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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA VOZ DE MUITO LONGE / Silver Kane
UMA VOZ DE MUITO LONGE / Silver Kane

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UMA VOZ DE MUITO LONGE

 

Pamela e Bob eram um dos casais mais respeitável de Sioux City, ela já vinha de uma das famílias mais ricas e respeitáveis da cidade e ele um simples aventureiro. Pamela já desconfiava que um dia seria morta por Bob, devido a sua ambição, até que um dia o fato concretizou-se, mas, o que Bob não desconfiava que iria acontecer é que Pamela voltaria do túmulo para vingar a sua morte...

 

"ONTEM à noite, John, sonhei que você vinha me matar.

Peço-lhe que perdoe esta idéia absurda, John, porém ela esteve me atormentando du­rante horas e horas enquanto eu olhava a Lua através da janela.

Lembra-se como é essa janela, John? Re­corda-se como é a nossa velha casa?

Claro que você deve recordar-se. Ali você me deu o primeiro beijo, ali sussurramos as pri­meiras palavras de amor, e decidimos ser ma­rido e mulher para sempre... mesmo nas fron­teiras do crime...

Não sei porque, mas não afasto a idéia de crime da cabeça, John. Terei que lhe pedir per­dão outra vez.

Nós temos vivido sempre em Sioux City, per­to da fronteira entre Iowa e Dakota do Sul, nas velhas terras onde, ainda não faz muito tem­po, lutava-se ou morria-se por um pedaço de terra ou pelos lábios de uma mulher índia. As pessoas respeitáveis daqueles dias, quando a ci­dade começou a se pacificar, quiseram fazer ca­sas que fossem também lares respeitáveis, mas só conseguiram criar uma espécie de castelos si­nistros como este em que vivo, agora. As enor­mes habitações que mal recebem luz, os pesa­dos cortinados, os quartos onde, quando eu era criança, não me atrevia a pôr os pés e que ain­da hoje me enchem de um horror secreto, o es­quecido jardim onde jazem os ossos dos meus pais, tudo isso enche de pesadelos estranhos mi­nhas noites, me angustia, converte-me em uma mulher que está vivendo em uma espécie de meio termo entre a realidade e as fronteiras do outro mundo.

Por isso sonhei que você vinha ver-me, so­nhei que necessitava de você como nunca. Por isso, também, meu pesadelo foi espantoso por­que pressentia que você me vinha matar.

Não o faça, John. Não se lembre de o fazer nunca. Porque se me matar será horrível para você e para mim. Porque eu o amo, e, não obs­tante, não terei outro remédio senão persegui-lo, depois de morta.

Perdoe esta carta sem sentido, sem nexo, John, e volte logo. A existência me é insupor­tável porque você não está junto de mim.

Sua amantíssima

Mary".

Esta carta fora escrita há vinte anos.

Pamela, que tinha descoberto aquele paco­te de cartas na velha secretaria de sua mãe, retirou outra e a leu com ansiedade.

Esta segunda carta dizia assim:

"Você ainda não veio, John. E à noite pas­sada tornei a sonhar que você voltava a Sioux City para acabar comigo.

Era uma coisa estranha, John, que eu não consigo explicar. Você estava diante de minha sepultura, fingindo um grande sofrimento dian­te de todos apesar de me ter assassinado. Não obstante, eu não estava naquela sepultura. Es­tava a sua espera no interior da casa. Eu já não existia, e, entretanto, estava na minha pol­trona preferida, no recanto sombrio do extremo do corredor, quieta, aguardando. Dava corda ao velho relógio que não tem funcionado nestes úl­timos cem anos... Estava atrás dos pesados cor­tinados do dormitório onde você descançava. Du­rante as noites você ouvia meus passos a an­dar de um lado para outro da casa, como nos outros tempos, quando eu estava viva. Você ten­tava despertar e não podia. Não podia!

Rogo-lhe que continue a não fazer caso do que eu digo, John, porém não me deixe tanto tempo só nesta casa. Às vezes penso que vou en­louquecer. Volte logo, John. Volte..."

Pamela terminou de ler esta segunda carta,

Não pôde evitar que uma espécie de mão fria pousasse no seu ombro.

Tudo estava como há vinte anos atrás na velha casa de Sioux City, época em que foi es­crita aquela carta de sua mãe.

O sombrio jardim com as sepulturas, uma das quais, com efeito, era a de sua própria mãe. A poltrona preferida, na qual, desde muito, não se tinha sentado ninguém: o escuro ângulo do corredor interminável; o velho relógio que não tinha funcionado nos últimos cem anos, do qual se dizia que somente durante uma noite, preci­samente naquela em que sua mãe morreu, ti­nha tornado a funcionar.

A mão fria parecia tornar a pousar no om­bro de Pamela.

Como nas outras noites, como naquelas si­lenciosas e intermináveis horas da sua infân­cia, a lua parecia bruxolear dentro dos aposen­tos, penetrando sua luz espectral através das janelas. Assim a sua mãe a teria visto quando escreveu aquelas terríveis cartas.

Pamela, com dedos trêmulos, pegou a ter­ceira carta.

Esta dizia:

"Finalmente comunicaram-me seu regresso, John, e você não pode imaginar a alegria e, ao mesmo tempo, o pavor que cheguei a sentir. Porque eu tenho sonhado sempre que me verá viva, mas encho-me de pânico indescritível ao saber, ao ter a certeza, de que você chegará a me ver em todos os aposentos da casa quando eu já estiver morta.

Tenho estado olhando no nosso velho jar­dim, precisamente o lugar em que sei que vou ser enterrada.

Adivinho sua gargalhada de zombaria ao ler isto. Você bem sabe que hoje em dia já não se enterram as pessoas nos jardins das casas em que habitam, nem sequer nas igrejas onde elevaram as suas preces a Deus. Hoje os tempos mudaram muito. Logicamente, quando eu mor­rer, deverei ser sepultada no cemitério de Sioux City, pois o prefeito não permitirá de modo ne­nhum outra coisa. E, não obstante, eu sei que vão me sepultar no jardim. Sei que você tem tudo preparado para o crime e que quando chegar não terei muito tempo para viver. Por isso, por­que lhe quero muito, John, peço: mande quei­mar meu cadáver. Do contrário você me verá. Ver-me-á e me encontrará sempre, enquanto seu coração pulsar sobre a terra!

Sua amantíssima esposa

Mary".

Desta vez, Pamela não teve que deixar a carta na secretaria.

É que simplesmente esta caiu de entre os seus dedos e foi pousar sobre o tapete.

A moça pôs-se de pé, afastando-se da escri­vaninha diante da qual tinha estado sentada, inclinou-se para apanhar a carta e outra vez aquela mão fria pousou no seu ombro.

Acabava de ouvir passos no imenso corre­dor que ia dar à grande biblioteca onde ela se encontrava naquele momento.

Com os nervos contraídos por uma espécie de espasmo que ela mesma não sabia explicar, esperou ansiosamente a chegada de quem tinha produzido aqueles passos.

Um suspiro de alívio escapou dos seus lá­bios ao ver recortada a silhueta de um homem no umbral da porta.

Era um homem forte, jovem, de tipo es­portivo. Qualquer mulher teria jurado por sua mãe ser capaz de sonhar com um tipo assim durante sete noites seguidas..., contando que sua mãe não viesse saber. Produzia ele a impres­são de um violento contraste com aquela casa, tão velha, tão solene. Dir-se-ia que um ar de re­novação entrava nela pelo simples fato da sua presença na biblioteca.

Pamela correu aos seus braços.

— Bob!

Seu marido a estreitou neles e durante uns instantes as duas figuras, jovens, fortes e sadias fundiram-se em um estreito abraço.

Eram como um hino a juventude, ao amor e a vida naquela casa onde parecia que só se pudesse falar de morte.

Ao separarem-se, Bob perguntou com um sorriso:

— Está muito pálida, Pamela. Não está pas­sando bem?

— Estou perfeitamente bem, Bob. Sobre­tudo agora que você está aqui.

— Isso indica que você não se sentia mui­to tranqüila. Digo-lhe sempre que faz muito mal em ficar só tantas horas nesta casa. Ou a en­cherei de criados que lhe façam companhia ou iremos para longe daqui, para um chalé mo­derno que não esteja cheio de sombras, como esta casa sinistra. Que estava fazendo?

Ela encolheu os ombros com infinita sua­vidade, com um gesto elegante de mulher bem nascida.

— Nada...

— Que papel é esse que tem na mão?

— Nada, não tem importância.

Ele não insistiu, porém, seus olhos receo­sos e incrédulos foram dando uma volta lenta pelo aposento, até que se deteve na escrivani­nha aberta.

Imediatamente soltou uma gargalhada.

— Logo vi que você esteve revolvendo pa­péis velhos, Pamela.

— Não se ria, Bob.

A expressão da moça era tão grave que Bob sobressaltou-se.

— Mas, que se passa com você?

— Nada de notável.

— Mas você esteve certamente revolvendo cartas velhas, ou não?

— Nunca tinha aberto essa escrivaninha...

— E que há nela?

— Papéis de minha mãe.

— Que dizem eles?

Ela respondeu com uma pergunta inespe­rada.

— Sabe porque enterraram mamãe no jar­dim, Bob?

— Sei lá! — Bob encolheu os ombros en­quanto tirava um cigarro de um maço recém-aberto. — Com vocês, os Seymour, tudo é pos­sível. É a família mais respeitável desta cidade. Os conselheiros municipais tremiam diante de seus antepassados, e eu creio que alguns deles seriam capazes de desenterrar os restos mor­tais, de algum presidente estadunidense para meter vocês todos no mausoléu dele. Ora, por­que enterraram sua mãe no jardim? Pois foi, com certeza, para respeitar a tradição mantida durante um par de séculos pelas famílias mais nobres da comarca. Agora já não acontecerá o mesmo, é claro. Mas... a que propósito vem isso?

Ela falou quase sem voz:

— Eu suspeitei sempre que papai tinha ma­tado mamãe, Bob.

— Tolices. Eu não tenho nenhum interes­se especial em defender seu pai, que, afinal, está morto há muitos anos, mas tudo isso é falatório. Semelhante crime jamais se poderia pro­var.

— Sabe de que papai morreu, Bob?

— Sobre isso também circulam muitos e absurdos boatos.

— Morreu de medo.

Bob soltou uma baforada de fumaça pela boca e olhou com indiferença sua mulher, co­mo se estivesse fitando uma louca pela qual já não se pudesse fazer nada.

— Medo? — sussurrou.

— Ele continuava vendo mamãe mesmo de­pois de morta. Sempre desconfiei, mas estas cartas não fizeram mais do que confirmar.

E acrescentou com algo que era apenas um sopro de voz:

— Certamente você não me matará nunca, Bob? Com certeza que não quererá encontrar-se comigo depois de morta... Na verdade você nunca terá a tentação de me assassinar?

 

O JUIZ EVERETT era um homem tranqüilo, bondoso, que conhecia todas as famílias de Sioux City e tinha assistido grande parte dos nascimentos e não menor parte dos falecimen­tos de todos os que agora habitavam ou tinham habitado na povoação.

Não havia acontecimento em Sioux City, por insignificante que fosse, que sua prodigio­sa memória não recordasse no momento.

Quando Pamela lhe expôs suas inquietações, ele arqueou as sobrancelhas num gesto entre surpreendido e irônico.

— Eu, no seu lugar, esqueceria tudo isso que acaba de pensar e dizer, Pamela.

— Então crê que são tolices?

— Não creio que seja ou não seja, mas bas­ta olhar seu rosto para ver-se que você está pas­sando por uma verdadeira crise. E é isso o que mais me preocupa, Pamela. Você sempre foi uma moça sensata, e não compreendo porque agora esteja se inquietando por toda essa es­tória de fantasmas.

Conversavam no escritório do juiz Everett, uma sala elegante e iluminada pelos raios de sol, que penetravam através das largas janelas, porém, Pamela, estranhamente, sentia-se como se fosse noite. Desde que abrira a velha secre­taria da sua mãe, não via senão sombras.

— Crê que é coisa de fantasmas eu per­guntar se meu pai foi o assassino de minha própria mãe, senhor juiz?

— Isso nunca se pôde provar, Pamela. Eu já era juiz aqui naquela época e você deve com­preender que um acontecimento tão importan­te, que além disso afetava a família mais rica da cidade, não poderia deixar de ser estudado por mim, minuciosamente. Lembro-me que en­tão interrogamos dúzias de testemunhas, enche­mos páginas e páginas com atestados da polí­cia, e, apesar disso, não chegamos a nenhuma conclusão prática. Seu pai nem sequer chegou a ser processado. É verdade que morreu apenas um ano depois...

— De que meu pai morreu, senhor juiz?

Everett desviou a conversa, porém o Fez com tão pouca habilidade que ela adivinhou logo sua intenção.

— A morte de sua mãe foi um acidente casual, Pamela — disse calmamente. — Aquela queda do sótão não teve nada de especial. Há centenas de pessoas que quebram o pescoço du­rante o ano em acidentes dessa natureza. Eu creio que tudo ficou suficientemente esclareci­do na ocasião e me parece tolice que você torne agora a pensar naquilo.

Pamela insistiu ternamente:

— De que meu pai morreu, senhor juiz? Everett encolheu os ombros.

— Bem, foi um ataque do coração.

— Provocado porquê?

— Olhe, Pamela, nós os homens morremos hoje em dia de duas coisas principalmente: dos ataques do coração e de câncer, e, ninguém tem encontrado o modo de evitar essas duas pragas. Como quer você que eu, depois de tantos anos, possa explicar a morte do seu pai? Ele morreu de uma síncope- e isso é tudo. Se quer ver a cer­tidão de óbito, ainda a tenho arquivada no meu escritório. Além disso, a que propósito vêm tais indagações? Não faz um ano que você está ca­sada e jamais teve tantas tolices na cabeça. Eu pensava que você era uma mulher feliz...

— E sou.

Não obstante, a expressão de Pamela des­mentia aquelas palavras. Não, não era feliz por­que vivia com seus próprios fantasmas, e, os nossos fantasmas, aqueles que nos falam de noi­te, são mais fortes que nós mesmos. O juiz adi­vinhou vagamente tudo isso, mas, ainda assim, não estava preparado para a pergunta que a moça lhe Fez em seguida. Ficou surpreendido ao ouvi-la dizer:

— Não é verdade que meu pai morreu de medo?

O juiz soltou uma gargalhada oca, de som falso.

— Medo De quê?

— Ele via continuamente minha mãe de­pois de morta.

— Pamela! — A voz do juiz fez-se severa. Estamos, segundo dizem, no país mais avança­do da terra e também no mais espírita. A vinte anos passados este país já era assim e não creia que isto não tem suas vantagens. Os mor­tos não existem, se os esquecemos logo. Nem seu pai viu nenhum espírito nem você deve pen­sar mais nisso. Sabe o que lhe proponho agora? Vamos tomar qualquer coisa e logo se esquece­rá. Ninguém dirá nada de mal se você sair com um velho como eu, que já não faz concorrência a ninguém. Depois eu a acompanharei à sua casa.

— Não quero voltar àquela casa, senhor juiz.

— Porque não? É a mais bonita de Sioux City.

— O senhor gosta dos prédios velhos, porém aquele é horrível.

     Fez uma pausa breve e acrescentou:

— Mas, não é só isso.

— Não é só isso? Que há mais?

— Sim, senhor juiz — disse ela com voz sumida. — Estou certa de que meu marido quer assassinar-me.

O juiz pôs-se a rir.

E continuou rindo até que a sua secretária entrou na sala supondo que lhe tinha dado al­gum ataque.

É que o mundo de hoje está tão louco e há algumas leis tão singulares, que até um velho juiz corre o perigo de morrer de riso.

 

Bob examinou a arma que o comerciante lhe mostrava e a observou durante alguns mi­nutos, como quem examina e comprova uma espécie de aparelho de precisão do qual viesse a depender o destino da sua própria vida. Ele entendia de armas e sabia apreciar sua quali­dade ao primeiro golpe de vista, porém jamais tinha examinado nenhuma com tanta atenção como aquela.

Era um rifle Winchester de um cano só, ca­libre pesado e sem mira telescópica. Uma arma relativamente simples, mas de uma terrível efi­cácia para caçar a pouca distância.

Desmontou o cano e examinou as estrias da arma com tanta atenção como tinha exami­nado antes toda a parte exterior.

O comerciante insistiu:

— O senhor tem me comprado várias ar­mas de fogo, Sr. Bentley, mas esta, se a levar, é da melhor qualidade, superior a todas que te­nho vendido. As armas de alma lisa não servem para nada e o senhor sabe muito bem disso, mas pior que isso é uma arma de cano mal estriado. Esta, entretanto, é perfeita. Pode ser que não seja uma arma de tiro rápido, mas não pode fa­lhar à meia distância. Pode dizer-me para que a quer, Senhor Bentley?

— Precisamente para caçar à meia distân­cia, meu amigo, para caçar à meia distância...

— Pensa ir muito longe daqui?

— Não, desta vez não penso em sair dos li­mites deste território.

— Aqui há pouca caça... Bob Bentley não contestou. Examinava a arma com toda atenção, uma

atenção realmente fora do comum, como ja­mais tinha examinado um rifle em toda a sua vida.

 

— Fico com ela — decidiu afinal.

— Quer que a faça levar à sua casa, Se­nhor Bentley?

— Não, não é necessário. Eu mesmo a le­varei.

— Naturalmente terei que tomar os dados para a licença.

— Tome-os.

Enquanto o armeiro tomava os dados do rifle para dar conta à polícia, Bob examinava com olhares de entendido as armas expostas na loja. As armas tinham sido sempre sua gran­de paixão e entendia delas tanto quanto um profissional. Teve em suas mãos um par de re­vólveres último modelo que por fim deixou quan­do o armeiro lhe entregou a peça recém-adquirida.

— Felicidades, Senhor Bentley.

— Agradecido.

Fora da loja, Bob tinha estacionado seu carro tipo Station Wagon. Era um Chevrolet de luxo, presente de sua esposa Pamela, no dia do primeiro aniversário de seu casamento. Bob, que era um habilíssimo chofer, fez a manobra na rua estreita para regressar à sua casa. Pa­ra chegar até ali, ao seu destino, tinha que atravessar um sombrio trecho de bosque e um pân­tano. Antes de dobrar a primeira esquina encon­trou-se com Jeremy, que sempre vagabundeava nas proximidades da loja de armas. Jeremy o fez deter-se.

— Que há de novo, Bob?

— Você pode ver. Acabo de comprar um ri­fle novo.

E o mostrou através da janelinha do carro.

— É uma bela arma, puxa! — resmungou Jeremy.

— Você terá que a experimentar e verá co­mo dará bom resultado.

Jeremy, que tinha em toda sua vida sido um empedernido caçador, pegou a arma e a exa­minou até nos seus mínimos detalhes.

— Creio que é uma arma estupenda, Bob.

— Se for boa, qualquer dia lhe empresto.

— O que me parece que não está bom é seu carro.

— Que diz?

— Percebi quando você fazia a manobra. Só freia bem em uma roda.

— Será possível? Eu não notei nada.

— Você pode verificar num pedaço reto de estrada; freando bruscamente notará em seguida. Parece mentira que um chofer tão experi­mentado como você não tenha notado.

Bob encolheu os ombros.

— Bem, de qualquer modo não irei muito longe. Agora sigo diretamente para casa.

— Pois não corra muito pela pista do bos­que que margeia o pântano, Bob. Poderá ser perigoso.

Bob deu-lhe um adeus e arrancou. Antes que o conseguisse de todo, Jeremy, que tinha o defeito de ser bastante metido, o deteve com um novo gesto.

— Você tem certeza de que ninguém quer lhe matar, Bob?

— Liquidar-me? Quem? Jeremy soltou uma gargalhada.

— Puxa, quem seria? Nestes casos só uma pessoa: sua mulher...

Bob pôs-se repentinamente sério.

— Temos um ano de casados e ela, precisa­mente por isto, me presenteou com este carro. Porque diz essa asneira?

— Nada, homem, não me faça caso. É que eu leio demais novelas policiais. Boa viagem.

Bob arrancou finalmente e se dirigiu com velocidade moderada para a pista do bosque. Porém esta, em suas retas largas, compridas, con­vidava a correr e o carro saía-se magnificamente. Quando chegou nas imediações do pântano ia a cento e vinte por hora.

Antes de tomar, não obstante, o trecho pe­rigoso, Bob saltou do Chevrolet, verificou bem os pneus e passou pelo bosque uns minutos, o tempo exato para fumar um cigarro.

Quando recomeçou sua viagem, parecia ple­namente satisfeito.

Não obstante, sua expressão foi mudando à proporção que se aproximava do pântano.

Tentou frear algumas vezes e o carro deu várias derrapagens negando-se a obedecer.

Quis encostar-se a esquerda, do lado opos­to ao da água.. . S a direção não lhe obedeceu!

O poderoso automóvel parecia ter-se trans­formado em uma máquina louca.

Bob, demasiadamente impetuoso talvez, fez urna manobra ousada querendo introduzir-se de chofre num claro do bosque, mas o automóvel não lhe obedeceu de novo. Fez tudo ao contrá­rio do que se podia esperar naquela manobra.

Ouviu-se um chiado espantoso das rodas, seguido do grito agônico de Bob, quando o au­tomóvel, a mais de noventa por hora, se pre­cipitava para o fundo das águas.

 

O DOUTOR Jabert sussurrou:

— Teve muita sorte na queda, uma sorte tão grande que duvido se repita isso em cem ca­sos semelhantes. Felizmente seu marido é um grande nadador, por isso pôde se salvar, Pa­mela.

Bob jazia quase inconsciente na cama de um quarto particular do hospital de Sioux Ci­ty. Estava sob grande comoção e perdia os sen­tidos de vez em quando por causa do tremendo choque nervoso. Mas não sofrera nenhuma le­são grave. O médico tranqüilizou Pamela a es­se respeito:

— Três ou quatro dias de cama e você te­rá outra vez seu marido em bom estado, Pa­mela.

Ela parecia preocupada e envelhecida de­pois do acidente, mas, coisa estranha, dir-se-ia que aquilo a tinha alegrado em segredo. O fa­to de Bob estar ali, indefeso, dependendo dos seus cuidados, fazia com que ela se esquecesse dos seus estúpidos pesadelos de poucos dias an­tes. Se até tinha chegado a pensar que Bob de­sejava matá-la! Se até se tinha acostumado a idéia de que, depois de morta, apareceria a Bob, tal como sua mãe teria aparecido ao seu pai!

Sem dúvida estava positivamente louca. Só uma mulher neurastênica, uma autêntica obcecada poderia pensar coisas tão estúpidas como aquelas.

No fundo, um Bob Bentley indefeso e que, de certo modo, estava ali como uma criança em suas mãos, dissipava suas inquietações e lhe causava uma espécie de prazer íntimo.

Naquela mesma tarde vieram o delegado Lincoln e o agente de seguros Parker, que tinha chegado a toda pressa da capital.

— Estamos fazendo todo o possível para recuperar o carro, Pamela — disse o delegado, que a tinha conhecido desde sua meninice e a tratava com grande intimidade —, mas não sei se será possível. Acha-se mergulhado no lugar mais profundo do pântano e ali há grandes mas­sas de lodo. O Senhor Parker, da companhia de seguros, poderá explicar melhor.

Parker era um homenzinho assustado e muito suado, que parecia ser quem ia pagar o carro sinistrado do seu próprio bolso.

— Creio que tentar resgatá-lo será para a companhia mais caro que pagar o valor do se­guro, senhora — disse apressadamente. — Na apólice, nós nos obrigamos a tratar de recupe­rar o carro no caso de acidente, mas, se seu marido estiver disposto a chegar a um acordo amistoso, muito agradeceríamos. A Companhia está disposta a abonar a importância do seguro sem discutir, visto como não houve vítimas, no caso em que nos permita desistir da busca, Bob, que agora, saía de seu letargo, disse, na sua cama:

— Vão para o inferno.

— Quer dizer que não concorda, Senhor Bentley?

— E por que não hei de aceitar, com todos os diabos?! Carros como o que perdi há às dú­zias. Por mim pode deixá-lo no fundo do pân­tano até o dia do juízo final. O que sinto é a perda da arma.

— Que arma? — perguntou solicitamente o Senhor Parker.

— Isso o delegado saberá melhor do que o senhor. Suponho que terá que dar parte. Eu a tinha adquirido algumas horas antes e sua descrição já deve estar na repartição da polí­cia. Terá que dar-lhe baixa e arquivar os dados, delegado.

Este encolheu os ombros.

— Bem, o prejuízo não é tão grande.

— Isso diz você porque não a conhecia.

— Ora. O armeiro já me tinha falado dis­so! Era uma arma realmente excepcional, se­gundo disse. E até me entregou uma bala dis­parada por ela.

— O quê, delegado?

— Você não conhece o método que adotei há uns seis meses, Bob? Não permito que na minha jurisdição se venda uma arma sem que o armeiro me entregue antes, com a documen­tação, uma bala disparada por ela. Eu a arqui­vo e, assim, tenho a certeza de que em qualquer momento posso comparar o esfriado da bala com qualquer outra que tenha sido disparada pela mesma arma. Qualquer dia me agradecerão isto lá de Washington, amigo.

Bob abafou um bocejo.

Tudo aquilo devia ser parte do passado pa­ra ele. A expressão de seu rosto parecia dizer que fosse para o inferno o delegado, sua docu­mentação e sua bala de amostra. Lincoln assim compreendeu e se evaporou discretamente, o mesmo fazendo o agente de seguros, o Parker.

Pamela ficou a sós com Bob.

Esteve cuidando dele durante três dias e três noites, apesar de existirem excelentes enfermeiras no hospital. Para ela, Bob era único e só o que ela fazia com suas próprias mãos é que era bom para ele.

Todo o mundo ficou sabendo que Pamela amava o marido mais que sua própria vida.

Coisa estranha, Pamela foi durante aqueles dias mais feliz do que em sua própria lua-de-mel.

Foi tão feliz o quanto pode ser uma mulher que deixa para trás as portas da dúvida, as por­tas do desespero, do medo e do inferno.

Uma mulher que volta a crer na vida.

A proibição da caça estava em pleno vigor no condado e, até então, todos a tinham res­peitado escrupulosamente. Por isso o delegado se indignou grandemente quando chegou à sua repartição uma denúncia sem importância, pro­cedente de um guarda florestal. Alguém tinha matado um gamo jovem e teve que fugir sem poder levar sua presa.

— Se a arma pertence a alguma pessoa desta comarca encontraremos o transgressor — decidiu o delegado.

Estava indignado pelo fato de que a proibi­ção não era respeitada.

E como não tinha nada melhor que fazer, dedicou-se a comparar as balas extraídas do animal morto com todas as que conservava no seu arquivo. Nenhuma coincidia. Pelo fato de ser a primeira que tinha nas mãos, começou com a bala correspondente a da arma perdida de Bob Bentley e aquela encaixava menos que ne­nhuma.

Chegou à conclusão de que um saqueador desconhecido se ocultava nos bosques próximos a Sioux City e calculou que aquele delito sem importância seria seguido por outros de maior gravidade. Sempre acontecia assim: primeiro al­guém transgredia e logo a seguir éram pratica­dos alguns roubos e a situação podia terminar em um assassinato. O transgressor, fosse quem fosse, dispunha de uma arma e por isso o dele­gado julgou necessário organizar uma patru­lha. Isso, de certo modo, fazia parte da rotina no seu cargo.

Não encontrou nada.

A seguir começou a segunda parte da roti­na, que consistia em advertir todos os habitan­tes das casas isoladas. Uma das advertidas foi Pamela.

— Não tema nada — explicou o de­legado —, mas vocês estão quase sem criados. . . E... é verdade, como está Bob?

— Muito melhor, Senhor Lincoln. Já está dando alguns pequenos passeios.

— Mas não quererá empunhar outra vez o volante de um automóvel, não é verdade1?

— No momento, nem eu mesma desejaria fazê-lo. Mas, a verdade é que ele nada me pe­diu. Prefere andar a pé.

— Não faça caso daquele acidente, Pame­la. Ainda que Bob viva trezentos anos aquilo não tornará a acontecer. O carro não estava em boas condições e isso é tudo. O velho Jeremy havia notado antes, quando Bob lhe mostrou a sua nova arma.

Levou uma das mãos ao chapéu como em despedida e terminou com um último conselho com que concluía sempre suas determinações:

— Feche bem as portas e janelas ao anoi­tecer e verifique, antes de ir dormir, se o seu telefone funciona corretamente.

Isso foi tudo.

Bem. Tudo não, porque naquela mesma tar­de Pamela recebeu uma carta.

Parece mentira que uma simples carta pos­sa fazer mudar o todo de uma pessoa que, de certo modo, está doente de solidão.

A carta era muito breve, estava assinada por uma tal de Kate e anunciava sua visita pa­ra dentro de uma semana. Pamela, louca de alegria, tomou a lê-la.

—- Bob! É de Kate!

Bob, que folheava velhos álbuns de fotogra­fias na biblioteca, voltou-se estranhando e até com um leve gesto de mau humor.

— Nem que o Presidente dos Estados Uni­dos lhe tivesse escrito... Quem é Kate?

— A melhor amiga que tenho.

— Pois nunca a ouvi falar dela. Pamela ruborizou-se ligeiramente.

— É um episódio da minha infância que quase não conto a ninguém, Bob, porque, no fundo, não tem nenhuma importância. Eu sal­vei Kate de morrer afogada quando tínhamos doze anos. Depois estivemos muito tempo juntas no colégio, e, por fim, a vida nos separou. Não imagina a alegria que tenho ao saber que vol­tarei a vê-la.

— Ela virá para cá?

— E penso em convidá-la a passar conos­co algumas semanas, se você não vê inconve­niente nisso.

— Porque me haveria de opor? Mas, ela não nunca esteve nesta casa?

— Não. Enquanto meus pais viveram, a en­trada de Kate foi proibida rigorosamente no seio da nossa família.

— Porquê?

— Sua mãe tinha uma profissão muito es­tranha.

— Sabe que está despertando minha curio­sidade? Quem era a mãe dela? Corista?

— Não. Era cartomante.

— Uma profissão um tanto fora da moda, não?

— É que Kate também adivinhava coisas...

— Isso me parece uma solene bobagem, Pa­mela.

— Se você tivesse conhecido. Kate não di­ria isso. Enfim, de qualquer maneira a conhe­cerá. Chegará dentro de poucos dias.

Fez um gesto faceiro e acrescentou:

— Quero agora perguntar-lhe uma coisa, Bob.

—- Que é?

— Porque está o dia todo metido na biblio­teca revistando fotografias? Algumas delas são horríveis.

— Horríveis, porquê?

— Refiro-me as do meu pai antes de mor­rer. É como se ele estivesse sempre envolto em um clima de pesadelo.

— Essa é outra bobagem a mais, Pamela.

— Mas deveria sair, Bob; tomar ar, ani­mar-se ... Não gosto de vê-lo sempre metido na biblioteca.

Bob Fez um gesto vago.

Porém ele sabia muito bem porque estava ali.

 

MANTEVE a carabina escondida em um dos cantos da biblioteca durante quarenta e oi­to horas mais. Por fim a tirou de onde estava para examinar.

Era uma tarde em que Pamela e ele esta­vam sós em casa. Os poucos serviçais tinham obtido licença de Ketty, a criada mais velha, ele mesmo a acompanhou até Sioux City, dizen­do-lhe ali que ia dar um passeio, coisa que fa­zia com freqüência nos últimos dias. À velha Ketty pareceu-lhe aquilo muito natural e Bob dispôs assim de um álibi, si não seguro, pelo menos muito razoável.

Poderia dizer que tinha estado passeando pelo bosque, como fazia ultimamente com fre­qüência, quando lhe pedissem que justificasse onde estava naquela ocasião, durante aquele tempo.

Mas, regressou logo para casa.

Esta se mostrou ante seus olhos, silenciosa, sombria, hostil, como se fosse um ser vivo e soubesse o que haveria de suceder e estava a re­chaçar sua presença.

Porém Bob tinha tudo calculado. Não ce­deria.

Tinha chegado ao final de um caminho cheio de sombras, porém as sombras não lhe as­sustavam. Seguiria até o fim.

Reviu, pois, a arma, tirando-a do canto da biblioteca onde a tinha oculta, e verificou o ca­no que estava perfeitamente serrado.

Ainda estava com a arma na mão quando Pamela entrou no aposento.

Vinha vestida aquela tarde com um formo­so vestido negro de duas peças e sua figura esbelta e elegante, cheia de juventude e graça, destacava-se naquele ambiente cheio de tons sombrios, mas pleno também de distinção. Ao ver Bob com a arma na mão não fez um só gesto.

Não fez absolutamente nada que demons­trasse surpresa.

Bob teve a estranha e inquietante sensa­ção de que ela adivinhava o que ia acontecer, o que talvez tivesse sabido desde o primeiro mo­mento. Era, quem sabe, como sua amiga Kate, aquela de quem se dizia que adivinhava as coi­sas? Ou talvez uma voz distante lhe teria ad­vertido desde o Outro Mundo o que ia acon­tecer na casa grande e silenciosa, de onde pare­ciam flutuar as sombras dos mortos?

Mas, que diabo! Há momentos em que um homem não deve pensar. Existem situações na vida em que ninguém deve refletir sobre o que já tem bem pensado.... e agir!

Bob levantou suavemente a arrna, que es­tava carregada.

Ela nem sequer pestanejou.

— Essa é a arma que você perdeu, Bob?

— Sim.

— A mesma com que você matou aquele gamo no bosque?

— Sim.

A voz de Bob era seca e cortante como a queda da lâmina de uma guilhotina.

— Onde a escondeu, Bob?

— Num lugar do bosque que só eu conhe­ço, antes de sofrer o acidente no pântano. Des­ci do carro para fumar um cigarro e então a es­condi.

— Quer dizer que o acidente foi provocado?

— De certo. Queria justificar diante de to­dos o sumiço desta arma. Corri um grande ris­co, mas era necessário. Tratava-se de um perigo conhecido e perfeitamente calculado, querida Pamela, como o daquele que planeja um negó­cio e calcula o que pode perder nos primeiros tempos. Fiz a prova de matar aquele gamo pa­ra dar a sensação ao delegado de que alguém vagabundeava por aqui. A seguir comprovei que as balas disparadas por esta arma não coinci­dem com os exemplares que ele tem no seu ar­quivo.

— Por isso você cerrou o cano, Bob?

— Sim, por isso mesmo. Em uma arma tão bem acabada como esta, as estrias marcam a bala de uma maneira muito exata. Ao cortar o cano as estrias marcam a bala de modo diferente e é muito difícil saber que se trata da mesma arma. Pode-se identificar o cartucho pelo impac­to do percussor, mas numa arma nova como es­ta o impacto do percussor é exatamente igual ao de milhões de outras armas, porque os mecanis­mos não sofreram nenhuma deformação. Fui armeiro durante meu serviço militar e sei o que posso esperar de uma investigação sobre uma só bala disparada por um cano que agora está alterado. Ninguém chega a nenhuma conclu­são. Além disso, o velho Jeremy é testemunha de que meu carro estava enguiçado antes do acidente. Fiz com que ele notasse intencional­mente.

Bob Bentley falava com uma absoluta frie­za, com uma tranqüilidade pasmosa, como se tratasse de um negócio sem importância que na­da tivesse a ver com sua mulher e com ele mes­mo. Às vezes sua voz adquiria inflexões de su­prema indiferença, como se falasse do tempo, de nada... Tudo aquilo era horrível, e, ele mesmo, sentia isso ligeiramente, porém nada parecia in­fluir na impenetrabilidade de Pamela.

Seu rosto continuava parado, rígido, e seus olhos pareciam mortos como se por detrás deles não estivesse um cérebro a pensar.

E, não obstante, Pamela não se sentia im­passível. Era que ela tinha chegado às últimas fronteiras do medo, do horror, do nojo.

Há situações tão terríveis que tornam nos­so rosto impenetrável, que nos convertem em uma espécie de estátuas impassíveis, como que vazias por dentro.

Durante uns instantes se estabeleceu um angustioso silêncio.

Nada na biblioteca se movia, exceto uma mosca que revoava caprichosamente ao sol. Raios oblíquos de luz se projetavam sobre as cantoneiras douradas dos velhos livros.

Ao final desses instantes, Pamela só soube balbuciar:

— Porquê?

— Por sua fortuna, querida.

— É que você casou-se comigo só por meu dinheiro, Bob?

— Que importância tem isso agora? Quem fala de sentimentos e de mentiras quando a vi­da vai terminar?

Ela fechou os olhos por um momento.

— Sempre suspeitei isso, Bob, mas é terrí­vel ouvi-lo dos seus próprios lábios.

Bob continuava sorrindo.

— Você sabe que eu não passaria nunca de um simples assalariado, se não viesse a contar com seu dinheiro, Pamela. Não é que eu não merecesse subir, mas a vida é injusta e a socie­dade está mal organizada. Confesso que a prin­cípio me conformei só com isso, com ser ao seu lado um homem importante que os outros res­peitam. Mas isto já não me parecia suficiente.

Ela murmurou, apenas com um sopro de voz:

— Será que há outra mulher, Bob?

— Não, isso não. Realmente é o único des­gosto que não lhe posso dar, Pamela. Não há nenhuma mulher determinada, mas lá está a vida, a vida com suas tentações e sua imensa variedade de coisas. Eu não sabia que ao ca­sar-me com você ia me transformar em prisio­neiro deste vilarejo reles que é Sioux City. Bem, isto eu sabia, mas a princípio não me importei. Agora quero viver a existência que sempre de­sejei, Pamela. Quero desfrutar do prazer imenso de desejar uma mulher e depois a deixar impu­nemente porque sou rico. Sei que você me fez seu herdeiro universal. Juro-lhe que não vai ter mais tempo de modificar o testamento, queri­da...

Levantou suavemente a arma, mas o que viu nos olhos de Pamela o fez deter-se.

Naqueles olhos não havia horror, mas sim, lástima. Lástima por ele!

Ouviu sua própria voz como uma voz estra­nha ao perguntar:

— Será que você não diz nada, Pamela?

— Só posso dizer que essas são as palavras mais cínicas que tenho ouvido em minha vida, Bob.

— Elas têm a vantagem de serem também as últimas.

Ela então falou com tão inusitada frieza que a situação chegou a parecer incrível ao seu ma­rido.

— Vai você cometer um erro ao matar-me.

— Não creia; tudo está previsto. Ninguém poderá provar nada contra mim.

— Não é isso, Bob.

— Então a que você se refere?

— Você me causa pena, Bob. Causa-me pe­na e de certo modo sinto horror de mim mesma.

Bob sentia um frio estranho nas costas e o pior era que não conseguia adivinhar sua cau­sa. Não sabia se era a expressão dos olhos de sua mulher, se a atmosfera, que de repente parecia tornar-se sinistra, ou o silêncio impressionante da casa. Aliás era uma voz distante que falava aos dois. Não compreendia, mas a voz estava ali. Parecia falar-lhes desde as regiões do Além, onde um dia — ou melhor, uma noite — ele entraria soltando gritos de angústia.

Era absurdo, mas ele não conseguia sepa­rar esse pensamento da sua cabeça.

Foi então que ela repetiu:

— Cometerá um erro se me matar, Bob. Eu lhe aparecerei depois de morta.

— Não diga tamanha estupidez!

— Não é uma estupidez, Bob. Eu lhe deixo minha herança, mas minha mãe deixou-me a sua. Ela também foi assassinada pelo seu ma­rido, estou certa disso... e, em seguida, seu ma­rido morreu de pavor. Sei que o poder sobrena­tural e diabólico que minha mãe possuía, mui­to contra a sua vontade, passou para mim. Não se exponha a esse perigo, Bob! Eu o amo demasiadamente para vir a ser a causa de sua mor­te!

Os olhos de Bob arregalaram-se por um ins­tante.

— Você me quer ainda, depois de tudo is­so que ouviu?

— Sim, Bob. Sempre lhe quis mais que a minha própria vida, e o que foi uma verdade quando nos casamos continua sendo verdade agora.

Bob apertou os lábios.

— Você perde tempo se pretende me co­mover, Pamela.

— Não pretendo comovê-lo. Isso seria inú­til. Pretendo assustá-lo, o que não é a mesma coisa. Pretendo falar-lhe de um horror em que você vai viver a partir de agora, se apertar o gatilho.

— Pois ainda assim você perde tempo, Pa­mela. Nunca ouvi semelhante demonstração de insensatez. Quer voltar as costas? Assim tudo será mais fácil. Não gostaria de desfazer seu bo­nito rosto.

Agora Pamela exclamou com um grito ás­pero :

— Olhe os últimos retratos de meu pai, Bob! Veja-os por favor! ele chegou a retratar minha mãe quando lhe apareceu depois de morta! Não faça isso, Bob! Não façaaa!...

O grito de Pamela teve a virtude de con­seguir o que suas palavras não tinham conse­guido: pôr Bob nervoso.

Sem esperar um segundo a mais, ele aper­tou duas vezes o gatilho.

O brutal impacto desfez o peito de Pamela.

Matou-a brutalmente, mas nem sequer ro­çou no seu rosto.

Seus olhos, ao cair, continuavam fitando-o com uma fixidez impressionante.

 

O INSPETOR Trulock, chefe do grupo, homem premiado com a medalha de mérito, favore­cido várias vezes com menção honrosa no F. B. I., encheu seu cachimbo enquanto dizia com voz surda:

— É absurdo.

O homem que estava à sua frente moveu-se suavemente, com uma desenvoltura e uma agi­lidade felinas, apesar de ser um desses tipos que, se sobem a um ringue, dão a sensação de que vão comer até as cordas.

Era jovem; teria uns vinte e sete anos, en­quanto que Trulock já completara os cin­qüenta.

Vestia um traje cinzento elegante e limpo, mas não demasiadamente novo. Camisa branca que parecia estar sendo estreada naquele mo­mento. Gravata de riscas oblíquas, grená, azul e preta.

Trulock fitou-o.

Sim, Vance devia ser um desses tipos de quem as mulheres gostam, ainda que eles não dêem por isso. Estava na sua melhor idade e Trulock o invejava. Claro que não o invejava em muitas outras coisas, como por exemplo no seu futuro.

Vance tinha sido seu aluno na escola espe­cial de Quantico, para aspirantes a agentes do F. B. I. Podia ter sido um dos melhores sujei­tos sobre este planeta ingrato, um autêntico lu­tador, um homem nascido para investigar, pa­ra aprender, para ser fiel, valente, nobre, para matar e para ter a habilidade de não morrer.

Não obstante, ali o tinha, com seu traje não muito novo, com sua expressão de desalento, convertido em um simples agente da polícia es­tadual. Vance fora expulso do F. B. I., um ano antes, por suspeita de cumplicidade com um companheiro metido em casos de suborno. Cer­to em tudo aquilo era que Vance se negara a depor em juízo contra aquele a quem ele consi­derava um amigo.

E ali estava. Um homem que nunca seria nada apesar dos seus vinte e sete anos. Um fra­cassado total.

Trulock matutou curioso porque diabos Vance, depois de tamanha desgraça, ainda con­servava aquela especial suavidade de expressão.

E, repetia suavemente:

— É absurdo.

— Porque há de ser?

— Você serviria para coisas melhores que perseguir mulheres lunáticas e visionárias.

 

— Mas, que hei de fazer, se não me encar­regam de outra coisa? Desde que passei a de­pender da polícia do Estado, depois de ter saí­do do F. B. I., fui considerado um agente de se­gunda classe a quem não se pode confiar ta­refas de importância.

— Como se chama essa mulher?

— Kate.

Trulock demonstrou estar recordando alguma coisa.

— Não a conheço, apesar de ter na memó­ria milhares de nomes de pessoas que têm in­fringido a lei neste Estado. Quer que consulte os arquivos? Eu o ajudarei no que puder.

— Não é necessário. Na realidade, trata-se de um trabalho de rotina que eu posso fazer so­zinho. Além disso, deram-me tempo para fazer a investigação.

— Querem desfazer-se de você, hein?

— Isso é o que temo. Talvez no Departa­mento de Polícia pensam que sou um tipo ruim.

— A que se dedica essa Kate?

— Era estudante até bem pouco tempo.

— Com os diabos, isso não é delito.

— É que se suspeita que, além disso, tenha uma profissão singular: adivinha.

— Não me lembro — disse Trulock, enquan­to exalava uma lenta baforada de fumo — que as cartomantes, sejam consideradas delinqüen­tes neste Estado. Jamais me preocupei com isso.

— Aqui são delinqüentes. Sua atividade é considerada uma espécie de fraude, segundo a maneira como a exerçam.

— E você tem que perseguir essa tal de Kate?

— Já lhe disse que no Departamento, pelo menos, querem se ver livres de mim.

— Sim, disso eu desconfio — disse pensativamente Trulock. — Podiam também encarre­gá-lo de procurar as pegadas daquele que assas­sinou Júlio César... O caso é tê-lo afastado. Bem, eu sinto muito, rapaz.

— De qualquer modo, cumprirei todas as ordens, por ridículas que sejam.

— Você sempre as obedeceu, Vance. Sabe que, por mim, jamais teria saído do F. B. I. E o que essa mulher adivinha, essa tal de Kate? Alguma coisa muito importante, para ter cha­mado a atenção da polícia?

Vance disse suavemente:

— Sim, uma coisa muito especial.

— Qual?

— Kate adivinha o dia e as circunstâncias em que temos de morrer.

O delegado Lincoln Fez com que puzessem uma manta cobrindo inteiramente o cadáver e disse:

— Sinto muito, Senhor Bentley. Bob parecia desolado.

Tinha-se vestido inteiramente de preto, mostrava os olhos arroxeados por causa do cho­ro e as mãos lhe tremiam. Dava a impressão de não ter dormido nada, o que aconteceu nas duas noites inteiras em que esteve exposto o ca­dáver de sua mulher.

— A culpa não é sua, delegado — murmu­rou.

— Sim, claro que sim, não é. Se eu esti­vesse dado a tempo com aquele salteador, aque­le meliante, teríamos evitado essa horrível tra­gédia. Só ter controlado a arma já seria bastante, mas, confesso, nado num mar de dú­vidas. Não sei que fazer, Senhor Bentley, nem por onde começar. Talvez seja verdade que eu já me esteja convertendo num velho fraco e inútil. O juiz Everett comunicou-me que Pame­la temia que a assassinassem, mas. ..

— Não diga tolices, delegado.

— Foi terrível para você, voltar depois de ter acompanhado a empregada e encontrar mor­ta sua esposa, não é verdade? Não pense que não notei como você tenta aparentar serenidade. Mas por dentro deve estar descontrolado.

— Faço o que posso, delegado.

O representante da lei engoliu em seco pe­nosamente.

— Quer ver sua esposa pela última vez, an­tes que a coloquemos no ataúde?

— Não, seria pior. Prefiro recordá-la sem­pre tal qual era em vida.

— De qualquer modo vai tê-la perto, Senhor Bentley.

— Que quer dizer?

— Vai ser enterrada no jardim da casa. Bentley empalideceu.

Por uns momentos seu rosto adquiriu uma estranha cor de cinza. Suas mãos tremeram du­rante frações de segundo. O delegado não che­gou a perceber, nem, ao que parece, ninguém mais. Entretanto, aquela sensação que lhe ti­nha acometido foi intensamente forte. Quando conseguiu recobrar a serenidade, levantou a ca­beça. Seus olhos tinham expressão normal, mas no seu fundo brilhava algo assim como uma cha­ma sinistra.

— Que quer dizer?

— O que acabo de declarar, Senhor Ben­tley. O cadáver de sua esposa vai ser enterra­do no jardim desta casa.

— Não diga asneiras!

— A que se refere, Senhor Bentley?

— É impossível que nesta época seja um cadáver enterrado no jardim da casa onde vi­veu.

— Compreendo, Senhor Bentley. Ao senhor deve parecer muito estranha esta situação.

— Muito estranha, delegado. Digo melhor, parece-me uma brincadeira de mau gosto. Não creio que seja justo que você se dedique a brin­cadeiras macabras num momento como este.

O delegado meneou a cabeça lentamente.

— Caso desejar, Senhor Bentley, o cadáver pode ser trasladado, porém foi esta a última von­tade da morta.

— Que espécie de vontade é essa?

— O senhor não conhece o testamento?

— Ainda não.

O delegado tornou a balançar a cabeça mais lentamente que da vez anterior.

— Parece estranho que não tenha tido oca­sião de lê-lo. Está depositado no escritório do tabelião desta localidade. Ele advertiu-me sobre o que tínhamos que fazer com o cadáver. Natu­ralmente deveria ter falado com o senhor, mas não teve ocasião de o fazer. É um homem mui­to impressionável. De qualquer modo, me pare­ce certo que ele, dentro de uns dois ou três dias, no máximo, virá vê-lo e lhe falará do tal testa­mento.

Nos olhos de Bob voltou a brilhar aquela le­ve chama sinistra.

— Quer dizer, delegado, que minha mulher dispôs que seu corpo fosse sepultado precisa­mente no jardim desta casa, como o foram os corpos de seus pais?

— Isso mesmo.

— E têm consentido?

— Isso mesmo, Senhor Bentley.

Bob levou uma das mãos aos olhos, perma­necendo assim alguns segundos, quieto, em si­lêncio, mergulhado nos seus próprios pensamen­tos. Evidentemente que estava fazendo o possí­vel para serenar, e, pelo jeito conseguira, porque ao abrir de novo os olhos mostrava-se mais tranqüilo.

Encontravam-se os dois na porta da casa que dava para o jardim, uma porta trabalhada em pedra com ângulos no estilo gótico. Era uma autêntica obra de arte, mas naquele momento a sensação de tristeza que ela produzia, era an­gustiante.

Mais adiante, no jardim, estavam umas vinte ou vinte e cinco pessoas, todas vestidas de negro em sinal de respeito pela morta. Eram as pessoas mais ilustres de Sioux City e das outras cidades vizinhas. Só uma mulher tão importante como Pamela poderia ter conseguido que tanta gente se reunisse ali para vê-la.

Todos estavam um pouco nervosos, e pare­cia que cochichavam entre si, como que estra­nhando o atraso do enterro.

O delegado que interpretava mal os pensa­mentos de Bob, julgou que ele estava inquieto por outra coisa e disse suavemente:

— Não se preocupe, meu amigo. Juro-lhe que sua esposa será vingada. Esse salteador, seja quem for, cairá nas nossas redes e pagará suas culpas no patíbulo. Você será testemunha de honra na execução, eu lhe prometo. Sabe? Já pedi ajuda à polícia federal. Talvez, sozinho, não possa capturar o meliante. As palavras do juiz Everett, ao contar-me o que Pamela lhe disse, não fazem senão aumentar minha confusão.

Bob olhou-o no fundo dos olhos.

— Falemos claro, delegado.

— Oh! Você não acredita que eu tenha cha­mado os federais? Posso provar. E um par de agentes virá logo.

— Não me refiro a isso.

— A que então?

— Quer entrar um momento? Tanto você como eu precisamos tomar alguma coisa.

— Bem... se quer assim.

Já no interior de um dos desertos salões, Bota preparou dois uísques capazes de derrubar um cavalo. A verdade é que ele começava a ne­cessitar de um trago. A atmosfera sombria da­quele dia e as palavras que acabava de escutar o desassossegavam profundamente. Por isso ele bebeu a metade do uísque de um só trago e disse em seguida:

— Explique-me delegado, porque as autori­dades do Município cometeram essa selvageria?

— É uma espécie de tradição aqui, Senhor Bentley... Todos os antepassados de Pamela ja­zem enterrados neste jardim, tal como se fazia nos velhos tempos. Agora isto não é mais per­mitido, salvo em casos muito especiais, mas as autoridades acreditaram que assim rendiam uma última homenagem à família mais importante de Sioux City. Considere que com Pamela, que morreu sem deixar descendência, extingue-se por completo o nome da família. Além disso.. . Bem, as autoridades municipais pensaram que você se alegraria em tê-la perto de si.

O delegado bebeu um bom gole do seu copo e acrescentou com timidez:

— Lamento muito que não tenha sido do seu gosto, Senhor Bentley.

Bob estava transtornado.

Percebia que agora a situação era irreme­diável e um estremecimento percorreu suas cos­tas ao pensar nas últimas palavras de Pamela. Tudo o que ela tinha dito era absurdo, mas par­te daquelas coisas absurdas começavam a su­ceder.

A sensação de frio nas suas costas se Fez mais intensa.

Bem, ele tinha que raciocinar. Não era um garotinho para deixar-se levar por aqueles tolos pensamentos.

— Porque não me consultaram antes, pelo menos? — perguntou ao delegado, levantando a cabeça.

— Não quiseram aborrecê-lo. Pensavam na sua imensa dor e, ao mesmo tempo, estavam cer­tos de que isso o contentaria, o ter mais perto de si, sua querida esposa. Eu não desejo meter-me nos seus assuntos, Senhor Bentley, mas lhe aconselho a agradecer ao prefeito quando vier apresentar-lhe os pêsames na despedida. Eles crêem ter agido bem e sempre se deve estar de bem com essa gente, sabe?

Bob apertou os lábios. De modo que ainda por cima teria que agra­decer!

Durante alguns segundos sentiu a tentação de aplicar uns pontapés no delegado, mas se con­teve. Sempre tinha sido um homem frio e calculista e agora necessitava continuar a sê-lo mais do que nunca.

— Farei assim — disse com voz rouca.

— Isso me agrada, Senhor Bentley. Verá como dentro de alguns dias nos agradecerá o que fizemos. Agora está aturdido, mas depois se consolará tendo tão perto a sepultura.

— Oh, sim... Claro que sim.

— Aconselho-lhe, entretanto, uns dias de repouso, Senhor Bentley.

— Penso fazer isso. Farei uma viagem pela Europa, sabe? Viajarei de navio, que é o único meio de transporte em que realmente se descansa. Depois voltarei e... bem, tive uma idéia.

— Qual?

— Farei profundas reformas nesta casa. Vou modernizá-la totalmente, mudando o mobi­liário e transformando-a em um sítio acolhedor e moderno de verdade.

— Sinto não poder partilhar da sua opi­nião, Senhor Bentley. Tal como está, é uma casa muito bonita.

— Eu tenho outro gosto.

— Reconheço que isto aqui faz algum medo, mas...

— Porque você pronunciou a palavra medo? — perguntou asperamente, avançando um pou­co para o delegado.

— Bem, eu...

— Supõe que eu esteja assustado, delegado?

 

As feições de Lincoln avermelharam-se por um momento. Seus olhinhos fizeram-se receosos e penetrantes.

— Que há consigo, Senhor Bentley? Que su­cedeu?

Bob tratou de serenar-se. Caindo em si viu que estivera a ponto de se deixar levar pelos ner­vos.

— Perdoe-me... — sussurrou. Não sei às vezes o que penso. Tudo isto é terrível para um homem simples como eu. Quer me acompanhar para presidir a cerimônia, delegado? Os convi­dados já faz tempo que esperam.

— É uma grande honra, para mim, Senhor Bentley.

Saíram de novo para o jardim. O ataúde, soberba peça trabalhada em bronze, já estava ali. Bob Bentley não se atreveu nem sequer a olhá-lo.

Todos pensaram que ele estivesse compun­gido pelo desaparecimento de sua mulher. E, de certo modo, era assim.

 

A primeira coisa que Bob Fez, uma vez termi­nado o enterro e todas as incômodas cerimô­nias que se seguiram, foi tomar um avião que o levou a Nova Iorque.

Dali saía o transatlântico "France" naquele mesmo dia. Teve apenas tempo de retirar fun­dos do Ghemical Bank e pagar na agência o camarote de luxo que tinha reservado pelo tele­fone. A seguir emitiu uns cheques de viagem para cobrir todas as suas despesas durante uma estadia de três meses na Europa, porém, três me­ses vividos no ritmo de um autêntico Rockefeller. Não havia motivo para que Bob Bentley, agora um dos mais ricos da sua cidade, se privasse de nada.

A vida a bordo do "France" era maravilhosa. Bob esqueceu por completo sua mulher, sobretu­do quando se apresentou uma aventura com uma vedette famosa que tinha ouvido falar dos seus milhões. Ao desembarcar no Havre, dirigiu-se di­retamente a Paris, hospedando-se no Ritz.

Paris pareceu-lhe divertido durante duas se­manas. Logo se aborreceu um pouco das suas be­las pequenas, dos seus monumentos históricos e dos seus espetáculos muito bem apresentados.

Passou uma temporada de descanso na Cote d'Azur e na Riviera italiana. Depois foi a Roma, a Nápoles e a Capri. Dali voou para Berlim oci­dental. Gastava mais do que tinha calculado e teve que pedir uma nova remessa de fundos. Mas... que importava?

Com toda uma vida de dissipação não che­garia a gastar o que sua mulher lhe tinha deixa­do por herança.

Quem disse que o crime não compensa? Quem imaginou que o criminoso termina sempre sangrando no asfalto, assando na cadeira elétri­ca ou enforcado?

Ele era um tipo respeitado por todos e para obter dinheiro bastava levantar um dedo. Os di­retores dos bancos o acompanhavam até a porta e os policiais lhe faziam quase uma reverência ao examinarem seu passaporte e verem seus anéis de brilhantes. Os diretores dos hotéis sem­pre se lamentavam de não terem para ele uma suite digna de sua categoria. Nos clubes mais caros, mais selecionados e mais fechados da Eu­ropa, sempre lhe reservavam um lugar de honra.

Nunca Bob tinha desfrutado uma existência tão maravilhosa.

Estar de barriga para cima todo o tempo que lhe desse na veneta. Viajar em classe de luxo. Desfrutar da comida dos melhores restau­rantes e das carícias das mais cotadas vedettes. Não ter que se preocupar por um zero mais, um zero menos, posto em um cheque. Podia um tipo como Bob Bentley imaginar nada melhor?

Além disso não tinha despertado suspeitas. De vez em quando, por meio de uma agência de detetives, fazia iniciar uma discreta investiga­ção no juizado de Sioux City, para certificar-se de que continuava a não ser objeto, da menor suspeita. Nem o juiz nem o delegado lhe atri­buíam a menor participação na morte de Pa­mela.

Tudo tinha saído tão bem que Bob pensou em "ampliar" seu negócio.

Porque não podia sair-se bem duas vezes já que tinha saído bem de uma? Porque, contando agora com a ajuda dos seus milhões, não podia casar-se de novo com uma mulher rica e repetir o que tinha feito com Pamela, ainda que em outro lugar bem diferente, onde ninguém o conhecesse nem pudesse inteirar-se dos acontecimentos de Sioux City?

Não que Bob necessitasse de dinheiro: Ti­nha o suficiente para gastar até morrer, mas devia contar com uma progressiva desvaloriza­ção da moeda e com um maior refinamento dos seus gostos. Era possível que chegasse um momento, muitos anos mais tarde, em que já não pudesse fazer frente aos seus dispendiosos gastos, que cada vez iam aumentando. Por exemplo, ele tinha começado perseguindo as coristas dos teatros de Paris, mas agora já gostava somente das estrelas. Que aconteceria se as coisas se fossem complicando desse modo tão agradá­vel?

Bob mostrara-se um assassino frio e calculador, mas agora pensava já como um negociante mais frio e calculista ainda. Tinha que conser­var seu dinheiro. A possibilidade de um novo golpe — agora definitivamente o último — va­lia a pena ser levada em conta.

Mas ele não podia estar indefinidamente na Europa. Tinha que pensar em dar uma volta em Sioux City.

O velho Jeremy — que tinha descoberto sua direção não se sabe como — escreveu-lhe para o hotel de Berlim. Um trecho da sua carta fez com que meditasse bastante. Era assim:

".. .e por aqui diz-se que você já tem se divertido bastante e que não tem sentido muito a morte de sua mulher. Eu, que o conheço, sei perfeitamente o muitíssimo que tem lamentado o acontecimento, po­rém, você sabe que não é isto o que esta gente pensa. O povo é mau e dado a murmurações. Para muitos vizinhos de Sioux City, você não está descansando dos seus pesares, mas divertindo-se e passando vida folgada. O que você deve fazer é vir para cá imediatamente e achatar as ventas de mais de um imbecil que não sabe de que modo perder seu tempo..."

Bob compreendeu que Jeremy dizia a ver­dade.

O velho Jeremy era um homem sem mal­dade e em seus comentários refletia as coisas tal qual estavam acontecendo. Sem dúvida, a gen­te do local já começava a murmurar depois de permanência sua em hotéis de luxo da Europa. O melhor que podia fazer era regressar a.Sioux City, liquidar discretamente a casa e as demais propriedades e afastar-se dali para sempre.

Ainda estava dentro do possível o início de um processo criminal contra ele, baseando-se em simples suspeitas. Nunca se sabe onde e como podem terminar os falatórios em uma cidade pequena. Deste modo, respondeu ao velho Je­remy:

"Estou pesaroso em excesso, rapaz. Nem sequer a velha Europa conseguiu do­minar a minha dor. E é isso o que tenho procurado: esquecer. Mas, asseguro-lhe que vez por outra — embora lamente muito de­pois — tenho ido a algum cabaré ou algu­ma festa. Mas minha vida transcorre em um contínuo peregrinar de museu em mu­seu e de igreja histórica em igreja antiga. Apesar disto, entretanto, não consigo esque­cer Pamela, e, por isto, vou regressar a Sioux City. Explique a essa gente que bre­ve me verão de novo por aí. Sinto-me fra­cassado e mais triste do que quando deixei a cidade..."

Bob enviou a carta pelo correio aéreo.

Sabia que aquela carta seria lida pouco mais ou menos no centro da rua principal. E velho Jeremy era a pessoa ideal para difundir notícias e comentários de qualquer espécie. Explicaria a carta até às criancinhas e, ainda por cima, de­fenderia Bob com capa e espada. A situação vol­taria a ser boa.

Duas semanas depois — as quais passou quase que inteiramente perseguindo uma monu­mental vedette alemã — regressou a Sioux City.

Na velha e puritana cidade, tudo continua­va no mesmo.

 

ACONTECE muitas vezes que, ao regressarmos de uma longa e estafante viagem, parece-nos que o mundo que deixamos ao partir devia ter seguido também o nosso acelerado ritmo e so­frido profundas transformações, como as que nós tenhamos sofrido. Vemos, entretanto, que tudo continua no mesmo, imutável, tal como deixamos. Sentimos então uma espécie de deso­rientação e parece-nos que nossa viagem foi uma ilusão. Foi isto o que aconteceu a Bob Bentley.

Ao regressar a Sioux City teve a sensação de que nunca saíra dali e de que seus longos três meses na Europa não tinham sido senão uma espécie de sonho.

Chegou de noite. As velhas ruas, construí­das pelos primeiros colonizadores, estavam soli­tárias. A paz e a calma da pequena cidade che­gavam a impressionar profundamente a qual­quer pessoa.

Bom lugar para repousar. Bom lugar para esquecer as preocupações de uma vida estafante.

Porém Bob não gostava daquilo.

A única coisa de bom daquilo era que o medo, sentido por ele no dia em que soube que Pamela ia ser enterrada no jardim, tinha desa­parecido por completo. Depois de seus três me­ses maravilhosos passeando pela Europa, os te­mores ridículos tinham desaparecido. Bob Ben­tley sabia agora que a única coisa que existe são as mulheres de carne e osso. Os fantasmas não.

Nem sequer a visão da velha casa, atrás de um jardim iluminado pela lua, conseguiu im­pressioná-lo.

O velho Jeremy tinha ido buscá-lo. Foi ele quem lhe disse:

— Está tudo no mesmo, não é verdade?

— Sim, tudo... Parece que o tempo não passou por aqui.

— É que três meses é um prazo muito cur­to, ainda que a você tenha parecido uma eter­nidade. Três meses é apenas o tempo justo de vida de uma mosca.

— Compreendo.

— Durante sua ausência ninguém entrou aqui, exceto as mulheres que vinham fazer a lim­peza. A residência não está como dantes, mas nela pode-se viver. Você precisará de serviçais.

Sim, suponho. O mal é que despedi e inde­nizei a todos os que estavam aqui antes.

— Eu lhe conseguirei algumas pessoas que atendam todos os trabalhos da casa. Dois empre­gados bastam para isto.

— De acordo, mas que seja gente discreta. Quero que respeitem minha dor.

— Oh, não se preocupe!

Chegavam naquele momento diante da se­pultura, sobre a qual descansava uma singela lápide. Bob murmurou:

— Descobriram o... o...?

— O saqueador que fez isso?

— Sim.

Jeremy deu de ombros.

— Sinto muito, Bob, mas ninguém pôde fa­zer nada. Parece que a terra tragou o bandido. O delegado está aborrecido, mas pensa que tal­vez o tipo fugiu daqui ao ver que tinha chegado ao crime. O delegado avisou seus colegas vizi­nhos, mas até agora não há nenhum resultado.

Fez uma pausa e acrescentou:

— Já detiveram muita gente por suspeita. Todos os vagabundos sem documentos e deso­cupados da região, incluindo a mim mesmo... Todos têm passado pelo crivo. Mas, todo o mun­do tinha seu álibi.

Sem dar pela coisa, tinham-se detido dian­te da sepultura, sobre a qual, na lápide, havia flores frescas.

— Quem... ? — perguntou Bob.

— O delegado Lincoln. Ele vem aqui muitas vezes e sempre traz um ramo de flores. Você sabe que ele conheceu Pamela desde pequenina.

— Compreendo.

Jeremy disse, com um sentimento de pesar muito próprio de gente velha:

— Imagina você como estará agora, Bob?

— Quem?

— Ela, a morta. Parece mentira, não acha?

— Não gostaria de falar disso. Mas Jeremy insistiu:

— Era tão bonita! A mulher mais formosa de Sioux City, ainda que um pouco grã-fina, quer dizer, demasiadamente distinta. Era mesmo uma mulher maravilhosa. E, entretanto, agora...

Imagina você o que haverá ali debaixo depois de três meses. A morte é algo muito repugnante, meu amigo. Se a morte fosse alguém, alguma pessoa a quem se pudesse encontrar, eu avança­va agora mesmo e lhe dava uns pontapés nas tripas. Mas a morte, não é gente, está ali — e mostrou a casa — em qualquer parte e nós não a vemos. É isso o que nos converte em suas ví­timas.

Bob não estava gostando da conversa. Fez uma careta.

Recordava as enigmáticas palavras de Pa­mela: — Verá minha pessoa depois que eu tiver morrido.

Tinha conseguido esquecer aquilo e agora tornava a sentir-se imerso naquele frio universo de horror, por culpa do maldito Jeremy. Era para uma pessoa pôr-se a gritar.

— Não poderíamos falar de outra coisa?

— Oh, perdão... Não pensei que isto reno­vava sua dor.

— Eu quero lembrar-me de Pamela tal como ela foi.

— Compreendo.

— Quer entrar e tomar alguma coisa, Je­remy?

— Não, muito obrigado. É a primeira vez que não aceito um trago, mas os médicos puseram-me de sobreaviso. Se continuo bebendo, esta maldita tensão acabará comigo.

Bob esboçou um gesto.

Na verdade, não sabia por que, gostaria que Jeremy houvesse aceitado seu convite. A idéia de entrar completamente só naquela casa o anu­lava.

Porém, tinha que acostumar-se a idéia. Não ia agora pôr-se a temer como uma criança.

— Adeus, Jeremy. Sinto muito não aceitar o trago.

— Adeus, Bob. Vou tratar de arranjar as duas pessoas para o serviço e as mandarei. aqui amanhã, sem falta, ou, o mais tardar, depois de amanhã.

— Agradeço.

Bob Fez girar a chave na fechadura. Tudo estava silencioso, sombrio, como ele deixara. Parecia que o tempo não tinha passado.

Os mesmos velhos móveis, os recantos igno­rados que faziam com que cada quarto da casa parecesse misterioso como um sepulcro.. . E o silêncio que envolvia tudo, esse silêncio espesso, impressionante, cheio, entretanto, de estranhos sussurros que pareciam chegar do mais fundo das sombras.

Bob foi acendendo todas as luzes por onde passava, sem apagar nenhuma depois. Assim conseguiu logo que toda a casa ficasse ilumina­da. Lá do jardim, o casarão devia estar reluzindo como uma jóia.

As luzes das janelas chegaram até a lápide da sepultura.

Mas, porque pensava nessa coisa? Que fos­sem para o diabo essas complicações.

O que devia fazer era permanecer ali uns dias, para não chamar atenção, e nesse meio tempo ir procurando alguém com muito dinhei­ro que estivesse interessado em adquirir a casa.

Claro que ninguém quereria uma casa com uma sepultura perto, mas isso ele procuraria ar­ranjar.

Foi ao bar e se serviu de um copo quase cheio de uísque. Era uma dose forte, capaz de derrubar um cossaco, mas ele bebeu tudo de dois tragos.

Ao terminar sentiu-se mais confortado.

Desceu aos porões, onde, como em todas as casas antigas, havia um armário com porta du­pla, que era um esconderijo ideal. Pamela lhe ti­nha mostrado logo que se casaram. Pamela lhe desvendara todos os segredos de sua alma, de seu coração, de sua casa.

Mas a recordação não comoveu Bob.

No duplo fundo do armário tinha escondida aquela arma e esperava de que se apresentasse um bom momento de desembaraçar-se dela. Viu que a arma continuava no seu lugar e que nin­guém a tocara. Sobre ela estava uma finíssima camada de pó.

Bob a contemplou.

Dava pena ter que se desembaraçar de uma arma assim, mas era preciso. Dentro de cinco ou seis dias, quando não chamasse a atenção de ninguém, a enterraria no bosque.

A seguir, foi dormir.

Dormiu como um santo, como uma pessoa que não tivesse nada a lhe pesar na consciência.

Mas, ao abrir os olhos, lá para as dez da ma­nhã, uma boa surpresa o aguardava.

 

FORMOSOS raios de sol penetravam pelo grande janelão sobre o leito. O ambiente era cálido e confortável. Estava-se bem naquela imensa cama, que ele tinha compartilhado com Pamela noutro tempo. De uma maneira vaga e distante, Bob recordou: Pamela tinha sido uma mulher muito bonita, formosa mesmo. Agora gostaria de ter ali, ao alcance das suas mãos, outra moça que se parecesse com ela.

Bocejou.

O sol se projetava sobre a mesinha de már­more, sobre os ricos cortinados, sobre a espingarda apoiada na parede.

O bocejo de Bob parou em seco.

Que diabo era aquilo? A arma, ali?!

Levantou-se dum salto da cama e a tomou entre seus dedos. Imediatamente estes, sem que ele pudesse evitar, puseram-se a tremer. A arma, que ele conhecia perfeitamente, esteve a ponto de cair ao solo.

Ele tinha a certeza de a ter deixado, na noi­te anterior, no armário do porão!

E agora estava ali! Que espécie de pilhéria macabra era aquela? Quem se ria dele?

 

Bob sentiu umas gotinhas de suor gelado co­meçando a aflorar na sua testa, mas fez o possí­vel para dominar-se.

Não, ele não era uma criança. Tudo aquilo teria, forçosamente, uma explicação lógica.

Pôs apressadamente um robe sobre os om­bros e desceu ao porão.

Abriu o armário. Estava vazio! Tinha que ser assim, com efeito, porque ele estava com a arma na mão. Porém, até o último momento, tinha confiado absurdamente que aquilo fora um erro, uma espécie de pesadelo. Encontrar a arma autêntica dentro do armário o teria tranqüilizado.

Entretanto, alguém a tinha tirado dali. Tinha entrado na sua casa enquanto ele dor­mia e a colocara à cabeceira do leito...

Bob Bentley sentiu uma mão espantosamen­te fria posar no seu ombro. A sensação de horror foi tão intensa que ele acreditou que, efetiva­mente, alguém lhe tinha tocado.

Voltou-se dando um salto.

Porém, estava só, completamente só. E devia parecer ridículo, com o pijama meio caído, o robe sobre os ombros e aquela arma de cano serrado na mão.

Lentamente, como um autômato, colocou-a sobre uma mesinha que ocupava o centro do quarto.

Uma coisa era evidente, depois do que acon­teceu: alguém conhecia seu segredo. Mas quem?

Só podia ser uma pessoa, ou, melhor, um ser do outro mundo.

Bob esteve a ponto de soltar um grito quan­do ao seu cérebro chegou aquele nome: Pamela!

Pamela, que lhe tinha dito que tornariam a se encontrar! Pamela, que tinha prometido vol­tar do Outro Mundo!

A sensação de frio nas costas de Bob aumen­tou, mas este fez terríveis esforços para se do­minar.

Tudo aquilo devia ter uma explicação lógi­ca. e ele se encarregaria de averiguar.

Tomou o telefone e discou o número da de­legacia. O delegado atendeu.

— Ouça, Lincoln.

— Encantado em ouvi-lo, Bob. Puxa, que agradável surpresa!

— Pois não se alegre tanto. Há preocupa­ções para você.

— Porquê? Que sucedeu?

— Tentaram roubar-me esta noite. Ouviu-se o delegado resmungar um palavrão do outro lado do fio.

— Você está certo disso?

— Bolas, claro que estou!

— Que levaram?

— Nada, porque ouvi ruídos suspeitos e me levantei. O ladrão deve ter fugido.

— Chegou a vê-lo?

— Não.

— Já sei o que aconteceu, Senhor Bentley: não sabiam que você tinha voltado. Acreditaram que a casa estava desabitada, por isso entraram.

— Ouça, delegado, não tenho nada com isso. Quero é que isso não torne a se repetir.

— OK. Montarei um serviço de vigilância.

— É isso justamente o que quero.

O delegado refletiu uns momentos.

— Ouça, Senhor Bentley — disse por fim —, não me vai ser possível fazer tudo o que quero, mas, farei alguma coisa. Recorda-se que lhe dis­se que tinha pedido a ajuda dos federais?

— Claro que me recordo!

— Bern, pois os federais estiveram flanando por aqui uma temporada e afinal foram-se cal­mamente. Nem uma pista, nem um indício, nada. Para justificar o F.B.I. e o dinheiro que ele custa aos contribuintes. Para consolo, o governa­dor designou um homem da polícia estadual, um tipo chamado Vance.

— Quem é Vance?

— Encarregaram-no da missão de encon­trar uma cartomante, mas eu creio que o que querem é desfazerem-se dele. Entretanto, é um tipo extraordinário, acredite. Se ele vigiar sua casa, ninguém se aproximará dela a menos de duas milhas.

— Pensa que ele virá?

— Vance depende da polícia estadual e está designado para esta zona, sob minha jurisdição.

 

Não terá inconveniente nenhum em vir. Quer que vá morar na sua própria casa?

— Não é necessário — disse Bob, medindo bem as palavras —, não lhe quero dar muito trabalho. Bastará que vigie de noite, à distância; de dia pode dormir.

— De acordo, Senhor Bentley. Vance irá hoje mesmo pela manhã visitá-lo para que o se­nhor o conheça.

— Obrigado. Você é um grande homem, Lincoln.

O delegado riu servilmente.

— Faço o que posso, Senhor Bentley, faço o que posso.

Bob desligou.

Uma certa expressão de alívio desenhou-se em seu rosto.

Se alguém vigiava a casa durante a noite, poderia inteirar-se de muitas coisas. A mentira do rifle tinha criado um ser de carne e osso, não um fantasma. Seguramente, Vance daria com ele, ainda que Bob tivesse o cuidado de não se deixar interrogar.

Poderia ser perigoso.

Bentley também poderia ter contratado al­guns detetives para que vigiassem os arredores, pagando-os com o seu dinheiro e exigindo-lhes discreção. Mas isso talvez tivesse chamado a atenção de Lincoln, fazendo-o pensar que Ben­tley lhe ocultava algo. Assim, pelo contrário, so­licitando sua ajuda, Bob aparecia como um cidadão honrado, sem nenhuma espécie de temor pela lei.

Vance apresentou-se pela manhã.

Era um tipo alto, com aspecto de lutador de catch e em cujo rosto, entretanto, havia uma es­pecial doçura. Parecia um homem discreto e si­lencioso e Bob o considerou ideal para a missão que teria que lhe encomendar.

— Por onde entraram para roubar, Senhor Bentley?

— Não sei. Depois da casa ficar desabitada mais de três meses, é possível que tenham jane­las mal encaixadas, fáceis de um ladrão forçar. Não verifiquei. Só ouvi uns ruídos suspeitos e me levantei, notando que alguém fugia pelo jardim. Isso é tudo.

— No jardim não há pegadas.

— Como sabe?

— Verifiquei antes de entrar na casa.

, — Pois, ontem à noite estive caminhando pelo jardim com meu amigo, o velho Jeremy.

— Esses rastos eu notei. E não os levei em conta. Porém, o que me causa espécie é a certe­za de que por aqui não passou ninguém mais.

Bob perguntou, quase sem perceber:

— Que sugere? Que foram fantasmas? Imediatamente apertou os lábios.

Não gostava da palavra. Não devia jamais tê-la pronunciado.

Porém, Vance limitou-se a sorrir suave­mente.

— Os fantasmas não existem, Senhor Ben­tley; você sabe disso muito bem. O que penso é que o ladrão agiu com muita astúcia. No jardim existem muitos caminhos cobertos de folhas se­cas por onde pôde passar o assaltante sem dei­xar rastos apreciáveis.

Bob sorriu aliviado.

Não sabia por que, mas sentia um grande alívio ao lembrar que o acontecimento da noite anterior só poderia ser obra de uma pessoa de carne e osso, não um fantasma, nem nenhum espírito vindo do outro mundo.

Vance perguntou:

— Posso ver a casa, Senhor Bentley?

— Neste momento.

O rifle já tinha sido enterrado profundamen­te no lugar mais afastado do jardim e a terra removida fora coberta, precisamente, com folhas secas. Não havia possibilidade da arma ser des­coberta. Além disso, naquele lugar, havia infil­trações de um arroio próximo, o que faria com que a arma se oxidasse logo, e, por isso, seria muito mais difícil o exame dos técnicos, caso ela fosse encontrada um dia.

Vance disse:

— Agradecido.

Durante o resto do dia não aconteceu ne­nhuma novidade. Bob Bentley foi a Sioux City almoçar, visitou o delegado e alguns conhecidos, simulou diante de todos um grande pesar e a noite voltou para sua casa.

Esta se mostrou ante seus olhos como na noite anterior.

Também havia luar. Também viam-se bri­lhar tranqüilamente os vidros das janelas, assim como a lápide da sepultura.

Bob começou a ficar nervoso.

Em maldita hora tinha voltado para ali. De­via, simplesmente, estabelecer por carta todas as transações para a venda das propriedades.

Se não fosse pela necessidade de comportar-se de um modo natural, para evitar toda a sorte de suspeitas, não estaria ali.

Quando estava para entrar em casa, úmi­das luzes do térreo acendeu-se. Bob teve um es­tremecimento, porque a luz que acabava de sur­gir correspondia ao quarto de música de Pamela, uma das suas dependêncais favoritas.

Porque pensava em todas essas bobagens? Até a que extremo se deixara influenciar pelo ambiente da casa?

Decidiu não se acovardar e foi até o apo­sento.

Exalou um suspiro de alívio ao ver que a pessoa que estava ali era Vance.

— Olá, Sr. Bentley. Ouvi o senhor chegar.

— Boa noite. Estava investigando até agora?

— Sim.

— Que conseguiu averiguar?

Vance Fez um gesto sincero de desânimo, en­quanto evitava encará-lo, como se se sentisse um pouco envergonhado ante seu fracasso.

— Nada. Esta casa é imensa.

— O mesmo penso eu. É demasiado grande para um homem só, mas, de qualquer modo, você está fazendo muito. Ao notar que isto está vigia­do, o ladrão não voltará.

— Eu, pelo contrário, gostaria que voltasse.

— Para prendê-lo?

— Naturalmente.

Vance acendeu um cigarro e disse, encami­nhando-se para a porta:

— Vou vigiar pelo lado de fora. Darei voltas em torno da casa e agirei com presteza, se notar alguma coisa suspeita: O senhor pode, portanto, dormir tranqüilo.

Ia abrir a porta quando Bob perguntou ra­pidamente :

— Você é agente credenciado, não? Lincoln disse-me que pertenceu ao F.B.I.

O rosto de Vance parecia talhado em pedra; não refletia nenhum sentimento, nenhuma emo­ção.

— Porque o expulsaram?

— Por não querer acusar um amigo.

— Agora deve ser penoso para você ver-se obrigado a esse trabalho subalterno.

— Que remédio! O subordinado tem que fa­zer o que lhe mandam.

Bob sorriu, mas, insensivelmente, seu sorri­so era artificial.

"Está aqui um exemplo vivo do pouco que serve ser-se virtuoso até o fim, pensou.

Ele tinha diante de si um homem honrado, um camarada honesto à toda a prova. Um poli­cial que tinha sacrificado seu futuro depois de anos e anos de dura aprendizagem. Enfim, para que? Para vigiar-lhe a casa enquanto dormia. Para ser uma espécie de seu criado.

Acercou-se do piano, que era antigamente o instrumento de música favorito de sua mulher, e pôs os dedos sobre as teclas.

— Boa noite, Vance.

— O piano está desafinado — disse Vance antes de sair. — Tentei antes tocar alguma coi­sa e não sei o que há. A metade das teclas não soam, apesar do piano ser de marca excelente.

— De certo. É um Pleyel — disse Bob pensativamente —, mas é muito velho. A única pes­soa que sabia afiná-lo num momento era minha esposa. Enfim, isso já passou... Não vale a pena recordar.

— De fato, Senhor Blentley, isso é passado — disse Vence.

E saiu.

Bob preparou um uísque duplo e o bebeu à memória de Pamela. Estava certo de que aquilo o ajudaria a dormir. Despiu-se a seguir, e, efeti­vamente, não tardou em estar dormindo como um justo.

Despertou muito mais tarde, com uma es­tranha sensação.

O que acabava de despertá-lo era algo muito conhecido, um som familiar,

No primeiro momento não pôde precisar o quê. Só sabia que era alguma coisa que tinha ouvido muitas vezes desde o seu casamento. Algo relacionado com Pamela.

Estremeceu.

Todo o seu corpo ficou rígido e ele moveu-se num impulso independente da sua vontade, e saltou da cama sem querer.

Agora sabia perfeitamente em que consistia aquele som tão familiar.

Era o piano que tocava.

O mesmo piano que ele não tinha consegui­do fazer vibrar horas antes! O instrumento fa­vorito de Pamela!

Ouviu um ruído áspero e só mais tarde viu. com surpresa, que era o bater dos seus próprios dentes.

No seu dormitório tinha sempre uma pistola Smith de modelo um tanto antigo, mas terrivel­mente eficaz à curta distancia. Procurou-a na mesinha de cabeceira, com as mãos trêmulas, e a encontrou ali, no mesmo lugar onde tinha es­tado sempre. Verificou se estava carregada e se as molas funcionavam perfeitamente, apesar do desuso.

Com ela na mão, desceu para o térreo.

Durante todo aquele tempo, durante minu­tos tensos e angustiantes, o piano continuava soando. A música interpretada era claramente perceptível através dos amplos salões desertos e dos corredores cheios de vibrações. Tratava-se de "Barcarola" uma das melodias favoritas de Pamela.

O suor escorria pelo rosto de Bob enquanto ele se aproximava do andar térreo.

Sua mão direita, mantendo a pistola, tremia como a de um condenado à morte.

Quando já estava no vestíbulo, no começo da grande escadaria, a música parou.

Que contraste! O silêncio fez-se tão terrível, tão impressionante como o que deve reinar no interior das sepulturas.

A escuridão parecia mais densa, e, dir-se-ia que uma espécie de sopro fatal se desprendia das velhas paredes da casa, Bob engoliu em seco. Sua garganta produ­ziu um som estranho, como o de duas peças me­tálicas ao juntar-se. Estava espantosamente seca.

Empurrou brutalmente a porta que dava para a sala de música e entrou de repente nela, levando a pistola apontada.

Os raios de lua, penetrando pelas grandes janelas de cortinados corridos, projetavam-se em cheio sobre o velho piano, iluminando o clara­mente.

Não havia ninguém sentado diante do ins­trumento.

A sala estava vazia e o silêncio era completo.

Bob esteve uns instantes na porta, ofegando ruidosamente, sentindo que o ar lhe queima­va os pulmões. Se nesse instante tivesse visto mover-se uma sombra teria esvaziado toda a carga do revólver sobre ela, sem pensar um instan­te. Porém nada se movia ali. Tudo estava imerso em mudez absoluta.

Bob decidiu-se, por fim, avançar.

Roçou as teclas do piano.. . e estas não pro­duziram o menor som!

O Pleyel continuava desafinado como antes, como quando ele tocou diante de Vance!

Não obstante, ele tinha ouvido perfeitamen­te a música!

Tinha que ser aquele! Não havia outro pia­no na casa!

O suor gelado impregnava agora todo seu corpo, e as gotas chegavam até sua boca, produ­zindo nela um sabor amargo.

Naquele momento ouviu-se um ruído na porta.

Bob Bentley dirigiu a pistola para lá, dis­posto a disparar contra quem quer que fosse.

A alta figura de Vance se recortou no um­bral.

Não pestanejou ao ver Bob apontando-lhe a arma, ainda que percebesse que o dono da casa estava nervoso e podia cometer, naquele estado, qualquer loucura.

— Que aconteceu, Senhor Bentley?

Sua voz, seca e metálica, parecia vir de mui­to longe.

— Alguém tocava este piano.

— O que está dizendo?

— Alguém tocava, com todos os diabos! Eu mesmo ouvi!

— Quando?

— Há poucos minutos. . .

Vance, em resposta, aproximou-se do instru­mento e tocou nas teclas. Estas não produziram o menor som. Levantou os olhos e fitou interrogativamente Bentley.

— Está imprestável — disse.

— Isso eu vejo! Com os diabos, já me certi­fiquei disso! Mas eu ouvi há alguns minutos! Ouvi, juro!

Vance murmurou:

— Às vezes o sonho nos prega peças. À ve­zes uma pessoa crê estar vivendo coisas que nun­ca viveu, viu ou ouviu.

— Pretende dizer que sou algum maluco? Que vai fazer? Levar-me a algum psiquiatra?

— Eu não digo isso, Senhor Bentley. Nós sonhamos e não há quem não se tenha en­contrado alguma vez na vida tendo um sonho de particular intensidade, capaz de o atraiçoar por momentos.

— Eu não.

— Mesmo que você tenha os nervos muito bem controlados, Senhor Bentley, pode se encon­trar em certa situação que não compreenderá.

Bob ia ficando, por momentos, cada vez mais nervoso.

A calma imperturbável e fria do policial — que, sem dúvida, não lhe acreditava — era algu­ma coisa que o punha fora dos eixos.

Com muito gosto teria disparado sobre ele.

— Onde você estava? — inquiriu. — Onde estava você, com os diabos!?

— Perto da porta da casa.

— E não ouviu nada?

— Nada, Senhor Bentley.

— Então lhe recomendo que procure um médico! Você está precisando de um aparelho para surdez.

— Não preciso dele, Senhor Bentley, Ouço perfeitamente bem. A prova é que ouvi seus pas­sos e a pancada que deu contra essa porta. Se alguém estivesse tocando piano, eu teria ouvido com a mesma perfeição.

— Isso que diz é impossível, "tira". Vance perguntou com voz muito suave:

— Porque não descansa outra vez, Senhor Bentley?

— Porque não recomenda que me apliquem uma ducha fria, como se recomenda para os loucos?

— Não tome as coisas assim, Senhor Ben­tley. Vá descansar tranqüilamente e lhe prometo que vigiarei.

— Também vigiava antes, e, entretanto...

— Alguém o atacou? Correu o menor perigo, Senhor Bentley?

Bentley apertou os lábios.

Não, não tinha corrido o menor perigo. Al­guém estava lhe perturbando o cérebro, porém tinha que reconhecei que não tinham lhe toca­do a pele.

— Está bem — disse zangado. — Voltarei para o quarto de dormir. Porém, vigie bem esta parte da casa porque pode ser que haja alguém por aqui.

— Claro. . . Crê que não tenho olhos? , Maldizendo em voz baixa, Bentley voltou ao seu dormitório. Mas resolveu ter a pistola de­baixo do travesseiro para o caso de tornar a ou­vir algum ruído estranho.

 

O delegado Lincoln envesgou os olhos ao ver en­trar na sua repartição o agente Vance em companhia daquela moça.

Evidentemente que era uma dessas moças que só se vêm uma vez no ano e ainda por cima nos anos bissextos.

Lincoln abriu a boca, embasbacado.

A pequena era ruiva, alta, cheia de corpo. "Ruiva, alta e cheia". Lincoln ficaria repetindo estas três palavras até o dia da sua aposentado­ria ou até quando sua mulher lhe rachasse a ca­beça.

A moça era uma perfeição, desconhecida ali, e devia ter aproximadamente seus vinte e três anos. Estava vestida de branco, com um traje muito ajustado às suas formas e tinha meias cor de antílope. Seus sapatos combinavam com mag­nífica bolsa que pendia da sua mão direita.

Não obstante, apesar de andar passeando com uma pequena tão monumental, Vance não parecia satisfeito.

Nem ela.

Dava a impressão de que só lhes faltava morderem-se.

Vance fez a moça entrar, segurando-a por um braço, e disse ao delegado:

— Esta é Kate.

Lincoln pôs-se de pé num salto.

— Muito prazer, com os diabos,

— Pois a mim não agrada nada entrar no seu cubículo, delegado.

A pequena sentou-se numa cadeira, diante de um mudo e enérgico sinal de Vance e cruzou as pernas.

O delegado caiu em cheio sobre o assento. Sua boca abriu-se tanto, que já não a podia fe­char.

— Necessito de um trago — balbuciou. Enquanto lhe servia, Vance explicou a si­tuação :

— Procurei esta mulher durante muito tempo por todas as povoados, grandes e peque­nos deste Estado. A polícia estadual me encar­regou que a encontrasse; afinal consegui.

— E, porquê a persegue? Para devorá-la?

— Não seja tolo, delegado.

— Ah, bom ,já compreendo. É que o chefe da polícia estadual a quer em observação.

— Menos asneiras. Ela é acusada de prati­car ocultismo.

— Isso não é certo! — gritou a moça.

— Não me diga que não adivinha o futuro.

— Se eu adivinhasse o futuro, você não me tinha prendido, seu mastodonte!

Kate parecia expelir fogo pelos olhos. Mas, assim mesmo, estava muito mais bonita. E, ain­da por cima não se apercebia de que a saia lhe subia pelos joelhos, como constatou manhosamente Lincoln.

— É melhor que você não crie dificuldades, moça — disse Vance, conciliador. — Também não lhe acontecerá nada de grave por causa do que lhe acusam. No máximo uma simples multa.

— Não tenho dinheiro!

— Bem, então uns dias de detenção e a proibição de exercer aqui sua atividade.

— Não tem o direito de deter-me! Ninguém poderá declarar que eu lhe tenho cobrado di­nheiro para adivinhar-lhe o futuro! Tudo isso não é mais do que invenção para perseguir uma moça indefesa,

Vance suspirou de cansaço.

— Ouça, delegado, este é um assunto sério. Encarregaram-me na capital de encontrar esta mulher.

— É sinal de que na capital não têm tra­balhos mais importantes, apesar de tudo o que dizem. E, que quer que eu faça?

— Dê parte da detenção.

— Não posso, porque a moça não está de­tida — apressou-se o delegado a declarar. — Eu lhe dou liberdade imediatamente.

— E é para isto que tenho me fatigado tanto? — perguntou Vance.

— Você não é mais que um pobre assala­riado, que de vez em quando precisa levar uma lebre ao seu dono para que lhe poupe a vida inú­til! — gritou Kate. — Nunca vi ninguém tão mi­serável, tão baixo, tão.. . — a moça parecia a ponto de saltar sobre ele. — Dá-me vontade de matá-lo!

— Eu não faço mais do que cumprir com o meu dever, Kate.

— Também os verdugos cumprem, e, nin­guém por isso lhes aperta a mão!

Levantou-se, como que encorajada pela ati­tude favorável de Lincoln e por um momento pareceu que iria bater em Vance. Este teve que segura-la pelos pulsos, obrigando-a a sentar-se com um gesto rude.

— Menos barulho, ferazinha.

— Não me toque! Não me toque ou o de­nunciarei !

— O que estou fazendo é evitar que você me toque, boneca.

O delegado Lincoln impôs a paz.

— Deixemos isso agora — decidiu. — Darei parte à chefatura da polícia estadual, mas esta senhorita não ficará no cárcere. Onde estava hospedada no momento da sua detenção, Kate?

— No hotel Ransom.

— Conheço-o. Pode continuar ali.

— Não posso sair da cidade?

— No momento, não; sinto muito. De qual­quer modo lhe garanto que este incômodo as­sunto se resolverá em muito poucas horas. Pode ir, Kate. Darei logo mais uma volta pelo hotel Ransom para certificar-me de que tudo anda bem.

Vance olhou o velho com os olhos entrecerrados, mas não disse uma palavra até que a pe­quena saiu.

— Você fez da boa, delegado.

— Porquê?

— Tirou-me toda a autoridade.

— Homem, o caso não é para tanto.

— Essa pequena me odeia. Fará qualquer coisa para me desacreditar.

— Nesse caso eu o defenderei, Vance. Mas, você verá que não vai haver necessidade disso. Que é que há com Bentley?

— Creio que está louco.

— Como?

— Começou a padecer de alucinações.

— Você está brincando, Vance. Precisamen­te Bob que tem sido sempre um homem frio, com os nervos estupendamente controlados.

— Porém, agora, já começou a degringolar. Ontem à noite ouviu tocar um piano que está defeituoso há tempos.

— Quer dizer que ouviu uma música?

— Sim. Acordou por causa disso. Não du­vido que não ouvisse, mas o que acontece é que a música ressoava exclusivamente dentro do seu crânio. O piano está desarranjado, como qual­quer pessoa pode verificar.

— Você o dissuadiu?

— Duvido muito, mas, pelo menos, conse­gui que voltasse para o leito. Entretanto, o que aconteceu a seguir foi pior.

O delegado arqueou uma sobrancelha.

— Que aconteceu?

— O caso do perfume e o da marca na cama.

— Que perfume?

— Segundo Bentley, sua esposa usava ex­clusivamente um perfume muito peculiar, uma variedade de Chanel. Voltando a entrar no seu dormitório, aquele perfume estava recendendo nele todo.

— Não será que ele mesmo o usou?

— Impossível. Era um perfume muito fe­minino.

— Então dar-se-ia o caso de ter derramado algum frasco dos que deviam estar sobre o toucador.

— Pensei nisso, certamente, porque era a única explicação lógica. Porém não havia ne­nhum vidro de perfume.

— Não podia vir do exterior?

— As janelas estavam fechadas.

O delegado começou a murmurar em voz baixa.

— Você mesmo sentiu o perfume? — per­guntou por fim. — Não se tratava da imagina­ção de Bentley?

— Não, isso não. Quando ouvi o grito, subi em seguida, e captei o perfume eu mesmo.

— Pois é incompreensível. . . Claro que há de ter uma explicação lógica. Porém aconteceu alguma coisa mais?

— Sim. A marca na cama.

— Que foi isso?

— Bentley garantiu que tinha deixado na cama a marca de um só corpo, o seu, e, não obs­tante, havia ali duas.

— Duas?

— Quer dizer, como se tivesse dormido um casal no mesmo leito.

O delegado, contra sua vontade, estremeceu.

— Que Bentley queria dizer?

— Nem mais nem menos que isto: Sua es­posa tinha estado naquela cama.

Outra vez, Lincoln estremeceu violenta­mente.

Apesar de tom de voz despreocupado de Vance, ele captava todo o horror da situação.

Aquele homem acreditava que Pamela tinha saído da sepultura para visitá-lo.

— Que acha você? — perguntou ao cabo de uns minutos, quando pôde coordenar seus pen­samentos. — Viu as marcas?

— Sim.

Sobressaltou-se.

— Então é verdade o que Bentley dizia?

— Não há razão para acreditar. Um homem que durma só numa cama de casal, dá bastantes voltas durante o sono sem sentir. Sobretudo tra­tando-se de um sono agitado como o que devia ser o de Bentley. Ao fim de algum tempo é im­possível descobrir se na cama dormiu mais de uma pessoa.

— Mas, que você acha?

— O que vou pensar? Você não percebe, Lin­coln? Tudo o que acontece com Bentley é absur­do. Está transtornado como um hipopótamo em um cenário de balé. Ali tinha dormido uma só pessoa, porém ele não quer acreditar.

— Mas, o caso do perfume?

— Foi uma mistificação dele.

— O queeê?...

— Deve ter sido ele que o espalhou, guar­dando a seguir o frasco no bolso. Naturalmente, eu não pude verificar, mas penso que ele o fez para justificar seu pavor. Determinados psicopatas necessitam de quem lhes acredite, lhes dêem razão. E esse Bob Bentley começou a descer por uma rampa muito perigosa.

Lincoln ficou pensativo.

Sua testa se encheu de mil diminutas ru­gas.

— Em que pensa, delegado? — perguntou Vance ao fim de uns instantes.

— Nada, Vance... Prefiro não recordar. — Parecia que o delegado descera, de repente, de outro planeta, um planeta silencioso e negro, cheio de um frio horror. — Falemos de outra coisa.

 

VANCE passeava lentamente pelo imenso jar­dim.

Olhava as velhas sepulturas e a tumba nova, a que pertencia a Pamela. E recordava a conver­sa que tivera com o delegado na tarde anterior, quando ele lhe contara as estranhas circunstân­cias em que tinha sido morta a mãe da moça.

Um desses mistérios que não se esclarecem nunca, um desses enigmas de cidades pequenas, em que a polícia vai deitando pouco a pouco ter­ra sobre o assunto, para que não apareça algu­ma coisa que possa prejudicar a reputação da gente rica. A mãe de Pamela fora mesmo assas­sinada? Seu pai tinha morrido de medo, quando sua defunta mulher lhe aparecera mais tarde?

Vance acendeu um cigarro pensativamente.

Tudo isso era falatório, sem dúvida. Inven­ções de gente que não têm nada de mais sério em que pensar.

Em todas as cidades do centro, os habitan­tes acreditavam em bruxas, em aparições, em fantasmas. Talvez isso fosse uma tradição de quando a terra pertencia aos índios, não muitos anos atrás, e os chefes das tribos garantiram estar em comunicação com os mortos. Sioux City era, pois, a mais supersticiosa daquelas pe­quenas cidades, mas ainda assim Vance não compreendia o porque daquela lenda.

Enquanto pensava nisto, viu a sombra de Bob Bentley recortar-se em uma das janelas.

Bob não tinha saído de casa durante todo o dia. Não se movia dali para nada, como se es­tivesse hipnotizado por aquelas paredes. Du­rante as últimas horas não se tinha afastado de um dos aposentos.

Que aposento era aquele? Que guardava ali?

Vance sorveu o fumo pensativamente e na­quele momento, viu chegar até ali o delegado, acompanhado de uma pessoa que ele conhecia muito bem.

Aquela pessoa era Kate.

Vestia o mesmo vestido branco do dia ante­rior e só tinha mudado as meias, que agora eram mais escuras, de uma suave cor de chumbo.

Uma estranha sedução se desprendia de cada movimento daquela mulher, que era extre­mamente séria, como uma estudante de Filoso­fia e que sem embargo parecia ter nascido para enlouquecer os homens.

O delegado Lincoln devia pensar o mesmo, porque procurava ficar sempre um pouco afas­tado e dirigia à moça cada olhar de espanto...

Quando chegaram perto, Kate envolveu Vance num olhar de desprezo.

Não disse uma palavra.

O delegado foi quem teve que explicar:

— Não pense o que está pensando, Vance. Eu não sou mais que um sujeito inocente.

— O que estou pensando é que você é um velho malandro, seu delegado.

— Diabos! Você acaba de dizer justamente o que sempre me diz a minha esposa. Mas, por­quê?

— Porque foi ao hotel procurar a pequena.

— Sim, confesso. E admito que ia convidá-la a cear.

— Porque não o Fez?

Kate continuava fechada em um profundo silêncio. O delegado berrou:

— Demônios! Você deveria tê-la visto como eu a vi!

Vance pensou se não teria sido quando ela estaria endireitando as meias e a inveja o inco­modou. Mas Lincoln apressou-se em desmentir esse pensamento.

— Eu a encontrei presa de um transe. Di­zia frases sem sentido. Nunca tinha imaginado que a uma pequena tão desconcertante pudesse acontecer tal coisa.

— Mas, que lhe acontecia? Com os diabos, delegado, fale de uma voz!

— Nem que estivesse bêbeda. Olhava-me e não me via. Dava a impressão de estar olhando sempre mais longe, mais longe... Coisas que não eram deste mundo. De repente compreendi porque mandaram procurá-la, Vance. Esta pe­quena adivinha coisas.

Kate não dizia nada. Olhava singelamente o infinito e por sua expressão ausente e dis­tante percebia-se que aquele estado de transe tão estranho de que o delegado falava não se tinha dissipado de todo ainda.

— Adivinhou algo? Quer dizer, pronunciou algumas palavras que lhe chamaram a aten­ção, delegado?

— Sim. E por isso a trouxe aqui. Quero que você saiba.

Vance estava mordendo seu cigarro sem perceber. Teve que cuspi-lo feito um bagaço.

— Que disse Kate?

— Disse que Bob Bentley morreria.

— Todos temos que morrer — afirmou Van­ce tratando de tirar a importância do caso.

— É que ela disse que Bob morreria de medo...

As feições de Vance se tornaram bruscamen­te de uma estranha cor de cinza.

Apesar de já estar quase anoitecendo, ain­da havia sol, e a tarde estava relativamente cla­ra. Mas, de pronto, pareceu a Vance que tudo mudava, que a tarde se fazia mais escura, mais cinzenta, e, que o antes risonho jardim se con­vertia em uma aléia de cemitério.

Olhou Kate.

— Como sabe isso? — perguntou.

— Não acertaria em explicar — disse ela com um sopro de voz. — Logo compreendi.

— Você não percebe de que isso a prejudi­ca? Demonstra que você, Kate, é uma adivinha?

— Eu não tenho culpa de ver certas coisas — balbuciou ela. — E também nada cobro por isso. Nunca me pode considerar uma adivinha no sentido que vocês, da polícia, dizem. Nem te­nho infringido nenhuma lei.

— Não disse que a infringira. Só tenho ad­vertido de que tudo isto a prejudica.

Kate limitou-se a envolver Vance com um olhar distante. Não parecia tão agressiva como no dia anterior. Dava a sensação de que estava sumida em um mundo estranho que só ela era capaz de ver.

— Que você viu exatamente. Kate? — per­guntou Vance suavemente. — Pode explicar?

— Claro que sim... — a voz da moça pa­recia vir de longe. — Tenho visto com toda a clareza.

— E, que era?

— Bob Bentley. Um homem chamado Bob Ben­tley.

— Você diz que o viu? Mas se não o co­nhece!

— Você se engana, esbirro. Eu o conheço. Eu já vi Bob Bentley uma vez, ainda que tenha sido em fotografia.

— Onde?

— Sua esposa Pamela e eu éramos muito amigas. E eu vinha, precisamente, passar uma temporada com ela nesta casa quando soube que ela tinha morrido. Mas, antes, quando se casa­ram, Pamela enviou-me uma foto do casamento. Por ela conheci Bentley, e foi ele, exatamente, quem vi há pouco.

— De que modo?

— Usava um terno cinzento.

— E que fazia?

— Estava morto em um dos aposentos da casa. Diante de um relógio.

— Que relógio?

— Um relógio de parede muito antigo.

Não obstante a clareza das suas explicações e a sua aparente serenidade, a moça parecia con­tinuar aprofundada em um mundo que lhe era próprio, um mundo cujos limites só ela conhe­cia. Vance desejava fazer-lhe mais perguntas, mas não se atreveu.

Tinha medo de tirá-la do estado em que se achava. Era como se ela fosse um copo de cris­tal que qualquer movimento brusco poderia fa­zer em pedacinhos.

Durante um longo minuto os dois homens guardaram silêncio, sem saber o que pensar de tudo aquilo, até que, por fim, Lincoln despregou os lábios de novo.

— Eu quis que você soubesse de tudo isto, Vance e que prevenisse Bob Bentley.

— Sobre o quê?

— Ora bolas! Que não se aproxime de ne­nhum relógio de parede dos que tem em sua casa!

Vance olhou-o com surpresa.

Suas pálpebras tremeram.

— Será que você já começa a crer em todas essas patranhas, Lincoln?

— Por cem mil legiões de abutres! Eu não creio em nada, nem tão pouco deixo de crer! O que está acontecendo no meu condado já ultra­passa todos os limites do absurdo. Tenho que pensar que ando bêbedo ou que no mundo há coisas que os olhos humanos não podem ver. Pela cara que esta pequena mostra, parece que é verdade. E, neste caso, nada perdemos em pre­venir esse homem.

Vance estranhou que o delegado acreditasse tão seriamente no que Kate dizia. E começou a perceber que Lincoln já estava perdendo a sere­nidade, estava transtornado pelos estranhos pressentimentos que flutuavam em torno de Sioux City. Compreendeu que, em parte, o dele­gado tinha razão, mas havia um inconveniente.

— Mas, assim, assustaremos ainda mais Bentley. Tenha em conta que ele já está assus­tado de verdade.

— Isso é certo... — o delegado parecia confuso, mesmo um pouco aturdido. — Mas creio que posso deixar este assunto à sua discrição, Vance. Veja como Bentley está e lhe fale quan­do achar oportuno. Eu, enquanto isso, convida­rei Kate a cear. Creio que ela precisa encontrar-se cm um ambiente familiar. Desgraçadamente, e dadas as circunstâncias, não terei outro re­médio senão convidá-la a cear em minha casa, onde, no mínimo, minha mulher preparará ve­neno para dois.

— A idéia parece-me boa, Lincoln, mas não se lembre de depois convidar a pequena a pas­sear no jardim à luz da lua.

— Porquê? Tem medo dela?

— Não. Tenho receios por você, delegado. Lembre-se de que sua esposa tem licença de por­te de armas.

Lincoln soltou um resmungo ininteligível e saiu com aquela espécie de criatura impressio­nante que era Kate, mas, de pronto, deteve-se enquanto ficava olhando-a.

A moça parecia transfigurada e Vance teve que perguntar:

— Eu disse algum inconveniente, Kate?

— Falou da lua.. .

— O quê?

— Agora me recordo.

— Pela vida de mil sapos! Será que vou ter praguejar como um pirata? De que se recorda agora, Kate?

— Ele morrerá em uma noite de lua.

— Ele? Quem?

— Bentley, naturalmente.

— Que acontecerá?

Ela disse com um sopro de voz:

— Verá sua esposa no relógio numa noite de lua e então morrerá.

O delegado deixou de respirar, olhando es­tupefato a Kate.

Vance sentiu que a boca estava seca.

 

QUANDO o delegado e a moça se afastavam, Vance os olhou em silêncio.

Reparou que os sentimentos de Lincoln com relação a Kate tinham mudado por completo. Antes Lincoln considerava Kate como uma pe­quena por quem valia a pena cruzar a pé as Montanhas Rochosas. Ele a teria convidado para cear num lugar requintado ainda que tivesse de gastar o soldo de três meses. Mas, agora, não obstante, o delegado tinha medo dela. Lincoln percebia que por trás dos olhos da pequena exis­tia um mundo que ele nunca poderia decifrar, e isso o humilhava. Kate tinha se convertido para ele, de repente, numa espécie de bruxa. De cer­to, se ela se pusesse nesse momento a endirei­tar as meias, o delegado nem sequer perceberia.

Vance os manteve sob seu olhar até que ambos desapareceram numa curva do jardim. Então entrou na casa.

Tudo estava silencioso e banhado dessa luz espectral do anoitecer que cobre os objetos de uma cor violeta, sepulcral e sinistra como uma mão que avança através das sombras.

Não se ouvia nada na casa.

Nada, nem o rangido de uma porta defor­mada pela umidade ou estragada pelos insetos que durante longos anos nela se instalaram.

Vance subiu pelas solenes escadas que leva­vam aos andares superiores e então viu o relógio.

O velho relógio solene, construído há mais de cem anos antes e cujos mecanismos estavam ocultos por um cristal de delicados ornatos, escrupulosamente limpo.

Não se ouvia nada. O relógio de carrilhão já não funcionava. Seguramente teriam se passado anos e anos sem que ninguém fosse capaz de o pôr em marcha.

Vance lembrou as estranhas palavras de Kate: "Bentley verá sua esposa no relógio..."

Como se aquilo pudesse ser certo, Vance exa­minou em silêncio o móvel, que era uma verda­deira jóia.

Não, ali não cabia uma pessoa e muitíssimo menos uma pessoa que já estava morta.

Não obstante, Vance sentia como uma cor­rente de frio na costa. Apesar de toda a sua, ex­periência, ele também estava conhecendo o sa­bor do medo.

Apertou os dentes.

Estaria ficando assim tão estúpido? Iria crer nas palavras de uma moça que talvez esti­vesse zombando dele?

Seus dedos apalparam com certa dureza a superfície do cristal que cobria o relógio, como se ali tivesse de descobrir um segredo. Porém nada de anormal havia no móvel. Estava parado e isso era tudo. Tratava-se de uma peça que te­ria causado a admiração de um antiquário, mas a verdade era que não tinha nada de misterioso nela.

Tinha que esquecer suas estúpidas apreen­sões.

Voltou as costas ao relógio e continuou su­bindo, enquanto olhava tudo em torno de si mesmo.

Afortunadamente, naquela noite não tinha lua.

A luz violácea do crepúsculo continuava en­volvendo tudo e enviando seus últimos reflexos sobre os quadros colocados na parede. Eram qua­dros de família e recebiam a luz de uma gran­de janela que havia no primeiro patamar. Todos pertenciam a pessoas mortas, e, sem que se sou­besse bem porque, qualquer pessoa estremecia ao vê-los.

Mas Vance não quis pensar naquilo. Ele era um polícia, não "uma criança. Para ele a única coisa que estremeceria um homem era uma boa bala que o alcançasse em cheio.

Empurrou a única porta do andar superior sob a qual se filtrava um raio de luz.

Bentley estava ali, voltado de costas. Vol­tou-se pouco a pouco ao ouvir o ruído da porta atrás dele. Estava lívido.

— Sou eu — disse Vance. — Não se assuste.

Parecia incrível como em tão poucos dias Bentley tivesse ficado assim, arrasado. Dir-se-ia que emagrecia de hora em hora. Quando Vance o conheceu era ainda um homem com aspecto saudável, que tinha umas leves inquietações mas que conhecia bem tão só a parte boa do mundo. Agora, ao contrário, era um sujeito encurralado, enfraquecido, cujos olhos temerosos olhavam em todas as direções como se temesse encontrar-se com a morte.

— Ah, é você — balbuciou.

— Sim. Venho ver como está.

— Bem... Olhava umas velhas fotos.

— Que espécie de fotos?

Bob as guardou apressadamente na secre­tária. Eram as mesmas que estava vendo quan­do Pamela aparecera, antes de ser morta por ele, naquele mesmo aposento. Suas mãos treme­ram.

— São do pai de Pamela — disse em voz baixa —, quer dizer, meu sogro, que não che­guei a conhecer. Algumas... realmente, impres­sionam. Dir-se-ia que era um homem atormen­tado por algo.

— Como você está se atormentando — sus­surrou Vance. — Porque não sai para tomar um pouco de ar? Acredita que é bom estar encerra­do aqui todo o dia, como se fosse um prisionei­ro? Na cidade há algumas diversões. Porque não vai?

— Parecia um homem atormentado por algo... — repetiu Bob, como quem repete uma ladainha. — Pamela tinha razão.

— Em que Pamela tinha razão? Que ela lhe disse?

Uma expressão de astúcia e de alarma se desenhou no rosto de Bob. Mas Vance não a no­tou porque o tinha de costas. Bob Bentley per­cebeu que estava resvalando, que se deixava levar demais por seus próprios pensamentos. Van­ce, no final de contas, era um policial. Qualquer palavra dita além da conta, poderia ressoar mui­to nos ouvidos daquele servidor da lei.

— Nada — disse. — A verdade é que ela não me contou nada. São asneiras minhas, sabe?

Voltou-se de repente a encontrou o olhar de Vance. Aquele olhar o fez estremecer.

Havia algo nele que gelava o sangue, mas não sabia porquê.

— Que há? — perguntou Bob. — Porque me olha desse modo?

Vance sussurrou:

— Essa roupa...

— Que é que há com ela?

Vance cerrou por um momento os olhos. Na verdade não havia nada.

Mas era um terno cinzento, tal como Kate tinha dito que Bob estaria vestido quando fosse morrer.

Vance acendeu um cigarro para dominar-se e disse a seguir, mesmo contra a sua vontade:

— Tire essa roupa, Bentley. Tire-a antes que as nuvens se ocultem e a lua torne a sair.

 

BENTLEY balbuciou:

— Que quer dizer? Que tem a ver a lua com tudo isto?

Suas feições se tinham decomposto ainda mais e.seus lábios tremiam de um modo que ele já não podia ocultar.

Vance passou as mãos pelos olhos.

Tudo aquilo estava fora do programa, fora do calculado. Percebia que ele mesmo estava se colocando em uma posição ridícula, mas não po­dia evitar.

— Olhe, são coisas que aliás não tem sen­tido, mas que lhe interessa conhecer. Alguém disse que você morreria em uma noite de lua e vestindo esse terno.

Vance esperava que Bentley reagisse di­zendo: "Isto é asneira!", mas o dono da casa não disse nada.

Pelo contrário, parecia ter levado a sério tais palavras. Seu comentário foi o seguinte:

— Se uma pessoa disse isso, é porque essa mesma pessoa decidiu assassinar-me.

— Não acredito.

— Porquê?

— Quem disse foi uma mulher extraordiná­ria, que não sei como classificar ainda. Alguém que é, de certo modo, uma adivinha, mas a quem não posso atribuir o desejo de matá-lo.

— Essa adivinha, chama-se Kate?

— Sim. Você a conhece?

— Minha esposa falou-me dela, nos seus últimos dias. Era uma sua amiga que viria passar uns dias conosco. Como é possível que esteja na cidade e não se tenha aproximado desta casa?

— Não o conhece, Bentley. Pensou, talvez,que, morta Pamela, nada tinha que fazer aqui,o que, aliás, é justo.

— E foi ela quem assegurou que eu morreria com uma roupa cinzenta e numa noite de luar?

— Ainda que pareça um conto de fadas, é assim, Senhor Bota Bentley.

Bob voltou a cabeça, evitando o olhar do po­licial.

Não obstante, aquela conversa o tranqüili­zava. Seu medo diminuía com as palavras de Vance. O que este estava dizendo, efetivamente, era como um conto de fadas. Não podia crer na­quilo.

No fundo, aquilo significava que podia sen­tir-se mais tranqüilo, mais seguro do que nunca.

A única coisa importante — o assassinato de Pamela — já nem sequer se discutia. Pelo contrário, falava-se de fantasmas, de crendices, de coisas que não existiam.

Voltou a cabeça, sorrindo e mudou brusca­mente de conversa.

— Vai vigiar esta noite, Vance?

— Creio que sim.

— Então pode estar tranqüilo. Procurarei tomar umas pílulas para dormir e esquecerei to­dos esses problemas. No fundo, não tem sen­tido.

— Claro, Senhor Bentley.

Vance começava a crer nisso também,

— Adeus, Vance.

— Boa noite.

Vance saiu. Refletindo serenamente, perce­bia que não tinha mesmo sentido nada do que tinha dito Kate. Noites de lua para morrer? Um terno cinzento? E que mais?

Para o diabo.

Vance desceu para o andar térreo e saiu da casa, enquanto que Bob ficava só.

 

Bob pensava, com efeito, que lhe convinha dormir. Tinha levado muitas noites apegado à vertigem dos pesadelos. Dois comprimidos arran­jariam as coisas.

Procurou o tubo onde os guardava e viu que estava vazio. Tinha consumido muitos deles, sem cautela, nas últimas noites. E o pior era que elas hão tinham dado resultado nenhum.

Mas, se dobrasse a dose, talvez desse resul­tado.

Porém, onde estava o outro tubo, que ele ti­nha de sobressalente? Onde o teria deixado? Ah. sim! Na mesa central do vestíbulo. Bob pensava tudo isto de um modo impessoal, como se o cérebro que estava, na sua cabeça fosse de outro ser humano, não o seu mesmo. Tinha a garrafa de uísque ao alcance da mão. Bebeu um bom trago, com o que se sentiu mais animado, e abriu a porta. A cabeça lhe andava às voltas.

Tenho estado a beber demais — pensou. — Toda a tarde bebendo, até esvaziar a garrafa de uísque. Se isto continua assim, vou acabar com meu fígado..."

Porém, isso não tinha importância no mo­mento.

Começou a descer pouco a pouco, contando os degraus.

Pelo grande janelão do primeiro andar, que agora ficava às suas costas, não penetrava a luz da lua. Não. Nessa noite as grossas nuvens co­briam tudo e não era fácil que se dissipassem porque tinha começado a gotejar. Porém, uma débil luz penetrava por aquele janelão, proje­tando-se sobre os grandes quadros — todos de corpo inteiro — que adornavam a vetusta pare­de da escadaria.

Bob se deteve diante do relógio. Era. o mes­mo relógio antigo de que Pamela lhe tinha fa­lado em suas horas de solidão.

Estava parado.

Nada se refletia no cristal, que era como que um pedaço de sombra. Apenas distinguiam-se palidamente os ponteiros.

Sacudiu-o levemente.

Bentley chegou ao andar térreo e deteve-se a olhar em volta de si mesmo, como se visse aqui­lo pela primeira vez.

Acabava de notar alguma coisa estranha. Alguma coisa que não era normal, que não es­tava antes ali.

Não obstante, não sabia o que era. Seus olhos correram os móveis, os grandes quadros que adornavam a escada, os tapetes... Tudo es­tava no mesmo. Com dedos trêmulos, acendeu uma lâmpada.

Compreendeu imediatamente o que era. Algo estava evidente, e ele acabava de descobrir. Os ponteiros do relógio não estavam parados na posição de sempre, como ele tinha conhecido, quer dizer, marcando justamente as onze.

Tinha que ser isso, um detalhe dos que pas­sam desapercebidos e penetram no subconscien­te daquele que o vê.

As pálpebras de Bob tremeram quando con­templaram o relógio.

Não, não era isso que estava mudando. Os ponteiros do relógio mostravam, como sempre, as onze em ponto.

Que havia pois de particular ali? Com os diabos! O que era que tinha mudado?

Tratava-se de algo muito importante, de algo visível, porque do contrário ele não teria chegado a notar.

Mas que era?

Com o rosto transtornado, Bob Bentley tor­nou a olhar em volta de si detidamente. Nada. Não notava o que pudesse ser.

"Creio que estou nervoso — pensou. — Ama­nhã, com a luz do dia, verei melhor. Alguma coi­sa deve ter mudado, mas eu não percebo. É me­lhor esperar o dia de amanhã..."

Procurou o tubo de comprimidos e verificou que não estava ali. No primeiro momento teve um sobressalto.

Lembrou-se então que o tinha deixado jun­to ao piano, no aposento contíguo. Tinha que estar ali.

Entrou. Não notou que estava ofegando. Respirava com dificuldade, como se estivesse se afogando.

Estaria, por acaso, ficando louco?

Iria começar a acreditar em toda aquela en­fiada de alucinações e de mentiras que Parnela, antes de morrer, lhe tinha impresso na mente?

Viu os comprimidos. Estavam, com efeito, junto ao piano, onde ele se lembrava tê-los dei­xado de tarde.

Ao menos, isso não era irreal. Pelo menos sabia que o soporífero estava ali, ao alcance das suas mãos.

Pegou no tubo.

E, imediatamente, ficou rígido, com as fei­ções transtornadas, sentindo que o suor começa­va a escorrer por sua fronte.

Um ruído parecia encher a casa inteira.

Era um ruído familiar, apesar dele não o ter ouvido nunca. Um ruído desses que a gente mal escuta, de tão acostumado que está de os perce­ber. Mas agora ressoava em seus ouvidos como chicotadas, ou melhor, como uma sucessão inin­terrupta de estalidos.

Bob custou em perceber o que acontecia.

Por fim compreendeu, enquanto todo o seu corpo estremecia violentamente.

Era o relógio, o maldito relógio que tinha voltado a andar outra vez!

Aquele carrilhão que estava quase a cem anos parado e que agora, de repente, voltava à vida!

Bob apertava fortemente o tubo de compri­midos entre os dedos. Estava a ponto de gritar, e o teria feito, se estivesse ar nos pulmões. Mas, nem respirar podia. Sufocava! Sentia-se como si já estivesse nas garras da morte!

Soltou, por fim, um grito agônico, enquanto se precipitava para a porta como um bêbedo, e, a abriu com uma cabeçada, produzindo uma pe­quena ferida na sua testa.

Ali, no vestíbulo, o tiquetaque do relógio era ensurdecedor. Dir-se-ia que cada segundo, cada batida, tinha repercussão de um golpe num gongo.

Agora o suor já escorria pelas faces de Bentley, misturando-se a gotas do seu próprio san­gue, proveniente da ferida da sua testa. E, não obstante, ele ainda não acreditava que aquilo fosse certo, fosse a verdade. Ainda continuava pensando que estava sofrendo uma alucinação.

Plantou-se em frente do relógio, a boca aber­ta, ofegando, como um bêbedo que já está às por­tas do "delirium tremens".

Não, não era uma alucinação. Tratava-se de coisa real.

O relógio estava soando! O ponteiro, que an­tes marcava as onze em ponto, conforme ele mesmo comprovou, estava marcando neste momento as onze e três minutos. O que Pamela dissera antes de morrer estava acontecendo. Aquele relógio tinha voltado a funcionar! Todas as suas malditas profecias cumpriam-se, palavra por palavra!

Bob soltou um grito sufocado, enquanto se voltava de costas e subia pelas escadas quase de quatro, como um macaco.

Uma vez no seu dormitório, fechou-se, tre­mendo, enquanto o som do tique-taque se ia afastando pouco a pouco como os guizos de uma cascavel.

Tomou quatro comprimidos do sonífero, avi­damente, bebendo a metade do jarro de água que estava, sobre sua mesinha.

Imediatamente tombou na cama, respiran­do como um cão ao qual se desse veneno. Sen­tiu que estava para morrer.

Até que por fim os comprimidos produziram efeito e uma calma angustiante, parecida com a da morte, tomou conta dele.

 

VANCE acendeu um cigarro e o colocou nos lá­bios da mulher que estava à sua frente. Ela o recusou com um gesto faceiro.

— Tolo!... Você não vê que assim fico com a boca ocupada?

O jovem sorriu apenas, enquanto envolvia a moça com um olhar cheio de paixão e seus lábios procuraram os lábios de Kate.

Os dois beijaram-se silenciosamente, no es­curo, enquanto o cigarro ardia lentamente e as finas gotas de chuva roçavam o abrigo sob o qual se tinham refugiado.

Por fim, Kate sussurrou:

— Não acha que já é bastante? Você está me "comendo" os lábios...

Vance soltou-a. E pôs, por fim, o cigarro na sua boca.

— De certo modo o sinto — murmurou. — Não sei o que aconteceu conosco, Kate.

— Aconteceu que o olhei com simpatia quando você se negou a prender-se, apesar de ter recebido ordem para isso.

— Como ia prendê-la? Não tinha cometi­do nenhum delito. Na realidade tinham-me dado aquela ordem para manter-me afastado por algum tempo. A alguns membros da Polí­cia é incômodo um tipo como eu, que diz as verdades com muita freqüência. Mas tudo mu­dará quando esteja solucionado o caso de Pamela.

Ela sorriu, embora aquele sorriso fosse apenas visível na penumbra que os envolvia.

— Também a coisa começou porque você me pareceu ser um homem autêntico — disse suavemente.

— E você me pareceu magnífica como mu­lher.

Ela deu uma tragada, e o fitou bem nos olhos. Aquele olhar penetrou fundo em Vance, produzindo-lhe um íntimo calor, apesar de, na semi-escuridão, mal distinguir os olhos de Kate.

Esta sussurrou:

. — Foi um pouco difícil livrar-me do dele­gado. Ele talvez quisesse que aquela cena não terminasse nunca, apesar da sua mulher, que estava ali, nos fitar como uma loba.

— O delegado crê que nos odiámos — dis­se Vance, enquanto acentuava seu sorriso.

— Sim. Reconheço que a comédia que re­presentou no seu escritório, quando me levou "detida", foi bem boa — murmurou ela.

Moveram-se lentamente para um lado da casa onde não havia janelas, para terem a cer­teza de não serem ouvidos.

— Até quando quer você que isto continue?

— perguntou Vance rapidamente, segurando-a por um braço.

— Até que Bentley fique louco.

A voz da moça traía uma secreta, uma inextinguível fúria.

— Então você está a ponto de o conseguir.

— Ainda não é o bastante. Eu o odeio de toda a minha alma — disse ela asperamente.

— Pamela era minha melhor amiga, a pessoa a quem devia muitas coisas. -Não descansarei en­quanto não tenha sido vingada. Não pararei en­quanto Bob Bentley não tiver pago suas cul­pas, uma a uma.

— Mas já temos provas de que ele a ma­tou. Temos o rifle. Porque não dar parte ao de­legado Lincoln?

— Não quero expôr-me a que saia absolvi­do, em virtude dessas miseráveis chicanas que, às vezes, os juizes se vêm obrigados aceitar nas cidades pequenas. Não. isso não aceitarei nun­ca! Quero que morra! Quero que ele sofra como ela sofreu!

Vance acendeu por sua vez um cigarro. Per­cebia que o ódio da moça era quase como uma coisa sólida, palpável. Compreendia até que ponto ela odiava Bentley. Não o perdoaria ja­mais por ter assassinado Pamela.

— Você ainda não me explicou como des­cobriu que era ele — murmurou. — Este pon­to ficou um pouco confuso entre nós.

— Não há nenhum mérito. Pamela me ex­plicara seus temores na carta que me escreveu. Porém foi você quem descobriu o rifle e não eu. O mérito é todo seu.

Tratava-se de uma simples dedução — ex­plicou Vance. O caso do acidente daquele ho­mem pareceu-me suspeito desde o primeiro mo­mento. Examinei as balas encontradas no corpo de Pamela e compreendi que tinham sido dis­paradas por uma arma de cano serrado, coisa que os técnicos da polícia local também pode­riam ver se não estivessem adormecidos pela ro­tina. Então não restava mais nada senão achar a arma. Eu estive procurando-a durante muito tempo, enquanto esse biltre se divertia na Eu­ropa. Por fim a encontrei. Só com esta prova, creio que Bob não teria salvação.

— Não estou certa. Necessito estar conven­cida de que ele vai morrer irremediavelmente.

— E por isso você quis que puséssemos o rifle na cabeceira da sua cama, não é verdade?

— Esse foi só o primeiro passo.

— Aconteceu a seguir o fato do piano to­car. Depois o perfume. As marcas de outro cor­po na cama... Reconheço que você tem agido com uma habilidade diabólica, Kate.

— Ele está agora à beira do paroxismo.

— De certo que está.

— Acabará ficando louco e então... en­tão o entregarei ao delegado — articulou ela com ódio reconcentrado. — Então, quando to­dos os seus dias não sejam mais que um suplí­cio infernal, pouco me importarei que o matem ou não! Então saberei que Pamela está vinga­da, vingada para sempre! Só nesse momento me sentirei tranqüila! Vance murmurou: — De qualquer modo, isto não pode conti­nuar por muito tempo, Kate. Como agente da lei, tenho o dever de entregar esse homem, uma vez tenha reunido provas contra ele. As provas existem. Não podemos retardar a ação da jus­tiça. Fará uma última coisa contra Bentley, Kate, mas, só uma.

— De acordo. Essa vai ser definitiva.

— Em que consistirá?

— Eu sabia muito bem o que Pamela tinha falado com ele e por isso quase posso adivinhar seus pensamentos. Pamela me escreveu uma úl­tima carta detalhadíssima. Por isso sei que há alguma coisa que acabará por deixar Bentley louco.

— O que é que vai fazer?

A moça apertou os lábios e respirou lenta­mente antes de responder:

— Você se lembra daquele velho relógio?

— Sim, claro que me lembro. Aquele do vestíbüío.

— Estive estudando o bem e sei que fun­cionará perfeitamente. Por sinal já o lubrifiquei, valendo-me de um óleo de máquina que encontrei no hotel. Hoje a noite vou pô-lo a bater as horas.

 

ENTRARAM no vestíbulo da casa. A porta não chiou. Um silêncio espesso, angustiante, a recebeu apenas puseram os pés no umbral do aposento.

Um silêncio apenas quebrado por um som familiar, tão conhecido que custaram identificá-lo.

Por fim. Kate conteve uma exclamação.

Era o som de um velho relógio!

O som do velho relógio de parede que esta­va há quase cem anos parado!

Alguém tinha tornado a pô-lo em funcio­namento.

A moça quase que correu para ele, esquecendo suas precauções. Entretanto, não se via ninguém ali. Bentley devia estar lá em cima encerrado no seu quarto.

Kate com as feições mortalmente pálidas, contemplou a marcha dos ponteiros.

Agora marcavam onze e meia.

— Meu Deus... — sussurrou. — Meu Deus... Vance, pela primeira vez na sua vida, tam­bém estava pálido como uma vela de cera.

— Não foi você quem pôs a funcionar esse relógio? — balbuciou.

— Não. Eu só limpei parte da maquinaria e a acertei, porém... não cheguei a lhe dar corda.

— Então...

A voz de Vance quase que não existia, era mais que um sopro.

— Então... — Kate concluiu a frase —, só cabe a possibilidade de que tenha sido a pró­pria Pamela...

 

Vance sentiu que seus nervos sofriam uma sacudidela.

Sem se aperceber estava sacudindo Kate, estava torturando-a segura pelos ombros como se ela fosse uma inimiga.

Alguma coisa lhe alterava a mente, alguma coisa lhe nublava a vista.

Bruscamente encontrava-se diante do Ou­tro mundo! De súbito, ele, que tinha pensado dominar a situação, encontrava-se dominado por ela.

Aquela história da intervenção de Pamela não podia ser verdade, no entanto...

— Você está maluca, Kate -— resmungou. — Você estava assustando Bentley, para fazê-lo pagar suas culpas, e eu lhe ajudava porque me parecia justo, mas, em tudo o que tem acon­tecido até agora, unicamente você e eu temos agido. Ninguém mais! A participação de Pamela é alucinação sua. Pamela está morta! Já não existe!

Olhou no fundo dos olhos de Kate e pouco a pouco suas mãos foram soltando-a, como se já não tivesse forças.

Porque no fundo dos olhos de Kate só havia uma coisa: horror!

Ela também se sentia transtornada pela situação. Tinha começado a crer que um poder sobrenatural flutuava em torno de si.

— Aquela espécie de sonho... — balbuciou.

— Que sonho? O que você explicou ao de­legado?

— Sim...

— Eu pensei que fazia parte do seu plano — sussurrou ele — e por isso continuei acompanhando-a, mas julgando que exagerava e que não havia necessidade de tudo aquilo. Agora, porém, vejo que é certo.

— E.. . é certo.

— Você pensava de verdade que Bentley morreria diante desse relógio e que veria nele Pamela?

Dos lábios trêmulos de Kate tornou a sur­gir a palavra:

— Sim...

Agora as mãos de Vance tremiam. Agora ele sentia como que uma corrente de frio nas costas. Agora já não sabia em que pensar.

— Como foi? — sussurrou ao cabo de uns instantes. — Como você chegou a pensar nisso, Kate?

— Foi uma inspiração repentina, como um choque... Estava semi-acordada e de súbito pareceu-me ver. . . Era Pamela. Pamela numa noite de lua. . . Ela dentro deste relógio... E diante dela, olhando-a, com olhos desvairados, estava Bob Bentley.. . Bentley, que morria.. .

A voz da moça parecia vir de muito longe, desde a misteriosa região do Outro Mundo só ela podia penetrar. Sua voz tinha um tom agourento que crispou os nervos de Vance.

— Não é verdade! Isso não está certo, Kate!

— Não sei como, mas eu vi, Vance.... Juro-lhe que digo a verdade...

— Com certeza, Pamela lhe explicou al­guma coisa na sua carta. Algo que você tem interpretado ao seu modo e que lhe chegou a sugerir essa visão.

— É possível.

Não obstante, a moça não parecia conven­cida. Continuava tendo medo de si mesma.

— É possível — repetiu. — Sim, deve ser isso. Deixei-me influenciar pelos próprias pala­vras de Pamela.

— Falemos com sensatez, Kate.

— É... é o que eu estou tentando fazer. Nem você nem eu cremos em contos de aparições.

— De certo que não...

— Todas as coisas aparentemente sobre­naturais que tem acontecido até agora a Ben­tley tem sido obra nossa. Sobre isso estamos de acordo, não?

— Claro.. . claro que sim. Vance.

— Por conseguinte nada pode ser obra de Pamela. Devemos gravar isso na cabeça: Pamela está morta! Não existe!

— Mas, o relógio.. .

— Aconteceu algo, é claro, mas não pode ser sobrenatural.

— E meu sonho...

— Deve ser uma interpretação de algo que Pamela lhe disse em sua carta.

— É possível, mas... mas não posso lem­brar-me agora...

— Tem que ser isso, Kate.

Ela levou uma das mãos aos olhos, como se quisesse dissipar uma imagem que estava gra­vada neles.

— É muito possível. Relerei aquela carta... Sinto não a ter aqui.

— Devemos sair daqui, Kate. Esta noite não temos mais nada que fazer aqui. Vou ver se Ben­tley está descansando e...    

Rapidamente as mãos da moça agarraram o casaco de Vance pela lapela.

— Não... Não me deixe sozinha.

— Mas, por Deus! Que há com você, Kate?

— Nada, não é nada... — entretanto a voz da moça continuava trêmula. — Subirei com você.

— Como queira.

Subiram, ouvindo como se fosse um som ameaçador o rumor dos seus própriso passos. Ao abrir a porta do quarto de dormir de Bentley repararam que ele estava mergulhado em um sono pesado, certamente produzido pelos tran­qüilizantes. Não despertaria senão dentro de vin­te horas. Vance fechou a porta lentamente.

— Vamos, Kate — sussurrou.

Ao pegar no seu braço notou alguma coisa.

— Porque treme?

— Por nada. Só estou pensando,é que es­sas nuvens grossas não ocultarão o céu por mui­to tempo. E que amanhã haverá lua...

 

O CÉU tinha amanhecido limpo, mas Bob não notou.

Sob o efeito dos barbitúricos, dormira até às dezenove horas, quando acordou com uma terrível sensação de vazio no estômago, atordoa­do. Com muito esforço pôs-se de pé e teve que se apoiar em diversos móveis para não cair. Um bom trago de uísque lhe devolveu em parte as energias.

Foi ao quarto de banho e molhou a cabe­ça. Estava barbado, com olheiras e pálido, tão descomposto que se assustou com o próprio as­pecto.

"Terei que chamar um médico — pensou. — Terei que fazer um tratamento, e, sobretu­do, afastar-me daqui..."

Foi essa a decisão que tomou: Sair, o quan­to antes, daquela casa,

Mas primeiramente tinha que resolver al­guma coisa que o impressionara durante seu pe­sado sono, até fazê-lo revirar na sua ampla ca­ma.

Foi até a biblioteca, abriu a secretaria e tirou de novo as fotos. Haviam algumas dos seus sogros, aos quais não tinha conhecido. Todas eram normais até uma determinada data — a da morte da mãe de Pamela — quando o rosto do marido começava a assumir um aspec­to estranho, sinistro, de homem atormentado. Um rosto parecido ao que ele tinha agora. Mas Bentley não pensava nisso.

Pamela, antes de morrer, lhe tinha dito que seu pai fotografara sua mãe depois de morta. Ou, quem sabe, não lhe tinha dito? Talvez fos­se uma alucinação sua? Bentley atormentado até a medula dos ossos, precisava sair dessa dú­vida.

Esteve procurando durante algumas horas, entre papéis velhos, enquanto a noite se pro­longava, se assenhoreava de tudo do outro la­do das janelas da casa.

Enquanto isso, a Lua saía.

Os dedos de Bentley tremeram ao encon­trar o que procurava. Era uma foto amarelada, na qual se distinguia, muito tênuamente, a fi­gura de uma mulher. Uma mulher que pare­cia avançar para o que tirava a foto. Uma mu­lher que não era outra senão a mãe de Pamela!

Havia nela algo de sobrenatural, algo que não se podia definir mas que não concordava com a idéia comum que todos temos das pes­soas e dos objetos. Era como se flutuasse no ar... Era como se alguém tivesse conseguido fotografar um fantasma!

Tremendo, Bob olhou a data daquela foto. Tinha observado que seu sogro sempre anotava isso no verso, assim como o fato de que ele mesmo fazia a revelação fotográfica.

Aquela data era estremecedora e a mão que a tinha escrito tremia como se não perten­cesse já a um ser deste mundo. A foto estava datada de vários meses depois que morrera a mãe de Pamela... e justamente no dia em que seu esposo morrera de um ataque de coração!

A última coisa que fez aquele homem foi fotografar um fantasma... e morrer!

Um estremecimento total sacudiu o corpo de Bentley. Um grito de agonia escapou dos seus lábios.

Os fantasmas existem! Pamela tinha dito a verdade!

Ela voltaria, como tinha voltado sua mãe! O grito de agonia repetiu-se nos lábios de Bentley.

Suas feições estavam alteradas, e as mãos tremiam como as de um possesso.

Abriu a porta e desceu. Necessitava fugir! Tinha que sair dali de qualquer maneira, ou ele também morreria!

Os degraus das escadas começaram a flutuar diante dos seus olhos.

Tudo estava iluminado pela luz espectral da lua.

 

Em baixo, nos porões da própria casa, Van­ce e Kate examinavam os velhos utensílios do antigo laboratório onde o pai de Pamela reve­lava suas fotos em outros tempos.

Máquinas de excelente qualidade, mas pas­sadas da moda, provetas, bandejas, um par de ventiladores para a secagem, uma ampliadora, um jogo de objetivas, algumas caríssimas... Todo o necessário, enfim, para um homem que gosta de fazer fotos com grande perfeição...

Estavam revistando tudo, procurando uma explicação para o estranho pressentimento de Kate. Vance, para não perturbá-la, tinha evi­tado tratar diretamente do assunto, mas, por fim, o fez.

Envoltos naquele ambiente de pesadelo, de um mundo extinto, a voz de Vance pareceu che­gar de muito longe quando perguntou:

— Você releu a carta, Kate?

— Sim, mas já não pensava nisso.

— Quer dizer que está mais tranqüila? Ela evitava encará-lo. Sua voz soou rouca:

— Há um parágrafo na carta de Pamela em que ela me falava de seu velho relógio. Po­de ser que todas minhas imaginações tenham surgido disso, do que senti ao ler aquelas pala­vras ... De qualquer maneira, há coisas que o entendimento humano não pode compreender.

Vance engoliu em seco.

A voz da moça continuava sendo agouren­ta, desfeita por uma emoção que parecia não vir dela mesma.

— Mas esse ponto obscuro já está esclare­cido — disse ele. — Você já sabe porque che­gou a imaginar aquilo.

— Sim...

— E, apesar disso, está mais preocupada que ontem.

— Estou porque... Bem, não posso enten­der. Mas, lá em cima, naquele vestíbulo, há al­guma coisa.

Não quis continuar, mas estremeceu suave­mente.

— Que coisa? O quê?

— Não, não é nada sobrenatural e entre­tanto uma pessoa percebe. É como uma panca­da nos olhos que não pode ser explicada. Se eu tivesse uma fotografia exata veria como era aquela antes e como é agora! Alguma coisa mu­dou, Vance, alguma coisa que não posso ati­nar. Isso é o que me preocupa agora e que me tirou o sono.

— Eu também notei alguma coisa — sus­surrou Vance —, e não posso precisar em que consiste. Entretanto é uma coisa que está rela­cionada com este porão, algo que eu também vi a primeira vez que entrei nele. Se pudesse concentrar meus pensamentos! Se pudesse...

De repente ouviu-se uma batida de porta, no primeiro andar da casa. Kate balbuciou:

— Ele está descendo... Ouviam-se pisadas cambaleantes.   Passos bruscos de um homem descendo como um bê­bedo.

Imediatamente a luz se Fez no cérebro de Vance.

 

Compreendeu porque o pai de Pamela ti­nha conseguido fotografar o fantasma de sua esposa. Compreendeu porque Bentley ia "ver" Pamela.

Percebia porque a própria Pamela tinha es­crito à sua amiga falando-lhe do relógio. Ela temia fazer o que estava pensando... e, entre­tanto, antes de morrer, tinha feito...

Era tudo tão simples!

E, não obstante, tão espantoso!

Vance segurou fortemente o braço de Kate. Suas feições tinham-se transformado.

— Vamos! — gritou. — Vamos lá em ci­ma antes que seja demasiado tarde!

 

Bentley estava descendo as escadas. Seus passos eram como os de um bêbedo, como os de um possesso.

A luz da lua penetrava pela janela do pri­meiro patamar, a estranha e branca luz o per­seguia.

Aquele som, o mesmo da noite anterior, en­chia seus ouvidos, seu cérebro.

Tique-taque... Tique-taque...

Um som familiar e doce e que, entretanto, o enchia de horror. Um som que lhe parecia o dos passos da própria morte!

O relógio estava funcionando... O som de sua marcha implacável ritmava tudo!

Bentley olhou para ele. E, então, a viu!

Viu Pamela!

Pamela estava no relógio, olhando-o! Ela parecia flutuar no ar, avançando para ele!

Bentley levou as mãos à garganta. Um gri­to de horror escapou dos seus lábios, mas já sem forças. Os dedos encrespados fizeram as unhas se cravarem na sua própria carne.

Instintivamente, avançou dois passos mais, olhando o cristal do relógio e de pronto algu­ma coisa parecia romper-se em seu peito.

Um sabor espesso de sangue chegou em sua boca e o gemido agônico se repetiu. Percebeu que seus joelhos se dobravam, de que morria...

Bob Bentley viveu sua própria morte.

Não pôde perceber que, ao avançar dois pas­sos mais, a figura de Pamela se esfumava e de­saparecia.

Não pôde compreender a simples, a terrível verdade.

Quando Vance chegou junto a ele, um mi­nuto mais tarde, suas mãos estavam crispadas sobre um coração que tinha falhado, que já não palpitaria mais...

Vance resmungou:

— Era o que eu temia. Cumpriu-se a justi­ça, mas, apesar disso, eu gostaria de ter chega­do a tempo.

— Que... que foi que sucedeu, Vance?

— Pamela, antes de morrer, introduziu uma mudança nos quadros que adornam essa pare­de, sem que Bentley soubesse, nem percebesse, dada a escassíssima atenção que dedicava a es­ses detalhes e mesmo à sua esposa. Simplesmente trocou o quadro em que a mãe aparecia por outro do mesmo tamanho, onde estava fotografada ela mesma e que jazia esquecido no porão. Preci­samente foi o retrato da mãe que ele viu no po­rão no primeiro dia, depois da mudança. E era essa troca o que nós não sabíamos definir e que tínhamos notado, Kate.

— Mas... mas que isso tem que ver com...?

— A luz da lua, ao entrar por esta jane­la do primeiro patamar, se projeta sobre o qua­dro e sobre o cristal do relógio, fazendo que no cristal apareça reproduzida com muita clareza, a imagem de corpo inteiro que está no quadro. Só é possível vê-lo de determinada altura e de determinado ponto, mas o efeito causado sobre alguém que tenha os nervos abalados é de um realismo terrível. O. mesmo que aconteceu com o seu sogro, ao qual ele nem sequer chegou a conhecer, aconteceu a Bentley, esse outro as­sassino ...

— Então é verdade que John, o pai de Pa­mela, matou sua esposa? — murmurou Kate, com lima estranha voz, quase sem forças.

— Isso não saberemos nunca. Pertence ao mistério do passado, mas se sucedeu como vo­cê diz, o assassino também recebeu seu castigo.

Kate olhou como alucinada o corpo imó­vel de Bentley e a seguir contemplou o relógio que continuava trabalhando.

— Porque funciona, Vance? Eu não toquei nele...

— Sim, você mexeu nele, moça. Claro que mexeu, ao azeitá-lo e a pôr sua máquina em condições. O relógio devia ter corda, mas não funcionava por causa de algum torrãozinho de pó que ainda estava nas suas rodas, de algum pequeno objeto que se desprendeu quando al­guém, sem dúvida o próprio Bentley, lhe deu alguma batida. Isso bastou para que voltasse a funcionar de novo, renascendo do seu esqueci­mento. Não deve ser um modelo de exatidão, é claro, mas voltou a trabalhar... para assinalar a morte de um assassino.

Passou um braços sobre o ombro de Kate e sussurrou, atraindo-a para si:

— Agora o pesadelo terminou, querida. Va­mos quanto antes ver o delegado Lincoln é lhe explicar isso. Temos todas as provas em nossas mãos, de modo que não haverá dificuldades. Por certo, ao mesmo tempo, quero dar-lhe outra no­tícia que fará com que se sinta muito confusa...

Ela sorriu, debilmente, pela primeira vez em muitas horas, enquanto aceitava sua suave carícia.

— Já adivinho o que é, querido. A notícia do nosso casamento que lhe vai causar um so­bressalto. ..

E Vance sussurrou junto de seu rosto:

— A coisa mais exata que você adivinhou em toda a sua vida, Kate...

 

                                                                                Silver Kane  

 

                      

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