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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Uma Canção nas Trevas / Edgar Wallace
Uma Canção nas Trevas / Edgar Wallace

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Uma Canção nas Trevas

 

Em sua motocicleta barulhenta, que chama carinhosamente de pirilampo, Patrick J. Minter, mais conhecido como Sooper, movimenta-se pelos arredores de Londres. É superintendente da policia metropolitana e esta na pista de um assassino sagaz e perigoso. Assim se delineia a trama intrincada que o autor cria em "Uma canção nas trevas", um de seus romances policiais mais famosos, em que se combinam, magistralmente, mistério, humor e suspense.

 

                  

 

Sooper

Foi por coincidência que Sooper fez uma visita a Barley Stack, numa bela manhã de primavera, pois, naquele momento, ignorava a tentativa de assalto à casa do Sr. Stephen Elson, ignorava a existência de uma pessoa como Sullivan, o vagabundo, ou que seu louco companheiro de crimes vagasse solto pela formosa zona rural, cantando idiotas cançõezinhas de amor — numa linguagem estranha e ininteligível.

Barley Stack exercia sobre Sooper o fascínio que exerce a luz sobre a mariposa ou, para ilustrar melhor, que a batalha exerce sobre o veterano; muito embora devesse saber que, a essa hora, o Sr. Cardew já tinha, há muito tempo, partido para a cidade, pois Gordon Cardew, conquanto aposentado na profissão, tinha o hábito das nove horas indelevelmente implantado em seu organismo.

Não obstante, Sooper foi fazer-lhe uma visita. Faltando-lhe a emoção mais pungente de esgrimir palavras com Cardew, davam-lhe, geralmente, certa satisfação os encontros com Hannah Shaw. A atitude do Sr. Cardew para com ele era de ressentimento, pois Sooper o ferira. Por outro lado, incapaz de sentir ou expressar as nuanças sutis da consideração pessoal, Hannah votava ao velho superintendente de polícia um ódio que nunca tentava disfarçar.

Hannah se achava solidamente postada no pórtico de Barley Stack, e a luz malévola de seus olhos castanhos poderia ter falado por ela. Não tendo chegado ainda à meia-idade e um tanto rechonchuda, o vestido preto que usava não lhe realçava a beleza. Mas, de certo modo, era bela. O rosto pesado não tinha rugas, a grossa franja preta de cabelos sobre a testa não tinha fios grisalhos, se bem que já tivesse passado dos quarenta. Embora grandes, os traços eram regulares, e, malgrado suas proporções, teria sido uma injustiça chamá-la de atarracada.

— Temos tido bom tempo — murmurou Sooper. Debruçou-se sobre a motocicleta dilapidada, os olhos meio fechados, como se, no calor da manhã e na beleza da paisagem, estivesse inclinado a fazer a sesta. — E o jardim está lindo também. Nunca vi tantos narcisos do prado como os que há no parque, além desses cravos todos! Aposto que arranjou um bom jardineiro. O Sr. Cardew está?

— Não, não está!

— Garanto que ele anda seguindo a pista do assalto ao Banco de Boscombe! — voltou Sooper, sacudindo a cabeça com simulada admiração. — Assim que li a história do assalto nos jornais, eu disse ao meu sargento: "É preciso um homem como o Sr. Cardew para seguir esse bando... A polícia comum não seria capaz de fazê-lo. Jamais encontraria uma pista... Ficaria atarantada desde o princípio".

— O Sr. Cardew foi para o escritório, como você sabe perfeitamente, Minter — rosnou ela, os olhos fuzilantes. — Ele tem coisa melhor para fazer do que perder tempo com trabalho policial. Pagamos impostos e taxas para a polícia, e grande serviço nos presta ela! Um bando incompetente e ignorante de homens que nem sequer têm educação!

— Não se pode ter tudo — observou Sooper, tristemente. — É lógico, Sra. Shaw...

— Senhorita Shaw! — retificou Hannah, quase gritando.

— Sempre penso na senhora desse jeito — acudiu Sooper em tom de desculpa. — Ainda outro dia dizia eu ao meu sargento: "Por que não se casa aquela moça é coisa que não entendo: é nova..."

— Não tenho tempo para perder com você, Minter...

— Senhor Minter — sugeriu delicadamente Sooper.

— Se tiver algum recado para o Sr. Cardew, pode dá-lo... Caso contrário, tenho muita coisa para fazer e não posso perder tempo com você.

— Algum assalto? — perguntou Sooper, quando ela já lhe virava as costas para afastar-se.

— Não, não houve assalto nenhum — foi a áspera resposta. — E, ainda que houvesse, não mandaríamos chamá-lo.

— Aposto que não — voltou Sooper, com calor. — Aposto que o Sr. Cardew me diria o tamanho das pegadas do assaltante e consultaria o seu livro de antro... sei lá como se chama, e o pobre-diabo estaria preso antes do anoitecer.

A Srta. Hannah Shaw voltou-se, furiosa, para ele.

— Se acha que está sendo esperto, deixe-me dizer-lhe que existe gente em Londres capaz de fazê-lo parecer deste tamanhinho, Minter. Se o Sr. Cardew fosse ao secretário de Estado e lhe contasse a metade das coisas que você faz e diz, haveriam de arrancar-lhe o paletó das costas antes do fim da semana!

Sooper examinou criticamente a manga do paletó.

— O que é que tem ele? — perguntou, enquanto ela lhe batia maldosamente a porta na cara.

Sooper não sorriu, nem se sentiu agastado. Em vez disso, encheu o cachimbo fétido com grande circunspecção, contemplou com admiração o belo colorido das flores primaveris, que enchiam todos os canteiros à vista, detendo-se apenas o suficiente para enfiar um morião furtado na lapela do surrado paletó, e voltou, fazendo estardalhaço, pelo caminho de cascalho, à estrada principal.

Meia hora depois:

— Quando um homem chega à minha idade e posição elevada — disse Sooper, piscando para o jovem policial de rosto grave sentado do outro lado da mesa —, tem o direito de ser temperamental. Hoje estou temperamental. Há um toque de primavera no ar, e sou capaz de jurar que ouvi um cuco no domingo passado. E quando existem cucos por aí e crescem jacintos nos matos, fico temperamental. Além disso, acabo de ter uma conversa com a Bela de Barley Stack, e minha cabeça está cheia de idéias sentimentais. Você me pede para dar uma boa espiada neste vagabundo aqui e eu lhe respondo que prefiro colher primaveras à beira do rio.

Sooper era alto, anguloso e muito relaxado. Seu terno fora velho por muitos anos, e agora, limpo e virado ao avesso, era um simulacro de roupa. O rosto magro e trigueiro e as sobrancelhas grisalhas e eriçadas conferiam-lhe uma distinção que o traje fazia o possível para dissipar. O desprezo de Hannah Shaw pelo seu guarda-roupa era uma de suas mais gratas fontes de alegria.

Havia muitos superintendentes de polícia, mas quando alguém falava em Sooper nos círculos da Polícia Metropolitana referia-se ao Superintendente Patrick T. Minter e a mais ninguém.

— Vá entrevistar o vagabundo, meu bom sargento

—disse ele, sacudindo a manopla com gesto senhoril.

— O grave ofício de detecção criminal pertence ao meu passado... era simples demais! Eu já estava ficando senil... por isso peguei este serviço, que me permite viver no campo, criar galinhas e coelhos, e estudar a natureza em toda a sua majestade e esplendor.

A Divisão I da Polícia Metropolitana abrange a parte rural de Londres que se estende até as divisas de Surrey. Trata-se, notoriamente, de uma divisão sonolenta, um remanso para o qual os homens derivam, agradecidos, das águas turbulentas de Limehouse, Greenwich e Notting Dale. A Divisão I trata sobretudo de crimes surpreendentes como vagabundagem, caça e pesca furtivas e incêndio de medas de feno. Os membros da Divisão I, para inveja dos colegas da cidade, encurralam reses e cavalos extraviados e tomam providências ativas para curar moléstias infecciosas dos animais. São conhecidos como "os labregos", "os caipiras" e "a legião perdida". Mas esses homens cultivam jardins — muitos cultivam suas próprias verduras — e podem dar-se ao luxo de sorrir, tolerantes, quando os camaradas invejosos fazem referências zombeteiras às suas bucólicas ocupações.

Sooper foi transferido da Scotland Yard para o agradável refúgio não como prova de reconhecimento dos superiores pelos seus excelentes serviços — ele foi um dos cinco grandes que desmantelaram o bando russo em Whitechapel —, mas (é melhor contar a verdade) porque era um espinho na ilharga de certos funcionários da polícia. Sooper constituía uma fonte de constante irritação para a Polícia Central. Não respeitava ninguém, do comissário-chefe para baixo; não era polido com ninguém; não concordava com ninguém. Altercava, discutia e, de vez em quando, desafiava. A mais irritante das suas qualidades era o fato de ter, quase sempre, razão. E, quando se provava que tinha razão e que seus chefes estavam errados, mencionava o fato umas vinte ou trinta vezes no correr de um dia de serviço.

— E o que é mais — prosseguiu —, se eu for falar com esse vagabundo ordinário, interromperei meus estudos. Estou fazendo um curso intensivo de criminologia. Você nunca ouviu falar em Lombroso, ouviu? Ah! Nesse caso não sabe nada a respeito de cérebros de criminosos! Os cérebros comuns pesam... já não sei quanto, mas os cérebros dos criminosos são mais leves. Vá me buscar o cérebro desse homem e eu lhe direi se ele estava tentando ou não assaltar Barley Stack. E pés preênseis: sabe que cinco por cento dos criminosos são capazes de pegar as coisas com os dedos dos pés? E sabe que as cabeças oxicefálicas estão muito em moda nos círculos criminais? Você já perdeu muita coisa. Vá buscar uma fita métrica, anote as estatísticas desse andarilho e observe-lhe o rosto assimétrico! Sempre foi fácil pegá-los. Agora, então, é serviço de criança!

O Sargento Lattimer era um homem demasiado prudente para interromper o superior enquanto sua garrulice não apresentasse indícios de estar se esgotando. Aquele lhe pareceu o momento azado para inserir uma observação.

— Mas, Sooper, não se trata de um assalto comum. De acordo com Sullivan... é o nome do vagabundo...

— Vagabundo não tem nome — atalhou Sooper, em tom cansado. — Você começou errado. Eles são "Zé" ou "Zé Cansado" ou "Zé do Vagão", mas não têm sobrenome.

— De acordo com Sullivan, o outro vagabundo que estava com ele não quis deixá-lo entrar em casa do Sr. Elson e tirar o dinheiro. Ele queria outra coisa...

— As escrituras das propriedades da família, provavelmente — abreviou Sooper em tom pensativo. — Ou a certidão de nascimento do herdeiro legítimo. Ou talvez o Sr. Elson, como norte-americano sórdido que é, tenha roubado o rubi sagrado do olho direito do grande deus Hokum, e os índios sinistros o tenham seguido e ficado à espera da oportunidade. Eis aí um caso para Cardew... Você talvez possa resolvê-lo. Vá, sargento. Terá manchete nos jornais. Além disso, você é simpático. Talvez case com a moça que se supõe seja a criada mas que, no fim, se verifica ser filha do duque, raptada por ciganos na mocidade. Vá!

 

A inesperada Hannah

O jovem policial ouvia com admirável paciência.

— Prendi Sullivan porque estava dormindo lá perto ontem à noite... E ele, agora, praticamente já confessou que tentou entrar na casa.

— Vá buscar-lhe as marcas das orelhas — murmurou Sooper, pegando a caneta. — Já observou alguma vez como os criminosos e paranóicos têm orelhas de abano? Está no livro. E o livro não pode mentir. O detetivismo já não é o que era, sargento. Precisamos de mais fisiognomonistas, e de mais químicos. Minha idéia de um detetive de verdade é um sujeito sentado numa mansão familiar de alta classe, com um microscópio, uma mancha de sangue e um tiquinho de lama de Londres e que, reunindo as três coisas, é capaz de dizer-lhe que as jóias foram furtadas por um homem canhoto que guiava um Ford conversível verde. Você conhece um homem chamado Ferraby?

— O Sr. Ferraby, da Promotoria Pública? — perguntou o sargento, momentaneamente interessado. — Conheço, sim, senhor: eu o vi no dia em que esteve aqui.

Sooper assentiu com a cabeça; fechando os maxilares como uma ratoeira, mostrou duas fieiras de dentes. Estava sorrindo.

— Ele não é um detetive — disse, com ênfase; — apenas compreende os fatos. Se aquele sujeito fosse chamado para desvendar o mistério do relógio perdido do rajá de Bong e descobrisse que o grão-vizir havia empenhado um relógio de pulso no Dia de Veltheim numa casa noturna de penhores, prenderia o grão-vizir. Um verdadeiro detetive não seria tão bobo. Deduziria imediatamente que o relógio havia sido arrancado numa luta com a jovem e bela datilografa, escondida atrás da porta secreta, amordaçada, amarrada e pronta para ser remetida ao repugnante palácio índio construído de lápis-lazúli. Pois bem, o velho Cardew é um detetive! Aí está um homem que você podia tomar por modelo, sargento.

Sooper apontou solenemente a caneta para o subordinado.

— Aquele homem estudou o crime de todos os ângulos; aprendeu psico... sei lá como é a palavra... Psicologia, não é? Pois bem, aprendeu isso. E é forte em orelhas, queixos prognáticos, rostos assimétricos, peso do cérebro e essa história toda. Tem uma biblioteca em Barley Stack cheia de livros sobre crimes.

Quando Sooper começava a falar sobre aquele excelente amador, o Sr. Gordon Cardew, era difícil desviá-lo do assunto, e o sargento suspirou, leve e respeitosamente.

— Mas é preciso decidir: quer ou não ver o tal Sullivan? Ele praticamente confessou que foi a Hill Brow a fim de cometer um assalto.

Sooper fitou nele dois olhos ameaçadores; em seguida, para surpresa de Lattimer, assentiu com a cabeça.

— Verei Sullivan... faça-o entrar.

O sargento ergueu-se com entusiasmo e desapareceu na saleta de arquivo. Voltou, minutos depois, acompanhado de um vagabundo muito alto, muito pouco cativante e totalmente constrangido.

— Este é Sullivan — anunciou o sargento. Sooper depôs a caneta sobre a mesa, retirou violentamente os óculos e encarou, colérico, o prisioneiro.

— Que negócio é esse que você andou contando sobre o andarilho que não quis deixá-lo entrar em Hill Brow? — perguntou, de supetão. — E se está mentindo, vagabundo, minta plausivelmente!

— É verdade, Sooper — replicou o vagabundo com voz roufenha. — Ainda que eu tenha que morrer neste minuto, aquele sujeito pancada quase me matou quando tentei abrir a janela. E tínhamos arrumado tudo direitinho... Ele mesmo me falou da casa e do lugar onde o americano guarda a grana. Se eu morrer neste mesmíssimo segundo...

— Você não vai morrer: os vagabundos não morrem — atalhou Sooper. — Sullivan? Já sei quem é! Você foi condenado a três anos pelo Tribunal de Londres por furto... Luke Mark Sullivan, lembro-me dos seus benditos nomes!

O Sr. Luke Mark Sullivan arrastou os pés, inquieto, mas, antes de poder declarar-se injustiçado e inocente, Sooper prosseguiu:

— O que é que você sabe sobre esse vagabundo louco?

Sullivan sabia muito pouco. Conhecera o homem em Devonshire, e ouvira qualquer coisa a respeito dele de outros cavalheiros da estrada.

— É completamente gira, Sooper: todos os camaradas dizem o mesmo. Anda por aí cantando sozinho. Não pertence a bando nenhum e fala esquisito... coisas bonitas e línguas estrangeiras.

Sooper recostou-se na cadeira.

— Você não poderia ter inventado isso. Seu cérebro não pesa o suficiente. Onde é que ele mora?

— Em toda a parte. Mas, se não me engano, mora mesmo perto do mar. Costumava perguntar-me... andei com ele na estrada cerca de uma semana... se gosto de navios. Disse que ficava olhando para eles, dias e dias, enquanto passavam ao longe, e imaginando que espécie de navios não poderiam afundar. O cara é louco! E, depois de havermos combinado entrar naquela casa, sabe o que ele me disse? Voltou-se para mim como se eu fosse um cachorro e gritou: "Fora!"... Assim mesmo, Sooper... "Fora! Suas mãos não estão suficientemente limpas para serem o..." Bem, qualquer coisa sobre "justiça"... É completamente doido!

O superintendente ficou olhando para o homem constrangido durante muito tempo, sem falar.

— Você mente por quanta junta tem, Sullivan — disse, por fim. — Não poderia mesmo dizer a verdade: tem olhos esquisitos! Ponha-o na cadeia, sargento... Vamos enforcá-lo!

O Sr. Sullivan já voltara à sua cela e o sargento já estava na metade do almoço, quando Sooper se mexeu na cadeira. Deixara-se ficar sentado, imóvel, olhos fitos no tinteiro. Afinal, com uma careta, como se o esforço lhe fosse penoso, livrou-se dos chinelos que usava invariavelmente nas horas de expediente e enfiou os sapatos gastos, com um grunhido.

Lattimer chegara à fase da torta de maçã do seu banquete quando o velho apareceu, arrastando os pés, no refeitório dos funcionários.

— Você sabe alguma coisa sobre esse americano Elson? — perguntou Sooper. — Não se levante, homem... coma a sua torta.

— Não, senhor... a não ser que é uma espécie de diamante bruto. Dizem que é riquíssimo.

— Foi também o que deduzi — conveio Sooper. — Quando um homem mora num casarão, tem três automóveis e vinte criados, faço meus cálculos e chego à conclusão de que ele está bem de vida. Vou vê-lo.

Sooper possuía uma motocicleta positivamente desacreditada. Parecia-se com uma motocicleta comum tanto quanto um cortiço com o Palácio de Buckingham. Toda primavera, Sooper desmontava sua máquina e, aos olhos estupidificados do Sargento Lattimer, tornava a montá-la de tal maneira que lhe dava uma aparência inteiramente diversa. Essa ilusão pode ter tido sua origem na paixão dele por mudar a cor da estranha engenhoca. Num ano, era de um verde muito vivo, no outro, de um vermelho flamante. De uma feita, pintou-a de branco, e os raios, de azul-celeste. Sooper era assim: não podia passar, sem entrar, por uma loja de ferragens onde visse tinta de bicicleta.

Entretanto, era uma boa motocicleta. Por um milagre qualquer, seus dois cilindros desenvolviam tremendas energias. Fazia muito tempo que o guidão, outrora cromado, havia sido pintado; o selim fora seguro com cordões e os pneumáticos estavam tão remendados que a menos observadora das crianças da aldeia poderia dizer, pelo exame do rastro na terra, não só que Sooper passara por ali mas também a direção que seguira; mas andava.

Dirigiu-se matracolejando a Dewlap Hill, ladeou o alto muro vermelho de Hill Brow, apeou, abriu o portão e passou pelos olmos que orlavam a entrada de automóvel do Sr. Elson. Encostando a motocicleta a uma árvore, encaminhou-se, pachorrento, para o casarão, galgou os largos degraus e se deteve diante da porta aberta.

A sala estava vazia, mas ouviu vozes, uma de mulher e outra de homem. O som vinha de um aposento que dava para a sala. Na porta, entreaberta, divisou quatro dedos roliços, como se alguém se houvesse detido no momento de abri-la. Sooper olhou à sua volta, à procura do cordão da sineta, e viu-o, então, no centro da porta da frente. Ia entrando na sala para alcançá-lo, quando...

— Ou casamento ou nada, Steve! Faz muito tempo que ando sendo tapeada. Promessas, promessas, promessas!... Estou farta delas!... Dinheiro? Que me adianta dinheiro? Sou tão rica quanto Você...

Nesse instante a porta se abriu e surgiu a pessoa que falava; e, se bem que estivesse de costas para ele, Sooper reconheceu-a. Era Hannah Shaw, a pouco amável governanta de Barley Stack.

Por um segundo se quedou a contemplar o vulto; a seguir, sem fazer ruído recuou até o ângulo da parede, saltou ligeiro sobre a balaustrada e desapareceu. Hannah não lhe viu sequer a sombra quando ele passou. Para certificar-se duplamente de que sua presença não seria notada, Sooper empurrou a motocicleta por mais de um quilômetro antes de montá-la.

 

Um advogado perde um caso

Num dia do princípio do verão, debaixo de um céu azul, o Temple é um lugar muito agradável e sono-lento de descanso. Pois há torres em Temple Gardens, e as folhas verdes das árvores cujos galhos balouçam sobre as lájeas gastas pelo tempo são translúcidas ao sol, e a água do chafariz espadana musicalmente. As sombrias fachadas de antigos edifícios, tão ameaçadoras entre as névoas finas de fevereiro, assumem suave beleza própria, de modo que os advogados apressados, de perucas cinzentas e longas vestes pretas, hesitam momentaneamente à soleira dos próprios escritórios, como que indagando se, num momento de aberração, não teriam ido parar num lugar mais estranho e encantador do que aquele a que o uso os habituara.

Caminhando despreocupadamente de Fleet Street para sua sala em King's Bench Walk, Jim Ferraby se deteve junto ao chafariz para salvar o chapéu de uma menininha e prosseguiu, assobiando baixinho, as mãos enterradas nos bolsos, a testa desenrugada, bem-parecido e satisfeito, em plena quadra irrefletida dos trinta anos.

Alcançou a galeria, fez nova pausa nos degraus de pedra que conduziam ao seu escritório e contemplou, com todos os indícios de aprovação, o trecho prateado de rio visível daquele ponto. A seguir, subiu lentamente a escada melancólica e, parando diante de uma porta pesada e negra, tirou da algibeira uma chave respeitável e introduziu-a na enorme fechadura.

Já a fazia girar quando ouviu abrir-se a porta do lado oposto do patamar e, voltando-se, sorriu para a moça que estava em pé no vão da porta aberta.

— Bom dia, Srta. Leigh — disse, alegremente.

A moça fez uma inclinação com a cabeça.

— Bom dia, Sr. Ferraby.

A voz dela era muito suave e curiosamente meiga. Fora a voz de Elfa Leigh o que primeiro o atraíra para contratá-la como secretária do velho Cardew. Ele concordou consigo mesmo em que aquela era também a principal atração; e o fato de a moça possuir a espécie de rosto que os artistas desenham mas os homens raramente vêem e um corpo desempenado e lindo, apesar de magro, e possuir olhos cinzentos bem apartados um do outro e quase orientais em sua obliqüidade e profundeza, nada tinha a ver com o seu interesse pelo único membro do quadro de auxiliares de escritório do Sr. Gordon Cardew.

As relações entre ambos, que já se prolongavam por mais de um ano, haviam começado naquele patamar poeirento e prosseguido com certa formalidade. Não havia, de fato, razões para que o velho Sr. Cardew — ele tinha efetivamente cinqüenta e oito anos, mas cinqüenta e oito é muita idade para jovens na' casa dos vinte — tivesse um escritório em King's Bench Walk, pois não exercia a profissão. Outrora a firma Cardew & Cardew tivera uma clientela sem paralelo em qualidade e riqueza em toda a cidade de Londres. Seus membros haviam sido procuradores de grandes bens de raiz, curadores de vastas propriedades, representantes legais de poderosas firmas. Mas, durante a guerra, o último dos Cardew se cansara de suas responsabilidades e transferira os clientes para uma firma mais nova e, como ele mesmo disse, mais robusta, de advogados. Poderia ter seguido as tradições da profissão e arrumado um sócio, preservando o nome de uma casa que existira durante cento e cinqüenta anos. Preferira, porém, abandonar a prática, e os grandes e melancólicos escritórios em King's Bench Walk eram agora exclusivamente dedicados à direção de seus próprios e prósperos negócios — pois o Sr. Gordon Cardew era um homem de posses.

— Imagino que o senhor tenha vencido a causa e que o pobre homem tenha ido para a cadeia.

Estavam agora os dois em duas portas opostas e suas vozes ecoavam pelo corredor vazio.

— Perdi minha causa — tornou Jim, calmamente —, e o "pobre homem" está agora, muito provavelmente, tomando cerveja e rindo-se da lei que ele burlou.

Ela arregalou os olhos para ele.

— Oh... sinto muito!... Isto é, não sinto que o homem esteja livre, mas que o senhor tenha perdido. O Sr. Cardew disse ter certeza de que ele seria condenado. A outra parte apresentou alguma prova nova? Que pena!

Ela se referia tranqüilamente à "outra parte", como funcionária de um advogado dirigindo-se a outro advogado.

— A outra parte não apresentou nenhuma prova nova — tornou Jim, no mesmo tom. — Sullivan foi absolvido porque eu o acusei. A verdade, Srta. Leigh, é que tenho o espírito de um criminoso, e, durante todo o tempo em que falei contra ele, eu pensava por ele. Foi o primeiro caso em que apareci defendendo os interesses do Estado, e será o último. O juiz disse, ao fazer o sumário, que minha acusação foi a única defesa sensata apresentada pelo réu. Sullivan deveria ter sido condenado a um ano de cadeia e, em vez disso, está por aí roubando galinhas.

— Galinhas?... Pensei que fosse um caso de tentativa de invasão de domicílio.

Ela estava perplexa.

— Citei um antigo non sequitur. Estou arruinado, Srta. Leigh... Tenho o cérebro de um mestre do crime combinado com a elevada concepção moral de um evangelizador galés. Doravante sou apenas um funcionário sem nome do Ministério Público.

Ela riu suavemente diante da solene declaração e, naquele momento, ouviu-se um passo firme subindo a escada. Abaixando os olhos, Jim avistou o topo do chapéu imaculado do Sr. Cardew.

Um rosto grave, estético, olhos que brilhavam bem-humorados debaixo de hirsutas sobrancelhas, uma correção escrupulosa no trajar e uma exatidão pedante no falar — tal era o Sr. Gordon Cardew.

Trazia o guarda-chuva enrolado debaixo do braço, tinha as mãos juntas nas costas ao subir a escada e, naquele instante, seu rosto parecia anuviado. Erguendo os olhos deu com o rapaz.

— Alô, Ferraby, disseram-me que o seu homem está livre.

— As más notícias andam depressa — resmungou Jim. — Sim, senhor, meu chefe está furioso!

— E devia estar mesmo — tornou Cardew, com o fantasma de um sorriso nos olhos expressivos. — Encontrei-me com Jebbings, o advogado do Ministério da Fazenda. Ele me disse... bem, não se preocupe com o que ele me disse. Não é minha função semear a discórdia entre os membros da profissão. Bom dia, Srta. Leigh. Algum negócio urgente? Não? Entre, Ferraby.

Jim acompanhou o advogado à sala bem mobiliada. O Sr. Cardew fechou a porta atrás dele, abriu uma caixa de charutos e empurrou-a na direção do jovem advogado.

— Você não foi feito para acusar criminosos — disse, com um sorriso irônico. — Financeiramente, aliás, não há razões para que exerça qualquer profissão.

Por isso mesmo, se eu estivesse em seu lugar, não me preocuparia muito com o que aconteceu hoje no tribunal. Estou naturalmente interessado pelo caso, porque o Sr. Stephen Elson é meu vizinho... Um cavalheiro norte-americano um tanto arrogante, não muito polido, mas que dizem ser bom sujeito. Ele ficará aborrecido. Jim meneou a cabeça com desânimo.

— Tenho uma falha qualquer — disse, em tom de desespero. — Minhas simpatias são todas pela lei e pela ordem e, na promotoria, exulto com cada condenação para a qual contribuo. No tribunal, meu espírito tergiversava, procurando encontrar desculpas para aquele animal... As desculpas que eu mesmo teria apresentado se estivesse no lugar dele.

O Sr. Cardew sorriu com expressão de censura.

— Quando um membro do Ministério Público se levanta e insinua dúvidas sobre a infalibilidade do sistema de impressões digitais...

— Eu fiz isso? — perguntou Jim, corando como um culpado. — Misericórdia! Parece que fiz uma salada do caso!

— Acho que fez — foi a resposta seca. — Você não bebe vinho do Porto a esta hora da manhã?

E como Jim recusasse, Cardew abriu um armário, tirou dele uma garrafa preta e empoeirada, limpou cuidadosamente um copo e encheu-o de um líquido cor de rubi.

— Tenho ainda outro interesse por Sullivan — continuou. — Como você provavelmente sabe, sou... um... uma espécie de estudioso de antropologia. De fato, lisonjeio-me com a idéia de que existe em mim um bom detetive desperdiçado. E, francamente, ao ver o tipo de homem que ocupa posições importantes na força policial, a gente desejaria que o sistema fosse reorganizado de modo que pessoas de experiência mais amadurecida e... digamos... de maior saber encontrassem oportunidade de fazer uso de seus talentos. Temos um homem encarregado da minha divisão que é simplesmente...

Faltaram-lhe as palavras. Só conseguiu dar de ombros, num gesto de impotência, e Jim, que conhecia o Superintendente Minter, disfarçou o seu divertimento. Todo mundo sabia que Sooper tinha o mais profundo desprezo por todos os amadores e teóricos: era a atitude do bom trabalhador para com o artista indiferente. E, em certa ocasião, chegara a ser ofensivo — o Sr. Cardew descreveu-o como "incivil" — numa discussão sobre antropologia.

— Homem, não seja infantil! — rosnara Sooper, quando o Sr. Cardew sugerira que uma voz desafinada e um olhar duro e brilhante eram característicos de certo tipo de criminoso.

O Sr. Cardew declarara, mais de uma vez, que uma grosseria dessa natureza era difícil de perdoar-se.

Jim matutava na razão do convite inesperado para entrar no escritório particular de Cardew — sua primeira visita, se bem que conhecesse o advogado havia cinco anos —, pois que o convite tinha uma significação especial era evidente em face do seu comportamento. Mostrava-se preocupado e nervoso, andando pela sala com passos irresolutos e parando, de vez em quando, para arrumar algum papel sobre a escrivaninha ou colocar uma cadeira em posição diferente.

— Durante todo o trajeto para a cidade você não me saiu da cabeça — disse, de repente —, e andei pensando se devia ou não consultá-lo. Conhece minha governanta, Hannah Shaw?

Jim lembrava-se perfeitamente da mulher de cara fechada, que falava por monossílabos e que, desde o dia em que ele fizera boas ausências de Sooper, não tentara sequer disfarçar a aversão que lhe votava. O Sr. Cardew considerava-o com olhos penetrantes.

— Você não gosta dela — afirmou, mais do que perguntou. — Ela se mostrou um tanto desagradável na última vez em que você esteve em casa, não é verdade? Meu chofer, que é meio mexeriqueiro, contou-me que ela lhe falou grosseiramente. Não há dúvida de que é brusca e acrimoniosa, e desagradabilíssima como pessoa. Mas acontece que ela me serve de muitas maneiras e, além disso, é um legado de minha querida esposa... que a tirou pequena de um orfanato, de modo que Hannah se criou, praticamente, em minha casa. Com todo o respeito, eu poderia compará-la com um daqueles cachorros de Aberdeen, que rosnam para todo o mundo, menos para o dono.

Enfiou a mão no bolso, dali tirou uma carteira de couro, abriu-a, examinou alguns papéis e, finalmente, desdobrou um deles sobre a mesa.

— Vou fazer-lhe uma confidencia — declarou, e ergueu a vista para a porta a fim de verificar se estava fechada. — Leia isso.

Era uma folha de papel comum. Não trazia endereço nem data de qualquer espécie. Liam-se nela apenas três linhas escritas a mão, que diziam:

 

AVISEI-A POR DUAS VEZES.

ESTA É A ÚLTIMA.

VOCÊ ME LEVOU AO DESESPERO.

 

A nota estava assinada "Big Foot".

— Big Foot? Quem é Big Foot? — perguntou Jim ao reler a nota. — Sua governanta foi ameaçada... Ela lhe mostrou este papel?

O Sr. Cardew sacudiu a cabeça.

— Não, ele me chegou às mãos de maneira curiosa. No dia 1.° de cada mês, Hannah me traz as contas da casa, coloca-as sobre a escrivaninha, no meu escritório, e eu redijo os cheques para os fornecedores. Ela tem a mania de carregar as contas no bolso e na bolsa e misturá-las todas no último momento... É o oposto da pessoa metódica. Esta carta se achava entre as dobras de uma conta do armazém: ela deve tê-la tirado às pressas da bolsa, sem compreender que me estava dando um papel seu.

— O senhor falou com ela?

O Sr. Cardew franziu o cenho e meneou negativamente a cabeça.

— Não — hesitou ele —, não falei. De maneira um tanto canhestra sugeri-lhe que, se se visse alguma vez metida numa encrenca qualquer, me procurasse, mas Hannah limitou-se a rosnar para mim... Não há outra palavra, ela rosnou! Foi... bem, para não fazer disso um cavalo de batalha, foi uma impertinência da sua parte. — Suspirou profundamente. — Detesto caras novas — prosseguiu —, e lamentaria muito perdê-la. Se ela tivesse adotado outra atitude, eu, naturalmente, lhe teria contado meu descobrimento. E agora, para ser absolutamente sincero, estou com medo de dizer a ela que tenho uma carta sua em meu poder. Já tivemos uma desavença séria, por causa de uma estúpida brincadeira dela. A próxima porá fim à nossa associação. Que me diz da carta?

— Que foi escrita por um chantagista qualquer — sugeriu Jim. — Redigida com a mão esquerda, com o objetivo de disfarçar a letra. Na minha opinião, o senhor devia pedir-lhe uma explicação.

— Pedir uma explicação a Hannah? — repetiu o Sr. Cardew, em tom assustado. — Misericórdia, não me atrevo! Não, a única coisa que posso fazer é conservar os olhos abertos e, na primeira oportunidade, quando eu a encontrar mais afável... e ela é afável pelo menos duas vezes por ano... tocar no assunto...

— Por que não consulta a polícia? — perguntou Jim.

O Sr. Cardew empertigou-se.

— Minter? — voltou, em tom gélido. — Aquele policial grosseiro, sem imaginação? Francamente, meu caro rapaz! Não se houver aí algum mistério, acho... acho mesmo... que sou capaz de investigar a coisa até o fim. E existe um mistério fora desta carta, ou decorrente dela.

Olhou para a porta, atrás da qual estava trabalhando sua inocente secretária, e abaixou a voz.

— Como você sabe, tenho um bangalozinho na praia de Pawsey Bay, em Sussex. Um antigo posto da guarda costeira. Comprei-o barato e ali tenho passado horas agradabilíssimas. Hoje em dia, vou muito raramente lá e costumo cedê-lo ao meu pessoal. Na realidade, minha secretária, a Srta. Leigh, ocupou-o durante uma semana no ano passado, e lá esteve com algumas amigas. Inesperadamente, Hannah me apareceu hoje cedo, perguntando se podia ficar no bangalô de sábado a segunda-feira. Faz anos que não vai lá; odeia o lugar e foi, aliás, o que ela mesma me disse há menos de uma semana. Pois agora estou imaginando se esse passeio repentino ao litoral não terá alguma relação com a carta.

— Faça com que a vigiem — sugeriu Jim. — Detetives particulares — apressou-se a acrescentar à sugestão.

— Já pensei nisso — replicou Cardew em tom pensativo —, mas repugna-me espioná-la. Lembre-se de que ela está a meu serviço há quase vinte anos. É claro que lhe dei a licença, embora me sinta um tanto preocupado em vista desses fatos. De ordinário, Hannah passa o tempo que tem de folga guiando por aí um velho Ford... meu chofer ensinou-a a dirigir faz alguns anos... de modo que não é uma mudança de ares que ela deseja. Ganha bem; está em condições de hospedar-se num bom hotel e não há motivo algum para ir a Pawsey, a não ser, naturalmente, encontrar-se com esse misterioso Big Foot. Às vezes, sabe, penso que ela é meio... — e bateu com o dedo na testa.

Jim ainda estava conjecturando por que fora consultado: nesse momento ficou sabendo.

— Vou dar um jantarzinho sexta-feira em Barley Stack, e gostaria que você fosse e... ficasse de olho aberto. Duas cabeças valem mais do que uma. Você talvez veja qualquer coisa que me escapa.

O espírito de Jim se empenhava em procurar desculpas, quando Cardew aduziu:

— A Srta. Leigh estará lá. Refiro-me à minha secretária... Irá catalogar alguns livros que comprei outro dia na Sotheby's. Uma coleção completa das obras de Mantegazza...

— Será um grande prazer — declarou James Ferraby com veemência.

 

Jantar em Barley Stack

— Conhece o Sr. Elson?

Jim Ferraby conhecia suficientemente o Sr. Stephen Elson para ter a certeza de que não desejava conhecê-lo melhor. Encarregara-se da acusação no processo contra Luke Mark Sullivan, e Elson tomara a absolvição do vagabundo de dedos ligeiros como uma afronta pessoal.

Jim antipatizava com Elson por muitas razões, a menor das quais não era a insolente admiração daquele cavalheiro por Elfa Leigh. Insolente na opinião de Jim e, esperava ele, na opinião de Elfa. Não que ela significasse alguma coisa em sua vida. Era apenas a moça do outro lado do patamar; tinha uma voz formosa e meiga, olhos cinzentos bem separados e uma tez que só se encontra em anúncio de sabonete. Mas Jim Ferraby dedicava-lhe um interesse desapaixonado — como dizia para si mesmo. Era apenas uma jovem muito encantadora, muito inteligente e, para dizer a verdade, muito bonita, que ele admirava a distância e de maneira perfeitamente amistosa e filosófica.

E não lhe agradava a fácil familiaridade de Stephen Elson. Aliás, que Elson tivesse sido convidado era uma surpresa, quase um motivo de indignação, para Jim Ferraby. Seu anfitrião talvez não fosse um grande detetive, mas, sensível a certas impressões, aproveitou o primeiro ensejo para chamar de lado o rapaz.

— Eu tinha me esquecido completamente de que você conhecia Elson — disse ele. — Isto é muito embaraçoso, mas o fato é que foi por sugestão de Hannah que o convidei. Na verdade, todas as visitas desse homem a esta casa foram sugeridas por Hannah. Ela me fez ver que fazia mais de um ano que não o convidávamos para jantar, e pareceu-me que esta seria uma esplêndida oportunidade. Não creio que eu fosse capaz de suportá-lo tête-à-tête!

Jim riu.

— Não estou de maneira alguma constrangido — retrucou —, embora ele se tenha mostrado sumamente grosseiro comigo após o processo. Quem é ele, e como veio a instalar-se na Inglaterra?

Cardew abanou a cabeça.

— Este é um dos temazinhos de investigação que encetarei qualquer dia — respondeu. — Não sei de nada a seu respeito, senão que é muito rico. — Olhou para o outro lado da sala, onde o espadaúdo norte-americano se entretinha em animada conversa com a moça. — Parece que se dão bem — ajuntou, de maneira irritante; — talvez porque ambos vêm do mesmo país...

— A Srta. Leigh é americana? — atalhou Jim, surpreso.

Cardew assentiu com a cabeça.

—- É, é americana: pensei que você soubesse. O pai, que infelizmente morreu no mar, era funcionário do Ministério da Fazenda dos Estados Unidos, e, se não me engano, passou grande parte do tempo aqui, onde a Srta. Leigh foi educada. Não o conheci... ao pai, bem entendido... mas ocupava uma boa posição. Na realidade, ela me foi recomendada pelo embaixador americano. '

Jim não tirou os olhos dela durante todo o tempo em que Cardew falou. Não sabia que suas cores pudessem ser tão realçadas por um vestido preto, nem que um traje tão simples pudesse destacar-lhe a beleza.

— Nunca imaginei que ela fosse americana — foi tudo o que ele pôde dizer.

Mas, se ele fora tão ignorante, sua bête noire poderia vangloriar-se de haver descoberto a nacionalidade de Elfa.

— Nova Inglaterra, suponho? — inquiria o Sr. Elson. — É esquisito que eu não tivesse percebido que a senhorita é uma boa ianque, desde a primeira vez em que nos vimos.

— Vermont — disse Elfa, que não se sentia muito jubilosa por topar com um conterrâneo.

Ele era rubicundo, tinha traços grosseiros e recendia perpetuamente a uísque e a fumaça rançosa de charuto. As bochechas eram salientes e o nariz, bulboso.

— Pois eu sou do meio-oeste — volveu, complacente. — Conhece St. Paul? Ótimo lugarzinho. Diga-me, Srta. Leigh, o que é que aquele advogado está fazendo aqui?

Fez uma inclinação de cabeça na direção de Jim, e sua voz foi suficientemente alta para que o rapaz lhe ouvisse a pergunta. Ele teria dado tudo para poder ouvir também a resposta.

— O Sr. Ferraby é considerado um dos advogados mais inteligentes do Ministério Público — respondeu ela calmamente.

E explicou-lhe os mistérios atinentes ao ministério, que combinava as funções da Promotoria Pública federal, estadual e distrital.

— É assim, é? — tornou o outro, pensativo. — Bem, pode ser que seja um promotor habilíssimo fora do tribunal, mas, quando se vê diante de um juiz, garanto-lhe que esse sujeito não vale nada!

— Faz tempo que o senhor é amigo do Sr. Cardew? — perguntou Elfa, ansiosa por desviar a conversação para assuntos mais agradáveis.

Elson cocou o queixo não muito bem escanhoado.

— Ele é meu vizinho. Dizem que é muito bom advogado, não é?

Enquanto falava, observava-a por entre as pálpebras semicerradas.

— O Sr. Cardew, agora, não exerce a profissão — respondeu ela, e Elson desatou a rir.

— Ele parece que gosta de bancar o detetive, não gosta? — perguntou, rindo-se à socapa. — Nunca vi um homem adulto ficar assim.

Os olhos admirativos não se desviavam do rosto dela, e, no seu constrangimento, a moça olhou suplicante, para o outro lado da sala, onde estava Jim. Reconhecendo o sinal de aflição, o rapaz atravessou o aposento e foi libertá-la.

Era óbvio, tanto para Elfa como para Jim Ferraby, que o Sr. Cardew não se achava à vontade. Tanto que parecia ter esquecido o pretexto da visita de Jim e nem uma vez se referiu a Hannah. De quando em quando, consultava o relógio e olhava, ansioso, quase temerosamente, para a porta; quando, afinal, Hannah Shaw apareceu, mais tesa, mais preta, mais rebarbativa do que nunca, e anunciou bruscamente que o jantar estava pronto, o apreensivo advogado quase deixou cair os óculos.

— Quer fazer-me o favor de retardar o jantar — rogou ele — por alguns minutos? O fato, Hannah, é que convidei um amigo nosso... o superintendente... a vir aqui.

A mulher empertigou-se, mas não disse nada.

— Encontramo-nos hoje: ele foi muito gentil — apressou-se a ajuntar o Sr. Cardew, justificando seu atrevimento —, e, francamente, não vejo por que não devemos ser bons amigos. Não sei por que lhe estou dizendo tudo isso...

E começou a chafurdar num atoleiro de coisas ininteligíveis. Teria sido patético se não fosse divertido o espetáculo da tirania exercida sobre o dono de Barley Stack. Para Jim, não se tratava de uma experiência nova, pois já vira coisa parecida na visita anterior. Mas Elfa só conseguiu cravar dois olhos pasmados na mulher que saía altivamente da sala, com a desaprovação estampada em todas as linhas do rosto.

Cardew cocou o queixo, inquieto.

— Receio que Hannah não goste do nosso amigo... E isso, realmente, é muito desagradável, extremamente desagradável.

Dirigiu um olhar suplicante a Ferraby, como que a implorar apoio moral.

— Poucas governantas gostam de ver seus planos modificados — acudiu Jim apaziguadoramente.

Cinco minutos constrangedores se passaram, e Hannah reapareceu.

— Quanto tempo teremos de esperar, Sr. Cardew? — perguntou, com voz áspera.

— Jantaremos imediatamente, Hannah — disse Cardew, dirigindo um rápido olhar ao relógio e distendendo o rosto numa expressão de alívio. — Acho que o nosso amigo não vem mais.

A jovem sentou-se junto de Ferraby à mesa redonda, com uma cadeira vazia do outro lado, que deveria ter sido ocupada pelo Superintendente Minter.

— Pobre Sr. Cardew! — murmurou, a meia voz.

Jim sorriu, mas um olhar dirigido ao rosto da mulher, que se sentara bem defronte dele, interrompeu-lhe o divertimento. Ela cravara os olhos na moça com uma hostilidade que, momentaneamente, o deixou sem respirar. E, depois, quando já se recolhiam os pratos de sopa, chegou o conviva atrasado.

O forte de Sooper não eram as roupas. Jim teve a impressão de que o smoking mal assentado que ele usava lhe fora legado por um parente morto havia muito tempo, ou talvez o tivesse comprado de algum garçom que já não pudesse usá-lo no restaurante.

— Desculpem-me, senhoras e cavalheiros — murmurou o conviva, relanceando os olhos semicerrados pelos presentes. — Geralmente não janto, e só me lembrei do seu amável convite, Sr. Cardew, quando já ia para a cama. Boa noite, Srta. Shaw.

Os olhos de Hannah ergueram-se lentamente e fitaram os dele.

— Boa noite, superintendente — respondeu em tom álgido.

— Temos tido um tempo magnífico... O tempo mais quente de que me lembro nesta época do ano.

Era a primeira vez que Elfa topava com o temível Sooper, e logo se sentiu instintivamente atraída pelo carrancudo velho de roupas gastas e surradas. A camisa estava puída ao nível do colarinho. Havia duas manchas grandes, feitas pelo ferro de engomar, na parte mais conspícua do peitilho; a gravata, que se recusava a ficar no lugar, seguia a caminho da orelha, mas ele se portava como um aristocrata.

— Eu o acho esplêndido... É esse o superintendente? — perguntou ela, a meia voz, quando, mais tarde, a atenção de Sooper foi dirigida para o anfitrião.

— É: o Rei Pippin de todos os detetives... na Europa, pelo menos. Ouça... ele está caçoando.

— Não é sempre que vou a festas — dizia Sooper, arrastando as palavras. — Parece que sou demasiado insociável para ser convidado. Nunca distingo uma faca da outra e geralmente uso o copo errado de cerveja. É por isso que nós, pobres policiais, somos mal compreendidos... não temos modos. É claro que, se eu freqüentasse uma roda elegante e me enfarpelasse todo para apresentar-me em sociedade, logo me dariam valor. Ainda esta tarde eu dizia ao meu sargento: "Não há neste jogo uma quantidade suficiente de bons amadores: o que nos falta são sujeitos que saibam vestir um traje de cerimônia sem dar a impressão de que se vestiram para um baile a fantasia".

O Sr. Cardew olhou, suspeitoso, para o seu convidado.

— A polícia tem funções próprias — acudiu, empertigado. — O único ponto de dissensão entre nós, superintendente, é que certos casos requerem... digamos... maior requinte de... de... intelecto e apreciação mais profunda da psicologia.

— É claro que sim. — Elson deixou cair os cotovelos sobre a mesa e inclinou-se para a frente, acenando mecanicamente com a cabeça. — É o que falta a vocês...

Súbito, ele se deteve. Encontrara os olhos de Hannah e, neles, Jim Ferraby leu uma advertência urgente.

— A tal psicologia, sem dúvida, é boa — concordou Sooper, quase humilde —, e é disso mesmo que precisamos. Todo jovem policial deveria embeber-se dela. Depois da antro... o senhor conhece a palavra, Sr. Cardew.

— Antropologia — acudiu, cortês, o Sr. Cardew.

— Exatamente: depois disso, a psicologia é o mais belo ornamento para a inteligência do homem. Em seguida, a boa visão. Sou meio curto de vista para ler, mas enxergo a milhões de quilômetros. O senhor nunca fecha os estores, Sr. Cardew?

As janelas arqueadas da sala de jantar estavam descobertas, a não ser pelas cortinas diáfanas que lhes caíam sobre a metade inferior. A penumbra envolvia o gramado, lá fora, e os altos sicômoros, no extremo do jardim, formavam silhuetas negras contra o azul profundo do céu. As moitas de rododendros, mais perto da casa, eram uma mancha escura.

— Não — replicou Cardew, surpreso. — Por quê? Não estamos sendo observados... a estrada fica a quase quatrocentos metros de distância.

— Eu só estava matutando — desculpou-se Sooper. — Não entendo muito de casas grã-finas; eu mesmo vivo numa casa de subúrbio e sempre fecho as cortinas quando como... gosto de comer na intimidade. Quantos jardineiros tem o senhor por aqui?

— Três ou quatro... não me lembro — redargüiu Cardew, e Sooper ficou impressionado.

— É muita gente para dormir na mesma casa — tornou ele.

— Não dormem aqui: meu jardineiro-chefe tem uma casinha perto da estrada. Mas, voltando ao assunto da polícia...

Sooper, contudo, não se achava inclinado a voltar ao assunto da polícia. Parecia antes ansioso por acrescentar seus conhecimentos sobre a economia doméstica do Sr. Cardew.

— Ué, imaginei que precisasse ter jardineiros ou biscateiros por aí durante a noite para aguar as plantas e apanhar toupeiras.

Gordon Cardew estava obviamente agastado.

— Não; meus jardineiros saem às sete horas. Está claro que eu não permitiria que ficassem vagando por aí... Que aconteceu, superintendente?

Sooper se erguera e endereçara-se à porta. De repente, ouviu-se um estalido e todas as luzes se apagaram.

— Afastem-se da mesa e encostem-se na parede, todos! — Sua voz, áspera, vibrava de autoridade. — Apaguei as luzes... há alguém à sombra daquelas moitas e está armado!

 

O atirador de tocaia

Sooper saiu de mansinho pela porta da frente e passou ao jardim. A sala de jantar ficava num dos lados da casa, e ele se dirigiu, com incrível rapidez, para as moitas. O gramado estava vazio — não se ouvia outro som além do delicado farfalhar das folhas tocadas pela brisa noturna. Cosendo-se com a sombra das moitas, percorreu toda a extensão do gramado. Além dos canteiros de flores se erguiam os sicômoros, que assinalavam o limite meridional da propriedade. À direita havia um bosque de pinheiros, talvez o único caminho possível de retirada de um invasor.

Sooper avançou, de árvore em árvore. Debaixo dos seus pés estendia-se grossa camada de agulhas de pinheiro que, em quaisquer circunstâncias, lhe teria silenciado os movimentos. A espaços, se detinha e prestava atenção, mas não ouviu mais nada.

Já estava na metade do bosque, quando, bem à sua frente e a menos de cinqüenta metros de distância, alguém cantou...

 

"O rei mouro cavalga para cima, para baixo

Pela real cidade de Granada...

Ay de mi Alhama!"

 

Por um segundo, ao som da lamentosa ária espanhola, Sooper sentiu um calafrio na espinha. Havia na música algo tão plangente, algo tão desesperadamente irremediável nas palavras do lamento, velho de tantos séculos, que ele permaneceu imóvel.

 

"Das portas de Eloira

Às de Bivarramble lá vai ele,

Ay de mi Alhama!"

 

Mas logo disparou, correndo, na direção da voz. O bosque estava escuro e as árvores haviam crescido tão juntas, que era quase impossível enxergar mais que uns metros adiante do nariz. Ele atravessou o mato sem ter visto uma alma viva.

O mato separava os jardins de Barley Stack de uma granjazinha. Nada se mexia nos prados, e Sooper voltou sobre seus passos.

— Saia daí, vagabundo! — berrou, mas somente o eco da própria voz lhe respondeu.

Em seguida, ouviu o som de pés que corriam sobre a vegetação rasteira, e adivinhou que era Jim antes de ver o peito branco da camisa emergir do escuro.

— Quem é? — perguntou Ferraby.

— Um vagabundo qualquer — respondeu Sooper. — Mas o senhor cometeu uma loucura saindo sem arma.

— Não vi ninguém.

— Não havia ninguém para ser visto, calculo eu — replicou Sooper, delicadamente. — Vamos voltar... Eu devia ter trazido a motocicleta e patrulhado a estrada.

Meteram-se de novo pelo meio das árvores, mas não ouviram nem viram nada e voltaram ao gramado para encontrar, reunidos, os alarmados comensais do jantar.

— Viram alguém? — perguntou Cardew de modo ansioso e, até certo ponto, incoerente. — Esta, sem dúvida, é a coisa mais extraordinária... o senhor assustou estas damas... Devo confessar que não vi homem de espécie alguma.

— Talvez a imaginação de Minter esteja trabalhando — grunhiu Elson. — Pode-se ver um homem. Mas quero ser mico de circo de cavalinhos se se pode ver uma arma nesta escuridão!

— Eu a vi brilhar — voltou Sooper, que não desviava os olhos do mato. — Vi apenas a luz que caía sobre ela... devia ser um revólver. Alguém tem uma lanterna?

O Sr. Cardew entrou em casa e voltou com uma grande lanterna elétrica.

— Ele estava aqui, em pé — disse Sooper e iluminou a relva com a luz da lanterna. — Nenhum sinal... O solo está duro demais. Nada...

Rapidamente, inclinou-se para a grama, apanhou um objeto preto e oblongo e, segurando-o na palma da mão, assobiou baixinho.

— O que é? — perguntou Cardew.

— A câmara de uma automática 45... cheia de cápsulas — disse Sooper. — De uma automática 45, onde está gravado "Departamento Naval dos Estados Unidos"... Que caiu da arma dele.

O queixo do Sr. Cardew também caiu: talvez fosse imaginação sua, mas a Jim pareceu que o rosto do detetive amador se tornara um pouco mais pálido. "É possível", pensou, "que esta haja sido a primeira ocasião em que o Sr. Cardew se viu diante das sinistras realidades da detecção criminal."

— Pois eu quero ser um...!

Stephen Elson olhava, boquiaberto, para a câmara da automática.

— E ele esteve aqui o tempo todo... com uma arma! — O homem estremeceu. — O senhor o viu, chefe?

Sooper olhou à sua volta e deixou cair a mão sobre o ombro do outro.

— Não há motivo para preocupações — afirmou, em tom tranqüilizador. — Não. Se o tivesse visto, tê-lo-ia agarrado. Vou usar seu telefone, Sr. Cardew.

O anfitrião conduziu-o ao escritório e deixou-o.

— É você, Lattimer? Ponha na rua os homens que puder e prenda quem quer que não possa dar conta dos seus movimentos... Sobretudo vagabundos. Depois que tiver feito isso, venha a Barley Stack; traga um revólver e duas lanternas.

— Aconteceu alguma coisa, Sooper?

— Perdi um botão de colarinho — replicou Sooper, calmamente, e desligou o telefone.

Ergueu os olhos para o rosto conturbado de Cardew. E do rosto do advogado seus olhos passaram às estantes cheias de livros.

— Deve haver aí muita coisa que ajude um camarada a prender um vagabundo louco — observou. — Sou obrigado a contar com policiais comuns e é até possível que nunca o encontrem.

O velho brilho voltara-lhe aos olhos: Cardew reparou nas duas manchas no peito da camisa e no smoking surrado, que recendia levemente a naftalina. Recobrou a ilusão de superioridade.

— Este é o tipo do caso em que são tão admiráveis os próprios atributos físicos da polícia — disse ele. — Afinal de contas, não há nada de muito sutil na visita de um vagabundo armado!

— As coisas sutis não têm importância — volveu Sooper, meneando tristemente a cabeça. — Nem a vida, nem a morte, nem a dor de estômago, nem o dinheiro. As coisas sutis não contam, pelo menos para mim. — Voltou a examinar as estantes abarrotadas de livros e suspirou. — O tal vagabundo estava atrás de Elson — ajuntou, saindo pela tangente.

Cardew ficou surpreso.

— O que é que o faz pensar assim? — perguntou.

— Elson também o esperava — fez Sooper com uma inclinação de cabeça e uma expressão distante nos olhos. — Senão, por que andaria armado?

— Elson está armado? Como sabe?

— Senti-o nas calças dele — voltou Sooper — enquanto me mostrava afetuoso. Que lhe parece a minha sutileza? Dei-lhe uma palmadinha no ombro e senti-lhe o bolso com o quadril. Tenho um dos quadris mais sensíveis de toda a força policial. Que significa isso, do ponto de vista antropológico?

Mas o Sr. Cardew deixou passar a provocação.

 

 

— Por que seguiu o superintendente, Sr. Ferraby? Não foi uma imprudência?

Jim e a moça estavam sozinhos no relvado. Hannah desaparecera com o americano e, se bem que o rapaz tivesse receio de permanecer fora de casa enquanto aumentava a escuridão, sua discrição não resistiu ao fascínio da noite e à intimidade que a solidão lhes propiciava.

— Não havia muito maior risco para mim do que para Sooper — disse ele; — além disso, confesso ter pensado que uma sombra o enganara... Esqueci-me de que o velho diabo tem olhos capazes de ver através de uma parede! Gosta do tal Elson? — indagou, impulsivamente.

— Do Sr. Elson? Não... Por que pensou que eu gostasse?

— Bem... ele é americano, e imagino que seja natural pessoas do mesmo país... — concluiu Jim de maneira não muito convincente.

— Se eu fosse inglesa e encontrasse um valentão inglês em Nova York, deveria gostar dele por ser inglês? — acudiu ela, com um sorriso.

— Valentão? Eu não sabia que ele era alguma coisa fora do comum — principiou o rapaz, e Elfa riu suavemente.

— O senhor não sabe o quanto está sendo brusco — disse. — Sim, o Sr. Elson é isso: não consigo encontrar palavra mais elegante do que "valentão".

— Eu não sabia que você era americana — volveu ele, enquanto caminhavam lentamente pelo gramado recém aparado.

— Nunca imaginei que o senhor soubesse que eu era alguém — disse ela secamente —, a não ser um dos pertences de King's Bench Walk. De qualquer maneira — prosseguiu, antes que Jim pudesse pensar numa resposta —, pegarei no seu braço. Fiquei um pouco assustada. Era uma história meio arrepiante... As luzes se apagando e aquela horrível sensação de estarmos sendo observados.

O braço dela repousou no dele. Timidamente, Jim Ferraby conservou o cotovelo rígido e ela sorriu da sua correção.

— Pode deixar cair o braço... assim. Não vou agarrar-me a ele. Acontece apenas que sou suficientemente humana para encontrar conforto num braço masculino... em qualquer braço masculino, exceto talvez no do Sr. Elson.

— Compreendo perfeitamente.

Ele sentia-se inclinado a mostrar-se frio, mas o riso dela derreteu-o.

— Não gosto do campo — tornou a moça. — Papai, coitado, adorava-o: gostava de dormir ao relento até quando ameaçava tempestade.

— Seu pai morreu?

— Morreu. — A voz dela elevou-se apenas acima de um murmúrio. — Sim, morreu.

Continuaram a andar de um lado para outro, em silêncio: o braço no braço de Jim Ferraby descansou com maior confiança; de uma feita, por acidente, as pontas dos dedos dela perpassaram pelo dorso da mão dele.

— Quanto tempo vai ficar aqui? — perguntou o rapaz.

— Até amanhã à tarde. Preciso catalogar uns livros, mas, de qualquer maneira, o Sr. Cardew não me deixaria ficar depois que sua governanta se fosse. Ela vai passar fora o fim de semana.

— Que pensa dela?

Elfa não respondeu de pronto.

— Talvez seja boazinha depois que a gente a conhece — disse, diplomaticamente, quando o corpo alto de Sooper assomou à porta.

— Entre antes que os fantasmas o peguem, Sr. Ferraby. Aconteceu uma coisa fora do comum... O meu sargento estava acordado. Aquele sujeito acha que todo o tempo que não está dormindo é tempo perdido. Creio que o Sr. Cardew estava à sua procura, senhorita.

A jovem entrou na casa e Ferraby se preparava para segui-la, quando o velho o deteve.

— Venha dar uma volta comigo, Sr. Ferraby, e ajude-me a psicologizar e antropologizar.

Notava-se que, exceto quando se achava em presença do cientista amador ou — como Jim veio a descobrir mais tarde — discutindo esses assuntos eruditos com o seu sargento, Sooper não encontrava qualquer dificuldade de pronúncia.

— Elson terá de voltar para casa hoje à noite, e estou deduzindo que esse salafrário armado vai tentar meter-lhe uma bala — disse ele. — A história toda é sutil e misteriosa. Um americano tentando matar outro americano! Os anjos já choraram por muito menos.

— Acredita que o estranho no gramado fosse americano?

— Usava uma arma americana: portanto, é americano. Estou começando a entrar nesse negócio de dedução... É até natural, depois de certo tempo. Minha dedução é que ele é cantor.

— Por que pensa assim? — perguntou Jim, surpreso.

— Porque o ouvi cantar — respondeu Sooper. — Já jogou auction bridge, Sr. Ferraby? Pois, se joga, dar-lhe-ei um conselho útil: uma espiadinha vale duas finesses. Ponha isso na cabeça. A dedução é excelente, mas ver e ouvir é melhor. Informação oficial. Soube de alguma coisa contra Elson lá em Whitehall?

— Você se refere à Promotoria Pública? Não, não me lembro de ter ouvido ou lido nada, nem no Departamento de Estrangeiros.

— Nunca chame um norte-americano de estrangeiro: isso o deixa louco. Da mesma forma que o inglês fica inchado e vermelho como um peru quando o classificam de estrangeiro no porto de Nova York. É uma palavra ofensiva, que significa peruano, esloveno e judeu mongólico. Estive em Washington uma vez, até que a nossa central descobriu que eu era eficiente... Aí me mandaram de volta para casa. Eles não toleravam a eficiência.

Jim estava imaginando se devia, com o risco de desagradar o anfitrião, contar a Sooper o que sabia. Chegou a uma decisão.

— Sooper, você acha que o homem no jardim estava atrás de Elson? Pois está enganado.

— Isso parece impossível — atalhou Sooper —, mas não sou impermeável à persuasão.

Em breves palavras, Ferraby falou-lhe da carta que Gordon Cardew lhe mostrara na véspera, e o superintendente ouviu-o sem interrupção.

— Big Foot, é? Parece um daqueles índios de fita de mocinho. Mas o que fez Hannah? Esta é uma informação importante, Sr. Ferraby, e altera um pouquinho as coisas.

A voz de Cardew chamou-os da casa.

— Venham acabar de jantar.

— Espere. — A mão vigorosa de Sooper segurou o rapaz pela manga do paletó. — Espere até que eu tire a lógica e a psicologia disso. O senhor está dizendo que ela vai sair este fim de semana... Conheço a casa de Pawsey Beach. Cardew me levou lá uma vez... antes de brigarmos por causa da ciência criminal. Um diabo de lugar solitário, a quilômetros de distância de tudo, exceto do mar... um enorme rochedo com centenas de cavernas de contrabandistas... a casa fica numa estrada velha, que passa por baixo do rochedo, mas é pouco usada desde que se construiu a estrada nova, por cima. É perigoso. Parte do rochedo caiu no ano em que lá estive e o velho Cardew fez um barulhão com a municipalidade de Pawsey porque não se removeram os escombros e não se abriu a estrada. Ele conhece muito bem esse lado da lei.

— Vocês hão vão entrar?

Cardew encaminhava-se para eles, e os dois se voltaram na direção da casa.

— Não dê a entender que sabe de alguma coisa — murmurou Jim, e Sooper grunhiu seu relutante assentimento.

O Sr. Cardew, que recobrara totalmente a compostura, mostrou-se expansivamente jovial quando voltaram a sentar-se à mesa e apresentou uma nova teoria.

— Estive dando uma espiada no meu De Carrilon — explicou —, e, coisa curiosa, dei com um caso quase paralelo. De Carrilon tem um capítulo sobre o que denomina "o crime de emboscada". Diz ele que, para certo tipo de mente criminosa, o impulso para atirar da escuridão é irresistível...

Sooper brincou com uma codorna assada e pôs-se a imaginar por que o esperto advogado não ligara o visitante assassino à carta ameaçadora dirigida a Hannah Shaw.

Já passava de uma hora, aquela noite, quando Jim bateu à porta do escritório do Sr. Cardew para desejar-lhe boa-noite. À luz de uma lâmpada de mesa, o advogado lia um alentado volume.

— Entre, Ferraby. O superintendente já se foi?

— Acaba de sair.

Cardew fechou o livro com um suspiro.

— Um homem muito prático, mas duvido que leve o trabalho a sério. A lida da polícia em grande parte se converte em rotina mecânica. Eles porão guardas nas estradas, notificarão a polícia rural e, com certeza, prenderão alguns cidadãos perfeitamente inocentes. Não farão nada que mereça elogios nem omissões que mereçam censuras. Na realidade, agirão pelo seguro. O assunto é insignificante e destituído de importância, mas é típico do sistema. Quanto mais estudo nossos métodos antiquados, tanto mais deploro o destino que não me conduziu a um caminho mais empolgante da lei do que o que corre pelos meandros do tribunal do Lorde Chanceler. E então, que acha de Hannah? Nada muito suspeito na atitude dela, hein?

— Ela está menos aflita do que imaginei — disse Jim tranqüilamente, e a boca de Cardew se abriu num trejeito de consternação.

— Misericórdia... Nunca pensei em ligar a carta com... Devo estar fora do meu juízo perfeito!

Tornara-se subitamente lívido.

— Andei fazendo conjecturas sobre a razão disso — disse Ferraby.

Sooper conjecturara também e expressara sua surpresa antes de partir. Haviam sido necessários todos os poderes de persuasão de Jim para impedir que o velho entrevistasse Cardew sobre o assunto. Esse fato, contudo, Jim Ferraby não o revelou, embora soubesse que, mais cedo ou mais tarde, Sooper discutiria inevitavelmente o caso com o dono de Barley Stack.

— Nunca me passou pela cabeça associar o homem do jardim com Hannah — confessou, pensativo, o advogado. — Com efeito, é pasmoso! Eu quase desejaria ter contado a Minter.

— Telefone a ele e conte-lhe — alvitrou Jim, ansioso por descarregar a consciência.

O Sr. Cardew hesitou, apanhou o telefone e tornou a colocá-lo no gancho.

— Preciso dormir sobre o assunto — disse. — Se eu lhe contar agora, ele voltará e haverá uma cena medonha com Hannah. Francamente, estou com medo de Hannah Shaw... aterrorizado. É absurdo... eu me desprezo. E sou um advogado, que não devia guiar-se pelos sentimentos. Não, deixe isso para amanhã cedo, ou para mais tarde. Convidarei o superintendente para vir jantar conosco. Hannah estará fora.

Enquanto Jim se despia, ocorreu-lhe que o adiamento do assunto para quando Hannah houvesse partido em sua misteriosa excursão de fim de semana tinha certas vantagens. Quase lamentou precisar partir mais cedo e não poder presenciar a entrevista.

Fez pachorrentamente os preparativos para deitar-se, e o relógio de uma igreja distante dava duas horas quando ele, finalmente, apagou a luz. Talvez pela excitação da noite, ou pelos dez minutos que cochilara durante o trajeto de Londres até ali, o caso é que não pôde dormir. Nunca se sentira tão desperto na vida. Durante meia hora permaneceu deitado, enquanto seu espírito passeava pela casa, indo de Elfa Leigh a Cardew, de Cardew a Hannah e, depois, regressava a Elfa.

Por fim, com um suspiro, saltou da cama, aproximou-se da mesinha onde deixara os apetrechos para fumar, acendeu o cachimbo e foi sentar-se à janela.

A lua estava na última fase, uma fina casquinha branca no céu claro, e seu leve e fantasmagórico reflexo cobria o mundo de pálida radiância. Do lugar em que estava sentado pôde ver uma janela brilhantemente iluminada, numa ala que formava um ângulo reto com a parede externa do seu próprio quarto. Seria o quarto da moça, de Cardew — ou de Hannah? Quem quer que estivesse ali estava atarefado. Viu uma figura indistinta passar e repassar diante das cortinas semitransparentes; dali a pouco, seus olhos se habituaram à luz e à cortina, e ele reconheceu a figura de Hannah. Estava completamente vestida e se afanava em arrumar uma maleta de viagem, que colocara sobre a cama. A suave brisa noturna afastou a cortina por um segundo e permitiu-lhe ver o interior do quarto. Ao pé da cama havia duas malas abertas, e ela estava esvaziando o guarda-roupa.

Jim Ferraby franziu o cenho. Excursão de fim de semana? Ela fazia as malas como quem se prepara para uma longa ausência. Durante uma hora ficou observando, até que as luzes se apagaram. A esse tempo, os primeiros albores da aurora tingiam o céu e, quando a luz se apagou, sentiu súbito e irreprimível desejo de dormir.

Já pusera um joelho sobre a cama quando ouviu um som que o encheu de assombro e fê-lo duvidar dos próprios sentidos. Era alguém que cantava, e a voz partia do bosquezinho.

 

"O rei mouro cavalga para cima e para baixo,

... real cidade de Granada,

Ay de mi Alhama!"

 

O cantor! O homem que estivera no gramado! Um instante depois, lutava com o sobretudo e disparava escada abaixo na direção do vestíbulo. Levou algum tempo para abrir a porta, mas, afinal, abriu-a. Sentiu um aroma suave e teve frio; a relva debaixo de seus pés calçados de chinelos estava molhada de orvalho.

Permaneceu imóvel, ouvindo, e logo depois avistou uma figura furtiva, que se movia na orla do bosque, e precipitou-se para ela. Quando se aproximou, o homem ouviu-o e girou sobre si mesmo.

— Quieto... quieto! Não assuste meu passarinho — sibilou uma voz. — Quero-o para o meu aviário antropológico!

Era Sooper.

 

A história das notas de cem dólares

— Volte e enfie depressa algumas roupas. Quero sua ajuda, de qualquer maneira. Todos os meus homens estão lá embaixo na área de Farnham, prendendo a gente errada. Se eu não estiver aqui, espere por mim.

Jim folgou em obedecer à ordem, pois a manhã fria fazia-o tremer. Cinco minutos depois voltava ao lugar onde deixara o superintendente, mas o digno homem sumira, e só reapareceu dali a dez minutos.

— Desta vez ele se foi — resmungou. — Deve ter ouvido o senhor chegar para o concerto.

— Foi-se... como?

— O bosque vai até o muro da divisa. Do outro lado há uma capoeira cerrada... foi lá que o ouvi mexer-se. Revistarei toda a estrada, mas ele é liso como macaco. Alguma novidade?

— Hannah Shaw vai-se embora — disse Jim, e contou o que vira durante a noite.

Sooper cocou a cabeça grisalha.

— Aposto que Cardew não sabe que ela vai de vez. Esta é a melhor notícia que o pobre diab... que o Sr. Cardew recebeu nos últimos anos. Gostaria de ter apanhado o jovem Caruso.

E meneou a cabeça, pesaroso.

Já estava a meio caminho do portão de entrada quando se virou e voltou.

— Tem carro, Sr. Ferraby?

— Tenho... mas não aqui. Vim de trem. Sooper assentiu com a cabeça.

— Pois podia trazê-lo esta noite ao meu posto... lá pelo crepúsculo. Estou pensando em ir a Pawsey. Fica fora da minha zona, e aquele escanifrado delegado da Yard é capaz de fazer um carnaval se acontecer qualquer coisa. Mas eu o desprezo, e quando eu desprezo um homem, o túmulo é sua única esperança. Eu gostaria de levá-lo comigo para que apreenda a verdadeira psicologia da posição... Sou meio fraco nisso.

Sooper só ria com os olhos — e estava rindo naquele momento.

Aparentemente ninguém na casa ouvira o cantor, e Jim voltou ao quarto sem ser apertado por indagações ansiosas. O sono agora já não lhe voltaria, e ele barbeou-se e vestiu-se compassadamente. Estava de regresso ao jardim quando o sol já inundava a relva, e pôs-se a passear ao redor da casa para matar o tempo.

Dos fundos de Barley Stack avistava claramente Hill Brow, a casa senhorial do Sr. Elson, construção esparramada de tijolos vermelhos, encimada por uma torre quadrada, arquitetonicamente agradável. Que capricho singular teria induzido aquele americano a instalar-se num lugar que não lhe aprazia? Um homem do povo, que se fizera por si mesmo, sem nenhum interesse pelas atividades dos vizinhos...

Quando voltou ao gramado, divisou uma esbelta figura vestida de cinzento, que caminhava na direção oposta, e sentiu o coração pulsar-lhe mais depressa por um ou dois segundos.

— Sim, madruguei... Não dormi muito bem.

Elfa estendeu-lhe a mão com um sorriso que o ofuscou. Nunca a vira sob o céu ensolarado e numa hora em que poucas mulheres se sujeitam a submeter seus encantos aos olhos críticos dos homens.

— É permissível oferecer-lhe o braço? — perguntou ele, ousadamente.

— É permissível, mas desnecessário — redargüiu ela, sorrindo. — Estou cheia de coragem hoje cedo. Dormiu bem?

— Para dizer a verdade, nem cheguei a dormir — confessou Jim, e Elfa assentiu com a cabeça.

— Meu quarto fica ao lado do quarto da Srta. Shaw, e ela andou para lá e para cá a noite inteira — continuou a moça.

Ele poderia ter confirmado a informação, mas ela prosseguiu:

— Ficarei contente de voltar ao meu apartamentozinho. Barley Stack e a Srta. Shaw exercem péssimo efeito sobre meus nervos. Passei apenas uma noite nesta casa... há um ano; e foi uma experiência desagradabilíssima. Não se incomoda que eu lhe conte isso?

Se ele se incomodava! Seria capaz de ficar a ouvi-la toda a manhã. Foi o que lhe sugeriu.

— A Srta. Shaw estava mais mal-humorada que de costume. Recusou-se a falar comigo ou com o pobre Sr. Cardew. Fechou-se no quarto e não quis fazer as refeições à mesa porque, contou-me o Sr. Cardew, julgava ter sido desconsiderada por ele. Depois, fez uma coisa extraordinária. De manhãzinha, bem cedo, quando acordei e olhei pela janela para o pequeno gramado lateral, vi a letra "B" desenhada na grama com papel escuro. Mas como houvesse qualquer coisa familiar naqueles pedacinhos oblongos de papel, desci para averiguar. Os pedaços de papel eram notas de cem dólares... Devia haver, pelo menos, umas cinqüenta notas presas ao chão por longos alfinetes pretos!

Jim não pôde fazer outra coisa senão fitá-la com expressão de incredulidade.

— E Cardew soube?

— Soube, ele viu as notas da sua janela, e ficou furioso.

— E havia mais alguém dormindo aqui nessa ocasião?

— O Sr. Elson. A casa dele estava sendo redecorada e o Sr. Cardew convidou-o a vir para cá e ficar aqui. Creio que só voltou, depois disso, ontem à noite. Foi por sugestão da Srta. Shaw que ele acabou vindo... Ele mesmo me contou.

— Mas como sabe que foi Hannah quem marcou o gramado com notas?... Poderia ter sido uma extravagância de Elson: na minha opinião, ele é muito capaz de uma loucura dessas.

Ela abanou a cabeça.

— Foi a Srta. Shaw. Quando Cardew mandou chamá-la, ela veio e juntou as cédulas. Ele exigiu uma explicação, mas ela não lhe deu nenhuma... Não quis nem mesmo dizer-lhe onde arranjara o dinheiro.

Nesse momento, Jim recordou o que o advogado lhe contara. Fora essa, então, a "brincadeira estúpida" que quase provocara um rompimento doméstico.

— Creio que ela é meio louca — disse Elfa —, e por isso não me agradava a idéia de vir a Barley Stack. Foi só quando eu soube...

Concluiu abruptamente a sentença, mas uma onda de calor invadiu o corpo do rapaz e o pulso lhe bateu um pouco mais acelerado.

Quando Hannah apareceu à mesa do desjejum, nada em seu rosto traía a noite ativa que passara. Os olhos escuros pareciam, como sempre, olhos de pássaro. Era um modelo de compostura e autocontrole. Cardew, por outro lado, mostrava-se irritado e impertinente, se bem que tudo indicasse que havia dormido bem. Pertencia à classe dos indivíduos de admirável temperamento que levam a essência de seus ressentimentos para a mesa do desjejum. O dia os dilui, restituindo-lhes a força e a importância verdadeiras, mas, na primeira hora após o despertar, chegam a toldar o sol matutino.

— Mesmo agora não tenho a certeza de que esse sujeito pestífero não andou querendo zombar de mim. Pessoalmente não vi nada, e creio que minha vista é tão penetrante quanto a de qualquer outro. Se havia um homem à sombra da sebe, como ele disse, por que ninguém mais o viu?

Jim estava a ponto de falar-lhe sobre a canção que tanto o assustara de madrugada, mas lembrou-se de que Sooper lhe pedira que nada dissesse sobre a estranha ocorrência.

— Quanto à... à... câmara, também pode ter sido parte da estúpida brincadeira — voltou o suspeitoso Sr. Cardew. — Talvez eu não tenha muita prática de crimes, mas topei com alguns casos notabilíssimos de fraude, até no tribunal do Lorde Chanceler. Recorda-se, Srta. Leigh, da história que lhe contei sobre um cliente meu que escondeu seus bens numa falência e quase me valeu uma censura do juiz?

A Srta. Leigh ouvira a história: ouvira-a muitas vê zes. Era o único trecho brilhante da monótona carreira jurídica do Sr. Cardew.

— A que hora você vai, Hannah? — Ele olhou por cima dos óculos para a mulher impassível.

— Às onze.

— Vai levar seu carro? Thompson me disse que a capota está precisando de conserto.

— Para mim está muito boa, e devia estar muito boa para Thompson — tornou ela, áspera, e, a partir desse instante, cessou o interesse do Sr. Cardew pelos planos da governanta.

Ele próprio ia a Londres em busca da sua correspondência e ofereceu-se para deixar Jim no apartamento de Cheyne Walk.

— Assim que terminarmos o desjejum — anunciou, e Jim Ferraby teve a impressão de que ele marcara a hora de modo a sair de casa antes da azeda governanta.

Havia apenas uma curta oportunidade para avistar-se com Elfa antes de partir e Jim aproveitou-a. Foi encontrá-la azafamada no escritório de Cardew, com uma dúzia de pilhas de livros sobre a mesa da biblioteca e uma expressão de trágico desespero nos olhos.

— Ele quer que eu termine isto antes da sua volta — disse, atarantada. — Há aqui, pelo menos, trabalho para dois dias... e estou decidida a não passar outra noite nesta casa! Vai embora, Sr. Ferraby?

O tom da voz dela era de desapontamento, e Jim deliciou-se com a perspectiva não habitual de que sua falta fosse sentida.

— Vou, sim, mas quero que me dê seu endereço, para que eu possa verificar se chegou sã e salva em casa.

Ela riu.

— Esta é uma das suas desculpas menos convincentes. Mas eu lhe darei meu endereço.

Rabiscou-o num pedaço de papel, que ele enfiou no bolso.

— Não estou preocupada com a possibilidade de não chegar sã e salva, porque o Sr. Cardew me autorizou a sair às quatro horas, ainda que não houvesse terminado o serviço e ainda que ele não tivesse voltado.

— Telefonarei... — principiou ele. Elfa meneou a cabeça.

— Encontrará o número do meu telefone naquele pedaço de papel — disse ela, enquanto seus lábios se contraíam. — Eu talvez o deixe telefonar-me um dia e levar-me a um teatro, se isso não comprometer sua posição... Disseram-me que o senhor é figura muito importante da Promotoria Pública.

— Minha posição está tão irremediavelmente comprometida — tornou Jim com firmeza —, que minha única oportunidade de reabilitar-me é ser visto em companhia respeitável.

Ele reteve-lhe a mão o tempo necessário, talvez até um pouquinho mais, e levou consigo a lembrança mais fragrante e, ao mesmo tempo, as concepções mais extraordinariamente exaltadas de feminilidade que já lhe abrigara o coração. Durante todo o trajeto até a cidade, Jim teve a confusa idéia de que o Sr. Cardew falava sobre o Superintendente Minter, ou de que talvez falasse sobre o Sr. Elson; mas esqueceu instantaneamente tudo o que ouviu. O coração cantava-lhe uma canção extravagante e perigosa, a cabeça lhe nadava nas nuvens ambarinas do amor. O que não é, diga-se de passagem, o ambiente mais proveitoso para um membro do Ministério Público.

Foi quando Cardew tocou no assunto de Hannah que Jim voltou lentamente a terra.

— Estive pensando no caso com muito cuidado e atenção — disse o advogado —, e cheguei à conclusão de que não posso continuar a viver como tenho vivido nos últimos anos. Tolerei Hannah porque ela, no fundo, é boa moça. Mas só agora comecei a perceber a maneira tremenda pela qual toda a minha vida é determinada por seus caprichos e fantasias. Além disso, há esse mistério infernal, e não quero saber de mistérios... Pelo menos em Barley Stack. E outra coisa: não posso deixar de pensar que existe algo entre Elson e Hannah. A idéia lhe parece absurda?

Na realidade, Jim Ferraby a julgava extremamente absurda pois, até então, Sooper ainda não lhe confiara tudo o que sabia.

— Interceptei olhares entre eles. Uma vez, surpreendi-os conversando no fim da estrada. Viram-me e escafederam-se como coelhos, e até hoje julgam que não os vi. Não sei quem é esse Elson, se é solteiro ou casado. É uma pessoa muito desagradável, mas, se tiver alguma simpatia ou afeição por Hannah... do que duvido muito, pois um homem desses não pode ter afeição verdadeira por ninguém, a não ser por si mesmo... bem, eu ficaria muito contente. Num ponto, entretanto, estou decidido: Hannah... precisa sair. — Bateu no chão do carro com o guarda-chuva, para dar ênfase a cada palavra. E prosseguiu: — Ela está me dando nos nervos. Eu pagaria de boa mente mil libras se a visse disposta a procurar outra colocação.

— O senhor sabe, naturalmente, que ela arrumou todas as suas coisas? — principiou Jim, quando o outro começou a se mostrar agitado ao seu lado.

— Arrumou todas as suas coisas? — A pergunta fora feita quase num guincho. — Como sabe?

— Eu a vi, durante a noite, pela janela. Nem tentou ocultar a operação. Tirou todos os vestidos do guarda-roupa e, segundo pude ver, guardou-os na mala.

O Sr. Cardew permaneceu longo tempo em silêncio. A testa, habitualmente lisa, enrugara-se na carranca que acompanha a concentração de pensamento.

— Não acredito que haja alguma coisa nisso — disse, por fim. — Ela já arrumou as malas antes, quando se aborrecia comigo, e, como eterno idiota, tenho-me invariavelmente ajoelhado diante dela, falando em sentido metafórico, bem entendido, e implorado a ela que fique. Mas desta vez...

O meneio de cabeça era ameaçador.

Ele deixou Jim em Whitehall e, nas duas horas seguintes, o Sr. Ferraby se viu totalmente ocupado com um acúmulo de papéis. Havia depoimentos para serem examinados, casos de prisão preventiva para serem estudados e, como o chefe estivesse ausente de Londres, mandou buscar o almoço e liquidou toda a papelada atrasada até as três horas da tarde, quando atravessou Pall Mall na direção do clube.

Seu trabalho poderia ter sido mais fácil e expeditamente concluído se, durante todo o tempo, não se interpusesse entre os papéis e seus olhos a visão de um rosto que não tinha forma nem traços muito definidos, mas que era estabilizado por um par de olhos firmes e cinzentos, bem separados. A certa altura, a datilografa lhe trouxe de volta um documento, perguntando-lhe friamente quem era "Elfa", e ele verificou que batizara com esse nome um notório ladrão de automóveis, cujo caso estava sendo estudado.

Descobriu que ela morava em Bloomsbury. Não havia nenhum motivo real para que ele fosse de táxi à Cubitt Street a fim de ver a casa por fora. Era um prédio notavelmente semelhante a todos os outros da rua. Mas encontrou alguma satisfação em concluir que a janela de cortininhas brancas era a do quarto dela, e sentiu estranha simpatia por um cartaz, em que se anunciava um calicida, em que os olhos dela deviam repousar todas as manhãs. Só alguns dias mais tarde ficou sabendo que ela dormia num quarto nos fundos, que não era visível de nenhum ângulo da rua.

Às quatro horas, telefonou-lhe: ela não voltara. Como não pretendia sair de Barley Stack antes das quatro, era mesmo pouco provável que tivesse chegado. Às cinco horas ainda não havia notícias dela. Às cinco e meia, quando ele já se sentia quase tomado de pânico, e seu grande automóvel preto tremia e roncava à porta do clube, pronto para uma corrida desesperada a Barley Stack a fim de salvá-la de perigos inimagináveis, a voz fria da moça respondeu-lhe.

— Sim, já cheguei... Não, o Sr. Cardew não voltou. Ele telefonou para dizer que pernoitaria em Londres.

— Não quer tomar chá comigo? Ele ouviu-a rir.

— Não, vou passar uma noite bem sossegada. Muito agradecida, Sr. Ferraby. Aqui está tão gostoso!

— Deve estar! — tornou Jim, com fervor. — Não posso imaginar um lugar em que a senhorita esteja...

Clique! Ela desligara o telefone. Apesar disso, ele voltou para casa num estado de exultação que beirava a imbecilidade.

Lá estava uma visita, anunciou-lhe o chofer, que era também criado e mordomo. Tratava-se do Sr. Cardew, que não sabia o que fazer de si.

— Seu criado me disse que o senhor vai sair esta noite — acudiu o advogado num tom que era quase uma queixa. — Vim aqui para perguntar-lhe se não quer ir à ópera: vão levar o Fausto hoje à noite, e comprei duas entradas na esperança de que o senhor pudesse acompanhar-me.

— Sinto muito — disse Jim —, mas tenho um compromisso.

— E não pode ir jantar?

Jim tornou a apresentar suas desculpas.

— Estou de azar — comentou Cardew, passando os dedos pelo cabelo. — Não há muito mais que eu possa fazer senão voltar esta noite para Barley Stack. — E ajuntou, em tom infeliz: — O que será que o diabo da Hannah está fazendo na casa da praia hoje à noite...? Eu daria um dinheirão para saber.

Jim poderia ter prometido ministrar-lhe a informação, mas, discretamente, absteve-se de fazê-lo.

 

Uma excursão ao sul

Os lampiões da rua estavam acesos e as últimas claridades do dia se dissipavam no ocidente, quando o grande Bentley conversível de Ferraby passou como um raio pela estrada principal do subúrbio ruralizado e se deteve diante do mais rústico de todos os postos policiais londrinos.

Sooper estava na saleta, discutindo com um pedaço grande e indigerível de torta e uma caneca fumegante de chocolate. Ergueu os olhos e mostrou uma cadeira.

— Sente-se, não quer? — falou com a boca cheia.

E quando afinal engoliu, de golpe, o conteúdo escaldante da caneca e enxugou os lábios num lenço que já vira melhores dias, tirou uma caixa de charutos da gaveta da mesa e ofereceu-os a Jim.

— Não, obrigado, Sooper — apressou-se a dizer Ferraby.

— O que é que têm eles? — perguntou Sooper, melindrado. — Nunca vi ninguém que não gostasse destes charutos.

— Olhe bem para mim — voltou Jim.

— O país está ficando decadente — observou Sooper lamentosamente, enquanto aproximava um fósforo aceso da extremidade de um cilindro de aspecto peçonhento. — As pessoas estão ficando covardes. Acho que a gente deve se colocar à altura das coisas e vencê-las. Eu venci estes charutos, embora reconheça que eles têm derrubado mais gente do que se pode imaginar. Sempre admirei a energia e o vigor.

Baforou a fumaça mefítica no ar com todos os indícios de satisfação.

— O senhor não compraria este charuto por menos de dez centavos nos Estados Unidos... e é de lá que ele vem.

— Peço licença para duvidar — disse Jim.

— Para falar a verdade — confessou Sooper —, são feitos de fumo cultivado em casa. Uma espécie de experimento patriótico. E, depois que a gente se acostuma com eles, não parecem assim tão ruins. O médico da nossa divisão afirma que são saudáveis. Segundo ele, nenhum micróbio poderá viver num raio de um quilômetro e meio.

Tossiu, sufocou-se, olhou desconfiado para o charuto e, sacudindo a cabeça, atirou-o na lareira.

— Este não estava tão bom quanto os outros — disse, e encheu o cachimbo. — Partiremos logo — ajuntou, erguendo a vista para o relógio de parede. — Mandei Lattimer na frente, porque é um homem útil, mas, se alguma coisa acontecer, ele não tem nada com isto.

— Você quer dizer, se surgir alguma encrenca pelo fato de sair do seu território?

Sooper inclinou afirmativamente a cabeça.

— Gosto de Lattimer, embora eu não o deixe saber disso — confessou ele. — Os rapazes tendem a ficar muito inchados quando a gente lhes atira confetes, e ele é temperamental, como eu. Não gosta de trabalhar.

Enquanto Sooper andava de um lado para outro, arrastando os pés, procurando paletós e cachecóis, Jim considerou o momento próprio para repetir-lhe a história que Elfa lhe contara sobre as notas de banco em forma de "B". Sooper ouviu-o, muito atento.

— Elson estava lá nessa noite, não estava? — acudiu ele, suavemente. — Eis aí uma coincidência maravilhosa, pois ou muito me engano ou aquela mulher está apaixonada por Elson. E ela tem também uma ascendência qualquer sobre ele. Tenho um palpite de que precisaremos ser uns detetives muito espertos hoje à noite para compreender tudo o que virmos... Chego quase a desejar que o Sr. Cardew vá conosco.

Depois, quando Jim lhe fez uma pergunta, abanou a cabeça.

— Não, não prendemos o vagabundo, e isso não é tão surpreendente quanto o senhor haveria de imaginar. O terreno é acidentado e cheio de mato por aqui e, o que é mais, a casa de Cardew fica justamente diante da estrada principal, que vai para o sul. Passam por lá, o dia todo, caminhões vazios do mercado, e seria a coisa mais fácil deste mundo enfiar-se debaixo de um encerado e desaparecer. Aliás, falando em encerado...

Foi até a rua, examinou o céu, voltou, deu um piparote num velho barômetro sobre a mesa e fez uma inclinação com a cabeça.

— Tenho um calo que ganha longe deste troço aqui. Trouxe capa de chuva?

— Trago uma no carro — disse Jim.

— Vai precisar dela.

A lua surgiu, pálida, através de uma névoa de nuvens, quando chegaram à estrada de Horsham, e não haviam percorrido vinte quilômetros quando o horizonte, ao sul, bruxuleou e fulgurou, em 'tons vermelhos, e pequenos redemoinhos de poeira se ergueram diante dos faróis. Sooper estava sentado, todo encolhido, ao lado de Jim, e permaneceu calado durante muito tempo. Já se encontravam nas cercanias de Horsham quando a chuva principiou a cair, e Jim se deteve para arrumar a capota. O rolar e o ribombar do trovão já eram audíveis.

— Gosto de trovoadas — exclamou Sooper, alegremente. — Não há nada sutil numa trovoada. Trovoadas são fatos: não têm psicologia. São exatamente como surpreender um homem em flagrante.

E depois, quando o carro deixara Horsham e rugia pela estrada de Worthing, aduziu:

— Quando uma mulher resolve casar, é tão razoável quanto um lobo faminto num açougue... Estou imaginando o que poderia significar o "B".

— Sugiro Big Foot — disse Jim... — Que beleza!

À frente deles, de repente, o céu se fendeu, emitindo uma luz muito branca, ofuscante. Sooper esperou que passasse o tonitruar do trovão.

— Big Foot? É possível. — E depois: — Por que imagina que estou arriscando a vida nesta noite tempestuosa ao lado de um demônio da velocidade, que se precipita feito louco entre os elementos enraivecidos? Para satisfazer minha curiosidade sobre Hannah Shaw? Não, senhor. Vou — ajuntou lenta e cadenciadamente — desvendar um mistério... essa é a expressão, desvendar um mistério.

— E que mistério é esse, senão o estranho comportamento de Hannah? — perguntou Jim, bem-humorado.

— Tenho andado na pista desse mistério — respondeu Sooper, inclinando solenemente a cabeça — há seis anos e meio. O mistério de um encontro marcado que nunca se realizou!

Jim arregalou os olhos para ele.

— Conte-me, Sooper.

— Não há nada para contar — volveu Sooper, displicente. — É apenas um fato, como aquele fuzilar do raio, e a artilharia do céu, se me permite usar uma expressão de alta classe, que li num livro, cujo nome esqueci. Nunca pude lembrar-me dos nomes dos livros. Seis anos e meio — ruminou ele. — É muito tempo, embora seja pouco tempo para um velho. Pronto! Aparece e desaparece, mais rápido que o raio... E este, positivamente, não se demora. Convidou-me a ir a sua casa em Chellamore Gardens. Sir Joseph Brixton, era o nome dele, e era vereador da cidade de Londres. Agora está morto e toda a gente o imagina no céu. Mas pediu-me para ir a sua casa, fui, e ele não estava. Pelo menos, mandou dizer que não estava, e o mordomo entregou-me uma carta, em que ele me agradecia o trabalho que eu tivera e dava-me duas notas de dez libras, que entreguei a uma instituição de caridade. — Sooper fez uma pausa. — A caridade que começa em casa.

— Mas que diabo tem isso que ver com a nossa louca aventura de hoje à noite? — perguntou Jim, limpando o pára-brisa pela centésima vez.

— Muita coisa — murmurou Sooper. — Estou justamente começando a apreciar esta excursão... Espero que Lattimer tenha levado a capa de chuva.

— Soube por que Brixton mandou chamá-lo? Lembro-me perfeitamente desse homem.

Sooper, no escuro, fez que sim com a cabeça.

— Soube — disse ele. — E sei por que não foi ao encontro.

— Mas você disse... — principiou Jim.

— Eu sei o que eu disse. Sei perfeitamente por quê, mas a maneira como se deu o fato é que me deixou todo temperamental.

A chuva caía violentamente, os relâmpagos eram tão seguidos que Jim não precisava dos faróis. Deixou a estrada principal e tomou uma estrada secundária, que conduzia à aldeia de Great Pawsey. O antigo vilarejo estaria imerso na treva se não fosse pela luz que jorrava das janelas da estalagem, no momento em que ele cruzou a praça larga e iniciou a ladeirenta descida para a estrada da praia.

Great Pawsey distava de Little Pawsey uns oito quilômetros — e, em certo sentido, um universo inteiro, pois Little Pawsey, como outrora figurava nos mapas, descartara-se havia muito tempo do desprezível diminutivo. A aldeiazinha de pescadores convertera-se numa estação balneária grã-fina; o nome, "Pawsey", está escrito com enormes luzes elétricas sobre a face do rochedo. Possui jardim de inverno, passeio público e embarcadouro. Tocam bandas em suas praças ornamentais, grandes atores representam em seu teatro monumental. Possui hotéis de magnitude e importância tamanhas que até os porteiros são chamados de "senhor".

Duas estradas ligam Pawsey ao seu primo pobre. Uma, que cruza as dunas, numa linha paralela à do rochedo, e a outra, a estrada de baixo, que corre à beira do mar. A primeira é perfeitamente macadamizada e dispendiosamente iluminada; a segunda é pouco mais que um caminho para carroças. Na primeira, a Municipalidade e a Câmara de Pawsey gastaram a rodo o dinheiro dos contribuintes — ao- passo que sua companheira desconceituada, por ser objeto de litígio entre o Departamento da Guerra, dono de uma faixa de praia, e os vereadores, continua a ser muito parecida com o que era na época de nossos avós. De tempos a tempos os jornais locais publicam uma manchete apaixonada, "O escândalo da Estrada de Baixo", e fazem-se violentas declarações na Câmara, em que se acusa publicamente o Departamento da Guerra por não querer contribuir para as despesas de reparos, mas o resultado líquido de todo esse falatório e de toda essa papelada ainda não se traduziu em nenhuma espécie de melhoria.

— É, sem dúvida, um inferno de estrada — disse Sooper, enquanto o Bentley sacolejava e resvalava pela rochosa colina abaixo. — Deixaremos o carro no sopé, se o senhor não fizer questão... Há ali uma espécie de pedreira velha.

— Você conhece o lugar? — perguntou Jim, surpreso.

— O mapa do departamento topográfico — foi a explicação. — Estive estudando a manhã toda. A casa fica a quinhentos metros das abas do morro e a três quilômetros e meio de Pawsey. Deveremos encontrar Lattimer quando chegarmos lá embaixo... Apague essas suas luzes, Sr. Ferraby.

Molhado e reluzente, Lattimer abrigara-se num "corte" sobranceiro — teriam passado por ele sem dar pela sua presença se ele não se tivesse adiantado.

— Ninguém ainda entrou na casa — anunciou, quando os dois apearam do carro.

— Como! Mas a Srta. Shaw veio para cá hoje cedo — acudiu Jim.

— Pois eu ficaria surpreso se tivesse vindo — sobreveio Sooper. — Na verdade, eu sabia que ela não tinha vindo esta manhã.

Ferraby parecia desconcertado.

— Dedução — voltou Sooper, cheio de si; — dedução e lógica. Talvez psicologia também.

— Mas como soube que ela não veio hoje cedo? — insistiu Jim.

— Porque Lattimer me telefonou há uma hora — foi a calma resposta. — Esse é o trabalho lógico da polícia propriamente dito: mandar um homem para o local e fazê-lo telefonar. E dedução... Deduzo que ele está dizendo a verdade. Ponha o carro mais atrás, para que ninguém possa vê-lo, Sr. Ferraby... Sargento, mostre-me sua lanterna... agora apaguem todas as luzes, por favor.

Continuava a chover a cântaros, se bem que os trovões houvessem cessado. Acima do mar, a fita branca dos relâmpagos surgia, a intervalos, enquanto eles calcorreavam a estrada, tropeçando aqui e ali, ajudados pela luz ocasional da lanterna do sargento.

A casa da praia erguia-se entre a estrada e o mar. Era um bangalô achaparrado de pedras, quase todo cercado por um muro de tijolos, da altura do peito de um homem. Em cada extremidade da casa havia uma solução de continuidade no muro, para permitir a entrada de um carro.

— Você tem certeza de que não há ninguém ali?

— Tenho, sim, senhor; a porta está fechada com cadeado pelo lado de fora.

— E que construção é aquela lá atrás... uma garagem?

Jim não enxergava nenhuma outra construção além da que se erguia diante deles, mas Sooper tinha olhos de gato.

— Não, senhor; é o abrigo de barcos. Está vazio. Quando o S. Cardew vinha aqui, contou-me um bar-queiro, possuía um esquife, mas vendeu-o.

Sooper experimentou as portas e janelas sem resultado.

— Ela, com certeza, não pôde vir — disse Jim. — Provavelmente a tempestade a assustou.

Sooper resmungou qualquer coisa depreciativa acerca da influência da tempestade sobre os planos de Hannah Shaw.

— Não estou dizendo que virá — disse ele. — Eu talvez tenha andado teorizando: esse é o meu mal, penso demais.

Jim pensou com os seus botões que nunca vira habitação mais desolada. De um lado, o mar; do outro, além da estrada, a escarpa sinistra dos penhascos, que mal se adivinhava na escuridão de breu da noite.

— O lugar está esburacado de cavernas — acudiu Lattimer —, a maioria inteiramente inacessível.

Haviam voltado à estrada e rumavam lentamente para o lugar onde fora escondido o carro.

— Não admira que não haja corrida para alugar a casa de veraneio de Cardew — comentou Jim.

— O que é que tem ela? — perguntou Sooper. — É o tipo do lugar a que eu gostaria de recolher-me quando me aposentasse. Aposto que é uma linda casa à luz do sol; e, de qualquer maneira, o que é que se pode fazer à noite senão dormir?

Jim observou-lhe o brilho fosforescente do mostra-dor do relógio.

— Onze horas, ou coisa que o valha — anunciou o velho. — Daremos a ela prazo até meia-noite; depois disso, começarei a pedir desculpas.

— O que esperava encontrar aqui? — perguntou Jim, expressando com palavras a pergunta que formulara a si mesmo durante toda a noite.

— Isso vai ser difícil dizer — replicou Sooper, arrastando as palavras. — Só que... quando uma solteirona de meia-idade cisma de casar e diz o que fará se não casar, tenho o direito de interessar-me por ela. Talvez eu esperasse algo mais forte do que o que vou conseguir, segundo tudo indica, mas...

Agarrou, de repente, o braço de Jim e arrastou-o para um lado.

— Atrás daquela rocha, depressa! — sibilou.

 

A cozinha

Na estrada viram duas luzes fracas, as luzes(laterais de um carro que se aproximava.

Jim saiu tropicando na direção do rochedo e encontrou abrigo; Sooper veio agachar-se ao seu lado e Lattimer atirou-se ao chão atrás deles. O carro avançava rapidamente. Chegou diante do lugar onde estavam antes que Jim imaginasse isso possível naquela estrada esburacada. Quando o Fordinho passou, chispando, ele teve a rápida visão de uma silhueta escura — uma mulher com um chapéu de abas largas, inclinada para a frente, como se quisesse arrostar a chuva que varria a praia.

Dali a poucos segundos o carro entrou pela abertura do muro e parou diante da porta da casa.

— Ela está abrindo a porta — murmurou Jim, quando o rangido e o estalido da chave girando no cadeado lhes foram trazidos pelo vento.

Sooper não disse nada. Pouco depois ouviram bater a porta e ele, então, se levantou.

— Nada de conversas — advertiu em voz baixa, e dirigiu-se, à frente deles, ao bangalô.

O carro estava parado bem diante da porta. Movendo-se como um gato, chegou até o automóvel, apalpou o radiador e pareceu satisfeito. Sabia que as janelas tinham venezianas. Deu a volta pela casa até os fundos. Não se ouvia som nenhum vindo do interior; nenhuma luz se mostrava. Voltando à porta, encontrou o cadeado aberto e, inclinado para a frente, pôs-se à escuta. Seus esforços, porém, foram baldados, e ele voltou para junto do homem que deixara postado ao pé do muro.

— Deve vir mais alguém — disse. — Ela não veio aqui para passar a noite... Deixou o motor do carro funcionando. O tanque, sem dúvida, está cheio de gasolina!

Regressaram à rocha que lhes servira de esconderijo e ali se instalaram para iniciar a vigília. Passou-se um quarto de hora, meia hora, e então ouviram abrir-se e fechar-se outra vez a porta, e chegou-lhes o ruído do cadeado ao fechar-se.

— Ela não vai ficar. — Sooper estava surpreso: seu tom magoado era o de um homem defraudado. — Com seiscentos diabos... escondam-se que ela tornou a acender os faróis!

Do automovelzinho, invisível até então, se projetaram dois raios de intensa luz branca, que duraram apenas um segundo. Tornaram a apagar-se quase imediatamente e assim ficaram até que o veículo passou pela segunda abertura e voltou-se na direção deles. Mal tiveram tempo de ocultar-se quando os faróis cintilaram na escuridão. Vislumbraram mais uma vez a cabeça inclinada e o chapéu de abas largas e, instantes depois, o carro passou, distinguindo-se apenas o tímido luzir das lanternas traseiras.

Sooper ergueu-se com um grunhido.

— Peço desculpas — disse ele. — Tanto a dedução quanto a psicologia são bobagens. Ela entra, sai, desaparece e ninguém sabe para onde foi. Com um pouquinho de sorte talvez possamos alcançá-la e seguir-lhe o rastro até o lugar onde realmente mora.

Mas foi-lhes preciso percorrer certa distância até chegarem ao carro de Jim e, então, aconteceu o inevitável. Um dos pneus se esvaziara e, mesmo trocando a roda com a menor demora possível, não conseguiram alcançar o Ford nem tornaram a vê-lo.

Em Great Pawsey surpreenderam o policial da aldeia, que não tinha informação alguma para dar-lhes. Vira passarem dois carros, mas, até aquele momento, nenhum regressara.

— Vou deixá-lo aqui, Lattimer... talvez o ponham na cadeia. Quero alguém no local. ,

Voltaram a encontrar tempestade perto de Horsham, e ainda trovejava pesadamente quando Jim, cansadíssimo, freou o carro diante do posto de Sooper.

— Entre, venha tomar um café — convidou Sooper, que se mostrara calado e taciturno durante toda a viagem de volta. — Eu talvez possa pensar melhor abrigado da chuva. O certo é que me sinto muito temperamental por havê-lo trazido a este caso idiota, Sr. Ferraby. Big Foot... Bolas! Deveríamos ter alcançado aquele carro. Não estou gostando muito disso.

Quando se sentou na cadeira, era um homem enlameado, de rosto duro.

— Não estou gostando! Ela não poderia ter ido a Pawsey... Procurei marcas de pneu ao passarmos. E não chegou a Great Pawsey... O inteligente policial que se achava de serviço na rua não viu o Ford, e, por estranho que pareça, acredito nele. É um homem honesto... Trabalhou comigo num caso quando eu estava na Yard. Posso jurar que ela não entrou em Pawsey. Passamos pelo fim da estrada e eu o fiz parar, não foi? A estrada é toda iluminada e lá não havia nenhum rastro de automóvel. Lattimer talvez me mande notícias... Pedi-lhe que me telefonasse. — O sargento de plantão entrou nesse momento.

— Alguém de Great Pawsey quer falar com o senhor, superintendente.

Sooper escorregou da cadeira e precipitou-se para o velho telefone de parede na sala do arquivo.

— É Lattimer quem está falando, Sooper: encontrei o Ford.

— Onde?

— No topo do rochedo... Deve ter saído da estrada que desce até a praia... Nós o chamamos de Sea Hill.

— Faróis acesos ou apagados? — perguntou Sooper, rapidamente.

— Apagados... e o que é estranho é que, escritos com giz na traseira do carro, há duas palavras: "Big Foot".

— Big Foot, é? Mais nada? Não havia ninguém lá, naturalmente?

— Não, senhor. Sooper pensou depressa.

— Acorde o sargento local e telefone para o chefe de polícia em Pawsey. Dê uma busca no topo do rochedo e embaixo dele para ver se encontra alguém. Irei imediatamente. Você manteve a casa sob vigilância? Bem!

Recolocou o fone no gancho e repetiu a essência da informação do policial.

— Vou ver — disse ele —, mas terei de arrumar isso com a Yard. Telefonarei a um comissário. Vá procurar Cardew e peça-lhe a chave do bangalô. E traga-a o mais depressa que puder.

O Sr. Cardew tinha um apartamento minúsculo perto de Regent's Park, um pied-à-terre que usava quando desejava passar a noite em Londres.

Jim teve sorte, pois as portas externas do apartamento eram fechadas à meia-noite, sendo impossível lograr admissão a não ser acordando cada uma das doze famílias que moravam nos apartamentos. Mas sua chegada coincidiu com a volta de um bando alegre de pessoas que vinha de uma boate, de modo que ele conseguiu atravessar a porta externa e subir ao terceiro andar, onde se aboletava o criminologista amador.

O Sr. Cardew tinha o sono leve e, quando Jim bateu, pela segunda vez, acendeu-se uma luz no corredor e a porta se abriu o quanto lhe permitia o comprimento da corrente que a segurava.

— Céus, Ferraby! — exclamou, enquanto se atrapalhava com a corrente. — Entre... o que é que o traz aqui a esta hora da noite?

Com o menor número de palavras Jim referiu-lhe a aventura noturna.

— Tenho a certeza de que, em face das circunstâncias, o senhor me perdoará — disse ele —, mas precisei falar a Minter sobre a carta ameaçadora e me parece que ele está levando a coisa a sério.

O Sr. Cardew desgrenhou os cabelos, que já se achavam em desordem.

— Ela só chegou tarde da noite? — perguntou, em tom de assombro. — Mas saiu de Barley Stack pouco depois das onze! Onde está ela?

— É exatamente o que Minter deseja descobrir — retrucou Jim. — O carro foi encontrado abandonado, com as palavras "Big Foot" escritas na carroçaria. Sooper acha que houve crime... Na verdade, nesse momento, a polícia local está dando uma busca na praia e no rochedo para ver se encontra... bem, para dizê-lo sem muita delicadeza, o corpo dela.

Cardew não pôde fazer outra coisa senão abanar a cabeça.

— Não posso acreditar... É muito... muito horrível. Tenho uma cópia das chaves, mas estão no escritório, no Temple. Espere só que eu me vista... Tem um carro aí? Senão, será melhor arranjar um táxi.

Não demorou mais que uns poucos minutos para trocar-se e, quando foi ter com o seu visitante, estava vestido para uma longa viagem.

— Está claro que devo ir com você — disse calmamente. — Não me seria possível descansar enquanto não conhecesse a verdade a respeito de Hannah.

Jim guiou para as portas do Temple e o Sr. Cardew atravessou rapidamente a entrada lateral; minutos depois, voltava com um molho de chaves.

— Estão nesta penca: não esperei para procurá-las; podemos fazê-lo mais tarde.

Se Sooper ficou surpreso ao ver o desdenhado amador, não revelou sua emoção.

— Não se encontrou coisa alguma nem em cima nem debaixo do rochedo — disse ele. — Dê-me as chaves, Sr. Cardew.

Com certa dificuldade, o advogado descobriu e destacou três chaves do molho.

— E existem outras além destas... quero dizer, outras cópias?

— Não... nunca houve mais do que dois conjuntos. Um que dou às pessoas que alugam ou usam a casa, e outro que conservo no escritório. Estas, a propósito, nunca foram usadas.

No momento de saírem para a segunda excursão ao sul, Sooper chamou de lado o rapaz.

— Mandei um sujeito a Hill Brow a fim de localizar Elson, mas ele saiu ontem às nove horas da noite e ainda não voltou. Foi dirigindo o seu Rolls. Estou-lhe dizendo isso... o senhor talvez ouça outras novidades quando o caso chegar à Promotoria. Conhece o jardineiro de Cardew?

— Não foi sobre ele que você perguntou a outra noite?

— Foi — disse Sooper, e não insistiu no assunto.

Jim sentou-se ao volante e, mais uma vez, o comprido carro rugiu ao longo da estrada de Horsham, mas, desta feita, com menor cautela, pois a estrada estava deserta e até as ruas de Horsham pareciam habitação de mortos. A tempestade passara, finalmente cintilavam estrelas entre as nuvens e, transcorrida mais ou menos uma hora, o carro estacava diante do pequenino edifício que servia de alojamento ao sargento da aldeia e de cadeia para os raros vagabundos que transgrediam as leis de Great Pawsey.

O sargento estava à espera deles, em companhia de dois detetives da Pawsey mais importante.

— Não descobrimos nada — declarou o sargento —, mas um dos moradores do lugar viu uma mulher que se dirigia para a estrada do mar e que desceu o morro.

— Quando foi isso?

— Há cerca de duas horas. Ele diz que ela veio da direção da estação de estrada de ferro... a Parada de Pawsey, que fica no meio do caminho entre esse lugar e a cidade. O último trem que vem de Londres pára na Parada, mas não consegui encontrar o funcionário que recolhe as passagens.

— Ela não vinha da estrada de ferro coisa nenhuma — atalhou Sooper. — Pode ser que estivesse tentando dar essa impressão. Usa a Parada alguma vez, Sr. Cardew?

— Desci ali uma vez — replicou Cardew; — geralmente, quando venho de trem, desço em Pawsey e venho para cá de táxi.

— Hannah Shaw tinha o hábito de vir de trem? Cardew abanou a cabeça.

— Faz muitos anos que não.

O carro abandonado não fora mexido, contou-lhes o sargento, e eles o acharam na posição descrita pelo policial. Era fácil compreender por que haviam passado por ele sem vê-lo quando se dirigiam a Great Pawsey. O carro subira uma rampa suave e descera, em seguida, pelo declive abrupto de um buraco, do outro lado. Estava completamente fora da vista da estrada do morro, que, nas últimas cinqüenta jardas, passava por um corte.

Com o auxílio da lanterna, Sooper examinou cuidadosamente o veículo. A inscrição, na traseira, feita com giz, embora impressionasse o Sr. Cardew, não pareceu interessar ao velho policial.

— Não é giz branco... é verde! — disse Cardew.

— Será giz de bilhar?

— Talvez a encontremos num salão de bilhar — rosnou Sooper. — Vamos procurar o taco!

Depois disso, o Sr. Cardew manteve um silêncio muito digno.

A inspeção mais demorada, Sooper reservou-a para o interior do carro. Examinou-o centímetro por centímetro e projetou a luz da sua lanterna, vagarosamente, sobre o chão e os assentos, tanto na frente quanto atrás.

— O assento está arranhado... e os arranhões são recentes. Não há lama no pedal do freio nem da embreagem. Nada de importante aqui. Voltaram ao carro de Jim.

— Você esteve no bangalô, sargento? — perguntou Sooper, e Lattimer respondeu afirmativamente.

— Lá não há ninguém; o lugar tem sido vigiado desde que o senhor saiu... Há um homem vigiando agora.

Desceram o morro e tomaram a estrada da praia. Desta feita, prosseguiram até a casa e os homens apearam.

— Como isto é horrivelmente fantástico! — exclamou Cardew, estremecendo. — Nunca percebi o quanto é solitária e desolada esta minha casa!

Por sugestão de Sooper, o carro se detivera de modo que a luz dos faróis incidisse sobre a porta.

— O cadeado está no lugar; ela não está aqui. Sooper não se mostrou comovido pela descoberta.

— Nem eu esperava que estivesse — disse, ele. — Mas esteve aqui. Veio por alguma razão. Deixava aqui as coisas dela, Sr. Cardew?

O advogado sacudiu a cabeça.

— Nenhuma, exceto as que possa ter trazido hoje.

— Hoje não trouxe nada — retrucou Sooper com ênfase. — Mas ela não guardava nada em algum armário ou guarda-roupa?

— Que eu saiba, nada.

Sooper introduziu a chave no cadeado e fê-la girar com facilidade. Havia uma fechadura na porta e, quando esta também foi aberta e a porta se destrancou, Sooper iluminou com a lanterna o escuro interior.

Era um pequeno vestíbulo. Mais adiante havia uma segunda porta, com a metade superior envidraçada. Abria-se a um simples toque e ele se viu num corredor estreito, que ia da frente até os fundos da casa.

— Fiquem onde estão — pediu aos outros. — Vou dar uma busca e prefiro ir só.

Explorou em primeiro lugar os dois quartos da direita, que abriam para o corredor. Eram quartos de dormir, mobiliados com muita singeleza. Nas camas não se viam roupas, e ele imaginou que a roupa de cama se encontrasse nos armários fechados que também achou nos quartos.

Voltou à frente da casa e examinou o primeiro cômodo à esquerda. Era uma sala de jantar, e o rápido exame não revelou nenhum traço notável. Numa parede havia uma abertura coberta por um postigo, evidentemente a abertura de serviço que comunicava com a cozinha, o único cômodo até então ainda não explorado. Experimentou-lhe a porta: estava fechada; voltou para junto dos homens que esperavam.

— O senhor tem a chave da cozinha? — perguntou.

— Não — retorquiu Cardew surpreso. —- Existe uma chave da cozinha... mas nunca é tirada do lugar. Não está na fechadura?

Sooper voltou e experimentou o trinco, mas a porta estava fechada a chave. Nisto, pôs-se a cheirar, e chamou Jim.

— Não está sentindo nada? — perguntou. — Parece-me alguma coisa queimando.

Ferraby pôde distinguir um cheiro particularmente acre, que lhe era estranhamente familiar.

— Cordite! — disse, de repente. — Um fuzil ou revólver foi disparado aqui... e não faz muito tempo!

— Foi o que pensei — conveio Sooper, calmo. — Não sei por que me pareceu conhecer esse cheiro de ferro aquecido. A porta está fechada por dentro.

Voltou à sala de jantar. O postigo da abertura na parede estava fechado. Encontrou um buraquinho de fechadura e, desta feita, chamou Cardew.

— Fecha, sim, mas não tenho a menor idéia de onde possa estar a chave. Estava aqui quando minha secretária, a Srta. Leigh, ocupou a casa, e ela não me comunicou a sua perda. Fecha-Se com um trinco de mola, e, se fosse fechado por acidente, não se poderia abrir sem chave. Nunca tive cópia dessa chave. O senhor não pode entrar na cozinha?

— Não... Está fechada por dentro.

— Então quebre o postigo — sugeriu Cardew, e levou Lattimer até uma casinha, lá fora, onde se guardavam algumas ferramentas enferrujadas.

Encontrou-se um pequeno abridor de caixotes e Sooper, enfiando a unha do instrumento entre o postigo e a parede, pôs-se a forçar o trinco. Dali a pouco, este se quebrou com um estalido e ele retirou o postigo. Acentuou-se o cheiro desagradável de cordite — o próprio Cardew principiou a farejar. ,

— Que cheiro é este? — perguntou, mas Sooper não o ouviu.

Enfiando o corpo pela abertura, vasculhava o aposento com a lanterna quando, de repente, o círculo branco de luz, movendo-se lentamente pelo chão na direção da porta, mostrou um sapato. A ponta do sapato estava virada para o teto... A luz moveu-se... Outro pé, a barra de uma saia escura.

Sentada com as costas apoiadas na porta, uma mulher tinha a cabeça caída para a frente, sobre o seio, como se estivesse bêbeda. Sooper não pôde ver-lhe o rosto, mas percebeu que era Hannah Shaw. Nem precisou da prova dos filetes de sangue no chão para saber que estava morta.

 

A visitante

Sooper retirou lentamente a cabeça da abertura.

— Fiquem todos aqui — ordenou. — Sargento, vá buscar um médico... Sr. Ferraby, o senhor pode levá-lo... Não, acho melhor que fique. Talvez venha a funcionar no caso.

Lattimer ofereceu-se para dirigir o carro até a aldeia e, após uma consulta sussurrada com Sooper, partiu às pressas.

— Se bem que o médico não possa fazer nada.

— Que aconteceu? — perguntou Cardew, a tremer. — Meu Deus... não foi Hannah?

Sooper fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— Receio que sim, Sr. Cardew — disse com brandura.

— Ferida... morta?

Sooper tornou a inclinar a cabeça.

— Sim: mas é melhor ficar aqui. Siga-me, Sr. Ferraby. Pegue uma cadeira para subir nela.

Com inesperada agilidade, esgueirou-se através da abertura na parede e Jim seguiu-o.

— Puxe o postigo outra vez: vou acender a luz. Jim Ferraby olhava, tomado de pasmo, para a figura inerte junto da porta.

— Foi suicídio? — perguntou, quase num sussurro. — Se foi, encontraremos a arma — replicou

Sooper. — Ela está morta... isto é um fato. Lamento ter sido tão impertinente com ela. Não era uma mulher má... tanto quanto podem ser más as mulheres. Inclinou-se e examinou o rosto sem cor.

— Não foi suicídio — afirmou, quase alegre. — Nunca pensei que fosse. Assassinato... mas como? A porta aqui está fechada por dentro... vê a chave? E a abertura na parede também está fechada, com a chave por dentro... observou isso também?

Experimentou as venezianas pesadas que cobriam a janela: trancadas.

Em cima da mesa estava uma bolsa de mulher, evidentemente vasculhada, pois uma mixórdia de pertences femininos e um maço de notas se viam espalhados sobre a mesa.

— Cinqüenta e cinco libras inglesas e duzentos dólares em notas americanas — disse Sooper, contando. — Que significa o tijolo?

Era um tijolo vermelho, bastante gasto numa das superfícies. Preso a ele havia um funil de borracha, o qual, por seu turno, estava ligado a um pedaço de barbante.

— O chão é de tijolo vermelho — disse Jim.

— Sim... já notei.

Sooper apanhou a lanterna e inclinou-se, examinando o chão. Imediatamente debaixo do centro da mesa havia uma cavidade oblonga, na qual se encaixava exatamente o tijolo.

— A borracha é o que costumávamos chamar um "desentupidor de pia" quando eu era menino — meditou Sooper. — Hoje se chama "aspirador": foi assim que ele ou ela tirou o tijolo do lugar.

Pondo-se de joelhos com a lanterna ao lado, enfiou os olhos pelo buraco raso.

— Havia qualquer coisa escondida aqui — declarou; — foi isso o que ela veio buscar. Surpreendeu-me que ficasse aqui tão pouco tempo.

— Mas como foi que voltou?... a porta da frente estava fechada com o cadeado por fora.

Sooper abanou a cabeça.

— Tenho uma porção de coisas para pensar neste momento — disse ele. — De qualquer maneira, não viemos aqui à toa!

Voltou a acocorar-se diante do corpo imóvel, com o cachimbo apagado preso entre os dentes, uma ruga de ansiosa preocupação acrescentada às rugas da sua testa.

— Não podemos mexer nela enquanto não chegar o médico — prosseguiu, levantando-se outra vez. — Ela foi atingida de pequena distância... devia estar deste lado da mesa... mais ou menos aqui — ajuntou, indicando o lugar. — Provavelmente uma automática, embora eu não encontre a cápsula em parte alguma. Ela estava em pé, à direita da porta: veja a marca na parede. Depois, deu um passo e escorregou pela porta abaixo. A bala atravessou-lhe o coração, creio eu: mas depois de mortas, as pessoas muitas vezes ainda dão um ou dois passos. Tem a mão esquerda calçada e a direita sem luvas. Não pretendia ficar. O senhor não nota nada, Sr. Ferraby, nada de muito notável?

Jim abanou a cabeça com expressão atarantada.

— Há tantas coisas notáveis que não consigo diferençá-las — respondeu.

O nariz de Sooper enrugou-se.

— Cardew o teria visto antes de mim — disse ele. — Ela está sem chapéu e sem casaco.

Era verdade que o cadáver trazia a cabeça descoberta; e não havia sinal de casaco nem de capa de borracha.

— E veja os cabides na parede... não nota nada no chão?

— Água — disse Jim.

— Escorrida da capa de chuva. Ela pendurou-a quando aqui esteve pela primeira vez, essa é que é a verdade. Onde terá deixado a capa e o chapéu?

— Provavelmente num dos outros aposentos — sugeriu Ferraby, e o velho arreganhou os dentes.

— Não estão na casa. Não passei pente fino nos cômodos, porém examinei-os muito bem. E essas peças de roupa não estão nesta casa!

O tom era exultante. Dir-se-ia que tinha conquistado um grande triunfo pessoal.

— Aí vem o médico — anunciou. — Terá de passar pelo buraco da parede e, se for gordo, ficará fulo da vida.

O médico era um moço, para o qual a entrada na cozinha não apresentou dificuldades.

Não pairava dúvida alguma sobre o possível veredicto.

— Não, eu não poderia dizer há quanto tempo está morta. Talvez há mais de uma hora. Telefonei pedindo uma ambulância. O Sargento Lattimer contou-me o que havia acontecido.

Sooper olhou para o seu relógio: eram três e meia.

— Esperarei que a levem embora antes de fazer mais alguma coisa — disse ele. '

Quando, minutos depois, chegou a ambulância e o lamentável objeto foi removido, Sooper destrancou as venezianas e abriu as janelas. Só tinham ficado Jim e ele. O Sr. Cardew fora levado embora num estado de extrema prostração e Lattimer saíra com a ambulância para fazer uma busca.

— Aliás, foi muito bom — tornou Sooper, sem entusiasmo. — Eu não teria suportado a sua psicologização. Está muito escuro e são quase quatro horas — prosseguiu, olhando pela janela —, mas a chuva continua. Belo tempo de verão inglês. Veja isto. — Colocou sobre a mesa um longo envelope amarelo. — Encontrei-o debaixo dela quando a tiraram dali — ajuntou.

Jim examinou o invólucro.

— Vazio — disse ele, e leu o sobrescrito datilografado:

 

"DR. JOHN W. MILLS,

Juiz de instrução de West Sussex,

Hailsham, Sussex".

 

— Então... foi suicídio?

Sooper dobrou o envelope antes de responder.

— Faz cinco anos que o Dr. Mills não é juiz de instrução de West Sussex — disse ele —, pois faz cinco anos que está morto. Acontece que tenho certeza disso porque fui ao seu enterro.

— Mas quem escreveu isto não o sabia?

— Com certeza, não sabia — voltou Sooper, com um toque do velho modo misterioso.

Jim observou-o vasculhando a cozinha, espiando fornos, abrindo armários, puxando gavetas, e a compreensão da tragédia principiou a crescer dentro dele. Fora tão terrivelmente súbita e inesperada, que não lograva apreender-lhe o verdadeiro significado. E, estranhamente, seu primeiro pensamento foi o efeito que o tremendo acontecimento exerceria sobre Elfa Leigh. Ela ficaria chocadíssima, sobretudo porque não gostava da mulher.

— É, sem dúvida, um assassinato maravilhoso — observou Sooper, com um suspiro extático, detendo-se para acender o cachimbo. — Ainda bem que telefonei para o comissário. É um bom sujeito e talvez me deixe tomar conta do caso. Aquele homem sabe quando uma coisa está em boas mãos. É inteligente. Não sei como o conservam na Yard. Se encarregar outro homem do caso, este não estará preparado para o serviço... são poucos os que estão. Sobem no emprego porque as esposas têm influência junto ao secretário de Estado... — prosseguiu, acusadoramente. Nenhuma arma de qualquer espécie no local — continuou —, nenhuma cápsula no chão. Nada mais que um envelope vazio dirigido ao juiz de instrução... Sabe, Sr. Ferraby, se a Srta. Shaw costumava escrever a máquina?

— Acredito que sim: o Sr. Cardew me contou que ela possuía uma máquina velha.

— Isto foi escrito por um amador — volveu Sooper, tirando o envelope do bolso —, e por alguém que não escreveu muitas vezes a palavra "instrução"... Está errado. Poucas pessoas escrevem certo quando escrevem a máquina. Preciso mandar examinar o envelope por causa das impressões digitais.

Extraíra a bala da parede, um cilindro torto de aço, e colocara-a sobre a mesa.

— Foi uma automática 45 — continuou, enquanto guardava o envelope. — O mesmo calibre das balas da câmara que encontramos no gramado. Não se trata de um tamanho incomum de arma, por isso não comece a tirar conclusões. Ela não poderia ter possuído uma; as mulheres têm medo de armas de fogo, e, além disso, Cardew o saberia.

— Aonde foi ele? — perguntou Jim.

— A Pawsey... ao Grande Hotel. — Sooper abafou uma risadinha. — Quando a teoria entra em luta com o fato, apanha no primeiro assalto. Aqui está um fato... a morte por meios violentos. Ficar sentado numa poltrona confortável e brincar com teorias é uma coisa; dar de cara com o cheiro de sangue e com o perigo é outra...

Deteve-se e inclinou a cabeça, prestando atenção. Através da janela aberta vinha o incessante rumor das ondas batendo na praia de areia.

— Há alguém mexendo na porta — disse, e pegando a lanterna dirigiu-se devagar para o corredor.

Jim ouviu-o também e sentiu o corpo arrepiado. Um barulhinho suave e rascante, o atrito de mãos nos painéis da porta e, em seguida, o trinco da porta se mexeu um pouquinho.

Sooper olhou para Jim e sua inclinação de cabeça era uma ordem. Jim Ferraby adiantou-se, pé ante pé, girou a chave rapidamente e abriu a porta.

Em pé sobre o degrau estava uma figura esbelta, encharcada, descabelada. Ela fitou estupidamente os olhos do rapaz.

— Socorro — murmurou, ao mesmo tempo que tropeçava e lhe caía nos braços.

Era Elfa Leigh!

— Não se mexa... ouça!

Sooper sibilou as palavras e Jim permaneceu imóvel, com a moça inconsciente nos braços. De algum lugar da sombra e de muito longe vinham as plangentes cadências de uma canção.

 

"O rei mouro cavalga para cima e para baixo

Pela real cidade de Granada,

Ay de mi Alhama!"

 

— Inferno! — rugiu Sooper, ao passar disparado por eles e mergulhar nas sombras da noite.

 

A história de Elfa

O dia rompera, cinzento, quando ele voltou para dar conta do seu malogro.

— Ele devia estar cantando lá do topo do rochedo — resmungou. — Esse vagabundo musical terá de haver-se comigo na primeira ocasião em que suas penas chegarem ao alcance de um tiro meu! Muito bem, e como vai a moça?

— Está num dos quartos — disse Jim. — Já está boa.

— O senhor lhe contou alguma coisa? Jim abanou a cabeça.

— Não, achei que não seria prudente no estado em que está. Pobrezinha, passou por um mau bocado.

Elfa ouviu vozes no corredor e entreabriu a porta.

— É o Sr. Minter? Sairei daqui a um minuto. Apareceu minutos depois, envolta na capa de chuva de Jim, os pés nus enfiados num par de chinelos velhos, que encontrara no armário de roupa-branca.

— Onde está a Srta. Shaw? — foi a primeira pergunta que fez. — Aconteceu alguma coisa? Por que os senhores estão aqui?

— Bem, viemos até aqui para dar um espiada — replicou Sooper, calmamente. — Estou com a idéia de alugar esta casa para o verão.

— Onde está a Srta. Shaw? — tornou ela a perguntar.

— Foi-se embora — disse Sooper.

A jovem alternou a vista entre um rosto e outro, tentando decifrar a sinistra charada da presença deles.

— Alguma coisa aconteceu.

— Parece que aconteceu à senhorita, de qualquer maneira — tornou Sooper, bonachão. — Como é que me aparece por aqui no meio da noite?

— A Srta. Shaw mandou chamar-me — foi a resposta inesperada.

Ela voltou ao quarto e dali trouxe um telegrama de duas páginas. Sooper ajustou os" óculos e leu. O telegrama era dirigido a Elfa e tinha o endereço do seu apartamento na Cubitt Street.

 

"Desejo que me faça um grandíssimo favor. Assim que receber este vá à casa do Sr. Cardew em Pawsey Beach. Se eu não estiver ali espere por mim. Por mais tarde que chegue é preciso que venha. Nunca lhe pedi um favor, mas sua presença terá influência em minha vida. Quero que seja testemunha de um assunto importantíssimo. Rogo-lhe de mulher para mulher."

 

Estava assinado "Hannah Shaw". O telegrama fora passado de Guildford, Surrey, na véspera, às seis horas da tarde.

— Recebi-o logo depois das sete — contou Elfa —, e, francamente, fiquei sem saber o que fazer. O fato de não gostar muito da Srta. Shaw me tornava a tarefa ainda mais difícil. Finalmente, decidi vir, e, depois do jantar, tomei o último trem, às dez horas, desci na Parada...

— Então foi a senhorita que os habitantes da aldeia viram passar, vinda da estação? — abreviou Sooper.

— Naturalmente! Isso afasta um dos obstáculos à minha teoria. Continue, Srta. Leigh. Que fez entre essa hora e o momento em que a encontramos?

— Existe um atalho que desce pela face do rochedo e encurta muito o caminho — continuou a jovem.

— Conheço o terreno palmo a palmo e já explorei os rochedos até Pawsey; por isso mesmo, não tinha dúvida alguma em encontrar o caminho, tanto mais que trouxera uma lanterninha, que me ajudou consideravelmente. Havia outra razão por que preferi o atalho: a noite estava terrivelmente tempestuosa e o rochedo me abrigaria da chuva. O que eu ignorava era o deslizamento ocorrido aqui no último verão, que, da metade para a frente, desfez o caminho. A primeira vez que isto me ocorreu foi quando pisei numa pedra solta e comecei a escorregar, como então supus, rumo à morte certa. Dei comigo deitada sobre um ressalto estreito de greda e, não me atrevendo a mexer-me, lá fiquei, esperando que o dia clareasse. Vi dois carros passarem pela estrada: um deles foi para a casa, perfeitamente visível do lugar em que eu estava, e o outro não me pareceu passar muito além do fim da estrada do mar. Gritei, esperando ser ouvida, mas o vento deve ter carregado minha voz. Os senhores podem imaginar minha desolação quando vi os dois carros desaparecerem e fiquei sozinha outra vez. Senti-me aterrada. Devo ter ficado histérica, pois me pus a imaginar que aconteciam as coisas mais estranhas.

Estremeceu, como que acuada por uma lembrança desagradável.

— Não viu ninguém?

— Ninguém.

— Nem vagabundos ou coisa parecida?

— Não. Fiquei deitada, quietinha, até que, duas ou três horas depois, um carro apareceu... Creio que era o seu... e parou à porta. Então, fiquei desesperada e procurei arrastar-me, centímetro por centímetro, pela superfície do declive. E, naturalmente, fracassei. Caí, caí... oh, foi medonho! E, no entanto, pensando bem, não foi assim tão terrível, pois acabei chegando ao solo, sem me machucar, a poucos metros da casa. Não sei como consegui caminhar até a porta.

Sooper tirou-lhe o telegrama da mão e tornou a lê-lo.

— "Quero que seja testemunha de um assunto importantíssimo" — leu ele, e cocou o queixo.

— Onde está a Srta. Shaw? — tornou ela a perguntar.

Leu a resposta nos olhos de Sooper.

— Não está... morta?

Ele fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— Morte natural ou... ? oh, não!

— Foi alvejada... ali. — Inclinou a cabeça na direção da cozinha. — Agora preste atenção, Srta. Leigh; vai ser uma testemunha importante porque esteve vendo a casa a noite toda. Não viu nenhum outro carro além dos que já descreveu?

— Nenhum... Disso tenho certeza.

— E não viu, por acaso, ninguém caminhando pela estrada a pé... Não viu a Srta. Shaw voltar?

— Não. Aliás, não teria visto mesmo. A noite estava muito escura. Só vi os carros por causa dos faróis... De outro modo, não os teria visto nem ouvido.

Sooper pareceu desapontado.

— Tudo depende agora daquele comissário: se ele me mantiver no caso, poderei ver a luz do dia. Mas se mandar um daqueles teóricos de nariz comprido, a justiça irá por água abaixo. Tenho os locais na mão... é dos antropólogos que sinto medo.

Elfa permanecia sentada, incapaz de falar em virtude do choque produzido pela notícia. Hannah Shaw morta! Mal podia acreditar que fosse possível.

— Assim que suas roupas secarem farei com que o Sr. Ferraby a leve de volta à cidade — disse Sooper. — Imagino que não tenha mais nada que possa contar-nos, não é?

— Nada — respondeu ela, num murmúrio. — Que coisa terrível, que coisa terrível!

— A senhorita escreve a máquina, não escreve? Escreveu isto, por acaso? — E mostrou-lhe o envelope.

— Não, isso não é trabalho meu — disse ela. — Nem foi datilografado na minha máquina. Acho que a Srta. Shaw tinha uma máquina velha, que usava... Acho não, sei, porque uma vez me pediu que lhe recomendasse um bom livro de datilografia.

Já era dia e, conquanto o céu continuasse cinzento, a chuva parará de cair. Deixando a moça a secar suas roupas, os dois homens dirigiram-se para a porta da frente e Sooper examinou o rochedo com interesse.

— Exatamente como diz Lattimer, a face do rochedo está toda esburacada.

E apontou para as centenas de pequenos orifícios pretos, visíveis na greda branca.

— Se alguém estiver ali, será difícil encontrá-lo — continuou. — Ao mesmo tempo, a lógica e a dedução me dizem que é igualmente difícil para um sujeito que more lá chegar lá. Não creio que seja possível ou praticável realizar uma busca nas cavernas, a não ser nas mais baixas, e hoje mandarei a polícia trabalhar nisso.

Ao virar a cabeça para examinar a estrada, o carro de Jim, com Lattimer ao volante, apareceu. Lattimer freou o carro perto do chefe e apeou.

— Só encontrei uma coisa de alguma importância — disse ele —, e é isto aqui.

Tirou do bolso do casaco uma bolsinha de camurça, pouca coisa maior do que um selo do correio, presa a uma correntinha de ouro.

— Isto estava em torno do pescoço dela — explicou, colocando o achado nas mãos do chefe.

Sooper abriu a bolsinha e despejou sobre a palma da mão um brilhante anel de ouro.

— A mim me parece uma aliança — disse ele. — Nenhuma certidão de casamento?

Lattimer abanou a cabeça.

— Nada. Na realidade, não encontramos documento de espécie alguma.

Sooper olhou para o objeto brilhante na palma da mão.

— Uma aliança, e uma aliança nova — falou, em tom pensativo. — O problema é saber se ela chegou a usá-la! Parece que não. O homem que lhe deu este anel sabe muito mais acerca do assassinato do que nós jamais saberemos.

Encaminharam-se vagarosamente, ao lado da casa, na direção da praia. A maré estava subindo.

— É, de fato, um lugar bem solitário — admitiu Sooper —, e acho que retirarei tudo o que disse sobre ser este o lugar a que eu gostaria de recolher-me.

No mar, ao longe, via-se o rastro de fumaça de uma traineira. Mais próxima da praia, uma frota de barcos de pesca, de velas vermelhas, aproava para o porto de Pawsey. Atrás do bangalô havia um trecho de jardim, mas a cerca que o rodeava estava quebrada e o portãozinho pendia, desconjuntado. O mato crescia em profusão onde o Sr. Cardew se empenhava numa batalha inútil contra o vento e a surriada.

— Ao mesmo tempo — volveu Sooper —, não é um mau lugar para quem goste de banhos de mar.

Chegaram ao portão enterrando os pés na areia. Ao nível do portão, o solo era mais firme.

— Nada mau o lugar para os que gostam de banhos de mar — tornou a murmurar Sooper, e não disse mais nada.

Jim percebeu a expressão de espanto que contraiu o rosto do velho, e viu cair-lhe o queixo.

— Nossa! — exclamou Sooper.

Estava olhando para uma pegada, meio apagada pela chuva, mas ainda perfeitamente distinta. Era a marca de um pé enorme, descalço, de mais de quarenta centímetros de comprimento e largura proporcional.

— Cristóvão Colombo! — murmurou Sooper, fascinado, arregalando os olhos.

Voltou-os na direção do mar e, lentamente, começou a caminhar nessa direção. As pegadas eram mais claras à proporção que chegavam à areia dura, e seguiam na direção da casa.

Big Foot!

Essas palavras, afinal de contas, significavam qualquer coisa.

Só se detiveram quando chegaram à beira do mar, embora as marcas persistissem, e tornaram a vê-las numa lagoa rasa, feita recentemente pela preamar. Sooper olhou para Jim.

— Tem alguma teoria ou dedução?

— Confesso que não — admitiu Jim.

— Isso é mau, porque eu também não tenho, pelo menos neste momento. Misericórdia, esse negócio me deixou positivamente temperamental!

Mandou Lattimer à cidade a fim de arranjar um pouco de gesso de presa, e levaram uma hora fazendo moldes das pegadas mais nítidas.

E durante todo esse tempo, da boca de uma das cavernas inacessíveis que emporcalhavam, como uma doença, os rochedos a pique, um homem trigueiro, barbudo, estendido de comprido no chão, observava-os com os olhos brilhantes, em que brincava um riso alvar. E, enquanto observava, trauteava a história de Alhama.

 

O envelope selado

Conquanto estivesse semimorto de vontade de dormir, Jim Ferraby viu-se obrigado a prestar atenção ao homem sentado ao seu lado enquanto dirigia o carro para Pawsey. Pois Sooper se mostrava mais brilhante e gárrulo do que Jim já se lembrava de tê-lo visto. Estava tão alerta, que se diria que acabara de levantar-se de um sono bom e reparador.

— São precisos anos para fazer-se um bom detetive. Veja Lattimer, por exemplo; a gente é capaz de pensar que ele conhece o assunto de cabo a rabo. Mas será que o conhece mesmo? Não, senhor. Ele não achou o saquinho de camurça com o anel. E, no entanto, deve tê-lo visto, pois deu com ele no chão enquanto se processava a busca, e o anel não teria sido encontrado se um dos policiais locais, lembrando-se de haver tirado a corrente, não se pusesse a procurá-la. Esses jovens oficiais têm muita dedução, mas pouquíssima visão. Cansado?

— Horrivelmente — replicou Jim.

— Pois então procure imaginar que está se divertindo — aconselhou Sooper. — Imagine-se dançando com a jovem dos seus sonhos... que mandou de volta a Londres pelo primeiro trem.

— Quem? — perguntou Jim, assustado. — Você se refere à Srta. Leigh... que quer dizer com a "jovem dos seus sonhos", Sooper?

— Sou naturalmente desconexo na conversação — voltou Sooper, com delicadeza. — Se dei um fopas, peço desculpas.

— Fopas... oh, você quer dizer faux pas? — sorriu Jim. — O seu francês é horrível, Sooper.

— Pois não é nada perto do meu inglês — disse Sooper, e suspirou. — Pobrezinha! Ela vivia a atirar-me isso em rosto... Que eu não tinha classe. E agora está morta e eu estou vivo. O que mostra que a educação não passa de uma ilusão. Isso é psicologia?

— Mais ou menos — conveio Jim.

— Talvez seja antropologia — sugeriu Sooper. — Este lugar está ficando, sem dúvida, cada vez mais parecido com um parque de diversões toda vez que o vejo! E dizer que já foi uma honestíssima aldeia de pescadores, que não conhecia a diferença entre um cabaré e um consommé!

À luz do sol, com seus domos dourados e suas magníficas frontarias de estuque, Pawsey chegava quase a impressionar. Os amplos passeios já fervilhavam de pessoas que lá passavam as férias, e a praia amarela estava cheia de ociosos.

O carro estacou diante do Grande Hotel e um porteiro resplandecente precipitou-se para eles e os ajudou a apearem. O Sr. Cardew tivera a boa sorte de encontrar um apartamento de frente para o mar, e se achava deitado, porém muito desperto, quando os dois homens entraram.

— Alguma notícia? — indagou, quase antes de se fechar a porta atrás deles. — A pobre Hannah está morta?

Sooper contou-lhe o descobrimento da aliança e o Sr. Cardew sentou-se, muito teso, na cama.

— Casada? Hannah casada? Impossível! — bradou, veemente. — Pouco me importam as informações que você tenha ou as descobertas que fez: Hannah Shaw não era casada.

— Por que tem tanta certeza, Sr. Cardew?

O rosto pálido de Gordon Cardew se contraíra enquanto ele pensava, e, volvido algum tempo, respondeu, já em tom menos agitado:

— Fui advogado de Hannah durante muitos anos. Ela não tinha segredos que eu não conhecesse. Pode ter sentido alguma afeição por... por certa pessoa, e, durante algum tempo, cheguei até a pensar na possibilidade de que viesse a casar; mas não poderia ter casado sem o meu consentimento!

O próprio Sooper estava assombrado.

— Mas por quê? — perguntou, e a explicação de Cardew foi simples. Ao morrer, sua esposa deixara a Hannah Shaw uma anuidade — soma considerável — com a condição de que não se casasse sem o consentimento de Cardew.

— Minha pobre esposa não podia tolerar a idéia de me deixar sozinho, sem alguém que tomasse conta de mim — disse Cardew. — Foi esse o objetivo do legado, que impunha, como condição, que ela continuasse a meu serviço e, como eu já disse, não se casasse.

— De quanto era a anuidade?

— Cerca de quinhentas libras por ano, soma respeitável para Hannah. Com uma única exceção — prosseguiu, após um segundo de hesitação —, Hannah Shaw me contou todos os seus segredos; e a exceção foi que, há cerca de três anos, ela me entregou um grande envelope selado, pedindo-me que o guardasse para ela. Muito naturalmente lhe perguntei que documentos eram aqueles que me dera para guardar, mas ela se recusou, terminantemente, a dar-me quaisquer informações. Está visto que não insisti; porque sua história havia sido muito infeliz. Tiramo-la de uma instituição de caridade, e havia um mistério qualquer em relação a seus pais que nunca tive curiosidade suficiente para investigar ou tentar investigar. Por outro lado, ela nunca cessou de fazer indagações, e, se não me engano, o envelope continha o resultado da busca.

Sooper assentiu com a cabeça.

— Isto é, por certo, muito misterioso — afirmou —, e eu, naturalmente, preciso ver o envelope. Onde está guardado?

— Em meu escritório em King's Bench Walk — disse Cardew. — Se quiser ir procurá-lo hoje, encontrá-lo-á numa caixinha preta de charão, marcada com as iniciais "H. S." É uma das pouquíssimas caixas de documentos que existem no escritório. Há ali mais outros documentos, que incluem, se não me falha a memória, uma cópia da cláusula do testamento de minha esposa, a correspondência que tivemos com a superintendente do orfanato, a certidão de nascimento dela e outros papéis, mais ou menos destituídos de importância.

Ele estendeu a mão, tirou as roupas do encosto de uma cadeira e entregou ao superintendente um molho de chaves.

— Aqui estão as chaves do escritório — disse. E perguntou, em seguida: — Não fez mais nenhuma nova descoberta?

— Nenhuma — respondeu Sooper: — como ela voltou e entrou, estando Lattimer praticamente sentado à soleira da porta, é, sem dúvida, um dos mais notáveis exemplos de prestidigitação que já se conheceram num caso de assassinato.

— Lattimer esteve lá o tempo todo? — perguntou Cardew, às pressas.

— O tempo todo — confirmou Sooper, enfático. O Sr. Cardew passou os dedos pelo queixo não escanhoado.

— Tenho cá minhas teorias, mas gostaria de pô-las à prova antes de explaná-las — disse ele.

Viu contraírem-se os lábios de Sooper e, malgrado sua aflição, sorriu palidamente.

— Você não acredita muito em teorias? No entanto, eu seria capaz de jurar que minha teoria pela qual o assassino fugiu da cozinha é exata.

— Vamos ouvi-la — voltou Sooper, um tanto friamente.

— Os dois entraram na cozinha... a pobre Hannah e o assassino. Ou ele ou ela fecharam a porta a chave. O crime foi cometido e ela caiu, encostada à porta. O homem não teve coragem de mexer no corpo e decidiu escapar através da abertura na parede. A chave na fechadura deve ter-lhe dado essa idéia. Assim que se viu na sala de jantar, foi simplíssimo fechar o postigo e, como este tem um trinco de mola...

Sooper deu uma palmada no joelho.

— É isso, é isso mesmo! — concordou, com alguma relutância. — Eis aí, por certo, uma peça maravilhosa de teorização; e não me surpreenderia que o senhor estivesse quase certo. Mas como foi que ele entrou e saiu sem que Lattimer o visse?

— Existe uma porta dos fundos... — principiou Cardew.

— Ferrolhada e fechada por dentro — replicou Sooper prontamente. — Todas as janelas têm venezianas e as venezianas estão trancadas e ninguém pode entrar na casa ou sair dela por essa maneira. Se o assassino escapou pela porta do fundo, como trancou a porta depois de sair? Não, Sr. Cardew, essa não é a solução.

Cardew anuiu lentamente, com um gesto de cabeça.

— Concordo — disse ele —, e confesso que não era essa absolutamente minha idéia. Talvez algum dia eu esboce uma hipótese aceitável até para o senhor, superintendente.

Descendo a escada, Sooper falou:

— Essa tal "hipótese" é nova para mim. Quando esses sujeitos começam a falar latim, eu me vejo num mato sem cachorro. Mas ele, sem dúvida, tem razão quanto à maneira pela qual o assassino fugiu da cozinha, e estou desapontado. Imaginei que ele teorizasse um painel secreto na parede, ou uma passagem subterrânea debaixo do assoalho; ou uma daquelas portas inteligentemente disfarçadas, que parecem estantes de livros e basta a gente apertar uma mola, talvez duas molas, para que elas girem sobre si mesmas ou se abram ou se fechem, conforme o caso, e dêem para uma escada comprida com cheiro de terra.

— Sooper, creio que você andou lendo histórias de aventuras — riu-se Jim.

— Leio tudo, exceto as colunas de finanças, que eu seria também capaz de ler se não fossem tão cheias de números.

Por alguma extraordinária razão, Jim já se sentia menos cansado quando tomou seu lugar ao volante e dirigiu o carro através das ruas apinhadas de Pawsey, rumo ao campo aberto. E, se estivesse cansado, Sooper o teria mantido desperto, pois o velho, inusitadamente falastrão, dedicou os primeiros quarenta quilômetros da viagem a Londres a discorrer sobre as vantagens e desvantagens da educação popular. (

— Quando entrei para a Força, tudo o que precisava um camarada era saber ler, escrever e contar. Se a gente pegava maior quantidade de ladrões e de maconha do que qualquer outro detetive, era promovido, ainda que não soubesse nada sobre o diferencioso... como é mesmo a palavra? Qualquer coisa a respeito de cálculo...

— Cálculo diferencial — sugeriu Jim.

— Exatamente. Não, não se precisava saber nada de botânica, nem do departamento a que pertence esse treco diferencial, nem de zoologia, psicologia, ou coisa que o valha. A única coisa necessária era manter os olhos bem abertos e agarrar o cara em flagrante. Se se prendesse um camarada mais forte e ele começasse com brincadeiras de mão, a gente devia saber alguma coisa de anatomia, como, por exemplo, o melhor lugar para assentar-lhe o cassetete. Mas essa, praticamente, era toda a ciência que havia nos velhos tempos. Nunca usei um microscópio a não ser para examinar meu pagamento. E tubos de ensaio e coisas assim, que os detetives grã-finos usam para verificar se a mancha na bainha das calças é de sangue ou de cerveja, nunca se viram em nenhum posto policial que já freqüentei. Olhe e agarre, era a brilhante divisa da Força Policial. Não estou depreciando a educação. Pessoalmente, eu até gostaria de falar seis idiomas e poder conversar graciosamente em sânscrito. Mas passo muito bem sem esses talentos. Vou ao escritório de Cardew para examinar o envelope de Hannah Shaw: não quer vir comigo?

Os fiéis estavam saindo da igreja de Temple, quando o carro sujo de lama parou diante do escritório de Cardew. Jim, que conhecia o lugar, mostrou-lhe o caminho, subindo a escada até chegar à grande porta externa de carvalho. No Temple, todo conjunto de salas tem uma porta dupla: a de carvalho, que, fechada, significa que o morador não quer ser incomodado, e que permanece aberta durante as horas de serviço; e a porta interna, que, aberta ou fechada, é um convite para entrar. A porta de carvalho não estava fechada; o detetive ia enfiando a chave enorme na fechadura quando sentiu a porta ceder à sua pressão.

— Não está fechada — disse, e entrou.

Viram-se num estreito corredor, de onde uma porta à direita conduzia, como sabia Jim, à sala de Elfa Leigh. Essa porta se achava fechada, mas a que se abria para o sanctum do Sr. Cardew estava escancarada.

Sooper estacou no limiar, relanceando silenciosamente os olhos pela sala durante um minuto. Em seguida:

— Parece que chegamos meio tarde — falou com voz arrastada.

As poucas caixas de documentos que o escritório continha jaziam no chão, e seu conteúdo fora espalhado em todas as direções. A escrivaninha de tampa corrediça de Cardew, completamente aberta, mostrava-se juncada de papéis.

— Parece, sem dúvida, que alguém esteve aqui antes de nós — disse Sooper outra vez.

Virou, uma por uma, as caixas abertas.

— Aqui está a "H. S." — prosseguiu —, vazia.

 

O tio de Lattimer

Olhou à sua volta lentamente até dar com a lareira. Estava cheia de cinzas enegrecidas, que deviam ter sido cuidadosamente mexidas, para que se destruíssem os últimos vestígios de escrita. As gavetas da escrivaninha haviam sido tiradas do lugar e arremessadas ao chão, e, concluída a busca sistemática dos papéis, não se descobriu vestígio de nenhum envelope, nem mesmo de qualquer documento que dissesse respeito a Hannah.

Sooper apanhou a caixa preta com as iniciais "H. S.", colocou-a sobre a mesa e puxou a mesa e a caixa para a luz que entrava pela janela.

— Não está estragada — constatou. — Foi aberta com chave.

Depôs a caixa sobre a mesa e, atravessando a sala até a lareira, pôs-se de joelhos diante dela e principiou a erguer as cinzas delicadamente. Fazia dez minutos que se ocupava disso quando se levantou, espanou os joelhos e principiou a examinar o soalho. Dali a pouco, inclinou-se e apanhou um palito vermelho de fósforo, que examinou, curioso.

— Eu devia ser capaz de dizer, de pronto, quem fabricou este fósforo e quantas pessoas em Londres usam esta marca. Mas tudo o que posso dizer é que o acenderam para atear fogo ao papel na lareira e não para fins de iluminação.

Esquadrinhou as janelas, puxou cautelosamente uma cortina e correu-a. Ao fazê-lo, um pedaço de papel que ficara preso na cortina quando esta subira tremulou no ar e foi cair ao chão. Ele inclinou-se e apanhou-o. Era o recibo, dado por um negociante, de uma importância pequena.

— Foi soprado contra a janela num dia de vento — disse Sooper —, no momento em que se erguia a cortina. Não é maravilhosa a natureza? E isso é dedução. Teremos de dar parte à Polícia Central e, hoje à noite, vou ver o velho Cardew e dar-lhe jeitosamente a notícia; e, se conheço alguma coisa a seu respeito, ele ficará tão agitado pelo roubo quanto ficou pelo assassinato. Isto é que é o pior dos advogados: a perda de documentos parte-lhes o coração.

Jim acompanhou-o até a Polícia Central; e, afinal, alegre por se ver em liberdade, voltou para casa e, sem se dar ao trabalho de despir-se, deitou-se na cama e adormeceu instantaneamente.

O sol já se pusera quando ele despertou, e seu primeiro pensamento foi dirigido a Elfa Leigh. Não se arriscou a telefonar, mas, encontrando um táxi, dirigiu-se à Cubitt Street e por sorte encontrou-a à porta, já de saída.

— Esteve com o Sr. Minter? — foi a primeira pergunta que ela lhe fez. — Ele acaba de sair daqui.

— Mas esse homem não dorme nunca? — perguntou Jim, assombrado. E ajuntou: — Ele lhe contou sobre o roubo do escritório?

Ela fez que sim com a cabeça.

— Veio contar-me esta tarde — disse Elfa, caminhando ao lado dele. — Aparentemente, os ladrões não entraram na minha sala, pois a porta estava trancada. Sabe de alguma coisa sobre Big Foot? — inquiriu, de repente.

Jim admirou-se de que Sooper lhe houvesse referido esse descobrimento, pois guardara do Sr. Cardew, cuidadosamente, o segredo da informação alarmante.

— Ele queria saber se eu, alguma vez, ouvira o nome — prosseguiu ela, respondendo inconscientemente à pergunta que ele não formulara —, e está claro que não ouvi. Qual é a associação, Sr. Ferraby?

Ele contou-lhe.

— Não, nunca ouvi falar em Big Foot. É tudo muito terrível e misterioso. Não posso acreditai que a Srta. Shaw esteja morta: é horrível demais pensar nisso.

Ela se encaminhava na direção de Holborn, e Jim meditava sobre os motivos que a teriam feito sair de casa àquela hora da tarde, a menos que se dirigisse ao parque. A jovem deteve-se na esquina de Kingsway.

— E agora vou desvendar um misteriozinho meu

— explicou, com um tênue sorriso. — E é tão pouco importante que eu não teria coragem de pedir seu auxílio, embora seja misterioso.

— Quanto menor o mistério, tanto mais útil serei

— acudiu Jim, pressuroso —, e a única razão pela qual sugiro que vá, aonde quer que vá, de táxi é uma razão puramente egoísta. Posso fumar.

— O senhor pode fumar no segundo andar de um ônibus — disse ela, enquanto ele parava um táxi. — Os táxis são maus hábitos.

Porém, ela não protestou mais e deu um endereço em Edwards Square.

— Vou ver meu inquilino — explicou. — Isto soa muito importante, não é mesmo? Quando papai morreu, deixou-me a casa em que morávamos. É uma propriedadezinha muito pequena, porém grande demais para mim. Aluguei-a e o aluguel me ajuda bastante. Não tenho medo de perder o inquilino, porque as casas de aluguel estão muito valorizadas; mas o pobre homenzinho está ficando cada vez mais nervoso por causa dos ovos, e receio que, se não se fizer alguma coisa, ele acabe procurando outra casa.

— Os ovos? — disse, pasmado, Jim.

Ela fez uma inclinação solene com a cabeça.

— Ovos; às vezes, batatas; de quando em quando, couves. Mas os ovos constituem o principal mistério, porque são mais freqüentes. O Sr. Lattimer, a princípio, achou que era uma brincadeira, naturalmente...

— Lattimer? — atalhou Jim. — Será parente do nobre sargento?

— É tio dele. Só hoje descobri, quando o Sargento Lattimer me trouxe para Londres, que o Sr. Bolderwood Lattimer, solteirão, é um abastado negociante de secos e molhados. Creio que o sargento e ele não se dão bem; pelo menos, não mantêm relações muito amistosas, porque o Sargento Lattimer me disse que nunca esteve em Edwards Square, e que o tio não aprovava o seu ingresso na polícia; achava que o sobrinho estava amesquinhando os padrões da família.

Ela riu suavemente.

— Mas fale-me dos ovos, por favor.

— E das batatas! — acrescentou ela. — A história toda é tão absurda, que julguei tratar-se de uma brincadeira quando a ouvi pela primeira vez. Desde que o Sr. Bolderwood Lattimer está morando em Edwards Square, 178, têm chegado esses presentes extraordinários. Geralmente são encontrados à sua porta de madrugada e, como eu já disse, vão desde ovos até cenouras! Às vezes, há uma dúzia de batatas, embrulhadas num pedaço velho e sujo de jornal, mas, invariavelmente, durante os meses do verão, os presentes são acompanhados de flores. O Sr. Lattimer abriu a porta na manhã de sexta-feira e encontrou um ramo de lilás e uma dúzia de talos de aspargos! A coisa dura há muito tempo para ser brincadeira, e parece estar mexendo com os nervos do meu inquilino. Alegra-me que o senhor tenha vindo, pois talvez encontre uma solução.

Edwards Square é um átomo isolado e zelosamente preservado da Londres do fim do período georgiano: uma praça de casas pequenas, de jardins verdes. Aqui o laburno deixa cair seus pendões dourados na calçada e as jardineiras vivem cheias de flores.

O Sr. Bolderwood Lattimer viu parar o táxi e foi ao encontro deles. Era um homem baixo, forte, calvo. Tinha o semblante austero e a tez rubicunda de uma pessoa — concluiu mentalmente Jim — que poderia ser perfeitamente mordomo de uma igreja, com propensão para o vinho do Porto.

— Entre, Srta. Leigh — convidou ele, e inclinou graciosamente a cabeça para saudar Jim. — Recebeu minha nota? Lamento muito tê-la incomodado, mas o fato é que esta história está se tornando um intolerável aborrecimento.

Conduziu-os a uma sala de visitas vitoriana, aposento em que os tapetes de flores bordadas pareciam estranhamente ajustados aos móveis tesos de pêlo de camelo.

— A verdade — prosseguiu — é que eu já estava quase disposto a queixar-me à polícia. Até agora, tenho considerado esses extraordinários penhores de atenção como brincadeira ou, possivelmente, a tentativa de alguma pobre criatura que eu tenha ajudado para recompensar-me, humildemente, a caridade.

Pomposo e oracular, tinha o vezo de dar ênfase aos argumentos com os óculos dobrados.

— Cheguei agora à conclusão, e creio que minha opinião se justifica, de que o aparecimento quase semanal desses artigos é nada mais nada menos que o ato de um homem vulgar, um plebeu desequilibrado, para lembrar-me de que sou, de fato, um negociante. Um homem bem-sucedido faz inimigos — continuou. — Há pessoas, cujos nomes prefiro não mencionar, que ficaram amargamente ressentidas com minha eleição para o Conselho Municipal do Burgo Real de Kensington: membros, lamento dizê-lo, da minha própria igreja. Ora, não professo dedicar-me a qualquer outro ofício além da profissão comercial. Tais insultos, portanto, são um tanto supérfluos.

— A que hora essas coisas aparecem habitualmente à sua porta? — perguntou Jim, depois de haver sido apresentado.

— Entre meia-noite e três horas da manhã — foi a resposta. — Fiquei acordado diversas noites, na esperança de surpreender o patife em flagrante, e exigir uma explicação, à falta da qual, naturalmente, eu chamaria o policial mais próximo e o mandaria prender. Mas, até agora, minhas... minhas vigílias ainda não foram recompensadas.

— A mim me parece uma espécie de crime assaz inocente, Sr. Lattimer — sorriu Jim. — Afinal de contas, o senhor tem a vantagem de receber mercadorias vendáveis!

— E se estiverem envenenadas? — perguntou, em tom gélido, o Sr. Bolderwood Lattimer. — Mandei vários artigos ao laboratório público de análises e, embora deva admitir que não se descobriram traços de nenhuma droga mortal, o mais provável é que a primeira série dos pseudopresentes seja destituída de perigo, a fim de que eu me deixe iludir e...

— Isso também me parece pouquíssimo provável — disse Jim. — O senhor procurou a polícia?

— Falei com dois policiais que estão de serviço à noite e solicitei-lhes o auxílio para capturar o homem que me está aborrecendo, mas não apresentei nenhuma queixa oficial.

— Pois não seria nada mau que discutisse o assunto com seu sobrinho. Se não me engano, o Sargento Lattimer é seu parente, não é?

Uma expressão penosa contraiu o rosto do negociante de secos e molhados.

— John Lattimer e eu não somos exatamente amigos — disse ele; — na realidade, mal nos conhecemos. Em sua primeira mocidade, ele recusou um excelente oferecimento que lhe fiz para entrar em minha casa comercial... numa posição modesta, naturalmente, mas acontece que a gente deve começar pelo princípio. É um método americano... Um dos poucos métodos americanos que aprovo. E ele recusou-o. Por amor do meu querido irmão, tentei persuadi-lo, mas essa espécie de vida não tinha interesse para John. E, realçando sua ingratidão, ele cometeu a enormidade de ingressar na Força Policial. Admirável corporação de homens

— apressou-se a acrescentar —, sem cuja guarda estaríamos em péssima situação. Mas não é exatamente a profissão que eu esperaria que adotasse o filho de meu irmão.

— Uma profissão muito honrosa — disse Jim.

O Sr. Lattimer deu de ombros.

— A gente ouve histórias extraordinárias — volveu, vagamente —, e mal sabe no que acreditar... Parece-me que o salário de um sargento de polícia não é suficientemente grande para permitir-lhe jantar nos restaurantes mais caros. Entretanto, há menos de uma semana, vi John, com meus próprios olhos, no Ritz-Carlton, oferecendo um jantar, e um jantar dos mais dispendiosos, a um grupo de quatro homens, um dos quais, ao que me consta, é um milionário! Preste atenção, não estou acusando — ajuntou, agitando o dedo diante do rosto de um Jim embatucado. — Digo apenas que se ouvem certas coisas. E, embora eu esteja certo de que nossa Força Policial é incorruptível... Bem, os jantares no Ritz-Carlton custam muito dinheiro.

Por um momento Jim se sentiu tão pasmado que não pôde responder. Lattimer! Aquele homem sossegado, cortês, bem-educado! No entanto, era impossível que Bolderwood confundisse o sobrinho com outra pessoa.

— Não, creio que não consultarei John. Eu queria avistar-me com a Srta. Leigh porque imaginei que ela talvez pudesse projetar alguma luz sobre o assunto. Morou nesta casa durante tantos anos...

Dirigiu à moça um olhar inquiridor, mas ela sacudiu a cabeça negativamente.

— Nunca nos aconteceu nada parecido, Sr. Lattimer — acudiu ela —, e a única coisa que posso lhe sugerir é que leve o assunto ao conhecimento da polícia.

— Isso me aborrece — tornou Bolderwood Lattimer, que era uma dessas pessoas que detestam passar o fardo da conversação a outra pessoa —, mexe com meus nervos. Sou naturalmente um homem imaginativo: os senhores, provavelmente, já leram alguns dos nossos anúncios, todos preparados por mim — acrescentou, com humor inconsciente. — E não posso deixar de sentir que eu talvez esteja sendo objeto de uma vendetta. Ovos, batatas, couves! Por que diabo haveriam de escolher-me para a sua infernal caridade?

— Essas coisas vêm em grande quantidade? — perguntou Jim.

O Sr. Bolderwood Lattimer meneou a cabeça.

— Vêm, geralmente, numa quantidade que um homem pode carregar no bolso... o galho de lilás foi um presente inusitado. Sou um leitor onívoro, e já li muita coisa sobre os avisos misteriosos mandados, às vezes, às vítimas escolhidas desses bandos da Mão Negra. O senhor, com sua larga experiência, acredita que tais artigos pertençam a essa categoria, Sr. Ferraby?

— É muito pouco provável — disse Jim, conservando a seriedade com algum esforço. — Aceite meu conselho e consulte a polícia. É provável que ela possa ajudá-lo.

O Sr. Lattimer apertou os lábios com expressão meditativa.

— Estou muito bem aqui e não quero sair da casa. Na realidade, como a Srta. Leigh sabe, fiz-lhe diversas ofertas para comprar a propriedade. Mas tenho pensado seriamente se não me seria mais aconselhável mudar de residência, a fim de verificar se continuo a ser perseguido pelo meu atormentador.

— Esse me parece um meio muito incômodo de fazer a descoberta — tornou Jim, com um sorriso —, e lembra o método de pôr fogo na casa para assar o leitão. Nenhuma mensagem acompanha os presentes?

— Nenhuma. A coisa mais próxima de uma pista, se me permitem usar uma expressão policial, que já tive veio com o lilás. Havia algumas palavras, escritas a lápis, no papel que embrulhava a haste, mas essas palavras, para mim, eram inteiramente sem sentido.

— O senhor tem aí o papel? — indagou Jim, com súbito interesse.

— Vou ver.

O Sr. Lattimer desapareceu e levou algum tempo para voltar.

— Acha mesmo que é alguém que está fazendo uma brincadeira com ele?

— É o que parece. E, todavia, isso vem acontecendo há anos, com intervalos irregulares. O papel talvez nos diga qualquer coisa.

Quando o Sr. Lattimer voltou foi para contar-lhes que a "pista" fora atirada ao lixo.

— Não creio que as palavras pudessem dizer-lhes alguma coisa — continuou. — Não significaram nada para mim, e imagino que tenham sido escritas com a idéia de despistar, ou já estavam no papel quando este foi utilizado para embrulhar as flores e não têm significado algum.

Isso, praticamente, concluiu a entrevista. E o silêncio preocupado de Jim, durante o regresso a Bloomsbury, não tinha qualquer relação com o Sr. Lattimer e seu benfeitor incógnito.

— O senhor está muito quieto: acha realmente que há algo sinistro nesses miseráveis ovos e batatas? — perguntou a jovem, enquanto atravessavam o parque.

Jim sobressaltou-se.

— Os ovos? Não, eu não estava pensando neles. Mas a história que ele nos contou sobre o Sargento Lattimer é muito curiosa.

— Por que não haveria o pobre homem de jantar no Ritz-Carlton?

— Pela excelente razão de que homens pobres não jantam no Ritz-Carlton — voltou Jim, calmamente —, e a chefatura de polícia desconfia dos detetives que têm dinheiro para jogar fora.

 

Sooper investiga

Sooper tinha o dom, que é a bênção de todos os grandes líderes, de poder dormir nos lugares mais estranhos nas ocasiões menos regulares; e depois que acrescentou a soneca tirada no trem, durante a viagem de regresso ao posto, às duas horas que dormiu na cadeira da sua sala, considerou-se convenientemente retemperado.

A campainha estava tocando para a refeição da noite quando ele chamou Lattimer, e esse policial, com olheiras fundas e indisfarçavelmente cansado, ouviu o chamado com um gemido.

O calmo Lattimer era um homem alto e musculoso. As jovens impressionáveis descreviam-no como "distinto", e os cabelos prematuramente grisalhos nas têmporas, o nariz um tanto napoleônico e o queixo firme faziam jus à descrição.

Sooper olhou penetrantemente, por cima dos óculos, para o subordinado que entrava.

— Acabo de falar ao telefone com o Sr. Ferraby — disse ele. — Alguém anda bombardeando seu tio com hortaliças, ovos e lilases... Aposto que é a primeira vez que alguém lhe atira flores, mas os ovos talvez sejam velhos conhecidos.

Sooper não se referiu ao jantar no Ritz-Carlton.

— Espero que alguns tenham atingido o alvo — disse Lattimer maldosamente. — É um velho hipócrita, mesquinho como um duque e quase tão humano quanto um fogão de cozinha.

— Parece bom sujeito — refletiu Sooper. E logo, de repente, como era seu costume: — Elson voltou. Chegou a Hill Brow às cinco e cinqüenta e três. Carro coberto de lama, um farol arrebentado e o pára-choque todo amassado.

Seguiu-se longa pausa.

— Acho que vou vê-lo — disse Sooper, por fim, espiando pela janela. — Se o ativo e inteligente policial que mandei vigiar a casa tivesse tanto cérebro quanto um mosquito, tê-lo-ia detido por excesso de velocidade, bebedeira ou qualquer outra coisa e o teria trancafiado. Gosto de ter um cara bem guardado antes de começar a investigar. Essa é a maneira antiga; mas não agrada a vocês, os moços. Tranquem-nos a chave!

Suspirou e levantou-se.

— Darei um pulo em Hill Brow: fique por aqui à espera de qualquer recado que chegue de Pawsey... Fui encarregado do caso: o comissário me informou há duas horas. Você poderá comunicar delicadamente àquele inspetor de Pawsey com cabeça de pudim que ele é pouco menos do que nada neste assunto.

Sooper foi num pulo a Hill Brow na vetusta máquina, com um salto ribombante que assustou crianças, interrompeu mexericos, afligiu doentes e estropiados, pois sua motocicleta ficava ainda pior aos domingos, quando se abafam a maior parte dos ruídos do mundo.

Surpreendeu-se quando a porta se abriu e o criado de Elson convidou-o a entrar.

— O Sr. Elson está à sua espera — disse o homem. — Eu lhe mostrarei o caminho.

Subiram uma larga escada de carvalho, percorreram um corredor atapetado de vermelho e chegaram ao aposento na extremidade do corredor. Estava mobiliado como sala de estar, e tinha a óbvia vantagem de combinar a vista da região com a observação imediata do caminho que os visitantes precisavam percorrer para chegar à casa.

Elson estendera-se num vasto sofá; estava barbudo e sujo; calçava botas, observou Sooper, grossas de lama seca, e seu aspecto pouco atraente em nada era melhorado pela faixa de esparadrapo que ia da têmpora ao queixo. No momento em que Sooper entrou na sala, ele empunhava um copo grande, cheio pela metade de um fluido ambarino, e havia uma garrafa aberta sobre a mesa, ao alcance da sua mão.

— Entre, Minter — disse, trêmulo. — Eu queria vê-lo. Que história é essa de Hannah Shaw ter sido morta? Li nos jornais de domingo...

— Se estava nos jornais de domingo, eu gostaria de conhecer o sujeito que a escreveu — retorquiu Sooper, calmo. — Só descobrimos o assassinato hoje de madrugada.

— Vi em algum lugar... talvez tenha ouvido a história — emendou Elson, e apontou o dedo trêmulo para uma cadeira. — Sente-se, não quer? Bebe alguma coisa?

— Sou abstêmio de nascença — confessou Sooper, sentando-se com o máximo cuidado. — Como não estava nos jornais de domingo, o senhor deve ter ouvido a notícia.

— Estava nas últimas edições dos jornais de domingo: vi-a em Londres — insistiu Elson, obstinado. — Que idéia é essa? Acha que eu sei alguma coisa a respeito?

Havia uma nota de desafio em seu tom. Sooper abanou delicadamente a cabeça.

— A última pessoa do mundo que eu imaginaria capaz de saber alguma coisa a respeito era o senhor — disse ele. — Nem sequer conhecia Hannah Shaw, não é mesmo? Elson hesitou.

— Vi-a em casa de Cardew, mais nada.

— Ela talvez tenha vindo aqui uma ou duas vezes, não? — voltou Sooper, em tom insinuante, quase de desculpa. — As governantas costumam dar suas voltinhas quando lhes faltam coisas em casa. Aposto que ela esteve aqui uma ou duas vezes.

— Veio, veio aqui uma ou duas vezes — admitiu Elson. — Como foi que aconteceu?

— Veio vê-lo uma ou duas vezes? — insistiu Sooper. — Tenho a impressão de a ter visto sair pela porta da frente... vinda talvez da sua sala. Parece que me lembro disso.

Elson considerou-o, desconfiado.

— Ela veio aqui uma vez para perguntar-me... — tornou a hesitar... — para fazer-me uma pergunta sobre... sobre um negócio qualquer. Foi a única vez em que esteve aqui. E se algum desses malditos criados disser que esteve mais vezes, está mentindo!

— Não falei com os criados — acudiu Sooper em tom escandalizado. — Nunca discuto os negócios de um cavalheiro com seus criados! Ela veio aqui falar de negócios, não foi? Que espécie de negócios?

— Um assunto particular dela — respingou Elson, desabrido, e emborcou o resto do copo de uísque. — Onde é que ela foi morta?

— Onde foi morta? Ora, lá em Pawsey. Foi lá passar o fim de semana e... foi morta.

— Como?

— Tenho a impressão de que levou um tiro — disse Sooper, dando ao rosto a expressão de um esforça tremendo para lembrar-se de alguma coisa que lhe fora dita casualmente. — Sim, tenho a certeza de que levou um tiro.

— No bangalô? — perguntou o outro, rapidamente.

— Era uma espécie de bangalô — admitiu Sooper;

— uma espécie de chalé de verão pertencente ao Sr. Cardew. Conhece-o?

O homem passou a língua nos lábios secos.

— Sim, conheço-o — respondeu. Em seguida, para surpresa de Sooper, ergueu-se em pé de um salto e brandiu o punho fechado na direção da janela. — Inferno! Se eu soubesse...

Estacou de repente, como se se advertisse dos olhos curiosos do detetive.

— Sim, aposto que, se soubesse, teria sido diferente

— volveu Sooper, compreensivo. — Se soubesse do quê?

— Nada — repontou Elson. — Olhe para a minha mão.

Estendeu a mão e Sooper viu que ela tremia como uma folha. '

— Isso me deixou fora de mim!... Alvejada como um cachorro louco!

Pôs-se a andar de um lado para outro da sala, torcendo e retorcendo as mãos em sua agonia mental.

— Se eu soubesse! — repetiu, roufenho.

— Onde foi que o senhor esteve ontem à noite? Sooper fez a pergunta sem violência.

— Eu? — O homem girou sobre si mesmo. — Não sei. Eu devia estar bêbedo. Às vezes fico assim. Dormi em algum lugar... Oxford, será? Uma porção de estudantes de toga passeando pelas ruas. Sim, acho que era Oxford.

— Por que foi a Oxford?

— Não sei... fui... tinha de ir a algum lugar. Meu Deus! Como odeio este país! Eu daria esta mão e esta mão — e brandiu as duas mãos diante de Sooper — e três partes do meu dinheiro para voltar a St.-Paul!

— E por que não volta? — perguntou Sooper com voz arrastada.

O homem o encarou, furioso.

— Porque não quero — replicou. Sooper alisou o bigode grisalho e eriçado.

— Em que hotel se hospedou em Oxford? — inquiriu.

Elson parou diante dele.

— Que grande idéia é essa? — perguntou. — Acha que sei alguma coisa sobre a morte de Hannah Shaw? Digo-lhe que estava em Oxford, ou talvez em Cambridge. Perdi-me e fui parar numa grande charneca onde existe um hipódromo... Market qualquer coisa.

— Newmarket — assentiu Sooper com uma inclinação de cabeça. — O senhor estava em Cambridge.

— Pois que seja Cambridge... que importa?

— Teria ido para um grande hotel e teria dado o seu nome, Sr. Elson, não teria?

— Pode ser; não me lembro. Como é que ela foi morta?... diga-me isso. Quem a encontrou?

— Eu a encontrei, o Sr. Cardew a encontrou e o Sargento Lattimer a encontrou — replicou Sooper, e viu que o homem se encolhia.

— Estava morta quando... ?

Sooper fez que sim com a cabeça. Elson reencetou o passeio agitado pela sala. Passado algum tempo, acalmou-se.

— Não sei nada a esse respeito — declarou. — Encontrei-me, sem dúvida, com Hannah Shaw: ela veio aqui fazer-me uma pergunta a que respondi da melhor maneira que pude. Um homem queria casar com ela ou ela queria casar com um homem. Não sei nem quem era, mas acredito que se conheceram num dos passeios que ela fazia de automóvel.

— Ah, sim? — Sooper ouviu a notícia com todas as mostras de polido interesse. — Numa de suas excursões de automóvel, é? Ora, isso não lhe parece muito curioso? Andei fazendo deduções e teorizando sobre este caso e foi essa, justamente, a conclusão a que cheguei, de que ela o conheceu numa de suas excursões de automóvel.

— Então você sabia disso? — apressou-se o outro a perguntar.

— Apenas um pouquinho. Simples supção. É uma expressão estrangeira que talvez tenha ouvido, Sr. Elson. — Desferiu uma palmada no joelho, sinal preliminar de que ia levantar-se. — Bem, não quero tomar-lhe mais tempo. O senhor tem um lindo jardim, quase tão bonito quanto o do Sr. Cardew.

Folgando de deixar para trás um assunto que o incomodava, Elson aproximou-se da janela.

— Sim, é bonzinho — disse ele. — Mas vem gente da cidade e rouba coisas. Alguém arrancou a rama daquele lilás outra noite... cortou-o, pura e simplesmente. — Mostrava a planta com o dedo, mas Sooper não olhou. Refletia furiosamente.

— A rama do lilás, é? — murmurou. — Isto, sem dúvida, é estranho.

Depois que saiu o policial, Elson foi para o quarto, trocou as roupas sujas de lama, entregou-se ao regalo de um banho quente e fez a barba. Tomou uma refeição magra — era, de hábito, comilão — e passou a última hora do dia agonizante andando de um lado para outro da sua propriedade, sem objetivo fixo, as mãos enfiadas nos bolsos, o queixo caído sobre o peito. Exatamente às nove e meia, desceu o declive do jardim, através de extenso roseiral, e chegou, por fim, a uma portazinha no muro alto que cercava o jardim. Lá ficou, à espera. Pouco depois ouviu uma batida leve e, puxando para trás o ferrolho azeitado, abriu a porta verde. O Sargento Lattimer entrou, esperou que a porta fosse novamente aferrolhada e perguntou, em tom áspero:

— Por que raios foi contar a Sooper a história do lilás?

— Ora! Cale-se! — resmungou Elson. — Suba e venha beber comigo. Os criados não o verão desta parte da casa.

 

Teorias e deduções

Numa hora anormalmente adiantada o comissário-delegado de polícia foi fazer uma visita à Promotoria Pública e, por sorte, Jim era o funcionário mais graduado em serviço, pois seu chefe sofria os efeitos de um acesso de febre de feno e o subchefe, no tribunal de Hereford, acusava um sujeito que envenenara a esposa, no julgamento que então se realizava.

Sooper nunca se referia ao Coronel Langley de outra maneira senão chamando-o de "aquele delegado narigudo", às vezes acrescentando, outras omitindo, expletivas violentas. O delegado raramente se referia a Sooper senão em termos de admiração e respeitoso temor; pois o litígio que — segundo Sooper — havia entre ele e a chefatura era quase todo imaginário.

— Sooper é o camarada mais afortunado do nosso ramo — disse Langley em tom de inveja. — Tropeça em casos com a mesma facilidade com que uma mosca cai no leite. E quando pediu para ser enviado à Divisão I pensei que estivesse caducando.

— Sooper sempre me dá a impressão de que foi exilado para a Divisão I — observou Jim.

— Sooper é um mentiroso — foi a tranqüila resposta. — Ninguém se atreve a exilá-lo: a vida perderia a graça. Ficamos contentíssimos ao ver o velho sabujo pelas costas. Viver com Sooper é viver no meio de pó de Seidlitz. Mas essa é a pose que ele assume... ter sido exilado e posto na reserva. Pediu para ir, levou Lattimer consigo, e teve a sorte de topar com esse caso.

Jim Ferraby não tinha obrigação nenhuma de confidenciar ao delegado o que soubera a respeito de Lattimer. Contara a Sooper, e isso era o suficiente. Mas não seria humano se não fizesse uma pergunta sobre os antecedentes do sargento.

— Sei pouca coisa a respeito dele... Freqüentou uma boa escola e tem relações respeitáveis.

Lattimer, entretanto, não lhe interessava, e foi diretamente ao objetivo da visita.

— Sooper me disse que você esteve em Pawsey logo depois que se cometeu o assassinato. Tivemos uma conferência na Yard ontem à noite e confesso que estamos perplexos. E as grandes pegadas não são o traço menos mistificador do caso, pois apenas conduzem ao chalé... Sooper mandou tirar fotografias e as provas chegaram ontem à noite. Aqui estão os fatos, que eu gostaria que você confirmasse. — Destacava cada ponto espetando o indicador na palma da mão.

— Quando vocês chegaram, antes da meia-noite de sábado, encontraram a casa da praia fechada e trancada. Lattimer, que estivera no lugar durante algumas horas e também examinara a casa, confirma a declaração de Sooper segundo a qual o cadeado na porta estava fechado e a própria porta estava fechada. A porta dos fundos também fora aferrolhada por dentro; as janelas se achavam fechadas, as venezianas trancadas, as trancas no lugar, e as experiências realizadas na última noite, por solicitação nossa, provaram de maneira concludente que seria impossível entrar na casa por uma das janelas. A chaminé é estreita demais para admitir a passagem de uma criatura humana de tamanho normal, e ainda não se descobriu nenhum outro meio de ingresso.

"Pouco antes da meia-noite, chega a Srta. Shaw, dirigindo um velho automóvel, pára diante da porta, retira o cadeado, abre a porta e entra, fechando ou aferrolhando a porta depois de entrar. Sooper examinou a porta quando examinou o carro, e encontrou-a fechada. Dali a dez ou quinze minutos, a Srta. Shaw sai, fecha porta e cadeado e vai-se embora.

"Ora, eis aqui um fato importante que se deve ter em mente, Ferraby. Se a Srta. Shaw tivesse chegado mais cedo, durante o dia, com um companheiro, é muito possível que o tivesse largado fechado lá dentro, embora se tratasse de uma circunstância insólita e suspeitosa. Mas ela não esteve lá durante o dia, e a polícia local tem provas convincentes de que homem nenhum se escondeu na casa antes da chegada de Lattimer. Na noite anterior ao assassinato, um patrulheiro, que vigia as propriedades retiradas, chegou à casa da praia e, como de costume, apeou da bicicleta e examinou a porta. Isso se faz porque vagabundos e outros salafrários, de vez em quando, invadem essas propriedades solitárias. Ele avistara um vagabundo mandriando pela estrada superior do rochedo e tomara a precaução de 'cavilhar' a porta. Como sabe, a polícia leva umas cavilhazinhas pretas a que amarra um pedaço de algodão preto, e costuma estendê-lo à frente de uma porta que imagine possa ser forçada, enfiando as cavilhas em alguma fenda do dintel, de tal modo que só sejam percebidas pela pessoa que estiver à sua procura.

"Na noite do crime, pouco antes do pôr-do-sol, depois que Lattimer assumira sua posição, o patrulheiro passou por lá e se deteve para examinar a porta da casa da praia e encontrou a cavilha intacta, o que significa que ninguém havia passado pela porta, pois do contrário teria arrebentado o fio de algodão. Como disse, trata-se de uma precaução elementar, que se toma em relação a todas as casas vazias, e o patrulheiro, de fato, cavilhou várias outras portas de residências vazias durante sua ronda."

Jim assentiu com uma inclinação de cabeça.

— Isso liquida minha teoria de que o assassino já estava escondido na casa.

— Exatamente — confirmou o delegado. — Agora, deixe-me continuar. A Srta. Shaw sai da casa da praia, passa pela estrada, sobe o morro e desaparece. Seu carro, mais tarde, é encontrado no topo do rochedo; sua capa de chuva e seu chapéu foram descobertos por um policial, numa moita, no meio do caminho que desce pelo rochedo.

— Quando foi isso? — perguntou Jim, surpreso.

— Hoje cedo; na realidade, fiquei sabendo pouco antes de sair da Yard. Nossa teoria atual é de que a Srta. Shaw combinara encontrar-se com um homem na casa, mas descobriu que estava sendo observada. Ao passar, talvez tenha visto seu carro estacionado na pedreira, ou avistado um de vocês, que se não me engano estavam escondidos... A fim de afastá-los dali, voltou ao topo do rochedo, apeou do Ford e retornou por um dos inúmeros caminhos que cobrem a face do rochedo. É possível que o homem estivesse esperando no lugar em que ela deixou o carro, e a acompanhasse de volta à casa.

— E por que teria tirado o chapéu e a capa? — perguntou Jim.

— A capa e o chapéu eram claros. O vestido era preto. É provável que os tenha tirado a fim de não ser vista, e, tropeçando, os tenha deixado cair... Foram encontrados imediatamente abaixo de um dos atalhos.

Jim abanou a cabeça.

— O senhor se esquece, delegado, de que Lattimer ficou encarregado de vigiar a casa — disse ele.

— Lembrei-me disso — tornou o delegado. — Lattimer ficou em Great Pawsey, a alguma distância da praia, e só voltou à casa meia hora depois... pelo menos, é o que ele afirma. Havia tempo suficiente para a mulher voltar à casa com o companheiro. É uma explicação simples, mas, em casos desse gênero, a explicação simples é, via de regra, a verdadeira.

Apertou os lábios.

— Já ofereci meus pontos de vista a Sooper pelo telefone e, apesar da sua polidez, percebi que ele por pouco não explodiu. Disse que era ridículo sugerir que Hannah Shaw tivera tempo de descer pelo rochedo antes de Lattimer voltar à casa, e não pude fugir à impressão de que ele estava fazendo um esforço inusitado para conter-se.

"Quem foi o assassino? Quem era Big Foot, que ameaçara a infeliz mulher? Chegamos agora a um incidente que, segundo me parece, você testemunhou. Houve um jantar em casa do Sr. Cardew na véspera, e Sooper afirma ter visto um vagabundo, em pé, à sombra das moitas, do outro lado da janela; diz ele que o vagabundo estava armado e que, posteriormente, o ouviu cantar a tradução de Byron de uma conhecida canção espanhola: Ay de mi Alhama. Ora, a descrição do homem feita por Sooper", ajuntou o delegado, solene, "concorda exatamente com a do policial local, que viu um vagabundo se ocultando na face do rochedo; e o próprio Sooper fornece disso confirmação adicional. Após o crime, ouviu o homem cantando a mesmíssima canção cantada no bosque, em Barley Stack. O homem que procuramos é o vagabundo cantor. Você não concorda?"

— Essa é a opinião de Sooper? — perguntou Jim, cauteloso.

Pessoalmente, sentia-se inclinado a aceitar, sem discussão, a teoria do coronel.

— De Sooper? Não. Mas nem se poderia esperar que o ponto de vista de Sooper fosse idêntico ao da chefatura. Aparentemente, está seguindo outra pista. Ontem à noite, recebemos dele um pedido urgente para fazer indagações junto à polícia de Cambridge... queria saber onde dormiu um Sr. Elson na noite do crime. Mas isso, como digo, é característico de Sooper. Segundo ele, Elson conhecia a mulher assassinada; muito embora não se tenha dignado informar-me por que suspeita que um milionário americano haja matado uma governanta absolutamente inofensiva. Parece que mandou Lattimer fazer investigações, pois um dos meus policiais anunciou que o sargento passou por Londres, hoje cedo, a caminho de Cambridge. E, aparentemente, as investigações de Lattimer foram completamente insatisfatórias.

Jim não esperava que o sargento fosse procurá-lo em seu regresso, pois não havia nenhum motivo especial para que o fizesse. Ficou, portanto, surpreendido quando Lattimer entrou em sua sala, mais tarde, e supôs, a princípio, que o homem lá estivesse com um recado de Sooper.

— Ocorreu-me, Sr. Ferraby, que gostaria de saber que o álibi está provado.

— Eu nem sabia que ele era suspeito — sorriu Jim.

— Bem, de certo modo era — hesitou Lattimer.

— Quando Sooper enfia uma idéia na cabeça é difícil tirá-la de lá. Elson esteve desaparecido desde sábado à tarde até domingo à noite. Parece que armou uma bebedeira e passou a noite em Cambridge. O nome não está registrado em nenhum dos hotéis, mas descobri o guarda de uma garagem, que se lembra de haver recolhido o carro, e, provavelmente, Elson se aboletou em algum lugar.

— O álibi não é lá muito satisfatório, hein, sargento? — sugeriu Jim, e Lattimer empertigou-se.

— Creio que satisfará o superintendente — respondeu com frieza; em seguida, como que reconhecendo que o tom fora desnecessariamente áspero, prosseguiu:

— Desde sábado à noite não vejo uma cama, e estou arrasado. Sooper parece não precisar dormir. Saiu hoje de madrugada.

— Vocês não fizeram novas descobertas em Pawsey?

Lattimer abanou a cabeça.

— Não creio que haja mais nenhuma para fazer — respondeu. — Soube que encontramos a capa e o chapéu dela? Estavam pendurados num arbusto, numa das partes mais íngremes do rochedo. — O sargento sorriu palidamente. — Isso foi até um golpe para Sooper, que esperava encontrá-los em outra parte.

— Onde? — perguntou Jim, surpreso.

— Não sei exatamente. E é muito provável que ele também não saiba!

— Depois que o deixamos em Pawsey, quanto tempo se passou até que você voltou a vigiar a casa?

— Na noite do crime? — Lattimer refletiu. — Cerca de um quarto de hora. Sooper afirma que não havia tempo para Shaw voltar. Acho que havia. Muito tempo. Acredito também que ela tenha escorregado pelo rochedo abaixo, como aconteceu à Srta. Leigh, e que aí tenha perdido a capa e o chapéu! Mas não adianta apresentar teorias a Sooper: ele é realista! Quando lhe sugeri que o chalé talvez houvesse sido construído onde outrora se ergueu a casa de algum velho contrabandista, e que há lá, provavelmente, porões subterrâneos, ele me xingou mais do que me lembro ter sido xingado desde que o conheço. Não quer saber de teorias, e, naturalmente, está certo.

— Por que "naturalmente"?

Lattimer encarou-o de modo estranho: via-se-lhe nos olhos a sugestão de um sorriso.

— Porque Sooper sabe — redargüiu, secamente. — Ninguém sabe melhor do que Sooper como o assassinato foi cometido... nem por quê!

Antes que Jim pudesse recobrar-se da surpresa, ou fazer-lhe outra pergunta, Lattimer se fora.

 

O lar de Elfa Leigh

Elfa Leigh levara consigo, da casa da agradável quadra em Edwards Square, todas as coisas íntimas que partilhara com o pai. Haviam sido grandes amigos, a menina órfã de mãe e o homem sonhador, aparentemente indefeso, que ela chamava de pai; e quando recebera a lacônica notificação do Almirantado britânico, prefaciada pela mecânica expressão de pesar, de que o navio americano de transporte Lenglan soçobrara ao largo da costa sul da Irlanda, durante uma tempestade, e todos os seus tripulantes e passageiros haviam perecido, a notícia a deixara paralisada e descrente.

John Kenneth Leigh voltava de Washington, para onde fora chamado para uma conferência com seu chefe. Elemento de ligação entre os ministérios da Fazenda inglês e norte-americano, fora, em grande parte, responsável pela conclusão, por parte da Inglaterra, de certos acordos financeiros realizados entre os dois países. Por doze meses, Elfa estivera muito pouco com o pai, que parecia passar a vida viajando entre os dois países. Quando a desgraça se abateu sobre ela, viu-se a jovem na contingência de enfrentar uma nova vida, e fê-lo com louvável coragem. Abriu mão da casa de Edwards Square, mudou-se para o apartamento de três cômodos no último andar do edifício da Cubitt Street, 75, e pôs-se a reconstruir sua existência com os destroços da anterior.

Tinha parentes nos Estados Unidos, mas preferira continuar numa cidade quase santificada pelas lembranças do pai; e foi no minúsculo apartamento da Cubitt Street que recuperou parte do equilíbrio. Cobrira as paredes da bonita sala de estar com gravuras e aquarelas que o pai, conhecedor, reunira durante a vida; a velha cadeira de que ele gostava conservava o lugar de honra ao pé da janela; seu porta-cachimbos descansava sobre o consolo da lareira; no canto ficava o seu piano.

Elfa, praticamente, não tinha amigas e conhecia poucas pessoas do sexo oposto. Não estimulava visitas, mas Sooper se convertera numa pessoa privilegiada e, quando surgiu na tarde de segunda-feira, convidou-o para subir. O velho galgou lentamente os três lanços de escada, entrou na bonita saleta de estar, com o chapéu na mão e, no rosto, o sucedâneo de um sorriso, que tanto aterrorizava os não-iniciados.

— Estou ficando velho — observou, ao colocar o chapéu sobre o piano. — Ainda me lembro do tempo em que seria capaz de subir esta escada em seis pulos.

Ela não poderia adivinhar, pelos modos dele, se ele viera trazer-lhe notícias ou fazer novas indagações sobre o misterioso Big Foot. Talvez os gestos preliminares de Sooper, que pareciam tão faltos de objetivo e tão digressivos, fizessem parte do seu sistema de interrogatório, pensou ela, e não estava muito errada.

— Bonita sala, Srta. Leigh, e muito confortável. Se me convidasse para sentar, eu me sentaria, mas se me dissesse: "Minter, pode fumar", eu não me atreveria a fazê-lo... pelo menos com o tipo de fumo que uso.

— Pode sentar-se e fumar — riu-se ela. — As janelas estão escancaradas e aprecio o cheiro de quase todas as espécies de fumo. ,

— Existem algumas dúvidas sobre se isto é, realmente, fumo — disse Sooper, enchendo o cachimbo de um fumo tirado de uma antiga bolsa. — Há quem diga que sim e há quem diga que não. Eu chamo-lhe fumo... Toca piano, Srta. Leigh?

— Toco — respondeu ela, divertida.

— Ninguém poderá dizer que tem educação enquanto não souber tocar piano. Quase todas as pessoas sabem tocar gramofone. Já se refez daquela noite horrível?

Ela assentiu com a cabeça.

— Se eu tivesse ficado estendido no rochedo, debaixo de chuva, estaria morto — confessou Sooper. — A senhorita, como é moça, não teve nada, só reumatismo.

— Nem reumatismo tive — emendou Elfa, bem-humorada.

— Mas terá — voltou o pressago Sooper. — Já tem, mas só ficará sabendo, talvez, daqui a vinte anos.

Ele não se sentou, mas ficou andando pela sala, examinando os quadros.

— Bonitos quadros, não? Feitos a mão, Srta. Leigh? — E quando ela lhe respondeu, a rir, que tinham sido "feitos a mão", ele ajuntou: — Nunca se sabe. Já vi quadros feitos a máquina que pareciam tão bons quanto os feitos a mão... e até melhores. Aposto que a senhorita também sabe pintar.

E apontou para uma paisagem a aquarela.

— Não, isso foi pintado por um artista francês.

— Os franceses têm jeito para essas coisas — refletiu Sooper. — E é só mesmo uma questão de jeito, isso de pôr as cores certas nos lugares certos. Qualquer um seria capaz de fazê-lo se o ensinassem. A senhorita tem uma bela coleção de livros.

Apontou com o dedo os volumes que enchiam três longas prateleiras.

— Nada sobre antropologia? Não pegou a doença? Ou talvez psicologia? Não vejo um único livro sobre crimes.

— Não estou muito interessada em crimes — disse Elfa. — Estes livros eram de meu pai.

Ele tirou da estante um volume e pôs-se a folheá-lo lentamente. Depois que o recolocou no lugar, falou:

— Eu o conheci.

— Meu pai? — perguntou ela, rapidamente. Sooper fez uma inclinação afirmativa de cabeça.

— Sim; um dos empregados do escritório dele roubou algum dinheiro... andara jogando nos cavalos... e fui chamado. Pareceu-me um homem muito bom... Refiro-me a seu pai.

— Era o melhor homem do mundo — disse tranqüilamente a jovem, e Sooper inclinou a cabeça num gesto de aprovação.

— Assim é que gosto de ouvir os filhos falarem dos pais — disse ele. — Hoje em dia, fala-se demais no "velho", que não me agrada, e quando ouço um rapaz chamar ao pai "burro velho" alegro-me por não ter casado.

— O senhor, então, ê solteiro? — perguntou ela.

— Eu? Sim, senhora. Só tive um caso de amor em toda a minha vida, e não foi exatamente um caso de amor. Uma viúva com três filhos, mas era temperamental, como eu. Não há lugar na mesma casa para duas pessoas temperamentais; e logo haveria cinco, pois as crianças eram as mais temperamentais de todos... Costumavam tomar café na cama, o que é a coisa mais temperamental que conheço. O Sr. Cardew esteve hoje no escritório?

Ela abanou a cabeça. (

— Não, telefonou-me hoje cedo. Voltou a Barley Stack. Creio que já se recuperou do choque da morte da pobre Srta. Shaw, pois o criado me contou que ele estava trabalhando muito no escritório.

— Teorizando e deduzindo — disse Sooper, taciturno. — É o que ele está fazendo... teorizando e deduzindo! Fui visitá-lo hoje cedo antes de vir aqui esta manhã, e lá o encontrei, rodeado de livros sobre antropologia, sociologia, lógica e tudo o mais; e tinha um mapa do chalé, que media com réguas e compassos, e descobriu que há oito metros desde a cozinha até a porta da frente; e tinha livros de tabelas de marés... Mas não vi microscópio. Isso me desapontou um pouco. Também não vi tubos de ensaio. Talvez fosse buscá-los depois que saí. Eu trouxe comigo a planta do chalé, mas ele não precisará dela. Já tem as medidas, as marés e uma amostra da areia. Esta noite saberemos quem cometeu o crime.

A despeito da natureza sinistra do assunto, ela ria suavemente.

— O senhor não é muito adepto do método dedutivo, Sr. Minter?

— Chame-me Sooper — pediu o velho detetive. — A senhorita está enganada... Sou, sim; acredito na ciência. Não há ciência suficiente na Força Policial, é disso que carecemos. Ela comprou o chapéu na Casa Astor, na High Street, Kensington. Queria um chapéu daquele tipo, embora fosse do ano passado. Coisa estranha, uma mulher querer um chapéu que está fora de moda.

A transição das opiniões do detetive sobre dedução científica para o assunto mundano de roupas foi tão rápida e inesperada, que Elfa ficou perplexa.

— Refere-se à Srta. Shaw? Que espécie de chapéu era esse?

— Um chapelão amarelo de palha. Ela comprou-o no sábado, pouco antes de fechar-se a loja, e o chapéu não lhe servia. A balconista disse que não lhe servia. Deve ser honesta. Pouquíssimas balconistas diriam a uma freguesa que um chapéu não lhe serve... mas ela teimou em que era aquele o tipo que queria, e comprou-o. Pagou por ele duas libras, cinco xelins e seis pence, e levou-o numa sacola. Não contei isso a Cardew: uma notícia dessas seria capaz de enlouquecê-lo. Deduziria que ela comprou o chapéu para usá-lo na Europa, e teria medido Paris inteira com uma craveira antes que o demo esfregasse um olho.

Sooper voltara à estante de livros e dela tirava um livro depois do outro, folheando-os com o polegar e dirigindo ao conteúdo pouco mais que um olhar casual.

— Mais ovos e batatas? — perguntou, de repente.

— Quer dizer, em Edwards Square? Não, não soube mais do Sr. Bolderwood Lattimer.

— Não consigo compreender por que se chama Bolderwood! Pensei que só as pessoas chamadas Smith usassem mascotes. Gosta de flores, Srta. Leigh?

— Muito.

Sooper cocou o queixo.

— Quem não gosta? — continuou ele. — As flores me deixam mais temperamental do que qualquer outra coisa que conheço. Já viu um campo de botões-de-ouro?... Já reparou nas campainhas que parecem cintilar num mato escuro? Existe um trecho de poesia assim em algum lugar: "Um banco tão feio de musgo até que, certa manhã cinzenta, / Perpassa por ele um relâmpago azul e nascem violetas". Nunca me lembro desses dois versos sem que meus olhos se encham de lágrimas. E isso é temperamental. Tenho em casa um álbum cheio de poemas sobre flores... Rosas, violetas, primaveras e tudo o mais. É engraçado que ninguém tenha escrito um poema sobre lilases.

Ela considerou-o, desconfiada.

— Sr. Minter, o senhor está fazendo rodeios para chegar às flores deixadas em Edwards Square. Eu seria capaz de escrever um poema sobre lilases se soubesse escrever poemas sobre alguma coisa; são minhas flores favoritas.

— As minhas são as tulipas — murmurou Sooper. Ele sentou-se lentamente.

— Conheceu o Sr. Elson... Gosta dele? É americano também, não é?

— É — disse ela.

— Sabe ler... o suficiente; e escrever... quase. Tem uma secretária que se encarrega da correspondência, mas ele também soletra algumas palavras.

— Não me diga! — exclamou a jovem, surpresa.

— Pensei que não houvesse ninguém no mundo que não soubesse ler ou escrever.

— Ele, de certo modo, é um ninguém — disse Sooper.

Alguns minutos depois ela saiu da sala para fazer chá e, ao voltar, encontrou novamente o policial ao pé da estante.

— O senhor gosta muito de livros?

— Gosto de lê-los — confessou ele. — Mas isso de estudá-los é para mim tão gostoso quanto sarampo, catapora e todas as doenças notificáveis. "J. K. L."

— leu no rosto do livro. — Era seu pai, Srta. Leigh?

— Era, esse era o nome de meu pai... John Kenneth.

— Um bom homem, na minha opinião — voltou Sooper, reflexivamente. — Não pertencia à espécie de homens que fazem inimigos.

— Não tinha um único inimigo em todo o mundo

— disse ela. — Todos gostavam dele. Sooper fez um ruído compreensivo.

— Eis aí uma coisa que nunca se dirá de mim — observou. — Uma lista das pessoas que não gostam de mim encheria esta estante, Srta. Leigh, e ainda sobraria o suficiente para empapelar a sala. Tudo — ajuntou, modesto — devido à inveja e ao gênio... A inveja delas e o meu gênio. Tenha isso sempre em mente, Srta. Leigh: quando um sujeito é impopular, deve-o à inveja; e, se não acredita em mim, pergunte ao próprio sujeito. Ele o confessará.

— Tenho a certeza de que você não é tão impopular assim, Sooper — disse ela, enquanto servia o chá.

— Não sou, mas vou ser — anunciou Sooper sombriamente. — Preste atenção, Srta. Leigh, serei um dos homens mais impopulares da Força, e não demora.

 

Um jantarzinho

Ao despedir-se, Sooper contou à jovem que ia voltar ao posto, permitindo-se assim uma dessas inverdades perfeitamente justificáveis a seus próprios olhos. Passou um período incômodo na Yard, entrevistando seus superiores, mas a falta de comodidade foi sobretudo deles. No espaço de duas horas demoliu pelo menos vinte e duas teorias e hipóteses subsidiárias. E fê-lo com tamanha riqueza de comentários e ilustrações virulentas, que até o comissário-chefe suspirou aliviado quando a porta se fechou atrás dele. Saiu da Scotland Yard e dirigiu-se a certo cinema, não porque se sentisse tentado pelo programa mas porque, nesse cinema, não se acendiam as luzes entre um filme e outro, e Sooper dormia melhor no escuro. Durante duas horas permaneceu encolhido na cadeira, a cabeça sobre o peito, os braços cruzados, enquanto as terríveis aventuras de artistas populares e muito bem pagos vibravam e brilhavam diante da sua figura in-conspícua. Homens executavam proezas audazes; heróis galantes saltavam abismos pavorosos; donzelas belíssimas eram salvas de medonhos perigos; e Sooper continuava a dormir, até que um funcionário do cinema lhe bateu no ombro e pediu-lhe que tivesse a bondade de levantar-se para permitir a passagem de uma dama enxundiosa. Retemperado, ele se endereçou ao restaurante do cinema, bebeu em rápida sucessão três xícaras de café, comeu um grande pedaço de bolo in-digerível e dali saiu completamente novo.

Seu objetivo era Fregetti's, que, em matéria de exclusividade, nada ficava a dever ao Ritz-Carlton ou a qualquer outro estabelecimento, por mais magnífico que fosse. Fregetti's está situado num bairro fora de moda, pois fica na extremidade inferior da Portland Street, mas os epicuristas, de um modo geral, reconhecem que é o melhor restaurante de Londres.

Sooper escolheu um lugar e ficou esperando. Um carro depois do outro parava diante das vidraças e ali depositava sua carga bem vestida. Mas só às nove horas e quinze minutos um táxi diminuiu a marcha diante da porta e apearam os dois homens que Sooper estava esperando.

O primeiro era Elson: vestia smoking e conseguia parecer incongruente. Do táxi desceu, depois dele, um cavalheiro mais elegante, que usava suas roupas bem talhadas com maior naturalidade. Esperou enquanto Elson pagava o chofer e, a seguir, desapareceu atrás das portas de vidro do restaurante. Sooper grunhiu de satisfação.

— Espero que aprecie o seu jantar, Lattimer — disse ele. — Você parece muito esperto para um sujeito cansado!

Lattimer passou da entrada para a semi-obscuridade do restaurante. Além da fraca iluminação proporcionada por globos presos à cornija, a única luz na sala provinha das lâmpadas das mesas, que emprestavam ao salão uma estranha atmosfera de intimidade.

Para Elson, a quase escuridão era bem-vinda: ele detestava a luz quase tão cordialmente quanto detestava companhia, e dirigiu-se com passos rápidos, ainda que inseguros, à mesa no canto mais distante, que encomendara por telefone.

— Onde foi que você deixou aquele velho tonto? — resmungou, ao sentar-se, e alcançando o coquetel que já estava esperando.

— Sooper? Oh, está por aí em Londres — respondeu Lattimer, retirando um cigarro da cigarreira de ouro e acendendo-o. — Não precisa se preocupar com ele.

— Pois, se acha que me preocupo com ele, está muitíssimo enganado — respingou Elson. — Não, senhor, não tenho nenhum respeito pela polícia inglesa.

— Muito obrigado.

— Você não está pensando que eu o considero uma grande personagem, não é? — perguntou Elson em tom selvagem. — Onde está o garçom?

O garçom acabou aparecendo e, tendo-os servido, sumiu na escuridão.

— O que é que você quer agora? — perguntou Elson, depondo o garfo e recostando-se na cadeira.

— Quero mais quinhentos — replicou Lattimer, friamente.

— Isso, em dólares, não parece muita coisa — resmungou o outro —, mas em libras é um dinheirão! Já lhe dei cem há quinze dias: que fez com elas?

— Você me emprestou cem — corrigiu Lattimer, cuidadosamente —, e eu lhe dei um recibo. O que fiz com o dinheiro não importa. Agora quero quinhentas.

O rosto de Elson ficou escuro de raiva.

— Durante quanto tempo acha que vai me ordenhar? — perguntou. — Se eu procurasse aquele velho e lhe contasse...

— Mas não vai fazer isto — atalhou Lattimer mansamente. — E, para falar com franqueza, não sei por que está criando tanto problema. Convém-lhe manter boas relações comigo. Já o salvei de uma porção de encrencas, e estou disposto a continuar a ajudá-lo. Tenho suficiente influência para livrá-lo, praticamente, de qualquer enrascada, exceto crime de morte.

Elson estremeceu.

— Que negócio de crime de morte é esse? — perguntou, em voz alta.

Algumas pessoas, na mesa vizinha, voltaram a cabeça a fim de olhar para ele, e Elson prosseguiu, abaixando a voz:

— Acredito que você venha a ser útil num desses dias, e, se não for... Bem, seu capitão talvez não goste muito de ver os recibos que tenho de você. Vou dar-lhe as quinhentas libras, não porque você saiba alguma coisa contra mim, pois não sabe, mas porque, de certo modo, gosto de você. Não tenho nada que temer da polícia e nunca tive...

— Exceto em St.-Paul -— atalhou o outro, com um crispar dos lábios. — Você é procurado pela polícia de St.-Paul por assalto a mão armada. Cumpriu duas penas em penitenciárias estaduais por roubo e outros crimes e, se funcionar a lei da extradição, não será difícil prendê-lo a qualquer momento. Além disso — prosseguiu, sorrindo para o rosto carrancudo do homem —, não sei de nada contra você.

— Você é um chantagista — grunhiu Elson, entre os dentes.

— E você, um idiota — replicou Lattimer, com excelente disposição. — Ouça aqui, Elson, ou Alstein, ou seja lá qual for o seu nome, posso ser-lhe utilíssimo... Tenho a impressão de que o serei. E você deve lembrar-se de que não é o que sei contra você o que importa... o que importa é o que Sooper está pensando.

— E ele sabe da encrenca de St. Paul?

— Não importa que saiba ou não — foi a resposta fria. — Não se trata de crime que justifique a extradição...

— Como assim? — acudiu o pasmado milionário. — Mas você me disse...

— Eu lhe disse uma porção de coisas que não seriam aceitas no banco das testemunhas: mas agora estou lhe dizendo a verdade. Enquanto você permanecer na Inglaterra não poderá ser preso. E não precisa fazer essa cara feia, porque só hoje vim a saber disso. — Inclinou-se sobre a mesa e baixou a voz. — Elson, vai haver encrenca no caso de Hannah Shaw. Sooper mandou-me a Cambridge para verificar sua história, e ela não tem pés nem cabeça. Voltei dizendo haver encontrado a garagem em que você guardou o carro durante a noite... mas a verdade é que não encontrei a garagem. Você não esteve lá!

Elson remexeu-se, inquieto, na cadeira.

— E como vou saber onde estive? Não lhe contei que estava de fogo? Tenho a impressão de que estive perto de um colégio, mais nada.

Os olhos do Sargento Lattimer tinham-se cravado no homem contrafeito.

— Vamos, Elson — convidou, suavemente. — Você tem alguma coisa para contar... Desembuche, rapaz! i

O outro sacudiu a cabeça.

— Não tenho nada para desembuchar — rosnou. — Que aconteceu com você? Você sabe tudo... Por que pergunta?

— Quem matou Hannah Shaw?

As pálpebras de Elson entrefecharam-se até que seus olhos se converteram em simples fendas.

— E você não sabe nada a esse respeito? — escarneceu ele. — Não sabe onde ela esteve a tarde toda?

— E por que haveria de saber? — perguntou Lattimer, com ar despreocupado.

— Nunca se encontrou com Hannah Shaw no fim da azinhaga, depois de escurecer? E alguns dias, quando ela saía no carrinho, não se encontrava com ela e não davam longos passeios juntos? — perguntou Elson, observando-o atentamente. — Acho que o seu Sooper não sabe disso.

— Ele não sabe tudo — foi a resposta fria.

— Aposto que não! Parece-me que Hannah Shaw e você se conheciam muito bem; bem demais até para que você venha pedir-me informações. Ela me contou uma ou duas coisas a seu respeito que não soariam muito bem aos ouvidos de um juiz. Se chegarmos a um acerto de contas, Lat, você ficará com cara de bobo. Andou brincando com Hannah meses a fio. Sooper não sabe, Cardew não sabe. Andei lendo os jornais hoje cedo... Pelo menos minha secretária os leu para mim... E parece que, ao revistarem o quarto de Hannah, não encontraram dinheiro. Acontece que eu sei — prosseguiu, falando lentamente — que, quando desapareceu, Hannah possuía quatrocentos mil dólares. Não interessa onde os conseguiu... sei que os tinha. Onde está esse dinheiro?

Lattimer não respondeu.

— Você é um vigarista, Lat, como a maioria dos detetives cujas idéias vão além do seu pagamento. Não há nada que você não faça por dinheiro. Faz meses que você vinha tentando persuadir Hannah a participar de uma sociedade de araque. Disse a ela, há uma semana, que faria qualquer coisa para arranjar dez mil dólares. Isso me parece muito ruim.

— Mande vir outra garrafa de vinho — disse Lattimer — e mudemos de assunto.

 

Já passava de meia-noite quando o carro de Elson subiu cautelosamente o caminho que conduzia à casa e estacou diante dela. Elson desceu, cambaleando, dirigiu-se à porta e, após diversas tentativas fúteis, conseguiu abri-la. Entrou no vestíbulo, firmou-se, apoiado à parede, e fechou a porta antes de iniciar a caminhada errática, escada acima, agarrado ao corrimão. Conseguiu alcançar o sofá e adormeceu instantaneamente. Foi o colarinho apertado que o despertou, deixando-o num estado de semi-inconsciência. A cabeça girava-lhe dolorosamente e tinha as pernas tão fracas, que elas escassamente lhe sustentaram o peso do corpo quando ele, finalmente, conseguiu ficar de pé.

Sonolento ainda, lutou com o colarinho e, após uma infinidade de tentativas, arrebentou-o. Todas as luzes da sala estavam acesas e, de uma forma vaga e confusa, compreendeu que talvez dormisse melhor se as apagasse. Ao cruzar a sala com passos inseguros, arrancou o paletó, abriu a camisa e, encostado à parede, acionou o comutador e atirou os sapatos para longe.

A mudança para a claridade fantasmagórica da aurora deixou-o parcialmente sóbrio. Voltou ao sofá, serviu-se de uma dose de conhaque forte com soda e, engolindo-o de uma vez só, sentiu-se logo desperto.

A manhã estava quente: abeirou-se da janela, abriu o caixilho e, debruçando-se para fora, sorveu em largos haustos o suave ar da madrugada. Nesse momento, percebeu que, quase debaixo dele, uma figura se movia ao longo do canteiro de flores, inclinando-se de vez em quando para apanhar uma flor. Na mão esquerda já trazia um grande ramalhete.

Por um segundo, Elson pensou que os olhos o estivessem iludindo, pois o jardim ainda jazia amortalha-dona sombra da noite que passava. Nisso, ouviu o homem trautear uma canção.'

— Ei! — berrou. — O que é que você está fazendo aqui?

A figura relanceou os olhos à sua volta. Estava demasiado escuro para ver-lhe o rosto.

— O que é que você está fazendo aqui? — rugiu Elson, colérico, ao ver que o homem não respondia.

Enquanto ele falava, o invasor saltou sobre o canteiro de flores e disparou para a sombra do caminho.

— Eu o pego! — bradou Elson, desatinado de cólera.

E, então, da escuridão das árvores vieram as palavras da canção:

 

"O rei mouro cavalga para cima e para baixo

Pela real cidade de Granada.

Ay de mi Alhama!"

 

Durante algum tempo Elson ficou agarrado à borda da janela, rosto cinzento, olhos esbugalhados.

 

"Ay de mi Alhama!"

 

O refrão ia morrendo na distância, mas ele não o ouviu. Jazia feito um monte no chão, uma coisa suja, trêmula, a roufenhar blasfêmias e súplicas, a berrar de terror, pois ouvira uma voz saída do túmulo.

Mas, sob a própria sombra da casa, havia alguém que a canção galvanizara. Vigiando a extremidade da azinhaga, Sooper ouviu-a, vislumbrou momentaneamente o cantor, enquanto este passava célere, como uma sombra, pela estrada, e no instante seguinte sua motocicleta doida explodia como metralhadora, enquanto ele descia a azinhaga para interceptar o nômade noturno.

O vagabundo viu-o, tomou por um campo e mergulhou num emaranhado de moitas e matas, que formava o canto de uma propriedade vizinha. A máquina barulhenta de Sooper virou e ele desceu, chispando, pela estrada principal até chegar ao ângulo de um velho muro, exatamente no momento em que o vagabundo deixava seu abrigo.

O homem corria como o vento, segurando ainda na mão as flores que apanhara; e no instante em que Sooper o alcançou, virou-, fazendo um ângulo reto, saltou um fosso e desembestou por um prado. Sooper calculou depressa e continuou a correr com sua máquina, ao longo da estrada, a grande velocidade: em seguida, diminuiu a marcha para entrar pelo canto de uma estrada de carroças que conhecia, paralela ao prado que vira o homem atravessar. A manobra foi bem sucedida. Quando o vagabundo surgiu, cambaleante, na estrada, Sooper saltou da motocicleta, agarrou-o nos braços e, delicadamente, fê-lo deitar-se no chão.

— Firme, meu amigo! — disse Sooper.

O vagabundo ergueu os olhos com um estranho sorriso no rosto barbudo.

— Receio ter-lhe dado muito trabalho — disse, fracamente.

A voz tinha um leve sotaque americano, mas Sooper já estava preparado para ouvi-la.

— Trabalho nenhum — disse jovialmente. — Pode ficar em pé?

O vagabundo ergueu-se, a tremer.

— Acho que é melhor vir comigo ao posto e comer qualquer coisa — alvitrou Sooper, com delicadeza, e o outro obedeceu sem opor objeções.

Enquanto caminhavam devagar pela estrada, rumo à cidade, Sooper expressou a satisfação interior com a garrulice inevitável.

— Uma semana atrás eu o teria tratado com rudeza, confesso. Tinha a impressão de que era um homem muito mau.

— Não sou um homem mau — disse o outro, simplesmente.

— Aposto que não — concordou Sooper. — Não, senhor! Andei teorizando e deduzindo muita coisa a seu respeito e acho que acertei. Sei o seu nome.

O homem sorriu.

— Tenho tantos nomes! Eu gostaria de saber o verdadeiro — disse ele.

— Pois vou dizer-lhe o verdadeiro — replicou Sooper. — Através da lógica, da dedução e da teoria, cheguei à conclusão de que seu nome é John Kenneth Leigh, do Ministério da Fazenda dos Estados Unidos!

 

A sensação de Sooper

O Sr. Gordon Cardew depôs os compassos, tirou os óculos e olhou boquiaberto para o visitante. Tendo produzido sua sensação, Sooper fez tudo, exceto ronronar.

— Mas pareceu-me, pelo que me disse a moça, que o pai dela estava morto.

— Está vivo — corrigiu Sooper, desnecessariamente —, internado numa casa de saúde.

Cardew ergueu os olhos da planta do chalé para o detetive, como se não tivesse plena certeza de que a notícia fosse bastante surpreendente para justificar a interrupção do seu trabalho.

— Alegro-me muito — disse, por fim —, alegro-me muitíssimo. Já ouvi falar em casos dessa natureza, mas nunca imaginei que um deles viria a ocorrer dentro da minha experiência pessoal. Isso, naturalmente, explica por que a Srta. Leigh não apareceu quando lhe telegrafei.

E, nesse ponto, o Sr. Cardew já estava preparado para pôr fim ao assunto, pois, embora o advento de um pai perdido pudesse ter algum interesse para Sooper como policial, não o intrigara senão levemente, quando:

— Não há dúvida de que ele era o sujeito que cantava na noite do assassinato — contou Sooper. — Acho que morava numa daquelas cavernas, lá em cima, e tinha uma escada de cordas que deixava descida à noite quando saía, e recolhia de manhã, quando voltava. Ele, praticamente, me contou isso.

— O vagabundo! — ofegou Cardew. — O homem que estava no jardim na noite em que você jantou aqui?

Sooper fez que sim com a cabeça.

— Mas um vagabundo?... o pai da Srta. Leigh! É incrível! Que diabo estaria fazendo?... Um vagabundo!

O homem estava chocadíssimo.

— Exatamente o que fazem os vagabundos — respondeu Sooper; — mandriando por aí, recolhendo coisas. Deve ter-se lembrado, de algum modo estranho, do lugar onde viveu; e creio que tinha a idéia louca de que a filha devia estar passando fome. Costumava reunir coisas, como ovos e batatas, e deixá-las à porta dela. Às vezes deixava flores.

— Ele não é... não é muito certo da cabeça? — perguntou o Sr. Cardew, ansioso. — Eu não gostaria de pensar que fosse assim. Esses desarranjos mentais são, freqüentemente, hereditários.

— Ele é certo da cabeça e, ao mesmo tempo, não o é — foi a explicação pouco satisfatória que Sooper ofereceu. — O médico acha que há uma pressão, um pedaço de osso... Uma cicatriz de dez centímetros na cabeça. Alguém lhe deu uma pancada, que ele não esquecerá tão cedo.

O advogado juntou as pontas dos dedos e ergueu os olhos para o teto.

— Isso talvez seja conseqüência do naufrágio. Eu já soube de casos assim. Mas, nessas circunstâncias, não posso compreender como veio a tornar-se vagabundo. Deve ter sido um choque sumamente agradável para a Srta. Leigh descobrir que o pai ainda está vivo. Espero que você lhe tenha dado a notícia delicadamente. Muito embora a alegria não mate.

— Sim, senhor, dei a notícia com muito tato — replicou Sooper com um aceno afirmativo da cabeça. — Telefonei a ela e disse-lhe que não achava que seu pai estivesse tão morto quanto ela o supunha. E isso, de certo modo, preparou-a para a notícia.

O Sr. Cardew comprimiu os lábios com expressão de dúvida. Não se sentia realmente interessado pela notável recuperação, exceto na medida em que a presença de Leigh em Pawsey, na noite do crime, trouxesse para o caso um novo elemento.

— Se não me engano, você tinha uma teoria segundo a qual esse homem estava ligado ao crime — disse ele. — Na verdade, se não me falha a memória, você imaginou que ele fosse Big Foot, não?

— Nunca imaginei uma coisa dessas! — rosnou Sooper, que não levava nada tão a mal quanto verificar que lhe atribuíam opiniões que ele já não sustentava. — Nunca pensei uma coisa dessas. O senhor está teorizando, Sr. Cardew. — Abaixou a vista para a planta, onde se entrecruzava um sem-número de linhas retas, feitas a lápis. — Já descobriu tudo? — perguntou, em tom sardônico. — O crime foi cometido por um canhoteiro?

Cardew sorriu com indulgência.

— Não fiz nada tão inteligente assim — replicou. — Mas fiquei sabendo de um detalhe muito importante do topógrafo de Pawsey. Ele me disse que o bangalô foi construído onde outrora existiu um velho chalé e, sem dúvida, existem porões em algum lugar debaixo do chão da cozinha...

Sooper suspirou.

— Pelo amor de Deus! — disse em voz baixa. — Acaso não esquecerão os tais porões? E como foi que o sujeito escapou... através de uma frincha do assoalho? Ou, quem sabe, por um buraco de minhoca? E não há nada aí a respeito de molas secretas... talvez a casa inteira gire como a ratoeira na barbearia de Sweeney Todd.

— De qualquer maneira, estou convencido de que não haverá prejuízo algum em fazermos uma escavação — afirmou o Sr. Cardew. — Estou perfeitamente disposto a autorizá-la e, já que a casa me pertence, não vejo o que se possa objetar... Pagarei o serviço.

— O senhor conhece meu sargento? — interrompeu Sooper, à sua maneira abrupta.

— Lattimer? Sim, conheço-o. Esteve aqui em diversas ocasiões — replicou Cardew, surpreso.

— E ele tentou, alguma vez, mostrar-se amistoso? O Sr. Cardew hesitou.

— Não — retrucou. E, logo: — Acho que não devia falar do homem ao seu superior, mas...

— Mas o quê?

— Bem, certa vez, ele me deu a entender, muito claramente, que gostaria de tomar um dinheirinho emprestado.

— Oh, oh! — resmungou Sooper. — Foi, é? E o senhor emprestou?

— Não, não emprestei. Na realidade fiquei até aborrecido. Não se espera de um policial responsável que faça uma sugestão dessa natureza. Não lhe contei isso antes, superintendente, porque, como eu disse, não desejo meter o homem em encrencas.

Sooper remoeu a informação; a seguir, tornou a apontar para a planta.

— Já tem todas as suas teorias convenientemente firmadas? — perguntou, e Cardew desatou numa gargalhada.

— Suas zombarias não me afetam, superintendente — disse ele, bem-humorado —, pois compreendo que não há maldade nelas. Mas se fosse um homem dado a apostas, o que não sou, seria capaz de apostar que estou mais próximo da verdade acerca desse assassinato do que você.

Acompanhou Sooper até a porta da frente e, mais uma vez, o velho policial saiu pela tangente.

— O Sr. Elson está doente. Teve um acesso de qualquer coisa. A mim me parece bebedeira. Aquele sujeito é a esponja das esponjas. Perguntei ao médico hoje cedo se era delirium tremens, mas ele não deu a menor bola: esses médicos são mais fechados do que ostras.

— Onde está o seu vagabundo? — perguntou o Sr. Cardew, quando se despediam.

— O Sr. John Kenneth Leigh, do Ministério da Fazenda dos Estados Unidos — respondeu Sooper, cauteloso —, está numa casa de saúde, se tratando. É para isso que servem as casas de saúde.

— E a filha?

— A Srta. Elfa Henrietta Leigh... está com ele, procurando fazê-lo falar acerca da sua experiência, mas a única coisa que ele faz é cantar aquela canção absurda sobre o rei da Espanha que cavalga para cima e para baixo. "Oh querida Alhambra", ou coisa que o valha. Talvez seja uma linda canção, mas não me comove.

Aparentemente, porém, era a sua canção favorita... Eu a vi sobre o piano dela quando fui visitá-la. E vi também livros de poesia espanhola. Foi isso o que me fez começar a deduzir. Se o senhor tiver algumas idéias formidáveis sobre esse crime do bangalô, Sr. Cardew, já sabe o número do meu telefone... Eu estarei interessado. A polícia de Londres me informou que não tem nenhuma pista nova no caso do assalto ao seu escritório.

— O que não me surpreende — disse o Sr. Cardew, em tom seco. — No entanto, a conexão entre o assassinato e a queima dos documentos da pobre Hannah deve ser perfeitamente clara até para a Scotland Yard.

— Nada é claro na Scotland Yard — afirmou Sooper, maldoso.

O Sr. Leigh fora transferido para uma casa de saúde em Weymouth Street, Londres, e Sooper achou tempo, naquela mesma manhã, um pouco mais tarde, de fazer uma visita e indagar do seu paciente. A jovem, que desceu à sala de recepção, sofrerá uma transformação sutil. Havia em suas faces um novo colorido, um novo brilho em seus olhos.

— Ele agora está dormindo — disse ela.

— Ele a reconhece? — perguntou Sooper. Ela meneou a cabeça.

— Não — replicou. — Devo ter mudado muito nos últimos seis anos. Perguntou-me se eu conhecia a sua menininha. — Tremeram-lhe os lábios. — Se eu bancar a boba e me puser a chorar, sacuda-me, Sooper. Não é maravilhoso... tornar a encontrá-lo?

— Eu o encontrei — disse Sooper.

Ela tomou nas suas a mão áspera do velho e apertou-a.

— É claro que sim — murmurou, suavemente. — Ninguém mais seria capaz de ligar a canção a papai. E a coisa estranha é que o ouvi cantar na noite que passei deitada no rochedo. Mas supus então que estivesse sonhando.

— Não sabia do vagabundo que cantava canções espanholas?

Ela tornou a menear a cabeça.

— Não — retrucou. — Se soubesse, teria tido a certeza de que era papai, muito embora o acreditasse morto. Pobrezinho! — ajuntou, com ternura. — Era ele quem deixava comida à porta em Edwards Square. Deve ter-se lembrado de alguma coisa do passado. O que não posso compreender é por que nunca chegou até a casa nem se deu a conhecer. Ele andou escondido durante todos esses anos. Por quê?

O sorriso de Sooper foi a resposta.

— É exatamente sobre isso que venho teorizando há muito tempo — retrucou.

O grande cirurgião morava a umas poucas casas da casa de saúde. Sooper, por sua própria conta, mandara chamá-lo para fazer um exame superficial. Teve a sorte de encontrá-lo em casa, e a notícia que recebeu foi positivamente alentadora.

— Eu não diria que ele está louco, conquanto obviamente não seja responsável por seus atos. Todos os sintomas indicam uma pressão qualquer e existe a possibilidade de que, aliviada a pressão, o Sr. Leigh volte a ser normal. Isso não é absolutamente certo, mas a operação justifica-se. Recebi a visita de um funcionário da embaixada americana, e não se olhará a despesas.

— E quando vai operar? — perguntou Sooper. O grande cirurgião abanou a cabeça.

— Isso não lhe posso dizer. No momento, o homem não está em condições de suportar o choque de uma grande operação. Precisamos devolver-lhe a vitalidade.

— Faça-o depressa, doutor — pediu Sooper; — quero este caso concluído antes das férias grandes... Haverá um período de sessões em Old Bailley daqui a seis semanas: eu talvez consiga resolver tudo em tempo.

Tirou um caderninho de apontamentos do bolso e consultou-o.

— Sim, teríamos o julgamento terminado em junho, e eles estariam enforcados em julho, antes das minhas férias... Não gosto de sair de férias sem ver o meu homem convenientemente morto. Com esses tribunais de apelação e essas alegações de insanidade e volição inconsciente, nunca se tem certeza enquanto não se vê o homem no patíbulo.

Ele deixou o médico bestificado, sem saber se o julgava bêbedo ou vítima de uma insolação.

Sooper não precisou ser conduzido à presença do sargento de plantão no posto policial de Marylebone Lane. Conseguiu uma entrevista com o policial em apreço pelo processo simples de entrar-lhe na sala e fechar a porta atrás de si.

— Quero alguém vigiando dia e noite a casa de Weymouth Street, 59 — declarou. — Há ali um membro da embaixada americana, chamado Leigh, e aqui está uma lista das pessoas que não podem vê-lo.

Colocou o papel sobre a mesa do policial.

— Eu disse à enfermeira-chefe que ele só pode comer o que vier da cozinha; nada de doces, chocolates, uvas ou quaisquer outros vegetais enviados por amigos carinhosos e generosos. Só quero que o seu homem não deixe entrar ninguém na casa depois do anoitecer.

Em seguida, passou a explicar detalhadamente a importância e a seriedade da incumbência que lhe era confiada. A maioria dos inspetores de divisão teria levado a mal a intrusão de um "estranho" de outra divisão e teria tido um princípio de apoplexia diante do seu tom peremptório. Mas Sooper era Sooper e ele saiu para o sol que inundava Marylebone Lane certo de que suas instruções seriam executadas ao pé da letra.

Concluído o seu trabalho, pôde dar-se ao luxo de uma visita amistosa a Jim Ferraby; e tal era a sua extraordinária memória dos hábitos e características dos amigos, que chegou ao mesmo tempo que o objeto de sua busca à porta do clube de Jim.

Este quase caiu sobre ele na ansiedade por obter notícias.

— Estive tentando comunicar-me com você toda a manhã — declarou. — Elfa Leigh telefonou-me para dar a notícia maravilhosa e, depois disso, não consegui mais entrar em contato com ela. O vagabundo é pai dela? Não parece possível.

— Nenhuma das coisas que descubro parece possível — disse Sooper, com elegância. — Achei que devia vir visitá-lo; os restaurantes são muito caros em Londres e a comida aqui é boa.

Só depois do almoço, quando já estavam sentados diante das xícaras de café no salão de fumar, Sooper revelou o que tinha em mente.

— Aquela canção espanhola não significou nada para mim — disse ele —, embora me indicasse que o vagabundo pertencia a uma espécie diferente dos vagabundos comuns. Por isso comecei a seguir-lhe a pista, colhi informações no país inteiro, através da polícia local, e descobri que o tal vagabundo cantor era muito conhecido... Estivera preso durante uma semana em Canterbury, por vadiagem... Admira que o médico da prisão não tivesse descoberto que ele tinha uma aduela de menos. Mas foi a notícia que o senhor me deu domingo, a respeito dos ovos e das batatas deixados à porta da velha casa da Srta. Leigh, que me despertou plenamente o interesse. Na minha opinião, aquilo só poderia significar uma coisa: alguém, que gostava muito da Srta. Leigh, mas não sabia que ela saíra da casa, andava levando os tais presentinhos. Ou seja, alguém que tivesse a idéia maluca de que ela estava passando fome; ora, a única pessoa capaz de pensar uma coisa dessas seria o pai. Por isso mesmo, fui visitar a moça e bastou uma pequena e simples teorização para ligar o vagabundo aos fatos. Os médicos acreditam que uma operação possa restituir-lhe o juízo, e depois saberemos muita coisa sobre aventuras românticas com que o senhor nem sequer sonhou.

— Tais como...? — perguntou Jim, em tom sugestivo.

— Lembra-se do sujeito de que lhe falei... Brixton, o vereador municipal?

Jim assentiu com a cabeça.

— Um sujeito fechado, mesquinho.

— Que é que tem ele? — voltou Jim.

— Nada — replicou Sooper em tom casual.,— Eu só queria saber se o senhor se lembrava de que eu lhe mencionara o nome.

— Que é que ele tem com o vagabundo?

— Muita coisa — volveu Sooper —, e com o assassinato. Ouça o que lhe digo: aquele sujeito, Sir Qualquer Coisa Brixton, ainda será uma testemunha interessantíssima.

Tomou do seu canhenho, colocou-o sobre a mesinha onde fora depositado o café e, vasculhando suas vastas profundezas, exibiu um envelope dobrado.

— Lembra-se disso?

Jim fez que sim com a cabeça. Era o envelope encontrado no chão da cozinha, na noite do crime.

— Apenas duas pessoas sabem disto — disse ele —, o senhor e a moça. Nem Lattimer sabe. O homem que escreveu a carta que estava dentro do envelope foi o homem que matou Hannah Shaw. Isto é certo. Ele pode ter descido pela chaminé, pode ter vindo das profundezas subterrâneas da terra, de porões secretos ou de outros lugares extraordinários; pode ter pulado pela porta da frente ou pode ter pulado pela janela; mas o homem que datilografou isto — e bateu com os dedos no envelope, de maneira impressionante — puxou o gatilho que matou a infeliz mulher. Aliás, talvez não fosse tão infeliz quanto julgam certas pessoas. Pessoalmente, tenho a impressão de que ela escapou disso.

— Escapou do quê? — perguntou o atônito Jim. Sooper agitou a mão num gesto amplo.

— De tudo — exclamou. — Se o senhor está pensando em mandar vir um licor para mim, prefiro um velho conhaque... Não gosto desses troços com açúcar.

Deu a Jim o endereço da casa de saúde e, retirando a motocicleta da garagem da Scotland Yard, onde ela fora causa dê assombro para muitos jovens policiais, regressou, entre explosões, ao seu posto.

Lattimer não estava lá. Mandara-o, de manhãzinha, a Pawsey a fim de fazer indagações. O inquérito judicial seria no dia seguinte. Sooper tinha seu caso para preparar, e não era fácil desenredar as provas que podia apresentar, numa sessão pública, das que, no interesse da justiça, lhe convinha ocultar.

De tempos a tempos, erguia a cabeça, depunha a pena e fazia uma série de malévolas reflexões, entre as quais a mais freqüente era a lembrança de que o Sr. Cardew teria de ser arrancado ao seu trabalho de investigação criminal e esperar, impaciente, num tribunalzinho de instrução criminal abafado.

Lattimer voltou ao anoitecer e referiu o resultado de suas investigações.

— Segui o caminho do campo, ao sul de Pawsey, por uns cinco quilômetros — disse ele. — Seria impossível a um automóvel transitar por aquele caminho. A pista é estreita e há duas cercas, pelas quais só se passa por um torniquete. O caminho vai desembocar na estrada de Londres a Lews, como o senhor sugeriu.

— Como eu sabia — emendou Sooper. — Um automóvel não poderia passar por ali, não é? Eu teria ficado desapontado se pudesse.

Lattimer arregalou os olhos.

— Ué, imaginei que o senhor esperasse...

— Eu teria ficado muito desapontado se um automóvel pudesse passar por aquele caminho — reiterou Sooper, com satisfação. E ajuntou, quando Lattimer se voltou para sair: — Disseram-me que o tal Elson está melhor.

— Pois eu nem sabia que ele estava mal — confessou Lattimer, indiferente.

— Não sei se delirium tremens é doença ou se é apenas experiência, mas ele está melhor — volveu Sooper. — Você poderá aparecer lá amanhã de manhã e fazer algumas perguntas carinhosas. Eu lhe mandaria flores, mas isso me parece prematuro. E, Lattimer, quero-o amanhã no tribunal.

— Sim, senhor.

Ao lado do posto policial havia um chalezinho, que era a residência de Sooper. Possuía um microscópico jardim, dois dormitórios e uma sala de estar, tudo no mesmo piso, ao passo que nos fundos da casa se estendia um terreninho, onde suas inestimáveis galinhas Rhode Island Red viviam às expensas da fartura dos vizinhos, pois, incursionistas crônicas, raro voltavam para casa senão para dormir. Entretanto, tão grande era a magia do nome de Sooper, que poucas queixas se ouviam, muito embora suas piratas de penas devastassem milharais e jardins para subsistir. Outros saqueadores, contudo, não respeitavam Sooper nem as galinhas. Da capoeira que havia no topo do morro, desciam, à noite, formas pardas e furtivas — Sooper descobriu o caminho que seguiam as raposas e armou uma espécie de espingarda de espera, com desastrosas conseqüências para a caça local. Era uma boa espingarda de espera, feita em casa, mas boa.

Já estava escuro quando Sooper saiu rumo ao galpãozinho onde guardava a motocicleta. Decidira apertar alguns parafusos e limpar um carburador, e sua ocasião predileta para fazer consertos era uma hora qualquer depois da meia-noite.

Conquanto sua vista fosse excelente, orientava-se invariavelmente pelo singelo processo de erguer a mão e percorrer com os dedos o fio suspenso que ligava a casa ao galpão. Sooper não era muito bom eletricista e instalara o sistema de iluminação de forma um tanto primitiva.

Ao erguer a mão, descobriu, surpreso, que o fio se fora. Inclinando-se, pôs-se a tatear e descobriu-o jogado no chão. Nada tinha de notável um fio partido a não ser uma circunstância: quando Sooper o vira à luz do sol ele estava bem esticado, e não havia maneira pela qual a ligação pudesse ter sido destruída.

Virou-se bruscamente, voltou para casa carregando a ponta solta e desligou a tomada através da qual passava a corrente. À luz de uma lâmpada de mesa, examinou o fio. Fora cortado: distinguiu as marcas indisfarçáveis da pressão de um alicate.

— Santo Deus! — murmurou.

Se havia alguma coisa certa era que nenhum brincalhão contumaz se atreveria a armar-lhe uma peça. O fio fora cortado por alguma razão boa o suficiente, e o objetivo do corte não lhe poderia ser favorável.

Dirigindo-se ao quarto, puxou uma caixa de baixo da cama e dela retirou um grande e pesado revólver Colt, carregou-o e, após uma busca, descobriu uma lanterna de polícia. Assim armado, voltou ao quintal e, com passos de gato, aproximou-se em silêncio do galpão. Nenhum som rompia a quietude da noite, exceto o distante e sonolento cacarejar de uma galinha. Reconheceu mentalmente a posição. O perigo estava no galpão.

Sooper instalara a luz elétrica no galpão, mas se esquecera do comutador e só se lembrara dele depois de concluído o trabalho. Em conseqüência disso, pusera-o do lado de fora, protegido das intempéries pelos beirais do telhado. A porta nunca se fechava. Era muito simples não só entrar no quintal mas também no galpão.

Caminhou, cauteloso, iluminando o caminho com a lanterna, e sua mão tocou o trinco da porta. Conservando-se de lado, escancarou-a de repente. Ouviu-se uma explosão ensurdecedora, seguida do estardalhar de vidros quebrados. Quando a fumaça se dissipou,'Sooper espiou pelo vão da porta.

Conhecia a espingarda de espera: era a sua. Mas não a vira no chão do galpão, com o cano apontado para a entrada, nem amarrara o gatilho, com um cordão, à porta. Quando vira a espingarda pela última vez, ela se achava a algumas centenas de jardas de distância, astutamente escondida entre duas moitas.

Ouviu alguém chamar e voltou para casa, a fim de receber Lattimer.

— Alô! — disse ele. — Pensei que você estivesse na cama!

— Ouvi uma explosão: que aconteceu? Foi perto demais para ser a espingarda de espera. — Lattimer parecia inusitadamente agitado.

— Entre — convidou Sooper. — Eis aqui uma oportunidade para a nova escola de detetives calcular causas e efeitos.

— Muitos estragos? — perguntou Lattimer, sem fôlego.

— Três vidraças quebradas, vinte e cinco galinhas de alta classe despertadas do seu sono de beleza, mas só.

Uma nuvem de fumaça ainda pairava no ar pesado e o cheiro tão desagradável da pólvora queimada invadia o chalé, Lattimer seguiu o chefe ao galpão e inspecionou a espingarda de espera, uma engenhoca primitiva, que parecia ainda mais tosca graças ao trabalho de amador de Sooper.

— O senhor deixou a espingarda no galpão? — perguntou Lattimer.

Sooper emitiu um ruído impaciente.

— É claro que deixei — voltou, sarcástico —, e tentei suicidar-me. É uma das minhas manias.

Considerou a arma fumarenta com olhos de coruja e, a seguir, abanou a cabeça.

— Puxa! Ele está ficando com medo! — comentou.

— Quem? — apressou-se a perguntar Lattimer.

— O sujeito que me armou esta armadilha. Com um medo danado. Garanto que é o cara mais apavorado num raio de muitos quilômetros. Sabia que eu acenderia a luz antes de abrir a porta e, supondo que eu tivesse tempo de ver a espingarda, cortou o fio. É um sujeito muito esperto esse Big Foot. Pois agora vou lhe dizer uma coisa, sargento: se o tal Elson ainda estivesse de cama, isto não teria acontecido. Não, senhor. Se o tivessem metido numa camisa-de-força e amarrado de modo que não pudesse andar por aí, esta espingarda de espera estaria onde sempre esteve.

— Acha que foi Elson quem fez isso?

— Não, senhor, não acho — voltou Sooper —, e nunca disse isso. Não comece a pôr na minha boca palavras que não proferi. Apenas observei que, se aquele sujeito houvesse sido trancado numa cela, eu não me veria, amanhã, obrigado a pagar bom dinheiro por três vidraças novas. Pensei que você estivesse deitado, sargento! — acrescentou.

— Não, já não me sinto tão cansado. Eu estava passeando pela estrada, quando ouvi o tiro. Esse caso está me dando nos nervos.

— Você é temperamental — observou Sooper. Voltou vagarosamente para casa, acompanhado de perto pelo sargento.

— Vá dormir, meu filho. Você assim perderá todas as suas bonitas cores.

Esperou que Lattimer voltasse ao seu alojamento e, em seguida, tornou ao quintal com a lanterna e encetou uma busca sistemática. Havia uma dúzia de maneiras pela qual o visitante de intenções assassinas poderia ter entrado ali, mas não encontrou vestígios do inimigo. O solo estava seco e duro. O invasor não deixara rastros.

— Eu podia ter arranjado um daqueles conhecidos cães de caça — disse Sooper na manhã seguinte, enquanto se barbeava com uma navalha. — A maioria dos detetives usa sabujos. Eu mesmo seria capaz de arrumar um para mim, se soubesse distinguir um cachorro do outro.

— O senhor — perguntou Lattimer — acha que alguém pôs ali a espingarda com a intenção de matá-lo? Pode ter sido uma brincadeira.

— Não é preciso tanta coisa para me fazer rir — redargüiu Sooper, careteando enquanto a navalha lhe raspava o queixo —, mas essa espécie de brincadeira não me arrancaria um único sorriso, nem daqui a um milhão de anos. Ou dez milhões — aduziu.

— Onde foi que o senhor viu a espingarda pela última vez?

— Na extremidade mais afastada do campo, perto das moitas de espinheiros. Ali a coloquei para desestimular a caça à raposa. Imagine se eu tivesse aberto a porta sem saber, que diriam as pessoas? Pois diriam: "Aquele velho tonto voltou a pôr a espingarda no galpão e esqueceu-se de que ela estava lá". Veredicto de morte acidental, com um voto de consolação para a viúva, que, como não sou casado, teria sido supérfluo. Não compreendo onde os júris vão buscar essas coisas sentimentais. Teriam aparecido umas três linhas, em média, nos jornais, talvez quatro. E, possivelmente, uma ou duas observações imprudentes dos conhecidos. Lattimer, quando eu morrer nas mãos de celerados e arruaceiros, quero uma coluna, com manchete. Sei a que faço jus. Quando penso no cão imundo que botou a espingarda no galpão, fico irritado, furioso. A explosão poderia ter causado danos consideráveis à minha máquina. Aliás, a pintura do guidão está toda enrugada e cheia de bolhas. Terei de dar uma capa nova a Pirilampo... Que lhe parece um laranja bem vivo, sargento?

— Acabrunhante — disse Lattimer.

Sooper pôs-se a assentar o fio da navalha com uma expressão distante nos olhos.

— Elson melhorou. Estará caminhando pela sua propriedade hoje à noite. Telefonei ao Departamento da Guerra para.mandar-me um tanque, ou melhor, não telefonei mas estou pensando em fazê-lo.

Jim Ferraby, que era uma das testemunhas do inquérito judicial, combinara passar de automóvel para apanhar Sooper e Lattimer, quando fosse a Pawsey. Encontrou o velho numa disposição de espírito muito agradável, até chistosa, e não teria podido adivinhar, pelos seus modos, que ele escapara da morte por um fio nas primeiras horas da manhã. Enquanto esperava, lá fora, que Sooper proferisse um dos seus sermões da undécima hora ao policial de plantão no posto, viu Cardew passar. O advogado freou o carro.

— Não, muito obrigado, combinei levar Sooper a Pawsey — explicou Jim, em resposta ao convite.

Cardew sorriu torvamente.

— Espero ter o prazer de trazê-lo de volta. Acredito poder dar-lhe uma explicação positiva da maneira pela qual o assassinato foi cometido. A idéia me ocorreu durante a noite, enquanto eu estava meio adormecido, e, quanto mais penso nela, tanto mais certo me sinto de haver encontrado a verdadeira solução para o que parecia um mistério inexplicável. O que é mais — prosseguiu, com imponência —, encontrei um caso quase paralelo... o assassinato de Starkie, cometido em 1769, referido com pormenores num dos velhos almanaques. Parece que um homem chamado Starkie...

Mas Jim não tinha tempo nem vontade de ouvir as minúcias de um antigo crime de morte e desculpou-se, quando Sooper assomou à porta do posto, calçando a segunda mão de um par de luvas tão manifestamente desirmanadas que Jim lhes atribuiu o estranho efeito à distração do superintendente.

— Uma não está pior do que a outra — disse Sooper, ao instalar-se ao lado de Jim e esticar voluptuosamente as pernas. — Vivo perdendo a luva da mão esquerda... É estranho que ninguém tenha pensado em vender luvas separadas: faria uma fortuna com isso. Lá vai o velho Cardew numa nuvem de poeira com o espírito cheio de hipóteses e conjecturas! Ele possui o que se denomina um espírito forense... Em outras palavras, não enxerga direito.

— Ele tem uma teoria para expor a você — disse Jim, enquanto o carro, aumentando de velocidade, alcançava rapidamente o veículo mais lento, que ia à frente.

— Não me admira que tenha — disse Sooper, confortavelmente.

— Ocorreu-lhe no meio da noite.

— Envergonhada demais para mostrar-se à luz do dia — voltou Sooper. — Puxa! Eu não quisera ter o espírito daquele homem nem por dez milhões de libras! Está cheio de estática... um termo — explicou — que aprendi estudando rádio. Não, senhor, já posso dizer antecipadamente qual será a sua teoria... Ele não terá a coragem de impingir-me a história do porão secreto. Na sua opinião, Hannah Shaw foi assassinada pela Srta. Leigh.

— O quê! — quase berrou Jim, fazendo, no auge da agitação, com que o carro derrapasse para a outra faixa da estrada.

— Perdoe-me se falo muito alto — tornou Sooper, que não denotava desejo algum de falar alto. — Mas meus nervos já não são o que costumavam ser. Aposto porém, que é essa a sua teoria! Que a Srta. Leigh se encontrou com Hannah Shaw... esta não lhe mandou um telegrama?... Que houve uma briga, que a Srta. Leigh a matou, saiu da casa e fechou a porta.

— Mas isso é absurdo!

— É claro que é absurdo — volveu Sooper, alegremente. — Mas tal é a espécie de teoria capaz de seduzir um homem altamente romântico como o Sr. Cardew.

— Ele nunca me pareceu romântico — sorriu Jim quando, com uma buzinada de aviso, passou pelo objeto de sua discussão.

— É romântico — repetiu Sooper; — se não fosse, por que leria tantos livros sobre antropologia? Se existe alguma coisa mais romântica do que a dedução, mostre-me!

Pouco depois referiu-se casualmente, como se não fosse assunto muito importante, ao incidente da espingarda de espera.

— Assustou-me um pouco. Mas não tanto quanto o preço que o vidraceiro Isaac está pedindo para colocar vidros novos. Ele diz que existe um truste do vidro e que todos os preços subiram. Muito provavelmente estava mentindo: Isaac não diria a verdade nem a um rabino.

Olhou por cima do ombro. O carro do Sr. Cardew já estava a grande distância.

— Quando um profissional apanha a febre da publicidade, nunca sabe onde parar. Haverá manchetes sobre ele em todos os jornais amanhã, e nenhum dos jornalistas me pedirá sequer que sorria. Pessoalmente, gosto de trabalhar sem publicidade. Sou um daqueles tipos fortes e silenciosos que aparecem nos livros. O senhor já o havia notado?

— Não — confessou Jim, sincero.

— Pois é um fato — volveu Sooper. — Vivo a esconder-me desses lagartos da imprensa. O Surrey Comet disse uma vez: "O Superintendente Minter gosta de trabalhar no escuro"... Comprei seis exemplares do jornal; qualquer dia eu lhe mostrarei um deles.

A modéstia de Sooper não se tornou muito aparente quando chegaram ao tribunal onde deveria realizar-se o inquérito judicial, pois Jim observou que ele se juntou instantaneamente ao maior grupo de repórteres, e logo depois desapareceu, à frente do bando, na direção do Hotel Real. O grupo voltou a tempo para a abertura dos trabalhos, e Sooper justificou-se.

— Paguei uma rodada para os rapazes. Eu não queria que eles falassem em mim e, por isso, achei melhor avisá-los. Nada como a gente colocar-se do lado certo da imprensa se quiser manter seu nome fora dos jornais.

Era notável, observou Jim naquela noite, ao passar os olhos pela reportagem do inquérito judicial, que, malgrado as precauções de Sooper, todos os jornais não só lhe mencionassem o nome, mas fizessem também a mais lisonjeira referência à sua perspicácia, ao seu gênio e às suas muitas qualidades admiráveis.

A sessão prosseguiu além do que Jim previra. A prova apresentada por Sooper era um primor de condensação, mas ele levou um tempo considerável para expô-la. O próprio Jim ocupou o banco das testemunhas por meia hora, enquanto o depoimento de Cardew levou uma hora, e só muito depois do meio-dia o tribunal voltou a suspender seus trabalhos.

— Ouviu o depoimento daquele Cardew? — perguntou Sooper com azedume. — Eu sabia que ele traria para cá as suas medidas... Fez isso para mortificar-me. Quando o tonto do juiz de instrução lhe agradeceu os subsídios valiosíssimos, o homem quase estourou de orgulho.

Tomaram chá no hotel antes de encetarem a viagem de regresso a Londres, e Cardew, sem ser convidado, juntou-se a eles; embora talvez soubesse, pelo aço que encontrou nos olhos de Sooper, que aquele não era o momento nem o ensejo azado para expor sua hipótese. Jim tentou levá-lo para outro caminho, mas o Sr. Cardew mostrou-se inflexível.

— Mencionei hoje cedo a Ferraby, superintendente, que eu dera com o que me parece ser a solução desse notável mistério.

— Ouça isto, Lattimer — exclamou Sooper, com pressaga polidez. — Um jovem policial nunca poderá aprender demais. E quando encontra um cavalheiro como o Sr. Cardew, que expõe suas teorias, deve prestar-lhe atenção. Pode estar-se instruindo. Por outro lado, pode ser que não esteja. Nunca se sabe. Sente-se e preste atenção!

Mas Lattimer não precisava da injunção: ouvia atentamente.

— Segundo depreendo das provas — principiou o Sr. Cardew —, os senhores três estavam escondidos na estrada da praia quando a pobre Hannah apareceu. Viram-na ao passar, silhueta contra o céu; notaram-lhe o chapéu e o corpo; viram-na deter-se diante da porta. Mas não a viram sair.

— Perfeitamente exato — murmurou Sooper. — Eis aí uma pequena dedução de que o senhor deve orgulhar-se.

— Bem, o senhor disse que não a viu sair — continuou o outro, bem-humorado. — E, se não a viram sair, não viram o homem que estava escondido no assento traseiro do carro, agachado, para fugir à observação. Ele se escondera provavelmente no automóvel sem que Hannah o soubesse e, esperando até que ela tivesse aberto a porta, atacou-a, silenciou-lhe os gritos e arrastou-a para dentro. A cozinha fechada é quase uma prova de que ele estava utilizando o lugar como prisão.

— A porta fechou-se atrás dele... ouvi-a bater — voltou Sooper em tom cansado.

— Ele poderia tê-la fechado com o pé — foi a rápida resposta. — O que aconteceu na cozinha jamais saberemos. É certo que não estavam ali havia muito tempo quando esse patife assassino matou a pobre mulher. Que fez ele então?

— Ah! Que fez ele? — perguntou Sooper.

Cardew olhou-o bem no rosto.

— Vestiu o casaco e pôs o chapéu dela — disse lentamente —, saiu pela porta, fechou-a, fechou o cadeado, entrou no carro e acendeu os faróis. Dizem os senhores que os faróis estiveram acesos alguns segundos e depois se apagaram, e a razão disso é óbvia: acesos, os faróis incidiriam no muro imediatamente defronte do carro, sua luz seria refletida de volta e revelaria, a quem estivesse nas proximidades, o fato de tratar-se de um homem e não de uma mulher, a despeito do chapéu feminino que ele estava usando.

Sooper permaneceu em silêncio.

— Em seguida, pôs o carro na estrada — prosseguiu Cardew, deliciando-se evidentemente com a inofensiva sensação que criara —, chegou ao topo do rochedo, atirou fora o casaco e o chapéu e dirigiu-se, a pé, aonde um carro o esperava... provavelmente um carro pequeno, que se esconde com facilidade.

Sooper olhava, perplexo, para o advogado.

— Esta é uma das mais notáveis teorias que já ouvi — exclamou, por fim, e Jim percebeu que não havia sarcasmo em sua voz. Tinha os olhos arregalados e a boca feia aberta; o próprio bigode parecia eriçado. — Esta é uma das mais notáveis teorias que tenho ouvido. Por Deus, o senhor tem razão!

Seguiu-se um silêncio mortal. Depois, Sooper levantou-se devagar, estendeu a mãozorra e agarrou a mão de Cardew.

— Obrigado — disse simplesmente.

O superintendente não pronunciou uma única palavra na viagem de Pawsey ao seu posto. Recusou o convite de Jim para sentar-se ao seu lado, encolheu-se no assento traseiro, ao pé de Lattimer, e só uma vez durante a viagem o rapaz lhe ouviu qualquer coisa parecida com um grunhido. Ao despedir-se, rompeu o silêncio.

— Retiro grande parte do que eu disse a respeito de Cardew... Não tudo, mas grande parte — declarou, desapaixonadamente. — Nunca imaginei que advogados daquela espécie servissem para muita coisa além de escrever cartas às pessoas que não pagaram a conta do carvão. Mas esse Cardew fez o que nenhum outro sujeito poderia ter feito, Sr. Ferraby. — Cutucou com o dedo comprido o peito de Jim. — Devolveu-me a confiança em mim mesmo! Mostrou-me que sou mais esperto do que ele; e um homem capaz de fazer isso é o que posso denominar um benfeitor público.

— Mas de que maneira você é mais esperto do que ele? — perguntou Jim, pasmado.

— Ele não aludiu a Big Foot. Ora, eu — e cutucou, por seu turno, o próprio peito —, eu sei quem é Big Foot! Conheço-o tão bem quanto conheço Lattimer. — Fitou os olhos penetrantes no sargento. — E conheço-o sem teorias, deduções, hipóteses ou qualquer outro troço de livros. Por vários dias tive Big Foot em meu escritório. Posso apresentar-lhe Big Foot quando bem entender.

— O assassino?

Sooper assentiu com a cabeça.

— Big Foot, sem dúvida, foi o assassino.

— E entrou pela porta dos fundos do bangalô? Sooper tornou a assentir.

— Sim, senhor; entrou de várias maneiras, mas o certo é que entrou pela porta dos fundos do bangalô.

Jim parecia atônito.

— Hannah Shaw o conhecia?

— Não, senhor. Hannah Shaw nunca ouviu os pés dele, nunca os viu. Estava morta antes de Big Foot chegar.

— Mas, Sooper, você não disse que ela foi morta por ele?

— E foi mesmo — tornou Sooper, virando-se para entrar no posto. — Teorize sobre isso, filho. E sargento, dê-me um jornal da tarde; quero ver o que aqueles criminosos taquigráficos andaram dizendo a meu respeito.

 

A torta

O privilégio de que Sooper gozara com exclusividade estendeu-se a Jim. Foi-lhe permitido ficar meia hora no apartamentozinho de Elfa Leigh e ouvir as últimas notícias sobre o pai dela.

— Não quiseram deixar-me passar a noite na casa de saúde — disse a moça —, e talvez tenham razão. Ele está muito alegre e muito feliz, à sua maneira, e, realmente, muito dócil. Tudo isso me parece um sonho, um sonho agradável e, ao mesmo tempo, desagradável. É horrível pensar em todos os anos em que andou vagando por aí, sem ninguém que cuidasse dele.

Jim se avistara também com o cirurgião; a data da operação fora marcada. O médico e seu assistente se mostravam esperançosos quanto aos resultados e haviam recitado uma lista muito alentadora de casos semelhantes, rematados por curas excelentes.

— Não, não estou preocupada com a operação — respondeu ela tranqüilamente, quando ele a interrogou. — Na realidade, não estou preocupada com coisa alguma, porque a embaixada está fazendo tudo por ele. Foram extremamente simpáticos e bondosos, e me ofereceram uma pensão até que ele se restabeleça, de sorte que já não tenho necessidade de voltar a trabalhar para o Sr. Cardew.

— Teve notícias de Cardew?

— Tive. Telefonou-me hoje cedo — disse ela. — Foi muito bondoso, mas muito vago. Tenho a impressão de que está tão absorto no problema da morte da pobre Srta. Shaw, que, na realidade, não consegue obrigar o espírito a pensar nos meus assuntos. Ele é um amor.

— Quem... Cardew? — sorriu Jim. — Conheço um homem que não partilha da sua opinião.

— Sooper? É claro! Mas acontece que Sooper é uma lei para si mesmo, pois não se pode imaginá-lo... Como a gente adquire facilmente o hábito de empregar esse apelido!... sustentando opiniões que remotamente se assemelhem às das pessoas comuns! Ele é um amor também. Será, realmente, tão duro quanto parece...? Fala de maneira tão estranha...

— Sooper é um dos policiais mais antigos da Força — retrucou Jim. — Nunca me foi possível chegar a uma conclusão sobre se sua educação é tão deficiente quanto ele dá a entender. Mas acontece que Sooper tem tantas poses que é difícil seguir-lhe a pista...

Nesse momento tilintou o telefone. A moça tomou do receptor e ficou ouvindo, enquanto franzia o cenho.

— Não, não mandei nada... sim, tenho certeza. Por favor, não dê isso a ele. Darei um pulo até aí.

Desligou o telefone. Havia em seu rosto uma expressão preocupada.

— Não posso compreender — exclamou. — A enfermeira-chefe da casa de saúde me telefonou para perguntar se eu havia mandado uma pequena torta de cerejas a meu pai. É claro que não mandei. Foi levada por mensageiro, com um recado que se imaginava meu.

Jim assobiou.

— É esquisito — disse ele.

Enquanto a moça foi buscar o casaco, lembrou-se de Sooper e, num momento de inspiração, chamou o citado cavalheiro ao telefone. Felizmente, Sooper se encontrava a poucos passos do aparelho quando este tocou; ouviu, sem comentários, o que Jim lhe contou sobre a chamada da casa de saúde.

— Diga-lhes que guardem a torta até eu chegar. E, depois que tiver levado a Srta. Leigh de volta ao seu apartamento, espere por mim diante da casa de saúde. Se vir um rapaz prestimoso, interessado nas suas andanças, fale em meu nome.

Era a primeira notícia que Jim recebia de que a casa de saúde estava sendo vigiada.

Chegados ao local em que o doente se encontrava, foram admitidos à sala particular da enfermeira-chefe. No centro da mesa, envolta em papel impermeável, estava a torta suspeita.

— Eu não quis dar nada a ele sem ter absoluta certeza de que fora mandado pela senhorita — declarou a enfermeira-chefe. — O Sr. Minter foi muito enfático a esse respeito.

— A senhora disse que havia uma carta...

A enfermeira-chefe deu-lhe um envelope. Ao primeiro olhar dirigido ao sobrescrito, Elfa exclamou:

— Esta não é minha letra.

Nem era a da nota, dentro do envelope, um pedaço comum de papel, em que seu endereço da Cubitt Street fora escrito em cima e na qual se lia um pedido conciso para dar a torta a seu pai.

— Conhece a letra? — perguntou Jim. Ela abanou a cabeça.

— Nunca a vi em minha vida. Mas, afinal, por que mandar a torta? Será... Oh, não, isso não é possível!

Seu rosto ficou branco como cera.

— Talvez algum amigo bem-intencionado — acudiu Jim, tentando acalmá-la.

— Mas quem haveria de querer fazer mal a papai? — tornou ela, olhando temerosa para a torta de aspecto inocente.

— Que devo fazer com isso? — perguntou a enfermeira-chefe.

— Guarde-a, por favor — pediu Jim, rápido. Olhou significativamente para a jovem e a mulher compreendeu.

Conquanto ele procurasse não dar importância ao incidente, Elfa não tinha dúvida alguma sobre sua significação.

— Eu o ouvi telefonar ao Sr. Minter — disse ela, enquanto voltavam para a Cubitt Street. — Ele virá?

— Estará lá quando eu voltar. Não se preocupe com isso, Elfa.

Ela notou a maneira mais íntima de tratá-la. Parecia muito certo que ele lhe chamasse "Elfa".

— Há tanta coisa inexplicável nessa ausência de meu pai, que não creio que eu tente desembaraçar a meada — volveu a jovem, com um gesto de impotência. — Mas não me deitarei já. Promete telefonar-me se se descobrir alguma coisa?

Com essa promessa ele a deixou e voltou para assumir seu lugar diante da casa de saúde.

Como Sooper antecipara, mal se postara ele ao pé da porta quando, da escuridão do lado oposto da rua, se destacou um estranho que, sem preliminares, lhe perguntou o que estava fazendo ali. Nem foi a explicação de Jim muito prontamente aceita, pois o detetive, por natureza, é cético. Felizmente, no meio da discussão, surgiu, vindo do rumo de Cavendish Square, o som de uma metralhadora disparada a intervalos irregulares e, poucos segundos depois, apareceu Sooper montado na sua máquina tonitruante.

— Dei noventa e seis quilômetros por hora com ela, em Barnes Common — anunciou Sooper com júbilo ilegal. — O guarda de trânsito procurou deter-me na barreira da estrada de ferro, mas seria mais fácil para ele tentar segurar dois punhados de relâmpagos.

Silenciou a máquina e ambos entraram na casa, onde a torta foi trazida para exame.

— É, parece boa — comentou Sooper. — Vou levá-la comigo, se a senhora não se incomoda, enfermeira. Imagino que não possa lembrar-se da estação de que veio o mensageiro, não?

— Creio que foi de Trafalgar Square — respondeu a enfermeira-chefe. — Aliás, tenho certeza.

Detiveram-se apenas o tempo suficiente para deixar a torta no posto policial, com instruções para que fosse enviada, em recipiente selado, ao laboratório público de análises logo de manhã cedinho, e foram entrevistar o mensageiro. Jim persuadiu Sooper a deixar seu alarmante veículo no posto policial e de táxi fizeram ambos o percurso.até Trafalgar Square.

Não foi difícil comprovar a história da enfermeira-chefe. O embrulho que continha a torta, aparentemente, fora entregue por um indivíduo qualquer, presumível mensageiro do verdadeiro remetente.

— Um vagabundo pegado na rua por alguns pence

— disse Sooper. — Não o encontraremos sem botar anúncio nos jornais e, se o fizermos, com a astúcia natural das classes criminosas, ele não se apresentará.

— Talvez não seja membro das classes criminosas.

— É um vadio, e todos os vadios são criminosos — volveu Sooper, que tinha uma fraqueza pelas amplas generalizações.

Parou em Trafalgar Square e ficou ao lado do meio-fio, contemplando, pensativo, a estátua de Nelson.

— Eu gostaria de topar com Lattimer. Ele está em algum lugar na cidade e é a pessoa mais indicada para se colocar na pista desse vadio... Lattimer tem uma afinidade natural pelas pessoas que não gostam de trabalhar. Terei de dar parte disto à Yard e detesto fazê-lo — ajuntou. — Aquele delegado narigudo porá, provavelmente, outro sujeito no caso e isso me atrapalhará muitíssimo.

Com aparente relutância foi a Whitehall e, ao chegar à Yard, teve a satisfação de não descobrir pessoa alguma em serviço com autoridade suficiente para tirar-lhe o caso das mãos, embora tivesse competência bastante para ordenar imediatamente a investigação.

Pouca coisa havia que contar, mas, apesar disso, Jim telefonou a Elfa, relatando os resultados das investigações.

— Acha que ela estava envenenada? — perguntou a jovem.

— Sooper não tem certeza. Amanhã saberemos. Doeu-lhe ouvir a ansiedade na voz dela. Quando voltou para junto de Sooper, o gênio fez-lhe

uma estranha confissão.

— Acho que eu gostaria de voltar ao conforto. Onde está aquele seu velho ônibus?

— Meu carro está guardado perto daqui e eu o levarei com prazer. Mas supus que você estivesse casado com seu infernal projétil.

— Não estou casado — disse Sooper.

Jim foi de táxi à garagem e apanhou Sooper no posto policial. O velho havia dado um jeito para que a motocicleta fosse levada de volta num furgão da polícia.

— É estranho como as idéias nos ocorrem, não é mesmo? Como ao Sr. Cardew, no meio da noite. Acabo de ter uma idéia que me deixou muitíssimo alegre.

Recusou-se, todavia, a partilhar de sua alegria com Jim.

O regresso foi rápido e vazio de acontecimentos.

— Entre — convidou Sooper. — É um minutinho só. Talvez haja notícias.

Notícias havia; o sargento de plantão referiu que recebera a visita de um motociclista.

— Diz ele que alguém lhe deu dois tiros na estrada a um quilômetro e meio da cidade.

Sooper suspirou, feliz.

— Não o acertaram, hein? Com certeza calcularam mal a velocidade em que ele ia. É, provavelmente, um desses motociclistas que não conseguem tirar mais de sessenta e cinco quilômetros por hora da sua máquina. Ora, se eu estivesse montando Pirilampo, fazendo os meus sessenta e cinco, eles me teriam acertado.

— Você! — arquejou Jim. — Pretendiam atirar em você?

— É claro que pretendiam atirar em mim — volveu Sooper, bonachão. — O senhor me perguntou se eu não era casado com Pirilampo... Pois é isso mesmo o que quero ser. Detestaria saber que Pirilampo ficou viúva.

Jim compreendeu, então, por que Sooper se mostrara tão ansioso por voltar de automóvel. Supondo-se que a explosão da noite anterior não fora um acidente e que ocorrera um atentado contra sua vida, ele seria um alvo fácil para uma emboscada. O estardalhaço da sua estranha máquina poderia ouvir-se a quilômetros de distância... mais tarde se verificou que o motociclista alvejado montava também um motor particularmente estrepitoso.

— Agora não me surpreenderia nada que viesse a acontecer — observou Sooper filosoficamente. — Mas eles terão de ser rápidos. Lattimer já voltou?

— Não, senhor — replicou o sargento. — Ele está na cidade.

Nesse particular, todavia, o sargento não dissera a verdade. Naquele mesmíssimo instante, Lattimer estava sentado sobre uma cerca, entre duas moitas altas, na parte mais erma da estrada de Londres, com uma grande automática na mão e um grande ressentimento contra seu chefe no coração. Pois não vira Sooper passar.

 

Fumaça em Hill Brow

Parecia a coisa mais natural do mundo a Jim Ferraby aparecer em Cubitt Street de manhã, esperar que a jovem descesse e levá-la pelo curtíssimo espaço que separa Cubitt Street de Weymouth Street. Não tinha sequer a desculpa de que o trajeto ficava no seu caminho; estava, de fato, tão fora dele que lhe dobrava o percurso. Esse aspecto das suas atenções foi-lhe assinalado na primeira manhã e destacado à noite, quando a procurou em Weymouth Street. Leigh passara bem o dia, dormindo a maior parte do tempo. A enfermeira contou que sua maior vigília ocorria à noite.

— Ele deve ter adquirido o hábito de dormir de dia e andar à noite, no escuro — disse Elfa. — Tenho a impressão de que me reconheceu esta tarde. Olhou para mim como se estivesse perplexo, como se tentasse lembrar-se de alguma coisa ou de alguém. Pouco antes da minha saída, perguntou-me se eu não poderia levá-lo ao mar. Disse que queria procurar "três" e "quatro". Segundo a enfermeira-chefe, fez-lhe o mesmo pedido ontem à noite. Que são "três" e "quatro"? Jim sacudiu a cabeça.

— Preciso transmitir a informação a Sooper. Viu o médico?

Ela se avistara com o cirurgião, e a operação fora marcada para sábado. O facultativo realizara alguns testes e estava convencido de que Leigh recuperaria a saúde.

Sua primeira pergunta, naquela manhã, fora a respeito da torta, e Jim respondera, loquaz, que o laboratório não descobrira sinal algum de veneno. Ela não pareceu convencida. Ao voltarem para Cubitt Street, tornou a perguntar.

— Eu soube por intermédio de Sooper e ele me disse que não havia veneno — respondeu o rapaz, mas não conseguiu dissipar o ceticismo de Elfa Leigh.

— Andei imaginando se papai presenciou o crime, ou conheceu o criminoso — disse ela. — Hoje, à hora do almoço, fui a King's Bench Walk e estive com o Sr. Cardew; e ele está absolutamente certo de que, se ontem à noite ocorreu, de fato, um atentado contra a vida de papai, foi porque este viu as coisas que aconteceram no chalé. Papai vivia numa caverna que se avistava da casa da praia. Sabe disso, não sabe? Sooper contou-me hoje cedo que a caverna foi explorada pela polícia e há provas de que ele deve ter vivido lá durante anos. Costumava descer pela face do rochedo por meio de uma escada de cordas, à noite, e subir antes do raiar do dia, puxando a escada depois que chegava lá em cima. Estava tão branca de giz que, segundo o Sr. Minter, poderia ter passado despercebida, mesmo à luz do dia.

— Você viu Sooper, então?

Sooper, aparentemente, fizera uma rápida visita a Weymouth Street, mas, com alguma habilidade, evitara discutir o relatório do analista sobre a torta.

Depois que parou à porta do apartamento, Jim ainda se deteve um pouco, esperando um convite para entrar.

— Hoje serei muito pouco hospitaleira e o deixarei voltar para casa sem uma chávena de chá — disse ela. — Estou cansadíssima.

Ele voltou a insistir no valor recuperativo do chá do parque. Ela não acedeu sequer a esse pedido.

— Eu quisera que estivesse tudo terminado — murmurou. — Tenho uma sensação... uma sensação horrível de perigo... como se alguma coisa medonha fosse acontecer.

— Você fala como uma perfeita candidata ao chá do parque — voltou Jim, aliciante, mas ela despediu-se, a sorrir, e a porta se fechou.

Jim não tinha o que fazer. Não assumira compromissos para a noite e, se bem que houvesse trabalho à sua espera em casa, a simples idéia dele lhe' produzia uma espécie de náusea mental.

Era uma bela noite; não se sentia disposto a um jantar solitário e, mecanicamente, dirigiu o carro para o sul da cidade. Sua primeira lembrança foi fazer uma visita a Sooper, mas, ao chegar lá, descobriu que o digno cavalheiro saíra e seu paradeiro era totalmente desconhecido. O próprio Lattimer estava invisível. Jim obrigou o carro a subir o morro até Barley Stack, e teve a satisfação de encontrar o criminologista amador, que andava de um lado para outro em seu relvado, as mãos unidas nas costas, a testa alta vincada. Ao som do motor que gemia, voltou-se e agitou alegremente a mão.

— Se há um homem que eu gostaria de ver esta noite, este homem é você, embora não tenha qualquer razão especial, a não ser... Bem, acho que estou sofrendo os efeitos da reação provocada pela morte da pobre Hannah. Esta ainda me parece tão irreal que, a todo momento, espero ouvir-lhe a voz dominadora... — Hesitou, mas logo prosseguiu: — Não quero ser maldoso... pobre Hannah! — Suspirou fundo. — Lamento dizer que os criados mostram a falta de compunção que seria de se esperar pela morte de uma feitora severa. Hannah era dura, mas havia nela muita coisa boa que ninguém compreendia.

Tinham caminhado até a mais remota extremidade do relvado, ao longo da nesga menor de grama, que corria em ângulos retos, e, dali, avistavam Hill Brow. Havia alguma coisa de sinistro no casarão vermelho, matutou Jim. E, nesse momento, ouviu uma exclamação do companheiro.

— A noite está quente para se acender fogo, não está? — perguntou ele.

De uma das altas chaminés pseudo-elisabetanas, subia uma nuvem de fumaça branca.

— Acontece que sei — disse Cardew devagar — que aquela chaminé está ligada à fornalha de Elson. Mas por que diabo acendeu ele a fornalha numa noite como esta?

Os dois homens permaneceram em silêncio, observando o estranho fenômeno. Evidentemente, a fornalha estava sendo incessantemente alimentada, pois a fumaça não diminuía de volume.

— Talvez estejam queimando lixo no jardim — sugeriu Jim.

O Sr. Cardew abanou a cabeça.

— Existe um incinerador no jardim para esse fim. De mais a mais, nesta época do ano está tudo verde, as folhas nem começaram a cair!

Jim observou a chaminé, não muito convencido de que o espetáculo fosse tão notável como o dava a entender o advogado.

— Pode ser que ele esteja fazendo uma limpeza nos papéis velhos — alvitrou. — Eu mesmo sinto esse tipo de necessidade uma vez por ano, e nunca me detenho a considerar se o tempo é apropriado ou não.

Cardew sorriu com expressão misteriosa.

— Não conheço muito bem o nosso amigo — redargüiu. — Mas nunca me deu a impressão de ser um homem de espírito ordenado... Que será que ele está queimando?

Relanceou os olhos em torno de si e chamou o jardineiro de rosto carrancudo que Jim já vira por ali.

— Quero que você me leve um recado ao Sr. Elson

— anunciou, e desapareceu no interior da casa para redigi-lo.

Depois que o homem partiu para executar-lhe as ordens, Cardew explicou o plano sutil.

— Convidei Elson para vir jantar amanhã — disse ele. — Não que eu o queira! Mas, ou muito me engano, ou Frederick, quando chegar a Hill Brow, encontrará Elson sozinho na casa.

— O que provará...? — perguntou Jim.

— Não provará coisa alguma, a não ser que, por algum motivo muito urgente, Elson mandou embora os criados enquanto se entrega a essa orgia de queima

— respondeu Cardew. E ajuntou: — Agora eu gostaria de mostrar-lhe uma coisa muito interessante.

Jim seguiu-o ao escritório e adivinhou o que era a "coisa" quando viu um objeto volumoso sobre a mesa da biblioteca. Estava recoberto de folhas de papel. O Sr. Cardew retirou as folhas e desvelou um modelo perfeito da casa da praia.

— Mandei-a construir por um modelador em vinte e quatro horas — disse ele, com perdoável orgulho. — O telhado sai... — E, para demonstrá-lo, ergueu-o, mostrando os minúsculos aposentos que ficavam debaixo dele. — O homem não conseguiu dar o colorido certo, mas isso não tem importância; e precisei contar com a memória para pôr no lugar as várias peças do mobiliário. Isto aqui — prosseguiu o Sr. Cardew, indicando um espaço com um lápis — é a cozinha. O modelo foi feito em escala; observe os ferrolhos na porta dos fundos. E eis a abertura de serviço. — Afastou um minúsculo painel e mostrou a conexão entre a cozinha e a sala de jantar. — Ora, há aqui um fato notável — aduziu, em tom impressionante: — desde o momento em que Hannah Shaw entrou na casa até o instante em que ela, ou qualquer outra pessoa, saiu, não se passaram sequer cinco minutos. Está claro que ela ou ele se dirigiram imediatamente para a cozinha... Por quê?

— Para pegar a carta — respondeu Jim, e Cardew olhou boquiaberto para ele.

— A carta! — guinchou o advogado. — Que negócio de carta é esse?

— Havia uma carta dirigida ao juiz de instrução de West Sussex; Sooper descobriu o envelope e um tijolo solto na cozinha, debaixo da mesa, onde esse documento fora evidentemente escondido.

A aflição de Cardew era cômica.

— Uma carta? — repetiu. — Mas ela não apareceu no inquérito judicial! Isso transtorna muitíssimo minha teoria. Eu quisera que aquele velho não fosse tão infernalmente reticente!

— Acho que eu não devia ter falado no envelope — disse Jim.

O Sr. Cardew sentou-se, considerando com expressão melancólica o modelo.

— Talvez se enquadre — acudiu, afinal, mas parte da confiança desaparecera de sua voz. — Não previ a possibilidade de outro motivo para o assassinato — ajuntou. — O envelope era dirigido ao juiz de instrução; alguém sugeriu, por acaso, que se tratava de um caso de suicídio?

— Nem mesmo Sooper sugeriria uma coisa dessas

— tornou Jim, sorrindo.

Já se censurava intimamente por haver traído o mistério de Sooper em presença do rival.

— É estranho que não me ocorresse a idéia de suicídio; mas, naturalmente, não se encontrou arma alguma, o que a torna impossível.

— Além disso, as portas estavam fechadas por fora

— lembrou Jim, e Cardew assentiu com a cabeça.

— É, tenho de recomeçar tudo outra vez. Mas estou decidido a encontrar uma explicação. Respeito o Superintendente Minter, que trabalha de acordo com o que eu descreveria como o método baseado na experiência, que, sem dúvida, de um modo geral, produz bons resultados. Mas estou convencido de que este não é um caso a que se possa aplicar com êxito o sistema da experiência.

Tirou uma pasta do armário, pôs-se a folheá-la, e Jim ficou assombrado com a atividade daquele investigador. Uma página estava coberta de horários e medidas. Em outra havia um mapa tosco do litoral, coberto de linhas que indicavam a altura da maré em determinadas horas. Viam-se inúmeras fotografias não montadas, que mostravam o chalé de vários ângulos. Em outra ainda, um mapa topográfico de Sussex, o Sr. Cardew garatujara com tinta vermelha o que Jim supôs fossem possíveis caminhos de fuga que o assassino poderia haver tomado. Estavam examinando o mapa quando voltou o jardineiro.

— Dei o recado ao Sr. Elson — comunicou o homem.

— Foi ele mesmo quem atendeu à porta? — perguntou Cardew, ansioso.

— Foi, sim, senhor; levou uns cinco minutos para aparecer. Os criados devem ter saído.

Cardew reclinou-se na cadeira com um sorriso.

— Como é que ele estava vestido, Frederick? Conte-me isso. E notou se o rosto e as mãos do Sr. Elson estavam... normais?

"Normais" era uma palavra que não constava do vocabulário do jardineiro.

— Estavam pretas — respondeu este último. — Era como se ele tivesse estado varrendo o cano da chaminé. Vestia apenas calças e camisa e me pareceu muito acalorado.

Cardew tornou a sorrir.

— Obrigado, Frederick — exclamou e, quando a porta se fechou, seus olhos encontraram os de Jim.

— Está acontecendo qualquer coisa — disse ele. — Eu tinha certeza disso! E até que ponto o seu curioso comportamento recente terá ligação com a morte da pobre Hannah? Não se esqueça — ajuntou, sacudindo o lápis diante de Jim — de que ele conhecia Hannah, e se encontrava secretamente com ela. Sei, através de falatórios dos criados, que chegaram ao meu conhecimento após a sua morte, que ela ia freqüentemente a Hill Brow. Ora, o fato é que, desde que aconteceu a tragédia, Elson nunca mais andou sóbrio. Bebia muito antes, mas agora pôs de parte toda e qualquer reserva. Duas empregadas saíram ontem, e o criado vai deixá-lo esta semana. Ele vagueia pela casa durante a noite, e já teve mais de um acesso de gritos de terror.

Levantou-se e recolocou o telhado do modelo, cobrindo-o cuidadosamente com o papel.

— Até aqui minhas investigações se realizaram na região do abstrato. Agora me aventurarei a um campo novo, para o qual nem a idade nem o físico me qualificam.

— Em outras palavras...?

— Em outras palavras, vou descobrir o segredo de Hill Brow — prometeu o Sr. Cardew.

 

O aviso

O Sargento Lattimer esperou que escurecesse antes de deixar seus aposentos e, tomando por um caminho cheio de voltas, porém solitário, dirigiu-se, pachorrento, à casa do americano. Não entrou pelo portão da frente, mas encontrou uma abertura na cerca, que lhe era familiar, e, penetrando numa moita, chegou ao portãozinho verde no muro. Desta feita, o Sr. Elson não estava lá para recebê-lo, nem sua presença se fazia necessária. Lattimer abriu-o com uma chave, passou por ele, tornou a fechá-lo e a trancá-lo e, após breve reconhecimento da situação, endereçou-se, sem ruído, pelo caminho de cascalho, até a porta da frente. Não bateu. Tinha um trabalho para fazer e fê-lo depressa. Tirou do bolso uma folha de papel, com o verso evidentemente besuntado de cola, pois, assim que o lambeu e comprimiu de encontro à almofada central da porta, o papel grudou na madeira. Isto feito, rodeou parte da casa e, chegando a um par de janelas francesas que se abriam para o gramado, bateu de leve. Durante algum tempo não ouviu resposta. Tornou a bater, distinguiu o arrastar de uma cadeira, viu abrirem-se as cortinas pesadas e deu com o rosto assustado de Elson, que tentava penetrar a escuridão.

— É você? — resmungou o homem.

— Sou eu — disse o outro, lacônico. — E pode enfiar o revólver no bolso outra vez; ninguém vai machucá-lo.

Fechou as cortinas depois de passar, deixou-se cair numa cadeira, estendeu mecanicamente a mão para a caixa aberta de charutos.

— Sooper foi à cidade — informou.

— Pelo que me diz respeito, ele pode ir até para o inferno — rosnou Elson.

A marca da bebida era patente; os que o tinham visto uma semana antes dificilmente lhe reconheceriam o rosto; tremiam-lhe as mãos, fremia-lhe o lábio inferior à menor provocação.

— Pois eu lhe digo... Sooper iria a qualquer lugar se achasse que valia a pena.

— É melhor você tomar cuidado — principiou o homem em voz alta, mas a mão erguida e a expressão mortificada de Lattimer silenciaram-no.

— Não há razão alguma para gritar.

— Ele não tem nada contra mim.

— Talvez ache que sim — volveu Lattimer, mordendo a ponta do charuto com os dentes fortes. — Nunca se sabe o que Sooper tem em mente. Já andei matutando se ele não desconfia de mim. Hoje cedo fez-me um longo sermão sobre a vantagem de delatar os cúmplices. Disse que faria muita coisa para ajudar o membro de um bando que estivesse disposto a dar com a língua nos dentes.

Elson umedeceu os lábios.

— Não vejo como isso nos afeta, a você ou a mim... — principiou.

— Não resvalemos para personalidades — disse Lattimer em tom preguiçoso. — Vou tomar um gole daquele uísque; será um gole a menos para você... Teve fogueira esta noite?

— Eu? O que é que você quer dizer?

— Vi sua velha chaminé fumegando. A noite me parece muito quente para acender a fornalha.

Elson pensou um pouco antes de responder.

— Andei queimando uma porção de lixo velho — disse, com certa rispidez.

Fumaram durante cinco minutos sem pronunciar uma palavra. Em seguida, Lattimer voltou, em tom mais afirmativo do que interrogativo:

— Você foi à cidade hoje cedo.

O homem considerou-o desconfiado.

— Eu queria sair deste lugar maldito. Não faz mal que eu vá à cidade, faz?

— Que espécie de camarote arrumou? Elson deu um pulo; o queixo caiu-lhe.

— A rota da CPR é bem confortável. Imagino que não se arrisque a ir diretamente para Nova York.

— Como é que você sabe? — arquejou o outro.

— Adivinhei que você pretendia mudar-se. Tive essa impressão há muito tempo e, naturalmente, fiquei aborrecido — replicou Lattimer, devagar. — Não gosto de ver sumir uma fonte de rendas.

— Imaginei que você lhes chamasse "empréstimos" — escarneceu o outro. — Não sei por que lhe dou alguma coisa.

— Porque sou útil — disse Lattimer. — E posso ser mais útil ainda sábado que vem. Você não há de querer que saibam que vai deixar o país. Suponho que, quando estiver seguro no Canadá...

— Estou seguro em toda parte — explodiu Elson, com violência. — Já lhe disse que a polícia não tem nada contra mim!

— Você me disse isso tantas vezes que estou quase acreditando — riu-se Lattimer. — Ora, vamos, Elson; por que tanta pressa?

— Estou cansado da Inglaterra — tomou o outro, obstinado. — Desde que Hannah foi morta, meus nervos se acabaram. Diga-me uma coisa, Lattimer: que aconteceu àquele vagabundo?

— O sujeito que Sooper prendeu? Está em Londres, em algum lugar. Por quê?

— Não sei... estou apenas interessado — voltou Elson com voz rouca. — Vi-o no meu jardim na manhã em que foi agarrado... O chofer estava na estrada quando Minter o prendeu. Aquele vagabundo me exasperou de verdade. Ele é pancada, não é?

— Louco? É, acho que é... pelo menos, Sooper acha que sim. Não tenho licença para pensar quando Sooper está por perto.

— Ouça, Lat... — Elson inclinou-se para a frente e abaixou a voz até transformá-la num sussurro roufenho. — Você conhece a lei deste país... ninguém levaria a sério o que dissesse um sujeito desequilibrado, não é mesmo? Quero dizer, a lei. Suponha que ele comece a... a acusar as pessoas de... coisas... A lei não tomaria em consideração essas maluquices, não é verdade?

Lattimer encarou-o.

— Do que é que você tem medo? — perguntou.

— Medo de nada — respingou Elson. — Acaso já lhe disse que tenho medo de alguma coisa? Então! Só estou curioso; tenho um palpite de que conheci esse sujeito nos Estados Unidos, em algum lugar. Talvez no Arizona, quando eu... quando eu lidava com fazendas e o xinguei... Fiz isso a muita gente; percebe o que quero dizer? É a única coisa de que tenho medo.

Ele estava mentindo, e Lattimer sabia.

— Acho que não levariam muito em consideração o que dissesse um louco... pelo menos é o que espero. Mas ele não será louco por muito tempo. Sooper me contou que se fará uma operação e que há muitas esperanças de que ele se cure.

Elson pôs-se de pé, num salto, lívido.

— Isso é mentira! Mentira! Ele não poderia ficar bom! Por Deus, se eu soubesse... Se eu soubesse!

Lattimer observava-o, impassível. Nem um músculo de seu rosto saturnino se moveu.

— Foi o que imaginei; ele é o sujeito que tem você na gaveta. Mas pode ficar tranqüilo. John Leigh levará dias e semanas antes de poder falar... se chegar a falar algum dia.

O outro homem estava agora mais calmo e qualquer coisa no tom de Lattimer o deteve quando ele se voltou para a garrafa ao seu lado, vazia pela metade.

— O que é ele para você, afinal? — perguntou. O sargento deu de ombros.

— Para mim, nada — respondeu. Ainda assim Elson não fez qualquer tentativa de mover-se. Tinha o rosto inchado voltado na direção de Lattimer.

— Suponha que ele não esteja tão doido quanto você acha que está. Dizem que tem uma caverna, ou coisa parecida, nos rochedos, perto da casa da praia. É provável que não estivesse tão longe quando Hannah foi morta. Que diria você disso?

Lattimer riu-se e despediu uma nuvem de fumaça para o teto.

— Que diria você disso? — perguntou, em tom significativo. — Está enganado se pensa que conheço o tal Leigh. Ouvi falar nele, naturalmente, mas só o vi depois que Sooper o pôs na cadeia... Aliás, nem sei se chegou a ir para a cadeia; quando reparei nele, estava na sala de Sooper, tomando chá.

Viu a mão de Elson erguida, recomendando silêncio. O homem prestava atenção. Pouco depois, olhou para o relógio.

— Meus criados voltaram — disse ele.

— E virão aqui?

— Só se eu os chamar.

Não acabara de falar, quando se ouviu uma batida à porta. Lattimer ergueu-se depressa e insinuou-se atrás das cortinas, enquanto o dono da casa se dirigiu à porta e abriu-a. Era o criado de quarto.

— Desculpe-me, senhor — disse o homem. — Eu não queria incomodá-lo...

— Então, por que incomodou? — perguntou Elson com desabrimento.

— Pensei que o senhor talvez não tivesse visto o aviso na porta. Não consegui arrancá-lo; estava bem colado.

— Aviso na porta? — perguntou Elson, em tom diferente. — Do que é que você está falando?

Passou pelo criado e atravessou correndo o vestíbulo, cujas luzes se tinham acendido. Escancarando a porta, viu o pedaço quadrado de papel colado na almofada e leu-o lentamente, como quem não acredita.

 

A PRIMEIRA FOI HANNAH SHAW.

VOCÊ SERÁ O PRÓXIMO A IR. — BIG FOOT.

 

Elson levou a mão à garganta. Tentou articular sons, mas só lhe escapou um lamento fino de angústia. Voltou, cambaleante, ao escritório, bateu a porta e fechou-a.

— Lattimer! — arquejou. — Lattimer!

Abriu as cortinas de par em par, mas Lattimer se fora pelo caminho que o trouxera.

 

Chá no parque

Veio do quintal de Sooper uma sucessão de estampidos muito familiares a quantos viviam dentro de um raio de um quilômetro e meio. Certa feita, o proprietário do cinema local alugou a motocicleta de Sooper com finalidades de propaganda, para produzir os efeitos sonoros de uma grande cena de batalha; contudo, essa foi a única ocasião, pelo que se saiba, que o motor de Pirilampo — naquela época chamava-se Gavião — funcionou sem produzir os sons que sugerem uma metralhadora. De outra feita, um grupo de admiradores organizou uma subscrição para comprar-lhe a mais moderna e silenciosa das máquinas; a entrega se efetuou na presença do prefeito, da corporação e dos vereadores locais. Sooper conservou a máquina exatamente por uma semana e, em seguida, ela desapareceu. Ele contou uma história comovente, segundo a qual a motocicleta havia se estraçalhado, mas toda a gente sabe qúe ele a vendeu num leilão público e, com o produto da venda, acrescentou uma incubadora à sua granja, uma nova mão de tinta a Pirilampo e uma soma não desprezível à sua conta corrente no banco de Barclay.

Era de manhã cedinho, quando a maioria das pessoas estavam ainda em casa, embora não se possa dizer com exatidão se havia alguém dormindo nas proximidades. Ele havia posto a máquina de cabeça para baixo sobre uma mesa de cozinha e se ocupava em regular uma peça do mecanismo, que só era complicada porque fora consertada por ele mesmo.

Um respeitoso policial achava-se também ali em mangas de camisa. Esse funcionário possuía alguns conhecimentos de mecânica, e era invariavelmente requisitado, em ocasiões como aquela, para concordar com tudo o que Sooper dissesse. Conservaria a autoridade mecânica enquanto adotasse tal atitude.

— O barulho é natural, guarda — sentenciou Sooper, brandindo uma chave de parafuso. — Nunca ouvi dizer que alguém tivesse posto silenciador em trovão, você ouviu?

— Não, senhor.

— "A ovelha bale e o gado muge", diz o provérbio.

— Estou apenas sugerindo que o senhor poderia colocar um silenciador melhor na máquina — voltou o policial, respeitoso.

— Seria um desperdício de dinheiro. Além disso, as pessoas gostam do barulho de Pirilampo. Viram-se na cama e dizem: "Está tudo bem; Sooper anda por aí".

Naquele determinado momento, muita gente virava na cama sem experimentar satisfação alguma por ele andar por ali..

— Mas, Sooper, é uma boa coisa; imagine que um ladrão o ouça chegar...

— Nunca me ouvem chegar — retrucou Sooper, olhando fixo para o oficioso subalterno. — Esta máquina é ventríloqua. Você pensa que ela vem vindo de uma direção quando, na realidade, vem de outra. O que é que há com você hoje cedo, guarda? Discute, discute, discute. Puxa! Não consigo dizer uma palavra!

Depois disso o guarda se manteve discretamente em silêncio.

Sooper terminou o serviço, para sua total satisfação, acendeu o cachimbo, examinou o céu matutino e viu que era bom. Desaparecendo no galpão, voltou com um grande saco de ração para galinhas, que pôs sobre o ombro e levou aos seus filhos vociferantes. Concluída a inspeção do galinheiro e a coleta de ovos, entrou em casa para se lavar, e já chegara à fase em que assobiava dentro da toalha áspera, quando Lattimer se apresentou para dar conta de suas ações.

— Onde esteve ontem à noite, Lattimer? — perguntou Sooper, resmungando sobre a fímbria da toalha.

— Era minha noite de folga.

— Não havia noites de folga no meu tempo — resmungou o velho. — Traga minhas cartas.

Lattimer voltou com um maço de correspondência oficial, que Sooper classificou com precisão.

— Isto é conta, isto é queixa contra Pirilampo, isto é um pedido de justiça, isto é uma carta daquele inteligente Alec, da pagadoria — murmurou rapidamente, enquanto um envelope depois do outro lhe passava por entre os dedos. — E isto é o que eu quero.

Era um invólucro comum, observou Lattimer, e a carta trazia uma espécie de cabeçalho impresso, que ele não pôde ler.

— Hum, hum! — fez Sooper, depois de haver examinado o conteúdo. — Você já ouviu falar em acônito?

— Não, senhor. É algum veneno?

— Levemente venenoso. O que cabe numa cabeça de alfinete seria bastante para matá-lo, Lattimer, embora não me matasse a mim, porque sou mais robusto e não passo noites farreando por aí com uma turma de garotas.

— É o resultado do laboratório? — perguntou Lattimer.

— É. Você pode começar uma investigação e verificar se alguém andou comprando aconitina. Não é coisa que se venda habitualmente. Pergunte à Yard. Nunca ouviu falar em aconitina, ouviu?

Sooper estava abotoando o colarinho, com o rosto contorcido voltado para o teto.

— Não, senhor, nunca ouvi falar nessa droga.

— Pois aposto que o velho Cardew, o famoso detetive amador, seria capaz de contar-me uma dúzia de casos em que ela foi usada.

— É muito provável — concordou Lattimer.

— Não gosto de envenenadores — observou Sooper em tom reflexivo, dando o nó da gravata com inusitado cuidado. — São o tipo mais vil de assassinos; nunca confessam. Você sabia disso, Lattimer? Um envenenador nunca confessa, nem mesmo quando está estrebuchando.

— Eu não sabia, não, senhor — disse o paciente Lattimer.

— Aposto que o velho Cardew sabe. Aposto que ele tem livros sobre assassinos e envenenadores que arrepiariam seus cabelos. Preciso assinar uma dessas bibliotecas científicas; estou tão atrasado em relação aos tempos que eles vão me alcançar na primeira volta.

Concluiu a correspondência oficial em curtíssimo tempo e, cavalgando sua máquina, iniciou uma série de visitas importantes, que talvez só fossem importantes na sua opinião. Passou um quarto de hora na companhia telefônica, entrevistando outra espécie de superintendente; passou quase duas horas na papelaria da High Street, período durante o qual obteve conhecimentos consideráveis sobre papéis para escrever, suas marcas-d'água e outras características. Na tipografia, sua estada foi breve, porém proveitosa. Mas só depois que deixou seu distrito muito para trás e entrou a vagar pelas travessas que saem do Strand se poderia dizer que tiveram início as investigações realmente importantes.

Jim viu-o inteiramente por acaso, quando ele e a moça passavam por Whitehall a caminho de Hyde Park. Um pouco para seu desconsolo, Elfa insistiu em parar e sair correndo quase cem metros para alcançar o velho de passos largos.

— Vamos a Kensington Gardens; não quer vir? — perguntou ela.

Sooper olhou à sua volta, procurando o carro distante.

— Tenho a impressão de que aquele rapazinho não me há de querer, Srta. Leigh. Não sou, nem nunca fui, homem capaz de se meter, por assim dizer, entre dois jovens corações amantes.

— Nossos corações são jovens, Sr. Minter, mas não são amantes — emendou Elfa. — O Sr. Ferraby tem sido boníssimo para mim.

— E quem não o seria? — murmurou Sooper. — Tem certeza de que ele não se incomoda?

— É claro que não se incomoda — tornou Elfa, levemente aborrecida. — Por que haveria de incomodar-se?

Sooper entrou no carro com mostras de relutância.

— Eu acabava de dizer a esta jovem que estou longe de querer intrometer-me quando dois moços querem estar a sós.

— Temos muito prazer em vê-lo, Sooper — afirmou Jim, com certo formalismo.

— Sempre digo que os jovens têm muito tempo para ficar de mãos dadas e fazer essa espécie de coisas, e não devem ficar zangados quando um velho entra na sala de visitas sem tossir ou sem bater. Pessoalmente, nunca estive apaixonado — refletiu, com tristeza. — Houve um caso com uma viúva... Nunca lhes contei o caso da viúva temperamental?

— Espero que ela tenha sentido sua falta quando você a deixou — sobreveio Jim, maldoso.

— Sentiu... sentiu a falta de alguns centímetros. O prato bateu na parede pertinho da minha cabeça.

Foi a única referência que ele chegou a fazer sobre a causa do rompimento com a viúva temperamental.

— Gosto de ver as pessoas casarem cedo — prosseguiu. — Quando têm idade suficiente para se divorciarem, já estão acostumadas.

— Você não está muito alegre esta noite, Sooper — observou Jim, rindo-se a despeito de si mesmo.

— Nunca estou alegre a esta hora do dia. Quando passaram pelo palácio de St. James, a sentinela ficou em posição de sentido e apresentou armas. Sooper tirou o chapéu, num gesto solene.

— Ele estava fazendo continência para o oficial na outra calçada — explicou a moça.

Sooper abanou a cabeça com expressão melancólica.

— E eu a imaginar que o reconhecimento chegara, finalmente — disse ele. — Se me dessem tudo aquilo a que faço jus, ps sinos das igrejas repicariam todas as vezes que entro em Londres.

Depois da terceira xícara de chá no restaurante ao ar livre, ele fez uma referência passageira ao assunto que o trouxera a Londres. A seguir, com característica brusquidão:

— A torta foi preparada, moça. Não vou fingir que não... De qualquer maneira, a senhorita não me acreditaria.

— Quer dizer envenenada? — inquiriu ela, empalidecendo.

Sooper confirmou vigorosamente, com um aceno de cabeça.

— Tenho a impressão de que alguém não quer que seu pai recupere a razão. Talvez tenha visto muita coisa daquela sua cavernazinha. Na realidade, inclino-me a pensar que foi algo que ele viu antes de ficar... antes que sua mente mudasse. Não adianta perguntar quem fez isso, porque não posso dizer-lhe, e, ainda que lhe dissesse, não tenho provas para prendê-lo.

Seus olhos puseram-se a vagar pelas mesas vizinhas.

— Quando eu era um jovem policial, nunca me passou pela cabeça andar por aí como um cavalheiro, tomando sorvete — observou.

Tão rápida foi a transição de um assunto para outro que a moça ficou atônita, mas Jim, que conhecia os estranhos hábitos de Sooper, seguiu-lhe a direção dos olhos.

Numa das últimas mesas avistou um rosto familiar.

— Você trouxe Lattimer aqui? Sooper sacudiu a cabeça.

— Tomando sorvete! — repetiu, com azedume. — Como uma menina! Ora, quando eu tinha a idade dele, tomava, sociável e varonilmente, um copo de cerveja.

— Ele o viu? — perguntou Jim, abaixando a voz.

— É claro que me viu. Aquele Lattimer vê tudo. É parecido com a conhecida aranha que tem quarenta milhões de olhos, ou talvez quatro milhões.

Entretanto, se Lattimer o viu, não demonstrou. Estava, com efeito, entretido em tomar um vastíssimo sorvete e não se encolheu suficientemente quando Sooper se aproximou e sentou-se à sua frente. Olhando na mesma direção, Jim viu o velho falar, e, pela sua expressão, adivinhou que ele estava com o seu humor mais vitriólico, pois, enquanto Sooper voltava, formalizado, Lattimer chamou a garçonete, pagou a conta e escafedeu-se.

— Eu dei àquele sujeito severas instruções para não deixar o posto — disse ele —, e aqui o vejo tomando sorvete como uma menina! O senhor tem horas, Sr. Ferraby? Não tenho relógio. Já se falou em me dar um de presente, mas a história ficou nisso. Se algum dia topar com um relógio velho, de que não precise, quer mandá-lo para mim?

Quando Jim lhe disse as horas, ele levantou-se.

— Agora preciso ir; deixei meu veículo de recreio na Bayswater Road; é apenas a um passo daqui.

Com uma inclinação para a moça lá se foi ele, antes que ela pudesse formular sequer uma das perguntas que decidira fazer-lhe.

Do lugar em que estavam, podiam divisar a rua e a ponte que passava por cima do lago. Quando Sooper se afastou, Jim viu um homem atravessar a rua e segui-lo a respeitosa distância. Era Lattimer.

— O que será que ele está fazendo? Sooper disse que o mandou de volta ao posto, mas ele não me parece muito apressado.

Esperaram mais meia hora, conversando sobre uma infinidade de assuntos e, em seguida, encaminharam-se para o carro estacionado na rua. Jim estava entrando no automóvel quando alguém o interpelou, chamando-o pelo nome.

— Desculpe-me, Sr. Ferraby — disse uma voz. Olhou à sua volta e deu com um rosto desconhecido,

que, todavia, pareceu conhecer. Do sapato furado ao chapéu sovado, via-se-lhe a palavra "vagabundo" legivelmente escrita em todas as peças do vestuário.

— Não se lembra de mim? Sullivan. Sou o cavalheiro que o senhor teve a bondade de acusar em Old Bailey.

— Misericórdia! — murmurou Jim. — Você é o animal que devia estar cumprindo pena!

— Exatamente — volveu o homem, imperturbável. — O senhor não teria, acaso, por aí o preço de uma cama? Há uma semana que estou dormindo ao relento.

Jim, que não tinha sentimentos em assuntos desse gênero, relanceou os olhos em torno, à procura de um policial, mas Sullivan, evidentemente, tomara a precaução de reconhecer o terreno com idêntica finalidade. Jim viu o sorriso que tremia no canto da boca da jovem e voltou-se para ela, num gesto de impotência.

— Este é o "pobre sujeito" a quem você se referiu uma vez, Elfa. Lembra-se de que eu o acusei?

— Aliás, muitíssimo bem — acudiu Sullivan, insinuante.

Nisso, Jim avistou, aproximando-se, uma figura oportuníssima. Era um policial. Sullivan também o viu.

— Se o senhor me der um par de xelins — rogou ele, com rapidez e veemência —, estará me fazendo um grande favor. O único dinheiro que ganhei foi a meia coroa que recebi, ontem à noite, de um cavalheiro para levar uma torta a Trafalgar Square.

O policial se aproximava quando Sullivan se voltou para fugir, mas o braço de Jim o reteve.

— Venha cá, meu amigo. Que história é essa que você me contou a respeito de uma torta? Quem foi que lhe deu a torta?

— Um sujeito... eu nunca o tinha visto. Acercou-se de mim no Embankment e perguntou-me se eu gostaria de ganhar alguns xelins... eu não mentiria para o senhor, é a pura verdade... Levando um embrulho ao serviço de entregas do distrito.

— Você viu o rosto dele? — apressou-se Jim a perguntar.

Sullivan abanou a cabeça. A esse tempo o guarda já o considerava com expressão de poucos amigos. Jim voltou-se para ele e, em poucas palavras, apresentou-se e contou-lhe a essência da história do vagabundo.

— Sim, senhor, essa investigação foi incluída na ordem do dia — confirmou o patrulheiro e fez sinal a Sullivan. — Vamos dar um passeio — ajuntou.

Naquela noite, Sullivan foi levado para uma entrevista com Sooper. Sua história tinha muitos pontos decepcionantes. Em primeiro lugar, não vira o rosto do estranho, e, em segundo lugar, não estava preparado para identificá-lo de outra maneira.

— Ele me falou em tom decisivo e oficial. A princípio, pensei que fosse um tira... quero dizer, um detetive.

— Fale como quiser — tornou Sooper, delicado. — Estou suficientemente familiarizado com o linguajar das classes inferiores para saber o que é um "tira". Parecia um detetive, é?

— Parecia, sim, senhor, pelo jeito como me deu as ordens.

Sooper voltou-se para o policial que conduzira Sullivan ao posto.

— Ele foi identificado pelo mensageiro? Ótimo! Se bem me lembro, o Sr. Ferraby me contou que ele lhe pediu o preço de uma cama, não foi? Pois terá uma cama esta noite, e não lhe custará nada. Ponha-o no refrigerador até que morra congelado — ordenou Sooper, com gesto senhoril, e Sullivan saiu a lamuriar-se.

 

Clorofórmio

O Sr. Gordon Cardew era um leitor onívoro e, depois que deixara a prática da advocacia, devorara mais livros do que os que contém a biblioteca de um cidadão comum. Tinha o hábito de levar um livro consigo para a cama, pois não dormia muito bem, e de reiniciar a leitura, às primeiras horas da manhã, no ponto em que a interrompera na véspera. Nos últimos anos, seus estudos haviam-se dirigido exclusivamente para o ramo da ciência cuja menção nunca deixava de despertar os motejos de Sooper. No entanto, a antropologia pode ser um assunto fascinante, e as histórias desataviadas de antigos criminosos, mais excitantes do que a mais atualizada das ficções. Cardew descobriu que não se passava um dia em que não aumentasse sua provisão de conhecimento e não se lhe dilatasse a visão do criminoso, de seus métodos e da sua psicologia.

Ainda estava na cama, com o bem-intencionado porém mal dirigido tratado de Mantegazza sobre fisiognomonia aberto entre os joelhos, a mente ocupada pelas teorias do grande criminologista e pelo inquérito judicial interrompido, que seria reiniciado dali a poucos dias, quando a empregada lhe trouxe o chá da manhã e colocou-o sobre a mesa, ao lado da cama.

— O Sr. Minter está lá embaixo.

— Minter? Céus! — bradou Cardew, erguendo-se num salto. — Que horas são?

— Sete e meia.

— Minter, a esta hora? Diga-lhe que descerei daqui a poucos minutos.

Enfiou-se no roupão, calçou os chinelos e, levando o chá na mão, desceu para encontrar Sooper sentado, muito teso, numa cadeira do vestíbulo.

— Tenho um cara na cadeia chamado Sullivan — disse Sooper, indo diretamente ao ponto. — Acho que o senhor não se lembra dele. Tentou assaltar a casa de Elson...

— Lembro-me das circunstâncias. Naturalmente, foi o homem que o Sr. Ferraby acusou.

— E foi por isso que ele saiu — voltou Sooper, maldoso. — Prenderam-no ontem à noite. Não me importa dizer-lhe que estou muito aborrecido, Sr. Cardew. E não teria vindo aqui porque, sinceramente, não acredito em teorizações, antropologias, e troços assim. Mas o senhor é advogado, eu sou um velho ignorante, e algo me diz que esse sujeito está escondendo qualquer coisa de mim, que ele sabe mais do que quer dizer. Tentei tudo o que foi possível para persuadi-lo a falar, menos arrancar-lhe a cabeça, mas ele não fala o que eu quero que ele fale. Ora, para dizer a verdade — continuou, com um esforço óbvio —, sempre fiz troça de suas idéias e opiniões, porque sou um policial antiquado, com métodos antiquados; e toda essa história de lentes de aumento e sonatas de "Chopping" não significou nada em minha mocidade. Mas sou um homem de espírito largo e nunca parei de aprender.

Fez uma pausa e pareceu esperar que Cardew dissesse qualquer coisa.

— Bem, o que quer que eu faça?

— O senhor é advogado — repetiu Sooper, obstinado —, está acostumado a botar o sujeito no banco das testemunhas e virá-lo do avesso.

— E você quer que eu o interrogue? Mas isso é absolutamente irregular! Por que não pede ao Sr. Ferraby, que é do Ministério Público?

— Ele acusou publicamente Sullivan e Sullivan foi absolvido — disse Sooper em tom depreciativo. — Está visto que o senhor não teria obrigação de ir, mas tive uma idéia. No meio da noite — ajuntou. — É estranho como as idéias açodem ao espírito de um homem no meio da noite.

— Precisamente — acudiu o Sr. Cardew, com veemência. — Se você estiver lembrado, minha teoria sobre o assassinato me ocorreu às duas horas da madrugada.

— Não me lembro da hora exata, mas me parece que me lembro de que isso aconteceu.

O Sr. Cardew refletiu no assunto durante algum tempo.

— Muito bem — prometeu —, se você acha que não há inconveniente em que eu interrogue o homem, irei, embora o advirta de que estou inteiramente desabituado da prática criminal.

Sooper não disfarçou o alívio.

— Estive virando na cama preocupado com esse Sullivan... É um verdadeiro salafrário; muita gente me julgaria incapaz de rebaixar-me a pedir conselhos, mas não sou dessa espécie. A gente pode recolher idéias de quase todo o mundo; basta, para isso, querer fazê-lo.

Ele parecia bem-aventuradamente inconsciente de que o seu discurso carecia de polidez. Mas o Sr. Cardew não se sentiu ofendido.

— Diga-me agora qual é o crime de que o homem foi acusado e o que você deseja descobrir.

— Tentativa de morte — disse Sooper —, cumplicidade ativa. — E, vendo o olhar de surpresa que lhe dirigia o advogado, desenvolveu a acusação, mas foi conciso nos pormenores.

— Esse Sullivan recebeu uma tortazinha de cerejas de um estranho, no cais do Tâmisa. Cumpria-lhe levar a dita torta ao serviço de entregas com uma carta, e a carta e a torta deviam ser levadas a uma casa de saúde na Weymouth Street. Nessa torta havia veneno... aconitina. O tal Sullivan diz que não conhece o homem que lhe deu o embrulho e mente como um cão! E, embora eu seja indubitavelmente um sujeito esperto, não consigo pô-lo contra a parede.

O Sr. Cardew franziu os lábios.

— Uma história extraordinária — disse, por fim; — você está falando sério mesmo... ? Não está... digamos... querendo enganar-me?

— Eu quisera estar — confessou Sooper. — Não que seja capaz de fazê-lo, mas quisera estar!

Com o queixo na mão, o advogado parecia pensativo.

— Uma história notável... nem parece possível que, em pleno século XX, no próprio centro e lar da civilização...

— E da cultura — ajuntou Sooper, aproveitando-se da pausa.

— Tais coisas possam acontecer. Muito bem, superintendente, verei esse homem, e meus fracos préstimos estarão à sua disposição. Você não estará, de maneira alguma, ligando o homem ao assassinato?

— É claro e certo que estou — respondeu Sooper. Voltou ao posto e despertou Sullivan, que dormitava.

— Acorde, rapaz, esta é a sua última hora sobre a Terra — disse ele. — Coragem, mon onfons... Isto é francês, meu pobre calaceiro.

Sullivan sentou-se no banco duro e esfregou os olhos.

— Que horas são? — perguntou, sonolento.

— O tempo não é nada para você, vagabundo... e daqui por diante será menos ainda — voltou o plácido Sooper. — Há um advogado de primeira classe que vem aqui para virá-lo do avesso e, olhe lá, rapaz, não minta para ele, porque é um colosso em psicologia e capaz de ver por dentro seu negro coração. E, o que é mais, você lhe dirá tudo sobre o homem que encontrou no Embankment... e a verdade!

— Não me lembro do homem — recalcitrou o assustado Sullivan; — acha que eu não lhe diria se me lembrasse?

Sooper meneou com tristeza a cabeça.

— Você nunca ouviu falar em fogo e em ranger de dentes, e no que acontece a um sujeito que não sabe dizer a verdade? Não teve mãe que lhe ensinou alguma coisa?

— Não sei, por isso não posso dizer-lhe! — Sullivan quase berrou as palavras. — Seu advogado que vá para o inferno.

— Espere só! — advertiu Sooper, e trancou o prisioneiro a chave.

Encaminhou-se para a entrada do posto a tempo de ver o automóvel de Cardew descendo a rua, à toda. Com um gemer de freios, estacou e um chofer aturdido pulou na calçada.

— Superintendente, quer fazer o favor de vir imediatamente?... O Sr. Cardew foi cloroformizado no quarto...

— Por que não telefonou? — berrou Sooper, furioso, ao pular para dentro do carro.

— Os fios foram cortados — disse o homem, e Sooper mostrou os dentes.

— Esse Big Foot pensa em tudo! — murmurou.

 

— Voltei ao quarto e deitei-me na cama para refletir sobre o seu insólito pedido — explicou o Sr. Cardew. O homem estava cor de giz e passara, de fato, muito mal.

Tinham-no estendido sobre uma otomana e a sala recendia a clorofórmio.

— Devo ter cochilado... Não dormi muito bem esta noite, e não tenho lembrança de que houvesse acontecido coisa alguma até que senti meu criado sacudir-me o ombro. Ele entrou no quarto por acaso e, aparentemente, me viu deitado com um pedaço de pano dobrado sobre o rosto. O cheiro deve ter perturbado o assaltante, porque o criado encontrou a janela escancarada.

Sooper dirigiu-se à janela e olhou para fora. Viu um objeto brilhante sobre o canteiro de flores, logo abaixo, e, descendo ao rés-do-chão, foi buscá-lo. Era um frasco quebrado, em que se lia o rótulo: "Clorofórmio BPC". Havia sido recentemente aberto e as emanações do conteúdo estavam destruindo rapidamente as flores entre as quais caíra o frasco.

Sooper ergueu os olhos para a janela aberta. Seria fácil saltá-la. Não havia pegadas no estreito canteiro debaixo da parede, mas quem quer que pulasse pela janela pularia inevitavelmente por cima do canteiro e cairia no caminho de cascalho.

Olhou para o rótulo do frasco. Trazia no canto as iniciais de um fabricante conhecido e dificilmente se descobriria quem o vendera. O fio do telefone corria pela parede naquele lugar ao alcance de um homem de altura normal. Fora perfeitamente cortado.

— O mesmo alicate que cortou o meu fio — observou Sooper.

Voltando para junto do advogado, encontrou-o já tão melhor que tivera forças para sentar-se numa cadeira.

— O senhor não tinha visto ninguém no jardim... Onde estava seu jardineiro-chefe?

— Hoje cedo, está plantando vasos; nenhum dos criados que trabalha fora da casa estaria por aí. Ouvi, de fato, um barulho rascante quando me deitei, mas não lhe dei muita atenção.

— A janela estava aberta?

—- Meio aberta e segura com um gancho, que poderia ser facilmente levantado do lado de fora. Estava escancarada quando meu criado entrou.

Sooper examinou o pano dobrado. Se bem que o clorofórmio seja um dos líquidos mais voláteis, a fazenda ainda se achava úmida entre as dobras. Retirou o travesseiro sobre o qual descansara a cabeça do advogado e, em seguida, olhou debaixo da cama. Embora se sentisse mal, o Sr. Cardew sorriu.

— Não, eu não esperava encontrá-lo ali — disse Sooper impermeável ao ridículo —, mas tinha a impressão de que encontraria alguma coisa. Eles não arranharam suas mãos, arranharam?

— Arranharam minhas mãos? Mas, afinal... Sooper examinou-lhe as mãos, dedo por dedo, à sua maneira de míope — enxergava muito bem no escuro, e muita gente, inclusive Lattimer, considerava essa mania de olhar de perto como simples pose.

— Imaginei que haveriam de arranhar-lhe as mãos. — Parecia desapontado. — Isso transtorna uma das minhas teorias... estou arrumando teorias muito depressa. Terei de dar-lhe a proteção da polícia, Sr. Cardew.

— Não me dará coisa nenhuma — protestou o advogado, com vigor. — Sou perfeitamente capaz de proteger-me.

— É o que parece — foi tudo o que Sooper respondeu.

 

O mandado de prisão

A tarefa que seria da atribuição do Sr. Cardew coube a Jim Ferraby, peremptoriamente chamado de Whitehall, segundo supôs, para uma consulta importante. Os funcionários do Ministério Público não estão sujeitos às exigências autocráticas de superintendentes da polícia. A irregularidade do processo ocorreu-lhe ao espírito quando Jim Ferraby se achava a caminho e foi enfatizada pela frieza da solicitação de Sooper.

— Mas, meu caro amigo — acudiu Jim, irritadiço —, você não pode aplicar sistemas violentos de interrogatório neste país! Sooper, você ainda me fará enforcar!

— Pois não descansarei enquanto não vir alguém enforcado, Sr. Ferraby — volveu o homem, imperturbável. — Eu não precisaria incomodá-lo se o Sujeito Que Pensa em Tudo não tivesse pegado o maior antropologista do século no momento em que este ia arrancar as vísceras desse ladrão sujo.

— O Sr. Cardew? Que aconteceu a ele? — perguntou Jim.

Sooper ria-se tão poucas vezes, que Jim o fitou, pasmado.

— Big Foot pegou-o... o esperto. Aquele sujeito não tem pés só, tem miolos também. Tudo indica que estava na casa, ouvindo, enquanto eu conversava com o Sr. Cardew. E eu sabia que alguma coisa aconteceria a Cardew esta semana. Creio que eu devia ter mandado um esquadrão para protegê-lo — prosseguiu —, mas quem diria que eles atacariam um sujeito que mantém boas relações com Lombosso, ou sei lá como se chama esse italiano?

Jim considerou-o, desconfiado. Nunca sabia com certeza quão próximo do riso estava Sooper nos momentos mais solenes.

— Conte-me o que aconteceu — disse ele, e Sooper fez-lhe uma descrição assaz gráfica da infeliz experiência de Cardew.

A pedido do velho, entrou na cela e, durante uma hora, inquiriu e reinquiriu o colérico vagabundo. Sooper deixou-o entregue ao seu afã.

— Eu não esperava que o senhor fosse bem sucedido — confessou ele, quando Jim foi contar-lhe seu insucesso. — Naturalmente, aquele sujeito tem complexo de superioridade em relação ao senhor. Já levou a melhor uma vez. Nunca imaginei que conseguisse fazê-lo falar.

— Mas, meu caro amigo, Sullivan está dizendo a verdade — tornou Jim, exasperado.

Sooper cerrou os olhos com expressão de cansaço.

— O senhor talvez acredite nisso. É uma pena. — Tornou a sacudir a cabeça. — Não vá embora, Sr. Ferraby!

— Vou, sim — disse Jim. — E, francamente, Sooper, não sei por que cargas d'água você me trouxe aqui.

Sooper ergueu os olhos para o relógio de parede; os ponteiros indicavam três horas e cinqüenta e oito minutos.

— Andei lutando e pelejando comigo mesmo a tarde toda — disse ele. — A justiça versus a ambição pessoal. E a justiça venceu.

Abriu a escrivaninha e dali retirou um papel azul em branco. Preencheu-o laboriosamente, enquanto Jim o observava, imaginando se aquele não seria um dos gestos de Sooper para mandar embora os outros.

— Não vá. Como funcionário do Ministério Público creio que pode assinar isto aqui.

Jim olhou para o documento que lhe fora entregue. Era um mandado de prisão contra Elson, sob a acusação de apropriação indébita!

— Você quer mesmo que eu assine isto?

Sooper assentiu com a cabeça.

— Quero, sim, senhor. De acordo com os meus conhecimentos, o senhor também é juiz de paz.

— Mas apropriação indébita do quê?

— Só o saberei depois que o prender — disse Sooper. — Sr. Ferraby, estou assumindo um risco. Mais tarde farei o juramento de praxe. Dê-me agora esse mandado.

Jim hesitou por um segundo, tomou da caneta e rabiscou o nome na página em branco.

— Ótimo! — exclamou Sooper. — A justiça venceu. Venha comigo e verá uma coisa.

Uma criada respondeu à batida e convidou-os a entrar no vestíbulo, antes de subir. Ouviram-na bater à porta de Elson no segundo andar e, pouco depois, tornar a descer.

— O Sr. Elson não está na casa — disse ela. — Talvez esteja passeando no jardim. Se quiserem esperar aqui...

— Não se incomode, moça — atalhou Sooper. — Nós o encontraremos. Sei orientar-me nesse jardim.

Não havia sinal de Elson. A rapariga, que ficara em pé, à porta, aguardando-lhes o regresso, sugeriu que ele talvez estivesse no "mato", uma nesga de capoeira, inculta, que ajudara, de uma feita, um vagabundo cantor a escapulir. O mato, assim adequadamente chamado, estendia-se no sopé de uma encosta suave, além do muro vermelho, e da crista da encosta se poderia ver qualquer objeto que se movesse, pois a maior parte das moitas não ultrapassava a altura dos ombros de um homem.

— Eu não gostaria de pensar que ele conseguiu fugir — disse Sooper.

— Mas em que se baseia realmente a acusação?

— Apenas o quero, nada mais — tornou Sooper. — Tenho a impressão de que ele se mudou hoje cedo.

— Você o quer em conexão com o assassinato? Sooper fez que sim com a cabeça.

— Mas não pretende acusá-lo do assassinato... Certo?

— Certo — conveio Sooper. — O senhor está adivinhando quase tudo.

Protegendo os olhos com a mão, olhou por cima da capoeira.

— Há um caminho que corre para a esquerda — disse, de repente —, e não nos fará mal nenhum caminhar até o limite da propriedade.

O que Sooper descrevia como "caminho" não passava de uma trilha estreita, que se enovelava e emaranhava, passando, às vezes, por depressões, seguindo ocasionalmente uma linha paralela à cerca da divisa.

— Não creio que ele esteja aqui — disse Jim. — Acha mesmo que se foi?

Nisso, para seu assombro, Sooper investiu contra ele.

— Que adianta fazer perguntas? — bradou, tomado de cólera súbita. — Não vê que esse negócio está em cima de mim? — Em seguida, recuperando o maravilhoso domínio de si próprio, arreganhou os, dentes num sorriso. — Comece a bater-me desde já, Sr. Ferraby, porque eu o mereço. Hoje estou temperamental. Temperamental como há muitos anos não estive.

— Sinto muito tê-lo aborrecido — desculpou-se Jim —, mas estou tentando compreender-lhe o pensamento.

— Não vale a pena, Sr. Ferraby.

Jim ergueu a mão, ordenando silêncio. De algum lugar do mato vinha um som peculiar, o "ploc! ploc! ploc!" de um machado contra uma árvore.

— Ele está cortando lenha — disse, mas Sooper não respondeu.

Depois de andarem cinco minutos, viraram uma dobra do caminho, que conduzia a uma depressão em forma de pires, e ali lhes foi necessário afastarem as moitas para poderem avançar. Sooper entrou primeiro e estacou, segurando os galhos para o outro passar. A princípio Ferraby cuidou que fosse um ato de poli-dez, mas, ato contínuo, olhando para a frente, viu a figura encolhida no caminho e o charco de sangue em que jazia. Elson! Sooper aproximou-se, pé ante pé, e virou o vulto de costas.

— Baleado uma, duas, três vezes — disse, calmamente. — Elson, eu deveria tê-lo prendido hoje cedo e salvado sua vida!

 

Atocaiado

— Pelo amor de Deus, quem fez isso? — perguntou Ferraby, horrorizado.

Ajoelhado ao pé do corpo, Sooper ergueu os olhos com uma expressão plácida, que parecia chocantemente insensível.

— Quem fez isso? — A voz era tão baixa que Jim precisou apurar os ouvidos. — O mesmo homem que cloroformizou Cardew. O mesmo homem que matou Hannah Shaw, o mesmo homem que entregou a torta àquele peixe humano no tanque... O mesmo cérebro, a mesma mão, o mesmo motivo. É coerente. Sou até capaz de admirar um homem assim. E pensa em tudo. Não fique em pé, Sr. Ferraby. Não estou ajoelhado aqui por reverência, mas por amor da segurança. Um de nós precisa voltar vivo, no interesse da justiça.

Um calafrio percorreu a espinha de Jim.

— Ele está aqui... nestas moitas? — sussurrou. Sooper assentiu com a cabeça.

— O assassinato foi cometido há menos de dez minutos. Lembra-se do "ploc-ploc-ploc" que ouvimos? Pensou que fosse alguém cortando árvores. Não era. Era um revólver com um silenciador, mais nada.

Enquanto falava, os olhos procuravam devassar a vizinhança imediata, os ouvidos atentos buscavam captar o som da terra pisada ou do roçagar de uma folha.

Pouco depois, percebendo a busca que o velho realizava, Jim viu-o concentrar-se num trecho de tojo — uma mancha dourada mais para a esquerda. Sua mão-zorra estendeu-se furtivamente na direção da moita pela qual tinha vindo.

— Pule! — silvou ele. E enquanto Jim Ferraby, o corpo gelado, tropeçava e saltava em busca de refúgio, Sooper atirou-se de borco ao solo.

Ploc... ploc!

Qualquer coisa sibilou junto da cabeça de Jim, que ouviu o palpitar staccato de vergônteas partidas e folhas decepadas. No segundo seguinte, Sooper mergulhava na moita, atrás dele.

— Corra! E conserve a cabeça baixa!

Os dois desembestaram pelo caminho, rumo ao resguardo de um grupo de arbustos e dali para a proteção de um segundo abrigo.

— Mais devagar... ele não nos seguirá — sobreveio Sooper, voltando a caminhar normalmente. — Eu não o teria visto, mas vi um passarinho que pretendia pousar naquele ramo e mudou de idéia de repente. Sempre gostei de pássaros. Pus vinte pintinhos na incubadeira hoje cedo... é contra a natureza, mas vale a pena.

A última coisa que Jim Ferraby desejava discutir era a granja de Sooper.

— Onde está ele agora? — perguntou, olhando para trás por cima do ombro.

— Ele... oh, está procurando safar-se. Não esperou depois de atirar. Eu devia trazer uma arma, mas sou antiquado. Esta noite darei a Cardew proteção policial... Já devia tê-lo feito antes.

— Acha que ele corre perigo?

— Claro — apressou-se a dizer o outro. — Percebi que ele corria perigo desde que principiou a teorizar em público sobre a maneira pela qual o assassino entrou no chalé. Embora não fosse totalmente certa, sua teoria era bastante exata para lhe ser perigosa.

Chegados à encosta, Sooper mal se deteve para olhar para trás, por cima da ramaria verde das moitas.

— Ele se foi — disse. E, durante dez minutos, não fez outra coisa senão falar pelo telefone de Elson.

Pouco depois que terminou suas diversas comunicações, principiaram a chegar os policiais, de bicicleta, em automóveis da polícia e um grande grupo na ambulância do hospital. Uns poucos vinham armados, e com esse grupo Sooper voltou ao mato e ao lugar onde encontrara Elson. Deixara o corpo de bruços, mas os bolsos não haviam sido revirados como agora estavam.

— Nós o interrompemos ao chegar, e ele se deitou no chão esperando a vez de terminar a boa obra. Alguém viu Lattimer?

— Não estava no posto quando saí — informou um sargento uniformizado. — Deixei recado para que viesse aqui.

Sooper não disse nada.

Endereçando-se à moita de tojo, rodeou-a, olhos fitos no chão. As cápsulas estavam lá, à vista de todos, mas, além de fazer um gesto ao policial que o acompanhava para que as pegasse, não lhes deu maior atenção. Não parava de farejar e fungar, como um cachorro velho.

— Tenho um nariz maravilhoso — confidenciou, dirigindo-se a Jim. — Não está sentindo nada?

— Não... a não ser o rojo.

Sooper não ministrou novas informações; continuava à procura de alguma coisa, separando moitas, erguendo gavinhas que se espalhavam, remexendo com os dedos os destroços que as estações haviam deixado sobre o chão.

— Ele deve tê-lo levado — calculou. — Eu contava com a sua fuga precipitada. Mas é muito previdente.

— O que é que você esperava encontrar? — perguntou Jim, curioso.

Sooper ficou de cócoras — estivera ajoelhado até então — e olhou para o rosto de Ferraby.

— Seu chaveiro ou... Aqui está ele!

Tirou de baixo de uma moita um objetozinho dourado. Jim reconheceu-o instantaneamente, se bem que não o visse havia muito tempo.

— Meu isqueiro! — exclamou.

— Lembra-se de quando o perdeu?

Jim lembrava-se muito bem. Fora num domingo, dois anos antes. Fora visitar Sooper, a caminho de Londres, e dera pela sua falta ao chegar.

— Julguei tê-lo deixado cair no Bentley, e Lattimer vasculhou o carro. Mas como foi que ele veio parar aqui?

— Ele o deixou... Big Foot. Deixou qualquer coisa na casa da praia. Imaginei que seria uma lembrancinha sua... Não me surpreenderia se ele tivesse deixado um par de óculos de Cardew. Mas não se atreveria a fazer isso, pelo menos com ele!

— E o que foi que ele deixou na casa da praia? — perguntou Jim.

— Os pés.

Um médico estava examinando o corpo quando eles voltaram e já dera ordens para que o retirassem.

— Vamos dar um passeiozinho — convidou Sooper, e tornou à moita de tojo. — Ele foi por aqui — ajuntou, apontando para um espaço entre as amoreiras. — Siga-me e verá como faz um sabujo.

O rapaz começava a sentir-se fisicamente mal. O sol estava quente; havia em suas narinas o cheiro forte da morte. Sooper, por outro lado, poderia estar discutindo uma partida de tênis que tivesse perdido, tão respeitoso se mostrava em relação ao homem que o iludira.

— Tenho a impressão de que o senhor também devia receber a proteção da polícia, Sr. Ferraby — disse ele —, e estou absolutamente certo de que ninguém precisa mais dela do que eu. Ao mesmo tempo, existe a possibilidade, se eu me expuser, de apanhar Big Foot antes que os médicos comecem a ocupar-se de Leigh.

— Tanta coisa assim depende dessa operação? Sooper anuiu com um gesto de cabeça.

— Se Leigh estivesse no estado normal, a coisa toda seria tão simples, que até um recruta policial seria capaz de esclarecer o caso. Nas atuais circunstâncias, não tenho provas, somente suspeitas. Ora, os júris não gostam de suspeitas. Querem duas testemunhas que assistiram à prática do crime e tiraram uma fotografia do sujeito no ato de praticá-lo. E têm razão. Conhece o carrasco? — perguntou, de repente, enquanto progredia com esforço ao longo da trilha, entre as moitas.

— Ainda não tive esse prazer.

— Bom sujeito — disse Sooper. — Não é metido a importante. Conheci um carrasco que exigia patê ao desjejum, mas esse novo é de tomar cerveja e comer queijo, simplesmente. Tão modesto quanto se poderia desejar. Tem um salão de barbeiro em Lancashire. Fez-me a barba muitas vezes.

Jim estremeceu.

— Se os processos fossem levados ao tribunal por mera suspeita — disse Sooper continuando a desenvolver seu argumento —, esse camarada não teria outro ofício senão fazer a barba dos outros, atividade pouco rendosa, sobretudo numa aldeia de mineiros de carvão. É bom sujeito; eu gostaria de arranjar-lhe um serviço.

Jim descobriu que Sooper costumava falar enquanto pensava e que o falar o ajudava consideravelmente. O assunto sobre o qual discorria e o que trazia em mente não tinham relação alguma entre si.

— É curioso — prosseguiu o policial — que, quando um homem comete um crime muito inteligente, toda a gente diz que ele deve estar louco. Seria de se esperar encontrar Big Foot com palha nos cabelos... Ele virou aqui — acrescentou, de improviso, e, erguendo os galhos de uma macieira silvestre nova, arrastou-se para uma clareira coberta de relva. Diante deles se erguia uma cerca comum de arame. Debruçado sobre ela, Sooper examinou em ambos os sentidos a estrada funda, que separava as duas propriedades.

— Aquele é o campo de Cardew — mostrou Sooper. — Não está tão sujo quanto isto aqui... Será que ele ainda está vivo? — perguntou calmamente. Jim sentiu-se chocado.

— Você acha que... ? — não completou a sentença.

— Nunca se sabe — sentenciou Sooper, transpondo a cerca e descendo, cauteloso, a íngreme inclinação que levava à estrada poenta. Em seguida, examinou cuidadosamente a estrada.

— É suficientemente estreita para se pular. Ao mesmo tempo, se caminhássemos sobre a grama... Alô!

Um homem descia descansadamente a estrada, com a ponta de um charuto entre os dentes e o chapéu no cocuruto da cabeça.

— Parece que é Lattimer que vem trabalhar — observou Sooper com acrimônia. — Ninguém diria que o apito da fábrica soou há meia hora.

— Boa tarde, meu ousado sargento — saudou ele, quando o policial lhe chegou ao alcance da voz. — Foi a um casamento?

— Não, senhor, só agora fiquei sabendo que houve encrencas por aqui.

— Só agora? — perguntou Sooper, sardônico. — Era por isso que vinha correndo feito louco?

— Não achei que fosse necessário correr, Sooper — tornou o outro friamente. — Um dos criados da casa contou-me o que aconteceu e tive a idéia de descer pela estrada da divisa na esperança de encontrar uma pista. É óbvio que ele deve ter entrado por este lado do mato.

Sooper não replicou.

— Posso colher alguma coisa aqui? O velho apontou para a estrada.

— Há muita poeira ali se quiser fazer coleção — disse ele. — Vá à casa do Sr. Cardew, conte-lhe o que aconteceu, e não saia de perto dele até que eu mande alguém substituí-lo. Não o deixe afastar-se das suas vistas, e mande patrulhar a casa durante a noite. Entendeu?

— Entendi, sim, senhor. E devo dizer ao Sr. Cardew que ele está sob a proteção da polícia?

— Diga-lhe o que quiser — voltou Sooper. — Mas quando ele o vir sentado à porta da casa, talvez adivinhe. E, sargento, se ele quiser ir até o mato para tomar medidas, distraia-o, mas não o deixe ir se não houver bastante gente no jardim. Faça-o responsável pela vida dele. E se o encontrarem morto no quarto, não aceitarei desculpas.

— Sim, senhor — conveio Lattimer. Ato contínuo, virando-se, desandou o caminho andado.

Jim ficou a observá-lo até que ele desapareceu na estrada principal.

— Lattimer é um bom sujeito — comentou Sooper —, mas não tem instintos. Todos os animais têm instintos, inclusive os sargentos-detetives. Basta que os cultivem.

— Você confia muito em Lattimer, não confia, Sooper? — perguntou Jim tranqüilamente.

— Não confio em ninguém — foi a resposta surpreendente. — Eu talvez pareça confiar nele, mas aí está minha habilidade e minha astúcia. Para ser bom policial é preciso ser habilidoso e não confiar em ninguém. Nem mesmo na mulher da gente. Por isso mesmo os policiais nunca deveriam casar. Lattimer será um bom detetive mais cedo ou mais tarde, se não virar malandro. É uma tentação que atormenta todo jovem detetive. Ele anda em tão más companhias!

Voltaram lentamente a Hill Brow, onde Sooper se dedicou a vasculhar o quarto do morto. Encontrou pouca coisa importante além de uma passagem de navio, uma carta de crédito correspondente a uma soma vultosíssima e grande quantidade de dinheiro inglês. Não havia, praticamente, documentos nas gavetas da escrivaninha, exceto contas de fornecedores e a escritura da venda de Hill Brow. Sua secretária, uma mulher de meia-idade e aspecto anêmico, contou a Sooper que ele não tinha correspondência.

— Não creio que soubesse ler ou escrever muito bem, pobre homem! — choramingou ela. — E nunca me confidenciou seus negócios particulares.

— Talvez não tivesse negócios particulares — alvitrou Sooper.

No porão, onde se achava a fornalha, encontraram-se indícios comprobatórios das suspeitas do Sr. Cardew. A fornalha estava cheia de cinzas de papel queimado. Havia traços de dois livros, mas seria impossível dizer de quais livros.

— Ele, sem dúvida, possuía papéis de alguma espécie, quer os escrevesse, quer fossem escritos para ele; o certo é que os queimou. De fato, estava se preparando para uma mudança, na surdina.

Antes de regressar a Londres, Jim foi ver o advogado. Pareceu-lhe que o Sr. Cardew se achava muito menos confiante na própria imunidade contra o perigo do que se mostrara, consoante a decisão de Sooper, naquela manhã. Sentado na biblioteca, muito pálido, parecia prestes a saltar ao mínimo som, inexpressiva-mente agitado pelas notícias que Lattimer lhe trouxera.

— Tragédia sobre tragédia! — exclamou, em tom cavernoso. — Isto é medonho, Ferraby! Quem haveria de imaginar que o pobre Elson... — E não pôde prosseguir, sufocado. — Você sabe, naturalmente, que ele tinha sido avisado? O Sargento Lattimer contou-me a história. Um pedaço de papel colado na sua porta, ontem à noite.

Era evidente que o aviso preocupava Cardew tanto quanto o assassinato, se não mais, pois voltava sem cessar no assunto. Sua paixão pela investigação criminal sofrerá um colapso momentâneo. Jim viu o modelo coberto, sabendo perfeitamente o que era, mas Cardew parecia ter perdido o interesse por ele. Jim não fora informado da folha de papel colada na porta de Elson e pôs-se a conjecturar sobre por que o superintendente não julgara dever contar-lhe a notável ocorrência. Provavelmente, se Elson tivesse sido preso, o fato teria transpirado. Mencionou essa circunstância e Cardew arregalou os olhos para ele.

— Elson ia ser preso? Por quê? — arquejou. — O que foi que ele andou fazendo?

— Roubou qualquer coisa ou, pelo menos, tinha objetos roubados em seu poder. Não gostei muito de assinar o mandado: é a primeira vez que ponho meu nome nesse tipo de documento, mas Sooper insistiu tanto que acabei cedendo. Ele viera realizar a prisão quando descobriu o assassinato.

— Mas Elson ia ser preso? — repetiu Cardew, incrédulo. — Não consigo compreender. Minha cabeça é só desordem e confusão! Espero que não solicitem meu depoimento no inquérito judicial suspenso. Estou completamente aniquilado por este novo horror.

E, todavia, a paixão dominante havia de ser fortíssima, pois ele continuou:

— Será possível que Hannah e Elson estivessem realmente casados e algum rival desconhecido houvesse dado cabo dos dois? Conhecem-se casos semelhantes. — Fez um gesto de desespero. — Sou um idiota preocupando-me com essas coisas. Os homens como o superintendente estão muito melhor equipados, apesar de todo o meu saber e de todos os meus estudos. Estou começando a sentir minha própria inferioridade — ajuntou, com um pálido sorriso.

Lattimer estava sentado no jardim quando Jim saiu. Transportara uma cadeira para a sombra da amoreira e, aparentemente, cochilava, pois levou um susto quando Jim o chamou pelo nome.

— Graças a Deus não é Sooper! — disse ele. — Este lugar dá sono na gente.

Jim percebeu que, do lugar em que se colocara, ele avistava, ao mesmo tempo, a entrada principal de Barley Stack e as janelas do escritório de Cardew.

— Você também concorda com a opinião de Sooper de que o Sr. Cardew corre perigo?

Jim julgou discernir um quê de ironia na resposta.

— O senhor estava com Sooper quando o corpo foi encontrado, Sr. Ferraby? Como é que ele foi morto... a tiros?

— Sim — confirmou Jim, tranqüilamente —, e tivemos sorte de não termos sido encontrados com ele.

Lattimer abriu os olhos.

— Deveras? — exclamou, polido. — Ele, ou eles, ou seja lá quem for, alvejou os senhores também? Que sujeito corajoso! Sooper me pareceu meio irritado. Isso explica tudo. Os senhores, com certeza, não viram o homem que atirou, não é, Sr. Ferraby?

— Não — respondeu Jim. A pergunta afigurou-se-lhe um tanto supérflua.

— Sooper não o viu, nem julgou tê-lo visto? Sooper tem uma vista excelente, embora finja que não tem. Há dois anos, fingiu que ficara completamente surdo e conseguiu enganar metade da polícia. Atirou nos senhores, é? — prosseguiu, fitando em Jim o olhar especulativo. — Então é por isso que estão dando proteção ao Sr. Cardew! Esse Big Foot, sem dúvida, é de se tirar o chapéu. — Reprimiu um bocejo. — Dormi tarde ontem à noite — ajuntou. E, tirando um lenço do bolso, enxugou os lábios.

Jim percebeu uma leve fragrância.

— Eis aí uma vaidade que nunca imaginei que você tivesse, sargento — notou ele, bem-humorado.

— O perfume? — Lattimer cheirou a cambraia. — Minha senhoria pôs sachê entre meus lenços. Não creio que torne a fazê-lo.

Nisso, com uma sensação de frio no coração, o espírito de Jim voltou à cena do crime, e ele reviu Sooper farejando as moitas. Controlando a voz com esforço, estava a pique de fazer uma pergunta quando Lattimer lhe forneceu a resposta.

— Sooper faria um carnaval se cheirasse isso. Tem tanto faro quanto um cão de caça. Aquele homem é sobre-humano. — Tornou a bocejar. — Eu gostaria de pensar que vou cedo para a cama esta noite — rematou.

Já era tarde quando Jim Ferraby voltou a Whitehall, mas seu chefe ainda estava na sala e mandou chamá-lo assim que soube da sua chegada.

— Você parece andar tropeçando em assassinatos ultimamente, Ferraby — disse o velho Sir Richard. — O que é que há por dentro dessa história?

Jim contou-lhe o que sabia, o que não era muito satisfatório.

— Sooper está encarregado do caso — tornou o chefe, em tom pensativo. — Não poderia haver homem melhor. Ele anda muito misterioso?

— Desagradavelmente misterioso. O procurador riu. E assegurou:

— Então fique certo de que logo fará uma prisão. Quando Sooper se mostra aberto e franco é que as coisas vão mal.

Jim terminou seu trabalho, que o chamado de Sooper interrompera, e saiu, às pressas, à procura de Elfa. Ela ainda estava na casa de saúde quando ele chegou à Cubitt Street. Realizara-se uma conferência entre os cirurgiões, em que era preciso tomar certas decisões e para as quais se fazia mister o consentimento dela. A jovem parecia cansada quando os dois se encontraram na esquina da Cubitt Street.

— Só vão operar na semana que vem — disse ela —, e o Sr. Cardew me mandou um recado urgentíssimo, pedindo-me que vá a Barley Stack. Diz ele que tem um trabalho que precisa ser feito imediatamente, e que não pode sair de casa.

— Você não irá à casa de Cardew — voltou Jim, em tom peremptório. — Ele próprio está sob proteção da polícia e não posso permitir que você se arrisque.

Foi-lhe poupado o sofrimento de contar a ela a morte de Elson: Elfa já lera a notícia nos jornais da tarde, mas sua aflição pela saúde do pai era tamanha, que estivera preocupada demais para compreender o que acontecera.

— Eu mal o conhecia — disse ela —, mas, em outras circunstâncias, isso não me impediria de ir a Barley Stack. É que estou tão cansada, Jim, tão cansada!

— Cardew pode esperar — declarou ele, resoluto.

Mas era evidente que o Sr. Cardew não podia esperar. Quando Jim acompanhou a moça à sala de estar, o telefone tocava furiosamente. O advogado estava no aparelho. Assim que compreendeu quem era, Jim tomou-lhe o fone da mão.

— É Ferraby quem fala. Acabo de chegar com a Srta. Leigh. Ela está exausta. Não pode ir a Barley Stack esta noite.

— Convença-a a vir — instou a voz de Cardew. — Venha com ela, se quiser. Eu até me sentiria mais seguro se tivesse em casa uma pessoa conhecida.

— Mas isso não pode esperar?

— Não, não! O assunto é vital!

A aflição na voz do advogado transmitia-se pelo fio telefônico.

— É absolutamente necessário que eu ponha em ordem meus negócios já.

— Mas o senhor acredita que haja algum perigo muito grande?

— Estou certo de que há — foi a resposta terminante. — Quero ter tudo concluído e a moça fora da casa antes que surja alguma dificuldade. Sooper me proibiu de passar além do jardim. Você não poderia vir com ela?

A insistência do advogado era tanta que, cobrindo o bocal com a mão, Jim explicou a situação à jovem.

— Ele está mesmo nesse estado de espírito? — indagou ela, surpresa. — Nunca imaginei que o Sr. Cardew viesse a ser tomado de pânico. — Hesitou. — Talvez seja melhor eu ir — ajuntou. — Você me leva?

A perspectiva de passar a noite debaixo do mesmo teto que ela, da viagem pela tarde fria, mudara completamente a atitude de Jim sobre o assunto. Não obstante, era-lhe impossível dar primazia aos próprios desejos egoístas e, por isso, tentou persuadi-la a não ir; havia, porém, certa tibieza em seus argumentos que ela, femininamente, percebeu:

— Diga que irei — pediu. — A mudança me fará bem, e talvez também a ele.

Jim deu o recado e desligou o aparelho.

— Tenho procurado animar-me para poder agüentar a tensão da operação — disse ela. — Por isso, talvez, me sinta tão cansada. Enquanto você vai até o carro, farei minha maleta e irei encontrar-me com você. i

Ela ainda não jantara, mas não esperaria tanto.

— O Sr. Cardew janta muito tarde, e estará provavelmente à nossa espera — lembrou a jovem.

Nisso ela acertara. Encontraram Cardew andando de um lado para outro da biblioteca, as mãos unidas nas costas, e Elfa se sentiu impressionada pela mudança que nele se operara desde que o vira pela última vez. Na presença do perigo, dir-se-ia que houvesse envelhecido dez anos; e ele percebeu-lhe a preocupação pela sua aparência.

— Foi muita bondade sua ter vindo — disse, apertando-lhe a mão com calor. — Esperei-os para jantar. Ainda não jantaram, pois não? Pode ser que eu me sinta um pouco mais normal depois que tiver comido qualquer coisa... já não me lembro quando fiz a última refeição!

Por via de regra, ele não tomava vinho, mas, nessa ocasião, havia uma garrafa de gargalo dourado imersa no gelo e, por efeito do estimulante, reanimou-se-lhe a coragem. O Sr. Cardew mostrou-se quase normal.

— Foi, em parte, essa coisa horrível que aconteceu a Elson e, em parte, o saber que estou, como diz o superintendente, "sob proteção policial" que me abalaram os nervos. E, no entanto — fez uma pausa, com o copo na mão —, a paixão infernal pela investigação se tornou tão arraigada em mim, que me vejo entretido com o que Minter denomina "teorias e deduções".

Mais tarde, explicou por que mandara vir a moça.

— Nos meus momentos mais lúcidos não imagino que eu corra o menor perigo, pessoalmente. No entanto, minha experiência de advogado me diz que devo estar preparado para qualquer eventualidade. Esta tarde me ocorreu, como um choque, a lembrança de que não fizera testamento, de que não dera um passo para pôr meus papéis em ordem... de que estou tão despreparado para morrer como qualquer leigo cujos negócios confusos ocupam o tempo dos nossos tribunais. Redigi o testamento. Depois que a Srta. Leigh houver tirado duas cópias, eu lhe pedirei, Ferraby, que o examine e assine como testemunha; um dos criados poderá ser a segunda testemunha. — E como a jovem fizesse menção de falar, sorriu. — Infelizmente, você não pode ser testemunha porque tomei a liberdade de fazê-la herdeira de grande parte dos meus bens.

Ele interrompeu-lhe o protesto com um gesto.

— Sou um velho... Nunca me senti tão velho na vida quanto me sinto hoje à noite... Sem quaisquer parentes, com pouquíssimos amigos e pouquíssimas pessoas pelas quais sinta alguma gratidão. — Sorriu. — Fiz, pelo menos, amende honorable ao Superintendente Minter, pois lhe deixei minha biblioteca criminológica.

Riu-se pela primeira vez e Jim achou graça na história.

— Posso acrescentar — prosseguiu Cardew, piscando os olhos — que também lhe leguei uma soma de dinheiro que lhe permitirá comprar uma casa em que possa colocar a biblioteca ou adquirir uma motocicleta que não assuste os seus semelhantes todas as vezes que sai com ela à rua.

Terminado o jantar, ele e a moça foram juntos para a biblioteca, e Jim, não tendo o que fazer, saiu para fumar um charuto no jardim. Não dera três passos quando o inevitável vigia apareceu. Não se tratava do Sargento Lattimer, observou, mas sim de um detetive que já vira na sala de Sooper. Falaram sobre o tempo, a beleza da noite e as possibilidades dos inscritos no próximo derby — sobre tudo, com efeito, exceto o motivo da vigília do inspetor. Enquanto andavam de um lado para outro do caminho, como as cortinas do escritório de Cardew estivessem erguidas, pôde ver o advogado sentado num lado da escrivaninha e Elfa do outro. Ela escrevia rapidamente o que ele lhe ditava.

— Isso não será meio perigoso? — perguntou Jim, nervoso. — Esses dois devem ser perfeitamente visíveis lá do arvoredo.

— Talvez seja melhor pedir-lhes que corram as cortinas — alvitrou o homem.

Não desejando interromper o advogado com sua presença, Jim mandou um recado por uma das criadas e teve a satisfação de ver descidas as cortinas.

— Não sei por que o Sr. Cardew não pensou nisso — disse o inspetor. — Dizem que ele tem a mania do trabalho policial.

Nesse momento, do arvoredo, vieram as primeiras notas líquidas de um rouxinol. Em seguida, voltou a reinar o silêncio.

— Talvez seja melhor entrar agora — acudiu o policial, respeitosamente.

Jim encarou-o, surpreso.

— Meu substituto vem vindo — explicou o homem —, e Sooper pode não gostar de me ver conversando.

Jim entrou na casa perplexo. Subiu para o quarto e desfez a maleta, que apanhara no clube. Depois de haver dado ao substituto o tempo suficiente para vir e ao policial para ir, tornou a descer ao jardim e surpreendeu-se encontrando o mesmo policial em serviço e, sobretudo, verificando que as cortinas abaixadas haviam sido novamente erguidas e que Cardew e sua secretária voltavam a ser visíveis.

— Sooper achou que não devíamos perder de vista o interior da sala. Diz ele que tudo pode acontecer atrás de cortinas fechadas.

— O Sr. Minter esteve aqui?

— Só por um minuto — volveu o outro, e não se mostrou contrário a reencetar a conversação.

Aceitando um dos charutos de Jim, mergulhou imediatamente numa queixa complicada sobre a iniqüidade do sistema de pensão da polícia. Faltavam quinze minutos para uma hora quando a jovem saiu e pediu a Jim que fosse à biblioteca.

— Creio que terminamos tudo. É um negócio horrível e senti o sangue gelado nas veias — disse ela, em voz baixa. — Jim, ele me deixou uma soma enorme! Não devia fazer isso, mas recusa-se a alterar o testamento.

Cardew tocara a campainha chamando o criado de olhos sonolentos, assinou o documento e, em seguida, pediu que o assinassem as testemunhas.

— Eu gostaria que você ficasse com isso — sugeriu, para surpresa de Jim. — Pelo menos fique com ele até amanhã cedo, quando o mandarei para lugar seguro. Fizemos um ótimo trabalho esta noite e estou satisfeito por vê-lo terminado.

Estava mais calmo, mais senhor de si. Com certo orgulho, descobriu o modelo do chalé e se teria lançado a uma reexposição de suas teorias, não fora a presença da jovem.

— Agora, senhorita — disse ele —, é melhor ir para a cama. Já conhece o quarto: é o mesmo que ocupou quando esteve aqui pela última vez.

Ela folgou de sair, girou a chave na fechadura com uma sensação de alívio, despiu-se às pressas e, dez minutos depois, deitada, adormecia profundamente, entregue a um sono pesado, sem sonhos.

Do arvoredo, Lattimer viu quando se apagou a luz do quarto e chegou mais perto da casa.

 

O laço

Tap, tap, tap!

Elfa ouviu os sons em sonho e mexeu-se na cama, desassossegada.

Tap, tap, tap!

Era o som de uma borla da cortina na janela — decidiu, entre desperta e adormecida. Logo, quando já ia dormitando novamente:

Tap, tap, tap!

Completamente acordada, ergueu-se sobre os cotovelos. O som viera da janela; sua regularidade afastava todas as dúvidas quanto a ter sido causado por acidente. A noite estava profundamente quieta; não se sentia a menor brisa. Ela afastou as cortinas pesadas. O caixilho da janela estava aberto, como o deixara. Nenhum sinal de borla balouçante que pudesse ter causado a bulha. Lá fora, envolvia o mundo uma escuridão de tinta.

Enquanto olhava, ouviu o suave triturar do cascalho e o coração saltou-lhe dentro do peito, antes de lembrar-se de que a casa estava sendo patrulhada.

— É a Srta. Leigh? — murmurou uma voz.

— Sim — respondeu ela no mesmo tom. — O senhor bateu na janela?

— Não, senhora — foi a resposta hesitante. — Ouviu alguém bater? Deve ter sonhado.

Ela voltou para a cama, deitou-se, mas sabia que o sono não lhe voltaria naquela noite. E, a seguir:

Tap, tap, tap!

Saltou da cama, descerrou suavemente as cortinas e ficou prestando atenção ao silêncio intenso. Em seguida, abeirou-se manso e manso da janela e debruçou-se nela, forçando a vista para enxergar qualquer coisa na escuridão que a cercava.

Não viu ninguém, mas, muito longe, na direção das árvores, lobrigou o brilho frouxo do lume e adivinhou que o vigia fumava um cigarro. Quem batera à janela? Debruçou-se um pouco mais e, nisso, algo duro e flexível lhe caiu sobre a cabeça, vindo de cima.

Antes que pudesse recobrar-se do espanto, um laço apertou-se em torno do seu pescoço. Levantou a mão e segurou, desesperada, a corda que a estrangulava, puxando-a, erguendo-a do chão. Agarrou-se, freneticamente, à corrediça da janela e, na luta, atirou-a longe de si. A corrediça caiu com estrondo. Nesse momento, de algum lugar do jardim, um jorro branco de luz brilhou de repente e focalizou-se nela. No mesmo instante, a corda de seda afrouxou-se e Elfa voltou, cambaleante, para o interior do quarto e foi cair, semi-inconsciente, ao pé da cama, com a corda ainda amarrada ao pescoço.

O homem no jardim deu um salto, conseguiu alcançar o topo da cimalha da janela inferior e, segundos depois, entrava no quarto e acendia as luzes.

Ela ergueu os olhos para o rosto de um desconhecido de meia-idade.

Ele tirou-lhe a corda do pescoço e colocou-a sobre a cama antes de chegar à janela e assobiar com estridor.

Jim ouviu o assobio e saiu, num relance, do quarto, percebendo, pela direção, que ele partira do quarto de Elfa. Abriu a porta para dar com o detetive com o qual conversara banhando o rosto da jovem com uma esponja.

— Cuide da moça — disse o homem brevemente e, entregando-lhe a esponja, saiu correndo do quarto e subiu a escada que encontrou diante da porta.

Jim ouviu o som de passos pesados no quarto de cima e, nesse momento, uma voz interpelou-o do jardim.

— Que aconteceu aí? Era Sooper.

Elfa recobrara os sentidos e Jim, chegando à janela, em poucas palavras contou o que imaginara ter acontecido ao ver a corda no chão e as marcas vermelhas no pescoço dela.

— Desça e abra-me a porta — pediu Sooper.

Jim descia de quatro em quatro os degraus da escada quando o Sr. Cardew saiu do seu quarto com um revólver na mão. Ferraby não esperou para explicar, mas, destrancando a porta, fez entrar o velho.

Chegados ao quarto da jovem, encontraram-na sentada na beira da cama, puxando o roupão para os ombros frágeis. Doía-lhe a garganta, sentia tonturas, girava-lhe a cabeça, e cada um de seus membros parecia tremer por conta própria, mas ela conseguiu contar sua história.

Quando terminou, o detetive que subira ao andar superior voltou, carregando uma vara comprida de bambu.

— É um quarto de despejo — disse ele. — Existe lá um alçapão, que liga com o forro. Isto foi tudo o que encontrei... ele deve ter batido na janela com a vara.

Sooper não se deu ao trabalho de pegar no bambu.

— Ele bate na janela, ela olha para fora e ele laça-a — murmurou. — E lá está o alçapão aberto para ele escapar. Estou lhes dizendo que esse sujeito não esquece nada! Suba ao forro atrás dele! Você está armado? Se o vir, atire... não quebre o pescoço que não vale a pena, pois ele, com certeza, terá sumido antes de você começar a busca.

Cardew estava à porta, gritando para que o deixassem entrar. Com expressão de cansaço, Sooper saiu a fim de contar-lhe a causa da comoção.

— O quarto de cima é um quarto de despejo, que nunca se usa — explicou, superfluamente, o dono da casa.

De má vontade, Sooper abriu a porta e deixou-o entrar.

— Conhece isto? — perguntou. Apanhou a corda. Feita de seda vermelho-escura, tinha quase três metros de comprimento. A ponta havia sido disposta de modo a formar um nó corrediço.

O Sr. Cardew sacudiu a cabeça.

— Nunca o vi — replicou. — É um daqueles antiquados cordões de campainha, não é? Aqui em casa só temos campainhas elétricas.

Examinou a corda com cuidado.

— Isto é velhíssimo... — notou ele.

— Foi o que supus — atalhou Sooper. — Pode-se comprar essa espécie de coisas, praticamente, em qualquer loja de velharias. Está se sentindo melhor, mocinha?

Ela assentiu com a cabeça e fez uma tentativa corajosa para sorrir.

— Vamos sair e dar-lhe uma oportunidade de vestir-se. Creio que é melhor ir lá para baixo. São quase três horas e acordar cedo não faz mal a ninguém.

Nesse mesmo instante voltou o detetive para dar conta da busca infrutífera que fizera no forro.

— Onde está Lattimer?

— Do lado da casa, no arvoredo — respondeu o homem.

Sooper não fez comentários. Depois que a jovem se vestiu às pressas e desceu, saiu para o gramado. Súbito, Jim ouviu as três notas líquidas de melodia que tinham partido do arvoredo na noite anterior.

— Sou um bom rouxinol — admitiu Sooper, modesto. — Sempre tive jeito para pios de passarinhos, mas os rouxinóis são minha especialidade... Rouxinóis e galinhas.

E, para assombro de Jim, apresentou uma notável imitação de uma galinha choca que, em qualquer outra ocasião, o teria levado a explodir em gargalhadas.

— É você, Lattimer? -— gritou Sooper, enquanto o sargento vinha correndo na direção deles.

— Sou eu, sim, senhor.

Lattimer surgiu à claridade. Trazia as roupas empoadas e o joelho de uma calça arrancado. Jim observou-lhe particularmente as mãos cobertas de sujeira.

— Que lhe aconteceu, Lattimer?

— Caí... Eu estava com tanta pressa — foi a resposta fria.

— Viu alguém ou alguma coisa? — perguntou Sooper.

— Não, ouvi um rebuliço na casa, mas sabia que o senhor estava por aqui. Achei melhor esperar, no caso de alguém tentar fugir pelo mato.

Se Jim esperava que o superintendente prosseguisse no interrogatório, ficou desapontado. Sooper grunhiu uma ordem e retornou ao escritório, onde a jovem estava acendendo uma espiriteira.

O rapaz não se deu por satisfeito. Aproveitando a primeira oportunidade, esgueirou-se para fora da casa, levando consigo uma das duas lanternas que Cardew conservava sobre a mesa do vestíbulo, e procedeu a uma inspeção da casa pelo lado de fora. Não lhe foi preciso andar' muito para fazer uma surpreendente descoberta. Nos fundos da casa deu com uma escada comprida e, dirigindo para cima o feixe de luz, viu que ela chegava ao telhado. E, logo, pouco acima de sua cabeça, divisou qualquer coisa pendurada; subiu dois degraus e verificou tratar-se de um pedaço de fazenda, de forma irregular, que ficara preso num prego saliente, numa das pernas da escada. Havia notado particularmente que Lattimer usava um terno cinza-escuro, levemente axadrezado, de padrão mais visível à luz artificial do que durante o dia, e o pedaço de fazenda era não só do mesmo padrão, mas também correspondia ao tamanho do buraco no joelho das calças de Lattimer.

Enfiando o pano no bolso, voltou para a casa e, chamando Sooper de lado, contou-lhe o que encontrara. O superintendente ouviu sem interrompê-lo e acompanhou-o até onde se achava a escada.

— Isto, sem dúvida, é esquisito — admitiu Sooper, por fim. — Mas Lattimer pode ter visto a escada e subido para investigar.

— Ele não disse isso.

— Não, reconheço que não disse — tornou Sooper. — Vou verificar o assunto, Sr. Ferraby. E, se não faz questão, gostaria muito de que o senhor não dissesse nada aos outros. O caso é estranho e quase suspeito, mas é muito provável que minha versão seja exata. Seria obrigação dele investigar a escada.

— Mas ele não veio da direção da escada, quando você o chamou; veio do arvoredo — insistiu Jim.

Sooper cocou o queixo com mostras de irritação.

— E, sem dúvida, esquisito — concordou, e tornou a insistir na advertência. — É provável que eu já não sirva para o meu trabalho — ajuntou. — Acontecem coisas que não espero e não consigo compreender por que acontecem. Quando um homem fica assim, vai mal. Daqui a meia hora já teremos alguma luz e, então, acredito que tenham passado os perigos da noite.

Encaminhou-se para a biblioteca, recebeu uma xícara de café das mãos de Elfa e sentou-se num sofá baixo.

— Vou contar-lhe uma coisa que devolverá as rosas às suas faces, mocinha.

— Vai contar-me? — disse ela, surpresa.

— O que é que você quer dizer, Sooper?

— A operação feita em seu pai foi uma beleza. Ela ergueu-se em pé, num salto, enquanto as cores lhe acudiam e fugiam, alternativamente, ao rosto.

— A operação? Mas só será na próxima semana.

— Ontem à noite — volveu Sooper — combinei com os médicos que a senhorita só viria a saber depois que estivesse tudo terminado. Mas supus que tivesse adivinhado quando a enfermeira-chefe me falou na carta que a senhorita deixou para ele ler, assim que pudesse ler alguma coisa.

— Não deixei carta nenhuma — arquejou ela. — Eu não tinha a mínima idéia de que a operação ia ser feita ontem à noite.

Os olhos de Sooper se estreitaram.

— Ah, sim? — disse, em voz baixa. Pegou no telefone e discou um número.

— Ela está na cama, é? Pois acorde-a e diga-lhe que o Superintendente Minter quer falar-lhe imediatamente!

Esperou, com o receptor ao ouvido, olhos fitos no espaço, e a jovem viu modificar-se-lhe a expressão do rosto.

— É a Srta. Moody? A respeito daquela carta... sim, a carta que a Srta. Leigh deixou aí para o pai. Não poderia abri-la e lê-la para mim? Não, está tudo certo, tenho a autorização dela.

Ele esperou e a rapariga viu-o fazer um sinal com a cabeça.

— Está bem! Muito obrigado — disse, por fim. — Sim, guarde-a para mim, por favor.

Recolocou o fone no gancho.

— O que estava escrito na carta? — perguntou Elfa.

— Acho que alguém quis fazer uma brincadeira. Aliás, uma brincadeira simpática. Dizia apenas: "A papai, com todo o amor de Elfa..." Só isso.

Sooper não estava dizendo a verdade. O que a carta realmente continha era apenas uma linha, deste teor: "Sua filha foi estrangulada ontem à noite".

— Ele pensa em tudo — murmurou Sooper, com um cacarejo de admiração.

 

O sr. Wells

O Sr. Cardew tomara uma decisão. Fecharia a casa, mandaria embora os criados e alugaria uma casa em Londres ou passaria no estrangeiro o resto do verão.

— Parece-me boa idéia, e quanto mais cedo for, melhor — conveio Sooper, quando lhe contaram. — Eu gostaria que o senhor partisse hoje à noite.

Cardew abanou a cabeça com certa hesitação.

— Não, não creio que pudesse partir hoje à noite. Preciso arrumar as malas.

— Mandarei dois homens para ajudá-lo a arrumá-las -— prometeu Sooper.

— Ficarei mais uma noite — decidiu o advogado, depois de refletir. — Por que não vem jantar comigo?

Sooper sacudiu a cabeça.

— Não posso — disse ele. — Estou esperando um amigo. i

— Traga-o também.

Foi a vez de Sooper hesitar.

— Seria abusar do senhor. O sujeito não é o que se pode denominar um homem fino, embora seja um homem que admiro. Nunca discute comigo e não é inteligente. E, quando um homem não discute comigo e não é inteligente, serve-me.

— Superintendente — voltou Cardew —, nunca lhe perguntei se o senhor tem opiniões definidas sobre esses crimes que têm sido cometidos em nossa vizinhança, ou contra pessoas que conhecemos. Vou perguntar-lhe esta noite. Faça-me o favor de trazer o seu amigo. O Sr. Ferraby também prometeu vir.

— A mocinha também? — perguntou Sooper.

— Não, ficará com o pai. Arranjamos um quarto na casa de saúde, de modo que possamos tê-la à mão.

Sooper assentiu com a cabeça.

— O senhor me pergunta se tenho opiniões definidas. Pois bem, tenho e não tenho. Tenho opiniões mas não tenho provas. E não posso arranjar provas sem motivos, porque não é lógico que o tal Big Foot ande por aí matando gente só para divertir-se. Esse tipo de coisas só acontece em livros, e, acrescentaria eu, não nos melhores livros. E ele não tenta estrangular moças, para que o choque torne a enlouquecer os pais, só pelo prazer de estrangular os outros. Existe muita poesia a respeito da "trama enredada que tecemos, quando começamos a mentir".

— A enganar — corrigiu o Sr. Cardew, com um pálido sorriso.

— É a mesma coisa — voltou Sooper, petulante. — Enganar é mentir, e mentir é enganar. E foi exatamente o que aconteceu a esse sujeito, o tal Big Foot. Começou enganando e precisou continuar enganando, e toda vez que parecia que alguém ia denunciá-lo, lá surgia o seu revolvinho e pronto! Alguém ia para o vinagre. Não existem neste mundo, fora dos hospícios, os que se poderiam chamar "assassinos por esporte". Um homem comete um crime pela mesma razão por que um menino lava o pescoço — porque, de outra maneira, não lhe permitiriam ir à festa. E atrás de todos esses crimes existe uma festa qualquer, ou coisa tão boa quanto uma festa. Casa bonita, automóveis, jantares regados a champanha e tudo o mais que torna a vida digna de viver. Conheço um homem que envenenou a esposa porque ela não o deixava fumar dentro de casa... isso é fato, consulte o processo Armstrong e leia as provas. E conheço outro homem que matou o irmão porque queria dinheiro para jogar nas corridas. O assassinato é o único crime que as pessoas jamais cometem por ele mesmo. E por isso apanhamos os criminosos. É fácil ocultar o assassinato, mas é difícil esconder os crimezinhos que levam a ele. Ferraby também vem?

— Vem — respondeu Cardew.

— Ótimo — disse Sooper.

— Há uma coisa que eu queria perguntar-lhe, superintendente — declarou Cardew, de repente. — Meu jardineiro diz que os senhores encontraram as marcas de uma escada nos fundos da casa, tão profundamente enterradas na grama que não podiam dar lugar a dúvidas.

— Havia lá uma escada — respondeu Sooper, cauteloso. — Mandei retirá-la antes que clareasse o dia, porque não queria alarmar ninguém. Também não sei de onde veio a escada, porque o senhor não tem nenhuma tão comprida. Vou investigar. E a respeito desse amigo meu, Sr. Cardew... ele é como eu, não sabe distinguir uma faca da outra e, com certeza, ficará todo esquentado e atrapalhado com os copos. E também não é muito falante.

— Você, sem dúvida, está fazendo o possível para dissuadir-me de convidá-lo — riu-se o advogado. — Mas pode trazê-lo; terei prazer em conhecê-lo.

— O homem chama-se Wells — tornou Sooper, com ar ausente. Parecia estar provocando novas perguntas, mas era evidente que o Sr. Cardew não estava curioso.

Súbito, o superintendente deu um tapa na coxa com uma exclamação de enfado.

— Eu sabia que me esquecera de alguma coisa! Pedi àquele meu sargento, Lattimer, que viesse conhecê-lo !

— Pois traga Lattimer também — volveu o outro, jovial. — Lattimer, pelo menos, saberá que facas deve usar. Sempre me deu a impressão de um homem educado, bom demais até...

— Pode dizer — atalhou Sooper. — Mas ele, na realidade, não é bom demais para a polícia, Sr. Cardew. É um dos tais homens de futuro. Possui conhecimentos de antropologia que me deixam perplexo. Quantos dedos tem um cavalo? Lattimer sabe. E é capaz de dizer a diferença entre as manchas produzidas por ovos de galinhas de raça e as provocadas por uma explosão intempestiva de dinamite.

— Superintendente, você está zombando de mim, e não o permitirei — acudiu o bem-humorado Cardew.

Insistiu em ir a Londres naquela tarde e, depois de alguma relutância, concordou com a sugestão de Sooper de que fosse acompanhado de um policial, que se postou diante de King's Bench Walk enquanto, sozinho, o Sr. Cardew fazia o que lhe cumpria fazer.

Precisava escrever algumas cartas, mas, apesar disso, achou tempo para telefonar à casa de saúde. Quando soube de quem se tratava, Elfa atendeu.

— E você, como se sente?

— Terrivelmente cansada — disse ela. — Eu ia até me deitar quando o senhor telefonou. Está em Londres, Sr. Cardew?

— Estou, ficarei aqui uma hora; volto para Barley Stack esta noite. Amanhã fecho a casa, e passarei em Londres um ou dois dias. Receio que isso represente o fim da nossa agradável associação e, por isso, tomei a liberdade de mandar-lhe um cheque pelo correio, à guisa de notificação. Lembra-se do assalto a este escritório? Parece que foi há anos, não parece?

— Foi na semana passada — disse a jovem.

— Estive examinando meus papéis, e agora sei perfeitamente o que foi roubado e por quê. Nem Sooper será capaz de negar-me crédito pela descoberta.

— Qual foi a razão? — perguntou ela, curiosa, mas ele se recusou a satisfazer-lhe a curiosidade. Evidentemente, refletiu, voltando para o seu quartinho, a revelação do Sr. Cardew era de natureza tão estupenda, que ele não queria correr o risco de que alguém se antecipasse.

O advogado fez o que tinha de fazer em King's Bench Walk, pôs as cartas na caixa do correio e, com um sinal ao seu protetor, voltou a entrar no carro. Não viu Lattimer, porque Lattimer tomou muito cuidado para não ser visto. Mas o sargento presenciara tanto a sua chegada quanto a sua partida e seguiu-o de volta a Barley Stack num carrinho, tão próximo do outro que, houvesse o Sr. Cardew virado a cabeça, teria visto o seu perseguidor.

Lattimer não foi para a casa: levou o carro além do caminho estreito que conduzia a Barley Stack, fê-lo entrar num campo de trigo e prosseguiu, beirando uma cerca, até ver-se completamente livre de observação. Só então desceu e voltou à estrada, para acompanhar o rastro de Cardew.

Endereçou-se sem pressa ao gramado e o policial que acompanhara o advogado a Londres saudou-o com prazer.

— Sooper andou perguntando pelo senhor, sargento.

— Estive por aí — disse o outro. — Você pode ir. Encontrou uma cadeira e, levando-a para a sombra

da amoreira, sentou-se. Olhando pela janela do escritório, o Sr. Cardew viu-o de plantão e mandou-lhe uma caixa de charutos. O Sargento Lattimer agradeceu, sorridente. Parecia divertir-se com alguma coisa.

 

A festa de despedida

— Este é o Sr. Wells — apresentou Sooper, solene. O homenzinho que estava sentado desconfortavelmente na beira de uma cadeira na sala de Sooper levantou-se, sem jeito, e estendeu a mão. Era um homem suave e inofensivo, de cabelos vermelhos que principiavam a agrisalhar-se, cuidadosamente repartidos de lado e de modo a formarem um grande anel sobre a testa. Jim teve a impressão de que ele não estava acostumado a usar o novo colarinho duro que lhe rodeava o pescoço e, a espaços, movia a cabeça, incomodado.

— Quem é ele? — perguntou Jim, quando ficou a sós com Sooper por alguns minutos.

— É uma reprimenda — respondeu Sooper. — Um borrão na minha folha de serviços, uma encrenca, e será, talvez, três meses de correspondência com o delegado. Mas não pude resistir: precisei convidá-lo a ir.

— É detetive? — Lembrando-se do físico do homem, parecia-lhe impossível que o fosse.

— Não, não é detetive, é um amigo meu. Contei a Cardew a espécie de sujeito que ele era...

— Você vai levá-lo para jantar? — perguntou Jim, atônito.

— Vou — tornou o fleumático Sooper —, e lhe direi por quê. Eu não o sabia quando o convidei, mas depois percebi: Cardew vai expor-nos sua nova teoria... A propósito, o senhor precisa comparecer ao segundo inquérito judicial, depois de amanhã... Respeito as teorias de Cardew mas, ao mesmo tempo, quero mostrar-lhe que está errado. Este sujeito é o que se poderia denominar o elo que falta no caso.

Jim teve de contentar-se com a explicação.

Não viera de Londres com muito prazer; somente a idéia de que poderia proporcionar apoio moral a Cardew o levara a concordar em passar outra noite debaixo do teto fatal. Só ficou sabendo que Sooper ia jantar lá quando esse cavalheiro lhe contou, e a perspectiva de sentar-se defronte daquele homem vulgaríssimo e nervoso não lhe aumentava muito a felicidade.

— É o jantar de despedida de Cardew. Amanhã, se ele estiver vivo...

— Você espera que aconteça alguma coisa hoje à noite?

Sooper concordou com um gesto de cabeça.

— Se ele estiver vivo amanhã, irá à cidade e, de Londres, partirá para o estrangeiro. A operação do Sr. Leigh foi muito bem sucedida.

O superintendente mudara de assunto à sua estranha maneira.

— Reconheceu a filha esta tarde, e isso é bom. Mas ainda está muito fraco para fazer declarações. O que me preocupa mortalmente é que Lattimer estará lá.

— No jantar?

Sooper fez um gesto grave com a cabeça.

— O senhor gostará de Lattimer: sabe comer com as duas mãos e nunca se ouviu dizer que bebesse a água de um lava-dedos. Lattimer tem bonitas maneiras e é um crânio em psicologia. Teremos uma noitada agradável quando ele e o Sr. Cardew principiarem a discutir Lombosso, o conhecido teorizador.

Jim chegou antes dos outros e o advogado lhe pediu que não se vestisse para o jantar.

— Eu disse a Sooper que viesse, e ele vai trazer Lattimer, o seu sargento, e um amigo... Conhece o amigo dele?

Jim sorriu.

— Espero que o senhor não fique muito escandalizado. Mas deu-me a impressão de um sujeito estranho.

— Terá de ser estranhíssimo para ser amigo de Sooper — tornou Cardew, seco. — Estou adquirindo o hábito de chamá-lo também por esse nome absurdo. Ferraby, sentirei falta deste lugar. Só agora estou começando a compreender o quanto me afeiçoei a Barley Stack. Passei aqui momentos muito felizes — concluiu em voz baixa.

— Não espera voltar? Cardew abanou a cabeça.

— Não. Venderei a propriedade: já escrevi a um corretor pedindo-lhe que se encarregue da venda. Muito provavelmente, passarei a residir na Suíça e tentarei, de minha humilde maneira, contribuir para a literatura da criminologia. Granjearei, por certo, o eterno desprezo do Superintendente Minter — ajuntou, franzindo os lábios —, mas preciso estar preparado para isso.

— O senhor, na realidade, não se julga em perigo, Sr. Cardew?

Para sua surpresa, Cardew fez que sim com a cabeça.

— Sim, julgo-me em gravíssimo perigo. Durante os próximos anos, pelo menos, pretendo residir no estrangeiro e o superintendente concorda comigo.

Olhando pela janela, viu Lattimer em seu posto.

— Eu não poderia suportar por muito mais tempo essa proteção — desabafou —, ela me deixaria louco! Fale-me agora sobre o estranho amigo do superintendente.

Jim descreveu-o com mais exatidão que generosidade.

— Então, não parece que ele possa concorrer muito para a alegria da noite — observou Cardew —, mas precisei convidar os dois. Sooper combinara jantarem juntos e eu estava particularmente empenhado em que o nosso velho amigo estivesse presente ao que é, virtualmente, meu jantar de despedida. Desejaria — acrescentou, com um suspiro — poder oferecê-lo em circunstâncias mais felizes e que a nossa querida amiga estivesse aqui. Mas o crime que quase se perpetrou ontem à noite foi a última gota... Eu não poderia arriscar-me a outro choque semelhante.

Foi dez minutos depois da hora fixada para o jantar que Sooper apareceu, com o homem de cabelos vermelhos na garupa da motocicleta. Jim não se lembrava de ter visto coisa mais cômica do que o espetáculo do ossudo superintendente e seu nervoso convivazinho, agarrado a ele.

— Este é meu amigo, o Sr. Wells. O Sr. Cardew apertou-lhe a mão.

— Lattimer, venha conhecer o Sr. Wells.

O sargento aproximou-se.

— Agora — disse Cardew —, creio que é melhor começarmos o jantar. A sopa já está na mesa.

Seguiram o advogado à sala de jantar; Cardew indicou-lhes os lugares e todos se sentaram. Não era verdade que a sopa já tivesse sido servida, mas a criada a estava pondo nos pratos, sobre o aparador, e, dali a pouco, os pratos foram colocados nos lugares. O homem de cabelos vermelhos olhou, súplice, para Sooper e Sooper levantou a colher grande.

— Esta! — indicou, num rouco sussurro, e, logo, com a voz natural: — Antes de começarmos este jantar de despedida, surpreende-me que ninguém queira saber quem é o meu amigo, o Sr. Wells.

— Confesso que estou curioso — disse o Sr. Cardew.

— Levante-se, Sr. Wells. Este é o Sr. Cardew, o advogado. Sr. Cardew, este é o Sr. Topper Wells — fez uma pausa —, carrasco público da Inglaterra!

Cardew recuou, o rosto contraído numa expressão de desconfiança, e o próprio Jim, que olhava horrorizado para o homenzinho nervoso, teve uma sensação de náusea.

— Conheça-o, Lattimer. Você talvez já se tenha encontrado com ele e tornará a encontrar-se.

Os olhos de Sooper estavam fitos no sargento.

— E não toque nessa sopa, Lattimer. Aliás, nenhum dos senhores, porque...

— O que é que você quer dizer... ? — principiou Cardew.

— Porque ela contém narcótico — afirmou Sooper. Cardew afastou-se da mesa com o mesmo olhar de surpresa e desconfiança que Jim já lhe notara.

— Envenenada?

— Envenenada — confirmou Sooper. E repetiu: — Este é o Sr. Wells, o enforcador. E...

Tudo aconteceu antes que ele pudesse perceber a intenção do homem. Com um salto, Cardew chegou à porta; no segundo seguinte, a transpunha e fechava a chave.

— A janela, depressa! — bradou Sooper. — Quebre-a com uma cadeira. Aposto que ele trancou a janela.

Atirada por Lattimer, a cadeira pesada arrebentou a janela. Um segundo depois, o sargento saltava atrás da cadeira.

— Corra para os fundos da casa — grunhiu Sooper. — Eu devia ter colocado outro esquadrão de plantão aqui!

Jim estava correndo. Embora não soubesse para onde nem por quê. Seu espírito torvelinhava. Cardew? Impossível!

Chegaram à cocheira, ofegantes. Não se via Cardew em parte alguma. Sooper abriu uma porta que não estava trancada. Além da porta havia um caminho que descia até a estrada lateral. Era a entrada de serviço para a cozinha.

Viram-lhe, por um segundo, apenas a cabeça, que se movia com extraordinária rapidez ao nível do topo da cerca. Depois, desapareceu.

— Motoneta desmontável — disse Sooper —, a mesma que trazia no automovelzinho quando matou Hannah Shaw. Foi assim que fugiu sem precisar passar por Pawsey. Seguiu o caminho do pasto, erguendo a motoneta sobre o torniquete. Pegue seu carro, Ferraby... depressa!

Sooper correu de volta à biblioteca, e bastou-lhe erguer o receptor do telefone para saber que a linha fora cortada.

— Ele pensa em tudo — murmurou. — E cortada antes do jantar. Estava convencido de que nos faria dormir a todos.

Quando voltou ao caminho, Lattimer subia no carro.

— Não pare! — berrou Sooper, e precipitou-se para o interior do automóvel, enquanto o veículo aumentava a velocidade.

Encontraram um patrulheiro na encruzilhada, mas este não vira nenhum motociclista.

— Ele foi pelos fundos — disse Sooper, escrutando ansiosamente o céu. — Daqui a meia hora estará escuro.

Havia três estradas que o fugitivo poderia ter tomado. A primeira, à direita, através de Isleworth; a segunda, um pouco mais comprida, através de Kingston, que desembocava em Richmond Park; a terceira, uma das muitas estradinhas que cruzavam os campos vizinhos. Sooper voltou ao posto para transmitir instruções.

— Cardew contratou um avião particular, esta noite, para levá-lo a Paris — afirmou. — Adivinhará que deteremos o avião, de modo que não precisamos pensar nisso. Sua única esperança é chegar a Londres, e isso fará. Digo-lhes que esse sujeito pensa depressa e enxerga longe.

Saiu do posto e deixou-se ficar, taciturno, a observar o carro.

— Sim, irá a Londres, mas não irá ao seu apartamento nem ao seu escritório. Deve ter arranjado um buraco em algum lugar. Poderá ser reconhecido facilmente — prosseguiu, falando agora consigo mesmo —, por isso não tentará ir de trem nem, por certo, de automóvel; e aposto que também não irá de avião.

Chegados a Londres, a primeira providência de Sooper foi dobrar a guarda da casa de saúde; a segunda, visitar o apartamento de Cardew, em Londres. Soube que o advogado não estivera lá, como também não havia estado em King's Bench Walk. Voltando para junto de Jim, na rua, aceitou-lhe o convite para fazerem juntos uma ligeira refeição.

— Sim, Cardew matou Hannah Shaw. Ela sabia de um segredo dele e queria desposá-lo. Ele a odiava. E ela lhe mantinha sobre a cabeça uma carta escrita muitos e muitos anos antes, ameaçando denunciá-lo, até que ele acabou concordando. Casaram-se no dia em que ela foi assassinada, no cartório de Newbury, com o nome de Lynes. Para Hannah o nome não tinha importância, contanto que o pegasse. Mas ela estava decidida a fazer que ele a reconhecesse, por isso tele-grafou à Srta. Leigh, pedindo-lhe que fosse ao chalé e servisse de testemunha. Cardew recebeu a carta de volta... era o preço do casamento... e, em seguida, matou-a. Combinou encontrar-se com ela após o casório... A história que ele lhe contou, de querer companhia para ir ao teatro, foi um blefe, e muito fácil, porque sabia que o senhor estava comprometido naquela noite. Mas ignorava como.

"Ele costumava andar de motocicleta, e havia uma num dos cômodos da casa. Vi as marcas do guidão quando revistei o lugar. Combinara encontrar-se com a mulher mais tarde, na mesma noite; iriam juntos para o chalé. Mas, com um pretexto qualquer, ele a persuadiu a deixá-lo viajar no assento traseiro, e ali ficou encolhido, de modo que ninguém pudesse vê-lo. O homem pensava em tudo! Planejou o chapéu e o casaco que ela deveria usar. E, depois que a matou, vestiu o casaco e pôs o chapéu porque ela lhe contara que a moça não tardaria e ele tinha medo de topar com ela no caminho."

— Mas por que... em nome de Deus, por quê? Era um homem rico.

— Rico coisa nenhuma — voltou Sooper. — Conseguira dinheiro... Sim, mas como? Eu lhe contarei toda a história e, se bem que precise adivinhar parte dela, Leigh não me contradirá. Aposto o que quiser!

"O Sr. Leigh era funcionário do Ministério da Fazenda; trouxe dos Estados Unidos, entregues à sua guarda pessoal, quatro grandes caixas de dinheiro. Receberam os números 1, 2, 3 e 4. Lembra-se de que ele falava muito em "3" e "4"? O navio afundou, durante uma tempestade, ao largo da costa sul da Irlanda, mas os passageiros foram salvos por outro barco. Só tiveram tempo de transportar para bordo duas caixas antes que o navio soçobrasse, e a embarcaçãozinha de salvamento conseguiu atravessar o canal da Irlanda e chegar à costa da Inglaterra. A tempestade durou três dias. O barco não conseguia aportar em parte alguma nem se comunicar com a terra, até que chegou à baía de Pawsey, e foi esse o seu azar. Bateu numa velha mina desgarrada durante a tormenta e explodiu.

"Ora, a esse tempo", prosseguiu Sooper, "Cardew estava quebrado e mais do que quebrado. Tivera muito dinheiro confiado à sua guarda pelos clientes e perdera-o em especulações loucas de todo o gênero. Um dos clientes começou a fazer barulho... um sujeito chamado Brixton, vereador da cidade... e até escreveu à Yard, dizendo que tinha uma declaração a fazer à polícia. Fui mandado para entrevistá-lo, tendo sabido por alto do que se tratava e sabendo perfeitamente, por outras informações, que Cardew estava em apuros. Em lugar de ouvir a história, recebi um recado de Brixton, que me mandou dizer não ter nada para comunicar-me; aliás, por uma esplêndida razão... havia sido pago. E por que havia sido pago? Eu lhe direi."

Sooper emborcou uma caneca de cerveja.

— Esse Cardew estava no chalé, na noite do naufrágio. Já decidira o que fazer. Remaria pelo mar adentro e se afogaria. Mas, antes, sendo advogado e um tanto preciso, escreveu uma longa carta ao juiz de instrução, em que fazia ampla confissão de todo o dinheiro roubado aos clientes. Nisso, ouviu a explosão. Seu esquife estava na praia e, por alguns minutos, ele talvez tenha sido humano. Fez-se ao mar e encontrou dois homens agarrados a uma jangada, amarradas à qual estavam as caixas 3 e 4. Acudiu-os e rebocou-os para a praia. Um dos homens era Leigh, quase morto. O outro era Elson, um criador que embarcara como foguista para fugir à polícia. Elson sabia do dinheiro e contou a Cardew. Conseguiram levar as caixas a bom recado e, então, Leigh voltou a si. Elson sabia que o dinheiro estava sob a sua custódia e que a única maneira de empalmá-lo seria livrar-se do homem. Talvez tenha consultado o amigo Cardew, mas o certo é que vibrou uma machadada na cabeça de John Leigh e atirou-o ao mar.

"Como ele escapou, só Deus sabe! Todos os vestígios se perderam durante doze meses, mas existe a possibilidade de que ele se tenha arrastado até Pawsey, onde havia um hospital, permanecendo ali durante a maior parte do primeiro ano. Tive nas mãos o registro de um desconhecido, que foi tratado de um ferimento na cabeça. Não sei se Cardew estava metido nisso... talvez estivesse. Mas o certo é que levaram as caixas para o chalé, e foi preciso que Hannah soubesse. Ela lá se achava na ocasião, cuidando de Cardew. Abriram-se as caixas, tirou-se o dinheiro e destruiu-se a madeira. Tiveram de repartir com Hannah e é possível que ela então descobrisse a terrível posição em que se encontrava Cardew. Minha teoria é de que a carta foi escrita e assinada quando a explosão atraiu Cardew para fora da casa. Ela teve a oportunidade de lê-la e ele, provavelmente, a esqueceu."

— Você calcula isso?

— Eu sei... O envelope escrito ao juiz de instrução me contou muita coisa. Já lidei com suicídios.

"Cardew possuía uma casa em Barley Stack, oneradíssima. Pagou as hipotecas, satisfez a todas as exigências dos credores e abandonou a prática da profissão. Era natural. E assim poderia ter vivido muito tempo, se Hannah não tivesse ambições. Queria tomar o lugar da mulher que a protegera, e não dava a Cardew um minuto de folga. De uma feita, traçou a inicial do nome do navio perdido, na grama, debaixo da janela dele, para recordar-lhe a ascendência que tinha sobre ele... Lembra-se?"

— Mas você já sabia?

Sooper assentiu com a cabeça.

— É claro que sabia! — retrucou. — A única coisa que eu receava era o que pudesse acontecer a Elson, depois que ele houvesse encasquetado que Cardew matara a mulher. Eu mandara Lattimer trabalhá-lo havia já alguns meses. Lattimer foi lá e pediu-lhe dinheiro emprestado, para dar a Elson a impressão de que o tinha à sua mercê. Eu estava esperando que uma noite, quando se emborrachasse, Elson desse com a língua nos dentes e contasse a história. Lattimer precisava fazer o papel de sem-vergonha, e devo dizer que o fez alarmantemente bem. Cumpriu todas as minhas instruções... Todas, exceto uma, quando me seguiu até a cidade, porque o idiota pensou que Cardew estivesse à minha espera.

— Então foi Cardew quem tentou estrangular a Srta. Leigh?.

— Foi, sim, senhor. Lattimer estava no telhado... era lá o seu posto. Ali colocamos a escada assim que escureceu. Ouviu as batidas na janela, mas não pôde ver o que estava acontecendo senão depois que o alçapão se abriu com um estrondo. Lattimer, então, esperou que alguém saísse, mas, como ninguém saiu, conjecturou que o homem que pensava em tudo estava tramando uma cilada e desceu pela escada o mais depressa que pôde.

Jim ouvia, atônito.

— Que pretendia você quando perguntou a Cardew se suas mãos estavam arranhadas, na manhã em que o encontraram cloroformizado?

— E por que o encontraram cloroformizado? — perguntou Sooper, com um sorriso afetado e absurdo de satisfação. — Ele tentou valer-se de um truque elementar. Pegou um homem no Embankment e mandou-o ao serviço de entregas com comida envenenada. Por mera sorte encontramos o vagabundo e o tranca-fiamos. Procurei Cardew com um conto de fadas, pedindo-lhe que interrogasse o sujeito, e precisei utilizar o senhor como bode expiatório, o que lamento sinceramente, Sr. Ferraby. Cardew caiu como um patinho, até que mencionei, casualmente, que o homem era o mesmo que ele pegara no Embankment; ora, ele sabia que, no momento em que falasse com Sullivan, este lhe reconheceria a voz. Por isso lhe pedi que fosse interrogá-lo. Para Cardew, havia apenas um jeito de livrar-se da entaladela, e era simular ter sido cloroformizado. Ele guardava grande quantidade de drogas em casa. Embebeu um pedaço de pano, atirou a garrafa pela janela, deitou-se na cama e quase bateu as botas. De fato, Cardew escapou por pouco... tem o coração fraco. Quando lhe examinei os dedos, cheirei-os, e eles cheiravam a clorofórmio. Tenho bom nariz para cheiros. No dia em que ele nos alvejou entre as moitas, ainda lhes senti o cheiro. Muita gente inteligente lhe dirá que o cheiro de clorofórmio desaparece em meio minuto. Pois mande essa gente a Patrick Minter, que provará coisa muito diferente.

"Sr. Ferraby, nunca mais falarei contra investigadores particulares. Aquele Cardew aprendeu depressa uma porção de coisas. Estou começando a sentir muito respeito pela antropologia, e a psicologia, para mim, já é coisa fina.

"O assalto ao escritório, em que ele queimou todos os papéis de Hannah. Deve ter sido ele, porque não abaixou as cortinas e não acendeu a luz... Era capaz de achar o caminho no escuro! Havia um memorando velho de um mês preso na cortina."

Depôs o canecão sobre a mesa com um arquejo e deu uma palmada na testa.

— Deixei o enforcadorzinho sem ter para onde ir — exclamou, em tom cavernoso.

— Mas, afinal de contas, por que o levou?

— Era a última gota. Tentamos apavorar Elson para que falasse. Lattimer colou um aviso na sua porta e nunca pôde imaginar qual seria o resultado. Supôs que Elson se dispusesse a contar a história. Mas não foi isso o que ele fez. Como um idiota, depois de ter ouvido Leigh cantando no mato, foi ao telefone e contou a Cardew. Eu sei, porque tinha mandado vigiar a linha telefônica. Aí começou a encrenca. Cardew desceu para estragar-me o pesqueiro naquela mesma noite. Eu lhe direi a verdade, Sr. Ferraby, enganei-me a respeito dele. Pensei que conseguisse abalar-lhe de tal forma os nervos que ele acabasse falando. Que sujeito inteligente!

Abanou a cabeça.

— Aquele Big Foot...

— Big Foot?

— Claro, Big Foot. Estão comigo, no quarto, debaixo da cama. Um par de botas de teatro, que ele comprou de um ator, um sujeito na Cath'rine Street. Nunca se esquecia de nada, preparava tudo! Tinha as tais botas prontas para deixar as marcas na areia e despistar todos os inteligentes policiais. Só que as largou debaixo do assento do automóvel e eu as encontrei. Aquela história de Hannah Shaw ter recebido uma carta ameaçadora foi pura balela. Nunca recebeu carta nenhuma de Big Foot... Cardew fazia preparativos.

Jim Ferraby recostou-se na cadeira e olhou, boquiaberto de admiração, para Sooper.

— Você é um gênio! — exclamou.

— Dedução e teorização — respondeu Sooper, modesto. — E acabo de ter mais uma inspiração! Existe outro caminho para sair de Londres!

Era uma e meia da noite e o grande canal de Londres estava mudo e deserto. Muito ao longe, ao norte, o brilho refletido dos holofotes das docas fulgia no céu. Um grande barco a motor de alto-mar desceu silenciosamente o rio, com as luzes vermelhas e verdes refletidas nas águas tranqüilas. Movia-se calmamente, como se o proprietário não estivesse com muita pressa de deixar para trás as luzes do rio romântico.

Defronte de Gravesend, sua velocidade aumentou um pouco, quando ele se desviou para a esquerda, a fim de evitar um transatlântico fundeado. E já havia quase ultrapassado o navio quando, da sombra da grande embarcação, surgiu uma lanchazinha intrometida que se abeirou da amurada do barco.

— Quem são vocês? — ergueu-se uma voz da escuridão.

— O barco Cecily... de propriedade do Conde de Freslac. Vamos para Bruges — foi a resposta.

As duas embarcações aproximaram-se ainda mais, até que a lancha se colou ao costado da embarcação maior. Nesse momento, o dono pareceu compreender o perigo. Ouviu-se um troar de motores e o barco quase deu um pulo para a frente. Mas, a essa altura, a lancha atracara o barco e Sooper foi o primeiro a subir a bordo.

— Tive sorte, Cardew. Não imaginei que conseguisse pegá-lo assim, de repente.

— Até suas teorias e deduções têm de estar certas às vezes — disse Cardew, afável, enquanto as algemas se fechavam sobre seus pulsos.

 

                                                                                            Edgar Wallace

 

 

                      

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