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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA CAMPANHA ALEGRE V.1 / Eça de Queirós
UMA CAMPANHA ALEGRE V.1 / Eça de Queirós

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

As páginas deste livro são aquelas com que outrora concorri para as FARPAS, quando Ramalho Ortigão e eu, convencidos, como o Poeta, que a «tolice tem cabeça de touro», decidimos farpear até à morte a alimária pesada e temerosa. Quem era eu, que força ou razão superior rece­bera dos deuses, para assim me estabelecer na minha terra em justiceiro destruidor de monstros?... A mocidade tem destas esplêndidas confianças; só por amar a Verdade ima­gina que a possui; e, magnificamente certa da sua infalibi­lidade, anseia por investir contra tudo o que diverge do seu ideal, e que ela portanto considera Erro. irremissível Erro, fadado à exterminação. Assim foi que, chegando da Uni­versidade com o meu Proudhon mal lido debaixo do braço, me apressei a gritar na cidade em que entrava – «Morte à Tolice!» E desde então, à ilharga de Ramalho Ortigão, não cessei durante dois anos de arremessar farpas, uma após outra, para todos os lados onde supunha entrever o escuro cachaço taurino. Não me recordo se acertava; sem dúvida muitos ferros se embotaram nas lajes; mas cada arremesso era governado por um impulso puro da inteligência ou do coração. E assim desses tempos ardentes me ficara a ideia de uma campanha muito alegre, muito elevada, em que a ironia se punha radiante mente ao serviço da justiça, cada rijo golpe fazia brotar uma soberba verdade, da demolição de tudo ressaltava uma educação para todos, e o tumulto do ataque aparentemente desordenado era, como o dos Gregos combatendo em Plateia, dirigido por Minerva armada – quero dizer, pela Razão.

Vinte anos são passados; – e hoje releio essas paginas amarelecidas das FARPAS. Que encontro nelas? Um riso tumultuoso, lançado estridentemente através de uma socie­dade como seu comentário único e crítica suprema. Encontro um riso desabalado – mas escassamente uma verdade adqui­rida, uma conclusão de experiência e de saber, algum resul­tado visível dessa inspiração de Minerva que eu supunha combatendo por trás de mim, invisível e armada de ouro, como nos campos de Plateia. Nada que, para governar entre os homens o pensamento ou a conduta, merecesse ficar arqui­vado em tornos duráveis; – unicamente um riso imenso, troando, como as tubas de Josué, em torno a cidadelas que decerto não perderam uma só pedra, porque as vejo ainda, direitas, mais altas, da cor torpe do lodo, estirando por cima de nós a sua sombra teimosa.

Ora vale a pena recolher, perpetuar este riso, esparso outrora em panfletos leves? Há porventura utilidade em codi­ficar assim a gargalhada? Aos milhares de livros que atra­vancam o Mundo, convém juntar um livro mais de onde nada sai, quando aberto, senão o rumor fugidio e remoto de risadas de há vinte anos, tão mortas como as rosas de então?

Penso que não. E, por determinação minha, eu deixaria estas FARPAS nos breves folhetos amarelos onde o Diabo ri por trás de um óculo, já tão raros, e cada vez mais sumidos nessa corrente vaga chamada «dos Tempos», que providen­cialmente vai acarretando tudo o que se tornou inútil, folhas de lírio e folhas de louro, os homens, as suas ilusões imensas, e os seus pequeninos livros.

Não o consentiu porém assim, por uma tocante supersti­ção de amizade, o meu camarada Ramalho Ortigão. Reu­nindo as suas FARPAS, vasta obra, essa, de pensamento e de saber, ele desejou que não ficassem fora do seu monumento aquelas páginas que eu compus a seu lado, nos primeiros tempos, quando, levados na mesma santa revolta, nos aba­lançámos a atacar toda uma Sociedade com um punhado ligeiro de ironias douradas.

Aí vão pois as minhas FARPAS, a que eu dou agora o nome único que as define e as justifica – UMA CAMPANHA ALEGRE. Não há aí com efeito senão uma trasbordante alegria, empenhada numa campanha intrépida. Todo este livro é um riso que peleja. Que peleja por aquilo que eu supu­nha a Razão. Que peleja contra aquilo que eu supunha a Tolice.

Aí vão pois estas FARPAS, na sua forma primordial, impro­visada na pressa e no fragor da lide – forma desordenada e tumultuária, em que as palavras, as exclamações, as mesmas vírgulas, tudo é empurrado para avante, ao acaso, num tropel clamoroso, contra a coisa detestada que urgia demolir. E todavia, tal me pareceu agora a desordem, e tão incorrigivelmente se me impõe o amor da harmonia, que não resisti por vezes a disciplinar esta turba fremente de vocábulos em correria, e a estabelecer, nestas orações descompostas onde adjectivos se estramalhavam, pesados advérbios caíam no fundo de reti­cências inesperadas, e verbos se acavalavam sobre verbos –alguma regra, compostura e ritmo. Mas, além destas depura­ções exteriores, procurei escrupulosamente que não se des­manchasse aquele feitio especial das FARPAS que constituiu a sua força especial, e que nem uma nota se evaporasse daquele riso que outrora tão triunfalmente cantou, e pelo contágio da sua sinceridade acordou os risos da multidão contra a «Tolice de cabeça de touro».

Terá ainda hoje este riso vibração bastante para desper­tar outros risos?... As coisas que o provocaram são já tão passadas como as de Tróia. Este livro é menos unia reim­pressão que uma escavação. As minhas FARPAS surgem à superfície, enferrujadas, sem gume e sem brilho, como as antigas armas de uma batalha de que ninguém sabe o nome.

Que importa? O que me encanta, nesta solene reedição, é sobretudo a camaradagem. Depois de ter combatido arre­batadamente ao lado de Ramalho Ortigão em folhetos fogo­sos que um vento levava e espalhava nas ruas, sinto felicidade e orgulho em me encontrar ainda junto do meu amigo em volumes repletos, calmos, «dorés sur tranche», que vão repou­sar no decoro e na paz das Bibliotecas.

                  Paris, Outubro, 1890.

 

 

 

 

                             Junho 1871.

Leitor de bom senso, que abres curiosamente a primeira página deste livrinho, sabe, leitor celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil, que foi para ti que ele foi escrito – se tens bom senso! E a ideia de te dar assim todos os meses, enquanto quiseres, cem páginas irónicas, alegres e justas, nasceu no dia em que pudemos descobrir, através da ilusão das aparências, algumas realidades do nosso tempo,

 

Aproxima-te um pouco de nós, e vê.

O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os carac­teres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Todo o viver espiritual, intelectual, parado. O tédio inva­diu as almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce... O comércio definha, A indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.

Neste salve-se quem puder a burguesia pro­prietária de casas explora o aluguel. A agiotagem explora o juro.

De resto a ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. O número das escolas só por si é dramático. O professor tornou-se um empregado de eleições. A população dos campos, arruinada, vivendo em casebres ignóbeis, sustentando-se de sardinha e de ervas, trabalhando só para o imposto por meio de uma agricultura decadente, leva uma vida de misérias, entrecortada de penho­ras. A intriga política alastra-se por sobre a sono­lência enfastiada do País. Apenas a devoção per­turba o silêncio da opinião, com padre-nossos maquinais.

Não é uma existência, é uma expiação.

E a certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: «o País está perdido!» Ninguém se ilude. Diz-se nos con­selhos de ministros e nas estalagens. E que se faz? Atesta-se, conversando e jogando o volta­rete, que de Norte a Sul, no Estado, na economia, na moral, o País está desorganizado – e pede-se conhaque!

Assim todas as consciências certificam a podri­dão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão!

 

Nós não quisemos ser cúmplices na indife­rença universal. E aqui começamos, sem aze­dume e sem cólera, a apontar dia por dia o que poderíamos chamar – o progresso da decadência. Devíamos fazê-lo com a indignação amarga de panfletários? Com a serenidade experimental de críticos? Com a jovialidade fina de humoristas?

Não é verdade, leitor de bom senso, que neste momento histórico só há lugar para o humo­rismo? Esta decadência tomou-se um hábito, quase um bem-estar, para muitos uma indústria. Parlamentos, ministérios, eclesiásticos, políticos, exploradores, estão de pedra e cal na corrupção. O áspero Veillot não bastaria; Proudhon ou Vacherot seriam insuficientes. Contra este mundo é necessário ressuscitar as gargalhadas históricas do tempo de Manuel Mendes Enxúndia. E mais uma vez se põe a galhofa ao serviço da justiça!

Achas imprudente? Achas inútil? Achas irres­peitoso? Preferias que fizéssemos um jornal polí­tico, com todas as suas inépcias e todas as suas calúnias, vasto logradouro de ideias triviais, que desmaiam de fadiga entre as mãos dos tipó­grafos?

Não. Fundaríamos antes um depósito de bichas de sangrar, ou uma casa de banhos quen­tes. E se nos tiranizasse excessivamente o astuto demónio da prosa, então, em honrada companhia do Sr. Fernandez de los Rios, ajoujados aos líricos de Barcelona, cantaríamos, voltados para os lados da Palestina, a pátria, a fé e o amor! E patentearíamos aquela crença vivida, aquele arranque pe­ninsular, com que outrora se pelejou a batalha de Aljubarrota – e hoje se fazem caixinhas de obreias!

 

Aqui estamos pois diante de ti, mundo oficial, constitucional, burguês, doutrinário e grave!

Não sabemos se a mão que vamos abrir está ou não cheia de verdades. Sabemos que está cheia de negativas.

Não sabemos, talvez, onde se deve ir; sabe­mos, decerto, onde se não deve estar.

Catão, com Pompeu e com César à vista, sabia de quem havia de fugir, mas não sabia para onde. Ternos esta meia ciência de Catão.

De onde vimos? Para onde vamos? – Podemos apenas responder:

Vimos de onde vós estais, vamos para onde vós não estiverdes.

Nesta jornada, longa ou curta, vamos sós. Não levamos bandeira, nem clarim. Pelo cami­nho não leremos a Nação, nem o Almanaque das Cacholetas. Vamos conversando um pouco, rindo muito.

Somos dois simples sapadores às ordens do senso comum. Por ora, no alto da colina, apare­cemos só nós. O grosso do exército vem atrás. Chama-se a Justiça.

 

Assim vamos. E na epiderme de cada facto contemporâneo cravaremos uma farpa. Apenas a porção de ferro estritamente indispensável para deixar pendente um sinal! As nossas bandari­lhas não têm cor, nem o branco da auriflama, nem o azul da blusa. Nunca poderão tão ligei­ras Farpas ferir a grande artéria social: ficarão à epiderme. Dentro continuará a correr serenamente a matéria vital – sangue azul ou sangue vermelho, dissolução de guano ou extracto de sal­saparrilha.

 

Vamos rir, pois. O riso é uma filosofia. Mui­tas vezes o riso é uma salvação. E em política constitucional, pelo menos, o riso é uma opinião.

 

Aqui está esta pobre Carta Constitucional que declara com ingenuidade que o País é católico e monárquico. É por isso talvez que ninguém crê na religião, e que ninguém crê na realeza!

E que ninguém crê em ti, ó Carta Constitucional! Os ministros que te defendem, os jornais que te citam, os jurisconsultos que te comentam, os pro­fessores que te ensinam, as autoridades que te realizam, os padres que falam em ti à missa con­ventual, aqueles mesmos cuja única profissão era crer em ti, todos te renegam, e, ganhando o seu pão em teu nome, ridicularizam-te pelas mesas dos botequins!

A Carta adorada da Grã-Duquesa tem mais sucesso do que tu!

Descrê-se da religião, a que deste a honra de um parágrafo. A burguesia fez-se livre-pensadora. Tem ainda um resto de respeito maquinal pelo Todo-Poderoso, mas criva de epigramas as pre­tensões divinas de Jesus, e diz coisas desagradá­veis ao Papa. O cepticismo faz parte do bom gosto. Nenhum ministro que se preze ousaria acreditar em S. Sebastião. A Teologia, o maior monumento do espírito humano, faz estalar de riso os cava­lheiros liberais. Desprezam-se os padres e des­preza-se o culto, o que não impede que a propó­sito de qualquer coisa se exija o juramento!

A religião ficou sendo um artigo de moda. Expulsa da consciência liberal, as burguesas enri­quecidas tomaram-na sob a sua protecção: e gos­tam igualmente que as suas parelhas sejam vistas à porta da Marie e à porta dos Inglesinhos. Acei­tam Deus como um chique.

Nos templos mesmo a religião caiu em des­crédito. Ser padre não é uma convicção, é um ofício; o sacerdote crê e ora na proporção da côn­grua. E como acredita mais na secretaria dos negócios eclesiásticos do que na revelação divina, trabalha nas eleições. O povo, esse, reza. E a única coisa que faz além de pagar.

 

A pobre realeza, que a Carta tanto honra, não é mais bem sucedida. E a perpétua escarnecida. E escarnecida pelos jornais de oposição, e pelos governos demitidos. 11 escarnecida nos teatros, onde o tipo do Rei Bobeche teve o triunfo de um panfleto. E escarnecida nas conversações dos cafés, e na maledicência do Grémio.

Segundo a Carta, a realeza é irresponsável. Mas não há partido que não lance a sua inépcia à conta da realeza. – Se não fosse o Rei! – é a desculpa invariável dos ministros que não gover­nam, dos oradores que não falam, dos jornalis­tas que não escrevem, dos intrigantes que não alcançam.

A realeza é acusada por tudo: pelas despesas que faz e pela pobreza em que vive; pela sua acção e pela sua inacção; por dar bailes e por não dar bailes. O público está para com ela num estado enervado, como com um importuno a quem não lhe convém dizer: vai-te embora!

No entanto a opinião liberal continua a decla­rar que existe um trono. Existe para ela como um efeito de Quintiliano – como um movimento de eloquência para os discursos de grande gala!

 

Apesar disso, a esta política infiel aos seus princípios, vivendo num perpétuo desmentido de si mesma, desautorizada, apupada, pede ainda, a uma multidão inumerável de simples, a salvação da coisa pública. E trágico, como se se pedisse, a um palhaço de pernas quebradas, mais uma cambalhota ou mais um chiste.

 

O orgulho da política nacional é ser doutri­nária. Ser doutrinário é ser um tanto ou quanto de todos os partidos; é ter deles por consequência o mínimo; é não ser de partido nenhum – ou ser cada um apenas do partido do seu egoísmo.

De modo que todos estes monárquicos, bem no íntimo, votariam por uma república. Todos estes republicanos terminam por concordar que é indispensável a monarquia!

Quer-se geralmente o prestígio da realeza e a majestade do poder; mas deseja-se que el-Rei se exiba numa sege de aluguel e que Sua Majestade a Rainha não tenha mais que dois pares de botinas.

Chega-se a admirar Luís Blanc, mas prefere-se a tudo isso uma terra de semeadura obrigada à côngrua para o pároco e aos tantos por cento para a viação. A burguesia invejosa e desempre­gada fala na federação, na república federativa, na extinção do funcionalismo, na emancipação das classes operárias; mas entende que o País pode esperar por estes benefícios todos, se no entanto lhe derem a ela lugares de governadores civis ou de chefes de secretaria. Uma plebe ardente fala em beber o sangue da nobreza; mas ficaria satisfeita se a nobreza, em vez de oferecer a veia, mandasse abrir Cartaxo.

Tanto se conciliam todos! E assim que o egoísmo domina. Cada um se abaixa avidamente sobre o seu prato.

– Mas tudo se equilibra, diz a opinião consti­tucional, não há comoções, não há lutas!

Sim, tudo se equilibra – no desprezo, por des­prezo.

Nas sociedades corrompidas a ordem chega assim às vezes a reinar.

E a ordem pelo desdém. Outros diriam pela imbecilidade!

 

A opinião é tão indiferente e alheia às mudan­ças de ministério, como as cadeiras do Governo são indiferentes a suportarem a pesada corpulên­cia do gordo ministro A, ou a inquietação nervosa do esguio ministro B. O País ouve falar da evolu­ção política, com a mesma distracção com que ouve falar dos negócios do Cáucaso.

Sabem, pois, qual seria o Governo útil, profí­cuo, necessário, neste deplorável estado do espí­rito público?

Aquele que o País, chamado a pronunciar-se por um plebiscito negativo, declarasse terminan­temente e compactamente – que não queria. Por­que então a opinião acordaria talvez, viveria, luta­ria, e apareceriam dois partidos que não existem agora, e sobre os quais gira como nos seus pólos naturais a lei do aperfeiçoamento: – para um lado a Reacção, para outro a Revolução.

 

Até lá os poderes do Estado subsistem, tendo perdido a sua significação.

O corpo legislativo há muitos anos que não legisla Criado pela intriga, pela pressão adminis­trativa, pela presença de quatro soldados e um senhor alferes, e pelo eleitor a 500 réis, vem ape­nas a ser uma assembleia muda, sonolenta, igno­rante, abanando com a cabeça que sim. Às vezes procura viver; e demonstra então, em provas incessantes, a sua incapacidade orgânica para dis­cutir, para pensar, para criar, para dirigir, para resolver a questão mais rudimentar de adminis­tração. Não sai dela uma reforma, uma lei, um princípio, um período eloquente, um dito fino! A deputação é uma espécie de funcionalismo para quem é incapaz de qualquer função. E o emprego dos inúteis.

Por isso o parlamento é uma casa mal alu­miada, onde se vai, à uma hora, conversar, escre­ver cartas particulares, maldizer um pouco, e combinar partidas de whist. O Parlamento é uma sucursal do Grémio. A tribuna é uma prateleira de copos de água intactos.

O ministério, o poder executivo, deixou de ser um poder do Estado. E apenas uma necessidade do programa constitucional. Está no cartaz, é necessário que apareça na cena. Não governa, não tem ideia, não tem sistema; nada reforma, nada estabelece; está ali, é o que basta. O País verifica todos os dias que alguns correios andam atrás de algumas carruagens – e fica contente.

– Lá vai um ministro! – diz-se na rua.

– Ah! vai? – exclama a burguesia. – Bem, existe a ordem!

 

E assim se passa, defronte de um público eno­jado e indiferente, esta grande farsa que se chama a intriga constitucional. Os lustres estão acesos. Mas o espectador, o País nada tem de comum com o que se representa no palco; não se interessa pelos personagens e a todos acha impu­ros e nulos; não se interessa pelas cenas e a todas acha inúteis e imorais. Só às vezes, no meio do seu tédio, se lembra que para poder ver, teve que pagar no bilheteiro!

Pagou – já dissemos que é a única coisa que faz além de rezar. Paga e reza. Paga para ter ministros que não governam, deputados que não legislam, soldados que o não defendem, padres que rezam contra ele. Paga àqueles que o espo­liam, e àqueles que são seus parasitas. Paga os que o assassinam, e paga os que o atraiçoam. Paga os seus reis e os seus carcereiros. Paga tudo, paga para tudo.

E em recompensa, dão-lhe uma farsa.

No entanto, cuidado! Aquele pano de fundo não está imóvel: agita-se como impelido por uma respiração invisível. Alguém decerto está do outro lado. Enquanto a farsa se desenrola na cena, alguém, por trás do fundo, espera, agita-se, prepara-se, arma-se talvez

– Quem é esse alguém? As vossas consciên­cias que vos respondam. O que apenas podemos dizer é que não é o sr. bispo de Viseu.

 

E não obstante, como tudo parece feliz e repousado! Os jornais conversam baixinho e devagar uns com os outros. O parlamento ressona. O ministério, todo encolhido, diz aos partidos –chuta! As secretarias cruzam os braços. O tribu­nal de contas, lá no seu cantinho, para se entreter, maneja sorrindo as quatro espécies. A polícia, torcendo os bigodes, galanteia as cozinheiras. O conselho de Estado rói as unhas. O exército toca guitarra. A câmara municipal mata em sos­sego os cães vadios. As árvores do Rossio enchem-se de folhas. Os fundos descem, e descem há tanto tempo que devem estar no centro da Terra. O povo, coitado, lá vai morrendo de fome como pode. Nós fazemos os nossos livrinhos. Deus faz a sua Primavera... Viva a Carta!

 

Decerto, como tudo é congénere! Vejam a imprensa. A imprensa é composta de duas ordens de periódicos: os noticiosos e os polí­ticos.

Os políticos têm todos a mesma política:

A – quer ordem, economia e moralidade.

B – queixa-se de que não há economia nem moralidade, o que ele receia muito que venha a prejudicar a ordem.

C – diz que a ordem se não pode manter por mais tempo, porque ele nota que principia a fal­tar a moralidade e a economia.

D – observa que no estado em que vê a eco­nomia e a moralidade, lhe parece poder asseverar que será mantida a ordem.

Os noticiosos têm todos a mesma notícia:

A – noticia que o seu assinante, colaborador e amigo X, partiu para as Caldas da Rainha.

B – refere que o seu amigo, colaborador e assinante que partiu para as Caldas da Rainha, é X.

C – narra que, para as Caldas da Rainha, par­tiu X, seu colaborador, assinante e amigo.

D – que se esqueceu de contar oportunamente o caso, traz ao outro dia: «Querem alguns dizer que partira para as Caldas da Rainha X, o nosso amigo, assinante e colaborador. Não demos fé».

 

Se a imprensa política é assim harmónica na exposição da doutrina, nem sempre o é na apre­ciação dos factos.

Assim, por exemplo, o ministério Fulano pro­põe em cortes : – que, atentos os serviços da ostra, o Governo seja autorizado a declarar que se con­sidera para com a ostra como um verdadeiro pai.

Então os jornais Fulanistas exclamam: «O Go­verno acaba de se declarar pai da ostra. Medida de grande alcance! E uma garantia para a ordem, um penhor solene de zelo pelos serviços públicos. Quando um Governo assim procede, pode-se dizer que ampara com mão segura o leme do Estado!»

Mas no dia imediato, por qualquer coisa, o ministério Fulano cai. Sobe o ministério Sicrano, e logo em seguida propõe em cortes: – que de ora em diante, atentas grandes vantagens para a causa pública, o Governo se declare para todos os efeitos em relação à ostra, mais que um pai, uma verdadeira mãe!

Dizem os mesmos jornais Fulanistas: «O mi­nistério ominoso, que com mão tão incerta dirige o leme da coisa pública, declarou-se mãe da ostra. É mostrar um profundo desprezo pela ordem e pela economia! Quando um ministério assim pra­tica é que vai no caminho da anarquia, e nos leva direitos ao abismo!»

 

Também não é igualmente harmónico o pro­cesso para julgar as pessoas.

O Sr. Fulano, feito presidente de ministros, vai à Câmara.

Ao outro dia dizem os jornais ministeriais:

«O nobre Presidente do Conselho tinha ontem, à sua entrada na Câmara, umas magníficas botas de pelica. Que admirável pelica! Só quando se tem como S. Exª um tão grande zelo pelo bem do País e uma tão alta experiência das coisas públi­cas, se pode encontrar uma tão boa pelica!»

Os jornais moderados, em expectativa, em meia oposição, declaram: – «Não somos adula­dores do poder, dizemos-lhe em face a verdade. Conhecemos a longa experiência, os fortes dotes oratórios do Sr. Presidente do Conselho; mas, apesar do seu tacto político, S. Exª tinha sim­plesmente umas botas moderadas de vitela fran­cesa».

Os jornais de oposição exclamam:

«Insensatos! Que vindes vós falar na expe­riência, nas virtudes cívicas do Sr. Presidente do Conselho? S. Exª é ominoso! Não! As suas botas não são de vitela francesa, como quer uma opo­sição refalsada, nem de pelica fina, como quer uma maioria venal. As suas botas demonstram que caminhamos para a anarquia e são de couro de Salvaterra!»

 

Olhemos agora a literatura. A literatura – poesia e romance – sem ideia, sem originalidade, convencional, hipócrita, falsíssima, não exprime nada: nem a tendência colectiva da sociedade, nem o temperamento individual do escritor. Tudo em torno dela se transformou, só ela ficou imó­vel. De modo que, pasmada e alheada, nem ela compreende o seu tempo, nem ninguém a com­preende a ela. E como um trovador gótico, que acordasse de um sono secular numa fábrica de cerveja.

Fala do ideal, do êxtase, da febre, de Laura, de rosas, de liras, de Primaveras, de virgens pálidas – e em torno dela o mundo industrial, fabril, positivo, prático, experimental, pergunta, meio espantado, meio indignado:

– Que quer esta tonta? Que faz aqui? Empre­ga-se na vadiagem, levem-na à polícia!

Ela, desatendida e desautorizada, vai todavia soltando, com grandes ares, por entre o gás e o pó do macadame, as declamações sonoras do lirismo de Lamartine e do misticismo de Cha­teaubriand. E gloria-se de ser nos seus costumes e nas suas obras, intransigentemente ideal. Mera questão de retórica: os poetas líricos e os cisma­dores idealistas tratam de se empregar nas secre­tarias, cultivam o bife do Áurea, são de um cen­tro político, e usam flanela.

Em França ao menos a literatura, quando a corrupção veio, exprimiu a corrupção. No Paris da decadência, no Paris do barão Haussmann, e dos Srs. Rouher e Fialin (vulgo de Persigny), os livros detestáveis foram a expressão genuína e sincera de uma sociedade que se dissolvia. A lite­ratura de Boulevard há-de ficar por esse motivo, e há-de ter o seu lugar na história do pensa­mento, assim como da decadência latina ficaram Apuleio, Petrónio e o mordente Tertuliano, cujo estilo tem cintilações ainda hoje tão vivas que parecem emanadas da podridão do moderno mundo poético.

Na corrente da literatura portuguesa nenhum movimento real se reflecte, nenhuma acção origi­nal se espelha. Como nas águas imóveis e escuras da lagoa dos mortos, apenas nela se retratam sombras. Mas são sombras que não têm as lívi­das roupagens usadas no Estígio: estão de fraque e de chapéu alto – e é a única coisa que lhes dá direito a julgarem-se vivas!

A poesia fala-nos ainda de Julieta, Virgínia, Elvira – belas e interessantes criaturas no tempo em que Shakespeare se ajoelhava aos seus pés, em que Bernardim de Saint-Pierre lhes oferecia rapé da sua caixa de esmalte circundada de péro­las, em que Lamartine, embuçado na capa român­tica de 1830, as passeava em gôndola nos lagos da Itália. Hoje são um ideal de museu.

E todavia, além destas mulheres, ela nada conhece no Mundo. A poesia contemporânea com­põe-se assim de pequeninas sensibilidades, peque­ninamente contadas por pequeninas vozes. O poeta lírico A diz-nos que Elvira lhe dera um lírio numa noite de luar! O poeta lírico B revela-nos que um desespero atroz lhe invade a alma, porque Fran­cisca está nos braços de outro! O poeta lírico C conta-nos uma noite que passou com Eufémia, num caramanchão, olhando os astros e dizendo

frases. E no meio das ocupações do nosso tempo, das questões que em roda de nós de toda a parte se erguem como temerosos pontos de interroga­ção, estes senhores vêm contar-nos as suas des­crençazinhas ou as suas exaltaçõezinhas! No entanto operários vivem na miséria por essas tra­peiras, e gente do campo vive na miséria por essas aldeias! E o Sr. Fulano e o Sr. Sicrano empregam toda a sua acção intelectual em se gabarem que apanharam boninas no prado, para as ir pôr na cuia de Elvira! Noites e noites movem-se os prelos a vapor, calandra-se o papel, esfalfam-se os tipógrafos, arrasam-se os reviso­res, emprega-se uma imensa quantidade de vida e de trabalho, para que o público saiba que o poeta lírico, Policarpo de tal, ama uma virgem pálida com olheiras!

E ainda se a poesia lírica se contentasse com ser de uma inutilidade lorpa... Mas ela é de um erotismo ofensivo! Há lupanares mais castos do que certos livros de versos que se chamam melancolicamente Harpelos ou Prelúdios.

Poesia lírica, poesia lírica, esconde-te nos con­selhos de ministros ou nas secretarias do Estado! Não apareças ao mundo vivo. Sabes qual é o lugar que tu nele mereces? Não é o Panteão, é o Limoeiro.

 

A poesia individual tem um nobre alcance quando o poeta se chama Byron, Espronceda, Hugo, Lamartine, Musset. Porque então, naque­las almas, todo o século com as suas dúvidas, as suas lutas, as suas incertezas, as suas tendências, as suas contradições, se retrata. São grandes almas sonoras onde vibra em resumo toda a vida que as cerca. Estuda-se ali, como num sumário, a existência de uma época. Mas, com franqueza, que se há-de estudar na alma do Sr. João, ou na alma do Sr. Francisco? A imensa dúvida que pesa sobre a Baixa? Os tormentos ideais que agitam a Rua dos Fanqueiros?

E a maior desgraça e a maior tolice é que, por farfanteria lírica, alguns homens honestos na sua vida vêm diante do Público declarar-se perversos na sua rima!

Tomemos um exemplo, um dos mais piegas – o Sr. X. O Sr. X é um rapaz honesto, bom chefe de família, ganhando honradamente o seu pão. Merece a nossa estima.

Vejamos a sua poesia. Aí não se fala senão em amores, prazeres, delírios, orgias, virgens sacrificadas... Das seguintes coisas, uma:

Ou o Sr. X pinta a verdade quando escreve estes seus versos, e então é um devasso que dá um exemplo detestável a seus filhos, e desconsi­dera sua esposa... Como havemos de acreditar em tal caso na seriedade do seu carácter?

Ou o Sr. X não diz a verdade, e todos aqueles seus êxtases são rimados muito aconchegada­mente à mesa do chá, entre um dicionário e uma poética, com um barrete de algodão na cabeça... Neste caso como havemos de acreditar na serie­dade da sua arte?

O romance, esse, é a apoteose do adultério. Nada estuda, nada explica; não pinta caracteres, não desenha temperamentos, não analisa paixões. Não tem psicologia, nem acção. Júlia pálida, casada com António gordo, atira as algemas con­jugais à cabeça do esposo, e desmaia liricamente nos braços de Artur, desgrenhado e macilento. Para maior comoção do leitor sensível e para des­culpa da esposa infiel, António trabalha, o que é uma vergonha burguesa, e Artur é vadio, o que é uma glória romântica. E é sobre este drama de lupanar que as mulheres honestas estão der­ramando as lágrimas da sua sensibilidade desde 18501 O autor, ordinariamente, tem o hábito de Sant’Iago. O editor tem a perda. O leitor tem o tédio. – Santa distribuição do trabalho!

De resto, quando um sujeito consegue ter assim escrito três romances, a consciência pública reconhece que ele tem servido a causa do pro­gresso e dá-se-lhe a pasta da fazenda.

 

Deves querer que te falemos do teatro, leitor de bom senso. Mas tu tens lido por essas esqui­nas os cartazes, e tens visto, mal sentado, quando o gás da sala diminui, erguer-se o pano sobre farsas tão melancólicas como uma ruína, e sobre dramas tão cómicos como uma caricatura de Cham!

O teatro perdeu a sua ideia, a sua significa­ção; perdeu até o seu fim. Vai-se ao teatro pas­sar um pouco a noite, ver uma mulher que nos interessa, combinar um juro com o agiota, acom­panhar uma senhora, ou – quando há um drama bem pungente – para rir, como se lê um necro­lógio para se ficar de bom humor. Não se vai assistir ao desenvolvimento de uma ideia; não se vai sequer assistir à acção de um sentimento.

Vai-se, como ao Passeio, em noites de calor, para estar. No entanto, como é necessário que, quando se ergue o pano, se movam algumas figuras e se troquem alguns diálogos – tem por isso de exis­tir em Portugal uma literatura dramática.

A ideia que acode a todos é traduzir. E desde logo moços, que ficaram no seu tempo reprovados no exame de Francês, traduzem. Onde está vous, põem v. exª; e este esforço prodigioso de inven­ção está gastando em Portugal a força de uma geração literária. Mas nem sempre se pode tra­duzir... O público gosta de ver coisas que se pas­sem no Chiado e na Rua dos Fanqueiros; e depois, as obras francesas são para grandes companhias de actores, que pelo seu número, pelos seus recur­sos, pelo seu saber, deixam livre a fantasia cria­dora do dramaturgo. Então imita-se. Onde está Mr. Valeroy, põe-se o Conselheiro Bezerra; onde está Lyon, põe-se Arcos de Valdevez; onde está Rue Vivienne, põe-se Beco do Fala-Só. Os jornais aplaudem, o Rei preside ao espectáculo, e todo o mundo vai tomar chá com emoção.

 

Mas é necessário por vezes que haja obras ori­ginais. Nesse caso imita-se do mesmo modo, mas põe-se no cartaz: original. Que importa? Sabem-no apenas três ou quatro amigos. Ou faz-se deveras uma coisa original. A dificuldade não está em obter os nomes das personagens. Uma acção tam­bém se alcança: há muitas feitas – a filha per­dida e depois achada, o cofre roubado, o fidalgo arruinado, o homem do povo sublime, etc. O difí­cil e fazer falar esta gente Neste lance, o drama­turgo nacional tudo explora e tudo aproveita: vai, procura, tira aqui, copia ali, arranca frases dos Miseráveis, gracejos do Sr. Luís de Araújo, dis­cursos do Sr. Fontes ou de José Estêvão, tratados de Economia política, pedaços de artigos de fundo, sermões (muitos sermões!), recorta, cirze, cose, remenda, cola aqueles pedacinhos à língua de cada personagem, salpica-os de gestos de deses­pero, faz esguedelhar os cabelos, ensaia músicas tristes para os finais de actos (puxando assim ao sentimento o arco do rabecão), manda levantar o pano – e repousa na imortalidade.

O tempo em que o teatro floresceu foi o tempo em que o teatro cantou Offenbach. Offenbach então triunfava; todas as famílias o decoravam; todos os realejos o moíam; todos os sinos o repi­cavam. Levantava-se então a hóstia ao som da canção do general Bum! A alta burguesia sobre­tudo é que o frequentava, e que o adoptava. E nesta simpatia geral apenas alguns dramatur­gos, alguns arranjadores, acusavam o maestrino filosófico de perverter o gosto, desmoralizar a consciência, e abaixar o nível intelectual.

Nem a burguesia teve razão em o adoptar, nem os dramaturgos em o maltratarem.

Não, dramaturgos amigos, não compreendes­tes Offenbach! Offenbach é maior que vós todos. Ele tem uma filosofia, vós não tendes uma ideia; ele tem uma crítica, vós nem tendes uma gra­mática! Quem, como ele, bateu em brecha todos os preconceitos do seu tempo? Quem, como ele, com quatro compassos e duas rabecas, deixou para sempre desautorizadas velhas instituições? Quem, como ele, fez a caricatura rutilante da decadência e da mediocridade? Vós, com a vossa seve­ridade, não tendes feito um único serviço ao bom senso, à justiça, à moral. Tendes só feito sono! E ele? o militarismo, o despotismo, a intriga, o sacerdócio venal, a baixeza cortesã, a vaidade bur­guesa, tudo feriu, tudo revolveu, tudo abalou num couplet fulgurante!

Não, alta burguesia, não fizeste bem em o aplaudir e em o proteger. Julgaste encontrar nele um passatempo, encontraste uma condena­ção. A sua música é a tua caricatura. Tão mal alumiados são os teatros, tão estreita a vossa penetração, que vos não reconhecestes um por um naquela galeria ruidosa dos medíocres do tempo? Não é o Rei Bobeche a fantasmagoria cantada da vossa realeza? Não é Calchas, da Bela Helena, a mascarada pagã do vosso clero? Não é o general Bum a personificação ruidosa da vossa estratégia de salão? Não é o barão Grog a gro­tesca pochade da vossa diplomacia? Não é o trio da conspiração a fotografia em couplets das vos­sas intrigas ministeriais? Não é toda a Grã-Duquesa a charge implacável dos vossos exérci­tos permanentes?

Vós ristes perdidamente de todas aquelas cria­ções facetas? Pois da vossa realeza, da vossa diplo­macia, do vosso exército, das vossas intrigas, dos vossos cortesãos vos ristes. E convosco riu-se todo o mundo, clero, nobreza e povo.

Sim, Offenbach, com a tua mão espirituosa, deste nesta burguesia oficial – uma bofetada? Não! Uma palmada na pança, ao alegre compasso dos cancãs, numa gargalhada europeia!

Offenbach é uma filosofia cantada.

Portugal, não tendo princípios, ou não tendo fé nos seus princípios, não pode propriamente ter costumes.

Fomos outrora o povo do caldo da portaria, das procissões, da navalha e da taberna. Com­preendeu-se que esta situação era um aviltamento da dignidade humana: e fizemos muitas revolu­ções para sair dela. Ficámos exactamente em con­dições idênticas. O caldo da portaria não acabou. Não é já como outrora uma multidão pitoresca de mendigos, beatos, ciganos, ladrões, caceteiros, que o vai buscar alegremente, ao meio-dia, can­tando o Bendito; é uma classe inteira que vive dele, de chapéu alto e paletó.

Este caldo é o Estado. Toda a Nação vive do Estado. Logo desde os primeiros exames no liceu, a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia do seu futuro. A classe eclesiástica já não é recru­tada pelo impulso de uma crença; é uma multi­dão desocupada que quer viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira; é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado, vindo ser deputados a 2$500 réis por dia. A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres e das casas arruina­das. Ora como o Estado, pobre, paga pobremente, e ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos corno uma fatalidade.

 

Resulta uma pobreza geral. Com o seu orde­nado ninguém pode acumular, poucos se podem equilibrar. Daí o recurso perpétuo para a agiota­gem; e a dívida, a letra protestada, como elemen­tos regulares da vida. Por outro lado o comércio sofre desta pobreza da burocracia, e fica ele mesmo na alternativa de recorrer também ao Estado ou de cair no proletariado. A agricultura, sem recursos, sem progresso, não sabendo fazer valer a terra, arqueja à beira da pobreza e ter­mina sempre recorrendo ao Estado.

Tudo é pobre: a preocupação de todos é o pão de cada dia.

Esta pobreza geral produz um aviltamento na dignidade. Todos vivem na dependência: nunca temos por isso a atitude da nossa consciência, temos a atitude do nosso interesse.

Serve-se, não quem se respeita, mas quem se vê no poder. Um governador civil dizia: – «É boa! dizem que sou sucessivamente regenerador, histórico, reformista!... Eu nunca quis ser senão – governador civil!» Este homem tinha razão, porque mudar do Sr. Fontes para o Sr. Braamcamp, não é mudar de partido; – ambos aqueles cavalheiros são monárquicos e constitucionais e católicos. A desgraça é que, se em Portugal existissem partidos republicanos, monárquicos, socialistas, aquele homem, assim como fora sucessivamente reformista, histórico e regenerador – isto é, as coisas mais iguais –seria republicano, monárquico e socialista – isto e, as coisas mais contraditórias.

A família é a primeira a desmoralizar neste sentido a consciência. – «Quem apanhou, apa­nhou», é a voz doméstica. O indivíduo assim rebaixado, tendo perdido a altivez da dignidade e da opinião, habitua-se a dobrar-se; dobra-se diante do agiota, do merceeiro, do criado... Dobra-se sempre; propõe injustiças e aceita-as. Extingue-se nele gradualmente a noção do justo e do injusto. Julga o favor, a protecção, a cor­rupção, funções naturais e aceitáveis. Não há um juiz em Portugal que não possa contar que se lhe tem pedido as coisas mais monstruosamente iní­quas, com a simplicidade com que se pede o lume de um cigarro.

O homem, à maneira que perde a virilidade de carácter, perde também a individualidade de pen­samento. Depois, não tendo de formar o carácter, porque ele lhe é inútil e teria a todo o momento de o vergar; – não tendo de formar uma opi­nião, porque lhe seria incómoda e teria a todo o momento de a calar – costuma-se a viver sem carácter e sem opinião. Deixa de frequentar as ideias, perde o amor da rectidão. Cai na ignorân­cia e na vileza.

Não se respeitando a si, não respeita os outros: mente, atraiçoa, e se chega a medrar, é pela intriga.

 

As mulheres vivem nas consequências desta decadência. Pobres, precisam casar. A caça ao marido é uma instituição. Levam-se as meninas aos teatros, aos bailes, aos passeios, para as mos­trar, para as lançar à busca. Faz-se com a maior simplicidade esse acto simplesmente monstruoso. Para se imporem à atenção, as meninas têm as toilettes ruidosas, os penteados fantásticos, as árias ao piano.

A sua mira é o casamento rico. Gostam do luxo, da boa mesa, das salas estofadas: um marido rico realizaria esses ideais. Mas a maior parte das vezes, o sonho cai no lajedo: e casam com um empregado a 300$000 réis por ano. Aquilo come­çou pelo namoro e termina pelo tédio. Vem a indiferença, o vestido sujo, a cuia despenteada, o cão de regaço. As que porventura casam ricas desenvolvem outras vontades: satisfeitas as exi­gências do luxo, aparecem as exigências do tem­peramento.

Outrora havia a religião. Mas hoje as mulheres crêem da religião o que é necessário para ser moda; ou então crêem apenas na exterioridade –novenas, festas de igreja, flores e altares – tudo o que excita os sentidos, exalta a sensibilidade, e não dá uma regra para o julgamento, nem um cri­tério para a consciência.

A Moda é que é uma religião. A modista reina, absorve tudo, não deixa tempo para a menor ocupação ou curiosidade de espírito. Rara a mulher que lê um livro. Rara a que tem um inte­resse intelectual

É porventura isto desenhar, a capricho, um quadro sombrio? – Não, descrevemos a acção de uma lei geral.

No fim de tudo, as mulheres virtuosas, as mulheres dignas formam ainda na sociedade por­tuguesa uma maioria inviolável! Se alguma coisa podemos dizer profundamente verdadeira é – que elas valem muito mais do que nós.

Nós é que somos abomináveis com a nossa caça à herdeira. É esse, hoje, para o homem, o supremo motivo do casamento. Em que se tor­nou hoje a família? A Família é o desastre que sucede a um homem por ter precisado de um dote!

A grande questão é o dote. Mulher, filhos, parentes, criados, são desagradáveis consequên­cias que se sofrem. Faltando assim o laço moral, a família vive no egoísmo. O homem, sem res­peito, dá-se à concubinagem e ao jogo. A mulher, desocupada e enfastiada, dá-se ao sentimenta­lismo e ao trapo. Os filhos, se os há, são educa­dos pelos criados, enquanto não são educados pelos cafés.

 

– Ando aborrecido! – é o coro geral. Os espí­ritos estão vazios, os sentidos insatisfeitos. Gra­dualmente, com a vontade doente, o corpo enfra­quecido, o homem só procura distrair, matar o tempo. Mas em quê? Na leitura?

Não se compra um livro de ciência, um livro de literatura, um livro de história. Lê-se Ponson du Terrail – emprestado!

Ao teatro não se pede uma ideia: querem-se vistas, fatos, mutações. O espírito tem até pre­guiça de compreender um enredo de comédia; prefere-se olhar, recostado, fazendo a digestão de um mau jantar, os bastidores pintados do Rabo de Satanás.

O Passeio Público é um prazer lúgubre. E uma secretaria arborizada, onde se vai estar, grave­mente, em silêncio, de olhar amortecido, de bra­ços pendentes!

Os cafés são soturnos. Meio deitados para cima das mesas, os homens tornam o café a peque­nos goles, ou fumam calados. A conversação extinguiu-se. Ninguém possui ideias originais e próprias. Há quatro ou cinco frases, feitas de há muito, que se repetem. Depois boceja-se. Qua­tro pessoas reúnem-se: passados cinco minutos, murmuradas as trivialidades, o pensamento de cada um dos conversadores é poder-se livrar dos outros três.

Perdeu-se através de tudo isto o sentimento de cidade e de pátria. Em Portugal o cidadão desa­pareceu. E todo o País não é mais do que uma agregação heterogénea de inactividades que se enfastiam.

É uma Nação talhada para a ditadura – ou para a conquista.

 

                                 Maio 1871

Há em Portugal quatro partidos: o partido his­tórico, o regenerador, o reformista, e o cons­tituinte. Há ainda outros, mas anónimos, conhe­cidos apenas de algumas famílias. Os quatro par. tidos oficiais, com jornal e porta para a rua, vivem num perpétuo antagonismo, irreconciliá­veis, latindo ardentemente uns contra os outros de dentro dos seus artigos de fundo. Tem-se ten­tado uma pacificação, uma união. Impossível! eles só possuem de comum a lama do Chiado que todos pisam e a Arcada que a todos cobre. Quais são as irritadas divergências de princípios que os separam? – Vejamos:

O partido regenerador é constitucional, monárquico, intimamente monárquico, e lem­bra nos seus jornais a necessidade da economia.

O partido histórico é constitucional, imensa­mente monárquico, e prova irrefutavelmente a urgência da economia.

O partido constituinte é constitucional, monár­quico, e dá subida atenção à economia.

O partido reformista é monárquico, é consti­tucional, e doidinho pela economia!

Todos quatro são católicos,

Todos quatro são centralizadores,

Todos quatro têm o mesmo afecto à ordem,

Todos quatro querem o progresso, e citam a Bélgica,

Todos quatro estimam a liberdade.

Quais são então as desinteligências? – Profun­das! Assim, por exemplo, a ideia de liberdade entendem-na de diversos modos.

O partido histórico diz gravemente que é neces­sário respeitar as Liberdades Públicas. O partido regenerador nega, nega numa divergência reso­luta, provando com abundância de argumentos que o que se deve respeitar são – as Públicas Liberdades.

A conflagração é manifesta!

 

Na acção governamental as dissensões são perpétuas. Assim o partido histórico propõe um imposto. Porque, não há remédio, é neces­sário pagar a religião, o exército, a centraliza­ção, a lista civil, a diplomacia... – Propõe um imposto.

«Caminhamos para uma ruína! – exclama o Presidente do Conselho. – O défice cresce! O País está pobre! A única maneira de nos salvarmos é o imposto que temos a honra, etc...»

Mas então o partido regenerador, que está na oposição, brame de desespero, reúne o seu cen­tro. As faces luzem de suor, os cabelos pintados destingem-se de agonia, e cada um alarga o cola­rinho na atitude de um homem que vê desmoro­nar-se a Pátria!

– Como assim! – exclamam todos – mais impostos!?

E então contra o imposto escrevem-se arti­gos, elaboram-se discursos, tramam-se votações! Por toda a Lisboa rodam carruagens de aluguel, levando, a 300 réis por corrida, inimigos do imposto! Prepara-se o cheque ao ministério his­tórico... Zás! cai o ministério histórico!

E ao outro dia, o partido regenerador, no poder, triunfante, ocupa as cadeiras de S. Bento. Esta mudança alterou tudo: os fundos desceram mais, as transacções diminuíram mais, a opinião descreu mais, a moralidade pública abateu mais – mas finalmente caiu aquele ministério desor­ganizador que concebera o imposto, e está tudo confiado, esperando.

Abre a sessão parlamentar. O novo ministé­rio regenerador vai falar.

Os senhores taquígrafos aparam as suas penas velozes. O telégrafo está vibrante de impaciência, para comunicar aos governadores civis e aos coro­néis a regeneração da Pátria. Os senhores cor­reios de secretaria têm os seus corcéis selados!

Porque, enfim, o ministério regenerador vai dizer o seu programa, e todo o mundo se assoa com alegria e esperança!

– Tem a palavra o Sr. Presidente do Con­selho.

– O novo presidente: «Um ministério nefasto (apoiado, apoiado! – exclama a maioria histórica da véspera) caiu perante a reprovação do País inteiro. Porque, Senhor Presidente, o País está desorganizado, é necessário restaurar o crédito. E a única maneira de nos salvarmos...»

Murmúrios. Vozes: Ouçam! ouçam!

«...É por isso que eu peço que entre já em discussão... (atenção ávida que faz palpitar debaixo dos fraques o coração da maioria...) que entre em discussão – o imposto que temos a honra, etc. (apoiado! apoiado!)»

E nessa noite reúne-se o centro histórico, ontem no ministério, hoje na oposição. Todos estão lúgubres.

– «Meus senhores – diz o presidente, com voz cava. – O País está perdido! O ministério regenerador ainda ontem subiu ao poder, e doze horas depois já entra pelo caminho da anarquia e da opressão propondo um imposto! Empregue­mos todas as nossas forças em poupar o País a esta última desgraça! – Guerra ao imposto!...»

Não, não! com divergências tão profundas é impossível a conciliação dos partidos!

 

                                     Maio 1871.

O Sr. Antero de Quental abriu no dia 19 as conferências democráticas no Casino.

É a primeira vez que a revolução, sob a sua forma científica, tem em Portugal a palavra.

O mundo revolucionário, ou antes, na sua fei­ção partidária e política, o mundo republicano, tinha-se até hoje manifestado muito indistinta­mente – por alguma voz isolada que sem eco se extinguia no silêncio da opinião, ou pelas agita­ções, mais suspeitadas que verificadas, de espe­culadores e de intrigantes. As vezes meia folha de papel era distribuída grátis, com alguns insultos aos ministros, ao Rei, e a um ou outro regedor. Outras vezes aparecia um jornal, que, em tom lírico, cantava a fraternidade e os seus encantos, dirigia apóstrofes ao rochedo de Guernesey, citava o Gólgota em questões de fazenda, e voltando-se para o Rei, dizia-lhe: – Tu! Por vezes ainda um jornal de capa vermelha, e de calúnia de outras cores, a propósito de liberdade insultava senhoras, e, sob pretexto de ser um jornal de combate, era um jornal de difamação. Havia outros repu­blicanos: todos os jornais na oposição se dão vagamente esse ar, falam então no suor do povo... (Imaginarão que a aristocracia não sua? Como se iludem!) O Jornal do Comércio, repre­sentante da burguesia liberal, foi algum tempo republicanos e dizia aos tiranos coisas desagradá­veis que deviam magoar Napoleão III, o defunto Calígula, e outros ex-opressores. O partido do Sr. Marquês de Angeja parece que também ten­dia para republicano; pelo menos assim o pensa­vam os criados do Martinho. Alguns reformistas têm dito que o sr. bispo de Viseu, bem no seu fundo – é republicano. Corre que outros chefes de partido o são também. E isto vai numa tal contaminação democrática, que o único conser­vador constante que nos fica – é Danton!

Tal era o partido republicano, que causava hilaridade! Por isso o espanto é grande, vendo aparecer homens que apresentam a revolução serenamente – como uma ciência a estudar. Não o fariam mais tranquilamente se se tratasse de anatomia.

 

As conferências hão-de encontrar resistências. Em primeiro lugar o nosso público inteligente e literário, ama sobretudo o bel-esprit, a oratória, a frase. Moda peninsular. Ora as conferências pela sua natureza científica e experimental – exi­gem justamente o contrário dos aparatos retó­ricos. São a demonstração, não são a apóstrofe; são a ciência, não são a eloquência. As declama­ções têm tirado à democracia o seu carácter pri­vativo de realidade e de ciência. Temos ouvido cantar a democracia, berrá-la, soluçá-la: é tempo de a vermos demonstrar. Deixemos no bengaleiro a nossa perpétua inclinação nacional de escutar odes – e entremos só com a tendência humana de resolver problemas.

A revolução aparece ao mundo conservador, como o cristianismo ao mundo sofista. Os solis­tas tinham tomado o partido de rir daqueles naza­renos. É o que faz agora o periódico a Nação, quando se trata da revolução. Não és original, ó Nação!

Tenhamos bom senso! Escutemos a revolu­ção; e reservemo-nos a liberdade de a esmagar – depois de a ouvir.

Uma coisa que a compromete é ela falar em nome do proletário. O proletário pretende expli­car-se; quer por um lado contar a sua miséria, por outro provar o seu direito. O simples bom senso indica que se deixe falar o proletário. Silêncio ao pobre! gritava Lamennais em 48. Esta palavra horrorosa, que é um dobre a finados pela dignidade humana, inspira ainda as instituições.– Santo Deus! Parece que lhes dói a consciência, às instituições! Deixemos falar o proletário. Que receiam? Não temos os nossos exércitos, os nossos parlamentos, a nossa polícia? Deixemo-lo falar.

 

Desdigamo-lo depois quando ele mentir, refu­temo-lo quando errar. É muito mais cómodo encontrarmo-nos com quem represente o prole­tário, sossegadamente, na sala do Casino, do que encontrarmos o próprio proletário mudo, taci­turno, pálido de ambição ou de fome, armado de um chuço à embocadura de uma rua. Fazer conferências – se bem atentamos neste acto –reconhece-se que é uma coisa diferente de fazer barricadas. É por lhe não permitirem fazer con­ferências que o proletário parisiense faz fogo. O proletário inglês não espingardeia os seus governos, pela razão de que fala nos meetings. E, quando aqueles que falam no poder os repre­sentam mal, os operários ingleses pedem-lhes con­tas nos seus comícios, cobrem-nos de impropé­rios, e atiram-lhes com cebolas à cara. Se a vítima tenta fugir ou fazer resistência à cebola ou ao insulto, um policeman segura-o gravemente pela gola da casaca, e convida em nome da morali­dade, o procurador do povo, a esperar pelos res­tos da injúria e da hortaliça.

 

Temos ainda que, actualmente, o grande carác­ter das conferências é, segundo nos parece, a oportunidade. Há muito tempo que a opinião pública as pedia. O quê! há aí alguém que o negue?

Não o nega decerto o parlamento onde todos os dias ministros, maiorias e oposições, dizem que o País está desorganizado.

Não o nega decerto a imprensa, que todos os dias declara que o sistema constitucional está desautorizado! (Diário Popular, Jornal do Comér­cio, Gazeta, etc., passim).

Não o nega a opinião, que todos os dias exclama, com uma certa convicção desleixada, nos cafés, nas ruas, nos passeios, nos estancos:

– Ora! isto está podre!

Quando a opinião, tão geral, diz que um país está perdido dentro de um sistema, coloca-se por essa mesma confissão fora do sistema, e deseja, por uma propaganda nova, uma reforma social.

Sejamos lógicos. As Farpas não são o legiti­mismo, nem a república, nem o constituciona­lismo, nem o sebastianismo. Desejam simples­mente ser a lógica e o bom senso.

Vejamos: não tem a imprensa confessado todos os dias a podridão do País e a desorgani­zação das suas forças vivas? (Jornais políticos, passim).

Ou são sinceros, ou não. Se não são, então faltam duplamente à dignidade, porque desconsi­deram os outros enganando-os, e desconside­ram-se a si mentindo. São perturba dores de profissão: querem lançar, de caso pensado, o cepticismo no espírito público, para o interesse da sua intriga. Pertencem portanto ao ministé­rio público. – Se são sinceros então devem estar radiantes de alegria, porque têm essa propaganda nova que implicitamente pediam.

Não vemos nós os ministérios dissolvendo câmaras sobre câmaras, depois de lhes experi­mentarem um momento a inteligência – Outra, que esta não presta!?

Não vemos os partidos, em quem deve residir a consciência do Estado, derrubarem todos os dias ministérios, como um homem que num cha­peleiro experimenta chapéus – Outro, que este não serve?

E vós, jornais políticos, não confessais vós todos os dias a impotência dos vossos políticos? Não vos tendes dito uns aos outros os extremos insultos? Não vos tendes destruído uns pelos outros? Apelamos para ti, leitor de bom senso. Não é verdade que o Diário Popular tem dito, dentro do sistema, que o Sr. Fontes é incapaz de organizar o País? É. – Não é verdade que a Revo­lução tem provado à saciedade, dentro do sis­tema, que o sr. bispo de Viseu é incapaz de orga­nizar o País? É. – Não é verdade que a Gazeta do Povo tem provado que ambos eles são inca­pazes? E não é verdade que a Revolução e o Diá­rio Popular têm afirmado uniformemente que o incapaz é o Sr. Braamcamp? E. Por consequên­cia parece que estais inutilizados uns pelos outros. Se um fala verdade, todos a falam. Se um a fal­seia, todos a falseiam. Portanto ou tendes de aceitar a vossa condenação, ou tendes de confes­sar a vossa falsidade.

Qual é a conclusão? A necessidade de uma propaganda nova. É o que a imprensa está pedindo há longo tempo; é o que o Casino enfim lhe fornece! Muito feliz ainda que lhe não apa­reça com chuços, tocando a rebate pelas ruas, e que lhe apareça apenas com ideias, e tocando a rebate através das consciências. Todos os parti­dos estão pois interessados nesta propaganda. Quem fala depois do Sr. Antero de Quental? Deve ser o sr. bispo de Viseu!

 

                           Maio 1871.

O partido reformista apareceu um dia, de repente, sem se saber como, sem se saber por que. Era um estafermo austero, pesado, de voz possante. Ninguém sabia bem o que aquilo queria. Alguns diziam que era o sebastianismo sob o seu aspecto constitucional; outros que era uma seita religiosa para a criação do bicho­-da-seda. Corriam as mais desvairadas opiniões. Apresentava-se tão grave, tão triste, tão intransigente, que no Chiado afirmava-se ser um perso­nagem da história romana – empalhado!

Ninguém se aproximava dele, no meio da imensa impressão que causava nos moços de fre­tes. Por fim, pouco a pouco, alguns jornalistas mais curiosos foram-se chegando, começaram a tocar-lhe com o dedo, a ver se era de pau. Era de carne, verdadeiro. Percebeu-se mesmo que falava. Então os mais audaciosos fizeram-lhe perguntas.

– Senhor – disseram – espalhou-se por aí que vindes restaurar o País. Ora deveis saber que um partido que traz uma missão de recons­tituição deve ter um sistema, um princípio que domine toda a vida social, uma ideia sobre moral, sobre educação, sobre trabalho, etc. Assim, por exemplo, a questão religiosa é complicada. Qual é o vosso princípio nesta questão?

– Economias! – disse com voz potente o par­tido reformista.

Espanto geral.

– Bem! e em moral?

– Economias! – bradou.

– Viva! e em educação?

– Economias! – roncou.

– Safa! e nas questões de trabalho?

– Economias! – mugiu.

– Apre! e em questões de jurisprudência?

– Economias! – rugiu.

– Santo Deus! e em questões de literatura, de arte?

– Economias! – uivou.

Havia em torno um terror. Aquilo não dizia mais nada. Fizeram-se novas experiências. Per­guntaram-lhe:

– Que horas são?

– Economias! – rouquejou.

Todo o mundo tinha os cabelos em pé. Fez-se uma nova tentativa, mais doce.

– De quem gosta mais, do papá, ou da mamã?

– Economias! – bravejou.

Um suor frio humedecia as camisas. Interro­garam-no então sobre a tabuada, sobre a questão do Oriente...

– Economias! – gania.

Foi necessário reconhecer, com mágoa, que o partido reformista não tinha ideias. Possuía apenas uma palavra, aquela palavra que repetia sempre, a todo o propósito, sem a compreender. O partido reformista é o papagaio do Constitu­cionalismo.

 

                               Maio 1871.

O sr. bispo do Algarve, patriarca, publicou uma pastoral.

Ergueu-se a este respeito um debate na Câmara, em que se falou consideravelmente em placet e non placet. A opinião liberal irritou-se vendo o sr. bispo do Algarve lamentar com aze­dume a extinção do poder temporal. A opinião libe­ral não ama o poder temporal, e entende que o Papa se deve ocupar unicamente dos negócios do Céu. A opinião liberal faz a polícia do espiritualismo.

Ora afirmar que o papado pode viver exclusi­vamente do poder espiritual, é uma patente má­-fé (não é o caso da opinião liberal), ou um pru­rido revolucionário (não é também o caso da honrada maioria constitucional). O que é então? Uma falta notável de princípios e de lógica.

O papado podia viver sem o temporal quando a religião lhe dava o domínio em todas as cons­ciências, e fazia dele o vicariato de Deus.

Escusamos de citar épocas históricas. O Papa tinha então também um domínio temporal – mas como uma jóia da sua tiara, não como condição vital da sua supremacia. Não foi por possuir Roma e mais uns pedaços de terra que Gregó­rio VII, Urbano II, Inocêncio III se afirmaram tão grandes: as terras, de conquista ou de doação, eram apenas a glorificação do seu pontificado. O verdadeiro império tiravam-no eles da esponta­neidade da fé católica e da força da unidade.

Desde que a fé se extinguiu, que por toda a parte o Estado fez cisão com a Igreja, e que a religião de dominadora passou a consentida – o que sustenta o catolicismo e a soberania espiri­tual? É a soberania temporal, o reino de Roma. Se o papado perder para sempre Roma, símbolo visível da supremacia religiosa – que fica? Um vago e indefinido interesse espiritual, falando em nome da fé que ninguém possui, e da tradição de S. Pedro que ninguém já sabe em que consiste.

O catolicismo degenera assim numa espécie de protestantismo – equilibrado entre o calendário e a indiferença.

De modo que a opinião liberal, que no parla­mento protestou ser católica apostólica romana, censurando a defesa do poder temporal, censura a defesa do catolicismo e a defesa da unidade. E através dos seus protestos ortodoxos mostra-se inimiga do catolicismo – por consequência ini­miga do cristianismo, porque o catolicismo é a expressão mais lógica do cristianismo–por conse­quência inimiga da religião, porque o cristianismo é a expressão mais lógica do conceito religioso.

E aqui temos, num país católico, os ilus­tres senhores deputados, em pleno parlamento. fazendo profissão de ateísmo!

 

De resto a pastoral de S. E. R. é um docu­mento deplorável.

Se fosse um protesto católico, a condenação pura e simples da filosofia e da razão, uma pequena encíclica para uso nacional, uma defesa do temporal intransigivelmente posta – aplaudi­ríamos a pastoral. Seria um documento lógico.

Mas não! a pastoral é uma espécie de artigo de fundo molhado em água benta, o que quer que seja de beato e de lacrimoso, panfleto de sacristia sem critério, sem lógica, sem ciência, sem orto­doxia, com um cheiro a opa e a feno seco, come­çando por dirigir apóstrofes à arca de Noé e ter­minando por pedir esmolas para o Papa.

Esmolas! Esmolas! O papado quando tinha Roma, apresentava o estranho caso de um estado fundado unicamente sobre a mendicidade. Roma vivia das esmolas do Mundo. Papa, cardeais, clero e populaça eram todos mendigos de profissão.

Mas hoje o Papa não tem Roma, e as esmolas continuam a tomar o caminho de Roma!

O caminho de Roma? Quem sabe?

Aí estão os jornais espanhóis que declaram que a subvenção católica para o Papa não é mais que unia inscrição disfarçada para o legiti­mismo; e que todos esses dinheiros, que os fiéis imaginam que vão tomar mais chorumenta a ter­rina papal, vão simplesmente ser empregados em comprar balas e pólvora para a insurreição da Navarra.

 

                                      Maio 1871.

A opinião tem pela Câmara dos Deputados um sentimento unânime, e unanimemente decla­rado: o tédio.

Diz-se mal da Câmara por toda a parte. Os jornais mais sérios falam constantemente na sua improdutividade. Aparecem contra ela panfletos satíricos. Ela é geralmente considerada como um sórdido covil de intrigas. Se se pergunta:

– Que houve hoje na Câmara?

– Uma farsa – respondem uns.

– Uma feira – respondem outros.

Os jornais políticos vêm cheios destas fórmu­las: «A Câmara ontem deu um espectáculo triste para quem preza os verdadeiros princípios... «A Câmara está oferecendo a prova da sua falta de independência...» «A Câmara salta por cima dos princípios mais rudimentares de administração».

– O parlamento é uma vergonha – diz-se nos cafés.

– Vamos aos touros! – exclama-se nas gale­rias (textual).

– Amanhã há escândalo! – murmura-se na véspera das sessões.

Fazem-se-lhe epigramas, põem-se-lhe alcunhas. Os folhetins escarnecem-na; os jornais de notí­cias contam com uma singeleza dramática: «Ontem a sessão passou-se em injúrias pessoais». Um grande escritor, que é também um grande carácter, chamou-lhe: «Lupanar!» O dito julgado justo, e coberto de aplausos, é sempre citado.

De que provém este desdém geral? De um surdo fermento de hostilidade que haja entre nós contra os grandes corpos do Estado? Da convic­ção nascida de uma experiência diária?

Tu, leitor de bom senso e de boa-fé, que não és deputado, e te sentas na galeria, ou lês as sessões no jornal, responde tu, nosso amigo e confidente!

A opinião é legítima e fundada em experiência. A Câmara (tomemos a actual, para exemplo) não tem princípios, nem ideias, nem consciência, nem independência, nem patriotismo, nem ciência, nem eloquência, nem seriedade. Isto não quer dizer que isoladamente, indivíduo por indivíduo, se não encontrem estas qualidades com um relevo poderoso; seria ridículo negar a erudição do Sr. Latino, a honestidade do Sr. Rodrigues de Freitas, etc., etc. O que se quer dizer, é que, como corpo constituído, sentada nas suas cadeiras, com o seu presidente, a sua campainha, o seu copo de água com açúcar, e os seus contínuos – a Câmara tem a falta absoluta de qualidades que a ilustra­riam, e a abundância de defeitos que a desonram.

A Câmara não tem princípios. É monárquica, e corta a lista civil, dando toda a latitude ao Rei na política, mas reduzindo-lha no orçamento. É católica, e mostra-se hostil à defesa do poder temporal, o que, por uma dedução lógica, é mos­trar-se simpática à condenação do catolicismo. Dá, alternadamente, maioria a todos os partidos. E só serve as ambições de chefes, que a explo­ram e que a desprezam.

A Câmara não tem ideias. Diante de um país desorganizado de um extremo ao outro, que faz? Discute a questão das ostras. Não apresenta uma lei, um regulamento, uma reforma, um projecto. Durante um mês inteiro discute se o Sr. Soa­res Franco deve ter o comando da Armada, ou se o não deve ter. O ministro declara que sim – «porque o comando da Armada é de tradição de três séculos». Este princípio do Governo, logi­camente entendido, obriga o ministério a levan­tar a forca, reconstruir os conventos, ressuscitar Afonso Henriques, ir imediatamente descobrir outra vez o caminho da índia – e ficar sempre a descobri-lo!

A Câmara não tem justiça. Se alguma coisa decide, na sua pequenina área de alterações pequeninas, não é no terreno da justiça pública, é no do interesse político. Quem ignora os exem­plos? A sua enumeração fatigaria Homero.

A Câmara não tem consciência. O seu crité­rio, a sua moral, é a intriga. A intriga política, a intriga partidária. A maioria apoiava o sr. mar­quês de Ávila; a maioria abandona-o. Porquê? Era ontem apto, é hoje inepto? É que o sr. mar­quês de Ávila se nega à discussão do orçamento. Nesse caso para que lhe dão a lei de meios até Julho? É um imbróglio conduzido por uma intriga. Acham-no tão impróprio que se afastam dele, mas dão-lhe o poder por mais dois meses.

A Câmara não tem patriotismo. É necessário prová-lo? Que lhe importa a ela o País, a sua organização, o seu progresso? Que faz por ele? Com que instituições o dota? Que melhoramentos lhe dá? Que interesse tem pela instrução, pela indústria, pela agricultura? A Câmara intriga e vocifera! De resto é um baralho de cartas com que chefes hábeis fazem uma partida de volta­rete. E o País é quem leva os codilhos.

A Câmara não tem independência. Vede as ameaças de dissolução. Ainda a dissolução não aponta ao longe, já a Câmara está encolhida debaixo dos bancos!

A Câmara não tem ciência. Nem administra­ção, nem economia, nem direito público, nem direito constitucional, nem história, nem gramá­tica: a Câmara nada sabe. O Sr. Dias Ferreira, um professor consagrado, o Sr. Sampaio, um jor­nalista ilustre, e um ou dois magistrados que são deputados, poderiam, melhor que nós, vir contar nas Farpas os discursos grotescos proferidos no parlamento em questões de doutrina.

A Câmara não tem eloquência. Queres ver, leitor de bom senso, um modelo de discurso? Foi o sr. deputado... Para que dizer o nome? A nossa questão não é de nomes, é de factos. Vejam o Diário das Câmaras. O orador começa por um exórdio. Conta como Platão dormia a sesta, e o que faziam as abelhas do Himeto. Depois diz que desejava ter os dotes de suavidade e brandura para rastrear Platão. Pausa. Entra em seguida em matéria. Principia por declarar que já vai longe para ele o período da adolescência, mas que é natural que por lá lhe ficassem antigas ferven­ças, restos daqueles fluxos seivosos (textual). Depois explica como era o acordo que reinava entre os deuses de Homero: «Aquiles empunhava o gládio, Ájax brandia o ferro!» Passa em seguida aos trabalhos de Hércules. Narra durante dez minutos a fábula de Oxilus. Fala na Eólia, na Etólia, e no Peloponeso. Menciona Júpiter, no Olimpo, sentado no seu trono coruscante (tex­tual). Trata dos sacerdotes egípcios, dos ídolos, do cão Anúbis, e da esfinge, que segundo ele, era um deus com cabeça de gato (parece incrível mas é textual!) Logo adiante cita as portas da Aurora. A propósito da sua alma brada:

 

«Malheur à qui sonda les abimes de l’âme!»

 

Depois ocupa-se da maneira de conceber das aranhas. Aponta por essa ocasião Saturno, um pouco mais abaixo Isócrates. Alude às hidras. Desenrola uma história imensa das Confissões de Santo Agostinho. Discursa ainda sobre Sião e Babilónia, e senta-se! Tudo isto a propósito do sr. marquês de Ávila e da comissão de fazenda.

A Câmara não tem seriedade. Quem não viu uma sessão? O sussurro, o barulho, a confusão são perpétuos. Vota-se sem saber o que se dis­cutiu, e continua-se a conversar. As questões pes­soais estão constantemente na ordem do dia. Voam os desmentidos. Fervilham as injúrias. Nos momentos mais serenos é a graçola e a troça. E das galerias o público assiste, ora indignado ora divertido, ao espectáculo sem igual.

Achais estas páginas cruéis? Pensais que não nos dói tanto escrevê-las como vos dói o lê-las? Pensais que é com espírito alegre, e a pena ao vento, que levantamos um por um, diante do público, os farrapos da vossa decadência? – Ape­lamos para vós mesmos. Se algum de vós, na sua consciência, acha que não dizemos uma verdade perfeita, que nos atire a primeira pedra como no Evangelho, isto é, que nos lance a primeira con­tradição.

 

                                       Junho 1871.

Todos os jornais, na época de eleições, têm os seus candidatos predilectos. Os jornais fran­ceses lançam os nomes desses, à adesão pública, no alto da página, em tipo enorme. Os jornais portugueses é numa prosa dormente que os acon­selham, com recato.

Nós possuímos também dois candidatos que­ridos.

São:

O Dr. João das Regras!

O condestável D. Nuno Álvares Pereira!

São estes dois cavalheiros – cidadãos! – a expressão gloriosa da sua Pátria. Um é o seu pensamento jurídico, outro o seu valor heróico. Qual será o liberal inteligente que recuse o seu voto a estes dois homens históricos? Valerá mais o Sr. José de Morais, ou o Sr. Coelho do Amaral?! E depois quem, como o Sr. João das Regras, vela­ria pelos foros populares? Quem como o condes­tável manteria a independência da Pátria? – À urna, cidadãos!

Podem apenas pôr-nos uma objecção –pequena por si, mas que talvez influa nos âni­mos timoratos: é que o doutor e o condestável morreram há quatro séculos!

Pois bem! nós afirmamos que esse detalhe nada importa, porque eles se acham em iden­tidade de circunstâncias com a grande parte dos candidatos que se apresentam por esses cír­culos, de Norte a Sul do País! Todos esses bene­méritos estão na realidade tão mortos como João das Regras, e como D. Nuno Alvares Pereira!

Debalde passeiam! Debalde falam! Estão mor­tos. Viver para sentir fisicamente é simples –basta que os pulmões respirem, que o sangue cir­cule, que o alimento se digira. Mas viver para legislar e pensar é mais complexo – é necessário que a inteligência e a consciência estejam em vigor, trabalhando. Ora grande parte dos senhores can­didatos têm aquela porção do seu ser tão morta como o Dr. Regras, ou o condestável Pereira.

Com efeito, no sentido de legislar, organizar, e dirigir um país – viver é ser do seu tempo, estar no seu momento histórico, ajudar a criação social do seu século, sentir a comunhão das ideias novas. Ser democrata de 20, ou carlista de 36, ou cabralista de 45, ou regenerador de 51 – não é viver, é recordar-se. E, por este lado, quem sabe também se os mortos se recordarão?

Por consequência, como a maioria dos candi­datos se acham mortos e embalsamados no seu próprio corpo – estão na categoria em que se encontram os defuntos Regras e Álvares Pereira.

Propomos pois:

 

       O DOUTOR!

       O CONDESTÁVEL!

 

 

Podem todavia observar-nos:

Sendo verdade (como é) que os srs. deputa­dos estão mortos no seu espírito – é também verdade que estão vivos no seu corpo, que podem dizer presentes! na chamada, e que desta condi­ção não se gabam o doutor e o condestável, os quais, sendo um punhado hipotético de pó, não podem ter a pretensão, verdadeiramente tirânica, de dizerem presentes! – como o Sr. Melício, ou o Sr. Carlos Bento, que são de carne!

Bem! Então uma vez que é necessário um vulto, um corpo, uma pouca de matéria, para que os senhores secretários os possam tomar como personalidades – propomos:

 

           A ESTÁTUA DE CAMÕES.

           A DE JOÃO DE BARROS.

 

Não nos dirão decerto que estes não tenham forma, medida, peso! À urna, pois!

Mas podem fazer-nos sentir:

Que se estes últimos cavalheiros têm a condi­ção corpórea, lhes falta a condição vocal – aquela grande condição de deputado que consiste em dizer:

– Apoiado!

Nesse caso, como não temos a pretensão de provar que o bronze e a pedra possuam uma extrema facilidade de locução – propomos:

Dois papa gaios, à escolha do sr. marquês de Ávila!

 

                       Junho 1871.

Este mês, quando os cravos abriam, as Câmaras ­fecharam. Fecharam, isto é, foram expulsas!

Houve talvez umas certas fórmulas, fez-se decerto o programa do encerramento; mas a ver­dade é que elas foram precipitadas, aos empur­rões, pelas escadarias de S. Bento abaixo.

A Câmara estava quieta, bem barbeada, como­damente sentada nas suas cadeiras, sem descon­fiança, esperando com gravidade cívica que o Governo manifestasse a sua ideia por um projecto, um relatório, um dito, um grito, uma carranca!

O Governo entrou, e, com um gesto palaciano e galhardo, fez evacuar a sala!

 

E aí está como a grande ocupação do mês são as ELEIÇÕES.

É necessário que te expliquemos, leitor pací­fico que não pertences aos centros, o organismo interior de uma eleição. É ao alegre fugir da pena, um curso de anatomia política.

Lê-o ao chá aos teus pequerruchos, a quem tua mulher prepara as fatias com manteiga. E o melhor ensino que lhe podes dar do abaixamento do seu tempo. Se eles adormecerem no meio mais pungente da declamação, não penses que foi a sonolência comunicativa das nossas palavras severas. E que em Portugal tudo faz sono – até a anarquia!

 

Quando uma Câmara se fecha, o Governo nomeia outra. Nomeia – porque uma Câmara não é eleita pelo povo, é nomeada pelo Governo. O deputado é um empregado de confiança. Somente a sua nomeação não é feita por um decreto nitidamente impresso no Diário do Governo: o processo dessa nomeação é mais com­plicado e moroso. É por meio de votos, os quais são tiras de papel, onde está escrito um nome, e que se deitam num domingo, numa igreja, dentro de umas caixas de pau, que se chamam roman­ticamente urnas. Uns homens graves, de camisas lavadas, estão em roda da urna. Estes homens chamam-se a mesa. São eles que, com gesto cívico e cheios do espírito das instituições, metem grave­mente o papelinho branco (o voto!) na caixinha (a urna!).

A urna afecta várias formas, segundo as fre­guesias: Há urnas do feitio de caixas de açúcar, do feitio de vasilhas, do feitio de chávenas, etc.

Os candidatos gritam sempre, no último período dos seus manifestos, transportados de furor constitucional:

– Cidadãos, à urna!

E puramente uma denominação sentimental.

Para serem exactos deveriam exclamar, em certas freguesias:

– Cidadãos, ao caixote!

E noutras:

– Cidadãos, à vasilha!

Ora, apesar desta nomeação aparatosa e de grave cerimonial, o deputado é tão igualmente funcionário como se fosse nomeado por oito linhas triviais e burocráticas do Diário do Go­verno. O deputado obedece ao Governo, e exerce uma função. Há o apagador, o gritador, o inter­ruptor, o homem dos incidentes, o homem dos precedentes, etc. E quando desagrada, é demi­tido. Somente não se diz demitido. Diz-se, com menos asseio, dissolvido.

O Governo pois nomeia os seus deputados. Estes homens são, naturalmente e logicamente, escolhidos entre os amigos dos ministros. Por dois motivos:

1º Porque a amizade supõe identidade de inte­resses, confiança inteira.

2º Porque sendo a posição de deputado ociosa e rendosa, é coerente que seja dada aos amigos íntimos – àqueles que vão ao enterro dos paren­tes e trazem o pequerrucho da casa às cabritas.

Os amigos dos ministros são, naturalmente, os primeiros escolhidos. Para completar o número de uma maioria útil, estes amigos, mais em contacto, indicam depois outros, seus parentes que procuram colocar, ou seus aderentes que querem utilizar.

– Tu não tens ninguém pelo círculo tal? – pergunta X ao ministro, seu íntimo.

– Não.

– Espera! tenho eu um primo. O pobre rapaz tem poucos meios, é pianista. Mas é fiel como um cão. Um escravo! Posso dizer ao rapaz que conte com a coisa?

– Podes dizer ao rapaz.

Lentamente a lista da maioria vai-se formando em Lisboa. Os pretendentes são numerosos. Os amigos íntimos agitam-se em volta do ministro, como um bando de pardais em torno de um saco de espigas. Um tem um primo que casou; outro sabe de um folhetinista com talento e língua fácil; outro quer um cunhado; outro deseja um homem a quem deve uns centos de mil-réis (mas dispensa a candidatura para esse ladrão, se o ministro fizer esse ladrão recebedor de comarca)... Depois os candidatos são mudados como figuras de um jogo de xadrez. A um, a quem se prometeu o círculo D, dá-se o governo civil de B–como indemnização. Tira-se a C a can­didatura, porque se descobre que C tomou chá com o chefe da oposição. Mas dá-se a E, que foi quem denunciou C. Às vezes é um influente pelo círculo X, que, em paga da sua influência, pede que seu genro venha pelo círculo Z, onde é proprietário.

– Mas o círculo Z está prometido a Fulano, que é um professor distinto, um publicista! Seu genro tem pelo menos algum curso?

– Meu genro não tem curso nenhum. Eu é que tenho influência. O jornal da localidade já provou que meu genro era um animal. Mas meu genro espancou a redacção.

E quem vem pelo círculo Z não é o professor distinto, mas o sujeito convencido de animal pelo periódico da localidade!

Há ainda os amigos do Governo, que residem na província. Esses escrevem ao ministro:

«Tenho aqui tudo preparado pelo círculo, e gasto um dinheirame. Por isso, querido amigo, espero que me mandes apoiar a eleição... Sabes que sou fiel como um cão, quando tu estás no poleiro.»

Meses depois deste exercício o Governo possui enfim, inteira, compacta, abarrotada de nomes fiéis, a lista da sua maioria.

Quando o Governo não tem política própria, nem programa próprio, nem amigos próprios, e vive, como o actual, apoiado em dois partidos – são esses partidos que dão ao ministério as listas das suas maiorias particulares. O Governo aceita, e nomeia estas maiorias.

Constituída a Câmara, cada partido retira a sua maioria, e o Governo, desamparado, cai de costas, estatelado no lodoso chão da intriga.

E as duas maiorias livres da fastidiosa ocupa­ção de amparar um Governo antipático, e com os braços disponíveis, rompem logo a invectivar-se uma à outra com galhardo brio.

Tal é este prodigioso e baixo imbróglio!

 

Logo que o Governo possui completa a sua lista, comunica-a aos governadores civis. Começa aqui o que se chama o trabalhinho das autorida­des. O governador civil chama particularmente cada administrador de concelho, e troca com ele estes nobres dizeres:

– Pelo seu círculo o Governo propõe Fulano. Compromete-se a fazê-lo vencer?

– Farei as diligencias...

– Nada de palavras equívocas. Ou a eleição certa para o Governo, ou a demissão certa para si. De resto peça, intrigue, compre, ameace, mal­trate. Isso é consigo... O que nós queremos é que o Governo vença!

O administrador tem família, vive daquele escasso rendimento, quer seguir a carreira admi­nistrativa, sente o seu interesse que o insta, e cede a S. Exª.

– Pois bem – diz – respondo por tudo... Mas tenho exigências.

– Venham elas.

– E necessário que seja demitido o reitor do liceu, que é todo oposição

– Tomo nota.

– Que seja transferido o escrivão de fazenda. Coitado, grande transtorno lhe vai fazer! Mulher e quatro filhos. A mulher é da vila... Mas enfim

– Está claro, para a frente!...

– Além disso preciso uns 300$000 réis para a freguesia de tal, que está muito trabalhada pela oposição

– Conte com eles.

– Precisava também de tropa...

– Com todo o gosto. Trabalhar, meu amigo, trabalhar! Esta nossa vida administrativa é o demónio! Mas, que diabo, alguma coisa se há-de comer! Adeus.

E cada administrador vai trabalhar para o seu círculo.

Honesto sistema!

A primeira dificuldade é que, no círculo, nin­guém conhece o candidato.

– Mas quem é ele?

– Eu sei lá quem ele é! – responde a pró­pria autoridade. – É um sujeito de Lisboa. É do Governo!

O administrador, para ordenar a escaramuça, reúne os seus regedores:

– O candidato é Fulano. Mãos à obra! É tra­balhar-me bem essas freguesias! É pedir, amea­çar...

Os regedores partem; e, trotando pelas estra­das do concelho, ruminam os seus meios.

Esses meios são:

1º A compra pura e simples. Regateia-se o voto: 500, 1$000, 1$500 réis. Há-os de meia libra, mas são raros.

2º A pressão. E o mais eficaz. A pressão é uma arma geral, simples, acessível a todos. O pro­prietário exerce pressão sobre os rendeiros, que exercem pressão sobre os trabalhadores. Nos cen­tros de distrito ou de concelho a autoridade supe­rior exerce pressão sobre todos os empregados do governo civil, da administração, da repartição de fazenda, da repartição de obras públicas, do liceu, da câmara, etc. Os coronéis exercem pressão sobre os oficiais – com ameaça de participação para a secretaria da guerra, de destacamento para longe, de mudanças de corpo com despesas, etc.

3º A ameaça. A ameaça é mais espe­cialmente feita pelo regedor na sua freguesia. O regedor dirige-se ao eleitor e verte-lhe esta honesta eloquência:

– Tu tens um filho de 20 anos. Está para entrar no recrutamento. Se votas no Governo livro-te o filho. Se não, tens o filho com a farda às costas.

Ou então:

– Tu sabes que tua filha tem aí um namoro. Se não votares com o Governo, a tua filha será chamada à presença da autoridade, e tens a ver­gonha em casa

Ou quando não:

– Tu andas colectado em 10. Se votares com o Governo, arranjo-te a que o sejas apenas em 9. Se votas contra, tens para o ano no cachaço 16 ou 17.

E aqui está como o Governo arranja votos – por cabeça.

Há votos por influência. Isto é – arranja-se um sujeito que dispõe de 50, 100, 200 votos: dá-se a esse homem uma comenda, um título; nomeia-se-lhe um primo recebedor ou apontador de estradas; e esse homem dá generosamente, para maior esplendor da monarquia, esses 50, 100 ou 200 livres votos ao candidato do Governo!

 

E por todos os círculos se trabalha sem des­canso! As autoridades têm dias pesados de fadi­gas, noites cortadas de telegramas. Bate-se por todo o concelho a áspera e ávida caça ao eleitor. Aqui ameaça-se, além compra-se. Demite-se aqui um regedor que é suspeito, além muda-se um pároco que é hostil. O eleitor é acariciado, sau­dado. Paga-se-lhe o vinho na taberna, promete-se-lhe a isenção do recrutamento para o filho, e excepção da décima para ele. Não há interesse que se não seduza, fraqueza que se não ataque, miséria com que se não especule.

E o pobre eleitor, aturdido, diz à mulher em casa:

– Oh! senhores, não me deixam! Por causa do tal conselheiro Felizardo.

– Mas quem é o Felizardo?

– Ora! É o Felizardo! Eu sei lá quem é! É um para deputado!

No entanto a oposição trabalha também. Os seus meios são menores. Recorre sobretudo à prosa. Manifestos nas vilas, discursos populares pelas freguesias, etc. Fala nos impostos, nas vexa­ções do escrivão de fazenda, nas poucas estradas que o Governo faz – e nas muitas infâmias que o deputado governamental tem feito

No meio disto agita-se um dos tipos caracte­rísticos da província, o influente de eleições. Lugar nas Farpas ao influente! Lugar à pesada corpulência do sr. influente!

 

O influente ordinariamente é proprietário. Antigo cavador de enxada, enriqueceu, tem ambi­ções, quer ser da junta de paróquia, da junta dos repartidores, e mais tarde, num futuro glorioso, vereador! Já não usa jaqueta, nem tamancos. Tem uma casa pintada de amarelo, calça um par de luvas pretas, e fala na soberania nacional. Em vésperas de eleição todos o vêem, montado na sua mula pelos caminhos das freguesias, ou, nos dias de mercado, misturado entre os grupos, ges­ticulando, berrando, com uma importância tre­menda. Dispõe ordinariamente de 200 ou 300 votos: são os seus criados de lavoura, os seus devedores, os seus empreiteiros, aqueles a quem livrou os filhos do recrutamento, a bolsa do aumento de décima, ou o corpo da cadeia. A auto­ridade passa-lhe a mão por cima do ombro, fala-lhe vagamente no hábito de Cristo. Tudo o que ele pede é satisfeito, tudo o que ele lembra é rea­lizado. As leis afastam-se para ele passar. As suas fazendas não são colectadas à justa: é o influente! Os criminosos por quem se empenha são absolvidos: é o influente! Se são proibidos no concelho os arrozais, ele pode tê-los: é o influente! Se são proibidos os portes de armas, ele é exceptuado: é o influente! Só ele caça nos meses defesos: é o influente! Só a sua rua é cal­çada: é o influente!

Se algum dia, leitores das Farpas, encontrar­des o influente, tirai-lhe o vosso chapéu. Ele reina, e o seu reino assenta sobre a coisa que, ape­sar de ser a mais lodosa, é ainda a mais sólida – a corrupção.

 

Nasce enfim o dia, o domingo desejado.

Os regedores começam a chegar à frente das suas freguesias. Os homens vêm de cara lavada, de grandes colarinhos brancos.

Para os deter até às 10 horas, impedir que eles se desmantilhem, e que, dispersos, fora das vistas zelosas do regedor, estejam expostos às tentações da oposição – há um casarão, ou um grande pátio, ou um enorme armazém, em que são recolhidos. Estão ali uns poucos de centos de homens, amontoados, sentados no chão, com o varapau na mão, a lista no bolso do colete. No entanto vem vinho e bacalhau. Passam os copos em redor, os queixos mastigam, e viva lá seu compadre! e à saúde do nosso regedor! e grandes risadas daqui e empurrões além, e pra­gas mais longe – e toda aquela multidão avi­nhada, impaciente, aborrecida, com um cheiro enjoativo e um rumor de troça, espera que che­gue a hora de dar o seu voto ao Governo, livre, espontâneo e consciente!

Cada freguesia vai votar arrebanhada, de rege­dor à frente. Os tamancos soam no lajedo da igreja, o secretário da mesa chama numa voz dor­mente. A cada nome o regedor volta-se para o indivíduo:

– Vá! és tu. Chega-te... perdeste a lista? Pensei! Deita ali! Rua!

E a igreja vai-se esvaziando, os sacristães apa­gam as velas nos altares, os senhores da mesa bocejam, as beatas persignam-se com água benta, os papelinhos brancos acumulam-se na urna, os influentes satisfeitos fumam no adro, os Cristos sobre os altares agonizam nas cruzes. Viva o sufrágio!

 

Bem te compreendemos, leitor! Querias comen­tários, conclusões, e a moral desta farsa? Olha, se sentires, no fim desta narração, a necessidade de uma liga de todos os homens sérios contra o triunfo progressivo desta corrupção – esse será o único comentário justo e fecundo.

 

                                 Junho 1871.

Há muitos anos que a política em Portugal apresenta este singular estado:

Doze ou quinze homens, sempre os mesmos, alternadamente possuem o poder, perdem o poder, reconquistam o poder, trocam o poder... O poder não sai de uns certos grupos, como uma péla que quatro crianças, aos quatro cantos de uma sala, atiram umas às outras, pelo ar, num rumor de risos.

Quando quatro ou cinco daqueles homens estão no poder, esses homens são, segundo a opi­nião, e os dizeres de todos os outros que lá não estão – os corruptos, os esbanjadores da fazenda, a ruína do País!

Os outros, os que não estão no poder, são, segundo a sua própria opinião e os seus jornais – os verdadeiros liberais, os salvadores da causa pública, os amigos do povo, e os interesses do País.

Mas, coisa notável! – os cinco que estão no poder fazem tudo o que podem para continuar a ser os esbanjadores da fazenda e a ruína do País, durante o maior tempo possível! E os que não estão no poder movem-se, conspiram, cansam-se, para deixar de ser o mais depressa que pude­rem – os verdadeiros liberais, e os interesses do País!

Até que enfim caem os cinco do poder, e os outros, os verdadeiros liberais, entram triunfan­temente na designação herdada de esbanjadores da fazenda e ruína do País; entanto que os que caíram do poder se resignam, cheios de fel e de tédio – a vir a ser os verdadeiros liberais e os interesses do País.

 

Ora como todos os ministros são tirados deste grupo de doze ou quinze indivíduos, não há nenhum deles que não tenha sido por seu turno esbanjador da fazenda e ruína do País...

Não há nenhum que não tenha sido demitido, ou obrigado a pedir a demissão, pelas acusações mais graves e pelas votações mais hostis...

Não há nenhum que não tenha sido julgado incapaz de dirigir as coisas públicas – pela imprensa, pela palavra dos oradores, pelas incri­minações da opinião, pela afirmativa constitucio­nal do poder moderador...

E todavia serão estes doze ou quinze indivíduos os que continuarão dirigindo o País, neste cami­nho em que ele vai, feliz, abundante, rico, forte, coroado de rosas, e num chouto tão triunfante!

Daqui provém também este caso singular:

Um homem é tanto mais célebre, tanto mais consagrado, quantas mais vezes tem sido ministro – isto é, quantas mais vezes tem mostrado a sua incapacidade nos negócios, sendo esbanjador da fazenda, ruína do País, etc.

Assim o Sr. Carlos Bento foi uma primeira vez ministro da fazenda. Teve a sua demissão, e não foi naturalmente pelos serviços que estava fazendo à sua pátria, pelo engrandecimento que estava dando à receita pública, etc... Se caiu foi porque naturalmente a opinião, a imprensa, os partidos coligados, o poder moderador, o julgaram menos conveniente para administrar a riqueza nacional. E o Sr. Carlos Bento saiu do poder com impor­tância.

Por isto foi ministro da fazenda uma segunda vez. Mostrou de novo a sua incapacidade – pelo menos assim o julgou, por essa oca­sião, o poder moderador, impondo-lhe a sua demissão. E a importância do Sr. Carlos Bento cresceu!

Por consequência foi terceira vez ministro. Caiu; devemos portanto ainda supor que natural­mente deu provas de não ser competente para estar na direcção dos negócios. E a sua impor­tância aumentou, prodigiosamente!

É novamente ministro: se tiver a fortuna de ser derrubado do poder, e convencido pela opi­nião de uma incapacidade absoluta, será elevado a um título, dar-se-lhe-ão embaixadas, entrará permanentemente no Almanaque de Gota.

Ora tudo isto nos faz pensar – que quanto mais um homem prova a sua incapacidade, tanto mais apto se torna para governar o seu país!

E portanto, logicamente, o chefe do Estado tem de proceder da maneira seguinte na aprecia­ção dos homens:

O menino Eleutério fica reprovado no seu exame de francês. O poder moderador deita-lhe logo um olho terno.

O menino Eleutério, continuando a sua bela carreira política, fica reprovado no seu exame de história. O poder moderador, alvoroçado, acena-lhe com um lenço branco.

O caloiro Eleutério, dando outro passo largo, fica reprovado no 1.0 ano da Faculdade de Direito. O poder moderador exulta, e quer a todo o transe ter com ele umas falas sérias.

O bacharel Eleutério, avançando sempre, fica reprovado no concurso de delegado. O poder moderador não pode conter o júbilo, e fá-lo minis­tro da Justiça.

E a opinião aplaude!

De modo que, se um homem se pudesse apre­sentar ao chefe do Estado com os seguintes documentos:

Espírito de tal modo bronco que nunca pôde aprender a somar;

Reprovações sucessivas em todas as matérias de todos os cursos.

O chefe do Estado tomá-lo-ia pela mão, e bra­daria, sufocado em júbilo:

– Tu Marcellus eris! Tu serás, para todo o sempre, Presidente do Conselho!

 

                                         Julho 1871.

Alguns jornais, com referência ao ministério, têm frequentemente aludido ao caso sin­gular de ser na realidade o sr. marquês de Ávila o único ministro que vive, fala, decreta, influi, faz deputados – a única individualidade agente e movente.

Ninguém até hoje precisou bem a razão real e íntima deste fenómeno; e o motivo é que ninguém sabe, com verdade e nitidez, a ma­neira como foi constituído este ministério ilus­tre.

Para fornecer, pois, a explicação crítica desse caso instrutivo, aqui revelamos a organização do ministério tal como a impuseram as circunstân­cias partidárias, as dificuldades de acordo, e a justa repugnância que todo o cidadão decoroso tem em se associar à acção que se chama gover­nar o País.

O ministério foi assim composto:

Presidente do Conselho – Marquês de Ávila e Bolama;

Ministro dos Estrangeiros – Marquês de Ávila e Bolama;

Ministro do Reino – Marquês de Ávila e Bolama;

Ministro da Fazenda – Marquês de Ávila e Bolama, sob o pseudónimo de – Carlos Bento da Silva;

Ministro das Obras Públicas – Marquês de Ávila e Bolama, sob o simpático e suposto nome de – Visconde de Chanceleiros;

Ministro da Justiça – Marquês de Ávila e Bolama, sob o anagrama – Só Vargas;

Ministro da Guerra -– Marquês de Ávila e Bolama, sob a denominação verdadeiramente inexplicável de – José de Morais Rego.

 

                               Julho 1871.

No folhetim do Diário Popular de 24 de Junho lêem-se notáveis considerações de ordem moral. São em verso. O poeta dirige-se, na sua declamação solitária, a uma mulher.

Numa prosa anterior (prelúdio) escreve que a missão da arte é ensinar a amar (!)– e que na arte não entra realidade, justiça ou moral pública porque (acrescenta) a arte nada tem com os direitos civis. Colocado assim à Larga, na anarquia da voluptuosidade e do lirismo, aí está o que o poeta expõe e ensina num jornal popular, com uma tiragem de 20000 exempla­res, que anda por cima das mesas e nos cestos de costura!

Começa por dizer:

– Que é bom amar no campo, à tarde e a sós!

Depois continua:

– Que prefere o campo, porque nas salas do mundo não lhe é dado beijar a mão dela às lar­gas! Que o campo é livre e as sombras dão refú­gio!

Por fim acrescenta:

Que queria que os raios cintilantes os cingis­sem a ele só com ela, erguidos em êxtase, longe de quanto é vil...

(Quanto é vil, na gíria da poesia lírica, é o mundo real, a família, o trabalho, as ocupações domésticas, etc.).

Dispensamo-nos de citar mais estrofes las­civas.

Aquelas bastam para legitimar as seguintes observações:

Nenhum jornal publicaria semelhantes teorias em prosa;

Nenhum homem que as escrevesse ousaria lê-las a sua filha, sem gaguejar, e sem comer as palavras;

Nenhuma senhora que por acaso as tivesse lido ousaria citá-las.

Como se consente então a sua publicação em verso? A higiene não é só a regularização salu­tar das condições da vida física; nela devem tam­bém entrar os factos da moralidade. Se é proi­bido que um monturo imundo ou um cão morto corrompam o ar respirável das ruas – porque há-de ser permitido que um poeta, com as suas endechas podres, perturbe o pudor e a tranqui­lidade virgem?

 

Há uma postura da Câmara que impõe uma multa a quem pronuncia palavras desonestas: porque não há-de ser igualmente proibido publi­car ideias desonestas?

Um ébrio, um pobre homem a quem se não deu educação, a quem se não pode dar leitura, a quem quase se não dá trabalho, diz uma praga numa rua, ouvida apenas de três ou quatro pes­soas, e vai para a cadeia ou paga uma multa de 3$000 réis. Um poeta lírico, esclarecido, aprovado nos seus exames, empregado nas secretarias, publica num jornal de cinquenta mil leitores, em letra impressa, permanente e indelével, uma série de desonestidades, e é apreciado, cumprimentado no Martinho, indigitado para uma candidatura!

Pedimos pois:

Ou que seja permitido livremente dizer na rua e no jornal pragas e desonestidades;

Ou que a multa da Câmara Municipal seja apli­cada a todos – e que tanto o ébrio que não sabe o que diz à esquina de uma rua, como o poeta lírico que escreve, com reflexão e rascunho de uma semana, ao canto de um jornal, paguem os 3$000 réis à Câmara, um pela sua praga, outro pela sua endecha.

 

                                     Julho 1871.

O sr. ministro do Reino fez entregar por um empregado de polícia ao Sr. Zagalo, direc­tor do Casino, um papel – reaccionário pela intenção, mas demagógico pela gramática – em que se notificava que, por ordem superior, esta­vam fechadas as conferências democráticas.

Conheces já decerto, leitor sensato e honrado, o protesto dos conferentes, a adesão de outros cidadãos, a opinião da imprensa...

E achas certamente na tua consciência que este acto do sr. marquês de Ávila, não tendo de certo modo equidade, não tem de modo algum legalidade; que é sobretudo profundamente inábil; e que o sr. marquês, dando um golpe de Estado contra alguns escritores que no Casino faziam crí­tica de história e de literatura, foi criar uma ati­tude política onde só havia um intuito científico.

Homens que numa sala, com senhoras na gale­ria, movem questões científicas e literárias, numa alta generalização de ideias, são tão inofensivos na política do seu país como um livro de mate­mática. São motores de pensamento e de estudo, que não vão tocar a rebate no sino das Mercês.

– Mas homens que o Governo obriga a fazer um protesto num café, na agitação de trezentas pes­soas; a percorrerem as redacções dos jornais, seguidos de uma multidão indignada; a coloca­rem-se como defensores da consciência ofendida – esses parecem-se terrivelmente com homens de uma acção política! As conferências desceram assim da sua serenidade filosófica; estão na luta, estão na discussão da Carta, estão na prosa da Gazeta do Povo!

 

Vejamos a legalidade do facto. Num país cons­titucional, tem-se sempre aberta sobre a mesa a Carta Constitucional – ou para descansar nela o charuto, ou para tirar dela um argumento. Diz a Carta no seu artigo 145º:

A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos portugueses.., é garantida pela Constituição do Reino, pela maneira seguinte:

  • 3º Todos podem comunicar o seu pensa­mento por palavras e escritos, e publicá-los pela imprensa sem dependência de censura, contanto que hajam de responder pelos abusos que come­terem no exercício desse direito.

Temos, pois, adquiridos à certeza dois pontos:

1º Que todo o cidadão pode publicar o seu pensamento falando ou escrevendo;

2º Que o cidadão fica responsável pelo abuso do seu direito.

Por consequência, logo na primeira confe­rencia:

1º O Sr. Antero de Quental podia falar sobre a religião em toda a liberdade da sua opinião;

2º Se abusasse, o Sr. Antero de Quental res­pondia pelo abuso.

É lógico. Ora quem torna efectiva a respon­sabilidade desse abuso?

Em primeiro lugar: O comissário que deve assistir a todas as reuniões públicas, na ideia do decreto com força de lei de 15 de Junho de 1870. «As reuniões públicas (diz este decreto) podem ser dissolvidas pela autoridade... quando por qualquer forma perturbarem a ordem pública. A dissolução da reunião só pode ser intimada à assembleia – depois da autoridade advertir em voz alta os directores da reunião (neste caso, o prelector)». O comissário assistente das confe­rências, o Sr. Rangel, não intimou, e não adver­tiu o Sr. Antero de Quental, nem em voz alta, nem com gestos. Talvez o tivesse feito por sus­piros – mas esse caso não está na lei. Portanto o sr. comissário não achou, na sua consciência, que o Sr. Antero de Quental abusasse da liber­dade de expor o seu pensamento.

Em segundo lugar: O ministério público que­relou do Sr. Antero de Quental? Não.

Por consequência nem o comissário presente à conferência, nem o ministério público, encon­traram na conferência do Sr. Antero de Quental abuso punível.

As conferências que se seguiram foram, uma sobre crítica literária contemporânea, outra sobre o realismo, como nova expressão da arte, a terceira sobre o ensino e as suas reformas. Em que atacavam estas a religião ou as instituições políticas? Fazer a crítica da literatura contempo­rânea é ofender (segundo a linguagem rococó da portaria) o código fundamental da monarquia? Nesse caso pedimos a cabeça do Sr. Pinheiro Cha­gas, o crânio do Sr. Júlio Machado, e uma grande porção do Sr. Luciano Cordeiro! Quem o diria!? Quando se escrever que o Sr. Vidal é um poeta lírico ligeiramente inferior a Lamartine, o trono de Sua Majestade ficará bambaleando um quarto de hora!

Mas vejamos! A última conferência foi feita no dia 19 de Junho; a portaria foi dada no dia 26 do mesmo mês, antes da conferência que ia ser feita. Por consequência o sr. marquês de Ávila fechou, não as conferências que se tinham feito, o que seria um pouco inútil – mas as conferên­cias que se iam fazer.

Ora, segundo o citado artigo da Carta, só se pode coibir a liberdade de pensamento quando houver abuso: e como esse abuso não existia, pelo simples motivo que a conferência ainda não fora feita, e por consequência o pensamento não fora manifestado – segue-se que o sr. ministro do Reino violou a Carta, se esta palavra violar ainda se pode empregar a respeito da Carta, sem atrair sorrisos maliciosos sobre tão insensata metáfora.

Ao ministro cabia unicamente o direito de fazer processar o Sr. Antero de Quental. Isso era a lógica, o bom senso, a legalidade.

Do que o ministro não tem o mínimo direito é da rude supressão da palavra a prelectores de literatura, de arte e de pedagogia. Fazendo, como fez, tal supressão está fora da lei, fora do espí­rito do tempo, quase fora da humanidade.

Com direito igual pode amanhã o sr. ministro mandar suprimir As Farpas, os romances do Sr. Camilo Castelo Branco, os volumes de histo­ria do Sr. Alexandre Herculano, os jornais, a conversação, esta simples pergunta – «Como está? passou bem?» Pode suprimir ainda um sorriso ou um olhar expressivo. Pode fulminar o espirro!

Ora o artigo 103º da Carta diz:

«Os ministros são responsáveis... § 5? Pelo que obrarem contra a liberdade dos cidadãos.»

E o § 28 do artigo 145º acrescenta:

«Todo o cidadão poderá fazer apresentar reclamações, queixas... e ATÉ expor qualquer infracção da constituição, requerendo... a efec­tiva responsabilidade do infractor.»

Seria portanto possível responder à portaria do sr. marquês de Ávila com o instrumento seguinte:

– «Requeiro à Câmara dos Deputados que torne efectiva a responsabilidade do sr. ministro do Reino, procedendo contra ele como infractor do § 3º do art. 145º da Carta Constitucional – segundo me é permitido pelo § 28 do citado artigo.»

 

Tanto em relação ao prelector que abusou da liberdade, segundo a Carta, como para o ministro que infringiu a lei, segundo a mesma Carta, temos até aqui argumentado com a legalidade.

Agora a equidade:

Que se quis fazer calar nas conferências? Foi a crítica política? Para que se deixa então cir­cular no País os livros de Proudhon, de Girardin, de Luís Blanc, de Vacherot? Foi a crítica reli­giosa? Para que se consente então que atraves­sem a fronteira ou a alfândega os livros de Renan, de Strauss, de Salvador, de Michelet?

Sejamos lógicos; fechemos as conferências do Casino onde se ouvem doutrinas livres, mas expul­semos os livros onde se lêem doutrinas livres. Ouvir ou ler dá os mesmos resultados para a inte­ligência, para a memória, e para a acção: é a mesma entrada para a consciência por duas por­tas paralelas. Façamos calar o Sr. Antero de Quen­tal, mas proibamos na alfândega a entrada dos livros de Vítor Hugo, Proudhon, Langlois, Feuer­bach, Quinet, Littré, toda a crítica francesa, todo o pensamento alemão, toda a ideia, toda a história. Dobremos a cabeça sobre a nossa ignorância e sobre a nossa inércia, e deixemo-nos apodrecer, mudos, vis, inertes, na torpeza moral e no tédio.

Nós não queremos também que num país como este, ignorante, desorganizado, se lance através das ambições e das cóleras o grito de revolta! Queremos a revolução preparada na região das ideias e da ciência; espalhada pela influência pací­fica de uma opinião esclarecida; realizada pelas concessões sucessivas dos poderes conservadores; – enfim uma revolução pelo Governo, tal como ela se faz lentamente e fecundamente na sociedade inglesa. É assim que queremos a revolução. Detes­tamos o facho tradicional, o sentimental rebate de sinos; e parece-nos que um tiro é um argumento que penetra o adversário – um tanto de mais!

Seríamos pois nós os primeiros a pedir o encerramento das conferências do Casino, se a ciência dos conferentes se resumisse a dizer:

– A barricada, meus senhores, é amanhã na Rua da Bitesga! Quanto ao petróleo, está lá em baixo no bilheteiro!

Mas que se faça calar, pondo-lhe a mão na boca, a ciência, a critica literária, a história, con­tra isso, do fundo deste livro, pequeno mas hon­rado, em nome do respeito que nós devemos a nós mesmos, e do exemplo que devemos a nos­sos filhos, protestamos e apelamos, não para a Europa, o que seria sofrivelmente inútil, mas para o próprio sr. marquês de Ávila, para uma coisa que ele deve ter debaixo da sua farda, uma coisa que se não cala, ainda quando em redor a intriga e o interesse fazem um ruído horrível – a cons­ciência!

Pois quê! Podem ler-se nas Bibliotecas e no Grémio, jornais republicanos, jornais da Comuna, toda a sorte de livros materialistas, racionalistas e socialistas – e não há-de ser permitido falar do que há de mais abstracto na política, de mais estranho e superior às agitações humanas e às violências partidárias, a História?

Pois é permitido à Nação publicar, em prosa impressa e permanente, ataques rancorosos à liberdade constitucional e à realeza constitucio­nal – e não pode ser permitido ao Sr. Antero con­denar as monarquias absolutas, e ao Sr. Sorome­nho condenar os romances eróticos?

Pois o marquês de Pombal expulsa os jesuítas e a sua política, e não é permitido a um confe­rente do Casino fazer a crítica da política dos jesuítas?

Argumentemos! Eu posso comprar um livro de Proudhon que combate o catolicismo, as monarquias, o capital: estou na legalidade. Posso lê-lo em voz alta aos meus amigos, ou aos meus criados: estou nos limites da Carta. Posso deco­rá-lo: haverá alguma lei que me proíba este exer­cício de memória? Posso recitá-lo, à luz do Sol ou à luz do gás, com gestos moderados ou com gestos descompostos: tudo isto é legal. Que eu trate no Casino de algum dos pontos de que se ocupa esse livro, proíbem-mo! Concordo em que mo proíbam, mas proíbam também aos livreiros a venda de Proudhon!

Quando se proibiu em França que Renan falasse, obstou-se ao mesmo tempo que Renan fosse lido.

 

Antes de haver conferências no Casino havia ali cançonetas. Mulheres decotadas até ao estô­mago, com os braços nus, a pantorrilla ao léu, a boca avinhada, cantavam, entre toda a sorte de gestos desbragados, um repertório de cantigas impuras, obscenas, imundas! Num verso bestial, a um compasso acanalhado, ridicularizava-se aí o pudor, a família, o trabalho, a virgindade, a digni­dade, a honra, Deus! Eram também conferências. Eram as conferências do deboche. E havia mui­tos alunos!

Pois isso que era a obscenidade, a infâmia, a crápula, parecia ao sr. marquês de Ávila compa­tível com a moral do Estado!

As conferências, que eram o estudo, o pensa­mento, a crítica, a história, a literatura, essas pareceram ao sr. marquês incompatíveis com toda a moral!

Homens refestelados, bebendo conhaque, gri­tando, apupando desgraçadas criaturas que se deslocam em trejeitos vis para fazer rir – isso é permitido por todas as leis!

Homens que escutam gravemente uma voz que fala de justiça, de moral, de arte, de civilização – isso é proibido com tanta violência que se salta por cima da Carta para o proibir! a isso manda-se um polícia dar duas voltas à chave! Miserere! Miserere!

 

                                           Julho 1871.

A Nação, jornal de arqueologia e de piedade, apresentado nestes últimos tempos

com um ar de esplêndido triunfo. Os adjectivos dos seus artigos de fundo caminham a marche-marche; os seus advérbios vão desfraldados ao vento; e no mero êxtase dos seus «pontos de admiração» se sente que ela espera para breve –a restauração. Ora muito bem sabemos a restau­ração de que, mas totalmente ignoramos a res­tauração de quem.

A Nação espera a restauração em França com o conde de Chambord – e di-lo claramente. Em Espanha com Carlos VIL – e exulta abundante­mente. Depois acrescenta: – e em Portugal com...

Põe pontos de reticência. É respeito? E pudor? Estratégia? Não se sabe. Evidentemente aqueles pontos de reticência designam alguém. Mas quem? – como se diz nos «vaudevilles».

Querem uns que seja o defunto Herodes; outros o falecido Filipe II; alguns ainda suge­rem que seja esse outro ausente do número dos vivos – o honrado Nabucodonosor!

Seja quem for, a Nação espera! A Nação vem cheia de júbilo, desde as suas citações latinas até aos seus anúncios de água circassiana! E a Nação não podendo mandar já preparar-lhe quar­tos na Ajuda ou em Queluz – prepara-lhe máxi­mas de boa governação!

Eis algumas dessas máximas, colhidas ao acaso entre doces pilhérias de direito divino:

– A liberdade de consciência é uma palavra boa para enganar os tolos, que nada significa a não ser um grande contra-senso.

Ora este modo de pensar pode dar lugar a interpretações aflitivas. Suponhamos a restau­ração feita, a Nação triunfante, agora, em Junho, em que um frio traiçoeiro nos surpreende à tarde, ao desembocar das ruas. Um cidadão, recenseado e eleitor, caminha no Rossio, e diz gravemente, com aquele ar meditado que toma a burguesia nas graves questões da vida:

– Diabo, está frio!

Acode subitamente um polícia legitimista, gri­tando:

– Perdão! o cavalheiro não tem direito a dizer essa irreverência!

Surpresa do cidadão. E o polícia mostra-lhe o repertório oficial, onde se lê:

– 12 de Junho... calma.

E o polícia terá razão! Desde o momento em que o direito divino nega a liberdade de cons­ciência, nenhum cidadão tem direito a espalhar doutrinas diferentes das de um repertório fun­dado na sabedoria das nações, autorizado pelos bispos, com uma tradição de 100 anos – infalível cartilha das nossas temperaturas!

 

Mas volvamos, volvamos, aos pontos de reti­cência!

Nós afirmamos que a opinião anda transviada quando pensa que aqueles pontos encobrem um nome temido. Não! A Nação é clara, sem equí­vocos. A Nação quando diz:

– Em França reinará Henrique V; em Espa­nha Carlos VII; e em Portugal...

Quer simplesmente dizer que em Portugal rei­nará Pontos de Reticência. Pontos de Reticência é um nome. O nome de um rei. Pontos de Reti­cência I.

Nós podemos estranhá-lo, nós que não sabe­mos a genealogia e os ramos laterais das casas legitimistas da Europa, que temos esquecido o nosso Almanaque de Gota. Mas a Nação, deposi­tária dos papéis de família da legitimidade, sabe­dora das suas tradições, autora da sua história –energicamente o afirma. E lícito aos constitucio­nais ignorá-lo – mas não contestá-lo.

Reinará pois em Portugal – Pontos de Reti­cência I.

Em breve o teremos no seu trono, com o seu ministério constituído. Como será nobre! tradi­cional! feudal! Como terá o sereno e radioso aspecto das coisas augustas e eternas!

Presidente do Conselho: – O Duque de Ponto Final.

Ministro do Culto: – Visconde de Parêntesis.

Ministro do Culto: – Visconde de Parêntesis.

Ministro da Guerra: – O Brigadeiro Vírgula.

Ministro da Justiça: – O Comendador Dois Pontos de Vasconcelos.

E serão terríveis!

 

E para este rei que se preparam tão boas máximas de governação! Citemos outra, tre­menda!

O Sr. Adolfo Coelho dissera no Casino, ao que parece – que a ciência no seu domínio era inde­pendente da fé.

Pois bem! um correspondente eclesiástico da Nação exclama, voltando-se mentalmente para o Sr. Adolfo Coelho: «Como ousa o sábio dizer que a ciência é alguma coisa sem a fé? Não, vaidoso! a ciência não pode dar um passo, um único, sem ser auxiliada pela fé!»

Queremos que esta seja a verdade; mas pen­semos então como a vida deve ser cruel e molesta para aquele eclesiástico e para toda a redacção da Nação. Imaginemos um destes homens piedo­sos, à noite, de chambre, à luz do candeeiro, tomando o rol à criada. Já examinou as parce­las, está a fazer a soma. A cena é solene. Uma luz mística banha as prateleiras. O gato res­sona.

– 3 e 7, calcula o clérigo suando.

E imediatamente pára. A ciência bem lhe diz que são 10, mas a ciência não é nada sem o auxi­lio da fé – e o homem do Senhor corre a con­sultar Santo Agostinho. Nada porém ensina sobre essa matéria o sublime Doutor. O eclesiástico arregala para a criada um olho pávido:

– Depressa, filha, baixa-me daí a summa de S. Tomás!

E folheia...

E para a casa das dezenas interroga Santo Atanásio, e para a das centenas os Evangelhos comparados!...

Já é de madrugada: a criada dormita’ a alvura esbatida do dia faz grandes fios pálidos nas vidra­ças; as andorinhas gritam na sua glória e na sua alegria; os rebanhos balam; as árvores espre­guiçam-se nos braços do vento; Deus, o bom Deus, o Deus Justo, vive na infinita trans­parência da luz – e o pobre eclesiástico, pálido, sonolento, aturdido, enterrado em in-fó­lios, folheia o Dicionário de Bergier, Bossuet, Noailles, os concílios de Trento e de Florença, Orígenes, Lactâncio, João Clímaco, Fleury, a Cartilha, o Larraga – para saber se pelas leis da Igreja lhe é permitido afirmar que «11 noves fora, é 2!»

E erra a soma!

 

Outra máxima da Nação:

«A liberdade e a igualdade são palavras ímpias e impuras.

Por consequência, no reinado legitimista, ne­nhum homem de bem, verdadeiro absolutista e verdadeiro jesuíta, ousará pronunciar essas pala­vras réprobas. Não as dirão nunca nas salas as pessoas delicadas. Serão desonestidades. Ante elas as faces castas corarão – e o ex-Tártaro, vulgo Inferno, não perdoará!

Assim o conde de A., querendo apresentar ao bispo de B., o Sr. Ferreira Fagote, ex-constitucio­nal, murmurará discretamente, para evitar a sór­dida palavra liberdade:

– Tomo... aquela que o pudor me impede de nomear, de apresentar a vossa reverência o Sr. Fagote!

Um pai austero gritará a seu piedoso filho, que entrou cambaleando às 3 da manhã no ninho seu paterno:

– Quem lhe deu, menino... a que os mais simples princípios de moral me vedam pronunciar... de entrar a estas horas da madrugada?

A palavra igualdade será também forçada a tomar o caminho do exílio.

Nos dicionários virá:

Igualdade, substantivo tão miserável que nem tem género. Empregado outrora nos artigos de fundo, hoje expressamente punido pelo artigo 10º do Código Penal.

E os advogados, no tribunal, para fazer sentir ao júri que circunstâncias que militaram num caso jurídico devem militar num outro, excla­marão, com uma eloquência nova:

– Estamos, pois, senhores jurados, na mais perfeita (tossindo)... que a consideração pelo tribunal e o meu amor pelas instituições me retém na língua de circunstâncias!

Um mestre de primeiras letras, ensinando a ler os meninos:

I-g-u-a-l-gual-d-a-da-d-e-de – Esterquilínio.

 

Há mais! A Nação, num artigo lírico e heróico, diz que a verdadeira missão do País não é a indús­tria – é a conquista! A pena de pato da Nação é pois uma lança disfarçada. Toda a mágoa da Nação é que Cacilhas não seja moura! Se o fosse, a Nação vestia a sua armadura e ia lá, num bote! Mas Cacilhas, a fiel Cacilhas, não é moura! Ai!

A Nação, pois, condena a indústria. A Nação julga a indústria uma causa de ruína moral para o País. A Nação, para que se mantenha pura e sem mistura a tradição heróica de Portugal, quer que se proíba a indústria!

Portanto, logo que a Nação triunfe e Pontos de Reticência I suba as escadinhas do trono, a indústria será punida pelos códigos, como pertur­badora da ordem e contrária aos destinos nacio­nais. E o sr. delegado do procurador régio pro­moverá ordem de prisão contra o insensato que em desprezo das leis, e afrontando o sagrado depósito das nossas instituições, ouse fundar –uma saboaria.

Ouviremos então, na audiência, o mesmo sr. delegado, apontando com o fura-bolos vinga­tivo para o mísero, curvado na dor e no arrepen­dimento, sobre o banco dos réus:

– «Pois quê! senhores jurados, não vedes que o réu lançou uma mácula nas nossas tradições impolutas? Faltava porventura a esse desgraçado onde exercer a sua actividade? Não tinha ele as muralhas de Diu? Não podia ele ir redobrar o Cabo? Porque não partiu com armas para as pla­gas do Oriente? Não via ele ao longe a África adusta? E mais perto, não via ele a afrontosa Castela?!

Será um tempo terrível! Haverá sociedades secretas para fazer gravatinhas de seda. A vidra­çaria da Vista Alegre passará, transportada a ocultas, para uma caverna. Os fabricantes de caixinhas de obreias, perseguidos, porão nas esquinas proclamações desesperadas com estas palavras – Cidadãos! ou a obreia ou a morte!

A indústria terá os seus mártires, que morrerão com heroísmo. Veremos subirem aos cada­falsos fabricantes de velas de sebo, exclamando com o sorriso iluminado e os olhos no Céu: – «Só tu és verdadeiro, á sebo!»

E nos jornais saborearemos estas locais:

Prisão importante: O célebre Eduardo Compostela foi ontem capturado com todos os seus cúm­plices, num covil, onde se dava à criminosa ocupa­ção de refinar o açúcar. O malvado fez revelações.

Tornou-se muito censurável o procedimento de alguns agentes de polícia que destruíram as provas do crime – comendo-as!

 

A Nação tem sobre os conferentes do Casino esta admirável opinião:

Que eles iam ali falar, não por vontade sua, mas por ordem de uma associação secreta;

Que nenhum acto seu é espontâneo, mas exe­cução de uma ordem da Internacional;

Que nada lhes pertence, em próprio, nem a acção, nem as ideias, nem o nome!

De modo que se um conferente toma à noite um sorvete no Áurea, é porque recebeu pela manhã este sinistro telegrama:

«Comité central: 7 da manhã. – Esta noite tomai sorvete botequim. Conveniente levantamento classes operárias! Em sorvete intransi­gentes. Viva a comuna! De morango!»

 

E o Sr. Antero de Quental, de ora em diante, terá de assinar assim o seu nome:

Antero (por assim dizer) de Quental (se ouso exprimir-me assim).

Ó Nação, tu és grande!

 

Mas a mais profunda ideia da Nação foi a de um artigo, em que respondia ao Sr. Antero de Quental. Aí chamou-lhe brisa, e provou que era brisa. Chamou-lhe fariseu, e descreveu-o como fariseu – arrastando por entre a multidão a fím­bria da sua toga.

Segundo, pois, a Nação, o Sr. Antero anda vestido com uma toga, cuja fímbria arrasta por entre as turbas da Rua Nova do Carmo.

Este erro de toilette, que a Gazeta do Povo nunca cometeria, é todavia desculpável na Nação. A Nação vive exclusivamente no passado, na arqueologia: não sabe que hoje já se usa o fra­que, pensa que ainda se vai na toga!

Se a Nação tivesse de descrever um baile (assim ela se pudesse desprender das contempla­ções seráficas para se dar a estes exames terre­nos!) aí está como ela descreveria um baile, a Nação!

«– Então o nobre marquês de Ávila, erguendo de leve a alva clâmide, adiantou o coturno com meneio gracioso. Por seu lado o Sr. Carlos Testa levantou a túnica tinta em púrpura, e fez chaine de dames, erguendo o pâmpano!... Tinham ambos as cabeças coroadas de rosas... No meio do festim o nobre presidente do Conselho rece­beu um papiro que escravo lacedemónio lhe apresentou em lavrada lâmina. As damas reclinadas nos triclínios respiravam aromas, e nos seus olhos brincavam os jogos e os risos. Circularam até tarde as taças de Falerno. O Sr. Macário dedi­lhou na harpa eólia concertos maviosos. Velhos legionários, encanecidos em Marte, faziam, apoia­dos aos gládios, a polícia nos átrios. Na via esperavam numerosas quadrigas!»

Nação, Nação, boa amiga! não nos queiras mal. Tu és velha, tu és fabulosamente velha, tu és de além da campa! Mas tens o carácter firme. E no meio da leviandade movediça destes parti­dos liberais – tu tens uma vantagem. Lançaste a âncora no meio do oceano e ficaste parada. Estás apodrecida, cheia de algas, de conchas, de crostas de peixes, mas não andaste no ludíbrio de todas as ondas e na camaradagem de todas as espumas! Tu eras excelente – se fosses viva. Mas és um jornal sombra. Es tão viva como Eneias. Tão contemporânea como Telémaco.

Volta, Nação, para ao pé das tuas sombras queridas! E apresenta as nossas saudações cari­nhosas ao Sr. D. Afonso II, o Gordo!

 

                          Julho 1871.

Singular temperamento o do discurso da coroa! Todo o mundo está desiludido, só ele espera! Segundo ele o País floresce, enriquece, e o Paraíso está ainda mais perto que a Outra Banda. E ten­tarmos um passo, um leve esforço, e entrarmos para sempre na tranquilidade augusta da perfeição – chegando a dispensar o Sr. Melício, ele próprio! Há só um ponto negro que assusta o discurso da coroa: é a questão da fazenda. No entanto, o discurso da coroa, cada vez que aparece em público, promete resolver a questão da fazenda.

Todos têm visto, decerto, um pequerrucho jogando a bisca com um irmão mais velho. O pequeno, se tem mau jogo, deita as cartas sobre a mesa, baralha, ri, confunde, grita:

– Desta vez não valeu, vamos a outro!

Mas se o jogo que lhe volta à mão é pior:

– Abaixo! – grita de novo. – Este também não valeu. Agora é que é sério!

E derruba um terceiro jogo, e cada vez pro­mete maior seriedade, e cada vez espalha maior confusão, e todo o mundo sorri em redor!

Às vezes – funesto momento das revoltas humanas! – o irmão mais velho, cansado, ter­mina por atirar furiosamente à cabeça do pequeno o baralho de cartas amarrotadas.

Pois bem, o discurso da coroa tem na política a atitude teimosa da criança que joga a bisca.

No começo de cada legislatura, o discurso da coroa declara gravemente:

– Desta vez vamos ocupar-nos com toda a seriedade da questão da fazenda, etc.

Mas durante a legislatura vem a confusão, a dissolução. O poder executivo tinha mau jogo, e deitou as cartas abaixo.

Surge outra Câmara. Volta no seu cerimonial o discurso da coroa. Diz:

– Da vez passada não valeu! Mas agora é que nós vamos aplicar-nos com o maior zelo à questão da fazenda...

E nessa legislatura, como a confusão se alarga mais, é imposta uma nova dissolução.

Reabre-se a Câmara. O discurso da coroa entra esbaforido, bradando:

– Agora é que é a valer! Agora é que é! Das outras vezes não! Mas agora com toda a cer­teza!

Agora é que nós vamos, positivamente e de uma vez para sempre, resolver a questão da fazenda...

E nada se resolve, trocam-se palavras vãs, espe­culam-se lugares rendosos, profundam-se dissidên­cias mesquinhas, e baralha-se outra vez o jogo.

E aí vem o discurso da coroa abrir de novo as cortes, rosnando com a mão no peito:

– Pois senhores, palavra de honra, agora a todo o custo, impreterivelmente, havemos de resolver a questão da fazenda, etc.

Ora nós estamos vendo isto ao canto da sala, atentos e desinteressados, enquanto ferve o chá, e já percebemos, no irmão mais velho, um movi­mento de quem vai atirar com o baralho de car­tas à cabeça do pequerrucho.

E francamente tem razão. A teima das crian­ças – como a teima das instituições – chega a irritar! Se não, que o digam o mestre régio das Mercês – e Félix Pyat.

 

Desta vez, porém, o discurso da coroa foi sobretudo chamente noticioso. O poder exe­cutivo, num momento de adorável franqueza, con­fessou ao poder legislativo que S. M. o Imperador do Brasil tinha estado em Lisboa. É talvez bas­tante censurável esta concorrência que o discurso da coroa faz ao Diário de Notícias; mas ele real­mente não pode proceder de modo diverso. O dis­curso da coroa tem de dizer alguma coisa ao Pais. Mas o quê? factos da vida política? da acção civi­lizadora? do pensamento público? Como? se nada se fez, nada se civilizou, nada se pensou! O dis­curso da coroa, nesta falta de significativos factos da vida pública, tem de recorrer aos cancãs inte­ressantes da vida particular. Não podendo falar como uma página de história, conversa como uma tagarelice do Chiado. O seu dever com efeito é resumir tudo o que politicamente se fez no interregno parlamentar. Mas se nesse interregno o facto mais característico da vida nacional foi o partir para o Porto a companhia do teatro do Ginásio, que remédio senão que o discurso da coroa dê parte desse sucesso constitucional?

E ainda veremos, querendo Deus, o discurso da coroa, assim concebido:

«Dignos pares e senhores deputados da Nação:

– É com o maior prazer que me acho no meio de vós. O sr. conselheiro Pestana partiu para Vizela. Vai publicar-se brevemente um novo jor­nal, intitulado o Brado da Lourinhã. Chegou o bri­gue Carolina. Há hoje dobrada na Rua Augusta, nº108. O cambista Fonseca espera os seus fre­gueses. Vamos ocupar-nos com todo o afinco da questão da fazenda.

«Está aberta a sessão.»

E, como em virtude da inacção política e sono­lência individual, cada vez maiores, não haverá em breve nem factos políticos a proclamar, nem notícias particulares a referir – o discurso da coroa será obrigado, para dizer alguma coisa, a recitar obras de imaginação:

«Dignos pares e senhores deputados da Nação portuguesa: – Por uma fria noite de Inverno, um vulto misterioso caminhava, embuçado em capa alvadia, pelos desfiladeiros da serra Morena. Vergava-lhe a fronte uma grande amargura. De súbito parou; tinha ouvido, para os lados do des­penhadeiro tenebroso, um assobio lúgubre... –Continuar-se-á na próxima sessão de abertura. Passemos agora à questão da fazenda.»

E mais tarde, cada vez mais vago, o discurso da coroa murmurará:

«Dignos pares e senhores deputados da Nação portuguesa:

 

«Era no Outono quando a imagem tua

A luz da Lua sedutora eu vi:

Lembras-te, Elisa?...

 

«E aplicaremos todo o nosso zelo à intrincada questão da fazenda.

«Está aberta a sessão.»

 

Para quê o discurso da coroa? Para que obri­gar o chefe do Estado a repetir uma velha lauda de prosa escrita em 24, e que é hoje uma negação da verdade, uma falsificação da história? O País está desorganizado: esta certeza é dada pelas dis­cussões do parlamento, pelos relatórios dos minis­tros, pelas afirmações da imprensa, pelas conver­sações dos cidadãos. Por consequência, ou o dis­curso da coroa exprime rigorosamente a opinião e a consciência do chefe do poder executivo – e então que confiança nos pode inspirar este magis­trado, se ele ignora inteiramente o estado do seu país? Ou não exprime opinião alguma – e então que seriedade tem o chefe do poder executivo, vindo diante do País, quando eram necessárias palavras decisivas, recitar parolas ocas e vãs?

Sabemos perfeitamente que a coroa não é cul­pada do discurso que lhe obrigam a recitar, como não é responsável pela desorganização em que a obrigam a viver. A desorganização é a conse­quência de uma política ignorante e torpe – o discurso é a fórmula de um cerimonial antigo e rococó. Mas já que os governos não têm a capacidade de tolher a desorganização, tenham ao menos o pudor de cortar o cerimonial. E seja substituído o discurso da coroa por um franco e honrado: – Bons dias, meus senhores, toca a sentar!

Porque, sabe a coroa o que logicamente devia dizer? – Isto:

«Meus senhores: – E com o maior desprazer que me acho no meio de vós, pois que estou fati­gado da vossa imbecilidade, da vossa intriga e do vosso desleixo. A situação exterior é esta: somos o que somos, porque nos deixam sê-lo por mise­ricórdia. A interior é esta: finanças em ruína; colónias exploradas pelo estrangeiro; marinha nula; indústria entorpecida; clero ignorante e imoral; ensino caótico; vida municipal extinta; funcionalismo desbragado; pensamento emude­cido; carácter corrompido; serviços públicos desorganizados; leis em confusão; agiotagem em triunfo; proletariado em miséria; etc., etc., etc. Vão, e que o Diabo os carregue, para os seus luga­res. Disse.»

Assim devia falar a coroa.

 

Mas, assim ou de outro modo, que seja sobre­tudo nacional em gramática! Que significa a cons­trução do período à inglesa – adoptada pelo dis­curso da coroa? Que britânico furor a tomou de colocar os adjectivos antes dos substantivos? E uma adulação à pérfida Álbion? Quebramos nós o Tratado de Methuen – para nos irmos escra­vizar no tratado de gramática de Sadley? A que vêm estas expressões repetidas de pública fazenda, nacional riqueza? São influências da política inglesa?

Confiemos em que nunca tenhamos de descer à humilhação de ouvir a coroa, por atenção aos nos­sos fiéis aliados, abrir-se deste modo com o País:

«Dignos pares e senhores deputados da por­tuguesa nação: – Feliz me acho, por me sentar no meio do nacional parlamento, dando começo às nacionais lides. E necessário que zelemos a pública administração, para manter as pátrias liberdades. Sem o constitucional decoro não há públicas garantias. A nacional fazenda merecerá o maior zelo ao legislativo poder. O executivo poder esse manterá as publicadas leis. Está aberta a ordinária sessão das portuguesas câma­ras. All right!»

Esperemos que a coroa, mais bem aconselhada, volte às tradições da nacional – gramática.

E o próprio Sr. Pinto Bessa aplaudirá!

 

                               Julho 1871.

Escrevemos no primeiro número das Farpas:

«As sessões da Câmara não têm seriedade. Aí reinam o tumulto, a confusão..., etc.»

Uma nova justificação desta verdade apareceu na sessão do dia 29.

O sr. presidente do Conselho falava. Houve um momento em que S. Exª, ou cometeu um erro de gramática, segundo o dizer de alguns jor­nais, ou arremessou desdenhosamente à circula­ção a eloquente palavra bomba, segundo a afir­mação de outros. O facto é que a maioria entendeu que a melhor maneira de manifestar ao sr. presidente do Conselho que não tinha confiança na sua política, era apupá-lo! E a Pátria deve agra­decer aos senhores deputados que eles não lhe tivessem dado bengaladas!

Então o sr. presidente, a título de esclareci­mento, perguntou timidamente se se achava numa praça pública. Pergunta excessivamente ociosa. Numa praça nunca há nem aqueles gritos, nem aqueles tumultos – porque a polícia intervém e faz evacuar a praça. Impunemente, ao abrigo das instituições, sem ingerência policial – uma assuada só se pode dar na Câmara dos Deputados. Em mais nenhuma parte é permitido, pelos regu­lamentos da polícia, ser-se tão excessivamente tro­cista. O caso é que a maioria, para provar ao sr. presidente que se considerava ofendida com a designação de praça, rompeu num alarido tal como não é uso fazer-se na praça de touros –tudo para demonstrar bem claramente que não estava ali um grupo de moços de forcado, mas um corpo de legisladores. A palavra patife fez então pela primeira vez a sua entrada na Câmara e tomou assento. Foi também então que o sr. presidente do Conselho, em compensação, mandou o epíteto malcriados a cumprimentar e abraçar os eleitos do País.

A assuada, o motim, o chasco, o charivari, cresceram tão constitucionalmente que o Sr. Aires de Gouveia, eclesiástico, teve de enterrar na cabeça o seu chapéu alto. A este gesto, cheio de dedica­ção nacional, a tempestade evacuou a sala. Diz-se que alguns srs. deputados foram cumprimentados à saída pelos melhores frequentadores do sol na praça do Campo de Santana, que se achavam pre­sentes. As galerias permaneceram impassíveis. Tal foi esta memorável sessão, em que a altura das ideias competiu com o vigor da eloquência!

 

Parece pois definitivo que o Parlamento deci­diu adoptar o motim e a assuada como a forma parlamentar dos seus trabalhos. Vistes, amigos, a sessão de 29 de Junho. Quereis assistir à de 29 de Julho? Aí tendes o seu fiel extracto:

 

O ORADOR (concluindo): – E foi assim, sr. pre­sidente, que se passaram os factos.

O SR. LUCIANO DE CASTRO (interrompendo com grandes punhadas na mesa): – O ilustre depu­tado diz uma refinadíssima peta...

Vozes: – Apoiado, apoiado!

O ORADOR (voltando-se e desabotoando o colete): – Petas? oh! descarado! (apoiado, apoiado). Eu, sr. presidente, não posso consen­tir que esse biltre entre no meu foro interior!

Vozes: – Fora, fora!

O SR. COELHO DO AMARAL (espancando com dignidade o Sr. Barros e Cunha) : – E assim provo, sr. presidente, que o Sr. Barros e Cunha não tem razão alguma nos princípios que estabeleceu.

O SR. MARIANO DE CARVALHO: – Mas a dita­dura foi nefasta! E não há mariola nenhum que me demonstre o contrário... (acende o cigarro).

O SR. COELHO DO AMARAL (continuando o espancamento): – Não me interrompam o dis­curso! Não me interrompam!

O SR. PRESIDENTE (aos Srs. Mariano e Santos Silva): – Os senhores não têm direito a inter­romper sovas que o regimento garante (berreiro).

O SR. PRESIDENTE DO CONSELHO: – A Câmara está-se sepultando na mais profunda abjecção!

(O sr. presidente do Conselho sucumbe, sob uma chuva de bengaladas).

O SR. JOSÉ DIAS (batendo com a bengala sobre a mesa, a um continuo) :–Dois cafés! Um cabaz!

Vozes (atravessando o corpo legislativo). –Salta meia de Colares!

O SE. PINHEIRO CHAGAS (deitado, com ar melancólico):

 

«Oh virgem pálida e triste

Branca visão doutros Céus!»

 

O SR. AIRES DE GOUVEIA: – O que diz ele?

Vozes: – Ele cisma! Ele cisma!

A oposição atira cebolas ao Sr. Pinheiro Cha­gas. Alguns senhores deputados grunhem obsce­nidades, que o ruído impediu que chegassem à mesa dos taquígrafos.

O ORADOR: – A Câmara não quer escutar-me? Pois bem, eu passo a outros argumentos... (Dis­tribui bengaladas).

Tumulto. O sr. presidente atira a campainha à cara da maioria, e o tinteiro aos queixes da oposição. Alguns senhores deputados miam de gato. O Sr. Santos e Silva, no auge da sua indig­nação, dá cambalhotas. O Sr. Luís de Campos espalha uma prodigiosa quantidade de pontapés.

O SE. PRESIDENTE: – Para amanhã continua esta interessante discussão.

A Câmara sai correndo, gritando, rebolando pelas escadas abaixo.

Os contínuos levantam as garrafas de Colares.

 

A política chegou a tal miséria, que nem a poli­dez instintiva coíbe os homens.

 

                                 Julho 1871.

Falou-se muito, durante este mês, num facto de grande coragem praticado por S. Exª...

Foi o caso que S. Exª subia numa carruagem a rampa de S. Bento, às Cortes, quando um polícia civil advertiu ao cocheiro que não era permitida a passagem. S. Exª, com ânimo notável, deitou, em risco de vida, a cabeça fora da portinhola, gritando ao polícia: Para trás! e bradando ao cocheiro: Avante! Mais adiante, novo perigo. Outro polícia faz parar a carruagem. S. Exª, repetindo a façanha heróica, com a simplicidade de Turenne, varou o polícia com uma repreensão, regritou marcialmente: Para a frente! E tomou o reduto – isto é, subiu a rampa. A história raras vezes regista tão alti­vos rasgos. Ainda não secaram os louros de Mon­tes Claros!

Alguns jornais – a imprensa invejosa ames­quinha os heróis – tiveram para este facto cen­suras ásperas, e fortemente argumentadas.

Quiseram dizer – que S. Exª pretendeu colo­car-se ridícula e presunçosamente, como excepção, superior às determinações da polícia: que S. Exª, militar, deu o exemplo do desacato à disciplina militar: que S. Exª, chefe de polícia, tornou irri­sórias as disposições policiais: que S. Exª, legis­lador, ensinou o desdém das leis: que S. Exª, homem de bem que deve cumprir o seu dever, repreendeu dois homens pelo facto de eles cum­prirem o seu dever: que S. Exª obriga as pessoas de senso a lembrarem-lhe que ele não é o tirano Nabucodonosor – mas o comandante obscuro de uma milícia civil, e que a fama do seu nome ainda não passou de Cacilhas, e só a muito custo vai conseguindo penetrar para os lados de Aldeia Galega.

Isto disseram alguns malévolos. Nós, porém, que costumamos, sob a aparência exterior dos factos, procurar-lhes a realidade secreta, dizemos afoitamente que aquele acto só prova em S. Exª – exuberância de brio guerreiro!

 

  1. Exª é um homem valente, bateu-se bem. Mas as guerras acabaram, e S. Exª está como um homem gordo que não faz exercício: S. Exª sofre de excessos de valor – como esse homem sofreria de excessos de sangue. S. Exª tem congestões de brio. A coragem faz-lhe já vertigens, como aos sanguíneos a abundância de vida. E verão, meus senhores, que ainda há-de acabar por lhe fazer –furúnculos!

Imagine-se com efeito um homem forte, febril de batalhas a dar, palpitante de redutos a tomar, sôfrego de sangue inimigo – vivendo burgues­mente e pacatamente na Baixa, ou no quartel do Carmo, e tendo por única glória estratégica des­tacar patrulhas para o Arco do Bandeira, e por único troar de artilharia os foguetes do Sr. Car­dim! Um bravo, nestas circunstâncias, acumula dentro em si, dos gorgomilos ao estômago – quan­tidades prodigiosas de furor guerreiro. A cada movimento que faz, sobem-lhe à cabeça, vêm-lhe à boca – ondas de ardor bélico. Acrescentem a isto a atmosfera militar em que esta época se move e respira: guerras no Reno, guerras civis, províncias conquistadas, cidades que ardem, nomes de generais heróicos que cintilam em tele­gramas, o ruído, a fulguração da glória, a imor­talidade na história – e ele, S. Exª, condenado, como única acção radiosa, a repreender o 73 da 2ª porque furtou uma correia ao 48 da 5ª!

Esta castidade na luta pesa a S. Exª. S. Exª necessita de dar satisfação às exigências do seu temperamento – e S. Exª está viúvo de glória! Por isso, ao mais pequeno motivo, S. Exª de den­tro do deputado da maioria saca o herói da muni­cipal.

Houve um tempo feliz entre todos, em que S. Exª andou ferindo as grandes guerras – dos penicheiros. Então S. Exª vivia nos interesses da luta, nas comoções soberbas. Era o tempo das patrulhas dobradas e dos grandes recontros da Rua Nova do Carmo. Então, quando as guardas avançadas lhe vinham dizer: – «Há penicheiros para os lados da Bitesga» – S. Exª, sorrindo, res­pondia: – «S. Jorge e Portugal» E partia.

E o nome de s. Exª aparecia nos telegramas do correspondente de Lisboa – para o Clamor de Alpedrinha!

Outras vezes eram vultos suspeitos que tinham entrado numa casa, a horas lôbregas. S. Exª cor­ria, cercava, bloqueava, destacava um corpo de exército composto do Bento da 5ª – outro com­posto do José Prefeito da 1ª. Mas ai! os bandidos que S. Exª surpreendia minando as instituições, eram mesários da confraria das Chagas!

Esse período épico, porém, acabou. O mundo cada vez se torna menos interessante. E S. Exª está de novo na disponibilidade do heroísmo. Por isso atacou com tão cru arremesso os dois polícias civis. Tem ele culpa? Pode ele dizer ao seu sangue que não corra e à sua espada que não vença? Pode ele impedir-se de tomar Cacilhas – e orchata?

Ora, nestas circunstâncias, julgamos que há uma única maneira de salvar este temperamento, fatalmente belicoso:

E estabelecer, no matadouro, reses – para uso do herói. Dá-se assim um calmante à sua feroci­dade. O guerreiro todas as manhãs, como quem vai tomar o seu leite de burra, vai matar o seu vitelo. Sangra o boi – e o brio. Doente de valor, S. Exª chega, brande a espada, e a cabeça armada do bezerro inimigo rola-lhe aos pés. O herói limpa a espada, vem almoçar, e fica para todo o dia repou­sado, tranquilo, sem ímpetos de bravura, pacato como uma couve. E a polícia civil entrará de novo no gozo da sua dignidade e da sua pele Assim seja!

 

                       Julho 1871.

Diz-se – e quem sabe se é uma torpe calúnia? – que o Governo vai ter o impudor de con­sentir que se discuta o orçamento geral! E natu­ral que por essa ocasião melancólica se atente no orçamento especial do muito belicosamente cha­mado Ministério da Guerra. Para tal eventuali­dade, aqui estiramos sobre estas páginas algumas reflexões amáveis.

Corre que, nisso a que os relatórios cha­mam pomposamente o exército, se gastam anualmente perto de 4000 contos. Corre, por­que se torna difícil averiguar a exacta ver­dade, sendo o orçamento, como é, um inviolável segredo.

Ora se estudarmos bem a utilidade do nosso exército, temos ocasião de algumas francas e for­tes risadas, dignas de Homero.

A primeira utilidade de um exército é que se bata.

O nosso exército não se pode bater.

Pelo número dos seus soldados (batalhões incompletos, quadros rareados, etc.), estamos como depois de uma derrota – ao cabo de 24 anos de paz!

O seu armamento é inteiramente ineficaz. Está provado cientificamente que, depois de meia hora de fogo, as espingardas do exército passariam para o inimigo – rebentadas em estilhaços. Quando não rebentem, o seu alcance é humani­tário. Queremos dizer – as balas ficam a meio caminho do inimigo.

Verdadeiramente o nosso exército só poderia alcançar o inimigo – correndo atrás dele: mas para isso faltam-lhe sapatos! Realmente, por tão pouco armamento, mais valia uma tanga e uma flecha!

Quanto à nossa artilharia, há um só meio de ela prejudicar o inimigo: é fazê-lo prisioneiro, colocá-lo amarrado a 4 palmos da peça, procurar não errar o tiro, e conseguir assim inutilizar-lhe a barretina!

O equipamento é nulo. Nem tendas, nem can­tinas, nem transportes. Nenhum aparelho de marcha, nenhum material de acampamento.

O soldado português é bravo, firme, sofredor; tem o élan, o arremesso, como o touro. Mas nas guerras modernas estas qualidades são inúteis. Compreendeu-se já que uma peça de artilharia é um soldado mais sofredor e mais firme que um filho de Adão.

Ora estes grandes duelos de artilharia, exigem no soldado outras qualidades além da coragem: exigem sobretudo, nos estados-maiores, a estra­tégia como uma ciência. Os nossos generais não têm ciência: tiveram outrora, na mocidade, bra­vura e pulso: depois veio a idade: perderam a força quando ela na verdade já não era necessá­ria, mas não ganharam a ciência, quando ela é indispensável.

Os regimentos não têm instrução. Não têm o hábito do acampamento, da fadiga, das marchas. Não têm pontaria. A disciplina está relaxada; não há respeito, nem subordinação. Não existe mesmo espírito militar, brio de quartel, amor da arma. O soldado vive na cidade, numa indolência de paisano: fuma, namora, canta o fado: é um cam­ponês que procura sofrer a farda cinco anos – o mais alegremente possível.

Não servindo o exército para a guerra – podia naturalmente servir para a polícia.

Mas não serve. Nas cidades de segunda ordem os regimentos vivem ociosos. Pois nessas cidades não há patrulhas, nem rondas, nem sentinelas: as ruas estreitas, sujas, mal alumiadas, são um ter­reno livre à desordem.

Nada mais natural que aproveitar os vagares do regimento para patrulhar a cidade. Não! o regimento deita-se às 9 horas, para não apanhar o ar da noite. Quem vigia vagamente, sem cui­dado e sem persistência, um dia cada semana, são os cabos de polícia. Ora os cabos de polícia são cidadãos que fazem este serviço obrigatória e gratuitamente. Isto é – cidadãos que têm o seu trabalho, a sua família, os seus deveres, sofrem ainda a obrigação de manter a tranquilidade de graça. Homens que não têm família, nem traba­lho, de propósito para mais livremente poderem manter a ordem, que não têm outros deveres que não sejam esses, e que para isso são pagos – dei­tam-se às 8 horas da noite, depois de terem pas­seado desde as 8 horas da manhã. Oh bom senso! Oh pátria nossa!

O exército deste modo é uma ociosidade orga­nizada!

Convém ao menos ter exército para o caso de uma revolta?

Nesse caso – o exército seria ainda inútil. Em Portugal o exército não se bate facilmente com o povo: o exército é uma porção de povo fardado. Em França o exército é um mundo à parte, exi­lado nos seus quartéis e nos seus camps, com ideias, hábitos, sentimentos próprios, sem comu­nicação com o povo, chamando-lhe bourgeois e pekin, e não tendo dúvida alguma em o espin­gardear. Em Portugal o soldado vive com o povo: saiu dele, volta brevemente para ele: está com ele no contacto de todos os dias, bebe nas mesmas tabernas, canta as mesmas cantigas, brinca nas mesmas romarias, é ainda um cidadão. Não espin­gardeia o cidadão! Quando muito, nunca lhe paga o vinho.

 

De modo que o exército em Portugal:

E inútil para a guerra;

Inútil para policiar;

Inútil para reprimir uma revolta.

Para que serve? Para gastar 4000 contos.

Há mais: um exército só por si é inútil se não faz parte de uma inteira organização militar.

Onde estão as nossas praças-fortes? A nossa artilharia? Os nossos arsenais? Os nossos campos entrincheirados? As nossas fábricas de armamen­tos para um caso de perigo? Os nossos fortes? Os nossos caminhos estratégicos? – Nada temos, a não ser o bom senso fechado, a fronteira aberta, e umas peças de artilharia a que deu Jogo Camões – o que é poético, mas frágil!

 

Dir-nos-ão: «Mas nós não somos um país militar...

Então façamos o que se deve num país que não é militar. Não gastemos 4 000 contos tão improdutivamente, como se os gastássemos em caixinhas de soldados de chumbo – (plúmbeos guerreiros, diria o Sr. Vidal, poeta lírico).

Licenciemos o exército – e criemos:

1º Uma guarda nacional, com serviço exten­sivo a todo o cidadão válido;

2º Um corpo de gendarmaria civil.

Alcançávamos assim:

1º Economizar 4 000 contos ou pelo menos 3 000;

2º Entregar, à agricultura, uns poucos de mil braços inesperados;

3º Tornar eficaz a defesa nacional;

4º Estabelecer por todos os distritos do País um serviço de polícia, necessidade impreterível;

Havia ainda uma 5ª vantagem; mas não a expomos, receando que a corte nos mandasse assassinar.

 

                               Julho 1871.

Houve este mês um pânico patriótico: julgou-se que íamos perder Macau! A China, segundo se afirmava, tinha intimado Portugal a evacuar aquela colónia – onde só devia reinar o rabicho.

Foi acusado acremente o Governo; a Baixa pululou de alvitres; e o orgulho nacional da Rua dos Retroseiros pareceu profundamente ferido. Corria que o Sr. Carlos Bento, como outrora Caím, ouvia, a horas mortas, vozes vingativas que lhe bradavam:

– Que fizeste tu de Macau, Bento?

E tanto que o Governo, para nos tranquilizar, bradou de entre as colunas do Diário do Governo:

– Não, Portugueses, não, Macau ainda é vosso!

A verdade parece ser que Macau está ainda preso à Metrópole – por alguns telegramas que se estão trocando entre o governador de lá, e o Governo de cá. Diríamos que está por um fio! – se tão lamentável equívoco se pudesse escrever, quando se trata do orgulho nacional e da Baixa.

 

As relações de Portugal com as suas colónias são originais. Elas não nos dão rendimento algum: nós não lhes damos um único melhora­mento: é uma sublime luta – de abstenção!

– Não – exclamam elas com o olhar voltado de revés para a Metrópole – mais rendimento que o deste ano, que é nenhum, não és tu capaz de nos pilhar, malvada!

– Também – responde obliquamente a Metró­pole – em maior desprezo não sois vós capazes de estar!

 

Quando muito, às vezes, a Metrópole remete às colónias um governador: agradecidas, as colónias mandam à mãe-pátria – uma banana. E perante este grande movimento de interesses e de trocas, Lisboa exclama:

– Que riqueza a das nossas colónias! Positi­vamente, somos um povo de navegadores!

É necessário no entanto fazer justiça à Metró­pole. A Metrópole tem certas generosidades con­sideráveis com as colónias. Assim, com os Açores – que não são uma colónia, mas que pela dis­tância, pelo abandono, pela separação de interes­ses, têm toda a fisionomia colonial... Portugal para com os Açores é inesgotável – de desembar­gadores! Às vezes os jornais dos Açores, tomando um ar severo, voltam-se para a Metrópole, e gri­tam-lhe no rosto: madrasta! O reino imediatamente lhes manda, com todo o zelo – dois desem­bargadores!

Mas daí a pouco os Açores, inquietos, come­çam a dizer que não seria mau tentar os Esta­dos Unidos! O País ataranta-se; e para lison­jear os Açores, manda-lhe mais desembargado­res. De todos os paquetes, os Açores, aterrados, vêem desembarcar turbas de desembargadores. Já aquele fértil solo negreja de desembarga­dores.

– Basta! – exclamam os Açores sufocados.

– Basta de segunda instância!

E a Metrópole, inexaurível no seu amor, con­tinua impassível a verter-lhe no seio – catadupas de desembargadores!

 

Igual generosidade para com as possessões de África, verdadeiras e legítimas colónias, essas! Para aí o País é inesgotável – de celerados! E celerados escolhidos com inteligência. Um sujeito que tenha tido a baixeza de roubar só 5$000 réis, nunca poderá aspirar a fazer parte da sociedade de Luanda. Para se ser remetido como mimo da Metrópole é necessário, pelo menos, ter sondado, com a navalha de ponta, as entranhas de um amigo querido!

Poderá supor-se que Moçambique e Compª recebem estas dádivas com um entusiasmo – extremamente sublinhado. Não! As possessões de África estão contentes. Há-de vir tempo mesmo em que quem quiser em Moçambique ou em Angola um criado, um amigo ou um noivo – espe­rará a remessa dos facínoras.

Os comerciantes irão dizendo, com ar pensa­tivo:

– Isto vai mal! Não há caixeiros de con­fiança! Os ladrões desta vez tardam!

E um sujeito será assim apresentado numa casa particular:

– O Sr. Fulaninho, que teve a honra o ano passado de assassinar seu próprio pai, como demonstra...

– Oh! muito gosto em conhecer...

– E a Srª Fulana, ladra muito conhecida na sociedade da Boa Hora.

– Então? tem a bondade de se sentar!

E com estas generosidades que o Governo res­ponde vitoriosamente àqueles que vão, em falsas vozes, afirmando:

Que o País despreza as colónias; que elas estão abandonadas a uma frouxa iniciativa par­ticular, sem estímulo, sem protecção, sem tran­quilidade; que a energia individual só pode ser fecunda num país bem policiado; que nas coló­nias não há garantias de segurança, nem solici­tude pelo comércio, nem polícia, nem higiene, nem instrução; que tudo ali vive na desordem, na desorganização, no desleixo, numa antiquís­sima rotina; e que o único movimento é o do estrangeiro que as explora de facto – apesar de nós as possuirmos de direito.

 

Mas, meus senhores, antes de tudo, nós não temos marinha! Singular coisa! Nós só temos marinha pelo motivo de termos colónias – e jus­tamente as nossas colónias não prosperam porque não temos marinha! Todavia a nossa marinha, ausente dos mares, sulca profundamente o orça­mento. Gasta 1159 000$000!

Que realidade corresponde a esta fantasma­goria das cifras? uns poucos de navios defei­tuosos, velhos, decrépitos, quase inúteis, sem arti­lharia, sem condições de navegabilidade, com cor­dame podre, a mastreação carunchosa, a história obscura. E uma marinha inválida. A D. João tem 50 anos, o breu cobre-lhe as cãs: o seu maior desejo seria aposentar-se como barca de banhos.

A Pedro Nunes está em tal estado, que, ven­dida, dá uma soma que o pudor nos impede de escrever. O Estado pode comprar um chapéu no Roxo com a Pedro Nunes – mas não pode pedir troco.

A Mindelo tem um jeito: deita-se. No mar alto, todas as suas tendências, todos os seus esforços são para se deitar. Os oficiais de marinha que embarcam neste vaso fazem disposi­ções finais. A Mindelo é um esquife – a hélice.

A Napier saiu um dia para uma possessão. Conseguiu lá chegar; mas exausta, não quis, não pôde voltar. Pediu-se-lhe, lembrou-se-lhe a honra nacional, citou-se-lhe Camões, o Sr. Melício, todas as nossas glórias. A Napier insensível, como morta, não se mexeu.

Das 8 corvetas que possuímos são inúteis para combate ou para transporte – todas as 8. Nem construção para entrar em fogo, nem capacidade para conduzir tropa. Não têm aplicação. Há ideia de as alugar como hotéis. A nossa esquadra é uma colecção de jangadas disfarçadas! E este grande povo de navegadores acha-se reduzido a admirar o vapor de Cacilhas!

Têm um único mérito estes navios perante uma agressão estrangeira: impor pelo respeito da idade. Quem ousaria atacar as cãs destes velhos?

Já se quis muitas vezes introduzir nas fileiras destes vasos caducos – alguns navios novos, ágeis, robustos. Tentou-se primeiro comprá-los.

Sucedeu o caso da corveta Hawks. Era esta corveta uma carcaça britânica, que o Almiran­tado mandava vender pela madeira – como se vende um livro pelo peso. Por esse tempo o Governo português – morgado de província ingé­nuo e generoso – travou conhecimento com a Hawks, e comprou a Hawks. E quando mais tarde, para glória da monarquia, quis usar dela, a Hawks, com um impudor abjecto – desfez-se-lhe nas mãos! Estava podre! Nem fingir soube! Tinha custado muitas mil libras.

Tentou-se então construir em Portugal. Sa­bia-se que o Arsenal é uma instituição verdadei­ramente informe: nem oficinas, nem instrumen­tos, nem engenheiros, nem organização, nem direcção. Tentou-se todavia – e fez-se nos esta­leiros a Duque da Terceira. Foi meter máquina a Inglaterra. E aí se descobre que a tenra Duque da Terceira, da idade de meses, tinha o fundo podre! Foi necessário gastar com ela mais cento e tantos contos.

Nova tentativa. Entra nos estaleiros a Infante D. João. 87 contos de despesa. Vai meter máquina a Inglaterra. Fundo podre! O Arsenal perdia a cabeça! Aquela podridão começava a apresentar-se com um carácter de insistência ver­dadeiramente antipatriótica! Os engenheiros em Inglaterra já se não aproximavam dos navios portugueses senão em bicos de pés – e com o lenço no nariz. As construções saídas do Arsenal sucumbiam de podridão fulminante. A Infante D. João custou em Inglaterra, mais cento e tan­tos contos!

O Arsenal, humilhado no género navio, come­çou a tentar a especialidade lancha. Fez uma a vapor. Lança-se ao Tejo, alegria nacional, colchas, foguetes, bandeirolas... E a lancha não anda! Dá-se-lhe toda a força, geme a máquina, range o costado – e a lancha imóvel! Mas de repente faz um movimento... Alegria inesperada, desilusão imediata! A lancha recuava. Era uma brisa que a repelia. Em todas as experiências a lancha recuava com extrema condescendência: brisa ou corrente tudo a levava, mas para trás. Para diante, não ia. Pegava-se! O Arsenal tinha feito uma lancha a vapor que só podia avançar – puxada a bois. O País riu durante um mês. O Arsenal roeu a humilhação, encetou a espé­cie caí que. Ainda o havemos de ver, no género construção em madeira, cultivar – o palito!

 

A nossa glória, inquestionavelmente, é a Este­fânia. Parece que poucas nações possuem um vaso de guerra tão bem tapetado! O orgulho daquele navio é rivalizar com os quartos do Hotel Central. E um salão de Verão surto no Tejo. E no Tejo realmente dá-se bem. No mar alto, não! Aí tem tonturas. Não nasceu para aquilo: um navio é um organismo, e como tal pode ter vocações: a vocação da Estefânia era ser gabinete de toilette. E pacata como um conselheiro. E uma fragata do Tribunal de Contas! Por isso quando a qui­seram levar a Suez, quantos desgostos deu à sua Pátria! quantas brancas fez à honra nacional! E verdade que os cabos novos, da Cordoaria Nacional (sempre tu, ó terra do nosso berço!) quebraram como linhas, e ninguém lhes pode contestar que tivessem esse direito. A marinha­gem também não quis subir às vergas (opinião respeitável, porque a noite estava fria). Alguns aspirantes choraram de entusiasmo pela Pátria. O capelão quis confessar os navegadores.

O caso foi muito falado nesse tempo. Mais celebrado que a descoberta da índia. Essa só teve Camões que naufragou; – a viagem da Estefânia teve o Sr. O. Vasconcelos que arribou! Tanto é semelhante o destino dos que cultivam o ideal! O facto é que desde então brilha no Tejo, tran­quila, reluzente e vaidosa – a Estefânia, corveta mobilada pelos Srs. Gardé e Raul de Carvalho.

 

Com tal marinha, como podem as colónias prosperar? O Governo daqui a pouco, quando a idade for dizimando estes antigos vasos de guerra – não tem quem lhe leve às colónias um regi­mento, uma ordem, um ofício. Vê-lo-emos – para vergonha eterna de uma das caravelas de Vasco da Gama – pedir à marinha mercante o patacho Constância, com o fim de acudir a Timor. Há-de chegar a recorrer às faluas de Alcochete. E mais tarde, pela nossa pobreza progressiva, as comunicações com as colónias terão de ser feitas – de viva voz!

Quando houver um ofício que remeter para um governador de colónia, irá um amanuense da secretaria ao Cais do Tejo, e aí, voltando-se para o sul, bradará no espaço e nos ventos:

– Il.mo e Ex.mo Sr...

E as solidões do Oceano repetirão gemendo:

– Il.mo e Ex.mo Sr.!

 

E depois, sucede que nem todos os ministros dão igual importância à marinha. Se por exem­plo os Srs. Latino e Rebelo pensavam que a orga­nização da marinha garantia a prosperidade das colónias, aqui temos o Sr. Melo Gouveia que pensa de outro modo, ele!

Ele entende que a marinha serve – para man­ter bem presente nas colónias a ideia da Pátria, e sobretudo, (textual: discurso de S. Exª por ocasião da discussão do orçamento da marinha na legislatura passada) sobretudo «para certificar às colónias que elas são lembradas na Pátria com carinho e saudade».

E aí está! Nós a pensarmos que um navio ia vigiar o litoral, garantir a paz interior, impor o respeito ao estrangeiro, dar protecção ao comér­cio – e no fim o que o navio vai fazer é signi­ficar às colónias que a Pátria melancólica lhes manda muitos recados e os seus suspiros!

Ora neste caso a marinha pode ser dispensada. Para expressar o nosso sentimento basta que o Governo remeta às colónias, pelo vapor da car­reira, um bilhete contendo uma saudade roxa, uma mecha dos seus cabelos, e estes dizeres meigos:

– «Colónia! lembro-me de ti com pungente mágoa, definho nos teus ardores... Lembra-te de mim, meu bem... Olha de lá a Lua, que eu de cá também a olho com a alma em ti. Pensando nos teus encantos, dou largas ao salgado pranto. Até à morte o teu Fiel amante, o ministro e secre­tário dos negócios da marinha e ultramar,

 

Gouveia e Melo.»

 

Ou, para não dar escândalo, pode o Governo de S. M. recorrer a um anúncio amoroso nos jornais.

 

     COLÓNIAS PORTUGUESAS

     FITA AZUL NO CHAPÉU

 

«Sigilo e sentimento. Recebi. Ralado de pai­xão. Confiemos no Céu. Quem te pudesse ver no Passeio Público à boquinha da noite! Unamos as nossas mentes na mesma prece. Teu, Gou­veia.»

 

Enfim, o amor é muito engenhoso; e o Sr. Melo Gouveia achará, decerto, depois de extinta a marinha, um meio interessante para que o Governo possa manifestar às colónias – a sua chama!

Para que temos colónias? E ai de nós que as não teremos muito tempo! Bem cedo elas nos serão expropriadas por utilidade humana. A Europa pensará que imensos territórios, pelo facto lamentável de pertencerem a Portugal, não devem ficar perpetuamente sequestrados do movi­mento da civilização; e que tirar as colónias à nossa inércia nacional, é conquistá-las para o pro­gresso universal. Nós temo-las aferrolhadas no nosso cárcere privado de miséria. Não tardará que na Europa se pense em as libertar.

Para evitar esse dia de humilhação sejamos vilmente agiotas, como compete a uma nação do século XIX – e vendamos as colónias.

 

Sim, sim! bem sabemos! a honra nacional, Afonso Henriques, Vasco da Gama, etc.!

Mas somos pobres, meus senhores! E que se diria de um fidalgo (quando os havia) que dei­xasse em redor dele seus filhos na fome e na imundície – para não vender as salvas de prata que foram de seus avós? Todos diriam que era um imbecil canalha! Pois bem, estes 4 milhões de portugueses são os filhos esfomeados do Estado, para quem as colónias estão como velhas salvas de família postas a um canto num armá­rio. E hesitará o Estado em as vender? Sobre­tudo quando temos de as perder? Se o País se pudesse reorganizar – bem! As colónias seriam no futuro uma força. Mas assim! com esta deca­dência progressiva, irremissível...

E verdade que se as vendêssemos, o Governo deixaria o País no mesmo estado de miséria, e, como já não tinha colónias – compraria fraga­tas! Dilema pavoroso! Devemos vender as coló­nias, porque não temos Governo que as admi­nistre; mas não as podemos vender, porque não teríamos Governo que administrasse o produto! Miserere!

E depois se as vendêssemos, que dor para o Sr. Gouveia – que as ama! A quem daria ele então as esperanças da sua mocidade e o viço do seu peito? Não, colónias, sede sempre fiéis a Gouveia! Não espezinheis esse coração de vinte anos, cheio de crenças! Que a vossa divisa seja doravante - Gouveia e cacau!

E prosperareis!

 

Samuel escreve-nos uma carta, que ele intitula Consciência, e em que discute opiniões, juí­zos, ditos, espalhados, ao flutuante acaso do humorismo, nas páginas rápidas destes volumes.

Samuel é nosso amigo, ama o nosso riso, e presta as suas mãos, que diz cansadas e velhas, para ajudar a tirar a verdade do fundo do nosso poço.

 

Samuel porém insinua que as Farpas mostram vaidade quando afirmam que são o bom senso – porque ninguém é o bom senso! Mas, injusto Samuel, atende bem! – As Farpas não disseram que eram o bom senso absoluto, com a suprema plenitude da razão, a posse exclusiva da verdade, nenhum temperamento e muita roupa branca! O nosso prospecto não declarava – As Farpas são o espírito de Deus levado sobre as águas.

Pobres Farpas! decerto que elas não são a coluna de logo, nem as doze tábuas da lei, nem a grande voz do deserto! – Enfeitadas e colori­das na sua porção de bandarilhas, aguçadas e incisivas na sua porção de ferro, ágeis e laborio­sas como abelhas, elas são sobretudo e antes de tudo 96 páginas impressas na Tipografia Univer­sal, sem grandes erros de gramática e sem gran­des verdades de filosofia, estalando de riso por todas as entrelinhas, mesmo quando franzem a testa – e contentando-se com serem alegremente recebidas, pela manhã, à hora do correio e do almoço, por alguns espíritos simpáticos e por algumas brancas mãos. Diógenes decerto, por tão pouco, não apagaria a sua lanterna!

 

                                 Agosto 1871.

Publicou-se, há tempo, na Imprensa da Uni­versidade, em Coimbra, um folheto acerca da Comuna.

Bom, ou mau, o folheto foi lido, levemente discutido, totalmente comprado. Era anónimo.

Que há-de acontecer? o Governo proíbe-lhe a venda! Só aqui há um mundo revolto de pilhéria. O livro é publicado em Maio, esgotado em Junho, e proibido em Julho! A única crítica é a garga­lhada!

 

Nós bem o sabemos: a gargalhada nem é um raciocínio, nem um sentimento; não cria nada, destrói tudo, não responde por coisa alguma. E no entanto é o único comentário do mundo político em Portugal. Um Governo decreta? gargalhada. Reprime? gargalhada. Cai? gargalhada. E sem­pre esta política, liberal ou opressiva, terá em redor dela, sobre ela, envolvendo-a como a palpi­tação de asas de uma ave monstruosa, sempre, perpetuamente, vibrante, e cruel – a gargalhada!

Política querida, sê o que quiseres, toma todas as atitudes, pensa, ensina, discute, oprime – nós riremos. A tua atmosfera é de chalaça. Tu és filha de um dichote que casou com uma pirueta! Tu és clown! tu és Fajardo! Se viveres, rimos! A oração fúnebre que diremos sobre a tua campa será –Ah! ah! ah! –A nota que a teu respeito se lançará na história será – Ih! ih! 1h! A tua recordação entre os homens será – Uh! uh! uh! Oh poder exe­cutivo! oh Sandio Pança! oh pilhéria! Publi­cado num mês, esgotado no outro, proibido no seguinte! Oh Pátria! Oh cambalhota! oh Bertol­dinho!

 

Mas corre que o Governo, além de proibir o folheto, vai processar o autor do folheto. Aí, alto! Recolhemos a gargalhada, tiramos do cesto o ferro em brasa.

Processado porquê?

Três coisas fazia o autor anónimo daquele opúsculo:

Explicava a situação e as ideias dos partidos em França; verberava os Srs. Thiers e Jules Favre; defendia alguns actos da comuna e alguns dos seus homens.

Por qual destes três factos é ele processado? Qual determina o estado de criminalidade?

Explicar os partidos em França? Então são seus cúmplices e devem ser processados pelo Governo português:

Todos os jornais, de todas as cores, de todas as cidades;

Todos os deputados, de todas as câmaras, de todas as nações;

Todos os livros, de todas as políticas, de todos os continentes.

E preparar, para toda esta gente, quartos no Limoeiro! Ergue-te e abre, ó Manuel Mendes Enxúndia!

É acusado o autor do folheto por ter verbe­rado os Srs. Thiers e Favre? Que lei lho proíbe? Que regulamento, que portaria, que decreto me inibe, a mim, a ti, a ele, de gritar em cima das torres que o Sr. Thiers é um imbecil, o Sr. Favre um traidor, o imperador da Rússia um bebedor de champanhe?! Está o Sr. Thiers elevado à cate­goria de dogma? E ele equiparado pelo Governo à religião do Estado? Temos o Sr. Thiers invio­lável como Cristo?

Que façam um processo às Farpas, pois nós declaramos isto: – O Sr. Thiers é um sujeito astuto, aproveitável a um país que precise viver de expedientes, mas perfeitamente inapto para uma nação que tenha de se organizar com ideias; é um político de pequenos meios que já foi polí­cia e parteiro.

O Sr. Favre é um bastardo de Robespierre, declamador de tribunal, violentador do poder em 4 de Setembro como radical, e em 18 de Março ministro conservador, personagem característico daquela farsa política que se chama – tira-te tu, para que vá eu!

E aqui estão estes Adolfo Thiers e Júlio Favre, iguais em inviolabilidade à Sagrada Eucaristia, ou à Imaculada Conceição! E sere­mos processados, seremos degradados, se ousar­mos vergastar com algumas frases de histó­ria as carnes antiquadas dos Srs. Adolfo e Júlio!

Mas é acusado o autor do folheto por ter defen­dido alguns actos da comuna e alguns dos seus homens? – Oh! indigna vergonha! Pois é proibido em Portugal ter opinião sobre um facto estran­geiro? Pois a comuna passou-se na nossa política? Foi a Rua do Arco do Bandeira incendiada com petróleo? Foi o Sr. O. de Vasconcelos que mandou fuzilar o arcebispo de Paris? Pois não pertence a história ao puro domínio do pensamento? Pois a própria França não impede que se escrevam livros louvando a comuna, e o Governo português impe­de-o? Pois o Governo não proíbe que os jornais legitimistas exaltem o absolutismo que prendeu e matou, cortou a machado nossos pais, sequestrou as nossas casas, queimou as nossas searas, e proíbe que se discuta uma política cujos excessos se passaram a 100 léguas de nós, sem relação con­nosco, sem acção na nossa acção?! Pois há alguma lei que me obrigue a amar S. Francisco de Sales e a desprezar Tibério?! Pois a opinião impõe-se como as posturas da câmara municipal?! Pois haverá cartilha para as nossas apreciações histó­ricas? Se o Governo proíbe que se exaltem os homens da Comuna, deve logicamente proibir que se exaltem os homens de 93, o Governo provisório de 48, e que admiremos o próprio Sr. Thiers, antigo redactor do Nacional, fautor da revolução de 30! E que vá mais longe então! que nos pro­cesse, porque nós admiramos os Gracos, Espár­taco salvador de escravos, Moisés que libertou um povo, Cristo que remiu uma raça!

O Governo português pondo a sua tosca mão sobre o pensamento! – oh! pirueta, dá-lhe tu a recompensa!

 

                           Agosto 1871.

A câmara conservadora defende-se! rejeita por 51 votos contra 23 a reforma da Carta! Mas como foram estranhas as declarações de alguns dos 51 conservadores! Porque (quem jamais o diria?) eles só votaram contra a reforma da Carta – por entenderem que a Carta deve ser refor­mada.

Somente entendem também que a reforma é inoportuna. Um homem é agarrado por dois ladrões, amarrado a uma árvore. De madrugada passam dois cavaleiros, e vêem ao longe, vagamente, na neblina, o vulto. Compreende-se que discutam, no primeiro momento, se é ou não um homem que ali está em agonia: mas, desde que verificaram que é um homem, o que se dirá do seu bom senso se começarem a discutir – a oportunidade de o salvar?

A Carta contraria ou não as tendências do espí­rito moderno, e a opinião? Sim ou não? Só isto se pode debater. Mas confessar publicamente que sim, e votar que não – é o mesmo que declarar:

– Nós entendemos que o País sofre com esta constituição, mas desejamos que ele continue a sofrer!

Ninguém dá crédito, porém, às vossas decla­mações, senhores! Vós o que não quereis é nenhuma reforma da Carta! O que tentais evitar é que intervenha na vossa política, a força da opinião popular! E sabeis porquê? Porque se a democracia, mesmo sob a forma monárquica, tivesse o seu advento – as vossas doces e rendo­sas sinecuras ficariam estateladas no chão! E vós quereis ouvir Bellini em S. Carlos, e tomar sor­vetes no Verão com sossego! Eis aí!

Ah! vós dizeis que amais o progresso. Amais o progresso que vos inventa cadeiras mais cómodas; o progresso que vos monta operetas de Offenbach para acompanhar alegremente a diges­tão do jantar; o progresso que descobre melho­res limas para cortardes os calos! Esse progresso decerto o amais! Mas o que não amais é o pro­gresso político, porque esse traria uma ordem de coisas que extinguiria os vossos ordenados, levantaria as vossas décimas sonegadas, trans­tornaria as vossas posições; – isto é, este pro­gresso tirar-vos-ia os meios de poderdes gozar o outro. E aí está o que vós não quereis, amáveis bandidos!

Vinde no entanto para diante dos leitores das Farpas, com o extracto das vossas cómicas opi­niões colado às costas. E já que não auxiliais o bem, ajudai a gargalhada!

O Sr. Barjona começou por dizer que o pro­jecto da reforma lhe parecia indefinido e vago. Ora o projecto marcava muito explicitamente os títulos 3, 4, 5, 6 e 7. Pode chamar-se-lhe largo – mas indefinido... Santo Deus! se S. Exª chama à designação explícita de 5 capítulos uma coisa vaga – o que chamará então às nuvens do poente? Chamar-lhes-á soma de 5 parcelas?

E acrescenta S. Exª que não é daqueles que Liga pouca importância às constituições políticas. Ainda bem! Mas que estranha revelação! Há pois políticos em Portugal (e só em Portugal se é só político), que não dêem importância às constitui­ções políticas? O meu criado não dá com efeito muita atenção a essa espécie, mas porque dá todos os seus cuidados a escovar o meu fato. (E ainda assim não gosta do Sr. Carlos Bento, mas é uma questão puramente pessoal). Que exis­tam porém sujeitos que tendo profissão de ser só políticos (oh farsa!) não dêem atenção às consti­tuições políticas – estranho parece, porque a ver­dade é que esses indivíduos não estão encarrega­dos, como o Miguel, de escovar o meu fato.

 

O Sr. Silveira da Mota é mais estranho ainda! Examina, com grande critério, todas as reformas que o País precisa – e termina por dizer que em vista daquela dolorosa ladainha, o País não pre­cisa nenhuma. O que se traduz deste modo trá­gico: isto está tão arruinado que já agora deixá-lo ficar assim!

O Sr. Barros e Cunha declara que todo o seu sentimento (êxtase, melancolia, doçura, amor, etc.) são pela reforma da Carta: mas que a frieza da sua cabeça não lhe permite admitir essa reforma. Como homem frio, quando raciocina, o Sr. Barros e Cunha é conservador: mas como homem de sentimento, quando cisma ao luar, quando segue o gemer da guitarra, quando escuta o rouxinol – ai! como ele então deseja a reforma da Carta!

 

O Sr. Adriano Machado não quer aquele pro­jecto da reforma da Carta – porque pretende ele mesmo apresentar um. Isto entende-se. É um homem que tem ambições e a sede de um nome! Em lugar da Reforma Mendes, aspira a que os jor­nais da província celebrem no futuro a Reforma Adriano!

 

O Sr. Costa e Silva entende que a Carta é libe­ral e não precisa reformas; e, a tê-las, só em algum dos seus artigos, não muitos. Para este senhor a questão é de quantidade. Aí 5 ou 6 con­tentam-no: se fossem 3 e meio, tinha cãibras de prazer! Mas sobretudo o que ele apetece – é resolver a questão financeira! E espera que ela seja resolvida! Doce ingenuidade! Todo o mundo estava admirado de tanta inocência infantil; e perguntava-se com cuidado onde teria o Sr. Costa e Silva deixado o seu bibe!

O Sr. Peixoto (?),depois de se ter visto singu­larmente enredado em grandes frases, conseguiu desentalar-se e dizer, claramente, que antes de tudo a reforma urgente consistiria em escrever bons livros! Que não basta que haja escolas! que são sobretudo indispensáveis bons livros! Faz isto desconfiar que o Sr. Peixoto supõe que o único livro que se tem escrito, depois do Génesis, é o das Proezas de Rocambole! Mas o Sr. Peixoto pareceu sobretudo grande quando declarou que o povo não tem direito a mais liberdade! O Sr. Pei­xoto, que não é neto do conde Chambord, nem possui na África plantações de café, estava a fingir para a galeria que era da casa de França e grande senhor de engenhos! Pobre moço! E quando ele jurou que a verdadeira reforma, que incumbia ao parlamento, era dar ao povo livros que lhe ensinassem a natureza do seu País e a sua própria índole? Muita gente compreendeu que esta frase difícil significava que a câmara, antes da questão da fazenda, da administração, etc., se devia ocupar – em escrever compêndios de geo­grafia e tratados de moral.

E terminou assim: «Estas reformas reclamam todas as nossas forças e todo o nosso tempo; não fatiguemos aquelas, e não percamos este!» Abis­memo-nos na contemplação deste período imortal, que, à parte a sua construção cómica – significa: «Não nos levantemos tarde e não comamos coisas que nos façam mal ao estômago». Se acrescen­tarmos a isto os banhos do mar, há todo o motivo para supor que o País está salvo!

O Sr. Pinheiro Chagas vota contra a reforma da Carta, porque é pouco experiente. Este moço justifica o seu voto – mostrando a sua pouca barba!

 

O Sr. Franco Frazão declara que a reforma da Carta não deve ser admitida à discussão, porque está muito calor! Este homem é grande! Este homem há-de ir longe – em havendo frio! Dei­xem vir Janeiro, e o País verá como o Sr. Franco reforma e organiza. Por ora, não. É este um grande princípio que passará para os repertórios, assim fixado: Janeiro, frio, geada; planta chicó­ria e reforma a Carta!

 

Tal foi esta sessão, em que notáveis opiniões viram a luz do dia – e a luz do dia viu notáveis opiniões!

 

                                 Agosto 1871.

A câmara dos deputados está tendo realmente uma compreensão muito estreita dos seus deveres parlamentares. Nota-se com espanto que os senhores deputados, ao entrar, não descalçam as suas botas! Ninguém explica esta reserva.

O Sr. Barros e Cunha há dias tinha calor, e não se pôs em mangas de camisa! Via-se bem antes de ontem que o Sr. Arrobas estava apertado no seu colete, e no entanto não se desabotoou! Estra­nhas abstenções! Porque se coíbem, santo Deus? Porque se impõem a inexplicável privação de não beberem cerveja na sala? Que significa esta falsa compreensão das regalias constitucionais?

 

Porque não tiram, para maior comodidade de suas pessoas, a consequência lógica do seu proce­dimento? Se se desprenderam de todo o respeito, porque não se desembaraçam das suas gravatas? Se se atribuíram o direito de dizer injúrias, por­que não se dão o direito de trazer chinelas? Por­que conservam uma certa compostura de toilette – se têm desabotoado tanto a dignidade? Vamos, meus belos cavalheiros da injúria franca! Um último passo! Já aniquilaram o decoro, ponham de lado a polidez. Nem mesmo se prendam com o asseio! Tirem os botins, e atirem por cima das carteiras, à face do País, essas peúgas de alvura duvidosa! Desapertem esses coletes, e que a Pátria veja nas pregas das camisas o suor dos seus eleitos! Venha cerveja! Saltem as primeiras rolhas! Caiam as últimas injúrias! Ferva a intriga e espumem os bocks! Ao tilintar dos copos mis­ture-se o embate dos insultos! – É falso, mente! Mais cerveja! Isso é uma bestialidade, fora! Cigarros! Rompam as disputas de café em ati­tudes de taberna! Ninguém se coíba! Que o fumo do tabaco faça uma nuvem às votações – e as nódoas de vinho um comentário aos projectos de lei! E praguejem, e assobiem, e escarrem! E viva a troça! Hip! hip! hip! Hurra! Salta um deci­litro! Fora, patife! E lari-lo-lé, lo-lé! Para o pagode! Oh! legisladores! Oh! homens de Estado! Oh! feira das Amoreiras!

 

Pois temos nós obrigação de respeitar a câmara, quando ela se não respeita? Pois ela vive nas assuadas indecorosas – e há-de exigir que nos curvemos como se ela vivesse nas ideias ele­vadas? Pois aquela senhora, que ali mora defronte, poderá estranhar que eu a repila brutalmente, em lugar de a saudar delicadamente – se em vez de passar na discreta compostura do pudor, ela me vier fazer esgares com a cuia à banda?

Porque vos havemos de respeitar, dizei? Pelo saber que não tendes? Pela dignidade que rene­gastes? Lêem-se os extractos de todas as câmaras do mundo, e em todas há seriedade e discussão inteligente; em todas se trabalha, se pensa, se organiza, se legisla. Entre nós vemos, durante um mês, arrastar-se uma discussão sobre perso­nalidades de regedores; e o que se debate é se se fez ou se não fez a estrada da Covilhã, e se o Governo comprou ou não comprou exemplares de um Elogio do Sr. Ávila! E todas as questões úteis e altas desprezadas, e uma perpétua ventania de insultos trocados, e o abandono de toda a ideia, o ódio de todo o trabalho, o esquecimento de toda a decência! E no entanto a Espanha mede, pole­gada por polegada, a porção da nossa liberdade que se vai enterrando no lodo!... Sois tão crimi­nosos que nos fazeis perder o riso. E no entanto ele é a nossa vingança! E é indispensável que se mantenha sempre pronto, amargo, cruel, para que em nome da consciência ofendida vos vamos expondo, querendo Deus, trémulos e grotescos, ao escárnio da multidão.

 

                           Agosto 1871.

Não, senhores!

Não queremos que acusem as Farpas de parciais! Não se dirá que foi a nossa pena, exal­tada pela fantasia e pela ironia, que desenhou os contornos de uma sessão memorável na Câmara! Tomaremos a exacta narração que o Sr. Melício, correspondente, deputado, homem noticioso e lin­fático, dá ao Comércio do Porto, excelente folha lúgubre!

O Sr. Barjona falava quando o motim reben­tou. As provocações (diz o Sr. Melício) eram acompanhadas de murros sobre as carteiras. Quadro esplêndido! Suas Ex.as de cabelo em desa­linho, gravata solta; as carteiras vergando, e, tanto quanto lhes permitia a sua qualidade de madeira, tomando biocos suplicantes; e Suas Ex.as, atirando-lhes murros, encontrões, pontapés, cachações, palmadas, estouros, todas as varieda­des sonoras de uma argumentação eloquente! Isto já é grande! Isto já é prodigiosamente grande!

Mas maior é o último detalhe do motim, con­tado na correspondência do Sr. Melício. Diz o Sr. Melício: as POSIÇÕES POUCO ACADÉMICAS E MENOS PARLAMENTARES (???) de alguns srs. depu­tados levaram o sr. presidente a MANDAR EVA­CUAR A GALERIA!

Pergunta a imaginação aterrada – que posi­ções foram essas?

Não! isto é extremamente sério! Para que o presidente de uma Câmara mande evacuar as galerias com o motivo de elas não presenciarem as posições que os deputados estão tomando – é necessário que estes se tenham permitido ati­tudes verdadeiramente estranhas! Dado mesmo que alguns senhores se tivessem deitado ao com­prido, ou tivessem dado cambalhotas – nada disto, ainda assim, justificaria a precaução pudica do Sr. António Aires. E note-se que as galerias resistiram. É que as magnetizava um espectáculo refinadamente excepcional...

Que se passou pois?

Teria o sr. visconde de Valmor rompido no excesso de se pôr de cócoras? Mas é tão natural isso – no parlamento!

Teria o Sr. Teles de Vasconcelos montado às cavaleiras no Sr. Barjona? Mas isso que impor­tava – entre portugueses!

Teria o Sr. Jaime Moniz, para afirmar à Câmara e ao País a moderação dos seus princí­pios, mostrado o interior das suas flanelas? Teria

o Sr. Arrobas cortado os seus calos? Teria o Sr. Barros e Cunha, num acesso de ira, botado a língua de fora? Não! Não podiam ser somente estes actos ligeiros!

Posições académicas e pouco parlamentares!

O Sr. António Aires, pondo o seu chapéu, não se cobriu apenas, vendou-se. Enterrou o chapéu até o pescoço, e para que S. Exª se descobrisse à porta, diante do comandante da guarda, vieram médicos que lhe extraíram o chapéu a ferros.

Que seria?!

Santo Deus! Deus clemente, piedoso e justo!

É evidente que os srs. deputados – se puseram nus!

 

                                   Agosto 1871.

O Parlamento vive na idade de ouro. Vive nas idades inocentes em que se colocam as lendas do Paraíso – quando o mal ainda não existia, quando Caím era um bom rapaz, quando os tigres passeavam docemente par a par com os cordeiros, quando ninguém tinha tido o cava­lheirismo de inventar a palavra calúnia! – e a palavra mente! não atraía a bofetada!

Senão vejam! Todos os dias aqueles ilustres deputados se dizem uns aos outros: É falso! É mentira! E não se esbofeteiam, não se enviam duas balas! Piedosa inocência! Cordura evangé­lica! É um parlamento educado por S. Francisco de Sales!

O ilustre deputado mente!

Ah, minto? Pois bem, apelo...

Cuidam que apela para o espalmado da sua mão direita ou para a elasticidade da sua bengala?

– Não, meus caros senhores, apela – para o País!

Quanta elevação cristã num diploma de depu­tado! Quando um homem leva em pleno peito, diante de duzentas pessoas que ouvem e de mil que lêem, este rude encontrão: É falso! – e diz com uma terna brandura: Pois bem, apelo para o País! – este homem é um santo! Não entrará decerto nunca no Jockey-Club, de onde a mansi­dão é excluída, mas entrará no reino do Céu, onde a humildade é glorificada.

É uma escola de humildade este parlamento! Nunca em parte nenhuma, como ali, o insulto foi recebido com tão curvada paciência, o desmentido acolhido com tão sentida resignação! Sublime curso de caridade cristã. E veremos os tempos em que um senhor deputado, esbofeteado em pleno e claro Chiado, dirá modestamente ao agressor, mostrando o seu diploma: – «Sou deputado da nação portuguesa! Apelo para o País! Pode continuar a bater!»

 

E depois que doçura de expressões! Não vimos ainda há pouco o Sr. Ávila designado no meio de uma questão financeira com estas benévolas qua­lificações – camaleão, sapo, elefante?! Que auto­ridade no dizer! que elevação no pensar!

Como é instrutivo, como é moral, o ver dis­cursos assim concebidos:

– Não aprovo o projecto do ilustre presidente do Conselho, porque entendo na minha consciên­cia, e digo-o à face do País, que S. Exª é uma verdadeira serpente:

– Mando para a mesa a seguinte moção:

A Câmara, compenetrada de que o sr. minis­tro da Fazenda é uma lontra, passa à ordem do dia!

 

Depois o modo carinhoso como a Câmara tomou conta da infeliz palavra insulto! Aquela pobre palavra, tão comprometedora, que nunca aparecia outrora que não fosse o sinal de um duelo ou de uma policia correccional – o parla­mento refez-lhe uma virgindade e um decoro, e ela agora vem, e ninguém se revolta, e o Sr. Antó­nio Aires tem para ela um bom sorriso.

– O ilustre deputado há três dias não faz senão insultar-me (textual). Três dias!

– O ilustre deputado não me insulte!

– Vou responder a esses insultos!

– Menos insultos!

Ai! o mundo despoetiza-se! As coisas terríveis perdem o colorido da lenda. As crianças riem do papão. O diabo já não é temido. O insulto já não é aviltante! Não é! A Câmara dos Depu­tados vive há um mês, tendo no seu seio o insulto, em perpétua ordem do dia – e engorda!

Mas o Sr. António Aires, esse, para que con­tinua a dizer com a sua voz eloquente:

– Amanhã continua a mesma discussão?

A escrupulosa verdade – e S. Exª, sacerdote e católico, está adstrito a observar este regimento da consciência – pede que se declare:

– Amanhã continua a mesma assuada.

Assim o público ficava avisado – e os srs. deputados também! Porque nada deve custar mais a um ilustre deputado, que quer zelar os interesses do seu país, do que ver, numa discus­são, exausta a sua colecção de injúrias, findos os seus apontamentos de berros!

Não é quem quer doutor em impropérios!

E assim, devidamente prevenido, cada depu­tado podia formar de véspera uma útil e séria lista de argumentos – consultando o dicionário, o seu aguadeiro, a porta da Alfândega e os fadis­tas da Praça da Figueira.

 

Agosto 1871.

Pode alguém estranhar que as Farpas não con­tenham nunca uma página dada ao romance, à imaginação. Pois bem – aqui está um conto, com paisagem, passado à beira-mar.

Era há dias, ao fim da tarde, na Foz. O céu, no alto, tinha a brancura de uma porcelana: já a decoração inflamada do poente se apagava, e grandes tons dourados desbotavam numa tinta roxa. O mar, de um azul duro, estava riscado de espumas. Entre as rochas, na praia, a mare­sia era violenta; e na linha da barra suce­diam-se, uma após outra, largas ondas monó­tonas.

Vinha a entrar uma lancha à vela. As ondas tomavam a pequena embarcação pela popa; ela fugia à bolina, rijamente impelida. Uma vaga maior sacode-a furiosamente. Pescadores, mulhe­res, no largo, ao pé do Castelo, rompem a gritar. Há ali perto uma barraca de saltimbancos. Dois palhaços, já vestidos, caiados, com guizos, vieram olhar, pasmados.

A lancha corria. Ergue-se sobre ela outro mar mais forte. – «Está livre! não está livre! Santo Deus! Jesus!» – A onda, quebrando, apanhou-a pela popa, ergueu-a, balouçou-a, e por um mo­mento viu-se apenas, na espuma, a vela oscilar, com a lenta palpitação da asa de um pássaro que morre.

Na praia as mulheres gritavam, de bruços sobre o chão. Os palhaços empalideciam sob o alvaiade. A sombra da noite caía.

A lancha tinha escapado. Correram todos ao cais, vê-la atracar. Vinha cheia de água, com a vela molhada até meia altura, os remos partidos. Estivera perdida. O patrão, um velho baixo, seco, de cabeça branca sob um barrete de pele de lon­tra, atirava para fora a corda da rede. Tinham trazido 10 ou 12 pescadas!

Cada pescada podia valer seis vinténs! E tinha estado perdida, a lancha! E era ao anoitecer, longe de socorro, na água impiedosa!

Ora sabem qual é o imposto que sobre este duro trabalho lança o fisco? – 40 réis por pes­cada! Não é o antigo dízimo absolutista – é o terço liberal! E assim acaba o romance!

 

                                 Agosto 1871.

Não o devemos ocultar! Fala-se – nem letra de mais, nem letra de menos – numa r-e-v-o-l-u-ç-ã-o!

Mas qual? Três correntes de opinião, adversas ao constitucionalismo e ao parlamentarismo, atra­vessam o País. E a revolução variará, segundo for uma ou outra dessas três opiniões que con­siga, pela força ou pela manha, empolgar o poder e as suas doçuras.

Seja qual for a que triunfe, terá logo, pelo mero facto de triunfar, aderentes inumeráveis, mesmo nas opiniões opostas. E para que cada cidadão possa devagar escolher a revolução que lhe convém, aqui apresentamos de antemão as notícias que, de cada uma delas, darão os jornais depois da vitória:

 

Revolução nº1.

– 19 de Fevereiro. – O Governo que felizmente nos rege continua na sua obra de pacifi­cação. A redacção da Nação mudou-se para o palácio dos srs. duques de Palmela, ao Calhariz. Foi preso o Sr. Oliveira Marreca, decano do par­tido republicano. S. M. El-Rei Nosso Senhor visi­tou ontem o lausperene da Graça.

Parece que uma representação do clero exige o desterro do Sr. Alexandre Herculano. – A emi­gração tem abrandado, vai renascendo a con­fiança. – Fala-se em grandes bailes dados pela coroa. – Mandaram-se fundir à Alemanha três carrilhões, no valor de 3 milhões cada um, para os Inglesinhos, S. Luís e Mártires. – Assistiu ontem uma inumerável multidão à execução do Sr. Osório de Vasconcelos, reformista. S. Exª caminhou para o suplício com grande valor. –Admiráveis em Braga as iluminações. – Vai ser demolida a estátua de D. Pedro IV. – As auto­ridades e funcionários das secretarias são demi­tidos em massa. – Haverá grandes tributos para ocorrer as despesas da reconstituição da nobreza. – Foi ontem apupado na Rua da Alegria, o Sr. V, poeta erótico, na ocasião em que observava a chegada das andorinhas!

 

Revolução nº2

– 19 de Fevereiro. – O novo Governo pro­visório deu ontem um esplêndido jantar no Hotel Central. – O Sr. Padre B... foi nomeado patriarca. S. Exª passeou ontem as ruas de dog-cart. – Foi preso o Sr. Batalha Reis, antigo con­ferente do Casino. – O sr. marquês de Ávila e Carlos Bento foram fuzilados. SS. Exª estavam ignobilmente abatidos. – Os membros do novo

Governo atribuíram-se ordenados anuais de 12 contos de réis. – O Sr. Antero de Quental, a quem o comité da Rua da Bitesga fora oferecer a presi­dência, deu pontapés no comité. – Têm sido suspensos vários jornais. – Chegou a Paris o Sr. D. Luís de Bragança. – Foi saqueada a casa do Sr. José Maria Eugénio. – Têm sido fechadas as igrejas. – Nas províncias do Norte é grande a miséria. – Bandos armados dão pilhagem às províncias do Sul. – O Governo provisório lan­çou fogo aos arquivos da polícia. – Foram sus­pensas as Farpas. – Foi ontem apupado no Ros­sio, o Sr. V, poeta erótico, que ia a correr atrás de uma borboleta!

 

Revolução nº3.

– 19 de Fevereiro. – Foi publicado o decreto licenciando o exército, e organizando uma guarda nacional. – Estão presos e vão responder a pro­cesso, os principais vultos dos últimos anos da política constitucional: diz-se que serão degreda­dos. – Foi suprimida a câmara dos pares.–Corre que se vendem algumas das colónias. – Está decretada a instrução obrigatória e gratuita. –Vai ser feita a reforma administrativo-comunal. – Teremos a liberdade de cultos. – E certa a reforma do imposto. – Estão nomeadas comis­sões para proceder à confecção do cadastro. – Fechou-se a Universidade, e o ensino superior será reorganizado numa nova base. – Vão criar-se escolas industriais. – E concedida a plena liber­dade de reunião e de coalizão. – Formam-se por toda a parte sociedades cooperativas. – As secre­tarias vão sofrer grande golpe. – Cada membro do Governo provisório recebe anualmente 600$000 réis. – Ontem o Sr. V, poeta erótico, foi apupado na Rua do Arco do Bandeira, onde estava a con­templar um lírio.

 

                         Agosto 1871.

A honrada Câmara Municipal do Porto quis dotar a cidade com uma praça de peixe. Nada mais higiénico, mais justo. De todo o tempo, nas grandes cidades, o peixe teve os seus aposentos definitivos, porque a vadiagem do peixe pelas ruas – fazendo concorrência à vadiagem dos filhos-famílias – é sobremodo insalubre! Mas uma praça de peixe não é um teatro nem uma casa de banhos – nem mesmo um quartel. Tem uma arquitectura própria, condições especiais de ar, de luz, de água, etc... Assim, em toda a parte, as praças de peixe são de uma construção ligeira, aberta e devassada pelos ventos, com leves colu­natas de ferro sustentando um tecto de madeira ou de vidraça, lavadas por um perpétuo escorrer de água, cercadas de árvores... Enfim, um lugar são, fresco, higiénico, livre, desinfectado.

Pois bem! A Câmara Municipal do Porto, com uma nobre solicitude pelo peixe, para quem parece ser uma extremosa mãe, e receando, com um carinho assustado, que o peixe se constipasse, ou sofresse a indiscrição dos vizinhos, construiu-lhe uma praça fechada, com altas e fortes paredes, varandas, gabinetes interiores, corredores, alcovas, casa bem reparada, quase um palacete. E tudo de tal modo tranquilo, aconchegado, confortável, que a Câmara hesita se há-de pôr ali peixes, se livros – e se fará daquilo um mercado ou uma biblio­teca!

A nós parece-nos, que, com mais alguma des­pesa, a Câmara daria ao País o exemplo de uma grande dedicação pelo peixe! – Era mandar tape­tar a praça, colocar nos recantos sofás, e não esquecer um piano. O peixe deslizaria aí dias de grande doçura: os robalos estariam deitados em divãs de seda: o polvo teria livrarias para se instruir! O comprador seria introduzido por criados de libré. A peixeira conduzi-lo-ia a uma alcova, com as janelas cerradas, ergueria os cor­tinados de um leito, e mostraria inocentemente adormecidas, sob uma coberta de damasco – duas pescadinhas-marmotas.

O comprador tiraria o chapéu comovido. E a peixeira, com lindos modos:

– Suas Ex.as recolheram-se tarde... São a 80 réis cada uma!

 

Ah! A Câmara tem decerto grandes planos! Como estão bem feitas, rasgadas, esbeltas, as lar­gas varandas de ferro da fachada da praça! Alguns malévolos riem. Mas nós sabemos que essas varandas na praça do peixe, tão amplas e cómo­das, têm um destino que ninguém – a não ser ins­pirado pelas injustiças da inveja – poderá con­denar. Aquelas varandas são para que, aos domin­gos – o peixe venha tomar café para a janela!

 

                               Setembro 1871.

Jornadear nos caminhos-de-ferro portugueses de Norte e Leste, é. a todos os respeitos, uma aventura cheia de emoções. Correndo sobre os rails, há para nos interessar e excitar – a proba­bilidade do descarrilamento; parados, no bufete das estações, há, para nos estimular com uma sensação mais forte ainda – o envenenamento a 500 réis por estômago.

Esta hesitação, entre o tombo e a cólica, man­tém o espírito do viajante num estado delicioso de palpitação e vibração. E como quando se joga, numa última volta de roleta, a última placa de uma herança! Apaixona mais que ler Os Três Mosqueteiros! Suscita os tremores de perigo e de transe que só dá uma ascensão ao Monte Branco! Talvez estar para ser fuzilado não cause tanto alvoroço! E a intenção da Companhia é evidente. As travessas podres, os rails gastos e desapara­fusados, os túneis mal seguros, as pontes rachadas, os aterros que tendem a desabar, os desa­terros que tendem a esboroar, as máquinas cansa­das, o serviço desleixado, as refeições envenena­das, tudo, tudo, até as demoras, os atrasos, a confusão, tudo converge para o mesmo legítimo fim – comover fundamente o viajante, dar-lhe sensações supremas!

Parece-nos pois que alguns conselhos à com­panhia não podem deixar de ser por ela recebidos – não diremos de braços, mas de rails abertos. Assim, por exemplo, seria de todo o ponto dramático e excitante, espalhar pela estrada des­tacamentos de bandidos que espingardeassem o comboio. Outrossim, meter em cada carruagem um lobo esfomeado, parece-nos um meio eficaz de impedir que o viajante tenha ocasião de se enfastiar. E enfim, como meio de produzir a mais aguda impressão, devia ter a companhia em cada estação empregados, que, ao parar do comboio, se aproximassem do passageiro, e delicadamente, com todo o respeito – lhe cravassem uma nava­lha na ilharga! E a viagem ficaria deste modo marcada com indeléveis encantos e cicatrizes!

 

                                  Setembro 1871.

Um dia o Centro promotor das classes laborio­sas sentiu o ímpeto, todo moderno, de sair da sua obscuridade venerável e da sua modéstia tradicional. Apeteceu as palpitações do perigo. Apeteceu a popularidade do telegrama. Apeteceu a prosa descritiva do Sr. Melício, correspondente.

Para isso perorou, gritou, tomou resolu­ções!... Em seguida esperou. O seu desejo, o seu capricho, o seu filé, era atrair sobre si um golpe de Estado. E depois as belas atitudes de protesto, e a impressão que ainda fazem os márti­res em Vila Nova de Cerveira e em Mogofores!...

Ora justamente o sr. ministro do Reino teve a imprudência de chamar à secretaria o vice­-presidente do Centro, e amigavelmente, tomando ambos o seu rapé, trocaram algumas falas. O sr. ministro pedia que o Centro não conti­nuasse em discussões, que nem estavam na per­missão dos estatutos nem na sua dignidade de corporação. Escutando estas admoestações, o vice-presidente do Centro tremia de júbilo. Ali o tinha inteiro, real, presente, completo – o estre­mecido, o apetecido golpe de Estado! E apenas o sr. ministro termina, eis o sr. vice-presidente que corre à sala do Centro, e brada, como se se tratasse de um codilho:

– Meus senhores! levámo-lo!

– O golpe de Estado? – interroga o Centro ávido, esgazeando os olhos.

– O golpe de Estado!

Então, tomando subitamente a sua carranca de solenidade, o Centro deliberou. E, para fazer alguma coisa como a destruição da Bastilha, (porque é necessário conservar a tradição jaco­bina), o Centro subiu a um banco com um mar­telo, despregou um retrato da parede da sala, espanejou-lhe o pó, pô-lo ao canto de um armá­rio, e, serenado por esta decapitação moral, sacudiu as mãos, limpou os beiços, e de pé – jurou qualquer coisa!

 

Nós não sabemos, e ainda não se averiguou nitidamente – que discussões agitavam o ar aba­fado da sala do Centro. Uns dizem que ali, a horas lôbregas, se falava da internacional e das suas pompas, e se discutia a sanguinolenta ques­tão do salário 1 Querem outros porém afirmar, com mais seguro critério, que as discussões do Centro eram de ordem política e intrigante, e que se esmiuçavam ministérios, câmaras, reformistas e reforminhas, eleições, influências, partidos, e outras espécies torpes.

Estas duas informações alteram, completa­mente, o indefinido perfil da questão.

Se o Centro Promotor discutia nas suas reu­niões a política que intriga e que grunhe em S. Bento, então a advertência do sr. ministro adquire uma alta feição de sensatez e de direito: não só está na legalidade, porque fez cumprir um estatuto – mas na verdade, porque afastou os que trabalham na penumbra dos que enredam.

Sim, o sr. ministro tem razão, amigos operá­rios do Centro! O dever da vossa associação não é discutir combinações ministeriais ou personali­dades estéreis. Que importa ao vosso bem-estar, às boas cores de vossos filhos e à substância do vosso caldo, que a farda pública esteja nas costas grossas do Sr. Ávila ou nas magras costelas do Sr. Braamcamp? Quereis dar à política a vossa colaboração? Vós? Tão desmoralizados estais que desejeis abandonar a vossa dignidade de traba­lhadores, para vos virdes curvar entre a sabuja humilhação dos políticos? Vós, os produtores por excelência – porque só trabalhais, que tendes de comum com os improdutivos por excelência –porque só intrigam? Quereis trocar a altiva fadiga da oficina, pela ociosidade mendicante do parlamento? Quereis trocar as vossas livres fer­ramentas, pela pena de pato das secretarias? Não é outro o vosso dever, outro o destino do vosso pensamento? Não tendes, para vos absorver, as altas questões de salários, de trabalho, de produ­ção, de escola, de instrumentos, de associação? Elas erguem-se, as questões sociais, as vossas, de todos os pontos do horizonte, correndo, correndo à desfilada sobre o velho mundo que apodrece! Voltai aos vossos interesses e voltai às vossas casas! Deixai o senhor A ser um político, ó riso! e o senhor B um homem de Estado, ó troça!

 

Ah! mas se porventura o Centro Promotor tratava apenas, nas suas sessões, a questão social e operária – o salário, o trabalho, a associação, a coalizão, a greve – então, bom Deus, a adver­tência do sr. ministro enche-nos de perturbação!

Parece realmente que se não deve estranhar que uma associação criada para promover o bem das classes laboriosas – trate as questões que mais vitalmente interessam as ditas classes labo­riosas. Aqui à puridade, entre gentlemen, confes­semos que imensa seria a nossa admiração – se operários reunidos, em lugar de falar do seu salá­rio, discutissem a melhor maneira de servir o champanhe! E qualquer de nós ficaria pálido se visse, no Centro, um operário, para salvar os seus interesses de operário, levantar-se e dizer:

– «Pedi a palavra sobre a questão social: a minha opinião é esta:

 

La donna é mobile

Qual pluma al vento..

 

Decerto, seria interessante e proveitoso que o Centro Promotor se ocupasse em averiguar e experimentar o meio mais profícuo de pernear o cancã – porque convém que cada um saiba a maneira de se portar no meio das sociedades cul­tas. Mas também nos não pareceria inteiramente inútil que, visto acharem-se ali reunidos, esses operários, depois de terem dado uma parte da noite às questões sérias, (como, por exemplo, a maneira mais meiga de interpretar o final da Lúcia) dedicassem também uns minutos, como por demais, por prazer, para repousar o espírito, a fútil e folgazã questão do salário!

Entenda-se! as Farpas não querem de modo algum sustentar que as associações operárias sejam para discutir as questões operárias! Não! O operário, nas suas reuniões, deve exercitar-se em recitar Lamartine. Isto está estabelecido na prática de todas as nações e nos princípios de toda a economia... Mas convém que, de vez em quando, (e sem que isso perturbe os interesses de ordem literária, lírica, elegante e romântica, que lhes estão confiados) os operários, coitados, se entretenham a arranjar o melhor meio de não morrerem inteiramente de fome!

 

O Centro julgou-se tiranizado, e protestou. Como? Fazendo um arranjo na sua sala. O retrato do Sr. A. R. Sampaio, que estava na parede –está agora num armário. Oh grandes homens do Centro! Vós quisestes fazer uma alta justiça social. E o que fizestes? Uma alteração na mobí­lia! Pretendíeis significar por esse facto que éreis os homens da dignidade austera, e todo o mundo vê que sois simplesmente os admiradores das paredes lisas! Dizei cá! A advertência do Sr. Sam­paio. ministro, foi ou não opressiva do vosso direito? Não? Então que homens sois vós que gratuitamente, caprichosamente, dais a desauto­rização a quem vos deu a associação? Foi opres­siva? Então que homens sois vós que, por todo o desafogo do vosso direito violado, do vosso pensamento reprimido – não tendes mais inicia­tiva do que a de um criado tonto! A vossa jus­tiça indigna-se – despregando pregos! Isto leva-nos a acreditar que o vosso carácter se afirma – jogando o pião! Criançolas! pequerruchos! grandes homens do Centro! oh traquinas!

 

Ah! a vossa maneira de protestar é cómoda para os homens – mas terrível para a mobília!

– «Está suspensa a sessão do Centro!» – declara um dia o Governo.

– Está? – grita o Centro. – Volte-se a mesa de pernas para o ar!

– «O Centro está dissolvido» – proclama nou­tro dia o Governo.

– Está? Rasguem-se as bambinelas!

E são terríveis! Que culpa tendes vós, mesa suja de tinta, portadas empenadas da janela, fechaduras, boas paredes de papel francês?

Ai! se o Centro se resolvesse um dia a cons­pirar deveras e o Governo a reprimir deveras – tremei, tremei, tremei, ó capachos da entrada!

 

                         Setembro 1871.

Os jornais deste mês travaram uma questão singular. Acusava-se este facto: a Srª

  1. Eugénia de Montijo, condessa de Teba, ex-im­peratriz dos Franceses (por um crime de seu marido) atravessara Lisboa para ir ver a Espa­nha os antigos paraísos da sua antiga mocidade; e o Governo expedira à Alfândega uma portaria galante, para que não fossem revistadas as baga­gens de S. Exª! A isto respondiam algumas gaze­tas negando esta portaria – mas lembrando outra pela qual são isentas das indiscrições fiscais as bagagens em trânsito, e afirmando que os baús ex-imperiais, com um desdém censurável pelas glórias de Lisboa, tinham passado rapidamente, sem curiosidade, da Alfândega para a estação de Santa Apolónia. Os periódicos acusadores, porém, declaravam que conheciam de antiga data a por­taria de excepção para as bagagens em trânsito – mas que tal não era o caso da loura e altiva inquilina das Tulherias. Por este tempo, porém, a índia penetrou nos artigos graves, e a questão das malas perdeu-se na esbatida penumbra das locais folgazãs. Nunca se averiguou se Madama Bonaparte tinha sido privilegiada delicadamente com uma portaria quase amorosa – ou se apro­veitara as disposições de uma portaria qualquer, feita para mim, e para ti.

 

Se o privilégio se deu – atenda-se bem! – o privilégio não nos escandaliza. E, todavia, temos visto bastantes vezes, estendidas nos balcões da Alfândega, numa desordem impiedosa, toda a tra­paria obscura que habita as nossas malas! Mas como todo o privilégio pressupõe um mérito, nós queremos indagar qual é o mérito da Srª con­dessa de Teba: e procuraremos desde logo alcan­çá-lo para nós mesmos e para todos os nossos concidadãos–pondo assim a nossa roupa branca, e a roupa branca daqueles que amamos, ao abrigo das instituições!

Ora da Srª D. Eugénia de Montijo achamos que ela é casada com o assassino de 2 de Dezem­bro, com o deportador para Caiena e para Lam­bessa, com o destruidor da riqueza da França, com o comedor das substituições militares, com o esmagador de toda a liberdade, com o escravi­zador de todo o pensamento, com o bandido que, pelas estradas de Sedan, sacudia a cinza do seu cigarrinho histórico sobre o peito dilacerado da Pátria. Tudo isto destinge sobre a Srª condessa, tudo isto impõe à Srª condessa uma cumplici­dade moral... Oh! sim, meus senhores, bem sabemos! «É uma infeliz, é uma dama, etc., etc.». Trégua às frases! E vamos direitos aos factos como uma bala justiceira. A pobre Catarina de Médicis era também uma infeliz, e era também uma dama! Lucrécia Bórgia gozava estas quali­dades franzinas. M.me de Brinvilliers, feroz devota, não se julgava também feliz, e não era um homem!

A Srª condessa de Teba não se apresenta decerto tão especialmente nociva como estas três espécies: – mas no seu tempo deportavam-se para Caiena, para Lambessa e para a ilha do Fogo, homens cujo único crime era terem ser­vido a república de 48, que Luís Bonaparte tinha também servido! E esses homens eram mandados aos milhares no porão dos navios, esfomeados, vergastados, cobertos de vérmina, a trabalhar nos presídios! E as famílias ficavam dispersas, os filhos na miséria ou na casa de correcção, as viúvas nas lágrimas perpétuas. E que fazia, no entanto, a Srª condessa de Teba? A Srª con­dessa de Teba, esposa e mãe, dançava nas salas das Tulherias, entre o esvoaçar dos tules, aos compassos da rabeca de Strauss! Se essa devota Bénoiton, leitora simultânea dos manuscritos eróticos de Merimée e das efusões místicas de M.me Swetchine, crê em Deus, nunca terá bas­tante vida para consumir em bastante penitência!

Tais são os méritos que encontramos na senhora D. Eugénia Montijo. Se foi a eles que S. Exª deveu a delicada vantagem de lhe não serem revistadas as suas bagagens, nada temos que estranhar. Somente pedimos que se declare explicitamente por uma portaria: – «que alguns crimes cometidos no estrangeiro isentam a baga­gem de revista, quando se entra no reino!»

Assim, estamos todos prevenidos, e não custa nada, quando se chega à barra, matar dois ou três grumetes. Com este documento, o sujeito tem a alta vantagem de não ver amarrotada a goma das suas camisas. Antes de desembarcar, todo aquele que desejar ordem na sua roupa, aproxima-se de um marinheiro ou de outro pas­sageiro, e murmura-lhe com doçura:

– O cavalheiro tenha paciência, mas eu não queria que na Alfândega me desarranjassem as minhas ceroulas, e há-de dar portanto licença que eu lhe crave esta navalha no fígado!

Não havendo esta precaução, é triste realmente que um homem, que não goze a vantagem de ter fuzilado o seu semelhante no boulevard ou de o ter mandado morrer de febres para Caiena, che­gue à Alfândega, e por falta de três ou quatro crimes, veja o pudor das suas peúgas exposto à indiscrição pública!

 

                               Setembro 1871.

Os jornais de Madrid contaram que S. A. R. o príncipe Humberto, todas as noites, em Madrid, ia tomar o seu sorvete a um café onde geralmente se reúnem os italianos. Esta familia­ridade, inteiramente contemporânea da Interna­cional, enchia de um júbilo espumante a imprensa monárquica e o dono do estabelecimento. Em Lisboa lia-se isto – e esperava-se o príncipe Hum­berto, se não como um príncipe, ao menos como um consumidor! S. A., porém, chegou, esteve, partiu devagarinho, em bicos de pés, para não despertar ninguém, e se tomou café, não teve a inspiração de o tomar no Martinho! (Tanto a etiqueta coíbe os instintos mais naturais!)

A população de Lisboa, ficou desconfiada, sem saber se a abstenção de S. A. significava economia, se desdém. No primeiro caso queria propô-lo depu­tado reformista por Vouzela ou Palhares, ficando assim definitivamente acomodada na península a casa de Sabóia: no segundo desejaria simples­mente voltar-lhe umas costas democráticas, ficando assim exuberantemente vingado o café Martinho.

Calmai-vos, Portugueses, e escutai-nos! A abs­tenção de S. A. a respeito do café e de outros inefáveis encantos da Baixa – só significa timi­dez. Tantos tronos aluídos, tantos reis errantes, tantos palácios onde o musgo nasce, têm tor­nado a espécie timorata. Um rei, um príncipe, não se afoita assim pelo meio das populações, com a despreocupação de um homem que entra na Deusa dos Mares. Os reis hoje passam de largo, cosidos com a parede, tiquetique, em pas­sinho miúdo, colhendo a respiração, olho no povo, olho na porta – como quem passa por um cão de fila, que dorme ao pé de um muro de quinta, largamente envolto no sol.

O príncipe Humberto teve estas precauções delicadas: chegou devagarinho, esteve quietinho, partiu escondidinho. E aí está, Portugueses, por­que S. A. não foi bater com a ponteira da sua bengala no mármore de uma mesa do Martinho – bradando «genebra a um!»

Que S. A. R. se tranquilizasse, porém! Nós vamos no nosso trigésimo primeiro rei, e ainda não devorámos nenhum. E decerto não iríamos experimentar o dente sobre um príncipe de outras terras! Tínhamos em nossa honra entregá-lo, escorreito e são, ao único país legitimamente autorizado a devorá-lo – o belo país de Itália, Italia mater!

Tragar um príncipe alheio seria indelicadeza e esquecimento das boas relações internacionais. Os compêndios de civilidade, Alteza, ensinam-nos que se não mete a mão no prato do vizinho! Sabemos, Alteza, que, quando nos mostram um fruto raro, não é da etiqueta abocanhá-lo, e quando nos mandam um gentil príncipe, não é polido engoli-lo de um bocado! Podia V. A. pas­sar tranquilo no meio deste doce povo: podia V. A. mesmo ter sido mais afável com os cava­leiros da tourada de Sintra, para quem, dizem os despeitados, V. A. não teve senão charutos abomináveis atirados com mão enfastiada. E creia V. A. que não seria estrancinhado! Portugal sabe respeitar o príncipe do seu próximo. Ser-nos-ia mais fácil, instados pela gula revolucionária, tomar o mesmo Sr. Melício às colheres – o mesmo Sr. Vaz Preto às fatias! Mas cravar o queixal sôfrego num príncipe de Itália, nossa irmã... Nunca! Se tal fizésseis, o Sr. João Félix, lente de civilidade, jamais vo-lo perdoaria, ó Lusos!

 

                         Setembro 1871.

Tréguas por um instante nesta áspera fuzila­ria! Numa página à parte, tranquila e meiga, pomos a lembrança de Júlio Dinis. Que as pes­soas delicadas se recolham um momento, pensem nele, na sua obra gentil e fácil, que deu tanto encanto, e que merece algum amor. Tal é o nosso mal, que este espírito excelente não ficou popu­lar: a nossa memória, fugitiva como a água, só retém aqueles que vivem ruidosamente, com um relevo forte: Júlio Dinis viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve.

Um só livro seu, um romance, fez palpitar for­temente as curiosidades simpáticas –As Pupilas do Sr. Reitor. Esse livro fresco, quase idílico, aberto sobre largos fundos de verdura, habitado por criações delicadas e vivas – surpreendeu. Era um livro real, aparecendo no meio de uma literatura artificial, com uma simplicidade verdadeira, como uma paisagem de Cláudio Loreno entre grossas telas mitológicas. Era um livro onde se ia res­pirar.

Júlio Dinis amava a realidade: é a feição viril e valiosa do seu espírito.

Nunca porém se desprendeu do seu idealismo e sentimentalismo nativo. A realidade tinha para ele uma crueza exterior que o assustava: de modo que a copiava de longe, com receio, adoçando os contornos exactos que a ele lhe pareciam rudes, espalhando uma aguada de sensibilidade sobre as cores verdadeiras que a ele lhe pareciam berran­tes. As suas aldeias são verdadeiras, mas são poe­tizadas: parece que só as vê e as desenha quando a névoa outonal esfuma, azula, idealiza as pers­pectivas. Nunca um sol sincero e largo bate a sua obra. Tudo nela é velado de névoa poética. Não é que não ame, não persiga a verdade: somente quando a fixa na página traz já a pena toda molhada no ideal que o afoga.

Dizem que os seus livros são memórias, e que ele faz a aguarela suave das paisagens em que viveu, e que personaliza, em criações finamente tocadas, os sentimentos com que palpitou; daí decerto a realidade que os seus livros deixam entrever, fugitivamente. Mas parece que não fora feliz, e que só ao compassar dos soluços o cora­ção lhe aprendera a bater: daí pois aquelas meias-tintas azuladas e melancólicas em que se move, num rumor brando, o povo romântico dos seus livros, e com que ele procura esbater e adoçar a crueza das realidades humanas que o fizeram sofrer.

Era sobretudo um paisagista. As suas figuras só servem para dar expressão e vida à paisagem.

Os campos, as searas, os montes, as claras águas, os céus profundos, não são nos seus livros a deco­ração que cerca uma humanidade fortemente sen­tida: as suas camponesas romanescas, os seus galãs violentos e ternos, as meigas figuras de velhos, até as suas caricaturas – é que foram por ele colocadas assim para poder, em torno delas, erguer com cuidado, árvore por árvore e casal por casal, as aldeias que tanto amava. Há nos seus romances tal descampado, tal eira branca batida do sol, tal parreira onde os gatos se espreguiçam, que tem mais ideia, mais acção, mais vida, que as figuras vivas que em torno se movem.

Depois das Pupilas do Sr. Reitor as obras de Júlio Dinis passaram de leve, entre as atenções transviadas. Terá o seu dia de justiça e de amor. À maneira daqueles povoados que ele mesmo dese­nha, escondidos no fundo dos vales sob o rama­lhar dos castanheiros, os seus livros serão pro­curados como lugares repousados, de largos ares, onde os nervos se vão equilibrar e se vai pacificar a paixão e o seu tormento.

Foi simples, foi inteligente, foi puro. Traba­lhou, criou, morreu. Mais feliz que nós, tem o seu destino afirmado, e para ele resolveu-se a questão.

Passemos pois... Já do outro lado, para além desta página serena, ouvimos, inumeráveis como abelhas vingadoras, as ironias aladas que, com um rumor impaciente, zumbem no ar!

 

                          Setembro 1871.

História é a consciência escrita da huma­nidade», disse um homem, que teve, quando lutava, o segredo das palavras que ficam.

Nós podemos pois dizer, comezinhamente, que a história dos Açores é a consciência escrita dos Açores.

Ora sucede que entre o passado Governo de S. M. e o Sr. Sena Freitas se trocou este contrato:

O País daria ao Sr. Sena Freitas 600$000 réis por ano, bom metal: por outro lado o Sr. Sena Freitas encarregar-se-ia de pôr em letra redonda, com boa ortografia, prosódia sã, e pontuação certa, a dita consciência dos Açores.

Mal o contrato foi assinado, estalou sobre toda a linha de gazetas uma argumentação indig­nada. Acusava-se o ministro, escarnecia-se o con­trato, estranhava-se o historiador, condenava-se a história – e os mais rudemente batidos eram os 600$000 réis.

Como se diria na Bíblia, o escândalo veio pelos fariseus!

 

Pois bem, para este contrato, nós só temos bênçãos e flores. E a plebe irreflectida pode ladrar em vão!

Ouvi cá, homens de estreita fé! Se o Sr. Sena Freitas se tivesse decidido espontaneamente, gra­tuitamente, a escrever a história dos Açores, que garantia dava ele de fazer um trabalho de pode­rosa crítica? Que garantia dava de compor mesmo um livro minucioso, erudito, cheio de factos, bene­ditino? O Sr. Freitas dava apenas a garantia do seu espírito. Mas ai! o espírito dormita, sofre obscurecimentos, caduca – e aí ficava estragada a história dos nossos bem-amados Açores.

Ouvi mais! Se o Sr. Sena Freitas tivesse sido encarregado por este decreto: «Manda el-Rei que o Sr. Sena Freitas seja um grande historiador...»que garantias dava o Sr. Sena Freitas de que havia de criar uma obra original e profunda? O Sr. Frei­tas dava só a garantia da sua obediência ao seu Rei. Mas ai! ai! a obediência aos reis pode fazer concessões – ou piruetas. Que amanhã, quod Deus avertat, se proclamasse a República – e vós ficaríeis sem história e sem Freitas, ó Açores.

E agora respondei! Preso por um contrato, ligado por uma escritura, não dá o Sr. Sena Frei­tas a garantia suprema, a garantia da sua honra? Obrigou-se por um contrato a ser um grande his­toriador, tem portanto toda a sua dignidade empenhada em ser – um grande historiador!

Podia S. Exª, por exemplo, não possuir outra aptidão senão escrever folhetins; podia não dis­por de crítica, nem de método; podia não fazer ideia do que é a ciência histórica e a filosofia da história; podia não ter elevação de pensa­mento, nem estudos especiais; podia não ter estilo nem gramática – embora! Estamos descansados.

  1. Exª obrigou-se por um contrato a ser um grande historiador: S. Exª é um homem hon­rado: S. Exª será um historiador grande! Acre­ditamos em S. Exª. Conhecemos S. Exª. Se S. Exª houvesse contratado com o Sr. Ávila que seria, a 600$000 réis por ano, um poeta maior que Vítor Hugo, S. Exª (temos a inteira cer­teza), trabalharia, lutaria, compraria um dicio­nário de rimas, consultaria o Sr. Vidal, mas seria um poeta maior que Vítor Hugo. Se S. Exª tivesse contratado ser um candeeiro do Rossio, S. Exª cumpriria com valor o seu contrato – e seria um nobre candeeiro do Rossio!

 

Sua Exª contratou! A fé jurídica não admite conciliações. Sempre queríamos ver agora que S. Exª se atrevesse a não ser um grande histo­riador! Em Portugal há tribunais. Nós seguire­mos o trabalho de S. Exª, página por página, e quando S. Exª não for admirável, como crítica, como ciência, como forma, requeremos à Boa Hora: – «Que, em virtude do contrato de tantos de tal, seja o Sr. Sena Freitas citado para, no prazo de vinte e quatro horas, ser sublime a pági­nas tantas da sua obra sobre os Açores!»

O contrato não foi escrito e registado para que os Açores tenham um historiador medíocre!

Sobre o Sr. Sena Freitas pesa desde hoje a res­ponsabilidade de ser sublime. S. Exª é um rapaz inteligente e espirituoso. Não basta, tem de ser um grande homem! Contratou para isso, tem de o ser! Cara alegre e espírito desafogado! É para ali!

Ah! queria talvez ganhar 600$000 réis e não ter o trabalho de ser um historiador como Miche­let! Há-de sê-lo! Já não lhe é permitida a obscu­ridade, nem a mediocridade! Queira ou não, tem forçosamente de ser um génio! Nem uma só vez mais na vida lhe é concedido o doce desafogo de não ter gramática! Há-de ser maior que Guizot, arranje as coisas como quiser! E se recuar, se se eximir, se hesitar, a Boa Hora lá está que, de contrato em punho, e brandindo as contas do pro­cesso, o obrigará à força – a ser um homem imortal!

Em Portugal só assim se podem alcançar gran­des homens! É obrigá-los por um contrato. Ah! se o Governo tivesse contratado com o senhor A que ele fosse, a tanto por mês, um dramaturgo maior que Shakespeare – não teria o País a ver­gonha de confessar que o Sr. A é um dramaturgo inferior a Guilbert de Pixerecourt! Se o Governo tivesse contratado com o senhor B, que ele fosse um homem de Estado como Pitt – não passava a Pátria pelo vexame de ver que o senhor B e, como político, ainda inferior a Sancho Pança, rei de Baratária! Que significa, num país culto, abandonar assim os homens à sua iniciativa? Que intento é este de deixar a cada um a liberdade de ser medíocre? O Português só poderá ser inte­ligente obrigado por um contrato, forçado pelos tremendos laços da lei, amarrado de pés e mãos!

Que o talento seja imposto como o serviço militar! Recrutem-se soldados para Caçadores 5, mas recrutem-se também génios para Vila Nova de Gaia! Porque não temos um poeta épico? Que faz o Governo? Quer desleixar a epopeia, como desleixa a fazenda? A Pátria precisa de grandes homens – fulminem-se penas severíssimas a quem não for grande homem!

É forçoso confessá-lo! O País está embrute­cido, mas a culpa vem dos poderes públicos. Que se decrete que todo o cidadão válido deve ao seu país, além da décima – um soneto! Que todo aquele que tenha de mostrar documentos, seja adstrito a apresentar, além da ressalva e da folha corrida – um artigo de almanaque! Haja o génio obrigatório! E o País florescerá, e pode­remos definitivamente esperar que em Mato Grosso comece enfim a fazer impressão – a grande civilização lusitana!

 

                               Setembro 1871.

Andávamos inteiramente esquecidos da índia! Uma clara manhã ela aparece violenta­mente no meio de nós, envolta num telegrama do sr. visconde de S. Januário. Por essa ocasião muito bom português se admirou que a índia ainda fosse nossa! Ela saíra, havia muito, das pompas solenes do artigo de fundo. Quase não aparecia nos orçamentos. Obscura, velha, arrui­nada, estéril, dobrada sobre si mesma, todos a supúnhamos unicamente ocupada, nas brumas distantes, a comer o seu arroz! A notícia de que ela ainda tinha vitalidade bastante para se revol­tar – espantou! A certeza que ainda ali havia soldados, cidadãos, fortalezas, interesses, telégra­fos – quase aterrou!

Uma vez que a gloriosa índia ainda exis­tia, era necessário que a respeito dela exis­tisse o correspondente brio patriótico. Sacu­diu-se o velho brio patriótico do pó e da caliça – e cada um envergou o velho brio patrió­tico!

Começou então o movimento. A Baixa teve os seus alvitres heróicos. Os jornais perfilaram de novo, em parada, as frases solenes, de peruca e rabicho, que celebram num ritmo dormente o alto amor da Pátria. Meteu-se na mão do sr. infante D. Augusto uma espada – condicio­nal. A própria Estefânia, comovida, venceu os nervos e a preguiça, e partiu, cheia de mobília e de brio, a salvar o mapa das possessões

Nós, entretanto, ríamos.

 

Oh, Santo Deus, não era cepticismo, não! Como outros quaisquer, mais que outros quais­quer, amamos este pobre e velho Portugal. Mas sabemos, meus dignos senhores, que uma revolta militar na índia é alguma coisa tão extremamente insignificante e efémera como um meeting civil no reino.

O grosso do exército da índia é composto de indígenas – mouros, canarins, banianos e gen­tios. Estes nomes melodiosos designam castas; e as castas na índia conservam ainda todo o seu velho e irreconciliável separatismo. As castas desprezam-se, guerreiam-se, e nunca absoluta­mente se fundem. Quase não se comunicam. Se um baniano toca a púcara de barro poroso de um canarim, o canarim espedaça num cunhal a púcara desventurada! Estas hostilidades, nada as dissipa: nem as promiscuidades inevitáveis da caserna, nem os rigores igualitários da disciplina. De sorte que o exército, formado destes elemen­tos antipáticos, que se não unem, que se amal­diçoam, e onde apenas há o contacto material dos ombros na fileira – não tem unidade nem coesão.

Além disto, todas as castas têm hábitos fatais, horas impreteríveis. Está o soldado gentio de guarda: se chega a hora do seu arroz, e não lho trazem – ele pousa tranquilamente a espingarda, cruza as mãos atrás das costas, e vai ao quartel ladrar contra o rancheiro; se chega a hora da ablução, atira a arma para um canto, e corre, aos pulos, a acocorar-se à beira do mar! E não há severidades, não há castigos, que alterem estes hábitos orientalmente fatais.

A oficialidade deste exército compõe-se pela maior parte de portugueses nascidos na índia –mestiços, castiços ou descendentes. São os filhos de antigos degredados, de velhos bastardos da fidalguia indiana, de oficiais expedicionários, etc. Além destes oficiais nativos – há os oficiais europeus, mandados do continente, os expedicio­nários. Estes, por altos motivos que só os gran­des homens de Estado como o Sr. Barros e Cunha podem saber, têm um soldo maior que os oficiais índios. Ora os oficiais índios, com um zelo pelas rupias extremamente compreensível, quereriam ter um soldo igual aos oficiais que vão de Portugal. Por consequência requerem. (Têm a ingenuidade asiática de requerer!) Mas quando desesperam dos despachos da Pátria, permi­tem-se, como uma variedade mais ruidosa, uma certa porção de revolta! Levam alguns bata­lhões para a rua e soltam o babadé. O babadé é um ah! ah! ah! prolongado, uivado – cortado pela mão espalmada que bate rapidamente sobre a boca. Tais são as revoltas da índia, á conci­dadãos timoratos!

 

Para conter este elemento indígena, que meios tem o sr. governador-geral? Diz-se que o sr. governador-geral, para defesa dos grandes interesses portugueses, dispõe da guarda muni­cipal.

Essa guarda foi de todo o tempo composta de soldados portugueses, que os índios chamam paquelós. Os portugueses que vão servir como funcionários são considerados aristocracia, e cha­mam-se fringuis. Na índia o Sr. Melício seria um fringui!

Esta guarda foi sempre segura, fiel e valente. Somente, hoje, tem a qualidade lamentável das legiões de Varo: – já não existe! A Pátria dis­traída esqueceu-se de renovar os paquelós: e a Morte, com um desdém pelas nossas possessões que nunca lhe censuraremos bastante, foi-os levando, e paqueló após paqueló, destruiu na índia todo o poder lusitano. Hoje duas ou três companhias de mouros compõem a guarda fiel: estes pobres mouros arrastam na vadiagem os sapatos rotos, e estimulam o seu entranhado patriotismo com aguardente de banana, bebida alucinadora que leva à caquexia! – O que hoje há, pois, nessa índia gloriosa e tradicional, para policiar e sustentar o poder português, é um bando de mouros sujos, idiotas, e bêbedos de aguardente!

Pois bem! ainda assim uma revolta na índia não tem seriedade. E o motivo é que os oficiais, que, para terem maior número de rupias no seu soldo, tentaram uma revolta, vêem-se, reali­zada ela, singularmente embaraçados. Vêem-se sós.

Em primeiro lugar os soldados não vão por um impulso próprio. Divididos em castas, fracos, igno­rantes, odiando-se, sem terem interesse comum ou vontade comum – vão unicamente porque os seus oficiais, no primeiro momento, lhes man­daram que fossem. É mesmo assim – como eles dizem. Se contra eles, porém, se apontar uma espingarda fiel – como estão ali, não em virtude da revolta sua, mas por obediência à revolta alheia – dispersam.

E depois, os oficiais revoltados não têm ran­cho para lhes dar. O povo conserva-se indife­rente, sem adesão, sem simpatia. Os que possuem alguma rupia, nesses dias enterram-na; os que têm arroz ensacado, escondem-no. Ninguém con­fia uma para a um oficial revoltado. Ao segundo dia de desordem, quando chega a hora do rancho, os oficiais só têm a dar aos soldados–palavras de entusiasmo! Os soldados (nunca podemos com­preender por quê) preferem o arroz à retórica; e começam a debandar.

Além disso no exército índio não há pólvora, nem munições... Quase não há armas!

Por outro lado, à mais pequena insurreição, a disciplina, já famosamente diminuta, desapa­rece, sem pudor nenhum; e as diversas castas aproveitam os vagares da revolta – para se espancarem com fervor.

Acrescente-se que os oficiais da índia não têm instrução, nem táctica; não são capazes de orde­nar uma marcha hábil, de formar um campo entrincheirado, de darem um apoio estratégico à revolta.

Ao fim de dois dias de gritos e de babadé – acham-se nesta situação triunfante: sem ponto de apoio, sem adesões, sem rancho, sem muni­ções, sem dinheiro, sem disciplina. Se o gover­nador-geral faz sair um bando que, ao som do tambor, propõe a amnistia, cada um solta um ah! de satisfação e de alívio, e volta para o seu quartel! Ainda tendes medo, patriotas da Arcada?

 

E não se deve esquecer ainda esta circuns­tância: o índio das nossas possessões é de uma debilidade gelatinosa.

Anémico, miudinho, assustadiço, consumido pelo sol, mal sustentado de arroz, o índio cai de bruços com uma carícia no rosto, e morre com uma palmada na espinha. E uma fraqueza com­prometedora. As pessoas inexperientes e impa­cientes fazem um prodigioso consumo de índios. Um empurrão, e o índio tomba – na eternidade. Não há talvez desembargador algum em Goa que não tenha, com a sua mão grave e jurídica, assas­sinado um índio! Dá-se uma pancada leve no ombro do índio –- ele cambaleia, suspira, nesse dia come pouco, no outro estende-se ao sol a gemer, começa a beber muita água, e morre.

Depois, o soldado índio, mal ouve o nome de paqueló – treme. Aí vem o paqueló – foge! Vê o paqueló – atira-se de bruços, já moribundo.

Há tempos, em Mapuçá, um regimento de 400 praças revoltou-se. Sai para a rua e vem fazer babadé para defronte da casa do comandante. O comandante, à janela, em chinelas, tomava café, e entre os goles, vagarosamente sorvidos, excla­mava para o regimento insurgido:

– Ah! vocês revoltaram-se?

Depois para dentro, ao criado:

– Mais açúcar!

E continuava:

– Bem, eu já vos falo. – Uma colher! –Assim é que estais disciplinados, velhacos? – Dá cá o cachimbo! – Ora deixai estar que os paque­lós aí vêm! –lume!...

O regimento hesitava. Nisto aparece, numa pequena elevação, a distância, o tenente Bruno de Magalhães que vinha, com 20 paquelós, bater os 400 revoltosos. Os 400 revoltosos, só com ver ao longe os 20 paquelós, debandaram aos gritos. Nem mesmo se chegou nunca a saber por que se tinham revoltado!

 

Porém, á homens de Estado, podeis dizer-nos:

– Mas se a Inglaterra meter lenha para o forno?

A Inglaterra?! No dia, meus senhores, em que a Inglaterra mandasse um soldado à fronteira da índia Portuguesa – todo o território índio, mesti­ços, canarins, descendentes, todas as castas, todas as fraquezas se levantavam num ímpeto. Povo e tropa na índia tudo querem – menos o Inglês.

O povo não quer o Inglês – porque no nosso regime ele vive na ociosidade, no desleixo, na sua imundície querida, na sua bem-amada traficância; e se fosse inglês, o cipaio viria obrigá-lo, a golpes de curbach, a ser policiado e a ser trabalha­dor.

E o soldado índio detesta o Inglês – porque, sob o nosso regime, ele pode subir os postos até major; e sob o regime inglês não subiria nem a cabo!

 

Aí está a razão por que uma revolta na índia não tem valor, e por que foram tão supérfluos os vossos fervores patrióticos!

No entanto, é indispensável que estes sustos acabem! O País está débil e fraco, e estas como­ções matam-no. Há pouco Macau, agora a índia! Que as colónias nos deixem respirar! Que se revoltem, sim, mas com intervalos, sem acumu­lar. Que se abra mesmo um registo no ministé­rio da Marinha. Em Setembro de 71 revoltou-se a índia? – Pois bem, só em Setembro de 1872 será permitido que Timor se subleve.

 

A índia não nos serve senão para nos dar des­gostos.

E um pedaço de terra tão escasso que se anda a cavalo num dia. As pequenas povoações caem em ruína e em imundície; não há nelas movi­mento, nem iniciativa; a única cultura é o arroz, que exportam a 5 para importar a 8; a única indústria, fazer olas, que são os encanastrados de palmeira com que se erguem os pacaris, alpen­dres coloridos e frescos que sombreiam as jane­las; não existe nenhum comércio; os tributos esmagam; dois ou três homens ricos, Jossy e mais dois, que se vêem nos patins, descalços e encru­zados, comendo o seu arroz com a mão, têm o dinheiro enterrado, e quando se lhes garante um forte juro, cavam e emprestam; as escolas são uma ficção grotesca; as estradas são a espessura do mato; a higiene é feita pelos cães que lambem as imundícies na rua; a polícia é feita por cada um com o seu bambu; uma intriga sórdida e ras­tejante agita indígenas e europeus; o deboche tem o ardor do clima; os soldados embebedam-se com aguardente; e no entanto velhos pardiei­ros, que se esboroam às mordeduras do sol, esconderijos de corvos, lembram as nossas gló­rias e alastram o chão de caliça. Tal é a índia Portuguesa.

Noutro número das Farpas lembrámos, a res­peito das colónias, este grande melhoramento – vendê-las! Ocorre-nos outro ainda maior a res­peito da índia – dá-la!

E quanto a glórias nacionais, contentemo-nos com o barítono Lisboa e com o Sr. Arrobas – e é já glória bastante!

A única coisa por que conservamos a índia, é por ser uma glória do passado. Oh! meus senho­res, também D. João I é uma glória, e nós não nos conservamos abraçados à sua sepultura, solu­çando e gemendo.

O passado é belo e heróico – bem: quando o passado pretende antepor-se aos interesses do presente, o passado é caturra! Seria verdadeira­mente impertinente que uma rosa murcha tivesse a pretensão de andar na boutonnière da nossa sobrecasaca: que uma pomada rançosa do ano passado ousasse querer anediar os nossos cabe­los: e que o esqueleto da mulher amada tentasse ainda dar-nos beijos!

Se podemos vender a índia aos Ingleses, ven­damos a índia, por Deus! E quanto às glórias de Dio e de Damão, se elas se querem conservar na história e na pompa da epopeia, quietinhas e cala­dinhas, terão a nossa consideração. Mas se, quando se tratar de negociar, elas se interpuse­rem com recordações importunas, dir-lhe-emos insolências, e desejaríamos dar-lhes coronhadas. Fora daqui, caturras! voltai para o sepulcro e para o pó das crónicas!

  1. João de Castro, hoje, não serve senão para os rapazes de latinidade fazerem temas na pro­víncia. Tem paciência, glorioso varão! Sobre as tuas soberbas façanhas, o nosso tempo científico, positivo e racionalista, não tem senão a dizer-te:

– «Cumpriste sublimemente, meu velho D. João, os deveres do teu tempo segundo as ideias do teu tempo. Dorme agora quieto o teu grande dormir; e deixa que nós, segundo as ideias do nosso tempo, cumpramos os deveres do nosso tempo!»

 

                           Outubro 1871.

Saíamos do Antony Um pouco adiante de nós, subindo a Rua Nova do Carmo, vinham conversando dois espanhóis, espadaúdos e robus­tos. No alto da rua, ao fundo do Chiado, alguns fadistas, num grupo ruidoso, tocavam gui­tarra.

Quando os dois espanhóis passavam, os fadis­tas rompem a chasquear e, para variar um pouco os seus prazeres, esbofeteiam um espanhol. O outro então, surpreendido, ergue a mão, e, com um vigor castelhano, dá em redor algumas bofe­tadas sonoras e fulminantes que fizeram rolar na lama os magros tocadores de guitarra.

Nisto uma patrulha, que descia o Chiado, vem pé ante pé, faz um cerco, e tomando as espingar­das pela coronha, começa por atirar às costas do espanhol uma pancada horrível, que o deixa ren­dido, sufocado, a arquejar. A esse tempo já Um fadista gania, escalavrado, sob outra coronhada municipal. Ninguém foi preso. Um dos solda­dos, depois, queixava-se de ter escangalhado a arma!

 

Respeitemos, submissos, este processo policial.

O redactor de um dos mais vivos jornais de Lisboa contava-nos pouco depois, na redacção, que vira na véspera alguns polícias, diante de um homem com um acidente, tratando de lhe fazer voltar os espíritos à força de pontapés na cabeça: o homem rebolava no chão; os polícias então davam-lhe pontapés no estômago. Talvez a Medi­cina não siga inteiramente este sistema de curar acidentes: no entanto a polícia tem essa opinião terapêutica, e nós não podemos contestar a nin­guém o direito de divergir, em questões de ciência, da Escola Médico-Cirúrgica. O acidente tra­tado pelo espancamento é uma teoria. E boa? É má?... Em todo o caso é respeitável.

Somente nos parece que, visto a polícia pos­suir este método específico, que ela decerto julga proveitoso porque o usa, não lhe poderia custar muito um pequeno trabalho a mais – e o Governo deveria encarregá-la de tratar os cidadãos enfer­mos. Poupávamos assim a despesa com a Escola de Medicina. Quando alguém se sentisse doente, chamava da janela o polícia da esquina; e este benemérito, depois de tomar o pulso e reconhecer a autenticidade do mal, arregaçava a calça, man­dava pôr o doente em posição, e escalavrava-o a pontapés!

Uma economia paralela nos ocorre a respeito da municipal. Coronhadas como as que vimos estalar, com um som baço e gemente, nas ilhar­gas de dois cidadãos, podem muito naturalmente matar um homem fraco, que sofra do peito, de uma lesão, de um aneurisma, de um vício de cons­trução. Ora não queremos dizer que a patrulha não tenha a faculdade de matar, à coronhada, os cidadãos que destranquilizam as ruas! Seria esse mesmo o meio mais eficaz de estabelecer na cidade uma paz inalterável. O cidadão estendido morto, com a espinha partida ou o crânio aberto, aos pés do municipal, dá garantias superiores do seu sossego e da sua cordura. E decerto a melhor maneira de fazer entrar um cidadão na ordem –é fazê-lo entrar no cemitério.

Mas então (economia!) suprimamos os tribu­nais. Recolha-se definitivamente a magistratura ao seio das suas famílias e das suas torradas. Não é necessário que haja juiz para julgar os cida­dãos – quando a municipal previamente se encar­rega de desfazer esses cidadãos às coronhadas! O mais subtil magistrado ficaria pálido de emba­raço se lhe apresentassem o corpo despedaçado de um desordeiro – para ele lhe fazer perguntas! E como poderia um cadáver pagar a multa? Pou­pemos à justiça estas colisões vexatórias!

 

                           Outubro 1871.

O Diário de Notícias, jornal que tem imposto aos seus correspondentes o hábito das informações escrupulosas e sérias, inseria ultima­mente uma carta de Gouveia em que era narrado este caso:

«Um marido matara sua mulher, partira-a aos pedaços, fora preso, e condenado...

Reparem bem! «E condenado... a varrer as ruas de Gouveia!»

 

De modo nenhum queremos limitar os mari­dos no direito de decepar suas mulheres. São miu­dezas domésticas em que não intervimos. Nunca se dirá que as Farpas se arrojam indiscreta­mente sobre o seio das famílias. Que os maridos, quando lhes convenha, para melhor organização do seu interior, partam suas mulheres aos peda­ços – coisa é que nem nos escandaliza, nem nos jubila! Talvez não imitássemos esse exemplo: não por nos parecer fora das atribuições maritais, mas por se nos afigurar excessivamente trabalhoso o partir aos bocadinhos uma consorte esti­mada! E entendemos que, quando um marido se sinta dominado pelo desejo invencível de partir alguma coisa – é mais simples ir à cozinha trinchar o rosbife, do que à alcova retalhar a esposa!

 

Não nos espanta também o castigo infligido pelo meritíssimo juiz de Gouveia. Nós não temos a honra de conhecer Gouveia. O código, é certo, marca uma pena diversa, não prevendo esse cas­tigo de varrer as ruas de Gouveia – de resto todo Local. Mas quem sabe se não será uma tremenda penalidade – o limpar as ruas de Gouveia! Talvez mesmo o juiz – por lhe parecer insuficiente o degredo perpétuo – rompesse no excesso arbitrá­rio de entregar aquele facínora ao suplício imenso de limpar as ruas da sua vila! Bem pode ser que aquele marido esteja cumprindo uma sentença pavorosa, e que o devamos lastimar mais que os infelizes que S. M. Alexandre II da Rússia (que Deus guarde e muitos anos conserve em prosperi­dade e glória) manda trabalhar, ao estalo do chi­cote, nas minas de Orilieff! A imundície da pro­víncia tem mistérios. Limpar as ruas de Gouveia será talvez a pena que de futuro adoptem, em substituição da pena de morte, os códigos da Europa. Que grande honra, meus amigos, para a sujidade nacional!

Mas uma coisa nos ocorre: – e é que, de ora em diante, varrer as ruas deixa de ser um emprego municipal, e começa a considerar-se uma pena infamante. E pode acontecer que os srs. var­redores de Lisboa – não querendo, por uma sus­ceptibilidade exagerada, passar por terem assas­sinado suas esposas, deponham com gesto de des­dém o cabo das suas vassouras nas mãos ataran­tadas da câmara municipal! Por outro lado, dada esta greve, nenhum cidadão se quererá incumbir de limpar as ruas. Há gente tão meticulosa, tão escrupulosa, que embirraria que os vizinhos a suspeitassem de ter empregado o trinchante na pessoa da sua consorte. A única pessoa que afoi­tamente ousaria varrer as ruas seria aquela de quem se não pudesse suspeitar um crime, aquela que fosse pela lei do Reino declarada irrespon­sável. Ora há só uma neste caso. É o chefe do Estado. Esse é o único que poderia varrer as ruas sem que ninguém se lembrasse de pensar que ele andava ali, às vassouradas, por sentença de um tribunal. Esse é irresponsável; não comete cri­mes, nem sofre penas. Mas seria realmente atroz que S. M. se visse obrigado, depois do teatro, a ir, por essas vielas, melancolicamente seguido da sua corte, levando, de vassoura em punho, adiante de si, em nu vens de poeira, a imundície dos seus vassalos!

 

Que a justiça, pois, nos esclareça sobre estes pontos: se limpar as ruas é uma penalidade nova, e se, a troco de quatro vassouradas, qualquer cidadão pode ter a vantagem de espatifar sua esposa: se a imundície especial e pavorosa das ruas de Gouveia torna realmente essa pena igual à de degredo: ou se o sr. juiz de Gouveia entende que matar a esposa é acto tão meritório, que merece um emprego remunerado pela câmara. Esperamos, modestos e respeitosos, as respostas dos poderes públicos.

 

                                 Outubro 1871.

Alguns jornais contaram este mês, com uma indignação ingénua, que na devota cidade de Braga alguns missionários vendiam aos fiéis cartas inéditas da Virgem Maria. Estas cartas, segundo parece, eram dirigidas, umas a persona­gens dos tempos evangélicos – outras, mais par­ticularmente, a cidadãos de Braga. Corre que os editores desta correspondência inesperada da Mãe de Jesus tiveram um ganho excelente.

 

O comércio da relíquia piedosa é a ocupação usual dos srs. missionários. Um sábio professor da Universidade de Coimbra contava-nos, há pouco, que presenciara em Trás-os-Montes uma singular agudeza:

Um missionário chegou ali com grande baga­gem de rosários, contas, sudários, pedaços do santo lenho, fragmentos da túnica, etc. Mas o desleixado, o imprudente, não trazia caixeiro! De tal sorte que teve de se contentar com dois que lhe forneceu um negociante de panos. Estes dois hábeis vendedores a retalho, colocados à porta da igreja nas tardes de sermão, diante de tabuleiros de feira, enfeitados de toalhas bordadas e cheios de relíquias, dirigiam activamente o seu negócio pio. Quem entrava na igreja comprava com devo­ção. E no entretanto o missionário no púlpito tro­vejava. – Contar aqui o que ele declamava no seu vozeirão labrego não o podemos – para que estas páginas não venham a ser consideradas tão pican­tes como as das memórias de Faublas.

No entanto uma inquietação atormentava este varão pio. Não sabia a conta exacta das relíquias que dera aos caixeiros, e punha neles uma con­fiança pouco evangélica! De modo que tomou este expediente triunfante. Ao fim de cada sermão, clamava:

– Agora vão-se benzer as relíquias! Quem tiver rosários de Nossa Senhora, erga-os ao ar!

Os fiéis que se tinham provido daquela espé­cie levantavam-na com fervor. O missionário então, como absorto em êxtase, contava com os olhos, rapidamente, a voo de pregador, os rosá­rios. Depois abençoava-os. Passava em seguida, pelo mesmo processo extático, à contagem das outras relíquias. E quando saía da igreja con­feria os seus apontamentos mentais do púlpito com os resultados monetários da porta. Os caixeiros eram honrados, e este homem fez um bom lucro. Que Deus o proteja, e a polícia o não incomode!

Nós achamos tudo isto extremamente regular. Somente desejamos saber:

Se os srs. missionários são exclusivamente negociantes, que, de passagem e por demais, tam­bém pregam sermões;

Ou se são sacerdotes, que, para se ocuparem em mais alguma coisa, também fazem negocio.

 

No primeiro caso, sendo negociantes que por demais pregam sermões, achamos perfeitamente inútil que, depois de terem feito o seu comércio, queiram mostrar a sua eloquência. Um negociante que, depois de nos vender uma peça de linho, nos recitasse uma ode da sua lavra, seria aleivosa­mente impertinente. Julgamos pois dispensável que os srs. missionários, tendo recolhido na praça o seu ganho, subam ao púlpito a exalar a sua retórica.

Que andam eles fazendo? Andam espalhando a palavra de Deus? – Mas então, se existem em Portugal vilas ou aldeias não convertidas ao cris­tianismo, em que pensa o Governo que não manda as suas hostes rechaçar o infiel? Bajoica de Riba é moura? Expulse-se de lá o adorador de Mafoma! Mas se Bajoica já é cristã e católica, que têm que fazer lá os missionários? Os antigos padres das missões, educados na tradição apostólica, iam à China, ao Japão e à índia, em viagens maravilho­sas, ensinavam o Deus novo, e morriam nos tor­mentos. Estes senhores que vão fazer agora em diligência a Tondela, ou em ónibus a Mafra? Não possui cada freguesia o seu pároco, as suas prédicas, as suas missas, o seu culto? Se os mis­sionários não vão lá senão ensinar a religião que lá se prega, são evidentemente inúteis: se vão ensinar uma religião nova, que a polícia e o Estado os condene, porque não é permitido alte­rar a religião do reino.

Fugi a isto, doutores de teologia! E se os senhores bispos entendem que é necessário que os missionários fortaleçam a fé enfraquecida das freguesias – então que se dirá de SS. Ex.as Reve­rendíssimas? Por que consentem SS. Ex.as nas suas dioceses um clero colado tão incompetente que assim deixa enfraquecer a religião, e que torna necessário que, para a restabelecer, ande constantemente percorrendo o País um clero errante? – Parece-nos pois inútil que os srs. mis­sionários, depois de terem feito o seu negócio, preguem os seus sermões.

 

Se porém, na hipótese do segundo caso, eles são sacerdotes que acumulam um pequeno negócio de relíquias, então uma coisa grave se apresenta:

Todo o negociante que atribui ao objecto que vende uma qualidade superior, para o fazer valer, usa de fraude, e está incurso nas penalidades da lei.

A lei, que não pode impedir a simplicidade e a credulidade, põe-na ao abrigo dos exploradores. Ainda há pouco um homem que vendia camisolas de malha vermelhas, declarando que elas tinham o privilégio de curar repentinamente o reuma­tismo mais rebelde, foi devidamente autuado e multado.

Por consequência todo o missionário pode des­cer do púlpito, e vir para a praça vender rosários, imagens, litografias de santos, etc. Está no seu pleno direito civil. Mas se, servindo-se da sua autoridade sacerdotal, esse homem afiança do púl­pito, invocando Deus e sob a garantia da sua mis­são religiosa, que essas relíquias lhe foram entre­gues por um anjo, e curam as doenças, fazem voltar ao amor os maridos distraídos, saram a esterilidade, livram de tentações, e que recai um castigo sobre quem as não compra – esse homem atribui ao seu ramo de comércio um valor sobre­natural, e vende como relíquia vinda do Céu uma quinquilharia de Braga. Cai pois, como negociante fraudulento, sob os rigores da polícia!

É lógico. Os jornais liberais dirão que esse homem lança a multidão num fanatismo animal; substitui o respeito de Deus pela adoração imbecil de emblemas; faz da absolvição divina uma espe­culação própria; conduz os homens à idolatria! Nós colocamo-nos no ponto puramente legal: – Esse homem, diremos, é um negociante fraudu­lento.

 

Todos aqueles que têm observado as missões e a venda de relíquias, sabem, além disso, que a certeza principal que se dá aos devotos – é que a relíquia comprada os absolve de antemão de todo o pecado.

De modo que o cidadão, depois de pagar e meter na algibeira a sua relíquia (rosário, lasca de lenho santo, pedaço de sudário, bocado da túnica da Virgem) julga-se na graça de Deus e na permissão de toda a fantasia! Daí por diante pode altercar na taberna, espancar o vizinho, mal­tratar a mulher, roubar quem passa: não tem ele bem guardada no peito a relíquia que o absolve, que lhe salva a alma?

Assim, com um mesmo acto, o missionário que prega e vende – infringe a lei comercial e con­traria a lei civil. E estes males são ainda bem menores que os que ele faz à lei moral!

 

                         Outubro 1871.

Cidadãos! Vejamos um pouco a nossa diplo­macia.

Queixava-se há tempos o excelente Jornal da Noite que o Governo não publicasse os relatórios dos seus diplomatas, ministros, encarregados de negócios, secretários, etc. Ingénuo Jornal da Noite! E o mesmo que censurar que se não foto­grafem os baixos-relevos – de uma parede Lisa. Que quer o distinto redactor do Jornal da Noite que o Governo publique? A diplomacia só tem a oferecer, como resultado dos seus trabalhos há vinte anos, o seu papel almaço – em branco. Se os nossos diplomatas quiserem um dia remeter para Portugal, em consciência, devidamente empa­cotados, os documentos do que nas suas missões criaram, organizaram, pensaram, trataram – a secretaria encontraria espantada, ao abrir o pacote:

Um montão de luvas gris-perle em mau uso!!

Se a esses cavalheiros que têm sido ministros e encarregados de negócios em Londres, em Ber­lim, em Paris, em Madrid, em Bruxelas, em Esto­colmo, em Sampetersburgo, em Milão, em Roma, no Rio de Janeiro, em Viena de Áustria, em Washington, com os seus secretários de embai­xada, os seus adidos, os seus ordenados, despesas de representação, despesas de expediente, despe­sas secretas, etc., unia voz impertinente pergun­tasse: – «Como têm VV. Ex.as desempenhado as suas missões? Que tratados vantajosos têm alcan­çado para o nosso País? Que estabelecimentos portugueses têm lá favorecido? Que serviços inter­nacionais têm regularizado? Que relações sólidas e protecções valiosas têm obtido para a nossa pequenina nação? Que estudos têm feito sobre a organização e instituições desses países? Em que sábios trabalhos as têm aconselhado para nosso progresso? Que conhecimento têm dado aos estrangeiros das nossas instituições, do nosso comércio, da nossa ciência! Etc.? Etc.?» – SS. Ex.as a tais interrogações ficariam pálidos de surpresa! Os nossos diplomatas inteiramente ignoram que estes sejam os seus encargos. Nenhum curso lhos ensinou, nenhuma lei lhos incumbiu. Eles seguem a velha tradição de que a diplomacia é uma ocio­sidade regalada, bem convivida, bem comida, bem dançada, bem gantée, bem voiturée, com bons ordenados e viagens pagas. Estão ali para serem diplomatas na gravata – e não para serem diplo­matas no espírito: e achariam um abuso inclassi­ficável que os tivessem nomeado para marcar o cotillon e no fim lhes exigissem relatórios. SS. Ex.as entendem que o País está bem representado desde o momento em que o seu colarinho é irrepreensível... E todavia SS. Ex.as estão repre­sentando uma nação – e não uma camisaria! Se SS. Ex.as vão unicamente encarregados de mos­trar aos países estrangeiros a excelência dos nos­sos alfaiates – então o País não é o interessado, e o Sr. Keil que lhes pague! Se SS. Ex.as têm apenas por missão mostrar lá fora como o País dança bem, entendemos que SS. Ex.as prestam melhor serviço na sua pátria; e não ousando pedir ao Governo que os faça recolher à secretaria, pedi­mos aos Srs. Valdez e Cossoul, empresários de S. Carlos, que os façam recolher ao corpo de baile!

O País conhece bem a nossa diplomacia: já a viu à luz da rampa, a um rumor de orquestra: já riu com ela, já lhe bateu as palmas: ela aparecia, esplendidamente real, na corte grotesca de S. A. a grã-duquesa de Gerolstein, poderosa princesa em três actos. Era o barão Grog. O barão Grog, não se lembram? Somente a nossa diplomacia não usa rabicho, e curva-se com menos elegância. E o barão Grog conspirava! Os nossos nem sequer conspiram! Ele tinha graça, os nossos são lúgu­bres! Ele só nos custava um bilhete de plateia, os nossos custam-nos infinitos contos!

 

Evidentemente na organização da nossa diplo­macia vamos seguindo um caminho imprevidente.

As habilitações que se exigem de um cidadão devem estar em harmonia com os serviços que se esperam dele. Não se requer, dos que preten­dem ser lentes do Curso Superior de Letras, que apresentem certidão de saber dançar dignamente o cancã. Ora se a missão de um diplomata é comer bem, dançar bem, vestir bem, parece-nos inútil que se lhe peçam provas de que conhece o direito internacional e a história diplomática! O mais trivial bom senso ordena que ele seja exa­minado simplesmente em pontos como estes:

Maneira mais própria de pôr a gravata branca, e suas divisões;

Método mais fino de comer a ostra; princípios gerais; aplicações;

Da valsa: teorias; questões principais; exem­plos; etc.

Assim suponhamos que algum dos nossos mais nobres «vultos políticos», o Sr. Braamcamp, por exemplo, pretende uma embaixada. Autorizam-no a isso a sua experiência e o seu critério. Que se lhe dê! Mas que antecipadamente S. Exª seja examinado na secretaria dos estrangeiros por um júri competente e recto:

Tenha V. Exª, Sr. Braamcamp (dirá o júri), a bondade de se sentar àquela mesa e comer aquele linguado frito, para nos provar que não lhe é estranho esse ponto da ciência diplomática...

E S. Exª tomando delicadamente o garfo, e na extremidade de dois dedos uma côdea fina de pão, com os braços unidos, a cabeça direita, os olhos baixos, provará a sua imensa competência naquela questão difícil.

– Tenha agora V. Exª, Sr. Braamcamp, a bondade de valsar um momento pela casa, com donaire...

E S. Exª arqueando molemente os braços, des­pedido em giros graciosos por entre as mesas da secretaria, com a cabeça meigamente reclinada, o olhar amoroso, a cintura mórbida, provará vitoriosamente que tem compulsado com mão diurna e nocturna todos Os expositores daquela ilustre matéria.

(N. B. – Para que o concorrente não valse só, poderá utilizar-se como dama o contínuo da secretaria, que o examinando tomará nos braços com requebro meigo).

E aprovado que tosse o Sr. Braamcamp, ou outro cavalheiro, nos pontos sujeitos, o País podia entregar-lhe confiadamente uma missão numa corte estrangeira, certo que os seus inte­resses seriam ali dignamente – comidos e dan­çados!

 

Também nos ocorre que consistindo uma das principais funções dos secretários de embaixada e adidos em dançar nos bailes do Paço, a melhor maneira de alcançar um pessoal diplomático ver­dadeiramente superior seria escolhê-lo–no corpo de baile!

Ninguém teria então, entre a diplomacia euro­peia, mais graça, harmonia e ligeireza nos movi­mentos. E seria honroso para todos que os jor­nais estrangeiros pudessem noticiar:

 

«Chegou hoje a Srª Pinchiara, antiga primeira bailarina de S. Carlos, hoje secretário da embai­xada portuguesa...

 

 

E mais tarde registassem para vaidade eterna da nossa Pátria:

 

«Ontem a maravilha no baile da corte foi a maneira adorável por que dançou a Srª Pinchiara, secretário da legação portuguesa. Parecia um silfo, com os seus vestidos de gaze. Notou-se ape­nas que o sr. secretário da legação estava um pouco decotado de mais. É admirável a bran­cura do seu colo!...»

 

 

Igualmente nos parece vantajoso que o con­curso para adido de legação verse, não sobre a ciência dos concorrentes–mas sobre a sua roupa branca. Se o dever essencial de um adido é a expo­sição solene dos colarinhos que se alteiam sob a suíça, dos Largos peitos de camisa que se arqueiam como couraças, e dos punhos que espirram para fora da manga com uma rijeza de aço – deve o Governo de S. M. utilizar para o serviço diplomá­tico aqueles que, pela beleza e solidez dos seus engomados, melhor acreditarem lá fora as nossas instituições. E a diplomacia começará a dar garantias da sua eficácia, quando o Sr. X tiver conquistado os sufrágios do júri pelo brilho das suas camisas inglesas e pelo valor das suas peúgas – e o Sr. Y for plenamente reprovado por ter apresentado, por toda a ciência e experiência dos negócios, um reles colarinho à mamã!

 

 

Com entranhada mágoa o dizemos: os senho­res diplomatas portugueses vestem-se de um modo a que só falta para ser distinto – ser inteira­mente diverso do que é. SS. EXª ou se ajeitam pelo feitio nacional que tanto domina na Rua dos Fanqueiros, ou então adoptam o velho chi­que de boulevard, ainda do tempo do ministério Rouher, hoje unicamente usado pelos pollos de Madrid! Não seria pois fora de propósito que existissem na secretaria dos estrangeiros figuri­nos-modelos, com comentários e notas, que os senhores adidos deveriam estudar antes de enco­mendar as suas farpelas. Outrossim se nos afi­gura imprudente que os srs. diplomatas possam fazer um fraque sem previamente levarem o corte e talhe à aprovação da comissão diplomática. Igualmente pedimos ao Governo, em nome do País, que não deixe sair nenhum senhor diplo­mata sem previamente lhe ter examinado:

As unhas e a caspa do cabelo!

 

Uma das coisas que prejudica a nossa diplo­macia é ela não possuir espírito. Ser espirituoso é metade de ser diplomata. A tradição clássica mos­tra-nos Talleyrand governando a intriga europeia com as finas decisões dos seus bons ditos: modernamente, desde Morny até ao sombrio Sr. de Bis­marck, a diplomacia tem feito do espírito quase um método. O espírito move tudo e não responde por coisa alguma: ele é a. eloquência da alegria, e o entrincheiramento das situações difíceis: salva uma crise fazendo sorrir: condensa em duas pala­vras a crítica de uma instituição: disfarça às vezes a fraqueza de uma opinião, acentua outras vezes a força de uma ideia: é a mais fina salvaguarda dos que não querem definir-se francamente: tira a intransigência às convicções, fazendo-lhes cóce­gas: substitui a razão quando não substitui a ciência, dá uma posição no mundo, e, adoptado como um sistema, derruba um império. E, sobre­tudo pelo indefinido que dá à conversação, ele é a arma verdadeira da diplomacia. Ora, com compunção o dizemos, a nossa diplomacia não tem espírito. Seria por isso bem útil que o ministério dos estrangeiros examinasse os seus diplomatas, antes de os nomear, em pontos assim conce­bidos:

– Estando o senhor adido numa sala, e come­çando na rua a chover, que pilhéria deverá o senhor dizer?

– Num camarote de ópera, quais são as facé­cias que deve lançar um secretário de legação sobre o corpo de baile?

E seria conveniente que a secretaria pos­suísse uma lista de jocosidades, para todos os usos da vida, que os senhores diplomatas deve­riam decorar:

 

Pilhérias para baile;

Ditas para almoço;

Ditas para cerimónias religiosas;

Ditas para recepções no Paço;

Ditas para entreter personagens célebres;

Ditas para enterro de pessoas reais, etc.

 

Concorre muito para que a nossa diplomacia não seja brilhante, o horror que o País tem a ser representado por homens inteligentes. Não se pode dizer que isto proceda do amor de os pos­suir no seu seio: antes parece que o domina o terror de que eles vão destruir a reputação de embrutecimento que o País goza lá fora. A ver­dade é que, quando algum homem inteligente vai em missão diplomática, os jornais bravejam, e a opinião pública apita!

Se alguém ousasse, por arrojo absurdo, man­dar em embaixada o Sr. Alexandre Herculano, a Nação, de raiva, abria as veias! Por sua vontade o País enviaria às cortes estrangeiras, para ser representado dignamente – bacorinhos do Alen­tejo. Não o faz, porque, corno ao mesmo tempo é avaro e desconfiado, receia que as cortes estran­geiras, não podendo arrancar a tais diplomatas segredos políticos, lhes arrancassem – presuntos! Por isso manda homens. E só por isso!

 

Ao mesmo tempo o País gosta de pagar barato à sua diplomacia. E neste ponto abusa. Quer uma diplomacia bem fardada, bem bordada: e no fim se se lhe apresenta, por ter uma diplomacia, uma conta um pouco maior do que por ter um carro­ção – escandaliza-se e grita pelo sr. bispo de Viseu, D. António. De modo que um ministro plenipotenciário vê-se mais embaraçado com o rol das compras, que com o manejo das políticas!

Os diplomatas portugueses passam por agra. dar no estrangeiro pela sua palidez! Mas não se sabe que a sua palidez vem, não da beleza de raça peninsular, mas da fraqueza de legação mal alimentada. Onde um embaixador português mais se demora, não é diante das instituições estran­geiras com respeito, é diante das lojas de mer­cearia com inveja! E se eles não podem alcançar bons tratados para o País – é porque andam ocupados em arranjar mais rosbife para o estô­mago. Se não fossem os jantares da corte e as ceias dos bailes, a posição de diplomata portu­guês era insustentável. E ainda veremos os jor­nais estrangeiros, noticiarem:

«Ontem, na Rua de... caiu inanimado de fome um indivíduo bem trajado. Conduzido para uma botica próxima o infeliz revelou toda a verdade – era o embaixador português. Deram-lhe logo bifes. O desgraçado sorria, com as lágrimas nos olhos.»

 

Que o País atenda a esta desgraçada situação! Que tenha um movimento generoso e franco! Dê aos seus embaixadores menos títulos e mais bifes! Embora lhes diminua as atribuições, aumente-lhes ao menos a hortaliça. Eles pedem ao seu país uma coisa bem simples: não é um palácio para viver, nem um landau para passear, nem fardas, nem comendas! É carne! Que o País, no número do pessoal diplomático – diminua os adidos e aumente os bois.

 

Que a nossa diplomacia, aliás meritória e sim­pática, se não agaste com estes traços ligeiros! Quisemos apenas rire un brin. E nesta nossa triste terra, quando a gente se quer alegrar e folgar um pouco, tem de recorrer às instituições, que são entre nós – pilhérias organizadas funcio­nando publicamente.

 

                             Outubro 1871.

Jesus, quando não sofria ainda aquela áspera melancolia que lhe deu mais tarde a presença de Jerusalém branca e dura, era um meigo rabi, que percorria perpetuamente, no infinito enlevo do seu sonho, a sua tranquila e humana Galileia, ora a pé, ora num desses pequenos burros que têm os olhos tão grandes e tão doces e que vêm da alta Síria. Entrava nas sinagogas; e, comen­tando os velhos papiros da lei, ensinava o Deus novo. Parava nos casais, sentava-se às portas, sobre os bancos encanastrados de vime, debaixo dos sicômoros. As mulheres davam-lhe mel, vinho de Safed, e diziam: – «fala, rabi, fala!» As crian­ças tomavam-lhe as mãos, ou puxando-lhe pelas compridas pontas do seu couffie, amarrado por uma corda da pele de camelo, queriam ver o fundo dos seus olhos. Os discípulos afastavam as crianças. Mas o Mestre murmurava sor­rindo:

– Deixai vir ter comigo as crianças, abençoa­das são elas! elas sabem muitos segredos que os sábios ignoram.

 

Parece que ultimamente o clero não tem esta consoladora ideia de Jesus. O Sr. Encomendado de Santos-o-Velho, no dia de Finados, depois da missa conventual, paramentado, sobre o degrau do altar, voltou-se para o povo, e repreendeu as mães que levavam consigo as crianças à missa! E aí estão enfim as crianças expulsas da Igreja, não podendo ao menos ir uma vez por semana erguer as suas pequeninas mãos para Aquele que foi outrora, nas sombras da Galileia, o seu amigo imortal!

 

Respeitamos profundamente esta opinião cató­lica do Sr. Encomendado de Santos-o-Velho.

sem dúvida mais moral que as mães levem seus filhos à taberna, e lhes ensinem cuidadosamente – mostrando-lhes, em lugar de uma cruz, uma navalha de ponta – esta máxima salutar: esfa­quiai-vos uns aos outros! Assim se formam os justos. E seria mesmo conveniente que a opinião do Sr. Encomendado tivesse uma realização prá­tica: que houvesse na Igreja, para as crianças, a mesma polícia que há para os cães: e que, ao lado do respeitável funcionário enxota-cães, se perfi­lasse do outro lado da porta o meritório empre­gado enxota-crianças. E o culto alcançaria, defi­nitivamente limpo do ladrar dos cães e do chorar das crianças – o mais alto grau de pureza.

Realmente as crianças que choram à missa cometem um desacato. Segundo afirma a teologia casuística, os manuais de inquisidores, as disser­tações dos dominicanos, (Chicotes, Lanternas, Fustigações, são os títulos destes livros pios) e ainda segundo as profundas obras de Nieder, Sprenger, Spina e Bodin, o ilustre legista de Angers, as crianças trazem dentro de si o demó­nio, e quando choram nas igrejas é porque Sata­nás pretende insultar o culto e o sacerdote. De sorte que o Sr. Encomendado de Santos-o-Velho ainda nos parece tolerante; porque deveria tal­vez, com a sua autoridade de sacerdote e de teó­logo, ordenar às mães que quando à missa as criancinhas lhes chorem ao peito – imediata­mente lhes esmaguem as cabeças no lajedo, para abafar a voz do Maligno!

 

O Sr. Encomendado referia-se apenas às crianças pobres. Às crianças ricas não imporia ele, sacerdote de Jesus, esse aristocrático mestre, uma exclusão irrespeitosa. – E essas mães pobres podem talvez dizer-nos:

Que são pobres; que não têm quem lhes fique em casa a tomar conta dos filhos; que os não querem deixar sós no berço, chorando no iso­lamento, ou, se são mais crescidos, ao pé do lume, arriscados ainda a caírem, a ferirem-se, a virem para a rua, a serem atropelados; que enfim não se querem separar deles, e que, como são pobres, sem pão farto, desgraçadas neste mundo, só lhes resta na Igreja o sonho consolador de um Céu que repara! Isto é talvez assim (ainda que se percebe que estas razões são inspiradas por Sata­nás). – Mas também é verdade que os Srs. Enco­mendados não podem ser interrompidos na sua missa pelas crianças que rabujam, e que se torna de toda a justiça que sejam excluídas da Igreja, como perturbadoras da ordem, da decência e do respeito – as mães que ousem vir rezar com o seu filho ao colo!

 

Pobres pequenos! consolai-vos! Jesus, o vosso amigo, também não é mais feliz: há muitos sécu­los que ele procura erguer a pedra do seu túmulo – e há muitos séculos que o seu clero carrega na pedra para baixo!

 

                       Outubro 1871.

A companhia dos caminhos de ferro está abu­sando um pouco da amizade impaciente que (no seu entender) nós e a Espanha nutrimos reci­procamente. A cada momento nos facilita entre­vistas baratas e ternas. Sim, decerto, nós e os Espanhóis meigamente nos amamos! Mas não sen­timos a necessidade urgente e ávida de nos pre­cipitarmos, assim, todos os oito dias, nos braços uns dos outros!

 

A companhia dos caminhos de ferro, com intenções amáveis e civilizadoras, coloca-nos em embaraços terríveis. Digamo-lo rudemente: nós não estamos em estado de receber visitas! Vive­mos aqui ao nosso canto, sem cerimónia, em chi­nelas – e não gostamos que gente culta venha ter a revelação da nossa mobília pobre e da nossa conversação simplória.

E tanto que pedimos claramente ao Governo, em nome do País envergonhado e com a barba por fazer, que proíba, sob as penas mais severas, à companhia dos caminhos de ferro, o facilitar assim por preços baratos, a essa aparatosa Espa­nha, viagens de recreio através da nossa miséria!

O País não pode em sua honra consentir que os Espanhóis o venham ver. O País está atrasado, embrutecido, remendado, sujo, insípido. O País precisa fechar-se por dentro e correr as cortinas. E é uma impertinência introduzir no meio do nosso total desarranjo, hóspedes curiosos, inte­ressados, de luneta sarcástica!

 

Imaginemos que amanhã chega aí, ao largo arquejar da máquina, num desses comboios impu­dentes, uma coorte espanhola, descaradamente ilustre – estadistas, oradores, generais, litera­tos, pintores, professores, arquitectos, jorna­listas... Que vergonha, meus senhores, que ver­gonha!

Imaginemos que esses homens políticos, esses oradores, esses parlamentares, Sagasta, Martos, Py y Margal, Zorrilla, Rivero, Castelar, Canovas, conservadores e revolucionários, ministros e tri­bunos, filósofos e dialécticos, se vão sentar, num dia de sessão, na galeria desbotada de S. Bento, e que vêem, piedoso Deus! as nossas câmaras, a nulidade do pensamento, a relice da palavra, o abandono de todo o decoro, os insultos e os des­mentidos, a compostura plebeia e grossa, a ciência que lá falta, a intriga que lá abunda, a horrível baixeza daquela pocilga constitucional!

Imaginemos que esses estadistas conversam com esses que são entre nós os estadistas – e vêem, vergonha eterna! que eles ignoram a admi­nistração, a economia, a história, as questões do tempo, toda a ideia, todo o facto, e que por única verve e por única profundidade sabem afirmar que o regedor de Cabanelas é amigo do ferrador da Cortegaça e que este compadrio aldeão dá cinquenta votos combinados ao Governo de S. M. F.!

Imaginemos que esses generais, que venceram em África e que venceram em Espanha, estudam o nosso exército, visitam os nossos quartéis, exa­minam o nosso armamento, conversam com os nossos generais!

Oh por piedade! consideremos que esses pro­fessores podem entrar na obscura vergonha das nossas escolas! Que esses jurisconsultos podem querer ver os nossos tribunais! Que esses arqui­tectos podem deitar a luneta às nossas constru­ções! Que esses pintores podem perguntar pelas nossas galerias! Que esses homens do mundo podem tratar com os nossos dândis, ou mirar-lhes a toilette! Que vergonhas! que vergonhas! Ah! meus senhores, não consintamos que essa cruel Espanha, que se levanta, que se organiza, que se engrandece – venha, de luneta no olho e gargalhada na boca, fazer o inventário jocoso do nosso abaixamento! Não consintamos que nos vejam! Aferrolhemo-nos! Os Chins, outrora, não permitiam que os europeus vissem o seu esplen­dor. Sejamos a China da miséria!

 

E se por acaso a companhia dos caminhos de ferro, para fingir que tem passageiros e movi­mento, precisa impreterivelmente fazer passar a fronteira a alguns viajantes curiosos – então ao menos que só dê lugar nos seus velhos vagões àqueles de quem nós não tenhamos vergonha, e com cujas civilizações possamos competir: –Cafres, Patagónios, Lapónios, Abexins, Etiópios, Tártaros, e Hotentotes! E estaremos então em família.

 

A Espanha, porém, a garrida Espanha, é que parece desejar profundamente que nós os Portu­gueses examinemos de perto o seu salero político, económico, artístico, religioso e teatral: porque, com uma originalidade cómica, que excede tudo quanto contaram os romances picarescos do século XVII, a Espanha condecora todos os por­tugueses que cometam o arrojado feito de ir a Madrid! Sem distinção, sem escolha! O viajante português chega, o dono da Fonda traz-lhe chocolate – e um contínuo do Paço Real traz-lhe a comenda. Ou porque a Espanha queira compensar os incómodos e os tédios de lhe ir ver a capital: ou porque o rei Amadeu, que nunca foi visitado pela aristocracia espanhola, se comova até à lágrima e até à condecoração quando se digna ir vê-lo a burguesia lusitana – o portu­guês que chega recebe em pleno peito, sem pre­venção, sem água vai, uma comenda e um diploma enrolado!

Já se sabe de antemão aquela graça. Pode-se até telegrafar assim para Madrid: – Hotel de los Embajadores, calle S. Jeronimo: Ao Sr. Moreto, proprietário. – Chego amanhã, prepare-me quar­tos e a comenda de Carlos III.

Podia, até, para maior franqueza, ser a con­decoração indicada na lista dos hotéis:

 

Gravanzos ............................................................................. 1 duro

Grã-cruz de Isabel a Católica ................................................. grátis

 

 

Dizem que o Governo espanhol resolveu con­decorar assim os que tomam bilhetes de 1ª a ou 2ª classe para Madrid, com o fim único de favorecer a companhia dos caminhos de ferro.

Em tal caso era mais cómodo entregar logo a condecoração em Santa Apolónia.

– Um bilhete de 2ª classe, e a condecoração! – gritaria o viajante ao postigo do vendedor de bilhetes.

E a companhia pregava-lhe a marca no bojo do saco de noite – e a comenda no peito do fra­que. E o sr. comendador entrava para o seu vagão!

 

Há, evidentemente, duas intenções delicadas naquele derramar de condecorações:

A primeira é compensar as contas dos hotéis. Depois da guerra de Marrocos, aqueles que podiam mostrar uma cicatriz apresentavam-se na Secretaria da Guerra e recebiam a Medalha de África. Agora parece que, depois de alguns dias de Madrid, aqueles que puderem mostrar, não uma cicatriz mas uma conta de hotel, recebem na Secretaria da Gobernacion a comenda de Car­los III! Nesse caso aqui estamos! Temos uma conta da Fonda de Madrid, em Cádis, Plaza Santo António, inumerável em gravanzos – e em duros inumerável! Em boa lógica não pode deixar de nos ser dada uma capitania geral! E ainda perdemos!

A segunda intenção é premiar os que viajam. Mas então que honras se reservam àqueles que vão ainda além de Madrid? Que grã-cruzes se dão a quem vai a Barcelona? Que títulos de nobreza esperam aqueles que chegam às Vascongadas?

Porque enfim se um de nós se perfilasse diante de S. M. Amadeu, e lhe falasse destarte:

– Real senhor! o vosso humilde servidor já foi a Espanha, daí a Malta, depois ao Egipto, depois à Arábia, depois à Palestina, e a Jeru­salém; atravessou os montes da Judeia, pere­grinou até o Jordão, subiu à Síria, visitou o Líbano...

...S. M. Amadeu não podia deixar de descer os degraus do trono, e gritar comovido:

– Viajante dessa ordem, reina sobre os Espa­nhóis!

 

Gloriosa Espanha, faceta Espanha! – A Cris­tóvão Colombo, que fez a viagem maravilhosa e chegou ao Novo Mundo, deste umas poucas de palhas para ele morrer num cárcere: – a quem empreende a viagem de Madrid e chega à Calle Reale, dás uma comenda de prata, gloriosa Espa­nha, faceta Espanha!

Andávamos bem enganados com os méritos humanos. O nosso espirituoso amigo Pinheiro Chagas tem sido, desde a mais distante mocidade, um trabalhador. Jornalista, poeta, romancista, historiador, dramaturgo, crítico, sempre à sua mesa de trabalho com o valor de quem está numa trincheira, tem belamente despertado com a sua pena vigorosa a nossa curiosidade indolente. Nenhum governo lhe pôs nada ao peito, nem um botão de rosa no casaco. A Espanha nunca pen­sara em lhe dar os bons-dias! Pinheiro Chagas lembra-se um dia de se meter num vagão do cami­nho de ferro. O Governo espanhol acorda, fita-lhe o peito, e, com um grito de amor, crava-lhe a placa de Carlos III!

Qual é a ilação? Que, aos olhos do Governo espanhol, o maior feito que pode cometer um varão contemporâneo não é fazer um grande livro, ganhar uma grande batalha, descobrir uma grande máquina – mas ter a sobre-humana cora­gem de ir a Madrid. Haverá nada mais humi­lhante para Madrid? E fazer uma pavorosa ideia de uma capital o considerar como um acto de coragem – ir lá! O Dr. Levingstone, que tem viajado os desertos desconhecidos, os ásperos sertões, os rios bárbaros, as tribos antropófagas – é grande; mas falta-lhe a faça­nha suprema – ir, ao meio-dia, à Rua de Alcalá!

 

E nós Portugueses, levando nossos filhos pela mão, quando encontrarmos mais tarde algum dos heróicos viajantes de Madrid, diremos a nossos filhos:

– Vês, meu filho, aquele senhor condecorado, meneando a sua bengala?

– Sim, papá.

– Admira-o, menino, e imita-o! Aquele homem sublime, num momento de coragem, contando em nada a vida, cheio só da fé em Deus e do amor da humanidade, teve um dia o valor febril, a audá­cia estonteada, de tomar o comboio de recreio e de ir a Madrid!

E quereis saber, amigos, como começará o novo poema que mais tarde ou mais cedo tem de ser feito sobre os Novos Lusíadas? Começará assim:

 

Eu celebro os varões assinalados

Que da ocidental praia, heróicos, sós,

Em vagões nunca dantes franqueados

Passaram ainda além de Badajoz.

 

                                   Outubro 1871.

Reapareceu ou continuou (não sabemos), no teatro de S. Carlos, um antigo costume de todo o ponto prejudicial aos interesses da monar­quia.

Consiste ele em que, nos dias de gala, quando S. M. está na tribuna, no aparato de corte, os espectadores não podem aplaudir, nem patear, nem mostrar opinião.

Este costume – vindo dos antigos tempos em que na presença do seu rei o vassalo devia estar sem ideia, sem gesto, perfilado e nulo – é belo. Mas autoriza uma certa lógica:

Podendo o espectador aplaudir ou desaprovar quando S. M. ocupa o seu pequenino camarote de veludo cor de cereja, e não podendo fazer ruído quando S. M. se apresenta na tribuna, sob o esplendor dos lustres – segue-se que o rei só é respeitável e só se respeita quando está de gala!

Portanto, à maneira que S. M. vai saindo do cerimonial da gala, vai diminuindo o nosso res­peito para com ele!

Quando S. M. se mostra na tribuna, estamos humildes e tácitos:

Quando S. M., nos dias simples, vem para o seu camarote, perdemos um pouco o respeito, e come­çamos a fazer barulho:

(E esta lógica não pára nas suas conclu­sões!):

Quando S. M. sair do seu camarote, e for humanamente meter-se na sua carruagem, como a gala diminuiu ainda mais, o nosso respeito dimi­nui também – e passamos, numa liberdade cres­cente, a dirigir-lhe chulas:

Quando S. M., dentro do seu cupé, acender o seu charuto, como o cerimonial é menor do que no momento retro, o respeito é menor ainda – e rompamos logo, numa intimidade já irreprimível, a atirar-lhe cebolas;

Se víssemos S. M. a comer bifes, o nosso res­peito estava no fio, e principiávamos a dar-lhe piparotes na orelha.

Se o víssemos de robe de chambre o respeito ficaria extinto, e saltaríamos para os seus reais ombros, esporeando as suas reais ilhargas.

Ora isto, realmente, não convém à Monarquia!

 

Porque enfim, por este modo, S. M. não tem remédio para se fazer respeitar cabalmente – senão ficar eternamente na tribuna.

E seria cruel obrigar S. M. a dormir na tri­buna, tomar banho na tribuna, passear a cavalo na tribuna, caçar a lebre na tribuna, e viajar pelas províncias – na tribuna.

Não, Portugueses, não o consintais!

 

Que os poderes públicos pois sejam generosos, e se permita à plateia de S. Carlos, mesmo em dias de gala, ter opinião! Não aplaudir, estar sério, sorumbático, soturno – é talvez o respeito: mas pode confundir-se também com o desgosto, com o tédio.

E seria triste que perguntando um estran­geiro:

– Porque está esta plateia tão amuada?

Se lhe devesse responder:

– Porque faz anos o seu rei.

 

                             Outubro 1871.

Na Foz foram presos vinte pescadores por usa­rem redes de arrastar.

O sr. juiz respectivo levou os pescadores para o cárcere, com as famílias atrás a chorar: os barcos ficaram em estado de arresto: o peixe apreendido foi vendido em leilão: o dinheiro cui­dadosamente guardado no depósito judicial.

 

No Egipto, no tempo de Mehemet-Ali, ainda depois de 1820, os cádis (autoridades locais) que, ou por violência de temperamento, ou por imbe­cilidade, ou por exploração, vexavam o trabalha­dor, o fellah, eram pregados a uma porta pelas orelhas, como morcegos, e ali ficavam dois dias, pendurados, gotejando sangue. Não estão sen­tindo uma forte saudade por este exemplar Mehe­met-Ali, o astuto tirano que foi pastor? Ah! realmente uma autoridade dá muitas garantias quando está sujeita a ver as suas orelhas prega­das por dois pregos de cabeça amarela, no trave­jamento de uma porta!

 

Raciocinemos! As redes de arrastar prejudi­cam a pesca; o peixe desaparecia das nossas cos­tas se se fizesse de tais redes um uso imoderado. Uma lei proibiu as redes de arrastar: mas até 1867 nunca foi posta em prática. Começa, por uma portaria, a vigorar em 1867. No ministério seguinte a portaria cai em desleixo, e as redes de arrastar varrem livremente as costas. Vem o sr. bispo de Viseu, e proíbe de novo as redes. Surge o Sr. Dias Ferreira e dá ampla liberdade às redes. No ministério seguinte nova proibição. Outra vez esta proibição se relaxa. E uma der­radeira portaria, enfim, impõe vigilância escru­pulosa.

Como vêem, temos aqui uma legislação com­plicada e flutuante. E necessário seguir com cuidado o Diário do Governo para conhecer com precisão quando as redes são legítimas e quando as redes são criminosas. O acto varia de perfil, ora meritório ora culpado, conforme o tempera­mento do ministro e o seu amor pela pesca. Um advogado, consultado, teria de folhear a colecção de leis: o Sr. Governador Civil do Porto, certa­mente, não conhece de cor esta legislação con­fusa: os srs. Administradores não poderiam dife­rençar com exactidão as épocas tolerantes e as épocas proibitivas: os Srs. Regedores são total­mente alheios a esta parte da jurisprudência.

Pois bem, foi justamente por não saberem corno rábulas estas portarias sucessivas, que os vinte pescadores da Foz foram encarcerados na Relação!

 

Um pobre homem passa o seu dia remando, quebrado pela luta com o mar, para comer à noite, na promiscuidade da mesma gamela, com uns poucos de filhos, uma pouca de sardinha. Levou para isso a sua rede de arrastar com que trabalha há muito, que ele vê no barco do seu amigo, do seu vizinho, do seu patrão. Desem­barca ao pôr do Sol, esfomeado, encharcado de agua – e encontra pela frente o Sr. Regedor! – E como existe a portaria de tantos de tal, revo­gada por uma portaria posterior, posta em vigor por outra, caída depois em desleixo, novamente revogada, alterada por uma diferente legislação, ultimamente anulada, e agora rediviva e activa – ele, por ignorar inteiramente esta jurispru­dência trapalhona, vai ser levado por aqueles soldados ao Porto e aferrolhado numa enxo­via!

O crime deste homem, portanto, é não ler o Diário do Governo! Esse homem está preso por não ser um jurisconsulto! Esse homem será con­denado por ousar ser pescador – antes de ser bacharel formado!

 

Foram presos vinte. Vinham em dois barcos, eram duas companhas. O arrais é dono do barco e mestre da companha. É ele quem dirige a pesca, quem vai ao leme. Pela manhã man­da-os embarcar. As redes estão no barco! mãos aos remos! vela ao largo! Partem; e se o mar tem a condescendência de os não esma­gar na negra rocha de Leixões ou de Felguei­ras, é realmente singular que à volta, com os barcos mal cheios de peixe, doze horas de remos, e todos molhados das voltas do mar – vão dali do cais, em chusma, presos por não terem ido consultar um advogado, antes de obe­decerem ao seu arrais!

– «Mas tinham-se afixado editais!» Lêem eles editais? sabem eles ler? Trabalham. O barco tem as redes, o vento refresca, o mar aplaina, o arrais diz: larga! Largam.

E, se algum arrais leu o edital, quantos edi­tais não têm visto na esquina! Quantas vezes pre­gados, quantas vezes arrancados! Quantas vezes pescou com as redes, claramente, diante do rege­dor! Quantas vezes elas têm sido proibidas e quantas vezes toleradas? Vê o mar bom, o céu limpo, o vento mudo, e naturalmente não manda este telegrama à secretaria: «Cá vou à pesca, há aí alguma lei nova que o proíba?»

Porque então torna-se difícil ser pescador; serão necessários para arrais, grandes estudos de legislação; e o único homem que pode, com a consciência tranquila, sem receio de desaca­tar alguma portaria, pescar a sardinha – é o Sr. Martens Ferrão, procurador-geral da Coroa!

 

E além disso foram presas três crianças de 10 anos! Ah! estes criminosos vão decerto ser tratados com as penas mais severas! Lá estão na enxovia, as mães choram às grades! É justo! estes indignos entezinhos também pescavam! Aos 10 anos, quando todas as crianças brincam, até as dos lavradores miseráveis, que guiam os bois, trepam aos ninhos, se rolam rias altas ervas – estes bandidos que já trabalham, que já vão ao mar, que já aprendem a morrer na idade em que os outros ainda nem sequer aprendem a viver, que já ajudam os pais, que já são um braço ao remo, uma mão à escota, às vezes uma criança ao mar, estes celerados tinham ido nos barcos com as redes, ganhar o seu pedaço de pão, enquanto as mães, inquietas, esperavam na praia, ousando também eles, os facínoras, ignorar as portarias do sr. ministro do Reino! Por isso agora choram na cadeia!

E são vinte pescadores! Vinte famílias, dez pelo menos, sem pão, sem lume! Os pais, os mari­dos, os irmãos presos, têm ao menos o rancho da cadeia: as mulheres pedem pelas esquinas! E estamos em pleno Inverno, e vêm os tempo­rais, e começa aquele mar violento, varrido dos ventos, que as pobres mães olham dias e dias da praia, com os seus mantéus pela cabeça, sem o verem jamais condescendente, sem o verem jamais piedoso!

 

E no entanto o peixe apreendido é vendido em leilão, o dinheiro guardado no depósito. É justo: os homens na cadeias as mulheres na miséria, o dinheiro na algibeira do Governo.

Não sentem unia imensa saudade de Mehe­met-Ali, o velho tirano que pedira esmola aos piratas do Arquipélago nas praias de Cavala? Bom Mehemet-Ali! Excelente Mehemet-Ali! Cis­memos! Um cádi, pendurado pelas orelhas, e elas repuxadas, arroxeadas, ensanguentadas, lacera­das! Bom Mehemet-Ali! Evidentemente eras um justo! Dois bons pregos! uma trave segura! e as duas orelhas de um regedor da Foz!

 

                           Outubro 1871.

O Clamor do Povo, num artigo traçado com uma generosidade apaixonada e poética, censura às Farpas algumas páginas irónicas sobrea Srª condessa de Teba, imperatriz que foi dos Franceses da decadência.

O Clamor do Povo pensa dignamente que é menos delicado envolver em ironias vingativas uma mulher desgraçada. – A verdade, porém, é que a sr. condessa de Teba é apenas uma impe­ratriz despedida. A Srª condessa não foi uma esposa obscura e desinteressada do Governo, no fundo retiro dos seus quartos. S. Exª foi duas vezes regente; assinou proclamações, decretos, sentenças; constituiu ministérios; interveio na política do seu tempo, fomentou a reacção reli­giosa, presidiu, ao lado de seu marido, a conse­lhos de Estado. Estes factos colocam-na sob a crítica e sob a história. Se a Srª condessa de Teba, durante o governo amável de seu esposo, não se tivesse separado do seu cesto de costura, do berço de seu filho e das chaves da sua des­pensa, como fazem SS. MM. as imperatrizes da Alemanha e da Rússia, ela teria sido simplesmente uma esposa e uma mãe inviolável, indiscutível, inatacável. Mas se S. Exª se manifestou na vida pública do seu País, como uma força política, gerente e reinante – cai logicamente sob o domí­nio da história, glorificada ou condenada. Se a história não pode falar das mulheres, porque são mulheres, com que direito então os livros sagra­dos amaldiçoam Jesabel? Com que direito con­dena o Evangelho Herodíade, que matou João Baptista? Levar para a história as preocupações de uma sala seria chique mas bacoco. Se devemos calar e chorar quando passa uma imperatriz des­tronada, que silêncio e que lágrimas devemos reservar quando no Evangelho passa Maria, mãe de Jesus, à volta do Calvário? Os políticos não têm sexo: têm o sexo dos seus actos. Não pode­mos em boa verdade escrever histórias – unica­mente masculinas. Seria privar-nos de saber o que pensaram tantas lindas cabeças, o que come­teram tantas lindas mãos, desde a nossa mãe Eva, a loura e bárbara curiosa! Se um historia­dor, sob o pretexto que Isabel II de Espanha é uma mulher, calar no futuro o seu reinado, o Clamor do Povo dirá que ele é um gentleman, e nós que é um grotesco. E se o século XX apro­fundar esta questão, dirá que o Clamor do Povo é um romântico de xácara – e as Farpas umas burguesas de senso.

O Clamor do Povo diz que mais generoso que nós foi Vítor Hugo que, nos Châtiments, deixa no silêncio a mulher de Luís Bonaparte. Mas, nesse tempo, o Clamor sabe que a Srª condessa de Teba ainda não era casada; era apenas uma loura amo­rosa, dançando nas Tulherias uma valsa desinteres­sada com o galante de Failly, coronel de guias! Hugo não podia prever na noiva de Saint-Cloud a regente de França. Por este lado ainda mais gene­roso que Hugo, creia o Clamor – foi Tito Lívio!

 

Diz o Clamor do Povo que não devíamos acu­sar a Srª D. Eugénia porque nunca recebemos ofensas de Napoleão III. Mais pasmado ficará o excelente jornal quando lhe afirmarmos que Nero foi um celerado – e todavia, pela nossa honra o juramos, nunca, nunca recebemos de Nero a mais ligeira descortesia! E por esse lado Michelet, Gui­zot, Martin, só poderiam escrever a história de França se tivessem sido esbofeteados no boule­vard – por Carlos Magno ou Pepino o Breve!

O Clamor do Povo pinta, com grande sensibili­dade, a Srª condessa de Teba usando, depois de destronada, uma coroa de espinhos. Não vimos.

  1. Exª, quando passou em Lisboa, levava apenas um elegante chapéu branco, evidentemente saído dos ateliers de madama Julie, em Bond-Street.

 

Diz o Clamor que se não deve motejar uma senhora que não tem quem a defenda. Oh! meu Deus, os jornais franceses dizem justamente o contrário – queixam-se de que a Srª condessa de Teba tem quem a defenda de mais! A França, ao que parece, ferve em partidários bonapartistas. E de resto não tem ela seu marido? Não nos exi­miremos a trocar com Luís Bonaparte uma esto­cada ou uma bala no alto de Alcolena, ou no Poço do Bispo, ao alvorecer do dia! O perigo está em que esse homem, pelo hábito, capitule.

 

O Clamor do Povo fez, de resto, um artigo elo­quente, cheio dos mais cavalheirescos sentimen­tos, das imagens mais floridas, bela página poé­tica, que tem apenas o defeito de que um trovador a poderia assinar.

 

  1. B. – O Clamor do Povo alude às relações dos redactores das Farpas com o segundo impé­rio francês. Esclareçamos:

Um dos redactores das Farpas, achando-se em Paris, e almoçando em casa de Véfour com o seu amigo II. James Mortimer, o mesmo que em Londres está redigindo hoje uma folha bonapartista, teve ocasião de oferecer ao imperador, por intermédio deste amigo comum, uma garrafa do mesmo vinho do Porto que o jornalista americano e o jornalista português tinham bebido juntos. O vinho foi achado delicioso nas Tulherias: e, passados dias, aquele que devia ser depois o prisioneiro de Wilhelmshöe, fez entregar por M. de Conti, écuyer, um bilhete de visita ao que é agora redactor das Farpas. Uma garrafa dada, um bilhete agradecendo. O redactor das Farpas julga-se quite com o segundo império.

O outro redactor desta crónica, estando no Egipto, teve ocasião de esperar a que era então S. M. a imperatriz dos Franceses, durante duas horas, no cais de Porto Said, sob um sol candente, até que S. M., desembarcando toda vestida de linho branco, com a sombra azulada da sua ombrelle chinesa ondeando-lhe sobre o colo, tomasse com aquele firme andar que fazia lem­brar Diana, em Homero, a dianteira de um cor­tejo em que o redactor das Farpas se achava obs­curamente incorporado.

Duas horas de sol, num areal do Egipto! Em redor, apertados no estreito cais de madeira, sua­vam e abanavam-se com os seus lenços de baptiste os Srs. de Beust, o duque de Aosta, o príncipe Fre­derico da Prússia, Abd-el-Kader, o príncipe da Holanda, e S. M. o imperador da Áustria.

Vinte dias depois, o mesmo redactor das Far­pas passava no deserto do Sara sob um sol cruel. Era na areia fulva, a perder de vista. Pouca água, uma fadiga terrível. Havia a distância um khan, espécie de casebre de pau, onde se podia ter abrigo e o repouso de um bom sono. O redactor das Farpas ia abrigar-se lá, quando teve de sair à pressa pela razão que estava chegando e se ia lá abrigar S. M. a imperatriz. O redactor das Far­pas continuou sob o sol. Mas, confessa-o, nesse momento, lembrando-se também das duas horas de Porto Said, pediu mentalmente ao Deus justo que castigasse o segundo império – que lhe fazia apanhar tanto sol. A Prússia encarregou-se de vin­gar o redactor das Farpas. Ele julga-se igualmente quite com a família Bonaparte – e aproveita esta ocasião solene de agradecer publicamente à Prússia.

 

                             Dezembro 1871.

A Câmara Municipal de Lisboa, segundo se afirma, compenetrada da necessidade inilu­dível de melhorar as condições da cidade, trata com toda a solicitude de fazer a aquisição de um leopardo. Diz-se ainda que depois procurará alcançar, para completar a obra da regeneração municipal, araras do Brasil.

 

Respeitamos a câmara. Todavia parece-nos discutível esta maneira zoológica de pôr alguma ordem na confusão do município. Nem se nos afigura lógico que a 300 000 habitantes que pedem higiene, limpeza, polícia, iluminação, passeios, a câmara responda, no seu zeloso cuidado – com um bicho dentro de uma jaula!

 

A cidade, realmente, não oferece um aspecto próspero.

A iluminação é sepulcral. O gás mostra-se infe­rior em seus serviços à antiga candeia de lata. Nas principais ruas, parte dos candeeiros repou­sam, apagados; os que velam bocejam, num dor­mente bocejo de luzinha mortal; outros nunca se estrearam, e nem sabem que são candeeiros.

Monturos de caliça e de pedregulho tomam nas ruas um espaço abusivo. O entulho tem um certo direito a estar parado nos passeios, vendo as senhoras que passam, mas não deve pelo menos privar de igual regalia os habitantes que pagam décima.

As ruas, pela sua limpeza, mereceram de nós a designação que lhes ficou – canos do avesso. As que são calçadas tomam com a chuva o aspecto gentil de uma missanga de charcos. As macadamizadas, essas, depois de se terem des­feito no Verão numa atmosfera de pó fétido, apressam-se no Inverno a reabilitar-se mostrando que são, como outra qualquer vereda, capazes de saber exercer a profissão de lameiro.

A glória da capital, a maravilha, o Aterro, é ladeado em todo o seu comprimento por duas suaves circunstâncias – o cheiro da imundície dos canos, e o pó de carvão das fábricas; ofere­cendo assim o caso de uma sociedade rica e dândi que passeia no brilho da riqueza e nos vagares do luxo – com a palma da mão sobre a boca e o lenço sobre o nariz!

As obras que a câmara constrói são talvez excelentes: mas ela vai-as erguendo tanto em segredo, tão longe das curiosidades imprudentes, que muita gente supõe que a câmara abre as suas ruas, planta as suas árvores, alarga os seus pas­seios – na sala do conselho, debaixo da mesa, em sessão secreta!

A canalização merece da parte da câmara o respeito – de relíquia. Não se lhe toca, nem de leve. A ilustre câmara pratica com os canos a mesma delicada reserva que os escravos dos haréns com os perfumes preciosos e evaporáveis. A cidade por baixo está podre: aí habitam na sentina as epidemias, os tifos, a cólera, a anemia, a deterioração da raça: através da delgada pelí­cula das calçadas, Lisboa sua a morte. Nós vive­mos sobre um furúnculo: onde quer que se pique, isto é, que se escave, sai uma vaporização torpe, que perturba. Há dias assim foi, ao pé da Casa Havanesa. E, no entanto, a câmara mantém ao domicílio da imundície a inviolabilidade que a Carta só garante ao cidadão.

Os bairros pobres são por si uma acusação cruel. As vielas negras e sujas; os casebres imun­dos e caducos; os destroços de vitualhas e de farrapagens; a vadiagem dos cais; a exalação das sarjetas; a humidade infecta, tudo faz daqueles lugares – uma espécie de depósito da miséria pública. Como para o vão da escada se atiram nas casas os restos de trapos, de louças, de chi­nelos velhos – para aqueles bairros se atira desapiedadamente com os restos da plebe!

Lisboa é a cidade mais suja da Europa. A pró­pria Constantinopla, com o torpe desleixo turco, a própria Atenas, com a indolente miséria grega – são mais limpas. E se não fosse o Tejo que lhe faz uma certa toilette, e este sol maravilhoso que tudo alegra e doura – Lisboa, aqui ao canto, junto do mar, como um cano, seria a sentina da Europa.

E perante esta situação, o município, pene­trado da sua responsabilidade, e resolvido a dotar a cidade de condições habitáveis – o que lhe dá?

Um leopardo.

 

É talvez interessante, mas não excessivamente prático, este facto: a fera em substituição da obra pública.

Porque a verdade é que, quando se expuser convincentemente à câmara que a cidade de noite está escura, a câmara não pode em sua honra –em vez de mais gás, adquirir mais leões.

Não queremos mal às feras: e quanto mais conhecemos os homens mansos, mais estimamos os bichos bravos... Mas entendemos que as feras se portam mal, entram no domínio do ilícito, mostram uma ambição indesculpável, excedem as suas atribuições de fera – querendo acumular a qualidade de melhoramentos municipais. Um crocodilo é decerto estimável: mas ver-se-ia supe­riormente embaraçado quando a câmara, no seu zelo febril, o encarregasse de substituir um pas­seio público. E por seu lado o habitante não se daria por extremamente satisfeito, no dia em que nos passeios, para fazer as vezes de árvores, se enfileirassem lobos!

 

A câmara, na sua inteligência, deve compreen­der que o bicho não é inteiramente o equivalente do edifício.

Nunca a câmara viu, por exemplo, S. M. El-Rei passear as ruas a cavalo no Arsenal. Por­tanto não é justo que nas praças, em lugar de dar ao habitante fatigado um banco de madeira – ela lhe ofereça o dorso de um rinoceronte.

Deste modo toda a cidade corria o risco de ser em breve mordida pelos melhoramentos munici­pais. E seria desagradável que os jornais noti­ciassem: «Ontem, a última obra em construção devorou na Rua Nova da Palma uma criança de cinco anos, ficando depois a lamber os beiços, de regalada...

Que a câmara medite (porque a sua inteligên­cia é para muito), que se ela der o exemplo funesto de substituir as construções pelos ani­mais – pode levar o habitante a substituir os animais pelas instituições. E no dia seguinte àquele em que a câmara, para mandar abrir um chafariz, comprar, em substituição, um elefante – qualquer sujeito, em vez de dizer ao criado: – «O António, põe o selim no ruço... – pode esquecer-se a ponto de gritar:

– O António, aparelha a câmara!

O que prejudicaria fortemente os interesses constitucionais!

 

                                 Dezembro 1871.

  1. M. a Rainha passeava no Aterro. Um mendigo vem junto dela e pede-lhe esmola. Um polí­cia corre e prende o mendigo. O desgraçado, retido todo o dia na esquadra policial, com frio e com fome, tem unia dor. Foi necessário mandá-lo numa maca para o hospital. Não se sabe ainda se o fuzi­larão. O dia estava nublado, mas seco. S. M., cujo vestido de veludo orlado de peles era perfeito, continuou serenamente na serenidade da tarde.

Sempre que um pobre se aproxima com a mão estendida de S. M. o Rei, de S. M. a Rainha, de SS. AA. os Infantes–é preso.

Aprovamos. E como este mendigo vai para a cadeia, iremos a seu lado para exprobrar a esse homem pervertido os fundos abismos da sua negra acção! Dir-lhe-emos: – «É bem feito! Bem te conhecemos, desgraçado... Vós sois muitos, e a cidade está cheia da vossa multidão, que erra por essas esquinas, esfomeada e amarela, de caridade em caridade! Bem vos conhecemos: os velhos com os seus chapéus altos, o peito sumido para dentro, apoiados tremulamente a uma bengala, pedindo com uma voz exausta e meio morta; as mulheres, de rostos macilentos, com uma saia curta, umas velhas botas esfarrapadas, aconche­gando no xale traçado uma pobre criancinha que se encolhe entre os farrapos, coçando as chagas da cabeça com a sua pobre mãozinha regela da; os desgraçados pequenitos, que gemem, enrolados numa velha e larga jaqueta de cotim, no degrau de uma porta fechada; os que não têm trabalho, e que à noite, sem camisa, com a gola do casaco remendado erguida para cima, fazendo bater na laje da rua as solas despegadas, pedem, expli­cando a sua fome; os que suplicam baixo, timi­damente, com o terror da recusa; os que são insistentes, e apelam com o desespero de um náu­frago que se agarra a uma última tábua; os que querem beijar a mão de agradecimento; os que ficam a rezar, sufocados, com as lágrimas nos olhos... Vivem em buracos ignorados, dormem pelos bancos, escondidos nas sombras dos entu­lhos, acolhidos pelos cocheiros na palha das cava­lariças; comem de vez em quando; têm todas as dores que dá o frio, todas as agonias que dá a fome; andam sob o terror da polícia; desejam o hospital como um refúgio, e um dia, embrulhados numa serapilheira, são deitados à vala!...

«Miserável, tu foste impudente! Viste aquela senhora, descendo de uma caleche, com batedo­res; julgaste que ela, rainha, rica, bem agasa­lhada, podia dar-te a ti, pobre diabo, uma moeda de vintém, o custo de um caldo quente numa taberna!... Porque enfim, velhaco, bem se vê que vais precisando de comer por este frio áspero... Imaginaste que a tua audácia te podia render um vintém! Bem vês, rendeu-te a cadeia. Aprende! Um mendigo como tu, esfarrapado e nojento, não se aproxima assim de uma princesa nova, na fres­cura aveludada da sua toilette! Pois ousaste ir pedir uma esmola sem levares uma farda de moço fidalgo? O teu hálito de fome podia incomodar aquela gentil senhora. Imagina que ela manchava a ponta da sua luva gris pene, se te tocasse na mão, nessa mão sempre estendida e cortada do leste... Que desgraça! a sua luva perfumada com «marechala»! Pois a policia podia lá consentir tal desastre! Tu és um animal! Vejam lá! Sob pre­texto de que o Inverno é terrível, de que não tens pão, nem lume, nem uma manta, que tiritas, que sentes dores, que és velho, vais assim pôr-te diante de uma princesa, em toda a crua realidade dos teus andrajos, e pedes-lhe 10 réis! 10 réis! Assim se pedem 10 réis! Ah! imbecil, tu cuidas que os vestidos de cetim e de veludo, as peles, as jóias, as caxemiras, os perfumes, vêm do ar e de graça, como esse frio que te traspassa? Que desplante! «dê cá 10 réis!» E onde os havia ela de ir buscar, os 10 réis? Tu imaginas que todo o mundo é rico como o bom Deus que atira tudo às mãos cheias, estrelas, sóis, nuvens, maravilhas, e aquele pavi­lhão azul do Céu que lhe devia ter custado milhões? És tonto! Supões que uma rainha desce assim, como uma burguesa, a ter pena de um pobre? Tu não lês os jornais, bem se vê! Ouviste talvez dizer que um, que se chamava Napoleão III, parava nos passeios a cada momento o seu breack para encher de sous os chapéus dos pobres? Talvez te contassem que uma, a quem chamam a imperatriz da Alemanha, distribui por sua mão, de manhã, com os cabelos caídos sobre um pen­teador, dinheiro aos mendigos! Mas essa gente – é gente exagerada! Talvez também ouvisses dizer de um chamado Jesus, que abraçava os pobres e lhes enxugava o sangue das feridas! Esse era um poeta! Tu és ignorante, velho! Decerto não lês o Figaro. Tens ouvido que a mais bela, a única missão das rainhas é a caridade... Ora aprende! Medita na Cadeia a caridade das rainhas! Bem feito. Ah! tens frio? tens fome? Pois a enxovia te dará o pago de teres fome e teres frio. Pede outra vez, anda! pede! Muito feliz foste ainda em não te correrem a chicote!»

Assim falaríamos a este indigno mendigo vil e torpe, e pediríamos a S. M. a Rainha que insis­tisse em que esse grande criminoso fosse rapida­mente enforcado – se na realidade S. M. a Rainha tivesse culpa ou responsabilidade deste facto intolerável e grotesco.

Não foi S. M. que prendeu o pobre – foi a polícia. E estamos certos que, se alguém se afli­giu seriamente, não foi o pobre – foi S. M.

Ora pedimos, para honra e sossego de todos, que não seja permitido a qualquer sr. polícia che­gar-se ao pé de S. M. a Rainha, e fazer-lhe insulto mais brutal e mais vil – que é prender os desgra­çados que lhe pedem esmola!

 

                                 Dezembro 1871.

É curioso! Que tendes vós, ó patriotas, com a casa de Sabóia? Desde que possuímos entre nós uma pessoa da casa de Sabóia, todo o partido despeitado, todo o ministro demitido, todo o rege­dor caído, carrega o chapéu para a testa e vai para um canto amaldiçoar a casa de Sabóia!

Mas que vos fez a casa de Sabóia? Viveis vós em Florença? Viveis vós em Madrid? Sois vós o povo metralhado na galeria do café de Nápoles? Sois vós o infeliz escritor Roque Barcia preso nas enxovias de Madrid? Sois vós, ó habitantes da Rua dos Fanqueiros, N. S. P. o Papa Pio IX?

Que possuís vós, na vossa bela cidade de Lis­boa, da casa de Sabóia?

Uma senhora.

Uma única senhora! e confessai que, conhe­cendo da casa de Sabóia só uma senhora – a única acusação que podeis fazer à casa de Sabóia, é que ela se veste sem distinção ou se penteia sem gosto! Ora vós, bárbaros, podeis, revolvendo a história, acusar a casa de Sabóia de avara, de ingrata, de invejosa, de sanguinária, de mercená­ria – mas certamente não podeis deixar de dizer que a parte da casa de Sabóia que possuís, e vedes de perto, tem uma soberba elegância, um dan­dismo impecável, e guia melhor os seus póneis que a mitológica Diana!

A casa de Sabóia entre nós é uma questão de toilette e de graça feminina: e melhores toilettes e mais distinta graça – sabei-o, ó bárbaros, não o encontrais na casa de Hohenzollern, onde as mulheres são pesadas e burguesas; na casa de Habsburgo, onde as mulheres ostentam uma majestade de teatro já desusada e caturra; na casa de Borbom, onde as mulheres parecem intri­gantes viragos; e na casa do Hanôver, onde as mulheres têm a frieza da alma e rosto que se sente nas libras! Orgulhai-vos, Portugueses! Nunca tivestes no trono coisa assim! Conheceis a história? Cuidais por acaso que D. Mafalda, esposa do tão célebre Afonso Henriques, se ofe­recia ao seu povo incipiente em toilettes mais dis­tintas? Pensais que D. Urraca, consorte do inte­ressante Afonso II o Gordo, expunha à aragem do Tejo coiffures de um vaporoso tão gentil? Estais porventura na ideia que D. Mécia Lopes, digníssima metade de Sancho II o Capelo, se movia com tão airosa debilidade?

Bárbaros! Vós não imaginais que feias rainhas se agrupam no fundo da vossa história! Só os heróicos feitos dos maridos conseguem fazer esquecer os horríveis narizes das esposas. Inda­gai nas crónicas! E considerai que os valentes que venceram em Silves, no Salado e em Ouri­que, ao voltarem com as suas armaduras amol­gadas dos recontros maravilhosos, só tinham para os acolher e encantar os chatos seios das des­dentadas Urracas, ou as cuias odiosas das obe­sas Mécias Lopes!

Ingratos! Ingratos! Vós não merecíeis uma senhora da casa de Sabóia, não – merecíeis uma fêmea da casa de Tuen-Fuem, tirano da Patagónia – nua, disforme, e preta!

 

                     Dezembro 1871.

Lisboa é talvez, em todo o vasto Universo, a cidade onde a opinião exerce menos influên­cia. Receia-se um pouco a polícia correccional, des­preza-se em absoluto a opinião pública. E como a polícia correccional se assemelha ao céu de Molière – com o qual sucede que no fim a gente sempre se chega a entender – acontece que em definitivo nada se receia, nem a opinião que se desdenha, nem a polícia que se evita. Assim, desde que se soube a coligação das fábricas de tabaco, a opinião unânime, cerrada, incondescen­dente, tem acusado, tem quase infamado aquele monopólio inesperado. E no entanto a coligação continua serena, impassível, a espoliar o vício e a arrecadar o ganho. E todavia se todos os srs. capitalistas, que entraram naquela conspira­ção tenebrosa, ouvissem nos cafés, nas esquinas, e nos estancos, o que diz a imensa opinião anó­nima – sentiriam, se ainda existe nas suas ex.mas pessoas algum brio viril, a necessidade indecli­nável de se bater em duelo, de dez em dez minu­tos, com dez cavalheiros de cada vez! O que lhes daria no fim do seu dia a bagatela gentil de ses­senta duelos por hora! O que perfaz, desde a primeira alvorada até ao primeiro lume de gás –qualquer coisa como seiscentos e oitenta duelos!

 

O facto na verdade é estranho. Uma troca só se considera justa quando há reciprocidade de valores; e toda a venda de mercadoria cujo valor é arbitrariamente, caprichosamente aumentado, é desonesta. Se eu dou 10 em moeda, é necessário que me dêem 10 em mercadoria (contando-se, está claro, nestes 10 de mercadoria, as despesas de produção, etc.). Ora se eu dou 10 em moeda, mas me dão 5 em mercadoria, torna-se evidente que realmente os 5 a mais que eu dou – me foram levados, por bons modos sim, com brandos sorri­sos é certo, mas enfim com o mesmo direito com que numa estrada nocturna e solitária um cava­lheiro de barbas celeradas me diz galhardamente:

«Ou a bolsa ou um tiro!» Até agora, e desde há muito, um operário dava 10 réis e davam-lhe 6 cigarros; e as fábricas entendiam que este con­trato era vantajoso porque o mantiveram, prospe­raram, entesouraram. Porém uma fresca manhã, as fábricas, ao entregarem os costumados 6 cigar­ros, disseram ao consumidor: – «Perdão, de ora em diante dois cigarros são para os meus vícios particulares: aí tem o cavalheiro os 4 restantes». Foi simplesmente este roubo.

Se por acaso qualquer de nós entrasse num luveiro, e pondo os seus 750 réis sobre o balcão pedisse umas luvas gris perle, e o luveiro lhe dis­sesse, arrecadando a prata: – «Aqui tem o cava­lheiro a luva da mão direita, a da esquerda per­mita que a retenha por certos motivos» – era natural que nós saíssemos fora, chamássemos o polícia mais desocupado da esquina, e deixásse­mos o luveiro em conversa particular com a lei. Ora a pobre gente, que vê os seus dois cigarros sumirem-se nos cofres da coligação, não pode chamar o polícia! De onde se conclui que, para extorquir cigarros, relógios, luvas ou outros objectos miúdos, é imprudente ser-se só e iso­lado – mas é de todo o ponto proveitoso e impune ser-se uma companhia com uma escri­tura num tabelião! Erro, grande erro, que um cidadão desacompanhado nos venha delicadamente pedir o relógio numa viela escura: ordina­riamente este cidadão imprudente vai fazer parte da sociedade de Angola. Mas não há nada para estes feitos como vir apoiado numa associação! A associação inocenta tudo, e tudo purifica! Que se há-de objectar a um celerado que nos diz res­peitosamente: – «Meu senhor, eu e alguns ban­didos das minhas relações fizemos num tabelião uma escritura pela qual combinámos recolher a nossa casa todos os paletós que passeiam impu­dentemente as ruas nas costas egoístas de seus donos; aqui está o contrato, a escritura e outros papéis que V. Sª terá a bondade de examinar àquele candeeiro; tenha a bondade de me passar o seu paletó!» O caso das fábricas guardarem para si, sem motivo, parte dos cigarros que dantes davam por certas quantias, tem toda a analogia com as espécies citadas. E portanto a verdadeira maneira de afrontar esta coligação não é pelos meios legais. Que cada cidadão que fuma cigarro ponha os seus 10 réis sobre o balcão, e declare apontando um revólver ao peito do estanqueiro:

– «Aí estão 10 réis. Agora quero os meus cigarros, mas todos os meus cigarros! Senão desfecho!»

 

Abrindo o nosso Código Penal, encontramos no Capítulo XL, secção 1ª, art. 276º, estes dize­res simpáticos:

«Qualquer pessoa que, usando de algum meio fraudulento, conseguir alterar os preços nas mer­cadorias que forem objecto de comércio, será punida com multa conforme a sua renda, e prisão de um a três anos.

  • único. Se o meio fraudulento empregado para cometer este crime for a coligação com outros indivíduos, terá lugar a pena logo que haja começo de execução.»

Que vos parece, cidadãos, desta honrada sim­plicidade do Código Penal?

Os preços foram alterados;

E numa mercadoria que faz objecto de comér­cio...

Somente o artigo acrescenta – quando se usar de algum meio fraudulento. Houve este meio fraudulento? O § único responde:

«Se o meio fraudulento empregado para come­ter este crime for a coligação...»

É o nosso caso! A coligação é patente; logo houve o meio fraudulento especificado pelo Código. E declara mais este amável Código:

«...terá lugar a pena logo que haja começo de execução.»

A execução é também patente em todos os estancos. Onde está pois a pena? Isto é claro, positivo, explícito, simples.

O crime é evidente. Haverá alguma circuns­tância que desculpe os coligados do crime, e por­tanto os exima da pena? O artigo 23º do Capí­tulo III do título 1º, diz:

«Não podem ser criminosos os loucos de qual­quer espécie;

Os menores de sete anos;

Os maiores de sete, e menores de catorze, quando não têm discernimento;

Os ébrios;

Os que praticam o acto em virtude de obediên­cia devida.»

Por consequência, os srs. fabricantes só estão isentos da multa e prisão de um a três anos, se provarem:

Que habitam Rilhafoles, ou que se babam de idiotismo;

Ou que andam de bibe, e pela mão da criada, atirando a péla;

Ou que não têm discernimento, a ponto de serem tatibitates;

Ou que estavam no momento do crime, num tal estado de ebriedade, que se tinham deitado no enxurro;

Ou que praticaram o acto contra vontade, cheios de repulsão, mas obrigados por algumas pessoas que lhes diziam com o punhal sobre a gar­ganta: «ou a coligação ou a morte!

Se não provarem que se acham em algum destes casos – são criminosos, e nada os pode desprender das mãos do polícia que lhes tome a gola do fraque, e os leve, de rastos e ganindo, aos bancos luzidios e lúgubres da polícia correccional.

E notem que o Código diz cometem este crime. E um crime: não é a honesta contravenção nem a modesta infracção! É o crime.

E o crime com as circunstâncias agravantes que marca o Código no Capítulo LI, art. 19º:

Premeditação: quem negará que os ilustres fabricantes meditaram longamente, ruminaram longamente o seu caso?

A sedução de outros indivíduos para cometer o crime: não contaram os jornais que tinham sido convidados pelos autores do crime, para tomar parte nele, as fábricas do Porto?

Ter manifesta vantagem sobre o ofendido: não são eles ricos, e pobre a população humilde que fuma cigarro? Não é o facto uma exploração do vício?

Cometer o crime por dinheiro: não foi decerto para ganhar bênçãos, nem reumatismos!

Cometer o crime tendo recebido benefícios do ofendido: há uns poucos de anos que os nossos vícios enriquecem os seus cofres!

Cometer o crime de noite: é justamente quando os estancos mais vivem, mais ganham, e portanto mais delinqúem!

Que fazem no entretanto os srs. delegados do procurador-régio? Fulminam com a sua eloquên­cia reles algum desgraçado que não tem casa, algum miserável que não tem trabalho!

Os jornais dizem: «O Governo já que não pode fazer nada, consinta que se estabeleçam mais fábricas, ou diminua o direito sobre o tabaco em folha». E curioso. E como se diante de um des­graçado, espancado e ensanguentado, e diante do seu espancador, já descoberto e já preso, os jor­nais exclamassem:

– Uma vez que a justiça não pode fazer nada ao criminoso, ao menos não impeça que se cure o ferido!

Não pode fazer nada? Pois já não existe na Boa Hora um banco para um réu, na casa do depósito um cofre para uma multa, no velho Limoeiro um quarto para um preso?...

Porque não queremos suspeitar que o que não existe – seja a igualdade perante a Lei!

 

O que impede que se proceda contra eles?

O facto de se terem coligado? – Então por este modo só é culpado o salteador isolado, mas perfeitamente inocentes os salteadores associados. Se amanhã, (o que tal não suceda) S. M. El-Rei for assassinado, só haverá crime e só poderemos castigar o assassino se ele for um só: mas se forem seis, teremos de lhes deixar os nossos bilhe­tes de visita!

O ter havido uma escritura? – Mas então declaremo-lo por uma lei, para que os srs. ladroes, assassinos e incendiários, se previnam com con­tratos no tabelião antes de partirem para as suas façanhas!

O serem capitalistas? – Aqui é que a porca e a lei torcem o rabo! Sim, desgraçadamente, é por serem capitalistas...

Ah! o tirânico segundo império não permitia estas coisas! Na guerra da Crimeia, os vendedores de toucinho coligaram-se para imporem um preço superior. Foram delicadamente empurrados pelas costas à polícia correccional. Havia entre eles ricos negociantes, ricos capitalistas. Uma terrível multa e a prisão foram a paga das suas proezas gorduráceas. Tão vilmente lhes pagou o carinho que tinham tido por ele – o impudente tou­cinho!

 

Quem impede que amanhã os nossos charutos custem cada um 7$000 réis, e cada cigarro nos saia a 1$800 réis? Estão na lógica os srs. fabri­cantes. E têm a suprema garantia do consumo – a garantia do vício! E isto virá talvez a aconte­cer se não tivermos a previdência de nunca com­prarmos tabaco – sem irmos acompanhados por uru polícia, e um escrivão que lavre o auto!

E é sobre o operário, sobre o trabalhador, sobre o soldado, sobre o pobre que pesa a espolia­ção! Os srs. capitalistas tiveram o cuidado deli­cado de não fazer pagar nem mais 5 réis diários a quem ganha ou tem por mês de l00$000 réis para cima: e por isso fazem pagar mais 10 réis diários a quem tem por dia de 240 réis para baixo! Isto alegra-nos profundamente. E tanto que, fun­dados na nossa argumentação, não deixaremos de pedir que a cidadãos tão prestantes como os ilus­tres fabricantes, se dê a honra de se lhes oferecer um banco na Boa Hora, com o modo mais riso­nho! Com o que temos o prazer de desejar as maiores prosperidades a SS. S.as, senhores do nosso respeito e espoliadores do nosso tabaco!

 

                                    Novembro 1871.

Em Abrantes – segundo informações de um amigo nosso, jurisconsulto ilustre – sucede este estranho caso:

Pela lei de 10 de Julho de 1843 só são obri­gados ao imposto do pescado os pescadores que exercem a sua indústria em água salgada – e naquela parte dos rios somente até onde cheguem as marés vivas do ano.

Ora em Abrantes entende-se de um modo lar­gamente torpe esta acção do fisco sobre a pesca. Vinte homens, extremamente miseráveis, que pes­cavam no rio – onde não podiam chegar marés vivas – e alguns mesmos que de todo não pes­cavam, foram obrigados a pagar o imposto do pescado! Uns não se defenderam desta extorsão por pobríssimos: outros não se defenderam em virtude da ideia popular na província–deque, com o fisco, paga-se sempre e nunca se questiona, por­que naturalmente depois é-se obrigado a pagar mais.

Isto constitui puramente, numa linguagem tal­vez plebeia, mas exacta, um roubo. Obrigar um pescador do rio a pagar o imposto do pescador do mar, é (além de uma confusão deplorável do velho e respeitável Oceano com qualquer fio de água que murmura e foge), um sistema extre­mamente parecido com o que empregam as pes­soas estimáveis que nos metem a mão na algi­beira e levam para casa o nosso lenço. Nós não desejamos embaraçar os negócios fiscais. Somente nos parece que impor a qualquer cidadão, mesmo quando não pesque, o imposto do pescado, é um expediente sumamente complicado. E o fisco, que deve ser parcimonioso do seu tempo e dos seus recursos, tem um meio mais singelo e mais expe­dito, que consiste em se aproximar de qualquer, e gritar-lhe pondo-lhe uma carabina ao peito:

– Passe para cá o que leva na algibeira!

Estes processos do fisco, que se repetem arbi­trariamente em toda a província e que são sem dúvida um dos recursos do Estado, parecem-nos imprudentes – porque estabelecem confusão. Há por essas estradas isoladas, em certas vielas de cidades mal policiadas, nos pinheirais, nos sítios ermos e amados da sombra, uma espécie de cida­dãos, de resto singularmente diligentes, que se deram por missão suspender por um momento as pessoas que passam, e pela maneira mais delicada tirar-lhes o dinheiro, os relógios e outras insigni­ficâncias. Por seu lado o fisco costuma deter os cidadãos, e sob qualquer pretexto (como por exemplo no caso de Abrantes, por serem pescadores de água salgada) exigir-lhes uma quantia e entregar-lhes um recibo. Estes dois processos, o do fisco e o dos senhores ladrões, oferecem uma tal similitude que pedimos ao Governo que dis­tinga por qualquer sinal (um uniforme por exem­plo), estas duas estimáveis profissões; para que não suceda que os cidadãos se equivoquem e que vão às vezes lançar a perturbação na ordem social, confundindo o facínora e o funcionário – api­tando contra o fisco e pedindo humildemente recibo ao salteador!

 

                           Novembro 1871.

Este mês a opinião preocupou-se com o que se chamou a greve de Oeiras.

Parecia realmente indecoroso que Lisboa, já civilizada, com teatro lírico e outros regalos de capital eminente, não tivesse esse chique social – a greve! Oeiras, com uma dedicação amável, for­neceu-lhe esta elegância. Oeiras deu a greve. Alguns estadistas puderam ter ocasião de comen­tar a nossa última greve, e de falar no terrível proletariado.

Somente esta greve de Oeiras apresenta uma novidade excêntrica.

O fabricante diz:

– Eu dou a esses operários indignos, que abandonaram a minha fábrica e se puseram em greve, 4$000 réis por semana. Vinde!

E os operários respondem:

– Não, não, isso não! Só voltamos ao traba­lho se nos garantirem por semana 3$600!

Confessem que é para empalidecer de confu­são. Não se protesta aqui contra a avareza do fabricante, protesta-se contra a sua generosidade: o operário resiste a ganhar: só trabalha se lhe diminuírem o salário: tem avidez de sacrifício, e deseja antes de tudo sofrer fome! Que mistério é este? Ei-lo desvendado:

Como sabem, há dois trabalhos essenciais no fabrico do lanifício: preparar a teia, o que leva uma semana, e produzir o tecido, o que gasta outra semana. Ora o fabricante descontava na semana do tecido uns tantos por cento do salá­rio; e na semana do preparo levava a sua habili­dade a descontar o salário todo.

De sorte que havia semanas gratuitas. E jus­tamente os operários pedem agora que lhes paguem menos cada semana, mas que lhes paguem as semanas todas.

O fabricante exclama:

– 4$000 réis cada semana que tecerdes!

E os operários replicam:

– 3$600 réis cada semana que trabalharmos. Porque preparar a teia é tanto trabalho como tecê-la.

Tal é esta greve original, que não descre­vemos com a sua precisão técnica, para não dar a estas páginas o aspecto de um tratado sobre lanifícios.

O que temos pois aqui, na realidade, é um fabricante que diminui arbitrariamente o salário dos seus operários. Estamos em frente de uma greve do capital! Ora abrindo o nosso admirável Código Penal, encontramos estes dizeres no Capí­tulo XI, secção 1ª, artigo 277º:

«Será punida com a prisão de um a seis meses, e com a multa de 5$000 a 200$000 réis, toda a coligação entre aqueles que empregam quaisquer trabalhadores, e que tiver por fim produzir abusi­vamente a diminuição do salário, se for seguida do começo de execução.»

O código fala em coligação. Aqui houve só um fabricante; mas o que é crime para muitos indi­víduos coligados, é decerto crime para o indiví­duo isolado. O número não faz a culpa. O crime recai sobre o facto, não sobre o ajuntamento. O código define crime «o facto declarado puní­vel pela lei penal» – e não acrescenta «segundo o maior ou menor número de pessoas».

De modo que a famosa greve de Oeiras se reduz simplesmente a isto:

Um fabricante que diminuiu abusivamente o salário dos seus operários – e que cai por­tanto sob os rigores do artigo 277º do Código Penal.

 

Até a greve de Oeiras! Ah! não podemos possuir uma glória, um heroísmo, um chique, sem que não se descubra, daí a dias, que chique, heroísmo, ou glória, são casos burgueses que per­tencem à Boa Hora! Vergamos sob o destino de ser medíocres! Todo o País tem uma revolta –nós temos a índia! Todos têm uma expedição – nós temos o Bonga! Todos têm um poeta –nós temos o Sr. Vidal! Fazíamos tanto empenho nesta greve que nos nobilitava, nos revestia de uma atitude civilizada, nos dava a esperança de abrigarmos enfim no nosso seio, autêntica, legítima, essa grande elegância revolucionária, a Internacional! – e vê-se que nos achamos apenas com um caso de polícia correccional! Um a seis meses de prisão, que miséria! Ah! evidentemente só gozamos duas glórias incontestáveis, garanti­das, à mão, nossas, só nossas – o Sr. Lisboa, e o Sr.... Suspendamos, por Deus!... e aquele, de quem um juramento terrível e sacrossanto nos veda pronunciar o nome!

 

O teatro em Portugal vai acabando. Por dois motivos. Primeiramente pelo abaixamento geral do espírito e da inteligência entre nós: e depois pelas condições industriais e económicas dos teatros.

Esta verdade ressalta dos próprios cartazes. O Ginásio, o Príncipe Real, a Rua dos Condes, dão comédias traduzidas dos velhos repertórios estran­geiros, ou dramalhões alinhavados exclusivamente para a estulta plebe (como diziam nossos avós), complicados de incêndios, naufrágios, desabamen­tos, maravilhas baratas de velho cartão, entre cenários desbotados. – Somente acontece que as comédias estrangeiras, concebidas para a fina inter­pretação de actores educados, encontram aqui uma interpretação grosseira e falta de ofício – e não podem interessar: e os dramalhões, que vivem ape­nas dos esplendores da decoração, encontrando aqui telas roídas da humidade, fatos de paninho remendado, um papelão apodrecido, uma miséria que os apaga e os apelintra – não podem atrair. Portanto estes teatros arrastam uma vida difícil.

A Trindade encetou a ópera cómica. Mas naturalmente, com a legítima urgência do ganho, começou pelos melhores autores da escola fran­cesa – Offenbach, Hervé, Lecoq, etc. Fatigou este repertório galante, espremeu a quantidade de libras que ele continha – e, como as óperas cómi­cas não se parecem com as ostras, que quanto mais se procuram mais abundam, sucede que a Trindade está nas condições de um preso que devorou a sua ração. A Trindade não tem que dar a um público enfastiado que pede música acessí­vel, e facilmente gorjeada. Precisa recorrer a zar­zuelas que não oferecem a cintilação alegre da verve francesa, se apresentam com ambições de arte italiana, e descontentam. Além disso o reper­tório estrangeiro é feito pelas boas vozes, educa­das, criadas nos conservatórios, formadas pelo gosto e pela tradição dos teatros especiais. De sorte que a Trindade necessita escolher operetas que possam facilmente atravessar as estreitas gargantas nacionais; e no vasto repertório estran­geiro tem de preferir as operetas fáceis, as «de meia garganta)), as operetas constipadas. Fica assim reduzido o número a cinco ou seis imbróg­lios espanhóis, debilmente instrumentados, a que a Trindade se vai amparando como a muletas pro­visórias. Opera cómica nacional, essa, não a temos; o nosso cérebro é impotente para a cria­ção musical; a raça ficou esgotada com o esforço violento que fez inventando o lundum da Figueira. As nossas óperas são os hinos. Ora a Trindade não poderia fazer facilmente representar o hino da Carta. A Carta, bem basta que a suportemos em código, não devemos sofrê-la em couplet. Seria tão impudico como sapateá-la em danças. E ver­dade que não pareceria estranhável que a Carta passasse a ser uma ópera cómica, num país em que as instituições são tiradas do Barba Azul e da Grã-Duquesa.

  1. Maria é a jangada da Medusa da arte nacio­nal. Aí sobrenadam, num esforço heróico, os res­tos da velha geração artista. Actores de vontade e de talento, um director excelente – lutam com a escassez da literatura, com a inércia do público, com as dificuldades económicas. E verdadeira­mente uma jangada – admirável pelo esforço, incompleta pela organização: boa para lutar, imperfeita para navegar.
  2. Carlos, esse, chilreia.

 

Esta decadência deplorável tem causas dife­rentes:

A primeira é a própria literatura dramática. Os escritores retraíram-se inteiramente do teatro. Não por o ganho ser diminuto, como se diz, por­que no jornal e no livro o ganho não seduz com cintilações de montes de ouro. A principal razão está no feitio da nossa inteligência. O Português não tem génio dramático, nunca o teve, mesmo entre as passadas gerações literárias, hoje clássi­cas. A nossa literatura de teatro toda se reduz ao Frei Luís de Sousa. De resto, possuímos dois tipos de dramas, que constantemente se reprodu­zem: o drama sentimental e bem escrito, de belas imagens, ode dialogada, em que unia persona­gem lança frases soberbamente floridas, o outro retruca em períodos sonoros e melódicos – e a acção torna-se assim um tiroteio de prosas ajano­tadas: o drama de efeito, com o que se chama finais de acto, lances bruscos, um embuçado que aparece, uma mãe que se revela:

– Ah! Céus! E ele! Matei meu filho! Oh!»

Acresce a isto a farsa com os velhos motivos de pilhéria lusitana, o empurrão, o tombo, a matrona bulhenta, o general de barrete de dormir, etc. E é tudo! Sentimentos, caracteres solidamente dese­nhados, costumes bem postos em relevo, tipos finamente analisados, estudos sociais concretiza­dos numa acção, a natureza, a realidade, a observação da vida – isso encontra-se ainda menos num drama do que numa corrida de touros.

Outra causa de decadência: o público. O público vai ao teatro passar a noite. O teatro entre nós não é uma curiosidade de espírito, é um ócio de sociedade. O lisboeta, em lugar de salões, que não há – toma uma cadeira de plateia, que se vende. Põe a melhor gravata, as senhoras pen­teiam-se, e é uma sala, uma soirée, um raout, ou mais nacionalmente uma assembleia. Com esta grande vantagem sobre um salão: – não se con­versa. Conversar para o Português constitui unia dificuldade, um transe: é o Cabo das Tormentas dos modernos Lusíadas. Conversar, entreter, mover o alado e fino batalhão das ideias, todo o português imagina que esta maravilha só se pode dar nos romances de franco. Daí vem para o por­tuguês elegante o hábito de se encostar nas salas, à ombreira da porta, com aspecto fatal. Conver­sar! os homens tremem e as senhoras empalide­cem. No teatro há a vantagem de que se pode mostrar a toilette, namorar, passar a noite – e não se conversa. Em Portugal ninguém recebe e ninguém é recebido, porque não há dinheiro, não há sociabilidade, e antes de tudo preferimos o doce egoísmo aferrolhado e trancado do cada um em sua casa. O teatro é a substituição barata do salão. Salão calado – e comprado no bilheteiro. De resto o teatro favorece o namoro, que é o entretenimento querido do português e da por­tuguesa correlativa. De facto o teatro é o centro do namoro nacional. O que se passa pois no palco torna-se secundário. Requer-se apenas uma certa moralidade física: – que se não dêem beliscões nas ingénuas. A moral do drama, da acção, dos sentimentos não se percebe ou não se exige. Um beijo que estala sobressalta, um adultério que se idealiza encanta. Uma das condições é que as actrizes se vistam bem, com modas novas, para que nos camarotes as senhoras observem, discu­tam as rendas, as sedas, as jóias e as toilettes. Um director de teatro não é pois escrupuloso com o seu espectáculo: alguém bem vestido que fale e dê um pretexto para a luz do lustre – é o que basta. Sobretudo aos domingos. Então o mundo comercial e burguês, que repousa e se diverte, enche a sala. Se se der Hamlet, vai, se se der Manuel Mendes Enxúndia, vai. Não é a beleza do espectáculo que o chama – é o tédio da casa que o repele.

Outro motivo de decadência: os actores. Os actores em geral são maus, com excepção de 4 ou 5 individualidades inteligentes e estudiosas que progridem. São maus – não tanto por incapaci­dade própria, como pelas condições do seu des­tino. Eles desgraçadamente em Portugal não per­tencem a uma arte, pertencem a um ofício. Que hão-de fazer? – Não têm estudos, nem escola, nem incentivo, nem ordenados, nem público. São actores como outros são empregados públicos; recitam prosa à luz do gás, num palco, como outros expedem ofícios numa sala abafada. Ques­tão de ganhar um ordenado, de se sustentar, de se vestir! A arte, o estudo entram aqui numa pro­porção ínfima. O artista que, pelo precário estado da sua arte, tem de pensar em comer (quando não é extraordinariamente dotado, porque então a necessidade retempera-lhe a habilidade), tor­na-se fatalmente um homem de ofício que neces­sita ganhar; em tal caso o pintor ilustra almana­ques, o escultor faz jarras de porcelana, o poeta redige notícias, o actor atabalhoa papéis. Os nos­sos grandes actores, Santos, Rosa, além da sua organização artística, formaram-se quando o tea­tro normal (pelo seu regulamento) os punha ao abrigo da luta da vida, e lhes dava os grandes vagares do estudo. No meio da oscilação das empresas, das quebras de companhias, da disper­são dos centros dramáticos – o artista não pode ter os nobres vagares necessários à cultura artís­tica. As dificuldades da vida embaraçam as preo­cupações da inteligência.

Outro motivo da decadência dos teatros: a pobreza geral. Não há dinheiro. Lisboa é uma terra de empregados públicos. A carestia da vida, os altos alugueres, o preço do fato, uma certa necessidade de representação que domina a gente de Lisboa, tudo isto deixa a bolsa cansada, inca­paz de teatros. O teatro é caro. Uma noite de tea­tro pode levar a uma família 3$000 réis de cama­rote, 1$500 de luvas, 1$500 de carruagem no Inverno – ao todo 6$000 réis. 6$000 é a quinta parte de muitos rendimentos mensais – da pluralidade dos rendimentos. Por consequên­cia a afluência aos teatros é pequena. Natural­mente, com a sala deserta, o cofre do teatro não se enche. Daí dívidas, complicações, e falên­cias.

Tal é o perfil do estado geral dos nossos tea­tros, a largos traços.

Perante esta situação ocorre naturalmente esta pergunta: qual é a atitude do Estado, res­pectivamente aos teatros?

É esta:

O Governo não dá nada aos teatros nacionais;

E dá 25 contos a S. Carlos!

Ora que o Governo nos responda: – «É o Governo obrigado a auxiliar e a subsidiar a arte teatral?»

– Não. – Então para que dá subsídio a S. Carlos?

– É. – Então para que deixa sem subsídio o teatro nacional?

Se o Governo entende que deve abandonar à indústria, à iniciativa particular, à concorrência, à espontânea acção das vocações, a arte dramá­tica – para que faz uma excepção ao teatro ita­liano, protegendo-o?

Se o Governo entende que deve auxiliar a arte teatral, como um elemento poderoso de civi­lização e de cultura moral – então para que faz uma excepção ao teatro português, desampa­rando-o?

Que o Governo pois se decida:

Ou se declara indiferente e desinteressado em questões de teatro – e então fecha igualmente os seus cofres aos galãs e aos tenores;

Ou se declara responsável pelo desenvolvi­mento deste progresso intelectual – e então dá um subsídio ao teatro nacional.

Nós não temos opinião. Compreendemos igual­mente o Governo protegendo o teatro com subsí­dios, ou o Governo deixando o teatro à iniciativa industrial e literária.

O que condenamos, e toda a pessoa sensata o condenará connosco, é que, com uma lógica tor­pemente offenbáquica, o Governo diga:

– Eu nada tenho com a arte teatral, e por consequência dou 25 contos ao teatro italiano.

Ou diga:

– Eu sou o protector da arte teatral, e por consequência pretendo que o teatro nacional se feche de penúria.

 

Ora a verdade é esta:

O teatro nacional é uma necessidade inteli­gente e moral – e o teatro italiano é uma inuti­lidade sentimental e luxuosa.

Quais seriam as vantagens de um teatro nor­mal?

O teatro normal seria a criação de uma litera­tura dramática, isto é, o enriquecimento do nosso património intelectual – educação permanente no presente, elemento histórico para o futuro. Porque o drama hoje, como toda a obra de arte, tem dois alcances: pelos sentimentos, ideias, cos­tumes, instituições contemporâneas que estuda e critica, é no seu tempo uma lição para o cri­tério – e no futuro um documento para a his­tória.

O teatro normal seria a fundação de uma escola de actores, como a Comédia Francesa, for­temente educada, conservando uma tradição, for­mando discípulos, centro vital das artes tea­trais.

O teatro normal seria o deperecimento provi­dencial das pequenas comédias eróticas, que cons­tituem a aguardente moral das pessoas que não vão à taberna; das mágicas que não passam de um mau acompanhamento da digestão e de uma escola de embrutecimento; dos dramas sentimen­tais que servem para excitar os sentidos da bur­guesia casada, e formam uma espécie de comuni­cação cómoda com o vício sem se descer de um camarote! Seria um constante apelo da atenção às coisas do espírito; a subtracção de uma popu­lação ociosa e enfastiada às casas de jogo e aos lupanares clássicos; uma influência perdurável, penetrante e subtil nos costumes; uma forte educação pela imaginação; enfim um elemento sadio na nossa vida, insubstituível e indispensável, por­que prende com o que uma cidade tem de mais definitivo e de mais determinante – a sua inteli­gência e a sua moral.

O teatro normal não seria um regalo exclusivo de Lisboa; faria participar todo o País no desen­volvimento da sua arte. Os actores formados aqui iriam constituir pequenos e bons conjuntos tea­trais na província; e em certos meses a com­panhia-modelo visitaria Porto, Braga, Coimbra, Viseu, as principais cidades, levando ao público o encanto do seu repertório superior e aos artis­tas os exemplos da sua arte perfeita.

Isto seria, a largos traços, o teatro normal.

 

O teatro de S. Carlos o que é? o que faz? Não aumenta decerto o nosso património literário. Faz apenas a popularização da velha escola ita­liana de música sensualista, arte de que nada resulta para o País, senão alguns duetos que as donzelas beliscam ao piano, ou que os sinos tilin­tam ao levantar da hóstia! Que educação se tira da Traviata expirante, ou do imbecil Trovador que corre a salvá-la?

O teatro de S. Carlos não forma bons actores nacionais. Bem ao contrário! É uma fábrica de reputações para os artistas estrangeiros. Gastamos dinheiro, nós! para que o Sr. Fulanini vá ganhar mais dinheiro para Sampetersburgo ou para Covent Garden, ele!

O teatro de S. Carlos não constitui um ele­mento de civilização, mas de decadência. Se alguma coisa debilita o carácter e enfraquece o espírito – é a influência da música italiana, senti­mental, amorosa, langorosa, mórbida. Uma ópera é um lupanar. Cada dueto, cada alegro, uma exci­tação erótica. Imagine-se uma menina ouvindo durante um ano aquela ladainha de sensualidades que se chama – Lúcia, Norma, Traviata, Maria de Rohan, Favorita, Baile de Máscaras, etc.? O adul­tério idealizado, o amor como a coisa superior e única da existência, o dever considerado burguês, a honestidade mal portée; e toda aquela moral suspirada, gemida, arrastada na dilacerante ago­nia da rabeca, assobiada irritantemente na flauta, modulada aereamente na harpa, soluçada de um soluço inteiro pelo demónio invisível que habita o violoncelo, tornada acre e triunfante nos ins­trumentos de metal, roncada no rabecão; e sobre esta massa de voluptuosidade instrumentada, as adúlteras, os galãs, os amorosos, todo um mundo melodioso e devasso, que geme, arqueia os bra­ços, se torce nos êxtases da paixão, entra pelas portas das alcovas, semeia tudo de beijos, e morre de amor, romanescamente, numa ária dolente! Ah! nós não somos bárbaros. Estimamos a música. Meyerbeer, Gluck, Mozart, Beethoven, são verdadeiros pensadores. Mas S. Carlos can­ta-os? De modo nenhum, a não ser de dois em dois anos Meyerbeer a fugir e a fingir. De resto Doni­zetti, Bellini, todos os sensualistas! Ora aque­les, respeitamo-los como ideias que cantam – estes detestamo-los como erotismos que arru­lham.

O teatro de S. Carlos não dá participação a todo o País da sua arte. Bem ao contrário, é um teatro exclusivo, de um público limitado, esco­lhido, sempre igual. O País paga para que este público goze. Para que nós tenhamos árias, comem os lavradores sardinhas!

Enfim, nem criação de uma arte, nem forma­ção de artistas, nem elemento de civilização, nem interesse geral do País.

Para que serve S. Carlos? É um luxo, dirão. Sim, compreendemos... Mas é ao menos, realmente, S. Carlos um teatro elegante, um centro belo e fino de vida rica?

Ah! por Deus, não! Começa logo pela mise­-en-scène. Fora algumas belas telas de Rambois e Cinnati, cada vez mais raras, que mise-en-scène! Tome-se para exemplo o D. Carlos: fatos remen­dados torpemente, bastidores roídos da traça, uma velha mesa carunchosa onde o tirano se apoia... Os coristas agrupados a um canto, na escassez do seu número, elas com os braços nus mal lavados, eles com as botas enlameadas, sol­tam, num gesto dormente, uma voz por onde têm passado todas as pateadas desde 1836 – o que lhe fez perder a frescura. Nos camarotes, o veludo dos parapeitos, aos farrapos, deixa sair uma clina fétida: o papel está esgaçado, as fechaduras que­bradas. Uma iluminação funerária entenebrece a sala; os velhos dourados sujos têm o aspecto melancólico de adornos de capelas antigas; os brancos rivalizam com rostos de carvoeiros. Os corredores, com os tapetes comidos dos ratos, fofos de pó, uma luz soturna e abafada, lembram o cárcere, o portal de casa de jogo. Na superior, cadeiras de palhinha áspera raspam como uma navalha de barba o pano das casacas; e o chão tem tanto asseio que os frequentadores, antes de saírem para a rua, limpam os pés nos capachos por compaixão com os varredores. Na geral bancos estreitos, como de réus, ouriçam a sua palhinha quase podre. No peristilo escuro há lama. As senhoras esperam, ao pé dos munici­pais formados, o chegar dos trens, expostas a um vento frio que toma aquelas paragens piores que a serra da Estrela!

Tudo aquilo é pequeno, provinciano, plebeu, e pelintra!

Não queremos acusar a empresa, não! Com­panhia comercial, está na lógica da sua acção. E ao mesmo tempo esforça-se, é evidente, por mostrar aqui as belas vozes, as ricas organizações musicais. Além disso ela não é culpada de que o teatro nacional pereça de penúria; nem é cul­pada de que a música seja, na civilização de um País, uma inutilidade sentimental. Também não construiu o teatro: recebeu-o assim do Governo; não tem obrigação de o pintar, nem de o forrar, nem de o dourar, nem de o tapetar. Como com­panhia comercial o seu único dever imprescrití­vel, perante o júri comercial – é não falir.

Outro tanto não sucede ao Governo. Esse, no seu saco, não reúne uma única razão para subsidiar S. Carlos. Nem há ali um elemento de civilização, nem um centro de arte nacional, nem uma escola de artistas, nem um aproveitamento geral do País!

Não é também um centro de luxo, um orgulho de capital rica, uma maravilha da vida ampla­mente gozada. É um velho chique pelintra. E o Governo dá-lhe vinte e cinco contos – para o continuar a ser.

 

Diz-se que o Governo tem uma razão suprema para sustentar S. Carlos: – é que S. Carlos Constitui uma distracção para a corte e para a diplomacia.

Quanto à corte... A corte sente a necessidade impreterível de se distrair? Excelentemente! Que pague e subsidie S. Carlos; que o ilumine, o forre, o tapete à sua custa; que dê por cada camarote 20$000 réis por noite, por cada stalle 4$000 réis; que o frequente com ardor, que durma lá, e que seja feliz. Ora que o País pague, não, corte res­peitada e amada, não! Que eu, ele, nós, vós, eles, deitemos no erário dinheiro para tu te divertires, não, corte reluzente e maravilhosa! Perdoa, mas, como diria Cipião, não possuirás, ingrata, as nos­sas placas de 500 réis. A preocupação do País não é precisamente evitar que a corte boceje. Vinte e cinco contos anuais é prodigioso – para que a corte tenha onde passar a noite! Que a corte se distraia a si mesma. E o que faz cada um. A corte pode muito bem entreter a sua noite jogando as damas, ou lendo o Panorama. A corte ainda não leu o Panorama? Ah! pois aí está. Não imagina que fonte de distracções! A corte quer teatro? Que vá ao Salitre! Passa-se muito bem, a 1$500 cada camarote. A corte pode ali gozar a sua soi­rée regaladinha, e ir depois tomar sossegadamente o seu chá. De resto se a corte se distrai à nossa custa – então devemos intervir nos seus diverti­mentos. Se temos de pagar a iluminação, os can­tores, as rabecas – que nos seja dado o direito de dispor e regularizar os seus prazeres. O poder moderador não poderá mais ir a S. Carlos sem pedir licença à opinião pública. E a opinião pública ficará no seu legítimo direito de respon­der: «Não senhor, o poderzinho moderador fica hoje em casa: ontem o poder foi ao teatro, hoje vai estudar a sua política: e nada de chorami­gar, senão ferramo-lo no quarto escuro!»

E quanto à diplomacia, não nos parece que o País tenha obrigação de a distrair. Os seus gover­nos e os seus reis que a distraiam! Os srs. diplo­matas que comprem soldadinhos de chumbo, ou que frequentem o Martinho! De resto a diploma­cia é bem audaciosa em pretender divertir-se! Intenta ela estabelecer uma excepção insultuosa aos costumes nacionais? Aqui ninguém se diverte! Suas Ex.as estão extremamente enganados; vie­ram talvez para Portugal por equívoco! Tudo, entre nós, é grave. Quem vem para aqui é para a bela melancolia! Nós não gostamos de nos rir. Somos, de profissão, tétricos! Havíamos de nos rir, não era mau, e tanta tristeza por essa histó­ria atrás, e o pobre D. Sebastião nas areias de África, e o infame domínio de Castela, e outros lutos tão amargurados!... Nós trazemos na alma os crepes da nossa história. Dia e noite soluçamos, à beira do Tejo. A Lusitânia não é lugar de troça. Se VV. Exª’ se querem divertir e rir, tenham a bondade de ir para Mabille – ou pelo menos para Badajoz!

 

Perdoem estas longas páginas. A questão dos teatros tem uma importância pública. O Governo comete o contra-senso de subsidiar um teatro estrangeiro que é de luxo, e deixa ao abandono o teatro nacional que é de necessidade. O luxo que se sustente pelo luxo. S. Carlos sem subsídio que eleve os seus preços. Camarotes a três ou quatro libras, cadeiras a libra. Se ninguém qui­ser, que se feche S. Carlos. São algumas árias de menos num palco, e alguma economia mais nas famílias. O teatro nacional que tenha um subsí­dio, se torne uma escola, um centro de arte, um elemento de cultura. Só isto é o senso, a ver­dade e a dignidade.

 

                           Janeiro 1872.

Agitou-se, agita-se ainda, a questão da emigra­ção. Há um homem, Mr. Charles Nathan, que leva para Nova Orleães, com bons salários, todas as actividades que se ofereçam.

A emigração, entre nós, é decerto um mal.

Em Portugal quem emigra são os mais enér­gicos e os mais rijamente decididos; e um país de fracos e de indolentes padece um prejuízo incal­culável, perdendo as raras vontades firmes e os poucos braços viris.

Em Portugal a emigração não é, como em toda a parte, a trasbordação de uma população que sobra; mas a fuga de uma população que sofre. Não é o espírito de actividade e de expansão que leva para longe os nossos colonos, como leva os ingleses à Austrália e à índia; mas a miséria que instiga a procurar em outras terras o pão que falta na nossa.

Em Portugal a emigração, tomando o rumo dos países estranhos, contraria a necessidade urgente de regularizar interiormente uma emi­gração de província a província.

Em Portugal a emigração não significa ausên­cia – significa abandono. O inglês, por exemplo, vai à Austrália e à América fazer um começo de fortuna – para voltar a Inglaterra, casar, traba­lhar, servir o seu País, a sua comuna, trazendo-lhe o auxílio da vontade robustecida, da experiência adquirida, do dinheiro ganho: para Portugal, o emigrante que volta, provido de boa fortuna, vem ser um burguês improdutivo, uma inutilidade a engordar.

Enfim a emigração é má, o Sr. Nathan funesto. Somente o nosso pesar é que o Sr. Na­than, em lugar de alguns centenares dos nossos –não nos queira levar a nós todos. Porque parti­mos já, sem hesitação, em massa. Fugimos das cebolas do Egipto. E, mais felizes que os israe­litas, temos em lugar do incerto milagre do mar Vermelho – os excelentes vapores da Liverpool and Mississipi Steam Ship Company.

 

Vamos todos!

E estranho – que haja quem estranhe a emi­gração. Nós estamos num estado comparável somente à Grécia: mesma pobreza, mesma indig­nidade política, mesma trapalhada económica, mesmo abaixamento dos caracteres, mesma deca­dência de espírito. Nos livros estrangeiros, nas revistas, quando se quer falar de um país caótico e que pela sua decadência progressiva poderá vir a ser riscado do mapa da Europa – citam-se, a par, a Grécia e Portugal. Nós, porém, não possuí­mos como a Grécia, além de uma história glo­riosa, a honra de ter criado uma religião, uma literatura de modelo universal, e o museu humano da beleza da Arte. Apenas nos ufanamos do Sr. Lisboa, barítono, e do Sr. Vidal, lírico.

El-Rei D. Pedro V tinha lido o livro de E. About A Grécia contemporânea: e aquele rei que era um grave e fino espírito, e por vezes um subtil humo­rista – entretera-se anotando à margem o pre­cioso livro de About. Onde estavam nomes dos estadistas da Grécia, o rei punha os nomes corres­pondentes dos homens públicos de Portugal; onde vinham as narrações das indignidades políticas de Atenas, ele lançava à margem as correlativas indignidades políticas de Lisboa; onde About desenhava com a sua pena maliciosa, cáustica e tão profundamente francesa, um certo ministro da Fazenda que era ladrão – D. Pedro V escrevera ao lado: «Cá chama-se o senhor...». Figura no livro, como torpe, segundo o julgamento do excelente rei, muito homem hoje célebre na vida pública, com bons ordenados e autoridade. O livro assim anotado, mudados os nomes – é a descrição mais exacta do estado de Portugal. Como deve ser infe­liz um rei inteligente, quando, caído em cepticismo e misantropia pela certeza que adquiriu de que está no meio de uma pocilga política, não pode todavia entregar a Nação à experiência republi­cana, nem chamar a si o poder absoluto! Um tal rei, se não se converte por fastio num bom rei de Yvetot – termina sempre por morrer cedo.

Ora, na Grécia, o facto permanente é a emi­gração. E nós emigramos, pelo mesmo motivo que o Grego emigra – a necessidade de procurar longe o pão que a Pátria não dá. O Grego que não tem indústria, nem agricultura, nem comércio, encon­tra-se ao entrar na vida sem colocação: – toma então a sua carabina e vai para as montanhas que Teócrito cantou, roubar viajantes ingleses, ou embarca no Pireu e emigra para Alexandria, para Trípolis, para as escalas do Levante, para os estados barbarescos, para Marselha, para qual­quer ponto onde haja algum pão a roer ou alguma piastra a ganhar.

Nós, que (bem a nosso pesar) não podemos ir roubar para as montanhas porque não temos a quem roubar – vamos procurar o Sr. Nathan.

E o Governo, a opinião, admiram-se! Mas onde pode a plebe ganhar o pão? A grande indústria, a dos tabacos, dá 250 réis de salário a um operário com família. As indústrias fabris são poucas, periclitantes, com interrupções constantes de tra­balho. A indústria mineira está abandonada à exploração de companhias estrangeiras. A agri­cultura vive de rotina – empobrecendo a terra e empobrecendo o homem. Não temos piscicultura, nem silvicultura, nem indústria pecuária. O tra­balhador dos campos vive na miséria, come sar­dinhas e ervas do campo: a maior parte anda à malta, trabalhando aos dias, errante de fazenda em fazenda, por 80 réis diários, nos tempos de salário. A usura e a agiotagem, unidas, exploram a gente do campo: os tributos são fortes, as vexa­ções do fisco incessantes. Na província, por um imposto de 20 e 30 réis, atrasado e relaxado, vimos nós pagar 5 e 6 mil-réis, com custas, etc. Os pobres não tinham a quantia? penhora no casebre! Nas cidades o operário é vítima do monopó­lio – monopólio no pão, no bacalhau, no azeite. Não há entre nós uma escola teórica de aprendi­zagem! Que querem os senhores que se faça num país destes? Sair, fugir, abandoná-lo! O País é belo, sim, de deliciosa paisagem. Mas a política, a administração, tornaram aqui a vida intolerável. Seria doce gozá-la, não tendo a honra de lhe per­tencer. Só se pode ser português – sendo-se inglês!

E no entanto, perante a emigração crescente, que faz o Estado, a imprensa, a opinião?

Interrompe-se um momento, e volta-se para os colonos, aplica-lhes a luneta – e diz àquela plebe esfaimada:

– O quê! quereis ir embora? Oh imprudentes. Tendes acolá os terrenos do Alentejo!

Ora os terrenos, os eternos terrenos do Alen­tejo, são simplesmente um gracejo torpe.

Os terrenos do Alentejo, tais como estão, não produzem na generalidade senão bolota. E justa­mente o Governo, a imprensa e a opinião ofere­cem esses terrenos tais como estão. Conheceis brincadeira mais abjecta?

Uma população de trabalhadores, operários, proletários, pede trabalho – senão emigra. E o País exclama:

– Não emigreis, tendes acolá os terrenos do Alentejo – isto é, tomai vós, ó proletários, ó gente do campo, á pés descalços, os quatro ou cinco mil contos que tendes aí no bolso roto da jaqueta, associai-vos em grandes companhias, comprai máquinas e instrumentos, lavrai tantas léguas quadradas, arroteai, regai, abri poços, fazei aquedutos, estabelecei lezírias, levantai grandes fundos com o vosso grande crédito, tu Manuel da Horta, tu José da Cancela, tu ferrador, tu jor­naleiro – e enriquecei!

O Estado, a imprensa, a opinião têm razão; – somente como o trabalhador não traz ali os qua­tro ou cinco mil contos na algibeira e não está para os ir buscar a casa, por causa da chuva –embarca para Nova Orleães.

Dizer a um homem: – Você quer ganhar dezoito vinténs por dia? Escusa de sair do País, gaste aí uns mil contos a arrotear terrenos incul­tos, e vem a ter de salário, não direi os dezoito vinténs justos, mas dezassete e meio com cer­teza...». Dizer isto é uma facécia impudica!

 

Tem sido de um alto grotesco este conselho que se dá de arrotear os terrenos do Alentejo! Todo o mundo o dá, os jornais, os frequentadores da Casa Havanesa, os moços de café, e os poetas líricos. Arroteie-se o Alentejo! exclama cada um esfregando as mãos, e puxando o fumo do cigarro.

– Pois bem, meus senhores, sim, arroteemos! Mas então aproveitemos este grande impulso nacional, esta energia das forças vivas! E de pas­sagem – conquistemos o Santo Sepulcro, e man­demos varrer o Largo do Loreto!

Mas a melhor facécia tem vindo do sentimen­talismo:

– O quê, colonos! ides deixar a terra do vosso berço, a verde alfombra, o escondido casal na encosta do monte, o grato rouxinol que...

 

Mágoas diz do seu penar?

 

Este argumento tão económico, tão positivo, tão firmado em cifras, abala extremamente os emi­grantes–os quais provam a sua comoção, remando a toda a força para o paquete da Nova Orleães.

E no entanto, na praia, a imprensa suspira!

 

Um facto curioso é que a opinião que mais tem enrouquecido a bradar contra a emigração, tenta sobretudo provar que a emigração para Nova Orleães não dá as vantagens prometidas pelo engajador.

Por consequência o que se condena não é o facto da emigração, que se julga irremediavel­mente necessário – mas o lugar para onde se emigra. A guerra é feita à Nova Orleães, não ao abandono da Pátria. A Nova Orleães fez o que quer que fosse à opinião pública. O caso é que a opinião não traga a Nova Orleães. Talvez ques­tões de mulheres, como se dizia na Grã-Duquesa de Gerolstein.

Que fazem com isto a imprensa e a opinião? Incitam à emigração. Como? Acusando o pouco que os colonos vão ganhar na Nova Orleães, e fazendo cotejos que implicitamente lhes lembram o muito que ganhariam em São Paulo ou na Cali­fórnia. Não detêm a corrente – mudam-lhe a direcção. Isto é – dirigem a emigração, o que é uma maneira de a desenvolver, ainda que tomando para isso o caminho mais laborioso. Mas, enfim, temos a opinião e a imprensa confessando que a vida é extremamente difícil em Portugal, e que a acção natural que todo o cidadão português deve ao seu País – é abandoná-lo.

Entretanto que faz o Governo? Diz-se que o Governo recomendara às autoridades do País que impedissem a emigração. Se assim é, gostamos. Um Governo impedindo a acção de uma lei econó­mica por um ofício – tinha-se visto nas anedotas do Tintamarre. É-nos dado, a nós Portugueses, possuir o facto real, autêntico, referendado. Somente que processo emprega o Governo? Colo­ca-se entre o bote e o emigrante, gritando alti­vamente: – «Não passarás!» Agarra-o pela gola da jaqueta, ganindo: «Faz favor de não se safar?» Que o Governo nos esclareça! Bom e querido Governo!... Diante deste grave problema, a emi­gração, tendo de examinar as condições do País agrícola, de estudar o meio de organizar o tra­balho, de regularizar uma emigração interior, de empregar os braços ociosos, de converter em van­tagem nacional a energia nativa da população, de obstar ao enfraquecimento do País pela perda da sua riqueza viva, diante destes problemas – o Governo volta-se para o regedor e, por toda a ideia, por toda a ciência, lança esta ordem:

«A respeito dos colonos, o melhor é fechá-los à chave!»

Como solução a um problema económico – o Governo acha uma fechadura. A governação do Estado torna-se questão de serralharia! Um trinco é um princípio: um parafuso uma insti­tuição! Como vós sois grandes! Deixai-vos ver bem de frente... Ah! sois imensos! Mas Sancho Pança – era maior.

 

                           Dezembro 1872.

O excelente jornal, o Bem Público, num artigo amargo e piedoso, trabalhado com doçuras de sacristia e repelões de sala de armas, de resto subtil e curioso – dá-nos a honra de sacudir, com a sua pesada mão católica e romana, três pobres artigos das Farpas.

 

O primeiro destes artigos, tão rudemente des­mantelado pelo estimável Bem Público – censu­rava o clero do Funchal «por ter impedido que um negociante fosse enterrado no cemitério público, sob pretexto de deveres religiosos mal cumpridos».

O Bem Público cora no seu rosto indignado e exclama: – «A censura tem o mesmo valor que se a dirigisse ao sr. duque de Palmela, por não con­sentir que no jazigo da sua família sejam sepul­tados os cadáveres das pessoas que falecem!»

Esta argumentação é vitoriosa, aniquiladora. Somente nos parece que não há absoluta seme­lhança entre o cemitério público e o jazigo de família do sr. duque de Palmela. Quando dize­mos, ao estudar a nossa geografia, «Lisboa é capi­tal de Portugal» – não queremos inteiramente dar a entender que a capital de Portugal seja o Hotel dos dois irmãos unidos. E acrescenta o Bem: – «Se um negociante, enquanto vivo, não quer ter nada com as orações, com as assembleias religiosas, como pois condená-lo depois de morto a essas orações e assembleias que detestava em vivo?» O que equivale a dizer: – Se esse nego­ciante não queria ouvir missa, nem assistir ao lausperene, nem jejuar enquanto vivo – como condená-lo, depois de morto, a estar de joelhos ao lausperene e a comer bacalhau à sexta-feira?

Sim, Bem Público, estamos absolutamente de acordo! Um homem que gosta de comer à sexta-feira rosbife não pode, sem tirânica vileza, ser obrigado a ir para debaixo da terra, amortalhado, dentro do seu esquife, comer à sexta-feira o detes­tado rodovalho! Sim, Bem Público! sim, amigo! sim, honrado colega! A verdade é essa! disseste-la com boca melíflua e sábia! Deve-se excluir do cemitério todo o homem que não ouviu missa em vivo... E lá o explicas, com profundidade no dizer e alto critério no pensar: – Porque não se pode obrigar esse homem a ouvir missa depois de morto! – Sim, amigo, tu o disseste, tu, de juvenil fé e de discreto lábio.

Depois o Bem, num outro período austero, pretende combater a afirmação das Farpas – «que o cemitério não pertence aos padres, per­tence aos cidadãos». Para aniquilar esta ideia o Bem afirma que poderia dar uma longa razão, e explica qual é essa razão. Mas acrescenta: «Não a daremos, porque seria insensata» (Bem Público, pág. 188, linha 25). Não, Bem, não, tu não és insensato! não te calunies, amigo, não te humilhes, Bem! Não rojes assim uma cabeça penitente no pó igualitário do macadame! Não, tu até tens boa ortografia! Até tens bem boa forma de letra! Se quisesses, até eras subtil! É que não queres! Se tu quisesses!

E continua o estimável Bem argumentando. As Farpas disseram: – «Os cemitérios têm a sua origem na higiene, na polícia, na moral, na vida municipal: não têm a sua razão de ser na teolo­gia». E o Bem exclama: – «Pois dizendo tal caem num erro histórico: os cemitérios têm a sua razão de ser na teologia: basta o nome e a história para prová-lo». Mas então uma consideração pavorosa acode: a teologia é pelo menos – deve sabê-lo o Bem – posterior aos primeiros séculos do cris­tianismo. Começa com as escolas, e com os dou­tores. Ora se os cemitérios datam apenas deste tempo, segundo afirma o Bem Público, se só têm a sua razão de ser desde que a teologia teve a sua razão de dominar – o que acontece? É que todos os mortos, desde Nemrod, estiveram aos milhares e aos milhares, enfastiados, de braços cruzados, esperando que a teologia lhes permi­tisse deitarem-se nos seus sepulcros. Horrorosa antecâmara! Esperaram séculos! E vinham mais, e mais, e mais! Em que se entretiveram tanto tempo, envoltos nos seus sudários, impacientes pelo seu enterro? Oh! sábio Bem Público, diz-no-lo, tu que o sabes! Se os homens só foram enterrados desde que a teologia se fixou em gros­sos tornos – em que lugar tenebroso aguardaram o seu dia de sepultura os primitivos árias, os lumi­nosos índios, o persa trabalhador, o grego eru­dito e subtil, os milhares de habitantes do impé­rio romano, as raças que viveram junto ao Nilo, e os povos bárbaros que habitavam o norte da Europa, e todos os habitantes de todos os conti­nentes, de todos os séculos? Di-lo, sábio Bem! Será verdade que eles passeavam pelo éter, fumando o seu cigarro – à espera que Santo Agostinho nascesse? Como tu és instrutivo, oh Bem! Só há cemitérios onde há teologia católica. E corno explicas então os cemitérios modernos de Constantinopla e do Cairo, e os de todos os países maometanos, e os de todos os outros países onde floresce alguma das 1.500 religiões que flo­rescem na Terra, além da católica? Explica isto bem, Bem!

Mas o piedoso jornal exclama ainda: «Os cató­licos não impedem que os que têm pouca religião ou nenhuma, sejam enterrados: porque não esta­belecem as câmaras municipais, para esses, cemi­térios especiais?» Parece-nos prudente este alvi­tre do Bem: estabelecer cemitérios para quem tem muita religião: outros para quem tem bas­tante: outros para os que possuem alguma: outros para os que alardeiam pouquíssima: outros para os que não apresentam nenhuma. Enfim, um cemitério para cada medida! Um cemi­tério aos gramas! Ah Bem, como tu vais mal!

 

O segundo artigo das Farpas censurava que «os missionários vendessem cartas da Virgem Maria a diversos devotos».

O Bem Público diz que nós agitamos argu­mentos bicórneos. Mas não combate, nem aprecia, nem sequer indica – esses argumentos. É timidez? É desdém? É pudor? Somente acres­centa: – «A história é falsa: 1º porque os jor­nais de Braga não falaram em tal...»

Mas, querido Bem, os jornais de Coimbra, os jornais do Porto, e os jornais de Lisboa, que são liberais, contaram-no. Vale alguma coisa que o não referissem os jornais de Braga, que são ultra­montanos? E esses mesmos não estão anunciando a cada momento livros que se vendem para evitar o fim do mundo, cartas vindas do Céu, relíquias achadas, etc.?

Diz mais o Bem: «2º porque em Braga não há missionários!» Como assim! Tresloucas, Bem! Não há missionários em Braga? Diz antes, amigo, que não há turcos em Constantinopla! que não há água nos rios! que não há estrelas no céu! que não há sons na música! Ah querido! Não há missionários em Braga? Onde os há então, em Berlim?

 

No terceiro artigo, as Farpas tinham censu­rado o Sr. Encomendado de Santos-o-Velho, por ter proibido que as mães levem os filhos à Igreja! O Bem Público escandaliza-se e grita: – «O que iam as crianças fazer aí? Se as mães queriam ir à missa, e não podiam deixar as crianças em casa – que não fossem à missa, que estão em primeiro lugar os deveres da lactação, que os desejos da devoção!»

Esplendidamente bem dito! Mas quem o disse? Foi Michelet decerto, o iniciador naturalista da educação anticatólica? Foi Proudhon talvez, o rude inimigo da Igreja? Não, meus bons senho­res! não, Nação! não, Braga! Foi o Bem Público, jornal católico, romano, devoto, piedoso, ungido em água benta! Os deveres da lactação primeiro que os desejos da devoção! Mas é perfeitamente revolucionário! A lactação antes da devoção – isto é, a natureza antes do misticismo, a razão antes da fé, o dever humano e consciente antes do dever divino e transcendente, o raciocínio antes do dogma, a higiene antes do Evangelho, a mãe antes da devota, o preceito naturalista antes da regra da Igreja, o homem antes de Deus! Bravo, Bem Público! Segundo tu, o preceito, a missa, a Igreja, são coisas secundárias, indiferen­tes, para quando houver vagar. Objecto de luxo, para os dias de ócio, uma forma do teatro aos domingos! «Que farei hoje, irei à igreja ou à Rua dos Condes?» De modo que só quando a mulher tiver amamentado seu filho, arranjado a sua casa, cozinhado o seu jantar, cumprido todos os seus deveres humanos, e se achar numa hora desocupada e vaga – é que deverá ir à missa? Dizes excelentemente! Mas então repara bem, ó Bem. Se pões o mais pequeno dever humano antes do mais pequeno dever católico – rachas de alto a baixo o catolicismo: se a mãe deve amamentar antes de rezar, o homem deve obedecer à sua razão consciente antes de obedecer ao preceito religioso: tens a análise, a liberdade religiosa, a reforma, a revolução. Abres uma fresta no mundo velho e entra-te por ela um mundo novo! O Bem Público, estás pois assim naturalista e ateu? És então um falso devoto? Por cima da tua sotaina de sacristão pões uma faixa escarlate de membro da comuna? O Bem! Espalhas tu água benta ou petróleo? Treme, desgraçado! enquanto a Nação tua irmã, enquanto o Diário Nacional, a Crença, estarão muito contentes no Paraíso, tu, Bem Público, excluído da bem-aventurança por teres renegado a fé, errarás, como uma sombra aflita, na vastidão do céu negro, através de interminável dor, aos encontrões com as sombras condenadas de Sardanápalo, o pagão, e do aborrecido Pilatos!

Ah! Bem Público, excêntrico maganão, con­serva-te quieto na tua doce sombra! Reza, jejua, canta no coro, usa cilício – mas deixa-nos em paz.

Contenta-te em ser um jornal boa pessoa, pesa­dote e pacatote – e a ter o inteiro aplauso de anti­gos egressos. Mas não venhas interpor-te no nosso caminho. Toma ao teu canto o teu rapé, e usa em silêncio a tua flanela. E serás grande, ó Bem! ó bom Bem! á Bem bom! Bum!

 

                                                                  Eça de Queirós

 

 

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