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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA NOITE EM BLACK TOWER / Silver Kane
UMA NOITE EM BLACK TOWER / Silver Kane

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

   Paulus era um rapaz que tudo tinha em bens materiais, sempre teve toda liberdade de experimentar o que quis.

   Vivia maneira dissoluta em meio a mulheres e drogas.

   Até que encontrou uma armadilha em que achava que seria impossível conseguir se safar.

  

  

                                                Capítulo I 

   Embora pareça mentira, uma das coisas mais amargas deste mundo é estar farto de tudo, tendo provado tudo, estar cansado de rir, de viver, de sentir todas as emoções boas e más — geralmente más — que encontramos neste mundo.

   Algo assim acontecia com Paulus.

   Paulus, a quem seus pais deixara uma fortuna mais que regular, uma dessas fortunas que não terminam nunca, por mais que se gaste, era um caso típico do jovem para quem a vida já não tem emoção, surpresa, nem segredo algum. Desde os dezesseis anos não fizera outra coisa, a não ser gastar e divertir-se.

   E dos dezesseis aos trinta e cinco anos um rapaz pode divretir-se muito, se tem dinheiro e só pensa nisto.

   Para Paulus não existiam mulheres virtuosas, nem jovens inocentes, nem artistas de teatro que só se preocupassem com sua arte. Êle sabia que com dinheiro tudo se compra e se vende. Também comprava carros magníficos só pelo prazer de viver novas emoções, e aos vinte e oito anos, desejoso de ser um jovem intelectual começou a escrever poesias de estilo grosseiro e amoral.

   Apresentou-se num concurso, comprou todos os membros do júri e obteve menção honrosa.

   Logo dedicou-se a viajar. Percorreu o mundo todo, várias vezes, procurando sempre emoções diferentes com mulheres de diversas raças.

   Por fim, como já nada lhe restasse para experimentar, dedicou-se às drogas, porém muito cautelosamente, porque Paulus era um desses tipos inteligentes e frios que gozam serenamente e sem qualquer despreendimento. Um desses fulanos duplamente repulsivos que ante um prazer, reservam-se todas as vantagens.

   Na época das drogas, conheceu um sujeito que, apesar de hediondo, era muito insinuante. Um desses tipos era «Esquilo» Cliss, que tinha seu quartel-general nos arredores de Charing Cross. «Esquilo» vendia a droga em pequenas quantidades, porém, na realidade, era um dos mais importantes contrabandistas do Reino Unido.

   Visitava freqüentemente o magnífico apartamento que Paulus possuía em Curzon Street com vistas para o Hyde Park.

   Sentava-se numa poltrona reclinável, preparava uma dose dupla de uísque, bebia um longo trago, estalando a língua e dizia.

   — Isto que é vida...

   Ficava tão satisfeito de ter uma amizade distinta como Paulus que, às vezes, não lhe cobrava a droga.

   Mas, naquela noite, encontrou Paulus de mau humor, lendo uma revista onde só apareciam vedetes parisienses.

   — Que acontece? Paulus bocejou:

   — O de sempre. . .

   — Aborrecido?

   — E como quer que eu fique?

   — Na semana passada você estava atrás de uma artista que lhe dava bola. Aquilo parecia-lhe um mar de emoções.

   — A artista deixou de me interessar.

   — Caiu?

   Paulus fêz um gesto desdenhoso, como se espantasse uma mosca.

   — Não tem nada interessante para oferecer-me, «Esquilo»?

   — E' que até as drogas começam a aborrecê-lo .

   — Tomadas em doses pequenas já não me produzem efeito. E sou bastante esperto para não aumentar a porção, porque sei que me afundaria sem remédio.

   — Vccê sempre foi um bloco de gelo. Paulus.

   — Bah!

   — Com efeito, estou pensando em algo que lhe parecerá interessante. Acaba de ocorrer-me.

   — O que é?

   — Aluguei um castelo.

   — Um quê?

   — Um velho castelo na Escócia — disse o velhaco com seriedade. — Um castelo como os das lendas. Chama-se nada mais nada menos que Black Tower.

   — Não me diga que tem fantasmas.

   — Os fantasmas já estão fora de moda. Eu aluguei o castelo com um propósito completamente diferente.

   — Qual?

   — Guardar à mercadoria.

   — Não me diga.. .

   — Está-se tornando cada vêz mais difícil encontrar um esconderijo seguro em Londres. A polícia já conhece todos os lugares onde meto o nariz. E se por acaso encontrarem uma só grama de coca comigo, vou para a cadeia até que apodreça de velho. Tive que procurar um lugar mais seguro.

   — Mas você é um tolo, querido. E, quando a polícia souber que você alugou um castelo, irá revistá-lo. Adivinhará logo para que foi alugado.

   — Desafio a qualquer policial revistar aquele.

   — E' muito grande?

   — Enorme. Cheio'de recantos, portas semi-secretas e quartos vazios. E é justamente o que acaba de me dar a idéia.

   — Que idéia?

   — Você quer se divertir de verdade com algo novo, cheio de emoções desconhecidas?

   — Será que existe alguma emoção que seja desconhecida? — bocejou aborrecidamente Paulus.

   — Escute meu plano.

   — Escutá-lo não me custa. Mas não comece a dizer tolices.

   — Ouça, Paulus, eu não vendo a mercadoria somente a homens; mas, também, a mulheres. Mulheres que estão desesperadas para obtê-las e que nem sempre contam com dinheiro suficiente.

   Paulus sorriu.

   Seu sorriso era lânguido, cansado e aborrecido. Transformava seu rosto numa máscara.

   — Começo a compreender. Prossiga.

   — Algumas destas pequenas, são maravilhosamente bonitas e distintas, embora quando se empanturrem de droga e comecem a gritar; ninguém diria. Algumas delas procedem de boas famílias e roubam de seus pais tudo o que podem roubar. Sei que se submeteriam a minha vontade por umas gramas de erva.

   Os olhos de Paulus brilharam.

   Eram uns olhos malignos, inteligentes e quietos. Uns olhos que não perdiam um detalhe e que pareciam adivinhar tudo.

   — Continuo compreendendo — falou entre dentes. — E o assunto cada vez me interessa mais.

   — Também sirvo a alguns cavalheiros como você — disse, astutamente, o vendedor. — Não são tão importantes. Mas, enfim, gente que já está aborrecida de muitas coisas.

   — Que sugere?

   — Poderíamos reunir quatro pequenas dessa classe e quatro homens de sua categoria, Paulus.

   — Sim.

   — Continua compreendendo?

   — Perfeitamente.

   — Mas temo que não chegue a perceber, com exatidão, quanto é divertida a brincadeira.

   — Creio que sim. Iremos todos ao castelo. Ficaremos todos uma noite em Black Tower.

   — Justamente.

   — De todo modo o que me propõe não é nada do outro mundo. Uma farra a mais.

   — Não, esta será diferente. Organizaremos um jogo de esconder naquele lugar. Quando um encontrar sua parceira, já poderá retirar-se.. . mas vai tornar-se muito difícil! Não pode imaginar como vai ser complicado encontrar alguém naquele labirinto de quartos e corredores!

   Paulus soltou uma gargalhada. Seus dentes compridos e perfeitos brilharam à luz, como os de uma fera satisfeita.

   — E' que do contrário não seria divertido — disse, ao fim de uns instantes. — A possibilidade de fracassar é o que faz mais emocionante a situação. Quando pode ficar tudo pronto?

   — Dentro de três dias. Paulus esfregou as mãos.

   Em seu íntimo não havia o menor remorso, a menor apreensão ante o que ia fazer.

   Só pensava na noite de Black Tower. Por fim, ia conhecer uma nova emoção em sua vida!

  

                                          Capítulo II

   Um DIA mais tarde, no extremo oposto do Londres, nas ruas silenciosas e tranqüilas que rodeavam Regente Park, um homem encontrava-se diante da morte.

   Era um tipo parecido com Paulus, embora um pouco mais forte. Vestia um elegante roupão leve de seda e uma echarpe. Seus dedos estavam cheios de anéis, e todas aquelas jóias eram incrustadas de ofuscantes brilhantes. A abotoadura da camisa, também, trabalhada em curo e pedras preciosas.

   O homem que se postava diante dele, era alto, moreno, de feições retas e apontava-lhe um revólver .

   Os dois encontravam-se numa sala, luxuosamente mobiliada, cheia de quadros de pintores famosos, em cuja lareira, crepitavam umas toras de madeira.

   Uma estranha atmosfera de intimidade e sensualidade envolvia aquela peça onde se mesclavam os quadros de excelentes pintores, os móveis bem talhados e os desenhos mais atrevidos que um desenhista possa conceber.

   O homem do roupão, gemeu:

   — Não dispare. . . Não aperte o gatilho, por favor! Somos homens inteligentes e isto terá por força uma razoável solução! Não atire!

   O homem do revólver negaceou lentamente com a cabeça.

   — Não penso em atirar. Quero entregá-lo vivo, mas, depois de assinar uma confissão completa .

   — Na. . . nada ganhará com isso.

   — Farei com que a verdade triunfe e que se reconheça a inocência de meu pai.

   — Dan... Você é um menino esperto.. . Seu pai não era, sabe? Era um homem destes que sempre caminham em linha reta e não percebem as oportunidades que surgem a seu lado. Por isto acabou mal! Eu lhe disse que devíamos continuar o negócio e êle empenhou-se em desfazê-lo... Foi à polícia com a história... Atrapalhar um negócio assim! Malbaratar uma partida de diamantes, como aquela, que fora regada com sangue.

   — Você acusou meu pai. Apanhou provas falsas e acusou-o de todos esses crimes. Você levou-o à forca! E ainda quer que eu faça um pacto? Ainda espera que eu acredite em você?

   O homem da echarpe suava copiosamente.

   Desconfiava -de que aquela era uma questão de dinheiro, de muito dinheiro. Só com uma soma fabulosa convenceria aquele imbecil. Mas precisava fazer fosse o que fosse, precisava salvar sua própria vida.

   — Dez mil libras — sussurrou, tateante. O jovem recusou lentamente.

   Tinha a ponta do queixo quadrada, os lábios apertados. Seus olhos fizeram-se pequenos e cruéis, como os de uma fera pronta a saltar.

   — Ci... cinqüenta mil libras.

   — Não, amigo.

   — E' uma fortuna. . . Uma fabulosa fortuna! Se você trasladar esse dinheiro pra um país, onde a moeda esteja baixa, poderá viver como um marajá até o resto de seus dias. Por que nega? Você não está refletindo bem, rapaz!

   O suor penetrava nas- comissuras de seus lábios. Chegava-lhe até o interior da boca.

   Aqueles olhos desumanos, duros, davam-lhe frio na nuca.. .

   — Q.. . qual é seu preço? — balbuciou, por fim.

   — Nenhum.

   — Nenhum?

   — Você. Só você quero vivo. A única coisa que desejo é levá-lo à polícia com uma confissão assinada .

   — Isso não devolverá a vida a seu pai...

   — Eu sei.

   —. Rapaz.. . são cinqüenta mil libras! E ainda posso melhorar a oferta. Por que não. . . cem? Pensou o que uma soma assim de dinheiro significa? Não desconfia?...

   — Desconfio que o quero vivo.

   O homem da echarpe secou até o suor. Percebia que aquele jovem era teimoso, e que não o faria mudar de opinião. Percebia, também, que não tinha outro remédio a não ser matá-lo;

   Não que convertê-lo em um fiambre o desgostasse .

   Já teria feito isso desde o princípio, mas sabia que desenbaraçar-se de um cadáver é muito difícil, numa cidade como Londres. Mas teria que decidir-se por aquela solução.

   Seus olhos diminuíram, também, fitando o homem que lhe apontava a arma.

   Não parecia ser muito esperto. Seguramente se deixaria caçar. Não devia conhecer os truques de um homem experimentado.

   Relaxando o nervosismo, riu um momento.

   — Vamos rapaz, vamos.. .

   — Não se mova.

   — Só desejo mostrar-lhe o dinheiro. Tenho-o aqui, numa gaveta central da mesa. Quero que se convença de que Mosley não lhe engana. Quero que você toque as notas com seus próprios dedos.

   — Não tente abrir essa gaveta.

   — Mas se. . .

   — Quieto!

   Mosley, o homem ameaçado, sorriu disfarçadamente. Tudo ia bem. Êle não pensava abrir a gaveta. Era só uma cilada. Queria que o jovem se distraísse.

   — Está bem, você ganha — disse, suspirando ruidosamente. — Que posso fazer? Chame a polícia.

   — Quero antes a confissão assinada.

   — Não assinarei nada se não fôr na presença da polícia. Confio muito mais na Scotland Yard que em você.

   O jovem mordeu o lábio inferior. Parecia refletir sobre aquela estranha mudança de atitude.

   — Parece-me muito razoável — disse, por fim. — E não há inconveniente de minha parte, que tudo se faça diante da polícia. Eu mesmo a chamarei.

   — Pegue o telefone.

   Êle mesmo entregou-lhe o aparelho, aproximando-se de uma mesinha. Sabia que o jovem se distrairia, enquanto discasse o número. E na gaveta semi-aberta da mesinha estava o revólver.

   — Eu posso discar... — sugeriu, para dar maior sensação de inocência.

   — Não. Eu, mesmo o farei.

   O jovem começou a discar. Conhecia de memória o número da Scotland Yard. Enquanto desviava o olhar para o disco não percebeu que a mão direita de Mosley descia lenta e cautelosamente até as profundezas da gaveta.

   Não percebeu, tampouco, que aquela mão fechava-se em torno de uma coronha niquelada.

   E, de repente, Mosley soltou um grito.

   Foi um alarido de triunfo que pareceu romper de sua garganta. A mão direita subiu vertiginosamente com a arma empunhada. Seus olhos brilharam com um fulgor satânico.

   De repente, no meio daqueles dois olhos, formou-se um terceiro.

   Um disco de sangue.

   O estampido devia ter sido audível somente fora daquela sala atapetada de seda e carregada de livros, quadros e portas fechadas. Mosley abriu os braços, soltou a pequena arma, deu um espasmo e caiu para trás.

   Sua cabeça foi parar quase diretamente sobre o fogo da lareira e seus cabelos começaram a chamuscar-se. O jovem teve que dar um salto até êle e apagar com seus pés o fogo que começava a propagar-se.

   Logo dirigiu um olhar a Mosley. Um olhar onde não havia a menor satisfação.

   A verdade era que não desejara matá-lo. Morto, Mosley já não lhe servia de nada. Êle tentara obter daquele velhaco uma declaração, uma confissão escrita. Mas já era inútil pensar nisso.

   Suspirou com cansaço.

   Talvez, de todo modo, encontrasse papéis que lhe ajudariam em sua investigação. Talvez com aquilo, pudesse provar que seu pai morrera na forca, sendo inocente.

   Por onde começar?

   O jovem Dan Farley guardou sua arma e começou a olhar em redor, quando, de súbito, todos os seus nervos, todos os seus músculos sofreram uma sacudidela.

   Alguém acabava de tocar a campainha da porta.

   Dan sabia que aquele cão do Mosley vivia sem criados, embora sua casa estivesse quase sempre Cheia de mulheres. Umas para a limpeza, outras para prazer do dono de tudo aquilo. Não imaginava quem poderia ser agora.

   Talvez uma visita feminina? Naquele caso era possível que ela não conhecesse Mosley. Este selecionava suas amigas, mediante álbuns de fotos, que lhe mostravam em lugares clandestinos e as que escolhia, marcava encontro cem urna simples ligação telefônica.

   Talvez êle pudesse fingir. . .

   Não lhe custaria nem cinco minutos, dar umas libras a moça, fosse quem fosse, e pedir-lhe que lhe deixasse em paz.

   Não pensou muito.

   Despiu o morto de seu roupão de seda e vestiu-o. Ficava-lhe um pouco largo, mas um roupão não tem necessidade de ser feito sob medida. Logo ocultou o cadáver atrás de uma das poltronas. Respirou forte, tratou de adotar uma atitude desenvolta e natural e saiu para abrir a porta.

   Contrariando o que esperava, não era uma garota que apareceu no umbral, sim um homem.

   Um tipo pequeno e ágil em cujos olhos se adivinhava algo negro, repulsivo, sem que no primeiro momento se soubesse porquê.

   O recém-chegado olhou-o, com surpresa.

   — Julgava-o mais velho, diante.. .

   — Quem é você?

   — Chamo-me «Esquilo» Cliss.

   — «Esquilo»?

   O outro deu uma gargalhada. Deu um passo para o lado e entrou com o maior desembaraço.

   — Bem, claro que você não me conhece pessoalmente. Mas vimos mantendo relações comerciais durante muito tempo. Não tem nada para beber? Sempre ouvi dizer que a adega de Mosley era invejável.

   Dan entrecerrou os olhos, enquanto meditava.

   Era evidente que aquele tipo não conhecia o dono da casa, o que favorecia sua situação. Era evidente, também, que aquele tipo proporcionava a Mosley alguma espécie de diversão eu de prazer, fosse o que fosse.

   O homenzinho entrou na sala. Examinou tudo com olhar de crítica, procurando o bar.

   Dan conteve a respiração. Acabava de perceber que o bar estava justamente atrás da poltrona que servia de anteparo ao cadáver.

   Se «Esquilo» Cliss chegasse a acercar-se dali e desse um olhadela, êle estaria perdido!

   Naquele momento perguntou a si mesmo o que devia fazer. Golpear aquele tipo? Partir-lhe a cabeça quando visse o cadáver?

   Mas, afortunadamente, seus olhos descobriram no último memento uma garrafa de uísque sobre uma bandeja de prata.

   — Sirva-se. — Aquele é da melhor qualidade.

   «Esquilo» bebeu diretamente da garrafa.

   Logo arrotou e olhou Dan com seus olhinhos pequenos e astutos.

   — Já lhe disse — murmurou. — Julgava-o mais velho, muito mais velho.

   — E eu não julgo nada, porque não o conheço. Quem afinal é você?

   — O que supria Donken de mercadoria.

   Naturalmente, Dan conhecia, tampouco, Donken, mas pensou na obrigação de exalar um «ah» de pessoa que está inteirada de tudo.

   — Por certo, você está contente com os serviços de Donken? — Sim, claro.

   — Ultimamente a mercadoria subiu um pouco de preço, mas é que cada vez torna-se mais difícil ela entrar no país. Rogo-lhe que compreenda.

   Dan semicerrou os olhos, para não demonstrar o fulgor metálico que aparecera neles.

   De modo que eram drogas... De modo que aquele porco do Mosley, que acabara de matar, também era aficcionado delas...

   Mas «Esquilo» continuava:

   — Pensei em oferecer-lhe uma comissão elevada se aumentasse as vendas entre suas amizades. Por isto vim aqui.

   Dan continuava com os olhos semicerrados. Cada vez ia averiguando mais coisas do homem que acabara de matar e todas pareciam-lhe repulsivas.

   Não contestou.

   Aquela atitude de milionário indiferente devia parecer muito natural a «Esquilo», porque este continuou sem suspeitar de nada:

   — As drogas são o negócio mais proveitoso em nossa época, meu amigo. Praticamente todo o mundo terminará tomando-as. Não percebe? A juventude necessita de algo novo cada dia, e só as drogas podem proporcionar-lhes. A polícia terminará mostrando-se indiferente ante este fenômeno. Creio que nossa fortuna não faz mais que começar.

   Agora Dan sorria dèbilmente, dissimulando a repulsa que aquele tipo lhe produzia.

   De modo que «Esquilo» Cliss sonhava com uma juventude completamente submergida, destroçada, à borda da maior degradação física e moral, mas que ao mesmo tempo lhe enchesse os bolsos de ouro... Dan sabia bem que o drogado mente, rouba, mata, prostitui-se, faz qualquer coisa para conseguir um pouco de pó, uma invenção que são o único ideal de sua vida. Sabia, também, que as energias físicas chegam ao afundamento total depois de pouco tempo de praticar o esporte das drogas. E sabia igualmente que poucos jovens, ou talvez nenhum, chegariam a adquirir o vício se tipos como «Esquilo» não os excitasse oferecendo-os a coca no princípio com muita facilidade, para logo ir tornando-se mais exigente, à medida que a vítima necessitasse da droga para subsistir e tornava-se disposto a fazer qualquer coisa por ela.

   Inclusive os vendedores chegavam a colocar-se nas portas das escolas, oferecendo dissimuladamente sua mercadoria aos garotos de apenas quinze anos.

   Um mundo sombrio abria-se, de repente, diante dos olhos de Dan, um mundo no qual este não imaginava chegar a afundar-se.

   Por fim «Esquilo» estranhou o seu silêncio.

   — Não fala nada! ?

   — Creio que c que diz é muito interessante. Mas agora estou cansado. . . Por que não me dá mais detalhes, amanhã? Posso recebê-lo aqui mesmo.

   A idéia de Dan era avisar a polícia, dar conta do sucedido com Mosley e aceitar a decisão que no seu dia os tribunais adotassem contra êle. Também pensava que no dia seguinte, quando «Esquilo» se apresentasse ali, de novo, a polícia daria o flagrante.

   Mas o homenzinho fêz um gesto vago.

   — Teremos ocasião de falar muito longamente de tudo isso. Agora quero também propor-lhe algo muito divertido.

   — Estou aborrecido de tanto divertir-me — disse Dan, imitando perfeitamente Mosley.

   — Isso é diferente.

   — Por quê?

   «Esquilo» sorriu ladinamente e explicou ao falso Mosley tudo o que antes explicara a Paulus.

   O sorriso com que Dan tentara escutá-lo, foi fechando-se pouco a pouco em seus lábios.

   Tudo aquilo parecia-lhe tão miserável que não queria acreditar no que estava ouvindo.

   Um baixo mundo no que até então não acreditara, mostrava-se bruscamente ante seus olhos, com toda sua repulsiva crueza.

   Caso seguisse seu impulso, deixaria «Esquilo» sem sentido com um só golpe, mas compreendia que assim não ia adiantar nada.

   Precisava assistir àquela estranha festa, conhecer a todos os que participavam dela e colocá-los nas mãos da lei. E, para isso, precisava adotar a personalidade de Mosley.

   — Que lhe parece? — perguntou «Esquilo», por fim, rindo, divertido.

   — E' uma idéia magnífica. Mas as pequenas são honradas de verdade? Nunca lidaram com homens ?

   — De verdade. A elas só interessa a droga.

   Cata vez tornava-se mais difícil a Dan dissimular repulsa que sentia. A interpretação de seu papel ficava cada vez mais custosa.

   — Comparecerá? — perguntou «Esquilo».

   — Por certo. Onde fica Black Tower?

   Um grande mapa da Inglaterra e Escócia adornava uma das paredes. «Esquilo» assinalou, sem vacilar, um ponto desse mapa.

   — Aqui.

   — E' uma região muito solitária.

   — Aí está o principal encanto de Black Tower .

   — De acordo, irei — disse Dan. — Podem contar comigo.

   — E este talvez seja o princípio de uma magnífica cadeia de negócios — sugeriu «Esquilo» Cliss.

   — Pode confiar neles.

   Os dois homens ainda permaneceram alguns minutos mais, reunidos na casa. Num tempo incrivelmente curto, «Esquilo» esvaziou a garrafa de uísque.

   Não parecia ter o menor interesse em mover-se do lugar onde estava, embora de sua poltrona repassasse, com olhar de entendido, os quadros de valiosas assinaturas e as estantes onde, com, um gosto quase feminino, exibiam valiosas jóias. O que havia naquela sala valia uma autêntica fortuna.

   Mas Dan somente torcia para que aquele repulsivo visitante não percebesse que naquela sala havia um cadáver. Qualquer movimento de «Esquilo» produzia um súbito alarme.

   Por fim o tipo se despediu, sem desconfiar de nada.

   Quando Dan fechou a porta, disse a si mesmo que tinha que resolver a macabra situação, de qualquer forma. Talvez o mais prudente fosse avisar à polícia e relatar o que ocorrera.

   Mas, avisando a polícia não poderia comparecer a Black Tower. Então, tomou uma decisão.

   Teria tempo de justificar todo o ocorrido. Agora, em troca, podia prestar um serviço à lei.

   Sentia-se, ademais, enormemente confuso.

   Precisava de tempo para refletir. Tinha, no momento, que sair do apuro em que se encontrava.

   Percorreu toda a casa, especialmente seus profundos sótãos, em busca de uma pista.

   Logo saiu ao jardim. Todos os contornos de Regent Park estavam silenciosos. Só o ruído dos carros longínquo chegava-lhe vagamente do outro lado do arvoredo.

   Dan escolheu uma zona do jardim que ficava muito oculta e onde a terra era branda.

   Logo apagou todas as luzes para que sua silhueta, ao sair, não se recortasse de fora.

   Tirou o cadáver.

   Uma hora depois, após trabalhar intensamente, enterrou Mosley. Igualou perfeitamente a terra e pôs sobre aquela zona diversos paus que encontrou espalhados pelo jardim. Confiava que a ausência de Mosley não seria notada pelos seus distantes vizinhos, até ter transcorrido bastante tempo.

   E, enquanto isso, sucediam muitas coisas.

  

                                                      Capítulo III

   KAN conhecia bem a Escócia, mas nunca estivera por aquela região inóspita e onde todos os elementos do mal pareciam ter marcado encontro.

   Com efeito, o terreno tinha todas as características que faria ura mediano agricultor odiá-lo. Roído pela erosão, rochoso, seco, árido, não crescia nele nenhuma erva, exceto uns musgos úmidos que não poderiam alimentar nem meio-rebanho, inclusive para um pastor, aquela zona parecia maldita.

   Umas poucas árvores secas se estremeciam ao impulso do ar que chegava dos escarpados O céu era cinzento, nublado e dava uma opressiva sensação de tenebroso. Não se escutava outros ruídos a não ser do vento e o zumbido do motor, alternado de vez em quando pelo choque de uma pedra que os pneumáticos destroçavam bruscamente.

   Ao volante de sua Ferrari, Dan comia as milhas de caminho áspero e pedregoso que lhe separava de Black Tower.

   Deixara já muito atrás a última aldeia, e se perguntava se aquele caminho terminaria alguma vez, quando viu o castelo, no alto de uma suave colina.

   Não chamava a atenção pela sua situação, já que este se encontrava a pouca altura. Tampouco pelo impressionante de suas torres, pois estas eram chatas e comidas pelos anos. O que mais impressionava no castelo era sua velhice, a quase absoluta negrura de suas pedras.

   Ao que parece não fora habitado durante anos e anos, e faltavam vidros em muitas janelas. Mas esta impressão era falsa, porque quando alguém se aproximava o suficiente, podia ver que as portas estavam intactas, assim como os barrotes das janelas mais baixas, para que ninguém pudesse entrar. Eram as janelas altas, que não ofereciam perigo, as únicas que pareciam descuidadas.

   Por outra parte, uma recente fiação de luz elétrica indicava que o castelo fora cuidado por alguém ultimamente.

   Dan parou o automóvel. Um não sei quê, ao colocar os pés em terra, lhe fêz pensar que deveria ter trazido uma arma.

   Algo ali crispava-lhe os nervos, que eriçavam subitamente a pele.

   A idéia de que alguém iria àquele castelo divertir-se não lhe entrava na cabeça, nuas quem sabe do que é capaz a pessoa que se aborrece? Não tomam algumas drogas, para sentirem emoções novas, ainda sabendo que isso destroçará sua vida?

   Naquele momento, começou a chuviscar.

     A chuva era mansa e suave no princípio, mas umas nuvens negras, flutuando por cima das torres, pressagiavam a tormenta.

   «Fará uma noite de cão», pensou maquinalmente Dan, enquanto acercava-se da porta.

   Esta abriu-se antes que êle chegasse.

   O rosto trapaceiro e astuto de «Esquilo» apareceu no vão da porta entreaberta.

   — Entre, entre, Senhor Mosley... O tempo está ficando feio.

   — Escolheram uma péssima noite para reunirmo-nos — resmungou Dan, continuando com sua falsa personalidade de milionário aborrecido de tudo.

   — Ainda faltam algumas horas para a noite, Senhor Mosley. Eu: creio que isto ficará melhor, ainda.

   — Melhor?

   — Haverá tormenta.

   — Não vejo nisso alguma graça — disse Dan, entrando no castelo.

   — Um castelo da Escócia sem tormenta perde a metade de sua graça, Senhor Mosley.

   — Não me diga que também tem fantasmas.

   — Fantasmas, por desgraça, não. Aqui tudo é moderno, embora de fora pareça outra coisa.

   Acendeu as luzes. Dan conteve uma exclamação de assombro ao ver o interior.

   O castelo fora inteiramente restaurado, pelo menos no vestíbulo, e o ambiente era acolhedor e moderno. Luzes indiretas faziam ressaltar ainda mais toda a beleza das velhas, pedras. Alguns tapetes abafavam o som dos passos. Valiosas cortinas cobriam as paredes. Para que não faltasse nada, havia quadros com figuras de antepassados, embora não se soubesse de quem. Podia ser que aqueles quadros valessem apenas como adorno.

   «Esquilo» olhou-o complacente.

   — O que parece tudo isto, Senhor Mosley ?

   — Um palácio. Deve ter-lhe custado muitíssimo dinheiro restaurá-lo.

   — O dinheiro não me interessa, quando se trata de conservar uma obra de arte, e este castelo o é. Mas não pense que tudo está como o que você vê, Senhor Mosley. Oh! não! Só pude restaurar algumas peças do térreo e primeiro andar. A parte alta e os sótãos continuam sendo os de um verdadeiro castelo do Conde Drácula.

   — Assim será mais emocionante.

   — Vão se divertir muito, Senhor Mosley.

   Dan, para continuar interpretando bem seu papel, julgou-se na obrigação de improvisar um gesto aborrecido e perguntar:

   — E as garotas? Quantas são?

   — Quatro.

   — Gostaria de vê-las.

   — Isso tiraria a emoção do jogo, Senhor Mosley. Tudo há de ser autêntica surpresa.

   Dan começou a encher de fumo um cachimbo.

   — E os outros cavalheiros? Onde estão os outros cavalheiros? — perguntou, como se êle passasse em revista os participantes de uma caçada.

   — Encontram-se na biblioteca, bebendo e fumando. Logo se conhecerão. Por certo, terá ceado, Senhor Mosley.

   — Por quê?

   _ — Aqui, fora de bebidas, não posso oferecer mais nada. Organizei tudo como se fosse um bar.

   — Parece-me correto. Posso dar uma vista de olhos no palácio, antes de entrar na biblioteca?

   — Claro que sim, Senhor Mosley. Mas procure não arriscar-se ainda peles sótãos. Está tudo muito escuro e a luz é somente aqui. Logo, quando a festa começar, lhe daremos uma-lanterna.

   Dan disse lentamente:

   — Quando a festa começar...

   ' Sentia uma invencível repugnância, mas queria chegar até o fim. Esperava pegar com a boca na botija todos os participantes daquela sujeira.

   Algo estranho deve ter observado «Esquilo» em seu olhar, porque balbuciou confusamente :

   — Está sentindo-se mal, Senhor Mosley?

   — Eu? Nada.

   — Parece preocupado.. .

   — E' que sou um pouco tímido — disse Dan sombriamente. — E agora, com sua permissão, vou dar um giro por seus misteriosos salões.

   Enquanto se afastava, «Esquilo» continuou olhando-o.

   Uma expressão brincalhona assomara em seus olhos.

   Viu o visitante perder-se por um obscuro corredor e, então, dirigiu-se até uma das enormes janelas . Olhou o horizonte que ia se enegrecendo paulatinamente .

   A noite logo chegaria.

   E então.. . então êle demonstraria que era mais esperto que todos! Poria em prática seu plano!

   «Esquilo» saiu do castelo e dirigiu-se a um telheiro, situado na parte posterior deste, que antigamente servia de estábulo. O lugar era escuro e cheirava a mofo.

   Mal o homenzinho colocou os pés ali, uma mão posou sobre sua boca, impedindo-o de gritar. Outras mãos caíram sobre seu corpo, prendendo-o, reduzindo-o à mais absoluta impotência.

   Mas «Esquilo» não se- assustou. Esperou simplesmente que aqueles tipos percebessem seu erro.

   Um deles murmurou:

   — Diabo, sinto.. .

   — Não se preocupem. Disse-lhes que qualquer pessoa que entrasse aqui teria que ser imobilizado, imediatamente. Entrei sem avisar.

   — Poderíamos ter cortado o seu pescoço.. .

   — Não seriam tão estúpidos.

   Um dos homens acendeu uma lanterna. Seus contornos se fizeram visíveis, e pude ver naqueles três tipos, três autênticos gigantes, com aspecto de carregadores do cais de Londres. Usavam armas, e os volumes formados por suas cartucheiras apareciam claramente debaixo de seus casacos.

   «Esquilo» sussurrou:

   — Já estão todos na jaula.

   — Os quatro?

   — Sim.

   — Que temos de fazer?

   — No momento, esperar. Já vi que-estão nos seus postos. Que horas são?

   — Sete.

   —Nesta época do ano, começa a anoitecer demasiadamente tarde — disse «Esquilo», dominado pela impaciência.

   — Mas se já não se vê nada! «Esquilo» meditou uns momentos.

   — Logo começaremos a função. Às oito em ponto. Esses tipos se repartirão pelos cômodos e começarão a procura.

   — Tem pequenas?

   — Nenhuma!

   Os quatro homens lançaram de uma só vez uma sonora gargalhada.

   — Pois que diabo vão encontrar? — perguntou um deles.

   — Vocês...

   A gargalhada se repetiu. Os três gigantes apalparam suas armas. Estavam tão seguros de si que aquela situação lhes parecia cada vez mais divertida .

   — Onde ficaremos?

   «Esquilo» extraiu de um de seus bolsos um papel, que desdobrou cuidadosamente, colocando-o debaixo da luz da lâmpada. Reproduzia-se ali, um confuso mapa do castelo, com uns sinais claramente marcados em tinta vermelha. Junto a cada um daqueles sinais fora escrito um nome. Cada um dos três indivíduos sabia, assim, qual o lugar que lhe fora designado.

   — As oito em ponto e sem ser visto — sussurrou «Esquilo». — O resto do plano conhecem perfeitamente. Cada um de vocês sabem o que devem fazer.

   Naquele momento, retumbou um trovão nas alturas. A tempestade começava.

  

                                            Capítulo IV

   Quando «Esquilo» regressou ao interior de Black Tower chovia copiosamente, e o fragor dos trovões era quase ininterrupto. Os vidros repica-vam e a paisagem era iluminada sinistramente pelos reflexos dos relâmpados.

   Tudo aquilo agradava extraordinariamente a «Esquilo». Até os elementos da natureza estavam a seu favor. Abriu a grande porta e dirigiu-se diretamente à sala onde deixara seus hóspedes. Só tava um, o que êle pensava que fosse Mosley.

   Encontrou este último perto da porta, examinando atentamente uns quadros pendurados numa das paredes.

   A luz era insuficiente, mas os relâmpados, através das janelas, iluminavam tètricamente aqueles rostos de homens p mulheres que muitos anos antes haviam atravessado os umbrais do além-túmulo.

   Uns rostos eram nobres, outros amargurados, alguns cruéis. Um par deles, inclusive, era terroríficos. Seus clhos fitavam das sombras como se quisessem voltar outra vez ao mundo dos vivos, surgindo de suas esquecidas tumbas.

   «Esquilo», em silêncio, parou, olhando a quem êle julgava ser Mosley, um dos homens mais viciados de Londres.

   A verdade é que este não parecia. Tinha as cestas largas, os braços compridos e era o tipo do atleta. Durante alguns instantes imaginou se não se teria equivocado. Mas não, o equívoco não era possível. Êle mesmo, «Esquilo», fora falar-lhe em sua casa. E êle próprio Mosley lhe abrira a porta.

   Se por acaso soubesse que o verdadeiro Mosley estava, agora, enterrado em seu jardim, «Esquilo» Cliss teria um estremecimento. Mas nem remotamente imaginava uma ccisa assim.

   Aproximou-se de Dan e murmurou:

   — Que noite terrível, eh, Senhor Mosley? Mas eu creio que com um castelo como este, as coisas fiquem mais divertidas no meio de uma boa tormenta.

   — Oh!

   — Que lhe chama a atenção nesses quadros ?

   — Sua qualidade. Alguns são muito antigos e têm grande mérito. Eu entendo um pouco da cultura medieval.

   — Eu já sabia, Senhor Mosley. Sua casa é um autêntico museu. Eu também entendo um pouco da arte antiga.

   — Você mesmo escolheu esses quadros?

   — Sim.

   — Gostaria de saber se efetivamente pertencem a pessoas que viveram neste castelo.

   «Esquilo» soltou uma gargalhada. Tudo aquilo lhe saía cada vez mais divertido.

   — Não, não pertencem aos antepassados de Black Tower. Eu mesmo escolhi esses quadros num leilão, em Glasgow. Pertencem a pessoas que nunca pisaram na Escócia em sua vida. Alguns deles — assinalou-os com o dedo — correspondem, segundo dizem, a cavalheiros franceses do princípio do século XVIII. Não, aqui não há ninguém dos que viveram em Black Tower, a menos que...

   De repente, pareceu refletir.

   À luz espectral dos relâmpagos seu rosto tornou-se mais pálido.

   — O quê? — perguntou Dan.

   — Há uma lenda sobre Black Tower.

   — Todos os castelos escoceses tem sua estória. Eu não prestaria demasiada importância a essas tolices.

   — Neste caso é diferente.

   — Por quê?

   — Disseram-me, quando -aluguei o castelo, que aqui estava o quadro de alguém que acabaria matando o novo ocupante, quer dizer a mim.

   — E', portanto, o retrato de alguém que ainda vive?

   — Parece que sim.

   — E o encontrou ? «Esquilo» voltou a rir.

   A verdade era que lhe desagradava aquele tema e que não podia evitar um estremecimento cada vez que o mesmo voltava a sua memória. O que lhe disseram acerca do misterioso ser cujo retrato estava ali e que haveria de assassiná-lo, tirara-lhe o sono mais de uma noite. Mas agora compreendia que aquilo tudo era uma estupidez.

   A voz lenta e sem matizes do jovem chegou até êle.

   — Encontrou q quadro? —- Nem sombra!

   — Mas este castelo è muito grande. Pode estar oculto em algum lugar.. .

   — Não deixe sua imaginação voar, Senhor Mosley. Aqui não há nada. Por muito grande que seja o castelo, eu o revistei bem. E não há mais quadros a não ser os do vestíbulo e os que o senhor tem diante dos olhos.

   — Mas poderia ser um destes, não ?

   — Não — disse rotundamente «Esquilo».

   — Por quê?

   — A pessoa reproduzida neste quadro não sei se é homem ou mulher, mas deve usar na mão direita um anel com uma pedra vermelha. Parece que este foi um brasão dos que habitavam Black Tower. O senhor viu, por acaso, algum quadro em que o personagem reproduzido use um anel com uma pedra vermelha?

   — Quando passeava por aqui olhei bem — cochichou Dan — e nenhum o usa.

   — Isto significa que o quadro não está aqui, e que a lenda não deixa de ser uma tolice.

   — Quem a contou?

   A pessoa que me alugou o castelo. Era um velho, que vivia num casarão, num subúrbio de Glasgow.

   — Era? Já morreu?

   «Esquilo» engoliu a saliva. Não gostava de recordar aquilo. Não havia graça em rememorar as intermináveis noites perdidas em conseqüência da lenda.

   — Sim, logo depois morreu. Alguém o assassinou, em sua casa, cora uma agulha impregnada de veneno.

   — Uma agulha curta, dessas que se pode ocultar no interior de um anel ?

   «Esquilo» tremeu ao confirmar:

   — Si. . . sss. . . sim.

   — Por que treme?

   — Por nada. . . E' uma tolice. Mas não gosto de falar destas casualidades que às vezes surgem em nossas vidas.

   — Será que se trata de uma casualidade?

   — O que pensa, Senhor Mosley?

   — Sim, claro — murmurou o jovem. — Tem que-ser uma casualidade; não há outra explicação.

   — O certo — resmungou «Esquilo», recuperando de todo o domínio sobre si. E' que vimos aqui para divertimo-nos. Deixemos de quadros desaparecidos e de coisas que não têm sentido. Quer conhecer seus novos amigos, Senhor Mosley?

   —Antes diga-me uma coisa. As moças ainda continuam no mesmo lugar?

   '— Decerto. E elas farão o que eu ordenar, porque do contrário não terão suas porções de droga. São pessoas que já estão perdidas, Senhor Mosley — e frisou com deleite. — Per. . .di. . .-das.

   Dan sentiu um asco mais forte. Percebeu que seus lábios endureciam ? suas mãos se crispavam.

   Com gosto teria amassado a cabeça daquele tipo, mas compreendeu que assim não atingiria seu objetivo.

   A comédia tinha que prosseguir.

   — Esplêndido — disse com um leve sorriso. — 0 que lamento é não vê-las antes.

   — Então a surpresa falharia, Senhor Mosley.

   — Compreendo.

   «Esquilo» abriu servilmente a grande porta junto a qual se achavam e ambos entraram na biblioteca. Esta era uma enorme sala atapetada de vermelho onde as estantes estavam praticamente sem livros. Algumas paisagens pintadas a aquarela, adornavam os espaços vazios das paredes. Era uma sala meio restaurada e que produzia uma sensação desagradável; parecia ser um dos lugares mais inóspitos daquela casa. Dentro dela, sentados em suas poltronas e bebendo como cossacos, encontrava-se três homens.

   Dan contemplou-os bem. Imediatamente produziu-lhe uma sensação de repulsa que não pôde dissimular.

   Mas, uma vez dentro daquela aventura, decidira continuar até o fim. Tentou sorrir, enquanto se aproximava do centro da enorme peça, iluminada pelo resplendor de uns toros numa lareira e pela sinistra claridade dos relâmpagos.

  

                                      Capítulo V

   P AULUS foi o primeiro a saudá-lo. E o fêz de uma forma aborrecida, como se espantasse moscas.

   Os outros dois eram indivíduos fortes, bem vestidos e com aspecto de amantes da boa-vida. Seus olhos turvos indicavam que eram adeptos da droga, mas que esta não havia ainda começado a causar estragos em seus organismos»» Ademais, segundo pensou Dan, aqueles indivíduos não deviam realizar jamais um esforço, e não é a mesma coisa um viciado que trabalha e um viciado que pode ficar três dias seguidos de cama, se isso lhe apetecer .

   A mesma obscura repulsa que lhe inspirara «Esquilo» inspirava, também, aqueles indivíduos dispostos a arrancarem da vida todo o prazer que esta pudesse proporcionar-lhes, sem reparar em meios e sem pensar nas vítimas inocentes que poderiam deixar a seus pés.

   Todos eles deviam ser considerados, ademais, como pessoas honradas, influentes, como honestos comerciantes, talvez, e isso fazia duplamente repulsiva sua presença ali.

   Dan sentiu como um calafrio ao apertar suas mães.

   «Esquilo» apresentou-os.

   — Este senhor é Paulus. Colabora em revistas, escreve poesias e é um grande entendido em assunto da bolsa. Se alguma vez precisar fazer uma boa inversão, consulte-o.

   — Eu não me ocupo de negócios — disse aborrecidamente Paulus.

   «Esquilo» continuou:

   — Estes dois senhores chamam-se Kenton e Bradley. Figuraram na lista de membros de nossa melhor sociedade. Aqui se reúnem hoje as melhores personalidades de Londres e isto me faz orgulhoso.

   Dan pensou que bem valia a pena alguns, daqueles cavalheiros serem apresentados à polícia.

   Mas, naturalmente, calou-se.

   — Dentro de cinco minutos, vocês podem sair e começar a busca, cavalheiros — explicou «Esquilo. — O aconselhável, está claro, é procurarem separadamente, e se em algum lugar do castelo tornarem a se encontrar, voltem a separar-se em seguida. Espero que a noitada seja agradável a todos vocês.

   Os quatro lançaram grunhidos de assentimento.

   Cinco minutos depois, saíam e se perdiam pelos recôncavos do castelo.

   O diabólico plano de «Esquilo» Cliss começara a realizar-se, mas eles nem suspeitavam.

   Eram oito horas em ponto.

   Nuvens baixas e espessas flutuavam sobre as torres de Black Tower. De uma nuvem a outra os raios saltavam, encrespando-se no céu com luz espectral .

   Todo o plano de «Esquilo» cumpria-se de minuto a minuto.

   Êle esperava que, até a meia-noite, nenhum daqueles homens se encontrasse com vida. Procuravam garotas para divertir-se e iam encontrar. . . a morte!

   «Esquilo» Cliss sentia-se satisfeito.

   Consultou uma vez mais a hora em seu relógio, convenceu-se de que ninguém poderia chegar a Black Tower numa noite como aquela e felicitou- se uma, vez mais ao recordar que no casarão não havia telefone nem qualquer meio de comunicação com o exterior. Os quatro homens, que pensava matar, estavam bem encurralados.

   Desceu ao sótão,por uma porta secreta, muito comum em casarões como aquele.

   Foi diretamente a uma grande nave, onde não havia absolutamente nada, exceto umas grossas e silenciosas colunas e umas grades que davam para a parte posterior de Balck Tower.

 Silenciosamente, na obscuridade, uma sombra saiu a passo.

   «Esquilo» reconheceu a um de seus homens. Sabia que iria encontrá-lo ali, pois que aquele era o lugar que lhe designara.

   — Johnson...

   O sujeito chamado Johnson acercou-se dele.

   — Eles já estão por aí?

   — Sim. Procuram por todas as partes. Não começarão a suspeitar de nada até mais ou menos uma hora.

   — Mas alguns deles pode apresentar-se aqui a qualquer momento, não?

   — Será que você está nervoso, Johnson?

   — Nem fale.. . Um trabalho desta espécie é para mim o mais simples do mundo.

   — Pois fique atento: Não pode falhar...

   — Ouça, Cliss...

   — O quê?

   Apesar da segurança que aparentava, era evidente que Johnson sentia-se nervoso.

   — Por que quer que liquidemos esses homens? Não vejo o que vai ganhar com isso. Todos eles são bons clientes, compram grandes quantidades de pó e lhe dão bastante dinheiro.

   — O que eles compram é insignificante, tendo em conta o volume total do negócio. Para eles a droga é um esporte que praticam com muito cuidado. Nunca chegariam a ficar em minhas mãos e, portanto, nunca tirarei deles mais do que querem me dar.

   Johnson compreendia, mas guardou silêncio.

   — Esses quatro indivíduos vivem só — continuou «Esquilo». — Cada um deles separadamente, são fabulosamente ricos.

   — E quê?

   — Se desaparecerem, ninguém notará sua ausência durante um longo tempo. A vida que levam não deixa as pessoas se fixarem neles. Durante vinte dias, pelo menos, ninguém se preocupará com eles.

   — Que ganha com isso?

   — Parece mentira que você faça essa pergunta . Isto quer dizer que tenho vinte dias para esvaziar com toda tranqüilidade suas casas. Para levar não só os grandes quadros de pintores famosos que tem nelas, e que significam milhares e milhares de libras; também as jóias e algumas porcelanas, que são peças únicas. Ganharei com esta só operação muito mais do que poderia ganhar em toda a minha vida. No final, eu não sou mais que um modesto distribuidor de drogas. Nunca tive oportunidade de ganhar dinheiro dos grandes. A ganância vai para o bolso dos que introduzem a droga, dos grandes comerciantes internacionais. Mas dentro de uns dias eu serei muito mais rico que todos eles.

   Um surdo despeito, um profundo .rancor palpitava na voz de «Esquilo» Cliss.

   Era o despeito do que viu passar o dinheiro em frente a seu próprio nariz, sem poder tocá-lo, e agora pensa humilhar os que o humilharam um dia, aqueles de quem sempre dependeu.

   — E quando descobrirem que esses homens desapareceram ? — perguntou Johnson com um sopro de voz.

   — Pensa que falaram com alguém, que viria aqui?

   — Não, claro que não.

   — Ninguém os relacionará comigo. Todo o mundo ignora que me conhecem e que lido com eles.

   Johnson engoliu saliva. Achava que o plano de Cliss era mais astuto do que parecia.

   — Por outro lado — continuou «Esquilo» — será impossível que encontrem os cadáveres aqui, embora a polícia chegue a suspeitar de algo.

   — Que faremos com os corpos ? Disse simplesmente Esquilo». — Emparedaremos.

   — Quer dizer que abriremos quatro nichos nas paredes de Black Tower?

   — Exato. Os muros de Black Tower não foram tocados em oitenta ou cem anos e podem continuar assim um tempo igual. Embora a polícia encete uma investigação em regra, jamais encontrara os corpos. Eu sei como mexer numa parede sem deixar vestígios. Em vinte ou vinte e cinco dias surgiram manchas de sahtre, e os ladrilhos podres como se não fossem mudados nunca. Cravar uns ferros autenticamente velhos pode dar também um bom resultado. Sei que jamais a polícia descobrirá o objeto do crime.

   Johnson sorriu. Convenceu-se de que o plano, em sua simplicidade, oferecia poucas falhas e percebeu com natural satisfação, que êle e seus companheiros iam ter uma boa participação nos lucros daquele trabalho.

   — Não falharei.

   «Esquilo» prestou atenção a um repentino rumor que só êle captara e que parecia chegar de muito longe. Fêz um gesto para que seu subordinado se calasse.

   — Alguém se aproxima — cochichou. — Esses tipos estão se movendo mais depressa do que eu pensava.

   Johnson empalmou silenciosamente o punhal, que levava num dos bolsos de seu casaco.

   A lâmina rebrilhou dèbilmente.

   «Esquilo» escapoliu, porque sabia que um chefe inteligente não precisa manchar de sangue as mãos.

   E, de novo, se fêz silêncio.

  

                                            Capítulo VI

   JOHNSON espreitava entre as sombras. O punhal brilhava em sua mão direita, como parte de seu próprio membro.

   Não sabia qual dos quatro homens se aproximava, mas era o mesmo. Êle estava seguro de não falhar.

   Viu oscilar, no outro lado do imenso sótão, o disco de luz de uma lanterna.

   O que avançava não conhecia o local. Notava-se sua vacilação no modo irregular de avançar, ora apressado, ora demasiado lento. Johnson sorriu, enquanto caminhava sigilosamente e com a astúcia de uma raposa para colocar-se às suas costas.

   O disco de luz era como um sinal que lhe indicava onde teria que assentar o golpe.

   Jamais realizara um trabalho tão fácil como aquele e com tantas garantias de êxito.

   Situou-se às costas do homem, que renegava em voz baixa, porque aquela situação, que no princípio lhe parecera tão divertida, começava a desagradá-lo.

   Johnson, sorrindo, levantou o punhal. Acabara de reconhecer o homem que tinha diante de si, completamente désprevenido. Era Kenton. O ladino «Esquilo» Cliss o assinalara horas antes, enquanto suas futuras vítimas iam chegando ao castelo.

   Johnson, fazendo mais estreito e cruel seu sorriso, impulsionou o punhal até o coração de sua vítima. Soou um espantoso alarido.

   Dan encontrara-se numa situação semelhante.

   Deram-lhe uma lanterna e inteira liberdade no interior do castelo. E quando encontrasse uma das garotas, poderia ter a certeza de que ela colaboraria. Disseram-lhe também que alguns dos cômodos do andar superior estavam mobiliados e que neles encontraria bebidas e um toca-discos, para alegrar o hacanal.

   Não havia dúvida de que para os três malandros, os três que acabara de conhecer, a situação não poderia ser mais divertida.

   A êle, em troca, produzia-lhe náuseas.

   Ainda assim, desejava conhecer as moças, que já estavam intoxicadas até a medula. Sentia-se dominado por um violento desejo de salvá-las, de redimir suas vidas.

   Pensou que o que tinha a fazer primeiramente era encontrá-las, quanto antes melhor, e reuni-las num dos cômodos. Seguramente atenderiam às razões e escutariam suas palavras; perceberiam o sinistro abismo em que afundavam irremediavelmente .

   Mas onde encontrá-las?

   O castelo era enorme e tão cheio de recantos que podia passar a noite toda naquela infrutífera busca.

   Talvez aquilo fosse divertido para os outros, mas para êle aniquilava os nervos.

   Foi descendo pouco a pouco até o porão, onde era possível encontrar alguém e escutou, muito distante e abafado pelas paredes, um barulho estranho. Tratava-se do assassínio do primeiro viciado.

   Dan apertou o passo, porque isso não figurava no programa.

   A situação que estava vivendo já era bastante vexatória, mas não sabia que alguém teria de morrer. E alguém estava sendo assassinado barbaramente, pois um grito de agonia soara claramente.

   O disco de luz da lanterna de Dan procurava pelos ângulos das paredes, voava de um lado a outro como numa dança vertiginosa, esperando focalizar um rosto humano, algo que lhe indicasse o que acabara de acontecer.

   Dan empurrou uma porta.

   O disco de luz projetou-se sobre um grosso tapete, sobre uns móveis de luxuoso entalhe, que dava à sala um ambiente de distinção e riqueza. E logo projetou-se sobre algo mais interessante: as pernas de uma mulher.

   A mulher, fosse quem fosse, estava sentada numa das poltronas, e cruzara as pernas com desenvoltura e tranqüilidade, deixando aparecer os joelhos.

   A mulher usava sapatos pretos de salto alto, meias de seda muito finas e uma saia cinza. O busto estava comprimido por um apertado suéter cinza.

   Dan deixou o rosto para o final, mas quando a luz da lanterna o iluminou, não pôde evitar uma débil exclamação de assombro.

   Aquela mulher, cujos cabelos louros claros emolduravam um doce rosto, era uma das mais bonitas que recordava ter visto em sua vida.

   Tinha os olhos escuros e penetrantes. A luz da lanterna caía em cheio em seus lábios muito vermelhos .

   Ao pensar que ela fosse uma das vítimas das drogas, uma daquelas que naquela noite se afundaria de todo, sentiu um estremecimento.

   Era bonita demais e muito jovem, para que lhe acontecesse algum mal.

   Ela murmurou:

   — Bem, que faz aí parado? Por que me ilumina com esse foco como se eu fosse uma vedete?

   Dan permaneceu em silêncio uns instantes.

   Tudo o que lhe ocorreu dizer, foi:

   — Como se chama?

   — Nádia.

   — Suponho que.. . Bem, suponho que esse porco do «Esquilo» Cliss lhe terá dito algo.

   — Quem é «Esquilo» Cliss?

   A surpresa deixou paralisado o jovem.

   — Não o conhece?

   — Nem sombra.

   — Então que faz neste castelo?

   — Se lhe disser não acreditará. Vai pensar que é a história de Branca de Neve.

   — Conte-me tudo direitinho. Pode ser que eu acredite. Eu sou muito idiota, sabe?

   — Vim parar aqui, refugiando-me da tormenta — cochichou ela. — Esta é a verdade.

   Como uma confirmação de suas palavras, estourou um trovão, estremecendo a estrutura de Black Tower. O relâmpago iluminou os móveis da sala, e a figura harmoniosa da mulher moveu-se como uma estátua viva.

   — Fugindo da tormenta? — sussurrou Dan, quando cessou o estampido dos trovões.

   — Sim.

   Ela se pôs de pé e acercou-se de uma das janelas . Os saltos altos eram como um pedestal para sua encantadora figura. Dan seguiu-a, meio hipnotizado.

   Através da janela ambos viram um carro estacionado diante do castelo. Era pequeno e modesto; um Fiat, italiano, com motor atrás. A chuva batia sobre êle firmemente.

   Dan não recordava ter visto o carro antes, o que indicava ter a moça chegado pouco antes.

   — Que lhe aconteceu?

   — Que poderia acontecer-me? Esses carros, quando chove torrencialmente, começam a molhar o motor. A duras penas pude chegar até aqui. Sei que agora não haverá ninguém que o faça andar até ficar completamente seco.

   —- E como entrou? Não ouvi o barulho da porta.

   — A entrada principal fica aqui em baixo — explicou ela. — Muito perto do carro há uma pe-

   quena entrada de serviço. Vi que estava entreaberta e entrei. O mais estranho é que estes cômodos estão totalmente escuros. Tampouco vi alguém. Sentia-me disposta a passar a noite aqui, sentada nesta poltrona, quando você apareceu.

   — Estou entendendo.

   — Você é o dono desta casa?

   — Não, não sou.

   — A tormenta lhe surpreendeu, também? Dan resolveu dizer meia-verdade.

   — Sou inglês, jornalista, mas resido nos Estados Unidos. Estou aqui colhendo material para uma série de reportagens.

   — De que espécie?

   — Artes plásticas e outros assuntos ligados à cultura britânica.

   Enquanto falava, o cérebro de Dan trabalhava com rapidez. E parecia que Nádia não era uma das pobres pequenas dopadas.

   Também faltava aclarar o' estranho grito, ouvido pouco antes, denunciando um atentado em Black Tower.

   Tudo se apresentava muito mais complicado do que Dan pensara no princípio, mas uma cousa exigia urgência: precisava colocar a salvo aquela jovem para que não se convertesse numa vítima inocente das circunstâncias.

   — Tenho uma idéia. Suponho que o que você pretende é descansar até que a tormenta amaine.

   — Claro.

   — Lá em cima deve haver uns dormitórios. Pode ocupar um deles e fechar a porta.

   — Se o que pretende é aproveitar-se da situação lhe asseguro que.. .

   Dan, fêz um gesto para tranqüilizá-la.

   — Nada mais distante de meus pensamentos.

   — Pois parece estranho, porque desde os dezessete anos aprendi que todos os homens pensam do mesmo modo.

   — Pelo que me toca, pode ficar bem sossegada .

   — De acordo, aceito sua oferta. Mas há um pequeno obstáculo.

   — Qual?

   — Não vim só. — Como diz?

   — Trago uma amiga.

   Apontou para um dos lados da sala, onde outra moça, tão bonita que Dan não olhara antes, porque como ela, permanecia encolhida numa poltrona. Também usava sapatos de salto alto, meias de seda e saia muito curta, tentadoramente curta.

  

                                        Capítulo VII

   PATRICK HODGES, carteiro rural, que fazia aquela rota cinco vezes por semana, deixou a bicicleta ao abrigo do toldo da tenda, desprendeu-se do capuz empapado pela chuva e entrou bufando no pequeno estabelecimento de seu amigo Ben Bay-nes, denominado O Descanso Eterno.

   Uma vez no seu interior, Hodges despiu-se do impermeável e acercou-se da lareira.

   .   Ben Baynes saudou-o do balcão.

   — Que noite horrível, heim Patrick?

   — Uma noite de morte.

   — Homem, não precisa ficar assim...

   — E como vou ficar? Com esta chuva e ainda tenho que entregar duas cartas urgentes, chegadas à última hora.

   — Para quem são?

   — Uma para Ralphson e outra para Blint.

   — Pois não precisa incomodar-se. Os dois me disseram que passariam aqui esta noite, para tomar um trago, e eu mesmo as entregarei. Esta é sua noite livre. Que quer que lhe sirva? Uísque ou rum?

   — Rum esquenta mais. E ponha uma porção dupla.

   Quando Patrick bebeu dois ou três tragos, começou a animar-se.

   — Escute, Ben.

   — Que há?

   — Vi animação em Black Tower.

   — E isso que tem de estranho? Já sabe que um fulano meio louco está empenhado em restaurar aquilo. Até me recordo de seu nome. Chama-se «Esquilo» Cliss. O apelido de «Esquilo» se vê que foi posto per causa do aspecto que tem.

   — Sim, isso eu-sei, mas parece-me que está noite chegou mais gente. Só os vi, ao desviar-me um pouco de meu caminho habitual.

   Ben Baynes fêz um gesto de curiosidade.

   — Que gente?

   — Tipos que deviam ser importantes, a julgar pelos carros que usavam. Um deles, inclusive, eu vi entrai' com um Rolls no galpão que antes servia de garage.— E que iam fazer lá ?

   — Não tenho idéia, mas me parece que essa gente se engana. Não recordam o que se diz desse lugar.

   Ben Baynes teve um estremecimento.

   — Não passa de lendas, forjadas por cérebros supersticiosos.

   — Lendas? Você não se recorda de Philip, o administrador de Black Tower, que vivia em Glas-gow?

   — Claro que me recordo.

   — Pois deve saber que o mataram faz pouco. — Pura casualidade.

   — Casualidade ou não, também morieu do mesmo modo a último pessoa que alugou o castelo.

   Expressou-se com uma entonação especial, como se temesse, inclusive, pronunciar o nome de Black Tower.

   — Não diga que acredita na história da mulher do quadro. E' apenas fantasia.

   Mas Patrick, apesar de suas palavras, estremeceu violentamente, quando um novo relâmpago iluminou o salão do pequeno bar. E não voltou a falar, enquanto não passou o efeito do susto.

   — O da mulher do quadro — sussurrou olhando Ben Baynes — pode ser que seja mera fantasia, mas algo estranho ocorre ali. Que diabo! Você sabe o que se propala à boca pequena: que alguém, pertencente a última família que possuiu Black Tower, liquidaria quantos se atrevessem a colocar os pés ali. Já sabe como eram orgulhosos os antigos donos. Mas eles tiveram de vender o castelo a qualquer preço, por causa de suas dívidas e foi um golpe mortal. Disseram que nunca perdoariam os que ocupassem aquela casa; e que uma das mulheres da família os exterminaria.

   E bebeu outro trago de rum.

   Ben Baynes fêz o mesmo.

   — Sim, é certo. Qualquer habitante do lugar o tem fresco na memória, como tem fresca a morte do comprador do castelo, que em seguida quis instalar-se nele. Não durou nem duas semanas! Logo esteve sob o encargo de uma firma administradora uns tempos, sem que ninguém o quisesse, e quando o pobre Phil o alugou.. ., morte para o pobre Phil! Eu não sei o que pensará disso tudo, mas em mim o medo está subindo ao cocoruto.

   Outro trovão sacudiu o bar. Agora, dos dois ao mesmo tempo, já não tentavam dissimular. Tampouco davam conta de que estavam esvaziando a garrafa de rum para animar-se.

   Naquele passo, dentro de dez minutos já não sobraria nada.

   — Ademais estou muito seguro de que seja uma patranha, isso da mulher do quadro — continuou dizendo Patrick, o carteiro. — Os rumores já os conhece bem. A pessoa que iria liquidar a todos que entrassem ali, estaria pintada num quadro dentro da casa. Era uma mulher e usava um anel com uma, grande pedra vermelha.

   — Sim, já me recordo disso. Recordo-me melhor que você.

   — Esse quadro não ngua entre os que há em Black Tower, mas certa vez alguém me falou de que, efetivamente, estava ali.

   — Terão tirado?

   Soltou uma gargalhada, enquanto acrescentava:

   — Não. Quase posso assegurar-lhe que eu saberia . Percorro a comarca palmo a palmo o me inteiro de tudo o que ocorre.

   — Não, definitivamente não creio que o quadro seja uma mentira. O que sucede é que está em algum lugar do castelo. Haverá um momento em que alguém, talvez esta noite mesma, se encontrará cara a cara com êle.

   Os deis estremeceram novamente e a tempestade não cessava.

   Era uma das piores noites que se recordavam naquela comarca da Escócia. O taverneiro começou a encher seu cachimbo, mas estava tão nervoso que o tabaco se derramou no chão.

   — Há algo mais — sussurrou o carteiro.

   —.. Algo.. . mais?

   — Sim. Também ouvi dizer há tempos em uma de minhas corridas pela comarca algo que se referia a essa mulher, a mulher do quadro. Alguém disse que não era uma mulher como as demais .

   — Em que sentido? Não me diga que tinha dois narizes ou que uma de suas pernas era mais comprida que a outra!

   — Não, nada disso. . . A pessoa que me falou disse que de pernas e de corpo estava muito bem. Que era uma mulher sensual. Mas seu rosto era queimado em parte, por causa de um acidente. Era um pequeno monstro.

   Dan dominou seu assombro depois de iluminar durante uns segundos aquela mulher. Seus olhos percrustaram todos os detalhes daquele corpo e em especial aquele estranho rosto.

   Não podia, negar que, em outro tempo, aquelas feições deveriam estar cheias de encanto e de uma singela beleza.

   Tinha uma doce expressão, talvez um pouco lânguida e sonhadora, mas cheia de distinção. Adivinhava-se que a dona daquele rosto era uma mulher de boa família, educada pelos melhores professores, que exercia a suprema arte da elegância que muitas pessoas não chegam a adquirir em toda a sua vida.

   Isso quanto a um dos lados de seu rosto.

   O outro lado não podia dizer que pertencia a uma mulher ou a um monstro. Estava completamente carcomido pelas chamas, e não era mais que uma massa fofa que cobria toda a face até o nascimento dos lábios. Por sorte seus olhos estavam intactos, e isso dava àquelas feições uma certa expressão de humanidade. Dan pensou que aquela mulher devia ter sido excepcionalmente formosa, mas agora, à luz dos relâmpagos, apresentava uma fisionomia de monstro.

   Dan sussurrou:

   — Quem é essa mulher?

   — Encontrei-a perto de Black Tower.

   — Também se extraviou com a tormenta?

   — Não. Disse-me que é jornalista e está escrevendo umas reportagens sobre esta zona da Escócia . Mas seu carro, também, sofreu uma avaria.

   — Estranha casualidade.. .

   — Recolhi-a — continuou Nádia — mas parece que trouxe má-sorte. Ao fim de pouco tempo, meu carro também começou a ratear.

   Dan murmurou:

   — Também é estranha a profissão dessa mulher.

   — Por quê? — perguntou a desconhecida. Sua voz era clara e harmoniosa, embora ligeiramente

   metálica. — Será que não posso ser repórter só porque tive um dia a desgraça de queimar-se ?

   — Um repórter tem que tratar com o público. Bem, perdoe-me... — murmurou Dan. — Sem perceber fui demasiado cruel.

   — Não tem importância. O que quiz dizer é que meu aspecto não agrada às outras pessoas, verdade ?

   — Não quis dizer exatamente isso. Tudo é questão de.. . de.. .

   — De costume, não é assim?

   — Sim, é isso. Eu creio que tudo seria questão de vê-la durante algum tempo.

   — Obrigada. Você é um homem bem-educado.

   Dan continuava focalizando a mulher com sua lanterna, mas quase era desnecessário, porque o fragor da tormenta aumentava, e o clarão dos relâmpagos iluminava como se fosse pleno dia.

   — E você deve ter sido uma mulher muito bonita — disse Dan. — Lamento o acidente.

   — Eu já me acostumei — cortou secamente ela. — Bem vamos ao mais prático. Meu nome é Nora e ouvi o que antes contava a Senhorita Nádia. E' provável passarmos a noite neste castelo?

   — Não vejo inconveniente, se se trancarem em seus quartos.

   — Por quê?

   — Não estou sozinho em Black Tower, e todas as demais pessoas que aqui se encontram, são homens.

   Nora soltou uma gargalhada rouca.

   — Pensa que algum homem vai aproximar-se de mim, amigo?

   — Por que se atormenta assim? Você é, em muitos aspectos, uma mulher como as outras

   A gargalhada se repetiu.

   Mas era uma gargalhada densa e amarga, como Dan não recordara ter ouvido jamais em sua vida.

   — De acordo — disse Nora. — me encerrarei para que não me toquem. Agora, quer-nos ensinar quais são os nossos formosos aposentos?

   — Estão no andar superior.

   Nádia, dando mostras de menos nervosismo, perguntou:

   — Não seria mais prudente que pedíssemos permissão ao dono da casa?

   — Eu mesmo lhe direi.

   — Então vamos.

   Precedidas por Dan, que manejava a lanterna, as duas mulheres subiram ao primeiro andar. Dan estava muito longe de suspeitar, naquele momento, que a famosa mulher do quadro, a temível assassina, era uma mulher de rosto queimado.

   Mas nada sucedeu.

   Foi fácil encontrar no primeiro andar um dormitório bem instalado, onde as duas mulheres ficariam a sós. Dan teve a precaução de recomendar-lhes que fechassem a porta por dentro o não a abrisse a ninguém. Calculou, também, que pelas janelas seria muito difícil entrar, de modo que, neste particular, ficou tranqüilo.

   O disco de luz de sua lanterna continuou iluminando corredores silenciosos, estranhos cômodos, onde as sombras pareciam dormir um sono de séculos. . .

   De repente, aquele foco de luz captou a silhueta de um homem escondido num ângulo e parecia não querer ser visto. Dan suspirou ao reconhecer nele Bradley, um dos pássaros que lhe fora apresentado pouco antes. Dos outros, Paulus e Kenton, não voltara a saber nada desde que os quadro se dispersaram por Black Tower em busca da aventura.

   Bradley estava nervoso e intranqülo. Parecia muito amolado pelo fato de Dan lhe ter encontrado ali.

   — Maldita noite! — resmungou.

   — Sim — murmurou Dan. — Não estamos nos divertindo muito.

   — Eu não pensava divertir-me.

   — Por que não?

   A reação de Bradley chamou a atenção de Dan, que se aproximou dele, sem deixar de focalizá-lo em nenhum momento.

   — Pergunto-me o que pretendia você ao vir aqui. Eu supus que fosse um viciado, como os demais.

   — E sou, mas de classe diferente.

   — Explique-se, Bradley, se não é secreto.

   — Per que há de ser? Maldita seja, já começo a ficar farto! Pensei que seria diferente, razão porque aceitei. Eu fui tempos atrás um viciado, mas por sorte pude curar-me. Então me dediquei a estudar os efeitos dos estupefacientes e seus métodos de distribuição. Pensava, talvez, que pudesse salvar muitos homens, considerados irremediavelmente perdidos. Mas Cliss, que ainda me considera um cliente habitual, porque lhe compro droga para minhas análises, convidou-me para esta grotesca comédia. Santo Deus! A única coisa que eu queria saber por mim mesmo é até que ponto uma mulher jovem pode chegar por causa da droga. Queria fazer investigações sem as quais minhas experiências seriam incompletas. Per isto estou aqui. Não sei que espécie de tipo é você, Mosley, mas me parece ver em seus olhos que não é tão porco como Paulus e Kenton. Se quiser ajudar-me a salvar algumas dessas pequenas, sua consciência lhe agradecerá. O que se preparou aqui esta noite, é simplesmente execrável.

   Dan não pôde evitar um suave sorriso.

   Menos mal. Nem tudo estava perdido. Diante de seus olhos tinha um homem que conseguira sair dos sinistros abismos da droga, que conseguira, inclusive, impor sua vontade para ajudar os demais a escapar daquele terrível flagelo. Homens ccmo Bradley faziam Dan pensar que nem tudo estava perdido; que há no coração humano um fundo de bondade, e que só faz falta vontade e energia para despertá-lo.

   — Eu não me chamo Mosley — decidiu confessar.

   — Não?

   — Sou um jornalista e me chamo Dan. Cheguei a Londres, faz pouco, para resolver um assunto que afetava a honra de meu pai, morto há anos. Meti-me neste embrulho quase sem saber como, mas minha única intenção é ajudar as mulheres que se encontram aqui, esta noite.

   Bradley exalou um suspiro de alívio.

   — Contento-me encontrar um ser humano. Pensei que já haviam terminado.

   — Por que não unimos nossos esforços? Parece-me absurdo que, procurando o mesmo objetivo, tenhamos cada um de ir por caminhos diferentes.

   — De acordo, mas antes desejava comer um pouco. Tenho úlcera no estômago, e devo comer bastantes vezes ao dia e em pequenas quantidades. Trago no meu carro algumas gulodices, prevendo isso. Acompanha-me? Tenho muito prazer em convidá-lo, amigo.. .

   — ... Dan — completou o jovem. — Chamo-me Dan.

   — Felicito-me em conhecê-lo. Nunca precisei tanto encontrar um homem que pensa como eu. Vamos ? Meu carro está no galpão situado ao lado de Black Tower.

   Dan não sentia apetite naquele momento, mas compreendia que não devia deixar só aquele homem. Poderia ser vítima de um atentado. Portanto decidiu acompanhá-lo, e ambos desceram ao andar inferior.

  

                                   Capítulo VIII

   O CARRO estava tal como Bradley o deixou. Entraram nele, e Bradley apertou um botão do porta-luvas. Logo começou a comer um pequeno sanduíche de presunto, depois de oferecer a Dan, que recusou .

   — Você sabe o que representa um carregamento de heroína de vinte e cinco mil dólares? — perguntou, de repente.

   — Pois.. . vinte e cinco mil dólares.

   — Que inocente que você é, meu amigo! — engoliu um bocado e olhou-o plàcidamente. Um carregamento desta espécie vendido, significa pelo menos, meio milhão de dólares.

   — E' possível?

   — Duvida? Por que pensa que os traficantes de drogas chegam ao crime com tanta facilidade? E que sabe você de drogas?

   — Pouco. . . o que todo mundo sabe.

   — E' que ninguém sabe nada. Conhece ao menos quais são as principais drogas?

   — Pois.. . o ópio, a heroína.. .

   — O ópio, a cocaína, a caucabis, o methadone, a morfina, o demerol, o normetadon, o quetodemidon e a destromoramide. E ainda esqueço algumas.

   — Não sabia... que você era tão esperto.

   — Simples curiosidade. Conheço, ademais, os efeitos de cada droga. O ópio, por exemplo, é uma substância que se obtém das vagens, antes de amadurecer, da' dormideira chamada popularmente flôr-do-sono, cultivada na índia, China, Turquia, algumas zonas do México e em todo o Oriente Médio. Produz uma sensação de eufórico bem-estar e dá lugar a fantásticos e incríveis sonhos. Quando falta a um indivíduo viciado, intoxicado, este sofre dores terríveis e náuseas. Mas o ópio não é mais que o princípio.

   Tirou uma garrafa chata com vinho Rosé de Borb; ns e esvaziou-a de um trago.

   — O ópio tem muitos derivados, principalmente a morfina, a codeína e a heroína. A morfina é um alcalóide branco e cristalino obtido diretarnente do ópio. Medicinalmente possui muita eficácia, mas é uma das drogas mais viciosas que existem. A codeína não tem tanta importância, mas a heroína é, em parte,, a rainha das drogas. Deriva diretamente da morfina e é cinco vezes mais perigosa que esta.

   E' uma substância cristalina que varia de côr desde o branco mais puro ao cinzento, chegando a alcançar um tom castanho claro. Produz intensas reações, fantasias, força e bem-estar, além de eliminar os desejos sexuais. O toxicômano a quem faltar essa droga matará, roubará e cometerá-qualquer delito para angariá-la. As pequenas que você conhecerá estão, sem dúvida, entregues à mesma. Nada lhes importa se obtiverem sua porção. E' uma droga que se pode aspirar ou injetar. A administração por via nasal de uma grama ou duas pode ser suficiente para cair nas garras do vício.

   Evidentemente, Bradly era um entendido. Dan sentia-se assombrado e timidamente perguntou:

   — Como se preocupou em aprender essas coisas?

   — Simples curiosidade, meu amigo. As drogas são um problema de nosso país, e um homem consciente deve conhecê-las.

   — Felicito-me ao ouvir suas explicações. Que sabe da cocaína?

   — Hummm... E' muito simples. Um alcalóide que se obtém da maceração das folhas de coca, que se cultiva principalmente na América do Sul. E' uma droga cristalina que, ao contrário da heroína, excita os desejos sexuais. Se se usa em grandes doses produz falta de sono e uma completa extensão, até chegar a causar a loucura ou a morte. E há quem mistura a cocaína com a heroína em uma espécie de coquetel que recebe o nome de dinamite. Pode administrar-se por via bucal, injetar-se ou aspirar-se.

   Acendeu um cigarro antes de continuar:

   — E quanto a cannabis, é a famosa marijuana, que tem mais de trezentos nomes diferentes. E' a erva do cânhamo, de cuja semente, vagem e caule se extrai a droga. O produto da erva se fuma, embora também seja usado em forma liquida. Os efeitos dessa droga são terríveis, porque levam diretamente ao homicídio.

   Expirou uma lenta tragada de fumo.

   — Como vê, o catálogo é muito variado. E não falo das drogas sintéticas, das que cada ano descobrem-se várias, para não cansá-lo. Neste mundo artificial e estúpido em que vivemos, as pessoas se lançam às drogas com verdadeiro frenesi, e sua produção e venda são um dos principais negócios do século vinte. Claro que você, um homem são e que ainda não experimentou seus efeitos não me compreende.

   — Não, não o entendo.

   — Nós pensamos que as pessoas ou são felizes ou não são, na realidade — disse Brandley com um sorriso de fastio. — Você não juraria que Marilyn Monroe era o cúmulo de felicidade terrena? Tinha juventude, tinha o amor a dar com os pés, tinha dinheiro e era uma das mulheres mais famosas do mundo e uma das mais invejadas. Até que, de repente.. . crack! De repente, você e éu descobrimos, com assombro, que era uma desdita-da que estava à borda do desespero e que num momento determinado sentiu a loucura de tomar mais soporífero do que necessitava. Dou-lhe esse nome para demonstrar-lhe que o mundo moderno não dá a felicidade, que as pessoas procuram por outro caminho. Creia-me, não há felicidade mais completa que a produzida pelas drogas, embora seja artificial! Quando alguém está debaixo de sua influência, pensa ser o homem mais rico, mais poderoso, mais elegante e mais amado pelas mulheres que existem no mundo.

   Dan olhou-o com certa surpresa.

   — Parece que você defende o uso das drogas, Bradley.

   — Oh! não! — sorriu. — O máximo que faço é reconhecer que a angústia do mundo atual faz seu uso cada vez mais freqüente e que dão uma felicidade artificial, coisa que, por outra parte, ninguém nega.

   Soltou outra baforada de fumo, enquanto parecia contemplar a escuridão que os rodeava.

   — E como funciona c mercado internacional das drogas? — perguntou Dan. — Você, que parece um entendido, deve saber.. .

   — Claro que sim, meu amigo, claro que sim... O mercado internacional das drogas, embora a você pareça que tem que se desenvolver em ambientes sórdidos, está manejado por pessoas elegantes, que movem milhões. Graças a modistas, perfumistas arqueólogos, milionários que parecem viajar por prazer... Todos esses são os que viajam ao Oriente e compram a matéria-prima, a droga sem elaborar, que faz falta no mercado.

   — Mas, é que... no Oriente ninguém proíbe o cultivo dessas plantas? — perguntou, assombrado.

   — Na realidade, não. Acaso você sabe o que é o Oriente Médio? Uma série de países pobres em contínua luta e onde julgam influências estúpidas e sinistras. A polícia é corruptível e às vezes qs próprios governantes têm participações nos benefícios da droga. O principal país produtor, antes, era a China, e a mercadoria se comprava em lugares determinados nos sinistres portos de Shanghai, e Hong-Kong, mas agora a China vive sob outro regime, onde é proibido o tráfico de entorpecentes. Os provedores marcham, então, para o Oriente Médio, a Indochina, Málaga e índia. Dali fazem transportar a mercadoria para a Itália, onde se elabora.

   — Como a transportam?

   — Não esqueça que os que fazem estas viagens são autênticos milionários e pessoas elegantes das quais ninguém desconfia. Às vezes trata-se, inclusive, de mulheres belíssimas. Um sorriso a tempo, uma gorjeta e a metade das maletas não são abertas. Outras vezes a droga viaja em fundo duplo da bagagem e, se a situação chega a ser muito difícil, em lugares secretos do navio. Às vezes este lugares secretos não são descobertos nem sequer quando o navio é ancorado. Homens de confiança dos estaleiros já o haviam construído assim.

   — Mas para conseguir tudo isso e mover tantos recursos precisa-se que as ganâncias sejam de centenas de milhões...

   — E são, amigo.

   Dan olhou através da janela. Pensou maquinalmente nos que não seriam ricos. O dinheiro, o

   grande dinheiro passava por estranhos caminhos. E, de repente, sentiu pena e uma espécie de asco.

   — Você disse — perguntou, olhando Bradley — que a mercadoria se elabora na Itália. Como é possível? Não vai dizer-me que a Itália também é um país perdido como o Oriente Médio.

   —Oh, não! Como ia atrever-me a dizer isso? A Itália é um país maravilhoso. O que acontece é que na Itália, e concretamente na Sicília mora a mafia. Você já deve ter ouvido falar nesta antiquíssima organização secreta. A mafia, da qual foi chefe o finado Lucky Luciano, faz o carregamento da droga, transforma-a em lugares secretos e a reexpede, já elaborada, aos Estados Unidos. Às vezes a droga se elabora legalmente em fábricas autorizadas, como no caso de uns importantes laboratórios suíços e outros franceses, cujos diretores falsificavam

   as partidas de material e asseguravam estar trabalhando em produtos inofensivos quando, na realidade, tranformavam em heroína. Esses pássaros foram descobertos faz pouco, mas as penas que lhes corresponderam foram mínimas.

   Fêz uma pequena pausa e acrescentou:

   — Ao chegar a droga aos Estados Unidos, o panorama se transforma. Neste país têm que vender a droga, que custou cem mil dólares por vários milhões. Por isto, a droga é distribuída em rações ínfimas entre os vendedores, que são gente pobre, prostitutas, chefes de quadrilhas e donos de cabarés e cassinos. Todos eles estão obrigados a guardar o segredo e a pagar religiosamente. Qualquer anormalidade, qualquer traição se castiga com a morte imediata.

   Exalou outra coluna de fumo, enquanto dizia em voz baixa:

   — Este mundo é o que eu conheci.

   — Exato, amigo. E esse mundo é o que nos rodeia agora.

   — Tenho de acabar com «Esquilo» Cliss — sussurrou, com voz tensa. — Isto não pode terminar assim...

   — Acabar com quem? — perguntou zombeteiro Bradley. — Não poderá. Basta salvarmos as garotas.

  

                                    Capítulo IX

   ESQUILO, Cliss sentia-se satisfeito. Afundado na poltrona mais cômoda da biblioteca, contemplava o crepitar da lenha, já quase extinta, enquanto no interior crescia mais e mais o fragor da tormenta. Os trovões retumbavam nas grandes salas-vazias de Black Tower, mas isso não fazia senão acentuar a sensação de placidez e de conforto que se tinha ali dentro.

   Consultou seu relógio.

   Eram dez horas. Sem dúvida seus homens haviam terminado já a maior parte do trabalho. E dizer, dava por descontado que ao menos dois de seus convidados já estariam mortos.

   Teria que fazer uma inspecção pelos lugares onde seus homens estavam situados, para convencer-se de que tudo caminhava segundo o plano previsto.

   Dobrou uma lista na qual estivera trabalhando e a guardou em um dos bolsos de seu casaco. Era uma lista de compradores dos objetos que pensava tirar das casas de seus convidados. Muitos dos objetos os conservaria, porque «Esquilo» Cliss era dotado de um fino senso artístico, e o que mais lamentava era não ser multimilionário para colecionar objetos de arte que fossem únicos no mundo. Mas os outros o venderia num instante e com um bom lucro. Os nomes que figuravam na lista que acabava de guardar com grande cuidado eram. de toda confiança. Vendendo-lhes, podia contar com a segurança de não ter logo complicações com. a polícia.

   O lucro iria ser mais que substancioso. E valeria mais do que o assalto a um banco bem recheado.

   Sumido nesses lisonjeiros pensamentos, «Esquilo» desceu ao porão onde deixara Johnson,.

   Movia-se com rapidez e segurança, pois conhecia Black Tower palmo a palmo. Ao chegar ao porão, procurou o lugar onde deixara Johnson. E, com efeito, encontrou-o ali, com o punhal coberto de sangue.

   Aquele homem era Kenton. A julgar por sua côr, devia estar morto há mais de uma hora.

   — Magnífico — disse Cliss, com a complacência do que contempla uma obra de arte bem acabada. Vejo que não falhou o golpe.

   Mas Johnson disse com um sopro de voz quase inaudível.

   — Não fui eu quem o matou. . .

  

                                              Capítulo X

   ESQUILO ficou paralisado. Acreditaria em qualquer coisa no mundo, menos no que acabava de dizer Johnson.

   — Está louco?

   — Não fui eu.. . Juro!

   Cliss pensou que seu subordinado estava a ponto de sofrer um ataque de nervos e que se sentia afetado por uma espécie de pesadelo. Certo que aquele porão, estremecido pelo fragor da tempestade, era para desequilibrar qualquer ente, mas êle sempre imaginara que Johnson era um homem de mais tempera.

   — Bem, bem, tranqüilize-se.. .

   E foi a dar uma palmada nas suas costas, quando notou que no punhal de Johnson não havia uma gota de sangue.

   Sentiu uma corrente de ar gelado atravessar-lhe a espinha.

   — Ouça...

   Johnson estava mais além do limite do horror. Seu medo era tão grande que não conseguia mover-se dali. De repente «Esquilo», com uma olhadela mais certeira, percebeu o terror estampado nos olhos do gangster.

   — Johnson. . . que aconteceu?

   — Foi uma mulher.. .

   — Diabo, explique-se!

   — Eu ia liquidar Kenton. . . Era tudo muito fácil.. . Êle usava a lanterna, de modo que distingui seus relevos com claridade.. . Assestei o golpe direto ao coração, quando, de repente, algo me deteve. Parei assombrado.. . uma mão de mulher, armada com uma faca, apareceu no reflexo da luz projetada pela lanterna.

   «Esquilo» exigiu com voz fremente:

   — Continue!

   — Tudo foi muito rápido.. . De repente, ela moveu o punhal duas vezes. Nunca vi tanta rapidez. .. Antes de refazer-me do susto, Kenton já tinha recebido duas facadas -no coração. Caiu, de repente, soltando a lanterna, e um silêncio espantoso se fêz neste maldito porão.. . Eu contive a respiração e só escutava o som muito suave que produzia a mulher ao expelir o ar pela boca. Sem dúvida estava furiosa e me procurava, mas a escuridão era absoluta e não podia ver-me. Fiquei quieto, muito quieto, até que seus passos foram afastando-se pouco a pouco.

   Cliss tratou de manter-se sereno.

   — Não compreendo, Johnson.

   — Que é que não compreende?

   — Você pode ser qualquer-coisa, menos um pateta e covarde. Sua verdadeira profissão é a de assassino. Não vai dizer-me que se assustou diante de uma mulher? Por que não liquidou ela também, ou pelo menos averiguou o que acontecia?

   — Não pude fazê-lo.

   — Nem viu pelo menos como era ?

   — Não. Só suas mãos. . .

   — E por que diz que não se atreveu a atacá-la?

   — Precisamente porque vi sua mão.

   — Que tem isso de particular? — resmungou Cliss. — Será que pretende fazer-me de louco, Johnson?

   — Essa mão — disse o assassino com um sopro de voz — usava um anel com uma grande pedra vermelha.

   «Esquilo» Cliss ficou um momento sem respirar .

   Compreendia perfeitamente o que devia ocorrer à Johnson, já que também êle se sentia, nesse memento, como se seus músculos se paralisassem, de repente.

   De modo que uma mulher assassina, que usava um anel com uma grande pedra vermelha...

   Tudo aquilo, que êle não desejara acreditar, manifestava-se ante seus olhos como algo verdadeiramente fantástico. Aquela lenda maldita de que êle se riu, concretizava-se.

   Johnson murmurou:

   — Chefe, temos de sair daqui.

   — Não faça caso. Você deve ter sofrido um pesadelo.

   — E o morto, que está aqui, não lhe parece uma boa prova? Ainda pensa que sonhei?

   — Não. Algo de verdade há no que diz. Mas vamos fazer uma coisa,, Johnson. Vamos tomar um trago e reunirmo-nos com Paul e com Lomas. Creio que entre todos, poderemos chegar a alguma conclusão razoável.

   — Contanto que me tire desse maldito porão qualquer coisa vai bem, chefe.

   -— Vamos logo.

   Os dois juntos, extremando as precauções, avançaram pelas silenciosas naves de Black Tower. Cada um deles levava uma arma. Seus músculos estavam tensos e seus índices pareciam prontos para o disparo.

   Não foi difícil encontrarem Paul e Lomas, os outros dois assassinos, nos lugares que lhes foram 'designados. Nem Paul nem Lomas tinham nada que contar. Ao contrário de Johnson, seu trabalho resultará dos mis aborrecidos até aquele momento. Nem haviam visto ninguém, nem nada se aproximara deles para esquentar a coisa.

   Os três se reuniram na biblioteca. Cliss não quis que Johnson desse explicações para os outros. Começava a perceber de que não era o mesmo atuar numa cidade, como estavam acostumados a fazer aqueles tipos, como atuar em Black Tower. Havia algo ali que desfazia os nervos, e mais uma noite de tormenta.

   Os quatro homens, bebêram silenciosamente. Por fim «.Esquilo» perguntou:

   — Nenhum desses pássaros apareceu por vossas zona?

   — Nenhum, chefe.

   — Pois ainda faltam três com vida. E são já dez e meia da noite.

   — Temos tempos, não?

   — Vamos procurá-los — decidiu Cliss. — Os procuraremos em grupo e acabaremos com eles de uma vez. Logo teremos que emparedá-los e não deixar nem um leve rasto de seus passos. Também teremos que desfazermo-nos dos automóveis, despencando-os em lugares diferentes e bem distante de Black Tower. Isso nos dá trabalho para toda a noite.

   Ao amanhecer temos de estar rumo à Londres para esvaziar as casas desses imbecis. Agora já não nos sobra muito tempo.

   — De acordo, chefe.

   Johnson parecia ter-se reposto. Os quatro homens puseram-se em movimento.

   Ao sair da biblioteca, viram Dan — a quem eles pensavam ser Mosley — e Bradley, que entravam juntos na casa.

   — Magnífico — sussurrou Cliss. — Vamos a eles. Assim poderemos matar dois pássaros de um só tiro.

  

                              Capítulo XI

   Eram quatro homens, «Esquilo», Johnson, Paul e Lonas, contra dois só, Bradley e Dan.

   Nenhum desses dois, suspeitava que iam ser atacados. O que faziam na realidade era procurar as moças que supunham estar em Black Tower.

   De repente um curto som metálico advertiu Dan. Era um som que produz um gatilho de uma arma ao ser montada.

   Deu um rapidíssimo empurrão em Bradley, enquanto êle mesmo lançava-se no lado oposto.

   A primeira bala passou entre os dois. Outras três, quase simultâneas, se estilhaçaram contra as grossas paredes do vestíbulo.

   Dan gritou, olhando até o lugar onde estava Bradley:

   — Solte a lanterna!

   O mesmo já havia soltado a sua, enviando-a longe, mas Bradley não soubera atuar a tempo. O disco de luz que ainda sustinha na mão direita era para seus inimigos uma pista demasiado clara. De repente soaram três detonações mais, e Dan percebeu o sinistro «plaf», «plaf», das balas ao fundir-se num corpo humano.

   Não precisou ouvir o grito de agonia de Bradley para compreender que este fora alcançado mortalmente .

   Conteve uma praga.

   Não suspeitara até aquele momento que estranhas derivações ia assumir aquele assunto. Êle estava seguro de encontrar-se ante uma quadrilha de malandres e corruptores, mas não -diante de um grupo de frios assassinos. «Esquilo» e seus homens, ao que parecia eram as duas coisas ao mesmo tempo.

   Um suor lívido apareceu nas frontes de Dan. Tinha que escapar dali.

   Para não fazer o menor ruído, começou a rastejar, afastande-se em direção a uma das portas, cuja posição entrevia vagamente. Percebeu que poderia perder-se com um só relâmpago iluminando o local. Seus inimigos só precisavam vê-lo alguns segundos para liquidá-lo sem piedade.

   De repente os relâmpagos cessaram, mas o perigo era muito evidente.

   Dan incorporou-se, entre a escuridão, o se dispôs a correr até a porta onde estava sua única possibilidade de salvação.

   E então um novo relâmpago iluminou o vestíbulo como se fosse de dia!

   «Esquilo» gritou.

   — Ali está!

   Quatro balas silbilaram em sua figura. Dan saltou até a porta com a velocidade de um gamo.

   Mas não chegou até ela. Sabia que as armas de seus inimigos já estavam apontando aquele lugar, e que apertariam os gatilhos quando seu corpo se recortasse no umbral.

   Em lugar disso, Dan atacou de surpresa. Uma das poltronas do vestíbulo voou até o assassino mais próximo. O que recebeu o impacto foi Lomas.

   Este lançou um rugido, caiu para trás e arrastou em sua queda o pequeno «Esquilo» Cliss.

   Novamente se fêz escuridão. A luz do relâmpago, cessara.

   Dan, que até então não quisera utilizar sua arma, compreendeu que não teria outro recurso senão matar.

   Quando um novo relâmpago iluminou a cena, seus inimigos procuraram-no com os olhos.

   Foi Paul o primeiro que o viu.

   Viu um rosto fechado, quieto, junto a uma das janelas. E viu a arma que estava diante daquele rosto.

   A detonação o deixou cego.

   Não chegou a compreender que uma bala acabava de destroçar sua cabeça. Não chegou a escutar seu próprio grito de horror.

   «Esquilo» chiou como um rato assustado:

   — Cuidado! Está armado!

   E Dan procurava seu corpo com duas balas que soaram através da sala, estremecendo o solo. Os três assassinos que sobravam com vida compreenderam que no momento, não lhes sobrava mais remédio que fugir.

   Foi «Esquilo» o primeiro que saltou até a porta com uma rapidez que fazia honra ao seu apelido.

   Johnson e Lomas seguiram-no. Dan poderia ter disparado outra vez, mas não quis gastar mais balas, sem ter a certeza de alcançá-los. Só lhe sobraram cinco projéteis pois acabara de gastar três e não podia permitir-se ao luxe de ficar desarmado ante aquela quadrilha.

   Viu que os três tinham fugido para o lado norte da casa.

   Encaminhou-se para o sul.

   Não tinha nenhum interesse em encontrá-los. Pensou que o que convinha fazer era sair o quanto antes de Black Tower, procurar um telefone e chamar a polícia.

   Mas e as duas mulheres encerradas no quarto do andar superior? Que seria de Nádia e de Nora? Atreveriam-se a atacá-las aqueles abutres?

   Esta vacilação foi o que decidiu-o a ficar em Black Tower. Tinha que reduzir à impotência aqueles três bandidos e entregá-los a polícia.

   Encostou-se a uma das paredes e aguardou.

   O silêncio era -absoluto nesse momento, por contraste com o fragor dos trovões que antes haviam caído sobre a casa.

   Dan não conhecia bem Black Tower. Não sabia onde encurralar seus inimigos, mas seu instinto lhe disse que devia ficar perto do quarto onde encontravam-se Nádia e Nora, a fim de protegê-las.

   Começou a andar.

   Movia-se sigilosamente, como uma sombra, com os movimentes suaves e cautelosos de um gato.

   Chegou ao andar superior.

   Novamente os trovões haviam começado sua sinfonia estremedora. Outra vez os relâmpagos iluminavam com seus resplendores os corredores intermináveis da casa.

   Foi no final de um deles que viu aquela silhueta. Não pode reconhecê-la, mas era alguém que tinha uma arma na direita.

   Os dois apertaram o gatilho de uma só vez. As balas se perderam zumbindo e chocaram-se por fim contra as grossas paredes.

   Dan, apegado a uma porta, esperou o próximo relâmpago. Todos os seus músculos estavam tensos.

   Quando aquela luz mortal iluminou de novo o corredor, êle apertou o gatilho. Viu seu inimigo vacilar, dobrar-se de joelhos, enquanto a claridade do relâmpago tornava-se mais intensa.

   Mas Dan não compreendeu que outro inimigo estava às suas costas.

   Não, não compreendeu até que já era demasiado tarde.

   Até que aquela coisa dura abateu-se sobre sua cabeça e lhe produziu a sensação de que a horrível tormenta da noite estalava exclusivamente dentro de seu crânio.

  

                                      Capítulo XII

   HÁ MOMENTO em que no desespero das forças, momentos em que fazemos o que em circunstâncias normais não teríamos feito nunca. Dan tinha motivos para cair cem vezes fulminado por terra, mas ainda se manteve em pé porque pensou que se caísse já não voltaria a levàntar-se.

   O liquidariam como a um cão enfermo.

   Tateando, avançou uns passos pelo corredor, procurando afastar-se do inimigo que tinha às suas costas. Este repetiu o golpe, descarregando de novo a culatra de sua arma sobre o crânio de Dan, mas já o jovem se afastara o suficiente e o impacto só o alcançou no ombro.

   Embora sentisse uma viva dor, esta mais contribuiu para reanimá-lo.

   Correu de novo, sem saber onde estava. Nem sequer percebeu que, ao receber o primeiro impacto, soltara sua arma.

   Estava desarmado e com pelo menos, dois inimigos às suas costas.

   Agora a luz dos relâmpagos era contínua, incessante, como um holofote contínuo.

   Seus olhos olharam as potas que havia à sua direita, e reconheceu uma delas. Era a porta do quarto em que estavam as duas moças.

   Dan ouvia passos rápidos atrás dele. Percebeu que seus inimigos voltavam.

   De repente suas forças falharam um instante só.

   Apoiou na folha de madeira, para recuperar-se, sabendo que aquela porta estava fechada.

   Mas, de repente, a folha de madeira cedeu!

   Dan encontrou-se no interior do quarto antes de ter percebido o que verdadeiramente sucedia.

   Ali não havia duas mulheres. Sim uma só. Não viu Nádia em parte alguma. Em troca Nora, a que tinha uma face queimada, estava lá dentro.

   Pelo visto, Nádia desaparecera.

   Dan viu sobre uma das prateleiras que adornavam as janelas uma garrafa. Não podia contar com mais armas que aquela. Quebrou-a brutalmente, segurando-a pelo gargalo, e convertendo a parte inferior em um terrível punhal de dez ou doze arestas.

   Decidiu-se a enfrentar seus inimigos que já estavam no interior do quarto.

   Uma espécie de nuvem cobria seus olhos.

  

                                    Capítulo XIII

   DE REPENTE, as forças de Dan tornaram a falhar. Caiu de joelhos.

   Viu que «Esquilo» Cliss levava na mão direita uma arma e na esquerda um delgado bambu.

   Cliss aproximou a ponta do bambu dos olhos de Dan.

   -— E' um trabalho delicado — explicou com prazer. — Furam as pálpebras e não se pode arrancá-lo. O operado sofre muito, mas sobretudo pensa no que vai sofrer mais adiante e isso o faz falar como um vendedor ambulante. Que diz você, Dan?

   — Que maldita seja toda sua família.

   Dan sentia-se dolorido pelos golpes. Respirava angustiosamente.

   «Esquilo» encostou. O fêz suavemente e colocando nisso um diabólico prazer. Dan estremeceu, pensando que poderia atravessar Os seus olhos. Se ficasse cego, já não queria viver.

   E tinha que ficar quieto, porque se fizesse um movimento em falso o bambu lhe entraria até o fundo do globo ocular.

   Tentou reunir suas forças.

   «Esquilo» começou a rir. Movia o abdome a cada gargalhada. E dobrava e apertava a cintura de riso, ao ver como Dan estava quieto.

   Brotou o sangue e então as gargalhadas de «Esquilo» fizeram estremecer o ar.

   Johnson estava vigilante, como um cão atento a qualquer ruído que pudesse chegar do exterior. Dan só esperava uma boa ocasião. Tinha as mãos livres e o caco da garrafa entre os dedos.

   Não pudera se lançar antes porque tinha dois inimigos diante dele, e esperava que se apresentase um momento mais favorável. Mas o mal é que não se apresentara. Supôs que teria que atuar rapidamente, ainda com o risco de que o bambu lhe atrevessasse completamente um olho .Contraiu os músculos e nesse instante chegou aos ouvidos de todos o rumor de um carro.

   Cliss endireitou-se um pouco, levantando aquele bambu convertido numa ponteira. Johnson pôs-se alerta. O carro passou perto com um ronronar de carga pesada. Devia ser um viajante extravia do, mas afastou-se bem rápido.

   — Continue, Cliss — disse Johnson com um sorriso de bom pai de família.

   Cliss ia continuar, mas as coisas haviam mudado .

   Dan tinha inclinado a cabeça, com as mãos livres e o gargalho da garafa preso entre os dedos de sua direita. Tinha também nos olhos um terrível desejo de matar.

   O bambu desceu com uma velocidade fulminante, procurando atravessar um olho ou a fonte da vítima. Encontrou o vazio, porque Dan afastara-se o bastante, e o bambu quebrou-se no chão. Em troca o gargalo de vidro da garrafa subiu e traçou no pescoço de Cliss um selvagem corte em forma de «Z».

   Cliss levantou sua arma, soltando uma praga. Estava de pé, gritando e apertando com a mão o pescoço, não sabendo ainda se tinha a jugular cortada. Dan soltando um grito próprio dos selvagens da selva, arrojou-se sobre Johnson ao mesmo tempo que este disparava.

   A bala só lhe roçou a face. Dan rodeou-lhe o braço em torno do pescoço, colocando-se atrás dele e com a outra mão começou a desf azer-lhe c rosto com o gargalo da garrafa. Mesmo que Johnson vivesse já não seria um ser humano nunca mais. O sangue começou a manchar a manga e as mãos de Dan. Entretanto Johnson agitava-se desesperada-mente e gritava como um condenado. «Esquilo» estava cego de dôr, e não se atrevia atirar porque Johnson e Dan estavam muito perto.

   Isso durou uns trinta segundos.

   Dan sabia que iam matá-lo, e só desejava vender caro sua vida. Logo que «Esquilo» tivesse suficiente serenidade para fazer uso eficaz da pistola que ainda conservava na mão, as coisas estariam perdidas. Johnson também era capaz de matá-lo. Podia voar a cabeça de Dan com um só movimento hábil do braço, e a única possibilidade de salvação do jovem estava em causar-lhe tanta dôr que o outro não pudesse mover-se como deveria. A dor de Johnson já durava trinta segundos, mas o tipo era bastante duro. Moveu a arma por fim, Dan baixou a cabeça, e o novo disparo estalou como uma chicotada na penumbra do recinto. Entretanto Johnson continuava gritando, seu companheiro correu para pegar Dan pelas costas.

   Este rodou um pouco, enquanto rasgava com o gargalo a mão armada de seu inimigo.

   A pistola caiu ao chão. Johnson estremeceu e Dan lhe deu um empurrão para lançá-lo contra seu «cupincha» mais próximo.

   Os disparos se cruzaram na penumbra. Dan do chão, atirou a garrafa como um projétil, sem acertar por causa da excitação. Ao mais próximo de seus inimigos ocorreu o mesmo, porque estava mais nervoso que uma mulher.

   Portanto Dan recuperou o gargalo da garrafa e foi para onde encontrava-se Nora, arrojando pelos ares a improvisada arma. A moça sabia como mover-se e logo saltou para ali, enquanto, Dan, se movia na penumbra com a agilidade de um gato.

   A casa parecia cheia de esconderijos, e Dan só tinha dois inimigos. Com a moral do que se defende em vez de atacar, procurou esconder-se antes deles.

   Antes apoderou-se da arma que Johnson deixara cair.

   Saltou para trás de umas cortinas, enquanto uma bala lhe roçava o ombro, perfurando-lhe inclusive o casaco. Disparou uma vez e o inimigo mais próximo bamboleou ao ser roçado pela bala. O outro correu a entrincheirar-se, e foi tão rápido que Dan não pode alcançá-lo.

   Johnson, cego de raiva, encaminhou-se como um louco até onde estava a moça, paralisada pelo estupor. Sua intenção, bem clara, era ameaçar Dan de saltar os miolos dela. Mas Dan se adiantou a tão caritativo pensamento e lhe arrancou com uma bala os cabelos da cabeça. Só a escuridão impediu-o de matá-lo.

   Logo a arma começou a fazer um fatídico clic, clic. Já não havia mais balas no tambor.

   Dan soltou uma imprecação, ao ver Nora correr até Johnson, meio aturdido, para desarmá-lo. Pensou que não conseguiria. «Esquilo» Cliss, já mais refeito, ficara de pé e apontava-lhe nervosamente sua arma.

   Dan já não podia ajudá-la porque não tinha balas nem tempo pera chegar até ali dando saltos.

   Tratando de distrair uns segundos a atenção de seu inimigo, gritou:

   — Entrem por ali!

   Era como se chamasse a alguém que estivesse na porta.

   O da arma desorientou-se durante uma mínima fração de segundo, retardando o disparo que já ia sair. Nora pôde chegar até Johnson, lançando-se em cima dele e rolando os dois pelo chão. Duas balas picotaram o pavimento, junto a ela, mas sem alcançá-la, tanta foi sua agilidade.

   E Nora não só era ágil como bonita em parte, aprendera a atirar nas melhores ou, mais exatamente, nas piores escolas.

   Esses lugares onde se ensinam as artes de dominar e tirar do barulho um semelhante.

   Pelo menos parecia isso.

   Contorceu-se, colocando a arma em posição. Seu disparo foi tão certeiro que alcançou seu inimigo entre os olhos.

   Sobrara «Esquilo», que corria até a porta como um bêbedo. Dan gritou:

   — Deixe-o, Nora!

   Era muito tarde. Nora disparara outra vez, cravando-lhe uma bala no centro exato da nuca.

   «Esquilo» caiu para trás, dando um salto de verdadeiro atleta na última crispação de seus nervos. Dan sussurrou:

   — Nunca pensei que você fosse tão perigosa.

   Nora disparou outra vez, antes que caísse de todo.

   — Não era mais que um porco — sentenciou. — Deveria ter deixado êle viver com a cara que você lhe deu, mas já tivemos demasiados sobressaltos. E' melhor acabar.

   — Que pretende?

   — Não convém fazer perguntas.

   Dan pensou que êle tinha uma arma sem balas e ela outra carregada. Ademais já vira que ela sabia atirar. As coisas não estavam para ficar muito tolo.

   — Pode curar-me a pálpebra — pediu. — A verdade é que vejo apenas por um olho.

   — Não lhe faz falta o outro, carinho. E não fluero que, enquanto eu sirvo de enfermeira, você me tire a pistola. Fique quietinho aqui, bem fechado a chave, enquanto eu vejo o que acontece em Black Tower. Não me fio em ninguém.

   — Vai deixar-me encerrado aqui, com os mortos ?

   — Oh! não ficará muito tempo assim, querido ! Aposto minhas unhas que dentro de meia hora você encontrará a maneira de sair. Mas dentro de meia hora eu penso estar longe daqui.

   — Se é assim, devo acompanhá-la, Nora.

   — Para quê? Existe tão poucos homens decentes no mundo! -

   Não posso fiarme em você, amor. Apertar o gatilho é um exercício que você talvez goste muito. E ainda não sei que papel representas nesse drama.

   Dan não sabia exatamente o que ela se propusera. Mas quando viu que ela avançava até a porta, compreendeu.

   Não poderia deixar que ela se afastasse. Era uma testemunha absolutamente necessária.

   Começou a mover-se, calculando que com dois golpes afortunados poderia fazer a arma voar pelos ares, mas ela esperava uma coisa assim. Apontou-lhe o cano na boca do estômago com tanta força que Dan se dobrou, contendo um gemido.

   — Assim, benzinho, é que os homens tem de ficar. Com a boca aberta ao olhar-me e babando de amor por mim. Que tal se sente, agora?

   Retirou pouco a pouco a arma. De repente, o cano daquele revólver lhe pareceu tão grande como uma chaminé.

   — Estou bem, Fada Madrinha. Só que se eu tivesse lhe partido a boca a socos estaria muito melhor.

   Ela não se intimidou.

   — Tome, vida minha.

   Tirara um pequeno tubo de pastilhas do reduzido bolso de sua saia. As pastilhas eram brancas e tão diminutas que todas juntas pareciam apenas uma moeda. Dan pensou que devia esperar exatamente isso de uma mulher que parecia tão precavida como Nora.

   — Tome uma, meu amor.

   — Um soporífero?

   — Ou um veneno, quem sabe. Não posso deixá-lo aqui encerrado à chave para que arrebentes a fechadura antes que eu tenha chamado a polícia. Vamos tomar uma, meu pombinho. São doces ?

   — Assim que puder lhe amassarei o rosto a golpes, Nora — resmungou Dan. E a expressão de seus olhos demonstrou que falava a sério.

   — Sim, amor. Quando quiser.

   Dan engoliu uma das pastilhas. Pensara em jogar o tubo em seu rosto e tentar algo, mas notava que ela estava decidida e com todos os músculos em tensão, disposta a disparar ao menor movimento que não lhe agradasse.

   Do que era que a moça tinha medo.. .

   Uma vez engolida a pastilha, pensou que valia a pena ficar cômodo. Deitou-se num diva, acomodando-se bem para tirar uma soneca.

   Nora foi de um morto a outro, retirando suas armas com um manejo suave e delicado da mulher que seleciona frascos de perfumes numa perfumaria da Quinta Avenida.

   Logo foii até a porta, que fechou com a chave que estava pendurada numa corrente e pouco depois ouvia-se seus saltos ao afastar-se.

   Mas então, Dan já estava profundamente adormecido.

  

                                     Capítulo XIV

   DAN não soube dizer quanto tempo ficara sem conhecimento.

   Sua testa doia horrivelmente quanto seus olhos começaram outra vez a vislumbrar algum objeto. Procurou levantar-se e não foi possível. Teve que respirar afanosamente alguns minutos, até que pouco a pouco foi recobrando uma lucidez relativa.

   Percebeu então em que classe de embrulho estava metido até o pescoço. Viu que em volta dele havia dois cadáveres, o de Johnson e o de «Esquilo» Cliss. Sabia que em outros lugares de Black Tower havia mais dois, contando com o de baixo.

   Essa espécie de contabilidade sinistra desanimaria qualquer homem e esteve a ponto de desanimar Dan. Encontrava-se num casarão desconhecido com pelo menos quatro mortos e sem poder dar

   explicações à polícia; é uma das coisas que os médicos não recomendam para curar as enfermidades nervosas.

   Mas Dan compreendeu que devia tentar algo.

   Ficou de pé, e por uns mementos deu voltas em torno de si. Logo aquela vertigem cessou.

   Dan saiu do quarto. A luz dos relâmpagos havia se espaçado de novo, e a tormenta parecia acalmar-se, a claridade era suficiente para que pudesse saber onde se encontrava,

   Um pensamento não lhe abandonara, e era que a moça da cara queimada, Nora, lhe salvara a vida.

   Precisava encontrá-la.

   Precisava agradecer-lhe, apesar de tudo, e ajudá-la a sair dali, se é que ainda continuava em Black Tower.

   Dan ignorava que naquele momento ela continuava em Black Tower. Que as duas mulheres continuavam ali.

   E que estavam acontecendo coisas.

   Paulus caminhava sozinho pelos imensos recintos. Sua lanterna iluminava recantos insondáveis, zonas de profundas sombras, grossas colunas por trás das quais qualquer inimigo poderia esconder-se.

   Mas Paulus não estava assustado.

   Era o único dos quatro homens que começaram aquela aventura que estava se divertindo ainda . Era êle o único a quem tudo aquilo parecia excitante e cheio de maravilhosas surpresas.

   Antes acreditara ouvir gritos e disparos, entre o fragor dos trovões. Mas estava certo de que tudo aquilo era «efeitos especiais» inventados por Cliss para dar maior colorido ao ambiente de aventura.

   No fundo, Paulus, acreditava ser um homem do mundo, estava bem longe de suspeitar a horrível verdade.

   A única coisa que o enfastiava, era não ter encontrado ainda nenhuma das garotas prometidas.

   Claro que, como êle mesmo dissera a «Esquilo» três dias antes, a possibilidade de fracasso era o que dava sabor àquela aventura.

   Empurrou uma porta, e o disco de luz de sua lanterna iluminou uma parede onde havia diversos quadros.

   Personagens de outras épocas, seres solenes e distantes que dormiam em seus túmulos o sono dos séculos.

   Paulus apertou os lábios.

   O que êle queria era alguma mulher viva, não dezenas de quadres representando personagens mortos.

   O disco de luz de sua lanterna passeou impaciente por todos os ângulos da imensa sala.

   De repente parou ante algo que não estava morto, sim vivo. Diante de uns sapatos de salto alto e o começo de umas formosas pernas enfiadas em meias de seda.

   Paulus soltou um assobio de admiração.

   Bem, não lhe enganaram-. Uma das moças estava ali, e pelo visto era uma verdadeira rainha de beleza. Só de ver a parte inferior de seu corpo já podia adivinhar-se o resto.

   Logo o disco de luz de sua lanterna continuou subindo. Iluminou um poderoso busto, apertado per um suéter, e logo o rosto da jovem.

   Também esse rosto, fêz êle soltar um assobio de admiração. Na verdade, não compreendia onde Cliss fora encontrar aquela maravilha.

   O fato de uma mulher tão jovem e tão bonita já estar perdida pelas drogas não lhe impressionou, em absoluto. Tampouco o impressionou o fato de ter êle ido aproveitar-se daquela miserável situação. Só se deu por convencido de que a mulher era muito mais bonita do que êle pudera sonhar. . . e de que estava ali, a seu alcance!

   A única coisa que o enfastiava era à atitude da jovem, que tinha o rosto tenazmente virado de um lado só.

   Era como se quisesse mostrar o lado bonito de seu rosto.

   Paulus atribuiu-lhe a timidez, e disse a si mesmo que aquilo acrescentava um novo encanto a sua insólita aventura.

   Com voz pcuco firme, porque a beleza da mulher o emocionara, murmurou:

   — Sabe que é muito bonita ?

   Ela não contestou. Continuou com a cabeça tenazmente virada para o outro lado, de modo que êle só podia ver uma de suas faces.

   — Cliss lhe disse do que se tratava, não?

   Ela não contestou tampouco.

   A sensação de timidez era cada vez mais intensa, e isso infundia a Paulus extremos insuspeitos.

   Os mais canibalescos desejos perdem seus sentidos, fazendo-se insuportável a espera.

   Todo o seu corpo vibrava, como um arco prestes a arrebentar. Seus olhos obsecados não perdiam detalhe dos formosos relevos daquela mulher. A única ccisa que desejava era tê-la em seus braços e ver bem todo o seu rosto.

   Por isso insistiu:

   — Sabe que logo terá um prêmio, não? Cliss será bom com você, e inclusive eu também. Mas se não aceita.. .

   Ela tampouco contestou. Paulus começou a sentir-se irritado ante aquele silêncio.

   — Por que não fala? — balbuciou.

   Então ela abriu os lábios pela primeira vez, mas sem girar nem meia polegada a sua cabeça.

   — Aqui há pouca luz. Paulus soltou uma gargalhada.

   — Você tem razão. . . Claro que tem pouca luz! E' preciso que você e eu nos vejamos, que nos conheçamos bem.. . Suponho que esta condenada habitação tenha instalação elétrica.

   — Creio que não.

   — Uma cachorrada dessas espécies não perdoarei ao malandro do Cliss.

   — Posso trazer um lampião.

   Paulus distendeu seus lábios numa espécie de sorriso. As coisas iam melhor do que êle imaginara .

   A jovem colaborava!

   — Sabe onde encontrar isso? — perguntou.

   — Claro que sim. . .

   — Traga-o. Eu esperarei aqui mesmo. Mas não demore muito, boneca.. .

   — E' só um minuto.

   — Eu estarei ansioso de impaciência.

   E era verdade. Pela primeira vez em muitos anos, Paulus, o homem com tanta experiência, sentia-se como um menino.

   — Por que não me permite ver o outro lado do seu rosto?

   Pareceu notar uma levíssima sombra brincaIhona nos lábios da mulher.

   Mas não soube captar o significado que podia ter aquele extranho sorriso.

   Ela sussurrou:

   — E' melhor que as coisas tenham um pouco de mistério, não? Do contrário tudo seria demasiado vulgar.

   — És muito inteligente, pequera.

   — Procuro só ser uma mulher compreensiva.

   A estranha desconhecida colocou-se de costas para caminhar até a porta. O disco de luz marcava cada curva de seu maravilhoso corpo. Era igual a uma miss, movendo-se na passarela. Era unia obsessão para o corrompido Paulus.

   De repente ela desapareceu por trás da porta.

   O disco de luz só iluminou trevas, as trevas expectrais e rotas daquela sinistra noite.

   Passaram cinco minutos, seis.

   A tempestade cessara.

   Uma claridade lívida penetrava pelas janelas, vislumbrando-se apenas os objetos mais próximos.

   Alguém acabara de entrar pela porta e contemplava-o no meio das trevas.

   Paulus girou até ali o disco de luz.

   Viu, como vira antes, uns sapatos de salto alto e umas formosas pernas enfiadas em finas meias de seda.

   Compreendeu que ela voltara.

   Não trazia o lampião, mas era igual. Quando amanhecesse já veria ela claramente. Agora um violento, um áspero desejo o dominava e o fazia vibrar.

   A luz de sua lanterna continuou subindo com uma estudada lentidão, com um malsão desejo de retardar o instante esperado.

   A saia cingia as esculturais formas. E mais em cima um suéter de côr indefinível.

   A mulher estava de frente para êle. Paulus sabia agora que poderia ver perfeitamente seu rosto.

   Mas por que tinha ela as mãos unidas atrás das costas? Por quê?

   Talvez para levantar o busto e fazer que este ficasse mais agressivo?

   Facilidades demais para uma mulher que nunca se dedicara a agradar aos homens.

   Uma chispa de receio brilhou nos olhos de Paulus pela primeira vez. Mas anulou-a em seguida.

   Ela queria lhe dar toda espécie de facilidades para assim obter maior porção de droga. E por que não?

   Paulus sabia que por umas gramas de cocaína, a pessoa viciada se corrompe, se vende, mata e morre.

   Êle aproveitaria a situação.

   O mesmo morboso desejo de atrasar o instante ansiado o fêz enfiar todavia, o rosto.

   Queria saber antes o que aquelas mãos ocultavam .

   — Por que as esconde? — sussurrou. — Que segredo oculta aí?

   Ela disse suavemente.

   — Segredo? Nenhum. Olhe...

   Mostrou a mão esquerda. Nela rebrilhava um anel. Um reflexo de luz emanou daquela imensa pedra vermelha.

   — E olhe. . .

   E a mão direita apareceu também. Aquela mão empunhava um afiado punhal, de lâmina comprida .

   — Não queria me ver bem, queridinho? Por que não me olha agora?

   A lanterna tremia entre as mãos de Paulus, que agora precisava apertá-la com os dez dedos.

   O reflexo ia de um lado a outro, iluminando espectralmente o corpo da mulher, a pedra vermelha do anel e o punhal que rebrilhava sinistramente .

   Logo viu os olhos.

   Aqueles olhos quietos, sinistros, opalinos, que pareciam olhar para o além túmulo.

   Paulus não teve mais forças nem para mover-se .

   Seus pés pareciam cravados na terra.

   Sua garganta apenas foi capaz de soltar um grito de horror.

   Viu que ela avançava e estremeceu ao receber em seu corpo, um, dois, três impactos.

   No princípio não sentiu dor.

   Pareceu-lhe que ela golpeara com o punho simplesmente, e quis então dar um passo atrás.

   As forças não lhe responderam.

   Sentia agora, de repente, que a pele lhe queimava, mas que em suas entranhas havia como um frio de gelo.

   Levou as mãos ao ventre, onde a mulher lhe cravara o punhal, e então ela lhe acertou na garganta o golpe definitivo.

   O fêz suavemente, com elegância, fazendo com a faca um artístico movimento.

   Da garganta de Paulus surgiu um jorro de sangue.

   A mulher afastou-se, para que o líquido vermelho não manchasse seus sapatos imaculados, e contemplou durante alguns instantes a silenciosa agonia do malandro.

   Deixou a faca cravada, como um macabro adorno e logo esfregou as mãos silenciosamente.

   Dan escutou aquele grito de agonia.

   Afundara nos corredores de Black Tower, aqueles imensos corredores que pareciam não terminar nunca, pareceu-lhe que aquele grito repercutira em todas as paredes que havia às suas costas.

   Virou-se.

   Esteve a ponto de tropeçar com uma gigantesca teia de aranha que tampava em parte aquele lado do corredor. No centro, espreitando, uma aranha monstruosa, imensa, parecia a ponto de saltar sobre êle.

   Dan fêz um gesto de repulsa e de alarme.

   Gostosamente teria disparado contra o repulsivo animal, mas produziu-lhe náuseas a visão antecipada daquele pequeno monstro partido pelas balas em vários pedaços que saltariam em todas as direções.

   Preferiu retirar-se de vagar, procurando o lugar onde brotara aquele grito de agonia.

   Encontrou-o pouco depois, ao entrar numa das peças. Viu um homem banhado em um charco de sangue.

   O disco de luz iluminou também as bonitas pernas da mulher, que junto ao morto, contemplava-o a lívida claridade que penetrava pelas janelas .

   Dan elevou um pouco sua lanterna.

   A luz se projetou sobre o formoso rosto de Nádia, um rosto muito diferente do de Nora. Porque Nora tinha uma face queimada, e Nádia não.

   Durante uns longos minutos os dois se olharam fixamente, embora Nádia visse éle com dificuldade .

   A voz da mulher foi como um sopro, como um queixume.

   — Foi espantoso. Ouvi um grito de agonia e. . . e.. .

   — Sucedeu o mesmo comigo — sussurou Dan.

   — Não compreendo o que acontece. . .

   — Eu sim. Eu percebo agora de que é certa a maldita lenda de Black Tower. Onde está Nora?

   — Não. . . não sei.

   — E' necessário encontrá-la.

   — Desgraçadamente estou certo.

   — Pensa que ela?.. .

   — Não é possível! Ela tem a desgraça de seu rosto, mas pelo reste é uma mulher como as outras.

   — Não penso em fazer-lhe mal, Nádia. Penso que ela é uma mulher que precisa de quem a cuide, e ademais não posso esquecer que me salvou antes a vida. Inclusive lhe diria que sinto por ela uma estranha ternura, porque seus olhos são os de uma mulher que sofre. O que devemos fazer, é capturá-la sem causar-lhe nenhum dano.

   — Creio que tenho uma idéia para isso — murmurou Nádia.

   — Qual?

   — E' possível que ela, embora seja uma pobre enferma procure outra vítima.

   — E quê faremos?

   — Se nos vê atados de pés e mãos, ou eu ou você, tentará cometer um novo crime. Então o outro, pelas cestas, tentará imobilizá-la.

   — Quer dizer que temos que usar uma isca.

   — Certo. Do contrário, nesse imenso casarão, não-a encontraremos nunca.

   Ban refletiu velozmente. Nádia tinha razão.

   Procurar Nora, por entre as sombras não os conduziria nada mais que a novos perigos. Qualquer um deles poderia ser atacado e morto pelas costas, enquanto que com esse plano da jovem poderiam deter Nora e entregá-la aos cuidados dos médicos. A única coisa que faltava agora, era decidir quem serviria de isca.

   Evidentemente o que ficasse com os pés e mãos atados correria mais perigo. Dan compreendeu que só a êle pedia corresponder esta situação comprometedora. Não podia arriscar Nádia.

   Apontou os cordões que prendiam umas grandes cortinas.

   — Isto servirá — indicou. — Amarre-me a esta cadeira, mas de modo que em qualquer momento possa desfazer-me das ligaduras. Logo coloque a lanterna de modo que focalize a mim. Não haverá então mais remédio que esperar.

   — Eu poderia servir de isca... — superiu Nádia.

   — Não, não.. . Seu papel seria então muito perigoso.

   Sentou-se na cadeira, e deixou que Nádia lhe amarrasse c s pés e as mãos. E ela o fêz com incrível rapidez. Ela lhe indicou que amarrava bem apertado, porque Nora poderia perceber logo que entrasse.

   -- Dan mostrou-se de acordo.

   Nada mais distante de seu ânimo que suspeitar que aquilo poderia ser, por sua vez uma diabólica armadilha.

   Só quando mexeu um pouco os braços e notou que as ligaduras estavam bem apertadas e ofereciam uma resistência a toda prova, umas gotinhas de suor gelado começaram a aparecer em sua testa.

   Foi falar e, de repente, notou que a boca ficara seca.

   Seca em poucos segundos.. .

   Na penumbra da sala captava os movimentos suaves, de tigresa, da mulher que estava com êle. Uma brusca, terrível suspeita, tomou conta do coração de Dan. Mas ainda não podia acreditar. Não podia acreditar!

   Com um sopro de voz balbuciou:

   — Que faz?

   Ela aproximara-se de um dos quadros. Seus movimentos seguros e suaves continuavam sendo os de uma tigresa. De repente uma lanterna projetou-se sobre o quadro situado mais a esquerda dos que estavam na sala.

   Nesse quadro estava representada uma mulher, uma dama madura vestida com roupagens do século XVIII.

   Viu que a mão de Nádia aproximava-se da pintura, empunhando uma bola de trapo que impregnara com alguma substância. Pelo odor, a Dan pareceu simplesmente aguarrás. Era de supor que alguma garrafa desse líquido estivesse em qualquer dos móveis da casa e a mulher o sabia.

   A mão esfregou habilmente sobre a pintura e debaixo dela foram aparecendo cutra mais antiga. Era, evidentemente, uma tela, pintada sobre outra tela. Dan viu com assombro que na debaixo aparecia uma mão. Uma mão que usava um anel com uma grande pedra vermelha!

   Logo a bola de trapo subiu até o reis to e começou a esfregar também com habilidade e rapidez.

   Debaixo foi aparecendo outro rosto. Dan não precisou que ela fizesse saltar toda a capa da pintura nova para reconhecê-la. Era Nádia! Uma Nádia cujos olhos brilhavam diabólicos, como se tivessem vida!

   A voz rouca, espessa, mudada, disse das trevas:

   — As pessoas diziam a verdade. . . Meu retrato está aqui.. . E também está aqui meu anel vermelho... — de repente colocou-o, tirando-o do bolsinho de sua saia com um hábil movimento que chegou a ser captado pela luz brilhante da lanterna. — Jurei que mataria a todos que entrassem em Black Tower. . . Jurei e o farei. A única coisa que não é certa, é o do meu rosto, queimado em parte. Tudo isso sim é que são fantasias. . . Mas sua morte será real. espantosamente real... E logo matarei essa estúpida da Nora!

   A luz da lanterna recolhia todos os movimentos como um foco espectral recolheria pedaços isolados de animação num cenário de um teatro. Dan viu como ela descravava a faca da garganta de Paulus.

   Viu que a mão armada dirigia-se para éle. . .

   — Não seja louca. Ninguém lhe acusará desses crimes se parares agora. Você não é mais que uma pobre enferma. Não se afunde de todo, quando ainda pode se salvar!

   Mas ela não o escutava.

   Só a chamada da morte estava em seu crânio e só seus sentidos captavam aquela áspera, terrível chamada vermelha.

   Todos os seus nervos estavam dispostos a obedecer a uma só ordem: Matar!

   Dan não tinha medo. Dan só sentia por ela uma brusca e amarga compaixão.

   Por isso fechou os olhos, para não ver aquele rosto deformado pela loucura e pelo ódio.

   O punhal foi até a sua garganta, velozmente, como um raio de luz negra.

 

                                Capítulo XV

   FOI então que soou aquele disparo.

   Foi então quando Dan abriu os olhos de novo e viu que uma lanterna iluminava fantasmagòricamente Nádia. O jorro de luz descobriu seu gesto de agonia, suas feições crispadas, seu último trejeito antes de atravessar a fronteira do além. Dan percebeu que a bala lhe atravessara o coração, e de que aquele disparo providencial lhe salvara a vida . A pessoa que acabara de disparar da porta não tivera outra escolha para tratar de evitar um novo crime.

   Nádia caiu silenciosamente, soltando sua faca e sua lanterna. Foi essa lanterna que iluminou fugazmente a figura de Nora, uma figura que continha os soluços e que acabara de deixar cair a arma bruscamente por terra.

   Mas não foi isso só que aturdiu Dan.

   Foi também seu rosto.

   Porque agora aquele rosto não apresentava nenhuma cicatriz e nenhuma queimadura! Porque era o rosto puro e limpo de uma maravilhosa mulher!

   Ela, sem dizer uma palavra, aproximou-se de Dan e libertou-o de suas ligaduras. Os dedos do homem foram molhados pelas lágrimas de Nora, que soluçava espasmòdicamente. Só quando êle ficou livre, quando pôde ficar de pé e sustê-la em seus braços, ela deixou de chorar.

   — Não tinha outro remédio. Um segundo mais e ela teria conseguido matá-lo.. . Até agora não vi qual era o mistério dessa casa.. . Perdoa-me pela desconfiança de antes, Dan.

   — Compreendo, Nora. E talvez tenha sido melhor assim. Para Nádia, a vida se transformara num inferno, como em certo modo o era. Mas que fêz de suas queimaduras ? Como é possível quê.. . ?

   — Tratava-se de matéria plástica aderida à pele. Agora é muito fácil conseguir esses efeitos,

   — Que pretendia?

   — A melhor reportagem de minha vida. Queria averiguar a verdade sobre a lenda de Black Tower. Disseram-me que a mulher que mataria seus habitantes tinha a face queimada, e tentei fazer-me passar por ela. Meu propósito era averiguar que pessoas vinham aqui e que mistério ocultava-se entre estas paredes. Mas quis a casualidade que a própria Nádia me recolhesse em seu automóvel.

   Logo tudo sucedeu tão rapidamente que... Tem momentos que não posso compreender. E penso, como você, que talvez tenha sido melhor assim.

   — Você viu Paulus quando ainda estava vivo?

   — Não, não vi. Deve ter se encontrado exclusivamente com Nádia.

   — Agora devemos avisar o quanto antes a polícia, mocinha. E lhe proponho que essa reportagem sensacional assinemos os dois.

   Ela deixou êle acariciar seu cabelo. Nora estava desolada, afundada, mas começava a brilhar, no fundo de seu coração, uma distante chispa de felicidade.

   Não acontecia o mesmo com o coração de Dan.

   Êle sabia que matara Mosley, Que devia responder por aquele ato. E não pensava fugir do castigo.

   Quando um dia mais tarde, na Scotland Yard, ambos explicaram cem detalhes o sucedido, o inspetor Herbert, que se encarregara do caso, disse que a polícia já estava a tempos seguinao as pegadas de «Esquilo» Cliss. E disse também que tinha notícias do estranho fantasma de Black Tower, desde que o administrador do casarão foi assassinado em Glasgow.

   Na aparência o caso estava resolvido. Parecia como se nas vidas de Nora e Dan, estivesse acesa a luz verde da felicidade.

   Mas Dan ficara com o último trago, o mais amargo e mais difícil.

   — O senhor precisa deter-me, inspetor. Eu matei faz poucos dias um homem.

   O inspetor arqueou uma sombrancelha.

   — Quer se explicar melhor?

   Dan confessou tudo. Não omitiu um detalhe, enquanto evitava olhar os olhos de Nora. Uns olhos arregalados, marejados de pranto e que falavam de ilusões mortas apenas nasceram. Porque os dois deram conta de que aquilo significa a prisão para muitos anos, talvez a prisão para toda a vida.

   Por fim o inspetor, que escutara em silêncio, ficou de pé.

   — Está disposto a assinar sua declaração?

   — De certo.

   A silenciosa mecanógrafa que tomara nota de tudo, colocou diante de Dan a folha em que constavam todas as suas declarações.

   Dan assinou.

   Elevou seus olhos até o inspetor, esperando que este desse ordem para conduzi-lo ao presídio até o momento de ser julgado.

   O silêncio era absoluto, total. Poderia se ouvir o vôo de uma mosca.

   De repente, o inspetor sussurrou:

   — Você está livre, Dan. Só terá que apresentar-se para uma comprovação rotineira dentro de três dias.

   Dan pensou ter ouvido mal.

   Seus olhos, muito abertos, olhavam incrédulos o inspetor Herbert.

   Este acrescentou:

   — Também vigiávamos Mosley, como homem implicado no tráfico de diamantes e de drogas. Revistamos sua casa toda e encontramos filmada, com som e tudo, cenas do que ocorreu com êle e você. Mosley tinha um perfeito sistema de câmeras montadas em seus salões. Isso lhe servia para delicados trabalhos de chantagem, sobretudo com algumas mulheres que visitavam sua casa. A fita demonstra o que aconteceu e a sua inocência, Dan. Você quis entregá-lo a polícia, e se disparou foi em último lugar e em defesa própria.

   Dan se colocara de pé, como impulsionado por uma mola, e olhava o inspetor com olhos onde se lia uma esperança, uma ilusão, uma felicidade nova.

   A mesma coisa — e isso não era casualidade — lia-se nos olhos de Nora.

   O inspetor Herbert, homem inteligente e que conhecia bem os seres humanos, perguntou:

   — Onde pensam passar a lua-de-mel?

   E os dois responderam, quase com um só grito:

   — Em qualquer parte, menos num castelo mal-assombrado. 

 

                                                                                Silver Kane

 

 

                      

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