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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM SONHO DE AMOR / Violet Winspear
UM SONHO DE AMOR / Violet Winspear

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UM SONHO DE AMOR

 

Sim, era realmente uma felicidade morar numa ilha grega maravilhosa como aquela, com uma praia particular onde passar as manhãs nadando, tomando sol, remando preguiçosamente o bote de borracha pelo mar claro. Sim, aquilo seria um paraíso para qualquer mulher, menos para Dominic. Porque ela odiava Paul, seu marido, um milionário grego caprichoso que ameaçou sua família com mil chantagens, até que ela aceitasse casar com ele. Para Paul, Dominic não passava da inglesa loura e linda que ele queria exibir em sua ilha como uma conquista e acariciar em sua cama como um brinquedo raro. E ela, o que seria dela?

 

O vestido da noiva era feito de seda grega finíssima e a grinalda tinha o formato de um diadema de prata, de onde caia um véu bordado com pequenos corações. Ninguém podia imaginar, ao vê-la sair de braço dado cora o marido, com um sorriso nos lábios vermelhos, que aquele casamento era fruto do medo, mais do que do amor.

Os recém-casados partiram uma hora depois para a casa de praia na costa da Inglaterra. Iam permanecer uma semana lá, antes de embarcarem para Atenas, onde Paul Stephanos, um dos homens mais ricos da Grécia, morava no alto do morro de uma pequena ilha no mar Jônico.

Lita e Yannis, os criados de confiança que Paul não dispensava em suas viagens, estavam instalados na casa da praia quando os dois chegaram. Tudo fora providenciado com antecedência e o ambiente não podia ser mais acolhedor, o dia de primavera estava quente, mas ao entardecer, a brisa fresca começou a soprar do oceano. Yannis, o marido de Lita, acendeu a lareira na sala de estar.

Ao entrar na sala aconchegante, Dominic experimentou a primeira sensação de bem-estar desde as primeiras horas da manhã. O dia fora massacrante e, ela estava completamente exausta, com os nervos à flor da pele. A cerimônia na igreja prolongara-se mais do que ela contava e os cumprimentos dos parentes e amigos não terminavam mais. Parecia que tudo contribuía, de propósito, para deixá-la tensa e nervosa.

— O que você tem? — perguntou Paul, atirando o casaco em cima da cadeira.

— Nada.

— Por que deu esse suspiro?

— Estou um pouco cansada.

— Isso logo passa. — Paul foi até o armário das bebidas e voltou-se de lá com uma exclamação de alegria: — Yannis pensa em tudo! Ele não se esqueceu de comprar champanhe.

Dominic ouviu o comentário em silêncio. Tudo o que dizia respeito à comemoração do casamento deixava-a indiferente. Ela agachou-se defronte à lareira e esfregou as mãos uma na outra. Os cabelos louros cobriam parte do perfil e ocultava a expressão de tristeza dos olhos azuis. Beber champanhe na companhia de Paul Stephanos era o mesmo que tomar um cálice de veneno cheio até a boca.

— Por que você não tira o casaco?

Sem aguardar resposta, ele levantou-a do chão e começou a desabotoar lentamente os botões grandes do casaco dela. Dominic correu os dedos compridos por entre os cabelos enquanto Paul a observava atentamente.

— Diga. O que você tem?

— Já disse que não tenho nada — respondeu Dominic com um vestígio de irritação.

Sentia-se gelada por dentro e não podia acreditar que ia passar a lua-de-mel numa casa de praia na companhia de um homem, grego, além do mais, que mal conhecia.

— Paul, até quando vai durar essa farsa? —exclamou por fim, incapaz de controlar mais um segundo a raiva e a frustração que fermentavam em sua mente.

Paul apanhou a cigarreira de ouro no bolso do casaco e abriu-a, com um movimento preciso do dedo polegar. Em seguida, ofereceu um cigarro a Dominic. Ela balançou a cabeça negativamente e voltou a se agachar diante da lareira. Viu que Paul tinha um confete colorido no alto da cabeça, no momento que ele puxou uma tragada comprida e soltou a fumaça para o alto. Dominic pensou em levantar-se e tirar o confete dos cabelos dele, mas depois mudou de idéia. Não queria fazer o menor gesto que pudesse ser mal-interpretado.

— Do que você me acusa? Eu não a forcei a entrar na igreja nem a dizer sim para o padre. Você foi por livre e espontânea vontade.

Os olhos azuis estavam encobertos de ressentimento e de impotência enquanto observavam Paul com atenção. Detiveram-se um segundo na cicatriz profunda que cortava o supercílio direito. Aquela cicatriz era o único indício de vulnerabilidade que havia na pessoa dele.

— Eu não acredito que você seja de pedra — disse ela por fim, pesando cuidadosamente as palavras. — Mas age como se fosse. Você não se importou à mínima em invadir a minha privacidade e de me afastar de tudo o que eu amava, unicamente para ser seu brinquedo sexual! Você acha que algum dia eu poderei perdoá-lo depois disso?

Paul atirou a cinza do cigarro na lareira com um gesto brusco.

— Você fala como se fosse uma mulher seqüestrada. Eu sei perfeitamente qual é o sentimento que nutre por mim. Ser amado é uma emoção banal e eu não tenho tempo a perder com trivialidades. Gosto das emoções fortes e prezo o amor das coisas excepcionais. Você é uma criatura rara, Dominic. E bonita sem ser frívola, desejável sem ser vulgar, misteriosa sem ser enfadonha... Seus olhos azuis, inocentes como os de uma criança, ocultam muita coisa.

— O quê, por exemplo? — perguntou ela com frieza.

— O desprezo ou, quem sabe, a adoração.

— Como você pode ser tão pretensioso?

Paul levou o cigarro aos lábios e puxou uma tragada comprida. Abanou a fumaça para longe com um gesto estudado da mão.

— Não me importa o que você sinta por mim. Eu sempre quis ter uma mulher como você.

— Fria, indiferente?

Paul continuou a falar como se não tivesse ouvido a interrupção.

— No dia em que descobri os cheques falsificados de seu primo, procurei seu tio disposto a dizer tudo o que pensava do filho dele... E foi então que a avistei. Você estava no jardim quando eu entrei na casa e provavelmente não me viu. Eu olhei para você com os olhos da cobiça e jurei a mim mesmo que você haveria de ser minha... A qualquer preço.

— Isso confirma o que eu pensava. Você não passa de um aventureiro que corre o mundo atrás de novidades que satisfaçam seus caprichos do momento.

— O que você quer? Eu posso me dar a este luxo. Uma acha de lenha caiu na lareira e Dominic voltou-se, assustada com as labaredas altas que se levantaram repentinamente. Tremia dos pés à cabeça, odiando à franqueza brutal de Paul. Por outro lado, se ele tivesse falado em amor, ela o teria ouvido com um profundo desprezo. Percorreu-o rapidamente com os olhos, como no primeiro dia em que o conhecera em Fairdane, na casa de seu tio. O instinto advertiu-a então de que Paul era uma ameaça à sua segurança; aqueles olhos castanhos de felino não prometiam nada de bom. Instintivamente, desviou o olhar do homem que a fitava com um sorriso imperceptível no canto da boca. Os cabelos dele eram escuros e encaracolados como os de um carneiro.

— Eu não posso aceitar este casamento — disse com voz tremula. — Nós precisamos encontrar uma solução!

— Qual? A anulação?

— Sei lá! Qualquer uma...

— Por que você não me dá alguns dias? Vai ser a primeira a reconhecer que eu não sou nenhum monstro. Pelo contrário. Sou por natureza um homem extremamente carinhoso, especialmente com uma criatura adorável como você, bela, orgulhosa, gelada...

Paul estreitou-a nos braços e afundou a cabeça no pescoço por baixo dos cabelos compridos. Os lábios dele eram quentes, úmidos, acariciantes. Dominic sentiu um arrepio, como se tivesse corrido a palma da mão sobre os pêlos sedosos de um tigre. As lágrimas rolaram por sua face no momento em que Paul a beijou na boca com um gesto possessivo. Lágrimas de tristeza pela inocência perdida.

No momento em que Paul afastou a cabeça, ela arregalou os olhos e encarou-o de boca aberta, como uma criança assustada. Era impossível demonstrar indiferença, se estava com as pernas trêmulas e os olhos banhados de lágrimas.

— O que foi? Por que você está me olhando com essa cara?

— O que você queria? Ternura, respeito, consideração?

— Eu queria ver o seu rosto marcado pelo amor — murmurou Paul, correndo o dedo indicador pelo lábio corado.

— Você está delirando! — exclamou Dominic com um risinho de desdém.

Paul soltou-a no momento em que Yannis entrou na sala e colocou uma bandeja em cima da mesinha de centro, ao lado do sofá. Dominic sentou-se ali para servir o café, o rosto lívido pela emoção dos últimos minutos.

Paul alugara a casa mobiliada e, pela qualidade dos móveis e dos objetos que havia na sala, Dominic concluiu que o aluguel devia ter custado uma fortuna. O dinheiro dele fascinava-a e assustava-a ao mesmo tempo. Mas se Paul pensava que podia comprar tudo o que lhe passasse pela cabeça, ele se enganava redondamente. O amor e o respeito mútuo não estavam à venda.

— Nós vamos beber champanhe no jantar, Yannis — disse Paul ao criado. — Lita está preparando algum prato especial?

— Acho que sim. Posso me informar, se o senhor desejar.

— Não precisa. Prefiro esperar a surpresa.

Yannis, pelo visto, era um criado reservado e cerimonioso que nutria uma verdadeira adoração pelo patrão. Ele se retirou da sala com o mesmo ar respeitoso com que tinha entrado. Dominic estendeu a Paul a xícara de café. Ele provou e soltou uma exclamação de prazer.

—Ah, café turco! Eu estava com saudade deste café. Forte e aromático. Diferente do café que se toma na Inglaterra.

— Lógico. Nós estamos acostumados a tomar chá.

— Desculpe, querida. Você preferia tomar chá?

— Não, muito obrigada. O café está bom.

Paul sentou-se no braço do sofá e Dominic afastou-se instintivamente, para evitar o contato. O café quente deu novo ânimo a seu corpo frio, mas não queria mostrar isso a Paul. Aliás, era preferível deixar bem claro que odiava tudo o que ele lhe dava, porque tudo tinha o mesmo cunho da propriedade do macho que sustenta a fêmea, como os presentes de noivado e o véu que Paul mandara vir da Grécia para ela usar na igreja.

— Você destruiu os cheques do meu primo?

— Ainda não.

— Você não disse que ia rasgá-los quando chegássemos aqui?

— Eu vou guardar os cheques até amanhã, como precaução... — disse Paul com a voz cortante, como se quisesse dar por encerrado o assunto.

Dominic não insistiu. Minutos depois subiu ao quarto, a fim de se trocar para o jantar. O quarto de dormir estava decorado em diversos tons de lilás e tinha um banheiro privativo. Afundou o corpo na banheira com água morna e permaneceu ali até ter certeza de que Paul tinha terminado de se vestir e que descera para a sala, somente então se embrulhou na toalha comprida que lhe batia no calcanhar e voltou ao quarto.

Ao sentar-se diante da penteadeira para escovar os cabelos e fazer a maquilagem, avistou uma caixinha de jóia. Recuou instintivamente, como se houvesse lá dentro um animal que pudesse mordê-la. No instante seguinte, porém, foi vencida pela curiosidade e abriu cautelosamente a caixinha de couro forrada de cetim. No interior havia um broche de pérolas no formato de um coração, com diversos rubis em volta, como se fossem lágrimas. O broche estava acompanhado de dois brincos com o mesmo motivo.

Tomada repentinamente de ódio pelo significado oculto do presente, jogou a jóia para longe e atirou-se em prantos em cima da cama.

Por entre os soluços de choro, lembrou-se da existência feliz e sossegada que levava em Fairdane, na casa de seu tio, antes de conhecer Paul e casar com ele. Fazia tudo o que lhe passava pela cabeça, era a sobrinha adorada de Martin Dane, o tio bondoso que a tratava como filha desde o dia em que Dominic perdera os pais num acidente aéreo.

Acalmada pela crise de choro, Dominic sentou-se na cama com um suspiro fundo e afastou os cabelos do rosto. Foi então que avistou a porta do quarto contíguo. Paul dissera minutos antes que ia destruir os cheques comprometedores de Douglas no dia seguinte. E eles provavelmente estavam guardados no quarto de dormir.

Dominic levantou-se com um pulo da cama e correu na ponta dos pés à porta do outro quarto. Se encontrasse os cheques, ficaria livre para sempre de Paul! Seu coração disparou diante desta possibilidade. A casa na praia ficava perto de Looe. Com um pouco de sorte, poderia passar a noite lá num hotel e, na manhã seguinte, embarcaria de volta para Londres.

Prendeu a toalha em volta do peito como se fosse um sarong e virou cuidadosamente a maçaneta da porta. O quarto estava escuro. Acendeu a luz e olhou em volta de si com a respiração ofegante. Havia artigos de toucador espalhados no alto da cômoda e o pijama preto de seda estava cuidadosamente dobrado em cima da cama. Dominic tomou coragem e caminhou resolutamente em direção ao armário, onde as malas estavam guardadas.

Mal podia acreditar que ia se ver livre de Paul e reconquistar a independência que tanto estimava. Abriu a porta do armário com as mãos trêmulas e olhou assustada para o lado ao ver seu reflexo no espelho da porta. Seu rosto estava alterado pela angústia. Fechou a porta do armário com um gesto brusco e esbarrou na manga do casaco que estava pendurado no cabide. Levou um susto enorme, como se sentisse o braço de alguém que a observava.

Paul, enquanto isso, estava debruçado na janela da sala, contemplando distraidamente a faixa de praia que se avistava ao longe. O vento soprava com força e as ondas batiam com um ruído forte e monótono nas pedras. Ele levou instintivamente a mão à testa, como se o barulho do mar quebrado na praia recordasse um acontecimento antigo. Afastou a mão da cabeça quando Yannis entrou na saia.

— Há uma ligação interurbana.

— Ah, muito obrigado, Yannis. Eu vou atender, caminhou a passos rápidos em direção ao hall, tirou o fone do gancho e levou-o ao ouvido.

— Alô?

— Paul? Sou eu, Martin Dane. Como foi de viagem?

— Muito bem, obrigado. Chegamos há uma hora.

— Dominic está por perto?

— Ela está tomando banho. Você queria alguma coisa?

— Preciso falar urgentemente com ela.

— O que aconteceu, Martin?

— Douglas me contou tudo a respeito dos cheques. Ele está profundamente arrependido e disposto a arcar com as conseqüências.

— E o que Dominic tem a ver com isso? — perguntou Paul com uma ligeira impaciência na voz.

— Eu soube que Dominic se casou com você a fim de encobrir o crime do meu filho.

— Que história é essa, Martin? — Paul o interrompeu com irritação. — Dominic se casou comigo por livre e espontânea vontade. Ninguém a obrigou a isso.

— Eu conheço Dominic, Paul, e sei que ela é capaz de fazer um sacrifício desses por alguém da família. E tenho certeza de que ela se casou por este motivo. Você não é o tipo de homem por quem minha sobrinha se apaixonaria. Você pertence a um mundo completamente diferente do dela. Eu faço questão de falar com Dominic, está ouvindo? Quer chamá-la ao telefone, por favor?

— Eu sei que venho de um outro país, Martin, e que falo uma língua diferente, mas nada disso altera o fato de estarmos legalmente casados. Dominic é minha mulher, você queira ou não queira.

— O casamento pode ser anulado, em certos casos.

— Por que motivo?

— Se não houver contato físico entre os cônjuges, a anulação é possível. A lei é clara neste ponto.

Paul deu uma risada.

— Acontece, porém, que Dominic e eu vamos passar alguns dias nesta casa na praia e sua sobrinha é uma moça muito desejável, meu caro Martin. Não se esqueça de que tenho sangue quente nas veias. Eu não sou inglês...

A pequena pausa do outro lado da linha durou alguns segundos. Paul deu um sorriso de triunfo. Martin Dane era o tipo de homem que vivia de acordo com as normas aceita de comportamento. Não brincava com certos assuntos, muito menos os de caráter sexual.

— Paul, é um favor que estou pedindo. Mande Dominic de volta para casa. Você não gosta dela. Você deseja apenas uma mulher bonita para exibir aos outros. O dinheiro e o prestígio social não contam para Dominic. Ela nunca deu a menor importância a essas coisas.

— E quem lhe disse que o ar de revolta dela não me agrada, Martin? Eu sou um homem diferente. Prefiro a mulher que agride as claras à outra que trai as escondidas. Passe bem, Martin.

Paul bateu com o dedo no gancho e colocou o fone em cima da mesinha, a fim de que a linha desse sinal de ocupada.

Yannis estava terminando de pôr a mesa quando ele voltou à sala.

— Deixei o fone fora do gancho de propósito, Yannis. Não quero ser incomodado hoje à noite.

— Pois não.

— A mesa está muito bem-arrumada, Yannis — acrescentou Paul, esfregando as mãos. — Você está de parabéns.

— O jantar vai ser servido dentro de dez minutos.

— Perfeito. Vou chamar minha mulher.

Paul subiu a escada e atravessou o pequeno corredor que levava aos quartos de dormir. Bateu de leve na porta do quarto de Dominic. Ela não atendeu. Ele virou a maçaneta e entrou. A primeira coisa que viu foi à porta aberta do quarto contíguo. Franziu a testa e atravessou a passos rápidos a distância que o separava do outro quarto, por cima do carpete grosso que abafou suas pisadas.

— O que você está fazendo?

Dominic estava de costas para a porta. Todas as gavetas do armário estavam viradas de borco no chão. As camisas, meias, roupas de baixo e outras peças do vestuário estavam empilhadas em cima da cama. Ela tinha revistado o armário e, como não encontrou os cheques em parte alguma, estava examinando a pasta de couro que Paul carregava consigo para toda à parte. A pasta caiu no chão quando Dominic ouviu a pergunta às suas costas e os papéis que havia no interior voaram sobre o carpete.

— O que você está procurando? — repetiu Paul.

A expressão dura e fria do rosto moreno gelou Dominic até os ossos. Ela arregalou os olhos quando ele se aproximou com duas passadas largas e a segurou pelos ombros. A toalha de banho que estava enrolada em volta do corpo soltou-se com o safanão que Paul lhe deu. Ela se cobriu com as mãos e abaixou a cabeça, sem jeito.

— Vamos, responda! O que você estava procurando?

— Os cheques de Douglas. — murmurou em voz baixa.

— Você me acha com cara de idiota? Eles estão guardados no cofre do banco em Looe. Você acha mesmo que eu ia deixá-los aqui, sabendo que a primeira coisa que você faria seria revistar a casa inteira à procura deles? Eu não nasci ontem, minha querida.

 

Os cheques estavam guardados no banco em Looe!

Com estas palavras, Paul atirava uma ducha fria na esperança que Dominic tinha de fugir da casa. Ela permaneceu imóvel, abobalhada, sem sentir os dedos fortes que apertavam impiedosamente seu braço. Paul não era bobo. Ele pegara um preço muito alto para tê-la e não recebera ainda o que lhe era devido.

Ela não reagiu quando ele levantou-a nos braços e a transportou para o outro quarto. Antes de colocá-la no chão, ele desfrutou durante alguns segundos da imagem encantadora de seu corpo nu.

—Você merecia uma surra, sua pirralha. Desarrumou todas as minhas coisas.

— Pode deixar que eu arrumo.

— Não. Agora você vai se vestir para o jantar. E ouça com atenção o que eu vou lhe dizer. Nunca mais tente fugir de mim. Eu irei buscá-la onde você estiver, com quem você estiver. Estamos entendidos?

A ameaça parecia transmitir-se aos ossos do seu corpo através dos dedos fortes que a seguravam pelo pescoço.

— Ponha-me no chão.

Paul soltou-a com um safanão e saiu do quarto batendo a porta atrás de si. Ele conseguira humilhá-la profundamente com sua tentativa frustrada de fuga e esse era um motivo a mais para odiá-lo de todo o coração.

Embora estivesse sem nenhum apetite, Dominic vestiu-se cuidadosamente para o jantar. Escolheu um vestido de crepe indiano, que ganhara de uma amiga como presente de casamento. O modelo simples, se bem que extremamente elegante, tinha por objetivo agradar ao marido e impedir que ele se conduzisse com brutalidade durante a primeira noite que passavam juntos.

Os brincos de pérolas e rubis continuavam na caixinha em cima da penteadeira. Ela apanhou o broche que jogara num momento de raiva contra a porta e tornou a guardá-lo na caixa. Não iria usá-lo naquela noite. Em vez disso, passou no pescoço o colar de pérolas que pertencera à sua mãe. Sentiu-se mais protegida com aquela jóia no corpo, como se fosse um talismã que a defenderia contra os ataques do adversário.

Em seguida, borrifou perfume francês pelo corpo e observou longamente sua figura triste no espelho da penteadeira, face a face com a responsabilidade terrível que tinha assumido no dia em que decidira casar-se com um estranho unicamente para salvar a honra da família. Não havia entre os dois nenhuma intimidade, nenhuma ternura. E não haveria tampouco no futuro as alegrias e as compensações dos casamentos verdadeiros.

Com os nervos tensos, Dominic fechou a porta do quarto e dirigiu-se ao salão no andar térreo, onde a mesa estava posta para o jantar de núpcias. Paul estendeu-lhe a mão no instante em que ela desceu o último degrau da escada e passou o braço em volta de sua cintura com um gesto possessivo.

— Você está linda, querida. Você se parece com o luar do outono, que aparece e desaparece por entre as nuvens ralas, mas conserva o mesmo brilho sempre.

— E você se parece com o sol do verão. Paul deu uma gargalhada divertida.

— Eu sou tão insuportável assim?

No smoking impecável que lhe caía como uma luva, ele estava mais atraente do que nunca. As feições morenas eram acentuadas pela camisa de seda branca. Duas abotoaduras de ouro prendiam os punhos duplos, que saíam dois dedos para fora da manga. Dominic não era mais criança, mas a masculinidade excessiva de Paul a fazia sentir-se pequena e insegura na sua presença. Prodigiosamente rico, cobiçado por dezenas de mulheres, forte como um touro, Paul tinha todos os atributos que impressionam uma jovem inexperiente, sem contar que era um homem misterioso, um solitário por temperamento, que nunca confiava a ninguém seus problemas íntimos...

Dominic passara o dia inteiro praticamente em jejum e sentiu-se repentinamente faminta quando Vannis colocou o coquetel de camarão na sua frente, servido numa taça de pé alto.

— Que delícia, Yannis! Lita adivinhou o meu desejo.

O criado lançou-lhe um breve olhar de agradecimento e Dominic deu-lhe o sorriso irresistível que costumava dirigir aos rapazes e que nunca tinha ousado nem desejado oferecer a Paul. Felizmente ele estava ocupado no momento em abrir a garrafa de champanhe e não percebeu o gesto dela. A rolha se soltou com um estampido seco e o líquido dourado, da cor dos cabelos dela, escorreu pelo gargalo da garrafa embrulhada num guardanapo branco, Paul molhou a ponta do dedo no líquido gelado e passou-o no lóbulo da orelha de Dominic, que estremeceu com um arrepio de frio.

— Felicidades, amor! — disse ele com um sorriso zombeteiro. Ele serviu as duas taças e estendeu uma para ela.

— O que você mais deseja na vida, Paul?

— Você.

— Eu estou falando sério.

Ela levantou a cabeça e viu a chama da vela iluminar a cicatriz que cortava o supercílio direito. Onde ele recebera aquele corte tão fundo?

— E pena a gente não se conhecer melhor — disse Paul com indolência. — Nós podíamos ter namorado algum tempo antes de casar, como é o costume entre as pessoas que se gostam. Infelizmente eu estava com pressa e tive que optar por este sistema. Você me perdoa, querida?

Ela lembrou, como se fosse ontem, o dia em que Paul chegara inesperadamente a Londres. Fora por isto que Douglas não tivera tempo de repor a quantia importante que tinha perdido no jogo e viu-se forçado a recorrer a um expediente fraudulento. Ao tomar conhecimento do ocorrido, Dominic não teve coragem de ver seu primo ser mandado para a prisão por causa de uma loucura. Ela contava que Douglas aprendesse a lição e que se arrependesse pelo resto da vida de seu ato criminoso.

No fim do jantar, Lita serviu o café na sala de estar. Lita era uma mulher reservada e de poucas palavras, que tinha sangue romeno nas veias. Com um sorriso tímido nos lábios, ela estendeu a Dominic o pequeno presente de casamento que comprara na véspera. Dominic ficou tão comovida com o gesto da criada que esqueceu momentaneamente que se casara com Paul por uma questão de honra. O pequeno presente, uma caixa de marzipã, deu-lhe tanta alegria como se fosse um objeto de grande valor.

— Muito obrigada Lita. Como você adivinhou que eu adoro marzipã?

Lita deu um sorriso cerimonioso.

— Muitas felicidades, Dominic. E espero que você tenha muitos filhos no seu casamento.

Dominic corou ao perceber o olhar de zombaria que Paul lhe dirigiu. A fim de ocultar seu embaraço diante da criada, levou a xícara de café à boca e tomou um gole comprido do líquido forte preparado à maneira turca.

Depois que Lita retirou a bandeja do café, Paul serviu um licor esbranquiçado que parecia uma espécie de anisete. Dominic apenas provou o seu e levantou-se do sofá. Circulou de um lado para o outro da sala, observou as pinturas que havia nas paredes, os objetos de porcelana que estavam cuidadosamente arrumados em cima do aparador. Finalmente, debruçou-se no peitoril da janela que dava para o mar.

— Você está nervosa? — perguntou Paul, acompanha-a com o olhar.                                      

Durante o jantar ela conseguira manter-se calma. Agora, porém, o nervosismo começava a dominá-la. A hora fatídica em que se encontraria a sós com o marido no quarto de dormir se aproximava implacavelmente.

— Eu quero ir embora daqui! — exclamou de repente, com a voz tremula de ansiedade, — Não agüento ficar nem mais um minuto nesta casa. Você sabe que tudo isto é absurdo!

Paul levantou-se do sofá e aproximou-se dela com suas passadas largas.

— O que você quer que eu faça? Que destrua os cheques falsos do seu primo a troco de nada? O que vou receber de volta?

— Se você me obrigar a ficar aqui, acabarei por odiá-lo de todo o meu coração.

— O amor e o ódio são amigos íntimos, minha cara.

— Não existe amor entre nós e nunca haverá.

— A que amor você se refere? — perguntou Paul com um risinho irônico.

— Ao amor total, evidentemente. Por quê? Existe outro?

— E o sexo, não conta?

O coração dela disparou ao ouvir aquelas palavras sarcásticas. Paul deu um passo à frente e a segurou peio queixo, obrigando-a a fitá-lo nos olhos. Dominic lembrou-se de repente de Barry, seu primeiro namorado, que a iniciara nos mistérios dos sentidos.

— Alguém já disse que seus olhos são azul-violeta?

— Não, ninguém — respondeu Dominic com rispidez, procurando virar o rosto para o lado, mas Paul forçou-a a encará-lo. — Você é o primeiro.

— Seus olhos são da cor do céu ao entardecer. Por que você não cumpre com a palavra dada? Eu, quando faço um negócio com alguém, sigo ao pé da letra os termos do contrato e espero que a outra parte faça o mesmo.

— Isso é no mundo dos negócios! Eu estou falando de outra coisa. E nossa vida que está em jogo. Nosso futuro. Eu não acredito que você seja insensível a este ponto...

— A que ponto?

— A ponto de negar a felicidade.

Paul soltou-a e apoiou-se no peitoril da janela.

— Eu sou grego e a única coisa que conta para mim é a voz do meu instinto. Queira você ou não, nós entramos num acordo amigável na casa de seu tio e acertamos tudo legalmente esta manhã na igreja. Você é minha esposa, para todos os efeitos, e eu não vou permitir que minha mulher saia de casa sem mais nem menos.

A decisão era irrevogável e estava estampada no brilho dos olhos castanhos, acentuado pela luz das velas que tremulavam em cima da mesa.

Tomada de pânico diante da ameaça velada que havia por trás daquelas palavras aparentemente serenas, Dominic saiu correndo pela porta aberta da sala e desceu os degraus que levavam à praia. O vento frio que soprava do mar arrepiou sua pele. Sem se importar com isso ela continuou correndo na direção das pedras, afundando os pés na areia fofa. No instante seguinte a lua cheia ocultou-se atrás de uma nuvem e tudo escureceu em volta. Dominic lançou um olhar assustado para trás e avistou o vulto de terno preto e camisa branca que corria no seu encalço.

Apavorada com a idéia de ser levada à força para casa por Paul, não percebeu que estava avançando entre as pedras que marcavam o limite da praia. Estava com água batendo nos joelhos quando tropeçou de repente em cima de uma pedra lisa e foi arrastada pela onda. Deu um grito quando a água a encobriu e foi levada de arrastão para mais longe. A última coisa que ouviu, no meio das ondas que quebravam, foi alguém gritar seu nome da praia:

— Dominic! Dominic!

Ao ver o vestido azul-claro boiando em cima da água, Paul tirou os sapatos e o casaco do smoking e mergulhou no mar coberto de espuma. Nadou com braçadas vigorosas em direção ao vulto que se debatia no meio da arrebentação. Viu Dominic erguer-se um instante para afundar em seguida. Sem perda de tempo, passou o braço em volta da cintura dela e arrastou-a para a praia. Dominic agarrou-se com o resto de suas forças ao pescoço dele, como se fosse um salva-vidas.

Paul estava ofegante quando chegaram à praia. A água escorria pela calça preta do smoking, que estava colada ao corpo, e pela camisa de seda branca. Dominic estava com os dois braços passados em volta do pescoço dele, tremendo de susto e de frio. O vestido novo de crepe indiano estava definitivamente arruinado pela água do mar.

Paul atravessou o trecho de areia seca que separava o mar do quintal da casa e entrou pela mesma porta por onde ela saíra correndo alguns minutos antes.

Dominic tossiu e estremeceu quando ele a deitou no sofá da sala.

— Agora você vai tirar essa roupa molhada.

Ele foi até a porta e tocou a campainha da cozinha insistentemente. Quando Yannis entrou na sala, Paul estava ajoelhado ao lado do sofá com um copo de conhaque na mão. Dominic bebeu um gole e tossiu de novo, engasgada com o líquido que ardia na garganta.

— Dominic caiu no mar — explicou Paul a Yannis, que observava a cena com os olhos arregalados, sem proferir uma palavra. — Diga a Lita para preparar um banho quente. E vá buscar o roupão que está no meu banheiro. Depressa, homem!

Yannis correu à cozinha e explicou rapidamente a Lita o que havia acontecido.

— Cruz credo! — exclamou Lita. — As pessoas dizem que se alguém canta de manhã, vai chorar no fim da noite.

— Que história é essa, mulher?

— Você não ouviu o patrão cantar hoje de manhã? Agora ele está nervoso porque a patroa caiu no mar!

— Você acha que eles brigaram?

— Psiu, fale baixo. Ele pode ouvir.

Yannis saiu correndo da cozinha e foi ao banheiro buscar o roupão. Dominic estava morta de frio e tremia como uma criança pequena quando Paul tirou a roupa molhada de seu corpo e ajudou-a a vestir o roupão de banho que Yannis tinha deixado discretamente em cima do sofá.

Paul demonstrava um cuidado verdadeiramente paternal. No momento em que a levantou do sofá, Dominic passou o braço em torno do pescoço dele e foi transportada assim para o quarto de dormir, onde Lita a aguardava para ajudá-la a tomar o banho quente.

— Depois do banho, tome um copo de leite — disse Paul. — Chocolate não combina muito bem com o conhaque que você tomou antes.

Lita balançou a cabeça e acompanhou com o olhar a figura ansiosa de Paul quando ele dirigiu-se à porta.

— Muito obrigada por tudo, Paul — murmurou Dominic com a voz sumida. — E desculpe todo o trabalho que lhe dei. Inclusive este banho inesperado. Você está com a roupa ensopada. Acho bom trocá-la para não apanhar um resfriado.

— Não foi nada — disse Paul, já na porta. — Durma bem e procure esquecer o susto que levou. Amanhã você vai estar melhor.

Dominic mergulhou num sono profundo após tomar o copo de leite que Lita lhe deu. Pouco depois, porém, sonhou que estava correndo pela praia enquanto ouvia o bramido do mar batendo contra as pedras e sentia os pés afundarem na areia fofa. A lua cheia iluminava a praia como se fosse dia. Ela lançou um olhar para trás e avistou um gato enorme, do tamanho de uma onça, que vinha correndo em sua direção, com os olhos injetados, vermelhos. No momento em que o animal preparou-se para dar o bote, os pés dela ficaram presos na areia. A sensação de imobilidade era terrível. Soltou um grito de terror e acordou sobressaltada, banhada de suor.

— O que foi? — perguntou Paul a seu lado.

Ele estava debruçado sobre ela e segurava-a de leve pelos ombros com as mãos quentes e confortadoras.

— Ah, eu tive um pesadelo terrível!

— Foi por isso que você gritou?

— Você ouviu?

— Acordei com o seu grito.

Ela esfregou os olhos e avistou o cacho de cabelo escuro que caía sobre a testa morena, os pêlos mais claros que nasciam no peito, visíveis através da gola aberta do pijama.

— Que horas são?

— Uma e meia.

— Fazia tempo que eu não tinha um pesadelo como este. Desde criança.

Paul ajeitou-se na cama e contemplou-a um instante com a expressão interrogativa.

— O que foi que lhe causou este pesadelo?

— Não sei. Eu sonhei com um gato preto, do tamanho de uma onça.

Paul deu uma risada sem querer.

— Sou eu esse gato preto?

Ela sorriu e afundou o rosto no peito dele.

A luz do abajur iluminou as feições morenas de Paul. Novamente Dominic avistou nele a sombra da solidão que tinha percebido algumas horas antes, quando os dois conversaram na sala de estar, à luz de velas.

Continuou fitando-o com os olhos arregalados. A sua frente estava um homem estranho, de uma outra nacionalidade, que era seu marido por força das circunstâncias. Na mão que ele segurava em cima do peito estava a aliança de diamantes que Dominic ganhara na véspera do casamento. Entretanto, não foi por nenhum desses motivos que ela se abandonou nos braços dele na primeira noite de núpcias.

 

Dominic acordou com a luz clara da manhã atravessando a cortina esvoaçaste de voal. No primeiro momento não reconheceu onde estava.

Seus olhos percorreram o quarto de dormir decorado em diversos tons de lilás e avistaram a bandeja de café em cima da mesinha-de-cabeceira. Lita tinha o andar tão silencioso que entrava e saía dos quartos sem acordar seus ocupantes.

Dominic voltou-se para o lado, com o cotovelo apoiado no colchão, e avistou a marca deixada por uma cabeça no travesseiro. De repente ela se lembrou de tudo. Estava casada com Paul Stephanos, o grego milionário para quem seu primo Douglas trabalhava, proprietário de uma companhia de navegação, um dos homens mais ricos da Grécia. Lembrou-se também das palavras carinhosas que Paul murmurou no seu ouvido pouco antes de adormecer nos braços dele.

Ajeitou-se na cabeceira da cama e serviu uma xícara de café. Tomou os pequenos goles com um sorriso nos lábios, descontraída, sentindo-se bem-disposta e relaxada após uma noite bem-dormida.

Depois escovou os dentes no banheiro, prendeu os cabelos com uma fitinha preta e observou que seu rosto estava com manchas vermelhas da barba crescida de Paul. Um sorriso desabrochou no canto de seus lábios. Ela tinha provado o fruto do conhecimento, o fruto da árvore do bem e do mal. Inclinou a cabeça para trás e avistou a marca vermelha do beijo que Paul lhe dera no pescoço. Cada veia, cada saliência de seu busto recebera os beijos dele. Embora ela o temesse no fundo do coração, o amor da última noite não a assustara. Corou com este pensamento e desviou o rosto do espelho.

Quando desceu ao andar térreo, Paul estava sentado na cadeira de braços, lendo os jornais da manhã.

— Bom dia, Dominic, Dormiu bem?

— Muito bem. E você?

— Como um condenado. Olhe, seu café está servido. Dominic voltou à cabeça para a mesa e avistou os ovos fritos com bacon, acompanhados de torradas. Na frente do prato havia um copo grande de suco de laranja.

— Nossa! Tudo isso para mim?

— Coma o que você tiver vontade. Não teve mais nenhum pesadelo?

— Não, nenhum.— disse ela com um risinho sem jeito. Dominic sentou-se à mesa e notou que a tempestade da noite anterior tinha limpado o céu do outono.

— O que vamos fazer hoje?

— Você é quem sabe.

— Podemos ir a Looe. Ou você prefere dar um passeio pelas redondezas?

— Vamos dar uma volta a pé.

— Ótimo. Eu também estou precisando esticar as pernas. — Ele observou-a um instante com o olhar atento. — A tristeza desapareceu dos seus olhos azuis.

— Foi o banho de mar que tomei ontem à noite. Paul deu uma gargalhada bem-humorada,

— Você engoliu muita água?

— Um pouquinho. Podia ter sido pior. E você? Não teve nada depois daquele banho gelado?

— Nada. Estou perfeitamente em forma.

— O mar está mais calmo hoje.

— É sempre assim depois da tempestade. Você trouxe um chapéu de palha?

— Trouxe. Mas eu quero tomar sol para ficar morena como você.

— Nada disso! Eu gosto de sua pele clara.

— Lógico. E um contraste com as morenas que você está acostumado a ver.

— Você está arrependida?

A pergunta inesperada apanhou-a de surpresa. Dominic levou um segundo para perceber a alusão.

— Não sei. Você me pareceu tão criança ontem à noite, com os cabelos escorridos sobre o rosto. Eu não devia ter me aproveitado de sua fraqueza...

Dominic fitou-o de relance e lembrou-se da felicidade inesperada que provara na noite de núpcias, após um dia atormentado e que não prometia nada de bom.

— Mudando de assunto... Como se chama sua irmã?

— Kara. Kara Stephanos. É filha do segundo casamento do meu pai.

Era a primeira vez que Paul mencionava a família na conversa. Ele contou, entre outras coisas, que o irmão mais moço morrera um ano atrás, num acidente de pesca submarina, e que a irmã morava com a tia numa casa antiga que dava para a baía de Andelos.

— Kara se parece com você?

— Um pouco.

— Que idade ela tem?

— Vai fazer dezesseis anos.

— Que graça! — Dominic fez uma pausa e olhou fixamente para o rosto moreno. — E essa cicatriz na testa...

— O que tem? É muito feia?

— Não, não é isso! Como foi que você se machucou?

— Ah, essa é uma história muito comprida. Um outro dia eu conto.

— Por que você não conta hoje? Eu estou curiosa...

— Não, hoje não. Hoje é um dia de recordações alegres. Dominic levantou-se da mesa e se aproximou da cadeira onde Paul estava sentado. Ele estendeu a mão, puxou-a para si e sentou-a em seu colo. Beijou-a primeiro na face esquerda, depois na face direita.

— Você gosta um pouquinho de mim?

— Um tiquinho.

Naquele momento Yannis entrou na sala e interrompeu a conversa dos dois. O criado desejava saber se Paul ia usar o carro.

— Nós vamos dar uma volta a pé. E só estaremos de volta para o jantar. Diga a Lita para caprichar na comida.

— Pois não — disse Yannis com um sorriso. — Eu pus o sofá da sala no sol, mas as manchas de água do mar não saíram.

— Não faz mal, Yannis. Vou providenciar a troca do pano quando sairmos daqui. Por falar nisso, não vamos passar a semana aqui como pretendíamos. Já reservei as passagens de avião para Atenas para amanhã cedo.

— Por que essa decisão repentina? — perguntou Dominic depois que Yannis saiu da sala.

— Estou morrendo de saudade de casa — respondeu Paul com um sorriso enigmático.

Meia hora depois os dois saíram em direção a Looe. Era um dia ensolarado de primavera e a brisa marinha trazia o cheiro de maresia até onde estavam. Dominic adorava andar a pé e não escondeu sua alegria e um certo orgulho de mulher casada quando entraram no pequeno porto de Looe e foram cumprimentados por alguns conhecidos.

Enquanto Paul foi ao banco retirar os cheques que estavam guardados no cofre forte, Dominic aproveitou para dar um giro pela pracinha. Havia charretes com cavalos à sombra das árvores e um coreto no meio, cercado por uma grade de madeira. Ela estava admirando as vitrines das lojas quando avistou um peso de papel, com o formato de um unicórnio, num antiquário. Entrou, perguntou o preço do objeto ao balconista e pediu para embrulhá-lo. Queria dar o unicórnio de presente a Paul, por alguma razão que nem ela própria saberia explicar.

Paul estava atravessando a rua quando ela saiu do antiquário. Dominic correu ao seu encontro, o rosto corado aberto num sorriso.

— Olhe o que eu comprei!

Paul recebeu o pequeno embrulho com um sorriso nos lábios.

— Para mim?

— E, para você. Um presente de casamento.

Paul abriu o embrulho e examinou longamente o pequeno unicórnio.

— É antigo, pelo jeito.

— Eu comprei no antiquário. Depois de limpo, vai brilhar como uma moeda de prata.

— Muito obrigado pelo presente. Gostei muito.

Paul estava de óculos escuros, mas Dominic notou, pela inflexão da voz, que o pequenino presente, uma ninharia, para falar a verdade, calara fundo no coração dele.

— Olhe, aqui estão os cheques do seu primo — disse Paul, retirando do bolso um envelope pardo. — O que vamos fazer com eles?

— Vamos queimá-los na lareira quando voltarmos para casa. Ela queria que aqueles cheques desaparecessem para sempre. Ao mesmo tempo, queria mostrar também que cofiava nele, depois do que se passara na noite anterior.

— Não! — exclamou Paul com decisão. — Vamos destruí-los imediatamente.

Ele caminhou para o recipiente de lixo que havia na rua e rasgou os cheques em mil pedaços. Em seguida, atirou-os dentro do recipiente de metal. Os pedacinhos de papel pareciam confetes em cima das cascas de laranjas e de casquinhas de sorvetes.

— Pronto. Não se pensa mais nisso.

Um pedacinho de papel voou de cima do recipiente de lixo e foi cair aos pés de Dominic, que assistia à cena em silêncio. Ela olhou para baixo e avistou a assinatura de Paul que Douglas tinha falsificado. O sobrenome estava cortado pelo meio. Estremeceu ao pensar que agora tinha aquele mesmo sobrenome acrescentado ao seu nome de batismo, para todos os efeitos, ela era a sra. Dominic Stephanos.

Depois do almoço na varanda envidraçada de um restaurante que dava frente para o mar, os dois caminharam a pé pela praia e encontraram uma espécie de gruta protegida do sol. Paul sentou-se embaixo da pedra e estendeu os braços para Dominic. Ela aninhou-se no colo dele, tomando cuidado para não amassar o vestido azul-claro, enquanto ouvia o barulho regular e repousaste das ondas que quebravam na areia. Era possível que um dia se revoltasse contra Paul, pela maneira como ele a levara embora de casa. Naquele momento, no entanto, sentia-se bem e profundamente feliz na companhia dele.

— Você está dormindo, criança?

Ela levantou a cabeça, fitando-o com os olhos muito grandes.

— Não. Estava pensando.

Paul segurou uma mecha dos cabelos louros com a mão livre e enrolou-a nos dedos.

— Você me promete uma coisa?

— O quê?

— Promete ficar comigo, aconteça o que acontecer? Dominic sentou-se na areia e afastou os cabelos dos olhos.

Uma gaivota mergulhou na crista da onda e surgiu algum segundo depois com um peixe no bico.

— Por que você diz isso? O que pode acontecer conosco?

— Ah, tanta coisa — disse Paul com um suspiro.

— O quê, por exemplo?

— Você pode passar a me odiar. Já pensou nessa possibilidade?

— Por que você está querendo me assustar? Nós fomos felizes hoje e podemos ser felizes muito tempo ainda.

— Será? — Paul apanhou o unicórnio que estava colocado em cima da areia e fitou-o com atenção. — Sabe o que simboliza o unicórnio, Dominic?

Ela balançou negativamente a cabeça e uma sensação esquisita a invadiu, como se a conversa tivesse tomado uma direção inesperada que não pressagiava nada de bom. Há apenas dois minutos ela estava no colo de Paul, trocando beijos e carinhos. Agora ele estava com a feição severa que tinha quando o conheceu na casa do tio. A mesma testa franzida, as mesmas rugas em volta dos olhos. A boca tinha um ricto amargo.

— O unicórnio simboliza a coisa mais frágil que existe no mundo.

— Qual é?

— A felicidade verdadeira. O unicórnio é um animal imaginário, sonhado pelo homem. A felicidade também é uma coisa sonhada pelo homem e que nunca ninguém encontrou. Para alguns, ela significa dinheiro. Para outros, a ausência de preocupações. Para cada qual, porém, ela tem um significado diferente, pessoal.

Dominic balançou a cabeça em silêncio. Ela impossível negar a evidência de um pensamento que lhe ocorrera antes muitas vezes.

— O que isso tem a ver com a promessa? — perguntou por fim.

— Eu sinto que a infelicidade nos espreita a cada passo que damos. E queria que você prometesse ficar comigo, apesar do que possa acontecer nos próximos dias, ou nos próximos meses.

Dominic hesitou um instante antes de responder. As palavras dele ecoavam fundo em sua alma. O peso do remorso levava-o a falar daquela maneira enigmática e o coração dela amoleceu ao ver os cabelos encaracolados no alto da cabeça morena, a cicatriz funda no supercílio direito, a respeito da qual ele não queria entrar em pormenores, a boca que sabia dar tanto carinho, embora no momento estivesse apertada, fria.

— Você é meu marido. Eu não vou deixá-lo.

— Jura?

— Juro.

Paul deu um suspiro, levou o cigarro à boca e deu uma longa tragada.

— Olhe que eu vou cobrar sua promessa.

— Pode cobrar.

Ele voltou-se para ela com a fisionomia repentinamente descontraída, como se o conflito interior tivesse sido vencido.

— Você sabia que minha avó era inglesa?

— Não! Verdade?

— Cem por cento.

— É por isso que você tem alguma coisa frágil no olhar.

— Desde quando os gregos são inflexíveis, querida?

— Eu sei que os gregos antigos eram sensíveis ao sofrimento, como li em Homero. Mas pensei que os gregos modernos fossem mais invulneráveis à dor.

— Pois você se engana redondamente. Os gregos explodem no choro como crianças pequenas.

Dominic deu uma gargalhada divertida...

— Foi por isso que você casou comigo?

— Porque minha avó era inglesa?

— Sim...

— Não por isso, somente. As inglesas têm algo que me agrada...

— Já sei! Um certo ar frio e sofisticado.

— Exatamente. As inglesas estão sempre surpreendendo a gente.

— Você já conheceu outras inglesas antes de mim?

— Não me diga que você está com ciúme?

— Claro que não.

— Que medo? Eu ainda a assusto com esta cicatriz no rosto? Ou você perdeu o medo depois de ontem à noite?

— Ah! Vamos conversar sobre outra coisa — disse Dominic, abanando a areia do vestido. — Eu não costumo debater em público meus problemas íntimos.

— Nem consigo mesma?

— Ah, isso é outra coisa.

Paul deu uma risada e estreitou-a nos braços. Dominic afundou o rosto no peito dele e sentiu o cheiro forte de cigarro turco que recendia da camisa. Sentiu-se repentinamente tonta, como se tivesse tomado um gole de uísque. A sensação era excitante e inquietante ao mesmo tempo. No fundo Paul tinha razão num ponto. Era muito cedo ainda para compreenderem o comportamento um do outro. Somente o tempo iria cimentar, ou destruir, completamente a união iniciada num clima de conflito e desconfianças mútuas.

Voltaram para casa no fim da tarde. Ao entrarem na saleta da frente, onde estava o telefone, a primeira coisa que Dominic viu foi o envelope amarelo.

— Olhe, chegou um telegrama.

Paul percorreu rapidamente com os olhos o envelope com timbre do Correio.

— E para você.

Dominic abriu o envelope amarelo com os dedos trêmulos e tomada subitamente de um nervosismo estranho. Quem podia ser? O que podia ter acontecido? Correu o olhar pelas duas linhas escritas em letras maiúsculas e voltou-se boquiaberta para Paul, como se acordasse de um sonho que durava exatamente dezoito horas.

— Por que você não me disse que meu tio telefonou ontem para cá?

O ódio, latente nas últimas horas, estava visível no brilho dos olhos de Dominic.

Paul arrancou o telegrama da mão dela e leu-o em voz alta:

— "Informado cheques passados por Douglas. Telefonei para você ontem à noite. Volte para casa. Martin".

— Por que você não me chamou? — repetiu Dominic, fazendo força para conter a raiva que borbulhava em seu peito.

— Você estava no banho.

— Essa desculpa não pega! Você queria esconder de mim que meu tio sabia da existência dos cheques. Por quê? Para me possuir fisicamente?

— Escute, não vamos brigar por causa disso! Vamos conversar sobre este assunto na sala, como pessoas educadas.

— Eu conheço essa conversa!

Paul segurou-a pela mão e conduziu-a à sala de estar. Fechou a porta atrás de si para os criados não ouvirem a discussão.

— Antes de mais nada, foi você quem me acordou com o seu grito. Eu me deitei a seu lado para lhe fazer companhia, porque você estava sobressaltada com o pesadelo. E não tenho culpa se fizemos amor depois disso. Pelo menos essa não era a minha intenção original.

— Eu sei disso! Eu conheço você!

— Você pode me chamar de todos os nomes, mas uma coisa é verdade: você não me rejeitou ontem à noite. Isso você não pode negar.

— Claro! Eu estava caindo de sono e não sabia o que estava fazendo. Fui uma idiota em achar que você tinha direito à minha cama somente porque estávamos casados. Você deve ter rido às gargalhadas diante da minha inocência

— Você está muito enganada. Eu apreciei muito a sua inocência.

— Não se encoste a mim! — exclamou Dominic com raiva quando Paul fez menção de abraçá-la. — Eu não suporto o seu contato. Tenho ódio da minha estupidez. Fui uma burra ao pensar que podia vir a gostar um dia de você. Quando rasgou aqueles cheques no meio da rua, eu devia ter suspeitado de que tudo não passava de uma farsa. Era o seu teatrinho para conquistar a minha simpatia! Você se aproveitou escandalosamente de mim embaixo daquela pedra na praia. E tudo isso para quê? Simplesmente para provar a si mesmo que tinha feito uma bela aquisição. Pois olhe, fique sabendo que todo o dinheiro do mundo não vai comprar o meu amor, a minha confiança, o meu respeito por você. E posso adiantar desde já que é preferível viver sozinho a ter uma mulher que lhe nega o coração.

— Você pode guardar o amor para um outro — disse Paul com a fisionomia repentinamente impenetrável como uma escultura de mármore. — Eu não pedi amor.

— Eu não acredito nisso! Não existe ninguém que deseje a companhia de uma mulher que o odeia de todo o coração. Você não pode ser desumano a este ponto!

— Quem disse?

— Eu estou dizendo! Como você teve coragem de me levar embora de casa sabendo que eu o desprezava?

— Eu corri o risco.

— Cínico!

— O que você quer, afinal? Voltar para o conforto da família e do velho tio que a adora? Você não tem espírito de aventura no sangue?

— Minha casa é o lugar que eu mais amo no mundo. Não é a sua ilha de Andelos que vai me fazer mudar de opinião.

— Queira ou não queira, é para lá que você vai.

— Você é odioso com suas ameaças! — berrou Dominic com os olhos faiscantes de ódio. — Você está se aproveitando vergonhosamente da palavra que eu dei.

— Foi por isso que eu me casei com você. Porque você é uma mulher de palavra.

— Você é muito vivo! Mas eu juro por tudo o que é mais sagrado que você vai se arrepender amargamente de ter se casado comigo. Você vai me pagar por tudo o que me fez sofrer. Em dobro!

Exausta pela discussão, Dominic passou por Paul e se dirigiu ao quarto de dormir. Segurou-se no corrimão da escada para sustentar as pernas trêmulas. Sentia-se tonta como se tivesse passado muitos dias com febre alta. Abriu a porta do quarto e atirou-se de bruços na cama.

Seu coração estava ferido, pisado e humilhado, mas as lágrimas recusavam-se a aliviar o seu sofrimento. A doçura da véspera e das primeiras horas do dia transformara-se numa bebida amarga que ela tinha que sorver até a última gota. A partir daquele instante sua existência seria um inferno na companhia do homem que ela odiava de todo o coração.

Mas ela dera sua palavra de que não o abandonaria em hipótese alguma. E se havia uma coisa que ela aprendera desde criança, com seu tio Martin, era não voltar atrás de uma decisão tomada.

 

Embora Dominic desejasse continuar trancada no quarto e evitar a presença do marido, vestiu-se automaticamente para o jantar quando se aproximou a hora. Ela era bem inglesa neste particular. Não aceitava enfurnar-se num canto e chorar as mágoas unicamente porque fora ferida, e humilhada por um homem. Tinha que levantar a cabeça e enfrentar o adversário com o que lhe restava de energia.

Paul, ao vê-la atravessar a sala no vestido longo de jérsei, notou imediatamente que um abismo intransponível se abrirá entre os dois. Dominic mostrou-se educada e atenciosa durante o jantar. Ouviu com atenção as perguntas que Paul lhe fez e, vez por outra, deu um sorriso ao ouvir alguma história divertida sobre os moradores da ilha de Andelos.

Depois do jantar, Paul passou uma série de filmes de viagens que tinha feito nos últimos anos. Os filmes eram magnificamente bem-feitos e prendiam a atenção do começo ao fim. Dominic notou, contudo, que não havia nenhuma cena em que Paul aparecia no meio dos amigos ou na companhia de uma mulher. A narrativa era sempre impessoal, como um documentário.

No fim da sessão, Paul acendeu a luz da sala e perguntou o que ela tinha achado dos filmes.

— São muito bons — disse Dominic com sinceridade. — Você viaja sempre sozinho quando está de férias?

Paul hesitou um instante antes de responder:

— Nem sempre. Mas, em geral, eu aproveito as viagens para pôr minhas idéias em dia.

Dominic ouviu a explicação em silêncio. Se Paul passava os dias sozinho era pouco provável no entanto que passasse as noites sem a companhia de uma mulher. Deveria haver certamente muitas mulheres na vida dele, mulheres que se sentiam atraídas por sua personalidade enérgica e que tenham tentado seduzi-lo com os encantos femininos. Nenhuma delas, porém, fora bem-sucedida até aquele momento.

— Fale-me da Grécia — disse Dominic num impulso de curiosidade. — Eu não sei nada a respeito dos gregos, a não ser o que li nos livros.

Paul levantou o copo de vinho tinto e levou-o à boca com uma expressão compenetrada.

— A Grécia é um país de contrastes. Os dias de sol são entrecortados de dias de chuva. Algumas regiões do país são totalmente áridas, enquanto outras são férteis como as melhores terras do mundo. O vinho e o azeite gregos são renomados em toda a parte por seu paladar excelente. Nossos pinheiros, de todas as variedades, perfumam o ar das montanhas com um aroma inconfundível.

Paul fez uma pequena pausa e colocou o copo em cima da mesa, como se refletisse sobre um passado remoto.

— Você me deixou com água na boca. Estou curiosa para conhecer a ilha de Andelos.

— A Grécia é um país que a gente ama ou odeia. Não há meio-termo. Como o seu povo, aliás. As lendas antigas continuam vivas nas ruínas. Se você visitar Atenas hoje, não poderá imaginar que, há algumas gerações, a cidade foi palco de lutas sangrentas entre irmãos. Muitas famílias foram exiladas para a Albânia e para outros países vizinhos. Você era uma criança de colo quando estas coisas aconteceram.

— Que idade você tinha?

— Idade suficiente para ver o que estava se passando à minha volta. Não pense que estou lhe contando isso para conquistar sua simpatia.

— Eu sei que não! A última coisa que você deseja de mim é simpatia...

— Você acredita na afinidade que existe entre certas pessoas?

— Claro que sim.

— Era inevitável que nossos caminhos se cruzassem um dia. Nossos destinos apontavam para a mesma direção.

— Você acredita no destino? — perguntou Dominic com um risinho, imitando a voz de Paul de alguns segundos atrás.

— O que você quer? Eu sou supersticioso como todos os gregos. O destino é uma força inelutável, contra a qual os homens se debatem em vão.

A conversa continuou animada durante alguns minutos, embora houvesse um certo clima de tensão na sala. Os estalos da lenha na lareira provocavam um arrepio em Dominic. Ela esfregou os braços com um gesto nervoso. Logo estaria na hora de subir para o quarto de dormir. Eles não podiam passar a noite inteira na sala, conversando sobre assuntos impessoais.

Foi então que o relógio de parede deu as horas. Os dois ao mesmo tempo, trocaram um olhar apreensivo. No instante seguinte Paul levantou-se da cadeira com um bocejo.

— Estou morrendo de sono. Vamos dormir? Eu não vou molestá-la esta noite. Sei que você não suporta minha companhia na cama.

Dominic levantou-se também e colocou o copo de conhaque em cima do aparador. Feito isso, dirigiu-se para a escada com o passo lento de quem cumpre uma simples obrigação.

— Boa noite, Paul.

— Boa noite. Durma bem. —Você também.

Ela subiu a escada segurando a saia do vestido comprido. Estava cansada e sonolenta como uma criança que vai dormir depois da hora.

Dominic acordou na manhã seguinte quando Lita entrou no quarto com a bandeja do café. Iam embarcar para Atenas às oito e meia, mas Dominic queria falar com o tio antes de partir. Paul estava na sala de estar quando ela pediu a ligação interurbana. Ao ouvir sua voz no telefone, ele passou por ela e subiu a escada como se quisesse lhe dar liberdade para conversar com o tio.

A campainha tocou algumas vezes antes que alguém atendesse. Finalmente uma voz de homem deu o número e perguntou com quem desejava falar.

— Alô, tio Martin? Sou eu, Dominic. Como você está passando? Olhe, eu recebi seu telegrama ontem à noite...

Dominic e o tio conversaram durante uns quinze minutos. Tudo estava bem, repetiu ela uma dezena de vezes, procurando tranqüilizar os receios do tio. Contou brevemente o que fizera no dia anterior e falou a respeito dos filmes de viagens que Paul tinha passado.

— Eu vou sentir muita falta de você, filha — disse Martin com a voz comovida. — Você está feliz?

— Eu já disse que sim, tio.

Paul desceu a escada nesse momento. Dominic apressou-se em despedir-se do tio.

— Adeus. Vou escrever com calma quando chegar a Atenas.

— Boa viagem, querida. Se você precisar de alguma coisa, não deixe de me telefonar. E dê lembranças minhas a Paul.

— Eu vou dar. Até a vista.

— Até a vista, minha querida.

Após desembarcarem no Aeroporto de Atenas e passarem pelos fiscais da alfândega, tomaram um táxi que os levou ao hotel, um prédio antigo, luxuoso, de linhas sóbrias como um templo. O restaurante ficava no alto do terraço envidraçado, de onde se tinha uma vista deslumbrante da cidade, inclusive da Acrópole banhada pelo sol.

Yannis e Lita aproveitaram para passar uns dias com a família. Na semana seguinte, rumariam diretamente para a ilha de Andelos, onde aguardariam a chegada de Paul e Dominic.

Dominic estava apreensiva com a perspectiva de passar todos aqueles dias na companhia de Paul, uma mulher estrangeira numa cidade onde não conhecia absolutamente ninguém. De qualquer forma, não tinha alternativa senão aceitar com paciência aquele período mais ou menos longo de adaptação.

Aproveitou a desculpa da viagem cansativa para dormir cedo naquela noite.

Acordou na manhã seguinte com os primeiros raios quentes do sol que entravam pela cortina leve de voai.

— O que vamos fazer hoje? — perguntou Paul à mesa do café. Paul fizera questão de pedir ao garçom uma refeição matinal à moda grega, que incluía suco de laranja, rosquinhas frescas salpicadas com cominho, além de uma variedade de frutas secas, ameixas, tâmaras, passas, figos, todas tão suculentas que davam água na boca.

— Podíamos dar uma volta a pé pela cidade — sugeriu Dominic, provando o café à moda turca, que tinha sempre um pouquinho de pó no fundo da xícara.

— Ótima idéia. Vamos visitar a parte antiga da cidade. Ponha suas sandálias de salto baixo porque o calçamento das ruas é todo de pedras. Depois vamos ver as novidades nas lojas.

No momento em que Paul se inclinou para acender o cigarro, Dominic avistou a medalha de prata presa numa correntinha em volta do pescoço. Lembrou-se do amor que tinham feito na primeira noite, na casa da praia, e levantou-se da cadeira com um gesto brusco, incomodada por essa recordação repentina.

— Eu vou passar um pente nos cabelos.

— Não demore.

Após maquilar-se levemente e escovar os cabelos, Dominic calçou as sandálias de couro cru, e apanhou a bolsa e o chapéu de palha para se proteger do sol quente de Atenas.

— Estou pronta.

— Vamos, então.

As ruas de Plaka, o bairro antigo da cidade, eram estreitas, sinuosas, repletas de lojas e de butiques que expunham as mercadorias diretamente em cima da calçada. As casas e sobradinhos, por sua vez, tinham pequenas sacadas com grades de ferro na janela da frente, onde os moradores conversavam com os vizinhos em voz alta. Outros deixavam em cima do peitoril das janelas os rádios de pilha ligados a todo volume, cada qual em sua estação preferida.

O ruído das vozes, a algazarra das crianças que brincavam na calçada, mais os pregões dos verdureiros que usavam um sistema de alto-falantes instalados nos carros, provocava um efeito ensurdecedor. Parecia que todos estavam gritando ao mesmo tempo e que ninguém se entendia.

— E sempre assim? — perguntou Dominic perplexa, com a cabeça zonza.

Ela levou a mão instintivamente aos ouvidos quando um menino deu um grito esganiçado a seu lado.

— O barulho nas ruas é uma tradição dos bairros pobres — disse Paul com um sorriso divertido nos olhos. — Eu não sei como as pessoas agüentam...

— Não deixa de ser cômico. O que é aquilo ali?

— Aquela fruta grande e vermelha por dentro?

— É. O que é? Eu nunca vi nada igual na minha vida! — exclamou Dominic com os olhos brilhantes de curiosidade.

— É uma melancia — explicou Paul, segurando uma fatia na mão.

— Que gosto tem? — perguntou Dominic, olhando espantada para a fruta imensa.

— Prove.

O vendedor imediatamente estendeu uma fatia suculenta para a moça loura que não conhecia melancia e que estava curiosa para experimentar, mas tinha receio de não gostar e fazer feio diante dos outros.

— Prove — insistiu Paul. — É doce e suculenta. Cuidado para não respingar no vestido.

Dominic tomou coragem e deu uma mordida na polpa vermelha. Ficou um instante parada mastigando lentamente o fruto desconhecido sem saber se tinha gostado ou não do paladar levemente adocicado.

— Então? — perguntou Paul.

— É gostosa — disse ela sem muita convicção.

O vendedor caiu na risada e balançou a cabeça com incredulidade. Como era possível haver alguém que não conhecesse melancia?

Paul deu-lhe a mão e os dois subiram uma ladeira íngreme. De ambos os lados havia uma infinidade de bares onde os homens de idade ficavam sentados à porta, em mesinhas pequenas de armar, diante de seus copos de vinho. Outros tomavam cerveja nos balcões ou bebiam um líquido esbranquiçado parecido com anisete.

Algumas mulheres gregas, em geral cheias de corpo, passaram ao lado de filhas esbeltas. Os rapazes, por sua vez, tinham uma vitalidade que transparecia nos menores gestos. Alguns usavam bigodes e barbas compridas, aparadas dos lados. Outros vestiam uniformes verdes do Exército. Todos falavam em voz alta, com gestos expressivos das mãos e dos braços. Dominic, que não entendia uma palavra do que diziam, tinha a impressão de estar assistindo a um espetáculo de mímica.

Paul parou diante de uma vitrine onde havia uma variedade enorme de peças do artesanato local. Chinelos bordados à mão, vestidos compridos feitos em teares manuais, colares de contas e uma infinidade de pulseiras, brincos e correntinha com medalhas de prata.

— Que loucura! — exclamou Dominic, boquiaberta com a quantidade de objetos espalhados na calçada. — Ninguém leva nada embora?

— O dono da loja está de olho — murmurou Paul.

De fato, no instante seguinte um homem de turbante saiu do interior da loja e observou os dois em silêncio.

— Gostaram de alguma coisa? — perguntou em grego.

— O que foi que ele disse? — murmurou Dominic para Paul.

— Ele perguntou se você gostou de alguma coisa.

— Ah.

Dominic deu um sorriso e olhou discretamente para um par de brincos em forma de coração, cravejado de pedrinhas miúdas, que pareciam lápis-lazúli.

— Foi desse que você gostou? — perguntou Paul, acompanhado o olhar dela.

— Sim, É lindinho, não?

Paul apanhou os brincos em cima do pano de veludo estendido na calçada e pagou ao dono da loja.

— Deixe que eu ponho.

Ela ficou parada, olhando para cima, enquanto ele prendia os brincos nos lóbulos das orelhas.

— Estou parecendo uma odalisca com estes brincos! Paul, porém não achou graça no comentário. Segurou-a pelos ombros e fitou-a no fundo dos olhos.

— E assim que você se sente? Como uma mulher comprada? Você vai me repetir isso a vida inteira?

— Desculpe. Foi sem querer...

— É brincando que a gente diz o que pensa.

 

Estavam caminhando na direção de uma pizzaria quando ouviram alguém chamar Paul em voz alta do outro lado da rua.

— Paul Stephanos! — repetiu uma voz de mulher.— Não fuja da gente

Paul voltou-se surpreso e avistou alguns amigos que estavam fazendo compras na companhia das respectivas esposas.

— Jonas! Que surpresa agradável...

As duas mulheres estavam vestidas como se fossem a uma festa. Chapéus de flores na cabeça, vestidos de algodão brilhante e luvas de pelica nas mãos. Olharam com surpresa para Dominic, que usava um conjunto esporte de linho.

— Vocês vão almoçar aqui? — perguntou Paul.

— Podemos almoçar todos juntos — sugeriu Jonas. Dominic entendeu pela conversa animada que os homens trocaram na calçada que o restaurante era bastante popular, embora tivesse um cozinheiro excelente, que não ficava nada a dever aos melhores chefes.

— Meu marido adora comer nesta cantina — explicou Angélica a Dominic quando tomaram os lugares na mesa comprida que um garçom aprontou rapidamente. — Eu prefiro a cozinha francesa. Mas o que se há de fazer? Os homens é que decidem...

Dominic sorriu com ar de quem aprova. A cantina era o tipo de restaurante que lhe agradaria em outras circunstâncias e numa companhia menos heterogênea que aquela. As cadeiras e as mesas eram rústicas, cobertas apenas com uma toalha de papel, e as paredes lisas estavam simplesmente caiadas de branco. Garrafões de vinho tinto desciam das vigas que havia no teto, ao lado de queijos provolones e de salames embrulhados em papel prateado.

A cantina estava muito concorrida àquela hora e as risadas e os comentários em voz alta ecoavam pela sala, criando um ambiente alegre e divertido. A carne assada na brasa mandava para o recinto um cheiro penetrante de gordura que inebriava as narinas. Mais ao fundo atrás de uma meia parede avistava-se tachos de cobre em cima do fogão imenso. Os frios e as saladas estavam arrumados em cima de uma mesa no meio da saia.

— O que você vai querer? — perguntou Paul a Dominic. Os dois estavam diante da mesa comprida admirando a variedade de pratos que davam água na boca.

— Acho que vou querer uma salada de legumes.

— Boa idéia. Eu vou seguir sua sugestão.

Dominic ficou horrorizada ao ver algumas freqüentadoras que comiam postas de carne sangrentas. Angélica pediu ao garçom rolas grelhadas na brasa, que era uma especialidade da casa. Dominic virou a cabeça quando avistou os pequenos pássaros servidos na travessa. Havia uma meia dúzia, pelo menos.

Os homens estavam bebendo vinho de um garrafão que o garçom tinha posto em cima da mesa.

— Você não vai gostar deste vinho da casa — murmurou Paul para Dominic. — É muito encorpado. Vou pedir uma garrafa de Beaujolais para nós dois.

Enquanto isso, Angélica e Myrrha passavam um patê de galinha em fatias de pão e comiam-nas acompanhadas de um gole de vinho.

— Saúde! — exclamou Jonas, o amigo de Paul, levando o copo ao alto.

— Igualmente.

— Vocês estão casados há muito tempo? — perguntou Angélica a Dominic.

— Há alguns dias — disse ela sem jeito, rezando para a conversa tomar um rumo menos pessoal.

— Ah, que graça! Estão em plena viagem de núpcias... E vocês já fizeram planos para o futuro?

— Por enquanto, não.

— Nem se vão ter muitos filhos?

— Ainda não — respondeu Dominic, sem jeito.

As duas mulheres trocaram sorrisos de cumplicidade. Dominic era tímida porque estava num país estrangeiro. Em vista disso, Myrrha mudou de assunto e perguntou se eles tinham reservado bilhetes para a temporada teatral em Epidauro.

— Eu não sabia que havia um festival nesta época do ano.

— Ah, você não pode perder! — exclamou Angélica. — É a coisa mais chique que há na Grécia. Todo mundo vai. Se você for, não deixe de levar uma almofada, porque os bancos são de pedra. No ano passado nós assistimos Electra. Foi divino. Você nem faz idéia... Holofotes de todas as cores iluminavam os atores!

Dominic relaxou ao notar que a conversa tomara uma direção menos íntima e comeu com apetite as costelas assadas que Paul tinha pedido ao garçom, juntamente com batatas fritas e brócolos regados no azeite.

— Este é o melhor azeite do mundo — comentou Paul, despejando generosamente uma boa porção em cima dos brotos tenros de brócolos.

Enquanto isso, Myrrha e Angélica comentavam com a volubilidade própria das mulheres gregas os espetáculos mais belos que as duas tinham assistido nos últimos festivais de Epidauro.

— Édipo Rei é simplesmente sensacional. O velho fura os olhos na sua frente, menina!

— E a mulher que se enforca com uma corda! — exclamou Myrrha com uma gargalhada sonora.

Como sobremesa o garçom serviu sorvete de pistache com biscoitos champanhe. Paul recostou-se na cadeira, satisfeito com a refeição copiosa, e acendeu uma cigarrilha turca. Em seguida, estalou a língua quando provou o legítimo café oriental, forte e aromático, que o garçom colocou na sua xícara.

— Prove este café, querida. Está delicioso.

— Vai ver que ela prefere um chá — disse Angélica.

—Muito obrigada. Eu vou tomar café para variar.

Dominic estava consciente o tempo todo do papel de esposa feliz que devia representar na frente dos amigos de Paul. A timidez do início fora interpretada felizmente como sendo a reserva natural de uma pessoa que está num país estrangeiro. Ninguém podia imaginar que os dois dormiam em camas separadas, nem que conviviam num clima de hostilidade permanente.

Por outro lado, Angélica e Myrrha não se cansavam de elogiar os cabelos louros de Dominic, os grandes olhos azuis que ela herdara da mãe, o queixo delicado com uma pequena covinha no meio.

— Todas as inglesas são bonitas como você? — perguntou Angélica com uma franqueza adorável.

— Você encabulou minha mulher. — Paul interveio. — Ela não está acostumada a este tipo de conversa. As inglesas são reservadas. Elas apreciam os subentendidos...

Na hora da despedida, Myrrha convidou os dois para jantarem em sua casa na sexta-feira seguinte.

— E no sábado vocês são meus convidados — acrescentou Angélica, beijando Dominic no rosto.

— Combinado.

— Até sexta, então.

— Até lá — repetiu Paul, despedindo-se dos amigos após trocarem abraços e apertarem as mãos uma dezena de vezes.

— E sempre assim? — perguntou Dominic depois que os dois casais partiram.

— Assim o quê?

— As despedidas.

Paul caiu na risada e fez sinal para o táxi que passava.

No dia seguinte, o quarto deles no hotel parecia uma floricultura. Circulou o rumor pela cidade de que Paul Stephanos tinha casado no estrangeiro com uma inglesa e os buquês de flores não pararam de chegar durante o dia todo. Alguns mandavam caixas de bombons recheados, garrafas de bebidas estrangeiras, cestas de vime com as frutas secas mais gostosas de cada região da Grécia. Havia também alguns presentes especiais para a jovem madame Stephanos.

Dominic não cabia em si de espanto, e de alegria, com todas as flores e lembranças que ganhou. Por mais fechado que seu coração estivesse ao contato do marido, ela era humana e apreciava as coisas belas da vida.

Por sinal, passou uma parte do dia debruçada na sacada do quarto, mordendo as sementes de pistache e provando as uvas secas de Corinto, que eram famosas em toda a Grécia por seu paladar inconfundível.

Ficou intrigada, porém, com as colherinhas de prata e com os cálices de licor que ganharam. Paul explicou que era costume, entre as donas de casa, receberem os convidados com um cálice de licor.

— E as colherinhas de prata?

— Para você servir o mel ao seu marido — disse Paul com um sorriso.

— Entendi — disse Dominic, corando repentinamente. Ela arrumou os maços de violetas que estavam embrulhados em papel celofane num bonito vaso de porcelana. Aquelas flores, suas preferidas, tinham sido compradas por Paul. Como ele adivinhara que as violetas eram suas flores prediletas? Ela nunca conversara com ele a esse respeito e Paul não passeara com ela pelos bosques de sua cidade natal, onde as violetas silvestres, roxas e lilás, cobriam literalmente as encostas dos morros nos primeiros dias da primavera.

Nos dias seguintes, Paul recebeu dezenas de convites para jantar fora. Dominic adorou os programas movimentados que a faziam esquecer momentaneamente a existência que lhe estava reservada na ilha de Andelos, onde moraria sozinha com o marido num casarão construído no alto de um penhasco, como o ninho de uma águia Lá não haveria convites para jantar nem bailes que se prolongavam até as primeiras horas da manhã. Lá Paul não se despediria todas as noites dela com uma saudação polida na porta do quarto. Inevitavelmente acabariam dormindo juntos.

Na véspera da partida para Andelos, os dois foram a um jantar dançante num iate magnífico que estava ancorado na baía de Atenas. O veleiro estava enfeitado com bandeirolas coloridas e o convés, encerado como um salão de baile, fascinantemente iluminado.

Dominic usou naquela noite o vestido de feitio grego que comprara numa butique de Atenas. Era de crepe indiano forrado de seda, num bonito tom de verde-esmeralda. Fez um penteado à maneira grega e espetou pequenas violetas entre as mechas. Antes de partirem para a festa, Paul presenteou-a com uma pulseirinha de ametista. Ela colocou a pulseira no pulso e mirou-se no espelho grande da penteadeira. — Você está cada dia mais encantadora — comentou Paul. — O sol da Grécia deu um tom quente à sua pele e clareou os seus cabelos... Eu não ganho nada pelo presente que lhe dei?

Dominic ficou na ponta dos pés, como uma menina obediente, e beijou-o de leve na boca.

— Hum, que gostoso! Seu beijo tem gosto de anis.

Ela encarou os olhos castanhos de felino em silêncio. Dizem que os olhos são as janelas do coração, mas nos dele havia apenas um brilho enigmático, inquietante. Se Paul não fosse seu marido, ela o veria com outros olhos, especialmente quando punha o smoking preto e a camisa branca de seda.

No momento em que Paul a tirou para dançar no deque iluminado do iate, Dominic lembrou-se dos chás dançantes a que ia com Barry, seu primeiro namorado, nos domingos à tarde. A única diferença é que na companhia de Barry ela estava sempre rindo e murmurando gracejos, enquanto com Paul dançava em silêncio, com uma seriedade que lhe dava uma aparência mais velha.

Em dado momento ela fechou os olhos e sonhou que estava nos braços de Barry. O corpo de Paul, contudo, era mais musculoso e, se reclinasse a cabeça, como costumava fazer quando dançava, iria encostá-la em cima do coração de Paul, em lugar de pousá-la sobre o ombro, como acontecia com Barry.

— Onde você aprendeu a dançar?

— No clube.

— Você costumava ir a festas em Fairdane?

— Eu ia todos os fins de semana aos chás dançantes.

— Com quem?

— Com meu primo — Dominic mentiu.

Barry era um assunto muito íntimo para ser comentado com Paul.

— Ah, sim! Seu primo Douglas... Você deve gostar muito dele para fazer o que fez.

A música terminou naquele momento. Paul ofereceu-lhe um copo de vinho branco e, nas horas seguintes, Dominic dançou com outros rapazes que conheceu na festa.

— Há muitos convidados jogando cartas na saleta — disse um americano que tinha ido passar as férias em Atenas. — Os gregos têm paixão pelo jogo.

— Não são somente os gregos — comentou Dominic com um sorriso. — Os franceses, os italianos, os alemães...

— E os ingleses?

Dominic pensou um instante antes de responder:

— Não sei. Os ingleses têm mais paixão pelas corridas... Enquanto dançava com o americano, Dominic estava com a atenção voltada para a conversa recente que tivera com Paul. A última observação que ele fizera, a respeito de Douglas, deixara-a pensativa. Pelo visto, Paul suspeitava de que havia alguma coisa entre os dois e que fora por esta razão que Dominic aceitara um casamento absurdo: para salvar o primo da cadeia.

Meia hora depois Dominic estava cansada de dançar com homens que lhe eram indiferentes e refugiou-se, sozinha, na proa do veleiro, embaixo de um toldo que a protegia da brisa marinha. Estava sonhando com tudo o que lhe acontecera nas últimas semanas enquanto olhava distraidamente para as águas paradas da baía.

Havia uma dezena de barcos de pesca e de outros veleiros ancorados perto dali, com os mastros nus balançando levemente ao influxo das marolas. Alguns barcos tinham varais de roupa estendidos em cima do convés. Os pescadores provavelmente moravam nos próprios barcos em que pescavam. Era ali que faziam as refeições, dormiam e ganhavam a vida...

E ela? O que seria de sua existência na ilha de Andelos? Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Antes que voltasse a si do tremor, ouviu uma voz familiar às suas costas:

— Ah, você está aí! Eu a procurei por toda parte. Cansou de dançar?

— Sim. Vim aqui respirar o ar puro da noite.

— Você vai gostar da ilha. É o lugar ideal para os que gostam de viver junto da natureza, longe das convenções sociais, das obrigações... Ouça o barulho das ondas! Não parece o canto das sereias?

— Sua casa tem vista para o mar?

— Nossa casa, Dominic.

Paul debruçou-se sobre a corda do convés. Os olhos dele, dependendo da iluminação, eram aveludados e soturnos como os de um felino.

— Você está preocupada?

— Um pouco.

— Medo do desconhecido?

— Talvez.

— Você tem razão, em parte. Os gregos em geral são imprevisíveis. Mas, o mesmo pode se dizer das inglesas. Você também é um mistério para mim. Não sei por que, tenho a impressão de que você está com ódio de mim.

— Que idéia! Por que você pensa isso?

— Porque há um segredo em seus olhos. Você está se guardando para a hora da desforra?

Havia um sorriso tão sardônico no rosto dele, iluminado pelo luar, que provocou nela um arrepio.

— Eu não sou vingativa — murmurou, esfregando os braços.

— Você está com frio. Vamos entrar.

No táxi que os levou para o hotel, ela sentou-se afastada dele no banco de trás, como se fossem dois estranhos. Manteve os olhos baixos durante todo o trajeto de volta até entrarem no elevador do hotel, assumindo a atitude reservada que aprendera no colégio, os olhos gelados como a safira que usava na mão esquerda.

Despediram-se educadamente na porta dos respectivos quartos e Dominic respirou aliviada quando entrou no seu e fechou a porta por dentro.

Estava tão apreensiva com a perspectiva da viagem no dia seguinte que teve um sonho agitado. Acordou no meio da noite com o rosto banhado em lágrimas. Sentou-se na cama, com um gosto de sal na boca, e soltou uma exclamação de espanto quando avistou uma luz avermelhada no céu e um rolo grosso de fumaça.

Com o coração batendo, afastou o lençol da cama com um gesto brusco e foi correndo até a janela para ver o que era.

Um barco, ancorado na baía, estava pegando fogo! Ouviu a sineta ecoando lugubremente no silêncio da noite. Sem hesitar um segundo, correu na ponta dos pés até a porta do quarto de Paul.

— Paul, acorde! Um barco está pegando fogo! Será que é o veleiro dos seus amigos?

Paul pulou da cama e correu à sacada do quarto de Dominic.

— Não dá para ver daqui.

— Ah, que pena se for! Um veleiro tão lindo... Eu espero que ninguém tenha perdido a vida.

Paul apoiou os dois braços sobre o parapeito de ferro e procurou orientar-se.

— Não, aquele barco não é o Silver Witch — disse por fim. — Que fumaceira! Talvez seja um barco de pesca...

No instante em que Paul se voltou, os reflexos das chamas bateram em cheio no rosto moreno. Dominic fez meia-volta e entrou no quarto. Paul seguiu-a e fechou a porta atrás de si.

— Vamos dormir. Não há nada a fazer.

— Você não me convida para dormir no seu quarto? Ela engoliu em seco, sentindo o coração bater descompassado no peito.

— É preferível dormirmos em camas separadas.

Em vez de responder, Paul agarrou-a pela cintura e começou a beijá-la com ardor. Dominic debateu-se como uma criança assustada.

— Solte-me, Paul! — exclamou, correndo as unhas pelo rosto dele.

— Eu vou odiá-lo se você não me largar.

— Que diferença faz? Você me odeia sem isso. Eu quero ter uma mulher e não uma companheira de festas.

— Quem mandou você casar comigo?

Sem aguardar resposta, Dominic enfiou-se embaixo do lençol e apagou a luz da cabeceira. Entretanto, embora virasse de um lado para o outro da cama à procura de uma posição confortável, ficou acordada até de madrugada.

A luz tênue da manhã estava atravessando a cortina no momento em que Dominic abriu os olhos e avistou Paul dormindo ao seu lado no outro travesseiro. As pálpebras espessas encobriam os olhos, cachos de cabelos caíam sobre a testa, à boca de lábios carnudos estava entreaberta. Havia algo de delicado nas feições másculas, algo que ela nunca tinha percebido antes. O sono transportara-o a uma época remota em que ele desconhecia a luta e a agressividade.

Um braço estava passado em cima de seu ventre. Ela afastou-o com cuidado e levantou-se da cama. Vestiu o robe que estava pendurado nas costas da cadeira e foi até a sacada, de onde se avistava o nascer do sol. Os primeiros raios avermelhados banhavam a Acrópole com tal intensidade que Dominic sentiu um aperto no coração. A beleza de usufruir tudo aquilo custava um preço muito alto, como ela tinha comprovado na própria pele.

 

Dominic jamais se esqueceria do primeiro instante em que avistou Andelos. A ilha surgiu repentinamente no horizonte, recortada tão nitidamente ao sol da manhã que sua forma de lira era visível a muitos quilômetros de distância. Debruçou-se sobre o parapeito da lancha e se lembrou das histórias que Paul contará dias antes sobre a ilha.

Andelos, ocupada muitos anos atrás pelos venezianos e depois pelos romanos, era uma pequenina ilha no meio do mar Jônico. Após muitas gerações na família de Paul, a ilha tornara-se um verdadeiro paraíso para seus moradores. Tinha todos os recursos que podiam encontrar no continente: hospital público com dezenas de leitos, escola primária e secundária, campo de esportes com quadras de basquete, vôlei, tênis, sem falar numa biblioteca atualizada anualmente, que emprestava livros para os consulentes levarem para casa.

Paul estava debruçado ao lado dela com a atitude indolente de alguém que volta para casa após meses de ausência, de camisa aberta no peito e óculos escuros para proteger a vista da luz forte que vinha do mar prateado. O vento fresco soprava os cabelos escuros e penetrava nas suas narinas finas e sensíveis de felino.

Embora estivesse afastada dele, Dominic sentia na pele a energia de seus nervos. O corpo dela continuava sensível ao menor contato proveniente do de Paul e, nos dias seguintes, teve de reunir todo o seu sangue-frio para conduzir-se com naturalidade na presença constante do marido.

— Estamos chegando. Você está curiosa para conhecer a casa nova?

— Estou. Essa casa pertence à sua família há muito tempo?

— Foi meu avô quem a construiu, o mesmo que fundou a companhia de navegação. Durante a Guerra Civil, a companhia esteve à beira da falência, como todas as outras empresas importantes da Grécia. Pouco a pouco, contudo, conseguimos recuperar a antiga prosperidade.

— A vida é cruel, às vezes.

— Como tudo o mais. É uma realidade que devemos aceitar.— comentou Paul, atirando a ponta acesa do cigarro na água.

— Você, por exemplo, não quer aceitar que sentiu prazer...

— Não vamos falar sobre isso agora... — Dominic o interrompeu com vivacidade.

— Pelo contrário. Eu faço questão de ouvir uma resposta sua.

— Você teve o que queria — disse ela, levantando a cabeça com um gesto brusco. —Você terá apenas isso de mim, um contato puramente exterior. Meu coração jamais será seu.

— Mas o amor e o ódio são amigos íntimos, como eu lhe disse uma vez. Você vai acabar descobrindo que há um tempo para tudo. Tempo para brigas e tempo para fazer as pazes. Tempo para passear de mãos dadas e tempo para fazer amor. Tempo para as confidências e tempo para manter distância do outro.

— Isso se aplica aos casamentos onde existe amor. O que não é o nosso caso.

— Mas não se esqueça de que a fidelidade e o respeito mútuo estavam entre as promessas que você fez no altar.

— Eu vou me lembrar, não se preocupe.

— Os moradores de Andelos vão invejar a minha sorte.— disse Paul com um sorriso, percorrendo-a de alto a baixo com um olhar apreciativo. — Você é a inglesa mais bonita que já desembarcou na ilha.

Dominic tinha os olhos profundamente azuis, como se a cor do céu e do mar se refletisse neles. Os cabelos loiros, por sua vez, refletiam a luz do sol como fios dourados. A blusa rendada de feitio grego que Paul lhe dera, e que vinha de Creta, acentuava o contorno bem-feito de seus seios.

— Pois eu preferia ser feia e sem graça.

Paul deu uma risada, inclinando a cabeça para trás num gesto teatral.

— Você quer o impossível, querida.

A atenção de Dominic foi atraída neste momento por um peixe enorme que saltou ao lado da lancha.

— O que é? Um tubarão?

Paul voltou-se para a direção em que ela apontava o dedo.

— Não. É um boto.

— Ah, que graça! É o primeiro boto que eu vejo no mar. Paul reclinou-se no peitoril de metal com um gesto indolente.

— Os botos costumam brincar na nossa praia particular e você terá muitas ocasiões de nadar no meio deles. Essa, pelo menos, será uma de suas diversões quando eu não estiver aqui.

— Aonde você vai?

— Eu passo uma parte do ano viajando.

— Você tem alguma viagem marcada para breve?

— Tenho. Para dentro de um mês, mais ou menos.

A lancha contornou a ilha de Andelos e dirigiu-se para o embarcadouro particular que havia na casa de Paul. Quando passaram diante da cidade, Dominic avistou uma variedade enorme de barcos de pesca e veleiros ancorados no porto. Alguns tinham voltado da pescaria em alto-mar e estavam com os porões abarrotados de peixes. As gaivotas sobrevoavam os barcos à espera da primeira oportunidade para apanhar os peixes que caíam na água.

As casas construídas de frente para a praia eram quase todas brancas ou cor-de-rosa, com janelas verdes ou azuis. O sol batia nos telhados com tal intensidade que até doía na vista. Eles tinham acabado de ultrapassar um pequeno barco de pesca quando Dominic prestou atenção à música que um dos homens da tripulação estava cantando em altos brados.

— O que diz a canção?

— E uma canção de amor — explicou Paul. — O pescador estava dizendo que ia casar com a mulher que adora depois de casar primeiro as irmãs.

— Ué, ele não pode casar antes das irmãs?

— Na Grécia é assim. O filho mais velho nas famílias pobres sustenta a casa até que as irmãs estejam casadas.

— Coitado! E por isso que a canção me pareceu tão triste...

— Ele tem a noiva para consolá-lo. Ela vai esperar muitos anos, se for preciso. Durante esse tempo, o coração da moça amadurece, como o vinho nos barris. — Paul apontou para longe. — Olhe, estamos chegando.

A praia na frente da casa era protegida por rochas de granito que desciam até o mar. Como o dia estava calmo, a lancha deixava um sulco comprido sobre as águas tranqüilas da enseada.

— Que praia mais linda! — exclamou Dominic com os olhos brilhantes.

— Eu não disse? Sabia que você iria gostar.

A lancha foi amarrada com uma corda no ancoradouro e os dois desceram pela escadinha de madeira.

— Como a gente faz para chegar ate a casa?

— Pela gruta — explicou Paul, apontando para uma caverna que se abria na rocha. — Antigamente esse abrigo era o esconderijo dos piratas e dos ladrões.

— Que maravilha!

—Quando a maré está baixa, não tem perigo entrar na gruta. Mas quando a maré está alta, ou o mar bravo, é preferível não usar essa passagem subterrânea.

Um menino, que tinha feito a travessia na lancha, aproximou-se correndo com uma lanterna na mão.

— Vamos, então — disse Paul, apontando com a lanterna para a entrada da gruta.

Dentro da caverna as palavras e as risadas ecoavam pelas paredes úmidas. Dominic aproximou-se instintivamente de Paul, que balançava a lanterna de um lado para o outro, indicando o caminho que deviam seguir.

— Estamos começando a subir o morro. Está notando?

— Sim. Que umidade, meu Deus! As gotas pingam em cima da gente.

— Logo vamos chegar a uma porta que dá para o jardim da casa. Gostou dessa passagem secreta?

— Adorei. Parece um filme de terror.

— Cuidado agora — alertou Paul, alguns passos mais adiante. — Os degraus da escada estão gastos e escorregadios. Segure-se em mim.

O musgo cobria os tijolos e as pedras da escada. Dominic segurou o braço de Paul e acompanhou-o em silêncio pela passagem estreita. De repente avistou um clarão de luz e viu as primeiras árvores frondosas que faziam parte do pomar. Havia uma variedade imensa de plantas tropicais, muitas delas absolutamente desconhecidas para Dominic. O perfume das flores e da resina dos troncos impregnava o ar de um aroma excitante. Havia um canteiro unicamente de ervas de cheiro, com pés de hortelã, manjerona, manjericão, pimenta...

— Que delícia! —exclamou Dominic, deslumbrada. — Foi você quem mandou plantar este canteiro?

— Foi. Tenho loucura por temperos. Do outro lado da casa avista-se a mata de pinheiros.

Paul apanhou uma florzinha miúda que nascia no chão e espetou-a nos cabelos louros de Dominic. Ela se lembrou sem querer de Barry e dos passeios que faziam pelo bosque de sua cidade natal em Fairdane.

A casa no alto do penhasco, isolada do mundo, tinha um ar inquietante de mistério. As paredes eram da cor de tabaco claro e a arquitetura tinha a sobriedade de um templo grego. As linhas eram muito puras, quase sem nenhum ornamento, e alguns poucos degraus levavam ao pátio externo em forma de meia-lua. Em toda a volta havia mesas e cadeiras de ferro batido, pintadas de branco, e imensos vasos de flores onde brotava toda espécie de plantas tropicais. Do pátio avistava-se uma nesga do mar no fundo de um despenhadeiro quase vertical. Dominic debruçou-se no parapeito que dava sobre o abismo e voltou-se com o rosto lívido de medo.

— Nossa Senhora! Que vista assustadora... Eu estou vendo o mar batendo nas pedras lá embaixo.

— Você precisa vir aqui num dia de tempestade. As ondas batem com tanta fúria nas pedras que a espuma chega quase até aqui em cima.

— Virgem!

— Vamos... Vou lhe mostrar o interior. Entraram de braço dado na primeira das salas.

— Aqui é a sala de estar — disse Paul, apontando para o salão espaçoso.

Espelhos venezianos, com molduras de prata, estavam pendurados nas paredes. Os móveis eram de ébano, esculpidos à mão, e o lustre de cristal preso no alto do teto, podia subir e descer a fim de que as lâmpadas de óleo fossem acesas ao entardecer.

— Mandei construir aquela lareira ali — disse Paul, apontando para uma belíssima lareira de mármore com uma grade dourada na frente, que protegia os tapetes das faíscas. As toras de pinho estavam empilhadas cuidadosamente numa cocha de madeira. — Poderemos conversar aqui nas noites frias do ano.

Dominic balançou a cabeça em silêncio e voltou à atenção para a outra extremidade da sala, onde uma pequena escada levava a uma plataforma de uns dois metros de altura, em cima da qual estava um piano de cauda.

— Que beleza! — exclamou ela com os olhos radiantes. Um dos seus passatempos prediletos era tocar no piano antigas canções irlandesas. Tinha uma voz melodiosa, um ouvido excelente e seu tio costumava dizer que, se ela tivesse cursado o conservatório, podia ser uma pianista de nome.

— Gostou do piano?

— Lindo, lindo!

Ela gostaria de sentar-se no banquinho forrado de veludo, levantar a tampa pesada e correr os dedos pelo teclado polido. Em vez disso, porém, continuou parada no meio da sala, olhando embevecida para o valioso instrumento.

— Ele é seu.

— Meu? — Ela voltou-se para Paul com uma expressão de incredulidade.

— Mandei vir esse piano de Atenas há três semanas. Essa plataforma era usada antigamente por meu avô para sua escrivaninha de trabalho. Este cômodo, por sinal, era o escritório, e fui eu que o transformei em sala de estar. Aquele lustre antigo que você viu na entrada estava no quarto de minha avó.

— E o que é aquele objeto ali? — perguntou Dominic, apontando para uma tábua esculpida em cima da lareira.

— É o brasão da família.

Paul aproximou-se da lareira e passou o dedo sobre os caracteres gravados em baixo-relevo na madeira.

— O que está escrito aí?

— É uma citação das Sagradas Escrituras: "Defenda-me dos poderes das trevas".

— Nossa, que palavras sinistras!

— Foi meu avô quem escolheu esse lema para o brasão da família.

Dominic lembrou então que Paul tinha verdadeiro pavor de tomar sol nos olhos. Os dois tinham ido muitas vezes a praia em Atenas, mas Paul não tirava os óculos escuros, a não ser quando se deitava de bruços na areia, com os braços abertos em forma de cruz. Ela achava graça na posição, mas não comentava nada, com receio de que ele pudesse ficar bravo.

Provavelmente esse pavor tinha alguma coisa a ver com o tal de "poder das trevas" e com a cicatriz que lhe cortava o supercílio direito. Mas Dominic preferiu não abordar o assunto no momento. Em vez disso, dirigiu a conversa para um terreno menos inquietante.

— Sua irmã mora aqui?

— Não. Mora na casa da tia dela. Por falar nisso, podemos fazer uma visita às duas amanhã. Agora vamos continuar nosso giro pela casa.

Havia muitas passagens misteriosas, corredores sombrios, portas inesperadas que davam para saletas minúsculas, móveis escuros trabalhados à mão empilhados pelos cantos, tapetes gregos e turcos tecidos em teares manuais. Por último, entraram no quarto de Dominic, que tinha uma vista esplêndida para o jardim.

— Escolhi este quarto para você. Espero que seja do seu agrado.

— E o quarto mais lindo da casa. E muito obrigada pelo piano.

— Preciso dar alguns telefonemas — disse Paul, afastando-se em direção à porta. — A gente se encontra mais tarde. Divirta-se.

Ele acenou da porta e caminhou pelo corredor sombrio. Dominic deu um suspiro de alívio. A presença de Paul tinha o poder de deixá-la com os nervos tensos. Retirou as flores que ele espetara em seus cabelos e guardou-as numa gaveta da penteadeira. Em seguida, apanhou a escova e observou-se com atenção no espelho de três faces. Estava corada pelo sol e pelo vento que tomara na lancha. Os cabelos, porém, estavam medonhos e precisava ir urgentemente ao cabeleireiro.

— Posso entrar? — disse uma voz de mulher do outro lado da porta.

Dominic largou a escova em cima da penteadeira e voltou-se no banquinho para a porta.

— Entre. A porta está aberta.

Lita entrou com um sorriso nos lábios.

— Como foi de viagem?

— Muito bem, obrigada. E você, divertiu-se muito em Atenas? Matou a saudade da família?

Lita sorriu timidamente e contou sobre os dias que passara na casa do sogro.

— Você precisa de alguma coisa? — perguntou por fim.

— Não, muito obrigada. Vou arrumar a roupa no armário depois do almoço.

— Não quer que ajude?

— Não precisa, Lita. Eu me viro sozinha.

— Se você precisar de alguma coisa, estou à sua disposição. Pelo menos enquanto não tivermos uma arrumadeira.

— Eu creio que não vou precisar de mais nenhuma empregada em casa, Lita. Estou acostumada a fazer tudo sozinha.

Lita pareceu contrariada com a recusa.

— Eu tenho uma amiga que gostaria de ter esse emprego. As moças daqui são muito educadas e obedientes.

— Está bom, Lita, você me convenceu. Se você quer mesmo uma menina para arrumar os quartos e varrer a casa, deixo isso por sua conta.

Depois que Lita saiu, Dominic decidiu dar uma volta para conhecer a casa. A verdade é que se sentia meio esquisita, como se fosse uma intrusa naquele casarão enorme onde geração e gerações tinham vivido nos últimos cem anos. Abriu diversas portas com a curiosidade de uma criança que explora um local desconhecido, tomando cuidado, porém para não entrar na sala onde Paul estava trabalhando.

Depois de dar um giro completo pelo jardim e pelo pomar, Dominic voltou no fim da tarde para casa. Como o jantar era servido às sete horas nas casas gregas tradicionais, ela tinha tempo de sobra para tomar um banho de imersão.

Estava mergulhada na banheira, com água até o queixo, quando Paul entrou sem bater. Ele apanhou a toalha que estava pendurada no cabide atrás da porta e aproximou-se dela com um sorriso.

— O jantar está na mesa. Eu vou ajudá-la a enxugar-se.

— Você podia ter batido primeiro, antes de entrar.

— A vergonha é desconhecida entre os gregos. Você não viu como os pintores e escultores representam os homens e as mulheres sempre nus?

— Vi. Mas isso é na arte. Nós estamos em casa. Paul deu uma risada.

— Você tem resposta para tudo.

Mais tarde, quando Paul lhe ofereceu o aperitivo na sala de jantar, Dominic percebeu que ele a observava com um certo olhar de cobiça. No fundo, ele tinha razão. De que adiantava ter vergonha de aparecer nua diante dele, se Paul conhecia cada linha de seu corpo? Bebeu um gole de Campari enquanto olhava fixamente para a lenha que queimava na lareira, inundando a sala de um perfume forte de pinho silvestre.

— Em que você está pensando? — perguntou Paul, após um silêncio prolongado.

— Em que você se trata bem.

— O que você quer? Eu gosto das casas perfumadas e das mulheres bonitas. E minha fraqueza.

— A única?

— Não a única. Eu tenho outras. Um dia vou contá-las todas a você.

Dominic fitou-o com uma expressão intrigada. O que ele queria dizer com aquelas palavras? Era uma maneira velada de incluí-la entre seus caprichos de homem solitário?

- Não grite, menina!

A mulher de cabelos grisalhos fazia tricô numa cadeira de vime. Estava toda vestida de preto, desde os sapatos de salto baixo à blusa leve de cambraia, com botões de madrepérola. O radinho de pilha que estava ligado em cima da mesa era um sinal de que a viúva terminara o período de três anos de luto e que podia agora ter alguma distração na vida.

— Eles vão chegar de um minuto para o outro, tia! — exclamou Kara, voltando a cabeça com ansiedade na direção da estrada.

— Eu sei, mas não precisa gritar por causa disso. Kara estava na varanda da casa, de onde avistava a subida obrigatória de quem vinha da cidade. O rosto moreno da menina estava tenso de excitação com a vinda das visitas. Ela era nervosa e agitada por natureza e tinha manchas vermelhas nos braços de tanto que esfregava as mordidas de mosquitos.

— Olhe, lá estão eles!

Ela desceu correndo os degraus que levavam ao pátio da frente e acenou freneticamente para o carro que se aproximava do portão. No momento em que Paul desceu do carro, ela recebeu-o de braços abertos, com grandes manifestações de alegria.

— Ah, Paul, eu estava morrendo de saudade de você! Por que passou tanto tempo sem aparecer? Você é um ingrato! Onde estava? Viajando? Se divertindo? Por que não me escreveu? Já sei. Não precisa responder. Você casou...

As perguntas se sucediam com tanta rapidez que Paul não tinha tempo para responder. Ele se limitou a sorrir e a apertá-la nos braços, beijando os cabelos e a testa da menina. Dominic assistiu espantada aos abraços e beijos que os dois irmãos trocavam. A expansividade dos gregos era sempre um motivo de surpresa para ela, habituada às maneiras reservadas e frias da educação inglesa.

— Como você está crescida, minha irmã adorada! Logo estará da minha altura...

— Deus me livre. Eu não quero ser uma gigante!

— Venha cá, quero apresentá-la a Dominic. Ela não fala uma palavra de grego. Seja boazinha, então, e mostre que você aprendeu bem seu inglês na escola.

— How do you do — disse Kara no mesmo instante, sem se fazer de rogada.

Dominic desceu do carro com um sorriso aberto nos lábios. Tinha os cabelos presos atrás da nuca com uma fitinha azul e parecia mais jovem do que era na realidade. Kara arregalou os olhos e levou as duas mãos à cabeça, num gesto teatral.

— Não!

— O que foi? Por que você fez essa cara?

— Ela é mais moça do que eu!

— Também não precisa exagerar — disse Paul com uma gargalhada divertida. — Dominic tem vinte e quatro anos. Não parece, não é? Como estão os outros? Alexandra, sua tia?

— Titia está fazendo tricô na sala. Ela disse que eu preciso consultar um psicanalista.

— Um psicanalista? Que idéia é essa, garota? O que você tem?

— Ela disse que eu estou sofrendo dos nervos — respondeu Kara com uma risada contagiante.

— Ah, deixe disso! O que você fez para ela dizer isso?

— Eu me coço sem parar — disse Kara com uma franqueza adorável.

Ela levantou o braço e mostrou as marcas provocadas pelas unhas na pele sensível. Paul observou com atenção e deu um tapa na mão dela.

— Bobagem! Isso não é nada. — Voltou-se para Dominic. — Minha irmã não é uma graça? Só que é um pouco levada demais para a idade.

Kara deu uma risadinha e segurou a mão do irmão com um gesto afetuoso.

— Fale-me do casamento. Você está feliz? Dominic judiou muito de você? Ela leva o café na cama para você?

— Dominic levar o café na cama? — repetiu Paul com uma gargalhada sonora. — Você está sonhando, irmã! Ela é inglesa. Lá as mulheres são tratadas a pão-de-ló! São os maridos que levam o café na cama para as esposas...

— Mentira! Eu não acredito. — Ela voltou-se para Dominic, que acompanhava a conversa em silêncio. — Sabe eu tinha muito medo de que Paul não casasse mais. Ele já está meio velhinho, você não acha?

—Ah, você é uma peste, Kara! — disse Dominic sem controlar o riso.

O que a menina diria se soubesse das condições do casamento? Culparia o irmão ou a ela, Dominic, pelo matrimônio sem amor?

Sofia, a tia de Kara, recebeu-os na saía de estar com uma garrafa de água gelada e um pote de geléia, como é o costume na Grécia quando se recebe uma visita.

Kara aproveitou uma pausa na conversa para dizer que queria mostrar o quarto a Dominic.

— Não repare na desarrumação — disse Sofia com um sorriso de indulgência. — Vamos sentar na varanda, Paul. Preciso conversar com você.

Kara voltou-se da escada com o rosto corado.

— Titia quer contar que eu fui expulsa da escola.

— Não me diga! —exclamou Paul de olhos arregalados, — Por quê? O que foi que você aprontou desta vez?

— Eu fui apanhada tocando violão num bar do porto. O diretor não gostou e me deu uma bronca medonha no dia seguinte.

— Claro você merecia — comentou a tia com o rosto sério.

— Merecia nada. Tia! Que mal tem eu tocar violão? Você não acha, Dominic?

Dominic hesitou um instante antes de responder. Ela tinha receio de desagradar à tia ou a menina. Mas não havia outro jeito.

— Acho que sim.

— Viu só? Eu sabia que você ia tomar o meu partido! No momento em que Kara atravessou o corredor no andar de cima e abriu a porta do quarto grande de casal, Dominic ficou gelada. As malas tinham sido levadas para lá e a empregada estava arrumando suas roupas de dormir em cima da cama, ao lado do pijama de seda que Paul usava habitualmente.

Não havia dúvida, os dois iam dormir no mesmo quarto, como é o costume nas famílias gregas tradicionais. Sofia jamais podia entender que uma mulher recém-casada dormisse em cama separada.

Kara sentou-se na beira da cama e afundou a mão no colchão de molas.

— A cama é macia e bem grande. Acho que você vai gostar.— Ela apalpou a camisola fina que Dominic usava para dormir. — Menina, você não sente frio, só com isso?

Dominic deu uma risada sem graça.

— Eu me cubro com a colcha e o cobertor.

— Ou então se esquenta no corpo de Paul, não é mesmo?

— Ah, você é impossível, Kara!

— É bom estar casada?

— Tem suas alegrias e tristezas, como tudo o mais. Antes que a menina pudesse fazer mais alguma pergunta indiscreta, Dominic abriu a bolsa e tirou de dentro um pequeno embrulho amarrado com uma fitinha prateada.

— Olhe, eu comprei isto para você. Espero que goste.

— Para mim? — exclamou Kara com um gesto de espanto e de alegria ao mesmo tempo. — É um presente que vocês compraram?

— Abra que você vai ver o que é.

Kara correu os dedos compridos sobre a fita e afastou-a sem desfazer o nó. Tirou em seguida o papel de seda que embrulhava a caixinha e levantou a tampa com uma excitação extrema. Bateu palmas de alegria quando avistou o estojo de maquilagem com tudo o que era preciso para pintar os olhos, a boca, o rosto...

— Ah, como você adivinhou que eu adoro me pintar? Foi Paul quem disse?

— Foi.

— Muito, muito obrigada. Você é um amor.

— Fico contente que você tenha gostado.

Kara ficou séria de repente e fitou Dominic no fundo dos olhos.

—Como a gente se sente quando é realmente bonita?

A pergunta foi tão inesperada que apanhou Dominic de surpresa. Ela corou com o elogio espontâneo da menina.

—A beleza é uma coisa superficial, Kara. Não é tudo...

Ela não podia explicar à menina que exatamente por ser bonita. Paul a pedira em casamento, e que aceitara isso unicamente para salvar a honra da família. Kara não tinha idade nem maturidade suficientes para entender o mundo complicado dos adultos. Era preferível por isso dar uma resposta evasiva, que não negava nem afirmava nada em especial.

— Como? Eu não entendo. Quer dizer que a beleza não conta?

— Conta, naturalmente, mas há outras formas de beleza mais importantes que essa.

— Paul escreveu na carta que me mandou que você era bonita como uma pintura de Boticelli.

— Ah, ele estava brincando com você! — exclamou Dominic completamente sem jeito, morta de vergonha. Só faltava essa! Ser comparada às madonas de um dos maiores pintores do Renascimento!

— Pois eu acho que não — disse Kara, imperturbável. — Você é muito bonita mesmo. Tem a fisionomia serena das moças florentinas. Eu tenho um amigo que gostaria muito de fazer o seu retrato.

Dominic levantou a cabeça como se tivesse recebido um choque.

— Como se chama? Ele mora aqui na ilha?

Kara, pelo visto, era tão imprevisível quanto Paul. Fazia apenas dez minutos que as duas estavam conversando e ela já lhe causara tanta perplexidade quanto nos primeiros encontros com Paul.

— Ele se chama Barry. Você o conhece? Ele é inglês, mas está morando aqui na ilha numa casa que alugou, bem de frente para o mar. Minha tia não suporta as pinturas que ele faz, mas eu gosto muito. São muito legais. Sem falar que Barry é lindo. Você vai gostar de conhecê-lo.

Dominic ficou branca como cera. Barry estava morando na ilha de Andelos? Levou a mão à cabeça, como se sentisse uma tontura repentina, e apoiou o corpo no colchão da cama.

— O que foi, Dominic? Você está sentindo alguma coisa? Dominic deu um suspiro fundo e sentou-se sem jeito na beira da cama.

— Acho que foi esse calor. Eu não estou acostumada a tomar sol na cabeça. Sem falar que estou praticamente em jejum...

— Você quer tomar um café com leite? Eu vou buscar para você.

— Muito obrigada, Kara, mas não precisa ter esse trabalho. Eu vou com você até lá embaixo.

— Vamos, então.

Quando as duas desceram a escada, Paul foi ao encontro delas.

— O café está servido na varanda. O que vocês estavam fazendo? Trocando confidências?

Dominic ficou gelada ao pensar que Kara podia mencionar o pequeno incidente de alguns minutos antes. Kara, porém, já estava pensando em outra coisa: Ela atirou-se nos braços do irmão.

— Muito obrigada pelo presente que vocês me deram.

— Você gostou, amor da minha vida?

— Adorei.

—E o bandolim que eu mandei de Atenas?

— Eu já disse na carta que foi o presente mais bonito que ganhei na vida. Você é um louco varrido por me dar essas coisas. Aposto que custou uma nota!

Kara adorava música e o quarto dela estava repleto de instrumentos que Paul descobria nas lojas de antiguidades. A última aquisição fora um bandolim autêntico do século XVIII.

— O homem da loja me disse que é uma peça rara.

— Eu vou tocar para vocês depois do jantar. Vale a pena ouvir o som daquele instrumento. É qualquer coisa de sensacional...

— Olhe lá, hein, não vá nos decepcionar! — disse Paul com o rosto sério. — Dominic é entendida em música e toca piano divinamente.

—Você gosta de musica? —exclamou Kara com os olhos radiantes. — Ah, hoje é o dia mais feliz da minha vida. Finalmente encontrei alguém que tem os mesmos gostos que eu. — Ela abraçou Paul com ternura. — Muito obrigada, irmão, pelo presente que você deu.

—Qual deles? A caixa de maquilagem ou a cunhada?

— Os dois!

Paul deu uma risada.

—Vamos tomar o café antes que esfrie.

Na varanda da casa, debruçada sobre o parapeito de madeira, Dominic apreciou em toda a sua riqueza de tons a paisagem marinha. Parecia uma tapeçaria dos antigos mestres medievais. Barcos a vela balançavam ao sabor das águas com a delicadeza de uma aquarela. Os barcos de pesca, por sua vez, tinham os cascos pintados de cores vivas vermelho, verde, azul e roxo, o que dava à paisagem um ar de festa.

No alto do morro avistava-se o forte antigo, construído na época em que os venezianos ocuparam a ilha. Os muros caiados de branco cintilavam à luz da tarde. Duas pequenas ilhas, ancoradas no meio da baía, enfeitavam a paisagem como dois recifes de coral.

Dominic estava tão absorta na paisagem que não tomou consciência da visita que estava sentada na cadeira de vime, no canto da varanda, ao lado da dona da casa. Foi Kara quem chamou a atenção dela quando cumprimentou o homem com uma exclamação de surpresa.

— Você está aí? Como é que eu não vi você chegar?

— Você estava lá em cima.

Dominic voltou-se, intrigada, ao ouvir a voz familiar e arregalou os olhos quando avistou Barry a dois passos de si. Ele não mudara nada! Era o mesmo rapaz bonito de sempre. O olhar que Barry lhe dirigiu penetrou-a até o âmago da alma. Ela reconheceu no mesmo instante a boca grande e sensual, que tinha beijado a sua tantas vezes, os cabelos castanhos-avermelhados que lhe faziam cócegas no pescoço quando ele a estreitava nos braços.

No primeiro momento, ficou na dúvida se devia ou não dar a entender que os dois se conheciam de longa data. Talvez fosse melhor não demonstrar nenhuma surpresa e fingir que estavam se vendo pela primeira vez. Só assim não teria que dar explicações a Paul, diante dos outros, sobre a antiga amizade que os unia.

— Você está de parabéns, Paul — Barry disse com naturalidade. — Escolheu a inglesa mais bonita que havia em Londres para se casar. Você é um maroto muito grande!

— Eu sabia que você ia aprovar a minha escolha. Afinal, não é à toa que você faz retratos de mulheres bonitas.

— Você não vai me apresentar a seu amigo? — disse Dominic com um sorriso, apoiada no parapeito da varanda.

— Desculpe, querida. Barry, esta é Dominic, minha primeira e única mulher.

Kara deu uma gargalhada tão alta que todos se voltaram na sua direção.

— Modos, menina! — disse a tia. — Você está conversando com adultos e não com crianças da sua idade.

— Eu sei, tia. Mas não agüento esse meu irmão. —Kara me falou que você é pintor — disse Dominic. — Eu estou muito curiosa para ver suas pinturas.

— Por que vocês não vão ao meu ateliê? — perguntou Barry, estendendo o convite ao casal. — Tenho pintado muito ultimamente.

Havia um brilho nos olhos dele ou era impressão? Dominic ficou na dúvida. Mesmo assim, sentiu uma contração esquisita na boca do estômago. Parecia que o tempo tinha dado uma volta para trás e que ela estava diante de seu primeiro namorado, aos dezesseis anos de idade!

— Kara me contou que você alugou uma casa de frente para a praia — disse Dominic.

— Pois é. Vocês precisam conhecê-la.

— Você está gostando daqui?

— Muito. Especialmente agora, depois que me encontrei. A explicação era tão ambígua que ninguém ousou entrar em detalhes. Sofia aproveitou a pequena pausa para fazer algumas perguntas a Paul sobre o casamento e sobre a viagem de lua-de-mel. Enquanto isso, Kara servia café e bolinhos de nozes aos presentes. Em seguida, sentou-se no braço da cadeira de Paul e voltou sua atenção para a conversa.

— Você conheceu a Acrópole? — perguntou Barry em dado momento a Dominic.

— Sim. Foi o primeiro locai que visitamos. Estivemos lá primeiro ao pôr-do-sol e depois à noite. O Templo da Vitória estava deslumbrante ao entardecer. Tinha uma cor avermelhada maravilhosa. Parecia cobre.

— Dominic adora o crepúsculo — comentou Paul.

— As mulheres são românticas incorrigíveis — acrescentou Barry com indolência. — Por falar nisso, eu gostaria muito de acrescentar o retrato de Dominic à minha coleção. Você deixaria ela posar para mim?

Dominic corou ao ouvir a pergunta dirigida ao marido. Paul, porém permaneceu imperturbável, como sempre. Não disse que sim nem que não e era impossível saber o que estava pensando.

— Alexandra vai morrer de inveja! — exclamou Kara, intervindo na conversa — Ela se julga a única mulher bonita na ilha.

— Por falar nisso, onde está ela? — indagou Paul, aproveitando a interrupção da irmã para deixar a pergunta de Barry sem resposta.

— Ela foi dar um passeio de lancha com uns amigos.

— Eu os conheço?

— Não. São uns americanos ricos que vieram passar férias aqui e alugaram uma casa na praia. Alexandra naturalmente não podia perder esta oportunidade...

— Olhe essa língua! — Sofia interveio. — Alexandra fez muito bem em fazer amizade com os americanos que encontrou na praia.

— Ah, é? Nesse caso eu também vou me divertir com os amigos que encontrar por aí.

— Não seja boba! Você é uma criança. Alexandra é uma mulher feita.

— Até demais! — acrescentou Kara com uma risada. Sofia murmurou um comentário em voz baixa. Kara era tão franca e espontânea que ninguém podia lhe querer mal. Dominic voltou a olhar de relance para Barry, que ouvira a conversa em silêncio, e pensou que ele devia estar recordando o passado, quando tinha apenas vinte anos, andava com uma malha de gola rolê e uma calça desbotada de veludo, muito diferentes do terno impecável e caro de linho inglês que vestia no momento.

No dia em que os dois se despediram, oito anos atrás,

Dominic pensou que eles iriam encontrar-se de novo mais tarde, era circunstância bem diversa. E, de fato, era isso que tinha sucedido. Estava diante de um pintor de renome, recém-casada com o homem mais rico da ilha. Dominic levantou a cabeça e notou que Kara tinha escorregado do braço da cadeira e que estava aninhada no colo do irmão.

— Paul, você está estragando essa menina! — disse Sofia com a voz cortante. — Kara não tem mais idade para se sentar no colo dos homens, como se fosse uma criança. Não são todos os homens que gostam disso.

Paul deu um sorriso e passou a mão nos cabelos macios da irmã.

— Você precisa aparar esses cabelos, garota. Estão cheios de pontas.

— Eu sei. Mas tenho preguiça de ir ao cabeleireiro.

Kara revirou os olhos como se estivesse nadando de felicidade no colo do irmão. Correu de leve os dedos pelo rosto moreno dele, como se tocasse uma escultura de mármore.

— E você precisa fazer essa barba. Está crescida. Barry olhou discretamente para o relógio e levantou-se da cadeira.

— Está na minha hora. Espero que vocês aproveitem os dias lindos que tem feito para ir à praia. Minha casa fica bem de frente para o mar. Passem um dia desses lá. Eu gostaria muito de ouvir a opinião de vocês sobre minhas últimas pinturas.

— Nós vamos combinar um dia — disse Dominic.

— Você não quer posar para mim? — insistiu Barry, repetindo o convite anterior.

— Se Paul deixar...

— Você deixa, Paul? — perguntou Kara com sua espontaneidade habitual.

— Com muito prazer. Vamos marcar mais tarde uma data.

— Eu não tenho pressa — disse Barry com um sorriso. — Conto permanecer na ilha até o fim do ano, pelo menos. Foi com essa intenção que aluguei a casa na praia.

Barry despediu-se de todos e desceu os degraus que levavam ao pátio. Dominic acompanhou-o com o olhar, como se estivesse sonhando. Como era estranho o destino! Depois de tantos anos encontrar-se com o seu primeiro namorado numa circunstância tão imprevista quanto aquela. Era uma coincidência que não se repetiria duas vezes na vida.

— Não se esqueça do jantar amanhã à noite — disse Kara, no momento em que Barry abriu a porta do carro. — Estamos esperando por você.

— Combinado. Eu virei sem falta. Adeus, pessoal.

— Até amanhã — disse Kara, acenando.

Depois que Barry partiu, fez-se um silêncio pesado na varanda. Kara levantou-se finalmente do colo do irmão e perguntou a Dominic se queria ver o vestido que ela mandara fazer para o jantar do dia seguinte. Dominic aproveitou o pretexto para sair da varanda, onde o clima estava tenso. No momento em que passou diante de Paul, ele segurou-a de leve pelo pulso, como se quisesse detê-la um instante perto de si.

— Você simpatizou com Barry?

—Ele é muito educado —disse Dominic. —Como todos os ingleses.

— Nem todos. Alguns são insuportáveis.

— Mais do que eu?

Dominic mordeu o lábio ao notar que Sofia e Kara acompanhavam atentamente a conversa entre os dois. Paul voltou à mão dela e beijou a palma com um gesto estudado. Dominic recebeu o beijo com indiferença, sabendo que aquilo era apenas um gesto para impressionar Sofia e Kara, que presenciavam a cena.

— Nem sempre você é insuportável — disse ela em voz baixa, retirando-se da varanda na companhia de Kara.

 

Dominic soltou uma exclamação de espanto ao entrar no quarto de Kara. Havia tantas coisas espalhadas por toda parte e tantos objetos diferentes pendurados nas paredes, atirados em cima do armário, dos móveis e das cadeiras, que a peça parecia mais uma loja de bricabraque do que um quarto de dormir,

Kara deu uma gargalhada com a expressão atônita de Dominic e apanhou o último presente que tinha ganhado do irmão, o belo bandolim antigo comprado em Veneza.

— Não é lindo? — perguntou, correndo os dedos pelas cordas afinadas do instrumento.

— Belíssimo. E de quem é esta fotografia aqui? — perguntou Dominic, apontando para um porta-retrato com moldura de prata que estava em cima da cômoda, ao lado de uma porção de outros objetos.

— De minha mãe. Ela não foi feliz com papai. Tia Sofia disse que ela foi o pecado de um homem de idade. — Kara tirou um som melodioso do bandolim. — E eu sou a conseqüência dessa união.

— Não diga isso!

— E o que todos dizem. Eles não entendem como eu possa ter saído tão diferente dos outros membros da família. Acham que sou meio desmiolada e que é por isso que gosto tanto de música. As pessoas da minha família ouvem música por educação, mas não com paixão, como eu.

— E esta moça aqui, quem é? — indagou Dominic, apontado para uma outra fotografia.

— Essa é Alexandra, a viúva de Lucas, meu irmão mais moço.

— Ah, sim. Eu soube que ele morreu num acidente...

— No mar, como papai. O oceano é cruel, às vezes...

— Lucas não se parecia muito com Paul — disse Dominic, voltando à atenção para uma outra fotografia.

Era de Paul, aos dezoito anos de idade. Estava com um casaco grosso e um gorro de lã que cobria parte da testa. Tinha uma expressão alegre e jovial, muito diferente do Paul que ela conhecia.

— Paul era um garotão quando tomou parte na revolta grega — explicou Kara. — Ele foi ferido por uma granada durante o cerco de Atenas e quase morreu no hospital. Foi aí que recebeu a cicatriz que tem no rosto. Felizmente a cicatriz não o desfigurou. Ele continua um homem bonito como antes e, se vocês tiverem filhos, vão ser as crianças mais bonitas da ilha. Imagine só! Uma loura bem loura e um moreno de cabelos bem escuros...

Calma Kara! Faz somente uma semana que estou casada com Paul. Não vamos falar nos filhos por enquanto.

— Os bebês são uma graça, você não acha?

— Até ficarem grandes — disse Dominic com um sorriso sem graça.

Ela preferia passar para outro assunto, mas Kara não estava satisfeita com as respostas evasivas.

— Confesse! Você não gostaria de ter um filho? As mulheres gregas só se sentem realizadas quando dão um filho ao marido. As inglesas não?

— Não se trata disso — disse Dominic, sem jeito. — Na Inglaterra as mulheres preferem aguardar um pouco antes de terem o primeiro filho.

— Por quê? Elas não têm confiança nos maridos?

— Não é bem assim. Eu sei que entrei para a família de vocês ao me casar com Paul, mas não estou ainda completamente adaptada a esta nova situação. Entendeu?

— Sim. Você sente que não pertence de corpo e alma à família, à nossa ilha. Mas isso vai passar com o tempo. Logo, logo você vai se comportar em tudo como uma mulher cem por cento grega. E vai se sentir em casa no meio da nossa família. Paul é meio mandão às vezes, mas você pode levá-lo com jeitinho. Aliás, os casamentos mais harmoniosos são aqueles que têm altos e baixos, que têm brigas e reconciliações... Você e Paul brigam muito?

Dominic deu uma gargalhada bem-humorada. Kara era realmente impagável com suas perguntas indiscretas.

— Nós não tivemos tempo ainda para brigar.

— Mesmo assim, eu notei que há uma certa tensão entre vocês dois.

— Você notou isso? — perguntou Dominic, perplexa com a intuição da menina. Afinal, Kara tinha apenas dezesseis anos.

— Não é verdade?

— Talvez você tenha razão.

— Todo casamento é assim mesmo, no início. A felicidade tem que ser conquistada. Ela não cai do céu.

— Nossa, até parece que estou ouvindo um professor fazendo uma conferência na universidade! Onde você leu tudo isso, menina?

Kara sorriu com os olhos radiantes de orgulho.

— Os gregos adoram filosofar sobre os problemas da existência. Lembre-se de que a Grécia foi o primeiro país do Ocidente a ter pensadores e filósofos. Enquanto os outros povos mal sabiam contar até cem, os gregos dissertavam sobre as leis do universo, sobre o curso dos astros, sobre o ciclo vital das estações...

— Você tem toda razão. A Grécia é a mãe da civilização ocidental.

Kara ficou em silêncio um momento, enquanto dedilhava as cordas afinadas do bandolim. Dominic ouviu com prazer à melodia brotar do instrumento, que era uma cópia dos primeiros alaúdes tocados pelos músicos gregos na Antiguidade. A harmonia meio bárbara tinha uma longa tradição e ia se perder na noite dos séculos.

— Você toca muito bem — comentou Dominic quando Kara terminou.

— Neste instrumento todas as músicas ficam bonitas. Paul adora me dar presentes. Uma vez, quando ele voltou de uma viagem ao Oriente, trouxe para mim uma caixinha de música como eu nunca vi outra igual. Um dia, com mais calma, vou lhe mostrar todos os presentes que ganhei dele.

— Estou curiosa para ver.

Após despedir-se de Kara e voltar para o quarto, Dominic encontrou Paul debruçado na sacada, olhando pensativo para o jardim. Ele voltou-se ao ouvir seus passos e caminhou na sua direção com uma cigarrilha entre os dedos.

— Gostou da casa?

— A casa é uma delícia, mas isso não impede que seus parentes percebam a situação existente entre nós. Sabe o que Kara perguntou?

— Não. O que foi?

— Se tínhamos planos para o futuro, a respeito dos filhos, evidentemente...

— Kara é uma criança e fala tudo o que lhe passa pela cabeça. Você não pode levar seus comentários muito a sério.

— Pois ela me pareceu muito madura para a idade.

— Ela é extremamente viva — disse Paul com orgulho.

— Teve a quem sair.

— Você acha que ela se parece comigo?

— Como o verso e o reverso de uma moeda — disse Dominic com um sorriso. — Você não vai se vestir para o jantar?

— Vou, mas se você quiser tomar banho primeiro, pode ir. Eu me visto mais depressa do que você.

Ao entrar no banheiro, Dominic surpreendeu seu olhar cansado no espelho. Os olhos azuis tinham perdido o brilho que conservavam até pouco tempo atrás. A adolescente despreocupada e feliz que passeava pelos bosques de Fairdane à procura de morangos silvestres não existia mais. Em seu lugar surgira uma moça de fisionomia triste, que estava casada com um homem de quem não gostava. Desviou o olhar do espelho e abriu as duas torneiras da banheira.

O jantar é a principal refeição do dia na Grécia e, sempre que as condições permitem, é servida ao ar livre. Muitas vezes os pequenos banquetes em família prolongam-se até a meia-noite.

As estrelas estavam brilhando no alto do firmamento no instante em que Dominic caminhou de braço dado com Paul na direção da mesa redonda de mármore, que estava posta no pátio da casa, iluminada por lanternas de ferro batido. Por enquanto só Sofia e Alexandra, a viúva de Lucas, o irmão mais moço de Paul, estavam sentadas, conversando.

Depois de ser apresentada a Dominic, Alexandra monopolizou a conversa com sua personalidade brilhante e em dado momento perguntou a ela o que estava achando da ilha. O inglês de Alexandra era impecável, fluente e sem o menor sotaque. Ela por sinal tinha consciência disso e passava de uma língua para a outra com uma facilidade incrível.

— Você não estranhou a solidão?

— Por enquanto, não. Pode ser que mais tarde eu me sinta meio perdida aqui na ilha.

— A casa de vocês é muito isolada.

— Ela tem exatamente essa finalidade — Paul interveio.

— Procurei criar um ambiente em que a gente se sinta isolado do mundo atual.

— Isso pode ser bom para você, que passa uma parte do ano viajando — comentou Alexandra. — Mas não se esqueça de que toda mulher sente falta da vida social. Eu duvido que Dominic agüente a solidão. Eu, pelo menos, me cansaria em dois tempos.

— Você é uma criatura irrequieta, Alexandra. Dominic foi criada no interior e sabe apreciar a beleza da natureza. Eu aposto que você nunca prestou atenção ao sussurro dos pinheiros à noite. Eles parecem estar contando um segredo...

— Os mosquitos nunca me deixaram ouvir esse segredo! — exclamou Alexandra com uma risada.

— Pois eu gosto muito da mata e do mar — disse Dominic com sinceridade, sentindo a cada minuto que passava um antagonismo maior em relação à mulher jovem que parecia uma intrusa no meio da conversa. — Como Paul disse, fui criada no campo até os quinze anos e nunca me adaptei completamente à vida agitada das cidades grandes.

— Está ouvindo? Dominic é como eu. Ela adora a solidão.

— Cuidado com os espíritos que há nas matas — disse Alexandra com um risinho malicioso. — Você pode se perder e não achar mais o caminho de casa.

— Se ela se perder, eu saberei encontrá-la.

— Que marido atencioso!

Dominic deu um suspiro de alívio quando os criados apareceram com as bandejas dos pratos. Kara chegou por último e, para desculpar o atraso, entrou correndo no pátio com os cabelos caindo em cima do rosto corado. Ela chamava imediatamente a atenção para si com sua alegria contagiante.

— Olá, pessoal! Desculpem o atraso.

— O que você vai tocar para a gente ouvir depois do jantar? — perguntou Alexandra, beijando a menina no rosto.

— Dominic está louca para ouvir nossas canções populares. Você não se importa?

— Eu? Desde quando minha opinião foi levada em considerarão nesta casa? — Alexandra voltou-se para a porta. — Olhe só quem está chegando! Nikos, querido, sua priminha passou batom especialmente em sua homenagem.

— É verdade, Kara?

— E mentira! Não ouça o que ela diz.

Nikos, um rapaz alto e bonito, puxou os cabelos de Kara ao passar por ela e foi diretamente ao lugar onde Paul estava sentado, com a intenção evidente de ser apresentado a Dominic.

Feitas as apresentações, Nikos sentou-se ao lado de Dominic e sua conversa animada foi bem-vinda após a tensão criada nos últimos minutos pelos comentários ferinos de Alexandra. Nikos fez as honras da casa e temperou a salada de legumes, função que cabia normalmente ao dono da casa.

— Um pouquinho de azeite, um tiquinho de vinagre, uma pitada de sal e uma boa mexida — disse ele em voz alta, enquanto despejava os diversos ingredientes na saladeira com o gesto estudado de um maítre.

Todos riram com sua imitação. Nikos era muito desembaraçado para a sua idade e se parecia com Paul quando ele tinha dezoito anos. Dominic lembrou-se da fotografia que vira naquela tarde no quarto de Kara. Infelizmente, Paul perdera muito de sua jovialidade ao se transformar um próspero homem de negócios, cheio de responsabilidade. Nikos seguiria o mesmo caminho? Ou levaria até a idade adulta seu temperamento alegre e divertido?

— Você está com saudade das noites londrinas? — perguntou Nikos em dado momento, voltando-se para Dominic com os olhos vivos e brilhantes.

— Londres estava um gelo quando nós saímos de lá. Eu prefiro o calor gostoso daqui.

— Ê bom saber disso. Kara e eu vamos levá-la para tomar banho de mar à noite, à luz das estrelas.

— Não brinque!

— Você nunca tomou banho de mar à noite?

— Nunca. Eu morreria gelada se fizesse isso na Inglaterra.

— Pois aqui a água está sempre morna.

— Paul, você deixa Dominic tomar banho de mar conosco? — perguntou Kara, intervindo na conversa.

— Ela é maior de idade, querida, e faz tudo o que tiver vontade.

— Viu só, Dominic? Paul não tem ciúme de você. Isso é bom sinal.

— Diga uma coisa, primo, há muitas inglesas parecidas com Dominic na Inglaterra?

Paul deu uma risada bem-humorada.

— Por quê? Você quer uma para você?

— Lógico! — exclamou Nikos.

— Eu duvido que você encontre outra igual a Dominic. Ela é um caso a parte.

— Você sempre foi um cara de sorte. Lembra-se daquela inscrição que você encontrou uma vez na pedra? — Nikos voltou-se para Dominic. —Paul disse uma vez que só se casaria no dia em que encontrasse uma mulher diferente de todas as outras que tinha conhecido até então. Eu perguntei a ele nessa ocasião o que faria se a mulher fosse casada ou estivesse noiva de um outro. Sabe o que ele respondeu?

— Não. O que foi? — perguntou Dominic com um sorriso sem graça.

— Ele disse que estava disposto a pagar o preço, fosse qual fosse.

— Ah, eu sabia que ele ia dizer isso, Nikos deu uma gargalhada alta e bateu com as mãos em cima da mesa.

— Modos, Nikos! — exclamou Sofia na extremidade da mesa. — Não vá quebrar minha louça de Corinto com o seu entusiasmo.

— Nikos está eufórico hoje — comentou Paul vagarosamente. — Eu sinto um prazer especial em ouvi-lo falar essas bobagens.

— Por que bobagens? — Alexandra interveio. — Todo mundo sabe que você é um homem obstinado e que leva às últimas conseqüências seus caprichos.

Dominic ouviu o comentário de Alexandra com um arrepio na espinha. Pelo visto, Alexandra tinha sido a única pessoa na família que percebera a verdade sobre o casamento dos dois. Quem sabe ela não fazia planos de casar-se com Paul? Assim, pelo menos, teria um substituto à altura do primeiro marido.

— Eu também gosto de falar bobagens — disse Kara com os olhos pensativos. — No fundo, é gostoso a gente conviver com pessoas imaginativas. Para mim, Dominic se parece com a jovem da lenda que se casou com o homem que roubou à noite o seu coração.

— Que história é essa, menina? — Sofia interveio com o olhar severo.— Você ouviu só, Paul? Ela vive no mundo da fantasia.

—Kara está com dezesseis anos — disse Paul. — Eu também era assim quando tinha essa idade.

Depois da sobremesa, quando todos se levantaram para tomar café na varanda, Dominic notou que Alexandra lhe dirigiu um olhar de ressentimento quando Paul lhe deu a mão. Evidentemente, Alexandra não podia admitir que o melhor partido da ilha tivesse se casado com uma inglesa, que iria assumir nos próximos dias a propriedade da mansão construída no alto do penhasco, o Ninho da Águia, como fora batizada pelos moradores de Andelos.

 

Dominic ouvira a música popular grega nas cantinas de Atenas, mas achava agora que ela não se comparava com os efeitos estupendos que Kara tirava do instrumento.

Os canteiros do jardim estavam cobertos de flores, cujo perfume intenso misturava-se ao aroma penetrante do café turco que a empregada servia num bule de prata. As lanternas antigas emprestavam um clima de mistério ao ambiente. A noite estava limpa, coalhada de estrelas, e a lua parecia uma grande bola prateada, caminhando majestosamente por entre as nuvens esgarçadas.

Encontrar Barry naquela tarde tinha deixado na boca de Dominic um gosto estranho de fruto proibido. Ela estava excitada e apreensiva, ao mesmo tempo, com a presença do pintor na ilha.

Kara estava cantarolando uma canção de amor, parte em grego, parte em inglês. As palavras eram sussurradas como um segredo e Dominic ficou toda arrepiada quando a canção chegou ao fim:

"Eu não posso morrer longe de ti, meu anjo adorado, com teu sopro dá-me o beijo da morte!"

— Você está com frio?

—Não, está uma delícia aqui fora. É essa música que me deixou toda arrepiada.

— Eu não canto mais.

— Não, cante! Gostei muito de ouvir.

O ruído tênue do repuxo no jardim emprestava à noite uma qualidade etérea. Foi Alexandra quem interrompeu bruscamente o clima de quietude com uma exclamação em voz alta:

— Escute, gente, chega de serenata! Vamos dançar numa boate. É muito mais divertido do que ouvir essa música triste. Sem falar que vamos encontrar uma porção de amigos lá.

— Tenha dó, Alexandra — disse Nikos com sua franqueza habitual. — Sair daqui, que está tão gostoso, para ir se enfurnar numa boate barulhenta!

— Ah, não seja desmancha-prazeres, Nikos — insistiu Alexandra, batendo o pé. — Há muito tempo para ouvir essas canções tristes quando a gente ficar velho. Agora a ordem é se divertir!

— O que você decide, Dominic?

— Até que seria gostoso. Faz tempo que eu não danço numa boate.

— Vamos todos, então — disse Paul. — Você não está cansada da viagem?

— Não, nem um pouco. Estou mais acordada do que nunca. Vou passar um pente nos cabelos, mas volto logo.

— Não demore.

Somente Sofia preferiu ficar em casa, regando seu jardim. Disse que não tinha mais saúde para fazer esses programas noturnos até as tantas e que isso era para os jovens.

— Deixe disso, mamãe — insistiu Nikos, abraçando-a pela cintura. — Nós vamos voltar cedo. Venha com a gente. Você vai se distrair um pouco.

Sofia segurou o filho pelos braços e fitou-o no fundo dos olhos, como se quisesse sorver o encanto que havia nas feições bonitas do menino.

— Fica para outra vez.

Nikos balançou os ombros com um suspiro.

— Você não esquece o papai de jeito nenhum. Sofia limitou-se a sorrir tristemente.

— Vão vocês, jovens.

Nikos deu a mão a Kara e dirigiu-se para o carro esporte que estava estacionado no pátio, na frente da garagem. Alexandra estava preste a entrar no carro de Paul quando Nikos a chamou de longe.

— Venha conosco, Alexandra. Paul e Dominic preferem irem sozinhos.

— Seu carro é muito apertado! Vai amassar o meu vestido.

— Deixe de história, mulher! Entre aqui.

— Nós vamos à frente para abrir caminho —disse Paul ao bater a porta do outro carro.

— Esses dois são uma simpatia — disse Dominic quando Paul tomou a estrada que levava ao porto. — Nikos é um amor. E Kara, então, nem se fala.

— Você está mais conformada em morar na ilha?

— Sim. Esta ilha é encantada. Ela me seduziu completamente. Você tem razão em morar aqui.

Paul observou-a de relance com o canto dos olhos. Dominic desviou a cabeça, sem jeito. Ele não podia desconfiar que era a presença de Barry na ilha que tinha alterado subitamente seu estado emocional. Mas a lembrança da violência que Paul demonstrava em certas ocasiões provocou-lhe uma contração na boca do estômago. Ficou repentinamente lívida quando o carro descreveu uma curva fechada à esquerda e ela foi atirada para o lado, indo bater em cima dele.

— Desculpe — disse sem jeito, voltando à sua posição anterior no banco.

— Segure-se bem. Essas curvas são muito fechadas. Dominic estendeu o braço e agarrou a argola de plástico que havia no painel. Em seguida, voltou ligeiramente a cabeça para o lado e observou a paisagem que desfilava pela janela do carro.

— O que foi? Por que você emudeceu repentinamente?

— Estava pensando.

— No quê?

— Eu pensei que seria bom se a gente convidasse Kara para morar conosco. Ela vai adorar.

Paul refletiu um segundo antes de responder:

— Eu notei que vocês se deram muito bem, mas eu tenho a impressão de que você disse isso por outro motivo.

— Qual? — perguntou Dominic com a testa franzida, voltando a cabeça na direção dele.

— Você tem receio de ficar sozinha comigo.

— Eu? Por quê? O que você quer dizer com isso?

Ela estava sentada com as mãos sobre os joelhos e os brincos de pérolas que Paul lhe dera brilhavam a luz tênue que vinha de fora.

— Nada mais do que eu disse. Você tem medo de mim.

— Está bom, vamos falar claramente, sem rodeios. Você só me quer fisicamente. A pessoa que eu sou por dentro, minhas ambições, minha personalidade verdadeira, nada disso significa coisa alguma para você. A verdade é que não sabe nada a meu respeito e nunca se interessou em saber. Você nunca se deu ao trabalho de perguntar quais são minhas preferências, nem meus planos para o futuro. Contanto que eu esteja a seu lado e satisfaça seu desejo do momento, está tudo bem.

O carro fez uma curva fechada à direita e as luzes da baía surgiram repentinamente a alguns metros de distância. Um veleiro estava ancorado no meio da enseada, todo iluminado, e o ruído de vozes e música chegava até a praia.

— Você gosta de outro homem? — Paul perguntou com voz fria, impessoal.

Dominic observou de relance o perfil recortado sobre a noite escura, o nariz reto, o queixo saliente, a testa curta e ligeiramente inclinada para trás, a beleza da arte grega na sua simplicidade absoluta. Queria gritar que amava outro homem, que estava ansiosa para encontrá-lo de novo, unicamente para abalar o ar imperturbável dele.

Entretanto, o medo que tinha de despertar a violência de Paul levou-a a mentir e adotar uma atitude reservada.

— Que diferença faria se eu gostasse ou não? Você não demonstra a menor compreensão por meus sentimentos. Você é feito de pedra, pelo menos comigo.

— Nem tanto assim — disse Paul com indolência. — Um homem de pedra não se extasia diante de um corpo bonito. Nem se sente ferido pelas agressões que recebe.

O que Paul queria dela? Afeição, amor? Claro que não! Ele sabia perfeitamente que ela aceitara aquele casamento absurdo apenas para tirar o primo de uma situação difícil.

Entretanto, houve uma noite em Atenas, durante a suposta lua-de-mel, em que Dominic percebeu nitidamente que Paul vivia num universo terrivelmente solitário. Ele tinha trinta e seis anos, se bem que às vezes desse a impressão de ser mais velho, tão fundas eram as linhas que sulcavam o rosto moreno.

No momento em que o carro parou diante do portão iluminado da boate, Paul desligou a chave e voltou-se para o lado, apoiando o cotovelo no volante. Seus olhos fitaram com cobiça os lábios dela, como se recordasse com saudade os beijos que tinham trocado algumas noites antes, no hotel em Atenas.

— Você pode convidar Kara para morar conosco, mas eu só imponho uma condição.

— Qual é?

— Ela não deve ter a menor suspeita sobre o nosso relacionamento. É muito criança ainda para se preocupar com os problemas dos adultos.

— Eu não representei bem o meu papel até agora? Ou você tem alguma critica a fazer?

— Não, nenhuma.

— Eu quero que Kara passe uns tempos conosco porque ela está infeliz na casa da tia. Como você mesmo percebeu.

Paul balançou a cabeça.

— De fato, Sofia mudou muito depois da morte do marido. Kara se ressente com isso. Quanto ao mais, acho que vocês duas vão se dar muito bem.

— Kara adora você, Paul — disse Dominic em voz baixa. — E eu não vou fazer nada para separá-la de você. Eu não sou vingativa.

Dominic abriu a porta do carro e desceu na calçada. Paul deu-lhe o braço e os dois subiram a meia dúzia de degraus da entrada. O porteiro cumprimentou Paul com cortesia e, ao entrarem na sala à meia-luz, uma moça de saía curta estendeu as máscaras que deveriam usar no baile à fantasia. A de Dominic era dourada, e a de Paul, preta. Ela deu uma risada divertida ao colocar a máscara no rosto.

— Eu pareço uma meretriz do século passado.

Paul limitou-se a fitá-la em silêncio e ela viu o brilho dos olhos dele pela abertura estreita da máscara.

— Juízo — disse ele em voz baixa.

No salão havia vários casais dançando de rosto colado, ao som da música lenta. Outros estavam sentados de mãos dadas atrás de pequenos reservados, bebericando os drinques e namorando em voz baixa.

As paredes do salão estavam decoradas com paisagens de Veneza, os grandes canais, as gôndolas e o belo palacete de colunas altas, cujos degraus de mármore da entrada são banhados pelas águas do mar. Num dos murais avistava-se a Ponte dos Suspiros, em cujo parapeito alguns casais estavam debruçados, apreciando as gôndolas que navegavam lentamente pelas águas escuras do canal.

Dominic olhou em volta com um misto de curiosidade e de admiração. No momento seguinte avistou um homem mascarado que caminhava em sua direção. A máscara dele era roxa e ela o reconheceu imediatamente pela cabeleira abundante, de um tom avermelhado de cobre.

— Vamos dançar?

Ela voltou-se para Paul, que balançou lentamente a cabeça.

— Não faça cerimônia. Eu vou conversar com uns amigos no bar.

Barry segurou-a pelo pulso e conduziu-a para o meio do salão.

Era a fumaça da saía que fazia seus olhos arderem? Ela piscou várias vezes enquanto rodopiava nos braços de Barry ao ritmo do tango. Estava excitada como se fosse seu primeiro baile. Durante alguns minutos dançou em silêncio, o coração batendo loucamente, dando voltas pelo assoalho polido como se estivesse no céu.

— Que coincidência, não?

— O quê?

— Encontrá-la aqui, depois de tantos anos.

— Você não sabia que Paul tinha casado com uma inglesa?

— Sabia, mas nunca pensei que fosse você. Foi a maior surpresa da minha vida,

— Para mim também.

Ela queria e não queria abandonar-se ao sentimento apaixonado que nutria por Barry. Paul estava conversando com Alexandra perto dali, como podia ver pelo espelho da parede.

— Vamos lá fora?

Ela afastou-se bruscamente dos braços dele com uma expressão de pânico.

— Eu não posso ficar sozinha com você.

— Por quê, Dominic?

— Porque não!

— Eu estou morrendo de saudade.

Os dedos de Barry apertaram a cintura fina e os olhos mergulharam nos dela como se fossem sorvê-los. Dominic queria pôr os dedos nos lábios dele, a fim de silenciar as palavras que dizia e que mexiam profundamente com sua alma.

— Não fale assim. Eu não gosto.

— Você não mudou nada. Todos esses anos eu pensei em você.

— Mentira! Você não quis saber de mim. Preferiu viajar para longe quando podia ter me pedido em casamento.

— Você era muito criança na época.

A música cessou e deu lugar a um número de dança popular. Os casais dirigiram-se lentamente para suas respectivas mesas. Dominic estava ao lado de Barry, protegida pela penumbra, quando uma mulher entrou na sala sob os aplausos da assistência.

Ela parou sob os fachos coloridos dos holofotes e começou a sapatear e a tocar castanholas num ritmo lento. Pouco a pouco, porém, a música ganhou intensidade e a mulher começou a rodopiar freneticamente, girando a saia ampla do vestido de um lado para o outro. O ruído intenso das castanholas, num ritmo rápido e ininterrupto, dava à dança um certo ar pagão. Parecia que o público presenciava uma orgia primitiva em alguma parte da terra, longe da civilização, onde homens e mulheres reuniam-se para celebrar os cultos da fertilidade,

— Vamos dar uma volta pelo jardim — sugeriu Barry em voz baixa. — Lá fora está mais sossegado que aqui. Podemos conversar à vontade.

— Só um minuto — disse Dominic, olhando apreensiva em volta de si. Paul estava ao lado de Alexandra e parecia distraído com o número de dança.

Barry segurou-a de leve pelo pulso e a conduziu ao jardim, passando pela varanda encoberta onde havia alguns casais sentados em cadeiras de vime.

— Por que você não esperou por mim?

— Eu não sabia se você ia voltar. Você nunca me escreveu uma unha. Eu estava certa de que havia se esquecido de mim.

— Eu tinha necessidade de viajar para poder me realizar como pintor.

— E você foi bem-sucedido?

— Fui. Eu pinto todos os dias e era disso que precisava: solidão para concentrar toda a minha energia no trabalho. O entusiasmo pela vida que os gregos possuem de uma forma extraordinária. Eu estive em muitas partes antes de vir para esta ilha. Mas nunca encontrei condições tão favoráveis quanto aqui. Os gregos são os herdeiros do fogo sagrado dos deuses...

O silêncio no jardim era interrompido apenas pela música que vinha do salão, cujo ritmo subia e descia como as palpitações da dor e da paixão.

— Você está feliz. Você não precisa de mim.

— Quem disse? Eu nunca precisei mais de você do que agora. Mesmo porque você não está feliz com o seu marido. Eu vi! Seus olhos brilham quando você está feliz.

— A felicidade não é tudo, Barry.

— Diga a verdade. O que há entre vocês dois? Dominic desviou os olhos do olhar intenso que Barry lhe dirigiu. Não queria mentir, mas não podia tampouco dizer a verdade.

— Só posso responder que Paul está no meu caminho. Ele é meu marido. Eu lhe devo fidelidade e respeito.

— Você sente atração por ele?

—Sinto — respondeu Dominic em voz baixa, como se estivesse envergonhada de fazer essa confissão íntima. — Paul sabe excitar uma mulher.

— E foi por isso que você casou com ele? Para sentir-se uma fêmea no cio?

Ela fechou os olhos como se tivesse recebido um tapa na face. Era impossível contar a Barry a verdade. Não podia mencionar os cheques falsos sem fazer referência a Douglas.

— Vamos entrar. A música terminou.

— Responda primeiro: você gosta de Paul?

Ela deu um passo para longe, mas ele a segurou pelo pulso.

— Não vamos falar nesse assunto, Barry. Nosso namoro acabou. Agora só sobrou a amizade.

— Não adianta a gente mentir a si mesmo, Dominic. Somente o amor nos satisfaz. Você sabe disso tão bem quanto eu.

— Isso ficou para trás. Nós não somos mais os adolescentes que namoravam na praia. A menina que usava rabo-de-cavalo e saia curtinha não existe mais, Barry. Eu sou uma mulher casada.

— Não é verdade. Você continua a mesma de sempre. Os anos passaram, mas o amor não passou. E não passará nunca.

— Eu não quero pensar nessas coisas. E não posso fingir que Paul não existe. Ele é um homem ardente, como todos os gregos, e terrivelmente ciumento.

— Eu não posso imaginar vocês dois juntos.

— Mas eu pertenço a ele.

0 jardim estava silencioso como se as árvores e os pequenos arbustos estivessem ouvindo a conversa entre os dois. O momento era perigosamente sedutor, repleto de recordações suaves de uma outra época, de um gosto de aventura que somente os adolescentes desfrutam em toda sua plenitude.

Dominic sentiu no corpo o contato das mãos familiares. As lágrimas ardiam em seus olhos. Ela tinha vontade de se abrir com Barry, contar tudo o que lhe pesava no coração. "Leve-me embora daqui" desejava dizer. "Vamos partir para longe e nunca mais voltar. Amanhã estaremos a muitos e muitos quilômetros daqui, aonde ninguém irá nos achar. Nós voltaremos a ser as crianças livres que fomos uma vez."

— Por que você se casou com ele, Dominic? Eu sei que Paul tem fortuna, sucesso, prestígio social. Mas nada disso contava para você. O que aconteceu, Dominic? Por que você fez isso? Você gosta desse homem?

— Eu não posso contar, Barry. Minha decisão envolve uma outra pessoa.

— Um parente?

— É.

— Ah, eu sabia que era isso!

Dominic abaixou a cabeça tristemente e caminhou de volta para o salão. Uma folha de fícus prendeu em seus cabelos quando ela passou embaixo da árvore, cujos galhos compridos cobriam uma vasta extensão do jardim.

Havia alguns pares dançando no salão, mas um casal em especial chamou imediatamente a sua atenção, Paul e Alexandra. Embora não estivessem de rosto colado, nem grudados um ao outro, havia um sorriso extasiado nos lábios de Alexandra que calou fundo no coração de Dominic. Ela sentiu de repente uma pontada no peito, como se estivesse com falta de ar.

— Nikos me deixou para dançar com aquela loura oxigenada.

Dominic acordou de seu devaneio ao ouvir a voz de Kara a seu lado.

— Ah, que bandido! Mas ele logo vai tirar você de novo. Tenha um pouquinho de paciência.

Kara deu um suspiro e voltou-se surpresa ao ver Barry entrando pela porta da varanda.

— Vocês dois estavam lá fora? — ela perguntou ao ver a folha de fícus que estava presa nos cabelos de Dominic.

— Fomos respirar um pouco. Estava muito quente aqui. Barry passou por elas sem dizer uma palavra, o rosto protegido pela máscara roxa que lhe cobria os olhos e parte do nariz. Kara, porém concluiu imediatamente que os dois haviam passado alguns minutos a sós no jardim e que não eram tão desconhecidos um do outro como tinham dado a entender quando foram apresentados na casa de sua tia.

 

Bom dia, Dominic.

Kara entrou com o rosto radiante na copa, onde Dominic estava tomando café, e sentou-se na cadeira vazia em frente à dela.

— Passou bem de ontem?

— Otimamente.

— Fez as pazes com Nikos?

— Que remédio! Eu gosto daquele bandido e ele não perde uma ocasião de me passar para trás. E, ainda por cima, titia toma o partido do filho, sempre. Ah, eu estou cheia!

— Coitada de você! Que vida sofrida, não? Kara deu uma risada bem-humorada.

— Nem me fale?

— Você não quer vir morar uns tempos conosco?

— Você está falando sério?

— Estou. Seriíssimo.

— Mas vocês acabaram de casar!

— E daí?

— E daí que vocês querem sossego.

— A casa é grande. Há muito espaço para três pessoas viverem em paz, sem serem perturbadas.

— Paul concordou?

— Lógico. Ele disse que sempre quis que você morasse com ele.

— Ah, que legal! — exclamou Kara, radiante. — Eu vou adorar morar com vocês, mas não queria ser uma intrusa.

— Você nunca será uma intrusa. Pelo contrário, Paul e eu gostamos muito de sua companhia.

— Você tem certeza de que eu não vou atrapalhar a lua-de-mel de vocês?

— Absoluta. Nós já aproveitamos demais nossa lua-de-mel — disse Dominic com um risinho cínico. — Agora vamos assumir a realidade. Além do mais, Paul tem uma viagem marcada para o mês que vem e, se você estiver morando comigo, eu não vou me sentir muito sozinha naquela casa enorme.

. — Ah, Dominic, eu não sei como lhe agradecer. Nós duas vamos nos divertir muito. Vamos tomar banho de mar, explorar as grutas que há nas pedras, fazer pesca submarina... Não sei se você sabe, mas Lucas adorava pesca submarina e tinha um equipamento completo.

— E onde foi parar tudo isso?

— Deve estar guardado em alguma parte. Paul deve saber. Lucas tinha inclusive uma máquina fotográfica especial para tirar fotografias embaixo d'água. Você precisa ver as fotos que ele fez!

— Devem ser lindas...

— Lulas, polvos, tartarugas gigantescas nadando em alto-mar, peixes de todas as cores e tamanhos, e até mesmo um tubarão!

— Ai, que medo! — exclamou Dominic com uma gargalhada.

— Pois é — disse Kara, repentinamente séria. — Eu adorava sair de barco com Lucas. Ele era um amigão.

— O que aconteceu com ele, exatamente? Eu só soube por alto que ele morreu num acidente.

— Foi o dia mais triste da minha vida. Nós tínhamos saído de lancha, e Lucas mergulhou com seu equipamento quando encontramos uma angra que ainda não havíamos explorado. Alexandra estava tomando banho de sol no deque. Paul estava lendo uma revista embaixo da parte coberta. E eu estava tocando meu violão baixinho, para não incomodar ninguém, enquanto cantarolava umas músicas que tinha aprendido na véspera num bar do porto. 0 dia não podia ser mais bonito. Desses dias em que você gostaria de ter asas como um passarinho para sair voando em direção ao céu. Um silêncio absoluto. Somente o ruído repousante das ondas batendo no casco da lancha. De repente Alexandra levantou a cabeça e perguntou com sua voz de taquara rachada: "Vocês não acham que Lucas está demorando muito?"

Kara fez uma pausa e abaixou a cabeça para as mãos que estavam pousadas em cima da mesa.

— E aí?

— Paul levantou-se da cadeira de lona e calculou rapidamente o tempo que Lucas estava embaixo d'água. Em seguida, sem dizer uma palavra, vestiu seu equipamento de pesca submarina e se preparou para mergulhar. "Aonde você vai?", perguntou Alexandra. "Vou ver se Lucas encontrou alguma sereia embaixo d'água..."

— Isso é bem do gênero dele — comentou Dominic com um sorriso. — E aí? Ele encontrou Lucas?

— Encontrou. Lucas estava preso na entrada de uma gruta, sem poder ir para frente nem para trás, por causa do aqualung que levava nas costas. Paul conseguiu retirá-lo de lá e o levou rapidamente para a superfície. Alexandra e eu ajudamos os dois a subirem na escadinha da lancha. Paul ajoelhou-se no deque para tirar a máscara de Lucas. No mesmo instante, porém, sentiu-se mal e caiu sobre o corpo desacordado de Lucas.

— Paul também perdeu os sentidos?

— Foi. Ele subiu muito rapidamente à tona, o que é muito perigoso e pode causar a morte por paralisia. Paul só voltou completamente a si no hospital, depois que foi levado para a unidade de terapia intensiva, onde respirou durante horas com máscara de oxigênio.

— E Lucas?

— Lucas estava praticamente morto no momento em que entrou no hospital.

— Que horror!

— Paul sentiu muito a morte do irmão. Ele nunca mais foi o mesmo de antes. Foi por isso que eu fiquei muito contente quando recebi sua carta, dizendo que tinha casado e que estava vindo para cá. Eu sempre gostei muito da Inglaterra e dos ingleses.

— Por sinal, você faia inglês perfeitamente, sem nenhum sotaque.

— E porque eu aprendi quando era criança.

— O meu grego nunca vai ser perfeito como o seu inglês.

— Que nada! Você vai acabar aprendendo perfeitamente.

As duas ficaram um instante em silêncio.

— Escute, vamos dar um passeio no porto? — perguntou Dominic por fim. — Talvez Nikos queira ir conosco. Eu queria conhecer a parte antiga da cidade.

— Boa idéia — disse Kara com sua animação costumeira. — Hoje é segunda-feira e Nikos está de folga à tarde.

Quando Dominic entrou no quarto para trocar de roupa e passar um pente nos cabelos, encontrou Paul debruçado na sacadinha, admirando a paisagem.

— Como você está cheirosa — disse ele, roçando o rosto nos cabelos compridos. — Aonde você vai?

— Vou dar um giro com Kara na cidade. Talvez Nikos vá conosco.

— Ótimo. Divirtam-se.

Dominic ficou na ponta dos pés e lhe deu um beijo no rosto.

— Você tem dinheiro?

— Eu não vou precisar.

— Como não? Vocês podem querer tomar um lanche na cidade. — Paul apanhou a carteira, tirou algumas notas de dentro e colocou-as discretamente na bolsa dela.

— Muito obrigada.

— Se precisar de mais, peça a Nikos. Não faça cerimônia. Depois nós acertamos as contas.

— Esse dinheiro dá de sobra. Até mais tarde.

— Adeus, querida.

Os três foram no carro esporte de Nikos até perto do centro. Estacionaram à sombra de uma árvore e foram a pé até o mercado, que estava muito concorrido àquela hora. Dominic achou muita graça num homem que andava com um pequeno rebanho de cabras e carneiros atrás de si, como se fossem os membros de sua família.

O local ao ar livre estava impregnado com os aromas mais diversos, provenientes de todos os artigos e mercadorias expostas à venda, diretamente no chão, em cima de esteirinhas de palha ou de cavaletes de madeira. Havia também muitas barracas montadas na pracinha, cujas lonas encardidas e rasgadas já tinham sido remendadas uma dezena de vezes. Postas de carne estavam penduradas em ganchos nas vigas de madeira e havia cestos grandes de vime repletos de peixes, apanhados aquela manhã no arrastão, cobertos com folhas de bananeiras.

O que Dominic gostou mais, porém, foi de passar defronte a uma padaria que expunha os pães fresquinhos em grandes caixas de madeira na calçada.

— Há duas coisas às quais eu não resisto — disse ela.

— O cheiro de pão assado na hora e sementes de gergelim torradas no forno.

Nikos comprou meia dúzia de brioches na padaria e os três saíram comendo e conversando pelas ruas, admirando as novidades. Com o dinheiro que tinha ganhado de Paul, Dominic comprou pequenos presentes para Kara, para Nikos e um especial para o marido.

— Olhe só! — sussurrou Kara no ouvido de Dominic, apontando discretamente para o cigano que estava agachado perto de um muro de pedra, com um cesto grande ao lado, onde havia toda espécie de objetos, desde um violino quebrado a um jogo antigo de baralho.

— O que ele faz? — perguntou Dominic em voz baixa.

— Ele lê a sorte.

O homem parecia mais um bandido de estrada que outra coisa. Tinha um lenço sujo passado na cabeça e os bigodes compridos enrolados nas pontas, o que lhe dava um aspecto especialmente sinistro. A calça estava larga na cintura e tinha sido apertada com um cinto rústico de couro cru.

Quando os três pararam a alguns passos dele, o cigano enfiou a mão no cesto de vime e apanhou alguns objetos que, segundo lhes pareceu, possuíam uma força mágica.

— Tire a sorte — disse Nikos para Dominic. — Escolha um objeto da mão dele.

Ao ver que Dominic hesitava, Kara adiantou-se e apanhou uma âncora de latão que estava na palma aberta do homem.

— A menina está preocupada com o que o futuro reserva para ela — disse o cigano. — Ela deseja a segurança, mas se sente balançada de um lado para o outro. Isto porque o mar está no seu sangue. Um dia você vai atravessar o oceano com o homem da sua escolha, que não é um estranho.

— Quem pode ser esse homem? — perguntou Kara com uma risada. — Alguém que eu conheço?

— Agora é a sua vez, Dominic — disse Nikos. — Veja o que o futuro reserva para você.

— Vamos deixar para outra vez — disse Dominic, dando um passo atrás quando o cigano tornou a estender a mão aberta na sua direção. — Hoje o dia não está bom para tirar a sorte.

— Ah, não seja medrosa — insistiu Nikos, — Isso é apenas uma brincadeira. Você não precisa acreditar no que ele diz.

Dominic hesitou mais um segundo. Sabia que era bobagem furtar-se à brincadeira. Por outro lado, o cigano dissera algumas coisas muito curiosas a Kara. A verdade é que a menina se sentia insegura no momento e era verdade também que nutria por Nikos um sentimento mais profundo do que parecia à primeira vista. Nikos, o primo bonito e simpático, não era um estranho, como dissera o cigano.

— Vamos, Dominic, tire a sorte. Nós estamos curiosos para saber o que ele vai dizer.

Dominic tomou coragem, fechou os olhos e apanhou o primeiro objeto que os dedos tocaram na palma escura do cigano. O objeto era uma figura feminina, cujos cabelos compridos, cor de cobre, envolviam o corpo nu. Dominic fez a cruz na palma do cigano e levantou a cabeça ao sentir os olhos penetrantes do homem dirigidos para ela. Nikos traduziu o que o homem disse:

— Ele falou que você sabe o significado da figura feminina de cabelos compridos e que não é necessário explicar. Você sabe realmente?

Dominic balançou a cabeça lentamente, perplexa com a resposta do cigano. A mulher era ela própria, que estava presa pelos cabelos compridos a um homem que não amava. Os cabelos compridos, cor de cobre, simbolizavam a sedução.

— Vamos andando, gente — disse ela sem jeito diante do olhar de interrogação que os dois lhe dirigiram. — Chega de adivinhar a sorte por hoje.

Nikos, porém queria tirar a sorte também e demorou-se um pouco mais junto do cigano. Dominic deu alguns passos em direção à praia e parou embaixo de um pé de amendoeira. Estava tão absorta em seus pensamentos que não notou a passagem dos minutos. Era estranho como algumas pessoas tinham o poder de adivinhar o pensamento dos outros à distância.

Ao voltar a si de seu devaneio, achou que os dois estavam demorando muito e procurou-os com o olhar. Ficou surpresa ao ver o cigano sozinho junto ao muro de pedra. Nikos e Kara tinham partido na outra direção, sem esperar por ela. Como Dominic se lembrava do local onde o carro de Nikos estava estacionado, não teria dificuldade em voltar para lá sozinha. Para fazer hora, sentou-se na mureta de pedra que separava a praia da calçada e observou distraidamente os pescadores que recolhiam as redes na arrebentação.

A brisa marinha trazia o cheiro forte de maresia e de peixes pequenos que apodreciam em cima da areia úmida. As gaivotas estavam de barriga cheia e não se davam mais ao trabalho de apanhá-los.

Dominic retirou o chapéu de palha da cabeça e deixou que o vento soprasse seus cabelos. Havia alguns pescadores acocorados na praia, remendando as redes. Mais ao longe, na beira do mar, uma mulher de saia preta catava mariscos para o jantar. O azul cintilante do mar, quase prateado, contrastava com a silhueta sombria das montanhas distantes, que formavam uma espécie de proteção natural na entrada da baía.

No momento em que uma nuvem encobriu os raios do sol, Dominic sentiu um arrepio de frio e levantou-se no mesmo instante, decidida a voltar para o carro. Kara e Nikos já deviam estar preocupados com sua demora.

Apanhou o chapéu que estava em cima da mureta e tornou a colocá-lo na cabeça.

— Dominic! Que surpresa encontrá-la aqui!

Ela se voltou com um movimento brusco ao ouvir a voz familiar.

— Barry! O que você está fazendo aqui, criatura? Barry deu um sorriso de alegria e apressou o passo.

— Eu a reconheci por causa de seus cabelos. Não conheço mais ninguém na ilha com esses cabelos dourados...

— E eu reconheci você por seu andar aprumado. Só os ingleses andam desse jeito.

— Com o peito estufado para frente?

— Exatamente!

Os dois caíram na risada. Os olhos de Barry não se cansavam de admirá-la.

— Você está linda. Com esse chapéu, parece um modelo de Renoir.

— Muito obrigada.

— Só que o tempo mudou repentinamente, O sol se escondeu atrás das nuvens e está ameaçando desabar um temporal. — Barry olhou para o alto com a testa franzida. — Você não quer aproveitar para conhecer a minha casa? Fica pertinho daqui.

— Prefiro deixar para outro dia, Barry. Eu vim com Nikos e Kara e eles estão esperando por mim no carro. Nós nos desencontramos. Eu estava fazendo hora ali na praia.

— Um minuto a mais ou a menos não fará diferença.

— Seja compreensivo, Barry. Eu tenho responsabilidades. Não posso reatar um namoro antigo.

Barry deu um sorriso irônico que alterou momentaneamente as feições de seu rosto.

— Não interprete mal as minhas palavras. Eu a convidei para conhecer a minha casa, sem segundas intenções. Além do mais, você não precisa explicar aos dois que se encontrou comigo. Basta dizer que se perdeu...

— Alguém pode nos ver.

— Nesse caso, você diz que foi ver as minhas pinturas.

— Ah, você é impossível! — exclamou Dominic com um risinho nervoso.

— Olhe, está começando a chover. Vamos correr...

De fato, a nuvem negra que cobrira o sol alguns minutos antes e que provocara um arrepio em Dominic era portadora de chuva. As gotas grossas começaram a tamborilar nas folhas das amendoeiras. Dentro de alguns minutos iria desabar um daqueles temporais que inundam tudo em questão de instantes.

— Corra, Dominic. Minha casa fica logo ali, atrás daquele muro verde.

Barry deu a mão a Dominic e os dois saíram correndo pela calçada na direção da casa de madeira que tinha um jardim na frente. Na parte de trás, o terreno em declive dava diretamente para a praia.

Ao entrar na varanda, Dominic tirou o chapéu da cabeça, sacudiu-o com força e aguardou que Barry abrisse a porta da frente.

A sala de estar era uma peça ampla, clara, repleta de objetos e numa desordem completa. As almofadas do sofá estavam empilhadas em cima de uma arca, xícaras sujas de café estavam espalhadas pelos cantos, junto com alguns pacotes abertos de torradas e de biscoitos. As telas estavam enfileiradas de frente para a parede. Em cima da estante, havia uma coleção de conchas e búzios de todos os tamanhos e formatos. A bagunça era indescritível.

— Seu vestido está ensopado — disse Barry. — Você não quer pôr o meu roupão que está no banheiro? Enquanto isso eu vou fazer um café.

— Boa idéia.

O vestido de jérsei estava de fato colado ao corpo e não havia motivo para fazer cerimônia e correr o risco de apanhar uma gripe.

— Onde é o banheiro?

— No andar de cima. A primeira porta à esquerda.

0 roupão de banho que ela vestiu, tinha cheiro de colônia após a barba e Dominic deu um sorriso ao apertar o cinto dele na cintura. Era o mesmo perfume que Barry usava quando ela o conhecera, muitos anos atrás.

A chuva lá fora continuava a cair sem interrupção. Pelo jeito, teria que permanecer ali uma hora pelo menos. Kara e Nikos se cansariam de esperar e voltariam para casa. O que Paul ia dizer quando os dois chegassem sem ela?

Dominic pendurou o vestido molhado no cabide e levou a bandeja com as xícaras sujas que estavam na sala para a cozinha.

— Você não tem empregada?

— Tenho uma mulher que vem uma vez por semana. Mas ela faltou na semana passada e está tudo uma bagunça medonha. Não repare.

Barry estava ao lado do fogão, aguardando a água ferver na chaleira. Os cabelos molhados caíam sobre a testa e lhe davam um ar mais jovem. Dominic lembrou-se da época em que os dois saíam de mãos dadas e iam catar conchas e mariscos na praia.

— Você não mudou nada.

— Você também não. Com esse roupão de homem, grande demais para seu corpo, está parecendo a adolescente que eu conheci. Dominic atirou os restos das cascas de ovos na lata de lixo.

— Você não vai me mostrar suas pinturas? Estou ansiosa para vê-las.

—Um minutinho só. Vamos primeiro tomar o café.

Dominic acompanhou em silêncio os preparativos do café. As duas colheres de pó no coador, o bule escaldado com água fervendo, as xícaras com açúcar aguardando em cima da mesa. O clima familiar na cozinha era repousante e inquietante ao mesmo tempo. Havia uma intimidade estranha no ar.

— O que vai ser de nós, Dominic?

A pergunta foi tão inesperada que a apanhou de surpresa.

— Quando?

— Hoje... Amanhã. O mês que vem. Dominic desviou a cabeça em silêncio.

— Vamos continuar fingindo que não nos conhecemos?

— O que se há de fazer?

— Não adianta fingir. Nós pertencemos um ao outro. As circunstâncias nos afastaram momentaneamente, mas nós voltamos a nos encontrar por uma coincidência incrível nesta pequena ilha grega. Você não acha isso fantástico? Nós estamos ligados para a vida inteira. Este vínculo vai se estreitar com o passar dos dias, dos meses, e nada, nem ninguém, poderá nos separar.

Dominic ouviu as palavras dele em silêncio. No íntimo, concordava com tudo o que Barry dissera. Uma força misteriosa aproximava as pessoas que se amavam e nem mesmo a morte podia separá-las.

— E Paul? Você se esqueceu de que estou casada?

— Não, não me esqueci. Mas há uma maneira de contornar esse problema — disse Barry, fitando-a no fundo dos olhos. — Vamos partir juntos da ilha... Para nunca mais voltar.

Ela tinha imaginado essa solução, desde o momento em que trocou as primeiras palavras com Barry, no baile à fantasia, mas não a levara a sério no momento, nem cogitara que pudesse ser posta em prática. Agora, no entanto, a mesma proposta partia de Barry, urgente, inquietante, aguardando uma resposta. O que podia dizer? Ela não prometera a Paul que jamais o deixaria, em hipótese alguma?

 

Há! Você está ouvindo, Dominic? — repetiu Barry, segurando-a pelos ombros.

— Paul não terá alternativa senão conceder o divórcio.

— Ele nunca fará isso. Você não o conhece...

— Se não der o divórcio, pior para ele.

— Assim não seríamos felizes — disse Dominic com firmeza

— Não teríamos nunca a segurança e a tranqüilidade do casamento legal, como toda aventura, estaria destinada ao fracasso.

— Eu sei que você não gosta dele, Dominic. Você aceitou esse casamento por alguma razão que eu desconheço. Ouvi contar uma porção de histórias aqui na ilha a respeito de Paul. Há alguma coisa nele de feroz, de desumano... Dizem que isso é devido ao estilhaço de granada que recebeu na cabeça, durante a revolta e o cerco de Atenas.

Dominic lembrou-se das dores de cabeça constantes que Paul sofria e do pavor que tinha de receber a luz forte do sol nos olhos. Sabia agora que era por isso que ele não tirava os óculos escuros quando ia à praia.

— Olhe, a água está fervendo — disse ela, contente de poder dirigir a conversa para um assunto mais prosaico.

— Ah, deixe o café para lá! Vamos decidir primeiro nossa vida.

— Cada coisa na sua hora — disse Dominic com um sorriso, despejando a água fervendo no coador. — Leve as xícaras para a sala enquanto eu termino de passar o café.

A chuva continuava a cair ininterruptamente quando se sentaram no sofá da sala de estar. Relâmpagos riscavam o céu encoberto, trovoadas sacudiam as vidraças das janelas.

— No fundo, a culpa foi minha — disse Barry, mexendo o café com a colherinha. — Eu não devia ter embarcado sem primeiro ter resolvido o nosso caso. Ah, por que eu fui agir dessa forma?

— Porque você é ambicioso e queria realizar-se como pintor. Foi por isso. A verdade é que nenhum dos dois queria assumir um compromisso.

— Pode ser. De qualquer maneira, eu me arrependo amargamente de ter agido dessa forma. E não me conformo com o fato de você estar casada com outro homem. Como foi que vocês se conheceram? Você não me contou...

Dominic contou brevemente que seu primo trabalhava na companhia de navegação de Paul, no escritório em Londres, mas não mencionou os cheques falsos passados por Douglas.

— Houve algum motivo sério para o casamento? — insistiu Barry. — Você disse ontem à noite que havia alguém envolvido... Foi Douglas, por acaso?

— Eu prefiro não falar nesse assunto — disse Dominic, desviando a cabeça. — Veja, a chuva está passando. Acho melhor eu ir andando.

Barry segurou a mão dela e examinou atentamente a aliança de diamante que Paul lhe dera. Os dois se encararam em silêncio durante um momento comprido. Barry ajoelhou-se ao lado dela e enlaçou-a pela cintura. Dominic afundou a cabeça no ombro dele e aspirou o cheiro gostoso de sua pele. Fechou os olhos e sonhou que tinha novamente dezesseis anos e que o ruído da chuva no telhado era o marulho das ondas quebrando na praia perto de sua casa.

— Tem que haver uma maneira — murmurou Barry. — Você não pode passar a vida inteira casada com um homem contra a sua vontade.

Dominic ouviu distraída as palavras de Barry. Estava com a atenção voltada para a tela grande à sua frente. Era uma paisagem marinha. A praia estava sendo varrida por uma tempestade. As vagas subiam a uma altura imensa antes de quebrarem sobre as pedras, formando um leque de espuma em toda a volta. Em cima da areia molhada avistavam-se algas despedaçadas como se fossem os braços e as pernas de náufragos. Uma luz azulada, misteriosa e crepuscular, banhava a cena tempestuosa. Um clarão de luz conduzia os olhos para o alto da tela, onde surgiam os primeiros raios de sol por entre as nuvens espessas.

A arte é uma representação dos conflitos humanos e Dominic compreendeu naquele momento o significado da pintura. A tempestade simbolizava os conflitos que assaltam as pessoas e o raio de luz que descia perpendicularmente do céu era a mensagem de esperança, uma promessa de felicidade.

— Quando foi que você pintou este quadro?

— Qual? — perguntou Barry, voltando a si de seu devaneio.

— Aquele ali.

Barry sentou-se de cócoras no chão e voltou a cabeça na direção que Dominic apontou.

— Pouco depois de chegar aqui. Muitos conhecidos gostaram dessa pintura, mas eu não quis me desfazer dela. De certa forma, é menos elaborada que as outras que estou pintando agora, mas tem alguma coisa que me agrada... Talvez uma certa confissão íntima não sei.

— Foi o que eu notei. Você se revela mais através da pintura do que das palavras.

— E por isso que a pintura é importante para mim, se bem que você também seja, como eu percebi depois de minha partida. Você me faz muita falta.

— Nós podemos ser amigos.

— Impossível. Eu a quero para mim, como mulher. Dominic levantou-se do sofá e foi até a janela. A chuva estava quase passando e os primeiros clarões surgiam no horizonte.

— O que você decide, Dominic? Quer fugir comigo ou prefere ficar com o seu marido?

— Eu não posso decidir isso assim...

— Quando, então?

— Quem esperou até agora pode esperar mais um pouco. Olhe, eu vou pôr meu vestido. Ele já deve estar seco.

Dominic subiu a escada que levava ao segundo andar e entrou no banheiro, onde deixara o vestido pendurado no cabide. Estava passando batom e corrigindo a pintura dos olhos quando ouviu vozes do lado de fora da casa. No instante seguinte reconheceu a voz esganiçada e ligeiramente teatral de Alexandra.

— Barry, querido! Nós viemos lhe fazer uma visita. Eu trouxe uns amigos que querem conhecê-lo.

Dominic guardou rapidamente suas coisas na bolsa, tomada de um sentimento repentino de pânico. Alexandra era a última pessoa que desejava encontrar naquela circunstância. Imagine o que Alexandra pensaria se a visse descendo a escada que levava ao quarto de Barry! Talvez ela pudesse sair da casa antes que Alexandra e os amigos entrassem. Podia tentar a porta da cozinha...

Não contava, porém, com o costume, generalizado nas cidades pequenas, de se deixar à porta aberta. Alexandra entrou na sala da frente com a intimidade de um freqüentador da casa, seguida de seus amigos americanos. Estavam todos na sala vazia, aguardando a chegada de Barry, quando Dominic desceu correndo a escada.

Alexandra encarou-a, boquiaberta.

— Você por aqui!

Dominic parou, gelada, no degrau da escada, com um sorriso idiota nos lábios.

— Dominic estava vendo as minhas pinturas no ateliê — disse Barry, entrando nesse instante na sala, vindo da cozinha.

— Pelo jeito, ela não encontrou nenhuma que lhe agradasse...

— Barry voltou-se com naturalidade para o casal de americanos. — O que vocês querem tomar? Posso lhes oferecer uísque, campari, vodca, ou vocês preferem um Martini seco?

Enquanto Barry fazia as honras da casa, Dominic sentou-se no sofá diante da tela de que tinha gostado e aguardou o momento oportuno para despedir-se de Alexandra e de seus amigos. Estava acompanhando distraidamente a conversa quando Barry aproximou-se com um copo de Campari.

— Já sei. Você gostou daquele quadro ali.

— Mas esse você não vende! — exclamou Alexandra.

— Como não? Todos os quadros aqui estão à venda. Sem hesitar um segundo, Barry retirou a tela da parede, passou um papel em volta e estendeu-a a Dominic, que tinha acompanhado a cena em silêncio, com os olhos arregalados.

— Pronto. Aqui está o quadro que você queria. Espero que seu marido goste do presente.

Dominic nunca tinha mentido antes para Paul, mas naquela noite foi forçada a isso, para salvar as aparências. Tinha acabado de passar o vestido pela cabeça e estava às voltas com o zíper nas costas quando Paul entrou no quarto.

— Quer que ajude?

— Por favor.

O vestido justo que ela usava naquela noite deixava os ombros e o colo a descoberto. Sentiu os dedos de Paul nas suas costas nuas e ficou toda arrepiada.

— Pronto — disse ele, afastando-se um passo. — Olhe as rosas que eu trouxe para você usar.

— Ah, que lindas! Você quer prendê-las para mim? Ela ficou imóvel diante do espelho, enquanto Paul espetava os três botões em seus cabelos.

— Quer que arranque as pétalas?

— Não, deixe-as como estão. — Ela avistou a marca de sangue no dedo dele. — Você espetou a mão nos espinhos?

— Foi.

— Os espinhos de rosas são venenosos. Você passou alguma coisa?

— Não. Será que vou morrer por causa disso?

— Não. Desta vez, não. Você é forte como um touro. Dominic soltou-se dos braços dele e aproximou-se um passo do espelho. Paul estava refletido atrás dela, mais elegante do que nunca no seu smoking de verão. Ela se lembrou naquele instante do quadro e foi até o guarda-roupa, de onde voltou segundos depois com um embrulho grande nas mãos.

— Eu comprei isso para você.

Paul observou com curiosidade o embrulho.

— Para mim? O que foi que eu fiz de errado desta vez?

— Nada. Veja se você gosta. Milo Vanhusen estava interessado em adquirir este quadro, mas Barry deu preferência ao meu pedido.

Paul retirou o papel que envolvia a tela e examinou detidamente a pintura. Era impossível saber o que ele estava pensando por trás da fisionomia impassível.

— Minha querida, você não devia gastar seu dinheiro comigo — disse por fim.

— Você não gostou da pintura?

— Essa tela é interessante. Vi certa vez este trabalho na casa de Barry. Ele disse que não o vendia porque era uma obra de estimação. Sabe o que ele me disse? Que essa paisagem representava o conflito entre o amor sexual e o amor estético.

Dominic ouviu a explicação em silêncio, hipnotizada pelo olhar penetrante de Paul. Era impossível enganá-lo. Ele lia seus pensamentos como se ela fosse um livro aberto.

— Vocês se conheciam antes de se encontrarem aqui?

— Eu conheci Barry quando era uma garota. Nós dois brincávamos na praia que havia perto de casa. Gostávamos muito um do outro. Era um amor inocente, de duas crianças.

— E ainda é um amor inocente?

— E — respondeu Dominic, corando ligeiramente. — Eu não faltei com a palavra dada a você.

Paul ia comentar alguma coisa quando Kara enfiou a cabeça na porta e perguntou se podia entrar.

— Entre. Eu já terminei de me vestir.

— Vim emprestar aquele perfume francês que você estava usando ontem.

— Ah, já sei. Complice, da Coty — disse Dominic com uma risada.

Kara tinha escovado os cabelos e posto um vestido rodado de jérsei. Usava os brincos que Dominic lhe dera de presente naquela manhã.

— Você está linda — disse Dominic, borrifando o vidrinho de perfume no pescoço da menina.

Kara voltou-se radiante para Paul e surpreendeu o olhar contrariado do irmão.

— O que aconteceu? Por que você está com essa cara?

— Pergunte a ela — disse Paul, saindo do quarto. Kara voltou-se atônita para Dominic.

— O que foi? Paul brigou com você por causa de seu sumiço de hoje de manhã?

— Acho que sim. Vamos descer? Os convidados devem estar chegando.

O jantar na casa de Sofia transcorreu num clima de animação. Ninguém percebeu que Paul estava silencioso e que, vez por outra, lançava um olhar de suspeita na direção da mulher. Dominic, por sua vez, desempenhou com perfeição o papel da esposa feliz.

No dia seguinte, os dois partiriam para o casarão no alto do penhasco, o Ninho da Águia, como chamavam os moradores da ilha. Sofia tinha concordado com a partida de Kara para a casa do irmão e sugerira apenas que eles passassem alguns dias sozinhos na casa, não apenas para Dominic ter tempo de ambientar-se à vida nova como também para poderem desfrutar à vontade os últimos dias da lua-de-mel.

 

Paul não trabalhou na primeira semana. Passava os dias na praia particular que dava para os fundos da casa e onde havia a entrada subterrânea através da gruta. Os dois nadavam, tomavam sol, remavam um pequeno barco de borracha que pertencera a Lucas e que servia para explorar a costa à procura de um local apropriado para a pesca submarina.

Os dias transcorriam num clima tão ameno que Dominic tinha a impressão de que iria finalmente esquecer todas as recordações felizes que guardava de Barry.

Ela boiava de costas em cima da água muito azul enquanto Paul remava o barquinho de inflar, os ombros largos e morenos recortados contra o sol poente, os cabelos escuros encaracolados caindo por cima da nuca.

Dominic nadou para a praia com os olhos ardendo da água salgada e dirigiu-se ao local onde tinham deixado a cesta com os apetrechos do piquenique.

Estava preparando um sanduíche de galinha com maionese quando Paul empurrou o pequeno barco de borracha para cima da praia.

— Estou morrendo de fome.

— Também, depois de remar a manhã toda!

— O que tem de bom para a gente comer?

— Tem sanduíche de galinha, de presunto, de salame, de pernil, de queijo... E melão.

— Tudo isso? — exclamou Paul com uma gargalhada. — Você quer me matar, amor?

— Foi Lita quem pôs todos esses frios na cesta. Ela trata bem de você.

— Ela me adora.

— E o marido também. Nunca vi dois empregados mais dedicados na minha vida.

— E o que dá a gente ser bonzinho...

Paul sentou-se ao lado dela, sobre a toalha de banho estendida na areia, e apanhou um pedaço de melão com uma fatia fininha de presunto cru. Segurou um em cada mão enquanto observava Dominic com o canto dos olhos. Havia algo de indolente e sensual em cada gesto dele. O corpo seminu era bonito como um bronze de Corinto.

Uma águia sobrevoou majestosamente o pico do morro. As grandes asas pareciam abanar levemente o ar no vôo suave. Paul virou a cabeça para trás, apoiado nos cotovelos, e observou atentamente as evoluções do gigantesco pássaro negro. Em seguida, sentou-se na areia com o tronco ereto e abriu os braços em cruz, como se quisesse mostrar a Dominic a envergadura das asas da águia.

— Ela é grande assim? — perguntou Dominic, passando manteiga na fatia de pão.

— Uma maravilha! Exatamente como diz o provérbio.

— Que provérbio?

— O provérbio fala de diversas maravilhas que há na natureza; entre elas estão o vôo da águia, o rastro que o navio deixa sobre a água e...

— Qual é a outra? — perguntou Dominic, repentinamente curiosa.

Paul deu um sorriso largo.

— Um casal de namorados na praia.

— Que graça! Você quer um sanduíche de galinha ou de pernil?

— De galinha.

— Fique com o meu.

— E você?

— Eu faço outro para mim.

— Muito obrigado amor. Alimenta o brutamontes para ele dormir sossegado e deixar você em paz com suas recordações, não é?

Dominic corou com o comentário e começou a preparar um outro sanduíche de galinha. Paul afundou o cotovelo na areia e comeu o lanche com a atenção voltada para o mar.

Depois que terminaram os sanduíches e a salada de frutas que Lita tinha feito, com gérmen de trigo e iogurte por cima, Dominic serviu o café da garrafa térmica.

Paul segurou a caneca e levou-a aos lábios com um prazer evidente.

— Nada se compara a um café forte para coroar uma refeição copiosa. Nem o chá do Ceilão, amor.

— Você tem toda razão. Nem o chá do Ceilão. Dominic guardou tudo o que sobrara na cesta de vime e foi explorar um cantinho da praia onde os peixes nadavam em cardumes entre as pedras. Paul estava deitado de bruços perto dali, recebendo o sol quente nas costas morenas. Dominic não sabia se ele estava cochilando ou apenas descansando após o lanche.

Apanhou algumas conchinhas na areia úmida e esfregou-as nas mãos dentro d'água. Imediatamente elas ganharam um colorido vivo, deslumbrante.

Foi a cor das conchas, provavelmente, que a levou a recordar a cena desagradável da noite anterior. Dominic estava tão furiosa com o fato de Paul ter devolvido o quadro que trouxera da casa de Barry que, antes de dormir, passou a chave na porta, fato sem precedente na vida dos dois.

Lita estava acabando de retirar a bandeja de café na manhã seguinte quando Dominic ouviu Paul bater com toda a força na porta que dava para o quarto contíguo, onde ele dormia. Lita parou no meio da peça com a bandeja na mão, sem saber se devia sair rapidamente ou se devia abrir a porta do outro quarto.

— Por favor, Lita, abra aquela porta. Lita fez o que lhe foi mandado e cumprimentou Paul com um gesto de cabeça quando ele passou por ela como um pé-de-vento. Mais do que depressa Lita saiu do quarto e fechou a porta do corredor atrás de si.

Dominic continuou recostada na cabeceira da cama, com a camisola de renda que usava no verão, olhando fixamente para Paul. Ele se aproximou com duas passadas rápidas, a fisionomia desfeita pela raiva. Dominic sabia que Paul era um homem violento, mas era a primeira vez que via os olhos castanhos lançarem faíscas de ódio.

Ele parou ao lado da cama com a respiração ofegante. No primeiro instante Dominic pensou que fosse agredi-la fisicamente.

— O que foi? — perguntou ela com a voz sumida.

— Você ainda pergunta o que foi? Se você tornar a fechar a porta do quarto, eu vou derrubá-la com um pontapé. Onde já se viu? Passar a chave na porta do meu quarto! Era só o que faltava! Eu sei perfeitamente que você não aprecia a minha companhia nem sente prazer com o meu contato físico, mas sou seu marido e quero ter entrada livre no seu quarto! Vai chegar o dia em que eu vou me cansar desta situação e então você poderá voltar em paz para a sua casa. Até lá você é minha mulher! Estamos entendidos?

— Entendo perfeitamente. Não precisa gritar comigo. Você destruiu a minha vida unicamente para satisfazer um capricho de homem rico. Você só queria sentir o prazer de me possuir fisicamente durante alguns meses. Eu sempre desconfiei de que era essa a razão que você tinha para me pedir em casamento, mas nunca pude imaginar que teria o topete de confessar isso abertamente. De qualquer forma, muito obrigada por ter me dito isso. Agora pelo menos eu não terei mais sentimento de culpa. Posso odiá-lo sem remorsos.

— Isso mesmo. Odeie-me à vontade, sem dó nem piedade. Só assim você terá a consciência em paz.

Paul inclinou-se sobre a mesinha-de-cabeceira e segurou o romance de Nikos Kazantzakis que Dominic estava lendo.

— Quem lhe deu este livro?

— Fui eu que comprei. Por quê?

— Você está querendo conhecer a mentalidade dos gregos?

— Eu leio este autor porque ele me agrada — disse Dominic com frieza, puxando o lençol até o pescoço. — Acho que é uma razão mais do que suficiente.

— Kazantzakis é uma vítima de sua própria amargura. Ele descreve o amor como se fosse uma tortura. Você é dessa opinião?

— Eu não tenho experiência nesse assunto para me pronunciar a favor ou contra.

— Ah, não venha com essa! Vai dizer que você nunca amou ninguém?

— Se amar é sujeitar-se à crueldade do outro, posso dizer que nunca amei nem quero amar ninguém.

Paul apontou para a porta que separava os dois quartos.

— Foi por isso que você passou a chave na porta? Por eu ter devolvido o quadro de Barry?

— O que você acha?

Paul fitou-a em silêncio durante alguns segundos, os olhos sombrios de alguém que medita sobre um plano de ação. Em seguida, porem deu uma risada alta e dirigiu-se à porta do corredor. Voltou-se de lá com a fisionomia amável, aberta num sorriso.

— Não vamos brigar por causa disso, amor. Eu tenho que sair hoje de manhã, mas vou estar de volta pelo meio-dia. Podíamos fazer um piquenique na praia. O que você acha da idéia?

— Para mim está ótimo.

— Vou pedir a Lita para preparar a cesta.

Dominic esperou Paul sair do quarto para levantar-se da cama. Escovou os dentes, penteou os cabelos e desceu à copa, onde comeu algumas frutas. Em seguida, refugiou-se no caramanchão que havia nos fundos do jardim e mergulhou na leitura do romance de Nikos Kazantzakis.

Yannis apareceu por volta das onze horas, com a cesta de vime que Paul tinha pedido a Lita antes de partir para a cidade e acompanhou Dominic até a praia particular que ficava nos fundos da casa. Dominic sentia-se bem na companhia do criado, que sabia o nome de todas as plantas e de todos os pássaros que cantavam nas árvores do jardim. Yannis e Lita não tinham filhos, como era costume entre alguns gregos de condição modesta. Talvez por isso se dedicassem a Paul com tanto amor.

Dominic estava deitada de bruços na areia, em cima da toalha de banho que levara consigo, quando Paul surgiu, de calção de banho, por entre as pedras. Ela não ouviu os passos dele na areia fofa, mas viu a sombra projetada pelo corpo alto. Sentou-se e observou-o com a mão nos olhos, para se proteger dos raios do sol.

— Como foi?

Ela tinha a impressão de que Paul estava com a fisionomia abatida, como se alguma coisa o preocupasse.

— Tudo bem.

— Você está com fome?

— Não, e você?

— Eu tomei café tarde.

— Vamos dar um passeio de barco?

— Boa idéia — disse Dominic, levantando-se com um gesto animado. — Vamos ver os botos.

Ele caminhou para o lugar onde o barco de borracha estava amarrado, soltou a corda que o prendia no tronco de uma árvore e entrou dentro d'água, empurrando o barco por cima das ondas que quebravam na praia. Dominic entrou no barco depois da arrebentação e sentou-se no pequeno banco de tábua.

Paul ajeitou-se no outro banco e começou a remar em direção ao mar-alto. Pouco adiante avistaram os primeiros cardumes de peixes que nadavam rente à superfície.

— Logo você vai ver um boto.

De fato, minutos depois Dominic avistou um boto azul e prateado que começou a mergulhar embaixo do barco, como se quisesse virá-lo de borco. Dominic deu uma risada nervosa e segurou-se na corda.

— Não tem perigo — disse Paul, tranqüilizando-a. — Ele está brincando.

— Eu sei disso, mas numa dessas ele vira o barco.

— Se ele virar, eu estou aqui para defendê-la.

— Inclusive dos tubarões?

— Eu não disse isso! — exclamou Paul com uma gargalhada. Dominic estava sentada na pedra, esfregando as conchinhas na palma da mão, quando viu um caranguejo correr pela areia. Levantou-se com a intenção de apanhar o animal e levá-lo para Paul. Entretanto, no momento em que pulou de uma pedra para a outra, pisou no ouriço que estava embaixo d'água e deu um grito de dor.

— O que foi? — perguntou Paul perto dali, levantando-se no mesmo instante.

Dominic estava sentada no chão, o rosto alterado pela dor.

— Eu pisei num ouriço. Está doendo muito!

— Deixe-me ver.

Paul ajoelhou-se ao lado dela e levantou a sola do pé.

— Tem mais de um espinho?

— Vários. Vamos ter que tirá-los com uma pinça. Eu vou levá-la para casa no colo.

— Você não agüenta subir o morro comigo no colo.

— Vamos pela gruta. A subida é mais suave.

Paul carregou-a nos braços pela areia quente e dirigiu-se à caverna que servia de passagem subterrânea. A sombra esverdeada do mar envolveu-os completamente quando entraram no interior sombrio da gruta. Dominic sentia as batidas fortes do coração de Paul contra seu peito. A passagem subterrânea tornava-se cada vez mais escura à medida que se aproximavam da subida.

De repente, como o rugido de um animal feroz, os dois ouviram o estrondo das águas sobre as pedras. Paul parou no mesmo instante e prestou atenção ao ruído que crescia de segundo em segundo.

— O que é isso? — perguntou Dominic, abraçada ao pescoço dele, os olhos arregalados de medo. Sabia, instintivamente, que aquele ruído medonho significava um grande perigo para os dois.

— E a maré — murmurou Paul, como se pensasse em voz alta. É a maré que está subindo rapidamente. E raríssimo acontecer isso.

No instante seguinte, o estrondo ecoou pelas paredes da gruta como uma verdadeira explosão, seguido por dezenas de outros menores, que se repetiam a intervalos cada vez mais próximos um do outro, como se a caverna viesse abaixo com uma detonação de dinamite.

— Corra, Dominic! — berrou Paul. — A caverna vai ser inundada.

Ela esqueceu-se imediatamente dos espinhos que tinha na sola do pé e partiu na corrida, tomada de um medo tão grande que nada, nem ninguém, poderia detê-la. Sabia que havia apenas alguns metros para a saída da caverna e que logo estariam a salvo no jardim da casa.

Entretanto, antes que pudessem chegar sãos e salvos, à escadinha de tijolos do jardim, um estrondo mais forte abalou as paredes da caverna e Dominic foi atirada ao chão sob uma enxurrada de terra e pedras soltas que correram do morro. Ela levou as mãos à cabeça e deu um grito. Depois tudo escureceu à sua volta.

 

A saleta de trabalho de Paul estava escura. As vigas do teto e as paredes caiadas de branco davam ao ambiente o ar sereno de um convento, embora o andar nervoso do ocupante, de um lado para o outro, não correspondesse a essa impressão de serenidade.

Paul tinha trocado a roupa suja de terra e feito curativos nas mãos e nos braços, feridos em conseqüência do deslizamento de terra na passagem subterrânea. O médico que o atendera estava ocupado naquele momento no andar de cima, onde Dominic exigia cuidados muito maiores.

Ao ouvir vozes na escada, Paul foi à porta da saleta e deu alguns passos no corredor em direção ao médico. O Dr. Demétrio cuidava da família há muitos anos e era o clínico geral mais respeitado e acatado na ilha.

— Então? Como ela está, Demétrio?

O médico colocou a maleta preta em cima da cadeira antes de responder. Era um homem metódico por natureza, que guardava a serenidade mesmo nos momentos mais críticos. Era talvez por essa razão que inspirava tanta confiança nos pacientes.

— Sua esposa está bem, mas ainda não voltou a si.

— Ela recebeu algum ferimento grave na cabeça? Há perigo de ficar paralítica?

— Não, felizmente não.

— Ah, graças a Deus! — exclamou Paul com um desabafo. — Quer dizer então que está tudo bem?

Demétrio encarou-o nos olhos com a fisionomia séria.

— Você está preparado para receber uma notícia desagradável?

Paul arregalou os olhos, perplexo. Parecia que sua vista tinha sido coberta momentaneamente por um véu espesso.

— Diga o que é, Demétrio. Estou preparado para ouvir qualquer coisa, a esta altura.

— Sua mulher perdeu o filho.

— O quê?— exclamou Paul atordoado, segurando o médico pelo braço. — Eu não tinha idéia de que ela estivesse esperando um filho. Ela não me disse nada.

— Talvez ela própria não tivesse certeza. O bebê não devia ter mais que uns dois meses.

— Dois meses! — repetiu Paul com o rosto desfeito pela tristeza.

— Eu sinto muito, meu querido. Sei que para você o filho significava muito. Mas deve se dar por feliz, meu caro. Dominic vai se recuperar em breve dos ferimentos que recebeu. Ela poderá ter outros filhos. Vocês são moços. Têm a vida inteira pela frente...

— Não é isso, Demétrio, não é isso.

— O que é, então?

— Eu não posso explicar.

Depois que o médico partiu, Paul subiu ao andar de cima e abriu cuidadosamente a porta do quarto de Dominic. Ela estava dormindo a sono solto. Sem fazer o menor ruído, Paul entrou e sentou-se em silêncio ao lado da cama.

Dominic estava com as mãos pousadas sobre o lençol. A aliança de diamante parecia grande para o dedo fino e comprido da mão esquerda. Ela nunca lhe parecera mais frágil que naquele momento. Paul inclinou o tronco e roçou os lábios nas costas da mão da esposa.

Dominic passou a noite toda mergulhada no sono, em parte devido aos analgésicos que tomou, em parte devido ao choque emocional por que havia passado.

Na manhã seguinte, ao abrir os olhos pesados de sono, estava vagamente consciente de que havia alguém a seu lado. Alguém que a ajudou a sentar-se na cabeceira da cama e a tomar alguns goles do suco de laranja que umedeceu sua garganta seca. Soltou uma exclamação de alívio e tornou a fechar os olhos. As pálpebras pesavam, ela estava levemente tonta e tinha a impressão de que o corpo inteiro fora pisado pela pata de um elefante. Não sabia o que tinha. Se era gripe ou uma doença mais séria.

— Obrigada — sussurrou, sem saber exatamente quem era a pessoa que a deitou sobre o travesseiro com um gesto maternal.

Voltou a dormir com as mãos pousadas sobre o lençol, a fisionomia serena e pálida de uma criança doente.

Ao acordar novamente horas mais tarde, reconheceu a figura familiar de Lita a seu lado. A empregada estava fazendo tricô quando ela abriu os olhos.

— Ah, que sono!

— Está se sentindo melhor?

— Um pouquinho. Mas a cabeça ainda está dolorida.

— Você quer comer alguma coisa?

Dominic hesitou um segundo antes de responder. Fazia quanto tempo que estava dormindo? Um dia, dois dias? Precisava comer alguma coisa. Era por isso que estava se sentindo tão fraca... Porque estava em jejum.

— Um chá... Um chá com torradas.

Na semana seguinte, o médico conversou com ela sobre o aborto. Dominic ouviu a notícia em silêncio. No dia do acidente, tinha uma vaga consciência da gravidez, mas sua mente não estava preparada para aceitar o fato. Agora era tarde demais para lastimar-se sobre a perda involuntária.

— Paul já sabe?

— Eu contei a ele no dia do acidente — disse o médico.

— Coitado! Paul queria tanto ter um filho... Por falar nisso, onde ele foi? Faz horas que não o vejo em casa.

— Ele foi à cidade, à casa de Sofia.

— Ah, já sei! — exclamou Dominic, levando a mão à testa. — Que cabeça a minha! Paul me disse ontem que ia buscar Kara para passar alguns dias conosco. Eu me esqueci completamente.

— Só assim você vai ter companhia.

Eles estavam conversando na varanda. Em dado momento Dominic sentiu necessidade de esclarecer um assunto que a inquietava há dois meses.

— Paul vem sofrendo de enxaqueca nos últimos tempos. O senhor tem alguma idéia do que possa ser?

— Ele comentou este assunto com você?

— Não. Ele não gosta de falar nisso. Paul é um homem muito vaidoso e não admite a menor fraqueza.

O médico deu um sorriso de indulgência.

— Todos os homens são vaidosos. Principalmente os gregos, que têm um verdadeiro culto da beleza física. A doença para eles é um estigma.

— Um pecado! — acrescentou Dominic com um sorriso.

— Exatamente...

Depois que o médico partiu, Dominic reclinou a cabeça no encosto da cadeira de braços e fechou os olhos. Os pés de casuarina sibilavam sob os golpes de vento que sopravam do mar. O barulho das ondas quebrando na praia chegava até a varanda como uma cantilena suave e repousante. Ela adormeceu sem perceber.

Quando acordou, horas depois, sentiu os braços e as pernas frias. O sol tinha desaparecido e uma neblina espessa cobria completamente a baía de Andelos. De quando em quando se ouviam os apitos melancólicos dos pequenos navios e dos barcos de pesca. A tarde ensolarada dera lugar a uma noite tímida e fria.

Ao ouvir os passos leves no piso da varanda, Dominic virou a cabeça e avistou Yannis. Como era de seu feitio, o criado entrava e saía sem se fazer notar.

— Olhe só essa cerração, Yannis! Nós estamos isolados no alto deste morro.

— Pois é. Está muito úmido aqui. Não prefere sentar-se na sala? Eu vou acender a lareira.

— Boa idéia. Você acha que essa neblina vai durar muito tempo?

—Penso que sim. Algumas horas, pelo menos. Isso acontece muitas vezes aqui na ilha.

— E como as pessoas fazem para subir a serra? Não é perigoso?

— É muito perigoso. Em geral, os motoristas aguardam que a cerração diminua. Não se enxerga um palmo diante do nariz.

— Nem me fale! Você acha que Paul vai se atrasar por causa disso?

— É possível. A patroa quer tomar um chá enquanto espera?

— Muito obrigada Yannis. Eu não quero nada. Dominic entrou na sala e sentou-se na cadeira de braços, forrada de veludo, que era a predileta de Paul. Acompanhou com os olhos Yannis, que acendia a lareira. Lita estava preparando um prato especial em homenagem a Kara, mas era pouco provável que os dois chegassem a tempo para o jantar, com aquela cerração.

Às sete horas Yannis começou a pôr a mesa. Dominic subiu ao quarto para trocar de roupa e, ao descer, avistou o criado dando os últimos retoques num vaso de flores que estava no centro da mesa.

—Como está o nevoeiro, Yannis? Melhorou um pouco?

— Continua na mesma. Eu acho que o patrão vai chegar mais tarde.

Ele colocou uma garrafa de vinho tinto em cima da mesa e olhou em volta com atenção para ver se estava tudo em ordem e se não faltava nada.

Às oito horas, Dominic aceitou o prato de sopa de legumes que Yannis lhe trouxe. Pelo jeito, Paul e Kara iam jantar na casa de Sofia.

— Acho que eles não vêm mais, Yannis — disse Dominic quando o criado entrou na sala para retirar o prato de sopa.

—Parece que não — ele confirmou. — A patroa quer que eu tire a mesa?

— Não, deixe como está. Vamos aguardar mais um pouquinho.

Dominic tinha posto uma fita no gravador e estava lendo distraidamente uma revista quando ouviu batidas fortes e insistentes na porta da frente. Fechou a revista com um gesto brusco e levantou a cabeça. No instante seguinte, ouviu os passos de Yannis no hall de entrada, acompanhados logo depois de vozes altas que lhe pareceram familiares.

— Quem é, Yannis? — perguntou ela da sala.

— E uma visita para a senhora.

— Mande entrar.

Segundos depois, Nikos e Barry entraram afobados na sala de estar. Os dois estavam com os cabelos úmidos da garoa fina que caía lá fora.

 

Como era de seu feitio, Nikos aproximou-se de Dominic com os braços abertos e enlaçou-a com um gesto afetuoso, Dominic estreitou-o com as mãos frias e trêmulas, concluindo imediatamente que alguma coisa acontecera a Paul. Um acidente de carro, provavelmente. Barry observava a cena em silêncio, com os braços caídos ao longo do corpo.

— O que aconteceu, Nikos? Por que eles não chegaram até agora?

Nikos mordeu o lábio com um tique nervoso. Barry enfiou a mão no bolso do casaco. Ambos pareciam hesitar em dar a notícia.

— Kara está bem. Mas Paul foi levado para o hospital. Dominic encarou Nikos no fundo dos olhos com a boca entreaberta. Por mais preparada que estivesse para ouvir a notícia, ficou aterrada no mesmo instante.

— O acidente foi muito grave?

Nikos lançou um olhar de relance para Barry, como se o consultasse sobre a conveniência de contar a verdade.

— Não foi um acidente de carro — disse Barry.

— Paul está mal, muito mal — acrescentou Nikos.

— O que ele tem? — exclamou Dominic aterrada, segurando a mão que Nikos lhe estendeu.

— Ele passou muito mal lá em casa. Foi levado para o hospital na ambulância.

— Nós não quisemos dar a notícia por telefone — acrescentou Barry.

— Você quer ir até lá?

— Vamos. Correndo!

Nikos a ajudou a vestir o casaco e, minutos depois, os três partiram em direção ao hospital no centro da cidade. Paul sabia há vários meses que a crise estava se aproximando, as enxaquecas que sofria ultimamente eram um sintoma disso. Sabia também que podia morrer de uma hora para a outra.

— Como foi, Barry? — perguntou Dominic em dado momento, enquanto Nikos dirigia a atenção para a faixa branca à sua direita que servia de referência no nevoeiro. — Você estava lá quando Paul teve a crise?

— Eu tinha acabado de voltar de um passeio de barco com Alexandra e seus amigos americanos. Depois de tomarmos um chope no bar, eu acompanhei Alexandra até a casa de Sofia. No momento em que chegamos à ambulância estava parada na porta. Paul foi transportado numa maca. Kara e Sofia foram com ele na ambulância. Nikos ficou para dar a notícia a você.

— Que horror! E eu pensando que eles não vinham por causa do nevoeiro.

— Kara comportou-se com muita coragem.

— Coitadinha! Como ela podia imaginar que isso iria acontecer com o irmão adorado?

— Ninguém podia imaginar. Paul tinha uma saúde de ferro.

— Mas ele vinha se queixando de enxaquecas ultimamente. — Eu soube. Sofia me falou.

No momento em que se dirigiram à portaria do hospital, uma enfermeira ofereceu-se para acompanhá-los ao quarto de Paul no segundo andar.

O corredor sombrio estava deserto àquela hora e os passos dos visitantes eram abafados pelo piso de borracha. No instante em que se aproximaram do quarto de Paul, uma enfermeira saiu do interior com uma bandeja de metal na mão, onde havia seringas e outros instrumentos médicos, cobertos com um paninho branco. Nikos perguntou a enfermeira se o paciente podia receber visitas.

— Vocês são parentes?

— Somos.

— Os médicos estão em conferência no quarto. Vocês não querem aguardar um minutinho na sala de espera?

Eles foram até o fim do corredor, segundo a indicação da enfermeira, e lá encontraram Kara e Sofia, que conversavam em voz baixa. Kara levantou-se com um pulo ao avistar Dominic e correu ao encontro dela com os braços abertos.

— Ah, que bom você ter vindo, Dominic! Eu estou tão preocupada...

Dominic abraçou a menina com ternura e acariciou seus cabelos com um gesto maternal.

— Ele vai ficar bom, Kara. Ele é forte como um touro... Kara sorriu com os olhos úmidos de lágrimas.

— Deus a ouça!

As horas pareciam arrastar-se na sala de espera. Vez por outra Nikos levantava-se da cadeira de vime e ia até a janela, onde se debruçava sobre o peitoril, a cabeça voltada para cima. A brisa do mar estava soprando a neblina e era possível avistar, em alguns pontos, o céu aberto, parcialmente estrelado.

Uma enfermeira serviu café para todos em copos de papel, acompanhado de bolachas de água e sal. Dominic tinha acabado de tomar o seu quando a enfermeira lhe fez sinal do corredor.

Ela acompanhou a mulher de avental branco até o quarto e, ao entrar, não avistou o médico que estava de pé perto da janela.

Paul estava deitado de olhos fechados, os cabelos encaracolados caindo sobre a testa. A dor acentuara-lhe as linhas da face, especialmente as pequeninas rugas ao redor dos olhos. Dominic tocou de leve no rosto pálido e sentiu a temperatura na palma da mão. Paul não reagiu ao seu contato. Estava dormindo profundamente sob o efeito da injeção que tomara minutos antes.

— Como está, Dominic?

Ela voltou-se surpresa e avistou o rosto bondoso do Dr. Demétrio, o médico da família.

— Ah, que bom encontrá-lo aqui! Eu queria muito saber o verdadeiro estado de Paul.

— Vamos conversar na minha sala.

Eles atravessaram o corredor silencioso, passaram pela saleta de espera e entraram num consultório, onde havia uma mesa, algumas cadeiras e um leito de hospital, cercado por diversos aparelhos médicos. O cheiro de desinfetante era tão forte que Dominic sentiu falta de ar no primeiro instante.

— Eu vou abrir a janela — disse o médico.

— Não foi nada. Logo eu me habituo.

— Sente-se, por favor.

Ela sentou-se na beira da cadeira e apoiou a mão na quina da mesa.

— O que Paul tem, doutor?

— Ele contou para você que tomou parte na Guerra Civil?

— Contou. Disse inclusive que foi hospitalizado.

— Exatamente. Ele recebeu um fragmento de metal na cabeça proveniente da explosão de uma granada de mão.

— Mas isso faz tanto tempo! Ele tinha dezoito anos, nessa época.

— Durante muitos anos o fragmento não causou nenhum problema. Foi somente de uns dois anos para cá que Paul começou a se queixar de dores fortes de cabeça.

— De repente? Sem mais nem menos?

— Não. Houve uma causa para isso.

Dominic franziu a testa e procurou lembrar-se do que sabia a respeito de Paul nos últimos dois anos.

— Ah, já sei! — exclamou. — Foi o acidente com Lucas que provocou isso.

O médico balançou a cabeça afirmativamente.

— Paul voltou muito rapidamente à superfície com o corpo desacordado do irmão. A pressão na caixa craniana foi muito forte. Ele perdeu os sentidos pouco depois de tirar a máscara de oxigênio.

— Kara me contou que ele ficou vários dias no hospital, em observação.

— Pois é, a partir de então surgiram os primeiros sintomas. Pressão na cabeça, dores reflexas na nuca, enxaquecas constantes... Por uma fatalidade inexplicável, o fragmento de metal mudou ligeiramente de posição devido ao esforço excessivo que Paul fez para salvar o irmão. A partir dessa data, nós sabíamos que ele estava com os dias contados.

— Ele foi informado disso?

— Foi. Ele fez questão de saber tudo nos mínimos detalhes.

—E não se pode fazer nada?

— Só há uma solução. Operá-lo. Mas essa operação envolve um grande risco.

— Qual é? — perguntou Dominic, inclinando o corpo para frente.

— Ele está sujeito a perder a vista.

— Não! Ele vai ficar cego?

— A operação do crânio é extremamente delicada e o fragmento de metal está localizado próximo ao centro da visão. Eu aconselhei Paul a fazer a operação, mas ele tem horror de ficar cego.

— Ah, meu Deus, por que ele não me falou nada?

— Paul não admite a idéia de despertar a compaixão dos outros. A perspectiva de perder a vista é pior para ele do que a morte. Você não notou como os gregos adoram a claridade? Até mesmo no interior das casas eles fazem questão de que tudo seja claro, radiante de luz! Paul é um grego típico. Ele prefere morrer a perder a visão.

— Mas ele não pode morrer! — exclamou Dominic. — Tem muita gente que depende dele. Paul é adorado pelos moradores da ilha, sem falar em Kara e em mim...  

— Foi isso o que eu disse a ele.

— Ele tem que ser operado. Se for preciso, eu assumo a responsabilidade pela operação.

— Você já mediu as conseqüências? O que Paul dirá daqui a uma semana quando perceber que está cego? Você não acha que é assumir uma responsabilidade muito grande?

— Ele pode me matar, se quiser. Mas eu assumo plena responsabilidade pela operação. Posso assinar inclusive um documento...

— Está bem. Faremos então a operação. E rezemos para que tudo corra bem.

— Ah, muito obrigada, doutor! — exclamou Dominic com os olhos brilhantes. — Eu lhe ficarei eternamente grata.

— Vou telefonar para Atenas e saber se um neurologista conhecido meu está livre nos próximos dias.

Enquanto o médico pedia à telefonista uma ligação interurbana, Dominic afundou na cadeira e fechou os olhos, rezando em silêncio para que tudo corresse bem.

O pátio interno do hospital estava coberto com o orvalho matutino. Gotinhas minúsculas escorriam das folhas verdes e das pétalas azuis das campainhas. Os pássaros chilreavam alegremente no grande pé de fícus que estendia os galhos imensos em todas as direções. Era ali que as enfermeiras conversavam e descansavam alguns minutos depois da refeição do meio-dia. Àquela hora matinal, porém, o pátio estava deserto.

Kara continuava dormindo no quarto dos acompanhantes. Nikos levara sua mãe para casa algumas horas atrás. Barry tinha ido embora também, após despedir-se de Dominic com um aperto demorado de mão. Desta vez a despedida não lhe deixou um vazio no coração, nem um gosto amargo na boca, como da primeira vez. O romance de adolescente terminara definitivamente. A decisão que ela tomara na véspera, ao autorizar a operação de Paul, não admitia recuo.

Dominic vestiu o casaco grosso que trouxera de casa e foi na ponta dos pés até a porta do quarto, tomando cuidado para não acordar Kara, que dormia a sono solto, abraçada ao travesseiro.

Algumas enfermeiras circulavam silenciosamente pelo corredor, entrando e saindo dos quartos. Dominic dirigiu-se ao andar onde Paul estava internado. Hesitou um segundo antes de virar a maçaneta e abrir a porta. Ao enfiar a cabeça para dentro, sentiu as pernas bambas e o coração gelado. A cama estava vazia. Paul fora levado para a sala de operação.

 

Paul tinha uma aparência terrivelmente abatida após a longa intervenção cirúrgica. A primeira impressão que dava era que nunca mais voltaria a ter a mesma vitalidade de antes. A cabeça estava enfaixada com uma atadura branca e o silêncio na saía de terapia intensiva era perturbado apenas pelos soluços abafados de Kara.

— Coitadinho! Como ele está abatido...

— É assim mesmo no início — disse Dominic, procurando confortar a menina. — O choque operatório é comum até mesmo nas pessoas mais sadias.

O cirurgião que operou Paul era um homem alto, de ombros largos e sobrancelhas espessas. Não dava absolutamente a impressão, à primeira vista, de ser um dos neurologistas mais competentes e considerados de Atenas. Na conversa que teve com os parentes após a operação, ele deixou bem claro que não podia afirmar nada com certeza por enquanto. A intervenção fora bem-sucedida do ponto de vista clínico, mas o paciente podia perder um dos olhos ou os dois, como fora falado antes. Na melhor das hipóteses, Paul conseguiria enxergar normalmente com o olho esquerdo. O cirurgião aconselhava por isso aos parentes, especialmente à esposa, a adotarem uma atitude realista e não alimentarem grandes ilusões.

— Vamos rezar para que tudo corra bem — disse Sofia.

Ela insistiu para que Dominic passasse as semanas seguintes em sua casa. Era mais perto do hospital e, por outro lado, Dominic não se sentiria tão sozinha como no casarão isolado no alto do morro. Dominic aceitou a sugestão e passou em casa para fazer as malas e tomar todas as providências necessárias com Yannis e Lita.

Ao descer do carro no pátio da casa, Dominic avistou alguns pedreiros que trabalhavam na praia.

— O que eles estão fazendo, Yannis?

— Estão fechando a entrada subterrânea. O patrão achou mais prático puxar o cabo de um teleférico.

— Ele tem razão. Esta é a maneira mais segura de subir o morro.

Ao entrar em casa, Dominic foi diretamente à sala de trabalho de Paul, onde escreveu uma longa carta ao tio, contando tudo o que lhe acontecera desde que partira da Inglaterra. Achou preferível, contudo, não fazer nenhuma referência ao filho que tinha perdido no acidente da semana anterior. Mesmo assim, a carta cobriu várias páginas.

Narrou minuciosamente a operação de Paul, as conversas que tivera com o médico da família e, mais recentemente, com o neurologista que viera de Atenas especialmente para operá-lo. Dobrou finalmente as folhas de papel, colocou-as no envelope aéreo e endereçou-o. Permaneceu um instante com a carta fechada na mão, imaginando a reação do tio quando recebesse notícias suas após um período tão longo de silêncio.

Ia se levantar da mesa de trabalho de Paul quando sua atenção foi atraída pela estatueta do unicórnio. O dia em que comprara o pequeno objeto na loja de antiguidades em Looe estava marcado para sempre em sua lembrança. Tinha desfrutado um breve momento de felicidade na companhia de Paul e, de repente, uma série de incidentes imprevisíveis concorreram para criar uma situação insuportável entre os dois.

Segurou a estatueta na mão e acompanhou com a ponta do dedo o contorno delicado. O unicórnio, como Paul dissera, era o símbolo da felicidade, o tecido com que os sonhos são feitos. Dominic levantou-se da mesa com um suspiro e saiu da sala, levando o unicórnio consigo como um amuleto.

Lita a esperava no hall com a mala pronta.

— Eu pus todas as roupas e vestidos que você pediu. Espero que não falte nada.

— Muito obrigada Lita. Se eu precisar de alguma coisa, venho aqui buscar.

Ao descer os degraus da entrada, Dominic avistou diversos empregados da casa com maços de flores e cestinhos de frutas nas mãos. Eram os presentes que tinham colhido no pomar naquela manhã para Dominic oferecer ao marido. As flores estavam cobertas de orvalho. Ela sentiu um nó na garganta. A fim de ocultar sua emoção, afundou os olhos rasos d'água no maço de flores e correu para o carro.

As mulheres reunidas no alpendre acenaram com as mãos. Pelo visto, a patroa ficara comovida com os presentes e isso era sinal de que amava muito o marido.

Como Sofia tinha previsto, os dias seguintes foram mais fáceis para Dominic graças à companhia de Kara e de Nikos. Tanto um como o outro procuravam distraí-la da melhor maneira possível. Kara, em geral, acompanhava Dominic nas visitas ao hospital e Nikos animava as refeições com sua conversa divertida.

— Nikos não vem almoçar em casa? — perguntou Dominic, ao ver apenas dois lugares à mesa.

— Ele foi promovido no trabalho e vai comemorar com os amigos.

— Ah, é? Que bom! Ele deve estar contente.

— Nem me fale! Agora ele é um dos gerentes do escritório. Meu filho está quase um homem. E dizer que ainda ontem eu o apertava no colo e lhe dava a mamadeira!

Dominic abaixou os olhos com a expressão triste.

— Ah, desculpe, Dominic! Eu não devia falar nesse assunto com você, mas espero que vocês tenham muitos filhos depois que Paul ficar bom. O médico disse que, se tudo correr bem, ele estará de volta em casa na semana que vem.

— Deus queira.

Dominic não podia comentar com Sofia que as conversas que tivera com Paul no hospital não faziam nenhuma referência ao futuro. Como Kara estava sempre presente, os dois não tinham liberdade de abordar assuntos íntimos e muito menos fazer planos para o futuro.

À medida que os dias passavam, Paul apresentava melhoras sensíveis. Muito em breve as ataduras seriam removidas da cabeça e os médicos fariam os primeiros testes para ver se a intervenção cirúrgica havia afetado ou não sua visão.

Dominic estava pronta para ir ao hospital na tarde de sexta-feira quando deu por falta de Kara.

— Onde ela foi? — perguntou a Sofia, aterrada com a perspectiva de ir sozinha ao hospital.

— Não tenho idéia. Ela não falou nada antes de sair.

— Você não quer ir comigo?

— Eu bem que gostaria, mas estou muito ocupada hoje à tarde. Vá sozinha. Só assim você terá ocasião de ter uma longa conversa com Paul e fazer planos para o futuro. Aposto que Kara atrai toda a atenção para si mesma e vocês dois não têm um minuto de sossego para matarem a saudade. É ou não é?

— Paul adora a companhia da irmã. E a sua também. Venha comigo, tia — insistiu Dominic.

— Até parece que você tem medo de enfrentar o marido sozinha — disse Sofia com uma risada. — Pode ir sossegada. Paul não vai brigar com você.

— Não? Você não sabe como ele é. Paul odeia a idéia de ficar cego e depender dos outros. Ele vai me comer viva se souber que eu fui a responsável pela operação.

— Não havia outra escolha — disse Sofia, acompanhando Dominic até a porta de entrada. — Ou bem a vida ou bem a vista. Você fez o que qualquer pessoa teria feito em seu lugar. Vá tranqüila, minha filha. E dê lembranças minhas a Paul.

Dominic entrou no carro grande, dirigido pelo motorista da casa, e sentou-se ereta no banco de trás. Estava uma pilha de nervos quando passou pela portaria do hospital.

A fim de preencher o vazio criado pela ausência de Kara, Dominic falou pelos cotovelos. Contou a Paul todas as histórias divertidas que ouvira durante a semana à mesa do jantar. Ofereceu-lhe em seguida as uvas e os pêssegos que comprara a caminho do hospital. Paul, porém, parecia mais reservado que de costume. Ouviu todas as novidades em silêncio, a cabeça reclinada sobre o travesseiro, a boca cerrada como um traço fino.

As flores que trouxera alguns dias antes estavam murchando no vaso e as pétalas caíam sobre o pano bordado da mesa.

— Você quer um pêssego? Está uma delícia. Eu comprei na quitanda quando vim para cá.

— Só tem uma coisa que eu quero — disse Paul em voz baixa, como se o simples fato de conversar fosse um esforço.

— O que é?

Ele voltou a cabeça na direção dela, como se estivesse encarando-a através da atadura que lhe cobria o crânio raspado.

— Compre uma passagem de avião e volte para a sua casa

— O quê?

— Você ouviu perfeitamente.

— Se você pensa que eu vou embora, está redondamente enganado! Estou disposta a ficar.

— Mas você acabará indo, por bem ou por mal. Sou eu que estou dizendo.

Dominic debruçou-se sobre a cabeceira da cama, como se fosse dizer um segredo. Os brincos nas orelhas faziam um barulhinho metálico toda vez que ela balançava a cabeça.

— Eu sou responsável por você. Assinei um documento.

— Foi Demétrio quem exigiu isso de você?

— Não. Foi o neurologista.

— O que dizia o documento?

— Que eu assumia inteira responsabilidade pelo resultado da operação. Está contente agora, querido?

— Desde quando eu sou o seu querido?

Dominic percebeu a ligeira descontração na boca do marido, como se suas palavras houvessem mexido com o coração dele.

— Está bom. Você não é o meu querido. Você é um grego arrogante e frio como pedra. Imagine! Mandar-me de volta para casa, como se eu fosse uma peteca que você jogasse de um lado para o outro. Pois fique sabendo que eu quero estar aqui para saber o resultado da operação!

— Com que direito?

— Simplesmente porque sou sua mulher e porque você infernizou a minha vida!

Paul estendeu a mão e segurou a dela.

— Você está com pena de mim?

— Pena de você? Deve estar sonhando! Eu tenho pena de mim, por ter que viver com você nos próximos cinqüenta anos. Arrogante, convencido, machão! Só Deus sabe o que o futuro me reserva...

— Eu não pedi para você ficar comigo.

— Nem eu pedi para gostar de você. Isso é problema meu. Azar o meu se eu vou ter que agüentar as conseqüências.

— Isso é bem feminino. Gritar e chorar ao mesmo tempo.

— Eu não estou gritando, seu bobo!

— Nem chorando?

Paul enlaçou-a pela cintura e puxou-a para si.

— E você quem me faz chorar com a sua estupidez.

— Desculpe, querida. Foi sem querer.

— Eu sei disso! Você faz de propósito, para me torturar. Paul correu os dedos pela face úmida das lágrimas que escorriam dos olhos dela.

— O sol, a lua e as estrelas estão escuros para mim, como na história de Sansão. O que vai ser de mim se eles continuarem escuros para sempre?

— Eu vou enxergar por você — disse Dominic, beijando-o na face. — Você está com uma cara melhor hoje, querido. Tinha uma aparência terrível quando saiu da sala de operarão. O rosto branco como o lençol da cama.

— Você ficou com medo?

— De você?

— Não. De me perder?

— Lógico! Você é tudo o que eu tenho!

Paul afastou-a dos braços, como se quisesse ler a expressão de seus olhos. Dominic sentiu um nó na garganta ao ver o esforço que ele fazia para acreditar nas suas palavras.

— Você devia me odiar. Afinal, eu a arranquei de casa contra a sua vontade, eu a possuí a força na primeira noite de núpcias, fui culpado pela morte do nosso filho...

— Nada disso importa — murmurou Dominic, beijando-o na boca. — Eu gosto de você, seu bruto. Gosto de você há muito tempo, mas meu orgulho me impediu de admitir isso. Foi somente quando o médico disse que você estava à beira da morte que eu decidi enfrentar a situação...

— Você fez bem, querida. Eu teria agido da mesma forma se estivesse em seu lugar. Agora eu só quero uma coisa: tirar esta atadura da cabeça e voltar para casa com você.

Uma semana mais tarde Paul estava convalescendo da operação no terraço de sua casa, de onde se avistava a baía de Andelo. Dominic enlaçou-o pela cintura e apontou para longe.

— Feche o olho esquerdo. O que você está vendo?

— Eu não vejo nada com a vista direita.

— E com a esquerda?

— Eu avisto o fundo da baía, alguns barcos à vela e o mar ofuscante, que dói na vista.

— Viu só? Você está fazendo grandes progressos. Nos primeiros dias só enxergava um clarão. Pouco a pouco sua visão vai voltar ao normal.

— Deus queira. Seria terrível ficar cego das duas vistas. Dominic ficou na ponta dos pés e beijou-o na face direita.

— Você se lembra do pequeno unicórnio que eu lhe dei?

— Ah, foi bom você falar nisso. Que fim ele levou? Não está mais em cima da minha mesa.

— Está na minha bolsa. Ele me acompanhou todas as vezes que fui visitar você no hospital. Ele nos deu sorte e felicidade.

— E você me trouxe o amor...

Paul estreitou-a nos braços e beijou-a com ternura, num beijo que estava destinado a se prolongar por muitos minutos se Yannis não tivesse entrado no terraço para dizer que o almoço estava servido.

 

                                                                                Violet Winspear  

 

                      

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