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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA VISITA À CORTE DO REI D. DINIS Magalhães &
UMA VISITA À CORTE DO REI D. DINIS Magalhães &

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Quando se viaja no tempo uma vez, não se pode resistir perante a perspectiva de uma nova viagem. E a Ana e o João não resistiram. Desta vez foram um pouco mais perto. O que não os impediu de ficarem deslumbrados com um sarau num castelo medieval, de assistir a uma caçada com falcões, de se verem envolvidos numa excitante aventura com uma bruxa...

Quando o rei D. Dinis subiu ao trono, já tinham acabado as lutas com os mouros. No reinado de seu pai, D. Afonso III, os portugueses conquistaram definitivamente o Algarve, que era a região mais a sul. Assim, D. Dinis pôde reinar em paz. Ficou até conhecido como O Lavrador, porque tomou medidas para desenvolver a agricultura. Preocupou-se também com o desenvolvimento do comércio dentro do País, criando feiras, e desenvolveu o comércio entre Portugal e outros países da Europa, protegendo muito os mercadores.

  1. Dinis era um homem muito evoluído para o seu tempo, porque recebeu uma educação bastante completa. Veio até de França um mestre chamado Emerico D'Erbard, de propósito, para o ensinar quando ele era ainda um príncipe. Talvez por isso tomou o gosto pela cultura e pela língua portuguesas. Foi ele quem ordenou que todos os documentos oficiais passassem a ser escritos em português e não em latim como era costume.

Fundou a primeira Universidade Portuguesa. E na sua corte havia grande animação, pois o rei gostava de se ver rodeado de poetas e músicos que nessa época se chamavam jograis e trovadores. O próprio rei fazia versos muito bonitos, por isso alguns lhe chamam «O rei poeta».

Sua mulher, a rainha Santa Isabel, tornou-se célebre pela sua imensa bondade. Ocupava o tempo a fazer bem a quantos a rodeavam, visitando e tratando doentes, distribuindo esmolas pelos pobres. Foi ela quem teve a ideia de criar um «Hospital de Meninos» em Santarém.

Conta a lenda que o rei, já irritado por ela andar sempre misturada com mendigos, a proibiu de dar mais esmolas. Mas certo dia, vendo-a sair furtivamente do palácio, foi atrás dela e perguntou o que levava escondido por baixo do manto.

Era pão. Mas ela, aflita por ter desobedecido ao rei, exclamou:

— São rosas, Senhor!

— Rosas, em Janeiro? — duvidou ele.

De olhos baixos, a rainha Santa Isabel abriu o regaço e o pão tinha-se transformado em rosas, tão lindas como jamais se viram.

 

 

 

 

— Tenho uma surpresa para vocês os dois — anunciou o pai com um sorriso meio misterioso.

O João e a Ana levantaram os olhos do álbum de fotografias e aguardaram, na expectativa. Seria alguma coisa relacionada com os presentes de Natal?

— Trata-se do Ano Novo — disse a mãe muito risonha, procurando prolongar o suspense.

— Do Ano Novo? — estranhou o João. — Mas vão dar-nos presentes de Ano Novo?

— Quem é que falou de presentes? É muito melhor do que isso. Tenho aqui um convite para irmos todos à

Madeira.

Os pais fitaram-nos, radiantes, à espera das manifestações de regozijo. Mas a reacção deles não podia ter sido mais desanimadora. A Ana balbuciou qualquer coisa ininteligível e pôs-se a folhear distraidamente o álbum.

O João, por sua vez, nada disse. Mas via-se bem que

ficara consternado. Aquela proposta vinha-lhe estragar por completo os planos!

— O que é que se passa? — perguntou a mãe, franzindo o sobrolho. — Não ficaram contentes?

— Então vocês que andam sempre a pedir para ir comigo à Madeira, agora ficam assim...

— Sim — continuou a mãe. — É um pedido que ambos fazem há séculos!

— Há séculos... há séculos... séculos e séculos para trás! — murmurou o João, com ar sonhador.

— O que é que estás a dizer? — perguntou-lhe o pai.

— Eu? Nada!

— Ninguém vos entende, palavra de honra! Nunca ficam satisfeitos com nada!

Com um gesto brusco, o pai abandonou uma carta em cima do sofá e saiu da sala. Mas a mãe sentou-se com eles na camilha, procurando ir ao fundo da questão.

— O que é que há, hã? Tinham outros projectos? Pensaram que a surpresa era outra coisa?

Nenhum deles lhe respondeu.

— Ouçam lá, vocês assim desconsolam-nos. O pai ficou tão triste! Deve haver imensas crianças que ficavam loucas de alegria com esta oportunidade.

Suspendeu a frase, à espera que eles dissessem alguma coisa. Mas em vão. Retomou então a palavra:

— O pai tem de ir ao Funchal em serviço, como de costume. E como vocês agora entram em férias de Natal, escreveu aos primos a saber se podíamos ir todos lá passar o Ano Novo. Não pagando a estada, ficava mais barato. Mas mesmo assim as viagens são caras, é um sacrifício. Está ali a carta a convidar-nos para irmos logo no dia 26 de Dezembro. O que é que acham?

— Achávamos que podia ir a mãe com o pai — respondeu finalmente a Ana.

— O quê? Mas que disparate é esse? Vocês não podem ficar sozinhos.

— Mas é que não ficávamos aqui! — explicou o João, subitamente animado. — íamos para o Marão, para casa da tia Júlia. Ela disse que a gente podia ir sempre que quisesse! E os pais assim iam sozinhos. Divertiam-se muito mais sem nós, e escusavam de gastar dinheiro, porque como a tia vem cá passar o Natal a Lisboa, depois vamos com ela. Já tínhamos combinado tudo.

— Pois é, mãe. Estava tudo combinado assim, para fazermos surpresa aos pais — concluiu a Ana.

A mãe encarou-os, francamente admirada. Não havia dúvida de que aquele projecto de férias os interessava bastante mais do que uma viagem à Madeira. E o mais estranho é que, no Verão anterior, só lhes faltara chorar, para não irem para casa da tia Júlia!

— Bem, vamos lá ver isto com calma. É claro que não queremos gastar dinheiro para vocês viajarem à força. Mas se é por terem combinado tudo, não se preocupem. A tia Júlia há-de compreender!

— Não! — berraram os dois ao mesmo tempo. O João até se levantou. Estava congestionado, de olhos brilhantes, e parecia impaciente.

— Oh, mãe! Por favor, deixe-nos ir para o Marão. Nós queremos ir!

A mãe encolheu os ombros e a conversa ficou assim, mal acabada. Nos dias que se seguiram, a família parecia dividida em dois pequenos grupos. Os pais, vagamente chateados, e eles sempre a cochicharem pelos cantos.

No Verão anterior tinham ido para casa da tia Júlia, de facto muito contrariados. E ao princípio aborreceram-se de morte porque a velha senhora os proibira de sair do jardim. No entanto, eludindo a vigilância, acabaram por conseguir subir à serra, onde entraram em contacto com um cientista que pertencia a uma organização secreta internacional e cujas experiências lhes tinham valido fama de bruxo, assustando muito as pessoas da região. Orlando! O incrível Orlando que, na sua máquina do tempo, os levara na viagem mais extraordinária que imaginar se possa: uma viagem ao tempo dos castelos!

No regresso, e que regresso bem agitado, tinham combinado logo que nas férias do Natal lá se apresentariam, pontualmente, para visitar a corte do rei D. Dinis. Não havia nenhum outro programa que pudesse ser melhor do que aquele. Só que, já que não podiam dizer aos pais a verdade, tornava-se difícil apresentar argumentos convincentes. Ambos davam voltas à imaginação para descobrirem alguma coisa que justificasse tanto interesse pela serra do Marão, levando os pais a aceitar que não se tratava de teimosia.

— Se disséssemos que queremos ver neve? — propusera a Ana.

— Hum... é uma ideia.

— Afinal de contas, a ilha da Madeira não vai desaparecer. Podemos ir noutra altura.

— O pior é que a neve também volta todos os anos... Desanimados, ficavam-se pela insistência, aparentemente tola, de que queriam ir para casa da tia. E tanto insistiram, que os pais acabaram por abandonar o projecto e deixaram-nos combinar tudo como pretendiam.

A partir daí, o ambiente desanuviara-se e tinha sido possível voltar a conversar à mesa, normalmente.

— Não há dúvida de que tens razão, Céu! — dissera o pai ao jantar, num tom de brincadeira. — Ainda bem que decidimos qualquer coisa. Andávamos todos para aqui às turras sem necessidade. Mais vale uma má decisão do que nenhuma, como tu costumas dizer!

— Mas não foi uma má decisão! Ao contrário! Foi uma decisão excelente. Os pais vão fazer uma segunda lua-de-mel e nós vamos para a neve!

— Bom, está bem! As decisões são sempre boas, quando estão de acordo com a vossa vontade, não é?

A Ana riu-se.

— Os pais são uns queridões!

— Bom, e já agora queria fazer-lhes uma pergunta — disse a mãe, enquanto descascava uma laranja com todo o cuidado, pois gostava de voltar a enrolar a casca sem a partir. — Já que sabem tão bem aquilo que querem, têm alguma ideia sobre os presentes de Natal?

O João piscou o olho à irmã e sorriu. Era óbvio que tinham conspirado também nesse sentido.

— Então?

— Se o pai adivinhasse? — propôs a Ana, mordiscando um gomo de tangerina para tirar o caroço.

— Se são discos, tirem daí o sentido.

— Não são discos.

— Livros?

— Isso só se for para a Ana, como presente suplementar — declarou o João.

— Ah! Se falas em presente suplementar, é porque tens outra ideia para presente essencial...

— Até que temos!

E com um sorriso maroto o João lançou o seu pedido inesperado:

— Queremos roupa...

— Roupa? — perguntaram os pais em coro. — Vocês nunca querem roupa!

— Mas é uma roupa especialíssima.

— Estou mesmo a ver qual é a especialidade! — suspirou a mãe. — E o melhor é escolherem outra coisa.

— Aposto que a mãe não sabe o que é.

— Sei, sim.

— Então diga lá.

— Roupas para a neve, não é?

— Não!

— Desembuchem! — ordenou o pai. — Já estou morto

de curiosidade.

— A... é que...

— Queríamos uns fatos de máscara. A mãe e o pai desataram a rir.

— De máscara? Os nossos filhos estão doidinhos de todo, Céu.

E, virando-se para eles, inquiriu:

— Já agora, máscaras de quê?

— Fatos antigos. Roupas do tempo dos reis! Do rei

  1. Dinis! E o João, escarlate, levantou-se e pendurou-se ao pescoço da mãe.

— Oh, mãe! Sim! Sim! É o que a gente mais queria!

— Ó João, larga-me! Já basta de patetices!

Mais uma vez levantaram-se da mesa com a sensação de conversa mal acabada. Só que sobre este assunto não houve hipótese de convencer os pais.

— Foi pena, Ana! Já agora, quando partíssemos na máquina do tempo, íamos equipados.

Só de me lembrar do risco que corremos quando os cavaleiros do conde Argemiro nos descobriram...().

— Pois é, mas a culpa foi tua.

— A culpa foi minha de quê? Era natural que eu quisesse ver o javali morto, não era?

— Ora, não me fales disso. Eu agora estava a referir-me à maneira como pediste os fatos. Parecia uma coisa bem parva...

— Como é que querias que eu pedisse?

— Sei lá!

— Bom, o que importa é que daqui a menos de um mês já lá estamos. Vai ser sensacional!

 

(1) Uma Viagem ao Tempo dos Castelos, n.o 1 desta colecção.

 

O fim do período decorreu sem novidade. A Ana e o João lá foram tendo notas razoáveis nos pontos, mas não pareciam importar-se muito com isso. Fizeram a árvore de Natal sem grande entusiasmo, e mesmo a escolha e compra de presentes foi quase por obrigação.

Mas na parede do quarto da Ana tinham pregado um enorme calendário. E todas as manhãs lá estavam, de caneta de feltro em punho, prontos a riscar o próprio dia.

— Menos um! — declarava o João invariavelmente. Os pais estranhavam aquelas atitudes, mas optaram por nada dizer. Tanto mais que, da biblioteca da escola, vinham resmas de livros de História. Assim que acabavam os trabalhos de casa, atiravam-se a ler desvairadamente tudo o que encontravam sobre o tempo dos primeiros reis de Portugal.

— A professora de História deve ser óptima! — disse-lhes a mãe. — Motiva muito os alunos!

— Hum... Por acaso nem gosto muito dela.

— Bom, seja lá como for, este vosso novo passatempo é muito útil!

— É, é! Sabe o que é que eu descobri, mãe? O rei D. Dinis subiu ao trono com dezoito anos.

— E eu descobri que a maior parte destes livros sobre História têm gravuras muito lindas, mas não se percebe nada do que lá está escrito... quer ouvir?

E o João, num tom empolado de troça, leu em voz alta:

— «Na conjuntura do primeiro quartel do século XIII, a caça reveste-se ainda de uma carga ritual, catalisadora das tensões intragrupais...»

A mãe riu-se.

— Afinal, o que é que isto quer dizer, mãe? Eu queria saber como é que eles caçavam, e fiquei na mesma!

— Isso de facto não te dá essa informação! — ironizou a mãe. — Mas se calhar vocês trouxeram um livro que não é para a vossa idade! Deixa cá ver.

A mãe folheou o livro, para trás e para diante, cada vez mais perplexa. A capa, as ilustrações, tudo indicava que o livro era para crianças, ou pelo menos para jovens. Mas a linguagem, francamente! Era uma linguagem para adultos que já soubessem bastante sobre o assunto.

— Isto é mesmo uma maneira de vos desinteressar — resmungou. — Sabem o que é que têm a fazer? Saltem as frases mais complicadas e leiam só o que perceberem bem. Ou vejam as imagens... olha aqui.

O livro ficou aberto, exibindo uma ilustração bastante grande, colorida, representando uma cena de treino de falcões.

A Ana e o João debruçaram-se sobre ela, ávidos. Um falcoeiro, com o seu traje próprio e a indispensável luva

de coiro, para que a ave de rapina não lhe ferisse as mãos com as suas garras afiadas, observava o voo elegante do

animal.

— Os falcões eram treinados para caçar outras aves mais pequenas — explicou a mãe. — Os reis e os cavaleiros tinham as suas falcoarias, que eram umas construções altas onde viviam os falcões.

— E quem é que tratava dos falcões? — perguntou o

João, fascinado.

— Os falcoeiros... Ser falcoeiro era uma profissão com grande prestígio. O falcoeiro alimentava e amestrava os falcões e outras aves de rapina, como os açores e os gaviões.

— Que giro!

— Pois era. Eles tinham de aprender a caçar pássaros

e a não os comer.

— E conseguiam?

— Claro que conseguiam. Os falcões eram muito apreciados por serem aves nobres.

— Nobres? Não me diga que também dividiam os pássaros em classes sociais!

— De certo modo! — brincou a mãe. — As aves nobres têm características próprias. Não atacam as presas quando estas estão paradas ou poisadas. O falcão só caça aves em pleno voo. É uma forma nobre de caça, porque dá hipótese de fuga. Assim, a presa não está em total desvantagem.

A Ana e o João mergulharam outra vez na observação atenta da gravura. A paisagem bravia, a figura digna e imponente do falcoeiro com a sua exótica indumentária, a ave pairando lá no alto de asas esticadas... quase sentiram o cheiro da terra húmida e das plantas silvestres! E a certeza de que iriam ver aquilo tudo de perto fez-lhes subir ao peito uma alegria sufocante. Era como se pudessem entrar na gravura!

Incapaz de dominar mais tempo um guincho de entusiasmo, o João mordeu a boca com toda a força e beliscou o braço da irmã.

Ela não se queixou. Compreendia bem o que ele sentia naquele momento!

— Adoro falcões! Será que ainda se utilizam para caçar?

— Hum... não creio! — disse a mãe.

— Mãe!

— O que é?

— Se a mãe me desse... hum... um fato de falcoeiro?

— Ó João! Que idiotice! Para ti, agora é Carnaval todo o ano, é?

Sem coragem para insistir, ele suspirou, afagando dis-traidamente a gravura do livro de História.

— O tempo custa a passar! — disse baixinho.

A partir daquele dia, o monte de livros engrossou, agora enriquecido com obras sobre aves de rapina. E o caminho para a escola era feito de nariz no ar, pois ambos acalentavam a esperança de ver um falcão perdido, em pleno voo. É claro que não tiveram sorte.

De asas rígidas, atroando os ares com um ruído ensurdecedor, só aviões cruzavam o céu de Lisboa.

— Não há dúvida de que os pássaros da cidade são os aviões! — resmungava o João, desanimado.

Espantoso foi quando descobriram que as aves de rapina que os obcecavam, e que pareciam banidas do espaço aéreo, tinham afinal um papel importante a desempenhar na aviação! Foi logo no primeiro dia de férias, quando assistiam a uma reportagem na televisão, que aquela notícia os surpreendeu. No pequeno ecrã, um rapaz novo explicou detalhadamente que os passarinhos, pombos e gaivotas constituíam um perigo enorme para as aterragens e descolagens dos aviões.

Bastava que se introduzissem numa turbina para causarem prejuízos avultadíssimos e pôr o avião em risco. Há alguns anos, em Inglaterra, o motor de um avião a jacto sugou um bando de aves e veio a cair pouco depois, morrendo toda a tripulação.

— É por isso que nos aeroportos de todo o mundo existem sistemas para afugentar aves — explicava o pequeno falcoeiro do século XX. Por exemplo, tiros de um canhão automático que dispara periodicamente. Ou cassettes emitindo gritos de aves aflitas. Mas os bichos são inteligentes e depressa se habituam a tudo aquilo, percebendo que não há motivo para alarme.

— Então — interrompeu o repórter com um sorriso —, parece que o homem descobriu que a Natureza lhe oferecia um meio bem mais simples e eficaz: o falcão, não é?

— É, sim. Basta que falcões treinados sobrevoem o aeroporto, uma vez por dia, para que as aves fujam. Aquele é um inimigo natural, que reconhecem há séculos.

— Então e no aeroporto de Lisboa, já são utilizados?

— Por enquanto, não. Está-se a estudar o assunto. Mas, em Espanha, no aeroporto de Barajas, perto de Madrid, há catorze falcões e dois açores de serviço...

— Aves de serviço! Uma ideia engraçada — comentou o repórter, cuja cara ocupava agora o ecrã em grande plano.

O João pegou numa almofada do sofá e atirou-a com fúria para o outro canto da sala.

— Bolas! Nunca mais chega o dia de irmos ter com o Orlando!

— Olha o que fizeste! — ralhou a irmã.

A almofada, bastante velha, rompera-se com o impacte e penas minúsculas esvoaçavam pela sala.

O João levantou-se de um pulo e, radiante, pôs-se a abanar a almofada meio vazia, soprando freneticamente nas penas, que depois perseguiu, aos gritos:

«São falcões! São falcões!»

O pior foi que, nesse momento, ouviram o estalido inequívoco de chave na fechadura. Era o pai que vinha a chegar...

 

— O castelo, Ana! Lá está o castelo!

Com um frémito, o João deteve-se e segurou a irmã pelo braço. Uma neblina opaca envolvia a serra, de modo que o castelo parecia suspenso no ar, esbatendo-se os contornos das ameias e da torre em ruínas. Embora fizesse um frio de rachar e a geada revestisse o solo com a sua película de vidro, os dois irmãos sentiram-se tomados por um calor intenso. Bastava darem uma corrida, para terem ao alcance aquilo que desejavam há muito tempo. Era bom de mais. E por ser bom de mais quase não tinham coragem de avançar.

— Achas que o Orlando está à nossa espera?

— Claro que está, Ana. Anda, vamos!

A Ana não saiu do mesmo lugar. Subitamente tinha medo, um medo pavoroso de que aquilo não passasse de um sonho. E se o Orlando não estava lá? E se a máquina tivesse desaparecido? E se qualquer coisa os impedisse de partir?

— Que horror, não suporto a ideia de não poder viajarj outra vez pelo tempo...

— Ora, Ana! Para que é que estás com isso? És uma pessimista. Claro que vamos viajar. O Orlando está de certeza à nossa espera, e tão impaciente como nós. Anda daí, vá.

E o João largou a correr pela serra acima, aos gritos. > Também ele fora atacado subitamente, não de medo mas de urgência! Tinha de entrar no castelo! Tinha de ver o Orlando! Tinha de se atirar de cabeça para a máquina do tempo, o mais depressa possível!

E assim, quase voando, de língua de fora, sem fôlego, os olhos a saltarem-lhe das órbitas, irrompeu pelo castelo, feito um louco.

— Orlando! Orlando! Orlando!

Ninguém lhe respondeu. A Ana, que vinha logo atrás, congestionada do esforço que fizera para acompanhar o irmão, estacou, de novo em pânico.

— Vês? Se calhar foi-se embora! Entreolharam-se, meio perdidos. Mas logo, que alívio imenso! Algures, na muralha, soou uma inconfundível gargalhada rouca.

— Orlando! — gritaram os dois ao mesmo tempo.

— Estou aqui! Estou aqui em cima! Não me vêem por causa do nevoeiro.

— Queremos ir ter consigo!

— Não vale a pena! Esperem, que eu desço!

A Ana e o João olharam para todos os lados. O nevoeiro cerrava-se cada vez mais, fazendo-os perder referências. Não conseguiam sequer perceber de onde vinha o som.

— Isto é misterioso desde o princípio! — murmurou a Ana.

Uma respiração ofegante fê-los voltarem-se para trás. E, da cortina espessa de névoa que cobria tudo, surgiu finalmente o Orlando. Mas um Orlando diferente! Em fato de treino, corado e bem-disposto, corria num ritmo certo. E não parou para os abraçar! Continuou pelo pátio fora, acenando-lhes alegremente.

— Venham comigo! Sigam-me.

Perplexos, foram atrás dele. A Ana sempre presa de certa inquietação. O cientista teria ficado tontinho?

Mas afinal era tudo muito simples. Mal entraram na cozinha, ficaram esclarecidos. Orlando parou em frente de um relógio enorme e pôs-se a contar as pulsações. Depois, com um suspiro de contentamento, abriu-lhes os braços.

— Estou em forma! Estou cada vez mais novo! O exercício matinal dá-nos anos de vida!

E, muito carinhoso, abraçou-os efusivamente.

— Que saudades! Que saudades que eu tinha destes meus companheiros de viagem!

Ao contrário do que às vezes acontece, quando se está muito longe de uma pessoa, não sentiram qualquer constrangimento. Parecia que se tinham ido embora dali na véspera. O problema era outro — tinham todos milhares de perguntas para fazer. Sobretudo o João que era uma autêntica matraca.

— A máquina está boa? Fez mais viagens? Podemos ir já? Sempre podemos visitar a corte do rei D. Dinis? Já pediu autorização aos outros cientistas?

— Calma, rapaz! Senta-te aí! Vamos combinar tudo como deve ser. A ver se desta vez não corremos riscos inúteis!

— Pois é, João! Que chato! Fazes tantas perguntas que é impossível responder...

— Pronto, pronto! Instalem-se aqui ao pé de mim. Eu preciso de uma bebida quente.

Orlando dirigiu-se ao fogão electrónico que, em cima do fogão de lenha, e rodeado de maçãs, castanhas, nozes, panelas de vários tamanhos, exibia uma portinha de metal amarelo.

— Tenho aqui um concentrado de frutos secos que é uma maravilha! Querem provar?

A Ana e o João olharam desconfiados para a caneca cheia de um líquido espesso, borbulhante.

— Hum... concentrado de frutos?

— Uma delícia! Uma verdadeira iguaria do futuro.

— Tem viajado pelo futuro? — perguntou de imediato o João.

— Lá estás tu!

— Viajou ou não viajou?

— Sim. Mas digo-te já que, para o futuro, ainda não vos posso levar.

— Ah! Porquê?

— Porque as viagens para o futuro ainda envolvem riscos a que não vos posso expor. Nem eu quero nem a AIVET(1) permite, portanto, falemos da nossa viagem, a que temos programada.

— Quer dizer que já programou tudo?

— Sim, senhor. Está tudo tratado. Mas há um problema.

— Qual é? Resolve-se, não resolve?

— Não creio. O problema é este: vocês queriam assistir ao milagre das rosas, não era? Fizemos imensas investigações, e não conseguimos descobrir nem aonde nem quando se deu a tal transformação dos pães em rosas...

— Ora, isso não faz mal! Eu quero é ir à corte do rei D. Dinis.

 

(1) AIVET: Associação Internacional de Viagens no Espaço e no Tempo.

 

— Mesmo isso não é fácil, sabes? D. Dinis reinou quarenta e seis anos. E não parava quieto. Percorreu o País de lés a lés. Visitou, que se saiba, mais de cem terras...

— Também veio aqui ao Marão, espero.

— Aqui, exactamente ao sítio onde estamos, julgo que não. Mas quanto a isso, não há problema. Já aperfeiçoámos o sistema de viajar no tempo. Podemos escolher o sítio, e vamos lá parar.

— Foi um grande melhoramento, sim.

— Então qual era a sua ideia, Orlando? Que terra é que vamos visitar?

— Pensei começar por Coimbra, que era um sítio onde a corte parava muito. E, se não estiverem lá, informamo-nos e partimos para outro sítio. O que é que acham?

— Cá por mim, tudo bem.

— Tenho ainda outra surpresa para vocês...

— O que é?

Orlando levantou-se e dirigiu-se a uma velha arca de madeira. Com um sorriso maroto, ergueu a tampa e começou a tirar peças de roupa.

— Fatos! Fatos do tempo do rei D. Dinis!

— Oh, Orlando! Que bom!

Radiantes, os dois irmãos levantaram sucessivamente saias, capuzes, meias, botins de couro, cintos, bolsas...

— Que maravilha! Onde é que arranjou isto tudo? Encomendou para «o passado»? — perguntou o João, de olhos arregalados.

— Não compliques, João! Bastou encomendar tudo a um guarda-roupa de teatro.

— Então, vamo-nos equipar!

— Isso. Desta vez, não é por estarmos vestidos de maneira diferente que chamamos a atenção. Agora vê lá tu o que é que arranjas!

— Eu?

— Sim, tu, meu estarolado!

— E os cintos especiais? — lembrou a Ana. — Já não são necessários?

— São, são. Os estabilizadores têm de ir postos. E não podem nunca ser tirados, hã? Senão, ao fim de pouco tempo, vocês desintegram-se.

— E além disso têm os botões azuis, que servem para entendermos o que nos dizem os portugueses de outra época. Senão, não percebemos nada. A linguagem era muito diferente.

— Vejo que não te esqueceste de nada, Ana.

— Podia lá esquecer!

— Bem, basta de conversa. Tratem de se arranjar. Nenhum deles se fez rogado.

 

Com a sensação estranha de reviverem um momento igualzinho a outro anterior, a Ana e o João, já equipados, acompanharam os movimentos precisos do velho sábio diante do painel metálico cheio de botões luminosos. Tal como da outra vez, tinham de pedir autorização para partir na máquina do tempo.

A inconfundível música electrónica encheu o aposento, logo seguida pelo piscar intermitente de mil luzes.

Nos ecrãs de televisão voltaram a surgir os cientistas membros da AIVET. Vestiam as mesmas batas brancas com emblemas em forma de hélice.

— «Viajantes do tempo» chama Marão — declarou Orlando.

A resposta, dada em coro, ressoou pela sala.

Desta vez, o cientista africano, que parecia ser o chefe ou pelo menos o porta-voz daquela organização, tomou imediatamente a palavra e, com um sorriso faiscante, anunciou:

— A Ana e o João foram aceites como membros honorários da AIVET. Parabéns!

Em todos os ecrãs os cientistas saudaram-nos com uma salva de palmas.

— Obrigado! — balbuciaram os dois irmãos, sem terem a certeza de serem ouvidos.

Mas pelos vistos foram. A cerimónia, porém, ainda não tinha acabado.

Orlando retirou de uma caixa de vidro dois emblemas em forma de hélice, presos em fitas estreitinhas e coloridas. Diante de toda a assembleia presente nos ecrãs, passou-lhes as fitas pela cabeça. Novamente soaram palmas. Depois, num diálogo breve, Orlando pediu a confirmação para partirem para o século XIII, o que lhes foi imediatamente concedido.

pronto! As imagens desapareceram dos ecrãs, e o velho cientista conduziu-os à sua máquina do tempo. Entraram, instalaram-se no compartimento rectangular, a porta fechou-se e o mecanismo foi accionado.

Antes de começarem a girar, ouviram o silvo agudo da partida.

A caminho de um espaço e de um tempo desconhecidos, sentiram a mesma vertigem que parecia não ter fim...

Subitamente, porém, tudo cessou. A Ana abriu os olhos com dificuldade e logo os tornou a fechar. Sentia-se estranha, como se não fosse dona do seu próprio corpo. Parecia-lhe que o espírito vogava, meio fora meio dentro, perdido o controlo absoluto dos movimentos que habitualmente faz

do corpo e do espírito uma pessoa só. Tentou mexer-se, mas os braços, as pernas, a cabeça, estavam pesados e leves, pesados e leves!

A pouco e pouco, foi tomando consciência do que a rodeava. Primeiro ouviu. Sons muito suaves, doces, como se uma mão invisível agitasse à sua volta folhas de papel de seda. Depois foi o cheiro da terra húmida, um cheiro forte, inequívoco e agradável que lhe penetrou as narinas. Com a ponta dos dedos afagou o chão, picando-se na caruma seca. Finalmente conseguiu abrir as pálpebras, pestanejando várias vezes seguidas. E todas as sensações isoladas desapareceram, encaixando-se de imediato na visão envolvente de um bosque. Árvores centenárias, de tronco rugoso e imponente, formavam um círculo apertado em volta da pequena clareira onde tinham ido parar. Uma brisa fazia agitar os ramos, numa espécie de aceno amigável, como se a própria Natureza se manifestasse a dar-lhes as boas-vindas.

— Ana! Ana! Estás bem?

Voltou a cabeça e sorriu ao irmão que, meio atarantado, tentava pôr-se de gatas.

— Estás bem, Ana? — repetiu.

— Nunca me senti tão bem na minha vida...

— Ora ainda bem que acordaram!

Orlando foi o primeiro a levantar-se, com as farripas de cabelo no ar e a roupa em desalinho.

— Isto de viajar no tempo e no espaço é mais complicado! É muito mais complicado... Da outra vez partimos do castelo, e fomos parar ao mesmo castelo oitocentos anos antes. Desta vez partimos do castelo e viemos dar a Coimbra, setecentos anos antes... É natural que lhes custe a recobrar forças — acrescentou, passando a mão pela careca luzidia.

— Esta viagem não é brincadeira nenhuma, não senhor...

— Ó Orlando — perguntou o João, inquieto —, tem a certeza de que estamos em Coimbra? Isto é um bosque, não é uma cidade!

O velho sábio respondeu-lhe com uma das suas gargalhadas roucas.

— Claro que estamos em Coimbra! No século XX, este local será até uma rua bastante movimentada. Mas por agora, no século XIII, é ainda e felizmente um magnífico bosque! As casas são poucas e ficam lá mais adiante. Levantem-se, companheiros de viagem! E toca a andar, em busca da corte do rei D. Dinis...

A Ana sorriu. Era engraçado, o Orlando. Velho de tantos anos, sábio de tantas experiências, e apesar disso entusiasmava-se como um miúdo pequeno! Há pessoas assim, a quem a vida não desgasta.

Juntos, iniciaram a caminhada pelo bosque. Precisavam de sair dali e dirigir-se à cidade. O rei estaria ou não estaria em Coimbra?

A solidão era completa. Alguns pássaros esvoaçavam por entre a copa das árvores em busca de alimento, refugiando-se logo na quentura do ninho. Fazia um frio de rachar!

De repente... «FSST»! Alguma coisa cortou os ares. O João, assustado, deu um salto.

— Que foi isto?

Nenhum deles conseguia identificar aquele ruído sibilante. Mas logo a seguir uma pequena seta atravessou o espaço, cravando-se num tronco de pinheiro.

Orlando segurou-os pelos braços e ordenou:

— Deitem-se! Devem ser caçadores.

De novo por terra, com o coração acelerado, aguardaram. Passos leves aproximavam-se pisando montículos de caruma.

— Parece-me que é só uma pessoa — disse a Ana.

— Schut! Esperem!

Os passos soavam cada vez mais perto... e eram cautelosos.

Em grande expectativa, voltaram-se para aquela zona de mato mais cerrado.

A primeira coisa que viram foi um barretinho verde. Depois, entre a folhagem, apareceu a cabeça de um rapaz jovem que, ao dar com os olhos neles, pareceu assustado e fugiu a esconder-se.

— Deve ser um caçador furtivo! — exclamou Orlando. — Pelos vistos, teve medo de nós.

— O que é um caçador furtivo? — perguntou o João.

— É um caçador que caça às escondidas. Nesta época o povo não podia caçar na terra dos senhores e, se fosse apanhado a fazê-lo, podia ser condenado à morte.

— Condenado à morte? Safa! Então é preciso muita coragem...

— Ou muita fome! — explicou Orlando. — Vocês já sabem como esta gente vivia mal. Se calhar aquele desgraçado tem família numerosa para sustentar e arrisca a vida por uns coelhos...

— Chame-o lá, coitado!

— Ei! Amigo! Venha ter connosco! Nada receie, que não somos daqui! — gritou Orlando.

Não houve logo resposta.

— Amigo! Amigo! Venha cá! — chamou a Ana, a quem não ocorrera uma frase melhor.

E pôs-se a olhar em todas as direcções, com a certeza de que estavam a ser observados.

De facto, um restolhar de ramos a afastarem-se chamou-lhes a atenção para uma moita fechada. E a cabeça de um rapaz emergiu, ainda desconfiado.

— Venha cá! Venha cá, que queremos falar consigo! — chamou Orlando.

— Cá por nós, pode caçar à vontade — disse o João, prático e despachado como de costume.

O rapaz não se decidia e Orlando então teve uma ideia. Como, por precaução, tinha resolvido levar umas sanduíches, avançou para o meio da clareira de forma a poder ser visto e retirou os pães de dentro do saco.

— Venha comer connosco! — convidou, com a certeza de que a palavra «comer» actuaria como uma palavra mágica.

Não se enganou. Ainda hesitante, o rapaz não resistiu e aproximou-se deles. Era de facto novo. Muito novo e bonito, com grandes olhos negros na cara magra. Trazia um saio de cor indefinida e caminhava descalço. À tiracolo, o arco e uma bolsa de couro com setas.

— Venha comer connosco! — repetiu Orlando, estendendo-lhe uma sanduíche de queijo flamengo.

O rapaz pegou-lhe com evidente curiosidade.

— É pão? — perguntou, admirado.

— É, sim. É pão com queijo.

— Por Deus! Que pão tão branco e que queijo tão amarelo! Nunca tal vi!

A Ana e o João riram-se da surpresa do camponês. De facto, naquela época, o pão era feito com uma mistura de cereais que o tornava escuro. E não havia carcaças. Fabricavam-se apenas pães redondos, muito grandes, parecidos com o que agora chamamos pão saloio. E quanto ao queijo, era geralmente de ovelha, pouco curado e muito branco. Uma vulgar sanduíche de queijo, mudada de século, tornava-se coisa bem exótica!

O rapaz virava e revirava o pão nas mãos, sem se atrever a trincá-lo.

— Por certo, vindes de longes terras...

— Sim, sim. Somos estrangeiros — disse Orlando para o sossegar. — Come à vontade que não te fará mal algum.

O camponês rasgou o pão ao meio e enfiou um naco inteiro pela boca dentro, mastigando ruidosamente, com visível prazer.

— Hum! Belo manjar fazem na vossa terra! — exclamou, falando com a boca cheia. — Já desde ontem que não comia...

A Ana e o João olharam-no, com pena. Seria servo da gleba, pertencendo a um senhor muito avarento que não lhe deixasse sequer o suficiente para se alimentar?

— Acha que ele é um servo da gleba? — perguntou a Ana baixinho, chegando-se para o Orlando.

— Não. Agora já não há servos da gleba. Todos são homens livres de escolher o seu amo. Foi uma lei publicada em 1211, no reinado de D. Afonso II, que lhes deu esse direito.

— Então, se ele pode escolher outro senhor, por que é que não se vai embora daqui? Pelos vistos aqui não o tratam bem.

Orlando sorriu.

— Ele pode ir-se embora daqui, sim. Mas ir embora, com a família, a pé por montes e vales, é complicado. Sobretudo porque ele não tem a certeza de encontrar melhores condições na terra de outro senhor...

Um pouco retirados, conversavam, enquanto o rapaz devorava toda a merenda que Orlando acabou por lhe dar.

Quando terminou, soltou um suspiro de contentamento.

— Parece-me que nunca comi tanto de uma só vez! Já à vontade, aproximou-se deles muito risonho. E explicou sem rodeios como era a sua vida.

— Estas terras pertencem ao filho bastardo de D. Ses-nando. Meu pai é mancebo de lavoura.

— Um mancebo de lavoura não ganha muito mal — estranhou Orlando. — Já é um cargo de certa importância.

— Hum, lá isso é verdade. Meu pai recebe vinte alqueires de cereal, pano, calçado, e algumas libras de prata e cobre. Mas tem muitos filhos. Abaixo de mim, são onze filhos vivos e três mortos. O pão não chega para todos.

— E tu não trabalhas? — perguntou o João.

— Eu já sou cachopo de gado. Recebo uma saia, duas camisas, uma touca, dois pares de sapatos e ainda alguns soldos. Mas tenho de ajudar a família, que os meus irmãos mais novos ainda não têm forças para trabalhar. É também por causa deles que ando à caça...

— Homem, cace à vontade que a gente não diz nada a ninguém...

— Eu creio que já cacei!

— Sim? Quando?

— Ainda há pouco. A primeira seta, se não me engano, matou um coelho.

E, retomando a expressão física de um caçador furtivo, o rapaz embrenhou-se nas moitas, afastando os ramos cautelosamente.

O João não resistiu e foi atrás.

Ele tinha razão. Um pouco adiante, o corpinho felpudo de um coelho jazia trespassado por uma seta.

Se o tivesse visto morrer, ficava cheio de pena. Mas assim, o animal abatido lembrou-lhe que nessa noite uma família pobre teria o seu jantar. E ficou contente.

Antes de se despedirem, Orlando indagou se o rapaz sabia por onde andava a corte.

— Não sei! — respondeu ele. — Aqui há tempos, o rei D. Dinis estava em Coimbra. Mas não sei se já foram embora. O melhor é procurarem adiante. Andam a construir um mosteiro em honra de Santa Clara. Talvez os homens que lá trabalham possam dar essa informação.

Orlando achou boa ideia e separaram-se, seguindo cada qual o seu caminho.

— Tem graça! — comentou a Ana, voltando-se para trás. — Esse bosque, o caçador, os coelhos, têm qualquer coisa de familiar. Fazem-me lembrar não sei o quê.

— Não sabes tu, mas sei eu. É a loiça — disse Orlando.

— A loiça? Que loiça? — perguntou a Ana.

— A loiça típica de Coimbra. Se calhar tens lá em casa alguma taça, ou travessa, ou terrina...

— Ah! Tenho, tenho. Uma terrina com prato igual.

— Pois é. Nessa louça aparecem sempre, num desenho miúdo sobre fundo branco, pequenos bosques, castelinhos, animais... e às vezes até caçadores. A história deste bosque, minha filha, ficou gravada na memória dos homens, escrita nos livros de histórias e estampada também em muitas peças de loiça!

— Que engraçado! Quando voltar ao século XX hei-de reparar melhor!

 

Assobiando alegremente seguiram viagem, agora a pé, por caminhos estreitos de terra batida. Estava uma manhã bonita de Inverno e, apesar do frio, sentiam-se bem.

— Já teríamos saído das terras do tal filho bastardo de D. Sesnando?

— Não faço ideia.

— É verdade, o que é um filho bastardo? — perguntou o João. — Nunca ouvi falar nisso.

— Pois é muito simples. Os filhos que um homem tinha do casamento eram filhos legítimos. Se tivesse filhos de outras mulheres, esses eram bastardos. Olha, o nosso rei D. Dinis teve uma data deles. O mais certo é virmos a conhecer algum!

— Até era giro — comentou a Ana.

— Hum... Devemos estar perto do rio Mondego — disse de repente Orlando. — «Cheira-me a água.»

— Ó Orlando! Pensei que a água era inodora!

E o João, fazendo rebolar entre a língua e os dentes uma palavra invulgar, repetiu — INODORA! Ou seja, sem cheiro.

— Isto é uma maneira de dizer. Repara que estamos numa zona baixa, que a terra se apresenta um pouco húmida e a vegetação já é outra. Vês ali? Choupos, salgueiros e erva por toda a parte.

— Então, temos de procurar uma ponte ou um barqueiro, caso seja preciso passar o rio.

— Olha, olha! Lá está ele! — disse a Ana que, caminhando à frente dos outros, tinha alcançado o topo de um pequeno morro.

Por entre as folhagens avistava-se o Mondego, rio de águas serenas brilhando ao sol. Do lado de lá, a povoação.

— Isto é Coimbra? — perguntou o João, admirado.

— Claro! O que é que esperavas?

— Tão pequenina! Eu já estive em Coimbra e não é nada assim.

Orlando soltou uma das suas gargalhadas roucas.

— Das coisas que mais me agrada nestas viagens no tempo é comparar os sítios que conheço com os mesmos sítios noutras épocas. Na tua frente, João, está Coimbra do século XIII. A única que o rei D. Dinis conheceu. Se ele pudesse visitar o século XX, quando chegasse aqui, dizia assim: «Ena! Tão grande!»

O João riu-se. A ideia era engraçada.

— Ouçam! — pediu a Ana, apurando o ouvido. — Passa-se qualquer coisa ali adiante!

Calaram-se alguns instantes e, de facto, por entre o arvoredo ouvia-se um ruído inesperado.

«Tleric... Plinc... Clinc... Schun... Schun... Schun...»

— O Convento de Santa Clara! — gritaram em coro, apercebendo-se de que aqueles ruídos provinham do trabalho de homens a talhar pedra.

— Vamos até lá. Pode ser que nos saibam informar por onde anda a corte, conforme sugeriu o caçador.

Bastou-lhes andar alguns metros para avistarem as obras do convento. E que grande azáfama! Num local extremamente aprazível, e bem perto da margem do rio, tinha sido aberta à machadada uma clareira destinada ao edifício. Os caminhos que iam lá dar tinham sido alargados para passarem carros de bois transportando enormes blocos de pedra branca. O número de pedreiros que ali trabalhavam era muito numeroso; de uma maneira geral, eram todos baixos, musculados e morenos. Nas suas andanças para cá e para lá lembravam um gigantesco formigueiro.

Uma parte das paredes exteriores já estava de pé. Mas sem cobertura transmitia o encanto de uma coisa inacabada. Em cima, duas roldanas montadas numa viga de madeira içavam, naquele momento, um enorme paralelepípedo, sob o olhar atento do mestre.

Aproximaram-se dali, encantados, quase dispostos a integrarem-se no grupo para ajudarem a erguer aquele monumento maravilhoso.

O mestre não pareceu estranhar a presença de três forasteiros. Pelos vistos, era costume as gentes de Coimbra e até de outras terras em redor virem por lá oferecer gratuitamente os seus serviços. A população da zona orgulhava-se daquela obra e muitos queriam poder pensar, quando estivesse pronta: «Aquele bocadinho ali, fui eu que o fiz!» O pedregulho assentara finalmente sobre a argamassa de cal e areia, acrescentando-se à parede semiconstruída. O mestre deu um suspiro de alívio, limpando a testa com as costas da mão. Suava, como se todo o esforço de levantar aquele peso tivesse sido feito por ele. E virando-se para o Orlando disse, contente:

— Isto é para a eternidade! Orlando sorriu-lhe e anuiu. Mas, voltando-se para a Ana sussurrou:

— Nem sempre a verdade pode ser dita!

— Qual verdade? — estranhou ela.

— Este monumento não vai durar sempre, como ele julga.

— Porquê? Não está a ser bem construído?

— Não me diga que vai desaparecer num incêndio ou com algum tremor de terra...

— Nada disso. O Mosteiro de Santa Clara vai ser, a pouco e pouco, engolido pelo rio. Este terreno é alagadiço,! e com as cheias do Mondego vai dar de si. Na nossa época, quase tudo isto, que eles agora já construíram com tanto entusiasmo, estará debaixo do chão.

— Que tristeza!

— Pois é. Mas não tenho coragem para lhes dizer...

— Oh! Claro que não! — respondeu a Ana, horrorizada.

Mesmo na sua frente, um rapaz bastante novo, com orelhas de abano e a nuca completamente rapada, colocava em cima de uma coluna o capitel que ele próprio tinha esculpido. E que o fazia com amor, era evidente.

— Que lindos pássaros! — apreciou o João em voz alta. O rapaz voltou-se em cima do andaime, satisfeito por apreciarem o seu trabalho.

— Os outros gostam mais de esculpir folhagens e coisas assim! — disse. — Mas eu acho que não há nada mais bonito que pássaros.

— Ficaram muito bonitos — concordou a Ana.

— Se cá voltarem no século XX, sabes onde vais encontrar este pássaro? — perguntou-lhe Orlando baixinho. — Semienterrado na lama...

— Oh, Orlando! Francamente! Não quero saber mais nada sobre este monumento no século XX. Quero vê-lo como ele está agora e pronto!

— Ora, ora, ainda há uma coisa que tenho de dizer — respondeu o cientista, feito «ranzinza». — Na nossa época, este mosteiro não só estará meio enterrado no chão como ainda cheio de água. Vês ali a zona do altar-mor? Daqui a setecentos anos, se quiseres vê-la de perto, tens de ir de barco...

— Ó Orlando, desculpe, mas nunca o vi tão embirrante.

— Sabes por que é que estou embirrante, sabes? Porque não suporto a ideia de que no século XX, com o desenvolvimento dos meios técnicos, não tenham feito nada para recuperar o mosteiro, que é um dos primeiros em estilo gótico!

A conversa foi interrompida por um grito agudo seguido de enorme algazarra. O que quer que fosse passava-se do outro lado, do lado da torre. Toda a gente foi para lá a correr e eles também.

Como de costume, o João acotovelou os outros para passar à primeira fila. E o que viu, deixou-o petrificado. Um miúdo pequeno, que dava serventia ao pai na construção de uma escada de caracol para a torre do sino, tinha-se desequilibrado e caíra lá de cima. O pai gritava desespera-damente, tentando acordá-lo aos abanões. Mas ele não dava acordo, de olhos fechados, muito pálido, com um fio de sangue a escorrer-lhe da boca.

— Está morto, não há nada a fazer! — disse alguém entre a multidão.

Algumas mulheres desataram a chorar em altos gritos.

— Foi direito para o céu!

— É o primeiro anjinho da Igreja de Santa Clara! Orlando, furioso, deu um empurrão às mulheres, ajoelhou-se ao pé do rapaz.

— Água — pediu com voz de comando. — Tragam água!

E, num gesto automático, tomou-lhe o pulso. Muito fraquinho, o coração ainda batia.

— Está vivo! — anunciou, levantando a cabeça. — Tragam água fresca! Depressa!

À sua volta fez-se um silêncio respeitoso. O pai aproximou-se com duas lágrimas gordas escorrendo na cara morena, rude, coberta de pó branco. E a água já lá vinha, trazida pelo menos em sete bilhas, que os homens, atarantados, tinham corrido a buscar.

Com ternura infinita, Orlando humedeceu-lhe as fontes com um pano e chamou, também comovido:

— Eh! Ó Anjinho de Santa Clara, toca mas é a acordar! Sem abrir os olhos, o rapaz soltou um gemido. O pai afagou-lhe a cabeça com as mãos trémulas.

— Filho! Filho! Acorda!

A pouco e pouco, o miúdo foi recobrando os sentidos e tentou mexer-se. Mas logo se encolheu, queixando-se da perna direita.

— Ai! Dói! Dói-me aqui!

— Tragam uma padiola! — ordenou Orlando. — Aquela tábua ali serve. Se calhar o rapaz partiu uma perna.

A Ana franziu-se, com uma sensação esquisita. A exclamação provocara-lhe uma dor que, embora imaginária, lhe prendia a sua própria perna.

— E agora? — perguntou baixo a Orlando. — Eles não conhecem o gesso, como é que vão tratar dele?

— Com talas de madeira bem atadas, algumas rezas da mãe e das vizinhas, e muita paciência para não se mexer. Pode ficar a coxear, ou não. De qualquer forma, o importante é que está vivo. Estes monumentos, que a gente tanto aprecia, fizeram-se com o trabalho de muitos homens e à custa de bastantes vidas também...

A padiola entretanto fora levada e todos retomaram o trabalho.

— Vamos lá ver se têm cuidado! — gritou o mestre àqueles que subiram para os andaimes. — Não quero mais acidentes.

Depois, avançou para eles. Era um velho de cabelos brancos, barba curta e olhos extremamente vivos.

«Tem mesmo cara de mestre!», pensou o João.

Com voz forte, de quem está habituado a dar ordens, ele perguntou ao Orlando:

— Acaso sois físico?

— Sim — respondeu o cientista sem hesitar.

— Bem me pareceu. Até pensei se seríeis um físico da corte. Mas como o rei está em Leiria...

— Pois, pois está. Para lá me dirijo com os meus netos — respondeu de novo Orlando, sem hesitar.

— Ah! Mas tende cuidado pelo caminho. Os salteadores infestam estes matagais. Se quereis um conselho, juntai-vos aos almocreves que partem hoje nessa direcção. Quanto maior for o número de viajantes mais segura é a viagem. E além disso, já sabe, os almocreves andam sempre bem armados para defenderem as mercadorias que transportam.

Orlando concordou em procurar os almocreves e despediu-se calorosamente.

Afastaram-se na direcção que ele indicou, acenando repetidas vezes para trás.

De pernas abertas, os braços atrás das costas, o mestre ficou a vê-los ir. Não encontrara palavras para agradecer, mas agradecia assim, procurando protegê-los com os seus conselhos.

— Que homem notável! — disse a Ana. — Tem qualquer coisa de especial, mas não sei o que é.

— Uma personalidade forte. Costuma dizer-se que estas pessoas assim têm «carisma». Impressionam os outros. Impõem-se com uma força que vem de dentro.

— Foi ele quem fez o projecto do Mosteiro de Santa Clara? — perguntou o João.

Orlando sorriu, sem saber bem o que responder.

— Creio que não havia bem um projecto... Construía-se mais segundo a tradição e modelos trazidos do estrangeiro... De qualquer forma, embora obedecendo a regras, os artistas gozavam de grande liberdade. Reparaste que cada capitel tinha uma decoração diferente? Os artistas podiam esculpir conforme a sua imaginação. Era uma coisa que faziam com orgulho. E, no entanto, não assinavam as suas obras. De resto, não sabiam assinar. Esta gente era analfabeta.

— Mas eu ouvi dizer que eles às vezes marcavam as pedras com uns sinaizinhos. Até lá vi um muito engraçado, que parecia uma cobra — disse a Ana.

— Pois marcavam. Mas quem marcou? Estas obras eram individuais, mas ficavam anónimas. E o resultado, a construção, era de todos.

— Acho tudo muito interessante, mas agora o que eu quero é encontrar os almocreves! — disse o João já entusiasmado. — Acha que vamos fazer uma viagem aventurosa, com lutas de salteadores e tudo?

Orlando riu-se.

— Não faço ideia. Tudo pode acontecer...

— Por que é que não vamos na máquina do tempo? — sugeriu a Ana.

— Deixa lá a máquina sossegada no bosque. Já a pus invisível, e agora fica ali à nossa espera.

— Claro! Que ideia tão parva! Vamos a pé, pelos matagais. É muito mais emocionante. Tu também, sempre com medo! — repetiu o irmão. — Juntemo-nos aos almocreves, esses bravos vendedores ambulantes que percorriam o País enfrentando animais ferozes, bandidos, salteadores, tempestades...

De olhos brilhantes, o João pôs-se aos pulos, entusiasmado com as suas próprias palavras.

A viagem, para grande desgosto do João, decorreu sem incidentes. Os almocreves eram homens experimentados, conheciam bem os caminhos, deslocavam-se com armas e o grupo era grande, capaz de dissuadir qualquer salteador mal-intencionado... O único pormenor a assinalar foi o cheiro! As sacas e os alforges das mulas, carregados de peixe seco, exalavam um cheiro que ambos acharam nauseabundo.

Mas se a viagem foi calma, o mesmo não se pode dizer da chegada a Leiria! Desde o primeiro momento foi uma grande excitação. De resto, onde estivesse a corte do rei D. Dinis, era certo e seguro que reinava a alegria. Era uma corte divertidíssima! O rei gostava de viver rodeado de artistas, e no castelo havia todas as noites festas esplêndidas, lautos banquetes, e, como não podia deixar de ser, música e danças.

Foi sem saudade que abandonaram os almocreves, homens sorumbáticos e demasiado preocupados com o seu negócio, para se integrarem num grupo de jograis que se dirigia ao castelo tocando e dançando animadamente pelas ruas.

Às portas e janelas havia muita gente a ver o desfile, num misto de curiosidade e inveja. Os jograis, as cantadeiras e as bailarinas que os acompanhavam eram jovens, vestiam roupas de cores garridas e avançavam com petulância, exibindo-se à luz do Sol como quem goza de grande liberdade.

O facto de se mostrarem assim, diferentes, excitava a curiosidade da população. Mas excitava também a desconfiança. Uma ou outra velha murmurava à passagem:

— Hum... São uns sem-vergonha!

— Isto ofende a Deus!

A verdade é que, por serem os únicos homens e mulheres do povo que afinal iam ao castelo, não para prestar serviços mas para confraternizar com a nobreza e com os próprios reis, deixavam os outros roídos de inveja.

O Orlando, a Ana e o João, como vinham de fora, misturaram-se com eles sem grande problema. Bastou que começassem a dançar e foram aceites.

O castelo ficava no topo de um morro arredondado, que se erguia abrupto dominando tudo em redor. O caminho para lá chegar era íngreme e serpenteado. Mas não lhes custou a subir.

«Vou ver o rei e a rainha santa em pessoa! Isto é bom de mais!», pensavam todos três.

O João, que apesar da sua estarolice era também de ideias fixas, continuava ainda na esperança de deslindar a verdadeira história do milagre das rosas. Quando chegaram à muralha, encontraram a porta aberta de par em par. Dois servidores do rei, munidos de tochas a arder, conduziram-nos por entre várias construções que se destinavam a habitação ou a cavalariças. Foram direitos à alcáçova, que era a parte central do castelo. Lá é que estava o rei.

Assim que entraram na sala do trono, a Ana quase chorou de felicidade. Tinha diante dos olhos o espectáculo mais fascinante que vira em toda a sua vida!

O rei e a rainha impunham-se, majestosamente sentados em cadeirões de madeira muito trabalhada. Eram ambos belos, imponentes, nos seus trajes ricos de festa. E as coroas de ouro e prata, cravejados de pedraria, cintilavam reflectindo a luz dourada das tochas.

Numerosas damas e cavaleiros espalhavam-se em volta da sala, uns sentados, outros de pé, aguardando ansiosamente a chegada de novos jograis. Porque os que viviam na corte já tinham cantado. Junto do rei estava um homem esguio, pálido, de barba branca, trajando vestes arroxeadas cujas mangas eram debruadas a prata. Aos pés da rainha, sentada num banquinho, estava uma dama de bochechas redondas, muito corada e muito morena.

Orlando, arrebatado também com o que via, passou-lhes o braço pela cintura, puxando-os com força para si.

— Ana! João! Olhem para isto com olhos de ver!

— Quem é aquele homem que está ao pé do rei? — perguntou o João.

— É um dos homens mais importantes e poderosos do reino. Chama-se Domingo Jardo e é bispo de Lisboa. Foi ele quem convenceu o rei a fundar a primeira universidade portuguesa.

— E aquela senhora junto da rainha?

— Não sei. Pode ser Dona Vitaça, uma dama que ela trouxe na comitiva, quando veio do reino de Aragão para casar com D. Dinis...

Naquele momento os jograis aproximavam-se do trono,! saudando os reis com uma vénia profunda. Santa Isabel baixou-lhes a cabeça ligeiramente. Mas o rei iluminou-se num sorriso rasgado. E não passou despercebido a ninguém que lançava olhares apreciadores a uma jovem bailarina de tranças grossas.

A exibição ia começar. Os músicos recuaram para deixar espaço para as bailarinas. À esquerda ficou o coro, onde o Orlando, a Ana e o João tiveram de se integrar.

— Estou «frito» — queixou-se o Orlando, baixinho.

— Sou muito desafinado, tenho voz de cana rachada e não sei cantar...

— Mexa só os lábios — aconselhou o João, de olhos brilhantes.

Embora não conhecesse as letras nem soubesse as músicas, estava morto por dar largas à sua alegria, cantando a plenos pulmões diante do rei.

— Agora vê lá o que fazes! — lembrou-lhe a Ana.

— Se armas bronca, ainda vamos parar às masmorras.

— Que ideia! Então achas que a rainha deixava que fizessem uma coisa dessas a um velho e duas crianças?

— Ora! Cala-te, mas é.

Tiveram mesmo de se calar, porque os músicos começaram a tocar. Duas flautas, uma viola de arco, uma harpa e vários pandeiros encheram a sala de sons melodiosos.

«Parece que estou numa nuvem!», pensou a Ana.

E não devia ser a única. A assembleia mostrava-se verdadeiramente encantada!

Mas aquilo era só uma introdução. Quando pararam, foram ruidosamente aplaudidos. E recomeçaram de novo. Agora, tocava também um rapaz loiro, dedilhando as cordas do saltério. E as bailarinas avançaram para o meio da sala de braços no ar. Eram muito elegantes e graciosas, mas nenhuma tinha o encanto da que usava tranças.

— O rei tem bom gosto! — disse o João ao ouvido de Orlando.

Orlando riu-se para ele, cúmplice.

— Tem, sim senhor! E não esconde!

  1. Dinis, sentado no trono, não despregava os olhos da rapariga. Via-se que estava louco por se levantar e ir dançar com ela, pois balançava o corpo e tamborilava com a ponta dos dedos sobre os joelhos.

Talvez devido ao entusiasmo do rei, a corte começou a olhá-la com outro interesse. Pouco depois, cada saltinho ou requebro que ela fizesse era saudado por um «ah!» de admiração.

«Coitada da rainha!», pensou a Ana. «Ver assim o marido pasmado para outra, na frente de toda a gente...»

A rainha, no entanto, quer se importasse quer não, mantinha-se imperturbável.

O mesmo não se podia dizer de algumas damas da corte. Não passou despercebida a agitação frenética de uma ruiva muito alta, e de mais duas que cochichavam entre si, deitando olhares furibundos na direcção da bailarina.

O Orlando e o João estavam perdidos de riso.

— Olha ali, João! Aquelas devem ser as favoritas do rei. Estão fulas por ele achar tanta graça à bailarina...

— Safa, que o rei D. Dinis era danado! À falta de uma, tinha logo três favoritas...

— Três que estejam à vista. Se calhar tem mais!

De costas para a Ana, conversavam só os dois, no tom malandro de «conversa de homens»!

O baile terminou no meio de grande salva de palmas. Agora, iam cantar.

— Chegou a nossa vez! — disse o João para a irmã.

— E tu estás radiante! O que é que a gente faz? Se nos descobrem?

— Cala-te e canta! Vá! Vai começar...

Duas raparigas avançaram um pouco, destacando-se do grupo dos músicos. Eram as solistas.

Numa voz quente, doce, uma delas começou.

«Ai flores, ai flores de verde pinho»...

A corte reagiu logo, num bruaá de entusiasmo. Aqueles versos tinham sido feitos pelo próprio rei. E a música era uma das preferidas de toda a gente.

«Ai flores, ai flores de verde pinho...»

Repetiu ela, agora mais alto, com um sorriso de satisfação.

A outra respondeu-lhe, pois cantavam ao desafio. «Se sabedes novas do meu amigo»

E logo foi a voz do coro: «Ai Deus, e u é?»

O Orlando apressou-se a dar movimento aos lábios, sem emitir som. Mas o João, esse, encheu os pulmões de ar e entrou no coro com os outros. Afinal, era fácil. O coro só tinha de dizer o refrão: «Ai Deus, e u é?»

O pior foi no fim! Quando a cantiga acabou, e todos se calaram, ele, numa grande euforia, repetiu bem alto e sozinho:

— Eu é é é!...

Por segundos, músicos, bailarinos, jograis, a corte e os próprios reis ficaram em silêncio a olhá-lo.

O João fez-se de todas as cores. A Ana julgou desmaiar. Para salvar a situação, Orlando desatou a bater palmas. E felizmente pegou! Vendo-o tão jovem, tão aflito, acharam-lhe graça e aplaudiram-no também.

O sarau foi interrompido porque ia seguir-se o banquete. O rei pôs-se de pé, pressuroso. Ninguém se mexeu, enquanto ele atravessou o aposento, seguido pela rainha e pelos príncipes.

O Orlando chamou a atenção para eles.

— São os filhos do rei. O mais novo é o príncipe herdeiro. Será, dentro de alguns anos, D. Afonso IV, o Bravo.

— Mas afinal quem subia ao trono não era sempre o filho mais velho? — perguntou o João.

— Se calhar os outros dois morrem. É? — disse a Ana, olhando com pena um belo rapaz que devia ter os seus dezoito anos.

— Não morrem nada. Os dois mais velhos são bastardos, não têm direitos ao trono. Aquele ali chama-se Pedro, e o pai deu-lhe o título de conde de Barcelos. É uma bonita figura, não acham?

— Eu acho — concordou a Ana, corando. E para disfarçar, acrescentou: — E o outro? É pouco mais velho que o príncipe herdeiro...

— O outro, Afonso Sanches, é o preferido do pai. A única princesa, já grandinha e com um elegante toucado, caminhava ao lado da mãe. Chamava-se Constança.

— Então a rainha aceita viver com os bastardos do rei?

— Aceita, ou não tem outro remédio. E o pior não é isso.

  1. Dinis teve a triste ideia de dar um castelo ao príncipe herdeiro e obrigá-lo a viver lá sozinho, para se fazer um homem.

— Sozinho? Mas ele não tem mais de oito anos!

— Sozinho é uma maneira de dizer. O castelo dele está cheio de criados e acompanhantes. Com certeza mandaram também a ama que o criou, mestres para o educarem...

— Coitado! Mas longe dos pais deve sentir-se infeliz! Aquela observação atilada fê-los procurar com os olhos

o principezinho! De facto, enquanto os outros se divertiam, comendo e conversando com os amigos, ele mantinha-se isolado, carrancudo. Já recusara vários alimentos com maus modos. E de vez em quando deitava miradas de soslaio a Afonso Sanches, sentado ao pé do pai, e à princesa Constança, sentada ao pé da mãe.

O ambiente tinha-se desanuviado bastante, desde que a bailarina das tranças passara a conceder sorrisos intencionais ao conde de Barcelos. O rei, aliás, parecia não se importar. E, sendo assim, as damas que há pouco cochichavam comiam agora afastadas umas das outras, devorando com apetite pedaços de carne em cima de fatias de pão. Não havia pratos, nem garfos. E, sempre que necessário, cada um tirava da cinta a sua própria faca, limpando-a à toalha depois de a utilizar. O que verdadeiramente lhes servia de talher eram os dedos, que, devido ao contacto com os alimentos, escorriam gordura. Aquela gente, toda muito bem vestida, logo que se sentava à mesa tinha um comportamento bem estranho!

— São uns autênticos alarves — comentou o João, reparando que um dos nobres bebia com tanta sofreguidão que uma boa golada lhe escorreu pela barba e pelo pescoço.

— Alarves ou não alarves, vou fazer o mesmo, que estou cheia de fome...

A Ana retirou da travessa um pedaço de leitão e levou-o à boca com prazer. Estava tão saboroso!

Enquanto comia, reparou de novo no príncipe herdeiro. A um canto da mesa, mantinha-se imóvel, de cabeça baixa, e o olhar que deitava à sua volta era de zanga. Não havia dúvidas de que se sentia infeliz. O rei, também, que irritante! Era só brincadeiras e mimos com o outro filho. Bebiam pela mesma taça, partilhavam pedaços de carne, e riam imenso juntos. De vez em quando, à socapa, atiravam bolinhas de pão à cabeça de alguém, que, surpreendido, olhava para todos os lados. Então, os dois ainda se riam mais.

A certa altura, Afonso Sanches disse um segredo ao ouvido do pai, que acenou vivamente, concordando. Obtida autorização para o que pedira, levantou-se e dirigiu-se ao irmão.

O futuro Afonso IV, assim que o viu ali ao pé, crispou-se recuando o tronco. Ninguém tinha notado nada de especial, quando o príncipe herdeiro se levantou em fúria e desatou aos murros e aos pontapés, empurrando o outro para cima da mesa com uma força inesperada!

Que lhe teria ele dito?

Acorreram logo a separá-los, mas o príncipe parecia possesso! Gritava, esperneava, atirando com tudo ao chão e batendo à toa em quem se atrevesse a tocar-lhe. Até o bispo de Lisboa apanhou uma lambada! Ninguém o conseguiu acalmar. Nem o rei, com a sua autoridade. Nem a rainha, cheia de ternura. Acabou por ser arrastado para fora da sala, por dois guardas, que ainda apanharam duas ou três dentadas.

Fez-se um silêncio breve e a princesa Constança ficou a chorar, escondendo a cara no regaço da mãe.

— Esta criança é brava! — comentou um cavaleiro. — Que tanta bravura lhe sirva mais tarde na guerra é o que nos resta esperar!

— E a rainha é uma santa! O que ela atura a toda a gente. É o marido, é o filho... coitada!

Orlando suspirou tristemente. Lá fora ainda se ouviam os gritos do principezinho em fúria, que só acabaria por serenar nos braços da sua velha ama.

— Isto é mesmo assim! Em todas as épocas surgem ideias tolas sobre educação. Puseram-no a viver sozinho e ele fez-se bravo! Vocês não sabem, mas o rei vai pagar caro a sua preferência pelo Afonso Sanches! Daqui a uns anos, haverá guerras e mais guerras entre o pai e o filho.

— E a rainha?

— A rainha? Vai passar a vida a apaziguá-los! Várias vezes conseguiu que assinassem a paz. Mas morreram muitos homens inutilmente.

Depois daquela cena, a atmosfera tornara-se pesada. Mas a pouco e pouco voltou tudo ao normal, e houve mais cantares e danças. Esquecidos do príncipe herdeiro, que àquela hora estaria já sozinho no seu castelo, todos pareciam divertir-se. Todos menos a rainha, que se retirou a seguir ao banquete.

 

Quando o sarau terminou, já era bastante tarde. As ruas de Leiria estavam desertas, e um ventinho frio assobiava, levantando folhagens secas em rodopio.

Era preciso encontrarem abrigo para pernoitar.

— Estou cansadíssimo! — exclamou o João, bocejando. - Nesta época ainda não havia pensões, nem hotéis, nem nada? Confesso que não me apetece passar a noite ao relento!

— Pensões e hotéis? Que ideia, João! Não há nada disso no século XIII.

— Se encontrarmos uma albergaria, estamos cheios de sorte! — disse Orlando. — Creio que há uma na cidade. A questão é que nos queiram abrir a porta a esta hora.

— O pior é que está tudo a dormir. Não temos a quem perguntar — lembrou a Ana.

— Como a terra é pequena, há uma boa solução. Vamos por aí dar uma volta, a observar as portas das casas.

Pode ser que alguma delas tenha gravado os símbolos dos peregrinos.

— E quais são? Eu já nem me lembro do que é um peregrino!

— Eu lembro-me — atalhou a Ana. — Os peregrinos são viajantes que se dirigem a santuários para pagar promessas ou cumprir penitências.

— Ah! É verdade. E os símbolos, como são?

— As albergarias da Península Ibérica geralmente têm os símbolos dos peregrinos que se dirigem a Santiago de Compostela: o bordão, uma cabaça e uma concha.

— Bom, então vamos procurar isso — propôs o João, morto por ir descansar.

— Sim, sim. São boas horas...

Em silêncio, percorreram a rua principal, atentos a cada uma das portas. Mas, pelo menos ali, não havia nenhuma marca parecida com o que procuravam.

A Ana e o João estavam estafadíssimos e arrastavam-se já com grande esforço. O piso irregular, o escuro e a solidão também não ajudavam muito. Sentindo as pernas fraquejarem, o João encostou-se a uma parede e depois não resistiu: deixou-se escorregar devagarinho e ficou sentado com a cabeça descaída sobre o ombro.

— Procurem vocês. Eu, por mim, durmo aqui.

— Isso nem pensar! Não devemos separar-nos em caso algum. O melhor é ficarem aí os dois um bocadinho. Eu vou ver se descubro a albergaria ou algum celeiro abandonado — disse Orlando.

A Ana discordou, mas frouxamente. Também ela estava exausta. E, como Orlando insistisse, acabou por obedecer. Lado a lado, as pálpebras pesadas de sono, viram o velho sábio afastar-se por uma azinhaga.

— Eu não me devia deixar dormir — disse a Ana em voz alta. — Pode ser perigoso ficarmos assim para aqui...

O irmão respondeu-lhe apenas com um profundo bocejo, já de olhos fechados.

— João! Jo-ão! Não durmas! Olha! Olha ali...

— O que é? Deixa-me!

— Olha! Vem ali um cão!

— E depois? Estás com medo?

— Estou.

Com o polegar e o indicador, o João abriu os olhos à força.

— Onde é que ele está? Ah! É «aquilo»? Não tenhas medo que não te faz mal nenhum...

E, completamente desinteressado do assunto, estendeu o corpo a meio da rua e deitou a cabeça no colo da irmã.

Talvez encorajado por tanta indiferença, um cachorro muito felpudo, de pêlo preto e liso, avançou para eles a dar ao rabo. Chegando-se perto do João adormecido cheirou-o e lambeu-lhe as mãos. A Ana fez-lhe uma festinha na cabeça. Foi quanto bastou para que o cachorro se encostasse a eles, anichando-se também para dormir.

— Só cá faltava mais este — disse ela, de novo em voz alta, pois queria manter-se acordada.

Mas mais uma presença, e amistosa, era reconfortante. Enroscada entre o cãozinho e o irmão, também ela acabou por se afundar no sono.

Entretanto, Orlando percorria a última rua da cidade, já em desespero.

— Ora bolas! Nesta altura há duzentas albergarias em Portugal. Nenhuma delas será aqui em Leiria? Eu também meto-me em cada uma! Trouxe duas crianças comigo para o século XIII e não estudei a fundo a questão de onde havíamos de dormir...

Valha-me Deus! Sabendo eu que existem registos sobre os locais de romaria, de peregrinação, com itinerários e albergarias assinaladas, bem podia ter-me documentado!

Mas a sua aflição cessou quando deu com os olhos na última porta da vila. Por cima, gravados na pedra, lá estavam os símbolos dos peregrinos. E pelas frinchas via-se luz.

Aproximou-se e espreitou por entre as tábuas grossas. Lá dentro, um monge cabeceava, sentado num mocho, junto da lareira.

Levantou então a aldraba e fez soar três pancadas fortes.

O monge levantou-se assarapantado e gritou:

— Lá vai! Lá vai!

Orlando, impaciente, gritou por sua vez:

— Guarida para três peregrinos!

A porta rangeu ao abrir-se para trás. E o monge de olhos piscos indagou:

— Três peregrinos, irmão? Onde estão os outros dois?

— São os meus netos. Estavam cansados e ficaram ali adiante.

— Então ide buscá-los. Ainda bem que são rapazes. Batestes à porta certa, que nesta albergaria só recolhemos homens.

— A... — ia Orlando a começar. Mas não concluiu a frase, pois uma ideia acabara de lhe acudir ao espírito.

«A Ana tem de se disfarçar de rapaz», pensou. «Não posso deixá-la sozinha, e precisamos muito de um bom descanso!»

— Por que esperas, irmão? — perguntou o monge, admirado ao ver que Orlando não arredava pé.

— Vou de seguida! Vou de seguida!

E, rodando nos calcanhares, o velho sábio subiu a rua

quase a correr. Lá ao fundo, os dois irmãos dormiam profundamente, agarrados a um cão preto.

— Ana! Ana! João! Acordem! Já descobri a albergaria.

— Hã?

— Acordem, meninos! Vá!

Estremunhados, levantaram-se ambos. O cachorrito acordou também e pôs-se logo a abanar o rabo, todo contente.

— De onde é que surgiu este cão?

— Não sei! Apareceu ali. É tão querido, não é?

— É! Mas agora deixem lá o bicho e vamos embora. Esconde o teu cabelo dentro do barrete, pois tens de fingir que és um rapaz.

— Eu? Porquê?

— Porque na albergaria só recebem homens.

— E o que é que eu faço às saias?

— Puxa-as para cima, finge que é um saio. E não fales, para não te descobrirem pela voz.

— Faz de conta que és um rapaz mudo! — lembrou logo o João, que adorava farsadas.

— Agora vê lá se te pões a chamar-me Ana.

— Não há perigo! Eu não me esqueço. A partir de agora és o meu irmãozinho mudo. Oh! Coitadinho! Coitadinho, não sabe falar! — acrescentou o João, já embalado a fazer teatro.

A Ana riu-se.

— Não te ponhas com essas coisas, senão eu desmancho-me...

Acabando de enfiar os cabelos dentro do capuz, seguiu-os, fingindo-se muito «sorumbático». O cão, assim que os viu partir, foi atrás deles, soltando guinchos amigáveis como quem diz «Eu também vou... não fico sozinho».

— Parece-me que o cão arranjou três donos — brincou Orlando, que adorava animais.

— Acha que o deixam ficar connosco na albergaria? — perguntou o João.

— Creio que sim.

— Isto é o máximo! Mulheres não recebem, mas recebem cães!

— Cala-te, que és «mudo»! — ordenou-lhe o irmão. A Ana, com ar de troça, pôs-se a emitir sons de boca fechada.

— Hum... Hum... Hum...

— Schut! Pouca palhaçada que é já aqui.

O monge deixara a porta aberta. Entraram com certo retraimento e aguardaram. A albergaria era uma casa minúscula. Para além daquela divisão, que servia de entrada, de cozinha e de sala, tinha apenas mais dois compartimentos, cujo chão estava coberto de palha, para os peregrinos se deitarem. As paredes eram de pedra enegrecida e das traves do tecto pendia uma candeia de azeite.

O monge acolheu-os sem muita conversa. Estava cheio de sono, o que até dava jeito, pois assim mal olhou para eles, não reparando em especial na Ana nem fazendo comentários ao cão.

— Quereis de comer? — perguntou, indicando-lhes uma broa redonda que havia em cima da mesa de madeira, única peça de mobiliário além do banco corrido e alguns mochos.

— Não, obrigado. Basta-nos um gole de água.

— Então sirvam-se daqui.

Estendeu-lhes um púcaro rachado, e apontou duas grandes talhas de barro vermelho colocadas ao fundo. De novo sentado no mocho, ficou a observá-los.

O João e o Orlando beberam primeiro. Depois foi a vez da Ana.

— Se já não houver aí água, tira da outra talha — disse-lhe o monge.

— Hum... — respondeu ela.

— Ele não pode falar! — começou de imediato o João. — É mudo. O meu irmão é mudo de nascença. E é melhor não olhar para ele, que ele é desconfiado. Às vezes irrita-se, parte tudo e põe-se aos gritos!

Com o inesperado daquela tirada, a Ana engasgou-se e teve um ataque de tosse, borrifando o chão em volta com a água que lhe saía da boca e do nariz.

— Vê? Já está a começar a dar-lhe um ataque! Este meu irmão é uma tristeza, envergonha-nos em todo o lado!

A Ana lançou-lhe um olhar furibundo, e, dominada a tosse, aproximou-se dele, disposta a vingar-se cravando-lhe as unhas. Mas ele deu um salto para o pé do lume.

O monge mirou-os de soslaio, vagamente inquieto. Seria de dar guarida àqueles peregrinos ou não?

Orlando percebeu o que se passava e adiantou-se, abrindo a bolsa:

— Aqui está a esmola para a vossa albergaria — disse, estendendo-lhe alguns soldos. — Somos pobres mas muito devotos.

— Obrigado, irmão, obrigado! E agora melhor será que vos acoiteis!

Antes que o João armasse mais complicações, Orlando empurrou os dois na sua frente para o primeiro compartimento, onde felizmente não estava ninguém. Fecharam a porta e estenderam-se mesmo vestidos em cima da palha.

— Olha lá, João, já começaste a fazer das tuas. Por pouco não íamos sendo postos na rua — sussurrou a Ana.

— Cala-te que és «mudo»! — respondeu ele, encolhendo os ombros e ajeitando-se para dormir. — Anda cá, cãozinho! Ao menos tu não embirras comigo — chamou, de costas para os outros.

O cão pôs-se aos saltos na palha, como se fosse um boneco de borracha.

O João achou-lhe piada, e esqueceu imediatamente os incidentes anteriores.

— Ana!

— Não posso responder-te, que sou muda!

— Oh! Deixa-te disso! Repara no cão, parece um desenho animado!

— É o Pluto! O cão do Mickey — disse ela, também enternecida.

— Pluto! Pluto, vem cá!

O cão acorreu ao chamado, como se toda a vida o tivessem chamado assim.

— Vês? Gostou. Fica Pluto.

— Interessante, sim senhor! O nome de um desenho animado, para um cão do século XIII... Só vocês é que podiam ter essa ideia! Mas agora tratem de dormir — disse o Orlando, já estendido confortavelmente junto à parede.

— Este quarto não se compara com as salas do palácio do rei! Mas cansada como estou até parece que vou dormir num colchão de penas! Uáá! Boa noite!

— Boa noite!

 

Ainda o Sol despontava quando acordaram, sobressaltados.

— Ana! Ana! — chamou o João, sem se lembrar ao certo onde estava.

— Hã... O que foi?

— Ouve! O que é isto? Por que é que estamos a dormir na palha?

— Não te lembras, João? Ficámos numa albergaria!

— Ah! Pois foi!

E o João estendeu-se de novo ao comprido, relaxando os músculos. Mas o Pluto parecia agitado. Com o focinho encostado à frincha da porta, arfava, as orelhas muito espetadas, soltando ganidos.

— Quieto, Pluto! O que é que tens? Vem cá... Orlando acordou por sua vez, bocejando e espreguiçando-se, de braços esticados.

— Bom dia! Que noite tão curta! Estou todo partido. Isto de cantar em saraus já não é para a minha idade!

— Então que direi eu, que acabei por fazer um solo?

— Bem, bem, o melhor é não falares nisso, João! Ias arranjando um belo sarilho.

Como de costume, o João recusou-se a admitir que Orlando tinha razão. Estava convencido que o que fazia geralmente tinha graça e sobretudo que acabava bem. Mas como não estava disposto a discutir, mudou de assunto chamando a atenção para o que se passava lá fora.

— Aqui à volta andam pássaros grandes... ora ouçam o bater das asas...

«Vap... Vap... Vap...»

Realmente, lá fora, alternava-se, em ritmo demasiado certo, um esvoaçar forte, com momentos de silêncio. Que seria aquilo?

— Vou-me levantar! — disse a Ana. — Não vim ao século XIII para passar o dia a dormir.

E, dizendo isto, pôs-se de pé.

— Estás cheia de palha — comentou o irmão. — Na roupa, nos cabelos...

A Ana olhou para si própria, desconsoladamente. Apetecia-lhe tanto tomar um banho, ensaboar-se, mergulhar a cabeça na banheira e esfregá-la com muito champô! Mas a higiene matinal não fazia parte dos hábitos do século XIII. As pessoas geralmente deitavam-se vestidas, ou quando muito tiravam a roupa de fora, ficando apenas com uma camisa de linho grosso que usavam sempre junto ao corpo. Como raramente se lavavam, e usavam a mesma camisa dias e noites a fio, muita gente tinha doenças de pele, sendo vulgares as pulgas e os piolhos, mesmo entre as classes mais abastadas.

— Estou cheia de comichões! — suspirou.

— Não penses nisso, que é pior. Se quisemos vir ao século XIII, enquanto cá estivermos temos de nos descontrair e adaptar!

— Também tens razão. Mas, cá por mim, vou ver se encontro um riacho. Preciso absolutamente de me meter dentro de água.

O Orlando e o João acharam boa ideia. Após uma tentativa vaga de se sacudirem, abandonaram a albergaria. Do monge, nem sinais.

— Se calhar, foi à igreja! — lembrou a Ana, no momento em que se ouviram repicar os sinos. — Que horas serão?

— Não faço ideia. Nesta época é impossível saber ao certo. Também, pouca importância tem. Já nasceu o Sol, não já? Então é a hora de as pessoas começarem a trabalhar. Quando o Sol se puser, param.

— É isso que se chama trabalhar «de sol a sol»! — respondeu a Ana, a exibir os seus conhecimentos de História.

— E que rico sol! Mal empregadinho para trabalhar... O João abrira a porta, saindo cá para fora, muito pisco.

Felizmente, embora frio, o tempo continuava soberbo. O Pluto, a abanar o rabo, desapareceu.

— Que ingrato! Nem disse adeus!

— Deixa-o lá. Foi à vida dele.

— Vamos procurar o tal riacho ou não?

— Sim, vamos...

Encaminharam-se os três, um pouco à toa, para fora da vila. O campo ali não era bem plano nem montanhoso. Poderia definir-se como ondulado. Havia uma zona de terras de cultivo e, lá ao fundo, uma junta de bois, arrastando o arado de madeira, andava a lavrar, conduzida por dois camponeses.

Mais perto da orla do matagal, um grupo de homens encapuçados ocupava-se com qualquer coisa que não identificaram imediatamente.

— O que é que aqueles estarão a fazer? — perguntou a Ana.

A resposta veio do céu. Um falcão de asas abertas planou por momentos, descrevendo um círculo, e depois foi pousar na mão do falcoeiro.

— Falcões, Ana! Que sorte! Estão a treinar! Vamos ver, anda!

Sem esperar resposta, o João partiu a correr para junto das falcoarias.

— Este rapaz! Este rapaz é um estavanado! — resmungou o Orlando.

Mas também ele estava interessado em ver de perto treinar falcões para a caça. E, junto com a Ana, foi atrás dele. Valeu a pena, de resto! Treinar falcões era uma cerimónia solene, um verdadeiro ritual. O que se justificava bem, pois treinar uma ave de rapina é domesticá-la, obrigando-a a caçar, não para comer mas para divertir o rei ou os senhores!

Os falcoeiros eram portanto homens de grande prestígio, respeitados e admirados por toda a gente.

Receberam-nos bem, pedindo no entanto que se mantivessem um pouco à distância para não assustarem as aves. Havia oito homens, dois dos quais muito escuros de pele, porque, conforme vieram a saber, tratava-se de mouros. Eram ainda descendentes da população que tinha ficado prisioneira quando da conquista definitiva de Beja. E, hábeis na domesticação de aves, estavam agora ao serviço do rei. O falcoeiro mais velho tinha um falcão pousado no braço direito, que estava protegido por uma luva de couro. Com um gesto largo, deu um impulso ao pássaro, deixando-o levantar voo. Mas este estava preso com uma fita que devia ter aí uns vinte metros.

— É uma maneira de ele voar bem alto, mas de não fugir. Ainda está numa fase inicial. Se o largarmos, nunca mais ninguém lhe põe a vista em cima...

Depois, com um arremesso vigoroso, o falcoeiro lançou um pombo morto ao ar e logo o falcão, em voo picado, o apanhou e despedaçou com as garras.

— Temos aqui um futuro caçador de primeira! — exclamou um dos mouros, esfregando as mãos de contente. — Este fui eu que o trouxe.

— Que o trouxe de onde? Onde é que arranjou os falcões?

— São capturados nos bosques. A última vez que fizemos uma batida, trouxemos quarenta e sete. Demorou bastante, mas foi um êxito. O rei recompensou-nos generosamente.

— Trabalham todos para o rei? — perguntou a Ana.

— Sim, nós somos falcoeiros reais — disse o mais velho, com orgulho. — E aquele ali é mestre Giraldo — acrescentou, apontando um homem que era o único a usar longa capa até aos pés.

— É o físico do rei — esclareceu outro. — Ele é que trata as doenças dos homens e dos pássaros. E até vos posso dizer mais, não há ninguém que saiba tanto como ele sobre doenças de falcões, tanto no reino como nos reinos vizinhos...

A Ana e o João olharam com respeito mestre Giraldo. Debruçado sobre a pata de um falcão, parecia não dar conta de nada, de tão atento ao seu trabalho.

— Que engraçado, Ana! Nesta altura, os físicos eram médicos e veterinários ao mesmo tempo!

Enquanto os treinos prosseguiam, o mouro que falara com eles, vendo-os tão interessados naquela actividade, resolveu explicar-lhes tudo mais em pormenor. Levou-os à falcoaria e mostrou-lhes uma série imensa de pássaros. Uns usavam máscara de couro na cabeça, que lhes tapava os olhos sem os comprimir. Estavam na primeira fase do treino, era a maneira de os sujeitar, de os habituar a vir comer à mão das pessoas. Outros, num poleiro oscilante, eram impedidos de dormir, o que fazia também parte do treino.

— Coitados dos pássaros! Sofrem bastante! — disse o João, impressionado.

— Sofrem, mas é assim mesmo. De resto, quando estão habituados a conviver com os homens e com os cães, passam a fazer parte de uma sociedade mais completa, já pensaram? — disse o mouro, rindo.

— Sim, mas...

— Não tenhas pena deles! Nós não lhes fazemos mal, pelo contrário, tornamo-nos grandes amigos: homens e pássaros. E quando os virem caçar reparem com que entusiasmo perseguem a presa, em pleno voo... Os falcões divértem-se a caçar, mesmo que não seja para eles e sim para o rei.

— Mas é o falcão que vai levar a caça ao dono?

— Não senhor. O falcão deixa-a cair, e são os cães que a levam depois ao rei. Uma caçada é uma festa em que participam homens e animais. Logo, se quiserem, podem ver. D. Dinis vem por aí, com os príncipes e muitos cavaleiros...

— Abdul! — chamou mestre Giraldo. — Vem cá! Preciso dos teus serviços.

O mouro acorreu prontamente ao chamado, deixando -os sozinhos. E eles ficaram por ali às voltas, esquecidos do projectado banho no ribeiro. Tudo aquilo era muito interessante.

Mal o mouro saiu, começou a ouvir-se:

«Fiu... Fiu... Fiu...»

Um assobio estranho, a compasso, que parecia mesmo um sinal combinado, repetiu-se várias vezes do lado de fora da falcoaria.

Calaram-se os três por momentos, tentando perceber de onde vinha aquele som.

— Estão a assobiar...

— Fará parte dos treinos?

— Não sei. Vamos ver!

Dirigiram-se à porta, mas à primeira vista nada se tinha alterado. E os assobios continuavam, muito baixinho, no meio do bosque. Entretidos com o seu trabalho, os falcoeiros não pareciam dar conta daquele chamado insistente.

— Vou à volta — disse o João. — Este assobio cheira-me a esturro...

A Ana e o Orlando sorriram. Aquele rapaz tinha a mania dos mistérios! Mas, pelo sim pelo não, foram atrás dele. Mesmo a tempo! Olhando várias vezes para todos os lados, l como quem não quer ser visto, um dos falcoeiros correu a embrenhar-se no bosque.

— O que é que aquele irá fazer às escondidas? — perguntou a Ana em voz baixa.

— Vês como eu tinha razão? Aqui há gato! Vou segui-lo. Vocês fiquem aí a cobrir a retaguarda, não vá aparecer outro.

O Orlando tentou segurá-lo, sem conseguir, pois o João escapuliu-se e desapareceu entre as árvores.

— Onde é que ele se irá meter desta vez? — disse a Ana, com um arrepio de aflição.

 

O João avançou pelo bosque, com mil cuidados para não ser descoberto por ninguém.

Ia feliz, saboreando um travo delicioso e excitante de aventura.

Alguns metros adiante, avistou o falcoeiro, que se tinha juntado a outro homem com quem conversava em voz baixa. Escondido atrás de uma moita ficou a espiar. Não conseguia ouvir nada do que eles diziam.

«Que chatice! O Orlando já devia ter inventado uma fórmula para nos tornar invisíveis quando fosse preciso», pensou.

Os dois homens que vigiava seguiram caminho, afastando na sua frente alguns ramos teimosos. E o João não hesitou, continuou atrás deles.

Não sabia dizer se tinha andado muito ou pouco, quando os viu parar à porta de uma cabana tosca. Lá dentro devia estar mais gente, e por certo gente importante, porque dois cavalos ricamente aparelhados pastavam por perto.

Morto de curiosidade, aproximou-se, de gatas. Enfiando os dedos na folhagem que recobria a parte de trás da cabana, pôs-se a espreitar com um olho fechado e outro aberto.

Ao princípio vislumbrou apenas vultos. Mas a pouco e pouco conseguiu distinguir bem as figuras que ali estavam.

— Meu Deus! — exclamou, assombrado.

Mesmo antes de as distinguir com nitidez, já tinha percebido pela conversa o que tramavam!

— Estão a combinar envenenar o rei! — exclamou de novo entredentes.

De facto, um senhor de vestes sumptuosas, que por certo pertencia à nobreza, explicava ao outro o que tinha congeminado.

— É tudo mais fácil do que parece. Já falei com a rapariga que tem fama de bruxa...

— Uma tal Berenice, não é? — perguntou o outro.

— É.

— Mas isso é seguro? Eu já a vi e pareceu-me muito nova.

— Pareceu-vos, dizeis bem! Todos dizem que ela tem pelo menos cento e cinquenta anos. Só que, à força da magia, consegue não envelhecer.

— Se assim for, poderosa é a magia...

— Por isso mesmo a procurei.

— E achais que ela não falará?

— Mesmo que fale, não tem importância, pois não sabe a verdade. Pedi-lhe um veneno mortal, para me ver livre das ratazanas que infestam os meus celeiros...

— Ah! Ah! Ah! Boa piada! E como pensais administrar o veneno a el-rei?

— Através de mestre Giraldo.

— Mestre Giraldo? Mas ele está connosco? Faz parte

da conspiração?

— Que ideia! Mestre Giraldo é um físico leal ao rei.

— Então?

— Então o plano é assim: mandei um criado de toda a confiança oferecer uma quantia em moedas de ouro a um falcoeiro que começou a trabalhar recentemente...

— E o que lhe pedistes para fazer?

— Um serviço bem simples. Ele só terá de trocar a bolsa do pó que mestre Giraldo prepara para o rei tomar depois dos banquetes, por outro pozinho que lhe vou dar...

— O da bruxa?

— Claro! E depois, pronto! Ficamos livres de D. Dinis. Ninguém suspeitará de nada. Todos dirão que o rei comeu alguma coisa que lhe fez mal...

— Engenhoso, D. Fradique! Muito engenhoso!

— Estais de acordo, portanto?

— Sem dúvida.

— Então vou mandar entrar os homens...

O João, aflito, resolveu regressar a toda a pressa. O que acabava de ouvir chegava! Tinha de ir contar a Orlando.

Enquanto o tal criado de confiança e o falcoeiro recebiam ordens, ele fez meia volta e correu a juntar-se à irmã e ao cientista.

Quando o viram chegar, afogueadíssimo, escarlate, gaguejando de aflição, ambos deram um suspiro de alívio.

— Oh, João! Nunca mais vinhas!

— Já estávamos a ficar em cuidado...

— A... A... Sabem lá o que eu... ouvi...

— Acalma-te!

— Fala mais devagar!

— Ouçam! É importantíssimo!

— Mas o que foi?

— Vão envenenar o rei!

O Orlando deu uma das suas gargalhadas roucas.

— Está-se a rir? Não vejo qual é a graça...

— Raciocina, rapaz! Se soubesses um pouco de História de Portugal, não estavas tão aflito!

— Hã?

O João, atarantado, olhou para o cientista. Por que carga de água lhe falava dos seus conhecimentos de História, armado em professor, num momento tão grave em que o rei corria perigo?

— João! João pateta! D. Dinis só morrerá daqui a muitos anos. E não vai ser envenenado!

— Ah, não? E quem lhe diz a si que não somos nós, viajantes do tempo, que estamos destinados a evitar que isso aconteça?

O Orlando hesitou um instante.

— Bom... se pões a coisa nesse pé, até podes ter razão!

— Pois posso — declarou ele com ar triunfante.

— Conta lá então o que é que ouviste — pediu a irmã, interessada.

Em poucas palavras, ele relatou tudo o que ouvira na cabana da floresta.

A Ana e o Orlando escutaram com assombro.

— Safa! Que plano infernal! — disse o velho sábio, passando a mão pela testa.

— Eu não percebo — disse a Ana. — O rei D. Dinis não era querido por toda a gente? Por que motivo um senhor da nobreza o quereria envenenar?

— Pode ser por causa das Inquirições.

— Inquirições? O que é isso?

— Para perceberem o que é isso, têm de saber outra

coisa. Como paga de serviços prestados ao rei, sobretudo na guerra, os nobres recebiam terras. Só que alguns eram ambiciosos de mais e não se contentavam com aquilo que o rei lhes dava. Por isso, apropriavam-se também de terras vizinhas. Houve muitos abusos...

— E depois?

— Os reis fartaram-se e resolveram mandar verificar onde acabavam as terras que tinham sido realmente dadas. O que estivesse a mais em cada propriedade voltava a pertencer ao rei... Essas averiguações chamaram-se Inquirições.

— Mas como é que averiguavam?

— Lendo a Carta de Doação. Quando o rei dava uma terra, mandava escrever um documento chamado Carta de Doação, dizendo onde começava e onde acabava a propriedade...

— Ah, bom! Assim era fácil — disse a Ana.

— Se calhar, este D. Fradique é dos tais que se alam-bazou com terras que não eram dele.

— Ah! Esse tal homem que ouviste, chamava-se D. Fradique?

— Era.

— Então já temos várias pistas...

— Um nobre chamado Fradique — começou a Ana, contando pelos dedos. — Um falcoeiro novo, um criado, uma bruxa chamada Berenice...

— E o que é que fazemos?

— Por enquanto, nada. Vamos tomar um banho no primeiro regato que nos aparecer pela frente, comer qualquer coisa, e meditar. Como tu mesmo disseste, a tal bruxa ainda tem de fazer a poção... temos tempo.

A ideia de se lavarem e de comerem agradou-lhes imenso!

E o Orlando não teve dificuldade nenhuma em levá-los consigo.

Não meditaram no entanto grande coisa pois, assim que deram de caras com o rio Lis, uma única ideia lhes ocupou o pensamento: banho! Libertando-se de parte da roupa, atiraram-se logo de mergulho. Mas a água estava gelada!

— Brr... que frio! — queixou-se o João, emergindo, de lábios roxos.

— Está fria, está!

A Ana aparentemente não se ralava nada com isso. Com braçadas vigorosas, afastou-se da margem, batendo muito os pés para levantar um repuxo.

— Que delícia — gritou de longe. — Só queria apanhar aqui sabonete!

— Cuidado, Ana! Olha que podes ser arrastada!

Ela não ligou e estendeu-se de costas, a boiar. Os cabelos flutuavam à volta da cabeça. E o sol, de chapa na cara, sabia-lhe bem.

O Orlando e o João já tinham saído da água, e agora corriam pela margem, agitando os braços para cima e para baixo, tentando aquecer.

— Estou com uma fome tão grande que era capaz de comer um boi! — declarou o João em altos berros. — Quero comer um boi! Comer um boi! Comer um boi!

Gargalhadas vieram em resposta.

O João voltou-se, admirado. Tinha pela frente dois homens baixos, bem nutridos, vestindo de forma sóbria, que traziam os cavalos à rédea. Pelos vistos iam dar de beber aos animais.

— Bom dia! — saudaram alegremente.

— Com que então, estás disposto a comer um boi? O João riu-se para eles.

— Julgam que não era capaz? Neste momento comia um boi inteirinho!

— Cornos e tudo?

— Cornos e tudo!

O Orlando aproximou-se, receando que o João, como de costume, fosse longe de mais.

— Este meu neto só diz disparates...

— Ora, ora, ora! Deixai lá o rapaz dizer o que pensa! Na idade dele é mesmo assim, fome devoradora!

— Deveis preocupar-vos mais com o outro neto! Aquele rapaz aventura-se rio adentro, é perigoso...

— Não é um rapaz, é uma rapariga! — respondeu o Orlando. E, voltando-se para ela, chamou: — Ana! Já chega de banho! Trata de sair da água!

Os homens viraram-se de costas, discretamente. Não era costume raparigas tomarem assim banho na frente de quem estivesse. Se iam ao rio, era para lavar roupa e quando muito arregaçavam as saias para meterem as pernas dentro de água. Isso, aliás, só quando não estavam homens por perto.

— Sois aqui de Leiria? — perguntou um deles. — Não tenho ideia de vos ver?!

— Não, não. Viemos de Lisboa, com os jograis que cantaram ontem no sarau do castelo.

— Ah! Sim! — exclamou um deles, como quem compreende.

É que naquele tempo, só mesmo bailarinas e cantadeiras tinham atitudes tão livres...

Voltando-se para trás, deitou um olhar maroto à Ana. Ela, alheia a tudo o resto, vestia-se, abanando a cabeça com força para secar os cabelos.

— A vossa neta é bem bonita!

— É, sim senhor! Está-se a fazer uma bela rapariga!

Enquanto os cavalos bebiam e pastavam ervinhas frescas, sentaram-se ali a conversar.

Os homens eram muito simpáticos. E não tinham papas na língua, pois contaram logo a vida deles desde pequeninos!

— Somos irmãos — explicou o mais velho. — Nosso pai era almocreve e a vida correu-lhe bem. Quando morreu, deixou-nos boas casas e uma pequena terra aqui em Leiria.

— Aqui casámos e aqui temos os nossos filhos — continuou o outro. — Mas vida de almocreve não era para nós! Procurámos continuar no comércio, mas comércio mais rendoso...

— A que vos dedicais então?

— A vender sal para a Flandres e Inglaterra. E, graças a Deus, a vida também nos tem corrido de feição...

Além de simpáticos, eram dois burgueses bem hospitaleiros! Assim que a Ana ficou pronta e os animais saciados, convidaram-nos para comer em casa deles.

— Não temos um boi inteiro, mas alguma coisa se há-de arranjar, hã, João?

Aceitaram o convite e não tardou que se banqueteassem todos juntos, na casa dos mercadores. Pão, queijo e mel à discrição. Vinho novo, da última vindima. E figos secos, nozes, amêndoas e azeitonas.

A casa era simples, mas agradável. Com pouca mobília, claro, pois naquela época ainda não tinham ideia nenhuma sobre conforto. Lá estava a grande lareira, onde o lume nunca se apagava por ser tão complicado voltar a acendê-lo. As mesas e cadeiras toscas. E alguns vestígios da vida que levavam, circulando entre Portugal e outros países da Europa: uma ou outra caneca de feitio diferente, comprada na Flandres. Cinturões de couro trabalhado e armas vindas de França. A mulher não resistiu a mostrar um tecido, muito bonito aliás, que fora presente da última viagem. E durante um bom pedaço ficaram ali, comendo e aquecendo-se em boa companhia.

Pela conversa, perceberam que o rei D. Dinis era uma espécie de ídolo para aqueles homens.

— Nunca houve outro assim! — repetiu muitas vezes o mais velho dos dois. — Até tem escrito cartas por seu punho, pedindo que nos recebam bem e facilitem a vida nos portos onde paramos...

— Dizem que está disposto a autorizar que formemos uma Bolsa de Mercadores — explicou o outro. — E é bom que se faça! Nestas viagens, ganhamos muito dinheiro. Mas, caso se levante temporal que afunde as barcas, um homem pode ficar sem nada de um dia para o outro... com uma Bolsa de Mercadores ficávamos mais seguros!

— Pois é, valia a pena, sabem? Cada um punha lá umas tantas moedas de cada vez que se fizesse ao mar. Mas, se houvesse desastre, a bolsa pagava-lhe os prejuízos... Isto é um bom projecto, que temos mesmo de propor ao rei. E ele vai concordar, inteligente como é!

— E a rainha? — perguntou de chofre o João.

— A rainha? A rainha é uma santa! Querem saber de uma?

O João, o Orlando e a Ana ouviram então, da boca do mercador, o relato pormenorizado do milagre das rosas. Fascinados, não se atreveram a interromper. De resto, o homem falava com respeito, comovido. Quando terminou, tinha os olhos cheios de lágrimas.

— Foi aqui que isso se passou? — não resistiu o João a perguntar.

— Há quem diga que sim. Há quem diga que foi em Coimbra... não sei.

— Temos um rei e uma rainha como não há em parte alguma! Que Deus os guarde! — suspirou a mulher.

Aquela frase «que Deus os guarde» funcionou como uma verdadeira chicotada!

Só eles sabiam da conspiração para matar o rei D. Dinis... portanto só eles poderiam fazer alguma coisa para a impedir. Mas o quê?

Sem trocarem sequer um olhar, disseram em coro:

— Temos de ir andando.

E, agradecendo muito aos mercadores, despediram-se e partiram.

 

Quando saíram de casa dos mercadores, ainda não tinham um plano definido. Mas também não tiveram tempo de o fazer! Do castelo saíam, com grande alarido de trompas e latidos de cães, o rei, os príncipes e muitos cavaleiros. Ia começar a caçada.

A população de Leiria veio à rua saudar o cortejo. Misturados com eles, o Orlando, a Ana e o João não saberiam dizer o que os agitava por dentro! Tudo aquilo era espectacular.

— E agora? O que fazemos?

— Se tivéssemos cavalos, íamos atrás deles!

— Temos de ir atrás deles mesmo! — afirmou o João. — Aquele ali perto do rei é o tal Fradique, chefe da conspiração!

— Só vejo uma hipótese — disse o Orlando. — É usarmos um poder novo, um poder dos cintos que trazemos.

— Que poder? — perguntaram os dois irmãos.

— É um poder que eu não queria usar, por ter sido pouco experimentado...

— Mas qual é?

O João dava pulinhos de nervoso, com os olhos arregalados.

A comitiva afastava-se em direcção ao bosque. A pouco e pouco as pessoas retomavam os seus afazeres e eles ficaram sozinhos no largo.

O Orlando levantou a roupa e mostrou a fivela do cinto.

— Estão a ver aqui este botãozinho cor de laranja? Permite-nos passar «entre» o espaço e o tempo...

— Passar entre o espaço e o tempo? O que é isso? Dito assim, parece-me que vamos dar a parte nenhuma!

O Orlando encolheu os ombros.

— Lá estás tu! Não sejas precipitado e ouve. Rodando este botão, ampliamos o poder da nossa vontade.

— Está bem! E depois?

— Depois, olha! Temos de nos despachar. Não vou pôr-me aqui com grandes explicações científicas, que vocês de resto não iam perceber. O processo é o seguinte: pensamos primeiro no local para onde queremos ir. Olhamos fixamente nessa direcção. E depois rodamos o botão cor de laranja e, se tudo correr bem, aterramos lá.

— Mas isso é voar!

— Não é bem. Trata-se do tal processo entre o espaço e o tempo.

— Que riscos é que corremos? — perguntou a Ana, desconfiada.

— O problema é a aterragem. Isto não dá para grandes distâncias. Mas, de qualquer forma, como o sistema não está aperfeiçoado, às vezes materializamo-nos uns metros acima do chão... Ora, se calha termos por baixo um pântano, um rio, ou um precipício, pode ser o fim! A Ana e o João olharam o cientista bastante assustados. Mas o desejo de salvar o rei foi mais forte que o medo.

— Eu estou pronta — disse a Ana corajosamente. — Não temos outra alternativa, pois não?

Os dois sorriram-lhe, satisfeitos com aquela atitude. Embora prudente, mostrava ser uma rapariga cheia de força.

— Vamos a isso? — perguntou Orlando.

— Vamos! — declaram ambos, engolindo em seco.

— Pensem no meio do bosque, onde deve estar a decorrer a caçada...

De olhos fechados, perfilaram-se nessa direcção. Alguns segundos depois, fitaram a copa das árvores, tão fixamente que, apesar de não fazer vento, as folhas pareciam dançar...

Numa voz pausada, Orlando deu ordem de partida.

— Atenção... concentrem-se... ponham o dedo sobre o botão... Preparados?... Rodem!

«ZZZZZZ........ ZZZ.... ZZZ.....»

Como se um furacão os arrastasse, vogaram entre o espaço e o tempo, perdidos de si mesmos, sem nada ver, sem nada ouvir, para além daquele zumbido infernal...

E de repente, zás! Num flash, o mundo iluminou-se em redor. Estatelados no chão, no meio do bosque, os membros doridos, a cabeça a andar à roda.

— Safa! — murmurou o João. — Isto é violento! A Ana levantou a cabeça e levou imediatamente as mãos

ao estômago. Que agonia horrível!

— Acho que vou vomitar! — queixou-se.

— Respira fundo! Respira fundo! Não percam o controlo! — aconselhou o Orlando, que foi o primeiro a levantar-se.

A muito custo, os dois irmãos puseram-se de pé.

E o que os ajudou a recobrar de vez os sentidos foi a caçada próxima. Os cavalos corriam à desfilada e ouviam-se gritos e imprecações.

— Por aqui! Por aqui!

— Foi para os pântanos!

— Quero o meu falcão! — berrava, possesso de fúria, o príncipe herdeiro. — Apanhem o meu falcão!

O tropel aproximava-se da clareira onde tinham aterrado. Pelos vistos, não estavam longe dos pântanos. «Foi por um triz», pensou Orlando com um arrepio.

— O que é que se passa? — perguntou-lhe a Ana, atarantada.

— Deve-se ter perdido algum falcão.

— Se calhar, ainda não o tinham treinado o suficiente, e ele fugiu na direcção dos pântanos — disse o João.

— Deve ter sido isso. Vamos ver.

Uma confusão imensa de homens, cavalos e cães passou por eles sem os notar. D. Dinis ia à frente, vermelho da corrida e de excitação. O príncipe, inclinado na sela, chorava desabaladamente, logo seguido pelos irmãos bastardos, solidários naquele momento difícil.

— Vamos encontrá-lo, não chores — ouviram o conde de Barcelos gritar de passagem.

O Orlando e os dois companheiros seguiram a comitiva, correndo velozmente por entre as árvores. Logo adiante, no entanto, tiveram de parar todos. Um cheiro pestilencial a águas estagnadas e a moleza do solo impedia-os de continuar. Tinham chegado à beira do pântano. Fez-se silêncio. A atmosfera ali era tão desagradável!

Circunvagando o olhar em busca do falcão perdido, vislumbraram, do outro lado, um vulto de mulher. E imediatamente se ouviu um sussurro entre os cavaleiros.

— Anda ali a bruxa! É Berenice!

Com um frémito, o João deu alguns passos, rodeando a superfície lodosa. Se a bruxa andava perto, ele queria vê-la.

O rei foi dos poucos a quem aquela visão não pareceu impressionar. Mantendo o porte altivo, de cabeça erguida na direcção dos pântanos, declarou:

— Temos de acabar com isto! Terras cheias de lodo não aproveitam a ninguém. É preciso drenar este pântano e os outros todos em volta de Leiria. Não quero pântanos, quero pinhais!

— E eu quero o meu falcão! — berrou o príncipe D. Afonso.

— Organizem uma batida pelos pântanos — ordenou D. Dinis. — Até ao pôr do Sol, tem de se encontrar o falcão do meu filho.

O príncipe calou-se imediatamente. E, talvez por sentir que o pai se preocupava com ele, sorriu satisfeito e retesou-se na sela.

Já os cavaleiros e os falcoeiros se dividiam, para organizar a batida, quando Orlando acotovelou a Ana, murmurando:

— Olha ali, Ana! Tréguas!

Pai e filho regressavam ao castelo, cavalgando lado a lado, em amena conversa. Desta vez, Afonso Sanches deixara-se ficar para trás. E o conde de Barcelos participava na batida.

— Perfeito! — disse o João. — Um pai como deve ser liga aos filhos todos por igual, sem mostrar preferências.

— Bom, deixemos as intrigas da corte, e toca a seguir o rei. Receio bem que a bruxa já tenha entregado o tal pó ao falcoeiro. Parece-me que o melhor é procurar mestre Giraldo e contar-lhe tudo.

— Mas onde é que ele está?

— Deve estar na alcáçova. Vamos lá ter, «de cinto».

— Nem pense nisso, Orlando! Quer matar-nos? «De cinto» é que eu não vou!

— Nem eu! Prefiro andar a pé quilómetros e quilómetros...

— Bom, se é assim, só vejo uma solução. Eu vou «de cinto» para o castelo. E vocês vão lá ter a pé — propôs o velho sábio. — Como se avistam as ameias daqui de onde estamos, podem orientar-se sem dificuldade. O que é que acham?

— Bem!

— Eu alinho!

— Então, toca a andar. Encontramo-nos à porta do castelo.

— Qual delas?

— A que fica mesmo em frente de uma igreja pequenina, chamada Igreja de São Pedro. Se for preciso, perguntem a alguém onde é.

O Orlando piscou o olho, virou-se de costas e accionou o botão, desaparecendo-lhes de vista instantaneamente.

Os dois irmãos ficaram sozinhos na floresta. Ao longe, ouviam-se ainda os latidos dos cães. Mas já não viam ninguém.

A Ana não ousou confessar que sentia um friozinho no estômago. Pelo contrário, preferiu fazer-se forte.

— Está-me a apetecer imenso este passeio até ao castelo! — disse.

— A... a mim também!

Iniciaram então a marcha de regresso. Um regresso por caminhos sombrios...

De nariz no ar, procuravam não perder de vista o ponto de referência, constituído pelas ameias do castelo, majestosamente erguido no topo verde do outeiro.

A certa altura, o João deteve-se e segurou o braço da irmã.

— Olha! Olha ali, Ana! O falcão perdido!

— O falcão! Onde?

— Além! Não estás a ver?

Radiante com a sua descoberta, o João soltou-se e gatinhou em direcção à árvore onde o fugitivo tinha pousado. Se fosse ele e só ele a capturá-lo, o rei por certo que lhe daria uma recompensa...

— João! — gritou a irmã. — Não te afastes de mim!

— Espera aí, que eu venho já!

A ideia era boa, mas ele não contara com a desigualdade de recursos... batendo as asas, o falcão afastou-se e foi pousar noutra árvore mais adiante.

— Ah, malandro! Julgas que me escapas?

Ora correndo, ora escondendo-se atrás de moitas, ora tentando subir às árvores, o João embrenhou-se, agora sozinho, no matagal.

Apavorada com o seu desaparecimento, a Ana tentou chamá-lo. Mas por mais esforços que fizesse, não conseguiu emitir um som. E, lavada em lágrimas, largou a correr em direcção ao castelo.

 

Exausto de tanto correr, o João apoiou-se a um tronco, respirando com dificuldade. A ave tinha desaparecido de vez!

Só nesse momento se lembrou de que tinha deixado a irmã sozinha no meio do bosque. Estaria muito longe? Olhou em volta, assustado. Ali o mato cerrava-se, num entrelaçar de folhagem muito densa. Levantou a cabeça mas, por entre as copas das árvores, mal se via uma nesga de céu. O Sol declinava, derramando-se na poalha dourada do entardecer.

— Perdi-me! — disse em voz alta. E, com um nó na garganta, gritou: — Ana! Ana! Ana!

Todos os ruídos cessaram e um imenso silêncio apertou-se à sua volta.

«Não posso perder o controlo», pensou. «Tenho de reagir... há-de haver uma saída!»

Com passos incertos, retomou o caminho.

As pernas arranhadas ardiam-lhe. Tinha a roupa rasgada e bastante suja. Os sapatos com areia e pedrinhas magoavam-lhe os pés.

— Estou numa lástima — disse, cheio de pena de si próprio.

Mas não parou de caminhar. O pior era que, para onde quer que se voltasse, parecia-lhe tudo igual. Sem pontos de referência, só por acaso descobriria o caminho certo.

Um desânimo profundo invadiu-o a pouco e pouco. E foi-se arrastando, cada vez mais devagar, cada vez mais devagar, já sem escolher rumo.

«Com certeza ando às voltas e mais voltas, como os que se perdem no deserto... um ambiente totalmente fechado ou totalmente aberto tem o mesmo efeito! Perdi-me!»

As forças abandonavam-no, deixando-lhe os membros flácidos e dormentes. Até o chão parecia faltar-lhe debaixo dos pés!

Com um esforço enorme, tentou levantar o joelho esquerdo. «Schlap! Plof!» O que era aquilo? Não percebeu logo por que motivo a perna que erguia estava coberta de uma papa viscosa, enquanto a outra se afundava de mansinho...

— O pântano! — gritou, espavorido. — Caí no pântano! Socorro! Socorro!

O pânico foi tal que perdeu o equilíbrio e caiu de gatas, enterrando também os braços no lodo.

— Socorro! — continuou a gritar, embora sem esperanças de ser ouvido. — Socorro!

De cada vez que tentava libertar uma parte do corpo, a outra afundava-se mais, visto que o solo não oferecia resistência. Com a agitação, já tinha a cabeça e os cabelos envoltos numa pasta húmida. O coração parecia querer saltar-lhe

pela boca fora. E duas lágrimas gordas enevoaram-lhe a vista.

— Vou morrer! Vou morrer! Vou morrer!

Na impossibilidade de secar as lágrimas com o punho, cerrou as pálpebras franzindo-se muito. E... quando voltou a abrir os olhos, ia desmaiando de espanto!

Na beira do pântano estava uma figura de mulher. Estreitinha e flexível como um junco, vestida de escuro, a cabeça envolta em panos escuros, também, trespassava-o com um olhar azul, brilhante, oblíquo como o dos gatos.

A bruxa!

Uma avalancha de pensamentos ocupou-lhe o espírito, fazendo-lhe perder até a noção do estado em que se encontrava.

Se era a bruxa, viria fazer-lhe bem ou fazer-lhe mal?

Sem uma palavra, ela estendeu-lhe uma vara comprida. O João agarrou-a imediatamente, e foi arrastado para fora do pântano.

— Estou salvo! — murmurou, mal acreditando na sua sorte.

A bruxa, ou lá o que era, deu uma gargalhada cristalina.

O João olhou para ela de alto a baixo. Se tinha cento e cinquenta anos, não parecia ter mais de dezassete! E era linda, tão linda como nunca vira outra igual.

— Vem! — disse ela então num sussurro.

Ainda que tivesse outra hipótese, não teria resistido àquele apelo, que era ao mesmo tempo forte e doce.

Atrás dela, caminhou algum tempo como quem flutua. Desconhecido era o mundo que tinha dentro de si. A noite caía, agora rápida, e a floresta enchia-se de sombras.

Escondida no arvoredo, quase adivinhou uma cabana de troncos, junto da qual rumorejavam as águas de uma nascente.

Ela não disse nada, e entrou, deixando a porta aberta. Era o fim daquela viagem estranha, que lhe parecia, mais do que nenhuma outra, uma viagem entre o espaço e o tempo.

— Berenice! — chamou sem obter resposta.

No limiar da cabana, hesitou ainda. E decidiu que primeiro se iria lavar na água muito fresca que ali mesmo brotava das entranhas da terra.

Só depois de liberto da lama, do visco e do medo resolveu transpor a soleira da porta.

Seria realmente a casa de uma bruxa?

Uma bruxa, ou apenas a filha mais nova de um humilde lenhador?

O João sentou-se nos toros de lenha e encostou a cabeça à parede, procurando um ângulo de sombra. Queria observá-la mais à vontade.

Diante do lume, o corpo esguio ligeiramente inclinado, Berenice revolvia o conteúdo de um caldeirão, com gestos pausados, lentos. A luz das chamas reflectia-se na pele muito branca, envolvendo-lhe os cabelos numa auréola doirada.

«Que linda é!», pensou, desvanecido.

Como se tivesse captado qualquer coisa no ar, ela voltou-se e olhou-o de frente. Foi apenas um instante, mas bastou para lhe deixar o coração em alvoroço.

— Que linda é! Que linda é! — disse baixinho.

E, embalado pelo vento que lá fora enchia a floresta de sons misteriosos, o João não conseguiu mais afastar os olhos da figura quase irreal que tinha na frente.

Alheada de tudo, com a colher de pau presa entre as duas mãos, ela revolvia e tornava a revolver o líquido de cor indefinida que por certo se tornava espesso. Poção mágica, ou sopa de legumes?

Mesmo a calhar! Um pingo saltou da panela, derramando-se sobre o lume. E logo a caruma se desfez em mil partículas com um crepitar súbito e forte que o deixou atónito! É que parecia mesmo uma gargalhada. Uma gargalhada fininha, de desprezo. Como se a própria lenha reclamasse: «Duvidas? Se duvidas és tolo! Se duvidas és tolo! Se duvidas és tolo!»

O João fechou os olhos e suspirou fundo. A pouco e pouco, ia-se abandonando à ideia perturbante de que estava, de facto, em casa de uma bruxa. Não faltava sequer o gato preto de olhos de brasa... E a vassoura, para cavalgar o céu, nas noites de lua cheia.

Então, ou porque se sentisse já enfeitiçado ou porque desejasse sê-lo ainda mais, balbuciou:

— Transforma-me num gamo selvagem, Berenice!

O pedido não pareceu surpreendê-la. Imperturbável, retirou uma mão-cheia de folhas secas, que tinha penduradas na chaminé, atirando-as depois uma a uma para dentro do panelão. Um cheiro intenso, difícil de identificar, penetrou-lhe as narinas. O João franziu-se e aspirou longamente. Seria ideia sua, ou o vento engrossara em volta da cabana? De onde vinha aquele som envolvente, que parecia chamá-lo para a floresta? E de onde viria aquela vontade imensa de ser selvagem, um veado a galopar, galopar sem destino até não poder mais?

Berenice movia os lábios, debruçada para a frente. Mesmo na curva do pescoço tinha um sinalzinho redondo, loiro como o cabelo e como as pestanas. Assim, a dizer palavras mágicas, parecia ainda mais bonita.

Naquele momento, virou a cabeça e fitou-o de novo. Nos seus olhos oblíquos brilhava uma expressão enigmática.

«Vai-me transformar em veado!», pensou o João, com volúpia... «Vai-me transformar em veado!»

Sem conseguir mover um único músculo do seu corpo, viu-a mergulhar um púcaro dentro do líquido, erguê-lo depois lentamente até à altura da boca e soprar de mansinho antes de lho estender, ordenando:

— Bebe!

Dócil, o João segurou o púcaro, com as mãos juntas, em concha. Sentiu que o sangue lhe corria célere nas veias e olhou-a de alto a baixo, preso de um imenso fascínio. Depois, de um só trago, bebeu até à última gota. E ficou à espera.

Para seu grande espanto, não aconteceu nada. Berenice sorria-lhe, sempre enigmática, sem se afastar um milímetro. Quase desiludido, tentou levantar-se. Mas não conseguiu. Os membros pesavam-lhe como chumbo. Picadas esquisitas obrigaram-no a mexer as unhas dos pés, que estavam duras, duras! E uma comichão intensa espalhou-se, primeiro pelas pernas, depois pelo corpo, e a seguir pelos braços, pelo pescoço, pela cabeça.

Uma tontura fez-lhe ver a cabana andar à roda e fechou os olhos. O seu corpo crescia, enrijava, saindo dos limites, tomando outra forma...

Apavorado, deu um salto, estranhando de imediato a força com que se atirava ao ar. E descobriu que tinha os braços tão longos como as pernas.

«Não pode ser! Não pode ser!», pensou, cheio de medo.

Mas a curiosidade foi mais forte. Entreabriu as pálpebras, receoso. E lá estavam os cascos raspando no chão, inquietos, ansiosos.

Berenice era apenas um vulto escuro, atrás da porta escancarada para a noite, a noite que o chamava como por encanto.

Apoderou-se então do corpo novo e partiu, mergulhando na floresta com a alegria e a força de um veado jovem. E galopou, galopou sem destino até não poder mais.

Os outros bichos dormiam, quietos nas tocas e nos ninhos. Todos, menos os mochos e as corujas que, imóveis e empoleirados nos troncos das árvores, assistiram à corrida. Se alguém tivesse prestado atenção, podia até garantir que o seu piar, naquela noite, era de espanto.

 

Uma restolhada lá fora fê-lo abanar a cabeça. Atarantado, o João emergia do sono mais profundo da sua vida. Olhou para todos os lados, sem entender por que motivo estava ali deitado numa cabana escura. Mas subitamente lembrou-se de tudo.

— Que noite fantástica! — suspirou, deliciado. Doíam-lhe vagamente os músculos, mas era uma dor boa, saudável, da corrida.

Alguém mexia na porta da cabana. Mas isso não o incomodou. Por certo era Berenice, nas suas andanças...

Uma voz familiar chamou do lado de fora:

— João! João!

Surpreendido, levantou-se e correu a abrir.

— Ana!

Os dois irmãos caíram nos braços um do outro, sob o olhar aliviado e contente de Orlando.

— João! Pregas-nos cada susto! Onde é que te meteste? Como é que vieste parar aqui?

Com um sorriso superior, o João limitou-se a responder:

— É uma longa história!

— Longa história temos nós para te contar... descobriu-se tudo!

— Descobriu-se tudo o quê?

Fosse o que fosse que tivessem para lhe contar, pouco lhe importava. Ao pé da experiência que tinha vivido na noite anterior, o resto seria sempre insignificante...

— Por que é que estás a rir?

— Eu? Não me estou a rir. Estou a recordar.

— A recordar o quê?

— Ó Ana! — exclamou ele, sem resistir mais tempo à tentação feroz de contar tudo, tudo, tudo. — A bruxa transformou-me em veado e eu cavalguei toda a noite na floresta!

— Ó João! Que disparate!

— Agora é que endoideceste de vez!

— Palavra! Juro!

— Confesso que nunca ouvi uma ideia mais tola!

— O Orlando também não acredita? Paciência! Não me ralo. Transformei-me e transformei-me mesmo!

— Claro — brincou a irmã. — Transformaste-te em veado, e vieste para aqui dormir. Ainda se notam vestígios... Olha, aí na testa tens dois buraquinhos redondos.

— Ora! Se não quiseres acreditar, não acredites. Mas foi verdade.

Parecia tão seguro do que afirmava, que o Orlando contemporizou:

— Se calhar foi um sonho! Há sonhos tão nítidos que parecem realidade.

O João encolheu os ombros.

— Oh!

— Deixa agora os teus sonhos e ouve: descobriu-se a conspiração. D. Fradique e o seu grupo, estão todos presos. O falcoeiro acabou por dizer a verdade ao mestre Giraldo.

— Ah, sim? Então vocês sempre o encontraram.

— Encontrei-o eu — disse o Orlando. — Expliquei-lhe o que se preparava. Ele armou uma cilada ao falcoeiro e apanhou-o em flagrante a tentar trocar os pós... Quando se viu descoberto, confessou tudo.

— Foi uma noite pavorosa! — continuou a Ana. — Primeiro aquela sarrafusca no castelo. Depois, andámos como loucos à tua procura.

— A tua irmã estava tão aflita, que nem se importou de viajar «de cinto». Temos andado por aí, «boing», «boing», «boing», a bater a floresta em todos os sentidos.

— Quando há bocado avistámos a cabana, eu tive um baque. De certezinha estavas aqui...

— Esta é a cabana da Berenice — explicou o João.

— É verdade, andam à procura dela! Já prenderam todos os que estavam envolvidos na história, e todos confirmaram que quem forneceu o veneno para matar o rei foi a bruxa.

— Mas ela não sabia! — gritou o João, frenético. — Eu sou testemunha! O tal Fradique enganou-a! Disse que precisava do veneno para matar ratos.

— Pois é, João. Mas agora é difícil provar uma coisa dessas. Se a apanham, o mais certo é condenarem-na à morte.

— Eu nem sei bem qual é a pena para um caso destes — disse a Ana. — Se calhar enforcam-na, ou cortam-lhe a cabeça, ou então queimam-na viva...

— Não!

O berro que o João soltou devia poder ouvir-se bem longe.

O Orlando e a Ana olharam-no, admiradíssimos.

— Não! Não! Não pode ser!

Os olhos marejados de lágrimas, vermelho de aflição, o João parecia prestes a rebentar com uma apoplexia.

— Acalma-te. Nós sabemos que não foi ela...

— Ó Orlando — lembrou a Ana. — E se nós tentássemos falar com o rei?

— Hum! Os ânimos estão muito exaltados. Duvido que nos acreditem...

— Vamos ajudá-la a fugir! — implorou o João. — Por amor de Deus, tenha uma ideia. Ela salvou-me a vida! Tirou-me do pântano! É minha amiga!

O cientista encolheu os ombros, perplexo. Não sabia o que havia de fazer. Ajudar a rapariga a fugir, mas para onde? E como? De resto, ela não estava por ali.

O João continuava num desespero. Só faltava pôr-se de joelhos.

— Ajude-a! Por favor! Você é sábio, ou não é? Tem de ter uma ideia!

— Mas...

O Orlando não concluiu a frase. Como se tivesse surgido do nada, Berenice apareceu junto deles. Silenciosa, enigmática, muito loira e linda! Linda de perder a cabeça!

O Orlando olhou primeiro para ela, depois para o João, julgando perceber o motivo daquele frenesim.

— Berenice? — perguntou.

— É! É ela, sim!

— Sabe que andam à sua procura? — perguntou-lhe a Ana. — O melhor é fugir.

— Mas fugir para onde? Fugir para onde? Digam-lhe o que há-de fazer! Vá!

— Sei que andam à minha procura, mas eu nunca quis matar o rei. Nem o rei nem ninguém.

Se estava aflita, não dava a entender. Falara baixo, com a mesma voz doce que só o João conhecia. Consternados, entreolharam-se. Que fazer? Ao longe, o galope dos cavalos martelava, ameaçador.

— Já lá vêm!

— Que horror!

— O melhor é fugir! Vamos fugir!

Berenice continuou impávida e serena. Teria poderes para se livrar daquilo sozinha? Ou estaria conformada com a sua sorte?

— Estou perdida — declarou. — Vão matar-me!

— Não! Não vão nada! Orlando, tive uma ideia! Depressa, vá!

— Mas o quê? O que é que queres?

— Qual é a ideia? Explica-te!

O tropel dos cavalos aproximava-se cada vez mais. Já se ouvia até a matilha dos sabujos, excitada pela corrida.

— Vamos levá-la «de cinto».

— «De cinto»? Mas como? Ela não tem cinto, e nós não podemos tirar os nossos...

— Não faz mal. Abraçamo-nos os três, com ela no meio. Rodamos o botão cor de laranja e zás! Vamos parar a outro sítio! Vá! Abracem-se a mim!

— Não sei se resulta! — disse o Orlando. — Mas podemos tentar. Não vejo outra saída...

Passaram os braços por cima dos ombros uns dos outros, formando um círculo apertado. Berenice, no meio deles, tremia como varas verdes.

Os cavalos vinham já muito perto, quase a alcançar a cabana da feiticeira. Ou conseguiam fugir assim ou estavam todos perdidos. Se os encontravam ali, tomá-los-iam por cúmplices.

— Vamos embora! — ordenou Orlando. — É agora ou nunca! Rodem os botões!

Mesmo a tempo! Tochas acesas foram lançadas com violência para cima da cabana, que se incendiou no preciso momento em que os quatro amigos desapareceram no ar.

Os cavalos empinaram-se, relinchando, e os cavaleiros, atónitos, benzeram-se com a alma num susto.

E não restaram dúvidas a nenhum deles que ali habitara uma bruxa, uma bruxa poderosa, capaz até de fazer desaparecer pessoas.

— Queimem também o mato em redor — ordenou o conde de Barcelos. — Podem ter ficado feitiços neste bosque...

— Vimo-nos livres de uma feiticeira que há cento e cinquenta anos empestava os arredores de Leiria...

A feiticeira acabava de acordar, muito longe dali, convencida de que aquele velho, o rapaz e a rapariga eram por certo os magos mais poderosos da terra. Tinha a sensação de ter viajado aos saltos, ora caindo no chão ora pairando não sabia muito bem onde. Sentia-se tonta, a cabeça a andar à roda e uma ligeira agonia. Sem se atrever a falar, olhou-os com respeito. Que magia fantástica a livrara da morte?

— Esta viagem já durou muito — resmungou Orlando, que sacudia as vestes, impaciente. — Vamos voltar para casa.

— E a máquina do tempo? — perguntou a Ana, a quem sorria bastante a ideia do regresso.

— A máquina está aqui mesmo. Não reconheces o local? Viemos aos saltos de Leiria até Coimbra. Estou todo partido.

Maravilhada, Berenice viu o cientista tirar uma coisa brilhante da fivela do cinto, agitá-la, e... uma casa transparente em forma de ovo surgiu-lhe diante dos olhos.

— Estás salva, Berenice — disse o Orlando em jeito de despedida. — A cidade mais próxima é Coimbra. Vai para lá e, se és realmente bruxa, deixa-te de bruxarias. Procura outro trabalho — acrescentou com ar paternal.

A Ana já se acomodava na máquina. O cientista seguiu-a. Mas o João, antes de subir, correu para a bruxa e abraçou-a.

— Quantos anos tens? — perguntou-lhe ao ouvido. Ela não respondeu. Os seus olhos brilhavam enigmáticos.

— Anda, João! Vamos embora!

O João olhou-a ainda uma vez mais, como quem quer fixar para sempre a imagem... e depois subiu também para ao pé dos outros. Quando a máquina começou a vibrar, viram-na afastar-se, inclinada para o chão. Recolhia plantas e guardava-as na aba do avental escuro.

— É mesmo uma bruxa! — suspirou o João, de olhos fechados, já a caminho do século XX. — É mesmo uma bruxa.

 

 

                                                                  Ana Maria Magalhães & Isabel Alçada

 

 

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