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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA QUESTÃO DE PRINCÍPIOS / Isaac Asimov
UMA QUESTÃO DE PRINCÍPIOS / Isaac Asimov

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UMA QUESTÃO DE PRINCÍPIOS

 

George olhou tristemente para o seu copo, que continha o meu drinque (no sentido de que eu certamente pagaria por ele) e disse:

- Hoje sou um homem pobre apenas por uma questão de princípios. – Puxou um profundo suspiro da região do umbigo e acrescentou: – Ao falar em “princípios” devo, naturalmente, pedir desculpas por usar uma palavra com a qual você não está familiarizado, exceto na acepção vulgar de início de alguma coisa. Mas a verdade é que sou um homem de princípios.

- É mesmo? – disse eu. – Suponho que Azazel tenha lhe concedido esse traço de caráter há poucos minutos, já que até hoje, pelo que sei, nunca o exibiu na presença de ninguém.

George olhou para mim com ar ofendido. Azazel é um demônio de dois centímetros que possui poderes mágicos espantosos. George é a única pessoa capaz de conjurá-lo. Ele disse:

- Não consigo imaginar onde foi que você ouviu falar de Azazel.

- É um completo mistério para mim, também. Ou melhor, seria um mistério, se você não falasse nele o tempo todo.

- Não seja ridículo! – protestou George. – Jamais mencionei o nome de Azazel em nossas conversas!

Gottlieb Jones [disse George] era também um homem de princípios. Você poderia considerar isso impossível, tendo em vista sua profissão de publicitário, mas ele conseguia se manter acima das mazelas do ofício com um admirável jogo de cintura. Um dia, enquanto comíamos um hambúrguer com batatas fritas, ele me disse:

- George, é impossível descrever com palavras o horror que é o meu trabalho, ou o desespero que sinto ao buscar maneiras persuasivas de vender produtos que, em minha opinião, nem deveriam existir! Ontem mesmo, tive de ajudar a vender uma nova variedade de repelente de insetos que, nos testes, atraiu mosquitos em um raio de vários quilômetros. “Se os insetos o incomodam”, diz meu slogan, “use Afastex.”

- Afastex? – repeti, arrepiado.

Gottlieb cobriu os olhos com uma das mãos. Tenho certeza que usaria as duas, se não estivesse colocando batatas fritas na boca com a outra.

- Tenho de conviver com esta vergonha, George. Mais cedo ou mais tarde, serei forçado a pedir demissão. Este em prego viola meus princípios de ética comercial e de honestidade literária, e você sabe que sou um homem de princípios.

Observei, dedicadamente:

- Por outro lado, meu amigo, esse emprego lhe rende trinta mil dólares por ano, e você tem uma esposa linda e jovem para sustentar, além de um filho pequeno.

- Dinheiro! – exclamou Gottlieb, com violência. – Lixo! O vil metal pelo qual o homem é capaz de vender a sua alma! Repudio o dinheiro, George; afasto-o de mim como uma praga; não quero ter nada a ver com ele.

- Mas Gottlieb, você não está fazendo nada disso! Recebe seu salário no fim do mês, certo?

Devo admitir que, por um momento de apreensão, pensei em um Gottlieb sem vintém e no número de almoços que sua virtude tornaria impossível pagar para nós dois.

- Sim, sim, é verdade. Marilyn, minha querida esposa, tem o embaraçoso hábito de mencionar sua mesada para as compras domésticas em conversas de cunho eminentemente intelectual, para não falar das vezes em que se refere, como que por acaso, às dívidas que levianamente contraiu em supermercados e butiques. Tudo isso interfere nos meus planos de ação. Quanto a Gottlieb Jr., que está para fazer seis meses, ainda não está preparado para compreender que o dinheiro não tem nenhuma importância. Embora, para fazer-lhe justiça, eu tenha de admitir que jamais me pediu um empréstimo.

Suspirou, e suspirei com ele. Sei perfeitamente que as esposas e filhos menores não têm o menor espírito de cooperação no que diz respeito às finanças familiares, e esta é a razão principal pela qual permaneço solteiro até hoje, apesar da perseguição insistente de lindas mulheres, atraídas por meus encantos naturais.

Gottlieb Jones interrompeu involuntariamente minhas agradáveis divagações, perguntando:

- Você sabe qual é meu maior desejo, George?

Disse isso com um brilho tão lúbrico nos olhos que fiquei assustado, achando que de alguma forma conseguira ler meus pensamentos. Para minha surpresa, porém, acrescentou:

- Meu maior desejo é ser um romancista, descrever com detalhes as profundezas da alma, revelar aos meus leitores extasiados a gloriosa complexidade de condição humana, inscrever meu nome em grandes letras indeléveis na literatura clássica e marchar para a eternidade na companhia de homens e mulheres como Esquilo, Shakespeare e Ellison.

Tínhamos terminado a refeição e eu esperava, nervoso, pela conta, aguardando o momento conveniente para distrair-me com outra coisa. O garçom, depois de nos observar com a aguda percepção resultante de muitos anos de prática, entregou-a a Gottlieb.

Respirei, aliviado, e disse:

- Pense, meu caro Gottlieb, nas conseqüências desagradáveis que se seguiriam. Li recentemente, num jornal conceituado que um passageiro de ônibus mantinha aberto, que existem 35 mil escritores nos Estados Unidos com pelo menos um romance publicado, dos quais apenas 700 ganham a vida como escritores; desses, não mais que 50, repare bem, são ricos. Comparado com isso, seu salário atual…

- Que importa isso? — exclamou Gottlieb. – Não estou interessado em ganhar dinheiro, e sim em conquistar a imortalidade e presentear as futuras gerações com um tesouro literário de valor incalculável. Poderia suportar com facilidade o desconforto de permitir que Marilyn trabalhasse como garçonete, motorista de ônibus ou qualquer outra coisa acessível aos seus modestos dotes intelectuais. Tenho certeza de que consideraria um privilégio trabalhar de dia e cuidar de Gottheb Jr. à noite, enquanto eu estaria dedicado à criação de minhas obras-primas. Só que… – Ele fez uma pausa.

- Só que… – repeti, encorajando-o.

- Não sei bem por que, George – disse, com um traço de petulância na voz -, mas há um pequeno obstáculo no caminho. Falta alguma coisa. Meu cérebro está sempre fervilhando de idéias. Cenários, trechos de diálogos, situações de grande impacto dramático se misturam o tempo todo na minha mente. É apenas a questão secundária de colocar tudo isso no papel que parece me escapar. Deve ser um problema de somenos importância, já que qualquer escriba incompetente, como aquele seu amigo que tem um nome esquisito, parece não ter dificuldade para produzir livros às centenas. Mesmo assim, é um problema real.

(Certamente ele estava se referindo a você, meu caro amigo, já que as palavras “escriba incompetente” lhe caem como uma luva. Senti-me tentado a dizer algumas palavras em sua defesa, mas depois me dei conta de que seria uma tarefa inglória.)

- Vai ver – observei – você não se esforçou o bastante.

- Acha que não? Tenho centenas de folhas de papel, cada uma com o primeiro parágrafo de um romance maravilhoso. O primeiro parágrafo, nada mais. Centenas de primeiros parágrafos para centenas de romances. É no segundo parágrafo que eu sempre empaco.

Uma idéia brilhante me veio à mente, mas não me surpreendi. Estou sempre tendo idéias brilhantes.

- Gottlieb – disse-lhe -, posso resolver o seu problema. Posso torná-lo um grande escritor. Posso fazer com que fique rico. Ele olhou para mim com uma expressão de descrença.

- Você pode? – perguntou, com uma ênfase quase ofensiva no pronome.

Àquela altura já estávamos saindo do restaurante. Observei que Gottlieb se esquecera de deixar uma gorjeta para o garçom, mas me abstive de mencionar o fato, já que meu amigo poderia sugerir que eu me encarregasse da desagradável tarefa.

                – Meu amigo, tenho o segredo do segundo parágrafo, e portanto posso torná-lo rico e famoso!

- Hum! Qual é o segredo?

Com toda a delicadeza (e é aqui que chegamos à minha brilhante idéia), eu lhe disse:

- Gottlieb, todo trabalho tem seu preço.

Gottlieb deu uma risada.

- Minha confiança em você é tão grande, George, que não tenho medo de jurar que se me tornar um escritor rico e famoso, você poderá ficar com metade do que eu ganhar, depois de descontadas as despesas, naturalmente.

Com mais delicadeza ainda, fui em frente:

- Sei que é um homem de princípios, Gottlieb, de modo que sua palavra vale mais para mim que qualquer contrato, mas só de brincadeira (ah, ah!), estaria disposto a escrever isso num papel, assinar embaixo e (só para tornar a brincadeira ainda mais engraçada, ah, ah!) registrar em cartório?

Podemos ficar com uma cópia cada um.

A pequena transação tomou apenas meia hora do nosso tempo, já que recorremos a um tabelião que também era datilógrafo e meu amigo de longa data.

Guardei na carteira uma cópia do precioso documento e disse;

- Não posso fornecer-lhe imediatamente o segredo, mas, assim que estiver tudo arranjado, terá notícias minhas. Poderá então começar um romance e não terá nenhum problema para escrever o segundo parágrafo… nem o milésimo segundo. Naturalmente, não me deverá coisa alguma até começarem a entrar os primeiros pagamentos.

- Claro que não! – exclamou Gottlieb, em tom irritado.

Naquela mesma noite, dediquei-me ao ritual de costume para chamar Azazel. Azazel é apenas o nome que inventei para ele, pois me recuso a usar o que ele usa para se referir a si próprio. Esse nome, escrito no papel, é dez vezes maior que o dono.

Azazel tem apenas dois centímetros de altura e é uma pessoa sem nenhum destaque em seu próprio mundo. Esta é a única razão por que está sempre disposto a me ajudar; isso o faz sentir-se importante.

Naturalmente, jamais conseguirei persuadi-lo a fazer alguma coisa que contribua, de forma direta, para me tornar uma pessoa rica. A criaturinha insiste em dizer que isso seria uma comercialização inaceitável de sua arte. E não parece acreditar quando lhe asseguro que tudo que fizer por mim será usado, de forma totalmente desprendida, para o bem da humanidade. A primeira vez que lhe fiz essa declaração, emitiu ura som estranho, cujo significado me escapou, e que afirmou haver aprendido com um morador do Bronx.

Foi por esse motivo que não lhe revelei a natureza do acordo que firmara com Gottlieb Jones. Não seria Azazel que iria me tornar milionário. Na verdade, Gottlieb se encarregaria disso, depois que Azazel o tornasse rico. Mas eu teria um trabalho dos diabos para fazer o pequeno demônio compreender a diferença.

Azazel, como sempre, ficou irritado com a interrupção. Sua cabecinha estava ornamentada com o que pareciam ser pequenas mechas de algas marinhas. Ele me explicou, de forma um tanto incoerente, que eu o chamara bem no meio de uma cerimônia universitária, na qual receberia algum tipo de diploma. Sendo, como já expliquei, uma pessoa sem nenhum destaque no seu planeta natal, tem a tendência a dar importância excessiva a esse tipo de cerimônia. Assim, sua primeira reação foi de extremo desagrado.

Procurei consolá-lo.

- Ora, você pode atender ao meu pedido, uma coisa muito simples, e retornar ao exato momento em que partiu de lá.

Ninguém vai notar que esteve ausente.

Ele resmungou um pouco, mas teve que admitir que eu estava certo, de modo que o ar em torno do seu corpo parou de estalar com pequenos relâmpagos.

- O que você quer, afinal? – perguntou.

Expliquei a ele.

- A profissão desse homem não é comunicar idéias? – quis saber Azazel. – Não é transformar idéias em palavras, como aquele seu outro amigo que tem um nome esquisito?

- É verdade. Mas ele gostaria de fazer isso com maior eficiência e beleza, de modo a se tornar mundialmente famoso… e rico, também, mas deseja a riqueza apenas como prova palpável do seu talento, já que, por princípio, abomina o dinheiro.

- Compreendo. Temos artesãos da palavra no nosso mundo, também, e todos estão interessados apenas no aplauso do público; jamais concordariam com uma remuneração financeira, se não a considerassem indispensável como prova palpável de seus talentos.

Concordei com um sorriso.

- Uma fraqueza da profissão. Felizmente, eu e você estamos acima dessas coisas.

- Bem – disse Azazel -, não posso ficar aqui parado o resto do ano, ou terei dificuldade para localizar a hora exata em que devo voltar para a cerimônia. Esse seu amigo está dentro do raio de ação dos meus poderes mentais?

Tivemos trabalho para encontrá-lo, mesmo depois que eu lhe mostrei no mapa onde ficava sua firma de publicidade e lhe forneci uma descrição precisa e eloqüente do meu amigo, mas não quero cansá-lo com detalhes irrelevantes.

Afinal, Gottlieb foi encontrado. Depois de um breve exame, Azazel declarou:

- Um tipo de mente relativamente comum entre os seres da sua desagradável espécie. Viscosa, porém quebradiça. Examinei o circuito de formação de palavras e descobri que está cheio de nós e obstruções. Não admira que encontre dificuldades para escrever. Não será difícil remover os obstáculos principais, mas isto poderá comprometer a estabilidade da mente como um todo. Acho que não haverá nenhum dano, se eu agir com cautela, mas existe sempre o perigo de um acidente. Acha que ele estaria disposto a correr o risco?

- Oh, claro que sim!  exclamei. – Ele daria tudo para ser famoso e servir ao mundo através de sua arte. Claro que aceitaria o risco sem pestanejar.

- Está certo, mas, pelo que me disse, vocês dois são muito amigos. Talvez ele esteja cego pela ambição e pelo desejo de servir ao próximo, mas você está em condições de avaliar a situação de forma mais racional. Está disposto a permitir que ele corra o risco?

- Meu  único objetivo – declarei – é torná-lo feliz. Vá em frente, faça o trabalho, e se tudo der errado… bem, terá sido por uma boa causa. – (Claro que era por uma boa causa, já que, se as coisas dessem certo, metade dos lucros iria parar no meu bolso.)

Foi assim que fizemos nossa boa ação. Como de hábito, Azazel procurou valorizar ao máximo o seu trabalho, e ficou ali parado, ofegante, resmungando alguma coisa a respeito de pedidos pouco razoáveis, mas eu lhe disse para pensar na felicidade que estava levando a milhões de pessoas e o exortei a evitar o feio vício da autopromoção. Inspirado por minhas palavras edificantes, despediu-se de mim para voltar à tal cerimônia de que estava participando.

Uma semana depois, fui procurar Gottlieb Jones. Não tinha feito nenhum esforço para vê-lo mais cedo porque achei que precisaria de algum tempo para acostumar-se ao seu novo cérebro. Além disso, preferi esperar e saber a respeito dele por outras pessoas, para ver se sua mente havia sido danificada no processo. Caso isso houvesse ocorrido, preferia não tornar a vê-lo. Minha perda (e a dele também, suponho) tornaria nosso encontro demasiadamente traumático.

Não ouvi dizer que estivesse fazendo nenhuma sandice, e certamente ele me pareceu perfeitamente normal quando o vi saindo do edifício onde trabalhava. Notei logo seu ar melancólico. Não liguei muito para isso, já que os escritores, como é de conhecimento geral, são muito sujeitos a ataques de melancolia. Tem alguma coisa a ver com a profissão, acredito. Talvez seja o convívio constante com os editores.

- Olá, George – disse ele, apático.

- Gottlieb! Como é bom ver você! Está mais bonito do que nunca! (Na verdade, como todos os escritores, ele é feio como a praga, mas temos de ser educados.) – Tentou escrever algum romance ultimamente?

- Não, não tentei. – Depois, como se tivesse se lembrado de repente de nossa última conversa, acrescentou: – Por quê? Já pode me ensinar o segredo de como passar pelo segundo parágrafo?

Fiquei exultante por ele ter se lembrado; ali estava outra prova de que seu cérebro continuava intacto.

- Mas já está tudo feito, meu caro amigo. – Não precisava explicar-lhe todos os detalhes; a discrição é uma das minhas virtudes. – Tudo que tem a fazer é ir para casa, colocar o papel na máquina e começar a escrever. Seus problemas terminaram. Escreva dois capítulos e uma sinopse do resto. Estou certo de que qualquer editor a quem você mostrar a obra dará gritos de alegria e lhe oferecerá um polpudo cheque, do qual a metade será merecidamente sua!

- Hum! – fez Gottlieb, com ar de dúvida.

- Confie em mim – disse eu, levando a mão direita ao coração, que, como você sabe, é suficientemente grande, em sentido figurado, para ocupar toda a minha cavidade torácica. – Na verdade, acho que devia pedir demissão imediatamente deste seu odioso emprego, de modo a não contaminar as jóias que a qualquer momento começarão a sair da sua máquina de escrever. Experimente uma vez, Gottlieb, e verá que o que estou dizendo é a mais pura verdade!

- Quer que eu peça demissão do meu emprego?

- Exatamente.

- Impossível!

- Impossível por quê? Dê as costas a essa profissão ignóbil. Abandone para sempre a triste tarefa de enganar o público.

- Estou lhe dizendo que não posso pedir demissão. Acabo de ser demitido.

- Demitido?

- Isso mesmo. E com expressões de desagrado que jamais hei de perdoar.

Caminhamos em direção à lanchonete onde costumávamos almoçar.

- Que aconteceu? – perguntei.

Ele me contou, sem pressa, enquanto saboreávamos um sanduíche de mortadela.

- Estava revendo o anúncio de um desodorante e me dei conta de que o texto era fraco, contido. Nós nos limitávamos timidamente a usar a palavra “odor”. De repente, senti vontade de dar asas à imaginação. Se estávamos declarando guerra ao mau cheiro, por que não dizer isso claramente? Por isso, coloquei, no alto do anúncio: “Abaixo o bodum!”. No final, escrevi, em letras bem grandes: “Inhaca, nunca mais!”. Depois, mandei um fax do anúncio para o cliente, sem me dar o trabalho de consultar ninguém.

“Depois de mandar o fax, porém, pensei: “Por que não?” e enviei uma cópia para o meu chefe, que imediatamente teve um ataque apoplético. Mandou me chamar e disse que eu estava despedido, usando alguns termos que, tenho certeza, não aprendeu com a senhora sua mãe… a não ser que ela fosse uma depravada. De modo que aqui estou eu, desempregado.

Olhou para mim com ar hostil.

- Suponho que vai me dizer que é o responsável pela situação em que me encontro.

- Claro que sou. Você fez o que, inconscientemente, sabia que era melhor para você. Deu um jeito de ser demitido e poder dedicar-se integralmente à verdadeira arte. Gottlieb, meu amigo, vá para casa agora mesmo. Escreva o seu romance e peça no mínimo cem mil dólares adiantados. Como não terá praticamente despesa alguma, a não ser alguns centavos de papel, poderá ficar com cinqüenta mil dólares!

- Você está louco – disse Gottlieb.

- Tenho confiança em você. Para provar isso, pago o almoço.

- Você está louco – repetiu meu amigo, admirado, e foi embora, deixando-me com a conta na mão, sem perceber que eu estava apenas usando um artifício de retórica.

Telefonei para ele na noite seguinte. Normalmente, teria esperado mais tempo. Não queria pressioná-lo. Entretanto, a coisa se transformara em um investimento financeiro. O almoço me custara onze dólares, sem contar a gorjeta de 25 cents, de modo que eu estava impaciente.

- Gottlieb – disse-lhe eu -, como vai o romance?

- Muito bem – respondeu, distraidamente. – Nenhum problema. Já escrevi vinte páginas e estou muito satisfeito com o resultado.

Disse isso com ar ausente, como se estivesse pensando em outra coisa.

- Por que não está pulando de alegria? – perguntei.

- Por causa do romance? Não seja tolo. Recebi um telefonema de Feinberg, Saltzberg e Rosenberg.

- Dos seus patrões… seus ex-patrões?

- Isso mesmo- Na verdade, falei apenas com um dos donos, o Sr. Feinberg. Ele me quer de volta.

- Tenho certeza, Gottlieb, de que disse para ele que jamais voltará a…

Gottlieb me interrompeu.

- Parece que o fabricante do desodorante adorou o meu anúncio. Resolveu confiar à firma uma grande campanha de publicidade na tevê e nos jornais, contanto que fosse comandada pela pessoa que havia escrito aquele primeiro anúncio. Afirmou que eu havia usado uma linguagem clara e ousada, perfeitamente de acordo com o espírito dos anos 90. Estava interessado em outros anúncios no mesmo estilo, e para isso precisava de mim. Naturalmente, eu disse ao Sr. Feinberg que iria pensar.

- Está cometendo um erro, Gottlieb.

- Acho que mereço um bom aumento. Não me esqueci das coisas cruéis que Feinberg disse quando me pôs para fora… algumas delas em iídiche.

- O dinheiro é lixo, Gottlieb.

- Claro que é, George, mas quero ver quanto lixo eles estão dispostos a me pagar.

Eu não estava muito preocupado. Sabia que escrever anúncios era um trabalho grosseiro demais para a alma sensível do meu amigo e que em breve ficaria fascinado com seus novos dons literários. Bastava esperar que a natureza seguisse seu curso.

Acontece que os anúncios do desodorante apareceram nos meios de comunicação e conquistaram imediatamente o público. “Abaixo o bodum” se tornou imediatamente o lema dos jovens e dos velhos, o que contribuiu enormemente para a popularidade do produto.

Você talvez se lembre dessa moda… pensando melhor, claro que se lembra, pois ouvi dizer que as revistas nas quais você tenta publicar as histórias que escreve passaram a usar a frase nas cartas de recusa.

Outros anúncios do mesmo tipo foram veiculados e tiveram sucesso instantâneo.

De repente, compreendi o que estava acontecendo. Azazel modificara a mente de Gottlieb para que meu amigo escrevesse de uma forma agradável ao público, mas, sendo pequeno e insignificante, fora incapaz de executar o ajuste fino que tornaria o novo dom aplicável apenas a romances. Talvez Azazel nem soubesse o que era um romance.

Ora, que diferença fazia?

Não posso dizer que Gottlieb tenha ficado radiante quando chegou em casa e me encontrou na porta, à sua espera, mas se sentiu na obrigação de me convidar para entrar. Na verdade, foi com uma certa satisfação que percebi que ele também se sentia obrigado a me convidar para o jantar, embora tenha tentado (deliberadamente, penso eu) estragar o meu prazer fazendo-me segurar Gottlieb Jr. no colo por um período de tempo que me pareceu interminável. Foi uma experiência terrível.

Mais tarde, quando estávamos sozinhos na sala de jantar, eu disse:

- Afinal, quanto lixo você está ganhando, Gottheb?

Ele me olhou com ar reprovador.

- Não chame isso de lixo, George. É falta de respeito.

Trinta mil por ano pode ser lixo, mas cem mil por ano, fora os extras, constituem uma renda respeitável.

“Além disso, em breve pretendo fundar minha própria companhia e me tornar um multimilionário. Nesse nível, dinheiro é sinônimo de virtude… ou de poder, o que dá no mesmo, é claro. Com o meu poder, por exemplo, poderei levar Feinberg à falência. Isso o ensinará a não se dirigir a mim em termos que um cavalheiro jamais usaria ao se referir a outro cavalheiro. A propósito: sabe o que quer dizer “schmendrick”, George?

Eu não sabia. Considero-me um poliglota, mas uma das línguas que não conheço é o urdu.

- Quer dizer que você ficou rico.

- E pretendo ficar muito mais ainda.

- Nesse caso, Gottlieb, permita-me observar que isso só aconteceu depois que concordei em torná-lo rico, ocasião em que você também me prometeu metade dos lucros.

Gottlieb franziu a testa.

- Foi? Foi mesmo?

- Claro que sim! Admito que acordos desse tipo são fáceis de esquecer, mas, felizmente, colocamos tudo no papel e registramos em cartório. Por coincidência, tenho no bolso uma cópia do contrato.

- Ah! Posso vê-la?

- Pode, mas é bom que saiba que se trata apenas de uma cópia xerox, de modo que se por acaso, na pressa de examinar o papel, ele se rasgar em mil pedaços, o original continuará comigo.

- Uma sábia providência, George, mas não tenha medo. Se o que está me dizendo for verdade, receberá até o último centavo da sua parte. Afinal, sou ou não um homem de princípios?

Entreguei-lhe a cópia, e ele a examinou atentamente.

- Ah, sim – disse ele -, estou me lembrando. É claro.

Só que há um pequeno detalhe.

- Qual?

- Ora, este contrato fala dos meus lucros como romancista. Não sou um romancista, George.

- Você tinha vontade de ser. Lembra-se? E agora está equipado para isso! Basta sentar-se atrás de uma máquina de escrever e começar a trabalhar!

- Minha vontade passou, George. Não pretendo me sentar atrás de uma máquina de escrever.

- Acontece que os grandes romances o tornariam imortal. O que você ganha escrevendo esses slogans idiotas?

- Pilhas e pilhas de dinheiro, George. Mais uma grande firma que será toda minha e na qual empregarei muitos escritores miseráveis, que dependerão de mim para sobreviver. Acha que Tolstoi teve tanto? Acha que dei Rey tem tanto?

Eu simplesmente não podia acreditar.

- Quer dizer que, depois de tudo o que fiz por você, vai me deixar chupando o dedo, apenas por causa de uma única palavra no nosso contrato?

- Talvez você esteja desperdiçando o seu talento, George, porque eu próprio não poderia descrever a situação de forma mais clara e sucinta. Meus princípios me obrigam a seguir o contrato ao pé da letra. Como está farto de saber, sou um homem de princípios.

Dessa posição não arredou, e percebi que seria inútil trazer à baila a questão dos onze dólares que havia gasto naquele almoço.

Isso para não falar da gorjeta de 25 cents, George se levantou e foi embora. Fez isso em tal estado de desespero histriônico que não tive como lhe pedir que pagasse primeiro sua parte nas bebidas. Pedi a conta e notei que o total registrava 22 dólares.

Admirei a precisão matemática do meu amigo, que conseguira se reembolsar da quantia exata perdida para o publicitário, e me senti obrigado a deixar uma gorjeta de meio dólar.

 

                                                                               Isaac Asimov

 

Carlos Cunha Arte & Produção Visual