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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA CAMPANHA ALEGRE V.2 / Eça de Queirós
UMA CAMPANHA ALEGRE V.2 / Eça de Queirós

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

                           Janeiro 1872

Querido público, eis-te diante de um Ano Novo – o ano de 1872.

Aí o tens defronte de ti, mudo, impenetrável, com o seu largo chapéu de feltro escondendo a face, a capa cor de mistério traçada à Lindor, e altas botas de pregas reluzentes. A ponta da sua espada ergue de leve, por trás, uma prega subtil, a orla do manto escuro. O traidor! – vem armado!

Como será o seu rosto – claro e pacífico ou sombrio e batalhador? E os seus cabelos – grisalhos e acamados como os de um musgoso conser­vador, ou negros e revoltos como os de um revolucionário impaciente? E a palma da sua mão – macia e fácil como a do que espalha dinheiro, ou adunca e áspera como a do avaro ganchoso?

«Quem o sabe? Quem o saberá?» diz o cuco da lenda.

Que te trará ele a ti, fiel camarada das Far­pas e da sua campanha irónica? Um acesso no teu emprego? A herança de um velho tio? Uma noiva de cinta airosa? Uma bela viagem por conta do Estado? Um pequerrucho guloso de leite?

«Quem o sabe? Quem o saberá?» diz o cuco da lenda. Que ele, o Ano Novo amável, te conserve a cabeça serena, o estômago são, o bolso sonoro, e a mão decidida. Eis o bom e o positivo na vida. E também que faça penetrar em ti como um calor reconfortante a estima das Farpas – ou, pelo seu nome genérico, a estima do Bom senso.

E que trará ele à Pátria? É justo que pense­mos um pouco na Pátria. Porque enfim, temos uma pátria. Temos pelo menos – um sítio. Um sítio verdadeiramente é que temos: isto é – uma língua de terra onde construímos as nossas casas e plantamos os nossos trigos. O nosso sítio é Portugal. Não é propriamente uma nação, é um sítio. Já não achamos mau! A Lapónia nem um sítio é: apenas unia dispersão de cabanas na vaga extensão da neve. Podemos pelo menos desdenhar a Lapónia. A miserável Lapónia! Como a nossa organização é mais rica, a nossa raça mais digna! Nós ao menos temos um sítio!

O que vai trazer à nossa terra, debaixo da sua capa, o digno Ano de 1872?

Trar-lhe-á a paz, como um folhetim monótono continuado da véspera?

Trar-lhe-á a guerra, como uma aventura emo­vente a marche-marche?

Trar-lhe-á, embrulhada num cartucho, a revo­lução?

Trar-lhe-á, no meio de um espantado oh! uni­versal – uma ideia?

Trar-lhe-á entre os braços, para lhe depositar no colo, uma nova dinastia – de mama?

Trar-lhe-á, como um noivo para a fecundar, o exímio prelado de Viseu que recua e cora de pudor?

Atirar-lhe-á aos pés, como um mimo de Céu, Melício, melhor que os favos?

«Quem o sabe, quem o saberá?» diz o cuco da lenda.

 

 

 

 

Nem ele mesmo o sabe talvez, o Ano Novo! Os anos chegam desprevenidos, sem plano, e come­çam por tomar informações com os anos que saem. E então, pelas notas colhidas, como um dramaturgo, preparam os seus episódios! Ah! que diria o Ano Velho, ao partir com as suas malas e as suas rugas, a este Novo Ano que chegava, inex­periente e curioso? Que confidências trocaram, ao encontrar-se nessa misteriosa estrada por onde caminham os dias e os anos, pacientes transeun­tes da Eternidade?... Pois nós, os feiticeiros das Farpas, por grande maravilha o sabemos! Ano Velho e Ano Novo cruzaram-se na fronteira, em Badajoz. O Ano Velho estivera trezentos e ses­senta e cinco dias em Portugal; recolhia enfas­tiado e embrutecido; tinha os dedos queimados do cigarro; levava o estômago estragado da mesa do hotel; ia ressequido da falta de banhos; pali­tava os dentes com as unhas; sabia ajudar à missa; assoava-se a um lenço vermelho; pergun­tava a todo o propósito que há de novo? – e era reformista. Estava aportuguesado. Ano Novo, esse, saía da frescura do Céu.

Cumprimentaram-se, risonhamente.

E no silêncio da noite, à sombra dos muros de Elvas, de onde nós escutávamos, palpitou entre os dois, vivo e rápido, este diálogo:

 

Ano Novo (preparando a carteira e o lápis):

– Este país em que vou entrar é uma monar­quia ou uma república?

Ano Velho (gravemente):

– As geografias dizem que é uma monar­quia... Pelo que vi pareceu-me que nem era uma monarquia, nem uma república – e que era apenas um chinfrim.

– Mas, Ano Velho, pelo menos há um rei?

– Há um, Ano Novo. Os jornais revelam de vez em quando a sua existência – contando que fora fotografar-se! É quanto se sabe da sua vida pública.

– Mas, esse rei reina?

– Reina – como quando se diz na descrição de uma sala: «no alto, ao pé da cornija, reina um friso dourado...

– E por onde se governa esse país?

– Este país tem a Carta, que se manifesta todos os meses nas músicas regimentais – em hinos; e actua nas repartições de ano a ano – em suetos... É tudo o que o país sabe dela.

– E de que vive o país? Tem rendimentos, tem orçamento?

– Tem de menos, todos os anos, para pagar as despesas da casa – uns cinco ou seis mil contos. É a isto que eles chamam – as finanças. Cada ministério...

– Um momento! Eu sou um simples, um ingénuo, chego... O que é um ministério?

– É uma colecção de doze homens que se encarregam (seis trotando a cavalo atrás dos outros seis) de governar o País – isto é, de ter a mão na chave da despensa. Quando se pertence a um partido...

– Pertencer a um partido, caro colega, vem a ser?...

– É meter-se a gente num ónibus que leva aos empregos – e a que puxa o chefe do partido, sempre com o freio nos dentes!

– Mas a questão da fazenda, dizia...

– É uma espécie de nó que todos, um por um, são chamados a desatar – e que cada um aperta mais.

– Sem nunca entalar os dedos?

– Bem ao contrário! A alguns fica-lhes na mão o pó da corda. Ora é com esse pó que se compram os melões.

– E o País, em que se emprega?...

– Nas secretarias. São salas onde homens tris­tes escrevem em papel almaço «Il.mo e Ex. mo Sr.» – para poderem jantar, e ter este acesso: aos 20 anos semi-inúteis, aos 30 inúteis, e aos 45 inú­teis e semi.

– E de onde saem esses homens?

– Do liceu, que é um lugar com bancos, onde em rapaz se decoram bocados de livros – para ter o direito de não se tornar a ler um livro inteiro depois de homem.

– Perdão, mas há uma Universidade, parece...

– Há. Mas é apenas um edifício histórico para se provar que existiu D. Dinis, seu fundador.

– Mas aí, Santo Deus, não se estuda?

– Sim, estudam-se ciências que levam cinco anos a estudar – e que estão atrasadas vinte anos; – com excepção de uma, a teologia, que acabou há um século.

– E como é a organização dos estudos?

– O aluno, ao entrar, faz uma cortesia pro­funda ao lente; lê lá dentro um romance que traz na algibeira; e sai fazendo ao lente outra cortesia profunda. Se não fizer isto é repro­vado.

– E tudo isso para quê?

– Para se ser bacharel – unia qualidade que se exige para tudo, e que se não respeita para coisa nenhuma.

– E a que chama a política, meu amigo? Tenho-lhe ouvido...

– A política é a ocupação dos ociosos, a ciência dos ignorantes, e a riqueza dos pobres.

– Reside em S. Bento...

– Um santo do calendário?

– Uma sala que a Carta instituiu para per­petuamente se discutir quem há-de organizar o País definitivamente.

– E qual é a posição dos deputados?...

– Na aparência sentados, por dentro de cócoras.

– Perdão...

– Ah sim! a posição para com o Governo? Empregados de confiança do Governo, nomeados pelo Governo; – consentindo-se ao povo, para o contentar, que assine o decreto!

– Explique-me uma palavra dos meus apon­tamentos: – «eloquência parlamentar?»

– É a série de palavras sabidas que vai de Barros e Cunha a Osório de Vasconcelos – pas­sando por Santos e Silva.

– Quem são esses homens?

– São eles mesmos – e têm um trabalho imenso para serem tanto.

– Há ainda, ao que parece, outra câmara

– A dos pares. É um forno apagado onde cada Governo mete lenha nova – para poder cozer o seu pão.

– Estranhos casos! E há um partido antidi­nástico?...

– Perfeitamente: há um partido que se ri do rei por ter tão pouco poder sobre o seu povo – e lastima o povo por sofrer tanto poder do seu rei.

– Fale-me da aristocracia...

– É uma colecção de capacetes, vazios das velhas cabeças, as quais iam cair ao chão, e onde se metem, para os sustentar, cabeças novas de merceeiros, que pagam para isso ao Governo.

– Ainda bem! fale-me agora do povo...

– É um boi que em Portugal se julga um ani­mal muito livre, porque lhe não montam na anca;

– e o desgraçado não se lembra da canga!

– E a burguesia?

– Chuta! Mais baixo! Esse é o nome de des­prezo com que os tendeiros enriquecidos que já descansam, fulminam os tendeiros pobres que ainda trabalham.

– E este País, que crédito tem entre os outros, para além dos Pirenéus?

– Portugal, lá fora, é estimado pela laranja.

– E a diplomacia?...

– Cada Governo, meu amigo, costuma mandar como embaixadores para fora, aqueles que não quer ver dentro como chefes da oposição. Na realidade os diplomatas são como os criados que os companheiros mandam espreitar para a sala – para eles comerem mais à vontade na cozinha.

– Tem viajado decerto, amigo. Fale-me das cidades... Há boas estradas?

– Há: mas estão todas na secretaria das obras públicas, para não se deteriorarem.

– E o caminho de ferro?

– É novo em Portugal, gatinha ainda.

– Mas... E o Porto o que é?

– Uma terra onde se é negociante para ter os meios de fingir que se é aristocrata.

– E Coimbra?

– Uma cidade onde o município não varre as ruas para não perturbar os que estudam – enquanto os que estudam, com o barulho que fazem na rua, não deixam dormir o município.

– E Lisboa, enfim?

– Lisboa é a cidade onde Melício habita. De resto uma burguesa que desejaria parecer-se com uma cocotte – se pudesse costumar-se a lavar os dentes.

– Mas então os Portugueses não são escrupu­losos no asseio?

– Outrora, colega, quando os criados inexpe­rientes dos hotéis viam chegar o viajante portu­guês, traziam-lhe, como a todos, uma tina cheia e fresca. E o Português respondia invariavel­mente: «obrigado, não tenho sede!»

– Mas a vida elegante de Lisboa?

– É não ser cigarreiro da fábrica de Xabregas. Tudo o mais é elegante.

– E os Portugueses são inteligentes ao menos?

– Foi o ABC que espalhou isso – vaidoso de que o tivessem compreendido!

– E a família?...

– É um grupo de egoísmos – que janta de chinelas.

– Mas as mulheres?

– Pessoas excelentes, que têm a doçura de fingir que não têm espírito – só para não humi­lharem os maridos!

– E são bonitas?

– São bonitas – nos intervalos da cuja.

– E honestas?

– Muito mais do que os maridos dão a entender.

– E ternas?

– Aprenderam a ternura de cor – mas reci­tam-na mal.

– Que tal conversam?

– Não se sabe. Nunca tiveram com quem.

– E amorosas?...

– Diz o Sr. Vidal que sim.

– E femininas?

– Meu amigo, são utilitárias. Acham em tudo o que acharam na própria valsa – uma utilidade.

– Na valsa? qual é?

– O meio de suar com elegância em socie­dade.

– Oh! bom Deus, voltemos às generalidades! O País é rico?

– Portugal é um país que todos dizem que é rico, povoado por gente que todos sabem que é pobre.

– Mas a agricultura?

– A agricultura aqui é a arte de assistir impas­sível ao trabalho da Natureza.

– E as colónias?

– Velhas salvas de família, que se enferrujam ao seu canto.

– Mas este País tem um exército...

– Pode-se permitir essa formalidade – porque tem segura a paz.

– E polícia?

– A polícia é uma instituição que passeia apa­ratosamente em certas ruas – para prevenir os malfeitores que vão para outras.

– Falou de malfeitores. Como são as ca­deias?...

– São latrinas – onde também se guardam presos.

– Mas a Câmara Municipal, ao menos vela pela cidade?

– Zelosamente. Por uma das suas posturas, por exemplo, é proibido a qualquer cidadão, sob pena de uma grave multa, ter em sua casa, mais de seis meses – um lobo danado!

– É extraordinário! E o bom senso, não o há?

– Evita-se: porque tê-lo chama-se pedantismo, e publicá-lo chama-se insulto.

– Mas esse povo nunca se revolta?

– O povo às vezes tem-se revoltado por conta alheia. Por conta própria – nunca.

– Em resumo, qual é a sua opinião sobre Portugal?

– Um país geralmente corrompido – em que aqueles mesmos que sofrem não se indignam por sofrer. De resto a Pátria do grande Afonso de Albuquerque e de outros.

– E não há um protesto? Agora me lembro! As Farpas? fale-me delas...

– Um jornal que tem um só merecimento – sentir-se com bom senso e não aspirar à dita­dura.

Mas tendo percebido que os escutavam (éra­mos nós) o Ano Novo e o Velho Ano separa­ram-se, com grandes shake-hands. E o Novo Ano, senhor de uma série de definições que o habili­tavam a conhecer o País, entrou a fronteira, ao repicar dos sinos. Bem-vindo! E Boas-Festas!

 

                         Janeiro 1872.

Ao Ex.mo Sr. Fontes Pereira de Melo. – Vimos agradecer-lhe, sr. ministro, a proposta pela qual é extinto o imposto do pescado. As Far­pas tinham apresentado, com um relevo dolo­roso, toda a cruel indignidade desse imposto. Não sabemos se V. Exª já viveu algum tempo nas costas de Portugal. Devia-o ter feito. Nada mais duramente instrutivo. Um interior de cabana ensina mais que um livro de Maurício Block. (Mesmo os livros do dito Maurício não ensinam nada). A pesca não constitui uma indústria regular, mas um ganho de surpresa. O mar, sr. ministro, não tem a calma tranquilidade da terra. Essa estende-se ao sol, como a ninfa antiga, e deixa serenamente na sua impassibilidade santa que a violem, a dilacerem, lhe tirem o vinho, o pão, as frutas, até o carvão, e aos que a rasgam e roubam dá tudo o que é necessário para que o corpo viva, e ainda a mais as verduras e as flores para que a alma se alegre. O mar, sr. minis­tro, esse, defende-se. Olha o homem como um inimigo; cerca-se de rochas, embuça-se traidoramente na névoa, apavora com o seu ladrar monó­tono. É necessário espreitá-lo, ver quando dorme: então o pescador, rema em silêncio, deita as redes, e rouba-o. Já vê, sr. ministro, que não temos aqui uma indústria disciplinada – mas a pirataria da fome.

Anda às vezes uma lancha quarenta e oito horas sob a chuva, o vendaval e a neblina, na inclemência da água. Os homens estão perdidos e trabalhados, como dizia Camões. É necessário passar a noite no mar. Deitam a âncora e as redes, acendem uma lanterna, persignam-se, e, sob a escuridão e a tormenta, embuçados nos gabões, encharcados, ali ficam no vasto mar escuro. Tudo isto para erguer as redes vazias, quantas vezes rotas! Vão homens e vão crianças. Um homem de companha ganha 80 réis por cada pesca, dois dias de trabalho áspero. Uma criança ganha um vintém. E necessário ver como habi­tam. Em Espinho – e é uma das costas mais populosas e mais ricas – vivem em casebres de pau, onde a chuva, o vento, a névoa, entram livre­mente; dormem sobre farrapos de velhas jaquetas e de antigas velas inúteis; comem numa grande tigela, promiscuamente, a caldeirada escassa de sardinha e côdeas de broa. Isto no tempo feliz e abundante. No Inverno internam-se e pedem esmola. Tal é aquela vida a traços largos. Escusa­mos falar-lhe, sr. ministro, dos temporais, dos naufrágios, de barcos partidos, de redes inutiliza­das, do fim deles sobre a terra, que é o hospital, do seu fim debaixo da terra, que é a vala. Vir sobre estes homens o fisco, e tirar-lhes, por meio de unia conta de dividir, parte daquilo que eles ganham por meio de um risco de morrer, era excessivamente torpe, mesmo para portugueses! Os pescadores têm, sr. ministro, um verdadeiro imposto: as grandes ondas que viram as lanchas.

Agradecemos, sr. ministro, a sua simpática iniciativa.

 

                                 Janeiro 1872.

O Índia, o melhor navio que temos, o navio novo, expressamente feito para uso do País, comprado com madura reflexão, examinado com escrupulosa ciência, glória da nossa marinha, defesa das nossas colónias, garantia da nossa honra, o índia, que sábias comissões aprovaram, que uma recta imprensa exaltou, que professores da escola normal celebraram, que custou muitas mil libras, que é novo, perfeito, impecável, o Índia – mete apenas cinco polegadas de água por dia!

 

Louvemos a Providência em humilde atitude: o Índia podia não ter fundo!

Mas não, o Índia é o nosso glorioso vaso, conhece o brasão heróico que usa, compreende a responsabilidade que arvora, vê que lhe cumpre sustentar o nome da Lusitânia, e portanto o Índia, com uma moderação que nos comove até às lágri­mas, o índia – mete apenas cinco polegadas de água por dia!

 

E todavia o Índia podia – quem lho impedi­ria? quem ousaria coibir-lhe a nobre vontade? –o Índia poderia não ter casco! O Índia poderia não ter costado!

Mas não! o Índia sabe os deveres de todo o honrado transporte de guerra para com a Pátria que o emprega. O índia – limita-se a meter ape­nas cinco polegadas de água por dia!

 

                               Janeiro 1872.

Ao Sr. D. Américo, Bispo do Porto. – Deve Reverendíssima saber que o Diário da Tarde, jornal dessa diocese, tem publicado cartas trocadas entre o Sr. Camilo Castelo Branco, que no mundo profano é um romancista excelente, e Rocha, que é no mundo eclesiástico – qualquer coisa. Trata-se, parece, de decidir se existem as famosas labaredas do Inferno. A dis­cussão tomou unia feição teológica. O Sr. Camilo Castelo Branco traz a ela toda a originalidade fogosa da sua veia peninsular; o chamado Rocha divaga, requenta sediços argumentos teológicos, defende os missionários, e aconselha a prática das suas doutrinas. Ora numa das cartas do dito Rocha encontra-se, reverendíssimo prelado, esta frase, para a qual chamamos a atenção inteli­gente de V. Exª e a sua autoridade hierárquica:

«Diz o Sr. Camilo que a presença dos missio­nários aumenta a faina da roda dos expostos. Pois bem, eu digo que melhor, porque aumenta a «população.»

O que significa, digníssimo prelado:

«É um bem que os missionários seduzam as suas ouvintes – porque aumentam a população.»

Foi escrita esta frase, excelentíssimo prelado, na cidade do Porto, no ano de 1871, Dezembro, por um chamado Rocha, eclesiástico.

Excelentíssimo prelado! Isto é simplesmente o missionarismo que ameaça a virgindade. Temos aqui o missionarismo, que – ferido, irritado da contradição, torcendo-se sob a mordedura da ver­dade, levado, violentamente contra o muro – faz como os gatos longo tempo perseguidos e espi­caçados, assanha-se, encrespa-se, sopra, desen­rosca-se. ataca – e grita:

– «Ah! eu estou convencido de ser impudico? Melhor! Confesse o meu impudor, sustento-o! E um bem, porque aumento a população.»

E prepara-se! Pedimos, excelentíssimo pre­lado, a interferência da sua mitra.

Se, entre nós os profanos, nos tribunais civis, um assassino declarasse que matar; fulano, para diminuir a população; se um ladrão se gabasse de que roubara sicrano, para fazer girar os capitais – nós mandaríamos estes dois reformadores beneméritos, que se haviam sacrificado pela jus­tiça, britar pedra com a argola da grilheta!

Não sabemos o que as leis eclesiásticas comi­nam àqueles senhores missionários que entendem do seu dever desflorar as mulheres – para aumen­tar os homens!

Se nada estatuem, então, excelentíssimo pre­lado, dê-nos V. Ex.8 na sua capela um lugar para irmos aí agradecer a Providência maternal, de rojo nas lajes – pois que é tão benévola com a terra de Frei Bartolomeu dos Mártires que, no meio das nossas desgraças e da nossa pobreza, nos dá ao menos o moedeiro falso que aumenta o capital e o missionário que aumenta a popu­lação!

Como, porém, a justiça e conhecida dignidade de V. Exª, não deixarão passar em impunidade a palavra do chamado Rocha, vimos humildemente pedir, a V. Exª Reverendíssima, que atenda a que a frase do chamado Rocha é a expressão sintética de uma teoria de missionário; – que os missionários são muitos; – que os maus sacer­dotes fazem desertos os melhores altares; – que Cristo, o supremo Mestre, desfaria o seu azorra­gue nestes vendilhões de bentinhos; – e que uma vez que os seus padres, excelentíssimo prelado, ameaçam aumentar a população, não será injusto que nós supliquemos a V. Exª que açame os seus padres!

Beijamos o anel pastoral de V. Exª Reveren­díssima – sendo, como somos,

Admiradores da ciência e crentes da virtude de V. Exª Reverendíssima.

 

                         Janeiro 1872.

Querem conhecer um cidadão absolutamente optimista, rara avis, nesta terra? – É o nosso amigo Pinheiro Chagas.

Revela-o ele, muito finamente, no seu folhetim de 5, no Diário de Notícias. Aí, acusando com gentil espírito, os que «fustigam a Pátria», dese­nha o País como superiormente perfeito, tão per­feito que na sua superfície social e morai não é possível encontrar nem uma fenda nem uma man­cha: e aí declara que todo aquele que achar na Lusitânia defeitos e no cisne farruscas – é bur­lesco.

Parece que, segundo o feliz Pinheiro Chagas, nós possuímos toda a perfeição de administração, toda a abundância de riqueza, toda a virtude de alma, toda a elevação de carácter, toda a beleza de forma – como aquela cidade ideal onde o jovem Telémaco e o calvo Mentor passeavam, coroados de louros, trocando os períodos sonoros que o puro Fénelon lhes colava alternadamente aos lábios.

E sabem quais são as provas que o nosso admi­rável amigo dá deste estado de perfeição a que chegou Portugal, desta superioridade inteiramente inacessível às raças inferiores?

Duas provas:

Termos descoberto o caminho da índia!

Termos, com a nossa energia, domado o Indos­tão!

Assim, segundo esta teoria de impecabilidade – sabem porque razão é o Sr. Braamcamp um grande filósofo? – Porque nós descobrimos o caminho da índia. E todo aquele que, ou sobre a filosofia do Sr. Braamcamp ou sobre a grandeza de qualquer instituição nossa, puser restrições ou dúvidas – é burlesco. Assim as Farpas seriam burlescas – se ousassem duvidar da superiori­dade filosófica do Sr. Braamcamp; e sê-lo-iam se se atrevessem a negar, sorrindo, a excelência da nossa instrução pública. E isto porque nem o Sr. Braamcamp pode eximir-se a ser um filósofo tão profundo como Kant, nem a instrução se pode esquivar a ser tão derramada como na Prússia – desde o momento em que nós outrora domámos o Indostão!

É este um sistema de progresso social fácil e cómodo: domar o Indostão. Quem doma o Indostão, está desde esse momento, na plenitude da verdade e na posse da abundância. Foi por não o ter domado que a França se acha nos embaraços da inconstituição. Foi por o não ter domado que Babilónia caiu! É um erro que uma nação comece a viver – sem se ter preve­nido com alguns Indostões domados. Doma o

Indostão e deita-te a dormir. Doma o Indostão e fecha a escola – a população saberá ler. Doma o Indostão e não faças estradas a circulação aumentará.

As Farpas acusam a desorganização dos estu­dos. Mentira, os estudos são perfeitos, veja-se a energia com que domámos o Indostão!...

As Farpas censuram a ineficácia da direc­ção económica. Como esqueceis o Indostão domado?

As Farpas acusam o enfraquecimento dos caracteres. E o Indostão, o soberbo Indostão domado, desgraçadas?...

As Farpas condenam o procedimento tumul­tuoso da Câmara dos Deputados. Que ousais dizer, pois não domámos nós o Indostão?...

As Farpas revelam a decadência literária. Que novo agravo – pois nem a recordação do Indos­tão que domámos?...

 

O País pode e deve dizer, em verso:

 

«Zoilos, tremei, que o Indostão foi meu!»

 

                           Janeiro 1872.

O clero começa a reconhecer entre a Igreja e a vida incompatibilidades inesperadas.

Ainda há pouco Mgr. Dupanloup, bispo de Orleães e antigo académico, pedia à Academia a sua demissão por incompatibilidade com Littré, positivista e académico recente. Isto, bem enten­dido, obrigaria Mgr. Dupanloup (se nos não trans-via uma errónea lógica) a pedir a sua demissão de deputado à assembleia, porque onde está a fé-dupanloup não pode estar a impiedade-littré – e o positivista Littré é deputado à assembleia. Mas sendo Littré cidadão francês – deve Mgr. Dupanloup, pela lógica da incompatibilidade, demitir-se de cidadão francês. Resta porem alguma coisa. Littré é homem, e o princípio de Mgr. Dupanloup obriga-o desde já, se é conse­quente, a demitir-se da sua qualidade de homem. E não é tudo ainda. Littré é animal vertebrado, e portanto o lógico e incompatível Mgr. Dupanloup deve correr perante a autoridade competente e demitir-se nobremente de animal vertebrado. Mais ainda! Littré é ser – (parte do Universo, etc.) e Mgr. Dupanloup, que é incompatível com tudo o que é Littré, segundo as suas palavras, deve trabalhar até conseguir – a sua demissão de ser. E enfim demitido de académico, de deputado, de francês, de homem, de matéria, e de ser – o que fica, deste bispo de Orleães, sábio latinista e pan­fletário ilustre?

 

Em Portugal, agora, o clero descobre incom­patibilidade entre a qualidade de católico e a qua­lidade de mação.

Ora, como sabem, hoje as associações maçó­nicas (que perderam há muito a sua feição car­bonária, jacobina, etc.) são em Portugal associa­ções públicas com os seguintes fins:

Eleições;

Socorros mútuos;

Beneficência;

Auxílio e protecção recíproca aos irmãos no País e no estrangeiro.

De sorte que, segundo a opinião recente do clero, um católico – não pode tratar de eleições.

Nem socorrer, proteger e auxiliar os seus amigos.

Enquanto a eleições, os srs. eclesiásticos são os mais lesados em que haja incompatibilidade entre a qualidade de católico e de agente de elei­ções, porque a carreira sacerdotal de SS. Sª depende essencialmente da sua habilidade elei­toral: e SS. S.as não foram subtis apresentando a caça ao voto incompatível com a devoção a Roma. Querem os srs. párocos definitivamente abandonar a urna? Então SS. S.as arriscam-se a criarem bolor nas suas pobres paróquias de aldeia. Pretendem continuar a proteger candi­datos? Em tal caso perdem a sua natureza cató­lica e não podem ganhar pelo altar.

Quererão SS. S.as dizer-nos que não trabalham em eleições? É a sua missão mais clara e efectiva. Na última eleição, numa diocese próxima de Lis­boa, a autoridade eclesiástica superior oficiou aos párocos de todas as suas freguesias para que desenvolvessem o maior zelo, influenciassem, por todos os modos patentes e ocultos, na luta polí­tica. E por esta estrada de votos que se chega às boas paróquias.

 

Enquanto a socorros e protecção – não nos parece que os srs. sacerdotes sejam muito mais hábeis, declarando que ser católico é incompatível com ser beneficiente. Devem lembrar-se que a Igreja vive de esmolas! que o Papa vive de esmo­las! E essa teoria nova leva a suprimir o dinheiro de S. Pedro, a côngrua, todos os haveres ecle­siásticos.

 

Por outro lado se o sacerdote começa a esmiu­çar à beira do leito de morte a vida do mori­bundo, para achar nela incompatibilidades com o Céu, podem dar-se casos terrivelmente burlescos. Porque se é um pecado irresgatável o ter traba­lhado em eleições (o que constitui uma das ocupações da maçonaria), sê-lo-á igualmente ter perten­cido a unia filarmónica – outro emprego fortuito da maçonaria. Em algumas terras do reino as sociedades maçónicas filiais – não tendo traba­lhos, nem fins mais altos – reúnem-se usualmente como bandas de música! E assim chegaremos ainda a tempos amargos em que os jornais publi­quem esta retractação:

«Declaro que renego e me arrependo do facto culpado e terrível de ter, em companhia crimi­nosa, esquecido todos os deveres cristãos, e sob a influência do espírito mau – tocado o «Barba Azul» no clarinete!»

 

Não se vê menos embaraçado o próprio Governo, ele!

A Igreja condena a maçonaria; mas a maço­naria é hoje simplesmente uma sociedade consti­tuída para fazer eleições; – a Igreja portanto condena completamente o tráfego eleitoral.

Tem pois o Governo a escolher entre fazer eleições, o que lhe atrai a reprovação da Igreja, ou contentar a Igreja, o que lhe traz a perda do poder! Porque ter depois de morto a glória do Céu, e em vivo a delícia de gozar como deputado o Sr. Melício – não pode ser!

Tem de escolher entre Melício para a câmara e o Céu para a bem-aventurança. Se, para ganhar o Céu, repele Melício com pudico e místico meneio – perde um formoso apoio: e se, para ter esse voto considerável, acolhe Melício com amo­roso braço, rasgam-se-lhe sob os pés as fendas do abismo teológico.

Tem de decidir – entre o Céu e a maioria. Devoto, perde as eleições; eleitoral, perde o Paraíso. Ou S. Pedro ou Melício.

Melício está-lhe de frente, com todas as ape­titosas atracções da maçã proibida, nas manhãs do Paraíso. Se estende mão ávida para colher Melício, Satã, o terrível comissário civil do abismo, deita-lhe a mão à gola do casaco: se se afasta, e deixa, sem o colher, Melício baloiçan­do-se na ponta do ramo verde, perde um voto imenso. E enfim o Céu é o Céu, mas um Melício é um Melício. Que fazer? colher Melício? – é o ranger de dentes. Deixar Melício nas árvores para que os pardais o comam? – é a queda do poder. Porque aqui Melício é mais que homem, aqui Melício é pomo, o pomo de onde depende o Bem e o Mal! (E não falamos do Sr. Melício, inteli­gente e laborioso rapaz, que amamos: falamos do grande símbolo constitucional, d’Ele, de Melí­cio!)

Que fará o Governo nesta questão espinhosa? Renunciará às eleições ou renunciará ao Céu?

 

                           Janeiro 1872.

Há no relatório da Reforma de Administração, uma frase de poderosa realidade.

«Sei – diz o Sr. Sampaio – que muitos con­celhos mortos para a administração vão ressus­citar para a resistência.»

É a verdade. Há concelhos cm que nem câmara, nem administração, nem regedoria se manifestam mais do que em atravessar pomposamente a praça, no dia da procissão dos Passos, fazendo reluzir ao sol o óleo espesso do penteado. A vila está entregue aos acasos naturais. Nenhu­mas obras; as vielas descalçam-se, os muros aba­tem, os enxurros empoçam. Nenhuma higiene: a imundície apodrenta em sossego, os maus chei­ros fazem atmosfera, os porcos fossam às portas, a praça é uma capoeira pública. Nenhuma polícia; no mercado a desordem, na taberna o jogo, nas esquinas os bêbedos. A administração namora as moças, a regedoria barbeia os fregueses. Não se cria nada, nem se conserva coisa alguma. O que há serve tranquilamente para se estragar: desde a escola que vai perdendo os discípulos, até à cadeia que vai perdendo as grades. É uma vila que apodrece. Há aí o silêncio dos sítios em que cresce o bolor. Um marchante que passa, uma égua que trota, surpreendem: as crianças escan­caram a boca, as autoridades espreitam do canto. Ninguém é rico, ninguém é vivo. Dizem-se apenas meias palavras e aperta-se apenas meio botão. Não se vive inteiramente, como não se vestem inteiramente os casacos: a vida e os casacos –trazem-se às costas.

Pois bem, um dia uma portaria diz: «Este con­celho está extinto – e fica anexado a tal outro...

Indignação! Clamor! «O quê! quer o Governo impedir que nós mesmos construamos as nossas estradas, dotemos as nossas escolas? quer amar­rar a vontades alheias a força dos nossos braços? É assim que recompensa o nosso zelo provado?... Nós que há tanto tempo curamos desvelada­mente, etc...»

Ora se, em atenção a estas reclamações ansio­sas, fosse concedido a este concelho o continuar a administrar – ele continuaria a apodrecer.

Estranha inconsequência provinciana! Escan­dalizar-se uma excelente vila – por a lei lhe tirar um trabalho que ela espontaneamente já tirara de si! Arrufar-se porque a lei lhe estabelece como preceito – o que até aí era nela desleixo! Amuar-se – porque a lei lhe legitima o erro! Reclamar – porque o que fora o vício da sua imbecilidade se torna a virtude da sua obediên­cia! Singular, singular!

 

                                 Janeiro 1872.

Tínhamos já coordenado uma página, tendente a mostrar que a portaria que impunha ao Sr. Alves Branco um silêncio, tão anti-higiénico, sobre o hospital de S. José, era uma portaria que de longe se parecia com uma torpeza, mas que, vista de perto e mais à luz, positivamente se reco­nhecia que era um crime!

Os jornais oficiais acodem, porém, a declarar que o sr. ministro assinou a portaria sem a ler! E exaltam a sua dedicação em aceitar a responsa­bilidade pública daquela distracção burocrática!

É realmente louvável que o sr. ministro sus­tente, por dignidade, o que assinou por surpresa. Mas seria mais louvável que castigasse a surpresa para desafrontar a dignidade! Porque o introduzir sub-repticiamente, sob a pena ministerial que vai correndo, papéis obscenos, é uma acção cuja índole se parece singularmente com aquela outra tão conhecida dos tribunais – que consiste em meter sub-repticiamente a mão na algibeira de um semelhante e privá-lo dos seus valores. Roubar uma assinatura oficial para legalizar uma acção particular – não difere inteiramente de roubar uma bolsa alheia para saciar um vício próprio.

Mas houve realmente distracção ministerial? Antes queremos acreditar que o sr. ministro ordenou que se redigisse uma portaria no sen­tido inteiramente justo de fazer uma inspecção ao hospital, e que os senhores empregados se equivo­caram a ponto de a redigir – no sentido de proi­bir toda a crítica e exame do hospital. Tal se nos afigura este caso imundo.

No entanto parece-nos que, se não der alguma atenção mais aos papéis escritos que lhe passam sob a pena, o sr. ministro se arrisca a empalidecer de surpresa diante de todos os números do Diário do Governo. Estando as secretarias, como é notório, povoadas de vates líricos e outras espécies sentimen­tais não menos torpes, é possível, oh Deus, que se leiam ainda estas linhas, para sempre infamantes:

«Pela presente portaria fica determinado:

 

Que não fujam, não findem os dias

Que eu ditoso prelibo a teu lado,

Nunca sói o momento fadado,

Em que eu deva deixar-te e partir...

 

«Secretaria dos negócios do reino. – O minis­tro, António Rodrigues Sampaio.»

 

Enquanto à portaria em si própria, todo o seu castigo está neste facto : declara-se oficialmente que

ela foi introduzida enganosamente à assinatura do ministro! O que as Farpas pudessem considerar sobre esse documento– seria apenas a beliscadura débil de uma unha irónica. Aquela declaração é para ela a mordedura fumegante do ferro em brasa.

 

                             Janeiro 1872.

Não queremos privar os nossos amigos da his­tória de um concurso, cintilante de jovia­lidade, que estala de riso por todos os poros, espuma paradoxalmente de pilhéria.

 

Havia um lugar de cirurgião do banco no Hospital de S. José. O concurso era documen­tal. Dois médicos aparecem, concorrendo. Um o Sr. Boaventura Martins, apresenta como docu­mentos os certificados de onze cadeiras do curso médico, tendo dez aprovações plenas com louvor, e seis diplomas de prémios. O outro concorrente não tem nos seus documentos nem louvor, nem prémio; e tem apenas um R. A administração do hospital classificou o Sr. Boaventura em primeiro lugar, como lhe impunha a lógica e a força ina­tacável dos documentos. O Governo também o considerou digno dessa classificação. Somente sucedia que o ministro não queria despachar o Sr. Boaventura e ansiava por despachar o cava­lheiro do R. Mas (supremo embaraço!) os docu­mentos, os louvores, os prémios, tinham uma evi­dência iniludível. «Que fazer?» como se diz nas óperas cómicas. O Governo ruminou nas profun­das do seu peito, e tirou dele esta sentença: «O Sr. Boaventura não pode ser despachado por não ter sido recenseado». Surpresa! Assombro!...

Eis o que sucedera:

A lei diz: – «Não pode exercer lugar público o indivíduo que não tenha sido recenseado...». Ora acontecera que o Sr. Boaventura não fora recen­seado em tempo competente por descuido da câmara. Quando reconheceu esta omissão, reque­reu precipitadamente à câmara para ser incluído no recenseamento. A câmara respondeu com bom senso que, tendo passado os 21 anos da lei, o Sr. Boaventura não devia ser recenseado, e que seria inútil que o fosse, porque o contingente do seu ano estava plenamente preenchido.

O Sr. Boaventura juntou aos seus papéis este atestado da câmara. Pois foi justamente fundado nele que o Governo o excluiu do lugar! Não podendo negar-lhe a superioridade de classifica­ção – negou-lhe a validade do concurso!

De sorte que, tacitamente, o Governo con­fessa:

Que dez louvores e seis prémios num curso habilitam, com superior razão, o Sr. Boaventura a exercer o lugar de médico do banco do hospi­tal: somente que de nada lhe valem louvores e prémios, porque a câmara municipal se esque­ceu de o recensear!

Debalde a câmara exclama pela voz dos seus documentos: «Não, por causa de mim, não! esse cavalheiro requereu para ser recenseado! somente é agora inútil que o seja porque o seu contin­gente está preenchido!»

O Governo insiste: – «Não! desde o momento em que a câmara se esqueceu de o recensear, esse médico pode ser um hábil carpinteiro, um fino miniaturista, mas é-lhe vedada a clínica! E imediatamente se aproveita desta interdição do Sr. Boaventura – para despachar um cavalheiro protegido e querido!

Portanto, o que se colige é que o concurso não tinha esta interrogativa racional: – «qual é o melhor médico?» Tinha esta estranha interro­gativa: – «qual é o mais bem recenseado?»

O mais bem recenseado seria o mais apto, segundo o Governo, para curar, operar, tratar doentes.

Logo o recenseamento substitui o curso. Ora ninguém negará que qualquer soldado do 5 ou do 18 está mais bem recenseado, e prova melhor a eficácia do seu recenseamento, do que o sábio professor Tomás de Carvalho. Portanto quem, segundo a doutrina do Governo, deveria reger a cadeira de anatomia, seria um soldado do 18 com a autoridade da sua fardeta suja, e não o Sr. Tomás de Carvalho com a autoridade do seu largo saber.

Tal é a história jovial e imunda deste con­curso!

 

                                 Janeiro 1872.

Agradecemos ao sr. ministro do Reino a sua portaria, resolvendo o enterro dos ímpios nos cemitérios públicos. E – agradecemos – por­que foram as Farpas que se insurgiram contra os escrúpulos e as resistências dos srs. eclesiásticos, perante o cadáver dos inbeatos e dos indevotos. A portaria estatui que haja no cemitério público, jazigo civil dos cidadãos mortos, um lugar para os corpos daqueles que, ou por dissidência de igreja como os protestantes, ou por diferença de religião como os israelitas, ou por princípios filo­sóficos como os racionalistas – sejam não-cató­licos.

Fazer recolher ao cemitério cadáveres que o clero quereria afastar para as estrumeiras, é já um progresso de bom senso, uma aquisição para a dignidade civil, um lucro para a higiene.

A câmara municipal não vê almas, vê corpos Ora depois da morte nem todas as almas se salvam, mas o que sabemos de positivo, é que todos os corpos apodrecem; e os cemitérios são a supressão administrativa desta infecção fatal. Portanto cumpre à câmara vigiar que o tran­seunte, o eleitor, o contribuinte não seja prejudi­cado pelos miasmas – nem do ateu nem do devoto. E a sua obrigação civil é enterrar a putre­facção – sem indagar quais sejam as suas cren­ças religiosas ou as suas opiniões filosóficas. A Deus o que é de Deus, à câmara o que é da câmara. Deus escolherá e distinguirá as almas: a câmara deve dar igualmente aos corpos ateus e aos corpos beatos uma cova higiénica. Isto é o legítimo bom senso.

A portaria no entanto não é completa, por­que, por uma concessão espiritualista, faz colocar num sítio separado, longe dos túmulos católicos, o jazigo dos irreligiosos ou dos dissidentes. E não podendo a portaria referir-se nem aos protestan­tes nem aos israelitas que têm o seu cemitério privativo – é decerto para os ímpios que reserva, a um canto, aquele lugar de desdém.

Mas quem decidirá que o cidadão morto foi um ateu? A autoridade eclesiástica? É entregar ao clero a polícia do cemitério, que é toda civil. – A autoridade administrativa? É entregar ao Estado uma averiguação que é toda da filosofia.

A portaria teria evitado este embaraço deci­dindo, com uma simplicidade antiga, que todo o cidadão morto será sepultado no cemitério público.

No entanto, pelo progresso que estabelece, a portaria é excelente. Aos racionalistas não deve

importar que o seu cadáver seja enterrado na parte do cemitério onde só há cruzes negras, ou naquela parte onde só há árvores verdes. (Têm mesmo a perspectiva de gozarem neste caso um fresco tecto de folhagens, que o vento e os pás­saros encherão de doces murmúrios).

E à higiene, à polícia, à dignidade civil, o que importa é que os corpos sejam enterrados nos cemitérios, e não atirados para os cantos dos quintais – o que era uma degradação para o morto e uma infecção para o vivo!

 

                           Janeiro 1872.

O Sr. Luciano de Castro, chefe da oposição, fez no relatório, que precede o seu projecto de Reforma Administrativa, uma exposição som­bria da administração do País. Aí confessa que acabou a fé política e a dignidade política; que não existem partidos com ideias, ruas facções com invejas; que o País está desorganizado e entre­gue ao abandono; que cada reforma cai sucessi­vamente com cada Governo; que as leis são um aparato de eloquência parlamentar e não uma eficácia de organização civil... Enfim – que o País chegou à última decadência administrativa.

Registemos esta preciosa declaração do chefe da oposição. Vamos guardá-la, como uma jóia – em algodão.

 

O Sr. Sampaio, ministro do Reino, no rela­tório do seu projecto de Reforma Adminis­trativa, declara que a administração, como está, é uma confusão vergonhosa, uma desorganização funesta, um abandono mortal... Enfim – que o País chegou à última decadência administrativa.

Registemos esta confissão sincera do sr. minis­tro do Reino. Vamos guardá-la, como um bicho precioso – em espírito de vinho.

 

Resultado: o ministro do Reino e o chefe da oposição declaram oficialmente o País num estado deplorável de administração.

Ora nem a reforma do Sr. Luciano se efec­tuará, nem a reforma do Sr. Sampaio se realizará.

De tal sorte, que resta? Que estamos num abo­minável estado de administração – segundo con­fessa o Governo e segundo confessa a oposição: e que ficamos nesse estado!

É risonho.

 

                                                 Janeiro 1872.

Alguns jornais acusam-nos, com toda a gra­vidade, de sermos violentamente hostis à realeza e à família real: e obliquamente insinuam que estamos comprados pela demagogia para ata­car a Coroa.

Outros jornais acusam-nos, com toda a seve­ridade, de sermos benevolamente cortesãos com a realeza e a família real: e perfidamente suge­rem que estamos comprados pela Coroa para vergastar a demagogia.

Fundam-se os primeiros em que fomos menos amoráveis com Sua Majestade a Rainha – reve­lando a história indecorosa do mendigo preso.

Fundam-se os segundos em que fomos vassa­lamente aduladores com Sua Majestade El-Rei – revelando que ele espalhava, no Bairro da Ajuda, seis contos de réis de esmolas.

As pessoas imparciais compreendem decerto o nosso embaraço:

Por um lado quereríamos desde já atirar pala­vras pungentes à Coroa, para eficazmente provar que não estamos comprados pelo seu oiro: – mas então patentemente se perceberia que o que nos inspira a prosa amarga, são as bolsas de dinheiro com que nos cobre a pálida demagogia.

Por outro lado quereríamos desde já devotar períodos amorosos à Coroa, para mostrar que não nos acorrenta a força dos tesouros demagó­gicos: – mas então abertamente se veria que, se falamos com um som tão meigo, é sob a influên­cia dissolvente dos cofres da Coroa! Lívida colisão!

 

De tal sorte que resolvemos imprimir estas duas cartas, pedindo a rápida justificação da nossa integridade à Monarquia e à Revolução:

 

AO REI DE PORTUGAL

 

Senhor. – Alguns malévolos, nossos comuns inimigos, espalham subtilmente que Vossa Majes­tade nos sacia de oiro, para que as Farpas conser­vem perante Vossa Majestade uma atitude cur­vada e risonha. Rogamos a Vossa Majestade se digne declarar se já deixou cair na nossa mão estendida – o seu corruptor metal! Vossa Majes­tade, com mal disfarçado despeito o dizemos, nem sequer é assinante das Farpas! Procedimento este que prova não ser inteiramente erróneo o que a história conta dos crimes da realeza. Aprovei­tamos a ocasião de lembrar a Vossa Majestade que são esses actos que tornam odiosos os tiranos – e que, mais tarde ou mais cedo, erguem o desa­gradável cadafalso de Carlos I. Um rei que não assina as Farpas vai por um declive, ao fundo do qual tem de encontrar a chorosa vereda do exílio ou o gotejante corredor da masmorra. A recusa da assinatura merece a desforra da revolução! Cuidado! Em todo o caso, por hoje o que pedimos a Vossa Majestade é que declare, como é a intran­sigível verdade, que nunca Vossa Majestade pas­sou para a nossa mão uma parte dos seus valiosos tesouros. – Humildes vassalos.

 

À HIDRA DA ANARQUIA

 

Tendo alguns jornais dado a entender que nós atacávamos a realeza porque estávamos para isso pagos pela Hidra da anarquia – pedimos ao dito bicho que declare, publicamente, a falsidade desta asserção imunda.

Aceite, Sr.a Hidra, os protestos da maior con­sideração. – Os redactores das «Farpas».

 

                                   Janeiro 1872.

Os grandes factos políticos do mês foram as reformas da Carta (plural melancólico!):

A reforma da instrução pública:

A reforma da administração:

A reforma das comarcas...

Estas formidáveis iniciativas parece que de­viam ser acompanhadas pelas Farpas com comen­tários condignos.

Mas, para quê? Todas estas imensas reformas, lançadas triunfantemente a grande ruído de tam­bor e retórica, durarão, como a rosa de Malher­bes – o espaço de uma manhã! Que necessidade há pois de encaixilhar na nossa crítica uma folha que vai secar? Para que entremear de notas o fumo efémero de um cachimbo? para que erguer pedestal à estátua de neve que em breve se der­reterá?

Reforma da administração, reforma da ins­trução, reforma da Carta, reforma da judicatura! Parece que é toda uma regeneração do País! Pois são apenas folhas de papel que palpitam um momento ao vento da contradição, e que daqui a pouco cairão miseravelmente e para sempre, a um canto escuro das repartições. Uma luva cor de palha serve para entrar num baile, apertar finas cintas na valsa, anediar o bigode ovante–e eis que ao outro dia vai no cisco, enodoada e perdida, ser o lixo da esquina! Assim as reformas políticas ser­vem um ou dois meses para um ministério fingir que administra, iludir a Nação ingénua, imitar a iniciativa fecunda dos reformadores «lá de fora», aparentar zelo pelo bem da Pátria, justificar a sua permanência no «poder», fornecer alimento à oratória constitucional: e depois tendo feito o seu serviço, eis que as reformas vão, como todos os papéis velhos e inúteis, ser desfeitos e enrodi­lhados sob as vassouras justiceiras dos srs. var­redores públicos!

As reformas dos srs. ministros são como as fardas dos srs. ministros. As fardas servem para ir ao paço, às galas, ao beija-mão. São o dis­tintivo oficial e bordado dos que governam. Enquanto se tem correio, são escovadas, lavadas com chá, enrodilhadas em papel de seda, esten­didas em lençóis de linho, cercadas da atenção zelosa da criada e do pasmo do aguadeiro. Quando o sr. ministro é despedido, a farda é vendida, reduzida a jaqueta de toureiro para se aprovei­tarem os bordados, dependurada no prego mise­rável de uma loja de adelo; e depois de ter che­gado às costas suadas de um máscara do Casino ou de um comparsa do Salitre, perde-se enfim, miserável e amarfanhada, na dispersão melancólica dos trapos inúteis! Assim as reformas. Com elas o ministro governa, ilude, caracola sobre a eloquência de aluguer, e despacha: e no fim, quando S. Exª é empurrado de novo para a vida particular, as pobres reformas, com que ele tanto se empertigou e tanto se assoalhou, vão, esque­cidas e inúteis, jazer na confusão amarelada dos arquivos estéreis! As reformas em Portugal são um adorno externo de ministério – como o cor­reio, e os bordados da gola!

Todo o ministério que entra – deita reforma e cupé. O ministro cai – o cupé recolhe à cocheira e a reforma à gaveta.

Senão vejam:

Reformas Fontes: inúteis.

Reformas Reformistas: inúteis.

Reformas Braamcamp: inúteis.

Reformas Saldanha: inúteis.

Reformas Ávila: inúteis.

Reformas Bispo: inúteis.

Reformas Regeneradoras: inúteis.

Cada ministro tem o dever tradicional de apresentar, como uma justificação da sua nomea­ção – uma reforma. Os jornais falam dela um momento, a oposição arranja representações na província contra ela, as comissões metem os pés nos capachos e discursam sobre ela... Mas o ministério, por uma intriga, por uma bambo­cha, ou por um enredo, cai: e a reforma segue-o na sua saída e logo se some como um sulco atrás da quilha!

Quantas reformas de administração, de ins­trução, de finanças, não tem o País visto apare­cerem no horizonte parlamentar, como sombras que vão chegar à vida, e logo esvaírem-se sem terem provado da vida mais que a doçura de um reclamo nas gazetas subsidiadas!

Tem havido, nos últimos três anos, seis refor­mas de administração – todas irrealizadas, todas mortas ainda de mama! – E depois destas seis tentativas de reformas, o ministro do reino actual confessa que a administração é um caos vergo­nhoso – e o chefe da oposição actual brada que a administração é um vergonhoso caos!

Haveria um livro a fazer, intitulado: Da fisio­logia das reformas em Portugal. Há pelo menos esta definição a dar: – A reforma é uma forma­lidade que tem a preencher perante o País todo o ministro – menos essencial que o cupé de alu­guer, mais necessária que a farda de empréstimo!

Pedimos portanto, urgentemente, que o minis­tério seja dispensado dessa formalidade!

Que ele tenha cupé de aluguer – bem! Pede-o a civilização, a honra do País, a comodidade dos seus calos oficiais, e os srs. correios que querem trotar!

Que ele tenha farda – melhor! Pede-o a Carta, a corte, e a necessidade de evitar que SS. Ex.as se apresentem a el-Rei de quinzena e gabão.

Mas para que se há-de exigir a um português, ainda que ministro, que reforme? Quem lucra com isso? Ele não – que não pode alugar essa formalidade na companhia lisbonense de carrua­gens, nem pedi-la emprestada ao adelo da esquina. O País também não – como sabem.

Para que se há-de exigir pois esse trabalho de inteligência, esse esforço de saber, a um pobre e débil lusitano?

Não, não, não! Que os srs. ministros, em nome da dignidade pública, sejam eximidos a essa for­malidade ridícula, anacrónica, caturra – de refor­mar a Pátria.

 

Antes se tome este alvitre:

Nas suas carruagens de aluguer os srs. minis­tros trazem apenas na almofada o cocheiro. Pois em vez de se lhe exigir uma reforma mais sobre qualquer instituição–exija-se-lhe um criado mais sobre a almofada.

Nas insígnias ministeriais, nos símbolos do poder, seja a reforma do País substituída – pelo aparato do trintanário! E o desgraçado Portugal lucrará!

 

                                 Fevereiro 1872.

Um instante de atenção! O Imperador do Bra­sil, quando esteve entre nós (e mesmo fora de nós), era alternadamente e contraditoriamente – Pedro de Alcântara e D. Pedro II.

Logo que as recepções, os hinos, os banquetes se produziam para glorificar D. Pedro II – ele apressava-se a declarar que era apenas Pedro de Alcântara. Quando os horários dos caminhos de ferro, os regulamentos de bibliotecas, ou a fami­liaridade dos cidadãos o pretendiam tratar como Pedro de Alcântara – ele passava a mostrar que era D. Pedro II.

De tal sorte que se dizemos que se hospedou entre nós Pedro de Alcântara, erramos – porque ele asseverou que era D. Pedro II. Se nos lison­jeamos por ter hospedado D. Pedro II, desacer­tamos – porque ele afirmou ser Pedro de Alcân­tara.

Que farão os historiadores futuros? Dirão que viajou em Portugal D. Pedro II? Mas se ele o negou! Contarão que Portugal foi viajado por Pedro de Alcântara? Mas se ele o contradisse!

Qual é o nome desse homem venerável que passou? A história não tem nome a dar-lhe!

É por isso indispensável, para segurança das crónicas, que se lhe imponha um nome, que, não recordando especialmente Pedro de Alcântara nem D. Pedro II – seja bastante genérico para os abranger ambos; e que ao mesmo tempo seja suficientemente sério para se poder dar a um príncipe, se ele o fosse! e suficientemente sim­ples para se poder dar a um plebeu, se ele o era!

Proporemos portanto aos presentes e aos futu­ros que Ele – que não pode ser chamado Pedro de Alcântara porque o recusou, nem D. Pedro II porque o vedou – seja simplesmente chamado PSIU!

 

                                 Fevereiro 1872.

Falemos da mala deste príncipe ilustre! Todos a conhecem. Ela deixa na Europa uma lenda soberba. Durante meses, viu-o o Velho Mundo absorto sulcar os mares, atravessar as capitais, medir os monumentos, costear os montes, visitar os reis, ensinar os sábios – com a sua mala na mão! É uma mala pequena, de couro escuro, com duas asas que se unem. É por ali que ele a segura. Ma outra mão trazia às vezes o guarda-sol, debaixo do braço entalava a espaços um embru­lho de papel. Muitas vezes depôs o guarda-sol, outras alheou de si o embrulho; – a mala nunca! Paris, Londres, Berlim, Viena, Florença, Roma, Madrid, o Cairo – conhecem-na. Ela ficou popu­lar na Europa – como o pequeno chapéu de Napo­leão o Grande, ou a grande cobardia de Napoleão o Pequeno! Mesmo a celebridade da mala, enco­bre um pouco a glória do príncipe. Como disse o bom Beranger da batalha de Austerlitz – «muito tempo se falará dela sob os lustres dos palácios e sob o tecto das cabanas». Dele – menos!

 

Confusas opiniões se erguem em torno dessa mala fechada. Que continha ela? – Uns querem que ela tivesse no seu seio os tesouros imperiais: outros afirmam que ela encerrava os imperiais manuscritos. Alguns, mais profundos, sustentam que dentro havia peúgas: outros, mais discretos, afiançam que dentro não havia nada!

 

Tal se nos afigura a verdade – a mala não guardava nada!

A mala era uma insígnia – a insígnia do seu incógnito. S. M. trazia em vagão a mala, pela mesma razão que usa no trono o ceptro. Como a coroa é o sinal da sua realeza no Brasil, a mala era o sinal da sua democracia na Europa. A mala formava o seu ceptro de viagem – como o per­pétuo chapéu baixo constitui a sua coroa de caminho de ferro. Se S. M. trouxesse as mãos vazias, isso indicaria apenas que Sua Majestade não trouxera o ceptro, porque o incomodava para dormir no beliche do paquete: mas não daria a ninguém o direito de afirmar que ele não era o Príncipe, o Imperante! Com a mala, não! A mala significa que não só não tem na mão o ceptro, mas traz na mão a bagagem; que não só deixou a rea­leza no Brasil, mas tomou-a sem cerimónia na Europa! A mala é a tabuleta do seu incógnito! A mala diz: – «apertem-me a mão, tratem-me por Pedro, e não me toquem o hino!» A Europa olhava-lhe para as mãos, via-lhe a mala, e dizia logo: – «Ó aquele, que tal te dás por cá?» O Senhor Pedro trazia a mala para que o não confundissem com Sua Majestade. Aquilo significava: – «repa­rem que não sou Ele». À entrada das cidades, aproximavam-se deste Príncipe ilustre os cortejos oficiais; mas Sua Majestade mostrava a mala –e imediatamente as autoridades desabotoavam os coletes! Os camaristas dos outros reis iam bei­jar-lhe a mão; mas Sua Majestade descobria a mala – e os cortesãos davam-lhe logo, alegre­mente, palmadas doces no ventre.

Se Sua Majestade percebesse que uma só mala não bastava para mostrar o seu desejo de sem­-cerimónia, Sua Majestade era homem para tomar – duas malas! Se a etiqueta insistisse, Sua Majes­tade deitaria ao ombro – um baú! Em Portugal, como receasse recepções aparatosas à entrada – Sua Majestade acrescentou à sua mala um guar­da-sol, e ao seu guarda-sol um embrulho! Foi assim que o viram descer do vagão os povos per­plexos! E se não tivesse havido a precaução de retirar apressadamente todo o cerimonial, sabe-se que Sua Majestade estava disposto a mostrar – as suas chinelas de mouro! Mas as autoridades, em toda a parte, mal viam Sua Majestade come­çar a demonstrar, por meio de objectos familia­res, que não era o príncipe – apressavam-se a recolher toda a gala, receosas que Sua Majes­tade levasse a sua demonstração até ao excesso de despir as calças.

Foi graças a estas precauções que Sua Majes­tade conseguiu atravessar a Europa – disfarçado na sua mala. Por isso ela vinha vazia. Sua Majestade não a usava como bagagem – punha-a como disfarce. Sua Majestade trazia a mala – como outros trazem um nariz postiço.

 

No entanto – disfarce ou bagagem – a mala é profundamente simpática. Dá a esta corte em viagem uma nota nobre de simplicidade e de sin­ceridade. Uma mala pequena não pode chegar para tudo: tapa por um lado o Imperador do Bra­sil – descobre por outro o homem de bem.

 

                               Fevereiro 1872.

Sua Majestade imperial passa, com justiça, por um dos homens mais sóbrios do seu vasto império. Sopa, carne cozida, legumes, água e um palito, tal é o chorume dos jantares da corte nos paços da Tijuca.

É verdade que os jornais parisienses conta­ram que no banquete que o Sr. Adolfo Thiers, (presidente certo de uma república incerta) deu ao Imperador do Brasil – Sua Majestade a cada momento cortava a conversação literária e cép­tica que faiscava em redor da mesa, para gritar com a sua imperial boca cheia: «que precioso peixe! que sublime galinhola!»

No entanto, esta circunstância de estupefacta gula, narrada com ironia pelos jornais de Paris –não oferece autenticidade: é um reclamo, uma adulação política à cozinha do dito Adolfo! As gazetas republicanas como não encontram nada a exaltar nas ideias políticas de Adolfo – querem ao menos glorificar-lhe as iniciativas culinárias. E já que não podem dizer: «que organização ele dá à França!» gritam: «que jantares ele dá aos Reis!» A verdade incontestável é que Sua Majes­tade o Imperador é um sóbrio.

Há, porém, um só petisco, acerca do qual Sua Majestade revela uma gula excepcional. Sua Majestade desdenha demagogicamente, desde a trufa até ao Johannisberg, todos os delicados mimos da fornalha ou da adega. Uma só coisa neste planeta lhe aguça a língua. Para uma só coisa tem uma sofreguidão incansável e sorvedoura: – para o idioma hebraico!

Sua Majestade é um guloso de hebraico. No hebraico – rapa os pratos e lambe os dedos. E, por uma inexplicável imprevidência, Sua Majestade não traz consigo nem um homem de raça hebreia, nem sequer um cristão hebraizante, nem mesmo um professor de hebraico! De tal sorte que nos longos dias preguiçosos de paquete, nas horas fastidiosas de vagão – Sua Majestade passa cruéis privações de hebraico. Por isso chega sempre esfaimado de hebraico: e mal entra as portas festivas dos hotéis, ainda com a mala na mão, rompe logo a pedir nos corredores, com ganidos de gula, quase com assomos de cólera –o seu hebraico!

Quando Sua Majestade Imperial chegou a Londres, o Príncipe de Gales enviou-lhe um dos seus ajudantes de campo – um daqueles belos capitães de Horse-gards, que põem à noite um jasmim do Cabo na jaqueta escarlate e oiro. Este dândi marcial perguntou a Sua Majestade o que desejava, naquele momento em que punha o seu pé de além-mar nas plagas verdes de Álbion. Esperavam todos que Sua Majestade pedisse chá – ou um banho.

Sua Majestade respondeu avidamente: – «hebraico!»

Os oficiais olharam-se consternados. E o Imperador, com os lábios secos, as mãos nervo­sas, o apetite enristado, repetia famintamente: – «hebraico! só hebraico!» – Então, por um rasgo genial, os ajudantes do Príncipe de Gales levaram, a toda a brida fogosa de um landau, o Imperador do Brasil – à Sina­goga! Sua Majestade precipitou-se entre os hebreus. Os sábios rabis, que são doutores da lei, cercaram o homem augusto, e, vorazmente, a grandes bocados, com guinchos de gozo, o Impe­rador do Brasil consumiu incalculáveis porções de hebraico. Depois de se fartar, olhou em redor – e pediu mais!

Certos donos de hotéis, em cidades da Europa, ficavam apavorados e confusos quando Sua Majestade assomava aos limiares das portas, pedindo hebraico a fortes brados. Alguns arris­cavam timidamente:

– Se Vossa Majestade quisesse antes um caldo...

– Hebraico!...

– Se Vossa Majestade quisesse antes um monumento...

– Hebraico!

Foi assim em Lisboa, no Lazareto. Sua Majes­tade, já ao descer as escadas do paquete, vinha resmungando: «salta o meu hebraicozinho!» E daí a minutos expedia gritos famintos. Que conster­nação! Tudo estava preparado: a canja, a ore­lheira, a broa, o capilé, o caldo de unto, todos os artifícios do génio português. Mas ninguém se lembrara do hebraico! E Sua Majestade estre­buchava!

Partiram então exploradores em todas as direcções – e por fim voltaram trazendo, eston­teado e surpreendido, o Sr. Salomão Saragga, que lê e fala o hebraico.

Sua Majestade esperava ansiosamente, debru­çado na janela. Não houve cumprimentos, nem se pôs toalha. Serviram-lhe o Sr. Saragga, assim mesmo – cru! Sua Majestade deixou-lhe uns restos!

 

                          Fevereiro 1872.

A Universidade e os seus doutores têm espa­lhado apreciações rancorosas, sobre a ma­neira como Sua Majestade o Imperador se apre­sentou na sala dos capelos, num dia de doutora­mento e de cerimónia. Dizem que Sua Majestade, trajando jaquetão de viagem, com um chapéu desabado e um saco a tiracolo, se veio sentar nos bancos severos da antiga sala adamascada – com a mesma familiaridade com que se sentaria na almofada da diligência dos Arcos de Valdevez. E a Universidade quis ver no jaquetão de Sua Majestade e no seu chapéu braguês, a mesma significação desatenciosa que o Parlamento de Paris viu, em outras eras, nas altas botas moles e no chicote de estalo do defunto Luís XIV.

 

Não nos parece justificável o despeito da Uni­versidade.

É verdade que um príncipe pode deixar de se comportar com a pompa de um rei – sem que por isso passe a comportar-se com a maltrapice de um varredor. Entre o manto de arminhos e a rabona – há gradações. Um rei por não ir ao passeio com o seu ceptro de oiro – não se segue que vá com as suas chinelas de ourelo: e por não rece­ber as autoridades revestido do seu uniforme – não é honesto que as receba vestido apenas com a sua pele. Mas também não nos parece que uma quinzena e um chapéu desabado seja toilette que escandalize a douta Universidade!

É necessário que os srs. doutores saibam que a toilette só é realmente exigida – quando a toilette é um fim. Num baile, numa soirée, numa gala, na Ópera – a gravata branca, a luva cor de pérola, a gardénia ou a grã-cruz são essenciais, porque estas festas constituem unicamente uma reunião de elementos elegantes, entre decorações elegantes, para um fim elegante. Tudo aí deve convergir para a harmonia geral – desde as toilet­tes até às flores. Trata-se de um fino prazer dos sentidos – e a toilette, com o seu brilho exterior, é requerida para o tornar completo e perfeito.

Mas quando se trata apenas de doutorar o Sr. Fulano, bacharel–não nos parece que tenham cabimento as exigências de elegância. Se a vene­randa cerimónia do capelo é uma festa que reclama os requintes de toilette – onde estão as rosas, os gelados, as jóias nos colos nus, o rumor dos flirts, as caudas de seda ondeando na valsa? Se o capelo é um sarau galante, porque é que o Sr. Dr. Brito, de direito, nos priva do maravilhoso contorno do seu seio, trazendo batina – afogada?

Porque não vemos os srs. lentes jubilados move­rem os leques com a mão calçada em luva de 16 botões? E porque é que o Sr. Forjaz não dirige os arrebatamentos do cotillon? Ah, quereis toi­lette? Valsai! – Quereis gravatas brancas? – Ofe­recei gelados! – Quereis luvas cor de palha? –Amai, venerandos doutores!

Mas para aturar uma enfiada de carões sorum­báticos e de batinas caturras, imóveis num estrado; para ouvir uma charanga torpe dilace­rando a grandes golpes de figle um minuete da Srª D. Maria I; para admirar quatro archeiros sebáceos perfilados entre ramos de louro murcho – quereis vós que a gente ponha gravata branca e um jasmim do Cabo na lapela? Pois não vemos aí os senhores de Teologia, antigos egressos espa­pados de gordura, com as suas velhas lobas eno­doadas? Não vemos os senhores de Direito, anti­gos comentadores do Pegas, com os seus sapatos achinelados? – Quando foi que a Universidade teve jamais a curiosidade e o respeito da toilette? Ela que ainda há pouco levava ao cárcere os estu­dantes que usavam colarinho! Ela que reprovava os estudantes que entravam nas aulas com luvas! Ela que proibia em Coimbra os estabelecimentos de banhos! Ela que, destinada a bacharelar as novas gerações, conseguia sobretudo – sujá-las! E abespinha-se porque Ele foi ver um capelo, ele viajante, ele Pedro, ele espectador, ele turbamulta – de jaquetão e chapéu braguês! E onde então? Na sala dos capelos – que é a Igreja onde se pro­fessa para doutor, onde se troca a graça mun­dana pela sensaboria catedrática, onde o sujeito deixa de ser um homem para ser um lente, onde faz o voto de melancolia e de carranca perpétua, e onde se substitui a alma por um compêndio.

E é neste lugar funerário que os srs. Doutores emergem da sonolência sepulcral para murmura­rem (talvez em latim!) – olha aquele de jaquetão!

A Universidade dando-se ares de saber que existe o alfaiate Poole! Irrisória vaidade conimbricense!

 

É célebre! Vimos sempre a Universidade, quando se tratava de pôr gravata branca – des­culpar-se com as suas preocupações científicas. E, agora que se tratava de uma consagração dou­toral, a Universidade revolta-se porque um dos assistentes não está de gravata branca!

Pois quê! Recebe a Universidade um sábio, e em lugar de se perder com ele nos retiros difíceis das mais sérias questões do saber – recua, e exclama com uma exigência mundana de cocotte para trás! que horror! vós não estais de casaca! E não com­preendo o que havia de intencional, de amável, na toilette de Pedro! Ele quis-se apresentar entre sábios, na rabona de sábio! Ele não quis humilhar nenhum sr. doutor – pelo asseio da sua roupa branca! Vestiu-se com o rigor científico. Antes de sair para o capelo, em lugar de molhar os dedos num frasco de água-de-colónia (sabe-se isto! ) enso­pou as mãos num tinteiro! Ele seguiu a velha tra­dição universitária – que o rasgão é uma glória e a tomba na bota uma respeitabilidade! E, se a Universidade tivesse lógica, devia escandalizar-se e corar – não por ele se ter abstido da gravata, mas por ousar entrar, naquele recinto clássico da porcaria, com tão poucas nódoas no fato!

 

                       Fevereiro 1872.

Deu-se um facto equivoco no sarau do Paço, oferecido ao Imperador : – e foi que, segundo as mais verídicas informações, numerosos srs. eclesiásticos assistiram ao concerto do Paço.

Ora o concerto não era uma recepção oficial dos corpos do Estado – mas uma festa!

Uma festa com luzes, aromas, orquestras, mulheres decotadas, flores e danças. Pergunta­mos se os srs. eclesiásticos, com os seus votos, podem participar destes gozos mundanos.

Ou conhecemos muito pouco a essência do catolicismo – ou não nos parece que os srs. ecle­siásticos possam estar legitimamente e segundo a lei da. Igreja, num lugar onde um homem toma nos braços uma mulher, e a arrebata através da sala, roçando-lhe as pontas dos bigodes no calor do colo nu.

Da tradição dos Padres e dos Santos não consta que as piedosas e místicas figuras, desses

Homens do Espírito, fossem vistas jamais por entre o rumor lânguido dos violoncelos e o palpi­tar amoroso dos leques... De S. Bernardo sabe­mos que vivia em Clairvaux para fugir à riqueza de Cister, e aí, sob um alpendre de folhagem, comendo pão duro e bebendo no fio dos rega­tos, preparava-se para Deus: se se correspondia com o rei de Inglaterra e com o imperador da Ale­manha, era em dez linhas apressadas: mas era em dez páginas que escrevia a pobres monges aflitos de alma, para os encher da Graça. De S. Domingos sabemos que, descalço e esfarrapado, na santa ferocidade da sua fé, pregava e impelia uma cru­zada contra os hereges do Languedoc: que vendia os seus livros para comprar lenha aos mendigos: e que um dia, para socorrer uma mulher pobre, como já não tinha dinheiro – se quis vender a si como escravo. Do poético S. Francisco de Assis sabemos que renegou as suas riquezas, viveu muito tempo num buraco, e partiu a peregrinar as terras, beijando as árvores dos caminhos, falando aos pássaros que lhe voavam em roda – e espa­lhando sobre todos os seres, flores, rochas, feras, o amor divino que o enchia! Está assim a lenda dos santos cheia de renunciamentos místicos e de uma intratável hostilidade aos regalos. E de nenhum se conta – que fosse espairecer do serviço de Deus para um bufete resplandecente de baixelas, entre champanhe e perdizes tru­fadas.

A teologia nos ensina, que nunca o sacerdote deve arredar um só momento o seu espírito da contemplação de Deus e da meditação da Graça. Ora não é natural que SS. S.as estivessem possuídos destas preocupações espirituais, no galante sarau de el-Rei.

Que tínheis em torno de vós, srs. eclesiásticos? Os moles sofás que inclinam às preguiças român­ticas; os aromas perturbadores de pó de arroz e de femina; as caudas de seda ondulantes e lân­guidas; os cabelos Lustrosos, constelados de jóias; os pescoços brancos de um polido de mármore... Entre estas seduções sataníferas que pensavam VV. S.as, srs. eclesiásticos?

Mais longe, no bufete, estava a trufa e o cham­panhe... Um sarau dá sede. Como a saciastes, srs. sacerdotes?

A nós outros, homens pecadores e perdidos, não causa já grandes estremecimentos a presença da beleza mortal: estamos acostumados, pela edu­cação, às glórias do decote. Também nos não perturba o demónio cor de opala que faísca no champanhe. Conhecemos Satanás em todas as edições. Para nós um colo decotado não é a mis­teriosa fatalidade do mal – é o pescoço da srª fulana, casada com o conselheiro sicrano: e o champanhe, sobretudo o do Paço, é uma triaga feita com aguapé de Bucelas. Mas para VV. S.as, educados no isolamento e no regime do seminá­rio, amarrados pelos votos tirânicos, emergidos da frieza da sacristia, fatigados do breviário... Ah, para VV. S.as!

E, srs. eclesiásticos, os tempos vão de molde que o povo já se afasta dos simples virtuosos –reclama santos! Ora os santos não se supõem entre o frufru dos cetins e o suspirar das rabe­cas. Ninguém crê que uma rosa saia intacta de um forno, e um sr. eclesiástico puro de um baile. E um povo que não crê na pureza dos seus padres – termina por se esquecer dos martírios do seu Deus!

 

A verdade – aqui entre nós – é que VV. S.as podem, ao subir para as festas, dar ao criado os seus paletós a guardar; mas não lhe podem dar a guardar – os seus votos. Ora votos, por mais fortes que sejam, se os passearem entre ombros nus, se os fizerem encostar ao bufete sobre os aromas do Madeira, se os deixarem cismar aos compassos de Strauss, terminam sempre por lhes acontecer o que acontece às casas comerciais que abusam das festas – quebrar!

 

Se, porém, sucedeu que VV. S.as foram ao concerto porque Sua Majestade Imperial, assim como quis lá ver os folhetinistas, desejou ver lá os sacerdotes – então lamentemos todos o sin­gular temperamento deste príncipe que vai para o vagar dos saraus passar revista às profis­sões! Apressado, curioso, espicaçado pelo tempo escasso, este Imperante pretendia ter nas salas do Paço o índice dos nossos costumes e Portugal em resumo? Sendo assim ainda bem que esse príncipe, assim como exigiu que na sala do concerto estives­sem as profissões–não pretendeu que lá se achas­sem também os estabelecimentos! Ainda bem que, para poupar passadas, ele não reclamou que além dos folhetinistas e dos sacerdotes comparecessem também no sarau – as tipografias e as igrejas!

– Que embaraço para el-Rei nosso Senhor!

 

                                   Fevereiro 1872.

Sua Majestade Imperial visitou o Sr. Alexan­dre Herculano. O facto em si é inteiramente incontestável. Todos sobre ele estão acordes, e a História tranquila.

No que, porém, as opiniões radicalmente diver­gem – é acerca do lugar em que se realizou a visita do Imperador brasileiro ao historiador português.

O Diário de Notícias diz que o Imperador foi à mansão do Sr. Herculano.

O Diário Popular, ao contrário, afirma que o Imperador foi ao retiro do homem eminente que...

O Sr. Silva Túlio, porém, declara que o Impe­rador foi ao Tugúrio de Herculano; (ainda que linhas depois se contradiz, confessando que o Imperador esteve realmente na Tebaida do ilus­tre historiador que...

Uma correspondência para um jornal do Porto afiança que o Imperador foi ao aprisco do grande, etc.

Outra vem todavia que sustenta que o Impe­rador foi ao abrigo desse que...

Alguns jornais de Lisboa, por seu turno, ensi­nam que Sua Majestade foi ao albergue daquele que...

Outros, contudo, sustentam que Sua Majes­tade foi à solidão do eminente vulto que...

E um último mantém que o imperante foi ao exílio do venerando cidadão que...

Ora, no meio disto, uma coisa terrível se nos afigura: é que Sua Majestade se esqueceu de ir simplesmente a casa do Sr. Alexandre Herculano!

 

                                   Fevereiro 1872.

Carta a S. M. o Imperador do Brasil. – Ousa­mos dirigir-nos a Vossa Majestade Imperial, por um motivo de indeclinável justiça. Veio Vossa Majestade a estes remos, e apesar de termos a obrigação de acreditar (segundo as ordens de Vossa Majestade) que não era Vossa Majestade que estava entre nós, sucedeu que alguns impru­dentes, em risco de cair no imperial desagrado, ousaram afirmar por factos públicos que Vossa Majestade era Vossa Majestade. Igualmente acon­teceu que, se por um lado Vossa Majestade negava ser o Imperador do Brasil, dava bastantemente a entender, por outro, que não era inteiramente nem o defunto Pilatos, nem o actual varredor da Travessa das Gáveas. Enfim, alguns indiscretos, vendo um homem alto, forte, encanecido, vene­rando, académico, irmão dos terceiros da Lapa e com uma mala na mão – não esperaram mais, e no seu impulso febril e ávido de glorificar o Impe­rador do Brasil, festejaram Vossa Majestade. Deliberaram então estes sujeitos acender, em honra daquele que Vossa Majestade diz não ser, uma iluminação no Rossio ao pé da estátua do Pai de Vossa Majestade – a quem nós, por abre­viatura, neste País apressado e preguiçoso, cha­mamos familiarmente «o Dador!» Estes indiví­duos ergueram dois obeliscos de madeira e envolveram-nos de tubos de gás: o gás não ardeu. Mas Vossa Majestade não era Vossa Majestade: – e a iluminação pelo mesmo motivo não foi a iluminação, querendo também passar incógnita. No entanto, se a iluminação se recusou obstina­damente a resplandecer, ficou inteira e pura a intenção dos iluminantes. Eles não tinham lumes em seus obeliscos – mas sua alma estava cheia de lamparinas.

Ora fazendo estas iluminações (secretas), eles tinham, Imperial Senhor, um fim supremo, e docemente esperado. Eles, Senhor, são todos homens de bem e de boas famílias, manejam regularmente as quatro espécies, não comem com a mão, e usam boa roupa branca; – mas são aca­nhados. São acanhados como araras. Deram amplamente o seu dinheiro, mas não dão facil­mente o seu segredo. Tremem, recuam. Nós, por isso, compadecidos e generosos, tornamo-nos o verbo destes silenciosos!

Senhor! Ei-los, esses homens prestantes!

Aqui os tem Vossa Majestade a seus pés. Vossa Majestade pode verificar que estão todos bem bar­beados. Eles pedem, Senhor, uma coisa bem insig­nificante. Não é que Vossa Majestade os visite a Vale de Lobos. Nem que Vossa Majestade lhes pergunte pela família, como aquele de quem falam os telegramas de Santarém. Nem que Vossa Majestade lhes faça a eles a honra que fez à ore­lheira de porco – prová-los. Nem que Vossa Majestade lhes compre os mimos de Pomona, que a plebe ignorante chama maçãs. Não! Estes cava­lheiros, pedem simplesmente que Vossa Majes­tade os condecore com a comenda da Rosa! Ora aí está!

Ah, Imperial Senhor! é que eles foram incan­sáveis! Vigiavam alta noite os trabalhos dos obe­liscos! Reanimavam com faias exaltadas o can­saço dos operários! Chegaram a estar de cócoras, revolvendo a terra! Quando a iluminação não ardeu, eles sopraram com desvairada fúria pelos canos! Alguns ficaram calvos! E se não puseram mais iluminações é que, como Vossa Majestade compreende – a cidade não podia ficar inteira­mente às escuras!

Ousamos dizê-lo. Vossa Majestade deve-lhes a comenda! Eles não ergueram os dois obe­liscos para regalar os príncipes nem para alu­miar a plebe. Para isso acendiam fósforos! foi no interesse superior das suas casacas pretas! Senhor, foi para a comenda. E gastaram o seu rico dinheiro! gastaram contos de réis, Imperial Senhor!

Vossa Majestade é generoso, claro em sabe­doria, inesgotável de alma! Esperamos com os joelhos no chão, aos pés do Imperador...

Mas Vossa Majestade sorri! uma benevolên­cia radiosa sobe ao seu rosto! Já o sim desejado lhe baila nos lábios!... Oh, obrigado, Senhor! A generosidade desta graça será recordada nas glorificações da história. (E vós, maganões da Comissão dos Festejos – esfregai as manápulas. Abichastes a comenda!)

Nós, Senhor, penhorados até à profundidade da nossa essência – aqui ficamos nestes países, para o seu serviço bem-amado, ou como histo­riadores dos seus feitos ou como fornecedores de mais orelheira de porco. – Deus tenha Vossa Majestade sob o seu olhar paternal.

 

                                     Fevereiro 1872.

Há longos anos o Brasileiro (não o brasileiro brasílico, nascido no Brasil – mas o por­tuguês que emigrou para o Brasil e que voltou rico do Brasil) é entre nós o tipo de caricatura mais francamente popular. Cada nação possui assim um tipo criado para o riso público. As comédias, os romances, os desenhos, as cançonetas espa­lham-no, popularizam-no, desenvolvem-no, aper­feiçoam-no, e ele torna-se o grotesco clássico –que chega a ser motivo de ornato industrial, cin­zelado em castiçais, aguarelado em caixas de fós­foros, torneado em castões de bengala. A França tem o inglês de coco diminuto na nuca, de larga e aguda suíça em forma de costeleta alourada, dentuça taluda, colarinho alto como um muro de quintal, rabona de xadrezinho, pé largo como uma esplanada, e ar lorpa: ultimamente tem a mais o prussiano, de imenso bigode na focinheira, cabelo em bandós, capacete em bico, um sabre prodigio­samente insolente e um relógio de sala roubado debaixo do braço!

Nós temos o Brasileiro: grosso, trigueiro com tons de chocolate, pança ricaça, joanetes nos pés, colete e grilhão de oiro, chapéu sobre a nuca, guarda-sol verde, a vozinha adocicada, olho des­confiado, e um vício secreto. É o brasileiro: ele é o pai achinelado e ciumento dos romances român­ticos: o gordalhufo amoroso das comédias salga­das: o figurão barrigudo e bestial dos desenhos facetos: o mandão de tamancos, sempre traído, de toda a boa anedota.

Nenhuma qualidade forte ou fina se supõe no brasileiro: não se lhe imagina inteligência, como não se imaginam negros com cabelos louros; não se lhe concede coragem, e ele é, na tradição popu­lar, como aquelas abóboras de Agosto que sofre­ram todas as soalheiras da eira: não se lhe admite distinção, e ele permanece, na persuasão pública, o eterno tosco da Rua do Ouvidor.

O Povo supõe-no o autor de todos os ditos cele­bremente sandeus, o herói de todas as histórias universalmente risíveis, o senhor de todos os pré­dios grotescamente sarapintados, o frequentador de todos os hotéis sujamente lúgubres, o namo­rado de todas as mulheres gordalhufamente ridí­culas.

Tudo o que se respeita no homem é escarne­cido aqui no brasileiro. O trabalho, tão santamente justo, lembra nele, com riso, a venda da mandioca numa baiuca de Pernambuco; o dinheiro, tão humildemente servido, recorda nele, com gargalhadas, os botões de brilhantes nos coletes de pano amarelo; a pobreza, tão jus­tamente respeitada, nele é quase cómica e faz lembrar os tamancos com que embarcou a bordo do patacho Constância, e os fardos de café que carregou para as bandas de Tijuca; o amor, tão teimosamente idealizado, nele faz rir, e recorda a sua espessa pessoa, de joelhos, dizendo com uma ternura babosa – oh minina!

De facto, o pobre brasileiro, o rico torna-via­gem, é hoje, para nós, o grande fornecedor do nosso riso.

 

Pois bem! É uma injustiça que assim seja. E nós os portugueses que cá ficámos, não temos o direito de nos rirmos dos brasileiros que de lá voltaram. – Porque, enfim, o que é o Brasileiro? É simplesmente a expansão do Português.

Existe uma lei de retracção e dilatação para os corpos, sob a influência da temperatura. (Aprende-se isto nos liceus, quando vem o buço). Os corpos ao calor dilatam, ao frio encolhem. A mesma lei para as plantas, que ao sol alargam e florescem, ao frio acanham e estiolam. A bana­neira, nos nossos climas, é uma pequena árvore tímida, retraída, estéril: no calor do Brasil é a grande árvore triunfante, de folhas palmares e reluzentes, tronco possante, seiva insolente, toda sonora de sábiás e outros, escandalosa de bana­nas. Mesma lei para os homens. O espanhol das Astúrias, modesto, humano, discreto e grave –passando para o sol do Equador, nas Antilhas Espanholas, torna-se o sul-americano vaidoso, rui­doso, ardente, palreiro e feroz. Pois bem! O Bra­sileiro é o Português – dilatado pelo calor.

O que eles são, expansivamente – nós somo-lo, retraidamente. As qualidades internadas em nós, estão neles florescentes. Onde nós somos à sor­relfa ridiculitos, eles são à larga ridiculões. Os nossos defeitos, aqui sob um clima frio, estão retraídos, não aparecem, ficam por dentro: lá, sob um sol fecundante, abrem-se em grandes evi­dências grotescas. Sob o céu do Brasil a bana­neira abre-se em fruto e o português rebenta em brasileiro. Eis o formidável princípio! O Brasi­leiro é o Português desabrochado.

É o sol de lá que nos fecunda. O Chiado sob os trópicos dá inteiramente a Rua do Ouvidor. Rirmo-nos do brasileiro é rirmo-nos de nós sem piedade. Nós somos o germe, eles são o fruto: é como se a espiga se risse da semente. Pelo contrário! o brasileiro é bem mais respeitável, porque é completo, atingiu o seu pleno desenvol­vimento: nós permanecemos rudimentares. Eles estão já acabados como a abóbora, nós embrio­nários como a pevide. O Português é pevide de Brasileiro!

Que somos nós? Brasileiros que o clima não deixa desabrochar. Sementes a que falta o sol. Em cada um de nós, no nosso fundo, existe, em germe, um brasileiro entaipado, afogado – que, para crescer, brotar em diamantes de peitilho, calos e prédios sarapintados de verde, só necessita embarcar e ir receber o sol dos trópicos. Cada lis­boeta, sabei-o, traz em si a larva de um brasileiro. Nós aqui vestimos cores escuras, lemos Renan, repetimos Paris, e no entanto cá dentro, fatal e indestrutível, está aboborando – um brasi­leiro.

Quem o não tem sentido agitar-se, como o feto no seio da mãe? – Fitais às vezes uma gra­vata verde com pintas escarlates? É o Brasileiro a remexer por dentro. – Desejais inesperadamente uma boa feijoada comida em mangas de camisa? E o Brasileiro. – Apetece-vos ir visitar a Memó­ria do Terreiro do Paço? É o Brasileiro, lá den­tro. – Lembra-vos reler uma ode de Vidal ou uma fala de Melício? É o Brasileiro! Ele está dentro de vós, lisboetas! Ah, sabei-o! vós estais sempre no vosso estado interessante – de um Brasileiro!

E quereis uma prova? É o Verão! É o cruel Verão! Então sob a temperatura germinadora – o Brasileiro interior tende a florir, a desabrochar, a alastrar em cachos. Então começais a deitar o chapéu para a nuca, a usar quinzena de alpaca, a passear depois do jantar com o palito na boca, a exigir dos vendedores a água do Arsenal, a fre­quentar a Deusa dos Mares! Sabeis o que é? É o Brasileiro, que lá tendes dentro na entranha, atraído pelo sol, a querer romper!

Portanto quando nos rimos dele – intenta­mos a nós mesmos um processo amargo. No Inverno a pevide contém a abóbora: mas quando a abóbora cresce no Verão, é ela que contém a pevide. Nós cá contemos o brasileiro; ele lá, che­gado ao Brasil, germina, brota em fruto, e nós ficamos-lhe dentro. Ora se esmagarmos a abó­bora a grandes golpes de chacota, é sobre a nossa própria e rica pessoa que descarregamos o riso feno. Tenhamos juízo! Reconheçamo-nos neles como nós mesmos – ao sol!

Tais são as sábias verdades que soltamos de nossas mãos. Aproveitai-vos, compatriotas!

E sobretudo certificai-vos que vós outros, que não deixais a capital, não valeis mais que o minhoto que volta de Pernambuco.

O brasileiro não é belo como Apolo, nem como o mais recente Dom João: – mas tu, ó português, tu também não és belo, e se a tua bem-amada to diz, é que não tem mais nada que te dizer e mente por mero deleite.

O brasileiro não é espirituoso como Mery ou Rochefort: – mas tu, português, não és certa­mente espirituoso! De cima dos embrulhos daquela tenda, quarenta folhetins to provam!

O brasileiro não é elegante como o conde de Orsay ou Brummel: – mas tu, português, dândi desventuroso do Chiado, ou contribuinte da Rua dos Bacalhoeiros, tens a tua elegância dependu­rada no bom Nunes algibebe!

O brasileiro não é extraordinário como Pea­body que deu de esmolas cem milhões, nem como Delescluze que queimou Paris: – mas tu, portu­guês, és tão extraordinário como uma couve, e ainda tão extraordinário como um chinelo.

Ora o brasileiro não é formoso, nem espiri­tuoso, nem elegante, nem extraordinário – é um trabalhador. E tu português não és formoso, etc. – és um mandrião! De tal sorte que te ris do bra­sileiro – mas procuras viver à custa do brasileiro. Quando vês o brasileiro chegar dos Brasis, estalas em pilhérias: – e se ele nunca de lá voltasse com o seu bom dinheiro, morrerias de fome! Por isso tu – que em conversas, entre amigos, no café, és inesgotável a troçar o brasileiro – no jornal, no discurso ou no sermão, és inexaurível a glori­ficar o Brasileiro. Em cavaqueira é o macaco; na imprensa é o nosso irmão de além-mar.

Brasileiro amigo, queres tu por teu turno rir do lisboeta? A esse colete verde, que tanto te escarnecem, fecha bem as algibeiras; esse prédio sarapintado de amarelo, que tanto te caricatu­ram, tranca-lhe bem a porta; esses pés, aos quais tanto se acusam os joanetes e os tamancos primi­tivos, não os ponhas mais nos hotéis da capital –e poderás rir, rir do carão amarrotado com que então ficará o lisboeta, que tanto ria de ti!

 

                               Março 1872

Eis aqui, com algumas reflexões e algumas cifras, o estado da instrução pública em Portugal:

 

Em primeiro lugar a instrução entre nós está toda a cargo do Governo.

As câmaras municipais, que por uma velha tradição nunca se ocuparam das coisas da inte­ligência – não dão sequer esmola ao ABC. Uma Câmara tem antes de tudo, como objecto, maca­damizar comodamente as ruas ou as vielas de SS. S.as os vereadores; depois tem de construir as estradas que levam às quintas, onde SS. S.as os vereadores, de tamancos e colete aberto, suam sob a folhagem da faia – sub tegmine fagi; depois tem de empregar, subsidiar, e em geral manter, todos os afilhados de SS. 5as os vereadores. Quando chega a passar o ABC, SS. S.as têm a ini­ciativa cansada e a bolsa esvaziada.

Por seu lado os particulares, com singularís­simas e simpáticas excepções, nunca levaram a mão à algibeira, para dar um pataco a uma escola. (E como estranhar esta abstenção pode parecer uma originalidade fantasista, devemos lembrar que em Inglaterra, França, Alemanha, Dinamarca, Suécia, Itália, Rússia, Espanha, Estados Unidos, os particulares sustentam com um ombro as paredes da escola que os municípios amparam com o outro).

A lei de 20 de Setembro de 1844 concedeu às câmaras municipais autorização para fundarem, com os seus rendimentos, escolas primárias. Quem atenta nestes termos, supõe muito racionalmente que as câmaras estavam ávidas de fundar escolas, e que o amor da instrução tinha verdadeiramente tomado o freio nos dentes: supõe ainda que leis anteriores teriam circunspectamente domado este ímpeto desabalado de educar :–e que a lei de 1844, alargando um pouco as rédeas, permitiu às câmaras palpitantes o criarem as apetecidas escolas, não numa carreira desordenada, mas num chouto mo­desto: e supõe enfim que, feita a concessão, as câmaras se atiraram aos pulos, aos corcovos, com a cima esguedelhada, a levantar os alicerces das escolas! Pois bem, sabem quantas escolas têm as câmaras fundado, inteiramente a expensas suas, desde 1844, há quase trinta anos? Uma, em Setú­bal!

De resto, não sejamos injustos. Algumas câmaras tendo, com o curso dos anos, chegado a compreender que soletrar não é inteiramente tão criminoso como roubar, deram generosamente o auxílio dos seus cofres para a organização do ensino – e as 300 câmaras do Pais, juntas às 4000 paróquias, têm concorrido, neste espaço de 30 anos, com um subsidiozinho de tostões para a fundação de 41 escolas!

 

Tal é o desvelo, a inteligência, o patriotismo com que SS. S.as, as espessas câmaras municipais, se ocupam da instrução.

É uma situação paralela à dos cafres – de nos­sos irmãos os cafres.

 

O Estado, portanto, tem a instrução inteira­mente a seu cargo, e sob sua responsabilidade.

Ora, tendo um país a educar, eis o que o Estado tem feito:

Sabeis, amigos, quantas escolas há, de Norte a Sul, neste País onde floresce a vinha e Melício pensa?

2300!

Existindo no País, segundo as últimas estatís­ticas, 700000 crianças, e não sendo justo que se apertem na estreiteza abafada de uma escola mais de 50 alunos, (e já é fazer transpirar de mais tenros cidadãos imberbes) segue-se que devería­mos ter 14000 escolas...

Temos 2300!

Devendo, pois, fundar uma escola para cada 50 crianças, possuímos apenas uma escola para cada 300 crianças! Há uma escola para cada 2.600 habitantes!

Das 700000 crianças que existem em Portugal o Estado, nessas 2300 escolas – ensina 97000.

Isto é, de 700000 crianças, estão fora da escola mais de 600000!

Destas 97000 crianças que frequentam as esco­las, sabeis, amigos, quantas se apuram prontas, por ano? Segundo as últimas inspecções – em cada 50 alunos apura-se 1 aluno!

Portanto Portugal, de 97000 crianças que traz nas suas escolas – tira por ano, sabendo os rudi­mentos, 1940!

Mordei-vos de ciúmes, ó cafres!

 

Para esta situação concorrem o aluno, o mes­tre, e a escola. E a culpa toda recai no Estado. Porque o Estado impossibilita o aluno, inutiliza o mestre e abandona a escola. Vai, como o general Boum, por três caminhos – contra o ABC!

Nos campos a família é hostil à escola, diz-se. Erro. A família não nega o filho à escola, requer o filho para o trabalho. A criança aí, de sete a dez anos, já conduz os bois, guarda o gado, apanha a lenha, acarreta, sacha, colabora na cultura. Tem a altura de uma enxada e a utilidade de um homem. Sai de madrugada, recolhe às trindades, com o seu dia rudemente trabalhado. Mandá-lo à escola, de manhã e de tarde, umas poucas de horas, é diminuir a força produtora do casal. Um aluno de mais na escola é assim um braço de menos na lavoura. Ora uma família de lavradores não pode luxuosamente diminuir as suas forças vivas. Não é por o filho saber soletrar a cartilha que a terra lhe dará mais pão. Portanto tiram a criança à escola para a empregar na terra.

O remédio a isto seria a criação de cursos nocturnos. À noite, o campo restituiria a criança à escola. Os cursos nocturnos eram outrora exclu­sivamente para os adultos que tinham o seu dia tomado pela lavoura ou pelo ofício. No entanto num país pobre, como o nosso, de pequena cultura e de pequena indústria, a criança trabalha quase tanto como o homem. O filho tem o seu dia tomado pelo mesmo labor do pai. Os cursos nocturnos deve­riam ser sobretudo para ele – senão para ambos.

Ora sabem quantos cursos nocturnos havia em Portugal em 1862?–62!

Em Itália, país de população apenas quín­tupla, e cuja instrução se arrasta vagarosamente, havia – 5000!

Sabem quanto todos os municípios juntos, os trezentos municípios do Pais, dão para os cur­sos nocturnos, suprema facilitação da instrução? 1200$000 réis!

Sabem quanto dá o Estado para esses 62 cursos? 240$000 réis para os cursos nocturnos! 3$890 réis a cada curso! Pouco mais de três quar­tinhos! É com estas despesas desvairadas que se fazem as bancarrotas desastrosas!

Mas não é tudo! Em 1867 o ministro do Reino promoveu energicamente a criação de cursos noc­turnos. Fez-se um esforço arquejante, e conse­guiu-se, depois de meses prolongados, criar 545 cursos! As câmaras, no primeiro entusiasmo, pro­meteram magnanimamente, para auxiliar estas criações – 12000$000 réis. Pois bem, sabem o que sucedeu? Meses depois, as câmaras nega­ram-se a continuar as dotações!

Algumas mesmo não chegaram nunca a pagá­-las!

Outras não quiseram satisfazer ao professor os ordenados já vencidos!

Num distrito, no bestial distrito de Évora, dos 18 cursos nocturnos que se abriram, restavam ape­nas, meses depois, 3!

No distrito de Coimbra (oh lusa Atenas!) de todos os cursos que havia, não restava, passados meses – nenhum!

Ultimamente, em Peniche, os cursos nocturnos eram frequentados por 700 alunos. A hedionda câmara fechou-os todos!

Dos 545 cursos que se conseguiram criar em 1867, restam menos de 100!

Que lhes parece, meus senhores, esta singular infâmia?

Oh, nossa Pátria! Deus na sua justiça te dê uma boa e feroz tirania, que te deite nas palhas das cadeias, te vergaste nos velhos pelourinhos que ainda existam, e te enforque nas traves apo­drecidas das forcas de outrora!

 

Outra das vergonhas desta situação é o pro­fessor.

O professor de instrução primária é o homem no País mais humildemente desgraçado, e mais cruelmente desatendido.

Sabem quanto ganha um professor de instru­ção primária? 120$000 réis por ano, 260 réis por dia! Tem de se alimentar, vestir, pagar uma casa, comprar livros, e quase sempre comprar para a escola papel, lápis, lousas, etc. – com treze vin­téns por dia. Note-se que, para a alta moralidade da sua missão, o professor deve ser casado. Pois bem, para criar uma família – treze vinténs por dia!

Mas ouçam! Já em 1813 a junta directora dos estudos pedia ao Governo que, pelo menos, desse aos professores primários 200$000 réis. Pedia-se isto há 60 anos! A junta dizia, energicamente: «decidamo-nos; sem ordenados suficientes não há professores idóneos». Em 1813, 200$000 réis para um professor era considerado pelas repartições competentes um ordenado – apenas suficiente. E em 1872, com o extraordinário aumento dos preços, a triplicada carestia da vida – o profes­sor tem ainda de ordenado os velhos 120$000!

Note-se mais! Há 35 anos, Rodrigo da Fonseca Magalhães, considerando que o professor não podia viver, nem educar-se, nem aproveitar, com o ordenado avaro do antigo regime – determinou que os professores de Lisboa tivessem 400$000 réis, e os das outras terras 250$000 réis. Pois bem: daí a três meses essas medidas racionais e inevitáveis foram abolidas! Determinou-se até que aos professores não fossem pagos os ordenados vencidos – e arremessou-se de novo, violenta­mente, o professor para a indigência!

Além disso o professor de instrução primária não tem carreira. Está fechado no seu destino como numa desgraça murada: crescer-lhe-ão os filhos, vir-lhe-ão os cabelos brancos, terá educado gerações, e continuará sem esperança de melhoria a sofrer dentro dos seus l20$000 réis! A falta de carreira é a extinção do estímulo, a petrificação da vontade, o abandono do ser à fatalidade, à rotina e à inércia. O homem assim não procura progredir: embrulha-se na sonolência do seu ofício como quem se acomoda para a eterni­dade.

Uma eternidade de 120$000 réis! E ainda deste estreito salário tem quase de sustentar a escola. O aluno pobre só aceita o ensino absolutamente gratuito. Se tem de comprar penas, lápis, lousa, pauta, papel – abandona a escola. O professor é forçado a pagar estes apetrechos, de outro modo desertam-lhe a aula, e o vazio da sua escola seria o fim do seu salário.

Acresce que o professorado é uma alta, difícil ciência que se necessita aprender. É esse o fim das escolas normais – aprender a ser mestre. 80 a Itália, tem hoje já 91 escolas normais. Sabem quantas havia em Portugal? Uma. E sabem o que fez o Governo para seguir esse movimento civili­zador e fecundo, que por toda a parte multiplicava as Escolas Normais? Correu sobre a única que tínhamos e – extinguiu-a! É verdade, meus senho­res, extinguiu-a! Dera ela, no pouco tempo que viveu, 91 professores, todos aproveitados pelo Estado – porque 70 regiam ainda há pouco esco­las públicas, e o resto ocupava-se no ensino livre!

Este professorado quase sem salário, de todo sem carreira, sem aprendizagem normal, cria a seguinte situação:

Na última inspecção – de entre 1687 profes­sores, só foram encontrados com habilitações lite­rárias 263! E só foram julgados zelosos – 172!

Que vos parece, patriotas?

 

A escola por si oferece igual desorganização. Os edifícios (a não ser os legados pelo conde de Ferreira, que ainda quase não funcionam) são na major parte uma variante torpe entre o celeiro e o curral. Nem espaço, nem asseio, nem arranjo, nem luz, nem ar. Nada torna o estudo tão penoso como a fealdade da aula. Não pedimos decerto para uso do ABC os clássicos jardins de Armida: mas está na mesma essência da organização dos estudos a boa disposição material do edifício esco­lar. Sobretudo nas aldeias é quase impossível atrair ao estudo, numa saleta tenebrosa e aba­fada, crianças inquietas que vêm do vasto ar, da luz alegre dos prados e dos montes. A escola não deve ter a melancolia da cadeia. Pestallozi, Froe­bel, os grandes educadores, ensinavam em pátios, ao ar livre, entre árvores. Froebel fazia alterar o estudo do ABC e o trabalho manual; a criança soletrava e cavava. A educação deve ser dada com higiene. A escola entre nós é uma grilheta do abecedário, escura e suja: as crianças, enfastia­das, repetem a lição, sem vontade, sem inteligên­cia, sem estímulo: o professor domina pela pal­matória, e põe todo o tédio da sua vida na rotina do seu ensino.

Além disso, de 1 687 (como viram), só 172 foram achados competentes!

 

É que há um outro mal terrível – a falta de inspecção. A inspecção é a consciência pública da escola. Sem inspecção – o professor que não tem ordenado suficiente, nem destino garantido, nem estímulo eficaz, desleixa-se por falta de inte­resse, e a escola desorganiza-se por falta de direc­ção. É o que se dá por todo o País. As escolas estão abandonadas à indolência do professor: e o professor está abandonado à desesperança da vida!

Sabem como é feita a inspecção?

Em cada distrito administrativo há um comis­sário dos estudos que tem por ano, para inspec­cionar as escolas do seu distrito, a gratificação de – 120$000 réis. Ordinariamente é um professor do liceu ou o reitor. Isto vigora desde 1844. Ora em 1854, o ministro do Reino dizia à Câmara dos Deputados. num relatório: – «os comissários dos estudos, ocupados na direcção dos liceus, e nas regências de cadeiras, não curam nem podem curar da visita e inspecção das escolas primá­rias!» E pois o Estado que claramente condena o regime estabelecido em 1844. Pois bem, há perto de 20 anos que esta sentença condenatória, da inspecção dos comissários, foi lavrada pelo Governo – e ainda existe hoje, em 1872, a inspec­ção pelos comissários à moda de 1844.

 

Eis, resumidamente, o estado da instrução.

2300 escolas num país de 4 milhões de habi­tantes!

De 700000 crianças a educar, apenas se encon­tram 97000 nas escolas! Destas 97000 apenas se apuram 1940. Portanto de 700 000 crianças a edu­car – educa o País 1940!

Sendo indispensáveis os cursos nocturnos – criaram-se 545. Hoje restam 100!

Os professores têm em 1872 o ordenado de réis 120$000 – que já em 1813 era julgado abso­lutamente insuficiente!

Só com boas escolas normais se podem criar bons professores. Havia 1 em 68. Foi extinta! (Tenta-se agora criar 5).

De 1867 professores, foram julgados com habi­litações literárias 263 – e zelosos 172!

As escolas são currais de ensino!

Inspecção, não há. Já em 1854 se queixava disso o ministro do Reino! Estamos em 1872!

Eis aqui o estado da instrução pública em Por­tugal, nos fins do século XIX. [1]

A instrução em Portugal é uma canalhice pública!

Que o actual Governo volte os seus olhos, um momento, para este grande desastre da civili­zação!

 

Março 1872.

A valia de uma geração depende da educação que recebeu das mães. O homem é «profun­damente filho da mulher», disse Michelet. Sobre­tudo pela educação. Na criança, como num már­more branco, a mãe grava; – mais tarde os livros, os costumes, a sociedade só conseguem escrever. As palavras escritas podem apagar-se, não se alteram as palavras gravadas. A educação dos primeiros anos, a mais dominante e a que mais penetra, é feita pela mãe: os grandes princípios, religião, amor do trabalho, amor do dever, obe­diência, honestidade, bondade, é ela que lhos deposita na alma. O pai, homem de trabalho e de actividade exterior, mais longe do filho, impõe-lhe menos a sua feição; é menos camarada e menos confidente. A criança está assim entre as mãos da mãe como uma matéria transfor­mável de que se pode fazer – um herói ou um pulha.

Diz-me a mãe que tiveste – dir-te-ei o destino que terás.

A acção de uma geração é a expansão pública do temperamento das mães. A geração burguesa e plebeia de 1789 a 93, em França, foi livre, sen­sível e humana – porque as mães que a concebe­ram tinham chorado e pensado sobre as páginas de Rousseau.

A geração de 1830, gerada durante o primeiro império – foi nervosa, idealista, romântica, por­que as mães tinham vivido nas emoções heróicas das guerras, na contemplação das fortunas mara­vilhosas.

Se a geração de 1851, em Portugal, foi mais forte e original do que a nossa–é porque as mães, de onde ela saiu, tinham sido as raparigas vivamente sacudidas pelos tempos dramáticos das lutas civis.

 

É, pois, superiormente interessante saber o que são hoje, em 1872, estas gentis raparigas de 15 a 20 anos de quem nascerá, para bem ou para mal, a geração portuguesa de 1893. Assim poderemos prever o que elas serão mais tarde como mães, como educadoras.

Que elas nos perdoem, essas gentis meninas, se a nossa pena nem sempre for glorificadora como um soneto de Petrarca: mas a tinta moderna sai do poço da Verdade. O madrigal ficou para sempre suspirando esterilmente sobre a lombada dos livros de Curvo Semedo, o pas­toril desembargador; não se atreve a pôr o seu pé florido nestes caminhos revoltos da vida presente. Está tão longe de nós como os pastores vestidos de seda, apoiados a bordões de cristal. Hoje os pastores são rudes miseráveis, cobertos de farrapos. Não suspiram, em versos sonoros, as meiguices a Clóris: pedem mais pão aos patrões!

O madrigal é triste como uma flor de laran­jeira de papel, desbotada, atirada para o sótão. Não há nada como belas verdades, sadias e robus­tas, frescas e moças!

 

A menina solteira! Vejamos o tipo geral de Lisboa. E um ser magrito, pálido, metido dentro de um vestido de grande puff, com um penteado laborioso e espesso, e movendo os passinhos numa tal fadiga, que mal se compreende como poderá jamais chegar ao alto do Chiado e da vida.

O primeiro sinal saliente é a anemia. Taine diz, pintando o sólido vigor inglês – que o dever essencial de uma menina é ter saúde. A saúde é o esplendor físico da inocência. Mens sana in cor­pore sano. Uma pele fresca e lisa, músculos que jogam livremente, busto direito, beiços vermelhos – indicam juízo forte, consciência recta, um sen­tir puro. A palidez, as olheiras, o peito deprimido, o ar murcho – revelam um ser devastado por ape­tites e sensibilidades mórbidas. Ora entre nós, as raparigas não têm saúde. Magrinhas, enfezadas, sem sangue, sem carne, sem força vital – umas padecem de nervos, outras de estômago, outras do peito, e todas da clorose que ataca os seres privados do sol.

Em primeiro lugar não respiram. Os seus dias são passados na preguiça de um sofá, com as jane­las fechadas; – ou percorrendo num passinho derreado a Baixa e a sua poeira. Portanto, falta de ar puro, são, restaurador. O ar da Baixa cor­rompe o sangue; e o ar das salas, resguardadas por cortinas ou alumiadas a gás, não tem oxigé­nio e portanto não alimenta.

Depois, não fazem exercício. Uma inglesa tem por dever moral, como a oração, o passeio – o largo passeio, bem marchado durante duas horas, sem preocupação «janota», todo de higiene. Aqui, as que andam a pé, depois de ir de uma loja na Rua do Ouro a uma igreja no Loreto, arquejam e recolhem à pressa no ónibus. Algumas mesmo não sabem andar; escorregam, saltitam, oscilam. Nada dá tanta ideia da constância de carácter, como a firmeza do caminhar. Uma alemã, uma inglesa, anda como pensa – direita e certa. As nossas raparigas, constantemente sentadas e ani­nhadas, quando têm de se pôr a pé e de marchar, gingam e rolam. Além disso, o hábito do sofá, do recosto e da almofada – acostuma às posi­ções lânguidas; cabeça errante, braços amoleci­dos, corpo abandonado. Uma inglesa nunca toma, por pudor, estas atitudes. São atitudes de serra­lho ou de pomba amorosa. Uma menina está direita e firme. É como na pintura e na estatuá­ria se representa sempre a Inocência.

Depois não comem: é raro ver uma menina ali­mentar-se racionalmente de peixe, carne e vinho. Comem doce e alface. Jantam as sobremesas. A gulodice do açúcar, dos bolos, das natas, é uma perpétua desnutrição. Os antigos moralistas atri­buíam-lhe mesmo uma influência deplorável nos costumes e no carácter. Nas casas de província, onde a moral existe guardada em decrépitos pro­vérbios como em frascos, dizem os velhos, com ingénuo horror: mulher gulosa, bicha manhosa.

Lisboa é uma cidade doceira, como Paris é uma cidade intelectual. Paris cria a ideia e Lisboa o pastel. Daí a grande quantidade de doenças de estômago e de maus dentes. A deterioração pelo doce começa aos quatro anos. O sangue alimen­tado a massa, ovos, natas, dá estes corpos débeis e estas almas amolecidas. O Baltresqui, o Fer­rari, a Confeitaria Lisbonense arrasam o nosso organismo social.

Outra causa de doença é a toilette. Com estes penteados enormes, eriçados, insólitos, em forma de capacete, de fronha, de chalé, de concha, e com os materiais tenebrosos que metem por baixo para sustentar e erguer mais a construção incle­mente– acumulam sobre a cabeça um fardo, uma trouxa, que não deixa arejar o crânio. A transu­dação acumula-se à raiz do cabelo, fecha os poros, cria um estado de inflamação. Ouve-se dizer quase sempre às mulheres – Sinto hoje um peso na cabeça!... É o fardo! E o crânio que, sem ar, amolentado, está adoecendo como um corpo que se não despe.

Lisboa é a cidade do Universo onde as meni­nas mais se apertam e se espartilham. O espar­tilho que destrói a beleza da linha, a melodia das curvas naturais, dificulta, ao mesmo tempo, a cir­culação, a respiração e a digestão. Fere as três causas da vida.

De modo que o balanço das condições físicas de uma rapariga portuguesa é este:

Músculos sem exercício;

Pulmões sem ar;

Circulação comprimida;

Digestão estrangulada.

A primeira consequência é que uma rapariga assim destrói a sua beleza, a vivaz mocidade, e a graça. A pele amarelece, os olhos encovam, os lábios gretam, as orelhas despegam do crânio, o nariz afila, as mãos humedecem, todo o corpo corcova – e na bela idade da florescência, e na fresca expansão da vida, uma pobre rapariga de quinze ou dezoito anos está como alguma coisa de amarrotado, de melado, de murcho, de em segunda mão, com aquele aspecto safado que o pó das estradas dá à virgindade das folhas.

Começam a precisar, para serem bonitas, da luz do gás. No brilho artificial daquela luz crua uma menina, com os cabelos lustrosos, um pouco de pó de arroz, e muitos tules espalhados, tem encanto e pode seduzir. Mas que venha, ao outro dia, a sincera luz da manhã! Todas as mácula’ destacam: os cabelos, chamuscados do ferro de frisar, estão secos e cor de rato, os beiços são como um velho bago de romã espremida, o nariz tem, na cartilagem que o liga ao rosto, um vinco escuro, toda a pele parece a de uma gali­nha cozida!... Ah! o velho Páris não lhe daria a maçã.

 

É a moda, dizem. – Cruel razão! A moda começa por ter isto de absurdo: não é ela que é feita para o corpo – mas o corpo que tem de ser modificado para se ajeitar nela A moda vem de fora, do figurino, feita pela fantasia burguesa de um desenhador de armazém: e aqui, depois, a pobre mulher precisa de reformar o corpo, obra do seu bom Deus – para o acomodar ao figurino, obra do seu mau jornal. De modo que para susten­tar o chapéu deforma-se a cabeça; para obedecer ao puff torce-se a espinha; para satisfazer às boti­nas Luís XV desconjunta-se o pé; para seguir o chique das cintas baixas destrói-se o busto. Nunca como hoje, sob o domínio da democracia, se des­prezou, se deteriorou tanto o corpo humano. Não é com a intenção mística daquela santa que cortou o nariz para aniquilar as glórias mortais da sua beleza! Não! Hoje mais que nunca se glorifica a beleza, e o corpo é o fim supremo. Somente não se aceita o corpo que a natureza dá – e procura-se aquele que se vende nas modistas. Ah! onde estão os tempos em que a beleza era como uma santi­dade! em que a vida toda era uma educação e idealização do corpo! em que se erguiam estátuas às nudezas maravilhosas! em que o desfigurar um homem era punido com as velhas leis bárbaras do sacrilégio! e em que o ateniense, nas conversas dos pórticos ou nos peristilos dos banhos – se ocupava menos da invasão de Xerxes do que do corpo de Lais! Veja-se então que racional, bela, harmónica toilette. Uma larga túnica de Linho, de amplas pregas, que deixava o corpo livre, inoprimido, em toda a bela originalidade das suas linhas... Mas mesmo nos tempos bárbaros se respeitava a per­feição da forma. E era em pleno ascetismo, quando a carne se tornara o crime da vida. Vejam-se nos tempos merovíngios e carlovíngios – os vestuá­rios daquelas rainhas sanguinárias e magníficas que brilham nas iluminuras dos velhos códices. Um vestido inteiro, branco ou negro, modelando o corpo como uma luva, o pescoço livre, os cabe­los em duas tranças, ao comprido das costas.

 

A moda destrói a beleza e destrói o espírito. Um caixeiro desenha a lápis, em Paris, um certo chapéu, um certo corpete, umas certas mangas – e todas, magras e gordas, as loiras e as trigueiras, as altas e as pequeninas, se introduzem, se alo­jam, se enfiam naquele molde, sem se preocupa­rem se o seu corpo, a sua cor, o seu perfil, a sua altura, o seu peito, condizem, harmonizam, vão bem com o molde decretado e chegado pelo cor­reio. Abandonando-se servilmente ao figurino, abdicam a sua originalidade, o seu gosto. Acei­tam uma banalidade em seda–e um lugar comum com folhos. Uma senhora que não inventa e não cria os seus vestidos – é como um escritor que não acha e não inventa as suas ideias. Ter a toi­lette do figurino, é fazer como os merceeiros que têm a opinião da sua gazeta. Desabitua o espírito da invenção, da espontaneidade, da liberdade. É uma confissão tácita de que se não tem espí­rito, nem fantasia. Seguir um figurino é aprender a elegância de cor, para a ir recitar na rua; é ter o gosto que se recebeu de encomenda; é alugar o chique, ao mês; é mandar vir as ideias pelo cor­reio; é o bom tom por assinatura. Que falta de espírito! e os maridos pagam-no!

 

Depois da anemia do corpo, o que nas nossas raparigas mais impressiona – é a fraqueza moral que revelam os modos e os hábitos. Nada mais significativo, já notámos, que o seu modo de andar. Veja-se o andar de uma inglesa, elástico, firme, direito, sério: sente-se ali a saúde, a deci­são, a coragem, a personalidade bem afirmada. Veja-se o andar de uma menina portuguesa, arras­tado, incerto, hesitante, mórbido: sente-se aí logo a indecisão, a timidez, a incoerência.

A sua preguiça é um dos seus males. O dia de uma menina de dezoito anos é assim dissipado: almoça, vai-se pentear, corre o Diário de Noticias, cantarola um pouco pela casa, pega no croché ou na costura, atira-os para o lado, chega à janela, passa pelo espelho, dá duas pancadinhas no cabelo, adianta mais dois pontos no trabalho, dei­xa-o cair no regaço, come um bocadinho de doce, conversa vagamente, volta ao espelho, e assim vai puxando o tempo pelas orelhas, derreada com a sua ociosidade, e bocejando as horas.

Outro mal seu é o medo, um medo horrível de tudo; de ladrões, de trovoada, de fantasmas, da morte, dos corredores escuros, dos castigos de Deus, dos soldados e das máscaras. Não são capa­zes de atravessar uma sala apagada à meia-noite; se um rato corre no soalho, saltam para cima dos móveis; gritam só com ver um revólver; têm os terrores que têm os canários.

Não há nelas nenhuma decisão, um quase nada as embaraça. É necessário que tudo em roda na vida seja muito fácil, muito claro, muito pronto; de outro modo, hesitam, estacam, sucumbem. Um não, uma carruagem que falta, o relógio que parou, o tempo que mudou – e aí estão inutilizadas. Basta vê-las no Inverno, num grande dia de chuva. A inglesa, se tem que fazer compras ou visitas, põe o seu water-proof, calça as suas galochas, toma o seu guarda-chuva, e aí vai chapinando a lama. A portuguesa em casa, encolhida, amuada, inclusa (segundo a pitoresca expressão do nosso grande desenhista Manuel de Macedo), cai, por causa de alguns pingos de água, numa desolação maior que a de Job sobre o seu monturo.

É vê-la nas jornadas! se tem de montar a cavalo, que sustos, que gritinhos, que padre-nos­sos murmurados! A bordo de um paquete, a inglesa, a francesa, gostam de subir à tolda, ver o mar, sentir a brisa húmida: a portuguesa em baixo, geme, reza, e toma caldos.

Daqui vem a sua falta de acção, a sua infeliz «passividade». Uma menina portuguesa, não tem iniciativa, nem determinação, nem vontade. Pre­cisa ser mandada e governada; de outro modo, irresoluta e suspensa, fica no meio da vida, com os braços caídos. Perante um perigo, uma crise de família, uma situação difícil, rezam. Têm a fé abstracta que só Deus as pode inspirar, dar-lhes a decisão, a ideia precisa: mas terminam quase sempre por seguir o conselho da criada.

Veja-se que companheira para a vida do homem – e do homem moderno que não é um trovador ou um contemplativo, nem um sultão para ter aninhadas, em fofas almofadas, huris per­fumadas; mas um trabalhador, que precisa ganhar o seu pão, arcar com todas as durezas da vida. Como há-de ele lutar com os braços sobrecarre­gados por estas criaturinhas que desfalecem e gemem, cheias de puff. de pó de arroz, de rabuge, e de mimos de romance!

Que diferença de uma francesa, uma alemã, uma inglesa! Quantas destas encontrou um de nós, nos mais remotos países, nas ruínas e nos desertos, nas montanhas de Judeia, nos desfila­deiros do mar Morto! Sofriam longas horas de sol e caminho, dormiam sob a tenda, comiam entre duas pedras no leito seco das correntes, e sempre alegres, vivas, rosadas, como o shake-hand franco, o riso fácil. Nunca ele se esquecerá de duas nobres e belas inglesas, que viu em Jerusalém.

 

Dezanove a vinte e dois anos, solteiras. Iam partir para o Jordão, pelo abrasado caminho de Mar-Saba. Uma sobretudo era admirável com a sua alta figura de Diana, um vestido de amazona verde-escuro, justo como uma luva, grandes olhos verdes inocentes e fortes, o pescoço de uma bran­cura de camélia húmida. Tinham ambas os seus chicotes, luvas de camurça, e à cinta os seus revól­veres. Isto é: lutariam, e desfechariam também, se a sua cavalgada fosse atacada por beduínos de rapina. E eram duas crianças quase: se as fitas­sem de certo modo, corariam, se lhes pedissem a bolsa fariam fogo: tal é a delicadeza da miss, tal é a sua força. Raça incomparável – de coração doce e de carácter rijo.

 

Vejamos, um pouco, como as nossas raparigas portuguesas se formam, lentamente, sob a edu­cação interior. As mães põem nas suas pequerru­chas todo o interesse que uma artista põe na sua glória: e tratam de dar a essa glória um relevo magnífico. Começam por as vestir como peque­ninas senhoras! A pequerrucha de seis, oito anos, uma baby, um bocadinho de criatura, um nadinha de mulher, ei-la já com gravidades de dama, direita, seriazita, coberta de fitas, de rendas, de folhos! Na idade em que precisam de toda a liber­dade de corpo e de movimentos para crescer, já trazem a cinta apertada num anel tirânico, a cabeça oprimida por duros penteados em que o ferro lhes cresta o cabelo, os pezinhos devorados pelo verniz, e anquinhas e puffs, e um grande apa­rato, que é o cárcere do anjo.

Ora a toilette, como a nobreza – obriga. E assim a pequenina pouco a pouco se penetra da influência dos seus vestidos. Aos oito anos olha-se ao espelho, tem perrices por causa de uma fita, põe pó de arroz conscientemente, quer a meia esticada e elástica para dar relevo a uma perninha mimosa. Todos os lábios da família peregrinam no claro, rosado rosto da Bebé; e a criaturinha, que é ainda uma argila santa, vai-se impregnando de vaidade como uma esponja de água. Vivendo na certeza da sua beleza como uma santa no seu altar, toda preocupada de vestidos, afogada em mimo, acla­mada e beijada – começa a ter certos sorrisos, a espreitar com um certo disfarce malicioso, a ter umas ternuras de andar, um modo de se retrair, de se recusar, que há-de fazer corar por vezes o seu anjo da guarda. Desabrocham então as peque­ninas simpatias, cheias de mistério. Uma deu um dia a um nosso amigo um amor-perfeito, em segredo, pedindo-lhe que o guardasse. Tinha nove anos. São graças, leves como fios. Mas a vaidade infiltra-se na alma, gota a gota, e cria no fundo aquele lago imóvel, negro e resplandecente, onde, segundo os Místicos, habita e se move o Pecado.

Ao mesmo tempo vai-se-lhe ensinando o cate­cismo e a doutrina. É a educação moral. A pequer­rucha aprende a persignar-se, a ajoelhar com gra­vidade, a recitar o padre-nosso. Depois, seguidamente, decora todas as orações da cartilha. E termina por papaguear a Doutrina corrente­mente, de cor, e salteada, como a tabuada ou como as capitais da Europa – mas sem a menor compreensão, sem ligar uma ideia sua às palavras mortas, sentindo através delas um certo ter­ror – porque se trata de Deus e segundo lhe ensi­nam é Deus quem manda as trovoadas, as doen­ças, a morte.

Ora para que se ensina a religião a um homem ou a uma mulher? Para lhe dar um guia para a sua consciência e um guia para a sua inteligência; uma doutrina que lhe mostre o que deve pensar e que lhe aponte o que deve fazer: critério para bem-julgar e critério para bem-viver. O que se lhe ensina, porém, no Catecismo? Uma série de fórmulas e de palavras combinadas, cujo sentido lhe é tão estranho como uma língua ignorada. Aprende-a maquinalmente, à maneira de uma lição de escola que tem de recitar a certas horas, depressa ou devagar, por obrigação, como se pen­teia e como trata as unhas.

De sorte que, tornada um exercício de recita­ção, uma fórmula trivial que se repete de joelhos, a Doutrina Evangélica fica na memória como uma toada que tem harmonia, mas não penetra o espí­rito como uma lei que tenha eficácia. A criança repete todos os dias que os pecados mortais são: 1º soberba, 2º avareza, 3º luxúria, 4º ira, 5º gula, 6º inveja e 7º preguiça, etc. Pois bem, qual foi a criança que, diante de um prato de bolos, hesi­tou jamais em lhe deitar a mão, por se lembrar que a gula é um pecado mortal? Qual foi a que deixou de adormecer sobre os seus livros, por temor de cometer o pecado da preguiça? Qual foi a que se coibiu de gritar para não cair em ira?

– E será porque contra a nossa natureza, fatal­mente impregnada do mal, sejam impotentes, e se quebrem como bolas de sabão contra um muro as prescrições da religião? Não. É que para obe­decer a um preceito é necessário compreende-lo – como é necessário que, para nos fazermos obe­decer de um criado minhoto, não lhe falemos ale­mão. Ora a criança, que recita maquinalmente, à flor dos lábios, o catecismo – não o percebeu. Declamava-se-lhe a vontade de Deus, sem lha explicar; de modo que às palavras que papagueia, ela não liga ideia que a prenda.

Desde que a criança sabe de cor o catecismo, supõe-se que ela tem religião. Mas se, chegando aos quinze anos, lhe perguntarem – «qual é o teu dever como esposa cristã? qual o teu dever de cristã como mãe?» ela ficará tão embaraçada, como se a interrogassem sobre cálculo diferencial. Da religião sabe a «reza», não sabe o dever: ou pelo menos o que ela supõe o dever é ouvir missa aos domingos, e não comer carne à sexta-feira. Princípios que lhe sirvam para se dirigir na vida, como filha, como esposa, como mãe, como mulher sociável – não sabe um. Sabe rezar o padre-nosso. Diante pois de qualquer circunstância da vida ela, religiosa, cristã e devota – como não se pode guiar pela religião que desconhece – guia-se pelo instinto ou pelo capricho. A religião de que tanto fala, e que tanto usa, aos domingos na Igreja, e à sexta-feira na cozinha, não lhe serve muito mais do que a um canário ou a uma rola. Porque no fim, o que a governa – é o instinto.

Contra as tentações da vida ela não terá no seu espírito conselho, força, resistência ou inte­resse superior. Uma ilusão, um momento de aban­dono podem-na perder: e toda a copiosa, apara­tosa doutrina que lhe ensinaram e que não per­cebeu – não a pode salvar.

 

A pequerrucha Bebé, aos cinco anos, quando dispõe inteiramente da palavra e da frase – começa a mentir. Bebé mente. Uma senhora inglesa ou francesa ou alemã, se vê sua filha men­tir, sente-se verdadeiramente ofendida. Uma só mentira contém duas culpas; deixamos de nos respeitar porque afirmamos o que é falso, e dei­xamos de respeitar os outros porque os induzi­mos voluntariamente em erro. Em Portugal a mentira da criança faz rir, é uma graça: prova o engenho, a faísca, a agudeza do pequenino cére­bro. Bebé começa a mentir para ter triunfozinhos à mesa. No princípio nega o que faz – o que é o germe da covardia: depois conta o que os outros não fizeram – o que é a semente da calúnia. De resto, entre nós, a mentira é um hábito público. Mente o homem, a política, a ciência, o orça­mento, a imprensa, os versos, os sermões, a arte, e o País é todo ele uma grande consciência falsa. Vem tudo da educação.

A criança cresce na mentira. – «E um cesto roto esta criança» – diz a família rindo. E não sabem que o «cesto roto» fará depois um intri­gante, um falso, um caluniador, um intrujão. Às meninas sobretudo (como se supõe que elas não terão relações oficiais ou publicidade de vida em que a mentira possa prejudicar) consente-se a mentira, como uma vivacidade inofensiva! Ino­fensiva! como se não importasse menos que o homem minta na publicidade da rua – do que a mulher no recato da família. O caso é que Bebé, o loiro, o engraçado anjo – mente!

 

Além disso é curiosa. Não o diremos inteira­mente como um defeito. A curiosidade tem sido muito caluniada: e este nobre impulso humano é quase sempre considerado como um simples vício de criado. No entanto da curiosidade proveio toda a civilização, a Ciência, a Filosofia, as invenções, as descobertas de continentes: toda a História, toda a Crítica, é obra da curiosidade. Ela é a via­gem perpétua que o homem faz através dos fac­tos e das ideias. Grande instrumento de acção, decerto! Mas é necessário saber como a educação o dirige. Descobrir a América e escutar a uma porta – são dois factos de curiosidade. Toda a criança é curiosa; resta saber se os que a educam, pelos factos e pelas ideias que oferecem ao exer­cício da sua curiosidade, farão dela – uma desco­bridora ou uma mexeriqueira.

Em Portugal, as mulheres, excluídas da vida pública, da indústria, do comércio, da literatura, de quase tudo, pelos hábitos ou pelas leis, ficam apenas de posse de um pequeno mundo, seu ele­mento natural – a família e a toilette. Daqui pro­vém que senhoras reunidas, conversando, giram – como borboletas em torno de um globo de candeeiro – em volta destes dois supremos assun­tos: vestidos, e namoros. A criança – grande ouvido e grande curiosidade – absorve, como uma esponja chupa a água, tudo o que ouve dizer em redor, no conchego das saias juntas. Espírito nas­cente, ávido, trabalha principalmente sobre a ideia que contém mistério. Ver o que está dentro – e o ardor da criança, ou se trate de uma pala­vra que escutou, ou de um boneco que lhe deram. Ora quais são aqui os factos que oferecem à sua curiosidade as conversas da família, mãe, tias, amigas ou visitas? Que fulana casou, que aquela se separou do marido, que é inexplicável a riqueza de toilette de outra, que sicrano lhe faz a corte, mas que sicrano tem uma actriz. E sempre os namoros, os vestidos, os escândalos, os mexe­ricos, as histórias de paixões... O espírito da criança fita grandes olhos nestes mistérios pitores­cos! E toda esta vida do mundo, de que lhe chega já nas conversas um sopro e uma vaga sensa­ção, dá à sua pequenina alma uma palpitação ansiosa – alguma coisa do que produz o primeiro cheiro das madressilvas nas borboletas ainda afo­gadas na vida inerte do casulo.

Qual é depois o resultado? Que vemos aqui meninas, aos quinze anos, falando com grande autoridade sobre casamentos, dotes, adultérios, raptos, e afirmando que tal comédia é fresca ou que tal romance é imoral.

Uma das causas desta precocidade é a casa. Um grande agente na educação da criança é a casa. Em Lisboa as casas não têm quintais – e isto só explica muitos destinos. Num andar, com janela para a rua ou para o saguão, sem horizonte, sem árvores, sem ar – a criança estiola. Estio­lação lenta, que vai produzindo a sobreexcitação dos nervos, a propensão melancólica, a variabilidade de humor, a debilidade do carác­ter, etc.

Veja-se a criança educada numa quinta. Pela manhã já ela está solta, com um bibe, uns largos sapatos, um velho chapéu. Corre, visita os bois, luta com o carneiro, abraça o pacífico e grave jumento, preside à reunião das galinhas, conhece os ninhos, sabe de cor as árvores; cai, enla­meia-se, arranha os joelhos, cura-se pulando, recebe os largos abraços do sol, penetra-se de ar, de vida, de viço; e inocente como um bicho, fresca como uma madressilva, com o bibe sujo, as mãos cheias de terra, o rosto vermelho como uma amora, as narinas palpitando de vida, sem sensi­bilidade e sem tristezas, com um cheiro de fenos e prados atravessados, espírito vivo da verde natu­reza, entra em casa aos pulos, berrando pela sua sopa. À noite, cheia de fadiga, dorme como um canário. – E que educação superior, em verdade, não sai das árvores, das relvas, do pacífico mar­char dos regatos, das recolhidas sombras, das searas, dos milhos, de todos os tranquilos seres que cumprem nobremente, e sossegadamente, o seu dever de crescer!

Mas o melhor é o resultado físico: bom sangue vermelho, forte musculatura, ampla respira­ção, cabeça fresca, digestão de aço.

Em contraste veja-se uma menina de dez anos, aqui em Lisboa, nestas altas casas encarceradas: pálida, curvada, acanhada, com olheiras, lendo já o jornal, cheia de si, caprichosa, ardendo em von­tades, em curiosidades – uma boneca de cera habitada por um bico de gás.

A pequerrucha na quinta habitua-se a estar sobre si, perde o medo, sabe defender-se, tem acção, decide-se. Na cidade são tímidas, gri­tam, encolhem-se, tremem, empalidecem, hesitam, rezam aos santos, e estão sempre prontas a refu­giar-se nos primeiros braços que as acolhem. Mau hábito – dizia a ama de Julieta.

Além disso (grave consideração), no campo a criança está longe da sala, das suas conversações, e da sua malícia : – aqui, aconchegada nos mesmos quartos, penetra-se, aos oito anos, do espírito cres­cido, o que é deplorável. E por isso que elas aos quinze anos dizem, com um desdém que espanta e faz recuar -– que estão cheias de experiência!

 

Será necessário que penetremos nos colégios? – Espreitemos só pela porta. – Um dos grandes males do colégio é o tédio. O tédio enfraquece, anula o espírito, a vontade, e só deixa viva e exi­gente – a curiosidade. De quê? de tudo, do impre­visto, do que se não tem, do que está na rua quando nós estamos em casa, do que está no vício quando nós estamos no dever. Ora se alguém se aborrece é uma colegial. Presa, abafada, arregi­mentada, parece unia flor apertada entre as duas folhas de um livro. Nada a pode prender ao colé­gio: nem a serenidade de vida – porque não é o sangue buliçoso e sacudido dos catorze anos que aspira a repousar: nem o estudo – porque a mulher, pela simples constituição do seu cérebro, é adversa ao estudo e à ciência: nem a satisfação de cumprir o dever – porque a compreensão abstracta do dever não tem presa sobre o espírito feminino. A mulher, do dever, só compreende um lado, e esse admiravelmente – o pudor. De sorte que, não a retendo a paz do colégio, nem o inte­resse da ciência, nem a influência do dever –tudo na sua natureza impaciente e curiosa a leva a desejar o mundo, o ruído, a vida exterior. E nesse estado de espírito que se encontra diante de horas regulamentadas, de lições, de costuras, o refeitório insípido, a uniformidade claustral. O refúgio são as conversas, as camaradagens, as grandes amizades, os segredos... Mas este mesmo regime mantém a imaginação perpetuamente exci­tada. O mundo aparece-lhes como alguma coisa de maravilhoso, de confuso e resplandecente que se balança indefinidamente, ao rumor das orques­tras, e sob o esplendor dos lustres: concebem-se, com desproporções absurdas, os teatros, as salas, os bailes: mesmo as que são pobres, e sabem que na família estarão tão confinadas como no colé­gio, têm esperanças sobressaltadas, podem casar, ser ricas... E os grandes ímpetos dos sonhos par­tem em largos voos.

Tomam em desdém os livros e o estudo. Não há educação literária mais falsa, mais esterili­zadora do que a dos colégios. Ensina-se à rapa­riga de oito a dez anos (além das línguas, fran­cês e inglês, que só aprendem bem, depois nas famílias, pelo uso) – dois monótonos martírios de memória – a geografia e a história: a geogra­fia com as suas listas de rios e montes, a história com a sua lista de batalhas e reis. Uma criança gasta meses numa luta áspera, a aprender de cor nomes geográficos e anedotas históricas – que dois dias depois de sair do colégio esquece volun­tariamente, com gosto, como põe de parte o escuro vestido de merino do regime escolar. A geografia e a história ficam-lhe sendo assim duas recordações odiosamente colegiais, duas ciências caturras que lhe lembram os óculos da mestra e o seu dedo repreensivo e áspero.

Os colégios, pelos seus métodos fatigantes, repelem o espírito das mulheres dos livros e das coisas da ciência. E o que nos acontece a nós os homens, também, com o Telémaco e com o Virgí­lio. Passamos sobre eles as compridas e sonolen­tas noites do estudo, tiramos-lhes, palavra a pala­vra, o significado duro, choramos sobre as suas páginas a dor das palmatoadas, de tal sorte que não voltamos mais nem às piedosas e moralistas ideias do puro Fénelon, nem ao grande Virgílio, à sua Geórgica, de profunda educação natura­lista, nem à Eneida, primeira aurora do mundo moderno, poema genésico de uma transformação social.

Entre nós nenhuma senhora se dá às sérias leituras de ciência. Não da profunda ciência (o seu cérebro não a suportaria), mas mesmo dos lados pitorescos da ciência, curiosidades da botâ­nica, história natural dos animais, maravilhas dos mares e dos céus. Isso lembra-lhes a mestra, o dever, a monotonia do colégio. Depois acham vul­gar, insípido. Querem ser impressionadas, abala­das – preferem o drama e o romance. As senhoras inglesas e francesas aos serões de família, lêem, ou para si, ou em voz alta aos irmãos mais pequenos ou aos filhos, livros de história natural, curiosas vidas de animais, viagens. Os livros de Michelet, tão profundamente sentidos, de uma tão grande harmonia moral, o Pássaro, o Insecto, o Mar, a Montanha, têm sido adoptados como livros de família, leituras de serão, doce ciência para espíri­tos delicados que amam a vida e os seres. Entre nós lêem Ponson du Terrail ou Dumas Filho e o seu bando de analistas lascivos. E, todavia, quanto a história e a vida das flores, a maravilhosa existên­cia dos insectos, a narração de longas viagens, as regiões pitorescas da China, de Sião, das Antilhas, dos povos bárbaros, contém mais drama e mais maravilhoso do que a descrição dos amores de Pedro e de Francisca, e como ele fitava uma estrela, e como ela arfava de voluptuosidade, e como ambos se perderam num caramanchão.

A imaginação que se desenvolve nos colégios tem outro mal – produz, entre as colegiais, uma vida sentimental precoce e falsa. Daí as mil pequeninas coisas que todos sabem, inocentes no momento, mas que influem mais tarde. As senho­ras, mesmo depois de casadas, as contam rindo: são grandes paixões que têm umas pelas outras, com ciúmes, intrigas, vinganças, duelos: cartas que se escrevem em que uma assina João, Pedro, ou conde de tal: o retrato de um primo que se obtém: o chapéu do mestre de música que se abraça às escondidas, etc., etc.

Depois, diante das mestras, é necessário que a rapariga esteja séria, correcta, fria – quando a imaginação palpita, arfa por voar e vencer. Para isto é necessário disfarçar. E nos colégios que se aprende a astúcia. As mulheres tornam-se aí hábeis em contradizer com o rosto a alma.

 

Tem dezasseis ou dezassete anos: ei-la entrando na vida. A educação vai-se completar agora por duas influências – uma interior, a família; outra exterior, a sociedade.

A impressão que nesta idade mais directa­mente lhe dá a família – é toda positiva: a neces­sidade de ter dinheiro para viver. A organização material da vida e o seu custo, dão-lhe logo a certeza de que sem dinheiro, sem um casamento rico, a vida moderna não é mais que uma perpetua decadência e uma humilhação. Não falamos aqui nem das ricas, nem das santas – duas raras espé­cies. Na família a rapariga vê a constante influên­cia do dinheiro; começa a misturar-se no governo da casa, a entrar nas conversas económicas dos pais, a examinar contas, a comprar; – hoje o rol dos fornecedores, amanhã o da modista, depois o do estofador, e um chapéu, e um camarote de tea­tro, e as luvas. Tudo lhe mostra a vida aplicada, como uma bomba aspirante, à bolsa da casa. A ideia do dinheiro torna-se nela fixa. Além disso, embebe-se dela, nas conversas, nos jornais. Hoje, no fundo do pensamento ou do sonho, há sempre o dinheiro. A preocupação não é a religião, nem a Pátria, nem a Arte – é o dinheiro. O desinte­resse é desprezado com uma ingenuidade bacoca. O mundo estende sofregamente a mão. Primeira, profunda influência no espírito da mulher. – Daí o desejo de casar com dinheiro, casar rica; seja o marido velho, imbecil, rude ou trivial, contanto que traga o dinheiro, e o poder que ele dá.

Por outro lado a sociedade diz-lhe: goza! Ora na vida da mulher o que se entende por gozar? Ter um marido rico, grande luxo de casa, carrua­gem, camarote de ópera, toilettes magníficas. – É o que todo o pai em Portugal deseja para sua filha.

Casar rica para gozar: é em que se resolve a ambição de todo o destino feminino. Dinheiro –e sensibilidade.

Courbet, o mais poderoso pintor crítico dos tempos modernos, fez um quadro: As duas meni­nas do segundo império. E uma paisagem magní­fica: duas mulheres solteiras descansam ali, na frescura tépida das sombras. Uma, alta, loira, branca, está sentada; tem o perfil frio, seco, o olhar direito, e, com um dedo apoiado à face, calcula: – sente-se que pensa em dinheiro, juros, acções de companhia e jogo de fundos. A outra, deitada na relva, com os braços estendidos, como abraçando a terra, trigueira, de fisionomia ner­vosa e imaginativa, a testa curta, os lábios secos, cisma: sente-se que sonha festas, bailes, as gran­des voluptuosidades, os encontros rápidos e peri­gosos no fundo de um parque, e todas as exal­tações da sensibilidade. Hoje, pela educação moderna dos colégios, cidades, romances, teatros, música, moral contemporânea – as duas meninas do segundo império, estão em cada mulher: fria ambição de dinheiro, exaltado ardor de sentimen­talismo.

Felizmente muitas há que – pela educação severa, ou pela simplicidade de espírito, ou pelo sentimento inteligente da religião, ou pela influência da existência recatada ao modo inglês – estão como numa redoma, não recebem o con­tágio do mundanismo, e perpetuam o tipo da mulher perfeita.

 

Julgamos inútil insistir nestes estudos de moral contemporânea.

Uma só consideração resumirá estas notas: a mulher na presença do mundo tentador – está hoje desarmada. Desarmada, inteiramente. A família, com a sua dignidade, enfraqueceu; a religião tor­nou-se um hábito incompreendido; a moral está-se transformando, e enquanto se transforma, não influencia nem dirige; a fé já não existe; a prática da justiça ainda não chegou: em que se apoiará a mulher? Isto poderá parecer vago. Um exemplo, pois, nítido e prático. Suponhamos uma mulher nova, educada em Lisboa, com a educa­ção contemporânea. Suponhamos que se lhe diz: «tu terás todas as elegâncias e triunfos da toi­lette; as tuas carruagens maravilharão a cidade; ninguém possuirá uma casa ornada com mais gosto e requinte; terás bailes, festas ruidosas e magníficas; amarás loucamente; serás doida­mente amada por um homem, novo e belo; os vos­sos amores serão interessantes como uru drama; mas para isto serás forçada a enganar teu marido e descuidar teus filhos, e a tua existência será pecadora perante a religião, injusta perante a moral, indigna perante a família. – Aceitas?» Trata-se de saber se a moral contemporânea dá bastante força a uma alma, para que ela repila, sem mágoa, sem hesitação, com tédio – esta ten­tação cintilante.

Há muita gente ingénua que supõe que uma grande consideração para a mulher – é o terror da catástrofe. Pueril ingenuidade. Nada tem um encanto tão profundamente atraente como a catástrofe. Ela satisfaz o desejo mais violento da alma – palpitar fortemente. O que se evita hoje, nesta excitação do mundo, é o terra a terra, o tri­vial, a chinela, a tranquilidade, o palito nos dentes, e a virtude plebeia. O que se pede é a comoção, a sensação, o sobressalto. Uns procuram-na na polí­tica, outros no deboche, outros nas conspirações, outros no amor, outros no dinheiro. Um nego­ciante dizia um dia a Proudhon: Há um prazer horrível em um homem se sentir falir! Esta pala­vra monstruosa contém a explicação de um mundo. Toda a literatura, teatro, romance e ver­sos educam neste sentido: vibrar, sentir forte­mente. Nós mesmos, que estamos aqui morali­zando, escrevemos ambos um livro deplorável, que juntava à insignificância literária, a esterili­dade moral – O Mistério da Estrada de Sintra. O que é esse livro? A idealização da catástrofe, o encanto terrível das desgraças de amor. Sobre­tudo do amor ilegítimo e culpado. Aí o perigo, o final trágico, atraem como um abismo delicioso. O marido que mata a mulher, pensando dar um castigo justo ao pecado, dá um relevo poético à paixão. O conde du Bourg, ultimamente, em Paris, mata sua mulher: ela não morre das feri­das: e subitamente, torna-se uma espécie de anjo veemente dos amores ilegítimos, e a porta do hos­pital onde a recolheram à pressa para os primei­ros socorros (fora ferida em casa do amante) está apinhada de senhoras, de elegantes, de mundanos, que pedem notícias dela, deixam-lhe os seus bilhetes, e vão às igrejas pedir a Deus que a salve da morte.

Quem irá nunca orar às igrejas ou deixar o seu bilhete à mulher obscura e pacata, que no silêncio da sua casa cumpre prosaicamente, subli­memente o seu dever? E que a nós só nos excita, nos exalta, o drama! O drama, eis o nosso ideal. Fazer drama, eis a nossa perdição. Pelo drama desejamos a morte e cometemos o mal. Por ele nos lançamos nos destinos violentos. Ora o homem tem para fazer drama – a guerra, as revoluções, os duelos, os livros, e mesmo (infelizmente para muitos empresários) o próprio teatro. As mulhe­res, confinadas no mundo do sentimento – têm apenas o amor!

 

Abril 1872.

Supõe, querido concidadão, que no escuro iso­lamento de uma estrada, eras uma noite ata­cado por dois ladrões. Preparas-te para lhes deixar nas mãos, amigavelmente, o teu relógio e a tua bolsa de trama de prata. Mas os senhores ladrões pretendiam a mais um pequenino diverti­mento – que era crivar-te de facadas. Estás num momento deplorável... Sente-se de repente o trote de cavalos. E uma patrulha, uma ronda de segurança! Chega, dispersa à pranchada os senho­res assassinos, e restitui-te à vida, aos teus negó­cios, aos beijos dos teus pequerruchos, ao Grémio e aos teus vícios. Certamente entras em casa trasbordando em gratidão sentida. Que excelente patrulha! Que bravura, que prontidão, que deci­são! Que gente!

E no dia seguinte, ao teu almoço, recebes um papel dobrado, onde está escrito:

«Deve o senhor fulano à patrulha nº tantos por socorros prestados na estrada de tal– 27$000 réis!»

Que dirias tu, concidadão amado?

 

Tal foi um caso recente. Uma pequena embar­cação acha-se em perigo à barra. Era de noite, escuro mar e escuro céu. A torre de S. Julião dá tiros de «alarme», a pedir socorro. Mas a embar­cação escapa-se à vaga e entra o rio, salva. Era uma bateira. No outro dia recebeu esta conta:

«Deve o barco tal, à torre de S. Julião, pelos tiros de ontem – 2$400 réis.»

 

Ora a Torre de S. Julião, avisando o porto, por meio de tiros, da iminência de um perigo, cumpre um dever estrito de polícia: e portanto apresen­tando ao barco protegido a conta somada dos seus serviços – cai na inexplicável singularidade daquela patrulha que te salva, concidadão. Esta patrulha argumenta assim: o senhor podia ser roubado e não foi, estava eu aqui, de capote de oleado, a rondar: o Estado paga-me por isso 360 réis diários: deve mais o senhor 4$800 réis!

Esta nova interpretação do preço da segurança vai transformar radicalmente os costumes: o bombeiro reclamará do incendiado a despesa de esforços e de trabalhos que adiantou: o salva-vidas apresenta, sorrindo, ao náufrago, uma conta em que somando as ondas e as forças de remo – exige 7$200 réis por afogado. O farol faz sus­pender a marcha dos navios e destaca o esca­ler com a conta: tanto de gás e tanto de boa vontade.

Animadas salutarmente por estes exemplos, a caridade e a filantropia abandonam o idealismo estéril do seu desinteresse – e reclamam salário. Um cidadão escorrega, outro ajuda-o a levantar, e atira-se logo para uma loja de papel a redigir a conta da sua acção piedosa. Um homem cai ao mar e o barqueiro decidido que o salva, apresen­ta-lhe, com grandes felicitações, este papel:

Por me ter molhado, 1 $000 réis.

Por ter nadado, 15200 réis.

Por ter de mudar de fato, 800 réis.

Por secar este, 350 réis.

Deve o senhor ex-afogado – 3$350 réis.

 

Uma coisa porém nos perturba, neste sistema judaico da torre de S. Julião. E é que sendo ela tão escrupulosa que não adianta, por caridade, de graça, um tiro de pólvora – é evidente que há-de por todos os modos pretender evitar que a sua despesa não seja integralmente paga. A ilustre torre não pode querer decerto que a caloteiem! E decerto só adiantará os seus tiros com segu­rança de exacto pagamento! Mas como faz a ilus­tre torre para conhecer da honradez dos seus navios? E de noite com um céu negro, um mar bravio, um vento ululante, o barco é apenas uma forma indistinta na água inclemente. A ilustre torre não pode saber se ele é uma rica galera inglesa de largo crédito – se uma pobre muleta de pescadores, proletária das águas.

Como distingue a preclara torre? Ela não pode fiar os seus tiros, ao acaso. Imagine-se que sal­vava apenas alguns miseráveis varinos de gabão esfarrapado! – Sua senhoria perdia a sua pól­vora! Também perante um navio em perigo, ela não pode dizer ao vento que se retraia, à vaga que detenha o seu salto, à rocha que se afaste –para ter tempo de perguntar ao capitão: «quem dá vossemecê por fiador?»

Lúgubre embaraço!

 

Por outro lado é bem possível que nem todos os preços convenham ao navio. Um náufrago tem direito a ser salvo, por preços cómodos. Pode querer regatear. E a torre anda imprudentemente adiantando trabalho, morrão e pólvora por uma embarcação aferrada aos cobres, que depois se recusará e dirá: «Não, eu não pedi para ser salva por esse preço; tenho mulher e filhos, não o vou roubar à estrada; a senhora torre, se atirou, foi porque quis; quem lhe encomendou o tiro?»

E a venerável torre seria caurinada.

 

Parece-nos isto, pois, um negócio em que a torre pode perder muito. E com ela o Estado! Porque evidentemente o Estado recebe avida­mente o preço da pólvora gasta. Nem podia dei­xar de ser. Não estamos numa situação de tal prosperidade que possamos, com a imprevidência de trovadores – gastar 2$400 réis para salvar vinte vidas. Nós damos frequentemente, nos cas­telos, nas torres do mar, nos navios, salvas de 21 tiros; mas para celebrar os dias de gala e honrar as esquadras ricas que nos visitam. Gastamos com esse luxo contos de réis de pólvora – mas para sermos uma nação janota. Para salvar uma tri­pulação não podemos gastar a mais 2$400 réis. Meia moeda por doze vidas! Dois tostões por vida, é muito.

Não podemos ter a caridade gratuita. E neces­sário que o náufrago largue a espórtula. «Tu, pobre barco, estás aí nessa demência da água impiedosa, torce-te o vento, ladra-te a onda, espe­ram-te os rochedos; vens cheio de água, é de noite, e estamos nós sós, tu, barco perdido, eu, torre salvadora; vais-te despedaçar, vais morrer. Ora muito bem... Quereis viver, vós tripulantes, ir para vossas casas tranquilos, para os conten­tamentos da vida, para o bom sol do dia, tu que és novo, para a tua noiva, tu que és velho, para a tua filha? Dai para cá três moedas. Se sois miseráveis, vendei a rede, o barco, as amarras, mas passai para cá a quantia!

Com tais falas, tão lógicas, é impossível que o barco – não largue os cobres. E o Estado não perderá o seu tempo e a sua pólvora.

Tudo para maior grandeza deste País, onde as vinhas florescem, e Osório medita.

 

                                     Abril 1872.

No Porto os missionários têm ultimamente reco­mendado, às pessoas devotas que se vão confessar – a casa deles missionários! Sendo as mulheres as que mais beatamente se acolhem à direcção espiritual de suas senhorias, esta reco­mendação toma desde logo uma significação sin­gular e diabólica.

 

O dispensar o templo e o altar na prática dos sacramentos – eis uma nova doutrina teológica e católica, infinitamente original. É a radical inuti­lização do culto. Se um senhor missionário deter­mina confessar na sua alcova – porque não há-de o senhor pároco dizer missa, na sua sala de jantar?

A Igreja e a sua santa decoração, as imagens consagradas e os vasos, as aras e os sacrários, tornam-se inúteis, e começam a ser como as árvo­res ou como os teatros, um regalo da cidade, e um ornato do município. A religião abandona os templos – e hospeda-se na casa particular dos senhores padres. Suas senhorias tomam o culto uma ocupação doméstica. Pela manhã armam a mesa em altar para a missa, e à noite põem-lhe em cima, para a ceia, a caneca vidrada, com vinho. Penduram a toalha ao pescoço do devoto que vai comungar, e enrolam-na depois ao seu próprio cachaço para fazer a barba. Os utensílios da casa servem de alfaias do culto. Como a alcova é con­fessionário, o púcaro da água é cálice. Para os santos óleos emprega-se o azeite que se emprega para a pescada. Os cadáveres serão levados a casa de suas senhorias e responsados na capoeira ou na sentina. E a criança ao entrar na vida e no cristianismo, será baptizada na pia da cozinha do senhor abade!

 

Tal é a inovação dos senhores missionários. No Porto a opinião irritou-se porque viu, nesta ordem dos excelentes padres, um plano canónico para organizarem comodamente os seus prazeres.

O Porto equivocou-se. A recomendação inespe­rada, dos senhores missionários, é simplesmente a aplicação de um princípio que é hoje dominante no espírito do beatério.

O beato, a beata, na religião, não respeitam a divindade, respeitam o sacerdote. Não prestam culto ao Deus, prestam culto ao padre. Para espí­ritos embrutecidos, tais como os forma a devoção fanática, Deus é alguma coisa de incompreensível, de vago, de perdido no fundo dos Céus: pelo con­trário o padre é o sempre presente e o sempre visível. E o padre que os confessa, os comunga, os penitencia, os doutrina, os guia. De sorte que, lentamente, todo o poder, toda a sabedoria, toda a santidade a atribuem ao padre. Deus está num indefinido misterioso, na profundidade dos firma­mentos: o padre está ali, na sua rua, ao pé da sua casa, sempre pronto, e torna-se assim um Deus ao alcance dos sentidos e ao contacto da mão. Veja-se uma beata ou um beato diante de um padre: beija-lhe a mão com temor, conserva os olhos baixos e aterrados, respeita-lhe a casa como um templo; se entra a porta faz mesura como diante do sacrário, não se atreve a contradizê-lo – como à mesma sabedoria; julga-o impecável, cândido e perfeito; e toda a filosofia, desta ado­ração profana, está no grito pavoroso daquela beata: «ai! maldita seja eu, que sem saber, enxo­tei o gato do senhor abade!

 

Portanto os senhores missionários, costumados a serem tratados como Deus, fazem naturalmente das suas casas igrejas. Continuam logicamente a santidade que o beatério lhes atribuiu. O lugar que habitam julgam-no consagrado. E é com uma sinceridade ingénua que eles confessam nas suas alcovas – e dirão talvez missa na sua cozinha.

Somente, com todo o respeito, perguntaremos aos senhores bispos, se não têm, entre os direitos da sua autoridade, a interdição – e aos senhores governadores civis se não têm, entre os edifícios do seu distrito, a cadeia. E ficaremos tranquilos.

 

                           Abril 1872.

Como mudam os tempos! Há cinquenta anos, na Península, o Legitimismo governava triunfalmente, e apenas, pelos montes, nos des­povoados, alguma guerrilha constitucional, mal armada e mal mantida, perseguida com mais ran­cor que um lobo, protestava, em nome da vaga e indefinida deusa que tem entre os homens o nome ininteligível de Liberdade, a raros tiros de espin­garda. Hoje, ai! o constitucionalismo de guerri­lha fez-se exército, apoderou-se do Estado, estabe­leceu-se no Tesouro, e é o legitimismo que anda agora a monte na Navarra e na Biscaia.

 

Nós somos neutros – inteiramente neutros, entre Carlistas que pretendem a Espanha, e Cons­titucionais que a possuem. Parece-nos que ambos têm razão, porque a Espanha é um país rico e belo, e deve ser bom possuí-la. Nós dois, pela nossa parte, se tivéssemos armas, guerrilhas, munições, um empréstimo e um partido, também iríamos, ao ruído dos tambores, de bandeira ao vento, reclamar a Espanha. O mesmo Sr. Melício, se tivesse um exército e artilharia, também que­reria a Espanha para si. Teríamos então o Meli­cismo. O que coíbe o Sr. Melício é não ter arti­lharia.

 

Somente, apesar da nossa neutralidade, não podemos deixar de notar a atitude feroz dos padres nesta guerra carlista. São curas que comandam as guerrilhas. São eles que pregam, fanatizam, armam, guiam, atacam. E é singular como mãos imaculadas e costumadas à hóstia têm tanto vigor para a clavina.

Já um poderoso filósofo fez notar que o tem­peramento do padre é inclinado a fazer sofrer. Está na memória de todos os Cristãos, pela tra­dição do Evangelho, a subtil, a ferina crueldade dos fariseus, que eram sacerdotes. O padre impele à guerra. As matanças de mouros, turcos, albigenses, luteranos, judeus, cristãos-novos, que encheram a história de sangue, foram pregadas, dirigidas, executadas por padres. A inquisição é eclesiástica. A Igreja pôs ali, na invenção dos tor­mentos, toda a subtil habilidade que tinha posto na argumentação da casuística.

Os processos de feitiçaria deram aos padres ocasião de acender, durante dois séculos, uma fogueira por dia. Os cilícios, contas de pregos, disciplinas, são de origem devota. Depois do corpo a alma. Pela penitência, pelo confessionário, os padres gostam de fazer chorar, sofrer, amar­gurar, tremer de medo. Sobretudo às mulheres. Oprimir parece ser o instinto do sacerdote. Nas guerras civis são os primeiros a armar-se – e sem querer procurar nos seus hábitos, na sua educa­ção, no seu temperamento, a secreta explicação destas tendências sanguinárias, não é talvez intei­ramente inútil contar uma história verídica e lúgubre, que caracteriza, com poderoso e melan­cólico relevo, a ferocidade eclesiástica nas lutas civis.

Era no tempo das guerras de D. Miguel. Um homem, ainda hoje vivo, constitucional, tinha sido ferido. De miséria em miséria, conseguira reco­lher-se, esconder-se num povoado, em casa de umas pobres mulheres velhas. Boa gente, piedosa, assustada, consumida pelos terrores do tempo. O homem convalescia. Começava a erguer-se, a vir à porta, ao sol, tiritar debilmente a sua fra­queza. Um dia as duas mulheres apareceram numa grande aflição. Tinha chegado ao povoado o Bata­lhão Sagrado. O homem fora denunciado.

O Batalhão Sagrado era composto de padres armados de clavinas e foices. Era a guerrilha idiota do assassínio. Longe das suas igrejas, desembaraçados dos votos, na liberdade da serra e dos caminhos, ávidos como animais soltos, de clavina ao ombro, iam estes sacerdotes levando através das povoações – uns a cólera bestial do seu fanatismo, outros a violência animal da sua sensualidade, todos uma lúgubre e temerosa opressão. Eram temidos mais que todos os fla­gelos. Matavam e prendiam. E a prisão era pior que a morte – porque era a tortura requintada e monstruosa. As duas mulheres tremiam ao pé do doente.

 

– Bem – disse ele – vossemecês em todo o caso não têm que temer. Se os padres vierem eu cá estou. Apresento-me, digo que estava aqui contra a vontade das senhoras. Atiram-me para um canto e acabou-se. Estou fraco, não me há-de custar muito morrer. Se dessem busca à casa e me achassem para aí escondido, davam cabo de mim da mesma maneira, e vossemecês padeciam. Assim é melhor. Eu cá estou.

As mulheres choravam, queriam escondê-lo; o homem recusou com a indiferença de um vencido. Daí a pouco o Batalhão Sagrado, com grande ruído de armas, aparecia ao pé da casa, de batina arregaçada, cruz na mão, foice ao ombro.

O homem saiu e disse tranquilamente:

– Aqui estou, sou eu. – Então dois padres, aproximaram-se: cada um o tomou por um lado do rosto, pelas barbas, rindo, e com um empuxão terrível arrancaram-lhas! O homem caiu no chão. Os padres amarraram-no com cordas em cima de um macho, e partiram com ele vitoriosamente, cantando o Bendito, para as prisões de Almeida. A jornada durou dias. Era no Verão. Os ásperos caminhos ardiam de sol. O homem levava o rosto em chaga, com um contínuo suor de sangue. A poeira, o sol, calcinavam-lhe as feridas. Levava as mãos amarradas, e as moscas picavam-lhe a carne viva. Quando chegavam às tabernas, os padres atiravam ao homem um pedaço de pão. De vez em quando, por desfastio, espancavam-no, picavam-no com as pontas das baionetas. A infla­mação fazia-lhe nas feridas uma dor pungente, que o pobre homem, domando o orgulho, pedia que lhe mitigassem com água fresca. Os padres então, com grandes risadas... Não pode ninguém escrever o que faziam os padres do Batalhão Sagrado, para refrescar aquelas feridas! Ao che­gar à cadeia, atiraram-no para cima de uma esteira.

Quando voltou a si, um homem estava debru­çado sobre ele. Era um enfermeiro de acaso, um preso também, um compadecido daquela des­graça. Esse preso piedoso não era um vencido político. Era um assassino. – E foi ele que curou as chagas feitas pelos senhores padres do Bata­lhão Sagrado.

 

                           Julho 1875.

Na viagem memoranda e vitoriosa que Sua Majestade El-Rei fez às províncias do Norte, as cidades e vilas observaram uma singu­lar táctica: disfarçaram-se. Mal Sua Majestade se avizinhava, as localidades cobriam-se, como de um dominó administrativo, de arcos de murta, bandeiras, festões, ramos de louro, colchas de damasco, dosséis de paninho, lanternas, e fumo de foguetes. A senhora localidade ficava assim escon­dida, despercebida, agachada, mascarada, trasves­tida, sob a decoração de verduras fatigadas e de damascos desbotados. Ora as cidades e vilas deviam saber que Sua Majestade não foi às pro­víncias do Norte para se divertir!

O Minho tem, sim, uma paisagem original, murmurosa e profunda. Mas Sua Majestade conhecia o Minho e o encanto das suas sombras, e não é conjecturável que para se refazer dos tédios emolientes da sua capital, fosse buscar a Laundos ou a Bouças a fina flor das sensações. Aquela viagem não era um suave regalo, era um fatigante dever; e Sua Majestade ia, pelas monó­tonas exigências do seu cargo, examinar o estado das províncias, ver a sua civilização, a sua ordem, a sua vida na agricultura, nos estabelecimentos, nos costumes, na feição das ruas. Não nos parece, pois, coerente, que cada localidade – em lugar de se mostrar em toda a sua realidade e verdade –se disfarçasse, se embuçasse em murtas, louros, verdes, festões, alfazemas, de modo que Sua Majestade poderia, perante aqueles aspectos folho­sos, supor-se – não reinando sobre um país –mas governando um caramanchão!

Para honrar a presença do Rei e glorificá-la, lá estavam as multidões, o seu aspecto festivo e amorável, e as vivas glórias das aclamações. As colchas eram inúteis. Não se desejava saber a opinião das colchas. Sua Majestade preferiria sempre um bom grito alegre que saúda, à fileira dos ramos secos que pendiam mesquinhamente na amarelidão da poeira. Detrás daquelas galas de arcos e de colchas, melancólicas como esqueletos de triunfo, ocultavam-se como um muro velho por trás de uma trepadeira florida, as casas sujas e velhas, as ruas latrinárias, a infecção das cadeias, o escuro desleixo dos quartéis, a negrura das tabernas, a imundície das repar­tições, a acumulação dos enxurros, a pobreza estagnada das lojas – e se Sua Majestade afas­tasse o ornato administrativo – encontraria a miséria pública!

 

Em compensação a localidade, mal chegava el-Rei, punha a mesa. Não o deixaram examinar, respirar, estudar, escovar o pó. Jante! E os pro­prietários arrastavam-no, debaixo do pálio, para a pesada pompa das merendas minhotas. Não lhe mostraram uma quinta, um estabelecimento agrí­cola, uma fábrica, um edifício, uma paisagem, uma obra de arte, uma ideia – mostravam-lhe silenciosamente a perna de vitela. Faziam-no via­jar, de mesa em mesa, por entre uma paisagem de colchas. Os srs. proprietários não supuseram que Sua Majestade fosse um espírito, uma curiosi­dade, uma observação – supunham só que era um estômago: ele vinha, dobravam os negócios, e desdobravam a toalha.

A província do Minho, de grande e gordo ali­mento, supõe que Lisboa amarelada e débil não come. Àquele que chega de Lisboa apressa-se a gente estimável – a fartá-lo. Com Sua Majestade o cuidado foi tão exaltado que lhe deram bois vivos. Algumas câmaras desejariam substituir a cerimónia gótica da entrega das chaves – pela entrega dos bifes. Porque todos, naquelas pitores­cas vilas de remotas e decrépitas ideias, supu­nham que Sua Majestade não fazia uma viagem política, mas uma excursão alimentícia: e que Sua Majestade, a respeito dos povos – não lhes queria o amor, queria-lhes o lombo. Além disso, muitos ingénuos daqueles lugares frondosos, que­rem ser barões; e supuseram que a melhor maneira de atrair a boa vontade de el-Rei, não era à custa de acções valiosas, mas a doses de carne assada. E tanto fizeram nesta recepção suculenta – que Sua Majestade poderá muito bem trazer esta ideia das suas províncias do Norte – que elas não são nem florescentes, nem decadentes – que são apenas indigestas. E invejam-se os Reis!

 

Quantas singularidades, nesta viagem, da parte das câmaras! Um pouco antes de Vila do Conde – na estrada, à passagem do Rei, erguia-se este ornato: um palanque – um palanque! – com um mestre-escola cercado dos seus discípulos, funcio­nando. Decoração inesperada! As escolas até aqui tinham sido quase tudo, desde enxovia até cur­ral: só não tinham sido duas coisas – escolas e arcos de buxo.

Mas ei-las agora substituindo galhardamente, nas estradas armadas em gala, a coluna de lona do tempo de D. João VI! A câmara escolheu delica­damente a escola para enfeite: podia pôr ali uma filarmónica ou um mastro: preferiu a escola. A instrução torna-se festão de luxo; o ensino arma-se em quadro vivo! Que dizem os livros e os espíritos sentimentais que a escola é civilização, é paz, é futuro, e tantas sonoras imaginações! A escola é ornato municipal, é arrebique de festa, para armar as ruas, enfeitar os largos em vésperas de S. João e nos aniversários da Carta. É uma revelação, isto. A câmara tinha ali aquela escola, não lhe servia de nada, extinguia-se mesquinhamente a um canto, sob c lento bolor. Pois bem. Tira-se a escola da sua inércia, escova-se, arma-se sobre um palanque, põem-se os meninos em Posi­ções estudiosas, arranja-se o mestre com gravi­dade pedagógica, põe-se-lhe rapé novo no nariz, enverniza-se a palmatória, espera-se; ao longe, na estrada, a poeira enovela-se: – é El-Rei, sentido! Os trens rodam surdamente no macadame, já se vêem os bordados das fardas, ei-los! E como se poderia erguer nos tambores e nas trompas o hino – ergue-se nas bocas estudiosas o B-a-ba. Eis o ABC hino municipal! No dia seguinte os festejos murcham, desfazem-se os arcos, des­pregam-se as luminárias, desarma-se a escola – e tudo, lamparinas, livros, ensino e ramos de louro, volta a apodrecer nos sótãos da casa da câmara!

Achou-se enfim, às escolas, um fim, um des­tino, uma utilidade: ornatos de gala. E espere­mos que na próxima viagem de El-Rei ao Norte, seguindo-se o exemplo inteligente de Vila do Conde – os jornais digam:

«A estrada de Penafiel a Amarante estava bri­lhantemente adornada de escolas primárias: de espaço a espaço, sobressaíam, com lindo efeito, liceus: havia ideia de pôr no topo a Universidade – mas este notável estabelecimento científico –não chegou a tempo!

Oh, terra do nosso berço!

 

No entanto os jornais sérios comentavam a viagem de el-Rei: e nas suas colunas circunspec­tas puderam-se ler, com sobressalto, estas linhas textuais e extraordinárias:

«Foi uma providência mandar para (nome da localidade, vimos Penafiel, Vila do Conde, Vila Real, etc.) um regimento – por ocasião da pas­sagem de Suas Majestades, porque se não poderia prever onde chegaria, sem a enérgica interferên­cia da força pública, o entusiasmo das populações ao avistar a real família.»

E em Lisboa, tremíamos, com apreensões pun­gentes. Aquela palavra, cheia de prudência, fazia-nos suspeitar nas povoações do Minho – pavorosas espécies de entusiasmo. Para o reter marchavam providencialmente os regimentos e mordiam-se os cartuchos. Lembrava-nos aquele legendário rei mouro que, possuído de um amor sobrenatural pelo seu serralho, o mandou retalhar ao fio de alfange. Lembrava-nos o amor do leopardo, que nos meses magnéticos em que o seu pêlo faísca no fulvo ardor dos juncais, rasga e dilacera a fêmea. – Para que escondê-lo? Temíamos, sim, que pelo dizer dos jornais inteligentes – onde Sua Majestade fosse recebido apenas com agrado – ficasse apenas contuso. – Mas que nas povoa­ções, onde o recebesse um entusiasmo exaltado... ah! receávamos ler, em notícias daí:

«Na nobre povoação de tal, o entusiasmo e a ovação cresceram ao entrar el-Rei sob o pálio. Os membros de Sua Majestade, dilacerados e espa­lhados em poças de sangue, pela estrada, teste­munhavam o amor dos habitantes pelo neto de D. Pedro IV! O senhor infante D. Augusto, com­preendido no amor do povo, teve também a sua parte de ovação e lá está – partido ao meio!»

Tais são os jornais sérios! Tal tu foste, Comér­cio do Porto, excelente folha sonolenta!

 

Folha de tédio, folha grave e oca,

Quem tão soturna, te espalhou na rua?

 

Aconteceu, pelas estradas que Sua Majestade percorreu, que, às vezes, saía ao caminho um homem de casaca ou uma mulher de branco; pedia ao Rei um instante de demora, desembru­lhava um papel – e lia uma ode ou uma fala. Este procedimento, inaugurado no Minho, agora inocente, gracioso, singelo, pode tornar-se, com o tempo, fatal. Se Sua Majestade não se recusar a estas leituras de estrada, pode ver um dia o seu caminho ladeado de autores impacientes, repletos de manuscritos. O furor da publicidade desvaira. Tendo possibilidade de fazer parar o Rei, o seu séquito, o povo, e formar assim um público, o pensador da província salta à estrada, desdobra a prosa e acomete. Quem tiver um livro manus­crito, mete-o na algibeira, senta-se numa pedra, e espera a família real.

Ora não é justo que quem nas províncias tiver composto, em noites trabalhosas, uma peça lite­rária, se julgue obrigado a não privar dela o Rei. A viagem de Sua Majestade não é a edição gra­tuita dos poemas da província. O proprietário imprudente que tiver nutrido no seu seio uma ode, que a afogue, mas não saia com ela à estrada. Saia antes com a clavina. El-Rei partiu confiado no amor dos seus povos, desprevenido; não deve encontrar à esquina de cada muro a face pálida de um poeta inédito. El-Rei julgava as estradas seguras. Quando muito podia supor que encontraria lobos. Vates, não.

A condescendência de Sua Majestade pode ser-lhe fatal. Quando vir despontar o sujeito inspi­rado, faça romper a galope. Não são de mais todas as forças de uma parelha – contra todas as ameaças de uma ode!

Se consentir em parar, perde-se. Sua Majes­tade não sabe do que é capaz a poesia de provín­cia. – Começam suavemente pela ode, e termi­nam pelo volume. Sua Majestade vai num plano inclinado com a sua imprudente bondade. Con­sentiu em ouvir uma fala de júbilo – terminará por ouvir um tratado de aritmética.

E ainda poderá acontecer que um dia, indo Sua Majestade incautamente, por uma estrada, recostado na sua caleche, veja surgir de um recanto um homem pálido, que estenda a mão e diga, lendo: Por uma bela tarde de Verão dois cavaleiros embuçados em capas alvadias, subiam a encosta alpestre do monte, discreteando de coi­sas de amor... Isto, real senhor, é o meu romance Isaura ou a Vingança do Mouro, em 3 volumes. Eu continuo!

 

Quando Sua Majestade chegou a Vila do Conde esperava-o uma pompa singular. Era uma delicadeza da câmara. Estavam na estrada, for­mados em alas, respeitáveis – 160 bois!

Não queremos escandalizar o boi. Muito menos o boi do Minho. Este animal enorme, gordo, luzi­dio, atlético e meigo, é o melhor boi das criações de Portugal; poderoso trabalhador, carne tenra, riqueza dos prados, maravilha dos mercados de Londres. Mas se estimamos o boi nas calorosas fadigas do arado; se o apreciamos na placidez das paisagens planas; se o contemplamos amoravel­mente – destacando, no silêncio das sestas, entre as altas verduras ou no descorar do ocaso, quando já se eleva a quente exalação do prado e se começa a ouvir o canto dos sapos, e voam as bor­boletas pardas – movendo-se para o curral na fila mugidora e lenta; – se o amamos mais tarde – com mostarda e bordéus – ai! apreciamo-lo muito limitadamente – em alas. Em alas só sol­dados num aparato militar, irmãos do Santíssimo com tochas, ou renques de árvores na terna tris­teza das alamedas. Bois, não. Para quê?

Senão, digam-nos: – Para que estavam ali? Em que qualidade? com que intenção? Como bois, não. O boi está nos campos, ou no prato. Em alas nunca. Em que qualidade se perfilavam, espe­rando, na poeira da estrada? – Representavam como polícias, para conter em alas a multidão impaciente? Estavam como curiosos? – Porque então, sendo assim, evidentemente se abre uma época inesperada nos destinos do boi! Se eles podem policiar, à orla das estradas, à chegada de um cortejo, então, é talvez económico, conve­niente e seguro – que Lisboa e Porto substituam a polícia civil – pelo gado bovino. O boi é mais sólido, mais sóbrio, mais duradouro e sério que o polícia. Não seria o boi que levaria a sua tarde vigilante, em atitude namorada, diante da criada da esquina; não seria o boi que entraria no fuma­cento ruído da taberna, a parceirar com os homens do fado. Não. Mas tinha inconvenientes. Seria o boi respeitado? Ah! é bem certo que se poderia ler nas gazetas aterradas: Ontem um bando de facínoras agarrou o policia º6, todo preto com malhas, e assou-o no espeto. Providên­cias, sr. comissário!» – Ou ainda: «O Café Cen­trai acaba de fazer aquisição do polícia nº20, cas­tanho, e tem-no à disposição dos seus fregueses para ceias e almoços. Informam-nos ser da mais tenra a carne deste agente da força pública».

Por outro lado, se o boi estava ali como curioso, para ver o cortejo real, que revolução nos seus hábitos! O boi começa a atender às coisas da civilização. Interessa-se, interroga, examina, aprende. Ei-lo observador, leitor, espectador. E o boi que vai ver passar o Rei, leva-nos logicamente ao boi que vai ouvir cantar a Lúcia. Ei-lo nos teatros, sentado, com uma camélia na papeira, luva gris na pata, correndo o binóculo pelas gazes enganadoras do corpo de baile. Ei-lo cheio de impressões, de desejos, de vida social. Ei-lo no Grémio, ei-lo conversando de perna dada, com o Sr. Melício, na augusta sombra da arcada. Ei-lo nas locais: «Ontem foi pedida em casamento a filha mais velha da Sr.a Viscondessa de... por um dos mais elegantes e conhecidos bois da nossa sociedade. Parabéns aos noivos». Ou também: «Vimos ontem, um dos bois nossos amigos, com a sua gentil noiva, a condessinha de... passeando em Sintra nos Setiais. A gentil noiva, graciosa como sempre, estava de cor-de-rosa. Seu esposo, aquele boi tão elegante e tão crevé que nós todos conhecemos, hoje dado todo à família, ia junto da sua interessante esposa – pastando!»

Oh! bois!

Ah! se por acaso Sua Majestade El-Rei via­jasse pela aldeia, numa digressão agrícola, a pé, seria pitoresco, de uma bela e nobre simplicidade, fazê-lo entrar nos prados, entre as possantes jun­tas de bois suados do trabalho. Mas numa estrada, numa viagem política, numa recepção oficial, os bois misturados com as autoridades, a anca do Ruço roçando a farda do Sr. Administrador, a cauda do Ligeiro fustigando a suíça do Sr. Rece­bedor da Fazenda!... Dir-se-ia que os bois faziam parte da deputação da vila, e que, quando o Sr. Presidente da Câmara, na sua alocução, disse nós, se referia – às autoridades e ao gado: e cer­tificava ao Rei que era bem recebido e querido – dos cidadãos e dos bois.

Se por acaso, porém, os bois estavam ali como ornato, arrebique, com a mesma intenção com que estariam arcos de buxo, parece-nos impru­dente da parte de Vila do Conde substituir as grinaldas de verdura – por animais de carne. E inconveniente adornar uma estrada com carne crua. Pode ser um funesto exemplo. A vila seguinte, querendo rivalizar em galas, pode ador­nar as ruas com carne cozida. E encetando-se estes festejos de carne, pode suceder, desastra­damente, que no futuro, numa povoação exaltada – em lugar de atirarem a Sua Majestade flores, lhe atirem almôndegas!

 

A ovação tão espontânea, tão bela, feita a Sua Majestade no teatro do Porto, teve um singular final. Os mancebos elegantes, dizem os jornais, que, numa grande aclamação, acompanharam o carro de Sua Majestade – ao chegar ao Paço des­piram as suas casacas pretas e estenderam-nas no chão, para El-Rei passar por cima.

Srs. mancebos, achamos equívoca esta demons­tração! Os srs. mancebos costumam, aí no Porto, fazer às vezes essa estrada de casacas pretas aos pés mimosos de uma dançarina ou de uma con­tralto famosa: não era lógico que a repetissem a El-Rei. Os entusiasmos políticos pelos reis devem diferir na essência dos delírios nervosos pelas actrizes. Numa ovação a uma dançarina há fan­tasia, exaltação, boémia, aparências de orgia, bebeu-se nos entreactos, tem-se os nervos impa­cientes, vem-se da luz do gás e do pó de arroz dos camarins, ha uma ponta exigente de amor, ela sorri, atira beijos, os seus olhos, gulosos de ruído, cintilam sob o capuz de cetim, rasga a luva em relíquias; grita-se, está-se febril, estroina, absurdo, e quando ela desce do carro, atira-se com o paletó, com o lenço, com a vida, por violência, petulância de sangue, desordem de sensações, como se atira, na cascalhada de uma orgia, com as garrafas de champanhe aos espelhos melancólicos do restau­rante! Não é assim com Sua Majestade.

Vitoriar o Rei é uma afirmação política – não é uma estroinice ruidosa. Consciências de cidadãos que se afirmam, não são bambochas de estudan­tes que estalam. Não é o cidadão que está ali quando um homem despe a sua casaca, para que a dançarina tal pouse o seu pé subtil: é o rapaz, o estroina, o doido, o amante: não é o cidadão. Quando um homem aclama o Rei – é o cidadão que está ali; não é o namorado, nem o diletante, nem o estroina. Ora despir assim a casaca pode ser natural no estroina, não é digno no cidadão!

Ou Sua Majestade é recebido como um Rei –isto é, uma política, um princípio, uma ideia, e então deve ser aplaudido com dignidade, convic­ção, seriedade: ou é recebido como uma dançarina famosa e então não se lhe apresenta o pálio – dá-se-lhe uma ceia na Foz, na Mary, com cham­panhe por copos de água, lorettes encomendadas e o bacará da madrugada.

Sua Majestade foi ao Porto ter a adesão dos cidadãos, e vendo as suas aclamações cerradas, as suas generosas alegrias, pôde julgar-se entre cidadãos honrados, de consciência séria, de auxí­lio seguro e forte, sólidas amizades para a sua dinastia. Mas, de repente, os sujeitos despem as casacas, como numa orgia – e Sua Majestade, que se supunha entre cidadãos, acha-se apenas entre pândegos! Ora Sua Majestade não viaja para recolher nas províncias a adesão da patus­cada!

Os srs. mancebos não se lembraram que ao lado do Rei ia uma Senhora – e que não é uso em tais casos mostrar as mangas da camisa. Para se cumprimentar a Rainha, não se toma a atitude familiar com que se faz a barba. Se entre os senhores é máxima – que quanto mais estima menos roupa – pedimos-lhes em nome do decoro que não estimem El-Rei de mais. Já o amam até ficar em mangas de camisa, não vão apreciá-lo até ficarem em peúgas! E o pudor que o pede, mancebos! Vós ides na amizade real e na toilette por um declive. A liberdade não vos pede tanto. Parai, temerários. Deixai-vos ficar de calças!

E sobretudo, meus senhores, não se mostra a um Rei que ele tem vassalos que julgam a sua casaca mais bem acomodada nas lajes da rua, do que no próprio corpo.

Por Deus! Os senhores não festejavam o 9 de Julho, que os senhores chamam o dia da liberdade? Pois bem; não é próprio festejar a liber­dade, com as maneiras da escravidão!

E, depois, uma consideração que há-de ferir os vossos espíritos, é que o pano preto está pela hora da morte! E que há pó, lama, sujidade na rua. E que podíeis arriscar-vos a que o dia 9 de Julho, não vos ficasse gravado no espírito pelas lembranças da liberdade – mas pelas nódoas da casaca. E seria terrível que o comentário desse dia não fosse a glória – fosse a benzina!

Acautelai-vos, filhos do Porto e do País.

 

                           Julho 1872.

Eis aí, espetada na ponta da nossa pena, mais uma proeza eclesiástica. Os senhores padres prodigalizam-se, e os seus feitos despertam a cada momento, com um rumor irritado, o silêncio da opinião. O País está com o clero, como um homem débil e nervoso que sente umas unhas compridas raspar a cal da parede. Encolhe-se, dobra-se, geme. E termina por mostrar aos senho­res eclesiásticos os seus dois poderosos punhos – fechados e impacientes.

 

Assim, que murmuração hostil em torno do sermão político do senhor prior de Belas! Real­mente o caso é característico. – Tínhamos o ser­mão galante – e aparece-nos agora o sermão polí­tico – ou antes, tínhamos o sermão obsceno e estamos em presença do sermão injurioso.

O sermão obsceno é uma particularidade minhota dos senhores missionários. Um de suas senhorias sobe devotamente ao púlpito, e depois das ave-marias murmuradas, olha pausadamente a multidão feminina, apertada e contrita, e com gestos sumptuosos, anuncia que vai tratar da cas­tidade. Tratar da castidade significa contar a que se arriscam, nos futuros infernos de além-vida, os que cometem os ternos pecados do amor. E então o senhor padre, revolvendo o assunto com a sofre­guidão com que um avaro revolve o dinheiro, dilata-se, explica, diz as palavras próprias cruamente, descreve, conta anedotas, especializa ati­tudes, faz certas proibições, marca dias, prescreve abstenções, divide as espécies, aprofunda, exal­ta-se, clama – e as mulheres coram. E a Corres­pondência de Portugal contava ultimamente que, num desses derradeiros sermões, o povo rompeu num grande tumulto indignado, e saiu do templo como de um lugar desonesto. Tal é o sermão galante.

 

Do sermão político deu-nos o senhor prior de Belas um exemplo acentuado e conciso. Sua senhoria debruçou-se levemente no púlpito, e a doutrina que ensinou foi que Vítor Manuel é um ladrão, e que é um ladrão o Sr. de Bismarck. De resto Pio IX é Cristo. O que nos encanta neste sermão é a originalidade. E o sermão artigo de fundo. Até aqui o sermão louvava o santo do dia ou comentava a festa sagrada; agora ataca a política e discute as dinastias. O padre é o jorna­lista de sobrepeliz. O púlpito alarga-se em tribuna. O sacerdote volta-se para o Cristo do altar e gri­ta-lhe: peço a palavra sobre a ordem. O clero sai do Céu, e entra na Arcada. Põe-se de parte Deus, e enceta-se o Sr. Braamcamp. – E leremos em breve nos jornais: «Tivemos ontem nos Már­tires um belo sermão de oposição!

E ouviremos, na Quaresma, o Sr. Melício, o reverendo Melício, pregar em S. Domingos sobre a questão do real de água!

 

Mas distingamos: o sermão do senhor prior de Belas não foi uma crítica política, foi uma difamação pessoal. O senhor prior não analisou historicamente, juridicamente, os actos de Vítor Manuel e as ideias de Bismarck; não: chamou-lhes simplesmente ladrões.

Isto significa que a nova espécie–o sermão polí­tico – é empregada não na crítica mas na injúria.

Quando se quiser comentar a política de um ministro lá está a imprensa, a tribuna, a confe­rência, o livro – isso é da competência pro­fana: mas quando se quiser injuriar o ministro, lá está o púlpito – isso entra na atribuição ecle­siástica.

O sermão político, seguindo o exemplo dis­cutido, nada tem com a crítica legal, parlamentar, científica; o sermão é sempre para o vitupério. Quem quiser uma apreciação sobre o Sr. Fontes, dirige-se à Gazeta do Povo: só no caso extremo de o querer injuriar, é que se dirige ao pregador: e este, revestido dos seus hábitos, sobe ao púlpito, e na presença das imagens, depois de se persignar e de tossir, com gesto devoto, fazendo ondear a estola – debruça-se e clama:

«Meus amados ouvintes, O Sr. Fontes é um ladrão. Peço um padre-nosso e duas ave-marias.»

Quando Monsenhor Oreglia, núncio apostólico de Sua Santidade, partiu para Roma, levou con­sigo, como um documento vivo e actual, a colec­ção das Farpas, cheias de história eclesiástica: «Hei-de dar isto a ler no Vaticano, e há-de fazer seu barulho», disse Sua Eminência. – E assim a crítica inquieta teve a honra de ir depor diante da imutável tradição! Pedimos a Monsenhor que deponha estas páginas verídicas, perfil exacto dos sermões portugueses, aos pés do Santo Padre – com a unção dos nossos respeitos e o beijo de paz nas suas mãos apostólicas.

 

                                   Julho 1872.

Na Foz, há pouco, voltou-se uma lancha. Mor­reram 14 homens.

Os socorros foram dados por uma lancha de pilotos, que se apressou corajosamente, e por outro barco, que veio, num risco agudo, da praia do Cabedelo. Conseguiram salvar 10 homens: 14 morreram.

 

A 10 passos do mar, repousava placidamente o salva-vidas. O salva-vidas não desceu ao mar. Fez como o Palácio da Torre da Marca, ou como a estátua de D. Pedro IV – deixou tranquilamente os pescadores na agonia das vagas. Entendeu que não era com ele. Eram apenas 14 homens que iam morrer afogados. Quem tinha obrigação de vir era a bomba dos incêndios. O salva-vidas, não. O salva-vidas só se moveria para algum caso especial, em que ele pudesse dar os seus serviços especiais – como, por exemplo, se tivesse desa­bado um muro.

Então correria. Assim, como era um naufrá­gio, o salva-vidas conservou-se imóvel, abobo­rando.

 

O salva-vidas da Foz tem um fiscal remune­rado e tem a Comissão do Salva-vidas.

Esta comissão, cujas atribuições ignoramos, revela às vezes a sua existência na prosa das gaze­tas. Lê-se: «Ontem reuniu-se a Comissão do Sal­va-vidas, em assembleia geral, para deliberar»; ou «Foi mandada louvar pelo governo civil a Comissão do Salva-vidas».

Destas deliberações e destes louvores resulta que, quando se volta uma lancha com 24 homens, morrem 14; resulta que tem de se aprestar, rapi­damente, na aflição, um barco casual, com homens voluntários e compassivos, que às vezes se volta numa violência de mar, e complica o desastre; e resulta que o salva-vidas, nem sequer finge. Podia descer, molhar-se, navegar um instante: não; conserva-se agasalhado na sua habitação onde, dizem rumores gloriosos, ele está embru­lhado em algodão, num cofre.

No entanto a opinião interroga o senhor fiscal. O senhor fiscal explica:

– Não saiu o salva-vidas, porque não há tri­pulação.

Assim foi muito tempo.

O salva-vidas não tinha tripulação. O Porto confiou sempre que o salva-vidas se tripulasse a si mesmo. Porque, enfim, um barco que tinha a forma, a construção aparente, o tamanho dos outros a que se chamava salva-vidas, devia ter qualidades originais, exclusivas, de excepção –e que naturalmente possuía o poder de se dirigir e de se tripular. E esperou-se sempre que, se houvesse um naufrágio, o salva-vidas se desamar­raria, se meteria cordas e cabos, se desceria ao mar, se remaria, se iria ao leme, e ele mesmo estenderia a proa, como mão salvadora e firme, aos náufragos desolados. Esperava-se isto do brio do salva-vidas. Vem um naufrágio. Bom! Abrem-se-lhe as portas e a comissão fica esperando que ele se espreguiçasse e corresse febrilmente ao desastre.

O salva-vidas não se moveu. – Está a dormir, disseram entre si, e sacudiram-no robustamente. – Agora, agora! murmuravam. Mas com um espanto aterrado, viu-se que o barco estava imó­vel, como num alicerce. Gritava-se na praia, e o grosso mar bramia. A comissão suava, pedia-lhe, increpava-o, cuspia-lhe: – o barco, inabalável, estendia a sua sombra bojuda sobre a quente ama­relidão da areia. Então a inteligência da comissão deu um grito e compreendeu – que para fazer navegar um barco é necessária uma tripulação.

Quando a comissão, em assembleia geral, afir­mou definitivamente esta ideia – foi que o gover­nador civil, surpreendido justamente por tanta agudeza e engenho – os mandou louvar, em por­taria. – E começou-se a procurar uma tripu­lação...

Mas aí foi a crise temida. Cada marinheiro, cada remador, convidado a comparecer, acerca­va-se do salva-vidas, apalpava-o, olhava-o, e recu­sava resolutamente. Foram chamados os afoitos, os destemidos, os heróicos. Torciam o barrete entre os dedos, e diziam secamente: – Menos eu!

A comissão tinha os cabelos brancos. A cada recusa afastava-se melancolicamente, e ia delibe­rar. Os naufrágios seguiam o seu curso trágico. O salva-vidas dormia.

Enfim um dia a comissão, exasperada, veio, em grupo, interrogar o segredo estranho. Apro­ximou-se do salva-vidas. Olhou e levou violenta­mente a mão ao nariz. O salva-vidas, o jovem salva-vidas estava podre!

Se descesse à água desfazia-se – foi a opinião dos peritos. E a comissão com o olfacto resguar­dado, saiu e continuou a deliberar. Sempre que uma lancha se volta a comissão reúne-se, e grave, delibera. E o senhor fiscal, concentrado e pon­tual, recebe o seu ordenado. A areia do Cabedelo reluz ao sol, as senhoras passeiam na Cantareira, as gaivotas voam, e os que naufragam morrem.

E de vez em quando o senhor governador civil, despertando do seu cismar, manda louvar a comis­são.

 

                         Julho 1872.

Depois da dispersão de uma guerrilha carlista – que operava junto da raia portuguesa – um carlista, um sargento, entrou a fronteira e depôs as armas.

Este homem que, sob a garantia dos trata­dos, da dignidade civil e da piedade humana, se entrega, na confiança da sua miséria, às autori­dades portuguesas, foi tratado deste modo sin­gular:

Veio de Melgaço até Viana, de cadeia em cadeia, entre privações e rudezas. Em Viana foi atirado para o aljube, e não lhe deram de comer. Teve fome. Requereu, então, que lhe abonassem, não já o soldo devido pelos tratados, mas a ração de preso devida pela compaixão.

De Viana foi, pelo Porto, para Peniche, com uma escolta de 20 soldados, comandada por um tenente, o Sr. M. Este oficial português levava o preso desarmado, e 20 homens, com as espingardas carregadas. Teve ainda receios do soldado espanhol. Exigiu que o algemassem. É necessá­rio ter visto o sofrimento das algemas. Os braços inertes incham, adormecem, os pulsos arroxeiam, a respiração dificulta-se, um entorpecimento febril enerva, e os mais duros, os mais fortes, os mais concentrados, não marcham a pé duas léguas, com os pulsos encadeados, sem que a dor lhes faça correr as lágrimas em fio.

Deu-se isto com o soldado espanhol.

Tomar um militar, um vencido, um hóspede, um homem que se entrega aos respeitos da lei e às protecções da piedade, fatigado, desarmado, inútil – levá-lo, fazê-lo atravessar as imundícies e as fomes das nossas cadeias, maltratá-lo, arre­messá-lo para a negrura de um aljube, não lhe dar sequer o caldo da enxovia, impor-lhe a fome, fazê-lo esperar longas horas às grades a chegada do pão, impeli-lo à humilhação de pedir, esfo­meado, metê-lo numa escolta de 20 homens, alge­mar-lhe os pulsos, e impeli-lo para um destino escuro, como um boi que se encurrala – é bem digno deste País, que por isso que tem a inépcia, não podia deixar de ter a maldade. Alexandre Dumas tinha um abutre que era o camarada íntimo de um pato. E aquele espírito radioso dizia sobre este facto – que era a natural ligação da estupidez e da ferocidade.

Portugal tem em si o abutre – e o pato.

Há tanto tempo nos separamos da inteligên­cia – que devíamos por fim encontrar-nos com a vileza.

O senhor tenente, comandante da escolta – esse é um sintoma. É a consciência do exército. Tendo de conduzir um soldado espanhol inter­nado, vencido, pacífico, desarmado, pede 20 homens: mas receia – e manda carregar as espin­gardas: mas treme ainda – e manda algemar o preso! Dá portanto a entender – que 20 solda­dos portugueses – corriam perigo nas estradas povoadas do Norte – diante de 1 soldado espa­nhol! Ó comissão do 1º de Dezembro! O foguetes altivos, soberbas filarmónicas do Largo do Ros­sio! aí está com o que vos responde o exército, com o seco ruído do engatilhar de 20 espingar­das e com o metálico estalido dos fechos de uma algema – contra um soldado espanhol vencido, e pacífico. De tal sorte, que se 1 000 soldados espa­nhóis, de um bairro de Badajoz, passassem o Caia, desarmados, os 20 mil soldados portugue­ses, de todo o Reino, armados, só teriam um meio de os conter – mandar os malsins algemá-los!

 

                                 Julho 1872.

Quando o Senhor D. Pedro V subiu um dia as escadas da Relação do Porto, disse com uma tristeza irritada: isto precisa de ser arrasado! A cadeia da Relação é das melhores deste Reino venturoso onde florescem de acordo – a papoila e Vidal.

 

O regulamento das cadeias é provisório. Conheceu-se, ao fazê-lo, quanto era incompleto, deficiente, anti-higiénico, mal seguro, bárbaro, antigo, sujo: fez-se provisório, por alguns meses. Sabem há quanto tempo dura este regulamento provisório? Há vinte e nove anos.

 

Mas hoje é uma curiosidade toda particu­lar que queremos revelar. De entre tantas fal­tas das cadeias -– a falta de espaço, a falta de ar, a falta de pessoal, a falta de segurança, a falta de asseio, a falta de alimento, a falta de moral, a falta de higiene – queremos destacar, como um diamante de um colar, a falta de roupa.

Os presos – não têm roupa. Na última leva de degredados, os que partiram foram vistos sair do Limoeiro em farrapos a maior parte, e um ou dois quase nus.

O Limoeiro tem um lúgubre guarda-roupa:

calças de linho, camisas de riscadinho, sapatos brancos e bonés de cotim. Daqui fornecem-se os faxinas, que são os presos encarregados de var­rer e lavar os dormitórios e corredores – e, além dos faxinas, os presos pobres.

Ora quando se embarca uma corda de degre­dados, o carcereiro deve ter de véspera a relação dos que partem, para lhes preparar o enxoval, fatal e definitivo como a mortalha – uma camisa, uma calça, um boné e um par de sapatos!

 

Fiquemos a ver um pouco esta avareza imunda.

Um preso tem em Portugal, para o seu degredo de África – uma camisa e uma calça. A França, que não é exemplar na organização dos seus servi­ços penais, dá ao deportado seis camisas, três blu­sas, seis calças, seis lenços, dois pares de sapa­tos, etc., um enxoval cómodo, lógico, facilmente transportável na sua mochila, e novo. Ele mesmo tem obrigação de lavar, a bordo, de três em três dias a sua roupa, e a sua limpeza é fiscalizada com o rigor de um dever. Em Portugal, país quente, para a África, terra afogueada – dá-se a um homem uma camisa e uma calça. É sujo.

Metido atulhadamente no negro porão de um navio, na acumulação bestial dos corpos, na pro­miscuidade dos suores, sem disciplina, sem água, com a indiferença pelo corpo que dá a miséria do destino, em que estado chega ao seu desgraçado fim aquela miserável criatura condenada, com a sua camisa única e a sua calça solitária?

Por isso os que têm visto um porão de degre­dados, nos nossos navios, o descrevem como a maior deformação da miséria. Corpos que se não lavam, cabelos que se não penteiam, confusão de enxergas, a quente exalação de todos os cheiros, ar coalhado e torpe, uns enjoados, outros doentes, o fervilhar dos vermes, a vil confusão dos far­rapos, o abatimento do tédio, o chão escorregadio de imundícies, a abafada negrura daquele vão soturno; – e ali vão apodrecendo, em nome da lei, aqueles lúgubres restos de gente. É infame!

E é um castigo maior para além da sentença; porque se alguma coisa humilha, avilta, amolece a dignidade, coalha e petrifica a alegria, enodoa a esperança, debocha o carácter, amolece e amiasma o sentimento, dá um irremissível desprezo pró­prio – é a porcaria forçada.

E deve perder o pudor, a vontade, a consciên­cia, cair numa desmoralização bestial, o homem que sente o seu corpo suar e verminar-se na sua única camisa.

Quem decretou esta infâmia? Se foi o regu­lamento das cadeias, reforme-se essa disposição como se lava uma nódoa. Esse regulamento não é inepto – é sujo. Não obriga só a reagir a cons­ciência, obriga a pôr o lenço no nariz. Não pre­cisa crítica – precisa benzina.

E porque o não reformam? As autoridades que o consentem dão uma ideia bastante escura da sua limpeza pessoal, tolerando para enxoval de um homem – uma camisa. Suas senhorias, essas autoridades, não podem exalar de si um aroma fino. Quem consente que um homem leve para um degredo – uma camisa – pode ser um jurisconsulto que se respeite, mas é um corpo que se evita. Tal autoridade não deve ser repreen­dida, deve ser lavada. Para ser reconhecida não precisa a toga – basta-lhe o cheiro. Não lhe faça­mos crítica, atiremos-lhe bacias de água. Que o sr. ministro da Justiça lhes faça pagar os seus ordenados em sabão. E enquanto às suas cabeças, não pediremos à lei que as inspire – mas sim que as cate.

E sabem porque se dá ao degredado essa camisa? Não é asseio, nem higiene, nem digni­dade, nem dó. E porque o preso, até ao cais, tem de passar na Baixa, e não se quer enojar os curio­sos que param, com o aspecto devastador dos remendos da enxovia. E para que os srs. lojistas e ourives, imóveis em seus chinelos aos portais da loja, não se enojem, não se enjoem, com os farrapos pendentes daquele pobre corpo maqui­nal que vai para o seu porão! E uma atenção aos srs. lojistas. E só para atravessar a Baixa. Para isso, com efeito, basta uma camisa. Depois, na viagem, que apodreçam! Ah! como estas coisas põem ao claro sol do desdém, as baixas feições de um país! Uma camisa para um desterro, a camisa da lei. A autoridade é mais suja que o degredado, e a lei é mais suja que a autoridade. Terra de ruas infectas e de corpos imundos! Ao menos sejamos francos: em lugar das cinco qui­nas, ponhamos as cinco nódoas.

 

Pois bem. Essa mesma camisa – única – foi julgada excessiva. Tirou-se a camisa ao degre­dado. Nesta última leva, a 5 do mês passado, iam todos em trapos, alguns quase nus. As auto­ridades entenderam, e bem, que para um degre­dado, um zero, um farrapo humano, uma sombra pisada, uma vida em rodilha – uma camisa era de mais. Era. Para um degredado, em Portugal, uma camisa era afrontoso. Uma camisa tem um desembargador!

E por isso tirou-se a camisa ao preso.

Pela nossa parte achamos bem: e só pedimos a todos os nossos amigos que indaguem cuidado­samente quais foram as autoridades que, dando esta ordem suja – deram uma tão especial ideia do seu próprio asseio – para que não suceda aproximarmo-nos delas, desprevenidamente – sem desinfectantes!

 

                               Agosto 1872.

 

À ALMA DE D. PEDRO IV, NOS ELÍSIOS

 

Senhor:

 

Esta carta, a exemplo das que os humoristas de 1830 escreviam a Voltaire, que Vossa Majestade deve aí conhecer, com o seu adunco perfil cortante e subtil – é escrita na suposição de que há unia região cheia de silêncio e de imo­bilidade, como a dos países Cimérios, onde as almas vivem numa abstracção transparente, pos­suindo a vitalidade do espírito, sentindo, interes­sando-se, conversando e recebendo o seu correio. Doce deve ser esse lugar: lagos calados como a neve; alamedas de mirtos, tranquilas como as vegetações dos sonhos; regatos mudos, que vão com a tranquilidade rítmica de um verso de Virgílio; sombras profundas como túmulos; e em tudo um repouso augusto e inefável. Que Vossa Majestade nos perdoe o arremessarmos para aí, irreverentemente, grosseiras notícias da vida – mas nós queremos contar-lhe o que se passou nesta cidade onde Vossa Majes­tade viveu, por ocasião do dia 24 de Julho de 1872.

Não sabemos se Vossa Majestade se lembra ainda do dia 24 de Julho. Para as almas que pal­pitam aí, na sombra inviolável, os factos da vida terrestre devem ser como farrapos fuscos de sonhos extintos, sem intenção e sem ideia. Mas Vossa Majestade pode perguntar ao seu velho amigo duque da Terceira; lembre-lhe a batalha de 23 e os fogos acesos de noite no pontal de Cacilhas!

Ora deve saber Vossa Majestade que, durante memórias veteranas. Nunca ninguém se lembrou 36 anos, o dia 24 de Julho e as suas glórias esti­veram sepultados insondavelmente no fundo das que, naquele dia, o duque da Terceira tivesse dado uma capital aos constitucionais. Os velhos, Senhor, têm a memória fugitiva como a água dos rios: e os novos, a quem a educação revolucioná­ria alterou a curiosidade, nunca voltam os olhos para trás, para a região calada onde jazem as suas batalhas e as suas leis. Todos os anos, Senhor, passava por nós entre a sequência dos dias, o 24 de Julho, e ninguém o notava, como se não nota, na passagem de um regimento, um sol­dado sem nome.

Deve parecer-lhe pois singular, Senhor, que passados 36 anos de indiferença sobre o 24, o fos­sem desenterrar do passado, vesti-lo de gala, e fazê-lo reinar – como aquela monótona Inês de Castro.

 

                 «Mísera e mesquinha

Que depois de morta foi rainha.»

 

Eis, Senhor, o que se tinha passado. Sua Majestade o Rei actual, neto de Vossa Majestade, tinha ido ao Porto. O Porto, Senhor, está bem diferente do que Vossa Majestade o conheceu, noutras épocas de batalha e de necessidade.

O Porto já não é aquela seca e escura cidade, rude e plebeia, de ruas estreitas e agitadas, imper­tinente e cheia de oposição, comendo alegremente arroz e bacalhau, dançando nos bailes improvi­sados, onde as mulheres iam com o pobre vestido de chita da Rua das Flores, e de onde os homens saíam, cansados da gavota, para o fogo das linhas – o Porto, ainda com feições de burgo antigo, com as suas dinastias de comerciantes honrados, os seus tamancos estóicos, impassível diante dos redutos, sensível diante dos melodramas do tea­tro nacional, patriota, resmungão e rezando ao Senhor de Matosinhos! O Porto, hoje, é uma cidade larga, bem anafada, com ventre, brasileira, um pouco sonolenta, cheia de poetas líricos, e ávida de baronatos.

O Porto, pois, imperial Senhor, lembrou-se, por ocasião da presença de el-Rei, de fazer uma festa constitucional. Uma festa constitucional, para fazer perrice aos jesuítas. Porque há cinco ou seis meses o Porto foi tomado desta doença singular: o tédio, o terror, o ódio ao jesuíta. Aquela boa cidade ficou, dos tempos de Vossa Majestade, com os hábitos de se bater. Vossa Majestade acostumou-os tão bem, que eles não podem dispensar-se de ter um inimigo a vencer. Mas o Porto, hoje, pacato, pançudo e pesado, pretende um inimigo cómodo, que não obrigue ao peso da espingarda e ao frio das alvoradas, que se combata com palavras, artigos de fundo, ver­sos e meetings. Ora o jesuíta é um bom inimigo, que não desarranja os hábitos da digestão, a quem se dá batalha, conversando à porta do Moré ou em volta de um bock na Águia de Ouro. De sorte que o Porto adoptou o jesuíta – como ini­migo figadal. E combate o padre Couto. Vossa Majestade não conhece o padre Couto? nem nós: o padre Couto é uma reprodução barata do jesui­tismo – para uso do Porto.

Ah! Vossa Majestade imperial conheceu padres bem diferentes: o grandioso frade crúzio, vasto e burro, que enchia a caleça, ao lado da qual trota­vam dois lacaios de cabeleira: o anafado frade dominicano, cheio dos favores da corte, deman­dista e rábula, ocupado na intriga e dirigindo ocultamente as venerandas cabeleiras do desem­bargo do Paço: a multidão pitoresca dos frades eruditos, cheios de rapé e de textos, esquecidos nos silêncios das altas livrarias: o padre plebeu, brutal e devasso, que tomava a monte a clavina: o padre fanático, possuído de um Deus inquieto, ávido de domínio, absolutista e sujo.

Hoje temos o padre Couto e o José Maria, género constitucional. Aquilo intriga nas secre­tarias, aquilo negoceia uma missa de doze ou de cruzado, aquilo seduz as cozinheiras, aquilo faz negócio de bentinhos. E contra isto que o povo se revolta. portanto o Porto queria fazer alguma coisa solene, estrondosa, festiva, contra estes sotainas, diz ele.

Fez a festa do dia 8 de Junho. Outra data de que Vossa Majestade se não recorda, não e verdade? Tal é o efémero da vida. Se Vossa Majes­tade encontrar aí, sob alguma plácida ramada de mirtos, Napoleão, fale-lhe em Austerlitz, fale a Shakespeare em Hamlet, abrirão os olhos sur­preendidos, calar-se-ão. Não se lembram!

Ora pensando que o jesuíta representa o abso­lutismo, o legitimismo, a forca, o convento, o dízimo – a boa cidade do Porto, tratou de orga­nizar a festa do dia 8, como uma desfeita, uma réplica aos jesuítas – enchendo-a de elementos liberais, aproveitando a presença do Rei, prodi­galizando as bandeiras azuis e brancas, etc. –E então para caracterizar a intenção liberal e democrática do dia – o que fez? Fez representar no Baquet a Boceta de Pandora, comédia em três actos. Vossa Majestade não sabe o que é? Nem nós. Pode interrogar um velho risonho e subtil, que por aí deve ter encontrado, murmurando como memórias extintas couplets de vaudeville, e que é o Sr. Scribe.

Representou-se a Boceta, Senhor. E assim ficou batida vitoriosamente em brecha a propa­ganda jesuítica. Se Vossa Majestade ler esta carta alto, às sombras curiosas e saudosas da terra, há-de ver um velho corcovado, seco e ardente, ascético, mas com grande doçura no olhar, rir-se com o seu estreito e triste riso de jacobino, vendo a maneira portuense de combater o jesuíta – com vaudevilles. Esse homem, Senhor, é Mazzini.

Ora, quando em Lisboa se soube que o Porto dava esta grande festa – Lisboa teve um estre­mecimento de cólera. Lisboa teve a tradicional, a costumada inveja. O Porto tinha feito uma grande festa constitucional – Lisboa não tinha nenhuma!

É necessário que Vossa Majestade saiba que existe uma incurável rivalidade moral, social, ele­gante, comercial, alimentícia, política, entre Lis­boa e Porto. Lisboa inveja ao Porto a sua riqueza, o seu comércio, as suas belas ruas novas, o con­forto das suas casas, a solidez das suas fortunas, a seriedade do seu bem-estar. O Porto inveja a Lis­boa a Corte, o Rei, as Câmaras, S. Carlos e o Mar­tinho. Detestam-se. As damas de Lisboa riem-se da pouca distinção, da pequena ciência, da falta de chique e de quê das toilettes do Porto? O Porto, rubro de ódio, cobre as suas senhoras da sump­tuosidade dos estofos e das faíscas dos dia­mantes.

Lisboa tinha touros. O Porto quis ter este bom tom de lezíria. Mas faltava-lhe o bom gado, os artistas, a faísca da troça, o estonteado especial, o sal das touradas daqui. Ah, sim? Em lugar de uma praça o Porto ergue duas. Mas consegue ape­nas ser duas vezes pior. Bem! O Porto sorri-se e para se desforrar, faz corridas de cavalos. Grande troça nos sportsmen a pé do Chiado: vamos batê­-los, diziam, vamos batê-los desalmadamente. Che­garam lá; foram chatamente batidos.

O Porto tinha a Foz, praia de banhos, rica, de um grande pitoresco de paisagem. Lisboa, ran­corosa, improvisa Cascais, sítio enfezado entre pinheiros éticos e rochedos de ópera cómica.

Os poetas do Porto fazem sorrir, no Chiado, os líricos da corte, descendentes dos vates para­sitas do adro de S. Domingos: mas os da Águia de Ouro abrem sobre as mesas as odes de Vidal, e entornam-lhes em cima, como único comentário digno, molho de carne assada.

O Porto, por circunstâncias, é reformista: eis que Lisboa se veste de um grande desdém pelo sr. bispo de Viseu, António.

Em Lisboa houve ultimamente um certo movi­mento subterrâneo, indistinto, informe, do espí­rito republicano: o Porto recebe el-Rei, com um delírio que só Vossa Majestade inspirou nos dias em que passeava a pé, com a sua estreita farda de coronel de caçadores, de cravo ao peito, e batia, com as pontas dos dedos, nas faces rechonchudas das mulheres do Candal.

Lisboa come com pretensões francesas e fan­tasistas: logo o Porto se afoga, cada vez mais, no chorume da velha cozinha portuguesa, e abra­ça-se, como a um estandarte, à travessa do cozido. – Mas em quantas coisas estamos falando, que são para Vossa Majestade como as sílabas irri­tantes de um dialecto bárbaro? Era-se mais con­ciso, não é verdade, nos tempos apressados de Vossa Majestade? Hoje, a gente põe-se a caminho, mas pára a cada momento, como um anémico e um precioso, a fumar as cigarrilhas azuis da fan­tasia. – O facto é, Senhor, que, como o Porto tinha a sua festa constitucional, Lisboa quis ter a sua: mas qual? – Escavou-se, desentulhou-se, aprofundou-se e foi-se achar, no fundo de um pas­sado esquecido, o esqueleto do dia 24 de Julho: o quê? és tu? existes? és! Vem! serás célebre, estrondoso, resplandecente, iluminado, cheio de honras e de colchas de damasco. – E puseram-no de pé!

Aqui começa, Senhor, uma intriguinha consti­tucional e burguesa – a que não sabemos se Vossa Majestade, acostumado às comoções abra­sadas da guerra, achará encanto: sobretudo aí, nesse mundo interessante e sublime, onde Vossa Majestade tem Voltaire para conversar, Meyer­beer e Beethoven e Mozart, para lhe fazerem músicas de almas em sombras de violoncelos, e onde tem, para o entreter com desenhos improvi­sados a lápis – Rubens, Miguel Angelo e Veláz­quez!

Mas, enfim, isto, Senhor, são coisas da sua terra: e depois, se um bocadinho de maledicência é já um tão bom encanto entre nós os vivos ocupa­dos e apressados – o que não será nessa grande ociosidade da Morte, nas largas tardes pálidas, quando, aos grupos, as Sombras passeiam, sob o silêncio dos sicômoros, junto à mudez dos lagos.

Assim Vossa Majestade saberá, que, logo que se tratou da festa do dia 24 – a oposição viu nisto um belo cabo para uma vassoura... Per­dão! esperamos que Vossa Majestade não tenha aí convivido tanto com Racine e outros retóricos, que se tenha impregnado do horror às frases populares e energicamente significativas... Um belo cabo para a sua vassoura.

Realmente, se pudesse acontecer que toda a iniciativa desta festa de liberdade pertencesse à oposição, seguia-se naturalmente que ela ficava – perante o País e a cidade – com a honra de ter feito uma grande festa liberal, de restaurar as datas históricas do regime constitucional, de ser a mais intimamente afeiçoada ao espírito democrá­tico; – enquanto que, implicitamente, o Governo, que não podia ter iniciativa, ficava naturalmente com o aspecto de quem – em questões de cele­brar a liberdade – tolera mas não promove. Ora que melhor reclamo para um partido do que cele­brar por comissões suas, ideias suas, dinheiro seu e homens seus – uma festa à liberdade! Boa tác­tica, imperial Senhor. Que quer? no seu tempo, era outra coisa, morrão às peças e fogo! Hoje somos todos pessoas de ordem: servimos a Ideia. Servimo-la assim. Guerrazinhas de homenzinhos. E aí tem Vossa Majestade que a festa do dia 24 não é uma ideia de liberdade festivamente mani­festada: nem uma manifestação tardia das glórias do constitucionalismo: nem um entusiasmo retrospectivo e bem arranjado, pelas campanhas de Vossa Majestade e dos seus generais. Que nem Vossa Majestade, nem eles, se regozijem, como de uma grande justificação! – a festa foi apenas, Senhor, uma parada da oposição histórica contra o ministério regenerador.

Saiba agora Vossa Majestade como foi esta festa augusta. Nomearam-se duas grandes comis­sões, uma em Lisboa – outra em Cacilhas. Vossa Majestade lembra-se ainda dos lugares? Lisboa, aqui, vastamente espapada nas colinas, o rio defronte, de água esverdeada, e do outro lado os montes pelados e amarelados de saibro, com um pontal agudo encravado na água, onde Cacilhas estende o seu focinho.

Como Vossa Majestade se pode informar com o duque da Terceira, ele, depois da batalha de Cacilhas, a 23, acampou ali, e nessa noite acendeu, em toda a extensão das linhas ocupadas, grandes fogos. Ao outro dia, pela manhã, desembarcava em Lisboa. O desembarque foi o êxito do dia, a decisão. As comissões entenderam que deviam solenizá-lo, simbolizá-lo, com um cerimo­nial expressivo. Que fizeram?

A comissão de Cacilhas partiu de lá, de casaca, de madrugada, num vapor alugado, com filarmó­nicas – simbolizando as tropas do duque da Ter­ceira; – e de cá a comissão de Lisboa foi espe­rá-la, de gravata branca, ao Terreiro do Paço, simbolizando a opinião constitucional, que ia ao encontro do libertamento. – Ria-se, Príncipe! Chame Nicolau Tolentino, o calvo mestre de retó­rica, chame a macerada figura óssea de Bocage, chame aquele inquieto personagem curto, de cabelo hirsuto, olhos faiscantes, nariz adunco, de toga curta à maneira ibera, que é Marcial; chame Scarron, chame o Aretino e os grandes escarne­cedores de outros séculos, mostre-lhes isto, e chame a alma de Rebelo da Silva, o alegre espí­rito, cheio ainda das recordações da terra, para que ele lhe descreva os personagens, lhe narre as figuras! Riam! Que se não viu mais Manuel Men­des Enxúndia, mais Lourinhã, mais círio, mais barriga de manteiga, mais irmandade da Senhora da Luz! O desembarque, as tropas, a luta, o ter­ror da cidade, os fugitivos, os medos que se escon­dem, a vingança que reaparece, as famílias espa­voridas, os saques desconhecidos, os crimes –toda a violenta desordem do encontro de uma rea­leza vencida com uma ideia vitoriosa – tudo, des­graça e glória – simbolizado por alguns cavalhei­ros, de gravata branca, que se abraçam gravemente no Cais do Sodré! Ah! Melício! Ah! cruel!

Depois que assim se encontraram as comissões, Senhor, dirigiram-se com as filarmónicas para diante da estátua de Vossa Majestade. Porque Vossa Majestade tem uma estátua! – e é mesmo para nós uma felicidade ter esta ocasião de dar a Vossa Majestade esta nova soberba, e as nossas felicitações. Há três anos que Vossa Majestade a tem. E no Rossio. No meio. As costas para o teatro de D. Maria.

Vossa Majestade está no alto de uma coluna, esguia, polida e branca como uma vela de estea­rina, e mostra, equilibrando-se sobre uma bola de bronze, um papel, a Carta – ao clube do Arco do Bandeira. E a quem Vossa Majestade a mos­tra. O clube do Arco do Bandeira pela sua ati­tude, modesta e digna, parece não dar por tal. Vossa Majestade está com a espada na bainha. Vossa Majestade passa à posteridade com um rolo de papel na mão – como um tabelião, ou um vate. Nada que lembre o soldado. E uma estátua – doméstica.

Ora se era necessário representar, sobre uma peanha, o espírito político, jurídico, legista do constitucionalismo – não era Vossa Majestade que devia lá estar com a carta na mão, mas a figura de Mouzinho da Silveira. Ora nesse dia 24 a estátua de Vossa Majestade estava coroada. Mas como? Tinham passado dos telhados de um dos lados do Rossio aos do outro, um fio de arame, e desse fio astuto pendia, a uru metro da cabeça da estátua, bamboleando-se, enorme, uma coroa larga como a roda de um ónibus! Em baixo, as filarmó­nicas, arquejavam. – De resto, foguetes, buxo, água fresca bem apregoada, e bandeirolas.

Que quer Vossa Majestade? – Lisboa faz o que pode: quem tem um temperamento saloio não pode tirar dele requintes de artista. Lisboa é uma cidade sabia: é uma cidade de fora de portas: é uma cidade de aldeia. A sua imaginação, violentada para conceber uma festa, não pode produzir mais que o arraial. Foguetes e filarmó­nicas – eis o que ela sabe dar de mais delicado aos heróis que ama. – De modo que este dia de festa como se pode definir? – UM ARRAIAL DE OPOSIÇÃO. Mais nada.

Senhor, temos conversado muito. Vossa Majes­tade deve estar fatigado, na sua delicadeza de sombra, com estas notícias que levam o peso grosseiro da terra viva. Se Vossa Majestade puder, escreva-nos, peça-nos histórias deste país que foi seu, que já foi uma pátria, e que é hoje apenas um chinfrim provisório. – Nós, enquanto não descemos também a essas regiões definitivas e purificadoras, beijamos as mãos de Vossa Majes­tade Imperial, pedindo-lhe que nos recomende aí a todos aqueles que nós estimamos, desde Rabe­lais até Camilo Desmoulins – e se Vossa Majes­tade entender que é delicado e da etiqueta apre­sentar aí os nossos respeitos de portugueses e de vassalos, aos Sanchos e Afonsos, etc., que reina­ram neste canto da Terra – tenha Vossa Majes­tade a condescendência de dizer aos ditos San­chos e Afonsos... sim, diga-lhes que aqui estamos às ordens.

 

                               Outubro 1872.

Uma questão singular tem, há tempos, sobres­saltado legitimamente os maridos, as pes­soas sensíveis e os fabricantes de armas proibi­das. Referimo-nos, como compreendem, à questão do Adultério.

Quando, em Paris, Mr. Dubourg foi ultima­mente condenado em cinco anos de prisão, por ter assassinado sua mulher às facadas – os srs. jornalistas, arrastando essa desgraça através da sua prosa, envolveram-se, por cima da memó­ria da pobre senhora nervosa e infeliz, numa dis­cussão vibrante acerca do amor, do adultério, do casamento e da morte. Mr. d’Ideville, um bom rapaz, que foi secretário de legação em Itália na missão de Tour d’Auvergne, escrevendo sobre este caso impertinente, teve a ingenuidade de pedir ao Sr. Alexandre Dumas filho – a sua opi­nião e a sua prosa.

Provocar a pena indiscreta e aparada em bisturi do Sr. Dumas, é acordar o escândalo que dorme. Sobretudo em questões femininas: porque aí o Sr. Dumas supõe-se uma espécie de Santo Padre do amor, julga possuir a plena compreen­são da mulher, saber desde as leis até às pantou­fles toda a fisiologia do casamento, e ser no tempo presente um S. Tomás de alcova. De sorte que sempre que se trata de um caso sentimental, o Sr. Dumas filho entorna sobre o boulevard, como um barril de lixo, o seu depósito de observações: porque o Sr. Dumas é observador como outros são trapeiros. E de noite, com uma lanterna e um gancho, cosido com os muros conjugais, apa­nhando e fisgando em segredo tudo o que cai da alcova, cravos, panos revolvidos, cuias velhas, farrapos reveladores – que ele vai coligindo a sua ciência. Sabe pelo que esgaravata no lixo. E doutor – em roupa suja.

Foi assim que o Sr. d’Ideville provocou L’homme femme. L’homme femme tornou-se então um rebate através das alcovas: jornalis­tas, lorettes, publicistas retirados, tudo correu pelo faro do escândalo. Ganiu-se um grande cha­rivari filosófico – com panfletos, com Livros, com artigos e com vaudevilles. E o amor, o casamento, a virgindade, a maternidade, o pudor, o adultério, a mulher, saias e consciências, tudo foi sacudido, revolvido, remexido, voltado ao sol, e exposto à vil publicidade como um guarda-roupa na tris­teza de um leilão.

Ora a conclusão da questão era estranha: tra­tava-se de decidir, a sangue-frio, com argumentos e boa gramática – se os maridos deviam matar suas mulheres. O Sr. Dumas tinha dito com o charuto na boca, folheando a Bíblia – mata-a! Outros, fechando a navalha no bolso, diziam gene­rosamente: não a mates. Alguns vaudevillistas ensinavam entre um bock e uma pilhéria –vai-a matando sempre! E outros acrescenta­vam, expondo que era necessário estudar mais a questão e consultar dicionários: por ora não a mates!

E no entanto, de faca na mão, os maridos esperam.

 

Antes de tudo, não os escandaliza esta ques­tão? Laplace, o antigo, o astrónomo, era um homem sereno e recolhido, firme como a ciên­cia e tranquilo como a verdade. Uma só coisa o fazia irritar e sacudir como uma juba o seu com­prido cabelo à Convenção: era ouvir um peral­vilho da mocidade dourada, algum Incrível dos que tinham feito fechar o clube dos jacobinos e traziam a reacção entalada na alta gola do seu fraque à Barrás – falar de astronomia. Então o sereno Laplace rugia. Ora se alguma coisa deve irritar e fazer rugir, é ver os Srs. Dumas, d’Ide­ville, e outros galantes, falar e decidir, como Evangelistas do macadame, sobre o casamento, esse ângulo tão perigoso da dificuldade social. Não a resolveu, esta questão esmagadora, a Bíblia; não a resolveu, com toda a sua grandeza, o velho espírito romano: perturbaram-na e lan­çaram-na em confusão a teologia e o cristianismo: apenas a revolução, pela ciência de Proudhon, começa a dar-lhe uma solução racional e positiva; – no entanto o Sr. Dumas filho, autor da Lorette e profeta do Ginásio, estende-se molemente à sombra dos castanheiros, ouvindo cantar os pás­saros, e faz-nos o obséquio, num momento de bonomia, de resolver no direito e na moral esta dificuldade tenebrosa. Como? – com uma nava­lha de seis tostões.

 

Que, devemos confessá-lo, nós dois, nós ambos, julgando inoportuna a estação de banhos para esta leitura, que pede o recolhimento do Inverno e o silêncio do fogão, não lemos ainda nem L’homme femme do Sr. Dumas, nem nenhum dos folhetos que rolaram como um enxurro, através da opinião parisiense.

O que sabemos apenas é que todas estas pro­sas incitam a mulher, em períodos comoventes, à prática da virtude! Ora observa-se que, se uma mulher tem um amante, poderá suceder que ela leia, pela manhã ao almoço, um artigo magnífico e pomposo com interjeições, lágrimas e flores:

Sobre o adultério e as suas aflitas misérias;

Sobre a fidelidade e os seus claros esplendores.

Mas nem por isso deixará, em vindo a noite, de ir pé ante pé, com todos os ardores do susto e do mimo amoroso, abrir a porta do jardim à impaciência de Artur. E isto porquê?... Por­que a retórica não anula o temperamento.

Porque um periódico bem escrito não abafa uma paixão bem movida;

Porque os adjectivos não dirigem os nervos;

E porque, á senhores prosadores, a verdade é esta: entre um folhetim, que condena o adultério, impresso a tinta preta num papel amarelado, e um amante vivo, sensível, forte e amado – nenhuma mulher deixará o amante, que é a realidade, para seguir o folhetim, que é a linguagem;

E não despedirá o homem que lhe dá a sen­sação – em atenção ao Sr. Bezerra, localista do Rei e Ordem, que lhe dá prosa.

E por isso que estas declamações soluçan­tes a que se entregam, com os braços erguidos, o jornal e o drama – são pelo menos inú­teis. Não evitam o pecado. E também não ins­piram o ideal – porque não há felizmente senho­ras tão estranhamente desgraçadas – que vão aprender a virtude nas gazetas ou nas rampas dos teatros.

E depois, esta questão do adultério, é equí­voca. Porque, ou é tratada num folheto pelo sr. fulano, bom rapaz e empregado público – e então torna-se tão monótona, tão banal, tão recal­cada, que nem Robinson Crusoé na sua ilha deserta, com todo o seu tédio, e sendo esse folheto o único folheto e sendo essa distracção a única distracção – a quereria: ou então é tratada por espíritos subtis, analíticos, originais como Dumas, e sucede que, com os detalhes, as anedotas, os quadros, as revelações, o estudo, torna-se uma divulgação de alcova e uma pimenta amorosa! De modo que quando não é uma trivialidade esté­ril, é uma provocação irritante!

 

Ou o adultério é um facto fatal da natureza eterna, ou é um facto fatal da moral moderna. No primeiro caso, se ele é a antiga e primitiva lei da promiscuidade animal, que apesar do apuramento nervoso da humanidade, da civilização, do direito, da moral, permanece e impele pela sua fatalidade fisiológica – seria necessário, para o extinguir, mudar a própria constituição natural ou esperar mais vinte séculos.

No segundo, se ele provém da corrupção do matrimónio e da sua decadência e descrédito como instituição social, se nasce da extinção da fé conjugal nos esposos, se deriva da perversão lançada na dignidade matrimonial pelo idealismo amoroso, se tem a sua origem na moral, então é necessário fazer uma revolução nos costumes tão profunda como foi o cristianismo, que nos dê uma outra religião, outra moral, outra família e outro direito.

Ora qualquer destas coisas, tanto uma altera­ção de constituição fisiológica, como uma transfor­mação na ordem social, acham-se os Srs. Dumas filhos – com forças de a empreender, no quintal, fumando brevas e cosendo prosa?

Mas mais absurdo que tudo é a palavra final da questão: o mata-a ou não a mates! a decisão do destino que o marido desvalido deve dar à esposa revoltada! Para todo o homem, o mais linfático ou o mais endurecido, Sgnarello ou Mar­neffe, o momento em que sabe o seu desastre é fatalmente um momento de excitação, de ofensa, de vergonha, de despeito, e ele não pode sub­trair-se a palpitar com uma pulsação de febre. Ora aconselhar um procedimento fixo para este momento alucinado, é querer impor ao que há de mais desvairado – a paixão, o que há de mais raciocinado – a regra. E dizer de antemão ao pulso – tu baterás deste modo, e aconselhar pre­viamente à cólera – tu rugirás desta forma. Quem vai estudar de antemão ao espelho as ati­tudes que deve tomar na dor? quem decora no seu quarto a palavra que deve dizer na cólera? A febre não calcula – improvisa.

Depende sobretudo dos temperamentos. Se­gundo se é sanguíneo, linfático, bilioso, melodra­mático, bonacheirão ou egoísta – assim se faz sangue, se faz sermão ou se faz negócio. Basta ver quantas soluções diferentes a verdade e a arte têm achado para este momento agudo, para se perceber a inutilidade pedagógica e retórica de marcar de antemão um procedimento. Otelo, que é negro, sanguíneo, batalhador, bárbaro e justo, toma o travesseiro, e mata por asfixia. O general de Campvallon que é gotoso, cheio de achaques, encosta-se, ao surpreender sua mulher, à ombreira da porta e morre de apoplexia. Um negociante holandês fleumático, prático e frio, toma sua mulher pelo braço, põe-na à porta da rua com uma mala e uma nota do banco, aferrolha a porta e volta tranquilamente para o seu escritório. Um fidalgo de Burges, cheio de opiniões feudais, des­fecha a carga de um revólver no peito de Artur. Um outro encontra sua mulher anediando uns cabelos de homem que não são os seus, vai ao seu quarto, toma a sua roupa branca e parte para sempre para o Egipto. Um outro, infelizmente bem conhecido, vai ao seu quarto, toma um revól­ver e parte para a Eternidade. Outro surpreende, fecha-se no quarto com a mulher e quando os criados, assombrados, imaginam que ele a matou, vêem-no sair risonho, trazendo-a pelo braço, ren­dido e mais amoroso. O general Pallavicini, seguindo a velha tradição dantesca da casa de Rimini, degola com a espada os dois sobre o sofá. Outro espera Artur no fundo da escada, e obriga-o a assinar uma letra. E um outro, tranquilo e riso­nho, diz durante dois anos a sua mulher, todos os dias de manhã, passeando com ela no jardim, a mesma palavra vil.

Tal temperamento, tal solução. Todos estes infelizes se desesperaram: – mas com a lógica do seu carácter – o bárbaro generoso mata, o civili­zado infame faz assinar a letra. Mas a raiva é a mesma. E no entanto o Sr. Dumas entende que o procedimento colérico se pode ensinar como um passo de contradança, e sem querer saber dos temperamentos, dos caracteres, das condições, faz para a infinita diversidade dos desesperos – um catecismo uniforme.

E – riamos! – esse catecismo que conclui pela morte – quando quer o Sr. Dumas filho que os maridos, curiosos dessa matéria, o estudem e tomem apontamentos? Se o Sr. Dumas faz um tratado e uma lei de morte, com argumentos e exemplos, é para que os maridos o leiam, apren­dam a lei, se convençam, se apropriem daquela ideia e decorem aquele procedimento. Mas quando, em que momento preciso do seu casa­mento? – Não pode ser logo que casem: qual é o marido bastante torpe para ir no dia seguinte ao do noivado, vendo sua mulher apenas saída da virgindade, noiva e pela Graça quase sagrada, estudar muito tranquilamente no Sr. Dumas o que lhe deve fazer – quando ela for adúl­tera? – Não pode ser também no momento da revelação, porque seria estranho que um marido surpreendendo sua mulher e Artur – lhe dis­sesse:

– Srª esposa e sr. amante, eu vou para a minha biblioteca consultar os autores e amanhã lhes darei parte do destino que lhes reservo: tenham a bondade de me passar daí os documen­tos da infâmia e um dicionário!

 

Enquanto ao adultério, essência da questão, não queremos privar as curiosidades inteligentes de algumas pequenas notas que não resolvem, mas explicam.

A maior parte da gente imagina que para uma mulher esta ideia e mesmo esta palavra – ter um amante, significa muito simplesmente – ter um homem que amam.

De modo nenhum: só muito raras, as des­cendentes de Fedra, pensam no homem. Para a generalidade das mulheres – ter um amante signi­fica – ter uma quantidade de ocupações, de fac­tos, de circunstâncias a que, pelo seu organismo e pela sua educação, acham um encanto inefá­vel. Ter um amante – não é para elas abrir de noite a porta do seu jardim. Ter um amante é ter a feliz, a doce ocasião destes pequeninos afazeres – escrever cartas às escondidas, tremer e ter susto; fechar-se a sós para pensar, estendida no sofá; ter o orgulho de possuir um segredo; ter aquela ideia dele e do seu amor, acompanhando como uma melodia em surdina todos os seus movimentos, a toilette, o banho, o bordado, o pen­teado: é estar numa sala cheia de gente, e vê-lo a ele, sério e indiferente, e só eles dois estarem no encanto do mistério; é procurar uma certa flor que se combinou pôr no cabelo; é estar triste por ideais amorosos, nos dias de chuva, ao canto de um fogão; é a felicidade de andar melancólica no fundo de um cupé; é fazer toilette com intenção, o maior dos encantos femininos! etc.

Estas pequeninas coisas, que enchem a sua existência, que a complicam em cor-de-rosa, que a idealizam – são a sua grande atracção. E o que amam. O homem, amam-no pela quantidade de mistério, de interesse, de ocupação romanesca que ele dá à sua existência. De resto, amam o amor. Havia muito deste sentimento nas místicas e nas antigas noivas de Jesus. Amavam a Deus porque ele era o pretexto do culto.

Por aqui se explica uma coisa que surpreendeu Taine. E foi que na sua última viagem a Ingla­terra, contava-se então, nas crónicas íntimas, que em toda a vasta aristocracia inglesa que faz a season em Londres, havia apenas um adultério! E todavia que luxo, que idealismo, que vagares, que requintamentos de sensação, que excitações do chique! Taine explica isto por muito finas razões, subtis e profundas temperamento, publici­dade, boas saúdes, rectidão de ideias, etc.: esque­ceu-lhe uma razão, a mais inglesa. E que a lady romanesca, sensível e fria – o que pretende sobre­tudo e exclusivamente no amor, são as suas ocupa­ções, é a sua melancolia. A inglesa, com a sua car­nação saudável, as suas risadas francas, os seus cabelos espalhados e impertinentes, a sua higiene, as suas corridas a cavalo, a sua virilidade de pen­samentos – conserva todavia, sob o seu movi­mento excêntrico e resoluto, no fundo do seu peito, como a recolhida flor do segredo, uma ponta, uma semente de melancolia. Alguma coisa de vago, de saído de Ofélia, de ossianesco, de exa­lado da harpa de Erin, ficou no fundo daquelas naturezas femininas dos países louros. A inglesa não se pode dispensar de ter aquela melancolia de certas horas, azulada e terna – a que ela chama com certos requintes finos – ter o cora­ção sentido. – De sorte que de mil senhoras da aristocracia inglesa, das que têm a mocidade e o espírito do sentimento, uma poderá ter um amante e os seus pecados – mas as outras res­tantes contentam-se em ter o coração sentido.

De tudo isto uma consequência lógica: – pro­curando dar uma ocupação ao espírito disponível da mulher, impedir que ela procure as ocupações do amor.

Hoje, justamente, faz-se o contrário.

 

Hoje a mulher é educada exclusivamente para o amor – ou para o casamento, como realização do amor. E claro que, como Dumas, falamos das classes ricas e improdutivas.

É fácil de ver. Que se lhe ensina desde o momento em que a pequenina mulher de 7 anos, nos bicos dos pés, diante do espelho, com a sua sainha tufada e o seu puff pueril, se enfarinha de pó de arroz, rindo com os seus brancos dentinhos de rato?

Educa-se-lhe primeiro o corpo para a sedu­ção. Não pela ginástica – isso agora apenas começa vagamente, como uma imitação inglesa –mas pela toilette: ensina-se-lhe a vestir, estar, andar, sentar-se, encostar-se com todas as gra­ças para sensibilizar, dominar as atenções, ser espectáculo, vencer o noivo. Ensina-se-lhe a arte sentimental e inútil de bordar flores e pássaros; o bordado é a mais perniciosa excitação da fanta­sia: sentada, imóvel, curvada, picando delicadamente a talagarça, o voo inquieto das imagina­ções e dos desejos palpita-lhe em roda, como um enxame de abelhas: e é isto o que perde as rosas, como diz um velho poeta ascético: é porque a rosa não pode fugir, andar, sacudir o enxame, que é ela sempre ferida no cálice.

Depois ensina-se-lhe a música, o piano, o canto, Bellini, Donizetti, todos os amorosos. A música clássica, os velhos minuetes, os motetes, as fugas, as árias simples – eram uma serenidade para o espírito, um correr de água fresca. Os român­ticos são como uma chama impaciente. Prepara-se-lhe assim um meio de encantar, de sensibi­lizar, de, adormecer, e dá-se-lhe alguma coisa da habilidade das sereias. – Depois, o seu espírito, como é educado? Pelo romance, que lhe des­creve o amor, pelo teatro que lho dialoga, pela ópera que lho suspira, pela opereta que lho assobia.

No mundo, nas soirées, ao gás dos bailes, na intimidade das mulheres, que interesses vai encon­trar? os da política? os da ciência? os da arte? os da economia doméstica? os da guerra? Decerto que não: – os do amor.

Que lhe diz o luxo, por meio das sedas sono­ras, das caxemiras, das pedrarias, da vitrina das lojas, das rendas loucas, dos saltos à Luís XV, da fofa penumbra dos cupés? Amor.

Que ideia lhe dá a família, a maternidade? O encanto de um amor legítimo.

Que lhe ensina a mesma religião? o amor. Duvidam? – aqui estão os trechos de um livro de orações aprovado pelo sr. arcebispo de Ruão – traduzido por toda a parte:

«Actos de desejo. – Oh! vem, meu bem-amado, carne adorável, minhas delícias, meu amor, meu tudo, meu alento! Minha alma impaciente enlou­quece por ti!

«Acto de amor. – Tenho pois enfim a felici­dade de te possuir! Abrasa-me, queima-me, con­some-me com o teu amor. Jesus é meu, o bem-amado é meu.»

Que lhes parece? Aprovado por Monsenhor de Ruão, o cardeal Bonnechose, príncipe da Igreja. E um catecismo francês, quase um cate­cismo universal. Trata-se do amor de Jesus –dirão: pois também seria excessivo que se tratasse de Artur! A Igreja não o faz expressamente –dirão ainda: quem o duvida? Nem um momento desconfiamos da austera intenção da Igreja. Mas é inocentemente e sem intenção, que as mães dei­xam as crianças ao pé do lume, e quantas vezes a casa arde!

Querem saber agora como falam e pensam as mulheres educadas neste elemento abrasado? Vejam a última peça de Octávio Feuillet, o casto, o pudico, o católico, o que escreve para as virgens aristocráticas e louras do faubourg Saint-Ger­main. Feuillet põe na boca de uma menina de 15 anos, educada num convento, açucena coberta de rendas, Pomba, Arminho, Neve, estas palavras:

Adoro os rapazes para valsistas, mas para mari­dos não! – E na plateia velhos sargentos de cavalaria coram até às dragonas!

Bom Deus! Não somos caturras! Dizemos a verdade. De resto como não temos a responsa­bilidade da corrupção humana, também não fugi­mos para o deserto. Quem é que disse que o Inferno era um lugar bem interessante? Foi Brantôme. Pois era um sábio.

Nesta educação da mulher uma só coisa é profundamente boa – a valsa. E é justamente o que mais lhe regateia uma moralidade banal. A valsa é higiénica, moral, depurativa, educadora e positiva.

Um higienista célebre recomendava, a todas as mulheres de 14 anos, para cima duas horas de valsa por dia. Os movimentos rápidos, galopados, fortemente sacudidos, a transpiração igual, outras circunstâncias, tornam a valsa um exercício radi­calmente salutar, quase igual à ginástica: desen­volve a firmeza do andar, a solidez das articulações, faz girar abundante e igualmente o sangue, robustece o peito, exercita e excita a facilidade da respiração. E um doce medicamento contra a ane­mia, a palidez, os suores. E sobretudo uma fadiga. Toda a mulher que se não cansa, idealiza. Dá os bons sonos saudáveis e frescos, o apetite inglês. Dá às raparigas uma boa alegria de ave que voa. E têm-se visto doenças inexplicáveis de mulheres curarem-se com uma valsa. As boas valsas são as de Strauss, ágeis, alegres, radiosas, impelidas, firmemente resvaladas – que têm alguma coisa de ataque e muito de triunfo.

A valsa é moral e educadora: porque acos­tuma as mulheres a ter dos homens uma ideia positiva e burguesa. E por isso que os românticos, os netos de Byron e de Dom João não valsavam: pálidos, encostados à ombreira, com a gravata de cetim negro em nó, o olhar triste e dominante, os dedos errantes em longos bigodes sentimentais, estavam imóveis em todo o encanto do seu mis­tério, exalando romance. O homem na frescura da sua toilette, a pele macia e seca, a claque debaixo do braço, sereno, fresco, perfeito, intacto, conversa e ri num baile, pode excitar o senti­mento: quem nunca o excitará é o valsista – com a pele oleosa, a testa cheia de gotas, a respiração ofegante, um arquejar pesado, o nariz luzidio, a aba da casaca esvoaçando, as pernas pulantes como as de um gafanhoto que vai para os seus negócios, o ar embezerrado, vermelho, soprando, feliz e grotesco. A mulher olha e sorri. Porque ela é que não perde a graça, se a tem, e o arfar dá-lhe a delicadeza, todos os abandonos mimosos da ave que cansa. Além disso os vestidos compri­dos, rojados, leves, foram feitos para a valsa e acentuam-na como um palpitar de asa. De sorte que se pode rir, legitimamente, de cima de seu encanto, do pobre homem que a seu lado resfolga, escarlate e esfalfado. E depois, o homem que valsa, como pode ter espírito? O que naturalmente lhe sairia pela boca fora se a abrisse, não seriam as graças–seriam os bofes: é por isso que ele, duro, cerrado, espesso, alagado, guarda dentro em si para seu uso, cuidadosamente – a pilhéria e a víscera.

Na valsa a mulher faz a poesia do movimento – o homem faz-lhe a farsa. O homem, de resto, nunca deve dançar: o seu movimento são as armas, a luta, a marcha, o salto, a ginástica: já Napoleão o dizia. O Oriente, tão profundo e tão subtil, compreendeu isto admiravelmente: aí as mulheres dançam sós entre si; o homem, encos­tado no divã, contempla e fuma o chibouk.

Valsem! valsem! – e creiam que esta glorifi­cação e desinteressada: o que escreve estas linhas não valsa. Valsou. Valsou um dia. Era de madru­gada, ao fim de um baile, dado muito longe daqui, ao Oriente e ao Ocidente. Valsou com um preto. Na sala deserta, luminosa e cintilante como uma visão do sultão Achmed, quatro pessoas assistiam gravemente àquela valsa solitária: um chefe de tribo dos confins da Núbia, imóvel na sua túnica de linho e fio de oiro, lorde C... que morreu agora em Florença, um sábio doutor prussiano, mademoiselle J... des Bouffes e um capitão de artilharia inglesa, que olhava gravemente, a cavalo num criado. E tantas saudades lhe ficaram ao que isto conta, daquela valsa – que assim como o rei de Tule nunca mais bebeu, ele nunca mais valsou.

Ora o que se faz a esta mulher inteira­mente, exclusivamente educada para o amor? Esta mulher, assim formada, casa. O marido vai, decerto, dar a esta natureza, que vem curiosa, impressionável e agitável, uma ocupação que a absorva e que a preencha? – Não. E nas classes ricas: o marido trata de lhe tirar todo o trabalho, todo o movimento, toda a dificuldade, alarga-lhe a vida em redor, e deixa-a no meio, isolada, fraca e tenra, abandonada à fantasia, ao sonho e à chama interior: a cabeleireira penteia-a, as criadas vestem-na, a governanta trata-lhe da casa, a ama cuida-lhe dos filhos, as moças arrumam-lhe os quartos, o marido ganha-lhe dinheiro, a modista faz-lhe os vestidos – um cupé macio caminha por ela, um jornal de modas pensa por ela. – O que resta a esta infeliz criatura, encolhida no tédio da sua causeuse? Resta-lhe a sua genuína ocupação, a que lhe ensinaram e em que é perfeita – o amor.

Se o marido se conserva um amante – bem. Mas se o marido, naturalmente, como deve ser, se ocupa dos seus negócios, do seu escritório, da sua política, dos seus fundos, do seu clube, dos seus amigos – mal. Ela naturalmente faz como um amanuense que, tendo por profissão escrever, quando tem escrita e cheia a primeira folha de papel, toma outra – para continuar a escrever.

Tal é a verdade.

 

E querem uma prova? E que as mulheres mais ocupadas são as mais virtuosas. E isto evidente na pequena burguesia, no mundo proletário, nas classes agrícolas. Os adultérios aí, a não ser as excepções de temperamentos, são quase todos ori­ginados na necessidade e na pobreza. Outra prova é que Lisboa é uma terra de mulheres virtuosas. Podem rir-se os incrédulos da cidade, les rieurs de la ville, como dizia Tallemant des Reaux. A ver­dade é essa, e a razão é que Lisboa é uma terra pobre; a maior parte das famílias são de empre­gados públicos, e portanto as mulheres, sem cria­das, sem aias, e sem carruagens, têm, de manhã à noite, o rude trabalho de uma casa a dirigir: têm de se vestir, de lavar os filhos, de alinhavar ves­tidos, de tomar róis, de fazer as suas compras; e fica-lhes um dia cheio e trabalhado.

 

Uma mulher assim fatigada, cheia de pequenas preocupações, de atenções caseiras, de economias, de chaves, não tem vagares para o sentimento. A sua natureza torna-se excessivamente prática, positiva, doméstica, hostil à fantasia e aos seus cortejos. Além disso, vendo o marido sobrecar­regado e sustentando pela firmeza do trabalho aquela nau – toma-se por ele de um grande res­peito. O casamento torna-se assim uma associa­ção de trabalho. A mulher adquire uma alta ideia da sua missão. Vendo-se centro de actividade na casa, e que é necessária a todos, e que a sua pre­sença consola, e que a sua coragem fortifica, e que pelo seu trabalho e pela sua ordem a família está confortada, asseada, farta, alegre – julga-se e tem o orgulho de Providência, reina verdadeira­mente, e nem por todos os encantos quereria des­cer na estima do seu pequeno mundo honrado.

Além disso, mesmo que fosse sentimental, o que é extremamente raro, as condições de exis­tência burguesa defendiam-na como muralhas. As casas são pequenas, o contacto da família é permanente, a todas as horas, nas mesmas salas; torna-se impossível toda a inteligência secreta com o exterior. Não poderia sequer ter por muito tempo um segredo do coração: a família adivi­nhar-lho-ia na preocupação do rosto, na voz e no silêncio.

Dê-se à mulher um alto interesse doméstico, e dá-se-lhe uma virtude invencível. Dê-se-lhe uma casa a governar, uma família a dirigir, e ela encontrará no seu coração mais valor para ser virtuosa, do que nós encontramos razões no nosso espírito para sermos honrados. – Ora agora se o marido faz da sua mulher uma amante mignonne e luxuosa, se a torna um pequenino mimo e um gozo de voluptuosidade, se faz dela um ornato de teatro e quase um embelezamento público, se a quer como uma sultana da Geórgia, que se trans­porta nos braços – nesse caso esta mal, e então o risonho Offenbach adianta-se com a sua batuta e o seu couplet garoto, e aconselha-o a que nunca entre em casa – sem prevenir.

Proudhon disse que a mulher só tem um des­tino – menagère ou courtisane – dona da casa ou mulher de prazer.

Seria longo explicar a alta moral que esta palavra encerra; mas se aos maridos basta um resumo concludente e firme, diremos que cada um – encarregue sua mulher de fazer casa, e a dispense de fazer moda. Quando falamos assim de moda, com irreverência, não queremos dizer que a mulher não cuide da sua beleza. Bem ao contrário. Para a mulher a beleza é o mais alto dos seus direitos e o mais grave dos seus deveres!

 

Colocar a mulher nas ocupações da família, eis o que achamos de mais genérico para evitar a dissolução do casamento. Se, porém, nos inter­rogam directamente sobre o adultério e os seus motivos, pedimos que observem o que se passa nos costumes.

 

O espectáculo é curioso, O adultério é um facto aprovado pela opinião. Querem a prova? No adultério entram – o sedutor, para que lhe dêmos este nome clássico, a mulher e o marido. Vejamos como eles mesmos se consideram a si: consciência própria e consciência pública.

Vejamos o sedutor:

Dizia Napoleão: o adultério que é um tão grande facto no código e na moral, não é na vida real mais que um entretenimento de baile ou uma distracção de teatro. Palavra profunda. O celi­batário sentado na sua cadeira, num entreacto, enfastiado, fita uma certa mulher, que o fere pela cor dos cabelos ou pelo feitio da toilette: daí às vezes uma tragédia. No entanto o celi­batário, o dândi, o leão, está na sua ocupação habitual. Não é para dissolver a família, provo­car os desastres – que ele ali está de luvas gris – é para cumprir a sua elegância. Está nos cos­tumes. Ninguém lho estranha.

O celibatário não é o carrasco oficial da feli­cidade conjugal. É uru bom rapaz, é um diletante, é um ocioso, é um voluptuoso. A sua distinção honra a civilização e o luxo; a cidade por vezes tem orgulho nele; Alcibíades, crévé, foi uma gló­ria de Atenas, e Plutarco narrou-o. Não é por mal que o celibatário olha: é por obrigação da sua profissão, é por dever de ofício. Não é com inten­ção fatal que ele faz a sua corte a uma mulher; é porque, se conhece uma mulher, se é recebido em sua casa, tem obrigação de lhe fazer a sua corte. Fazer a sua corte – é necessário que sai­bam – é uma coisa muito diferente de fazer a corte.

Fazer a corte é olhar de longe, seguir, adivi­nhar a mulher, procurar falar-lhe, ter a atitude sentimental. Se o celibatário faz a corte é porque não é da intimidade da casa, ou está posto em suspeição pela desconfiança marital. Opera de longe, com largos voos. Não é perigoso.

Outra coisa, porém, é o celibatário que faz a sua corte. Fazer a sua corte é sentar-se ao pé de uma mulher, fazer-lhe uma conversa inte­ressante, provocar-lhe o espírito, dar-lhe o braço à saída, pôr-lhe o seu burnous com as pontas dos dedos. Diz-se muito legitimamente a um marido: Vou fazer a minha corte à tua mulher. Por coisa alguma se lhe diria, sob pena de bengaladas, vou fazer a corte a tua mulher. O que faz a sua corte é sempre íntimo de casa: tem o seu talher, ri em segredo com madama, traz-lhe ramos de que tira um botão de rosa para o marido pôr na bouton­nière – entra no camarote e diz-lhe: Se queres vai fumar, eu fico a fazer a minha corte a tua mulher. – Onde está fulano? perguntam no cor­redor ao marido que fuma. – Ficou a fazer a sua corte a minha mulher.

O que faz a sua corte vai com ela às lojas, traz-lhe a valsa da véspera e o escândalo do dia, conta-lhe ao ouvido o enredo da ópera, e é ele que – quando o marido o encontra saindo da sala de sua mulher, lhe diz:

– Tenho estado a fazer a minha corte a tua mulher.

– Não queres ficar para jantar?

– Não. Vou fazer ainda a minha corte a fulana.

O celerado! o bom rapaz!

Ora bem: este homem que – para que o diga­mos desde já – é o amante, como é considerado pelo mundo e pela opinião? Optimamente. Bem recebido, rodeado de braços abertos, tomado como tipo e mestre pelos solteiros, invejado pelos maridos maniatados ao casamento, como uma ave que voa, pode ser invejada por uma couve que está, olhado curiosamente, inten­cionalmente e medrosamente pelas mulheres –torna-se centro e toma no seu mundo uma ati­tude vitoriosa.

Assim o ter tido um certo número de amantes, isto é, ter desorganizado um certo número de famílias, é na moral contemporânea um chique. Na moral antiga teria as penas infamantes da mutilação. Hoje é um chique. É mais: é um com­plemento de educação. Na Princesse Georges, a mãe, a marquesa, diz do príncipe de Birac: – um homem de bem que viajou e teve aquele número de aventuras que fazem parte da educação, mas teve-as no seu mundo.

Esta palavra é um traço fotográfico da opi­nião moderna. E quem o diz é uma mulher honesta, atenta à devoção. E aí temos pois que ter seduzido algumas mulheres casadas, é, na mocidade de um homem e para garantia do seu destino, tão indispensável como ter aprendido a gramática; e pode dizer-se das perfeições de um gentleman: – Deitou a perder uma mãe de famí­lia e sabe os verbos.

O homem que nunca teve uma amante casada e, segundo a apreciação mundana, ligeiramente ridículo, filósofo, caturra; nega-se-lhe a experiên­cia feminina, e passa à situação hirsuta e florestal de bicho do mato: é a opinião dos cafés. E a opi­nião das salas não lhe é mais favorável: é consi­derado um inábil e um colegial sem valor; se ele não interessou nem fez palpitar ninguém é porque é sem espírito, sem originalidade, sem beleza, sem toilette e sem descrição, é um inútil, é um semina­rista extraviado; atribui-se-lhe falta de coragem e de domínio; dá-se-lhe aquela indiferença que se dá às coisas sem dono. Mas se teve uma amante com publicidade e relevo, ah! é um homem. A sua fisionomia interessa e exala mistério. Se teve três, é leão, torna-se celebridade, tem o sorriso escravo das mulheres e um lugar no Estado. Se tem tido mais, e um marido morto em duelo, é o caso de Cade Rousse, fica numa civilização como tipo per­feito da fina flor dos bravos. E assim a gló­ria cresce, com o número de seduções, até Dom João, que por ter tido três mil, é can­tado pelos poetas, escolhido pelos pintores como a expressão do ideal, posto em música pelos maestros divinos, tornado Símbolo, e depois de 400 anos ainda a sua legenda faz suspirar de amor.

E se o leão envelhece, não é abandonado como o de Lafontaine. A protecção feminina segue-o como um amparo providencial. É colocado numa embaixada ou num senado: o Estado encarrega-se dele, como de uma glória pública: e, como Romieu, depois de governar as alcovas, vai gover­nar as províncias – ou, como o duque de Morny, vai descansar das almofadas de boudoir na cadeira de primeiro-ministro.

E enfim, pormenor fatal, não há mãe que não deseje para sua filha, não há filha que não deseje para si – um homem que tenha já passado as primeiras verduras: isto é, deseja que, para dar garantia de felicidade à sua família, tenha já de antemão gasto a chama impaciente: por onde? Pelas famílias dos outros!

Sendo assim uma alta glória a sedução – é evidente que todos desejam a auréola perfumada e que todo o moço de vinte anos, livre do recru­tamento, que se sente um pouco de espírito e de roupa branca, arremessa-se de badine em riste, ao movimento amoroso – o que faz, diria Marivaux – um voo de milhafres sobre as tenras pombas.

Perigo que não temos em Portugal – e que mais acentua a nossa virtude. Aqui há o celibatá­rio, mas não há o leão. E não é difícil à mulher mais fraca resistir ao encanto do Lovelace nacio­nal: porque o celibatário está nas secretarias ou está nas cavalariças. Os das secretarias são exce­lentes rapazes, com boa letra, espírito de ordem, boa mão de bilhar, muito entendidos em espanho­las, mas estão realmente longe de ter em espírito, em distinção, em petulância, em réplica, em sen­timento, em valor, aquela alta superioridade que fazia com que madama Recamier se erguesse, ao cumprimentar, duas linhas acima do seu eterno sofá de damasco amarelo.

Enquanto aos que estão nas cavalariças – são também excelentes, dignos, perfeitos, mas intei­ramente dados ao gado.

De modo que por este lado, ó filhas de Maria

Satanás anda longe.

 

                               Outubro 1872.

Srs. Operários:

Pouco temos a dizer-lhes, mas não queremos deixar de os felicitar pelo bom resultado das suas greves. Nem apreciamos menos a atitude que tiveram, cheia de um espírito fraternal, de uma moderação resoluta e daquela tranquilidade que é a melhor garantia de que se possui o direito.

Os senhores estão no seu momento histórico.

Nós outros, os que pertencemos ao terceiro estado, nós que ainda não há cem anos deixámos pela primeira vez de ajoelhar, quando falávamos na sala dos Estados gerais, diante do rei imutável e sagrado sob o seu dossel de arminhos; nós que ainda há pouco, na noite de 4 de Agosto, repelía­mos para a arqueologia o privilégio aristocrático; nós que há apenas noventa anos estávamos rumi­nando tranquilamente a nossa autoridade no alto da cidade – ai está que nos pomos a descer lenta­mente – porque os senhores se aproximam!

O terceiro estado vai-se, o quarto estado vem!

E ainda há pouco em Espanha, o Sr. Martos, ministro dos estrangeiros, anunciava no congresso a sua chegada oficial, dizendo: a revolução de Setembro é o advento do quarto estado!

Mas os senhores foram mais felizes que nos. Nós levámos a alcançar a roupa branca indepen­dente, que hoje temos, alguns séculos de trabalho consciente! E os senhores, caloiros que sois. Ainda há trinta anos, em 1848, a presença do ope­rário Albert no Governo provisório era a primeira aparição muda e instintiva do vosso temeroso mundo. – Parece incrível! e estamos em 72, e já vamos descendo para a penumbra histórica, nós, os filhos de Robespierre!

Paciência. Vamos-lhes abandonando a terra. Resignemo-nos. Desçamos. Dá cá o braço, Melício!

Mas, senhores operários, não se regozijem excessivamente; que os senhores têm o seu dia, mas terão o seu fim; e já por trás dos senhores, que são o povo, nós vemos uma temerosa sombra que murmura e rosna – a populaça.

Enfim, senhores operários, no meio dos seus triunfos, algumas considerações queremos subme­ter à sua atenção. E a primeira é que não se devem os senhores julgar os mais oprimidos da cidade. Porque onde existe o empregado público, ninguém tem o alto da desgraça. E se a sua Fraternidade Operária os pode conter a eles, lamentáveis como o pó e como o pó abandonados, não terão os senhores reunido a si o verdadeiro proletário – o proletário burguês. – Os senhores falam do seu direito, reclamam-no com greves, conseguem-no com cotizações; mas a verdade é que muitos dos senhores não são desgraçados. Em Portugal as indústrias são quase todas privi­legiadas, a importação é grandemente limitada pela taxa das alfândegas, de tal sorte que a média dos senhores ganham 800 réis diários, e alguns 1$000 réis. E com isto os senhores vivem em casas baratíssimas, andam perfeitamente com a sua jaqueta, suas esposas trazem com muita graça as chitas simpáticas dos tempos simples, seus filhos vão aprender um ofício e ganham logo; – os senhores não têm visitas, nem teatros, nem convi­tes, porque têm a vantagem da vida pobre; talvez não comam carne todos os dias, o que e um grande mal, mas muitos empregados públicos a não comem também. Agora acresce que eles, por exemplo, a classe infinita dos amanuenses, com os seus ordenados de 600 a 800 réis, têm de viver num andar da Baixa, de andarem eles, os filhos e as mulheres, vestidos com certa decência, de pano e de seda, têm de mandar os filhos aos colégios, e suportam todas as desvantagens da sua posição oficial. Isto, em breves palavras, sem fazer o quadro mais minucioso e realista da vida de um empregado público – lhes fará compreender – que a pequena burguesia já está mais pobre que o proletariado: que ela, vivendo sob a pressão feroz da carestia dos alugueres, do alto preço dos géne­ros, da agiotagem – não pode todavia fazer gre­ves – e que, por exemplo, um primeiro oficial de secretaria é mais pobre e bem mais proletário do que um operário pintor de carruagens, cujo salá­rio pode elevar-se a 2$000 réis por dia.

É verdade que um pintor de carruagens é a excepção – mas o director-geral não é a regra.

Se além dos empregados públicos – o que lhes pode parecer uma aproximação humorística – os senhores se lembrarem das classes agrícolas e da miséria dos trabalhadores do campo, que são, como os senhores, proletários – e não sei se dire­mos que eles, criados na salutar educação da terra e da cultura, nos merecem mais simpatias que o proletário da cidade, que tem uma polidez de mau agoiro – verão que no fim de tudo, para além dos senhores, muita miséria existe calada – que deveria falar.

Outra coisa porém lhes pedimos com todo o empenho – é que estudem melhor as suas greves. Porque, tendo os patrões o meio de se desforrar do aumento do salário que os senhores lhes exi­gem, aumentando o preço por que vendem aos que consomem, não vão os senhores por excessi­vas greves causar um encarecimento geral; de tal sorte que suceda este facto impertinente: os senhores terem um vintém mais por dia no que ganham, e gastarem por dia um pataco mais no que consomem. Vejam que uma parte dos homens eminentes da Internacional, porventura os mais científicos, se estão opondo às greves, as quais já deram em Inglaterra para os operários o resul­tado igual ao que tira um homem que lança ao ar uma pedra e ela lhe vem rachar a cabeça. Assim, por exemplo, os senhores chamam-se a Fraterni­dade Operária. Se são irmãos, não devem deixar na sua miséria atroz os seus irmãos que traba­lham nos campos; mas se houver uma greve agrí­cola, os senhores, da cidade, têm imediatamente uma tal alta nos géneros de primeira necessidade, que não cobrirão com todas as greves industriais o desastre que lhes causou a greve agrícola. E esta, todavia, é de uma justiça irrecusável: somente arruína-os. Estudem, portanto, esta questão temerosa. Mas estudem-na. Não cantem um pouco de mais o fado. O fado é bom e bonito. Mas não é inteiramente à guitarra que os senho­res hão-de conhecer a questão do salário; e olhem que essa questão envolve uma coisa posi­tiva e nítida – a fome. Estudem, consultem os experientes, que residindo nos grandes centros industriais, têm a plena inteligência da lei econó­mica das greves. Os senhores têm de chegar e de vencer. É uma lei histórica. Ninguém lho nega. A questão está toda no meio. Estudem-no bem – e pacificamente.

Outra coisa lhes pedimos, senhores operários: é que contenham certas tendências que os senho­res vão mostrando para a literatura. Aparecem aqui e acolá, nos anúncios, prosas de operários que em termos poéticos e com muita retórica agradecem aos patrões, exprimem o seu direito, ou suscitam a sua opinião Os senhores não têm que fazer prosa. Prosa fazemo-la nós – e é mesmo essa uma das causas por que teremos de respon­der amargamente no dia do juízo social. Os senho­res o que fazem é – produção e indústria. Se porém os senhores, sob a sua dignidade de ope­rários, escondem apenas organizações de loca­listas – tenham a bondade de esperar aí um momento, que vamos buscar as bengalas.

Somos, srs. operários, fraternais amigos e anti­gos admiradores.

 

                                   Outubro 1872.

Deu-se ultimamente um facto singular: o sol­dado Barnabé mata o seu alferes com um tiro, e é, pelo conselho de guerra, condenado a ser passado pelas armas. Imediatamente a imprensa apossa-se vorazmente deste facto, e, durante um mês, trava-se entre sanguíneos e linfáticos esta discussão: Deve o soldado Barnabé ser fuzilado? deve o soldado Barnabé conservar-se vivo? E, no entanto, na sua prisão, o soldado Barnabé, espera que os srs. jornalistas e curiosos decidam – se ele pode continuar a aquecer-se ao sol, ou se deve ser encostado a um poste e atravessado de balas.

Podia supor-se ainda que o soldado Barnabé, na reclusão mortuária da sua casamata, não conhe­ceria esta discussão, que é para ele alternada­mente – bandeira da misericórdia e dobre de fina­dos. Mas qual! O soldado Barnabé conhece os jor­nais. O soldado Barnabé lê os jornais, e, o que é pior, tendo um correspondente improvisado, sobre ele, uma anedota excessiva, o soldado Barnabé escreveu para os jornais. O soldado Barnabé recti­ficou. De modo que devemos crer que ele todas as manhãs abre a gazeta e vai procurar no artigo de fundo, soletrando a prosa florida – a proba­bilidade de viver ou a probabilidade de morrer!

 

Ora os que pedem a comutação da pena, com­preendem-se, têm por si a beleza do sentimento: é a piedade, o respeito da vida, o ódio das penas irreparáveis – que vivem e suplicam na sua prosa. São simpáticos, são sensíveis.

Mas os srs. sanguinários que pedem a morte, em que se fundam?

Na Disciplina militar.

E é a primeira vez em Portugal que a Disci­plina se estreia como razão. Nunca fora invocado este personagem: desde a deserção do soldado até à insurreição do general – tudo se tem passado tranquilamente, sem que a disciplina se adiante a reclamar os seus direitos ; – estava há tanto tempo calada, tácita, inactiva, indiferente, desinteressada, que todos supunham que ela pedira a sua reforma e gemia, nos subúrbios, um reumatismo antigo. Mas trata-se de uma vida – e vemos de repente, surpreendidos, a disciplina aparecer entre as colu­nas dos jornais, e pedir essa vida em seu nome e para sua garantia. Sem o que a Disciplina não responde por si. Ou lhe dão o soldado Barnabé crivado de balas, ou a Disciplina se rebaixa intei­ramente, e publicamente, nas ruas, se desa­botoa.

Esta aparição da Disciplina, que nunca ninguém vira, é tão singular que o movimento instintivo é olhar para ela. E que desilusão! Vindo pedir san­gue – podia supor-se que ela vinha forte, muscu­losa, asseada, correcta, intacta, pudica e grave. Qual! Vem trôpega, caturra, esfarrapada, ense­bada, esmoucada, babando-se e pedindo sangue para se reconfortar, como um mendigo escavacado pede um caldo. Um copo de sangue para a Dis­ciplina! E todo o mundo se admira que ela não prefira meio de Lavradio!

Entendamo-nos com a Disciplina. Ela tem em nós dois respeitadores imutáveis. Ela é a honra activa do exército, a sua consciência, a sua digni­dade. Para ela se manter intacta e perfeita, se forem necessários cadáveres, encostem-se homens ao muro e forme-se o piquete de execução; nós não temos o respeito sentimental e lírico da vida humana, ou antes temos o respeito excessivo da vida pública e social, para hesitarmos em lhe sacrificar Barnabé ou João. Mas o que é neces­sário é que a Disciplina militar, que vem pedir essa vida para garantia da sua conservação, seja verdadeiramente e legitimamente a disciplina mili­tar: isto é – a disciplina perfeita, sem nódoa, vir­gem de deserções e de revoltas, sem defecções e sem traições, tendo a religião da lei até à supers­tição, a obediência do dever até à minucio­sidade, rigorosa, exemplar, intacta, rígida e prussiana. Se esta disciplina, para se conser­var assim, pede sangue, atirem-se-lhe baldes de sangue!

Mas se é uma disciplina exautorada e desmo­ralizada, desfigurada e poluída por todas as revol­tas e todas as desobediências, a que nos vem pedir, para se desafrontar, a execução de um homem – encolhem-se os ombros. É como se uma prostituta se viesse queixar de que lhe deram mais um beijo! Pois tudo a disciplina tem sofrido sem se queixar! Corpos desorganizados, regi­mentos insubordinados, desordens nos quartéis, dissolução nos costumes, traições nas fileiras, roubos nos armamentos, desfalques nos ran­chos – está ferida, está extinta, está perdida – e de repente ergue-se e grita que a quise­ram violar e que matem o violador! E há quan­tos anos te estás tu deixando violar, de semana em semana?

És tu que fazes os Barnabés. Quando um exército se sente desorganizar, sem reagir, ali­menta a desobediência; e como perde o brio mili­tar, o espírito de camaradagem, a atenção pelos inferiores e o respeito pelos superiores – termi­na-se pelo tiro; à anarquia da disciplina segue-se a tirania da brutalidade. Um general que leva os seus soldados à revolta, termina na última escala pelo soldado que dá tiros nos seus oficiais. É a quem tem melhor pontaria.

Quando uma mulher se queixa, à uma hora da noite, que a insultaram, não tem andado desde as sete da tarde a oferecer-se aos tumultos. Se à primeira falta contra ti, ó Disciplina, tivesses reclamado, tinhas agora o teu cadáver. Assim, não. Se queres carne com sangue, come ros­bife.

E diz-se que sem este exemplo o exército em Portugal não pode ter seriedade. Escreve-se isto.

Não é mau. De modo que temos o exército sem espírito militar, sem instrução, sem manobras, sem hábitos de marcha e de acampamento, sem vigor físico, sem fé patriótica, os arsenais sem armas, a artilharia sem peças, os quartéis sem condições, as escriturações sem regularidade, os quadros sem gente, os estados-maiores sem talento, os coronéis sem fidelidade, os soldados sem disciplina – e qual o remédio para tudo isto?

– Matar o soldado Barnabé!

 

Nós bem sabemos que são os novos oficiais saídos das escolas e cheios de um espírito vivo –que querem este exemplo, para impedir o fim de tudo; e se há classe com que simpatizemos é a destes moços oficiais, homens positivos, instruídos, educados pela ciência, tendo alguma coisa no espírito da rectidão matemática, novos inteira­mente no vigor e nas tendências sociais; mas estes bons rapazes estão na ilusão. Eles não concorre­ram para a desorganização militar – acharam-na assim e são como filhos, tardiamente nascidos, que encontram arruinada a casa de seus pais, des­moronando-se ao Inverno.

Ora se eles são enérgicos e sentem em si a força das criações proveitosas, devem estar con­sertando a casa, vidro por vidro, e sustentando a disciplina caduca, cadáver por cadáver? – Não. Arrasem a casa e façam-na de novo. Depois se algum soldado resmungar, então sim: encos­tem-no ao muro e crivem-no de balas.

Até lá, sejamos mais benévolos – e não seja o pobre Barnabé que vá estrear – o novo sistema de armas!

 

 

[1] Desta indiferença profunda e bestial que há pela instrução, devemos exceptuar os excelentes trabalhos do Sr. D. António da Costa. Os seus livros. escritos com uma exacta ciência e com um altivo sentimento, são o protesto da civilização e a desforra do espírito.

 

 

                                                                  Eça de Queirós

 

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