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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM TRONO PARA DOIS IRMÃOS / Magalhães & Isabel
UM TRONO PARA DOIS IRMÃOS / Magalhães & Isabel

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

- Temos que ter cuidado - advertiram os capitães.

- Anda por aí um bando perigosíssimo que ataca pela calada da noite. Fazem verdadeiras razias e depois desaparecem sem deixar rasto. O chefe é um tal Remexido. Nas aldeias basta ouvirem-lhe o nome para se irem fechar em casa a tremer de medo.

- Sabes o que me contaram do Remexido, capitão? Dizem que pode estar três dias e três noites sem comida de gente.

Não perde a força porque mastiga umas certas raízes outras que só ele conhece.

- Isso fazia-nos jeito para rações de combate - brincou o capitão. - Se o encontrarmos havemos de o convencer a revelar o segredo.

 

 

 

 

Ana rastejou para debaixo de uma carroça meio desconjuntada e encolheu-se tapando a cabeça com as mãos. Não percebia aonde é que tinha ido parar mas uma coisa era certa: caíra no meio de fogo cruzado. Estampidos, estrondos, clarões, nuvens de poeira e fumo, um horror! De súbito, uma bala perdida cravou-se no madeirame e logo de seguida outra fez ricochete nas dobradiças metálicas, o que teve como efeito desmantelar-se o que restava da carroça em cima da pobre Ana. O susto foi tal que até abriu os olhos para contemplar o mundo no derradeiro instante da sua vida. Mas afinal não morreu, só desmaiou. Antes de perder os sentidos teve a impressão de que alguém a arrastava por um braço e a boca soube-lhe a pó. Não demorou muito a vir à tona de si mesma. Quando acordou, porém, em vez de alívio sentiu-se de novo imersa no terrível pesadelo e desejou ardentemente continuar a dormir. Impossível! O rugido da batalha estava mais feroz do que nunca e manteve-a desperta e aflita; além de tudo o mais, com uma pavorosa dor de cabeça.

O irmão amparava-a de um lado e Orlando do outro. Tinham ambos o medo estampado no rosto e uma quantidade inacreditável de poeira nas pestanas, nas sobrancelhas, no cabelo. Pareceram-lhe grisalhos e receou que tivessem envelhecido vinte anos naquela maldita viagem.

- O que é que aconteceu? - perguntou num murmúrio. - Onde estamos?

- No Porto - disse Orlando sem desviar a vista de um canhão que vários soldados empurravam na zona de combate. - Acho que fomos projectados para os arredores da cidade.

Explosões sucessivas cortaram-lhe a palavra. Bum! Bum! Bum!

Um cheiro intenso a pólvora tornou o ar quase irrespirável, ouviram-se gritos lancinantes e depois uma espécie de silêncio.

- Estão a afastar-se - disse o João, esticando a cabeça para fora do buraco onde se tinham abrigado. - Estão a afastar-se.

Orlando confirmou. Não conseguia ver bem o que se passava adiante, mas homens, armas e cavalos combatiam agora mais para lá.

- Vamos aproveitar a pausa e fugir.

- Para onde?

- Para onde for possível. Venham! Ágil como sempre, galgou o rebordo de terra, deu

uma corrida e foi esconder-se atrás de um caniçal farfalhudo.

Os dois irmãos seguiram-no aos tropeções e enfiaram-se nas canas arfando como cachorros assustados.

Orlando procurou acalmá-los.

- O pior já passou. Um dos exércitos está a empurrar o outro para longe da cidade. Nós vamos tomar o caminho inverso. Assim que entrarmos no Porto ficamos a salvo.

Não foi preciso repetir a ordem para que tomassem a estrada de terra batida em passo acelerado. Atrás deles o velho cientista resmungava:

- O que terá acontecido à máquina de viajar no tempo? Por que raio havia de nos cuspir em pleno campo de batalha? E agora? O que é que eu faço?

Já se tinham afastado o suficiente quando, ao sair de uma curva, quase esbarraram com dois homens em apuros. O mais novo jazia por terra inconsciente. Envergava farda militar toda manchada de sangue e lama. Os cabelos caíam-lhe para a cara também coberta por uma pasta sangrenta. O mais velho estava de joelhos com a cabeça inclinada sobre o peito do ferido para lhe auscultar as batidas do coração. Não demonstrou qualquer surpresa ao vê-los, pelo contrário. Falou-lhes como se se conhecessem desde sempre. Levantou-se e informou numa voz profunda com ressonância musical:

- Está vivo. Teve sorte.

Depois tentou soerguê-lo e pediu ajuda. Ou melhor, ordenou que o ajudassem:

- Vamos colocá-lo em cima da charrete. Amparem-no daí com cuidado.

Obedeceram-lhe sem replicar.

O rapaz foi instalado num banco de cabedal cheio de almofadas, com a cabeça apoiada numa manta de lã dobrada em quatro. Não abriu os olhos mas soltou um leve gemido.

- Se não têm outro meio de transporte subam também, que eu levo-os para o Porto.

- O cavalo aguenta? - perguntou o João.

- Aguenta, pois. Está habituado a carregar com o peso que for necessário. Cavalo de médico tem que ser assim.

Ficaram portanto a saber que o homem era médico. Gostariam de lhe fazer perguntas mas, com receio de serem obrigados a justificar a sua presença na zona da batalha, preferiram calar-se. Ele saltou para o banco da frente, segurou as rédeas e fez estalar o chicote sem atingir o animal.

- Ôôô!

Partiram a trote em direcção à cidade.

Ana dividia-se entre dois pólos de atenção. Vigiava o ferido, na ideia de que os solavancos podiam projectá-lo para o chão, mas não conseguia impedir-se de observar o condutor. Que figura curiosa! Alto, bem constituído, de farta cabeleira escura onde despontavam alguns fios brancos e suíças a ligar ao bigode, transmitia uma sensação de segurança a quem dele se aproximasse. Os olhos miudinhos com pálpebras gordas e um pouco descaídas ao canto mantinham-se imperturbáveis, e a roupa que usava de certo modo condizia com o olhar, pois, embora circulando por uma estrada poeirenta e após ter levantado nos braços um ferido, não se descortinava o menor vestígio de sujidade nas calças, no colete, na sobrecasaca cor de vinho. Exalava até um cheiro agradável a alfazema.

Já próximo da cidade abrandou a marcha e, virando-se para trás, perguntou:

- Onde é que querem ficar?

Colhidos de surpresa, entupiram. Orlando corou, depois empalideceu e finalmente inventou uma aldrabice credível:

- A nossa casa foi atingida pelo tiroteio e ardeu. Ficámos sem nada e íamos tentar sair do Porto para pedir abrigo a uns parentes que temos em... a...

- Braga! - disse João de rompante, porque foi a primeira terra que lhe veio à cabeça.

- Ah! Já percebi.

Na voz quente do médico havia agora uma ressonância irónica e a expressão imperturbável abriu-se para dar lugar a um lampejo de troça. Orlando parecia consternado mas eles não sabiam porquê.

Retomaram a marcha. Num trote ligeiro foram conduzidos por uma rua ladeada de muros altos cobertos de hera muito verde e viçosa. Os cascos do cavalo matraqueavam as lajes: cloc... cloc... cloc...

Revoadas de pássaros chilreavam esvoaçando em redor dos ninhos. Que sítio aprazível!

- Onde estamos? - balbuciou a Ana.

- Estamos a chegar a casa. Como não têm onde ficar, por agora ficam comigo.

Duvidaram que se tratasse de um convite. Agradava-lhes poder descansar debaixo de telha mas o tom afirmativo do médico provocou-lhes alguma inquietação. Se acaso recusassem, seriam autorizados a partir?

 

No muro de pedra rasgava-se uma entrada ampla e própria para todo o tipo de carruagens. O portão enorme em ferro forjado exibia duas letras entrelaçadas dentro de uma cercadura com pétalas de flor em relevo. Do lado direito pendia uma sineta e o respectivo cordão.

Não foi preciso usá-la porque alguém da casa estava à espreita e mandou abrir.

O portão dava acesso a um jardim magnífico com árvores gigantescas e uma fonte onde a água cantava de mansinho. Ao fundo erguia-se a casa, uma fachada branca com imensas janelas de vidros pequenos, duas chaminés sobre o telhado e uma porta central pintada de verde-escuro. Mais do que bonita, era uma casa serena, acolhedora. Ali, tornava-se difícil acreditar que não muito longe andava gente aos tiros.

O médico saltou da charrete ajudado por dois criados que respeitosamente lhe chamaram Dr. Libânio.

Esses mesmos criados apressaram-se a ir buscar uma padiola para transportarem o ferido e eles receberam a indicação de que deviam ficar onde estavam:

- Vocês esperam por mim que eu já volto.

Antes de desaparecer, o Dr. Libânio deu ordem ao jardineiro para fechar o portão.

Orlando apeou-se e foi sentar-se num banco de pedra junto da fonte. Molhou os dedos e refrescou a testa e o pescoço numa atitude dúbia. Ana e João aproximaram-se, tentando perceber o que sentia. Alívio por estarem em segurança? Ou vontade de fugir a sete pés? Ambos tinham reagido com desconfiança ao cerrar dos portões. Não sabiam explicar porquê mas os modos do médico, associados ao espaço fechado em que se encontravam, provocavam um certo desconforto interior. Ainda não tinham dado nome ao sentimento que era afinal muito simples: medo.

- O que é que se passa, Orlando? - perguntou finalmente o João.

Ele coçou a cabeça e fez um trejeito antes de falar. Depois explicou-se num sussurro que se diluía na água cantante:

- Caímos em plena guerra civil. O País está dividido entre dois partidos que lutam ferozmente pelo Poder. Um dos exércitos domina a cidade do Porto. O outro montou um cerco à volta e a toda a hora estalam conflitos. Há tiroteios, bombardeamentos com canhões, lutas corpo-a-corpo. Matam-se, prendem-se, fazem reféns, usam-se como moeda de troca.

- Então e o rei? Nesta altura não havia rei?

- Bom, esse é o problema. Em vez de um rei, há dois príncipes que querem governar o País: D. Miguel e D. Pedro.

São irmãos mas têm ideias muito diferentes. D. Miguel quer governar à antiga, com o Poder todo na mão. Quer ser aquilo a que se chama um rei absoluto.

- E D. Pedro?

- Esse defende ideias mais modernas. Acha que deve haver leis válidas para toda a gente, a que até o próprio rei tem que se submeter. É liberal.

- Quem é que está no Porto?

- D. Pedro e os liberais.

- Nesse caso à volta da cidade estão os outros.

- Exacto: os miguelistas.

- Que raio de luta! Um irmão contra outro...

- Dizes bem, Ana. Não são só os reis. Há muitos irmãos a lutar entre si nesta guerra, porque as famílias dividiram-se, escolheram campos opostos. Quando alguém dispara não sabe se a bala vai atingir o maior amigo. É a guerra civil. Todas as guerras são horríveis, mas talvez esta seja a pior.

Durante alguns instantes nenhum deles falou. Pela cabeça desfilavam-lhes imagens incómodas a que preferiam não dar voz. Mas um receio de contornos indefinidos foi-se insinuando. Estavam em casa de um estranho. Mesmo que quisessem não podiam sair dali. Os muros eram altíssimos e o portão de ferro bem guardado não o permitiam.

- Ó Orlando... de que partido será este Dr. Libânio? - gaguejou a Ana.

O velho cientista não respondeu logo e pôs-se a fazer

riscos com a unha no musgo da fonte. Dir-se-ia que

mergulhara numa verdadeira trama de pensamentos

abstractos. Quando falou, porém, foi muito concreto:

- O Dr. Libânio é de certeza liberal como quase todos os homens cultos do Porto.

Além de tudo, trouxe com ele um ferido que tinha fitas azuis e brancas no chapéu. São as cores dos liberais.

- E... e...

João não conseguiu formular a frase que lhe queimava a garganta mas Orlando ajudou-o:

- E julga que nós somos miguelistas.

- Porquê?

- Porque tu, meu pateta, tiveste a triste ideia de lhe dizer que íamos a fugir para Braga. Ora acontece que D. Miguel está em Braga com a sua gente.

- Então... acha que o Dr. Libânio nos prendeu?

- Não sei. É possível.

Nesse momento o dono da casa assomou à porta e fez-lhes sinal para avançarem com um gesto imperioso. Tinha mudado de roupa. Envergava agora um casaco mais leve, cor de pinhão, um lenço de seda ao pescoço a condizer e botas luzindo de tão engraxadas. Estranharam que cuidasse tanto da sua aparência naquelas circunstâncias. E o espanto aumentou quando transpuseram a ombreira da porta.

- Por esta é que eu não esperava - murmurou a Ana.

Atrás dela o João e o Orlando também se mostraram surpreendidos.

A entrada era um compartimento com portas a toda a volta abrindo para salas amplas e muito bonitas, com lareira, pinturas nas paredes, reposteiros de seda, móveis requintadíssimos e até um bilhar. Mas estava tudo arredado para dar espaço às camas improvisadas. No chão alinhavam-se colchões repletos de feridos. Havia cabeças entrapadas, braços ao peito, pernas com talas, cicatrizes, ligaduras, pensos.

Tudo aquilo exalava um cheiro intenso, enjoativo, a desinfectante. Pelos vistos o Dr. Libânio tinha transformado o piso inferior da casa em enfermaria para os liberais. Seria possível que o piso de cima estivesse transformado em prisão para os miguelistas?

João subiu a escada com a cabeça às voltas em busca de uma frase muito simples para convencer o senhor que lá porque tinham parentes em Braga isso não queria dizer que defendessem D. Miguel. O pior é que só lhe ocorriam palavras que até ele próprio achava ocas. Preferiu portanto calar-se até ver.

A escada tinha apenas dois lanços com um patamar ao meio e uma clarabóia de vidro a servir de tecto, o que garantia uma iluminação espectacular. Nas paredes havia janelinhas interiores e atrás dos vidros estava uma cara gorducha à espreita. Era a criada. Logo que viu o patrão correu a recebê-lo muito solícita.

- Já preparei tudo conforme o Sr. Dr. mandou.

- A Clarinda acompanha-os - disse o doutor Libânio com a expressão imperturbável que lhe conheciam.

Eles entreolharam-se, hesitantes. Iam ser acompanhados para onde?

 

As impressões que se seguiram foram realmente estonteantes! Primeiro ouviram os acordes leves de um piano, depois vozes femininas a discutir e em seguida a Clarinda introduziu-os num quarto que não se parecia nada com uma prisão. Cama de ferro, colcha branca imaculada, cortinados às pintinhas de tecido transparente. Ao canto tinham colocado um lavatório de loiça, um balde e um jarro de água morna. Nas costas da cadeira e sobre a cama havia camisas, meias, uma saia, casacos de vários tamanhos.

- O Sr. Dr. mandou pôr isto aqui para se quiserem mudar de roupa. A água está morna. Se for preciso, trago mais.

Antes de se retirar fez uma pequena vénia e acrescentou:

- Quando estiverem prontos, chamem, que eu levo-os ao salão. A Sr.a Dona Delfina está à espera para tomarem chá. Com licença...

Muito sorridente, deu meia volta e fechou a porta atrás de si.

Eles desataram a rir baixinho.

- Prisão não é! - disse a Ana.

- Pois não. Mas se queres que te diga não percebo por que é que nos trouxe para casa. Afinal não nos conhece de lado nenhum. Tanta simpatia faz uma pessoa desconfiar.

- Deixe-se disso, Orlando! O Dr. Libânio com certeza não conhece todos aqueles infelizes que tem lá em baixo. Deve ser um homem generoso que anda pelas ruas a recolher feridos. E desta vez, para variar, trouxe também gente que está de perfeita saúde. Ah! Ah! Ah!

O optimismo do João era tão desconcertante como contagiante. Foi na boa risota que se lavaram, experimentaram roupa limpa e se perfumaram, pois junto do lavatório não faltava sequer um frasco azul com perfume de alfazema.

Foi portanto impecavelmente arranjados que se dirigiram ao salão, onde a mulher do Dr. Libânio dedilhava as teclas do piano quase sem lhes tocar. Já tinha ouvido uma descompostura por incomodar os doentes com a música e não estava disposta a ouvir outra. Mas também não queria privar-se daquele prazer, por isso insistia numas valsinhas suaves.

Quando sentiu a presença das visitas levantou-se para lhes dar as boas-vindas com um sorriso de orelha a orelha. O que disse fê-los perceber finalmente por que motivo estavam ali.

- Tenho muito gosto em recebê-los. Já sei que o meu marido os encontrou quando tentavam sair do Porto. Iam para Braga, não era?

A interrogação veio envolvida numa espécie de troça amigável que assentava bem na cara da senhora. Gorduchinha, risonha, com olhos miúdos e matreiros, parecia feita para levar a vida na brincadeira.

Orlando aproveitou a deixa para desfazer o equívoco:

- Nós queríamos sair da cidade porque ficámos sem casa. Pensámos em Braga como podíamos ter pensado noutro sítio qualquer... Vivem lá uns primos e...

Delfina deu uma gargalhada sonora.

- Quer você dizer que não é miguelista? Nem eu! Ah! Ah! Ah! Nem miguelista nem liberal. Cá por mim tanto faz que governe um como governe o outro.

Enfiou o braço no de Orlando, arrastou-o para um sofá de seda cor-de-rosa cheio de botõezinhos e desatou a queixar-se sem papas na língua:

- Isto é uma guerra estúpida. Tem morrido tanta gente sem necessidade nenhuma. Então dois irmãos não podiam entender-se? Reuniam-se com calma, combinavam uma maneira de resolver o assunto, e pronto!

Deu um suspiro, abanou-se com o leque e continuou:

- Vocês viram os rapazes lá em baixo? Uns ficaram sem pernas, outros sem braços, outros já não se levantam dali. Vale a pena? Vocês acham que vale a pena?

Dito assim, parecia que não. Não sabendo o que responder, permaneceram mudos e sorridentes. Aceitaram uma chávena de chá, bolinhos, e foram acenando que sim aos novos queixumes.

- Eu já não posso com a guerra. Estou farta até à raiz dos cabelos. Ainda por cima o meu marido enche a casa com quantos desgraçados encontra no meio da rua. Se vê alguém em apuros, mete-o na charrete e trá-lo para cá. E não escolhe. Ele, que é um liberal ferrenho, tanto me traz feridos de um lado como de outro. A sala de bilhar, por exemplo, está cheia de miguelistas!

Enquanto falava ia comendo avidamente rosquinhas de limão e bombons. E saltava de assuntos sérios para futilidades sem mudar de tom:

- Provaram estes bombons com recheio de marmelada? São uma especialidade.

As bochechas tremiam-lhe ligeiramente, evidenciando chocolates a serem mastigados e deglutidos com satisfação.

Embora a considerassem um pouco tonta, não podiam resistir-lhe. Era uma pessoa ao pé de quem os problemas se desvaneciam.

A conversa foi interrompida pela chegada de outro elemento da família.

- É a nossa filha, a Libaninha - disse a senhora com indisfarçável vaidade.

A rapariga devia ter mais ou menos a idade do João e era bonita a valer. Trazia um vestido azul-turquesa e uma fita no cabelo. Cumprimentou-os e sentou-se muito direita ao lado da mãe. Bastava olhá-la para perceber o contraste: Libânia tinha o feitio pouco comunicativo do pai e a mesma expressão enigmática. Não era possível ler coisa alguma naquela fisionomia. Estaria contente por ter visitas? Manter-se-ia silenciosa por ser tímida? Ou porque não lhes queria dar confiança?

João não conseguia desfitá-la. Já percorrera o pescoço de pele muito branca em direcção à orla dos cabelos, detendo-se nas orelhas, que achou lindíssimas. Descobriu também que se esboçasse um leve sorriso logo aparecia uma covinha do lado esquerdo.

Os dentes da frente sobrepunham-se ligeiramente, o que lhe dava imensa graça. E as pestanas? Que pestanas!

Ela não parecia notar o exame minucioso de que era alvo, mas o entusiasmo de João não passava despercebido a ninguém. Delfina observava a cena de soslaio, divertida. Orlando remexia-se no sofá numa tentativa inútil de lhe chamar a atenção para a triste figura que estava a fazer. Ana ria à socapa, ansiosa por se meter com o irmão. Não houve oportunidade porque ouviram a sineta tocar com insistência e correram todos à janela a tempo de verem entrar no jardim uma carroça cheia de soldados num estado miserável.

Os criados rodearam a carroça à procura de caras conhecidas entre os feridos. O Dr. Libânio aproximou-se também e a filha precipitou-se escada abaixo, pronta a ajudar no que fosse preciso.

Delfina encolheu os ombros, conformada.

- Esta minha filha não sai de ao pé dos doentes. Se fosse rapaz ainda se compreendia que quisesse seguir o exemplo do pai. Agora uma menina, francamente! Passa o dia a ver coisas pouco próprias. Feridas, sangue, pus e sabe Deus o que mais. Eu por mim proibia-a, mas o pai deixa-a fazer tudo o que ela quer!

Debruçando-se no parapeito pôs-se a contar os feridos que iam sendo retirados em padiolas.

- Treze, catorze, quinze. Valha-me Nossa Senhora! Onde é que ele julga que vai meter tanta gente? As salas já estão a abarrotar. Por que é que não os manda todos para o hospital?

Do sítio onde se encontrava não podia ouvir as explicações do carroceiro que fizera a triste recolha no campo de batalha:

- Foi uma coisa tremenda, doutor. Morreram tantos de um lado como do outro. Tenho andado a transportar feridos para o hospital, mas por agora já lá não cabe nem mais um. Até armaram tendas no pátio, mas essas também já estão cheias. Lembrei-me de os trazer para aqui.

- Fizeste bem, homem. Eu tenho a casa cheia mas alguma coisa se há-de arranjar.

- Quer que mande limpar as cavalariças, meu pai? A sugestão era boa, foi aceite e desencadeou grande

azáfama entre a criadagem.

João quase caiu da janela abaixo para seguir com os olhos a figurinha vestida de azul que circundava a dar ordens para a direita e para a esquerda.

- Vou lá dar uma ajuda - anunciou.

- Eu também.

Os dois irmãos rodaram nos calcanhares sem pedir licença e encaminharam-se para o jardim a oferecer os seus préstimos. Ana esteve quase a dizer uma gracinha mas desistiu, porque o espectáculo não permitia brincadeiras. Arregaçou as mangas, pegou numa vassoura e varreu as cavalariças com uma energia redobrada. Os soldados precisavam urgentemente de um sítio onde repousar e receber tratamento. Mas como nem todos podiam esperar, improvisou-se de imediato um sistema de apoio na entrada da casa. O Dr. Libânio não tinha mãos a medir. Apoiado pela filha, ocupou-se primeiro dos que perdiam sangue. Desinfectava feridas, retirava estilhaços cravados na carne, cosia golpes profundos com uma agulha curva, rasgava tiras de pano para com elas estancar hemorragias e fazer pensos.

A filha devia estar muito habituada pois não pestanejava.

Com gestos seguros e firmes ia-lhe passando tesoura, pinça, desinfectante. João desvanecia-se: «Que mulher!»

Para a impressionar, resolveu mostrar-se muito eficiente. Pegou num lençol com o propósito de o transformar em ligaduras e zás! - rasgou tudo torto por ali abaixo.

«O diabo! Parece que nisto não sou muito bom.» Antes que alguém reparasse na asneira, amarfanhou o pano e voltou a colocá-lo no monte de onde o tirara. Mas não desistiu dos seus intentos. Vendo a Clarinda aproximar-se com uma bacia de água quente, tirou-lha das mãos e avançou num passo rápido, elástico, ignorando as peças que no meio da balbúrdia se tinham espalhado pelo chão. E assim tropeçou, caiu, entornou a água no lajedo e partiu a bacia em mil bocados.

Morto de vergonha, deixou-se ficar muito quieto e com os olhos fechados. Não tinha coragem para encarar Libânia. Ela ia achá-lo um idiota.

Enganava-se, porém. Libânia ficou aflitíssima, largou o que estava a fazer e debruçou-se, pondo-lhe a mão sobre a testa com muito carinho.

- Magoaste-te?

Nesse mesmo instante João resolveu aproveitar a situação para a abraçar, conforme desejava desde o primeiro minuto.

- Humm... não sei se parti alguma coisa. Dói-me imenso o ombro e o cotovelo.

Libânia ajudou-o a levantar-se e ficaram enganchados como ele queria. Pôde até roçar levemente o nariz pelos caracóis loiros e inspirar o cheiro a perfume de rosas.

«Esta família perfuma-se com classe», pensou.

Ainda esteve vai-não-vai para prolongar a fita mas reconsiderou. Estavam ali muitos feridos a sério, não era altura para brincar aos doentes. Aliás, nem valia a pena. Do olhar de Libânia desaparecera a expressão enigmática para dar lugar a um certo brilhozinho muito especial.

«Gosta de mim. Também se apaixonou à primeira vista!»

As certezas transformaram-se em dúvidas quando a viu debruçar-se sobre uma padiola com ar demasiado ansioso. E ficou cheio de ciúmes quando a ouviu chamar o pai em altos berros:

- Pai! Pai! Venha depressa! Sabe quem é este ferido? É o Nuno! Depressa, meu pai! Olhe que ele está a perder muito sangue.

 

Nuno era afilhado do Dr. Libânio e muito querido lá em casa. Toda a gente ficou na maior aflição por o ver naquele estado e Delfina exigiu que o levassem para cima imediatamente. Instalaram-no num quartinho a seguir ao salão de baile e durante alguns dias a vida girou em torno do doente. Circulava-se em bicos de pés, falava-se em surdina e até o piano ficou mudo. Libânia passava os dias sentada à cabeceira, a tentar baixar a febre colocando-lhe pachos de água fria na testa, e fazia questão de ser ela a alimentá-lo. O rapaz estava tão enfraquecido que nem dava mostras de conhecer as pessoas. Abria a boca para engolir umas colherzinhas de caldo e logo caía sobre as almofadas, exausto, a suar em bica.

Cá fora João espumava de ciúme, sobretudo porque as criadas, entre ais e suspiros, acrescentavam a todos os comentários:

- Coitado! Um rapaz tão bonito!

- Bonito como há poucos...

De tanto ouvir aquilo Ana morria de curiosidade. Como seria o tal Nuno? Mas por delicadeza nunca entrou no quarto.

Continuavam ali hospedados porque havia lutas constantes em redor do Porto e o médico insistiu para que ficassem:

- É arriscadíssimo saírem da cidade. Não se preocupem porque não incomodam nada. Tenho muito gosto em que estejam comigo e até fazem companhia à minha mulher. Só os deixo ir embora quando houver condições de segurança.

A solução agradava particularmente à dona da casa. Sendo muito comunicativa, sentia falta de ter com quem conversar. Simpatizara imenso com eles e aproveitava para contar em pormenor tudo o que lhe percorria a mente: recordações, histórias da família, projectos de futuro, preocupações momentâneas. Felizmente tinha graça e mesmo sem querer transformava os assuntos trágicos em cómicos, pois acrescentava-lhes sempre peripécias ridículas e divertidas.

Ana e Orlando deram consigo muitas vezes a rir à gargalhada de problemas, sérios, o que os deixava depois envergonhadíssimos. Quanto ao João, não ouvia nada. Escolhera como poiso a porta do quarto de Nuno. Embora permanecesse do lado de fora, conseguia captar todas as palavras pronunciadas lá dentro. Ainda não escutara nada que indicasse haver romance entre a enfermeira e o paciente, mas estudava as inflexões de voz para ver se o tom era demasiado terno e espreitava por uma frincha, tentando averiguar se ela se chegava mais do que o necessário durante os tratamentos.

Além disso, via-a entrar e sair e podiam conversar um pouco. Aqueles intervalos deixavam-no «flutuante».

«Gosta de mim», pensava. «Olha-me de uma maneira que só pode ser. Pelo outro sente amizade.»

Mas quando ela se afastava as dúvidas assaltavam-no e remordiam-lhe o coração. Que experiência nova e perturbante! Já tinha gostado de outras raparigas mas não assim. Desta vez o amor tornara-se obsessivo. Não pensava em mais nada e o resto do mundo parecia desfocado. Logo que lhe punha a vista em cima irrompia-lhe do peito uma alegria desvairada, e então as cores do resto do mundo tornavam-se faiscantes, os sons vulgares adquiriam tonalidades de música suave, todo e qualquer cheiro lhe parecia perfume.

«Estou apaixonado», repetira já mil vezes para si próprio. «Tenho que lhe dizer.»

Enquanto esperava ia inventando fórmulas estupendas para se declarar e imaginava a resposta. Quando ela aparecia, faltava-lhe coragem.

O resultado disto tudo era não arredar pé do seu poiso para grande espanto de toda a gente. As criadas gabavam-no muito:

- Este menino é muito prestável. Está sempre pronto para nos ajudar no que for preciso! Afeiçoou-se a esta família. Vejam lá como se preocupa com o doente!

Quem respondia era a Ana, arregalando os olhos numa expressão de sonsa:

- É verdade. Posso-lhes garantir que ele não sai dali enquanto o doente não ficar bom.

Depois passava por ele e lançava-lhe remoques de troça:

- Desta vez deu-te forte, hã?

No dia em que Nuno finalmente se levantou, foi uma festa. Prepararam-se petiscos especiais, Delfina mandou buscar uma toalha de renda e o melhor serviço de loiça, as criadas trouxeram ramos de flores colhidas no jardim e perfilaram-se para o receber.

As mais velhas, que o conheciam desde pequenito, abraçaram-no e deram-lhe um beijo de cada lado. As mais novas gostariam de fazer o mesmo mas não se atreveram. Limitaram-se a apertar-lhe a mão e a fazer uma vénia, quase todas muito coradas e de olhos postos no chão.

De facto o rapaz era bonito. A palidez, o ar cansado e as olheiras não estragavam o conjunto. Quando sorria, então, ficava lindo. E tinha um tique: de vez em quando afastava o cabelo da testa, o que, sem ninguém saber explicar porquê, o fazia ainda mais atraente.

Sentado num sofá confortável, contou aventuras do campo de batalha, gabando muito o conde de Vila Flor, seu general:

- É um homem fantástico. Nunca perde o sangue-frio. Os soldados têm tanta confiança nele que fazem tudo o que lhes mandar. Se debaixo de fogo ele gritasse «atirem-se ao rio», aposto que todos se atiravam de cabeça.

Exemplo apenas simbólico mas muito sugestivo. Claro que o general nunca iria dar uma ordem tão estúpida, mas permitiu-lhes entender bem o que era a disciplina em combate. Imaginaram a cena quase como se estivessem a vê-la. Tiros, berros, correria, corpos a cair, os homens cheios de medo mas ainda assim controlados e prontos a obedecer. De facto, só podia considerar-se bom general quem conseguisse esse efeito.

- A malta aqui do Porto é danada. O padrinho sabe que houve vários rapazes que se juntaram e formaram o batalhão de «Voluntários Portuenses»? Toda a gente lhes chama «Os Patacos.» Lutei ao lado deles e parece que têm o diabo no corpo! Havia alguns muito novos, de treze e catorze anos, mas batiam-se como homens. Fizeram uma verdadeira razia entre os miguelistas!

A conversa prosseguia, tomava outro rumo, mas voltava sempre ao mesmo: a guerra. Nuno tinha dentro de si lembranças tão fortes que não conseguia fixar a atenção noutra coisa, e falava, falava, como se aquela torrente de palavras o ajudasse a libertar-se de todos os horrores que lhe martelavam o espírito. De cada vez que se referia aos inimigos, exaltava-se. A cara e o pescoço enchiam-se de manchas encarnadas, as mãos tremiam-lhe e semicerrava as pálpebras para esconder a expressão de ódio e raiva.

- São uns pulhas! Só quero recuperar forças para voltar ao campo de batalha. Hei-de trespassar com a baioneta quantos miguelistas se me atravessarem no caminho!

Mal sabia o Nuno que no andar de baixo dormiam vários. Quando pela primeira vez se dispôs a ir até ao jardim e atravessou as salas transformadas em enfermaria, ia tendo um ataque.

Nesse preciso momento acabara de entrar uma maca transportando alguém cuja farda exibia fitas azuis e encarnadas. Ainda pensou que fosse engano, mas quando lhe confirmaram tratar-se de um miguelista que caíra em combate nessa manhã voltou a subir a escada e desatou aos berros pelo padrinho:

- Eu vou sair imediatamente desta casa!

Não durmo nem mais uma noite debaixo do mesmo tecto com inimigos! Se o padrinho é um verdadeiro liberal, como é que recebe miguelistas em sua casa? Vi morrer muitos companheiros às mãos destes canalhas...

As palavras atropelavam-se-lhe na garganta e gaguejava ofegante. A família ouvia-o na maior consternação. Só o Dr. Libânio não se alterou. Fitava-o com a expressão imperturbável do costume, empurrou-o para uma cadeira e só falou quando o sentiu mais calmo. Na sua voz quente, pausada, havia certezas e autoridade:

- Viste morrer os teus companheiros e eles viram morrer os deles porque estamos em guerra.

O argumento não admitia réplica. Toda a gente aguardou em suspenso que continuasse.

- Eu sou um verdadeiro liberal porque acredito que tem que haver leis iguais para todos. Para mim pouco importa quem seja o rei, contanto que obedeça à Constituição. Os tempos do rei absoluto estão a acabar e o País tem que andar para a frente.

Fez uma pausa breve e acrescentou:

- Sou liberal mas também sou médico. Diante dos feridos não penso em política. Penso em curá-los, em salvar-lhes a vida, conforme prometi quando fiz o juramento de Hipócrates (1), que todos os médicos fazem.

 

(1) Hipócrates foi o primeiro grande médico da História da humanidade. Nasceu na Grécia no séc. v a.C. Tornou-se famoso não só pela sua competência mas também por ter escrito várias obras de medicina onde incluiu um juramento que todos os médicos deviam fazer. Nesse juramento declara que a profissão é sagrada e define obrigações às quais o verdadeiro médico não pode fugir. Por exemplo: terá que tratar toda e qualquer pessoa que precise de tratamento; nunca deverá revelar nada sobre o doente nem sobre o que possa ter ouvido da sua boca (segredo profissional); nunca poderá dar ou indicar venenos mesmo que o doente lhos peça.

Nenhum deles sabia o que era o tal juramento mas dava para entender. O Dr. Libânio levantara-se e falava no meio da sala com as pernas afastadas, as mãos cruzadas atrás das costas, a cabeça erguida numa pose um pouco teatral. Desta vez cedera à emoção.

- E digo-te mais...

Não ficaram a saber o que pretendia dizer-lhes porque rebentou muito perto um estampido de canhão logo seguido de tiroteio.

Instintivamente Nuno atirou-se para o chão e tapou a cabeça. Os outros imitaram-no. Durante um bom bocado a casa estremeceu. A refrega devia estar bem próxima pois alguns vidros estilhaçaram-se e todos sentiram nas narinas o cheiro intenso da pólvora.

 

O tiroteio foi longo e deixou toda a gente apavorada. Nunca as armas tinham chegado tão perto de casa, e pela cabeça das pessoas não passava sequer um vislumbre de que isso pudesse acontecer. A guerra decorria lá fora, era um problema, sim, mas dos outros.

Com o perigo a bater à porta, a segurança interior de cada um ficou profundamente abalada, ainda por cima não havendo para onde fugir! As mulheres só então perceberam com clareza o significado do cerco. Tentar sair do Porto seria arriscadíssimo, mas ficar não dava garantias...

Nuno foi o primeiro a erguer-se do chão. Estava lívido! Sem perder a compostura, sacudiu a farda, correu à janela que dava para a rua e depois voltou. As tábuas do chão rangeram sob os seus passos firmes de militar, como se anunciassem que ele ia tomar conta da situação.

- Tenham calma - disse. - O ataque não foi tão próximo como pareceu.

Neste momento as forças inimigas já foram repelidas para bem longe e é muito pouco provável que voltem a aproximar-se da mesma zona, porque está muito bem defendida. Acreditem em mim, pois conheço o Batalhão de Caçadores 5.

As suas palavras tiveram o efeito de um bálsamo, pelo menos nas mulheres, que o fitavam embevecidas, João encarou-o também, agora com inveja. Apetecia-lhe ser como ele, um homem feito, com experiência da vida, da guerra, capaz de escolher as palavras certas para acalmar os ânimos.

«Quem me dera crescer de repente», pensou. «Aparecer assim já de farda e tudo!»

Um choro convulsivo desviou as atenções gerais para a capela. Acorreram a ver o que se passava e deram com as criadas de joelhos num pranto desabalado. Delfina procurou acalmá-las mas não era nada fácil, porque tinham misturado tantos motivos de medo no mesmo saco que, se alguém lhes eliminava um, iam buscar outro.

- Ai os tiros, minha senhora!

- Já não há tiros. Os soldados a esta hora estão longe.

- Quando comecei a ouvir estrondos larguei a panela que tinha na mão e entornei a sopa toda!

- Deixa lá! Agora vais para a cozinha e fazes outra.

- Mas queimei os pés.

- Muito?

- Não. Os sapatos protegeram a pele. Delfina começava a impacientar-se.

- Basta de lamúrias - ordenou. - Quero que saiam daqui para fora. Vão tratar do trabalho que lhes pertence.

Elas obedeceram contrafeitas. Saíram em molho a enxugar as lágrimas na ponta do avental, mas como o susto ainda não se desvanecera, bastou pousarem os olhos numa jarra que se partira com a vibração do ar durante o tiroteio para largarem todas outra vez numa berraria colossal:

- Ai a jarrinha de que a senhora gostava tanto...

Só não ouviram uma descompostura valente do patrão porque a sineta anunciou visitas e elas aproveitaram para desaparecer escada abaixo. Ao contrário do que era costume, assumiram como obrigação sua e inadiável irem abrir a porta imediatamente.

Quem ficou radiante foi o Sr. Adérito quando viu diante de si tanta mulher chorosa e ansiosa por abraçar alguém. Cumprimentou a velha Clarinda com amizade e depois estreitou ao peito as raparigas, aconselhando:

- Chora, minha filha! Chora à vontade que te faz bem à saúde!

Não mostrou pressa nenhuma em entrar no jardim. Aliás, não era homem de pressas. Baixo, forte, de cabeçorra quadrada assente nuns ombros possantes, representava a imagem típica da força bruta. O gosto pela pinga tingira-lhe para sempre a ponta do nariz e as bochechas. Na boca carnuda pairava o eterno sorriso de quem vive contente, gosta de comer e beber e não se preocupa com coisa alguma.

- Ora aqui me têm, a mim e ao meu burrico para alegrar a cozinha. Se houver um naco de pão e um copo de tinto, chega. Mas se houver toucinho e queijo não serei eu que me faça rogado, porque esta viagem da Quinta da Madressilva até ao Porto tem que se lhe diga. Venho com uma fome tão grande que era capaz de engolir um boi.

O Dr. Libânio e a família pasmaram quando viram Adérito.

- Então você veio ao Porto numa altura destas?

- Saiba Vossa Excelência que sim. A Sr.a Dona Zulmira estava muito aflita. Andava para lá num desassossego a queixar-se: «Ninguém me dá notícias! Nem o meu irmão se lembra de me mandar dizer se é vivo ou morto...» Vai daí, eu disse-lhe: «Se a senhora quiser meto-me hoje mesmo ao caminho e vou ao Porto saber do Dr. Libânio.» Pois ela quis e aqui estou com a graça de Deus.

- Então e o cerco? Os soldados? - perguntou Delfina, estupefacta.

- Ora, ora! Os soldados andam lá na vida deles e eu ando cá na minha.

A afirmação era tão surpreendente que ninguém retorquiu, e ele explicou-se com um sorriso matreiro:

- Os soldados não estão a toda a volta, estão aos «molhinhos». Se uma pessoa escolhe um carreiro de pouco movimento não há problema. Além disso, os soldados não se ralam quando vêem passar um pobre homem sozinho mais o seu burro. E depois é tudo uma questão de se lhes olhar para o chapéu. Se têm fitas azuis e brancas, a gente grita «Viva o Senhor D. Pedro!» Se têm fitas azuis e encarnadas, grita-se «Viva El-Rei D. Miguel»...

Respondeu-lhe uma gargalhada colectiva.

De pé no meio da sala, Adérito falou da quinta, das colheitas, da Dona Zulmira e das meninas. Depois entregou um envelope ao Dr. Libânio.

- Aqui está uma carta da mana de Vossa Excelência.

Antes de se retirar, dirigiu-se ao Nuno e atirou-lhe à socapa:

- Se eu soubesse que o encontrava aqui, também lhe trazia uma cartinha da menina Mariana...

O rapaz não pôde impedir-se de corar e João, a quem não escapava nada que lhe dissesse respeito, admirou-se. Então aquele tipo não vacilava debaixo de fogo e ficava todo atrapalhado quando lhe falavam numa mulher?

«Ser homem é mesmo assim», suspirou. E que suspiro de alívio! Se havia uma Mariana a povoar os sonhos do rival, talvez não valesse a pena incomodar-se muito ao vê-lo junto de Libânia.

«Humm... Nunca se sabe...»

Nuno recuperou o sangue-frio com rapidez e acompanhou Adérito até à escada com ar displicente. João seguiu-os e pôde ouvír um recado encorajador:

- Amanhã não saia sem falar comigo. Já que volta para a Quinta da Madressilva serve-me de correio...

Adérito acenou-lhe, cúmplice e divertido.

Nessa noite João parecia uma barata tonta. Queria por força encontrar uma frincha que lhe permitisse ler o que o outro escrevia. E até encontrou vários postos de observação. Só que lhe davam para ver tudo menos o conteúdo da carta. Lá estava o rapaz debruçado sobre a mesa, escrevendo à luz da Vela com uma pena de pato. Ouvia perfeitamente o arranhar da ponta no papel grosso, e não era preciso ser muito inteligente para captar a emoção que pairava em volta. Agora as palavras, ficaram guardadas para a tal Mariana da Quinta da Madressilva.

 

Desde a juventude que a tia Zulmira perdia a cabeça com jardins. Mas então depois de ter passado os olhos por uma revista francesa onde apareciam estampas mostrando sebes de buxo talhado, foi a grande loucura. Mandou plantar daqueles arbustos em frente à casa, ela própria se encarregou de os regar até atingirem o tamanho necessário para se cortarem figuras e a partir daí entregou-se à jardinagem com verdadeira paixão. De tesoura em punho, talhava os ramos conforme os seus estados de espírito ou os sonhos da noite anterior. Pássaros com as asas abertas em pleno voo, peixes de cauda retorcida, um cão de orelhas no ar, um gato enroscado ao sol e até um livro cujas folhas verdes e rijas convidavam para uma leitura vegetal. Imagens lindas, pelo menos na intenção, já que a sua maneira de ser distraída lhe pregava partidas horrorosas.

Os acidentes sucediam-se. Ou se alheava da tarefa na fase de remate e... zac! - quando dava por ela tinha cortado a cabeça ao passarinho. Ou deixava-se absorver por outros pensamentos e colocava um focinho de cão num corpo de peixe, barbatanas no lugar de asas, cristas de galo em vez de orelhas. Os desaires constituíam motivo de constante galhofa entre a família e os amigos. Naquela manhã andava atarefadíssima a recortar ameias de castelo na sebe mais larga. Não tentara averiguar quais os motivos da escolha mas eram bem simples: tinha sonhado várias noites seguidas com bandos de malfeitores invadindo-lhe a casa. Ao acordar em sobressalto maldizia a guerra que assolava o País e afligia-se bastante, pelo menos até que lhe trouxessem o pequeno-almoço. Chá forte e pão torrado empurravam para longe toda e qualquer preocupação. Este sonho, porém, não era fácil de eliminar, deixava pontos de insegurança pairando no espírito.

Não tendo nunca assistido a cenas de violência, só possuía imagens mentais recolhidas nas gravuras antigas com guerreiros de armadura a assaltar castelos. De certo modo era para se defender desses homens que inconscientemente ia dando à sebe formato de muralha. E aquilo, parecendo que não, acalmava-a imenso.

No jardim soavam tesouradas a compasso. De súbito, tornaram-se frenéticas. Zac... Zac... Zac... Dona Zulmira vislumbrara o caseiro montado no burrico a subir a encosta. Como de costume, em vez de parar, acelerou. De cabeça esticada na direcção oposta àquela em que trabalhavam as mãos, foi estragando meticulosamente a sua obra, até que Adérito se lhe plantou na frente, o eterno sorriso prazenteiro rasgando-lhe a face. - Trago boas notícias, minha senhora...

A chegada do caseiro provocou o maior alvoroço na quinta. Toda a gente queria notícias do Porto, pois rara era a pessoa que não tinha familiares envolvidos no conflito. O jardim encheu-se num ápice. Vieram as criadas, a cozinheira, os trabalhadores. Não faltaram também as meninas da casa, em ânsias. Mariana atalhou caminho por cima dos canteiros, e a pressa era tal que nem evitou as plantas espinhudas. Os saiotes ficaram presos numa haste e ela pôs-se aos berros e aos esticões em simultâneo.

- Malditas flores! Ajudem-me!

Henriqueta foi socorrê-la. Com gestos lentos e precisos libertou a saia sem a rasgar. Também não se alterou quando a outra, em vez de agradecer, a empurrou para o lado de uma forma brusca. Mariana era uma menina mimada que ninguém se atrevia a contrariar. Filha única de mãe viúva e riquíssima, tinha sido educada como uma princesa. Toleravam-lhe todos os caprichos, faziam-lhe todas as vontades e nunca ousavam repreendê-la ou sequer levá-la a sentir quanto as suas atitudes incomodavam os outros. A vítima mais directa da ausência de educação era Henriqueta, para quem a vida fora madrasta. Órfã de pai e mãe, tinha sido recolhida pela tia Zulmira em pequenina. Não lhe faltava nada que fosse essencial e em princípio devia ser tratada como irmã de Mariana, o que na realidade não acontecia. Henriqueta sentira-se sempre como alguém que está a mais, que não tem lugar definido nem direitos próprios. Sofria em silêncio desde criança, agradecendo tudo e não pedindo nada.

- Em casa do Dr. Libânio estão de perfeita saúde - repetiu Adérito pela milionésima vez.

- Isto se não contarmos os feridos que o senhor doutor teve a bondade de recolher.

Olhou a filha da patroa com uma expressão cúmplice e perguntou:

- A menina sabe quem é que eu fui encontrar no meio dos feridos?

- Claro que não sei, portanto desembucha.

- O morgado da quinta vizinha, o senhor Nuno, que agora é um distinto oficial.

- Está ferido?

- Está. Ou melhor, esteve. Parece que tem recuperado bem. Antes de me vir embora ouvi-o dizer que queria regressar ao quartel o mais depressa possível.

- O menino Zé Maria não estava com ele?

- Oh! Mãe! Francamente! Isso é pergunta que se faça?

Admiradíssima com a indignação, encarou a filha.

- O que é que tem de mal? Não andaram juntos desde que nasceram? Por que é que agora não podem andar?

- Porque o Nuno é liberal e o Zé Maria é miguelista. Não só não andam juntos como lutam em campos opostos.

- É verdade, já me esquecia...

O olhar vago que enviesou na direcção das flores pisadas foi um claro indício de fuga. Sempre que o assunto lhe desagradava, Zulmira procedia assim. Preferia esquecer tudo e concentrar-se nas plantas. Essas, ao menos, não a aborreciam.

Não viu portanto a carta deslizar sub-reptícia para as mãos da filha. E também não reparou que a simples menção do nome de Zé Maria deixara a sobrinha corada até à raiz dos cabelos.

Aproveitando o facto de ter público, o caseiro prolongou o relato das suas aventuras até aos mais ínfimos detalhes. Pouco interessadas na conversa, as meninas retiraram-se.

Já no quarto, Mariana leu o bilhete em voz alta. A cada frase de amor detinha-se e exclamava divertida:

- Está apaixonado por mim! A outra abanava a cabeça numa atitude de discordância benevolente.

- Por que é que fazes troça?

- Troça, eu? Que ideia! Adoro despertar paixões.

De um pulo alcançou a escrivaninha, abriu a gaveta do segredo e retirou lá do fundo um papel muito bem dobradinho.

- Vamos comparar as declarações do Nuno com as declarações do Zé Maria a ver qual deles escreve melhor.

Desta vez a prima não fez comentários. Ficou imóvel, com os olhos fixos na biqueira do sapato para disfarçar a perturbação e a raiva. Gostava do Zé Maria há imenso tempo mas nem ele nem ninguém suspeitava desse amor. Se se traísse caía no ridículo, pois o rapaz pertencia a uma família nobre e rica. Mesmo que se interessasse por ela, os pais nunca consentiriam no casamento. Mas ele não se interessava. Só tinha olhos para Mariana e disputava-a ao primo Nuno de uma forma cavalheiresca. Andavam os dois de roda dela quase como se fosse um jogo, a ver quem ganha. A disputa não estragara a amizade entre ambos, pelo contrário. Parecia até que lhes dava prazer medir forças. À mesa ou no jardim, em passeio ou ao serão, inventavam mil maneiras de a cativar e depois trocavam olhares como quem diz: «Bem feita! Agora preferiu-me a mim!»

Mariana gozava a valer com aquilo tudo porque afinal de contas não gostava de nenhum. Para a pobre Henriqueta é que os passeios e os serões tinham sido um tormento. E paradoxalmente, que saudades! Oh!, se pudesse ver o Zé Maria, nem que fosse só por um minuto...

Um suspiro fundo chamou a atenção da companheira.

- Que é que tens? Sentes-te mal?

- Eu? Não!...

A negativa não convenceu. Henriqueta estava pálida e abatida, com um olhar febril.

A prima ficou preocupada. Pôs-lhe a mão na testa, tomou-lhe o pulso, abanou-a com o leque.

- Diz-me a verdade. Sentes alguma coisa? Queres que mande chamar o médico?

Henriqueta sorriu, contente com as manifestações de carinho, aliás frequentes. Mariana era sua amiga verdadeira. Só que também era muito egoísta. E como não ser, com aquela educação? Toda a gente a tratava como se fosse o centro do universo, portanto crescera habituada a dar a si própria o primeiro lugar em tudo. Não adquirira sensibilidade para os problemas alheios nem reconhecia a sua existência a menos que lhe fossem expostos com clareza.

- Estás triste? Confessa, vá.

- Humm... faz-me pena que o Nuno e o Zé Maria se tenham tornado inimigos - balbuciou Henriqueta para disfarçar.

Pela cabeça de Mariana não passou a hipótese de ser mentira.

Cheia de compreensão, fez-lhe uma festa no ombro e tentou animá-la:

- É pena, sim. Mas verás que quando a guerra acabar eles esquecem e ficam tão íntimos como dantes. Os rapazes gostam de brigas. Não te lembras de os ver à pancada no jardim quando eram pequenos? Enchiam-se de murros e pontapés e daí a pouco já andavam na brincadeira.

Querendo animá-la ainda mais, acrescentou:

- Não cortaram relações por minha causa e haviam de cortar por causa da política?

Henriqueta preferiu levantar-se e inventar um pretexto para mudar de assunto. Não o pôde fazer porque a outra não deixou.

- Espera aí! Preciso da tua ajuda.

- Para quê?

- Quero escrever uma carta aos meus namorados.

- Nesse caso tens que escrever duas - disse Henriqueta com certo azedume na voz.

- Não tenho nada. Escrevo a mesma carta aos dois. Estão tão longe um do outro que nem chegam a saber.

- Isso não se faz. É injusto.

- Não vejo por quê. Eu gosto igualmente de ambos, portanto não beneficio nenhum. É justíssimo. Ah! Ah! Ah!

Rodopiando em frente do espelho, ajeitou os cabelos, penteou as sobrancelhas e sorriu para si própria, achando-se linda.

- Fica-me bem, este vestido.

Observou-se de frente, de lado, de costas. A seda creme fazia-lhe realçar os cabelos pretos, a pele aveludada, a boca vermelhíssima. Mas a beleza do conjunto não provinha do tecido.

Afinal de contas todos os tecidos lhe ficavam bem.

- Ajuda-me, que estou falha de ideias. Tu lês tantos romances que me vais ditar frases maravilhosas. Quando eles lerem a minha carta, hão-de ir aos píncaros da Lua!

A perspectiva de colaborar naquela farsa não agradava nada a Henriqueta, mas, como de costume, cedeu. E a pouco e pouco deixou-se arrastar pelos sentimentos. Bastou recordar a madeixa alourada caindo sobre a testa, os olhos azuis ora sérios ora risonhos, o sinal muito redondinho ao canto da boca, para lhe ocorrerem palavras cada vez mais doces.

Mariana molhava a pena de pato no tinteiro e escrevia, escrevia, sem a interromper.

- Bravo! - exclamou no final. - Hoje estavas mesmo inspirada. Eles vão ficar loucos. Loucos por mim!

 

As cartas de Mariana passaram por muitas mãos até chegarem ao seu destino. Curiosamente, foram entregues pelo mesmo mensageiro, um indivíduo que se fingia liberal mas era espião ao serviço dos miguelistas.

Zé Maria recebeu a sua quando patrulhava a zona de Serralves. Ficou tão excitado que não resistiu a afastar-se dos companheiros, contra todas as regras de segurança. Semiescondido atrás de umas árvores, rasgou o envelope com mãos trémulas. Ao princípio nem conseguia perceber patavina, porque as letras dançavam sobre o papel. Teve que fazer um esforço enorme para se dominar. À medida que o texto ganhava sentido, derretia-se.

«Ela já escolheu!», pensava. «Para escrever isto que está aqui, não pode ter dúvidas. Gosta de mim.»

Leu e releu. As frases pareciam-lhe cada vez mais bonitas, mais fortes, mais sinceras.

De tanto revolver as páginas entre os dedos suados quase as destruiu. Desbotaram, as letras, encaracolaram as pontas, abriram-se rasgões. Ele nem se apercebia e continuava em delírio.

«Que bem que escreve! Se tem nascido homem, podia ser um grande poeta ou um grande romancista.»(1)

Evocava com tal nitidez a imagem da rapariga que era como se a tivesse diante de si. Por qualquer motivo obscuro, a memória oferecia-lhe sempre a mesma cena: Mariana à beira do lago onde costumavam fazer piqueniques. O chapéu voara-lhe para a água e lá ia ele a correr apanhá-lo com uma cana. O pior é que não ia sozinho. Bem gostaria de afastar para longe a outra imagem, mas a memória teimava em impingir-lha: Nuno, o amigo de infância, empunhando também uma cana para lhe disputar a pescaria. Que risota, quando finalmente levantaram o chapéu encharcado, a escorrer limos...

A felicidade anterior desapareceu e ficou cheio de mágoas a que nem sabia dar nome. Sentia a falta do amigo. Custava-lhe pensar que para sair vitorioso o outro tinha que ser derrotado. E ainda por cima duplamente derrotado.

«No amor e na guerra. É de mais.»

 

*(1) No século xix as mulheres ainda eram consideradas seres inferiores sob o ponto de vista intelectual. Não era costume nem bem aceite que se atrevessem a publicar um livro. A pressão social era tão grande que algumas mulheres de talento, não resistindo aos seus impulsos criativos, assinavam as obras com nome de homem para disfarçar. Um desses casos foi a escritora francesa Armentine Dupin, que assinava Georges Sand. As primeiras que ousaram desafiar este tabu foram muito corajosas. Entre elas conta-se uma portuguesa, a Marquesa de Alorna.

 

Sem se dar conta amachucou a carta de Mariana e apertou-a com demasiada força na palma da mão. Estranho romance de que faziam parte não duas mas três pessoas. Afinal era muito difícil, senão impossível, escolher entre o amor e a amizade...

Caminhando absorto, afastou-se da patrulha e estava agora ao alcance das baterias liberais. Mais um passo e... BUM! O estrondo fez estremecer a terra. Nuvens de fumo e de estilhaços, foguetes voando rápido, traços de luz pelo ar, gritos e berros humanos, relinchos de cavalos. Um fim de mundo.

Zé Maria agarrou as crinas da montada, saltou-lhe para o lombo e partiu a galope para se juntar ao batalhão, que ripostara sem perder tempo. Uns à espada, outros à baioneta e ao sabre, outros ainda a tiro de espingarda, envolveram-se numa luta feroz que se prolongou durante várias horas. Corpos estraçalhados acumularam-se de um lado e de outro sem que ninguém pudesse dizer «ganhei». Quando suspenderam o fogo, os liberais continuavam dentro do Porto e os miguelistas fora.

Exausto e todo mascarrado de negro, regressou ao aquartelamento com a alma vazia.

Queria dar graças a Deus por estar vivo, mas como não encontrou palavras ou pensamentos que o satisfizessem, adiou a oração para melhor oportunidade. Também não conseguiu importar-se muito quando verificou que perdera a carta no combate. Talvez mais tarde viesse a ter pena. Naquele momento, porém, estava incapaz de reacções positivas ou negativas. Emborcou dois tragos de aguardente e soube-lhe bem.

«Estou vivo...»

Nuno passeava de um lado para o outro no jardim. Meia dúzia de passos para lá, meia dúzia de passos para cá, tal qual um urso enjaulado.

«Não aguento mais! Não posso continuar aqui...» Quatro olhos atentos espiavam-no da janela, certos de que a grande decisão não tardaria. Era evidente que o rapaz estava farto de inactividade. Já insistira várias vezes com o padrinho para que o deixasse ir-se embora. Este pedia calma e prudência, sem conseguir convencê-lo de que o prolongamento do repouso era indispensável.

- Sinto-me cheio de forças. E sou militar, não sou civil - acabara berrando na véspera à noite. - O padrinho está a impedir-me de cumprir o meu dever!

- Enganas-te. Tu é que queres obrigar-me a esquecer os meus deveres. Sou médico e portanto tenho obrigação de vigiar os doentes para que não façam asneiras.

A discussão azedara. Quando se levantaram da mesa o ambiente tornara-se tão desagradável que Delfina resolveu atirar-se ao piano para desanuviar. Embalou numa marcha com violência e também ela ouviu uma descompostura do marido.

A pretexto de distrair Libânia, João foi-se chegando e teve sorte. Passaram um longo e delicioso serão a conversar encostados ao mesmo parapeito da janela onde se encontravam agora.

- Ele vai partir, tenho a certeza!

Como a voz expressava sentimentos vários e difíceis de identificar, João ficou logo em pulgas. A ansiedade seria só medo de que o amigo desaparecesse no campo de batalha ou mais alguma coisa?

Ainda ensaiou algumas frases para lhe fazer perguntas mas não se atreveu, por lhe parecerem descabidas.

De madrugada Nuno abandonou a casa sem se despedir de ninguém. Deixou apenas um bilhete a agradecer tudo o que tinham feito por ele. As reacções foram bastante emotivas. Houve choros, ralhos, e o infeliz do jardineiro, que não tinha culpa nenhuma, ouviu raspanetes em série por lhe ter aberto o portão.

O médico estava possesso.

- É louco! É completamente louco! Vai correr riscos inúteis. Sempre o considerei um rapaz inteligente e afinal porta-se como um idiota!

- Idiota não, meu pai. Ele fez o que a consciência lhe ditou e fez muito bem. Se eu fosse homem seguia-lhe as pisadas. Um militar não se sente bem fechado entre velhos, mulheres e crianças!

- Quem é que é velho aqui? Eu? - gritou apopléctico.

- O pai não é velho, é médico.

De expressão transtornada, afogueados, com os olhos faiscando, estavam ainda mais parecidos. Qualquer pessoa que assim os visse não hesitaria em dizer que eram pai e filha. Iguais por fora, iguais por dentro.

- A nossa casa é linda, é óptima, é confortável, é um refúgio perfeito. Mas não serve para um soldado a partir do momento em que se sente capaz de pegar em armas e entrar em acção. Se ele ficasse, considerar-se-ia cobarde!

A família ouvia-a boquiaberta. Não menos perplexas estavam as criadas, a quem o berreiro atraíra e que se puseram à escuta por trás de portas e cortinados.

- Sabe de que é que eu tenho pena, meu pai? Sabe? Tenho pena de ter nascido mulher. Porque as mulheres nunca participam em nada. Quando acontece alguma coisa importante, só lá estão homens!

Entre os ouvintes havia um particularmente impressionado: João. Aquelas palavras tinham tornado claro que aos olhos dela só era digno de admiração quem entrasse na luta. E de súbito apeteceu-lhe ir. Queria conquistá-la, claro. Mas não era só isso. A excitação, a aventura, decorriam para além daqueles muros protectores. E chamavam-no.

O plano de fuga demorou a tomar forma na cabeça de João. Queria ser cauteloso e pensar em todos os pormenores.

«Tenho que sair sem ninguém ver, senão barram-me o caminho. E também tenho que decidir para onde vou.»

Depois de muito matutar, decidiu. O melhor era escapar-se durante o dia, quando as pessoas andassem entretidas nos seus afazeres. Não provocaria desconfianças se transpusesse o portão à luz do Sol com o ar mais natural deste mundo.

Os eventuais perigos não lhe metiam medo, pelo contrário. Desejava atravessar situações complicadas, difíceis, certo de o fazer com desenvoltura.

«Pergunto onde está o Batalhão de Caçadores 5, vou até lá, mando chamar o oficial Nuno e alisto-me.»

Apesar de estar excitadíssimo com os seus projectos, não os pôs logo em prática porque faltava um pormenor importante: contar tudo à Libânia em segredo. Mas numa casa cheia de gente não era fácil isolarem-se sem dar nas vistas.

Escreveu-lhe então um bilhete a pedir que voltasse à sala depois de toda a gente se ter ido deitar.

Ela leu disfarçadamente, enfiou o papel na manga do vestido e sorriu-lhe imperturbável, não deixando transparecer se aceitava o convite para a entrevista nocturna.

Depois do jantar, que nervoso miudinho! De cada vez que alguém se levantava, João erguia-se também, convencido de que chegara a hora de se retirarem para o quarto. Por azar ninguém tinha sono, ou pelo menos foi o que lhe pareceu.

Quando a casa por fim silenciou, fingiu deitar-se. Com o coração a bater desvairado, seguiu pé ante pé para o sítio do encontro e ficou à espera. Tinha as mãos húmidas e a garganta seca.

A única luz provinha da Lua cheia, que brilhava serena, enchendo o jardim de sombras e a fonte de reflexos prateados.

Um leve rangido de madeiras fê-lo voltar a cabeça na direcção oposta àquela donde julgara vê-la aparecer. As casas antigas têm tantas portas que permitem surpresas assim.

Aproximaram-se. A pretexto de que não convinha fazer barulho, João puxou-a para si e falou-lhe ao ouvido.

- Bss... bss... bss..

Para seu grande espanto, ela disse-lhe que já calculava:

- Desde que o Nuno se foi embora, ficaste muito pensativo. Percebi que querias segui-lo. Fazes bem...

- Prometes que não dizes nada?

- Juro.

Estavam tão próximos que lhe sentia o bafo.

- Antes de ires, quero dizer-te uma coisa. Os olhos de ambos brilhavam na escuridão.

- O quê?

- O meu nome não é Libânia - sussurrou. - Baptizaram-me Leonor mas toda a gente se habituou a chamar-me Libaninha porque sou muito parecida com o meu pai.

A explicação inesperada surpreendeu-o, mas logo a seguir entendeu tudo.

- Quando estiveres longe, se pensares em mim pensa em Leonor, está bem?

As dúvidas desvaneceram-se. Era correspondido. Que alegria! Ainda hesitou quanto ao passo seguinte porque não queria chocá-la. Naqueles tempos antigos seria próprio dar um beijo?

Foi a Lua que o ajudou a encontrar a resposta. Os raios luminosos incidiam agora sobre um relógio de bronze muito trabalhado do qual fazia parte um par de estatuetas a beijarem-se na boca. Resolveu imitar o bronze e ela deixou...

 

Percorrer as ruas da cidade foi uma experiência alucinante. Depois de um cerco tão longo, a miséria multiplicava-se, desdobrava-se, estampava-se na fachada das casas crivadas de balas, nas vidraças partidas, no lixo acumulado e sobretudo nas pessoas exaustas, feridas, doentes, com fome. No entanto, o que mais espantou João foi verificar que no meio da desgraça a vida continuava a cobrar o seu tributo de normalidade. Havia crianças a jogar com uma bola de trapo e os gritos que soltavam eram de entusiasmo e alegria. Viu duas mulheres a lavar roupa num tanque público que de repente começaram a agredir-se com panos encharcados por causa de uma ninharia sem importância. Esquecidas da guerra, da fome, do sofrimento, insultavam-se usando palavrões capazes de fazer corar um carroceiro. Depressa se juntou em volta um magote de gente ávida de distracção, que aproveitou a deixa. Imiscuíram-se no espectáculo a atiçá-las:

- Dá-lhe agora que está de costas...

- Ah! Grande Maria Cachucha...

Não era ali o sítio mais adequado para perguntar pelo Batalhão de Caçadores 5.

As horas foram passando sem encontrar quem lhe indicasse o caminho. Pelos vistos a população desconhecia os nomes dos vários agrupamentos militares.

- Eu cá só sei distinguir liberais de miguelistas - disse-lhe um velho. - E mesmo para isso é preciso que tenham as fitas no chapéu... quanto ao resto são iguais.

- Então não há um comandante?

- Até há vários. Mas acima de todos só há um...

- Quem?

- D. Pedro. Se quiseres vê-lo, põe-te à porta do Palácio das Carrancas, que ele há-de acabar por sair ou entrar (1) Não fica longe daqui.

O velho alongou-se então em explicações que só seriam úteis para quem conhecesse muito bem o Porto. Como não era o caso e também não lhe interessava ver D. Pedro, preferiu fingir que já entendera, cortou-lhe a palavra e despediu-se.

Durante todo o dia deambulou ao acaso sem se importar muito com a ausência de informações.

«Na pior das hipóteses, volto para casa», pensou.

Só quando a noite caiu veio o desconforto. Tinha fome, frio, apetecia-lhe um tecto. Procurou a casa do Dr. Libânio,

 

*(1) Durante o cerco do Porto D. Pedro esteve hospedado no Palácio das Carrancas, que hoje é o Museu Soares dos Reis. Mas depois que uma rajada inimiga disparada de Gaia atingiu o edifício e uma bala se alojou na sua cama, mudou-se para uma casa na Rua de Cedofeita.

 

e tomou então consciência de que não sabia o caminho. Não prestara atenção ao nome da rua nem era capaz de localizar o bairro. Diante dos prédios, calçadas, escadinhas, largos, ruelas, tudo construído em granito, desnorteava-se.

«É por aqui. Não, por ali.»

Ora julgava reconhecer os edifícios com janelas de mansarda e placas de ardósia junto ao telhado ora se desesperava por lhe parecerem os edifícios todos iguais.

«Que labirinto, safa!»

Ficou aflito mas não entrou em pânico, porque sustos em excesso não faziam parte da sua natureza.

«Perdi-me. Agora é só questão de encontrar alguém que me oriente.»

Olhou em volta à procura de ajuda e descortinou um grupo de soldados ao fundo de uma viela. Correu para eles, certo de que os problemas tinham chegado ao fim. Pobre João! Os soldados eram mercenários ingleses e estavam bêbados que nem cachos. Em vez de o ajudarem tomaram-no como objecto de divertimento. Dispuseram-se em círculo e obrigaram-no a correr no meio enquanto cantavam a plenos pulmões cantigas ordinárias em língua estrangeira. As bochechas coradas, o olhar vítreo, as escarretas que lançavam para o passeio, tornavam o quadro deplorável.

- Ho! Ho! Ho!

Cego de raiva, João investiu à cabeçada contra aquele que lhe pareceu mais fraco. O homem cambaleou mas aguentou-se e ficou fulo. Preparava-se para lhe dar um tabefe quando João conseguiu escapar da roda e ó pernas para que vos quero! Desandou rua abaixo sem olhar para trás. Mas era óbvio que o perseguiam.

«Tenho que achar um buraco para me esconder...» Na ânsia de fugir à vingança dos brutamontes, enfiou-se pela primeira porta entreaberta e agachou-se num canto escuro, a arfar.

- Boa noite, amigo!

A voz rouca e acolhedora pertencia ao sapateiro Policarpo, cuja vida se desenrolava entre um quartinho minúsculo no último andar e aquela oficina no vão da escada. De início João captou apenas o cheiro intenso a couro, cola e graxa. Depois, encolhido atrás de uma pilha formada por botas da tropa a precisarem de arranjo, passeou os olhos procurando avaliar se o esconderijo era seguro.

- Tem calma, rapaz. Ao pé de mim ninguém se atreve a fazer-te mal.

Ele não respondeu. Continuava sem fôlego, de ouvido à escuta. Os ingleses ainda andariam nas imediações?

- Esta estrangeirada não passa um dia que não se enfrasque. Adoram o nosso vinho e lá nisso têm bom gosto. Não sabem é beber com conta, peso e medida. Acabam sempre à trolha pelas vielas. Também não admira. Gente que luta seja por quem for contanto que lhe paguem... não pode ser boa rês.

O sapateiro ia falando e trabalhando ao mesmo tempo. Tinha uma cara redonda coberta de rugas pequeninas que lhe davam um ar cómico e bonacheirão. Cortava sola com uma lâmina oblíqua e os pedaços saíam das suas mãos tão simétricos que João ficou fascinado.

- Que máquina! - exclamou.

- Não há máquinas para fazer estes cortes, meu filho. É preciso habilidade, experiência e amor.

A declaração não deixava de ser inesperada. Amor a sapatos? Bastava olhar para ele para ver que não mentia.

- Queres ver um sapatinho digno de calçar a Gata Borralheira na noite do baile?

De trás das botas surgiu um embrulho e do embrulho saltou como por artes mágicas um par de sapatos em cetim verde.

- Que tal? São obra aqui do velho Policarpo... João sorriu e não fez comentários. Logo a seguir, porém, o sangue afluiu-lhe à cara em ondas quentes porque o sapateiro acrescentou:

- Pertencem a uma das meninas mais lindas do Porto. Se a visses perdias a cabeça. É filha de um médico famoso, o Dr. Libânio.

A coincidência deixou-o sem fala. Ainda demorou um pedaço a recuperar do espanto.

- O senhor... conhece-a? - gaguejou.

- Quem, a Libaninha? Então não havia de conhecer! Trabalho para o pai dela desde os tempos de solteiro, porque se ele é o melhor a tratar doentes eu sou o melhor a tratar sapatos! Ah! Ah! Gaba-te cesto, que vais à vindima...

Escusado será dizer que João não perdeu tempo e pôs-se a contar a sua história, enriquecida com pormenores inventados. Pediu encarecidamente que lhe indicasse o caminho de volta.

- Nem penses. A esta hora é perigoso andar pelas ruas. Há muita soldadesca embriagada e muita ladroagem. Ficas aqui.

- Aqui?

A perspectiva de passar a noite num banco rente ao chão, com placas de cabedal penduradas por cima da cabeça e tanta botifarra malcheirosa que nem lhe dava espaço para estender as pernas, era quase tão aterrorizante como enfrentar os gatunos.

- Pensas que te quero na oficina até amanhecer? Ná! Vou arranjar-te cama com colchão e tudo. Anda comigo.

Sempre risonho, Policarpo conduziu-o a uma pensão modesta situada num prédio da mesma rua. Mandou chamar o tenente Nestor, seu grande amigo, e pediu-lhe guarida.

- Este rapaz é da família do Dr. Libânio, a quem eu devo muitos favores. Como no quarto onde você está há duas camas, peço-lhe que o receba.

Foi deste modo que João se viu num pequeno quarto onde além das camas havia apenas uma velha cómoda com tampo de mármore. Em cima ardia uma vela de cera cujos pingos gordos escorriam pelo gargalo da garrafa a servir de castiçal. Estava morto de fome. Não vendo vestígios de comida em lado nenhum, atreveu-se a perguntar:

- Por acaso não tem alguma coisa que se trinque?

- Isso também eu queria - respondeu Nestor com desânimo. - Sabes que os tempos vão difíceis. Não me pagam o ordenado há mais de um mês e o pouco dinheiro que me sobra não dá para comprar nada porque está tudo caríssimo. Quando faltam mantimentos, os preços sobem em flecha.

- Então não almoça nem janta? Ele riu-se.

- Se fosse assim, já tinha morrido. Mas estou magrinho.

Para evidenciar a perda de peso meteu um dedo na gola.

- Sobra-me roupa por todos os lados. De facto as calças dançavam no corpo magro e a cara, angulosa de nascença, afunilava bastante no queixo.

- Estamos reduzidos às rações que nos dá o exército. Arroz e pouco mais. Mas a gente não se queixa porque há por aí quem se alimente de bichos que nunca na vida pensou comer. Cães, gatos e até ratos, imagina! Cavalo morto na guerra é um festim.

- Bârr...

Impossível dominar o vómito. João segurou o estômago com ambas as mãos e dobrou-se sobre si mesmo, agoniadíssimo.

O outro não se impressionou.

- Numa cidade cercada acaba sempre por faltar comida. Só se safa quem tem jardim onde fazer horta e galinheiro. Deve ser o caso do teu parente. Quando voltares para casa pede-lhe que me convide para uma almoçarada de peru com batatas fritas.

A evocação dos petiscos deixou-os aos dois com água na boca. Para mudar de assunto, João fez uma pergunta:

- Não há hipótese de furar o cerco? Eu conheci um velhote que entrou na cidade com um burrico. Deixaram-no passar.

- Deixaram porque não trazia comida. Se trouxesse, confiscavam-lha logo.

- Então não recebem mantimentos desde que a cidade está cercada?

- Recebemos, sim. Mas não é fácil. Há navios que se arriscam a entrar pela foz do Douro e desembarcam farinha, arroz e bacalhau debaixo de tiroteio. Queres ver como fazem?

Com um pedaço de carvão desenhou uma planta da cidade.

- Nós estamos dentro da cidade e os miguelistas espalhados à volta. Como vês, o desembarque de mercadorias é mesmo perigoso. Quem se arrisca sabe que pode apanhar um balázio disparado da outra margem. Claro que a gente lhes paga na mesma moeda. Às vezes estão os sacos a sair e os tiros pumba para cá, zumba para lá... Não admira que um quilo de arroz valha ouro! Então agora que tem havido tempestades e nem os mais corajosos conseguem entrar na barra do Douro, ainda é pior. Estamos na penúria...

Sem o João perceber porquê, deixou a frase em suspenso, apagou a vela, estendeu-se na cama com a pistola debaixo do rabo e sussurrou-lhe:

- Deita-te e finge que estás a dormir!

Obedeceu. Muito quieto e de olhos semicerrados, apercebeu-se de que alguém remexia na janela pelo lado de fora.

 

Viram a janela entreabrir-se e aparecer uma careca. Fingindo-se profundamente adormecido, o tenente até ressonava:

- Brrr...

O estranho visitante içou-se para o parapeito e entrou sem fazer o mínimo barulho. Vinha descalço e devia ter prática naquele tipo de ginástica. Deslizou até à cómoda, abriu a gaveta com mil cuidados e... quase morreu de susto quando Nestor lhe encostou a pistola à nuca e ordenou:

- Se quer sair daqui vivo despeje as algibeiras e não pie.

Ele manteve-se estático por um instante. Depois levou a mão ao bolso e retirou um lenço cheio de moedas que obedientemente colocou em cima do mármore.

- Não tem mais nada?

Embora relutante, repetiu a operação e fez tilintar um punhado de moedas soltas.

Apareceu ainda uma faca mal afiada, duas rolhas, arame, cordel e uma medalhinha de Santo Ildefonso.

- Muito bem. Pode sair. Se quiser leve as rolhas e a medalha, que o santo da minha devoção é outro.

O homem encaminhou-se para a janela mas Nestor resolveu gozá-lo:

- De maneira nenhuma. Faça favor de sair pela porta. E por este preço volte a procurar-me sempre que quiser...

A raiva contida manifestou-se apenas num incontrolável ruído de garganta. Decerto o homem gostaria de reagir, só que a lei da bala fala sempre mais alto.

- Estás admirado? - perguntou Nestor logo que o assaltante desapareceu. - Não estejas. Nunca ouviste dizer «ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão»? Pois é o caso. E agora, amigo, salta daí que vamos cear uns bolinhos de bacalhau num sítio que eu cá sei.

Rindo que nem perdidos, galgaram os degraus a quatro e quatro e ala em direcção ao rio. O percurso pelas ruas estreitinhas e muito escuras espevitou-lhes a fome. Foi com frenesi que se aproximaram das casas encaixadas na velha muralha e bateram a uma portinhola mínima em cujas frinchas julgaram inspirar antecipadamente um delicioso cheiro a fritos.

- Sr. Cosme! Sr. Cosme! Abra depressa. Venho comer bolinhos e pataniscas de bacalhau.

Ele não abriu, à cautela.

- E a «maçaroca»?

- Está aqui - respondeu Nestor exibindo as moedas na palma da mão.

Pouco depois constatavam que onde há dinheiro não há privações, mesmo que se esteja numa cidade cercada. Além dos tais bolinhos, surgiu um frango assado, pão, queijo, marmelada, geleia e duas canecas de bom vinho.

À saída tinham os bolsos vazios e o estômago cheio.

- Abençoado ladrão que nos salvou.

A comezaina bem regada provocou-lhes uma sensação magnífica de bem-estar. Calorzinho no peito, vontade de cantar e dançar, certezas absolutas para o futuro.

- A guerra está no papo - gritava um.

- A vida é bela! - gritava o outro.

De braço dado encaminharam-se para a ponte sobre barcas que unia as duas margens. Soprava uma brisa fresca e as águas do rio estavam tão calmas que espelhavam a Lua. Apeteceu-lhes atravessar para o lado de lá. Iam a meio quando o João se lembrou de perguntar:

- Para onde é que vamos?

O companheiro apontou-lhe o morro no cimo do qual brilhava uma fileira de luzes trémulas.

- Vamos ali ao quartel da serra do Pilar ter com o meu regimento.

- Por acaso não estarão lá também os Caçadores 5?

- Não sei, talvez. Quando chegarmos logo se vê. Estavam. Nuno ficou assombrado com a presença de João àquela hora da noite. Mas como qualquer militar em tempo de guerra, acolheu o novo voluntário de braços abertos. Nem perdeu tempo a distribuir-lhe tarefas. Tinha chegado um comboio de carroças com munições e era preciso descarregar e arrumar tudo no paiol.

João entregou-se ao trabalho na maior euforia. Fazia rolar pipas e acarretava sacas pesadíssimas para que ninguém duvidasse dos seus músculos.

Tanto quis mostrar-se eficaz que exagerou. A certa altura deixou cair uma saca, o pano bastante velho deu de si e o conteúdo espalhou-se no lajedo.

- Isto é areia! - exclamou atónito.

- Pschiu! Caluda! - disse-lhe Nuno. - Varre tudo depressa para um canto.

A explicação veio depois. Havia falta de munições, e para os inimigos não se aperceberem da penúria todos os carregamentos incluíam várias sacas e barris falsos.

- É bom que os soldados também não saibam a verdade, senão desanimam...

O carroceiro devia estar a par da situação porque lhe piscou o olho numa atitude cúmplice. Aproximara-se e afagava os bigodes descaídos.

- Trago notícias frescas.

O tom misterioso não deixava lugar a dúvidas, só podiam ser notícias dos miguelistas.

- Saiba o senhor oficial que lá para as bandas de Serralves andam muito agitados. Diz-se que preparam um assalto para conquistarem a foz do rio. Querem fechar o cerco por completo... Se conseguem, então é que não entra mais um grão de arroz na cidade do Porto.

Nuno empalideceu. Pelos vistos dava importância às informações do carroceiro. Pagou-lhe e mandou-o embora.

- Tenho que prevenir o general imediatamente.

- É um espião?

- Humm... em parte. Ele é carroceiro e nasceu aqui, portanto conhece muita gente, circula por todo o lado. Está de orelha à escuta e vende o que ouve. Já nos deu informações certas, já nos deu informações erradas.

Houve quem pusesse a hipótese de ser um agente duplo. De qualquer forma não podemos ignorar o que nos diz.

O comandante foi da mesma opinião. Também ele já ouvira uns zunzuns de que se preparavam grandes movimentos na zona da Foz. Nessa mesma noite deu ordem de marcha a várias colunas militares para que se fossem juntar às forças do general Saldanha.

João encarou com entusiasmo a perspectiva do seu baptismo de fogo. A espingarda pesava-lhe no ombro mas nem por isso diminuiu o ritmo da marcha. Na ponte das barcas as tábuas estremeceram e ressoaram debaixo das botas enérgicas. E o ruído foi bem mais forte do que horas antes quando por ali passara uma carroça sub-reptícia em direcção a Serralves.

No acampamento miguelista pagaram com generosidade uma informação muito simples:

- Tenham cuidado porque sei de fonte segura que os liberais foram avisados do ataque à Foz...

Coube a Zé Maria recompensar o homem dos bigodes, mas fê-lo contrafeito, porque daquela boca tão depressa saíam verdades como mentiras. De qualquer forma, seria arriscado ignorar o que lhes dizia.

- Lá vamos nós outra vez para a festa - brincou. - E como os parceiros estão à espera do baile, não os podemos desiludir. Hão-de dançar às arrecuas até caírem ao rio.

Falava ligeiro para animar os homens e a si mesmo, porque nesse dia acordara muitíssimo maldisposto e com um pressentimento incómodo, indefinido. Ao contrário do que era costume, a ideia de ir para a frente de batalha horrorizava-o. A única maneira de vencer o terror era armar em duro e dizer enormidades.

- Desta não me contento em encher-lhes o corpo de chumbo. Hei-de rebentar-lhes as entranhas com a baioneta para os ver de tripas de fora. E eles hão-de guinchar como os porcos na matança. Não quero prisioneiros, hã? «Malhado» (1) que se aproxime é «malhado» morto...

Pelo meio-dia é que se organizaram as colunas de ataque, com os atiradores à frente, os tambores atrás e as bandeiras flutuando ao vento. De um lado e de outro observavam-se os inimigos. Todos davam graças por não lhes distinguirem as feições.

A voz de fogo quase em simultâneo desencadeou uma chuva de balas que abateu alguns homens da linha da frente. Os soldados, porém, continuaram a avançar por entre o fumo denso da pólvora.

Atrás deles os tambores rufavam com violência para dar ânimo aos que se mantinham de pé. Foi um embate medonho. Durante várias horas não houve vencedores nem vencidos. O ribombar incessante dos canhões massacrou a atmosfera até ao limite, enquanto as colinas iam ficando pejadas de corpos desfeitos, sangue, armas sem

dono.

Ao pôr do Sol o general miguelista subiu a um morro com um óculo de longo alcance para avaliar as posições inimigas,

 

*(1) Os miguelistas chamavam «malhados» aos liberais. Essa designação era um insulto.

 

e concluiu que subestimara a defesa. Saldanha montara uma verdadeira fortaleza na zona do Pasteleiro. Era preferível dar ordem aos seus homens para retirarem. Tinha que engendrar outra estratégia para atacar o Porto.

Os cornetins transmitiram a mensagem e as colunas miguelistas começaram a recuar. Zé Maria ouviu-os ao longe, porque na ânsia de se vencer a si mesmo penetrara tanto quanto possível no campo adversário. Sufocado pelo fumo e pela poeira, com o ódio à flor da pele, não obedeceu de imediato. Um pouco adiante vira um liberal tropeçar e cair.

«Este não me escapa! Este não me escapa...»

De baioneta em riste, ia trespassá-lo sem dó nem piedade quando o outro levantou a cabeça e ele reconheceu Nuno, o mais querido amigo de infância, o companheiro de sempre.

Fugiu-lhe o sangue para um recanto que ignorava possuir, as forças abandonaram-no e a baioneta descaiu, furando a terra. Não trocaram palavra nem foi preciso. O olhar que cruzaram dizia tudo. Nada, ninguém, nem mesmo a guerra seria capaz de destruir aquela amizade.

Quando deram por si já iam longe e nenhum deles percebia por que motivo o mundo em redor balançava numa cortina líquida. Ambos tinham aprendido desde pequeninos que um homem não chora.

Na precipitação do regresso, Zé Maria tropeçou por sua vez e caiu também, mas num sítio onde já não havia perigo. Deixou-se ficar de borco, a cabeça enfiada num tufo de ervas húmidas. O cheiro intenso da terra e das plantas trouxe-lhe à memória o tempo em que ele e o amigo abriam covas à procura de minhocas, bichos-de-conta, lagartixas, para assustar a Mariana.

A dor que lhe contraiu o peito foi tão aguda que se julgou ferido e tacteou a farda em busca de estilhaços sobre o coração. Não encontrou nada além do tecido grosso e um desejo louco de voltar à infância. Lágrimas gordas desciam-lhe agora pela face. Apanhou-as na ponta da língua e lambeu várias vezes o sinal ao canto da boca, como fazia

em criança.

«Um homem chora, sim. Também temos direito!»

 

- Estou farta desta guerra - queixava-se Mariana. - Não temos visitas, não há um único rapaz nas outras quintas, à cidade não se pode ir, que maçada! Oxalá alguém vença para isto acabar.

- Alguém? Então para ti tanto faz? - perguntou-lhe Henriqueta.

- Claro! Entre o D. Pedro e o D. Miguel venha o diabo e escolha. Não os conheço, nunca os vi mais gordos e acho que deviam entender-se.

O desabafo tinha na mira provocar a discussão, pois sabia muito bem que a prima era uma miguelista fanática por razões particulares. O pai dela tinha sido morto quando anos antes os exércitos franceses invadiram o País. A mãe morrera de desgosto pouco depois. Razões de sobra para odiar cegamente tudo o que viesse de França. Ora as ideias liberais vinham precisamente de lá...

Em vão esperou pela zanga. Henriqueta permanece em silêncio, de olhar perdido. Estava pálida, com os lábios gretados e olheiras roxas.

- O que é que tens?

- Nada. Uma sede horrível, até me dói o estômago.

- Então vamos à cozinha beber água. Levantaram-se ambas mas foi necessário amparar Henriqueta, porque mal se aguentava nas pernas.

- Estás doente?

- Não. Tive uma cãibra.

Mariana olhou-a inquieta. Que mau aspecto! Lívida, de expressão baça, tinha a testa coberta por gotículas de suor. Segurou-lhe a mão e verificou que estava gelada.

- Tens frio?

- Não. Estou cheia de calor.

- É melhor sentares-te que eu vou buscar água. Aflitíssima, quase voou pelas alamedas do jardim. No regresso trazia um jarro meio vazio porque com a pressa entornara uma boa parte.

- Bebe! Mais um golo, vá.

Henriqueta bebeu para em seguida vomitar tudo no chão. Coberta de suores frios, revirou os olhos e caiu desmaiada.

- Mãe! Mãe! Socorro!

Os gritos ecoaram pela quinta e toda a gente abandonou o que estava a fazer para ir acudir às meninas. Vendo Henriqueta por terra, assustaram-se:

- O que foi? O que é que foi?

- Apanhou sol na cabeça - dizia um.

- Ou comeu alguma coisa que lhe fez mal.

- Levem-na para o quarto - ordenou Zulmira.

- E tu vai à vila buscar o médico. Não leves o burro, leva um cavalo e não demores.

Era já noite quando o caseiro voltou. Vinha acompanhado por um médico desconhecido.

- O Dr. Justino também está muito doente - explicou. - Andei de porta em porta a ver se sabiam de outro que pudesse cá chegar. Por sorte encontrei este senhor na aldeia e trouxe-o comigo. Ainda é rapaz novo mas deve ser competente porque já trabalhou com o Dr. Libânio num hospital do Porto.

O rapaz apeou-se. Nunca o tinham apresentado com semelhante desfaçatez!

- Você fala de mim como se eu fosse uma encomenda.

- Não leve a mal que eu não quis ofender... Sorrindo com benevolência, beijou a mão à senhora e apresentou-se:

- Luís Cândido da Silva. Tenho muito prazer em ser útil à irmã de um grande mestre.

Ela ficou sensibilizada, mas não era altura para conversas.

- Venha. A doente está no andar de cima.

O quarto era grande e atafulhado de mobília. Cama, dois armários enormes, um cadeirão, sete cadeirinhas, lavatório, arca, mesa de bordar e um pequeno oratório onde ardiam lamparinas de azeite. Luís Cândido piscou os olhos e deu consigo preso numa cara linda que o fitava, os olhos negros implorando ajuda. Avançou para ela esquecido da doente, e por uma fracção de segundo foi como se não estivesse mais ninguém ali. Sentiu-se febril com arrepios tão fortes que receou ter adoecido também. Valeu-lhe o autodomínio que há muito cultivava e a luz dos candelabros que a dona da casa mandou vir.

A doente também era uma rapariga e estava péssima, Pulso fraco, lábios, órbitas e dedos cor de violeta. Assim que lhe contaram o que tinha acontecido antes do desmaio perguntou:

- Teve diarreia?

- Sim.

- Então é cólera - disse com ar grave. - Cólera-morbo. A epidemia que começou no Porto agora alastra por todo o país.

- É grave? - perguntou Mariana.

- É.

- Mas tem cura?

A resposta evasiva não foi de molde a sossegá-la:

- Quando alguém adoece, nunca é possível dizer se se cura ou não. Em medicina não há certezas.

Mariana desatou num pranto convulsivo, a mãe abraçou-a e o médico irritou-se:

- Se não consegue fazer mais nada do que chorar, é melhor ir-se embora e mandar-me gente capaz.

Como nunca ninguém lhe falara naquele tom, suspendeu o choro, já disposta a uma réplica bruta, mas en-carando-o desistiu. Aquele homem emanava força, autoridade. Não dava margem a birras e más-criações. Diante dos olhos oblíquos que espreitavam por trás duns óculos fininhos em metal cinzento, sentiu-se pequena, dominada. E curiosamente, gostou. Recompôs-se, pediu desculpa e ofereceu os seus préstimos:

- Estava muito nervosa mas acho que já recuperei. Diga o que é preciso e eu faço.

- Muito bem. Então mande buscar cobertores de lã, e uma braseira para aquecermos a doente. E traga também água fervida, sal e uma colher de sopa.

As indicações foram cumpridas à risca. Mariana subiu e desceu a escada várias vezes, contente por se sentir útil. Fez questão de segurar a prima enquanto o médico a obrigava a beber água morna com sal e ani-mou-a falando baixinho:

- Engole devagar para não vomitares. Lembra-te de que és forte e saudável. O doutor põe-te boa em pouco tempo, vais ver.

Luís parecia aprovar as palavras encorajadoras:

- Continue. Fale com ela mais um bocado pois não convém que durma enquanto eu não lhe der um remédio que ali tenho na mala.

A mala era uma bolsa de couro rijo com asa. Lá de dentro saiu um frasco cujo rótulo enorme estava escrito à mão.

- É o único elixir que tem tido bons resultados no tratamento da cólera. Um colega mandou-me a fórmula por escrito e eu preparei vários frascos. Alguns doentes reagiram muito bem.

Assim que a rolha saltou espalhou-se pelo quarto um cheiro intenso a cânfora, canela e noz-moscada, reforçada pelo odor mais forte da aguardente.

- Ora vamos lá a abrir a boca. Como a prima não tinha forças para se erguer, Mariana amparou-a e estavam a enfiar-lhe a colher entre os dentes quando entrou uma criada aflitíssima.

- Ó senhor doutor, venha lá abaixo que a cozinheira também adoeceu. Esta maleita pega-se. Valha-nos Nossa Senhora que morremos todos aqui!

 

A cólera abateu-se sobre a Quinta da Madressilva com a violência devastadora de um furacão. Todos os dias caíam à cama mais duas ou três pessoas e a casa passou a dar uma impressão terrível de abandono. Não havia ninguém para limpar e arrumar, faltava quem cozinhasse e chegou a acontecer ficarem galinhas, perus e coelhos sem alimentos nem água durante um dia inteiro. Só Mariana e Adérito continuavam inexplicavelmente saudáveis. A eles cabia portanto tratarem de tudo, o que, dadas as circunstâncias, significava levantarem-se antes de o Sol nascer e deitarem-se quando já a Lua brilhava no céu. Para o caseiro a situação não trazia grande novidade.

- Sempre trabalhei, o trabalho não me mete medo. Diga a menina o que precisa e pode contar comigo.

De facto manteve-se activo e risonho, mesmo nas horas em que se via a braços com tarefas que nunca desempenhara, como por exemplo lavar roupa. Punha a cesta à cabeça e dirigia-se ao rio cantarolando. Depois mergulhava os lençóis e esfregava-os à matroca, pouco se ralando com as manchas que persistiam.

- Elas que se ponham boas e logo lavam melhor!

Quanto a Mariana, o caso era diferente. Menina rica e mimada, não aprendera senão a cuidar de si própria, e mesmo assim com ajuda sempre que necessário. Habitualmente bastava-lhe chamar uma das criadas e qualquer ordem seria cumprida. «Penteia-me.» «Traz água para um banho.» «Passa-me este vestido a ferro.» «Quero um chá de tília e pão com doce.» De súbito viu-se como a única mulher disponível, e ainda por cima na maior aflição. A mãe de cama a gemer cheia de cólicas, a prima entre a vida e a morte, o pessoal no mais variado estado de sofrimento. Tentou contratar gente na aldeia e nas quintas vizinhas mas a doença atingira toda a região e não havia quem pudesse auxiliá-la, nem a troco de bom ordenado. Decidiu então arregaçar as mangas:

«Enquanto andar a pé cá me hei-de arranjar.»

A ameaça de contágio pairava e de início procurou atender os doentes sem se aproximar muito, mas verificou ser impossível, porque alguns não tinham forças sequer para beber um copo de água.

«Paciência! Como não sei como é que esta doença se pega, o melhor é não pensar nisso. Se adoecer, logo se vê.»

Escada acima, escada abaixo, transportando bilhas de água e sal, frascos de remédio, caldos de arroz que aprendera a fazer pelo método de tentativa e erro, sentia-se exausta.

Mas ao mesmo tempo orgulhosa por descobrir dentro de si qualidades ignoradas.

De passagem em frente aos espelhos do salão, não podia deixar de lançar uma mirada rápida à sua imagem. O vestido amarrotado, o cabelo em desalinho, a queimadura no braço direito fruto das experiências no fogão, faziam-na sorrir satisfeita. «Quem havia de dizer que eu resistia a uma destas, hã?»

O que mais a estimulava, porém, era o olhar admirativo do médico. Luís Cândido passava na quinta todas as tardes e às vezes voltava também depois do jantar. Nunca abandonava o tom profissional e falava-lhe exclusivamente de sintomas, de melhoras, tratamentos. Só que, por trás dos aros metálicos, brilhava surpresa e admiração.

Mariana já não podia passar sem aquela presença masculina. Se por acaso ele se atrasava, ia mil vezes à janela espreitar, e na única vez em que faltou teve uma crise de choro.

Nessa noite entrou em desespero. Parecia-lhe que a desgraça nunca mais tinha fim e sentiu-se vítima da injustiça universal.

«Nem a guerra acaba, nem os doentes melhoram, nem o médico aparece, estou farta, não aguento mais!»

Saturada de gemidos, queixumes, maus cheiros, fugiu para o jardim e passeou por entre os buxos a soluçar, até que as lágrimas secaram e ficou sem reacção. Adérito encontrou-a estendida num banco com os olhos tão vermelhos e inchados que se assustou.

- Ó menina, então que é isso? Não podemos perder a coragem. Se a doença não entrou connosco, havemos de mostrar a nossa «rijeza» até ao fim. Olha agora a chorar. Que ideia!

Pegou-lhe carinhosamente na mão e arrastou-a para a cozinha.

- Sabe do que é que precisa? De uma pinga. O vinho do Douro tem artes para levantar um morto!

Encheu os copos e vá de exemplificar:

- Ora faça como eu que não se arrepende. Mariana não pôde deixar de rir. Molhou apenas os lábios e ao fazê-lo percebeu que estava cheia de fome.

- Vou preparar um petisco para a gente comer. Mete aí lenha no fogão e acende o lume.

- Mas não faça mais caldos de arroz, que só o cheiro me enjoa.

- Também a mim.

O pior é que não sabia fazer outra coisa... Passeou os olhos pela despensa interrogando-se. Entre todos aqueles produtos, quais seria capaz de dominar? Feijão e grão pareceram-lhe realmente enigmáticos. Sendo tão duros, a cozedura devia envolver algum segredo. E as batatas? Metiam-se na panela com casca ou sem casca? Arrumados num cestinho, os ovos atraíram-na pela facilidade evidente.

- É só partir e atirá-los para a frigideira. Está decidido.

Numa agitação febril, cortou também rodelas de chouriço, fatias de presunto e misturou tudo numa tigela. Antes de iniciar o cozinhado, ocorreu-lhe acrescentar bocadinhos de cebola.

Assim que retirou a casca, um cheiro intenso e característico penetrou-lhe as narinas e logo a seguir brotaram-lhe lágrimas picantes que nada tinham a ver com o estado de alma.

- Ora esta! Então a cebola faz chorar?

Aquilo deu-lhe imensa vontade de rir.

- Tenho a família de cama, as criadas também, trabalho de sol a sol como uma condenada, os meus amigos foram para a guerra e não sei se estão vivos ou mortos, a única pessoa que me faz companhia já não abre os olhos com a bebedeira e eu ponho-me a chorar por causa de uma cebola. Ah! Ah! Ah!

A confusão de sentimentos aumentou como uma bola de neve a escorregar pela montanha. Cresceu o choro e cresceu o riso a pontos de não conseguir parar.

Luís Cândido veio encontrá-la diante do fogão a rir e a chorar ao mesmo tempo, completamente descontrolada.

- O doutor! Julguei que hoje não vinha! Ele ficou aflito:

- O que é que aconteceu? Alguém piorou?

Raio do homem que nunca abandonava a pose de médico atento! Apeteceu-lhe gritar que estava farta de ser enfermeira. Que se consumira com saudades dele por pensar que já não lhe aparecia senão no dia seguinte. Que estava à espera de uma palavra de amor. Em alternativa ainda pôs a hipótese de lhe espetar com os ovos na cara. Mas o longo período de sacrifícios ensinara-lhe a autodominar-se e foi com um sorriso doce que perguntou:

- É servido?

Pela primeira vez comeram juntos. À mesa a intimidade insinua-se quase sem as pessoas darem por isso. Ficaram à conversa até de madrugada e os assuntos foram variando sem nunca se aproximarem do que ela queria. Mariana passou por várias fases. Ora julgava ver nos gestos e nas expressões de Luís Cândido provas de amor, ora desanimava, achando-o distante, ora tinha esperança de que gostasse dela mas lhe faltasse coragem para se declarar.

«Talvez ao nascer do Sol...»

Lá fora o céu tingia-se de cor-de-rosa. Nenhum deles tinha sono nem vontade de interromper o convívio, mas sem saberem porquê instalou-se de repente um silêncio embaraçoso. Receando ficar sozinha, Mariana puxou outro tema:

- E esta guerra, doutor? Quem é que vai ganhar?

- Os liberais - disse ele sem hesitações.

- Por que é que diz isso? Gosta mais de D. Pedro. Ele sorriu-lhe, complacente.      

- Não se trata de preferir este ou aquele rei. Neste caso pouco importa quem fica no trono. Também não tem grande importância o número de soldados que combatem de um lado e de outro, nem a categoria dos generais, nem a quantidade de armas, nem aquilo que o povo diz que quer ou deixa de querer. Nada disso terá influência no desfecho da guerra. Mais tarde ou mais cedo os liberais ganham.

- Porquê?

- Porque os miguelistas lutam pelo passado e os liberais pelo futuro. Ora a história não anda para trás...

Apercebendo-se de que ela não entendia bem aquela frase, acrescentou:

- Até agora os reis podiam governar como bem lhes apetecesse. Faziam as leis que lhes dessem jeito e desfaziam-nas quando assim o entendiam porque se acreditava que o Poder vinha directamente de Deus para as suas mãos. A partir do momento em que se deixa de acreditar nisso, o mundo tem que dar uma cambalhota.

Mariana lamentou não ter opinião formada para poder discutir de igual para igual e receou que ele a achasse tola, portanto preferiu tomar a postura de quem ouve uma coisa interessantíssima e quer saber mais.

- Estamos a viver tempos de mudança. Tempos difíceis. Quando a guerra acabar não fica tudo resolvido.

- O que é que vai acontecer mais? - perguntou horrorizada.

- Conflitos entre os vencedores, por exemplo. Hão-de lutar pelo poder, hão-de impor leis que embora justas vão provocar revolta.

- Acha?

- Claro que acho. Uma lei nova prejudica sempre alguém... Antigamente, por exemplo, todos os comerciantes que entrassem numa vila com mercadorias tinham que pagar portagem. Os liberais já prepararam uma lei que acaba com as portagens.

- Isso é óptimo para os comerciantes.

- E é péssimo para os cobradores que ficam sem emprego e para as vilas que ficam sem esse rendimento.

- Ah!

O Sol levantava-se esplendoroso. Raios certeiros arrancaram reflexos de oiro aos copos de cristal.

- Já é dia - disse o médico, retomando o tom neutro que lhe era habitual. - Vou lá acima ver os doentes antes de partir.

Subiram ao quarto de Henriqueta, que, ainda mergulhada no sono, se remexia entre os lençóis balbuciando:

- Zé Maria...

O médico fitou a sua companheira com um olhar interrogativo e ela explicou-lhe em voz baixa:

- É um rapaz de uma quinta vizinha.

- Estão noivos?

- Não. E ele nem sonha com este amor. A minha prima guarda os segredos como se os metesse num poço sem fundo. Nem a mim contou. Eu só soube por causa da doença. No meio do delírio fartou-se de chamar por ele.

- Onde é que anda o rapaz?

- Na guerra. É miguelista.

- Então, como vai regressar derrotado, talvez lhe saiba bem ter uma apaixonada à espera.

- Humm... não dá! Trata-se de um amor impossível.

- Porquê?

- Porque a Henriqueta é pobre e o Zé Maria riquíssimo. Vai herdar toda a fortuna do pai porque é o filho mais velho, o morgado. Os morgados casam sempre com gente tão rica como eles.

O sorriso com que o médico a brindou foi tão especial que julgou chegada a hora de ouvir as palavras desejadas. Em vez disso, ouviu uma declaração que a deixou perplexa:

- Assim que os liberais ganharem, acabam-se os morgadios.

- O quê?

- É a tal cambalhota de que falámos. Estão a preparar uma lei nova que obriga a dividir qualquer herança pelos filhos todos em partes iguais.

- Palavra?

- Palavra de honra. Se o seu amigo Zé Maria quiser casar com a Henriqueta, pode fazê-lo, porque as diferenças de fortuna já não serão tão grandes.

A doente até deu um salto na cama. Tinha acordado momentos antes, mas fingira continuar a dormir por perceber que falavam dela. À notícia, porém, deu-lhe ganas de se levantar dali e ir correr pela quinta.

«Menos um obstáculo», pensou. «Quem sabe se tenho sorte...»

Mariana não reparou na agitação da prima porque estava entretida com outros pensamentos. Dava graças a Deus por ser filha única e não ter que dividir nada com ninguém. Além disso, passava em revista todos os morgados que conhecia. Muitos eram liberais, como o Nuno.

«Será que eles sabem o que os espera? Se calhar andam a lutar por aquilo que não lhes convém...»

 

Nuno bebia copos de limonada uns atrás dos outros sem prestar atenção ao movimento e às conversas de quem entrava e saía do café. O olhar absorto ficara preso na moldura do espelho enorme que decorava a parede, como se os retorcidos em madeira estivessem prestes a revelar-lhe um segredo importantíssimo.

A atitude de João era bem diferente. Estava alerta e gostaria de ter não duas mas quatro orelhas para não perder pitada do que se discutia em redor. Falava-se de tudo: o resultado da última batalha, as promoções feitas para recompensar os actos de bravura, a pouca sorte do tipo que perdera um braço, o baile oferecido pelas senhoras do Porto ao príncipe D. Pedro, a cólera que se espalhara e ia matando gente a par com as balas. De vez em quando alguém contava uma anedota e a vozearia dava lugar a gargalhadas sem fim. Mas logo a seguir vinham notícias tristes e boatos que deixavam as pessoas em sobressalto.

Aquela mistura de brincadeira com desgraça ainda o fazia pasmar, e punha a hipótese de ser por isso que chamavam à zona dos cafés «pasmatório». Mas não era. O nome devia-se ao facto de se sentarem por ali todos os que não tinham que fazer ou que gozavam de uma pausa momentânea como era o caso deles. Infelizmente as horas livres estavam a esgotar-se. Virou-se para Nuno com a intenção de lhe lembrar que talvez fosse boa ideia pagarem a conta e estranhou vê-lo assim distante, alheado. Tocou-lhe no braço ao de leve e perguntou-lhe: - O que é que tens?

Não obtendo resposta, pôs-se a rever mentalmente o que sucedera nos últimos dias. Como andavam sempre juntos, não podia ter acontecido nada ao outro que ele não soubesse. Além disso, depois dos momentos vividos no campo de batalha a amizade entre ambos dera um grande salto em frente. Debaixo de fogo os homens tornam-se solidários e pensam no grupo a que pertencem como se fosse um todo. No meio da correria, dos disparos, das explosões, quando dois indivíduos se encontram por acaso lado a lado e a coragem de um puxa pela do outro, e sentem que não estão sozinhos no inferno, irrompem os tais laços de solidariedade que mais tarde se reforçam se houver convívio e sobretudo se resolverem abrir a alma e fazer confidências.

Ora confidências é que não tinham faltado desde então. Pela boca de Nuno saíra uma torrente de palavras, bastante desconexas e emotivas. Só com a repetição ganharam significado e podiam resumir-se numa frase muito simples:

- O Zé Maria poupou-me a vida. Apesar de tudo, poupou-me a vida.

E lá vinha o relato infindável onde misturava recordações de infância, a grande zanga por terem escolhido partidos opostos e o amor imenso que os unia à mesma mulher.

João conhecia já a história de cor e salteado e referia-se «tu cá, tu lá» a pessoas que nunca tinha visto. Até chegava a gozar com os buxos da tia Zulmira e parecia-lhe que também ele passara bons bocados na Quinta da Madressilva. Nunca se impacientava a ouvir o amigo porque as revelações tinham uma faceta deliciosa: Nuno não sentia o menor desejo de namorar a filha do Dr. Libânio!

- Por que é que estás assim? - insistiu. - Conta-me a verdade.

- Nunca mais recebi carta da Mariana - acabou por lhe confessar. - Não me escreve. Já deve ter decidido casar com o Zé Maria. Escolheu bem. Ele merece.

A tristeza do olhar desmentia o sorriso.

- Não te ponhas com parvoíces, Nuno. A rapariga com certeza escreveu mas não arranjou mensageiro. Sabes muito bem que não é fácil entrar e sair da cidade. Só chanfrados como o Adérito é que se atrevem.

- Então por que é que ele não vem?

- Sei lá! Se calhar não pode, ou não quer, ou morreu com cólera...

Nuno levantou a cabeça tão vivamente que ele caiu em si.

«Já meti água», pensou.

- Estás a sugerir que a cólera chegou à Quinta da Madressilva?

- Não, que ideia! - exclamou o João com veemência. - Isto é uma doença de cidade, no campo nunca

O ar é mais saudável, a água pura.

Embalava a inventar motivos de segurança contra a epidemia quando entrou no café um homem quase anão e tão gordo que se mexia com dificuldade. Mal se lhe via a cara porque usava um chapelão enorme por cima da farta cabeleira. À vista, só mesmo a barbicha e os bigodes pendentes. Envergava uniforme de coronel com a respectiva espada cuja ponta roçava o calcanhar da bota. Trazia na mão um ramo de oliveira e abanava-o para enxotar moscas e mosquitos. Embora a figura fosse ridícula, desencadeou um movimento de respeito entre os soldados e oficiais presentes. Levantaram-se e ficaram em silêncio por causa da saudação devida a um coronel e não só. Todos conheciam e admiravam o bizarro conde de Paraty (1) pela sua coragem na guerra. Dizia-se até de brincadeira:

- Aflige-se mais com as moscas do que com as balas.

Instalado numa mesa onde se encontravam outros oficiais de alta patente, ele anunciou a novidade do dia:

- Já chegou à Foz do Douro o auxílio que esperávamos de Inglaterra. Veio um capitão chamado Napier e trouxe com ele cinco navios a vapor e quinhentos homens.

A notícia foi saudada com um coro de «Hurras!» e uma salva de palmas. Daí a pouco a cidade em peso comentava:

 

*1. O conde de Paraty existiu mesmo e participou na defesa da cidade do Porto. Os companheiros deixaram descrições muito detalhadas tanto da sua figura ridícula como da sua grande coragem.

 

- Chegaram reforços por mar!

- Desta é que a guerra acaba!

Claro que os espiões não perderam tempo a levar a informação aos miguelistas, que ficaram alerta e concentraram as atenções na zona da Foz. A população também não tirava os olhos do rio, dividida entre a curiosidade por aquele novo modelo de barco com uma chaminé ao meio a deitar fumo e o desejo de adivinhar qual a próxima etapa da guerra. Surgiram tantos boatos que quando a verdade se divulgou nos quartéis ninguém queria acreditar.

- Vamos atacar o Algarve.

- O Algarve? Para quê?

- Para dividir forças. Os miguelistas estão concentrados aqui à volta e o resto do exército está quase todo em Lisboa para guardar a capital. Se lhes aparecermos no Algarve, serão obrigados a mandar alguns batalhões para nos enfrentarem e espalham-se. Quanto mais espalhados estiverem, mais fácil será vencê-los.

- A ideia é boa, mas como é que saímos do Porto?

- Pelo rio. Vamos arriscar um embarque nocturno e depois, olha, seja o que Deus quiser!

A perspectiva de partir entusiasmava os soldados, fartos do cerco que se prolongava sem dar a vitória a ninguém. João é que se viu em embaraços. Se fosse escolhido para aquela missão, que havia de fazer? Embarcar sem prevenir Orlando?

«Impossível. Ele nunca mais me perdoava.» Inquieto, pensativo, foi dar uma volta sozinho. Apesar das saudades, não voltara a casa do Dr. Libânio para evitar discussões com a irmã e o Orlando. Deviam estar fulos por se ter escapado deixando apenas um bilhete a informar que resolvera alistar-se.

«Odeio gritaria, odeio que me ralhem.» Evitava até imaginar a cena do encontro mas, como não queria que se afligissem de mais, quase todas as noites passava na oficina do sapateiro e pedia-lhe que levasse duas cartas a casa do médico. Uma para a família a dizer que estava bem. Outra para a Libaninha a dizer que gostava dela.

- Não se esqueça que esta é secreta, hã? Tem que ser entregue às escondidas.

- Fique descansado. Cá o velho Policarpo não o ia deixar mal.

Caminhando ao acaso, acabou por ir parar junto do vão da escada onde o homem trabalhava. Só que desta vez não encontrou ninguém. A porta estava fechada.

- Hei? Então já não conheces os amigos? Voltou-se e deu de caras com o tenente Nestor.

Vinha muito prazenteiro de botas na mão.

- Também fiquei de cara à banda. Precisava de solas novas mas tenho que cá voltar noutra altura.

Vendo-o cabisbaixo, insistiu:

- Algum problema?

João aproveitou para desabafar:

- Estou com receio que me escolham para ir para

o Algarve.

- Receio? Eu cá por mim adorava ir. Não vale a pena ter medo porque a bala que traz o nosso nome escrito vai ter connosco onde a gente estiver.

- Lá isso é verdade.

- Então, pá, nada de sustos. Se te escolherem, aproveita a mudança de ares e goza a aventura.

- O pior é a minha família.

- A família tem que se conformar.

Desde que te aUsentaste já não lhe pertences. Pertences ao exército e não podes sair senão no fim da guerra.

- Posso fugir.

- Não te aconselho. Se fugires tornas-te desertor e o que espera os desertores é a pena de morte. Fuzilam-te. Morrer por morrer, antes no campo de batalha, cheio de glória.

João engoliu em seco para disfarçar a atrapalhação. Só agora se apercebia de como fora louco em seguir aquele impulso. Que disparate medonho! Despediu-se do tenente e regressou ao quartel, ansioso por saber se havia ou não ordem de marcha.

«Logo que chegue o papel resolvo o assunto. Antes disso não vale a pena maçar-me», decidiu.

A ordem chegou dois dias depois. Nuno propôs-lhe irem-se despedir, e no momento de lhe responder entendeu que tomara uma decisão:

- Prefiro que a minha família julgue que continuo no Porto e tu vais-me ajudar. Chegas lá a casa e dizes isso mesmo.

- Por quê mentir?

- Tenho motivos mas não me perguntes quais são. Falou de um modo tão sério e adulto que Nuno acedeu:

- Está bem. Mas lembra-te de que eles ficam sem notícias tuas. Podem pensar que morreste.

- Não há azar. Já previ uma maneira de evitar esses pensamentos negros. Deixo várias cartas ao sapateiro e peço-lhe que as entregue dia sim, dia não.

- Bom, tu lá sabes.

Nuno ia afastar-se mas João deteve-o.

- Ainda preciso de outro favor...

Em voz muito baixa expôs o que pretendia.

- Seja como queres. Confia em mim que eu trato de tudo.

Separaram-se com um riso cúmplice.

Algumas horas depois Nuno instalava-se no salão de baile para contar pormenores a respeito da campanha no Algarve. Assim distraía a família e as visitas do Dr. Libânio enquanto a filha se esgueirava para o jardim. Agachado entre duas sebes, João ardia de impaciência. Ouviu-a antes de a ver porque os sapatos rangeram sobre as pedrinhas de saibro. Palavras para quê? A hora tardia e as saudades empurravam-nos de novo para uma boa imitação daquelas figuras magníficas que decoravam o relógio de bronze.

 

- O embarque tem que ser numa noite muito escura para evitar que os canhões miguelistas afundem os botes.

- Ou os navios.

- Os navios não, porque ancoraram ao largo. Estão fora do alcance de tiro.

Nuno procurava esconder um certo nervosismo falando sem parar no que lhe tirava o sono. Ia partir. Queria partir. Mas não era fácil. Para trás ficavam amigos e parentes sujeitos a um grande assalto, à cólera, à fome. Receava não tornar a vê-los. Não confessara a ninguém os seus temores; no entanto, dera algumas passeatas melancólicas pela cidade, demorando o olhar nos sítios que de alguma forma tinham ficado ligados a momentos especiais. Custava-lhe quase tanto despedir-se das pedras como das pessoas.

Quanto ao João, já que tinha de partir não olhava para trás.

Ávido de experiências novas, catrapiscava de longe os botes que o haviam de transportar na mais fantástica das aventuras. Entretinha-se a avaliar a distância entre a margem do rio e os canhões inimigos, fazia cálculos matemáticos cujas regras ele próprio inventava e concluía infalivelmente que as probabilidades de ser atingido eram mínimas.

«Ainda por cima às escuras! Não vai haver azar nenhum.»

A sua confiança sofreu um ligeiro abalo quando o espião do costume trouxe notícias inquietantes.

- Os miguelistas têm foguetes da China. São uma espécie de canas que sobem no ar e quando rebentam deitam luz. Vão usá-los na noite do embarque para verem os botes e poderem acertar-lhes.

Quem ouviu angustiou-se, pois com ou sem foguetes embarcariam na mesma. Só o João pretendeu não se deixar impressionar. Assim que o homem virou costas lembrou aos companheiros:

- Não liguem. Deve ser tudo mentira. Ele quer é dinheiro, portanto vem para aqui inventar idiotices e cobra. Vocês sabem muito bem que já se fartou de vos enganar.

As palavras obtiveram o efeito pretendido. Animou-se a si próprio, animou os outros e ouviu um elogio do comandante.

Na data marcada desceram à praia da Foz muitas centenas de homens no mais rigoroso silêncio. Vários botes em fila aguardavam. A primeira ordem de embarque foi dada em surdina e os destacados apressaram-se a tomar lugar nas tábuas que serviam de banco. Grande responsabilidade cabia aos remadores!

Tinham que avançar sem fazer barulho e conduzir o bote a um determinado navio difícil de identificar, pois encontrava-se ancorado no meio da armada. Sabiam o nome, mas como reconhecê-lo no escuro?

Nuno e João viajariam na fragata Rainha de Portugal. Ficaram para a segunda leva. Muito direitos, com o tacão semienterrado no areal, viram deslizar os botes na superfície da água. Os reflexos negros com ligeiras orlas de espuma provocavam arrepios pela espinha acima.

Tchap... Tchap... Tchap... Dos remos cautelosos vinha o único som que varava a noite. Escutavam com o coração em alvoroço. Conseguem? Não conseguem? João respirava ao mesmo ritmo que os batimentos na água. Tchap... Tchap... Tchap... Respirar assim cansa. Já estava com uma falta de ar horrível quando rebentou um fogo vivíssimo na margem oposta, logo seguido por fuzilaria proveniente dos morros norte. Nem faltaram os malditos foguetes da China. Subiam com a força de um raio e desfaziam-se em luz que iluminava muito mas durava pouco.

Os remadores, apesar da humidade, suavam que nem cavalos de corrida. E ala para longe, em ziguezague, tentando confundir os artilheiros. As bombas a cair no rio levantavam repuxos luminosos que até seriam bonitos noutras circunstâncias.

Na praia os soldados seguravam-se para não fugir a sete pés. Morrer por morrer, então em terra e não no abismo negro e gélido do mar tenebroso.

O capitão inglês percebeu que a moral do exército sofria um abalo forte para quem tem de partir rumo ao desconhecido. Homem experiente e capaz de iniciativas originais, optou pela táctica da surpresa.

Perante a estupefacção geral, começou a despir-se e avançou para a água anunciando que ia tomar um banho. Mergulhou várias vezes e apareceu à tona outras tantas, indiferente aos clarões, aos estrondos, às bombas que se lançavam de um lado para o outro.

- Este Napier é cá um dos meus - comentou João quando chegou a vez de entrarem nos botes. - Não há nada melhor do que brincar com o fogo!

Podiam dizer sem mentir que não sentiam a mais leve ponta de medo. Até deram um berro junto ao casco do navio onde acostaram.

- É o Rainha de Portugal?

- Não - respondeu uma voz lá de cima. - É o brigue Vila Flor. O vosso está mais adiante.

Lá foram. Aliviados por se encontrarem fora do alcance de tiro, encheram o peito de ar. Que regalo, o cheiro a maresia!

 

A viagem decorreu com mar sereno e vento bonançoso. Três dias, não mais.

Na noite de São João dobraram a Ponta de Sagres e viram um grupo de monges festejando a data à roda de uma fogueira.

 

Nota: O almirante Napier tomou mesmo um banho na praia da Foz enquanto os soldados embarcavam. Toda a gente ficou assombrada por ser debaixo de fogo. As bombas a cair em volta e ele a mergulhar! O episódio foi descrito por pessoas que assistiram, como por exemplo o marquês de Fronteira.

 

Aquela cena alegre e simples encheu-lhes o coração de nostalgia.

- Quem me dera ficar aqui! - suspiravam. - Que paz!

Um grupo enorme manteve-se junto à amurada com os olhos postos nas chamas que diminuíam de tamanho até desaparecerem por completo.

Estava decidido que saltariam em terra perto de Vila Real de Santo António para irem conquistando o País aos miguelistas de Sul para Norte. Não houve grande dificuldade em executar a primeira parte do plano porque havia poucos soldados a guardar o Algarve e fugiram.

João demorou a adaptar-se ao solo firme. Marchando atrás dos companheiros, esforçava-se ao máximo para não cambalear. Mas o corpo insistia em mover-se como se por baixo ainda dançassem as ondas.

«Esta agora! Se o comandante repara em mim julga que me embebedei.»

A preocupação fê-lo olhar em volta e verificou então que não era o único a debater-se com aquele problema. Nuno equilibrava-se razoavelmente, mas um tal David, com quem tinham feito amizade pelo caminho, ia aos baldões.

O percurso até Lisboa seria longo. Tinham que descansar e dormir. Pediram guarida num convento, talvez porque traziam fresca na memória a cena agradável que incluía monges à roda da fogueira.

Foram muito bem recebidos por um velhote que se prontificou a servir-lhes comida. Ofereceu fruta saborosíssima. Então os figos eram doces como o mel. Comeram até fartar.

- Que belos pomares tem este convento! – gabou o Nuno.

- É verdade, senhor - disse o velhote com um meio sorriso. - Não há nas redondezas nada que se compare.

- E o edifício, que bonito.

- É verdade, senhor. Simples mas muito confortável. Respondia-lhes mas a sua postura indicava que os pensamentos andavam perdidos algures. Não olhava as pessoas de frente e o sorriso a meio, nem se desfazia nem se acentuava. João desconfiou.

«Aqui há qualquer coisa que não bate certo.»

Fixou-se no homem à procura nem ele sabia de quê. As mãos sapudinhas agitavam-se por baixo da mesa, de vez em quando mordia o lábio inferior e, embora gabasse a excelência da comida, não tocava em nada.

«Esquisito! Muito esquisito!»

Já em estado de alerta mas ignorando o que temer, apurou os cinco sentidos. Olfacto e paladar não se revelaram de qualquer utilidade porque continuavam dominados pelos figos. Também não lhe serviu de muito concentrar-se no tacto. Ao esfregar as mãos na parede rugosa não obteve outro efeito senão arranhadelas. Passeando a vista é que detectou um pormenor inquietante.

«Nós somos muitos e ele é só um. Onde estão os monges?»

A pergunta que fez a si próprio levou-o a recordar cada passo dado no interior do convento. Salas, salinhas, corredores, estava tudo deserto e mergulhado no mais absoluto silêncio.

De repente uma ideia aterradora atravessou-lhe o espírito.

Os monges podiam ser miguelistas e terem ido chamar o exército inimigo.

«Se calhar caímos numa emboscada!»

Coberto de suores frios, olhou para o comandante, que comia e bebia alegremente. Ainda pensou alertá-lo, mas a ansiedade não lhe permitiu esperar mais tempo e atirou de chofre a pergunta que lhe queimava a garganta:

- Onde estão os outros monges do convento? Falara tão alto que se interromperam as conversas e toda a gente olhou o velhote. Ele passou por quantas cores existem entre o vermelhão e o amarelo-limão.

- Onde estão os monges? - repetiu um coro de vozes alarmadas.

Ele hesitou antes de responder. Cabeça baixa, mãos atrás das costas, uma infinita tristeza.

- Estão com Deus. Morreram todos de cólera. Só sobrei eu.

O batalhão, que se levantara num impulso ameaçador, sentou-se outra vez. Cada soldado fitava com verdadeiro pavor os copos, as bilhas, as facas, os pratos de que se tinham servido para comer fruta e beber água daquele lugar empestado com uma doença mortal que ninguém sabia ao certo como se transmitia nem como se tratava! Nesse momento preferiam enfrentar um bando de miguelistas, contra quem tinham armas e boas. Agora diante de fruta venenosa, água inquinada, loiça assassina, que fazer? Alguns correram lá para fora aos vómitos.

 

Nota: Esta cena passou-se no Convento dos Franciscanos em Tavira.

 

De cólera continuou a morrer muita gente, mas por incrível que pareça, os que pernoitaram no convento salvaram-se quase todos!

Outro perigo espreitava, porém, nos esconderijos da serra.

- Temos que ter cuidado - advertiram os capitães. - Anda por aí um bando perigosíssimo que ataca pela calada da noite. Fazem verdadeiras razias e depois desaparecem sem deixar rasto. O chefe é um tal Remexido (1). Nas aldeias basta ouvirem-lhe o nome para se irem fechar em casa a tremer de medo.

- Sabes o que me contaram do Remexido, capitão?

 

*(1) O Remexido existiu mesmo. Era miguelista e chefiou um bando de guerrilheiros que actuava na serra algarvia e no Alentejo. Só foi preso quatro anos depois de terminar a guerra civil.

 

Dizem que pode estar três dias e três noites sem comida de gente. Não perde a força porque mastiga umas certas raízes que só ele conhece.

- Isso fazia-nos jeito para rações de combate - brincou o capitão. - Se o encontrarmos havemos de o convencer a revelar o segredo.

- Nem a tiro. O Remexido é fanático por D. Miguel. Até lhe digo mais. Se por azar o tipo anda aí à espreita e vê as nossas fitas azuis e brancas, estamos fritos.

- Tens medo?

- Falei só para a gente se precaver. Não tenho medo nenhum.

O movimento da cabeça e os olhares furtivos na direcção das moitas mais cerradas indicavam que mentia, o que neste caso só lhe ficava bem. Um soldado não pode dar parte de fraco, senão perde a coragem e desanima os companheiros. Não era no entanto de espantar que ele e os outros percorressem os caminhos íngremes da serra algarvia com receio de serem surpreendidos pelo bando do Remexido. Havia quem dissesse que eram só vinte ou trinta, mas também havia quem garantisse que eram mais de mil. E contava-se que faziam verdadeiras loucuras!

Cada restolhada punha-os em sobressalto, o mínimo ruído parecia-lhes suspeito. Sustos sem consequências. Se o Remexido estava escondido, escondido ficou.

A marcha para Lisboa prosseguiu. Foi longa e cansativa mas sem as lutas que esperavam por falta de inimigo. O grosso do exército miguelista estava concentrado à volta do Porto e dentro de Lisboa. Havia bastantes homens armados em Beja, mas como eles tomaram outro rumo não se defrontaram.

Conquistar a capital envolvia uma dificuldade extra. É que eles vinham do Sul e Lisboa fica na margem norte. Não havia qualquer ponte para atravessar o Tejo.

- Como é que vamos passar para o lado de lá? - perguntou o João. - De barco?

- Não há outra maneira.

- Pois é. Mas a gente não tem barcos!

Nuno não soube esclarecê-lo, mas um capitão lembrou:

- Napier vem do Algarve por mar. Os navios hão-de estar no estuário do rio à nossa espera.

À espera estavam os miguelistas, que tinham resolvido enviar tropas para a margem sul numa tentativa de impedir que atingissem Lisboa. Na zona de Almada havia pelotões em formatura pelo campo e homens emboscados dentro das casas. Começaram a disparar todos ao mesmo tempo.

- Fogo! - gritou-se de um lado.

- Fogo! - gritou-se do outro.

Nuvens de fumo, nuvens de balas, tropel de cavalos, relinchos, gritos, corpos a cair. Morreu muita gente mas não tardou a perceber-se que o inimigo recuava para as praias do Tejo. Isso deu ânimo aos soldados. Avançaram até Cacilhas lutando sem parar. Quando escureceu ainda se ouvia o tilintar das espadas, o estrondo de canhões e espingardas, os urros de dor. Nas ondinhas suaves do rio a orla tingia-se de vermelho. Vermelho-sangue.

João perdera completamente a cabeça numa luta corpo-a-corpo que o obrigava a saltitar para cima e para baixo nas escadas do cais. Foi dali que viu o amigo ser atingido, cambalear e cair desamparado na água.

A aflição duplicou-lhe a força. Num arranque atirou com o adversário para longe e lançou-se ao rio a nadar desvairado. Nuno estava prestes a afogar-se. Lívido, sem forças, esbracejava ainda. À sua volta alastrava a mancha escura que não engana.

- Fui ferido - murmurou com voz débil.

- Calma! Calma! Não lhe ocorreu outra coisa que pudesse dizer enquanto o puxava para terra com uma energia e um vigor que nem ele sabia possuir.

Os combates esmoreciam, tendo dado uma vitória clara aos liberais. Houve homens que lutaram até à morte, outros renderam-se e outros escaparam.

João não sabia o que fazer. Trouxera o corpo do amigo para junto de um monte de cordas e procurava chamar a atenção dos soldados que andavam por ali de archotes em punho a recolher feridos. Em vão gritou. Havia gente em excesso a precisar de apoio, ninguém o ouvia.

Semi-inconsciente, Nuno soltava queixumes e palavras sem nexo:

- A perna... narf... ai...

A bala que o atingira esfacelara-lhe a coxa. Continuava a escorrer sangue pela abertura do pano chamuscado.

«Se fico à espera de ajuda, ele morre. Tenho que estancar a hemorragia.»

Nunca se vira numa situação semelhante mas agiu por instinto. Deitou mãos à obra e rasgou o tecido para deixar a ferida à mostra. Teve que se controlar porque o espectáculo da carne desfeita lhe deu volta ao estômago.

«Calma, calma», repetiu agora para si próprio. «Isto tem que parar.»

Despiu a camisa, rasgou-a em tiras largas e vá de enrolar o pano acima do ferimento. As ligaduras improvisadas funcionaram como garrote e o fluxo sanguíneo parou.

Passaram ambos uma noite horrorosa. O doente, a arder em febre, tremia como varas verdes. O companheiro não se afastou nem descansou um minuto. Atento a qualquer ruído, tapava-o, verificava a temperatura, esfregava-lhe os braços para o aquecer, molhava-lhe as fontes para o refrescar, e nos poucos momentos em que lhe pareceu inerte abanou-o para se certificar que não morrera:

- Nuno!

Um grito de dor era melhor do que o silêncio.

 

Quando por fim amanheceu, João sentia-se tão zonzo que não soube interpretar a algazarra dos soldados como manifestação de alegria. Nem captou de imediato o que significava erguerem-se em Lisboa tantas bandeiras azuis

e brancas.

- Os miguelistas retiraram! A cidade é nossa.

Hurra!

Os que tinham a sorte de assistir àquele momento intactos e de boa saúde festejavam cantando e rindo como crianças. Napier não pôde atravessá-los porque os navios ainda estavam fora do estuário. Mas os liberais da capital não quiseram esperar e encarregaram-se de ir buscar as tropas nos barcos que possuíam. O rio encheu-se com todo o tipo de embarcações. Maiores, mais pequenas, minúsculas, a remos, à vela, até uma jangada foi. Recolhiam homens ao acaso, transportavam-nos, desembarcavam-nos e lá iam de novo.

Um alegre vaivém marcou para sempre aquela manhã de 24 de Julho (1).

João conseguiu lugar entre os primeiros, depois de ter discutido bravamente com o dono de um galeote que se recusava a levá-los.

- Já percebi que o rapaz está ferido - dizia o homem. - Mas ele não recupera a saúde se viajar no meu barco. Vim aqui de propósito buscar o duque da Terceira. Antes da guerra era eu quem lhe fornecia móveis e outras elegâncias para os seus palácios. Faço questão de ser eu a fornecer-lhe transporte agora que regressa como general vitorioso.

Se não tem aparecido um barqueiro disponível, João tinha agredido o comerciante à cabeçada. Então eram horas de pensar em negócios? Já a bordo ainda lhe gritou:

- Oxalá que o duque da Terceira nunca mais lhe compre nem um banco de cozinha!

Nuno esboçou um sorriso, mas logo a cara se contorceu em esgares dolorosos. Estava tão branco! Os lábios entreabertos tinham a cor dos dentes. Não lhe restavam forças nem ânimo para apreciar os festejos de rua. Durante todo o percurso até ao hospital manteve-se de olhos fechados. Sentado na borda da carroça que se ofereceu para fazer o serviço, João impacientava-se com a lentidão dos animais, com a estupidez das pessoas que andavam a festejar e se lhes atravessavam no caminho aos vivas, com a imbecilidade do carroceiro.

 

*(1) Em Lisboa há uma grande avenida junto ao Tejo que se chama 24 de Julho em memória desta data.

 

que quase parou a fim de saudar uma parente que punha colchas azuis e brancas à janela.

- Depressa, depressa, um médico! - ia dizendo em voz baixa e depois em voz bem alta assim que transpôs a entrada do Hospital de São José.

Teria achado perfeitamente normal que os médicos e enfermeiras largassem tudo para o irem atender. Não contara com o pandemónio que se lhe deparou. A todo o instante chegavam os cortejos da desgraça e acrescentavam corpos aos que já enchiam por completo todo o espaço disponível. Até havia gente deitada no chão. Receando que o mandassem embora por não precisar de cuidados, decidiu aproveitar a confusão de forma engenhosa. Pegou em ligaduras ensanguentadas e envolveu a sua própria cabeça de modo a tapar uma orelha. Depois compôs a expressão que lhe pareceu mais adequada e foi agachar-se junto do amigo. Tão cedo ninguém lhe perguntaria o que tinha, pois havia casos muito mais graves e ele continuava de pé. Mas também não o mandavam embora, julgando-o ferido na cabeça.

- Eu não saio de ao pé de ti, Nuno.

O outro pestanejou, estranhando o que via.

- Só agora reparo que também te feriram - balbuciou entredentes. - Devo estar muito mal.

- Psst! Caluda! - respondeu o João com uma piscadela cúmplice. - A minha ferida não tem problema.

Certificou-se de que ninguém o observava e ergueu a ponta do pano por um instante.

- Vês a minha testa tão lisa? Logo que te atendam fico bom.

Houve muitas operações durante todo o dia. Os médicos estavam exaustos mas não arredaram enquanto não atenderam os casos urgentes. Nuno foi levado a meio da tarde e coseram-lhe a perna.

- Está muito feio - disseram. - Infectou. Se a infecção alastrar podemos ser obrigados a uma solução drástica.

- O que é que quer dizer com isso, doutor?

- Por enquanto, nada. Amanhã logo se vê.

A resposta evasiva não satisfez o Nuno nem o João. Ficaram ambos em suspenso à espera de más notícias. Dormiram mal. O doente torcia-se com dores e João foi incapaz de dominar a ansiedade. Solução drástica... Solução drástica... O que seria afinal?

Souberam-no daí a dois dias.

- Temos que lhe cortar a perna - declarou o médico no tom neutro e grave com que sempre mascarava o desgosto de anunciar uma amputação.

Fez-se silêncio. João engoliu em seco várias vezes e Nuno tomou balanço para afirmar pouco depois:

- Não corta que eu não autorizo.

O médico não se alterou. Da mesma forma reservada e sóbria, insistiu:

- Olhe para o músculo.

Ajudou-o a soerguer-se e foi explicando:

- Como vê, há uma mancha roxa a alastrar para fora do penso. Se não amputarmos a perna, não me responsabilizo pela sua vida.

- Prefiro morrer - respondeu Nuno, também ele muito sério e sem expressão. - Mande-me para casa.

- Você não está capaz de fazer qualquer viagem.

- Estou, sim. Sou mais forte do que julga.

Percebendo que o diálogo não ia conduzir a lugar nenhum, o médico decidiu adiar a conversa:

- Pense melhor no assunto que eu volto mais tarde. Logo que ele saiu, Nuno perdeu a compostura. Os soluços reprimidos explodiram juntamente com as lágrimas de desespero. João abraçou-o desfeito em pranto.

- Leva-me daqui! Leva-me para casa do meu padrinho! Ele salva-me, tenho a certeza. Não quero que me cortem a perna. Leva-me para casa do meu padrinho.

Repetiu a mesma frase até à exaustão durante horas a fio.

- Se és meu amigo, leva-me daqui!

João prometeu tudo e mais alguma coisa, embora não fizesse a mínima ideia de como cumprir o prometido. Acarinhou-o, acalmou-o, jurou arranjar transporte. Felizmente apareceu o enfermeiro com uma beberagem para acalmar os doentes mais agitados. Não chegava para os fazer dormir mas aliviava o sofrimento e punha-os num estado de flutuação entre o cá e o lá.

Assim que o viu mais sereno, João partiu em busca de uma ideia luminosa que lhe permitisse elaborar um plano.

«A confusão continua. Tirá-lo do hospital não há-de ser o pior. Procuro um carroceiro e invento uma treta. Agora daqui para o Porto, como é que hei-de ir?»

Não desistiu porque nunca na vida aceitara a existência de missões impossíveis, pelo menos antes de ter esgotado todos os recursos.

«Por terra, não há hipótese. Temos que ir por mar. Haverá barcos? Condições de segurança? E a guerra, já terá acabado?»

Dirigiu-se ao cais pensando que seria o melhor sítio para obter resposta às suas perguntas e teve de aturar a galhofa de um grupo de marinheiros gozões:

- Se a guerra acabou, pá? Não! Ainda está aí para dar e vender.

No Castelo de São Jorge continuava a flutuar a bandeira azul e branca e ele olhou-a com ar interrogativo. Um dos marujos percebeu e explicou-lhe:

- Expulsámos os miguelistas de Lisboa. Mas falta o resto do País.

- E do Porto? Há notícias?

- Sim, e boas. O general Saldanha conseguiu romper o cerco. Pôs os inimigos em fuga.

- Nesse caso pode-se viajar até lá?

- Hoje, pode. Amanhã sabe Deus. Ah! Ah! Ah!

- As guerras são uma alegria, pá! Ao menos a gente não se aborrece.

- Eu ando nisto há tanto tempo que se não ouvir uns tirinhos falta-me o apetite.

A brincadeira começava a irritá-lo. Por que é que aqueles parvalhões só diziam graçolas? Apeteceu-lhe ripostar à letra mas preferiu segurar-se. Como eram marinheiros talvez lhe resolvessem o problema. Chamou a si toda a paciência de que dispunha, fingiu achar piada às idiotices, conversou mais um bocado, e até foi beber um copo com eles.

Valeu a pena o esforço. De volta ao hospital pôde segredar ao ouvido do Nuno.

- Já arranjei transporte para o Porto. Vamos amanhã num navio a vapor onde trabalham uns marinheiros muito meus amigos. Também contratei um carroceiro. Se o médico não te deixar sair aproveito a hora de maior balbúrdia, e sabes o que faço? Um rapto!

Nuno sorriu-lhe infinitamente grato e infinitamente triste. A cara pálida metia susto. Aguentaria a viagem?

- Lembra-te que és muito mais forte do que as pessoas julgam - disse-lhe João, esforçando-se para não dar a entender que estava apreensivo. - Macacos me mordam se não havemos de chegar ao nosso destino!

Executaram o plano de madrugada e sem problema de maior. Nuno estava abatido, mas a perspectiva de ir para casa deu-lhe ânimo suficiente para aguentar as dores. Quando subiu a bordo amparado pelos marinheiros que quase lhe pegaram ao colo, sentiu uma grande esperança de que tudo acabasse em bem. Soprava uma brisa amena e perfumada, o rio estava calmo e a cidade linda. Muito contribuíram para lhe levantar o ânimo aqueles homenzarrões barbudos, fortalhaços, experientes nas andanças da guerra. Tinham a sua cicatriz de estimação e uma infinidade de golpes que exibiam com grande orgulho. Falavam desses e doutros percalços com desdém. Acreditavam que a vontade podia sobrepor-se às balas traiçoeiras, tinham enfrentado e vencido a morte várias vezes, então por que não ele, a quem só doía a perna?

- Até parece que já me dói menos.

O barco a vapor trouxera à navegação ruídos novos ; que na altura ainda espantavam quem os ouvia. Tup... ; Tup... Tup... cantava a caldeira, Splach... Splach... Splach... afirmava a roda de pás girando na água pelo lado de fora do casco. Vamos partir a caminho do Porto, adeus até à próxima viagem.

Ao sair da barra cruzaram-se com outro navio que pôs a tripulação em alvoroço. Tinham reconhecido os passageiros e foi uma gritaria:

- Vem ali D. Pedro!

- D. Pedro e os seus generais!

Para o saudarem puseram-se todos em sentido, e no momento exacto em que ficaram a par, o próprio barco manifestou-se fazendo soar a buzina:

- Vúúú...

Aquele som tinha também o sabor da novidade. Encantava os marinheiros, e talvez por isso à buzina se chama sereia. Durante séculos os velejadores ouviram-na cantar por entre as brumas. Agora o som fora domesticado e ia com eles a bordo, pronto a chamar, prevenir, dar alerta ou cumprimentar respeitosamente, alegremente, como era o caso.

- Vúúú...

  1. Pedro respondeu com um aceno, os marinheiros gritaram «Viva a liberdade» e os navios foram-se afastando numa atmosfera de alegria. Embora ainda houvesse muito que batalhar, se D. Pedro e os seus generais iam tomar conta da capital, então podia começar a antever-se o fim da guerra.

Toda a guerra tem um fim.

 

- Anima-te, Henriqueta! A guerra acabou. Passaram as doenças, os sofrimentos, as tristezas. Os nossos amigos não tardam a aparecer por aí. Por que é que estás com essa cara? A partir de agora vai ser tudo como dantes.

- Enganas-te. Nada será igual.

- Ora essa! Por quê?

- Porque sim. Pensa lá um bocadinho.

- Em quê? No Zé Maria? - perguntou Mariana com um sorriso matreiro.

A outra não se desmanchou.

- Sim, por exemplo. Partiu daqui no maior entusiasmo, pronto a dar a vida pelo rei D. Miguel e afinal volta derrotado. Como é que ele se sentirá, sabendo que o rei foi expulso do País?

- Se não for parvo, sente-se lindamente.

- Ó Mariana, com franqueza! Isso diz-se?

- Claro que diz. Morreu imensa gente e eles estão vivos, não estão? Têm que dar graças a Deus e esquecer o passado. Guerra é guerra. Para uns ganharem os outros têm que perder.

- Na tua boca as coisas parecem muito simples.

- E são. As pessoas é que gostam de complicar. Deixa-te de melancolias e aspira este cheiro delicioso a flores! Hum... que cheirinho!

Debruçada no parapeito da janela, inspirou fundo até se saciar daquele aroma intenso e festivo. Estava mesmo bonito, o jardim. Acompanhada por dois ajudantes, a mãe circulava numa azáfama a talhar buxo. Olhou-a com carinho. Figurinha minúscula, magrinha, vestida de escuro, grande chapéu de palha na cabeça e a tesoura incansável. Zac... Zac... Zac... As ameias do castelo tinham dado lugar a grandes cestos redondos com asa.

- Para que será que a minha mãe quer aqueles cestos? A prima sorriu também com imensa ternura.

- A tua mãe é uma pessoa fantástica. Aconteça o que acontecer, permanece igual a si própria. Não muda.

- Eu também não - respondeu Mariana toda risonha. - E agora vamos pôr ponto final em pensamentos abstractos e tratar de coisas concretas. Tens que te preparar para o regresso dos guerreiros. Anda cá.

Pegou-lhe na mão e arrastou-a até ao armário, donde começou a tirar vestidos à toa.

- Queres este? Não, aquele fica-te melhor! Também temos que escolher fitas para o cabelo, flores de pano a condizer. E perfumes estonteantes.

Abriu vários frascos, cheirou, pô-los de lado.

- Oxalá o meu tio Libânio não demore a visitar-nos. Ele traz sempre imensos perfumes na bagagem.

Faço absoluta questão que o Zé Maria quando te vir fique deslumbrado. Se o conjunto estiver perfeito, o rapaz olha, tenta avançar para ti, treme e... desmaia!

Exemplificara cada etapa de paixão instantânea, e ao dizer «desmaia» deixou-se ela própria cair na cama em cima dos vestidos.

Henriqueta não fez comentários mas alegrou-se por mais uma vez reconhecer quanto a prima se modificara. Continuava alegre, expansiva, estarola. Mas aprendera a pensar nos outros. O que não significava esquecer-se de si. Aquela euforia matinal tinha uma razão de ser, chamada Luís Cândido. Estivera ausente bastante tempo mas escrevera a anunciar uma visita para breve.

- É hoje! - gritou Mariana levantando-se de um salto. - Eu acho que é hoje!

Agarrada a uma cadeira, pôs-se a rodopiar pelo quarto até ficar tonta.

- Lá! Lá! Lá! De súbito estacou.

- Por que será que aquele estúpido não me fala de amor? Achas que ele gosta de mim, não achas?

A prima fez um trejeito de dúvida. Na verdade nunca tinha visto nada que lhe permitisse dizer que sim. Mas também não vira nada que lhe permitisse dizer que não.

Mariana mostrara-lhe todas as cartas e tinham-se debruçado juntas à procura de uma mensagem secreta nas entrelinhas. Nada. Palavras simpáticas, delicadas. Mas de amor, nem vestígios.

Diante do espelho Mariana passava agora em revista o cabelo, os olhos, as pestanas, os lábios cor-de-rosa, os dentes certinhos.

- Tem que gostar. Se não gostar, eu mato-o!

A voz de Adérito aos berros no jardim chamou-as de novo à janela:

- Minha senhora! Minha senhora! Vem aí o seu irmão com muitas visitas. São duas carruagens. Já estão a dar a volta no caminho de baixo...

A asa do último cesto voou desfeita em ramos e folhinhas verdes. Zulmira atirou com o chapéu e com a tesoura para o canteiro mais próximo e correu para o portão de braços abertos. Oh, como são felizes as notícias em tempo de paz! Mariana, Henriqueta, as criadas, corriam também. Toda a gente adorava o Dr. Libânio, estavam fartos de isolamento, de pasmaceira. Visitas e rebuliço seriam bem-vindos.

O neto do caseiro pendurou-se na corda que fazia badalar o sino da capela e tocou sem cessar enquanto a família se abraçava, se beijava, numa alegre atabalhoação de comentários, perguntas soltas, risos, recomendações de cuidado com a bagagem, o meu cesto traz coisas que podem partir-se. Continuaram os badalos enquanto Delfina apresentava Orlando e seus netos Ana e João. Bleim... Bleim... Bleim... O sino impediu que se ouvisse com clareza o motivo por que os tinha trazido, mas quem se importava? Na quinta estavam prontos a receber família e amigos, quantos mais melhor, aleluia.

Já dentro de casa ninguém conseguia fixar-se num sítio ou falar de um único assunto porque se sentiam demasiado leves e vogavam de sala para sala, de quarto para quarto, escada acima, escada abaixo.

- Viram por aí o meu saco de couro?

- E a caixa de chapéus?

- Nesse baú estão os presentes. Levem-no para o salão e abre-se mais logo.

- Querem que mande fazer limonada?

- Estás tão bonita, Mariana!

Ao gabar a sobrinha, Libânio não esperava que ela se lhe atirasse ao pescoço num entusiasmo ansioso.

- Acha, tio? Está a falar a sério?

Só percebeu o porquê daquela atitude depois do jantar, quando o ruído de cascos de cavalo no lajedo da entrada pôs a rapariga em sobressalto. Ficou perplexo, pois quem entrou na sala foi um antigo aluno chamado Luís Cândido, que era filho de pequenos comerciantes do Porto. Lembrava-se vagamente de ter recebido uma carta na altura da epidemia de cólera em que lhe contavam a passagem pela quinta de um jovem médico que o conhecia.

- Então era este rapaz...

Com um olhar-relâmpago avaliou de imediato a situação. Mariana estava apaixonada e não conseguia ou não queria disfarçar. E ele? Aparentemente mantinha-se imperturbável. Só que às vezes as aparências iludem. Uma ideia incómoda veio insinuar-se na cabeça do médico.

«O Luís Cândido será tão correcto como eu pensava? Ou aproveitou-se do facto de não haver um homem nesta casa para fazer olhos meigos à minha sobrinha na mira da fortuna?»

Desconfiado, voltou a observá-lo. Nada lhe permitia confirmar as suspeitas. Luís instalara-se à mesa entre Zulmira e Orlando e conversava com eles da forma mais delicada e natural. Isso não bastou para o fazer abandonar a pose de cão de guarda. Sentia-se responsável por aquelas mulheres todas, e ai de quem se atrevesse a molestá-las. O olhar deteve-se por um momento na filha.

«Esta ao menos ainda não pensa em namorar. É tão novinha, coitadinha!»

Soltou um suspiro de alívio tão profundo que o julgaram farto de estar à mesa e levantaram-se.

 

As dúvidas ficaram a remoer vários dias no espírito do Dr. Libânio. Certo de que não descansava enquanto não esclarecesse aquele assunto, resolveu chamar a sobrinha para uma conversa em particular. Ao contrário do que esperava, viu-se aflito para abordar a questão. Não lhe ocorriam palavras aceitáveis. Gaguejou, atrapalhou-se, repetiu frases sem significado até que Mariana passou ao ataque:

- O tio está sem coragem para me perguntar o que se passa mas eu digo-lhe. Quero casar com o Luís Cândido. Ou caso com ele ou não caso com mais ninguém.

- Tu estás louca! - respondeu-lhe apopléctico. - Esse indivíduo meteu-se cá em casa para te dar a volta à cabeça com olhos de carneiro mal morto e falinhas mansas mas vai ter que se haver comigo.

- Calma aí, tio. Se julga que ele me disse alguma coisa está redondamente enganado.

O Luís Cândido nunca abriu a boca para me falar de amor nem sequer deu a entender que gosta de mim.

Aquela afirmação pareceu-lhe tão espantosa que o pobre Dr. Libânio ficou mudo.

- Eu é que quero casar com ele. Tanto me faz que os pais sejam comerciantes como outra coisa qualquer. Também pouco me importa que não tenha fortuna. Já escolhi, está escolhido.

- Mariana... a... e o que diz a tua mãe?

- A minha mãe não sabe mas desconfia e vai adorar. Dinheiro não nos faz falta, o que precisamos é de um homem cá em casa. E sendo médico ainda melhor. Quando estivermos doentes há logo quem nos atenda. Então para as crianças, que maravilha! Porque tenciono encher esta quinta de crianças.

O tio corou, envergonhado com tanta desfaçatez.

- De resto - continuou ela -, a minha mãe nunca me recusou nada. Não é agora que vai começar.

Considerando que o assunto estava arrumado, pegou na mão do tio e pediu:

- Fale-lhe. Fale-lhe da minha parte. Pergunte-lhe se quer casar comigo!

- Eu??

- Sim. Por favor.

- Ó filha, uma mulher a mandar pedir um homem em casamento? - gaguejou atrapalhadíssimo. - Isso é virar o mundo de pernas para o ar.

Mariana deu uma gargalhada.

- O que devia deixá-lo muito feliz, meu tio.

- Porquê?

- Porque foi para isso que lutou. O tio não é liberal? Os liberais não lutaram para que o mundo desse uma cambalhota?

Pois vamos começar já, e eu ajudo com um valente pontapé.

A porta abriu-se de repelão e apareceu Delfina a prevenir:

- O Zé Maria acabou de chegar. Talvez fosse melhor virem recebê-lo e esquecer a política. Vocês estavam a falar de liberais, não estavam?

Responderam ambos vivamente que sim e desceram ao andar de baixo sob o olhar crítico de Delfina.

Zé Maria tinha sonhado longamente com o regresso à Quinta da Madressilva e julgara ter previsto todo o tipo de cenas possíveis para o reencontro. Na melhor das hipóteses seria assim num dia lindo, com pássaros a cantar nas árvores do jardim, um cheiro intenso a flores, doce de ginja naqueles boiões de loiça com figuras azuis. E Mariana à espera, de braços abertos, decidida a casar com ele. Na pior, a quinta estava ao abandono. Casa vazia, vidros partidos, portas a bater, o jardim invadido por ervas daninhas. E Mariana? Vítima da guerra ou da cólera, não voltaria a vê-la senão em sonhos.

Afinal decorria tudo de forma inesperada, embaraçosa, triste. O quadro exterior correspondia aos desejos mais optimistas, incluindo até o doce de ginja. Mas as pessoas moviam-se de outra maneira, não encaixavam. O que faziam ali tantos desconhecidos? Quem era o velho? O rapaz? A rapariga? E sobretudo quem era o indivíduo de óculos cinzentos e expressão enigmática? Mariana recebeu-o de braços abertos, até lhe deu um beijo, mas de irmã. Não era preciso ser uma águia para perceber que girava em torno do caixa-de-óculos como as borboletas à roda da luz.

Percebia-se também que toda a gente evitava falar da guerra.

Delicadamente, queriam poupá-lo à humilhação da derrota. Nunca adianta, porém, fingir que um assunto quente não existe. Mais vale um comentário ou até uma discussão desagradável para que todos digam o que têm a dizer. Só depois se está à vontade. Enquanto paira entre as pessoas uma questão proibida não se consegue falar em nenhuma outra. Por isso a conversa decorria tola e sem interesse.

Engendrava um pretexto para ter que se ir embora quando a Libaninha, que estava encostada à janela, anunciou:

- Mais uma visita. Vem lá o Nuno.

Um súbito embaraço paralisou toda a gente. Hirtos e no mais rigoroso silêncio, pareciam estátuas de cera. Na sala só se ouvia o zumbido das abelhas sobre a roseira do alpendre. O coração do Zé Maria disparou a galope. Vinha lá o amigo, seria ainda o grande amigo? Ou teria de enfrentar a postura arrogante de um vencedor? Mesmo que a vaidade se limitasse a uma leve expressão, magoá-lo-ia muito.

Antes da guerra, talvez se tivesse escapado por outra porta. Mas agora, não. Habituara-se a ir ao encontro das situações mais difíceis sem vacilar. Ergueu-se e saiu para o jardim.

Nuno avançava por entre os canteiros de flores apoiado numa bengala. Mais magro, dir-se-ia mais alto. Coxeava ligeiramente. Ao darem com os olhos um no outro detiveram-se por uma fracção de segundo. Depois correram a abraçar-se, e a distância que os separava nunca mais tinha fim!

Por trás das cortinas mil olhos observavam a cena, curiosos, enternecidos, húmidos.

- Eu sabia - choramingava a cozinheira. - Estes meninos eram como irmãos. Não podiam ficar zangados para o resto da vida. O que passou, passou.

Viram-nos afastarem-se em direcção ao lago de nenúfares. Ninguém ouviu o que disseram, mas no regresso gesticulavam e riam como dantes, como sempre.

Só então a Quinta da Madressilva voltou ao que era. Os rapazes faziam parte da paisagem e tinham que ser os dois a apanhar lagartixas, a pescar no lago, a devorar fatias de pão com doce, a cantar em coro, a surripiar bolinhos na cozinha, a pregar partidas, a adorar Mariana, a morrer de ciúmes por ela, como agora, em conjunto. João, que tantos perigos e emoções vivera ao lado de Nuno no campo de batalha, aderiu ao grupo.

Foram eles quem varreu para longe todo o vislumbre de mal-estar. Durante vários dias falaram da guerra abertamente entremeando cenas trágicas com pormenores cómicos, e toda a gente se regalava com as histórias, sobretudo porque já pertenciam ao passado.

Quando ficavam sozinhos era certo e sabido que aproveitavam para desancar no Luís Cândido.

- Não sei o que a atrai naquele palerma - dizia um.

- Deve ser um chato insuportável - concordava o outro.

- Um fraco. Nem sequer tem coragem para se declarar.

Sabiam do caso porque tinham escutado uma conversa entre o Dr. Libânio e a mulher. Delfina fartara-se de rir com as dúvidas do marido.

- O Luís Cândido adora a Mariana. O que não tem é coragem para se declarar por causa das diferenças de fortuna. Mas ela escolheu bem. Já falei com a Zulmira, que aceita este genro da melhor vontade. Só falta que tu cumpras o teu papel.

- Mas como, se o rapaz não abre a boca? Eu não posso oferecer-lhe a minha sobrinha!!

- Falta de imaginação. No domingo depois da missa eu mesma trato do assunto. Prepara-te.

Nuno e Zé Maria preferiram não ir à missa na capela da quinta. Mas como ficaram loucos de curiosidade, apareceram lá à tardinha e tiveram então oportunidade de se enfurecer quando viram Mariana radiosa, de braço dado com o noivo. Malandro!

Preparavam-se para lanchar quando o Nuno chamou o Zé Maria de parte:

- Temos andado distraídos e a perder tempo com quem não nos quer. Melhor faríamos em reparar na Henriqueta. Olha que está bem bonita!

Vestida de branco, com uma fita vermelha na cintura, a rapariga girava em volta da mesa a pôr flores. A imagem agradou-lhes bastante.

- Sabes uma coisa? Acho que ela está doida por ti.

- Por mim?

- Sem dúvida. Come-te com os olhos.

Zé Maria sentiu-se lisonjeado. Seria verdade? Resolveu tirar a história a limpo e passou o resto da semana a fazer testes. Se se chegava muito, ela corava, tremiam-lhe as mãos, entornava o chá. Começou a achar graça, a apetecer-lhe ir mais longe. Inventou um pico no dedo para a obrigar a segurar-lhe na mão e teve a certeza de que o contacto agradara tanto a um como a outro.

- Isso vai de vento em popa - brincava o Nuno.

- Mas olha lá, pá! Desta vez quero namorar sozinho.

- Fica descansado. Já não temos idade para namorar a três!

- Então posso falar-lhe?

- À vontade.

Naquele dia à hora do crepúsculo a quinta foi envolvida por uma onda de romantismo. Mariana bichanava com o noivo encostada a uma janela. Zé Maria levara Henriqueta para a outra e só ainda não lhe dissera o que pretendia porque gostava de a ver assim nervosa e trémula por causa dele. João e Libaninha também se debruçavam noutro parapeito, mas esses fingiam estar ali apenas para assistir ao pôr do Sol.

Lá em baixo Zulmira tinha acabado uma figura e arrumava as ferramentas, contente com a obra muito fora do vulgar.

Foi então que o Nuno deu um berro:

- Hei! Vocês já viram o que a tia Zulmira recortou no buxo?

Mariana ficou aflitíssima e gritou:

- Mãe! Mãe!

Como não se fizesse ouvir, largou numa correria:

- Que vergonha! Vamos desmanchar aquilo. Depressa!

Foram todos atrás dela, e que risota sem fim!

- Uma obra de arte!

- Ah! Ah! Ah!

- A tesoura... depressa!

Corriam de mãos dadas, aos pares. Nuno também, pois arrebanhara a Ana no caminho.

Delfina não resistiu ao espectáculo e atirou-se ao piano a improvisar música alegre, saltitante, própria para gente feliz.

A casa do Dr. Libânio delicioso Museu Romântico.

Museu Romântico ou Museu da Macieirinha Rua de Entre Quintas, 219 - Porto

Entre os objectos de decoração que fazem parte do museu, elegemos um: o relógio de bronze. Demos-lhe um tratamento especial porque, além de indicar as horas, oferece aos visitantes uma cena verdadeiramente romântica. 

 

 

                                                                  Ana Maria Magalhães & Isabel Alçada

 

 

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