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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA DOSE MORTAL / Agatha Christie
UMA DOSE MORTAL / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UMA DOSE MORTAL

 

O Dr. Morley era um dentista de ar severo, pacato, bom, inofensivo. Quem poderia querer matá-lo?

A Srta. Sainsbury Seale, ex-atriz de teatro, chegara da Índia há apenas seis meses, onde vivera em Calcutá, trabalhando com missionários e dando aulas de impostação de voz. Ótima criatura, um tanto simplória, era incapaz de matar uma mosca. A quem sua morte poderia interessar?

O Sr. Amberiotis, milionário grego, morre no Hotel Savoy, onde está hospedado. Causa mortis: colapso por dose excessiva de adrenalina e provocaína, mistura usada pelos dentistas como anestésico local.

Qual seria a relação entre estas três mortes? Hercule Poirot estava diante de um quebra-cabeça intrigante, fatos isolados que tinham que ser unidos para formar um desenho coerente e lógico.

 

                                               

 

O humor do Dr. Morley não estava dos melhores na hora do café. Reclamou o presunto; perguntou por que o café estava com gosto de água suja; e comentou sobre a má qualidade do pão.

Era um homem baixo, de queixo decidido e um ar severo. Sua irmã, que morava com ele, era, ao contrário, uma mulher enorme que lembrava um fuzileiro naval. Ela o examinou, por um instante, e perguntou se a água do chuveiro tinha estado fria novamente.

A contragosto o Dr. Morley respondeu que não; em seguida, olhou o jornal e comentou que o governo, aparentemente, estava passando do natural estado de incompetência para um completo grau de cretinice.

A Srta. Morley, com sua voz de baixo profundo, concordou com o irmão; e como era uma mulher simples, que não entendia nada de política, pediu ao irmão que lhe explicasse por que a atual política do governo era incompetente, idiota, imbecil e abertamente suicida.

Depois que o Dr. Morley respondeu à pergunta da irmã, tomou outra xícara do odioso café e desabafou a verdadeira razão do seu mau humor.

— Essas meninas são todas iguais — disse. — Irresponsáveis, egoístas, não se pode contar com elas para nada.

— Gladys? — arriscou a Srta. Morley.

— Acabei de receber um recado dela, dizendo que a tia teve um enfarte e que ela foi para Somerset.

— Um verdadeiro transtorno, meu querido, mas não foi propriamente culpa dela!

O Dr. Morley sacudiu a cabeça tristemente.

— Como é que eu vou saber se a tia teve mesmo um enfarte? Quem me garante que a Gladys não esteja mancomunada com aquele sem-vergonha que ela namora? Talvez até tenham ido à praia.

— Isso não, meu querido. Você mesmo sempre diz que ela é muito responsável.

— Lá isso é.

— Uma moça correta, trabalhadora como Gladys, não faria uma coisa dessas.

— Eu sei, Georgina, mas isso era antes dela conhecer aquele sujeito. Ultimamente ela não é mais a mesma; anda distraída, nervosa, chateada.

O fuzileiro deu um profundo suspiro de solidariedade.

— Acontece, Henry, que as mulheres se apaixonam, é inevitável.

— O que não é uma boa justificativa para se transformar numa funcionária relapsa. Ainda mais hoje! Um dia daqueles. Uma porção de pacientes importantes! É de matar.

— Sei como você deve estar se sentindo — disse a irmã, em tom apaziguador. — E o novo atendente, como está se saindo? O mau humor do dentista pareceu aumentar.

— É o pior que já tive. Não consegue guardar os nomes dos clientes e tem a educação de um carvoeiro! Se não melhorar vou despedi-lo e arranjar outro. Não sei para que servem nossas escolas, hoje em dia. Acho que para formarem idiotas, em série, que não entendem nada do que se lhes diz, incapazes até de anotarem um recado.

Dr. Morley olhou para o relógio.

— Já está na hora. Uma manhã cheia e ainda tenho que encaixar a Sainsbury Seale, num intervalo, pois está com dor de dentes. Sugeri que fosse ao Reilly, mas ela se recusou.

— E com toda a razão — disse Georgina, lealmente.

— Reilly é muito competente. Está sempre em dia com os avanços tecnológicos.

— As mãos dele tremem — disse a Srta. Morley. — Para mim, acho que ele bebe.

Morley riu, feliz. Seu bom humor estava restabelecido.

— A uma e meia eu subo para comer um sanduíche.

 

No Hotel Savoy, o Sr. Amberiotis palitava os dentes, satisfeito da vida. Tudo ia às mil maravilhas. A sorte lhe sorria novamente; apenas algumas palavras amáveis àquela mulher imbecil e os lucros exorbitantes não tardariam em vir.

Ele sempre fora um homem bom e “generoso”! Visões de benevolência flutuavam diante dos seus olhos! O pequeno Dimitri; o bom Constantopoulos, lutando para manter seu pequeno restau­rante, enfim... que grande surpresa para eles. O palito tocou inadvertidamente num dos dentes e o Sr. Amberiotis prendeu a respiração. As visões róseas do futuro se apagaram e deram lugar às apreensões do presente imediato. Sua língua explorou com carinho e cuidado o dente sensível. Amberiotis folheou o caderno de aponta­mentos: meio-dia, Dr. Morley, Rua Rainha Charlotte, 58.

Em seguida, tentou recapturar a alegria recém-perdida, mas em vão. Seu horizonte tinha-se transformado em seis palavras: meio-dia, Rua Rainha Charlotte, 58.

 

O café da manhã, no Hotel Glengowrie Court, estava chegando ao fim, e os hóspedes estavam se dirigindo para o saguão. A Srta. Sainsbury Seale estava sentada, ao lado da Sra. Bolitho. Durante as refeições as duas ocupavam mesas adjacentes e, desde a chegada da Srta. Sainsbury Seale, há uma semana atrás, tinham-se tornado amigas.

— Quer saber de uma coisa — disse a Srta. Sainsbury Seale, — parou de doer. Não sinto mais nada. Acho que vou telefonar.

A Sra. Bolitho a interrompeu. Era uma mulher alta, autoritária, dona de uma voz ressonante.

— Não seja tola, meu bem. Vá ao dentista e acabe logo com isso!

A Srta. Sainsbury Seale era uma mulher de quarenta e poucos anos, de cabelos louros, mal tingidos, arrumados em cachos; suas roupas eram esquisitas, com um toque pseudo-artístico e seus óculos recusavam-se a ficar parados no nariz. Além disso, era uma irremediável falastrona.

— Mas, realmente, não está doendo nada! — protestou, em tom de súplica.

— Tolice, a Senhorita mesma me disse que quase não dormiu a noite passada.

— Eu disse isso? Que bobagem, imaginem! Vai ver, até o nervo já morreu.

— Mais uma razão para ir ao dentista — insistiu a Sra. Bolitho, com firmeza. — Todos nós gostamos de adiar esses problemas, mas não devemos nos entregar à covardia. O melhor e tomarmos coragem e acabarmos logo com isso!

Um murmúrio de rebeldia se formou nos lábios da Srta. Sainsbury Seale.

É fácil falar quando o dente não é da gente, pensou.

— Acho que a senhora tem razão — admitiu a sofredora Sainsbury Seale. — O Dr. Morley é tão cuidadoso e quase sempre a gente nada sente.

 

A reunião da junta dos diretores estava encerrada. Tudo correu como devia; o resultado foi ótimo e não houve, sequer, uma nota de desacordo. Apesar disso, o Sr. Samuel Rotherstein, um homem muito sensível, notou uma pequena modificação no comporta­mento do presidente da mesa. Uma certa impaciência, um azedume que não se coadunava com o bom andamento dos trabalhos.

Alguma preocupação secreta? Rotherstein não podia imaginar Alistai Blunt com alguma preocupação secreta. O Sr. Blunt sempre tão frio, tão formal, tão inglês! Quem sabe era fígado? O fígado de Samuel, às vezes, lhe dava trabalho, mas nunca ouvira Blunt queixar-se do fígado. A saúde do presidente era tão boa quanto sua perspicácia e seu tino comercial.

Mas que havia alguma coisa, isso era evidente. Uma ou duas vezes, o presidente passou a mão pelo rosto, e durante a reunião sustentou o queixo com a mão; um gesto que não lhe era habitual. Além do mais, durante os trabalhos, Blunt parecia distraído.

Saíram da sala de reunião e se dirigiram para os elevadores.

— Posso lhe dar uma carona? — perguntou Rotherstein.

Alistair Blunt sorriu, sacudindo a cabeça.

— Meu carro está lá embaixo — respondeu, olhando o relógio. — Não vou para a cidade, tenho hora marcada no dentista.

O mistério estava solucionado.

 

Hercule Poirot desceu do táxi, pagou o chofer e tocou a campainha da porta.

Após uma breve espera, a porta foi aberta por um rapazinho sardento, de cabelos vermelhos, vestindo um uniforme de atendente.

— O Dr. Morley? — perguntou Poirot.

Em seu coração batia a ridícula esperança de que o Dr. Morley não estivesse, ou que não pudesse atender ninguém — Em vão! O atendente afastou-se e Hercule Poirot entrou. A porta fechou-se, atrás dele, com a inexorável inconsciência da fatalidade.

— Seu nome, por favor? — perguntou o rapazinho.

Poirot deu o nome e foi levado para a sala de espera, um local decorado com bom gosto, mas, segundo Poirot, de uma severidade jesuítica. Numa mesa, vários jornais e revistas arranjados cuidadosa­mente. Sobre a lareira, um relógio de bronze, ladeado por dois vasos de porcelana chinesa. As janelas, envoltas em cortinas de ve­ludo azul, e as cadeiras e as poltronas forradas do mesmo material. Uma das cadeiras estava ocupada por um senhor de aspecto militar, pele amarelada e vastos bigodes. Olhou para Poirot como quem en­frenta um inseto nocivo. Pareceu procurar, não por um revólver mas por uma bomba de Flit, para eliminar a nova e desagradável presença.

Poirot o examinou com impaciência.

Verdadeiramente, pensou, existem alguns ingleses que são tão desagradáveis e ridículos que deviam ser poupados da desgraça de viver!

O militar, por sua vez, depois de um longo exame, agarrou um jornal, virou sua cadeira para evitar ter que ver Poirot e voltou a sua leitura.

Poirot começou a folhear o Punch, meticulosamente, mas não conseguiu achar graça nas piadas.

O atendente apareceu.

— O Coronel Arrowbumby.

O militar foi conduzido para um dos consultórios. Poirot começou a se perguntar se era possível existir tal nome, quando a porta se abriu e um rapaz de uns trinta anos entrou.

O rapaz ficou parado, perto da mesa, escolhendo uma revista, enquanto Poirot o observava.

Um jovem desagradável e perigoso, pensou Poirot, talvez até um criminoso. De qualquer maneira, parecia mais um assassino do que aqueles que Hercule Poirot havia prendido durante sua longa carreira criminal.

A porta se abriu novamente e o atendente apareceu:

— Sr. Peeret.

Poirot levantou-se, entendendo perfeitamente que o nome mal enunciado devia ser o seu. O atendente o conduziu ao elevador e juntos subiram até o segundo andar. Passaram, em seguida, por um corredor e chegaram até uma porta. O atendente bateu duas vezes, abriu a porta e fazendo um gesto, convidou Poirot a entrar.

Poirot penetrou no consultório, ouvindo um barulho de água corrente. Olhou para o fundo da sala e viu o Dr. Morley, lavando as mãos, na pia.

 

Mesmo na vida dos grandes homens ocorrem situações humi­lhantes. É sabido que nenhum homem é um herói diante do seu criado de quarto; e muito menos (deve-se acrescentar) diante do seu dentista.

Hercule Poirot sentia-se morbidamente consciente disso. Sempre fora um homem acostumado a ter uma boa impressão de si mes­mo. Afinal ele era, realmente, superior à maioria dos homens em muitas coisas. Naquele momento, porém, sentia-se incapaz de qual­quer sentimento de superioridade: era um mortal como qualquer outro, apavorado diante da cadeira do dentista.

Dr. Morley tinha terminado de lavar as mãos; dirigiu-se a Hercule com sua habitual cordialidade profissional. Será que este tom afável conseguiria diminuir a angústia do momento?

Dr. Morley levou a vítima gentilmente para o lugar temido: a cadeira! Acomodou, com destreza, o encosto para a cabeça, enquanto Hercule, depois de um suspiro, sentou-se, entregando-se às pesquisas profissionais do dentista.

— Pronto — disse Morley, num horripilante tom de alegria, — está bem cômodo?

Poirot concordou, num tom sepulcral.

A mesinha de instrumentos foi colocada diante de Poirot. O dentista apanhou o espelhinho e um odioso instrumento pontiagudo e iniciou a investigação. Hercule limitou-se a agarrar os braços da cadeira, fechar os olhos e abrir a boca.

— Está sentido alguma dor? De forma incoerente, dada a dificuldade em formar as consoantes, com a boca aberta, Poirot fez o dentista entender que não havia nada de anormal. Era apenas a visita semestral determinada pelo bom senso e pela higiene. Poderia ocorrer que Morley não- encontrasse nada de anormal, que ele, talvez, deixasse escapar o penúltimo dente, da arcada superior, o mesmo que ultimamente vinha lhe dando umas pequenas pontadas. Por descuido, qualquer coisa poderia acontecer; mas intimamente, Poirot sabia que não podia contar com isso. Afinal o Dr. Morley era um ótimo dentista.

A pesquisa estendeu-se vagarosamente, dente por dente, e enquanto o dentista ia cutucando e batendo, fazia pequenos comentários.

— Esta obturação está um pouco gasta, mas ainda dá. As gengivas estão em bom estado.

Uma pequena parada diante de um dente suspeito, um calafrio da vítima, mas, não, apenas um falso alarme. Dr. Morley passou para o outro lado. Examinou o primeiro, o segundo, e ia para o terceiro — não — o cão de fila, pensou Hercule, viu o coelho!

— Temos uma coisinha aqui! Não está doendo? Muito me surpreende — comentou, continuando a pesquisa.

Finalmente, Morley deu a busca por encerrada.

— Nada de mais. Umas obturações gastas e uma cárie no molar superior. Vamos fazer tudo isto hoje de manhã.

Ligou o motor, instalou a agulha e sorriu para Poirot.

— Me avise quando estiver doendo.

Não havia necessidade. Assim que a broca atingia um ponto nevrálgico, Dr. Morley parava, enxaguava a boca de Poirot, trocava a agulha e continuava o trabalho. O suplício do motor, no fundo, era mais angústia do que propriamente dor. Encerrada esta etapa, enquanto o dentista preparava a massa, voltaram a conversar.

— Hoje de manhã, tenho que fazer tudo sozinho — explicou Morley; — minha assistente, Miss Nevill, foi chamada, às pressas, por causa de um parente. O senhor está lembrado dela?

Poirot mentirosamente disse que sim.

— Um telegrama por causa de um enfarte. Tipo da coisa que só acontece quando a gente está com o dia cheio. Já estou atrasado! O paciente anterior ao senhor chegou atrasado, tenho que atender uma senhora, num intervalo, pois está com dor de dente. Sempre dou uma folga, entre um paciente e outro, para atender estas contingências, mas, num dia como hoje, só vem me sobrecarregar.

Em seguida, Morley começou a encher o buraco do dente.

— Vou lhe dizer uma coisa interessante, Sr. Poirot. A gente graúda, as pessoas realmente importantes, são sempre pontuais, nunca se fazem esperar. Veja por exemplo, o pessoal da nobreza, que correção! Os banqueiros, a mesma coisa. Hoje de manhã, tenho uma visita muito importante: Alistair Blunt.

Dr. Morley pronunciou o nome com triunfo. Poirot, impedido de falar pelos rolos de algodão, e pelo tubo de prata colocado sob a língua, deu um grunhido de aprovação. Alistair Blunt! Um nome citado diariamente nos jornais. O célebre Alistair Blunt, um homem cujo rosto era quase desconhecido do grande público, que só aparecia citado nas colunas financeiras dos jornais; uma figura pública que não possuía nada de espetacular; era apenas um inglês típico que dirigia a maior firma bancaria da Inglaterra; dono de uma imensa fortuna; um homem que dizia sim ou não aos governos; que vivia pacatamente e nunca aparecia nos lugares da moda. Enfim, um homem em cujas mãos estava encerrado o poder supremo.

A voz de Morley assumiu um tom reverenciai, enquanto trabalhava na obturação.

— Sempre chega na hora. Geralmente, manda o carro embora e volta a pé para o escritório. Um sujeito simples e pacato que gosta de golfe e jardinagem. Olhando para ele, ninguém diz que a sua fortuna poderia comprar metade da Europa. Um homem, assim, como o senhor.

Uma onda de ressentimento invadiu Poirot. Dr. Morley, pensou, podia ser um bom dentista, mas havia outros bons dentistas em Londres. Agora, só havia um Hercule Poirot.

— Cuspa, por favor. Alistair Blunt é a resposta para os Mao Tse Tung, os russos e o resto da camarilha — continuou Morley; — nós, aqui na Inglaterra, não gostamos de muita confusão. Veja que figura democrática é a nossa Rainha. É claro que para o senhor, que é francês, e está acostumado com o ideal republicano...

— Naaã sooo fancês, soo bega.

— Psiu, psiu! — fez o dentista, — não deixe entrar saliva no dente. — Deu umas bombadas de ar quente na cavidade. — Não sabia que o senhor era belga. Que interessante! O Rei Baudoin é um homem muito capaz, segundo ouvi dizer. Acredito muito na realeza. É uma grande escola. Repare como eles guardam os nomes e as fisionomias das pessoas: resultado de um treinamento, não tenha dúvida. Entretanto certas pessoas possuem este dom de forma inata. Eu, por exemplo, nunca me lembro de um nome, mas, por outro lado, nunca esqueço uma fisionomia. Um dos meus clientes apareceu por aqui, eu já o tinha visto. O nome não me dizia nada, mas, mesmo assim eu perguntei: Onde nos vimos antes? Ainda não consegui me lembrar, mas um dia eu acabo me lembrando. Cuspa, novamente, por favor.

Morley deu uma olhada crítica para a obturação.

— Parece que está bem. Feche, com cuidado, a boca. Sente-se bem? Está sentindo a obturação? Abra, novamente. Que tal? Tudo em ordem, então?

A mesinha foi afastada e a cadeira colocada na posição. Hercule saltou do lugar, sentindo-se um homem livre.

— Até logo, Sr. Poirot. Não encontrou nenhum criminoso na minha sala de espera?

Poirot sorriu.

— Antes de ser atendido, todos me pareciam criminosos. Agora, acho que tudo vai parecer diferente.

— Ah! A grande diferença do antes e do depois! De qualquer maneira, nós, dentistas, não somos mais o bicho-papão de antigamente! Quer que eu chame o elevador?

— Não, vou pela escada, obrigado.

— Se quiser, o elevador fica logo ao lado.

Poirot saiu. Enquanto fechava a porta, ouviu novamente o ruído da torneira. Desceu os dois lances de escada. Na última curva, viu o Coronel saindo do outro consultório. Um homem simpático, pensou Poirot, deve ser um ótimo atirador, um militar de grande valia para a defesa do Império Britânico. Poirot dirigiu-se à sala de espera para apanhar o chapéu e a bengala. O estranho rapaz, para surpresa sua, ainda estava lá. Outro paciente calma­mente lia uma revista.

Poirot examinou o rapaz com renovada boa vontade. Ainda o achou um tipo frio, capaz de matar alguém, mas não por que fosse um assassino nato, como havia formulado antes da consulta. Certamente, este mesmo rapaz, daí a pouco, desceria as escadas, livre da tortura, sorrindo feliz e desejando a todos o bem-estar universal.

O atendente entrou.

— Sr. Blunt, por favor.

O paciente, que lia uma revista, levantou-se. Era um homem de estatura média, de uns cincoenta e poucos anos, bom corpo. Trajava-se de maneira bastante discreta. Seguiu o atendente.

Um dos homens mais ricos e poderosos dá Inglaterra, e ainda assim, tinha que ir ao dentista, como todo o mundo.

Poirot pegou a bengala, o chapéu e dirigiu-se para a porta. Olhou para trás, por um instante, e concluiu, com certa pena, que o jovem “assassino” deveria estar com uma terrível dor de dentes.

No vestíbulo, Poirot parou, diante do espelho, para ajustar os bigodes que estavam ligeiramente desgrenhados. Depois abriu a porta e saiu.

Um táxi vinha chegando. Parou. Pela porta de trás, viu, saltando do carro, um pé de mulher. Poirot examinou o pé com interesse, depois o bonito tornozelo numa meia de boa qualidade. Um pé interessante. O único senão, para Poirot, era o sapato de couro, fechado com uma enorme fivela prateada. Hercule sacudiu a cabeça: nada chique, muito caipira! pensou. A senhora saltou do táxi, mas na precipitação prendeu o outro pé na porta, arrancando a fivela, que voou para a calçada. Gentilmente, Poirot correu para apanhá-la e devolveu-a à dona, com uma reverência.

Infelizmente, a senhora parecia ter uns cincoenta anos! Usava óculos! Seus cabelos louros eram acinzentados, e as roupas estranhas em tons de musgo. Ela agradeceu, deixando cair os óculos e em seguida, a bolsa.

Poirot educadamente apanhou os pertences da estranha senho­ra. Ela subiu os degraus e apertou a campainha da casa do Dr. Morley.

— Está livre? — perguntou Poirot ao chofer, que contemplava com desprezo a gorjeta que a freguesa lhe tinha dado.

— Está — respondeu.

— Eu também, livre de tudo.

Ao dizer isso, Poirot notou o ar de estranheza no rosto do chofer.

— Não tenha medo, meu amigo, não estou bêbado. Acabei de sair do dentista e não preciso voltar nos próximos seis meses! Por isso, estou tão feliz.

 

Eram três e quinze, quando o telefone tocou. Hercule Poirot estava sentado numa espreguiçadeira, cochilando, depois de ter devorado um excelente almoço. Quando o telefone tocou, não se mexeu, esperando que o fiel George viesse atender.

— Eh, bien? — perguntou Poirot quando George apareceu.

— É o Inspetor Japp.

— Ah!

Poirot pegou o telefone.

— Eh, bien, mon ami. Que que há?

— É você mesmo, Poirot?

— Claro que sou.

— Ouvi dizer que você foi ao dentista, hoje de manhã. É verdade?

— A Scotland Yard anda muito bem informada.

— Um dentista chamado Morley, que mora na Rua Rainha Charlotte, 58.

— Isso mesmo. Por quê?

— Você foi se consultar, ou foi verificar alguma coisa?

— Fui obturar um dente, trocar a obturação de outros dois, que já estavam gastos, se lhe interessa.

— O dentista lhe pareceu... diferente?

— Não. Por quê?

A voz de Japp continuou fria e distante.

— Porque um pouco mais tarde, ele se suicidou.

— O quê?

— Está surpreso? — perguntou Japp.

— Claro que estou.

 — Eu também, não estou muito satisfeito com esta versão da história — disse Japp. — Quero falar com você. Pode dar um pulo até aqui?

— Onde você está?

— Na Rua Rainha Charlotte.

— Vou já para aí — respondeu Poirot.

 

Um policial abriu a porta para Hercule Poirot.

— Sr. Poirot?

— Sim.

— O Inspetor está lhe esperando no segundo andar. Sabe o caminho?

— Estive aqui, hoje de manhã — respondeu Hercule.

No consultório, Hercule encontrou três homens. O Inspetor Japp encaminhou-se para receber o novo visitante.

— Que bom revê-lo, Poirot. Já íamos levar o corpo, quer dar uma olhada?

Um fotógrafo que estava ajoelhado, ao lado do corpo, levantou-se. Poirot deu um passo à frente. O cadáver, perto da lareira, parecia quase vivo. De anormal, só um pequeno buraco escuro na testa e perto da mão direita uma pistola.

Poirot sacudiu a cabeça.

— Podem levá-lo — disse Japp.

O corpo do Dr. Morley foi carregado para o necrotério. Japp e Poirot ficaram sozinhos.

— Já terminamos com quase todas as preliminares: impressões digitais etc. — disse Japp.

Poirot sentou-se.

— O que aconteceu?

Japp apertou os lábios.

— É possível que ele tenha-se suicidado — respondeu. — É bem provável, mesmo. No revólver só encontramos suas impressões digitais, mas mesmo assim, não estou satisfeito.

— Quais são suas objeções? — perguntou Poirot.

— Para começar, ele não parecia ter qualquer motivo para se suicidar; gozava de boa saúde, ganhava bem, não parecia ter problemas. Não estava encrencado com mulher alguma, pelo menos que se tenha conhecimento. Além do mais, o Dr. Morley, ultimamente, não aparentava estar melancólico ou deprimido. Por isto, Poirot, eu gostaria de ouvir sua opinião. Você esteve com ele, hoje de manhã, que tal ele lhe pareceu?

Poirot sacudiu a cabeça.

— Igual às outras vezes. Que posso responder? Ele estava no auge da normalidade.

— Portanto, a coisa se torna mais estranha, não acha? — perguntou Japp. — Além do mais, não é comum uma pessoa se suicidar, durante as horas de trabalho. Por que ele não esperou a noite? Seria muito mais lógico.

Poirot concordou.

— Quando ele morreu?

— Não posso precisar — respondeu Japp. — Ninguém parece ter ouvido o tiro, o que não é de espantar. Existem, entre o corredor e o consultório, duas portas forradas com feltro, para impedir que se escutem os gritos das vitimas, imagino!

— Provavelmente, alguns pacientes suportam mal o motor.

— É mesmo — concordou Japp. — Além disso, a rua é muito barulhenta, de forma que, de fora, ninguém poderia escutar nada.

— Mas, quando descobriram Morley?

— Lá pela uma e trinta, o atendente, Alfred Briggs, um sujeito meio retardado, atendendo às reclamações da paciente de meio-dia e meia resolveu ver o que estava atrasando tanto o doutor. Bateu na porta e como não obtivesse resposta, não se atreveu a entrar. Parece que já havia levado uns pitos do patrão por entrar no consultório sem ser chamado, de maneira que ficou com medo de dar outra rata. Alfred desceu e como não soube dar explicação alguma, a cliente se retirou furiosa.

— Quem era ela?

Japp sorriu.

— Segundo Alfred, chama-se Srta. Shirty; mas nós verificamos tratar-se de uma Srta. Kirby.

— Qual era o sistema empregado para chamar os pacientes?

— Quando Morley estava pronto para receber o paciente, apertava a campainha e o atendente chamava a pessoa.

— Quando foi a última vez que Morley apertou a campainha?

— Meio-dia e cinco. Alfred encaminhou o Sr. Amberiotis, hóspede do Hotel Savoy, segundo o registro de consultas.

Um sorriso passou pelos lábios de Poirot.

— Imagino o que este atendente inventou com um nome desses!

— Qualquer loucura — disse Japp. — Só para darmos risada vou perguntar depois.

— Que horas Amberiotis saiu?

— O atendente não o viu sair. A maioria dos pacientes prefere descer pela escada.

Poirot assentiu com a cabeça.

— Liguei para o Hotel Savoy — continuou Japp, — e o Sr. Amberiotis foi bastante preciso. Disse ter visto a hora em que saiu do consultório, isto é, meio-dia e vinte cinco.

— Não disse mais nada de interessante?

— Não, só que o dentista lhe pareceu calmo e natural.

— Eh, bien! — disse Poirot. — Isto parece bem claro, entre meio-dia e vinte cinco e uma e meia alguma coisa aconteceu; provavelmente, por volta de meio-dia e meia.

— Tem razão. Porque...

— Senão ele teria tocado a campainha para chamar o próximo paciente.

— Exatamente. A perícia médica concorda com isto. O legista examinou o corpo às duas e vinte. Não quis se comprometer, o que, aliás, está muito em moda, hoje em dia, mas acha que Morley não pode ter morrido muito depois da uma hora, com grandes possibili­dades de ter sido até antes. Por enquanto, porém, não quis dar a palavra final.

Poirot começou a pensar em voz alta.

— Portanto, ao meio-dia e vinte cinco, nosso dentista é um homem normal, alegre, educado e capaz. Depois disso: melancolia, frustração, o que quer que seja e ele se mata!

— Engraçado — disse Japp — você tem que admitir que é engraçado.

— Não creio que seja o adjetivo apropriado.

— Sei que não é; são formas de expressão. Se preferir, emprego a palavra estranho.

— A pistola era de Morley?

— Não, ele não tinha revólver. Segundo sua irmã, não existe arma alguma na casa, o que, aliás, é muito comum. É claro, também, que ele poderia ter comprado uma pistola para se suicidar. Caso seja verdade, vamos saber logo.

— Há algo mais que o preocupe?

Japp coçou o nariz.

— Sim, o jeito como ele estava caído. Não diria que um sujeito não poderia cair daquela maneira, mas havia algo de forçado na posição; também, uma ou duas marcas no tapete como se o corpo tivesse sido arrastado.

— Isto já é mais sugestivo.

— Isso se não estivéssemos lidando com um débil mental, como este atendente, que pode ter mudado a posição do corpo. Alfred nega, mas na hora estava bastante assustado. É do tipo que está sempre fazendo besteira e levando pito, de maneira que, passa por defesa, a mentir automaticamente.

Poirot olhou o consultório. Examinou a pia, atrás da porta; o armário de vidro, cheio de instrumentos; a cadeira do paciente; o armário de remédios, ao lado da janela; a lareira e finalmente o local onde tinha sido encontrado o corpo. Ao lado da lareira havia uma pequena porta. Japp acompanhou o olhar de Poirot.

— Dá para um pequeno escritório — explicou Japp, abrindo a porta.

Era realmente uma pequena peça, com uma escrivaninha, um abajur, um arquivo, um aparelho de chá e duas cadeiras.

— Aqui trabalha a secretária dele, Miss Nevill — explicou Japp. — Parece que faltou hoje.

Os dois se entreolharam.

— Dr. Morley me contou — lembrou-se Poirot. — Outra pista contrária à teoria do suicídio?

— Como se ela tivesse sido afastada de propósito? — perguntou Japp. — Se não foi suicídio, ele foi assassinado. Mas, por quê? Uma coisa é tão absurda quanto a outra. O dentista parecia ser um homem pacato, bom, cumpridor dos seus deveres. Quem iria querer matá-lo?

— Boa pergunta. Quem?

— E qualquer pessoa da casa poderia tê-lo feito. A irmã, um dos empregados, ou o sócio, o Dr. Reilly. E por que não o atendente ou o Sr. Amberiotis, que esteve com ele durante a consulta?

Poirot concordou.

— Neste caso temos que investigar o porquê.

— Claro — disse Japp, — voltamos ao problema original. Por quê? Amberiotis está hospedado no Hotel Savoy. A propósito de que um milionário grego mataria um inofensivo dentista? O duro vai ser descobrir o motivo.

Poirot sacudiu os ombros.

— Na minha opinião a Morte selecionou, de maneira pouco artística, o homem errado. O grego misterioso, o rico banqueiro, o famoso detetive, poderiam facilmente ser os visados. É sabido que estrangeiros misteriosos podem estar metidos em espionagem; que banqueiros ricos, ao morrer, deixam parentes próximos, em ótimas condições; e que famosos detetives podem ser um perigo para os criminosos.

— E Morley, ao contrário, não era perigoso para ninguém — disse Japp, com tristeza.

— Disso, não tenho tanta certeza — retrucou Poirot.

Japp virou-se bruscamente.

— Por que diz isto?

— Por nada. Foi um comentário apenas, que ele fez hoje de manhã. Disse que era um ótimo fisionomista, mas incapaz de lembrar o nome das pessoas. Há dias que estava tentando lembrar o nome de um paciente.

Japp pareceu cético.

— É possível — concordou, — mas acho um pouco demais. Deve ter sido alguém que quis manter o anonimato. Você reparou nos outros pacientes de hoje?

— Reparei num rapaz, na sala de espera — disse Poirot, — que parecia um perfeito assassino.

— O quê?

— Mon cher, eu estava chegando — desculpou-se Poirot, — estava nervoso, deprimido, enfim, de péssimo humor. Tudo me parecia sinistro: a sala de espera, os pacientes, até a passadeira da escada. Na verdade, acho que o pobre rapaz estava mesmo era com dor de dentes!

— Entendo — disse Japp. — De qualquer maneira temos que interrogar este rapaz também. Vamos descobrir se foi ou não foi suicídio. Primeiro acho que devo ter outra conversa com a irmã de Morley, pois só troquei duas palavras com ela, quando entrei. Ela estava muito abalada mas não é do tipo de ficar prostrada na cama. Vamos dar um pulo até lá em cima.

Georgina Morley, bastante triste, recebeu os dois, ouviu com atenção o que disseram e respondeu a todas as perguntas.

— Acho impossível... impossível, que meu irmão tenha-se matado.

— Mas, então, só haveria outra alternativa, mademoiselle.

— Um assassinato? — Georgina Morley ficou calada, por uns instantes. — É verdade, esta alternativa também me parece impos­sível.

— Mas, não tanto quanto a do suicídio?

— Sim, porque no caso de suicídio eu estou me baseando numa coisa que sei, o estado de ânimo do meu irmão. Sei que ele não tinha qualquer preocupação, que não havia justificativa alguma para se suicidar.

— A Senhorita esteve com ele, pela manhã?

— Tomamos café juntos.

— Ele lhe pareceu normal, não estava preocupado com coisa alguma?

— Estava preocupado, mas não a ponto de se suicidar. Para ser exata ele estava zangado.

— Por quê?

— Teria uma manhã cheia de clientes e sua secretária não podia vir. Tinha sido chamada às pressas por um parente.

— A Srta. Nevill?

— É.

— Quais eram os encargos da Srta. Nevill?

— Toda a correspondência, marcar as horas com os clientes, arquivar as fichas. Também esterilizava os instrumentos, preparava a massa para as obturações.

— Há muito tempo que ela trabalha com seu irmão?

— Três anos. É muito eficiente e nós gostamos... meu irmão gostava muito dela.

— Seu irmão me disse que ela tinha sido chamada por causa de uma doença na família — disse Poirot.

— É verdade. Ela recebeu um telegrama, dizendo que a tia tinha sofrido um enfarte. Partiu, de trem, hoje de manhã para Somerset.

— Por isto seu irmão estava zangado?

— Sim — hesitou a Srta. Morley, mas continuou apressadamente, — o senhor não deve fazer uma idéia errada do meu irmão. É que ele achava que...

— Achava o quê, Srta. Morley?

— Que ela tivesse inventado o telegrama para poder faltar. Não me interpretem mal, tenho certeza de que Gladys seria incapaz disso. Cheguei mesmo a dizer isso a Henry. O que acontece é que ela está noiva de um rapaz meio sem juízo, e Henry andava aborrecido com isso, e achou que o noivo teria convencido Gladys a tirar um dia de folga.

— E possível?

— Não, claro que não. Gladys é uma moça muito conscienciosa.

— Mas o noivo poderia ser capaz de tal idéia?

— Acho que sim.

— Onde ele trabalha, este rapaz, e como é o nome dele?

— Frank Carter. É agente de seguros ou coisa parecida. Perdeu o emprego há algumas semanas e ainda não arranjou outro. Henry achava, e sou obrigada a concordar, que ele não vale nada. Gladys lhe emprestava dinheiro o que irritava Henry ainda mais.

— Seu irmão tentou convencê-la a desmanchar o noivado? — perguntou Japp.

— Tentou.

— Então Frank Carter, provavelmente, teria razões para odiar seu irmão?

O peito do fuzileiro se inflou.

— Que bobagem! O senhor está sugerindo que Frank Carter matou Henry? É verdade que Henry aconselhou Gladys a arranjar outro noivo. Infelizmente, ela é tão boba, que não seguiu o conselho; continua apaixonada por Frank...

— A Senhorita conhece outra pessoa que, por alguma razão, teria raiva do seu irmão?

Georgina Morley sacudiu a cabeça.

— Seu irmão mantinha boas relações com o sócio, o Dr. Reilly?

— As melhores possíveis — respondeu Georgina, com certo azedume, — em se tratando de um irlandês.

— Como assim?

— Ora, os irlandeses são conhecidos pelo temperamento belicoso, além de gostarem de discussões inúteis. No caso de Reilly, é um homem louco para discutir sobre política.

— É tudo?

— É. O Dr. Reilly pode ser um homem relaxado em diversos aspectos, mas é uma pessoa muito capaz no exercício de sua profissão. Pelo menos, era esta a opinião do meu irmão.

— Relaxado, de que maneira?

A Srta. Morley pareceu hesitar.

— Ele bebe demais, mas por favor, espero que isto fique entre nós.

— Houve, entre seu irmão e ele, alguma discussão por causa de bebida?

— Henry pode ter tocado no assunto, com ele, uma ou duas vezes — ponderou a Srta. Morley, em tom didático. — Na odontologia é necessário ter-se mão firme. Além do mais, o hálito etílico de um dentista pode tirar a confiança de um cliente.

Japp concordou.

— A Senhorita está a par da situação financeira do seu irmão?

— Ele estava ganhando bem e tinha uma quantia razoável de reserva e de investimentos. Além do mais, tínhamos um pecúlio herdado do nosso falecido pai.

— Sabe se o Dr. Morley deixou algum testamento?

— Deixou. Sei até os termos: para Gladys Nevill: 100 libras; o resto para mim. Compreendo agora...

Ouviu-se um estrondo do lado de fora. A porta abriu-se e Alfred surgiu, de olhos esbugalhados, examinando um por um dos presen­tes, enquanto falava.

— A Srta. Nevill chegou. Chegou e está muito mal. Ela quer saber se deve entrar.

Japp concordou e a Srta. Morley virou-se para Alfred.

— Diga-lhe para entrar, Alfred.

— Tá certo — respondeu o atendente, desaparecendo.

— Este menino é um caso de POLÍCIA! — comentou a Srta. Morley.

 

Gladys Nevill era uma moça de vinte e oito anos, alta, loura e ligeiramente anêmica. Embora estivesse muito abalada, preferiu ser imediatamente interrogada pelo Inspetor. Para afastá-la da Srta. Morley, o Inspetor Japp pretextou ter que examinar algumas fichas do Dr. Morley, conduzindo, assim, a secretária para o escritório.

— Não posso acreditar numa coisa dessas! Parece incrível que o Dr. Morley fizesse uma coisa dessas! — repetia, sem cessar, Gladys.

— A Senhorita foi chamada, às pressas, hoje? — perguntou o Inspetor.

— Sim, e afinal não passou de uma brincadeira de mau gosto. Detesto este tipo de gracinha.

— Como assim?

— Acontece que minha tia não tinha nada! Estava muito bem de saúde. É claro que fiquei aliviada, mas também furiosa. Me mandarem um telegrama urgente, naqueles termos!

— O telegrama está com a Senhorita?

— Não, acho que o joguei fora, na estação. Dizia simplesmente: Tia teve enfarte ontem à noite. Venha imediatamente.

— A Senhorita tem certeza — pigarreou Japp, delicadamente, — que não foi seu amigo, Frank Carter, quem enviou este telegrama?

— Frank? Com que propósito? Ah! sei... como se nós estivéssemos mancomunados? De modo algum, Inspetor. Nenhum de nós dois seria capaz de uma coisa dessas.

Gladys parecia realmente indignada, de maneira que levou um certo tempo, para o Inspetor Japp apaziguá-la. Mudando de assunto, quis saber sobre os clientes da manhã.

— Estão todos aqui anotados. Creio que o senhor já viu a agenda. Conheço a maioria. Às dez a Sra. Soames, para tratar da ponte; às dez e meia, Lady Grant, uma senhora bastante idosa; às onze, o Sr. Hercule Poirot, que nos consulta regularmente... ora, é claro, desculpe não tê-lo reconhecido antes, Sr. Poirot, mas estou tão nervosa! Às onze e meia, o Sr. Alistair Blunt, o famoso banqueiro; ia ter uma consulta rápida, por se tratar de um curativo. Em seguida, a Srta. Sainsbury Seale, que nos telefonou, porque estava com dor de dentes, de maneira que teve que ser encaixada, entre dois horários. É uma senhora muito tagarela, que se preocupa com tudo e com todos. Ao meio-dia, o Sr. Amberiotis, um cliente novo, que marcou a consulta através do Hotel Savoy. O Dr. Morley recebe muitos clientes do estrangeiro. Ao meio-dia e meia, a Sra. Kirby...

— Quando cheguei — interrompeu Poirot, — havia um militar, na sala de espera. Quem era?

— Certamente um cliente do Dr. Reilly. Quer que eu apanhe a agenda dele?

— Obrigado, Srta. Nevill.

Dois minutos depois, ela estava de volta com uma agenda semelhante.

— Às dez horas, Betty Heath, uma menina de nove anos... as onze horas, o Coronel Abercrombie.

— Ç’était ça! Coronel Abercrombie.

— Às onze e meia, o Sr. Howard Raikes; ao meio-dia o Sr. Barnes, e é só. O Dr. Reilly não tem tantos pacientes quanto o Dr. Morley.

— O que a Senhorita sabe sobre estes clientes do Dr. Reilly?

— O Coronel Abercrombie é um cliente antigo; todos os filhos da Sra. Heath se tratam com o Dr. Reilly. Já ouvi falar no Sr. Barnes e creio que também no Sr. Raikes, mas não sei nada sobre eles. Quem atende o telefone, sou eu...

— Não tem importância — interveio Japp, — podemos perguntar tudo isto diretamente ao Dr. Reilly.

A Srta. Nevill retirou-se. Japp voltou-se para Poirot.

— Todos clientes antigos de Morley, exceto Amberiotis. Logo mais vou ter uma conversa com esse senhor. Pelo que parece, ele foi a última pessoa a ver Morley vivo; mas temos que ter certeza de que, quando ele saiu do consultório, Morley ainda estava vivo.

— Mesmo assim, para Amberiotis matar Morley precisaria haver uma razão — comentou Poirot, sacudindo a cabeça.

— Eu sei! Isso não vai ser fácil. Talvez lá, no Departamento, exista alguma informação sobre Amberiotis.

— Estou pensando numa coisa...

— O quê?

— Por que está aqui?

— Como?

— Foi o que eu disse. Por que está aqui? Geralmente, um Inspetor da sua importância não é chamado para resolver casos de suicídio.

— Acontece que eu estava aqui, por perto, na hora. Estou investigando um grupo de estelionatários muito inteligentes, que estão me dando muito trabalho. Foi, então, que recebi um telefonema.

— Ainda não entendi por que você foi chamado.

— É óbvio; por causa de Alistair Blunt. Logo que o Inspetor do Distrito soube do caso, associou o acidente com a consulta do banqueiro. O Sr. Blunt é o tipo do homem em quem a Polícia anda de olho, vinte e quatro horas por dia.

— Isto quer dizer que existem pessoas que gostariam de afastar Blunt do convívio dos mortais?

— Claro que sim. Os comunistas, por exemplo. Blunt e o seu grupo determinam a política financeira do nosso Governo. Por isso, para não correr o risco de deixar escapar nada, me enviaram para cá.

Poirot concordou.

— Foi o que pensei. E sinto que esta nossa história — disse Poirot, sacudindo as mãos — não está bem contada. A verdadeira vítima deveria ser Alistair Blunt, ou talvez, este seja o primeiro de uma série de crimes. Sinto cheiro de dinheiro neste negócio.

— Você não está exagerando?

— Estou somente insinuando que ce pauvre Morley era apenas um peão no tabuleiro. Talvez ele soubesse algo; talvez tivesse contado a Blunt alguma coisa. Não sei.

Gladys Nevill interrompeu a conversa.

— O Dr. Reilly está ocupado, extraindo um dente. Daqui a dez minutos estará livre.

— Muito bem, obrigado — disse Japp. — Enquanto isso, vamos ter outra conversa com o atendente.

 

Alfred estava confuso. Não sabia se devia ficar nervoso, se divertir, ou ter medo. Não sabia, também, se seria acusado por ser o causador de toda a confusão.

Começara a trabalhar para o Dr. Morley, havia quinze dias, e desde então, tinha executado, sistematicamente, todas as ordens que lhe davam, errado. Um eterno sentimento de culpa pairava sobre ele.

— O doutor estava bem nervoso — disse Alfred, — mas não lembro de mais nada. Nunca pensei que ele fosse se matar.

Poirot interveio.

— Você precisa nos contar tudo que aconteceu hoje de manhã. Você é uma testemunha importante e sua versão dos fatos poderá nos ser de grande utilidade.

O rosto de Alfred tornou-se rubro; seu peito cresceu. Ele já havia relatado os acontecimentos da manhã a Japp mas, diante de Poirot, sentiu-se de uma importância capital.

— Posso contar o que quiserem, é só perguntar.

— Para começar, aconteceu alguma coisa de estranho, hoje, aqui?

— Que eu lembre, não — respondeu Alfred, meio tristonho. —- Tudo se passou como nos outros dias.

— Pessoas estranhas apareceram?

— Não, senhor.

— Nem mesmo acompanhando os clientes?

— Ninguém apareceu aqui, que não fosse esperado, se é isto que o senhor quer dizer. Todos tinham hora marcada.

Japp concordou.

— Alguém poderia ter entrado pela outra porta? — perguntou Poirot.

— Não, precisaria ter chave, né?

— Sair da casa, porém, não era difícil?

— Não, é só abrir a porta. A maioria dos clientes sai desta maneira. Descem pela escada, enquanto eu levo o novo cliente de elevador lá para cima.

— Entendo. Descreva os clientes de hoje.

Alfred pareceu refletir, longamente.

— Bom, uma mulher com uma criança para o Dr. Reilly. Uma senhora chamada Soap, para o Dr. Morley.

— É isso mesmo — concordou Poirot.

— Depois uma velha, bacana à beça, veio numa Mercedes. Quando ela saiu, entrou um militar; aí, depois dele, o senhor.

— É verdade.

— Aí, veio o americano.

— Americano? — perguntou Japp, surpreso.

— É, um cara moço. Era americano, a gente via logo pelo sotaque. Chegou cedo; tinha hora para às onze e trinta, mas não sei por que não foi atendido.

— O quê?

— Quando eu fui levar ele ao Dr. Reilly, devia ser onze e meia ou vinte para o meio-dia, mas ele já tinha se mandado. Deve ter tido medo, ou coisa assim — comentou Alfred, com ar de entendido. — Às vezes, eles têm medo, sabe?

— Então ele deve ter saído logo depois de mim? — perguntou Poirot.

— É verdade. O senhor saiu depois de eu ter subido com o Sr. Blunt, que veio num Rolls Royce. Um carro espetacular. Aí, eu desci, abri a porta e mandei a mulher entrar. Uma tal Srta. Some Berry Seal, ou coisa parecida. Aí, eu, bem, fui comer um troço na cozinha e a campainha do Dr. Reilly tocou e eu fui buscar o americano que, como já disse, tinha ido embora. Contei ao Dr. Reilly, que achou ruim à beça, e xingou todos os palavrões que sabia.

— Continue — disse Poirot.

— Deixa eu ver... o que aconteceu. Ah! A campainha do Dr. Morley tocou, chamando a Srta. Seal. O tal banqueiro desceu e eu levei a mulher lá para cima. Voltei, e abri a porta da rua para dois caras. Um sujeito com fala fina, que é cliente do Dr. Reilly, e um gringo gordo que tinha hora com o Dr. Morley. A tal da Srta. Seal não demorou muito: uns quinze minutos. Levei ela para a porta e chamei o estrangeiro. O outro cliente já estava com o Dr. Reilly...

— Você viu o Sr. Amberiotis sair?

— Não, não vi. Ele deve ter achado a saída sozinho. Também não vi sair o cliente do Dr. Reilly.

— Onde é que você estava depois do meio-dia?

— Eu sempre fico no elevador, esperando a campainha da porta ou dos consultórios tocar.

— Mas, hoje, ao meio-dia, talvez você estivesse lendo?

Alfred enrubesceu.

— Que mal há nisso? Não tinha nada pra fazer.

— Muito justo. O que estava lendo?

— A Morte às Onze e Quarenta e Cinco. Um livro policial americano, bacana à beça! É sobre um pistoleiro.

Poirot sorriu.

— Do lugar em que estava, você ouviria a porta da frente bater?

— Se alguém saísse? Não, acho que não. O elevador é no fundo à direita do hall. As campainhas é que ficam ao lado do elevador. Estas, eu nunca deixo de ouvir.

— Que houve, em seguida? — perguntou Japp.

Alfred franziu a testa, fazendo esforço para se lembrar.

— A última cliente era a Miss Shirty. Fiquei esperando a campainha do Dr. Morley tocar, mas ele não tocou, e aí, a dona, quando foi uma hora, começou a criar caso.

— Não lhe ocorreu subir e verificar se o Dr. Morley já estava livre?

Alfred sacudiu a cabeça violentamente.

— Eu, nunca! Nem de longe. Pra mim o gringo ainda estava lá, com ele. Eu tinha que esperar pela chamada. É claro que, se eu soubesse que o doutor tinha-se matado...

Alfred sacudiu a cabeça com mórbido prazer.

— A campainha costumava tocar, antes ou depois, do cliente sair?

— Dependia. Geralmente o cliente saía pela escada e então a campainha tocava. Se eles chamavam o elevador, a campainha tocava enquanto eu estava descendo com eles. Não era sempre assim. Às vezes o Dr. Morley deixava passar uns minutos antes de chamar o outro cliente; se ele estava com pressa, a campainha tocava assim que o cliente saía do consultório.

— Entendo — disse Poirot. — Você ficou surpreso com o suicídio do Dr. Morley?

— Caí pra trás. Na minha opinião, ele não tinha razão pra fazer uma coisa dessas... — os olhos de Alfred de repente arregalaram-se. — Ou será que ele foi assassinado?

Poirot interveio, antes que Japp pudesse responder.

— Se isto fosse verdade, você ficaria espantado?

— Bem, não sei, quer dizer, sei lá. Não entendo, quem iria querer matar o doutor? Era um homem tão pacato. Ele foi mesmo assassinado?

— Nós temos que examinar a questão sob todos os ângulos — respondeu Poirot, com circunspecção, — por isso, disse que você era uma testemunha de muita importância e que seu depoimen­to nos era muito precioso.

— Bem, eu não lembro de mais nada!

O atendente parecia dizer a verdade.

— Muito bem, Alfred. Você tem certeza de que ninguém mais, além dos clientes, entrou nesta casa, hoje de manhã?

— A única pessoa de fora que entrou aqui foi o namorado de Miss Nevill, que ficou furioso de não encontrar ela aqui.

— A que horas foi isto? — perguntou Japp, incisivo.

— Um pouco depois do meio-dia. Aí, eu disse que Gladys não vinha hoje, e ele ficou tão passado que disse que ia esperar pra falar com o Dr. Morley. Eu disse que o Dr. Morley estava ocupado até a hora do almoço e ele respondeu que não tinha importância, que esperava.

— E esperou? — perguntou Poirot.

O rosto de Alfred demonstrou surpresa.

— É mesmo! Nem me lembrava mais. Ele foi pra sala de espera, mas quando eu voltei lá, depois, ele não estava mais. Deve ter-se cansado de esperar e achou melhor voltar outra hora!

 

— Você acha que deveria ter falado em assassinato com o garoto? — perguntou Japp, assim que Alfred saiu.

Poirot deu de ombros.

— Acho que sim. Qualquer coisa que ele tenha ouvido ou visto funcionará como estímulo e o manterá alerta.

— Ainda assim, eu acho que foi um pouco cedo para tocar no assunto.

— Mon cher, aí é que você se engana. Alfred, por exemplo, lê novelas policiais, é um apaixonado por crimes. Qualquer comentário que ele fizer vai ser tomado, pelos outros, como fruto da sua mórbida imaginação.

— Talvez você tenha razão. Vamos ouvir, agora, o que Reilly tem para nos dizer.

O consultório do Dr. Reilly ficava no primeiro andar; ocupava a mesma área que o consultório de Morley, mas não era tão claro, nem tão ricamente aparelhado.

O sócio do Dr. Morley era um jovem alto e moreno. Suas características mais marcantes eram um tufo de cabelos negros, eternamente caídos sobre a testa, uma voz agradável e um olhar inteligente.

— Esperamos Dr. Reilly — disse Japp, depois das apresentações, — que o senhor possa nos esclarecer algo sobre o que aconteceu.

— Infelizmente, acho que não vai ser possível — retrucou o jovem. — A única coisa que posso lhe adiantar é que, para mim, Henry Morley seria a última pessoa sobre a face da terra capaz de cometer suicídio. Eu seria capaz de me matar... mas ele?

— Por que o senhor se mataria? — perguntou Poirot.

— Tenho tantos problemas, financeiros para começar. Nunca consegui equilibrar meus gastos com os meus ganhos. Morley, ao contrário, era um homem cuidadoso. Tenho certeza de que não deixou dívidas.

— E os casos amorosos? — sugeriu Japp.

— Morley? O senhor está brincando. Ele nunca se divertiu na vida, vivia agarrado à saia da irmã. Pobre homem!

Japp resolveu mudar de assunto, e perguntar sobre os clientes de Reilly.

— Não vejo nada de suspeito neles. Betty Heath é uma criança, trato aliás da família inteira, o Coronel é um velho cliente, também...

— E o Sr. Howard Raikes? — perguntou Japp.

Reilly sorriu.

— Que foi embora, antes de ser atendido? Nem o conheço. Ele me telefonou e pediu uma consulta para hoje de manhã.

— De onde ele telefonou?

— Deve ter sido do hotel em que está hospedado. O Holborn Palace Hotel. Pode ser um turista americano.

— Alfred também achou que ele era americano.

— Então deve ser. Alfred é louco por filmes americanos.

— E o seu outro paciente?

— Barnes? Um homem muito meticuloso. É funcionário público aposentado; mora lá pelos lados de Ealing.

Houve uma pequena pausa.

— O que o senhor sabe sobre Gladys Nevill? — perguntou Japp.

Reilly franziu as sobrancelhas;

— A linda secretária? Daí não vai sair nada... as relações dela com Morley eram estritamente profissionais.

— Eu não sugeri que não fossem — retrucou Japp.

— Então, peço desculpas — disse Reilly. — O senhor vai desculpar minha imaginação, fantasiosa e doentia. Pensei que o senhor estivesse tentando empurrar as coisas pelo lado cherchez la femme. Desculpe falar em francês — continuou Reilly, virando-se para Poirot. — Tenho um ótimo sotaque, não é verdade? Fui criado num colégio de freiras...

Japp não apreciava a desenvoltura de Reilly.

— O senhor sabe alguma coisa sobre o noivo da Srta. Nevill, um rapaz chamado Frank Carter? — interrompeu Japp.

— Morley não gostava muito dele. Parece que tentou tudo para desmanchar o romance.

— O que deve ter irritado Carter?

— Muito — respondeu Reilly, rindo. — Com licença, mas os senhores estão tentando esclarecer um suicídio ou um assassinato?

— Se fosse um assassinato, o senhor teria algo a dizer? — perguntou Japp, rispidamente.

— Eu, não. Gostaria, porém, que a assassina fosse Georgina. Um desses casos que uma mulher pacata, de repente, vira um monstro. É claro, que eu também, poderia ter dado uma subida e matado o velho. Mas não se assustem, não fui eu. Aliás, não consigo imaginar porque alguém mataria Morley.

Reilly calou-se por um momento.

— Para falar a verdade — continuou o jovem, — estou bem chateado com o que aconteceu. Não me julguem pelas minhas palavras. Acho que estava nervoso. Eu gostava de Morley e creio que vou sentir falta dele.

 

Japp desligou o telefone. Seu rosto demonstrava tensão.

— O Sr. Amberiotis não está se sentindo bem. Prefere não me receber hoje. Isto é o que ele pensa! Já tenho um detetive, no Savoy, de olho nele, caso resolva desaparecer.

— Você acha que Amberiotis matou Morley? — perguntou Poirot.

— Não sei. Só sei que ele foi a última pessoa que viu Morley vivo; além do mais, era um cliente novo. De acordo com o que ele falou, ao meio-dia e vinte, quando saiu, Morley estava vivo. Pode ser verdade. Se for, temos que reconstituir o que aconteceu em seguida. Entre um paciente e outro, Morley tinha um intervalo de cinco minutos. Será que alguém o visitou neste momento? Carter? Reilly? O que será que aconteceu? Dependendo disso, entre meio-dia e vinte e meio-dia e trinta e cinco, no máximo, Morley estava morto, se não teria tocado a campainha ou mandado alguém avisar à Sra. Kirby que não poderia recebê-la. Ou ele foi assassinado, ou recebeu alguma notícia que o traumatizou, a ponto de cometer suicídio.

Japp calou-se. Poirot limitava-se a escutar.

— Vou ter que falar com todos os clientes que ele atendeu, hoje de manhã — continuou o Inspetor. — Existe sempre a possibilidade dele ter dito, a qualquer um deles, algo que nos conduza à pista certa.

Japp olhou para o relógio.

— O Sr. Alistair Blunt me concedeu uns minutos às quatro horas. Vamos vê-lo primeiro. A casa dele é em Chelsea. Depois, podemos ir ver a Srta. Sainsbury Seale que fica a caminho do Hotel Savoy, onde encontraremos Amberiotis. Prefiro ter todos os dados antes de enfrentar nosso amigo grego. Depois vou querer ver o tal americano que você disse ler cara de assassino.

Hercule Poirot sacudiu a cabeça.

— Cara de assassino, não. Cara de dor de dentes.

— De qualquer maneira vamos ver este tal de Raikes. Vamos também checar o telegrama da Sra. Nevill, saber direito esta história da tia, e falar com o noivo. Para encurtar a história, Poirot, vamos examinar este caso até as últimas conseqüências.

 

Aos olhos do grande público, Alistair Blunt não significava muita coisa. Talvez, por ser ele um homem metódico e simples. Talvez, por ter sido, durante muitos anos, um príncipe consorte e não um rei.

Rebecca Sanseverato, née Arnholt, chegou a Londres, com quarenta e cinco anos, desiludida da vida. Descendia, de ambos os lados, de famílias milionárias. A mãe era herdeira dos Rotherstein, o pai, chefe do grupo bancário Arnholt. Rebecca, devido a um desastre aéreo, perdeu seus dois irmãos e um primo, tornando-se única herdeira de uma colossal fortuna. Casou-se com um nobre europeu chamado Felipe di Sanseverato. Três anos depois, divorciou-se, obtendo a custódia do filho. Seu casamento tinha sido um desastre completo, seu marido não passava de um vigarista interna­cional. Alguns anos depois, seu único filho veio a falecer.

Amargurada, Rebecca Arnholt voltou-se para as finanças, aptidão herdada dos pais. Em Londres, encontrou um secretário, enviado ao hotel para esclarecê-la sobre a assinatura de vários documentos. Seis meses mais tarde, surpreendeu o mundo com a notícia do seu casamento com Alistair Blunt, um homem vinte anos mais jovem que ela. Houve os comentários habituais, risos e chaco­tas. Rebecca, segundo os amigos, era uma romântica incurável! Pri­meiro, Sanseverato; agora, este rapazola! É claro que ele estava se casando com ela por causa do dinheiro. Ela ia sofrer outra grande desilusão!

Para surpresa geral, o casamento foi um sucesso. Os que achavam que Alistair Blunt iria gastar o dinheiro de Rebecca com outras mulheres se enganaram. Ele se manteve sempre fiel a sua esposa; mesmo depois da morte dela, quando se viu herdeiro de toda a fortuna, Alistair não se casou outra vez. Continuou sua vida pacata de sempre. Seu gênio financeiro era comparável ou superior ao de Rebecca; suas conclusões, seus empreendimentos eram bem fundamentados, seu código moral acima de qualquer suspeita. Alistair controlava os interesses do complexo Arnholt-Rotherstein com grande habilidade. Quase não fazia vida social, tinha uma casa de campo em Kent, outra em Norfolk, onde, às vezes, passava os fins de semana, sempre acompanhado de poucos amigos, todos tão sérios e prudentes quanto ele. Gostava de golfe, esporte que jogava com certa habilidade, e de jardinagem.

A mansão gótica em que Blunt morava era bastante conhecida em Chelsea. O interior era luxuoso, mas simples. A decoração tendia mais para o conforto do que para os ditames da moda.

Alistair Blunt não fez o Inspetor e seu amigo esperarem muito.

— Já o conheço de nome, é claro, M. Poirot. Recentemente... eu diria... eu... — Blunt calou-se pensativo.

— Foi hoje de manhã, monsieur, na sala de espera do pauvre Morley — explicou Poirot.

O rosto de Blunt iluminou-se.

— É claro que eu já o tinha visto . — Alistair virou-se para Japp. — Em que lhe posso ser útil? Fiquei muito sentido com a morte do Dr. Morley.

— Surpreso, também, Sr. Blunt?

— Bastante. Eu o conhecia superficialmente, é claro, mas nunca pensei que fosse capaz de se suicidar.

— Ele lhe pareceu bem disposto, hoje de manhã?

— Eu diria que sim — respondeu Blunt, depois de uma pequena pausa. — Para ser sincero, tenho pavor de ir ao dentista. Detesto aquele motor! Acho que por isso não notei nada com o pobre dentista. Quando acabou o tratamento e eu estava de saída, achei o Dr. Morley muito bem, alegre e natural.

— O senhor se consultava sempre com ele?

— Acho que esta foi a terceira ou a quarta vez. Meus dentes só começaram a me incomodar, no ano passado. Deve ser a idade.

— Quem lhe recomendou o Dr. Morley? — perguntou Poirot.

Blunt franziu as sobrancelhas num esforço de memória.

— Deixe-me ver... eu senti uma pontada... e alguém me falou nele, que era um dentista muito bom, na Rua Rainha Charlotte... não... não consigo lembrar quem foi...

— Caso se lembre, por favor, nos comunique — pediu Poirot.

Alistair Blunt olhou para Poirot com ar de curiosidade.

— Claro, claro. É um detalhe muito importante?

— Eu penso que sim.

Quando Japp e Poirot desciam as escadas de mármore, em direção à rua, um carro esporte parou perto deles. Uma moça emergiu das engrenagens complicadas do volante e deu um alô para os dois, que não perceberam que estavam sendo cumprimentados. A moça insistiu.

— Ei! ei! Vocês aí!

Os dois se voltaram. A moça se dirigiu a eles. Era uma mulher alta, magra, e apesar de não ser bonita, transparecia vivacidade e inteligência. Estava bastante queimada de sol.

— Eu o conheço, o senhor é aquele detetive, Hercule Poirot!

Sua voz era macia e envolvente, e o sotaque ligeiramente americano.

— As suas ordens, mademoiselle.

A moça olhou para Japp, com curiosidade.

— O Inspetor Japp — apresentou Poirot.

— O que estão fazendo aqui? — perguntou a moça, num tom de alarme. — Houve alguma coisa com o meu tio?

— O que poderia ter acontecido ao seu tio? — indagou Poirot.

— Não aconteceu nada? Ótimo.

Japp porém resolveu insistir na pergunta.

— O que poderia acontecer ao seu tio, Senhorita...?

— Olivera; meu nome é Jane Olivera. Dois detetives na porta da minha casa, eu naturalmente pensei em bombas-relógios ou coisas parecidas...

— Não houve nada com o Sr. Blunt — assegurou Poirot.

Jane Olivera o olhou de frente.

— Ele o chamou por alguma razão?

— Nós é que viemos visitá-lo — disse Japp, — para ver se ele poderia esclarecer algo sobre um suicídio ocorrido hoje de manhã.

— Suicídio? De quem? Onde?

— Um dentista chamado Morley.

— Ah! sei — Jane olhou em volta; de repente disse: — Mas, isto é absurdo!

Virou as costas, correu para casa, abrindo a porta da frente com chave própria.

— Isto é que foi um absurdo! — comentou Japp.

— Interessante — murmurou Poirot.

Japp olhou o relógio e chamou um táxi que ia passando.

— Vamos ver Miss Sainsbury Seale, antes de irmos para o Savoy.

 

Encontraram a Srta. Sainsbury Seale, no hall do Hotel Glengowrie Court, tomando chá. Ela ficou surpresa, com a presença de dois policiais à paisana, mas não se fez de rogada.

Poirot percebeu, com uma certa pena, que ela ainda não havia costurado a fivela do sapato.

— Bem, Inspetor — disse a Srta. Sainsbury Seale, olhando ao redor, — não sei onde poderíamos conversar em particular, a esta hora... quem sabe o senhor e o seu amigo não gostariam de uma xícara de chá?

— Não, muito obrigado — respondeu Japp. — Este aqui é o Sr. Hercule Poirot.

— É mesmo? Então, tem certeza de que não querem mesmo chá? Verdade? Bom, então vamos para a outra saleta, que a esta hora está geralmente vazia. Aquele canto, me parece bem, não concordam?

Ela conduziu os dois a um canto da saleta. Poirot pegou o lenço e a bolsa que a Srta. Sainsbury Seale tinha esquecido na outra sala.

— Ah! muito obrigada. Sou tão distraída! Agora, Inspetor, pode perguntar o que quiser. Que coisa desagradável! Pobre homem! Imagino que estivesse vivendo um grande drama; nos dias de hoje, não seria de espantar, não é mesmo?

— O dentista lhe pareceu de alguma forma preocupado?

— Bem — balbuciou a Srta. Sainsbury Seale, — para dizer a verdade, não. Talvez eu não tivesse reparado, dadas as circunstân­cias... eu tenho pavor de ir ao dentista.

Satisfeita com a confissão de covardia, a Srta. Sainsbury Seale inclinou-se para a frente e sacudiu os cachinhos louros.

— Lembra de alguém mais na sala de espera?

— Deixe ver... só um moço, na hora em que eu entrei. Acho que estava com uma horrível dor de dentes, porque resmungava, olhava para os lados, folheava as revista. De repente, ele deu um pulo e saiu. Devia ser uma dor de dentes aguda!

— A senhora não sabe se, quando ele saiu da sala, foi embora?

— Não. Eu achei que ele pensou que não podia esperar mais e resolveu entrar no consultório do dentista de qualquer maneira. Sei que não foi para o Dr. Morley porque, assim que ele saiu da sala, eu fui chamada pelo atendente.

— A Senhorita passou pela sala de visitas, na hora da saída?

— Não. Penteei os cabelos, refiz a maquilagem, no consultório do doutor. Certas mulheres — continuou a Srta. Sainsbury Seale, animadamente — até tiram o chapéu na sala de espera dos consultórios. Eu, não. Uma amiga minha que fez isso arrependeu-se amargamente. Imaginem que ela tinha comprado um chapéu e o colocou numa cadeira. Quando voltou do consultório, vejam só, uma criança tinha sentado em cima do pobre chapéu, reduzindo-o a frangalhos. Que horror!

— Uma catástrofe — comentou Poirot educadamente.

— Eu culpo a mãe da criança. É obrigação das mães tomarem conta dos filhos. Uma criança pode fazer milhões de besteiras, e não as faz por mal, mas por isso mesmo devem ser vigiadas...

— Este rapaz com dor de dentes foi o único cliente que a Senhorita viu?

— Um cavalheiro desceu as escadas e saiu, enquanto eu ainda estava na sala de espera... ah! sim, agora me lembro. Um estran­geiro, com um ar muito estranho, estava saindo da casa na hora em que eu ia chegando...

Japp pigarreou.

— Era eu minha senhora — disse Poirot com dignidade.

— Ah! Meu Deus! É mesmo. Desculpe-me, mas sou míope... e esta saleta está tão escura.

Os dois acalmaram a Srta. Sainsbury Seale.

— A Senhorita tem certeza de que o Dr. Morley não falou que estava esperando uma visita desagradável ou qualquer coisa parecida?

— Não, de modo algum.

— Não falou sobre um cliente de nome Amberiotis?

— Não, para dizer a verdade ele só falou aquelas coisas que os dentistas costumam falar.

Uma sucessão de pequenas frases passou pela cabeça de Poirot: — Bocheche! Abra mais a boca! Feche um pouco!

Japp passou adiante; talvez fosse necessário que a Srta. Sainsbury Seale fosse testemunha do inquérito.

Depois do primeiro susto, a Srta. Sainsbury Seale pareceu achar a sugestão interessante. Japp fez mais uma pergunta e ela passou a descrever-lhes sua vida inteira.

Tinha vindo da Índia, havia seis meses. Tinha passado por vários hotéis e pensões até encontrar o Hotel Glengowrie Court que possuía, o que ela chamava, uma atmosfera caseira; na Índia, tinha vivido em Calcutá, trabalhando com missionários e dando aulas de impostação de voz.

— A língua falada deve ser clara e bem enunciada, isto é de uma importância capital, Inspetor. Quando eu era moça, fui atriz de teatro. Pequenos papéis, entende? Excursões pelas províncias... mas eu era muito ambiciosa. Mais tarde fiz uma excursão que me levou pelo mundo inteiro. Todos os autores famosos eu representei: Shaw, Shakespeare, Ibsen. — Deu um longo suspiro: — O erro maior das mulheres está no coração, somos vítimas dos nossos corações. Resolvi me casar, e separei-me em seguida. Voltei a usar o meu nome de solteira. Um amigo conseguiu me emprestar algum dinheiro para abrir uma escola de impostação vocal. Ajudei a criar um grupo teatral amador. Quando tiverem tempo eu lhes mostro as críticas.

O Inspetor Japp ficou apavorado com a sugestão; sabia o perigo que incorreria se enveredasse por esse terreno.

— Caso meu nome apareça nos jornais — continuou a ex-atriz, — como testemunha, ou coisa parecida, por favor, dêem meu nome certo. Sabe soletrá-lo? Mabelle Sainsbury Seale. M.A.B.E.L.L.E. e S.E.A.L.E. Claro, se quiserem, podem dizer que eu trabalhei no Mercador de Veneza, no Teatro Permanente de Oxford.

— Claro, claro — murmurou Japp, encaminhando-se rapidamente para a porta.

Os dois se retiraram em seguida; tomaram um táxi e respiraram aliviados.

— Precisamos verificar a veracidade das declarações dela — disse Japp, enxugando o suor da testa. — Se bem que eu duvide que ela tenha mentido!

Poirot sacudiu a cabeça.

— Os mentirosos geralmente não são tão circunstanciais, nem tão inconseqüentes.

— Tive medo de que ela não quisesse comparecer ao inquérito, mas logo vi que estava enganado. Qual é a atriz que iria perder semelhante oportunidade?

— Mas, você quer mesmo que ela compareça ao inquérito?

— Ainda não sei; depende, o que acontece, Poirot, é que a cada momento, eu me convenço mais de que não se trata de um suicídio.

— E o motivo?

— Por enquanto, não sabemos. Quem sabe, um dia, Morley seduziu a filha de Amberiotis?

Poirot calou-se. Tentou visualizar o Dr. Morley seduzindo uma encantadora menina grega, mas não conseguiu.

— Lembre-se que Reilly falou que Morley não tinha prazeres na vida — disse Poirot.

— A maioria das pessoas fala por falar. Depois de conversarmos com Amberiotis vamos começar a definir melhor as coisas.

Pagaram o táxi e entraram no Hotel Savoy.

Japp pediu para chamarem o Sr. Amberiotis.

O porteiro os encarou com estranheza.

— O Sr. Amberiotis? Desculpe, senhor, mas acho que não vão poder vê-lo.

— Vamos, sim, meu rapaz — respondeu Japp, mostrando sua identificação.

— O senhor não compreendeu. O Sr. Amberiotis faleceu há meia hora.

Para Hercule Poirot era como se uma porta tivesse sido fechada, delicadamente, mas em caráter definitivo.

 

No dia seguinte, Poirot recebeu um telefonema de Japp.

— Esqueça de tudo!

— Quê?

— Morley suicidou-se, já temos a explicação.

— E qual é?

— Acabei de receber o relatório do médico-legista, sobre Amberiotis. Em poucas palavras, ele morreu de uma dose excessiva de adrenalina e provocaína. Teve um colapso e foi-se. Quando o pobre homem nos disse, ontem à tarde, que estava se sentindo mal, não estava mentindo. Adrenalina e provocaína é uma mistura que os dentistas usam como anestésico local; Morley errou na dosagem. Quando percebeu o erro já era tarde demais. Para evitar o escândalo preferiu suicidar-se.

— Com um revólver que não era dele?

— Isso não sabemos ao certo. É surpreendente o número de coisas que temos ou compramos e que nossos parentes ignoram.

— Isso é verdade — concordou Poirot.

— Como vê, a explicação para o que aconteceu não poderia ser mais lógica.

— Meu amigo, não me considero inteiramente convencido. É sabido que certas pessoas não suportam bem alguns tipos de anestésicos locais. Uma alergia à adrenalina ou coisas semelhantes... o médico ou o dentista que lidam com estas drogas não costumam se preocupar tanto com isto, a ponto de se suicidar!

— Quando o emprego do anestésico está dentro de uma dosagem normal, o dentista não pode ser culpado; o paciente era alérgico à droga. No caso de Amberiotis houve uma dosagem excessiva: ainda não apuraram a quantidade exata, mas posso adiantar que Morley cometeu um erro de cálculo.

— E desde quando um erro constitui um crime?

— Pense na repercussão profissional que isto acarretaria. Ninguém vai procurar um dentista que é capaz de injetar uma dose mortal, na sua gengiva, caso esteja ligeiramente distraído.

— Acho muito estranho de qualquer maneira.

— Estas coisas acontecem, não só aos médicos, mas também aos químicos. Gente séria e honesta que num instante de distração põe tudo a perder. Morley era um homem sensível. Se fosse um médico ele poderia dividir a culpa com um enfermeiro ou um anestesista, mas neste caso, era o único responsável.

Poirot continuou cético.

— Por que não deixou uma carta, dizendo que não poderia suportar as conseqüências? Uma palavra de explicação à irmã?

— Acho que ele percebeu de repente o que tinha feito, perdeu o controle e suicidou-se.

Poirot calou-se.

— Eu o conheço — continuou Japp; — quando você cisma que é crime, você insiste até que vire crime. Concordo que fui eu quem lhe deu a pista errada, desculpe, mas foi um engano.

— Deve haver outra explicação para esta história — disse Poirot.

— Centenas de explicações — retrucou Japp. — Já formulei uma porção, cada uma mais mirabolante que a outra. Vamos supor que Amberiotis matou Morley, voltou para casa, e foi acometido de uma crise de remorsos, suicidando-se em seguida, com as drogas que surrupiou do consultório da vítima. Se você acha isto possível, eu não acho. Aqui na Scotland Yard temos uma ficha sobre Amberiotis; começou como hoteleiro na Grécia, depois se meteu em política; foi espião para os alemães e os franceses, ganhando com isso um bom dinheiro. Para incrementar sua renda recorreu, algumas vezes, à chantagem. Não era o que se podia chamar de um sujeito muito correto! O ano passado, esteve na Índia, e extorquiu dinheiro de uns marajás. Nem a polícia, nem a Interpol conseguiram provar algo contra ele. Sempre escorregadio como um sabão. Temos aí, portanto, outra possibilidade: talvez ele estivesse extorquindo dinheiro de Morley, por uma razão qualquer. O dentista aproveitou-se da situação, hoje de manhã, injetando uma dose excessiva de adrenalina e provocaína, esperando que o laudo médico acusasse uma alergia a estes medicamentos. Porém, quando Amberiotis partiu, Morley, consumido pelo remorso, suicidou-se. É possível... mas eu não acredito que Morley fosse capaz de cometer um crime premeditado. Acho, como já disse, que ele cometeu um engano e não agüentou as conseqüências. Portanto, vamos parar por aqui, mestre Poirot. Já falei com o Promotor Publico e o caso deverá ser arquivado.

— Sei — disse Poirot, suspirando.

— Sei como você se sente — disse Japp, com carinho, — mas, nem só do crime vive o homem. Até logo, e desculpe tê-lo incomodado.

Poirot desligou o telefone.

 

Hercule Poirot acomodou-se na sua moderna escrivaninha. Era um móvel bonito, prático e sólido, muito mais a seu gosto, do que certas escrivaninhas estilo Luís qualquer número, que Poirot odia­va.

Colocou na sua frente uma folha de papel e escreveu vários cabeçalhos, com alguns comentários à margem.

AMBERIOTIS. ESPIÃO.

Por que está na Inglaterra? Esteve na Índia o ano passado (época de conflitos e greves). Talvez seja um agente comunista.

A seguir, depois de um certo espaço, escreveu:

FRANK CARTER.

Morley considerava-o um vagabundo. Despedido do emprego recentemente. Por quê?

Abaixo, Poirot colocou simplesmente um nome:

HOWARD RAIKES.

Pulando duas linhas, escreveu:

“— Mas é absurdo!”

Hercule Poirot inclinou a cabeça enquanto se interrogava. Do lado de fora da janela, um pássaro carregava um galho, tentando construir um ninho. Hercule identificou-se com o pássaro: ali estava ele, juntando peça por peça para formar uma construção.

Escreveu, a seguir:

SR. BARNES?

Olhou para o alto, por uns instantes, e continuou:

“Consultório de Morley? Marcas no tapete? Possibilidades?”

Ficou olhando para as últimas palavras durante um certo tempo. Levantou-se, pediu a bengala e o chapéu e saiu.

Quarenta e cinco minutos depois, Hercule Poirot emergia da estação do metrô em Ealing e, imediatamente, rumou para Castlegardens Road, número 88. Era uma casa pequena e bem construída, com um jardim encantador, o que muito agradou Poirot.

— Admiravelmente simétrico — murmurou Poirot, para si mesmo.

O Sr. Barnes estava em casa. Hercule foi conduzido à sala de visitas. O Sr. Barnes logo apareceu. Era um homem pequeno, quase calvo, de olhos brilhantes. Olhou por cima dos óculos para Poirot, enquanto brincava com o cartão de visitas que a empregada lhe havia entregue.

— Então, Sr. Poirot — disse com sua voz fina, quase em tom de falsete, — estou honrado!

— Desculpe incomodá-lo desta maneira tão informal — descul­pou-se Poirot.

— Nem pense nisso — retrucou Barnes. — O senhor não podia ter chegado numa hora melhor; quinze para as sete é a hora ideal para encontrar as pessoas em casa. Sente-se, Sr. Poirot, sem dúvida temos muito que conversar. Creio que a respeito da Rua Rainha Charlotte, n° 58, não?

— Tem razão, mas por que falaríamos sobre isso?

— Apesar de eu já me ter aposentado, há algum tempo, do Serviço Secreto — respondeu Barnes, — ainda ouço alguns rumores... sei que as coisas que devem ser mantidas em segredo não devem ser levadas à polícia. Chama muita atenção!

— Posso lhe fazer outra pergunta ? — indagou Poirot. — Por que o senhor acha que eu vim tratar de um assunto confidencial?

— E não veio? — Barnes sorriu. — Se o assunto não fosse confidencial, o senhor não estaria aqui. Lembre-se de que, no Serviço Secreto, para se apanharem os tubarões precisa-se passar pelos peixinhos.

— Está me parecendo, Sr. Barnes, que o senhor está mais bem informado do que eu.

— Não sei de nada. Estou simplesmente somando A mais B.

— Quem é A?

— Amberiotis — respondeu Barnes, prontamente. — Não se esqueça de que me sentei ao lado dele, hoje de manhã, na sala de espera. Ele não me conhecia. Sempre fui um homem insignificante, o que na minha profissão é uma grande vantagem. Eu, no entanto, o conhecia e poderia imaginar por que ele estava lá.

— Explique-se melhor, por favor — pediu Poirot.

Os olhos do Sr. Barnes brilharam ainda mais.

— Nós, os ingleses, somos muito cansativos! Somos extremamente conservadores; reclamamos bastante, mas por nada deste mundo, gostaríamos de modificar nossa estrutura democrática e tentar uma experiência revolucionária. Para um agitador estran­geiro isto é incompreensível! Como país, somos financeiramente estáveis, e isto torna o trabalho revolucionário mais difícil. Para fazer uma revolução na Inglaterra, seria necessário abalar sua estrutura financeira, eis a verdade. No momento, é impossível mexer nas finanças do nosso país enquanto o Sr. Alistair Blunt estiver vivo.

Depois de uma pequena pausa, Barnes prosseguiu.

— Blunt é o tipo do homem que, na vida particular, sempre paga as contas e vive dentro de um orçamento, seja este qual for. Existem pessoas assim, não é mesmo? Para ele, não há razão para que um país não se comporte da mesma forma. Não devemos gastar demais, nada de utopias. Por isso, existem pessoas que gostariam de eliminá-lo.

— Entendo — disse Poirot.

— Sei que tenho razão — continuou Barnes. — Os que querem eliminá-lo dividem-se em três categorias: os idealistas de cabelos compridos; os ratinhos furtivos de barbicha e sotaque estrangeiro e os grandes tubarões. Só uma idéia os une: Blunt deve ser eliminado.

Barnes balançou a cadeira e olhou para Poirot.

— Vamos acabar com tudo — prosseguiu, depois de observar o efeito que suas palavras estavam causando em Poirot, — com os conservadores, os liberais, os industriais da velha escola! Talvez esses agitadores estejam com a razão, sei lá, mas de uma coisa tenho certeza. Temos que colocar um novo governo no lugar ocupado pelo antigo, uma máquina que funcione e não que pareça que vai funcionar. Bem, mas isto já é outra história. No momento, estamos lidando com fatos concretos e não com teorias abstratas. Se des­truírem nossas estruturas o prédio fatalmente ruirá. Blunt é uma destas estruturas e eles querem destruí-lo. Disto tenho certeza. Na minha opinião, quase conseguiram ontem de manhã. Posso estar enganado, mas este método já foi empregado antes!

Barnes, em seguida citou como exemplo três nomes: um financista famoso; um industrial progressista e um político brilhante. O primeiro morreu na mesa de operação; o segundo faleceu de uma moléstia não identificada e o terceiro foi atropelado, por um carro.

— Tudo feito com muita naturalidade, como se fosse por acaso! Agora preste atenção: o anestesista, que errou na mesa de operação... e liquidou o financista, montou, recentemente, um laboratório de pesquisas. Aposentou-se, comprou um iate e uma propriedade no estrangeiro! Em todas as profissões, podemos encontrar uma pessoa vulnerável ao dinheiro. Por coincidência, Morley não era deste tipo de pessoa.

— O senhor acha, mesmo?

— Acho. Não é fácil ter acesso a um grande homem: são pessoas vigiadas. Um atropelamento pode dar certo mas é um risco enorme. Agora, numa cadeira de dentista, um homem não tem defesa alguma.

Barnes limpou os óculos e os recolocou no nariz.

— Na minha opinião, Morley recusou o trabalho. Como sabia demais, foi eliminado.

— Por quem?

— Por eles. Quando me refiro a eles, estou falando numa organização, numa célula, num aparelho, que planeja o assassinato e os golpes. Na hora, o serviço é executado por uma pessoa qualquer, é claro.

— E que pessoa seria esta?

— Posso imaginar, mas é somente uma hipótese.

— Reilly? — perguntou Poirot.

— Claro. É a pessoa óbvia; certamente eles não iriam pedir a Morley que executasse o serviço pessoalmente. Morley deveria transferir Blunt para Reilly, pretextando uma indisposição ou coisa parecida. Reilly faria o trabalho, que seria considerado como outro erro lamentável, mas teria como desculpa o fato de ser jovem e inexperiente e que na sua ânsia de acertar tinha matado o banqueiro. O tribunal o absolveria e Reilly desistiria da profissão, compraria uma casa e passaria a viver de rendas... alguns misteriosos milhares por ano, diga-se de passagem.

Barnes encarou Poirot.

— Não estou fantasiando — protestou Barnes, — estas coisas acontecem.

— Eu sei.

— Leio muito sobre espionagem. Alguns livros são fantásticos, mas o engraçado é que nenhum consegue ser mais fantástico do que a própria realidade. Na vida real existem lindas aventureiras, estrangeiros sinistros e grupos internacionais.

— Segundo sua teoria, o que Amberiotis tem a ver com isso?

— Não sei bem. Acho que ele levou a pior por estar fazendo um jogo duplo. Não posso garantir.

— Supondo — continuou Poirot — que suas teorias estejam certas, o que vai acontecer agora?

Barnes coçou o nariz.

— Vão tentar apanhar Blunt outra vez, isto é certo. Não vai ser fácil. Blunt está muito cercado e as chances de sucesso são cada vez mais arriscadas. Eles também não vão querer recorrer a um assassino profissional, isto daria ao caso uma notoriedade indesejá­vel. O senhor deve dizer à polícia para ficar atenta às pessoas res­peitáveis, os parentes, os empregados antigos, o assistente da farmá­cia que avia as receitas, o vendedor de vinhos; enfim, todos os personagens circunspectos que cercam Blunt. Tirá-lo do caminho é uma jogada que vale milhões.

Poirot ficou um instante pensativo.

— Engraçado que pensei em Reilly também — disse por fim.

— Irlandês, não é?

— Não foi só por causa disso. No tapete do consultório de Morley havia uma marca como se o corpo tivesse sido arrastado. Ora, se ele foi assassinado por um paciente, não haveria necessidade de arrastar o corpo. Isso leva a pensar que Morley foi assassinado no escritório e não no consultório, e talvez por uma pessoa da casa e não por um cliente.

— Bom raciocínio — comentou Barnes.

Hercule Poirot estendeu a mão a Barnes.

— Muito obrigado. O senhor me ajudou muito.

 

Indo para casa, Poirot resolveu dar uma passada pelo Hotel Glengowrie Court. No dia seguinte, telefonou ao seu amigo Japp.

— Bon jour, mon ami. O laudo oficial sai hoje mesmo?

— Sai, você vem para ouvir?

— Não estou com vontade.

— Também não vai acontecer nada de palpitante.

— Você vai chamar a Srta. Sainsbury Seale como testemunha? — perguntou Poirot.

— A linda Mabelle? Não, não preciso dela.

— Ela tem dado notícias?

— Não.

— Perguntei só por curiosidade — disse Poirot. — Talvez lhe interesse saber que ela saiu do hotel, anteontem à noite, e ainda não voltou.

— O quê? Será que ela resolveu dar um calote?

— Quem sabe.

— Se bem que ela não pareça ser deste tipo. Telegrafei para Calcutá, antes de saber da causa mortis de Amberiotis, e recebi a resposta, ontem à noite. Tudo em ordem. É conhecida lá, e tudo que nos contou é verdade, a não ser a história do casamento. Ela casou com um estudante hindu e descobriu que ele já era casado várias vezes. Retomou o nome de solteira e resolveu se dedicar à filantropia. Ligou-se aos missionários, além de dar aulas de impos­tação de voz e dirigir um grupo teatral amador. Em resumo, uma mulher insuportável mas incapaz de se envolver num crime. Agora, você me diz que ela sumiu! Quem sabe enjoou do hotel...

— A bagagem dela está toda lá. Não levou nada consigo.

— A que horas ela saiu?

— Quinze para as sete.

— O pessoal do hotel o que acha?

— A gerente está transtornada.

— Por que não telefonaram para a polícia?

— Ora, suponha que uma mulher queira passar a noite fora, mesmo uma mulher com o aspecto físico de Mabelle. Esta mulher iria ficar uma fúria, no dia seguinte, ao voltar, se descobrisse que a polícia estava procurando por ela. A gerente, uma tal de Sra. Harrison telefonou para vários hospitais, procurando saber se tinha havido um acidente. Quando cheguei, ela estava pensando em ligar para a polícia. Fui recebido como um Messias! Fiquei de comunicar o fato à polícia e investigar tudo discretamente.

— O advérbio se aplica a um Inspetor chamado Japp? — perguntou o próprio.

— É claro.

— Está bem — rosnou Japp; — vamos nos encontrar no hotel depois do laudo.

 

Enquanto esperavam a gerente, Japp não parou de resmungar.

— Por que esta mulher resolveu desaparecer?

— É muito esquisito, n’est pas?

A Sra. Harrison, gerente do Hotel Glengowrie Court, entrou; estava nervosa e quase a ponto de chorar.

— Estava preocupada com a Srta. Sainsbury Seale. Que poderia ter acontecido com ela? Um desastre, perda de memória, um mal-estar súbito, uma hemorragia, um atropelamento, um assalto?

— Depois de aventar todas estas felizes possibilidades a Sra. Harrison se acalmou.

— Uma mulher tão boa — murmurou, — parecia estar tão bem conosco!

A gerente os conduziu ao quadro da desaparecida. Tudo no lugar certo, arrumado e em ordem. No guarda-roupa, os vestidos pendurados; ao lado da cama, a camisola e o robe; e num canto viam-se duas malas de viagem. Numa cômoda baixa, os sapatos arrumados em fileiras: na primeira prateleira os sapatos de passeio; na segunda, os sapatos toalete e na terceira, uns chinelos e um par de mocassins. Poirot notou que os sapatos toalete eram em número menor que os outros; atribuiu o fato à vaidade ou aos calos da Srta. Sainsbury Seale. Hercule pensou, também, no sapato de fivela e desejou ardentemente que a desaparecida tivesse tido tempo para consertá-lo. Qualquer sinal de desleixo no trato pessoal era, para ele, um motivo de grande irritação. Japp ocupou-se com umas cartas largadas em cima da escrivaninha. Hercule abriu uma gaveta da cômoda, cheia de peças íntimas. Fechou, rapidamente, concluindo que a Srta. Sainsbury Seale era deste tipo de mulher que prefere lã à seda, em contato direto com o corpo.

— Achou alguma coisa, Poirot?

— Tamanho 9, de seda barata — comentou Poirot, sacudindo uma meia.

— Você não está aqui para avaliar o custo das vestimentas. Veja: duas cartas da Índia; dois recibos de uma instituição de cari­dade; nenhum aviso de débito. Uma mulher admirável, esta Srta. Sainsbury Seale!

— Só não tem muito gosto para se vestir — comentou Poirot.

— Não seja fútil, Poirot — disse Japp, anotando o endereço de uma carta.

— Talvez estas pessoas possam dizer algo sobre ela. Pela carta, que já tem uns dois meses, parecem muito amigos.

Não havia mais nada para ver no hotel, a não ser a conclusão negativa de que a Srta. Sainsbury Seale, ao sair, tinha firmes intenções de voltar. Cruzando, no hall, com a Sra. Bolitho, ela havia dito: — Quando voltar lhe ensino o jogo de paciência de que lhe falei.

Além disso, era costume dos hóspedes do hotel avisarem se viriam ou não para as refeições. A Srta. Sainsbury Seale não havia deixado recado algum, donde se concluiu que pretendia voltar para o jantar, que era geralmente servido entre às sete e meia e às oito e meia; mas não voltou. Foi vista a última vez ao sair do hotel.

Japp e Poirot foram procurar o emissário da carta, encontrada no quarto. Encontraram uma casa simpática e a numerosa família Adams os recebeu com toda a atenção. Infelizmente, nada sabiam que os pudesse ajudar; não tinham notícias dela há mais de um mês, isto é, desde a Páscoa. Deram a Japp o endereço do antigo hotel da Srta. Sainsbury Seale e alguns nomes de amigos em comum.

No antigo hotel ninguém se lembrava bem da Srta. Sainsbury Seale: os amigos em comum não tinham contato com ela desde fevereiro.

Japp e Poirot pensaram num acidente, mas esta possibilidade foi logo eliminada. Nenhum hospital tinha recebido, nos dois últimos dias uma mulher que correspondesse à descrição dada.

A Srta. Sainsbury Seale tinha, em resumo, desaparecido na bruma.

 

Na manhã seguinte, Poirot foi ao Palace Hotel Holborn procurar o Sr. Howard Raikes. Por esta altura, não ficaria surpreso ao saber que Raikes também havia desaparecido misteriosamente. O Sr. Raikes, porém, estava no hotel e podia ser encontrado no restaurante.

A visita de Poirot não pareceu alegrar Howard Raikes, que embora não tivesse o aspecto tão sinistro, quanto a lembrança que Poirot guardava dele, ainda assim era bastante assustador.

— O que é?

— Com licença — disse Poirot, puxando a cadeira.

— Desembuche!

Poirot sorriu.

— O senhor está lembrado de mim? — perguntou.

— Nunca o vi mais gordo.

— O senhor está enganado. Estivemos juntos, mais de cinco minutos, na mesma sala, uns três dias atrás.

— Não posso me lembrar de todas as caras que encontro nas festas.

— Não foi numa festa, Sr. Raikes, foi na sala de espera do dentista.

Um ligeiro tremor passou como um choque pelo rapaz, mas ele se recompôs imediatamente. Sua atitude não continuou tão impaciente ou irritada, e sim de expectativa.

— Bem?

Poirot o examinou antes de responder. Percebeu que o jovem era realmente um rapaz perigoso. O rosto magro e irado, o queixo agressivo, o olhar de fanático religioso, um rosto que as mulheres talvez achassem atraente. Vestia-se casual e displicentemente e comia com a voracidade intimidante de um lobo. Um lobo pensante, fantasiou para si mesmo Poirot.

— Vai ou não vai dizer por que está aqui? — perguntou Raikes impaciente.

— Eu lhe desagradei tanto, vindo aqui?

— Nem sei quem você é.

— Desculpe.

Poirot estendeu um cartão. Outro ligeiro estremecimento de Raikes. Seu olhar não era de medo e sim de agressão.

Raikes jogou o cartão para Poirot.

— Então é você que é o célebre Poirot?

— É o que dizem.

— Detetive particular ou coisa parecida, não é? Só se ocupa com milionários que estão em apuros!

— É melhor beber o café, antes que esfrie — aconselhou Poirot.

Raikes olhou para Poirot espantado.

— Qual é a sua afinal?

— O café na Inglaterra já é ruim...

— Nisso concordamos — respondeu Raikes.

— Se deixar esfriar, então, é praticamente insuportável — concluiu Poirot.

O jovem debruçou os cotovelos sobre a mesa.

— O que veio fazer aqui?

Poirot deu de ombros.

— Queria vê-lo.

— Ah! é? — exclamou Raikes, descrente.— Se está atrás de dinheiro, está batendo em porta errada. Meu pessoal não pode comprar nem o que necessita. Aconselho o senhor a voltar para o homem que está lhe financiando no momento.

— Por enquanto, ninguém está me pagando nada — disse Poirot, suspirando.

— Isto é o que o senhor diz!

— É a verdade. Estou perdendo um tempo enorme somente para satisfazer minha curiosidade.

— Era isto que o senhor estava fazendo no dentista, outro dia? — perguntou Raikes.

Poirot sacudiu a cabeça.

— O senhor se esquece de que o motivo mais simples para se ir ao dentista é tratar dos dentes.

— E era o que o senhor estava fazendo? — perguntou Raikes, num tom de descrença.

— Claro.

— Desculpe, mas não acredito.

— E o senhor, o que estava fazendo lá, se me permite?

Raikes sorriu.

— O mesmo que o senhor. Fui consultar o dentista.

— Estava com dor de dentes?

— Acertou.

— E foi embora sem ser atendido...

— E daí? Faço o que quero da minha vida. Vamos parar com esta conversa fiada. Você estava lá para cuidar do tubarão; ele está intacto, não está? Não aconteceu nada com o querido Alistair Blunt.

— Para onde o senhor foi, quando saiu da sala de espera? — perguntou Poirot.

— Fui embora, é claro.

— Ah! mas ninguém o viu sair.

— E daí?

— E daí... houve uma morte, está lembrado?

— O dentista? — perguntou Raikes, com desprezo.

— Sim, o dentista — respondeu Poirot, severo.

Raikes ficou um instante calado.

— Está querendo me acusar? Vai querer botar a culpa em mim? Não dá pé. Li hoje que o cara se matou porque cometeu um erro com a anestesia.

— O senhor pode provar que saiu da casa na hora que disse ter saído? Tem alguma pessoa que possa dizer onde o senhor se encontrava, entre meio-dia e uma hora da tarde daquele dia?

Os olhos de Raikes faiscaram.

— Está querendo jogar a culpa em mim? Foi Blunt quem encomendou esta acusação?

Poirot suspirou.

— Esta obsessão com o Sr. Alistair Blunt está se tornando ridícula. Já lhe disse que não sou empregado dele, que não estou interessado nele, estou simplesmente investigando a morte de um profissional competente.

Raikes sacudiu a cabeça.

— Vá contar esta para outro. Você é o detetive particular de Blunt. Mas, não adianta, entendeu? Ele e tudo o que ele representa precisa desaparecer. Não há outra saída. Esta estrutura tem que acabar, para dar lugar a uma nova, entendeu? Estes tubarões precisam ser varridos da face da terra; não tenho nada contra Blunt, pessoalmente, mas ele é o tipo do homem que eu odeio: medíocre, presunçoso. Só muda de opinião com uma dinamite na boca. É o homem que acha que não se podem modificar as bases da civili­zação; em suma, uma pedra no caminho do progresso. Hoje não existe mais lugar no mundo para os Blunt, nem para os que querem viver como seus avós viviam... o mundo precisa mudar, ouviu, e vai mudar.

Poirot levantou-se suspirando.

— Vejo que o senhor é um verdadeiro revolucionário, Sr. Raikes.

— E daí?

— Idealista demais, portanto, para se preocupar com a morte de um mero dentista.

— Qual a importância que tem a morte de um dentista?

— Para o senhor, nenhuma. Para mim, bastante. Eis a diferença entre nós dois — respondeu Poirot, se retirando.

 

Ao chegar a casa, Poirot foi informado por George que uma senhora o aguardava.

— Me pareceu um pouco nervosa — disse George.

Como não tinha dado o nome, Poirot resolveu brincar de adivinhação. Ao encontrar na sala a secretária do Dr. Morley, visivelmente agitada, Poirot ficou desapontado por não ter adivinhado quem era a visita.

— Desculpe ter vindo incomodá-lo — disse a Srta. Nevill. — Nem sei como me atrevo, o senhor vai pensar que eu sou uma mal-educada. Sei que o senhor é um homem ocupado, mas realmente estou tão preocupada...

Aproveitando seus conhecimentos sobre a Inglaterra, Poirot sugeriu uma xícara de chá. O rosto da moça se iluminou.

— É muita gentileza sua, Sr. Poirot. Há pouco tomei um café, mas um chá nunca é demais...

Poirot, que discordava desta assertiva, limitou-se a sorrir. Pediu a George que servisse um chá, no que foi atendido rapidamente.

— Preciso me desculpar — continuou a Srta. Nevill, mais calma, influenciada pelos efeitos benéficos da infusão, — mas o laudo, ontem, me deixou extremamente nervosa.

— Certamente — murmurou Poirot, compreensivo.

— Como eu não tinha que prestar depoimento, achei que uma pessoa deveria acompanhar a Srta. Morley. O Dr. Reilly ia estar presente, é claro, mas ela não o suporta; portanto, achei que era meu dever ir.

— Muita bondade sua.

— Não, simplesmente uma questão de dever; trabalhei durante anos com o Dr. Morley. O que ocorreu foi, para mim, uma tragédia, e o laudo, ontem, ainda veio piorar as coisas.

— Certamente.

A Srta. Nevill inclinou-se ligeiramente para a frente.

— Está tudo errado, Sr. Poirot, tudo errado.

— Explique-se melhor, Mademoiselle Nevill.

— Não pode ter acontecido daquela forma. Eles estão enganados. Injetar uma dose excessiva de anestésico na gengiva é impossível.

— Mademoiselle acha?

— Tenho certeza. Existem pacientes que sofrem de alergias, ou têm uma deficiência cardíaca ou coisa parecida. Agora, uma dose excessiva é uma coisa rara de acontecer. O dentista injeta a quantidade necessária de anestésico de uma maneira quase automá­tica.

Poirot sacudiu a cabeça.

— Foi o que pensei.

— É uma coisa de rotina — insistiu Gladys, — não é como um químico, preparando doses variadas para experiências; aí, sim, pode ocorrer um erro. Porém, com um dentista acho impossível.

— Mademoiselle não quis fazer estas observações ontem?

Gladys Nevill sacudiu a cabeça.

— Eu não quis agravar a situação. Sei que o Dr. Morley não cometeria este engano, mas também não quis que pensassem que ele havia cometido um crime.

Poirot compreendeu.

— Por isso vim procurá-lo — continuou, — queria que o senhor soubesse que tudo não passou de uma grande farsa, mas não queria fazê-lo de uma maneira oficial.

— O pior é que ninguém quer saber a verdade — murmurou Poirot.

Gladys olhou para Poirot espantada.

— Gostaria — interveio Poirot — que explicasse melhor sobre o telegrama que recebeu, naquele dia.

— Não sei o que pensar sobre isso, Sr. Poirot. É tão estranho! Só pode ter sido mandado por uma pessoa que conhecesse bem minha vida.

— Deve ter sido enviado por um amigo seu ou alguém que mora na sua casa e conhece seus hábitos.

— Nenhum dos meus amigos faria isto!

— E a Senhorita não desconfia de ninguém?

Gladys pareceu hesitar.

— No princípio, quando eu pensava que o Dr. Morley tinha-se suicidado, achei que tinha sido ele quem enviara o telegrama.

— Como uma espécie de consideração para evitar que a Senhorita estivesse presente?

— Exatamente, mas, mesmo assim, uma idéia bastante improvável. Meu noivo, Frank, quando soube do telegrama, também se comportou mal. Disse que eu estava procurando desculpas para passar o dia com alguém, como se eu fosse capaz de fazer uma coisa dessas...

— A Senhorita não tem, realmente, outro namorado?

Gladys Nevill enrubesceu.

— Claro que não. Ultimamente, Frank tem estado muito nervoso. Creio que por ter perdido o emprego e não conseguir achar outro logo... um homem desempregado é sempre difícil de aturar. Eu estou muito preocupada com ele...

— Ele ficou transtornado quando não a encontrou no escritó­rio aquela manhã.

— Ele veio para me contar que tinha encontrado um emprego maravilhoso. Dez libras semanais. Quis que eu fosse a primeira a saber. Acho que queria que o Dr. Morley soubesse também. Frank tinha ficado muito sentido quando soube que o doutor não gostava dele; que estava fazendo tudo para nos separar.

— O que era verdade?

— Sim, de certa maneira. Não posso negar que Frank foi despedido de ótimos empregos, que é um homem instável, mas, agora, tudo vai ser diferente. O senhor não acredita numa boa influência? Por exemplo, quando uma mulher acredita num homem, este não faz tudo para justificar esta fé?

Poirot suspirou, mas achou melhor não discutir. Já tinha ouvido a mesma história de centenas de mulheres que acreditavam piamente no poder redentor de uma paixão. Cinicamente, ele pensou, que se podia contar nos dedos da mão as vezes que isto já tinha acontecido.

— Gostaria de conhecer seu namorado — limitou-se a dizer.

— Isto seria maravilhoso, Sr. Poirot. No momento, ele só tem livre os domingos, o resto da semana passa no campo.

— Ah! o novo emprego. Qual é o cargo que ocupa?

— Não sei bem. Creio que é uma espécie de secretário, ou qualquer coisa ligada ao governo. Para comunicar-me com ele, escrevo para a casa dele em Londres, e de lá, enviam a correspondência.

— Não acha isso estranho?

— Acho, mas Frank disse que, hoje em dia, isto é muito comum.

Poirot olhou para Gladys, sem responder.

— Amanhã é domingo, quem sabe a Senhorita e o seu noivo não me dariam o prazer de almoçar no restaurante Logan Corner? Assim, poderíamos conversar melhor.

— Oh! muito obrigada, Sr. Poirot. Claro que teríamos imenso prazer em almoçar com o senhor.

 

Frank Carter era um rapaz louro, de estatura mediana. Vestia-se modestamente, falava com fluência e precisão. Seus olhos, muito próximos do nariz, desviavam-se do interlocutor, sempre que o assunto não era do seu agrado. Era desconfiado e ligeiramente agressivo.

— Não sabia que íamos ter o prazer de almoçar com o senhor — disse Frank. — Gladys não me disse nada.

Frank lançou à noiva um olhar zangado.

— Foi combinado, ontem — explicou Poirot, sorrindo. — Sua noiva está muito preocupada com a morte do Dr. Morley e achei que se nos reuníssemos...

Poirot foi rudemente interrompido.

— A morte de Morley? Estou cheio desta história. Será que você não vai esquecer dele? Não entendo o que viam nesse homem!

— Querido, não fale assim! O doutor me deixou cem libras. Ainda ontem, recebi a comunicação.

— Ainda bem — disse Frank; — afinal não fez mais que a obrigação, depois dos anos que você trabalhou para ele como uma escrava, enquanto ele embolsava todo o dinheiro...

— Ele sempre me pagou muito bem.

— Não acho. Gladys é muito submissa, sempre se deixa explorar. Eu nunca me enganei com ele. Além do mais, você sabe tão bem quanto eu, que ele nunca foi com a minha cara.

— Ele não compreendia você — disse Gladys.

— Compreendia, sim, pena que tenha morrido, senão ia ouvir, de mim, poucas e boas...

— Aliás, na manhã em que ele morreu, o senhor foi lá, no consultório, para discutir com ele, não foi? — perguntou Poirot, discretamente.

— Quem disse isso? — perguntou Frank, furioso.

— É verdade, não é?

— E se for? Eu fui lá falar com Gladys.

— E lhe informaram que ela não estava.

— É, mas não acreditei. Disse àquele porteiro de meia tigela que ia esperar para falar com o doutor. Já estava cheio das intrigas de Morley; queria contar-lhe que não estava mais desempregado, que estava na hora de Gladys sair do emprego e começar a tratar do nosso enxoval.

— Mas o senhor não chegou a falar com ele?

— Cansei de ficar sentado naquele santuário. Fui embora.

— A que horas?

— Não me lembro.

— Lembra-se, ao menos, a hora em que chegou?

— Não. Acho que era um pouco depois do meio-dia.

— O senhor ficou mais, ou menos do que meia hora?

— Sei lá. Não presto atenção nestas coisas.

— Havia alguém na sala de espera com o senhor?

— Quando entrei havia um cara gordo, mas ele foi logo atendido. Depois fiquei sozinho.

— Então o senhor deve ter saído ao meio-dia e meia. Foi a hora em que chegou uma senhora...

— Pode ser. Eu não agüentava mais ficar naquele lugar.

Poirot olhou-o significativamente. O desprezo de Frank não era convincente.

— A Srta. Nevill me contou — prosseguiu Poirot, — que o senhor arranjou um ótimo emprego.

— Pagam bem.

— Dez libras por semana! — exclamou Poirot.

— É mesmo. Por aí o senhor vê que eu, quando quero, posso arranjar uma coisa boa — vangloriou-se Frank.

— Acredito — disse Poirot — É um trabalho muito exaustivo?

— Não — respondeu Frank, lacônico.

— Interessante?

— Bastante. Falando de emprego, eu gostaria de saber como é que vocês, detetives particulares, vivem? Não é bem como nos livros de Sherlock Holmes, é? Aliás, hoje em dia, a maioria dos casos deve ser de divórcios...

— Eu não me ocupo com divórcios.

— É? E de que vive?

— Eu me arranjo, meu caro, me arranjo.

— E o senhor é um dos mais famosos, não é? — interveio Gladys. — Foi o Dr. Morley quem me contou. Disse que o senhor é chamado por nobres, ministros, banqueiros...

Poirot sorriu.

— A Senhorita me encabula.

 

Poirot voltou para casa, pelas ruas desertas, bastante pensativo.

Uma vez instalado na sala de visitas, resolveu telefonar para Japp.

— Desculpe incomodá-lo, meu caro, mas você descobriu a procedência do telegrama que foi enviado a Gladys Nevill?

— Ainda batendo na mesma tecla? Descobrimos, sim. Houve realmente um telegrama. A tia de Miss Nevill mora em Richborne, na cidade de Somerset. O telegrama foi enviado de Richbarn, o subúrbio londrino.

— Muito engenhoso! — comentou Poirot. — Caso ela desconfiasse da procedência, os nomes são suficientemente pareci­dos para dissipar qualquer dúvida. Sabe o que acho?

— Não — respondeu Japp.

— Que esta história toda está me parecendo muito bem engendrada.

— Só por que Hercule Poirot cismou que se trata de um assassinato?

— Como você explica o telegrama, por exemplo?

— Uma coincidência. Alguém resolveu pregar uma peça na moça.

— Por que razão?

— Ora, sei lá, por quê! Brincadeira de mau gosto, se você quiser.

— Uma pessoa resolveu brincar, exatamente no dia em que Morley iria cometer um engano com a anestesia?

— Uma coisa puxa a outra. Por ela estar fora, o doutor deveria estar mais afobado, logo, mais propenso a cometer um engano.

— Ainda não estou satisfeito.

— Sinto muito; o que você não percebe é que sua desconfiança o está levando a crer que Morley deliberadamente matou Ambe­riotis.

Poirot calou-se.

— Entendeu, agora? — perguntou Japp.

— Amberiotis pode ter sido assassinado de outra maneira.

— Não pode ser. Ninguém o visitou no Savoy. Ele almoçou no quarto. Os médicos declararam que a droga não foi ingerida e sim injetada. Como vê, claro como água...

— E o que querem que a gente pense.

— A polícia está satisfeita com o laudo.

— Está satisfeita também com o desaparecimento da Srta. Seal?

— Estamos cuidando disso. Esta mulher deve aparecer em algum lugar. Ninguém sai de casa e some desse jeito.

— Pois foi o que ela fez — comentou Poirot.

— Por enquanto, mas vamos encontrá-la em algum lugar. Viva ou morta, e se quer minha opinião, viva.

— Por que tanta certeza?

— Porque a esta altura já teríamos encontrado o corpo.

— Ora, Japp, desde quando os cadáveres deram para aparecer tão obedientemente?

— Ah! Você está insinuando que ela foi assassinada, e que nós vamos encontrá-la, dentro de um baú, esquartejada?

— Pour quoi pas?

— Porque muitas mulheres desaparecem e são encontradas. Geralmente, a explicação mais simples é a sexual. Creio que não é o caso de Mabelle.

— Nunca se sabe — disse Poirot, prudentemente. — Não acho provável. Quer dizer que você está convencido de que vai encontrá-la?

— Você vai ver. Já demos os dados relativos a ela para todos os jornais e para a televisão.

— Então, está tudo resolvido — sorriu Poirot sarcastica­mente.

— Não se preocupe, meu caro — retrucou Japp, irritado. — Vamos achar sua namorada, vestida com suas roupas íntimas de lã.

Japp desligou o telefone.

George entrou, carregando uma bandeja com chocolate e biscoitos.

— O senhor vai desejar mais alguma coisa?

— Estou totalmente perplexo, George.

— Que pena, senhor.

Poirot serviu-se de chocolate e ficou pensativo, enquanto mexia a colher dentro da xícara.

George conservou-se a distância, pressentindo os sintomas. Havia ocasiões em que Poirot discutia seus problemas com o mordomo; este tinha sempre um ponto de vista interessante, a respeito do mundo em geral, e da vida, em particular.

— Você já soube da morte do meu dentista?

— O Dr. Morley? Foi uma pena. Ouvi dizer que se suicidou.

— É o que dizem. Se não foi assassinado...

— Sim, senhor.

— O caso é que, se foi assassinado, quem o teria matado?

— Entendo, senhor.

— Poucas pessoas poderiam tê-lo assassinado.

— Entendo, senhor.

— Do pessoal da casa temos: a cozinheira e a arrumadeira, duas domésticas muito simpáticas incapazes de cometer um crime; a irmã, que o adorava, mas também era sua única herdeira. Não podemos negligenciar o aspecto financeiro, mas não creio que tenha sido ela. Além disso, temos o sócio, um dentista profissional e competente, que não tinha razão aparente para eliminar o colega; um atendente imbecil, que gosta de novelas policiais. Finalmente, um grego com estranhos antecedentes.

George tossiu.

— Estes estrangeiros, senhor.

— Exatamente — concordou Poirot. — O grego é fortemente suspeito. Acontece que morreu, George, e pelo visto foi o próprio Dr. Morley quem o matou; não sabemos se proposital ou inconscientemente.

— Quem sabe eles não se assassinaram mutuamente? Se cada um desejava eliminar o outro, acabaram vítimas das próprias ciladas...

— Muito engenhoso, George — disse Poirot, sorrindo. — O dentista assassina o cliente, sem perceber que a vítima está, neste momento, planejando a sua destruição. Poderia ser verdade, mas acho pouco provável. Ainda não terminei minha lista de suspeitos: existem duas pessoas que talvez estivessem na casa, na hora do crime. Todos os clientes, com exceção do grego e de um americano, foram vistos saindo da casa. O americano deve ter saído vinte para o meio-dia. Ainda um outro suspeito é Frank Carter, que não era cliente, e que chegou um pouco depois do meio-dia, para falar com Morley. Ninguém o viu sair. Aí estão os fatos. O que você conclui?

— A que horas foi cometido o crime, Sr. Poirot?

— Se foi cometido pelo Sr. Amberiotis, ocorreu entre meio-dia e cinco e meio-dia e vinte; se foi cometido por outra pessoa, ocorreu depois de meio-dia e vinte e cinco, senão o próprio Amberiotis teria descoberto o cadáver.

Poirot olhou animadamente para o mordomo.

— Então, George, o que acha?

— Acho, senhor...

— Sim?

— Que o senhor vai ter que procurar outro dentista.

— Você é extraordinário, George. Eu ainda não havia pensado nisso.

Sorrindo modestamente George retirou-se.

Hercule Poirot permaneceu à mesa, saboreando o chocolate e rememorando os fatos que acabara de enumerar. Dentro deste círculo de pessoas estava a mão que tinha cometido o crime.

De repente, sua sobrancelha ergueu-se. Havia esquecido um nome... isto era imperdoável. Até a pessoa mais absurda deveria ser investigada.

Não havia outra pessoa na casa, na hora do crime?

Poirot anotou, no seu caderninho, o nome do Sr. Barnes.

 

— Uma senhora deseja falar com o senhor ao telefone — anunciou George.

Poirot imediatamente reconheceu a voz.

— Sr. Hercule Poirot?

— Sim.

— Aqui é Jane Olivera, sobrinha de Alistair Blunt.

— Pois não.

— O senhor podia passar aqui em casa? Acho que devia ser informado de certas coisas...

— Claro. A que horas seria mais conveniente para a Senhorita?

— Às seis e meia, da tarde, por exemplo.

— Estarei lá.

— Espero não estar incomodando.

— De modo algum; de certa maneira, eu estava esperando seu telefonema.

Poirot desligou rapidamente, sem mais explicações; sorriu, desejando saber que desculpa Jane Olivera usaria para justificar a chamada.

Ao chegar à casa de Blunt, Poirot foi imediatamente conduzido à biblioteca. Encontrou Alistair Blunt sentado a sua escrivaninha, brincando com um cortador de papel. No seu rosto, via-se o ar de martírio dos homens que vivem cercados de muitas mulheres.

 

Jane Olivera estava parada, perto da lareira. Uma senhora de meia-idade, quase gorda, falava sem parar, no momento em que Poirot entrou.

— ...além do mais, creio que meus sentimentos também devem ser levados em consideração...

— Claro, Julia, claro — disse Alistair Blunt, em tom apaziguador, enquanto levantava-se para receber Poirot.

— Se você vai discutir sobre crimes, eu me retiro — acrescentou a senhora.

— É uma boa idéia, mamãe — sugeriu Jane.

A Sra. Olivera retirou-se majestosa, sem tomar conhecimento da existência física do visitante.

— Muita bondade sua ter vindo, Sr. Poirot — disse Blunt. — O senhor já conhece minha sobrinha, não é? Foi quem lhe telefonou...

— Quero falar sobre essa mulher desaparecida — interrompeu Jane, — essa tal de Seale.

— Sainsbury Seale — corrigiu Poirot. — O que tem ela?

— Um nome bem engraçado. Quer que eu conte, ou o senhor prefere contar, tio?

— Por favor, minha filha.

Jane virou-se para Poirot.

— Pode não ter a menor importância, mas eu achei que devia lhe participar.

— Pois não.

— A última vez que o tio Alistair foi ao dentista (não a semana passada mas há uns três meses) resolvi ir com ele, para aproveitar o carro. Quando paramos na Rua Rainha Charlotte, uma senhora vinha saindo da casa do Dr. Morley. Era uma senhora de meia-idade, cabelos crespos e umas roupas estranhérrimas. Ela voou para cima do tio Alistair e começou uma conversa, tipo: “Oh! Sr. Blunt, há quanto tempo! Não está lembrado de mim?” etc. Pela cara do tio Alistair, vi que ele realmente não tinha noção de quem ela era.

Alistair Blunt suspirou.

— Sou péssimo fisionomista. Todo mundo se queixa disso.

— Aí, titio tomou aquela atitude — continuou Jane, — que eu já conheço. Educado, meio etéreo, mas que não engana uma criança. Respondeu: “Ah! sim, claro!” etc. Mas a mulher não se deu por achada! Disse que era uma grande amiga da minha tia.

— É o que geralmente dizem, quando me acostam, na rua — ajuntou Alistair Blunt, num tom de tristeza, — e acabam sempre pedindo um donativo para uma instituição de caridade qualquer. Com esta senhora escapei dando cinco libras para uma associação de caridade indiana, cujo nome nem lembro mais.

— Ela realmente tinha conhecido sua esposa?

— É possível, por causa da instituição de caridade. Nós moramos dez anos na índia. Claro que se fosse uma grande amiga da minha mulher, eu a reconheceria.

— Para mim, ela nunca viu tia Rebecca. Foi uma desculpa para falar com o senhor.

— É possível — sorriu Blunt benevolamente.

— O que me pareceu estranho foi ela querer forçar uma antiga intimidade com meu tio.

— No fundo, ela só queria uma contribuição, Jane.

— Ela não voltou a procurá-lo, Sr. Blunt? — perguntou Poirot.

Blunt disse que não.

— Eu achei — interveio Jane, sem convicção, — que o Sr. Poirot deveria tomar conhecimento desse incidente.

— Muito obrigado, mademoiselle — disse Poirot. — Não devo mais ocupar seu tempo, Sr. Blunt; sei que o senhor é um homem muito ocupado.

— Pode deixar, titio, eu acompanho o Sr. Poirot — disse Jane; rapidamente.

Poirot sorriu satisfeito com a presteza de Jane. Quando estavam no hall, ela parou.

— Entre aqui — disse.

Entraram numa saleta ao lado. Jane encarou Poirot.

— Que quis dizer, ao telefone, quando disse que estava aguardando um chamado meu?

Poirot sorriu, abrindo os braços.

— Exatamente o que eu disse. Estava aguardando seu telefonema.

— O senhor quer dizer que sabia que eu iria lhe telefonar sobre a Srta. Sainsbury Seale?

— Não foi este somente um pretexto? — perguntou Poirot, sacudindo a cabeça. — Se não fosse este, a Senhorita certamente encontraria outro.

— E por que cargas d’água haveria eu de lhe telefonar?

— Por que a Senhorita não foi diretamente à Scotland Yard comunicar este pequeno incidente, em vez de me chamar aqui? Não seria mais lógico ir à polícia?

— Está bem, Sr. Sabe Tudo. Que mais sabe?

— Sei que está interessada em mim, desde que soube que estive no Palace Hotel Holborn.

Jane Olivera ficou tão pálida que Poirot temeu que ela fosse desmaiar.

Depois de uma ligeira pausa, Poirot prosseguiu:

— A Senhorita me trouxe aqui hoje para me sondar. Estou usando a expressão correta? Pois é: para me sondar sobre Howard Raikes.

— Quem é esse homem?

— Não precisa me sondar, mademoiselle. Vou dizer tudo que sei, ou que penso saber. A primeira vez que eu e Japp estivemos aqui, a Senhorita ficou espantada, ou melhor, assustada. Pensou que o seu tio tivesse sofrido um atentado. — É uma coisa capaz de acontecer com homens como ele. Outro dia, chegou pelo Correio, uma bomba. Ele recebe centenas de cartas ameaçadoras. — O Inspetor Japp lhe comunicou que um dentista, de nome Morley, tinha sido baleado. Lembra-se da sua resposta? Oh! mas isso é absurdo!

Jane mordeu o lábio.

— Eu disse isso? Que coisa absurda.

— Foi um comentário estranho, mademoiselle. Demonstrava que a Senhorita sabia da existência de Morley, que achava que algo iria acontecer, não necessariamente com ele, mas na casa dele.

— O senhor tem uma imaginação muito fértil! — comentou Jane.

Poirot fingiu não ouvir.

— A Senhorita esperava, ou temia, que algo acontecesse na casa de Morley; que algo de terrível acontecesse lá, mas que a figura visada seria o seu tio. Portanto, sabe alguma coisa que nós ainda não sabemos. Pensei em todas as pessoas que estiveram na casa de Morley, naquele dia, e só uma parece relacionar-se, de alguma forma, com a Senhorita: o Sr. Howard Raikes.

— Parece até uma novela de rádio. Qual é o próximo capítulo?

— Fui falar com o Sr. Raikes, um rapaz atraente e perigoso...

Poirot calou-se por uns instantes.

— É realmente um homem interessante, não é mesmo? — perguntou Jane. — Tem razão eu estava apavorada...

Poirot aguardou, calmamente, que Jane continuasse.

— Vou contar a verdade, Sr. Poirot. O senhor não é fácil de enganar! Prefiro, portanto, contar tudo, para evitar futuras investigações. Amo Howard... Na verdade, o adoro. Minha mãe me trouxe para a Inglaterra para me afastar dele, e também para ver se consegue que o tio Alistair deixe sua fortuna para mim. Ela é sobrinha de Alistair Blunt, por casamento. A mãe dela, minha avó, era irmã de Rebecca Arnholt. Tio Alistair é portanto meu tio-avô, por afinidade. Só que ele não tem mais outros parentes próximos, o que para mamãe é mais uma razão para me transformar em herdeira milionária. Estou sendo franca com o senhor; sou uma pessoa honesta. Temos bastante dinheiro. Segundo Howard, é até obsceno sermos tão ricos; mas é claro que não somos páreo para o tio Alis­tair.

Jane bateu com a palma da mão no espaldar da cadeira.

— Como posso explicar melhor? Howard abomina todos os valores que me foram inculcados pela educação. Às vezes, penso como Howard. Mas gosto do tio Alistair, apesar dele ser um pouco pedante, esnobe e conservador. Outras vezes também acho que Blunt e sua classe deveriam ser varridos da face da terra; que estão se interpondo no caminho do progresso; que sem eles haveria real­mente desenvolvimento.

— A Senhorita pensa como Raikes.

— Ainda não. Howard é radical demais. Tem gente que concorda com ele, mas até certo ponto; gente que contemporizaria com tio Alistair e seu grupo, se estes fizessem algumas concessões... mas tio Alistair é do tipo que: “Não posso arriscar, não seria economicamente válido, temos que considerar as responsabilidades”. Além da eterna choraminga de se reportar aos fatos históricos. Acha que não devemos olhar para trás e sim para a frente.

— É uma visão bastante otimista — comentou Poirot.

Jane encarou-o com desprezo.

— O senhor também está debochando.

— Talvez por ser mais velho. Os velhos também têm sonhos, mademoiselle.

Poirot ficou calado e resolveu mudar de assunto.

— Por que o Sr. Howard Raikes marcou consulta, naquele dia, na Rua Rainha Charlotte?

— Eu queria que ele conhecesse meu tio e não sabia como propiciar melhor oportunidade. Howard é tão amargo em relação ao tio Alistair... tão cheio de ódio, que eu achei que se ele visse meu tio como eu o vejo, isto é, sem partis-pris, o acharia bondoso e mudaria de opinião. Não podia convidar Howard aqui em casa, por causa de mamãe; ela iria estragar tudo.

— Mas, depois que a Senhorita provocou este encontro ficou com medo?

Os olhos de Jane tornaram a brilhar.

— Sim, porque as vezes, Howard se deixa levar e... e...

— Resolve tomar o atalho mais curto — continuou Poirot, para exterminar...

— Pare! — gritou Jane.

 

E o tempo foi passando.

Já fazia um mês que o Dr. Morley tinha morrido, e que não se tinham notícias da Srta. Sainsbury Seale.

Japp, à medida que o tempo ia passando, se tornava mais irritado.

— Com os diabos, Poirot, em algum lugar esta mulher deve estar!

— Sem dúvida, mon cher.

— Ou viva, ou morta. Se está morta onde está o corpo? Vamos supor que ela tenha se suicidado.

— Outro suicídio?

— Não vamos começar tudo outra vez. Você pode achar que Morley foi assassinado, mas para mim ele se suicidou.

— Você descobriu onde ele comprou o revólver?

— Não, é uma arma estrangeira.

— Uma pista sugestiva...

— Não sei por quê. Morley viajava muito; ele e a irmã tinham mania de fazer excursões como todo o mundo na Inglaterra. Certamente comprou um revólver numa dessas viagens. Muita gente costuma fazer isso quando está viajando; dá-lhes a sensação de que estão vivendo perigosamente. Voltando ao assunto, se aquela mulher se suicidou, se se jogou no rio, por exemplo, por esta altura o corpo já teria aparecido. Se tivesse sido assassinada, como você crê, o corpo também já teria aparecido.

— E se colocaram um peso no corpo?

— Típica conclusão de novela policial. Ora Poirot.

— Eu sei, eu sei. Fico com vergonha de sugerir estas coisas.

— Segundo você, ela foi assassinada por uma quadrilha de criminosos internacionais.

Poirot suspirou.

— Estas coisas acontecem, por incrível que pareça.

— Quem lhe disse?

— Reginald Barnes.

— Ele deve saber do que está falando; vivia metido com estrangeiros, quando trabalhava para o Serviço Secreto.

— Mas você não concorda?

— Não são assuntos da minha alçada. Sei que estas coisas acontecem; também leio histórias em quadrinhos.

Fez-se silêncio. Poirot torceu os bigodes.

— Sabemos que Sainsbury Seale veio da Índia, no mesmo barco que Amberiotis. Ela viajou de segunda classe e ele, de primeira. Até aí, tudo normal; pode até ser uma coincidência. O que me intrigou foi um dos garçons do Savoy achar que Amberiotis, uma semana antes de morrer, almoçou com Sainsbury Seale no restau­rante do hotel.

— Então é possível que existisse uma ligação entre ambos?

— Não deixa de ser uma possibilidade meio estapafúrdia! Uma missionária ligada com um espião.

— E Amberiotis estava ligado à espionagem?

— Com toda a certeza. Tinha contato com todos os nossos agentes da Europa Central.

— Tem certeza?

— Absoluta. Ele nunca se comprometeu, a ponto de poder ser acusado. Era simplesmente o contato: recebia e transmitia infor­mações.

Japp fez uma pausa.

— Tudo isto não resolve o problema da Sainsbury Seale — continuou Japp. — Ela não podia estar metida nesta engrenagem.

— Ela morou na Índia, houve muita confusão por lá, o ano passado.

— Não vejo Amberiotis e Sainsbury Seale fazendo dupla.

— Você sabia que a Srta. Sainsbury Seale era amiga íntima da falecida Sra. Alistair Blunt?

— Quem disse? Não acredito...

— Sainsbury Seale disse.

— A quem?

— A Alistair Blunt.

— Ora! Ele já devia estar acostumado a este tipo de conversa. Você acha que Amberiotis estaria usando Sainsbury Seale? Não vê que não daria certo: que Alistair a mandaria embora, com um dinheirinho para as obras de caridade, e jamais a convidaria para passar um fim de semana, em sua casa de campo? Afinal, o Sr. Alis­tair Blunt não é bobo.

O que Japp dizia era tão lógico, que Poirot não pôde concordar.

— Existe também a possibilidade dela ter sido queimada, com ácido, por um cientista louco — prosseguiu Japp. — É uma solução bem novelesca. Na verdade, meu caro, se ela morreu, o corpo vai ter que aparecer em algum lugar.

— Gostaria de saber, onde?

— Eu também. Ela desapareceu em Londres... vai ver está enterrada em algum jardim.

A palavra jardim riscou uma faísca no cérebro de Poirot. Lembrou-se do jardim em Ealing. Não seria fantástico, se ela estivesse enterrada lá? Afastou o pensamento, censurando-se por ser imaginativo demais.

— E caso não tenha morrido — continuou Japp, — onde está ela? Há mais de um mês que publicamos seu retrato nos jornais diariamente.

— Ninguém se manifestou?

— Todo mundo se manifestou. Você não imagina quantas mulheres de meia-idade, vestidas num tailleur de gabardine, existem na Inglaterra. Ela foi vista nos montes de Yorkshire, nos hotéis de Liverpool, nas casas de Devon, nas praias de Brighton! Meus fun­cionários investigaram, pacientemente, todas estas pistas, e a con­clusão foi nenhuma.

Poirot sorriu compreensivamente.

— O pior é que ela existe — prosseguiu Japp. — Às vezes, temos casos de pessoas que passam por outras, dão identidades erradas etc., mas esta mulher existe, tem um passado. Nós conhecemos a vida dela, de cor e salteado! De repente, some...

— Deve haver uma razão — disse Poirot.

— Ela não matou Morley, disto você pode ter certeza. Amberiotis esteve com ele, depois que ela saiu.

— Mas eu não estou insinuando que ela tenha assassinado Morley; claro que não foi ela... mesmo assim...

— Caso você tenha razão sobre o que aconteceu com Morley, o mais provável é que ele tenha dito a Sainsbury Seale alguma coisa, que ela não percebeu, e que nos levaria ao criminoso. Se foi isso, então, ela foi propositalmente afastada.

— Para que tudo isto aconteça — disse Poirot, — é necessá­rio que exista uma organização que tenha um grande interesse na morte de um mero dentista.

— Não vá atrás desta conversa de James Bond, senão achar que todo o mundo é espião do Kremlin.

Japp levantou-se.

— Qualquer novidade me telefone — disse Poirot, sorriu

Assim que Japp saiu, Poirot deixou-se ficar pensativo na poltrona. Tinha a sensação de que algo ia acontecer.

Mas o quê?

Lembrou-se dos apontamentos que tinha feito, anotando os nomes e os acontecimentos. Olhou para a janela e viu um pássaro transportando, pacientemente, os galhos para fazer um ninho. Poirot percebeu também que estava juntando os galhos, que seu ninho estava quase pronto. O que faltava? Sabia a resposta, e mesmo assim, esperava por alguma coisa imprecisa; sentiu que um elo da corrente estava para aparecer, fechando o círculo, e, aí sim, ele poderia prosseguir a investigação.

 

O elo da cadeia apareceu uma semana depois, quando Japp telefonou para Poirot.

— É você? — perguntou Japp, bruscamente. — Encontramos a mulher. Venha. O endereço é Battersea Park, 45.

Poirot correu para o local indicado. Japp recebeu-o na porta.

— Entre, não é nada agradável, mas acho que você vai querer ver.

— Morta? — perguntou Poirot, certo da resposta.

— Poderíamos dizer, até demais!

Ao lado, Poirot ouviu uns ruídos bastante familiares.

— É o porteiro. Tive que fazê-lo ver o cadáver, para ver se conseguia a identificação.

Japp seguiu por um corredor; Poirot acompanhou-o.

— O cheiro é horrível. Também a coitada já está morta há mais de um mês.

Entraram no pequeno depósito de malas do apartamento. Uma grande arca de metal estava com a tampa levantada.

Poirot deu um passo à frente e olhou. A primeira coisa que viu foi o sapato e a fivela. Fora sua primeira imagem da Srta. Sainsbury Seale. Em seguida, Poirot olhou para o tailleur de gabardine, depois para o rosto. Emitiu um som inarticulado.

— Sei, sei — disse Japp, — é realmente impressionante.

O rosto da morta estava mutilado de forma a impedir o reconhecimento; além disso, o processo natural de decomposição emprestava à figura um aspecto horripilante. Os dois se retiraram do quartinho bastante nauseados.

— Ossos do ofício — comentou Japp, — mas, que ossos, hein? Na sala tem uísque; acho bom tomarmos um gole.

Entraram numa sala moderna e elegantemente decorada. Poirot se dirigiu ao bar e se serviu de uma boa dose de uísque.

— Que horror, que horror! — comentou. Sorveu outro gole e olhou para Japp. — Agora me conte o que aconteceu.

— Este apartamento é da Sra. Albert Chapman, uma elegante senhora, de uns quarenta e poucos anos, que paga as contas em dia, joga bridge com os vizinhos, e não se mete com a vida de ninguém. O marido é viajante e o casal não tem filhos. A Srta. Sainsbury Seale veio fazer uma visita aqui, no mesmo dia em que nós dois estivemos com ela. Chegou às sete e quinze. Já tinha estado aqui outras vezes, segundo o porteiro. Tudo certo e normal, isto é, apenas uma visita de cortesia. O porteiro a conduziu de elevador, até este andar. A última vez que a viu, foi enquanto ela apertava a campainha da porta do apartamento.

— Levou um certo tempo para se lembrar — comentou Poirot.

— Ele sofre de úlcera e esteve internado num hospital. A semana passada é que, folheando um velho jornal, deparou com um anúncio, descrevendo uma senhora desaparecida; comentou com sua mulher, que achava o retrato do jornal parecido com aquela visita. Quando leu o nome não teve mais dúvida! Levou, porém, uns quatro dias, matutando sobre o assunto. Você sabe, meu caro Poirot, tão bem quanto eu, que ninguém gosta de se meter com a polícia. De início, pensamos que fosse outra pista falsa. Você não tem idéia de quantos trotes recebemos; mas por desencargo de consciência, eu e o sargento Beddoes, resolvemos dar uma olhada. Preciso lhe explicar quem é o sargento Beddoes: é novo na polícia, tem curso superior e é muito inteligente, tipo, enfim, do policial moderno. Assim que ele chegou aqui, quando soube que a Sra. Chapman não aparecia há mais de um mês, percebeu que estava na pista certa. O estranho é que a Sra. Chapman não deixou endereço algum. Todas as informações sobre o casal são misteriosas; Beddoes descobriu que o porteiro não viu a Srta. Sainsbury Seale sair, mas isto não tem nada de mais, ela poderia ter descido pelas escadas, em vez de usar o elevador. O que realmente botou Beddoes de orelha em pé foi quando o porteiro disse que, no dia seguinte à visita da Srta. Sainsbury Seale, encontrou um recado da Sra. Chapman que dizia: “Não traga leite; diga a Nellie que fui para fora.” Nellie é a empregada que vinha diariamente fazer limpeza. Como volta e meia, a Sra. Chapman viajava, ela não estranhou encontrar o bilhete. O estranho era que o porteiro não tivesse sido chamado para carregar a bagagem e chamar um táxi. Beddoes resolveu entrar no apartamento. Não encontrou nada de interessante a não ser no banheiro que, embora lavado, apresentava manchas de sangue. Daí, foi só uma questão de tempo, até descobrir-se o cadáver. A Sra. Chapman não tinha saído com bagagem alguma, senão o porteiro saberia. Portanto, o corpo devia estar no apartamento. Encontramos esta arca fechada e as chaves na prateleira; dentro, o corpo da desaparecida.

— E a Sra. Chapman?

— Quem sabe? Chama-se Sylvia... lembra-se do trecho da peça de Shakespeare: “Quem é Sylvia?”1 Pois é. De uma coisa temos certeza: Sylvia, ou uma das suas amigas, matou a Srta. Sainsbury Seale e a colocou na arca.

 

1 — Frase de Os Dois Cavalheiros de Verona, de Shakespeare. (N.T.).

 

Poirot concordou com a cabeça.

— Por que massacraram o rosto dela? — perguntou, em seguida.

— Sei lá! Pura vingança, talvez, ou para evitar que ela fosse reconhecida.

— Mas ela foi reconhecida! — exclamou Poirot.

— Porque tínhamos uma descrição detalhada da roupa da Sainsbury Seale; porque encontramos na bolsa, junto ao corpo, um caderno de anotações e algumas cartas.

Poirot retesou-se.

— Isso não faz sentido.

— Claro que não. Talvez tenha sido um descuido.

— Já deu uma busca no apartamento?

— Dei. Não achei nada que pudesse nos esclarecer melhor.

— Gostaria de dar uma olhada no quarto da Sra. Chapman.

— Venha então.

O quarto estava arrumado: não parecia ter sido largado às pressas. A cama estava preparada para ser usada; uma grossa camada de poeira envolvia os móveis.

— Nenhuma impressão digital, a não ser na cozinha, e que deve ser da empregada.

— O que quer dizer que o apartamento foi cuidadosamente limpo depois do crime?

— Certamente.

Os olhos de Poirot passearam pelo quarto. A decoração também era moderna e a qualidade dos móveis revelava que os proprietários possuíam bastante dinheiro. Tudo era caro, sem ser suntuoso. A cor base era rosa. Poirot examinou o armário e viu que as roupas eram caras, mas não muito; examinou os sapatos, as sandálias; constatou que a Sra. Chapman calçava número 34 e depois recolocou tudo no devido lugar. Em seguida, abriu um armário, cheio de peles.

— Aí, não há nada de mais — avisou Japp.

Poirot concordou, segurando um casaco de lontra.

— Pele de primeiríssima qualidade.

Passaram para o banheiro, onde encontraram uma verdadeira exposição de cosméticos, batons, rouges, pós-de-arroz, tinturas para os cabelos etc...

— Obviamente ela não deve ser uma loura natural — comentou Japp.

— Aos quarenta, mon ami, o cabelo das mulheres fica cinza, e a Sra. Chapman, como tantas outras, não ia entregar os pontos desta maneira.

— A esta altura, ela já deve ter virado ruiva!

— Será? — quis saber Poirot.

— O que está lhe preocupando Poirot?

— Não sei. Só sei que estou preocupado. Existe, para mim, um problema insolúvel.

Poirot voltou para o quarto do depósito. Segurou o sapato da morta e arrancou-o do pé, com dificuldade. Examinou a fivela, que tinha sido costurada, sem o menor cuidado.

Hercule Poirot deu um suspiro.

— Devo estar sonhando!

— Está querendo complicar as coisas ainda mais? — perguntou Japp, furioso

— Estou.

— Um sapato de fivela, o que tem isso demais?

— Nada, nada — respondeu Poirot — e mesmo assim, não entendo mais nada...

 

O porteiro apontou a Sra. Merton, moradora do mesmo prédio, como a melhor amiga da Sra. Chapman; tratava-se de uma senhora loquaz, de cabelos negros, muito bem vestida. Não foi necessário muito estímulo para que a Sra. Merton batesse com a língua nos dentes. Diante de uma situação de tal dramaticidade, ela, como boa falastrona, comportou-se à altura.

— Sylvia Chapman? Claro que não a conheço bem, quero dizer, intimamente... Às vezes, jogamos bridge, vamos ao cinema ou fazemos compras. Mas, por que querem saber da vida dela? Ela morreu?

Japp disse que não.

— Que bom! O carteiro, agora há pouco, estava todo nervoso, falando sobre um cadáver que tinha sido encontrado num dos apartamentos. Bem faço eu, que não acredito em tudo que dizem por aí.

— A senhora tem visto a Sra. Chapman?

— Não, desde que ela viajou. Deve ter resolvido viajar às pressas, porque nós tínhamos combinado umas semanas atrás, ir ao cinema, ver o novo filme da Elizabeth Taylor com o Richard Burton, e como ela não apareceu...

A Sra. Merton nunca tinha ouvido a Sra. Chapman falar na Srta. Sainsbury Seale.

— Mesmo assim — disse ela, — este nome não me é estranho. Já ouvi alguém falar desta pessoa!

— É um nome que tem aparecido no jornal, há várias semanas — disse Japp.

— É claro, uma mulher desaparecida, ou coisa assim... e o senhor achou que a Sra. Chapman a conhecia? Tenho certeza de que Sylvia nunca me falou dela.

— O que a senhora pode nos dizer sobre o Sr. Chapman?

A Sra. Merton assumiu uma expressão curiosa.

— Ele era viajante, segundo Sylvia me contou. Viajava pela firma para o exterior, vendendo armas; andava por toda a Europa.

— A senhora o conheceu?

— Não. Ele raramente estava em casa e quando estava eles, naturalmente, preferiam ficar a sós.

— A Sra. Chapman tinha parentes ou outros amigos?

— Amigos, não sei. Também acho que não tinha parentes; pelo menos, nunca falou neles.

— Ela esteve na Índia?

— Que eu saiba, não — respondeu a Sra. Merton, visivelmente perturbada. — Por que estas perguntas? Sei que os senhores são da Scotland Yard e eu gostaria de saber o que houve realmente?

— Bem, Sra. Merton, a senhora vai saber mais cedo ou mais tarde. Um cadáver foi encontrado no apartamento da Sra. Chapman.

— Oh! — os olhos da Sra. Merton se arregalaram. — Um cadáver? Era da Sra. Chapman ou de algum estrangeiro?

— Não era um homem...

— Uma mulher? — perguntou a Sra. Merton, ainda mais espantada.

— Por que deveria ser um homem? — perguntou Poirot, suavemente.

— Sei lá, me pareceu mais normal...

— Mas por quê? A Sra. Chapman recebia muitos homens?

— De modo algum! — respondeu a Sra. Merton, indignada. — Não quis dizer isso, de forma alguma. Sylvia Chapman é uma mulher muito distinta. Acho que foi porque o Sr. Chapman...

A Sra. Merton calou-se.

— Creio, madame, que a senhora está nos escondendo algo — disse Poirot.

— Não sei se devo — disse hesitante; — não quero fazer fofoca, e é claro que nunca repeti o que Sylvia me disse, a não ser para duas ou três pessoas de inteira confiança.

— O que foi que a Sra. Chapman lhe contou? — perguntou Japp.

A Sra. Merton inclinou-se e abaixou a voz, num tom confidencial.

— Ela me falou um dia, quase sem querer. Nós estávamos no cinema, vendo um filme sobre espionagem, e Sylvia comentou que quem tinha dirigido o filme não conhecia bem o assunto. Aí, saiu toda a história. Ela me fez jurar que não contaria a ninguém que o Sr. Chapman era agente secreto. Por isso, viajava tanto; a firma de armamento era um disfarce. Tudo isso deixava a pobre Sylvia muito nervosa, porque ela não podia escrever para ele, nem ele para ela. Tudo era feito em segredo e com grande perigo!

 

Ao voltarem para o apartamento da Sra. Chapman, Japp desabafou:

— Quanto mais se mexe mais complicado fica!

O sargento Beddoes os aguardava na entrada.

— A empregada não sabe de nada — disse o sargento. — Parece que a Sra. Chapman mudava de empregadas regularmente. Esta última só trabalhou para ela dois meses; disse que a Sra. Chapman era uma patroa camarada, que gostava de conversar e assistir televisão. A empregada achava que o Sr. Chapman era um conquistador, mas que a mulher não desconfiava dele. Recebiam cartas do estrangeiro, da Alemanha, dos Estados Unidos e até da Rússia. A empregada tem mania de colecionar selos, por isso prestava atenção na correspondência.

— Descobriu algo nos papéis da Sra. Chapman?

— Nada. Só algumas contas e uns recibos; uns programas de teatro, umas receitas de cozinha e uma revista editada pelos missionários.

— E nós podemos imaginar quem trouxe isto aqui. A Sra. Chapman não tem muita pinta de assassina, mas tudo leva a crer que ela está metida nisso, pelo menos como cúmplice. Ela não recebia visitas de homens, à noite?

— Segundo o porteiro, não. Mas acho difícil ele saber, porque o prédio é muito grande. Ele sabe exatamente o dia em que a Srta. Sainsbury Seale veio aqui, porque, no dia seguinte ele foi para o hospital.

— Nos outros apartamentos ninguém ouviu nada?

O sargento sacudiu a cabeça.

— Perguntei no apartamento de cima e no de baixo. Ninguém ouviu nada. Deviam estar com a televisão ligada.

O médico-legista saiu do banheiro, enxugando as mãos.

— Que cadáver! — comentou, rindo. — É melhor despachá-la logo para o Instituto para que eu possa proceder à autópsia.

— Não tem idéia da causa mortis?

— Só posso dizer depois da autópsia. Acho que os ferimentos no rosto foram infligidos depois do crime. Trata-se de uma mulher de meia-idade, bastante saudável, de cabelos acinzentados, tingidos de louro. Talvez possua marcas características; se não tiver, vai dar trabalho para identificar. Ah! vocês já sabem de quem se trata? Ótimo, ótimo... é aquela mulher que desapareceu há dois meses? Eu nunca leio jornal, só faço palavras cruzadas, mas por acaso li que estavam procurando uma senhora de meia-idade.

— Por aí você vê o valor da publicidade! — comentou Japp, quando o médico se retirou.

Poirot se debruçou sobre a escrivaninha e apanhou um livro de endereços marrom.

— Nada de especial — interveio o onipresente Beddoes; — só tem endereços de cabeleireiros, costureiras etc. Já anotei os telefones e endereços dos amigos.

Poirot abriu o livrinho na letra D.

— Dr. Davis, Prince Albert Road, 17; Dreake e Pomponetti, peixeiros; Dr. Morley (dentista), Rua Rainha Charlotte, 58.

Os olhos de Poirot se iluminaram.

— Não creio que tenhamos grande dificuldade em identificar o corpo.

— Você desconfia de alguma coisa? — perguntou Japp.

— Quero ter certeza — respondeu Poirot, com veemência.

 

A Srta. Morley tinha-se mudado para o interior; instalara-se numa casa de campo perto de Hertford.

Recebeu Poirot amavelmente. Desde a morte do irmão, seu rosto tinha adquirido um ar mais triste e sua atitude diante da vida se tornou mais tolerante.

Queixou-se amargamente da mancha atirada sobre o nome profissional do irmão; tinha razões para acreditar que Poirot, também, discordava do laudo policial, por isso o recebeu tão amistosamente.

Respondeu com presteza a todas as perguntas que Poirot lhe fez. Todos os papéis de Morley tinham sido catalogados pela Srta. Nevill e estavam em perfeita ordem. Alguns clientes tinham passado para o Dr. Reilly, outros tinham procurado outros dentistas.

Depois de fornecer todas estas informações, resolveu sondar a opinião de Poirot.

— Esta mulher, Sainsbury Seale, que era cliente de Henry, também foi assassinada?

O “também” foi dito quase como um desafio.

— Seu irmão nunca falou na Srta. Sainsbury Seale?

— Que eu me lembre, não. Às vezes, ele falava de um cliente difícil, ou me repetia uma história ouvida no consultório, mas geralmente, nós não falávamos muito sobre o trabalho de Henry. Acho que ele procurava esquecer sua vida profissional nas horas de descanso. A maior parte do tempo, estava exausto...

— A Senhorita lembra do nome da Sra. Chapman entre os clientes do seu irmão?

— Chapman? Não. A pessoa indicada, para o senhor perguntar sobre os clientes de meu irmão, é a Srta. Nevill.

— Gostaria muito de falar com ela. Por onde anda, no momento?

— Acho que está trabalhando para um dentista em Ramsgate.

— Não se casou com Frank Carter?

— Não, e espero que isso nunca aconteça. Não gosto daquele homem; tem qualquer coisa de errado. Para começar, é uma pessoa sem princípios!

— A Senhorita acha possível que ele tenha matado seu irmão?

— Creio que ele seria capaz de uma coisa dessas — respondeu a Srta. Morley, pensativamente. — Parece tão descontrolado, mas não creio que ele tivesse um motivo forte, nem a oportunidade, para fazê-lo. Henry não tinha dissuadido Gladys a largar o noivo, pelo contrário, ela continuava agarrada nele como uma ostra numa pedra.

— A Senhorita acha que ele poderia ser pago por alguém, para matar?

— Pago? Que idéia!

Uma mocinha morena entrou para servir o chá. Ao sair, Poirot voltou-se para a dona da casa.

— Esta moça trabalhava com a Senhorita em Londres?

— Agnes? Sim, era arrumadeira. Despachei a cozinheira que, de qualquer maneira, não podia sair de Londres, e fiquei só com Agnes. Até que ela está se tornando uma excelente cozinheira.

Poirot sorriu; ele conhecia muito bem o funcionamento doméstico da casa do Dr. Morley. Na época do acidente, a polícia e ele tinham investigado cuidadosamente todos os detalhes. Sabia que o Dr. Morley e a irmã ocupavam os dois andares superiores; o porão tinha sido trancado, de maneira que a única entrada da casa era pela porta da frente, que Alfred era encarregado de abrir. Este tipo de funcionamento assegurou à polícia que nenhum estranho poderia ter entrado na casa, aquela manhã. Tanto a cozinheira como a arrumadeira trabalhavam há anos com os Morley e apesar de ser possível, em teoria, que uma delas tivesse ido ao consultório para matar o dentista, a idéia nunca foi encarada com seriedade pela polícia. Durante o interrogatório, nenhuma das duas pareceu embaraçada ou confusa e não existia, realmente, qualquer razão para ligá-las à morte de Morley.

Na saída, quando Agnes entregava a Poirot o chapéu e a bengala, não pôde deixar de perguntar, num tom nervoso, se ele sabia alguma outra coisa sobre a morte do patrão.

Poirot voltou-se para ela.

— Nenhuma novidade.

— A polícia ainda acha que ele se matou por causa do engano com a anestesia?

— Sim, por quê?

Agnes alisou o avental, e olhou para os lados.

— A patroa não concorda.

— E você concorda com ela?

— Eu? Nem sei... só gostaria de ter certeza...

— Seria para você um alívio saber que foi realmente um suicídio?

— Seria — respondeu Agnes rapidamente. — Seria, sim.

— Por alguma razão especial?

O espanto de Agnes foi grande; involuntariamente seu corpo se retesou.

— Eu não sei nada. Estava só perguntando.

— Mas, por que estava perguntando?

Hercule Poirot resolveu deixar a pergunta no ar. Sabia que deveria haver uma boa resposta a sua pergunta, mas ainda não podia imaginar qual seria. Mesmo assim, inconscientemente sentiu-se próximo da verdade.

 

Ao voltar para casa, Poirot encontrou, surpreso, uma visita que o aguardava, de costas para a porta; viu, apenas, uma careca reluzente. Era o Sr. Barnes, com seus olhos brilhantes, que pedia desculpas por ter vindo sem avisar. Tinha vindo, explicou a Poirot, retribuir a visita que este lhe fizera. Poirot fingiu estar encantado com a surpresa e pediu a George que lhes trouxesse um café.

— Talvez o senhor prefira chá ou um uísque?

— Não — protestou o visitante, — um café está ótimo. Só espero que seu mordomo saiba preparar esta excelente rubiácea, porque a maioria dos ingleses não o sabe.

Depois de trocarem algumas amabilidades, o Sr. Barnes resolveu entrar no assunto.

— Quero ser franco com o senhor — disse Barnes; — foi somente a curiosidade que me trouxe aqui. Acho que o senhor é a pessoa mais por dentro deste estranho caso. Li no jornal que a Srta. Sainsbury Seale foi encontrada; que o caso ainda está em suspenso, aguardando novos pronunciamentos. Li, também, que ela morreu em conseqüência de uma dose excessiva de medinal.

— Exatamente — disse Poirot. — O senhor ouviu falar em Albert Chapman?

— O dono do apartamento onde a Srta. Sainsbury Seale foi encontrada morta? Ele me parece um personagem um tanto ou quanto nebuloso.

— Mas não inexistente.

— Oh! não. Ele existe, isto é, pelo menos existia. Certa vez, ouvi dizer que tinha morrido, mas não podemos confiar nos boatos.

— Quem era ele, Sr. Barnes?

— Não creio que a polícia vá revelar isto à imprensa. A não ser que seja inevitável, vão continuar com esta conversa de vendedor de armamentos...

— Ele fazia parte do Serviço Secreto?

— Claro. Seu único erro foi contar à esposa. Aliás, depois que ele casou, deveria ter sido retirado do serviço. Principalmente sendo como ele, um Q.X.912.

— Que quer dizer isto?

— Não é algum cargo importante ou perigoso demais, acredite. É simplesmente um número para os espiões que têm cara e jeito de modestos bancários, comerciantes, viajantes etc. São úteis como mensageiros, porque ninguém presta atenção neles. Um exemplo: manda-se uma carta oficial para o nosso embaixador na Ruritânia, logo depois segue outra, revelando todos os sórdidos detalhes, pelo Q.X.912, ou melhor, por Albert Chapman.

— Então, ele tinha acesso a muita informação?

— Talvez, não — respondeu Barnes, sorrindo. — O trabalho de Chapman era pegar trens, aviões, ou navios e explicar na alfândega por que, e para onde, estava indo.

— E o senhor ouviu dizer que ele está morto?

— Ouvi, mas não se pode acreditar em tudo que se ouve, não é?

— O que o senhor acha que aconteceu com a mulher dele? — perguntou Poirot, encarando Barnes, fixamente.

— Não posso imaginar — respondeu. — O senhor tem alguma idéia?

— Tenho — disse Poirot, hesitante. — É muito confuso...

— Algo o preocupa, especialmente, Sr. Poirot?

— As provas evidentes diante dos meus olhos — respondeu, Poirot, vagarosamente.

 

Japp entrou na sala de visitas de Poirot e atirou o chapéu sobre a mesa.

— Como você chegou a esta conclusão?

— Meu caro Japp, não sei do que você está falando!

— Quem lhe deu a idéia de que o corpo da Srta. Sainsbury Seale não era dela própria?

Poirot pareceu preocupado.

— Foi o rosto da morta que me intrigou. Pense bem, para que deformar o rosto de uma pessoa morta?

— Só espero que, no Céu, exista um lugar de onde Morley possa ver tudo que está acontecendo. Acho que ele foi assassinado para não dar com a língua nos dentes.

No dia seguinte, os jornais publicaram a grande novidade. O cadáver encontrado no apartamento, que a polícia, a principio, acreditava ser o da Srta. Sainsbury Seale, era o da Sra. Albert Chapman.

O Dr. Leatheram, dentista substituto do Dr. Morley, deu o veredicto depois de examinar os dentes e a arcada dentaria da Sra. Chapman e compará-los com as radiografias arquivadas pelo Dr. Morley.

As roupas da Srta. Sainsbury Seale tinham sido encontradas no corpo da vítima, assim como a bolsa, o chapéu etc., mas, a grande pergunta ainda era: onde estaria, então, a Srta. Sainsbury Seale?

 

Japp saiu do inquérito satisfeito.

— Bom trabalho, hein? — perguntou. — Sensacional, não foi?

Poirot limitou-se a acenar com a cabeça.

— Foi você quem descobriu o negócio — continuou Japp, — mas, para dizer a verdade, eu não estava satisfeito com aquele cadáver. Afinal, não se esfacela um rosto e um crânio à toa. Foi um trabalho desagradável, complicado, mas estava patente que deveria haver algo mais, atrás de tudo isso, isto é, confundir a identidade da vítima. Uma coisa, devo confessar, não teria chegado tão cedo à verdade, se não tivesse tido a sua ajuda.

— Mesmo assim, meu amigo, as duas mulheres fundamentalmente eram muito parecidas — disse Poirot. — É verdade que a Sra. Chapman era uma mulher elegante e a Srta. Sainsbury Seale, em questão de roupas, é o que se poderia gentilmente, chamar de uma excêntrica. Porém, basicamente, os dados eram os mesmos: as duas tinham quarenta e poucos anos, eram da mesma altura, do mesmo peso, e tingiam o cabelo de louro.

— Tem razão, só nos enganamos com um dado; não imaginamos que Mabelle Sainsbury Seale fosse uma impostora!

— E quem lhe disse que ela é uma impostora? Temos todos os fatos sobre seu passado.

— Nós não sabíamos que ela seria capaz de cometer um assassinato. A Sra. Chapman não matou Mabelle. O que aconteceu foi exatamente o inverso.

Hercule Poirot sacudiu a cabeça; para ele era difícil admitir que a Srta. Sainsbury Seale fosse uma assassina; em seus ouvidos, porém, ecoaram as palavras de Barnes: “Investigue bem as pessoas respeitáveis!”; e Mabelle Sainsbury Seale era o que se podia pedir de mais respeitável.

— Vou até o fim desta história — disse Japp. — Esta mulher não vai ganhar a partida.

Japp telefonou para Poirot no dia seguinte. Sua voz soou estranha.

— Poirot, quer ouvir uma novidade? Kaput, meu caro, kaput.

— Pardon? — inquiriu Poirot, pensando talvez que não tivesse entendido bem, por algum defeito do telefone. — Não compreendo...

— Acabou tudo, meu caro. Encerrado o assunto. Espero que você esteja bem sentado, para ouvir o que tenho a lhe dizer.

A voz de Japp revelava amargura.

— O que houve?

— Querem encerrar o caso! Nada de gritaria, nem de publicidade.

— Mas eu não entendo — disse Poirot.

— Ouça, não posso citar nomes pelo telefone. Lembra-se do inquérito?

— Sim.

— Da nossa procura pela missionária?

— Sim.

— Não querem que continuemos. Silêncio absoluto, foi a ordem que recebi.

— De quem?

— Do Ministério do Exterior.

— Ora, vejam só!

— São coisas que acontecem — disse Japp.

— Por que será que eles estão sendo tão lenientes com a nossa desaparecida?

— Eles não estão preocupados com ela; não querem é publicidade sobre o caso. Se ela for processada pode começar a aparecer muita história sobre aquela fulana que morreu, e aí, o marido vai ter que aparecer, e... percebe?

— Sim, sim.

— Acho que ele está no estrangeiro, numa missão, e eles não querem atrapalhar o sujeito.

— Ah!

— Que você disse?

— Nada do que eu gostaria de poder dizer, mon ami.

— Entendo perfeitamente. É de enfurecer... imagine deixar aquela mulher escapar... Só de pensar fico verde de raiva.

— Mas ela não vai escapar.

— Você ainda não percebeu, Poirot, que eles nos amarra­ram as mãos?

— Pode ser que eles tenham amarrado as suas, mas as minhas, não.

— Formidável! Quer dizer que você vai em frente?

— Mais, oui!... até a morte.

— Contanto que não seja a sua! Se este negócio continuar na proporção que está indo, vamos acabar recebendo um escorpião pelo correio.

Ao desligar, Poirot se perguntou por que teria empregado uma expressão tão melodramática como: “Até a morte.”

Vraiment, que absurdo.

 

À noite chegou uma carta datilografada.

“Caro Sr. Poirot.

Ficaria muito grato se o senhor me procurasse amanhã. Tenho um negócio a lhe propor. A melhor hora para me encontrar seria ao meio-dia e meia, em minha casa; caso não seja possível, peço o favor de telefonar e marcar outra hora com minha secretária.

Contando com sua presença, subscrevo-me,

atenciosamente,

Alistair Blunt.”

Poirot releu a carta com atenção.

O telefone tocou. Hercule, às vezes, fantasiava que, pelo toque do telefone, saberia que tipo de recado iria receber. Desta vez, teve certeza de que o chamado era importante; não devia ser engano, nem um telefonema de um amigo.

— Alô?

— Qual é o número, por favor? — perguntou uma voz estranha.

— Whitehall, 7272. Fez-se uma pausa.

— Sr. Poirot? — perguntou uma mulher.

— Sim.

— Sr. Hercule Poirot?

— Sim.

— Sr. Poirot, o senhor já recebeu, ou vai receber, uma carta.

— Quem está falando?

— Não precisa saber.

— Muito bem, madame. Recebi, pelo Correio, oito cartas e três avisos de débito.

— Então o senhor sabe a que carta me refira Seria aconse­lhável que o senhor recusasse o convite que lhe fizeram.

— Creio, madame, que este é um assunto que só a mim interessa.

— Estou lhe avisando. Sr. Poirot — prosseguiu a voz, num tom glacial: — Sua interferência não será mais tolerada. Não se meta mais nesta história.

— E se eu me meter?

— Teremos que tomar providências para afastá-lo.

— É uma ameaça, madame?

— Estamos pedindo que o senhor seja razoável para seu próprio bem.

— A senhora é muito bondosa.

— O senhor não pode alterar o curso dos acontecimentos, nem mudar o que já foi planejado. Portanto, não meta o nariz onde não é chamado. Entendeu?

— Perfeitamente; mas discordo num ponto. A morte do Dr. Morley é um assunto dentro da minha alçada.

— A morte de Morley foi um acidente — disse a mulher rispidamente. — Ele interferiu nos nossos planos.

— Dr. Morley era um ser humano, minha senhora, que morreu antes da hora.

— Uma pessoa sem a menor importância na ordem das coisas!

Poirot assumiu um tom de voz ameaçadora.

— Nisto a senhora está redondamente enganada.

— A culpa foi dele; recusou-se a colaborar.

— Como eu, também, me recuso.

— O senhor então é um idiota.

Ouviu-se o clique de desligar.

— Alô? — insistiu Poirot.

Haviam realmente desligado.

Hercule não pensou em pedir à polícia que descobrisse a proveniência do telefonema; tinha certeza de que a mulher havia usado um telefone público. O que intrigou foi o fato de achar a voz da mulher, de certa forma, familiar. Vasculhou nos recônditos da memória para lembrar de quem seria a voz. Seria da Srta. Sainsbury Seale? Lembrou-se de que a voz de Mabelle era aguda, que seu sotaque era bastante carregado e pedante, e que sua dicção era clara demais. A voz, que acabara de ouvir, não era assim, mas, podia ser que a Srta. Sainsbury Seale estivesse usando um disfarce. Ela já tinha sido atriz, portanto, saberia mudar a voz, caso fosse necessário. O estranho era que o timbre era semelhante.

Poirot não descansou depois que aventou esta possibilidade. Concluiu que a voz era de outra pessoa, que ele não conhecia bem, mas tinha certeza de ter ouvido, uma ou duas vezes, nos últimos tempos.

Por que, continuou raciocinando Poirot, se dar ao trabalho de lhe telefonar com ameaças? Será que estas pessoas achavam realmente que iriam impedi-lo de prosseguir nas investigações? Se pensavam assim, eram muito inexperientes, no tocante à personali­dade de Poirot.

 

Os cabeçalhos matutinos ingleses traziam notícias sensacionais: uma tentativa de assassinar o Primeiro-Ministro, quando este saía, com um amigo, da sua residência oficial, a Rua Downing, n° 10. Felizmente, a bala tinha-se desviado e não houve vítimas. O agressor, um indiano, tinha sido capturado pela polícia.

Ao ler a notícia, Poirot resolveu ir à Scotland Yard procurar Japp, que o recebeu alegremente.

— Ora, as novidades o trouxeram de volta. Algum jornal disse quem era o “amigo” que acompanhava o Primeiro-Ministro?

— Não, quem era?

— Alistair Blunt.

— É mesmo?

— Tem mais — prosseguiu Japp, — acreditamos que a bala foi dirigida a Blunt e não ao Primeiro-Ministro a não ser que o indiano seja o pior atirador do mundo.

— Quem é esse indiano?

— Um estudante louco. Foi influenciado por alguém. Nos deu um certo trabalho apanhá-lo. Você sabe, sempre há um certo número de pessoas em frente da casa do Primeiro-Ministro; quando se ouviu o tiro, um americano agarrou um homenzinho barbado e começou a gritar pela polícia; enquanto isso, o indiano ia, de mansinho se esgueirando e tentando, naturalmente, escapar; mas nosso pessoal estava de olhos bem abertos.

— Quem era esse americano? — perguntou Poirot, intriga­do.

— Um jovem chamado Raikes. Por quê?

— Howard Raikes, hóspede do Palace Holborn — interveio Poirot rapidamente.

— Ora, é mesmo. Bem que eu achei que já tinha escutado este nome. É o cliente que não se consultou com Reilly na manhã da morte de Morley.

Fez-se uma pausa.

— Voltamos à velha história? Engraçado como as peças começam a se encaixar. Você continua com suas estranhas suspeitas, Poirot?

— Sim, ainda continuo com minhas estranhas suspeitas — respondeu Poirot, seriamente.

 

Quando Poirot chegou à casa de Alistair Blunt, foi recebido por um eficiente secretário; tratava-se de um jovem alto e extremamente educado.

— Sinto muito, Sr. Poirot — desculpou-se o secretário, — o Sr. Blunt foi chamado, às pressas, pelo Primeiro-Ministro, por causa do atentado de ontem. Telefonei para o senhor, mas infelizmente não o encontrei mais em casa.

O secretário sorriu.

— O Sr. Blunt — continuou — encarregou-me de convidá-lo para passar, com ele, o fim de semana, na sua casa em Kent. Caso o senhor possa aceitar o convite, nosso chofer passará amanhã à noite para apanhá-lo.

Poirot pareceu hesitar.

— O Sr. Blunt — insinuou o secretário, persuasivamente, — gostaria muito que o senhor pudesse aceitar o convite.

Hercule Poirot inclinou a cabeça num gesto de submissão.

— Obrigado, aceito.

— Ótimo. O Sr. Blunt vai ficar muito satisfeito. A que horas o senhor deseja que o chofer o apanhe: às cinco e meia da tarde... Oh! Bom dia, Sra. Olivera.

A mãe de Jane Olivera acabara de entrar. Vestia um modelo francês e exibia um novo penteado.

— Sr. Selby, o Sr. Blunt disse algo sobre as cadeiras do jardim? Eu ia falar com ele sobre isso, ontem à noite, porque sabia que íamos passar o fim de semana fora...

A Sra. Olivera pareceu, por fim, perceber a presença de Poirot.

— O senhor já conhece a Sra. Olivera?

— Já tive o prazer — respondeu Poirot, com um cumprimento de cabeça.

— Ah! sim... como está? — perguntou a Sra. Olivera, com um ar distante. — Sei, Sr. Selby, que Alistair é um homem muito ocupado e que estes detalhes domésticos não têm a menor importância para ele...

— Não se preocupe, Sra. Olivera, já telefonei para uma firma de mudanças, sobre as cadeiras.

— Que alívio! Tirou um peso da minha cabeça. Diga-me uma coisa. Sr. Selby — a Sra. Olivera cacarejava sem parar, dirigindo-se para a porta. Poirot tinha a impressão de ver, na sua frente, uma enorme galinha.

— ...espero que o senhor tenha conseguido que não haja estranhos, para atrapalhar nosso fim de semana.

O Sr. Selby pigarreou, discretamente.

— O Sr. Poirot vai passar o fim de semana conosco — explicou o secretário.

A Sra. Olivera voltou-se e encarou Poirot quase com nojo.

— É mesmo? — perguntou.

— O Sr. Blunt teve a gentileza de me convidar.

— Ora vejam só! Quem é que entende Alistair? O senhor desculpe, mas o Sr. Blunt me disse que gostaria de passar o fim de semana, em família.

— O Sr. Blunt faz absoluta questão de que o Sr. Poirot nos acompanhe — interveio o secretário, enérgico.

— É mesmo? Não foi o que ele me disse...

A porta abriu-se. Jane entrou.

— Como é, mamãe? A senhora vem ou não vem? Nosso almoço está marcado para a uma e meia!

— Já estou indo, Jane. Não seja tão impaciente.

— Detesto chegar atrasada. Bom dia. Sr. Poirot.

Ao ver Poirot, Jane mudou de atitude; sua petulância desapareceu como que por encanto.

— O Sr. Poirot vai passar o fim de semana conosco — anunciou a Sra. Olivera.

— Que ótimo! — exclamou Jane, dando passagem a sua mãe. — Sr. Poirot?

Jane chamou-o num tom tão urgente, que Poirot encaminhou-se para ela.

— Por que o senhor vai passar o fim de semana em Kent?

Poirot encolheu os ombros.

— Foi uma sugestão do seu tio — respondeu.

— Mas, ele não sabe, não pode saber... quando foi que ele o convidou? Ora, não tem importância...

— Jane!

Era a Sra. Olivera, chamando a filha da porta da rua.

— Não venha conosco — murmurou Jane, num tom angustiado. — Por favor, não venha!

Jane saiu correndo; antes da porta da rua se fechar, Poirot ouviu mãe e filha discutindo.

— Não tolerarei suas malcriações, Jane. Vou tomar providências para... À porta de entrada bateu.

— Então, um pouco antes das seis da tarde, Sr. Poirot ? — perguntou o secretário.

Poirot concordou mecanicamente. Ficou parado, na sala, como um homem que acaba de ver uma fantasma. A única diferença, porém, era que o choque que sofrera fora auditivo e não visual. A voz da Sra. Olivera, ralhando com a filha, lembrava a voz do telefonema anônimo.

Poirot saiu da casa de Blunt e caminhou pelas ruas.

A Sra. Olivera?

Impossível! Não poderia ter sido ela! Uma mulher de sociedade, vazia, egoísta, mandona... uma galinha gorda!

C’est ridicule!

Poirot concluiu que seus ouvidos lhe haviam pregado uma pe­ça, mas em todo o caso, era melhor ficar atento à Sra. Olivera.

 

O Rolls Royce de Alistair Blunt apareceu, pontualmente, às cinco e meia, para apanhar Hercule Poirot. Os únicos ocupantes do carro eram Alistair e seu secretário; a Sra. Olivera e Jane tinham seguido em outro carro.

A viagem transcorreu normal. Blunt falou sobre jardinagem e horticultura. Poirot felicitou-o por ter escapado à morte.

— Ora, não creio que o sujeito estivesse querendo me matar. Era um desses estudantes radicais. De qualquer maneira, em primeiro lugar, ele precisava fazer um curso de tiro ao alvo. Esse pessoal acha que, se o Primeiro-Ministro morrer, vai mudar o curso da História. No fundo, me dão pena.

— Já houve outras tentativas de assassiná-lo, Sr. Blunt?

— Pode parecer muito melodramático — respondeu Blunt, sorrindo. — Há pouco tempo, recebi uma bomba pelo Correio, mas era uma engenhoca muito mal feita. Acho graça nestes sujeitos que querem dominar o mundo, e nem sabem construir uma bomba que funcione!

Blunt sacudiu a cabeça.

— É sempre a mesma história: idealistas cabeludos, sem nenhuma noção prática. Eu, por exemplo, não sou muito inteligente, nunca fui, mas sei ler, escrever e fazer contas. O senhor entende o que quero dizer com isto?

— Creio que sim — respondeu Poirot.

— Se leio algo escrito em inglês posso entender seu significado; não estou me referindo a fórmulas absurdas, nem filosóficas e sim à linguagem cotidiana. O senhor acredita que nem isso a maioria das pessoas é capaz de fazer? Se quero escrever algo “posso escrever o que desejo”; mas já descobri que a maior parte das pessoas não consegue fazer isto! Disse ao senhor que sei fazer contas; eis a prova: se A tem oito bananas e B lhe tira dez, com quantas bananas A vai ficar? É o tipo do problema que a maioria das pessoas pensa saber responder. Não admitem que, em primeiro lugar, B não tem de onde tirar as bananas e em segundo lugar, que a resposta não pode ser mais bananas...

— Preferem responder o problema com sofismas?

— Exatamente, e os políticos fazem o mesmo. Eu sempre preferi o senso comum. Em última análise é a ele que a gente recorre.

Blunt deu um pequeno sorriso.

— Não devemos falar de assuntos sérios; é um péssimo hábito. Além do mais, gosto de esquecer os negócios quando saio de Lon­dres. No fundo, quero ouvir suas histórias, Sr. Poirot. Leio muito novelas policiais. Diga-me, o senhor acha que elas têm um fundo de verdade?

A conversa passou para os casos mais espetaculares de Hercule Poirot. Alistair Blunt ouviu tudo atentamente, como se fosse um estudante, diante de um mestre adorado. Esta agradável atmosfera de camaradagem conseguiu neutralizar a fria recepção que a Sra. Olivera havia preparado para Poirot. Ela o ignorava sempre que possível, dirigindo-se somente ao dono da casa ou ao Sr. Selby.

A casa era bonita, não muito grande, e mobiliada com o mesmo bom gosto que Poirot havia notado, na mansão de Blunt, em Londres. Tudo muito caro, mas bastante simples; era como se a imensa fortuna do dono da casa estivesse concentrada na aparente simplicidade dos móveis. A comida era excelente, tipicamente inglesa, e os vinhos servidos durante as refeições eram degustados por Poirot, com imenso prazer. O jantar consistiu de uma sopa de legumes, peixe assado, filé de carneiro, acompanhado de ervilhas; como sobremesa morangos com creme.

Poirot apreciou tanto estes confortos materiais que esqueceu a constante frieza da Sra. Olivera e a rude agressividade da filha que, por alguma razão, passara a tratá-lo com franca hostilidade. Ao fim do jantar, Poirot perguntou-se, vagamente, o porque da atitude de Jane.

— Helen não janta conosco, hoje? — perguntou Blunt.

Os lábios da Sra. Olivera formaram uma linha dura.

— Nossa querida Helen esteve trabalhando no jardim o dia inteiro. Sugeri que seria melhor, para ela, jantar no quarto e descansar. Ela concordou.

— Compreendo — disse Blunt, um pouco surpreso. — Pensei que, nos fins de semana, ela pudesse aproveitar para jantar conosco.

— No fundo, Helen é uma camponesa; gosta de dormir cedo — sentenciou a Sra. Olivera, com desdém.

Depois do jantar, Blunt e o secretário retiraram-se por uns minutos. Poirot passou para a sala de visitas. Ao entrar, ouviu Jane, aconselhando a mãe.

— Tio Alistair não gostou dos seus comentários sobre Helen Montressor, mamãe.

— Que bobagem — respondeu a Sra. Olivera. — Alistair é bom demais! Não tenho nada contra parentes pobres. Acho que deixar Helen morar aqui de graça, naquela cabana, um gesto de humanidade. Agora, não é por isso que ele precisa convidá-la para jantar todos os fins de semana. Além do mais, ela é prima em segundo grau ou coisa parecida... detesto gente que se impõe na vida dos outros.

— Ela até que é bem ativa — disse Jane. — Veja as maravilhas que tem feito nos jardins...

— Não faz mais que a obrigação. Os escoceses são muito independentes e eu os respeito por isso!

A Sra. Olivera acomodou-se no sofá, e sem perceber ainda a presença de Poirot, pediu à filha que lhe desse uma revista de decoração.

Alistair Blunt entrou na sala.

— Quer me acompanhar até meu escritório, Sr. Poirot?

O escritório de Alistair Blunt era uma sala, de pé direito baixo, comprida, situada nos fundos da casa; as janelas davam para o jardim.

Depois de oferecer cigarros ao convidado, Alistair acendeu um cachimbo.

— Existe uma série de coisas que não estão me agradando — começou Blunt, indo direto ao assunto. — Estou me referindo a esta Srta. Sainsbury Seale. Por razões políticas, perfeitamente justificá­veis, creio, as autoridades cessaram as investigações; não sei, por outro lado, quem é Albert Chapman e o que está fazendo, no momento; mas penso ser algo extremamente vital e importante, sob o ponto de vista político e, portanto, não interessaria ao governo colocá-lo numa situação difícil. Não posso lhe informar mais detalhes, mas o Primeiro-Ministro me disse que não pode haver mais publicidade em torno deste caso, e que quanto mais cedo abafarmos esta história, melhor. Até aí, tudo bem, Sr. Poirot. O ponto de vista governamental deve ser obedecido, e a polícia está de mãos e pés atados.

Alistair Blunt inclinou-se para a frente.

— Mas eu quero saber a verdade, Sr. Poirot, e o senhor é o homem indicado para isso, uma vez que não pertence a nenhuma entidade oficial.

— O que o senhor quer que eu faça?

— Quero que descubra esta mulher.

— Viva ou morta?

As sobrancelhas de Blunt arquearam-se.

— Acha possível que ela esteja morta?

Hercule Poirot calou-se por uns instantes.

— Se quer minha opinião, bastante pessoal, acho que ela está morta.

— O que o leva a acreditar nisso?

Poirot sorriu.

— Talvez não faça sentido algum para o senhor, se eu lhe disser que cheguei a esta idéia por causa de um par de meias novas, encontradas numa gaveta.

Alistair Blunt limitou-se a olhar para Poirot fixamente.

— O senhor é um homem estranho! — comentou.

— Sei que sou — concordou Poirot, — ou melhor, sou metódico, organizado e lógico; não gosto de destorcer a realidade para reforçar uma teoria, que eu considero válida.

— Tenho pensado muito no assunto — disse Blunt. — Sempre levo um certo tempo para chegar a uma conclusão. Esta história é estranhíssima. Para começar, o dentista que se suicida; depois, essa Sra. Chapman encontrada morta na própria casa, com o rosto esmigalhado. É horrível! Horrível! Não posso deixar de acreditar que, atrás disso tudo, exista alguma coisa de misterioso.

Poirot concordou.

— Tenho certeza absoluta de que esta mulher nunca conheceu minha esposa — continuou Blunt. — Usou esta conversa para aproximar-se de mim. Por quê? Não sei. Com que vantagem? Também não sei. Somente para conseguir uma pequena subscrição, que não era sequer no nome dela? Contudo, estou certo de que este encontro foi planejado... tudo tão casual, tão na hora... Mas, a pergunta continua: Por quê? Para quê?

— Realmente é difícil responder sua pergunta.

— O senhor não tem alguma idéia?

Poirot levantou as mãos para o alto.

— Minhas teorias sobre o assunto são quase infantis; talvez ela tivesse falado com o senhor, com o propósito de indicá-lo a outra pessoa; o que também seria absurdo, uma vez que o senhor é um homem público. Seria mais simples chegar na porta do banco e apontá-lo ao interessado, dizendo: — É este aí!

— Para que alguém precisaria me apontar?

— Peço que o senhor se lembre daquela manhã, no consultório do Dr. Morley. O dentista não lhe disse nada que lhe parecesse estranho? Não aconteceu nada de diferente que pudesse dar alguma pista?

Alistair Blunt calou-se, fazendo um esforço de memória. Em seguida, sacudiu a cabeça, negativamente.

— Sinto muito, mas não consigo lembrar nada de estranho.

— Tem certeza de que o Dr. Morley não tocou no nome da Srta. Sainsbury Seale?

— Tenho.

— Ou alguma palavra sobre a Sra. Chapman?

— Também não. Não falamos sobre pessoas e sim sobre rosas, jardins, feriados e coisas semelhantes...

— Ninguém entrou no consultório, enquanto o senhor estava sendo atendido?

— Deixe ver... não, não creio. Numa outra ocasião, lembro-me de uma moça, acho até que era loura, mas desta última vez, ela nem estava presente. Ah! sim! um dentista entrou, um colega de Morley...

— O que ele fez ou disse?

— Fez uma pergunta qualquer e saiu. Achei Morley um tanto brusco com ele, de maneira que a interrupção não durou mais que um minuto.

— O senhor não se lembra de qualquer outra coisa?

— Não. Tudo correu muito normalmente...

Fez-se uma longa pausa.

— O senhor por acaso lembra-se de um jovem, que estava na sala de espera, com o senhor?

— Vagamente... lembro-me que havia um rapaz, meio irrequieto. Não me lembro de seu rosto...

— Se o visse, hoje, o reconheceria?

— Mal olhei para ele — respondeu Blunt. — Por que pergunta? Quem era ele?

— Chama-se Howard Raikes.

Poirot aguardou qualquer reação da parte de Blunt, mas este se manteve impassível.

— Eu o conheço? Já o encontrei, por acaso?

— Não creio. E um amigo da sua sobrinha, Jane.

— Ah! um amigo de Jane.

— A Sra. Olivera, porém, não aprova esta amizade.

— O que não quer dizer nada — disse Blunt distraidamente.

— Creio mesmo que a razão pela qual a Sra. Olivera trouxe a filha para a Inglaterra foi para acabar com este romance.

— Então é este o tal rapaz? — perguntou Blunt

— O senhor me pareceu mais interessado.

— É um sujeito desagradável, metido com uns grupos subver­sivos.

— Soube por sua sobrinha que ele marcou hora, com o dentista, aquela manhã, somente para poder encontrar com o senhor.

— Para angariar minhas simpatias, crê o senhor?

— Bem, não sei. Acho que foi para que o senhor angariasse as dele.

— Que empáfia! — exclamou Blunt indignado.

— Parece que o senhor representa tudo que ele despreza — disse Poirot, tentando esconder um sorriso.

— A recíproca é verdadeira! É gente que passa o dia fazendo discursos, em vez de arranjar emprego.

— O senhor me desculparia se eu lhe fizesse uma pergunta impertinente e extremamente pessoal?

— Absolutamente.

— Caso o senhor morra, quem são seus herdeiros?

Blunt emudeceu.

— Por que quer saber? — perguntou, em seguida, rispidamente.

— Porque, talvez seja relevante no caso.

— Bobagem!

— Pode ser, mas também pode não ser.

— Creio que o senhor está sendo ridiculamente melodramático, Sr. Poirot. Ninguém tentou ainda me assassinar ou coisa parecida.

— Uma bomba pelo Correio... um atentado...

— Ora, qualquer pessoa envolvida, como eu, no mundo das finanças, pode provocar o ódio de um fanático.

— E se não se tratar de um fanático?

— O que quer dizer com isso, Sr. Poirot?

— Para falarmos claramente, quero saber quem lucraria com a sua morte.

— O hospital St. Edward, o Hospital do Câncer e o Instituto dos Cegos.

— Ah!

— Também deixo uma quantia razoável para minha sobrinha Julia Olivera, uma soma equivalente para Jane, sua filha, e para Helen Montressor, minha prima, em segundo grau. Esta minha pri­ma ficou na miséria e mora atualmente num chalé, nesta proprieda­de. O que estou lhe contando, Sr. Poirot, é extremamente confiden­cial.

— Claro, monsieur, claro.

— Agora, creio que o senhor não vai sugerir que Julia, ou Jane, ou minha prima Helen, queiram me matar por causa de dinheiro.

— Eu não sugiro nada.

A irritação e o sarcasmo de Blunt desanuviaram-se.

— O senhor vai aceitar o outro trabalho?

— Descobrir a Srta. Sainsbury Seale? Vou.

— Muito bem — disse Blunt, alegremente.

 

Ao sair do escritório de Alistair Blunt, Poirot tropeçou numa pessoa.

— Desculpe.

Era Jane Olivera.

— Sabe o que penso do senhor?

— Eh, bien, mademoiselle?

A pergunta de Jane tinha um valor retórico, uma vez que ela mesma estava disposta a dar a resposta.

— Acho que o senhor é um espião, um mexeriqueiro intrigante!

— Eu lhe asseguro...

— Sei o que está querendo! Sei também das mentiras que anda contando. Por que não diz, logo, a verdade? Uma coisa posso lhe garantir: o senhor não vai descobrir nada, ouviu, nada. Porque não há nada para descobrir. Ele está protegido, seguro, e ninguém vai tocar sequer nos preciosos fios dos seus cabelos. Meu tio não passa de um reacionário burro e sem visão.

Jane parou uns instantes para tomar fôlego.

— Odeio o senhor — continuou, num tom venenoso, — seu detetive burguês.

Jane deu meia volta e desapareceu. Poirot ficou paralisado, com os olhos arregalados, acariciando os bigodes.

Chamá-lo de burguês, pensou, era um termo exato em relação a ele; sua maneira de ser sempre fora, e ainda era, essencialmente burguesa. Agora, quando o termo era empregado como um xingamento, o tornava preocupado.

Neste estado de espírito, Poirot entrou na sala de visitas. A Sra. Olivera jogava paciência, e ao ver Poirot entrar, levantou os olhos e o examinou como se estivesse vendo uma barata horripilante.

— A rainha vermelha come o valete preto — murmurou, voltando às cartas.

Arrepiado, Poirot retirou-se.

Parece, pensou, timidamente, que ninguém gosta de mim.

Dirigiu-se ao jardim. A noite estava linda e o cheiro das gardênias invadia o ar. Poirot aspirou profundamente o perfume e seguiu por entre o roseiral. Ao virar, por um canteiro, percebeu duas figuras no escuro; rapidamente recuou e voltou para dentro da casa. Ao passar pela janela do escritório, viu Alistair ditando umas cartas ao seu secretário.

Decididamente, não encontrava lugar onde pudesse ficar em paz. Foi para o quarto e ficou remoendo os últimos acontecimentos. Tinha ou não, se enganado com relação à voz ao telefone?

Certamente, a idéia era absurda; lembrou-se das dramáticas revelações do Sr. Barnes e especulou sobre o misterioso desapareci­mento de QX912, ou melhor, do Sr. Chapman; lembrou-se, também, num espasmo de irritação, do olhar ansioso da empregada da Srta. Morley.

Sempre a mesma história: as pessoas não contavam tudo que sabiam. Geralmente, coisas sem importância, é verdade, mas que podiam ajudar na solução de um mistério; e este era um caso que não podia estar mais confuso! O maior obstáculo para chegar a qualquer conclusão, ou mesmo a um raciocínio lógico, era o problema impossível e contraditório do desaparecimento da Srta. Sainsbury Seale; e caso Hercule Poirot estivesse com a razão, então nada mais faria sentido.

Será possível que eu esteja ficando velho?, se perguntou Poirot, baixinho, e ao mesmo tempo, espantado com a idéia.

 

Hercule Poirot acordou cedo, depois de ter passado uma noite quase em claro. O dia estava lindo e ele resolveu passear pelos canteiros onde estivera na noite anterior.

Caminhou pelos roseirais, encantado com a ordem e a organização das plantas.

De repente, deparou com uma senhora forte, vestida num tailleur de tweed, que comandava, num forte sotaque escocês, o jardineiro-chefe, que a escutava com evidente mau humor. Assim que a Srta. Helen Montressor fez um comentário mais sarcástico ao pobre homem, Poirot achou prudente afastar-se. Um outro jardi­neiro, assim que viu Poirot aproximar-se, começou a cavar a terra com um entusiasmo suspeito.

— Bom dia — disse Poirot, ao jovem, que continuava, batalhando, de costas para ele. Um murmúrio semelhante a um bom dia foi a resposta.

Poirot ficou surpreso. Em todas as suas experiências com outros jardineiros, embora quisessem dar sempre a impressão de que se matavam de trabalhar, nunca houve, um sequer, que não estivesse disposto a parar o serviço para trocar algumas palavras. A dedicação deste jardineiro lhe pareceu estranha; examinou o homem e ficou cismando se não haveria algo de familiar na sua postura.

Seria possível, pensou novamente Poirot, que eu esteja realmente ficando velho?

Hercule dirigiu-se para os muros cobertos de eras, passando pela janela da cozinha, onde ficou surpreendido, ao encontrar sua própria imagem, refletida no fundo de uma panela reluzente; percebeu também que o jardineiro, sem reparar que estava sendo visto, o observava com evidente curiosidade e interesse.

— Muito curioso e muito estranho — murmurou Poirot, continuando seu passeio. Arrancou umas eras mortas e umas flores silvestres, que quebravam a harmonia da paisagem e sorriu para si mesmo.

Que estranho e curioso que Frank Carter, que dizia ser secre­tário particular, estivesse empregado como jardineiro de Alistair Blunt!

Ao longe, soou um gongo. Poirot dirigiu-se para a casa; ao entrar, encontrou Alistair conversando com Helen Montressor.

— ...enquanto você estiver com suas parentas americanas aqui — dizia ela no seu forte sotaque, — prefiro não fazer as refeições com vocês.

— Julia é uma mulher sem tato, mas não creio — explicava, pacientemente Blunt, — que ela...

— Na minha opinião, ela é extremamente grosseira comigo e eu não agüento desaforos de ninguém...

A Srta. Montressor retirou-se. Poirot dirigiu-se a Blunt, que tinha o ar cansado que os homens geralmente têm, quando vivem cercados de mulheres.

— As mulheres são um inferno! Bom dia, Sr. Poirot. O dia está realmente lindo, não é mesmo? — Blunt deu um suspiro. — No fundo, sinto muito a falta da minha esposa...

 

Na sala de almoço, Blunt dirigiu-se a Julia.

— Creio, Julia, que você magoou Helen.

— Esses escoceses são cheios de histórias.

Alistair Blunt limitou-se a mudar de assunto.

— Reparei que tem um jardineiro — interveio Poirot depois de uma pequena pausa, — que deve estar com o senhor há bem pouco tempo.

— É verdade — respondeu Blunt. — Meu terceiro jardineiro, um sujeito chamado Benton, despediu-se há umas três semanas. Por isso contratamos este rapaz.

— Lembra-se de quem o indicou?

— Não. Foi MacAlister quem o contratou. Alguém pediu que eu o aceitasse em período de experiência. Uma pessoa que insistiu mesmo para que eu o experimentasse. Depois, eu estranhei, porque MacAlister me disse que o rapaz não é grande coisa... querem até despedi-lo.

— Como se chama o rapaz?

— Dunning, ou coisa parecida...

— Seria uma grande impertinência se eu lhe perguntasse quanto ele ganha?

Alistair sorriu.

— De modo algum. Duas libras e quinze shillings, creio.

— Não mais?

— Claro que não; pode ser até que seja menos!

— Ora vejam! — exclamou Poirot.

Alistair lançou-lhe um olhar inquisidor. Jane Olivera, lendo um jornal, resolveu mudar de assunto.

— Parece que tem muita gente querendo acabar com o senhor, titio...

— Ah! você se refere à reunião da Câmara, onde meu único inimigo é o quixotesco Archerton! Ele tem umas noções muito particulares sobre economia... Se fôssemos atrás dele, a Inglaterra abriria falência em uma semana.

— O senhor nunca vai tentar alguma inovação?

— Só se for para melhorar o já estabelecido.

— Nem isso o senhor faz! Vive dizendo: isto não funciona, sem ao menos experimentar.

— São experiências que podem custar muito caro.

— Não compreendo como o senhor pode estar satisfeito com as coisas, da maneira que estão; o desperdício, a desigualdade, a desonestidade... alguém deve mexer em alguma coisa para acabar com isso!

— Apesar de tudo, Jane, nosso país ainda está muito bem.

— É necessário que haja um novo céu e um novo mundo. Enquanto isso, o senhor fica aí, comendo biscoitos! — gritou Jane, passionalmente.

Alistair Blunt pareceu ligeiramente surpreso com o ataque. Jane levantou-se e saiu em direção ao jardim.

— Jane mudou tanto ultimamente. Onde ela arranjou estas idéias?

— Não dê a menor confiança para o que ela diz — respondeu a Sra. Olivera. — Jane é uma boba! Você sabe como as mulheres são, Alistair, se reúnem com os cabeludos e voltam para casa repetindo um amontoado de bobagens.

— Mas Jane sempre me pareceu uma moça de personalidade!

— É a moda, Alistair. Hoje em dia todo o mundo tem que ser de esquerda.

— Lá isto é verdade — concordou Blunt, preocupado.

A Sra. Olivera levantou-se; Poirot correu para lhe abrir a porta, mas esta nem se dignou a agradecer o gesto. Tratou-o como a um lacaio.

— Não gosto destas conversas — queixou-se Alistair. — Todo mundo repetindo a mesma ladainha! Palavras ocas, nada mais; sempre acabam com a promessa de um novo céu uma nova terra, um novo mundo. Que quer dizer isso? Pergunte a eles se sabem responder esta pergunta. Jogam com palavras.

Alistair suspirou.

— Creio que sou o último dos Mohicanos — concluiu.

— Caso o senhor saísse de cena — inquiriu Poirot — o que aconteceria?

— Sair de cena? Quanta retórica! Vou lhe responder: um número enorme de idiotas ia tentar uma série de experiências custosíssimas; seria o fim da estabilidade, do senso comum, da solvência financeira. Para encurtar a conversa, o fim da Inglaterra.

Poirot concordou com a cabeça, pois também pensava como Blunt; só naquele momento percebeu o que Alistair Blunt represen­tava. O Sr. Barnes já havia mencionado a importância capital do banqueiro para a Inglaterra, mas Poirot não havia prestado atenção. Agora, pela primeira vez, sentiu medo.

 

— Já acabei minha correspondência — disse Blunt, algumas horas mais tarde. — Vou lhe mostrar o meu jardim.

Saíram passeando pelas alamedas, enquanto Blunt explicava, com animação, a Poirot, todos os detalhes, sobre o jardim das pedras, a coleção das plantas e falava com orgulho sobre esta ou aquela espécie rara, adquirida depois de anos de dedicação. Poirot, dentro de um apertado par de sapatos, ouvia pacientemente, mudando o peso do corpo de uma perna para outra, enquanto sentia o sol fustigar sua reluzente careca. O dono da propriedade continuou a caminhada. Ao longe, as abelhas zumbiam, colhendo o mel das roseiras; mais perto ouvia-se o monótono clackt, clackt das tesouras de aparar dos jardineiros. Tudo calmo e quase sonolento.

Blunt parou em frente de um canteiro e olhou para trás; o barulho da tesoura parecia aproximar-se, embora o jardineiro não estivesse visível.

— Olhe, Poirot. Observe as glicínias, como estão resplandecentes este ano! Que cores!

Puum — um tiro quebrou o silêncio matinal. Uma bala passou silvando pelo ar. Alistar virou-se surpreso para os arbustos de onde saíra o estampido. Várias vozes começaram a soar ao mesmo tempo. Os arbustos estremeceram, enquanto dois homens lutavam. A voz de um americano gritava:

— Agarrei-o! Desgraçado! Largue o revólver!

Dois homens apareceram ainda lutando. O jovem jardineiro, que naquela manhã parecia se dedicar com tanto afinco à terra, tentava escapar do abraço de um homem bastante alto e forte. Poirot imediatamente reconheceu o homem: aliás já estava descon­fiado quando ouviu a voz.

— Me largue, não rui eu! Me largue — rosnava desesperado Frank Carter.

— Estava atirando nos pássaros, desgraçado? — perguntou Howard Raikes.

Poirot e Alistair se aproximaram.

— Sr. Blunt, este rapaz tentou matá-lo. Apanhei-o em flagrante.

— É mentira! — gritou Frank. — Eu estava aparando o arbusto, quando ouvi um tiro e vi um revólver cair bem nos meus pés. Apanhei-o e aí este cara veio para cima de mim!

— O revólver estava na sua mão e acabou de ser detonado — disse Howard, agarrando a arma e entregando-a a Poirot.

— Vamos ouvir a opinião do detetive — prosseguiu Raikes. — Ainda bem que eu o agarrei a tempo. Deve estar carregado de balas, ainda!

— É verdade — constatou Poirot.

Blunt parecia furioso.

— Sr. Dunn, Dunning, During,... qual é mesmo o seu nome?

— É Frank Carter — interveio Poirot.

Carter voltou-se para Poirot indignado.

— Há muito tempo que o senhor desconfia de mim, sempre me espionando, desde aquele domingo. Uma coisa, eu digo, não fui eu quem atirou!

— Neste caso — perguntou Poirot, suavemente, — quem foi? Como o senhor vê, não há mais ninguém por aqui!

 

Jane Olivera veio correndo da casa com os cabelos em desalinho e os olhos arregalados de pavor.

— Howard! — exclamou.

— Alô, Jane — respondeu Raikes, — eu estava aqui salvando a vida do seu tio.

— Ah? É mesmo?

— Sua chegada foi realmente muito oportuna — interveio Blunt.

— Este é Howard Raikes, tio Alistair, um amigo meu.

Alistair olhou para Raikes e sorriu.

— O célebre amigo de Jane. Muito obrigado pela ajuda.

Como uma locomotiva a vapor, Julia apareceu, apitando.

— Ouvi um tiro... Alistair você está?... Oh! Meu Deus! — a Sra. Olivera viu-se diante de Howard Raikes. — Como se atreve?

— Howard acabou de salvar a vida do tio Alistair, mamãe.

— O quê?

— Este homem tentou matar tio Alistair e Howard o agarrou a tempo.

— É mentira — gritou Frank Carter, furioso.

O queixo da Sra. Olivera caiu.

— Oh! — exclamou, — meu querido Alistair! — Fez uma ligeira pausa e continuou um pouco mais recomposta: — Deve ter sido um choque terrível. Eu... eu... estou quase desmaiando. Quem me arranja um conhaque?

— Venha para dentro — disse Blunt.

A Sra. Olivera apoiou-se em Blunt.

— Querem trazer este rapaz? — perguntou Alistair, olhando para Howard e Poirot. — Vamos entregá-lo à polícia.

Frank Carter abriu a boca mas não conseguiu emitir um som sequer; sua palidez era impressionante. Howard agarrou-o pelo braço, empurrando-o.

— Vamos, rapaz.

— É mentira... — murmurou Carter, sem convicção.

Howard Raikes voltou-se para Poirot.

— O senhor, que é um grande detetive, poderia me ajudar?

— Eu estou refletindo, Sr. Raikes.

— Há muito tempo que deveria fazê-lo — comentou Raikes irônico, — se quisesse conservar o emprego. Não é por sua causa que o Sr. Blunt ainda está vivo.

— É a segunda vez que o senhor pratica esta boa ação, não é?

— Como assim?

— Ontem mesmo, não agarrou um homem que o senhor acreditava ter atirado no Sr. Blunt e no Primeiro-Ministro?

— É... parece que estou me especializando... — respondeu Raikes, contrafeito.

— Com uma diferença — frisou Poirot, — ontem o senhor agarrou o homem errado. Cometeu um erro, portanto.

— E está cometendo outro agora — gritou Frank.

— Cale a boca — disse Raikes.

Poirot murmurou, quase para si mesmo:

— Tudo muito mal contado!

 

Vestindo-se para jantar, arrumando a gravata borboleta, numa exata simetria, Poirot olhou, com desgosto, para si mesmo. Estava descontente, mas não sabia por quê. Quanto ao acidente, porém, não poderia haver dúvidas: Frank Carter tinha sido apanhado com a arma na mão.

Poirot não tinha simpatia especial por Carter: considerava-o o tipo “mau caráter” que tanto parecia agradar a certas mulheres. Além do mais, a história de Carter era muito mal contada. Segundo declarou à policia, tinha sido contratado por um agente do Serviço Secreto que lhe oferecera o emprego. Em poucos minutos sua história foi arrasada. Tratava-se obviamente de invencionice típica de um homem da mentalidade de Frank. Para piorar, ele não conseguira oferecer outra explicação razoável para o acontecimento; só repetia que se tratava de um complô para metê-lo na cadeia.

A única coincidência realmente estranha era a presença de Howard Raikes, sempre que Blunt escapava de atentados; talvez fosse realmente uma coincidência. Certamente não fora ele quem disparara o revólver na frente da casa do Primeiro-Ministro; sua presença na casa de Blunt era perfeitamente explicável: queria estar perto da namorada. Para completar, a versão de Howard, em nenhum momento, caía em contradição.

Claro que o correr dos acontecimentos até favoreceram o jovem americano. Quando se tem a vida salva por alguém, o mínimo que se pode fazer em retribuição é convidar a pessoa para jantar, além de demonstrar-lhe gratidão e amizade.

A Sra. Olivera, mesmo a contragosto, reconhecia a lógica deste raciocínio. O namorado indesejável tinha penetrado na casa e não ia ser posto para fora muito facilmente.

Poirot observou, durante o jantar, Howard representar seu papel com muita inteligência, sem fazer comentários subversivos ou mesmo políticos, limitando-se a descrever suas viagens pelo mundo.

Não é mais o lobo, pensou Poirot, agora veste a pele de cordeiro.

Quando Poirot se preparava para dormir, alguém bateu a sua porta.

— Entre — disse Poirot.

Howard Raikes entrou e riu ao ver a expressão de Poirot.

— Surpreso? Vigiei o senhor a noite inteira — disse Howard. — Não gostei do jeito com que estava me examinando.

— O que o preocupa, meu amigo?

— Não sei dizer, mas me preocupa. Como se o senhor estivesse com dificuldade cm engolir alguma coisa indigesta.

— Sim?

— Resolvi abrir o jogo; quero lhe explicar o que houve ontem, entendeu? Claro que foi tudo preparado... Eu estava vendo o Primeiro-Ministro sair de casa, quando vi Ram Lal disparar o revólver. Conheço Ram; é um bom rapaz, um tanto amalucado, mas é um homem que sofre com as injustiças praticadas no seu país, a Índia. Quando percebi que os dois fantoches não tinham sido atingidos, resolvi salvar meu amigo; agarrei o sujeitinho que estava ao meu lado e comecei a gritar que tinha agarrado o agressor, esperando que Ram pudesse escapar. A polícia, porém, foi mais rápida e agarrou o homem certo. Foi exatamente isto que aconteceu.

— E hoje?

— Hoje, foi outra história. Não havia Ram Lal, nem alguém conhecido. Carter atirou e eu o agarrei, enquanto ele ainda estava com a arma na mão. Creio que ia disparar outro tiro.

— Por que o senhor está tão preocupado com a segurança do Sr. Blunt?

Raikes sorriu.

— É estranho, depois de tudo que eu tenho dito sobre o assunto... confesso achar que Blunt merece um tiro, para que haja progresso. Mas, pessoalmente, é um sujeito encantador. Apesar do que penso, quando vejo alguém querendo matá-lo, resolvo interferir. Por aí, o senhor vê quão ilógicos somos.

— A diferença entre a teoria e a prática é enorme.

— Tem razão — disse Raikes, levantando-se da cadeira.

Sorriu novamente para Poirot.

— Achei que lhe devia esta explicação.

Retirou-se, fechando a porta, cuidadosamente.

 

— “Livre-nos, Senhor, do Demônio do Homem Mau” — cantava desafinadamente a Sra. Olivera.

A fervorosa convicção da mãe de Jane levou Poirot a acreditar que o demônio em questão devia ser Howard Raikes,

Estavam todos reunidos na igreja local, para a missa de domingo. Alistair Blunt havia dito a Poirot que deveria estar presente, uma vez que o pároco contava com ele e sua família. Tudo dentro do estrito senso de dever britânico, mas perfeitamente compreensível para Hercule Poirot.

A Sra. Olivera, não contente de estar presente, obrigou Jane a acompanhá-la.

— “Aguçaram as línguas como as serpentes!” — entoava o coro. — “O veneno está nos lábios!”

Os tenores e os baixos ecoaram com brilho:

— “Livre-nos, Senhor, das mãos ímpias.

Livre-nos, Senhor, dos homens que querem a nossa perdição!”

Hercule Poirot resolveu acompanhar a cantoria.

— “O Soberbo tentou me enganar” — entoou com sua hesitante voz de barítono; — “espalhou sua rede e suas armadilhas...”

Poirot quedou-se uns instantes de boca aberta.

Viu a armadilha em que quase havia caído!

Uma armadilha muito bem preparada, com cordas, cavada sob seus pés. Como um homem em transe, Poirot ficou parado, olhando para o alto da nave; só sentou, quando Jane o puxou pela manga do paletó. Hercule obedeceu. O velho pároco abriu a Bíblia.

— Décimo quinto capítulo do Primeiro Livro de Samuel.

Poirot não prestou a mínima atenção ao destino dos Amalequitas; continuou em glorioso transe, onde todos os fatos separados se uniram, de repente, formando um conjunto harmonioso. Era como um caleidoscópio: a fivela do sapato, as meias tamanho três, o rosto mutilado, as atividades do Sr. Amberiotis, o papel represen­tado pelo falecido Dr. Morley, tudo misturado, até formar, aos poucos, um desenho coerente e lógico.

Pela primeira vez, Poirot olhava o caso pelo prisma certo.

— “Pois a rebeldia é como o pecado da bruxaria, e a teimosia é semelhante à luxúria e à idolatria. Pois vós, que rejeitastes as palavras de Deus, fostes rejeitados por Ele e não sereis rei”. Aqui, termina a primeira lição — balbuciou o velho pároco, num fôlego só.

Como num sonho, Hercule Poirot levantou-se para agradecer a Deus, entoando um fervoroso Te Deum.

 

— Dr. Reilly, que surpresa!

O jovem irlandês voltou-se espantado e encontrou um senhor baixo, careca, parado ao seu lado.

— Será que o senhor não se lembra de mim?

— Ora, Sr. Poirot, o senhor acha isso possível?

Poirot debruçou-se sobre o balcão da agência de viagens.

— Vai passar as férias no estrangeiro?

— Não. E o senhor, não me diga que vai abandonar a Inglaterra?

— Às vezes — respondeu Poirot, — faço pequenas viagens à Bélgica.

— Vou para mais longe, para os Estados Unidos. Não creio que volte à Inglaterra.

— Que pena, Dr. Reilly! Largou seu consultório então?

— Para dizer a verdade, foi o consultório que me largou...

— Que pena!

— Nem tanto. Só de pensar nas dívidas que vou deixar penduradas, por aqui, fico satisfeito.

Dr. Reilly sorriu com malícia.

— Não sou homem de me suicidar por dívidas. O negócio é sumir e começar tudo outra vez, em outro lugar. Tenho alguma experiência e algumas recomendações.

— Encontrei a Srta. Morley outro dia — comentou Poirot.

— Que felicidade. Nunca vi mulher mais azeda em toda minha vida. Gostaria de encontrá-la de porre, na rua.

— O senhor concordou com o laudo sobre a morte do seu sócio?

— Não — respondeu Reilly enfático.

— O senhor não acha que ele tenha se enganado em relação ao anestésico?

— Morley só aplicaria aquela quantidade de anestésico, se estivesse bêbado, ou quisesse matar o homem. Diga-se de passagem, nunca vi Morley beber.

— Então o senhor acha que foi uma ação premeditada?

— Não disse isso, seria uma acusação muito grave, e pensando bem, também não acredito nesta hipótese.

— Mas deve haver alguma explicação...

— Deve, mas eu não posso imaginar qual seja — disse Reilly.

— Quando foi a última vez que o senhor viu o Dr. Morley vivo?

— Deixe ver... faz tanto tempo... acho que foi um dia antes de ele morrer, lá pelas sete horas...

— No dia em que ele morreu o senhor não esteve com ele?

Reilly sacudiu a cabeça.

— Tem certeza? — insistiu Poirot. — Não me lembro...

— O senhor não o procurou, no consultório, às onze e meia, enquanto ele atendia um cliente?

— É mesmo. Tinha-me esquecido... queria fazer umas pergun­tas sobre uns instrumentos que eu precisava encomendar. O vendedor estava no telefone, aguardando a resposta, e eu fui até a sala de Morley tirar umas dúvidas. Tinha esquecido este fato, inteiramente. Morley estava realmente atendendo um cliente.

— Existe outra pergunta, que eu sempre lhe quis fazer. Um cliente seu o Sr. Raikes, cancelou a consulta, indo embora. O que o senhor ficou fazendo nesta hora vaga?

— O que sempre faço nas horas vagas... tomei um drinque; neste dia, recebi um telefonema e falei com Morley.

— O senhor não teve mais clientes depois do Sr. Barnes. A que horas, exatamente, ele saiu do seu consultório?

— Um pouco depois do meio-dia e meia.

— E o senhor, o que fez?

— Preparei um outro drinque.

— Não foi ver o Dr. Morley, novamente?

Reilly sorriu.

— O senhor quer saber se eu voltei ao consultório dele para matá-lo? Já lhe disse que não. Espero que minha palavra seja o suficiente.

— Qual é sua opinião sobre Agnes, a empregada dos Morley?

— Que pergunta estranha!

— Mesmo assim, gostaria de saber sua opinião — insistiu Poirot.

— Eu respondo. Não tenho opinião formada sobre ela. Georgina a vigia constantemente, de maneira que a menina nem olhava para mim.

— Tenho a impressão de que ela sabe alguma coisa...

Poirot deixou a frase pairando no ar. Olhou para Reilly; este sorriu.

— Não me pergunte sobre este assunto. Não sei nada, nem posso ajudá-lo.

Reilly apanhou os bilhetes no balcão, apertou a mão de Poirot e saiu.

Poirot explicou ao agente de viagens que tinha desistido da excursão para a Escandinávia, por motivos alheios a sua vontade.

 

Poirot resolveu visitar novamente a Sra. Adams; esta pareceu um tanto surpresa com a visita. Para ela, Poirot, apesar de ter sido apresentado por um inspetor da Scotland Yard, não passava de “um estrangeiro muito esquisito”. De qualquer forma, achou melhor recebê-lo.

Depois do estardalhaço sensacionalista que os jornais fizeram sobre a descoberta do cadáver, pouco se falou sobre o caso. O público só ficou sabendo que a vítima não era a Srta. Sainsbury Seale e sim a Sra. Chapman. O fato de a primeira ter sido a última pessoa que se encontrara com a vítima não foi noticiado. Os jornais também não davam a entender que a Srta. Sainsbury Seale estava sendo procurada, pela polícia, por assassinato.

A Sra. Adams ficou muito contente quando soube que sua amiga não tinha sido assassinada de uma maneira tão horripilante; não imaginava, por outro lado, que pudessem pensar que sua dileta amiga, Sainsbury Seale, fosse uma assassina.

— Acho incrível ter ela desaparecido desta maneira... estou convencida de que ela perdeu a memória.

Poirot concordou.

— Lembro-me de uma amiga dos meus primos, que tinha tantos problemas, que acabou com amnésia — continuou a Sra. Adams.

— A Srta. Sainsbury Seale nunca lhe falou sobre a Sra. Chapman?

— Não. Nunca. Também não creio que ela fosse enumerar todas as pessoas que conhecia. Quem era essa Sra. Chapman? A polícia já sabe quem a matou?

— Ainda é um mistério, madame — respondeu Poirot. — Foi a senhora quem recomendou o Dr. Morley, como dentista, à Srta. Seale?

— Não, não fui eu. Só acredito no Dr. French, e se Mabelle me tivesse pedido uma indicação eu o teria recomendado.

— Quem sabe — disse Poirot — não foi a Sra. Chapman quem indicou o Dr. Morley à Srta. Sainsbury Seale?

— É possível. No consultório dele não sabem informar?

— Não, a secretária dele não se lembra. A senhora conheceu a Srta. Sainsbury Seale na Índia?

— Sim.

— A senhora sabe se nesta época ela conhecia o casal Alistair Blunt?

— Não creio. É do banqueiro que o senhor está falando? Acho difícil! O casal Blunt, quando estava na Índia, ficou hospedado na casa do governador; se Mabelle os tivesse conhecido, tenho certeza de que me contaria. A gente sempre fala sobre as pessoas importantes que conhece, não é Sr. Poirot? No fundo, somos todos muito esnobes.

— Ela nunca citou o nome da Sra. Blunt?

— Nunca.

— Se ela fosse amiga íntima da Sra. Blunt, a senhora com certeza saberia?

— Claro, mas não creio que Mabelle conhecesse gente assim importante. Os amigos dela eram todos... gente comum, assim como eu.

— Neste ponto, não posso concordar — disse Poirot, galantemente.

A Sra. Adams continuou discorrendo sobre a Srta. Sainsbury Seale, como uma pessoa que fala de uma amiga recentemente falecida. Lembrou todos os gestos generosos de Mabelle; sua bondade; sua incansável perseverança. Poirot ouviu tudo paciente­mente. Como Japp já lhe havia dito, Mabelle Sainsbury Seale era uma pessoa real. Tinha morado em Calcutá, ensinado impostação de voz e trabalhado com os missionários. Fora uma mulher respei­tável, bem intencionada, um tanto tola, talvez, mas que possuía um grande coração.

A Sra. Adams prosseguia sua cantilena.

— Ela acreditava em tudo com tanta fé, Sr. Poirot, num mundo em que as pessoas são geralmente tão apáticas, tão difíceis em sentir os apelos da alma. Era árduo conseguir arrancar dinheiro para subscrições dessas criaturas, e cada ano ia ficando mais difícil. Um dia ela disse: — Quando a gente percebe o que o dinheiro significa, o bem que pode fazer, dá até vontade de cometer um crime para consegui-lo. O senhor não acha que esta frase demonstra a profunda dedicação com que Mabelle se entregava ao trabalho?

— Quando foi que ela se expressou nestes termos?

— Há uns três meses, creio.

Poirot se retirou confuso, pensando na personalidade da Srta. Sainsbury Seale. Uma mulher boa, honesta, decente e respeitável. Enfim, o tipo da pessoa que o Sr. Barnes havia sugerido, como uma possível criminosa. Tinha vindo da Índia, no mesmo navio de Amberiotis. Parece até que havia almoçado com ele, no Hotel Savoy; havia abordado o Sr. Blunt, dizendo ser amiga de sua falecida esposa; por duas vezes estivera no apartamento da Sra. Chapman, onde, mais tarde, foi encontrado um cadáver que, por coincidência, vestia suas roupas. Uma coincidência um tanto forçada, diga-se de passagem. Finalmente, desaparecera do hotel, depois de ser inter­rogada pela polícia.

Seria possível que a teoria de Hercule Poirot explicasse todos estes estranhos acontecimentos?

Poirot, no fundo, achava que sim.

 

Estes pensamentos ocupavam Hercule Poirot enquanto cami­nhava para casa. Decidiu atravessar o parque, a pé, e tomar um táxi do outro lado. Sabia, por experiência, que brevemente seus pés começariam a incomodá-lo.

Era um lindo dia de verão e Poirot observou com indulgência as babás que, em vez de cuidarem das crianças, flertavam com os soldados.

Os cães ladravam e corriam. Os meninos soltavam papagaios ou brincavam com barquinhos no lago. Debaixo de cada árvore, via--se um casal namorando.

— Ah! jeunesse, jeunesse — murmurou Poirot, encantado pelo amor.

Poirot considerava as inglesas magras, elegantes e bem vestidas; nelas, só sentia falta das formas sensuais e voluptuosas das francesas, que tanto o encantaram em sua mocidade. Pois ele conhecera mulheres divinas; uma, em especial, que era Uma verdadeira ave do paraíso. Qual destas mulheres presentes poderia comparar-se com a Condessa Vera Rossakof? Uma aristocrata russa, nobre da cabeça aos pés, e também uma ladra, como poucas... um verdadeiro gênio!

Suspirando Poirot afastou a visão de Vera do seu pensamento. Olhando mais atentamente para as pessoas do parque, percebeu que não eram só babás e soldados que namoravam sob as árvores. Seus olhos se detiveram numa moça vestida por Dior, que conversava animadamente com um jovem.

Ela não deveria ceder logo, pensou Poirot.

Desejou que a moça soubesse esta regra do jogo, pois o prazer da conquista estava na dificuldade de agarrar a caça. Enquanto os observava, percebeu que já os conhecia. Era Jane Olivera conver­sando com o jovem revolucionário americano. Poirot ficou triste e desapontado.

— Bon jour, mademoiselle — disse, tirando o chapéu.

Jane Olivera não pareceu aborrecida com a interrupção; mas o mesmo não se deu com Howard Raikes.

— Ora, o senhor novamente! — exclamou.

— Boa tarde, Sr. Poirot — disse Jane. — O senhor sempre aparece de uma forma inesperada.

— Como um polichinelo — comentou Raikes, olhando friamente para Poirot.

— Espero não estar atrapalhando.

— Absolutamente — respondeu Jane.

Howard preferiu ficar calado.

— Aqui é um belo lugar! — comentou Poirot.

— Era, até bem pouco tempo atrás! — disse Howard.

— Cale-se Howard, tenha um pouco de educação.

— Por que devo ser educado?

— Porque ajuda as pessoas conseguirem certas coisas. Eu não sou particularmente educada, mas sou rica, bastante bonita, tenho amigos influentes. Posso me dar ao luxo de ser grosseira de vez em quando.

— Não estou para conversa fiada, Jane — respondeu Howard. — Vou embora.

Levantou-se, olhou para Poirot de alto a baixo, e retirou-se.

Jane ficou parada, olhando para a figura do seu namorado que desaparecia pelo parque.

— Bem diz o ditado: “Dois é bom, três é demais” — disse Poirot. — Principalmente quando se está namorando.

— Namorando? Que expressão!

— Não é a expressão certa? Um rapaz corteja uma moça, antes de pedir sua mão em casamento; este período não se chama namoro?

— São expressões fora de uso...

— Olhe em volta, e diga-me o que estão fazendo?

— Acho que o senhor tem razão.

Jane olhou para Poirot.

— Quero lhe pedir desculpas pelo engano que cometi a semana passada. Pensei que o senhor tivesse se insinuado em nossa casa com o firme propósito de espionar Howard. Mais tarde, tio Alistair explicou que tinha chamado o senhor para esclarecer o caso da tal mulher desaparecida.

— É verdade.

— Portanto, peço desculpas pelo que disse. Na ocasião, porém, tinha tanta certeza de que o senhor andava espionando Howard e nos perseguindo...

— Mesmo se fosse verdade, mademoiselle, fui uma excelente testemunha quando o Sr. Raikes valentemente salvou a vida do seu tio, agarrando o agressor e impedindo que este disparasse o segundo tiro.

— O senhor tem uma maneira curiosa de dizer as coisas, Sr. Poirot. Nunca sei, se está falando a sério ou não.

— No momento fui bastante sério — disse Poirot gravemen­te.

— Por que me olha desta maneira como se tivesse pena de mim?

— Porque tenho pena das coisas que serei obrigado a fazer, mademoiselle.

— Então por que vai fazê-las?

— Helas! Sou obrigado.

Jane o olhou por uns instantes.

— Já encontrou a mulher?

— Digamos que sei onde ela está...

— Morta?

— Não disse isso.

— Viva, então?

— Também não disse isso.

Jane encarou Poirot com franca irritação.

— Bem, ela deve estar viva ou morta, não?

— Para ser sincero não é tão simples assim.

— Acho que o senhor gosta de tornar as coisas mais complicadas...

— Já fui acusado disso.

Jane estremeceu com um arrepio.

— Engraçado, um dia tão quente e eu com arrepios!

— Talvez devêssemos andar um pouco?

Jane levantou-se. Por um momento ficou calada, pensando.

— Howard quer casar-se comigo agora, sem avisar ninguém. Diz que é a única maneira de eu me resolver, já que sou fraca. — Jane apoiou-se no braço de Poirot. — Que devo fazer, Sr. Poi­rot?

— Por que me pede conselho? A Senhorita possui pessoas mais chegadas...

— Minha mãe? Ia fazer um escândalo de derrubar a casa. Meu tio certamente aconselharia prudência... ponderação.

— E seus amigos?

— Não tenho amigos. A turma que eu freqüento só pensa em boates e festas. Howard é o primeiro homem que encontrei na vida que não se ocupa com futilidades.

— Então por que está indecisa?

— Por causa do seu estranho olhar, Sr. Poirot, como se tivesse pena de mim, como se soubesse que vai me acontecer uma terrível desgraça...

Jane calou-se.

— Então, qual é a sua resposta? — perguntou, finalmente. Poirot limitou-se a sacudir a cabeça. Não podia responder nem que sim, nem que não.

 

Assim que Poirot entrou em casa, George anunciou que o Inspetor Japp estava na sala.

— Cá estou, meu velho — disse Japp, com um sorriso maroto. — Vim para lhe dar os parabéns; você é realmente um ás. Como é que consegue chegar a estas fantásticas conclusões?

— Não sei do que você está falando — respondeu Poirot. — Deseja beber algo, um refresco, um vinho, um uísque?

— Aceito um uísque.

Poirot serviu o Inspetor.

— Um brinde a Hercule Poirot que tem sempre razão.

— Ora, ora, mon ami.

— Tínhamos nas mãos um suicídio. Você disse que era crime, insistiu que era crime, e está com a razão.

— Ah! você acabou concordando?

— Posso ser tudo no mundo, mas não sou teimoso. Principal­mente, quando enfrento uma evidência, que, aqui entre nós, até o momento, não existia.

— E existe agora?

— Ouça, o revólver com que Frank Carter tentou matar Blunt é da mesma marca da arma que matou Morley.

— Fantástico — murmurou Poirot.

— O negócio piorou para o lado de Carter.

— Por enquanto não é tão conclusivo.

— O suficiente para revisarmos o veredicto de suicídio. Os revólveres são de fabricação estrangeira e bastante raros no mercado.

Hercule Poirot ergueu as sobrancelhas.

— Frank Carter? — perguntou, surpreso. — De maneira alguma.

Japp deu um suspiro de irritação.

— O que há com você, Poirot? Primeiro, diz que Morley foi assassinado, que não cometera suicídio. Agora, quando eu venho lhe dizer que estamos dispostos a reconsiderar nosso veredicto, você torce o nariz?

— Você realmente acredita que Morley tenha sido assassinado por Frank Carter?

— É possível. Carter tinha uma diferença contra Morley; isso é inegável. Esteve no consultório, naquela manhã, sob o pretexto de contar à namorada sobre o novo emprego. Descobrimos que, naquela manhã, ele não estava ainda empregado; foi contratado, e ele mesmo confessou, na parte da tarde. Portanto, mentira n.° 1. Carter não sabe explicar onde esteve depois de meio-dia e vinte e cinco; disse que ficou vagando pelas ruas. Sua única testemunha é o dono de um bar que lhe serviu um drinque às cinco horas da tarde. Segundo este senhor, as mãos de Carter estavam trêmulas e ele estava branco como um fantasma.

Poirot suspirou e sacudiu a cabeça.

— Não encaixa com minhas teorias!

— Quais são elas?

— O que você acabou de me contar é muito desconcertante. Porque, se for verdade...

A porta se abriu silenciosamente.

— Desculpe, senhor — disse George.

George não pôde prosseguir pois foi empurrado por Gladys Nevill, que estava agitadíssima e chorando.

— Oh! Sr. Poirot!

— Com licença, já vou indo — disse Japp.

O Inspetor retirou-se rapidamente, enquanto Gladys lhe lançava um olhar fulminante.

— Este homem, este monstro da policia, foi quem planejou tudo contra o pobre Frank.

— Vamos, vamos, acalme-se.

— Mas, foi ele! Primeiro, disseram que ele tentara matar o Sr. Blunt; e não satisfeitos com esta acusação, inventaram que ele matara o Dr. Morley.

Hercule Poirot pigarreou.

— Eu estava presente quando atacaram o Sr. Blunt.

— Mas, mesmo que Frank tenha sido tão tolo a ponto de... Ele faz parte dos Camisas Imperiais, aquele gripo que vive marchando para lá e para cá, agitando umas bandeiras e fazendo continências. Creio que o fato da falecida Sra. Blunt ter sido judia, e este grupo ser basicamente anti-semita, virou a cabeça de Frank. Vai ver, na hora, ele pensou que estava praticando um ato heróico e patriótico.

— É esta a defesa do Sr. Carter? — perguntou Poirot.

— Não. Ele jura que não fez nada disso, e nem mesmo segurou o revólver. Eu não estive com ele, é claro, mas o advogado me repetiu tudo. Frank disse que foi tudo forjado para incriminá-lo.

— O advogado sugeriu que Frank inventasse uma história mais plausível?

— O senhor sabe como são os advogados, nunca dizem nada que se aproveite. Minha preocupação é de que o acusem de assassi­nato. Oh! Sr. Poirot, tenho certeza de que Frank não poderia ter matado o Dr. Morley. Não tinha motivo para isso.

— É verdade — perguntou Poirot, — que quando ele veio visitá-la, de manhã, naquele dia, ainda não estava empregado?

— Não vejo o que isso tem a ver com o resto da história. Que importa se Frank arranjou emprego de manhã ou de tarde?

— Simplesmente, porque ele disse que fora ao consultório para lhe contar uma novidade que ainda não havia acontecido.

— Sr. Poirot, o rapaz estava desesperado, triste e, para ser sincera, um pouco bêbado. Devia estar com vontade de brigar e foi para o consultório disposto a enfrentar o Dr. Morley, porque não suportava o desprezo que meu patrão lhe votava.

— Para melhorar a situação, resolveu fazer uma cena bem no meio do expediente do Dr. Morley?

— Acho que sim. Creia, não estou defendendo Frank em relação a esta atitude.

Poirot olhou pensativo para a moça cujo rosto estava banhado em lágrimas.

— A Srta. sabia que Frank possuía um par de pistolas?

— Não, não sabia, e também não acredito que seja verdade. Oh! Sr. Poirot, por favor, ajude-nos. Se ao menos eu pudesse saber que o senhor está do nosso lado!

— Eu não tomo partidos — disse Poirot: — meu único lado é o da verdade.

 

Assim que Gladys se retirou, Poirot ligou para a Scotland Yard. Japp ainda não havia chegado, mas o sargento Beddoes forneceu todas as informações necessárias.

A polícia ainda não tinha provas de que Frank possuísse o revólver, antes da tentativa de assassinar Blunt; um ponto a favor de Carter. Poirot foi informado, também, de algumas das declarações de Carter: este mantinha a história de que tinha sido contratado pelo Serviço Secreto; que havia recebido dinheiro adiantado, além de uma carta de apresentação, ao Sr. MacAlister, jardineiro-chefe de Alistair Blunt. As instruções que recebera eram de ouvir as conversas dos outros jardineiros, sondá-los sobre suas inclinações políticas e fazer-se passar por comunista. Havia sido entrevistado e instruído por uma mulher conhecida pelo código n.° Q.H.56. Esta o havia recebido, num quarto escuro, e Frank seria incapaz de reconhecê-la, caso a visse novamente. Carter dizia, somente, tratar-se de uma mulher de cabelos vermelhos.

Poirot gemeu baixinho, lembrando James Bond. Pensou em procurar o Sr. Barnes novamente, o qual estaria disposto a reforçar estas teorias. Desligou o telefone, agradecendo ao sargento as informações.

O Correio trouxe notícias mais alarmantes. Num envelope barato, subscrito numa letra mal feita e despachado da cidade de Hertforshire, lia-se:

“Caro senhor:

Desculpe o atrevimento de escrever para o senhor mas estou muito preocupada e não sei o que fazer. Não quero me meter com a polícia. Sei que devia lhe dizer umas coisas que sei, há muito tempo, mas não quis meter o namorado da Srta. Nevill em apuros e achava que ele não tinha nada com a história. Li, porém, que ele foi preso por tentar matar um homem e então achei que devia lhe escrever, porque o senhor é amigo da patroa e me perguntou, outro dia, se eu sabia alguma coisa a mais. Sei que devia ter falado, mas não quero nada com a polícia, pois sei que minha mãe ia ficar furiosa se eu me metesse com a polícia. Ela é muito esquisita.

Respeitosamente,

Agnes Fletcher.”

Sempre achei que deveria haver um homem metido nisso, pensou Poirot. Só que pensei no homem errado.

 

A entrevista com Agnes Fletcher ocorreu numa casa de chá, em Hertforshire, pois Agnes não queria falar na presença da Srta. Morley.

Os primeiros quinze minutos foram gastos na descrição das idiossincrasias da mãe de Agnes. Depois a criada falou do pai, que embora fosse dono de um bar, nunca tivera atrito algum com a polícia. Em suma, o casal Fletcher era universalmente considerado um paradigma de justiça e respeitabilidade; nenhum dos seus seis filhos (dois haviam falecido na infância) deram, aos pais, o menor trabalho ou preocupação. Caso Agnes se envolvesse com a polícia, mesmo como testemunha, seus pais morreriam de desgosto e vergonha. Depois de repetir esta monocórdica cantilena, Agnes resolveu contar o que sabia.

— Não quis dizer nada à Sra. Morley, porque ela ia ralhar comigo. Mas eu e a cozinheira discutimos o assunto e resolvemos que não tínhamos nada com isso, uma vez que os jornais disseram que o patrão se enganara com uma dose de anestesia e tinha-se suicidado. Além do mais, a arma foi encontrada na mão dele etc. e tal, logo o caso parecia bem resolvido.

— Quando você achou que não estava bem resolvido? — perguntou Poirot, ansiando pela prometida revelação e procurando não interrogá-la de uma forma direta demais.

— Quando eu li sobre Frank Carter, o namorado da Srta. Nevill. O jornal dizia que ele tinha tentado matar um homem para quem trabalhava como jardineiro. Bem, aí eu pensei, quem sabe ele não é louco? Porque tem gente assim, que se acha perseguida, ou sei lá, e está sempre rodeada de inimigos e acabam ficando impossíveis de se ter em casa e são levados para o hospício. Então, eu pensei, quem sabe Frank Carter não era deste tipo? Uma vez que ele vivia dizendo que o Dr. Morley era contra ele, que queria separar ele da Srta. Nevill, uma santa moça que não deixava ninguém falar mal do namorado. Eu e Ema achávamos que ela fazia muito bem, e além do mais, o rapaz era bem bonito e muito educado e nós duas, eu e Ema, quero dizer, achávamos que ele seria incapaz de matar uma pessoa, ainda mais o doutor. Frank Carter podia ser um pouco aloucado, mas nunca um assassino.

— Aloucado como?

— Foi naquela manhã, que o doutor morreu. Eu estava perguntando se devia ir buscar as cartas. O carteiro já tinha chegado e Alfred não tinha trazido a correspondência, porque não devia ter nada para o doutor, nem para a Srta. Morley. Como as cartas deviam ser só para mim ou Ema, ele não se dava o trabalho de su­bir, até que chegasse a hora do almoço. Aí eu fui para a sacada e olhei para baixo. A Srta. Morley não gostava que a gente descesse nas horas de consultas; mas eu pensei em ver Alfred e pedir para ele subir com as cartas.

Agnes respirou fundo antes de continuar.

— Foi aí que eu vi o Frank. Parado no meio da escada de serviço, esperando e olhando para baixo. Este fato não me saiu da cabeça. Parecia que ele estava escutando, atrás da porta, sabe como é?

— Que horas eram?

— Perto do meio-dia e meia. Quando eu vi ele, pensei: que pena! logo hoje, veio esperar a Srta. Nevill, bem no dia em que ela não vem. Quase desci para falar com Frank, mas aí ele pareceu tomar uma decisão, desceu as escadas depressa e dirigiu-se para o corredor que leva para o consultório do Dr. Morley. Aí, eu pensei: o patrão não vai gostar disso; na certa vai haver briga. Aí, Ema me chamou e perguntou o que eu estava fazendo. Depois, deu aquela confusão toda a polícia e tudo mais, e eu, na hora, esqueci completamente da visita de Frank. Mais tarde, depois que o inspe­tor saiu, eu contei tudo a Ema e ela me disse que eu devia ter co­municado à polícia. Então, pensei: não custa nada esperar um pouco. Ela concordou, porque nenhuma de nós queria meter o Car­ter numa enrascada. Com o inquérito, a história do erro de dosagem, o suicídio do doutor, eu achei que devia calar o bico. Foi quando li a notícia no jornal, há dois dias, que me senti culpada, e pensei: Imaginem só se ele é desses loucos que andam por aí, matando as pessoas...

O olhar assustado de Agnes pedia conselhos a Poirot que deu à empregada todo o apoio necessário.

— Pode ter certeza de que fez muito bem em contar este pequeno incidente, Agnes.

— Puxa o senhor tirou um peso da minha consciência. No fundo, eu sabia que devia contar. O que me atrapalhava era me meter com a polícia e chatear minha família. São tão cheios de história...

— Claro, claro — interveio Poirot, rapidamente. Levantou-se para se despedir, evitando perder mais meia hora, ouvindo as particularidades críticas da mãe de Agnes.

 

— Poirot foi à Scotland Yard procurar Japp. Imediatamente, foi levado à sala do Inspetor.

— Quero ver Carter — disse Poirot.

Japp olhou para Poirot com espanto.

— Pode se saber por quê?

— Você não quer que eu o veja?

Japp deu de ombros.

— Não tenho objeções. Afinal você foi escolhido como o homem-chave, pelo Ministério, para descobrir o paradeiro da Srta. Sainsbury Seale. Para que quer ver Carter? Para perguntar se foi ele mesmo quem matou Morley?

Para surpresa de Japp, Poirot concordou enfaticamente.

— Sim, mon ami, é exatamente isso o que vou fazer.

Japp deu uma gargalhada; Hercule limitou-se a sorrir, miste­riosamente.

— Quanto tempo eu o conheço... uns vinte anos, não é? Mesmo assim, sempre me surpreendo com suas invenções. Sei que você acha que Carter é inocente e não quer admitir que ele possa ser o culpado.

Hercule Poirot sacudiu a cabeça.

— Aí é que você se engana. Dá-se exatamente o contrário...

— Pensei que você fosse amigo daquela lourinha. No fundo Poirot, você não passa de um sentimental.

Poirot ficou indignado com o comentário.

— Absolutamente não sou sentimental. Isto é um defeito dos ingleses. Só na Inglaterra é que se chora pelos namorados, pelas mães abandonadas e pelas crianças órfãs. Eu sou um homem lógico. Se Frank Carter for um assassino, não seria sentimental, a ponto de querer casá-lo com uma moça simpática como Gladys Nevill, que certamente o esquecerá em pouco tempo.

— Então por que não acredita que ele seja culpado?

— Mas eu acredito!

— E encontrou uma prova que ainda o deixa em dúvida? Por que não diz o que é?

— Vou dizer quando chegar a hora. Tudo no seu devido tempo. Vou inclusive dar-lhe o nome e o endereço de uma pessoa que será vital para a Promotoria Pública, quando o caso for a julga­mento. Quando esta testemunha abrir a boca, ele estará perdido.

— Então? Mas... agora você me confundiu... Por que quer vê-lo?

— Para satisfazer uma curiosidade minha — respondeu Poirot.

Fez-se uma pausa. Japp mandou um guarda conduzir Poirot à cela de Carter.

Poirot encontrou Frank Carter estremunhado, pálido e de mau humor.

— É você, seu gringo metido a besta. O que quer?

— Quero falar com você.

— Pode falar, eu não respondo. Só falo na presença do meu advogado; é meu direito e contra isto nem você pode. Quero meu advogado presente, senão não abro a boca.

— Conheço seus direitos. Sei que pode chamar seu advogado, mas prefiro que não o faça.

— Nesta eu não caio. Quer me meter n’outra armadilha?

— Estamos absolutamente sós.

— O que é muito estranho. Certamente seus amigos da polícia estão gravando nossa conversa.

— De modo algum. Esta é uma entrevista pessoal, entre nós dois.

Frank Carter riu. Seu olhar revelava desprezo e sagacidade.

— Ora, ora, pensa que eu caio nessa.

— Você se lembra de uma moça chamada Agnes Fletcher?

— Nunca ouvi falar dela.

— Acho que sim, embora nunca a tenha notado. Era empregada da casa do Dr. Morley.

— E daí?

— Na manhã em que Morley foi assassinado — disse Poirot, — esta moça, olhando pela sacada, viu você, na escada de serviço, parado e atento. Em seguida, o viu encaminhando-se para o consul­tório do Dr. Morley. Era aproximadamente meio-dia e vinte cinco...

Carter tremeu. O suor escorreu pelo rosto, seus olhos se arregalaram.

— É mentira! — gritou. — É mentira! Você pagou para ela dizer isso! Você e a polícia...

— Nesta hora, segundo suas declarações, você já tinha saído da casa e estava perambulando pelas ruas.

— Estava mesmo. A menina mentiu. Ela não podia ter me visto. Por que então ela não falou antes?

— Ela falou com a cozinheira — respondeu Poirot, — e as duas ficaram espantadas e preocupadas com o fato. Quando o inquérito determinou que a causa da morte do Dr. Morley fora suicídio, elas ficaram aliviadas e acharam que não precisavam dizer mais nada à polícia.

— Não acredito em nada isso; elas estão mancomunadas com os outros...

Em seguida, Frank despejou uma torrente de impropérios e palavrões. Poirot esperou, calmamente, que a tempestade passasse. Quando Carter finalmente se acalmou, retomou o fio da meada.

— Palavrões e acessos não o ajudarão. Elas vão falar o que viram e serão acreditadas, pela polícia, porque estão dizendo a verdade. Ela realmente o viu; você estava parado na escada de serviço; não tinha ido embora, como declarou depois à polícia e foi até o consultório do doutor. Na verdade, o que foi que aconteceu?

— É mentira.

Poirot sentiu-se, de repente, muito velho e cansado. Não gostava de Frank Carter, aliás o detestava. Achava o rapaz tolo, mentiroso, desonesto; enfim, o tipo do homem que, se desaparecesse, não faria falta ao mundo. Para condená-lo, bastava Poirot retirar-se e deixar Frank enredar-se nas suas próprias mentiras.

— Acho melhor contar a verdade — sugeriu Poirot.

O caso em questão era bastante delicado. Frank Carter podia ser um idiota, mas não ao ponto de não perceber que sua única saí­da estava em se manter firme nas suas mentiras. Caso admitisse que tinha entrado no consultório, ao meio-dia e vinte cinco, daí em diante, tudo que dissesse poderia também ser considerado mentira.

Poirot resolveu deixá-lo em paz. Seu dever tinha sido cumprido. Frank seria provavelmente condenado pelo assassinato de Henry Morley e assim terminaria a história.

— É mentira! — disse Frank novamente.

Fez-se um longo silêncio. Hercule Poirot não saiu da cela, como pensara fazer, mas deixou-se ficar mais alguns minutos.

— Não estou mentindo — disse Poirot, despejando sobre Carter toda a força da sua enorme personalidade. — Peço que me acredite. Se você não matou Morley esta é sua única chance de dizer a verdade sobre o que aconteceu naquela manhã.

O rosto traiçoeiro e mau de Frank tremeu e ele pareceu hesitar. O momento decisivo tinha chegado. Frank Carter rendeu-se diante da força persuasiva de Poirot.

— Está bem, vou falar. Deus o amaldiçoe se me abandonar depois! Eu estava no corredor; enquanto esperava que ele ficasse sozinho, vi um homem gordo sair. Quando tomava coragem para entrar, saiu um outro homem. Sabia que tinha que ser rápido, por isso, entrei sem bater. Estava disposto a acertar as contas com Morley e até quebrar-lhe a cara, se fosse preciso.

— E então? — perguntou Poirot, incitando-o a continuar.

A voz de Carter enrouqueceu.

— Lá estava ele estendido no chão, morto. Juro que é verdade! A princípio nem quis acreditar. Debrucei-me sobre ele e constatei que estava morto. Sua mão estava fria e eu vi o buraco da bala na cabeça.

Ao lembrar-se do ocorrido, Frank recomeçou a suar.

— Vi logo que estava perdido. Iam dizer que tinha sido eu. Não tinha tocado em nada, a não ser na mão de Morley e na maçaneta da porta. Limpei a maçaneta com um lenço e desci o mais depressa possível. Estava apavorado.

Frank calou-se, seus olhos assustados pousaram em Poirot.

— É a pura verdade. Juro que é verdade. Ele já estava morto. O senhor tem que me acreditar.

Poirot levantou-se.

— Acredito — disse com uma voz cansada e triste. — Acredito em você.

Dirigiu-se para a porta.

— Eles vão me condenar — gritou Frank.

— Quando você passou a dizer a verdade escapou disso — respondeu Poirot.

— Como? Eles não...

Poirot o interrompeu.

— Sua história veio confirmar o que eu já sabia. Pode ficar descansado que, de agora em diante, nada mais lhe acontecerá.

Poirot retirou-se.

No fundo, ter suas suspeitas confirmadas o havia entristecido.

Poirot chegou à casa do Sr. Barnes às seis e quarenta e cinco; lembrou-se de que era a melhor hora de encontrá-lo em casa.

O dono da casa ainda estava no jardim.

— Precisamos desesperadamente de chuva, Sr. Poirot — disse Barnes, cumprimentando-o.

Barnes examinou o recém-chegado.

— O senhor não está com boa fisionomia.

— Às vezes não gosto de fazer certas coisas.

— Sei — respondeu Barnes.

Poirot olhou para o jardim, admirado com a simetria dos canteiros.

— Seu jardim foi muito bem planejado. Tão proporcional, apesar de pequeno.

— Com o terreno que tenho, este foi o melhor arranjo possível. Não podia me dar o luxo de errar.

Hercule Poirot concordou com a cabeça.

— Soube que apanharam um homem — disse Barnes.

— Frank Carter?

— Aliás confesso que fiquei surpreso.

— O senhor não esperava um crime por motivos pessoais?

— Não, para dizer a verdade, não. Com Amberiotis e Alistar Blunt metidos no meio, tive certeza de que era um desses crimes de espionagem.

— Foi o que o senhor me disse quando estive aqui, pela primeira vez.

— Naquela época eu tinha certeza.

— O senhor se enganou — disse Poirot.

— Não precisa frisar tão enfaticamente. A gente acaba misturando a vida profissional com todas as outras atividades com que entra em contato.

— Na época o senhor mesmo notou que a ênfase do caso era um pouco óbvia demais, lembra-se?

— Sim.

— Como se quisessem me despistar. Cada nova hipótese sobre a morte de Morley pronto! Aparecia um desvio: Amberiotis; Alistair Blunt; a insegurança política atual. Mas, a pessoa que me desviou da rota foi o senhor.

— Desculpe, Sr. Poirot.

— Como o senhor é uma pessoa de experiência, neste assunto de espionagem, suas palavras tiveram um grande peso para mim.

— Eu acreditei no que dizia. É a única desculpa que posso lhe oferecer. No entanto, tudo não passou de um crime movido por motivos pessoais?

— Exatamente. Levou tempo para eu descobrir e devo confessar que a sorte me ajudou.

— De que maneira?

— Um fragmento de conversa. Bastante evidente se no momento eu tivesse prestado a devida atenção.

O Sr. Barnes coçou o nariz com o cabo da pá. Um pouco de terra ficou preso perto da boca.

— O senhor está sendo muito enigmático.

Hercule Poirot deu de ombros.

— Acho que estou sentido, com o fato de o senhor não ter sido mais honesto comigo.

— Eu?

— Sim.

— Mas eu não tinha a menor idéia da existência de Carter. Segundo as informações dos jornais, ele havia abandonado a casa muito antes da morte de Morley. Agora acho que a polícia descobriu que ele não disse a verdade.

— Carter estava na casa de Morley ao meio-dia e vinte e cinco e viu o assassino!

— Então não foi Carter?

— Ele viu o assassino, já disse.

— Mas não o reconheceu?

Poirot sacudiu a cabeça negativamente.

 

Na manhã seguinte, Poirot passou algumas horas com um agente teatral; à tarde, foi a Oxford. No dia seguinte foi para o campo e voltou quase ao anoitecer.

Chegou à casa de Alistair Blunt, com quem havia marcado uma entrevista, às nove e meia da noite. Encontrou o dono da casa sozinho na biblioteca.

— E então? — perguntou Blunt, ansioso.

Vagarosamente, Hercule sacudiu a cabeça, enquanto Blunt o examinava espantado.

— O senhor a descobriu?

Hercule sentou-se, dando um suspiro.

— Está muito cansado?

— Estou — respondeu Poirot. — O que tenho para contar não é muito agradável.

— Ela está morta?

— Depende da maneira pela qual encaramos o caso.

Blunt fez um gesto de irritação.

— Meu caro, uma pessoa está viva ou morta. Em que condição encontra-se a Srta. Sainsbury Seale?

— Mas quem é a Srta. Sainsbury Seale?

— Quer dizer que ela não existe?

— Não, ela existiu. Morou em Calcutá; ensinou dicção, ocupou-se em obras filantrópicas; veio para a Inglaterra no Maharanah, o mesmo navio que trouxe o Sr. Amberiotis, embora não viajassem na mesma classe. Por qualquer razão, Amberiotis ajudou a Srta. Sainsbury Seale num problema que ela teve com a bagagem. Parece que ele era um homem amável e solícito. Às vezes, Sr. Blunt, retribui-se uma delicadeza de uma forma estranha. Foi o que aconteceu com o Sr. Amberiotis. Ele encontrou por acaso a Srta. Sainsbury Seale na rua. Como estava de muito bom humor, convidou-a para almoçar, no Savoy, o que constituiu para ela uma grande novidade. Para ele, inesperadamente o almoço trouxe uma grande surpresa; acontece que Amberiotis não estava preparado para receber uma mina de ouro, proveniente de uma mulher de meia--idade. Foi exatamente o que aconteceu, embora ela tivesse contem­plado o nosso amigo grego sem se dar conta do que estava fazendo. Devo esclarecer que a Srta. Sainsbury Seale, apesar de ser muito boa e prestativa, não tinha um pingo de inteligência.

— Então foi ela quem matou a Sra. Chapman? — perguntou Blunt.

— Prefiro responder sua pergunta mais tarde. Vou relatar os fatos em ordem cronológica. Devo começar com um sapato...

— Um sapato?

— Sim, um sapato de fivela — repetiu Poirot. — Quando terminei meu tratamento com o Dr. Morley, fiquei parado, uns instantes, na porta da casa dele; um táxi parou e meus olhos se dirigiram para os pés de uma mulher que saltava do carro. Sou um homem que olha para os pés e os tornozelos das mulheres, Sr. Blunt. O pé em questão era bonito e o tornozelo fino e delicado era realçado por uma meia de nylon cara e de boa qualidade; o único senão era o sapato, novo em folha, com um salto grosso, enfeitado com uma fivela prateada, de um mau gosto revoltante. Enquanto eu atentava para estes detalhes, a mulher saltou do carro e, confesso, meu desapontamento foi enorme. Era uma mulher de meia-idade, bastante mal vestida.

— A Srta. Sainsbury Seale?

— A própria. Porém, aconteceu um pequeno acidente: quando ela bateu com a porta do táxi, arrancou a fivela do sapato que voou para a calçada. Apanhei-a, devolvi à dona e fui-me embora. No mesmo dia, muito mais tarde, fui com o Inspetor Japp falar com esta senhora, que por sinal ainda não havia consertado o sapato. Nesta mesma noite, a Srta. Sainsbury Seale saiu do hotel e desapareceu. Fim da primeira parte.

— A segunda parte começa — continuou Poirot, depois de tomar fôlego, — quando fui chamado pelo Inspetor Japp ao prédio de apartamentos onde morava a Sra. Chapman; haviam encontrado, dentro de uma arca, um cadáver. A primeira coisa que vi foi um sapato bastante usado com uma fivela prateada.

— E daí?

— O senhor não percebeu? Eu disse um sapato velho. A Srta. Sainsbury Seale teria vindo à noite, ao apartamento, no mesmo dia da morte do Dr. Morley. De manhã os sapatos eram novos e de noite já estavam velhos! Não se gasta um par de sapatos num dia.

— Quem sabe ela não teria dois pares de sapatos idênticos? — perguntou Blunt.

— Não tinha. Japp e eu examinamos todos os pertences da Srta. Seale e não encontramos outro par de sapatos com fivelas. É provável que ela tivesse outro par, que tivesse trocado de sapatos, depois de um dia exaustivo. Mas, nesse caso, os sapatos novos estariam no hotel, não acha?

— Não vejo muita importância em tudo isso — respondeu Blunt, sorrindo.

— Não é que seja importante, mas como um bom cartesiano, não gosto das coisas sem explicação. Fiquei parado diante da arca, olhando para o sapato. A fivela tinha sido costurada à mão. Neste momento, confesso, cheguei a duvidar de mim. Pensei: Hercule, hoje de manhã, quando você se viu livre do dentista, começou a ver tudo azul, e até um par de sapatos velhos lhe pareceram novos.

— Talvez seja esta a explicação!

— Mas não era. Meus olhos raramente se enganam. Continuando, examinei o corpo da vítima e fiquei horrorizado. Por que teriam esmigalhado o rosto da morta, a ponto de torná-lo irreconhe­cível?

— Precisamos voltar a esta história? — reclamou Blunt, impaciente.

— É necessário — afirmou Poirot, com decisão. — Preciso levá-lo por todos os atalhos que me conduziram à solução do caso. Pois bem, pensei: aqui temos uma morta, vestida com as roupas da Srta. Sainsbury Seale, exceto no tocante aos sapatos. A bolsa é dela, os documentos são dela, mas por que o rosto irreconhecível? Será porque não é o rosto da Srta. Sainsbury Seale? Imediatamente comecei a inquirir sobre o aspecto físico da dona do apartamento; vista de um modo superficial era uma mulher completamente diferente da Srta. Sainsbury Seale: elegante: bem vestida: bem tratada. Essencialmente, porém, bastante semelhante: peso, cabelo; idade, estatura. Havia porém uma única diferença: a Sra. Chapman calçava sapatos número 35 e a Srta. Sainsbury Seale, 38. Logo, o pé da Sra. Chapman era bem menor.

Depois de pequena pausa Poirot continuou:

— Voltei para examinar o corpo; se minha suposição fosse correta, isto é, que o corpo era da Sra. Chapman e não da Srta. Sainsbury Seale, os sapatos seriam grandes demais. Não era o caso. Os sapatos eram realmente da morta. Então por que o rosto desfi­gurado? Um quebra-cabeças, uma charada, um enigma. Apanhei o livro de endereços da Sra. Chapman. Só um dentista poderia iden­tificar, sem erro, quem era a vítima. Por coincidência o dentista da Sra. Chapman era o Dr. Morley. Fomos ao fichário de Morley e o cadáver foi identificado como sendo da Sra. Albert Chapman.

Blunt agitava-se na cadeira, com impaciência. Poirot fingia não perceber.

— O problema agora era psicológico. Que espécie de mulher era a Srta. Sainsbury Seale? Uma pergunta com duas respostas. Por um lado, uma mulher que vivera na índia, uma figura respeitada e admirada pelos amigos. E a outra Srta. Sainsbury Seale? Uma mulher que almoçaria com um conhecido espião; que falara com o senhor, na rua, pretextando ser amiga de sua falecida esposa (o que obviamente era mentira); que saíra de um consultório, um pouco antes de ocorrer um crime, e que, à noite, visitara uma senhora, que depois também fora encontrada assassinada. Depois disso, esta mulher desaparece, embora toda a polícia da Inglaterra esteja a sua procura. Seriam todas estas ações compatíveis com a descrição que tínhamos dela? Seria possível que a respeitável e estimada Srta. Sainsbury Seale fosse uma assassina, ou pelo menos, a cúmplice de um criminoso?

“O outro critério que segui foi inteiramente pessoal. Eu havia falado com ela, e que impressão tivera? Uma pergunta bastante difícil de responder. Sr. Blunt. Tudo que ela disse, a maneira com que se expressou, sua gesticulação, estava de. acordo com o que as pessoas me diziam dela; fazia parte também da representação de uma ótima atriz, pois não devemos esquecer que ela, quando moça, trabalhou no teatro.

“Confesso que estava bastante impressionado com a conversa que tivera com o Sr. Barnes, outro cliente dos consultórios da Rua Rainha Charlotte, que tivera também consulta naquela manhã. Segundo ele, a morte de Amberiotis e de Morley eram acidentais e a pessoa realmente visada pelo assassino seria o senhor.

— Uma teoria um tanto extravagante — interveio Blunt, sorrindo.

— O senhor acha? Não é verdade que no momento existem vários grupos e organizações interessados no seu desaparecimento?

— É verdade, mas o que tem a morte de Morley com isso?

— Porque existe em volta deste caso um problema de desperdício: não há preocupação nem com vidas humanas, nem com dinheiro. Existe até uma certa negligência, como quem dá um banquete e não mede as despesas...

— O senhor não acredita que o Dr. Morley tenha-se suicidado?

— Nunca acreditei nisso, nem por um momento sequer. Morley, Amberiotis e a mulher foram assassinados. Por quê? Por algo muito valioso. Para Barnes, o motivo era simples: alguém tentara comprar Morley e o sócio, os quais se encarregariam de eliminar o senhor.

— Bobagem!

— O senhor acha? Digamos que alguém queira matar uma pessoa, mas esta pessoa está não só prevenida mas protegida. Para eliminá-la é necessário pegá-la desprevenida ou desatenta. Qual o melhor lugar senão na cadeira de um dentista?

— Tem razão. Nunca havia imaginado isso.

— Foi aí que comecei a perceber a verdade.

— Aceitou as teorias de Barnes? Quem é esse homem, afinal?

— Um cliente do Dr. Reilly. Está aposentado do Serviço Secreto e mora atualmente em Ealing. Um homenzinho como outro qualquer. O senhor está enganado quando pensa que aceitei as teorias dele; aproveitei somente a idéia básica.

— Como assim?

— Desde o princípio, fui enganado — disse Poirot. — Às vezes, sem querer, outras deliberadamente. O crime sempre me foi apresentado, ou melhor, empurrado, como se fosse um caso político. Isto é o senhor como figura central devido a sua projeção como banqueiro e financista. Afinal o senhor é o esteio dos conservadores. O que não devemos esquecer é que as figuras públicas possuem também uma vida particular. Foi meu erro, me esqueci deste detalhe. Existiam razões para Frank Carter matar Morley, por exemplo. Também existiam motivos pessoais para seus parentes quererem matá-lo, Sr. Blunt. Afinal herdariam seu dinheiro. Aí chegamos ao que eu chamo: “forçar a mão”.

“Se a agressão de Frank Carter fosse verdadeira então se tratava de um ataque político; mas a explicação era outra. Havia ou­tro homem, entre os arbustos do seu jardim, que agarrou e prendeu Carter. Um homem que facilmente poderia ter dado o tiro e jogado a pistola perto de Carter, que inevitavelmente apanharia a arma e seria encontrado, em seguida, com a mesma na mão.

“Pensei muito sobre Howard Raikes. Na manhã em que Morley morreu, ele estivera no consultório; era um homem contrário à política vigente e além disso queria se casar com sua sobrinha, a qual, com sua morte, se tornaria financeiramente independente. Seria novamente o caso de se pensar num crime de caráter pessoal, com o único fito de obter-se uma fortuna? Por que eu deveria enca­rar o caso sob o prisma político? Simplesmente porque todos me forçavam a isso? Foi então que tive uma revelação. Estávamos na igreja, cantando um salmo referente a uma armadilha... Por que não? O caso era saber quem teria lançado esta armadilha? Só pode­ria ter sido uma pessoa, a menos provável do mundo.

“Comecei a me perguntar se não estava examinando o caso de cabeça para baixo: desrespeito por dinheiro; desprezo pela vida humana. Sempre tive em mente que o culpado estava arriscando uma grande cartada. Caso minha hipótese fosse confirmada, tudo estaria explicado.

“Seria encontrada por exemplo a explicação para a dupla personalidade da Srta. Sainsbury Seale; a fivela do, sapato e finalmente a resposta para a grande pergunta: onde está a Srta. Sainsbury Seale?

“Eh, bien! Minha hipótese demonstrou que a Srta. Sainsbury Seale era o começo, o meio e o fim do mistério. Existiam realmente duas Mabelle Sainsbury Seale. Uma, bondosa e respeitável; outra mentirosa, metida em dois crimes e que finalmente desaparecera.

“Lembre-se de que o porteiro do prédio da Sra. Chapman dis­se que a Srta. Sainsbury Seale já estivera lá, uma vez.

“Reconstruindo o caso, percebi que esta fora a primeira e a última vez que ela estivera lá. Entrou e nunca mais saiu do edifício. A outra Srta. Sainsbury Seale tomou o seu lugar, vestida com suas roupas e usando um novo par de sapatos de tamanho menor é claro. A nova Sainsbury Seale foi ao Hotel Russell, numa hora de bastante movimento, arrumou as malas, pagou a conta e saiu do hotel. Foi para o Hotel Glengowrie Court. Quero que o senhor atente para o fato de que nenhum dos amigos da Srta. Sainsbury Seale esteve com ela depois que se mudou do Hotel Russell. Assim, a impostora passou uma semana no hotel, falando como a outra, usando as roupas da outra, só necessitando adquirir um novo par de sapatos. De repente, ela também desapareceu, depois de ter sido vista entrando no prédio da Sra. Chapman, no mesmo dia da morte do Dr. Morley.

— O senhor quer dizer — interrompeu Blunt — que a morta, encontrada no apartamento, era realmente a Srta. Sainsbury Seale?

— Claro que era. Para levantarem mais suspeitas sobre a identidade da mulher desfiguraram-lhe o rosto.

— Mas, e a radiografia dentaria?

— Esta é uma outra história. Não foi o dentista quem deu as fichas à polícia, pois Morley já estava morto, lembra-se? Já não poderia descrever a cliente; de maneira que o perigo deste dizer a verdade já estava eliminado. A resposta foi encontrada no arquivo, nas fichas que tinham sido trocadas. As duas mulheres eram clientes do Dr. Morley; só foi necessário mudar o nome das fichas. Por isso, quando o senhor me perguntou se ela estava viva ou morta, eu respondi: depende. Pois a qual Srta. Sainsbury Seale o senhor se refere, a que desapareceu do Hotel Glengowrie Court ou a verda­deira?

— Sei, Sr. Poirot, que o senhor possui uma grande reputação. Portanto, admito que o senhor deva ter razões para formular fantásticas hipóteses, pois na verdade nada mais são do que hipó­teses. Para mim, o que o senhor acabou de relatar é totalmente fantasioso e improvável. Segundo o senhor, a Srta. Sainsbury Seale e o Dr. Morley foram assassinados. Este último, unicamente para não poder identificar a arcada dentaria da mulher. Por quê? É isto que eu gostaria de saber... afinal, tratava-se de uma mulher aparente­mente inofensiva, cheia de bons amigos... para que então toda esta complicação para matá-la?

— Por quê?... Uma boa pergunta. Por quê? Como o senhor mesmo disse, ela era uma ótima criatura, incapaz de matar uma mosca. Por que então seria deliberada e brutalmente assassinada? Vou lhe dizer.

— Diga, por favor.

Hercule Poirot debruçou-se para frente.

— Acredito que Mabelle Sainsbury Seale foi assassinada porque era uma boa fisionomista.

— Como assim?

— Já separamos os dois personagens. Uma, a boa senhora, recém-chegada da Índia, e a outra, a inteligente atriz, representando o papel da boa senhora, recém-chegada da Índia. Um incidente precipitou o caso. Qual das duas falou com o senhor, na porta do consultório do Dr. Morley? Quem disse ser uma grande amiga da sua falecida esposa? Uma mentira óbvia dita por uma impostora.

Alistair Blunt concordou.

— Seu raciocínio parece lógico, porém não consigo perceber o propósito.

— Ah, pardon! Vamos enfocar o assunto por outro prisma. Quem falou com o senhor foi a verdadeira Srta. Sainsbury Seale, que não dizia mentiras.

— Pode ser, mas acho pouco provável.

— Claro que é pouco provável mas, levando em conta a segunda hipótese, a história é verdadeira. Portanto, a Srta. Sainsbury Seale conheceu sua mulher e era amiga dela. Logo, sua mulher devia ser o tipo de pessoa que poderia ser amiga da Srta. Sainsbury Seale: uma inglesa que morava na Índia, uma missionária ou, quem sabe, uma atriz... de qualquer maneira nunca Rebecca Arnholt!

“Percebe agora, o que quis dizer com vida particular e vida pública? O senhor é um grande banqueiro, um homem casado com uma mulher rica, mas, antes de casar, era um funcionário subal­terno numa firma em Oxford. Revisando o caso, pelo novo ângulo, percebi que o problema de gastos excessivos não constituiria um entrave para o senhor. Vidas humanas não podem incomodar o senhor que é praticamente um ditador e, portanto, supervaloriza sua vida em detrimento da dos outros seres humanos.

— O que o senhor está querendo dizer?

— Que o senhor já era casado, quando casou com Rebecca Arnholt; que ocultou dela este fato, impressionado pelo poder que esta segunda união lhe traria; que sua verdadeira mulher não se opôs a sua bigamia.

— E quem era minha primeira mulher?

— Quando morava no prédio da Rua Rei Leopoldo, era conhecida como a Sra. Albert Chapman, local bastante conveniente para o senhor visitá-la, uma vez que fica a cinco minutos daqui. O senhor tomou emprestado o nome de um agente secreto, para que ela pudesse explicar melhor suas constantes ausências. O plano funcionou perfeitamente; ninguém poderia suspeitar de coisa alguma. O único senão estava no fato de o senhor ser legalmente casado com Rebecca Arnholt, o que o tornava um bígamo. Depois de tantos anos o senhor não imaginou que pudesse haver algum perigo. Aconteceu que uma senhora, depois de vinte anos, o reconheceu como sendo o marido de uma amiga. Por acaso ela voltou à Ingla­terra, encontrou-o na rua e, por acaso também, sua sobrinha estava presente. Lembre-se de que foi quem me relatou o encontro, caso contrário eu talvez nunca descobrisse a verdade.

— Mas, fui eu mesmo quem lhe falou sobre isso, meu caro Poirot.

— Não, foi sua sobrinha, e o senhor não teve outra alternativa senão confirmar para não despertar suspeitas. Depois deste encontro, aconteceu outra casualidade fatal. Mabelle Sainsbury Seale encontrou Amberiotis; foi almoçar com ele e falou sobre o encontro que tivera com o senhor, depois de tantos anos. Disse que o senhor estava naturalmente um pouco mais velho mas que basicamente não havia mudado etc. e tal. Sei que divago, mas creio que foi o que aconteceu durante aquele almoço no Savoy. Tenho certeza de que Mabelle não sabia que sua amiga tinha-se casado com uma figura da sua preeminência. Amberiotis, porém, além de ser espião, era um chantagista. Portanto, não custava nada descobrir se o Blunt a que a Srta. Seale se referia era o mesmo Blunt do mundo financeiro. Para tanto, bastou um telefonema ou uma carta e Amberiotis viu-se diante de uma mina de ouro.

— Com um chantagista, só existe uma forma de ação — continuou Poirot, depois de uma breve pausa. — Eliminá-lo. Não era o caso, como queriam me fazer crer, de eliminar Blunt, e sim Amberiotis. Qual a maneira mais simples? Quando ele estivesse instalado numa cadeira de dentista.

Poirot fez uma pausa.

— A verdade saiu logo no começo — continuou, com um leve sorriso nos lábios, — quando o atendente estava lendo uma novela policial chamada: A Morte às Onze e Quarenta e Cinco. Deveríamos ter prestado mais atenção a este título, pois foi exatamente a esta hora que o senhor matou o Dr. Morley. Em seguida, apertou a campainha, abriu a torneira da pia e saiu da sala. Deu tempo para encontrar, na porta do elevador, com o atendente e a falsa Srta. Sainsbury Seale. Assim que o elevador fechou as portas, o senhor subiu novamente ao consultório e desta vez pela escada. Por experiência própria sei o que Alfred fazia quando encaminhava um cliente; dava uma batida na porta, em seguida, abria a mesma e afastava-se para deixar o cliente entrar. Ao abrir a porta, ouviu-se o barulho da água. Alfred logicamente concluiu que o Dr. Morley estava lavando as mãos. Quando desceu, o senhor entrou no consultório e, ajudado por sua cúmplice, levantou o corpo e o transportou para a saleta ao lado. Foram para o arquivo, rapidamente trocaram os nomes das fichas da Sra. Chapman pelo da Srta. Sainsbury Seale, e enquanto sua mulher se preparava para sair, o senhor vestia o uniforme de Morley. Para dizer a verdade, não havia necessidade de muita encenação, uma vez que Amberiotis nunca tinha estado com o Dr. Morley. O grego também não o conhecia pessoalmente; sua fotografia raramente sai nos jornais, e afinal, por que haveria ele de desconfiar de alguma coisa? Um chantagista não tem medo do próprio dentista.

“A Srta. Sainsbury Seale” desceu; Alfred a acompanhou até a porta. A campainha tocou e Amberiotis foi conduzido ao consultório. Novamente Alfred não vê o Dr. Morley, pois o senhor estava atrás da porta, lavando as mãos. Amberiotis sentou-se na cadeira e lhe mostrou o dente infeccionado. O senhor usou, certamente, aquela velha conversa de dentista: que não vai doer nada; que o senhor vai regelar a gengiva com anestésico etc. A dose de provocaína e adrenalina já estava preparada; o senhor injetou a quantidade suficiente para matá-lo. Sem desconfiar de nada, Ambe­riotis foi embora. O senhor trouxe o corpo de Morley de volta para o consultório, tendo que arrastá-lo desta vez, pois estava sozinho. Limpou o revólver e o colocou na mão do morto. Jogou os instrumentos usados no esterilizador, limpou com um lenço a maçaneta da porta e se retirou quando viu que o corredor estava livre. Diga-se de passagem, foi este o seu único momento de real perigo.

“Deste momento em diante, tudo correria bem! As duas pessoas que, no momento, ameaçavam sua segurança já estavam eli­minadas. A terceira, nosso pobre dentista, também estava morta, mas isto tinha sido inevitável. Além do mais tudo se encaixava tão bem! O suicídio de Morley por causa do erro com Amberiotis; uma morte cancelaria a outra. Infelizmente eu estava por perto, tive dúvidas e comecei a fazer objeções. Enfim atrapalhei a história.

“Foi preciso criar uma nova linha de defesa, e se possível até um bode expiatório. O senhor já havia feito um levantamento sobre os empregados de Morley; o nome de Frank Carter foi escolhido. Sua cúmplice arranja para que ele seja contratado de uma maneira misteriosa como seu jardineiro. Se, mais tarde, ele repetir a entrevista absurda que teve com esta senhora ruiva, ninguém vai acreditar nele. Por esta altura aparece o cadáver na arca. Primeiro acham que é a Srta. Sainsbury Seale. Quando encontram a ficha dentaria no arquivo, cria-se uma grande sensação; tudo podia parecer como uma complicação desnecessária, mas não era.

“O senhor não queria que a polícia inglesa andasse à cata da Sra. Albert Chapman. Portanto, era melhor que ela aparecesse morta, enquanto buscavam uma Srta. Sainsbury Seale, a quem nunca iriam descobrir. Por outro lado, com sua influência, não houve a menor dificuldade em abafar o caso. Como medida de precaução, para saber o que eu estava fazendo, o senhor me pediu que descobrisse o paradeiro da desaparecida. Continuou, portanto, “forçando a mão”. Sua cúmplice me telefonou, ameaçadora; outra pista que me levaria a crer em espionagem, isto é, o lado político dos crimes. Sua mulher é uma atriz inteligente, Sr. Blunt, mas sempre que uma pessoa tenta disfarçar a voz procura inconsciente­mente imitar Outra pessoa; ela imitou a inflexão da Sra. Olivera!

“Depois fui convidado para sua casa de campo, onde encenaram o terceiro ato. Foi fácil para sua cúmplice detonar a pistola, entre os arbustos, jogar, a arma aos pés de Carter que, espantado, apanhou a arma.

“Que mais era preciso? Apanhado em flagrante, repetindo uma história ridícula, com uma arma da mesma marca da que foi usada para matar Morley... enfim, uma série circunstancial de pro­vas para enredar Hercule Poirot dentro de uma armadilha.

Alistair Blunt mexeu-se na poltrona; seu rosto tomou um aspecto grave e triste.

— Não me leve a mal, Sr. Poirot, mas gostaria de saber até onde o que o senhor me contou é uma suposição ou uma certeza?

— Tenho um registro do casamento de Martin Alistair Blunt com Gerda Grant. Frank Carter viu dois homens saindo do consul­tório de Morley; o primeiro era Amberiotis e o segundo, é claro, o senhor. Frank, porém, não o reconheceu.

— Muito honesto de sua parte me dizer isto — comentou Blunt.

— Frank entrou no consultório de Morley e o encontrou morto. As mãos do cadáver já estavam frias e o sangue em volta da têmpora já estava seco, o que significa que a morte havia ocorrido já há algum tempo. Portanto, o dentista, que atendeu Amberiotis, não podia ser Morley e sim o assassino.

— Mais alguma coisa?

— Sim. Prendemos Helen Montressor esta tarde.

Alistair teve um gesto involuntário de desânimo.

— Acabou-se a história — disse ele.

— Sim. Helen Montressor, sua prima, morreu no Canadá, sete anos atrás.

— Gerda se divertia com isso, entende? O senhor é um homem inteligente; deve compreender certas coisas... Casei-me com ela, sem participar a ninguém. Na época, ela era atriz de teatro; minha família era cheia de preconceitos e eu estava prestes a ingressar como sócio na firma. Concordamos em manter nosso casamento em segredo por razões de conveniência. Gerda continuou no teatro; a única pessoa da companhia que sabia do nosso casamento era Mabelle Sainsbury Seale, que tempos depois foi convidada para excursionar, depois nos mandou duas ou três cartas da índia e finalmente desapareceu de nossas vidas. Ouvimos dizer que tinha se casado com um hindu. Mabelle sempre fora uma moça crédula e burra.

“Gostaria agora de lhe explicar sobre meu relacionamento e meu casamento com Rebecca. Talvez o senhor compreenda como Gerda compreendeu. Era como se eu fosse me casar com uma rainha, era minha chance de me transformar num príncipe consorte ou num rei. Meu casamento com Gerda foi encarado, por nós dois, como morganático, mas, ao mesmo tempo, não queríamos nos separar. Tudo se arranjou admiravelmente bem. Eu vivia feliz com Rebecca, ela era uma grande negocista, tínhamos muito em comum, formávamos uma parceria maravilhosa, dávamo-nos bem e eu penso que a tornei feliz. Senti muito quando morreu.

“Enquanto isso, Gerda e eu nos divertíamos com nossos encontros secretos. Usávamos um sem-número de artifícios. Gerda é uma atriz nata. Tínhamos um repertório de sete a oito personagens. A Sra. Chapman era apenas um deles. Em Paris, ela era uma americana viúva; na Noruega, uma pintora; mais tarde, tornou-se minha prima Helen Montressor. Era muito divertido e mantinha nosso romance sempre aceso. Com a morte de Rebecca poderíamos ter-nos casado oficialmente, mas não quisemos. Gerda não se adaptaria as minhas funções oficiais e nós já tínhamo-nos acostu­mado a viver em segredo. Uma vida doméstica, às claras, seria por demais monótona.

Blunt olhou para Poirot, sua voz assumiu um tom ríspido.

— Aí apareceu aquela estúpida e estragou tudo. Reconheceu-me depois de tantos anos! Não contente com isso, bateu com a língua nos dentes para Amberiotis. Tive que agir, não só por mim, como pelo meu país. Caso fosse desmascarado, o país seria atingido e todo o meu trabalho destruído. Já fiz muito pela Inglaterra, Sr. Poirot. Mantive-a firme e rica, livre de ditadores, de fascistas e de comunistas. O dinheiro em si não me interessa, o poder sim. Quero dominar, mas não como um tirano. Temos uma tradição democrá­tica a zelar; rimos e falamos mal dos nossos políticos, mas somos um país livre. Esta é a causa que defendo. Se eu desaparecesse, sabe-se lá o que poderia acontecer? Aí um chantagista pensou em destruir minha vida... eu e Gerda tomamos uma decisão; sentimos pena de Sainsbury Seale, mas não poderíamos salvá-la; ela era burra demais para merecer nossa confiança. Gerda telefonou-lhe e convidou-a para um chá no apartamento da Sra. Chapman, onde disse estar hospedada. Mabelle naturalmente não desconfiou de nada.

“Tomou o chá, cheio de soporíferos, adormeceu profundamente e nós a matamos. Infelizmente, tivemos que recorrer ao desfiguramento do rosto, pois precisávamos acabar com a “Sra. Chap­man”. Por esta altura, eu já havia providenciado o “aparecimento” da minha prima Helen. Decidimos, no entanto, que, quando tudo isto acabasse, nos casaríamos. Passamos, a seguir, para o problema de Amberiotis; tudo correu como havíamos planejado; ele não des­confiou de coisa alguma; também estava tão anestesiado que não chegou a perceber minha inépcia como dentista.

— E os revólveres?

— Eram de um secretário que eu tive nos Estados Unidos. Ele os trouxe, para cá. numa das viagens, e quando foi embora definitivamente os deixou comigo. Que mais deseja saber?

— E Morley? — perguntou Poirot.

— Senti muito ter que matá-lo.

— Compreendo.

Fez-se outro longo silêncio.

— E agora Sr. Poirot? — perguntou, por fim Blunt.

— Como já disse Helen Montressor está presa.

— Então só falta eu?

— Sim.

— Mas, o senhor não parece satisfeito em ter encontrado a solução do caso.

— Na realidade não estou.

— Matei três pessoas, portanto, serei condenado à prisão perpétua. No entanto, o senhor já ouviu minha defesa.

— E qual é sua defesa?

— Acredito ser necessário para a paz e o bem-estar da Inglaterra.

— Pode ser.

— O senhor não concorda?

— Concordo. O senhor representa os ideais nos quais eu acredito. O senhor é o equilíbrio, a estabilidade e a segurança.

— Obrigado — agradeceu Blunt. — E daí?

— O senhor sugere que eu esqueça tudo?

— Sim.

— E sua esposa?

— Posso dar um jeito. Engano de identidade ou coisa parecida...

— E se eu recusar?

— Serei preso. Estou nas suas mãos, Poirot. Tudo depende de você, mas ouça bem: Não se trata de um problema de autopreservação, trata-se da necessidade que o país tem de mim. Sabe por quê? Porque sou honesto, tenho bom senso, e não acredito em medidas radicais.

Poirot concordou. Sabia que Blunt dizia a verdade.

— Este é um lado da questão — disse Poirot. — O senhor é o homem certo no lugar certo; possui inteligência, tirocínio e equilíbrio. Infelizmente, existe o outro lado: três pessoas foram assassi­nadas.

— Pense nelas, Poirot: Mabelle, uma mulher com os miolos de uma galinha: Amberiotis, um chantagista...

— E Morley?

— Já disse que senti muito o que tive que fazer com ele. Mas, afinal, o mundo está cheio de dentistas.

— Tem razão. E Frank Carter, o senhor o deixaria apodrecer na prisão, o resto da vida, sem sentir remorsos?

— Não vou perder tempo com aquele imbecil.

— Mas é um ser humano, Sr. Blunt.

— Todos nós somos.

— É verdade, mas foi a única particularidade que o senhor esqueceu. O senhor disse que Mabelle era uma tola; Amberiotis, um vigarista, Frank, um imbecil e Morley apenas outro dentista. Neste ponto discordamos, Sr. Blunt. Para mim, a vida destas quatro pessoas é tão importante quanto a sua.

— Engana-se.

— Não, estou com a razão. O senhor é um homem honesto e bem intencionado, mas cometeu um engano que exteriormente pode não ter afetado sua vida pública, mas que interiormente agiu como um incentivo para aumentar sua sede de poder. Por isso sacrificou três vidas, e está pronto para sacrificar uma quarta sem se sentir culpado.

— O senhor não percebe que a segurança deste país está em jogo?

— Não me interessa o país, e sim os indivíduos que têm o direito à vida e não podem ser usados como fantoches.

Poirot levantou-se.

— Então esta é a sua resposta?

— Sim — respondeu Poirot, cansado.

Abriu a porta e mandou dois policiais entrarem.

 

Hercule dirigiu-se para outra sala, onde encontrou Jane Olivera, pálida e tensa, ao lado de Howard Raikes.

— Então?

— Tudo acabado — respondeu Poirot.

— Que quer dizer com isso? — perguntou Raikes.

— O Sr. Alistair Blunt acaba de ser preso por assassinato.

 — Pensei que ele fosse conseguir suborná-lo.

— Eu sabia que não — disse Jane.

— O mundo é de vocês que são jovens; o novo céu e a nova terra. Espero que deixem lugar para a liberdade e para a compaixão. É só o que peço.

Poirot virou as costas e saiu.

 

Hercule Poirot dirigiu-se para casa pelas ruas desertas. Uma figura aproximou-se ele. Era Barnes.

— E então? — perguntou.

Poirot abriu os braços num gesto de desalento.

— O que ele pretextou? — quis saber Barnes.

— Admitiu tudo e procurou se justificar. Disse, também, que o país precisava dele.

— É verdade — concordou Barnes. — O senhor não acha?

— Acho...

— Mas então?

— Podemos estar enganados — disse Poirot.

— Não tinha pensado nisso, talvez o senhor tenha razão.

Deram alguns passos em silêncio.

— Em que o senhor está pensando? — perguntou Barnes, curioso.

— “Porque rejeitastes a palavra de Deus, Ele vos rejeitou e impediu-vos de ser rei...”

— Hum! Conheço o salmo, Saul falando aos Amalequitas.

Andaram mais um pouco. De repente, Barnes parou.

— Vou tomar minha condução aqui. Boa noite, Sr. Poirot. Gostaria de lhe dizer uma coisa antes de nos separarmos...

— Pois não, mon ami.

— Acho que devo esta explicação ao senhor. Afinal eu o coloquei na pista errada sem querer. É sobre Albert Chapman, o O.X.912.

— Sim?

— Eu sou Albert Chapman. Por isso estava tão interessado nos acontecimentos. Nunca fui casado, Sr. Poirot.

Barnes despediu-se rapidamente. Poirot ficou parado, de olhos arregalados, vendo a figura de Barnes desaparecer aos poucos.

— Ora, vejam só! — comentou.

Depois, seguiu seu caminho.

 

                                                                                            Agatha Christie  

 

                      

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