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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM SEGREDO DE AMOR / Teresa Macedo
UM SEGREDO DE AMOR / Teresa Macedo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

UM SEGREDO DE AMOR

 

Querida Carolina, Venho contar-te finalmente a terrível história de amor que me destroçou o coração. Precisei de muita coragem para me sentar perante este caderno e contar-te tudo o que se passou. Espero que possas guardar este segredo contigo. Ò Bernard ainda ocupa um cargo político importante, e estas coisas devem ser deixadas em segredo... Tudo começou naquele verão de 1992. Eu estava de férias em Maiorca, na casa dos meus amigos Lonterdrop, membros da nobreza alemã. Depois do fim do meu primeiro casamento com Luigi, o célebre banqueiro suíço, tinha finalmente recuperado: o sol, o vento, a praia, tinham-me curado da mais dolorosa das dores, que é o mal de amor. Aprendi a fazer esqui aquático, e sentia o meu corpo libertar-se da presença daquele homem musculado, de carne terna e tenra, que tinha povoado o meu coração e os meus dias durante tantos anos. É difícil abandonar o hábito do amor, da presença da outra pessoa com quem prometemos passar toda a nossa vida. Os sonhos desmoronaram-se dentro da minha cabeça. E o que fazer com esses sonhos destruídos? Tive de aprender a gostar de mim, de novo, a sentir-me bem comigo mesma. Os psicólogos dizem que é uma crise de meia idade... É verdade... Mas foi mais do que isso. Aprendi a viver contando apenas comigo. É a experiência mais difícil mas também a mais maravilhosa que pode ser dada a uma mulher viver. Espero um dia ter maturidade para contar tudo isto publicamente. Num livro, quem sabe, como escritora... Talvez seja capaz de contar o que se passou. Mas hoje ainda é cedo. O meu casamento já dura há tanto tempo, e este segredo já vem desde então... Daqui a uns anos, serei provavelmente capaz disso...

Já passaram tantos anos, mas eu quero contar-te. Há coisas que não se podem guardar no coração durante tanto tempo. Esta paixão foi a coisa mais furiosa e mais bela que me aconteceu. Por isso vou contar-te, pedindo-te o maior segredo sobre esta história.

 

Bernard era filho de uma família nobre. Aos sete anos, o pai mandou-o de Salzburgo para Viena, para estudar violoncelo. Foi uma criança que cresceu completamente só. Vivia num colégio interno, com normas rigorosas, pessoas muito autoritárias. Depois do primeiro ano de violoncelo, e como era talentoso, passou para a classe avançada. Era tudo demasiado rigoroso, e isso marcou o pequeno Bernard, fazendo dele uma pessoa solitária. Nesse segundo ano de estudo, com oito anos, Bernard sangrava das mãos todas as noites. Sozinho, punha panos nos dedos das mãos, chorava até adormecer, e continuava no dia seguinte, como se nada fora. A partir daí, foi sempre perseguido pelos amigos que, por ele ser músico achavam que era homossexual. Bernard ainda teve as suas experiências com homens, bastante cedo, mas ele amava as mulheres. Mulheres, afinal, tão diferentes das suas colegas magras, lindíssimas e frias. Depois de sete anos de violoncelo, o pai permitiu-lhe voltar a casa no Verão. Bernard tinha quinze anos e a família era-lhe praticamente desconhecida: só os via nas férias do Natal, porque mesmo nos Verões anteriores, o Visconde, seu pai, obrigava-o a estudar e a dar espectáculos por toda a parte. Bernard tinha conhecido a Europa toda, mas agora estava triste, sozinho e muito vazio. Viena não lhe dizia nada. Queria fazer outras coisas, encontrar o amor da sua vida, ser feliz. E sabia que nesse Verão o pai iria chamá-lo para decidirem o seu futuro. Claro que esse dia chegou. Bernard entrou na grande sala de visitas dos Viscondes, cheia de espelhos e de talha dourada, com uns reposteiros centenários e vermelhos. Lá fora parecia que tudo vivia o presente; lá dentro, que tudo estava parado no passado, como os quadros dos antepassados.

- Bernard, chamei-te aqui para te dizer que estou muito orgulhoso... Muito orgulhoso por teres feito uma formação exemplar como artista.

Bernard assentiu com a cabeça. Não estava previsto que dissesse alguma coisa. Assim mandavam as regras e a autoridade. O pai continuou:

- Quero dizer-te que, se pretenderes continuar essa carreira, és livre de o fazer. Só que, nos próximos tempos, apenas poderás treinar. Contratarei o mestre que quiseres, para teres as aulas que entenderes, mas agora chegou o tempo de fazer outra coisa.

O rapaz não conseguiu deixar ficar calado o seu enorme espanto.

- Outra coisa...?!

- Sim, outra coisa. Quero que faças um curso de Ciência Política e te formes como tal. Quero que depois abraces a carreira diplomática. Há doze gerações na nossa família que...

- Mas eu não quero ser diplomata...

O impossível aconteceu! Bernard tinha interrompido o pai! E, pior, manifestara uma vontade diferente!

- Bernard, nem quero pensar no que ouvi. Vou continuar... Dizia que há doze gerações na nossa família que um dos filhos segue a carreira diplomática. O teu tio pensa que serás o indicado, visto que o teu irmão tem à sua frente uma carreira como pianista. As tuas irmãs são mulheres e, portanto, estão fora de causa. Mas tu podes ser um diplomata, ainda para mais no seio da Europa unida e moderna em que vivemos.

Bernard ficou calado. Apetecia-lhe gritar, bater com a porta, voltar para trás e partir para muito longe. Mas ficou calado.

- Agora, sim, Bernard, é que me podes responder. Bernard não aguentou e respondeu-lhe de facto.

- Eu não quero ser diplomata. Eu quero ser violoncelista, depois maestro. Não quero ser diplomata para nada.

- Tu não tens querer, Bernard. Tu vais fazer o que eu decidir, porque isso é o melhor para ti e para a nossa família. Fim de conversa. E agora vais apenas dizer-me para onde queres ir estudar, e quem é o mestre violoncelista que devo contratar para te continuar a dar aulas.

- Pai, não quero ser diplomata. E também não quero sair mais daqui. Preciso de estar em casa. Pai, nós não nos conhecemos! Conheço mal a minha mãe, as minhas irmãs, esta casa...

- Chega! Não queres escolher, escolho eu. Vais para a universidade mais distante em que tinha pensado. Vais para um colégio na Suiça, para te preparares, e depois para a universidade. Só quero que voltes no Natal. E estás proibido de tocar violoncelo.

O Visconde levantou-se e deixou Bernard sozinho naquela sala.

Imaginas, Carolina, como é que Bernard ficou. Nunca mais foi o mesmo. Partiu para a Suíça, onde fez um curso excelente. Continuou a ter aulas de violoncelo, secretamente. Teve algumas namoradas, mas não se conseguia apaixonar. As relações eram todas muito rápidas. Bernard tornou-se num playboy, num homem seco, que utilizava os corpos e os sentimentos das mulheres para se vingar da vida terrível que tinha. A sorte foi ter conhecido Adam, o filho dos Lonterdrop, que se tornou no seu melhor e inseparável amigo. Adam ajudou-o a ultrapassar muitas coisas. Foi este o homem que conheci em 1992, em Maiorca, quando fomos passear de barco pelas ilhas. Estava um dia de sol maravilhoso. O azul do mar, muito profundo, misturava-se com as cores da terra que se via ao longe. Tínhamos acabado de entrar no barco. Para além de mim, e da minha amiga Mia, filha dos Lonterdrop, estavam os seus pais, e Adam e Bernard. Eu tinha acabado de o conhecer. Contava 29 anos e era um diplomata célebre, que já tinha sido responsável por uma série de assuntos difíceis, que resolvera com muito à-vontade. Fiquei espantada ao vê-lo: era muito alto, de pele clara e cabelo cor de laranja, caindo sobre a testa. Parecia ter 18 anos, e não 29. Revelava uns olhos azuis sonhadores, como uma criança grande, e não como o homem que a vida tinha destruído. Percebi que era esse o encanto que fascinava todas as mulheres. Cortês e delicado como era, beijou-me a mão ao ver-me. Senti-me uma donzela do século XVIII. Tinha umas mãos enormes de violoncelista, uns dedos esguios mas fortes, que apetecia beijar ou sentir a agarrar o corpo.

 

O barco saiu do cais e, depois das primeiras manobras, dirigiu-se para alto mar. A costa mostrava-se diante dos nossos olhos, com as casas, os montes, as várias formas de azul. O sol tocava em tudo, e eu não conseguia

tirar os olhos do tronco nu de Bernard. Era como um adolescente, sem pêlos no peito, com uma pele muito branca, uns ombros largos, um pescoço firme. Era um encanto, uma mistura de adolescente com um homem feito. Ele despertava os meus instintos mais aguçados. Tinha vontade de o beijar, de o morder, mas também de o proteger. Algo muito forte e estranho se formava lentamente no meu coração.

Depois da manobra, Bernard veio sentar-se perto de Mia e de mim.

- Então... Está a passar férias aqui?

- Sim... A Alice é a minha mais querida amiga... Eu não era capaz de passar férias distante dela...!

Mia respondera por mim. Ela já tinha percebido como me sentia fascinada, e desconfortável, com a presença e a figura de Bernard.

- Mas a tua amiga não fala...?!

- Falo, sim...

- Ah! Tão bonita que, pensei, tinha que ter um senão... Não falar!

- Enganou-se...

- Trata-me por tu, por favor...

O sorriso dele era espantoso: uns dentes muito brancos, longos, que contrastavam com os lábios muito vermelhos e grossos. Sentia-me loucamente atraída por aquele homem.

Bernard começou a contar-me da sua vida, o que fazia, de onde vinha, quem era. Estava perante um rapaz cheio de profundidade, de delicadeza e de educação.

-...E tenho uma grande paixão...

O meu coração começou a bater depressa... «Era casado...!», pensei aterrorizada.

-...O meu violoncelo...

-Ah...

- Ficaste aliviada...? - Bernard tinha percebido que estava a conseguir interessar-me, e muito.

- Não, espantada...

- E porquê?

- Porque nunca imaginei que tocasses violoncelo... Mas tens mãos grandes, isso é verdade...

- É uma coisa impressionante... Tocar violoncelo é como possuir o corpo de uma mulher que canta mesmo junto a nós. É uma coisa extraordinária... É poder amar e fazer cantar uma mulher ao mesmo tempo...

Ele tinha dito a frase com um tom, olhando fixamente com os seus olhos azuis nos meus olhos, que me senti tremer. Como as cordas de um violoncelo.

- E como é o teu violoncelo...?

- É do século XVIII... Pertenceu a um antepassado meu...

Bernard contou-me a história do violoncelo, depois a da família, e deu a entender que não os via muito...

- Como o meu violoncelo pertenceu a um homem que amou mais a música do que as mulheres, parece que fiquei com essa sina... Só que nem o violoncelo me deixaram tocar... Sabes, às vezes penso que é uma espécie de maldição... Mas, enquanto o meu antepassado podia ter tocado violoncelo, tinha ao menos isso, eu nem isso posso amar... Nem a isso me posso encostar, quando me sinto vazio ou triste...

Ele não estava a armar-se em pobrezinho. Senti que o coração dele realmente vibrava com aquela tristeza... E fiquei triste, por ele. Bernard parecia um poço sem fundo. A cada palavra que dizia, eu sentia-me mais interessada em conhecê-lo por dentro. Em estar por dentro dele.

- E o que fazes?

- Eu sou tradutora...

- Tradutora...? Mas eu passo o dia com tradutores para todo o lado e ainda não tive a sorte de te ver...?

Era mesmo galanteador. Conseguia tirar-me do sério.

- Ah, eu trabalho apenas para empresas... Não em diplomacia... Mas tenho pena, porque adoro viajar e contactar com outras pessoas...

- Sim... Eu também tenho pena... Não é habitual ver pessoas tão comunicativas como a Alice...

O barco seguia o seu percurso. Tínhamos chegado a uma pequena ilha, onde iríamos aportar. Eu não tinha vontade de sair do barco: apesar da viagem ser agradável, tinha um pouco de medo! E por isso fiquei. Bernard ofereceu-se para me fazer companhia...

Resolvi deitar-me ao sol na proa do barco. Ao tentar passar por cima de tantos cabos e janelas, desequilibrei-me. Foi Bernard quem me salvou, evitando que eu caísse para a água. Ao sentir-me apertada por aqueles braços tenros, ao sentir o calor e o cheiro doce da pele dele, não fui capaz de evitar. Os nossos lábios cruzaram-se. Sozinhos no barco, libertámos o desejo e procurámos as bocas um do outro.

A boca dele beijou o meu pescoço. Sentia os lábios carnudos e maduros de Bernard a percorrer-me a pele. Os braços dele despiam-me os ombros, as mãos enchiam-me de calor e de prazer. A sua boca passou para o meu peito, em sensações deslumbrantes de prazer e de entrega. Sentia-me mulher. Bernard beijava-me e tocava-me com uma delicadeza incrível. E, deitando-me sobre a cama do barco, enquanto as ondas batiam suavemente no casco, eu e Bernard fazíamos amor. As suas mãos experientes, o seu sexo forte, a sua boca quente e rápida, tocavam-me. Sentia-me como um violoncelo nas suas mãos.

 

Nem sei bem contar-te como regressámos a Maiorca. Sentia-me louca, com o coração a pular dentro do meu peito. O barco batia nas ondas e, era assim também que eu sentia o coração. Estava ansiosa para contar tudo a Mia. Bernard tinha ficado calado, como se não se tivesse passado nada.

Mal dormi nessa noite. Só me recordava do corpo dele, da sua pele, dos seus gestos carinhosos. No dia seguinte, voltámos a encontrar-nos na praia. Bernard vinha agora acompanhado pela sua mãe, a Viscondessa. Era uma mulher de olhar frio e gestos altivos.

- Mãe, esta é a Alice.

A velha Viscondessa estendeu a mão, olhando por cima dos ombros. Agora entendia como Bernard podia ter sofrido tanto.

- É amiga de Mia, não é? -Sim.

- Então venham hoje jantar a nossa casa. Teremos todo o prazer em receber-vos.

Bernard sorriu, como que compensando a atitude aristocrática da mãe. Voltaram para trás, e eu fiquei com o olhar preso no cabelo cor de laranja de Bernard, nos seus ombros brancos e ternos. Os meus olhos não viam outra coisa. O meu coração batia ao ritmo dos passos dele na areia, ao ritmo do movimento daquelas pernas finas e delicadas.

Essa noite na casa de férias dos Viscondes foi inesquecível. A casa era um pequeno palacete, que parecia fora do seu tempo. Tinha dois andares, sete janelas de cada lado, e uma fachada cor de rosa. Atrás, um enorme jardim de Inverno estendia-se, ampliando a casa. À porta, fomos recebidos por um mordomo. Mia e eu íamos com um vestido de Verão anos 30, com umas moules com uns efeitos de época, e o cabelo preso em cima, deixando cair os caracóis. Amigas desde o colégio, muitas vezes passávamos por irmãs - e não porque fôssemos parecidas. O palácio estava cheio de obras de arte, e não fazia lembrar uma casa de férias, não fossem as portadas brancas, e o ar menos carregado nos móveis e na decoração. Na sala de estar, que dava para o jardim de Inverno, estavam sentadas mais de quinze pessoas. Para além da família de Bernard (o pai não estava, já não gostava de vir de férias), estavam outros rapazes amigos dele. Foi nessa festa que Mia conheceu Jean Paul, herdeiro de uma das maiores fortunas francesas, com quem veio a casar-se. Estavam também pessoas ligadas à moda, que se davam nessa altura com a mãe de Bernard. O jantar foi fascinante. Os pratos chegavam pelas mãos de mais de 10 criados, todos vestidos a rigor. Ao chegar à mesa, os criados levantavam a tampa, surpreendendo-nos com a decoração, o cheiro e a exuberância dos pratos. Perdiz estufada, com legumes exóticos vindos de todas as partes do mundo, acompanhada de vinho da Alsácia: era esse o maravilhoso jantar dessa noite. Bernard estava lindíssimo, com uma camisa branca e um blazer casual chic: parecia um príncipe inglês. Os seus olhos azuis conversavam comigo. Nessa noite, no jardim interior, Bernard e eu tivemos uma importante conversa: -O que se passou hoje, Alice, foi um dos momentos mais bonitos e inesperados da minha vida... -Para mim também... Bonito e importante...

- Sim... Sabes que há tanto tempo esperava que isto acontecesse... uma paixão com esta força, e inesperada... Tocou-me com as suas mãos compridas no rosto, suavemente, como se me beijasse. Estávamos sentados em dois cadeirões do século XIX, enquanto ao fundo outros convidados se entretinham a jogar bridge, e a conversar sobre moda.

- Mas tu podes ter todas as mulheres que quiseres... Eu moro em Portugal, tu trabalhas longe... Vai ser tão difícil, Bernard... E eu não quero ter um amor de Verão.

- Alice... Mas tu julgas que isto é um amor de Verão?! Que eu me atiro para cima da primeira mulher bonita que encontro?

- Não... Não... Mas percebes o que te estou a dizer... Isto é inesperado, muito forte...E como é que vamos fazer?

- Eu já pensei em tudo...

- Pensaste em tudo??

- É assim: eu preciso de uma intérprete pessoal. Alguém que seja uma assessora, que traduza documentos, faxes, reuniões... Embora a vaga só abra em Outubro, tu poderias ir já comigo. Eu trataria de ti nestes primeiros meses. Depois proponho o teu nome, e deverá ser aceite. E ficaríamos juntos... a trabalhar, todo o dia... Que é que te parece?

- Bernard, não sei que te diga... É tudo tão rápido, tão novo...

- O amor é assim, Alice...

- E achas boa ideia que comecemos logo a trabalhar juntos...?

- E porque não?

- Ouve, Bernard: eu queria responder-te logo que sim... Mas acho que é melhor eu candidatar-me em Outubro. Tentamos encontrar-nos... Eu estou no início das férias, vou daqui para Baden com a Mia... Temos ainda um mês aqui... E depois, poderemos encontrar-nos lá perto... Vamos deixar crescer o nosso amor... Entende... É melhor para nós. Querer tudo pode ser perder tudo, portanto...

Os lábios dele tocaram-me no pescoço. Sorriu para mim, antes de me beijar. O nosso namoro tinha começado.

Porque, depois de me sorrir, beijar e concordar, Bernard pôs-se de joelhos:

- Alice... Tu queres ser a minha namorada? Posso pedir o teu coração...?

Doida de romantismo, louca de amor por ele, encostei a cabeça dele ao meu peito e concordei.

Querida Carolina: sem saber, eu ia entrar na aventura mais espantosa e trágica da minha vida.

 

Aqueles dias em Maiorca foram extraordinários e luxuosos. Bernard tratou-me sempre como eu nunca imaginei que um homem pudesse tratar uma mulher. Acordava-me às 4 da manhã com um quarteto de cordas a tocar à janela; enchia o alpendre da casa dos Lontendrop com camélias, rosas, cravos, orquídeas e begónias; levava-me a dançar aos sítios mais caros, chiques e modernos; jantávamos à luz das velas, ou fazíamos piqueniques em lugares impensáveis. Bernard era um sonho feito vida. As férias de Bernard, porém, estavam a acabar, e eu sentia um aperto no coração. Uma noite, na última semana, no baile das embaixadas em Maiorca, enquanto Bernard dançava com uma das suas (muitas) primas, abri o meu coração a Mia.

-Querida, eu nem sei como isto está a ser possível...

- É um sonho... É tão bom ver-te tão feliz... Tu merecias uma coisa destas... Sobretudo depois da vida terrível que tiveste com o teu ex-marido...

- Parece que tive de passar todo esse horror para receber uma coisa ainda melhor... Que tive de sofrer para agora ser capaz de valorizar o amor...

- É verdade... Mas olha, como é que vai ser a partir daqui? O que é que combinaram...? É que entre agora, entre o fim de Agosto, e Outubro, quando tiveres a confirmação de que podes ir trabalhar com Bernard, ainda vai passar muito tempo... E o Bernard...

Mia tinha feito uma pausa. Eu percebia que alguma coisa a perturbava, que ela tinha de me dizer alguma coisa...

- Diz, Mia... O que é que o Bernard tem...?

- O Bernard não tem nada... Mas a personalidade dele...

- Sim, é um homem complicado, mas teve uma vida...

- Sim. Isso é verdade... Mas... Ele é um rapaz que ainda não conseguiu ter uma relação duradoura... Até agora foi um playboy... E eu... Desculpa, Alice, mas eu fico... Fico preocupada convosco... Contigo...

Mia estava a ser muito minha amiga. É difícil para alguém que nos ama poder dizer o que a preocupa, quando toca à nossa felicidade... No meio da minha loucura de amor, Mia estava a alertar-me. Percebi a intenção dela, mas fiquei irritada. Comecei a achar que estava com inveja de mim. Deixei que essa ideia ficasse lá no fundo do meu coração, embora tenha respondido com calma e tivesse preferido pensar que ela apenas estava preocupada.

- Mia, eu entendo... Entendo o que me queres dizer...

- É que... ele não foi até agora um modelo de comportamento... O Bernard já destroçou muitos corações... Ele tem dificuldade em lidar com os próprios sentimentos... Entendes? Não quero que tu sofras... É que, a partir do momento em que ele se for embora... eu não sei o que possa acontecer...

Ouvi Mia com preocupação. O que ela dizia, apesar de ser doloroso de ouvir, era precisamente o que eu temia. Intimamente, eu sabia que isso iria acontecer. Ou pelo menos poderia acontecer...

- Desculpa dizer-te isto... Mas quero que saibas que eu estou contigo nesta luta... Em tudo! Eu nunca hei-de desistir de lutar pela tua felicidade, Alice...

E isso era verdade. Se estava ali de férias, se ia passar o Verão inteiro pela Europa, nas praias, nos lagos gelados, nos castelos e palácios do centro da Europa, era apenas porque Alice tinha tomado conta de mim. A amizade dela não tinha comparação nem preço. Depois de Luigi, o meu ex-marido, me ter agredido, tinha sido ela a ir buscar-me. Durante todo o divórcio, vivi em casa de Mia, como se fosse a minha própria casa.

- Obrigado, Mia...

- Eu estou sempre contigo, querida... Mas olha, lá vem o teu príncipe...

- Não é príncipe, é Visconde...

Bernard iria herdar o título, e segundo as conversas mais correntes nesse verão em Maiorca, não faltaria muito. O velho e violento Visconde estava muito doente nas suas propriedades na Áustria. Bernard era o mais velho, e mesmo que quisesse abdicar do título em nome do irmão, Friederick, pianista, era muito duvidoso que este aceitasse. De espírito muito independente, fazia uma carreira espantosa nas maiores salas de concerto, e para além de pianista clássico, começava agora a gravar discos de jazz (o que era perturbador no pequeno meio da música clássica e da alta sociedade europeia... «um nobre a tocar jazz, onde é que já se viu isso!», diziam as velhas fidalgas que passavam férias em Maiorca). E lá vinha avançando para mim, o meu Visconde, de smoking branco, maravilhoso com o seu cabelo de adolescente caindo sobre a testa e os olhos muito azuis. Como aquele sonho de Verão que eu vivia.

- Minha querida Alice, vamos fugir os dois! Vamos embora.

Bernard puxou-me por um braço (só tive tempo de beijar Mia e sair) e levou-me no seu descapotável para uma das praias mais belas daquela zona. Um pequeno bar tocava valsas, iluminando a praia de luzes e sons. Bernard sentou-me com ele na areia e abriu o seu coração.

- Alice, eu preciso de dizer-te algumas coisas... Eu nunca amei ninguém como te amo a ti.

- Ó Bernard...

- Ouve-me. Isto é importante...

Bernard agarrou-me na mão e começou a falar-me, com um tom de voz sério, muito emocionado. Olhava para o mar enquanto falava comigo. Parecia estar a falar de muito dentro do seu coração.

- Eu fui até agora um homem que viveu como se tivesse sempre dezoito anos... Em termos amorosos, claro, porque profissionalmente fui educado para ser um tubarão. Mas tens de perceber, Alice, que isso mudou desde que te conheci. Mas eu não sei se vou ser capaz... Ainda para mais longe de ti... Percebes, eu tenho que lutar contra mim próprio em nome do teu amor. Eu vou fazer tudo o que posso, mas tens de me ajudar.

Bernard estava a fazer uma confissão dolorosa, mas muito bonita. Estava a falar verdade. Carolina: quantas vezes podes garantir que ouviste um homem a falar verdade? A dizer o que o seu coração realmente sente?

- Eu estou aqui, Bernard... Vamos ter muitas dificuldades, mas estou aqui contigo...

- Eu sei, Alice, eu sei... Mas para além disso há outro problema...

O meu coração oscilava, de frase a frase que Bernard dizia, entre a emoção e o medo.

- Alice, como sabes, o meu pai está muito doente... Eu deverei receber o título brevemente... Isso não significa nada para mim, mas é uma missão que eu tenho com os meus antepassados e com os meus descendentes... Tenho que preservar os palácios, as propriedades, uma fortuna que eu quero que esteja ao serviço dos cidadãos. Terei de pensar em casar-me, mesmo que não queira... Eu só quero dizer-te que vais ouvir muito, a partir de agora, falsas notícias de casamentos e de noivados. Eu não me vou casar já. Eu quero conhecer-te melhor, quero que nos conheçamos bem... E se achares que sou o homem certo para ti, daqui a um tempo pensaremos nisso...

Eu, Viscondessa! Eu, casada com o homem dos meus sonhos! Como é que isso seria possível? Como?! Tentei acalmar-me. Bernard estava a ser sincero e a colocar-me todos os problemas que poderiam surgir entre nós. Não seria fácil. Mas quem disse que o amor é fácil? Que a felicidade aparece e é assim, gratuita. Implica esforço, sacrifício, muita dor.

- Bernard, eu estou contigo. Vamos passar por isto juntos, bemjuntinhos.

Abraçámo-nos. Eu ouvia o meu coração bater depressa. Deitei a cabeça de Bernard no meu colo, e percorri os seus cabelos com as minhas mãos emocionadas. Bernard começou a contar-me detalhes sobre a sua adolescência, os conflitos com o pai, os anos de solidão. Nessa noite, na praia, eu tive Bernard como mais nenhuma mulher o teve na vida. O rapaz chorava, libertando-se do peso de tantos anos em que tinha sido maltratado, magoado por aquela educação rigorosa. O meu peito e o meu coração eram o seu abrigo. À luz daquele luar maravilhoso, enquanto se ouviam à distância as valsas da sua terra, Bernard fez amor comigo como se fosse a sua primeira vez. Era como se, sob a luz da lua, ele voltasse a ser adolescente. Podia agora regressar ao passado, e ser amado naquele momento em que não tinha ninguém. Bernard entregou-se a mim, completa e inocentemente, como um adolescente. Eu sei que marquei, nesse momento, a vida de Bernard. Ele nunca mais teria ninguém como me teve a mim. Mulher nenhuma o teria, entenderia e aceitaria como eu fiz nessa noite. Os homens não se sabem entregar: é preciso que a mulher os receba, ame as suas feridas e as suas dores. Só aí é que um homem e uma mulher podem fazer amor, quando se conhecem profundamente. Toda a complexidade, todo o mau-génio e a dificuldade de viver de Bernard ficaram claras para mim, nessa noite espantosa e mágica em que fizemos amor sobre a areia daquela praia do Mediterrâneo. O meu amor partia dois dias depois. Passámos a véspera da partida juntos, alegres e tristes, passeando na praia. No dia seguinte, ele partiria logo de manhã.

- Não quero que me vás esperar. Eu odeio despedidas... Vemo-nosjá,já!

No alpendre da casa dos Lonterdrop, despedi-me dele. Vi-o partir, suavemente, com os seus passos de rapaz, com o vento a tocar-lhe no cabelo. Bernard não me telefonou no dia seguinte. Nem no próximo. Nem nas duas semanas seguintes. Ainda pensei telefonar-lhe, mas percebi uma coisa. Muito dolorosamente, mas percebi: que só muito raramente duas pessoas se podem amar com a mesma intensidade, a mesma força, durante a vida toda. O que Bernard e eu tivemos naqueles dias não se poderia repetir. Guardei esses segredos no meu coração. Mia nem perguntava nada. Ela sabia o que eu devia estar a sofrer. Porque é que ele me fazia aquilo? Mas eu sabia que precisava de espaço... Por outro lado, a minha candidatura ao lugar estava a correr bem, e decerto que Bernard tinha influência nisso. Mia, os seus pais e eu deixámos Maiorca. Nunca mais lá regressaria. Ao ver o avião levantar-se sobre aquelas praias, senti o coração tremer, desesperado. Era como se estivesse a acordar de um sonho... Mas a acordar conscientemente de um sonho, a separar-me dele. Aterrámos na paisagem que era absolutamente o contrário. Lausanne, com a sua beleza fria. Parecia que eu, realmente, tinha abandonado um sonho, e agora passava pelo frio. Pelo deserto gelado de estar longe dele. Tentava perceber Bernard, dar-lhe espaço, não o perseguir como faziam as outras mulheres. Mas também sabia que o poderia perder. Mas, vinte dias depois, quando já nem pensava em ter notícias de Bernard (pensava sempre nele, tu sabe-lo, Carolina, mas só quando me deitava todas as noites), ele reapareceu, de surpresa. Estávamos na estância de férias de Baden, num palácio do século XVIII completamente incrível, com torres enormes, altas, impressionantes. Os jardins estendiam-se até perder de vista. Mia e eu passeávamos, satisfeitas. Depois dessa semana, gozando o verde, os campos, as águas, iríamos para casa da sua tia, a Duquesa de Schweltzig-Hasse. Aí descansaríamos as duas, rodeadas por aqueles jovens ricos, altos e misteriosos que pareciam ter saído das páginas de um romance. Na tarde da partida, estava eu sentada na torre da ala esquerda do castelo, onde se via o rio ao fundo. A torre era muito alta, e tinha uma vista fabulosa. Rodeada daquele luxo e riqueza, senti-me nostálgica, invadida por uma sensação de prazer. Pensava em Bernard. Onde estaria, como estaria? No meu interior, ele era o meu namorado.

Sabia que ele tinha de se recompor do choque profundo daquela noite, em que se apercebera da força do nosso amor. Pensava nisto quando me bateram à porta. Era Mia.

- Alice, Alice, nem adivinhas quem está aqui!

- Quem? Quem?

Mia entrou. Atrás dela estava Bernard.

 

Aqueles dias em Schweltzig-Hasse iriam ser os mais maravilhosos da minha vida. Bernard e eu estávamos novamente juntos. Na primeira noite, depois do jantar, no terraço que dava para uma floresta cerrada, Bernard e eu tivemos uma importante conversa. Estava uma noite mágica. Ouviam-se as corujas cantar ao longe, o barulho suave do vento nas árvores, o ruído de cristais da Boémia na cozinha, as vozes alegres dos que jogavam bridge ou tocavam piano nos salões maravilhosos dos velhos e elegantes Duques.

- Alice, querida Alice, eu estou de volta... Desculpa ter fugido de ti, mas o que aconteceu foi muito forte... Eu precisei muito de estar sozinho, de pensar em tudo o que me disseste, em reconstruir a minha vida toda. Mas sei agora que te amo, e que nós temos de estar juntos. Tu és a mulher que pode salvar a minha vida... Aceita-me, por favor, aceita-me de novo...

Eu ouvia Bernard, e comovia-me por dentro. Mas tinha de ser forte, tinha de resistir às suas palavras. Não podia dizer-lhe logo que sim... Não podia dizer-lhe que tinha percebido tudo o que ele tinha passado, tudo o que se passava no seu espírito. Não podia dizer-lhe, também, que dentro do meu coração, nunca o tinha deixado. Isso seria entregar-me demais, oferecer-me àquele homem, um adolescente com vida de adulto, uma criança grande ainda dentro da sua cabeça e dos seus sentimentos. Sentia que tinha de educar aquele rapaz, que tinha de ser, em parte, mãe dele. Mas o meu corpo pedia aqueles braços, desejava-o com uma intensidade tão grande, que eu não fui capaz de ser forte.

- Ó Bernard... Eu amo-te...

- Amas-me? Estás disposta a tudo por mim?

- Claro que sim... Claro que sim...

Abraçámo-nos. Senti o cheiro do seu perfume, da sua pele encostada a mim. O efeito mágico daquele homem estava a entontecer-me. Eu queria ser forte, muito forte, para o ajudar. Mas não sabia se seria capaz. Carolina: imagina o que é um homem que te parece um rapaz, com a doçura e o ar de abandono de um adolescente mas com a vida de um homem? Com os músculos e a barba e a forma de um homem, mas com a pele e a ternura de um adolescente? Tudo aquilo me estava a confundir muito, e eu sentia-me apaixonada e nas suas mãos, em vez de segura e firme, conduzindo a relação e aguentando os momentos difíceis. Envolvida nos seus braços, eu não aguentei mais, e de novo, o meu amor teve-me.

Aqueles dias no palácio pareceram uma eternidade, um sonho maravilhoso. Os Viscondes trataram-me como se eu fosse da família, e eu sentia-me despertada e viva. Bernard, como era habitual, não tinha grandes gestos públicos de afecto comigo. Apenas sorrisos e leves toques no rosto ou nas mãos. Quando a noite caía, dançávamos, e eu sabia que o podia esperar, todas as noites, na minha cama. Aí o país dos sonhos tornava-se realidade. A Duquesa de Schweltzig-Hasse tinha-me dado um quarto enorme, com uma janela em vitrais, e uma cama de dossel de um tamanho imenso. Nessa noite, completamente nua, enquanto as mãos de Bernard me seguravam nos ombros e na cintura, fizemos amor com uma energia e um fulgor que ainda agora, quando te escrevo, sinto vivas as emoções daquela noite extraordinária. Bernard era o amante mais intenso e incrível, inocente mas experimentado, doce e masculino, que alguma vez eu tinha podido ter. A velha cama de dossel rangia, os véus sobre a cama moviam-se ao movimento dos nossos corpos, e, unidos, profundamente unidos, éramos apenas um. Os castiçais de prata lançavam luzes e sombras na parede, e eu só via os nossos corpos reflectidos contra a parede, numa dança frenética de amor e de paixão, envolvidos num prazer incrível.

 

Passaram dez dias. Bernard tinha de voltar para o seu emprego.

- Alice, volto para o meu trabalho. Daqui a pouco tempo terás notícias do teu emprego. Já me informei de tudo, e está praticamente certo. Vou pedir à minha secretária que comece a procurar uma casa para ti.

- Uma casa...?

- Sim, uma casa para morares.

- Mas tinha percebido que...

- Eu sei, eu sei... Mas tínhamos visto que não podíamos tomar todos os passos de uma vez... Estamos perto. Mas é melhor que cada um tenha a sua casa... Além disso, vais ter um ordenado europeu...

Era verdade. Talvez fosse melhor. E, de facto, iria começar a receber um ordenado muito maior do que aquele que ganhava agora. Poderia mudar-me para uma casa bonita, voltar a ter um lar meu. Receber os amigos. E receber Bernard...

- Se achas melhor...

- Acho. Será perto do escritório, e portanto não terás problemas.

Fiquei a pensar nestas ligeiras diferenças. Mas depois, só me pesava o coração por me ter de separar dele. Não voltaria a haver surpresas: Bernard iria partir, agora, e não voltaríamos a reencontrar-nos em férias.

- Alice, eu estou contigo. Estou sempre junto de ti. Levo-te no meu coração.

- Bernard... Isto é tão difícil...

Abraçámo-nos, com intensidade. Eu vi Bernard partir no seu descapotável, e desaparecer naquele palácio que parecia ter saído dos meus sonhos. Passou um dia, enorme e longo. Não tive notícias de Bernard, mas já começava a ficar habituada à sua estranha forma de agir. Desta vez estava a custar-me mais: tinha a sensação de que se estava a passar alguma coisa que me escapava, que eu não tinha compreendido. Pensei que era por estar a ficar cada vez mais apaixonada por ele. Nessa tarde, estava com Mia, as duas sentadas na grande sala de visitas do palácio, a folhear revistas sociais, cheias de informações de moda. O grande baile de fim de Verão que a Duquesa organizava todos os anos era muito em breve, e estávamos ansiosas a ver as últimas modas, para saber se os nossos vestidos estariam actualizados... Mia tinha ”recuperado” um vestido que a sua mãe usara numa boda real há vinte anos; e eu tinha um vestido maravilhoso, que pertencera à minha tia-avó Graça, uma famosa escritora e figura social dos anos 50. Pelo que tínhamos visto, estávamos perfeitamente acertadas com a moda. As portas abriram-se gravemente. Era a Duquesa.

- Deixem-se estar sentadas, minhas queridas. Venho com más notícias...

- O que foi?

A Duquesa comunicou-nos, séria e grave, uma notícia triste.

- Soube que acabou de morrer o Visconde, pai de Bernard. Foi uma morte rápida, mas esperada. Quer dizer que o jovem rapaz já é Visconde.

- Pobre Bernard... - exclamei, sobressaltada.

- Nem por isso. O pai dele - agora pode dizer-se - era um homem horrível. Os rapazes sofreram muito com ele...

- Mas é o pai...

- Ele não lhe deve nada. O que o Bernard é, deve-se a si próprio. Para o bem e para o mal. Ele é aquilo a que os ingleses chamam um self-made man, um homem que subiu a pulso. Neste caso, que se educou a si mesmo... Bem ou mal, agora é que vamos ver.

A Duquesa, apesar do seu tom seco, e da sua visão aristocrática da vida, tinha razão. Quando se deixa assim um filho ser educado sozinho, correm-se todos os riscos. E Bernard era uma pessoa difícil, de facto, a quem claramente tinha faltado o amor da mãe e o carinho e apoio do pai. Pensei nele, acabado de chegar ao trabalho, e a ser surpreendido com a dura notícia. Imaginei-o de pé, frente ao cadáver do pai, a rever os momentos dolorosos. Queria tanto poder estar ao lado dele... Tentei telefonar-lhe, desesperadamente. Ou não estava, ou me diziam sempre que não podia atender. O funeral foi longe, na mais antiga propriedade da sua família, e eu não pude nem consegui contactá-lo. O meu coração doía, de saudade, tristeza e preocupação. Esteve uma semana inteira sem responder às chamadas que lhe fiz, para todo o lado... Claro que eu entendia que Bernard quisesse estar só, mas eu queria ajudá-lo, estar ao seu lado... É estranho, Carolina, mas sabes o que pensei nesse momento? Que, com a morte do velho duque, pai de Bernard, alguma coisa mais tinha morrido...

 

O grande baile de fim de Verão no Palácio tinha começado. Carros caríssimos, descapotáveis, Bentleys e Rolls-Royce ocuparam toda a entrada principal, ornamentada com aquelas finas bandeiras dos filmes medievais, vermelhas, bailando ao vento. Os vestidos vermelhos, damasco, ouro, fucsia, grená, carmim, púrpura, anil, os casacos dos nobres, com condecorações de todas as cores, com incrustações brilhantes, vivas, fortes... Tudo parecia um sonho de luz e de luxo. Para além da nobreza, aparentada com os Duques, estavam alguns amigos. Um Comissário da União Europeia, ministros de vários países, pintores, escultores, estilistas, músicos, atletas, homens da alta finança. Um deles era Mark, boxeur famoso, um rapaz musculado, com cabelo preto curto, braços salientes, tronco forte e poderoso. Mais do que a figura, os seus olhos doces cativaram-me logo, quando o vi entrar, de smoking preto, muito justo no peito e nos ombros másculos e largos. Mark parecia um anjinho cheio de força, forte mas delicado. Fiquei imediatamente seduzida por ele. Mark sorriu-me, assim que entrou na sala de bailes. Estavam mais de trezentas pessoas, e quais delas as mais elegantes. Mas sabes, Carolina, quando sentes que alguém entra no outro lado da sala, e há uma energia magnética qualquer, muito forte e poderosa, que se fixa em nós? Quando parece que uns olhos nos viram pela primeira vez e não nos podem abandonar mais?

- Quem é aquele?, perguntei a Mia.

- Aquele? E Mark, o célebre campeão de boxe luxemburguês.

- Campeão de boxe?! Tem físico para isso, mas tem um ar tão bonzinho...

- É o que toda a gente diz... Sobretudo os adversários...! Mas ele ganha sempre... Tem ar de não fazer mal a uma mosca, mas quando está a lutar, é muito bom no seu papel...

- É casado?

- Não. Nunca se percebeu bem, mas ele nunca casou, nem teve nenhuma namorada. As pessoas dizem que ele é muito solitário e romântico... Deve estar à procura da mulher ideal...

- Um boxeur romântico?? Mas isso quase parece uma piada...

- Tu é que estás a pensar muito nele...

- Mia!

- Está bem, está bem... Mas olha, ele vem aí, e tenho a certeza que não é para mim...

- Fica aqui, fica aqui, não...

Era já tarde. Mark estava já perto de mim, e Mia tinha-se afastado. Tão perto de mim, que eu sentia-me desmaiar com o calor do seu corpo, com a força da sua figura. -Boa noite. Dá-me a honra desta dança? Sorri, e aceitei, com medo de desmaiar de sensualidade! Acredita, nunca vi um homem assim, tão delicioso, contagiante... e másculo. Hoje, percebo como ele é o contrário de Bernard, não só fisicamente, mas no seu interior. Para Mark tudo é claro, tudo é pensado, sentido, levado até às últimas consequências. A mão firme dele tocou na minha com delicadeza, e dançámos uma valsa de Strauss que parecia não ter fim. Mark não foi ousado, não se meteu comigo, apenas dançou em silêncio com muita delicadeza. A minha vida com ele seria sempre assim: eu a senti-lo perto, a amar-me, sempre presente, sem pedir nada. Alguém que me ama e sempre me amou incondicionalmente.

Estava a dançar com Mark e interiormente pensava se Bernard não apareceria de repente. Não apareceu no baile. A Duquesa já me tinha dito que seria pouco provável, porque Bernard tinha que respeitar um período doloroso de luto. Eu tinha visto uma fotografia dele, muito combalido, numa revista social. Desistira de continuar a telefonar-lhe. Mas, naquele momento, em que olhava para a porta esperando vê-lo, as mãos de Mark proporcionavam-me uma serenidade e uma paz que eu nem podia acreditar. A orquestra tocava agora sucessos dos anos 70. A sala estava inundada de fotógrafos, e várias vezes senti que Mark e eu tínhamos sido fotografados. Uma semana depois, apareceríamos nas revistas: «O campeão de boxe Mark e a sua acompanhante, o casal mais bonito da noite».

Depois dessa noite inesquecível, de toda a beleza daquele Palácio, e depois de uma ceia com mais de 40 pratos diferentes, servidos em baixelas de prata com fio de ouro, Mark pediu se me podia voltar a procurar.

- É que estou aqui perto, numa casa da minha família. Posso vir buscar-te amanhã? Se calhar não conheces os maravilhosos lagos desta zona... Mia estava ao meu lado. Sorriu para mim. Tentei fugir ao convite. Nesse momento voltei a pensar em Bernard.

- Ah, não sei, estou aqui a acompanhar a Mia...

- Não sejas tonta, Alice, eu não sei andar de barco... Mark, é muito simpático em convidar a Alice, e como melhor amiga dela, autorizo-o a levá-la. Agora é contigo, minha querida...

Tive de aceitar. Nessa noite, antes de dormir, quando me ajudava a tirar o longo e complicado vestido que levava, Mia teve uma longa conversa comigo.

- Lembras-te do que te disse em Maiorca? O Bernard é um instável. Desculpa dizer-te isto, mas sabes que gosto muito de ti. Não penses mais nele. Vai andar de barco amanhã. Deixa que gostem de ti. O Bernard não disse nada... E além disso só vais passear...

- Mia, eu não posso... Eu amo o Bernard...

- E depois? Vais só andar de barco...

- Sim, mas aquele Mark é uma bomba sensual... Eu não consigo ficar calma ao lado dele, quanto mais ir sozinha pelo meio das águas...

- Não sejas tonta... Vais!

Mia não disse tudo o que pensava. Eu continuei a achar que se tratava de alguma coisa mais, que ela não queria dizer. Achei que tinha inveja de mim... No dia seguinte, Mark apareceu às oito em ponto, no seu jipe americano, para me levar. Arranjei-me o mais descontraidamente possível. Pensei para comigo que queria ir feia, para ele não me ligar nenhuma. Mas ele não desarmou.

- Estás mais linda ainda do que ontem.

As margens do lago eram exuberantes, em vários tons de verde e com árvores de todas as cores e tamanhos. Chorões e salgueiros ondulavam. Mark colocou o pequeno barco a remos dentro de água e ajudou-me a subir. Os braços fortes dele começaram a remar, enquanto me sorria e contava a história daquela zona. Mark era filho de um dos proprietários rurais da zona, que produziam vinho. O campeão de boxe geria também os negócios da família, visto que a sua irmã mais velha tinha preferido ser estilista. Mark conseguia ter tempo para a sua carreira e para uma vida com sucesso como vitivinicultor.

- Mas nunca me casei, nem tive relacionamentos longos... Falta-me a mulher certa...

- Mark, mas ela vai aparecer certamente...

- Quem sabe se não apareceu já...?

Nisto, senti-me tremer dentro do meu peito. E de tal forma que as nuvens começaram a formar-se, e um relâmpago apareceu no céu. Ia começar a chover. E estávamos no início do passeio.

- Temos de ir embora, voltar para trás, Alice.

Mark ficou subitamente preocupado. Começou a remar. Mas a chuva começou a cair, inesperadamente.

- Vamos antes para aquela pequena ilha... Tem um abrigo, e é mais perto do que o Palácio. Estamos melhor lá até a chuva parar.

Mark remou com muita força e, em menos de três minutos, estávamos já na pequena ilha. Uma cabana com barcos esperava-nos ao fundo. A correr, entrámos, e estendemo-nos no chão, cansados e molhados. Chovia terrivelmente lá fora.

- Não te preocupes... Aqui chove muito, mas depois pára...

Mark acendeu um pequeno fogo. Estava encharcado, com a roupa vestida, enquanto eu tirei o casaco e a pequena gabardina que levava.

- Mark, não me interpretes mal, mas é melhor tirares a camisa...

- Ah, não vou fazer uma coisa dessas... Parece mal...

- Mas podes ficar doente...

Depois de muita insistência, tirou a camisa. Ficou apenas de camisola interior. A visão do seu corpo robusto deixou-me perturbada. Era cá um homem! Mark deitou-se a meu lado no chão. Estava exausto, depois daquela viagem de barco. O suor caía-lhe sobre o peito. Sob a camisola interior, impecavelmente branca, a visão dos músculos suados, dos pêlos do peito negros e muito masculinos, do pescoço forte, entontecia-me de prazer. Tentava fingir que ele não estava ali, que não estávamos sozinhos no meio de uma ilha desconhecida, no meio do rio. Mas eu sentia o meu coração bater forte, e sentia-me muito atraída por ele. «Bernard, Bernard», pensava eu com muita força, tentando não olhar para Mark. Enquanto pensava nisto, quando tentava recompor-me, já Mark me beijava os lábios, e as suas mãos experientes procuravam os meus seios. Debaixo das telhas daquela cabana, rodeados pelas bonitas árvores, os nossos corpos, vestidos, uniram-se. Sentia os movimentos do seu sexo enquanto lhe apertava os músculos das costas, enquanto sentia a força maravilhosa daquele corpo de atleta. Os dois, misturados com o vento, chegámos ao prazer. Mark deitou a sua cabeça no meu peito. O seu cabelo curto, muito preto, estava cheio de pequenas gotas de suor. O vento tocava nas árvores, enquanto Mark brincava com o meu cabelo nas mãos. Respirava profundamente. Mas eu estava alterada, cheia de paz, mas ansiosa. O que é que se tinha passado? Como é que eu não tinha sido capaz de resistir? O que aconteceria agora? Sentia-me livre, bem, mas culpada.

- E agora, agora... O que vai ser de nós...? Como é que vamos ultrapassar isto...?

- Calma... Confia em mim...

- Claro que sim... Mas como é que vai ser a nossa vida?

- Vai correr tudo bem. Basta que confies em mim.

- Sim, Mark, mas o Bernard... - O Bernard? O que tem o Bernard?

- O Bernard e eu...

- Como?

Mark tinha-se levantado. O vento mexia-lhe o cabelo, e os maxilares estavam contraídos. Parecia que estava num combate de boxe.

- Como é que tu e o Bernard... Mas ele...

- Agora sou eu que digo para teres calma...

Mark tinha ficado muito sério... Olhou para baixo, e tentou começar a frase várias vezes. Mas teve forças e disse:

- Alice, o Bernard está noivo.

 

Não consegui articular uma palavra. Estava absolutamente baralhada. Tinha feito amor com um homem maravilhoso, enquanto, no meu coração, amava outro, que tinha desaparecido da minha vida. E que, pelos vistos, também me tinha enganado. Era uma situação tão vexante, tão dolorosa, que nem consegui dizer mais nada a Mark. Ficámos calados, enquanto a chuva calmamente parava de cair. Mark levou-me, de barco, de volta para o palácio. Ao percorrer aquelas lindas paisagens verdes, sentia-me, no meu íntimo, absolutamente envergonhada.

- Alice, eu quero-te pedir desculpa pelo que aconteceu...

- Mark, tu foste um cavalheiro... O que aconteceu foi fruto de uma atracção entre nós... Somos adultos, sabemos perceber isso...

- Mas em relação ao Bernard, eu não queria...

- Tu foste sincero... Ninguém me disse nada...

Foi o que perguntei a Mia, logo que cheguei.

- Alice, eu não sei de nada...

- Como é que não sabes de nada?! Tu, que sabes sempre de tudo?! Porque é que não me disseste...!

- Calma, Alice! Achas que se eu soubesse não te teria dito? Quando é que ele ficou noivo?

- Ontem. Ontem!, disse-me o Mark! Vai casar com uma prima em segundo grau...!

Mia pegou no telefone e ligou para Pia, directora de uma revista social francesa. Era verdade: Bernard estava noivo. Fiquei destruída. O resto das férias decorreram sem mais emoções. Mia mimava-me muito, e Mark apareceu todas as tardes, trazendo sempre flores diferentes. Estranhamente, morava em Bruxelas, para onde eu iria mudar-me para o meu novo emprego. Mark e Mia fizeram com que eu não desistisse.

- Alice, tu vais ocupar o lugar. E vais enfrentar o Bernard de frente, ouviste?

Os meus nervos estavam de tal forma mal, que eu vomitava todas as manhãs. Até que, a meio de Setembro, quando me preparava para voltar para Lisboa com Mia (agora era eu que ia recebê-la uns dias em minha casa), me telefonaram a dar a notícia: tinha sido colocada em Bruxelas como tradutora, no gabinete de Bernard.

- Infelizmente, dra. Alice, o Visconde Bernard só vai ocupar o seu posto por mais quinze dias. Está de regresso às suas propriedades familiares na Áustria, onde irá proceder a obras e alterações. Durante dois anos, estará ausente deste serviço.

Eu ainda tinha tempo de me cruzar com ele. Depois de sairmos de Schweltzig-Hasse, e de eu ter agradecido muito à Duquesa a sua hospitalidade, fui a correr para Lisboa, fiz as malas, deixei Mia a gozar o sol do Algarve, e fui para Bruxelas. Eu tinha ainda de me encontrar com Bernard. Havia uma conversa importante a ter. Mark iria estar em Bruxelas, e iria vê-lo. A sua presença fazia-me bem, mas até resolver tudo com Bernard, eu não queria saber de mais nada.

 

O edifício para onde eu ia trabalhar era enorme: 40 andares, cheios de bandeirinhas azuis com estrelas amarelas, e bandeiras de todos os países da União Europeia. Estava tudo cheio de movimento e vida a fervilhar por todos os lados. Era uma visão extraordinária de pessoas diferentes, trabalhadoras, bonitas e empenhadas. Cheguei ao meu gabinete. Madeleine, a secretária de Bernard, recebeu-me com entusiasmo.

- Alice, que prazer, que gosto em tê-la a trabalhar connosco! Isto ao princípio é um pouco caótico, mas vai adorar, vai ver...!

- Obrigada!

Mostrou-me o meu gabinete. As minhas funções seriam, sobretudo, traduzir os documentos daquele gabinete, que geria vários projectos europeus, e acompanhar o director (naquele momento ainda Bernard) em reuniões, como tradutora.

- O Visconde só vai estar cá esta tarde. Depois vai-se embora. Esperamos a chegada do novo director, que é italiano.

Eu sentia-me mal. Parecia que Bernard me tinha dado um emprego dourado em troca daqueles dias loucos. Sentia-me usada. Na minha cabeça, só ouvia Mia: «Não penses nisso, o lugar é teu porque mereces!».

Sentei-me na minha secretária. Pilhas de dossiers amontoavam-se à minha frente. Era um trabalho fascinante. Comecei a lê-los, a perceber como se organizava tudo. Mergulhada nos dossiers, tocou o telefone.

- Alice? -Sim?

- É o Mark!

- Olá...

A voz dele acalmou-me.

- Então, já aterraste na maravilhosa burocracia europeia?

- Parece que sim...

- Olha, posso convidar-te para jantar? E para te mostrar a tua casa?

- Já sabes onde é...?

- Sim... Tenho informações...

Madeleine apareceu depois. Tinha sido colega de colégio de Mark, e era quem tinha tratado da casa. As minhas malas ainda estavam no gabinete. Quis ir logo para o serviço assim que aterrei: queria ainda ver Bernard. Aceitei o convite de Mark. Agora, bastava-me esperar por Bernard.

Passaram-se largas horas. Estive a verificar todos os dossiers, para disfarçar a ansiedade. Continuava enjoada e a sentir-me tonta.

Bernard chegou. Vinha com um blazer azul escuro, e uma gravata colorida. Se isso fosse possível, podia dizer-se que estava ainda mais belo do que nunca.

- Olá, Alice.

Fiquei a olhar para ele. Bernard pediu a Madeleine que nos deixasse por uns minutos, para ele me pôr ao corrente ”dos assuntos”. Fechou a porta e sentou-se diante da minha secretária. Congelada de raiva, não abri a boca.

- Alice, já calculo que tenhas sabido da novidade... Eu... Eu fui obrigado pela minha mãe a ficar noivo... Vou casar-me em Dezembro... Eu não quero, mas tem de ser... Uma pessoa com as minhas obrigações actuais deve casar-se... Tu entendes, Alice...? Tu entendes?

- Bernard, como é possível?

- Ó Alice, tens de perceber... Nós não temos futuro... Tudo o que Mia me tinha dito, todas as minhas piores expectativas se estavam a confirmar. Bernard tinha-me usado.

- Não acredito, Bernard...

- Vivemos um sonho, mas não podemos... Não podemos...

- E por isso me deste este emprego...

- Eu não te dei nada, a não ser uma ideia. Nem precisei de fazer nada, o teu currículo foi logo aceite. Estás aqui pelas tuas qualidades. Mas perdoa-me, perdoa-me.

- Nunca te perdoarei, Bernard. Vai à tua vida que eu irei à minha.

Cheia de força, uma força que eu nem sabia de onde vinha, abri-lhe a porta e ele saiu. Tive ainda, nessa tarde, de ir a uma reunião dirigida por ele, para se despedir do pessoal e acolher o novo director. Ao fim da tarde, respirando fundo, Mark veio-me buscar, e levou-me para a minha nova casa.

Era num prédio de tijolos castanhos claros, uma construção do pós-guerra, com três andares. Eu morava no terceiro esquerdo, com direito a um pequeno terraço envidraçado, uma estufa. A casa tinha duas enormes salas e dois quartos. Era muito agradável e bonita. Tinha alguns móveis, um sofá; precisava apenas de um toque pessoal. Senti-me bem, apesar de tudo o que tinha acontecido. Mark ajudou-me nesse dia a sentir-me bem em casa. Foi comigo às compras nos dias seguintes. Transferi toda a minha dor para o trabalho e para a decoração da casa. Passou uma semana, e fui jantar fora com Mark ao restaurante mais bonito de Bruxelas. Aí, ele fez a pergunta terrível.

- Alice, eu quero namorar contigo. Eu sei que ainda amas Bernard, mas peço-te que me deixes amar-te. Deixa-me tomar conta de ti. Não tens de me responder já. Eu fico à espera da tua decisão.

Deixou-me em casa. Fechei a porta e chorei. Era o que estava certo, era amar Mark.

No dia seguinte procurei de novo Mark. Eu não o amava, mas gostava do conforto e do prazer do corpo dele. Precisava de descansar nele, de sentir o seu corpo, a tranquilidade daquele corpo masculino, da segurança que ele me dava. Na pequena estufa na parte de cima da casa, entre as rosas e as orquídeas, Mark e eu fizemos amor, contra os canteiros. Sentia-me segura e mulher com o corpo dele dentro do meu.

Passaram meses. Eu fui subindo no emprego, e cheguei ao topo da carreira. Chegado aos 35 anos, Mark desistiu da carreira de boxeur, em glória. Vivia comigo em Bruxelas durante metade do mês, e na outra metade ia tratar dos seus vinhos. Namorámos dois meses. Até que me casei, já grávida de três meses. Foi um casamento simples, singelo. Os meus futuros sogros foram maravilhosos e acolheram-me logo com muita ternura e generosidade. Dois anos depois do casamento, numa das temporadas em que Mark estava nas vinhas, saí do emprego ao fim da tarde, para ir buscar Afonso, o meu filho, à escola, íamos calmamente a caminhar pelas ruas até casa. Afonso era uma criança encantadora, de olhos muito claros e muito delicado. Eu sentia-me estranha, nesse dia. Ao entrar no prédio, uma pessoa aproximou-se.

-Alice?

Era Bernard. Tinham-se passado três anos.

- Bernard?

- Olá! E quem é este?

- Este... Este é o meu filho, Afonso.

- Olá, Afonso!

A criança sorriu para Bernard.

- O que vens aqui fazer...?

- Venho ver-te. Posso?

Apeteceu-me mandá-lo embora, mas aceitei que subisse.

- E como te corre tudo, Alice?

- Bem. Estou muito feliz.

Bernard não estava. Tinha-se separado, estava triste, com o olhar pesado, e rugas no rosto. Tinha sabido por Mia que ele estava cansado daquela vida de gestão de propriedades, fora de uma vida diplomática que gostava tanto.

- Vou voltar para a diplomacia, sabias? -Sim?

- Sim. Fui convidado para ser Secretário de Estado... E vou aceitar.

- Mas isso é óptimo!

Afonso brincava com os seus comboios de corda na sala. Bernard e eu estávamos sentados na outra sala.

- Alice, eu só tenho pensado em ti...

Senti que tinha levado um murro no estômago... Como é que ele se atrevia a dizer-me aquilo?

- Agora é tarde, Bernard...

- Não é... Deixa-me corrigir os erros que fiz... Podemos ainda ser muito felizes...

Bernard levantou-se e tentou-me beijar. Desesperada, com o meu coração a gritar o contrário, a querer beijá-lo também, e tê-lo de novo, atirei-o para o sofá.

- Sai imediatamente! Sai e não me voltes a procurar. Bernard levantou-se, combalido. Sem mais uma palavra, saiu e acenou a Afonso, na outra sala. Afonso veio despedir-se e deu-lhe uma das bandeirinhas de um dos seus comboios.

Eu fiquei na sala, a chorar.

Nas semanas seguintes, Bernard tentou de novo. Aparecia no serviço e convidava-me para jantar. Eu sentia-me dividida, embora amasse Mark. Se te disser, Carolina, que Bernard me convidou mais de vinte vezes, ainda assim o número fica longe da realidade. No dia em que iria acabar por aceitá-lo, em que sabia que ele me iria ligar e eu já não ia ter forças para o recusar, Madeleine apareceu sorridente.

- Soubeste das notícias, Alice?

- Que notícias?

- Bernard é Secretário de Estado! E está noivo!

-Noivo?!

- Sim! Da tua amiga Mia!

 

Nunca mais lhe atendi o telefone. A Mia, mandei um cartão de felicitações, mas como o casamento era em Viena, e Mark e eu, apesar de termos sido convidados, tínhamos que ir tratar das vinhas, não fomos à festa. Acho que foi um alívio para todos.

Passaram-se muitos anos. Mark e eu reencontrámos Bernard numa conferência europeia. Ele estava bem. No jantar final, sentámo-nos ao lado dele. Parecia velho e vazio, mas mesmo assim entreteve a delegação, tocando violoncelo no final. Tirou o instrumento do saco, e antes de tocar, colocou a bandeirinha que Afonso lhe tinha dado no cimo do instrumento. Fiquei gelada. Ele parecia perdido, como sempre. Acabara recentemente o seu quinto casamento com a filha de um embaixador. Tinha apenas um filho, de Mia. Ou melhor, dois. Mas esse é um segredo que eu levarei para o túmulo, e que tu guardarás no teu coração. Afonso, o meu filho Afonso, é filho de Bernard. Sei que Mark também o sabe, mas não lhe interessa. Estou novamente grávida, e Mark terá o seu próprio filho. Mas para ele, para o homem bom e generoso com quem construí a minha vida, Afonso é como se fosse. As memórias daquele Verão onde tudo me aconteceu já não me perseguem. Mas nesse ano pude provar o melhor e o pior da vida. E perceber que o amor é com quem nos ama, não com quem nos deseja.

 

                                                                                Teresa Macedo  

 

                      

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