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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VERÃO PRÓDIGO - P.2 / Barbara Kingsolver
VERÃO PRÓDIGO - P.2 / Barbara Kingsolver

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Garnett abriu a água quente e a deixou escaldar os músculos que escon­diam as omoplatas. Como doíam, como se tivesse levado ali um soco do desordeiro no colégio.

Suspirou. A vida estava ficando muito difícil para um velho. Não era o trabalho; ele adorava trabalhar com as castanheiras. As pessoas imaginavam que devia ser enormemente tedioso proteger todas as flores na primavera, fazer a polinizaçao cruzada, recolher as sementes e plantá-las, mas para ele aquilo tudo era excitante, pois daquelas sementes talvez surgisse a tão sonhada castanheira resistente à praga. Todo saquinho de papel colocado sobre a ponta de um galho, cada pitada de pólen, cada passo trazia a esperança de uma coisa maravilhosa. Um pedaço do mundo perdido que voltava, ali, bem diante de seus olhos.

 

 

Segunda Parte

 

 

Não, o que o estava esgotando ultimamente era ter de enfrentar um problema atrás do outro, o desânimo representado por essa fazenda e toda a sua história. Ela não passava de um depósito de entulho que escondia suas ameaças sob uma pele de grama. Na verdade, todas as fazendas da região eram assim. Havia visto um jovem casal com um corretor examinando uma fazenda perto da loja de Oda Black, e ficara tentado a gritar da janela da pick-up:

- Procurando histórias? Isso aí é a história de como o Velho Blevins se enterrou em dívidas e equipamento velho, e agora está aí, esperando para enrolar o primeiro que aparecer.

Na verdade, ele não lhes dissera nada, e eles iam comprar. Tinham a aparência boba de gente da cidade; a mulher se vestia mais como homem do que o homem. Logo iam aprender o que Garnett já sabia de cor: numa fazenda velha, toda vez que se finca a pá para plantar uma árvore bate-se num pedaço de prato, o que sobrou do couro de um arreio, um pedaço de metal enferrujado, quem sabe até uma bala de canhão! Quando Garnett era menino, seu pai trazia, não se sabe de onde, balas de canhão para eles brincarem até elas desaparecerem esquecidas no pomar ou enterradas nos canteiros da mãe, esperando de tocaia para criar a maior confusão 50 anos depois, um arado, uma grade ou outro equipamento qualquer, ao custo de um dia de trabalho e muito dinheiro para o conserto.

Nessa manha ele tinha um plano modesto: terminar a limpeza do campo do fundo ao longo da cerca para plantar mais uma fileira de árvores. Imaginara que o mais difícil seria arrancar o mato, mas estava enganado. Quebrou a roçadeira e depois um disco do arado. Enterrados naquele pe­dacinho de terra, ele encontrou seis mourões de cerca enrolados em arame farpado, que evidentemente haviam sido deixados ali quando foram subs­tituídos pela cerca nova, lá pelos anos 40. Depois de arrancar tudo aquilo, descobriu uma quantidade absurda de pregos e porcas espalhados, o su­ficiente para encher três baldes (e três viagens até a pilha de entulho na garagem, que agora estava ficando monstruosa). Então, por baixo de tudo aquilo, o chassis metálico completo de uma carroça - e o pior ainda estava por vir! No fim da cerca ele descobriu um rolo enorme de plástico com alguma coisa pesada no interior, que Garnett de início pensou que podia ser um cadáver (depois do que já havia encontrado hoje, por que não?). Mas não, eram caroços de um pó branco, talvez sal gema, embora ele não pudesse ter certeza. Alguma coisa que seu pai quisera jogar fora quando Garnett ainda era menino. Esse era o problema da forma de eles pensarem naquele tempo: "fora" queria dizer apenas "em algum lugar que não aqui", para mais tarde alguém topar com aquilo. Garnett já estava cheio de tudo aquilo, e ainda não tinha limpado o terreno que queria ver pronto antes do almoço, e agora? Meu Deus, agora era o telefone chamando.

Fechou o chuveiro e prestou atenção. Era mesmo o telefone do sa­guão ao lado da porta do banheiro.

- Calma! - gritou ele, irritado pelo banho interrompido e por ter de secar a cabeça às pressas enquanto enrolava uma toalha na cintura. Saiu para o saguão frio pisando em ovos e agarrou o telefone.

- Alô - disse ele, no tom mais agradável que lhe era possível, enquan­to dava tapinhas no cabelo molhado. Não se sentia bem, conversando com alguém, quem sabe uma ligação errada, vestido daquela maneira.

- Alô, senhor Walker?

Era uma mulher, e não era da região; tinha o sotaque da cidade, aquele jeito de falar depressa todas as palavras.

- Ele mesmo - respondeu.

Ela pareceu perdida durante um momento, e ele desejou que ela desligasse, mas então ela falou.

- Gostaria de saber se seria possível lhe fazer algumas perguntas sobre cabras. Estou interessada em implantar uma criação em semigrande escala, mas não tenho tanto capital assim, e alguém me deu seu nome. Disseram que o senhor era a pessoa certa, o papa das cabras na região, e que o senhor poderia me ensinar como começar com ... não sei bem como dizer. - parou para respi­rar - Bem, vamos falar claro? Gostaria de saber se o senhor conhece alguém que estivesse disposto a me dar as cabras, de graça. Para eu poder começar.

Garnett se recompôs: o papa das Cabras da Região, apanhado com uma toalha em torno da cintura e o cabelo arrepiado, parecendo uma galinha na chuva.

- Cabras, disse ele. -É.

- Posso saber a sua localização? Seria a primeira consideração.

- Desculpe. Esqueci as boas maneiras. Aqui é Lusa Landowski, vivo na fazenda Widener. Meu marido era Cole Widener.

- Senhora Widener. Meus mais sinceros pêsames por seu marido. Gostaria de ter ido ao enterro, mas havia ... existem certas considerações entre nossas famílias. Acredito que a senhora já tenha conhecimento.

Ela ficou calada por um instante.

- O senhor é nosso parente, não é verdade?

- Por casamento. Parente distante.

- Sinto muito; meu sobrinho mencionou, mas eu me esqueci. Está certo, uma de minhas cunhadas é Walker. Acho. - ela riu, parecendo alegre demais para uma viúva recente - Ainda estou aprendendo a viver entre seiscentos parentes. E tudo muito novo para mim. Sou de Lexington.

- E a senhora estaria planejando fazer lá a sua criação?

- Não, aqui. Estou tentando fazer a fazenda se pagar, e esta é a razão da criação de cabras, se for possível. Ainda não tenho certeza se vou ser capaz, ou se é uma rematada loucura.

- Mas a senhora não tem gado na fazenda Widener? Ela suspirou, sem nenhuma alegria.

- Gado para mim é prejuízo certo, com tudo o que ele exige. O Ivomec e tudo mais, e sei que tenho de verificar se as vacas estão prenhas, mas não entendo nada de exame pélvico de vacas. Tenho medo de vacas: sou pequena e elas são enormes. - deu uma risadinha encabu-lada - Acho que ainda não sou fazendeira. Não consigo nem mesmo fazer funcionar o meu enfardador. Dois de meus cunhados têm um império de gado alugado, e acho que vou vender minhas vacas para eles. Quero me dedicar a uma criação menor. - fez uma pausa - Acho que sou capaz de criar cabras.

- Bem, pelo menos a senhora tem um plano.

- Temos muita coisa a discutir; desculpe-me. Não devia tratar de questões pessoais. Talvez esta não seja a melhor ocasião para o senhor discutir comigo. Desculpe o incômodo.

- Não é incômodo algum - disse ele, saltando de um pé descalço para o outro, sentindo uma corrente de ar: sob a toalha ele estava absolutamen­te nu em pêlo. Pensou ter ouvido alguém bater à sua porta. Ai, meu Deus, seria um carro de entregas? Ele não havia encomendado nada.

- Ah, que bom - disse ela, dando uma risadinha. - Pelo menos o senhor não afirmou que eu sou louca - ainda. Eu gostaria de aproveitar o seu cérebro. Se for possível.

- Aproveite à vontade - disse ele, infeliz. Ouviu outra batida mais insistente na porta.

- Primeiro: o senhor acha realista a minha esperança de conseguir cabras de graça? Quais seriam as suas providências?

- Sugiro que a senhora mande publicar um anúncio no jornal. O mais provável é que a senhora receba mais cabras do que precisa.

- É mesmo? Então o senhor concorda que as pessoas estão loucas para se verem livres de suas cabras. E isso quer dizer que cabras não dão dinheiro?

- Na verdade, eu não posso encorajá-la, minha senhora. Se me lembro bem, não há ninguém nesta região que tenha ganho um dólar criando cabras.

- Foi o que me disse o meu sobrinho. Mas parece-me que o problema seja de marketing. Como todo mundo que trabalha a terra, eu também estou começando a aprender. Ninguém aqui sabe o que fazer com uma cabra, ninguém nem gosta da carne, e hoje a oferta é excessiva. Meu sobrinho disse que algum tempo atrás houve uma espécie de praga das cabras no Condado Zabulon. Como foi isso?

Garnett fechou os olhos. Tudo isso estava mesmo acontecendo? Um estranho desconhecido estava batendo na sua porta, uma mulher estranha de Lexington estava tentando descobrir o seu segredo mais embaraçoso, as costas doíam como o diabo, e ele estava com as nádegas expostas ao vento. Não gostaria de estar morto, talvez apenas de estar dormindo em paz na cama, com todas as luzes apagadas.

- Senhor Walker? O senhor ainda está aí?

- Estou.

- Isso quer ... o senhor acha que eu sou louca?

- Não, de forma alguma. Não é fácil responder à sua pergunta sobre o excesso de cabras. Há seis ou sete anos, foram iniciados vários projetos 4-H que cresceram demais. É assim que eu descrevo o que ocorreu. Foi um erro que cresceu como erva daninha. Era eu o encarregado de super­visionar os meninos e deveria tê-los orientado para galinhas e porcos, mas minha mulher tinha acabado de morrer - a senhora há de entender, também é viúva. E minha vizinha tem uma implicância feroz contra as cabras de qualquer espécie. Foi um erro de julgamento de minha parte. Não posso descrever de outra forma.

- Senhor Walker, o senhor não precisa explicar, não sou jornalista. Não sou nem mesmo tão enxerida quanto as pessoas daqui. Só quero algumas cabras de graça.

- Então mande publicar um anúncio no jornal, é o que eu sugiro. Mas não deixe publicar o seu endereço.

-Não?

- Claro que não, pois eles vão despejar todo tipo de animal sobre a senhora, e vai ser um problema. A senhora tem uma pick-up, senhora Widener?

- Tenho.

- Então a senhora vai dar um número de telefone no anúncio, mas não vai dizer nada a respeito da fazenda Widener. Só o telefone, e peça para as pessoas ligarem para a senhora. Se tiverem o que interessa à senhora, então a senhora vai lá e busca os animais. Mas primeiro é preciso fazer algumas perguntas. A senhora tem lápis e papel?

- Só um minutinho. - ele ouviu o barulho do telefone largado sobre a mesa e os passos dela pela casa. Tentou adivinhar em que cômodo ela estaria. Primeiro ou segundo andar? Talvez a cozinha. O casamento fora no salão da frente, a moça caminhava muito devagar descendo aquela escada maravilhosa de sapato branco e um vestido de noiva curto e branco. Parecia ter treze anos. O casamento deveria ter sido no jardim da frente, mas na última hora o tempo ficou frio e chuvoso. Lembrava-se de tudo. EUen estava passando mal. Ele havia esquecido durante todos aqueles anos: ela estava com uma horrível dor de cabeça, e tiveram de voltar mais cedo. Já devia ser o câncer, e eles não sabiam.

- Estou pronta. Ele se assustou.

- O que eu estava dizendo?

- Quando as pessoas telefonarem, eu devo perguntar a respeito das cabras ... o quê?

- Ah, é. Primeiro a senhora vai querer cabras de corte, não é? Nada de leite?

- Definitivamente carne.

- Muito bem, então a senhora quer produzir cabritos tenros.

- Acho que é exatamente isso. Acho que a tempo de serem vendidos mais ou menos lá pelo final do ano.

- Então a senhora não pode perder tempo.

- Então é possível? Fazê-las se acasalar nesta época do ano?

- Esta não é a época certa, mas é possível. Se a senhora tiver certeza de que não tiveram contato com um bode no outono e no inverno passados, elas estão prontas para entrar no cio. Isso eu garanto.

- E essa é uma expectativa razoável?

- Deve haver umas cem famílias neste condado que têm cabras no quintal. E as pessoas não gostam de bodes - eles têm um cheiro muito forte. A senhora conhece o cheiro do bode, senhora Widener?

- Acho que não - confessou ela.

- Se conhecesse a senhora não teria esquecido. E um cheiro atraente para as cabras, mas não para seres humanos. A maioria prefere ficar só com as cabras.

- Muito bem. Isso é bom.

- Então o que a senhora quer são cabras - três ou quatro anos são as melhores, nada muito mais velho. Consiga tantas quanto puder manter, mas cuidado com os bodes. A senhora só vai precisar de um para as suas cabras. Senhora Widener, a senhora sabe a diferença entre um bode e uma cabra?

Ela riu.

- Senhor Walker, eu sou ignorante, não sou estúpida.

- Muito bem, claro, eu só queria dizer ... A senhora é de Lexington. Ele ouviu sua respiração como se ela fosse falar, mas fez uma pausa.

- Muito bem, só um bode. Entendi.

- Bem, a senhora poderia ter um ou dois de reserva. Às vezes acontece de um bode não funcionar bem, então é bom ter um ou dois de reserva. Eles terão de ficar num pasto separado, bem longe.

- Cavalheiros à espera.

Seria uma piada indecente? Ele já não sabia o que era o quê; a meninada ri da gente quando a gente diz uma coisa inocente como veado. Mas ela não estava rindo. Parecia mais interessada que os meninos do 4-H.

- Bem, se suas cabras não estiveram junto com um bode desde o outono passado, elas entram logo no cio, um dia ou dois depois de a senhora colocar o bode no pasto. Algumas pessoas dizem que é bom esfregar um pano no bode e depois passar o pano no nariz das cabras. Mas nunca achei que seria necessário.

- Então é isso: primeiro perguntar às pessoas se elas têm cabras, depois perguntar se elas estiveram no pasto com algum bode. Correto?

- Está certo.

- Se já estiveram, eu passo.

- Isso é com a senhora. Mas devia, se quer cabritos até o fim do ano. Houve uma pausa. Ela devia estar escrevendo alguma coisa.

- Muito bem. E a pergunta seguinte?

- a raça das cabras? a senhora precisa das espanholas ou da cruza de espanholas com cabras do mato, que são as mais comuns por aqui. Cabras de carne, basta perguntar se são cabras de carne. As saanens ou as suíças de leite, qualquer coisa que se ordenhe não deve ser um animal que interesse à senhora.

- Muito bem. O que mais? O senhor disse que a idade é importante.

- Nada acima de cinco anos, nada abaixo de quarenta quilos. Ela parou para tomar notas.

- O que mais?

- Bem, elas devem estar sadias. Não devem ter parasitas. Examine bem quando for buscar. Se não estiver cem por cento satisfeita, não leve.

- Deve ser difícil. Recusar a oferta de quem está me dando um animal de graça? Quem pede esmola não pode escolher muito.

- É por isso que a senhora precisa da pick-up. A senhora vai até eles. São eles que estão com um problema nas mãos. A decisão é sua.

- O senhor tem razão. A questão tem de ser encarada assim. Muito obrigada, senhor Walker, o senhor me ajudou demais. Posso voltar a telefonar se tiver mais dúvidas? Estou aprendendo à medida que avanço.

- Perfeitamente, senhora Widener. Boa sorte para a senhora.

- Obrigada.

- Até mais.

Ele desligou o telefone e fixou os ouvidos no hall de entrada lá em baixo. Ainda segurando a toalha em torno da cintura com uma mão, ele chegou na ponta dos pés até a janela e olhou para fora, embora não espe­rasse ver nada diferente nos fundos da casa. Quem poderia ter estado à sua porta? Vestiu-se rapidamente na porta que dava para a escada, um lugar da casa onde ele pouco ficava, e parou ao ver seu reflexo dentro da moldura de castanheira do antigo espelho que lá estava dependurado. Sentiu-se como se tivesse visto um fantasma, mas não de si mesmo: foi a moldura que provocou aquela sensação, seu rosto de sobrevivente con­tornado pelo que restou daquela árvore extinta.

Desceu as escadas pisando os chinelos de couro, pois havia deixado as botas enlameadas do lado de fora para serem limpas mais tarde, estava cansado demais quando voltou do trabalho. A calça coberta de carrapichos verdes ele havia dobrado e deixado sobre uma cadeira na cozinha, desa­nimado de ter de removê-los. Os espinhos afiados picariam as pontas de seus dedos e lhe dariam uma sensação de dormência e dor venenosa. Garnett acreditava que, se o Pai Onipotente havia cometido um erro, este seria a criação dos malditos carrapichos.

Chegando à porta, ele a abriu e enfiou a cabeça, olhou para a direita e para a esquerda. Ninguém. Lá estavam as suas botas, uma ao lado da outra, mas não havia sinal de nenhum caminhão de entregas, nem mesmo de que algum houvesse passado por ali. O caminhão da UPS geralmente manobrava na grama e deixava uma enorme cicatriz curva de lama. O rapaz que o dirigia tinha mais buracos de brincos nas orelhas do que cérebro na cabeça.

Garnett saiu para a varanda e espiou através das córneas embaçadas o ar pesado da tarde, como se pudesse decifrar os vestígios deixados nele. Não costumava receber visitas inesperadas. Na verdade, nunca -nem telefonemas inesperados, mas quando vem, um mal nunca vem sozinho. Alguém tinha estado ali, e não o havia encontrado. E não seria fácil ele deixar passar.

Então, ele viu a torta no balanço da varanda. Uma torta de amora, deixada lá, descansando. Tinha os pequenos cortes na crosta que permitiam a saída do suco da frutinha - ah, os mistérios celestiais criados por mãos femininas. Torta de amoras era a sua favorita. Ellen sempre fazia a dela com as primeiras frutas colhidas junto da cerca, depois de mandá-lo com um balde no terceiro sábado de junho. Garnett olhou para o céu, e perguntou a Deus que truque era aquele.

Aproximou-se para olhar melhor. Era mesmo uma torta, ainda quen­te. Talvez seus olhos o traíssem, mas não o seu nariz. Presos sobre ela, balançando na brisa, uma pequena coleção de papéis coloridos. Puxou os quadradinhos de papel, mais um envelope selado e fechou a cara. Ai, ai, ai. Será que alguém estava cobrando pela torta? Não, eram notas dele, uma da Little Brothers, outra da Southern States, e provavelmente foram retira­dos da mesma caixinha de metal junto da porta, onde ele sempre esvaziava os bolsos e deixava as notas se acumularem até a época de pagar impostos. Mas alguma coisa fora escrita no verso das notas, numa letrinha pequena e bonitinha. Era um bilhete anexado a um envelope selado.

Olhou em volta da varanda vazia. Alguém havia trazido a torta, ficou batendo na porta durante quinze minutos enquanto aquela mulher Widener falava sem parar sobre cabras, então desistiu, escreveu o bilhete, deixou a torta e se foi. Quem faria uma coisa dessas? Como se ele não soubesse. Com uma sensação triste ele levou a torta, a nota e o resto para dentro, segurando a porta com o cotovelo. Guardou a torta no armário, onde ficaria invisível enquanto ele lia, foi buscar os óculos e se sentou à mesa da cozinha para ler. Primeiro o bilhete:

Senhor Walker,

O senhor não precisa desperdiçar um selo e duas horas do tempo de Poke Sanford - pense naquele infeliz tendo de levar uma carta de sua caixa até o correio e depois trazê-la de volta até a minha! Estou ao seu lado. O senhor poderia ter batido. Era o que eu queria fazer hoje. Escrevi uma carta para o senhor, para o caso de não me lembrar de tudo [e aqui o bilhete continuava nas costas da segunda nota] ou de o senhor não estar disposto a conversar, mas na verdade eu gostaria de dizer tudo isso em pessoa. Mas o senhor não está em casa. Ora, a sua pick-up está aqui. Onde está o senhor? Vou deixar a torta e a carta. Anime-se, senhor Walker. Espero que o senhor goste das duas.

Sua vizinha, Nannie Rawley.

Garnett então rasgou o envelope e puxou a carta dobrada. Notou que suas mãos tremiam. Anime-se.

Prezado senhor Walker,

Como o senhor perguntou, é verdade, eu realmente creio que a humanidade tem um lugar especial neste planeta. E um lugar igual ao do sabiá, na opinião dele, ou da salamandra, no que ela tiver que possa ser entendido como a sua inteligência. Toda criatura viva tem de acreditar nisto: Eu sou o centro de tudo. Toda vida tem sua própria espécie de credo, mas o senhor acredita que uma salamandra reverencia um deus que se assemelha a um homem enorme de duas pernas? Que nada! Para ela o homem é um contratempo meio indefinido (se é mesmo alguma coisa) comparado ao sagrado dever de encontrar alimento, um parceiro e gerar uma descendência para dominar a lama pelos séculos dos sécu­los. Para elas, a vidinha de salamandra é tudo.

Nunca esperei que o senhor, Garnett Walker III, pudesse perguntar, "Quem liga para o desaparecimento de uma espécie?". A extinção de uma espécie de árvore desencadeou o inferno para todas as pessoas que vivem nessas montanhas - sua própria família, mais que qualquer outra. Imagine que algum ianque da cidade lhe dissesse, "Ora, senhor, a castanheira americana é apenas uma árvore -as florestas estão cheias de árvores!". O senhor ia espumar de raiva. O senhor seria capaz de perder um dia e uma noite tentando explicar por que a castanheira era uma árvore diferente de todas as outras, que tinha uma finalidade nesse nosso mundo que nada pode substituir. Pois muito bem, a perda de uma espécie de salamandra seria uma tragédia de igual proporção para alguma outra criatura que dependesse dela. Desta vez não seria o senhor, mas acredito que o senhor se interesse por todas as tragédias, não apenas as que afetam a sorte da família Walker. O senhor deve se lembrar do que mencionaram no jornal no ano passado sobre a extinção dos moluscos do nosso rio. Agora, senhor Walker, o carteiro me conta sobre um programa sobre a natureza onde foi dito que cada espécie de mexilhão sobrevive uma parte de sua vida como parasita das guelras de um tipo diferente de peixe. Se o peixe certo não estiver lá na hora certa, então a história chega ao fim! Todas as coisas vivas estão ligadas umas às outras por fios muito finos e invisíveis. Coisas que o senhor não vê o ajudam muito, e coisas que o senhor tenta controlar geralmente se voltam contra o senhor e mordem, e esta é a moral da história. Existe até uma coisa chamada o princípio de Volterra, sobre o qual eu li no meu jornal de jardinagem, que diz que a aplicação de inseticidas aumenta o núme­ro de insetos que a gente tenta matar. E uma afronta, mas é também uma mara­vilha. O mundo é muito mais complicado do que a gente é capaz de admitir.

Imagine: se alguém lhe tivesse mostrado a muda de uma árvore plantada num punhado de terra que estivesse chegando de navio da Ásia muitos anos atrás, e lhe pedisse para olhar e lhe dissesse: "Esses pedacinhos de fungo vão destruir um milhão de castanheiras majestosas, e reduzir à fome milhares de homens da montanha, e transformar Garnett Walker num velho amargurado", o senhor teria rido?

Se Deus deu ao homem todas as criaturas desta Terra para usar para seus próprios fins, ele também ensinou que a gula é pecado - e ele disse sem meias palavras, "Não matarás". Ele nunca nos mandou matar todos os besouros e lagar­tas que comem o que nós também comemos (e da mesma forma, outros insetos que polinizam o que comemos). Ele não esperava que satisfizéssemos nossos caprichos por todo tipo de alimento, arrancando a vegetação para dar lugar ao animal, e transportando tudo o que podemos imaginar para lugares onde aquilo não existe. Devemos agradecer à nossa dominação da Terra a praga da castanheira. Devemos agradecer também o birmolo, a madressilva e o besouro japonês. Acho que é um castigo de Deus por termos crescido mais que as calças. Deus nos fez à sua imagem, mas ainda assim ele tem três bilhões de anos, e nós mal saímos das fraldas. Conheço suas opiniões sobre os adolescentes, senhor Walker; mas lembre-se que em relação a Deus o senhor e eu somos muito mais jovens que eles. Somos tão idiotas que imaginamos dominar o mundo.

Gosto muito da passagem do Gênese que o senhor citou, mas não tenho certeza de que o senhor a entendeu bem. Deus nos deu todas as plantas que dão sementes, e toda árvore cuja fruta gera a própria semente. Ele nos deu o mistério de um mundo que se recria vezes sem conta. Para o senhor a fruta é o alimento, mas lembre-se de que, para a árvore, ela é o filho. "E a todo animal da terra, e a toda ave do ar e a tudo em que há vida que rasteja sobre a terra eu dou como alimento todas as plantas verdes". E aqui que Ele estava pensando nas salamandras, não está vendo? Relembrando-nos de que nelas também há vida, e que até mesmo as ervas daninhas e as algas são sagradas por serem alimento de salamandras. O senhor é um homem religioso, senhor Walker. Acho que o senhor devia pensar duas vezes antes de aplicar Roundup sobre a obra de Deus.

Não se apoquente. Todos nós temos nossas raivas particulares. Eu odeio cabras (como o senhor bem sabe), e odeio solenemente as tartarugas snapper. Sei que Deus as ama tanto quanto ama ao senhor ou a mim, mas tenho patinhos no meu açude, e uma tartaruga que os come igual ao homem sob a ponte. E insuportável. Havia um patinho que era meu preferido, branco, com uma asa marrom (dei-lhe o nome de Estribo), e ontem, na minha frente, a tartaruga apareceu debaixo dele e o agarrou enquanto ele batia as asas e grasnava. Chorei como uma criança. Teria metido uma bala na cabeça daquela f-da-p se tivesse uma arma e coragem de usá-la, juro! Mas não tenho nenhuma das duas, e Deus sabe que assim é melhor.

Sua amiga

Nannie Rawley

P.S. Tive de revirar a memória, mas lembro-me da conversa na loja de ferragens. Estava falando de mim mesma: não estou acostumada a essa transmissão automática que colocaram nos novos modelos Snapper, comparados com os antigos, de transmissão manual. Marshal diz que me vendeu um cortador pequeno e bem-educado, mas eu lhe disse que é um monstro assassino. Deixei-o funcionando no jardim da frente e fui tomar um copo d'água e quando voltei, ele tinha sumido! Chamei Timmy Boyer para dar parte do roubo! O pobre homem teve de vir até a minha varanda, de chapéu na mão, para me explicar que havia encontrado o cortador numa posição comprometedora cem metros ladeira abaixo de onde eu o havia deixado. E claro que, enquanto eu estava lá dentro, meu Snapper criou coragem e resolveu se lançar de cabeça no Ribeirão do Ovo.

Mr. Walker, descobri que as pessoas gostam mais da gente quando somos capazes de rir de nossos próprios azares, sem comentar sobre os dos outros.

Bem, pensou Garnett. Pelo amor de Deus, era demais para engolir de uma vez só. Sentiu um alívio momentâneo por saber do incidente do Snapper e um grãozinho de simpatia pelo pobre patinho da mulher (pobre Estribo!), não mais que um grãozinho, antes de sua pressão começar a subir. Quanto mais olhava para a carta, relendo suas várias páginas, mais o seu verdadeiro significado se tornava claro para ele, no meio das frases de efeito de uma amizade zombeteira. Velho amargurado!

Esqueceu completamente a torta - na verdade só iria se lembrar dela um dia e meio depois (quando ele a provou e descobriu que ainda estava boa). A torta estava longe de sua mente quando ele foi pisando duro até sua mesa de trabalho e arrancou uma folha dos cadernos de castanheira. Sem pensar duas vezes nas aparências, pois não era hora de cerimônias, pegou no copo de lápis e canetas uma esferográfica preta e escreveu com tanta força no papel que a linha oscilou como um coração aterrorizado.

Prezada Miss Rawley

Sei que a senhora aproveita toda oportunidade como um púlpito para expor suas opiniões absurdas sobre agricultura moderna!! Se a senhora conseguir provar para mim esse seu princípio de Voltaire, o de que aplicar inseticida é bom para a saúde dos insetos, então eu tomo um litro de Malation!!

Além do mais, que história é esta de Deus ter três bilhões de anos? Deus não tem idade; a Terra e seus habitantes foram criados em 4.300 a.C, o que é provado pela extrapolação para trás da população atual até a época dos dois primeiros habitantes, Adão e Eva. E provável que a senhora não conheça esta formulação científica; ou talvez a senhora esteja fazendo uma menção velada à Teoria Evolucionista. Porque se for o segundo caso, suas palavras caem em ouvidos sábios demais para aceitar esse embuste. Sou um estudioso da Ciência Criacionista, e sugiro que a senhora pense um pouco sobre uma ou duas coisas, por exemplo: além de um Criador Inteligente, quem teria condições de criar um mundo cheio de tamanhã beleza e inteligência? Como poderia o acaso (ou seja, a evolução) ter criado formas de vida tão vastamente complexas quanto as que enchem o nosso mundo? Sei que a senhora não é uma cientista, senhorita Rawley, mas quero lhe explicar a Segunda Lei da Termodinâmica, que afirma que todas as coisas naturais se movem da ordem para o caos, exatamente o contrário do que dizem os evolucionistas. Poderia dizer muitas outras coisas, mas estou lutando contra a tentação de lavar as mãos com relação à senhora e de deixar a senhora lançar sua alma no inferno como parece ser sua firme determi­nação, e deixar a senhora enfrentar entre as presas de Satã o mesmo destino de seu precioso patinho.

Aha! Pensou Garnett, orgulhoso de sua vingança e pensando que devia terminar ali.

Mas continuou, incapaz de se conter,

Sou um bom vizinho e lhe envio esses pensamentos que devem ser suficientes para a senhora e suas amigas unitaristas, que gostam de queimar sutiãs, ponderarem ainda durante muitos dias no porvir.

Atenciosamente,

Garnett S. Walker III

  1. Não sou um velho amargurado.

Garnett pregou cuidadosamente não um, mas dois selos no envelope para reafirmar seu ponto de vista (não tinha bem certeza de qual seria ele, mas confiava nos próprios instintos) e fechou o envelope antes de perder a coragem. Que se dane a educação. Já não era apenas uma questão de orgulho. Garnett Walker era agora um Soldado de Deus a caminho da caixa do correio, marchando como se fosse para a guerra.

 

Onde Lusa estava, na janela do segundo andar, o gramado da frente parecia uma faixa de veludo verde-escuro com manchas atacadas pelas traças, através das quais se via a terra avermelhada. Jewel e Emaline estavam distribuindo as cadeiras no gramado, enquanto o marido de Emaline, Frank, e Herb, marido de Mary Edna, carregavam para fora a mesa grande de castanheira. Lusa convidara toda a família para o 4 de julho, alegando que tinha de aproveitar todo o creme de leite acumulado em um mês dentro de sua geladeira para fazer sorvete. Talvez por pena, todos concordaram em comparecer - até o filho de Mary Edna e a mulher, que ela só havia conhecido no velório, vieram de Leesport.

Mary Edna tinha chegado uma hora antes com um prato de ovos em cada mão (salmonella esperando sua chance, pensou mas não disse Lusa). Lusa entrou em pânico ao ver o saguão de entrada tomado pela Menacing Eldest num terninho cor de laranja queimada; distribuiu instruções e subiu ao segundo andar a pretexto de procurar uma toalha de mesa. Mas era evidente que Mary Edna sabia que as toalhas de mesa ficavam no armário de cerejeira na sala de visitas. Nesse instante, ela estendia uma das toalhas da mãe sobre a mesa enquanto os homens agachados junto do galinheiro enfiavam cervejas no gelo e abriam garrafas de alguma coisa feita em casa. Hannie-Mavis tenta­va organizar as crianças para a tarefa de bater o sorvete, mas naquele momen­to estava cercada por elas como uma abelha rainha ameaçada por um motim das operárias. Lusa estava parada com a mão apoiada no encosto de brocado verde de uma cadeira e olhou do alto todos os cunhados, avaliando a seme­lhança deles com o bando de galinhas coloridas que geralmente circulavam pelo gramado. As galinhas fugiram mais cedo para os poleiros, para evitar o assalto da parentela. Lusa deu um sorriso triste, desejando ficar assistindo a noitada daquela janela no alto. Finalmente tinham vindo todos, convidados condescendentes. E ela não tinha ânimo para descer.

Deu um suspiro e fechou a janela. Havia chovido mais cedo. O ar tinha o cheiro fétido de cogumelos liberando seus esporos no ar úmido. Já era noite, e logo os homens estariam queimando os fogos de artifício, pin­tando o céu de azul com a fumaça de cheiro acre. O programa ajudaria a passar a noite. Deu uma olhada no espelho da penteadeira e passou a mão pela cabeleira cor de morango, sentindo-se infeliz. A calça jeans estava justa demais, a blusa de malha preta tinha um decote baixo demais, o cabelo era vermelho demais - uma Jezebel viúva.

Escolhera a blusa preta para não parecer graciosa, mas era difícil ficar feia perto de Mary Edna no seu terno sem cintura de poliéster, ou de Hannie-Mavis vestida com uma blusa listrada de branco e vermelho e short azul com estrelas brancas, chinelas douradas e sombra azul nos olhos. Lusa voltou os pés na direção da escada e forçou-os a avançar. Tempo, é tempo, tarde demais para mudar. Um ano de atraso.

Estava certa com relação aos fogos; já havia um movimento para começar. Joel, de Hannie-Mavis e Big Rickie examinavam uma série de sacos de papel pardo que haviam colocado em fila, discutindo os aspectos do esquema. Lusa agradeceu pela chuva - tivera certeza de que eles acaba­riam por incendiar o celeiro, mas não tivera coragem de proibir os fogos (eram uma tradição). Mas maio e junho haviam despejado tanta chuva sobre o Condado de Zabulon que o próprio ar já era suficiente para abafar qualquer chama. Os sapos-boi haviam saído do lago dos patos para largar massas de ovos gelatinosos na grama, talvez imaginando que os girinos seriam capazes de nadar pelo gramado até o lago, como pequenos espermatozóides. As ferozes tartarugas snapper não se limitavam mais à água, mas andavam pelos caminhos como assaltantes da estrada. Em toda a sua vida, Lusa jamais havia visto um verão tão úmido e carregado de sexo. A simples idéia de respirar já era uma proposta tórrida.

- Ei, vocês - gritou para Joel e Big Rickie, que olharam para ela, sorrindo como duas crianças. Estavam excitados pelo piquenique. Lois the Loud, por sua vez, estava sentada numa cadeira de dobrar, fumando um cigarro depois do outro, desfiando queixas sobre o quanto os dois haviam gasto com os fogos.

- Cento e oitenta e um dólares - gritava numa voz que se tornara grave depois de décadas de cigarros. A três pés de distância, Mary Edna a ignorava e reclamava da mesa. Ao ver Lusa sair da casa, aproveitou o aparecimento de mais uma ouvinte. - Cento e oitenta e um dólares! -gritou para Lusa. - Foi o quanto esses meninos gastaram no espetáculo desta noite, já ouviu loucura igual?

Lusa já tinha ouvido do andar de cima, mas fingiu consternação.

- Meu Deus! Será que eles tiveram de ir até a China? - disse ela, indo até Lois. Ficou aliviada ao ver que Lois também pertencia ao bloco das Jezebéis, vestida de jeans e uma blusa estilo western aberta até um pouquinho abaixo do permissível.

- Que nada - disse Lois - foram mesmo só até o Crazy Harry, lá na rodovia.

Lusa sabia que ao longo de toda a fronteira com o estado do Tenessee havia uma fileira de barracas que anunciavam fogos baratos. Isso porque eles eram legais de um lado da fronteira e ilegais do outro, mas não sabia qual dos lados era legal ou não.

- Eu devia ter ido com eles - continuou Lois na sua voz grave e racha­da. - Ou mandado o Little Rickie e as meninas para tomar conta dos dois. Nunca pensei que dois homens adultos iam se comportar como meninos numa loja de doces. - examinou as pontas dos cabelos, que eram longos e tingidos de preto - o que não ficava bem, na opinião de Lusa, pois Lois era clara e tinha olhos azuis, tal como Cole, e dentes grandes demais para com­binar com os cabelos lisos e tintos. Mas talvez o cabelo preto igual ao do marido e dos filhos a fizessem sentir-se parte da família. Quem sabe?

Mary Edna se agitava tediosamente aplicando uma folha de alumí­nio sobre um bolo quadrado. Era um espetáculo em poliéster alaranjado, uma fonte de calor nessa noite abafada; aquela roupa dava a Lusa a sensação desagradável de que a presença física de Mary Edna seria capaz de estragar a comida.

Como se estivesse lendo os pensamentos de Lusa, ela se virou e gritou para Lois:

- Ora, pare de reclamar, Lois, eles fazem a mesma coisa todo ano. Se você ainda não acostumou até hoje, não vai acostumar nunca mais.

Lusa se assustou, mas Lois não se abalou. Girou lentamente a cabeça na direção de Mary Edna, enquanto batia a cinza no gramado.

- Mas é claro, pode falar. Não é o seu marido quem gasta uma semana de mercearia em bombinhas e bobagens coloridas.

- Prefiro ele fazendo isso do que o que ele está fazendo agora, lá em baixo mexendo naquelas garrafas. O que é que tem dentro delas?

- Ah, querida, Frank fez aquele vinho de sabugueiro. A gente pen­sando que ele já tinha largado aquele projeto de química, ou que Emaline tinha jogado tudo no esgoto.

- Então é isso.

- Ele diz que é um produto puro e maravilhoso e que um desses dias ele vai pôr à venda.

Mary Edna tocou o cabelo azulado muito bem penteado e olhou para os homens com os olhos apertados.

- Acho que não. Se você quer saber, tenho de concordar com o Se­nhor. Aquilo é venenoso como o próprio demônio.

Lois bufou, soltando a fumaça pelo nariz, igual a um dragão.

- Depois da segunda garrafa daquela coisa, terebintina deve ser delicioso.

Lusa observou a conversa das duas irmãs, surpresa com a maldade das duas com os maridos, o próprio e o da outra, a mesma maldade que ela sentia. Cole sempre insistiu que ela reagia muito pessoalmente à família dele. Ela nunca teve irmãos nem irmãs, apenas os pais que sempre diziam por favor e obrigado entre si e para a filha que tinham produzido tarde na vida e que nunca souberam como tratar. Talvez Cole tivesse razão. Ela desconhecia os atritos, as arestas afiadas do amor familiar.

Andou até o galinheiro, decidida a investigar que demônio estava mordendo aqueles homens. Estavam envolvidos naquele tipo de discussão animada em que todos concordam e o inimigo está ausente. Política agrí­cola, estupidez do governo. Mas nem sempre.

Herb estava dizendo.

- Mas Blevins mentiu. E mais fácil ele mentir que um cachorro lamber o prato.

- Olá senhores - gritou de uma distância segura ao se aproximar, caso eles quisessem dizer alguma coisa que ela não deveria ouvir. Ficavam mortalmente embaraçados quando deixavam escapar um "inferno" ou um "diabo" na presença dela.

- Ei, Dona Widener - saudou Big Rickie. - Eu tenho uma pendenga com a senhora!

Ficou surpresa com a saudação amistosa. A briga não parecia ser muito ameaçadora.

- O que foi agora, as vacas que eu vendi para você e para o Joel? Já fugiram? Eu bem que avisei que elas gostavam de pular a cerca.

- Não senhora, as vacas estão ótimas, obrigado. Mas, não vamos esque­cer, nós só arrendamos aquelas vacas, uma percentagem sobre os bezerros. Nós não devemos nada se elas não fizerem uma família no inverno que vem.

- Eu sei os termos, e já dei minhas instruções para as meninas. Lusa sorriu. Rickie e Joel lhe tinham proposto um bom negócio e

ela sabia.

- Não, senhora. Nossa pendenga com a senhora é a sua política anti tabaco.

-Minha o quê? Ah, já sei. Os senhores me marcaram como a inimiga do pequeno produtor.

Rickie escondeu o cigarro atrás das costas. Herb, Joel, Frank e o filho de Herb o imitaram.

- Não, senhora. Nós marcamos a senhora como a Miss Butcher, a professora de mecânica da décima série. Ela jogava chaves de fenda quando pegava a gente fumando.

- Uma mulher, sua professora de mecânica? Miss Butcher> Não con­sigo acreditar.

- Pois é verdade - disse Frank. - Eu fui aluno dela, Rickie e Joel foram alunos dela, e o filho de Herb aqui também foi. Quando ela aposentou, ela já devia ter uns cem anos, e já tinha perdido três dedos.

- Pois ela devia ter vivido cento e vinte. Olhe só para os senhores. Apesar de todos os esforços dela, os senhores ainda fumam como chami­nés. Vou buscar a minha chave de fenda.

Eles baixaram a cabeça como meninos. Lusa nem acreditava que era o centro das atenções. Aqueles homens nunca lhe tinham permitido participar das suas conversas. Talvez fosse o vinho de sabugueiro que Frank agora insistia que ela experimentasse. Ele o tinha embalado em garrafas de cerveja, e era difícil saber o que cada um estava tomando.

- Nossa - disse ela depois de provar. Era seco e forte, quase como conhaque. - E bom - continuou, aprovando com a cabeça, pois eles pareci­am muito interessados na opinião dela. - Apesar de me terem dito que isso morde igual ao demônio.

Ouvindo isso, eles explodiram, todos eles, inclusive Herb. Lusa corou um pouquinho, satisfeita por ter merecido essa amizade, mas também surpresa ao se descobrir aliada desses homens contra suas mulheres. Ou talvez apenas contra Mary Edna. Parecia haver um ressentimento generalizado com relação a Mary Edna.

- Mas então, senhor Big Rickie. Qual é a pendenga que o senhor tem contra mim.

- As cabras lá no seu pasto do fundo. Agora eu sei porque a senhora fez eu e Joel levar todo o seu gado: para dar espaço para as cabras. E também sei por que a senhora arranjou elas.

- E mesmo? - sentiu um pouco de pânico, sem nenhuma razão. Little Rickie teria contado o plano dos dois? Mas, e se tivesse, isso faria alguma diferença?

- E. - os olhos de Big Rickie brilhavam.

- Muito bem. Por que eu arranjei as cabras?

- Para me fazer passar vergonha. Elas comem todo o mato e espinhos e o seu pasto fica limpinho. Então, um homem passa pela estrada e vai dizer, "Ora, o Big Rickie Bowling, o pasto dele está todo sujo de espinheiros. Não pago nem dois centavos pelo feno dele".

- Foi exatamente por isso que eu arranjei as cabras, para arruinar seu negócio de feno. Não agüento mais ficar aqui vendo você ficar rico de tanto vender feno.

- Meu Deus, Rickie - disse Joel - a mulher vai arruinar você. E melhor você largar de vez esse negócio de lavoura, se é ela quem vai ser a competição.

Estavam zombando dela? Mas era assim que eles falavam uns com os outros - uma mistura complicada de pena, ridículo e respeito que agora ela estava começando a entender. Eles pareciam claramente gostar do seu corpo, especialmente o Big Rickie e o filho de Herb de Leesport, cujo nome ela não sabia. Lusa ajustou a blusa sem saber se ela desenhava a forma dos mamilos. Buscou na memória mas não achou o nome do filho, de que ela não se lembraria nem que sua vida dependesse disso. Esperava que ele se apresentasse outra vez, mas em vez disso, ele lhe ofereceu mais uma garrafa do Demônio, que foi o nome que eles escolheram para a bebi­da. Será que ela havia virado o primeiro depressa demais? E por que Rickie estava sorrindo para ela? Ele era um pedaço - ela nunca havia notado esse lado dele. Entendeu por que Lois pintava o cabelo e os olhos.

- Aquele celeiro é de castanheira? - perguntou o filho sem nome de Herb.

- Você está perguntando para mim?

- O celeiro é seu, não é?

Ela ficou espantada pelo rumo que a conversa de repente estava tomando, no qual a sua autoridade sobre o celeiro era reconhecida. As mulheres não eram nem mesmo capazes de reconhecer a propriedade de Lusa sobre a cozinha. Mas, claro, esses homens também eram cunhados; eles, tal como Lusa, não haviam crescido nesses edifícios. Ela nunca tinha encarado essa questão desse ponto de vista: eles também não eram da família Widener.

- Acho que é mesmo castanheira - disse ela. Mostrou a junta de madeira no ponto mais alto do telhado. - Você notou que o teto foi er­guido mais tarde? Acho que ali eles usaram carvalho. Não resiste tão bem ao tempo. Todas as terças precisam ser substituídas.

Herb deu um assovio.

- Isso vai sair caro.

- E eu não sei? - disse ela. - Se você souber de alguém que goste de recuperar tetos de celeiros, pode dizer a ele que você conhece uma se­nhora pronta a fazer dele um homem rico.

- Você devia pedir a ele para fazer um coretinho lá no alto da colina -disse Frank. - Então você ia ficar controlando as cabras lá de cima.

- Eu conheci um homem que tinha dois coretinhos - disse Rickie

- Mas os dois morreram.

- Rickie Bowling, você é um completo idiota.

Ficaram todos em silêncio durante alguns momentos, à luz do anoite­cer, estudando o celeiro com todas as marcas de idade e consertos. Do fundo do galinheiro, às costas deles, veio o murmúrio de uma galinha bo­tando lentamente um ovo. No ar, o coro de insetos do verão estava afinan­do sua infinidade de trilos e estalos. A noite a música seria ensurdecedora, alta o bastante para abafar o ruído dos fogos. Mas nesse instante, Lusa e os homens ainda ouviam a voz constante de Lois que havia irritado Hannie-Mavis e agora estava enchendo seus ouvidos com o preço da pólvora.

- Eu sou um idiota - disse Rickie solenemente - que gastou cem dólares em fogos de artifício, e vou ter de ficar ouvindo isso até o Natal.

- Me disseram que foi cento e oitenta e um dólares e doze centavos

- comentou Lusa. - Aproximadamente.

- Não, os oitenta e um dólares e doze centavos quem pagou foi o Joel.

- Vamos - Joel chamou, de repente excitado. - Vamos fazer barulho.

- Calma aí, Mr. Sexton. Não podemos começar antes de estar bem escuro.

Mas Joel já estava subindo a colina. Todos o viram se afastar, obser­vando que seu caminho cruzava com o de Hannie-Mavis, que tinha se libertado de Lois e caminhava na direção do marido levando um cachorro-quente. Lusa quase fez um comentário sobre sua roupa ficar melhor no escuro, mas desistiu no momento em que Hannie-Mavis se ergueu na ponta dos pés enfiados nas sandálias douradas, recebendo um beijo de Joel antes de ele lhe tomar o cachorro-quente. Havia enorme riqueza de afeto simples no abraço dele, nas pernas esticadas dela e na inclinação da cabeça ao receber o beijo dele. Uma enorme solidão se abateu sobre Lusa. Ela precisava de Cole para enfrentar essa família. Com ele tudo fazia sentido. Ou poderia ter feito.

Joel começou a mexer nos sacos de papel, segurando o cachorro-quente bem alto na outra mão. Rickie parecia nervoso por deixá-lo fazer aquilo sozinho.

- Detesto deixar tão bela companhia - disse ele com um uma mesu-ra cortês e dirigindo a Lusa um olhar que a chocou com a sugestão. - Mas tenho de vigiar meu cunhado. Ele não merece confiança.

- E eu acho que você também não merece - disse ela. Ele piscou.

- Acho que a senhora tem razão.

Lusa desviou o rosto para esconder o rubor, fingindo olhar para a mesa posta. Ficou lisonjeada - aqui estava ela, viúva há menos de seis semanas, e seu cunhado já estava flertando com ela. Talvez ele estivesse tentando animá-la, e o álcool complicava tudo, é claro. Por um minuto ela própria havia se esquecido da tristeza. Sentiu-se ao mesmo tempo culpada e esperançosa, ao perceber que além desses dias de entorpecimento havia uma outra margem onde o prazer físico poderia algum dia surpreendê-la com um toque agudo. Onde ela voltaria a ver cores.

- Senhores. Eu devo agir como uma boa anfitriã e ver se vamos realmente ter sorvete - disse ela. Frank arrancou a garrafa vazia de sua mão e lhe deu outra cheia.

- Estamos afundando no pecado - cantou baixinho ao cruzar com Mary Edna, um Demônio em cada mão, para ver o progresso dos meninos que batiam o sorvete. Sentia um aperto no baixo abdome, que não era causado pelo vinho de sabugueiro, mas por outra coisa, uma sensação corporal que ela conhecia mas não conseguia identificar. Vinha sentindo aquilo durante todo o dia - uma sensação de estar cheia, que na verdade não era desagradá­vel, era perturbadora, e uma pinçada constante no lado esquerdo da barriga. E então ela compreendeu, no momento em que viu a careca branca de uma enorme lua cheia surgir por trás do celeiro. Claro. Ela estava sentindo a volta do ciclo. Tomara pílula durante anos, desde a universidade, mas jogou fora o que sobrou várias semanas antes, quando decidiu tirar do banheiro a escova de dentes e o aparelho de barba de Cole. Agora, depois de anos passados em hibernação, seus ovários acordavam e se manifestavam. O que explicava o fato de os homens estarem borboleteando em torno dela como bruxas: ela estava fértil. Lusa soltou um riso cheio de pesar pela persistência ridícula da vida. Ela estava liberando feromônios.

No meio da descida, o filho de cinco anos de Jewel veio correndo e trope­çou nas suas pernas, fazendo-a derramar vinho sobre si mesma e quase cair.

- Meu Deus, Lowell, o que é isso?

- Crys me fez cortar a perna! - gritava ele, apontando frenetica-mente. - Está sangrando, me dá um bcmd-aid.

- Deixe ver. - sentou-se no chão, colocou cuidadosamente as duas garrafas na grama, puxou a perna da calça de Lowell e examinou a pele íntegra.^ - Não estou vendo nada.

- É a outra perna - uma voz cansada veio da escuridão. Era Crys que vinha subindo a colina atrás do irmão. - Ele raspou a perna num prego do celeiro.

Lusa ficou frustrada pela histeria do menino. Para acalmar a si e a ele, ela o sentou no seu colo para examinar a outra perna. Encontrou um arranhão no tornozelo, que não chegara nem mesmo à segunda camada da pele. Não havia sangue.

- Você está bem - disse ela, abraçando-o com força. Pegou a perna e deu-lhe um beijo - Vai sarar antes de você casar.

Crys desabou sentada no chão ao lado de Lusa.

- Ele disse que foi por minha culpa?

- Não, não disse.

- Pois ele vai dizer. Vai contar para a mamãe. Mas eu não chamei ele para subir no celeiro comigo. Eu falei para ele não subir. Eu falei que ele é um mariquinha enredeiro, que ele vive machucando e depois chora.

- Eu não sou um mariquinha enredeiro! - gemeu Lowell.

- Psss - disse Lusa, passando o braço pelo ombro de Crys, enquanto Lowell se acalmava, apenas um soluço ocasional no seu colo. Aninhou-se melhor em Lusa, agarrando sua cintura com as mãos. - Não foi culpa de ninguém - disse ela. - E duro ter uma irmã maior que é capaz de tudo no mundo. Lowell só quer te acompanhar, meu bem.

Crys se soltou do braço de Lusa sem uma palavra.

- Nossa, é o meu Lowell que está berrando? - era Jewel gritando de trás deles, preocupada.

- Estamos bem - respondeu Lusa. - Aqui em baixo, ao lado do celeiro. Feridos em ação, mas em franca recuperação.

Jewel chegou e se sentou pesadamente na grama, e estendeu o braço para passar a mão na testa de Lowell. Ele praticamente pulou do colo de Lusa para o abraço da mãe. Crys se levantou e desapareceu.

- É um arranhãozinho à toa - explicou Lusa - Estava tentando subir no celeiro com a irmã. Não há s-a-n-g-u-e, mas eu tenho bcmd-aid lá em casa, no banheiro, se você achar que é melhor para o moral do paciente.

- Quem quer sorvete? - chamou um voz feminina na escuridão - uma das filhas adolescentes de Lois e Rickie, adivinhou Lusa. As duas assumiram a supervisão das crianças depois de Hannie-Mavis lavar as mãos da tarefa.

Lowell deu um suspiro profundo, levantou-se e correu arrastando uma perna em direção ao sorvete. Jewel se encostou um instante no ombro de Lusa.

- Obrigada, querida.

- Eu não fiz nada.

- Você não bateu neles, já é alguma coisa.

- Meu Deus, Jewel, não diga uma coisa dessas. Eu gosto dos seus filhos. Eles são ótimos, os dois.

- Ótimos, é verdade - Jewel inclinou a cabeça e cantarolou. - O menino é uma menina e a menina é um menino.

- Talvez seja disso que eu goste neles.

- a vida dos dois é dura. Pobrezinhos. Eu queria poder fazer mais por eles.

- Todo menino tem uma vida dura. Ser uma pessoa pequena num mundo de gente grande, ninguém levar a gente a sério, é duro. Eu entendo.

Jewel balançou a cabeça, e Lusa entendeu que havia nela uma tristeza mais profunda que não podia ser explicada. Lusa ficou em silêncio. Tinha suportado tantas palavras consoladoras de gente bem-intencionada e sabia quando não insistir. Durante um minuto as duas ficaram sentadas olhando a lua, que agora era um maravilhoso disco de bronze pendurado acima do celeiro. Não havia palavras suficientemente puras para tocá-la. Do fundo da escuridão azul, do fundo de sua memória, ela ouviu zeida Landowski dizer, "Shayne vee dee levooneh". Uma canção, talvez apenas o cumprimento a uma criança amada: "Bela como a lua".

- Jewel, quero lhe fazer uma pergunta meio esquisita. Esta casa, onde todos vocês cresceram. Alguém já viu fantasmas nela?

- Pára com isso! Outro dia você falou que minha mãe estava assom­brando a cozinha e eu fiquei toda arrepiada.

- Isso é diferente. Estou falando de fantasmas felizes. Jewel sacudiu a mão como se estivesse espantando insetos. Mas Lusa insistiu:

- Quando chove, eu ouço o barulho de meninos correndo pelas escadas.

- É o telhado, acho. A casa é velha e barulhenta como o diabo quan­do chove.

- Sei o que você está falando. As vezes, quando está chovendo eu ouço música ou palavras; e o barulho do telhado de metal. Já tive conversas compridas com meu avô, que gostava de tocar clarineta. Mas isso é dife­rente. Às vezes, mesmo quando não está chovendo, ouço crianças subin­do a escada, depressa, como se muitas crianças subissem ao mesmo tempo a escada. Já^ouvi uma porção de vezes.

Jewel olhou para ela.

- Você não acha que eu estou ficando doida, acha?

- Nã-ão.

- Acha sim. Muito tempo sozinha, uma viúva que está pirando. E é verdade, estou mesmo. Mas se você ouvir esse barulho, você vai ficar im­pressionada. É tão real. Toda vez que eu ouço, juro que largo o que estou fazendo e vou até a escada, certa de que vou ver crianças subindo. Não estou dizendo que "parece o som de passos". E o som de passos na escada.

- Então quem é?

Lusa olhou para Jewel, examinou-a com interesse. Mesmo no escu­ro dava para ver as linhas fundas gravadas no rosto, linhas que não esta­vam ali um mês antes. Era como se as linhas tivessem se cruzado, e toda a dor que ela sentia por dentro aparecesse no rosto de Jewel.

- Você está bem?

Jewel lhe deu um olhar desconfiado.

- Por quê?

- Porque você não me parece estar tão bem. Cansada demais, alguma coisa assim.

Jewel ajustou o lenço florido na cabeça, uma espécie de babushka que não ajudava nada.

- Eu estou cansada. Cheia e cansada - deu um suspiro.

- De quê?

- Ah, querida. Está tudo bem, eu vou levando. Não pergunta por­que eu não quero falar disso hoje. Só quero estar aqui e tomar sorvete com vocês todos, ver os fogos e me divertir - deu um suspiro fundo -Pergunta amanhã, está bem?

- Está bem. Mas estou preocupada.

- É melhor eu ir ver se o Lowell precisa de hospital. Ele já deve ter esquecido, mas se eu não puzer um band-aid agora, ele acorda às três da manha achando que vai morrer. - tentou lentamente se levantar. Lusa se levantou e lhe deu a mão e depois pegou as duas garrafas na grama. Uma ainda estava cheia.

- Você me viu andando por aí com uma garrafa em cada mão? Acho que Mary Edna está orando pela minha alma imortal.

- Mary Edna está orando é pela alma imortal do marido dela, por­que essa calça está justa em você como cortiça na árvore, e Herb Goins não tirou os olhos da sua bunda a noite toda.

- Ora, Jewel! Eu achava que o Herb era castrado.

- Pois não é. E ele não foi o único. Lusa fez uma careta.

- Sai prá lá. Você está me embaraçando. Veja se tudo está indo bem, se todos têm pratos para o sorvete, está bem? E sirva os pêssegos e amoras, há pêssegos frescos já cortados na geladeira. As frutas de­vem ser colocadas no fim.

- a gente dá um jeito.

- Eu chego num minuto. Só quero descer até a lagoa um segundo para ver a lua.

A grama colocou uma camada de umidade entre as solas de seus pés e as sandálias de borracha. Ela se moveu pela encosta até a lua cair bem no centro da lagoa, uma promessa branca e tremeluzente, velha como a noite. Sentia um enorme pesar acordando dentro de si. Às vezes ele dormia, e ela conseguia fingir que vivia, mas então ele acordava e afastava tudo o que ela tentasse ser, assaltando-a com as cem maneiras simples pelas quais ela poderia tê-lo salvo. Ele estava resfriado naquele dia. Poderia ter ficado em repouso, desistido da viagem pela montanha. Se ela fosse uma esposa melhor, ela o teria segurado em casa.

- Cole - disse ela em voz alta, só para arredondar a boca, mas então se arrependeu porque seu nome atraiu a presença dele com tal força que seu coração começou a sangrar desejos: Queria você aqui hoje. Queria recuperar todos os momentos que desperdiçamos com raiva um do outro. Queria ter tempo para fazermos um filho. Queria.

- Pssiu.

Ela voltou a cabeça. A parede do celeiro voltada para a lua estava caiada de luz, mas ela não conseguia ver mais nada. Sentiu o cheiro de fumaça. Então viu o movimento da bolinha vermelha de luz, a ponta de um cigarro aceso.

Passou a mão pelos olhos, mas estava escuro demais.

- Quem está aí?

- Eu - veio um sussurro. - Rickie.

- Little Rickie? - seu cúmplice. Foi até ele, navegando cuidadosamente em torno das manchas de barro em volta da lagoa. - Você já viu o que eu consegui? - perguntou, tentando ficar alegre por ter esquecido a autopiedade. - Você viu o pasto acima da lavoura de fumo, quando chegou?

- Psss! - a mão dele se fechou em torno de seu pulso na escuridão e ele a puxou fazendo-a contornar a quina do celeiro, e a trouxe para dentro da sombra da lua.

- O que você está fazendo, está sendo um menino mau, fumando atrás do celeiro? Pois olhe aqui, olhe como eu sou má. - mostrou as duas garrafas, que ele não quis provar.

- Não. Essa coisa do Tio Frank é horrorosa.

- Você acha? Pois eu já estava quase gostando.

- Então você está perdida.

- É possível. De quem você está se escondendo?

- Da mamãe.

Lusa deu uma risadinha. Os mistérios daquela família nunca acabavam.

- Sua mãe, a Rainha dos Camelos - é dela que você escondendo esse vício mau?

- Da minha não, da sua - disse ele, acendendo um cigarro para ela. Lusa fez uma careta, mas depois o levou aos lábios e aspirou. Depois de alguns segundos ela teve aquela sensação gostosa nos braços e sob a língua.

- Ah, é gostoso. Você é uma influência muito ruim. Já viu minhas cabras?

- Já. Deve ter umas quarenta ou cinqüenta lá no alto.

- Cinqüenta e oito, fique você sabendo, e nenhuma delas conheceu um bode. Agora elas têm um, pode acreditar. Se ele trabalhar direito, vou ter uns cinqüenta filhotes a tempo para o Id-al-Fitr, e meu celeiro novo estará pago.

- Não é pouca porcaria. E tudo por causa de um anúncio no jornal?

- a campainha do meu telefone quebrou, Rickie. Juro que não é mentira, de tanto tocar. Alguma vez você já ouviu falar de telefone se gastar? Passei a semana passada toda na pick-up, de manhã até a noite.

- a Tia Mary Edna viu você rodando para baixo e para cima. É capaz que ela saiba quantas viagens foram. E quanto custou tudo isso, total?

- Um dólar e sessenta e cinco centavos pelo anúncio, foi esse o total do meu investimento até agora. Nada pelas cabras. Você não imagina a satisfação das pessoas em me dar os animais. Parecia que eu estava tirando lixo tóxico das terras deles.

- Pode agradecer a Mr. Walker por tudo isso. Ele é como o avô de todos os bodes deste condado.

- E eu agradeço -agradeci. Telefonei para ele, e ele foi muito simpático.

- Simpático? Não é o que a gente achava na escola.

- Pois eu acho que ele é um cara muito legal. Muito prestativo. Sabe o que ele me contou? Às vezes a gente tem de esfregar um pano no bode e depois ir passando o pano no nariz das meninas, para elas ficarem com tesão.

- Ah, ... sei - disse Rickie lentamente, balançando a cabeça. - Acho que ouvi falar disso na loja da Oda Black. Alguém disse que viu você aqui no alto fazendo indecências com as cabras.

Lusa sentiu o nariz encher do vinho de sabugueiro quando riu.

- Mentira!

- Está bem. Mentira - ele deu uma tragada e olhou para o pasto. A grama estava branca à luz da lua, como se coberta pela geada. - Será* que funciona, você acha? Quer dizer, como funciona?

- Feromônios.

- O que é isso?

- Cheiros. Um mundo inteiro de amor que preferimos não discutir.

- Ah - disse ele. - Então são cinqüenta e oito cabras. E você está esperando cinqüenta cabritos?

- Pode apostar. E sabe o que mais? Você não vai acreditar.

- O quê?

- Lá em cima, no pasto em que ficava o bezerro? Três bodes - meu exército de reserva. E no pasto velho, o que fica atrás do pomar coberto de mato? Adivinhe.

- O quê, mais cabras?

- Setenta e uma cabras.

- Puta merda, moça! Agora é prá valer.

- Parece. Essas últimas, ou já pastaram recentemente junto com bodes, ou as pessoas não tinham certeza. Mr. Walker sugeriu que eu não as pegasse, pois elas não iam entrar no cio na época certa. Mas eu pensei, eu posso levá-las e deixar quietas. Em outubro eu solto os rapazes e vou ter um segundo grupo de filhotes gordos em tempo para a Páscoa Grega e o Id-al-Adha.

Rick assoviou.

- Você já fez todas as contas.

- Sou o gênio da criação de cabras - Lusa deu um tapinha na cabeça. - Não se deve contar os pintos antes da choca, mas já falei com meu primo, o açougueiro. Ele está excitadíssimo, você não pode acreditar. Vai começar a receber pedidos em setembro. Disse que nós vamos faturar horrores.

- E mesmo? Quanto?

- Não é tanto assim. Bastante. O suficiente para cobrir as despesas grandes - os consertos que eu tenho de fazer imediatamente, por exemplo.

- De quanto a gente está falando, por libra?

- Um dólar e sessenta, talvez um dólar e setenta e cinco?

Ela não tinha referência de preço, mas Rickie tinha, porque ele deu um assovio de aprovação.

- Homem, é muito bom - sorriu para Lusa.

Seus olhos já estavam acostumados à escuridão, e ela o via clara­mente: não era exatamente uma cópia do pai, mas tinha o mesmo brilho nos olhos. Ela virou a garrafa e deixou o Demônio lhe morder a língua.

- Veja - disse ele, apontando para a colina banhada pela lua. Ela viu as formas corcundas e claras de suas cabras espalhadas pelo pasto, exatamente como uma criança as coloca no desenho. Finalmente, seus olhos distinguiram mais uma coisa: o movimento do bode escuro. Estava trabalhando o rebanho, montando metodicamente uma cabra e depois a seguinte. Lusa observou maravilhada.

- Vá em frente, rapaz - saudou solenemente. - Ajude-me a construir um teto novo para o meu celeiro.

Rick riu da piada. Ela olhou para ele.

- Você já viu o que as cabras fazem na chuva?

- Já. Elas se agacham e se curvam como uma ferradura.

- É a coisa mais engraçada. Eu nunca tinha visto. Ontem estava chovendo e eu olhei pela janela e pensei: era só o que me faltava, todas as minhas cabras contraindo pólio ao mesmo tempo. Mas, logo que a chuva parou, elas voltaram ao normal.

- O que prova que ninguém presta atenção numa cabra, até o dia que ela dá um teto novo para o celeiro.

- Grande verdade, meu amigo.

A lua já estava alta e menor, e ela sentiu o pesar diminuir junto com ela. Talvez não estivesse diminuindo, nem mudando, mas perdendo um pouco de dominância em relação à paisagem, exatamente como a lua. Tentou adivinhar o que era aquilo, qual o truque da física que fazia a lua nascer enorme, e voltar ao tamanho normal quando se soltava dos galhos das árvores. A sua luz clara, ela vigiava as cabras trabalhando na própria multiplicação. Sentiu que Cole iria aprovar sua inteligência. Mas pela primeira vez desde que começara a planejar, ela sentiu uma fisgada de tristeza por essas mães e por seus filhos natimortos, pelo menos do ponto de vista maternal. Eram alimento, e as pessoas precisam de comida para suas festas, mas visto desse lado parecia um esforço e uma perda grande demais para pagar apenas o reparo do teto do celeiro e para liquidar velhas dívidas de uma fazenda velha e triste. Pela centésima vez Lusa tentou e não conseguiu imaginar como ficar ali, nem por quê. Quando tentava descrever a própria vida em palavras, não havia nada que a pren­desse nesse lugar. E ela só tinha palavras a oferecer ao pai, a Arlie e suas amigas, ao antigo chefe: "Em menos de um ano eu vou embora daqui".

Mas havia tantas coisas além das palavras. Havia o perfume da ma-dressilva, da terra recém-arada, e as antigas canções que a chuva tocava no teto. As bruxas desenhando espirais sob a lua. Fantasmas.

- Rick, você já viu fantasmas?

- Você quer dizer, de verdade?

- Por oposição aos imaginários? - ela riu. - Acho que isso quer dizer não. Desculpe ter perguntado.

- Por quê? Você está vendo fantasmas?

- Estão na minha casa. Está cheia de fantasmas. Alguns são meus, gente da minha família - especificamente o meu avô que já morreu. Outros são da sua família. Esses eu não consigo identificar.

- Assustador.

- Não, e isso é o engraçado: não são assustadores. Todos são real­mente felizes. Para dizer a verdade, são ótima companhia. Com eles a gente não fica tão solitária na casa.

- Não sei não, Lusa. Parece meio doido.

- Sei que parece. - Ele havia usado seu nome - ninguém mais na família usava, nunca - e ele não a tinha chamado de tia Lusa. O significado disso interrompeu a conversa por um minuto.

Finalmente ela disse:

- Bem, eu só queria contar para alguém. Desculpe-me.

- Não, está tudo bem. Até que é interessante. Eu nunca vi nenhum fantasma, mas também nunca vi o Alaska, e eu acho que ele existe.

- É uma filosofia que faz sentido.

- Como eles são? Ela olhou para ele.

- Está mesmo interessado? Deu de ombros:

- Claro.

- Não são como nos filmes. Parecem gente comum, na minha casa. Meninos, especificamente. Geralmente brincam na escada. Esta manhã eu os ouvi cochichando. Levantei e fui olhar do corrimão, e eles estavam lá embaixo, no segundo degrau de baixo para cima, de costas para mim.

- E quem era? - ele agora estava interessado.

- Promete que não conta para ninguém?

- Juro.

- Cole e Jewel. Um menino e uma menina, e eram os dois. Pareciam ter quatro e sete anos.

- Nã-ão. Você tem certeza?

- Tenho.

- Mas você nunca viu o Cole quando ele era menino - comentou ele. Ela o encarou.

- Você está questionando a minha precisão científica? Eram fantasmas. Não sei dizer como eu sei que era ele, eu só sei que era. Já vi retra­tos, e você sabe, ou talvez não saiba, quando a gente é muito próximo de alguém, a gente aprende a reconhecer sua vida inteira. Era ele, está bem?

E sua tia Jewel, irmão e irmã. Ela passava o braço pelos ombros dele, como se quisesse proteger o irmão contra o mundo. Como se soubesse que um dia ela ia perdê-lo. De repente eu entendi essa coisa nova a respeito deles, o quanto eles eram amigos. E tive muita pena de Jewel.

- Todo mundo tem pena da tia Jewel. Ela é a mãe do azar.

- Por quê? Porque o marido a abandonou?

- É, tio Shel se mandou, depois Cole morreu, a confusão dos filhos, e agora a doença.

- Que doença? É grave?

- Eu nem sei. Juro por Deus, ninguém me conta nada. Pensam que eu ainda sou menino. Mas eu tenho olhos, e vejo que o cabelo dela está caindo.

- Ah, não - Lusa sussurrou, baixando a cabeça. - Meu Deus, é câncer?

- Acho que é. Do ... - tocou o próprio peito. - Ela foi operada o ano passado, nos dois lados, mas ele ainda está lá.

- Ano passado) Depois de eu ter me mudado, ou antes?

- Não sei bem. Tudo foi muito abafado, até na família. Ninguém na igreja sabe. Nem o patrão dela no Kroger's. Se soubesse, ele ia des­pedir ela.

Lusa ficou sem palavras; só conseguia balançar a cabeça de um lado para o outro.

- a tia Hannie-Mavis leva ela prá Roanoke para o tratamento. Eu só sei porque ela traz os filhos para mamãe e as meninas tomar conta. Ninguém me contou nada, eu só estou juntando dois mais dois.

- Também não me contaram - disse Lusa. - Eu sabia que alguma coisa muito séria estava acontecendo. Merda, eu sabia, e eles nem me deixam ajudar - sua voz falhou. Estava vermelha e sentia os joelhos fracos por causa da notícia, e teve medo de que, se começasse a chorar, não iria parar mais. Ele passou os braços pelos seus ombros. Apenas o conforto daquele gesto, e seus olhos se encheram de lágrimas.

- Eles não querem te dar mais preocupações. Você já passou pelo pior que pode acontecer.

- Não é o pior. Eu ainda estou viva.

- Acho que é pior perder quem a gente ama do que morrer a gente mesmo.

Essa afirmação, para seu embaraço, fez Lusa chorar ainda mais. Ele era tão jovem, como poderia saber uma coisa dessas? Apertou o rosto contra o algodão da camiseta e o calor do peito dele e ficou ali, soluçando, querendo fugir dali. Já se via atirando suas coisas na mala, livros e roupas, quase nada - deixaria para trás toda a mobília pesada da família. Desceria correndo a escada e iria embora. Mas foi impossível desviar das duas crianças de costas para eia no pé da escada. E elas a fizeram parar.

Percebeu que Rick ficou em silêncio durante longo tempo, abraçando-a com paciência, acariciando-lhe os cabelos com a outra mão. Suspirou.

- Me desculpe - disse ela, afastando o rosto de seu peito e evitando seus olhos.

- Não precisa. Passei meu braço em torno de você por um minuto. Mas gostaria de fazer mais: gostaria de consertar todo o seu telhado -pôs o dedo sob seu queixo e, para choque de Lusa, inclinou-se e lhe deu um beijo muito rápido nos lábios.

- Rick - disse ela, sentindo uma espécie de histeria subir pelo corpo -Little Rickie. Sou sua tia, pelo amor de Deus - exatamente igual aos filmes, pensou ela. Uma mulher sem desejo, que é perseguida uma noite por todos os homens.

- Me desculpe - disse ele, com toda a sinceridade. Afastou-se um passo dela. - Meu Deus, como eu fui estúpido. Não fique com raiva. Nem sei o que eu estava pensando, está bem?

Ela riu.

- Eu não estou com raiva. E não estou rindo de você. Você é um homem muito bonito. Sua namorada tem muita sorte de ter você.

Sobre isso ele nada comentou. Estava olhando para ela, tentando avaliar o estrago que tinha feito.

- a senhora não vai, quer dizer, contar para ninguém, vai?

- Não, claro que não. Para quem eu iria contar? - ela sorriu, balançan­do a cabeça e enxugando os olhos com a palma da mão. - O mais engraça­do: seu pai estava pensando em tentar a mesma coisa meia hora atrás.

- Meu pai. Ele e você!

- Não fique tão chocado. Por que seria pior que você e eu? Mas agora ele estava com raiva.

- Merda, meu pai! Ele não conseguiu nada, conseguiu? Quero dizer, o que ele tentou?

Ela se arrependeu da indiscrição; de alguma forma ela se esquecera de que se tratava de um menino e de seu pai. Lusa não tinha instintos para tais coisas - não era mãe.

- Ele não tentou nada - explicou com calma. - Ainda estava nos estágios de planejamento.

- Ora! Aquele velho sem-vergonha - disse ele triste, sacudindo a cabeça - E agora olha para ele. Está lá em cima, na frente de todo mun­do, batendo bronha com os foguetes.

- Você é muito mau.

- Sou mesmo.

- Mas você tem razão. É melhor eu vigiar o espetáculo. Para poder escrever um relatório convincente para a seguradora depois que eles in­cendiarem o lugar.

Ele tocou seu ombro, fazendo-a parar.

- Não fica com raiva, está bem? Eu gosto de ser seu amigo, tia Lusa. Me desculpe essa confusão.

- Rick, eu não estou com raiva - olhou para as próprias mãos e bateu as garrafas, hesitante. Ainda estava assustada com o gosto daquela boca, a fumaça, a pungência humana que havia atravessado sua insensibi­lidade e tocado um pedaço vivo dentro dela - Sabe de uma coisa? Estou só, estou ficando meio louca, e foi muito bom sentir seus braços em volta de mim, não consigo nem pensar. Sou eu quem tem de agradecer. É isso, fim da conversa. - deu-lhe um abraço ligeiro e o deixou no meio de sua nuvem de fumaça.

Subiu lentamente a colina, impressionada pela visão das luzes que se abriam à sua frente. Centenas de vagalumes luminosos voavam da grama, e fagulhas azuis e vermelhas choviam do céu. Todas as cunhadas estavam ocupadas dando comida para as crianças ou limpando as mesas, mas os homens estavam colados nas cadeiras de abrir, gritando quando as bombas estouravam. Os mísseis voavam loucamente, um depois do outro, sobre o lago ou caindo na catalpa, criando dezenas de pequenos fogos sibilantes no meio das folhas.

- Oooh - gritavam as vozes masculinas em uníssono quando algum falhava e caía de lado na grama. Depois vinha a saudação carregada de cerve­ja quando o próximo subia direto com um assobio alto, estourando em cores acima de suas cabeças, soltando ao vento suas sementes brilhantes.

Lusa mordeu o lábio, sentindo aquela dor estranha na barriga. Esta noite estava completamente descontrolada, mas o que ela poderia fazer? Somos apenas o que somos: uma mulher vivendo o mesmo ciclo que a lua, e uma tribo de homens tentando copular com o céu.

 

— Ji! - gritou ela, contraindo-se num espasmo, como se tivesse levado um choque elétrico.

Na sua frente estava uma cabeça-de-cobre. Puxou lentamente a ceifadeira com que limpava o mato que crescia ao lado da trilha. Com um movimento lento e constante, ela apoiou o cabo do instrumento no ombro, enquanto o resto do corpo continuava imóvel, recuperando o fôle­go. Nem todas as cobras lhe provocavam a mesma reação. Já havia visto muitas, e acabara por dominar sua reação instintiva; normalmente, quan­do uma cobra de cabeça fina deslizava entre a folhagem, um nariz escuro que passava a corpo num perfil liso, sua mente reconhecia instantanea­mente um amigo. Mas uma cabeça triangular deixava-a gelada. Tal como um sinal de via preferencial, só que aqui ele significava pare! Aqui, todos os pássaros e mamíferos sabiam que aquela forma anunciava uma condição venenosa: era o perfil comum a todas as víboras em geral e às cabeças-de-cobre em particular. Aquela que tomava sol à beira da trilha era especial­mente grossa, marcada de losangos desenhados na pele, e lembrava uma meia comprida cor de cobre matizada com tons que iam de um rosado acastanhado mais claro ou mais escuro a um rosa forte e intenso. Eram cores lindas, mas não tornavam a criatura atraente.

Calma, defenda o seu espaço, seu pai costumava cantar, num timbre monótono e baixo. Eles haviam encontrado a primeira cabeça-de-cobre de sua vida no celeiro, enrolada atrás de um fardo de feno que tentavam tirar para dar ao gado. Ela deu um grito e disparou em direção à porta: aquela vez e nunca mais. Você não pode jugir enquanto não souber para onde. Tal­vez você fosse correr diretamente para a mãe desta. Agora ela plantou os pés no chão, observando essa moça se desenrolar preguiçosamente, toman­do várias direções ao mesmo tempo, sem pressa de escolher seu cami­nho. Respirou profundamente e tentou não odiar a cobra. Ela só cumpria sua obrigação; viver a vida como outras milhares de cabeças-de-cobre dessa montanha que nunca seriam vistas por olhos humanos; só queriam sua quota de um ou dois roedores por mês: seu salário vivo, sua contribui­ção para o equilíbrio. Todas tinham a esperança de não ser pisoteadas ou, permita Deus, de não ter de fincar suas presas num mamífero enorme, impossível de ser comido, cem vezes maior que elas - um desperdício de preciosas toxinas. Ela sabia de tudo isso. É possível a gente ver um ani­mal e saber que não há lugar para nós no coração dele, mas mantê-lo fora do nosso coração é uma coisa muito diferente.

Finalmente, a cabeça de mandíbulas largas fugiu do sol e entrou no capim alto. O corpo se esticou e seguiu numa linha sinuosa, deslizando encosta abaixo. Pouco depois, a cabeça reapareceu, a língua vibrando, três metros abaixo, em outra mancha de sol. A linha fixa de sua boca saía do nariz chato numa pequena curva, à feição de um sorriso irônico, mais uma ilusão criada pelas mandíbulas grandes que abrigavam as presas em seu interior. Ela sabia disso, mas mesmo assim ela ainda sentia uma forte emo­ção. O medo, a raiva e a sensação de enjôo no estômago faziam-na sentir-se fraca, mas agora ela sabia: odiava aquela coisa por causa do sorriso.

- Fique aí - disse ela para aquele olhar que não piscava - apague esse sorriso da sua cara.

Voltou-se e subiu a encosta levando a ceifadeira apoiada no ombro. Sentia as pernas pesadas como chumbo. Não havia razão para tanto can­saço, mas ela já queria encerrar ali o dia. Um almoço tardio, aninhar-se com um livro na mão. Ia chover. Inesperadamente, vieram trovoadas barulhentas naquela manhã (em todas elas deu um pulo, igual ao que a cobra provocara): uma tempestade se aproximava, vinda do Kentucky. Tomou um atalho para chegar à estrada passando por uma antiga clareira, agora já reocupada pela vegetação, mas ainda ensolarada e cheia de carrapichos. No verão, ela sempre procurava evitar esse caminho para não ter de ficar mais de uma hora arrancando os carrapichos da roupa. Mas não queria ser pega pela tempestade. Passou a foice nas densas moitas de carrapichos, invadida por uma perversa satisfação, perversa porque elas estavam em todo lugar. A vingança dos papagaios, era assim que ela se referia aos carrapichos. Eles evoluíram junto com um exímio comedor de sementes, o papagaio da Carolina, cuja extinção, depois da chegada dos europeus, foi tão rápida e completa, que pouco se sabia a seu respeito, além do seu alimento favorito. John James Audubon pintou retratos dos pássaros com os bicos cheios, banqueteando-se entre os carrapichos, e descreveu as viagens dos grandes bandos coloridos que subiam e desciam os vales à procura dos carrapichos, e quando viam as moitas cheias de cachos, desciam ruidosamente e os devoravam, a ponto de eles quase desaparecerem. Eis aí uma coisa difícil de imaginar: a escassez de carrapichos. Agora não havia quem os comesse, e nem haveria no futuro.

Agora, agarravam-se às roupas dos passantes e se espalhavam pelos pas­tos, fazendas e até nas clareiras da floresta, tentando ensinar às pessoas algo que elas não sabiam mais como aprender. Tinham esquecido.

Apertou o passo ao ouvir as primeiras gotas respingarem nas folhas. Uma hora atrás, ela estava suando, mas 4 medida que a tempestade se aproximava ela sentia a temperatura cair como se ela estivesse mergu­lhando num lago. Parou para soltar o casaco da cintura e vesti-lo, pu­xando o capuz até quase junto aos olhos, antes de partir novamente a trote. Quando chegou à estrada do Serviço Florestal que vinha do vale, já estava correndo.

Na estrada, ela diminuiu a corrida com medo de torcer o tornoselo na pista irregular e porque a encosta era muito íngreme: tinha de recuperar o fôlego. Por que as pessoas corriam na chuva? Ainda tinha de andar quase um quilômetro, e de qualquer forma chegaria encharcada em casa. Achou graça de si mesma, e então parou para ouvir.

Era um veículo. Ela parou para vê-lo aparecer na curva para saber que tipo de invasão humana seria aquela. Triste ter de admitir, mas ela já acreditava que gente significava problema. Sabia que o Serviço Florestal não aprovava sua atitude pouco acolhedora, mas essa montanha certamente seria um lugar melhor se as pessoas a evitassem. Esperou, sentindo os ombros tensos, e ficou surpresa quando a lateral verde do jipe do Serviço Florestal surgiu dentre os troncos molhados. Hoje? Que dia era hoje: já era julho?

Pensou um pouco. Era verdade, já se estava no meio da primeira semana de julho. Que diabo, eles tinham mandado os suprimentos e ela havia esquecido o como-é-que-ele-chama mais uma vez. Jerry Lind, o sujeito que geralmente lhe trazia a correspondência e os mantimentos. Ela tinha de lhe entregar uma requisição. O coração batia, e não apenas por causa da corrida encosta acima: Eddie Bondo estava lá em cima. Naquela manhã, ela o havia deixado sentado na varanda, descalço, lendo o Guia de campo dos pássaros do Leste. Ora, deixe para lá.

- Oi, Diana, você está parecendo a própria Morte, com essa foice no ombro.

Jerry vinha dirigindo com a cabeça fora da janela.

- Oi Jerry. Você está parecendo o próprio Urso Smokey. Ele tocou a aba do chapéu.

- Protege da chuva.

Desligou o motor, veio reduzindo a velocidade até chegar perto de Diana; então, freou com força, sacudindo o jipe. A estrada estava vincada por valetas profundas por onde corriam rios cor de chocolate. Ela apoiou o pé no estribo do jipe e amarrou os cadarços encharcados.

- O que você fez com o meu material? Deixou jogado na varanda?

- Não. Pus lá dentro por causa da chuva. A correspondência ficou na mesa, junto com as caixas de comida. E o bujão de gás para o fogão eu deixei na varanda.

Ela o estudou procurando algum sinal de que ele havia descoberto alguma coisa na cabana.

- Teve algum problema? - perguntou cautelosamente.

- Ah, você está falando da porta? Acho que tive: aquelas dobradiças estão que é ferrugem pura. Você tem WD-40 aí? Ou é melhor eu trazer no mês que vem?

Foi esse o único problema? Abrir a porta? Ela observou o rosto dele.

- Óleo eu já tenho - disse ela pausadamente -, mas tenho de lhe dar uma lista para o mês que vem. Vou precisar de madeira para consertar uma ponte, e também de uns livros.

Jerry mexeu no chapéu e cocou a testa.

- Meu Deus, mais livros. Você nunca pensou em pedir, por exemplo, uma tevê?

- Existe tevê à pilha? Não venha me dizer que existe uma coisa dessas. Eu nem ouço o rádio que já tenho.

- Não ouve rádio? O presidente pode ser assassinado e você só vai saber um mês depois.

Ela pôs o pé esquerdo no chão e levantou o direito para amarrar o cadarço.

- Diga uma coisa, Jerry. Se o presidente fosse assassinado hoje à tarde, o que você faria amanhã que não teria feito se não houvesse assassinato?

Jerry pensou numa resposta.

- Nada, talvez assistir muita televisão. A CNN informaria a cada quinze minutos que ele ainda está morto.

- E por isso que eu gosto da vida, Jerry. Eu observo pássaros. E eles fazem uma coisa diferente a cada quinze minutos.

- Entre. Vou te levar até em casa e pegar a sua lista. Prometo não te contar nenhuma notícia do mundo lá de fora.

- Está bem.

Ela deu a volta por trás do carro e subiu do lado do passageiro, jogando a ceifadeira atrás dos bancos.

- O que você ia fazer se não tivesse me encontrado? Ia repetir a lista de requisições do mês passado?

- Não ia ser a primeira vez.

O jipe avançou aos solavancos quando Jerry tirou o pé do pedal do freio. A estrada era muito íngreme.

- É mesmo. Não seria. Estou comendo até hoje o arroz que você trouxe a mais em novembro.

O que ele poderia ter visto na cabana? Sentia-se embaraçada e inde­fesa como se Jerry a tivesse visto nua. Procurou sinais de seus pensamentos. Enquanto recebia as gotas de chuva, à medida que o jipe descia a encosta, examinava-o com atenção para ver se ele dava alguma indicação do que estaria pensando. Jerry parecia o mesmo: ou seja, um menino. Resistiu à tentação de lhe pedir para reduzir, e usar a transmissão em vez dos freios. Quem era ela para pedir tal coisa? Fazia já dois anos que ela não dirigia.

Ele fez uma careta para a estrada estreita. O acostamento descaía para a esquerda, enquanto a estrada subia para a direita.

- Nunca dei ré nesta estrada. Existe algum lugar com espaço para manobrar?

- Pouco mais de dois quilômetros abaixo. Logo abaixo daquela fa­zenda a estrada fica mais larga.

Ela se mexeu no banco.

- Quem é dono daquele lugar lá no fundo do vale? Você sabe?

- Sei: é a fazenda Widener. O dono é o Cole Widener. O Serviço Florestal teve de arranjar com ele a liberação de uma faixa de passagem para nós quando recuperamos esta cabana. Foi antes de você chegar.

Ela olhou para o lado, pensando pensativa.

- Os Wideners - disse ela, balançando a cabeça devagar -, eles têm um pouco de madeira. Há uma mata virgem na fazenda, juro, junto da nossa divisa. Todo ano eu morro de medo de eles descobrirem o que têm e derrubarem tudo. Seria o fim de um maravilhoso habitat que vai até o alto deste lado da montanha.

- Ei, ouvi dizer que ele morreu. Dois pneus do caminhão estouraram do mesmo lado e ele bateu no pilar de uma ponte, ou uma coisa assim. Na setenta e sete, na subida.

- Nada de notícias, Jerry. Você me prometeu.

- Oh, desculpe.

- É uma pena. Quem vai ficar com a fazenda agora? Aposto que vão desmatar tudo.

- Isso eu não sei.

- Widener... Como era o nome dele? Você acabou de dizer.

- Cole. Igual ao Old King Cole. Só que me disseram que ele era muito moço.

- Cole. Estou tentando lembrar, talvez eu o conheça. Na escola, eu tive umas colegas de sobrenome Widener, mas eram moças.

E nem eram um bando amistoso, pelo que ela se lembrava. Vinham para a escola com vestidos feitos em casa e não se misturavam, eram como um clube.

- Nem precisa me perguntar - disse Jerry alegremente.

- É claro que não. Você é de Roanoke e só tem doze anos.

- Isso mesmo, minha senhora, quase acertou. Na verdade, eu tenho vinte e quatro. E o retorno?

- Desculpe. Na verdade, não existe nenhum lugar bom para mano­brar: o melhor é jogar uma ré e subir devagarinho.

Jerry fez o que ela sugeriu, apesar da dificuldade de subir aquela estradinha em marcha à ré.

- Que diabo - repetia ele, dirigindo com o corpo meio virado para trás, virando as rodas toda hora para o lado errado -, é como a gente escrever usando um espelho.

- E sabe o que mais, Jerry? Acho melhor você parar e eu vou andando buscar a minha lista.

- Pode deixar. Eu te levo até lá em cima.

Diana se sentiu mal ao se aproximarem da cabana. Parece que ele não tinha encontrado Eddie da primeira vez, mas não convém abusar da sorte.

- Não - disse ela -, não faço questão de andar. Pare aqui, não vou demorar nem dez minutos.

- Você não faz questão? Ou não se importa? Ela olhou exasperada para ele:

- Quer parar e me deixar sair?

Ele continuou lentamente a marcha à ré, e por um instante um dos pneus saiu da estrada.

- Você vai demorar uma hora, e está chovendo canivetes. Qual o problema, você virou uma borra-botas?

- O quê - Que isso, Jerry, agora você está estudando ou fazendo um curso de dialeto hülbillyi

- E a minha mãe que fala assim: "Fulano é um borra-botas". Ela mora em Grundy.

- Ótimo. Estou me borrando, sentada aqui esperando você entrar numa árvore ou cair no despenhadeiro. Quer deixar eu ir andando?

-Não.

Desistiu. Brigar com Jerry para ter o direito de caminhar na chuva era ridículo. Olhou para frente para ver a estrada se desenrolar diante deles como um filme passando em retrocesso e em câmara lenta. Será que ele era tão cego? Mesmo que Eddie Bondo não estivesse lá, a cabana estava cheia dele. O bule dele no fogão, a mochila debaixo da cama. Pensando bem, havia bem poucos sinais. Quase nada. Tranqüilizou-se.

- Ei, encontrei o seu namorado.

- O quê?

- Ele é bacana. Nunca conheci ninguém do Wyoming.

- E que você fez, Jerrry, entrevistou ele? Ele não é meu namorado. E só um amigo que subiu a montanha para uma visita de uns dois dias. Amanhã ele vai embora.

- É, está bom.

- O quê? - perguntou ela.

- Nada. Ele vai embora amanhã.

Ora, pensou Diana. Se alguém lhe perguntasse, ele iria mesmo. Me­xeu as pernas; o jipe não fora feito para gente comprida. Os soldados devi­am ser mais baixos na Segunda Guerra.

- Por que todo mundo logo imagina que é um namoro quando um homem e uma mulher são amigos?

Jerry encostou o punho na boca e limpou a garganta.

- Talvez seja por causa do pacote com vinte e cinco camisinhas jogado no chão ao lado da cama.

Ela se virou para ele de boca aberta.

- Jogado no chão. Meu Deus, Jerry, você não tem nada com isso. Ele é só um amigo, está bem? Vocês vêem uma mulher sozinha e logo imagi­nam que ela tem um homem escondido em algum lugar.

Ele que vdpam o inferno, pensou ela, por que já não tinha ido embora? No mês anterior, quando o Jerry trouxe a correspondência, ele não estava, geralmente ele não estava lá; na semana anterior, ele se mandara e ficara longe durante uns quatro dias, na chuva, só porque ela olhou para ele de cara feia. No dia em que Eddie deveria sumir como o Houdini, Bondo resolveu ficar em casa.

- Muito bem - disse Jerry -, você é quem sabe. Diana olhou fixamente para frente.

- O mais provável é que ele tenha pensado que você é o meu namorado.

Jerry ficou vermelho.

- Que pensamento assustador horrível, não é, Jerry? Aposto que você quase se borra só de imaginar.

- Eu não disse isso.

- Está bem, pare ao lado da cabana. Vou entrar correndo e pegar a minha lista de requisições. E não vá sair contando para todo mundo que eu requisitei comida extra para um visitante, está bem? Porque eu não requisitei.

- Eu não vou te denunciar, Diana. Os funcionários públicos têm direito à vida privada. Acho que lá no escritório eles iam até ficar felizes se soubessem que você anda dormindo com alguém aqui em cima. Todo mundo se preocupa com você.

- Ah, é mesmo?

- Eles acham que você devia descer mais vezes. Você já deve ter uns cem dias de férias acumuladas que nunca usou.

- E como é que você sabe que eu não usei? E se eu tiver usado aqui em cima? Quem sabe se agora mesmo eu não estou de férias?

- Você mora aqui - disse ele com firmeza - você trabalha aqui. Você devia tirar férias e ir visitar a civilização. Tevê, eletricidade, ruas, carros, buzinas, biii, biii. Lembra?

- Isso não é a minha idéia de civilização, meu chapa.

Ela bateu a porta do jipe e andou a passos largos até a cabana. Abriu a porta sem ligar para as dobradiças enferrujadas e parou no vão por um segundo, olhando irritada para Eddie Bondo, que estava com a camisa de veludo cotelê desabotoada. Estava lendo, sentado na cadeira apoiada apenas nos pés traseiros, parecendo um cachorro dançarino. Apontou-lhe o dedo.

- Quando ele for embora, eu tenho contas a ajustar com você. Eddie levantou as sobrancelhas.

Ela arrebatou a lista de requisições da mesa e tornou a sair. Pela janela da cozinha, ele a via na chuva, falando como uma metralhadora com o rapaz de chapéu. Imaginou o que o rapaz estaria pensando: o capuz tinha escorregado da cabeça, as mãos voavam enquanto ela falava, e a trança aparecia por baixo da capa de chuva, batendo nos joelhos como uma cauda de um animal a galope. Quando se curvou para pegar a ceifadeira no banco de trás do jipe, o rapaz se encolheu como se ela fosse capaz de lhe arrancar a cabeça. Eddie Bondo sorriu.

Ela jogou as ferramentas ao lado da cabana, enquanto o jipe mano­brou, descendo depois a encosta.

- Você está rindo de quê? - perguntou ela ao voltar para dentro. -Acabei de ver uma cabeça-de-cobre que estava rindo igualzinho a você.

- Estou rindo de você, menina. E a cobra também.

- E eu devia cortar você em pedaços como eu fiz com ela?

- Não minta, menina valente. Você não arrancou nem um fio de cabelo daquela cabeça-de-cobre.

Ela o encarou.

- E então?

- Nada. Você é linda, só isso. Parece uma deusa quando fica com raiva.

Ele achava que ela era o quê, uma adolescente que ele podia engambelar? De lábios apertados, ela começou a mexer nas panelas, e a guardar as latas que vieram nas caixas de madeira que Jerry deixou na mesa. Arrastou os latões enormes à prova de ratos e jogou dentro deles os sacos de feijão e fubá. Eddie Bondo continuou sorrindo.

- Não estou brincando. Minha raiva é tanta, que eu sou capaz de mandar você embora, com chuva ou sem chuva.

Ele sorriu dessa ameaça tão pálida.

- O que eu fiz agora?

Ela se voltou para encará-lo.

- Não dava para você sair? Será que não dava para você ir para a casinha durante uns míseros dez minutos quando ouviu o jipe chegando?

Parou com as mãos nos quadris como se estivesse diante de um menino rebelde.

- Não lhe ocorreu a idéia de desaparecer, sumir?

- Não, não ocorreu. Posso perguntar por que eu deveria me esconder? Ela tornou a bater nos armários.

- Porque você não existe, é por isso.

- Interessante - disse ele, olhando para as costas das mãos.

- Vê se me entende: aqui você não existe. Você não é parte da minha vida.

Ela desceu o zíper do casaco e o despiu tal como uma cobra ao trocar de pele, sacudindo o cabelo milagroso. Pendurou o boné num gan­cho e soltou a ponta da trança; sentou-se na cama, e soltou um suspiro irritado e começou a desamarrar os cadarços das botas. Com a meia de lã encharcada ainda no pé, ela chutou a longa corrente de camisinhas para a escuridão debaixo da cama.

- O Jerry ficou impressionado com o seu estoque de preservativos.

- Ah, já entendi: eu destruí o seu segredo. Diana, a virgem, tem uma reputação a zelar.

Ela o encarou irritada.

- E você quer fazer o favor de pôr os quatro pés da cadeira no chão? É a única que eu tenho. Agradeço muito se você não a quebrar.

Ele obedeceu baixando a cadeira com uma forte pancada no chão. Fechou o livro e olhou para ela, esperando. Perguntou, enfim:

- Você fica deprimida nos dias de chuva? Ou é TPM?

A piada sobre a TPM aumentou-lhe a raiva. Teve vontade de lhe dizer a verdade, que aparentemente havia entrado na menopausa. A lua cheia de julho havia passado, e sua ovulação não viera, e ela nem se lembrava de quando foi a última menstruação. Sentiu que o seu corpo estava esfriando. Atirou as botas contra a porta e se levantou para tirar a calça jeans encharcada. Não ligava se ele a visse, não sentia disposição para o pudor. Não era uma virgem, era apenas uma mulher velha, sem paciência para suportar um menino.

- Que reputação? - disse ela, enquanto pendurava a roupa molhada num gancho perto do fogão e pegava uma toalha limpa do armário. -Além do Jerry e do sujeito que preenche o cheque do meu salário, ninguém mais se lembra de que eu estou aqui. Já fui esquecida.

Enquanto passava a toalha no cabelo, ela se curvou na direção do fogão. O corpo frio até os ossos o tratava como uma fonte de calor, apesar de não haver fogo ali. Observou também que Eddie acompanhava todos os seus movimentos, mirando os longos músculos de suas coxas.

- Se você não liga para o que os outros vão pensar, então qual é o problema? Por que eu devia me esconder do jovem Smokey?

- Ele não é muito mais jovem que você. Vocês dois não passam de meninos. Abotoe a camisa, aqui está gelado.

- Sim, mamãe.

E não abotoou a camisa. Ela se levantou apertando a toalha contra o peito.

- Por que estamos brincando de casinha? Você sabe que eu tenho quarenta e sete anos? Você estava começando a andar quando eu tive o meu primeiro caso com um homem casado. Você não acha muito estranho?

Ele balançou a cabeça.

- Nem um pouquinho.

- Pois eu acho que sim. Tudo. Eu ter passado seis anos pesquisando um animal que você quer que desapareça da face da Terra. Eu ser uns quinze centímetros mais alta do que você. Dezenove anos mais velha. Se passássemos os dois juntos por uma rua de Knoxville, todo mundo ia olhar de boca aberta.

- Até onde eu sei, não está em nossos planos andar lado a lado em Knoxville.

Sentou-se na cama vestida apenas com as roupas íntimas, tremen­do, e de repente se sentiu cansada demais até mesmo para se sentar. Deitou-se e puxou os cobertores até o queixo. Deitada, cabeça nos tra­vesseiros, olhou para ele.

- Pelo que sei, ninguém aqui fez nenhum plano.

- E isso é problema?

- Não - disse ela infeliz.

Ele plantou os pés descalços no chão e se inclinou, apoiando os coto­velos nos joelhos. Ao falar, usou uma nova versão de sua voz, mais calma e gentil.

- Acho que seríamos um par estranho para qualquer pessoa que nos visse passando. Mas se ninguém está olhando, não há estranheza. Pensei que fosse assim, muito simples.

- Se o orgulho cai no meio da floresta e ninguém ouve, será verdade que ele realmente caiu?

Ele piscou.

- O quê?

- Você tem vergonha de mim. Eu tenho vergonha de mim, de nós dois. Se não fosse assim, não teríamos medo de passar pela rua de qualquer cidade.

Ele estudou-lhe o rosto; parecia mais velho - como se fosse capaz de se impor momentos de maturidade mas não o considerasse tão importante assim. Tinha vinte oito anos, um macho adolescente. Era um gavião de um ano, que começa a mostrar as penas escuras de adulto através da plumagem. Na questão de escolha de parceiro, ela estava desorientada.

- No lugar de onde eu venho, as pessoas guardam seus tesouros debaixo do colchão - disse ele -, mas não precisam anunciar isso para toda a criação.

- Mas se eles guardam sempre escondido, nunca poderão usar.

- E no que se refere a nós dois, o que poderá ser usado} Onde vamos usar um ao outro, senão aqui?

- Em lugar nenhum. Não sei o que estou dizendo. Esqueça.

Ele se sentou no encosto alto da cadeira e cruzou os braços sobre o peito.

- Entendi o que você está dizendo. Na verdade, eu não sou tão estú­pido assim. Apesar da imaturidade.

Ela ficou deitada quieta por um longo tempo, observando-o. Os olhos verde-azulados, a pele exposta de seu peito, os botões de osso branco da camisa de veludo - todos os seus planos e ângulos tinham uma luz clara, cuja beleza a cortava como uma faca.

- Eddie, eu não quero me casar e viver feliz para sempre.

Ela teve a impressão de que ele tremeu ligeiramente à menção dessa possibilidade, ainda que na negativa.

- Se fosse esse o caso - disse ele com calma - eu estaria agora em Alberta.

- Alberta, no Canadá? - perguntou ela. - Ou a Alberta do Kentucky? a que grau de repugnância estamos nos referindo?

Ele olhou para ela sem oferecer resposta. Ela balançou a cabeça.

- Você ainda não é grande bastante para me partir o coração. Não sou criança, pelo menos esse crédito eu mereço. Mas também acho que nunca vou ser como você.

- Como eu? O que você quis dizer com isso?

- Viver sem planos. Eu viveria tropeçando nas paredes.

Ela girou para ficar de costas, incapaz de continuar olhando para ele.

- Quando vim para cá, pensei que poderia ser igual a um papa-mosca ou um sabiá. Viver cada dia, atravessar o inverno e festejar o verão. Comer, dormir e cantar aleluia.

- Comer, dormir, trepar e cantar aleluia.

- Ou isso - ela cobriu o rosto com as mãos e esfregou os olhos -, os pássaros viviam muito mais ativos que eu. Mas sabe de uma coisa? a verdade é que eles têm um plano. Aqui eu sou uma estranha, apenas observo. Eles vivem ocupados fazendo cada um a sua parte desta coisa barulhenta. O plano deles é a persistência da vida na Terra, e a isso eu lhe garanto que eles são dedicados.

- Você também é dedicada.

- De uma maneira muito limitada. Quando eu morrer, o que terei feito de permanente aqui? Uma tese de mestrado na biblioteca da U.T., que foi lida por onze pessoas em todo o mundo.

- Eu vou ler. Então serão doze pessoas.

- Você não ia querer - ela deu um risinho curto e desanimado -, seria a última coisa que você ia querer ler. E sobre coiotes.

- O que você fala deles?

Ela virou a cabeça para olhar para ele.

- Tudo. As populações, como cresceram e mudaram ao longo do tempo. Uma das coisas que eu digo é que o fato de serem caçados pelo homem na verdade provoca o aumento de sua população.

- Isso é impossível.

- Você não acredita, mas é verdade. Tenho cem páginas de provas.

- Acho que vou ter de ler.

- Se quiser. Seria um gesto simpático.

Um presente de despedida, pensou ela. Virou o rosto para o teto e fechou os olhos, sentindo a pressão distante de uma dor de cabeça que estava chegando. O fato de ele ler ou deixar de ler não alteraria a posição dela no esquema do planeta. Apertou os dedos sobre as pálpebras.

- Talvez seja a minha idade, Eddie. Você ainda tem tempo para fingir que a vida é infinita. Antes de ter de encarar o quadro mais amplo.

Ele não lhe perguntou sobre o quadro mais amplo. Nem se levantou e saiu. Perguntou se ela gostaria que ele acendesse o fogão, e ela disse que queria. Estava tremendo visivelmente. Puxou os cobertores sobre a cabeça, deixando uma fresta por onde via as mãos dele a colocar firme e cuidadosamente a madeira no fogão. Pensou nas coisas feitas por mãos tão valiosas: fogueiras que se apagavam; árvores derrubadas para construir casas que se decompunham e caíam. Como se poderia comparar tais coisas com a graça de uma borboleta botando fileiras perfeitas de minúsculos ovos brilhantes sobre uma folha? Ou uma papa-mosca tecendo um ninho de musgo para chocar sua ninhada? Ainda assim, ao observá-lo acender um fósforo e trazer o calor para dentro da cabana enquanto a chuva batia no telhado, ela se permitiu sentir gratidão por aquelas mãos, pelo menos naquele momento. Quando ele se deitou na cama a seu lado suas mãos seguraram as dela até ela dormir.

- Você está ficando doente - disse ele quando ela voltou a abrir os olhos. Ela se sentou meio tonta, sem saber as horas. Ele já estava de pé e vestido, com a camisa abotoada, trabalhando no fogão. Havia ligado o novo botijao de gás - ele era bom com as mãos.

- Que horas são? E que história é essa de eu estar ficando doente?

- Você espirrou dormindo. Quatro vezes. Nunca vi ninguém fazer isso.

Ela esticou os membros. Sentia-se muito cansada e um pouco dolo­rida por causa da limpeza do mato, mas nada além disso. Nem dor de cabeça: a ameaça havia passado.

- Acho que estou bem.

Inalou o cheiro rico e festivo de cebolas sendo fritas. Maravilhoso. As vezes ela tinha de lutar para resistir a amar esse homem. Pensou nos coiotes: foi bom. Uma coisa suficientemente grande, capaz de quebrar o coração dela.

- Você espirrou durante o sono - insistiu ele -, vou sair para buscar mais lenha.

Jogou dois punhados de legumes picados numa panela, cobriu com água e colocou a tampa de ferro, que tilintou feliz.

- Está escuro? Espere! Que horas são?

Ela cocou a cabeça e enviesou os olhos quase fechados em direção à janela.

- Está anoitecendo. Por quê?

- Cuidado com o ninho da papa-mosca na varanda. Não a assuste. Se sair do ninho agora ela não volta antes do amanhecer e os filhotes morrem congelados.

Não está fazendo frio: estamos em julho.

- Para um passarinho implume, está frio. Se a mãe não ficar deitada sobre eles, eles morrem.

Eddie parecia não acreditar em frio de verão nessa altitude, que os locais chamam de inverno da amora. Mas sabia que o aviso era verdadeiro, que uma ave expulsa do ninho ao anoitecer não voltava. Geralmente ficava a pequena distância, piando para os filhos, perdida. Diana nunca soubera a razão, mas Eddie lhe havia dito que um caçador conhece as percepções animais: a maioria dos pássaros é incapaz de enxergar no escuro: ao anoitecer, de um momento para outro, ficam cegos e nada vêem.

Ele sorriu, estava no vão da porta:

- Não quero sobrecarregar minha consciência com o peso de mais quatro bebês mortos: já tenho pecados demais.

- E importante - insistiu ela.

- Sei que é.

- É sim: ela já perdeu uma ninhada por causa do barulho que eu e você fizemos na varanda.

- Vou tomar cuidado. Andar na ponta dos pés. Aparentemente, foi o que ele fez. Ela não ouviu mais nada até que ele

voltasse e alimentasse o fogo. Sentiu o colchão se mexer quando ele se sentou, ouviu o riscar do fósforo e sentiu o cheiro do enxofre quando ele se abaixou para acender a lamparina de querosene na mesa ao lado da cama.

- Vire-se, que eu vou fazer uma massagem nas suas costas onde está doendo.

- O que aconteceu com você, de repente resolveu ser bonzinho? -ela abriu os olhos. - Como você sabe que minhas costas estão doendo?

- Eu sou sempre bonzinho, mas você só consegue ver o meu com­portamento irritante, nada mais.

Beijou-lhe a testa:

- Você está pegando alguma coisa, gripe ou coisa semelhante. Estava quente demais até agora há pouco. Vire-se.

- É ziquizira - disse ela -, é o que a Nannie costumava dizer. É uma. categoria geral de doença.

Virou-se e se deitou afundando a cabeça no travesseiro, sorrindo, a suspirar de alívio enquanto ele lhe massageava os ombros.

- a Nannie era namorada do papai - disse ela dentro do travesseiro, que abafou completamente as palavras.

- O quê? Ela se virou.

- Nannie era namorada do papai.

- Ah, eu entendi você dizer "o Eddie é um camarada incapaz"- Isso também é verdade.

- a dona do pomar de macieiras, sei. Era quem te dava maçãs de graça e a quem o papai comia.

As mãos dele corriam competentemente ao longo das laterais do seu corpo, massageando suavemente uma costela de cada vez, fazendo uma pausa sob os seios, e finalmente parando ali, deixando-a louca de prazer. Quando ela já não suportava mais o suspense, ele tirou a calça e se meteu entre os cobertores. Durante longo tempo ele a acariciou sem falar nada.

- Então - disse ela -, você ainda se lembra de todas as bobagens que eu lhe contei sobre a minha vida?

- Ela teve uma filha que nasceu com um defeito no coração. Mas não quis se casar com seu pai.

- Você se lembra de tudo mesmo. Nunca sei se você está ouvindo ou não.

- O fato de não termos um futuro não significa que eu não esteja aqui agora.

Ela queria, mas não conseguiu acreditar.

- Não sei por que investir tanto esforço. Afinal, você vai ter de es­quecer tudo mais tarde.

- E você acha que eu vou te esquecer depois de terminarmos aqui?

- Acho.

- Não vou.

Deu-lhe um longo beijo. Ela o observou de olhos abertos. Ao beijá-la de olhos fechados, ele parecia tão vulnerável e embevecido, que era até doloroso de ver.

- Pois eu vou te esquecer - mentiu ela -, no mesmo instante em que você sair por aquela porta.

Ele se afastou um pouco e a olhou diretamente nos olhos para con­firmar o que ela havia dito. Ela não conseguia, como ele, focalizar a vista a uma distância tão curta. Mais uma vez, era a idade.

- Se depender de mim, você não me esquece - prometeu ele, e ela tremeu. Sentiu a presciência de uma mudança ou de um profundo dano. Se depender dele. Sem serem convidados, os coiotes vieram à sua mente: os filhotes na floresta, encolhidos na toca, protegidos da tempestade.

Mas a mente de Eddie Bondo estava aqui, centrada nela, tentando se des­culpar por tê-la ferido - a referência de mau gosto a Alberta. Assim era a estra­nha dança dos dois. Muitas vezes ela tinha se atirado sobre ele num acesso de raiva, e depois passava dias a lhe oferecer comida; e cortava-lhe o cabelo, lavava as meias dele: ungüentos de desculpa. Ela se lembrou do gato de sua infância, que lhe tirava sangue e depois saía, caçava um rato e lhe trazia o fígado.

Eddie virou-se de lado e se apoiou no cotovelo para melhor desco­brir e observar o corpo dela. Foi difícil se acostumar. Ela sempre tinha de lutar contra a necessidade de se cobrir com o lençol.

- Por que o seu pai e a namorada nunca juntaram os trapos? - per­guntou ele, circulando suas auréolas com o indicador.

- Nannie nunca quis. Não sei bem por quê. Acho que foi por isso que eu a admirava tanto; por saber o que queria e por ser independente. Mas todo mundo dizia que era o papai que não queria se casar.

- Vocês, meninas, sempre ficam com o lado pior dos boatos.

- Ah, então você também já notou. E verdade. A Nannie era um tipo estranho. Ainda é. Mas ele casaria com ela num piscar de olhos. Ele era assim, um sujeito simples e honrado.

- Diferente de mim.

- Muito. Acho que ele se tornou um homem triste porque ela não aceitou se casar com ele. Especialmente depois de Rachel ter nascido tão doente. Quando ela morreu, todo mundo ficou arrasado. Papai estava perdendo a fazenda e se acabou de tanto beber. Nannie também sofreu muito, mas suportou melhor.

- E você? Ela era sua irmã. Meia-irmã.

- Era. Não sei explicar, mas sempre soube que ela ia voltar para o céu. Veio só para ser minha irmãzinha durante algum tempo. Nós brin­cávamos de pirata, eu era o capitão e ela era o anjo. Vivia feliz. Tinha um tipo de pele que é meio cremosa e transparente. Quando ela morreu, foi uma tragédia para todos nós.

Diana fechou os olhos, sentindo-se oca com essa conversa. Talvez fosse a febre, que a deixava meio zonza e sonhadora.

_ Mas a Nannie é uma mulher dura; ela sempre foi assim. Vive

quer, e não se importa com o que os outros dizem. _ Então foi ela quem te ensinou. Diana riu.

- Ah, você devia ver a confusão que eu aprontei com a minha vida. Entrei na universidade e comecei a ir para a cama com todos os meus professores.

Ele chegou o corpo para perto dela, todo ele, rijo e quente, impossível e ignorar.

- Você foi em busca de uma educação superior.

- Educação inferior. Eu não tinha idéia do que estava fazendo. Acho que eu tinha esse complexo por causa do papai. Obedecia aos meus ins­trutores. Me casei com um deles. Ele me achava brilhante e eu me casei com ele. Dizia que eu falava como um matuto, então eu parei de falar certas coisas com ele. Disse que eu devia ser professora, por isso eu fui dar aulas em Knoxville e, levei uns quinze anos, dos vinte aos trinta e poucos, para sair da casca.

- Você dava aulas de quê?

- Ciências, Matemática e Quer calar a boca, para alunos da sétima série.

Enquanto falavam, ele se colocou em cima dela apoiando o corpo nos cotovelos, deslizando lentamente para dentro dela sem mudar o tom de voz ou a conversa. Ela deu um suspiro profundo, mas ele colocou o dedo sobre seus lábios e continuou a falar.

- Não consigo imaginar você com uma maçãna mesa. Mas consigo ver você atirando giz na turma.

Ela continuou deitada imóvel, recuperando o fôlego. Como se tives­se visto uma cobra.

- É possível que eu tenha jogado giz, não me lembro. Eu gostava dos meninos, mas geralmente me sentia acuada.

Falava lenta e calmamente, como se tudo fosse muito secreto, como se os corpos tentassem se esconder de suas mentes.

- Sou introvertida - continuou cautelosamente -, gosto de viver sozinha. Gosto de viver na floresta. E lá estava eu. Vivendo numa casa de tijolos, num subúrbio de cidade grande, passando os dias na companhia de centenas de seres humanos pequenos e incrivelmente barulhentos.

Ele começou a se mover dentro dela, sem pressa. Ela precisava se concentrar para controlar a voz. Sentia os cantos da boca se contraírem involuntariamente, como o sorriso da cabeça-de-cobre.

- Eu devia ter resolvido antes, mas passei dez anos nessa agitação antes de decidir sair de lá e fazer uma pós-graduação em biologia silvestre.

- E eis você aqui.

Ele a olhou nos olhos, sorrindo, enquanto movia lentamente os qua­dris. Ela também se curvou, chegando-se a ele.

- E aqui estou eu.

- E você e o professor não tiveram filhos?

- Estava fora de questão. Ele já tinha sido casado e tinha dois filhos adolescentes quando o conheci. Pelos cálculos deles, ele e a mulher já havi­am gerado os seus substitutos. A Terra não tinha lugar para mais nenhum.

- Nossa, uma matemática muito rigorosa.

- Ele era assim. Era alemão.

- Mas você ainda não tinha um substituto.

- Acho que isso não era problema dele. Ele tinha feito vasectomia.

- E acabou. Você nunca se arrependeu?

- Não sou tão maternal assim.

Ele passou a mão pelas costas dela e a penetrou até o fundo, até ela perder o controle dos pensamentos. Ele tinha um jeito de chegar até o osso pélvico, criando uma pressão num lugar que homem nenhum já havia atingido. O coito com Eddie Bondo era um milagre da natureza. Ele a prendeu com as costas arqueadas e lançou um risinho suave con­tra o seu rosto.

- Você! Você gasta mais tempo evitando ferir uma aranha ou um filhote de passarinho do que a maioria das pessoas tomando conta dos filhos. Você é maternal.

Ele continuava prestando atenção ao que ela dizia. Ela nem se lem­brava do que havia dito.

- Psss - fez ele de repente, apertando-a e se imobilizando -, o que é isso?

Os dois prestaram atenção ao ruído suave e deslizante que vinha do telhado. Era um arranhado seco e áspero, quase como um barulho de lixa, que se movia em círculos sobre a superfície áspera. O som era agora praticamente constante ao anoitecer, quando não era abafado pela chuva.

- Não é um rato - admitiu Diana, após alguns segundos.

- Sei que não é um rato. Você sempre diz que é um rato, mas não é. É uma coisa comprida e deslizosa.

- Deslizosa? - perguntou ela. - E você ainda zomba do meu modo de falar?

- Então, comprida e escamosa.

- É, é uma cobra. Provavelmente, uma grande cobra preta que fu­giu da chuva um dia e descobriu tantos ratos por aqui, que resolveu ficar.

Eddie Bondo tremeu. Ela o sentiu diminuir dentro de si e riu.

- Não me diga que você tem medo de cobra. Você tem!

Ele rolou, saindo de cima dela, e cobriu o rosto com o braço.

- Mas o que é isso, Eddie Bondo. Um sujeito corajoso como você.

- Não tenho medo de cobra. Só não gosto da idéia de acordar com uma deslizando sobre o meu corpo.

- Então não durma. Fique aqui prestando atenção e me avise se ela descer para a cama. Boa noite!

Ela se inclinou e fingiu soprar a chama da lamparina.

- Não faça isso!

Ele estava em pânico por causa da combinação de cobra com escuri­dão. Mas então ele tomou o travesseiro dela e lhe bateu, tentando disfarçar o embaraço. Ela deixou a lamparina acesa e tornou a se deitar, satisfeita consigo mesma.

- Madame, a senhora é muito cruel.

Ela lhe tomou o travesseiro e se deitou sobre ele, fruindo a própria superioridade. Quando ela morava no Condado de Zabulon, ela conheceu homens grandes e duros que trabalhavam tranqüilamente com equipa­mentos enormes e enfrentavam animais capazes de matá-los, mas admi­tiam tranqüilamente ter medo de cobras. Aos nove anos, Diana Wolfe se tornou uma figura lendária quando apareceu na escola levando uma co­bra preta de mais de dois metros.

- Não tem sentido não gostar dessa cobra no telhado. Ela está do nosso lado. Eu detesto ratos - odeio -: os que aparecem no meio da minha comida, ou fazem ninhos entre as minhas meias, e elas fedem à urina de rato, ou os que correm sobre meus pés e me fazem jogar o café na parede. Se você conseguisse acabar com todas as cobras do mundo, as pessoas não teriam como suportar a praga dos ratos. E não só aqui. Nas cidades também.

- Obrigado, professora de Ciências. E uma pena não sermos todos tão lógicos quanto a senhora. E sabe de uma coisa?

Ele rolou na cama e sussurrou no seu ouvido:

- Você tem medo de raio.

- Não tenho não.

- Tem sim: eu já vi você pular de medo.

- O susto é uma reação, não é medo. O raio não é nada mais do que duas paredes de ar que se encontram e não faz mal nem a uma mosca.

Ele tornou a se deitar no travesseiro ao seu lado, dando um sorriso feroz.

- Mas que faz você pular feito doida.

- Os ratos também me fazem pular; mas não é de medo, é nojo.

- Pois é isso. Cobras não me metem medo, me dão nojo.

- São escolhas imbecis, Eddie. As pessoas as fazem todo dia, mas odiar um predador é como odiar o teto que nos protege. Para mim, mais vale uma cobra na minha casa do que cinqüenta ratos. Uma cobra em cada telhado.

Ele teve um calafrio.

- Pelo menos as cobras têm boas maneiras: não ficam atropelando a gente.

- Fique longe de mim - Eddie Bondo gritou para o teto.

- Não se preocupe.

Ela puxou os cobertores e deitou a cabeça no ombro dele. A verdade era que ela também tinha seus medos irracionais. Falou mansamente, acariciando a linha dura e serrilhada que corria no meio de seu peito, pensando na cartilagem que protegia o seu coração.

- a cobra é um predador, e só pensa na própria presa; e nós não somos a presa dela. Do ponto de vista de uma cobra, nós nem existimos. Para ela, nós não somos nada. Estamos seguros.

Ficaram imóveis por alguns momentos, ouvindo a música dos gri­los naquela noite de verão. Ela escutou o piado de uma coruja; vinha de um ponto perto dali. Não era o pio profundo das grandes corujas, mas um som mais particular, uma risadinha aguda e descendente. Esperou a resposta, e ela veio imediatamente: uma série de pequenos latidos que as corujas usam quando estão próximas, na época da reprodução. Estavam procurando uma à outra no escuro, fazendo amor bem debaixo da janela. Diana deslizou os lábios ao longo do pescoço de Eddie.

- Então, podemos voltar para a nossa conversa?

- Acho que não.

Ele levantou as cobertas e olhou:

- Podemos sim.

Ela rolou para fora dos braços dele o suficiente para soprar a chama da lamparina. Num hábito que vinha desde a infância, sussurrou para si mesma uma prece de agradecimento, pequena e rápida como uma chama que se apaga na escuridão. Obrigada por este dia, pelos pássaros seguros nos ninhos, por tudo isso, pela vida.

 

                                               Velhas castanheiras

A margem do Ribeirão do Ovo estava tão encharcada que parecia uma esponja na chuva. A Garnett só restava olhar a encosta e balançar a cabeça. O terreno estava tão mole, que um carvalho de 50 anos nele enraizado tivera as raízes arrancadas da lama como se fossem dentes bambos, e caíra antes do tempo. Que sujeira. Seria preciso chamar alguém, com uma motosserra, para transformar aquela confusão de tronco e galhos numa pilha de lenha. O filho de Oda Black, por exemplo, um rapaz educado, capaz de realizar toda a tarefa apenas numa manhã, sem cobrar uma fortuna.

Mas o custo não era problema. Nem encontrar alguém para fazer o trabalho. Esse trecho do Ribeirão do Ovo era a divisa entre suas terras e as de Nannie Rawley, esse era o problema. Seria justo que ela pagasse metade do custo da limpeza - ou até mais, pois foi a árvore dela que caiu na terra dele. Mas eles teriam de entrar em acordo, e isso era uma coisa sem precedentes na história de Garnett e Nannie.

Olhou para aquela bagunça e deu um suspiro. Se pelo menos ela che­gasse até aqui para observar iria livrá-lo da obrigação de dar o primeiro passo. Se Garnett aventasse o assunto, ela agiria como se ele estivesse pe­dindo um favor. O que, claro, não era o caso. Ele estaria apenas chamando atenção para a negligência dela. Qualquer fazendeiro digno desse nome percorreria as divisas de sua propriedade depois de toda e qualquer tem­pestade para avaliar os danos. Mas também havia a Nannie Rawley.

- Pobre de mim - declarou ele em voz alta aos passarinhos, alguns dos quais cantavam alegremente nos galhos do carvalho caído ao chão, sem a menor preocupação com a repentina mudança da vertical para a horizontal. Na verdade, a árvore tombada ainda estava coberta de folhas brilhantes - talvez ainda tentasse espalhar seu pólen ao vento e plantar suas sementes como se suas raízes não estivessem expostas à brisa nem seu tronco condenado a se transformar em lenha.

Pássaros e carvalhos pensam como ela, pensou ele, examinando com uma estranha satisfação esse mundo pequeno e iludido.

Observou que mais de meia dúzia de árvores da margem estavam perigosamente inclinadas do lado dela para o dele. A próxima tempestade iria derrubar essas outras árvores. Uma velha cerejeira parecia particular­mente ameaçadora, com uma inclinação de 45°, exatamente por cima do caminho que ele usava para chegar até ali. Decidiu que a partir de agora andaria depressa, sem parar, toda vez que tivesse de passar sob ela.

- Ai, meu Deus - repetiu ao retomar o caminho que levava à sua casa e às coisas que deveria fazer em seguida.

Teria de ser cara a cara. Nada de telefone. Ela nunca estava em casa, tinha uma dessas malditas maquininhas que apitavam e esperavam a pes­soa responder de onde estava, sem tempo para pensar. Seu coração já não agüentava mais essas coisas; sempre que tinha alguma surpresa, era obri­gado a se deitar. Não, ele teria de ir lá no mesmo dia e enfrentar Nannie Rawley como se enfrenta uma dose de óleo de rícino. Garnett teve um acesso de fúria por causa de seu azar. Toda vez em que acreditava estar livre dessa mulher, ela reaparecia em algum lugar. Era pior que mofo. Por que Deus insistia em jogar essa mulher contra ele? Ele sabia a res­posta: Nannie Rawley existia para testar sua fé, era a cruz que tinha de carregar. Mas até quando?

- Já não fiz tudo o que era possível? - perguntou enquanto caminha­va, erguendo as palmas das mãos para o céu e pronunciando palavras sem som. - Já escrevi cartas, já expliquei os fatos. Já lhe ofereci aconselhamento científico, e lhe dei a Palavra de Deus. Meu Deus, já não fiz o suficiente em favor da alma mortal dessa mulher?

Uma das árvores inclinadas da margem se moveu, dando um gemido e um estalo, fazendo o coração do velho disparar no peito como um novi­lho no brete. Estacou no caminho e pôs a mão sobre o peito para acalmar aquele bicho condenado.

- Está bem - disse Garnett Walker para o seu Deus -, está bem

Garnett admirava pomares bem cuidados, e foi obrigado a reconhe­cer. Gostava do terreno fresco e sombreado em torno das árvores, que lembrava uma grande toalha de piquenique, e gostava dos troncos alinha­dos, primeiro em linha reta, depois em diagonal, conforme o ângulo de vista. Uma floresta que obedecia às leis do homem e à geometria, esse era o seu prazer. Claro, essas árvores tinham sido plantadas pelo velho Rawley em 51, por aí, na época em que ela estava na universidade. Se ela as tivesse plantado, as árvores estariam espalhadas como na floresta. E ela teria uma teoria para explicar porque assim era melhor para as maçãs.

Ele sabia que ela estava plantando uma nova seção no campo do outro lado da casa, apesar de ele ainda não ter ido até lá e portanto não poder dizer se as árvores estavam alinhadas ou não. Ela já declarara que as mudas eram clones de uma das espécies silvestres que nasceram nas terras sem cultura que havia num morro atrás do pomar. O terreno estava horro­roso, pois ela o deixava abandonado à própria sorte, mas ela dizia que aquele era o grande experimento dela e dos pássaros, e que já havia desco­berto um cruzamento acidental particularmente interessante que fora pa­tenteado com o nome de "Rachel Carson". Será que ela estava pensando que podia patentear uma nova espécie e enxertar um pomar inteiro? Aque­las árvores não dariam frutos antes de pelo menos uns dez anos. Quem ela achava que os iria colher?

O plano de Garnett para hoje era ir até a casa e bater na porta de tela, mas no caminho ele viu as escadas e a parafernália de colheita espalhada no chão do pomar do lado oeste. Foi até lá e passou pela horta, que lhe pareceu muito bem cuidada: foi obrigado a reconhecer. Devido a um milagre qualquer ela estava colhendo brócoüs e berinjela sem aplicar defensivos. Garnett havia desistido de plantar brócolis: só as lagartas comiam - e suas berinjelas ficaram tão cheias de alticas, que pareciam ter levado um tiro de cartucheira. Inspecio­nou o milho, que já começava a pendoar duas semanas antes do dele. Será que ela tinha de enfrentar alguma praga do milho? Fez um esforço para não dese­jar que tivesse. Já tinha chegado até quase a cerca que separava as duas propri­edades quando a ouviu cantarolando no meio da folhagem e viu suas pernas na escada, saindo de dentro do teto de folhas verdes acima dela. Deve ser assim que uma tartaruga no fundo da água vê o pato nadando, pensou consigo mesmo. Deu um suspiro profundo. Decidiu não fazer rodeios.

- Bom dia! Tenho algumas notícias. Uma de suas árvores caiu sobre mim. Os tênis brancos sujos desceram dois degraus da escada, e ela olhou para ele através dos galhos.

- Ora, o senhor não parece muito pior do que o normal, senhor Walker.

Ele balançou a cabeça.

- a senhora não precisa se comportar como uma criança.

- Mas o senhor deveria, uma vez ou outra.

Ela voltou para dentro da copa da macieira, uma Juno Transparente - ele viu as frutas amarelas no chão. Ela estava colhendo as maçãs de junho no meio de agosto. O que nela era normal.

- Tenho um assunto a discutir com a senhora - disse gravemente -, mas gostaria de conversar com a senhora aqui no chão.

Ela desceu a escada carregando no braço uma cesta cheia de maçãs, resmungando que tinha de trabalhar para viver, não podia ficar esperando a aposentadoria no final do mês. Colocou a cesta no chão e as mãos nas cadeiras.

- Muito bem, se o senhor quer discutir seriamente, eu tenho uma questão a discutir com o senhor.

Sentiu o coração engasgar. Tinha raiva de si mesmo por permitir a ela assustá-lo dessa forma. Ficou imóvel, respirando lentamente, e disse a si mesmo que não precisava temer nada do que viria dela. Era como um terreno pronto para ser arado - um terreno pequeno e feminino.

- O que foi agora?

- É aquele maldito Sevin que o senhor está pulverizando nas suas árvo­res todo dia! O senhor diz que está com problemas porque uma árvore caiu sobre o senhor? Pois o seu veneno cai em cima de mim, não da minha pro­priedade, nem das minhas maçãs, de mim, e eu tenho de respirá-lo. Se eu pegar um câncer de pulmão, a sua consciência terá de carregar esse peso.

A tempestade de palavras parou; os olhos de ambos se encontra­ram rapidamente e se voltaram para o chão em volta de cada um. Ellen havia morrido de câncer de pulmão que havia gerado uma metástase no cérebro. As pessoas sempre comentavam o fato de ela nunca ter fumado.

- Me desculpe se fiz o senhor se lembrar da Ellen. Mas eu não estou dizendo que foram os seus venenos que causaram a doença dela.

Não disse, mas pensou, Garnett percebeu e teve um choque. Pensou e falou, e por isso todo mundo também estava pensando a mesma coisa. E de repente foi tomado por um terror mais profundo: poderia ser verdade. Ele nunca se preocupara em ler as letras pequenas do pacote de Sevin, mas sabia que levava alguma coisa ruim para dentro dos pulmões. Oh, Ellen. Ergueu os olhos para o céu, e de repente se sentiu tão tonto que teve medo de ser forçado a se sentar na grama. Pôs uma mão sobre uma das têmpo­ras e com a outra se apoiou no tronco de uma Juno Transparente.

- Eu fiz mal - observou Nannie -, não queria começar a conversa de uma maneira tão odiosa, logo de saída. Tentei criar um espaço para a gente poder chegar até lá.

Hesitou.

- O senhor quer um copo d'água?

- Estou bem - respondeu Garnett, recuperando o equilíbrio. Ela emborcou duas cestas e lhe fez um sinal para se sentar.

- Acontece que há muito tempo eu estou me envenenando com tantos problemas. Agora mesmo eu estava fervendo por causa de uma porção de coisas que chegaram ao mesmo tempo: o seu veneno, as con­tas a pagar, as telhas do meu telhado, que não tenho como substituir. Dink Little me disse que ninguém mais faz essas telhas, dá para imagi­nar? Uma desgraça nunca vem sozinha, e você aparecer aqui de repente, aos berros, foi a gota d'água que estourou a represa.

Ela meteu a mão entre os joelhos e puxou a cesta para frente, e os dois se encararam bem de perto, cara a cara.

- Precisamos ter uma conversa tranqüila sobre essa questão dos pesticidas, de agricultor para agricultor.

Garnett sentiu uma pontada de remorso por causa das telhas, mas deixou passar.

- Estamos no meio de julho e as lagartas estão atacando minhas mudas como uma praga. Se eu não aplicasse o Sevin, iria perder todos os cruzamentos que fiz este ano.

- Sei, mas o senhor está matando tudo que me beneficia. Está ma­tando meus polinizadores. Está matando os pássaros que comem os besouros. O senhor é um verdadeiro anjo da morte, senhor Walker.

- Mas eu tenho de cuidar de minhas castanheiras - respondeu com firmeza. Ela lhe lançou um olhar duro.

- Senhor Walker, é imaginação minha ou o senhor pensa realmente que suas castanheiras são mais importantes que minhas maçãs? Só porque o senhor é homem e eu sou mulher? O senhor se esquece de que eu dependo das maçãs, e de que as suas castanheiras são um hobby.

Essa foi um golpe baixo. Garnett deveria ter telefonado. Preferível conversar com uma máquina sem cérebro.

- Eu nunca disse nada sobre suas maçãs. E se eu não pulverizo, as lagartas logo passam para este lado. Na verdade, eu estou até ajudando a senhora.

- Mas elas já passaram. E à minha maneira, eu consigo mantê-las sob controle. Mas o seu veneno provoca uma explosão da população de lagartas.

Ele balançou a cabeça.

- Quantas vezes eu ainda vou ter de escutar essa bobagem? Ela se inclinou para frente arregalando os olhos.

- Até o dia em que o senhor me ouvir.

- Eu já ouvi. Ouvi até demais.

- Não, eu nunca lhe expliquei direito. Eu tinha um palpite, mas não conse­guia exprimir em palavras. Mas na semana passada, saiu um artigo no Jornal do Plantador. E tudo científico, um princípio. O senhor quer que eu lhe traga o jornal, ou prefere que eu mesma explique com minhas próprias palavras?

- Acho que não tenho escolha. Vou ouvir e descobrir o erro de raciocínio. E então a senhora vai ter de se esquecer disso para sempre.

- Muito bem - disse ela mexendo-se sobre a cesta -, muito bem. Ai, meu Deus, estou nervosa como ficava nos dias de prova.

O olhar ansioso que ela lhe lançou fez Garnett se lembrar de todos os meninos que durante anos tiveram medo dele nas aulas de agricultura vocacional. Ele não era mau; mas insistia em que eles deveriam fazer tudo muito bem. Mas por isso eles tinham medo dele. Nunca foram amigos dele, como eram do Ron Ricketts da oficina, por exemplo. Esse negócio de querer tudo direito redundava numa vida muito solitária.

- Então vamos - disse ela após uns instantes -, há dois tipos de insetos, os seus comedores de plantas e os comedores de insetos.

- Correto - disse ele -, afídios, besouros japoneses e lagartas co­mem plantas. Para não citar muitos. As joaninhas comem outros insetos.

- As joaninhas, e também as aranhas, as vespas, as caçadoras de gafanhotos e várias outras espécies, além das tentredárias e himenópteras parasitas e muitas outras. Portanto, lá na sua plantação, o senhor tem predadores e herbívoros. Tudo bem até aqui?

Ele ergueu a mão no ar.

- Fui professor de agricultura vocacional durante um tempo igual à metade da sua vida. Você não vai dizer nada de novo para um homem velho como eu.

Embora, para dizer a verdade, ele nunca tivesse ouvido falar das himenópteras parasitas.

- Então, tudo bem. Os seus herbívoros têm algumas características.

- Eles comem plantas.

- É verdade. Para você, eles são pragas. E eles se reproduzem mui­to depressa.

- Como se eu não soubesse!

- Os insetos predadores geralmente não se reproduzem tão depressa. Mas isso dá certo na natureza porque um predador come um mundo de pragas durante sua vida. Os herbívoros têm de andar mais depressa para sobreviver. As duas espécies ficam em equilíbrio. Até aqui está tudo certo?

Garnett concordou. Agora estava ouvindo com mais atenção do que esperava.

- Muito bem. Quando pulveriza uma lavoura com um inseticida de amplo espectro, como o Sevin, o senhor mata os herbívoros e os predado­res. Se de início predadores e presas estão em equilíbrio, e os dois perdem quantidades iguais, então, entre os insetos que sobreviverem, as pragas depressa, depois da pulverização, pois seus inimigos de-cam. E os predadores vão diminuir, pois a maior parte do seu lento desapareceu. Assim, no intervalo entre pulverizações, o senhor lenta ° número de pragas indesejáveis e acaba com os insetos de que cisa. E toda vez que o senhor pulveriza fica pior.

_ E daí? - perguntou Garnett, concentrando-se nisso.

Ela olhou para ele.

_ Daí, acabou. Isso é o Princípio de Volterra.

Garnett se sentiu ludibriado. Como ela era capaz de fazer sempre a [mesma coisa? Em outra época, ela teria sido queimada viva como bruxa.

_ Não encontrei nenhuma falha no seu raciocínio - foi obrigado a

admitir.

- Porque não existe nenhuma. Porque eu tenho razão! - a mulherzinha estava aos berros.

- a indústria química agrícola ficaria surpresa com a sua teoria.

- Mas é claro que eles a conhecem! Só esperam que o senhor não saiba. Quanto mais o senhor gasta em inseticida, mais vai ter de gastar no futuro. E como ficar viciado.

- Ei, não vamos exagerar.

Ela se inclinou para frente, cotovelos apoiados nos joelhos, e o olhou muito séria, com olhos que tinham a cor e o brilho de castanhas polidas. Ele nunca havia prestado atenção naqueles olhos antes.

- Se o senhor não acredita que aquele pessoal é desonesto, então o senhor é ingênuo, senhor Walker. O senhor tem recebido material da Extensão? Agora todas as empresas estão tentando empurrar grãos com genes todos alterados, e os tolos estão plantando!

- O fazendeiro moderno sempre experimenta as novas idéias - dis­se ele, - até os do Condado de Zabulon.

- Metade do mundo não vai querer comer esses grãos; há um boi­cote contra eles. Qualquer fazendeiro que plantar quebra em um ou dois anos - a sua agricultura moderna é isso.

- Essa é uma visão pessimista.

Ela bateu nos joelhos com as duas mãos.

- Olhe à sua volta, velho! No tempo do seu pai, os agricultores daqui viviam muito bem. Agora são obrigados a trabalhar à noite no K-mart para conseguir pagar as hipotecas. Por quê? Todos trabalham tanto quanto os pais, estão na mesma terra; então o que está errado?

Garnett sentiu o calor insistente do sol na nuca. Nannie, à sua fren­te, foi forçada a apertar os olhos. Haviam começado a conversa na sombra, mas agora o sol havia saído de trás de uma árvore - o que dava uma idéia do tempo que desperdiçaram sentados nas cestas, falando bobagens. - Os tempos mudam - disse ele -, só isso.

- Os tempos não mudam; as idéias é que mudam. Preços, mercados, leis. As empresas químicas mudam, e parece que mudam também a cabeça da gente. Se e isso que o senhor quer dizer com "tempo", então e verdade que as coisas ficaram piores.

Garnett riu, lembrando-se do entregador da UPS. - Não tenho como discordar.

Ela protegeu os olhos e o encarou.

- Então por que o senhor faz pouco caso do meu modo antigo de cuidar da terra, e bem na minha cara?

Garnett se levantou espanando uma sujeira invisível do joelho da calça. Ouviu um zumbido agudo e persistente, que pensou ser do seu aparelho de surdez, mas que vinha das árvores e do próprio ar. Aquilo o deixou agitado. Tudo ali lhe parecia assustador.

Ela continuou sentada, seguindo-o com os olhos pelo terreno, esperando uma resposta que ele não conseguia formular. Por que Nani Rawley o irritava tanto? Deus do Céu: ainda que ele tivesse tempo e conhecimentos

não seria capaz de responder. Ele parou e olhou para ela, que, sentada, esperava sua opinião. Ela não parecia antiquada, parecia mais uma visitante de outro tempo - uma menina com os olhos escuros e arregalados e uma coroa de tranças. Até a roupa, uma jardineira jeans e uma blusa branca sem mangas, lhe dava o ar de uma menina no começo das férias de verão. Apenas uma menina. - ele se sentia mudo e humilhado como um menino.

- Por que o senhor tem tanta raiva de tudo? - perguntou ela afinal. - Gostaria que o senhor fosse capaz de ver a beleza que há em tudo.

- Em quê? - perguntou ele.

Uma nuvem passou diante do sol e tudo se moveu um pouquinho. - Em tudo.

Ela esticou o braço:

- Este mundo! Um terreno com plantas e insetos que criam sozinhos o seu próprio equilíbrio.

- Έ uma visão enganosa. Na verdade, todos estão se matando uns aos outros.

- Έ isso mesmo, comendo os outros e reproduzindo a própria espé­cie, é verdade. Comer e reproduzir, é disso que trata a criação de Deus. - Com isso eu não posso concordar.

- Ah, é? - o senhor acha que é diferente de todos nós?

- Não. Έ que eu prefiro não chafurdar.

- Ninguém está falando de lama, senhor Walker. Έ uma glória, é ser parte de uma coisa maior. A glória de estar num mundo em evolução. - Ah, estava demorando. Não precisa nem começar a falar da sua evolução. Eu já corrigi a senhora antes.

Andou em círculo igual ao cachorro quando se prepara para deitar. Então, parou.

- a senhora não recebeu minha carta?

- O seu bilhete de agradecimento pela torta de amoras que eu fiz para o senhor? não, acho que não recebi. O que eu recebi foram umas linhas perversas a respeito de queima de sutiãs e de como minha alma ia ser lançada nos

dentes de Satã tal como meu patinho foi comido pela tartaruga. Acho que um velho louco mandou aquela carta para mim por engano, e eu a joguei no lixo. Ele nunca a tinha visto tão agitada. Garnett não disse nada. Ela se levantou e pegou uma maçã na grama, e ficou jogando-a de uma mão para a outra. - Foi uma maldade falar daquele jeito do meu patinho. - a posição unitarista sobre roupas íntimas não é de sua conta. Se é que essa coisa existe: e ela não existe. Ninguém viu minha roupa de baixo desde que o Ray Dean Wolfe morreu, e o senhor pode guardar para si mesmo o que pensa a respeito de meu corpo.

- O seu corpo! - disse ele, mortificado -, minha carta não foi nada disso. Falava sobre a sua crença errada numa teoria falsa sobre a criação do mundo, respondida de maneira clara e simples, sem deixar sombra de dúvida.

- Sua vida decorre inteiramente além de qualquer sombra de dúvida. - Eu tenho minhas convicções.

Ela inclinou a cabeça e olhou para ele. Ele nunca teve certeza se ela era tímida ou se era meio surda.

- Para o senhor, as coisas são muito simples. O senhor diz que somente um criador inteligente e belo poderia ter criado tanta beleza e inteligência? Pois eu vou lhe mostrar. Está vendo aquela cesta ali, cheia

de lindas maçãs? Sabe o que eu pus nas árvores para que essas maçãs ficassem deliciosas? Cocô, meu senhor. Cocó de cavalo e de boi.

- a Senhora esta comparando o Criador ao esterco? - Estou dizendo que a sua lógica é fraca.

- Eu sou um homem de ciência.

- Então o senhor não é um bom cientista! Não venha me dizer que eu não entendo as leis da termodinâmica. Já freqüentei a universidade, e foi depois de terem descoberto que o mundo é redondo. Não tenho medo de palavras grandes.

- Eu nunca disse que a senhora tinha esse medo.

- O senhor disse, sim! Sei que a senhora não é cientista, Miss Rawley.

- zombou ela, numa versão desnecessariamente ridícula da voz dele.

- Não, eu só quis esclarecer alguns pontos para a senhora.

- Velho fariseu. O senhor já parou para pensar por que não tem um único amigo neste mundo desde que a Ellen morreu?

Ele piscou. Chegou mesmo a sentir o queixo cair.

- Sinto muito por ter de ser eu a pessoa a lhe dar a notícia. Mas ouça o jeito como o senhor fala!

Ela começou a chorar.

- O senhor fala assim: "Como poderia o acaso - ou seja, a evolução

- criar formas de vida complexas?". Como o senhor consegue ser tão convencido e ignorante ao mesmo tempo, hein?

- Meu Deus. A senhora decorou minha carta antes de jogar no lixo?

- Bobagem, não foi preciso; eu já tinha ouvido tudo aquilo antes. Seus argumentos já saem prontos daqueles panfletos imbecis. Quem es­creve aquilo devia tentar achar uma coisa nova.

- Pois então - disse ele cruzando os braços -, como é que o acaso cria formas complexas de vida?

- Isso é ridículo: como pode um homem que faz o que o senhor faz não acreditar na própria coisa que faz?

- O que eu faço não tem nada a ver com macacos que sem mais aquela viram homens pensantes.

- a evolução não é sem mais aquela! E uma questão de escolher coisas, como o senhor faz com suas castanheiras.

Ela moveu a cabeça, apontou-a na direção da plantação com as mu­das; e depois franziu o cenho, pensativa.

- a cada geração, todas as árvores nascem um pouco diferentes, não é? E quais são as que o senhor escolhe para cruzar?

- As que resistem melhor à praga, é claro. Inoculo o fungo da praga nas árvores e depois meço o tamanho dos cancros. Algumas quase nem adoecem.

- Isso mesmo. Então o senhor escolhe as que sobrevivem melhor, cruza as flores de umas com as outras e planta as sementes. Depois repete o processo com a geração seguinte. Com o passar do tempo o senhor vai fazendo o quê? Uma seleção de qual tipo de planta?

- Exatamente. Um tipo que seja resistente à praga.

- Na verdade, uma nova espécie.

- Não, senhora: só Deus é capaz disso. Eu não posso transformar uma castanheira em carvalho.

- Mas poderia, se tivesse o mesmo tempo que Deus tem.

Oh, quem dera eu tivesse, pensou Garnett com o profundo desespero de um homem que vê o tempo se esgotar. Ele só pedia tempo para criar uma nova castanheira; mas no fundo do coração, ele sabia que não o teria. Já tinha pensado em rezar pedindo esse tempo, mas tremera ao pensar no que Deus faria com seu pedido. Ellen não tivera tempo suficiente nem mesmo para se reconciliar com o próprio filho.

Mas ele estava se perdendo.

- Não sei do que a senhora está falando - disse irritado.

- O senhor está fazendo uma seleção artificial, - respondeu ela calma­mente -, a natureza faz a mesma coisa, só que mais devagar. Esse negócio de "evolução" é apenas o nome que os cientistas deram à verdade mais evidente do mundo, que toda espécie de criatura viva se adapta a mudanças no lugar onde vive. Não durante a própria vida, mas ao longo de gerações. Quer o senhor acredite ou não, é o que está acontecendo agora mesmo com as suas castanheiras.

- a senhora está dizendo que o que eu faço com as castanheiras Deus faz com o mundo.

- E uma maneira de ver. Só que o senhor tem um objetivo, o senhor sabe o que quer. Acho que na natureza são os predadores, ou uma mu­dança de clima, coisas assim, que eliminam os genes mais fracos e dei­xam os mais fortes. Não é tão organizado quanto o senhor, mas dá os mesmos resultados. É exatamente isso o que sempre acontece.

- Sinto muito, mas não posso comparar a vontade de Deus com uma coisa que simplesmente acontece.

- Pois então não compare. Eu não me importo.

Parecia irritada. Voltou a se sentar no cesto, jogou longe a maçã e pôs o rosto nas mãos.

- Não consigo.

Tentou parar, em vez de ficar andando, mas sentiu os joelhos doerem.

- Isso não passa da escuridão, pensar que não existe um objetivo divino. A humanidade não pode funcionar num mundo assim. O Senhor c bom e justo.

Quando ela olhou para ele, tinha lágrimas nos olhos.

- a humanidade funciona com o que tiver de enfrentar. Quando o senhor tiver uma filha nascida com cromossomos alterados e passar quinze anos vendo-a morrer, pode vir me falar sobre o que c bom e justo.

- Oh, meu Deus - disse Garnett nervosamente.

Devia haver uma lei proibindo a visão de uma mulher chorando em plena luz do dia. Ela remexeu no bolso, pescou um lenço e assoou o nariz ruidosamente.

- Estou bem - disse ela depois de um minuto -, eu não quis dizer o que disse agora.

Tornou a assoar o nariz como se ninguém tivesse nada com isso. Foi meio chocante. Enxugou os olhos e enfiou o lenço vermelho no bolso.

- Não sou uma mulher sem Deus, vejo as coisas à minha maneira, e sempre acordo de manha dando graças a Deus. Mas não vejo o senhor fazer a mesma coisa, senhor Walker. É por isso que eu não gosto de ver o senhor plantado nesse pedestal a perorar a respeito da escuridão da minha alma.

Ele lhe deu as costas, voltou-se para o lado da sua terra e a contem­plou. As folhas estreitas, com pontas de bronze, acenavam igual a ban­deiras, cada árvore com sua pequena nação de promessas genéticas.

- a senhora disse que eu sou um velho amargurado. Foi indelicadeza de sua parte.

- Qualquer homem que abandona o filho como quem arranca um galho de árvore é amargurado. Não há outra palavra.

- a senhora não tem nada com isso.

- Ele precisa de ajuda.

- Também não é da sua conta.

- Pode ser que não. Mas ponha-se no meu lugar. Eu daria a minha vida se pudesse ajudar Rachel, e perdi a oportunidade. Se os médicos me tivessem pedido que eu tirasse o coração para dar a ela, eu não teria hesitado um segundo. Como o senhor acha que eu me sinto vendo outras pessoas jogar fora filhos vivos?

- Eu não tenho filhos.

- Mas o senhor teve um durante vinte anos. E ele ainda está vivo, pelo menos foi o que eu ouvi.

Garnett sentia os olhos dela baterem nas suas costas como se fosse o sol do meio-dia, mas não foi capaz de se voltar. Ela continuou a atingi-lo com palavras que feriam como pedras.

- Ele anda por aí carregando os genes do senhor e da Ellen. Fez uma pausa, mas ele não se voltou.

- E carrega até mesmo o seu nome, pelo amor de Deus. E o senhor não o ajuda? a mim me parece que o senhor desistiu do mundo e de tudo que há nele, inclusive o senhor mesmo.

Garnett só queria ir embora. Mas não podia sair deixando-a com a última palavra. Voltou-se para a vizinha.

- Não tenho como ajudar aquele menino. É ele quem tem de se ajudar. Vai chegar o dia.

- O senhor acha que ele ainda é um menino? Ele já deve ter mais de trinta anos.

- Mas ainda é um menino. Vai ser homem no dia em que decidir agir como um homem. Não sou só eu quem pensa assim. A Ellen compareceu durante anos àquelas reuniões, e foi isso que lhe disseram. Com a bebida e tudo mais, é ele quem tem de decidir sozinho que vai melhorar. Ele tem de querer.

- Eu sei - disse ela, cruzando os braços.

Olhou para as maçãs amassadas espalhadas na grama. Chutou uma com o tênis de sola de borracha.

- Só acho muito triste ver o senhor se esquecer dele.

Esquecer) Garnett sentiu uma pontada de sal nos olhos e virou o rosto para evitar o olhar dela. Que coisa inútil e patética é o canal lacrimal do ser humano! Sua visão enevoada se fixou numa caixa branca na extremidade do terreno. Tentou adivinhar, e então se lembrou de que ela tinha colméias de abelhas; vivia cercada de abelhas, entre outras coisas. Era verdade o que ela disse: era uma mulher feliz a maior parte do tempo. E ele vivia triste.

- Tivemos aquele filho muito tarde - confessou ele, ainda de costas para ela -, éramos como Abraão e Sara. No início, nós nem acreditáva­mos em tanta sorte, mas vivíamos preocupados com o bebê, e não enten­díamos o adolescente. Eu às vezes tento adivinhar o que Abrahão e Sara fariam se tivessem um filho numa época de hot rods e de cerveja.

Levou um susto ao sentir a mão dela tocar o seu braço suavemente por alguns segundos. Foi surpreendido pela aproximação dela, vindo de trás. Depois de ela ter tirado, ele ainda sentia a pressão da mão dela como se sua pele tivesse mudado sob o tecido da camisa.

- Toda história é mais complicada do que a que se observa da cerca - disse ela. - Sinto muito.

Ficaram lado a lado, com os braços cruzados, olhando para o jardim florido e para as castanheiras que se viam atrás dele. De perto, calada, Nannie parecia ter perdido a força de sempre. Parecia pequena - mal che­gava à altura do ombro dele. "Meu Deus, somos apenas dois velhos", pen­sou ele. "Dois velhos de braços cruzados no peito, procurando o céu com os olhos tristes".

- Tanto a senhora como eu temos a nossa cruz, Miss Rawley.

- Temos sim. Não existe nada mais triste do que ficar velho sem amar os jovens que vão ficar no nosso lugar.

Ele lançou um olhar para suas robustas castanheiras, desejando ar­dentemente que elas tivessem algum futuro. Mas sua dor era tão grande, que não conseguiu olhar durante muito tempo.

Num dos mourões da cerca, um pintassilgo azul soltou um alegre trinado, e no ar claro, o estranho zumbido também aumentou. Eram as abelhas, percebeu ele. Um mundo de abelhas agitadas, a executar seu trabalho nos campos e no pomar. Não era o seu aparelho de surdez.

Quando se sentiu mais senhor de suas emoções, Garnett limpou a garganta.

- a razão de eu ter vindo até aqui, como eu disse, é uma árvore sua que caiu na minha propriedade. Lá no fundo.

Indicou a direção com um movimento de cabeça.

- Ah, lá no riacho? -É.

- Para mim não é surpresa. Lá tem uma porção de árvores quase caindo. Não vai me fazer falta. Que árvore foi?

- Um carvalho.

- E pena. Um carvalho a menos neste mundo.

- Mas ele ainda está no mundo. Na minha propriedade.

- Espere um ano. As formigas carpinteiras e os besouros logo o devolverão à terra.

- Eu estava pensando em alguma coisa mais rápida. O filho de Oda Black e uma motosserra.

Ela olhou para ele.

- Mas por quê? Que mal pode lhe fazer aquela árvore lá no meio do mato? Pelo amor de Deus. Os guaxinins vão usá-la como ponte. As salamandras vão adorar morar em baixo dela enquanto ela vai apodre­cendo. Vai ser uma festa para os pica-paus.

- Mas está muito feio.

Ela deu um suspiro que pareceu excessivamente dramático a Garnett:

- Está bem, pode chamar o filho da Oda Black. Desconfio que o senhor vai querer que eu pague a metade.

- a metade me parece justo.

- Mas a lenha vai ser minha. Todinha.

- Está na minha terra. A lenha é minha.

- O carvalho era meu.

- Ora, um minuto atrás a senhora queria deixar a lenha apodrecer na terra. Agora a senhora quer a lenha. A senhora não parece saber bem o que quer.

Ela expirou com força pelo nariz.

- O senhor é um fariseu chato - exclamou, antes de se curvar para pegar a cesta de maçãs e sair pisando duro na direção do celeiro.

Garnett ficou olhando enquanto ela se afastava. Ficou ali durante muito tempo, deixando seus sapatos habitarem a grama verde do pomar de Nannie, bêbada de estéreo, pensando em como era misterioso o terreno da mente de uma mulher.

E de fato ele queria ter agradecido a ela pela torta.

 

No verão que se seguiu à morte de seu marido, Lusa descobriu a terapia do cortador de grama. As vibrações do motor correndo por seu corpo e o ruído ensurdecedor nos ouvidos pareciam expulsar de sua cabeça a lin­guagem humana, aliviando as complexidades do remorso e da recriminação. Era uma bênção rodar uma ou duas horas pela grama como uma coisa sem fala, flutuando num universo de sensações vibratórias. Por aci­dente, ela havia descoberto o conjunto mental de um inseto.

Assim como tantas outras tarefas que estavam a cargo do Cole, o corte da grama era algo que ela temera assumir. Nas primeiras semanas depois do enterro, Rickie e Big Rickie se alternaram no corte da grama sem dizer nada. Mas chegou um dia em que ela percebeu que a grama e os dentes-de-leão do gramado já chegavam ao meio da canela. Ela então ob­servou que o mundo se impacienta com a dor, e aquele mundo estava lhe dando uma indicação de que, a partir daquele momento, suas tarefas seriam tarefas suas. Lusa colocou os óculos escuros, as botas, e foi ver se conse­guia dar partida no cortador.

De início, ficou meio desanimada por causa da inclinação das encos­tas e pela forma arriscada como o cortador ameaçava cair nas valas e ria­chos, mas ela se concentrou a fim de encontrar o zen de uma margem reta de estrada ou traçar espirais concêntricas e decrescentes no gramado. De­pois das primeiras horas, ela percebeu que tinha parado completamente de pensar. Era apenas um corpo vibratório, tal como uma corda das harpas celestes, no ar carregado com a fragrância da grama cortada. A casa da fazenda era cercada por muitos hectares de gramados, tanto os gramados laterais como os que havia em torno do celeiro, sem falar no quilômetro e meio de uma estrada cujas margens ela devia manter limpas. Num verão chuvoso como aquele, era inadmissível deixar que houvesse um único dia seco sem passar algumas horas no cortador.

E era onde ela estava quando Hannie-Mavis e Jewel apareceram para deixar Crys antes de irem a Roanoke para outra sessão de quimio. Os dois filhos de Jewel não vieram, apenas a Crystal. O plano era Crys ficar aqui e Lois ir buscar Lowell no T-ball e ficar com ele durante a noite. Era evidente que a menina já havia esgotado todas as tias: tivera um acesso na casa de Lois e Rickie, quebrara de propósito uma imagem de mãos postas de porcelana, e se escondera no celeiro a noite toda. Tudo isso foi informado a Lusa, com a alegação de que, com seu novo horário de trabalho, Emaline ficava cansada demais para tomar conta de crianças, e Mary Edna não a aceitaria e ponto final, enquanto ela não aprendesse a ter modos. Lusa percebeu que elas deviam estar desesperadas, a ponto de lhe pedir ajuda; não sabia nada sobre como tratar uma criança igual à Crys. Mas pelo menos, não imporia um código de como se vestir.

Quando chegaram, ela desligou o motor do cortador, mas as duas acenaram freneticamente, mostrando que já estavam atrasadas. Crys des­ceu pela porta traseira do sedan, Hannie-Mavis lembrou-a de pegar a mochila com as coisas para passar a noite e Jewel gritou para ela se comportar direito - tudo isso ao mesmo tempo - e as duas partiram levantando uma nuvem de saibro. Crys olhou para Lusa com os olhos apertados e o queixo no peito, igual a um cão de guarda a ponto de atacar. Lusa olhou essa adolescente mal-humorada e de pernas longas, cabelos cortados à Oliver Twist e calça jeans pega-frango. Carregava uma malinha quadrada que já fora branca - provavelmente algo que sua mãe ou suas tias haviam usado na adolescência quando iam dormir fora, em ocasiões mais felizes que essa. Aqui estamos, uma viúva e uma órfã, à mercê de uma família que não faz prisioneiros.

- Oi - disse Lusa, tentando não exagerar para parecer alguém que viera de Lexington.

Mas ela nunca seria capaz de reproduzir as vogais longas do modo como eram pronunciadas aqui.

- Oi-y - imitou a garota, olhando Lusa com desprezo.

Lusa passou a língua nos lábios e bateu no volante do cortador com os polegares.

- Você quer que eu lhe mostre qual o seu quarto? Para você poder desfazer a mala?

- Não tem nada dentro. Eu só trouxe para a tia Hannie-Mavis pensar que eu tinha roupa limpa mais o resto.

- Ah, então eu acho que você não tem nada para guardar. Jogue a mala na varanda e venha me ajudar a cortar a grama.

Crys jogou o cubo branco na varanda tal como fazem os lançadores no beisebol. Ele caiu na escada e se abriu, soltando um espelho quadrado que se quebrou em mil pedaços nos degraus de pedra. Uma galinha que ciscava no canteiro ao lado dos degraus deu um grito e saiu correndo. Lusa ficou abala­da pela inabalável hostilidade da menina, mas preferiu não demonstrar.

- Ora, sete anos de azar.

- Eu já passei dez anos de azar.

- Não exagere. Quantos anos você tem? -Dez.

- Senhor, ajude-me a passar as próximas trinta horas - pediu Lusa a qualquer deus que se dispusesse a ouvi-la.

- Sabe, Crys? Preciso de só mais alguns minutos para terminar este gramado. Quer sentar aqui comigo e me ajudar a cortar? Depois de acabar aqui, vamos achar outra coisa mais interessante para fazer.

- O quê?

Ela procurou desesperadamente na memória; se sugerisse a coisa errada poderia perder um olho.

- Quer caçar insetos? Eu adoro insetos, são a minha coisa favorita -você sabia que eu sou uma insetologista?

A menina cruzou os braços e olhou para outro lado à procura de algo mais interessante.

- Ah, mas é claro; você detesta insetos. Todas as mulheres da família têm medo e nojo de insetos. Me desculpe, esqueci.

Crys deu de ombros.

- Eu não tenho medo de bicho nenhum.

- Ah, não? Então somos duas. Graças a Deus, finalmente eu achei alguém para ir caçar insetos comigo.

Apertou a embreagem e girou a chave: o motor começou a urrar novamente. Ela se sentou e esperou.

Depois de um segundo de hesitação, Crys atravessou o gramado e sentou-se no cortador, em frente a Lusa.

- O tio Rickie falou que é muito perigoso essa máquina - gritou ela ao manobrarem, para depois irem para o gramado de baixo, fazendo uma trajetória circular em torno dele.

- Provavelmente é perigoso para meninos pequenos, mas, puxa vida, você já tem dez anos, não vai cair nem se machucar. Ponha as mãos no volante, assim.

A máquina deu um pulo ao passar num buraco.

- Muito bem, agora quem está dirigindo é você. Não atropele as galinhas, ou vamos ter salada de galinha para o jantar. E cuidado com as pedras. Passe ao lado delas, está bem?

Ajudou Crys a contornar uma pedra enterrada entre o celeiro e o galinheiro. Lusa aprendera a contorná-la para proteger a lâmina do cortador e também porque gostava das flores que brotavam naquela ilha.

- O que é aquelas flores laranjadas? - perguntou Crys aos gritos. Não parecia perturbada por ter de gritar nesse nível de decibéis.

- Capim-de-borboleta.

Lusa procurava não ficar chocada com a gramática da menina, bem pior que a dos outros meninos da família. Tentou adivinhar se todos já haviam desistido dela; e se fosse verdade, há quanto tempo.

- E o que as borboleta faz, fuma ela? Lusa decidiu ignorar.

- Bebem o néctar das flores. E há uma espécie, a monarca, que põe ovos nas folhas, e então as lagartas comem. E sabe de uma coisa? Elas ficam venenosas por causa das folhas! É uma planta inteiramente venenosa.

- Igual aquela coisa que o médico enfia na mamãe.

Era triste sentir esse corpinho ossudo e desamparado tão perto, no banco; Lusa resistia para não abraçá-la.

- E mais ou menos isso.

- Faz mamãe virar veneno. Toda vez que ela volta de Roanoke nin­guém pode entrar no quarto dela nem mexer em nada no banheiro depois que ela faz xixi. Senão a gente morre.

- Acho que não dá para morrer. No máximo, você vai enjoar e vomitar. Lusa deixou o queixo roçar o alto da cabeça loura e arrepiada que balançava à sua frente. Foi um gesto breve, que poderia passar por aciden­tal. Pararam de falar durante alguns minutos, enquanto Lusa a ajudava a contornar e cortar a área coberta de capim alto, que ficava cada vez menor.

- E sabe de mais uma coisa? E exatamente o que acontece com as borboletas-monarcas.

- O quê?

- a lagarta come as folhas venenosas e o corpo dela fica venenoso. Se um passarinho comer, tem de vomitar! É como um truque para evitar que os pássaros comam as lagartas.

- Mas se o passarinho come e vomita, a lagarta já está matada. Lusa custou a entender.

- Ela já está morta? Aquela está morta, mas o passarinho aprendeu a lição, e assim a maioria das lagartas não é comida. É uma verdade científica. Os pássaros evitam comer lagartas da borboleta-monarca.

- E daí? - perguntou a menina depois de um instante.

- E daí que essa é uma forma estranha que as mães usam para proteger os filhos. Fazê-los tomar veneno.

- Está certo, mas e a lagarta que está morta?

- Boa pergunta. E a lagarta morta?

Lusa não queria entrar nas teorias de seleção altruísta, que estavam em voga. Puxou a alavanca debaixo do banco a fim de erguer a lâmina.

- Vamos para o celeiro. Já cortamos bastante grama por hoje; vamos caçar insetos - ajudou a menina a guiar o cortador através das portas do celeiro e o deixaram lá dentro.

Depois de desligar o motor, seus ouvidos continuaram entoando alto os queixumes das agressões sofridas pelos tímpanos. Ela e Crys desceram da máquina e ficaram meio tontas por um minuto, enquanto seus olhos e ouvidos se ajustavam ao silêncio poeirento e escuro. Crys examinou os degraus que levavam ao piso superior do celeiro. Estava mais para escada de dobrar do que para escada, de tão torcida por anos e anos de acomodação da estrutura, que nenhum de seus ângulos se submetia mais à gravidade. Lusa sempre tinha a impressão de estar diante de um desenho de uma escadaria em espiral de Escher, em que cada degrau definia o alto numa direção diferente. Aquela coisa parecia tão absurdamente perigosa, que ela nunca a usava, preferindo o caminho mais longo até a outra entrada para o nível superior, na encosta.

- a gente pode subir?

- Claro.

Lusa teve uma pontada de pânico, mas a engoliu.

- Boa idéia. Temos que ir até lá em cima para pegar as redes e vidros.

Agarrando-se à madeira rachada, a menina começou a subir nas mui­tas direções que levavam para cima. Rezando, Lusa a seguiu. O alçapão cedeu facilmente. Abriram os cotovelos como fazem as galinhas com as asas na terra, puxaram os corpos através do buraco e emergiram no salão principal do celeiro. Lusa aspirou o perfume, uma discreta pungência de petróleo; mas, principalmente, o adocicado aroma do tabaco. Uma poeira fina de folhas trituradas habitava todos os recantos desse lugar onde du­rante mais de cem anos a família cortou, secou e enfardou tabaco.

Aquele depósito era antigamente uma instalação para estocar mi­lho, erguida num canto do celeiro e protegida dos ratos por uma tela presa a cada centímetro ao assoalho, às paredes e ao teto. Lusa abriu a porta e se sentiu deprimida com a visão desse salão cheio de equipamentos. Tudo aqui havia sido tocado pelas mãos de Cole. Eram equipamentos que ele havia transportado, guardado, consertado. Muita coisa ela nem sabia como usar: braços aspersores e acessórios de trator, uma longa fileira de produtos químicos guardados na prateleira. Peças de carro. E também coisas estra­nhas: uma antediluviana fornalha a óleo e várias cangalhas para cavalo e mula de época anterior ao trator. Um piano vazio: apenas a caixa de madeira e nada dentro. Lusa guardava suas próprias coisas nesse salão, mas nunca tinha prestado atenção ao resto. Somente agora ela se dava conta de que tudo ali lhe pertencia. Apertou o nariz para conter um espirro que lhe trazia lágrimas aos olhos, e tentou afastar a tristeza que estava vindo: essa menina não iria admitir nenhuma manifestação de autopiedade. E dado o conjunto de sofrimentos a que ela havia sido submetida em dez anos de vida, por que deveria admitir? Lusa se intrometeu no estreito espaço entre o piano e uns grandes rolos de cordões para amarrar fardos e se curvou para soprar a poeira acumulada no corpo enorme de uma máquina antiga.

- Santo Deus: dê uma olhada nisso, Crys.

- Que que é isso?

- Um moinho. Muito antigo... veja, ele tinha correias de pano. Estudou com atenção a maneira como a máquina era montada.

- Acho que era ligado a um eixo giratório. Talvez uma mula numa canga, andando em círculo.

- Para quê?

- Não havia eletricidade. Isto tem mais de cem anos. Foi do seu tataravô, provavelmente.

Crys estampou um ar de desdém: era como se Lusa fosse incapaz de entender uma pergunta tão simples.

- Não, eu quero saber o que as pessoas faziam com isso.

- E um moinho. Eles usavam para fazer farinha.

- Para fazer o quê?

Crys se agachou para ver como era a máquina por dentro.

- Para fazer pão. Aqui, todo mundo plantava o trigo e o milho de que precisavam: tanto para fazer pão, como para dar comida aos animais que criavam. Agora, o pessoal compra ração na Southern States e pão no Kroger's, que é feito em outro estado.

- Por quê?

- Porque não dá mais para plantar trigo. Sai mais barato comprar suprimentos de má qualidade numa fazenda grande do que produzir com boa qualidade numa fazenda pequena.

- Por quê?

Lusa se apoiou num barril de 200 litros que continha um resto de creosoto solidificado.

- Puxa! É difícil de responder. Porque as pessoas agora preferem a quantidade e não querem pagar pela qualidade. Além disso, os fazendeiros são obrigados a seguir regras que automaticamente favorecem quem tem mais. Olha, é como no jogo de bola de gude: quem começa ganhando fica com todas as bolas, não é?

- Não.

- Não?

- Eu não jogo bola de gude.

- E o que você joga?

- Gameboy.

Crys se havia afastado dela e punha as mãos em tudo; desenhava círculos na poeira, olhava embaixo das mesas.

- O que que é isso?

- Um fumigador de abelhas. A menina riu.

- Para fumar abelha? Dá para tirar um barato de abelha?

Lusa se perguntou o que a menina poderia saber sobre baratos, mas decidiu não reagir.

- Não. A fumaça sai por aqui e tonteia as abelhas. Elas ficam pesadas e preguiçosas, e não picam quando você tira a tampa da colméia e rouba o mel.

Crys pulou num estrado de molas encostado na parede e voltou.

- Então é daí que vem o mel? a gente rouba ele?

Lusa estava surpresa com a ignorância da menina - provavelmente, a ignorância de toda a sua geração.

- As pessoas criam abelhas por causa do mel. Todo mundo criava abelhas nesta região. Ainda dá para a gente ver umas caixas velhas de madeira abandonadas por aí.

- E agora só tem de vidros.

- E - concordou Lusa -, da Argentina ou de outros lugares. Era isso o que eu queria dizer: as grandes fazendas estão tomando o lugar das pequenas até mesmo aqui. E uma pena. Não é justo, é uma merda.

Sentou-se no braço de um moinho pré-histórico, que a surpreendeu por ceder uns cinco centímetros antes de parar.

- Ninguém liga. Eu já morei numa cidade, e lá o povo diz que não é problema dele. Imagina que a comida vem do supermercado e pronto, e sempre vai ser assim.

Crys continuou a se jogar contra o estrado apoiado na parede.

- Mamãe trabalha no Kroger's e detesta.

- Eu sei - Lusa deu uma olhada no cemitério de antigos equipa­mentos e sentiu desespero, não só - ou não especificamente - pela perda do marido, mas por causa de tudo o que as pessoas plantavam e faziam antes de se enviuvarem da própria cadeia alimentícia.

- Ela detesta porque fica cansada. Eles nunca dá folga para ela.

- Sei. Pelo menos as folgas não são suficientes.

- Mamãe está doente.

- Eu sei.

- Eu não posso mais ficar na casa da tia Lois. O Lowell pode, mas eu não. Sabe por quê?

- Por quê?

Crys parou de pular contra o estrado. Entrou cautelosamente numa caixa de enfardamento quebrada e saiu pelo outro lado.

- Por quê, Crys?

- Ela me fez experimentar uns vestido idiota. Roupa velha da Jennifer e da Louise.

- Ah, é? Eu não sabia dessa parte da história.

- Ela disse que eu tenho de usar eles. Uns vestido feio que dói.

- E provavelmente fora de moda. Jennifer e Louise são muito mais velhas que você.

Crys deu de ombros, um movimento rápido e desajeitado. Sentou-se num pneu de trator, colocando os pés no centro, dando as costas para Lusa.

- Eles é horroroso.

- Quem?

- Os vestidos.

- Mesmo assim. Quebrar os bibelôs da tia Lois de propósito não foi a maneira mais certa de tratar o problema.

- Ela me mandou para o banheiro e mandou eu dar minha roupa para ela enquanto eu experimentava os vestido. E sabe o que ela fez? Ela cortou de tesoura a minha calça de veludo e a camisa xadrez só para eu não poder mais pôr elas.

Lusa ficou chocada. Olhou a nuca da menina e sentiu que seu cora­ção ferido se abria para aquela pequena criatura cujo cabelo cor de palha se arrepiava no alto da cabeça tal como os espinhos de um porco-espinho.

- Isso é horrível! - disse ela afinal. - Ninguém me contou essa par­te. Era a sua roupa favorita, não era? Acho que nunca vi você com outra roupa nos fins de semana.

Crys deu de ombros outra vez e nada disse.

- E então, o que aconteceu? Você teve de pôr um dos vestidos?

A menina balançou a cabeça.

- Eu fugi correndo pelada. Só de calcinha. Fui, e escondi no celeiro.

- E o que aconteceu com a estátua de mãos postas? Como é que ela quebrou?

- Eu não sei.

- Aconteceu que ela estava no caminho quando você passou correndo? a cabeça de porco-espinho anuiu.

- Acho que foi uma troca justa. O tesouro dela em troca do seu. Lusa viu o cabelo na nuca da menina se mover sutilmente, resultado

de uma alteração da musculatura sob a pele. Adivinhou um sorriso.

- Acho que não ajuda em nada - acrescentou Lusa -, tornou as coisas mais tensas entre você e sua tia, e isso não facilita a vida da sua mãe. É nela que você deve pensar agora. Só estou dizendo que entendo o seu lado.

- Eu disse para Jesus que eu ia usar aquela roupa até ele curar a mamãe. Agora está tudo cortado no lixo da tia Lois e a mamãe vai morrer.

- Pensar uma coisa assim não faz essa coisa acontecer.

Crys se virou e olhou para Lusa através de um facho de luz que vinha de um furo no telhado e batia no chão entre as duas. A poeira dançava na luz, habitando um universo particular e tranqüilo.

- E como estão as coisas para o Lowell? — perguntou Lusa baixinho. - Ele deve estar muito assustado com a doença da sua mãe.

Crys puxou uma tira de borracha que se soltara do tênis.

- Ele também não gosta de lá. Tem medo da tia Lois. Ela é ruim.

- Ruim como? Ela bate nele?

- Não, eles não bate na gente. Só que ela não é boa igual a mamãe. Ela não deixa as roupa dele arrumada na cadeira nem faz a comida que ele gosta. Ela e a Jennifer e eles tudo só fica gritando que ele é um meninão mimado.

Lusa levou a mão à boca, mas manteve o tom calmo.

- Por que vocês não vêm para cá da próxima vez? Posso pedir para a sua mãe?

Crys deu de ombros, continuando a desmanchar o tênis.

- E bom.

- Está bem. Mas hoje nós duas estamos sozinhas aqui, podemos fazer o que quisermos. Eu vou caçar insetos, se você quiser.

Lusa pegou duas redes na caixa.

- Esta é sua. Vamos, que o dia lá fora está passando.

Crys pegou a rede e seguiu Lusa para fora do celeiro. Começaram contornando o pasto das cabras. Lusa ia na frente, passando a rede pelo capim alto ao longo da cerca. As duas estavam ofegantes quando chega­ram ao alto da colina. Lusa se largou no chão, sem fôlego, e Crys se sentou de pernas cruzadas.

- Cuidado - disse Lusa, pegando a outra rede -, veja, dobre a rede sobre o aro para que eles não fujam. Agora vamos ver o que você pegou.

Com cuidado, ela deixou alguns insetos saírem para fora da rede.

- Esses são grilos e essa é uma cigarra. São muito diferentes, está vendo?

Ela ergueu no ar o grilo verde que debatia as pernas. Para sua sur­presa, Crys pegou o grilo e o segurou perto do rosto.

- Ei - disse ela -, ele tem asa.

- Tem. A maioria dos insetos tem asas; até as formigas num estágio da vida delas. Os grilos têm. Se quiser, esse sujeito voa. Veja.

Lusa levantou a caixa verde das asas com a unha, estendendo a asa de celofane vermelho brilhante que se escondia por baixo.

- Nossa! - gritou Crys - Elas sempre são dessa cor?

- Não. Existem vinte mil espécies de grilos e cigarras no mundo, e são todas diferentes.

- Nossa!

- Isso mesmo, "nossa", foi assim que eu reagi. Veja este aqui. Buscou dentro da rede uma criatura chata e vesga que parecia uma

folha com pernas.

- Este é um acridídeo.

Crys o pegou, encarando-o olho no olho. Olhou para Lusa.

- Eles é que ficam cantando de noite? A-cri-di-di! Acridi-di! Lusa gostou da imitação.

- Isso mesmo. Você nunca tinha visto um acridídeo? Crys negou com a cabeça.

- Eu pensei que fosse um bicho grande. Um passarinho grande. "Um passarinho?". Lusa estava chocada. Como é que uma menina

do campo podia crescer sem saber nada sobre seu mundo? Os pais lhes davamgameboys e televisão, que despejavam sobre eles paisagens urbanas de polícia e advogados bonitos, mas não lhes mostravam um acridídeo que fosse. Não era por descaso, Lusa sabia. Era uma mistura triste de vergonha e intenções modernas, assim como fez o pai dela, ao proibir que falasse iídiche. Observou o interesse de Crys ao examinar as características infinitesimais do animal, manipulando-o com o maior cui­dado, comendo-o com os olhos. Parecia uma exímia taxonomista.

- Como é que ele faz tanto barulho com uma boca tão pequena?

- Não é com a boca. Está vendo? É com as asas. Lusa abriu com cuidado.

- Há um raspador de um lado, e do outro, uma coisa que parece lixa. Ele esfrega um contra a outra. E assim que ele canta.

Crys praticamente enfiou o nariz lá dentro.

- Onde?

- É muito difícil de ver. São muito pequenas. Crys estava cética.

- E como é um barulho tão alto?

- Você já viu o guincho que um pedacinho de giz faz no quadro-negro?

Crys ergueu as sobrancelhas, concordando.

- É assim. Uma coisa áspera esfregada numa outra que é dura. Não basta ser grande. Eu é que sei: só tenho um metro e cinqüenta e cinco de altura.

- E isso é ser pequeno?

- É. Para um adulto, é pouco.

- E a tia Lois é grande?

Ela dizia "tia Lois" como se quisesse negar a existência da mulher. Lusa entendia esse sentimento.

- Não sei; é grande. Para uma mulher. Quase um metro e oitenta. Por quê?

Crys lançou um olhar cansado colina abaixo.

- Ela disse que a senhora estava forçando a barra.

Lusa se deitou na grama com os braços cruzados atrás da nuca e ficou vendo uma nuvem flutuar no céu. Tentou adivinhar a quem Crys queria prejudicar ao trair esse segredo.

- Algumas de suas tias acham que eu não devia ser a dona desta fazenda. E isso.

Crys se reclinou com o rosto quase encostado no seu.

- Por quê?

- Porque eu sou diferente delas. Porque eu não nasci aqui. Porque eu gosto de insetos. Por tudo. Porque seu tio Cole morreu e eu ainda estou aqui, e elas estão com raiva porque a vida não é justa. Não sei bem por quê; estou só tentando adivinhar. As pessoas nem sempre têm boas razões para seus sentimentos.

- Mamãe vai morrer?

- Epa! De onde você tirou essa idéia?

- Vai?

- Não sei dizer. É verdade, juro. Ninguém sabe. Só sei que ela vai fazer o que puder por você e o Lowell. Até mesmo ir a Roanoke tomar veneno uma vez por semana. Ela deve amar demais você e Lowell, não é?

Não houve resposta.

- Mais uma coisa. Tenho certeza de que Jesus não vai magoar sua mãe só porque tia Lois picou as suas roupas. Se ele quisesse punir alguém, o que eu não acredito, seria a sua tia, você não acha?

- Então ele vai matar a tia Lois no lugar da mamãe?

- Não, não vai; e disso eu tenho certeza. A vida não é assim. Deus não passa a vida marcando faltas, como um juiz, senão o mundo seria diferente do que é. Sorvete três vezes por dia, sem castigos; nem vestidos horrorosos, se você não quiser.

Crys deu uma risadinha. Pela primeira vez desde que se plantara no jardim de Lusa aquela manhã, ela parecia clara e transparente como uma menina. Como o cristal do seu nome. Lusa não via o rosto dela, mas sentia-lhe o corpo junto ao seu na grama e ouvia a respiração tranqüila.

- Ei, alguém já lhe disse o que é um cristal?

- Uma bobagem. Jóias.

- Não. E uma rocha. Dura, cortante e brilhante. Há muitas espécies diferentes. Até o sal é um cristal.

Lusa se sentou.

- Ei, nossos insetos fugiram.

Crystal se levantou desesperadamente desapontada. Lusa riu.

- Não tem importância. Deixe-os ir. Vamos caçar outros. Fez um gesto mostrando o pasto.

- Todos os insetos que você quiser, e aqui mesmo. Você acredita que há pessoas que borrifam inseticida em todos esses pastos?

Ela espantou os últimos desgarrados da rede.

- Veja a beleza das criaturas que morrem. É como jogar uma bom­ba numa cidade para se livrar de dois bandidos. Veja, isso é o que é boni­to nas minhas cabras: não preciso de produtos químicos para criá-las. Só tenho de matar cinqüenta animais, não cinqüenta mil.

Crys fez uma careta para as cabras de Lusa do outro lado da cerca. Lusa notou que o pasto estava tomando forma. Todo o mato alto deixado pelas vacas estava sendo cortado e nivelado, e agora ele parecia um gra­mado de Lexington.

- De verdade, como a senhora arrumou essas cabras tudo?

- Foi mesmo do jeito que eu disse: odeio pesticidas e tenho de criar alguma coisa que renda dinheiro. Além disso, eu falei mal do tabaco, e agora estou fora. E não gosto de enfiar a mão no traseiro de uma vaca.

A menina abriu a boca e deu uma risada gostosa.

- Você perguntou, e pôr a mão lá é uma coisa que um criador de vacas é obrigado a fazer.

- Ecch!

- Não estou brincando. E preciso fechar o punho e enfiar lá dentro para sentir se ela está prenha. E isso não é o pior. As vacas são grandes e estúpidas e perigosas, e só dão trabalho, na minha opinião.

Riu da cara que Crys estava fazendo.

- Por quê? Você já deve ter ouvido seus tios falarem de mim e das minhas cabras.

A menina concordou, com um ar de culpa.

- Eles dizem que você é uma boba. Lusa se inclinou para Crys, sorrindo.

- Os seus tios ficaram com as minhas vacas. Então, quem é o mais bobo?

Perto da meia-noite, Lusa se surpreendeu ao ouvir um carro entrar no terreno. Caíra no sono no sofá da sala enquanto lia um artigo de W D. Hamilton sobre mimetismo das monarcas e seleção altruísta. A capacidade de dormir devia estar voltando - depois da morte do Cole, nunca conse­guiu dormir no sofá. Sentou-se por um instante para acabar de acordar. Era noite de terça-feira. Crys estava dormindo na cama no andar de cima. Jewel devia ligar no dia seguinte para chamar os filhos. Lusa alisou a camisa e foi até a janela. Era o carro de Hannie-Mavis. Correu à porta da frente e acendeu a luz da varanda.

— É você, Hannie-Mavis?

Era. O motor parou e a figura pequena saiu do carro.

— Só passei para ver se vocês estão bem. Pensei: se as luzes estão apagadas, ótimo; e eu ia para casa.

— Você ainda não passou em casa? Meu Deus!

Lusa olhou para o braço, mas não estava usando relógio.

— Que horas são?

— Não sei, meu bem. É tarde. Fui com a Jewel até lá, e dessa vez ela passou mal. Não pude sair enquanto ela não melhorou. Mas agora ela está dormindo. Se está tudo bem com a menina, eu vou para casa. Achei melhor vir saber.

- Estamos muito bem. Ela está dormindo e eu estava lendo no sofá. Lusa hesitou, preocupada com a tensão na voz da cunhada.

- O que foi? Você está dizendo então... que Jewel passou mal a tarde toda e a noite? Desde que vocês chegaram de Roanoke?

Lusa ouviu no escuro um suspiro longo e estranho.

- Foi preciso esperar três horas e meia até ela conseguir entrar no carro. E mesmo assim, tivemos de parar a toda hora para ela vomitar.

Lusa tremeu no ar frio. Pequenas bruxas voavam em torno de sua cabeça.

- Meu Deus, foi horrível. Entre. Vou preparar um chá para nós. Hannie-Mavis hesitou no jardim.

- É muito tarde. Não quero incomodar.

- Não é incômodo.

Lusa desceu os degraus e ficou surpresa quando a mulher pequenina quase caiu nos seus braços. Lusa segurou-a por um minuto sob a luz da varanda.

- Ela não está tão mal assim, está?

Ficou chocada ao chegar perto e ver que Hannie-Mavis estava cho­rando.

- Disseram que não adianta mais, a quimio não está mais resolvendo. Ela passou por tanta coisa: vômitos, perda de cabelo, e tudo isso para nada. Ela está pior.

- Mas como é possível? - perguntou Lusa numa voz entorpecida.

- Acabou tudo, meu bem. Os pulmões e a espinha. O médico me disse hoje.

- Meu Deus. E ela já sabe? Hannie-Mavis balançou a cabeça.

- Eu ainda não contei. Com que cara? Comecei a dizer que o médi­co tinha terminado com a quimio, e ela achou que era bom: "Ah, Han, imagine quando eu contar para os meninos. Vamos comprar sorvete para comemorar!". E isso entre um vômito e outro.

Hannie-Mavis soltou um longo suspiro, e depois um longo gemido. Lusa a apoiou meio sem jeito, ainda sem sentir todo o peso dessa nova dor.

- E como ela vai deixar as crianças? - gritou Hannie-Mavis.

- Psss, uma delas está dormindo ali em cima.

Lusa abraçou-lhe os ombros e a guiou através da varanda e da porta. No saguão iluminado, Hannie-Mavis se recompôs, parecendo de repente mais contida e absurdamente alegre no seu vestido listrado de vermelho e branco, feito de algum tecido sedoso. Estava de sapatos vermelhos de salto alto. A imagem das duas irmãs se preparando naquela manha para ir à cidade para essa viagem horrível era devastadora. Observou Hannie-Mavis corrigir a maquiagem borrada dos olhos com um lenço de papel que parecia ter passado tempo demais na mão.

- Venha. Vamos nos sentar lá na cozinha.

Hannie-Mavis hesitou mais uma vez, mas caminhou lentamente até a porta da cozinha enquanto Lusa corria ao andar de cima para buscar uma caixa de lenços de papel. Quando voltou à cozinha e pôs uma chaleira no fogo, a cunhada havia desaparecido. Lusa ouviu sons intermitentes de nariz assoado que vinham do banheiro. Quando saiu, com o penteado e a maquiagem recompostos, a chaleira já estava fervendo e Lusa preparava o chá. Vê-la de pé diante da porta fez Lusa se lembrar do enterro, de ver toda aquela másca­ra azul e dizer alguma coisa friamente. Gostaria de retirar o que dissera, não importa o que fosse. Sentiu remorso por todas as vezes em que quase a chamou de Handy-Makeup em voz alta. E preciso ter cautela em famílias grandes. Quem poderia adivinhar como as coisas iriam evoluir, de quem se iria precisar mais adiante, e o que poderia levar alguém a ver até mesmo uma sombra de olhos sob uma luz diferente? Nesse momento, Lusa foi obrigada a admirar a arte e energia daquela mulher diante do sofrimento. Depois da morte de Cole, decorreram pelo menos três semanas antes de ela ter coragem de passar um pente no cabelo.

Hannie-Mavis deu um suspiro ao se apoiar na mesa com as palmas das mãos e sentar-se lentamente, tal como uma velha.

- Bem, e como foi o seu dia?

- Ótimo.

Ela olhou para Lusa.

- Como assim, ótimo? Lusa deu de ombros.

- Quero dizer que foi ótimo. Nós nos divertimos.

- Não precisa mentir, meu bem. Aquela menina é fedorenta como um gambá. Nunca disse isso à Jewel, mas comecei a levar ela para o médico para não ter de ficar com os meninos.

Lusa pegou xícaras, colheres e açúcar - as xícaras de uso diário, não a porcelana ornada de bruxas - e abriu a boca para começar do começo, do espelho quebrado na escada. Mas foi contida pela lealdade, que impôs suas próprias decisões: ela e Crys teriam seus segredos. Sentou-se sem falar e serviu o chá.

- Ela é mesmo uma castanha dura de quebrar - disse após uns ins­tantes - eu gosto dela. Eu era igual a ela. Vontade forte.

- Ótimo, meu bem. Você merece uma condecoração. Hannie-Mavis abriu a bolsa e mexeu lá dentro:

- Posso fumar aqui?

Lusa se levantou e pegou um cinzeiro na gaveta pequena ao lado da pia. Foi o Cole que deixara lá, percebeu, sentindo um choque elétrico ao pensar nas mãos dele tocando aquele objeto. Cada picada como essa pa­recia afastar um pouco mais a dor de seu centro. Começava a entender como seu casamento um dia se tornaria completamente visível à sua memória, e intocável. Como uma borboleta sob o vidro.

- E o que vocês fizeram? - perguntou Hannie-Mavis, acendendo o isqueiro.

- Bem, primeiro cortamos grama. Depois vimos coisas velhas no depósito do celeiro, depois caçamos insetos durante umas duas horas. Ensinei a ela como identificar insetos, dá para acreditar? Como são as notas dela na escola? Ela é muito inteligente.

- As notas dependem de ela querer. O que é muito raro.

- É claro. Então fizemos uma bela fogueira no escuro para queimar o mato cortado, então entramos e comemos um egga bisabaneh às dez horas.

- Nossa, que chique!

- Que nada. Uma salada com ovos cozidos.

- E você conseguiu fazer aquela menina comer salada? É um milagre.

- Portulaca e feijão, que colhemos. Mato para o jantar: ela achou legal. Disse, e eu cito: "Se a tia Lois visse isso, ia cagar na calça".

Hannie-Mavis estalou a língua.

- Aquelas duas não se bicam.

- Sabe o que a Lois fez para ela ficar com tanta raiva?

- Fez ela experimentar um vestido. Lusa apoiou os cotovelos na mesa.

- Isso mesmo. E enquanto ela experimentava, a Lois pegou a calça favorita da Crys e reduziu a trapos com uma tesoura.

- Ai, que maldade!

- a Crys fez uma promessa para Jesus curar a mãe se ela usasse sempre aquela roupa. Pobrezinha.

- É muita maldade. A Lois não devia ter feito isso.

- Não devia. Essa menina precisa de muito amor; e aquilo era abo­minável.

Hannie-Mavis fumou em silêncio.

- E mesmo. Mas a Lois é assim mesmo. Vive com raiva de tudo e desconta em todo mundo.

- Mas por quê? Ela tem um bom marido, bons filhos. E dez milhões de bibelôs. Ela se queixa de quê?

- Só Deus sabe, eu não sei. Ela foi sempre assim. Tinha raiva de não ter nascido mais bonita. Raiva de ter nascido grande e ossuda.

- Mas a Mary Edna também é grande: mais até do que ela.

- É, sim, mas Mary Edna não sabe. E que Deus tenha piedade do infeliz que contar para ela.

Lusa ousou uma risadinha, esfregando os olhos. De repente, sentia-se exausta. Mas eram revelações sérias. Mesmo sem conhecer os pais, ela percebia duas linhagens diferentes: Hannie-Mavis, Jewel e Emaline eram sensíveis e tinham traços finos; Mary Edna e Lois eram confiantes, tinham mãos grandes, grandes queixos e eram fortes. Cole era a mistura perfeita de todos esses genes, a perfeição da família. Cole Widener, adorado por todas, conquistado por Lusa, roubado pela morte. Não era de admirar que aquela família ainda tremia depois de tudo. Era uma tragédia grega.

As duas mulheres continuaram sentadas à mesa uma em frente da outra; mas por um momento baixaram o rosto e tomaram chá.

- Posso ficar com a Crys até amanhã ou depois - disse Lusa -, verdade, não é incômodo nenhum, e a Jewel precisa descansar. Pode di­zer à Lois para mandar o Lowell. Acho que os dois ficam melhor juntos.

- Pobrezinhos.

- Eles vão ficar à vontade. Aconteça o que acontecer, vai dar tudo certo. Famílias grandes são uma bênção.

Hannie-Mavis olhou surpresa para ela.

- Você acha que tudo vai bem?

- Com quem, com sua família? Acho que vocês acham difícil se unir, só isso.

Hannie-Mavis deu uma risada.

- Foi o que o Joel disse, já muitos anos depois de nos casarmos: "Ir numa reunião de Wideners é como fazer uma viagem para a China". Por que tem de ser assim? Acho que nós somos iguais a todo mundo.

- Acho que toda família tem um tipo qualquer de viagem à China para contar. Para mim, tudo foi mais difícil. Deve ter sido um choque quando ele se casou tão depressa.

- E foi mesmo. Sempre que podia, ele ia para Lexington, e a gente nem sabia por quê. A Mary Edna achava que ele ia para ver as corridas. Nós ficamos de queixo caído quando ele chegou num domingo e sentou naquela cadeira, eu e a Jewel estávamos cozinhando para todo mundo, e ele disse: "Domingo que vem vocês vão conhecer a mulher mais bonita que já pisou neste mundo, e não sei por que ela concordou em casar comigo".

- Eu também levei um choque - disse Lusa baixinho, ansiosa para apagar os pensamentos.

Olhou para Hannie-Mavis:

- E eu herdar a fazenda. Entendo por que a família está ressentida comigo.

Hannie-Mavis lançou nela um olhar que Lusa reconheceu: era o mesmo olhar do enterro, perdido, pintado de azul. Ela dissera: "Não sei o que vamos fazer sem ele; estamos tão perdidos quanto você".

- Nós não estamos ressentidos com você! Lusa balançou a cabeça.

- Vocês se ressentem por eu ter herdado a fazenda. Eu sei. Sei que vocês chegaram até a falar com um advogado.

Hannie-Mavis olhou-a com preocupação.

- Ou alguém procurou, não sei quem - desconversou Lusa. Hannie-Mavis deu uma tragada e mexeu nas pontas das unhas, que

brilhavam tanto quanto seus sapatos.

- Foi a Mary Edna - revelou enfim -, acho que ela não fez por mal. A gente só queria saber o que podia acontecer, sabe como é. Pois ele não deixou testamento.

- Olhe, eu não estou culpando ninguém. Vivo nesta casa maravilhosa onde todos vocês cresceram, na melhor parte de umas terras que são da sua família, e me sinto como se tivesse roubado tudo isso. Mas há proble­mas. A fazenda está endividada. Não era esta a vida que eu pretendia ter.

- Ninguém planejou o que aconteceu com o Cole.

Ela deu algumas tragadas, deixando a frase subir junto com a fumaça azulada acima de suas cabeças. Então, perguntou num repente:

- Sabe o que eu acho, de verdade?

- O quê?

Lusa estava espantada.

- Papai sabia o que estava fazendo. Ele fez um favor quando deu para nós, meninas, só um pedacinho de terra para viver.

- E como você sabe?

- E verdade. Estamos melhor assim. Pense: qual de nós ia querer morar aqui, lutando para viver desta fazenda? Nós não queremos - nem eu nem o Joel -, meu Deus, ele só pensa em carro, carro, carro. E o trabalho que ele gosta. Ia ser horrível a gente ter de viver presa nessa terra. Nem a Jewel, mesmo que ainda fosse casada e não estivesse doente. Ela gosta mais desta casa do que nós todas juntas, mas o Sheldon não gosta­va de fazenda, meu bem. E a Mary Edna e o Herb, olha só, eles têm a fazenda de leite; estão ótimos e não iam dar conta de outra fazenda. Quanto a Emaline e Frank: acho que os dois estão felizes sendo empregados em vez de donos de fazenda; sei que estão.

- E a Lois e o Rickie? Os dois gostam de mexer com fazenda.

- Rickie gosta mesmo de ser fazendeiro, mas tem tanto direito a este lugar quanto você. Ele entrou na família pelo casamento, igual você.

- Mas tem a Lois. Eles dois poderiam morar aqui. Hannie-Mavis soprou entre os lábios como fazem os cavalos.

- Primeiro, se para salvar a vida a Lois tiver de plantar um tomate, nem assim ela planta; mesma coisa se tiver de fazer conservas: não faz. Ela detesta ficar suja. Acho que ela não dá mesmo a mínima para este lugar. Ela pode até fingir. Mas se isto aqui fosse dela, ela ia derrubar a casa, fazer outra de tijolo, cheia de patos de plástico no jardim e com garagem para três carros.

Então, num lampejo, Lusa entendeu tudo.

- Quer dizer que de fato ninguém quer a fazenda - disse Hannie-Mavis com sinceridade -, a verdade é a esta: elas não querem que nin­guém mais seja dono daqui.

- Você quer dizer eu.

- Não, não é isso, meu bem. Mas olha, nós todas sabemos o que vai acontecer. Primeiro nós achamos que você ia embora e a fazenda ia voltar par nós. Agora, parece que você vai ficar. E muito bom. É ótimo ter você aqui. Mas olha ...

Hannie-Mavis pegou um lenço na caixa, limpou cuidadosamente os cantos dos olhos, e acrescentou mais um elemento branco à população que crescia na mesa. Lusa entendeu que o que ela ia dizer não era fácil.

- O quê? - perguntou tranqüila. Ela estava com medo.

- Ora, daqui a alguns anos você vai casar com alguém. E então a fazenda vai ser dele.

Lusa soltou o ar por entre os dentes.

- E ridículo.

- Não, não é. Ninguém quer proibir você de casar. Você vai casar e é muito bom. Mas olha, a fazenda vai passar para os filhos dele. Não vai ser mais a nossa casa. Não vai ser mais a casa da família Widener.

Lusa estava perplexa. Jamais sonhara que fosse esse o problema.

- Como é que você pode pensar uma coisa dessas?

- Pensar o quê?

- Não sei, isso tudo. Com quem eu iria me casar?

- Meu bem, meu bem: você não tem nem trinta anos. A gente adorava o Cole, mas ninguém acha que você tem de parar de viver por causa dele.

Lusa olhou para o fundo de sua xícara vazia, sem folhas, sem futuro a ser lido.

- Tenho de pensar nisso durante o dia. Não sei o que dizer. Não fazia a menor idéia.

Hannie-Mavis inclinou a cabeça.

- Eu não queria magoar você.

- Não, você não me magoou. Pensei que o problema fosse eu. Não percebi que o problema era - que nome a gente poderia dar? a descen­dência. A linhagem familiar.

- Muito bem - Hannie-Mavis deu um tapa na mesa -, vou embora. Esse dia foi de matar.

- Acho que já é amanhã.

- Pior ainda. Tenho de chegar em casa e dar comida para os gatos, porque é claro que o Joel esqueceu, e depois voltar para ficar com a Jewel.

Juntou todas as bolinhas de papel e enfiou na bolsa. Lusa se pergun­tou se aquele seria um costume da terra, levar consigo as próprias secre-ções. Ficaram as duas cara a cara por um momento, mas não se abraçaram.

- Por favor, diga à Jewel que eu gostaria de ficar com os meninos mais uns dias. E se ela precisar de qualquer coisa, qualquer mesmo, é só pedir. Você não pode tomar conta de tudo, tem de descansar.

- Eu vou falar, meu bem. E vou dizer a Lois para trazer o Lowell, se ele quiser vir. Obrigada, meu bem.

- Lusa; - disse Lusa. - agora eu sou sua irmã, você vai ter de me agüentar: é melhor começar a usar o meu nome.

Hannie-Mavis parou e se voltou, tocando a manga do vestido. Pare­ceu hesitar quando falou:

- a gente tem medo de falar errado, é por isso que a gente não fala. Esse nome é de Lexington?

Lusa riu.

- É polonês. O diminutivo de Elisabeth.

- Bem que eu pensei. Que era estrangeiro.

- Mas não é difícil de dizer. De onde vem esse nome, Hannie-Mavis? Hannie-Mavis sorriu e balançou a cabeça.

- É só um nome estranho, meu bem. Horrível e estranho. Papai era original e mamãe não sabia ler. Cada um fica com o que tem.

Na manha seguinte Lusa foi acordada por um barulho de pneus no cascalho da estradinha. Sentou-se na cama, olhou para a janela já clara e verificou as horas. Estava acordando tarde. Quem quer que fosse, ia surpreendê-la de camisola às dez horas da manha, um pecado mortal para quem vive numa fazenda.

Mas ouviu a porta do carro bater e os pneus partirem ladeira abaixo. Ouviu passos que chegavam à casa, e passos na sala, passos abafados no tapete, e depois subindo os degraus. Lusa se levantou e foi silenciosamente até o patamar, mas nada ouviu. Então, vozes sussurrando. Olhou para baixo sobre o guarda-corpo, e sentiu um calor no rosto, depois um frio. Lá estavam eles mais uma vez, lado a lado, sentados muito próximos no segundo degrau de baixo para cima. Um menino pequeno e uma menina um pouco maior com o braço em torno do ombro para protegê-lo do mundo. Não era o menino que ela pensara ser, e que seria capaz de reco­nhecer em qualquer lugar, com qualquer idade, e a menina não era irmã dele, a Jewel.

Não eram Jewel e Cole. Eram Crys e Lowell.

 

Jiana acordou assustada ao som de um tiro. Ficou petrificada ao ouvir o eco daquele som através do silêncio oco, forçado e universal que se seguiu a ele. Era o som inconfundível de um tiro. Sentou-se e se inclinou para frente, desorientada, tentando despertar. Era a terceira ou quarta vez que ela caía no sono bem no meio do dia, dessa vez na poltrona de brocado da varanda, onde se sentara para descansar por um minuto.

Passou a mão pelo tecido em relevo do estofado verde, traçando com os dedos a mancha comprida que escorria de um braço até se perder no assento - às vezes ela se perguntava como essa poltrona teria saído da vida elegante na sala de alguém até chegar ao serviço humilde que prestava naquela varanda. E como foi que ela havia chegado até ali, cochilando na poltrona? Diana tentou reconstituir sua tarde. Só se lembrava de ter caído na poltrona e desatado os cadarços das botas, tentando dar um pouco de conforto aos pés doloridos; era a última coisa de que se lembrava. Até então, travara durante a manhã toda uma batalha contra a exaustão. Traba­lhara com Eddie na ponte dos abetos e ao voltar, no fim da manhã, foi como se tivesse vindo de lá com água até o pescoço. Duas árvores grandes haviam caído na trilha e tiveram de ser retiradas. Eddie: trabalhou com o machado, cortando os galhos enquanto ela usava a motosserra, e é claro que ficou contente com essa ajuda. Mas detestava a maneira como ele se mostrava, como tirou a camisa para deixar o suor escorrer pelos lados do pescoço, trabalhando alegremente toda a manha, sem parar. Não gostou de ser esnobada. Detestava ser mais velha que ele, e sentir-se como uma menina frágil. Uma velha, verdade seja dita. Depois de uma hora de traba­lho, seus braços doíam, os joelhos tremiam, e o ronco da serra abafava seus resmungos por causa da serragem e do suor retidos na gola da cami­seta. Ao meio-dia, seu único desejo era cair no riacho frio de roupa e tudo. Quando acabou a gasolina da serra, ela sentiu uma profunda gratidão.

Sua intenção era se sentar um minuto na varanda para descansar, antes de encher os cantis de água e a lata de gasolina, e voltar correndo. Ótimo. Ela protegeu os olhos com a mão e franziu o cenho ao encarar o sol, que agora tocava as copas dos alamos. Dormiu muitas horas. Então viu o machado encostado num dos lados da varanda. Examinou-o, intrigada. Ele devia ter voltado para procurá-la ao notar que ela não havia chegado. Viu-a dormindo e tornou a sair, e agora estava... onde? Tomada pelo pânico, sentiu um aperto na garganta. O tiro... Só podia ser ele. Eddie Bondo atirou em alguma coisa enquanto ela dormia.

Levantou-se num pulo só e ficou andando de um lado para outro na varanda, atormentada por uma possibilidade surreal, a de seu medo ob­sessivo ter se realizado. Mas só houve um tiro; ele não poderia matar muita coisa com apenas um tiro, pois eles já não estavam juntos. Agora os coiotes saíam da toca para caçar, todos eles. Ela vira dois filhotes que corriam com um adulto, tanto lá no alto do bosque de abetos como lá em baixo, junto da divisa. Quase todas as noites ela ouvia ganidos e uivos tremidos. Eles agora estavam por toda a montanha. Ela não era mais capaz de garantir a segurança deles. Arrastando as botas desamarradas, ela entrou na cabana e foi correndo ver o local onde a carabina havia ficado durante os dois últimos meses. E claro: não estava lá. Canalha.

Correu até a mesa e puxou a gaveta onde guardava a pistola, mas limitou-se a olhar para ela. O que iria fazer? Fechou lentamente a gaveta e ficou parada com a cabeça inclinada para trás e olhos fechados; perma­neceu assim um longo tempo, enquanto as lágrimas escorriam pelo rosto. Não se ouviram outros tiros. Só aquele.

Ainda não estava preparada para enfrentá-lo - talvez nunca estivesse - quando o ouviu assoviando ainda longe, subindo a estrada do Serviço Florestal. Olhou pela janela, foi até a porta e trancou-a; sentou-se na cama, tornou a calçar as botas, olhou para os livros e voltou à janela. E lá vinha ele, sorridente como um furão, carabina apoiada no ombro, trazendo na outra mão um objeto parecido com um casaco preto. Ela forçou os olhos. Uma coisa preta. Uma coisa emplumada, com asas, segura pelos pés, que balançava acompanhando suas passadas. Um peru. Correu para fora, e bateu a cabeça na porta na pressa de atravessá-la, completamente esquecida de que havia acabado de trancá-la. Observou-o da varanda, a mão apertando a cabeça. A dor lhe trouxe lágrimas aos olhos, mas o alívio a fazia rir como uma criança.

Quando a viu na varanda, ele deu um passinho extra e levantou o troféu.

- Feliz dia de ação de graças!

—  Parece mais uma Feliz Páscoa. A temporada de perus terminou em abril.

Tocou a testa com a ponta dos dedos e os examinou, mas não estava sangrando. Estava feliz, incapaz de parar de rir. Ele parou a cerca de três metros e observou-a.

— Ora, ora, você vai me deixar viver. Pensei que você fosse me esfolar vivo por causa disto.

— Estou furiosa - declarou ela, tentando dar tal impressão -, esta­mos em pleno verão: essa perua devia estar chocando uma ninhada. En­tão, você matou uma família inteira.

— Não. Este é o papai.

— E macho? E você sabia antes de atirar? Ele fez que estava ofendido.

— Desculpe. Você tem uma vista ótima e sabe que não se pode matar uma fêmea em julho. Mas mesmo assim estava caçando numa reserva, bem debaixo do nariz da guarda-florestal.

Ele acabou de chegar até ela, peru ainda na mão, e lhe deu um beijo na boca com tamanho entusiasmo, que ela foi obrigada a dar vários passos para trás.

— Eis o jantar da guarda-florestal.

— Você não precisa sair por aí a fim de caçar um jantar para mim. E é muito tarde para jantar, já é hora da ceia.

— Então esta é a ceia da guarda-florestal — ele lhe deu mais um beijo - e quem vai prepará-la sou eu. Você vem me sustentando neste verão todo. Nem sabe que eu sou um bom provedor. Cheguei a pensar em trazer um veado.

Ela riu.

— Nossa! Esse ia ser difícil esconder se algum de meus colegas aparecesse. Ele lhe entregou a ave e verificou se a carabina estava descarregada

antes de deixá-la cuidadosamente apoiada na parede.

— Você precisa de proteínas. Há muito tempo que você só se alimenta de comida de passarinho, e agora está anêmica. O seu sangue está carente de ferro.

Ela riu.

— Você nem tem idade para saber o que quer dizer isso. E agora, o que você está fazendo?

Ele estava com uma pá na extremidade da clareira, ao lado da pe­dra, examinando o terreno.

— O quê? Você está pensando em lhe dar um enterro cristão?

- Vou fazer uma fogueira nesse buraco. Venho matutando sobre isso desde que o verão começou.

Ela sorriu do matutando dele.

- Onde você aprendeu a falar assim?

- Com uma linda matuta de cabelos longos.

Enfiou a ponta da pá na terra macia. Diana estudou a ave na sua mão, observando-a com o braço esticado. Pesava tanto ou mais que um galão de água - três ou quatro quilos.

- Então, quais são seus planos para este peru?

- Depená-lo.

- Muito bem. Mas você vai ter de escaldá-lo antes para soltar as penas, e acho que não tenho nenhuma panela bastante grande para este senhor.

- Tem, sim; uma das latas de guardar feijão e arroz - disse ele sem levantar os olhos.

Ele estava cavando um buraco grande.

- Primeiro a gente escalda ele lá dentro, depois esvaziamos a lata e assamos o bicho aqui dentro, amontoando carvão em volta da lata.

Ela olhou surpresa para Eddie.

- Você realmente pensou nisso o verão inteiro. -É.

- Fantasias carnívoras. -É.

Ela voltou para dentro, sorrindo à toa enquanto verificava o estado das latas e escolhia a que lhe pareceu mais hermética. Estava excitada. Passara tantos dias vivendo esse tempo de floresta, tempo atemporal, ob­servando as mudanças nas folhas, nos trinados e no clima, sem impor ne­nhuma agenda humana. Deixou mesmo passar o próprio aniversário, nem contou para o Eddie. Mas alguma coisa no seu corpo ansiava por essa comemoração. Ele adivinhara: ela queria um banquete. Um acontecimen­to extravagante para marcar esse verão extravagante.

Quando levou a lata vazia para fora, Eddie já tinha revestido o buraco com pedras e tentava acender uma fogueira. Enquanto empilhava a lenha e as primeiras chamas lambiam a lata metálica, ela buscou água na tornei­ra que havia na cabana. A água fria chiou, levantando colunas de vapor ao tocar o interior do cilindro quente. Nas idas e vindas, ela só parou uma vez para examinar o peru. Tocou a pele vermelha e áspera da cabeça, a crista e as pálpebras translúcidas, depois acariciou as penas escuras e brilhantes. Não chegava a ser a idéia humana de beleza, mas ela pensou em todos os dias que ele havia passado na floresta, à luz filtrada do sol, sonhando com gordas amoras e com o som distante de uma fêmea. Eddie tinha razão: não tinham prejudicado o filho de ninguém; a paternidade do peru era do tipo atropelamento com fuga. Mas ela tentou adivinhar a marca dei­xada por esse macho na montanha. Esperava que seus últimos genes estivessem protegidos e aquecidos em algum ninho.

Já estava anoitecendo quando finalmente a água ferveu. Discutiram sobre a necessidade de escaldar o peru antes de depená-lo, e Diana come­çou a arrancar as penas longas e duras da cauda, mas não conseguiu ar­rancar as mais macias do peito sem arrancar a carne, pois o peru já estava frio. Eddie deixou-a demonstrar sua competência. Estava surpresa, pois suas mãos ainda sabiam arrancar as penas e espremer as raízes, depois de tantos anos de consumo de aves de supermercado. Nos últimos anos ela quase não comia carne. Mas em quase todos os fins de semana de sua infância ela ajudou a matar uma ou duas galinhas. Essa carcaça era muito grande, mesmo depois de depenada. Eddie a ajudou a mergulhá-la por um ou dois minutos na água fervente, e depois a segurá-la sobre as chamas para queimar as últimas penas. Ele ainda firmou a ave para ela lhe cortar a cabeça e os pés com o machado. E ele retirou a lata do buraco para continuar a arrumar os carvões enquanto ela limpava o peru sobre a pedra.

- Eles sempre deixam o trabalho sujo para as mulheres - resmun­gou ela, sem na verdade se importar de realizar aquela tarefa, mas ain­da desapontada pela animação de Eddie naquela manhã, enquanto ela mal se agüentava em pé. Enfiou as duas mãos dentro da ave e soltou suavemente a membrana que prendia os intestinos e os pulmões às pare­des do corpo. Ele a observava impressionado, enquanto ela retirava num único volume brilhante toda aquela massa e usava a faca para soltar tudo que estava no terminal excretor, para soltar a massa de vísceras, que ele depositou na pedra ao lado da carcaça. Ela remexeu naquela massa, retirou o coração, examinou-o com cuidado e o jogou para Eddie, que deu um gritinho. Ela riu.

- a gente deve examinar com todo o cuidado tudo que vai comer. Foi o que meu pai me ensinou.

- Não sou enjoado; só que eu não gosto de vísceras de pássaros. Prefiro sempre um veado a um peru.

- E por quê?

- Não sei; preferência pessoal. Não é tão delicado. Não tem tanta moela e outras coisas.

- Ah, sei: é porque é preciso uma cirurgia mais delicada do que a que você se considera capaz de executar.

Ela deu um corte na pele ao longo do pescoço, depois de examinar cuidadosamente os ferimentos que o tinham matado. Um belo tiro, só a cabeça e o pescoço foram atingidos; Eddie era bom. A carcaça não estaria crivada de chumbinhos para quebrar os dentes, como sempre acontecia com os esquilos e perus que seu pai ganhava dos vizinhos. Enfiou dois dedos para arrancar a traquéia e o esôfago feridos.

- Menino, esse bicho tinha uma senhora voz. Olha só.

- Pois este gorgolejou pela última vez.

- E verdade.

- Isso eu não entendo - disse ele -, você é uma carnívora feliz. Ela ergueu os olhos.

- E daí? Os humanos são onívoros. Temos dentes para carne e dentes para fibras, e gostamos das duas coisas. Sei demais sobre animais para tentar negar o que eu sou.

- Mas eu atirei numa ave de sua preciosa montanha. Tinha certeza de que você ia me tomar a arma e atirar em mim.

- Então, por que você atirou?

Ele deu um daqueles sorrisos de um lado só.

- Você me conhece; eu não resisto a um desafio.

Ela lavou as mãos numa bacia com água e começou a lavar a carcaça inteira, procurando alguma ponta de pena que tivesse sobrado. Quando estivesse limpa e seca, ela iria esfregar sal e óleo na pele.

- É só um peru - disse depois de um minuto.

- Ora essa, é só um peru... Você não me deixa matar nem uma aranha!

- a aranha é um predador. Se matar uma, isso aqui vai ficar cheio de insetos, o que não combina com o que eu penso ser uma casa confortável.

- Ah, é verdade: os predadores são mais importantes. Ele foi até a pilha para buscar mais uma braçada de lenha. Ela deu de ombros.

- Não estou dizendo que este sujeito não é importante. Se todo mundo no Condado de Zabulon subir aqui para caçar, os perus acabam antes do anoitecer. Mas um dia algum bicho vai pegá-lo, mais cedo ou mais tarde. Uma coruja, se ele bobear depois que anoitecer. Ou um puma.

Eddie estava catando uns pedaços médios de lenha, mas parou, e olhou para ela com as sobrancelhas erguidas.

- O quê? - perguntou ela. - Ele é uma presa. Hoje foi a nossa presa. O que há de mais nisso? a predação é um sacramento, Eddie; seleciona quem é doente e quem é velho, mantém as populações sob controle. A predação é uma atividade respeitável.

- Mas a história do Chapeuzinho Vermelho não é assim.

- Ah, não: não comece com esta história da lavagem cerebral da infância. Eu odeio. Em todas as histórias de fada, todos os desenhos do Disney, em todo enredo que tenha animais, o bandido é sempre um dos grandes carnívoros. O lobo, o urso, a anaconda, o Tiranosaurus rex.

- Sem esquecer o tubarão - completou ele.

- Ah, é claro, o tubarão.

Ela o observou voltar para o fogo com a braçada de lenha cuidado­samente escolhida. Agachou-se e começou a realimentar o fogo com todo o cuidado, examinando os dois lados de cada uma das achas antes de oferecê-la às chamas. Parecia estar dando comida a um bebê.

- Nunca vou conseguir entender - continuou ela -, estamos no topo de nossa cadeia alimentar; o mais lógico seria nós nos relacionarmos melhor com eles. É como se tentássemos convencê-los a entrar num acordo comercial.

- Você quer dizer então que quando era criança torcia para o lobo mau comer a Chapeuzinho Vermelho?

- Não se esqueça de que meu sobrenome é Wolfe. Para mim, era quase uma questão pessoal.

Terminou de enxugar a carcaça por dentro e por fora com um pano e examinou a cavidade.

- E eu torcia como louca para o Coyote pegar aquele idiota do Papa-Léguas.

- Mas aí o programa ia terminar - protestou ele.

- Que os anjos digam amém.

Ela se levantou e enxugou as mãos na calça jeans.

- Vou buscar um pouco de sal.

Dentro da cabana, pegou uma lata de azeite, despejou um pouco num vidro e pescou a caixa de sal à prova de umidade. Revirou a caixa de legu­mes: ainda havia muitas cebolas e algumas batatas com brotos cor-de-rosa. Quatro cenouras. Ela pretendia jogar tudo isso na panela quando o peru já estivesse meio cozido. E depois jogar umas lascas de lenha queima­da para deixar um perfume de fumaça. Olhou para o relógio na estante dos livros e tentou adivinhar quanto tempo aquilo ainda ia demorar. Algumas horas, naturalmente, e ela estava morta de fome. Teriam o perfume celestial e esperariam o banquete durante algumas horas. Nada melhor que espe­rar uma felicidade que sem dúvida viria. O prazer da comida era algo que ela já tinha quase esquecido. Apesar da simpatia pelo tubarão e pelo TRex, Diana estava um pouco surpresa com ela mesma - por se engajar nesse ato carnívoro e por estar excitada com ele.

Quando tornou a sair, viu que o Eddie tinha jogado fora a água quente sem abafar o fogo, que agora estava alto. Ele agora estava colocan­do achas do tamanho de braços e pernas. Felizmente ela ainda tinha muita lenha: pedaços de carvalho e castanheira até a altura dos olhos, e ainda era julho. Rachar lenha parecia ser o exercício favorito de Eddie; no mínimo, o segundo na preferência dele. Ela parou para admirar o corpo que se afasta­va do fogo batendo uma mão na outra para se livrar das cascas da lenha. Era fácil deixar passar a animosidade nesses momentos de graça animal. Estava comovida pelo que ele havia feito, um ato de provisão.

Ele se voltou e encontrou seus olhos a observá-lo.

- Em que você está pensando?

- Estou matutando. Comendo aquele peru. Acho que você tem razão, talvez eu esteja anêmica. Por quê, em que você está pensando?

- No Evangelho segundo Diana. E pecado matar uma aranha, mas não um peru.

Ela andou até a pedra e se sentou ao lado de sua próxima refeição.

- Ora, o pecado, quem sabe o que é isso? Uma coisa que as mães inventam, acho eu. E eu nunca tive mãe.

Olhou para cima:

- O quê?

Ele balançou a cabeça.

- Você, ora essa. Eu estava tentando falar sério. Pelo menos uma vez.

- O quê, aranhas e perus? Você sabe tanto quanto eu, não é compli­cado. A eliminação de um predador acarreta conseqüências mais importantes para o sistema.

- Mais do que a eliminação de sua presa. Já sei. Números.

- É apenas matemática, Eddie Bondo.

Ele se agachou perto do fogo com as mãos entre os joelhos e um ar pensativo.

- Quantos grandes carnívoros existem nesta montanha, você tem idéia?

- O que significa grande? Mamíferos, pássaros?

Ela lançou um olhar na direção da fenda estreita do vale, onde os vaga-lumes começavam a piscar suas luzinhas em riscos irregulares.

- Talvez um puma para cada duzentos hectares. Um leão da monta­nha, ponto final. Grandes aves predadoras, como a grande coruja de chi­fres, um casal necessita de... digamos... oitenta hectares, para alimentar a si mesmo e dois ou três filhotes por ano.

- E quantos perus?

- Ah, bandos e mais bandos deles andando por este vale. Uma pe­rua bota catorze ovos sem pensar. Se algum bicho comer um dos filho­tes, ela nem percebe. Se uma raposa descobrir uma ninhada inteira, ela pisca para o macho e bota mais catorze ovos.

Ela avaliou a equação enquanto trabalhava.

- Mas os perus são poucos, em comparação com suas presas. Larvas e coisas semelhantes existem aos milhões. É um esquema piramidal.

Eddie ficou em silêncio, remexendo no fogo e prestando atenção. Parecia perceber que essa não era uma conversa casual para ela. Ela pôs um pouco de sal na palma da mão e passou na pele corrugada do peru, primeiro com a aspereza do sal, depois com a maciez do óleo. Quanto tornou a falar, tomou todo o cuidado para não deixar que a emoção transparecesse em sua voz.

- a verdade é que a vida de um dos grandes carnívoros é o item mais dispendioso da pirâmide. No caso de um coiote, ou de um grande felino, a mãe passa o ano todo criando os filhotes. Não bastam algumas semanas. Ela lhes ensina a se mover em silêncio para caçar, e tudo o que é necessário para executar essa tarefa. A mãe terá sorte se pelo menos um dos filhotes chegar à vida adulta. Se alguma coisa o atingir, perde-se um ano inteiro de trabalho.

Ergueu os olhos e os fixou diretamente nos dele:

- Quando você atira num deles, Eddie, você mata tudo isso: uma grande parcela das oportunidades que a mãe daquele coiote teria para deixar alguém em seu lugar. E solta no mundo os mil roedores que ele teria comido. Não é apenas uma vida.

Ele estava olhando para longe. Esperou até ele tornar a encará-la.

- Quando você visa um coiote na mira de sua carabina e se prepara para puxar o gatilho, o que acontece? Você se esquece de todo o resto, e só existe você e seu inimigo?

Ele pensou um pouco.

- É mais ou menos isso. Caçar é isso. A gente se concentra.

- Concentra, é? - disse ela. - É isso o que você sente? E imagina que só existem vocês dois neste mundo e ninguém mais?

- Acho que é.

E ele deu de ombros.

- Mas está errado. Ninguém está sozinho. Aquele animal iria fazer alguma coisa importante; comer uma porção de coisas, ou ser comido. E você está a ponto de dar um tiro em todas essas coisas interligadas. E elas não podem ser todas suas inimigas, até porque uma dessas coisas interligadas é você mesmo.

Ele enfiou na fogueira um galho com uma forquilha na ponta e redistribuiu as achas acesas, formando um quadrado, com um espaço no centro para se colocar a panela.

- Eu jamais iria atirar num puma - disse ele, sem olhá-la.

- Não? Isso é bom. Então você não é tão estúpido quanto outros caçadores de predadores. Merece uma medalha.

- Quem foi que pisou no seu rabo?

- Eu conheço bem essas coisas, Eddie.

Ela limpou as mãos no pano e ouviu seu coração pulsar nos ouvidos. Já conhecia esse homem há dois meses, e por dois meses ela se sentiu ofendida mas nada disse. Agora, falava calmamente, tal como seu pai quando estava com raiva.

- Há dessas caçadas em todo lugar. Não é segredo: elas são anunci­adas em revistas. Agora mesmo há uma no Arizona, a Caçada Extrema ao Predador, com um prêmio de dez mil dólares para quem conseguir matar a maior quantidade.

- Maior quantidade de quê?

- E uma caça aos predadores, ponto final. Basta empilhar os corpos. Pumas, coiotes, leões-da-montanha, raposas: é assim que eles definem os predadores.

- Raposas não.

- Raposas, sim. Alguns de seus amigos ficam aterrorizados diante de uma pequena raposa cinzenta. Um animal que vive de comer roedores e grilos.

- Não é uma questão de medo - negou ele.

- Você consegue imaginar o mal que esses homens estão fazendo ao estado do Arizona em apenas uma semana, a praga de roedores e gafanhotos que vão provocar? Se você não se comove ao ver centenas de mães-hora apodrecendo numa pilha, pense então nos ratos.

Ele não respondeu. Ela levantou cuidadosamente o peru, abraçou-o nos antebraços e o levou até a panela vazia, que parecia ter o tamanho suficiente, mas não a forma adequada. Ela ficou parada um minuto, avaliando, e decidiu colocar o peru apoiado na cabeça - ou melhor, na região onde deveria estar a cabeça perdida. Girou a carcaça até que as coxas se ajustassem satisfatoriamente para cima, mas a alegria dessa celebração se perdera.

- Ei, ajude-me a colocar isso no fogo.

Os dois ergueram a pesada panela e a baixaram no centro do fogo. Ela derramou lá dentro um pouco da água da chaleira e tampou, e então lavou as mãos com o resto da água. Sentia-se o frio da noite, e a água fria alfine­tou as mãos dela. Mas ultimamente suas mãos e pés estavam sempre frios. Ela estendeu as palmas para o calor do fogo. Quase imediatamente, a pa­nela começou a chiar, dando uns pequenos estalidos de satisfação, na velha conversa do vapor com a gordura. Diana se sentou no chão de frente para Eddie, e o fogo entre os dois, e o encarou através das chamas. Ele revolveu a fogueira e parecia agitado. Não estava sentado, e sim agachado.

- Não é - disse ele, rompendo o silêncio.

- O que não é o quê?

- Caçar predadores. Não é uma questão de medo.

Ela juntou os joelhos no peito e os abraçou, segurando os cotovelos nas palmas das mãos.

- Então é uma questão de quê? Me diga, por favor. Esclareça-me, estou ansiosa por ouvir.

Ele balançou a cabeça e se levantou para pegar mais duas achas na pilha, e tornou a balançar a cabeça.

- Você não pode passar a vida chorando por todo animal de olhos marrons que morra neste mundo.

- Já lhe disse que essa não é a minha religião. Cresci numa fazenda. Já abri e limpei carcaças de tantos animais, que você nem é capaz de imaginar; e o que já vi em matéria de lavoura é suficiente para eu saber que arar uma plantação de trigo implica decapitar mais coelhos com o arado do que você seria capaz de contar.

Parou de falar quando sua memória se fixou numa visão da infân­cia: um guaxinim que ela encontrou depois de a colheitadeira ter passado sobre ele. Ainda se lembrava do pêlo cinza e sem brilho, a mandíbula branca e do choque ao ver os dentes espalhados, tão parecidos com os dela, o sangue escuro a penetrar na terra de um lado só, como.se fosse a sombra da pose final e aterrorizada daquela criatura. Nunca seria capaz de explicar a Eddie o que sentia, a corrente de tragédia que acompanhava a atividade agrícola. Nem suas aleluias: as linhas retas e abundantes de pendões de milho, de pé como alunos que sabiam todas as respostas. Os bezerros que nasciam limpos e brilhantes na sua perfeição em preto-e-branco. Vida e morte estavam sempre à nossa frente. A maioria das pes­soas vivia tão longe de tudo isso, pensavam ser possível escolher entre ser carnívoro ou vegetariano, sem saber que os produtos químicos apli­cados nos grãos e no algodão matavam mais borboletas, abelhas, azulões do que o custo em vida de um bife ou de um casaco de couro. Limpar o terreno para plantar soja e milho era uma forma de matar tudo o que vivia na metade do mundo. Havia lido que uma xícara de café eqüivalia a um passarinho morto em algum lugar.

Ele a observava, esperando para ouvir o que ela diria, e ela fez o possível.

- Mesmo que nunca toque num bife, qualquer pessoa custa o san­gue de alguma coisa - disse ela -, não preciso de sua condescendência. Eu já sei: viver custa vidas.

Da panela veio um chiado, o que a inspirou a ouvir em silêncio o último lamento desse peru.

- Ótimo, nisso nós dois concordamos: viver custa vidas.

- Mas pode ser uma atitude consciente. Quem sabe, um pouco de humildade ao avaliar essa necessidade. A gente pode avaliar o custo de cada escolha que se faz. Ou sair por aí abrindo buracos no mundo, sem nenhuma justificativa que não o medo.

Ele a encarou.

- Não tenho medo de nenhum coiote.

- Então, deixe-o em paz.

Olharam com raiva um para o outro através do ar que tremia sobre o calor do fogo.

- E por que tem de ser assim?

- Porque eu vou convencer você, mesmo que tenha de morrer tentando.

- Então, morra tentando. Porque você não é capaz de me convencer, nem vai me convencer. Sou um fazendeiro do Oeste, e o ódio aos coiotes é a minha religião. Sangue do cordeiro, digamos assim. Não tente me converter, e eu não tento converter você.

- Mas eu também não vou atirar na cabeça de suas ovelhas.

- E claro que vai. De certa forma, quando você protege esses diabos é como se estivesse matando uma ovelha.

Ela descruzou os braços e jogou um punhado de grama seca no fogo, e o viu brilhar como um filamento de lâmpada.

- Ah, se você soubesse.

- Soubesse o quê?

- Você disse que ia ler minha tese. Outro dia, você me prometeu. Ele balançou a cabeça e sorriu.

- Você nunca desiste.

- Você prometeu. Deu a sua palavra.

- Deve ser porque eu queria levar você para a cama.

- Acho que nós dois já estávamos na cama.

Ele se inclinou de lado, para olhar para ela sem a fogueira no meio.

- É provável.

- E daí então...

- Então me diga por que eu devia ler.

Ainda apoiado nos calcanhares, ele contornou o fogo como se fosse um inseto de joelhos dobrados e parou ao lado dela:

- O que eu vou aprender sobre os coiotes que já não sei nesta minha vida mesquinha e cheia de medo?

- Que eles têm um dos mais complexos sistemas vocais dos mamí­feros. Que eles comem roedores e frutas e sementes e centenas de outras coisas além de carneiros.

- Mas os carneiros estão nessa lista.

- Os carneiros estão nessa lista.

- Disso eu já sabia.

Ela jogou outro punhado de capim seco no fogo.

- E eles têm um complicado ritual de acasalamento que envolve muita conversa e muitas lambidas, e cada um traz comida para o outro, de presente. Especialmente carne.

Ele olhou para a panela no fogo e depois para Diana.

- E depois que formam um casal, ficam juntos o resto da vida.

- E você acha que eu devo ter a maior admiração por isso?

- Você não é obrigado a gostar nem a desgostar. E apenas uma informação.

- Muito bem. E o que mais?

- Eles são a espécie mais desprezada da América. Até mesmo o governo dos Estados Unidos se dedica a matá-los, mais ou menos cem mil animais por ano, usando armadilhas de cianeto ou helicópteros para atirar neles. Para não falar do belo trabalho feito por seus amigos nos festivais de matança de predadores.

- É. Continue.

- E depois de cem anos de matança sistemática, há hoje mais coiotes e em mais lugares do que jamais houve.

- Isso. Pare aí. Por que acontece isso?

- É um mistério, não é? Matamos ursos, lobos e baleias azuis e eles se extinguem com a rapidez de um raio. Mas os coiotes são mais difíceis. Acho que os índios têm razão: os coiotes são cheios de truques.

-E?

- E quanto mais nós os atacamos, mais coiotes existem. Não sei a razão exata, mas tenho uma porção de idéias sobre o que possa ser.

- Por exemplo?

- Está bem. Os coiotes não são apenas predadores, são também pre­sas. Ao contrário das baleias azuis ou dos ursos, eles já estão acostumados a ser caçados. O principal predador que havia antes da nossa chegada eram os lobos. Que nós imediatamente apagamos do mapa da América.

-Oh.

- Isso mesmo, oh. Os lobos. Não há como matar um animal apenas, e é isso que eu estou tentando lhe explicar. Todo animal que se mata é o almoço de alguém ou o controle populacional de alguém.

Ele bateu uma vara comprida nas lenhas em volta da panela, fazendo voar uma notável nuvem de faíscas

- Quer parar com isso? - disse ela, colocando a mão no braço dele. - Você vai acabar queimando a lenha toda. Deixe-a queimar devagar.

- Estou ajeitando o carvão.

- Deixe por conta da gravidade.

Ela queria explicar-lhe que o fogo se queima sozinho, não precisa de um homem para tomar conta.

- Meu pai dizia que quem brinca com fogo faz pipi na cama.

- Mas vale a pena - respondeu ele com convicção, fazendo chover mais faíscas.

- Pare com isso - disse ela, tomando-lhe a vara -, sente-se, você está me deixando nervosa.

Ele se sentou com o ombro apoiado no dela. Ficaram ouvindo os intrincados ruídos do fogo e da panela. Havia até um assovio alto, do vapor que escapava por alguma fresta. A fome de Diana tinha se transformado numa dorzinha na barriga, persistente e doce.

- E nós os ajudamos ao matar os lobos - disse ele num repente -, pronto, vamos para a sua idéia seguinte.

- Não é uma idéia, é um fato: os coiotes se reproduzem mais rapi­damente quando são caçados.

Ele olhou diretamente para o fogo.

- Como?

- As ninhadas são maiores. Eles às vezes usam a mesma toca, e quan­do se espera que haja apenas uma fêmea alfa em reprodução, uma das irmãs dela também passa a procriar. Eles vivem em grupos familiares, nos quais todos os adultos ajudam a criar os filhotes. Pode ser também que, quando um adulto é morto, haja mais comida para os filhotes. Ou talvez haja uma alteração do esforço reprodutivo. Alguma coisa acontece. O que sabemos com certeza é que matar os adultos aumenta as chances de so­brevivência dos filhotes.

- Poxa!

Ela se voltou para ele.

- Ei, Eddie Bondo.

Ele também se voltou para ela.

- O quê?

- Buu. A vida não é simples.

- Foi o que me disseram.

- Leia o livro. Você vai gostar. Meu professor disse que não conseguiu dormir durante todas as duzentas páginas.

Eddie olhou para o fogo.

- Acho que não vou gostar do final.

A lua já deveria estar alta em algum lugar, no início da minguante. Ainda não tinha ultrapassado as montanhas que escondem esse vale, mas Diana sentia através dos olhos fechados que o céu estava ficando mais brilhante. Fez força para encontrar um lugar plano para repousar, em vez de continuar a rolar como rolo de massa sobre a cobertura de uma torta. Nessas noites insones, ela amarrotava o cobertor de um modo que deixava Eddie exposto aos elementos.

Haviam arrastado o colchão para fora, antes de desabar sobre ele num delírio cheio de peru. Mas ela se acostumara a dormir ao relento durante o verão sempre que as noites eram quentes; o luar geralmente não lhe pertur­bava o sono. Nada lhe perturbava o sono. Nunca teve insônia antes dessas últimas semanas. Também nunca caiu no sono durante o dia. Alguma coisa estava errada. Diana não sabia se eram as preocupações que sempre toma­vam seu cérebro e que agora a mantinham acordada, ou se elas tinham aca­bado de se mudar para um apartamento vazio no seu cérebro insone.

A necessidade de rolar na cama a consumia como se fosse uma dor, ela não pôde mais resistir e se virou cuidadosamente, deitando-se de costas. Mas logo percebeu que também era desconfortável. Tentou es­quecer o corpo, o estômago excessivamente cheio e Eddie deitado a seu lado - todos esses sintomas de humanidade. Tentou inalar lentamente a noite. Uma hora extraordinária para estar acordada, quando se é capaz de se abandonar a ela: essas horas de escuridão em que os insetos se calavam, o ar esfriava e perfumes subiam delicadamente do chão. Sentia o perfume de folhas em decomposição, de cogumelos e o cheiro leve de um gambá que remexia os ossos do peru no mato logo depois que ela e Eddie caíram na cama e ela dormiu um sono profundo, até acordar outra vez sem esperança de retomar o sono.

Agora sua mente se concentrava nas preocupações sobre os papa-moscas: era possível que os dois tivessem espantado a mãe para longe do ninho antes do anoitecer, e um dos filhotes poderia cair do ninho, o que já havia acontecido duas vezes. Os filhotes já estavam quase prontos para voar, e eram até maiores que um adulto por causa da penugem ainda fofa; eram suficientemente grandes para superpovoar o ninho. Um dia, e depois no seguinte, Diana apanhou um filhote no chão e o recolocou no ninho em cima dos irmãos. Eddie disse que um pássaro nunca volta ao ninho tocado por mãos humanas. Diana sabia por experiência própria que não era ver­dade, mas deixou que a mãe desse a resposta. Ela voou para o ninho alguns segundos depois de se afastar.

Por favor, cresçam e voem depressa, insistiu com os filhotes, que já esta­vam se transformando numa preocupação. Por várias semanas ela andou na ponta dos pés embaixo do ninho e forçou Eddie a fazer o mesmo. A mãe já tinha perdido uma ninhada por causa da falta de cuidado deles, e já era tarde demais para compensar a perda de mais essa, caso morresse. Mais alguns dias, talvez até amanhã, suas preocupações terminariam. Os filhotes iam estender as asas e abandonar para sempre aquele ninho.

Dobrou o pé para evitar uma caibra e lutou contra a necessidade de se deitar de bruços. Impossível ficar imóvel no meio das cobertas amarrotadas. A única coisa a fazer com essa agitação era levantar-se e lhe fazer companhia. Resolveu passear na mata. Haveria muita luz quando a lua aparecesse sobre a montanha. Mas antes, ela ia ver o ninho. Tomando grande cuidado para não acordar Eddie, ela se levantou em silêncio, en­controu as botas junto do colchão, puxou a calça jeans e a abotoou sob a camisola e foi à cabana para buscar uma lanterna. Andou cuidadosamen­te pela varanda para dar uma olhada. A luz da lanterna não iria perturbar a mãe, se ela estivesse no ninho; a essa hora da noite ela não iria voar. Diana procurou a bola de capim entrelaçado. Como ela temia, a cabecinha marrom e o bico pontudo da mãe não estavam no ninho onde deveriam estar. Procurou os anjos caídos no chão da varanda, mas não encontrou nenhum. Entrou, trouxe uma cadeira e subiu com todo o cuidado, apoi-ando-se num caibro do telhado. Nada! O interior do ninho estava com­pletamente vazio. Como era possível? Diana havia visto a mãe catar insetos a tarde toda: uma escrava daqueles quatro enormes apetites. Eles não poderiam ter voado à noite; então, onde estariam? Dirigiu o facho de luz outra vez para o chão, procurando entre as pernas da cadeira, e até mais longe, para ver se por acaso, no seu pânico emplumado, eles tinham se arrastado até a beirada da varanda. Nada.

Apagou a lanterna e pensou por um minuto. Acendeu-a de novo. Passou o foco de luz por todo o comprimento do caibro, até o beirai, depois procurou sobre os outros. Passou por alguma coisa, e voltou, uma coisa parecida com um tubo preto enrolado. Examinou-o com atenção e encontrou os dois olhos redondos brilhando para ela, empoleirados sobre o corpo enrodilhado. Correu a luz ao longo do corpo negro até encontrar quatro protuberâncias claramente discerníveis.

Respirou com força para resistir ao impulso de gritar contra esse monstro ou de arrancá-lo dos caibros e lhe arrebentar a cabeça. Respirou mais três vezes, soltando o ar com força através dos lábios, sentindo insinuar-se uma náusea em meio a sua raiva. Era sua conhecida: a mesma cobra preta que morou no telhado durante o verão todo, a cobra que ela havia defendido por ser um predador que cumpre sua obrigação. Viver custa vidas. Mas não aqueles filhotínbos, gritou ela em silêncio. Não eles; esses eram meus. Depois de findo o verão, o que vai existir serão apenas os filhos.

Desceu da cadeira, apagou a lanterna e se dirigiu para a floresta, tensa de fúria e tristeza. Não percebeu o alcance de suas emoções até sentir o frio das lágrimas que lhe desciam pelas faces. Enxugou-as com a mão e conti­nuou a andar depressa para longe da cabana, do cheiro de fogo e carne, para entrar na floresta escura. O que era essa tristeza incontrolável que lhe banha­va o corpo como uma água quente? Nos últimos dias, ela chorava por qual­quer coisa: os papa-moscas, o cansaço, o som de um tiro, a falta de sono. Lágrimas idiotas e sentimentais, lágrimas de fêmea - o que era isso} Seria isso o chamado climatério? Mas não havia sensação de calor. Seu corpo esta­va cheio, pesado, lento e humano; e de certa maneira, ausente; era apenas um peso a ser carregado sem os ciclos entusiásticos de fertilidade e repouso, os picos e vales dos quais ela não sabia depender tanto. Peso morto, era isso que ela se tornara? Uma fêmea obsoleta à espera da morte?

E por que ela se sentia tão infeliz? Ela nunca aprovara inteiramente os seres humanos, nem as confusões criadas por eles. Por que iria ela querer produzir mais algum?

No meio da encosta, ela parou para enxugar os olhos e o nariz na barra da camisola. Quando se virou na direção da cabana, compreendeu que a lua já devia ter aparecido às suas costas. As árvores na outra encosta do vale estavam banhadas por uma brilhante luz branca. Parecia uma flo­resta mágica ou uma encosta coberta de bétulas brancas vindas de longe. Respirou devagar. Era esse o seu tesouro. A beleza dessa noite majestosa.

Ouviu latidos na distância, algo a ser colocado no seu coração ao lado dos papa-moscas perdidos e o medo de mais uma lua cheia sem as pequenas celebrações de seu corpo. Ela ficou imóvel e tentou pensar nos filhotes de coiotes surgindo do ventre da floresta com os olhos abertos, enquanto as possibilidades finitas de seus próprios filhos fechavam finalmente os olhos nesse mundo.

 

VJarnett parou para descansar no meio da subida. O coração batia mais rápido do que seria justificável. Ouvia o barulho da serra do rapaz em ação lá no alto. Ela também devia estar lá. Concordaram em se encontrar ao meio-dia para dividir a lenha e outras coisas, e ele já estava 14 minu­tos atrasado, se é que seu relógio merecia fé. Mas ela podia esperar. Ele era mais velho; ela lhe devia um pouco de respeito. Sentou-se num tron­co à beira do riacho só por um minuto.

Uma libelinha pousou na ponta de um junco, muito perto de sua cabe­ça, suficientemente perto para ele observá-la bem. Não se lembrava de ter visto uma desde a infância - era chamada de cavalo-do-cão - e mesmo as­sim, depois de todos esses anos, ali estava uma. Com toda a certeza, paira­vam sobre o riacho desde aquele tempo, ainda que ele não lhes prestasse atenção. Ele se inclinou para ver mais de perto: parecia uma libélula, mas quando pousada, suas asas se dobravam para trás, não se estendiam para os lados. As asas eram pretas; mas não opacas, eram diáfanas como renda, com um ponto branco perolado na ponta de cada asa. Garnett se lembrou da roupa íntima de mulheres que conheceu no tempo em que elas usavam cin-tas-liga e outros artefatos que tinham de ser trabalhosamente removidos. Talvez as mulheres ainda usassem essas coisas. Como iria saber? Ellen mor­rera oito anos antes, e nos 40 anos anteriores ele não teve nenhuma oportu­nidade para saber como eram as roupas íntimas femininas. Tal como Ellen, ele era um homem fiel, um bom cristão. Ela preferia aquele tipo de algodão forte que se podia pendurar no varal sem sentir vergonha.

Ora, por que ele estava ali sentado no meio da mata, a pensar na roupa íntima feminina? Sentiu-se profundamente embaraçado e de ime­diato pediu perdão ao Senhor pelas fraquezas imprevisíveis de um velho. Levantou-se e continuou a subida.

Ela estava lá, conversando alegremente com o rapaz, que largara a serra e se entregara aos seus encantos, como aliás fazia todo mundo. Tal como carneiros para o matadouro, pensou Garnett, mas achou graça na cena: um jovem enorme a balançar a cabeça cortesmente para a mulherzinha mais miúda que já andara pela floresta trajada com saia e botas. Os dois se voltaram para saudá-lo.

- Mr. Walker, o senhor se lembra do filho da Oda, o Jarondeil?

- Claro. Recomendações à sua mãe.

"Não esquecer: é JarondeW pensou ele. Isso é que era nome. Era mais fácil ele se lembrar da data de validade na lata de pó de Sevin.

- Estávamos considerando a possibilidade de derrubar mais algumas dessas que estão muito inclinadas - disse ela a Garnett -, é para aproveitar, já que o Jarondell está aqui mesmo. Aquela cerejeira ali em baixo, por exem­plo: está tão inclinada, que será uma surpresa se agüentar até o fim do verão.

Ai, meu Deus, a cerejeira! Garnett tinha se esquecido e se sentara bem debaixo dela minutos antes, quando parou para descansar ao lado do riacho. Esqueceu-se da preocupação com a possibilidade de ela cair sobre ele! Esse pensamento o deixou em pânico e extremamente atento aos batimentos do coração. Pôs a mão sobre o peito.

- O que houve? O senhor gosta dessa cerejeira?

Ela o observou com um olhar preocupado, que lhe trouxe nitidamen­te a lembrança do dia em que ela se inclinou sobre ele na grama e declarou que ele não estava tendo um ataque do coração, só o de uma tartaruga.

- Meu Deus, claro que não - disse ele com voz rouca -, tudo bem, é melhor derrubar aquela árvore sim. Ela é mesmo um perigo, uma amolação.

Ela pareceu aliviada.

- Eu não diria tanto, é só uma árvore - seus olhos brilharam -, e é claro que o senhor há de concordar que, se Jarondell conseguir derrubá-la no meu lado do riacho, a lenha vai ser minha.

Como aquela mulher gostava de irritá-lo! Parecia um galinho garnisé, doido para brigar. Garnett forçou um sorriso, ou a coisa mais próxima de um sorriso.

- Acho que seria justo.

Ela lhe deu um segundo olhar antes de se voltar para o filho de Oda (já tinha esquecido o nome). O rapaz esperava, braços musculosos cruza­dos e cabeça raspada brilhando ao sol igual à do mago dos frascos de amô-nia de Ellen. Era tão alto e forte, que Nannie era forçada a proteger os olhos do sol para poder olhar para ele, mas nem isso tinha o condão de fazê-la parar. Falava sem parar, apontando para lá e para cá enquanto falava (será que ela não entendia que o rapaz recebia por hora?). Parecia se inte­ressar pelo processo de derrubada de árvores. Mas Nannie Rawley era assim mesmo. Interessava-se até pela comida do cachorro dos outros. Garnett balançou a cabeça dramaticamente - para ninguém, pois ela e o rapaz já se tinham esquecido de sua presença. Era como se ele também fosse uma árvore.

Quando a serra recomeçou a urrar, ele teve de gritar para atrair a atenção dela:

- Se a senhora vai ficar com a cerejeira, então acho que esta aqui pode ficar para mim.

Ela tapou os ouvidos e fez um sinal para que os dois se afastassem. Ele a seguiu ao contornarem uma curva do riacho, e ali o urro da serra se reduziu a um ganido, mas ela continuou andando até o tronco onde ele havia descansado. As libelinhas ainda pairavam, muitas delas reunidas como se num acontecimento social.

- Aqui não - disse ele, alarmado, apontando para o alto -, a gente não deve ficar aqui.

- Ora, boa noite - gritou ela -, não me venha dizer que esta cerejei­ra vai cair sobre o senhor! O senhor acha que é tão diferente?

Sentou-se sobre o tronco ao lado do riacho, ajustando recatadamente a saia amarela em volta das pernas. Olhou para ele, na expectativa.

- Muito bem, pode falar. Ele hesitou.

- Ia ser uma manchete e tanto, não ia? "Dois velhos abatidos por uma só árvore".

- Está bem - disse Garnett, sentando-se longe dela no tronco. Aquela mulher era capaz de fazer uma pessoa se sentir idiota só

porque não mete o nariz nos problemas dos outros.

- Não ligue para mim - disse ela -, hoje eu estou uma pilha. "Hoje só?" - pensou ele.

- E hoje, qual a razão?

Sua intenção era falar como um pai condescendente. Mas ela não percebeu. Recomeçou a falar inclinada para a frente, mãos cruzadas nos joelhos, olhando diretamente para ele.

- É por causa das abelhas - explicou ela -, lá na Igreja do Evangelho Total eles arrumaram um problema depois de matar as abelhas. Matar o quê: eles fumigaram as abelhas! Por que não me chamaram antesl Eu teria aplicado fumaça e tirado a rainha, e todas elas iam acabar saindo das paredes. Preciso de mais uma colméia no meu terreno. Não, eu preciso de mais umas vinte colméias - com a quantidade de inseticida que andam aplicando, vou precisar de todas as abelhas que eu encontrar para polinizar minhas maçãs. Mas não, eles só me chamam ajjora, depois do problema criado, um problema que qualquer menino teria previsto.

Garnett não entendeu. Que problema teria sido causado pela morte das abelhas que qualquer menino teria previsto? Preferiu a evasiva.

- Deve ser um problema na hora dos cultos. Lançou um olhar nervoso para a árvore inclinada. Mas Nannie não estava preocupada.

- Mel vazando das paredes, mel cobrindo o chão da igreja toda, e eles estão pondo a culpa nas abelhas mortas, coitadas.

Meu Deus, que quadro. Garnett imaginou as mulheres com sapatos de ir à igreja.

- Bem, mas foram as abelhas que fizeram o mel na parede.

- E foram elas que bateram asas dia e noite para resfriar o mel em julho. Sem as operárias para resfriar a colméia, os favos derretem e todo o mel escorre.

Ela sacudiu tristemente a cabeça:

- Como é possível as pessoas não saberem essas coisas? Será que somos só nós, os velhos, que paramos para pensar no futuro?

Ele sentiu uma pontada de emoção ao se ver incluído no cumprimen­to. Mas ao examinar-lhe o rosto não conseguiu saber se ela estava pensando nele em particular ou nos velhos em geral. E agora ela seguia noutra dire­ção.

- a gente devia esperar que os jovens fossem mais cuidadosos. Se­rão eles que estarão por aqui dentro de cinqüenta anos. Não nós.

- É, não nós - concordou Garnett, pesaroso.

Ele tentou não pensar nos campos de castanheiras cobertos de mato, a balançar as folhas abandonadas, cuidadosamente cruzadas, tal como bandeiras de rendição num mundo que nem se lembraria mais do que aquelas árvores representavam. Quem iria tomar conta de seu projeto depois que ele se fosse? Ninguém. Essa era a resposta: ninguém. Ele tentou durante tanto tempo esquecer essa verdade, e agora quase chora­va de alívio ao abraçar essa dor simples e honesta. Apoiou as mãos nos joelhos, respirou fundo. A cerejeira podia cair sobre ele, acabar com tudo. Não importava mais.

Ficaram sentados por um minuto, ouvindo os sabiás da mata. Nannie arrancou alguns carrapichos da saia e então, parecendo agir sem pensar, estendeu o braço e arrancou uma meia dúzia das calças caqui de Garnett. Ele se sentiu estranhamente comovido por essa pequena atenção feminina. Percebeu vagamente que, como homem mortal, estava faminto. Limpou a garganta.

- Já passou pela sua cabeça que Deus - não interessa o nome que a senhora lhe dê, com esta história de equilíbrio da natureza - perdeu o controle dos carrapichos?

- De fato, há carrapichos demais: tenho de concordar com o senhor. Garnett se sentiu feliz: ela concordou.

- E a senhora não vai dizer que é por minha culpa, vai? Os insetici­das e herbicidas. Esse problema dos carrapichos.

- Bem que eu poderia tentar. Mas o dia está muito bonito, então não vou dizer que seja.

Continuaram em silêncio.

- Por que elas chamaram a senhora? - perguntou então.

Ele pensava na mulher que lhe telefonara pedindo conselhos sobre como criar cabras. Especialista em cubras, dissera ela. Olhou para Nannie, mas ela parecia imersa nos próprios pensamentos.

- As mulheres da igreja e o problema das abelhas? Ah, por que eu e não outra pessoa? Acho que só eu por aqui ainda tem colméias. Não é uma tristeza que não haja neste condado ninguém abaixo de setenta anos que saiba tratar de abelhas? Todo mundo sabia. Agora as colméias se acabaram.

Garnett concordou que era triste. Quando criança, ele gostava de pôr o chapéu de apicultor para ajudar o pai nas tarefas de coleta do mel na primavera e no outono. Com toda a franqueza, não saberia dizer por que deixara aquilo se perder.

- O que a senhora disse a elas? Sobre o mel no chão? Ela sorriu e olhou de esguelha para ele.

- Acho que não fui muito simpática. Disse a elas que o Senhor tem desígnios inescrutáveis e, entre todas as suas criaturas, tem um amor especial pelas abelhas. Disse que está nas Escrituras. Espero que agora todas estejam estudando a Bíblia para descobrir o que ela diz a respeito das pragas que o Senhor manda para os matadores de abelhas.

- E o que diz a Bíblia?

- Nada. Eu inventei.

- Ah - disse Garnett reprimindo, mau grado seu, um sorriso -, então elas simplesmente convocaram as mulheres para trazer panos de chão e baldes.

Nannie Rawley resmungou:

- Quanta doçura desperdiçada num bando de gente azeda. Garnett achou melhor não comentar.

- Foi aquela Mary Edna Goins que me chamou. Gritava com raiva, como se as abelhas estivessem lá por culpa minha.

Ela olhou para ele; depois, para longe.

- Mr. Walker, não gosto de falar mal dos outros, e espero que o senhor não pense que isso é uma fofoca. Mas nunca vi um caso tão extre­mo de egoísmo como o daquela mulher.

Garnett riu. Ele conhecia Mary Edna desde antes de ela passar a ter Goins como sobrenome. Uma vez ela veio lhe dizer que o projeto das cabras do 4-H estava dando aos jovens uma oportunidade indevida para pensar em Satã.

Ele examinou com cuidado a cerejeira.

- Estávamos discutindo a questão da lenha — disse ele -, a senhora pode ficar com esta.

- Obrigada, ela já é minha - disse ela com ironia -, e agora o senhor vai me dar também minha casa e minha terra?

- Está bem. Não precisa se ofender.

- Eu também acho. Não preciso de tanta lenha assim. Fico com os galhos desta aqui e o senhor fica com os do carvalho; e nós dois pagamos meio a meio o que o Jarondell cobrar para cortar as duas árvores.

Ele sabia que não devia aceitar a oferta dela sem pensar antes. Olhou para a penumbra das matas dela e se surpreendeu ao ver um arbusto balançando as folhas ao vento, um pouco acima do riacho.

- Ora, veja: aquela ali é uma castanheira, não é? - apontou ele.

- E. Ainda é nova - disse ela.

- Meus olhos já não são como antes, mas eu vejo que é uma casta­nheira até a cem passos.

- Aquela nasceu no toco de outra que foi derrubada anos atrás. Já notei que elas sempre fazem assim. Enquanto as raízes estão vivas, nas­cem brotos no toco. Mas sempre morrem antes de crescer. Por que será?

- O cancro da praga tem de crescer antes de soltar outros cancros que matam a árvore. Leva de oito a nove anos em campo aberto, um pouco mais no meio da floresta, onde a árvore cresce mais devagar. O fungo no interior da árvore é mais ou menos proporcional ao tamanho do tronco. Mas a senhora tem razão, elas sempre morrem antes de dar as primeiras sementes. Biologicamente falando, a espécie já está morta.

- Biologicamente mortas. Tal como nós - disse ela sem demonstrar qualquer emoção.

- Isso mesmo - concordou ele pouco à vontade -, considerando-se que nós não temos descendentes.

- E sem condições de gerar outros nesta altura da vida - disse ela, dando um risinho esquisito.

Ele não fez nenhum comentário.

- Agora me diga uma coisa. Nunca entendi o seguinte: suas híbridas são o cruzamento de castanheiras americanas com a castanheira chinesa, não é?

- Isso mesmo. E depois, cruzadas outra vez com a americana. Se eu conseguir manter o processo durante um tempo suficiente, vou obter um cruzamento que tem todos os genes da americana, menos o que a torna suscetível à praga.

- E o gene que dá resistência vem do lado chinês?

- Isso mesmo.

- E onde o senhor conseguiu as primeiras sementes da castanheira americana?

- Boa pergunta. Tive de procurar em toda parte - explicou ele, feliz. Nesses muitos anos, nunca lhe haviam perguntado nada a respeito

do seu projeto. Certa vez, Ellen convenceu a sobrinha a levar os alunos da terceira série para vê-lo, mas as crianças agiram como se aquilo fosse um passeio.

- Procurou onde, por exemplo?

- Escrevi cartas para funcionários do Serviço Florestal, conversei por telefone com eles, coisas assim. Acabei encontrando duas castanheiras americanas de pé e que ainda floresciam. Estavam muito velhas e doen­tes, mas ainda vivas. Paguei a um rapaz para subir na árvore e colher algumas flores, que guardei numa sacola, trouxe para cá e polinizei uma castanheira chinesa que eu já tinha. Foi a partir dessas sementes que eu cultivei as primeiras mudas. Isso me deu uma primeira geração de híbri­das americanas.

- E onde estavam as árvores velhas? Só estou curiosa.

- Uma estava no Condado de Hardcastle, a outra na Virgínia Oci­dental. Eram coisas solitárias, que floresciam mas não geravam semen­tes porque não tinham vizinhas com que se cruzar. Ainda há algumas por aí. Não muitas, apenas algumas.

- Ah, eu sei.

- Devia haver muitas na década de quarenta - continuou Garnett -, a senhora se lembra de que o governo aconselhava derrubar todas as ár­vores? a gente pensava que elas iam acabar de qualquer jeito. Mas hoje, pensando bem, não era uma idéia tão boa. Algumas poderiam ter sobre­vivido. O suficiente para um renascimento.

- Ah, claro que teriam renascido. Disso papai tinha absoluta certeza. As duas que estão na nossa floresta ele não admitia que ninguém derru­basse. Uma noite, ele pegou um homem que estava a ponto de derrubá-las, para depois levá-las com a ajuda de um burro antes de o sol raiar.

- a senhora tinha castanheiras na sua mata? - perguntou Garnett. Ela inclinou a cabeça.

- 0 senhor não conhece essas de que eu estou falando? Estão um pouco acima nesta encosta, que está horrorosa por causa dos galhos mortos que caíram. Mas todo ano ainda dá sementes, que os esquilos comem. - a outra está no alto da montanha, e também está horrorosa.

- a senhora tem duas castanheiras americanas ainda em fase reprodutiva na sua mata?

- O senhor só pode estar brincando. O senhor não sabia? - Como eu ia saber?

Ela começou a falar, mas fez uma pausa, tocou nos lábios; e disse: - Eu nunca considerei esta mata como uma propriedade nossa. Ando pelas suas encostas sempre que tenho vontade. - achei que o senhor fazia a mesma coisa nas minhas.

- Nunca entrei nas suas terras desde que seu pai comprou do meu. - Pois o senhor devia ter entrado - disse ela, rindo.

Ele se perguntou se seria realmente possível o que ela lhe estava dizendo. As macieiras ela conhecia bem, mas seria ela realmente capaz de distinguir uma castanheira de uma cerejeira? Olhou para a cerejeira ameaçadora acima dele e se convenceu de que ela estava mais inclinada do que naquela manhã. Um esquilo subiu negligentemente pelo tronco, o que foi demais para Garnett. Um estalido o fez olhar diretamente para cima, apesar de ele saber que não deveria, apesar de se ter habituado a evitar aquele movimento. Oh, oh, oh, a maldita tonteira caiu sobre ele. Ele segurou a cabeça e gemeu alto, enquanto as árvores à sua volta gira­vam loucamente. Dobrou-se para frente e prendeu a cabeça entre os joelhos, certo de que não adiantaria fechar os olhos - o que provavelmente o faria vomitar.

- Mr. Walker!

Ela se inclinou e olhou para ele, para sua expressão de terror.

- Não é nada. Logo vai passar. Mais uns minutos. Não se preocupe, não há nada a fazer.

Mas ela ainda estava olhando para o rosto dele. - Nistagmo - decretou ela.

- O quê?

Ele estava irritado e se sentia tolo e fraco, e desejou furiosamente que ela estivesse longe. Mas ela continuou com os olhos firmes nos dele. - Seus olhos estão girando para a esquerda sem parar - isso se chama nistagmo. O senhor deve estar tonto.

Ele não respondeu. Os troncos agora giravam mais devagar. Como um carrossel que vai parando. Mais uns minutos, e aquilo ia passar.

- O senhor também sente isso quando está deitado de costas na cama? Ele assentiu com um movimento de cabeça:

- Essa é a pior de todas. Se eu viro de costas durante o sono, a tonteira me acorda.

- Coitadinho. Έ uma tristeza. O senhor sabe como tratar isso, não sabe?

Com muito cuidado, ele moveu a cabeça e a encarou. - Existe cura para isso?

- quanto tempo o senhor tem isso? Não quis dizer desde sempre.

- Acho que uns vinte anos.

- nunca consultou um médico?

- No início, eu pensava que alguma coisa horrível tinha acontecido dentro da minha cabeça. Não quis saber o que era. Depois, os anos foram passando, e eu não morri.

- Nem vai morrer; e só uma chateação. VPB. Vertigem posicional benigna, ou uma coisa dessas, não me lembro bem. A Rachel tinha uns acessos fortes. Geralmente, só ataca os velhos, mas sabe como é, com a Rachel, tudo que podia dar errado geralmente dava. Veja, é isso que o senhor tem de fazer. Deite-se no tronco.

Ele começou a protestar, mas ela já o segurava pelos ombros e o guiava para se deitar de costas.

- Vire a cabeça de lado, o máximo que puder. Deixe cair também um pouco para trás. Isso.

Ele engasgou, e quando a tonteira voltou, pior do que nunca, agarrou as mãos dela como uma criança. Por mais que se preparasse, a sensação de estar solto no espaço sempre o aterrorizava.

- Está bem, muito bem - cantarolou ela, segurando a mão dele numa das suas e segurando a parte posterior de sua cabeça com a outra, firmando-o.

- Fique assim, se conseguir; fique assim até começar a melhorar. Ele ficou quieto. Passaram-se uns dois minutos até o mundo parar de girar.

- Agora, gire a cabeça até conseguir olhar bem para cima. Não tenha medo. Vá devagar; e pare quando a tonteira chegar.

Ele teve uma aguda consciência daquelas mãos. Ela segurava maternalmente sua cabeça, com ternura e competência, apertando-lhe o rosto na saia dela. Foi o que ele conseguiu pensar ao sofrer mai

na saia dela. Foi só o que ele conseguiu pensar ao sofrer mais um acesso de tontura. Então, virou a cabeça mais um pouco, e sofreu outro. Não sabia se seria capaz de olhar Nannie Rawley no olho depois daquilo.

- Já está quase acabando. Agora. Ouça. Vou ajudar o senhor a se levantar. Sente-se e baixe a cabeça assim.

Ela apertou o queixo contra o próprio peito para mostrar como era:

- Pronto?

Ajudou-o a erguer o corpo até a posição sentada e a cabeça para frente. Ele esperou, e teve uma estranha sensação de que alguma coisa se reorganizava dentro de sua cabeça. Quando passou, ele relaxou os om­bros, levantou a cabeça, e olhou um mundo renovado. Ela o observava com atenção.

- Ótimo. Acabou.

- Acabou o quê?

- O senhor está curado. Tente olhar para cima.

Ele não acreditou, mas fez o que ela mandou, cautelosamente. Sen­tiu uma ligeira tonteira, mas muito pequena. Em comparação com o que sentia antes, não era nada. Não chegava a ser uma tonteira. Olhou para ela, espantado.

- a senhora é uma feiticeira? O que a senhora fez comigo?

- Chama-se manobra qualquer coisa - acho que Epley. Ela sorriu.

- Rachel e eu descobrimos acidentalmente. Eu a rolava e lhe fazia cócegas quando ela tinha acessos de tonteira. Muito tempo depois, o dr. Gibben me ensinou uma maneira mais fácil de fazer a coisa, e lhe deu um nome. O senhor vai ter de fazer sempre. Todo dia, quando se levantar.

- O que a senhora consertou?

- Isso é causado por uns pequenos cristais...

- Nem comece. E mais uma de suas teorias que explicam tudo.

- Não, não. São pequenos cristais, muito duros, que se formam no centro de equilíbrio que existe no ouvido. E um fato científico.

- E como chegaram até lá?

- Algumas pessoas têm isso, é tudo que eu sei. O senhor não vai querer que eu diga que são causadas por mau humor, vai? Olhe aqui, velho teimoso, eu curei o senhor ou não?

Garnett se sentiu castigado.

- Curou.

- Muito bem; agora me escute, só para variar. O senhor tem umas pedrinhas lá dentro que ficam rolando e criam esse problema toda vez que o senhor vira a cabeça do jeito errado. É preciso levá-las para um canto onde elas não possam lhe fazer mal.

- Tem certeza? É verdade isso que a senhora está me dizendo?

- Tão verdade quanto a chuva, senhor Walker.

- Em todos esses anos?

- Em todos esses anos: foi esse o seu problema. O senhor tem pedras dentro da cabeça.

Ficaram sentados em silêncio por muito tempo, ouvindo o ronco que transformava um carvalho em lenha. Então ela perguntou:

- O senhor gostaria de vir comigo para ver as duas castanheiras? Talvez fosse bom o senhor ter duas fontes de sementes a mais para o seu programa de cruzamentos.

- a senhora faz uma idéia? - perguntou ele, mais uma vez maravi­lhado e excitado.

Por um momento ele havia se esquecido das castanheiras.

- Vai dobrar a quantidade de variação genética que tenho agora. Meu projeto vai ficar muito melhor e andar mais rápido, Miss Rawley, se eu tiver flores dessas duas árvores.

- Pois pode considerá-las suas, senhor Walker.

- Muito obrigado. A senhora é muito boa.

- Que nada! - e pousou as mãos no colo.

Garnett já imaginava as duas castanheiras lá no alto, sobreviventes anômalas de sua era, marcadas pela idade e pela doença, mas ainda ere-tas, solitárias e persistentes durante todos esses anos. Ao lado de sua propriedade. Era demais para acreditar. Esperava que elas ainda tives­sem algumas flores nessa altura do verão. Que bela infusão de material genético novo no seu projeto! Era um milagre. Na verdade, se as duas árvores estavam liberando pólen ao vento, era possível que um pouco de diversidade genética extra já tivesse sido infundido nas suas terras. E ele pensava que estivesse trabalhando sozinho. Nunca se sabe.

Virou a cabeça para o lado e teve uma visão das pedras na sua cabe­ça, empilhadas de forma a não lhe causarem mal, mas prontas a rolar de volta e criar mais problemas. Sem querer, também se lembrou da pilha de telhas verdes na sua garagem, escondidas, queimando um furo na sua consciência igual a um cigarro caído no sofá.

 

Um dos modos de conviver com a dor que Lusa havia descoberto era se agarrar aos últimos momentos entre o sono e a vigília. Às vezes, manhã bem cedinho, cuidando para não abrir os olhos ou fazer a mente sair da sonolência até a superfície onde estava a dor clara e fria, ela descobriu ser capaz de escolher seus sonhos. Chamava uma lembrança e a seguia paci­entemente até a origem, em carne, som e sentidos. Revivia sua vida, e estava protegida e segura, tudo por decidir, tudo ainda novo. Seus braços reais a carregavam pela porta enquanto ela brincava, dizendo pesar mais que um saco de balas, mas menos que dois. As cigarras zumbiam e o ar estava quente e úmido - junho, logo depois do casamento. Ela ainda usava uma saia de raiom azul, mas tirara as meias e sapatos no carro na viagem de volta de Lexington. A saia azul-claro deslizava como água fria pelas suas pernas e pelos braços dele enquanto ele subia os degraus. Parou no patamar e a beijou e deslizou as mãos sob ela e todo o seu peso era nada nas mãos dele. Tornara-se imponderável e flutuava no ar com as costas para a janela e com os braços fortes por baixo de suas coxas. O ar acima da cabeça dele parecia tremer com as moléculas combinadas dos dois eus separados, ele a penetrou e ela se entregou a um delírio em vôo, à perfeição do amor em vôo.

As vezes o sonho se alterava nesse ponto, e sua presença confortadora tinha as asas sedosas, verde-claro de um estranho que tinha chegado depois do enterro, na noite em que Jewel lhe deu a pílula de dormir. E lhe dizia todas as vezes a mesma coisa: "Conheço você". Abria as asas e o abdome cor-de-rosa, perfumado e desenhado como os galhos da madressilva, e ela sentia o prazer agudo de ter sido escolhida.

"Você me conhecia tão bem que me encontrou aqui".

E aquele perfume explodia no seu cérebro como uma chuva de luzes, e aquela voz percorria a distância sem palavras: "Foi sempre assim que eu a conheci".

Ele a envolvia na sua maciez , tocava seu rosto com o movimento das árvores e o perfume da água selvagem sobre as pedras, dissolvendo suas necessidades na confiança de seu abraço.

- Tia Mary Edna diz que quando fazem assim é porque estão rezando - comentou Crys, cheia de dúvidas.

- Acho que se pode ver assim: uma igreja de borboletas.

Lusa e Crys haviam parado na estrada para admirar mais um denso grupo de borboletas rabo-de-andorinha reunido no chão em volta de uma mancha de lama. Encontraram vários desses grupos de asas pretas e ama­relas, que se levantavam e se espalhavam com a aproximação das duas, e pousavam novamente no mesmo lugar, depois que elas passavam. Chovera na véspera, e não faltavam poças de lama.

- Mas vou lhe dizer uma coisa - disse Lusa -, é uma espécie de igreja Clube do Bolinha. Provavelmente, todas essas borboletas são meninos.

- Por quê?

- Como, por quê? Porque têm pinto!

Crys deu um daqueles latidos agudos que eram o seu riso. Lusa vivia para isso, para lhe romper a couraça. Esse era agora o seu desafio secreto, desfrutar esses momentos em que via todas as luzes se acenderem por um instante na casa escura que era essa menina.

- Mas eu sei o que você está perguntando: por que só os machos comparecem? E o que se chama chapinhar. E esse o nome que os cientistas deram a esse comportamento.

- Sei. E por que só os meninos participam?

- Estão sugando na lama um mineral qualquer ou alguma proteína, alguma coisa de que as borboletas precisam para continuar sadias. E depois eles passam para as meninas, como presente de namorados.

- E como eles passam para elas?

Lusa fez uma pausa e depois perguntou:

- Você sabe como são feitos os bebês? Crys virou e revirou os olhos.

- Ele enfia o pinto na perereca dela e esguicha um negócio que faz o neném.

- Está bem, você sabe como é. Pois é assim que ele passa os minerais para ela. Quando passa o material de fazer filhos, ele prepara um pacote das coisas boas que ela aprecia. É o que se chama espermatóforo.

- Que coisa estranha!

- Não é mesmo? E quer saber uma coisa? Ninguém sabe disso no condado de Zabulon, só eu e você. Nem os professores sabem.

A menina ergueu os olhos.

- É mesmo?

- É. Se quiser saber mais sobre insetos, eu sei de coisas que você nem imagina.

- E a senhora fica com raiva quando eu falo merda, pinto e outras coisas?

- Não, de jeito nenhum. Que merda, claro que não - praguejou ela para ver Crys rir -, basta você saber onde e quando não usar essas pala­vras. Na igreja, ou na escola, ou num raio de dois quilômetros de Mary Edna. Mas aqui? Não vai ofender meus ouvidos.

- Que inferno! - gritou a menina - Fogo de merda.

- Ei, mas também não precisa usar tudo de uma vez só.

Crys pegou uma pedrinha e jogou num grupo de borboletas para vê-las voar.

- Venha - chamou Lusa -, vamos caçar bruxas. Hoje, ou acho uma luna para lhe mostrar, ou eu morro.

Caminharam lentamente em direção à poça de lama, atravessando a nuvem de borboletas, tal qual o Super-Homem ao atravessar as moléculas de uma parede nos quadrinhos. Ela e Crys estavam andando na velha es­trada do cemitério a caminho da mata que havia atrás da garagem, sem nenhum destino em especial, apenas o desejo de aventura, enquanto Lowell cochilava no sofá da sala. Jewel estava passando muito mal, e pela terceira vez, nas últimas duas semanas, pedira a Lusa para ficar com os meninos. Lusa ficou feliz por poder ajudar, embora se perguntasse que tipo de mãe substituta ela seria - a que incentivava Crys a praguejar como um estivador, por exemplo. Não entendia nada de crianças. Mas era a única pessoa da família capaz de arrancar alguma palavra de Crys. Cada um vive com o que a vida lhe oferece, como Hannie-Mavis lhe disse certa vez. A Lusa e Crys couberam a falta de sorte e o julgamento dos probos. E, aparentemente, uma à outra.

- O que é aquilo?

Lusa olhou para onde Crys apontava dentro da mata. Os pássaros cantavam como sinos no ar lavado pela chuva, mas Lusa não percebia nada de particular.

- O quê? Aquela planta?

- É. Aquela praga subindo nas árvores ali.

- Praga?

Crys deu de ombros.

- O tio Rickie diz que aquilo é uma praga. Aquela trepadeira que cobre tudo. Ele detesta.

- Mas essa é bonita; aqui é o lugar onde ela deve crescer. Ela se cobre de flores brancas no fim do verão, e depois ela cria milhões de vagens cheias de sementes iguais a milhões de explosões de estrelas. É chamada de caramanchão da virgem.

- Virgem como a mãe de Jesus, não é?

- Ela mesma. Ou qualquer mulher ou moça que ainda não praticou aquela história do pinto de que nós falamos.

Crys pulou à frente de Lusa dando alguns passos longos e estra­nhos. Parecia gostar de experimentar formas diferentes de andar, que Lusa observava, divertida. Ela estava com a mesma calça jeans que sempre usava desde que chegara, e hoje também vestia uma criação esfarrapada sobre a camiseta. Parecia uma camisa de trabalho masculina, cortada em fitas com tesoura.

- Gosto mais de insetos do que de flores - disse Crys com convicção, depois de algum tempo.

- Que bom! Então você está com sorte, porque sei muito mais a respeito de insetos do que de flores. E não se esqueça de que estamos procurando uma bruxa luna. Olhe nos troncos, no lado da sombra. Você já viu uma peca? Daquelas que têm uma casca bem grossa?

Crys deu de ombro.

- a bruxa luna gosta especialmente da peca. E das castanheiras. Botam os ovos nas folhas porque elas são o que as lagartas comem.

- Como assim?

- O estômago delas é feito para isso. Elas são especializadas. Por exemplo, você come as sementes de trigo, mas não a palha.

- Eu como de tudo.

- Outros animais não têm tanta sorte. A maioria tem dietas muito especializadas. Ou seja, elas podem comer uma coisa só.

- Que burrice.

- Não é burrice nem inteligência, eles são assim. Você tem duas pernas e anda só com os dois pés. Um cachorro deve achar que isso, sim, é que é burrice.

Crys não fez comentários.

- Mas a verdade é que a especialização torna a vida mais arriscada. Se o alimento morre, aquele animal morre. Ele não pode dizer "minha árvore está extinta, então agora eu vou comer pizza".

- O Lowell tem isso.

- Tem o quê?

- Esse problema da comida especial.

- É mesmo? O que ele come?

- Só macarrão e queijo. E bolinhas de chocolate recheadas.

- É mesmo uma dieta especializada. Deve ser por isso que naquela noite ele não quis a minha sopa de lentilha. Eu devia ter completado com bolinhas de chocolate.

Crys deu uma risadinha; pouco mais que um sopro entre os dentes.

- Olhe aqui nesta árvore, no lado que está coberto de musgo. Está vendo essas bruxinhas brancas?

As duas se inclinaram e Lusa cutucou uma asa translúcida. A bruxa andou alguns passos na casca áspera da árvore. Crys recebia o sol pelas costas, e Lusa via como era delicada a pele suave de seu rosto, igual à de um pêssego. Nesses momentos de concentração, o rosto de Crys tinha uma suavidade que fazia Lusa imaginar como foi possível tantos adultos - ela inclusive - confundirem essa menina com um menino.

Ela ergueu os olhos.

- O que que é isso?

- São lagartas do cancro. O estágio de lagarta foi descoberto com esses bichos, e por isso a bruxa recebeu esse nome feio. Mas ela é bem bonitinha, não é?

Lusa deixou-a andar pelo seu dedo, e depois soprou, mandando-a num arco torto até outra árvore. Crys ficou mais um minuto observando as colegas preguiçosas na árvore, antes de continuar:

- Como é que a senhora sabe tanto sobre os insetos?

- Antes de me casar com seu tio Cole e de me mudar para cá, eu era uma cientista especializada em insetos. Em Lexington. Fazia experiênci­as e aprendi muita coisa sobre eles que ninguém sabia.

- E tem muito inseto lá em Lexington? Lusa riu.

- Mais ou menos o mesmo que em qualquer lugar.

- a tia Lois disse que a senhora é garimpeira.

- Garimpeira?

- Garimpeira de ouro. Lusa pensou um pouco.

- Ah, caçadora de ouro.

Deu um suspiro. Dessa vez ela tinha certeza de que Crys não teve a intenção de feri-la.

- E é verdade? - perguntou Crys.

- Não. Não estou interessada em garimpos, nem passados nem fu­turos. A tia Lois devia enfiar a cabeça na privada e dar a descarga.

Crys fechou os lábios num sorriso cúmplice e olhou para Lusa. As duas estavam descobrindo novas maneiras de conviver com o julgamento dos hipócritas.

- Aqui está bom, vamos examinar aqui - disse Lusa, apontando um barranco íngreme que conduzia a uma clareira acima da estrada, coberta de manchas de luz.

Não podiam se afastar muito da casa, pois Lowell estava cochilando sozinho. E Lusa não queria chegar ao cemitério da família que ficava logo depois da curva seguinte. Cole não estava lá, mas muitos dos outros Wideners estavam.

Crys já avançava à sua frente, atravessando as nuvens de lírios que haviam fugido do jardim de alguém muito tempo antes e que agora eram como ervas daninhas. Mas eram bonitos. Suas folhas longas caíam como cachoeiras pelos barrancos, coroadas por círculos de flores alaranjadas e botões longos e graciosos. Cresciam em fileiras que se espalhavam pelas margens abandonadas de todas as estradas da região, com manchas roxas e cor-de-rosa das ervilhas de cheiro. Antes de começarem a florescer, há algumas semanas, Lusa nunca tinha percebido a existência das duas flores. O condado inteiro era um grande jardim de flores fugidas.

Crys arrancou a flor de um dos lírios ao subir no barranco.

- Olha só.

Esfregou o centro da flor no queixo e jogou fora a flor amassada.

- Que bonitinha. Agora você está de barba laranja, comentou Lusa. Crys tentou fazer um sorriso mau, deliciosamente infantil.

- Igual ao diabo.

- Sabe o que é isso, essa coisa alaranjada? E pólen. Sabe o que é pólen? a menina balançou a cabeça.

- Es-per-ma - Lusa pronunciou a palavra com exagero.

- Ich!

E Crys limpou violentamente o queixo.

- Fique tranqüila. Você não vai ficar grávida nem ter flores. Passou pela menina, indo até o limite da clareira, onde um grupo de

pecas havia atraído sua atenção. Entrando na mata, começou a examinar sistematicamente o lado norte dos troncos. Crys a seguia de perto.

- a senhora acha, quer dizer, a senhora acredita que vamos para o inverno?

"Vai nevar?": é o que Lusa pensou ser a pergunta de Crys. Ela olhou para os pedacinhos de céu que apareciam através dos galhos das árvores.

- De jeito nenhum. Estamos no meio do verão*.

- Eu estou falando de inverno - insistiu a menina.

Lusa se aprofundara na mata, examinando os galhos e as faces inferio­res das folhas com olhos de conhecedor.

- Por que você está tão preocupada com o inverno? Vocês não têm nenhuma plantação.

- Eu disse inverno.

Havia tanta frustração naquela voz que Lusa saiu de seus pensamen­tos e se virou. Crys estava com os pés plantados e olhava irritada para ela.

- Inverno, onde mora o diabo - disse a menina, já claramente abor­recida.

Aos poucos, Lusa começou a entender o mistério.

- Você está me perguntando sobre o inferno? a menina deu de ombros.

- Esquece.

- Sinto muito. Acho que deixamos passar o momento certo para falar da vida depois da morte.

Crys passou pisando duro, arrancando folhas dos arbustos de sassafrás.

- Você me deixou curiosa - disse Lusa, correndo até ela -, qual é a diferença entre o inverno da neve e o inverno onde mora o diabo?

Crys parou, e olhou atônita para ela.

- Ora, gente escreve diferente! Crys a observou por um momento.

- Tia Lusa, sabe que a senhora fala de um jeito muito engraçado?

- E, acho que falo mesmo.

Lusa insistiu com ela para esquecer o sassafrás e ajudá-la a procurar uma luna.

- Vai ser a maior bruxa verde que você já viu. São impressionantes.

Crys ainda parecia não acreditar na possibilidade de ver alguma má­gica, ali ou em qualquer outro lugar, mas veio correndo quando logo depois Lusa gritou:

- Minha nossa, olhe ali!

- Onde?

- Lá no alto - alto demais para nós. Mas você está vendo? Bem na forquilha daquele galho.

 

* No original, aparece a confusão entre hell(é), inferno, e hail(êi), granizo, que a menina pronuncia da mesma forma. Para tentar preservar a confusão, preferiu-se aproveitar a semelhança entre inverno e inferno. (NT)

 

Crys forçou a vista, nem tão impressionada assim.

- Vamos cutucar com uma vara.

- Não, não vamos machucá-la - discordou Lusa, mas ela tinha tido a mesma idéia e já estava torcendo um galho comprido e fino de um arbusto de carvalho.

Esticou-se ao máximo, deu um pulinho, balançando a vara como se fosse uma vassoura contra a casca da árvore, logo abaixo do ponto onde estava a bruxa com as asas serenamente recolhidas. Ela se mexeu um pouquinho e voou. As duas a viram cair e subir, cair e subir, até sumir lá no alto, no meio dos galhos.

Lusa se voltou para Crys com os olhos brilhantes.

- Era uma luna. Crys deu de ombros.

- E daí?

_ E daí? E daí, o quê? Você ia querer que ela também cantasse?

Crys deu uma risada e Lusa ficou surpresa. Eles sempre a pegavam de surpresa, esses momentos em que seu zeida enganava a vigilância de seu pai e aparecia na sua língua.

- Venha. Vamos procurar na grama alguma coisa que possamos segurar na mão.

Voltou para a clareira no barranco acima da estrada e se deixou cair bem no meio. Por uns momentos ela se sentiu feliz em poder se apoiar de costas sobre os cotovelos e olhar para as pontas do tênis, e para além deles, as seduções da floresta. Passara muitos dias presa em casa ou tratando do jardim, ou cuidando da saúde das cabras. Devia voltar mais vezes à flores­ta. O capim da clareira estava molhado - ela sentiu que seu short estava úmido - mas o sol estava bom demais. Fechou os olhos e voltou o rosto para o céu.

- E qual é esse?

Lusa se inclinou e examinou em detalhe o inseto verde em formato de escudo que Crys tinha colocado no punho.

- É um desses percevejos fedidos do sul. Crys o examinou com atenção.

- E ele fede mesmo?

- É uma questão de opinião.

- E ele é parente daquele vermelho e preto que a gente achou no pessegueiro?

- O percevejo arlequim? E, é sim. Da mesma família. Pentatomidae. Olhou surpresa para Crys:

- Muito bem! Sabe que você tem um olho muito bom para insetos? É uma boa observadora e não esquece as coisas.

Crys espantou o inseto do pulso e rolou sobre a barriga, de costas para Lusa. Afastou cuidadosamente as folhas de capim com as mãos, tal como um animal que cata piolho em outro. Lusa também rolou para estudar um pedaço de capim. Finalmente, Crys desistiu da procura e se deitou de costas, olhando para as árvores. Logo depois declarou:

- a senhora bem que podia derrubar essas árvores todas e ganhar um monte de dinheiro.

- Mas aí eu ia ficar com um monte de dinheiro e sem árvores.

- E daí? Arvore não faz falta nenhuma.

- Para começar, vamos falar de uns dezenove milhões de insetos, mais ou menos. Moram nas folhas, debaixo das cascas, em todo lugar. Se você fechar os olhos e esticar o dedo, estará apontando um inseto.

- E daí? Quem vai querer dezenove milhões de insetos?

- Dezenove mil pássaros que comem insetos.

- E para que tanto passarinho?

- Para mim. Para você.

Ela sempre se perguntava se Crys era mesmo cruel ou se estava apenas fingindo ser.

- Para não falar da chuva, que ia descer a montanha e arrancar o solo das minhas terras. O ribeirão se transformaria em pura lama. Este lugar ficaria morto.

Crys deu de ombro.

- Ora, as árvores crescem de novo.

- Isso é o que você pensa. Esta floresta levou centenas de anos para ficar assim.

- Assim, como?

- Assim como ela é, uma coisa complicada, feita de partes que pre­cisam umas das outras, tal como um corpo vivo. Não são apenas as árvores; são árvores diferentes, de tamanhos diferentes, nas proporções certas. Todo animal precisa de sua planta para viver. E certas plantas só crescem ao lado de outras plantas, você sabia?

- O seng só cresce debaixo do bordo.

- O quê? O ginseng? Onde você aprendeu isso?

- Com o tio Joel.

- Ele colhe ginseng?

A menina concordou com a cabeça.

- Ele e os amigos dele sobem na montanha e arrancam. Tem uma mulher lá no alto que grita com eles. É proibido arrancar. Ele disse que qualquer dia ela dá um tiro nele se achar ele outra vez.

Lusa olhou para o alto da montanha.

- Então há uma mulher morando lá no alto? Tem certeza? As terras acima desta fazenda são do Serviço Florestal.

- Pergunta para o tio Joel. Ele te conta. Ele disse que a mulher é louca de pedra.

- Deve ser. Acho que vou querer conhecê-la.

Lusa cutucou um mede-palmo escondido na grama e o deixou subir pelo dedo.

- E o que o tio Joel diz a meu respeito? E ele quem acha que eu devia cortar as árvores?

Teve uma leve sensação de culpa por estar explorando essa nova fonte de informações.

- Não. Ele diz que você é a louca das cabras.

- Ele e todo mundo. Estão todos loucos de vontade de saber por quê, não é?

Crys encolheu os ombros e olhou para Lusa, na defensiva. Mas con­cordou.

- Mas acho que a senhora não vai contar, vai?

Lusa respondeu de um modo bem tranqüilo; queria dar a essa criança um presente, a sua confiança:

- Para você, eu conto.

O rosto da menina se iluminou:

- a senhora me conta?

- Mas é só para você, não para o tio Joel ou qualquer outra pessoa. Você não pode contar para eles, de jeito nenhum. É capaz de guardar um segredo?

Solenemente, Crys traçou uma cruz no peito.

- Muito bem. Tenho um primo que mora em Nova Iorque; ele é açougueiro, e nós fizemos um trato. Se todas aquelas cabras lá no morro tiverem filhotes um mês antes do ano novo, ele vai me pagar tanto dinheiro por elas, que o tio Joel vai ficar doido.

A menina arregalou os olhos.

- a senhora vai ficar rica?

Lusa sorriu e deixou a cabeça pender.

- Não. Mas vou conseguir pagar ao rapaz que está consertando o encanamento da casa e àquele amigo do seu tio Rickie que está conser­tando o meu celeiro.

- Clivus Morton? - Crys fez uma careta. - Ele tem cê-cê. Lusa fez força para não rir.

- Mas isso não é razão para eu não pagar a ele, não é? Se for, eu acabei de jogar novecentos dólares fora, pois fiz um cheque para ele hoje de manhã.

Crys ficou espantada com o número.

- Puxa, acho que agora ele é que ficou rico.

- É preciso muito dinheiro para tocar uma fazenda. Às vezes a gente não ganha num ano o que tem de gastar no mesmo ano. E por isso que todo mundo reclama da agricultura. Se é que você já não sabia.

- E se as cabras não dão cria?

- Eu ainda vou ter de pagar outro monte de dinheiro ao Clivus Morton quando ele terminar. Mesmo que ele continue sem tomar banho.

Lusa se deitou de costas na grama molhada e cruzou as mãos atrás da cabeça e soltou um suspiro.

- É arriscado. Mas as cabras foram o único meio de ganhar dinheiro este ano, com um pedaço de terra tomado pelo mato e conseguir manter a fazenda.

Olhou para Crys, que parecia não estar prestando atenção, embora ela não tivesse certeza.

- Então é isso o que eu pretendo das cabras. Só tentar manter meu pedacinho de céu longe do inverno.

- O tio Joel disse que a senhora está acabando com a fazenda.

- Pois eu agradeço sugestões, se ele tiver uma idéia melhor. Ele e minhas amigas vegetarianas, Hal e Arlie, em Lexington, que me infor­maram que eu estou falida: não existe uma única lavoura que renda o que custou para plantar. Só o tabaco.

- a senhora também é isso?

- Isso o quê?

- Uma vegetariana.

- Não. Pertenço a um outro cristianismo. Como afirmou o seu primo Rickie.

Crys tinha coitado uma folha comprida de capim e tocava de leve a pele de Lusa num ponto em que a camiseta subira e deixara exposto um pedaço da barriga. Era a coisa mais próxima da intimidade que ela jamais vira aque­la menina manifestar. Lusa prendeu a respiração e ficou imóvel, atônita por sua sorte, como se uma borboleta tivesse pousado no seu ombro. Finalmen­te ela soltou a respiração, sentindo-se tonta por ter acompanhado as nuvens altas e finas que corriam pelo espaço entre as copas das árvores.

- Ouça, eu estou me queixando igual a um fazendeiro de verdade, está vendo?

Crys deu de ombros.

- Parece.

- Se minhas cabras não trabalharem bem, estou ferrada, como você costuma dizer. Detesto pensar nessa possibilidade. Eu me sentiria como uma assassina se tivesse de derrubar essas árvores, mas não sei de outro meio para manter a fazenda.

De repente, Crys deu as costas para Lusa.

- E por que a senhora tem de ficar com ela?

- E uma boa pergunta. É uma pergunta que eu vivo me fazendo. Sabe o que eu acho?

- O quê?

- Fantasmas.

Crys se inclinou e examinou o rosto de Lusa. Parecia intrigada, mas sua expressão logo voltou a ser neutra.

- Isso é besteira.

- Não é, não. Você iria ficar surpresa.

Crys arrancou um punhado de grama da terra.

- Fantasma de quem?

- Acho que de gente que perdeu coisas. Alguns são da sua família e outros da minha.

- Gente de verdade? Gente que já morreu?

- É

- Quem?

- Meu zeida, meu avô por parte de pai. Ele tinha um fazenda linda, sabe? E ela foi tomada dele. Foi há muito tempo, antes de eu nascer. Os pais de minha mãe também tinham uma fazenda, em outro país, e acon­teceu a mesma coisa: eles também a perderam. Agora estão todos aqui.

- E a senhora tem medo? - perguntou Crys baixinho.

- De jeito nenhum.

- a senhora acredita mesmo em fantasma?

Lusa se perguntou por que estava falando essas coisas para uma criança. Mas ela tinha de falar dessas coisas, tanto quanto Crys precisava de soltar palavrões. Cada uma delas tinha suas razões. Sentou-se e olhou para ela até cruzarem os olhos.

- Você não está com medo, está?

A menina sacudiu a cabeça depressa.

- Acho que nem devia chamá-los de fantasmas. São apenas coisas que não se vêem. Nisso eu acredito, talvez mais que muita gente. Certos tipos de amor que ninguém vê. São esses os meus fantasmas.

Crys torceu o nariz.

- Então o que a senhora faz, cheira eles?

- É isso mesmo. E ouço. Ouço meu avô tocar música quando chove. É assim que eu sei que ele está aqui. E o seu tio Cole também está aqui. Sinto o cheiro dele o tempo todo. Não estou brincando: acontece umas três ou quatro vezes por semana. Abro uma gaveta ou entro no celeiro de milho, e lá está ele.

Crys parecia realmente triste.

- Mas se a senhora não vê ele, ele não está lá de verdade.

Lusa estendeu o braço e esfregou o ombro da menina, um pequeno ponto duro de osso coberto por músculos tensos.

- Sei que é muito difícil pensar nessas coisas. Os humanos são uma espécie muito visual.

- O que quer dizer isso?

Uma borboleta monarca atravessou o eixo de luz em frente a elas e bateu preguiçosamente as asas no caminho iluminado entre as árvores, em busca dos campos mais abaixo.

- Isso quer dizer que a gente ama com os olhos.

- Quer dizer, igual às revistas que o Rickie esconde debaixo do colchão? Lusa riu.

- É exatamente disso que eu estou falando.

As duas acompanharam a monarca: um ponto alaranjado que se afastava encosta abaixo, até desaparecer, um ponto brilhante que se fun­diu na luz do dia.

- Muitos animais confiam mais nos outros sentidos do que nós. As bruxas usam o olfato, por exemplo. Elas não precisam ver os maridos e mulheres para saber que estão perto.

- E daí? Mas a senhora não é uma bruxa.

- Daí, acho que você tem razão. Que bobagem, não é? Crys deu de ombros.

- E quando a senhora morrer, também vai ficar rondando por aqui?

- Vou. Vou ser um fantasma bom.

- E quem vai estar aqui depois da senhora?

- Esta é a grande pergunta. Os fantasmas de minha família estão brigando por causa disso. Os meus me dizem para eu ficar; os seus me mandam embora, tudo para decidir quem vem para cá depois de mim. Não sei como contentar a todos.

Crys a observou com atenção.

- É de que lado a senhora acha que vai ficar?

Lusa olhou e também deu de ombros, o mesmo movimento introvertido e rápido dos ombros que Crys sempre usava para responder a todas as perguntas. Um gesto roubado.

- Vamos - disse ela, pulando e puxando a menina pela mão -, va­mos ver se o Lowell já acordou.

- Ele ainda está dormindo. Se ninguém acordar o Lowell, ele não acorda nunca mais.

- Ele está só um pouco mais triste por causa de sua mãe. Às vezes, quem está triste precisa dormir mais tempo.

Estendeu a mão para ajudar Crys a descer o barranco até a estrada, mas a menina pulou sozinha, um pulo enorme.

- Eu não - disse ela, depois de cair de pé.

- Não? E o que você faz?

Lusa subiu mais devagar por entre os lírios, sentindo-se um pouco meio como uma tartaruga atrás de uma lebre.

- Nada. Eu não penso nessas coisas.

- Verdade? Nunca?

Crys deu de ombros e se calou. Não falaram durante vários minutos enquanto andavam lado a lado através de todas as poças de luz no chão, feitas pelas falhas na folhagem das árvores. De quando em quando, levanta­va-se uma nuvem de borboletas rabo-de-andorinha - os meninos do coro que saíam da igreja. Lusa gostou da idéia de uma igreja de borboletas. Não era mais absurda do que a idéia de uma absorção comercial do sódio da terra para o esperma do dia dos namorados. Imaginou o que aconteceria se ela enviasse um artigo para a Behavioml Ecolqgy, tratando do efeito espiritual da reunião das rabo-de-andorinha em torno das poças dágua. Lusa ainda se divertia com a idéia quando fizeram a curva atrás da casa e ela estacou.

- Ah, não: olhe! - gritou ela.

- Merda, tia Lusa. A porcaria da madressilva comeu a garagem. Lusa não poderia ter se expressado melhor. O monte de folhas verdeescuro estava tão redondo e imenso, que não se via o menor sinal do edifí­cio que havia por baixo. Um túmulo antigo, diria Lusa. Um templo maia em ruínas. Não era possível que aquilo tivesse acontecido durante um cur­to verão chuvoso. Há muito tempo ela não passava pela estrada do cemité­rio, e não havia visto a garagem pelos fundos desde que o Cole morrera. Agora ela ficou olhando, relembrando a discussão sobre as madressilvas antes de ele morrer: o artigo absurdo, aconselhando a aplicação de Roundup; a fúria que ela manifestou em favor das plantas. Como pôde ser tão santimonial por causa de uma madressilva? Lusa se lembrou de que nem nativa da região ela era. Fugira de algum jardim, tal como os lírios - tal como qualquer erva daninha. Nenhum inseto local se alimentava dela, pois viera de outro lugar - provavelmente do Japão. Lonicerajaponica, igual aos besouros japoneses e a praga das castanheiras, e do anileiro-do-japao e o temido birmolo. Mais um artefato do acordo humano que ameaçava es­trangular as nativas.

Todo dia você tem de forçá-la a recuar dois passos, senão ela chega e toma tudo, disse ele. Os instintos dele com relação a essa planta estavam certos; seus olhos sabiam coisas que ele nunca soube expressar. E ainda assim ela havia retrucado displicentemente: Toma o quê? O mundo não vai acabar só porque você deixou uma madressilva subir num dos lados do celeiro. Ela cruzou os braços para conter um calafrio de angústia e lhe pediu perdão pela audácia daquela moça da cidade.

Sentiu a cabeça encher-se com o perfume de milhares de flores bran­cas translúcidas que haviam amarelado e caído dessa montanha de folhas, há muitos meses. Quem sabe, há muitos anos.

Crys estava olhando para ela com tanta ansiedade, que Lusa tocou o próprio rosto para ter certeza de que ainda estava intacto.

- Calma, não é nada. Acabei de ver um fantasma.

 

Um calor de rachar. Diana se sentou na ponte que havia acabado de construir no bosque de abetos. Arrancava nervosamente umas lascas da ponta de uma prancha de pinheiro, jogava-as na água, e ouvia os gaviões de rabo vermelho gritando uns para os outros no céu. Às vezes, os pássaros mergulhavam entre as árvores e se refletiam rapidamente na água abaixo de seus pés. Puxou o lenço do bolso traseiro e enxugou o suor nos olhos, deixando um risco de terra e serragem na testa. Os gaviões ficam cegos nesses dias de canícula, diziam as pessoas. Mas seu pai dizia outra coisa: "Não existe nada que faça um pássaro ficar cego só porque é um dia de muito calor. Em agosto, eles expulsam os filhotes do ninho, só isso. Os pais voam como loucos, mergulham entre as árvores, tentando fugir dos filho­tes já grandes, que pedem comida por não querer caçar por si mesmos". Ele costumava dizer: "Examine com cuidado, se não parece verdade é por­que não é. Há sempre uma razão para o que as pessoas dizem, mas não é geralmente a que elas imaginam".

Diana não sabia que outro trabalho inventar para ela mesma aquele dia. Ou pelo menos, nenhum que lhe prendesse a atenção. Havia acabado a ponte. Recolheu e carregou montanha acima, até a cabana, quatro carri­nhos de lenha da madeira que sobrou. Arrancou ervas daninhas e recupe­rou o último trecho da trilha da montanha. Encontrou um casal de andarilhos no alto da montanha, dois jovens muito sujos, que pareciam adorar o mundo e um ao outro. Desviaram-se da Trilha dos Apalaches e chegaram até ali. Pretendiam percorrer a pé toda a região, nesse verão, do Maine à Geórgia, como revelaram animadamente a ela. Já haviam chega­do àquele ponto, gastando um par de botas cada um, e esperavam novos suprimentos da mãe de um dos dois, inclusive um novo par de botas, lá em baixo, em Damascus, onde a trilha terminava, antes de continuar rumo ao sul. Agradeceram efusivamente a Diana, impressionados com o estado das trilhas da Floresta Zabulon, como se tudo aquilo fosse feito exclusiva­mente para eles. O que respondia a uma das duas perguntas que ela se tinha feito em todo aquele verão. Ao ver o casal e suas roupas coloridas se afastarem, ela se perguntou como se sentiria quem tivesse uma mãe que deixava em provisão pacotes de suprimentos para quando as botas se acabassem. Ou andasse centenas de quilômetros, sempre sabendo até onde iria a trilha que percorria, e que distância ainda faltava percorrer.

Ele agora estava sentado na poltrona verde da varanda, lendo a tese. Nunca ficara tão nervosa desde o dia da defesa oral, quando a comissão a mandou esperar lá fora, enquanto decidiam seu destino.

Essa umidade tinha de acabar. Havia uma tempestade no ar, que tal­vez fosse o que tornara os gaviões ainda mais agitados. Não queria estar ali quando ela caísse. Em sua estada na montanha, ela fora surpreendida duas vezes por uma tempestade: a primeira, quando descobriu o abrigo dentro do tronco (quando ele ainda era só dela), e na segunda, ela se abri­gou junto ao tronco de um abeto no ponto mais baixo que ela conseguiu ficar. As duas situações foram muito mais perigosas do que ela se dispunha a admitir. Ele tinha razão a respeito dela e dos trovões. Não tinha medo de cobras, mas os trovões a paralisavam. Era injustificável, mas acontece que ela tinha medo. Desde menina, ela sempre teve medo de muito barulho. Não conseguia dar um tiro sem suar frio, nem mesmo quando atirava em latas vazias na cerca. Seu pai se sentava com ela nas noites de tempestade. Eddie fizera a mesma coisa, quase da mesma maneira, mesmo sem ela lhe ter pedido: massageava-lhe as costas, ela deitada de bruços com o traves­seiro sobre a cabeça, contando com ela o tempo entre o raio e o trovão. Trezentos e vinte metros por segundo.

Não fosse isso, pensou ela, seria fácil. Se não fosse pelas noites e madrugadas em que de repente ele ficava mais terno do que parecia possí­vel, considerando-se tudo. Considerado o que ele não entendia. O que ela poderia esperar dele agora, depois de ler o livro do seu saber e crenças. Mudar) Não. Raspar o cabelo em penitência? Não. Ficar? Ou sair porta afora? O que ela gostaria que ele fizesse?

Era essa a questão. Quando o corpo quer muito fazer uma coisa e a mente quer o oposto, qual dos dois era ela, a Diana?

Inclinou-se sobre a ponte para ver o próprio rosto refletido na água. A trança balançava sobre seu ombro, quase tocando a água, parecendo uma corda de sino. Puxe-me, pediu ela silenciosamente à moça na água. Decida por mim. Afaste de mim essa agitação, que eu nunca conheci na vida.

Naquela manha, ela chorou sem nenhuma razão. A floresta lhe pare­ceu pequena para tanta dor. Assustou uma corça manchada de branco, que fugiu da cama de folhas onde sua mãe a havia cuidadosamente escondido e disparou montanha abaixo. Diana se enrolou no lugar que a corça abando­nara e sentiu o calor do pequeno corpo nas folhas marrons. Aqui não havia perda, disse a si mesma: a corça ia berrar pela mãe e seria encontrada. Mas, de repente, ela se sentiu tão desesperada e cansada, uma causa tão absolutamente perdida, que se deitou no chão e encheu a boca de folhas.

Buum! O trovão lhe bateu como uma martelada na espinha, e a fez pôr-se de pé de um salto nas pranchas de madeira áspera da ponte. Ficou grata: pelo menos, alguém tomara uma decisão por ela. Quando o se­gundo bum chegou, e rolou pelo vale como uma onda que se quebrou na sua cabeça, seus pés já corriam na direção da montanha. Eles a levariam até a cabana antes da chegada dos raios. O que eu quero? O que eu quero) - perguntavam seus pés na trilha, perguntava o ritmo de sua respiração. Não saberia dizer o que queria, não seria capaz de dizer nada - nem olharia para ele, continuaria a se sentir presa junto com ele naquele lugar, como um predador e sua presa apertados dentro de uma caixa, esperando que alguém decidisse quem seria qual.

Ela já respirava com dificuldade ao avistar a cabana. Por que nos últi­mos dias ela estava ficando sem fôlego tão rápido? Seria mais um efeito da idade? Será que ela agora corria mais depressa do que antes? Através das árvores, ela via a fachada sul de sua casa, onde neste verão a madeira foi completamente coberta por uma trepadeira-da-virgínia. Não conseguira se decidir entre arrancar as gavinhas dos troncos ou deixá-las para proteger a madeira antiga do vento e da chuva, como se fosse uma pele verde e viva.

Subiu a estrada, aproximando-se por trás da casa. Sua mente corria à frente e de lado, mas estacou ao ver uma coisa estranha no lugar onde a empena do telhado se fundia com o tronco mais alto da parede. Já havia notado o buraco pequeno que ali havia, mas agora alguma coisa estava saindo; um arco escuro. Ela se aproximou lentamente, segurando a res­piração, olhos fixos naquele ponto.

Agora via exatamente o que era: o anjo da guarda residente da ca­bana durante esse verão, que controlava os ratos, o demônio que comia papa-moscas, o autor daquele barulho de lixa no telhado: sua cobra preta. Estava partindo. Diana plantou os pés e viu escorrer do pequeno furo do telhado a inacreditável extensão do bicho. Um fluxo líquido ondulado des­ceu pela parede de troncos tal como um fílete de melado que escorre de uma jarra. Quando quase todo o corpo já tinha saído, ela caiu na grama alta, que tremeu e voltou a parar. Então a cobra desapareceu. Para sempre. Sem mais aquela, logo hoje, por razões que ela nunca entenderia. Não sabia se adorava ou odiava aquela cobra, e isso não teve o menor efeito sobre sua partida. Refletiu sobre esse fato enquanto a via desaparecer, e sentiu uma coisa se mexer dentro de seu corpo - alívio, um alívio enorme e tranqüilo, como uma pilha de pedras que numa encosta, de repente, rola para um melhor ângulo de repouso.

Sentia ainda no peito as batidas daquela pergunta: O que eu quero. Não interessava qual seria a sua escolha. O mundo era o que era, um lugar com suas próprias regras de fome e saciedade. As criaturas viviam e se acasalavam e morriam, vinham e partiam, tal como o verão. E conti­nuariam seu caminho, seguiriam seu próprio destino.

 

Jarnett estava decidido. Ia entrar no assunto das telhas com ela. E ia ser hoje. Nada o demoveria dessa vez: ela poderia ser rude, chocante, insultante; não importava, ele iria lhe dar as telhas. Era um cristão que se aproximava dos 80, e ninguém sabia quando um sujeito com essa idade ia emborcar. Já havia acontecido com homens mais jovens, e ia acontecer com Garnett Walker, com aquelas telhas mofando na sua garagem e o pecado do despeito manchando sua alma como um borrão de tinta.

Talvez até se lembrasse de agradecer a torta.

Ao cruzar o terreno em direção ao portão, ele parou para observar uma fitolaca que nascera na vala ao lado da entrada, fora do alcance do cortador de grama. Já pensara em descer até lá e acabar com ela de qual­quer jeito, mas de alguma maneira aquela planta conseguia driblar suas boas intenções e se tornara um monstro. Já era uma árvore com quase três metros de altura, balançando as folhas grandes e lisas e os cachos de frutinhas verdes - atingira essa altura toda em apenas quatro meses, pois a fitolaca morria congelada com o frio do inverno. Parou com as mãos nos quadris e examinou o tronco roxo. Odiava toda e qualquer planta daninha, mas não conseguia deixar de admirar essa por sua energia. Seus olhos percorreram a fileira de árvores que se erguiam na cerca: massas gigantes de folhas, que lembravam nuvens de tempestade, e de repente ele ficou assombra­do. Um homem poderia passar a vida toda sob essas coisas sem atentar para o tamanho que elas tinham. Garnett perdera gradualmente a capaci­dade de identificar folha por folha, mas ainda era capaz de reconhecer qual­quer uma delas pela forma: as colunas dos choupos cobertas de ondas; a amplitude lateral do carvalho; a postura imponente da castanheira; o treme-lico efeminado das cerejeiras. As pequenas alfarrobeiras rendadas, quase marrons nesse final de verão, e a catalpa junto ao mourão da quina da cerca vestia uma cor verde-pálido que se podia ver numa encosta a mais de um quilômetro de distância, ou até mais, quando ela balançava as longas va­gens que levavam as pessoas a lhe dar o nome de "árvore de feijão". A ericácea exibia flores brancas na primavera na forma de mãos esqueléticas. Arvores. Debaixo de chuva, cada uma delas assumia um brilho diferente, sua cor particular no outono, tinha seu aspecto próprio - algo que não se descreve em palavras, mas quem vive no meio delas guarda de cor. Garnett teve um pensamento estranho e triste a respeito da maneira especial com que sua mente via as árvores, e como tudo ficaria escuro, como se uma televisão fosse desligada, no momento de sua morte.

Mas o que ele estava fazendo aqui, na entrada de casa, olhando para as árvores e pensando na morte? Começou a voltar para casa, mas atentou para as formas redondas das macieiras, regularmente espaçadas além da cerca, e soube então que era aquilo. Sua missão era Nannie Rawley e as telhas. Pensou em ir até a garagem para verificar o estado delas, para ter certeza de que estavam em condições de serem oferecidas. Mas achou que isso não passava de uma tentativa de adiar o inevitável. Levante-se e vá, meu jovem, censurou-se e obedeceu.

Encontrou-a no fundo da casa, onde tinha certeza de que ela estaria. Já a tinha visto naquela manhã a carregar uma peça de alfarrobeira para lá. Ficara até um pouco curioso com relação ao que ela estava fazendo, apesar de saber bem que a curiosidade matou o gato, sem nem precisar da ajuda de Nannie Rawley.

Ela o saudou alegremente quando o viu chegar.

- Mr. Walker! Como vai a sua VPB?

Sua o quê? Será que ela estava interessada na roupa de baixo dele?

- Muito bem - respondeu, sem se comprometer.

- Nenhum acesso de tonteira? Que bom!

- Ah, isso - disse ele.

E a lembrança das mãos dela, firmes e ternas, segurando sua cabeça, inje­tou adrenalina no seu velho corpo. Sonhara com ela; um sonho tão real, que ele acordou mergulhado numa condição que não experimentava há muitos anos. Ruborizou-se ao se lembrar. Quase enfiou o rabo entre as pernas e fugiu.

- O senhor está bem?

- Muito melhor, obrigado - respondeu ele, recuperando a compos­tura -, ainda não estou acostumado. Estava tão acostumado com os aces­sos, que estou demorando a me acostumar a não ter mais tonteiras.

- E a idade, não é? Se um dia eu me levantar sem dor nos joelhos, acho que nem vou conseguir andar.

Ele a contemplou distraidamente. Ela estava com pouca roupa. Já tinha observado, quando a viu arrastando a alfarrobeira. Apenas uma blusa amarela, sem mangas, e short. Short, uma mulher daquela idade. Estava quen­te, mas não tanto para levar uma pessoa a se expor de modo tão indecente.

- Rezei muitas vezes por causa daquela tonteira - confessou a ela -, durante anos e anos.

- Deus escreve certo por linhas tortas - respondeu ela. Provavelmente, ela falou por falar. E logo emendaria, dizendo ser

uma resposta às orações de Garnett.

- Eu mesmo já descobri que raramente minhas orações não são atendidas - disse ele, um pouco mais arrogante do que gostaria; - em agosto, quando estava tão seco que muita gente estava a ponto de perder o tabaco, eu me ajoelhei e pedi chuva, Miss Rawley. E saiba a senhora que choveu na manhã seguinte.

Ela lhe lançou um olhar estranho.

- Um pouco antes de o senhor chegar, eu tive um acesso de espirros. Acho que foram os meus espirros que trouxeram o senhor até aqui.

- Que coisa mais estranha de se dizer, Miss Rawley.

- Não é mesmo? - disse ela, retomando o martelo.

- Vejo que a senhora não faz muita fé em milagres.

- Não tenho condições de acreditar em milagres - disse ela, sem se voltar.

Parecia levemente irritada, ou talvez apenas triste. Estava construin­do alguma coisa com a alfarrobeira que tinha arrastado. Ela a tinha apoiado num cavalete, aqui na porta da garagem, e estava pregando nela uma outra peça, fazendo uma cruz. Meu Deus, parecia a cruz que os romanos usaram para crucificar Jesus Cristo. Ele não iria perguntar - estava decidido. Segun­da promessa do dia; melhor tratar logo da primeira.

Limpou a garganta e disse, sem mais aquela.

- a senhora sabe que tem uma fitolaca de três metros na entrada da minha casa. Nunca vi outra igual.

Ela parou com o martelo no ar, voltou-se, e fixou bem o olhar nele:

- E é para me contar isso que o senhor veio até aqui?

- Não. Isso não tem importância.

- Ora, é importante sim: uma fitolaca de mais de três metros. Se alguém desse um prêmio pela maior erva daninha na feira do condado, o senhor certamente seria premiado. Inacreditável: Garnett Sheldon Walker Terceiro: primeiro prêmio na categoria "erva daninha anual".

O bom humor usual havia retornado à voz dela, e ele teve de sorrir. A fitolaca é uma erva perene, não anual, disso ele tinha certeza, mas não quis corrigi-la.

- Se eu tivesse pensado nisso - disse ele com uma seriedade fingida - ia aplicar nitrato de amônia. Aí eu ia concorrer com uma de quatro metros.

Ela descansou o martelo e pareceu relaxar. A calça, como qualquer um poderia ver, era uma calça velha, cortada com tesoura. Que coisa absurda.

- Sabe o que eu realmente admiro nesta época do ano? - perguntou ela.

- Não, Miss Rawley.

- Amoras. Pode rir, pois todo mundo ri de mim. Sei que são irritan­tes; mas também são impressionantes.

- Acho que são as plantas que crescem mais rápido deste lado da China.

- São sim! Brotam da terra, e lá pelo meio de junho estão com mais de dois metros. Então a ponta começa a se curvar para o chão, e em agosto já formaram um arco tão grande, que se pode passar debaixo dele. O senhor já viu?

- Vi sim. Reparei bem no tanto que as amoreiras crescem. Já passei por baixo de uma porção de arcos que tinham mais de dois metros de altura.

- Pois é. Não estou defendendo as amoras. Se eu não tiver cuidado, elas tomam conta do meu pomar. Mas às vezes, no inverno, eu paro e olho aqueles arcos estrada afora, e parece que um estofador pega uma agulha e todo ano costura um grande arco nos caminhos do condado de Zabulon. Ou a gente as ama ou as odeia, mas nada as detém.

Olhou de lado para ele. Como uma mãe severa.

- O senhor há de concordar: é com amoras que se faz a melhor torta que existe.

Ele ficou rubro.

- Há muito tempo que eu queria falar daquela torta. Muito obrigado. Short, numa mulher daquela idade. Poderiam ser as pernas de uma mulher

bem mais nova. Nada do que se poderia esperar das pernas de uma unitarista.

- De nada. Antes tarde do que nunca. Se essa nova tendência con­tinuar, talvez eu faça mais uma para o senhor no ano que vem.

Ele a observou com atenção e longamente, perguntando a si mes­mo, com toda a franqueza, se os dois ainda estariam por aqui no ano que vem. Depois de certa idade, a gente é forçado a pensar assim.

- Miss Rawley, acho que nunca vi uma mulher da sua idade usando short. Ela olhou para os joelhos - que talvez fossem brancos e ossudos

demais. Mas ninguém era obrigado a olhar. Ela o contemplou com um sorriso de moça.

- Estava quente, senhor Garnett. Quem me inspirou foi o rapaz da UPS. Ele dirige aquele caminhão só com um calção de banho. Imaginei que, se isso é legal, então uma pobre velha tem o direito de pegar uma tesoura e cortar umas calças caqui velhas.

Garnett balançou a cabeça.

- a dignidade é a última responsabilidade dos velhos.

- Bobagem. A última responsabilidade dos velhos é a morte.

- Não tome liberdades comigo. Nem espere que eu ande por aí só de short.

- Seria mais fácil um porco voar, senhor Garnett.

- a senhora está me chamando de porco?

- O senhor está dizendo que eu sou indecente?

- Se a carapuça servir - respondeu ele secamente.

- Seu hipócrita chato. Há umas duas carapuças que o senhor pode­ria experimentar.

Então era assim. Eles agora se insultavam como dois meninos de escola. Ele respirou profundamente.

- Acho que vou embora.

- Não vai, não - disse ela com firmeza, encarando-o com um olhar amea­çador -, diga o que há de errado em mim. Desembuche. O senhor sempre me tratou mal em todos esses anos. O que o senhor tem contra mim?

Ela ficou à frente dele, destemida, desafíando-o, obrigando-o a dizer a verdade. Garnett pensou um pouco e suspirou. Com profunda tristeza, com­preendeu que ele nunca lhe dera a resposta porque ele mesmo não sabia.

- a senhora não age de acordo com a sua idade - disse sem convicção. Ela ficou parada, boca ligeiramente aberta, como se as palavras estives­sem presas entre sua mente e o mundo em volta. Finalmente, elas saíram.

- Não existe uma maneira normal de agir aos setenta e cinco anos. Sabe por quê?

Ele não ousou responder. Será que ela tinha mesmo 75 anos?

- Pois eu vou lhe dizer. Considerando tudo - toda a história das coisas - as pessoas deviam estar mortas e enterradas na nossa idade. Isso seria o normal. Até pouco tempo atrás, na época da Guerra Civil, ou mais ou menos por aí, ninguém sabia o que eram os micróbios. Quem adoecia sofria algumas sangrias e alguém tirava as medidas para fazer logo o caixão. Pouca gente chegava aos cinqüenta. Não é verdade?

- Acho que é.

- E é. Mamãe e papai mantiveram a dignidade trabalhando até o último dia, e então pegaram uma gripe forte e morreram, com a maioria das peças ainda funcionando bem. Mas aí alguém inventou seis mil for­mas de curar tudo, e aqui estamos nós, velhos, sem saber o que fazer de nós mesmos. O homem não foi feito para ser velho. Minha teoria é essa.

Ele não sabia o que responder.

- É uma de suas teorias.

- Pois pense nisso. A função materna das mulheres se evapora, os homens perdem o cabelo - somos um peso para a nossa espécie. Falo do ponto de vista exclusivamente biológico. O senhor manteria uma casta-nheira no seu projeto se ela não desse mais sementes?

- Não me considero obsoleto.

- Claro que não. O senhor é homem! Os homens mostram a careca para o mundo enquanto mantêm o pinto preso no terreiro, mas se recu­sam a admitir que são madeira morta. Então por que eu deveria admitir? Que lei me obriga a me cobrir por ter vergonha de ter um corpo velho? E um truque sujo dos tempos modernos, mas aqui estamos, eu com meus joelhos tortos e minhas idéias velhas, e o senhor com o que quer que o senhor tenha aí em baixo, se é que ainda não caiu. Ainda somos huma­nos. Por que não relaxar e simplesmente viver até morrer?

Garnett sentia tanto calor sob o colarinho que mal conseguia respirar. Nunca tinha dito obscenidades na frente de uma senhora, pelo menos nunca depois do primário, mas dessa vez ele quase não se conteve. Era ela quem estava pedindo. Nannie Rawley precisava é de uma vara de marmelo. Se os dois fossem 65 anos mais novos, ele a poria de braços em cima dos joelhos. Garnett soltou uma imprecaçao silenciosa e se virou. Foi-se embora sem uma palavra. Para uma ocasião como essa, não existem palavras adequadas.

Uma hora e 10 minutos depois, Garnett voltou ao quintal de Nannie trazendo uma telha de asfalto na mão. Ela estava levando um cesto de maçãs para o caminhão, preparando-se para a feira amish da manhã se­guinte, e ficou tão espantada ao ver Garnett Walker, que tropeçou e qua­se deixou cair o cesto.

Ele lhe mostrou a telha, com aquele perfil peculiar em forma de coração, igual ao das telhas do telhado dela, e então atirou-a a seus pés. E ficou lá, ao lado de uma poça, a coisa de que ela necessitava, como um presente de namorado. Uma multidão de borboletas se levantou da poça num aplauso trêmulo.

- Tenho umas duzentas iguais na minha garagem. São todas suas. Ela olhou para a telha e para Garnett Walker, e depois fez o percur­so inverso.

- Deus todo-poderoso! Um milagre.

 

Já era quase meio-dia de domingo quando Jewel chegou para buscar os filhos. Lusa estava colhendo ervilhas na horta e a viu chegar, entrando devagar no quintal.

- Meu bem, hoje é o dia de repouso do Senhor - gritou Jewel ao chegar ao portão - não é dia de trabalhar tanto.

- E o que é que Deus estava pensando quando criou as ervilhas e o mês de agosto? - respondeu Lusa, imaginando que a cunhada não a esta­va censurando de verdade pelo sacrilégio.

Jewel estava pálida e ictérica, e usava um xale azul que alguém havia tricotado para ela. Nunca usava peruca, apenas xales e chapéus.

- Passe pelo portão dos coelhos. Basta soltar um arame no alto. Jewel mexeu no arame e entrou.

- Meu Deus, como está bonito.

Lusa estava agachada sobre os calcanhares. As pimentas vermelhas e amarelas brilhavam como jóias na folhagem escura e as berinjelas escuras e brilhantes tinham um ar imponente de presentes caros. Até as cebolas soltavam globos de flores rosados. Durante toda a infância, ano após ano, ela ia plantando sementes em vasinhos no pátio, sonhando com tudo isso.

- Você deve ser escrava deste jardim.

- Quase. Veja.

Ela fez um gesto para mostrar a longa fileira de ervilhas a colher.

- Já fiz quarenta vidros de conserva de ervilha, e ainda faltam dois canteiros.

- Mas você vai gostar. Espere até fevereiro.

- É verdade. Contando isto e minhas galinhas, talvez eu possa che­gar até o próximo verão sem ir ao Kroger's. Já tenho tomates de reserva, molho de espaguete - quase vinte quartos - e estou congelando brócolis, couve-flor e outras coisas. Toneladas de milho. Seus filhos comeram o próprio peso em milho, ontem à noite.

Jewel sorriu.

- E verdade. Lowell gosta de milho assado, e ainda é exigente. Mas não comeram muitos brócolis, comeram?

- Não.

- Pode deixar as ervilhas de lado agora - disse Jewel -, se você já tem quarenta quartos, pode parar a colheita e dizer: "Para mim, chega". Não é ilegal.

- Bem que eu podia, mas foi o Cole que plantou essas ervilhas. Plantou a maior parte. Você se lembra de como fez calor em maio? Te­nho a sensação de que enquanto eu continuar fazendo essa colheita é como se ele ainda estivesse me dando presentes. Não quero nem pensar no outono, quando vou ter de replantar tudo.

Jewel balançou a cabeça.

- Mas é também o seu trabalho. Juro, está lindo. Parece uma horta de mulher. Não se parece com as hortas de outras pessoas.

Lusa pensou, mas não disse, que isso era por ser ela estrangeira. Plan­tava coisas diferentes: acelga suíça de cinco cores em lugar do repolho, e vários canteiros de alfafa para serem usados secos no falafel. Plantava qua­tro tipos diferentes de berinjelas, inclusive a listrada de rosa e branco, a Rosa Bianca, que usava nos seus maravilhosos imam bayildi e babaganuj.

Jewel estava examinando os tomateiros, esfregando as folhas fortes entre os dedos.

- O que você usa para matar pragas? Pó de Sevin?

- Não. Esse pó mata muitos amigos meus.

Jewel olhou para ela com uma expressão horrorizada, e Lusa riu.

- Os insetos. Sei que vocês todos riem, mas gosto muito de insetos; eu não seria capaz de usar um pesticida geral, como o Sevin. Uso outras coisas. Nos tomateiros, eu uso BT.

-B ...T?

- É um micróbio. Bacülus thuringensis. Uma bactéria que provoca indigestão nas larvas que comem meus tomates, mas não fazem mal às abelhas nem às joaninhas.

- Você está mangando de mim?

- Não. Bem, indigestões muito fortes; eles morrem. Também fun­ciona com as pragas do repolho. Pegue aquela cesta na cerca e leve alguns tomates para você e os meninos.

- Não consigo comer tomates; meu estômago não aceita nada áci­do, acho que é da quimioterapia. Não consigo nem tomar suco de laran­ja. Mas vou apanhar alguns bem maduros para você, e não ficar aqui à toa. Mais uma coisa para você preparar.

- Já parei de fazer conservas de tomate. Agora eu corto em fatias e tempero com manjericão e azeite para comer de manhã.

- Droga. Pisei nos seus cravos.

- Não tem importância. Estão aí só para manter os nematóides longe das raízes dos tomateiros.

- Mas essa é ótima. Uma senhora coincidência. Nos últimos anos, o Cole estava muito interessado nisso: como matar as coisas sem usar ve­neno. Foi estudar isso na Universidade do Kentucky.

- Foi lá que nos conhecemos - disse Lusa, baixando os olhos -, fui professora dele.

- Ai - gritou Jewel, como se tivesse sido picada por uma abelha. Seria ciúme? Em geral, ela não era ciumenta; pelo menos, não tanto

quanto as irmãs, apesar de ter sido a melhor amiga de Cole. Mas só ela se dispusera a dividi-lo. Lusa se curvou junto das ervilhas para proteger os olhos do sol à medida que se aproximava do final do canteiro. Arrastava-se nos joelhos e arrastava uma sacola de papel quase cheia.

- Você nem vai acreditar; seus dois filhos me ajudaram a caçar e matar bichinhos da ervilha. Disse que pagaria a eles um centavo por cabe­ça, e você acredita que eles não perderam a conta? Vão ricos para casa hoje. Se tiver alguma conta atrasada, fale com Crys e Lowell.

Ergueu os olhos.

- Jewel... Jewel!

Lusa correu os olhos por cima dos tomateiros altos, procurando a cabeça de Jewel, mas não a viu. Levantou-se e percorreu a horta em pâni­co, olhando entre os canteiros. E lá estava Jewel, deitada no chão, agarran­do os joelhos e se balançando com o rosto transfigurado pela dor e uma cesta de tomates caída ao lado. Lusa correu, e passou os dois braços em torno dela para segurá-la.

- Oh, meu Deus - disse ela várias vezes -, o que vou fazer? Não sou boa em emergências.

Jewel abriu os olhos.

- Não é uma emergência. Só preciso chegar em casa. Acho que exagerei hoje. Tem uns comprimidos na minha bolsa.

Deixando as ervilhas e tomates espalhados no chão, e a porteira dos coe­lhos escancarada, as duas pequenas mulheres desceram a colina e atravessa­ram o quintal até chegar em casa. Ao subirem os degraus, Lusa estava praticamente carregando Jewel. Nos últimos tempos, ela havia adquirido muita força: quase todo dia fazia alguma coisa que antes pedia ao Cole para fazer, e se espantava ao ver no espelho uns músculos rijos onde antes havia curvas suaves. Mas era a primeira vez que carregava uma pessoa escada acima.

Pararam no vestíbulo e ouviram os meninos. Lowel e Crys estavam na sala com uma pilha de jogos que Lusa havia tirado de um armário. Os preferidos eram o monopólio e o tabuleiro de Ouija*, que eles pronun­ciavam "au-djei".

- Onde estão seus comprimidos?

- Droga! Deixei a bolsa no carro.

- Então vamos para o sofá da sala. Depois eu vou buscá-los. Jewel implorou com os olhos.

- Será que a gente podia ir para cima? Não quero que os meninos me vejam assim.

- Claro.

Lusa se sentiu imbecil por não ter pensado. Jewel agarrou o corrimão com tanta força que sua mão ficou branca, e Lusa a carregou também ao subirem esses degraus. Guiou Jewel até o quarto, e resolveu esquecer que a cama não havia sido feita e que suas roupas estavam espalhadas pelo chão.

- Agora sente-se, que eu já volto.

Desceu correndo até o carro e tornou a voltar correndo; só parou um pouco para ver se as crianças estavam ocupadas. Estavam discutindo algu­ma coisa sobre o "monopólio", e portanto não notaram nada. Mantendo a voz calma, pediu aos dois para irem fechar a porteira dos coelhos e depois catar os ovos, o que Lowell adorava fazer, desde que sua irmã o protegesse contra o galo. Depois voltou correndo para o quarto, parando no banheiro para pegar um copo d'água. Quando chegou ao quarto, encontrou Jewel sentada na poltrona de brocado verde junto à janela, a poltrona de leitura de Lusa. Passava o dedo sobre o desenho em relevo do tecido verde, como se lesse alguma coisa em braille. Lusa lhe deu a água e se sentou no chão aos seus pés para abrir a tampa à prova de crianças.

Quando finalmente abriu o frasco, Jewel engoliu as pílulas e bebeu a água toda, obediente como uma menina. Devolveu o copo e continuou a passar a mão pelo braço da poltrona com um ar pensativo.

- a gente tinha duas iguais. Um par. As cadeiras da sala de visita da mamãe, até ficarem velhas. A Lois deixou cair uma coisa numa delas. Não, ela cortou a perna com um canivete e perdeu muito sangue. Meu Deus, ela se estrepou.

- Por ter cortado a perna?

- Não, por ter cortado a perna na poltrona. Ela estava esculpindo a Marilyn Monroe no sabão! a gente não podia ficar na sala; era só das visitas. Foi uma confusão enorme. Mamãe teve um ataque. Não teve jeito de limpar aquilo. Teve de jogar fora! Meu Deus, nem sei aonde ela foi parar.

 

* Tabuleiro com letras usado para receber mensagens telepáticas ou do além. (NT)

 

- Talvez no celeiro, junto com tudo o que existe no mundo -Sabe que eu encontrei um pedaço de piano lá?

- Não - disse Jewel placidamente, fixando o papel de parede sobre a cama -, ela deixou a poltrona na beira da estrada. A gente fazia assim naquele tempo, quando a gente era criança. Sempre aparecia alguém que vivia pior que a gente e não se importava de pôr um lençol em cima. da poltrona, e levava. Está em algum lugar por aí. Alguém está usando os olhos dela focalizaram o rosto de Lusa e desceram sobre ele como duas borboletas.

- Não é engraçado que a gente nunca sabe como as coisas vão acabar? Eu tenho raiva de não ter chance de ficar velha. Maldição. Eu queria ver a cara da Lois de cabelo branco.

- Acho que ninguém jamais vai ver isso. Não enquanto Lady Clairol continuar à venda.

Jewel soltou um risinho fraco, mas Lusa se sentiu mal por ter tentado escapar desse momento sombrio e importante com uma piada. Ela mes­ma já sofrerá muito com as evasivas das pessoas em relação à morte, e aqui, com Jewel, ela não tinha idéia do que dizer. Conseguiu dizer apenas:

- Nunca se sabe, Jewel. Você poderia sobreviver a todos nós. Jewel balançou a cabeça, com os olhos fixos em Lusa.

- Não vou chegar a ver o próximo verão. Vou morrer antes que você acabe com todos os enlatados da sua despensa.

- Que pena - sussurrou Lusa.

Tomou as duas mãos de Jewel nas suas, e nada falou durante vários minutos. Uma ou outra sílaba dos gritos dos meninos entrava pela janela. A certa altura, aquela posição ficou difícil para Lusa, e ela teve de soltar os dedos da cunhada, acariciando-os ao fazê-lo. Tornou a olhar para o rosto de Jewel, que agora parecia vazio. Dentro de casa, o chapéu parecia triste e pouco digno, parecia zombar de sua tristeza, mas Jewel fizera questão absoluta de não gastar dinheiro com uma peruca. Lusa se perguntou se isso significava a esperança de que o cabelo voltasse a crescer, ou real<sm0> o reconhecimento de que não haveria muito tempo. Agora, ela sabia- Jewel, quero lhe perguntar uma coisa. Uma coisa em que venho pensando muito. Não precisa responder agora; pode pensar com cuidado. Ou, quem sabe, dizer não; e também está ótimo. Mas eu tenho de perguntar.

- Então pergunte.

Lusa sentiu o coração bater. Tinha pensado em fazer essa pergunta numa situação mais normal, enquanto ela e Jewel estivessem fazendo alguma coisa na cozinha. Não pensara que já era tarde demais para a normalidade. E isso não era normal.

- O que é?

Jewel parecia perturbada pela pausa.

- Pensei se, quando chegasse a hora, se chegasse a hora ... Lusa sentiu o rosto se esquentar.

- Perdoe se isso lhe parecer inconveniente, mas queria saber o que você acha da idéia de eu adotar o Lowell e a Crys.

- Tomar conta deles, ou adotar eles?

- Adotar.

Com uma surpreendente tranqüilidade, Jewel fitou o rosto de Lusa. Pelo menos não parecia ter raiva, como Lusa temia.

- Não precisamos discutir isso agora, se você não quiser - disse Lusa -, não consigo imaginar nada mais difícil para se pensar.

- E você acha que eu não penso nisso o tempo todo? - disse Jewel, numa voz sem expressão, que assustou Lusa.

- Acho que pensa. Eu pensaria. É por isso que levantei isso agora.

- Bem, isso não é obrigação sua: eu tenho quatro irmãs.

Lusa olhou para o chão, para os joelhos calejados e as coxas riscadas de terra abaixo da bainha do short, e então tomou a mão de Jewel sem olhar para ela.

- Você tem cinco irmãs, e eu sou a única sem filhos. Ergueu os olhos para Jewel, que ouvia com atenção.

- Mas a razão não é essa. Não é uma boa razão. Amo a Crys e amo o Lowell. Não sei se seria uma ótima mãe, mas acho que vou aprender com os dois. O Lowell é fácil, é um ladrão de corações, e a Crys... A Crys e eu somos como duas ervilhas numa vagem.

- Você iria ter muita ajuda do pessoal lá de baixo - disse Jewel de modo dúbio.

- Até demais - concordou Lusa, encorajada pelo uso do condicional. Ela não tinha dito não.

- Mais do que se pode dispensar. Mas, para ser franca, não acho que se pode permitir que a Lois e uma vara cheguem sequer perto daqueles dois. Pelo menos enquanto não forem mais velhos.

- Nem quando forem mais velhos - repetiu Jewel, fechando os olhos e recostando a cabeça na poltrona verde -; você já imaginou a Crys no baile de formatura?

- Acredite ou não, já imaginei. Talvez ela vá de smoking. Ela agar­rou o mundo pelo rabo; precisa de ajuda para decidir o que fazer com ele. Ela vai precisar de uma mente aberta. Quando penso nessa família, acho que o melhor candidato sou eu mesma.

Jewel abriu os olhos e fitou Lusa com uma expressão diferente.

- Eu tenho de fazer o pai deles assinar uns papéis antes de poder decidir o que fazer. Estou pensando nisso desde que fiquei doente. Pedi ao meu advogado para preparar os papéis.

- Para quê? a fim de liberá-los para adoção?

- Para passar a guarda dos dois para mim. Ele nem sabe que eu estou doente. Ninguém sabe o que ele pode fazer. Acho que ele não vem buscar os dois, mas com ele, nunca se sabe. Com o Shel, a única coisa que a gente tem certeza é que nunca se sabe. Ele podia pensar que queria os filhos, durante uma semana ou duas, e depois botar os dois para fora, na beira da estrada, como dois gatinhos, quando descobrisse que eles têm de comer e cagar.

Tornou a fechar os olhos e teve um tremor. Lusa acariciou as costas de suas mãos até o tremor passar. Tentou imaginar o que aquele monstro invisível estaria fazendo lá dentro, que partes dela já seriam dele. Lem­brou-se de uma história que seu zeida lhe contava sobre o monstro que todo mês comia a lua e depois a cuspia aos poucos. Sentia o calor e a ira do monstro através da pele fina.

- Então eu vou mandar os papéis para o Shel - disse Jewel após uns instantes - e resolver essa questão. Vou mandar hoje. Já adiei muito.

- E ninguém pode culpar você - disse Lusa.

E então elas continuaram sentadas quando o relógio do vestíbulo ba­teu a meia hora. Lusa imaginou várias perguntas em silêncio, mas esperou até Jewel abrir os olhos. Não se podia ser ansioso demais com essa ques­tão. Tentou falar devagar.

- Mas você sabe onde ele está? Ou se ele vai assinar os documentos?

- Ah, sei sim. Sei onde ele está. Ele muda muito, mas o estado penho-rou os salários dele. Eu tive de ir ao tribunal depois que ele foi embora. Todo empregador que faz um cheque para ele tem de descontar trezentos dólares por mês e mandar para mim. E assim que eu sempre sei onde ele está.

- Puxa - disse Lusa. Não conseguia imaginar Jewel num tribunal a enfrentar tudo sozinha. Imaginou o falatório. E havia gente no condado que por causa disso fugia de Jewel como o diabo da cruz.

- E é por isso que ele vai assinar, desistindo da guarda dos meninos: para parar de pagar. Acho que ele assina sem pensar. Mas por acaso você está querendo que ele pare?

Lusa notou que Jewel franziu o cenho, tentando seguir os rumos que essa conversa havia tomado.

- Você quer saber se eu ficaria com os meninos e sem o dinheiro? Pensou na pergunta por menos de 10 segundos.

- É o mais garantido. Legalmente. Acho que é o melhor. Porque assim eu poderia pôr os nomes dos dois na escritura da fazenda. Para ela ficar para eles, depois de mim.

Sentiu um movimento estranho no ar, uma leveza que surgiu à sua volta. Quando teve coragem de levantar os olhos para Jewel outra vez, ficou surpresa ao ver o rosto da cunhada brilhando com as lágrimas.

- É o que me parece correto - explicou ela, meio sem jeito -, quero acrescentar Widener aos nomes deles, se você concordar. Vou acrescentar ao meu também.

- Mas não é preciso. Nós já superamos esse problema. Jewel limpou as lágrimas com a mão. Estava sorrindo.

- Mas eu quero. Decidi há pouco tempo. Enquanto eu viver neste lugar, vou ser a "Miz" Widener: então, para que brigar?

Lusa sorriu:

- Além disso eu me casei com um pedaço de terra chamado Widener.

Levantou-se e se sentou no braço da poltrona verde; assim, pôde colo­car gentilmente os braços nos ombros de Jewel. Pela janela, as duas olharam para o quintal e para o campo de feno atrás dele, através do qual Lusa havia recebido o testamento do marido. Hoje, seus olhos foram atraídos para a amoreira que ficava na lateral do terreiro, carregada de frutas maduras, que Lowell chamara de cerejas compridas quando as descobriu e se empanturrou com elas, manchando os dentes de roxo. Nessa altura do verão, a amoreira se tornou a maior atração do terreiro para tudo o que fosse vivo num raio de muitos quilômetros. Lusa percebeu que ela era a árvore da vida que seus ancestrais persistentemente teciam nos tapetes e mantas, apesar de todo o sofrimento e das perdas: a árvore dos pássaros. Pode-se perder uma árvore específica que se possuiu ou se amou, mas os pássaros sempre voltam. Iden­tificava nos galhos as cores de cada um: tordos, tentilhões, cardeais, papafigos, e até pintassilgos. Estes eram comedores de sementes, e ela não sabia o que faziam ali; talvez aproveitando a companhia, tal como algumas pessoas que vão para um parque só para partilhar de um sentimento de alegria e vida.

- Vou ter de perguntar às minhas irmãs. E num impulso, disse, emendando:

- As outras irmãs.

- Claro. Não tenha pressa nem se sinta pressionada. Deus é teste­munha de que não quero ofender ninguém. Se é que imaginam que eu esteja em condições de ofendê-las.

- Mas você está.

- Não sei. Nunca consegui saber o meu lugar no retrato dessa família.

- Você nem faz idéia, meu bem. É muito melhor do que você pensa. Jewel comprimiu os lábios, pensativa; depois completou:

- Elas vão fingir que ficaram ofendidas porque é o jeito delas. Mas logo que a gente sair e fechar a porta, elas vão agradecer a Deus. Todas nós somos gratas ao Senhor.

 

Pelo resto da vida, e talvez na próxima, Diana se lembraria desse dia. Um frio repentino havia deixado no ar uma premonição do outono, uma qualidade estimulante que ela sentia na pele e em todos os seus sentidos, agora mais aguçados: sentia o perfume e o gosto da mudança, era mes­mo capaz de ouvi-la. Os pássaros haviam se calado, a celebração baru­lhenta do verão se abafara, de uma só vez, pela força de uma frente fria e pela necessidade que surgia no peito de se recolher e esperar a hora pró­xima, em que se juntariam à grande assembléia migratória. Diana estava no seu lugar favorito no rochedo, sentindo a mesma emoção no peito, uma sensação de obra terminada e uma vontade de voar. Subira até uma rocha coberta de liquens 15 metros acima do mirante onde a trilha ter­minava. Dali ela via tudo: o vale de sua infância e as montanhas atrás dele. Se se levantasse e abrisse os braços, talvez saísse voando para além de tudo o que havia conhecido; para um novo território.

Nos ramos às suas costas, ouviu uma reunião social de amigos que se saudavam com seu canto de inverno: tchica di-di-di. Chapins, âncoras fa­miliares. Diana não sairia voando hoje; essa emoção era só uma coisa que havia sobrado de sua infância: quando uma mudança repentina do clima indicava tempo das maçãs, a hora de caçar mamões na mata da Nannie. No intervalo entre o dia de ontem e o de hoje, o ar deixara de ser úmido e passara a seco. A trepadeira-da-virgínia na cabana começou a mudar de repente; nessa manhã, ela vira as primeiras folhas vermelhas: o suficiente para fazê-la parar e anotar. Esse era, seria sempre, o dia em que ela soube. O dia em que ela sairia do reino de fantasmas que habitara durante toda a sua vida, para se dedicar para sempre aos vivos. Na trilha até esse mirante, ela dera pouca atenção à tristeza das coisas perdidas que se moviam entre as folhas nos limites de sua vista, pequenos lobos nas sombras e periquitos de asas brilhantes que saltavam animados entre os carrapichos intocados. Essas criaturas despossuídas estavam a seu lado, e sempre estariam, mas hoje ela havia notado uma única frutinha vermelha entre tantas verdes que cobriam as linderas. Sinal maravilhoso e significativo, assentado como um divisor entre uma época de sua vida e a seguinte. Se o verão tinha de terminar em algum lugar, por que não na lindeira ao lado da trilha?

Puxou do bolso um espelhinho - o espelhinho que ele usava para se barbear - e examinou o rosto. Com as pontas dos dedos da mão esquerda, ela tocou a pele manchada e ligeiramente mais escura abaixo dos olhos. Parecia a máscara de um guaxinim, mais sutil, que se espalhava da ponta do nariz até as maçãs do rosto. O resto do rosto era o mesmo de que ela se lembrava, inalterado, senão intocado. Os seios estavam mais pesados; sentia a mudança internamente. Voltou o rosto para o sol e desabotoou a blusa, colocando as mãos dele, como dedos fantasmas, onde agora estava a sua. O toque dele seria um manto que ela poderia vestir e tirar por força da memória. Aqui, nessa rocha ao sol, ela o deixou entrar como água: a lembrança dessa manha, seus olhos nos dela, o movimento igual ao da maré que empurra o mar até a areia de sua única praia. A alegria de seu corpo estava agora mais escura por saber que qualquer conversa, beijo, aventura confortadora de pele contra pele poderiam ser os últimos. Cada imagem estava imóvel ao lado da própria sombra. Até mesmo o calor do corpo dele dormindo ao lado dela era como um calor escuro que ela tocava com os dedos, e essa lembrança contrapunha-se com a do tempo em que aquele espaço era frio.

Quinze metros abaixo estava o mirante onde ela quase perdeu a vida numa queda, dois anos antes, e depois, em maio, quando caiu mais uma vez. "Minha doçura", dissera ele, "''você já viu uma vista mais linda que esta?". E ela respondera: "Nunca". Ela via montanhas e vales, escondendo segredos animais. Ele via fazendas de criação de carneiros.

Ela tocou o seio e ergueu o espelho para examinar a cor mais escura de seu mamilo. Parecia um milagre que aquela pele pudesse mudar assim em cor e textura num prazo tão curto, tal como a pele da lagarta se trans­formava, em cor e textura, na de uma bruxa. Levemente, como quem toma a temperatura da água, ela tocou o abdome, no umbigo, onde o primeiro botão da calça se recusava a se encontrar com a casa. Diana se perguntou como tinha sido tola durante tanto tempo. Dez semanas, não mais. Talvez menos. Ainda assim. Conhecera corpos, especialmente o próprio, e não conhecera isso. Seria algo que a menina aprende com a mãe, essa secreta igreja do conhecimento feminino em que nunca pudera entrar? Tudo que ouvira das mulheres estava errado. Não estava enjoada, não tinha vontade de comer nada estranho (A não ser peru. Mas isso era estranho?). Sentia apenas como se uma bomba tivesse explodido na parte de sua mente que a mantinha equilibrada. Tomara aquela sensação como amor, luxúria, ou a chegada da menopausa, ou simples invasão de priva­cidade, e era tudo isso sem ser nada disso. A explosão a tinha assustado pela forma como a fez perder o controle sobre a pessoa que sempre acreditara ser. Mas talvez fosse exatamente isso: um longo processo de separar-se de si mesma.

Diana tentou imaginar a noite de sua própria concepção, algo em que ela nunca tivera a coragem de pensar. O descabelado Ray Dean Wolfe amando a mãe que ela nunca conhecera. Foi uma mulher de carne e osso - uma pessoa que se mexia como Diana, que andava depressa, que tinha medo do trovão, que mordia as pontas do cabelo quando estava muito feliz ou muito triste. Uma mulher que havia agarrado a vida num abraço nu e que continuou a viver além de toda a esperança de sobrevivência.

Diana concluiu que não fora uma tola. Só lhe faltara orientação nas questões do amor. Por não ter tido mãe própria, ela não entendeu os sinais.

A Nannie fizera o possível, e até que foi: uma educação ampla, que a maioria das filhas não poderia encarar. Nannie Rawley, confiável e ge­nerosa como suas macieiras, de pé, com uma saia de algodão, a chamar Diana e Rachel, que estavam no alto de alguma árvore, não por medo de uma queda, mas por ter coisa melhor a lhes oferecer, uma cidra ou uma torta. Viviam nas árvores. Rachel perto do chão, num galho em que Diana a colocava por segurança, enquanto ela mesma subia pelas duas, escalando os galhos tal qual a menina do circo no trapézio. Quando olhava para baixo, lá estava a Rachel, olhando para cima através das folhas com olhos doces e sonolentos e lábios entreabertos, maravilhada com a irmã voadora.

- Por que a Rachel ficou assim? - perguntou certa vez a Nannie. As duas estavam no morro atrás do pomar.

Nannie respondeu.

- Por causa dos genes. Você já sabe o que são genes.

Diana era uma adolescente que adorava ciência e lia mais que qual­quer pessoa que conhecia, então disse que sabia.

- Sei que você quer uma resposta melhor do que essa, e eu também. Durante muito tempo eu culpei o mundo. Os venenos na comida. Estava lendo sobre esse problema durante a gravidez, e fiquei morta de medo. Mas há outras maneiras de olhar para a Rachel.

- Eu gosto dela como ela é. Não estou dizendo que não.

- Sei disso. Mas ninguém queria que houvesse tanta coisa errada nela, além da inteligência.

Diana esperou até Nannie falar outra vez. Estavam subindo o mor­ro, passando por um antigo campo de feno tomado pelo mato. Diana era mais alta que Nannie, já a tinha superado no aniversário de 12 anos, mas por estar à frente nessa colina íngreme, Nannie recuperara a vantagem.

- Eu acho que é assim. Há duas formas de criar vida: cruzamento e clonagem. Esta você já conhece, pois já fez enxertos em árvores, não é?

Diana concordou.

- É possível retirar um enxerto de uma árvore de que se gosta e enxertá-la em outra.

- Isso mesmo: um enxerto ou um clone. Será igual ao pai de onde foi tirado. A outra forma é quando dois animais se acasalam, ou duas plan­tas trocam o pólen entre si: é o cruzamento. O ser que resulta disso é diferente dos dois pais, e ligeiramente diferente dos que nascem de outros cruzamentos feitos pelos mesmos pais. É como jogar dois dados: tem-se muitos outros números além dos seis originais. E isso se chama sexo.

Diana concordou de novo, ainda insegura. Mas estava entendendo. Seguia a trilha íngreme que Nannie percorria à sua frente.

- a reprodução sexuada é mais arriscada. Quando os genes de um dos pais se unem aos do outro aumentam as chances de alguma coisa sair errado. Às vezes, um pedaço inteiro se perde, ou se duplica por engano. Foi o que aconteceu com a Rachel.

Nannie parou e se virou para encarar Diana.

- Mas imagine como seria se não houvesse a reprodução por cruza­mentos.

Diana percebeu, e disse que não era capaz de ver a diferença.

- Então, durante milhões de anos havia essas coisas no mar, todas iguais, que se dividiam em duas e produziam mais coisas iguais. Igual, igual, igual. Nada de novo. E então, não se sabe como, elas começaram a cruzar os genes umas com as outras e a criar pequenas variações, a partir de mutações e coisas semelhantes. Começou então a confusão.

- Então começaram a existir muitos tipos diferentes de coisas? -adivinhou Diana.

- Cada vez mais, isso mesmo. Alguns dos filhos ficaram melhores que os pais, outros nem tanto. Mas os melhores também melhoravam. As coisas mudavam. Podiam se ramificar.

- E isso era bom, certo?

Nannie apoiou as mãos nos joelhos e olhou bem nos olhos de Diana.

- Era o mundo, meu bem. É nisso que vivemos. Isso é o Deus todo-poderoso. Não há nada tão importante quanto a existência da variedade. É assim que a vida continua quando o mundo muda. Mas variedade significa forte e não tão forte, e tem de ser assim. Alguém joga os dados. Existem Dianas e Racheis, esse é o resultado do sexo, esse é o milagre. E a maior invenção já feita pela vida.

E foi só isso, a coisa mais próxima de uma conversa sobre abelhas e flores que tivera com Nannie, a coisa mais próxima de uma mãe para ela. Era um dia frio de outono - talvez setembro - e as duas avançavam pela plantação abandonada desde que Nannie passou a tomar conta da fazenda. Estava cheia de macieiras jovens, nascidas de sementes deixadas ali nas fezes dos veados e raposas que roubaram as maçãs do pomar logo abaixo. Nannie dizia que essas árvores selvagens eram o seu legado. As árvores do pomar, plantadas pelo pai dela, eram todas de boa cepa, cuidadosamente criadas por enxertia, de forma a serem idênticas à árvore original. Todas as maçãs vermelhas do mundo eram idênticas. Mas as pequenas macieiras de Nannie eram marginais, filhas de sementes que nunca deveriam ter sido plantadas, origem de novas variedades de maçãs diferentes, polinizadas pelas abelhas. Aqui no alto elas eram as filhas ilegítimas de uma transparente cruzada com uma vermelha Stayman, ou uma Gravenstein cruzada com não se sabe o quê, a macieira do vizinho, ou quem sabe uma pereira. Nannie parará de arar esse campo e deixara crescer as recém-nascidas até que elas se transformassem numa multidão silenciosa. "Igual ao laboratório de Luther Burbank", explicava ela a uma adolescente que tentava entender, mas Diana só pensava nelas como as filhas da Nannie. Em muitos sábados de outono, as duas andaram no mato dessa plantação abandonada, indo de árvore em árvore provando as maçãs dessas macieiras selvagens, produtos renegados do sexo das abelhas e do furto das raposas. Estavam em busca de alguma coisa nova: a Nannie Especial.

Diana já sabia o que fazer: tinha um plano. Estavam na primeira sema­na de agosto, ou seja, Jerry viria em breve com as provisões e o correio. Ela ia enviar uma carta por ele. Não ia selar; nem sabia se tinha selos; ia desenhar um mapa no verso do envelope para que Jerry encontrasse o pomar e entregar a carta em mãos. Diana sorriu ao pensar no rosto de Nannie ao abrir o envelope com o mapa no verso. Ela ia antes examinar a linha de tinta azul que ligava a cabana de Diana ao seu pomar à feição de um labirinto desenha­do por uma criança e laboriosamente completado. Talvez só de ver o mapa, Nannie iria adivinhar o conteúdo da mensagem dentro do envelope.

Diana já sabia como iria começar a carta:

Querida Nannie,

Tenho novidades. Vou descer da montanha no outono, acho que em setembro, quando começa a esfriar. Acho que vou levar uma pessoa co­migo. Gostaria de saber se podemos ficar com você.

Ao voltar de uma visita à cidade, Garnett pensava no peixe do Pinkie's, se fora tão bom quanto normalmente, e estava chegando a um lugar onde o Rio Negro se encontrava com o Garfo do Ovo e a estrada mergulhava num pequeno bosque, quando foi parado por um animal no meio da estra­da. Lá estava ele, em plena luz do dia, obrigando Garnett a frear. Era um cão, mas não era um cão. Garnett nunca tinha visto outro igual. Era uma coisa selvagem, de cor castanho-claro, uma cauda dourada fazia uma curva bem alta, orelhas em pé, e seus olhos se fixavam diretamente em Garnett. Parecia pronto a atacar o Ford de meia tonelada de Garnett, sem medo das conseqüências.

- Ora essa - murmurou Garnett. Seu coração batia acelerado; não de medo, mas de espanto. O bicho o fitava dentro de seus olhos como se quisesse falar.

O animal virou a cabeça para o lado da estrada de onde tinha saído, e do mato saiu mais um, andando devagar. Sua cauda não estava tão alta, mas a cor e o tamanho eram iguais. Em campo aberto, ele hesitou; então se apressou e cruzou rapidamente a estrada num trote elegante. O primeiro se virou e o seguiu, e os dois desapareceram na chicória do lado da estrada sem nem olhar para Garnett. O mato de flores azuladas se abriu, e depois se fechou como se fecham as cortinas do cinema, e Garnett teve a estranha sensação de haver presenciado uma espécie de mágica. Não era apenas uma dupla de cães perdidos, abandonados na beira da estrada e tentando encontrar o caminho de volta para o mundo dos homens. Eles eram a selva, e era lá que eles viviam.

Ficou longo tempo sentado, olhando os fantasmas do que acabara de ver na estrada vazia à sua frente. Então, já que a vida tinha de continuar e que sua próstata já não era o que tinha sido, ele arrancou, preocupado com seus próprios problemas, mantendo-se bem à direita na estrada. Já estava quase chegando à segurança de sua garagem quando um homem lhe fez um sinal na estrada. Garnett ainda estava pensando nos cães, tanto que passou pelo jipe do Serviço Florestal e continuou um bom pedaço antes de perceber que o rapaz no jipe queria que ele parasse.

Foi encostando devagar até escutar o mato na vala raspar a lateral da caminhonete, indicando que ele já estava bem afastado da estrada. Desligou então a ignição e ficou ali sentado, olhando nervosamente pelo retrovisor. O pessoal do Serviço Florestal não era da polícia. Não podiam forçar ninguém a parar. Era completamente diferente de Timmy Boyer, que podia parar um homem, dar-lhe uma aula sobre a velhice e ameaçar tomar-lhe a carteira de motorista. Meu Deus, e se o Serviço Florestal perdeu os animais que ele acabara de ver, e agora os estava procurando? Mas não, claro que não, que idéia ridícula. Era apenas um jipe aberto do exército, não um circo. No máximo, o rapaz teria sinalizado para Garnett sair da contramão. Estava tão assustado pelo que tinha visto lá atrás no garfo, que não estava prestando atenção às coisas. Garnett sabia que às vezes se distraía; estava pronto a admiti-lo, se fosse necessário.

- Ora essa - murmurou consigo mesmo -, será que agora os meni­nos do Serviço Florestal também podem aplicar multas?

Mas não era isso. O rapaz parecia jovem demais para dirigir um carro, ainda mais para assumir autoridade sobre os outros motoristas. Ele parou ao lado da janela aberta de Garnett, estudando um pedaço de papel que tinha na mão, e perguntou.

- Por favor, meu senhor, esta é a Rodovia 6?

- Poderia ser - respondeu Garnett -, mas os idiotas do 911 - emer­gência não resolveram plantar uma placa com o nome de "Estrada do Regato da Campina".

O jovem o encarou meio espantado.

- Pois é exatamente o que dizia a placa lá atrás. Mas eu estou com este mapa que me diz que eu devia estar na Rodovia 6, e acho que estou nela.

- Bem. Não existe campina nem regato. O que temos aqui é uma porção de pastos e um riacho. Por isso a gente daqui continua a chamá-la de número 6, pois, pelo que eu sei, ela sempre teve esse nome desde o tempo em que Deus era menino. Aparecer por aqui e fincar uma placa não transforma uma estradinha no meio do pasto em alguma coisa que ela não é. Sempre achei que aquele pessoal do 911 - emergência era de Roanoke.

O moço pareceu ainda mais surpreso.

- Eu sou de Roanoke.

- Pois é isso aí.

- Mas esta é a Rodovia 6 ou não?

- Quem quer saber, e a quem ele está procurando? - perguntou Garnett. O rapaz virou o papel, que parecia um envelope, e leu:

- Miss Nannie Rawley. Antiga Rodovia 6, 1412.

Garnett balançou a cabeça.

- Filho, por que você não se comunica com a Miss Nannie Rawley pelo correio, como todo mundo? Cismou de vir perturbar você mesmo? Você tem idéia do quanto essa mulher anda ocupada nesta época do ano, tendo de fazer a colheita de um pomar inteirinho? Será que o Serviço Florestal está com falta de florestas e precisa fazer também o serviço do correio?

O rapaz inclinou a cabeça, boca parcialmente aberta, mas parecia não ter mais perguntas nem respostas. E não ia discutir com Garnett seus negócios com Nannie.

- Pois então, pode ir. É logo ali adiante. A caixa do correio fica espe­tada para fora do barranco, num ângulo esquisito e com mato em volta.

- E a Nannie Rawley? - perguntou o rapaz, com o coração quase a lhe sair pela boca.

- Não - disse o velho pacientemente, balançando a cabeça e arran­cando -, é a caixa de correio dela.

A curiosidade era natural, dizia Garnett a si mesmo, pegando no escorredor a xícara e o pires que acabara de usar, para guardá-los. Estra­nhos não costumavam vir até ali, e o rapaz ainda era jovem. Gente daquela idade era capaz de tudo - quem lê os jornais sabe que eles costumam assustar velhas senhoras por puro prazer. E ela estava ocupada. Mais um mês, e as maçãs iam começar a cair no pomar como se fosse granizo, e ela teria pouco tempo para colher todas. Metade da sua colheita era vendida para uma companhia de Atlanta, Geórgia, que tinha um nome imbecil e produzia um suco de maçã sem pesticidas. Era forçado a reconhecer que, mesmo deixando os insetos livres na sua propriedade, ela vendia as maçãs a peso de ouro. Mas Garnett sempre ficava preocupado quando chegavam os catadores que trabalhavam para ela no pico da colheita. No ano anterior, metade dos catadores eram bandidos mexicanos que vinham para cortar o tabaco e ficavam até a época de preparação das folhas. O que por si só já era um sinal de que as coisas estavam fora de controle: os fazendeiros tinham famílias tão pequenas, que precisavam contratar estrangeiros para tratar do corte e preparação do tabaco. Era possível ouvir aquele povo na cidade, du­rante o verão e o outono, muito à vontade falando línguas estranhas. Apa­rentemente tinham vindo para ficar. O Kroger's do Garfo do Ovo já começara a vender aquelas panquecas chatas mexicanas, para convencê-los a ficar o ano inteiro. E assim se ficava sabendo até que ponto o mundo decaíra: comida estrangeira no Kroger's.

Garnett afastou a cortina da cozinha e procurou um bom ângulo, embora não tivesse esperança de ver coisa alguma a essa distância. O dr. Gibben há anos o vinha azucrinando para ele fazer a operação de catarata, e até o momento Garnett nem pensara nessa possibilidade. Acreditava que, quanto menos visse esse mundo miserável, melhor seria. Mas agora percebia que a única atitude de um cavalheiro seria deixar os médicos lhe enfiarem a faca nos olhos. Para o bem dos outros. Com tantos bandidos soltos por aí, nunca se poderia saber quando uma senhora iria precisar de socorro do vizinho.

Garnett sabia que o rapaz já tinha partido, disso ele tinha certeza. Ficou vigiando da janela de sua cozinha e viu quando ele entregou o enve­lope a ela e voltou com o jipe para Roanoke, onde todo mundo só pensava em inventar nomes estranhos para velhas estradas.

Mas Nannie estava agindo de forma estranha. Era o que deixava Garnett preocupado. Ela ainda estava parada no gramado em frente da casa como se o rapaz houvesse dito alguma coisa terrível que a mantinha colada no mesmo lugar. Ele já se fora há bem uns cinco minutos, e ela ainda estava parada com a carta na mão, olhando as montanhas. Ela não parecia bem. Parecia estar chorando ou rezando, e não se devia esperar nenhuma das duas coisas de Nannie Rawley. Garnett se preocupava ten­tando imaginar o que o rapaz poderia ter dito ou feito para deixá-la tão perturbada. Porque ninguém poderia dizer quem ia ser o próximo.

Quando já não podia esperar mais, ele foi até o banheiro, e quando voltou para a janela ela já não estava no gramado: devia ter voltado para dentro. Tentou inventar alguma coisa para fazer na cozinha, concentrar-se em alguma coisa, mas não havia mais pratos a lavar (pois ele jantara no Pinkie's). Nem se poderia pensar em cozinhar alguma coisa (pois o Pinkie's era do tipo coma-até-não-poder-mais). E ele não ousava ir lá fora. Não que ele quisesse espionar Nannie. O que estivesse ocorrendo por lá não era de sua conta. Ele era muito ocupado, e muita gente dependia dele. Aquela moça na fazenda Widener com suas cabras, por exemplo. Coitadinha, uma moça de Lexington! Uma petúnia no canteiro de cebolas. Decidiu subir de imediato ao segundo andar para consultar o manual do veterinário e dar uma olhada nas vacinas, verificar se as cabras iriam precisar da séptupla ou da óctupla. Quando falou com ela não estava bem certo. Não havia casos da febre da água vermelha nessa região, mas poderia haver outras razões para se usar a óctupla. Ele agora nem se lembrava de qual das duas havia recomendado a ela. Sentiu-se estranho ao chegar outra vez àquela casa. Sua cabeça foi tomada por um ritmo singular: era como se Ellen estivesse viva outra vez, só naquele momento.

A maior mágoa dela era saber que nunca iria ver o bebê - foi o que ela lhe disse, a última coisa, no leito do hospital. A maior mágoa, como se houvesse uma multidão de outras que não poderiam ser confessadas a um marido. E Garnett já acreditava que seriam dois, um menino e uma meni­na. Ellen nem chegou a saber do segundo. No dia em que foi lá, Garnett esteve a ponto de perguntar à moça, filha do Widener, a respeito dos dois. Ficou lá parado na varanda, com as palavras na ponta da língua, mas então ficou indeciso. Afinal, quem era essa moça e suas cabras? Para uma pessoa da cidade, até que ela era simpática, surpreendentemente simpática, mas como ela teria vindo parar ali, metida numa camisa de homem, no meio de um pasto de espinhos e cabras? Garnett tinha feito uma porção de pergun­tas educadas, mas não conseguira adivinhar por que ela estava tocando sozinha aquela fazenda. Ainda era a velha casa da família, mas já não eram as mesmas pessoas. Será que as duas crianças ainda estavam por lá? E se a mãe e os dois meninos se tivessem mudado para Knoxville, como todo mundo estava fazendo, inclusive o cachorro dele? E se por causa da sua indecisão Garnett tivesse perdido a última oportunidade de ter notícias dos dois meninos? Desde a inauguração da fábrica da Toyota, as pessoas simplesmente juntavam as coisas e se mandavam para Knoxville, como na época da corrida do ouro da Califórnia. Em breve, não haveria mais nin­guém no condado, só os velhos à espera da morte.

A janela do andar de cima dava uma boa vista para o pomar lateral e para o quintal da casa de Nannie, e mais tarde, naquela noite, ele conse­guiu vê-la, trabalhando na horta. Estava colhendo tomates. Tinha um mundo de tomates, que vendia por um preço escandaloso na feira amish. Forçou a vista através do vidro cheio de ondas da velha janela.

Mas havia alguém com ela! Aquele borrão azul e branco na extremi­dade do quintal era, agora que ele estava prestando atenção, um homem de chapéu, apoiado na cerca. Não era o rapaz do Serviço Florestal, era outra pessoa, um tipo mais troncudo, que Garnett não reconheceu. Pode­ria ser algum dos catadores que havia chegado muito cedo? Quem mais poderia ser? Clivus Morton ficaria lá por alguns dias para prender as telhas para ela, e até o filho da Oda Black viera fazer uma visita por razões que Garnett não conseguia adivinhar. Ora! Será que a Nannie agora atraía ho­mens de todas as idades, vindos até de longe? Uma mulher de 75 anos começa a usar shorts e os homens aparecem, vindo de todos os lados, parecendo abelhas em torno de uma flor? (Apesar de Clivus Morton não ser uma abelha. E Garnett conhecia limpadores de fossa que cheiravam melhor do que ele, mesmo depois de terminar o trabalho.) Seria o Clivus Morton? Forçou a vista. Droga de janela, tão embaçada quanto seus olhos. E suja. Não era lavada desde... Nunca foi lavada e ponto.

Passou para o outro lado da janela, mas não melhorou muito. Via que ela estava enchendo um cesto e falando como uma matraca, porque o estranho, quem quer que fosse (e não era o Clivus), continuava lá, encostado na cerca. E parecia um sujeito muito mal-educado. No mínimo, deveria se oferecer para carregar os cestos enquanto ela colhia os tomates. Garnett teria oferecido ajuda. Não é necessário concordar em tudo com uma pessoa, nem aprovar a condição de sua alma para mostrar um pouco de consideração.

Garnett sentiu a pressão subir. Ficou agitado e teve de se afastar da janela. Por Deus, não interessava quem fosse aquele homem lá fora, ele não tinha nada a ver com ela. Sentiu que uma coisa sombria e anticristã lhe toldava o coração. Odiava aquele homem parado junto da cerca, como se não tivesse nada melhor para fazer, conversando com Nannie o dia inteiro, e espiando-a colher tomates vestida só de short.

 

A quinta-feira chegou mais fresca e continuou fresca o dia inteiro. Lusa se sentia energizada pela mudança no tempo, que para ela foi boa, pois o traba­lho não tinha fim. Se soubesse que agosto lhe traria tanto trabalho, teria considerado julho como férias. A horta parecia um filhote de passarinho ao reverso, que abria o bico e dava, dava. Passou toda a manha esterilizando vidros no fogão, processando pêras, e cortando e branqueando montes de cenouras, pimentões, quiabos e abóboras para serem congelados. Já tinha feito trinta vidros de picles e ainda tinha tantos pepinos, que estava tendo pensamentos desesperados. Um deles: encher sacolas de plástico para distri­buir de graça nas caixas de correio, como se costumava fazer com amostras de amaciante de roupa. Discutiu essa idéia com Jewel quando ela veio lhe trazer a correspondência.

- Já fez os picles? - perguntou esta ao entrar.

Lusa se inclinou no banco e apoiou a cabeça na bancada.

- Acho que isso quer dizer que já. Meu Deus, não acredito que você já fez isso tudo.

Lusa se ergueu e recebeu a admiração nostálgica de Jewel. Os vidros de pêssegos dourados, alinhados sobre a bancada, pareciam dinheiro de outros tempos.

- Nunca ninguém fez tanta conserva desde que a mamãe morreu. Você deve estar orgulhosa. E devia parar. Está se matando. Distribua o resto.

- Mas eu já distribuí. As pessoas na rua fogem quando me vêem. Vi a Mary Edna jogando na pilha de compostagem a abóbora que eu lhe dei.

- Você não precisa se sentir mal por isso. Alguns verões são mesmo exagerados, e tudo sobra. Jogue um pouco fora.

- Não posso. Olhe só esses pêssegos. Não posso jogar isso fora; seria um pecado.

Lusa sorriu, modesta mas orgulhosa.

- a verdade é que eu gosto de fazer isso. Este ano não vou ter que gastar dinheiro em comida. E trabalho duro é a única coisa que não me deixa ficar girando em círculos.

- E é verdade. Gostaria de ajudar, mas não tenho energia.

- Sei que você gostaria. Lembra o dia em que você me ajudou com as cerejas?

- Meu Deus! - Jewel se apoiou na mesa - Foi há cento e dez anos.

- Eu também sinto a mesma coisa - respondeu Lusa, recordando seu estado mental no dia em que sua viuvez ainda era recente e feroz: sua falta de coragem diante da vida, a luta para confiar em Jewel. Crys e Lowell eram estranhos de quem ela tinha medo; a Crystal, na verdade, era um menino. Cento e dez anos atrás. - Deixe a correspondência na mesa. Parece que é só propaganda e contas: é só o que eu recebo.

- É só o que todo mundo recebe. Ninguém mais escreve cartas. Lusa varreu o monte de cenouras picadas para dentro da peneira

para serem branqueadas. Bastavam 30 segundos de vapor para fazer alguma coisa com a bioquímica delas, deixando-as tão alaranjadas como hemerocales (então, por que o livro dava a essa etapa o nome de brcmqueamcnto)) com o que elas se conservavam perfeitas no freezer.

- Como você está se sentindo hoje, Jewel? Jewel pôs a mão no rosto.

- Acho que estou muito bem. Ele agora me deixa tomar mais com­primidos contra a dor. Fico estúpida como uma vaca, mas é ótimo.

Ela parecia triste, Lusa resolveu se sentar ao seu lado e segurar-lhe a mão.

- Posso ajudá-la? Se eu tiver tempo, vou pegar o aspirador da sua mãe e limpar os seus tapetes. Aquela coisa é milagrosa.

- Não precisa, meu bem, não se canse à toa. Preciso voltar para casa. Mandei a Crys queimar o lixo, e você sabe bem o que pode acontecer. Só passei aqui para lhe mostrar uma coisa.

- O quê? - Lusa limpou as mãos no avental e foi até a mesa, curiosa para ver o que Jewel estava tirando de um envelope.

- São os documentos do Shel. Ele assinou. Eu tinha certeza que ele ia assinar, mas mesmo assim é uma preocupação a menos. É bom estar com isso resolvido. Queria ter feito isso há um ano.

Jewel desdobrou o maço de papéis grossos e os passou para Lusa examinar. Ela se sentou e passou os olhos, lendo as palavras que os advo­gados pareciam inventar apenas para complicar uma coisa tão pura e simples. Os meninos pertenciam à mãe. Logo, talvez antes que se esperasse, eles viriam morar com Lusa.

Havia uma assinatura rabiscada em tinta azul no final de duas das páginas, numa letra masculina mas infantil, como a de um aluno da quinta série, com o nome datilografado em baixo. Lusa ficou espantada e leu em voz alta:

- Garnett Sheldon Walker Quarto.

- E isso mesmo - disse Jewel, rindo baixinho -, parece nome de rei, não é? Nunca o de um rato de bigode louro.

- Não, mas...

Lusa tentava juntar conhecimento e palavras.

- Eu conheço esse nome. Sou amiga do, sei lá, avô dele. Tem de ser, é o mesmo nome. E o velho engraçado que mora na Estrada 6.

Lusa olhou para Jewel.

- Ele até já esteve aqui. É ele quem me ajuda nos problemas com as cabras.

- Ah, sei. E o pai do Shel. Eram meus sogros, ele e a mulher, a Ellen. Quando foi que ele veio aqui? Tem pouco tempo?

- Tem: menos de dez dias. Ele veio para examinar minhas cabras, que estavam com vermes. Parecia que nunca tinha posto os pés na casa. Nem quis entrar no celeiro enquanto eu não convidei. Como se fosse a sala de estar.

- Pois ele é assim mesmo. Eram duas pessoas meio esquisitas, ele e a Ellen. Acho que eram só meio antigos. E um velho, ponto final. Acho que o Shel nasceu depois que eles já tinham desistido, e o choque foi demais para os dois.

Lusa lembrou que fora a mesma coisa para os pais. Os dois nunca souberam bem o que fazer com ela.

- Ela morreu de câncer - completou Jewel.

- Quem? a mulher de Mr. Walker? Quando?

- Mais ou menos quando o Shel fugiu. Não. Foi uns dois anos antes. Lowel ainda não tinha nascido. Nunca quis nada com a Crystal, mas acho que. ela já estava doente.

Jewel suspirou, já acostumada aos lapsos provocados pela doença, Lusa estava boquiaberta. Imaginava que o velho fosse um solteirão.

- Ele é o seu sogro. Incrível. Por que você nunca me contou?

- Porque eu não tinha a menor idéia que você conhecia o homem. Acho que nunca mais falamos com ele desde o enterro da mulher. Não tenho nada contra ele. Acho que ele só é um pouco esquisito com a gente.

- Ele é esquisito com todo mundo. Pelo menos é a minha impressão.

- O que eu acho é que eles ficaram envergonhados por causa das bebedeiras do Shel. Shel Walker já enganou praticamente todo mundo neste condado, de um jeito ou de outro. Pintava casas e fazia uns biscates, e depois do nosso casamento ele chegou ao ponto de receber o adianta­mento, beber tudo e sumir sem terminar o trabalho. Eu morria de vergonha de mostrar a cara na cidade. O pai deve sentir ainda mais.

- Eu não fazia a menor idéia.

- Mas é isso. O Shel passou muitos anos meio louco, rodando por aí. E acho que eu fui parte da loucura, no ginásio. Depois, quando ele me abandonou, foi a última gota d'água. O velho Walker decidiu apagar todo aquele capítulo da vida dele e fingir que eu e os meninos nunca existimos.

- Mas ele é o avô dos meninos, não é?

- E uma tristeza, não é? Eles nunca tiveram avós. Papai e mamãe morreram antes. E, como o Shel já não tem nenhum vínculo legal com eles, o senhor Walker não tem nenhuma obrigação de virar avô de repente, tem?

- Obrigação, ele não tem. Mas você se importa se eu falar com ele? Talvez não agora, mais tarde. Talvez os meninos gostem de ir até lá; ele tem uma linda fazenda, planta árvores. E há um pomar bem perto, eu vi. Ia ser bom levar os meninos em outubro, para beber cidra.

Jewel pareceu sentida e Lusa desejou ter mordido a língua por ter mencionado outubro como coisa certa.

- Pode chamar hoje, eu não importo, mas acho que você não deve ter muitas esperanças. Ele é um velho azedo.

Lusa nada disse. Não tinha certeza do que Jewel gostaria de fazer nesse caso. Jewel estava muito longe, olhando pela janela.

- Eles vieram ao nosso casamento. Foi aqui, nesta casa. Mas foram embora antes da recepção: eles eram assim. Nunca aprovaram, diziam que a gente era muito jovem. E a gente era mesmo. Mas veja só.

Lançou a Lusa um olhar veemente.

- E se eu fosse sensata e esperasse, em vez de casar com Shel? Não iam existir Crystal e Lowell.

- E verdade - disse Lusa. Jewel apertou os olhos.

- Lembre sempre disso: não fique esperando, achando que tem muito tempo de sobra. Talvez só lhe reste este verão. Você vai lembrar? Vai dizer isso aos meninos por mim?

- Acho que vou. Só que não tenho certeza de que entendo o que você quer dizer.

- Basta dizer que ter os dois, ser mãe deles, é uma coisa que eu não ia trocar por nada. Nem por mais cem anos de vida.

- Digo.

- Diga - disse Jewel ansiosa, como se quisesse deixar este mundo naquele dia mesmo -, diga a eles que eu só tenho este verão para passar aqui, e agradeço aos Céus e à Terra por ter feito o que fiz.

No início da tarde Lusa respirou fundo, pegou a caixa pesada de vacinas que havia comprado do veterinário, e foi tratar de suas cabras. Depois de algumas semanas de preocupação por causa da letargia e da falta de apetite, Lusa descobriu que o rebanho estava infestado de vermes - o que, na opinião de Mr. Walker, não era surpresa, considerando a origem dos animais. Aconselhou a aplicar vermicida DSZ ao rebanho todo, e garantiu que isso não iria prejudicar as futuras mamães, e sugeriu que ela aproveitasse a ocasião para aplicar uma dose da vacina sétupla. Lusa estava desanimada, mas Rickie prometeu que viria ajudar. Alegou que não era possível desperdiçar todo aquele tempo de 4-H.

Lusa geralmente achava fácil tratar das cabras, muito mais fácil que tratar do gado, depois de conseguir levar as primeiras para onde queria. Já tinha prendido as cabras no pasto pequeno quando Rickie chegou para o rodeio. Decidiram fazer as cabras passarem uma a uma para o pasto maior. Rickie derrubaria a vítima quando ela passasse, enfiaria a pílula de vermífugo goela abaixo e sentaria na cabeça dela para Lusa aplicar a injeção. Muito simples na teoria, mas gastaram uma hora para tratar dos primeiros cinco animais. Lusa se sentia uma torturadora. As bichinhas se debatiam e berravam tanto, que ela achou difícil manter os olhos abertos e ver onde estava aplicando a agulha. Uma vez ela atingiu um osso por acidente e berrou tanto quanto a cabra.

- Sou uma cientista - disse em voz alta para acalmar o coração agitado - já dissequei sapos vivos, já sacrifiquei coelhos. Tenho de ser capaz de fazer isto.

Ela esperava que Rickie se oferecesse para aplicar a injeção, mas ele parecia ter tanto medo quanto ela. E não achava que se daria melhor com a tarefa dele, enfiar aquela pílula enorme goela abaixo, o que ele parecia fazer sem dificuldades.

- Você devia ver como é duro fazer uma vaca tomar uma pílula -disse ele quando ela elogiou sua competência -, lambuza o braço todo, até o sovaco.

Ele enfiava o comprimido na boca da cabra e lhe trancava a boca, e depois sacudia a cabeça de um lado para o outro. Era calmo e competente ao lidar com animais, tal como Cole. Foi essa a primeira coisa que ela amou em Cole, além do físico.

A segunda hora passou mais depressa, e quando chegaram perto do número 40 Lusa já tinha quase aprendido a brandir a seringa. Mr. Walker lhe tinha ensinado a dar uns dois ou três socos na perna do animal antes de aplicar a injeção. Quando a aplicação era feita dessa forma, o animal geralmente ficava bem quieto.

Rickie ficou impressionado com essa técnica, depois que ela a dominou.

- Ele é um velho mais esperto do que parece, esse velho Walker.

- É mesmo - disse Lusa, com os olhos fixos no pêlo marrom da garota. O mais difícil era enfiar o embolo até o fim e retirar a agulha sem levar um coice. Depois de terminar e se afastar, ela dava um sinal e Rickie pulava, deixando a cabra se levantar. Acenando ofendida a cabeça triangu­lar, ela corria até o meio do pasto onde suas amigas já tinham esquecido a humilhação, e mastigavam o mato numa felicidade vacinada e amnésica.

- Você sabia que ele é sogro da Jewel? O velho Walker? Rickie pensou um pouco.

- Ex-sogro. Acho que não chega a ser um galho importante na árvore da família. Acho que ele nunca mais falou com a tia Jewel desde que o bandido do filho dele se mandou. E pelo que eu sei, também não conversava antes.

- Não, acho que não - disse Lusa, contemplando satisfeita o reba­nho recém-vacinado.

Ela ia continuar o trabalho, quando um movimento rápido no alto do pasto atraiu seus olhos.

- Meu Deus. Veja aquilo.

Os dois olharam e o animal se imobilizou; então, baixou o corpo até o chão e saiu devagar ao longo da cerca e voltou para a mata.

- Não era uma raposa, era? - perguntou ela.

- Não.

- Então, o que era?

- Coiote.

- Tem certeza? Você já tinha visto algum?

- Não.

- Nem eu. Mas juro que ouvi alguns há umas duas noites. Foi im­pressionante, pareciam cantar. Canto de cachorro.

- Pois aquele bastardo era um. Quer que eu vá em casa buscar mi­nha arma? Posso ir agora.

- Não - ela apoiou a mão no seu braço -, faça-me um favor: não fique igual aos seus tios.

Ele a encarou.

- Você sabe o que esse bicho come?

- Não sei bem. Acho que ele poderia matar uma cabra, ou pelo menos um filhote. Mas acho que não era tão grande assim. Você não acha que é mais provável que ele prefira matar coelhos ou coisa parecida?

- E você vai ficar esperando até descobrir? Ela concordou.

- E. Acho que vou. Vou sim.

- Você é louca.

- Talvez. Vamos ver.

Ela ficou ainda um instante olhando para o começo da mata, onde ele havia desaparecido. Então se voltou para as cabras.

- Muito bem, vamos acabar com isso. Quantas ainda faltam? Rickie se aproximou da porteira para deixar entrar mais uma.

Contou as cabeças.

- Uma dúzia, mais ou menos. Estamos quase terminando.

- Que bom! Eu estou quase morta - disse ela, aproximando-se por trás da cabra para ajudar a derrubá-la com o seu peso.

Depois que ela caiu, Lusa afastou o cabelo e o suor da testa com as costas da mão, antes de encher mais uma seringa. Ele a observava.

- Quer trocar de lado? Minha parte é muito mais fácil que a sua. 'Agora ele oferece", pensou ela.

- Não, você está trabalhando duas vezes mais que eu - respondeu Lusa, contraindo o bíceps dolorido para mais um soco e aplicação -, sou só uma fracota.

Ele esperou respeitosamente a agulha entrar, e então falou:

- De jeito nenhum. Você está indo muito bem. Nunca vi uma mulher sentar em tantos animais num dia só.

Ao sinal de Lusa, os dois pularam e deixaram a cabra ir embora.

- Sabe o que eu queria mesmo agora?

- Uma cerveja gelada? - sugeriu ele.

- Um banho. Ieech!

Cheirou os braços e fez uma careta.

- Essas meninas não são nada perfumadas.

- Não são mesmo. E olha que são as meninas.

Quando terminaram com todas as cabras e o bode, que deixaram para o final, Lusa já não conseguia suportar o cheiro do próprio corpo. Abriu a torneira ao lado do celeiro e foi buscar uma barra de sabão que ficava lá dentro na baia de ordenha. Lembrou-se do coiote. Era muito bonito e estranho, quase fantasmagórico. Como se fosse um cachorrinho dourado, mas tinha um porte muito mais selvagem. Seria ótimo se ela en­contrasse outra pessoa no condado que não sentisse necessidade de atirar no coiote à primeira vista: ela teria um amigo.

Quando voltou, contornando o celeiro, entrou diretamente no jato de água fria, que a fez gritar. Um jato certeiro de Rickie.

- Vou te matar - gritou, rindo e enxugando os olhos.

- É gostoso - gritou ele, deixando a água correr na cabeça.

- Então você vai primeiro - disse-lhe ela, atirando-lhe a barra de sabão, e os dois se revezaram, cada um se ensaboando e enxaguando o outro, num banho alegre, casto, e quase histérico, sem tirar a roupa. Algumas cabras se aproximaram e enfiaram o nariz pela cerca para observar aquele rito humano peculiar.

- Não agüento os olhos delas - disse Lusa quando Rickie fechou a mangueira.

Ela se curvou e sacudiu a cabeça como um cachorro molhado, lançando gotas de água à luz dourada do poente.

- De quem, das cabras?

Ele despira a camiseta vermelho-escuro antes do banho de mangueira e agora a usava como toalha para enxugar o rosto. Lusa não sabia se essa exibi­ção era tão inocente quanto parecia. Ele já tinha dezessete anos. Difícil dizer.

- Elas têm aquelas pupilas esquisitas. Um traço, como as do gato, só que são deitadas, e não de cima para baixo.

Ele esfregou violentamente a cabeça com a camiseta.

- É. Uns olhos engraçados.

Com as mãos, penteou os lados da cabeça.

- Como se fossem de outro planeta.

Lusa estudou as caras das meninas na cerca.

- Bonitinhas, você não acha? Conquistam a gente.

- Ai, Meu Deus, ela já gosta de cabras. Jogou a camisa para Lusa.

- Você está precisando sair mais.

Ela enxugou o rosto e os braços com a camisa saturada de cheiro mas­culino, lembrando-se de como Rickie descrevera a dança dela com o trapo com cheiro de bode diante das cabras. Esse mundo era um grande circo sexual, pelo menos assim parecia para os carentes. Embolou a camisa e jo­gou de volta para ele.

- Você me ajudou demais, Rick. Se soubesse que ia ser tão duro, eu teria me acovardado, mas você me deu apoio até o fim. Posso lhe dar um cheque para compensar o seu trabalho?

- Não, senhora, não me deve nada - disse ele com uma polidez de colegial -, vizinhos e parentes não devem aceitar dinheiro.

- Pois então, sua tia e vizinha agradece penhorada. Não tenho a cerveja que você quer, mas posso lhe oferecer limonada ou um chá gelado antes de você ir embora.

- Chá gelado está ótimo.

Um passarinho piou no terreno em repouso do outro lado da casa -um dramático "uau-whiiit!", numa voz poderosa e arrogante de cantor de ópera.

- Preste atenção - disse Rickie, parando de enxugar os ombros -, um inhambu.

- E mesmo?

- Hoje a gente quase não ouve mais. Acho que não ouço nenhum desde menino.

- Que bom! - disse Lusa, impressionada porque Rickie conhecia um passarinho e sabia o nome. - Bem-vindo de volta ao lar, senhor inham­bu. Um homem na casa nunca é demais.

Apanhou a caixa de frascos vazios e andou para casa devagar, sentindo exaustão não somente nos braços, mas também nas coxas e nas costas. Estava se acostumando com essas sensações do corpo, a ponto de gostar da liberação dolorosa do ácido lático nos músculos. Era a coisa mais próxima de sexo na vida dela, pensou ela, com um risinho triste.

Quando voltou com a jarra de chá gelado e um copo, Rickie já havia vestido a camiseta e estava sentado no gramado, descalço, entre os dentes-de-leão, pernas esticadas à frente. Por alguma razão desconhecida, seus sapatos estavam no teto da pick-up.

- Tome - disse ela, deixando-se cair no gramado de frente para ele para lhe dar a jarra e o copo.

Tinha pensado em tirar a roupa molhada, mas o contraste entre a umidade fria e o calor do sol estava delicioso. Provavelmente estava pare­cendo um rato afogado, mas não se importava. Sentia por Rickie uma intimidade amistosa depois de passar uma tarde sentando-se com ele em cima de cabras. Estendeu as pernas ao lado das dele, na direção oposta, de forma que seus pés quase chegavam ao quadril dele. Sentada assim, tinha uma sensação de infância, como se os dois estivessem num balanço, ou dentro de um forte invisível. Ele encheu o copo de chá e deu para ela, e então virou a jarra e bebeu tudo de um gole só. Ao ver o pomo-de-adão subir e descer, ela pensou nas pílulas enormes enfiadas goela abaixo das cabras. Adolescentes não passavam de um monte de apetites.

Ele achou um maço de cigarros. Devia tê-lo pegado na pick-up en­quanto ela estava em casa, imaginou, pois ele estava completamente mo­lhado e o maço estava seco. Estendeu o maço para ela, que recusou.

- Sai fora, satanás. Eu já me livrei do vício. Ele acendeu, concordando.

- É o que eu também devia fazer. Sacudiu a mão para apagar o fósforo.

- Estive pensando no que você me disse, que não se importava de chegar ou não aos trinta. O fato é que eu quero. Acho que tudo fica melhor depois do segundo grau.

- E fica. Pode crer. A não ser por algumas pedras, a estrada vai sempre para cima depois do secundário.

Pensou um pouco, surpresa pela verdade dessa afirmação.

- Eu mesma atesto. Apesar de deprimida e viúva, longe de casa, prefiro a minha vida de hoje à da época do segundo grau.

- Verdade?

- Acho que sim.

- Então é porque você gosta de fazenda. Tem vocação.

- Acho que é verdade. Mas é estranho. Nasci para uma vida muito diferente, de pais intelectuais e aproveitei o máximo. Criava lagartas em caixas de sapatos, estudava insetos e agricultura na escola enquanto me deixaram. E então, um dia, Cole Widener apareceu na minha casinha e derrubou tudo. E aqui estou eu.

Rickie balançou a cabeça e espantou uma mosca na sobrancelha. Ela estava de costas, mas ele olhava para o sol baixo no horizonte. Sua pele cor de caramelo contrastava com a camiseta vermelha e os olhos escuros brilhavam à luz do poente. Ela apanhou um dente-de-leão e alisou-lhe o rosto peludo amarelo. A seiva branca escorreu nos seus dedos. Ela o jogou fora.

- Fiquei com raiva dele por ter morrido e me deixado aqui. Tanta raiva, que você nem imagina. Mas agora ando pensando que ele não deveria mesmo ser a minha vida toda, era apenas uma passagem. E por isso eu sou muito grata a ele.

Rickie fumava em silêncio, com o olhar distante. Lusa não esperava respostas dele, nem que ele entendesse tudo. Ele simplesmente a deixava falar sobre o que quisesse. Assim parecia mais velho.

- Já lhe disse que meus pais vêm me visitar? Antes de começarem as aulas do outono, meu pai vai ter uma semana de folga.

Ele a encarou.

- Que bom! Você vê pouco a sua família, não é?

- Não vejo, não. É quase como uma visita de estado; minha mãe não viaja desde que teve o derrame. Fica confusa. Mas papai disse que ela está melhor: começou a tomar um remédio novo e agora está andando melhor. Se ela for capaz de subir escadas, vou pedir para ele deixá-la aqui mais uns dias. Uma visita de verdade. Estou com saudade da minha mãe.

Ele concordou distraidamente. Ela percebeu que ele não estava en­tendendo nada; não tinha a menor idéia do que seria viver sem estar envolvido e abafado pela família.

Ouviram o inhambu cantar na colina outra vez. Esse canto soou para Lusa como um "tudo bem", com uma inflexão crescente no final, como se fosse o início de uma sentença. Ela gostava de pensar nele naquele pasto em repouso: não era propriedade dela, era apenas um inquilino, dependente de sua boa vontade. Com tantos problemas, ainda não tinha parado para avaliar sua nova condição de proprietária de terras. Dona não só de uma hipoteca e de muito trabalho, mas abençoada com um pouco da confiança do mundo. Uma condição que durante mais de mil anos foi roubada do povo de seu zeida.

Depois de um intervalo decente, suficiente para permitir uma mu­dança de assunto, Rickie perguntou:

- Você não está preocupada com aquele coiote, está?

- Se estou?

Ela bebeu metade do copo de chá antes de responder.

- Você pode achar que estou louca, mas não estou, não. Quero dizer, talvez, na pior das hipóteses, ele poderia matar um filhote, e isso não vai me quebrar. Não me consigo imaginar matando uma coisa tão bonita por sim­ples suspeita. Acho que todo mundo é inocente até que se prove sua culpa.

- Você vai mudar de idéia quando vir ele correndo para a mata com um filhote gritando assassino.

Lusa sorriu, surpresa com a linguagem dele.

- Ouça, vou lhe contar uma história. Na Palestina, terra do meu povo, há um milhão de anos eles tinham essa tradição de sacrificar cabri­tos. Teoricamente, para Deus; mas acredito que eles acabavam comendo os cabritos depois da cerimônia.

Ela pôs o copo no chão, girando-o na grama para dar firmeza.

- Então, eles faziam o seguinte: deixavam um bode fugir correndo para o deserto. O bode expiatório. Ele deveria levar embora todos os pecados e erros daquele ano.

Rickie achou graça.

- E qual é a moral da história? Ela riu.

- Não tenho certeza: o que você acha?

- Não tem problema perder um?

- E. Uma coisa assim. Não sou uma fazendeira tão perfeita a ponto de matar um coiote por causa de um filhote que ele me roube. Existem dez outras maneiras de eu perder um cabrito por causa de minha própria estupidez. E eu não estou disposta a me matar. Dá para entender?

Ele concordou, pensativo.

- Se você diz que sim, então está bem.

Ele se calou, sorrindo para si mesmo, admirando alguma coisa às costas dela. Lusa esperava que fossem as borboletas no mato, depois do jardim, apesar de conhecer suficientemente a cabeça de um rapaz para não achar provável. Dobrou os joelhos, segurou os pés molhados e tirou os sapatos, lembrando-se de que tênis molhados incomodavam demais. O que talvez explicasse os sapatos dele no teto da pick-up.

- Seus pés são bonitos - comentou ele.

Ela tornou a estender as pernas e olhou para os dedos enrugados pela umidade, depois tornou a olhar para ele.

- Ah, não rapaz! Você está precisando sair mais. Ele riu.

- É. Mas eu tenho uma confissão a fazer. Também acho que você fica linda sentada em cima de uma cabra. Eu passei este verão sonhando com você.

Lusa mordeu os lábios para não sorrir.

- Eu já imaginava.

- Eu sei. E você acha que é uma estupidez.

- O que é estupidez?

Ele estendeu o braço e afastou dos olhos dela uma mecha de cabelo úmido, passando suavemente os dedos por seu rosto.

- Isso. Eu ficar sonhando com você. E você nem saber o quanto eu sonho.

- Acho que sei. Não é uma estupidez. Mas me dá medo. A mão dele continuou no pescoço dela, e ele disse:

- Eu não faria mal a você por nada neste mundo.

E Lusa ficou aterrorizada ao sentir todos os nervos de seus seios e lábios. Seria tão fácil convidá-lo a ir para a casa, para a cama enorme e macia onde certamente os avós dele tinham concebido sua mãe. Como seria confortador afastar-se da solidão e se abraçar a esse corpo forte e lindo. As mãos dele se transformariam nas de Cole. Durante uma hora, a fome que a perseguia todas as noites poderia ser saciada por uma sensação real, em vez de lembranças. Um gosto de verdade, um toque real, a pres­são da pele sobre mamilos e língua. Ela tremeu.

- Não posso nem falar disso.

- E por que não? - perguntou ele deixando a mão cair nos joelhos dela. Correu os dedos pela costura interna da calça molhada, do joelho até a bainha, e então segurou seu calcanhar descalço. Ela se lembrou, com uma dor aguda, da sensação de perfeição compacta nos braços longos do marido. Olhou para a mão no seu calcanhar, e depois para o rosto dele, tentando transformar dor em raiva.

- Será que eu vou ter de explicar? Ele sustentou seu olhar.

- Então me diga que você não quer fazer amor comigo.

- Meu Deus! - ela engasgou, virando a cabeça para o lado, a boca aberta sem palavras, quase incapaz de respirar. Onde ele tinha aprendido a dizer essas coisas, no cinema? Ela balançou lentamente a cabeça de um lado para o outro, incapaz de conter um sorriso diante da expressão de­terminada dele. Ela se lembrava dessa sensação, do desejo obsessivo. Meu Deus, aqueles dia no apartamento da Rua Euclid. Não havia energia no mundo comparável à necessidade de um corpo pelo outro.

- Não é uma pergunta justa - disse ela, afinal, depois de uns instan­tes -, é claro que eu gostaria, se fosse possível. Acho que ia gostar muito: que um raio caia sobre a minha cabeça se eu estiver mentindo, e agora você sabe. Será que isso melhora a nossa situação?

- Para mim, melhora e muito, droga!

Ele sorriu um sorriso torto que ela só tinha visto no rosto de Cole, na cama.

- Para mim é ótimo. E como tirar dez numa prova.

Ela tirou a mão dele do seu calcanhar e lhe deu um beijinho, de leve, como o de uma mãe para sarar o machucado do filhinho, e então deixou a mão cair na grama.

- Então está bom. Você tirou dez. Agora podemos falar de outra coisa?

- O quê, por exemplo? Jogar um colchão na carroceria da pick-up e correr para a beira do rio?

- Você é incorrigível.

- O que você quer dizer com isso?

- Que você tem dezessete anos, quase dezoito, e está cheio de hormônios até os olhos.

- Pode ser. Mas eu sou também muito gostoso. Você nunca vai saber, se não experimentar.

Ela cruzou os braços no peito achando que devia ter trocado de roupa. Rato encharcado não era a impressão que lhe dava a camisa molhada. Pensou com tristeza que ele ia apreciar muito. Seria tão fácil surpreendê-lo com praze­res que nunca seriam esquecidos. Mas talvez não, se ele já tivesse definido seus padrões pelas revistas escondidas no colchão. Os rapazes não faziam a menor idéia do que estavam perdendo com aquelas namoradas das revistas.

- Então eu nunca vou saber - disse ela, sentindo-se mudada, que pisava em terreno mais seguro -, não posso negar que seria delicioso, talvez mais que delicioso. Mas está completamente fora de questão, e se esse assun­to surgir mais uma vez, vou ter de parar de ser sua amiga. Não devia ter confessado que você me atrai. E melhor você esquecer o que eu disse.

Ele olhou para ela com uma expressão neutra e balançou a cabeça devagar.

- É justo. Eu não tinha a menor chance.

- Olhe. Não me entenda mal, Rickie. Eu gosto de você por você mesmo, mas às vezes você me faz lembrar do Cole de um modo que me deixa perturbada. Mas você não é o Cole. Você é meu sobrinho. Somos parentes.

- Mas não somos parentes de sangue.

- Mas somos da mesma família, e você sabe disso. E você ainda é menor. Tecnicamente, por mais uns meses; mas ainda é. E eu tenho certeza de que o que você está propondo é crime. Cometido por mim. Se houver pena capital neste estado, sua mãe e suas tias iam fazer tudo para me colocar na cadeia.

Ele fechou os olhos e não disse nada. Parecia ter sido castigado por tudo: o tom e as palavras dela, a verdade. Lusa sentiu-se aliviada e triste.

- Sinto muito por ter sido tão dura. Não vejo você como um menino. Você sabe disso, não? Se nós dois tivéssemos mais dois anos, e se eu não te conhecesse, acho que ia sair com você.

Ele acendeu outro cigarro e se concentrou no ato de fumar, olhando para longe. Enfim, disse.

- Vou te lembrar isso dentro de dois anos, quando você estiver na­morando outro cara por aqui.

Lusa arrancou uma pedrinha da terra e a jogou um pouco adiante de seus pés.

- Não consigo nem imaginar uma coisa dessas. Na minha opinião, essa região é um deserto.

- Mas você não é o Cavaleiro Solitário. Todas as moças da minha escola estão doidas para engravidar e casar para brincar de casinha, mas elas todas parecem crianças. Depois da formatura eu quero fazer coisas, sabe? Ir de carona para a Flórida, arranjar um emprego num barco de pesca. Ver o que tem naquelas ilhas cheias de coqueiros. E as moças estão todas no K-mart olhando roupinhas de bebê. "Lindas, não é?". São as campeãs do tédio. Lusa riu.

- Mas nós dois somos diferentes, não é? Duas almas nobres, aproxima­das em circunstâncias dúbias, até conseguir encontrar alguém que nos mereça.

Ele sorriu aquele sorriso torto.

- E mais ou menos isso.

- Falando francamente, suas perspectivas são melhores que as minhas. Quando as minhas cabras tiverem os filhotes, você já terá encontrado a moça dos seus sonhos, e eu já estarei esquecida.

- Eu não apostava nisso.

- Pois eu vou dançar no seu casamento. Aposto.

- Eu não dancei no seu. Você não me convidou.

- Da próxima vez, eu convido. E uma promessa. Foi um erro terrível. Nunca fuja com sua namorada. Os parentes jamais perdoam.

- Parentes. Que saco!

- Obrigada.

Então, ela teve uma inspiração:

- Sabe o que a gente devia fazer, eu e você? Devia ir dançar. Você gosta de dançar?

- Gosto. Na verdade, eu gosto muito.

- Pois é disso que nós estamos precisando. Existe algum lugar com música no sábado à noite?

- Claro. Tem o bar da universidade, em Franklin, tem o Skid Row. A gente também podia ir até Leesport. Chama Cotton Eyed Joe. Lá sempre tem bons conjuntos country.

Ele estava levando o convite a sério.

- E você acha que a família vai ficar escandalizada se a gente for dançar?

- Claro que vai. A mamãe e as minhas tias acham que dançar não passa de aquecimento. Tia Mary Edna faz palestras na escola dominical para ensinar que a dança leva ao sexo.

- E ela tem razão: isso vale para a maioria dos animais. Insetos, passarinhos, até alguns mamíferos. Mas nós dois temos dois cérebros enormes. Acho que a gente sabe a diferença entre um ritual de corte e o ato em si. Você não acha?

Rickie deitou-se no chão e ficou ali, com o cigarro preso na boca igual a umá chaminé. Então tirou-o para falar.

- Sabe o que me deixa louco em você, Lusa? Quase sempre eu não faço a menor idéia do que você está dizendo.

Ela olhou para ele, o sobrinho lindo deitado na grama.

- Deixa você louco; e isso é bom ou é ruim? Ele pensou um pouco.

- Tem de ser bom ou ruim? E só o seu jeito, minha tia favorita, Miss Lusa Landowski.

- Nossa, você sabe o meu nome. E eu estou pronta para mudá-lo.

- E mesmo? Mudar para o quê?

- Para Widener.

Rickie ergueu a sobrancelha escura e olhou para ela.

- E mesmo. E por quê?

- Por causa do Cole, dos meninos, de vocês todos. Da família. Não sei.

Ela se encolheu sentindo-se embaraçada.

- Parece-me ser o correto. Assim, a fazenda continua onde está no nosso pequeno lugar no mundo. É uma coisa animal. Uma forma de marcar território.

- Hum - disse ele.

- Então vamos dançar, está bem? Sem outras intenções, vamos só dançar até cair, apertar as mãos e nos despedir. Eu preciso fazer um pouco de exercício. Você está livre no sábado?

- Livre como um passarinho - disse ele ainda de costas, sorrindo para o céu.

- Ótimo. Porque, como você sabe, em breve eu vou ser mãe. Preciso sair e pintar e bordar enquanto ainda tenho tempo.

Rickie se sentou e apagou o cigarro na grama, pensativo.

- Foi muito bacana você ter ficado com os meninos. Quer dizer, bacana... Ora, é muito mais que bacana.

Lusa deu de ombros.

- Mas não é só por eles; faço por mim também.

- Pois a mamãe e a tia Mary Edna acham que isso foi um presente do céu, você resolver ficar com eles. Disseram que você é uma santa.

- Ora, deixa disso.

- Não, eu juro por Deus que elas disseram. Eu mesmo ouvi.

- Minha nossa! Que viagem. De adoradora do diabo a santa no curto período de um verão.

 

O mundo é cheio de perigos, pensou Garnett, e Nannie Rawley era confiante como uma criança. Nem fazia idéia de que aquele homem era mau. Agarrado nela como um carrapicho, mas 50 vezes mais perigoso. Garnett já ouvira histórias de homens jovens que seduziam mulheres mais velhas para se casar com elas por causa do dinheiro. Quanto a isso, Nannie podia ficar tranqüila, pois não teria nem duas moedas enquanto não terminasse e vendesse a colheita, mas tinha o melhor pomar dos cinco condados e nenhum descendente, e todo mundo sabia. Ninguém sabia o que aquela cobra traiçoeira estava pensando.

Garnett também não podia jurar que sabia, mas de uma coisa ele sabia: já há dois dias, toda vez que conseguia ver Nannie na horta, lá estava ele, encostado na cerca. Não levantou nem um dedo para ajudá-la a carre­gar os cestos de abóbora e milho para casa. Se aquele sujeito pusesse os pés na casa dela, Garnett estava pronto a chamar Timmy Boyer pelo tele­fone. Teria de chamar. Ela não seria capaz de se proteger.

Acabou de dobrar as camisas que no dia anterior ele lavara na máqui­na e secado na secadora. Segurou a última pelos ombros e a examinou: estava tão enrugada e velha como ele mesmo. Ellen as deixava macias e lisas, mesmo sem tábua de passar. Nas manhãs de inverno, antes de sair para a escola, ela lhe dava uma camisa limpa para vestir, que era fresca como o abraço de sua mulher, e ele levava nos ombros aquela medida extra de afeição o dia inteiro. Apesar de todos os insultos juvenis que era obriga­do a enfrentar todo dia, isso ele tinha: era um homem amado pela mulher.

Ele fez uma pilha de camisas, colocou no alto as meias enroladas e levou tudo para o segundo andar. Parou junto da janela na escada equilibran­do a pilha de roupas com uma das mãos e puxou a cortina com a outra.

Deus do Céu, lá estava ele, igual a um lobo à espera do cordeiro. E ela nem estava perto. Que tipo de gente era capaz de ficar lá fora esperando daquele jeito, com os cotovelos na cerca? Garnett forçou a vista, tentando distinguir as feições do homem. Puxa vida, ele nem era tão bonito assim. Mais para o corpulento, verdade seja dita. Corpulento, tendendo a gordo. Garnett estava tão irritado, que deixou cair um par de meias. Não importa, ele voltaria para pegá-las mais tarde. Procurou por toda o terreiro de Nannie, até onde a vista alcançava, mas não conseguia vê-la.

Bem, pensou ele. Essa era a sua chance. Devia ir lá imediatamente e mandar aquele sujeito embora. A cerca ficava a menos de três metros da sua divisa, e ele tinha todo o direito de expulsar vagabundos da vizinhança.

Foi primeiro ao quarto para guardar as camisas na gaveta. Isso mes­mo, ele ia até lá. Pensou em levar sua espingarda, mas decidiu que era melhor não levar. Não atirava há muitos anos, desde quando tinha uma boa vista e a mão mais firme, apesar de ter certeza de que conseguiria acertar uma mosca, se fosse necessário. O pensamento lhe deu coragem. Talvez o simples fato de estar com a espingarda lhe desse confiança.

Foi até o closet do lado que Ellen ocupava na cama, onde ele guardava as coisas de que não iria precisar mais. A porta tinha saído do esquadro e arranhava o soalho quando era aberta. Estendeu as mãos no escuro, às cegas, tentando achar a correntinha do interruptor da luz e quase morreu de susto quando uma coisa despencou da prateleira, bateu no seu ombro e caiu no chão. A velha caixa de chapéu de Ellen. Caiu de lado e dela saiu o chapéu azul-marinho de Ellen, que rolou sobre a aba, descrevendo um meio círculo no soalho antes de cair ao lado da cama.

- Ellen - disse ele em voz alta, olhando para o chapéu.

O chapéu não respondeu, é claro. Ficou caído sobre a pequena aba, enfeitado com um cacho de cerejas artificiais. Se fosse capaz de cruzar as mãos no colo, é o que teria feito.

- Ora, você está me assustando, mulher. Estou tentando fazer o possível.

Agarrou a espingarda com as duas mãos e correu para fora do quar­to, puxando a porta às suas costas. Ellen não precisava ver a arma.

- Ei, você aí. O que você está procurando por aqui? - gritou Garnett junto do maciço de cerejeiras na cerca, a trinta metros de onde o homem ainda estava. Não deu o menor sinal de ter visto ou ouvido Garnett - que ainda era capaz de se esgueirar como um bom caçador de veados. O pensamento lhe deu alguma satisfação, e até um pouco de coragem. Limpou a garganta, pois as últimas palavras não saíram tão firmes quanto ele gostaria, e tornou a chamar:

- Você aí! Nada.

- Você aí. Meu nome é Garnett Walker c sou dono desta terra. O que você está procurando por aqui?

O homem não falou, nem virou a cabeça. Garnett nunca tinha visto tanta falta de educação. Nem o rapaz do caminhão da UPS se recusava a responder a um cumprimento.

Garnett forçou a vista. O homem estava muito largado; como se estivesse morto. Mas não parecia jovem. Já notara que os jovens geralmente não tinham força para manter a cabeça erguida. Mas esse indivíduo nem parecia ter cabeça. Estava dobrado com os braços cruzados em cima da cerca e um chapéu velho jogado enterrado até as orelhas. O corpo inteiro estava apoiado nos braços de maneira pouco natural, tal como uma vara caída na cerca. Tudo nele era pouco natural, desde a forma como os braços enfiados numa camisa azul se dobravam como se tivesse cotovelos de borracha, até as pernas grossas enfiadas na calça jeans. Garnett teve uma sensação estranha, como se estivesse no sonho de outra pessoa. Sentiu um rubor subir do pescoço, apesar de não haver ninguém para testemunhar. Graças a Deus, não havia testemunhas. Ele encostou a espingarda no tronco da cerejeira e atravessou o portão para o terreno de Nannie para examinar melhor a cara do sujeito.

Mas é claro que o homem não tinha cara. Era só uma fronha cheia de palha com um chapéu, enfiada na gola da camisa e da calça, também cheias de palha. Garnett se lembrou da alfarrobeira e da outra peça que Nannie estava pregando na porta da garagem. Ele quase caiu de joelhos. Nos dois últimos dias ele quase morreu de raiva, suspeitas e ciúmes. É verdade, até ciúmes. Estava com ciúmes de um espantalho.

Voltou-se para ir embora antes que as coisas piorassem.

- Garnett Walker! - gritou ela, surgindo apressada de trás da casa. Ele deu um suspiro. Entre ele e Nannie as coisas sempre pioravam. Ele

já devia ter aprendido. Devia desistir; era como remar contra a corrente.

- Olá, Miss Rawley.

Ela estacou com as mãos nos quadris. Estava de saia, provavelmente se preparando para ir ao mercado. Sempre se embelezava para ir ao mer­cado: saia de algodão e trancas. Parecia curiosa como um passarinho, com a cabeça inclinada para o lado.

- Pensei ter ouvido alguém aqui me chamando. Garnett olhou para as próprias mãos. Vazias.

- Vim para ver se a senhora precisava de ajuda. Ajuda para carregar o caminhão para o mercado. Sei bem como esta época do ano é difícil para a senhora, a colheita das maçãs.

Ele quase riu com o ar de surpresa estampado no rosto dela.

- Com maçãs é assim: se tem maçã, tem maçã que não acaba mais. Ela balançou a cabeça.

- Ora, ora. Os milagres não têm fim.

- Morei ao lado de um pomar durante quase todos os meus oitenta anos - continuou a falar, até ele próprio sentir o ridículo da situação -, tenho olhos. Sei que é de matar um burro.

Ela o olhou de esguelha.

- Está querendo ganhar outra torta?

- Ora, isso não é justo. Só porque eu venho oferecer ajuda, a senhora não precisa agir como se o céu estivesse despencando. Esta não foi a primeira vez.

- E verdade. O senhor também me deu as telhas. Foi um presente do céu.

- Acho que a senhora podia reconhecer que ultimamente eu tenho sido um bom vizinho.

- E tem mesmo - concordou ela - o senhor vai me desculpar, mas leva tempo até a gente se acostumar. Estou morrendo de felicidade nesses últimos dias. De repente, me sinto vergonhosamente rica.

Ele tentou adivinhar o que aquilo poderia significar, e se seria edu­cado perguntar.

- Eu não sabia que a senhora tinha parentes. De quem herdar. Ela riu, colocando as mãos na saia.

- Pois foi exatamente o que aconteceu. Eu herdei um parente. Dois, na verdade.

Garnett não estava entendendo bem, lembrou-se do homem na cerca, que evidentemente não era homem, sem nenhum interesse na herança de ninguém. Esperou que Nannie explicasse - o que ela sempre acabava por fazer, caso se tivesse a paciência suficiente.

- a Diana Wolfe - disse ela com toda a simplicidade - vem morar comigo.

Garnett pensou um pouco.

- a filha de Ray Dean? - perguntou, sentindo de repente um ciúme irracional do jovem Ray Dean Wolfe, que havia cortejado Nannie por mais tempo que as pessoas normalmente ficam casadas. Nannie tinha sido tão feliz naquele tempo, era possível ouvi-la cantando a qualquer hora de todo dia que não fosse chuvoso. Mas agora Ray Dean estava enterrado no cemitério.

- Isso mesmo, a filha dele, Diana. Ela é quase minha filha. O senhor já sabia.

- Pensei que ela estivesse morando no alto da montanha, trabalhan­do para o governo.

- E morava. Há dois anos ela vive completamente sozinha numa cabana lá no alto, Mas ela vai tirar uma licença e voltar. E agora sente-se para não cair: ela vai ter um filho.

- E mesmo uma surpresa. - ele apertou os olhos na direção do alto da montanha -, como a senhora acha que aconteceu?

- Não sei, nem quero saber. Pouco me importa se o pai é um leão-da-montanha. Eu vou ter um neto!

Garnett balançou a cabeça e estalou a língua. Nannie estava feliz como o gato que comeu o canário. Mulheres e netos: não havia nada igual nesse mundo. Tal como Ellen, com remorsos no leito de morte por causa daquela criança filha do Shel. E agora já eram dois, um menino e uma menina. A moça de Lexington, a das cabras, tinha telefonado sem mais aquela, e anunciou que queria trazer os dois meninos para ver a fazenda dele. Queriam ver as castanheiras. As árvores dele.

- Eu também tenho netos.

- O senhor sempre teve. Só que é orgulhoso demais para se lembrar dos nomes deles.

- a menina se chama Crystal, e o menino, Lowell. Eles vêm no sábado.

Como tinha conseguido desencavar aqueles nomes dos cantos escu­ros de sua memória, nem ele sabia.

- Pensei em ensinar aos dois a embalar flores e fazer cruzamentos. Nas minhas castanheiras. Para me ajudarem a continuar o projeto.

Para sua satisfação, Nannie parecia estupefata. Então ela perguntou:

- E como isso foi acontecer?

- Acho que não tem nada a ver com nenhum leão-da-montanha.

Ela ficou olhando de boca aberta para Garnett. Se não tivesse cuida­do, acabaria engolindo uma abelha. Então ela viu uma coisa apoiada na árvore junto da cerca e franziu o cenho.

- O que é aquilo encostado na árvore junto da cerca? Ele se virou e olhou.

- Ah, é a minha espingarda.

- Ah, sei. E posso perguntar o que ela está fazendo encostada numa árvore?

Garnett olhou para a arma.

- Nada de mais. Acho que ela está só encostada na árvore.

- Então, como ela foi parar ali?

- Ela veio para perguntar umas coisas àquele indivíduo que está encostado na cerca há dois dias.

Ela riu.

- Ora, aquele é o Buddy. Acho que ainda vocês ainda não foram apresentados.

- Pois o Buddy me deixou preocupado. Ela olhou para Garnett apertando os olhos.

- E verdade?

- Acho que sim.

- E o senhor veio até aqui para ter certeza de que eu estava bem? É isso que você está me dizendo? Que veio até aqui com a espingarda para me proteger do meu espantalho?

Ele abriu as mãos, rendendo-se.

- Eu tinha de vir. Não gostei da maneira que o Buddy ficava olhando para a senhora e o seu short.

Agora Nannie estava mais que estupefata; parecia ter sido atingida por um raio. Olhou para ele até romper num sorriso, que se espalhou pelo seu rosto tal como o sol depois da tempestade. Ela foi até ele com os braços abertos, parecendo sonâmbula, passou os braços pela cintura dele e lhe deu um abraço apertado, encostando a cabeça no seu peito. Ele levou um minuto para decidir passar seus braços nos ombros dela. Sentia-se duro como o velho Buddy, como se também estivesse cheio de papel e palha. Mas então, pouco a pouco, ele foi se relaxando. E ela continuou ali, como um passarinho calmo, envolvida nos braços dele. Era impressionante. Abraçá-la assim era como repousar depois de um dia estafante. Era o de que ele mais necessitava.

- Mr. Walker. Garnett. Os milagres não acabam - disse ela mais uma vez, e parecia que não tinham mesmo fim.

Garnett a abraçava. Ela ergueu o rosto c olhou para ele.

- E finalmente eu vou ter um neto na minha casa, e você vai ter dois. Você sempre acaba com a última palavra, não é?

- Ora, Nannie, você é uma mulher difícil.

Ela apoiou o rosto no velho coração dele, onde a concha rósea de sua orelha ouvia as canções que ainda continuavam lá.

- Garnett, você é um santarrão chato.

 

Rugido da tempestade, chuva batendo no teto de zinco da cabana, era suficientemente forte para levar alguém à loucura. Diana teve de repente a idéia de que se gritasse não seria capaz de ouvir a própria voz. Gritou. Tinha razão.

Sentou-se na cama apertando os joelhos no peito. Tentava não pensar nela como cama; encostara os cobertores e travesseiros na parede para transformá-la numa espécie de diva - um lugar confortável que não fosse cama. Dentro daquele rugido branco ela se sentia enclausurada na cabana, mesmo sentimento que teve na escuridão do inverno anterior. Fez um buraco no dedão da meia, pegou um livro e tornou a largá-lo. Há horas vinha tentando ler, mas o barulho tinha atingido um ponto tal, que se afogavam todas as esperanças de concentração. Tapou as orelhas com as mãos, buscando um pouco de alívio, e passou a ouvir o ruído diferente criado pelas mãos em concha. O ruído do mar que se ouve pela primeira vez numa concha na praia. Dois verões seguidos, ela, papai e Nannie, tinham ido a Virgínia Beach. Cento e dez e 109 anos antes.

E claro que não era o oceano, mas a maré de sua própria circulação, pulsando dentro dela, o som levado pelos ossos até seus tímpanos. Diana fechou os olhos e tentou prestar mais atenção para ouvir alguma diferença, agora que seu coração bombeava sangue através de um conjunto extra de artérias. Ansiava por uma prova, mas até agora a mudança só parecia inibir etereamente o seu corpo, como um pensamento ou um passe de mágica. Por ora, ela teria de se contentar com a mágica.

Quando deixou cair as mãos, o barulho da chuva pareceu aumentar. Raios iluminavam a janela de forma irregular mas constante, tal como fogos de artifício. Não conseguia ouvir o trovão, mas suas vibrações chega­vam até ela pelo chão, sacudindo os pés de ferro da cama. Pensou em se enfiar nos cobertores e cobrir a cabeça com os travesseiros, mas então o diva voltaria a ser cama, e aquele tremor horrível continuaria chegando até ela. Não havia escapatória, e a tempestade se aproximava cada vez mais. Ainda eram quatro horas da tarde, mas o céu estava escuro como o anoitecer, e ficava cada vez mais escuro. Uma hora antes, Diana decidira que jamais vira tempestade igual nessas montanhas. E isso foi uma hora antes.

De repente, ela se lembrou do rádio. Não teria nenhum valor prático, mas já seria uma companhia. Levantou-se num salto e correu até a mesa para buscar o rádio que ficava na última gaveta. Ligou-o, e o segurou junto à orelha, mas nada ouviu. Examinou aquela coisa, encontrou o botão de volume e o levou ao máximo, e nada, nem um som. As pilhas, pensou ela: descarregavam-se sozinhas depois de algum tempo. Revirou a gaveta em busca de outras pilhas, sabendo perfeitamente que nunca se lembrava de incluí-las na sua lista de suprimentos. Finalmente, arrancou as que esta­vam na lanterna, a reserva que ela mantinha na prateleira ao lado da porta.

Um raio caiu, tão perto que ela chegou a ouvir o estalo acima do urro da tempestade. O som e a luz chegaram junto; foi ali. Provavelmente, um dos alamos na encosta acima da cabana. Era só o que faltava: uma árvore cair sobre sua cabeça. Sentia os dedos tremerem ao abrir o compartimento para retirar as pilhas velhas e colocar as novas. "Positivo, negativo", disse para si mesma em voz alta ao alinhar os pólos, sem conseguir ouvir a própria voz. Até isso era aterrador, igual a uma escuridão tão escura, que não se via diferença com olhos abertos ou fechados. Teve momentos de pânico naquele tipo de escuridão, sem saber se tinha ficado cega, e agora lhe ocorria que a surdez deveria ser assim. As pessoas presumiam que surdez era silêncio, mas talvez fosse isso, um rugido branco e maciço.

Tentou ligar o rádio outra vez. Encostando os buraquinhos num ouvido e tapando o outro, ela conseguiu ouvir sons. De início, apenas estática. Era cansativo ajustar a sintonia e ouvir, ajustar a sintonia e ouvir, tentando encontrar a estação de Knoxville, mas finalmente ouviu música, bem distante, de um tipo que ela não conseguiu classificar. Esperou um pouco para se acostumar àquele som. Há muito tempo ela só ouvia a música dos passarinhos. Teria de reaprender a ouvir música, como se tinha de reaprender a falar depois de um derrame. Muitas coisas estranhas esperavam por ela no futuro. Eletricidade, e todos os barulhos que fazia numa casa. E gente, com todos os seus barulhos. Parto e nascimento seriam a menor de suas preocupações.

Tentou pensar em Nannie. Quanto a ela não havia preocupações; já sabia como seria. Para se esquecer do isolamento assustador, ela se ima­ginou dentro do genuíno abrigo da casa de Nannie Rawley, a suavidade daquele pomar cheio de folhas. Ansiosa por um pouco de descanso e tranqüilidade, ela obrigou a memória a percorrer os cômodos da casa de Nannie, chegar às árvores familiares, lá fora, e até ao mato selvagem onde havia aprendido a ligação entre sexo e Criação de Deus.

Já estava ouvindo aquela música há mais tempo do que gostaria, quan­do percebeu um som mais forte que atraiu sua atenção para o rádio: o ruído monótono dos avisos sobre o clima. Ela se ergueu na cama e prestou toda a atenção ao que vinha a seguir. Aviso de tornado. Condado de Qga, Condado de Ing, nomes que ela não conhecia - Hin, Bin, Fin, Hinman, e foi só: Condados de Logan e Hinman, direção noroeste. Deixou o rádio cair no colo. Então era isso, uma tempestade infernal de fim de verão, a cauda do primeiro furacão da estação. Desejou pela última vez boa sorte a Eddie Bondo, os últimos votos que se permitiria: desejou que ele tivesse tido tempo de sair das montanhas antes de cair a tempestade.

Levantou-se e andou pelo quarto, tentando encontrar pontos em que a recepção era melhor. Descobriu que era melhor no vão da porta, melhor ainda na varanda. Lá fora, o barulho no teto não era tão intenso. Encolheu-se debaixo do beirai para não ficar encharcada e se acomodou na velha poltrona verde, pescoço esticado tal como um paciente preso num colete ortopédico para manter o som de voz humana no ouvido. Passara dois anos sem notícias, mas não suportaria mais um minuto sem elas. Mas só ouvia música. Mas eles faziam assim mesmo. "Emergência, urgente. Pa­rem a vida!" - e depois voltavam aos comerciais e à música melosa. Ela começava a se lembrar do mundo. Deixou o rádio no colo e o desligou para economizar as pilhas, que talvez fossem necessárias mais tarde. Levantou-se então de um salto e entrou correndo para se certificar de que tinha velas, e de que a lamparina de querosene estava pronta para ser acesa. Por quê? Parou e tentou forçar-se a sair daquele pânico com a cabeça fria. Com ou sem tempestade, ia ficar escuro, como em todas as noites do ano. Por que essa necessidade repentina de velas e fósforos prontos para serem usados? Gostaria de ser capaz de rir de si mesma; seria muito melhor que sentir esse nó de pânico no estômago. O que teria acontecido? Antes ela era tão destemida! Mas ela sabia qual fora a mudança. Era o que acontecia a quem se comprometia com os vivos. Ha­via muito a perder. Voltou para a poltrona verde e apertou novamente o rádio na orelha, inclinou a cabeça para trás e tentou ouvir. Mais música. Desligou o rádio e se inclinou para frente, abriu a boca e soltou um uivo longo e satisfatório que ouviu perfeitamente:

- VÁ PARA O INFERNO, EDDIE BONDO!

Com tantos dias, por que hoje? Será que ele tinha um barômetro interno que o avisava da aproximação de tempestades? Enrolou-se nos próprios braços e se inclinou para trás, deixando-se abraçar por essa pol­trona velha e arruinada. Hoje, ontem ou amanhã, não faria diferença, tinha de acreditar que era verdade. Já havia enfrentado sozinha outras tempestades e teria de enfrentar mais essa. Pensou em retirar a maldição. Na verdade, foi melhor ele ir-se embora antes que as coisas se aprofundassem entre eles. Já estava ficando difícil manter o segredo, e ela tinha de mantê-lo, disso não tinha a menor dúvida. Melhor para a criança, melhor para todo mundo, que ele não soubesse o que estava deixando para trás - e ele nunca iria saber. No Garfo do Ovo certamente iriam perguntar, e ela diria que o pai de seu filho era um coiote.

Diana sorriu. Era o que ia dizer. E a Nannie ir confirmar sua história.

Ele havia partido sem mudar de idéia. O que mais magoava Diana era não ter conseguido quebrar aquela couraça, não ter sido capaz de abrir um lugar para um coiote naquele coração.

Ela havia saído antes da aurora, naquela manha, para uma de suas caminhadas agitadas e voltara para a ausência assustadora que já esperava. A mochila, o chapéu e a arma, dessa vez tudo havia desaparecido, percebeu imediatamente. Não tocou em nada que fosse dela, deixou a cabana exa­tamente com era há três meses - e ainda assim ela parecia maior, para conter tamanho vazio.

Só muitas horas depois ela abriu a caderneta de campo e encontrou o bilhete dele, a única lembrança de Eddie Bondo - ou pelo menos era o que ele imaginava. Um adeus suficientemente doloroso para ela saber que não devia mais esperar a volta dele. Numa folha em branco em que ela havia marcado a data de hoje, ele registrou a observação:

"É duro para um homem ter de admitir que encontrou um adversário à sua altura. E. B."

Passou o dia todo sem saber se ele se referia a ela ou aos coiotes intocáveis. Qual dos dois Eddie Bondo não conseguira enfrentar?

Decidiu afinal que não era importante. Arrancou a página da cader­neta para não ter de vê-la outra vez, e rasgou-a em pedacinhos, que deixou no canto da gaveta de meias para os ratos usarem para forrar os ninhos de inverno. Só então, ao fechar a gaveta, ela compreendeu. À sua maneira de homem jovem, ele lhe oferecia sua partida como um presente. Encontrar um adversário à altura era uma enorme concessão. Ele abandonava os dois, Diana e os coiotes. Da parte dele não viria nenhum mal para aquela montanha.

Um raio ofuscou seus olhos numa cegueira elétrica momentânea. "Meu Deus, Meu Deus", cantou ela, afundando-se ainda mais na poltrona, piscando para a paisagem borrada pela chuva. Esse caiu perto. Quinze metros, não mais. Sentiu o perfume do ar ionizado. Era hora de rezar para que sobrasse alguma coisa dessa montanha depois da tempestade. Tornou a ligar o rádio e ouviu. Não havia música; só a repetição incessante de nomes de condados. A estação agora estava operando em emergência, relacionando condados que Diana conhecia bem. Franklin, Zabulon. O olho da tempestade estava aqui. Ela virou o rádio e o eviscerou, guardando as pilhas no bolso. Melhor guardá-las para a lanterna. Teria rido de si mesma se pudesse. Se havia uma notícia que ela não precisava receber pelo rádio, era essa: o olho da tempestade estava aqui.

Levantou-se e tentou ver através do lençol de água que caía do beirai igual uma cortina translúcida. Foi até o fim da varanda e notou que via melhor a ponta do telhado, de onde caía menos água. A chuva agora pare­cia menos densa. Uma hora antes o ar estava tão saturado de água, que os peixes quase poderiam sair do riacho e nadar até a copa das árvores. Nunca havia visto uma chuva igual. Ela não estava mais tão violenta, mas um vento de mau agouro começava a soprar. Enquanto olhava, no período de alguns segundos, a chuva diminuiu drasticamente e os raios passaram para o outro lado da montanha, mas o vento começou a soprar com o hálito frio de uma fera que se aproximava. Soprada pelo vento a chuva caía horizontalmente, direto no seu rosto. Aterrorizada até os ossos, ela voltou para dentro, vestiu a capa e calçou as botas e percorreu mais alguns círculos em torno do quarto. Todos os seus instintos a mandavam fugir, mas não havia para onde correr. Sentiu-se vulnerável e isolada dentro da cabana. Talvez fosse melhor estar na varanda, mas uma vez lá fora, foi atacada por um vento, que a imprensou contra as paredes com tanta força, que ela sentiu na pele a forma dos tron­cos. O vento frio lhe feria os dentes e os olhos. Cobriu o rosto com as duas mãos, e tentou olhar pelo pequeno espaço entre elas, transfixada pela ame­aça impossível que era o vento dançando na sua floresta. Árvores enormes em que ela tinha toda a confiança se curvavam incrivelmente, quebrando e perdendo galhos. Troncos estalavam como carabinas, um depois do outro. No alto, onde a montanha encontrava o céu, ela via os alamos a dançar um tango lento com o vento. Moviam-se em sincronia por todo o topo da serra, contornando o vale. Aqui não é seguro, pareciam dizer a ela, e seu pânico se transformou numa náusea seca e pura. As árvores estavam cain­do. Essa floresta, que sempre fora a sua única garantia, se desmanchava como um fardo de capim. Qualquer um daqueles troncos enormes seria capaz de esmagá-la num piscar de olhos. Voltou o rosto para a parede da cabana, sem perceber que havia prendido a trança entre os dentes, e que protegia o abdome com as duas mãos. Sem perceber que nunca mais seria só - que et solidão era a pior das presunções humanas. Sabia apenas que estava de costas para a tempestade, num pânico cego, tentando adivi­nhar o que fazer.

Estava escuro como a noite, mas ela ainda conseguia distinguir as listras horizontais claras e escuras dos troncos e da massa entre eles. Contou os troncos a começar de baixo, para se obrigar a fazer algo que pudesse completar. Surpreendentemente, ela nunca havia contado os troncos. Eram 11, um número ímpar. O que significava que seriam 10 ou 12 na parede que fechava a cabana. Seguiu com os olhos o compri­mento até o final, onde os troncos se articulavam com os da outra parede como dedos cruzados de duas mãos. Fixou ali o olhar aterrorizado, uma pilha de 21 troncos muito bem intertravados.

Um abrigo, percebeu enquanto olhava. Esse era o verdadeiro princípio de um autêntico abrigo, os 21 troncos intertravados. Nenhum carvalho, nenhum álamo seria capaz de derrubar essa cabana. Foi feita de árvores caídas. Fechou os olhos e apertou a testa no tronco redondo de uma castanheira, e se preparou para esperar o fim da tempestade.

Quando a chuva e os trovões silenciaram e o vento se acalmou, os coiotes começaram a uivar do alto da montanha. Vozes que subiam e tremiam com uma alegria assustada, elevavam sua harmonia triste em direção ao céu escuro. Não era uma voz única, eram duas; um casal nesse novo mundo, rindo por último.

 

Macho da bruxa gigante saturnídeo tem a boca imperfeita e fechada e não consegue se alimentar. Sua vida adulta, dolorosamente breve, é devotada à busca e acasalamento com a fêmea.

Estivera pensando nessa passagem durante muito tempo, até encontrá-la na noite anterior, quando, desesperada, folheava sem ler durante a tem­pestade o mesmo livro que lia no dia em que Cole morrera. Estava debaixo da cama; não se movera desde então. Lusa nem sabia com certeza por que quis tornar a lê-lo outra vez, mas quando encontrou aquela passagem, ela reconheceu nela alguma explicação para sua própria vida.

Gente que não pertencia à família começava a perguntar quais eram seus planos. Começara recentemente. Alguma coisa no clima, ou em Lusa, dera o sinal de que a partir de agora não seria indelicado perguntar, e todos diziam sempre a mesma coisa, uma pena o que aconteceu a Cole, e então perguntavam se ela já tinha decidido o que iria fazer.

Não era pena, gostaria de lhes dizer. Pensou em citar a passagem de Darwin, explicando que esse mundo tinha um lugar reservado até mesmo para certos seres incapazes de comer ou falar, cujo único propósito era encontrar o outro lado da própria espécie e se juntar a ele. Ela fora cha­mada para esse lugar. Não havia planos a discutir.

E claro que ela não dizia nada disso. Era sempre em lugares claros e normais, como a seção de cereais do Kroger's ou a loja de ferragens Little Brothers, que as pessoas lhe perguntavam sobre seus planos, e então ela se limitava a responder: "Decidi terminar o que comecei".

E isso era o que ela havia começado: na ausência de Cole, morando na casa onde ele crescera, ela estava se acostumando a coabitar com toda a vida dele. Foi Cole quem quebrou o corrimão da estrada quando ainda era um menino levado, ele quem fizera o armário com escorredor de pratos para sua mãe, no primeiro ano do curso de oficina. Foi ele quem plantou todos os lilases do jardim, embora parecesse impossível, pois eles agora tinham 10 metros de altura. Seu pai o mandara plantá-los para sua mãe no verão em que Cole fez nove anos, como castigo por ter dito um palavrão na frente dela. Lusa estava aprendendo que Cole jamais iria ser o marido para quem se cozinha, com quem a gente se senta para as refei­ções. Ele deveria ser uma segunda infância que acompanharia a sua, o menino que se tornava homem ao longo de todos os anos que levaram ao encontro dos dois. Ela agora podia pedir que contassem histórias de Cole quando era menino, até de gente que não era da família: mulheres na cida­de, estranhos, Mr. Walker. O povo do interior parecia ter vários códigos sobre a morte, mais que os que tinha o povo da cidade, e um deles era o que depois de certo tempo podia-se falar livremente sobre o morto. Con­tar histórias sobre ele, rir sem maldade à custa dele, como se ele tivesse voltado. Parecia a Lusa que todas essas histórias separadas eram partes de uma longa história, a história de uma família que sempre vivera na sua terra. E essa agora também era a sua história.

A tarde, ela ficou sabendo que, se tudo saísse a contento, ela iria rece­ber mais de três dólares e meio por quilo pelas suas cabras. Ao que parece, era um preço jamais visto no condado, para qualquer tipo de carne. Ela agora avaliava esse preço, acostumando-se ao próprio sucesso, apoiada na escada no escuro e esfregando os músculos doloridos da nuca. Era como receber a medalha de ouro. Sozinha ela tinha feito uma coisa dar certo, nesse lugar aparentemente sem esperança. Não tinha a menor importância que ninguém ia reconhecer a sua inteligência. Ninguém sabia da conjunção das festas das principais religiões na semana em que ela vendera as cabras, tal como um importante alinhamento de estrelas num horóscopo espetacular. Só uma hí­brida religiosa como Lusa poderia ter adivinhado e nela jogado todas as suas fichas. O mais provável era que os fatos principais de seu golpe de sorte fos­sem transformados no tipo de boato que corria na loja de Oda Black e na de ferragens, nos quais ninguém acreditava: Lusa tinha um primo ligado a ricos mafiosos italianos. Lusa tinha conseguido contrabandear suas cabras para o rei do Egito. Num lugar como aquele, alguns segredos se mantinham por sua própria incapacidade de competir com os boatos.

Sabia que o sucesso com as cabras não era permanente; não havia panacéia capaz de curar todos os problemas que assolavam as fazendas. Teria de continuar sendo criativa e independente pelo resto da vida. Já havia visto na Southern States as sementes do capim azul que o governo estava pagando para serem plantadas no lugar da festuca, e ficara chocada ao ver o preço da semente. Quase 60 dólares o quilo. Alguém tinha de plantar aquela semente: uma fazenda de sementes de pasto. Imagine os boatos que iriam circular. No ano seguinte ela talvez não pudesse criar cabras, dependendo do calendário, mas muita gente ia começar depois de saber o preço das suas. E depois nem iam poder distribuir as cabras de graça. Lusa começou a entender como seria o resto de sua vida no Con­dado Zabulon. Ia ser uma mulher falada pelos homens.

Essa manha, depois de uma noite terrível, Lusa havia se levantado completamente mudada; abalada, mas bem. Havia cruzado uma porta para um lugar onde sentia o terreno de sua vida firme sob seus pés. A tempes­tade havia passado o mundo a limpo e cortara a eletricidade de todo o condado. Aqui, havia estilhaçado as janelas do lado norte da casa e espanta­do do telhado todos os fantasmas, dos dois lados da família. Passara a noite rezando em todas as línguas que conhecia, sentindo a aproximação do fim, antes de finalmente dormir enrodilhada no lado de Cole na cama, com Charles Darwin nos braços e uma vela acesa na mesinha de cabeceira.

E acordou ressuscitada. Saiu para o jardim, impressionada com os galhos de catalpa espalhados por toda parte e pelas constelações de vidros estilhaçados. As janelas eram uma antigüidade, da época da construção da casa. Depois de tantos anos, aquele lugar estava aprendendo que coisas novas ainda poderiam acontecer.

No primeiro ato confiante de sua nova vida, convocou Little Rickie e o contratou como administrador assistente da fazenda. Combinaram pelo telefone um salário de seis dólares a hora (apesar das regras sobre vizinhos e família), para começar tão logo ele conseguisse encontrar as peças para reparar o enfardador. Ia ceifar o feno e ajudá-la a colocá-lo no celeiro e arrancar todas as flores que suas cabras não tinham conseguido arrancar. Não poderia aplicar herbicida. Discutiram rapidamente esse problema, mas ela venceu, pois agora não era uma discussão entre marido e mulher, como fora a discussão com Cole. Agora era uma condição de emprego. Rickie só poderia usar a ceifadeira mecânica ou uma manual. Não poderia mexer na mata, nem para caçar esquilos, nem veados, nem coiotes, nem ginseng. Seria também tarefa dele encontrar meios educados de evitar que os homens da família viessem caçar na encosta. A fazenda ainda era terra de Widener, mas a mata não era mais de Widener, explicou ela. Não era de ninguém.

Ela iria tomar conta do jardim. Ele se ofereceu, mas ela disse que preferia fazê-lo ela mesma. Havia acordado com um desejo intenso de pôr o lugar em ordem. Não somente arrastar os galhos caídos, mas também cortar os espinheiros que ela deixara avançar durante o verão.

Não conseguia saber a razão, mas sentia-se sitiada e precisava reagir, usar podões e tesourões como se fossem armas contra o invasor. Trabalha­ra ferozmente o dia inteiro, só parou um momento à tarde para atender o telefonema do primo de Nova Iorque. Voltou em seguida e continuou a trabalhar até tarde da noite, sentindo na nuca o hálito da montanha, en­quanto as bruxas circulavam em torno da luz da varanda.

Crystal e Rickie lhe disseram que a família comentara como ela trabalhava duro com as mãos. Pareciam respeitá-la por saber usar ferramentas. Um pouco antes, durante o dia, ela havia ensinado a Rickie como usar uma pá afiada em vez do Roundup para cortar as macieiras nascidas por acaso no gramado. Depois que ele se foi, ela usou a serra para cortar as trepadeiras que cobriam o lado da casa e as árvores, ocupando tudo como fazem geralmente as pragas trepadeiras. Depois arrancou as trepadeiras da fileira de lilases para eles voltarem a florescer.

Agora, na escuridão crescente, ela começou finalmente a arrancar as madressilvas que cobriam a garagem. A luz da lua refletida na parede branca era suficiente para que ela visse o que era necessário ver. Era apenas uma madressilva, uma erva exótica e invasiva, nada de sagrado. Ela agora a via pelo que realmente era, uma planta exótica de jardim que se enrolava em tudo que fosse verde onde quer que humanos e animais consentissem em dividir com ela as próprias vidas.

Arrancou os galhos da parede em longas linhas, que deixava cair como cordas que se enrolavam no chão aos pés da escada. Onde ela arrancava as gavinhas da parede, as linhas escuras das raízes continuavam no lugar, subindo como linhas de pegadas leves de animais a escalar silenciosamente a encosta. Ou como longas espinhas abandonadas ali depois de os corpos terem sido repentinamente arrancados. Ela trabalhava sem descanso na noite fria, libertando-se, sabendo que a madressilva persistiria mais que qualquer outra coisa que ela pudesse inventar ou imaginar. Estaria de volta no próximo verão.

Parou no alto do pasto, aspirando o leve perfume das madressilvas. Parecia estranho alguém estar tão longe a essa hora da noite. Continuou andando no mesmo passo, atravessando rapidamente o pasto na beira da floresta, onde a lua havia encontrado a linha prateada no capim que já levara centenas de animais até ali antes dela. Estava seguindo uma trilha incerta, e estava acostumada à certeza. Mas aqui não havia ameaça. Baixou o nariz e aumentou a velocidade, contornando o longo pasto que forrava todo esse vale, evitando facilmente os arames farpados das cercas. Nunca se aventurava nesses lugares ferozmente abertos, onde havia grupos de animais iluminados pela luz da lua, mas tomava todo o cuidado para não se afastar da margem da floresta com seus cheiros tranqüilizadores de húmus de folhas e frutas em decomposição. Adorava o ar depois de uma chuva forte, e uma expedição desacompanhada em que seu corpo tinha liberdade de correr num passo rápido demais para quem anda acompanhado. Parava pelo caminho toda vez que encontrava um cacho tentador de amoras ou um cheiro que não havia ontem.

Mas ela estava ficando preocupada, tão longe do alto da montanha. Nunca tinha se acostumado à cacofonia de sensações que pairavam no ar no meio daquelas fazendas: os latidos incessantes dos cachorros presos atrás das casas, uivando uns para os outros através do vale, o barulho peri­goso da rodovia distante, e, acima de tudo, os cheiros fortes da empresa humana. Nesse ponto, onde a fileira de pastos se voltava para o outro vale, chegava o cheiro de gasolina que vinha da estrada e do pó lançado sobre as plantações e que irritava seu nariz e que afogava até mesmo a pungência inesquecível de cabras prenhas no pasto mais abaixo.

Chegou a um ponto onde a trilha descia até um terreno cheio de maci­eiras selvagens e hesitou. Gostaria de farejar os tufos de capim alto e os arbustos, em busca de maçãs selvagens, adoçadas pelo sol. Todo aquele mato e o pomar um pouco abaixo tinham um aroma gostoso, a que faltava o cheiro de produtos químicos no ar, que o tornava atraente para roedores e pássaros, assim como a atraía nesse momento. Mas ela estava agitada e con­fusa por estar tão longe da irmã e dos filhotes. Continuou a subida, de volta ao terreno conhecido, onde poderia desaparecer entre moitas e sombras se fosse necessário. Os outros deviam estar chegando do outro vale. O meio mais fácil de encontrá-los a partir desse ponto seria subir diretamente até o topo e começar a chamá-los quando chegasse mais perto. Contornou um maciço de pedras fedendo a musgo úmido e com algumas poças de água barrenta na base - um bom lugar para deixar os pequenos aprenderem a farejar pitus à luz do dia, mas não agora - e então ela entrou na mata antiga e conhecida. Encontrou uma clareira com cheiro de castanhas, onde durante muitos anos castanhas e castanhas foram enterradas no solo por esquilos, que preferiam esse lugar por motivos que ela não conseguia entender. Já havia comido esquilos ali antes, muitas vezes, mas agora estava escuro e eles eram coisi-nhas nervosas, que tinham medo de sair do abrigo dos galhos depois de uma tempestade como aquela. Ainda assim, ela conseguia ouvir as brincadeiras dos esquilos voadores, muito mais corajosos no alto das árvores. Tornou a entrar na mata e parou mais uma vez para farejar um toco enorme que tinha um jardim de fungos ácidos nascendo na base. Geralmente esse toco tinha cheiro de gato, mas ela descobriu que ele não aparecia já há algum tempo.

Parou várias vezes durante a subida da encosta, uma vez para reto­mar um cheiro que havia seguido mais cedo nessa noite, mas o perdeu novamente, porque uma chuva como aquela apagava quase tudo. Era um macho, particularmente interessante por não pertencer ao seu clã; era um desconhecido. Outra família estava chegando do norte, ela já sabia; já tinha ouvido o seu canto à noite, e sabia que estavam perto, mas nunca estiveram antes por ali. Parou mais uma vez para farejar, mas não encontraria aquela trilha, por mais que tentasse. E nessa noite úmida e doce, no início do mundo. Isso não seria problema. Era uma batedora paciente. Quando che­gasse o frio, e depois quando começasse a amainar na próxima estação de acasalamento, todos já saberiam o paradeiro uns dos outros.

Parou para ouvir qualquer som que lhe parecesse inesperado. Nada. Era uma noite parada, cheia de coisas familiares. Esquilos voadores no alto dos carvalhos; um gambá a meio caminho encosta abaixo; um bando de perus empoleirados ali por perto nos galhos de um carvalho que a tempestade havia derrubado; e mais à frente, uma das pequenas corujas que piavam quando a lua estava mais escura. Trotou com pressa pelo topo da montanha, deixando para trás a trilha delicada e sinuosa de suas pegadas e seu cheiro particular.

Se alguém nessa floresta estivesse observando - por exemplo um homem armado, escondido no meio de um maciço de faias - iria notar como ela subia depressa a trilha, atenta ao terreno à sua frente, tão preocupada com sua busca solitária, parecendo desconhecer a presença do caçador. Poderia tê-la acompanhado durante muito tempo, até se con­vencer que ele mesmo e aquela outra vida agitada na sua mira eram as duas únicas criaturas vivas nessa floresta de folhas molhadas, respirando uma atmosfera separada, de certa forma mais rarefeita e importante que o mundo de ar silenciosamente exalado pelas folhas à sua volta.

Mas estaria errado. Solidão é uma presunção humana. Todo passo silencioso é como um trovão para o besouro sob seus pés, um puxão no fio impalpável da teia que aproxima macho e fêmea, predador e presa, um iní­cio ou um fim. Toda escolha é um mundo tornado novo para o escolhido.

   

                                                                                Barbara Kingsolver 

 

 

                      

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