que eu fora quando fazia aquele mesmo trabalho. Usava o mesmo tipo de blusão de couro que eu apreciava na época, embora esse tivesse o nome DAVE sobre o bolso esquerdo. Como é fácil ver a mim mesmo nele, pensei, o quanto lhe poderíamos falar de seus futuros já concretos, das aventuras que neste instante esperam sua escolha!

— Boa tarde, pessoal — cumprimentou ele. — Bem-vindos a Santa Mônica! Querem um pouco de gasolina hoje?

Rimos. Como era esquisito precisar de gasolina outra vez!

— Claro que sim — respondi. — Fizemos um vôo bastante longo.

— Por onde estiveram?

— Olhei para minha esposa à procura de ajuda, mas ela não se apresentou voluntariamente, escutou casualmente minha resposta.

— Ah, por toda parte — respondi, pouco convincente. O rapaz ligou a bomba do caminhão.

— Ainda não pilotei um Martin — falou —, mas ouvi dizer que um avião desses pode pousar praticamente em qualquer lugar. É verdade?

— Isso mesmo — respondi. — Este avião é capaz de levá-lo a qualquer lugar que você imaginar.

 

Só quando estávamos a caminho do hotel, instalados com toda segurança no carro que tínhamos alugado, foi que um de nós levantou a pergunta.

— Muito bem — disse Leslie, enquanto subia o acesso da auto-estrada de Santa Mônica. — Vamos falar sobre isso ou não?

— Na conferência?

— Seja onde for.

— O que vamos dizer? “Aconteceu uma coisa gozada enquanto viajávamos para cá. Paramos em pleno ar durante os últimos três meses, presos numa dimensão onde não existe nem espaço nem tempo, só que às vezes parece que existem, e descobrimos que todo mundo é um aspecto de todas as outras pessoas, porque a consciência é uma só. E, a propósito, o futuro do mundo é subjetivo, e nós determinamos o que há de acontecer ao mundo inteiro conforme aquilo que escolhemos para nós mesmos. Muito obrigado. Alguma pergunta?”

Leslie riu.

— Assim que umas poucas pessoas neste país aceitarem que talvez não seja impossível uma pessoa ter mais de uma vida, a gente aparece e diz que não é nada disso, todo mundo tem um número infinito de vidas, e todas estão acontecendo ao mesmo tempo. É melhor não entrarmos nessa. Vamos guardar para nós o que aconteceu.

— Não é nada de novo, Leslie. Lembra-se do que disse Albert Einstein? Para nós, físicos que temos fé, a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão, e até uma ilusão obstinada.

— Albert Einstein disse isso?

— Isso para começo de conversa. Toda vez que você quiser ouvir alguma coisa inacreditável, converse com um físico. A luz faz curvas; o espaço se entorta; num foguete, um relógio anda mais devagar do que em casa; divida uma partícula, e você tem duas do mesmo tamanho; dispare um fuzil à velocidade da luz, e nada sai do cano... Não estamos trazendo ao mundo novidade alguma, eu e você. Qualquer pessoa que tenha lido sobre mecânica quântica, qualquer pessoa que tenha brincado com o gato de Schrödinger...

— Quantos apreciadores do gato de Schrödinger você conhece, Richie? Quantas pessoas vão se deitar, numa noite fria, com livros de cálculo ou de física quântica? Não creio que devamos falar sobre isso. Não acredito que alguém acreditasse em nós. Isso aconteceu conosco, e às vezes tenho dúvidas a respeito da veracidade.

— Minha querida cética! — brinquei. Mas também eu tinha minhas dúvidas. E se fosse tudo um sonho, um raríssimo sonho a dois: o desenho, Pye... E se tudo tivesse sido fantasia?

Olhei com atenção para o trânsito, testando nossa nova perspectiva. Nós na limusine Mercedes de vidros fumês? Nós no Chevrolet enferrujado parado no acostamento, com o radiador fumegando? Nós ali, recém-casados? Nós ao lado, carrancudos, a caminho da cena de um crime, com ânimo assassino? Experimentamos essas imagens, imaginando-nos em outros corpos, mas sem resultado. Cada qual era separada e desconhecida, encasulada num veículo de aço. Era-me tão difícil imaginar-nos numa vida de luxo quanto em outra de miséria, embora tivéssemos conhecido as duas coisas antes. Éramos nós e apenas isso, pensei, ninguém mais.

— Está com muita fome? — perguntou Leslie.

— Faz meses que não como.

— Pode agüentar-se vivo até o Robertson Boulevard?

— Se você puder, também posso.

Leslie procurou a saída para ruas de que se lembrava dos tempos em que morara em Hollywood, uma vida agora mais remota para ela do que a de Le Clerc, pois nada mais a ligava ao lugar.

Às vezes, assistindo a filmes antigos tarde da noite, ela me abraçava de repente e dizia:

— Muito obrigada por me tirar de tudo isso! — Entretanto, eu suspeitava de que ela ainda sentia falta de Hollywood, ainda que nunca o admitisse, salvo se o filme fosse muito bom.

O restaurante ainda estava lá: um santuário vegetariano, livre de fumaça e imerso em música clássica, perfeito para os famintos conscienciosos. Tornara-se muito popular desde que havíamos mudado da cidade, e só a um quarteirão de distância achei uma vaga para estacionar.

Leslie desceu do carro e pôs-se a caminhar rapidamente em direção ao restaurante.

— Eu morava neste lugar' Você consegue acreditar nisso? Há quantas vidas isso aconteceu?

— Não se pode colocar a pergunta no passado — falei, segurando-lhe a mão para fazer com que ela andasse mais devagar. — Ainda assim, devo admitir que é mais fácil compreender vidas sucessivas do que vidas simultâneas. Primeiro a velha Atenas, depois uma incursão peia dinastia Han, uma visita ao Velho Oeste...

A caminho do restaurante, passamos por uma grande loja de televisores. Sua janela era uma parede de aparelhos, todos ligados, a balbúrdia perfeita.

— ...mas o que acabamos de saber não é fácil de entender. Leslie olhou para a vitrine, e parou tão de repente que achei que houvesse esquecido a bolsa ou quebrado o salto do sapato. Entretanto, nem voltou nem olhou para baixo. Num instante estava faminta, correndo para o restaurante, no outro se imobilizara, absorta na televisão.

— Todas as nossas vidas ao mesmo tempo? — disse ela, perdida naquelas telas. — Vidas de Jean-Paul le Clerc, vidas dissipadas e vidas de Mashara em diferentes universos, todas transcorrendo ao mesmo tempo, e nós sem sabermos como explicar isso em palavras, ou até mesmo incapazes de compreender?

— Hummm... não é fácil, querida, Que tal comermos alguma coisa?

Leslie bateu na vitrine.

— Olhe.

Cada um dos televisores estava sintonizado num canal diferente, e naquela hora da tarde a maioria apresentava filmes antigos.

Numa tela Scarlett O'Hara jurava que nunca mais seria pobre; em outra, Cleópatra conspirava ao lado de Marco Antônio; debaixo dela dançavam Fred Astaire e Ginger Rogers, num turbilhão de cartolas e chiffons; à direita, movimentava-se Bruce Lee, tomado de uma ânsia de oriental vingança; perto, o capitão Kirk e a linda tenente Paloma ludibriavam um deus espacial; à esquerda deles, um impetuoso cavaleiro atirava cristais mágicos que faziam brilhar sua cozinha.

Outros dramas, em outras telas, cobriam a vitrine ao longo da calçada, e não haveria menos de 36 telas. De cada uma delas pendia uma etiqueta escarlate: COMPRE-ME!

— Simultâneas! — falei.

— Portanto, o passado ou o futuro não dependem do ano em que se está — disse Leslie. — Depende do canal sintoniza do... depende de nosso foco!

— Um número infinito de canais — falei, interpretando a vitrine —, mas nenhum televisor pode mostrar mais do que um canal de cada vez, de modo que cada qual está convicto de que aquele é o único canal que existe!

Leslie apontou.

— Um televisor novo.

No outro canto da vitrine, um console moderníssimo mostrava Spencer Tracy atarantado diante de Katherine Hepburn, enquanto um retângulo menor, dentro da imagem, exibia o final de uma corrida de carros esporte.

— Ah! Ah! — exclamei. — Se formos suficientemente avançados, podemos sintonizar mais de uma vida.

— Como se chega a esse estágio avançado? — quis saber Leslie.

— Custando mais caro. Ela riu.

— Eu sabia que havia uma maneira.

Continuamos a caminhar, enlaçados, entramos em nosso antigo paraíso, conseguimos um reservado. Leslie abriu o cardápio, e logo o fechou.

— Creme de bardana! — exclamou.

— Certas coisas jamais mudam, Leslie. Ela concordou, feliz.

 

Durante a refeição, não paramos de falar. Seria uma coincidência, a loja de televisores com sua ilustração da aventura que tínhamos vivido, ou as respostas constantemente nos haviam cercado sem que nunca as notássemos? Por mais famintos que estivéssemos, esquecíamos de comer.

— Não é uma coincidência, querida. Pensando bem, tudo é metáfora.

— Tudo?

— Experimente me perguntar. Depois do que aprendemos, você pode citar qualquer coisa que quiser, e lhe demonstrarei que essa coisa nos tenta ensinar o que é real. — Mas isso me pareceu fanfarronice.

Leslie olhou para uma paisagem marinha, pintada na parede oposta.

— O oceano — propôs ela.

— O oceano tem muitas gotas de água, gotas ferventes e geladas, gotas brilhantes e escuras, gotas que voam no ar e gotas comprimidas por muitas toneladas de pressão — falei. — Gotas que passam de uma dessas espécies para outra e logo para outra mais, gotas que se vaporizam e que se condensam- Cada gota forma uma unidade com o oceano. Sem ele, as gotas não podem existir. Sem as gotas, o oceano nada é. Mas não se pode dizer que uma gota no oceano seja uma “gota”. Não há fronteiras entre as gotas, até alguém traçá-las.

— Excelente! — aplaudiu Leslie.

Olhei para as pequenas toalhas de papel sobre a mesa, representando um mapa de Los Angeles.

— Ruas e estradas — propus. Leslie fechou os olhos.

— Ruas e estradas ligam todos os lugares a todos os demais, porém cada motorista escolhe aonde deseja ir. Pode tomar o caminho de um belo sítio campestre ou se meter no basfond. Pode ir a uma universidade ou a um bar, pode ir além do horizonte, em qualquer parte aonde conduzem as estradas, ou pode ficar indo e voltando para os mesmos lugares, ou pode ainda estacionar e não ir a lugar algum. Pode escolher o clima de acordo com os lugares onde dirige, gélido, ensolarado ou tórrido, pode guiar com segurança ou perigosamente, pode dirigir um carro de corridas, um seda ou um caminhão, pode manter o veículo em perfeito estado ou deixar que ele caia aos pedaços. Pode dirigir sem um mapa, transformando cada curva numa surpresa, ou pode planejar meticulosamente aonde vai e saber com certeza como proceder para chegar lá. Cada estrada que esse motorista tomar já se encontra ali, antes que ele entre nela, e estará no mesmo lugar depois que ele passar. Já existem todas as viagens possíveis, e o motorista forma uma unidade com todas elas. Ele simplesmente escolhe, a cada manhã, qual a viagem que fará nesse dia.

— Viu! Perfeito!

— Nós aprendemos isso há pouco ou sempre soubemos e nunca perguntamos? — Antes que eu pudesse começar a responder, ela me pôs à prova outra vez: — A aritmética.

Não conseguíamos aplicar o princípio a qualquer coisa, mas tínhamos êxito com quase todo sistema, atividade ou profissão. Programação de computadores, cinema, comércio varejista, boliche, indústria, aviação, agricultura, engenharia, arte, educação, iatismo... Por trás de quase tudo achávamos uma metáfora com a mesma concepção serena do funcionamento do universo.

— Leslie, você tem a sensação de que... Somos agora as mesmas pessoas que éramos antes?

— Acho que não. De cada vez que aprendemos, ficamos diferentes, não é? Se voltássemos inalterados depois “do que aconteceu... Não é isso que você quer dizer, não é?

— Quero dizer diferentes de verdade — falei, mantendo a voz baixa. — Olhe em volta para as pessoas neste restaurante.

Leslie olhou, durante bastante tempo.

— Talvez isso vá passar, mas...

— ...nós conhecemos todas as pessoas aqui — completei. Na mesa a nosso lado estava uma mulher vietnamita, grata à gentil, cruel e odienta América, orgulhosa das duas filhas, as mais adiantadas na escola. Compreendemos tudo, orgulhamo-nos por ela e pelo que tinha feito para que a vida corresse daquela maneira.

Do outro lado do salão, quatro adolescentes riam e davam tapas uns nos outros, sem se importarem com as outras pessoas, procurando chamar a atenção por motivos que não compreendiam. Ecoaram em nossos corações as lembranças daqueles anos penosos e desajeitados de nossas próprias vidas, gerando uma compreensão instantânea.

Sozinho, um rapaz estudava para os exames finais, desligado de tudo, menos da página diante de si, acompanhando gráficos com o lápis. Sabia que com toda certeza nunca mais na vida elaboraria tabulações de momentos de flexão de vigas I, mas sabia também que o importante é o caminho do aprendizado, e que cada passo nesse caminho é importante. Nós também sabíamos.

Um casal de cabelos grisalhos, bem vestido, conversava em voz baixa num reservado. Eram tantas coisas a lembrar sobre o que tínhamos feito de uma vida, era tão confortador termos agido da melhor forma que podíamos, termos planejado futuros que ninguém mais poderia imaginar.

— Que sensação esquisita! — comentei.

— É mesmo — concordou Leslie. — Isso nunca havia acontecido antes?

Algumas experiências de sair do corpo, pensei, tinham uma certa unidade cósmica. Mas eu nunca tivera a sensação de formar uma unidade com pessoas enquanto plenamente desperto, sentado num restaurante. — Não desse jeito. Acho que não. — Lembranças dispersas, que remontavam ao passado mais longínquo, uma ligação diáfana com todos os demais, subjacente ao que parecia ser nossas diferenças.

Unicidade, dissera Pye. É difícil criticar, pensei, é difícil julgar quando somos nós que estamos sob a luz do refletor. Não há necessidade de julgamento quando já compreendemos.

Unicidade. Em vez de estranhos, pensei, serão aqueles jovens que fomos, as almas sábias em que ainda temos de nos converter? Um foco de aconchegante e esperançosa curiosidade ligava um de nós a outra pessoa, um calmo e silencioso prazer ante nosso poder de construir vidas, aventuras e anseios de saber.

Unicidade. Do outro lado da cidade, eram eles também nós? Anônimos e celebridades, traficantes e policiais, promotores, terroristas e músicos?

Aquele prazeroso conhecimento permaneceu conosco, enquanto conversávamos. Não é o conhecimento que surge e desaparece, pensei, é a percepção que temos dele. O que vemos é nossa consciência, e quando essa consciência é afastada, como as cenas se modificam! Somos, neste mundo, apenas reflexos, somos espelhos vivos uns dos outros, somos nossa própria famí lia querida, que enfim se reencontra após uma longa separação.

— Acho que aconteceu conosco muito mais do que estamos começando a perceber — disse Leslie.

— É como se nosso vagonete corresse sobre um milhão de chaves, querida, e estivéssemos vendo os trilhos mudarem debaixo de nós. Onde vamos sair, para onde estamos nos dirigindo?

A noite caiu enquanto conversávamos. Nós nos sentíamos como amantes que se reencontrassem no paraíso — éramos as mesmas pessoas que tínhamos sido, mas agora lembrávamos quem éramos antes, havíamos vislumbrado o que poderíamos realizar em nosso futuro.

Saímos por fim do restaurante, enlaçados novamente, para a noite e a cidade. Caminhávamos, carros passavam nas ruas para norte, sul, leste, oeste, um garoto fez uma curva graciosa, num skate, à nossa volta, com um guinchar de rodas. Todos nós seguindo nossos caminhos, ao encontro das escolhas deste minuto, desta noite, desta vida.

 

Às 8:45h da manhã seguinte entramos por um caminho arborizado, até o alto de um morro, e paramos numa área de estacionamento ajardinada. As vagas para os carros ficavam entre canteiros de flores. Tomamos uma das várias alamedas em direção ao salão de conferências, entre explosões de narcisos, tulipas e jacintos, entremeadas por minúsculas flores prateadas. Perfumes suaves flutuavam pelo ar. Spring Hill, de verdade!

Dentro do edifício, deparamo-nos diante de um salão com muitas janelas, em balanço sobre o mar. Os raios do sol faiscavam na água, lançando reflexos no teto do salão.

Num arco amplo, dispunham-se duas fileiras de cadeiras, separadas por um corredor. Depois das cadeiras havia um estrado baixo, três quadros negros, um microfone sobre um pé prateado.

Paramos junto a uma mesa dentro do salão. Havia ali apenas dois crachás com nomes, dois envelopes, dois cadernos e duas canetas: os nossos. Éramos os últimos a chegar, os últimos de cinqüenta e poucas pessoas que tinham viajado muitos milhares de quilômetros para participar daquele encontro de mentes.

Homens e mulheres cumprimentavam-se entre as cadeiras. Uma mulher aproximou-se do quadro-negro central e escreveu o título de um assunto e seu nome.

Um homem corpulento, de cabelos negros raiados de prata, caminhou até o meio do arco.

— Sejam bem-vindos — disse com firmeza ao microfone.

— Bem-vindos a Spring Hill. Parece que estamos todos aqui...

— Esperou que localizássemos nossos assentos.

Leslie e eu acabamos de prender nossos crachás, e olhamos, juntos, para o homem que falava. Foi como se levássemos um murro no estômago.

Virei-me para ela no mesmo instante em que ela se virava para mim.

— Richie! Ê...

O homem dirigiu-se ao quadro-negro central, pegando um pedaço de giz.

— Por acaso, alguém ainda não registrou o título de sua palestra? Os Bach, que acabaram de chegar... A palestra de vocês é...

— ATKIN! — exclamei.

— Pode me chamar de Harry — disse ele. — A palestra de vocês tem título?

Eu tinha a impressão de que estávamos de volta ao desenho, que havíamos pousado em algum anexo da fundição de idéias. Não fossem as marcas de alguns anos a mais, era o mesmo homem. Não estávamos em Los Angeles, pensei. Por acaso tínhamos confundido...

— Não. Não há título. Nem palestra — respondi. Algumas cabeças voltaram-se momentaneamente para nós.

Rostos estranhos, porém... Leslie tocou-me a mão.

— Não pode ser — murmurou. — Mas é uma coincidência esquisita!

Naturalmente. Harry Atkin nos convidara. Fora o nome dele, estampado na carta, que nos levara até ali, conhecíamos seu nome antes de sairmos de casa.

— Mas ele se parece tanto com Atkin!

— Alguém mais? — perguntou Harry. — Quinze minutos no máximo, lembrem-se, para a primeira rodada de palestras. Seis palestras e um intervalo de quinze minutos. Mais seis e o almoço, durante uma hora. Outros títulos?

Uma mulher levantou-se a algumas cadeiras na frente das nossas.

Harry Atkin saudou-a com um gesto de cabeça.

— Marsha?

— A inteligência artificial é artificial? Uma nova definição de Humanidade.

O homem escreveu o título em letras de fôrma no quadro-negro central, ao fim de uma relação de outros dez, pronunciando as palavras enquanto as escrevia.

— ...DE... HU... MA... NI... DA.. DE — disse. — MARSHA BAN... ER... JEE. — Levantou os olhos. — Mais alguém?

Ninguém se manifestou. Leslie chegou perto de mim.

— Uma nova definição de humanidade? — sussurrou. — Não parece...

— Claro... Mas Marsha Banerjee é um nome — murmurei. — É uma celebridade na área de inteligência artificial. Vem escrevendo a respeito disso há anos. Ela não tem...

— Acho que estamos exagerando um pouco nessa hipótese de coincidência — disse Leslie. — Veja os outros títulos!

Harry Atkin olhou de relance para uma ficha.

— O conselho pediu-me que explicasse mais uma vez que Spring Hill é um encontro informal das cinqüenta mentes mais originais que encontraram nas áreas da ciência e das comunicações. — Fez uma pausa e olhou para nós com um pequeno sorriso... aquele mesmo sorriso! — As cinqüenta mentes mais inteligentes provavelmente formarão uma lista diferente...

Todos caíram no riso.

O primeiro tópico no quadro-negro era de Atkin: A ESTRUTURA E A ENGENHARIA DAS IDÉIAS.

Virei-me para Leslie, mas ela já lera o título e fez um gesto de cabeça, enquanto continuava a ler.

— Os senhores e as senhoras foram convidados porque são diferentes — disse Harry —, porque foram vistos patinando lá longe, na beira do gelo... Spring Hill serviu de intermediário para que fossem postos em contato com outros patinadores, tão ousados quanto os senhores. Não queremos que se sintam solitários onde estão...

Ao lermos os títulos, ficamos primeiro surpresos, e depois atônitos.

O FUTURO SEM FRONTEIRAS:

A ASCENSÃO DA NAÇÃO ELETRÔNICA

EXPERIMENTOS NA FÍSICA DAS PARTÍCULAS MENTAIS

O QUE UMA PESSOA BOA COMO VOCÊ ESTÁ FAZENDO NUM MUNDO DESTES?

ALOCAÇÃO DE RECEITA TRIBUTÁRIA: COMO DESCOBRIR A VONTADE DAS PESSOAS

“E SE” E “E DAÍ”: DECISÕES PRÉ-VIVENCIADAS

SUPERCOMPUTADORES HIPERCONDUTIVOS NA RESTAURAÇÃO ECOLÓGICA

OBJETIVO INDIVIDUAL: UMA TERAPIA PARA A POBREZA E O CRIME

CAMINHOS PARA A VERDADE: O ENCONTRO DA CIÊNCIA E DA RELIGIÃO

O DESTRUIDOR COMO EXPLORADOR: NOVOS PAPÉIS PARA AS FORÇAS ARMADAS

MUDAR O ONTEM, CONHECER O AMANHÃ PARENTES POR OPÇÃO: A FAMÍLIA NO SÉCULO XXI COINCIDÊNCIA: O HUMOR DO UNIVERSO

— ...lembrar aos senhores que durante qualquer palestra — disse Harry — qualquer participante pode vir até os quadros-negros laterais e registrar conexões, inter-relações, rumos de pesquisa, idéias que o palestrante possa ter detonado em nossas mentes. Quando os quadros-negros estiverem cheios, apaguem a idéia do alto e escrevam a sua, e cada nova intervenção deverá ser feita da mesma maneira...

SERÁ A MORTE NECESSÁRIA?

HOMO AGAPENS: REQUISITOS PARA UMA NOVA RAÇA

APRENDIZADO DA LÍNGUA DOS GOLFINHOS

ALTERNATIVAS CRIATIVAS PARA A GUERRA E A PAZ

MUITOS MUNDOS SIMULTÂNEOS?

ALGUNS ESQUEMAS DE POSSIBILIDADES

— Está vendo, Richie? O último título?

Atkin tirou um timer do bolso e ajustou-o. CHIP, CHIP, CHIP, começou o instrumento, como um canário elétrico.

— Quinze minutos passam bem depressa...

Li o título e pestanejei. Seria crível que outra pessoa tivesse encontrado o desenho no mar? Nunca tínhamos parado para pensar se... E se não fôssemos as únicas pessoas a ter estado lá?

...e a razão é que as pessoas querem esgotar o essencial de sua obra mais recente, o mais rápido possível, mostrar o que descobriram, o que farão em seguida. Podemos nos reunir durante os intervalos para transmitir mais detalhes, trocar informações ou combinar encontros em outro lugar. Mas os senhores terão de parar quando ouvirem isso... — Então Atkin fez o canário chilrear novamente. — Porque o palestrante seguinte quer falar e é tão extraordinário quanto os senhores. Alguma pergunta?

Era como se estivesse para começar uma corrida de máquinas potentes, ali dentro do salão. Podíamos sentir mentes acelerando em volta, coisas exóticas e em alta rotação em estrépito, ansiosas por serem liberadas. Não seria nada demais Atkin ter nas mãos uma bandeira quadriculada.

Ele se virou e verificou o relógio.

— Vamos começar dentro de um minuto. Na hora marcada. Estará à disposição, para os interessados, uma fita com a gravação do encontro. Os senhores já têm em mãos os nomes e endereços de todos os presentes. O intervalo para almoço será às 12:15h. O jantar será servido das cinco às seis, no salão ao lado, e vamos parar às 21:15h esta noite. Recomeçaremos amanhã às 8:45h.. Não haverá mais perguntas, pois sou o primeiro palestrante. — Atkin tornou a verificar o relógio, uns poucos segundos antes da hora marcada, fez o tempo começar a correr. — Agora. As idéias não são pensamentos, são uma estrutura montada. Observem isso e prestem atenção ao modo como suas idéias estão construídas e verão aumentar de maneira espetacular a qualidade do que pensam. Não acreditam? Peguem a última e melhor idéia que tiveram. Agora, fechem os olhos e fixem essa idéia na mente...

Fechei os olhos em tomo do que tínhamos aprendido — que cada um de nós é um aspecto de todas as demais pessoas.

— Examinem essa idéia, e segurem-na nas mãos se lhes parecer que ela é constituída de palavras. — Atkin fez uma pausa. — Metal? — Outra pausa. — Espaço vazio? — Pausa. — Cristal?

Levantei a mão.

— Abram os olhos, por favor.

Abri os olhos. A mão de Leslie estava levantada, assim como a de todo mundo no salão. Houve um murmúrio de surpresa, risadas e interjeições de espanto.

— Há um motivo para que ela seja de cristal, e há também um motivo para a estrutura que vêem — disse Harry Atkin. — Toda idéia bem-sucedida obedece a normas de engenharia. Procurem essas normas e saberão de imediato se uma idéia vai funcionar ou apresentará falha.

O salão estava silencioso como a meia-noite no campo.

— Primeiramente, temos a norma da simetria — continuou ele. — Fechem os olhos outra vez e examinem a forma de suas idéias...

A última vez em que eu passara por essa sensação que sentia naquela manhã foi quando ligara o queimador auxiliar de um caça a jato. Era a mesma sensação de potência desvairada às minhas costas, quase incontrolada.

Enquanto Atkin falava, um homem que estava na segunda fila levantou-se e caminhou até o quadro-negro da esquerda. Escreveu rapidamente, em letras de fôrma: projeto e CODIFICAÇÃO DE IDÉIAS DE COMPUTADOR A COMPUTADOR PARA COMPREENSÃO DIRETA SEM PALAVRAS.

Claro, pensei. Sem palavras! As palavras são um auxílio muito rudimentar à telepatia. Como haviam as palavras atrapalhado enquanto conversávamos com Pye sobre o tempo!

— Em vez de computador a computador, que tal de mente a mente? — sussurrou Leslie, escutando e tomando notas ao mesmo tempo. — Algum dia vamos deixar de lado a linguagem.

— ...a quarta norma de qualquer idéia eficiente — comentava Atkin — é o encanto. Das três normas, a quarta é a mais importante. No entanto, a única medida para o encanto situa-se no... — CHIP, CHIP, CHIP, CHIP, CHIP, CHIP, CHIP, CHIP, CHIP...

Veio da platéia um lamento de decepção.

Atkin levantou a mão, como a dizer que não tinha importância, parou o timer, reajustou-o e afastou-se. Um jovem caminhou até o palanque, começando a falar antes mesmo de chegar ao microfone.

— Nações eletrônicas não são experimentos exóticos que podem funcionar ou não — disse ele. — Elas já começaram, já estão em operação e existem neste instante à nossa volta, como redes invisíveis de pessoas que partilham os mesmos valores e as mesmas idéias. Obrigado Harry Atkin por preparar tão bem o terreno para mim! Os cidadãos dessas nações podem ser americanos, espanhóis, letões, japoneses... mas o que mantém coeso o país invisível que habitam é mais forte do que as fronteiras de qualquer geografia...

A manhã passou rapidamente. Raios luminosos saltavam de diamantes para esmeraldas, e dali para rubis, ganhando fulgor a cada volta, cada novo ângulo.

Como tínhamos nos sentido solitários com nossas idéias esquisitas! E que prazer maravilhoso era nos sentirmos à vontade ao lado daquela família de estranhos!

— Não acha que Tink iria adorar isto, se ao menos ela pudesse conhecer aqui? — perguntou Leslie.

— Mas é claro que ela conhece aqui — sussurrei. — De onde teria vindo a idéia de Spring Hill?

— Ela não disse que era nossa fada das idéias, que ela é um outro nível de nós?

Toquei na mão de Leslie.

— Onde é que nós paramos e as pessoas que estão nesta sala começam, querida?

Eu mesmo não sabia. Em que ponto a mente e o espírito começam e terminam, onde é que o interesse começa e termina, quais são os limites da inteligência e da curiosidade?

Quantas vezes eu desejara que tivéssemos mais corpos! Apenas uns poucos mais, e poderíamos ir e ficar ao mesmo tempo. Poderíamos viver placidamente no deserto, para assistir ao nascer pacífico do sol, para domesticar a fauna silvestre, para viver em comunhão com a terra; e ao mesmo tempo poderíamos ser parte da massa urbana, vendo filmes e produzindo-os, participando de conferências e pronunciando-as. Carecemos de corpos suficientes para encontrarmos pessoas a cada hora e ao mesmo tempo estarmos a sós, juntos, construir pontes e refúgios ao mesmo tempo, aprender todas as línguas, dominar todos os ofícios, estudar, exercitar e ensinar tudo que gostaríamos de fazer, trabalhar até cairmos de exaustão e não fazer absolutamente nada.

— ...descobrimos que os cidadãos dessas nações forjam lealdades entre si mais fortes que a lealdade que têm para com seus países separados. Isso sem que algum dia se tenham encontrado pessoalmente ou mesmo esperem encontrar-se...

— Essas pessoas são nós em outros corpos! — murmurou Leslie. — Elas sempre desejaram pilotar hidraviões, e nós o fizemos para elas. Nós sempre desejamos conversar com os golfinhos, explorar nações eletrônicas e eles o estão fazendo para nós! As pessoas com os mesmos interesses não são estranhas, mesmo que nunca se tenham encontrado!

CHIP, CHIP, CHIP, CHIP, CHIP, CHIP, CHIP, CHIP, CHIP, CHIP, CHIP...

— ...com os mesmos valores não são estranhos — disse o jovem, afastando-se do microfone —, mesmo que nunca se tenham conhecido!

Juntamo-nos aos rápidos aplausos, e a seguir começou a oradora seguinte, procurando expressar-se depressa para vencer o tempo.

— Assim como as menores unidades da matéria são energia pura — começou ela —, as menores unidades de energia são pensamento puro. Realizamos uma série de extraordinários experimentos que indicam que o que vemos a nosso redor pode ser, literalmente, uma construção de nosso pensamento. Descobrimos uma unidade, do tipo das partículas, à qual demos o nome de imajon...

Nossos cadernos de anotações estavam cheios de rabiscos; cada toque do timer representava um momento de frustração. Tanta coisa a ser dita, tanta coisa a aprender! Como era possível tantas idéias surpreendentes convergirem para um só local?

Poderíamos ser, todos que estamos nesta sala, pensei, uma só pessoa?

Percebi que Leslie olhava para mim e virei-me para ela.

— Realmente, temos uma coisa a partilhar com eles — disse ela. — Poderemos viver em paz se não fizermos isso?

Sorri para ela.

— Minha querida cética..

— ...e é da diversidade que advém essa notável unidade — continuou a oradora. — Notamos com freqüência que aquilo que imaginamos é exatamente o que encontramos...

Enquanto ela falava, levantei-me e fui até o quadro-negro central, peguei um pedaço de giz e escrevi, em letras de fôrma, no final da lista, o título daquilo que exporíamos em nossos quinze minutos. UM.

Coloquei o giz no lugar e voltei para minha cadeira, ao lado de Leslie, e segurei-lhe a mão. O dia mal havia começado.

 

                                                                                            Richard Back

 

 

                      

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