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VIGILANTE DAS ESTRELAS / Isaac Asimov
VIGILANTE DAS ESTRELAS / Isaac Asimov

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

VIGILANTE DAS ESTRELAS

 

A espaçonave condenada

QUINZE MINUTOS PARA ZERO HORA!

      A espaçonave Atlas aguardava o momento de decolar. Suas linhas lustrosas e polidas reluziam na brilhante luz que a Terra refletia, enchendo o firmamento da noite lunar. A proa comprida apontava para cima, em direção ao espaço vazio. O vácuo circundava-a e sob ela se via a superfície de textura vacuolar da Lua. O número de tripulantes era zero. Não havia uma viv'alma a bordo.

      O Dr. Hector Conway, Conselheiro-Chefe de Ciências, perguntou:

      - Que horas são, Gus?

      Sentia-se mal acomodado nos escritórios do Conselho instalados na Lua. Na Terra, estaria localizado bem na ponta da agulha de pedra e aço a que davam o nome de Torre da Ciência. Poderia olhar pela janela na direção da Cidade Internacional.

      Aqui na Lua faziam o melhor que podiam. Os escritórios possuíam janelas de imitação com paisagens terrestres inteligentemente planejadas, servindo de fundo cênico. Tinham cor natural e durante o dia as luzes brilhavam com maior intensidade ou se suavizavam, simulando a manhã, o meio-dia e a tardinha. No decorrer dos períodos noturnos, chegavam mesmo a emitir uma luz azul, escura e fraca.

      Contudo, aquilo não era suficiente para um terrestre, como Conway. Sabia que depararia apenas com miniaturas Pintadas, caso investisse contra os vidros das janelas; e, se fosse além, veria então somente mais uma sala ou, quem sabe, a rocha sólida da Lua.

      O Dr. Augustus Henree, a quem Conway se dirigira, consultou o relógio de pulso. Entremeando as palavras com baforadas do seu cachimbo, disse:

      - Ainda restam quinze minutos. Não vejo razões para preocupações. O Atlas está em perfeitas condições. Eu a inspecionei pessoalmente, ontem.

      - Estou sabendo disto.

      Os cabelos de Conway eram totalmente grisalhos e ele parecia mais velho do que Henree, que possuía um rosto magro e franzino, muito embora os dois fossem da mesma idade. Ele disse:

      - Quem me preocupa é Lucky.

      - Lucky?

      Conway sorriu timidamente e acrescentou:

      - Receio que esteja me acostumando. Estou falando de David Starr. É que hoje em dia praticamente todos o chamam de Lucky. Não os tem ouvido?

      - Lucky Starr, hum? Até que o nome lhe assenta bem. Mas, o que há com ele? Afinal de contas, tudo isto é idéia dele.

      - Exatamente. É o tipo de idéia própria dele. Penso que em seguida tentará manobrar o consulado sírio na Lua.

      - Gostaria que o fizesse.

      - Não brinque. Às vezes acho que você o encoraja na sua idéia de que deve fazer tudo como tarefa a ser executada por um único homem. É por isso que me desloquei até a Lua. Vim para ficar de olho nele e não para vigiar a espaçonave.

      - Hector, se foi para isto que veio até aqui, então não está desempenhando sua missão.

      - Sim, mas acontece que não posso segui-lo a todo lugar, como uma galinha choca. Bigman está com ele. Disse ao sujeitinho que o esfolaria vivo se Lucky resolvesse invadir o consulado sírio sem ajuda de ninguém.

      Henree deu uma risada.

      - Pois bem, eu lhe digo que é bem capaz disto - resmungou Conway. - E, o que é pior, conseguiria safar-se ileso desta façanha.

      - Pois bem, e daí?

      - Isto apenas o estimularia e então, qualquer dia destes, arriscar-se-ia além dos limites; e trata-se de um homem valioso demais para que o percamos.

      John Bigman atravessou o pavimento cheio de argila, carregando com extremo cuidado a caneca de cerveja. Não estendiam os campos da pseudo-gravidade além da própria cidade, de modo que aqui no porto espacial a pessoa tinha que portar-se da melhor maneira possível sob o campo gravitacional da Lua. Felizmente, John Bigman nascera e fora criado em Marte onde a gravidade, de qualquer forma, equivalia apenas a dois quintos da densidade normal, não sendo por conseguinte demasiado ruim. Neste exato momento ele pesava nove quilos. Em Marte pesaria vinte e dois quilos e meio, e na Terra, cinqüenta e quatro quilos e meio.

      Aproximou-se da sentinela, que estivera observando-o com olhos divertidos. A sentinela vergava o uniforme da Guarda Nacional da Lua e estava habituada à gravidade.

      John Bigman disse:

      - Ei, não fique parado aí, com este ar de melancolia. Trouxe uma cerveja para você. Beba, que é por minha conta.

      A sentinela mostrou-se surpresa e disse então com pesar:

      - Não posso. Você sabe que não posso, quando estou de serviço.

      - Muito bem. Acho que posso cuidar disso sozinho. Sou John Bigman Jones. Peço que me chame de Bigman.

      Ele mal chegava à altura do queixo da sentinela, e esta não era de estatura particularmente elevada. Bigman estendeu a mão, como se a sentinela estivesse abaixando-se para apanhar a cerveja.

      - Sou Bert Wilson. Você é de Marte?

      A sentinela olhou para as botas cor vermelho-escarlate de Bigman, que lhe chegavam até os quadris. A não ser um empregado de fazenda de Marte, ninguém se daria ao capricho de usá-las no espaço.

      Bigman contemplou as botas orgulhosamente e observou:

      - Pode estar certo. Estou enfiado aqui dentro há cerca de uma semana. Bendito espaço! Que tremendo penhasco é a Lua. Nenhum de vocês nunca chega a sair para a superfície, em algum momento?

      - Às vezes saímos, quando temos necessidade. Não há muito que ver lá fora.

      - Certamente gostaria de poder ir. Detesto ficar engaiolado.

      - Lá atrás existe uma escotilha que dá para a superfície - disse Bigman.

      Bigman seguiu o rumo do polegar que havia sido apontado rapidamente para trás, por cima do ombro do sargento. O corredor (pobremente iluminado devido à distância a que se encontrava da Cidade Luna) estreitava-se até formar uma reentrância na parede.

      - Não tenho um traje espacial - disse Bigman.

      - Mesmo que o tivesse, não poderia sair. Ninguém está autorizado a sair, sem um passe especial, para permanecer por um determinado período de tempo.

      - Como assim?

      Wilson bocejou:

      - Temos uma nave lá fora, que estão preparando para partir dentro de doze minutos - disse ele, olhando para o relógio. - Depois que tiver partido, talvez o calor desapareça. Não sei o que se passou com ela.

      A sentinela se apoiou nas palmas dos pés e observou o resto da cerveja descer pela garganta de Bigman e disse:

      - Diga-me: você conseguiu a cerveja no Bar Portuário do Patsy? Está lotado o bar?

      - Vazio. Escute: vou lhe dizer uma coisa. Você vai gastar uns quinze segundos para entrar lá e tomar uma. Não tenho nada a fazer. Fico aqui e cuido que nada aconteça enquanto você estiver ausente.

      Wilson olhou com saudade na direção do bar do porto e disse:

      - Acho melhor não ir.

      - Isto é com você.

      Aparentemente nenhum dos dois tomou conhecimento do vulto que passou flutuando por trás deles ao longo do corredor e penetrou no recesso onde a enorme porta da escotilha espacial obstruía a passagem para a superfície.

      Wilson encaminhou-se alguns passos em direção ao Bar, como se estivesse arrastando o resto do seu corpo. Mas logo disse:

      - Não. Acho melhor não ir.

 

DEZ MINUTOS PARA ZERO HORA.

      A idéia fora de Lucky Starr. Ele estivera no escritório da residência de Conway no dia em que chegaram as notícias de que o T.S.S. Waltham Zachary havia sido saqueado pelos piratas, a carga desaparecido, os corpos congelados dos oficiais permanecido flutuando no espaço e os homens, em sua maioria, feitos prisioneiros.

      A própria espaçonave oferecera lamentavelmente uma luta inútil e ficara demasiado danificada para que o pirata se preocupasse em salvá-la. Contudo, apoderaram-se de todas as coisas que podiam ser removidas, dos instrumentos e, naturalmente, até mesmo dos motores.

      Lucky disse:

      - O inimigo é constituído pelo cinturão de asteróides. São uma centena de milhares de rochas.

      - Mais do que isto - corrigiu Conway e cuspiu o cigarro. - Mas, o que podemos fazer? Desde o dia em que o Império Terrestre se transformou num contínuo motivo de preocupações, os asteróides passaram a representar uma situação que não podemos controlar. Temos feito inúmeras incursões até lá para acabar com ninhos deles e toda vez deixamos um número suficiente capaz de alimentar novos problemas. Há vinte e cinco anos, quando...

      O cientista de cabelos brancos calou-se abruptamente. Há vinte e cinco anos, os pais de Lucky foram mortos no espaço e ele próprio, um garotinho, fora lançado à sua própria sorte.

      Lucky não deixava transparecer nenhuma emoção em seus calmos olhos castanhos e disse:

      - O problema é que nem sequer sabemos onde ficam situados todos os asteróides.

      - Naturalmente que desconhecemos. Seriam necessários uma centena de espaçonaves e um século para obter as informações sobre os asteróides de tamanho considerável. E mesmo assim, até lá, a atração de Júpiter mudaria continuamente a órbita dos asteróides, deslocando-os de um lugar para o outro.

      - Apesar disto poderíamos tentar. Se enviássemos uma aeronave, os piratas não considerariam esta nossa medida uma tarefa impossível e temeriam as conseqüências de um verdadeiro levantamento através de mapas. Se transpirasse alguma informação de que iniciáramos a inspeção geral por meio de mapas, a espaçonave poderia ser atacada.

      - E então, o que aconteceria?

      - Imaginemos que enviamos uma nave automática, completamente equipada, mas sem pessoal.

      - Seria algo muito dispendioso.

      - Mas poderia valer a pena. Suponhamos que a equipemos com salva-vidas automaticamente planejados para deixar a espaçonave quando os instrumentos registrassem o padrão energético de um motor hiperatômico que se aproximasse. O que acha que os piratas fariam?

      - Reduziriam os salva-vidas a metal flutuante, embarcariam na espaçonave e a levariam para a sua base.

      - Ou a uma de suas bases. Sem dúvida. E se vissem os salva-vidas tentando afastar-se, não ficariam surpresos se não encontrassem ninguém a bordo. Afinal de contas, seria uma espaçonave desarmada, destinada à pesquisa. Não é de se esperar que a tripulação tente opor resistência.

      - Muito bem. Aonde quer chegar?

      - Imagine, ainda, que a espaçonave esteja regulada por meio de ondas de rádio destinadas a fazê-la explodir, quando a temperatura atingir vinte graus absolutos, como certamente aconteceria, se fosse levada para o interior de um hangar para asteróides.

      - Está propondo uma bomba camuflada, não é?

      - Sim, uma gigantesca. Reduziria um asteróide a escombros. Poderia destruir dúzias de aeronaves piratas. Além do mais, os observatórios em Ceres, Vesta, Juno ou Pallas poderiam detectar a explosão. Em seguida, se pudéssemos localizar os piratas sobreviventes, conseguiríamos, então, obter informações que seriam realmente muito úteis.

      - Compreendo.

      Então deram início aos trabalhos no Atlas.

      A figura indistinta no recesso que conduz à superfície lunar trabalhou com rapidez e exatidão. Os controles selados das câmaras de compressão cederam sob o raio fino como a ponta de uma agulha de um revólver-térmico. O disco metálico protetor abriu-se repentinamente. Por alguns instantes afluiram dedos atarefados e revestidos de luvas pretas. Em seguida o disco foi recolocado e soldado com segurança no lugar por um raio mais amplo e menos quente da mesma arma.

      A porta da câmara de compressão escancarou-se. Não soou o alarma que costumava ser acionado sempre que a porta era aberta, pois os circuitos introduzidos atrás do disco haviam sido desarranjados. O vulto entrou no compartimento e a porta fechou-se atrás dele. Antes de abrir a porta da superfície que dava para o vácuo, o vulto desenrolou o plástico flexível que carregava debaixo do braço e vestiu-se apressadamente. O material cobriu-o totalmente, aderindo ao seu corpo, interrompido somente por uma tira transparente de silicone à altura dos olhos. Um pequeno cilindro de oxigênio líquido foi adaptado a uma mangueira curta que ia até o capacete e ficava presa ao cinto. Tratava-se de um semitraje especial, desenhado para viagens rápidas através duma superfície desprovida de ar, sem garantia de aue poderia ser usado em tempo que ultrapassasse meia hora.

      Sobressaltado, Bert Wilson girou rapidamente a cabeça e perguntou:

      - Ouviu isto?

      Bigman encarou-o com olhar de pasmo para a sentinela e respondeu:

      - Não ouvi nada.

      - Sou capaz de jurar que era uma câmara de compressão que se fechou. E no entanto não soou nenhum alarma.

      - E devia soar?

      - Claro que sim. Você precisa saber quando uma porta está sendo aberta. Quando existe ar, soa uma campainha; quando não existe ar, então acende-se uma luz. Caso contrário alguém está sujeito a abrir a outra porta e deixar sair todo o ar duma espaçonave ou de um corredor.

      - Muito bem. Assim sendo, se não soou o alarma, não há motivo para preocupação.

      - Não estou certo.

      Com saltos rentes, cada um cobrindo uma distância de seis metros, dados na escassa gravidade lunar, a sentinela percorreu o corredor e foi até o lugar em que ficava a câmara de compressão. No trajeto, deteve-se diante de um painel fixado à parede e acionou três bancos separados de Floressoes. instalados no teto, inundando a área com uma luz meridional.

      Bigman acompanhou a sentinela. dando saltos desajeitados, correndo o risco constante de perder o equilíbrio e de fazer uma lenta aterrissagem de nariz.

      Wilson havia tirado seu detonador. Inspecionou a porta e logo virou-se para dar uma olhada de novo no corredor.

      - Tem certeza de que não ouviu nada?

      - Não. Não ouvi nada - confirmou Bigman. - Naturalmente, não estava prestando atenção.

 

CINCO MINUTOS PARA ZERO HORA

      A rocha lunar produzia ruídos estrepitosos enquanto o vulto com roupas espaciais se movia em câmara lenta na direção do Atlas. A espaçonave refletia a luz terrestre, mas na superfície sem ar da Lua a luz não penetrava nem um centímetro na sombra das cordilheiras que circundavam o porto.

      Com três longos saltos, o vulto atravessou o trecho iluminado e adentrou a sombra tétrica formada pela espaçonave.

      Subiu a escada usando as mãos, lançando-se numa flutuação vertical que o fazia galgar dez degraus de uma só vez até alcançar a câmara de compressão impermeável ao ar da espaçonave. Parou um momento diante dos controles. A porta da câmara se escancarou e fechou-se em seguida. O Atlas tinha um passageiro. Um único passageiro!

 

      A sentinela postou-se diante da câmara de compressão do corredor e estudou-lhe o aspecto, cheia de dúvidas. Bigman continuava a conversar animado e disse:

      - Estive aqui faz quase uma semana. Devo seguir o meu amigo por toda parte e tomar todo cuidado para que ele não se meta em encrencas. Que acha disto para um demandista do espaço como eu? Não tive uma possibilidade de safar-me...

      A agoniada sentinela respondeu:

      - Dê uma folga, amigo. Veja, você é um sujeito e tanto, mas deixemos isto para outra ocasião.

      Durante alguns instantes olhou fixamente o selo de controle e comentou:

      - Esquisito.

      Bigman estava se tornando detestavelmente arrogante. Seu pequeno rosto enrubesceu. Agarrou a sentinela pelo braço e sacudiu-a de um lado para outro, quase que perdendo ele próprio o equilíbrio ao fazê-lo.

      - Ó cara, a quem está chamando de moleque?

      - Escute, dê o fora daqui.

      - Espere um instante. Vamos pôr as coisas em ordem. Não pense que vou ser insultado porque não sou tão grande como o outro sujeito. Mãos ao alto! Em frente, vamos! Se não quer que lhe arrebente o nariz.

      Ele se defendia com os braços e os punhos, em atitude de pugilismo, movimentando-se rapidamente de um lado para o outro.

      Wilson olhou-o atônito:

      - O que deu em você? Pare de bancar o idiota!

      - Está com medo?

      - Não posso brigar em serviço. Ademais, não tive a intenção de ofendê-lo. Tenho um trabalho a executar e não Disponho de tempo para perder com você.

      Bigman baixou os punhos e disse:

      - Hei, veja, acho que a espaçonave está decolando. Evidentemente não houve nenhum som, porquanto o som não se propaga através do vácuo, mas o chão debaixo dos seus pés vibrou levemente, reagindo às marteladas do exaustor de um foguete que impulsionava uma espaçonave, afastando-a de um planeta.

      - É isto mesmo. Não há dúvida.

      A testa de Wilson se enrugou e ele continuou:

      - Acho que de nada adianta fazer um relatório. De qualquer forma, é tarde demais.

      Esquecera-se por completo do selo do controle.

 

ZERO HORA

      O cilindro de descarga revestido de cerâmica abriu-se sob o Atlas e os principais foguetes explodiram furiosamente dentro dele. A aeronave ergueu-se lenta e majestosamente, elevando-se pesadamente. Sua velocidade foi aumentando. Penetrou no céu escuro, diminuindo gradualmente de tamanho até que se transformou numa estrela entre muitas outras, e finalmente desapareceu.

      O Dr. Henree consultou o relógio pela quinta vez e disse:

      - Muito bem, já partiu. Deve ter decolado agora. - Ele indicou o mostrador com o cano do cachimbo.

      Conway sugeriu:

      - Vamos verificar com as autoridades portuárias?

      Daí a segundos, estavam observando na tela panorâmica O porto espacial que se achava vazio. O cilindro de descarga continuava aberto. Apesar do frio quase total reinante na face escura da Lua, o cilindro continuava fumegando.

      Conway meneou a cabeça e comentou:

      - Era uma bela aeronave.

      - E ainda é.

      - Penso nela no pretérito. Dentro de poucos dias não passará duma chuva de metal derretido. É uma nave condenada.

      - Oxalá exista uma base pirata em algum lugar, a qual esteja também condenada.

      Henree concordou melancolicamente, com um aceno de cabeça.

      Quando a porta foi aberta, ambos giraram a cabeça. Era apenas Bigman.

      Ele esboçou rapidamente um sorriso malicioso, arreganhando os dentes:

      - Olá, rapaz, como foi bom entrar na Cidade Luna.

      Cada passo que se dava se podia sentir o peso voltar.

      Bateu com os pés no chão e pulou duas ou três vezes, continuando:

      - Veja, experimente fazer isto onde eu estive e verá que baterá com a cabeça no teto, ficando com a cara de bobo.

      Conway franziu o cenho e perguntou:

      - Onde está Lucky?

      - Sei onde está! - respondeu Bigman. - Sei do seu paradeiro a cada minuto. Pois bem. O Atlas acaba de decolar.

      - Sei disto - disse Conway, - Mas, onde está Lucky?

      - No Atlas, evidentemente. Onde acha que poderia estar?

 

Os vermes do espaço

      O Dr. Henree deixou cair o cachimbo, que pulou como bola no pavimento de lanolite. Ele não deu importância ao fato.

      - O quê?

      Conway enrubesceu e seu rosto, totalmente avermelhado, contrastou profundamente com os cabelos cor de neve.

      - Trata-se duma brincadeira?

      - Não. Ele embarcou cinco minutos antes da decolagem. Eu estava conversando com a sentinela, um sujeito chamado Wilson, e o impedi de interferir. Tive que chamar o sujeito para a briga e lhe teria aplicado aquela surra - e fez uma demonstração de rápida seqüência de dois socos, desferindo fortes golpes no ar - se não se tivesse acovardado.

      - Você o deixou? Por que não nos avisou?

      - Como poderia eu? Tenho que obedecer às ordens de Lucky. Ele disse que teria que embarcar no último instante, sem qualquer aviso porque, do contrário, você e o Dr. Henree o impediriam.

      Conway suspirou profundamente, como num ronco.

      - Gus, ele embarcou. Por Deus do céu. Eu devia estar mais bem informado quando confiei naquele marciano de meia tigela. Ó Bigman, seu estúpido! Você sabe muito bem que aquela espaçonave é uma bomba camuflada.

      - Claro que sei, e Lucky também. Ele mandou dizer que não enviem naves atrás dele, senão tudo irá por água abaixo, se arruinará.

      - E vão mandar, não acha? De qualquer forma dentro de uma hora haverá homens no encalço dele.

      Henree agarrou a manga do amigo e disse:

      - Talvez não, Hector. Não sabemos o que ele tenciona fazer, mas podemos esperar que se safe são e salvo das dificuldades, sejam quais forem. Não vamos interferir.

      Conway recuou, trêmulo de raiva e ansiedade.

      - Ele mandou dizer que devemos entrar em contato com ele em Ceres - disse Bigman - e que também o senhor, Dr. Conway, deve controlar seu mau humor.

      - Você, seu... - começou Conway e Bigman saiu apressadamente da sala.

      A órbita de Marte ficou para trás e o Sol transformou-se num ponto contraído.

      Lucky Starr era apaixonado pela ciência do espaço. Desde sua graduação e filiação ao Conselho de Ciências, o espaço tornara-se seu lar, mais do que qualquer outra superfície planetária. E o Atlas era uma aeronave confortável. Havia sido aparelhada para receber uma tripulação completa, sendo omitido apenas o que poderia ser explicado como consumo antes de chegar aos asteróides. O Atlas fora planejado em todos os sentidos para dar a impressão de que estava com a tripulação completa, até o aparecimento dos piratas.

      E assim Lucky comeu um bife sintético, produzido com os fermentes dos canteiros de cultivo de Vênus, pastelaria marciana, e frangos sem ossos da Terra.

      Vou engordar - pensou ele - e observou o céu.

      Estava suficientemente próximo para distinguir os asteróides maiores. Lá estava Ceres, o maior de todos, com um diâmetro de aproximadamente quinhentas milhas; Vesta encontrava-se do outro lado do Sol, mas Juno e Pallas podiam ser vistos.

      Se usasse o telescópio da nave, descobriria mais alguns milhares, talvez dezenas de milhares. Eram em quantidade incalculável.

      Outrora se acreditou que entre Marte e Júpiter existiria um planeta, o qual em eras geológicas anteriores explodira, transformando-se em fragmentos, mas na realidade não foi o que se deu. Quem fazia o papel de birbante era Júpiter. Sua gigantesca influência gravitacional desintegrara o espaço numa extensão de centenas de milhões de milhas ao seu redor, nas eras em que o Sistema Solar estava sendo formado. A poeira cósmica que se espalhou entre o próprio planeta e Marte nunca conseguiu aglutinar-se para formar um único planeta, e isto devido à constante ação gravitacional de Júpiter. Ao invés disso, agregou-se para formar miríades de pequenos mundos.

      Lá estavam os quatro maiores, cada um com um diâmetro de cem milhas ou até mais. Havia outros mil e quinhentos com um diâmetro de cento e dez milhas. Depois desses existiam milhares (ninguém sabia exatamente quantos) que tinham um diâmetro que variava de uma até dez milhas; e havia também dezenas de milhares com um diâmetro menor que uma milha, sendo contudo tão grandes ou maiores do que a Grande Pirâmide.

      Havia tal abundância deles que os astrônomos os denominavam "Vermes do Espaço".

      Os asteróides espalhavam-se sobre toda a região entre Marte e Júpiter, cada um girando em sua própria órbita. Nenhum outro sistema planetário conhecido do homem, em toda a Galáxia, possuía semelhante cinturão de asteróides.

      Num certo sentido era bom, porque os asteróides serviam de trampolins que permitiam alcançar os planetas mais importantes. Mas, por outro lado, era mau. Qualquer criminoso que conseguisse fugir para os asteróides teria quase todas as possibilidades de ficar a salvo de ser capturado. Nenhuma força policial conseguiria vasculhar uma por uma aquelas montanhas voadoras.

      Os asteróides menores eram terra de ninguém. Notadamente em Ceres, nos asteróides maiores havia observatórios astronômicos bem equipados de pessoal. Em Pallas existiam minas de berílio, enquanto Juno e Vesta serviam como importantes estações de reabastecimento. Contudo, restavam ainda cinqüenta mil asteróides de porte considerável sobre os quais o Império Terrestre não exercia qualquer tipo de controle. Alguns deles eram bastante grandes que podiam ser utilizados como ancoradouros de frotas espaciais. Alguns eram demasiado pequenos para uma viagem de cruzeiro com espaço adicional, talvez para um suprimento de seis meses de combustível, alimentos e água.

      E era impossível fazer um levantamento cartográfico deles. Mesmo em tempos idos, nas eras pré-atômicas, antes das viagens espaciais - quando eram conhecidos apenas uns mil e quinhentos, e ainda os maiores - o seu mapeamento se tornara inviável. Suas órbitas haviam sido cuidadosamente calculadas por meio da observação telescópica, mesmo assim, os asteróides eram dados constantemente como "perdidos" para serem, depois, "redescobertos".

      Lucky interrompeu subitamente suas divagações. O sensível Ergômetro estava captando pulsações das regiões externas. Deu um passo e aproximou-se do painel de controle.

      Quer próximo por via direta, quer por meio da poeira relativamente minúscula que era refletida dos planetas, a constante energia que transbordava do Sol fora eliminada no medidor. O que surgia agora eram as pulsações intermitentes características de um motor hiperatômico.

      Lucky ligou a conexão do Ergômetro e o padrão de energia se delineou numa série de linhas. Seguiu o papel diagramado à medida que o mesmo emergia e os músculos do seu queixo retesaram-se.

      Persistiu sempre a possibilidade de que o Atlas pudesse encontrar uma nave mercante comum ou uma espaçonave de passageiros, no entanto o padrão energético não revelava indício de nenhuma das duas possibilidades. A nave que se aproximava possuía motores de esquema avançado e diferente de qualquer nave da frota terrestre.

      Decorreram cinco minutos até que conseguisse uma extensão de medidas que lhe possibilitassem calcular a distância e a direção da fonte de energia.

      Ajustou o foco de visão panorâmica para observação telescópica e o campo estelar apresentou-se salpicado de pontos brilhantes. Com extremo cuidado, inspecionou as estrelas infinitamente distantes, infinitamente silenciosas e infinitamente estáticas até que a seus olhos se revelou um rápido lampejo de movimento e as leituras do mostrador do Ergômetro registraram zero múltiplo.

      Não havia dúvida de que se tratava de um pirata! Conseguiu distinguir o perfil da nave pela metade que brilhava a luz do Sol e pelas luzes do porto que se projetavam na outra metade mergulhada em sombras. Era uma nave delgada e de linhas elegantes, aparentando ser muito veloz e de grande maleabilidade. Era, também, uma nave de aspecto diferente, pelo que parecia.

      - Deve ser um desenho da estrela Sírio - opinou Lucky.

      Ele observou a nave ampliar-se cada vez mais na tela. Foi uma nave deste tipo que seus pais viram no último dia de suas vidas.

      Ele tinha uma vaga lembrança de seu pai e de sua mãe, mas vira fotografias deles e ouvira estórias sem fim sobre Lawrence e Bárbara Starr, contadas por Henree e Conway. O alto e imponente Gus Henree, o colérico e perseverante Hector Conway bem como o sagaz e risonho Larry Starr haviam sido inseparáveis. Freqüentaram a mesma escola, formaram-se ao mesmo tempo, entraram para o Conselho como uma só pessoa e desincumbiram-se de todas as tarefas como uma equipe.

      Posteriormente Lawrence Starr fora promovido e designado para uma viagem em missão especial a Vênus. Ele, a esposa e o filho de quatro anos de idade estavam a caminho de Vênus, quando a espaçonave pirata atacou.

      Durante quatro anos Lucky ficou pensando desgostosamente nos acontecimentos que se desenrolaram naquela última hora. Quando a espaçonave ia desaparecendo: Inicialmente, o enfraquecimento dos principais foguetes propulsores na popa, enquanto os piratas e as vítimas estavam ainda separados. Em seguida, a explosão das câmaras de compressão e, finalmente, a abordagem; a tripulação e os passageiros lutando desesperadamente para vestir as roupas espaciais no momento em que as câmaras cederam; a tripulação armada e à espera; os passageiros acotovelados nas salas interiores, sem muitas esperanças, mulheres chorando, crianças gritando.

      Seu pai não estava entre os que buscavam abrigo. Era um membro do Conselho. Armara-se e fora para a luta. Lucky tinha certeza disto. Ele guardava uma recordação, uma ligeira lembrança que se gravara em sua mente. No instante em que a porta da sala ruiu para dentro, levantando uma nuvem de fumaça negra, seu pai, um homem alto e forte, estava em pé, com o detonador em posição de disparar e o rosto tomado de uma fúria violenta, o que deve ter sido um dos poucos momentos que tal coisa aconteceu em sua vida. Sua mãe - com o rosto úmido e esfumaçado, enxergando, porém, claramente através da viseira do capacete do traje espacial - estava forçando para fazê-lo entrar num pequeno salva-vidas.

      - Não chore, David, tudo dará certo.

      Em toda a sua vida, eram as únicas palavras de que tinha lembrança ter ouvido sua mãe pronunciar. Ouviu-se, em seguida, um estrondo, às suas costas, e ele foi pressionado contra uma parede.

      Encontraram-no no salva-vidas dois dias depois, quando seguiram os pedidos de socorro das ondas quase imperceptíveis do seu rádio automático.

      Logo após estes acontecimentos, o governo desfechara uma campanha implacável contra os piratas dos asteróides e o Conselho hipotecara ao movimento até as últimas reservas do seu próprio esforço. Os piratas concluíram que atacar e matar elementos proeminentes do Conselho constituía um mau negócio. À medida que eram localizados, os redutos de asteróides eram dizimados e reduzidos a pó e assim a ameaça dos piratas ficou restrita ao mínimo durante uns vinte anos.

      Contudo, Lucky se perguntava com freqüência se algum dia teriam conseguido localizar a nave corsária particular que transportara os homens que haviam assassinado seus progenitores. Não havia meio de saber.

      Agora, a ameaça revivera de modo menos espetacular, porém muito mais perigosa. A pirataria já não era mais questão de golpes desfechados isoladamente, mas revestia aspectos de uma investida organizada contra o comércio terrestre. E, mais do que isto. Em virtude da natureza das hostilidades em marcha, Lucky tinha absoluta certeza de que por trás de tudo havia uma mente, uma orientação única estratégica que dirigia as atividades bélicas. E era justamente esse mentor que teria que descobrir - pensou ele.

      Mais uma vez reparou no Ergômetro. Agora os registros energéticos eram fortes. A outra nave encontrava-se exatamente dentro da distância que o acordo de cortesia espacial determinava que fossem trocadas mensagens de mutua identificação. No que diz respeito ao assunto, estava enquadrada perfeitamente e na distância em que um corsário poderia ter empreendido seu ataque hostil inicial.

      O piso estremeceu sob os pés de Lucky. Não se tratava de um disparo da outra nave, mas do impacto produzido pela partida de um salva-vidas. Os impulsos de energia haviam ganho força suficiente para ativar os seus controles automáticos.

      Outro abalo. Mais um. Cinco ao todo.

      Ele estudou atentamente a nave que se aproximava. Os piratas freqüentemente disparavam contra tais salva-vidas, em parte pelo prazer malvado de se divertirem e em parte para impedir que os fugitivos descrevessem a nave, supondo que já o tinham feito através do espaço celeste.

      Desta feita, contudo, a nave ignorou por completo a presença dos salva-vidas. Aproximou-se a uma distância de atracação.

      Seus arpéus magnéticos foram postos para fora, agarrando-se ao casco do Atlas, e subitamente as duas naves ficaram ligadas uma à outra e os seus movimentos pelo espaço foram coordenados.

      Lucky aguardou.

      Alguém surgiu na porta. O capacete e as luvas haviam sido removidos, mas o resto do seu corpo ainda estava envolto na roupa espacial protegida por uma camada de gelo. Isto acontecia habitualmente com os trajes espaciais, quando alguém, procedente do zero quase absoluto do espaço, entrasse numa nave com temperatura interior morna e úmida. O gelo estava começando a derreter-se.

      Só depois de ter dado dois passos completos no interior da sala de controle é que o corsário avistou Lucky. Parou, seu rosto ficou paralisado de assombro, mostrando uma expressão quase cômica de surpresa. Lucky teve tempo de notar os escassos cabelos pretos, o nariz comprido e a profunda cicatriz que começava na narina e terminava nos dentes caninos, dividindo o lábio superior em duas partes desiguais.

      Lucky enfrentou e sustentou calmamente o olhar perscrutador e atônito do pirata. Não temia ser reconhecido. Os membros do Conselho, quando em serviço, sempre trabalhavam sem publicidade, cônscios de que um rosto demasiadamente conhecido diminuiria o seu desempenho. O rosto do próprio pai havia aparecido no espaço celeste somente após sua morte. Com fugaz melancolia Lucky refletiu que melhor publicidade durante a vida talvez evitasse o ataque dos piratas. Mas compreendeu que aquilo era bobagem, pois a esta altura os piratas tinham avisado Lawrence Starr e o ataque já se tornara por demais encarniçado para ser interrompido.

      Lucky falou:

      - Tenho um detonador. Só farei uso dele se tentar pegar o seu. Não se mexa.

      O pirata que ficara boquiaberto fechou de novo a boca.

      Lucky continuou:

      - Se quiser chamar os outros, pode chamá-los.

      O pirata fitou-o com os olhos arregalados, cheio de desconfiança. Em seguida, fitando atentamente o detonador de Lucky, berrou:

      - Maldito espaço! Temos aqui um matador empunhando um revólver!

      Imediatamente explodiu uma gargalhada e uma voz gritou:

      - Silêncio!

      - Fique de lado, Dingo - ordenou outro homem que entrou na sala.

      Despiram-lhe completamente o traje espacial e ele se transformou numa figura incongruente a bordo. O traje que vestia deve ter sido confeccionado na mais elegante alfaiataria da Cidade Luna e ficaria mais apropriado para um jantar de cerimônia na Terra. A caminha era de aspecto sedoso que só se conseguiria com o melhor material plástico. Possuía uma iridescência mais sutil que espalhafatosa. Com exceção do cinto enfeitado, seus calções apertados nos tornozelos combinavam tão bem com a roupa, que teriam dado a impressão de que se tratava de um traje único. O punho da camisa casava bem com o cinto e a gola fofa azul celeste. Seus cabelos castanhos e encaracolados pareciam receber constantes tratos.

      Era um pouco mais baixo que Lucky; mas, em vista do seu comportamento, o jovem membro do Conselho pôde discernir que seria completamente errônea qualquer suposição de urbanidade que pudesse formar com base no traje janota do homem.

      O recém-chegado falou com amabilidade:

      - Anton é o meu nome. Quer baixar a arma, por favor?

      Lucky retrucou:

      - E ser morto por um disparo?

      - Eventualmente pode ser que venha a ser morto com um disparo, mas não agora. Primeiramente gostaria de interrogá-lo.

      Lucky não se moveu.

      Anton disse:

      - Cumpro o que prometo. - Um leve rubor assomou-lhe no rosto e continuou: - É a minha única virtude, como os homens entendem a virtude, mas eu me apego a ela.

      Lucky depôs o detonador e Anton apanhou-o, entregando-o ao outro pirata.

      - Guarde-o, Dingo, e retire-se. - Dirigiu-se a Lucky:

      - Os outros passageiros escaparam nos salva-vidas, não é verdade?

      Lucky retrucou:

      - Trata-se duma evidente armadilha, Anton...

      - Capitão Anton, por favor - corrigiu ele, sorrindo enquanto suas narinas tremiam.

      - Pois bem, quer dizer que é uma armadilha. Capitão Anton. Era evidente que sabia que nesta nave não havia nem passageiros nem tripulação alguma. Sabia disto muito antes de embarcar.

      - É mesmo? Como chegou a esta conclusão?

      - Porque se aproximou da nave sem nenhuma comunicação por sinal e sem nenhum disparo de advertência. Não desenvolveu uma velocidade especial. Ignorou os salva-vidas quando foram lançados. Seus homens entraram na nave sem nenhuma precaução como se não esperassem nenhuma resistência. O homem que me viu logo de início entrou nesta sala com o detonador completamente enfiado no coldre. A conclusão é óbvia.

      - Muito bem. E o que está fazendo numa espaçonave sem tripulantes nem passageiros? Lucky retrucou rispidamente:

      - Vim vê-lo. Capitão Anton.

 

Duelo de palavras

      Não se notou nenhuma mudança de expressão no rosto de Anton:

      - E agora está me vendo.

      - Mas não em particular, Capitão.

      Os lábios de Lucky afinaram-se, trancando-se com grande deliberação.

      Anton olhou rapidamente à volta. Uma dúzia de seus homens, em todos os estágios possíveis da remoção dos trajes espaciais, havia lotado a sala, observando e prestando atenção com vivo interesse.

      Ele ruborizou levemente. Sua voz elevou-se - Vão cuidar dos seus afazeres, sua ralé! Quero um relatório completo desta nave. Mantenham as armas prontas para ação. Pode haver mais homens a bordo e se mais algum for apanhado desprevenido como Dingo, será jogado fora pela câmara de compressão.

      Ouviu-se um ruído de arrastar de pés saindo da sala. Anton gritou repentinamente:

      - Rápido! Rápido!

      Fez um movimento ondulante com o braço e logo um detonador estava em sua mão:

      - Vou contar até três e atirar. Um... dois...

      Os homens desapareceram.

      Ele encarou novamente Lucky. Seus olhos luziam e a aspiração entrava e saía rapidamente pelas pálidas narinas contraídas.

      - A disciplina é uma grande coisa - murmurou. - eles têm que me temer. Têm que me temer mais do que receiam ser capturados pela Frota Terrestre. Uma nave deve ser uma só mente e um só braço. Minha mente e meu braço.

      - Sim - ponderou Lucky - uma mente e um braço: mas de quem? A mente e o braço dele?

      Anton voltou a sorrir, com um sorriso travesso, amistoso e franco:

      - Agora, diga-me o que deseja.

      Lucky apontou rapidamente com o polegar para o detonador do outro, que continuava fora do coldre e pronto. Ele correspondeu ao sorriso e perguntou:

      - Pretende atirar? Caso afirmativo, acabe logo com isto.

      Anton enervou-se:

      - Ó céus! Como você é calmo. Atirarei quando quiser. Gosto das coisas como estão. Como se chama?

      O detonador continuou firme, apontado para o alvo.

      - Chamo-me Williams, Capitão.

      - Williams, você um homem alto. Parece forte. Todavia, estou aqui sentado e com a simples pressão do meu polegar você é um homem morto. Acho isto muito instrutivo. Dois homens e um detonador, eis todo o segredo do poder. Já pensou no poder, Williams?

      - De vez em quando.

      - É o único significado da vida, não acha?

      - Talvez.

      - Vejo que está ansioso por tratar de negócios. Vamos começar. Por que está aqui?

      - Ouvi falar de piratas.

      - Williams, somos homens dos asteróides. Não existe outra denominação.

      - Serve também. Vim para associar-me aos homens dos asteróides.

      - Lisonjeia-nos, mas fique sabendo que o meu polegar continua no contato do detonador. Por que quer associar-se a nós?

      - Porque na Terra a vida se encerrou, Capitão. Um homem como eu poderia estabelecer-se como contador ou engenheiro. Poderia mesmo dirigir uma fábrica ou sentar-se a uma escrivaninha e votar nas assembléias de acionistas. Mas isto não vem ao caso. Seja como for, sempre será rotina. Conheceria minha vida do começo ao fim. Mas não haveria nenhuma sensação de aventura, de expectativa.

      - Williams, você é um filósofo. Prossiga.

      - Existem as colônias, mas não sinto nenhuma atração na vida de empregado de fazenda em marte ou de fabricante de bebidas em Vênus. O que realmente me atrai é a vida nos asteróides. Leva-se uma vida dura e cheia de perigos. Um homem tem possibilidades de galgar o poder, como você. Conforme você afirma, o poder dá significado à vida.

      - E por isso escondeu-se numa espaçonave vazia?

      - Não sabia que estava vazia. Precisava me ocultar em algum lugar. As passagens normais para os vôos espaciais são caras e os passaportes para os asteróides atualmente não estão sendo fornecidos. Eu estava inteirado de que esta nave fazia parte de uma expedição de levantamento cartográfico. A notícia espalhou-se que estava programada para os asteróides. Foi por isso que esperei até que decolasse. Seria quando todos estariam ocupados, preparando-se para a decolagem, e as câmaras de compressão estariam ainda abertas. Mandei um amigo pôr a sentinela fora de circulação.

      - Imaginei que faríamos uma parada em Ceres. Seria decisivamente a Primeira Base para qualquer expedição com destino aos asteróides. Uma vez ali, parecia-me que poderia escapar sem problemas. A tripulação seria composta de astrônomos e matemáticos. Bastaria surrupiar-lhes os óculos que ficariam cegos; apontar-lhes um detonador e morreriam de medo. Uma vez em Ceres, entraria em contato com os pir... sim, de qualquer forma com os homens dos asteróides. Simples.

      - Somente que teve uma surpresa quando embarcou na aeronave, não é? - perguntou Anton.

      - Contar-lhe-ei como foi. Não tendo ninguém a bordo e antes mesmo que eu me convencesse de que não havia mesmo ninguém nela, a nave decolou.

      - Como foi que aconteceu tudo isto, Williams? Como imagina que as coisas teriam acontecido?

      - Não sei. Está acima de minha compreensão.

      - Pois bem, vamos ver se descobrimos. Juntos, você e eu.

      Ele fez um gesto com o detonador e disse rispidamente:

      - Vamos!

      Encaminhando-se à frente, o comandante pirata saiu da sala dos controles e entrou no longo corredor central da nave. Logo um grupo de homens apareceu na porta diante deles. Resmungavam comentários entre si e calaram-se assim que perceberam a presença de Anton, que os fitava.

      - Venham cá - chamou-os Anton.

      Eles aproximaram-se. Um deles limpou o bigode grisalho com as costas da mão e disse:

      - Capitão, não há mais ninguém a bordo da nave.

      - Muito bem. O que acha da nave?

      Eram quatro homens. O número aumentou, com mais homens que se juntavam ao grupo. A voz de Anton tornou-se irascível:

      - Alguém de vocês sabe me dizer o que pensa da aeronave?

      Dingo adiantou-se. Desfizera-se do traje espacial e Lucky podia vê-lo tal qual um homem. Não era uma visão totalmente agradável. Tinha um corpo amplo e pesado, braços levemente curvados para dentro, que lhe pendiam frouxamente dos ombros salientes. Viam-se tufos de pelos pretos nas costas dos dedos e a cicatriz no lábio superior se repuxava constantemente. Seus olhos fitavam penetrantes Lucky.

      - Não gosto dela - disse Dingo.

      - Não gosta da nave? - perguntou Anton estridentemente.

      Dingo vacilou. Endireitou os braços e aprumou os ombros:

      - É uma porcaria.

      - Por quê? Por que fala assim?

      - Seria capaz de abri-la com um abridor de latas. Pergunte aos outros e veja se não concordam comigo. Este engradado é montado com palitos de dentes. Não continuaria em pé por mais três meses.

      Houve murmúrios de concordância. O homem de bigodes grisalhos falou:

      - Desculpe-me, Capitão, mas os fios estão presos nos devidos lugares com fitas adesivas. É uma espaçonave feita aos trancos sem nenhum valor. O isolamento está praticamente todo queimado.

      - Toda a soldagem foi feita às pressas - observou outro – e as emendas são tão visíveis como isto - disse ele, erguendo o polegar grosso e imundo.

      - E quanto a consertos? - perguntou Anton.

      - Levariam uma eternidade - disse Dingo. - Não vale a pena. De qualquer modo, não poderíamos consertá-la aqui. Teríamos que levá-la a uma das rochas.

      Anton voltou-se para Lucky e explicou amavelmente:

      - Sabe, sempre nos referimos aos asteróides como "rochas", ouviu?

      Lucky acenou afirmativamente com a cabeça.

      Anton prosseguiu:

      - Meus homens são aparentemente de opinião que não fariam questão de manobrar esta nave. Por que supõe que o governo terrestre haveria de enviar uma nave vazia e, além do mais, um engenho tão mal construído só para se pavonear?

      - A coisa está ficando cada vez mais confusa - disse Lucky.

      - Pois bem, vamos completar nossas investigações. - Anton caminhou na frente, seguido de perto por Lucky.

      Os homens seguiam a reboque, em silêncio. A nuca de Lucky formigava. As costas de Anton estavam firmes e eretas, como se não esperassem uma agressão por parte de Lucky. Ele podia perfeitamente pensar não ser agredido, pois havia dez homens armados atrás de Lucky.

      De passagem deram uma olhada rápida nas salas pequenas, cada uma delas planejada para o máximo de economia de espaço. Havia a sala do computador, a sala do pequeno observatório, a sala em que ficava o pequeno laboratório fotográfico, a cozinha e o dormitório.

      Passaram para o nível inferior, através de um tubo curvo dentro do qual o campo de pseudo-gravidade era neutralizado, de modo que qualquer direção poderia ser tanto “para cima" como "para baixo", à vontade. Fizeram sinal a Lucky para que descesse em primeiro lugar e Anton o seguiu tão de perto que Lucky mal teve tempo de esquivar-se rapidamente do caminho (suas pernas dobraram-se levemente devido ao súbito acréscimo de peso) antes que o comandante pirata lhe caísse em cima. As duras e pesadas botas espaciais não lhe atingiram o rosto por questão de centímetros.

      Lucky recuperou o equilíbrio e girou o corpo raivosamente, mas deu com Anton em pé, ali, sorrindo alegremente, com o detonador apontado intencionalmente na direção do coração de Lucky.

      - Mil desculpas - disse ele. - Felizmente você é muito ágil.

      - Sim - resmungou Lucky.

      No nível inferior da nave ficavam a sala das máquinas e a seção de força, além dos ancoradouros vazios onde haviam estado os salva-vidas. Havia, ainda, o depósito de combustível, os reservatórios de água e o armazém de alimentos, os renovadores de ar e as blindagens atômicas.

      Anton murmurou:

      - Muito bem. O que pensa de tudo isto? Não resta dúvida que é de segunda qualidade, mas não vejo nada fora do lugar.

      - É difícil dizer com precisão - observou Lucky.

      - Mas você deve ter vivido nesta nave durante dias.

      - Realmente. Mas não gastei meu tempo inspecionando-a. Apenas esperei que me levasse a algum lugar.

      - Compreendo. Todavia, voltemos para o nível superior.

      Lucky foi o primeiro a "enfiar-se" novamente no tubo de passagem. Desta feita aterrou suavemente e deu um pulo de um metro e oitenta para o lado, fazendo-o com a graciosidade de um gato.

      Passaram-se segundos antes que Anton emergisse do tubo.

      - Está nervoso? - perguntou.

      Lucky corou.

      Os piratas foram surgindo um após outro. Anton não esperou por todos, mas começou a caminhar de novo pelo corredor.

      - Sabe - disse ele - você certamente haveria de pensar que examinamos detalhadamente a nave. Muitas pessoas diriam o mesmo. O que acha?

      - Não - disse Lucky calmamente. - Eu não diria o mesmo. Ainda não estivemos no banheiro.

      Anton franziu o sobrolho e por um instante a urbanidade desapareceu do seu rosto, substituída apenas por uma evidente expressão de raiva que se estampou nitidamente em seu semblante.

      Mas logo essa expressão se desfez. Pôs em ordem uma mecha de cabelos em desalinho na cabeça e em seguida contemplou as costas das mãos, com interesse.

      - Muito bem, então vamos dar uma olhada lá dentro.

      Vários homens assobiaram perplexos e os demais soltaram as mais diversas exclamações quando a porta adequada emitiu um estalido, abrindo-se.

      - Muito agradável - murmurou Anton. - Muito bonito. Eu diria luxuoso.

      E era mesmo! Quanto a isto não havia dúvida. Havia boxes separados para banhos com chuveiro, sendo que três deles dispunham de encanamento para água com sabão espumoso (morna) e água para a enxágüe (quente e fria). Havia também meia dúzia de pias de cromo branco, com recintos reservados para aplicação de xampu, secadores de cabelo e estimuladores de pele com jatos finos como a ponta de uma agulha. Não faltava nada do que fosse necessário.

      - Sem dúvida, aqui não há nada de segunda qualidade - comentou Anton. - Parece uma exposição no espaço sideral, hã, Williams? O que acha disto?

      - Estou simplesmente embasbacado.

      O sorriso de Anton desapareceu como o ponto luminoso de uma veloz espaçonave que surgisse no firmamento, na tela de observação.

      - Mas eu não estou embasbacado. Dingo, venha cá.

      O comandante pirata disse a Lucky:

      - Trata-se de um problema muito simples. Temos aqui uma nave, sem ninguém a bordo, montada na maneira mais dispendiosa possível, como se fosse feita às pressas, mas com um banheiro que é a última palavra no assunto. Por quê? Penso que é simplesmente com a finalidade de ter o maior número possível de canos dentro do banheiro. E por que razão? Para que jamais suspeitássemos que um ou dois deles fossem imitações... Dingo, que cano é este?

      Dingo deu um pontapé num dos canos.

      - Não chute, seu bastardo. Desmonte-o.

      Dingo agiu conforme lhe fora ordenado, usando levemente o foco de um revólver térmico. Arrancou alguns fios.

      - O que é isto, Williams? - interrogou Anton - Fios - disse Lucky apressadamente.

      - Eu sei, seu imbecil - retrucou ele, enfurecendo-se subitamente. - E o que mais? Vou lhe dizer o que mais. Estes fios estão ligados de forma a explodir cada miligrama de energia atômica a bordo da nave tão logo a levemos para a nossa base.

      Lucky fingiu um sobressalto:

      - Como pode afirmar uma coisa destas?

      - Está surpreso? Não sabia que a nave é uma gigantesca bomba? Não sabia que estava sujeita a transformar a nós e à base em poeira incandescente? Ora, você está aqui como isca para cuidar de todos os detalhes no sentido de certificar-se de que estamos sendo devidamente ludibriados. Acontece, apenas, que não sou nenhum idiota!

      Os homens do capitão aproximavam-se cada vez mais. Dingo passou a língua pelos lábios.

      Anton puxou o detonador com um movimento rápido e nos seus olhos não havia nem piedade nem sonho de misericórdia!

      - Espere pela Grande Galáxia! Não sei de nada a este respeito. Não tem o direito de matar-me sem justa causa.

      Ele entesou-se para dar um pulo a fim de travar a derradeira luta antes de morrer.

      - Não tenho nenhum direito? - perguntou Anton, com os olhos soltando chispas e baixando subitamente o detonador. - Como se atreve a dizer que não tenho nenhum direito? Eu tenho todos os direitos sobre esta nave.

      - Não pode matar um homem útil. Os homens do asteróide precisam de homens úteis. Não desperdice um homem útil a troco de nada.

      Entre alguns dos piratas se formou um súbito murmúrio inesperado.

      Alguém dentre eles, falou:

      - Ele é corajoso, Capitão. Talvez pudéssemos usá-lo... A voz morreu no momento em que Anton girou o corpo. Ele retomou a posição anterior:

      - Para você, Williams, em que consiste um homem útil? Responda à pergunta e eu pensarei no assunto.

      - Saio bem numa luta com qualquer um dos presentes. Com mãos limpas ou com qualquer arma.

      - Então? Ouviram isto, homens? - perguntou Anton, arreganhando os dentes num arremedo de sorriso.

      Houve um alarido afirmativo.

      - O desafio parte de você, Williams. Qualquer arma. Ótimo! Procure sair desta vivo que não será morto a tiros. Será, então, considerado como membro de minha tripulação.

      - Tenho sua palavra, Capitão?

      - Tem minha palavra, pois fique sabendo que nunca falto com a minha palavra empenhada. A tripulação está me ouvindo. Se sair deste desafio com vida.

      - Com quem vou lutar? - perguntou Lucky a Anton.

      - Dingo, aqui. Um homem útil. Qualquer um que consiga derrotá-lo é um homem útil.

      Lucky avaliou o corpanzil todo cartilagens e nervos em pé diante de si, cujos olhos luziam de ansiedade, e concordou carrancudamente com o capitão.

      Mas disse, com firmeza:

      - Quais as armas? Ou será uma luta à mão limpa?

      - Armas! Tubos propulsores, para ser mais exato. Tubos propulsores no espaço aberto.

      Por um instante Lucky sentiu dificuldade em manter a conveniente serenidade.

      Anton sorriu:

      - Receia que não seja um teste apropriado para você? Não tema. Dentro de toda a nossa frota Dingo é o melhor homem no manejo do tubo propulsor.

      O coração de Lucky mergulhou verticalmente no peito. Um duelo em tubos propulsores requeria a perícia de um entendido. Era um fato sobejamente conhecido! Esse duelo travado como havia sido feito nos dias de colégio não passara de um esporte. Disputado por profissionais era um jogo mortal!

      E ele não era nenhum profissional!

 

O verdadeiro duelo

      Os piratas acotovelaram-se no lado externo do Atlas e na sua própria aeronave de desenho feito na estrela Sírio. Alguns estavam em pé, presos pelo campo magnético das botas. Outros preferiram libertar-se para observar melhor, garantindo os lugares por meio de um pequeno cabo magnético ligado ao casco da nave. Haviam sido instalados dois marcos revestidos de lâminas metálicas. Guardavam entre si uma distância aproximada de cinqüenta milhas. Não tendo mais do que noventa centímetros quadrados quando dobrados dentro da nave, ao serem abertos cobriam uma área de trinta e tantos metros em qualquer sentido, em lâminas finas de berílio-magnésio. Sem perder o brilho e intactos na grande vastidão do espaço, foram desenrolados e os reflexos bruxuleantes do Sol sobre a superfície luzente emitiam raios visíveis à distância de muitas milhas.

      - Você conhece os regulamentos - soou forte a voz de Anton nos ouvidos de Lucky e, presumivelmente com igual intensidade, nos de Dingo.

      Lucky conseguia divisar o contorno do traje espacial do oponente como se fosse uma mancha iluminada pelo Sol a uma distância de meia milha. Naquele momento o salva-vidas que os trouxera afastava-se rapidamente de volta à espaçonave pirata.

      - Você conhece os regulamentos - tornou a voz de Anton. - Aquele que for empurrado de volta para o seu próprio marco será o perdedor. Se nenhum dos dois for impelido para trás, será perdedor aquele cuja pistola propulsora se esgotar em primeiro lugar. Não há limite de tempo. Nem impedimento. Dispõem de cinco minutos para se aprontar. A pistola propulsora só pode ser usada quando for dada a ordem de início.

      Não há impedimento - pensou consigo Lucky. Estava diante da revelação do ardil. À guisa de esporte legalizado, duelos propulsores não podiam ser realizados a uma distância de mais de cem milhas de um asteróide que tivesse pelo menos cinqüenta milhas de diâmetro. Aquilo proporcionaria aos jogadores um impulso gravitacional decisivo, embora pequeno. Não seria suficiente para afetar a mobilidade; mas, seria bastante para resgatar um disputante que se encontrasse a algumas milhas de distância no espaço, com uma pistola propulsora sem carga. Mesmo que não fosse resgatado pela nave de salvamento, teria simplesmente que permanecer quieto e em questão de horas ou, no máximo, de um ou dois dias, flutuaria de volta à superfície do asteróide.

      Por outro lado, aqui não havia um asteróide de tamanho considerável numa área de centenas de milhares de milhas. Um impulso vigoroso continuaria indefinidamente. Com toda probabilidade iria terminar no Sol, muito depois que o infeliz contendor tivesse morrido asfixiado, quando seu oxigênio se esgotasse. Nestas condições, subentendia-se geralmente que, quando um ou outro dos contendores ultrapassasse certos limites preestabelecidos, seria feita a contagem até o seu retorno.

      Dizer "sem impedimento" equivalia a dizer "até à morte".

      A voz de Anton soou límpida e aguda através das milhas de espaço que o separavam do rádio-receptor instalado no capacete de Lucky. Ele disse:

      - Dois minutos para o início. Ajustem os sinais corporais.

      Lucky ergueu a mão e fechou o painel em seu peito. A lâmina de metal colorido, que havia sido colocada anteriormente em seu capacete, estava girando. Era um marco em miniatura. O vulto de Dingo, que pouco antes fora apenas um ponto obscuro, subitamente assumiu formas exuberantes de vida. Seu próprio sinal - Lucky sabia - era um brilhante verdadeiro. E os marcos eram completamente bancos.

      Mesmo neste instante uma fração da mente de Lucky estava muito distante. Logo de início ele procurara levantar uma única objeção, dizendo:

      - Ouça. Tudo está muito bem, no meu entender, mas, enquanto estamos aqui perdendo tempo, poderia muito bem aparecer uma patrulha terrestre...

      Anton clamou com menosprezo:

      - Esqueça-se dela. Nenhuma nave patrulha teria o atrevimento de vir até este ponto dos asteróides. Dispomos de uma centena de naves dentro do raio de alcance de chamamento e milhares de asteróides para nos garantir, se tivéssemos que fazer uma arrancada. Vista o traje.

      Uma centena de espaçonaves! Um milhar de asteróides! Se fosse verdade, os piratas ainda não teriam mostrado o seu verdadeiro poderio. O que estava acontecendo?

      - Resta um minuto! - soou a voz de Anton pelo espaço.

      De fisionomia carrancuda, Lucky sacou as duas pistolas propulsoras. Eram objetos em forma de "L", ligados a cilindros de gás (contendo gás carbônico líquido sob alta pressão) por meio de tubos feitos de tecido maleável e engomado. Os cilindros haviam sido ajustados à sua cintura. Em outros tempos os tubos de ligação eram feitos de metal entrelaçado. No entanto, embora mais resistente, aquele metal era também mais maciço e influía no movimento e na inércia das pistolas propulsoras. Naquele tipo de duelo com pistolas propulsoras, constituíam fatores essenciais a mira rápida e o disparo imediato. Desde quando o silício fluorado fora inventado, passou a ser adotado universalmente a tubulação com material mais leve, visto que o silício permanecia uma goma flexível na temperatura espacial, sem contudo tornar-se pegajoso sob a ação direta dos raios do Sol.

      - Disparem quando estiverem prontos! - gritou Anton.

      Uma das pistolas propulsoras de Dingo disparou por um momento. O gás carbônico líquido do seu cilindro espumou, transformando-se em gás violento e esguichou para fora do orifício de agulha da pistola propulsora. O gás congelou, formando uma linha de cristais minúsculos a uma distância de quinze centímetros do seu ponto de emersão. Mesmo na fração de segundo permitida para a liberação, formara-se linha de cristais de milhas de comprimento. Enquanto esses cristais impeliam num sentido, Dingo era impulsionado, em sentido contrario. Eram uma espaçonave e a propulsão do seu foguete em miniatura.

      A "linha de cristais" apareceu como um relâmpago por três vezes e três vezes foi sumindo à distância. Ele assomava no espaço bem longe de Lucky e a cada disparo Dingo ganhava velocidade, aproximando-se de Lucky. O estado atual das coisas era ilusório. A única mudança visível que se apresentava aos olhos era o alvo do traje espacial de Dingo que brilhava fracamente, mas Lucky percebia que a distância que os separava diminuía com uma velocidade impressionante.

      O que Lucky desconhecia era a estratégia apropriada a ser adotada; a defesa adequada. Ele aguardou o desdobramento da ofensiva do seu opositor.

      Dingo já era suficientemente grande para ser visto como um vulto humanóide, dotado de cabeça e quatro membros. Passava de lado, sem tomar nenhuma iniciativa no sentido de ajustar sua mira. Parecia satisfeito em passar a uma boa distância, no lado esquerdo de Lucky.

      Lucky continuava na expectativa. Dentro do seu capacete diminuíra o coro confuso de gritos que estridulavam. Provinham esses gritos dos transmissores ligados aos expectadores. Embora se achassem bastante distanciados para assistir os contendores, podiam contudo seguir a passagem dos sinais corporais e o brilho rápido dos fluxos de gás carbônico. Esperavam algo - pensou Lucky.

      E algo aconteceu subitamente.

      No lado direito de Dingo surgiu um disparo de gás carbônico, seguido de um segundo, e sua linha de vôo foi desviada para a direção em que se encontrava o jovem Conselheiro. Lucky ergueu sua pistola propulsora, pronto para disparar para baixo, evitando a curta distância. A estratégia mais segura - ponderou ele - consistia em agir exatamente daquela maneira e deslocar-se de modo tão lento e a menor distância possível em sentido contrário, a fim de poupar o gás carbônico.

      Mas, o vôo de Dingo não prosseguiu na direção de Lucky. Disparou diretamente para frente de si mesmo uma descarga prolongada e começou a recuar. Lucky ficou observando-o e percebeu o fluxo luminoso um pouco tarde demais.

      A última descarga de gás carbônico disparada por Dingo projetou-se para frente, não há dúvida, mas no momento ele se deslocara para a esquerda, e a descarga o acompanhara. As duas ações simultâneas fizeram com que a descarga se movesse em direção a Lucky, atingindo-o na mossa do seu ombro esquerdo.

      Lucky teve a impressão de haver sido atingido por uma forte martelada. Os cristais eram minúsculos, porém se estendiam por uma área de milhas e percorriam uma distância de milhas por segundo. Todos atingiram seu traje espacial no espaço de tempo que pareceu semelhar-se a uma fração de segundo de um pestanejo. O traje de Lucky estremeceu e o alarido dos presentes reboou em seus ouvidos.

      - Acertou-o, Dingo!

      - Que descarga!

      - Direto para o marco. Dê uma olhada nele!

      - Foi lindo! Lindo!

      - Vejam como o valentão entrou em "parafuso".

      Entre o vozerio se notavam murmúrios que pareciam, de certa forma, menos entusiásticos.

      Lucky rodopiava ou, em outras palavras, a seus olhos parecia que o firmamento e as estrelas nele incrustadas giravam. De um lado a outro do visor do seu capacete as estrelas semelhavam torrentes brancas, como se fossem milhões de cristais de gás carbônico.

      Não conseguia distinguir nada, salvo os numerosos pontos luminosos indistintos. Momentaneamente teve a impressão de que o golpe o privara da capacidade de raciocínio.

      Um golpe desferido no diafragma e outro nas costas fizeram-no rodopiar continuamente, ainda mais distante, na sua viagem pelo espaço.

      Ele precisava fazer algo, senão Dingo faria dele uma bola de futebol, jogando-o de uma extremidade à outra do Sistema Solar. A primeira iniciativa a tomar seria cessar de rodopiar e procurar orientar-se. Ele girava diagonalmente, com o ombro esquerdo sobre o quadril direito. Apontou a pistola propulsora na direção oposta àquele movimento de rotação e com disparos rapidíssimos bombeou torrentes de gás carbônico.

      As estrelas foram perdendo a velocidade giratória até que seu movimento se tornou uma marcha majestosa que as transformou em pontos claramente definidos. E o céu passou a ser o conhecido firmamento.

      Uma estrela bruxuleava com um brilho exagerado e Lucky a reconheceu como sendo o seu próprio marco. Em posição quase diametralmente oposta estava o vermelho vivo do sinal corporal de Dingo. Lucky não podia arremeter-se para trás, indo além do marco, pois então o duelo estaria terminado e ele teria perdido o desafio. Além do marco e dentro de uma distância de uma milha estava a regra padrão para o fim do marco. Por outro lado, não podia permitir-se o luxo de aproximar-se ainda mais do seu opositor.

      Ergueu a pistola propulsora bem acima da cabeça, apertou o contato e manteve-a naquela posição. Fez a contagem completa de um minuto, antes de soltar o contato, e durante todos os sessenta segundos sentiu a pressão contra o topo do capacete, enquanto acelerava para baixo.

      Foi uma manobra desesperada, pois naquele único minuto consumiu meia hora do suprimento de gás.

      Furioso, Dingo berrava roucamente.

      - Você, seu fujão covarde.

      Os gritos dos expectadores ganharam também um crescendo.

      - Vejam como foge.

      - Ele tem que passar por Dingo. Dingo, pegue-o!

      - Ei, Williams, ataque!

      Lucky avistou de novo o vermelho vivo da roupa do seu oponente.

      Tinha que se manter em movimento. Nada mais lhe restava para fazer. Dingo era um perito, capaz de acertar num meteorito do tamanho de uma polegada quando passasse com a velocidade de um relâmpago. Ele faria muito - pensou Lucky - se conseguisse acertar em Ceres a uma distância de uma milha.

      Usou sua pistola propulsora alternadamente, apontando-a para a direita, para a esquerda; em seguida, rapidamente para a direita, para a esquerda e novamente para a direita.

      Não fazia diferença. Era como se Dingo fosse capaz de adivinhar seus movimentos, interceptando-lhe os ângulos e avançando inexoravelmente.

      Lucky sentiu a transpiração formar bagas na testa e subitamente percebeu o silêncio. Não conseguia lembrar-se com precisão do momento em que se formara, mas acontecera como o súbito romper de uma linha. Pouco antes imperavam os berros e as gargalhadas dos piratas e agora apenas o silêncio mortal do espaço, onde não se podia ouvir nunca som algum.

      Teria ele ultrapassado o raio de ação das espaçonaves? Impossível! Mesmo as mais simples, as ondas de rádio percorreriam milhares de milhas através do espaço. Apertou ao máximo seu dial de sintonia no seu peito.

      - Capitão Anton!

      Mas, quem respondeu foi a voz rouca e áspera de Dingo:

      - Não grite! Posso muito bem ouvi-lo.

      - Contagem de tempo! - disse Lucky. - Há algo errado com o meu rádio.

      Dingo estava bastante perto de modo que podia ser distinguido novamente como uma figura humana. Um disparo flamejante de cristais aproximou-se ainda mais. Lucky afastou-se, mas o pirata o seguiu de perto.

      - Não há nada de errado - disse Dingo. - Apenas um pequeno truque em seu rádio. Estive à espera o tempo todo. Há muito que poderia tê-lo mandado além do marco, mas fiquei esperando que o rádio passasse a funcionar. Trata-se apenas de um transistor que coloquei ocultamente em seu rádio, antes de você vestir o traje espacial. Contudo, você pode ainda conversar comigo. Ele alcançará ainda uma ou duas milhas. Ou, pelo menos, você pode ainda falar comigo por algum tempo.

      Ele regozijou-se com a piada e soltou uma gargalhada estrepitosa.

      - Não entendi - disse Lucky.

      A voz de Dingo se tornou áspera e cruel:

      - Na nave, você me apanhou de surpresa com o detonador ainda enfiado no coldre. Lá você me enganou. Fez-me de bobo. Ninguém me engana e não admito que alguém me passe por idiota e muito menos diante do capitão. Depois de me fazer uma destas o sujeito não vive por muito tempo. Não tenho a intenção de mandá-lo além do marco para terminar com você. Vou dar cabo de você aqui mesmo! Eu, pessoalmente!

      Dingo achava-se ainda mais próximo. Lucky quase conseguia divisar o rosto por trás do grosso visor de glassite.

      Lucky abandonou as tentativas de deslocar-se de um lado para o outro ou de mover-se firmemente com vantagem sobre o contendor. Isso - ponderou ele - levaria aos poucos a um excesso de manobras. Pensou no vôo reto, impulsionando-se a uma velocidade crescente enquanto seu gás durasse.

      Mas, e depois? Dar-se-ia por satisfeito em morrer enquanto fugia?

      Teria que revidar a agressão. Apontou a pistola propulsora na direção de Dingo e este não se achava na mesma posição quando a linha de cristais passou pelo lugar em que havia estado instantes antes. Tentou várias vezes, mas Dingo era um verdadeiro diabrete em movimento.

      Lucky sentiu imediatamente o impacto violento de outro disparo da pistola propulsora e começou a rodopiar novamente. Tentou desesperadamente sair do rodopio e, antes que lograsse seu intento, sentiu a força ressonante do encontro de um corpo contra o seu.

      Dingo agarrou-se ao seu traje espacial num forte amplexo. Capacete contra capacete. Visor contra visor. Lucky observava com os olhos arregalados a cicatriz branca que dividia desigualmente o lábio superior de Dingo. Quando Dingo sorria, a cicatriz se abria tensamente.

      - Olá. camarada! - disse ele. - É um prazer vê-lo.

      Por um momento Dingo deu a impressão de se afastar, flutuando, enquanto ia afrouxando o amplexo. As coxas do corsário pressionavam fortemente contra os joelhos de Lucky. A força de gorila do oponente imobilizava-o. Os músculos vigorosos de Lucky contorciam-se de um lado para o outro, inutilmente.

      O recuo parcial de Dingo fora planejado com o simples objetivo de libertar os próprios braços. Um dos braços ergueu-se bem alto, segurando a pistola propulsora com a coronha para frente. Desceu diretamente sobre o visor do capacete de Lucky e a cabeça deste foi projetada para trás com o impacto súbito e esmagador. O braço implacável ergueu-se mais uma vez, enquanto o outro envolvia o pescoço de Lucky.

      - Não mova a cabeça - vociferou o corsário. - Estou terminando.

      Lucky compreendeu que aquelas palavras expressavam a verdade dos fatos, a menos que ele agisse rapidamente. O glassite era forte e resistente, mas suportaria por pouco tempo os golpes do metal.

      Com as costas de sua luva bateu contra o capacete de Dingo, endireitando o braço e empurrando a cabeça do pirata para trás. Dingo girou a cabeça para o lado, desviando-a do braço de Lucky. Pela segunda vez baixou a coronha de sua arma.

      Lucky largou as duas pistolas propulsoras, deixando-as pender do tubo de conexão e, com preciso movimento, segurou depressa os tubos conectores das pistolas propulsoras de Dingo, envolvendo-os entre os dedos de suas luvas de aço. Os músculos de seus braços se moveram pesadamente e entesaram-se dolorosamente. As mandíbulas comprimiram-se e ele sentiu o sangue subir-lhe às fontes.

      Com a boca retorcida numa feroz e alegre prelibação da vitória, Dingo não via mais nada, senão o rosto transtornado da vítima por trás do visor do capacete - contorcida, no seu entender, em virtude do medo. Ele desferiu mais um golpe com a coronha da pistola propulsora. Do lugar atingido pela arma saltou uma pequena faísca, dando um estalido.

      Imediatamente algo mais aconteceu e o universo inteiro pareceu endoidecer.

      Primeiro um e, quase imediatamente após, outro dos tubos conectores das duas pistolas propulsoras de Dingo partiram-se, esguichando uma torrente incontrolável de gás carbônico de cada tubo quebrado.

      Os tubos contorceram-se como serpente endoidecidas e Lucky foi arremessado primeiro contra seu traje espacial e depois como reação violenta à louca e incontrolada aceleração.

      Sacudido pela surpresa, Dingo soltou um berro e afrouxou seu amplexo.

      Os dois quase se separaram, mas Lucky agarrou-se firmemente a um dos tornozelos do corsário.

      O jorro de gás carbônico diminuiu e Lucky partiu para as pernas do adversário, segurando-as alternadamente com ambas as mãos.

      Agora aparentemente estavam imóveis. As contorsões imprevistas dos tubos devido à torrente de gás carbônico deixara-as sem movimento perceptível. As pistolas propulsoras de Dingo, agora inoperantes e flácidas, apontaram em sua derradeira posição. Tudo parecia imóvel, tão imóvel como a própria morte.

      No entanto, aquilo não passava de uma ilusão. Lucky sabia que se deslocavam a milhas por segundo, independentemente da direção para onde o esguicho de gás os impelia. Ambos estavam sozinhos e perdidos no espaço.

 

O eremita do asteróide

      Agora Lucky achava-se nas costas de Dingo e suas coxas se agarravam à cintura do outro. Falou de maneira suave e incisiva:

      - Pode me ouvir, Dingo? Não sei onde estamos nem para onde vamos, e tampouco você sabe. Assim sendo, Dingo, neste momento precisamos um do outro. Está disposto a entrar num acordo? Você pode descobrir onde estamos porque seu rádio pode alcançar a nave, mas não pode voltar sem gás carbônico. Tenho suficiente para os dois, mas preciso de você para guiar-nos de volta.

      - Vá para os confins do espaço, seu trapaceiro! - berrou Dingo. - Quando der cabo de você, ficarei com seus tubos propulsores.

      - Não sou de opinião que o fará - disse Lucky friamente.

      - Você pensa que os deixará soltos. Vamos, prossiga. Continue, seu trocista assassino. De que adiantará? O capitão virá me procurar onde eu estiver, enquanto você ficará flutuando com um capacete rachado e o sangue congelado no rosto.

      - Não é bem isto, meu amigo. Você sabe que há algo em suas costas. Talvez não possa sentir através do metal, mas posso assegurar-lhe que existe.

      - Uma pistola propulsora. E daí? Enquanto estivermos juntos não significa coisa alguma.

      Mas seus braços pararam de fazer movimentos desesperados para alcançar Lucky.

      - Não sou um duelista de pistolas propulsoras - falou Lucky animadamente. No entanto, sei mais do que você sobre pistolas propulsoras. Trocam-se disparos guardando-se uma distância de milhas. Não existe a resistência do ar para diminuir e interceptar a força do jorro de gás, mas existe a resistência interna. No jato sempre ocorre alguma turbulência. Os cristais se entrechocam e perdem velocidade. A linha de gás amplia-se. Se não acerta no alvo, acaba finalmente se espalhando no espaço e em seguida desaparece; mas, se acertar, continua a escoicear como uma mula, depois de ter percorrido muitas milhas.

      - Pelo santo espaço, de que está falando? Sobre que está falando?

      O pirata contorceu-se com força taurina e Lucky resmungou, forçando-o a acalmar-se.

      Lucky respondeu:

      - Apenas isto: o que pensa que acontece quando o gás carbônico acerta o alvo a duas polegadas de distância, antes que a turbulência tenha interferido para reduzir sua velocidade ou ampliar o jorro? Não tente adivinhar. Digo-lhe que atravessaria seu traje espacial como se fosse um maçarico. E atravessaria igualmente seu corpo.

      - Doido! Está falando como um louco!

      Dingo soltou furiosas imprecações, mas logo conservou o corpo rigidamente imóvel.

      - Tente, então - falou Lucky. - Mexa-se. Minha pistola propulsora está rente ao seu traje espacial e estou com o dedo no gatilho. Experimente.

      - Está fazendo jogo sujo comigo - queixou-se Dingo. - Não é uma vitória limpa.

      - Meu visor está com uma rachadura - disse Lucky. - Os homens saberão onde está o jogo sujo. Tem meio minuto para tomar uma decisão.

      Os segundos escoaram em silêncio. Lucky percebeu o movimento de mão de Dingo.

      - Adeus, Dingo - disse ele.

      Dingo soltou um grito abafado:

      - Espere! Espere! Estou apenas ampliando o raio de alcance do meu rádio.

      Em seguida chamou:

      - Capitão Anton, Capitão Anton!...

      Levaram hora e meia para retornar às espaçonaves.

      O Atlas movia-se novamente pelo espaço, a reboque do seu capturador pirata. Seus circuitos automáticos haviam sido mudados para controles manuais onde se fez necessário e uma tripulação selecionada de três homens controlava sua força. Como antes, sua lista de passageiros era composta de uma só pessoa. - Lucky Starr.

      Lucky estava confinado numa cabina e só via a tripulação quando lhe levavam as rações. As mesmas rações do Atlas - pensou Lucky. Ou, pelo menos, as sobras dele. Os alimentos e equipamentos em sua maioria não considerados necessários para as manobras imediatas da nave já tinham sido transferidos para a nave corsária.

      Todos os três piratas levaram-lhe a primeira refeição. Eram todos magros, bronzeados pelos raios inclementes do sol do espaço.

      Deram-lhe a bandeja, calados, inspecionaram cautelosamente a cabina, postaram-se de lado enquanto ele abria as latas de alimentos e deixava o conteúdo aquecer-se e em seguida se retiraram, levando os restos.

      - Sentem-se, homens - convidou-os Lucky. - Não precisam ficar em pé enquanto como.

      Não responderam uma palavra sequer. Um deles, o mais magro e de carnes chupadas, possuidor de um nariz que em certa ocasião devia ter sido quebrado e agora estava entortado para um lado, com um pomo de Adão visivelmente saliente, olhou para os outros com ar de quem estava inclinado a aceitar o convite. Não encontrou, porém, reação.

      A refeição seguinte foi levada por Nariz Quebrado, sozinho. Depositou a bandeja e voltou à porta, abrindo-a. Olhou em ambas as direções do corredor, fechou de novo a porta e apresentou-se:

      - Sou Martim Maniu.

      Lucky sorriu:

      - Sou Bill Williams. Os outros dois não falam comigo, não é?

      - São amigos de Dingo. Mas eu não sou amigo dele. Você pode ser um agente do governo, conforme acredita o capitão, mas pode também não ser. Não sei. Mas para mim qualquer um que faça aquilo que fez com aquele valentão, o Dingo, é um bom sujeito. Ele é um intrometido e maltrata a gente. Quando eu era novato me forçou a uma competição com pistolas propulsoras. Ele me mandou para outro asteróide. E sem nenhuma razão. Ele alegou que foi engano, mas, ouça, ele não comete nenhum engano com a pistola propulsora. Meu caro, você conseguiu muitos amigos, quando trouxe aquela hiena arrastada pelos fundilhos.

      - De qualquer forma folgo muito em saber e alegro-me.

      - Mas tome cuidado com ele. Ele nunca se esquecerá disso. Nem que seja daqui a vinte anos, nunca fique sozinho com ele. Estou apenas avisando. Não se trata simplesmente da derrota, ouviu? Ele costuma alardear a estória de que cortou mais de uma polegada de metal com o gás carbônico. Todo mundo faz troça disso e está farto de ouvir essa estória. Rapaz, eu quero dizer com nojo, porque é a melhor coisa que jamais poderia ter acontecido. Espero que o Chefe o considere isento de suspeitas.

      - O Chefe? O Capitão Anton?

      - Não, o Chefe. O Manda-Chuva. Ouça: a comida que você tem a bordo é boa. Especialmente a carne.

      E o pirata estalou os beiços de tal forma que se podia ouvir, continuando:

      - A gente se cansa de toda esta papa de fermento, especialmente quando se está tomando conta de um tonel.

      Lucky estava acabando de limpar o resto de sua refeição e perguntou:

      - Quem é esse sujeito?

      - Quem?

      - O Chefão.

      Maniu encolheu os ombros, externando sua ignorância.

      - Por este imenso céu, não sei. Você não pensa que um sujeito como eu haveria de encontrá-lo, um dia. Trata-se apenas de alguém sobre o qual o pessoal tece comentários. É claro que é o chefe de alguém.

      - A organização é um bocado complexa.

      - Rapaz, enquanto não entrar nela, você a desconhecerá. Veja, quando vim para cá eu estava completamente arruinado. Não sabia o que fazer. Então pensei: pois bem, assaltarei algumas naves, pego o meu e tudo estará acabado. Você compreende, seria melhor do que morrer de fome conforme estava acontecendo.

      - E não foi assim?

      - Não. Nunca participei duma expedição de assalto. Quase nenhum de nós esteve. Apenas alguns, como Dingo, por exemplo. Ele sempre sai em missão. O bandido gosta disto. Na maioria das vezes saímos e assaltamos algumas mulheres, às vezes. - O pirata sorriu e continuou: - Tenho mulher e um filho. Você nem acreditaria nisto. Certamente, temos um projeto próprio, os nossos próprios tonéis. De vez em quando presto serviço no espaço, como agora, por exemplo. É uma vida boa. Você se daria muito bem se participasse dela. Um sujeito de boa aparência como você poderia arranjar uma esposa e em pouco tempo se acomodaria. Ou então uma vida muito emocionante, se é disto que gosta. Sim, Sr. Bill. Espero que o Chefão o aceite.

      Lucky acompanhou-o até à porta e perguntou:

      - A propósito: para onde estamos indo? Para uma das bases?

      - Não. Estamos nos dirigindo para um dos asteróides, creio eu. Para aquele que estiver mais próximo. Você permanecerá por lá até que receba ordens. É o que costumam fazer. - E, fechando a porta, acrescentou: - E não diga aos rapazes ou a nenhuma pessoa que estive conversando com você. Está certo, camarada?

      - Fique tranqüilo.

      Achando-se novamente sozinho, Lucky voltou a roçar o punho lenta e suavemente contra a palma da mão. O Chefe! Seria apenas conversa fiada! Boato? Ou tinha algum significado? E quanto ao resto da conversa?

      Tinha que aguardar. Ó Galáxia! Oxalá Conway e Henree tivessem o bom senso de não interferir, por mais algum tempo.

      Lucky não teve oportunidade de observar a "rocha", quando o Atlas se aproximou. Só a viu depois que, precedido de Martin Maniu e seguido de um segundo pirata, passou pela câmara de compressão e entrou no espaço, onde avistou a rocha a uns noventa metros abaixo.

      O asteróide era bastante característico. Lucky calculou que devia ter em média umas duas milhas de comprimento. Tinha forma angular e penhascosa, como se um gigante o tivesse arrancado do pico de uma montanha e lançado no espaço. O lado que recebia a luz do Sol tinha um brilho cinza escuro. Girava de maneira visível, fazendo com que as sombras mudassem continuamente de posição.

      Logo que saiu da câmara de compressão impulsionou-se na direção do asteróide, flexionando os músculos das pernas contra o casco da nave. Os penhascos flutuaram lentamente em sua direção. No momento em que suas mãos tocaram o chão, a inércia do seu corpo impeliu o restante de sua pessoa para baixo, forçando-o a girar, desenvolvendo movimentos de extrema lentidão, até que conseguiu agarrar-se a uma rocha saliente e parar.

      Ele levantou-se. Em torno da rocha havia a ilusão como que de uma superfície planetária. Contudo, os recortes de matéria mais próximos não revelavam nada atrás de si, nada mesmo, a não ser o próprio vazio do espaço. Movendo-se perceptivelmente à medida que a rocha girava, as estrelas pareciam faíscas de brilho intenso. Posta em órbita em torno do asteróide, a nave permanecia imóvel acima de sua cabeça.

      Um pirata ia à frente, a uma distância de aproximadamente um metro e trinta centímetros, caminhando na direção de uma elevação rochosa que não se diferenciava de modo algum dos arredores. Venceu a distância com dois longos passos. Enquanto aguardavam, uma seção da rocha deslizou para o lado, emergindo uma figura em trajes espaciais.

      - Sem dúvida, Herm - disse um dos piratas com voz grosseira. - Aqui está ele. Agora está sob seus cuidados.

      A voz que em seguida soou aos ouvidos de Lucky era suave e tinha uma inflexão cansada.

      - Por quanto tempo ficará comigo, cavalheiro?

      - Até que venhamos buscá-lo. E não faça perguntas.

      Os piratas deram-lhe as costas e tomaram impulso para cima. A gravidade do asteróide não podia fazer nada no sentido de detê-los. Aos poucos foram desaparecendo e daí a alguns minutos Lucky divisou um rápido brilho de cristais, no momento em que um deles corrigiu sua trajetória por meio de uma pistola-propulsora; era uma arma pequena, usada habitualmente para tais fins e que fazia parte do equipamento padrão. Seu suprimento de gás consistia de um cartucho embutido na própria arma, contendo gás carbônico.

      Passaram-se alguns minutos e logo os propulsores da nave brilharam numa cintilação rubra e esta, também, começou a desaparecer.

      Era inútil tentar verificar em que direção a nave estava partindo, sem conhecimento de sua própria posição no espaço - pensou Lucky. E ele desconhecia por completo sua posição no espaço, salvo que se achava em algum ponto do cinturão de asteróides.

      Tamanho era seu alheamento que quase deu um pulo quando ouviu a voz suave do outro homem que estava no asteróide.

      Ele disse:

      - É lindo aqui fora. Saio tão raramente que às vezes me esqueço. Veja!

      Lucky virou-se para a esquerda. O pequeno Sol começava a despontar por cima da borda penhascosa do asteróide. Dentro de pouco se tornaria por demais brilhante para poder ser encarado. Era uma moeda enorme de ouro reluzente. O céu, anteriormente negro, continuava negro e as estrelas brilhavam com a mesma intensidade. Esta era a visão que se tinha de um mundo desprovido de ar, onde não existia poeira para difundir a luz solar e transformar o firmamento num azul profundo e difuso.

      O habitante do asteróide disse:

      - Dentro de vinte e cinco minutos o sol estará desaparecendo novamente. Às vezes, quando se encontra na sua distância mais próxima ao asteróide, também Júpiter pode ser avistado, dando a impressão de uma pequena bola de gude, com seus quatro satélites faiscantes em formação militar. Mas isso só acontece a cada três anos e meio. Esta não e sua época.

      Lucky perguntou bruscamente:

      - Aqueles homens chamaram a você de Herm. É assim que você se chama? Faz parte deles?

      - Pergunta se sou pirata? Não. Mas admitirei que sou cúmplice do crime. Por outro lado, não me chamo Herm. Trata-se apenas de um termo que usam para os eremitas, de um modo geral. Meu nome, senhor, é Joseph Patrick Hansen e espero que sejamos amigos, uma vez que iremos ser companheiros muito achegados por um período de tempo indefinido.

      Ele estendeu a mão protegida com uma luva metálica e Lucky apertou-a.

      - Eu sou Bill Williams - disse ele. - Você afirma ser um eremita. Quer dizer, com isto, que vive aqui o tempo todo?

      - Exatamente.

      Lucky olhou em torno da pobre caverna de granito e sílica e fez uma careta:

      - Não me parece muito convidativa.

      - No entanto, farei todo o possível para que nela se sinta confortavelmente e à vontade.

      O eremita tocou uma seção de pedra plana ou rocha de onde havia saído e um pedaço da mesma girou, recuando mais uma vez. Lucky reparou que as bordas da pedra haviam sido chanfradas e revestidas de lástium ou algum material similar para garantir a vedação do ar.

      - Não quer entrar, Sr. Williams? - convidou o eremita.

      Lucky entrou. A grossa rocha plana fechou-se atrás deles. Assim que se fechou, uma pequena lâmpada fluorescente se acendeu e expulsou com sua luz a escuridão. Iluminou uma pequena câmara de compressão, não maior do que o espaço necessário para dois homens.

      Uma pequena luz sinalizadora de cor vermelha se acendeu e apagou-se rapidamente e o eremita disse:

      - Agora pode abrir o visor do capacete. Temos ar.

      Ele próprio abriu o visor do capacete, enquanto falava.

      Lucky seguiu o exemplo, inflando os pulmões com o ar fresco e limpo. Nada mau. Indiscutivelmente, melhor do que o ar a bordo da nave.

      Contudo, foi no momento em que a porta interna da câmara de compressão se abriu que Lucky perdeu completamente o fôlego.

 

O que o eremita sabia

      Nem sequer na Terra tivera Lucky a oportunidade de ver sala tão luxuosa. Media sete metros e meio de comprimento e altura por cinco de largura e era contornada por um balcão. As paredes estavam tomadas de alto abaixo por livros em filmes. Num pedestal estava instalado um projetor de parede, enquanto sobre outro havia sido montado um modelo da Galáxia, dando a impressão de uma pedra preciosa.

      Logo que pôs os pés dentro da sala, sentiu a ação de motores de pseudo-gravidade. Não estava regulado para a gravidade normal da Terra. Pelo seu tato, parecia tratar-se de uma gravidade entre o normal da Terra e de Marte. Havia uma deliciosa sensação de leveza e contudo suficiente atração para permitir a coordenação dos músculos.

      O cenobita desfizera-se do traje e pendurara-o sobre uma tina branca de plástico dentro da qual o gelo - que formara uma camada espessa sobre o traje quando saíram do álgido espaço e entraram na sala de ar quente e úmido - poderia pingar ao derreter-se.

      Era alto e de porte ereto, o rosto corado e sem rugas, mas o cabelo bastante grisalho bem como as espessas pestanas. As veias das costas das mãos eram salientes.

      - Posso ajudá-lo com seu traje? - perguntou ele com afabilidade.

      Lucky retornou à vida e respondeu:

      - Está muito bem - disse ele, desfazendo-se do traje com desenvoltura. - Você vive num lugar pouco comum.

      - Está gostando dele? - perguntou Hansen, sorrindo. - Demorou muitos anos para ficar como está. Tudo o que está vendo compõe meu pequeno lar.

      Ele falava, inflado de um moderado orgulho.

      - Faço idéia - disse Lucky. - Deve haver uma casa de força para a luz e a calefação como também para manter em funcionamento a pseudo-gravidade. Você deve possuir um renovador de ar e substitutos, reservatório de água, dispensa para alimentos, e todas estas coisas necessárias.

      - Correto.

      - Até que a vida de um eremita não é ruim.

      Evidentemente o eremita se sentiu todo feliz e orgulhoso:

      - Não necessariamente - disse ele. - Mas, sente-se, Williams, sente-se. Aceita um trago?

      - Não, obrigado.

      Lucky abaixou-se e sentou-se numa cadeira de braços. O assento e o encosto aparentemente comum da cadeira dissimulavam um suave campo diamagnético. Cederam um pouco com seu peso e em seguida adquiriram um equilíbrio que se ajustou a cada curva do seu corpo. - A menos que possa aprontar uma xícara de café.

      - É muito fácil! - disse o velho, entrando numa alcova. Em poucos segundos voltava ele com uma xícara fumegante e cheirosa para Lucky e mais outra para si.

      A um devido toque do dedo do pé de Hansen, o braço da cadeira em que Lucky estava sentado se desdobrou e o eremita depositou uma xícara no recesso apropriado. Enquanto colocava a xícara, ficou parado, olhando fixamente para o jovem.

      - Sim? - perguntou Lucky, erguendo os olhos.

      - Nada, nada - respondeu Hansen, meneando a cabeça.

      Estavam sentados frente a frente. As luzes nos recantos mais afastados da grande sala esmaeceram até que ficou claramente visível apenas a área circunvizinha imediatamente mais próxima dos dois.

      - E agora, queira perdoar a curiosidade de um velho - disse o cenobita - mas gostaria de lhe perguntar por que razão veio para cá.

      - Não vim. Fui trazido - respondeu Lucky.

      - Você quer dizer que não é um dos... - e Hansen calou-se.

      - Não, não sou pirata. Pelo menos, até o presente momento.

      Hansen baixou sua xícara de café e mostrou-se perturbado:

      - Não compreendo. Talvez eu tenha dito coisas que não devesse ter dito.

      - Não se aflija por isso. Dentro de muito pouco tempo serei um deles.

      Lucky terminou a xícara de café e então, escolhendo com muita cautela as palavras, começou a narrar os seguintes acontecimentos, desde o momento em que embarcara no Atlas, na Lua, até aquele momento.

      Hansen ouviu-o com interesse e perguntou, finalmente:

      - E tem certeza de que é o que deseja fazer, meu jovem, agora que acaba de ver um pouco do que é aquela vida?

      - Tenho certeza.

      - E por quê? Pelo amor da Terra?

      - Exatamente. Pelo amor da Terra e por tudo o que ela fez por mim. Não é lugar para viver. Por que você veio para cá?

      - Receio que seja uma longa estória. Não precisa assustar-se, pois não vou contá-la. Faz muito, comprei este asteróide como um recanto para passar curtas férias e passei a gostar dele. Iniciei a ampliação da sala, e pouco a pouco fui comprando mobília e livros-filmes da Terra. No fim de certo tempo descobri que aqui tinha tudo do que precisava. Por conseguinte, por que não permanecer aqui definitivamente? Foi a pergunta que formulei a mim mesmo. E realmente acabei ficando aqui em definitivo.

      - Está certo. E por que não? Você é inteligente. A Terra está uma confusão. Gente demais. Muitos empregos rotineiros. É quase impossível sair e ir para os planetas e, caso consiga, só obterá trabalho manual. Não há mais oportunidade para o homem, a menos que venha para os asteróides. Não sou tão velho para estabelecer-me como você. No entanto, para um jovem significa uma vida livre e emocionante. Existe a possibilidade de se tornar chefe. Os que já são chefes não gostam de jovens com idéias de conseguir a posição de chefes enfiada na cabeça. Haja visto, por exemplo, Anton, a quem tenho observado.

      - Talvez, mas até o presente momento mantêm a palavra - disse Lucky. - Disse que eu teria oportunidade de unir-me aos homens dos asteróides, se eu vencesse Dingo. Parece que vou ter a oportunidade.

      - Parece que você está aqui, isto sim. E se ele retornar com provas - ou aquilo que ele chama de prova - de que você é um agente do governo?

      - Não fará isto.

      - E, se o fizer? E só para livrar-se de você?

      O rosto de Lucky anuviou-se e Hansen estudou-o novamente com curiosidade, franzindo levemente o cenho.

      - Ele não faria isto - disse Lucky. - Ele pode ter trabalho para um homem apto e sabe muito bem disto. Além do mais, por que está me aconselhando? Você mesmo está aqui fazendo o jogo deles.

      Hansen baixou os olhos:

      - É verdade. Não devia interferir na sua vida. Acontece que, por estar solitário aqui há tanto tempo, tenho a tendência de falar demais quando aparece alguma pessoa, simplesmente para ouvir o som das vozes. Pois bem, está quase na hora do jantar. Gostaria muito que comesse comigo em silêncio, se preferir. Do contrário, falaremos de qualquer assunto que escolher.

      - Bem, obrigado, Sr. Hansen. Nada de ressentimentos.

      - Ótimo.

      Lucky seguiu Hansen, que passou por uma porta e entrou numa despensa repleta de alimentos enlatados e concentrados de toda espécie. Nenhuma das marcas conhecidas de Lucky estavam ali representadas. Ao invés disso, o conteúdo de cada lata era descrito em gravações vivamente coloridas, feitas por processo eletroquímico, que em si mesmo eram partes integrantes do metal.

      Hansen disse:

      - Eu costumava guardar carne fresca numa sala especial para congelamento. Num asteróide se pode conservar o tempo todo uma temperatura baixa, mas já faz dois anos que consegui pela última vez aquele tipo de mantimentos.

      Ele escolheu e apanhou da prateleira meia dúzia de latas um recipiente de leite concentrado. Aceitando a sugestão de Lucky, pegou numa prateleira inferior um recipiente selado contendo quatro litros de água.

      O eremita pôs a mesa rapidamente. As latas eram do tipo de auto-aquecimento, que se abriam automaticamente, transformando-se em pratos com os talheres anexos.

      Com algum ar de divertimento e apontando para as latas, disse Hansen:

      - Lá fora tenho um vale repleto até à borda destas coisas. Bem entendido, já utilizadas. Um acúmulo que provém de vinte anos.

      A comida era boa, mas esquisita. Compunha-se basicamente de material fermentado, um tipo que somente o Império Terrestre produzia. Em nenhum outro lugar da Galáxia a densidade populacional era tão forte, os bilhões de pessoas tão numerosos, a tal ponto que houvesse necessidade de ser desenvolvida a cultura de fermento. Em Vênus, onde se cultivava a maioria dos produtos à base de fermento, podia ser produzida quase qualquer variedade de imitação alimentar: bifes, amendoim, manteiga e doces. Por sua vez, eram tão nutrientes como o produto natural. No entanto, para Lucky o sabor não parecia tão venusiano. Percebia que o alimento tinha um travo algo picante.

      - Desculpe-me por ser tão intrometido - disse ele - mas tudo isto exige dinheiro, não é?

      - Oh, sim, mas felizmente ganho algum. Tenho alguns investimentos na Terra. Alguns são muito bons. Meus cheques são sempre descontados... ou pelo menos o eram, até uns dois anos atrás.

      - O que aconteceu então?

      - As espaçonaves abastecedoras pararam de vir. Era arriscado demais por causa dos piratas. Foi um duro golpe. Eu possuía uma boa reserva de suprimentos de todas as coisas, mas posso imaginar como deve ter sido para os outros.

      - Os outros?

      - Os outros eremitas. Existem centenas iguais a mim. Nem todos têm tanta sorte quanto eu. Pouquíssimos dispõem de recursos para fazerem seus mundos tão confortáveis como o meu, mas conseguem o essencial. Via de regra são pessoas idosas como eu, com as esposas já falecidas e os filhos criados, e, tendo-se o mundo tornado estranho e diferente para eles, partem para uma vida solitária. Se possuem algumas economias, podem estabelecer-se em algum asteróide, pois o governo não cobra impostos. Qualquer asteróide com menos de cinco milhas de diâmetro é seu, caso queira instalar-se nele. Depois, se quiser, pode investir na montagem de um receptor no espaço sideral e manter-se a par do que acontece no universo. Caso contrário, pode conseguir livros em filmes ou providenciar para que as naves de suprimento tragam novas transcrições de obras literárias uma vez por ano; ou então, simplesmente comer, descansar e dormir e esperar tranqüilamente pela morte, se assim o desejar. Às vezes sinto vontade de conhecer alguns dos outros eremitas.

      - E por que não o faz?

      - Às vezes tenho sentido vontade, mas acontece que não são pessoas fáceis de contatar. Afinal de contas, vieram para cá a fim de se isolarem, aliás o que também eu fiz.

      - E então, o que fez quando as espaçonaves abastecedoras pararam de vir?

      - Inicialmente não fiz nada. Pensei que o governo certamente contornaria a situação e eu dispunha de suprimentos suficientes para meses. Efetivamente, fazendo alguma economia, poderia fazê-los durar um ano. Mas, logo em seguida apareceram as naves piratas.

      - E você associou-se a eles?

      O eremita encolheu os ombros num gesto que indicava sua conformidade. Seu cenho fechou-se num sinal de inquietação e terminaram a refeição cm silêncio.

      Terminada a refeição, ele recolheu as latas-pratos com os respectivos talheres e colocou-as num recipiente embutido na parede da alcova que levava à dispensa. Lucky ouviu um abafado som rangente de metal contra metal, o ar foi gradativamente perdendo de intensidade.

      Hansen disse:

      - O pseudo-campo de gravidade não se estendeu até o tubo de disposição. São enviadas ao vale de que lhe falei por meio de uma corrente de ar, embora o vale se encontre a uma distância de quase uma milha.

      - Tenho a impressão - comentou Lucky - de que se livraria completamente das latas, se tentasse usar uma corrente de ar mais forte.

      - Sem dúvida. Penso que muitos eremitas fazem isto. Talvez todos. Mas, não gosto da idéia. É um desperdício de ar e também de metal. Algum dia poderíamos recuperar aquelas latas. Quem sabe? Além do mais, embora muitas delas fiquem espalhadas por aí, tenho certeza de que algumas ficariam girando em torno do asteróide como pequenas luas; e é pouco dignificante pensar que em sua órbita está sendo acompanhado pelo seu próprio lixo. Quer fumar? Não? Importa-se se eu fumo?

      Acendeu um cigarro e, dando um suspiro de satisfação, prosseguiu:

      - Os homens dos asteróides não podem fornecer fumo regularmente, de forma que isto está se tornando para mim num raro prazer.

      - E lhe fornecem o resto dos seus suprimentos? - perguntou Lucky.

      - Decerto. Água, peças para o maquinado e sobressalentes para a unidade de força. É um acordo.

      - E o que faz para eles?

      O eremita estudou a brasa acesa do cigarro:

      - Não faço muita coisa. Eles usam este mundo. Aterrissam nele suas naves e eu não os denuncio. Não penetram aqui e o que fazem não é de minha conta. Nem tomo conhecimento. Assim é muito mais seguro. Vez ou outra um homem é deixado aqui, como por exemplo você, e apanham-no mais tarde. Quero crer que às vezes fazem uma parada aqui para pequenos reparos nas naves. Em troca, trazem os suprimentos de que necessito.

      - E abastecem todos os eremitas?

      - Não sei dizer. Pode ser.

      - Para tanto precisariam de uma quantidade enorme de suprimentos. E onde os obteriam?

      - Capturam naves.

      - Não o suficiente, porém, para abastecer centenas de eremitas, além de a si próprios. Quer dizer, seria necessário um grande número de espaçonaves.

      - Não sei.

      - Não está interessado? Você leva uma vida confortável, mas talvez a comida que acabamos de comer tenha vindo de uma espaçonave cuja tripulação são corpos congelados que giram em torno de outro asteróide na forma de lixo humano. Já pensou nisto?

      O eremita corou de fazer pena.

      - Está se vingando de minha prelação anterior. Tem razão, mas, que posso fazer? Não abandonei nem atraiçoei o governo. Foi ele quem me traiu e abandonou. Minha propriedade na Terra paga tributos. Por que, então não posso ser protegido? Registrei em boa fé este asteróide no Departamento Terrestre do Mundo Exterior. Ele faz parte do domínio terrestre. Tenho todo o direito de contar com a proteção contra os piratas. Se esta proteção não aparece e se minha fonte de abastecimento me diz friamente que não podem trazer mais nada a qualquer preço que seja, o que devo então fazer?

      - Você poderá dizer que eu poderia retornar à Terra, mas, como poderia eu abandonar tudo isto? Tenho meu próprio mundo aqui. Meus livros-filmes, os grandes clássicos que adoro. Tenho até um exemplar de Shakespeare, uma filmagem direta das páginas autênticas de um livro muito antigo que foi impresso. Tenho alimento, bebida, isolamento. Em parte alguma do universo conseguiria encontrar um lugar tão confortável como este.

      - Não pense, porém, que foi uma escolha fácil. Tenho um transmissor sub-etérico. Poderia entrar em contato com a Terra. Disponho de uma pequena nave que seria capaz de chegar até Ceres, pela rota mais rápida. Os homens dos asteróides estão a par disto, mas confiam em mim. Sabem que não tenho nenhuma opção. Conforme lhe disse logo que nos encontramos, sou cúmplice no crime.

      - Tenho-os ajudado - prosseguiu ele - o que me torna legalmente um pirata. Se eu retornasse, seria provavelmente a prisão e a execução. Caso contrário, se me pusessem em liberdade com a condição de me tornar um testemunho do estado, os homens dos asteróides não me perdoariam. Aonde quer que eu fosse, me encontrariam, a menos que contasse com a proteção do governo para o resto de minha existência.

      - Parece que está em má situação - observou Lucky.

      - Acha que estou? - perguntou o eremita. - Eu poderia conseguir proteção total com ajuda apropriada.

      - Não sei, não - foi a vez de Lucky dizer.

      - Acho que sabe.

      - Não compreendo o que quer dizer.

      - Ouça: em retribuição pela sua ajuda, dou-lhe um conselho.

      - Não existe nada que eu não possa fazer. Qual é o seu conselho.

      - Saia do asteróide antes que Anton e seus homens cheguem.

      - Por nada deste mundo. Vim para cá para juntar-me a eles e não para ir para casa.

      - Se não sair, permanecerá para sempre. Ficará para sempre como um homem morto. Não permitirão que se torne membro de nenhuma tripulação. Meu senhor, nem será classificado.

      O rosto de Lucky retorceu-se furiosamente.

      - Afinal de contas, de quem está falando, meu velho?

      - Aí está, novamente. Quando se enfurece, consigo ver claramente. Meu filho, você não é Bill Williams. Qual o seu relacionamento com Lawrence Starr, do Conselho de Ciências? É filho de Lawrence Starr?

 

Rumo a Ceres

      Os olhos de Lucky contraíram-se. Sentiu os músculos do braço esquerdo retesarem-se, prontos para se estenderem até um quadril em que não havia nenhum detonador. Para tanto não esboçou nenhum verdadeiro movimento.

      Sua voz permaneceu sob rígido controle e disse:

      - Filho de quem? De que está falando?

      - Tenho certeza.

      O eremita inclinou o corpo para frente e segurou com força o pulso de Lucky:

      - Conheci muito bem Lucky Starr. Era meu amigo. Certa ocasião, quando precisei de auxílio, ele me ajudou. E você é o retrato dele. Não posso estar enganado.

      Lucky afastou-lhe a mão:

      - O que está dizendo não faz sentido.

      - Ouça, filho! Para você pode ser muito importante não revelar sua identidade. Talvez não confie em mim. Muito bem. Não estou pedindo que confie em mim. Admito que tenho colaborado com os piratas. No entanto, apesar disso, preste atenção no que digo. Os homens dos asteróides possuem uma boa organização. Podem levar semanas, mas, se Anton desconfiar de você, não cessarão enquanto não investigarem completamente toda a sua vida. Nenhuma falsa estória os enganará. Conseguirão a verdade e saberão quem você realmente é. Esteja certo disto! Descobrirão a sua verdadeira identidade. Vá embora, aviso-o! Vá embora!

      - Meu velho - disse Lucky - se eu fosse esse indivíduo que você diz que sou, não estaria se metendo em encrencas? Presumo que queira que eu me utilize de sua nave.

      - Exatamente.

      - E o que fará, quando os piratas voltarem?

      - Não estarei aqui. Não compreende? Quero partir com você.

      - Deixando tudo o que possui aqui?

      O velho fraquejou:

      - Sim, é duro. Mas não terei outra chance como esta. Você é um homem de influência, pelo que tudo indica. Talvez seja um membro do Conselho de Ciências. Deve estar aqui em missão secreta. Acreditarão em você. Poderia proteger-me, responsabilizar-se por mim. Poderia evitar a instauração de inquérito e tomar providências para que eu não sofra nenhum dano por parte dos piratas. Meu jovem, seria compensador para o Conselho. Eu lhes diria tudo o que sei sobre os piratas. Colaboraria de todas as maneiras possíveis.

      - Onde mantém a espaçonave? - perguntou Lucky.

      - Então, negócio fechado?

      A nave era realmente muito pequena. Os dois chegaram até ela através de um corredor estreito, caminhando em coluna de um, transformados novamente em figuras bizarras pelos trajes espaciais.

      - Ceres fica suficientemente próxima para poder ser observada pelo telescópio da espaçonave? - perguntou Lucky.

      - Sim, fica perto.

      - Seria capaz de reconhecê-la sem problemas?

      - Certamente.

      - Então, subamos a bordo.

      A parte dianteira da caverna sem ar em que se alojava a espaçonave se abriu para fora logo que os motores do engenho foram ativados.

      - O controle é feito pelo rádio - explicou Hansen.

      A nave recebeu combustível e aprovisionamentos. Teve um desempenho suave, elevando-se da plataforma e entrando no espaço com a facilidade e o desembaraço somente possíveis onde as forças gravitacionais eram praticamente ausentes. Pela primeira vez Lucky observou do espaço o asteróide de Hansen. Avistou rapidamente o vale das latas jogadas fora, mais brilhantes que as rochas circundantes, antes que a nave adentrasse as trevas.

      Hansen disse:

      - Diga-me agora. Você é filho de Lawrence Starr, não é?

      Além dum coldre, Lucky encontrara um detonador bem carregado. Enquanto falava, estava colocando-o.

      - Meu nome é David Starr - disse ele. - Muitas pessoas me chamam de Lucky.

 

      Ceres é um monstro entre os astéróides. Mede aproximadamente quinhentas milhas de diâmetro e um homem médio pesa, nele, realmente nove quilos. Tem forma totalmente esférica e qualquer pessoa que se encontrasse perto dele no espaço poderia facilmente tomá-lo por um planeta de porte considerável.

      Contudo, se a Terra fosse oca, seria possível lançar em seu interior quatro mil corpos do tamanho de Ceres para enchê-la totalmente.

      Bigman estava em pé na superfície de Ceres. Sua figura inflava enfiada num traje espacial carregado a ponto de estourar com o peso de chumbo; calçava sapatos com espessas solas de chumbo que lembravam tamancos. A idéia partira dele, mas revelara-se quase inútil. Continuava a pesar menos do que dezenove quilos e cada movimento que executava ameaçava arremessá-lo no espaço.

      Fazia alguns dias que estava em Ceres, desde o rápido vôo pelo espaço em companhia de Conway e Henree, procedentes da Lua, aguardando para este momento que Lucky Starr lhe enviasse uma mensagem pelo rádio, comunicando que estava chegando. Gus Henree e Hecot Conway tinham estado nervosos, temendo que Lucky tivesse morrido; andavam muito preocupados com essa possibilidade. Ele, Bigman, estava melhor informado. Disse-lhes que Lucky podia aparecer subitamente. Quando finalmente a mensagem de Lucky chegou, comunicou-lhe novamente.

      Contudo, aqui no solo gelado de Ceres, sem que nada, houvesse entre ele e as estrelas, admitiu uma fugaz sensação de alívio.

      De onde estava sentado, olhava diretamente para a cúpula do Observatório, notando-se os seus contornos inferiores um pouco afundados no horizonte próximo. Era o maior observatório do Império Terrestre, por uma razão muito lógica.

      Naquela parte do Sistema Solar, dentro da órbita de Júpiter, os planetas Vênus, Terra e Marte possuíam atmosfera e por isso mesmo pobremente adequados a uma observação astronômica. O ar interferente, mesmo quando em camadas finas como em Marte, obscurecia os detalhes mais delicados. Distorcia e fazia tremer imagens estelares e estragava as coisas de um modo geral.

      O maior objeto sem ar dentro da órbita de Júpiter era Mercúrio, mas este se achava tão perto do Sol que o Observatório situado numa zona crepuscular especializava-se em observações solares. Telescópios relativamente menores eram suficientes.

      O segundo maior objeto desprovido de atmosfera era a Lua. Aqui, novamente, as circunstâncias requeriam especialização. As previsões meteorológicas da Terra, por exemplo, haviam-se tornado uma ciência precisa e de longo alcance, dado que a aparência da atmosfera terrestre podia ser vista como um todo de uma distância de aproximadamente duzentas e cinqüenta mil milhas.

      Em termos de tamanho, o terceiro objeto era Ceres, o melhor dos três. Devido à sua gravidade quase inexistente se tornava possível projetar lentes e espelhos imensos sem Perigo de quebra, mesmo sem a questão da curvatura, devido ao seu próprio peso. A própria estrutura do tubo do telescópio dispensava resistência especial. Ceres estava distante do Sol três vezes mais do que a Lua e a luz solar se refletia nele apenas com um oitavo de sua intensidade. A rápida revolução mantinha a temperatura de Ceres quase constante. Em resumo, Ceres era ideal para a observação das estrelas e de planetas exteriores.

      Ainda no dia anterior Bigman havia observado Saturno através do telescópio refletor de aproximadamente vinte e cinco metros, cujo polimento do imenso espelho havia levado vinte anos de trabalho contínuo e exaustivo.

      - O que estou observando? - perguntara ele.

      - Não observa coisa alguma - respondera, rindo-se dele.

      Três deles operavam cuidadosamente os controles, cada um fazendo algo em coordenação com os outros dois, até que todos ficaram satisfeitos. As fracas luzes vermelhas tornaram-se menos intensas e, no fosso de escuridão que os cercava, subitamente apareceu uma bolha de luz. Deram um toque nos controles, e essa luz se mostrou claramente.

      Bigman assobiou de perplexidade. Era Saturno!

      Era Saturno, com quase um metro de largura, exatamente conforme o vira no espaço meia dúzia de vezes. Seus anéis triplos eram brilhantes e ele conseguia distinguir as três luas em forma de bolas de gude. Por trás dele se via uma poeira formada de inúmeras estrelas. Bigman quis andar em torno daquilo para ver que aparência tinha dentro da escuridão da noite, mas a visão não se alterava à medida que se deslocava.

      - Trata-se de uma imagem - disseram-lhe. - Uma ilusão. Onde quer que fique, pode ver a mesma coisa.

      Agora, da superfície do asteróide Bigman conseguia localizar Saturno a olho nu. Era apenas um ponto branco, porém mais brilhante do que os outros pontos brancos representados pelas estrelas. Era duas vezes mais brilhante do que parecia ser quando observado da Terra, de vez que se achava a duzentos milhões de milhas mais próximo, em Ceres. A Terra, por sua vez, ficava do outro lado de Ceres, perto de um Sol do tamanho de uma ervilha. A Terra não oferecia uma visão muito impressionante, de vez que o Sol invariavelmente a transformava num pigmeu.

      O capacete de Bigman estremeceu subitamente com o Sol, no momento em que um chamado inundou o seu rádio-receptor ligado.

      - Ei, Tampinha, vá andando. Está chegando uma espaçonave.

      Bigman deu um salto ao ouvir o barulho e subiu direto, com os membros pendentes, e berrou:

      - Quem está me chamando de Tampinha?

      Mas a outra voz riu e perguntou:

      - Ei, garoto, quanto cobra por aula de vôo?

      - Tampinha é você - estridulou Bigman furiosamente. Atingira o ponto máximo de sua ascensão parabólica e começava a descer novamente, de maneira lenta e vacilante. - Como se chama, seu insolente? Diga o seu nome e lhe arranco as tripas assim que volte e tire o traje espacial.

      - Acha que consegue alcançar minhas tripas? - Ouviu-se a réplica zombeteira. Bigman teria explodido em pedacinhos, se não tivesse avistado uma nave emergir obliquamente no horizonte.

      Ele começou a andar em passos gigantescos e desajeitados sobre o chão plano de uma milha quadrada que constituía o porto espacial, tentando avaliar o lugar exato em que a nave desceria.

      A nave reduziu seus jatos fumegantes até se transformarem num toque leve com o planeta e quando as câmaras de compressão se abriram e assomou a figura alta de Lucky, vergando um traje espacial, Bigman gritou de alegria e deu um longo salto e os dois estavam novamente juntos.

      Conway e Henree foram menos efusivos nas boas-vindas, mas nem por isso se mostravam menos alegres. Cada um apertou a mão de Lucky, como que para confirmar, por meio de mera pressão muscular, a realidade em carne e osso que contemplavam.

      Lucky pilheriou:

      - Oh! Por favor. Dêem-me uma chance de respirar. O que há? Pensavam que não voltaria?

      - Ouça - pediu Conway. - É melhor que nos consulte antes de decolar com qualquer antiga noção idiota.

      - Pois bem, consulto-os se a idéia não for demasiado tola, porque do contrário vocês não me deixarão partir.

      - Não importa. Posso rebaixá-lo pelo que acaba de fazer. Posso mandá-lo prender agora mesmo ou aplicar-lhe uma suspensão. Posso até expulsá-lo do Conselho - disse Conway.

      - E qual dessas ameaças pretende cumprir?

      - Nenhuma delas, seu jovem imbecil superdesenvolvido. Mas posso socar-lhe a cabeça, qualquer dia destes, até estourar-lhe os miolos.

      Lucky voltou sua atenção para Augustus Henree:

      - Você não irá permitir que faça isto, não é?

      - Falando francamente, vou ajudá-lo.

      - Bem, então desisto antecipadamente. Há um indivíduo aqui que gostaria que conhecessem.

      Até aquele momento Hansen havia permanecido em plano secundário, obviamente divertindo-se muito com a troca de palavreado. Os dois Conselheiros mais velhos estavam tão satisfeitos com o aparecimento de Lucky Starr que nem se davam conta da sua existência.

      - Dr. Conway - disse Lucky - Dr. Henree, este é o Sr. Joseph P. Hansen, o homem cuja nave utilizei para voltar. Tem sido de considerável valia para mim.

      O velho eremita trocou apertos de mãos com os dois cientistas.

      - Não creio que possa, possivelmente, conhecer os Drs. Conway e Henree - disse Lucky.

      O eremita sacudiu a cabeça.

      - Muito bem - prosseguiu ele. - São importantes funcionários do Conselho de Ciências. Depois que comer e tiver uma oportunidade de descansar, eles conversarão com você e estou certo de que o ajudarão.

 

      Uma hora depois os dois Conselheiros defrontavam-se com Lucky, mostrando expressões sombrias. O Dr. Henree socava tabaco no cachimbo, com o dedo mindinho, enquanto ouvia o relato das aventuras de Lucky com os piratas.

      - Contou estas coisas a Bigman? - perguntou ele.

      - Estive agora mesmo falando algum tempo com ele - disse Lucky.

      - E ele não tentou agredi-lo porque não quis levá-lo junto?

      - Realmente não ficou muito contente - admitiu Lucky.

      Mas a mente de Conway estava voltada para um assunto mais sério:

      - Uma nave com esquema da estrela de Sírio, hein? - perguntou ele, todo pensativo.

      - Sem dúvida - respondeu Lucky. - Pelo menos dispomos desta pequena informação.

      - A informação não vale o risco - disse Conway rispidamente. - Agora estou muito mais inquieto com uma pequena informação que possuo. Está patente que a própria organização dos habitantes de Sírio penetrou no Conselho de Ciências.

      Henree acenou afirmativamente com a cabeça:

      - Sim, eu também vi isto. É muito mau.

      - Como chegaram a esta conclusão? - perguntou Lucky.

      - Pela Galáxia! Meu rapaz, é óbvio! - resmungou Conway. - Admitirei que tínhamos uma turma enorme trabalhando na construção da espaçonave e que, mesmo com a melhor das intenções, pequenos lapsos de informações podem ocorrer devido ao descuido. No entanto, persiste a verdade de que a nave era uma bomba camuflada e que a maneira particular das ligações era do conhecimento apenas dos membros do Conselho e não de todos aqueles trabalhadores. Naquele pequeno grupo deve haver algum espião; mas eu seria capaz de jurar que todos eram dignos de confiança. Ainda não consigo acreditar no contrário - concluiu ele, meneando a cabeça.

      - Não precisa acreditar no contrário - disse Lucky.

      - E por que não?

      - Porque o contato com Sírio foi muito passageiro. Foi de mim que a Embaixada de Sírio conseguiu a informação.

 

Bigman assume o controle

      - Indiretamente, é claro, por meio de um dos seus conhecidos espiões - pormenorizou ele, enquanto os dois homens mais velhos o fitavam com os olhos arregalados, totalmente atônitos.

      - Não o entendo, absolutamente - disse Henree, com voz sumida. Obviamente Conway estava silencioso, impossibilitado de falar.

      - Foi necessário. Tive que fazer minha própria apresentação aos piratas, sem levantar suspeitas. Se me encontrassem numa nave que reputavam ser de mapeamento, teriam me posto fora de ação a tiros. Por outro lado, se me encontrassem numa espaçonave-bomba e dessem casualmente com o segredo, por um golpe de sorte, tomariam-me sem maiores considerações como um passageiro clandestino. Não entendem? Numa nave em missão de levantamento cartográfico do terreno, sou apenas um membro da tripulação que não conseguiu escapulir a tempo. Numa nave preparada para explodir, não passo de um coitado que não percebe onde está se escondendo.

      - De qualquer forma, poderiam tê-lo matado. Poderiam ter percebido claramente de sua traição e dai considerá-lo um espião. Na realidade, foi quase o que fizeram.

      - Realmente! Faltou pouco! - admitiu Lucky.

      Finalmente Conway explodiu:

      - E o que me dizem a respeito do plano original? Íamos ou não destruir uma de suas bases? Quando penso nos meses que gastamos na construção do Atlas e no dinheiro que investimos nele...

      - De que adiantaria ter explodido uma de suas bases? Falamos sobre um enorme hangar de espaçonaves corsários, mas na verdade, aquilo foi apenas fé naquilo que se desejava que fosse uma realidade. Uma organização baseada nos asteróides teria que ser descentralizada. Os piratas provavelmente não possuem mais que três ou quatro naves num só lugar. Não haveria espaço para mais. Explodir três ou quatro espaçonaves representaria muito pouco quando comparado com o que seria conseguido se eu obtivesse êxito penetrando na organização deles.

      - Mas você não foi bem sucedido - disse Conway. - A despeito de todos os riscos idiotas, não obteve êxito.

      - Infelizmente o comandante pirata que se apoderou do Atlas era muito desconfiado, ou talvez, inteligente demais para nós. Tentarei não subestimá-los novamente. Contudo, não foi um fracasso total. Sabemos com certeza que Círios os estão apoiando. Além do mais, temos o meu amigo eremita.

      - Ele não nos ajudará - disse Conway. - Tenho a impressão, pelo que ouvi você dizer sobre ele, de que está apenas interessado em mostrar que não tem a mínima ligação possível com os piratas. Assim sendo, o que sabe?

      - Pode ser que seja capaz de contar mais do que ele próprio acredita ser possível - disse Lucky friamente. - Por exemplo, existe uma pequena informação que pode nos fornecer a qual me habilitará a continuar nos esforços na luta contra a pirataria do lado de dentro.

      - Você não vai para lá novamente - disse Conway, apressadamente.

      - Não pretendo fazê-lo - respondeu Lucky.

      Os olhos de Conway estreitaram-se.

      - Onde está Bigman?

      - Em Ceres. Não se aflija. De fato - e uma sombra cruzou o rosto de Lucky - ele deveria estar por aqui neste momento. A demora está começando a me incomodar um pouco.

 

      John Bigman Jones utilizou-se do seu cartão-passe especial para passar pela guarda na porta da Torre de Controle.

      Resmungava consigo mesmo enquanto percorria quase correndo os corredores.

      O leve rubor em seu nariz arrebitado atenuava-lhe as sardas e o cabelo avermelhado estava eriçado, formando tufos que lembravam os piquetes de uma cerca. Freqüentemente Lucky lhe sugeria que desenvolvesse um penteado vertical para dar a impressão de ser de estatura mais elevada, mas ele se recusava terminantemente a seguir o conselho.

      A última porta que levava à Torre se abriu de par em par no momento em que ele interrompeu o raio fotoelétrico. Entrou e relanceou o olhar em volta.

      Havia três homens a postos. Um estava sentado diante do receptor subetérico, com os fones dos ouvidos colocados; outro na frente da máquina calculadora e o terceiro, em frente à tela curva tipo radar.

      Bigman perguntou:

      - Qual foi o imbecil que me chamou de Tampinha?

      Os três se voltaram para ele simultaneamente, sobressaltados e de fisionomias fechadas.

      Aquele que estava com os fones tirou um deles do ouvido esquerdo e perguntou:

      - Afinal, quem é você? Por obra de que diabo entrou aqui?

      Bigman retesou o corpo e inflou o pequeno peito:

      - Meu nome é John Bigman Jones. Meus amigos me chamam de Bigman. Os outros me chamam de Sr. Jones. Ninguém que me chame de Tampinha fica inteiro. Quero saber qual de vocês cometeu o engano.

      O operador com os fones nos ouvidos disse:

      - Meu nome é Lem Fisk e pode chamar-me do que quiser, desde que o faça em qualquer outro lugar. Saia daqui, se não quer que me levante desta cadeira, o pegue por uma perna e o jogue lá fora.

      O homem que estava na máquina calculadora disse:

      - Ei, Lem, ele é o maluco que há pouco estava andando lá pelo porto. Não vale a pena perder tempo com ele. Mande os guardas pô-lo para fora.

      - Nada feito - disse Lem Fisk. - Não precisamos de guardas para cuidar deste sujeito.

      Retirou completamente os fones dos ouvidos e ajustou os receptores subetéricos na posição de SINAL AUTOMÁTICO, dizendo, em seguida:

      - Muito bem, filho, você entrou aqui e fez uma pergunta sensata de maneira educada. Por isso vou dar-lhe uma resposta educada. Eu o chamei de Tampinha; mas, espere, não fique zangado. Tenho uma razão para isto. Como vê, você é um sujeito realmente alto. Você é um verdadeiro varapau, um compridão. Tanto assim, que faz meus amigos rirem ao ouvir-me chamá-lo de Tampinha.

      Enfiou a mão no bolso das calças e tirou um maço de cigarros feito de plástico. Sorria afavelmente.

      - Desça daí e venha cá - berrou Bigman. - Venha cá e sustente o seu senso de humor com os punhos.

      - Calma, calma - disse Fisk, estalando a língua. - Aqui está, rapaz. Pegue um cigarro. Tamanho rei, como vê. Quase tão grande quanto você. É possível que crie alguma confusão; lembre-se disto. Não estamos em condições de dizer se é você que está fumando o cigarro ou se o cigarro o está fumando.

      Os outros dois homens da Torre soltaram risadas ruidosas.

      Bigman estava rubro de fúria. As palavras lhe saíram tensamente da boca:

      - Não vai brigar?

      - Prefiro fumar. Pena que não queira fazer-me companhia.

      Fisk reclinou-se na cadeira, escolheu um cigarro do maço plástico e manteve-o erguido diante do rosto, como que admirando a sua delgada alvura:

      - Afinal de contas, não vou perder tempo, brigando com crianças.

      Ele sorriu convencidamente, levou o cigarro aos lábios.

      O dedo polegar e os dois primeiros dedos - o indicador e o médio - continuavam na mesma posição, mas não se via nenhum cigarro entre os mesmos.

      - Cuidado, Lem - gritou o homem da tela de radar.

      - Ele tem uma pistola-agulha.

      - Não é uma pistola-agulha - vociferou Bigman. - Trata-se apenas de um vibrador.

      Não havia nenhuma diferença importante. Embora finos como pontas de agulha, os projéteis de um vibrador eram frágeis e não explosivos. Utilizavam-se no exercício de tiro ao alvo e na caça de animais de pequeno porte. Ao atingir a pele humana, as agulhas do vibrador não ocasionavam dano grave, mas causavam uma dor aguda.

      O riso convencido de Fisk esvaneceu-se totalmente. E ele berrou, então:

      - Cuidado com isto, seu louco. Pode cegar um homem com ela.

      Bigman manteve os punhos cerrados ã altura dos olhos. O cano fino do vibrador sobressaía por entre os dedos médios. Ele disse:

      - Não vou cegá-lo. Mas posso ajustá-lo de tal modo que você não consiga sentar-se durante um mês. E, conforme pode constatar, minha pontaria não é má. E quanto a você - falou ele por sobre o ombro, dirigindo-se ao indivíduo que estava na máquina de calcular - se ousar aproximar-se uma polegada que seja do circuito de alarme terá a mão atravessada por uma agulha vibratória.

      Fisk perguntou:

      - O que deseja?

      - Quero que desça da cadeira e brigue.

      - Contra um vibrador?

      - Eu o guardarei. Então será uma luta limpa, de punhos desarmados. Seus amiguinhos podem constatar isto.

      - Não posso bater num sujeito menor do que eu.

      - Neste caso, também não devia insultá-lo. - Bigman ergueu o vibrador e continuou: - E eu não sou mais baixo do que você. Por fora posso dar esta impressão, mas interiormente sou tão grande quanto você. Talvez maior. Vou contar até três.

      Ele contraiu um olho enquanto fazia a pontaria.

      - Pela Galáxia! - praguejou Fisk. - Vou descendo. Colegas, vocês são minhas testemunhas de que fui forçado a isto. Tentarei não machucar demais esse idiota louco.

      Ergueu-se da cadeira de um salto. O homem que operava a calculadora substituiu-o nos subetéricos.

      Fisk media aproximadamente um metro e setenta e cinco, cerca de vinte centímetros mais alto do que Bigman, cujo porte franzino lembrava mais um garoto do que um homem. Contudo, os músculos de Bigman eram verdadeiras molas de aço sob perfeito controle. Ele aguardou a aproximação do oponente sem qualquer expressão facial.

      Fisk não se deu ao trabalho de alertar um guarda. Estirou apenas a mão esquerda como se tivesse a intenção de levantar Bigman pelo colarinho e jogá-lo pela porta que continuava aberta.

      Bigman desviou-se do braço. Seus punhos atingiram como um raio surdo o plexo solar do homem mais corpulento, numa rápida seqüência de dois golpes, e quase no mesmo momento caiu fora de alcance, dançando.

      Fisk ficou verde e sentou-se, segurando o estômago com a mão e gemendo.

      - Fique em pé, seu grandalhão - gritou-lhe Bigman. - Eu espero.

      Os outros dois homens da Torre pareceram ficar totalmente congelados, imobilizados pela súbita reviravolta dos acontecimentos.

      Fisk foi se erguendo lentamente. Seu rosto irradiava raiva, mas aproximou-se vagarosamente.

      Bigman afastou-se.

      Fisk investiu! Bigman não foi atingido por questão de cinco centímetros. Levando a mão por cima do ombro, Fisk desferiu um violento murro, cujo impulso morreu a dois centímetros e meio diante do queixo de Bigman.

      Bigman flutuava de um lado a outro como uma rolha sobre águas encrespadas. Seus braços vez por outra se deslocavam para a esquerda, a fim de aparar um golpe.

      Berrando de maneira incoerente, Fisk investiu cegamente contra o opositor, que tinha a agilidade de uma mosca. Bigman desviou-se para um lado e sua mão espalmada atingiu com violência o rosto lisamente escanhoado do outro. A bofetada produziu um forte estampido, como se fosse um meteoro atingindo as primeiras camadas de ar espessa acima de um planeta. Os contornos dos quatro dedos ficaram estampados em vermelho no rosto de Fisk.

      Por um momento Fisk ficou parado, aturdido. Qual cobra que acaba de levar uma paulada, Bigman deu um novo bote, movendo o punho de baixo para cima contra o queixo de Fisk, que baixou o corpo e ficou parcialmente acocorado.

      Bigman percebeu repentinamente do soar de um alarme que soava continuamente ao longe.

      Sem um momento sequer de vacilação, deu meia volta e saiu pela porta. Correu de maneira ondulatória por entre um trio de guardas perplexos, que se encaminhavam para o corredor numa corrida ruidosa, e desapareceu!

 

      - E por que estamos esperando por Bigman? - perguntou Conway.

      Lucky respondeu:

      - É assim que eu vejo a situação. Não há nada de que necessitemos tão desesperadamente como informações adicionais a respeito dos piratas. Refiro-me a informações internas. Tentei obtê-las, mas os fatos não sucederam conforme eu esperava. Presentemente, sou um homem visado. Conhecem-me. Mas, Bigman não sabe quem é. Ele não tem nenhuma ligação oficial com o Conselho. É minha idéia que podemos arquitetar uma acusação criminal contra ele, para revestir a coisa de realismo, a fim de que parta imediatamente para Ceres na espaçonave do eremita...

      - Ó céus! - exclamou Conway, num gemido. - Quem tiver ouvidos, que ouça! Ele voltará ao asteróide do eremita. Se os piratas estiverem lá, está muito bem. Se não, deixará a espaçonave bem visível e esperará por eles dentro da mesma. É um lugar bem confortável para se ficar aguardando.

      - E quando aparecerem o matam - observou Henree.

      - Não o matarão. É por isso que está levando a nave do eremita. Eles terão que descobrir para onde foi Hansen, não falar do meu próprio paradeiro, de onde veio Raman e como conseguiu apoderar-se da nave. Terão que descobrir. Isto lhe dará tempo para conversar.

      - E explicar como escolheu justamente o asteróide de Hansen dentre todos os demais do universo? Isto é algo que requer muita conversa.

      - Não vai precisar absolutamente de nenhuma conversa. A aeronave do eremita estava em Ceres, que é onde se encontra agora. Tomei as devidas providências para que seja deixada sem vigilância, a fim de que ele possa chegar até ela. No livro de bordo encontrará as coordenadas do tempo espacial no hangar da aeronave, no asteróide. Para ele não passaria de um asteróide não muito distante de Ceres, tão bom como qualquer outro, e viajaria em direção a ele em linha reta para aguardar que amaine a fúria existente em Ceres.

      - É um risco - resmungou Conway.

      - Bigman sabe disto. E digo-lhes, neste momento, que temos que correr os riscos. A Terra está subestimando a ameaça corsária a tal ponto que...

      Ele calou-se, pois a luz sinalizadora do tubo de comunicação acendeu e apagou-se rapidamente, formando ligeiros pontos luminosos.

      Fazendo um gesto impaciente com a mão, Conway interrompeu o sinal do analisador e endireitou-se na cadeira.

      Ele disse:

      - Encontra-se no comprimento de onda do Conselho e, por Ceres, é um dos alarmas do Conselho.

      A pequena tela panorâmica do tubo de comunicação mostrava um padrão característico de rápida alternância entre luz e escuridão.

      Na estreita fenda do tubo de comunicação inseriu Conway um pedaço de metal que tirou de um grupo de outros idênticos que estavam em sua carteira. A peça era um cristalite regular. Sua parte ativa consistia de um padrão especial de diminutos cristais de tungstênio afixado num molde de alumínio. Este filtrava de modo específico os sinais subetéricos. Conway ajustou lentamente a peça de metal de contornos regulares, introduzindo-a bem fundo e retirando-a em seguida, até que a mesma se ajustou com exatidão a uma peça de natureza similar porém de função oposta, na outra extremidade do sinalizador.

      O momento exato da conclusão do ajustamento foi anunciado pelo nítido enfoque na tela.

      Lucky ergueu-se parcialmente e exclamou:

      - Bigman! Pelos céus, onde está você?

      O pequeno rosto de Bigman sorria-lhe marotamente:

      - Estou no espaço. A cem mil milhas de Ceres, na aeronave do eremita.

      Conway resmungou furiosamente:

      - Trata-se de outra de suas piadas! Pensei ouvi-lo dizer que estava em Ceres!

      - Pensei que estivesse - disse Lucky, mas logo corrigiu: - O que aconteceu, Bigman?

      - Você disse que tínhamos que agir rapidamente, de modo que eu mesmo dei um jeito nas coisas. Um dos sabichões da Torre de Controle estava me dando trabalho. Por isso lhe apliquei uma pequena surra e desapareci. - Ele riu e continuou: - Entre em contato com os guardas e certifique-se se estão de alerta devido a um sujeito como eu, com uma queixa de tentativa de agressão nas costas.

      - Não foi a melhor coisa que poderia ter feito - disse Lucky com seriedade. - Vai passar por momentos difíceis, tentando convencer os homens dos asteróides que é do tipo agressivo. Não quero ofender-lhe os brios, mas parece um pouco pequeno para a missão.

      - Deixarei alguns deles perplexos, abatendo-os - retorquiu Bigman. - Acabarão acreditando em mim. Mas, não foi para isto que mandei chamá-lo.

      - Muito, bem, por que foi?

      - Como chego ao asteróide deste sujeito?

      Lucky fechou a cara e perguntou:

      - Já deu uma olhada no livro de bordo?

      - Santa Galáxia! Olhei por toda parte. Até mesmo debaixo do colchão. Não há registro em parte alguma de nenhuma espécie de coordenadas.

      A inquietação de Lucky pareceu aumentar:

      - Estranho. Na verdade, mais do que estranho. Ouça, Raman - falou ele rápida e incisivamente: - Procure ajustar-se à velocidade de Ceres. Dê-me agora suas coordenadas com relação a Ceres e mantenha-as assim até que chame, faça o que fizer. Você está muito perto de Ceres para ser molestado por quaisquer piratas; mas, se vier a afastar-se um pouco, pode ver-se em má situação. Está ouvindo?

      - Sim, ouvi. Vou calcular as minhas coordenadas.

      Lucky anotou-as e interrompeu a comunicação, dizendo:

      - Pelos céus! Quando é que vou aprender a não fazer suposições?

      Henree perguntou:

      - Não é melhor mandar Bigman voltar? Não passa de uma aventura temerária, quando muito, e acho melhor desistir de tudo enquanto não tivermos as coordenadas.

      - Desistir? - exclamou Lucky. - Desistir do único asteróide que sei ser uma base pirata? Conhece alguma outra? Uma única que seja? Temos que encontrar o asteróide. É a única pista que nos levará ao âmago do problema.

      Conway disse:

      - Gus, ele tem um ponto lá. É a base.

      Lucky acionou rapidamente um botão no intercomunicador e aguardou.

      Hansen respondeu, com voz sonolenta porém assustada:

      - Alô! Alô! Lucky foi rápido:

      - Aqui é Lucky Starr, Sr. Hansen. Sinto muito incomodá-lo, sr. Hansen, mas gostaria que viesse aqui na sala do Dr. Conway, o mais depressa possível.

      Depois de uma pausa o eremita respondeu:

      - Pois não, mas não conheço o caminho.

      - O guarda que está à sua porta o conduzirá. Entrarei em contato com ele. Pode estar aqui em dois minutos?

      - De qualquer forma, dentro de dois minutos e meio - disse ele, de bom humor. Parecia, então, mais desperto.

      - Excelente!

      Hansen cumpriu à risca a palavra dada e Lucky estava à sua espera.

      Lucky permaneceu em silêncio, calado, por alguns instantes, segurando a porta aberta. Disse ao guarda:

      - No início da manhã houve algum problema na base? Talvez alguma agressão?

      O guarda fez uma cara de surpresa:

      - Sim, senhor. Mas o homem que sofreu a agressão recusou-se a apresentar queixa. Declarou que foi uma luta limpa.

      Lucky fechou a porta, dizendo:

      - Faz sentido. Qualquer homem normal detestaria ir para a prisão e admitir que um sujeito do porte de Bigman lhe aplicou uma surra. De qualquer forma, mais tarde chamarei as autoridades e mandarei registrar a queixa. Para os arquivos... Sr. Hansen.

      - É mesmo, Sr. Starr?

      - Tenho uma pergunta a lhe fazer, cuja resposta não desejo ver flutuando por aí pelo sistema de intercomunicações. Diga-me: quais as coordenadas do seu asteróide-lar? Naturalmente, tanto as padronizadas como as provisórias.

      Hansen ficou boquiaberto e seus brilhantes olhos azuis abriram-se exageradamente.

      - Muito bem, você pode achar difícil acreditar, mas, quer saber duma coisa? Eu não seria capaz de dizê-las.

 

O asteróide inexistente

      Lucky fitou-o firmemente nos olhos e disse:

      - Sr. Hansen, ê difícil de se acreditar. Em minha opinião o senhor deveria conhecer tão bem suas coordenadas quanto um habitante dum planeta sabe o endereço de sua própria residência.

      O eremita olhou para as pontas dos seus pés e disse acabrunhadamcnte:

      - Eu também acho. Na realidade, trata-se do endereço de minha residência. No entanto, desconheço-o.

      Conway opinou:

      - Se este homem está deliberadamente...

      - Espere um momento - atalhou Lucky. - Procuremos agir com paciência, se queremos lograr algo. O Sr. Hansen deve ter alguma explanação.

      Então esperaram que o eremita se explicasse.

      As coordenadas dos vários corpos espaciais constituíam o sangue vital das viagens espaciais. Desempenhavam a mesma função que as linhas de latitude e longitude exerciam na superfície bidimensional de um planeta. Mas, dado que o espaço é tridimensional e que os corpos celestes dentro dele se deslocam em todas as direções possíveis, as imprescindíveis coordenadas são muito mais complicadas.

      Basicamente, existe em primeiro lugar uma posição zero Padrão. No caso do Sistema Solar, o Sol era o padrão usual. Com base neste padrão, são necessários três números. O primeiro representa a distância de um dado objeto ou uma posição no espaço, distante do Sol. O segundo e terceiro números são medidas angulares que indicam a po_ sição do objeto com referência a uma linha imaginária que liga o Sol ao centro da Galáxia. Se forem conhecidos três conjuntos de tais coordenadas para três tempos diferentes, bem separados, então se poderia calcular a órbita de um objeto em movimento bem como conhecer, em qualquer tempo dado, a sua posição com relação ao Sol.

      As espaçonaves poderiam calcular suas próprias coordenadas com respeito ao Sol ou, se fosse mais conveniente, com relação ao corpo celeste de maior porte da proximidade mais imediata, não importando qual fosse. Nas linhas lunares, por exemplo, através das quais as naves iam da Terra para a Lua e vice-versa, a Terra constituía o habitual "ponto zero". As próprias coordenadas do Sol podiam ser calculadas com relação ao Centro Galáctico e ao Primeiro Centro Galáctico, mas isto era apenas importante em se tratando de viagens interestelares.

      Algumas destas considerações deviam estar passando pela mente do eremita, enquanto estava sentado com os três Conselheiros que o estudavam atentamente. Era difícil adivinhar.

      Hansen disse subitamente:

      - Sim, posso explicar.

      - Pois não, estamos esperando - disse Lucky.

      - Há quinze anos que nunca tive oportunidade de usar as coordenadas. Durante vinte anos que não tenho deixado de forma alguma o meu asteróide e as viagens que empreendi antes disso, uma ou duas, foram de curta distância até Ceres ou Vesta com a finalidade de buscar suprimentos de uma ou outra espécie. Quando viajei, utilizei-me das coordenadas locais, que calculei para uso momentâneo, mas nunca elaborei uma tabela, pois não tive necessidade disso. Saí do asteróide apenas uma ou duas vezes, no máximo três, e neste período de tempo meu asteróide não flutuaria para tão longe. Ele viaja com a corrente um pouco mais lentamente do que Ceres ou Vesta, quando se encontra ligeiramente mais afastado do Sol, e um pouco mais rápido quando se encontra mais próximo deste. Quando retornei à posição que havia calculado, meu asteróide deve ter flutuado à deriva umas mil ou até cem mil milhas, distanciando-se do ponto original; mesmo assim, sempre esteve suficientemente próximo para ser avistado com o telescópio da nave espacial. Depois disto eu sempre conseguia ajustar meu curso a olho nu e nunca usei as coordenadas-padrão solares porque nunca tive necessidade disso. E aí têm os senhores minha explicação.

      - O que está dizendo - observou Lucky - é que agora não conseguiria voltar ao seu asteróide. Ou calculou as coordenadas locais antes de partir?

      - Nunca pensei em calculá-las - disse o eremita com pesar. - Faz tanto tempo que saí dele, que nunca dei ao assunto um segundo de atenção. Não liguei importância até o instante em que me chamou para dentro desta sala.

      O Dr. Henree disse:

      - Esperem, esperem. - Ele acendera uma nova cachimbada e soltara fortes baforadas. - Posso estar equivocado, sr. Hansen, mas quando tomou posse do seu asteróide pela primeira vez deve ter arquivado um título de propriedade no Departamento Terrestre do Mundo Exterior, não é verdade?

      - Sim - concordou Hansen. - Mas foi uma mera formalidade.

      - Pode ser que tenha sido. Não discuto isto. Mas, as coordenadas do seu asteróide deveriam estar arquivadas naquele Departamento.

      Hansen pensou um pouco e logo sacudiu a cabeça:

      - Temo que não, Dr. Henree. Anotaram apenas as coordenadas padrão estabelecidas para o dia primeiro de janeiro daquele ano, com a única finalidade de identificar o asteróide, à maneira de um código numérico, em caso de propriedade controvertida. Não estavam interessados em mais nada além daquilo e não se pode computar uma órbita, baseando-se numa simples seqüência de números.

      - Mas você mesmo deve ter tido valores orbitais. Lucky contou-nos que inicialmente usou o asteróide como um recanto para passar as férias. Conseqüentemente, com o passar dos anos deve ter sido capaz de descobrir este pormenor.

      - Isto foi há quinze anos, Dr. Henree. Sim, eu possuía os valores. E encontram-se em algum dos meus livros-filmes no asteróide, mas não em minha memória.

      Com os olhos anuviados, disse Lucky:

      - Não há nada mais para o momento, Sr. Hansen. O guarda o levará de volta ao seu quarto e o informará quando necessitarmos novamente de sua presença. E, sr. Hansen, se por acaso vier a lembrar-se das coordenadas, informe-nos - aduziu ele, no momento em que o eremita se levantou.

      - Dou minha palavra, sr. Starr - disse Hansen solenemente.

      Os três ficaram de novo sozinhos. Lucky estendeu rapidamente a mão para o tubo de comunicação:

      - Ponha-me no ar para transmissão - pediu ele.

      A voz do operador na Central de Comunicação fez-se ouvir de novo:

      - A mensagem que chegou anteriormente era para o senhor? Não consegui decifrá-la, de forma que pensei...

      - Fez bem. Transmissão, por favor.

      Lucky ajustou um alarma e usou as coordenadas de Bigman, colocando-as em zero no feixe luminoso do subetérico.

      - Bigman - disse ele, no momento em que o rosto do outro apareceu - abra novamente o diário de bordo.

      - Lucky, você tem as coordenadas?

      - Ainda não. Já abriu o diário de bordo?

      - Sim.

      - Existe uma tira de papel em algum lugar dele? Um papel solto, com cálculos em toda parte?

      - Espere. Sim, aqui está.

      - Mantenha-o suspenso diante do seu transmissor. Quero vê-lo.

      Lucky puxou uma folha de papel diante de si e copiou os algarismos.

      - Muito bem, Bigman, retire-o. Agora, preste atenção. Não arrede pé, ouviu? Não arrede pé, aconteça o que acontecer, até que me ouça de novo. Estou saindo do ar; câmbio.

      Ele voltou-se para os dois homens mais idosos:

      - Dirigi a espaçonave do asteróide do eremita até Ceres a olho nu. Ajustei a rota três ou quatro vezes, usando o telescópio da nave e instrumentos registradores de escala, para observação e medidas. Aqui estão os meus cálculos.

      Conway anuiu:

      - Agora quero crer que vai efetuar os cálculos inversamente para descobrir as coordenadas do asteróide.

      - Isto pode ser feito com muita facilidade, especialmente se utilizarmos o Observatório de Ceres.

      Conway levantou-se pesadamente da cadeira:

      - Não consigo deixar de pensar que você está exagerando em tudo isto, mas por algum tempo seguirei o seu instinto. Vamos ao Observatório.

 

      Passando por corredores e subindo elevadores, chegaram até às proximidades da superfície de Ceres, a meia milha acima do escritório do Conselho de Ciências instalado no asteróide. Fazia um frio intenso ali, de vez que o Observatório despendia todos os esforços no sentido de manter a temperatura mais próxima possível, e de maneira constante da temperatura de superfície que o corpo humano pudesse suportar.

      Um técnico decifrava lentamente e com muito cuidado os cálculos de Lucky, inserindo-os no computador e controlando as operações.

      Instalado numa cadeira não muito confortável, o Dr. Henree abraçava-se ao próprio corpo e parecia estar tentando extrair algum calor do cachimbo, pois suas mãos providas de amplos dedos pairavam bem próximas da cabeça do cachimbo.

      Ele disse:

      - Espero que disto resulte alguma coisa.

      - Seria muito bom - concordou Lucky. Reclinou-se na cadeira, mantendo os olhos fixos na parede diante de si.

      - Ouça, tio Hector. Há pouco você se referiu ao meu instinto. Não se trata mais de instinto. Esta pirataria que está havendo atualmente é completamente diferente da que existia um quarto de século atrás.

      - Suas naves são mais difíceis de alcançar ou deter, se é a isto a que alude - disse Conway.

      - Sim, mas não é muito mais estranho que suas incursões se confinem ao cinturão de asteróides? Somente aqui nos asteróides o comércio foi interrompido.

      - É que estão agindo com cautela. Há vinte anos quando suas naves cobriam toda a rota até Vênus, fomos forçados a montar um sistema defensivo para esmagá-los. Presentemente, restringem-se aos asteróides e o governo vacila em adotar providências dispendiosas.

      - Por enquanto, tudo muito bem - disse Lucky. - Mas, como é que eles se mantêm? Sempre se supôs que os piratas não atacam por bel-prazer, mas sim para apoderar-se de naves, alimentos, água e suprimentos. É de se crer que isto se transformou agora numa necessidade, mais premente do que nunca. Com muito convencimento o capitão me disse que possuía centenas de naves e milhares de mundos. Pode ter sido uma mentira para impressionar-me, mas gastou muito tempo no duelo com pistolas propulsoras, flutuando abertamente no espaço durante horas, como se não tivesse nenhum temor da interferência governamental. Alem disso, Hansen relevou que os piratas haviam-se apropriado de vários mundos de eremitas, transformando-os em locais para rápidas paradas. Existem centenas de mundos de eremitas. Se os piratas se apossaram de todos eles, ou mesmo de uma boa parte deles, também isto significa uma ampla organização.

      - Pois bem, agora onde é que obtêm os suprimentos para amparar uma ampla organização e ao mesmo tempo empreender um número menor de incursões do que os piratas faziam há vinte anos? O tripulante pirata, Martin Maniu, falou-me de esposas e famílias. Era um destilador - disse ele. Talvez estivesse cultivando leveduras. Hansen possuía alimentos baseados em leveduras em seu asteróide e não eram produtos provenientes de Vênus. Eu conheço o sabor dos alimentos de Vênus.

      - Tire suas conclusões. Eles desenvolvem sua própria levedura em pequenas fazendas para cultivo daquele produto, as quais estão espalhadas pelas cavernas dos asteróides. Extraem gás carbônico diretamente das pedras calcárias; a água e o oxigênio adicional obtêm-nos nos satélites jupiterianos. Maquinário e unidades de força podem ser importados de Sírio ou conseguidos por meio de um ataque ocasional. Com estas investidas se abastecem também de mais recrutas, tanto homens como mulheres.

      - Disto tudo se conclui que Sírio está formando um governo independente contra nós. Está tirando proveito de pessoas insatisfeitas a fim de formar uma ampla sociedade que se tornará difícil ou impossível esmagar se esperarmos demais. Os líderes, os capitães Antons, andam antes de tudo à cata de poder e estão perfeitamente dispostos a entregar metade do Império Terrestre a Sírio se eles próprios puderem ficar com a outra metade.

      Conway meneou a cabeça e disse:

      - Trata-se de uma estrutura assustadoramente enorme para a curta exposição de fatos de que você dispõe. Duvido que seríamos capazes de convencer o governo. O Conselho de Ciências pode agir por própria iniciativa até um certo ponto. Infelizmente não dispomos de uma frota própria.

      - Estou a par disto. É exatamente por causa disto que necessitamos de maiores informações. Se, enquanto estamos no início do jogo, pudermos descobrir as suas principais bases, capturar os seus líderes, desmascarar suas ligações com Sírio...

      - E daí?

      - Na minha opinião o movimento teria fim. Estou persuadido de que o "homem médio do asteróide" - para usar a própria expressão deles - não tem idéia de que está sendo usado como fantoche de Sírio. Talvez esteja ressentido com a Terra. Talvez pense que lhe foi dispensado um tratamento injusto, se magoe com o fato de não ter podido encontrar emprego ou possibilidade de progresso e que não está indo tão bem como deveria ser. Quem sabe se não teria sido induzido àquilo que julgou seria uma vida em mar de rosas. Tudo isto está no terreno das hipóteses. Todavia, todas estas hipóteses estão muito longe de constituírem uma afirmação de que estaria disposto a bandear-se para o lado do maior inimigo da Terra. Quando descobrir que é exatamente isto o que seus líderes estão procurando convencê-lo a fazer, então a ameaça corsária desmoronará.

      Lucky interrompeu seu apaixonado sussurro no momento em que o técnico se aproximava, segurando uma fita flexível e transparente com perfurações em código que nelas haviam sido praticadas pelo computador.

      - Diga-me - perguntou ele - tem certeza de que os números que me entregou estavam corretos?

      - Tenho certeza. Por que? - perguntou Lucky.

      O técnico sacudiu a cabeça descrente:

      - Há alguma coisa errada. As coordenadas finais colocam o seu asteróide dentro de zonas proibidas. E isto, já levadas em conta as tolerâncias para os devidos deslocamentos. Quero dizer que é impossível.

      As sobrancelhas de Lucky arquearam-se abruptamente. Sem sombra de dúvida, o homem estava certo com respeito às zonas proibidas. Dentro daqueles limites possivelmente nenhum asteróide poderia ser encontrado. Aquelas zonas representavam porções do cinto de asteróides que, se tivessem existido, teriam tido períodos de revolução em torno do Sol que corresponderiam a uma fração igual a um período de revolução de Júpiter, que dura doze anos. Isto significaria que o asteróide e Júpiter se teriam aproximado continuamente, de poucos em poucos anos, na mesma porção de espaço. A constante atração de Júpiter teria afastado lentamente o asteróide daquela zona. Nos dois bilhões de anos, desde o momento em que os planetas se formaram, Júpiter esvaziara completamente aquelas zonas proibidas de quaisquer asteróides - o que constituía um fato.

      - Tem certeza de que seus cálculos estão corretos? - perguntou Lucky.

      O técnico encolheu os ombros como que dizendo: "Sei o que faço", mas disse em voz alta:

      - Podemos averiguar isto pelo telescópio. O telescópio de vinte e cinco metros está ocupado, mas de qualquer forma não se presta para trabalho de curta distância. Usaremos um dos menores. Por obséquio, queiram acompanhar-me.

      O recinto apropriado do Observatório assemelhava-se a um santuário, com os vários telescópios fazendo a vez de altares. Os homens estavam absortos no seu trabalho e não pararam para olhar, quando o técnico e os três homens do Conselho entraram.

      O técnico encaminhou-se, à frente, para uma das alas em que era dividida a sala imensa e cavernosa.

      - Charlie - disse, dirigindo-se a um jovem prematuramente calvo - pode pôr o Berta em ação.

      - Para quê? - perguntou Charlie, olhando-o por cima de uma série de impressões fotográficas salpicadas de estrelas, sobre as quais estivera debruçado.

      - Quero inspecionar o lugar representado por estas coordenadas.

      Ele ergueu o filme do computador.

      Charlie observou-o rapidamente e fez uma careta:

      - Para quê? É território da zona proibida.

      - Assim mesmo, poderia enfocar o lugar- - pediu o técnico. - É um trabalho para o Conselho de Ciências.

      - Oh! É verdade, senhor?

      Mostrou-se subitamente mais camarada e continuou:

      - Não vai demorar.

      Acionou uma chave e um diafragma flexível foi impelido para cima, fechando-se em torno do eixo do Berta, um telescópio de três metros, que era usado em trabalhos de curta distância. O diafragma fez uma vedação hermética e acima dele Lucky pôde distinguir o zumbido suave do tubo de superfície que se abria. O grande olho de Berta ergueu-se, o diafragma aderiu e ficou exposto ao firmamento.

      - Na maioria das vezes - explicou Charlie - usamos o Berta para trabalho fotográfico. A rotação de Ceres é muito rápida para apropriadas observações óticas. Por sorte, o ponto em que está interessado acha-se sobre o horizonte.

      Ele sentou-se perto do olho de observação, dirigindo o tubo do telescópio como se este fosse a tromba endurecida de um gigante elefante. O telescópio formou ângulo e o jovem astrônomo endireitou-se na cadeira e ajustou o foco cuidadosamente.

      Em seguida, saiu da cadeira e desceu alguns degraus de uma pequena escada afixada à parede. A um toque do seu dedo um tabique situado bem embaixo do telescópio se abriu para um lado, revelando uma cavidade completamente às escuras. Dentro dele havia uma série de espelhos e lentes que podiam enfocar e ampliar as imagens telescópicas.

      Havia apenas escuridão.

      Charlie disse:

      Aí está. Ele se valeu de uma pequena régua como ponto. Aquela pequena mancha é Métis, um asteróide de tamanho considerável. Mede aproximadamente vinte e cinco milhas de diâmetro, mas está distante daqui milhões de milhas. Aqui você nota a presença de algumas manchas a uma distância de um milhão de milhas do ponto em que está interessado, mas estão situadas de lado, fora da zona proibida. Temos que obliterar as estrelas por meio da polarização por fases senão elas confundiriam tudo.

      - Muito obrigado - disse Lucky. Ele pareceu atordoado.

      - Pois não. Terei o maior prazer em ajudar, sempre que puder.

      Encontravam-se no elevador, descendo, quando Lucky tornou a falar, com ar absorto:

      - Não pode ser.

      - Por que não? - interpelou-o Henree. - Seus cálculos estavam errados.

      - Como poderiam estar? Eu fui a Ceres.

      - Pode ter pensado em um número e anotado outro por engano; em seguida fez uma correção a olho e se esqueceu de corrigir os números no papel.

      Lucky sacudiu a cabeça negativamente:

      - Não poderia ter feito tal coisa. Eu apenas não... Esperem. Grande Galáxia! - exclamou ele fitando-os com os olhos esbugalhados.

      - O que foi, Lucky?

      - Tem sentido! Céus, tudo se ajusta! Vejam, eu estava equivocado. Não estamos de forma alguma no início do jogo, mas estamos atrasados demais nele. Pode ser muito tarde. Eu os subestimei novamente.

      O elevador havia chegado ao andar conveniente. A porta abriu e Lucky saiu com amplas e rápidas passadas.

      Conway correu atrás dele, segurou-o pelo cotovelo, obrigando-o a girar o corpo:

      - De que está falando?

      - Estou indo para lá. Não pense sequer em deter-me. E se não voltar, pelo amor da Terra, force o governo a iniciar importantes preparativos. Do contrário, os piratas podem controlar todo o Sistema Solar dentro de um ano. Talvez até em menos tempo.

      - Por quê? - interpelou-o Conway violentamente. - Por que não conseguiu descobrir um asteróide?

      - Exatamente! - exclamou Lucky.

 

O asteróide que existia

      Bigman trouxera Conway e Henree a Ceres na própria nave de Lucky, chamada Shooting Starr, com o que Lucky se rejubilou. Significava que poderia sair nela para o espaço, poder pisar-lhe o chão do convés, segurar os seus controles nas suas próprias mãos.

      A Shooting Starr era uma nave de viagens regulares, com lugar para dois homens, que fora construída um ano após as façanhas de Lucky entre os fazendeiros de Marte. Seu aspecto era tão ilusório quanto a ciência moderna poderia conceber. Suas linhas ilusórias davam-lhe a aparência aproximada de um iate espacial e seu perfil extremamente alongado era mais ou menos o dobro do pequeno barco a remos de Hansen. Qualquer viajante espacial que encontrasse a Shooting Starr, julgaria tratar-se de algo mais do que um brinquedo de homem rico, talvez veloz, mas de casco fino e inadequado para choques violentos. Sem dúvida, não era o tipo de nave que pudesse ser lançada nos domínios perigosos do cinturão de asteróides.

      Todavia, se fosse feita uma inspeção no interior da nave, algumas daquelas noções poderiam ter sido modificadas. Os reluzentes motores hiperatômicos igualavam em potência aqueles dos cruzadores espaciais blindados, com o décuplo de peso da Shooting Starr. Possuía uma reserva de energia extraordinária e a capacidade de sua blindagem magnética era suficiente para deter o maior projétil que fosse lançado contra ele por qualquer engenho abaixo de um couraçado. Sob o aspecto ofensivo, seu volume limitado impedia-o de ser de primeira classe, mas peso por peso era capaz de superar em capacidade de luta qualquer outra nave.

      Não causou nenhuma admiração o fato de Bigman pular A alegria logo que atravessou a câmara de compressão e tirou o traje espacial.

      - Pelo espaço! - exclamou Bigman. - Estou contente por ter me livrado daquela outra banheira. O que fazemos com ela?

      - Darei ordens para que enviem uma nave de Ceres para recolhê-los.

      Ceres ficara para trás, a uma distância de cem mil milhas. Pela aparência seu diâmetro parecia ser aproximadamente a metade daquele da Lua, quando vista da Terra.

      Bigman perguntou com curiosidade:

      - Que tal se me inteirasse de todos os pormenores, Lucky? Por que a mudança inesperada nos planos? Pelo que fiquei sabendo da última conversa que ouvi, eu devia vir para o asteróide completamente sozinho.

      - Não existem quaisquer coordenadas em que você possa basear-se - disse Lucky. Com o cenho carregado, contou-lhes os acontecimentos das últimas horas.

      Bigman deixou escapar um assobio:

      - Mas então, para onde estamos indo?

      - Não tenho muita certeza - respondeu Lucky. - Mas estamos rumando em direção ao lugar onde o asteróide do eremita deve encontrar-se, agora.

      Ele estudou os mostradores e acrescentou:

      - E saímos também daqui muito rapidamente.

      - Ele quis dizer rapidamente. A aceleração na Shooting Starr se acentuava à medida que a velocidade aumentava. Bigman e Lucky estavam presos às cadeiras diamagneticamente estofadas e a pressão crescente espalhava-se uniformemente sobre toda a superfície de seus corpos. A concentração de oxigênio era reforçada pelos controles "O purificador de ar sensíveis à aceleração, o que permitia uma respiração em ritmo mais lento sem perigo de morte Por escassez de oxigênio. Os trajes "G" (G era o símbolo científico corrente para designar aceleração), que ambos usavam, eram leves e não embaraçavam seus movimentos mas sob a pressão da velocidade crescente, enrijeciam protegiam-lhes os ossos, particularmente a espinha, evitando que se quebrassem. Um cinto largo feito de fios de tecido de nylon evitava qualquer dano excessivo às vísceras abdominais.

      Os acessórios da cabina haviam sido planejados nos mínimos detalhes pelos técnicos no sentido de permitir uma aceleração vinte a trinta por cento maior na Shooting Starr do que a existente nas mais avançadas naves da frota.

      Mesmo nesta ocasião a aceleração, embora elevada, era menos do que a metade daquela que a nave podia suportar.

      Quando a velocidade foi nivelada, a Shooting Starr se achava a cinco milhões de milhas distante de Ceres e, se Lucky ou Bigman tivesse mostrado interesse em localizá-la, teriam constatado que a mesma aparentemente não passava de um mero ponto luminoso, com brilho menos intenso do que muitas das estrelas.

      Bigman disse:

      - Diga-me, Lucky, há muito que queria lhe perguntar. Está com seu protetor contra raios desintegradores?

      Lucky acenou afirmativamente com a cabeça e Bigman pareceu ofendido.

      - Pois bem, seu grande estúpido - disse o homenzinho - por que não o levou consigo quando saiu para a caçada aos piratas?

      - Eu o tinha comigo - respondeu Lucky calmamente. - Tenho-o comigo desde o dia em que os marcianos me deram.

      Conforme Lucky e Bigman sabiam (e mais ninguém na Galáxia), os marcianos a que Lucky se referia não eram os empregados ou os fazendeiros de Marte. Tratava-se antes de uma raça de criaturas imateriais, descendentes diretos de antigas inteligências que em certa época habitaram a superfície daquele planeta, muito antes que o mesmo perdesse seu oxigênio e água. Escavando imensas cavernas sob a superfície de Marte e destruindo milhas cúbicas de rochas e convertendo a matéria assim destruída em energia e armazenando a energia para utilização futura, viviam atualmente em confortável isolamento. Abandonando seus corpos materiais e vivendo como energia pura, a sua existência passava insuspeitada pela Humanidade. Somente Lucky e Bigman haviam penetrado em suas fortalezas e como lembrança daquela viagem fantástica ele conseguira aquilo que Bigman chamava de "protetor contra raios desintegradores”.

      O vexame de Bigman aumentou:

      - Pois bem, se estava com ele, porque não fez uso dele? O que está havendo de errado com você?

      - Você faz uma idéia errada do protetor, Bigman. Ele não faz tudo. Não vai me dar comida na boca e limpar os meus lábios quando eu acabar com tudo isto.

      - Tenho visto o que ele pode fazer. E pode servir para muita coisa.

      - Pode, sim, em vários sentidos. Pode absorver todos os tipos de energia.

      - Por exemplo, a energia de um disparo de detonador. Você não pretende brincar com ele, não é?

      - Não. Admito que estaria imune aos detonadores. Por outro lado, o protetor absorveria energia em potencial, se a massa de um corpo não for muito grande ou pequena. Por exemplo, uma faca ou um projétil comum não poderiam atingir-me, embora este último possa derrubar-me. Uma marreta de bom tamanho atravessaria, no entanto, a barreira protetora e, mesmo que não conseguisse, o seu movimento total me esmagaria. Além disto, moléculas de ar conseguem atravessar a barreira protetora, como se a mesma não existisse, porque tais moléculas são muito pequenas para serem controladas. Digo-lhe estas coisas para que compreenda que, se eu estivesse usando o protetor e Dingo tivesse quebrado o visor do meu capacete, quando ambos estávamos engalfinhados no espaço, de qualquer modo eu teria morrido. A barreira protetora não teria impedido que o ar dentro do traje espacial se dispersasse numa fração de segundos.

      - Lucky, se você o tivesse usado em primeiro lugar, não teria tido nenhum tipo de dificuldade. Acaso não me lembro de quando o usou em Marte? - e Bigman tornou-se todo risonho ante a recordação. - Lembro-me como brilhava em torno de todo o seu corpo, como uma fumaça, só que era luminoso, de modo que podia ser visto numa névoa. De qualquer maneira, todo o corpo, com exceção do rosto. Isso não passava de uma luz branca.

      - Sim - disse Lucky secamente. - Eu os teria amedrontado. Eles teriam me atingido com detonadores, sem que me ferissem. Assim eles teriam corrido, distanciando-se do Atlas, afastando-se cerca de dez milhas e teriam explodido a nave. Eu teria sido morto definitivamente. Não se esqueça de que o protetor é apenas um protetor. Ele não me proporciona nenhum tipo de poder ofensivo.

      - Não pretende usá-lo nunca mais? - perguntou Bigman.

      - Só quando for necessário. Se o usasse com muita freqüência o efeito poderia ser desperdiçado. Seus pontos fracos poderiam ser evidenciados e eu me transformaria simplesmente num alvo para quem se aproximasse.

      Lucky estudou os instrumentos e disse calmamente:

      - Prepare-se novamente para a aceleração.

      Bigman disse:

      - Hei...

      Logo não conseguiu proferir nenhuma palavra, pois foi comprimido no assento e inesperadamente se viu às voltas com a respiração. Seus olhos tomaram uma cor avermelhada e sentiu que sua pele estava sendo esticada para trás, como se fosse desnudar-lhe os ossos.

      Desta vez a aceleração da Shooting Starr atingiu o máximo.

      Durou quinze minutos. Ao final, Bigman se achava precariamente consciente. Em seguida a aceleração afrouxou e aos poucos ele retornou à vida.

      Lucky sacudiu a cabeça e procurava retomar o ritmo da respiração.

      - Não teve nenhuma graça - disse Bigman.

      - Também eu acho - disse Lucky.

      - Que acha? Estávamos indo com bastante rapidez.

      - Não muita. Mas agora está tudo certo. Livramo-nos deles.

      - Livramo-nos de quem?

      - De quem quer que estivesse nos perseguindo. Bigman, estávamos sendo seguidos, desde que você pisou no convés da velha Shooting Starr. Dê uma olhada no Ergômetro.

      Bigman reparou. Apenas no nome o Ergômetro se assemelhava ao Atlas. O Ergômetro no Atlas fora um modelo primitivo planejado para captar radiação motora com o propósito de liberar os salva-vidas. Aquele fora seu principal objetivo. O Ergômetro instalado no Shooting Starr captava o padrão radiativo de um motor hiperatômico não maior que um salva-vidas comum e o fazia de uma distância superior a dois milhões de milhas.

      Mesmo agora, a linha colorida do papel diagramado oscila débil, porém de maneira periódica.

      - Não é nada - disse Bigman.

      - Foi, alguns momentos atrás. Veja você mesmo.

      Lucky desenrolou o cilindro de papel que já havia passado pela agulha. As oscilações eram mais profundas e mais características.

      - Está vendo aquilo, Bigman?

      - Poderia ser qualquer nave. Poderia ser um cargueiro de Ceres.

      - Não. Em primeiro lugar, porque tentou seguir-nos e desincumbiu-se bem da tarefa, o que significa que ele mesmo possui um bom Ergômetro e em segundo lugar, já viu um padrão energético igual a este?

      - Lucky, não exatamente como este.

      - Mas eu vi, no caso da nave que abordou o Atlas. Este Ergômetro realiza um trabalho de análise de padrões muito melhor, mas a semelhança é inconteste. O motor da nave que está nos seguindo é de esquema da estrela Sino.

      - Quer dizer com isto que se trata da nave de Anton?

      - Ela ou alguma parecida. Não vem ao caso. Perdemo-las.

      - No momento - prosseguiu Lucky - encontramo-nos exatamente no local onde deveria estar o asteróide do eremita, mais ou menos a cem mil milhas.

      - Não existe nada aqui - disse Bigman.

      - Correto. Os indicadores de gravidade não registrara qualquer corpo asteroidal em parte alguma aqui por perto. Achamo-nos na região que os astrônomos denominam de "zona proibida".

      - Hã, hã! - exclamou Bigman sagazmente. - Compreendo.

      Lucky sorriu. Não havia nada para ver. Uma zona proibida no cinturão de asteróides não diferia de uma porção do cinturão que era espessamente povoado de asteróides, pelo menos não a olho nu. A menos que um asteróide se encontrasse casualmente dentro do limite de cem milhas, o panorama era o mesmo. Estrelas ou objetos parecidos com elas povoavam o céu. Se alguns desses objetos eram asteróides e não estrelas, não havia meios de estabelecer a diferença, a não ser que se fizesse uma observação atenta durante várias horas para ver quais "estrelas" mudavam sua posição relativa, ou então mediante o uso de um telescópio.

      - Muito bem, e o que fazemos? - perguntou Bigman.

      - Dê uma olhada nas imediações. Pode nos tomar alguns dias.

      A rota da Shooting Starr tornou-se errática. A nave afastou-se do Sol, distanciando-se da zona proibida, e entrou na constelação de asteróides mais próxima. As agulhas dos instrumentos medidores de gravidade oscilavam, aos pulos, devido à atração dos corpos celestes distantes.

      Um após outro, mundos diminutos desfilaram pelo campo visual da tela, permaneceram nela enquanto giravam e em seguida foram desaparecendo lentamente. A velocidade da Shooting Starr decrescera até atingir um relativo rastejamento, mas as milhas continuavam passando por ela às centenas de milhares e aos milhões. As horas escoavam-se. Uma dúzia de asteróides surgiu pela frente e se foi.

      - É melhor você comer - disse Bigman.

      Mas Lucky se contentava com sanduíches e pequenos cochilos enquanto os dois, ele e Bigman, se revezavam na observação, na tela, dos instrumentos de medição da gravidade e do Ergômetro.

      Com um asteróide à vista, Lucky disse então numa voz arrastada:

      - Vou descer.

      Bigman foi apanhado de surpresa:

      - É aquele o asteróide? Você o reconhece? - E passou a observar-lhe a angulosidade.

      - Acho que sim, Bigman. De qualquer forma, vai ser investigado.

      As manobras para pousar a nave dentro das trevas demoraram meia hora.

      - Mantenha a nave aqui - disse Lucky. - Alguém precisa ficar com a nave e esse alguém é você. Não se esqueça de que ela pode ser detectada, mas com as luzes apagadas e os motores ligados bem baixo, no seu ponto mínimo, se tornará mais difícil nos descobrirem. De acordo com o Ergômetro, não existe nenhuma nave no espaço mais próximo que nos circunda. Estamos entendidos?

      - Sem dúvida!

      - O mais importante a lembrar é o seguinte: por nenhuma razão não desça atrás de mim. Quando eu terminar, voltarei. Se não retornar dentro de doze horas nem tiver feito qualquer comunicação, volte então a Ceres com um relatório, depois de ter tirado fotografias deste asteróide de todos os ângulos possíveis.

      - Não! - disse Bigman, com a fisionomia se tornando teimosamente inflexível.

      - Aqui está o relatório - retorquiu Lucky imperturbável.

      Ele retirou de um bolso interno uma cápsula confidencial e continuou:

      - Esta cápsula está lacrada para o Dr. Conway. É a única pessoa que pode abri-la. Ele tem que receber as informações, independentemente do que possa acontecer. Ouviu?

      - O que há nela? - perguntou Bigman, sem fazer menção de pegá-la.

      - Quero crer que não passem de teorias. Não falei a ninguém a respeito delas, porque vim para cá tentar obter as informações para sustentá-las. Se conseguir comprová-las, pelo menos as teorias poderiam ser entendidas completamente. Conway pode acreditar nelas e persuadir o governo a tomar providências fundamentais nelas.

      - Não farei o que me pede - disse Bigman - porque não vou deixar você.

      - Bigman, se não posso confiar que faça o que está certo, apesar de nossas próprias pessoas, então você não me será de muita utilidade depois de tudo isto, se eu conseguir chegar até o fim são e salvo.

      Bigman estendeu a mão e Lucky depositou nela a cápsula confidencial.

      - Está certo - disse ele.

      Lucky foi deslizando no vácuo até à superfície do asteróide, apressando a queda por meio da pistola propulsora do seu traje espacial. Ele sabia que o asteróide tinha as dimensões exatas; tinha mais ou menos a forma de que se lembrava possuir. Era bastante penhascoso e a parte banhada pela luz do Sol apresentava a mesma coloração. Mas, todos esses detalhes poderiam aplicar-se igualmente a qualquer outro asteróide.

      Mas havia o outro item de referência, que não era passível de ser duplicado tão freqüentemente.

      Tirou do bolso da cintura um pequeno instrumento semelhante a uma bússola. Na verdade não era senão uma pequena unidade de radar de bolso. Sua fonte emissora embutida podia emitir pequenas ondas de rádio que abrangiam praticamente qualquer distância. Algumas oitavas podiam ser refletidas em parte pela rocha e parcialmente transmitidas através de distâncias razoáveis.

      Na presença de uma espessa camada de rocha o reflexo da radiação acionava uma agulha num mostrador. Na presença de uma fina camada de rocha como, por exemplo, sobre uma superfície debaixo da qual houvesse uma caverna ou um vazio, uma parte das radiações era refletida enquanto que a outra penetrava na concavidade e era refletida da parede mais distante. Desta forma ocorria um reflexo duplo, sendo que um componente era muito mais fraco do que o outro. Reagindo a tais reflexos duplos, a agulha reagia com uma oscilação característica.

      À medida que pulava com facilidade de um pico a outro do penhasco, Lucky observava o instrumento. A amena pulsação da agulha subitamente estremeceu e logo se registrou um movimento secundário bem perceptível. O coração de Lucky começou a agitar-se. O asteróide era oco. Restava descobrir onde os movimentos secundários eram mais fortes e então se saberia em que ponto a cavidade se achava mais próxima da superfície. Ali se acharia a câmara de compressão.

      Por alguns momentos todo o potencial intelectual de Lucky se concentrou na agulha. Ele não percebeu do cabo magnético que se aproximava serpeando na sua direção, procedente do horizonte próximo.

      Tampouco percebeu quando se enrodilhou nele, com o cabo envolvendo-o como uma serpente e apertando-o, ao mesmo tempo em que seu movimento lhe arremessava totalmente fora do asteróide o corpo praticamente imponderável, lançando-o de encontro a uma rocha, onde ficou desacordado.

 

Frente a frente com o inimigo

      Três luzes despontaram no horizonte e deslocaram-se na direção do corpo prostrado de Lucky. Nas trevas da noite que amortalhavam o asteróide ele não conseguia divisar os vultos que acompanhavam as luzes.

      Então uma voz soou aos seus ouvidos e ele reconheceu ser a bem conhecida rouquidão do pirata Dingo, que falou:

      - Não chame o seu camarada que está lá em cima. Tenho aqui um objeto capaz de interferir no seu transmissor de ondas. Se tentar chamá-lo, faço seu traje espacial voar pelos ares com um disparo, seu traidor!

      Ele proferiu a última palavra com desprezo; era o termo de desdém usado por todos os transgressores da lei contra aqueles que consideravam espiões das agências que providenciavam para que as leis fossem cumpridas.

      Lucky manteve-se calado. Desde o momento em que sentiu pela primeira vez o seu traje espacial tremer com os açoites do cabo magnético, compreendeu que caíra numa armadilha. Chamar Bigman antes de conhecer a verdadeira natureza da cilada, seria pôr em perigo a Shooting Starr, sem nenhum proveito para si.

      Dingo escarranchou-se sobre ele, com uma perna de cada lado do seu corpo. À luz de uma das lanternas Lucky teve um vislumbre do visor do capacete de Dingo e dos espessos óculos protetores que lhe cobriam os olhos. Lucky sabia que se tratava de transformadores infravermelhos, capazes de converter a radiação térmica comum em luz visível. Mesmo sem lanterna e nas trevas do asteróide, tiveram condições de observá-lo por meio da energia dos próprios raios térmicos.

      Dingo perguntou:

      - O que há, traidor? Está com medo?

      Ele ergueu uma perna volumosa com o acréscimo do revestimento metálico, baixando-a com toda força na direção do visor do capacete de Lucky. Este desviou a cabeça rapidamente, a fim de que o golpe fosse atingir o metal mais resistente do capacete, mas o pé de Dingo deteve-se a meio caminho para baixo. Dingo soltou uma gargalhada ruidosa:

      - Não vai ser assim tão fácil, seu traidor - disse ele.

      Sua voz mudou quando se dirigiu aos outros dois piratas.

      - Pulem aquela rocha e abram a câmara de compressão.

      Hesitaram por um instante e um deles disse:

      - Dingo, o capitão disse que você devia...

      Dingo respondeu:

      - Ponham-se a caminho, porque, caso contrário, começarei com ele e terminarei com vocês.

      Diante da ameaça os dois se afastaram aos pulos. Dingo voltou a atenção para Lucky.

      - Suponhamos que o levemos para a câmara de compressão.

      Ele ainda segurava o cabo do chicote magnético. Com um movimento rápido no contato, desligou a corrente e o desmagnetizou temporariamente. Afastou-se e puxou-o com violência contra si. Lucky foi arrastado pelo chão rochoso do asteróide, saltou para cima e rolou parcialmente para fora do cabo. Dingo acionou de novo o contato e as aspirais remanescentes apegaram-se firmemente ao corpo de Lucky.

      Dingo puxou rapidamente o chicote para cima. Lucky acompanhou-o, enquanto Dingo manobrava habilidosamente para manter o seu próprio equilíbrio. Lucky ficou suspenso no espaço e Dingo caminhou como se ele fosse o balão de um garoto preso à ponta de um barbante.

      Decorridos cinco minutos, as luzes dos outros dois voltaram a brilhar, dentro duma extensão de escuridão total, cujos limites regulares eram prova suficiente de que se tratava de uma câmara de compressão aberta. Dingo gritou:

      - Cuidado! Tenho que entregar um pacote.

      Desligou mais uma vez o campo magnético do cabo e puxou-o para baixo, elevando-se uns quinze centímetros no espaço. O corpo de Lucky entrou subitamente em um movimento rotativo, sendo libertado do cabo em rápidos rodopios.

      Dingo deu um salto e apanhou-o. Com a precisão de um homem há muito acostumado com a ausência de peso, evitou as tentativas de Lucky de se livrar do controle e arremessou-o na direção da câmara de compressão. Interrompeu seu próprio movimento para trás com um rápido disparo duplo da pistola propulsora do traje espacial e endireitou o corpo em tempo de poder ver Lucky entrar pela câmara de compressão sem esbarrar em nada.

      À luz das lanternas dos piratas ficou claramente visível o que sucedeu. Apanhado na pseudo-gravidade existente dentro do compartimento, Lucky foi subitamente jogado para baixo, batendo no chão rochoso com um estrondo e força que o deixaram sem fôlego. A risada espalhafatosa de Dingo ressoou no capacete.

      Fechada a porta para o exterior e aberta a interna, Lucky levantou-se, sinceramente agradecido pela normalidade da gravidade.

      - Entre, seu traidor! - ordenou Dingo, segurando um detonador.

      Logo que adentrou o asteróide, Lucky parou. Seus olhos moveram-se com rapidez, alternando-se de um lado ao outro, enquanto na borda do seu capacete se formava uma crosta de gelo. O que viu não foi a biblioteca fracamente iluminada do eremita Hansen, mas uma sala descomunalmente comprida, cujo teto era sustentado por uma série de colunas. Não conseguia divisar a outra extremidade. Aberturas que levavam a salas perfuravam as paredes dos corredores com regularidade. Homens se movimentavam apressadamente de um lado ao outro e o ar estava impregnado do cheiro de ozônio e óleo lubrificante. À distância conseguia distinguir um zumbido constante que deveria ser de gigantescos motores hiperatômicos.

      Não havia a mínima dúvida de que este recinto não era a cela do eremita, mas uma grande usina industrial, instalada num asteróide.

      Lucky mordeu pensativamente o lábio inferior e, invadido por um sentimento de desalento, perguntou-se se todas aquelas informações morreriam com ele.

      Dingo disse:

      - Entre, traidor, vamos, entre aí!

      Ele indicou um armazém com prateleiras e caixas bem cheias, mas sem outros seres humanos com exceção deles.

      - Escute, Dingo - perguntou um doa piratas impacientemente - por que lhe está mostrando tudo isto? Não creio que...

      - Então não abra a boca - ordenou Dingo e riu. - Não se preocupe. Ele não irá contar a ninguém o que está vendo e isto posso garantir-lhe. Tenho um pequeno caso a tratar com ele. Tire-lhe o traje espacial.

      Enquanto falava, removia o próprio traje. Desvencilhou-se do traje, pondo à mostra o corpo monstruosamente volumoso, esfregando lentamente uma mão nas costas peludas da outra, comprazendo-se com esta ocupação.

      Lucky falou, então, com firmeza:

      - O Capitão Anton jamais lhe deu ordens para que me mate, você está procurando resolver uma inimizade particular e isto só lhe trará encrencas. No entender do capitão, sou um homem de valor.

      Dingo sentou-se na beira de uma caixa cheia de pequenos objetos metálicos, esboçando um sorriso.

      - Se fôssemos ouvi-lo, seu traidor, daria a impressão de que tem um caso a resolver. Mas você não nos enganou um instante sequer. Quando o deixamos no asteróide com o eremita, o que pensa que fizemos? Nós ficamos observando. O Capitão Anton não é nenhum imbecil. Mandou-me de volta, recomendando-me expressamente: "Observe aquele asteróide e traga-me um relatório". Vi a pequena nave do eremita partir. Eu poderia estourá-los no espaço livrando-me de vocês na ocasião, mas tinha que seguir as instruções que recebera. Permaneci em Ceres mais um dia e meio e vi a nave do eremita partir novamente para o espaço. Esperei mais um pouco. Em seguida notei esta outra nave saindo para encontrá-la. O homem que saiu da nave pequena embarcou na outra espaçonave e eu o segui, quando decolou.

      Lucky não conseguiu conter um sorriso:

      - Quer dizer: tentou seguir.

      O rosto de Dingo tomou uma cor vermelha manchada. Falou então com desprezo:

      - Concordo. Você foi mais rápido. A sua raça é boa na corrida. Não precisei persegui-lo. Simplesmente voltei e fiquei esperando. Eu sabia para onde se dirigia. Peguei-o, não foi?

      Lucky falou então:

      - Muito bem, mas o que conseguiu com isto? Eu estava desarmado no asteróide do eremita. Não tinha nenhum tipo de arma, ao passo que o cenobita possuía um detonador. Fui obrigado a fazer aquilo que me ordenou que fizesse. Queria voltar a Ceres e obrigou-me a acompanhá-lo, para que pudesse alegar que estava sendo seqüestrado, caso os homens dos asteróides o detivessem. Você deve admitir que saí de Ceres o mais rápido possível e que tentei voltar para cá.

      - Numa confortável e reluzente espaçonave do governo?

      - Roubei-a. E daí? Isto apenas significa que conseguiu mais uma espaçonave para a sua armada. E uma excelente.

      Dingo olhou para os outros piratas.

      - Não é que ele nem se dá por vencido?!

      Lucky atalhou-o:

      - Advirto-o mais uma vez: o capitão o culpará por qualquer coisa que me suceder.

      - Não, não me culpará - vociferou Dingo. - Porque ele sabe quem você é e eu também, Sr. David Lucky Starr. Vamos, aproxime-se do centro da sala.

      Dingo levantou-se, ordenando aos dois companheiros:

      - Tirem aquelas caixas do caminho. Empurrem-na para o lado.

      Os dois fitaram mais uma vez aquele rosto de olhos esbugalhados e congestionado pelo sangue e cumpriram a ordem recebida. O corpo volumoso e bulbiforme de Dingo estava levemente curvado, a cabeça afundada dentro dos ombros salientes e suas pernas grossas e algo tortas firmemente plantadas no chão. A cicatriz do lábio superior tinha uma cor branca vivida.

      - Há modos fáceis de acabar com você como existem maneiras agradáveis de dar cabo de sua vida. Não gosto de traidores e, especialmente, de um certo traidor que fez jogo sujo comigo num duelo de pistolas propulsoras. De forma que, antes de acabar com você, vou reduzi-lo a pedacinhos.

      Lucky, que parecia alto e comprido em comparação com o outro, disse:

      - Dingo, você ê bastante homem para dar cabo de mim, sozinho, ou os seus dois amigos vão dar uma ajuda?

      - Seu engraçadinho, não preciso de ajuda. - Deu uma risada maliciosa e continuou: - Mas, se tentar correr, eles têm chicotes neurônicos que na realidade o farão parar. - E, erguendo a voz, disse: - E usem-nos se for preciso.

      Lucky aguardou que o outro tomasse a iniciativa. Ele sabia que provavelmente a tática mais fatal seria tentar lutar guardando pouca distância. Caso deixasse o pirata envolver-lhe o peito num amplexo daqueles braços enormes, o resultado mais certo seria costelas quebradas.

      Recuando o punho direito, Dingo avançou correndo. Enquanto pôde, Lucky não arredou pé e em seguida desviou rapidamente o corpo para o lado direito, agarrou o braço esquerdo estendido do inimigo e puxou-o para trás, aproveitando-se do movimento para frente que o seu contendor estava fazendo e prendendo-lhe o tornozelo com o pé.

      Dingo avançou com os braços abertos e caiu pesadamente. Mas, levantou-se imediatamente, com uma das bochechas arranhadas e pequenas chispas de fúria dançando-lhe nos olhos.

      Arremeteu como um raio contra Lucky, que recuou para perto de uma das caixas cheias de metal, que estavam alinhadas ao longo da parede.

      Lucky segurou-se na beira de uma das caixas e chutou os pés para o alto e para fora. Atingido no peito, Dingo parou por um instante. Lucky saiu do caminho com um giro do corpo e estava novamente livre no meio da sala.

      Um dos piratas berrou:

      - Ei, Dingo, vamos parar com esta brincadeira.

      Dingo falou, quase sem fôlego:

      - Vou matá-lo! Mato-o!

      Mas, desta vez foi mais cauteloso. Seus olhos pequenos estavam praticamente enterrados na banha e cartilagem que circundavam seus globos oculares. Avançou lentamente, estudando Lucky, e esperou pelo momento em que pudesse atacar.

      - Dingo, o que houve? - perguntou Lucky. - Está com medo de mim? Para um sujeito linguarudo, você se amedrontou muito depressa.

      Como Lucky esperava, Dingo rugiu incoerentemente e arremeteu pesada e diretamente contra ele. Lucky não teve problemas em desviar-se da investida taurina. Desceu rápida e violentamente a mão na nuca de Dingo.

      Lucky vira muitos homens serem abatidos com aquele golpe especial, ficando inconscientes; vira mais de um cair morto. Mas, Dingo ficou apenas estonteado. Afastou a sensação de vertigem, sacudindo rapidamente a cabeça, e voltou-se, rosnando.

      Avançou cautelosamente na direção de Lucky que pulava de um lado para o outro. Lucky desferiu um tremendo golpe com o punho, acertando com força na bochecha arranhada de Dingo... O sangue fluiu, mas Dingo não fez nenhuma tentativa de aparar a pancada, tampouco pestanejou quando a recebeu.

      Lucky esquivou-se com um meneio de corpo e vibrou mais dois vigorosos golpes no pirata. Dingo não prestou atenção e continuou avançando cada vez mais.

      De repente e inesperadamente se abaixou, aparentemente como um homem que tivesse tropeçado. Mas ao cair seus braços se abriram de par em par e uma mão agarrou o tornozelo direito de Lucky. Lucky acabou caindo também.

      - Peguei-o agora - disse Dingo baixinho.

      Estendeu a mão para segurar a cintura de Lucky e dentro de pouco os dois rolaram engalfinhados pelo pavimento da sala.

      Lucky sentiu a pressão crescente e envolvente e a dor o invadiu como um fogo que aumenta aos poucos. O bafo mal-cheiroso de Dingo penetrava em seu ouvido.

      O braço direito de Lucky estava desembaraçado, mas o esquerdo continuava preso pelo aperto entorpecedor dos braços do adversário, em torno do seu peito. As forças de Lucky iam desfalecendo, mas com o pouco que ainda lhe restava ergueu ele o punho direito. O golpe não foi mais além do que uns doze centímetros, atingindo Dingo na parte do queixo que se funde com o pescoço. O golpe desferido foi tão violento que por toda a extensão do braço de Lucky formigaram pontadas doloridas.

      O amplexo de Dingo afrouxou momentaneamente e Lucky, contorcendo-se, livrou-se rapidamente do abraço mortal e pôs-se em pé.

      Dingo levantou-se mais lentamente. Seus olhos tinham aspecto vítreo e do canto da boca gotejava sangue fresco.

      Ele resmungou inarticuladamente:

      "O chicote! O chicote!"

      Inesperadamente investiu contra um dos piratas que estivera em pé, ali, como expectador paralisado. Arrebatou o chicote da mão do outro, fazendo-o estatelar-se no chão.

      Lucky tentou esquivar-se, mas o chicote neurônico passou por sobre sua cabeça como um relâmpago e foi atingi-lo no lado direito, estimulando os nervos daquela região e causando-lhe dor violenta. O corpo de Lucky enrijeceu-se e voltou a relaxar-se.

      Por alguns instantes seus sentidos estiveram mergulhados em tremenda confusão e, com o resto de consciência que lhe sobrava, julgou estar a poucos segundos da morte. Neste ínterim ouviu indistintamente uma voz de pirata.

      - Ouça, Dingo, o capitão disse que se devia dar a impressão de que se tratava de um acidente. Ele é um membro do Conselho de Ciências e...

      Foi tudo o que Lucky ouviu.

      Quando voltou lentamente à consciência, experimentando um martírio de alfinetadas e agulhadas em toda a região da cintura, surpreendeu-se novamente no traje espacial. Estavam em vias de colocar-lhe o capacete. Com os lábios inchados e o queixo escoriado, Dingo observava com maldade.

      Uma voz soou na porta. Entrou um homem todo apressado e falando muito.

      Lucky ouviu-o dizer:

      "Para o posto 247. Está ficando de tal forma que não consigo registrar todas as requisições. Não consigo nem sequer manter nossa órbita em ordem para conservar as correções das coordenadas da..."

      E a voz morreu. Lucky girou a cabeça e avistou um homenzinho de óculos e cabelos grisalhos. Achava-se um pouco aquém da porta, observando com um misto de descrença e perplexidade a desordem que havia diante dos seus olhos.

      - Fora! - berrou Dingo.

      - Mas, tenho que conseguir uma requisição.

      - Mais tarde!

      O homenzinho retirou-se e ajustaram o capacete em Lucky.

      Levaram-no de novo para fora, atravessando a câmara de compressão, até uma superfície que naquele momento se encontrava sob os débeis raios do Sol distante. Numa mesa de pedra relativamente lisa havia uma catapulta, cuja função não representava nenhum mistério para Lucky. Um guincho automático puxava para trás uma grande alavanca de metal, a qual se curvava cada vez mais, lentamente, até que sua inclinação chegou a um nível horizontal com a superfície da mesa. Foram ligadas correias leves à alavanca inclinada e logo afiveladas em torno do corpo de Lucky.

      - Deite-se e fique parado - ordenou Dingo.

      Sua voz soou sombria e rangente no ouvido de Lucky. Lucky percebeu que havia algo errado com o receptor do capacete.

      - Você está desperdiçando o seu oxigênio. Apenas para que se sinta, melhor, saiba que estamos enviando naves lá para cima para derrubar o seu amigo antes que possa ganhar velocidade, caso sinta vontade de fugir.

      Instantes após essas palavras, Lucky sentiu a sonora vibração da alavanca no momento em que foi solta. Ela voltou feito um elástico à sua posição original, com terrível força. As fivelas em torno do seu corpo abriram-se suavemente e ele foi lançado à distância, numa velocidade de uma milha por minuto ou, melhor, sem que se notasse a ação de nenhum campo gravitacional que lhe suavizasse a velocidade. Houve a aparição momentânea e vaga dos piratas do asteróide olhando para cima em direção a ele. Essa visão se reduzia rapidamente enquanto ele observava.

      Inspecionou o traje espacial. Já sabia que o rádio do seu capacete sofrerá interferência. Com efeito, o botão de sensibilidade estava solto. Significava que sua voz não conseguiria alcançar mais do que algumas milhas no espaço. Haviam-lhe deixado a pistola propulsora do seu traje espacial. Ele experimentou a pistola, mas não funcionou. O depósito de gás havia sido esvaziado.

      Viu-se completamente desamparado. À sua frente via apenas o conteúdo de um cilindro de oxigênio e uma morte que se encaminhava em sua direção a passos lentos e agourentos.

 

Espaçonave contra espaçonave

      Sentindo uma fria sensação de aperto em seu peito, Lucky examinou atentamente a situação. Achava que conseguia adivinhar os planos dos piratas. Por um lado, desejavam livrar-se dele, de vez que era evidente que ele sabia demais. Por outro lado, deviam estar loucos de desejo que fosse encontrado morto, de modo que o Conselho de Ciências não estivesse em condições de provar definitivamente que sua morte devia ser imputada à violência corsária.

      Certa vez, em outros tempos, os piratas haviam cometido a imprudência de matar um agente do Conselho e a fúria resultante disto foi esmagadora. Desta feita agiriam com mais cautela.

      Ele pensou: Vão atacar a Shooting Starr, inutilizarão o sistema de rádio com interferência para evitar que Bigman envie um pedido de socorro. Em seguida podem até usar um canhão detonador contra o casco. Daria uma perfeita imitação da colisão de um meteorito. Podem também agir de maneira mais requintada, enviando a bordo os seus próprios engenheiros para danificar os ativadores da blindagem. Daria a impressão de que um defeito no mecanismo impedira a blindagem de entrar em funcionamento com a aproximação de meteorito.

      Lucky tinha certeza de que devia ter conhecimento do seu próprio trajeto pelo espaço. Não haveria nada que o desviasse das suas trajetórias originais de vôo. Mais tarde, estando ele seguramente morto, o apanhariam e o colocariam em órbita, girando em torno da Shooting Starr danificada. Os descobridores (e talvez uma de suas espaçonaves enviaria um relato anônimo do achado) chegariam a conclusão óbvia. Bigman, nos controles, manobrando até o último momento, morto no seu posto. Lucky, por sua vez, lutando para entrar no traje espacial e danificando o botão externo de sensibilidade do rádio do traje, com sua excitação. Não teria tido condições de pedir socorro. Teria esgotado o gás da pistola propulsora, numa tentativa desesperada e fútil de encontrar um lugar seguro. E teria morrido.

      Não daria certo. Possivelmente nem Conway nem Henree acreditariam que Lucky se preocupara com a própria segurança, enquanto Bigman permanecia fielmente nos comandos. Mas então, o fracasso do plano proporcionaria pouca satisfação a um Lucky Starr morto. Pior ainda, não seria somente Lucky Starr quem morreria, mas todas as informações encerradas em sua mente.

      Por um momento sentiu ódio mortal de si mesmo por não ter concentrado todas as suas suspeitas nas pessoas de Henree e Conway, antes de partir, por ter esperado até o momento de embarcar no Shooting Starr antes de preparar a cápsula com informações individuais. Em seguida recuperou autocontrole. Ninguém lhe daria crédito sem os fatos.

      Justamente por essa razão teria que voltar.

      Teria que voltar!

      Mas, de que maneira? De que valia o "ter que voltar", quando se achava só e desamparado no espaço com uma reserva de oxigênio suficiente apenas para uma hora e meia e nada mais?

      Oxigênio!

      Lucky pensou: existe o meu oxigênio. Ninguém mais senão Dingo teria esvaziado o cilindro completamente, deixando apenas escórias, para que a morte chegasse mais rápido. Mas se Lucky conhecia Dingo, o pirata lançara-o à sua própria sorte com um cilindro carregado com o único objetivo de prolongar-lhe a agonia.

      Ótimo! Ele inverteria então as coisas. Usaria o oxigênio de outra forma. E, caso falhasse, a morte chegaria mais depressa, apesar de Dingo.

      Só que ele não podia falhar.

      Enquanto girava no espaço, o asteróide cruzara periodicamente sua linha de visão. No inicio, apresentava-se como uma rocha que ia sumindo, com seus pontos mais salientes iluminados pelo Sol e projetando-se obliquamente pela imensidão das trevas espaciais. Em seguida se transformara numa estrela brilhante e por fim numa única linha luminosa. Agora o brilho se esvanecia rapidamente. Uma vez que o asteróide se tornasse bastante indistinto, não passando de mais uma estrela entre miríades delas, tudo estaria terminado. E não restavam muitos minutos para que isso se concretizasse.

      Seus dedos grosseiros e cobertos de metal já estavam mexendo no tubo flexível que ia da tomada de ar um pouco abaixo do visor do capacete até o cilindro de oxigênio preso às costas. Torceu com força o parafuso que mantinha, o tubo de ar hermeticamente afixado ao cilindro.

      Este cedeu. Ele fez uma pausa a fim de encher de oxigênio o capacete é o traje espacial. Comumente o oxigênio vazava devagar dos cilindros quase no mesmo ritmo que era usado pelos pulmões humanos. O gás carbônico e a água formados pela respiração em sua maior parte eram absorvidos pelos produtos químicos existentes nas vasilhas fechadas e com válvulas que estavam presas à superfície interior do revestimento do traje espacial. Como resultado o oxigênio era mantido a uma pressão correspondente a um quinto da atmosfera terrestre. Isto era perfeitamente correto, de vez que, de qualquer forma, quatro quintos da atmosfera terrestre eram compostos de nitrogênio, o que é imprestável para a respiração.

      No entanto, isto deixava lugar para concentrações maiores, que ficavam um tanto acima da pressão atmosférica normal, antes que houvesse o perigo de efeitos tóxicos. Lucky deixou que o oxigênio impregnasse sua roupa espacial.

      Tendo, pois, feito isto, fechou em seguida a válvula sob o visor do capacete e retirou o cilindro.

      O próprio cilindro era uma espécie de pistola propulsora. Com efeito, era uma pistola propulsora extraordinária. Só mesmo o desespero de uma pessoa lançada à deriva e vagando no espaço levaria a utilizar como força motriz o oxigênio que se destina a mantê-la distante da morte, soltando-o no espaço. Ou então só sendo uma firme resolução.

      Lucky abriu a válvula de redução, permitindo a saída de um jorro de oxigênio. Desta feita não houve uma linha de cristais. Contrariamente ao gás carbônico, o oxigênio se congelava a temperaturas muito baixas e, antes que perdesse bastante calor para poder congelar-se, já se difundira no espaço. Contudo, fosse gás ou sólido, a terceira lei do movimento de Newton continuava em vigor. Quando o gás saiu por um lado, Lucky foi lançado na direção oposta devido a um impulso contrário natural.

      O seu movimento rotativo diminuiu. Com muito cuidado esperou que o asteróide surgisse plenamente à vista antes de sustar de todo o movimento de rotação.

      Ele continuava a afastar-se do asteróide, que já não possuía um brilho particularmente mais intenso do que as estrelas nas proximidades. Como é fácil de se imaginar, ele já perdera o seu alvo, mas procurou obstruir a mente contra essa incerteza.

      Fixou os olhos firmemente no ponto de luz que julgou ser o asteróide e liberou o jato do cilindro na direção oposta. Mostrou-se curioso por saber se teria o suficiente para inverter a direção de sua viagem, mas naquele momento não havia meios de se certificar disso.

      Como quer que fosse, teria que poupar um pouco de gás, porquanto necessitaria do mesmo para manobrar em volta do asteróide, para atingir-lhe a parte mergulhada em trevas e para encontrar Bigman e a nave, a menos que...

      A menos que a nave já tivesse partido ou sido destruída pelos corsários.

      Lucky teve a impressão que a vibração de suas mãos estava diminuindo, devido à saída de oxigênio. Ou o conteúdo do cilindro estava baixando ou então sua temperatura ia declinando. Ele o segurava afastado do traje espacial, de forma que o mesmo já não absorvia mais o calor desprendido, pois era dos trajes espaciais que os cilindros de oxigênio obtinham suficiente calor para tornar seu conteúdo respirável e os cilindros de gás carbônico das pistolas propulsoras conseguiam o aquecimento suficiente para manter o seu depósito gasoso. No vácuo espacial o calor só podia ser propagado através da irradiação, que representava um processo lento; mas, mesmo assim, o cilindro de oxigênio tivera tempo suficiente para sofrer uma queda em sua temperatura.

      Ele envolveu o cilindro com os braços, apertou-o de encontro ao peito e aguardou.

      Pareceram horas, no entanto mal haviam passado quinze minutos que ele teve a impressão que o asteróide estava ficando mais brilhante. Será que estaria novamente se aproximando do asteróide? Seria por acaso fruto de sua imaginação? Passaram-se mais quinze minutos e o asteróide se apresentava distintamente mais brilhante. Lucky sentiu uma profunda gratidão pelo acaso que o lançara no lado do asteróide iluminado pelo Sol, de modo que podia vê-lo claramente como um alvo.

      A respiração estava se tornando cada vez mais difícil. Não havia perigo de asfixia pelo gás carbônico. À medida que se formava, aquele gás ia sendo expelido. Mas, cada inspiração removia também uma pequena fração do seu precioso oxigênio. Tentou respirar num ritmo mais lento, fechar os olhos e repousar. Afinal de contas, nada mais poderia fazer enquanto não alcançasse e ultrapassasse o asteróide. Lá, no lado mergulhado nas trevas, Bigman poderia estar ainda esperando.

      E então, se pudesse passar bem perto de Bigman e chamá-lo com o seu rádio defeituoso, antes que desmaiasse, poderia haver ainda uma chance.

 

      Para Bigman as horas haviam-se escoado lenta e torturantemente. Sentiu um impaciente desejo de descer, mas não ousou. Pensou que, se existisse algum inimigo, a esta altura já devia ter-se mostrado. Mas logo afastou este raciocínio e chegou à conclusão de que o próprio silêncio e a imobilidade do espaço significavam uma armadilha e que Lucky havia sido apanhado nela.

      Colocou diante de si a cápsula que Lucky lhe entregara e começou a levantar perguntas sobre o seu possível conteúdo. Se ao menos houvesse algum meio de abri-la para ler o fino rolo de microfilmes que havia dentro dela. Se conseguisse abri-la, poderia enviar uma radio-mensagem dela até Ceres, livrar-se dela e descer imediatamente até o asteróide. Aniquilaria a todos e tiraria Lucky de qualquer encrenca em que estivesse enredado.

      Não! Primeiramente, não ousava utilizar o subetérico. Verdade que os piratas não conseguiriam decifrar o código, mas poderiam detectar as ondas transmissoras e ele recebera instruções no sentido de não revelar a posição da nave.

      Além do que, qual a vantagem em conhecer o conteúdo de uma cápsula confidencial? Um forno solar conseguiria fundi-la e destruí-la, uma carga atômica poderia desintegrá-la, mas não havia nada que conseguisse abri-la e deixar a mensagem intacta, a não ser o toque da pessoa a quem fora destinada. Esta era a situação.

      Já haviam decorrido mais de seis horas quando os instrumentos sensíveis à gravidade deram o seu aviso bem característico.

      Bigman despertou, abandonando suas frustradas divagações, e olhou fixamente para o Ergômetro com surpresa e espanto. As pulsações de várias naves fundiam-se em complexas curvas que se misturavam confusamente como serpentes, apresentando ora uma ora outra configuração.

      A blindagem do Shooting Starr, que estivera brilhando como de costume com intensidade suficiente para desviar "destroços" casuais ("destroços" é o termo espacial habitual para designar meteoritos errantes com dois centímetros e meio ou menos de diâmetro), enrijecera-se ao máximo. Bigman percebia como o zumbido suave da produção de força se tornava estridente. Uma por uma, deixou que as telas de observação de pequeno alcance entrasse em funcionamento, superpondo-se.

      Sua mente estava confusa. As naves estavam decolando do asteróide, de vez que nenhuma delas podia ser detectada a uma distância maior. Neste caso, Lucky deve ter sido apanhado e a esta hora talvez estivesse morto. Naquele momento já não se importava saber quantas espaçonaves estavam investindo contra ele. Daria conta de todas, uma por uma.

      Recuperou a calma. Uma das telas havia captado o primeiro raio do Sol. Manobrou as linhas cruzadas, finas como um fio de cabelo, e centralizou-se. Acionou em seguida urna chave semelhante a uma tecla de piano e captou uma fonte invisível de energia e a nave pirata surgiu com um brilho incandescente.

      O brilho não era resultante de qualquer ação sobre o casco; era, antes, uma conseqüência da absorção de energia do escudo protetor do inimigo. A nave brilhava com intensidade cada vez maior. Perdeu, em seguida, de intensidade, no momento em que o inimigo fugiu, abrindo uma distância entre ambos.

      Uma segunda e terceira naves surgiram. Em direção ao Shooting Starr rumava um projétil. No vácuo espacial não havia nem luz nem som, mas o Sol o iluminou, identificando-o como um faiscante ponto luminoso. Na tela de observação se transformou num pequeno círculo, ampliando-se até que enfim desapareceu do campo da tela.

      Bigman poderia ter-se desviado, manobrando o Shooting Starr com rapidez e tirado-o do caminho, mas pensou: Deixe que bata. Queria que vissem com quem estavam brincando. O Shooting Starr poderia semelhar-se ao brinquedo de um homem rico, mas não conseguiriam derrubá-la com algumas estilingadas.

      O projétil bateu contra as blindagens protetoras e magnéticas do Shooting Starr e ficou parado o qual, conforme Bigman tinha certeza, devia ter irradiado um brilho momentâneo. A espaçonave deslocou-se suavemente, neutralizando o impacto que se infiltrara pela blindagem protetora.

      "Vão receber a merecida recompensa" - resmungou Bigman. O Shooting Starr não transportava qualquer tipo de projéteis, quer explosivos ou não, mas sua reserva de energia para os protetores era variada e poderosa.

      Estava com as mãos pousadas nos controles dos detonadores, quando viu numa das telas algo que imprimiu ao seu rosto pequeno e resoluto uma expressão de preocupação. Parecia um homem vergando um traje espacial.

      Era estranho que a nave espacial fosse mais vulnerável a um homem em trajes espaciais do que às melhores armas de outra espaçonave. Uma nave inimiga podia ser facilmente detectada por gravimetros à distância de milhas e por Ergômetros à distância de milhares de milhas. No entanto, um simples homem num traje espacial podia ser detectado por um gravímetro a noventa metros de distância e de forma alguma por um Ergômetro.

      Por outro lado, uma blindagem magnética funcionava com tanto mais eficiência quanto maior a velocidade do projétil. Enormes pedaços de metal rasgando o espaço a uma velocidade de milhas por segundo podiam ser parados por completo. Mas um homem que estivesse vagueando pelo espaço a uma velocidade de dez milhas por hora nem sequer tomaria conhecimento da existência da blindagem protetora, a não ser um leve aquecimento no seu traje.

      Caso uma dúzia de homens se movessem lentamente, como que engatinhando, em direção à espaçonave, num só grupo, somente uma grande habilidade conseguiria repeli-los. Se dois ou três lograssem arrombar a câmara de compressão com ferramentas manuais, a nave que atacassem sofreria danos consideráveis.

      E neste momento Bigman avistou a pequena mancha indistinta que só podia ser a vanguarda de semelhante esquadrão suicida. Pôs em funcionamento um dos painéis secundários. A figura isolada ficou enfocada e Bigman estava prestes a disparar quando o receptor do seu rádio entrou em funcionamento.

      Por um instante ficou espantado. Os piratas haviam atacado sem qualquer aviso nem tinham procurado entrar em comunicação, pedindo capitulação, oferecendo condições; nada tinham feito. E agora?

      Ele hesitou e o som transformou-se numa palavra, que foi repetida: "Bigman... Bigman... Bigman..."

      Bigman deu um pulo da cadeira, ignorando o homem em trajes espaciais, a batalha, e tudo:

      - Lucky! É você? - gritou ele.

      - Estou perto da nave... Traje espacial. Ar... quase esgotado.

      - Grande Galáxia! - exclamou Bigman, manobrando pálido, o Shooting Starr e aproximando-se mais da figura no espaço que por pouco destruíra.

      Bigman estudou Lucky da cabeça aos pés. Este, sem capacete, continuava arquejante.

      - É melhor descansar um pouco, Lucky.

      - Mais tarde - disse Lucky. - Ainda não atacaram? - perguntou ele, removendo o traje espacial.

      Bigman disse que sim com a cabeça:

      - Não importa. Estão apenas quebrando o queixo contra o velho Shooting Starr.

      - Possuem dentes mais fortes do que têm mostrado - observou Lucky. - Temos que sair daqui rapidamente. Trarão todas as suas naves bélicas de combate pesado e as nossas reservas de energia não durarão para sempre.

      - Onde vão conseguir naves bélicas para combate pesado?

      - Lá embaixo possuem uma grande base pirata. Talvez seja a principal.

      - Você quer dizer que não se trata do asteróide do eremita?

      - O que eu queria dizer é que temos que dar o fora daqui.

      Com o rosto ainda pálido em virtude da dura experiência, assumiu o comando dos controles. Pela primeira vez a rocha debaixo deles mudou de posição nas telas. Mesmo durante o ataque Bigman obedecera às ordens que Lucky havia dado antes de sua partida, as quais determinavam que não arredasse pé durante doze horas.

      A rocha ficou maior.

      Bigman protestou:

      - Se temos que nos afastar, por que estamos descendo?

      - Não estamos descendo.

      Lucky observava atentamente a tela, enquanto com uma mão ajustava os controles dos detonadores da nave. Ampliou e abrandou deliberadamente o foco do detonador até que o mesmo abrangesse uma área realmente grande, mas com uma intensidade energética reduzida a não mais do que aquela de um raio térmico comum.

      Por razões que o espantado Bigman não podia adivinhar, ele aguardou e finalmente disparou. Na superfície do asteróide espalhou-se um surpreendente brilho flamejante, que quase no mesmo instante foi diminuindo, transformando-se numa luminescência avermelhada que dentro de mais ou menos um minuto desapareceu por completo.

      - Agora, vamos! - disse Lucky e, à medida que novas naves emergiam em espirais da base pirata, a aceleração do Shooting Starr ia se firmando.

      Meia hora depois, quando o asteróide desaparacera de vista e com certeza absoluta toda nave perseguidora andava desorientada, ele falou:

      - Comunique-se com Ceres. Quero falar com Conway.

      - Certo, Lucky. E ouça. Consegui as coordenadas daquele asteróide. Envio-as com a mensagem? Podemos enviar uma frota de volta e...

      - Não adiantará coisa alguma - disse Lucky - e não é necessário.

      Bigman esbugalhou os olhos.

      - Não vai me dizer que destruiu o asteróide com aquela descarga do detonador?

      - Claro que não. Apenas toquei nele - corrigiu Lucky. - Mas, já conseguiu Ceres?

      - Estou encontrando problemas - disse Bigman carrancudo.

      Compreendeu que Lucky se achava numa de suas disposições de ânimo de mutismo hermético e que não daria nenhuma informação. Por isso continuou:

      - Espere, aí está, mas, ei... estão transmitindo um alarma geral!

      Não havia necessidade de explicar aquilo. O alarma era estridente e não soava em código:

      "Chamada geral para todas as unidades da armada que se encontrem fora de Marte. Ceres está sendo atacado por forças inimigas, presumivelmente piratas... Chamada geral para todas as unidades da Armada. .

      Bigman exclamou:

      - Grande Galáxia!

      Lucky falou tensamente:

      - Estão um passo à nossa frente, independentemente do que façamos. Temos que voltar e rápido!

 

Ataque!

      As naves surgiram no espaço como verdadeiros enxames, numa coordenação perfeita. Uma formação atacou diretamente o Observatório. Reagindo ao ataque, quase inevitavelmente, as forças defensoras de Ceres se concentraram naquele ponto.

      O ataque não foi desfechado com força total. Uma após outra, as espaçonaves mergulhavam para disparar raios energéticos contra uma blindagem protetora obviamente impenetrável. Nenhuma se arriscou a tentar explodir as usinas de força instaladas no subsolo, embora soubessem onde estavam situadas. As naves governamentais foram para o espaço e as baterias de terra abriram fogo. Finalmente, duas naves piratas foram destruídas, quando suas blindagens protetoras não puderam mais resistir e ambas se incendiaram, transformando-se num vapor luminoso. Outra, com a reserva energética reduzida a gotas, foi quase capturada na perseguição final. Foi explodida no último instante, possivelmente por sua própria tripulação.

      Mesmo durante o ataque alguns defensores suspeitaram de que o mesmo não passava de uma simulação. Mais tarde ficaram sabendo, porém, que fora uma batalha de verdade. Enquanto o Observatório estava empenhado na batalha, três espaçonaves aterrissaram no asteróide a cem milhas de distância. Piratas desembarcaram e, com ferramentas manuais e cilindros detonadores portáteis e movimentando-se rapidamente em velozes "trenós espaciais", desfecharam um ataque contra as câmaras de compressão residenciais.

      Os fechos foram abertos com cargas explosivas e bandos de piratas em trajes espaciais tomaram os corredores de onde o ar estava sendo esgotado. Acima dos corredores ficavam as fábricas e os escritórios, cujos ocupantes haviam sido evacuados logo que fora dado o primeiro alarma. Foram substituídos por membros da milícia local em trajes espaciais, os quais lutaram bravamente, mas não estavam à altura da capacidade profissional de combate da frota pirata.

      Nas partes mais profundas, nos tranqüilos apartamentos de Ceres, soava o fragor da batalha de detonadores. Foram transmitidos pedidos de socorro. Imediatamente os piratas se retiraram, tão rápido como haviam surgido.

      Logo que os atacantes se foram, os homens de Ceres fizeram um levantamento das baixas. Quinze cerícolas estavam mortos e havia um número considerável de feridos com maior ou menor gravidade, em contrapartida aos cadáveres de cinco piratas. Os danos causados às propriedades eram muito elevados.

      - Um homem está desaparecido - explicou furiosamente Conway a Lucky, quando este chegou. - Acontece apenas que não consta da lista de habitantes e conseguimos manter-lhe o nome fora dos boletins de notícias.

      Em Ceres encontrou Lucky um foco de excitação quase histérica depois do término do ataque. Fora a primeira investida contra um importante centro terrestre jamais empreendida por qualquer inimigo no decurso de uma geração. Teve que passar por três inspeções antes que fosse autorizado a aterrissar.

      Sentou-se ao lado de Conway e Henree, no escritório do Conselho, e disse com pesar:

      - Então Hansen desapareceu! A coisa toda se resume nisto!

      - Tenho algo a dizer a favor do velho eremita - disse Henree. - Foi um homem de coragem. Quando os piratas Penetraram, ele fez questão de vestir um traje espacial, pegar um detonador e juntar-se aos combatentes.

      - Não nos faltavam combatentes - disse Lucky. - Se tivesse permanecido aqui embaixo nos teria prestado melhor serviço. Como foi que não o dissuadiram? Em hipótese alguma devia ele ter sido autorizado a agir daquela maneira, ou acham que não?

      Habitualmente calma, a voz de Lucky Starr ocultava urna fúria refreada.

      Conway falou resignadamente:

      - Não estávamos com ele. O guarda que deixáramos de plantão teve que apresentar-se para o serviço da milícia. Hansen insistiu em acompanhá-lo e o guarda concluiu que poderia realizar as duas tarefas simultaneamente: lutar com os piratas e vigiar o eremita.

      - Mas ele não vigiou o eremita.

      - Diante da situação reinante, ele mal pode ser criticado. Na última vez em que o guarda avistou o eremita, este estava investindo contra um pirata. Em seguida percebeu que não havia mais ninguém à vista e que os piratas estavam se retirando. O corpo de Hansen não foi encontrado. Os piratas devem tê-lo levado, vivo ou morto.

      - Sim, é o que devem ter feito - disse Lucky. - Agora, permitam-me que lhes conte algo. Deixem-me que lhes confesse como foi um terrível engano. Tenha certeza de que todo o ataque desferido contra Ceres teve como mero objetivo capturar Hansen.

      Henree apanhou o cachimbo:

      - Sabe, Hector - disse ele a Conway - estou quase tentado a compartilhar a opinião de Lucky. O ataque contra o Observatório foi deplorável, um evidente alarma falso para afastar as nossas defesas de seus postos. A captura de Hansen foi a única coisa que realmente fizeram com êxito.

      Conway disse zangado:

      - Dizem que o eremita não vale o risco de trinta naves.

      - Esse é o ponto mais importante - disse Lucky. - Neste momento pode ser que seja. Falei-lhes a respeito do asteróide em que estive e que tipo de usina industrial o mesmo deve ter sido. Suponhamos que estejam quase prestes a desfechar a grande ofensiva? Suponhamos que Hansen esteja a par da data em que o grande golpe será deflagrado? Suponhamos que tenha conhecimento do método exato?

      - Neste caso, por que não nos informou? - interpelou Conway.

      - Talvez esteja esperando valer-se disto como expediente para comprar sua própria imunidade. Na verdade, nunca tivemos oportunidade de discutir o assunto com ele, Hector, você tem que admitir que qualquer número de espaçonaves valeria o risco, se ele estivesse de posse daquele tipo de informação chave. E, por outro lado, tem que admitir que Lucky provavelmente tem toda razão no que diz respeito à possibilidade de eles estarem preparados para a grande ofensiva.

      Lucky olhou penetrantemente um e outro, alternadamente e perguntou:

      - Por que afirma isto, Tio Gus? O que aconteceu?

      - Conte-lhe, Hector - sugeriu Henree.

      - Ora, por que contar-lhe alguma coisa? - resmungou Conway. - Estou cansado de suas viagens solitárias. Ele vai querer partir para Ganimedes.

      - E o que há em Ganimedes? - perguntou Lucky, com indiferença.

      Pelo que lhe constava, em quase pouco ou nada havia que pudesse despertar o interesse de qualquer pessoa. Era a maior lua de Júpiter, mas a grande proximidade de Júpiter tornava difícil efetuar manobras com espaçonaves, de modo que as viagens espaciais em sua vizinhança eram pouco compensadoras.

      - Ouça - disse Conway. - Vejam bem. Sabíamos que Hansen era importante. A razão de não tê-lo sob observação mais rigorosa, de eu e Gus não estarmos lá pessoalmente, prendeu-se ao fato de que, duas horas antes do ataque pirata, chegou um boletim do Conselho no qual se afirmava que havia indícios de que forças de Sírio haviam desembarcado em Ganimedes.

      - Que espécie de indícios?

      - Penetraram fortes sinais de raios subetéricos. É uma longa estória, mas o ponto mais importante dela reside no seguinte: mais por acidente do que por outra razão qualquer, alguns trechos do código foram captados. Os entendidos afirmam tratar-se de um código de Sírio e certamente não existe nada terrestre em Ganimedes capaz de enviar sinais com um raio assim tão forte. Gus e eu pretendíamos apanhar Hansen e retornar à Terra, mas foi quando se deu o ataque pirata. Estes são os fatos. Agora mesmo temos que voltar à Terra. Com Sírio no cenário dos acontecimentos, pode eclodir uma guerra a qualquer momento.

      Lucky disse:

      - Compreendo. Muito bem, antes de partirmos para a Terra tenho algo que gostaria de verificar. Temos filmes do ataque dos piratas? Quero crer que o sistema defensivo de Ceres não estava tão desorganizado a ponto de não serem tomadas fotografias.

      - Foram tiradas fotos. Como julga que essas fotos possam ajudar?

      - Direi depois que tiver visto as fotos.

      - Vinte e sete espaçonaves atacaram o Observatório. Correto? - perguntou Lucky.

      - Correto - confirmou um comandante. - Não mais que isto.

      - Muito bem. Agora, vejamos se consigo coordenar os fatos. Sabe-se do destino de duas espaçonaves durante o combate e de uma terceira por ocasião da perseguição. As restantes vinte e quatro escapuliram, mas o senhor abateu uma ou mais quando estavam batendo em retirada.

      O comandante sorriu:

      - Se está insinuando que alguma delas desceu em Ceres e que ainda se encontra aqui, então está enganado.

      - No que diz respeito àquelas vinte e sete espaçonaves, pode ser que esteja enganado. Mas, na realidade, mais três naves desceram em Ceres e os seus tripulantes atacaram a Câmara de Compressão Massey. Onde estão as suas fotografias?

      - Infelizmente não conseguimos muitas fotografias daquelas espaçonaves - confessou o comandante inquietamente. - Foi um caso de surpresa total. Mas, também delas temos fotos de quando se retiraram e lhas mostramos.

      - Sim, o senhor as mostrou, e naquelas fotos havia apenas duas naves. Acontece, porém, que testemunhas oculares relataram a aterrissagem de três.

      O comandante falou rispidamente:

      - Três decolaram e bateram em retirada. Também deste fato existem testemunhas oculares.

      - Mas tem fotos de apenas duas?

      - Bem... realmente.

      - Obrigado.

      De volta ao escritório do Conselho, Conway perguntou:

      - O que era tudo aquilo, Lucky?

      - Imaginei que a nave do Capitão Anton poderia estar num local muito interessante. O filme mostrou que realmente estava lá.

      - Onde é que estava?

      - Em parte alguma. E foi este o fato interessante. Sua nave corsária é a única que eu reconheceria; mas, nenhuma que tivesse características semelhantes à dele tomou parte no ataque. É estranho, pois Anton deve ser um dos seus melhores homens porque, se não fosse, não o teriam mandado ao encalço do Atlas. Ou então, seria de estranhar que tivéssemos fatos de apenas vinte e nove naves, quando sabemos ser verdade que trinta tomaram parte no ataque a Ceres. A trigésima, desaparecida, era de Anton!

      - Eu também cheguei a esta conclusão - observou Conway. - E daí?

      Lucky disse:

      - O ataque contra o Observatório foi uma farsa. Até mesmo as naves defensoras sustentam este ponto de vista. O que realmente importava eram as três naves que atacaram a Câmara de Compressão e estas três estavam sob o comando de Anton. Na retirada, duas delas se uniram ao resto da esquadra. Portanto, uma farsa dentro de outra. A terceira espaçonave, a de Anton, a única que não vimos, continuou executando a principal tarefa do dia. Tomou um rumo completamente diferente. Pessoas viram-na erguer-se no espaço, mas desviou a rota tão abruptamente que as nossas próprias espaçonaves nem sequer a registraram nos filmes, quando perseguiam com todo o seu poderio a principal concentração de naves inimigas.

      Conway comentou com tristeza e desprazer:

      - Pretende dizer que está a caminho de Ganimedes?

      - E não é esta a conclusão a que se deve chegar? Apesar de bem organizados, os piratas não podem atacar sozinhos a Terra e suas dependências. No entanto, podem travar um excelente combate com táticas diversas. Poderá fazer com que um número bastante grande de belonaves terrestres em missão de patrulhamento constante do cinturão de incontáveis asteróides permitam que as frotas de Sírio derrotem as restantes. Por outro lado, Sírio não pode conduzir com segurança uma guerra a uma distância de oito anos-luz, a menos que contem com significativa ajuda dos asteróides. Afinal de contas, oito anos-luz correspondem a quarenta e cinco trilhões de milhas. A nave de Anton está se dirigindo velozmente rumo a Ganimedes a fim de assegurar-lhes este tipo de ajuda e para transmitir a ordem para o início da guerra. Evidentemente, sem comunicação.

      - Oxalá tivéssemos descoberto, acidentalmente, a base pirata de Ganimedes mais cedo - resmungou Conway.

      - Mesmo sabendo da existência de Ganimedes - comentou Henree - não teríamos tomado conhecimento da gravidade da situação se não fossem as duas viagens de Lucky ao território dos asteróides.

      - Eu sei. Minhas desculpas, Lucky. Entrementes dispomos de muito pouco tempo para agir. Temos que atingir prontamente o âmago do problema. Uma esquadra de naves enviada ao asteróide chave de que Lucky nos falou...

      - Não - disse Lucky. - Não adianta.

      - Por que diz isto?

      - Não queremos dar início a uma guerra, mesmo que estejamos certos de nossa vitória. Isto é o que eles querem fazer. Ouça, Tio Hector, o pirata Dingo poderia ter-me reduzido a cinzas lá no asteróide. Ao invés disto, tinha ordens para me deixar errando a esmo no espaço. Por um momento cheguei a pensar que fosse com a finalidade de dar a impressão de que minha morte fora acidental. Agora creio que foi para enfurecer o Conselho. Pretendiam alardear o fato de que haviam matado um membro do Conselho e não manter este delito oculto, pois tencionavam incitar-nos a um ataque prematuro. Uma das razões da incursão contra Ceres pode ter sido a de assegurar uma provocação.

      - E se iniciarmos a guerra com uma vitória?

      - Aqui, neste lado do Sol? Deixando a Terra no outro lado, despojada de importantes unidades da Frota? Com naves de Sírio aguardando em Ganimedes, também no outro lado do Sol? Vaticino que seria uma vitória muito custosa. Nossa melhor possibilidade não consiste em deflagrar uma guerra e sim em impedi-la.

      - Como assim?

      - Nada acontecerá enquanto a nave de Anton não chegar a Ganimedes. Suponhamos que o interceptemos e impeçamos que a atinja.

      - A interceptação é uma probabilidade remota - observou Conway com dúvida.

      - Não será, se eu for. A Shooting Starr é a espaço-nave mais veloz da frota e está equipada com os melhores Ergômetros do que qualquer outra nave da Armada.

      - Você vai? - gritou Conway.

      - Seria arriscado enviar unidades da frota. Os homens de Sírio em Ganimedes não teriam meios de certificar-se se estava sendo preparado um ataque. Teria que adotar medidas de ação contrária que significariam a própria guerra que estamos, procurando evitar. A Shooting Starr lhes pareceria inofensiva. Seria, apenas uma nave. Assim ficariam tranqüilos.

      Henree disse:

      - Você está muito ansioso, Lucky. Anton tem uma vantagem inicial de doze horas, que nem mesmo a Shooting Starr pode neutralizar.

      - Engana-se. Pode, sim. E assim que os apanhar. Tio Gus, penso que posso forçar os asteróides a se renderem. Sem o concurso deles Sírio não atacará e não haverá guerra.

      Fitaram-no estarrecidos. Lucky falou seriamente; - Com esta, são duas as vezes que fui e voltei.

      - E sempre quase por um milagre - sussurrou Conway.

      - Nas outras vezes não sabia com quem estava lidando. Tive que agir às apalpadelas. Agora conheço muito bem o terreno em que piso. Ouçam: vou aquecer os motores da Shooting Starr e fazer os acertos com o Observatório de Ceres enquanto os motores se aquecem. Vocês dois podem embarcar no subetérico para a Terra. Enviem o Coordenador para...

      Conway disse:

      - Posso cuidar disto, filho. Antes mesmo que você nascesse eu já vinha me ocupando com assuntos governamentais. E você, Lucky, quer, por favor, se cuidar?

      - Porventura não é o que venho fazendo sempre? Não é. Tio Hector e Tio Gus?

      Ele trocou cordiais apertos de mãos com os dois e afastou-se rapidamente.

 

      Bigman arrastava os pés muito desconsolado sobre a poeira de Ceres e comentou:

      - Vesti o meu traje e tudo o mais.

      - Não pode ir, Bigman - disse Lucky. - Sinto muito.

      - Por que não?

      - Porque pretendo chegar a Ganimedes, usando um atalho.

      - E daí? Que espécie de atalho?

      Lucky sorriu maliciosamente:

      - Vou passar pelo Sol!

      E saiu para o campo em direção à Shooting Starr, deixando Bigman lá, em pé e boquiaberto.

 

Rumo a Ganimedes, Atravessando o Sol

      Um mapa tridimensional do Sistema Solar teria a aparência de um prato raso. No centro estaria o Sol, o membro dominante do Sistema. Ele é, com efeito, dominante, uma vez que contém cerca de 99,8% de toda a matéria do Sistema Solar. Em outras palavras, pesa quinhentas vezes mais do que todos os outros corpos juntos no Sistema Solar.

      Os planetas circulam em torno do Sol e todos se movimentam mais ou menos no mesmo plano, denominado Plano Eclíptico.

      Ao se deslocarem de um para outro planeta, as espaçonaves em geral seguem o Plano Eclíptico. Com este procedimento, ficam dentro dos limites das principais ondas sub-etéricas da comunicação planetária e podem comodamente fazer paradas intermediárias quando se dirigem a seus destinos. Às vezes, quando uma nave está interessada em desenvolver velocidade ou em fugir à detecção, desvia-se do Plano Eclíptico, em particular quando deve dirigir-se para além do Sol.

      Isto - pensou Lucky - deve ser o que a nave de Anton pretende fazer. Possivelmente se ergueria do "prato", que era o Sistema Solar, faria um arco ou uma ponte enorme por cima do Sol e desceria no "prato" no lado oposto, nas vizinhanças de Ganimedes. Certamente Anton devia ter partido naquela direção, porque, caso contrário, as forças defensivas de Ceres não podiam ter deixado de filmá-lo.

      Constituía quase que uma segunda natureza dos homens fazerem observações espaçonáuticas em primeiro lugar ao longo do Plano Eclíptico. No momento em que pensassem em desviar suas atenções da Eclíptica, Anton já estaria muito longe para ser observado.

      Mas - pensou Lucky - as probabilidades eram de que Anton não sairia de vez da Eclíptica. Poderia ter partido dando a impressão que aquele seria seu roteiro, mas retornaria a ela. As vantagens de um retorno poderiam ser muitas. O cinturão de asteróides disseminava-se totalmente em volta do Sol, de modo que os asteróides eram distribuídos igualmente por toda parte. Mantendo-se dentro dos limites do cinturão, Anton poderia permanecer no meio dos asteróides o tempo todo, a uma distância de cem milhões de milhas, aproximadamente, de Ganimedes. Isto significaria segurança para si. O governo terrestre havia abdicado praticamente de seu poder sobre os asteróides e, com exceção da rota para os quatro maiores, as naves governamentais não penetravam na área. Aliás, se alguma chegasse a penetrar nessa área, Anton estaria sempre em condições de pedir reforços de alguma base próxima de asteróides.

      Sim - pensou Lucky - Anton permaneceria no cinturão. E, em parte porque pensava assim e em parte tinha seus próprios planos, Lucky afastou a Shooting Starr da Eclíptica, descrevendo um arco de pouca profundidade.

      A chave era representada pelo Sol. Era a solução para todo o Sistema Solar. Era uma via de acesso bloqueada e um desvio para qualquer espaçonave que os, homens pudessem construir. Para deslocar-se de um lado a outro do Sistema Solar, uma nave tinha que fazer uma ampla curva para evitar o Sol. Nenhuma espaçonave de passageiros não se aproximava dele mais do que sessenta milhões de milhas, que era a distância entre Vênus e o Sol. Mesmo ali, para o conforto dos passageiros eram imprescindíveis sistemas de refrigeração.

      Espaçonaves técnicas podiam ser desenhadas segundo um esquema adequado para viagens até Mercúrio, que distava do Sol, em alguns pontos de sua órbita, aproximadamente, quarenta e três milhões de milhas enquanto que em outros pontos a distância era de vinte e oito milhões. As naves tinham que atingir Mercúrio nas regiões que ficavam mais afastadas do Sol. Numa distância inferior a trinta milhões de milhas vários metais se derretiam.

      Contudo, para observação solar a curta distância às vezes eram construídas naves muito especiais. Os cascos eram impregnados de um forte campo elétrico de natureza peculiar que provocavam um fenômeno denominado "pseudo-liqüefação" no revestimento molecular mais afastado. A ação refratária térmica de tal revestimento era quase total de modo que somente uma pequena fração penetrava na nave. Vistas do exterior, tais naves pareciam espelhos. Mesmo assim, nelas penetrava suficiente calor para elevar a temperatura em seu interior acima do ponto de ebulição da água, a uma distância de cinco milhões de milhas do Sol, distância mínima de aproximação registrada. Mesmo que um ser humano conseguisse sobreviver a semelhante temperatura, não seria capaz de superar os efeitos da radiação de ondas curtas que saía em fluxos do Sol e penetrava na nave, a tal distância. Esta podia matar qualquer coisa vi-vente em poucos segundos.

      A desvantagem da posição do Sol com relação às viagens espaciais era evidente neste caso em que Ceres se achava de um lado do Sol, ao passo que a Terra e Júpiter estavam em posição quase diametralmente oposta. Se alguém se encontrasse no cinturão de asteróides, a distância de Ceres até Ganimedes era de aproximadamente um bilhão de milhas. Se o Sol pudesse ser ignorado e uma nave cruzasse o espaço cortando, a distância seria apenas de seiscentos milhões de milhas, o que representaria uma economia de aproximadamente quarenta por cento.

      Dentro das possibilidades, era o que Lucky pretendia fazer.

      Ele pilotava a Shooting Starr com determinação, vivendo por assim dizer dentro do traje espacial blindado, comendo e bebendo dentro dele e sentindo continuamente a pressão da aceleração. Permitia-se apenas um descanso de quinze minutos em cada hora.

      Passou bem acima das órbitas de Marte e da Terra, mas ali não havia nada para ser visto, nem mesmo com o telescópio da espaçonave. A Terra se encontrava no lado oposto do Sol e Marte numa posição que quase formava um ângulo reto consigo mesmo.

      O Sol já se apresentava no seu tamanho normal como quando era visto da Terra e só conseguia vê-lo através de telas fortemente polarizadas. Mais um pouco e teria que utilizar-se de acessórios estroboscópicos.

      De vez em quando os mostradores de radioatividade estalavam. Dentro da órbita terrestre a densidade das radiações de ondas curtas começou a registrar valores respeitáveis. Dentro da Órbita de Vênus teriam que ser tomadas precauções especiais, tais como o uso de trajes semi-especiais impregnados de chumbo.

      Eu mesmo - refletiu Lucky - teria que atuar melhor do que o chumbo. Quando se aproximasse do Sol, o chumbo não faria o que competia a ele fazer. Nenhuma matéria adiantaria.

      Desde a viagem que efetuou a Marte no ano anterior, pela primeira vez Lucky retirou do bolso especial colado à cintura o objeto delicado e semitransparente que obtivera dos seres energéticos de Marte.

      Há muito que abandonara qualquer esforço de especulação quanto ao modo de funcionamento do objeto. Representava o desenvolvimento de uma ciência que estava milhões de anos mais adiantado do que a ciência conhecida da humanidade e que trilhava caminhos estranhos. Era-lhe tão incompreensível como uma espaçonave teria sido para um homem das cavernas e, igualmente, impossível de reproduzir. Mas funcionava e isto era o que importava!

      Colocou o delicado objeto sobre a cabeça. Este se ajustou ao seu crânio como se possuísse uma estranha vida própria. Tão logo o colocou, todo seu corpo ficou irradiado por uma luz que nascia em volta do seu corpo inteiro. Era como se a luz de um bilhão de pirilampos estivessem iluminando seu corpo e foi por esta mesma razão que Bigman denominou o pequeno objeto de protetor luminoso. Havia sobre sua cabeça e em seu semblante um sólido lençol brilhante que cobria inteiramente suas feições, sem, contudo, impedir que a luz chegasse aos seus olhos.

      Era uma blindagem de energia, planejada pelos autóctones marcianos para as necessidades de Lucky. Isto é, era impermeável a todas as formas de energia que não fosse aquela requerida pelo corpo dele, tais como uma certa intensidade de luz e uma determinada quantidade de calor. QS gases atravessavam-na livremente para que Lucky pudesse respirar e, quando aquecidos, os gases, de passagem, perdiam o calor e tornavam-se completamente frios.

      Quando a Shooting Starr deixou para trás a órbita de Vênus, prosseguindo rumo ao Sol, Lucky colocou permanentemente sua blindagem de energia. Enquanto a usasse, não poderia comer ou dormir, mas o jejum forçado não iria, no máximo, além de um dia.

      Viajava agora a uma velocidade inconcebível, muito maior do que já desenvolvera anteriormente. Ademais do poderoso impulso dos motores hiperatômicos da Shooting Starr, havia a atração inimaginável do gigantesco campo gravitacional do Sol. Agora estava se deslocando a uma velocidade de milhões de milhas por hora.

      Ativou o campo magnético que transformava o revestimento externo da nave em matéria "semi-líquida" e deu graças aos céus, quando agiu assim, pela previsão que o levou a insistir na instalação daquele acessório durante a construção da Shooting Starr. O binário de calor que estivera registrando temperatura acima de cem graus centígrados começou a apresentar um declínio. As telas escureceram no momento em que os escudos metálicos cobriram o espesso glassite a fim de impedir que fossem prejudicados e para que não amolecessem devido ao calor do Sol.

      No momento em que a nave alcançou a órbita de Mercúrio, os medidores de radiações haviam enlouquecido completamente. A trepidação era contínua. Lucky colocou uma mão luzente sobre suas aberturas e o ruído cessou. Até os mais fortes raios gama, toda a radiação que penetrava e impregnava a nave foi interrompida pela resistência da aura imaterial que circundava seu corpo.

      A temperatura, que alcançara o nível baixo de oitenta graus, começava novamente a elevar-se, apesar do revestimento refratário da Shooting Starr. Ultrapassou cento e vinte graus e continuou se elevando. Os gravímetros indicavam que o Sol se encontrava a apenas dez milhões de milhas de distância.

      Um prato raso com água que Lucky havia colocado sobre a mesa e que estivera fumegante há uma hora, neste momento fervia. O binário de calor atingira o ponto de ebulição da água, a duzentos e doze graus.

      Passando em torno do Sol, a Shooting Starr se encontrava agora a uma distância do mesmo de cinco milhões de milhas. Não poderia aproximar-se mais. Na realidade, encontrava-se na área das porções externas mais distantes e rarefeitas da atmosfera solar, que constituía a sua coroa. De vez que o sol era todo gasoso (embora a maior pai te do gás fosse do tipo que não poderia existir mesmo sob as mais severas condições de laboratório na Terra), não tinha ele superfície e a sua "atmosfera" compunha o próprio corpo do astro. Conseqüentemente, quando atravessou a coroa, num certo sentido Lucky estava atravessando o próprio Sol, conforme havia dito a Bigman que o faria.

      A curiosidade o espicaçou. Nenhum homem, em ocasião alguma, chegara tão perto do Sol. E talvez nenhum homem jamais viesse a consegui-lo. Certamente, nenhum homem que tal lograsse conseguiria fitar o Sol com os olhos desarmados. O mais fugaz relance da tremenda radiação do Sol àquela distância significaria sua morte instantânea.

      Mas ele estava usando a blindagem energética marciana. Teria aquela blindagem condições de controlar a radiação solar a uma distância de cinco milhões de milhas? Sentia que não devia expor-se àquele risco e no entanto a ânsia de agir dessa forma o incitava desesperadamente. A principal tela da nave estava aparelhada com uma série de passagens estroboscópicas que exporiam, uma a uma, toda uma série de sessenta e quatro aberturas que davam para o Sol, cada uma por um milionésimo de segundo cada quatro segundos. Para o olho (ou para a câmara) significaria uma exposição contínua à luz, mas na realidade cada peça do vidro receberia somente um quarto de milionésimo da radiação emitida pelo Sol. Mesmo assim, eram necessárias lentes quase opacas planejadas pára tal finalidade.

      Os dedos de Lucky se movimentaram sem remorso, quase sem volição consciente, em direção dos controles. Não conseguia afastar a idéia de deixar passar a oportunidade. Ajustou as placas na direção do Sol, usando os gravímetros como indicadores.

      Em seguida desviou a cabeça e apertou o contato. Passou-se um segundo. Mais um, e logo mais dois segundos.

      Imaginou uma elevação de calor em sua própria nuca; em parte esperou pela morte devido à radiação. Mas nada aconteceu.

      Virou a cabeça lentamente.

      O que divisou devia permanecer em sua retina para o resto de sua vida. Uma superfície brilhante, enrugada e cheia de vincos, ocupava toda a área da tela. Era uma porção do Sol. Compreendia que não poderia ver tudo na tela, pois àquela distância o Sol era aproximadamente vinte vezes mais amplo do que quando observado da Terra e cobria quatrocentas vezes mais o firmamento.

      A tela revelava um par de manchas solares, que se apresentavam escuras contra a luz intensa. No seu interior filamentos brancos e incandescentes se enroscavam e logo desapareciam. Viu áreas de atividade crescente que cruzavam a tela de forma perfeitamente visível, enquanto estava detido na observação. Isto não era devido ao próprio movimento de rotação do Sol que, mesmo no seu equador, não girava mais do que mil e quatrocentas milhas horárias; era devido, isto sim, à tremenda velocidade da Shooting Starr, Enquanto observava, porções de gás vermelho e flamejante saltavam na sua direção, seu brilho diminuía de intensidade contra o fundo incandescente e se transformavam em fumaça negra no momento em que se distanciavam do Sol e se esfriavam.

      Lucky mudou a posição da tela, focalizando uma porção da beira do Sol, e então o gás flamejante (que eram as denominadas "protuberâncias", que consistiam de fluxos de gás hidrogênio) destacava-se com uma coloração vermelha viva contra a escuridão do céu. Espalhava-se para o exterior em movimentos lentos, afinando e tomando as mais fantásticas configurações. Lucky sabia que cada configuração poderia envolver uma dúzia e planetas das dimensões da Terra e que a Terra poderia ser impelida para a mancha solar, fato este que compreendeu sem grande esforço intelectual.

      Fechou os estroboscópicos com um súbito movimento. Embora fisicamente em segurança, nenhum homem conseguia fitar o Sol daquela distância sem sentir-se esmagado pela insignificância da Terra e de todas as coisas terrenas.

      A Shooting Starr havia atravessado rapidamente a sua metade da rota solar e agora retrocedia velozmente e passava pelas órbitas de Mercúrio e Vênus. Começou então a perder velocidade. A proa da nave reagiu à direção do vôo e seus motores principais e potentes funcionavam como freios.

      Logo que passou pela órbita de Vênus, Lucky removeu sua blindagem e guardou-a. O sistema de refrigeração funcionava com toda força para expelir o excesso de calor. A água potável continuava desagradavelmente morna e as latas de alimentos apresentavam intumescências nos lugares em que o líquido interno fervera, formando bolhas de vapor.

      O Sol ia se reduzindo. Lucky observou-o atentamente. Era uma perfeita esfera reluzente. Suas irregularidades, suas convulsas manchas e protuberâncias suspensas no espaço já não podiam ser vistas. Somente sua coroa, que era sempre visível no espaço, embora observável da Terra apenas por ocasião de eclipses, arremessava-se no espaço em todas as direções numa extensão de milhões de milhas. Lucky teve um estremecimento involuntário ao pensar que atravessara a coroa.

      Passou a uma distância de quinze milhões de milhas da Terra e com o telescópio espreitou os contornos familiares dos continentes, espiando através das massas brancas interrompidas de cadeias de nuvens. Sentiu uma ponta de nostalgia e uma renovada resolução de manter a guerra afastada dos milhões de seres humanos atarefados e pululantes que habitavam o planeta, que constituía o lugar de origem de todos os homens que presentemente ocupavam o vasto sistema estelar da Galáxia.

      Em seguida, também a Terra desapareceu.

      Passando por Marte e de volta ao cinturão dos asteróides, Lucky esquadrilhou ainda o firmamento em busca do sistema de Júpiter, aquele sistema de sóis em miniatura dentro de um maior. No seu centro ficava Júpiter, maior que todos os outros planetas tomados em conjunto. Em volta dele giravam quatro gigantescas luas. Eram elas: Io, Europa, Calixto com mais ou menos as mesmas dimensões que a Lua da Terra e Ganimedes, a quarta que possuía uma dimensão muito maior. Na realidade, Ganimedes era maior do que Mercúrio e quase do mesmo tamanho que Marte. Além disso, existiam quantidades de pequenas luas. Cujas dimensões variavam de algumas centenas de milhas de diâmetro, sendo que outras se reduziam a asteróides de porte insignificante.

      No telescópio da espaçonave, Júpiter surgia como um globo amarelo que se ampliava, marcado com leves listras alaranjadas, uma das quais se destacava e formava o que ficou convencionado chamar-se de "A Grande Mancha Vermelha". Três das principais luas, inclusive Ganimedes, ficavam de um lado enquanto que a quarta estava situada no lado oposto.

      Lucky mantivera constante comunicação com o escritório principal do Conselho na Lua, agora já durante a maior parte de um dia. Seus Ergômetros vasculhavam o espaço com os dedos completamente espalmados. Detectaram várias naves, mas Lucky estava à espreita de uma apenas, que certamente reconheceria no momento em que aparecesse.

      E não falhou. A uma distância de vinte milhões de milhas, as primeiras oscilações aguçaram-lhe as desconfianças. Manobrou a nave na direção apropriada e as curvas características acentuaram-se.

      A cem mil milhas, seu telescópio registrou-a como um minúsculo ponto. A dez mil milhas, ganhou forma e contorno e era a nave de Anton.

      Quando se encontrava a mil milhas (distando Ganimedes ainda cinqüenta milhões de milhas de ambas as espaçonaves), Lucky enviou sua primeira mensagem, uma intimação para que Anton retornasse com sua nave à Terra.

      Quando se achava a uma distância de cem milhas, Lucky recebeu a resposta, uma explosão de energia que fez com que seus geradores rangessem e que sacudiu a Shooting Starr como se tivesse colidido com outra nave.

      No rosto de Lucky estampou-se preocupação.

      A espaçonave de Anton estava mais bem armada do que ele esperava.

 

Resposta parcial

      Durante uma hora as manobras de ambas as espaçonaves foram indecisas. Lucky possuía uma nave mais rápida e melhor, mas Anton contava com uma tripulação. Cada um dos homens de Anton podia executar uma tarefa específica. Um podia enfocar e o outro disparar, enquanto um terceiro podia controlar os grupos de reatores e Anton podia orientar as operações pessoalmente.

      Procurando fazer tudo sozinho e ao mesmo tempo, Lucky tinha que amparar-se intensamente em palavras:

      "Anton, você não conseguirá chegar a Ganimedes e os seus amigos não se arriscarão a abrir o jogo agora, sem saberem previamente o que está acontecendo... Anton, vocês estão todos acabados, conhecemos todos os seus planos... De nada adianta tentar enviar uma mensagem a Ganimedes, estamos criando-lhe embaraços até Júpiter, interferindo no subetérico. Nada pode passar... As espaçonaves do governo estão se aproximando, Anton. Conte os seus minutos, porque não dispõe de muitos, a menos que capitule... Desista, Anton, desista, Anton."

      Lucky ia proferindo todas estas palavras, enquanto a Shooting Starr manobrava de um lado para outro, enfrentando um fogo tão concentrado como antes nunca tinha visto. Nem todos os disparos podiam ser evitados, com êxito. As reservas energéticas da Shooting Starr começavam a enfraquecer. Como Lucky teria gostado se a espaçonave de Anton estivesse na mesma situação, mas ele próprio disparava algumas cargas contra Anton e praticamente não acertava nenhuma.

      Não se atrevia a desviar os olhos da tela. As espaçonaves que se deslocavam velozmente para o cenário da luta demorariam horas para chegar. E se nestas horas de expectativa Anton esgotasse suas reservas energéticas, escapasse e rumasse para Ganimedes, desenvolvendo uma boa velocidade, enquanto a Shooting Starr mal conseguisse persegui-la de longe, sem nunca alcançá-la... Ou, se uma frota pirata surgisse subitamente na tela...

      Lucky não ousou alimentar mais tais pensamentos. Talvez tivesse cometido um engano quando não confiando logo às naves governamentais a interceptação. Não - ponderou ele - somente a Shooting Starr seria capaz de apanhar Anton a uma distância de cinqüenta milhões de milhas de Ganimedes; somente a velocidade da Shooting Starr conseguiria isto; e, o que era mais importante, somente os seus Ergômetros. A esta distância de Ganimedes, não havia perigo em convocar unidades da frota para o combate. Caso estivesse mais próximo de Ganimedes, a ação da frota teria sido um risco.

      O receptor de Lucky, que estivera ligado durante todo o tempo, foi subitamente ativado. Surgiu, então, o rosto despreocupado, sorridente de Anton.

      - Vejo que mais uma vez conseguiu livrar-se de Dingo.

      Lucky respondeu:

      - Outra vez? Então está confessando que ele estava trabalhando sob ordens no duelo de pistolas propulsoras.

      Um fluxo energético desprendido na direção da espaçonave de Lucky tomou subitamente a forma maciça de um raio de força destrutiva. Lucky desviou a espaçonave para um lado com uma aceleração que o sacudiu.

      Anton deu uma risada:

      - Não me vigie tão de perto. Lá quase o apanhamos com um sujeito notável. Claro que Dingo estava agindo de acordo com ordens recebidas. Sabíamos o que estávamos fazendo. Dingo desconhecia, realmente, quem você era, mas eu sabia, e isto praticamente desde o início.

      - Pena que o conhecimento não o ajudou - disse Lucky.

      - Foi a Dingo que tal conhecimento não adiantou nada. Pode parecer divertido para você saber que ele foi, por assim dizer, executado. Não é bom cometer enganos. Mas, aqui este tipo de conversa não tem sentido. Estou aparecendo na tela com a exclusiva finalidade de dizer-lhe que tem sido muito divertido, mas estou de partida.

      - Você não tem para onde se dirigir.

      - Tentarei Ganimedes.

      - Será interceptado.

      - Por espaçonaves do governo? Mas ainda não vejo nenhuma. E não existe ninguém que consiga me pegar em tempo.

      - Eu posso pegá-lo.

      - Você me pegou, mas o que pode fazer comigo? Pela maneira como está lutando, deve ser o único homem a bordo. Se eu tivesse conhecimento disto deste o início, não me teria dado ao trabalho de chegar a este ponto. Não pode lutar contra uma tripulação inteira.

      Lucky falou em voz baixa e resoluta: "Posso abalroá-lo e esmagá-lo completamente".

      - E você, lembre-se disto.

      - Isto não importaria.

      - Sim, senhor. Você fala como se fosse um escoteiro do espaço. Em seguida vai repetir o juramento das patrulhas de escoteiros mirins.

      Lucky ergueu a voz:

      - Homens que estão a bordo, ouçam! Se seu capitão tentar fugir na direção de Ganimedes, eu abalroarei a nave. É morte certa para todos, a menos que se rendam. Prometo a todos um julgamento justo. Se cooperarem conosco, prometo-lhes a maior consideração possível, Não permitam que Anton disponha de suas vidas por amor dos amigos que tem em Sírio.

      - Continue falando, vamos - disse Anton. - Estou deixando que ouçam. Eles sabem que espécie de julgamento os aguarda e também que tipo de consideração. Uma injeção de veneno enzímico.

      Seus dedos executaram rapidamente os movimentos de alguém inserindo uma agulha sob a pele de outra pessoa e prosseguiu:

      - É isto o que ganharão. Eles não o temem. Até logo, agente do governo, até logo.

      As agulhas dos gravímetros de Lucky oscilaram e baixaram, no momento em que a nave de Anton ganhava velocidade e se distanciava. Lucky estudou as telas. Onde estavam as naves do governo? Santos céus! Onde estavam as naves do governo?

      Deixou que a aceleração ganhasse intensidade. As agulhas do gravímetro moveram-se para cima mais uma vez.

      As milhas que separavam as duas espaçonaves foram novamente reduzidas. A nave de Anton aumentou a velocidade e o mesmo ocorreu com a de Lucky. Mas acontece que as possibilidades de aceleração da Shooting Starc eram superiores.

      Anton continuava a estampar um sorriso em seu rosto:

      - Cinqüenta milhas de distância - disse ele. Em seguida prosseguiu: - Quarenta e cinco.

      Mais uma pausa e então:

      - Já encomendou sua alma, agente do governo?

      Lucky não respondeu. Não havia saída para ele. Teria mesmo que levar sua nave a colidir com a outra. Antes que Anton atingisse seus propósitos, antes que a guerra chegasse à Terra ele teria que deter os piratas por meio do suicídio, se não houvesse outra alternativa. As naves estavam se movimentando em curva, uma em direção à outra, numa trajetória longa e lenta.

      - Trinta milhas - disse Anton indolentemente. - Você não está metendo medo em ninguém. No fim de tudo vai ficar com cara de bobo. Mude sua trajetória e regresse aos seus pagos, Lucky.

      - Vinte e cinco milhas - retorquiu Lucky com firmeza. - Tem quinze minutos para se render ou morrer.

      Ele próprio - pensou consigo - tinha os mesmos quinze minutos para vencer ou morrer.

      Por trás de Anton apareceu um rosto na tela. Tinha um dedo nos lábios pálidos e tensos. Os olhos de Lucky devem ter tremulado. Procurou ocultar o tremor, desviando o olhar da tela e voltando logo em seguida.

      Ambas as espaçonaves se achavam em sua velocidade máxima.

      - O que houve, Starr? - perguntou Anton. - Está com medo? Está com o coração batendo aos pulos?

      Seus olhos dançavam e os lábios estavam entreabertos.

      Lucky percebeu imediatamente, com absoluta certeza, que Anton estava se divertindo com aquilo, que considerava aquela situação um jogo emocionante e que se tratava apenas de um artifício através do qual pudesse demonstrar seu poder. Naquele momento Lucky compreendeu que Anton jamais capitularia e que preferiria deixar-se abalroar a recuar. E Lucky ficou certo de que não tinha meio de escapar à morte.

      - Quinze milhas - disse Lucky.

      A figura que surgira atrás de Anton era de Hansen. O eremita, o qual segurava algo em sua mão.

      - Dez milhas - disse Lucky. E acrescentou: - Seis minutos. Estou indo ao seu encontro. Céus! Vou colidir com você.

      Era um detonador! Hansen segurava um detonador.

      A respiração de Lucky tornou-se tensa. Se Anton se virasse...

      Mas Anton não estava disposto a perder por um minuto sequer a contemplação do rosto de Lucky, se pudesse agüentar. Estava esperando a fim de ver se naquele rosto o medo apareceria e cresceria. Para Lucky esta hipótese transparecia mais do que evidente na expressão do pirata. Anton não se teria voltado para prestar atenção a um acontecimento mais ruidoso do que o provocado por um detonador que se erguia com barulho.

      Anton foi atingido pelas costas. A morte foi rápida demais para permitir que o sorriso ansioso desaparecesse daquele rosto; e o ar de cruel alegria não desapareceu, embora a vida o abandonasse. Anton caiu para frente, diante da tela, e por um instante seu rosto ficou prensado de encontro a ela, numa configuração maior do que o tamanho normal, fitando Lucky de esguelha, com os olhos sem vida.

      Lucky ouviu Hansen gritar:

      - Voltemos todos! Querem morrer? Entreguemo-nos. Starr, venha apanhar-nos!

      Lucky desviou a aceleração em dois graus, o suficiente para não bater no alvo.

      Seus Ergômetros naquele momento registraram os motores das espaçonaves governamentais que se aproximavam. Finalmente apareciam.

      As telas da nave de Anton estavam se esbranquiçando, como sinal de rendição.

 

      Era praticamente um axioma que a frota nunca se sentia totalmente satisfeita quando o Conselho de Ciências interferia muito naquilo que consideravam um assunto para militares. E particularmente quando essa interferência obtinha um êxito espetacular. Lucky estava perfeitamente cônscio disso. Ele estava preparado para receber a desaprovação mal disfarçada do almirante.

      O almirante disse:

      - Starr, o Dr. Conway acaba de explicar convenientemente a situação e o elogiamos por suas proezas. No entanto, deve compreender que a Frota tem estado consciente do perigo que Sírio representa já faz algum tempo e tinha um programa próprio muito bem elaborado. Estas ações independentes realizadas pelo Conselho podem ser danosas. Você deve fazer ver este fato ao Dr. Conway. Acabamos de ser requisitados pelo Coordenador para cooperar com o Conselho nos próximos estágios da luta contra os piratas, mas - e revelou um ar obstinado - não posso concordar com sua sugestão de adiar um ataque a Ganimedes. Penso que a Frota tem autorização de tomar suas próprias decisões no que concerne ao combate e à vitória.

      O almirante achava-se nos seus cinqüenta anos de idade e não estava acostumado a debater problemas em termos de igualdade com quem quer que fosse, muito menos com um jovem com a metade de sua idade. Seu rosto anguloso e o bigode hirsuto e grisalho eram prova disto.

      Lucky estava cansado, pois agora seu corpo reagia ante o fato de que a nave de Anton fora trazida a reboque e a sua tripulação colocada sob custódia. Contudo, conseguiu comportar-se com muito respeito e disse:

      - Sou de opinião de que, se liquidarmos com os redutos piratas em primeiro lugar, os incursores de Sírio em Ganimedes automaticamente deixarão, de constituir um problema.

      - Pela Galáxia, homem! Como pode falar em liquidar os redutos piratas? Há vinte e cinco anos que estamos tentando fazê-lo, sem êxito. Liquidar com os redutos de asteróides é o mesmo que procurar agulha em palheiro. Quanto às bases dos incursores de Sírio, sabemos onde ficam e temos uma boa noção do seu poderio. - Ele sorriu ligeiramente e prosseguiu: - Sim, pode ser difícil para o Conselho compreender isto, mas a Frota está tão preparada quanto eles, talvez até mais. Por exemplo, sei que as forças sob o meu comando são suficientes para aniquilar as suas forças em Ganimedes. Estamos prontos para o combate.

      - Não tenho dúvidas de que está e que pode derrotar os incursores de Sírio. Mas, os incursores de Sírio que se encontram em Ganimedes não representam a totalidade dos habitantes de Sírio. Pode estar preparado para uma batalha, mas garante que está preparado para sustentar uma guerra prolongada e dispendiosa?

      O almirante corou e respondeu:

      - Fui solicitado a cooperar, mas não posso fazê-lo pendo em risco a segurança da Terra. Sob nenhuma condição posso concordar com um plano que implique na dispersão da nossa frota entre os asteróides, enquanto uma expedição de Sírio está em andamento no sistema Solar.

      - Pode conceder-me uma hora? - interrompeu-o Lucky. - Uma hora para conversar com Hansen, o prisioneiro de Ceres que trouxe a bordo da nave pouco antes de o senhor entrar na espaçonave?

      - Em que lhe pode valer esta permissão?

      - Concede-me uma hora para que lhe mostre?

      Os lábios do almirante se comprimiram:

      - Uma hora pode ser valiosa, até mesmo valiosíssima... Muito bem, comece, então, mas rápido! Vamos ver em que vai dar tudo isto.

      - Hansen! - gritou Lucky sem tirar os olhos do almirante.

      O eremita entrou, procedente do dormitório. Aparentava um ar cansado, mas conseguiu sorrir para Lucky. Sua permanência na espaçonave pirata aparentemente não lhe havia afetado a disposição de ânimo.

      Ele disse:

      - Estive apreciando sua nave, Sr. Starr. É um engenho e tanto.

      - Ouça - disse o almirante - não é nada disto. Continue com isto, Starr. A sua espaçonave não vem ao caso.

      Lucky disse:

      - Esta é a situação, Sr. Hansen. Com sua valiosa ajuda, conseguimos deter Anton, pelo que lhe sou grato. Isto significa que adiamos o início das hostilidades com Sírio. Mas, precisamos mais do que o simples adiamento. O que precisamos é afastar completamente o perigo e, conforme o almirante lhe dirá, o tempo é muito escasso.

      - Como posso ajudar? - perguntou Hansen.

      - Respondendo às minhas perguntas.

      - Com todo o prazer, mas já lhe disse tudo o que sei. Sinto que as minhas informações tenham sido de tão pouca valia.

      - Apesar disto, os piratas o consideram um homem perigoso. Arriscaram-se muito para tirá-lo de nossas mãos.

      - Não sei como explicar-lhe.

      - Pode ser que disponha de alguma informação importante sem que tenha conhecimento disto? Algo que pudesse ser fatal para eles?

      - Não vejo como.

      - Pois bem, eles confiaram em você. Segundo a informação que me forneceu pessoalmente, você era rico, era um homem com bons investimentos na Terra. Evidentemente, estava em situação financeira muito melhor do que o eremita médio. Contudo, os piratas lhe dispensavam um bom tratamento. Ou, pelo menos, não o maltratavam. Não saqueavam os seus bens. Na realidade, deixaram sua residência de muito luxo completamente em paz.

      - Lembre-se, Sr. Starr, eu os ajudei em retribuição.

      - Nem tanto. Você afirmou que permitia que aterrissassem em seu asteróide e deixassem pessoas nele, vez ou outra, e que isto era praticamente tudo. Se simplesmente o tivessem matado, eles poderiam ter ficado com a sua residência e os alojamentos. Em aditamento, não teriam que se aborrecer com o fato de você vir a ser um delator. Você há de compreender que, afinal de contas, se tornou um delator.

      Os olhos de Hansen movimentaram-se:

      - No entanto, assim eram as coisas. Contei-lhe a verdade.

      - Sim, o que me contou era verdade. Mas não era toda ela. Afirmo que deve ter havido boa razão para que os piratas confiassem em você de maneira tão incondicional. Devem ter sabido que sua apresentação ao governo significava sua própria vida.

      - Contei-lhe tudo aquilo - disse Hansen calmamente.

      - Você afirmou que se censurou por ter ajudado os piratas, e no entanto confiaram em você quando apareceu pela primeira vez, antes de começar a ajudá-los. Se assim não fosse o teriam matado logo de início. Bem, deixe-me tirar minhas conclusões: eu diria que em tempos idos, antes de se tornar eremita, você foi um pirata, Hansen, e que Anton e homens de sua espécie estavam a par deste fato. O que me diz?

      O rosto de Hansen empalideceu. Lucky prosseguiu:

      - O que diz, Hansen?

      A voz de Hansen soou muito branda:

      - Tem razão, Sr. Starr. Outrora fui membro da tripulação de uma espaçonave corsária. Foi há muito tempo. Procurei fazer com que isto fosse esquecido, levando uma vida exemplar. Retirei-me para o asteróide e fiz o máximo para ficar tão morto quanto possível no que diz respeito à Terra. Quando um novo grupo de piratas surgiu no Sistema Solar e me envolveu, não tive outra opção senão fazer o jogo deles. Quando você aterrissou, descobri a minha primeira oportunidade de sair de lá, a minha primeira oportunidade de me defrontar com a Lei. Afinal de contas, haviam decorrido vinte e cinco anos. E teria a meu favor o fato de ter exposto minha própria vida para salvar a de um membro do Conselho. Foi por esta razão que fiquei tão ansioso por lutar contra os piratas invasores de Ceres. Queria marcar outro tento a meu favor. Finalmente, matei Anton, salvando-lhe a vida pela segunda vez e proporcionando à Terra um espaço respeitável, no qual a guerra pode ser evitada. Fui pirata, Sr. Starr, mas o fui no passado e penso que os pontos ganhos compensaram os perdidos.

      - Ótimo! - disse Lucky. - Por enquanto. Pois bem, tem alguma informação a nos prestar, que não tenha transmitido anteriormente?

      Hansen meneou a cabeça e Lucky acrescentou:

      - Você não nos disse que era pirata.

      - Não tinha nenhuma importância que dissesse. E você descobriu por si mesmo. Não procurei negá-lo.

      - Pois bem, vejamos se conseguimos descobrir mais alguma coisa que não negará. Compreende, ainda não contou toda a verdade.

      Hansen mostrou-se surpreso e perguntou:

      - O que falta?

      - Falta dizer que você nunca deixou de ser pirata. O fato de ser uma pessoa que foi mencionada apenas uma vez em meu interrogatório e assim mesmo por um dos tripulantes da espaçonave de Anton pouco após o meu duelo de pistolas propulsoras com Dingo. O fato de que você é o famigerado Chefão. Você, Hansen, é o mentor dos piratas dos asteróides, a sua mente orientadora.

 

A resposta completa

      Hansen deu um pulo da cadeira e ficou em pé. Sua respiração silvava ruidosamente através dos lábios entreabertos.

      Um pouco menos atônito, o almirante gritou:

      - Pela grande Galáxia, homem! O que é isto? Está falando sério?

      Lucky disse:

      - Sente-se, Hansen, e vejamos se o que acabo de afirmar se coaduna perfeitamente com os fatos. Vejamos como soa. Tudo começa com a invasão do Atlas por parte do Capitão Anton. Anton era um sujeito inteligente e capaz, apesar de ter uma mente distorcida. Não confiou em mim e na minha história. Tirou uma fotografia tridimensional de minha pessoa (não seria difícil, mesmo que eu não notasse) e enviou-a ao Chefão, aguardando instruções. O Chefe julgou reconhecer-me. Com efeito, Hansen, se você fosse o chefe era fato que se seguiria logicamente, porque de fato você me reconheceu, quando mais tarde nos vimos frente a frente.

      - O chefe enviou outra mensagem, dizendo que eu devia ser morto. Anton divertiu-se muito, pensando estar executando as instruções recebidas quando me entregou a um duelo de pistolas propulsoras com Dingo. Dingo recebera ordens expressas de matar-me. Anton confessou isto na última conversa que tivemos. Em seguida, quando retornei, com a promessa de Anton de que teria uma chance de me associar à organização caso sobrevivesse, você teve que assumir o comando pessoalmente. Então fui enviado ao seu asteróide.

      Hansen explodiu:

      - Mas isto é loucura! Não lhe causei nenhum dano. Salvei-o. Trouxe-o de volta a Ceres.

      - Realmente foi o que fez e veio junto. Bem, eu pretendia associar-me à organização pirata e conhecer os fatos por dentro. Por sua vez também você teve a mesma idéia e foi mais bem sucedido. Trouxe-me para Ceres e veio em pessoa. Viu como estávamos despreparados e como subestimávamos a organização pirata. O que significava que você tinha condições de prosseguir com seus planos a todo vapor.

      - O ataque a Ceres agora faz sentido. Quero crer que de qualquer forma enviou mensagem a Anton. Não são desconhecidos subetéricos de bolso e códigos bem elaborados podem ser imaginados. Veio surgir nos corredores não para combater os piratas mas para juntar-se a eles. Não o mataram, mas "capturaram-no". Foi uma atitude muito estranha. Se sua estória fosse verdadeira, eles o teriam considerado um delator perigoso. O teriam matado logo que surgisse. No entanto, não o molestaram. Muito pelo contrário, colocaram-no na capitania da espaçonave de Anton e o levaram para Ganimedes. Não foi sequer algemado ou posto sob vigilância. Você teve toda liberdade para se movimentar calmamente atrás de Anton e matá-lo com aqueles disparos.

      Hansen gritou:

      - Mas o fato é que o matei. Se eu fosse quem você me julga ser, por que amor à Terra o teria eu matado?

      - Porque ele era um maníaco. Estava disposto a permitir que eu colidisse com a espaçonave ao invés de recuar ou humilhar-se. Você tinha grandes planos e nenhuma intenção de alimentar-lhe a vaidade. Você sabia que mesmo que impedíssemos Anton de entrar em contato com Ganimedes, tudo não passaria de um mero atraso. Mediante um ataque que desferíssemos mais tarde contra Ganimedes, de qualquer forma provocaríamos a guerra. Depois disso, continuando a desempenhar seu papel de eremita, você eventualmente encontraria um jeito de escapar e assumir a sua verdadeira identidade. O que significavam a morte de Anton e a perda de uma espaçonave quando comparadas com tudo isto?

      Hansen disse:

      - Que prova existe de tudo isto? São conjeturas e nada mais. Onde estão as provas?

      O almirante que durante a conversa estivera olhando ora para um ora para outro, tomou a iniciativa:

      - Ouça, Starr, este homem é meu. Nós vamos conseguir toda a verdade que há nele.

      - Nada de pressa, almirante. Minha hora ainda não terminou... Conjeturas, Hansen? Continuemos. Hansen, tentei retornar ao seu asteróide, mas você não dispunha das coordenadas, o que é estranho, apesar de suas amplas explicações. Eu calculei uma série de coordenadas desde o trajeto que havia percorrido entre o seu asteróide e Ceres e aquelas revelaram ser uma "zona proibida", onde nenhum asteróide poderia estar no seu curso natural ordinário. Uma vez que tinha absoluta certeza de que meus cálculos estavam corretos, compreendi que seu asteróide estivera no lugar em que esteve contra o curso natural ordinário.

      - Ei! O que é? - exclamou o almirante.

      - Quero dizer que um asteróide não tem que viajar forçosamente em sua órbita quando é bastante pequena. Pode ser equipado com motores hiperatômicos e mover-se para fora de sua órbita como uma espaçonave. De que outra forma pode explicar o fato de um asteróide achar-se dentro da zona proibida?

      Hansen falou, finalmente, em tom exaltado:

      - O fato de afirmar isto não faz com que seja assim. Não sei por que razão está agindo desta forma comigo, Starr. Está me submetendo a um teste? Trata-se de uma armadilha?

      - Nada de armadilha, Sr. Hansen - disse Lucky. - Eu voltei ao seu asteróide. Não pensei que você o levasse tão longe. Um asteróide que pode deslocar-se de um lugar para outro tem realmente suas vantagens. Independentemente da freqüência com que é detectado, das vezes que suas coordenadas são notadas e sua órbita calculada, os observadores e perseguidores podem sempre colocar-se na pista errada pela sua movimentação para fora da órbita. Mas, um asteróide em movimento corre certos riscos. Um astrônomo que o observasse casualmente ao telescópio em determinada ocasião poderia ser levado a perguntar-se por que um asteróide se desloca para fora da ecliptica, entrando na zona proibida. Ou, se o observar bem de perto, poderia perguntar-se por que um asteróide possui a chama de um exaustor numa de suas extremidades.

      - Pelo que me parece, você já se havia deslocado uma vez para se encontrar a meio caminho com a nave de Anton para que eu fosse deixado no seu asteróide. Depois daquilo fiquei com a certeza de que não iria muito longe uma segunda vez. Talvez até uma distância que me permitisse penetrar no agrupamento de asteróides mais próximo com fins de camuflagem. Por isso voltei e procurei entre os asteróides que ficavam mais próximos por um que tivesse tamanho e forma exatos. E acabei encontrando-o. Achei um asteróide que era, na verdade, uma base, uma usina e armazém ao mesmo tempo e sobre o mesmo ouvi o roncar de gigantescos motores hiperatômicos perfeitamente capazes de impulsioná-lo através do espaço. Penso que se tratava de mercadoria importada de Sírio.

      Hansen disse:

      - Mas não era meu asteróide.

      - Não era não? Mas encontrei Dingo nele. Ele gabou-se de que não precisava me seguir, alegando que sabia para onde eu estava me dirigindo. Daí concluí que esse mesmo e único asteróide tinha, numa extremidade, seu quartel-general e, na outra, a base dos piratas.

      - Existe outro testemunho que pode soar melhor aos seus ouvidos - disse Lucky. - Havia, na base pirata, um vale situado entre dois afloramentos de rocha, cheio de latas usadas.

      - Latas usadas! - gritou o almirante. - Mas, pelo amor de Deus, que tem isto a ver com o assunto, Starr?

      - Hansen lançava suas latas usadas dentro de um vale na própria rocha. Disse que não gostava que seu asteróide fosse seguido do seu próprio lixo. Realmente, é possível que não desejasse que o lixo circundasse seu asteróide e que o denunciasse. Quando estávamos deixando seu asteróide avistei o vale das latas. Tornei a vê-lo quando me aproximei da base dos piratas. Foi por esta razão que escolhi aquele asteróide para reconhecimento e nenhum outro. Olhe para este homem, almirante, e diga-me se estou ou não de posse da verdade.

      O rosto de Hansen contorcia-se de fúria: ele não era o mesmo homem. De seu rosto havia desaparecido todo vestígio de benevolência:

      - Muito bem. E daí? O que quer?

      - Quero que entre em contato com Ganimedes. Tenho certeza de que realizou entendimentos com eles anteriormente. Eles o reconhecerão. Diga-lhes que os asteróides estão se rendendo à Terra e que se juntarão a nós contra Sírio, se necessário for.

      Hansen deu uma risada:

      - Por que razão deveria eu agir desta maneira? Você me apanhou, mas não conseguiu os asteróides. Você não pode acabar totalmente com eles.

      - Podemos, sim, se capturarmos seu asteróide. Ele tem todos os registros, não ê?

      - Tente e o encontrará - disse Hansen, roucamente. - Tente localizá-lo numa floresta de asteróides. Você mesmo afirma que ele pode mudar de local.

      - Será fácil localizá-lo - disse Lucky. - Pelo seu vale de latas, evidentemente.

      - Continue. Examine todos os asteróides até encontrar o mencionado vale. Levará um milhão de anos.

      - Não, apenas um dia, mais ou menos. Quando saí da base pirata fiz uma parada de tempo suficiente para queimar o vale com um raio térmico. Derreti as latas e deixei-as solidificarem-se de novo, transformando-as num lençol de metal reluzente, anguloso e irregular. Não havia ar para corroê-las ou enferrujá-las. Por conseguinte, sua superfície permanece exatamente como os marcos revestidos de lâminas metálicas que se usam num duelo de pistolas propulsoras. Esse lençol capta os raios solares e envia reflexos brilhantes em forma de raios concentrados. A única coisa que o Observatório de Ceres precisa fazer é esquadrinhar os céus, à procura de um asteróide dez vezes mais brilhante do que deveria ser, considerando-se o seu tamanho. Muito antes de partir para interceptar Anton eu os enviei para procederem à busca.

      - É mentira.

      - É mesmo? Muito antes de chegar ao Sol recebi uma mensagem subetérica que incluía uma foto. Aqui está ela.

      E Lucky retirou-a debaixo de um mata-borrão que se achava sobre a mesa.

      - O ponto brilhante indicado pela seta é o seu asteróide.

      - Pensa que está me amedrontando?

      - Deveria. As naves do Conselho desceram nele.

      - O quê? - rosnou o almirante.

      - Não havia tempo a perder, senhor - disse Lucky. - Encontramos o quartel-general de Hansen no outro lado e descobrimos os túneis que o ligavam à base dos piratas. Tenho aqui alguns documentos subeterizados contendo as coordenadas de suas principais bases auxiliares, Hansen, e algumas fotos das próprias bases. Não é autêntica, Hansen?

      Hansen arriou. Sua boca se escancarou e soluços de desespero se filtraram por ela.

      Lucky disse:

      - Hansen, submeti-o a tudo a fim de convencê-lo de que você perdeu, de maneira definitiva e total. Não lhe resta mais nada senão sua vida. Não lhe prometo nada mas, se agir conforme minhas instruções, pode terminar com ela, pelo menos. Chame Ganimedes.

      Hansen fitou desesperadamente seus próprios dedos.

      O almirante falou perplexo e angustiado:

      - O Conselho acabou com os asteróides? Não consultaram o Almirantado?

      - Como assim, Hansen? - perguntou Lucky.

      - Que diferença faz agora? - perguntou Hansen. - Agora chamo Ganimedes.

 

      Conway, Henree e Bigman encontravam-se no espaço-porto para dar as boas-vindas a Lucky quando este retornou à Terra. Haviam jantado juntos na Sala de Vidro situada no último andar do Restaurante Planetário. As paredes da sala eram de vidros curvos. Por eles podiam apreciar as luzes brilhantes da cidade, que perdiam de intensidade nas planícies que ficavam lá embaixo.

      Henree observou:

      - Foi bom o Conselho ter penetrado nas bases dos piratas antes que passasse para a alçada da Frota. Uma ação militar não teria resolvido o assunto.

      Conway assentiu com um gesto de cabeça:

      - Tem razão. Uma ação militar teria deixado os asteróides livres para o próximo bando de piratas. A maioria daquelas pessoas não tinha conhecimento de que estava lutando ao lado de Sírio. Eram pessoas comuns em busca de uma vida melhor do que aquela que tinham experimentado. Acho que podemos convencer o governo a conceder anistia a todos, com exceção dos que efetivamente participaram dos ataques, e não foram muitos.

      - Efetivamente - disse Lucky - ajudando-os a continuar o desenvolvimento dos asteróides, financiando a expansão de suas fazendas e leveduras e cuidando do abastecimento de água, de ar e de força, estamos construindo uma defesa para o futuro. A melhor proteção contra os criminosos dos asteróides é uma comunidade pacífica e próspera nos asteróides. É nisto que repousa a paz.

      Bigman observou, belicosamente:

      - Não se iluda. Só haverá paz enquanto Sírio não se decidir a criar novas hostilidades.

      Lucky passou uma mão no rosto preocupado do homenzinho e empurrou-o travessamente:

      - Bigman, tenho a impressão de que está triste porque estivemos a um passo de uma bela guerra. O que há com você? Não é capaz de desfrutar de um pouco de descanso?

      Conway respondeu:

      - Sabe, Lucky, você devia ter nos contado mais coisas na ocasião.

      - Não teria gostado - respondeu Lucky. - Mas era necessário que lidasse sozinho com Hansen. Havia razões pessoais muito importantes.

      - Mas quando foi que você desconfiou dele pela primeira vez, Lucky? - Conway quis saber. – Que foi que o afastou? Foi o fato do asteróide ter entrado numa zona proibida?

      - Foi a gota no copo d'água - admitiu Lucky. - Depois de tê-lo conhecido durante uma hora, compreendi que ele não era um simples eremita. Dali em diante compreendi que era mais importante para mim do que qualquer outra pessoa na Galáxia.

      - Que tal se explicasse? - sugeriu Conway, afundando o garfo na última porção do bife e mastigou com muita satisfação.

      Lucky disse:

      - Hansen reconheceu-me como filho de Lawrence Starr. Afirmou que vira meu pai uma vez e devia ter sido mesmo, afinal de contas, membros do Conselho não granjeiam notoriedade e um encontro pessoal se faz necessário para explicar o fato de ele ser capaz de ver a semelhança em meu rosto. Contudo, havia dois estranhos aspectos para o reconhecimento. Ele percebeu a semelhança muito claramente, quando eu me enfureci. Foi ele quem disse. Mas, papai dificilmente se enfurecia, de acordo com o que vocês me disseram, tios Hector e Gus. "Risonho" é o termo que vocês geralmente usam quando se referem a ele. Quando chegou a Ceres, Hansen não reconheceu nenhum de vocês. Mesmo o fato de ouvir os seus nomes, para ele nada significou.

      - E o que há de errado nisto? - perguntou Henree.

      - Papai e vocês dois estavam sempre juntos. Como poderia Hansen ter conhecido papai e não reconhecer vocês dois, sobretudo numa ocasião em que ele estava enfurecido e sob condições que gravaram seu rosto tão firmemente na mente de Hansen, a ponto de ele ser capaz de me reconhecer, em virtude da semelhança, vinte e cinco anos depois? Só há uma explicação para isto. Meu pai separou-se de vocês dois somente na sua última viagem a Vênus e Hansen participara do massacre. Também não estivera ali como um tripulante comum. Tripulantes comuns não logram ficar suficientemente ricos a ponto de conseguirem montar um luxuoso asteróide e, depois do ataque do governo nos asteróides, passarem vinte e cinco anos na formação de uma nova e maior organização partindo do nada. Ele devia ter sido o capitão de uma espaçonave atacante. Na ocasião devia ter uns trinta anos de idade, suficiente para ser capitão.

      - Grande Galáxia! - exclamou Conway com toda franqueza.

      Bigman gritou, tomado de indignação:

      - E você nunca o abateu?

      - Como poderia eu? Estava às voltas com assuntos mais importantes do que resolver uma rixa pessoal. Ele matou os meus pais, mas eu tinha que ser amável com ele, apesar disso. Pelo menos por algum tempo.

      Lucky levou a xícara de café aos lábios e fez uma pausa para contemplar novamente a cidade. Em seguida disse:

      - Hansen passará o resto de seus dias na prisão de Mercúrio, o que representa realmente uma punição mais adequada do que uma morte rápida e indolor. E os incursores de Sírio abandonaram Ganimedes, de modo que haverá paz. Para mim isto é uma recompensa maior do que se desejasse a sua morte dez vezes. É um preito de gratidão melhor à memória de meus pais.

 

                                                                                            Isaac Asimov

 

 

                      

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