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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VINDIMA DE SANGUE / Alves Redol
VINDIMA DE SANGUE / Alves Redol

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Ciclo “Port-Wine”

VINDIMA DE SANGUE

 

 

  1. Fernando Pimentel gastava as últimas reservas da sua fortuna em ruínas, como um jogador desvairado entrega ao pano verde a posse duma jóia de família ou duma mulher desejada por outros. Sabia-se capaz - ou pensava-o - de se atirar do alto da Torre dos Clérigos, ou de ir aos jardins do Palácio de Cristal e meter, placidamente, uma bala nos miolos. Mas enquanto vivesse não admitia que o julgassem um falhado, a arrastar complacências de quem quer que fosse.

Por isso mesmo preparara uma festa de estadão, sem se poupar a despesas na ceia e nos vinhos, nos lumes e na farda da criadagem, reforçada ainda, para aquela emergência, com os servos dispensados pelos parentes de Barcelos. Precisava de deslumbrar os futuros sogros dos filhos, mais afeitos aos negócios da banca e dos tecidos do que ao convívio da gente de pergaminhos - sabia-os permeáveis à magia daqueles serões, e não desejava escusar-se a esse sacrifício, que constituía uma das únicas possibilidades de equilibrar a sua vida. A outra - ele nunca o dizia a ninguém - assentava na volta do rei, que não esqueceria, por certo, a sua lealdade para com a Coroa, numa altura em que muitos debandavam da causa, aderindo aos partidos da "canalha".

"Estava-se numa época de caracteres débeis", pensava o fidalgo com a sua ponta de amargura, embora o facto lhe empolasse o orgulho e lhe prometesse certas compensações no momento próprio.

  1. Amélia, a irmã, esmerara-se na organização da festa, que poria no seu justo lugar a hierarquia dos Pimentéis entre a primeira sociedade do Porto. Chamavam-lhe o "manual da etiqueta" e o "livro dos pergaminhos", havendo quem garantisse, por despeito evidente, que ficara solteira porque, depois de Alcácer Quibir, não sobejara família ilustre capaz de lhe dar o nome. Era uma desforra à sua língua sempre afiada contra desmandos de toda a ordem que via com desgosto - até lá em casa, dizia consigo muitas vezes: "D. Carlos e D. Constança abastardando o sangue com gente de negócios; D. Afonso arrastando um nome venerado pela lama dos becos..."

Mas dessem-lhe uma oportunidade daquelas, e logo D. Amélia olvidava azedumes e queixas, para se entregar, com exaltação, à tarefa de mostrar como se recebiam convidados e se "purificava" - era o termo que empregava com gulodice - a verdadeira sociedade. D. Fernando forçara-se a intervir na distribuição dos convites por uma forma decidida; e só a convencera com o argumento de que "para ser possível uma roda de gente capaz, como ela desejava, teria de se alargar aquela lição - a sua lição - a todos que com eles convivessem".

É claro que nada esquecera - nem mesmo os cartões às melhores famílias britânicas, contra as quais havia uma compreensiva hostilidade, depois da festa comemorativa do centenário da Feitoria, em que os ingleses tinham omitido certos nomes ilustres de que a cidade se orgulhava. O fidalgo insinuara à irmã que deveriam mos-trar*se alheios a essas tricas, dando um exemplo de magnífica sobranceria perante coisas tão mesquinhas. Aos que o podiam criticar D. Fernando dizia que "a oportunidade era soberana para dar um bom chá aos bifes"; aos restantes explicava que "não podia pactuar com pueris melindres de burgueses".

A verdade é que todos se ufanavam do convívio com os ingleses; e aquele serão era a melhor oportunidade para se estabelecerem tréguas. Esse facto, mais talvez do que nenhum outro, dava à festa uma excitação particular.

As raparigas, sempre tão recatadas em reuniões ao ar livre, tinham-se esmerado nos vestidos que Paris ditava pelos seus modelos - a liberalidade dos decotes, a riqueza dos tecidos e o espavento das jóias faziam esquecer a pacatez bisonha da cidade do trabalho, como a definiam, por exaltação, todos os oradores que em comícios e solenidades se lhe referiam. Nos primeiros momentos, como sempre, as moças olhavam-se mais do que falavam; riam muitas vezes, umas faziam-no para se observarem melhor ou esconderem algum embaraço. Certos despeitos já corriam os grupos: a Luizinha estava um pavor com aquelas aplicações douradas sobre veludo azul (e veludo naquele tempo! ); a Guimarães, por muito que fizesse, não deixava de ter o o mesmo nariz de cavalete que ela queria usar como um anzol - e os que lhe pegavam deixavam-lhe sempre o nariz; a filé parecia a montra de um joalheiro de mau gosto... E nem mesmo D. Constança escapava às insinuações, mais pelo filho do Azevedo do que por ela, sempre radiosa na sua simplicidade.

Os rapazes, por sua vez, começavam as conversas, ou acabavam-nas, com alusões marotas a certa actriz ladina e miúda, da companhia dos Rosais, que parecia disposta a confortar, nos seus braços roliços, quantos pretendentes endinheirados lhe aparecessem. Falava-se agora com insistência da paixoneta que soubera provocar áo Borges Alves, mais ausente do que nunca de reuniões mundanas,

porque o tempo não lhe chegava para se mostrar no teatro e acompanhar a família nas obrigações da sociedade. A filha estava arrumada (o casamento com D. Carlos Pimentel era já uma certeza) e à esposa, muito compreensiva com as suas leviandades, parecia bastar a ternura que dispensava ao irmão do futuro genro, o doidi-vanas do D. Afonso, ostensivamente alheado das moças que o requestavam, tanto pela sua beleza nórdica e dotes de pianista como pela fama das suas estúrdias escandalosas, de que se indignavam, por palavras, mas de que desejariam partilhar, se, na cidade coscuvilheira, um espirro dado em S. Bento não fosse falado, horas depois, na Boavista e em Cedofeita.

  1. Esmeralda Borges Alves tentava interessá-lo por um Concerto no Teatro S. João, a favor duma casa de caridade que protegia, e insinuava-lhe que esse primeiro contacto com o grande público poderia ser o começo do seu sonho de uma viagem pela Europa; pelo menos não lhe faltaria o estímulo da crítica, disso tinha ela a certeza, porque já abordara os directores dos jornais. (oMeireles, sempre gentil com o banco, garantira primeira página e fotografia a duas colunas;)

Embora se bichanasse daquele interesse de D. Esmeralda por D. Afonso, a verdade é que nada se passara entre eles, (bem ao contrário de certos afectos que por ali andavam muito recatados. D. Carlos é que não perdoava a presença constante da futura sogra junto do irmão, pois adivinhava alusões maldosas nos olhares e no cochichar de certos grupos. Luizinha achava-o preocupado e procurava distraí-lo com a sua tagarelice quase infantil, sempre pronta a uma gargalhada ou a um dito espirituoso, de que só o pai conhecia a ascendência - aquela costela folgazã do bisavô, estanqueiro de Famalicão, famoso por seus ditos e facécias em teatradas de amadores, o que lhe deixara na terra a alcunha de Foguete.

- Mas que tens, Carlos? - insistia Luizinha. - A festa está um mimo... E não fica bem que um filho do dono da casa mostre essa carranca de despedir visitas.

- Um pouco de fadiga, talvez...

- Ficas um tirano com essa expressão.

- Não estás a ser sincera - ripostou D. Carlos, sem desviar os olhos de Afonso.

- Se não te zangasses!...

Ele incitou-a com um sorriso distraído.

- Estás um pingo de tocha e vais obrigar-me a ser um palmito de flores roxas. É uma injustiça! - E dizia aquilo a fazer beicinho.

Carlos tentava submeter os seus impulsos; naquela noite até a presença da noiva lhe desagradava - via a sua imagem, uns anos mais tarde, na figura espartilhada de D. Esmeralda, imuito saliente de busto, como um pombo arrulhador, e ridícula no exagero do decote e mo disparatado dos arrebiques do vestido.

No seu canto predilecto ("a loja de alfaiate", como chamavam à corte de má-língua que organizava sempre onde aparecia), D. Amélia Pimentel esquivava-se aos seus comentários mais contundentes, para não comprometer a festa do irmão. Poucas famílias tinham faltado ao convite e não lhe ficara, por isso, muita reputação para tesourar. Mesmo assim, lá estava a roda do seu grupinho predilecto, onde todas desejavam entrar; a Isaurinha Mendanha é que continuava agressiva como sempre, depeni-cando nos ingleses, a quem não perdoara ainda a recusa de um convite para uma das festas na Feitoria.

- Olhem para a Roop... Com tamanho descaro, só o passaporte britânico lhe dá esta impunidade. Se fosse uma portuguesa... nem à porta a desejavam.

- Falta-lhe o apêndice... o Freitas - juntou D. Amélia para conduzir os remoques da Mendanha para melhor terreno.

- E pensar-se que esteve para te entrar na família...

- Não que eu o desejasse alguma vez, Isaurinha. Sabes bem que nunca foi do meu agrado semelhante casamento.

- A Constança bem merecia outra coisa...

E o seu lorgnon impenitente pôs-se a segui-la na mazurca que dançava com o noivo, um acanhado que se roçava pelos cantos, a fumar, quando a Pimentel o largava para cumprir os deveres de senhora da casa.

Junto ao piano, uma voz anunciou depois que a Clarinha da Torre iria cantar uma valsa. Já todos conheciam de cor aquela música que a sua vozita gemida, a desfazer-se em agudos, repetia sem cansaço por todos os serões da cidade. No grupo de D. Amélia houve gargalhadas reprimidas quando ela fez o seu comentário: "Deixem-na lá, coitadinha! O autor não se importa..."

Clarinha ainda simulava evasivas, esgrimindo os braços magros para os que a arrastavam até ao piano; aproveitando o bulício dos apoiados e das palmas, alguns ingleses escaparam-se para o terraço.

Mas aquelas festas não eram mais do que pretextos. Nos esconsos das águas-furtadas, um grupo de homens esperava alguém. Silenciosos, inquietos por qualquer ruído que lhes parecesse estranho, fumavam sem cessar.

- Será melhor apagar a luz - disse um deles.

- Ninguém desconfia - respondeu D. Fernando. De baixo chegava o som arrebatado do piano, que as

mãos de D. Afonso tangiam.

- Adivinha-se quem está a tocar - disse o mais velho dos assistentes, para afrouxar a tensão que via no rosto angustiado dos outros. - É um talento, o seu rapaz - juntou ainda, voltando-se para o dono da casa.

- Que, como todos os talentos artísticos, só dá embaraços à família - disse o Pimentel.

- Mas que a honram também...

  1. Fernando teve uma expressão de amarga incredulidade.

A campainha so ou por uma forma que lhes pareceu estranha, e todos ficaram de mãos crispadas e rostos parados, à espera que o tempo lhes respondesse. O mais velho sorriu, como se pudesse dar coragem aos companheiros. Pimentel abriu a porta e ficou à espera que, do fundo da escada, lhe gritassem a senha, para anunciar o emissário que esperavam, ou a outra que os deveria pôr a salvo, na hipótese de algum assalto da polícia.

- Ainda está dentro da hora - disse um altarrão magro que tasquinhava os cantos das unhas.

Ninguém lhe respondeu.

- D. João nunca falta - insistiu o outro.

- E se o prenderam? - interrogou o visconde do Portinho, já repeso de ter acedido ao convite para a reunião.

- Continuaremos! Continuaremos sempre! - replicou o velho com firmeza e orgulho. - Enquanto el-rei não voltar, nunca mais descansaremos! *

  1. Fernando chegara-se mais para o patamar e traía um certo nervosismo, que o silêncio de baixo lhe causava; depois aproximou-se do corrimão e indagou:

- É o homem dos doces?

Os outros conspiradores ficaram atentos à resposta; alguns esboçaram ainda um gesto para se levantarem, mas Pimentel acalmou-os com um sorriso e um aceno de cabeça. Pela "escada ouvia-se agora o ruído de boti-farras cardadas. Todos se ergueram para a saudação da praxe, enquanto D. Fernando, no patamar, estendia a mão para as boas-vindas especiais, na sua qualidade de dono da casa.

Dos salões do primeiro andar subiram risadas de raparigas.

- Viva o rei! - saudaram os da conspirata.

Um homem espadaúdo, de capa à espanhola traçada sobre o ombro, entrou, respondeu à saudação com um acento (triunfal e sentou-se logo no lugar que lhe reservavam, à cabeceira da mesa. Os seus bigodes fartos e descuidados lembravam os de um camponês que tivesse vindo à cidade; mas a vivacidade dos olhos e a decisão dos gestos contrastavam com o seu tipo rude.

- Não tenho tempo a perder, como calculam - disse com a sua voz áspera. - Dentro de poucas semanas voltaremos a entrar a fronteira com as nossas tropas. E desta vez será o fim...

- Se Deus quiser - sublinhou o visconde do Portinho a meia voz.

Os outros só sabiam sorrir, como se as palavras do chefe fossem uma imposição ao destino.

- A primeira incursão falhou porque o País ainda confiava neles e também porque nos descuidámos; mas agora todos estão cansados desta experiência ruinosa. Contamos com um apoio mais efectivo dos Espanhóis e os ensinamentos da outra incursão serviram-nos, para que desta vez o assalto seja definitivo.

- Assim o esperamos - disse o mais velho dos assistentes.

- A classe operária está descontente; a greve geral de Janeiro mostra-o duma maneira irrefutável. O assalto

à Casa Sindical é um espinho que eles não perdoarão aos políticos da República.

- Mas julgas que se vão pôr ao nosso lado? - perguntou D. Fernando.

- Ficarão, pelo menos, indiferentes. O que nos interessa é dividi-los, para depois agirmos melhor. O País pulveriza-se em partidos, e isso milita a nosso favor. Os rurais do Alentejo fazem movimentos...

- De que amanhã poderemos ser vítimas - lembrou D. Rodrigo, que até aí se mantivera calado.

- Saberemos reprimi-los, como merecem; agora deveremos louvámos e até subsidiados, se tanto for necessário. Nem uma só reserva deveremos enjeitar.

Calou-se por instantes, para abafar nos dedos um ataque de tosse; os outros olharam-se, para se consultarem acerca da exposição. Mas ninguém deu mostras de levantar mais objecções.

- Parte da finança está connosco, decididamente--continuou D. João - , e a outra pôs-se na expectativa, como sempre. Os grandes proprietários acompanham-nos...

- E as classes liberais? - perguntou o altarrão.

- E os pequenos comerciantes? - indagou o visconde do Portinho.

- Dispomos de muita gente entre eles. Aqui, no Norte, a crise do vinho levará toda a região a apoiar-nos. Convém insistir na propaganda de que os republicanos fazem o jogo dos vinicultores do Sul e que isso é a causa desta crise, "e da ruína da lavoura daqui. Deveremos fazer constar que os Ingleses compram menos vinho para coagir a República a ceder. De resto, nalguns casos, isso não anda longe da verdade. Mas é preciso insistir, enredar, insistir sempre...

- Esqueces os carbonários? - retorquiu o velho, que punha objecções mais para as saber resolvidas do que para se enlear em dúvidas.

- Seremos implacáveis para com esses! O País tem de se libertar de tal peste negra...

Depois disse, voltando-se para D. Rodrigo:

- Os grupos armados estão prontos?

- Mais do que nunca! - respondeu o outro com arrogância.

- Firmeza e decisão é o que se precisa. E venceremos!... - Baixou a voz, inclinando-se sobre a mesa. - Todos os que puderem ir para Espanha devem fazê-lo. Precisamos de muita gente para o primeiro embate; e se ele for fulminante, como esperamos e desejamos, o País pôr-se-á ao nosso lado sem mais hesitações.

- E quando? - perguntou um deles.

- Virão emissários. Por agora, nada mais lhes posso dizer. Insistam na campanha entre a lavoura e considerem-se desde já na frente de combate. Esta batalha tem de ser decisiva. O exército já se resolveu também...

- Os generais podem faltar...

- Não falta quem os faça mexer!

E ergueu-se, arrogante, cumprimentando com um gesto de mão.

 

Gonçalves sentia-se mudado e notava, com certa emoção, que a vida para ele já não se confinava às incertezas e vitórias das especulações; havia em si alguma coisa de

mais profundo que o deslumbrava, embora lhe provocasse uma inquietação e um mal-estar que o faziam sofrer nalguns momentos. Mas sabia também - e era isso que o empolgava - que tudo mudaria de um dia para o outro, quando vencesse, definitivamente, certas dúvidas que ainda o coagiam.

Percebia, com orgulho, que voltara ao entusiasmo dos seus dezoito anos, quando não era mais do que um simples praticante no escritório da Companhia Velha - uns recados para os outros e, à tarde, aquela tarefa ingrata de trinchar o papel de seda do copiador e apertar a prensa, tudo com uma conta que não desse borrões de tinta nem deixasse sumido o cursivo desenhado do Sr. Lopes. Recordava, vaidoso - o que andara até ali - , que não tinha nesse tempo outra ambição que não fosse a de se aprumar por detrás do balcão corrido, mostrando-se bem, para que todos o soubessem empregado em companhia tão reputada, cuja fama vinha do tempo de Pombal. Nunca namoriscara; não sentira, sequer, qualquer inclinação por uma das raparigas requestadas do seu tempo. Até que um dia, por uma vindima, o director principal da casa viera instalar-se, com a família, numa quinta do Loureiro.

"Ó Gonçalves!", dissera-lhe o guarda-livros, "vá levar ao Sr. Ataíde esta encomenda, que chegou no correio." Recebera a ordem como um vexame e partira a resmungar com aquela caminhada de subir aos céus, por uma estrada soalheira, sem companhia para a conversa. Entre-tivera-se depois, como um rapazola, a assobiar e a jogar pedras aos pássaros que voavam mais perto da sua pontaria, até que chegara ao portão para tocar a sineta; lá dentro levantara-se uma canzoada de meter medo a uma quadrilha de malfeitores.

Em seguida, porém, chegara aquela voz doce que se repetia agora aos seus ouvidos: "Segure os cães, Francisco; esses dois, porque os outros não mordem."

Batera-lhe o coração mais apressado no peito; e porquê?... Talvez porque logo adivinhasse tudo o que se passaria depois. Ela tinha um vestido branco de florinhas azuis, um chapéu largo de palha a cobrir-lhe os cabelos louros...

E essa invocação fazia-o sorrir - agora, sim, percebia o motivo que o levara a apaixonar-se por Miss Dora: também os seus cabelos eram louros, os mesmos olhos verdes, aquela pele rosada e as mãos longas que, um dia, se lhe haviam estendido para passarem uma vereda no caminho para a Régua. Esse mesmo caminho que depois fazia quase a correr, quando o guarda-livros lhe entregava o correio para assinar, se o Sr. Ataíde não vinha até às quatro horas com a sua aranha puxada por uma égua ruça. Sempre atento ao relógio, era ele quem lembrava as horas, numa solicitude que levara o director a aumentar-lhe o ordenado em mais cinco mil réis por mês. "Porque não lhe ocorrera a semelhança há mais tempo?!"

A menina gostava de passear com ele e retinha-o na quinta. "Ó Gonçalves, hoje apetece-me umas amoras daquelas..." Recordava tudo tão nitidamente como se, naquele instante, lhe estivesse a ouvir a voz; e logo pronto, sem mais embaraços, ele rompia pelo silvedo espesso, não se importando com os picos que lhe rasgavam as mãos e lhe escarpavam o casaco melhor - o pai, em casa, à noite, dera-lhe uma sarabanda de magoar o mais piedoso dos santos. E ele não tivera um rompante de indignação, nem um gesto desabrido, porque fora a menina quem lhe pedira as amoras.

Que semanas aquelas! Que alvoroço as idas para o escritório, as quatro horas da tarde e a abalada para o Loureiro!... Então ele ainda não tinha aqueles óculos de pitosga, o nariz tão adunco e a calva de frade. Era um rapazinho de dezoito anos, todo dado a leituras de Camilo; ela também gostava de ler (c) o seu autor preferido era o mesmo. "Você não gostaria de ser o Simão Botelho, Gonçalves?", perguntara-lhe um dia. Corara tanto, como se a Mariazinha da Luz o interrogasse acerca dos seus sonhos. E que sonhos tinha ele nesse tempo!

Horas e horas a embalar-se em projectos de fugir com ela e de lhe escrever longas cartas, mesmo que as copiasse do Amor de Perdição, a gozar o momento em que a reteria nos seus braços para a beijar... Ele, que só beijocara, um dia, a mulher que transportava lenha para a mãe cozinhar - uma feiazona, encardida, que se deixava beliscar na escada, quando ele vinha da borda do Douro, daquelas conversas malandras que o excitavam.

"Você não gostaria de ser o Simão Botelho, Gonçalves?" Não fora capaz de dizer uma palavra, quando trazia na cabeça longas orações para lhe segredar. E a Mariazinha da Luz insistira: "Pois eu gostava de ser a Teresa! De ter alguém que gostasse de mim daquela maneira..."

Vira-a baixar os olhos, riscando um coração, na terra, com a ponteira da sua sombrinha branca, e levantá-los depois, rasos de água, para fugir de junto dele e ir meter-se em casa. Que tempos esses! Como ele, que era um medricas, sempre cauteloso com as suas obrigações, não fosse perder o emprego que tanto o orgulhava, pudera esquecer tudo isso, para, no dia seguinte, quando ela lhe aparecera, a conduzir até ao mesmo local e lhe dizer, com as mãos agarradas, que a amava e seria capaz de fazer tudo o que ela lhe mandasse; e que, antes de lhe ouvir uma resposta, a puxara para os seus braços e ali a tivera tempo sem conta, afagando-lhe os cabelos louros, beijando-lhe a boca com ternura e sofreguidão, chorando depois, no seu regaço, aquela ânsia de esmagar o mundo com os dedos e fazer dele uma flor que ela trouxesse no chapéu...

A própria diferença de situações, aquele abismo convencional dos preconceitos, tudo isso nada fora para os seus projectos de adolescente exaltado. Os dois passaram-se depois num galope, e ela abalou sem dar notícias. Voltara mais tarde já casada; o marido era agora o seu director principal.

Ela perguntara-lhe ainda: "oGonçalves já casou?" Ele respondera-lhe, com amargura, acariciando-lhe o filho, que "não casaria nunca" e que "se a vida lhe recusara a mulher que escolhera, ele saberia recusar todas aquelas que a vida lhe quisesse oferecer". Nunca mais houvera uma alusão a esses dias distantes da adolescência; mas ele tinha a certeza de que a mulher do seu director gostaria de voltar também à quinta do Loureiro e ser ainda a Mariazinha da Luz que o praticante de escritório tivera nos braços - o marido fazia-lhe a vida negra com amantes e desprezava-a.

Eram todas estas lembranças que o empolgavam agora, levando-o dum golpe à adolescência que quase esquecera. Sabia mais ainda: que tinha uma conta no banco e que no seu armazém guardava vinhos para especular - e esses vinhos valiam bom dinheiro, mesmo num momento de crise. Procurava, contudo, ignorar estes argumentos, embora baseasse neles a sua mais firme certeza. Não podia mais com o vazio da sua vida, fria e estúpida, passada na companhia duma camponesa que o não entendia e não poderia nunca ter-lhe afecto - sempre o percebera, e agora mais do que nunca. Não estava disposto a sacrificar-se ainda pela ânsia de enriquecer, recalcando sentimentos que o empolgavam; achava que tinha o direito de ser feliz, de ter mulher à sua escolha, mesmo que essa mulher fosse uma artista de circo - e talvez mesmo por ser uma artista de circo que todos os homems da Régua desejaram e que nenhum tivera.

Às vezes pensava ainda que essa teimosia podia arruiná-lo ; mas logo se indignava com precauções dessa ordem. "Os negócios tinham de dar para uma nesga de felicidade; e, se não chegassem para tanto, acabaria." Gostava de se sentir generoso, ele, que era sempre um mil-cautelas. "A vida é uma bela coisa!", exclamava nos momentos mais arrebatados.

O circo estava em Penafiel, e Gonçalves precisava de uns dias de licença na Companhia. "E se ela não quisesse vir consigo?!" A incerteza amarfanhava-o; iria falar ao gerente logo que o visse. Não podia passar, um só dia que fosse, junto da alameda, por detrás da Câmara, sem ver as tendas do circo. Miss Dora saltava, de um trapézio para o outro, na sua imaginação; ouvia aqueles gritinhos que punham suspensos todos os que lhe seguiam o voo, como se ela fosse um pássaro branco. E a sua mão direita erguida - "Hop!" - , e logo a outra acompanhando aquele jeito da cabeça dourada - "Hop!" - , para descer depois a escada bamboleante, enquanto os homens aplaudiam, embevecidos, mais a sua beleza de mulher do que o trabalho da trapezista.

Sentia ciúmes das multidões que lhe gritavam o nome e pediam bis. "Para que tinha ele o dinheiro?", gritou dentro de si.

Era isso que repetia agora ao gerente quando ele lhe lembrava que essas mulheres eram sempre a ruína de quem se desvairava por elas.

- Para que tenho eu o dinheiro? - insistia numa alucinação.

- Além disso, o Gonçalves faz falta neste momento - respondia-lhe o outro para o segurar, na esperança de que os dias decorressem e ele voltasse à realidade.

- Faça de conta que estou doente!

E a sua voz tornara-se áspera. O gerente procurava uma plataforma - o Gonçalves conhecia, como ninguém, os negócios que fizera à sombra da Companhia, prejudicando os patrões.

- Mas, meu amigo, tenha calma!... Se fosse no Porto, dizia-lhe imediatamente que sim; mas repare que vivemos numa terra pacata, e isso vai ser um escândalo... O que dirá o nosso director quando souber?!...

O director lembrava-lhe a Mariazinha da Luz, e essa invocação transtornava-o.

- Não me vai falar no seu exemplo, com certeza. Toda a gente sabe que ele vexa a mulher com amantes... E que amantes!

- Gonçalves! - suplicou o outro, fazendo sinal para os empregados que poderiam ouvi-los.

- Se entender, pedirei a minha demissão da Companhia...

Só então o gerente compreendeu que nada mais podia fazer. E estendeu-lhe a mão, contristado, como se lhe desse os pêsames pela sua morte; Gonçalves apertou-lha com vigor e saiu do gabinete.

- Meus senhores...

E, num aceno, despediu-se dos companheiros de trabalho.

 

Fugia sempre que nem um animal acossado numa batida, tonto de pavor, disposto a romper o círculo onde a morte espreitava, e para além da qual estava o refúgio desejado das trevas e do silêncio. Ia ferido por aquela dor estranha e funda que lhe abrira um rasgão no peito, descia ao ventre e lhe escorria pelo corpo, em contracções de músculos e espasmos de nervos, sofrendo a sensação de que os dois tiros o haviam atingido e ele se arrastava, esvaindo-se em sangue, pelo caminho áspero da montanha. Perseguiam-no as sombras da noite, a luz doente dum luar trágico e o sentimento de culpa, este agarrado a si, como um corpo agonizante que se lhe pegasse à carne e à alma. E, por mais que fugisse, nem a luz e as sombras ficavam para trás, nem o peso dos pensamentos se lhe desprendia da imaginação.

Acabava de viver - vivia ainda - um daqueles pesadelos terríveis da juventude, quando mãos aduncas o empurravam do alto de um monte e ele queria gritar, sentindo-se impotente para o fazer, pela vertigem que a queda lhe provocava. Mas agora era mais terrível: desejara acabar naquela noite com todas as angústias que o avassalavam, destruindo dum golpe os ciúmes e os pavores que lhe frustravam a vida, e percebia que tudo, afinal, se tornara mais tenebroso e implacável, embora o outro estivesse morto e ninguém o pudesse acusar, a não ser ele, que não conseguia separar-se da ideia de que a morte lhe pertencia.

Por isso abalara, com a ansiedade de estar longe da aldeia, isolando-se de todos, para ficar dentro de si, a meditar, frente a frente com a realidade. Sabia, no fundo, que não havia motivos concretos para fugir; mas a força que o empurrava sempre era mais poderosa do que o raciocínio hesitante, ora liberto, ora carregado de culpas, e incapaz ainda de distinguir o ilusório do real, o que pensara e o que efectivamente fizera.

Deixassem-no só, lá em cima, e que ninguém lhe quisesse tomar o caminho, porque levava a espingarda consigo - dois cartuchos bem carregados de pólvora, prontos a disparar, e mais uns tantos na algibeira. Por momentos apetecia-lhe parar, meter a arma à cara e destruir aquela lua trágica que o encarava do céu e parecia apoucá-lo, na sua pequenez de bicho confundido com as sombras aterradoras do caminho.

Foi então que surgiu duns socalcos cimeiros da vinha das Carvalhas aquela restolhada apavorante.

- Quem está aí? - gritou, dando um salto para junto do muro. Como se pudesse desentorpecer o cérebro, correu os dedos pelo rosto que escaldava. Devia ter febre; a cabeça latejava sempre, como se fosse rebentar; sentia a boca seca, tremiam-lhe os membros e os olhos turvavam-se, na ansiedade de furarem as trevas.

-Quem está aí?!...

"Não, agora não fugia", pensou, para se dominar. E, num esforço supremo, trouxe a arma à cara, aperreando os músculos, enquanto a restolhada crescia sempre, mais e mais, como se a montanha estalasse e fosse abrir-se para o devorar.

- Nem mais um passo! - insistiu, alucinado.

O podengo surgiu do socalco, ladrou-lhe ainda lá de cima, e só o viu depois de cambolhada, a ganir, rojando-se a seus pés, talvez para lhos lamber, até ficar a sacudir-se em estertores que afrouxavam com os latidos, enquanto o ruído das detonações atroava os ouvidos de Francisco e enchia a concha ido céu, como se fosse atingir a Lua e rebentá-la.

Olhou as luzes da aldeia e correu mais ainda.

O instinto de conservação voltou a dominá-lo e quis chegar mais depressa. Tinha os sentidos quebrados e incapazes de o ajudarem a entender que só faltavam mais uns passos para atingir o picoto do monte, e que poderia, então, deitar-se à vontade no sítio que escolhera para repousar e reunir ideias.

"Mas que ideias?!..." Se as tinha baralhado, se um podengo se tornara num homem, se um homem estava morto lá em baixo - e se esse homem ia ali consigo, agarrado aos seus ombros, com as unhas fincadas na sua carne sangrenta. "E quem matara esse homem?!" Apetecia-lhe gritar lá do alto que não fora ele, que nada tinha com o crime, e logo a obsessão o calava e vencia. "Não foste como?! Então ficou-te com a Gracinda, quis tirar-te as terras, bateu-te naquela noite... E não foste tu que o mataste?!... Por isso todos se riram de ti..."

Já via o capelo do Alto das Monteiras: seriam mais uns passos. E não sentiu alegria com isso; antes ficou tomado de um pavor estranho. "Se não for capaz de lá chegar, morro aqui sozinho", pensou.

Num esforço maior, juntou um resto de energias e prosseguiu aos bordos, jogando o corpo de uma berma à outra do caminho, como se aquele balancear o ajudasse. E falava, repetindo certas interrogações que eram dele e das vozes do vento, babujando as palavras, deixando-as escorrer dos caritos da boca. Parecia inconsciente, porque já chegara ao cume da montanha e não o percebera ainda; deambulava no terreiro, de um lado para outro, com a espingarda apertada no peito. E só quando atingiu o outro lado do abismo, sobre o rio, teve a certeza de que vencera a distância. Não teve um gesto mais, nem uma palavra. As pernas vergaram-se-lhe, como se estivessem quebradas, enfeixando-lhe o corpo, enquanto os braços, derrancados, largavam a arma, para se deixarem cair inertes, mortos de fadiga. O contacto com a terra húmida deu-lhe um arrepio e uma nova ansiedade - encostou-lhe o rosto, como se nela fosse sepultar os seus pensamentos, primeiro pelo cansaço, logo depois numa alucinação, ora numa face ora noutra, sentindo as fontes latejarem-lhe e transmitirem à terra a febre que as abrasava.

Cerrou os olhos, julgando que iria dormir. Um esvai-mento delicioso subiu-lhe pelo corpo, dando-lhe o repouso que sempre pensara encontrar ali; os músculos tornaram-se-lhe lassos, os pensamentos aquietaram.

Uns instantes depois, porém, um estremecimento sacudiu-o. "Já teria conseguido dormir?!", perguntou-se. "Que barulho era aquele que vinha de lá de baixo?"

Pôs-se à escuta, apurando o ouvido, num desejo de interpretar o sussurro que se avantajava. "Talvez fosse o povo a procurá-lo... Mas porque o perseguiam?" Depois lembrou-se de que deveria ser o rio, a correr apressado por entre as fragas da serpente do seu caminho e a rumorejar queixas que nunca alguém soubera interpretar. "E se fosse um rio de sangue?", pensou. Correu as mãos inquietas pelas faces, arrepanhando a barba crescida, para depois as fincar na **pede, como se pudesse conter o tique do rosto; por fim levou-as aos olhos e tapou-os, apertando as têmporas. "Não, não podia ser um rio de sangue." E repetiu, em palavras, a mesma conclusão.

Voltaram-lhe os arrepios, enquanto um suor abundante lhe escorria pelos cabelos e pelas faces, como se a fadiga só agora o atingisse; rastejou até ao intervalo de duas fragas, encostando o rosto à terra para nela se confundir; alçou a cabeça para se orientar e os olhos repararam nas estrelas. "Porque havia estrelas naquela noite? Porque não acabara tudo como ele?!" Mas aquela ideia deu-lhe depois um sossego inesperado. "Estava ali sozinho defronte do céu. Os outros homens estavam lá em baixo..."

E a fadiga venceu-o.

"Este é que é o assassino?", perguntou o Silva Costa para o filho mais novo. O rapaz respondeu que sim e mostrou a cabeça do cão que tinha debaixo do braço.

"Porque foi que o mataste?", dissera-lhe o Silvinha, vestido com a toga de juiz. Francisco sentiu-se corar, ergueu os braços numa súplica e não respondeu, deixando-se cair novamente. À sua volta começaram aos gritos: "Fala! Fala!..."

Só então reparou que estava no meio do povo.

"Porque foi que o mataste?", insistiu a mesma voz. o filho pusera a cabeça do cão sobre a mesa do juiz e a cabeça transformara-se. Do cão só tinha as orelhas longas; tudo o mais era do António Francisco: olhos esbugalhados com raias de sangue, testa larga...

Alucinado com aquela presença, tentara fugir e não conseguira dar um passo - devia estar amarrado. Começou a contrair os músculos e a debater-se, até que os ferros cederam; mas o povo tornara-se numa muralha que lhe barrava a passagem.

"É melhor matá-lo", disse uma voz de velha. E todos os outros repetiram a mesma sentença, enquanto a Gracinda aparecia para segurar na cabeça que estava sobre a mesa. "Que queres fazer agora, Francisco?", perguntou-lhe a amante.

Desejava falar, precisava de se defender, mas estava mudo. Então começou a fazer gestos para se explicar e toda a gente começou a rir. O Silva Costa pegou num funil, dos que os enzoneiros usavam nas pulhas, e pediu silêncio; mas a cabeça do António Francisco respondeu que devia deixar o povo divertir-se à vontade. "Para os cobardes só há o riso, Sr. Silvinha. Ele queria matar-me, e afinal matou o cão." As gargalhadas rebentaram no meio do povo e todos riam. E os rostos vinham da multidão, cresciam para ele, fixavam os olhos nos seus e desapareciam depois; e logo vinha outro e outro... Os dois filhos, o pai, a Gracinda...

Acordou num sobressalto; e quando percebeu que tudo aquilo era um pesadelo cerrou os olhos novamente. As imagens do sonho ainda se repetiram por instantes, mas ele sabia que estava no Alto das Monteiras e ali ninguém o iria procurar. "E se fossem? Diria que nada tinha com a morte do afilhado. E se lhe encontrassem a espingarda descarregada?" Quis relacionar ideias quanto àquela interrogação e achou-a justa.

Tacteou à sua volta e não encontrou a arma; ficou aturdido. "Quem lha teria roubado?" Levantou-se num arremesso descontrolado e começou a procurá-la por toda a parte. O vento varava-o Com o seu gume afiado. O luar reapareceu, embora frouxo, e a sua luz meteu-lhe medo. Por um instante pensou esconder-se, mas lembrou-se de que tinha de encontrar a espingarda e que o luar o ajudaria. Achou-a, finalmente, no sítio em que estivera deitado. "Agora tinha de a deitar fora, para onde mais ninguém pudesse vê-la." Aproximou-se numa corrida dum dos extremos do pequeno planalto e encontrou-se perante a imensidade das montanhas. O rio corria lá em baixo. Lá estava a Roeda e depois o Pinhão... O abismo deu-lhe uma vertigem e sentiu-se capaz de se atirar com a espingarda. Aquela atracção sabia-lhe bem... "Acaba-se tudo por uma vez!" Mas sabia que pensava naquilo só por pensar, como se alguém pudesse aperceber-se da sua ideia e encontrar nela uma desculpa para as suas faltas. Teve uma vertigem e deu um salto para trás. "E a espingarda?!"

Ficou inerte por momentos e depois atirou-a para o abismo. Quis ainda ouvir-lhe a queda, mas o mugir do vento e o rumorejar do Douro não o deixaram. Teve um suspiro de alívio; quando se voltou para tomar o mesmo sítio onde estivera, sentiu-se outro homem. "Agora não havia provas contra ele!"

 

Mister Smith ia a caminho de Londres, depois da sua visita a Portugal e a Espanha, donde levava novos elementos para que se adoptasse uma política mais consentânea aos interesses britânicos na Península. A teia germânica lançava sempre novos fios, cada vez mais fortes, e havia que enfrentar o seu comprovado dinamismo, mantendo e alargando os núcleos de clientela tradicional, à custa de certas cedências, até que, com a derrota comercial da Alemanha, se voltasse à mão de ferro que impusera o poderio inglês. Havia, porém, uma parte da finança britânica interessada na indústria alemã - era a política do domínio continental, que a França também punha em risco, embora já tivesse passado o alarme angustioso que a chegada do francês Bleriot, num avião que atravessara a Mancha, trouxera no Verão de 1909. Não era sem emoção que Smith recordava esse dia, em que eles, Ingleses, eram forçados a reconhecer que o oceano já não era uma barreira e que a sua ilha fora invadida pelo ar. Nesse momento muita gente falara em Napoleão; na City tivera de se conceber um novo processo que facilitasse, sem grande risco, o alargamento de mercados para os Franceses. O mau tempo já passara por esse lado e o poderio britânico não deixava de caminhar com firmeza, em certas regiões. Dentro de pouco tempo, o tubo de condução do petróleo da Pérsia, o país da rosa e do vinho, iria chegar a Abada, seu porto de exportação. E dali ninguém mais arrancaria a Anglo-Persian.

Mas o que lhe interessava agora era o relatório que devia apresentar. "Como orientá-lo?", pensava. Embora a política de mercados se confundisse com a diplomacia - e ele sabia-o tão exactamente, ou melhor, do que os ministros de Sua Majestade - , outros poderes o submetiam, tanto como aos ministros. Tudo deveria ser rodeado de cautelas sem conta, não só para com os inimigos - e esses estavam em toda a parte com a sua espionagem comercial e política - , como também para com os grupos financeiros que o tinham ao seu serviço. Travava-se uma luta surda entre os que desejavam apoiar a Alemanha até às últimas consequências e os que entendiam jogar na cartada francesa e russa, sem esquecer os que, muito simplesmente, preferiam ficar na sombra, a enredar de um lado e de outro, aguardando que as premissas ganhassem forma. Mister Smith tinha de admitir toda esta gama de preferências e de interesses, sem deixar um único fio cortado - um fio por onde se pudesse ligar, logo que fosse necessário, todo um plano diferente duma nova linha económica.

Por isso mesmo, a loquacidade dos espanhóis que viajavam na mesma carruagem desde Salamanca não o contaminava. Isolara-se a um canto, com o seu boné de viagem carregado sobre os olhos, e fingia dormitar, sempre alerta com a sua pasta, que não largaria nunca, mesmo quando tivesse de ir -ao vagão-restaurante tomar as refeições.

o comboio ronceirão - "Chega cuando chega" - despedia-se da planície seca e triste de Castela-a-Velha para se aproximar dos prados verdes do país basco. E os companheiros pareciam sentir a diferença na paisagem, tornando-se ainda mais palradores; por causa do espada Frascuelo e da última tourada em Madriquase se insultavam e agrediam.

- Frascuelo es pamplina, cofio!

- Uste llama pamplina a una maravilla?! Caramba! Y tiene dos ojos!...

- Por Ia Virgen!

Mister Smith sorria, misterioso, sob a pala do seu boné de escocês, porque, enquanto os espanhóis discutiam, ele conhecia melhor os destinos da Espanha do que os próprios ministros espanhóis. Ele sabia por que as suas tropas desembarcaram, havia alguns meses, em Larache, como ina outra parte de Marrocos avançaram para Fez e Rabat os soldados franceses; como não desconhecia também como se aprovisionavam as tribos rifenhas de espingardas modernas.

A história era longa e ele conhecia-a em pormenor. Mister Smith falara em Lisboa de vinhos e de negócios coloniais, de pautas aduaneiras e de facilidades à navegação britânica; mas já passara, depois disso, às minas do Rio Tinto, em Espanha, a Tarragona, onde se falsificava o Port-Wine, pelo qual, em Lisboa, mostrara tanto interesse; e dera também a sua volta pelos altos-fornos e pelos centros metalúrgicos de Bilbau, onde os capitais ingleses dominavam, como nos estaleiros de Vigo e do Ferro!, em que a Vickers e a Armstronéestavam de parceria com John Brow, como também nas empresas Muto-rain, do Japão, como na Putiloff, da Rússia, como ainda na Schneider-Creusot, da França, ou na Krupoe Voss, da Alemanha. Sir Basil Zoaarofe era o deus de tudo aquilo, mas Mister Smith estivera também na África do Sul, a tratar de fornecimentos para a guerra **anglo-bur, e depois em Sampetersburgo "e em Tóquio antes da guerra russo-japonesa.

Havia novos rumores na península balcânica e ele não ignorava também nenhum dos factores que podiam levar a outra guerra nessa parte agitada do mundo. E viajava agora a caminho de Paris, onde teria de tratar, com certos jornais, da publicação de artigos sobre a eficácia das novas metralhadoras francesas.

Os espanhóis viam-no calado e taciturno, e cochichavam entre si "que os Ingleses são estúpidos e só têm dinheiro para viajar". Mister Smith achava que eles deviam continuar a zangar-se por causa do Frascuelo, com a condição de o deixarem conduzir os acontecimentos de Marrocos. O objectivo inglês era baralhar, apoiando umas vezes a Alemanha e outras a França, de maneira que nenhum deles se alargasse demasiado nos seus propósitos expansionistas - para isso lá estavam a esquadra e a indústria de Sua Majestade.

Para ter as mãos livres em Marrocos, a França cedera os seus direitos no Egipto à Inglaterra, a Tripolitânia à Itália e o Rife, uma parte do Ghare o porto de Tânger à Espanha. E ainda bem que o fizera, porque o Egipto valia bem tudo isso. Mas quando a Alemanha se insubordinou e o Kaiser desembarcou em Tânger, ou quando, mais recentemente, lhe deu para exigir concessões no Congo, em troca da supremacia gaulesa em Marrocos, a diplomacia britânica lá estava também a incitar os Alemães, só com a condição de eles não voltarem a outro desembarque no Agadir, porque aí ficavam demasiado perto dos altos interesses da Inglaterra - próximo das grandes linhas do Cabo e da América do Sul e ainda de Gibraltar. A França que entregasse parte do Congo ou o Congo inteiro; e, se o não fizesse, que arcasse sozinha com a guerra.

Mister Smith conhecia tão bem como os seus dedos esta comunicação do seu primeiro-ministro; e nada ignorava acerca da pressão exercida no mesmo sentido pelo embaixador russo em Paris: "A Rússia não poderá entrar numa guerra por causa do Congo." A França negociava o Congo e fazia-o habilmente - ainda bem. Mas do craque da Bolsa de Berlim, por essa altura, com as corridas desenfreadas aos bancos e às caixas de pequenos depósitos, como das falências sem conta entre o comércio germânico, também Mister Smith lhes conhecia os meandros.

E era um pobre diabo que ia ali a dormitar, no seu fato de trangalhadanças.

A carruagem estava quase vazia. Ficara, a um canto, uma espanhola velha, que passava as contas de um rosário e se benzia de cada vez que o comboio abalava de uma estação. Já não faltava muito para chegar a San Se-bastián, e depois viria Irun e, finalmente, a França, onde os socialistas, com Jaurès à frente, denunciavam no Parlamento tudo o que sabiam, "Algum dia se calarão, esses diabos!", pensava Mister Smith quando os recordava. E entendia também que na Europa já havia repúblicas de mais. "Vamos a ver o que sucede à portuguesa. Em Madrid garantiram-me que não estará lá por muitos meses!"

Certas coisas que noutro tempo eram insignificantes levavam agora meses de consultas, de viagens, de combinações sem par. "A Alemanha fez a sua unidade, e foi o diabo!", meditava Mister Smith. "É mais um entrave, um concorrente a considerar, embora esteja mais perto de nós pelo regime, pela raça e até pela religião. As suas exigências é que complicam tudo. Se faz outra como em Agadir, será a guerra... Sir Basil não se importará com isso... Mas os povos?... Nenhum deles a deseja... E é isso que preocupa os governos."

"Já passou o bom tempo em que passeávamos no mundo como nos aprouvia", resmungava Smith, deliciando-se com a paisagem basca. E os exemplos ocorriam-lhe: "Os Portugueses agora impõem-nos certas condições... Até os Portugueses! Quando noutras épocas o irlandês Allen fundava o Banco Comercial e emitia notas com desenhos seus gravados. A Alemanha acabara de se tornar uma nação e já fazia reivindicações coloniais; e aumentava a construção naval sem cessar, pondo em risco o nosso comércio e a nossa soberania nos mares. A América do Norte fora uma colónia britânica e já se tornara uma nação concorrente que um dia... sabia-se lá para onde é que o mundo caminhava?... A França concedia empréstimos a vários países e obrigava-os a comprometerem uma parte desse dinheiro em compras à sua indústria pesada de material ferroviário ou de armamento. Os metalurgistas ameaçavam os governos com a retirada do seu apoio. Fizeram assim os empréstimos ao Japão, à Bulgária, à Turquia e a Portugal... Como querem que se façam imposições, se andamos a badalar pelo mundo os benefícios de uma política liberal? E isso prejudica-nos, enquanto a Alemanha criou o Zolverein e os Estados Unidos o pan-americanismo. Mas também, se nos retraímos, que vão fazer os outros todos?!..."

Mister Smith continuava preocupado com o seu relatório.

Pegou num livro americano para se distrair, abriu uma página, ao acaso, e logo deu com o discurso que o senador Albert Beveridge fizera de resposta à saudação do século xx: "Este século será americano. O pensamento americano dominá-lo-á. O progresso americano dar-lhe-á orientação. As realizações americanas fá-lo-ão célebre.

A civilização nunca perderá o seu domínio sobre Xangai. A civilização nunca se afastará de Hong-Kong. As portas de Pequim nunca mais estarão fechadas aos métodos do homem moderno."

Smith franziu o sobrolho. "Esquecem-se de dizer que civilização é o mesmo que dizer América. Estes andam com os arranha-céus nos miolos."

Uma criança que no cais da estação de Irun brincava com um descarregador sorriu-lhe, quando a carruagem passou, e disse-lhe adeus. Então Smith lembrou-se da mulher e da filha, que o esperavam, atirou o livro para a banda e sorriu-se também; e só quando o cais desapareceu na curva é que deixou de acenar com o seu boné.

Precisava de se separar do passado, cindindo a vida em duas vidas diferentes: uma que acabasse para sempre naquela noite, outra que começasse agora com um homem que não tivesse lembranças nem afectos; mas a sombra vinha outra vez, sorrateira, colocar-se a seu lado, cingindo-se-lhe aos sentimentos, embora sem o apego obsessivo das últimas horas.

O outro estava morto - o marido da Gracinda estava morto.

E esta ideia não o satisfazia, como sempre julgara. Lembrou-se da mãe e desses dias distantes da sua morte. Se ela vivesse ainda, nada daquilo se teria passado. O pai insistira em ficar naquelas terras malditas e a mãe não pudera defendê-lo do pecado de querer matar outro homem; ele, que muitas vezes se deixara desfeitear só para esconder aquela raiva que tinha dentro de si e o avisava de que nunca mais seria capaz de a dominar, se a deixasse romper, quisera cometer um crime. O ódio viera-lhe ao de cima, descoberto como a pele ou os cabelos, quase fazendo dele um assassino. Quanto lutara para submeter essa raiva! Mas a verdade é que o outro estava morto. "Gostava de o ver..."

Afastou esse pensamento, que lhe pareceu perverso, e voltou a tentar reconstituir como tudo se passara. Soubera que eles iam abalar e procurara ouvi-la; e ela, sem mais rodeios, confirmara-lhe tudo. Empenhara-se por esquecê-la, quisera convencer-se de que poderia refazer a sua vida com a ausência dos dois, mas a atracção pela Gracinda fora superior a tudo. Metera-se em casa... E as pulhas tinham começado: "Ó compadre! Estás lá, compadre?!" A galhofa porque o outro lhe batera, a certeza de que lhe levava a amante, a penhora das terras... Cada coisa por si, e tudo junto, fizera-o pegar na espingarda e correr pelos quelhos para tirar uma vingança. "Mato-o que nem a um cão!... Mato-o, pois!" (Era um assassino para todos os efeitos. Quisera matar um homem e matara um cão. Ele bem dissera: "Mato-o que nem a um cão!") Ao atravessar a praça - não encontrara vivalma - , dois tiros soaram lá para os lados do Santo Cristo e tinham-no varado de incompreensão e de pavor. Depois um grito - um grito da Gracinda -- e mais dois tiros secos, dois tiros que pareciam tê-lo atingido também e feito desabar as montanhas. "Que se passara? Quem dera os tiros, se ele levava a espingarda nas suas mãos?"

Abriram-se portas de todos os lados; correu gente, que carpia e imprecava, que vinha até ele e fugia depois, que lhe fazia perguntas e logo lhe atirava com a acusação: "O Teimas desgraçou-se! Matou o António Brasileiro, com certeza." E no meio das correrias e dos gritos ele admitira uma hipótese que o tornara feliz: "Só podia ter sido a Gracinda." Era dele, afinal, que gostava, pensara nesse momento; deviam ter discutido e ela contara-lhe o que havia entre os dois. E antes que ele se pudesse vingar... "E se aquele grito, que era dela, fosse a sua despedida? Se o António a tivesse morto?..." Aturdido ainda, começara a correr para o Santo Cristo. Mas o enxurro de gente voltava já, num silêncio que era mais trágico do que os seus gritos. À frente (ele não podia recordar esse momento, sem se sentir desgraçado e canalha) vinha o Manuel Inverno, com os olhos rasos de lágrimas e a espingarda na mão; quando o vira, o velho torcera caminho e aproximara-se para lhe falar na sua voz mansa. "Também tu querias, Francisco?! Ele desfei-teou-te, mas já estás vingado. Deixa lá, que és novo, e tens ainda muito para viver!"

Não fora capaz de dar resposta nem de olhar o velho. Todo o povo da aldeia metera a caminho da Pesqueira para acompanhar o Manuel Inverno até à porta da cadeia. "E ele ficara ali com a espingarda de um cobarde..." Então sentira uma necessidade física de gritar e fora impotente para dizer uma palavra. Esses gritos retraídos tinham-se voltado para ele. "Cobardola! Deixaste o velho chegar primeiro!... A morte daquele homem pertencia-te..."

A justeza deste pensamento embaraçou-o.";

Devia ter acompanhado o Ti Manel à Pesqueira e contar tudo o que se passara, acontecimento por acontecimento. Dizer que quisera envenená-lo e que, por mais de uma vez, pensara em preparar-lhe uma espera ou bater-lhe à porta. E dar pormenores do que entendera fazer - saltar pelas traseiras, apanhá-los deitados, e ali mesmo, no quarto onde estivera com ela, cometer o crime. O administrador e o juiz não podiam dar-lhe a liberdade só porque não fora ele que fizera fogo.

"Mas a justiça é assim... Ele é que matou e ele é que vai pagar", pensou em seguida. "Que vou eu fazer à Pesqueira? Mostrar que sou um cobarde?!..."

Por fim, cansado de pensar, acabara por fazer o que antes receava. Pusera-se de pé, e logo o coruto dos outros montes se abrira à sua volta, naquela madrugada fria e cinzenta em que ele desejava cindir a sua vida, e tudo lhe recordava o homem que seria sempre até à morte.

Olhava os horizontes e nada sabia distinguir. Só reconhecia que era agora mais pequeno do que nunca naquela arena fantástica de tritões a tomar as distâncias. "Era ali que gostaria de ficar, se o deixassem..." Mas logo reparou num sobreiro descarnado que parecia verter sangue; e essa presença tornou-se-lhe insuportável, como se toda a noite voltasse a repetir-se a seus olhos e ele não pudesse abalar.

Uma reacção brusca fê-lo começar a descer a encosta. Quase correu de princípio, mas depois conteve-se; e foi caminhando a passo. Numa curva da estrada apareceu-lhe a aldeia - parecia morta, sem sinais de vida, e, contudo, estava ali todo o seu passado. "A mãe enforcada, o pai, os filhos... o outro... e ela."

Sabia que os tinha de deixar, mas precisava de os ver mais uma vez.

"Ao outro... e a ela... mais do que a ninguém."

Sentia-se quase feliz e chorava. As lágrimas saltavam-Lhe dos olhos, espontâneas, sem poder retê-las.

 

Os gemidos do sogro contundiam-lhe agora com os nervos, dando-lhe a impressão de que estava ali para não deixar o seu pensamento ir ao encontro duma promessa que lhe vinha do sangue, e só não se exprimia num arrebatamento porque a um gesto curto da sua mão estava o corpo frio do marido. Tinha vontade de lhe gritar que se calasse, que tudo o que se passara não fora mais do que a vontade de Deus, posto ali na sua cruz, entre duas velas, mais lívido e resignado do que nunca; preferia ouvi-lo nesses uivos desesperados que arrancavam lágrimas sinceras às carpideiras, amontoadas junto da porta do quarto, num friso de luto e de soluços, como espias que viessem observá-la para contarem à aldeia o seu desgosto de viúva.

E era obrigada a ficar presa entre aquelas paredes que lhe invocavam o passado, nas contradições duma duplicidade que era a sua amargura e a sua única esperança de agora. Queria ser sincera e chorar também, aos gritos, segurando a mão fria que nunca mais apertaria a sua. E tinha de se conter, porque o outro podia chegar e já sabia que o seu ciúme não era capaz de entender aquela dor. "Porque não aparecera ele?" Quando ouvira os tiros, ficara transida pela única hipótese que lhe ocorrera; e não sabia já se a angústia que experimentara viera dessa convicção, nascida desde que tinham batido à porta, ou se do vulto, a cambalear, que tombara depois naquele rouquejar convulsivo e estava agora sobre a cama, a lembrar-lhe ainda as suas últimas palavras daquela noite. "É só um mês, Gracinda, e abalaremos daqui. Enganei-me; julguei que só o dinheiro dava felicidade, mas precisamos de ter um filho. No Brasil, sim?... E nunca mais voltaremos a esta terra!"

A sua cabeça estava agora quieta e muda sobre a almofada - e para sempre. Naquela mesma almofada onde o outro descansara também a fadiga dos seus desvaira-mentos, ora terno como uma criança, ora impulsivo de ardor e de despeito, até lhe deixar vergões na carne e inchaços na boca. "E não viera ainda!" Desejara antes que não chegasse nunca e agora ansiava pelo seu aparecimento, como se ele pudesse tirá-la dali, libertando-a dos gemidos do sogro, dos olhares de quem entrava e, mais ainda, daquela ânsia de chorar o marido - que já não podia ser o corpo frio que estava à sua beira...

 

Era um prelúdio de Primavera aquele sol carinhoso que vinha esperá-lo ao caminho. À maneira que descia a encosta, num passo ligeiro que o declive lhe impunha, iam crescendo os pormenores dos socalcos cingidos ao talhe das montanhas e o vale do rio Torto despia-se do espesso mantéu cinzento que o cobria, esfarrapado pela lâmina de luz da manhã. A vida irrompia pujante e radiosa dos geios e das valeiras, dos pinheirais distantes e dos olivedos dispersos, numa atmosfera de esperanças que incitava à ressurreição daquele homem que ali passara, horas antes, apavorado do mundo e de si próprio. Pássaros chilreavam e lançavam-se dos braços das amendoeiras floridas para as figueiras bisonhas e atarracadas, como a quererem acordá-las também para mais uma alvorada de promessas. E da terra fresca subia um odor forte que enchia os corações de certeza.

Francisco não atentava naquelas minúcias, mas levava-as consigo.

Tomara a resolução de encarar a realidade, libertando-se do emaranhado de pensamentos que já começava a achar absurdo. Uma calma interior chegava-lhe com as lágrimas que o não envergonhavam e lhe sabiam bem, parecendo arrancar-lhe do cérebro as alucinações daquelas horas amargas. Pouco a pouco, tudo se lhe tornara simples e fácil - porque fugira? Num arremesso que julgou natural, agarrou no chapéu e atirou-o para dentro duma moita. Um pássaro saiu de lá, espantado, e disparou num voo ruidoso para um socalco mais baixo; e ficou-se a seguir o pássaro com interesse.

A aragem da manhã trazia-lhe à fronte uma nova acalmia; então ergueu mais a cabeça, como se chamasse para si toda a frescura carinhosa daquela Primavera precoce, e caminhou com vigor, jogando os braços. Preferiria marchar sem pensamentos - seria melhor; mas porque havia também de receá-los? "Era preciso que compreendessem agora que ele não queria fugir... Desejava vê-los, olhá-los bem (mas para quê?, perguntou ainda), e só depois partiria. E isso não era uma fuga. Olhar uma mulher e dizer-lhe, mesmo só com os olhos, que ela não merecia mais a sua afeição por tudo o que fizera, não era fugir." "

Pensava naqueles pormenores com sinceridade, embora no fundo de si, como uma ferida assolapada, sentisse a amargura da resolução que precisava de tomar. "Se não tivesse agarrado na espingarda, ou se pudesse esquecer que lhe pegara, tudo seria fácil." Logo, porém, se insurgiu contra o regresso dessa hipótese. "Não, aquela mulher nunca mais poderia pertencer-lhe. Era a primeira realidade de que tinha de se convencer, mesmo que fizesse loucuras, ainda que assaltasse a casa do Mal-Matado para lhe levar a filha. Devia compreender, houvesse o que houvesse, que por aquela mulher podia ser agora um assassino. Mais do que isso: que era de facto um assassino. Mas por que razão os pensamentos lhe tomavam sempre aquele rumo?", interrogava-se com desespero e ansiedade.

Todos os seus passos lhe pareciam espontâneos, sem premeditação, mas buscava o caminho que evitasse levá-lo à praça da aldeia - aí todas as recordações estavam vivas. Não sentia qualquer receio em se aproximar da casa de Gracinda, mas desejava chegar até lá sem encontros que o desviassem do propósito de ver os dois e resolver a sua vida, porque o futuro já não o apavorava. Só não queria que o alarmassem com alusões ao que se passara, agora que o pensamento estava concentrado num objectivo.

Ansiava encontrar-se dentro daquela casa - não sabia se para achar uma vingança, se para firmar o convencimento de que culpa alguma lhe cabia no crime. Ao mesmo tempo, porém, havia nele um desejo oculto de se considerar um assassino impune que fosse verificar agora, com os seus próprios olhos, a falta de provas para o acusarem.

O desaparecimento da arma ajudava-o a conceber essa ilusão, dando-lhe uma serenidade aparente.

Preferia não voltar a esse raciocínio já gasto; mas a verdade é que não o perturbava agora como antes. "Sim, porque não havia de pensar em tudo? Isso seria o melhor sinal de que já curara as suas feridas. Devia pensar nela e no Manuel Inverno sem remorsos. O velho devia ter chegado à Pesqueira para prestar contas à justiça, mas os juizes haviam de perceber que estava inocente. Tarde ou cedo... Mas inocente como, se matara um homem?!... Matar!..."

E ruminou na ideia. "Também ele matara um cão... E qual era o seu crime? Ocorreu-lhe depois que fora louvado na Pesqueira por causa de um lobo que trazia o povo alarmado e ele baleara em Ventozelo. Via novamente a mão do administrador a apertar a sua... Sim, era isso o que o velho devia dizer ao juiz: "Se um homem mata um lobo que assalta rebanhos, porque não há-de desfazer-se de quem lhe quer roubar o trabalho para toda a vida?!... Ou a mulher?..."

Por instantes confundia-se com o velho, e os argumentos de ambos juntavam-se, o destino dos dois unia-se num só, "Se um homem mata um lobo..." Aquele raciocínio empolgava-o. Não haveria justiça capaz de condenar um homem que afirmasse uma verdade tão certa. Sr. Doutor Juiz! Porque há-de um lobo ser menos do que um homem... que quer roubar a vida dum velho e de dois crianços?..."

Remoeu naquelas palavras: "Um velho e dois crianços!... oInverno e os netos, ou o seu pai e os filhos?!" Era mais uma identidade entre eles, um elemento concreto ¦de que as razões da morte não sofriam contestação. "Só era pena que fosse um homem", lamentou depois. "Um homem sempre é outra coisa!..." Insurgiu-se, contudo, por se sentir enredado em novas complicações. "Mas, se é um (homem, tem obrigação de perceber que os outros devem viver sem sobressaltos, não os forçando a entregar-lhe tudo o que fizeram durante uma vida inteira."

Evitava agora meter a Gracinda nesta teia, mas era ela quem o dominava sempre. E não o fazia por se saber traído; tinha a firme convicção de que nunca mais seria possível um contacto entre eles. "Por culpa dela – e era isso que o desesperava - tudo se perdia. O marido desaparecera... E nunca estivera tão vivo!"

A casa ficava perto. Depois da curva do quelho a aparecer à sua frente; já via a copa da oliveira, onde ameaçara enforcar-se quando ela andara a enganá-lo com promessas. "Como seria bom se nada daquilo se tivesse passado!"

Hesitou por instantes; olhou à sua volta e não viu ninguém. Nem uma folha parecia agitar-se no mundo. "E se a Gracinda, quando o visse, corresse para os seus braços e mostrasse a toda a gente que lhe pertencia?!" Ficou surpreendido com essa hipótese. Seria capaz de dizer que nada tinha com ela?! Poderia afastá-la de si e acusá-la?! "Foste tu que o mandaste matar... E agora?! E agora porque (c)horas?!"

Estava, de novo, desvairado. Os pensamentos chegavam-lhe insubmissos, num tropel de sentimentos confusos. "Se ele não é o teu marido nem o teu homem, e o velho está na cadeia, e a oliveira para eu me enforcar já não presta, porque dois pássaros foram lá fazer o ninho, porque choras agora? Eu não fui... oInverno também não. Não vês que não trago a espingarda? E que um homem, mesmo que traga balas nos olhos, não mata ninguém?!"

Se desse mais uns passos, ficaria à frente da casa onde os dois estavam. "Valeria a pena? Que ganhava em vê-los?... E se as suas mãos não tivessem forças para afastar a amante e a apertassem também? E a trouxessem para a rua? E a levassem para longe? Não, não podia ser, porque o outro iria entre eles, entre as mãos que se tocavam, entre as bocas, entre os corpos, entre as palavras, entre os pensamentos..."

A cabeça duma criança apareceu à esquina e Francisco recuou. O cachopo olhou-o, pasmado, fez uma careta de pavor e depois fugiu. "Pensariam que fora ele? Ouviria o rapaz alguma coisa a seu respeito? Agora, que viera até ali, não ia fugir!... E fugir para onde?! Se fosse com ela, o outro estaria sempre entre os dois... Entre as palavras e entre as bocas..." Instintivamente, foi andando em sentido oposto; mas, por cada passo que dava, a serenidade voltava-lhe. "Ele não ia lá para aceitar a Gracinda... Só desejava ver a mulher que nunca mais seria sua. Se corresse para ele, tanto melhor! Todos saberiam e estava vingado... Talvez nem precisasse de ver o outro; nunca vira um homem assassinado. Como seriam agora os seus olhos? Se os tivesse abertos, veria a mulher abraçá-lo... E isso seria a sua vingança. Mas para que preciso de me vingar?... Ninguém se vinga dum ohomem morto!"

E voltou, num arremesso de coragem.

Fez-se um silêncio duro entre os grupos que enxameavam o quelho quando Francisco apareceu e se encaminhou para a porta, de cabeça erguida e olhos fixos, de maxilares apertados e braços caídos ao longo do corpo, levemente puxados atrás, como se alguém o quisesse segurar pelas mãos. No rosto só o tique lhe marcava, de vez em quando, uma contracção brusca.

Os outros viam-no ziguezaguear os passos, e ele supunha que nunca fora capaz de marchar com tamanha firmeza. À sua volta, aqueles vultos negros que ele desejava ignorar e não distinguia com nitidez passavam de um lado para o outro - às vezes num rodopio que parecia erguê-los do solo e os fazia passar por sobre a sua cabeça; noutras correndo para ele, como se lhe quisessem atravancar a distância que ficava entre o seu corpo e o seu destino. Por cada passo que dava renascia-lhe no cérebro o tumulto de todos os choques vividos naquelas horas, num fragor que explodia o silêncio que ele atravessava.

Preferia poder dirigir-se às sombras, sacudindo-as para que o olhassem bem, e dizer-lhes ao que vinha, calmamente, com palavras exactas a que ninguém soubesse responder; e contar-lhes o que se passara, instante a instante, para que entendessem as razões dos seus pensamentos e dos seus propósitos - e de quem era a culpa. "De quem era a culpa?!" Gostaria depois que o julgassem ali mesmo, entre a porta, para além da qual o outro estava morto, e a oliveira onde ele se quisera enforcar. E, contudo, sentia-se incapaz de segurar o tumulto do seu cérebro esgotado se alguém lhe fizesse uma pergunta simples: "Onde vais?! Que queres?!..."

Percebia já que lhe era impossível realizar o que desejava - entrar naquela casa, enfrentar a Gracinda e dizer-lhe sem palavras, só pelo olhar, que abandonava a aldeia por sua culpa. E que nunca mais, mesmo que voltasse um dia...

A voz do Dr. Pimenta pô-lo perante a realidade, arrancando-lhe, dum só golpe, o que concebera. Estacou, desorientado, sem poder explicar a si próprio por que razão viera até ali. Olhou à volta, em movimentos bruscos, como se procurasse alguém entre os vultos que o rodeavam, embora naqueles gestos estivesse o seu desejo profundo de os afastar.

- Vou agora à Pesqueira para evitar a autópsia - disse o médico aos que estavam junto da porta, indo tomar as rédeas da égua, que um rapazito segurava.

A notícia excitou Francisco ainda mais. Sabia que era preciso dizer alguma coisa ou tomar uma atitude, mas o sentimento de culpa voltara e deixava-o apavorado, querendo forçá-lo a esconder-se dentro de si, como se pudesse furtar-se à presença dos outros.

Aquele círculo de gente oprimia-o.

iQue estariam a pensar? Que queriam fazer?..." E resolveu-se, numa decisão brusca. Avançou para o médico e, quando chegou junto dele, agarrou-lhe no braço com violência.

- Vai falar ao Inverno? - Não esperou a resposta. - Ele está inocente... O Sr. Doutor diga-lhe que está inocente...

O médico bateu-lhe no ombro, num jeito muito seu, e fez sinal ao Balsa para que se aproximasse.

- Já falaste a teu pai? - perguntou-lhe depois. Francisco negou com um movimento brusco de cabeça,

quis dizer mais alguma coisa, mas só conseguiu esgrimir com os braços.

- Ele esteve aí há pedaço à tua procura - disse ainda o médico quando saltou para a albarda. - Vai sossegá-do, anda!

"E a ele, quem lhe dava sossego?", pensou Francisco com ódio, embora a notícia lhe soubesse bem; mas queria mostrar-se indiferente ao carinho dos outros, como se precisasse de sentir quebradas todas as afectividades que o ligavam ao passado.

A égua partiu a passo, ferindo os rebos do quelho e deixando um silêncio mais pesado atrás de si. Francisco deu ainda alguns passos para a seguir, mas logo se voltou para a porta, dirigindo-se aos vultos que estavam nos degraus.

- Onde foi que ele caiu? - perguntou com arrogância.

"Porque fazia perguntas daquelas?", pensou ao mesmo tempo. A excitação, porém, era superior ao seu raciocínio.

- Onde foi?... Onde foi que ele caiu? - repetiu com mágoa.

Deixou ficar a interrogação entre ele e os outros por algum tempo.

- Já sei ! de tudo! --disse depois num sorriso amargo. - Foi ali...

E apontou as manchas de sangue, indo com o dedo até quase lhes tocar; mas um arrepio doloroso correu-lhe pelo braço e despenhou-se-lhe na cabeça, numa onda de pavor.

- Porque não limpam aquilo? - gritou, desvairado. O Mirão aproximou-se e agarrou-lhe no braço, para o acalmar.

- Largue-me! Não preciso que me agarrem... Não matei ninguém! E, mesmo que matasse, não tinham provas.

O outro apertou-o de encontro a si, querendo chamá-lo à realidade.

- Todos sabem...

- Todos julgam que sabem - interrompeu Francisco, desembaraçando-se do companheiro. - Um homem mata um olobo... porque não há-de fazer o mesmo a quem lhe quer roubar uma vida inteira?!... O trabalho duma vida inteira - disse numa voz sumida. "Mas para que falava naquilo?", pensou depois.

Não foi capaz, porém, de deixar incompleta a sua obsessão.

-E se lhe tiram a mulher?!...

- Ele não tirou a mulher a ninguém, Francisco.

- Mas podia ter tirado - respondeu com esforço. ¦ - Ninguém sabe a quem uma mulher pertence...

Quando reparou, de novo que tinha mais gente à sua volta, quis mostrar-se calmo. Deu o braço ao amigo e afastou-se com ele, baixando os olhos para ignorar a presença dos outros.

- Precisas de descanso, Francisco - disse o Mirão com ternura na voz.

- Estás enganado. Ele está morto e acabou-se tudo... Vou-me embora amanhã! Vou tarde; mais vale tarde do que nunca.

As palavras saíam-lhe às golfadas, como se a ferida que tinha mo coração vertesse daquele modo.

- O velho é que está na cadeia e pagará por todos. E ele fez aquilo por mim e por ti... Por todos. Até pela Gracinda, que nada merece... Ela merece menos do que uma bácora ou um lobo! E agora está lá dentro a chorar com o pai dele.

Aquela invocação comoveu-o. As lágrimas saltaram-lhe sinceras.

- Nunca me lembrei disso! Juro-te!...

Um grito angustioso veio da casa; Francisco escutou-o num estremecimento.

- Se tivesse ouvido este grito, nunca teria pensado em matá-lo... E pensei-o muitas vezes! - disse com amargura. - Faltou-me sempre a coragem! A morte dele pertencia-me e o velho atravessou-se no meu caminho...

Os seus dedos premiam o braço do outro com rancor, obrigando-o a parar e a olhá-lo de frente.

- Acabei por matar um cão... Um cão que era capaz de me lamber as botas. Não te dá vontade de rir?!...

O Mirão encolheu os ombros num suspiro.

- Pois a mim dá-me vontade de chorar... Vês como estou a chorar? - disse, levando a mão ao rosto, que percorreu com violência. - E não é medo! Agora não tenho medo de ninguém, a não ser de mim. - E apontando o peito: - Quebrou-se-me qualquer coisa aqui dentro...

As palavras empastavam-se na boca; o tique nervoso tornou-se mais frenético e todo o seu esforço se concentrou no desejo de subjugar a torrente de pensamentos que lhe cruzavam o cérebro.

Um grito de mulher destruiu, porém, aquele desejo de calma.

- Foi a Gracinda?!...

O outro teve um meneio de cabeça; Francisco sacudiu-o.

- Porque não dizes a verdade?!... É natural que seja dela... Tudo é natural! Até eu, que o quis matar, já fui capaz...

Naquele momento as lágrimas repugnaram-lhe e sentiu-se diminuído; esmagou-as com os dedos e encarou o amigo, para que ele visse que não chorava mais.

- Vês? Vês como se chora por nada?!... A Gracinda não está a chorar pelo marido... Como não há-de chorar por mim quando eu desaparecer... A mim ninguém me acompanhará como ao velho. - E num tom saudoso de voz: - Foi uma coisa bonita que vocês fizeram! Irem com ele até à porta da cadeia, como quem diz: vamos todos consigo! A Gracinda é que não foi... Ela não fará coisa nenhuma por ninguém... a não ser por ela.

Voltou-se para a porta, onde continuava o mesmo movimento de gente que entrava e saía, e os seus olhos tornaram-se duros. Agarrou, de novo, o braço do amigo e arrastou-o consigo por entre os grupos; o outro não lhe compreendia o propósito, mas tentava acalmá-lo, querendo desviá-lo para o quelho da praça.

- Vem lá dentro comigo! - disse num sussurro.

Empurrou os que lhe barravam a passagem, sem entender bem o que fazia. Só pensava em ver os dois e abalar em seguida, sentindo-se incapaz de suportar por mais tempo aquela situação absurda. No primeiro instante não conseguiu distinguir qualquer forma - as pessoas e as coisas pareciam fundidas na mesma sombra negra que lhe tapava os olhos; depois lembrou-se de que deixara a mancha de sangue atrás de si e largou o Mirão, pondo-se a caminhar sozinho.

Mulheres e crianças, sentadas pelo chão, levantaram o olhar quando passou. Grupos falavam em voz baixa, encostados às paredes e aos móveis. "Lá estava a cómoda com o retrato do outro e o espelho..." Deixava-se conduzir pelos gemidos que vinham do quarto; e não lhe ocorreu imediatamente que ele e o outro tinham possuído ali a mesma mulher. Meteu a cabeça por sobre os ombros das carpideiras que lhe tapavam a entrada do quarto viu o afilhado estendido na cama, com o rosto tapado. A luz das duas velas iluminava-lhe as mãos, colocadas em cruz sobre o peito. "Deviam estar frias... E a Gracinda?" Sem saber como, achou-se junto da cama; do outro lado, uns olhos fitavam-no e pareciam sorrir-lhe por entre as dobras do xale. "Era ela! Porque os não deixavam sós?!... Gostaria de lhe falar ou de se aproximar mais. Mas entre ambos estava o outro... Sim, ele estaria sempre entre os dois."

A cabeça rodopiava-lhe e tinha uma sensação de enjoo; no peito, o coração batia-lhe aos sacões, e uma dor funda, que se abria sempre, apossava-se do lado esquerdo, adormecendo-lhe o braço e os dedos frenéticos. Pensou ainda em ajoelhar-se e rezar - mas que iria rezar?!...

Voltou-se para a porta, num movimento instintivo de receio, e sentiu que todos aqueles olhos o recriminavam por ter entrado.. Então, rompeu com brutalidade o friso de carpideiras que choravam, procurando a luz da rua com ansiedade, como se as mãos frias que estavam cruzadas no peito do outro pudessem vir agarrá-lo. "Maldita!", disse entre dentes. "Porque não quis fugir quando eu lhe disse?!..."

E tinha desejos de correr e de chorar, de abrir os braços e de destruir o mundo.

 

O circo estava a fazer uns dias no Marco, depois duma permanência de dois meses em Penafiel.

Gonçalves sentara-se na primeira fila das cadeiras, no seu número predilecto, 08 - "tinha sorte com ele, pronto!" - , embora conhecesse de cor todos os trabalhos que se exibiam. "Ó Gonçalves, quando vais para domador de cobras?" Lembrou-se naquele momento do dito picaresco com que os más-línguas da Régua procuravam apoucá-lo; mas fazia-o agora com um sorriso de vitória, porque Miss Dora ia saltar, de um trapézio para o outro, pela última vez na sua vida. Só os dois sabiam - o palhaço italiano ia ficar fulo! Perdia naquela noite o número que enchia o circo de parvalhões que rodeavam a pista e a aplaudiam, de pé, quando ela vinha agradecer.

Pensara ficar lá fora, à espera; mas um receio qualquer apoderara-se dele, e acabara por entrar. Já se tinham exibido os saltadores e os cães amestrados, o homem que engolia doze espadas e descascava pregos com os dentes e a rapariguinha sardenta que fazia contorcio-nismo.

"Ela já sabia que ele vinha naquela noite para a levar. Devia estar nervosa!"

Apalpou o lado esquerdo do casaco e sentia o volume do dinheiro que trazia.

"As dificuldades que lhe levantavam! Na agência do banco - os malandros! - tinham-lhe recusado mais um desconto; resultado, por certo, duma conversa particular que o gerente provocara a propósito de Miss Dora. Eram as mesmas palavras do director da Companhia, como se ele não fosse um homem capaz de escolher o que lhe convinha. ("Essas coisas comprometem-no, Gonçalves...") Que tinham eles que se meter na sua vida?! Não dispunha, porventura, de valores que cobrissem à larga o empréstimo que solicitara? Patifes! Haviam de lhe pedir letras de favor ou conselhos para a compra de vinhos!"

No anfiteatro não cabia uma pessoa mais; uma multidão acabara por se arrumar de qualquer maneira, depois de três zaragatas que tinham metido a intervenção do cabo-de-ordens e uma cabeça rachada. A charanga, sobre o palanque da porta de entrada, tocava agora a música dos palhaços; e lá vinham eles, o rico e o pobre, este a dar corda a um despertador que metia dentro da algibeira de um colete incrível que lhe vinha abaixo dos joelhos. Os risos estalavam em todo o circo.

Gonçalves recordava-se da última conversa que tivera com ela. Preferia que Miss Dora não fosse tão sincera; mas a verdade é que mostrara tal correcção a pôr as suas condições que acabara por se comover; no fundo, ela tinha razão. Os homens - certos homens, claro! - mereciam isso e muito mais; e, depois, por causa de uns pagavam os outros. Vendera alguns vinhos, e pronto! Não precisara do banco nem do director - uns pulhas, todos eles, que haviam de se morder de inveja quando chegassem no comboio da noite.

- Você sabe, Juanito, que um homem, quando casa, tem cinco coisas? - perguntava o faz-tudo para o palhaço de vestido vermelho com lantejoulas.

- Cinco?! É muita coisa; não acredito!

- Não acredita?! Pois, então, Vossa Excelência é muito estúpido!

A geral desfazia-se em gargalhadas.

Gonçalves pensava em Miss Dora: "E quer que eu vá assim consigo?! Oh!, não, Gonçalves, você tem cara de muito volúvel... Os Portugueses são todos muito infiéis..."

As gargalhadas, ruidosas, desviavam-lhe a atenção. Os palhaços, depois de terem percorrido a arena a espancarem-se, resolveram continuar a conversa.

- Cinco coisas!... o amor...

E o palhaço pobre fechou toda a mão, deixando só o polegar à vista.

- A mulher... o "dinheiro... (e mostrava mais um dedo por palavra que dizia), o sossego... e os filhos...

E depois, num alarido, fazendo momices com a boca de zarcão:

- Cinco coisas, hã? Eu não te disse que Vossa Excelência era estúpido?!

Voltaram as pauladas, o alarido e, finalmente, o seguimento do diálogo.

- E fica sempre com essas cinco coisas? - perguntou o rico.

- Isso, é o ficas... Com o tempo vai-se embora o amor... (e o faz-tudo baixava o polegar), logo a seguir o dinheiro (e o dedo médio desaparecia também), e depois o sossego (e escondia o anelar).

E com o indicador e o mindinho espetados, o faz-tudo chegava-se para o outro e aproximava-lhe os dedos da testa.

- Ficam só a mulher e os filhos... Vê o que te espera, Juanito, quando você casar? Ficas só com duas coisas, hã?!

E logo que o público percebeu a alusão grosseira e voltou aos risos destemperados os dois palhaços desapareceram pelo fundo, depois de se perseguirem com pauladas à volta da pista. As palmas não cessavam e eles vieram ainda para agradecer, tropeçando um no outro.

Gonçalves voltou aos seus pensamentos: "Mas já lhe disse que terá tudo o que venha a precisar", insistira ele. "Irá viver para a minha casa na Régua; será a minha mulher..." "E depois?!", volvia Miss Dora. "Você, Gonçalves, está na idade perigosa. Os homens aos quarenta anos são terríveis!" "Mas, então, que devo fazer para lhe merecer confiança?", interrogara ele, ansioso. "Se não lhe parecesse mal..." E Miss Dora fizera uma expressão de pudor e de mimo. Ele garantira que não, que da parte dela nunca poderiam vir agravos. "Acha mal" - e ela acariciava-lhe as mãos - , "acha mal que lhe fale num dote... Um dote que será dos dois, quando eu tiver a certeza de que não pretende nem pensa mal de mim..." E começara depois a tratá-lo por tu, a oferecer-lhe, só a ele, aquele sorriso que no circo era para todos. Trazia-lhe ali os quatro contos... A partir dessa noite o palhaço italiano teria de arrancar da porta o cartaz colorido com o retrato dela no meio... E amanhã, pelas onze horas, iria rebentar a grande bomba. Miss Dora chegou com o Gonçalves! Com o Gonçalves?! Ai o grande gajo!... Haviam de partir os dentes. Ele nunca faltava qom o que prometia.

O chinês que tocava música com os copos acabara de sair. E agora já o tambor rufava e a multidão aplaudia aquele sinal conhecido de todos. o director, de casaca e luvas brancas na mão, postara-se à entrada da pista, anunciando na sua melhor voz: "E agora, respeitável público - MISS DORA!"

No seu mailloobranco, fresca e doce como aquela Primavera, ela apareceu, correndo por entre os criados e os palhaços, fez uma vénia à entrada do redondel e levou os dedos aos lábios, abrindo depois os braços para o público.

 

Von Schoen fora chamado a Essen, capital do Rur e verdadeira capital da Alemanha, donde Krupoe Voss, assistidos pelos seus peritos, determinavam a política germânica no mundo. Era dali que saía o dinheiro para subsidiar as várias ligas pan-germanistas que enxameavam o país, submetidas aos planos militares do Grande Estado-Maior Imperial, que o Kronprinz e o generalíssimo Moltke orientavam superiormente; era dali que partiam as ordens para a concessão de gratificações a generais, almirantes, ministros e jornalistas que fizessem a opinião pública dos seus países orientar-se no sentido de um rearmamento intensivo.

E a tensão internacional que era preciso manter, segundo acordo estabelecido por todos os fabricantes de armamento, que trocavam entre si capitais, matérias-pri-mas e tipos patenteados de novas armas, sofrera um golpe profundo com a resolução dada ao caso de Marrocos. O embaixador não se mostra diligente em avisar o Rur do caminho tomado pelas negociações, um apazi-guamento surgira na Europa e, nesse estado de espírito, afrouxara a compra de material de guerra.

Como um réu, Von Schoen ouvia as recriminações que lhe faziam, olhando, pela janela, as chaminés das fábricas do trusoque o colocara em Paris. Uma nuvem cinzenta de fumo cobria a cidade e o céu.

- Foi-me dito que o objectivo final da nossa política era um entendimento com a Grã-Bretanha, e depois, por intermédio desta, a amizade com a França - respondeu o embaixador. - Pensei que...

- Não tinha de inverter as posições. Falou-se em entendimento com a Grã-Bretanha, e só depois... E esse entendimento está ainda longe de se conseguir. Repare na figura que fizemos! Eles apanharam o Egipto e nós uma nesga insalubre do Congo. Temos de usar todos os meios para que nos cedam o quinhão colonial que nos compete de direito.

- Mas havia o perigo de um conflito armado...

- (Esse conflito não se dará, embora, a todos os instantes, pareça que ele pode rebentar. Estão, simplesmente, a rectificar-se os contornos da Europa e da África. Devia-nos ter avisado do que se passava... Se permitimos o ultimato da Itália à Turquia, a ocupação da Tripolitânia, a luta armada dos Balcãs, mesmo com risco duma guerra geral, não podíamos permitir o apaziguamento por causa de Marrocos, quando a Rússia e a Inglaterra não estavam dispostas a seguir a França num possível conflito connosco. Lembre-se de que durante muito tempo deveremos estar ligados ao Império Austro-Húngaro e que este é o inimigo da Rússia... E que a Rússia se alimenta dos empréstimos contraídos em França. Que todos se armem é o nosso objectivo!... E o seu também!

Von Schoen procurava o arrimo de qualquer dos presentes, olhando-os de soslaio.

- Devo levar agora alguns jornalistas a falarem do nosso rearmamento? - disse, por fim, quando se sentiu desacompanhado.

- Vamos votar uma lei que aumentará os nossos efectivos em vinte sete mil soldados, dois mil oficiais e sete mil oficiais inferiores - esclarecera o generalíssimo. - É necessário levar os Franceses a conhecerem isto rapidamente, para que aumentem também os seus efectivos. Esperamos que não tenha receio deste facto...

Moltke ergueu-se, dando a entender que o embaixador deveria sair.

A frieza da despedida fê-lo baixar a cabeça, num cumprimento firme e sacudido, voltando-se depois, com rapidez, para se dirigir à porta do gabinete.

- Inábil! - disse Krupopara os outros quando ficaram sós.

Durante alguns instantes, o silêncio permaneceu entre eles. Depois Moltke perguntou se estavam adiantados os fabricos das chapas para os barcos da esquadra.o

- Von Tirpitz insiste por um trabalho mais efectivo dos estaleiros. As informações chegadas de Londres mostram-nos que é isso o seu ponto fraco. O nosso rearmamento nesse sector aterroriza-os. Deveremos, portainto, insistir nele, até que se resolvam a um entendimento colonial.

- Será possível conseguirmos Angola?

- Não espero outra coisa... Certas camadas mantêm o país numa agitação permanente e é fácil mostrar que Portugal não tem capacidade para manter a hegemonia nos seus territórios ultramarinos.

- A agitação entre os indígenas caminha bem - esclareceu um coronel.

As sirenas das fábricas chamaram os operários dos turnos de tarde.

Durante alguns minutos, no gabinete de Krupp, em Essen, a conversa do seu estado-maior foi interrompida.

 

Nos primeiros dias de viuvez, em que lhe haviam imposto a companhia da sobrinha, a pretexto de não ficar só, Gracinda encontrara nessa vigilância uma maneira de passar as horas monótonas do seu luto. O hábito obrigava-a a ficar em casa durante um mês, pelo menos, e a artimanha da família do marido dera-lhe um prazer que de há muito não gozava - saber o que pretendiam e ter a certeza de que seria ela quem levava a melhor.

A rapariguita, bem amestrada pelos outros, tornara-se a sua sombra, não a deixando por um momento: levantava-se com ela, seguia-lhe os passos, procurava adivinhar-lhe as intenções. E não arrancava dali para um recado, mesmo com a promessa de uma mão-cheia daqueles bolos com carrapiços rosados que eram antes a sua perturbação. Gracinda divertia-se com um cerco tão estreito, procurando criar-lhes suspeitas quando vinham aos serões, passados quase sempre em palavras e silêncios, como uma matilha - pensava ela - que esperasse um gesto seu para a assaltar e desfazer. Não se falara mais nas partilhas, mas ela bem entendia os olhares que procuravam penetrar-lhe os pensamentos. Uma noite, o sogro abrira uma das gavetas da cómoda, certamente com o fito de verificar se tudo estava como antes.

- Que procura, pai? - o velho perturbara-se; ela sentira que os olhos lhe tinham sorrido.

- Lembrei-me do fato do António Francisco... O João precisa de um...

Ela sabia que procuravam o dinheiro; esse, porém, ninguém o arrancaria do sítio em que o escondera. "Seria o dinheiro para ela e para o Teimas... Haviam de gastá-lo com conta, de maneira a que nunca desconfiassem... Ele fazia bem em não aparecer ainda", pensava com prazer. O marido não deixara qualquer documento que a obrigasse, e até, por mais duma vez, na sua presença, dissuadira o pai e o irmão da fama que corria acerca do seu pecúlio. "Vessemecês julgam que a árvore das patacas é mesmo uma coisa de levantar a mão e pegar nas moedas para o saco?! Se lá as houve alguma vez, eu nunca as vi..." Essas mesmas palavras lhe serviriam agora quando eles lhe falassem. Percebia que o momento se aproximava - via-os inquietos nos lugares, de rostos sombrios, trocando olhares furtivos.

Duma vez, mal pudera dominar a curiosidade em saber do Francisco, já um pouco inquieta com a ausência de notícias. (Porque não mandava o Luís, por exemplo, com um recado qualquer? Uma palavra para lhe dizer que também ela desejava o momento de se poderem encontrar.)

O sogro parecera adivinhar-lhe a interrogação e, pouco depois, falara nele:

- O Teimas abalou da aldeia... Já sabias? - perguntou depois de a ver impassível. Gracinda achara que a notícia não lhe dizia respeito. Que tinha ela com o velho?

--Sabes que ele vinha com a espingarda pra matar

o meu filho?...

- Ele quem?...

Os outros ficaram embaraçados com a indiferença daquela pergunta.

- Quem havia de ser, Gracinda? - dissera a cunhada do seu canto, com o filho mais novo ao colo.

- o Francisco, mulher! - rouquejou o sogro, erguendo as mãos com rancor.

Um abalo brusco sacudiu-a; mas conseguiu ainda dominar-se, puxando o xale negro para o rosto, de maneira que os outros não lhe percebessem a ansiedade.

- Porque havia ele de querer matar o António? -ciciara, por fim, cortando o silêncio que se fizera à sua volta. "Bem os percebia...", pensara.

- Ora!... Porque o António lhe deu nos queixos. - ¦ Porque ele devia dinheiro ao meu filho - ¦ gritou

o velho.

"Mas porque fugira ele, agora, que o único obstáculo desaparecera?", interrogara-se com estranheza. Era preciso, porém, responder alguma coisa aos outros.

- Ele pagou tudo ao António---disse Gracinda num

sussurro.

- Pagou tudo como?! - volveu a cunhada, agitando a cabeça num arremesso destemperado.

- E a quem? - perguntou o velho, aproximando-se com os olhos míopes e aquela cara de sovina, quase sem boca e de queixada larga.

- Pagou ao seu filho - respondeu sem alterar a voz. - Foi ele mesmo que mo disse...

Por momentos, Gracinda teve a impressão de que os outros iriam correr para ela e sacudi-la ou esbofeteá-la. O irmão do marido ficara de braços enganchados à sua frente, como se esperasse uma ordem para lhe bater; o queixo tremelicava-lhe e tinha o olhar fixo como um animal raivoso.

- Ainda os queres defender! - gritara-lhe o velho num arranco. ¦¦¦"..

Gracinda deixou pender a cabeça sobre o lado esquerdo, numa atitude de resignação.

- Viram-no com a espingarda, a ele, ao Francisco... Vinha matar o meu rico filho, se o velho não aparece primeiro. E ainda foi capaz de entrar aqui nesta casa... Se eu soubesse, tinha-o esfaqueado aqui dentro!

Depois ficara de boca arrepanhada, como se o rancor a tivesse torcido e escancarado.

- Porque vinha, então, se já lhe tinha pago? - disse o outro homem, estendendo-lhe um dos punhos fechados.

Gracinda levantou os olhos calmos - só ela sabia como estava - e disse com doçura na voz:

- Porque havia ele de matar o António? Porque hão-de acreditar no que diz essa gente malvada?

"Ele ainda gostava dela, tinha agora a certeza", pensou num arrebatamento que lhe iluminou o rosto.

O cunhado abandonou a atitude hostil, deixando pender os braços, e foi encostar-se à parede. Só o velho prosseguia na sua raiva, caminhando da cama para a porta, enquanto a sobrinha se enrolava sobre 1 cobertor com receio do avô e do pai.

- ¦ Quis desfeitear o meu filho umas poucas de vezes, depois de tu lhe teres dado o dinheiro.

- Não lho deste? - gritou a cunhada, agitando o filho nos braços.

- Pra ganhar juros - respondeu Gracinda.

- Se nunca lho emprestasses, eles não teriam guerreado...

E, numa corrida bamboleante, o velho aproximou-se mais ainda, até ela lhe sentir o bafo quente da boca.

- Ainda dizes que eles pagaram?...

Quando Gracinda confirmou com a cabeça, o velho pareceu capaz de a estrangular com as mãos nervosas; e gritou mais, de braços abertos e olhos esbugalhados.

- Agora é que eu tenho a certeza do que disseram um dia: tu enganaste o meu filho com esse malvado...

- Pai! - disse Gracinda, tentando pôr-se de pé.

- Desmente lá, anda, se és capaz...

E apertava-lhe o braço, sacudia-a com violência, falava-lhe perto do rosto, como se fosse mordê-la.

A sobrinha começara a choramingar, escondendo a cabeça na travesseira; o irmão do marido e a mulher

fitavam-na de queixos cerrados, num ódio mudo que lhe fazia medo. "E se lhes entregasse o dinheiro?", pensou num momento. "E depois? Depois, quando ele voltasse?!..."

- Ó pai!... Porque não se vai embora? - disse Gracinda no meio das suas lágrimas.

A acusação perturbava-a; tinha receio de que os outros percebessem a insinceridade do seu choro e os três fossem capazes... "E se a matassem ali?!"

Então, num esforço supremo, conseguiu levantar-se, atirando o xale para o chão, de maneira que lhe vissem bem a cara e as lágrimas, e caminhou, decidida, ao encontro do velho.

- Se eu faltei ao respeito ao seu filho, que caia do céu um raio que me mate nesta hora!... Vossemecê sabe que Deus não dorme!

E ficou à frente deles, de cabeça levantada, mostrando-se bem, até que os viu baixar os olhos; só depois desceu os seus, incapaz de manter por mais tempo o desassombro daquela jura. E deixou-se cair aos pés da cama, mergulhando a cabeça entre as mãos.

- Nunca gostaram de mim, e agora arrasam-me... Chorava convulsivãmente, aos ganidos; torcia os dedos

num abalo nervoso, que a suspeita da atitude dos outros desencadeara.

o velho sentira-se abalado perante aquela dor e acabara por vir às boas.

- Deixa lá, Gracinda!...

- E o dinheiro?- - recalcara a cunhada, indiferente à exaltação da outra.

- Calas-te pra aí - gritara-lhe o marido, encaminhando-se para a porta. - Vamos embora!

Com o filho a carpir pelo sobressalto daquele acordar violento, a cunhada saiu também.

- Tu falas verdade?... Tu não m'enganas. Gracin-da? - disse ainda o velho. E puxou-lhe o rosto para o lado da luz, com as mãos trémulas.

Inconsciente, ela entendera que devia afastar a acusação que lhe faziam.

- Então o Francisco abalava, se fosse como dizem?! Porque havia ele de fugir agora?!

O sogro ficara transtornado com a incoerência das suas dúvidas.

- Tens razão - dissera por fim. E esgueirara-se a passo ligeiro, batendo com a porta da rua. O eco ficou a crescer no vazio da casa, enquanto no espírito de Gra-cinda gritavam os pensamentos que a martirizavam agora.

- Que fui eu dizer, Santo Deus?! Antes lhes desse o dinheiro!...

A sobrinha rastejou na cama para lhe estender a mãozita; Gracinda agarrou-lha, num arrebatamento, e encheu-a de beijos, correndo depois as faces por ela, num frenesi de quem queria apagar a certeza que provocara.

"Que fui eu dizer?!... Quando ele voltar, como vai a gente juntar-se?!... Como posso ter filhos dele?!..."

E chorou com sinceridade de olhos voltados para a luz.

 

Só agora António Teimas avaliara bem a falta do filho. Percebia, finalmente, que era pelo trabalho de Francisco que os socalcos e as videiras se mantinham. Ele já não tinha olhos - nem braços nem rins - para marcar a poda de vara e levá-la a bom termo, sem que o corpo da videira sofresse algum golpe de morte. E nem toda a gente sabia podar uma vinha.

O Chico já estava um homem no corpo - entrava tarde em casa, para se perder nas fontes com as raparigas ou andar nas tainas com outros da sua idade; mas faltava-lhe o calo de muitos granjeiros, e de outras tantas soalheiras no lombo, antes que se lhe pudesse confiar uma tarefa daquelas. O outro, o Luís, era ainda um criançola, que só nas surribas ou nas sulfatagens, nas empas ou nas vindimas, podia dar ajuda que se visse, apesar da sua decisão para o trabalho e de ser genioso como poucos rapazes da aldeia.

E era preciso não demorar a poda - poda em Março é vindima no regaço.

Durante noites e noites, sentado num banco na cozinha, depois de os netos se deitarem, António Teimas esperava, confiante, o regresso do filho. Pressentia então - tinha a certeza - que ele havia de voltar para casa, ouvindo os rogos do seu coração e da terra enjeitada. Jurava que o filho, embora longe, devia escutar o seu apelo, nas noites geladas que os ventos da Terra Fria e do Marão cruzavam sobre a aldeia. Onde estivesse, o vento havia de gemer como ali, e dir-lhe-ia, por certo, que viesse depressa - "a terra vai apodrecer, Francisco!..."

Cada ruído do exterior era um sobressalto e uma punhada - sim, lá chegava ele. E pensava no que teria de lhe ralhar antes de lhe dar o abraço que trazia desatado no corpo envelhecido. O ruído desfazia-se, porém, e só lhe ficava ansiedade. "Seria por minha causa?..."

E recordava toda a sua vida; e encontrava razões contra si.

"Tratei-o pior do que a um calhau dos meus socalcos. Julguei que era pra bem, pra ver se o enrijava... Mas não há dois homens iguais! Até que uma vez ele o acusara..."

E faltava-lhe a coragem para lembrar as suas palavras. Só um frio lhe corria no corpo quando adivinhava a sombra da mulher pendurada na corda: "Vamos embora, António! Os nossos meninos morrem aqui..." Salvara-se aquele filho, talvez para vingar a mãe e o irmão, numa presença atormentada e com ameaças nos olhos. E agora abalara sem uma palavra.

Arrastados e longos, os dias passavam, e cada um era maior que toda a sua vida - recordava-a e podia voltar atrás que ainda lhe sobejava tempo. Ali ficava sentado, como num banco de réu, a acusar-se e a defender-se, com um vago ponto de esperança a ajudá-lo. Cada ruído era um sobressalto e uma punhada - sim, lá chegava ele. Logo depois era a solidão e o desespero.

iDerrancavam-se-lhe mais as poucas energias; sentia, por vezes, uma gana de desaparecer também, sabia lá para onde! "Talvez para aquele pedaço de vinha do rio Torto, na encosta, abrindo ali a sua cova e deixando-se morrer..." E cerrava os olhos, quase só sombras, como se aquele torpor que lhe fazia esquecer os membros fosse já o mantéu da morte a cobri-lo. "E os dois rapazes?!... E a terra?!" Um acendalho de fé despertava-o então. "Ele iria voltar, com certeza! O seu Francisco podia lá esquecer que a terra apodrecia sem os seus braços!... Ele também havia de guardar algum amor a tudo aquilo! Ali nascera..." E sorria para o sítio onde adivinhava a porta, como se naquele instante ela se fosse abrir e, numa golfada de luz, o seu filho entrasse para lhe pedir a bênção. "A poda já começou? Vamos lá a isso!..."

Com o cansaço vinha-lhe a desilusão. Pensava e desolava-se - o filho pretendera sempre abalar.

Quando o Chico lhe veio dar conta de que muitos lavradores já tinham começado a poda, António Teimas desvairou. O corpo magro e alquebrado agitou-se, como se aqueles dias de expectativa o levassem à perda de tudo o que conseguira. Deu ordem para irem buscar dois homens à feira, ralhou num desatino, quis ele próprio verificar se as tesouras estavam em condições de fazer bom trabalho. "Ele, que soubera reagir contra todos na última vindima, sendo dos poucos que colhera vinho no Douro, ficara para ali, parado que nem um tolo, à espera dum arrenegado que se esquecera das suas obrigações... Não ia pôr-se que nem uma carpideira em óbito de gente rica, a esmoncar-se em lamentações, enquanto a terra se perdia. Tinha de ir para a frente, desse lá por onde desse; e se, ao cabo, perdesse tudo o que fizera, não o deitariam abaixo com os braços cruzados, à espera dum milagre."

Ouviu mexer no portão e veio até ao quinteiro, às apalpadelas. A saudação dos dois homens deu-lhos a conhecer pela voz, e sorriu-se da escolha.

- É pra podar, Ti António?

- Que outro trabalho queriam nesta altura? Escolherem-me as libras, talvez!...

"No fim da semana lá lhes tinha que fazer a féria e, apesar de se pôr ao seu lado, para que não fingissem, havia de ser enganado, por força. Aquele Francisco!..."

- E preço ? - perguntou.

Gostaria de ser um mãos largas; mas quando falava de dinheiro vinha-lhe sempre o mesmo retraimento:

-Olhem que eu não sou o dono da Quinta das Carvalhas nem os ingleses da Roeda, hã?! Os tempos vão maus!

Quer de empreitada? - indagou o Sandão.

- Eu também ajudo - disse o Chico, enquanto afagava um dos podengos que lhe lambia as mãos.

o velho relanceou o olhar quase apagado, levantando a cabeça, como se pudesse farejar a intenção dos outros.

- Anda muita gente na poda?

Era sempre um abelhudo nos granjeios dos outros, na mira de poder avaliar quem teria melhor colheita pela vindima.

- ¦ Poucos, Ti António. Isto vai um ano de desgrá-cia... A canalha anda para aí com o pêlo da fome - respondeu o Mirão, deixando as palavras caírem-lhe da boca.

Apetecia-lhe discutir com eles, para que fizessem o trabalho mais barato, mas a invocação das crianças arrefeceu-lhe o propósito.

- A gente não se há-de zangar... Começamos amanhã, ao pé do Santo Cristo! E não faltem, que já me deixei dormir mais do que a conta!

Ficou à espera que os passos se afastassem, trazendo para junto de si os dois netos; voltou depois para a porta, tacteou o banco com o arrocho a que se apoiava e sentou-se.

- Cheguem-se mais para a minha beira...

E estendeu a mão para lhes tocar; tirou o chapéu, passou os dedos trémulos pela cabeça e voltou a cobrir-se, querendo ganhar tempo para escolher as palavras.

- O vosso pai abalou... Espero que um dia volte; mas o mundo não pode parar, mesmo que a gente queira.

Cofiou o bigode espigado e trouxe os netos para junto dos seus olhos - só via sombras.

- A gente sabe criar os filhos, mas não sabe amá-los... Ficámos os três sozinhos e é preciso ir para diante. Tem de se ir sempre para diante!... Mesmo que não seja com os pés, ao menos com o coração. O pior é quando o coração não anda... Vocês percebem-me?! - disse ainda, depois dum silêncio.

As mãos dos dois rapazes apertaram-no também e o velho sorriu.

- Falta o meu braço e o outro... (até lhe custava repetir o nome), mas vocês são dois homens e, com o que lhes hei-de ensinar, as coisas têm de chegar ao fim.

Aquela afirmação exaltou-o.

- - É preciso que quando ele voltar nada tenha mudado.

- O avô bem podia escusar-se de meter dois homens - disse o Chico.

- A poda é mais difícil do que tudo - respondeu o velho. - Eu só depois de o teu pai nascer é que fui capaz de a fazer a modos... Dá tempo ao tempo!

Ia falar-lhes agora no que mais o preocupava, e sentia-se diminuído a seus olhos.

-A gente, agora, tem de poupar muito...

"Ele bem sabia comer menos quando era preciso; mas os dois eram ainda uns criianços que precisavam de se criar..."

- Quero ver se vos deixo este arranjinho assim como está... Se não puder acrescentar-lhe alguma coisa!

Depois pôs-se a rir, para dizer melhor o que pretendia.

- Sabem aquela cantiga da quinta do Pechincha?... Os rapazes sorriram também, acenando-lhe a cabeça, e repetiram-na:

Um feijão para trinta, um grão de arroz para quatro, uma sardinha "sarrenta" e. uma manta pra quarenta.

- É isso mesmo! A gente agora trabalha na quinta da Pechincha.

Um cão veio sentar-se a seus pés, como se também ele entendesse as suas palavras.

- O pão duro não apetece; não é, Luís?

- Ainda gosto mais, avô... Parece bolo!

Ele sabia já que a resposta não seria outra, mas gostou de a ouvir; e sentiu-se confortado para continuar.

- Os granjeios custam os olhos da cara e só tenho aí uns milréis. Coisa pouca! - "Tinha de falar assim, embora guardasse na arca o dinheiro suficiente até à vindima. Mas quem sabia o que o tempo dava?!..."

Foi então que o Chico se afastou num impulso, desaparecendo dentro de casa. O irmão também ficou surpreso com aquele repente, voltando a cabeça para o ver subir a escada a dois e dois.

- Que diabo lhe teria mordido? - perguntou o velho.

Luís sorriu e bateu com o indicador na testa; depois baixou a voz numa confidência:

- ¦ É um estabanado, o Chico. Se o visse na fonte com as raparigas! Anda sempre aos beliscos a uma e a outra... E agarra-as!

o velho acenava a cabeça, querendo segurar uma gargalhada.

- E elas deixam, neto?!

- Riem-se...

António Teimas lembrou-se da sua juventude com saudade.

O Chico voltou depois, mais vagaroso, sentando-se no poial da porta, a olhar o avô. Sentia-se que tinha também alguma coisa para dizer, mas que o embaraço o não deixava. o velho percebeu a mudança. "Madure-zas de rapaz", pensou na sua.

Ficaram os três em silêncio por algum tempo.

Um carro gemeu no quelho, de mistura com os brados do carreiro. A luz da tarde desfazia-se num pó vermelho que parecia vogar no espaço.

- O avô precisa de mim? - disse Chico Teimas, vencendo a sua timidez.

- Tens que fazer por aí, não?! - respondeu o velho a recordar as confidências do outro neto. - Vai lá, homem! Mas não te demores, que comemos cedo.

O rapaz passou por detrás do avô, fazendo sinal ao irmão para que se calasse, e colocou sobre a mesa um lenço que trouxera enrolado dentro da algibeira.

- Amanhã é dia de trabalho - disse ainda António Teimas, enquanto o neto se esgueirava pelo portão. Luís ficou intrigado com tudo aquilo; e ora olhava a mesa, ora se voltava para o avô, com vontade de lhe chamar a atenção. "Que queria dizer aquela brincadeira?" E a curiosidade não deixava de o mordiscar; levantou-se, rondou a mesa e não percebeu.

- Avô!

Logo se arrependeu de ter falado. O velho ficou à espera que continuasse e julgou que ele também queria sair:

- Podes ir, neto!

- Não é isso! - respondeu Luís, desanimado. "Que teria o lenço para o Chico lhe pedir segredo?,"

Voltou a sentar-se, batendo com os punhos nos joelhos, à espera que o avô fosse até à mesa e fizesse a descoberta por si; percebeu depois que ele já não tinha vista para enxergar o lenço e atirou um pontapé ao cão. o velho voltou-se, rápido, a tentar compreender o que se passara, e Luís explicou, arrependido, "que lhe dera uma pisadela sem querer". O podengo sumiu-se, a ganir, dentro do casinholo, para daí a momentos vir espreitá-los com um olhar meigo; e, mal o rapazola lhe assobiou, deu uma corrida e foi lamber-lhe as mãos.

Mesmo que o Chico soubesse e lhe atirasse um tabefe, era bem melhor do que a moinha daquela dúvida. O avô ¦dormitava - ou estaria a fingir, para ver, sozinho, o que o lenço continha?

- O Chico deixou ali uma coisa - disse por fim. - Está a ouvir?...

O velho acenou a cabeça; Luís levantou-se e hesitou novamente.

- Ali... (E apontava para a mesa-) Parece que é um lenço...

- E o que tem isso? Vai brincar até ao adro, anda! António Teimas queria ficar só, a pensar ainda que

o filho talvez voltasse naquela noite; mas o rapaz não cedia na sua.

- Ele fez-me sinal de segredo...

- Então, se é segredo, deixa.

"Se mal havia, já estava feito", pensou Luís para se convencer. E, vendo o avô de olhos fechados, escapou-se até à mesa, disposto a abrir as dobras do lenço, deixá-lo na mesma e abalar de seguida; mas o que viu transtornou-o e fê-lo dar um grito.

- É dinheiro!

E agarrou-se ao pescoço do velho, saltando a pés juntos.

- É o dinheiro do Chico!

Vendo o avô indeciso, sem nada lhe dizer, foi buscar o lenço e mostrou-lhe as moedas de prata:

- Só ele e eu é que sabíamos! Aquela jorna que ganhou nas Carvalhas guardou-a. E todo o dinheiro que lhe davam dalgum trabalho juntava-o também.

António Teimas parecia não entender ainda o significado da revelação, embora o neto lhe tivesse despejado as moedas nas mãos trémulas.

- Ele namora a Maria do Rosário e queria pôr-se bonito para ela, avô! Ia comprar umas calças de pano pra estrear na Senhora do Monte - prosseguia Luís na sua exuberância.

o velho estava aturdido de emoção. "Cheios de defeitos, às vezes, mas tinham todos o mesmo sangue. Devia aceitar aquele dinheiro? As calças de bombazina que os contrabandistas vendiam eram o grande luxo dos rapazes namoradeiros da aldeia desde o seu tempo. E era essa vaidade que o neto lhe deixava..."

E antes que o rapaz lhe percebesse a comoção, mandou-o ir brincar:

- Vai até ao adro, anda! Vai... -E empurrava-o com doçura. As palavras saíam-lhe com esforço, entarameladas na boca. - Deixa-me sozinho, neto. O Chico pediu-te segredo...

Mas Luís Teimas não se importava agora da vingança do irmão; e ficou no quinteiro a olhar o avô de longe, enquanto o velho se esforçava por conter aquele ardor delicioso que lhe subia das faces para os olhos.

- Estás aí, neto? - perguntou.

O rapazola calou-se, encolhendo-se mais junto do muro.

Quando se julgou só, o velho pôs-se a acariciar as moedas de prata e sentiu renascer uma nova força no coração.

"P'la Senhora do Monte, nem que eu venda esta casa, hás-de ter as tuas calças de pano... Daquelas douradinhas, de que a tua avó tanto gostava..."

E não se lembrou naquele momento da falta que o filho lhe fazia.

 

Era uma força poderosa que a esmagava e prendia ali, entre a ohostilidade da aldeia e da família, a morte do marido e a fuga do amante. Viúva duas vezes, naquele luto que a noite adensava mais quando vinha, lenta e pesada, com os ruídos misteriosos do silêncio a penetrarem, sorrateiros, pelas paredes espessas do cortelho, numa vaga negra que descia do céu e abraçava as montanhas, e caminhava para ela, em passos invisíveis, num cinismo medido que sentia no coração apertado.

Uma obsessão e uma dor física avantajavam-se, como se o pôr do Sol fechasse sobre ela a lousa pesada duma sepultura, levando-a a vaguear pelos dois compartimentos onde a sua vida se fazia agora na companhia da sobrinha.

Cerrara para sempre a porta do quarto, na ilusão de que ali fechara também a lembrança do passado, trazendo a cama para o compartimento de entrada. Mas os dois homens lá estavam - um com um fio de sangue na cabeça e o outro com o olhar espantado que lhe vira na manhã em que velava o marido. Conhecera-os ali mesmo, nos seus arrebatamentos e nas suas ternuras. "Gracin-da!... Se não vieres comigo, enforco-me na árvore que está defronte da porta... Vamos pra Vilariça! Vamos prò Brasil!..." E tinham abalado os dois - e nalguns momentos parecia-lhe que só o Francisco a abandonara, enquanto o outro lhe era um estranho. Lá estavam o retrato e o espelho, o sítio onde caíra numa noite de medo e o poial da porta. Poderia alguma vez passar por ali? Não iria o marido levantar-se?!...

E as recordações sangravam por toda a parte.

Revia, em detalhe, o que se passara entre eles desde o primeiro dia. E essa hora chegava-lhe da adolescência, quando o Francisco começara a namorar a irmã e ela se metia entre os seus joelhos, num prazer estranho de separar os namorados e de sentir um contacto que não entendia bem. Pusera trapos nos seios para os avantajar, tirara à Elvira o lenço amarelo de ramagens, que lhe parecia o mais bonito de todos... Conseguira dominar a sua aversão pela irmã, só para estar perto deles, na esperança de a ultrapassar junto de Francisco. Mentira à mãe, denunciando-os, quando pensara que eles se podiam encontrar de noite; e experimentara a certeza de os ouvir no quintal a cochichar... Como se lembrava do ódio que sentia quando alguém segredava junto de si e lhe não dava conta do segredo. Era o maior prazer da sua adolescência: ouvir e contar segredos. Tão grande como o da sua tristeza, que a punha isolada, para depois se arrebatar numa alegria que lhe dava vontades estranhas.

Se a mãe a mandava ir tomar conta da irmã, metia-se no quarto e chorava, afirmando-se cansada e doente. E daí a pouco levantava-se, apressada, e ia espreitá-los, amedrontada por uma sensação de vazio que a fazia chorar. Tentava imitar a irmã em tudo; e experimentava, noutras vezes, uma aversão por ela, tão funda e tão convicta que se queixava ao pai de maus tratos imaginários. Quando se riam, ela chorava - "Estão a fazer pouco de mim, as duas..." E chegara a odiá-las mais profundamente ainda, ao experimentar a sensação de que a mãe e ia Elvira a impediam de crescer e de se fazer uma mulher.

Rira-se mais tarde de tudo isso quando o seu afecto se voltara para o pai - tinha, então, dezasseis anos. A mãe morrera e ela chamara a si todos os cuidados da casa. A necessidade de amar e de ser amada ficara-lhe preenchida. Gostara de si como nunca; e um enorme desprezo nascera por aquele namoro que antes a fizera sofrer.

Apoucava Francisco, imitando-lhe o tique da face, e ria-se, tinha descaros à frente dele e da irmã, e corava depois, ao lembrar-se do pai, como se o tivesse traído.

Só agora lhe chegavam vivas e precisas essas lembranças, quando deixava a sobrinha adormecer e se sentava no sobrado, para fugir à repugnância que o contacto da cama lhe provocava.

"Foi do Francisco que sempre gostei!", pensava com exaltação. "Devia ter abalado quando ele quis... Mas irei logo que volte!"

Esquecia-se, então, dos receios que a visitavam. E ficava com a certeza de que ele voltaria numa noite. O vento mexia a porta e era a sua mão que batia: "Abre, Gra-cinda, sou eu! Não tenhas medo... Sim, sou eu!... Sabes que foi sempre de ti que gostei." Queria contar-lhe todos aqueles pormenores da adolescência - ele havia de se lembrar, por força, e saberia entender o seu amor de sempre. "Mas porque fugira?!" Tinha agora resposta pronta para aquela interrogação: o Francisco fora arranjar a sua vida, lá longe, para a vir buscar uma noite qualquer...

As sombras da tarde passaram a dar-lhe alegria. Ia terminar, em breve, o calvário daquela duplicidade amarga; deixaria de iludir os seus sentimentos e poderia, por fim, entregar-se à concretização da sua verdadeira vida, onde a exaltação coubesse e o amor não fosse um pecado que precisasse de esconder. Nem o marido nem o amante a puderam conhecer como ela era. E achava que os acontecimentos a tinham purificado, fazendo dela uma mulher nascida agora para uma existência sem inquietações nem falsidades.

"E a sobrinha? Se ele chegasse, como iria desembaraçar-se da rapariga?!" E passou a viver só para esse escolho, como se tudo o mais já estivesse resolvido.

 

"10.º", a casa humilde de Downing Street, conhecida em toda a Inglaterra pelo número da porta, não seria, talvez, o cérebro do Império, mas era, sem dúvida, donde emanavam as ordens para todo o mundo, agora que o "esplêndido isolamento" da época vitoriana não se podia manter por mais tempo. O primeiro-ministro, Lorde Asqukh, um homem de Yorkshire, senhor de uma arte portentosa em conduzir os colegas de governo, chamava-lhe a "casa mais incómoda do mundo". Sem quarto de banho, com divisões frias e de pouca luz, com adornos e colunas jónicas, era bem uma habitação daquele beco próprio duma cidade rural.

As trepadeiras tomavam-lhe a frente, uma pequena cancela separava-lhe o jardim da rua e na porta de entrada lá estava a mesma aldraba de cabeça de leão que o primeiro-ministro Walpole encontrara, em Setembro de 1735, quando o aventureiro Downing lha oferecera. Depois dessa data "N.º 10" seria uma casa incómoda, mas era a residência obrigatória do chefe do Governo britânico e, como tal, a habitação mais ambicionada por todos os políticos do Império de Sua Majestade.

Naquele dia os ministros chegavam para uma reunião importante; isolados, ou em grupos, abriam a cancela, subiam pela álea do pequeno jardim e puxavam acorrente, com que se levantava a tranqueta da porta do "Premier"; não havia mais protocolo nem polícias a defenderem-lhe o acesso.

Lorde Haldane, o jurista-filósofo, que conseguira captar a confiança dos militares e detinha a pasta da Guerra, já entrara com Morley e Sir Edward Grey, sempre com a sua triste serenidade e aquele ar ausente de puritano.

O Primeiro, Lorde Asquith, esperava-os na sala de reuniões, única divisória de aspecto agradável daquele casebre, a que presidia, sobre a chaminé, um retrato de Walpole, entre paredes cobertas de estantes.

Cada qual tomava o lugar respectivo à volta da longa mesa que atravancava a sala, e todos tinham o mesmo ar sisudo, quase só falando por monossílabos e gestos vagos. Burns, o primeiro homem que representava as classes trabalhadoras num ministério, chegara isolado. Asquitérecebera-o com aquela blandícia forense que a advocacia lhe ensinara, apesar de simpatizar pouco com os trabalhistas; mas os liberais precisavam dos 42 votos dos operários e de 84 dos irlandeses, para se manterem no poder, contra os conservadores.

E logo que Lloyd George chegou, com a sua gaforina rebelde, a porta da sala fechou-se, para o Governo deliberar.

O pangermanismo era um facto na política europeia e só havia dois processos para vencer esse perigo que iria abalar - e já abalava em muitos mercados - o domínio industrial e comercial da Grã-Bretanha: ou a guerra ou um entendimento ou aliança. Fritz Bley já definira em 1897 os propósitos do germanismo e fora bem explícito: "Nós somos o povo mais capaz em todos os domínios do saber e das belas-artes. Nós somos os melhores colonos, os melhores marinheiros e até mesmo os melhores comerciantes. E, contudo, não conseguimos obter a nossa parte na herança do mundo, porque não aprendemos na história as lições salutares que ela no* oferece..."

Isolada entre dois campos - a tríplice aliança da Alemanha, Áustria e Itália a um lado e a Rússia e a França a outro - , Lorde Salisbury mantivera relações mais amistosas com os Germânicos porque as intenções russas sobre o Afeganistão e a índia e a rivalidade colonial com a França, em África e no Oriente, afastavam naturalmente a Inglaterra destes dois países. Por outro lado, porém, havia a ideia do Kaiser de realizar uma Liga Continental em que entrariam as cinco grandes potências, excluindo-se exactamente a Inglaterra; para evitar este propósito alemão é que, em 1898, num jantar em casa do banqueiro Rothschild, Chamberlain sondara o embaixador em Londres para uma aliança entre os dois países, que se não chegara a assinar, mas de que resultara o tratado desse ano para a divisão das colónias portuguesas. A Alemanha queria fazer uma política independente, sem submissões à Inglaterra, e não mostrara entusiasmo pelo quinhão colonial que Salisbury lhe atirava, embora desejasse chegar às possessões portuguesas mais tarde. Essas viriam com o verdadeiro Império Germânico a que Bley se referia.

Era nestes pormenores que Lorde Haldane, desejoso de uma política realista, insistia tenazmente com a sua argumentação cerrada de jurista-filósofo.

"O perigo crescia a cada instante e a marinha alemã afectava o domínio dos mares, que eram a primeira fronteira que a Grã-Bretanha precisava de defender."

O gabinete escutava-o em silêncio.

- Veja-se o plano de FriedricéLang, que define os propósitos dessa monstruosa confederação, que pretende ser só económica, o que para nós já é um risco, mas acabará por ser política, quando esses povos estiverem seguros do apoio militar alemão e desejarem suprimir as despesas que os esmagam com os orçamentos militares.

- Se nós permitirmos - interveio, sereno, o ministro dos estrangeiros.

- (Mas isso será a guerra - respondeu Haldane. - Eles pretendem juntar no Oeste a Holanda, a Bélgica, o Luxemburgo, a Suíça e os departamentos do Norte da França, com Bolonha e Calais; a leste a Polónia russa, as províncias bálticas e os governos russos de Kovno, Vilna e Grodno; a sudoeste a Áustria-Hungria... E todos os povos dos Balcãs e ainda a Turquia.

- Isso não é mais do que um sonho de Guilherme II, um supercabotino que muda, nalguns dias, doze vezes de uniforme - disse Burns.

- Mas a verdade é que nos deixámos isolar e não temos capacidade para ocorrer a todas as obrigações que o futuro nos vai impor - insistiu o ministro da Guerra. - A nossa aliança com o Japão impedirá a partilha da China pela Rússia, Alemanha e França, ao mesmo tempo que nos dispensou de criarmos uma esquadra e bases navais para o Pacífico...

- O triunfo do Japão sobre a Rússia teve, porém, as piores repercussões na índia - disse o ministro mais jovem. - Os outros países europeus não nos perdoam o termos auxiliado a formar-se uma grande potência de "cor".

- Por isso mesmo teremos de negociar com o adversário mais perigoso - volveu Haldane. - Firmámos com a Rússia em 1907 um acordo por causa do petróleo da Pérsia...

- Auxiliando a autocracia czarista - disse Burns, que defendia a oposição do trabalhismo a essa política conciliadora.

- Sem o que estaríamos esmagados por uma guerra, em que não contaríamos com um único grande país europeu a nosso lado. É por isso que defendo o ponto de vista de desviarmos o poderio alemão para a África, fazendo com que reduzam as construções navais e deixem de constituir uma ameaça permanente no mar do Norte. Teremos de sacrificar as colónias de um país amigo que eles desejam. Mas desta vez não podemos, sequer, fazê-lo como em 1898. É preciso que demarquemos desde já toda a zona de influência alemã. Deveremos dar um exemplo claro e insofismável de boa-fé... Para tanto, se for preciso, irei eu próprio a Berlim.

Dias depois, Lorde Haldane chegava à capital alemã.

A cidade estava radiosa nas tílias em flor das avenidas, nos jardins surpreendentes de cor e perfume, onde as crianças brincavam e os velhos soldados de 1870invocavam glórias, nas ruas e praças pejadas de uma multidão alegre que o sol da Primavera trazia para os cafés, e onde se discutia com entusiasmo o grande plano de marinha do almirante Von Tirpitz.

Eles ignoravam que, naquele momento, um lorde inglês trazia na algibeira, para lhes oferecer, alguma coisa mais do que as flores e o sol da Primavera--trazia-lhes países exóticos, duma riqueza sem fim, que valiam mais do que toda a Europa.

 

Von Tirpitz, porém, achou nessa visita argumentos decisivos para demonstrar a sua tese de que uma marinha alemã, com dois terços da força inglesa, levaria a Inglaterra a fazer mais largas concessões - e não só em África...

E a missão Haldane fracassou.

Os arsenais de Kiel e de Wilhelmshafen trabalhavam a um ritmo acelerado, e muitos berlinenses entendiam que isso era também uma dádiva da Primavera em flor.

 

-Aguardente desta é que se precisa! - disse D. Carlos Pimentel, a sorrir, para o pai e o irmão, que estavam com ele sobre o cais de Gaia, enquanto os marinheiros rolavam a última pipa para o rabelo do arrais do Monte.

- Veremos se eles a bebem! - respondeu D. Fernando, apreensivo, embora todas as indicações recebidas da fronteira e de Espanha lhe dissessem que a empresa já estava ganha de antemão" D. Carlos era o seu filho predilecto - um vivo retrato do avô - e não podia esconder a emoção daquela partida; puxou-o para si, num abraço prolongado, e desejou-lhe a protecção de Deus.

- Claro que a hão-de beber toda! - retorquiu o filho com um nervosismo que a sua voz deixava adivinhar.

  1. Afonso permanecia agora um pouco afastado dos dois, confundido ainda em propor o plano que o trouxera até ali e que durante tantos dias tinha vivido nas suas inquietações; avançou depois, resoluto, para eles e, deitando-lhes os braços sobre os ombros, confidenciou:

- Eu acompanho o Carlos até à quinta; será melhor assim.

O pai olhou-o com estranheza.

- Posso ser preciso - confirmou. - Não desejo entrar em qualquer segredo, porque o não tenho merecido. Mas quando a família se arrisca, eu não devo, apesar de tudo, ficar aqui... nesta vida sem interesse.

- Por mais duma vez tem dito...

- ¦ Uma maneira orgulhosa de esconder a minha inutilidade - prosseguiu Afonso. - Preciso de ficar só comigo... Um tempo na quinta vai fazer-me bem.

De dentro do barco o arrais deu a carga como pronta; o feitor da proa já tomara o seu lugar, de vara em punho, enquanto os doze marinheiros se inclinavam sobre os remos, esperando ordens, com os olhos fitos na esteira do Douro.

- Diga à Lúisinha que parti inesperadamente...

  1. Fernando voltara-se agora para o filho mais velho, como se lhe custasse compreender ainda aquela inesperada transformação; mas, vendo-lhe o olhar firme, titubeou um obrigado comovido. E abraçaram-se sem mais palavras.

Um marinheiro desprendera a última amarra que segurava o rabelo à terra, e D. Afonso saltou-lhe para dentro, ficando ao lado do irmão, junto das apegadas, para cima das quais o arrais do Monte já subira para manejar a espadela.

- Deus os leve em bem, meus filhos! - disse o fidalgo, levantando o braço numa bênção.

A manhã ainda vinha longe. Os primeiros ruídos da cidade começavam a cair das abas dos montes para o rio. Os candeeiros da Ribeira e do Barredo estavam acesos e a mancha triste da sua luz parecia adensar mais as trevas.

Hirto sobre o cais, D. Fernando Pimentel viu o barco guinar para o meio do Douro, ouviu ainda os dois mugidos da corneta do rabelo que o feitor da proa soprara, para dar aviso à navegação, e encaminhou-se depois para os lados da ponte, a passo vagaroso.

Um guarda-fiscal aproximou-se.

- Nada de novo? - perguntou D. Fernando.

- Saiba Vossa Senhoria que não...

No rabelo do arrais do Monte, dois marinheiros içavam a vela, para aproveitarem um rabo de vento que a passagem duma colina deixara descobrir. O grande pano branco sacolejou na armação, em duas guinadas, e depois retesou-se, cobrindo o barco, enquanto alguns marinheiros seguravam as cordas e outros iam às varas, numa ajuda.

- Mais direito, arrais! Meta à lomba!... Aqui há fundo...

- Todos às varas logo que possam! - gritou o arrais. Num areal, as gaivotas dormitavam com as cabeças

entre as asas; barcos semaneiros aproximavam-se do Porto, ao impulso dos remos e da corrente, e trocavam saudações.

- É homem de confiança? - perguntou D. Afonso para o irmão.

- Acho que sim; era o companheiro do barão de Forrester.

Voltaram ao mesmo silêncio, ambos deslumbrados com aquela madrugada inédita. De vara fincada no ombro, um marinheiro passava por eles sobre a borda do barco, palmilhando-a de pés nus.

- Eh, barquinho que vais na minha mão, aí, vai, adiante!...

- Umba! - respondiam outros do lado oposto, na mesma corrida pela borda, sobre a qual pareciam deitados num equilíbrio absurdo.

- Vai tudo certo!

- Aí vai, avante, aí! Ando! Ando! - Pau e terra, barquinho! Vem ao meu peito, ca-rago!...

- No meu braço é que vai!... -respondia outro, numa compita que vencia a corrente impetuosa da baixa-mar.

Afonso Pimentel ia maravilhado com aquele espectáculo de força dos homens e de suavidade da natureza - os gritos bárbaros, as expressões dos rostos, os rompantes dos corpos atirados para a- frente, o chapinhar da espadela, as cambiantes de cor e de luz que os envolviam,

indecisas ainda, mas já anunciadas numa pincelada vermelha que tingia o céu e vinha cair, numa poça de sangue, sobre o rio de chumbo.

- (E nunca nenhum músico viu isto!

- Nunca nenhum o verá! - respondeu D. Carlos, preocupado com a sua missão.

Apareciam agora pequenas povoações, manchas de pinheirais e mais barcos em despique, que braços de mulheres conduziam com os remos. A manhã ia pintando pormenores nas colinas e nos baixios.

- Umba! Vais na minha mão, barquinho! Tiveram de colher a vela, porque a brisa corria ao contrário, depois daquela curva das margens, e o grande pendão branco só atrasava a viagem. De pé, nas apegadas, o arrais dava as suas ordens. O barco encostara à margem, por instantes; os marinheiros arregaçavam-se, punham-se em ceroulas e camisola, e depois saltavam fora com a sirga; dentro só ficaram o arrais e o filho, o feitor da proa, com uma vara de gancho, para levar o barco junto à margem, e outro homem, com um bicheiro para ver a fundura. O marinheiro da frente amarrara a sirga ao tronco e já se pusera a esticá-la, para a sentir bem presa.

- Vamos! - disse o arrais.

- Puxa certo! - gritou o homem da sirga.

E à uma todos se lançaram à corda, arrastando-se com ela pela margem, numa correria de alucinados, aos gritos e aos uivos, como uma matilha de animais perseguidos. Por momentos, depois, todos hesitavam; a sirga ficava pregada com eles num declive mais áspero ou numa sinuosidade da margem; então gemiam, imprecavam, arremetiam com novos esforços, uns voltados para o rio, deitando-se para trás com todo o peso do corpo, outros jogados para a frente.

- Eh, povo, que é da força?...

- Que leite a minha me deu, carago!

E num repente a corda parecia soltar-se dalguma mão gigante que a retivesse, para largar os marinheiros, de cambulhada com ela, pela margem fora, até que de novo emperrava, mais adiante, voltando as ameaças, os esforços inúteis, as quedas dos que fraquejavam e se mantinham largo tempo de joelhos, ora gritando em ameaças, ora uivando súplicas e que, por fim se erguiam, a cambalear pelo esforço, arrastados pelos mais possantes.

A margem, agora, escabrejava de fragas cujas formas se assemelhavam a esculturas modeladas pela mão de um artista desvairado.

Num sítio ou noutro toda a tripulação se descobria - e D. Afonso soubera que respeitavam as pedras que tinham nomes de arrais ali naufragados e que ficavam para sempre conhecidos dos barqueiros do Douro.

- Quanto tempo assim, arrais? - perguntara.

- Dez dias até à quinta! Só aí uns quatro bocados é que os bois podem fazer este serviço... O mais é tudo com o nosso braço...

A resposta perturbou-o. "Mas havia homens que **pas-e D. Afonso soubera que respeitavam as pedras que tinham não eram aqueles de quem toda gente desconhecia o nome?" Sentia-se novamente perdido num labirinto de ideias. Achava que deveria fazer alguma coisa de diferente... "Mas o quê?... Vir ali com armas para matar... E quem iam matar?!..."

Aquelas interrogações ficaram dentro de si até à noite, quando o rabelo atracou à margem, junto de um ponto que os homens já não tiveram forças para vencer naquela tirada. A ceia fez-se fora do barco e convidaram o arrais para comer com eles debaixo da chileira da ré, onde se estenderia o colchão para dormirem.

No grupo de marinheiros, um deles começara a dedilhar o violão, que todas as companhas traziam. D. Afonso aproximara-se da ré para reparar nas figuras que tinha pintadas: uma mulher de manto azul, de longos cabelos louros caídos à frente, engrinaldada de estrelas e com uma flor vermelha agarrada na mão, numa atitude de quem ia cheirá-la. A voz quente de um homem cantava.

A água que leva o Doiiiro... A água que leva o Doiiiro...

O irmão aproximara-se; D. Afonso começara a andar pela margem fora, como se quisesse dar-lhe a entender que gostaria de ficar só.

Não é para acomparaaari... Não é para acomparaaari...

Um mocho piou num sobreiro, por entre o zangarreio monótono da viola e o rumorejar das águas rebeldes da galeira.

- É nesta vida que está a felicidade - disse D. Carlos, tomando o braço do irmão.

- Que sabes tu disso?

-Vejo-o! Qualquer pessoa percebe...

- Só porque cantam?... Também eu toco, e quando o faço é quando me sinto menos feliz.

- Ora! Tu és um civilizado... E a civilização tira a alegria aos homens.

Afonso olhou o irmão com um sorriso de ironia.

- Repetes uma frase feita e nada mais. Andamos todos a repetir palavras de que não entendemos o sentido.

Carlos ficou silencioso; Afonso percebeu-lhe o amuo e pôs-lhe a mão no ombro.

- Esquecemos que a civilização foi feita pela necessidade dos homens... Fazes ideia do que seria a vida sem aquele barco que hoje nos parece primitivo? E que seríamos nós sem o primeiro utensílio de pedra do nosso antepassado das cavernas?

- Mais felizes...

- Pensa um pouco, Carlos. Repara nesta coisa insignificante que é o teu jantar. Se a Rita se demora mais uns minutos, lá em casa, para to servir, aí estás mal humorado, impaciente... Ora pensa que o nosso avô das cavernas andava dias e dias para obter um décimo daquilo que a Rita te põe hoje na mesa sem uma preocupação tua.

- Mas eu não me refiro, evidentemente, a essas ofertas da civilização.

- Tens de a aceitar no todo, Carlos. E ela nunca mais pára... Sabemos lá o que será a vida daqui por cinquenta anos!

- Cada vez pior...

- Para nós, talvez, que medimos o mundo à medida dos nossos interesses. Mas o homem pôs-se em movimento, e agora sabemos lá onde irá parar!

- À loucura...

- É possível! Aqui vamos nós com armas dentro deste barco... E armas para quê?!... Porque não ficámos em casa?! Porque não tentamos qualquer coisa de diferente?!... Sei lá o quê!... Pensarmos nestes homens...

- É também por eles que me vou bater, Afonso. Pela tradição que eles representam como nós... Contra esse tal progresso...

- Que os esmaga com o comboio de que nós hoje não prescindimos. Estarás disposto a voltar à diligência? Ou a considerares Lisboa, por exemplo, uma cidade doutro mundo distante?

Carlos ficara confundido. Afonso queria furtar-se à tentação de certas ideias que formara sobre os homens e a vida e ultimamente lhe pareciam absurdas e impróprias de si, mas o eco de certas dúvidas não o largava.

- Somos nós quem se aproveita do progresso, Carlos; e eles são as vítimas, as eternas vítimas...

- Esqueces que Deus fez assim os homens...

- Repudio inteiramente essa tua ideia de Deus.

- Não pode haver um deus para cada homem - retorquiu Carlos mais vivo.

- Tens razão. Mas do que podes ter a certeza é de que a tua concepção de Deus é diferente da daqueles marinheiros. ..

Carlos exaltara-se.

- E a tua?! - disse com hostilidade. - Será melhor não continuarmos...

- É também diferente! - respondeu Afonso com voz pausada, querendo dominar o desejo de levar a discussão mais longe. - É tão diferente que tenho receio dela e não me deixo arrastar até onde me poderia levar. - E depois de uma pausa, em que obrigou o irmão a sentar-se numa fraga: - Eu tenho de mudar de vida, e por isso aqui estou contigo. Não desejo pensar mais se esta atitude é justa ou injusta... Sei que não tenho coragem para fazer o que desejava e prefiro seguir o trilho dos outros. E o meu trilho é o vosso... O do pai, o do Borges Alves, o teu... A idade e as desilusões amadureceram-me. Este meu anarquismo era só intelectual, e isso nunca pode bastar a ninguém quando se vive num meio como o nosso...

Em baixo, à volta da fogueira, a marinhagem embalava-se ao som do violão e da voz que cantava.

- Tenho ainda reacções, mas não passam de estertores... Daqui por uns meses pensarei exactamente como tu... Talvez mesmo, no fundo, nunca tivesse pensado doutro modo. Mas gostava de discutir... de os ver indignados com as minhas irreverências. No fundo, importo-me tanto por esta gente como vocês...

- Nisso te enganas, Afonso. Nós podemos pela caridade tornar a vida destes homens mais amena.

- Sim, talvez... - Mas o pensamento levava-o por outros caminhos.

E começaram a descer a vereda. Aconchegando o gabão, Carlos encaminhou-se para junto da fogueira e dos homens. A noite arrefecera mais.

"Que é a caridade para nós?", pensava D. Afonso, deixando o irmão afastar-se. "A da D. Esmeralda é uma festa com tômbola... A do meu pai uma esmola... E a minha?... O mesmo que a dos outros; com mais ternura por enquanto e depois, com o tempo, a tômbola da D. Esmeralda e a esmola do pai..."

Aproximara-se da proa do rabelo para olhar novamente a figura pintada.

"Que pensarão estes marinheiros desta figura de mulher vestida de azul com "ma flor na mão? Não será o símbolo de qualquer coisa que gostariam de ter e não possuem?! E que será essa coisa?!..."

 

Precisava de afastar a sobrinha, sem olhar a meios, porque tinha a certeza de que Francisco voltaria para a levar consigo. "Naquela noite mesmo? Amanhã? Quem sabia se não vinha já a caminho?!..."

Ele viria, por força, e muito em breve, desvairado de ciúme e de amor, como naquelas noites em que a procurava para a prender nos braços, e esmagá-la contra o peito, numa ameaça que se fazia em ternuras. Essas recordações exultavam-na e arrebatavam-lhe o sangue, pondo-a fremente de ansiedade - eram as suas mãos que a percorriam, a boca que a abrasava, o contacto inteiro que a punha selvagem e carinhosa.

Nunca o homem lhe importara tanto!... Sentia que a ausência lhe aumentava o desejo de o ter a seu lado e de lhe pertencer, como naquela tarde em que o fora buscar a Ervedosa, e ele a agarrara ao sol, sobre as estevas agressivas. Percebia que tinham nascido um para o outro e que mais ninguém se podia opor àquela atracção que vinha da sua adolescência, se vinculara num baile de lagarada e ganhara direitos definitivos com a morte da irmã e do marido. Quando ele voltasse... Sabia que já não demorava... "Vamos embora?!" E não lhe perguntaria para onde iriam viver, porque só interessava estarem juntos - em qualquer lado eles seriam capazes de conquistar um lugar para o seu amor.

- Ouves, Carminda?

E sacudia a sobrinha, puxando-a para si, como se os ruídos da noite a apavorassem. A rapariguitâ-, estremunhada, sentava-se na cama, de ouvidos atentos, e procurava entender o que se passava lá fora.

- Escuta!... Parece que estão na cozinha... Agora!... Não ouves?

A imaginação da criança assimilava, de pronto, todas as sugestões que Gracinda lhe entregava - e ouvia o ranger das portas, os passos arrastados pela casa, os suspiros de alguém que penava por ali os seus pecados no mundo.

As histórias de fantasmas e de lobisomens, aprendidas nos serões de inverno, concretizavam-se agora, levando-a a esconder a cabeça debaixo da roupa e a cingir-se à tia, num instinto de defesa.

- Porque não acende a luz? - balbuciava a rapariga, transida de pavor.

Gracinda deixava-a sem resposta e pensava no amante.

- Eles fogem da luz, tia! Disse a Angélica do Balsa, que é entendida.

- Tenho medo! - respondia Gracinda. - Ontem, quando abri a porta, a mão duma pessoa bateu-me na cara... E estava fria...

A sobrinha encolhia-se mais, sentia também aqueles dedos gelados a arrepiarem-lhe o corpo, e abafava os soluços, com o lençol metido na boca, como se receasse chamar a alma penada para mais perto de si.

E os passos cresciam no silêncio, trazidos pelo vento da noite que penetrava no telhado e nas frinchas do portal.

Gracinda excitava-se também com as invocações que fantasiava, e só conseguia dormir, pela madrugada, quando a fadiga a vencia.

Todas as quintas-feiras o Dr. Caldas vinha de Al-piarça a Lisboa, tomando o comboio da tarde em Santarém, para se intoxicar nas intrigas da política, segundo dizia em confidência, e para matar saudades dos amigos e do cavaco. Eminência parda do seu partido, mostrara-se na primeira fila durante as jornadas do 5 de Outubro, para depois se remeter a um aparente recato quando vira

os republicanos divididos em facções que se guerreavam entre si; deste modo movia melhor as suas influências, intervindo na nomeação de diplomatas e de ministros, sugerindo reformas e batendo-se por elas com o denodo e a decisão que sempre estiveram no carácter da sua família - houvesse que suprimir um criado que olhara para muito alto ou que obter qualquer benesse para a sua casa agrícola, onde havia terras na Golegã para entregar de fanga, olivedos e vinhas da Golegã a Almeirim e coudelaria de cavalos famosos na Península.

Meão de figura, mas sempre emproado de cabeça, voz mansa de quem punha açúcar nas palavras, testa alta de dominador, olhar firme e duro, que traía a afabilidade do seu trato, o Dr. Caldas desvelava-se em cultivar amizades, sem olhar a despesas, em enriquecer as suas galerias de arte e em requestar mulheres que se embeveciam na polidez das suas maneiras afidalgadas. Conhecia a Europa, dispunha de rendimentos largos e podia dar-se à bizarria de recusar pastas ministeriais, recolhendo-se a uma falsa modéstia, que alguns invejavam e outros consentiam com agrado.

A sua calma exasperava o **Barãona, interessado, como ele, em conseguir a assinatura do tratado de comércio e navegação com os Ingleses.

Quando se viam, o Dr. Caldas e o **Barãona falavam de cavalos, de touradas ou de ópera em S. Carlos. O Cunha Ferreira servia de ponte entre os dois, rio que se referia ao trabalho, mas nenhum deles, perante o outro, aludia ao problema. Cada um punha-se nas suas tamanquinhas, brincando como o gato e o rato. o**Barãona sempre à espera que o outro precisasse de algum financiamento do banco; o Dr. Caldas, firme nas suas influências políticas, confiando na sujeição dos "prestamistas", como chamava à roda de banqueiros.

- Porque não o chama a terreiro? - perguntava o Cunha Ferreira.

- Eu?! - respondia o **Barãona, afectado com a sugestão.

- A verdade é que o Soares está em Londres por influência dele - retorquia o lente de Direito.

- E fê-la boa!... Cada passo que dá é um deslize diplomático.

oCunha Ferreira sorriu, manhoso, e fez um sinal com a cabeça, indicando o Dr. Caldas, que se aproximava a distribuir cumprimentos.

- ¦ Diga-lhe tudo isso de viva voz.

Irritado, **Barãona olhou rancorosamente para Cunha Ferreira, não se contendo quando o outro lhe estendeu a mão e perguntou que "casaca lhe estavam a talhar"...

- Pelo amor de Deus, Caldas!... Só dizia que você era o único português capaz de chegar a Londres e arrancar o tratado de comércio.

- Se os Ingleses quisessem...

- Estou convencido de que é uma questão de táctica - respondeu **Barãona, batendo bem as palavras. - O Soares tem-se mostrado inábil.

O Dr. Caldas afagava o bigode e a pêra bem tratados, sorrindo para o lente.

-Esquece que Grey é uma raposa velha...

- Mas também não ignoro que eles pretendem tratamento preferencial para os seus barcos por causa dos Alemães...

- E no fundo ainda preferem entender-se com os Alemães - lembrou Cunha Ferreira.

O Dr. Caldas ficou silencioso, mas na interrogação do seu olhar queria saber como conhecera o lente o acordo secreto de 1898 entre Ingleses e Germânicos; o outro respondeu-lhe com uma expressão significativa, encolhendo os ombros e sorrindo-lhe com os olhos.

- Não tenha pressa, **Barãona! --disse depois o lavrador de Alpiarça. - Dêmos tempo ao tempo...

E puxou-o para uma mesa isolada.

- Nós continuamos a ser perante os Ingleses o mesmo que Ramalho Ortigão assinalou há mais de vinte anos: amigo, aliado e freguês constantemente explorado e sempre agradecido. Eles podem fazer o que querem... Para entrar na City até o rei de Inglaterra precisa de autorização prévia do lorde-maior. Compreende o que isto quer dizer?... Que quem manda é o Olderman Counqil, o conselho dos anciãos... Os que têm a cavalaria de S. Jorge, a borracha, o petróleo, os Lloyds... As bolsas da City é que dizem ao mundo os preços do que cada um tem para vender ou que quer comprar. Que podemos conseguir com o nosso vinho?... Alguma coisa, é evidente! Mas principalmente com calma, meu caro **Barãona. Quantos anos precisa você para apurar uma raça de cavalos?!

**Barãona deu uma gargalhada.

- Mas agora começam-lhes as dificuldades - interveio Cunha Ferreira. - A América do Norte já os ultrapassou quase no dobro em carvão e outro tanto no aço e no ferro; a Alemanha vai-lhes na cola, e isso quer dizer alguma coisa...

- Ainda dispõem de uma base larga para negociações - respondeu Caldas com a sua voz sumida. - No seu brasão lá continuam os três leopardos e o leão vermelho... E continuarão por muito tempo!

- Assim como a harpa de ouro ¦ - ajudou Cunha Ferreira.

- Para tocarem o God Save the king - disse **Barãona a rir.

- Engana-se, **Barãona. A harpa é para tocar uma romanza que se chama a "liberdade dos povos".

E os três riram com tal gosto que à sua roda se fez silêncio e todas as cabeças se voltaram para o grupo.

 

A Quinta Alta continuava na posse dos Pimentéis, mas em nome de D. Constança, depois da interferência do Azevedo dos tecidos, que, a pedido do filho, negociara os créditos do Freitas com o banco do Borges Alves. Haviam-se concretizado assim as suspeitas de Silva Costa, embora o fidalgo parecesse aguardar um pretexto válido para o despedir - " talvez a descoberta de qualquer manejo seu na venda dos vinhos ou algum desvio de fundos na prestação de despesas. O guarda-livros do Azevedo já aparecera com normas de contabilidade detalhada, exigindo remessas mensais das contas - "tudo com documentos selados e assinados", sublinhara bem - , e Silva Costa recebera as indicações com um assomo de dignidade ferida, mais para acautelar o seu prestígio perante os outros do que por indignação própria. O facto até servira os seus propósitos de mostrar por forma iniludível - agora que preparava as suas coisas para se tornar independente - que era um administrador zeloso e honrado.

Só o João Ermida continuava a fazer das suas com o pessoal que levantava na feira do trabalho - metia homens a mais, exorbitava os quartéis e amanhava-se nas jornas, pagando sempre menos do que as folhas marcavam. Silva Costa chamava-o às boas, tentando fazer-lhe compreender que as coisas haviam mudado e era preciso demonstrar aos patrões que os zunzuns do povo, e até as suas próprias suspeitas, eram infundadas. O caseiro prometia, titubeava desculpas com o facto de mal saber soletrar, mas insistia, sempre, incapaz de atinar naqueles esmeros do administrador, de quem conhecia a crónica melhor de que ninguém. "E como havia de fazer frente às despesas que tinha agora com a raparigota que pusera de sua conta no Pinhão, quando a família dela entendera que o caseiro da Quinta Alta devia arcar com tudo e mais alguma coisa?!"

Silva Costa martelava na mesma - "Você arranja um sarilho que vamos os dois à Pesqueira"; o João Ermida jurava pelos "olhinhos dos seus ricos filhos" que nunca mais fazia outra, mas logo que chegava ao Pinhão e a Cassilda o aconchegava no seu peito moço e moreno esquecia as promessas feitas ao administrador e prometia tudo à amante.

"Se não fosse a história do assalto ao comboio!...", pensava Silva Costa. E tratava de apressar a sua emancipação, embora soubesse que iria perder a facilidade de certas transacções encobertas para os seus negócios, além dos benefícios que tinha colhido da exploração da quinta. Contudo, nada disso refreava aquele desejo de querer que o filho não conhecesse a humildade de viver em casa alheia e de ir crescendo na submissão a estranhos. Sentia-se até diminuído, algumas vezes, por receber ordens de uns e de outros; vexava-o agora o ter aceitado durante tantos anos essa tutela, da qual havia, era certo, obtido a maior parte da sua fortuna.

Resolvera meter mais trolhas na construção da sua casa na quinta do rio Torto, a cujos domínios já reunira uns bons socalcos adquiridos a vizinhos mais esganados, andando ainda em negociações com um advogado da Pesqueira para a compra das terras do Manuel Inverno.

Havia outros que as traziam na vontade, mas o juiz já prometera ao Dr. Frazão que, se o Silva Costa aparecesse no processo com uma oferta razoável, as propriedades iriam ter-lhe às mãos. E a cartada tornara-se fácil - procurara falar ao Dr. Juiz à porta do tribunal quando o movimento era maior, segundo conselho do advogado, e logo a notícia correra por entre os interessados: era melhor, afinal, não se meterem em coisas de justiça, porque o papel selado levava os olhos da cara e o Silva Costa já estava com tudo na unha. A sua conversa com o juiz limitara-se a apresentar-lhe cumprimentos e a convidá-lo para visitar a quinta quando acabasse as obras.

O filho nasceria dentro de quatro meses - fora novidade que a sogra lhe dera, depois da consulta do médico da Régua. "Quatro meses!", pensava, deslumbrado. Ia ter, finalmente, a compensação daquela vida estéril sem afectos; e ganharia duas amizades, se não dois amores. "Quanto daria para ser mais jovem e poder recomeçar! Ter Helena e o filho junto de si, por muitos anos, aquecendo-se à sua ternura, da qual receberia o estímulo para ser audaz e alargar sempre os seus haveres, de maneira que morresse com a certeza de que nenhum golpe da sorte os colocaria na contingência de precisarem de alguém. Era para isso que tinha ambições!... o filho iria nascer em terra sua, sem necessitar de deferências consentidas por outros..."

Este facto parecia-lhe decisivo na estrela do destino que acompanharia o filho - - ele pensava que cada homem traz do berço os caminhos do seu futuro e que a insistência com que soubera transformar a hostilidade de Helena podia influir do mesmo modo nesse destino. Não queria, porém, enganar-se - ela estava somente conformada. Mas quem lhe sentira o ódio no olhar e a repugnância nas mãos!... Quantas vezes estivera disposto a retorquir-lhe da mesma maneira?! Chegara a conceber a sua expulsão de casa, aproveitando a nova lei do divórcio; e retraíra-se sempre nesses projectos de vingança, amassando ciúmes e despeitos. Duma vez ainda levantara o braço para a espancar... Lembrava-se bem de que aquela ferida que trazia sempre dentro de si parecera rasgar-se num instante e lhe tomara o corpo e a razão. Gritara-lhe, retivera-a por um braço e ficara cego, com desejos de a magoar, de a ferir, de a matar até, para que tudo findasse por uma vez. Acabara por deixá-la só, mas saíra do quarto arrependido de não ter satisfeito os seus impulsos. Depois domara-se, voltando àquela cínica frieza que lhe fazia pior do que a violência desse dia. Mas vencera-a. "Ela não o amava, tinha a certeza. Não ia, contudo, ser mãe dum filho seu?!... Quando a criança nascesse seria, então, o milagre completo."

E um orgulho incontido tornara-o mais jovem; ganhara para toda a gente uma humanidade que nunca soubera encontrar em si, mesmo nos momentos em que negociava vinhos com os lavradores ou os comerciantes de Gaia. Tornara-se afável, entretinha-se a ver os filhos do caseiro nas suas brincadeiras pelo jardim, importando-se menos com os canteiros de flores e o caramanchão; e chamava-os para os acarinhar, embora os rapazes ficassem algumas vezes retraídos, sem perceberem aquela mudança brusca.

Todos os momentos livres, passava-os junto de Helena, gozando o prazer dessa grande certeza da sua vida. E falava-lhe do andamento das obras, do fogão de sala que ela sugerira, das mobílias que compraria no Porto, no berço para o bebé - que o deixasse fazer uma loucura: seria o mais lindo e caro berço que encontrasse nos armazéns da cidade.

O seu entusiasmo não encontrou limitações. Insistia com a mulher e a sogra para que se não coibissem em despesas que considerassem necessárias; e pagava tudo sem hesitar um instante ou levantar uma objecção. Quando as ouvia conversar acerca da cor das roupas - rosa ou azul, rapariga ou rapaz? - achava que deveriam dar a preferência ao azul - porque ele era o pai e queria um rapaz - , mas tirava-se de embaraços, insistindo para que fizessem duma e outra.

- Mas o dinheirão que se gasta! - dissera Helena um dia.

- Tens medo de ficar pobre, minha sovina?! - respondera-lhe a rir. - Eu depois contarei ao nosso filho...

Helena achava no enxoval do bebé a primeira grande oportunidade para realizar os sonhos da adolescência, quando ia a casa de D. Ifigénia e se comprazia em ouvir os requintes dos vestidos que ela nunca pudera ter. "O alvoroço de toda a família ao nascer o primeiro filho da Genoveva Sampaio! As rendas que se haviam comprado, os tecidos vindos de Londres, os adereços comprados em Lisboa!..."

Ela repetia agora toda essa exuberância de gente abastada que tantos despeitos lhe tinham causado. E só mostrava certas restrições ao marido para que ele, por reacção natural, insistisse nos gastos e a deixasse mais à vontade. Preparava tudo como se o baptismo tivesse lugar no Porto e andasse apostada também em mostrar à D. Ifigénia e às amigas da infância os proventos do marido. D. Assunção sentia-se feliz por ver a filha tão distante daquele abatimento que a prendera ao quarto durante tantos meses, embora lhe apetecesse comedi-la nos gastos.

Naquela noite, depois de acabarem a refeição, Helena mostrara desejo de passear um pouco - o médico da Régua recomendara-lhe que se não deixasse engordar demasiado e que fizesse algumas marchas demoradas. Apoiada entre Silva Costa e a mãe, fora até ao jardim e quisera subir aos geios mais altos da quinta, para ver o luar sobre o rio, lá muito em baixo, no fundo do vale.

A serpente do Douro contorcia-se num rasto luminoso, entre os fraguedos, como se milhares de estrelas tivessem corrido para ali e cintilassem nas trevas. Parecia que os seus passos rasgavam a quietude dessa noite maravilhosa, cortando um tule que se esfarripava em luar.

- Isto é tão belo!...

Helena avançara para o extremo do socalco e sorvia o bafo morno que vinha da outra margem; era como se penetrassem nela o rasto de luz do Douro, o mistério daquele silêncio e os punhais das montanhas. A gravidez tornara-a mais sensível. Continuara ainda a subir, querendo esgueirar-se, por graça, a um braço do marido; e depois, pela primeira vez, puxara-o para si, fazendo-o sentar a seu lado.

- Tem cautela - recomendara Silva Costa.

Ela, porém, sorria-lhe com um novo encantamento, procurava os seus olhos e tomava-lhe as mãos para as afagar, trazendo-as depois aos ombros e ao peito, como se quisesse vestir-se com os carinhos dos seus dedos. Silva

Costa olhava à sua volta--de que tinha ele receio? - ,

retraía os ímpetos que o empolgavam e sentia que lhe faltava a juventude da mulher para se esquecer de que não era um desses homens das rogas, capaz de amar uma cachopa onde ela lhe aparecesse.

A sogra lembrou, de longe, que a noite começara a arrefecer e que Helena podia constipar-se.

- Estamos em meados de Junho, D. Assunção! -respondeu Silva Costa a titubear.

Helena disse-lhe para não responder e tapou-lhe a boca com um beijo; e, procurando excitá-lo mais, apertou-o nos braços trémulos, sussurrando-lhe aos ouvidos: "Deixa-a ir embora... dize-lhe que não espere..."

Silva Costa sentia-se envergonhado, embora o ardor da mulher o transtornasse. Queria esquecer a sogra, mas parecia-lhe que ela se aproximava para os vir repreender por aquela cena imprópria de gente que tinha a sua casa e eram marido e mulher. Esse receio destruía-lhe o desejo de ser igual a Helena e tornava-o infeliz. "Mas porque hei-de preocupar-me com a velha?!" E odiava-a.

- Vamos para casa! - disse Silva Costa já irritado.

- Apetece-me ficar aqui contigo!...

E beijou-o com maior ardor, fê-lo debruçar-se sobre ela, disse-lhe ternuras que ela nunca esperara ouvir da sua boca. "Porque não encontrara uma mulher assim quando era jovem?! Ela acabaria por perceber..." Essa dúvida desvairou-o. Quis, então, esquecer a presença da sogra, os socalcos, onde pareciam mover-se vultos, a claridade do luar que os denunciava. Tomou-a nos braços e sentiu-se capaz de a levar consigo até mais longe dali, onde ninguém pudesse aparecer-lhes.

Ao fundo da quinta, porém, os cães ladraram. E um grito cortou a noite:

- Silva Costa! Silva Costa!...

Depois foram correrias no jardim, arremessos dos podengos contra as grades do portão, e, novamente, outra voz que chamava:

- É o menino, Sr. Silva Costa!

Helena queria ainda retê-lo, mas ele encontrara o pretexto para se escapar àquela tibieza que o vexava; e pusera-se de pé, respondendo ao caseiro.

- Eles que esperem - pediu Helena.

- Queres que nos venham encontrar aqui?!... É o Sr. D. Carlos! Não o ouves?...

Helena não lhe respondeu, mas deixou-se ficar na mesma posição, enquanto ele a olhava com amargura, sem saber se devia fugir dali ou esquecer os que o chamavam. Mas acabou por descer os escadórios dos geios, numa corrida.

 

A season apossara-se da cidade, sacudindo-a da letargia pesada dos nevoeiros. Não era só a volta da corte do seu Castelo de Windsor ou a entrada da aristocracia no bairro de Mayfair, os garden-parties e a época em Covent Garden; nem sequer as relvas verdes de St. James ou de Hyde Parke, de Regent's Parku do Kensington que arrancavam a população burguesa do recanto das chaminés para as levar por ruas e jardins.

Eram, sobretudo, os esplendores de alegria nos rostos fechados dos londrinos que não haviam abandonado a cidade, e agora traziam transparências comunicativas nos olhos opacos, como os nevoeiros passados - tão comunicativos todos eles como as cento e cinquenta "mil prostitutas de Londres, mais garridas e solícitas com a chegada da "verde estação".

E Soares achava-se só naquela urbe barulhenta e tão estranha - mais estranha ainda do que a primeira vez em que atravessara o Canal para tomar conta do seu lugar. "Ingrata tarefa! Tinham sido necessários seis meses para a entrega das suas credenciais, rompendo com a hostilidade de todos. Se fosse por si, não teria suportado o vexame por tanto tempo; mas tratava-se da república e da seu país, que ele servia contra os manejos do Soveral, que passava por marido morganático da rainha Alexandra, dos emigrados realistas, dispondo de dinheiro e de influências poderosas que lhe barravam o acesso ao Foreign Office, e ainda pela presença do rei deposto e de sua mãe. Ele bem entendia que a revolução portuguesa viera denunciar a vulnerabilidade do tranquilo equilíbrio da época vitoriana, cujo fim se previa para breve, mas que a Europa inteira desejava conservar intacta. Uma república era um mau exemplo para os países submetidos à tutela britânica, e até para a Irlanda, e o exemplo poderia frutificar. Mas pouco a pouco, com persistência e coragem, desassombro muitas vezes e, outras tantas, recalcando assomos e dignidade ferida, Soares soubera fazer-se aceitar e compreender. Em Lisboa tinham-lhe falado na necessidade de um novo acordo comercial e os Ingleses queriam coagi-lo a só acatar o seu ponto de vista de protecção à bandeira britânica, sem nada darem em troca. oDr. Caldas insistia, por cartas, na conveniência de preservar os vinhos licorosos portugueses da concorrência estrangeira, fazendo-os garantir com o exclusivo da designação "Port".

Agora chegavam-lhe zunzuns de que Sir Edward Grey e Lorde Haldane procuravam concertar-se com a Alemanha, entregando-lhe as colónias portuguesas. Da Turquia chegara o melhor embaixador germânico para tratar do assunto; o homem estava doente e não seria adversário para muitos meses. A verdade, contudo, é que depois desse viria outro qualquer.

A Régua, por aquela época do ano, era sempre um corpo morto, apodrecendo às moscas e ao sol. As vindimas vinham longe, as conversas sobre a crise repetiam-se até & exaustão e só nos arraiais políticos havia novidades que valessem um acenar de cabeça ou um impropério.

Aquele acontecimento inesperado foi o grande brinde que o Gonçalves ofereceu a toda a gente. "Está aí Miss Dora!... Chegou ontem!..." E cada qual se deu à fantasia de compor o facto à mercê da sua imaginação. Uns asseguravam que ele a raptara com o auxílio de uns quadrilheiros, tendo-se travado tiroteio com o pessoal do circo; outros garantiam que ele passara para o nome da trapezista todos os seus haveres e por isso ela viera para a sua companhia, tomando-lhe a promessa de que a faria sua esposa quando quisesse.

oGonçalves sentia-se eufórico com tudo isto e interpretava a hostilidade a seu modo. Que gozo lhe davam quando ele saía com Elisabethe as janelas ficavam desertas! Tinha a certeza de que se punham a espreitá-los por entre as Cortinas, deixando à sua passagem um rasto de murmúrios e de azedumes.

De cabeça erguida como um triunfador, dava uma volta apressada pelos centros de cavaqueira quando ia só - "para se refastelar com os sorrisos amarelos", pensava ele - e ia buscar Miss Dora, solene e radiante ao mesmo tempo, para as suas digressões à beira do Douro e até à ponte.

Elisabeth - com que volúpia ele dizia o seu nome! - mostrava-se altiva e um pouquinho exigente nas suas excentricidades: fazia ginástica na varanda das traseiras - e era um alarido de mulheres e de rapazio para a verem; teimava em dormir de janela aberta, e Gonçalves piorara da bronquite, ele que gostava de tudo bem fechado e anunciava o Inverno, a distância, com coletes de lã. Espirrava e sorria, pensava que tinha de se habituar, mas ficou alarmado quando uma pontada se lhe ferrou nas costas. Pediu-lhe, por fim, para Elisabethpermitir que a janela fosse fechada à noite; ela fora decisiva: seria melhor dormirem separados. E Gonçalves suportava, com heroísmo, a pontada e a catarreira, só para ganhar aquele prazer de dormir a seu lado. Maria Dolorosa parecia não ter estranhado a mudança da situação em casa. Tratava Miss Dora com o maior carinho, mostrava-se solícita para tudo o que desejavam, e nunca Gonçalves lhe vira um repente de mau modo, um olhar atravessado ou um gesto de fastio. Mas as semanas passaram e ele atentou um dia naquele facto - "o diabo da rapariga, ou nunca gostou de mim, ou anda a prepará-la". Acabou depois por guardar a segunda hipótese e deu-lhe em pensar no caso. "Será ela capaz de nos envenenar?! Faz a comida..." E tanto matutou naquilo que anunciou a sua decisão a Elisabeth: a rapariga tinha de se ir embora!

Miss Dora quis saber os motivos; Gonçalves teve receio de que ela percebesse o que se passara entre eles e arranjou evasivas para se justificar: que fazia mal a comida, era pouco asseada e badalava pela vizinhança o que se passava em casa. A trapezista achou que ele era injusto e Gonçalves amuou, indo, pressuroso, perguntar ao Vitória farmacêutico se a rapariga lhe fora comprar arsénico.

 

O capataz medira-o de alto a baixo, com o único olho que possuía, e perguntara-lhe, a meia voz, "se vinha disposto a trabalhar com alma". De chapéu na mão, ele

respondera secamente, embora pensasse em mostrar-se humilde, que "não queria os braços para outra coisa". O outro sorriu, mostrando as gengivas quase desdentadas; depois puxara-o para longe do pessoal, que preparava a ceia, e dissera-lhe a meia voz:

- Preciso d'homens que puxem p'los outros, percebes?...

- Puxar como? - perguntara.

Aquele olho grande e redondo, como se fosse de vidro, fitava-o de uma maneira que ele não compreendia se continha ódio se malícia.

- De gente que trabalhe bem e obrigue os outros a darem a sua conta. Percebeste agora? Se andares direito, posso arranjar-te para ficares na Companhia. - Depois baixara mais a voz, numa confidência. - E se souberes umas letras chegarás depressa a capataz...

- Eu quero é trabalhar - respondeu o Teimas. Com um movimento de cabeça e um sorriso, o capataz

indicou-lhe a barraca de madeira, onde o pessoal pernoitava, e atravessou a linha, a gingar o corpo mole e atarracado. Quando Francisco se aproximou, um cãozito branco, malhado de castanho, saltou-lhe às pernas, com latidos de satisfação, para logo abalar aos pulos, sacudindo a cauda e olhando para trás, como se o chamasse para a camaradagem dos outros homens.

- Boa noite! - disse Teimas numa saudação, metendo a cabeça pela porta baixa da barraca" Os companheiros responderam-lhe com um olhar de curiosidade cansada.

Uma tarimba corrida de encontro à parede do fundo já albergava dois homens, a quem as sezões se tinham agarrado.

- Podes deitar-te na ponta - disse um, de rosto prazenteiro, que se sentara junto da porta e o olhava por cima do ombro. Francisco não gostou de ser tratado com aquela intimidade logo às primeiras, e não fez caso do outro. Pendurou a marmita num dos pregos livres, atirou a manta para o canto da tarimba e voltou a sair. "Vai aqui do nosso?", perguntaram-lhe ainda de um grupo que comia no mesmo tacho. "Obrigado", respondeu num grunhido, sem se voltar; e sentou-se, isolado, junto à parede lateral da barraca.

Um comboio silvou ao longe e aproximou-se, no seu resfolegar compassado! Francisco viu o rosto do maquinista afogueado pelo rubor da fornalha e correspondeu ao aceno que ele atirou para o pessoal da Via e Obras. "Devia ser bom aquele trabalho", pensou. "Andar sempre de estação em estação..." Mas a ideia que o fizera atentar naquilo acabou por se formar e cortou-lhe o pensamento: "Aqui por uma hora está no Pinhão..."

Embora com certo esforço, já conseguia reunir ideias; muitas delas, porém, pareciam-lhe ainda invocações doutra vida que pertencera a alguém de quem fora confidente. À ansiedade desvairada dos primeiros dias, como se no sangue lhe corresse o mesmo frenesi da embriaguez, sucedera um torpor que o deixava apático, incapaz de saber o que fazia ou o que desejava. Calcorreara estradas e caminhos, dormira ao tempo, fugira sempre ao convívio de outras pessoas, até que um dia caíra redondo quando se chegara à porta de uma venda para pedir água. A fadiga e a fome tinham-no quebrado. Vira depois muitas cabeças à sua volta e uma malga de comida que lhe estendiam; recusara ainda com um gesto de mão, mas o bafo quente da sopa viera-lhe à boca e logo o seu desejo de desaparecer ficara frustrado. E comera com avidez; primeiro com a colher, depois directamente da malga, às goladas, como se receasse que alguém lha fosse tirar.

Faziam-lhe perguntas, a que não dava resposta, porque se sentia incapaz de contar alguma coisa e não porque premeditasse ocultar a sua vida. Acabaram por desconfiar dele - seria um ladrão? O interrogatório no posto da guarda fora penoso: "Quem és tu?... Donde vens?... Porque não queres falar?..."

Os pensamentos estavam quebrados dentro da cabeça, que lhe doía. "Quem és tu?... Donde vens?... Porque não queres falar?..." Essas perguntas tinha-as ainda dentro de si, num matraqueio monótono, como o resfolgar da locomotiva que já ia longe e apitava na ponte do Corgo. Meteram-no no calabouço durante umas semanas, e um dia mandaram-no embora, sem mais interrogatórios. Ficara-lhe aquele esvaimento e uma ferida sobre o coração...

Depois pegara num trabalho de poda, em Cambres, e a fadiga do corpo deixara-o descansar a noite inteira - fora a primeira vez depois que saíra de casa com a espingarda. Percebera, então, que só o trabalho podia ajudá-lo a sair daquele inferno.

E procurava-o agora por toda a parte, sem discutir horas nem jorna. Os companheiros não gostavam dele umas horas depois de pegar - entregava-se inteiramente às fainas, querendo cansar-se depressa, para esvair aquela ânsia que lhe empolgava os nervos. Os outros não o percebiam e hostilizavam-no; os feitores das quintas conservavam-no até ao fim e ofereciam-lhe trabalho para os outros granjeios. Mas ele não podia ficar parado como os outros. Abalava logo. "Precisa de um homem, só pelo comer?..."

Pouco a pouco, a ferida começara a sarar. "Como passariam o pai e os rapazes?..." E as recordações voltavam-lhe, atenuadas, sem lhe darem a mesma excitação que o desvairava.

- Queremos fechar a porta - disse um dos homens.

Voltou a cabeça com estranheza, como se não entendesse porque estava ali quem lhe pudesse falar.

- Já vou! - respondeu depois de o outro insistir.

Levantou-se ainda, mas a aragem da noite fazia-lhe bem. Olhou para o céu e reparou nas estrelas; e pôs-se a fitar com ternura as que ficavam para o lado da sua aldeia. "Nunca mais lá voltarei", pensou. "Sim, nunca mais, enquanto ela lá estiver..."

 

Embora no segundo dia a coluna só tivesse percorrido pouco mais de uma vintena de quilómetros, a maioria dos seus componentes marchava com dificuldade. Pouco afeitos a caminhadas, muitos deles arrastavam os pés inchados e em sangue, sentiam os membros trôpegos e a cabeça esvaída, e só a esperança numa vitória certa consentia que prosseguissem sem desânimo.

Todo o percurso era feito pelos caminhos ásperos das serranias, sob um sol de queimar pedras, sem fáceis recursos de água e de sombras. E o contraste duro com a agressividade das noites frias aumentava o suplício das dores e das fadigas. Pelas informações mais recentes que D. Carlos Pimentel lhes levara, os núcleos monárquicos, com firmes entendimentos entre a oficialidade de quase todos os quartéis, aguardavam a proclamação que seria lançada de Chaves - "para que a Nação retomasse o destino glorioso que a tradição lhe marcava na história" - , dando o golpe decisivo na República.

Haviam saído na madrugada de 6 daquele ardente mês de Julho de Ginzo de Limia, e no primeiro dia galgara-se a região montanhosa que de Espanha tocava a raia portuguesa, passando por Lamas, Cuntumil, Pegeiros, Covas e S. Payo de Abades. Aqui tomara-se um descanso de algumas horas, para amarinharem, à noite, a crista da serra da Gralheira, em direcção de Sindim, a primeira terra de Portugal, onde muitos voltavam depois de alguns meses de exílio voluntário, sob a protecção das autoridades espanholas. O caminho de Sindim a Soutelinho da Raia, segundo percurso daquela arremetida, fizera-se por Padornelos, Gralhas e Solveira, mantendo-se mais vigilante um serviço de exploração e segurança por patrulhas de sargento.

Deixando o trabalho das segadas, gente das aldeias vinha saudá-los, trazida pela curiosidade da bandeira, que abria a marcha, e dos dois canhões que as parelhas de muares arrastavam com dificuldade.

Nessa segunda paragem a coluna bivacava nuns terrenos próximos do cemitério de Soutelinho, por uma noite ainda mais fria, que tornava o repouso num tormento. Couceiro reunira-se com o seu estado-maior para a resolução definitiva das operações da madrugada seguinte, que os levaria às portas de Chaves, e os demais homens acamaradavam em silêncio sob o arvoredo, incapazes de acharem um sono reparador, mais pela emoção que cada um sentia do que pela agressividade do tempo. Havia entre eles oficiais endurecidos pelas jornadas de África, padres de aldeias, habituados aos esteirões das caçadas, rapazolas que tinham deixado a Parada de Cascais, o Chiado e a Foz do Porto, guardas municipais e polícias fiéis ao rei e ainda alguns civis sem dom. Entre todos, porém, se estabelecera uma firme camaradagem de armas e convicções.

Carlos Pimentel, de botas ferradas e grevas sobre a calça de fazenda áspera, samarra com gola farta de caraculo e boné enterrado até aos olhos, juntara-se a um grupo que devia fazer uma das patrulhas encarregadas de bater o terreno à volta. Trocavam raras palavras em voz baixa, embora todos pensassem que, daí por algumas horas, seriam os soldados duma causa ganha.

Um luar maravilhoso viera cobri-los com a sua colcha de luz. Brados de sentinelas rebentavam a espaços na quietude da noite.

- Fidalgo! - disse alguém junto de D. Carlos.

O rapaz voltou-se e deu de caras com um homem, que se sentara a seu lado, com o rosto marcado por cicatrizes. Já não era novo - parecia-lhe já o ter visto noutra ocasião; tentou recordar-se e o homem sorria-lhe.

- Conheci muito bem o seu avô. Já não quero falar de seu pai nem dos manos... Fui muitas vezes à Casa Grande... Vi-o tamanhinho na aldeia.

- Bem me recordo - respondeu Carlos sem convicção. E depois de uma longa pausa em que tentou achar aquele rosto nas suas lembranças: - Também por aqui?!...

- Cumpro o meu dever, fidalgo!... A gente de bem encontra-se em toda a parte. E desta vez havemos de varrer aquela canalha! - E a sua voz tomou calor, enquanto as mãos premiam com firmeza o cano da espingarda. - Tenho boa pontaria... Conheço estes caminhos como os meus dedos e sei bem onde se mete uma bala. Sou daqueles que vêm aqui para morrer ou vencer.

- Pensamos todos o mesmo - disse o fidalgo. - A nossa causa não pede outra alternativa...

- Mas venceremos!

Por momentos o olhar de Jerónimo tornou-se fixo e brilhante.

- Só quero voltar à aldeia um dia só... Um dia me basta... As saudades comem-me... - E logo num tom

mais vivo, como se o outro tivesse falado no que ele pensava: - Não é pelo meu amanho que lá deixei e me roubaram. oSilva Costa aproveitou-se da ocasião com aquela voz mansa. Desculpe falar no seu administrador, mas é um ladrão que lá têm na quinta...

- Sabemo-lo há muito tempo - respondeu D. Carlos com firmeza.

- Desculpe, fidalgo; mas eu sei os negócios que fez à custa da Quinta Alta. Propôs-me alguns...

Depois percebeu que não devia ter aludido naquele momento a tais factos e calou-se. Pelo bivaque aumentara o silêncio.

- Há quase dois anos que de lá saí... E não sou capaz de esquecer aqueles sítios, onde passei os melhores dias da minha vida. Preciso de lá chegar nem que seja por uma hora... Ir até ao Alto das Monteiras e olhar à minha volta... Depois posso morrer!

Jerónimo não dizia que pensava no Silva Costa e no Dr. Pimenta, nos que o tinham desfeiteado no assalto ao seu armazém nem naqueles que o haviam vaiado na praça; nem talvez naquele momento isso fosse a sua preocupação dominante. (No fundo de si, porém, essas mágoas fundas esperavam oportunidade para se revelar.

- Gostava de fazer parte da sua companhia... Ir à sua beira, fidalgo. Desculpe! Mas é como se estivesse mais perto...

Pelo caminho de S. Jurge, a coluna descia a serra.

De vez em quando uma das mulas não se segurava nos rebos dos carreiros e caía com a carga; os soldados ajudavam-nas a erguer e tocavam-nas até retomarem o seu lugar na marcha.

Como uma sombra, Jerónimo seguia D. Carlos, depois de ter conseguido transferência para o seu pelotão; quando o rapaz se voltava, via sempre aquele rosto a sorrir-lhe.

Umas mulheres que voltavam do mercado da cidade forneceram informações sobre o movimento de tropas. "Ninguém desconfiava da aproximação de Couceiro, a não ser os seus, que já deviam estar a postos. Tudo corria pelo melhor!", pensavam.

- Já hoje teremos presunto ao almoço! - disse um homem por galhofa.

- Em casa da Marranica vai um pitéu dos seus - disse um alferes para o soldado.

Começara a ascensão da serra do Forte e todos estugavam o passo. Falava-se mais agora, como se quisessem esconder a emoção da proximidade do combate. Embora lhes tivessem dito que em Chaves só havia reformados, e o grosso das tropas republicanas os aguardasse em Montalegre, enganado por aquela finta do estado-maior monárquico, eles pressentiam que a vitória seria dura. Mas os mais tímidos tinham pressa de chegar.

- Falta pouco, fidalgo! - disse Jerónimo, adiantando o passo. - Se o seu paizinho o visse agora... Nunca o esperei tão valente!

Carlos caminhava de cabeça erguida e fingiu não prestar atenção ao outro. "Dentro de pouco tempo tudo estará resolvido", pensava. E esta certeza empolgava-o, esquecendo-lhe as dores e a fadiga.

- Chaves! Lá está Chaves! - gritaram do alto da serra os insurrectos da frente.

Alguns olhos não contiveram as lágrimas.

- Está uma bandeira branca içada!

Tudo o mais, desde que tinham começado a descida da serra (os espiões feitos prisioneiros, as forquilhas quebradas das peças, levadas depois a braço de soldados, as notícias entusiásticas dos feitos da coluna Sousa Dias) até à orla do pinhal, onde Carlos agora se encontrava com o seu pelotão, se passara num encadear de emoções que ele seria incapaz de recordar naquele momento.

As balas dos republicanos começavam a zumbir e do alto dos pinheiros caíam pernadas. ogrosso da coluna tomava posições mais à direita, e a sua resposta não se fez esperar.

Era ainda um fogo espaçado, como se estivessem, de um lado e outro, a afinar pontarias. Um grupo conseguira aproximar-se do espaldão da carreira de tiro e, embora mais exposto ao inimigo, dava um exemplo de firmeza na luta, mantendo um combate de que já havia vítimas. Carlos vira dois soldados caírem; por um instante, olhara à sua volta, como se procurasse maneira de sair dali; mas subjugou-se e ficou no mesmo sítio, tendo Jerónimo à sua ilharga.

- Coragem, meu fidalgo! Amanhã estaremos na quinta!...

O fogo crescera e os inimigos não se divisavam. O sol .batia nos olhos dos atacantes e ajudava os outros.

- É melhor sairmos daqui - disse um sargento, percebendo a inutilidade de manter aquela posição.

-Aqui ninguém recua! - gritou Carlos para os que estavam consigo.

A mão de Jerónimo apertou-lhe o braço com vigor.

- Não é com medo da morte que assim falo - respondeu o sargento com decisão. - Mas não vim para que me cacem como a um coelho; entende agora?...

Carlos estranhou o impulso que sentiu; dera-lhe ganas de esfacelar a cabeça do outro com a coronha de espingarda. E numa decisão ia a erguer-se; mas Jerónimo puxou-o para si, no momento exacto em que uma bala penetrava na cabeça do antigo contrabandista, por cima da orelha, deixando-o sentado na mesma posição, sem mais uma palavra ou um gemido.

Por instantes, o grupo hesitou.

-O senhor tinha razão - disse Carlos para o sargento com o olhar sombreado de arrependimento.

- O que lá vai já não conta - respondeu-lhe o outro com um sorriso. - Fogo! - gritou depois para os seus homens.

O ruído da fuzilaria era agora de ensurdecer. Carlos queria entregar-se ao combate, mas via sempre à sua frente o rosto de Jerónimo com um fio de sangue a correr-lhe da ferida, os olhos ainda abertos e o corpo firme, sentado, como se estivesse num momento de tréguas a falar dos seus sonhos: "Só quero voltar à aldeia um dia só... Um dia me basta..."

Doutros grupos perceberam o risco dos companheiros que estavam naquela posição e tentaram defendê-los com uma cortina de balas. O canhão começou a troar. O sol queimava e os cantis não tinham água. Outro homem tombara dentro da ravina e os que ainda faziam fogo tiveram de se entrincheirar no corpo dos mortos para poderem defender-se dos tiros certeiros que as tropas da República lhes atiravam a coberto dos muros da cidade.

**OS CmciiI.OS NA ÁGUA

E só o sargento conseguiu escapar dali com um ferimento no ombro.

 

OS terrores nocturnos provocados na sobrinha acabaram por "dar os resultados que esperava - era já depois a criança que lhe chamava a atenção para o gemer de gonzos, os passos imaginários e os vultos que passavam no rectângulo da porta. Os nervos foram-se tornando cada vez mais tensos, até que dos gestos ainda tímidos passara às alucinações que a faziam sentar na cama e soltar gritos reprimidos de pavor, apontando as sombras.

- Ali, tia!... Olhe...

Gracinda fingia aquietá-la, escondendo-lhe a cabeça no colo, acarinhava-lhe o rosto afogueado e negava tudo o que antes conseguira impor ao espírito da rapariguita, que, durante o dia, continuava seguindo as mesmas visões, de olhos espantados de receio e de febre, sem querer sair do leito. Mais pálida e olheirenta, sacudindo-se de tremuras, por qualquer barulho que ouvisse na*-rua e em casa, a criança caiu, uma tarde, na modorra de uma temperatura alta. Chamados os pais e o avô, a rapariguita rompeu num pranto exaltado, pedindo que a levassem.

- A tia que diga... Quando dá a meia-noite na igreja, o vulto abre a porta da rua e põe-se a chorar baixinho...

Gracinda acenou a cabeça para os olhares que a interrogavam; a rapariga prosseguiu na descrição das suas alucinações com o ar ausente de quem via ainda a sombra do fantasma.

- Quando ele passa, tudo fica frio... É a mão dele...

Reunidos depois na cozinha, o velho foi de opinião que deviam abandonar a casa e levar a criança à bruxa de S. Salvador do Mundo - não havia outra por ali capaz de esconjurar mais depressa um espírito maligno.

- E se for o seu filho? - disse Gracinda.

Um arrepio abalou o velho e fez benzer a mãe da rapariguita.

- Ele pode andar a cumprir qualquer fado - insistiu Gracinda. - Qualquer coisa que tivesse feito no Brasil...

O sogro queria negar, mas a dúvida tolhia-o.

- É melhor fechar a casa - disse o cunhado em voz lenta, com a cabeça apertada nas mãos sapudas.

- Ele irá atrás da gente... Eu acho que devo ficar - volveu Gracinda, depois de uma pausa em que percebera a hesitação dos outros.

- E não tens medo? - interrogou a cunhada com o olhar inquieto, como se a sua voz pudesse atrair a aparição do espírito.

- ¦ Enquanto ele não falar com uma pessoa não deixará de penar... E eu sou a sua mulher...

Os outros viram lágrimas borbulharem-lhe nos olhos e agradeceram-lhe a decisão; enrolaram a criança num cobertor e levaram-na, atravessando a aldeia em silêncio, a rezarem entre dentes para que a alma penada perdesse o rasto dos seus passos.

Mas nessa noite Gracinda não pôde gozar a alegria de ficar sozinha à espera do amante - os ruídos chegaram misteriosos, os gonzos gemeram e o vulto do marido veio para a sua beira.

 

A claridade do dia estava mais dentro de si do que as imagens que os olhos enxergavam pelo vale do rio Torto. Toda a terra duriense era um mundo de verde e de esperança, como se a alegria do seu espírito pudesse ter transformado as montanhas ásperas naquela exuberância de promessas. Outra vindima viria dentro em pouco, mas nenhuma abastança o podia compensar tanto. "Já vivia em casa sua... Não era um palácio como a Casa Grande, embora a sua ambição de bens materiais a pudessem ter desejado; mas era uma casa mandada construir por si e onde o filho iria nascer dentro de instantes."

Ouvia no corredor os passos apressados da sogra e da criada, naquela azáfama de atenderem a parteira que ele mandara vir da Régua e já ali estava havia três dias, para que nada faltasse na hora própria. E essa presença dava-lhe a certeza de que tudo iria correr pelo melhor. "Que mais lhe faltava para ser um homem inteiramente feliz? Helena já não deixaria de ser a sua mulher... A mulher que ia ter um filho seu. oAzevedo, que era, de facto, o dono da quinta, quando soubera da sua resolução, chamara-o ao Porto e pedira-lhe que continuasse como administrador, até que resolvesse em definitivo o que devia fazer. Aquilo convinha-lhe, Silva Costa,

dissera o outro. Para que queria ele uma quinta daquele tamanho, se já sabia que o lucro não estava no amanho das terras, mas na venda dos vinhos?! Aquilo é carga muito pesada para mim, Sr. Azevedo, respondera, para se esquivar. Que mais desejava agora? Aquela prova de confiança do outro, apesar da exigência das contas, também, lhe servia. Era uma maneira de calar certas bocas e o seu próprio receio de se saber vigiado. Ele tivera ainda uma exigência e o outro acedera prontamente: só lhe peço que mande imediatamente retirar aquelas armas da quinta. Não estava para suportar os riscos de aventuras que tinham falhado. "Mas que armas, Silva Costa?!", perguntara-lhe o outro. O quê, o senhor não sabe?!... oAzevedo ficara fulo. Então ele, que era republicano, seria capaz alguma vez de ter conhecimento de uma patifaria dessas? oSr. D. Fernando ia ouvi-lo, podia ter a certeza. Abusos que comprometiam a sua dignidade é que não! Lá porque o filho ia casar com D. Constança... A quinta agora pertencia-lhe e na sua ausência era ele, Silva Costa, quem o representava inteiramente. Só com um cartão meu, compreende, Silva Costa?... Recuse pousada a quem lhe aparecer sem qualquer indicação minha.

Até isso lhe fora concedido!... Eles nunca mais ali viriam com aquele desplante de patrões. (Olhe, Silva Costa!... Faça isto e mais aquilo".. Queremos o carro pronto às tantas! Vá à Pesqueira hoje mesmo... Porque espera, homem?) O Azevedo não tinha vida para vir ali passar o tempo. As fábricas e os negócios nas colónias tomavam-no inteiramente; e ele era agora um administrador que prestava uma fineza, continuando a olhar pela quinta.

  1. Assunção aparecera, entre portas, muito ruborizada e feliz.

- Tenho a certeza de que vai ser um rapaz...

- Também o espero!

A sogra abalara de lágrimas nos olhos, tonta de contentamento. Fora espreitá-la à porta, mas já não a vira. "Como tudo se transformara!... Como o passado lhe parecia estranho!..." Ao fundo do corredor fizera-se silêncio. "Seria agora?!..." Da rua, a voz do João Ermida chamava-o. Correu à janela e perguntou-lhe se tratara de tudo.

- Sim, Sr. Silva Costa. Arranjei os dez pobres que me mandou... Vêm à hora de jantar...

- Obrigado!

E-voltara para a porta da saleta. "Queria festejar o nascimento do filho com um bodo, dividindo a sua felicidade por mais alguém... Viriam os pobres mais pobres da aldeia... E Deus havia de lhe agradecer, com certeza!"

Lá do fundo do corredor chegou um grito. E Silva Costa hesitou. Apeteceu-lhe correr até ao quarto e ver também o que se passava; não teve forças, porém, para sair dali, porque uma ideia trágica lhe cortou o pensamento. Tentou afastá-la, quis lutar contra a opressão que lhe carregava o peito de angústia, ciciando uma prece.

"Meu Deus, que vai ser de mim?!..." A porta abriu-se e a criada passou por ele sem o olhar. Fez um gesto ainda para a deter, mas ficou impotente. "Será isto possível?!"

Dos jornais:

A tentativa realista, que tinha elementos em diversas terras do País, municiada e formada no estrangeiro, veio mostrar como no fundo de todos nós vive uma alma de soldado e como sentimos sempre o desprezo pela vida na hora em que assaltam a nossa terra.

O ADMINISTRADOR DE CABECEIRAS DE BASTO FOI FUZILADO PELOS REBELDES.

As mulheres da Liga Republicana foram entregar ao senador Sr. Adriano Pimenta um protesto contra a frase pronunciada no Senado acerca das suas pretensões ao voto, na qual as dizia sem carácter. A Liga das Mulheres Portuguesas e das Socialistas também apoiou aqueles protestos.

A COLUNA NEGRA PERCORRE AS POVOAÇÕES ONDE HOUVE REVOLTAS.

O deputado espanhol Rodrigo Soria, que protestou junto do seu Governo pelo modo como eram tratados os realistas portugueses em Espanha, donde saíram armados e equipados, chegou a Lisboa e foi alvo duma grande manifestação à saída do Rossio.

O campeão de pedestrianismo Francisco Lázaro morreu era Estocolmo, onde tomou parte na corrida da 5.a olimpíada, quando já percorrera 30km e lhe faltavam 10km para chegar à meta.

FORÇAS QUE PARTEM PARA ANGOLA A COMBATER OS REBELDES DOS LUCHAZES.

 

- Vamos pra Ferradosa! - disse o capataz.

E logo o pessoal começou a desarmar a barraca, carregando o vagão Éque viera para os transportar, com a madeira e as folhas de zinco, as ferramentas de trabalho - Quantas ipás? Quantas picaretas? Quero tudo conferido! - e o saco e a manta de cada homem. A brigada ficara reduzida a um grupo que vigiaria a conservação da linha, agora que acabara o martírio do calor para vir a aspereza do frio e da chuva. Mais do que isso, dominava-os o vazio dos dias parados que o Inverno trazia.

Quando o vagão do pagador chegasse junto da brigada as folhas somariam a féria escassa das horas feitas a carregar chulipas, a transportar pedra e a apertar carris. Os homens punham-se em fila, o capataz repetia-lhes o nome, em voz alta, e o pagador estendia-lhes o dinheiro. Nesse dia, nem o Zé Risota tocava a sua gaita de beiços nem o Raimundo saltava para o meio do grupo a dançar. Ficavam silenciosos, contando e recontando a féria, e atiravam-se depois para cima da tarimba, de cabeça amarrada no peito, quando se não deitavam cobertos pela manta, remoendo com eles a lembrança dos que esperavam a carta que lhes levaria o sustento do mês. Os mais exaltados acabavam por praguejar, sem receio de que o capataz os ouvisse.

E a resposta do outro era sempre a mesma: - Quem não quiser, os caminhos estão livres. Gente não falta por aí... - E era verdade. No campo nem metade do ano se ganhava, e as feiras de homens, durante o Inverno, deixavam muitos de braços caídos, semanas e semanas.

Aquela vida dura de vagabundos, linha abaixo e acima, não seria pior do que estar em casa a ouvir as mulheres. Na noite seguinte, já conformados, pediam ao Sr. Álvaro que lhes escrevesse as notícias que queriam dar à família. À sua volta fazia-se silêncio. "Minha querida Mãe que esta a vá encontrar de saúde que eu fico bem..." E com o tempo, de tanto se ouvirem uns aos outros, as cartas só diferiam nalguns pormenores: - Aquela leiva-zita de milho de que vossemecê me falou em tempos... Acho que é melhor vender a marra e ficar com a cria... Diga ao meu compadre que prò mês que vem lhe mando o dinheiro dos juros...

Só os que tinham namorada, e às vezes se davam ao luxo de comprar uma folha de papel com um cestinho de flores, dois pombos brancos, ou ainda um coração vermelho com a palavra "Amor" ao centro, se deixavam ficar para mais tarde, aguardando a ocasião em que pudessem estar a sós com o Sr. Álvaro. A ternura vivia-lhes mais nos olhos do que nas palavras que notavam.

"Diga quanto é o seu trabalho!" O outro sorria-se e retorquia, por gracejo, "que não fazia aquilo por menos ¦de cinco milréis, e de prata, ouviram?" oSr. Álvaro não era daqueles sítios, nem nunca dissera donde tinha vindo. Lia jornais, sabia muita coisa de republicanos e talassas e discutira um dia com o capataz, por causa de um homem que se aleijara no trabalho e o outro quisera despedir. Nesse momento viram-no perder a calma e falar de direitos dos trabalhadores.

"Que queria ele dizer na sua?", pensara Teimas. "Se já alguma vez se vira um homem adoecer no trabalho e ganhar a jorna na mesma! Estavam servidos os patrões... Mas o que queria dizer aquilo de direitos dos trabalhadores?!..."

O capataz entrara com ameaças, tentando submetê-lo. "Que não precisava ali de agitadores; que quem lhe faltasse ao respeito não ganharia nem mais uma hora debaixo das suas ordens." oSr. Álvaro respondera-lhe com um sorriso que o transtornou. "Pois vão os dois, e agora mesmo!", dissera o capataz.

Quando o Sr. Álvaro começou a tirar a manta e a saca, o Zé Risota pegou também no seu amanho e foi pô-lo à porta. Estavam num ermo, ao pé do Corgo, e dali iriam para a Rede - a ordem já fora dada. "Que estás tu a fazer, Zé?", perguntara o Sr. Álvaro. "Se vossemecê vai, eu não fico neste trabalho."

Não se dissera mais uma palavra dentro da barraca daquela brigada da Via e Obras - mas todos os homens seguiram o exemplo do Zé Risota. Foi então que o capataz percebeu o que ia passar-se e veio logo às boas.

"O vagão ainda demora e é melhor não tirarem as coisas pra baixo. E vossemecê, Sr. Álvaro, faça de conta que eu não lhe disse nada. Só quero é que perceba que eu tenho de dar contas e pode chegar aí um inspector da via... Tenho mulher e filhos, percebe? E com um olho a menos..."

Naquele dia, Francisco Teimas abandonou a sua solidão. E foi ele quem lembrou ao Sr. Álvaro que "poderiam fazer a jorna do camarada doente, se cada um desse alguma coisa do que tinha para receber".

- Mas a Companhia é que deve pagar! O homem aleijou-se aqui...

- Eles já fizeram isso a alguém?! - perguntou o Raimundo.

- Mas é preciso que a gente se bata, não só por aquilo que eles são obrigados a fazer, mas, principalmente, por aquilo a que temos direito.

- E como podem eles pagar aos que não trabalham? - interrogou o Teimas, indo sentar-se mais perto de Álvaro.

- Com aquilo que tu e todos nós damos de lucro à Companhia.

- E ele mais do que nenhum - disse o Raimundo, trazendo à discussão o apego desvairado de Francisco pelo trabalho.

A conversa azedara-se. O outro escarrapachara ali todas as queixas que os companheiros tinham dele: "se calhar, acaba como director dos Caminhos-de-Ferro", rematara de galhofa. Francisco cresceu para o outro, num ímpeto de o escangalhar, e foi preciso que o Sr. Álvaro se interpusesse para não acabarem em zaragata.

A disputa deixara-o mais uns dias à parte dos companheiros, mas fizera-lhe bem. O seu pensamento desviara-se do passado para atender melhor no que o rodeava.

 

O convívio cada vez mais íntimo com Borges Alves modificara pela raiz as suas concepções de negócios. Entre todas, uma recomendação lhe fora preciosa: "Vá uma noite ao Oporto Club assista, com calma, a uma conversa dos ingleses; não deixe escapar coisa alguma..."

Albano Freitas seguira o conselho e compreendera toda uma lição magistral de sobriedade e comedimento. Junto duma mesa estavam cinco súbditos de Sua Majestade, que procuravam trocar impressões acerca de certas perspectivas no negócio de vinhos licorosos, em face do acordo assinado pelos Alemães com Portugal, e das consequências, em todo o mundo, da crise que rebentara em 1907, como um ciclone, e ainda se fazia sentir por toda a parte. Todos estavam ali para ouvir, no propósito de aferirem as suas próprias concepções, mas nenhum dos cinco desejava falar. Enchendo o cachimbo ou fumando o seu charuto, cada qual gastava o tempo em silêncios, em expressões e gestos vagos, em meneares de cabeça e olhares espiões, sempre à espera que qualquer dos outros se adiantasse na conversa. O que dissera mais alguma coisa era de origem irlandesa; mas esse mesmo deixava cair cada palavra como um avarento que se visse forçado a largar moedas de libra.

A partir desse dia, primeiro com sofrimento, depois já resignado e, por fim, com orgulho, Albano Freitas conseguiu dominar aquela ardente loquacidade que, no turbilhão das ideias, das citações alheias e das palavras, o levava até onde se arrependia depois, arrastado por aquele prazer delicioso de se ouvir perorar e de compor gestos preciosos como um actor de alta comédia. "Tal qual como no teatro", pensava agora, "o mais difícil era saber ouvir" - e saber ouvir com um falso calor de entusiasmo e de réplica muda que levasse os outros a falarem sempre, a insistirem, a voltarem exaustivamente a cada assunto debatido, até que num arrebatamento in-controlado, por uma simples palavra, denunciassem os seus mais ocultos propósitos. E depois, então, e só então, agir a fundo com dinamismo, deixando sempre, porém, uma porta aberta por onde a retirada se fizesse com parcimónia, na hipótese de surgir qualquer novo elemento que o levasse a modificar o plano.

Borges Alves interessava-se por ele e procurava o seu convívio com um prazer que ele percebia e fomentava sempre. "O senhor foi o melhor mestre que encontrei na vida", dizia com frequência para o banqueiro. A resposta era sempre um encolher de ombros de modéstia; mas ele bem lhe via o tufar do peito e aquele indicativo, muito ao cantinho dos olhos, dum sorriso, de vaidade que deixava escapar com o maior recato.

Os resultados económicos também não haviam tardado. A sociedade começara a prosperar sem grande esforço, mercê de dois negócios em comandita, com interesses dos dois e também do **Barãona, e, ultimamente, com uma indicação preciosa que viera dos segredos de um ministério - o governador de certa província ultramarina ia proibir a entrada e o fabrico do álcool para consumo dos negros e "era ncessário preparar desde já", recomendara o Borges Alves, "grandes partidas de um vinho que pudesse embarcar o mais brevemente possível, baptizando-o com muita aguardente e dando-lhe um rótulo especial e berrante que chamasse a simpatia do preto". Albano oFreitas ainda retorquira com receio do descrédito do nome da marca.

"Mas qual marca, Freitas? Eu indico-lhe três ou quatro firmas coloniais que lhe tomarão o exclusivo duma nova designação especial. O nosso nome não aparecerá no mercado...! Compreende? O segredo do êxito de qualquer indústria..." "O vinho do Porto não é uma indústria", dissera Freitas com dignidade. "Deixe-se de histórias, meu caro", prosseguira o outro. "É uma indústria cujo êxito reside na variedade de produtos que pode oferecer. Os pretos vão beber vinho do Porto... Óptimo! Pois prepara-se um vinho à base do álcool, se é de álcool que eles gostam. Um rei de Inglaterra prefere um porto de certo tipo: se o temos, fazemos a oferta. Se o lá comseguirmos encaixar, directamente ou por intermédio de alguém, aí temos outro negócio; mas esse ainda com a vantagem de podermos escrever nos rótulos, nas paredes do escritório e no timbre das cartas que somos fornecedores da Casa Real Inglesa. Compreende, Freitas?!..." E Albano Freitas resolvera-se a compreender tudo o que o outro lhe insinuasse, e agora mais do que nunca. Ele lá sabia porquê! Havia um facto novo que era necessário não descurar. Com sobriedade, sem alardes, seria possível agarrar em cheio essa oportunidade que lhe podia escancarar a porta de ouro do mundo da finança. Era uma manobra difícil; ele, porém, faria tudo para não se trair.

Havia uma semana que um alemão, um tal Hanz Fischer, o procurara no escritório para lhe propor um conjunto de negócios que lhe parecia vantajoso. "Se fosse noutro tempo!", pensara, contemporizador, "o que eu teria respondido ao homem!" Agora escutara-o com interesse, é certo, mas deixara tudo numa meia-tinta que tanto se prestaria ao apoio incondicional como à negativa airosa e até aliciante. A verdade é que estudava o assunto com uma ponta de paixão, embora não quisesse deixar-se sugestionar pela sua aversão aos Ingleses. E porque era preciso dar-lhe a melhor aparência quando falasse no assunto ao Borges Alves, estudava-o com o maior apego, buscando argumentos válidos que o outro entendesse e aceitasse.

A oportunidade viera com um recado do banqueiro - ¦ sentia-se incomodado e pedia-lhe, se não estivesse comprometido, que aparecesse naquela mesma noite. D. Esmeralda já voltara com Luisinha da praia da Granja, embora a filha nem uma só vez quisesse sair, vivendo para o seu desgosto. Freitas levara-lhe flores e mostrara-se muito sóbrio durante o jantar, esmerando-se em atenções para a esposa do sócio. Logo depois os homens tinham-se metido no escritório, a fumar e a conversar sobre alguns aspectos que tomava a política internacional. E o momento surgira, percebera em Borges Alves uma certa simpatia pela causa alemã.

- Não há dúvida de que, apesar de todas as restrições que lhe possamos levantar, na nossa qualidade de latinos, eles vêm pôr no mundo dos negócios uma ordem que os Ingleses nunca quiseram aceitar, uma vez que lhes não convinha - dissera Freitas depois de o outro se explanar sobre as consequências da lei naval alemã de Junho. - Eles reconheceram, pelo tratado de 5 de Junho de 1910, que o exclusivo da marca "Porto" é uma designação regional, em lugar da atitude britânica, que fomenta todas as falsificações que fazem no mundo com essa propriedade, que é muito nossa.

- Creio que em Londres se está a trabalhar num novo tratado em que isso fique bem esclarecido - interveio Borges Alves.

Albano Freitas sorriu com humildade.

- Só quando vir o preto no branco. Apesar de estarmos hoje nas melhores relações com o **Barãona, esse esclarecimento seria a nossa independência perante o Sul.

- E deseja-a? - interrogou o banqueiro.

- Talvez...

O outro acenou-lhe com a cabeça.

- Pois o alemão veio oferecer-nos a compra de uma grande partida dos nossos vinhos, com trocas vantajosas por quaisquer produtos germânicos que nos convenham, a preços da melhor concorrência, e ainda com outra compensação...

- Não lhe parece demasiado? - perguntou Borges Alves pigarreando.

- Não me comprometi de qualquer modo, senhor...

- Trate-me por Borges Alves - disse o banqueiro com protectora benevolência.

- Muito obrigado! Pois o homem oferece-nos a representação da principal companhia de barcos mercantes alemães. O senhor... desculpe hesitar ainda noutra forma de tratamento. Sabe melhor do que eu o que isto quer dizer... Eles vão fazer da Europa central um núcleo forte de irradiação para todo o mundo. Li há pouco um tal. Lagarde e ainda Constantin Frantz. Eles vão ser capazes de criar uma potência tão forte como a Inglaterra. De resto, creio bem que desejam colaborar, tanto de um lado como do outro, para que se anule a possibilidade de um forte renascimento francês e ambos possam barrar o caminho aos Estados Unidos.

- É isso mesmo - assentiu Borges Alves. - E talvez infelizmente... (Ele pensava nas notícias fidedignas que possuía de que os Alemães se propunham comprar o Ca-minho-de-Ferro de Benguela). Nós somos um pequeno povo - continuou o banqueiro - e eu penso que seremos vítimas desses acordos. É claro que para o banco haverá mais negócios, mas eu...

Borges Alves acanhava-se daquele seu romantismo.

- Eu preferia que achássemos o pé por nós próprios. Como no passado... *

- Que se não repete! - exclamou Freitas, levantando-se para esmagar a ponta do cigarro. - Eu julgo que a proposta do Fischer é vantajosa - disse depois de um silêncio. - Se acabarem por se entender com os Ingleses, segundo é de supor, já temos garantidas as nossas posições; e se vencerem... teremos jogado a maior cartada comercial e financeira da nossa vida.

- Mas também, se perdem...

- Julgo que não - respondeu Freitas com entusiasmo.

Borges Alves riu-se com satisfação. "Apanhara o outro num excesso." E avisou-o com condescendência:

- Menos calor, Freitas! Menos calor!... Os Ingleses são ainda os mais poderosos. Pense por exemplo que, antes de os Alemães perderem, nós trataremos de negociar com os outros em melhores condições. Temos trunfos de que abdicar, e isso é sempre importante neste jogo. - E baixando a voz: - É preciso saber abdicar a tempo; compreende, Freitas?

O jornal Manchester Guardian tornara-se naquele dia ainda mais agressivo na sua campanha contra a administração colonial portuguesa. Isso confirmava a Soares que o intento dos chocolateiras, e dos que desejavam um arranjo com a Alemanha, ainda não cedera perante o primeiro fracasso do ministro inglês Haldane.

"E eram os whigs, os liberais", pensava Soares, "que lhe faziam a afronta." Ele supunha que nas acusações deveria haver, infelizmente, certos factos verdadeiros; mas podia garantir que a República acabaria com tais normas, menos humanas. "Seria isso o que interessava a Londres?... Não, ele sabia que não era! A Costa do Ouro produzia pouco cacau e o de S. Tomé desbaratava o mercado mundial. Daí a campanha que os Alemães ajudavam." Ele tinha à frente dos seus olhos alguns jornais de Berlim que em 1911 haviam afirmado que "já é tempo de o predomínio infecto dos latinos ceder o lugar a um povo são. Se não fosse a preocupação da Inglaterra ao encarar a expansão alemã, o esfacelamento das possessões portuguesas no ultramar já se teria feito. Apenas existem três povos capazes de administrar e civilizar territórios africanos: os Alemães, os Ingleses e os Norte-Americanos. São eles que devem recolher a herança do decadente mundo latino. Todo o seu interesse deve residir em porem-se de acordo, a fim de dividir esta herança. Os "selvagens" da Europa, como os pretos denominam os Portugueses, demonstraram bem a sua incapacidade para colonizar."

Soares não pôde conter a indignação e atirou com o jornal que voltara a ler para cima da secretária. "Selvagens da Europa! Como isto é absurdo!... Quando para os negros das nossas colónias, nós, Portugueses, é que somos os brancos. Os outros são ingleses, alemães ou franceses... Brancos somos nós, e só nós! E a Inglaterra vai neste jogo porque os teme, deixando que os missionários protestantes agitem a questão da mão-de-obra indígena em S. Tomé, ao serviço dos seus industriais de cacau, à frente dos quais está Cadbiiry, que conseguiu coligar-se, num trusomundial, a oFry, de Brístol, a Row-tree, de Iorque, e a Stollwerk, de Colónia. E todos eles se servem dessa famosa Sociedade Antiesclavagista para nos comprometer aos olhos do mundo civilizado, facilitando assim a tarefa da entrega das nossas colónias. Desde 1907 que o relatório Burtoera um ferrete na administração portuguesa. E não havia jornais que denunciassem esta manobra miserável!"

Soares deu algumas ordens e saiu. Estava sozinho naquela cidade de alguns milhões de habitantes - e tinha necessidade de expandir com alguém. A sua calma habitual abandonara-o; ia a passo largo pela rua fora, deixando-se empurrar, e empurrando, como se cada transeunte fosse o ministro Grey, que o acolhia no Foreign Office com amabilidade complacente e facilitava a tarefa dos inimigos do seu país. "Se encontrasse o Casse!", pensava. "Só um radical fabiano, como ele, me pode compreender..."

Acabou por ir jantar a uma daquelas típicas tabernas da FleeoStreet, onde o outro aparecia com frequência. Preferiu a Queen's Arms naquele pátio encantador do Pássaro na Mão, todo fechado por casas de estilo Tudor.

Àquela hora, porém, estava ainda pouca gente.

Perguntou pelo Cassei, e, como o informassem de que o não viam há alguns dias, mandou servir-lhe o jantar.

E pensava: "Que me responderiam eles se eu lhes lembrasse as consequências do seu comércio de borracha entre os negros do Congo, feito pela Anglo-Belgian Rubber? Que diriam eles à invocação daquelas milícias armadas pela companhia e que atacavam as povoações, raptando as mulheres e as crianças, com o objectivo de os homens entregarem, sem delongas, uma quantidade fixa de borracha, para o que percorriam quase quinhentos quilómetros a pé? Os que o não fizessem já conheciam a lei: os seus morreriam de fome ou de maus tratos, ou seriam vendidos a mercadores árabes, que os colocariam, como escravos, na Etiópia e no Hejaz. Gostaria de lhes ouvir os argumentos para defender esta "humanidade a que a Sociedade Antiesclavagista não se refere."

- Gooafternoon!

- Oh, Cassei!... Pensei em si toda a tarde...

E estendeu a mão ao outro com efusiva satisfação. Daí por momentos Soares entrava no assunto, atirando-lhe com as suas queixas. o outro encolhia os ombros naquele sorriso amarotado que já lhe conhecia.

- Fale em francês, Soares. E em voz baixa... Lembre-se de que arrisca o lugar.

- Não me interessa, Cassei! Não tiro dele uma libra para extravagâncias.

Soares ficou calado durante alguns instantes.

- Eu conheço bem essa história da borracha - disseCassel depois. - Você sabe que no distrito do Ikoko havia lá seis mil habitantes e que dez anos depois só lá restavam seiscentos? E que de dois mil do Ngero só sobreviveram uma dúzia de negros?... Rigorosamente uma dúzia?!... Onde no tempo de Stanley viviam quarenta milhões de negros só foram recenseados dezasseis milhões em 1911... Depois do craque da borracha, quando os títulos baixaram de dez mil libras para poucos xelins, é que se começou a falar deste assunto. Compreende, Soares?

- Como em Putumayo, no Brasil... Eles só se interessaram pela sorte dos índios quando a borracha do Amazonas ficou noutras mãos e era preciso exercer coacção sobre os concorrentes...

- Depois de tudo o que falámos - disseCassel - não vá supor que nós, Ingleses, somos menos humanos do que outro povo qualquer.

Soares fitou-o com estranheza.

- Você é um ingénuo, desculpe que lho diga. O imperialismo é que tem as suas leis, que são relativamente iguais para qualquer povo que o realize. *

- A condição humana é que...

- Não falemos disso, meu caro. Já por 1500, nas índias, vocês faziam das boas... Recorda-se daquela nau árabe?!... Um flamengo que ia a bordo do barco português contou que, depois de sacarem doze mil ducado" em dinheiro e uns dez mil de fazenda da nau muçulmana, eles fizeram-na saltar com pólvora, tendo dentro os trezentos passageiros, entre os quais se contavam muitas mulheres e crianças.

- Passaram quatrocentos anos, Cassei!

- E a lei que serviu para a pimenta serve hoje para a borracha ou para o cacau. Quando se fala em produtos ou matérias-primas coloniais, deve sentir-se um arrepio...

Tinham saído da Queen's Arms e dirigiam-se agora para as margens do Tamisa, o rio de Londres que é o perpétuo aliado da City. Uma velha prostituta aproximou-se, dizendo-lhes uma ternura que cheirava a álcool.

- Que quer você que lhe faça, se tratamos assim as mulheres inglesas? - disse Cassei.

 

Na barraca só ficaram os dois e o cão.

Todos os outros homens tinham abalado, de licença, para as suas terras, procurando o aconchego da família naqueles dias de consoada. Viera vinho para a despedida, rira-se mais com as histórias do Raimundo e cantara-se em coro a Mariana.

Mariana diz que tem,

ó meu bem,

sete saias de filó...

Linha abaixo, direitos à estação, os companheiros partiram acalentados pela gaita de beiços do Zé Risota, como se fosse um grupo de prisioneiros a quem tivessem concedido a liberdade. O cão acompanhara-os até à curva e ali ficara de orelhas hirtas, a ladrar-lhes; depois, como se percebesse que os não fazia regressar, voltara triste para junto dos dois, latira por momentos e acabara por se enroscar junto de um barril da água.

- Queres que faça a ceia para os dois? - perguntou-lhe Álvaro.

- Quero que me deixe! - gritou com rancor. - Porque há-de esta vida ser um inferno pra mim? - disse depois com desespero. - Não tenho família nem amigos...

- Porque os não procuras?

A calma do outro transtornou-o.

- Para me tratarem mal como vocês?! - E depois, prosseguindo com raiva: - Porque não me deixou sozinho?!...

Começou a passear, esfregando as mãos engaranhadas pelo frio e olhando o companheiro, desconfiado, como se temesse alguma desfeita. O cão saltou-lhe às pernas e ele atirou-o de encontro à barraca com um pontapé.

- Tem cuidado, Teimas! - disse Álvaro, pondo-se de pé. - Não faças a um cão o que não és capaz de fazer a um homem...

Por instantes ficaram em frente um do outro, prestes a baterem-se. Foi Francisco que baixou primeiro o olhar e voltou costas; Álvaro deitou-lhe a mão ao braço e segurou-o.

- Desabafa, homem!... Há alturas em que a gente, se não fala, rebenta! *

Francisco deu um sacão para se ver livre do companheiro e voltou para dentro da barraca. Mas daí por momentos regressou para junto do outro e sentou-se-lhe ao lado.

- Já estive pra matar um homem e foi pena que o não fizesse... Chegou outro primeiro e aquela morte pertencia-me...

- Que ganhavas com isso? - perguntou Álvaro sem o fitar.

Ainda desconfiado, o cão veio para perto da fogueira, procurando o aconchego do calor.

- Estava agora na cadeia e tudo tinha acabado - respondeu Teimas. - Dizem que os que matam têm remorsos... E os meus remorsos são porque não levei a minha por diante...

- Faz por esquecer...

- Quando trabalho, passa-me mais... Mas assim que paro, é isto! Dá-me vontade de pegar com qualquer... não durmo... É um azougue dentro de mim... - E ergueu-se, de canivete em punho. - Precisava... Precisava de ter forças para dar uma navalhada aqui - e desenhou com a arma um traço sobre o coração. - Arrancar esta maldita coisa!... Às vezes penso que fui eu que o matei... Tenho noites em que vejo sangue e o agarro...

- Uma mulher? - perguntou o outro.

- Uma cabra! Uma gaja! - E as palavras rasgavam-lhe a boca.

- Ainda gostas dela?...

Aquela pergunta transtornou-o. Ficou lívido, à frente do companheiro, cerrando os punhos e querendo conter o tique que lhe pregueava o rosto.

- Acho que não! - respondeu. - E talvez... - Depois, num acesso febril: - Não, não a quero mais. Mas não posso voltar à terra por causa dela... Tenho a certeza de que se a vir... Gostaria de saber que ela já tinha homem...

- Estás a enganar-te...

- Não, não estou. (Como seria bom se pudesse pensar assim! ) É por isso que trabalho que me mato... Pra chegar à noite sem forças e esquecer-me...

- E é por isso que os camaradas gostam pouco de ti.

- Por isso?... Que mal lhes faço?!...

- Esqueces que o capataz obriga todos a darem o mesmo? E que muitos não têm forças pra te acompanhar!...

Álvaro deitou as batatas para dentro da água, tapou a marmita e aproximou-se de Francisco.

- Tens de perceber isto também! Os teus amigos são estes... No outro dia, quando lembraste que nos juntássemos para arranjar a féria do camarada que se aleijou, julguei que começavas a entender... Que fazias antes de vires para aqui?

- Tinha uns bocaditos na aldeia...

- Pois é!... Os que têm alguma coisa de seu não podem compreender.

- Mas agora não tenho... E nunca mais terei, porque não volto! Não quero voltar! Aquela mulher faz-me medo...

- Nunca digas que tens medo nem o sintas. Vai um dia à aldeia... procura-a, fala-lhe... E, se achas que ela não te serve, pensa nisso a fundo e hás-de ser capaz de lhe resistir. Mas é preciso que lá vás, para ficares com a certeza e acabares com esse inferno por uma vez... Comigo sucedeu isso!

- Também uma mulher?!

- Não, a guarda! Eu tinha medo da guarda. Pensava que tinha medo... E um dia decidi-me a saber se era um cobarde ou um trabalhador. Houve uma greVe lá no Alentejo, em Évora. Tu, se calhar, não soubeste... Foi por isso que houve aquela greve geral em Lisboa. Os patrões tinham combinado um contrato com os trabalhadores e faltaram logo a seguir. No Alentejo há patrões que têm de seu quase tanto como todo o Douro. Pois a gente fez a greve e a guarda apareceu. Estive mesmo para fugir... Eles vinham armados e iam correr-nos à coronhada; mas eu tinha de decidir aquilo. Sabia que a razão estava do nosso lado; e quando eles correram para o meu grupo não arredei um passo. Deram-me uma coronhada em cheio, no peito. E outra... e outra... Nem me fizeram doer!

- Prenderam-no?

- Sim, prenderam-me; mas foi o dia mais feliz da minha vida!

Os olhos de Álvaro sorriam e o seu sorriso contaminou o Teimas.

- Nunca mais pensei que tinha medo... E não tenho! O medo faz dos homens uns bichos. - E apertando o braço de Francisco: - Pensa que hás-de ir à frente dela tirar a limpo essa dúvida.

- Talvez não seja preciso - disse Teimas. - Quando vi o marido morto, ela deixou de ser a mesma... Pois é! O meu mal é pensar de mais nestas coisas...

- E há tanto pra pensar, Teimas! No pão que não temos, na guerra que eles estão a preparar...

- Vai haver guerra?

- Para que querem eles tantas armas?! Elas acabarão por se disparar por si... Os que fazem esse negócio querem vender cada vez mais, e a gente não percebe. Se a gente quisesse ia paz, e só a paz, eles não teriam soldados para a fazer. Em França, os operários já entendem... Os homens que trabalham são inimigos das guerras.

Um comboio silvou ao longe e aproximava-se.

Álvaro olhou para a via e lembrou-se duma comparação: "A gente, o povo, somos as linhas por onde passa o comboio da guerra. Quando quisermos podemos tirá-las, e ele não andará mais. Mas é preciso que a gente não tenha medo de fazer frente ao comboio."

A locomotiva surgia, possante, na curva e avançava para os dois, como se fosse galgar os carris e esmagá-los.

 

Todas as manhãs, de xale negro pela cabeça, Gra-cinda descia do Santo Cristo, atravessava a praça e ia meter-se na igreja, depois de correr o olhar pelo rapazio do adro. Nos portais, as mulheres recolhiam-se ou davam-lhe a saudação a meia voz, se não tinham tempo de a evitar.

A aldeia sabia que a sua casa estava assombrada e que à noite um vulto lhe fazia guarda. Corriam pormenores: uma velha pedinte, a Aninhas Ramelas, encontrara um cão verde, de rabo amarelo, no quelho do rio Torto, e quando se benzera o podengo abalara aos ganidos; outra mulher, a Cambolhadas, afirmava que na chaminé da casa de Gracinda um avejão negro espreitava a aldeia e batia umas asas de morcego, como se alguém andasse a malhar ali perto; um homem vira um burro azul em Ventozelo, e um crianço encontrara um velho de barbas, de cornos revirados,- quando, a armar aos pássaros, se deixara apanhar pela noite no caminho de Valença.

O isolamento de Gracinda era cada vez maior. E se em muitos dias exultava com a liberdade que lhe deixavam, noutros aterrorizava-se com a sua imaginação e entendia que também ela penava os seus pecados de ter enganado dois homens. Nesses momentos voltavam-lhe lembranças do convívio com o amante, da sua insistência na fuga, do regresso do marido e de todas as artimanhas que usara para os incompatibilizar. Entre outras, porém, a recordação da ameaça de suicídio que o Francisco lhe repetira algumas vezes tomava vulto com a sua ausência. Ele nunca mais dera notícias... Tinha a certeza de que, se fosse vivo, o Francisco não podia resistir à tentação de voltar para junto dela, agora que a sabia só... Mas como *se teria morto?!...

Queria rezar com fervor, ia de um altar para o outro, arrastando-se de joelhos, numa penitência que desejava cumprir com sinceridade, e a interrogação perseguia-a, desviando-lhe a atenção. "O Francisco seria capaz de se enforcar?... Mas teriam dado com ele, por força", pensava depois. "E a notícia havia de chegar... Nem o pai nem os filhos andavam de luto..."

Uma manha encontrara o sobrinho mais novo e vira o rapaz escapar-se pela esquina; correra para ele e agarrara-o, perguntando-lhe: "Já não me conheces?" Luís Teimas, sem levantar o olhar, negara com a cabeça e respondeu que "o avô não queria que lhe falasse". E deitara a fugir pelo quelho arriba, por aquele mesmo quelho por onde o Francisco a levara de uma vez, quando viera também à igreja. "E se procurasse o velho?!" Sentia-se capaz de o defrontar, de o convencer da sua inocência, mas adiava sempre o encontro. "Um dia que dê com ele no adro ou no caminho falo-lhe."

E passava as horas arrastando-se pelos altares, acendendo as velas que se apagavam e mudando as flores na jarra. O padre Augusto acabara por reparar na sua permanência ali e mandara-a chamar à sacristia.

- Deves ter pecados para me confessar... Gracinda corara num repente, como se a tivessem apanhado em falta, e negou:

- Que pecados hei-de ter, Sr. Abade? - respondera depois, já refeita. - Venho rezar pelo meu homem... "Por qual deles?", interrogou-se. "Pelo que está vivo", pensou depois.

- Ele aparece-te...

"Mas estaria vivo, o Francisco?", perguntava-se com ansiedade, enquanto a cabeça pendida, num jeito de humildade, escondia as suas preocupações aos olhos do padre Augusto. Este insistiu:

- Dizem por aí que tens a casa assombrada.

- Não é verdade, Sr. Abade.

- E não te queres confessar? Fazia-te bem...

- Venho aqui fazer a minha penitência.

- Talvez isso não baste - respondeu o padre, vigiando o despejar da bilha de água que o sacristão trouxera para o pote da sacristia. - A tua alma deve precisar de conforto, Gracinda. Quando confessares o que te atormenta, ficarás outra mulher.

Aquelas palavras faziam-lhe bem; não, talvez, as palavras em si, mas a maneira como o prior as dizia. E os seus olhos sorriram.

- Amanhã? - perguntou o padre Augusto com vivacidade.

Gracinda sentiu um desejo inexplicável de se tornar garrida; alteou o busto e cingiu o xale ao rosto - já vira ao espelho que o luto lhe ficava bem - , atravessando a sacristia a menear as ancas. Quando, porém, entrou na penumbra da nave da igreja e viu os lumes acesos, voltou à sua humildade, como se os santos a fossem repreender. E, ajoelhando frente ao altar-mor, pôs as mãos em prece e quis rezar com fervor.

 

"O pecado está em toda a parte", pensou à saída. "Ou estará comigo?"

Não sabia ainda porque tomara aquela decisão súbita, mas encaminhou-se, resoluta, para casa do Teimas. "Quando confessares o que te atormenta... Quem lhe podia ouvir a confissão, a não ser o pai de Francisco?!..." Quase corria ¦ - tinha pressa de chegar, como se estivesse prestes a cair em novo pecado e só dali a pudessem "alvar.

Nem à porta hesitou. Um dos podengos ladrou-lhe do casinholo, não a reconhecendo, e logo a cabeça do velho apareceu na penumbra da cozinha.

- Quem é?!...

António Teimas estendia o pescoço magro, querendo afiar os olhos mortiços, que só viam sombras. Gracinda arrependeu-se por um instante. "Tinham passado alguns meses, e nem ela nem o velho se haviam procurado. Que lhe ia dizer agora?!..." Pensou ainda em retroceder, com a certeza de que ele a não reconhecera.

- Ah!, já sei!... - disse António Teimas, meneando a cabeça com desagrado. - Não te vi, mas adivinhei-te... "E se ela trouxesse notícias do filho?!", pensou depois*

Quis mostrar-se amável e sorriu.

- De que estás à espera?... - E estendia a mão trémula para a agarrar.

Gracinda entregou-lhe a sua, deixando-se conduzir para junto da mesa. Estavam sós; e por muito tempo ficaram em silêncio, lado a lado, ela olhando-o de soslaio, para pressentir o que o velho lhe iria dizer; António Teimas fixando-a com os seus olhos quase mortos, à espera de a ouvir.

- E então?! - perguntou o velho por fim.

- Sabe do Francisco? - disse Gracinda com humildade. Logo a seguir agarrou o braço do Teimas com ansiosa expectativa.

O velho afastou-a com violência, negando em gestos destemperados de cabeça.

- Para que queres saber?! Prò fazeres mais desgraçado ainda?!

- Eu, Ti António? - disse num grito reprimido.

- Onde tu apareces... Por tua causa morreu um homem e está outro na cadeia.

Gracinda ouvia a acusação, mas não a tomava para si, porque se sentia inocente.

- Que sei eu do Francisco? Mesmo que soubesse, não to dizia - prosseguiu o velho com voz esfarpada; mas adivinhava a dor daquela mulher, embora a soubesse com culpas, e calou-se por momentos. - Nunca mais tive notícias - disse da porta, para onde se encaminhara, depois de pegar no arrocho a que se encostava. - Não sei se está morto, se está vivo...

Gracinda rastejou até ele, agarrando-se-lhe às pernas; aquele contacto voltou a desvairá-lo.

- Estás agora arrependida?! Já é tarde...

- Nunca é tarde...

- Pra ti, talvez! Mas eu já não posso esperar muito. Percebes o que isto quer dizer?

António Teimas sentia que a coragem a abandonava.

- Queres o dinheiro, claro!

- Não!

A resposta embaraçou-o. "Porque não vinham os netos para o ajudarem a pô-la na rua?..."

- Só quero saber onde está o Francisco - repetiu Gracinda.

- E o Manel Inverno não t'interessa? Esse está na cadeia e vai ser julgado qualquer dia... - Num assomo de violência, António Teimas deitou-lhe as mão aos ombros e sacudiu-a. - Que vais tu dizer ao tribunal?...

 

A revista das tropas, em Vincennes, fora um espectáculo impressionante. A carga, à baioneta, dos soldados da guarnição de Paris deslumbrara os convidados das tribunas: financeiros e políticos,.militares e fabricantes de armamento, senhoras da primeira sociedade e diplomatas. Poincaré, o loreno, chefe do Governo, recebera felicitações efusivas e pensara que tinha ali a força capaz de derrubar as fronteiras impostas pelo tratado de Franco-forte. Millerand, o ministro de Guerra, que saltara, como um acrobata, da cúpula do socialismo revolucionário para as fileiras do nacionalismo, sentira-se fortalecido com aquele êxito da sua política de robustecimento moral das tropas.

Os jornais discutiam a cor dos fardamentos do exército com exaltada paixão. Alguns achavam que era preciso modificá-la, a exemplo dos outros exércitos europeus, para uma cor neutra. Os órgãos nacionalistas, porém, acabaram por impor o seu ponto de vista: a supressão da calça vermelha afectava o poder combativo dos soldados.

Aos sábados à noite, os desfiles militares voltaram às ruas de Paris com as suas bandas de música. Recebiam-nos aplausos e uma viva alegria nos bairros elegantes da capital; mas na cintura operária da cidade houvera tumulto: "Abaixo a guerra! Abaixo a guerra!"

No seu jornal, Jaurès escrevera: "Que os governos da Europa tenham cautela. Se amanhã se estendesse o conflito que as suas cobiças subalternas tornaram possível, se a Áustria e a Rússia estivessem em luta, se, pela cadeia das alianças, a França e a Alemanha fossem arrastadas para um conflito, os governantes não poderiam encobrir o crime da guerra. Não poderiam lançar sobre ele o menor véu de honra nacional. Nunca a guerra seria exposta numa tal nudez de inferioridade e infâmia. Toda a democracia não tardaria em compreender que é a vítima enganada pela mais monstruosa manobra da contra-revolução europeia que foi tentada depois de 1849."

Nesse mesmo Outono, as marinhas de guerra da França e da Inglaterra dividiam, de acordo, as suas zonas - a frota francesa largava de Bresoe ia para Toulon; a de Inglaterra saía do Mediterrâneo e fixava-se no mar do Norte, onde o perigo da esquadra alemã de Tirpitz era maior. A Rússia, por sua vez, a troco de um empréstimo, contraído em França para os seus caminhos-de-ferro, aceitava um aumento de efectivos e obrigava-se a construir linhas férreas estratégicas.

Guilherme II e o seu chanceler defendiam o ponto de vista de que a expansão do Império Alemão era possível sem a guerra. Mas o próprio Bulow achava conveniente a agitação feita pelos pangermanistas, que "mantinha acordado o sentimento nacional". O partido dos alferes, a que pertencia o herdeiro do trono, alargava cada vez mais a sua influência, espalhando-se pelo Parlamento, pela diplomacia e pela administração. Krupp, à frente dos industriais do Rur, dava-lhe o seu apoio poderoso e recebia de todos os países europeus, em cujas indústrias de guerra tinha os mais largos interesses, os lucros avantajados do pleno rendimento das fábricas. A competição dos orçamentos dos Estados levava-lhe, sem mais canseiras, o dinheiro de todos os contribuintes. "Menos manteiga e mais canhões!", dizia-se por toda a parte. A imprensa recebia luvas para divulgar o princípio, e era necessário fazer com que os povos desconfiassem uns dos outros, até se alcançar um arranjo que levasse a expansão alemã aos limites mais largos dos seus doutri-nadores.

Os bancos germânicos forjavam, por seu lado, outras armas. Naquele ano de 1912 saíra um livro que não escondia o desenrolar da sua acção.

"É na África Central que uma política alemã pacífica tem maiores possibilidades de vingar, uma vez que não ameaça a Inglaterra e a Rússia, como na Mesopotâmia. oCongo Belga tem necessidade de capitais; a Moçambique, a falta de caminhos-de-ferro tira-lhe a segurança; Angola, que possui portos excelentes, não pode aproveitá-los, porque o seu interior está por cultivar e não tem vias de comunicação. Os capitais são escassos e a banca alemã poderá fornecê-los. A nossa indústria fornecerá os rails de caminho-de-ferro, entregando à agricultura a mão-de-obra absorvida pelos processos primitivos de transporte. A África Central tornar-se-á, então, um único domínio económico que nós criaremos e que, com os nossos colonos, acabará por nos pertencer politicamente."

Em Angola rebentavam revoltas indígenas por toda a parte; mais ainda nas fronteiras com a África Ocidental Alemã. A queda vertiginosa do mercado da borracha facilitava a agitação. As falências sucediam-se; velhos colonos portugueses achavam no suicídio a única saída para a sua ruína.

- Que tal correu a reunião dos agricultores? - perguntou **Barãona para Caldas.

- O melhor possível.

A luta surda entre os dois acabara como ambos desejavam - por um amplo entendimento, em que um dava a influência política e o outro o poder económico. Na Associação da Agricultura assinara-se uma moção para pedir ao Governo a rápida assinatura de um tratado com a Inglaterra; os comerciantes, mexidos pelo Dr. Cunha Ferreira, já tinham aprovado um texto semelhante.

- Mas que se espera agora?!... Se o ministro em Londres não é capaz de conseguir esse documento, galga-se por cima dele.

- Não se impaciente, **Barãona! - replicava Caldas com a sua frieza. - Lembre-se de que nunca fomos capazes de obter um tratado como pretendemos agora. O Soares pode influir no ministro, mas é preciso convencê-lo de que a causa é justa. Entende?...

- Acho que já esperámos demasiado! Uma parte do comércio inglês está disposta a comprar-nos vinhos e não é possível, por mais tempo, dividir Portugal em dois países estranhos e até inimigos As compras que de Gaia nos fazem são insuficientes. Embora lhes neguemos a aguardente, eles não se rendem...

-Optaremos pela ida de uma comissão de comerciantes a Londres para negociar o tratado - disse o Dr. Caldas. - Para isso teremos de esperar que mude o ministro dos Estrangeiros. Este é caturra...

 

António Teimas bateu a todas as portas e não achou comprador para a produção da última vindima. Silva Costa não estava interessado em fazer mais aquisições; o Dr. Pimenta queixara-se do mesmo quando o velho lhe fora pedir conselho.

- Este ano não se ganha para os granjeios. Eles preferem comprar nas segundas vindimas, arrebanhando vinho de consumo e misturando-lhe depois aguardente, baga de sabugueiro e açúcar.

- ¦ E à aguardente só eles podem chegar ¦ - respondeu o velho. - Se não tiver outro remédio, vendo-o pelo preço de consumo.

- Já falou ao Silva Costa?

- Queimou-se comigo quando lhe apareci; ainda não se esqueceu do vinho que vendi ao inglês... E o inglês também não quer!

No Bal Tabarin, em Paris, um grupo de coristas, de pernas ao léu, desfilava perante um actor que, com trajes de Napoleão, passava revista às tropas. A assistência aplaudia com frenesi, enquanto a orquestra executava o Morrer pela Pátria é o destino mais belo.

Vêem

os hussardos, os dragões, o Exército?

Morrerão todos pela nova epopeia!

Cantava-se no palco e trauteava-se nos bulevares a canção de ArmanFoucher. O chefe conservador, o conde Alberode Mun, escrevia no Echo de Paris que a guerra era inevitável e que dela surgiria a redenção da França pecadora. "Eis como em Berlim amam a paz! Mas não julguem que me queixo ou me escandalizo com isso! Esse soberano cumpre o seu dever, cumpre-o nobremente, como chefe de Estado consciente do sentimento da sua alta missão, e o seu exemplo impressiona-me tanto mais quando acrescenta a essas palavras viris um apelo ao auxílio divino que eu desejaria ouvir noutras bocas."

As livrarias estavam cheias de novidades consagradas à nova guerra.

No Parlamento, Jaurès levantara a sua voz destemida para proclamar que "se a luta rebentasse, seria a da reacção da Áustria contra a reacção czarista. A Fiança republicana nada tinha que ver com isso".

Mas na revista do Bal Tabarin cantava-se todas as noites:

Eis que, subitamente, no céu inúmeros cavaleiros enchem de relâmpagos a vaga claridade e o pequeno tricórnio parece guiar essas sombras para a imortalidade!

 

Desejava afastar essa ideia, porque lhe parecia de seu dever ficar a chorá-lo para sempre, numa amargura que gostaria de fazer acreditar aos outros; mas noutras ocasiões vinha-lhe a revolta: "Que respeito lhe poderia merecer, se abalara como o marido - ou pior ainda - , sem lhe deixar uma esperança?... Nem um nem outro lhe tinham dado um filho. E um filho lhe bastaria agora para encher aquela casa vazia e dar um sentido à vida. Nunca mais pensaria em ninguém se o tivesse... Trabalharia dia e noite, sem um desfalecimento, para fazer dele um homem..."

Essa ideia exaltava-a, tomando-lhe a imaginação. Via-se mãe, mais carinhosa do que nenhuma outra, moída de canseiras e sempre resoluta para que nada lhe faltasse. "Mas agora como poderia ser mãe?! Os dois estavam mortos..." E vinha-lhe a tentação de passar à praça, onde os homens a prendiam com o olhar quando ela ia para a igreja ou para a fonte. "Quantas viúvas casavam depois?..." O negro do luto ia-lhe bem à cara, dizia-lhe o espelho e confirmara-lho a mulher do Arrenegado.

"Se ouvisses o Espanhol..." "Alguma estabanice das dele!" "Que és mais picante do que um morrone. E que se te apanhasse a jeito te havia de ensinar uma história que ele sabe."

A outra rira-se, muito gulosa, sempre lambareira em contar intimidades com o seu homem, um bruto que a desancava de porradas, mas que a cansava de prazer. "Tu sabes porque é que ele me bate?... Já mo disse no outro dia... Porque por minha causa não é capaz de sair da aldeia. Fica-lhe uma ciumeira de tudo... Só agora é que percebo porque voltou ele ao segundo dia de ter abalado com os camaradas de segada que foram a Espanha..."

E agitava-se vaidosa daquele amor bruto que fazia recordar a Gracinda os seus encontros clandestinos com o amante. Nascia-lhe então uma ansiedade erótica de repetir esse misto de prazer e de dor que era o contacto com um homem. Do marido ficara-lhe um ressentimento do primeiro convívio na noite da boda - e talvez por isso o esquecera já. Mas do Francisco só ficara uma lembrança deliciosa que se repetia num carinho selvagem. "Ele havia de voltar..."

Sabia que a oportunidade do contacto com o Espanhol não era possível; havia de o evitar desse lá por onde desse. Agradecia-lhe, porém, aquela certeza de ser capaz

ainda de agradar a um homem que recusara a Idalina do Mal-Matado e ia todos os anos a Espanha. O celibato do Espanhol confundia-a de dúvida. "Porque nunca casara, se as raparigas da aldeia o desejavam? Dar-lhes fome e porrada como os outros?, era o que ele dizia na galhofa. Mas seria isso?! Achava-a picante como um morrone e se a apanhasse a jeito..."

Procurava então a convivência da mulher do Arrenegado, para que lhe contasse intimidades. A outra já a percebera e gostava de a ver excitada; e requintava-se nos palavrões e nos excessos do amor com o seu homem.

Gracinda descia depois à praça, dava a saudação aos grupos que por ali esperavam a vindima e ia meter-se na igreja.

As rogas chegaram com as trempes de tocadores. E repartiram-se pelos socalcos, a encher cestos e a atestar lagares.

- Queres vir à vindima do Silvinha? - perguntara-lhe a mulher do Arrenegado. - Ele prefere mulheres da aldeia...

Gracinda lembrou-se logo do Espanhol.

- Ele vai - disse a outra, como se lhe entendesse o pensamento.

- Ele quem?!...

E recusara, para logo depois se arrepender. "Sempre gostava de o ver metediço, para lhe atirar também uma das suas."

Metia-se em casa sozinha - e já sabia que o Francisco não voltava. A música dos bailes das lagaradas vinha, sorrateira, deitar-se consigo e martirizar-lhe o sangue exaltado. Via-se arrastada no rodopio das modas, com aquelas mãos duras a prenderem-lhe as ancas. E uns olhos entornados nos seus...

E a imaginação soltava-se pelas montanhas, descobrindo os pares que se tapavam com as sombras da noite, deixavam manchas de sussurros e gritos abafados na terra grávida, e voltavam depois, de dedos presos, tão felizes de amor que atrás de cada cachopa ia aquele véu de estrelas que Gracinda adivinhava no céu.

O sono nunca mais vinha. E aquela febre queimava-lhe o corpo, pondo-a inquieta como uma poldra.

 

O príncipe Lichnowsky viera para Londres, como embaixador da Alemanha, prosseguir a política que a morte do seu antecessor não podia suspender. Originário da Polónia, esbanjador e orgulhoso, gozava junto da Corte de um prestígio que lhe advinha do brilho das festas esplendorosas dos seus salões. Era ridículo quando se fardava de calção e meia, o que fazia com frequência, sem perceber que a sua magreza esquelética, encimada por uma cabeçorra de cabeleira farta, e ainda a vozita de falsete que possuía, o aparentavam a um desses robertos de feira, desajeitado e estúpido, mas desdenhoso perante tudo e todos.

Convencido de que o seu nome passaria à história, escrevia os passos mais significativos da sua presença em Londres, esmerando-se nas penas que usava e no papel de linho, com o seu timbre a ouro no lado esquerdo. Todos os dias, durante duas horas, encerrava-se no gabinete e tratava da sua celebridade.

"Em 1898, o conde Hatzfele M. Balfour tinham assinado um acordo secreto dividindo as colónias portuguesas de África em esferas económicas de influência entre a Inglaterra e nós. O Governo português, não tendo nem o poder nem os meios de desenvolver as suas colónias e de exercer o seu controlo sobre esses vastos territórios, havia já precedentemente procurado vendê-las para sanear as suas finanças. Um acordo se afirmara sobre esse assunto entre a Inglaterra e nós, acordo que definia os nossos respectivos interesses e que tinha tanto mais valor quanto se sabe que Portugal está sob a completa dependência da Inglaterra. Esse acordo assegurava exteriormente a inviolabilidade e a independência do reino de Portugal e declarava somente o propósito de ajudar os Portugueses financeira e economicamente. Ele não contradizia, pois, o velho tratado anglo-português, datado do século XVI e que sendo, pela última vez, renovado sob Carlos II, garantia as posições dos dois países."

o príncipe bebeu mais um gole de porto, pegou no manuscrito e foi lê-lo depois para junto da janela. Sorria de vez em quando, acariciando a cabeçorra de grenha espessa e negra, e entusiasmou-se tanto com os factos a que aludia como com o seu próprio relato.

"Graças à atitude conciliante do Governo inglês, eu consegui dar ao novo tratado uma forma que concordava em absoluto com os nossos desejos e os nossos interesses. Toda a Angola, até ao 20.º grau de longitude, nos era concedida, de tal modo que atingimos o Congo pelo sul. (O Congo será outra história para mais tarde, pensou.) Além disso, as importantes ilhas de S. Tomé e Príncipe, que estão ao norte do equador e que, por esse facto, pertencem à esfera de influência francesa, foram-nos igualmente concedidas, o que provocou da parte do meu colega francês tão vivos quão vãos protestos. Além disso, obtínhamos a parte norte de Moçambique. O rio Licungo deverá delimitar a zona."

Satisfeito com o que escrevera até ali, o príncipe retomou a caneta e prosseguiu, depois de se quedar uns instantes a recordar o que se "pass.ara na véspera. Grey, o simpatiquíssimo Grey, era tão sincero nos seus desejos de respeitar os interesses já assentes dos Alemães que lhe mandara um grupo de homens de negócios que queriam colocar capitais nesses territórios, como a mais firme demonstração de que aquela esfera já pertencia à Alemanha.

 

Da obrigada só alguns homens tinham acolhido com alvoroço a ideia do Sr. Álvaro em lhes ensinar a ler. Francisco fora um deles e agarrava-se à cartilha em todos os momentos livres, tendo pressa de chegar ao fim e de se ver a juntar letras num jornal ou num livro. O capataz resmungara, dizendo que aquilo ali não era escola e que na Companhia não iam gostar quando soubessem.

- Para terem ideias más já lhes chega a cabeça, quanto mais os papéis. Não quero cá disso!...

O Sr. Álvaro pensara ainda em responder-lhe como devia, mas achou depois que tinha tempo de lhe falar a preceito noutra altura. À noite, fechada a barraca, e com o grupo à volta duma vela, para que a luz não se visse de fora, as lições prosseguiam com regularidade. O capataz acabou por fazer a vista grossa, satisfazendo-se com o respeito daquela clandestinidade.

- Lê tu, Francisco!

E o Teimas abria o seu livro, a tremer de emoções, e juntava sílabas, mastigava as palavras e repetia-as depois, em voz mais firme, quando lhes percebia o sentido e tinha a certeza de que não se enganava.

- Qualquer dia és capaz de escrever uma carta sozinho... Hás-de experimentar no domingo...

Francisco lembrava-se dos filhos e do pai - que fariam àquela hora? E quando andava na via, debaixo daquele sol de desancar um gigante, pensava nas letras e reunia-as, vendo-se a desenhá-las com o bico do aparo na folha de papel que havia de comprar na estação do Tua quando a brigada lá chegasse, daí por uns dias.

O capataz via-o diferente daquele homem que de começo trabalhava como um doido e lhe servia de "puxa" para os outros trabalhadores. E por isso mesmo o hostilizava agora mais do que a nenhum outro:

- Vê lá esse trabalho!... Estragaram-te em pouco tempo!... O mal aprendem vocês depressa!...

Francisco Teimas nem o olhava de banda. Sorria-se para dentro, percebendo agora o significado daqueles remoques. Ele queria era chegar a domingo para fazer a carta e esperar depois a resposta que o Luís lhe havia de escrever ao serão, perguntando ao avô o que queria que dissesse.

"E se com a carta a Gracinda me aparece?", pensou Francisco. "Não escrevo, acabou-se. Um dia vou à aldeia e procuro falar-lhe." Mas sentiu um baque no coração quando pensou nisso.

Dos jornais:

No banquete da Sala Branca, por ocasião do casamento da filha de Guilherme II, três soberanos europeus, árbitros dos destinos do mundo, o imperador da Alemanha, o imperador da Rússia e o rei de Inglaterra, ergueram ao champanhe a sua taça, fazendo votos para que o amor da humanidade, o mais belo de todos os amores, incendeie para todo o sempre o coração frio dos reis.

O embaixador russo em Paris estava convencido de que a enterite da Inglaterra com a Alemanha fora destruída. E escrevera nas suas memórias: "Poincaré pronunciou-se da maneira mais categórica contra tal convenção; significou ao Governo inglês que, num momento em que não existia entre a França e a Inglaterra uma convenção política geral, a assinatura de um tal acordo com a Alemanha e a Inglaterra poria fim, imediatamente, às relações franco-inglesas existentes. A objecção teve o resultado esperado e o Gabinete de Londres repeliu a proposta alemã, o que causou em Berlim um profundo mau humor."

Isvolsky e o Gabinete francês enganavam-se, porém. As negociações voltavam a ser objecto da maior atenção de Berlim e de Londres, embora o programa alemão de rearmamento seguisse a proposta do general von Ber-nhardi. Um bilião e meio de impostos de guerra eram votados no Reichstaéquase por unanimidade, contando também com os votos socialistas.

Em Lisboa, as coacções alemãs e inglesas faziam-se sentir - uns agiam pela violência, os outros pela persuasão de aliados - com o objectivo de que fossem reduzidos em Angola os direitos preferenciais de importação e os direitos de trânsito de mercadorias.

O novo governador de Angola, conhecendo os efeitos perniciosos do álcool sobre os negros, proibira a importação e venda de aguardentes e destilação de bebidas indígenas.

E uma garrafa de aguardente, que sempre se vendera a altos preços, passara a valer um boi adulto; em Portugal, ela faltava para os lavradores durienses alentarem os seus vinhos.

Por toda a província, os colonos alemães intensificavam a agitação; e os levantamentos indígenas tornavam-se cada vez mais frequentes, obrigando as tropas a intervir em expedições punitiva*.

 

A um canto do corredor, embrulhada no seu xale negro e isolada de todos, como se receasse que o olhar das outras testemunhas lhe viesse arrancar alguns dos seus argumentos, Gracinda tentava passar revista ao plano que concebera para aquele momento que se aproximava. A sua ansiedade ia terminar daí a instantes, quando o homenzito de capa preta viesse à porta chamar pelo seu nome. Sabia que lhe iam perguntar muita coisa, lembrava-se, como se fosse hoje, daquele julgamento a que assistira em criança.

Dia após dia, laboriosamente, com uma agudeza de raciocínio de que nunca se soubera capaz, engendrara todo o plano e as palavras de que se serviria para o seu depoimento. Certos pormenores começavam, porém, a escapar-se por entre as falhas daquela excitação interior que não era capaz agora de dominar, embora se mostrasse calma, numa resignação dolorosa que ela sabia ser a sua melhor arma perante o tribunal.

A cabeça parecia crescer-lhe sempre, e cada vez mais, num esmagamento físico do seu corpo mirrado; repetia, mentalmente, uma daquelas perguntas que para si fizera, e a resposta, que ainda naquela noite lhe saltara rápida, numa presteza que a maravilhava, nunca mais vinha, por maiores esforços que fizesse para a trazer aos lábios. Daquele momento dependeria o seu futuro, tinha a certeza.

Então cerrava os olhos, como se pudesse limpar o cérebro de todos os embaraços que o desnorteavam, e ficava queda, puxando o xale ao rosto, de costas voltadas para os outros. Sabia que o velho Teimas estava entre a gente que enchia a casa do tribunal, e era mais para ele do que para ninguém que desejava falar. Vira-o à porta e o velho olhara-a com rancor, como se lhe dissesse: "Foste tu, e só tu, que tiveste culpa de que o Francisco desaparecesse."

"E se ele estivesse morto?!..."

Mas ela não podia acreditar, não queria acreditar, que isso fosse possível! Ele teria de saber do seu comportamento depois daquela noite; e do que queria dizer ali...

A porta rangeu novamente e a cabeça calva do homem da capa preta apareceu; deu-lhe um baque em todo o corpo e o coração bateu-lhe às punhadas. Queria olhá-lo bem, desejava ouvi-lo, mas um turbilhão de ideias e uma vertigem sem fim rodopiava com ela no corredor estreito, como se a atirasse de encontro às paredes. Depois tocaram-lhe no ombro, disseram-lhe qualquer coisa junto ao ouvido e a voz do homem bradou mais alto: "Vamos depressa!..."

iNão percebia agora como chegara até ali. Via um mar de cabeças confusas, olhos que se desprendiam das órbitas e corriam para ela, querendo fixar os seus, vozes e mais vozes, como se toda a gente gritasse - palavras e olhos que rodopiavam à sua volta numa alucinação, girando sempre, e que a apertavam num círculo que a iria esmagar.

- O Sr. Doutor Juiz está a perguntar-lhe...

"Mas que lhe perguntava ele? E como saberia o Francisco das suas intenções, se ela não era capaz de articular uma palavra, de ouvir, sequer, o que lhe diziam do alto daquela banca, alta e poderosa como uma montanha?..."

Mas num repente, sem saber como, conseguiu distinguir uma voz no meio daquele caos de vultos e de alucinações; e percebeu-a com nitidez, destacada de tudo o mais: "A testemunha já fez o seu depoimento e talvez baste ao tribunal que se leia o que ela disse."

- Não! - disse, erguendo-se num impulso.

E repetiu a mesma palavra num frenesi, como se agitasse um gume que ia cortando as amarras que a apertavam. Pouco a pouco, começou a perceber o que se passava à sua volta: o círculo de ferro afrouxava, desfazia-se e deixava-a ver e pensar. À sua frente, de costas, estava o réu. E não era o Manuel Inverno, velho e abatido, que ela tinha perto dos seus olhos e das suas mãos, mas o amante, que lhe sorria com aquele tique no rosto, pedindo-lhe que dissesse tudo, porque depois a vida seria para ambos.

À confusão seguiu-se um silêncio pesado.

- Já está capaz de responder ao tribunal? Gracinda acenou com a cabeça, compondo o xale e

puxando o lenço para a cara. Não se lembrava do que queria dizer, mas já tinha a certeza de que era capaz de falar.

- Quero dizer toda a verdade...

- Mas não a disse quando foi ouvida?

- Não!

Seguiu-se um ruído de agitação na sala, a que o juiz pôs cobro, impondo silêncio.

- Porque não o fez?!

A pergunta ficou a vibrar nos seus ouvidos. "Se fosse capaz de responder àquilo, diria tudo o que pensara." Hesitou ainda por um instante; a boca secara-se-lhe e segurava-lhe as palavras. Depois, num esforço, respondeu numa voz sumida.

- Poderá falar mais alto? - disseram-lhe.

- omeu marido morrera há pouco tempo... e o desgosto não me deixava dizer tudo. Mas agora... já posso contar a verdade...

A confusão desfizera-se à sua volta. Estava ali sozinha a repetir a si própria o que durante tantos meses concebera.

- Meu marido era bom... mas gostava muito de dinheiro... Por dinheiro seria capaz de ir ao cabo do mundo...

- De ir até ao crime? - disse o advogado de defesa. Gracinda baixou a cabeça.

- O silêncio da testemunha me basta, Sr. Doutor Juiz e Srs. Jurados.

Novo sussurro percorreu a sala.

- Queira continuar...

"Para que a interrompera aquele?! Deixassem-na dizer tudo a seguir..."

- Um dia o Tio Manuel Inverno - recomeçou depois de uma pausa longa - foi-lhe pedir dinheiro emprestado para tratar das vinhas. Ele emprestou-lho com juros...

- Sabe de quanto?!...

- Acho que a vinte... E obrigou-o a assinar um papel.

-Que dizia esse papel?!

- Que as terras lhe ficavam de penhor... Ele era meu marido... foi sempre amigo de fazer casa.." mas...

- Diga, diga! - ¦ insistiu o advogado, vendo que Gracinda hesitava.

- Deve dizer toda a verdade ao tribunal - disse o juiz numa entoação grave. - Das suas palavras, que assistiu a tudo, pode depender este julgamento. E nós estamos aqui para ministrar justiça!

Gracinda adivinhava o que aquilo queria dizer, embora para si o significado fosse outro. "oFrancisco saberá de tudo o que se vai passar." Esse pensamento deu-lhe novas forças.

- Quando emprestou o dinheiro... foi com a mira das terras. Ele sabia que o Tio Inverno não podia pagar tudo num ano. Mas queria fazer uma quinta com o que apanhasse...

- E por isso emprestou a vários, não é assim?! Gracinda respondeu num aceno de cabeça.

- Porque não o dissuadiu?

A pergunta embaraçou-a. "Que queriam dizer com aquilo? Estariam a culpá-la também?"

- Porque não lhe disse que... não devia proceder dessa maneira? Percebe agora?

- Pedi-lhe muitas vezes... Mas ele zangava-se comigo. Até que veio aquela vindima em que a chuva quase não deixou um bago... E ele ficou contente. Mandou chamar o Tio Manuel, gritou-lhe...

- E depois bateu-lhe - disse a mesma voz que a interrogava. "Porque a interrompia?", pensou Gracinda.

- Sim, bateu-lhe muito, à minha frente. E jurou-lhe que lhe ohavia de tirar as terras... Disse-lhe que o matava...

- O réu?!...

- Não, o meu marido - respondeu com firmeza.

Manuel Inverno voltou-se para ela, sem perceber onde Gracinda queria chegar. No tribunal a agitação cresceu. O delegado e a defesa travaram um diálogo vivo.

- Veja bem o que está a dizer!

- Estou a dizer a verdade...

- Repita!

Repugnava-lhe falar naquilo outra vez. "Para que a queriam obrigar?!"

- Vamos! Então?!...

- Ele disse que o matava, se não lhe entregasse as terras. Mandou-me buscar o papel... e mostrou-o...

- Mas o réu afirmou que o assassinado só lhe batera depois de ele ter queimado o documento que o seu marido tinha na mão.

Gracinda olhou o velho com rancor.

- Não é verdade! - disse, elevando a voz.

Fez-se a acareação e Manuel Inverno hesitou; percebeu que o queriam ajudar a viver ainda para os seus netos e agarrou-se a essa esperança.

- Eu não sei bem como foi... Ela é que deve falar direito.

Os jurados entreolharam-se; o advogado tomou notas, acenando a cabeça com satisfação.

- Mas o crime foi cometido meses depois...

- E houve, portanto, premeditação - interveio o delegado.

"Ia chegar agora à parte mais custosa... Seriam capazes de a acreditar?!... Que lhe perguntariam depois?"

- O réu foi bater-lhes à porta e quando o seu marido apareceu...

- Não é verdade!

O juiz teve de impor novo silêncio, ameaçando o público de mandar fazer a evacuação da sala; os jurados falavam entre si, com excitação.

- A testemunha sabe o que está a dizer? - perguntou o juiz.

"Precisava agora de toda a sua coragem. O marido já estava morto e nada remediaria..." Ergueu, então, a cabeça com firmeza e, apertando as mãos debaixo do xale, para não se trair, respondeu a meia voz:

- Meu marido saiu antes de eu ouvir os tiros...

- Antes como?!...

- Quando ouviu os enzoneiros... Agarrou na espingarda e saiu. Disse que lhas haviam de pagar...

E rompeu em soluços.

 

Isolada e receosa depois de o sogro lhe lançar uma praga - Que o sol seja pra ti mais negro do que a água do Douro, maldita!" - , Gracinda deixara sair toda a gente para voltar sozinha à aldeia. Sentia-se abandonada, repelida por todos como dantes, e só uma esperança - que até essa lhe parecia naquele momento mais duvidosa - a procurava ainda acompanhar na sua solidão. "E se o Francisco nunca soubesse do que ela fizera?!"

Quando se aproximou da porta do tribunal e viu o povo, em silêncio, aos magotes, a olhar para ela, recuou, num instinto de defesa, e pensou num repente, fugir lá para cima, pedindo que a protegessem. Mas alguém a segurou por detrás e aquele contacto deu-lhe vontade de gritar; logo, porém, uma voz a aquietou: "Fizeste uma bonita acção, Gracinda! Ainda bem..."

Então, sem se voltar, amparada por aquelas mãos, fora capaz de descer os degraus e aproximar-se dos que a esperavam. E viu agradecimentos nos primeiros olhares por aquilo que dissera em favor de Manuel Inverno.

Anoitecera. A sentença fora lida já depois do sol-posto e, embora fria, a noite estava acolhedora com o luzeiro das estrelas no céu e uma vaga claridade da Lua, oculta ainda por detrás de um monte. Os olhares e o silêncio comoveram Gracinda - e mais do que tudo aquelas mãos que iam sobre as suas ancas e que não eram do Francisco, mas que o recordavam. Acabara-se a hostilidade do velho e da aldeia; António Teimas nunca mais lhe diria, como naquela vez em que o procurara: "Vai-te daqui e nunca mais voltes, porque desgraçaste três homens!..."

"Tudo seria ainda melhor se o Inverno pudesse sair naquela noite da cadeia", pensava ela. "Só o António Francisco..." Desejava poder ignorar que ele fora o seu marido e recordava-o com tristeza - com uma amargura que ela queria recalcar para só pensar agora no amante.

O ruído dos passos arrastados que a seguiam pela estrada fazia-lhe bem. Cachopos choravam de sono e de frio; os gritos dos retardatários eclodiam na noite, para logo se fundirem naquele sussurro que a acompanhava, como o rumorejar duma galeira no rio Douro.

- Vá mais devagar, Tio António.

- O Francisco vai gostar do que fizeste... Foi uma coisa bonita! Sabes que chorei?... Toda a gente chorou!

- E ele voltará, Tio António? Se souber onde pára, vou ter com ele...

Falavam ao ouvido um do outro, embora o velho não pudesse compreender o que Gracinda lhe dizia; mas tinha a certeza de que ela lhe falava no filho.

- Se vossemecê deixar, eu vou pra sua casa... Trato de si e dos rapazes...

O velho não ouvira as suas palavras e parou para fazer um aceno ao neto. Luís trouxe o burro e ajudou o avô a montar.

- O teu irmão?...

O rapaz encolheu os ombros, mas sorriu de uma maneira que o velho já não tinha olhos para entender.

Atrás deles o povo seguia agora em silêncio.

Chico Teimas não ia perto do avô porque a noite estava linda e ele nem lhe sentia o frio.

A Maria do Rosário ficara para trás na sua companhia e se não fosse com medo de se denunciarem cantaria uns versos que lhe fizera e ela gostava de ouvir. Mas esses versos dizia-lhos agora, boca com boca, agarrando-a naquele atalho por onde a levara e parecia atapetado pelas estrelas que os espreitavam do céu.

O Sandão e o Espanhol tinham feito grupo com outros homens e quiseram festejar aquele dia, sem talvez perceberem porquê.

Em silêncio primeiro, incapazes ainda de dominarem aquela emoção que os agarrara na sala de audiências, tinham-se metido numa taberna. Vieram rodadas, esqueceram-se de que o Inverno ainda não acabara e ia duro para eles e cantaram e bailaram à frente da cadeia, para que o velho os ouvisse. Um guarda veio afastá-los dali e eles meteram pela estrada, de braços presos uns nos outros, ora numa berma ora noutra, como um harmónio que se abrisse e fechasse.

O Sandão teimava em voltar atrás e perguntar ao guarda se era proibido estar defronte da cadeia a cantar;

e procurava convencer o Espanhol para ir com ele. Mas esse levava outra ideia ferrada e queria chegar depressa à aldeia.

- Vamos daí!...

Las mujeres d'Alcocillo Compraran una romana...

O Sandão insistia naquelas toadas aprendidas nas segadas de Castela e largara-se do grupo, baixando os olhos ià luz do luar, que já se mostrava e o aturdia mais do que o vinho.

Las mujeres d'Alcocillo...

O Espanhol é que o não escutava. E quando chegou a casa, sem dar ouvidos à omãe, agarrou na espingarda e foi para a praça da aldeia esperar que os outros chegassem. Mal os viu, atirou o primeiro tiro à Lua. E ria e cantava também, aos tordos.

- Esta noite ninguém dorme nesta terra... Vão buscar as espingardas!...

E seis homens acordaram todo o povo com a fuzilaria. - "Nem que me mate, hei-de deitar a Lua ou uma estrela abaixo...

 

O Governo da República tivera de encarar o problema dos orçamentos com firmeza e decisão, para não se afundar na mesma crise de impotência que derrubara a realeza. As coacções externas tornavam-se mais frequentes e endureciam de exigências, no propósito de negociar as

colónias a troco de empréstimos oferecidos pelos banqueiros alemães. A marinha germânica rondava os portos do ultramar e mostrava-se agressiva para com a soberania portuguesa, provocando conflitos que só a decisão de alguns governadores soubera impedir que chegassem a desembarques de tropas.

A união dos partidos fizera-se perante a ameaça constante desse perigo nacional.

Sabia-se que a média dos déficits dos orçamentos anteriores à revolução orçava por 6000contos e que o Tesouro deixava de cobrar anualmente 8000contos de contribuições, devido às manobras políticas dos grandes proprietários rurais. Falhadas as suas incursões, os adversários do regime desejavam aproveitar todas as oportunidades para gerar o descontentamento do País, fomentando pequenas revoluções e agitando os descontentes, de maneira a poderem dar o golpe mortal no momento próprio.

O dever nacional tinha de se sobrepor, porém, a esses fundados receios. E a lei de 15 de Fevereiro de 1913 fora publicada, mandando multiplicar pelo factor 6,112 o rendimento colectável inscrito nas matrizes prediais. Já de sobreaviso por elementos de confiança dentro dos partidos da República, os grandes proprietários manejavam os seus interesses por detrás dos sindicatos agrícolas, os mesmos que haviam ficado apáticos, e por processo igual, perante o decreto das caixas de crédito mútuo, que um ministro do Fomento quisera levar à prática, no intuito de arrancar a pequena e média lavouras aos desmandos dos usurários.

Todos pareciam apostados em lhe desferir golpes para o deitarem abaixo, mas ele respondia-lhes sempre com a mesma coragem para prosseguir, embora nalguns momentos temesse as últimas consequências dessa luta.

O primeiro sinal viera da D. Maria Albuquerque, a da quinta do Ramalhão, viúva de um fidalgo a quem ele tratava dos negócios, colocando-lhe os vinhos e recebendo-lhe as rendas. Mandara buscá-lo, uma tarde, pelo caseiro e recebera-o na casa de jantar, junto à varanda onde passava os dias, entregue aos seus bordados e à leitura. Gonçalves percebera imediatamente que alguma coisa de grave se passava. "Ter-lhe-iam dito que ele vendera por mais dinheiro a produção do ano anterior? O Sepúlveda, que lha comprara, seria muito capaz de uma malandreira dessas!"

- Sente-se - dissera-lhe D. Maria, sem o fitar. Na mesa não havia nem as xícaras nem os bolos do

costume - uns bolinhos de mel que ele adorava e nunca se cansava de gabar.

- O que eu tenho para lhe dizer, Gonçalves, é muito aborrecido... Eu podia talvez arrumar isto sem uma explicação. Acabou-se, acabou-se, você tratava da sua vida, que eu arranjaria outro procurador...

- Mas que se passou, Sr.a D. Maria?-perguntara, aturdido. - Tenho a consciência de que nunca faltei aos meus deveres...

A viúva tivera uma expressão de desdém, mas os seus íntimos sabiam que aquelas duas rugas na testa queriam dizer sofrimento.

- Os seus deveres!... Eu não acredito que tenha podido supor que eu permitiria a sua entrada nesta casa depois do que se passou.

- Mas que se passou, afinal, Sr.ª D. Maria Albuquerque? Zelei sempre os seus interesses como se fossem os meus...

- Não é isso, Gonçalves! - respondera a viúva, forçando ainda mais o volver da cabeça para o não encarar. - Se eu soubesse que me tinha enganado nas contas... eu saberia perdoar-lhe.

Uma ponta de emoção, que ela não podia dominar, embargava-lhe a voz.

- Mas esse passo com uma mulher de circo é uma imoralidade, Gonçalves! Toda a Régua fala de si...

E levantara-se, encaminhando-se para a porta. Ele pensara em segui-la e detê-la, para lhe explicar que tinha o direito de gostar de alguém.

- É um escândalo o que fez!

Por momentos, Gonçalves tivera a impressão de que ela iria cair de um instante para o outro; mas depois vira-a dominar-se e dizer-lhe as últimas palavras, já voltada para onde ele estava:

- Pense bem... E daqui por uma semana, se estiver arrependido...

- Nunca m'arrependerei, minha senhora! Recusara o carro que o caseiro lhe oferecera e voltara a pé para casa. No outro dia devolvera-lhe os papéis e os recibos, sem mais explicações. "Fizera-o com sacrifício... Nunca percebera que aquela mulher gostava dele. Viera tarde, porém... Não ia afastar Elisabeth, nem seria capaz de fazer a vontade a essa canalhada que se ria, quando passava, e criara à sua volta uma teia de intrigas... Queriam guerra, tê-la-iam..."

Agora, com aquele desaire das compras que fizera, é que percebia bem a falta que lhe causavam as informações obtidas no seu lugar da Companhia Velha. "Cercavam-no por todos os olados...", pensava.

Quando, porém, chegava a casa e Elisabethvinha esperá-lo ao cimo da escada, todos os receios se desvaneciam nos seus braços. E acabava por se sentir feliz com tantos despeites.

Produtor de vinhos e comerciante em larga escala, poderoso proprietário alentejano e nas lezírias, accionista de indústrias e de bancos, **Barãona pusera toda a sua poderosa máquina de agitação contra a lei publicada. Oculto, ou às escâncaras, era ele quem encabeçava as comissões e os protestos assinados pelos lavradores que chegavam ao Terreiro do Paço.

Borges Alves fora chamado a Lisboa para agir no Norte, de maneira que se desse a impressão de um levantamento nacional contra os desmandos governamentais. As vozes dos poucos proprietários que compreendiam a gravidade da situação eram abafadas nas assembleias públicas; e alguns abandonavam-nas pela violência dos ânimos excitados. Avesso a desmandos, Borges Alves não pudera recusar o encargo, perante a certeza de que seria esmagado se negasse a sua colaboração. "Que iria fazer depois? Que forças tinha ele para se opor àquela corrente poderosa?!"

oFreitas oferecera-lhe o seu apoio incondicional. E voltara ao Douro para correr os centros de maior influência, incitando os descontentes a agir com prontidão. Ele sabia que o (**Barãona estava consigo, e com um aliado daqueles não haveria que recear. oFischer, por sua vez, também lhe agradeceria a actividade.

O fenómeno não era nacional, mas europeu. Os agentes diplomáticos da França informavam nos seus relatórios o que se passava na Alemanha: "As forças da paz são a massa profunda dos operários, dos artesãos e dos camponeses, pacíficos por instinto, um grande número de industriais, de comerciantes e de financeiros de média importância. Mas elas não passam de forças de contrapeso, cujo crédito sobre a opinião é limitado, forças sociais de silêncio, passivas e sem defesa, contra o poderio dum contágio bélico. Do outro lado está um partido de guerra, com chefes, tropas, uma imprensa convencida ou paga para fabricar a opinião e variados meios para intimidar o Governo. Este partido é toda a nobreza agrária, de tradições militares, é a grande burguesia, hostil ià França, reputada revolucionária, são os grandes comerciantes que desejam mercados mais vastos, todos os funcionários que se recordam de Bismarck, os intelectuais saídos recentemente das universidades, onde os economistas demonstram a golpes de estatística a necessidade para a Alemanha de um império colonial e comercial que corresponda ao rendimento industrial do império."

 

A Primavera sentia-se naquele ar doce que sacudia os corpos. E as árvores pareciam espreguiçar-se, abrindo os ramos, ao acordarem da letargia dos dias cinzentos e tristes de um Inverno longo. Receosas ainda, abriam-se as primeiras flores em Paris e (Berlim, em Londres e Viena, em Roma e Sampetersburgo. Por toda a Europa mais flores enfeitariam os cestos das floristas, os colos das mulheres mais elegantes e as blusas das camponesas, as botoeiras da burguesia e os chapéus dos homens rudes dos campos.

Mas também em muitas zonas da Europa alguns homens mandavam fabricar espingardas e canhões, cruza-dores e metralhadoras, e procuravam vendê-los por toda a parte, subornando onde havia hesitações, enchendo colunas de jornais, movendo governantes, comprando altas patentes e homens de qualquer condição, cujas mãos não tremessem no momento de um atentado.

As fábricas Krupotrabalhavam de dia e de noite... As fábricas de Creuzootrabalhavam de noite e de dia... As fábricas da Vickers-Armstronétrabalhavam de dia e de noite... As fábricas Skoda e Putilofotrabalhavam de noite e de dia...

Trabalhavam sempre a um ritmo incessante, pagando salários altos. De dia e de noite... De noite e de dia... No fundo das minas, à boca das fornalhas, no inferno de metais fundidos dos altos-fornos, milhares de homens, aos rebanhos, apressavam o pulsar de uma máquina que os destruiria.

Flores de aço nasciam tão depressa nos estaleiros e nas fábricas como as flores que começavam a romper nos campos.

O regresso à lei dos três anos no exército francês fora proposto pelo ministro da Guerra; e um conselho de ministros, presidido por Poincaré, que chegara à presidência da República, aprovava-o por unanimidade, na presença de Jofre e de onze generais.

O Ministério Briancaíra dias antes, por se recusar àquela atitude de provocação que colocava um exército em tempo de paz, num país de 39 milhões de habitantes e numa cifra de 800000homens.

Guilherme II era um débil com ambições de gigante.

Profundamente religioso, julgava-se um eleito de Deus. Num discurso célebre afirmara que "a meu turno, con-sidero-me como o instrumento do Senhor, e seguirei o meu caminho sem me ocupar com o juízo e as opiniões dos homens". O seu caminho indicava-o ele mais tarde, numa arenga dirigida aos soldados alemães que partiam para a China: "Nada de quartel! Nada de prisioneiros! Exterminai todos aqueles que caírem nas vossas mãos! Assim como há mil anos os Hunos, soo comando do seu rei Átila, conquistaram um nome que até ao presente, transmitido pela tradição e pela lenda, surge formidável, assim Vós deveis tornar o nome alemão tão terrível para os Chineses que dele se recordem durante mil anos..."

O seu projecto da Liga Continental falhara, bem como o financiamento da linha férrea de Bagdad, sua via de penetração para o Oriente. Aquele seu encanto pessoal, cujo segredo residia na forma fácil como se adaptava a cada pessoa com quem tinha de tratar, começava a abandoná-lo.

Um deputado ao Reichstaédenunciara, em plena tribuna, os expedientes dos armamentistas. Era Liebknecht, que acabara o seu discurso com a leitura duma carta escrita em 1907 por Paul Goutaracerca de certos negócios: "A razão deste telegrama é que queríamos ver publicado num dos jornais mais lidos em França, sendo possível no Figaro, um artigo sobre o seguinte tema: o comando do exército francês decidiu acelerar o seu reequipamento em metralhadoras e encomendar o dobro do que fora previsto anteriormente."

"Para que são estas maquinações?", perguntara o deputado.

(Dias depois, um deputado do centro, Erzberger, declarava na mesma tribuna "que uma personalidade lhe demonstrara que uma tonelada de chapas blindadas podia ser reduzida em 50% do seu preço pago pelo ministro da Marinha, o que ainda deixaria um lucro bastante apreciável".

"Quem paga estes preços astronómicos?!..."

Outro alemão, Otto Lehman, denunciava numa obra a natureza dos negócios dos industriais da morte.

Entretanto, a casta militar que rodeava Guilherme II incitava-o a aceitar a guerra como inevitável.

Em Maio desse ano de 1913, o rei de Inglaterra visitou Berlim.

O tratado para a divisão das colónias portuguesas estava pronto. Fanfarras e desfiles, banquetes e discursos, celebraram o encontro dos dois mais poderosos soberanos da Europa e do mundo.

Lichnowsky, o embaixador alemão em Londres, escrevia nas suas Memórias: "Nesta data, a conferência realizou-se em Berlim, sob a presidência do chanceler do Império. Tomei parte nela e definiram-se desejos novos."

! Em Agosto, com essas propostas já incorporadas no texto, o acordo anglo-alemão era rubricado por Sir Edward Grey e pelo diplomata germânico. Dois meses antes, a Bulgária atacara a Sérvia, numa segunda guerra balcânica. Em auxílio do país atacado, as tropas romenas avançaram até aos arrabaldes de Sofia; e fora o momento de os Turcos reconquistarem a Trácia.

Por detrás de uns estava o czar; por detrás dos outros o Kaiser. E empurrando os dois Sir Bazil Zaharof, Krupp, Voss e todos os outros cujas fábricas trabalhavam de dia e de noite.

 

Os sintomas avolumavam-se. Na véspera, um dos jornais londrinos, o Daily Chronicle, encetara um violento ataque contra o Governo português, soo título "Tragedy in Portugal", em que relatava, pela pena de um tal Gibbs, o tratamento desumano que na Penitenciária de Lisboa se dava aos presos monárquicos. Repetiam-se os manejos e os processos, para que, aos olhos do povo inglês, a assinatura do tratado não aparecesse como uma traição a um país aliado e amigo. Da outra vez, fora a intensificação da campanha dos chocolateiros, por causa da mão-de-obra em S. Tomé; agora era mais aquela falsidade, que ele precisava de negar, mas com elementos concretos. Já escrevera para Lisboa a perguntar se Gibbs escrevera alguma coisa no livro dos visitantes da Penitenciária. Preparava-se um comício contra o Governo republicano, e Soares lamentava que os emigrados portugueses não compreendessem que estavam a comprometer, não um regime, mas o seu próprio país, tanto mais que eles bem conheciam o tratado que ia assinar-se. "Ele nunca seria capaz de proceder daquela forma para fins políticos!", pensava com amargura.

O nevoeiro parecia adensar-se ainda mais e acabrunhava-o.

Cassei chegou à hora exacta e caminhou para ele, de mão estendida, numa exuberância que lhe não era comum.

- As coisas melhoraram, Soares. A City meteu-se no assunto de Angola e marcou a sua hostilidade ao Governo. As minas de cobre da Catanga, no Congo Belga, estão já com um apreciável rendimento e o nosso Robert Williams precisava de dois milhões de libras para levar o caminho-de-ferro de Benguela de além Huambo até à fronteira congolesa. Não sei se o Governo conhece este pormenor...

- Há tanta coisa! - respondeu Soares, servindo-lhe o chá.

- Sim, muito mais do que seria para desejar... Mas o nosso Governo atirou com Williams para os banqueiros alemães, desejando concretizar as negociações já levadas a cabo quanto às zonas de influência inglesa e alemã. Os banqueiros da City, porém, souberam da sua ida a Berlim e frustraram os planos. De resto, Williams, quando foi falar ao ministro das Colónias alemão, o Dr. Solf, ia só para o ouvir. E creio que ouviu boas coisas!

- Obrigado,Cassel - disse Soares. - É sem dúvida uma (boa notícia... Mas quando acabarão estas operações financeiras que comprometem a independência dos pequenos países?!

- Quem o pode dizer, Soares!... É claro que o Governo inglês percebe a necessidade do expansionismo alemão e procura desviá-lo para onde mais lhe convém. África é um mundo que mal se conhece, e aí eles serão menos ameaçadores do que na Europa. Procura-se evitar a guerra...

- Mas todos os dias se produzem armas sem cessar. E ! há por aí tanta gente que precisa de casa e de pão!

- Para isso não existem verbas nos orçamentos, meu caro Soares. O imperialismo é cego... Eles julgam que o inundo vai aquietar-se depois de se encontrar um vencedor nesta luta. E enganam-se! A guerra nunca resolveu nenhum problema... E agora menos do que nunca! A indústria é um facto novo, de que eles desconhecem as consequências... Para eles, a indústria é só uma poderosa força de lucros e de expansionismo. Mas é muito mais do que isso, e até o oposto do que julgam.

- O mundo precisava de ser dirigido por artistas...

- Tenho opinião diferente da sua. Os artistas precisam é de compreender que o imperialismo acabará por sufocá-los quando achar que os artistas o incomodam... Eles quererão, um dia, secar todas as fontes da sensibilidade humana, não se importando que haja poesia, mas com uma única condição: a de que os poetas cantem os produtos das suas fábricas. E o mesmo sucederá aos pintores e aos músicos...

- Mas a arte não se mata...

- É preciso, porém, que os artistas saibam defendê-la, percebendo a tempo onde está o inimigo.

O mordomo bateu à porta, para informar que chegara uma carta de Lisboa.

- Entre! - disse Soares, excitado. - Desculpe, Cassel, mas é possível que seja qualquer coisa de muito importante.

Rasgou o sobrescrito e devorou o seu conteúdo, transformando-se-lhe a preocupação num sorriso aberto.

- Que dirá agora esse tal Sr. Gibbs? Ouça, Cassel: "Fiquei impressionado com a perfeita limpeza e a excelente organização de tudo quanto vi nesta cadeia. Soo ponto de vista sanitário, parece ser admirável." Foram estas as palavras com que esse jornalista relatou as suas impressões da Penitenciária de Lisboa. E chega a Londres e faz esse escândalo que você conhece...

Atirou com a carta para cima da mesa e levantou-se.

- É preciso que amanhã, o mais tardar os jornais londrinos reproduzam estas palavras do Sr. Gibbs...

O Governo português não pudera adiar por mais tempo a satisfação daquela exigência da Inglaterra e da Alemanha. E em meados de Novembro fizera-se a assinatura do decreto da política de porta aberta em Angola, deixando ao respectivo governador o encargo de lhe dar execução, apesar de este se lhe ter oposto com a maior firmeza.

Era uma maneira hábil de prepararem a entrada em vigor do tratado que estava prestes a ser assinado entre Alemães e Ingleses. A "Mittelafrika" do Dr. Solécomeçava a ganhar alicerces, mesmo contra os desejos da City.

Em Berlim, no discurso de abertura do Parlamento, o chanceler do império declarava, para ganhar os votos e a confiança do partido colonial, que a divisão das colónias portuguesas com a Inglaterra seria um facto dentro de dias.

A opinião portuguesa excitava-se.

O decreto da porta aberta em Angola vinha juntar-se ao aumento dos impostos à grande lavoura. A classe operária não esquecera também o encerramento da segunda Casa Sindical, a pretexto da bomba que rebentara na Rua do Carmo, à passagem do cortejo camoniano, e a prisão de alguns militantes sindicalistas destacados que haviam sido transferidos para o forte de Elvas.

A luta pelas oito horas de trabalho, em lugar das doze que se faziam, prosseguia sempre com entusiasmo.

 

- Temos de aproveitar esta desorientação do Governo - dizia **Barãona para Cunha Ferreira. - É preciso que a Associação Comercial se imponha e mande a Londres uma comissão arrancar o tratado com a Inglaterra. Os vinhos do Sul precisam de chegar depressa até lá. Esse Dr. Freitas tem sido um bom auxiliar no Porto e é preciso fazer sentir ao Borges Alves que o deve premiar de qualquer forma...

- Acho que o vai fazer seu genro...

- É uma maneira fácil de termos o outro bem aperreado, obrigando-o a esquecer-se dos seus idiotas melindres regionais. Force a coisa na Associação Comercial... o Dr. Caldas garante que é preciso agirmos agora com rapidez e firmeza. Mas que os jornais não dêem o alarme.

Depois de Cunha Ferreira sair, **Barãona foi atender o presidente da direcção do asilo de velhos que protegia. Do tempo escasso de que dispunha, depois dos afazeres dos seus múltiplos negócios, **Barãona distribuía-o pela sua coudelaria de cavalos famosos na Península e por aquele asilo. Visitava os seus "velhotes" sempre que podia e andava agora preocupado com um novo modelo de boné para o fardamento. o outro trazia-lhe, certamente, o desenho e o preço que o chapeleiro propusera

Estendeu-lhe a mão num cumprimento amigável, mas logo franziu o sobrolho.

- O Mendes já sabe que eu não disponho de tempo para fazer contas... Devia apresentar-me uma nota com a totalidade. Quantos asilados?

- Quinze, Sr. **Barãona - ¦ respondeu o outro, vexado.

- Quinze?!

- Sim, com aquele homenzinho de Cuba que a senhora de Vossa Excelência...

- Não se comova, pelo amor de Deus, com as recomendações da minha mulher.

E tocou a campainha para o contínuo.

- O Sr. Guarda-Livros que venha aqui e traga o livro de cheques.

O Mendes compôs as lunetas, num sorriso, para fazer a multiplicação que o **Barãona lhe ordenara.

Quando recebeu o cartão do Gonçalves, Freitas não se lembrou imediatamente de quem se tratava. Os preparativos para o seu próximo casamento com Luisinha preocupavam-no demasiado. Queria deslumbrar a cidade com esse acontecimento mundano, no que era secundado por D. Esmeralda Borges Alves.

- Ah!, é você, Gonçalves?...

£ recebeu o outro de relógio em punho.

- Tenho dois minutos para o atender. Diga depressa.

- Poderei voltar mais logo...

- Ainda será pior. A minha vida é um inferno!... Por um instante, Gonçalves pensou em retirar-se, sem

dizer ao que ia; mas não estava agora em condições de mostrar susceptibilidades, e dominou-se. oDr. Moita propusera-lhe a compra dos seus vinhos - e que vinhos! dos seus bons tempos de especulação na Companhia Velha - , oferecendo-lhe uma ridicularia, com o pretexto de que em Gaia não faziam compras e não se saberia tão cedo quando as abririam novamente. As suas despesas com Elisabethtinham-lhe derretido as economias, e a verdade é que não se sentia capaz de lhe pôr um travão; mas na Régua não tinha facilidade em obter outros preços e viera ao Porto na esperança de resolver o assunto com o Freitas, que não deixaria, por certo, de levar em conta a colaboração desinteressada que lhe dera por diversas vezes.

"A verdade é que estava agora um pouco embaraçado perante a frieza daquela recepção inesperada."

- Sabe que tenho umas pipas...

- Ah, meu caro, não venha falar-me de vinhos. Se estiver comprador de duzentas ou trezentas...

- Mas não, são vinhos com dez anos e mais... Alguns vintages maravilhosos.

- Quando não há compradores...

- Na Régua diz-se, porém, que... ("Ele tinha a certeza de que também o Freitas fazia o mesmo")... que em Gaia se está a meter vinho do Sul!...

- Boatos sem sentido, Gonçalves. Não estou comprador duma gota...

- Mesmo por um preço conveniente?

- Por nenhum preço...

E estendeu-lhe a mão, procurando nesse momento tornar-se amável.

- Dá-me muito prazer sempre que venha ao Porto... Desculpe desta vez... - E baixando a voz: - Vou enforcar-me, sabe?

Gonçalves teve um sorriso amargo e saiu desapontado.

Chovia torrencialmente. Indiferente ao tempo, foi caminhando sem destino. "O comboio só partia daí por duas horas... Que iria fazer?!... Teria de entregar ao Moita - esse sabujo! - os seus vinhos. O Freitas ia enforcar-se... Era um casamento rico, com certeza."

Aquela ideia começava a visitá-lo com pertinácia. "Também ele se poderia enforcar e tudo acabaria duma vez. Elisabeth..." E os olhos turvaram-se-lhe de lágrimas, ao pensar que teria de a perder. "Agora, que podia ser feliz..."

Um cocheiro gritou-lhe, irritado, do alto da boleia.

- Vai cego, caraças!

E ameaçou-o com o chicote.

 

A notícia fora trazida por um descarregador da estação da Régua que costumava procurar o Sr. Álvaro quando a brigada andava perto, como agora, ou lhe mandava os jornais operários por qualquer guarda-freios, se as exigências do trabalho na via os afastava. O homem chegara a correr, era já noite fechada, por certo para evitar a presença do capataz, e fizera um sinal ao outro para sair do barracão. oSr. Álvaro interrompera o ditado para os companheiros a quem ensinava a ler e suspeitara, com certeza, do que se tratava, porque todos lhe viram o olhar tornar-se mais brilhante e acenar com a cabeça, a sorrir, esfregando as mãos.

Alguns dos homens saltaram para cima da tarimba, que nas horas de escola lhes servia de mesa, e foram enrolar-se nas mantas. O mês de Janeiro ia mais áspero do que o de Dezembro e o Zé Risota já dissera - e de coisas do tempo ele falava quase sempre acertado - que não deixaria de vir um nevão, se aquele frio continuasse por mais uns dias.

Francisco Teimas preferiu abrir o seu livro e ler um daqueles trechos de que mais gostava - uma página que falava do Douro e da alegria das vindimas. "Esta gente que escreve sempre diz cada uma!" Desistira de mandar carta para casa - "Que ia ele dizer, se não tencionava voltar?" - , mas na noite anterior tivera uma nova conversa com o companheiro e decidira-se a dar notícias. Era nisso que pensava ao passar os olhos pela folha que lhe lembrava a aldeia. "Que diabo! Tornara-se um bicho por causa da cunhada, quando ela já nem lhe tocava nas cardas das botas... E depois os filhos e o pai gostariam de saber, por força, que ainda estava vivo e se recordava deles. Seriam capazes de o não acreditar... Mas quantas noites passara alerta com o pensamento neles? Como se teriam amanhado sem a sua ajuda?" Confiava no Chico, que era quase um homem; sabia que o Luís não era rapaz para se meter em brincadeiras quando o seu trabalho fizesse falta... Mas as coisas iam mal para as vinhas, bem o sabia. Sempre que paravam nalguma povoação à beira da linha, Francisco ia até à taberna para meter conversa: "Que tal fora a colheita? Como estavam a pagar? Não há aguardente outra vez? Então que lhe fizeram?!..."

E falava a Álvaro naqueles assuntos, escutando com interesse as suas razões. Certas coisas confusas da vida de outrora começavam a tomar forma no seu espírito.

- Boa noite! E coragem, hã?!...

Era o companheiro que se despedia do descarregador. "Coragem, ha?!..."

oSr. Álvaro entrou silencioso, e logo os que tinham subido para a tarimba começaram a descer,

- Deixem-se estar... Não damos mais lição esta noite; talvez seja a última.

Eles olharam-se, sem perceber a que o companheiro aludia, e rodearam-no.

- Há alguma novidade?!

Álvaro sorriu e acenou com a cabeça.

- Amanhã rebenta a greve nos caminhos-de-ferro.

Lá tem de ser adiado o Congresso Nacional Operário, que devia reunir-se agora em Tomar.

- A greve? - perguntou Raimundo, abraçando o Zé Risota. - E que vai a gente fazer?!...

- Nada! Pois se é greve!

E todos riram da resposta do Zé Risota.

- Eles não contam com o pessoal da via e obras - disse Álvaro. - Infelizmente, a maior parte dos que andam neste trabalho não tem consciência de classe... Mas eu acho que vocês devem aderir...

- Vais-te embora? - perguntou-lhe Francisco Teimas.

- Vou, sim. Tenho de ir para o Porto.

E começou a arrebanhar a roupa para dentro do seu saco.

- Coragem é que é preciso, hã?! Os comboios não devem passar, mas se algum maquinista for teimoso...

- Diz-se-lhe que a ponte do Corgo foi abaixo - insinuou o Raimundo com intenção.

- E tu, Teimas, vai até à aldeia.

- Quando não for preciso aqui - respondeu Francisco com firmeza.

A sua resposta comoveu o outro; e, antes que os olhos lhe brilhassem, saiu do barracão. Quiseram acompanhá-lo e ele negou-se. "Que não, que era melhor ir sozinho, para que ninguém desconfiasse. Tinha de apanhar o último comboio que saía para o Porto."

- Boa noite! Boa noite!

- E coragem!...

O ruído dos seus passos desapareceu depois, lá adiante. Os homens voltaram para as tarimbas, em silêncio, deixando a luz acesa por causa dos que tinham ido à Régua embebedar-se e procurar mulher nos prostíbulos do Peso.

"Como seria amanhã?!", pensavam todos. Mas nenhum deles falava.

Foi então que o Teimas se sentou e disse para os companheiros:

- Eu acho que a gente deve combinar tudo, como se ele cá estivesse... Dois ou três vão lá para cima com a bandeira.

- E se o capataz vier? - perguntou um beirão taciturno que raramente falava.

- O Raimundo dá-lhe a resposta.

Do silêncio da noite veio uma cantiga, em coro, dos companheiros que voltavam.

Não precisaram de barrar a passagem a nenhum comboio, porque a ordem de greve tivera a total adesão do pessoal do tráfego; mas o capataz, avisado na estação da Régua, onde ia dormir, viera, antes de a manhã romper, para assistir ao pegar da brigada.

Só cinco homens haviam saído para a via - e pareciam todos escolhidos.

- Os outros?!... Vamos embora! Depressa!... Teimas! - gritara o capataz junto à porta do barracão.

Francisco aparecera um pouco lívido e fitara-o sem ódio nem desdém.

- De que estás à espera?

- De que acabe a greve! - respondera-lhe com uma calma de que ele próprio não se sabia ainda capaz.

- Hã?... Que queres dizer com isso ...

- Que só volto à via quando os outros.

- Pois vamos a ver quem brinca...

E, pegando na folha de ponto, começou a chamá-los. Os outros vieram cá para fora com Francisco e as respostas sucediam-se iguais - "Não trabalho, não trabalho" - , só alteradas pelos cinco que tinham começado a substituir uma chulipa apodrecida e haviam parado para verem no que aquilo ia dar. Notando que os homens mais capazes estavam todos do mesmo lado e não pareciam dispostos a ceder, o capataz quis vir às boas, para tentar descobrir quem levara o pessoal à insubordinação - "e ele que jurara ao chefe da Régua que da sua gente nem um só se negaria a pegar!"

- Vocês vão deixar-me ficar mal? Eu peço-lhes por tudo...

E punha-se em bicos de pés, arregalava o olho e gaguejava.

- Juro-lhes pelas cinco chagas de Cristo que hei-de conseguir aumento para todos. Mas assim vocês desgraçam-se. Quem foi que lhes meteu isso na cabeça?!

A impassibilidade dos homens desvairava-o.

- A Companhia vai pôr na rua todos aqueles que hoje não trabalharem. Deixem lá os do tráfego, que é gente de fato de ganga. Mas o pessoal da via foi sempre outra coisa... Peguem lá no trabalho.

- Não vale a pena, capataz! - ¦ respondeu Raimundo.

- Então, rua! Já daí para fora!... -E gritava, levantando os braços, arrepanhava o chapéu e acometia para eles, como se estivesse prestes a saltar sobre o grupo. - Essa balhana toda daí para fora! Não ouvem?!

Ninguém se perturbara com os seus desmandos e as suas provocações.

Mas, pela tarde, a guarda republicana aparecera para fazer evacuar o barracão. E cada um deles partiu à cata de trabalho pelas quintas.

- Coragem, Raimundo!

- Coragem, Teimas!...

 

Montado no burro, com as pernas por cima dos cestos que pendiam de cada lado do animal, António Teimas parecia dormitar; à sua beira caminhavam Gracinda e Luís, enquanto o neto mais velho se desembaraçava, à frente, para bater à porta das duas mulheres que os ajudariam na vindima.

O sol ainda ia tardo, e já por quelhos e veredas a aldeia se dirigia para os socalcos das montanhas, embora todos soubessem que não havia saída para os vinhos nem aguardente para os beneficiar.

- Já viste gente mais doida do que esta? - disse o velho sem abrir os olhos.

Gracinda voltou a cabeça, mas não lhe respondeu. Ia a pensar nas suas viagens ao Pinhão e a Alijó para arranjar comprador, ainda cheia de esperança em resolver alguma coisa, mas por toda a parte só encontrara a mesma angústia. Tanto os lavradores como os comerciantes tinham recebido ordem igual à que o Silva Costa lhes levara. Atazanado por ela, o velho fora procurar o Dr. Pimenta e voltara também sem a achega duma promessa. "Diz que estamos nas mãos deles e que vai vender o vinho para consumo. Que se tivéssemos uma cooperativa tudo seria mais fácil... Perguntei-lhe o que isso era e não fui capaz de o entender. Que era assim uma espécie de sociedade de toda a gente, onde se entregavam as uvas e se recebia depois o dinheiro... Mas se nem um vende, para que serve a tal cooperativa?..."

António Teimas pensava ainda na resposta do Dr. Pimenta e, por mais esforços que fizesse, não percebia onde o médico queria chegar.

- Que vai a gente fazer, Gracinda? - insistiu o velho, à espera de um arrimo.

- Passaremos por onde os outros passam, Tio António.

- Mas o mal alheio não m'aquenta nem m'arrefenta...

Na curva do quelho já as duas mulheres os esperavam, na companhia do Chico, mesmo junto ao portão da Casa Grande. Um cão de guarda veio ladrar-lhes de cima do muro e Luís atirou-lhe uma pedra certeira, que fez o podengo desaparecer, a ganir, por entre as videiras de um geio.

- Vi agora mesmo o Silva Costa entrar - disse o Chico quando os três chegaram junto dele. - Ouvi dizer na praça que já recebeu aguardente para o vinho dele e para o da Quinta Alta.

António Teimas remordeu uma praga entre dentes. O grupo prosseguia a caminhada, mas Gracinda começou a ficar para trás e acabou por parar; depois disse para irem andando, que ela já os apanhava. E puxou a campainha do portão por duas vezes.

A mulher do João Ermida apareceu ao janelo do seu cortelho e perguntou-lhe ao que ia.

- Quero falar ao Sr. Silvinha.

- Se é por causa de vinhos, ele não está.

- É por outra coisa... Foi ele que me mandou vir cá.

A outra abriu o portão e indicou-lhe o escritório, recomendando: "Se ele se zangar, diz-lhe que estava aberto e que entraste." Gracinda agradeceu-lhe, num sorriso, e bateu aos vidros da janela, depois de ver o Silva Costa à secretária. Passaram uns instantes. Pelas valeiras da quinta o rancho de Trevões já começara a vindima e um grupo de homens, em fila, descia em direcção ao lagar,

com os cestos carregados; à frente alguém tocava uns ferrinhos para alegrar a marcha.

Gracinda espreitou novamente pela janela e acabou por entrar no edifício, procurando descobrir qual era a porta do escritório. Hesitou por momentos, mas decidiu-se, por fim. "Tinha de resolver a venda do vinho... Uma mulher sempre é uma mulher..." E olhou-se de alto a baixo, compôs o lenço e bateu.

- Entre!

Quando a viu à sua frente, Silva Costa teve uma expressão de contrariedade e baixou os olhos. Gracinda percebeu que ele a olhava mesmo assim, seguindo-lhe os passos depois de fechar a porta. Uma breve hesitação fê-la parar, mas logo se aproximou, sentindo-se mais contrafeita no meio "da casa do que ali, junto dele, com a secretária a separá-los.

Silva Costa via-a no tribunal, vestida de luto, e recordou-se da hostilidade que lhe tivera nesse dia, ao ouvir as suas palavras de defesa para o homem que lhe matara o marido. "É uma mulher bonita, não há dúvida. Tem qualquer coisa..." O facto de estar ali sozinho com ela enervou-o. Reparou-lhe nas pálpebras longas, nos olhos escuros e na cor trigueira da pele, onde uns sinais de sardas, junto do nariz, lhe davam uma atracção que ele não sabia definir. Mas o atentar nesses pormenores oferecia-lhe uma intimidade que lhe sabia bem prolongar.

Por um instante, os olhares encontraram-se; Gracinda compreendeu que o rosto de Silva Costa se modificara, tornando-se mais pálido, ao mesmo tempo que uma tremura significativa lhe embaraçava as mãos.

- Ora diga lá! É comigo que quer falar? - disse ele, em voz alta, querendo mostrar-se à vontade.

Ela sorria-lhe e não despregava os olhos dos seus. Silva Costa passeava agora no escritório, afastando-se dela, mas procurando vê-la sem ser notado. O arqueado perfeito das costas, com a ponta do lenço cinzento e preto aberta sobre as espáduas, a blusa cingida ao peito, onde os seios se arrebitavam rijos, e as saliências bem marcadas das ancas atraíam-no para ela e faziam-lhe desejar uns braços incríveis que a agarrassem mesmo ali. Achou, porém, que estavam ambos calados e começou a falar, sem saber bem o que dizia. Ao mesmo tempo lembrava-se de Helena, agora tão distante dele como nos primeiros dias do casamento, vivendo só para o filho e tratando-o como a um estranho.

Dissera-lhe um dia que só desejava um filho; mas julgava que com ele viriam a ternura e o carinho que gostaria de ter para si. Bem pelo contrário, o filho tirara-lhe a mulher e, mais do que ela, a esperança de a fazer sua de facto. "Porque não havia de ter outra? Porque teria de ser diferente dos demais, de quem se contavam tantos casos?!... E agora, com a crise, as oportunidades eram mais frequentes e fáceis."

Falava quase sem nexo; repetia as palavras, mas o pensamento é que o dominava.

- Sim, que posso eu fazer? Recebi as ordens de Gaia e não sou eu que lá mando. Por mim comprava-o todo, se pudesse... Mas a verdade é que não passo dum comprador que recebe ordens alheias.

No jardim não estava vivalma; de fora não os podiam ver. Só a música dos ferrinhos se ouvia, e até essa se afastava, como a tornar-se cúmplice daquele encontro. Gracinda voltara a encará-lo e tinha agora uma expressão de tristeza e de receio, como se a garridice dos primeiros instantes se tivesse transformado em pudor. Essa atitude fez crescer em Silva Costa um desejo de se chegar e falar-lhe mais de perto.

- Mas se o senhor pedisse... O senhor consegue tudo.

- Achas que posso conseguir tudo o que desejo? - perguntou-lhe, atrevido. "Se tivesse um pretexto qualquer para se aproximar, seria capaz, agora, de lhe pôr a mão na anca e puxá-la para si. Ela talvez não quisesse complicações e aquilo ficaria num encontro..."

- Acho que sim - respondeu Gracinda, voltando-se para ele.

- Se eu te pedisse um beijo...

E caminhava para ela, de mãos abertas; mas Gracinda escapava-se-lhe pelo outro lado da secretária, e Silva Costa lembrou-se, novamente, da mulher e do filho. "E se Helena soubesse? Não lhe daria um pretexto para abalar?..." Depois parou e sorriu-se, com ar de quem fizera aquilo por gracejo.

- É claro que me não davas um beijo... E fazias bem.

- O senhor é um homem casado...

- E bem casado, graças a Deus.

Arrependeu-se depois daquela esquiva, julgando perceber na rapariga e na sua voz um tom de despeito. "A verdade é que estava comprometido perante ela... E se amanhã se soubesse o que lhe dissera? É claro que poderia meter mais cinco ou seis pipas, sem que de Gaia lhe fossem à mão; mas o pior é que a aldeia lhe cairia em peso ali e na sua quinta..."

- Diga ao velho Teimas que irei procurá-lo; talvez se arranje alguma coisa.

Agora era Gracinda que se chegava, vindo para ele sem uma defesa; logo depois estava ao alcance das suas mãos com o busto firme e os olhos negros a fitá-lo e a sorrir-lhe.

- Se quiser, eu venho...

- Não, não; se conseguir alguma coisa, mando recado.

 

Quando Gracinda chegou à vinha já o burro fizera a primeira caminhada de cestos para o lagar. À sombra de um socalco, António Teimas resguardava-se do sol, sarrazinando recomendações que os outros não cumpriam, porque o sabiam falto de vista.

- Limpem bem esses cachos! Não percam os bagos melhores! Isso bem tosquiadinho, sem bagos podres!

Gracinda começou logo o trabalho, junto ao sobrinho mais novo, e o velho pressentiu-a.

- Estás aí?

- Estou, sim, Tio António.

- Vem cá...

E chamava-a com a mão magra e trémula. Gracinda foi por entre as videiras, afastando-lhes os braços, e ficou à frente do velho.

- Foste falar com ele?

- Fui...

- E depois? Conseguiste alguma coisa? - insistiu quando a rapariga deixou de lhe responder.

- Não, Tio António. Ele meteu-se comigo...

O velho esbugalhou os olhos, como se pudesse vê-la melhor, e acenou a cabeça, compondo o chapéu.

- Não sei o que tens, cachopa; não sei o que tens. Vai-te lá ao trabalho. Passaremos por onde os outros passam... .

E ficou a falar sozinho quando a sentiu afastar-se, recordando o filho que abalara.

- Os homens, quando chegam à sua beira, perdem a tramontana... Quem diria uma coisa destas do Silva Costa?!...

Quando fez a porta bater com estrondo e se seguiu aquele silêncio longo e pesado, como se a casa estivesse deserta, Gonçalves voltou a sentir o mesmo mal-estar opressivo que o perturbara durante a viagem e que conseguira dominar, no momento em que o comboio parara na estação. Antes de partir tivera a certeza de que a sua ida ao Porto resolveria as dificuldades financeiras que o embaraçavam; mas, depois que lhe falhara a entrevista com o Freitas e percebera que em Gaia ninguém lhe daria boas condições de venda, ficara varado de receio com aquela ideia brusca que lhe nascera no pensamento.

O comboio, sempre ronceiro, parecia gozar ainda naquela tarde com a sua ansiedade. Ficara meia hora em Penafiel, metera e desatrelara vagões, entrara num desvio... "Uma autêntica viagem de diligência!", pensara para si e repetira-o depois ao revisor e a três companheiros que permaneciam indiferentes ao tempo e o enervaram tanto com o seu "não-te-rales" que preferiu passar sozinho para outro compartimento.

Agora queria aquietar-se, achando ridícula aquela ideia. "Lá porque os negócios lhe corriam mal, era estúpido supor..."

- Elisabeth!

O silêncio da casa tornara-se, porém, numa força física que ele rompia a custo, como se o corpo, para se deslocar, tivesse de exercer pressão no vazio do corredor. "Devia estar lá para dentro com a braseira acesa... O inverno ia áspero... Como havia de lhe esconder as notícias que trazia?"

- Elisabeth! - gritou mais alto, começando a despir o sobretudo, depois de pendurar o chapéu.

Lentamente, uma porta começou a abrir-se lá ao fundo, num rangido de gonzos que lhe so ou mais irritante do que nunca.

- Julguei que tivessem abalado - disse numa voz que pretendia ser natural. - Preciso de jantar mais cedo... Venho cheio de frio...

O vulto ficara parado na sombra.

"Também ela andava triste... Já percebera, certamente, que as coisas iam de mal a pior, embora nada lhe tivesse faltado até agora. Mas as mulheres percebem os acontecimentos à distância." Pensou, então, que deveria mostrar-se confiante, mesmo mentindo. "Que ganharia Elisabeth em saber a verdade?!..."

- Diz boa-noite, ao menos... Julgavas que já não vinha?

A pausa entre as suas palavras e a resposta pareceu-lhe infinita.

- Boa noite, Sr. Gonçalves!

- Ah!, és tu?... Diz à senhora que já cheguei...

E prolongava o pendurar do sobretudo no prego do bengaleiro. "Devia estar na cozinha, junto ao fogão..." Maria (Dolorosa, porém, continuava imóvel.

- Que estás à espera? - gritou-lhe. - Venho hoje com pouca paciência... "E se fosse verdade o que pensara?" O pressentimento avolumou-se e desvairou-o. Correu ao quarto e à casa de jantar; foi à cozinha e espreitou a varanda. Quando voltou ao corredor e viu Maria Dolorosa parada, no mesmo sítio, teve ganas de lhe bater.

- Porque não me disseste logo que a senhora saíra?!... Onde foi? Porque a deixaste ir sozinha?!...

Ele começava a compreender - tinha já a certeza - de que não eram aquelas palavras que devia dizer à rapariga; mas não sentia coragem para aludir directamente ao que pensava.

Deixou uma carta - disse Maria Dolorosa, por

fim, era isso mesmo que o vinha a atormentar na viagem... A vila inteira ia rir-se daquela fuga... Ó Gonçalves!... Partiria a cara ao primeiro que se atrevesse... Mas agora tinha de aparentar desinteresse perante a rapariga."

- Onde a deixou?...

- Em cima da banquinha, Sr. Gonçalves.

Aquela humildade irritou-o, porque a sentiu falsa.

- Não me trates por senhor... ("Precisava de se dominar para não fazer espectáculo.") Põe o jantar na mesa... ("Para que queria o jantar?") Não, deixa lá!

Quis mostrar-se indiferente, esboçando um sorriso; mas sentiu o rosto empreguear-se.

- A que horas partiu? - ¦ Não foi capaz de esperar a resposta. - Não interessa a hora... Ela nunca chegou a entrar nesta casa... Ficou sempre agarrada ao circo; era lá que se sentia bem.

Fitou a rapariga com ódio e desejou empurrá-la da sua frente.

- Vocês, as mulheres, só se sentem bem no atoleiro... Não há uma só que escape... Nem uma!... Todas com tendência para o reles e para a lama.

Lembrou-se da carta e foi meter-se no quarto; mas antes de a procurar - "valeria a pena lê-la?" - aproximou-se da janela. Agarrou na cortina para espreitar a rua e puxou-a com violência, ficando com ela na mão. "Apetecia-lhe desfazer tudo o que via." E, num impulso, abriu a cortina num rasgão, a meio, ao mesmo tempo que atirava um pontapé ao banco estofado. "Que diria a carta?... Viria com desculpas ou seria agressiva?..." Procurou-a, às escuras, sobre a mesa-de-cabeceira, desejando, talvez, não a encontrar: mas quando lhe pegou sentiu desejos de a ler com os dedos, como se nela houvesse alguma revelação que contrariasse a certeza que o fazia desgraçado.

Procurou depois o candeeiro, acendeu fósforos atrás de fósforos e não podia suster aquela tremura embaraçosa que se lhe apossara das mãos. "Vai ser uma galhofa na Régua!", pensava, alucinado. "Mas parto a cara ao primeiro que tiver o arrojo de me falar nela... E se não puder a braço, vai a tiro! Hei-de fazer alguma coisa que os trave, dê lá por onde der..."

- O candeeiro! Vem acender-me o candeeiro! - gritou da porta, atirando-se depois sobre a cama, mal ouviu os passos de Maria Dolorosa no corredor. "Não era vontade de chorar o que sentia, não, mas antes uma ânsia irreprimível de abrir os braços ou gritar. O Freitas dera-Lhe o chiça..." E a invocação dessa entrevista vexatória fê-lo erguer-se num repelão.

- O Freitas deu-me o chiça - disse para a rapariga, como se ela soubesse os motivos que o tinham levado ao Porto. - Já se esqueceu de tudo o que fiz por ele, quando quis que o servisse nas suas manobras contra os impostos. E agora recebeu-me de pé, com aquele monóculo irritante nos dedos, sem me olhar de frente, sem uma desculpa conveniente...

Queria dominar os braços, porque se sentia ridículo, mas aquela alucinação era mais forte; e sacudia as mãos, levava-as à cabeça, deixando-as abertas sobre o rosto, para logo depois as agitar abaixo e acima, em movimentos sacudidos e rápidos.

- O Moita, o grande liberal, o republicano, queria-me os vinhos por dez réis de mel coado... O talassa do Sousa oferecia-me ainda menos... E andavam feitos um com o outro, soube-o ontem, para me levarem de qualquer maneira. Mas prefiro deixá-lo correr pela rua abaixo, pra que os cães o bebam.

Maria Dolorosa acendera o candeeiro de petróleo e preparava-se para sair em bicos de pés, como entrara.

- Ela disse mais alguma coisa? - perguntou. Arrebatado, sem ouvir resposta, sentou-se na cama,

rasgou o sobrescrito e pegou na folha de papel. "Para que precisava de a ler, se já sabia tudo o que tinha escrito?" Aproximou-se, porém, do candeeiro, pegando nos óculos, que atirara sobre a colcha; e parecia-lhe impossível chegar as lentes aos olhos e segurar a carta. Maria Dolorosa fez ainda um gesto para o ajudar.

- Que estás à espera?!... Devias ter abalado com ela... Julgas que voltávamos, porventura, à mesma vida?...

Mas, quando a rapariga se voltou para sair, Gonçalves deitou-lhe a mão ao braço e reteve-a; depois, dominando-se, compôs os óculos e leu a carta num relance.

- Os pássaros não podem viver dentro de gaiolas! - repetiu numa gargalhada nervosa. - Já ouviste palavras mais estúpidas? E quantas vezes teria ela dito isto mesmo?!...

E passeava, agitado, fitando Maria Dolorosa de vez em quando com aqueles olhos argutos de peneireiro.

- Devia saber que as mulheres bonitas são sempre estúpidas ou perversas! Tive pena dela e arranquei-a daquela vida... E ela voltou para lá, porque* vocês gostam da lama. Preferiria que fosse sincera! Já te apanhei o que podia e agora...

E caminhava para Maria Dolorosa, agitando a carta na mão.

- "Agora, que estás em dificuldades, por aqui me sirvo." Foi isto que ela pensou... É isto mesmo o que tu pensas também...

Falava com alvoroço, atropelando as palavras e empurrando a rapariga para fora do quarto.

- Enganas-te se julgas que voltas para o lugar que já tiveste... Arranja as tuas coisas... Hoje mesmo, percebes?

Logo, porém, sentiu uma comoção inexplicável que lhe fez abrandar a voz.

- Ela disse mais alguma coisa?...

Depois quase suplicou quando a viu abalar pelo corredor.

- Maria Dolorosa! Vem cá!...

E aproximou-se para lhe agarrar nas mãos, trazendo-a para (dentro do quarto; fê-la depois sentar numa cadeira, mas queria deter-se para lhe falar com calma e não podia.

-Tu vais-te embora, porque eu já não preciso de ninguém... Compreendes?... A gente estraga a vida como os rapazes partem os brinquedos... E o pior é que a vida ¦é um brinquedo que se estraga uma vez... Também tu estás arrependida, com certeza. Eu não te devia ter trazido para aqui! Afinal, que te dei eu?!...

Gonçalves sentia agora um desejo estranho de saber tudo o que antes procurara iludir.

- Percebias que ela não gostava de mim?!... Fala, anda. Ela disse-te, com certeza! Esse silêncio não quer dizer outra coisa... E tu?!...

Respondeu ele próprio às suas interrogações:

- Claro que não podias gostar!... A gente é que compra a mocidade com o dinheiro...

Com ternura, fez erguer a rapariga e acompanhou-a até à porta do quarto.

- Vai-te deitar...

E não pôde conter uma carícia que lhe fez nos cabelos; depois abriu a janela, parecendo insensível ao frio áspero que descia das abas do Marão. O negrume da noite soube-lhe bem, como se dali pudesse descansar a cabeça torturada nos cerros distantes. "Elisabethfizera bem em partir. O circo devia fazer-lhe falta..." Queria odiá-la agora e não podia. Lembrava-se do prazer que lhe dera durante bastantes meses - aquela ânsia de a arrancar dos trapézios para os seus braços e de sentir os outros mortos de inveja... "Eles bem se tinham vingado, tirando-lhe o lugar na Companhia e desprezando-o quando deles precisara. Mas também mantivera a sua até ao fim - e fora a primeira vez em toda a vida! Aquela sua paixão na juventude parecera tê-lo marcado para sempre; e só com Elisabethele fora capaz de romper o círculo de acanhamento que o fechava para as coisas que mais o empolgavam: ter uma mulher de quem gostasse, deixar a avareza..."

Apetecia-lhe fumar naquela noite, depois de ter abandonado o vício a conselho do médico. "Só porque queria prolongar a vida... E agora isso desinteressava-lhe tanto como se lhe dissessem que um calhau caíra ao Douro."

Desceu as escadas a correr, mas logo voltou para levar consigo as chaves do armazém, onde guardava o resto da sua fortuna. "Se ainda pudesse recomeçar! Mas como?! Se os que tinham boas amarras se queixavam, que podia ele tentar? Se falasse a D. Maria Albuquerque, talvez... Mas era tão triste sentir-se vexado... Bem percebera naquele dia que ela gostava de si; mas já não era o mesmo. E, depois, vender-se!..."

Entrou no clube para comprar um maço de cigarros e procurou o Dr. Moita na sala de jogo. Sentiu, por momentos, um prazer estranho de ficar ali com eles pela última vez; e falar-lhes, perceber que eles sabiam de tudo, mas que não seriam capazes de lho dizer. Viu depois o Dr. Simão, a um canto, com o Vitória farmacêutico, e deu-lhe o recado:

- Diga ao seu sogro que me procure amanhã no armazém... Estou lá pendurado à porta!

Os outros riram.

- Sim, pendurado à porta pra lhe dar um pontapé... Querem beber alguma coisa?

- Fez o negócio no Porto? - perguntou-lhe o Dr. Simão.

- Claro que fiz! E pagaram-mo por melhor preço do que pensava. Ainda não me esqueci de vender vinhos... Fui especulador toda a minha vida! Tenho a impressão de que já o era antes de nascer... Boa noite!

O ar cortava. Meteu em direcção ao rio, que levava uma enchente. Ultrapassou um bêbado, que quis meter conversa, a pretexto de um naufrágio que se dera no ponto da Cachucha. "Talvez lhe fizesse bem embriagar-se, como aquele marinheiro... Não, não valia a pena. Teria coragem até ao fim!"

Estugou o passo e abriu a porta do armazém. Lá estava aquele cheiro penetrante, de que tanto gostava, quando ali vinha para calcular o valor da melhor parte do seu pecúlio. "E nem aquilo já valia!... No Porto, uma nega... Ali, ainda pior!... Mas não se lambiam com ele por qualquer prego, não! Que o bebessem os cães!..."

Fumava sem cessar, acendendo novo cigarro na ponta que terminava. Percorria o mesmo caminho, da porta para o fundo do armazém, como se quisesse atordoar-se antes de levar a cabo a ideia que ali o trouxera, e arrependia-se por instantes, pensando que ainda poderia encetar nova vida.

"Teria de recomeçar sempre de chapéu na mão... Talvez levando cartas a outra quinta qualquer, onde haveria agora, para ele, uma rapariga que lhe falasse nas cartas do Simão Botelho... Não, com aquela idade nada podia fazer!..."

As pontas brancas dos cigarros marcavam-lhe os passos.

"Gostaria de escrever umas cartas... Mas a quem ia escrever?... Onde estavam os seus amigos?!"

Aproximou-se da pipa que ficava ao fundo e acendeu um fósforo, correndo-a com a luz, até descobrir a inscrição que lhe mandara pôr. "Era o primeiro vinho que comprara para especular... Um vinho de 1870, que um lavrador do Peso, o Joaquim Gaitas, lhe cedera por um preço de esganado. Semanas depois o homem aparecera afogado no Salgueiral..."

Sentiu um arrepio no corpo. A invocação enfraqueceu-lhe a vontade. As trevas rodeavam-no e pareciam guardá-lo da vida que lá fora continuava sempre. "E se fugisse?!..." Ouviu, porém, o marinheiro bêbado cantar à porta.

- Entra, se quiseres! - gritou.

o outro espreitou e ficou a balancear.

- Uma gaita!... Tens aí algum arrocho pra me descascares, não?!... Um marinheiro que é marinheiro morre no Douro...

- Queres beber comigo?! - perguntou-lhe Gonçalves, aproximando-se. - Se fores capaz, bebe isto tudo...

- Eia!... Tudo?!... Fazes hoje anos, não?! Dia de festa, pois! E o teu patrão? - disse o marinheiro, baixando a voz e pendurando-se-lhe no ombro.

- O patrão sou eu...

O bêbado deu uma gargalhada.

- És patrão e dás-me o vinho todo?!... Não acredito!... Tem paciência, não acredito!...

Gonçalves entregava-lhe, porém, uma das garrafas que tinha sempre no armário junto da porta, depois de lhe partir o gargalo, e tomou para si uma outra que estava aberta; depois de duas goladas bem longas, sentiu-se mais decidido.

- Pensaste alguma vez em te matar? - perguntou com amargura.

O outro riu-se, jogando-lhe uma palmada nas costas.

- Eu, matar-me?!... Julgas que sou parvo?!... Ainda se no outro mundo houvesse umas pingas... Mas o melhor que a gente lá tem é andar com asinhas brancas...

O marinheiro deu uma gargalhada mais ruidosa.

- Tu já viste como serei eu com asas brancas e a tocar corneta?!...

Gonçalves estava toldado e começava a sorrir com os gestos e as palavras do outro; mas lembrou-se do Freitas, do Dr. Moita e do Sousa. "Não se riem de mim, não", pensou, revoltado. E foi a cambalear até aos cascos. As mãos tremiam-lhe ainda quando começou a puxar pelo batoque; depois conseguiu acalmar-se com mais uma golada da garrafa que o marinheiro lhe veio oferecer.

- Esse também é prà gente?!...

- Vou despejá-lo todo - disse com raiva. "Estavam ali as suas melhores esperanças doutros tempos! Quando entrava sentia-se fortalecido, porque vinho daquele valia como barras de ouro. E agora..." Prosseguia em esforços redobrados, com as pernas flectidas e os braços magros, que procuravam vencer aquela resistência inesperada, ora puxando em sacões, como se toda a força do corpo lhe corresse para as mãos, ora gingando para um lado e outro, no intuito de levar a sua por diante.

- Parece que estás a matar alguém! - disse o marinheiro encostado ao casco, a gozar o espectáculo que o Gonçalves lhe proporcionava. Este não lhe respondeu e acabou por tirar o casaco.

- Hei-de abri-lo!...

- Porque não disseste há mais tempo? - respondeu o bêbado, abandonando a modorra ,que o álcool lhe enovelara na cabeça. - Vai buscar um martelo! - gritou-lhe numa ordem. - Depressa!...

Aquela ideia de um rio de vinho feito por si empolgou o marinheiro; foi ele próprio ao armário e procurou a ferramenta com as mãos cegas pelas trevas e pela bebida, deitando garrafas abaixo, que se lhe quebravam aos pés. O som do vidro provocava-lhe o riso, enquanto Gonçalves voltava a insistir nos sacões que o deixavam derrancado de forças e o punham arquejante. O marinheiro assobiou lá da porta, já de martelo em punho, caminhando aos bordos!

- Onde te meteste? - perguntou quando se sentiu desorientado. - Se julgas que me metes medo, enganas-te. Sou capaz de partir isto tudo em menos dum fósforo.

Dizia aquilo com a certeza de que o outro estava ali e que nada faria do que alardeava; mas satisfazia-o aquela aventura de partir cascos por ordem de alguém. Quando chegou perto de Gonçalves, ainda hesitou.

- Tu és o dono?!... Arreda-te lá!... És o dono?!...

- Sou! - respondeu-lhe com mágoa.

E logo uma pancada seca ressoou no armazém; depois outra, e outra, e outra mais abaixo, até que um espicho de vinho jorrou para as mãos de Gonçalves, que se ajoelhara a incitar o marinheiro. Aquele contacto, porém, fê-lo arrastar-se para o lado, deixando-o aturdido, sem perceber se devia fugir e gritar, se brandir ele próprio o martelo, que o outro já desferia no tampo do lado.

-Sr. Gonçalves! - disse uma voz de mulher junto da porta.

Ele não a ouviu, porque, naquele momento, só escutava os gorgolejos do casco, como se lhe tivessem aberto as veias e sentisse o próprio sangue esvair-se no chão batido do armazém.

Todo entregue ao prazer da destruição, o marinheiro trauteava uma cantiga.

 

                   O CAMINHO É LONGO.

OS comboios circulavam depois que a Companhia aten- dera os pedidos do pessoal, mas ele não voltara ao trabalho da linha. Procurara o capataz e este desenganara-o - não lhe faltavam agora os braços dos que a terra enjeitava todos os dias. De resto, para Francisco, voltar ao barracão sem a companhia de Álvaro, do Zé Risota e do Raimundo seria entregar-se à perseguição do encarregado, que não esqueceria a sua atitude durante o movimento.

O primeiro granjeio das vinhas estava demorado e na Régua preferiam os samartinheiros para as podas. Ainda tentara ganhar jorna pelas quintas, mas alguns lavradores tinham desconfiado de que era grevista e mandaram-no pôr fora dos portões. Sem compreender bem porquê, obedecia-lhes com vaidade.

E acabara por pensar na aldeia, percebendo a inutilidade de arranjar trabalho por ali, embora o minasse aquele desejo de regressar. "Depois duma ausência tamanha, não ia chegar na pior altura. O mal que a sua falta fizera já não tinha remédio. Portara-se como um cão, essa é que era a verdade! Se ainda pudesse mercar uma lembrança para os rapazes - uma navalhita, ao menos, para cada um deles, caramba! Que a mulher agora já não lhe dava amargos de boca..."

No banco comprido da estação mal cabia alguém. Naquelas noites ásperas era ali que achavam refúgio os que não tinham cama certa e podiam arranjar desculpa fácil para os descarregadores que os vinham acordar: "Estou à espera do correio da manhã."

Muitos dormiam, recostados nos sacos ou de cabeça apoiada nas mãos. enquanto outros, de olhos ensonados, vagueavam o olhar da rua para o cais, para além do qual uma locomotiva andava em manobras. Sacos amontoavam-se aos pés, dando um pouco do calor que ali faltava, tanto mais que um velho persistia em ter a porta aberta, tão afogueado se sentia com a boa conta de vinho que metera nas tripas. Quando Francisco chegou, um rapazola deu um jeito para o seu lado esquerdo, encarou-o e sorriu-lhe amalandrado:

- Está cheia a estalagem. Mas com boa vontade... Enrolada no seu xale de lã, uma mulher dormia de

cabeça tapada, e só lhe deixou descansar uma nádega no banco; o rapaz fez-lhe um gesto para que a empurrasse, passando-lhe sinal, de dedos na orelha, que "não era nada de deitar fora". Francisco deu-se ao convívio do outro, fingindo interessar-se por ela. e largou o seu saco entre os dois.

- Vai pra baixo ou pra riba?

- Fico - respondeu Teimas sem olhar o rapaz.

Mas o outro pôs-se a falar sem descanso, tão empolgado estava com os seus projectos. Ia para o Porto trabalhar de servente com um tio que era pedreiro; mas não pensava ficar por ali. "Lá parvo não era ele." O que lhe interessava era desandar para o Brasil quando soubesse alguma coisa de trolha. Ganhava-se lá o que um homem queria; não era nada difícil chegar a mestre-de-obras.

-Acha que faço mal?- - disse, por fim, vendo que Francisco lhe não dava troco à conversa.

- Acho que pensa bem... - "oBrasil invocava-lhe certos passos da vida que gostaria de esquecer."

Já cansado das pernas, pela posição a que a falta de lugar o obrigava, Francisco aconchegou-se mais ao banco, apertando-se entre o rapaz e a mulher; mas esta teve um sobressalto, como se estivesse desconfiada com as companhias, e atirou-lhe um empurrão às costas:

- Vossemecê é gordo, homem!

Teimas voltou-se para a sossegar e a expressão dela logo se modificou, ficando ambos a sorrir, de olhos nos olhos; ele pegou-lhe numa das mãos:

- Quem me havia de dizer...

- Ora o Sr. Francisco! - titubeou Maria Dolorosa, sentindo-se corar.

Depois baixaram os olhos, ficaram em silêncio e voltaram a encarar-se com ternura.

- Vens agarrar o comboio? - Ela acenou-lhe a cabeça.

- E o Luisinho?! Devia estar um homem... E o Ti António?! E o Chico?!...

- Vou lá qualquer dia vê-los... Tenho andado por fora...

O descarregador pegara-se com o velho que queria a porta aberta e empurrava-o para o largo, cem grande alarido do outro que "tinha ali dinheiro para comprar a estação, quanto mais o bilhete"; depois o descarregador voltou-se para os que estavam:

- É tudo gente pra embarcar?... Ainda faltam seis horas para o comboio!

E foi encafuar-se outra vez na casa do telégrafo, donde saíra a manquejar.

- E a Gracinda? - indagou Maria Dolorosa. - Ouvi ler no jornal aquilo do marido...

Teimas encolheu os ombros, para iludir a resposta, mas ela insistiu:

- O Ti Manel desgraçou-se, coitado!

- Desgraçou-se, pois! E não era ele que devia estar na cadeia...

- Foi outro?

- Não, mas podia ser... -E encarando Dolorosa: - Fala antes noutra coisa.

Durante a ceia, e pela noite dentro, as perguntas acerca de Francisco não acabavam. "Onde o encontrara? Estava mais magro? Quando dissera que voltava para irem esperá-lo ao Pinhão? Porque não dera notícias?"

Dolorosa ia-os satisfazendo como podia, inventando pormenores ou iludindo respostas, que a excitação dos outros lhe facilitava. Só em Gracinda havia uma hostélidade que não sabia interpretar. "Porque lhe pedira o Francisco que viesse para junto do pai e dos filhos, desviando sempre a conversa do nome da cunhada?"

As queixas do velho vieram depois.

- Nem uma letra, ao menos... Aqui estou, vão todos para o raio que os parta, mas durmam descansados, que ainda vivo. Se a gente fosse como ele, fechava-lhe a porta na cara quando cá deitasse. Se não fosse essa que aí está - e indicou Gracinda com a cabeça - , os filhos não tinham agora que comer. Cá por mim, já sei que nunca se perdeu de amizades. Mas pelos rapazes! Raio me pele se um cão fazia pior do que ele fez!

- Ele disse-me...

O silêncio que se seguiu às suas palavras deixou-a embaraçada. Luís aproximou-se, sorrateiro, e sentou-se mais perto, no chão, olhando-a com enlevo. Ela fez-lhe uma carícia e perguntou-lhe se se lembrava ainda do tempo em que era seu noivo; o rapazola afogueou-se.

- Mas que disse ele? - insistiu o velho.

A expressão da outra interrogava-a com ansiedade. - ¦ Que todas as noites pensava em vocês, mas que não podia voltar...

- E porquê? - disse Gracinda num sussurro. Dolorosa falou só para ela.

- Não me quis dizer... Achei-o sem aquela tristeza que tinha sempre.

- E nunca o viste como a gente - interveio o velho. - Coisas que se meteram na cabeça, mas que hão-de passar...

- Se o avô não lhe disser isso tudo - retorquiu Chico de mau humor.

- E és tu quem mo proíbe?

António Teimas quis dar à voz o timbre áspero dos outros tempos, empinando o tronco; mas depois deu um trejeito à cabeça e acalmou-se.

- Fica descansado, que cá por mim...

E pegou no bordão para se erguer. Luís lá sabia que o avô precisava da sua ajuda e foi, presto, oferecer-lhe o braço. Percebia-se que António Teimas tinha mais alguma coisa para dizer, mas que hesitava. Deu uns passos arrimado ao bordão e ao neto, parou mais adiante, tossicou, por disfarce, e prosseguiu depois o seu caminho. Na escada, porém, estacou de novo e disse para baixo:

- Que lhe hei-de eu ralhar?! Se tenho estado à espera que ele volte para fechar os olhos duma vez!... Sou lá o mesmo!...

Gracinda esperou que ele desaparecesse no quarto, para lembrar ao Chico que devia levantar-se cedo por causa da poda. O rapaz contudo, deixou-se ficar.

- O Espanhol já está falado...

Então Gracinda pegou no braço de Maria Dolorosa e conduziu-a ao quarto onde as duas ficariam.

- Ele falou-te de mim?!...

As mãos ásperas que a agarravam e a ansiedade daqueles olhos embaraçavam Maria Dolorosa.

- Disse-te alguma coisa, com certeza... Vocês viram-se muita vez?

- Só na estação...

- Com certeza? Não estás a mentir?

A firmeza do olhar de Dolorosa aquietou Gracinda nas suas dúvidas. "Ela era mais nova e mais bonita... E o Francisco dissera-lhe que viesse..."

- Mas ele falou-te de mim, tenho a certeza de que falou...

- Estivemos tão pouco tempo! - respondeu Maria Dolorosa, como a pedir desculpa de lhe não dizer o que começava a adivinhar no frenesi das suas interrogações.

Gracinda afastou-se num repelão, indo encostar-se à porta de madeira que cerrava a janela; Dolorosa percebia que ela pensava em mil coisas que a deviam impressionar, porque no rosto, ora junto ao queixo, ora ao canto dos olhos, lhe via surgir pequenas entumecên-cias, que logo desapareciam na palidez da pele. "Podia ter a certeza..." E Gracinda não levava os seus pensamentos até ao fim.

- Não te disse que gosto dele? - perguntou depois. - Dolorosa negou com a cabeça. - Pois gosto! E mediu a outra com rancor.

 

Mister Smith comunicara a Baraúna, pelo telégrafo, que o ambiente para o tratado de navegação e vinhos melhoraria bastante depois de ter falhado a assinatura da partilha das colónias portuguesas, por influência da City e da diplomacia francesa - de uma parte porque a expansão financeira alemã iria tomar posições que os banqueiros britânicos desejavam guardar, como reserva de interesses, para momento oportuno; da outra porque a França, aterrorizada com a possível amizade anglo-germânica, dera firmes garantias de que a Rússia czarista abriria, de pronto, uma segunda frente se Guilherme II persistisse em organizar, sob a sua égide, uma Europa Central e um Império oAlemão, prejudicando a supremacia de mercados que Franceses e Britânicos tinham nas suas mãos.

Naquela Primavera, o rei Jorge V chegara a Paris numa visita oficial. Os jornais recordavam, com pormenores românticos, certas liberdades do seu tempo de príncipe de Gales: as corridas em Longchamp, as noitadas nos clubes, os amores com actrizes... Não era um rei, mas um amigo que vinha matar saudades dos anos descuidosos da juventude.

Eduardo Grey, porém, era convidado a encontrar-se no Quai d'Orsay com o ministro francês Doumergue, Sir Bertie e Paul Cambon, para que se estudassem e se estabelecessem entre o estado-maior britânico e o estado-maior russo as mesmas íntimas relações que já existiam entre os generais responsáveis dos seus dois países. "Era preciso prever tudo", diziam-lhe. "A Alemanha armava-se intensamente e era necessário obter um equilíbrio."

Todos sabiam que só a Inglaterra ou a França e a Rússia juntas dispunham de poder militar para conter os possíveis propósitos germânicos. Mas os povos europeus pareciam dispostos a tomar caminhos que não agradavam às camadas dirigentes - era preciso, pois, desviá-los a todo o preço de soluções indesejáveis.

E Paris recebia o rei inglês com manifestações delirantes, enquanto nos bairros da cintura o povo clamava paz.

Um ex-capitão do exército francês, Charles Humbert, abrira uma campanha nos jornais para dar um novo alarme bélico: a França não estava defendida do perigo que a ameaçava.

Nos arsenais alemães, Krupoe os seus amigos sabiam a que fins visavam esses artigos "patrióticos". E ordenavam, por sua parte, campanhas idênticas nos jornais de Berlim que tinham sob as suas ordens. As fábricas de armamento trabalhavam, dia após dia, em ritmo cada vez mais acelerado, exigindo rendimento crescente dos operários e das máquinas, porque dispunham agora de técnicos que estudavam nos seus gabinetes novas formas de produção mais intensiva.

Os contribuintes de toda a Europa compravam uma falsa segurança com os novos impostos que lhes exigiam. E Charles Humbert recebia, de certos industriais da guerra, uma comissão nas vendas.

- O Ti António parece não se lembrar de que o Chico é meu sobrinho.

- E o pai é teu cunhado e padrinho de casamento. E vê lá!... Há homens que quando embicam não querem saber dessas coisas. A Dolorosa, andasse lá por onde andasse, parece purinha. Deixa falar o mundo!...

A conversa acabara em disputa. Gracinda ameaçara voltar para casa, convencida de que o velho temeria a sua falta; mas ele ficara imperturbável. E só quando a vira chegar às boas é que também se mostrara compreensivo.

- Vem cá, Gracinda - disse, obrigando-a a sentar-se a seus pés. - Já percebi do que tens medo. Mas repara... Se o Francisco a quisesse, nunca a deixaria vir só. Espera que ele volte... -E acariciava-lhe os cabelos. - Não a trates com esses repentes que às vezes tens com os rapazes. Esta gente do meu sangue entorta-se por nada; e quando lhes dá pra meterem a cabeça num lado, nem as espingardas dum regimento os fazem voltar. Eu ajudo-te quando o Francisco vier...

Gracinda aconchegava-se mais junto dele, sem saber encontrar qualquer palavra com que se mostrasse arrependida.

- Deixa a Maria Dolorosa ganhar o seu sossego, que bem o merece. E não fales nisto a ninguém, que eu farei o mesmo.

A juventude e a beleza da outra continuavam, porém, a causar-lhe receio. "Seria assim como o velho dizia, ou o Francisco tinha-a mandado com alguma intenção? A verdade é que ele abalara, já lá iam mais de dois anos, e nunca tinha dado notícias. Era uma prova de que não pensava nela... Ou seria o contrário?"

E as recordações traziam-lhe fogo ao sangue, excitavam-na, traziam-lhe sonhos que a punham doente e lhe causavam receio, levando-a a não sair de casa, como se a pudesse tentar o primeiro homem que encontrasse no caminho. Fazia-o por si, mas mais ainda pela outra, que lhe aparecia como alguém que a viesse espiar e fosse dizer ao Francisco que ela gostava de prolongar as conversas com os homens que vinham trabalhar com eles. Era agora o seu único prazer, aquele desejo secreto de se saber ainda admirada e pretendida, embora nenhum deles lhe interessasse. "Não estava a enganar-se?!", pensava algumas vezes. Não podia explicar a necessidade desse convívio. Mas a verdade é que uma alegria enorme se apossava de si quando sentia olhares ansiosos a persegui-la; parecia mais leve, como se o corpo lhe voasse, e tornava-se espirituosa, com uma pontinha de malícia que os homens adoravam.

Nunca deixara, porém, que algum se adiantasse - nem mesmo o Silva Costa, que insistia na sua quando a encontrava: "A Gracinda já sabe que se precisar dalguma coisa..."

O Espanhol é que fora mais decidido numa noite em que ficaram sós no lagar. Ele tinha o seu jeito para trolha e todos os dias fazia umas horas a levantar parede, até que o telhado se alvorara. Gracinda mostrava pressa no trabalho - a jorna dele era mais de favor que de paga - e aquela convivência, quase permanente, acabara por lhe fazer esquecer certa intenção de olhares que nos primeiros dias percebera. Exaustos, os dois sobrinhos tinham abalado. "Já vou, não me demoro. A Dolorosa que vos dê a ceia..."

Queria ter aquilo pronto quando o Francisco voltasse, trazendo-o consigo até ali para lhe dizer que nunca o esquecera. Agora só faltava a porta e pouco mais.

O Espanhol começara a enrolar um cigarro com as mãos trémulas e o olhar de esguelha; ela não pressentiu o propósito quando o viu chegar-se à porta, espiando para fora.

- Vai uma pinga? - perguntara-lhe.

Ele aproximara-se, olhos na porta, olhos nela, e pegara-lhe na mão, juntamente com a asa da caneca, quando ela lha estendeu. Gracejara ainda: "É aqui, homem!", mas a expressão do rosto do Espanhol não a enganou.

- Ouve, Gracinda...

Olhou-o com rancor, mas o sangue galopava-lhe nas veias.

- Vai amanhã fazer contas - disse-lhe com firmeza.

E esgueirou-se pelo carreiro abaixo, deixando-o confundido, entre portas, e a pensar que a devia ter agarrado à força.

Nessa noite sonhou com ele. Um sonho violento, que a deixou esgotada para todo o dia.

 

Um supergoverno mundial, constituído pelos cabeças dos trusts internacionais, poderia resolver todos os diferendos que surgissem entre os governantes das nações, não permitindo que, por meros despeitos ou incom-preensões de mesquinhas políticas nacionais, se arrastasse o capital financeiro e os seus satélites para lutas sem sentido - pensavam os que entendiam ser possível organizar o mundo sob a égide de homens superiores a certos desvios de perspectiva, de que enfermavam os chefes dos partidos parlamentares.

O ensaio já se fizera em 1904, entre os fabricantes de rails para caminhos-de-ferro, em cujo sindicato se agrupavam alemães, ingleses, americanos e belgas, e ainda, a partir de 1908, com produtores russos. A central estabelecera-se em Londres e a divisão dos mercados concretizara-se: o grupo belga contava com os pedidos do Japão, do Egipto e de certas repúblicas sul-ame-ricanas; os Ingleses ficavam com o seu império, enquanto aos Alemães cabiam os países escandinavos. Outro tanto se dera nos tabacos, em que Americanos e Ingleses se distribuíram zonas preferenciais, assim como na indústria química, sob a direcção das firmas alemãs Badische Anilin e Bayer, se estabeleciam fábricas em certos países com accionistas nacionais; outro tanto se atingira na indústria têxtil, como na dos vidros. Quanto às matérias-primas, o exemplo estava dado pelo consórcio do grupo alemão da Metallgesellschaio com a American Metal Company e grandes sociedades inglesas, que se garantiam, em conjunto, do cobre, zinco e alumínio necessários para as suas indústrias.

Esta divisão era utópica, porém. Outros grupos financeiros tentavam abrir caminho nos mesmos ramos, e até dentro dos mesmos trusts internacionais se travavam lutas surdas pelo predomínio de Ingleses ou Alemães, Norte-Americanos ou Franceses, que todos se arrogavam ao direito de supremacia no almejado supergoverno. Os Lloyds, na navegação, defrontavam-se com uma frente unida dos armadores germânicos da Hamburg-Amerika Linie, encabeçados por Ballin, e com o truso-americano dirigido por Pierpon Morgan, que afagava o sonho delicioso dum gigantesco truso de navegação: a International Mercantile Marine Company.

Os Lloyds reagiam, e daí a sua insistência no tratado preferencial de navegação com o Governo português.

E enquanto uma comissão de comerciantes de Portugal pressionava Londres para um arranjo nos vinhos, em troca da protecção aos navios ingleses nos portos nacionais, os Alemães encarregavam Fisher de manobrar em Lisboa e no Porto.

Albano Freitas sabia que Fischer tinha o* apoio do Dr. Cunha Ferreira junto de **Barãona, o qual estava por detrás da comissão que manobrava em Inglaterra. Freitas agia com prudência, aconselhado por Borges Alves, embora o seu dinamismo embaraçasse o sogro banqueiro. Fischer trazia na pasta uma encomenda de vinhos do Porto que a Hamburg-Linie transportaria, e Freitas era agora o seu agente no Norte - o lucro seria duplo.

Mas os metalurgistas do Rur queriam colocar materiais de caminho-de-ferro - Freitas teria a sua comissão, era evidente - , e nesse sector os Ingleses predominavam. As ofertas alemãs eram tentadoras: material mais barato, prazos largos e qualidade apurada. Porém, a Companhia do Norte de Portugal dava prejuízo e os accionistas retraíam-se na cobertura duma nova emissão de papel. Seria possível criar lucros fictícios aumentando os valores da companhia num ano, de maneira a dar ilusões aos accionistas? Mas quem pagaria os dividendos que de há muito se não distribuíam, absorvidos pelos ordenados, gratificações e ajudas de custo de viagens aos directores?

Os Alemães tinham a experiência da Ásia Menor, no Império Otomano, onde a companhia germânica do caminho-de-ferro de Bagdade obtivera, em 1903, o direito de explorar as minas que pudesse descobrir, numa zona de vinte quilómetros à volta da sua linha férrea. Mas que minas havia para explorar em Portugal? E não estavam os Ingleses alerta, invocando sempre a sua qualidade de nação aliada?

- ¦ Parece-lhe que a guerra será possível? - perguntava Freitas ao Fischer. "Podiam fazer-se bons negócios", pensava. "Assim houvesse a certeza prévia do conflito, porque não faltariam produtos a importar, esperando depois a alta dos preços."

Fischer sabia que o imperador e o estado-maior alemão, com oMoltke à frente, consideravam o momento propício para atacar - e por isso exigiam por toda a parte aquilo que consideravam necessário para a formação do seu estado tentacular; se o conseguissem sem guerra, tanto melhor. Precisavam de colónias e de mercados, e umas e outras estavam distribuídos pelos países que antes dele - haviam iniciado a sua época imperialista. O petróleo da Pérsia fora concedido, em 1889, pelo xá ao barão inglês Reuter; outro inglês, Pearson, dominava os campos petrolíferos do México, debatendo-se aí, porém, com o dinamismo imperialista norte-americano, que procurava posições de domínio futuro; os caminhos-de-ferro da Argentina estavam também sob o poderio britânico, que neles consumia o seu carvão e o seu material, o mesmo sucedendo no Brasil e na China, apesar de, neste país, a concessão alemã ser das mais importantes. Mas aí, porém, espreitava a gula dos Americanos, exigindo uma política de "porta aberta" para as suas exportações, enquanto fechavam as suas próprias alfândegas aos produtos europeus.

- Não, meu amigo. Eu creio que tudo será arranjado - respondia Fischer. - De resto, isso seria um desastre para os países que não quisessem compreender os direitos do germanismo.

E explicava com minúcia o motivo da queda do Império Romano, com a perda dos homens louros nas guerras de Mário, e de Sila. O acesso dos escravos sírios e outros, morenos, e, portanto, inferiores em inteligência, tinha feito o resto. Freitas lembrava-se dos seus olhos azuis e acenava a cabeça, concordando.

- Nós ganharemos a guerra contra a França em seis semanas... Seis semanas, rigorosamente! - insistiu quando reparou na expressão de espanto do Dr. Albano. - As nossas forças económicas já estão em marcha e ninguém as poderá deter. Se o pretenderem pela força - continuava com um sorriso - , o nosso exército e a frota de Von Tirpitz tratarão de os convencer.

- Mas a marinha inglesa...

- Nós sabemos sempre responder-lhe. Veja o que sucedeu com os novos barcos de guerra... Entenderam que os não podíamos construir por causa da pouca fundura do canal de Kiel. Pois nós profundámos o canal e já produzimos barcos da mesma tonelagem e com a mesma potência de fogo. O nosso império já não cabe nos limites territoriais, onde nos pretendiam esmagar. A história da humanidade divide-se em três períodos: o helenismo, o romanismo e o germanismo. A época do germanismo começou e nada a poderá deter.

Freitas acreditava no fatalismo dessas palavras, mas entendia que os Ingleses - Borges Alves lembrara-lho - ainda tinham capacidade para manobrar durante muito tempo. "Devia desde já arriscar-se, e a fundo, na empresa germânica, ou seria melhor agir com prudência, sem se comprometer verdadeiramente com nenhum dos contendores?"

- De resto - prosseguia Fischer - , a guerra é a lei inelutável da vida, segundo diz o nosso Treitschke. Deus e a natureza desejam a guerra. E acredite que Deus, pelo menos, está connosco. Já viu o tom lírico com que no Antigo Testamento se celebram as guerras santas? O nosso Lutero, o reformador, dizia que era necessário considerar não só os inconvenientes da guerra, mas sobretudo os inconvenientes maiores que ela nos evitava. As crianças, dizia ele, não ousam olhar para o cirurgião que lhes corta uma perna, ignorando que esse corte lhes salvará o corpo inteiro. Não sejamos crianças também! Compreendamos virilmente a missão da espada, missão que lhe vem de Deus...

 

Deus estava nas palavras de Lutero, dos generais Moltke e Bernardi - que falava nos "passos de Deus", no seu livro O nosso Futuro - , como nos discursos do imperador Guilherme II: "Nós somos o sal da Terra; Deus chamou-nos para civilizar o mundo."

Tambem o poeta alemão Wolfskehl achava que "a guerra vinha de Deus e que se tratava do divino na humanidade".

Mas Deus estava no hino inglês, e o seu rei e os seus ministros falavam dele nos seus discursos, como o arregimentavam o czar de todas as Rússias, o imperador da Austro-Hungria e o presidente da República Norte-Americana, cujas missões protestantes invocavam Deus para colonizar os indígenas do Pacífico. Por sua vez, os Japoneses sabiam que "as suas ilhas eram de origem divina" e olhavam para o ferro e para o carvão da Manchúria como para o ferro e o arroz da Coreia. E em nome de Deus ali se tinham instalado desde a guerra com a Rússia. E na conquista da Tripolitânia pela Itália Deus lá estava também nos discursos dos chefes, nas canções dos soldados e nas orações de todos eles.

Francisco Teimas resolvera voltar, em breve, à aldeia. O trabalho nas quintas da Régua era cada vez mais escasso e o trabalho em armazéns tornava-se difícil de obter. Iria fazer uma segada em Espanha, com um grupo de homens que dali partia todos os anos, e na volta entraria por Trás-os-Montes.

"Precisava de encarar as coisas como elas eram, com seiscentos diabos! Não podia voltar costas às suas respon-sabílidades, só porque receava... Afinal, que podia ele temer? Uma conversa, um desabafo... Não, mulher, não penses nisso! De resto, o que sabia ele da vida que a cunhada fazia por lá?... Talvez até já estivesse casada!"

À noite procurava um tipógrafo que lhe emprestava jornais operários e conversava com ele.

- Acreditas que haja guerra?

- Qual guerra? Uma greve geral dos sindicatos faz derruir tudo... Uma guerra será o fim do capitalismo! - respondia-lhe o outro com o olhar iluminado.

O movimento internacional de capitais prosseguia e o mercado de Londres mantinha a sua predominância neste sector, que dominava todos os outros. Os grandes bancos da City financiavam os "países novos", abrindo sempre mercados para os produtos industriais britânicos e fontes de matérias-primas para as suas industrias. oBar-clays Banétinha sucursais em França, na Alemanha e na Argélia, e controlava o Banco de Atenas e o Banco Britânico para a América do Sul; o Westminster Banc tinha comparticipações no Banco da Roménia, no Banco Otomano e no Banco de Hong-Kong e Xangai; o Imperial Bank na índia, o Anglo-Egyptian e o South-African favoreciam o controlo destes países-possessões.

Os estabelecimentos de crédito da Alemanha e da Fiança seguiam-lhes na esteira, mas tinham de se mostrar quase sempre cordatos com Londres, que fora obrigada a abandonar a sua política de isolamento, embora com saudades da época vitoriana. A expansão territorial levara-a a conflitos em quase todas as regiões do mundo: na África ocidental e central com a França, na Ásia central e no Extremo Oriente com a Rússia; com os Estados Unidos, a propósito da América Central e o canal do Panamá, a situação tendia a agravar-se com o Canadá e a política pan-americana que os dirigentes de Nova Iorque levavam a cabo com audácia. Na China, este concorrente começava a ser temível. Por isso o Governo britânico manobrava com Berlim para satisfazer certas ambições germânicas, sabendo que a Alemanha pactuava com a América do Norte em muitos consórcios que pretendiam desbancar os interesses da Citv.

"Faremos um imperialismo diferente", dissera Teo-doro Roosevelt.

A originalidade do seu imperialismo estava em substituir os processos de conquista por uma acção subtil: a diplomacia do dólar. E os pequenos estados americanos caíam sob a sua alçada um a um.

O processo era hábil: os seus financeiros investiam capitais em negócios privados, falando em liberdade e democracia, com o auxílio dos pastores protestantes, que levavam com eles a palavra de Deus; vinham depois os conflitos internos e daí as complicações no pagamento da dívida pública e a falta de segurança nos capitais empregados. Então, o Governo de Washington devia intervir para proteger os justos interesses dos credores ianques - algumas vezes também pelas armas, mas quase sempre pela via diplomática. "Faremos um imperialismo diferente", dissera Roosevelt. Se a agitação provinha de um as suas tropas para resolver um problema do Governo local era deixado à sua sorte, recusando-se-lhe créditos e armas (o presidente podia interditar, por resolução do Congresso, em 1905, a exportação de armas para os estados americanos); logo que os rebeldes venciam, o seu Governo era reconhecido como legítimo. E um tal reconhecimento importava sempre em facilidades para o seu comércio.

Em 1903, no Panamá, os Estados Unidos enviavam as suas tropas para resolver um problema de Governo local; em 1905 cabia a vez à República Dominicana, ameaçada de bancarrota. Washington garantia a independência daquele território, pagava as dívidas, e tomava conta da administração do país, incluindo as alfândegas, apossando-se de 45 % das suas receitas. Na Nicarágua dava-se a queda do presidente Zelava, para lhe suceder Adolfo Díaz, que garantia bases navais à esquadra norte-americana.

Alfredo Mahan mostrara a importância da posse destes pontos de apoio para o desenvolvimento do imperialismo nacional, enquanto os teóricos da ciência política, certos da superioridade das instituições americanas, proclamavam que os Estados Unidos tinham o dever de levar as suas concepções liberais e democráticas aos povos que se mostrassem incapazes de se governar. A anexação dos territórios das Havai e das Filipinas, o protectorado sobre Cuba e o Panamá, eram parte dessa política, que ganhava força e disputava às potências europeias não só a predominância na América Central, mas também agora na América do Sul: a doutrina de (Monroe alargava-se sempre. Um presidente entendia que ela "podia obrigar os Estados Unidos, mesmo com pesar seu, a exercer, nos casos flagrantes de desordem ou de impotência, um poder de polícia internacional". Em Dezembro de 1912, o presidente Taft levava a doutrina a pontos mais precisos: "Se a desordem financeira for de natureza a provocar distúrbios internos num país, os Estados Unidos devem assegurar a paz e a prosperidade e impedir o investimento de capitais estrangeiros, tomando-lhes a dianteira." A tarifa Payne-Aldrich fechava os Estados Unidos aos produtos europeus, embora os representantes dos estados do Middle West pedissem uma diminuição dos direitos aduaneiros. oPartido Republicano, porém, continuava a servir fielmente a grande indústria e a alta finança, pelas quais, junto de Taft, vigiava esse homem de acção e optimismo, corajoso e enérgico que se chamava Teodoro Roosevelt, presidente cessante, cujas provas na guerra hispano-americana o tornaram adorado pelas massas do seu país, e que concretizara depois as normas do expansionismo americano: "Faremos um imperialismo diferente!" As eleições parlamentares de 1910tinham dado, contudo, a vitória aos homens do partido que se designava por democrata, e a posição de Tafotornara-se difícil, obrigando-o a aceitar medidas que faziam parte do partido adversário - o imposto sobre os rendimentos e a dissolução dos trusts Standar Oil e Tobacco Company.

Foi então que entre Taft e Roosevelt surgiu uma grave discórdia, que levou à criação do Partido Progressista - e em 1912, nas eleições presidenciais, o último apresentava-se como seu candidato. A vitória, porém, havia de pertencer a Wilson, o homem do Partido Democrático.

Na sua aldeia, o Dr. Pimenta tivera notícias do convénio que os do Sul preparavam em Londres e fora até à Régua para trocar impressões com o Moita e o Severino. Os outros não acreditaram na notícia. O Moita era senador e podia garantir que nada disso tinha uma vírgula de verdade. "O Governo não estava no poder para servir clientelas, mas para servir o povo e a República." E esgrimia a bengala, como se ameaçasse o Pimenta. De resto, a hostilidade pelos do Alto Douro continuava viva no espírito dos influentes da Régua, que se magoavam quando os outros afirmavam nos comícios que o verdadeiro, o autêntico vinho generoso, era o dos vinhedos do Torto, do Távora e do Roncão, e nunca os dos nateiros da Régua, onde as cepas "mijavam" vinho igual ao do Ribatejo - era a expressão depreciativa que empregavam usualmente.

O Pimenta não se escusava a repeti-lo quando o entendia oportuno - e as oportunidades do Pimenta eram quase permanentes. Depois o outro não lhe poupava as insídias contra os paladinos. "O que é um paladino?", interrogava o Pimenta com os olhos marotos a observarem por detrás das lunetas espessas. Ele próprio dava a resposta: "O paladino é um bicho mais pernicioso do que o míldio e irmão gémeo da filoxera. Onde passa deixa rasto de morte; e ainda com um defeito maior: fala. E quando um paladino fala, abrindo os braços e arregalando os olhos, é melhor um homem ir suicidar-se no Douro com a família."

O Dr. Severino não lhe perdoava a graçola:

- Era por estas e por outras que os pequenos lavradores desertavam dos comícios ou os hostilizavam.

- É essa a sua última palavra, Moita? Pois eu receio que tenhamos de aguentar as consequências do convénio.

- Dou-lhe o meu lugar de senador... O Pimenta desbragara-se de riso:

- Pois está apostado! E você vai ver o bonito quando eu chegar à sua cátedra.

- Acaba com o vinho na Régua - retorquiu o Dr. Moita.

- E olhe que não podia fazer nada de melhor para defender a qualidade do vinho do Douro.

O (Pimenta voltou para a aldeia, sem confiança no que iria passar-se. "Estariam todos à altura de defender os direitos da região? E como iriam defendê-los? Os discursos não bastavam..."

A questão balcânica estava no primeiro plano dos interesses internacionais. "Que faria a Rússia? Como procederia a Inglaterra?", perguntava-se em Viena e em Berlim.

A Bulgária fora esmagada na segunda guerra dos Balcãs; mas que se passaria mais?!...

 

Apresentaram-no ao maioral, um homem magro e alto, de olhar duro e boca enorme, que mostrava uma dentuça arreganhada, onde as presas salientes e graúdas sobressaíam, dando-lhe aquele aspecto de podengo açulado. Duas pernas escanfradas e tortas puseram-lhe a alcunha para portugueses e espanhóis - era o Cambáo, que todos os anos, em fins de Maio, arrebanhava homens para as segadas de Espanha, cujas entradas livres conhecia melhor do que os seus dedos. Tratava carabineros por tu e com eles se concertava na passagem do pessoal, a tantas pesetas por cabeça - "Cuanto? Caramba!" - , que depois cada segador lhe pagava, com alcavalas, das jornas ganhas nos campos.

- É a primeira vez? - É, sim.

- Eu sou o cabecilha, hã?!... Haces tudo o que yo te diga... *

Falava numa misturanga de castelhano e português, mais por vaidade do que por hábito, remoendo as palavras numa voz cava.

Estavam ali quase cem homens - todos de foice ao ombro e dedais de sola no bolso, saquita só com uma "andada" de roupa, algum pão-centeio e queijo ou bacalhau seco para conduto. caminho - a "corda", como lhe chamavam - seria feito por três vezes. E as pernas precisavam de desembaraço, pois o Cambáo tinha léguas nos pés e não olhava para trás, à espera dos retardados. - Presto! Rápido!

Lá iam dois tocadores de violão e um de flauta, para ajudarem às tiradas - dos bons, exigia o cabecilha, que os seus bailes tinham fama em terras das duas raias.

- Vamos!...

E àquela ordem todos partiram na esteira dos seus passos, enquanto o Caifás, o judeu do rebanho, sempre pronto à maroteira, atirava uma cantiga que a flauta, e logo depois os violões, com grandes puxes de cordas, se puseram a acompanhar.

Não segueis o trigo verde, deixai-o amadurar...

Era a despedida das famílias que se tinham juntado para os ver partir - cuidado com as espanholas! cuidádo con las chicas! - e lhes acenavam com as mãos quase esquecidas quando eles se afastaram.

... que nas ondas do mar anda quem o há-de vir segar.

À voz do Caifás juntaram-se outras; e o rancho decompunha-se em pequenos grupos que se formavam nas fileiras, por antigas camaradagens ou espontâneas simpatias. - O camarada já foi a Espanha alguma vez? Nunca!... As chicas são um mimo. A gente chega e abala... Algumas parece que gostam disso, e um homem pesa-lhes em riba sem saber como.

- Uma vez, em Ricobaio, duas hermanas... duas irmãs, na palavra deles...

Não segueis o trigo verde. deixai-ô amadurar...

- ... buscaram-me para trabajar. "Como se llama, usted!" Manolo!, lhes respondi.

E as conversas cruzavam-se com risotas de umas filas para as outras, com cantigas e arremedos de acontecimentos passados, que punham os atingidos em amuo e os outros a gargalhar.

Manolo mio

que a mi me han dicho

estes três dias te vás a salir...

Estes três dias seran três horas

Manolo mio lleva-me a mi...

oCaifás saracoteava-se, acompanhado pelo bater compassado de palmas do seu grupo dilecto.

- Quê pasaba? Lembras-te, Arredondado? Te olvidas?!... Aquela tia que te buscou de noche para te perguntar "qué pasaba"?

- oDepois... Depois é que se passou. Caramba! Nunca vi una tia tan presta... Yo tenía el corazón apesadum-brado con saudades de mi mujer.

- Se llama saudades, ahora?!

As gargalhadas vinham de todos os lados. Depois o sol começou a pesar. Da Régua a Vila da Ponte, onde dormiriam, eram doze léguas. Algumas árvores estavam ainda cheias de flores. "Bonito!", ciciavam entre si. Frutos mais temporões, como as maçãs de S. João, as malapias, ganhavam forma, acenando dos troncos. As montanhas verdes cerziam os horizontes - e por eles serpeavam os caminhos que os homens percorriam atrás do Cambáo, numa fita clara de poeira, rumo ao trabalho e à aventura. "Una chica... Quê cosa!"

Francisco Teimas ia aturdido entre aquela gente desconhecida. Via as árvores, os frutos temporões e as montanhas verdes. Mas não tinha aventuras para contar, que a sua não lhe dava vontade de rir. Era uma aventura de golpear o coração. "El corazón", pensou - a primeira palavra que decorava em língua estranha. "Talvez pudesse... Porque não a Dolorosa?! Era viúvo e não podia ambicionar menina... Porque não?!..."

- O camarada tenha tento, hã?! - dizia-lhe um homenzito meão. - Las españolas buenas, pero... - Hesitou e disse o resto em português: - Muito de brincar, mas é preciso olho... Ojo!... A um tio da minha aldeia cortaram-lhe... Compreende?!... Morreu! nunca mais voltou!...

- Se morreu, não podia voltar, cofio! - disse outro. O homenzito gaguejou, puxando a sacola para cima

do ombro, como a tomar tempo.

- Morrer é o menos... Mas não voltar, caramba!

E não disse mais, olhando as árvores, os frutos temporões e as montanhas verdes com os olhitos brilhantes, de comoção. "Não voltar, caramba!", repetia o Teimas. Agora tinha pressa de fazer as segadas e estar de regresso.

- Comemos algo! - ordenou o Cambáo.

Procuraram sombras; escolheram sítio ao pé dum regato que corria pela vertente dum monte maneiro. Teimas quis beber água e galgou a vereda; e soube-lhe bem passar os dedos por um feto, que depois arrancou e pôs na fita do seu chapéu.

A segunda tirada de dez léguas acabou em Pinhel, onde chegaram já com a noite bem fechada. Acamparam fora da cidade, com estrelas sobre a cabeça e pirilampos à volta, a gotejar luz. Os mais derrancados e os veteranos daquelas andanças adormeceram logo, sem deixarem que os violões e as cantigas, a flauta e as anedotas se calassem. A terra dura serviu-lhes de colchão e a saquita de travesseira. Um grupo ou outro acendeu fogueira para assar bacalhau, mas a Caifás e os companheiros de taina, que empreendiam a viagem mais pelas aventuras do que pela jorna, desandaram com os iniciados para as tabernas da cidade, convencendo-os de que deviam pagar a patente antes de chegarem à fronteira. Mais nove léguas estariam em Espanha. Quem os poderia fazer dormir naquela noite, com a ideia posta nas chicas?

Francisco ficou no acampamento, excitado com a viagem e o desejo de voltar depressa. Talvez encontrasse o Espanhol ou o Sandão, que lhe contariam novidades da aldeia. Uma voz falou à sua (beira; sem voltar a cabeça, Teimas respondeu-lhe num monossílabo.

O outro, porém, insistiu: "E se não arranjamos trabalho?" - Voltamos pelo mesmo caminho... "Mas sem o Cambáo, como passamos a raia?" - Nesta altura das ceifas os Espanhóis deixam passar, respondeu Francisco.

- Eu venho pela primeira vez... Tenho um bocadito de terra e trago a contribuição atrasada. Disseram à minha patroa que se não pagasse levavam tudo à praça. Ter terra é mais caturrice do que outra coisa... Ou da patroa... Ela é que chora quando pensa que nos vão tirar a leva. Eu já não m'importo. Tanto me faz tê-la como trabalhar sempre para os grandes...

Francisco parecia não o escutar.

- Não acha? - perguntou.

oTeimas voltou-se, então, de frente para o companheiro. Só lhe via os olhos na noite e percebia-lhe o nervosismo pela maneira descompassada como falava.

- Não é a mesma coisa - respondeu. - Já tive terras minhas... e agora sei a diferença. Há uma diferença!

Sentou-se com o braço apoiado no saco e ia golpeando a terra seca com o bico da foice.

- Tiraram-lhe as terras?

- Não!... ("Como ia explicar ao outro?") Deixei-as... Mas é a mesma coisa! E há uma diferença... A gente com a terra nossa tem uma razão. (Como diabo devia dizer aquilo?) Talvez se engane, mas tem... Pensamos que um dia se tira o lucro do nosso trabalho; e não paramos de trabalhar. Andando à jorna, quando se pára, um homem pensa... Pensa, e é verdade, que não há remédio.

- Mas recebe ao fim da semana - disse o outro.

- Mas é só aquilo... E se o amanho é nosso fica sempre mais qualquer coisa... Uma esperança... E pode dizer-se prà família: "Sacrifício, é que é preciso." E a família percebe. Vê a terra e percebe... Mas quando é só a jorna, que se vai dizer à mulher e aos filhos?

O outro meneava a cabeça, sem compreender.

- Diz-se-lhe que a culpa é dos patrões?!... Eles não entendem. Eu só agora é que começo a entender... E talvez não seja só deles... mas também da gente.

Deixou ficar um silêncio. "Por que diabo é que não sei explicar as coisas até ao fim?"

- E depois - prosseguiu ainda - , se um homem tem terras, as lojas fiam. Pensam que a gente pode pagar... Que um dia se paga de qualquer maneira. Agora, só com os braços, quem é que fia?... Percebe?!...

- Pois é isso!... Uma vez senti-me desgraçado com a doença da mulher e hipotequei a terruça... E disse cá na minha: se não tivesse isto, ela morria. Mas a verdade é que um homem se mata a trabalhar... E valerá a pena? A terra será mesmo nossa?!

- Eu cá penso que não é - respondeu Francisco.

- Mas não é porquê?!

- Isso é que ainda não percebi.

Um cabo da Guarda Republicana, com patrulha, veio avisá-los de que podiam ficar ali, mas que tivessem conta com zaragatas. O Cambáo é que se lhe dirigiu, garantindo-lhe que sabia escolher a sua gente e ele mesmo lhe levaria ao posto os que fizessem arruaças.

- E não acendam fogueiras... Esta terra é do Sr. Presidente da Câmara, e vocês podem deitar fogo às árvores.

O Cambáo acompanhou-o a distância, de chapéu na mão, e voltou depois para junto do rancho de segadores:

- Ouviram? - E nada mais disse. Deitou a cabeça sobre a saca e começou a dormir outra vez.

- Estava a gostar de o ouvir - disse o outro.

- Ela não "é nossa... Acho que é por isso mesmo! - prosseguiu Francisco com mais vivacidade. - Porque o preço das coisas são os outros, os maiores, que o marcam. E a gente não tem lagar... E eles chegam e compram... Têm amigos, mexem-se, furam sempre as coisas. A gente tem de esperar por aquilo que os outros nos qherem oferecer... Por isso a terra não é nossa... É nossa só no nome.

O outro deitara-se sem lhe dar as boas-noites. Francisco ficou sentado, a pensar: "Não fui capaz de lhe dizer tudo como é... Se houvesse uma leitura que explicasse! Será alguém capaz de explicar uma coisa destas? A gente é que devia perceber... Mas como?!"

Adormeceu tarde, quando o Caifás voltou a cantarolar:

Manolo mio

que a mi me han dicho...

O Cambáo atirou-lhe uma ameaça, sem levantar a cabeça da saca, e o outro calou-se, remordendo uma praga em castelhano.

As consequências da política de equilíbrio tinham posto a Europa à beira do abismo. O número de homens em armas crescia sempre. A Alemanha sentia-se cercada; a França precisava da desforra de 1870; a Inglaterra temia a marinha germânica e o assalto aos seus mercados tradicionais; a Rússia sabia que nos planos dos militaristas do Reich se falava de territórios seus que seriam conquistados na hora própria.

"Um pássaro que atravesse uma fronteira pode dar a guerra", dizia um pacifista francês num bistro de Mont-parnasse.

Nesse dia, um artigo da Gazeta da Bolsa publicava-se com o título significativo: "A Rússia está pronta para a guerra; é preciso que a França também o esteja!"

A Alemanha exigia a entrada em Angola de uma missão de técnicos seus, que ali iria ao abrigo da política de porta aberta, soo pretexto de estudar projectos para novas linhas férreas. Mas havia uma particularidade nessa missão: os técnicos eram todos militares.

Chico Teimas tanto andara de roda do Mirão que este lhe cedera a guitarra. E junto da fonte da Portela, numa pedra que os rapazes namoradores preferiam, o outro começara a ensinar-lhe a maneira de prender as cordas nas escalas. As moças galhofavam de longe com a aprendizagem do Chico: pràs nossas netas bailarem, Teimas?... - Pois! As netas dos filhos que eu te hei-de dar - respondia o rapaz, dando-se à brincadeira, mas irritado com a demora em decorar uma coisa que antes lhe parecera tão simples.

As noites para se cantar na praça aí estavam quentes e serenas, e não havia maneira de o Mirão lhe desembaraçar os dedos. - Ao menos pra acompanhar uma "rabeia"...

As grandes manobras austríacas tinham terminado com a maior satisfação de militares e políticos. Às dez horas da manha o arquiduque chegara a Serajevo e o cortejo formara-se na estação de caminho-de-ferro, com grande aparato de fardas e de fanfarras. Na carruagem do arquiduque Francisco Fernando seguia a esposa, vestida de branco - "como uma noiva", diziam as velhas - e o governador militar da Bósnia, o general Potorick.

Uma multidão excitada assistia ao desfile, trazida às ruas pela publicidade dos jornais e pela curiosidade infantil de ver um espectáculo deslumbrante de espaventos. Entre essa gente estavam, porém, os bosnianos Popovicée Chufcilovich, um muçulmano e mais três conjurados vindos de Belgrado: Princip, Chabrinovitcée Grabezh.

- Porque andas triste, Dolorosa? - perguntava Luís, sentado no portal. - É do teu pai?! ,.. Também o meu não voltou - dizia para a consolar.

Mas lembrou-se daquela noite da morte do Judas e do que se falara na aldeia por causa do fidalgo da Casa Grande. E, de mãos nos bolsos, Luís Teimas desceu do Lugar da Igreja e amarinhou depois ao Santo Cristo. Imponente, todo caiado de novo, lá estava o palacete onde ele fora um dia com o avô e se recordara também da morte do Fatinário. Por momentos pensou em voltar para casa, sem levar por diante a ideia que o trouxera até ali; mas o caminho estava cheio de calhaus...

E só regressou quando ouviu um vidro estilhaçar-se; mas não correu nem deitou fora as outras pedras que lhe ficaram na mão.

Uma bala de Principio derrubava o arquiduque e seria o pretexto para irem morrer milhões de homens.

 

- La família del Cambáo! - gritaram no pueblo quando viram chegar aquela nuvem faminta de homens sombrios. E foram corridas do rapazio, bater de portas, assobios e risadas. - El Cambáo!... El Cambáo que llega! - Os veteranos sorriam, gritavam nomes e esperavam os amigos. Uma sopa quente, ao menos, iam ter naquela ceia, já fartos de bacalhau e queijo, caramba! As searas maduras ondulavam ao vento quente que vinha de Castela. Era noite, mas ouvia-se o crepitar das espigas de centeio. O ruído da água numa fonte do largo queria refrescar os homens e a terra. Mas a folha do feto que Teimas trazia na fita do chapéu já secara.

- El Cambáo! El Cambáo que llega!

- Onde estás?!

- Aqui, hombre! Más viejo que el mundo!...

Os veteranos debandaram atrás do cabecilha, convidados para casa de amigos que os levaram. E choviam novidades. Don Paço morrera - e ainda bem, juntou uma velha. Devia estar no Céu a querer enganar S. Pedro pretendendo comprar-lhe as sandálias por meia peseta. - Tinha dado uma doença nos porcos antes do Natal e poucos haviam escapado... António, el cabresto, deixara a mulher e as filhas. Já ninguém lhe podia cantar:

En casa cuatro toreras, três hijas y una madre; para llamar los toricos de cabresto es su padre...

"Antes de abalar moera todas a cacete, sem piedade. Y Ia mujer!... Y Ias hijas?!..."

Os da música ficaram no largo e só três moças chegaram para obailar. Mas os segadores vinham desfeitos pela caminhada e nenhum saltava para o meio da roda.

- Vicenta! Onde está Vicenta? - perguntava o Caifás.

Vicenta abalara do pueblo; Maruja casara. oCaifás ficou triste, não se pôs aos saltos e a bater palmas, como era seu hábito, e ninguém dançou. Em bicha, na fonte, muitos homens matavam a sede, enquanto outros se entendiam já, à espera de que o cabecilha voltasse para lhes dar ordens. As três chicas olhavam-nos a distância, enquanto as mães lhes recomendavam: "No hagas tonterías, nina!"

A brisa de Castela queimava. Para o norte, as montanhas negras pareciam caminhar em silêncio para esmagar a aldeia. O zangarreio das violas era já tão monótono como a cega-rega dos ralos. Só a água da fonte teimava em refrescar aquela noite pesada e triste, tão triste que as três moças acabaram por fugir sem saberem de quê, embora fossem a rir, a rir muito...

Francisco Teimas estava alheado de tudo - não vinha ali por causa da Vicenta, nem de Maruja, que estava casada, nem para bailar, nem para entrar no coro que cantasse António, el cabresto. Tinha ainda nos ouvidos os gritos do companheiro que não pudera acompanhar a marcha dos outros e ficara a uma légua da fronteira, chorando como um menino e enchendo-os de maldições, depois, quando os vira desaparecer. O Cambáo não quis esperar - e ninguém ficara com ele, nem sequer os amigos da mesma aldeia. - Espera, João! Espera, Cambáo! É só um bocadinho que eu logo já posso! - Depois, como um demente, gritara, gritara, como se pudesse pôr à frente dos outros uma muralha de palavras e de insultos.

O Teimas ouvia-o ainda e estava arrependido de o ter abandonado. "Ele não seria capaz de voltar... Na terra iam fazer-lhe sogada... Esperem aí!" Tinha aquela voz metida nos ouvidos.

E os espanhóis faziam uma festa ao Cambáo, porque ele lhes trazia segadores. Naquelas terras os homens abalavam e não havia braços para fazer as ceifas - os "portugas" trabalhavam por qualquer preço. No dia seguinte, Teimas olhava para os que se tinham deitado nas pedras

do largo e percebeu como as coisas se passariam. Deitou-se também, recusando um convite para ir dormir ao palhal de Manolo Retiráo - um reformado dos caminhos-de-ferro. Mas também aí nem todos dormiam. O Caifás ficara à porta, contando a um amigo mais íntimo as suas mágoas:

- Vicenta era viúva. Disse-me o ano passado para eu ficar... Não quis... Tive saudades da terra e da velhota. E Vicenta tinha um rebanho de cabras, uma casa e uma terra de centeio... E umas ancas! Não era bonita, mas parecia de fogo! Vicenta Hernández Anta era o seu nome todo. Foi ela que me pôs a alcunha, mas em casa tratava-me por "judio". Era una mujer, esa Vicenta!...

- E Maruja?

- Maruja tem marido... Se eu adivinhasse, tinha ficado com o outro...

Também o Caifás se lembrava agora do companheiro que não pudera aguentar toda a viagem da "corda" que ia da Régua a Espanha.

Dois a três dias num lado, nova caminhada. O rancho dispersava-se aos poucos. Alguns, presos numa aventura, iam ficar mais tempo e não se juntariam ao Cambáo para voltar. Já sabiam a desculpa a dar aos carabineiros: "Fui para comprar uns pantalones; agora vou para a família." E quase todos voltavam de calça de bombazina, porque era sinal de homem viajado por terras estranhas. Haveria muitas histórias para contar. Todas as que pertencessem aos cem homens do rancho e que valesse a pena repetir.

A "corda" acabaria em San Vinos. Até lá eram dois meses, deslocando-se conforme as searas amaduravam, dois a três dias num pueblo e noutro, e noutro, a não ser que uma Vicenta qualquer os prendesse por mais uns dias. Francisco acabara derreado na primeira semana; faltava-lhe o hábito da ceifa e o calor matava. Tinha sempre a seu lado o companheiro que puxara conversa em Pinhel. E falavam no mesmo tantas vezes que já sabiam as palavras um do outro.

- A terra é nossa só no nome... Os grandes, aqui em Espanha como lá, é que dizem como é. E eles sabem o que querem...

- Mas talvez um dia se enganem... Nisso é que o outro não estava de acordo.

Francisco entrara numa venda e sentara-se a beber. A um canto, quatro ohomens jogavam a bisca, numa algazarra de praça pública. Um deles, no acesso do entusiasmo, punha-se de pé por cada carta que atirava sobre a mesa, ao mesmo tempo que media os adversários com um sorriso "de desdém.

Isolado, livre do companheiro habitual, que fora segar para outro amo, Francisco pensava no regresso. "Caramba! Que tempo sem dar notícias! Atirara pra lá com a Maria Dolorosa e nem uma palavra... Fraca têmpera a sua!..."

- Una botella de vino! - gritou para o taberneiro. - No - disse depois, levantando-se num arremesso que fez os jogadores voltarem-se para ele: - ¦ Una copa! - " disse em voz baixa, já encostado ao balcão, mais por sentir que chamara a atenção dos outros do que por desejo. Uma saudade, que até aí nunca experimentara, oprimia-lhe o peito. "Faltava mais de um mês... Não podia esperar tanto tempo!". Atarantado, espreitou as prateleiras, quase vazias, e comprou uns bolos secos, cheios de pó, lembrando-se dos filhos.

Saiu sem uma palavra e, já na rua, hesitou: depois meteu para os lados do palhal onde dormia, apertando o cartucho no peito.

- António!...

O companheiro ainda não voltara. Gostava de lhe falar, mas tinha pressa, como se a sua aldeia pudesse desaparecer com aquela demora. "Quantas léguas ainda?! Caramba!" Foi direito ao prego onde tinha o saco pendurado, arrancou-o de um puxão e galgou para o pátio.

Um luar baço desfazia-se no céu.

Furtou-se a um grupo que caminhava para o seu lado, a cantar, acoitando-se num portal onde uma velha cigana dormitava com dois garotos no regaço. Olhou-os ainda com enlevo e partiu. "Faltava-lhe a foice", lembrou-se. "Não, não ia voltar atrás! Porque não percebera tudo isto há mais tempo?!..."

E disparou numa carreira, para fugir ao pueblo, como se tivesse receio de que as vozes que cantavam o viessem agarrar.

 

Mais fria do que a noite estava agora aquela casa.

António Teimas sabia que lhe ocultavam alguma coisa, mas não tinha coragem para indagar, na certeza de que já não era capaz de reagir contra os acontecimentos. A sensibilidade entorpecida deixava-o ausente da vida que se fazia à sua volta, apático e triste, a remoer lembranças doutros tempos, quando muito. Sentia agora, porém, que no silêncio, marcado entre as raras palavras dos outros, um novo facto, talvez terrível, se produzira. "Que seria mais ainda?"

- Está frio, ou sou eu que o tenho?

- Está frio - respondeu Gracinda.

o velho voltou a cerrar os olhos apagados, apertando as mãos. "Que tempo!... Em pleno Verão tinham caído trovoadas de arrasar tudo. Quantos cachos perdidos? E quantas videiras sem raiz?!..." Já não dispunha de olhos para perceber as coisas exactamente, mas adivinhava que aquela tenaz, a oprimir-lhe o coração, nada de bom podia trazer.

- Os dias estão quentes - disse depois, erguendo a cabeça para ouvir melhor.

Maria Dolorosa fez sinal aos outros para que se calassem e deu ela a resposta. -Nem por isso...

- Quentes como o Inferno! Porque me querem enganar?...

A amargura inundava-lhe o rosto magro, mas deixava-lhe os olhos, outrora expressivos, numa imobilidade de calma.

- Vocês não sabem que conheço o tempo de cor e o trago nos ossos e no sangue?!... Dias quentes de queimar a terra toda... Madrugadas com nevoeiro, que bem o sinto; e estas noites frias... É um frio que nunca senti nem de Inverno!

As colheres ficaram quietas no fundo das malgas. - Porque não me contam a verdade? - disse ainda.

- Mas o quê, Ti António? - respondeu Gracinda, que se aproximara, pondo-lhe as mãos sobre os ombros.

O velho voltou-se e deu uma daquelas gargalhadas de demente que soltava agora com frequência.

- Gostava que me dissessem a verdade! - insistiu num tom áspero e lamentoso ao mesmo tempo. - Seria melhor contarem-me... Eu penso sempre que é tudo muito pior e nada se remedeia.

- Mas que quer o avô que a gente lhe diga? - retorquiu o Chico, pegando na guitarra, que deixara sobre a arca.

Nesse momento, os podengos começaram a ladrar, com furor, no quinteiro; ouviam-se os puxões que davam nas correntes de ferro e a voz sumida de alguém que os pretendia aquietar. Chico deu dois passos para a porta, mas ficou à espera, imitando o movimento de cabeça levantada dos outros. António Teimas sentiu-se mais inquieto.

- Que estás aí parado? - gritou para o neto.

- Quem vier que entre, avô! É gente de bem, com certeza.

Os podengos ganiam agora de satisfação, pulando à volta de quem entrava.

- Abram lá! - gritou o velho, desesperado. - Abram!...

Foi só mais um momento de expectativa, porque a porta escancarou-se e Francisco apareceu, com um sorriso aberto que logo se desfez, ao reparar em Gracinda, que ficara tolhida, como os demais, ao ver-lhe aquela expressão de estranheza e de sofrimento. O velho queria erguer-se e perguntava:

- Quem é?!... Quem é?!...

Estava convencido de que já adivinhara, mas precisava que lho dissessem. E os seus olhos azuis, já quase sem luz, iam da porta para os que estavam com ele, tentando entender o que se passava.

- Quem é?!... Quem é?!...

- Sou eu, pai! Quem havia de ser?...

António Teimas deixou cair a cabeça entre as mãos nervosas, tapando os olhos. Francisco atirou a saca para o canto, junto da arca, e puxou para si os filhos, que se tinham aproximado; passava-lhe as mãos, em carícias comovidas, pelos cabelos e pelo rosto, mas o seu olhar agressivo continuava fito em Gracinda, que não sabia se devia falar e correr para junto dele, se fugir pela porta aberta, desaparecendo na noite. Ele, porém, de braços abertos sobre os ombros dos filhos, avançava para junto do pai, e Gracinda sentia aquele olhar a repeli-la dali; e obedecia-lhe sem perceber porquê, afastando-se para a sombra da lareira, onde Maria Dolorosa estava especada, sem compreender aquela hostilidade. O velho ouviu-lhe os passos e ergueu a fronte.

- Tanto tempo, Francisco! Mais de dois anos...

- Desculpe, pai!

E sentiu a sua voz molhada de lágrimas. Queria ser expansivo, ajoelhar junto do velho, beijar os filhos e chamar também a Dolorosa para ao pé deles, confessando o seu arrependimento, jurando que iria fazer tudo para recompensar aquela ausência forçada; mas a presença de Gracinda, e o que ela lhe recordava, destruía-lhe o prazer que sentia de estar outra vez junto dos seus. Apetecia-lhe gritar que saísse, que a não queria ver mais ali dentro; e tudo se lhe tornava insuficiente para exprimir a raiva que sentia. Olhava-a, alucinado, pensando: "Mas raiva de quê? Mas que raiva é esta que me apetece agarrá-la?..." E não queria nem podia aceitar as solicitações que nasciam para além daquele ódio que tinha nas mãos e nos olhos.

- Chega-te mais, Francisco! - pedia o velho, tacteando-lhe o rosto. - Quero ver-te... Que barba trazes!... Por onde andaste?!... Porque não vieste há mais tempo?!...

Depois suspendeu aquele atropelo de palavras e de pensamentos para procurar alguém com a cabeça inquieta.

- A Gracinda?! - perguntou depois.

- Foi-se embora - respondeu Francisco, de pronto, apontando a porta para que ela saísse.

- Embora, porquê?! - indagou o velho, transtornado. E os lábios tremiam-lhe, bebendo as lágrimas.

- Não a quero aqui dentro!...

Só aquele gemido ficou no canto da lareira. Um gemido que depois abriu um rasto de dor no silêncio da casa e se soltou lá fora, no quinteiro, numa convulsão de gritos reprimidos. Chico Teimas seguiu a tia e Dolorosa, sem olhar o pai. O velho abanava a cabeça, largando as mãos de Francisco, que afagara entre as suas; adivinhava-se-lhe na expressão a angústia que o amargurava.

- Foste injusto, filho! Muito injusto!...

Voltou a deixar cair os ombros, como se o peso de todos os seus sofrimentos tivessem tombado de um só golpe sobre si. Francisco queria explicar a sua atitude e não achava palavras para se exprimir.

- Ela é que foi o homem desta casa - prosseguiu António Teimas, sem encarar o filho. - Fez um lagar a pensar em ti... Sabia que tu o querias. Defendeu o Manuel Inverno no julgamento...

- Mas ela é que teve culpa de tudo! - retorquiu Francisco sem convicção. E voltando-se para Luís, que ficara sentado junto das pernas do velho: - Vai dormir! Preciso de falar com o avô...

O rapazola partiu contrafeito, de movimentos lentos, querendo prolongar a sua saída, como se pudesse levar consigo a presença do pai.

- Deita-te na minha cama! - disse Francisco para o compensar do desgosto que lhe percebeu. - Ouviste?

O rapaz voltou-se, então, com um sorriso e deitou a correr pelas escadas.

Gracinda levava consigo sofrimentos e ódio. Desejava-se sentir capaz de chamar o Espanhol, se ele estivesse na aldeia, ou procurar o Silva Costa na quinta. Dar-se a qualquer homem - "E porque não?..." Mas não completou esse pensamento, que num instante lhe pareceu o único capaz de responder ao insulto do amante; e fazê-lo de maneira que Francisco soubesse, procurando uma oportunidade ou dizendo-lho ela mesma: "Como é que estas coisas sucedem? Não sei e ele é do meu sangue... A verdade é que não devia, mas aconteceu; e agora?!..."

O sobrinho estava consigo na companhia de Maria Dolorosa, e. ambos procuravam ajudá-la. Já não podia pensar da outra o mesmo que supusera quando a vira chegar; e essa certeza não lhe era grata naquele momento. Percebia que se enganava sempre, que se iludia com facilidade, tomando atitudes de que depois se tinha de arrepender. Mas agora precisava duma vingança qualquer! Aquela em que pensara ou outra mais tenebrosa ainda. Nunca quisera aceitar a dúvida que a fuga do amante lhe sugerira algumas vezes; e agora aí estava toda a realidade, a fazê-la lamentar os prazeres que desejara e esquecera para lhe ser fiel.

"Ficara sem dinheiro para que as suas terras se não perdessem... Ajudara o velho e os sobrinhos, na certeza de que ele voltaria e havia de compreender tudo o que fizera. Construíra o lagar - o seu sonho de sempre! E nada lhe podia exigir, porque fizera constar que o marido não lhe deixara o pecúlio de que tanto se falava.

Nada tinha de seu a não ser a casa! E tudo por ele, que chegava e a punha fora, sem um olhar de comoção ou de agradecimento..."

- Vão-se embora! - conseguiu dizer para o Chico e para Dolorosa. - E apertou as mãos da outra com ternura. - Fui má para ti... Pensei muitas coisas...

Depois calou-se, empolgada pela ideia que lhe ocorrera: "Quem poderia acusá-la?!... O velho não, com certeza, que bem sabia donde viera o dinheiro. Ela o fizera, elâ o destruiria... Quem seria capaz de a acusar?!..."

 

Na véspera tinham dito tudo um ao outro. O velho começara com calma e uma ponta de ternura, a querer convencê-lo às boas, e acabara aos gritos, quando percebera que ele não saía daquele silêncio, onde as palavras se perdiam. Francisco, por seu lado, julgara-se capaz de ouvir, sem reacção, quantas acusações o pai entendesse atirar-lhe naquela primeira conversa. Já as esperava, achava-as justas e até necessárias; mas nunca supusera que ele seria capaz de se empenhar tanto por Gracinda. E falara-lhe depois no mesmo tom agressivo, espancando-o também com palavras, cujo sentido não percebeu inteiramente, "mesmo depois de as dizer. Pareciam ambos apostados em se falar pela última vez, tal a maneira como se exprimiam. Todas as recriminações que desde sempre tinham guardado um do outro haviam voltado naquele diálogo vivo e cruel, em que nenhum deles soubera usar de compreensão.

E agora iam ali juntos, como se nada tivesse ocorrido.

O velho, sonolento e de olhos cerrados, deixava-se conduzir pelo burro, que conhecia o caminho melhor do que ele; Francisco caminhava à sua beira, escutando-lhe a respiração opressa e atentando nos estragos que o tempo lhe fizera. Já não era o mesmo gigante que se avantajava quando pressentia que a fatalidade o queria derrubar. Parecia uma árvore velha, ainda de braços abertos, mas já sem vida, a mirrar-se aos poucos, ou esperando que um golpe de vento lhe arrancasse as raízes. Só o ouvido se lhe tornara mais atento, como se a luz que lhe faltava nos olhos e o vigor que se lhe esvaíra do corpo encontrassem ali compensação, para interpretar o que se passava à sua volta.

Não falavam ainda, mas entendiam-se e desculpavam-se.

Francisco deixava-se impressionar pela insistência com que o pai lhe pedira que falasse à cunhada. "Não posso esquecer, e tu ainda menos, tudo o que fez p'los teus filhos e p'las nossas terras... Se a não queres, diz-lhe qualquer coisa, mesmo que sejas injusto! Mas deves falar-lhe... E ela tem de perceber... É triste, mas a Gracinda merece que lhe digas..."

Por seu turno, António Teimas ia de olhos cerrados, porque os sentia arder de alegria quando escutava as saudações que os festejavam pelo caminho: "Graças, Ti António! Já cá tem o seu filho! Viva, Francisco! Por onde te perdeste, homem, que vens mais novo?!..."

E, pouco a pouco, o velho achava que o filho teria razão em tudo o que dissesse e fizesse. O entusiasmo de o saber a seu lado substituía bem a amargura que experimentara na noite anterior. Tinha a certeza de que a vida ia continuar e a sua terra não ficaria sem amparo, embora fossem ambos verificar mais uma maldição do tempo. Fora ele que o convidara para saírem. "Gostava que me levasse" contigo a ver os nossos socalcos... Houve aí uma trovoada de arrasar este mundo e o outro. Depois, calor de estorricar as pedras, e nevoeiro e frio... Eles diziam-me que não, porque já não vejo. Mas eu sabia..."

A poeira que o burro levantava com o seu passo arrastado e miúdo tornava o ar mais espesso. A tremulina do sol feria as retinas, e era como lambias de uma fornalha acesa no fundo dos vales incendiando a terra. Francisco espreitava os socalcos por onde passavam e percebia os estragos do ataque de míldio; mas nada dizia também, porque queria ver as suas videiras. Só elas seriam capazes, pensava, de lhe contarem até onde iria a destruição.

Quando chegou, porém, ao alto da montanha, donde se divisava aquele labirinto de mamilos que é toda a região de Favaios a Valença, do Távora lá ao longe, do Torto mais em baixo, do Pinhão, ao rés da água turva do Douro, e viu tudo naquele tom negro e vermelho de vindima acabada, de Outono precoce, com o céu a arder e a terra queimada, abriu os braços, caminhou sozinho até ao abismo e não pôde calar uma maldição. Ali, a dois passos, estavam as suas videiras assassinadas também, a verter um sangue negro, que escorria de todos os montes, desde o coruto à bainha, com cachos mirrados e escuros, donde não sairia uma gota de vinho.

- Tudo perdido! - disse o velho. Ele acenou a cabeça e disse o mesmo:

- Tudo perdido, pai! *

O sol abrasava, como se temesse que alguma videira escapasse ainda.

- Vê essas de tinta roriz... Foram sempre as últimas...

- Estão na mesma! Tudo na mesma!...

António Teimas inquietava-se no albardão, procurando aguentar o corpo com firmeza. Depois pediu ao filho:

- Ajuda-me! Quero descer!

Francisco fingiu que não o ouvia, agarrando na arreata para puxar o burro, que o calor tornara molengão e arisco.

- Ajuda-me, anda! - insistiu o velho. Francisco estendeu-lhe os braços e, só então percebeu quanto o velho estava magro: este, arrimado ao corpo do filho, deu alguns passos indecisos, como se o chão estivesse bambo e não aguentasse o seu peso; depois, com a ajuda do bordão, foi-se despegando de Francisco e pediu-lhe:

- Indica-me o carreiro.

Guardando certa distância, deixou-o ir só, enquanto reparava melhor nos estragos da moléstia. Os cachos pareciam tições, e muitos deles, já desfeitos, nada mais mostravam agora do que os pés agarrados às cepas. De cabeça sempre a mover-se, como se farejasse, António Teimas arrastava-se pelo carreiro e baixava o braço, de vez em quando, para apalpar o espaço com os dedos trémulos. Procurava qualquer coisa que Francisco não entendia; parou duas vezes, estendeu o bordão para se orientar e continuou, até que, por fim, encontrou o que desejava. O filho compreendeu e foi ajudá-lo. o velho pôs um joelho em terra, dobrou-se, apoiado nas mãos, como se fosse beijar os calhaus em fatias dos xistos, e fez o mesmo movimento com a outra perna. Por um instante pareceu hesitar no que pretendia; mas estendeu os dedos da canhota e foi tacteando a videira, primeiro numa crispação, depois já com carinho, como se afagasse um filho. Por momentos parava os dedos e detinha-se mais num sítio, parecendo que encontrava ali alguma ferida que quisesse sarar. Quando agarrou no primeiro cacho, todo o seu corpo estremeceu com a invocação que lhe trouxe.

- Que foi, pai?!

o velho nem se voltou para lhe responder: só as suas cepas lhe interessavam agora. E ia desfazendo os bagos negros e enrugados, como se pudesse provocar ainda o milagre de lhes dar seiva.

- Pois é! - disse depois, vencendo a comoção que lhe prendia a voz. - Nasci no Ano da Queima... vou acabar num ano igual...

Apalpou os calhaus e, sentindo-os queimar-lhe a pele, teve uma maldição para o céu; mas num tom tão sussurrado que só a terra o escutou.

- Vieste em má altura, Francisco! - disse em seguida para o filho. - Queria que tudo estivesse bonito para te não arrependeres, e afinal...

Francisco não sentia coragem para o interromper e animar; dobrou-se a seu lado, pôs-lhe a mão no ombro e deixou a cabeça pender para o peito. Uma coruja piou ali perto, como se um bando de aves de rapina os espreitasse, para cair depois sobre o corpo assassinado das videiras.

- Não se conseguiu uma lágrima de sulfato... Por preço nenhum... Ela bem pediu por aí... Bem poucos o arranjaram, e foram os mesmos do costume... Não será melhor abalares outra vez? - disse com violência, encarando o filho.

- Não, pai! - respondeu Francisco com firmeza. - Aprendi muita coisa enquanto por lá andei.. Vi gente doutros sítios, gente diferente... No caminho-de-ferro, em Espanha... Até aprendi a ler.

O velho voltou-se e sorriu, sem saber de quê; ele prosseguiu:

- Mas aprendi uma coisa melhor do que todas... Que gosto disto também!... Que haja o que houver, juro-lhe...

Mas não pôde fazer a sua jura, porque a voz se embargou. António Teimas também nada disse, mas sentiu que a terra era agora mais rica do que antes. Estava cansado da batalha; uma calma estranha entrara-lhe no sangue e queria obrigá-lo a adormecer ali mesmo. "Ainda não", pensou.

- Vamos embora?... -perguntou para o filho. E tinha pressa de chegar a casa.

 

Era à noite, quando se deitava e as recordações ganhavam formas e palavras, que Gracinda sentia mais forte aquele desejo narcísico de ser amada e de se entregar, sofrendo. A longa abstinência trouxera-lhe um estado depressivo, que nem as lágrimas fundiam. A vingança que concebera parecia-lhe então insuficiente para o desprezo de Francisco. Não podia aceitar que ambos vivessem na mesma aldeia e ele não fosse atingido pela ansiedade de a procurar e de a fazer sua. E o desejo depois excitava-lhe a imaginação, avantajando-lhe a necessidade de prazer, e também de dor, que lhe ficara sempre nas profundezas do ser com o primeiro contacto de amor.

"Se ele não vier", pensava, "vou procurar o Silva Costa." E transferia só para esse a humilhação que Francisco merecia, agora que o Espanhol voltara das segadas e já viera uma noite, cantar-lhe à porta. Adiava assim o prazer duma desforra em que gostava de pensar, mas que não queria levar por diante. A ideia do sobrinho tornara-se-lhe repugnante. "Que coisas se pensam!", recordava, com nojo de si. E hostilizava o rapaz quando o via, calado, a olhá-la de longe: ele não a entendia e humilhava-se.

Chico Teimas sofria, porque desejava mostrar-se um homem e não havia trabalho a que desse o corpo. Já procurara nas Carvalhas e na Roeda. subira a Valença e alargara as andanças até Soutelo - e nada. O míldio deixara manchas negras por todo o Douro.

- Vai pra casa Chico! - insistia Gracinda. - O teu pai pode pensar que fui eu que te desafiei...

E julgava, às vezes, que Francisco não vinha procurá-la por culpa do rapaz.

No Douro, a pretexto do ataque de míldio, os grandes proprietários abriam campanha para que se não pagassem contribuições naquele ano. Os monárquicos mexiam-se, aproveitando a oportunidade: os republicanos, com interesses na região, saltavam por cima das divisões políticas e estavam com eles nos comícios e na imprensa.

Na Câmara dos Deputados de França, Jaurès subia uma vez mais à tribuna para se recusar agora à votação dos créditos pedidos para a viagem de Poincrfué à Rússia. "Há duas razões que nos impedem de votar os créditos pedidos. A primeira é que, de há algum tempo para cá, parece que se tenta abusar destas viagens, destas entrevistas longínquas, para se contraírem, em nome da França, compromissos mais ou menos oficiais, mais ou menos ambíguos, mas que pesam necessariamente sobre a sua política interior..."

Nas bancadas da direita ouviam-se protestos.

"Os tratados secretos", prosseguia Jaurès, "parecem-nos duplamente perigosos, e mais do que nunca na hora actual. A França não pode ser lançada em aventuras nascidas da obscuridade dos problemas orientais, por causa de tratados de que ela não conhece nem o texto, nem o sentido, nem os limites, nem o alcance..."

 

Soares andava aturdido com o que se passava em Londres. Os comerciantes que negociavam o acordo económico de Portugal com a Inglaterra passavam por cima dele e tinham todas as portas abertas. Cassel não lhe aparecia e faltava-lhe com quem desabafar. A política europeia caminhava a olhos vistos para o abismo. "Que sairá de tudo isto?", pensava, desgostoso, e sem ânimo para reagir.

Poincaré fora visitar o czar russo a Sampetersburgo.

Rebentavam greves na capital e a polícia carregava com violência sobre os operários que cantavam A Marselhesa - ¦ o mesmo hino que recebia Poincaré nas cerimónias oficiais em sua honra.

"Guerra à guerra!", gritavam os operários nas ruas.

Mas sempre que o presidente da República Francesa se deslocava para uma visita, uma recepção ou um jantar acolhiam-no palmas e vivas. Paléologue, o embaixador francês na Rússia, escrevia nas suas memórias: "Em todo o percurso o acolhimento é entusiástico. A polícia ordenou que assim fosse. A cada esquina um grupo de pobres diabos solta hurras sob a vigilância de um agente."

No Douro desconhecia-se o teor duma circular que uma casa inglesa da praça de Londres expedira, aos seus clientes e comissários, dando-lhes conta da próxima assinatura do tratado com Portugal.

"Assim acabarão, finalmente, as discussões que desde tanto tempo vêm perturbando o nosso comércio, e para o futuro os vinhos de Lisboa serão admitidos como Porto, ao passo que, por outro lado, aos vinhos de Tarragona não será mais permitido serem vendidos como Porto de Tarragona. Entendemos que os vinhos de Lisboa têm direito a ser considerados como Porto pois que a sua qualidade é sobejadamente apreciada, ao mesmo passo que os seus preços têm sido, até agora, muito moderados."

 

Num bistro de Montmartre, em Paris, Jaurès era assassinado a tiros de pistola.

Dias antes a Áustria declarara guerra à Sérvia e o czar russo decidira, sopressão dos meios militares, a mobilização geral do seu país. A França tinha um pacto com a Rússia - e Jaurès tornara-se um estorvo.

Em 2 de Agosto, o Luxemburgo era invadido, a Bélgica recebia um ultimato e a Inglaterra, e seus interesses nos dois países eram enormes, esquecia-se dos seus desejos de neutralidade numa guerra russo-alemã e enviava um ultimato ao Kaiser.

Frente a frente estavam milhões de homens que se iriam bater.

A emoção popular que percorrera Paris pelo assassínio de Jaurès trazia receios ao Governo. Mas a guerra assombrava muitos homens simples que desejavam a paz, em Paris como em Berlim, em Sampetersburgo como em Viena e em Londres. Como também em Lisboa e no Porto. "Que melhor momento para assinar um tratado com as características do que se firmava entre comerciantes britânicos e portugueses?", pensavam **Barãona e a sua gente.

 

O almoço mensal da Feitoria Inglesa fora antecipado. Havia um hóspede de honra, Mister Smith, que viera ao Porto para fazer uma comunicação importante acerca do tratado que se ia assinar; e, embora se estivesse em Agosto, não faltaria, pensava Roop, nenhum representante das trinta e seis casas exportadoras inglesas que tinham assento naquela mesa,-onde se resolviam preços para as colheitas, negócios de sulfatos e aguardentes e planos de todos os manejos em que era necessária a unanimidade da colónia britânica. Smith chegara directamente de Londres e trazia, por força, notícias palpitantes acerca da ofensiva alemã, dos exércitos aliados e do que pensava fazer-se com a esquadra.

A pontualidade inglesa nunca fora tão exacta como naquele dia.

Ao cimo do primeiro piso da escada de granito, com corrimão de ferro forjado, o mordomo esperava, para avisar os convivas de que deviam entrar na sala de leitura. "Era indicação de Mister Roop", esclarecia o mordomo aos que mostravam estranheza pelo facto.

E enquanto iam chegando os Crofts. os Warres. Os Yeates. o velho Teage, da Cockburns, e mais, e mais taciturnos, talvez, como sempre, mas com uma ponta de emoção que os excitava, Roop e Wright acompanhavam Mister Smith até à sala, onde estavam dois grandes globos terrestres, sobre três pés de ferro, e o livro dos visitantes, iniciado em 1812, e no qual, um ano depois, assinavam os oficiais do 1.º e do 3.º batalhões das guards.

- Estiveram quase todos em Waterloo - esclarecia Wright, hirto à frente dos outros, naquele seu jeito habitual "pouco britânico", achava o Roop.

- Significativo! - respondeu Smith com um sorriso. - Estarão todos? - perguntou depois.

- Certamente! Não perdemos os nossos hábitos!... E Roop convidou Smith para passar, num gesto afável de mão.

As apresentações dos que ainda não conheciam o convidado daquele almoço fizeram-se com rapidez; no mesmo instante um silêncio significativo seguiu-se ao tossicar de Smith e ao seus puxões dos punhos engomados. Depois dum leve cumprimento de cabeça, o enviado de Londres começou a sua arenga em palavras precisas e batidas, agudizando a voz na primeira sílaba, como se a esticasse, para depois a deixar morrer num tom mais grave.

- Não vinha fazer um discurso. Os comerciantes, mesmo que não sejam súbditos de Sua Majestade (todos baixaram a cerviz), são por natureza parcos de palavras quando se trata de um assunto grave. A sua missão era espinhosa mas, ao mesmo tempo, muito grata. Dentro de quatro dias ia assinar-se um tratado de comércio e navegação com Portugal (as expressões iluminaram-se) e ele vinha exprimir aos exportadores britânicos aquilo que certamente já previam, mas que era dever seu sublinhar convenientemente: o problema dos Lloyds, perante a concorrência germânica e americana, começava a trazer certas perturbações; fora necessário, portanto, entabular conversas, que tinham decorrido morosas, e até enfadonhas, para o espírito prático deles, Ingleses. A verdade é que fora necessário negociar; daí certas exigências do lado português - uma proibição para fechar o mercado britânico a vinhos que levassem a designação "Port" mas que não fossem oriundos de Portugal. O facto trazia inconvenientes para as casas que tinham os seus interesses vinícolas noutras partes do mundo, como no Tarragona ou na Austrália, mas tudo fora previsto - disse Smith num sorriso franco. - Os senhores poderão comprar no Ribatejo, mais barato, portanto, todo o vinho que quiserem. Em Londres será recebido como "Port-Wine". Quanto aos outros vinhos... há a Convenção de Madrid para invocar - e ela presta-se a várias interpretações. De resto, comprometemo-nos somente a recomendar o tratado ao Parlamento... Isto não quer dizer, pois, que seja aprovado. Além disso, sublinharemos que a Convenção de Madrid continua de pé; Só há vantagens, portanto, uma vez que o vinho conhecido como "Lisbon-Port" passará a entrar em Inglaterra, e a coberto da lei, como "Port-Wine" autêntico.

Mister Smith aproximou-se mais da pequena mesa do centro e olhou para a grande carta do Douro, que Forrester levantara e desenhara.

- As vantagens económicas desta operação - prosseguiu, baixando a voz - sabem-na os senhores bem melhor do que eu... Eis a minha incumbência. A Inglaterra nunca se esquece dos seus filhos! Mesmo que esteja em guerra, como agora!... Guerra que venceremos, é claro!

E, baixando a cabeça, deu um passo à retaguarda para junto de Roop e de Wright. Este adiantou-se para agradecer, com formalidade, a comunicação de Mister Smith, mas as suas palavras sumiram-se no meio da agitação que ficara na sala de leitura, cuja porta se abriu depois, para subirem todos ao segundo piso.

Alinhadas à volta da mesa enorme, lá estavam as trinta e seis cadeiras de coiro e mais um cadeirão para Smith. A luz das cinco janelas era coada pelos reposteiros vermelho e ouro, dando uma claridade macia ao retrato de John Page, que dominava o fundo da sala, e ao fogão de ferro e louça encimado por um grande espelho, em moldura dourada, com motivos de cachos de uvas e parras. Dentro duma redoma de vidro, um relógio de mármore branco marcava as horas.

Cinco minutos depois a conversa animava-se entre todos. Roop, inábel em tratos de diplomacia, disse que "muito se sensibilizara com a declaração do presidente do Ministério Português acerca da aliança com a Inglaterra".

- Que não desejávamos que fizesse - sublinhou Smith, de sobrolho carregado,

A cara de pasmo que todos mostraram obrigou-o a dizer mais alguma coisa.

- Portugal não nos pode dar qualquer ajuda efectiva neste momento. A sua entrada na guerra seria um empecilho... Sendo possível, o conflito não deve alastrar-se, porque... Já disse muito mais do que devia, meus caros amigos - rematou.

E por momentos ficou calado, com um rubor intenso a escaldar-lhe o rosto; entretanto pensava: "Que precipitação! Nem parece de mim... Julgo que este clima da Península me faz mal. Que têm eles que saber que ainda se tenta um arranjo com a Alemanha, por intermédio da América, e que para negociar é preciso ter alguma coisa para oferecer?!..."

No fim do almoço passaram para a sala do lado - uma sala mais imponente do que a outra, com alcatifa carmesim à volta da mesa sem toalha, sobre a qual se acumulavam os frutos e os vinhos licorosos da região. Três grandes candelabros amenizavam a sobriedade das cores. Algumas cadeiras de palhinha, para os que quisessem repousar, e sobre o fogão, sem espelho, um retrato em moldura dourada da rainha Vitória eram os únicos elementos decorativos daquele compartimento, cujas portas se fechavam, para que o odor das comidas não prejudicasse o paladar e o olfacto dos convivas.

Mister Smith brindou pela rainha Vitória e pelo império Britânico - "que seria **imorredouro, mesmo contra os desejos do Kaiser". E aludiu ao livro dos visitantes, recordando as assinaturas dos oficiais das guards. "Nesta casa estiveram homens que derrotaram Napoleão... Também esse pretendeu esmagar-nos. O facto deve estar bem presente no espírito de todos..."

 

No dia 12 de Agosto, na Legação da Inglaterra em Lisboa, assinava-se o tratado, que no seu artigo 1.º declarava "haver entre o território das duas partes contratantes plena e completa liberdade de comércio e navegação" e no 6.º, no celebrado artigo 6.º, que tanta redacção sofrera durante as conversações de Londres, determinava: "O Governo de Sua Majestade Britânica obriga-se a recomendar ao Parlamento a proibição da importação e venda, para consumo no Reino Unido, de qualquer vinho ou outro licor ao qual a designação de oPortoo ou Madeira*

seja aplicada, não sendo vinho produzido, respectivamente, em Portugal ou na ilha da Madeira."

O ministro inglês lera, porém, uma declaração importante, que fez correr na sala um golpe de frio. "O plenipotenciário do Governo de Sua Majestade Britânica declara, no acto da assinatura do tratado, que a concessão do seu Governo constante do artigo 6." é feita unicamente em troca de melhoria do tratamento aduaneiro concedido às mercadorias inglesas pelo Governo Português e sem prejuízo - e aqui a sua voz tornou-se mais forte - das opiniões das duas partes contratantes, relativamente à exacta interpretação que se deve dar ao artigo 4.º do Convénio de Madrid, de 14 de Abril de 1891."

As palavras e o seu tom eram perfeitamente hostis. Os jornalistas que assistiam estavam surpresos de indignação, enquanto os ministros e políticos, de olhos baixos, sorriam, comprometidos, entre si. E o ministro inglês voltava a falar, depois de o convénio ser assinado: "Fica entendido que este tratado não entrará em vigor enquanto o Parlamento Britânico não sancionar a estipulação do artigo 6.º"

Os jornais diários referiram-se com sobriedade ao acontecimento, como se não quisessem acordar alguém. Um deles, contudo, perguntava: "Então a Chancelaria portuguesa já não é o Ministério dos NegóciosEstrangei-ros?" Mas a guerra tomava as preocupações, e bem raros aludiam ao facto de a assinatura de um tratado se fazer numa legação.

Outro jornal dava pormenores económicos: "Só na introdução do seu bacalhau nos nossos mercados os ingleses obtêm anualmente uma redução de direitos na importância aproximada de 22 500libras esterlinas."

"COMPUTA-SE UM DESFALQUE DE CERCA DE 57 500LIBRAS ESTERLINAS NAS NOSSAS RECEITAS ADUANEIRAS."

E para os que pudessem lembrar aquele artigo 1.º, "tão liberal quanto à plena e completa liberdade de comércio e de navegação" entre os dois países, lembrava-se que o regime comercial que vigora no Reino Unido é o do livre câmbio. Não há aí pautas aduaneiras diferenciais. Os países com tratado ou sem tratado pagam a mesmíssima coisa".

"E que marinha mercante temos nós para gozar dessa concessão?", perguntaram alguns.

"A primeira parte da manobra alemã desenvolvia-se com uma regularidade perfeita. A 18 de Agosto, apesar da resistência vigorosa de Liège, a ala direita começava a cilindrar a Bélgica: o 1.º exército avançava para Bruxelas e o 2.º para Sambre, ao noroeste de Namur. O exército belga, não obstante o comando francês lhe pedir que se colocasse à esquerda do dispositivo de defesa, ao lado dos Ingleses, preferia defender o seu solo e encerrava-se em Anvers."

"No mesmo dia 18, o 1.º e 2.º exércitos franceses penetravam na Lorena alemã e o 4.º exército recebia ordem para avançar no Luxemburgo belga".

"EM QUATRO DIAS DECIDIA-SE A SORTE DA BATALHA DAS FRONTEIRAS."

"As duas ofensivas francesas eram esmagadas."

O ministro inglês Edward grey escrevia nas suas Memórias: "Entre tantas coisas verdadeiras que se poderiam apresentar sobre as causas da guerra, há uma incontestável - é que o militarismo e a sua consequência directa, os armamentos sem limite, a tornaram inevitável. Salientou-se para os justificar, que os armamentos deviam dar a cada nação um sentimento de segurança - o seu resultado real foi provocar em todas um sentimento de receio. O receio engendra a desconfiança e o óddio e não será exagero dizer que estimula, entre as nações, tudo quanto é mau e abafa tudo quanto é bom."

 

Francisco ainda não fora ao lagar, depois que chegara. Entendia que aquela casa não era sua e que precisava de a pagar primeiro para depois lhe ganhar a posse. Olhava-a a distância, lembrava-se mais de Gracinda e logo se afastava, quando sentia germinar a ideia de se explicarem. "Que poderiam dizer um ao outro? Bom seria vender o vinho da última colheita e mandar-lhe inteirinho." *

Então pensava em procurar o Dr. Pimenta para lhe pedir o seu conselho.

E naquela tarde não se ficou em hesitações: esperou-o à porta da farmácia, recordando-se da vez em que o Jerónimo lá entrara a cavalo, e foi direito ao fim, mal o viu sair.

- Viva, Sr. Doutor!

O médico consertou as lunetas, como se ainda não estivesse certo de quem o saudava, e estendeu-lhe a mão: - Por onde andaste, homem? -A correr mundo... - Mas ainda bem que cá vieste parar. Caminhavam lado a lado.

- O Sr. Doutor desculpe-me! Mas tenho lá umas pi-pitas de vinho, e se soubesse dalguém...

- Dalguém que to queira comprar não sei! Mas de quem to queira roubar talvez não falte. Sabes a como pagam?... -Teimas tomara-lhe a dianteira e fizera-o parar. - A vinte e quatro mil réis a pipa - disse ainda o médico.

- Mesmo com a colheita perdida deste ano?

- Mesmo assim!

Prosseguiram em silêncio durante uns momentos; depois Pimenta reatou a conversa mais excitado:

- E ainda não é tudo, Francisco. Assinaram agora um tratado com os nossos amigos ingleses e o vinho do Sul vai entrar em Inglaterra como vinho nosso. - E vendo a cara de incompreensão do Teimas: - Não percebes, claro! Pois é a resposta ao nosso pedido para não cobrarem os impostos. Já sabes isso?...

- Sei, sim senhor. Mas eles não fazem uma dessas... E já que isto é pra rebentar, quanto mais depressa melhor!

- Vocês aproveitavam com isso...

- Aí está outra coisa em que também não acredito. Os grandes é que se mexem e eles é que ganham sempre, Sr. Doutor. Porque não têm dito que a gente paga mais do que eles?! Quem faz vinte pipas paga só três vezes mais de décimas do que eu, que colho duas ou três... O meu vinho, assim, fica mais caro, Sr. Doutor!

O Pimenta consertava os óculos e dizia:

- Tens razão! - Mas percebia-se que as palavras de Francisco o haviam impressionado. - Não há dúvida - disse depois - de que quem passa pelas coisas é que sabe falar nelas. Eu colho oito pipas e percebo tudo a meu modo; tu colhes duas ou três e falas doutra maneira... Para os que beneficiam de vinte ou cinquenta a música é outra... E o que pensarão os que só têm os braços de seu?!

- Disso já eu sei, Sr. Doutor. Não pensam boa coisa disto tudo, pode ter a certeza.

O médico deu uma gargalhada sadia e olhou Francisco com agrado.

- Desta vez vamos todos a estar de acordo. O tal tratado tanto toca ao cavador como ao armazenista.

Francisco teve uma expressão de desconfiança.

- Já estás pior do que eu? - perguntou o Pimenta, a sorrir.

- Que ideia! Mas nunca me esqueço daquela história do pote de barro e do pote de ferro... O Sr. Doutor sabe como é?

No seu discurso de 19 de Agosto ao povo americano o presidente Wilson recomendava a todos os seus concidadãos que guardassem a neutralidade e a imparcialidade, que não manifestassem preferência em favor de qualquer dos grupos beligerantes e que testemunhassem todos a mesma simpatia.

A 8 de Setembro Wilson recomendava um "dia de orações", a fim de "Deus restaurar a concórdia entre os homens e as nações". Este desejo de paz dos americanos fundava-se, porém, em interesses políticos. O confidente de Wilson, o coronel House, escrevera-lhe acerca dos inconvenientes que a vitória completa de qualquer dos grupos traria para os Estados Unidos. "Se os aliados triunfam", esclarecia House, "é a hegemonia da Rússia sobre o continente europeu; se, ao contrário, a vitória couber à Alemanha, eis-nos durante vários anos sob o jugo do militarismo germânico." Por outro lado, que faria o Japão com a China ali perto? Não seria a perda de todos os interesses europeus e americanos nesse país, que valia um mundo?!...

Por outro lado, logo que nas regiões do Leste dos Estados Unidos se começaram a manifestar vivas simpatias pelos aliados, davam-se reacções nos Germano-Americanos, que formavam grupos compactos na região de Chicago, como ainda entre os Irlandeses, que totalizavam quase cinco milhões e que consideravam uma vitória da Inglaterra como um desastre para a causa da Irlanda.

Tudo isto determinava a oferta do coronel House à Grã-Bretanha, por um lado, e à Áustria-Hungría, por outro. Mas nenhum deles desejava uma paz branca.

Os elementos monárquicos da região viram na luta contra os impostos uma maneira de captarem simpatias para a sua causa, além de servirem ainda os grandes proprietários agrícolas, que era a sua maior força política. "Aproveitar tudo o que possa causar agitação, até chegar o momento de agirmos novamente pelas armas", era a ordem recebida. Agora a tarefa facilitava-se com o artigo 6.º do tratado.

E de tal modo que elementos mais fogosos tentavam, em 20de Outubro, um novo golpe contra o regime - mas a intentona de Lisboa era esmagada em poucas horas.

"Faremos tantas revoluções até que todos estejam cansados da República", pensavam.

Muitas rogas voltaram para as terras sem um dia de trabalho. O míldio fizera a vindima. Os lavradores conheciam o desespero e entregavam-se com ardor às manifestações contra o pagamento das décimas. Não faltava gente aos comícios. Os paladinos talassas arengavam com veemência e falavam de fome, de povo e de liberdade.

 

Desde a chegada do filho que António Teimas deixara relaxar-se de vez aquela força interior que o mantivera vigilante durante toda a vida, como se esse poder lhe viesse da terra que pisava. Embora nos últimos tempos uma modorra estranha quisesse muitas vezes paralisá-lo, a verdade é que reagia de pronto, violento numas ocasiões, comprensivo noutras, mas sempre decidido para quantas dificuldades lhe opusessem. Pensava que os netos ainda não possuíam a gana suficiente para defenderem o que lhes pertencia, e, uma vez que o Francisco abalara, era ele a quem competia a guarda de tudo, até o filho regressar ou a morte lhe calar o coração.

E ele, que nunca se deixara quebrar por inteiro, aceitava, com o regresso do filho, a fatalidade das coisas. Noutro tempo, quando a frouxidão lhe chegava, sempre novas forças de ânimo lhe vinham num golpe inesperado, e ele aí estava, de pé, frente às ameaças, para as agarrar com firmeza e dobrá-las, pouco a pouco, ao jeito da sua coragem.

Esse alerta permanente é que o cansara; estava exausto de querer e de persistir.

Agora deixava-se ficar pegado à cama, muito quieto e indiferente, como se estivesse amarrado ao destino, coisa em que nunca acreditara. "A gente é que faz o destino!", dissera vezes sem conta para os que pensavam renunciar. Também ele, finalmente, se deixara conduzir sem vontade própria. Já não confiava em si; parecia-lhe que tudo fora em vão, que nada valera a pena - a coincidência de haver nascido no Ano da Queima e sentir-se de pás para a cova num ano igual tirava todo o sentido à sua labuta. "Afinal pra quê?!", perguntava-se quando o deixavam só.

Ainda insistia com Francisco sempre que este vinha vê-lo - "Lê qualquer coisa, filho!" - ¦, mas já não o escutava nem lhe fazia perguntas. Sentia-se enfraquecer hora a hora e atenuar-se à sua volta a aspereza das vozes, as cores que tentava adivinhar nas montanhas, os ruídos confusos do exterior e a moinha daquela chaga que lhe minava o peito, como se as videiras chorassem as suas feridas dentro dele. Tudo parecia afastar-se lentamente da sua beira, para que ficasse isolado com algumas lembranças mais vivas e um vago desespero de se saber impotente para reagir. O filho voltara e isso lhe bastava. "Nunca mais lhe falaria no caso da Gracinda... Que se a viessem! Eles é que sabiam disso!..."

A Dolorosa vinha agora para lhes fazer o caldo; e não se cansava de insistir com ele para que comesse:

- Então, Ti António?...

- Não tenho apetite; que queres que eu te faça... -Só duas colheres!...

- Não, deixa-me!

E cobria a cabeça com a manta, para que o deixassem. "Com a colheita perdida e sem trabalho, como podia o Francisco dar volta às coisas pra mercar o centeio, e o arroz, e o feijão prò caldo?!... Ele já não precisava!..."

- Não, não tenho vontade!...

Mas o cheiro da sopa desvairava-o algumas vezes, deixando-lhe uma angústia no estômago que parecia capaz de lhe quebrar a jura. Então zangava-se, para que Dolorosa saísse depressa; e quando o filho vinha, e lhe ralhava também, António Teimas fingia dormir e não lhe dava resposta. "Como ia ele arranjar dinheiro pra quatro bocas?..."

Depois ficava esgotado de pensar e aquela morrinha chegava para o tornar insensível. Uma prostração enorme de fadiga e fome apossava-se-lhe do corpo e fechava-lhe os olhos para dormir. A debilidade fazia-o suar e dava-lhe sonhos agitados.

A mão surgia por riba do monte de Valença e vinha, sorrateira, pelas abas abaixo, num socalco, numa valeira, cepa após cepa, cacho atrás de cacho, e matava tudo; depois ia a outro e fazia o mesmo, sem ouvir os seus gritos, que lhe rasgavam a boca e ninguém ouvia. Ele próprio não ouvia os seus gritos, porque ficavam recolhidos dentro de si, capazes de lhe estoirar as veias, mas sem um som que desse o alarme. Nada mais se via do que aquela mão, que vinha do céu e ia de valeira em valeira, de socalco em socalco, assassinar as videiras, que ali ficavam de ventre aberto, ao sol, a verterem vinho, que se perdia pelas montanhas abaixo, num rasto negro e repelente até cair no rio, que começava a subir... E os cachos para ali ficavam mortos também... Mortos no ventre materno, sem que ele pudesse gritar.

E agora aquela videira era Ela... Com dois filhos - os seus filhos - nos braços descarnados e secos como um tronco velho.

Acordou sentado na cama, com o Francisco e o neto a seu lado, perguntando-lhe, inquietos, porque gritara. Admirou-se como o tinham ouvido, ainda sob a impressão daquele pesadelo terrível que era quase um sonho de criança perante a crueza da realidade. "Sim, devia ter dado um grito", estava esgotado, com tudo a girar à sua volta, a respiração parada no peito, o coração muito fraco, num bater compassado, que depois se apressava, para logo voltar à mesma canseira. Tinha vontade de fechar os olhos - mas sabia agora que se os cerrasse não os voltaria a abrir. Uma enorme calma subia-lhe pelos membros, como um sono delicioso que o convidasse a um repouso profundo. Achava que devia falar ao filho, mas tinha pena que não pudessem meter-lhe as mãos na cabeça e arrancar de lá os pensamentos, sem que fosse preciso ele abrir a boca.

Sabia que, mal fechasse os olhos, partiria para sempre. Levava saudades, apesar de tudo. Estava cansado daquela luta, mas percebia com satisfação que, mais do que ele próprio, já inútil, ali ficariam por si os socalcos e as videiras, que estavam mortas agora e ainda ressuscitariam. Fecundara mais a terra do que a mulher - e a terra ficava. A terra que ele fizera naquelas montanhas de pedra.

Uma bátega de água começou a verdascar os vidros e o neto correu a fechar a janela.

- Não! - pediu com um sorriso. - Deixa-me ouvir bem a chuva. Quero levar a certeza de que a chuva está a cair... A terra está seca e vai bebê-la toda. Há muitas nuvens?

- Há, sim, pai. Nuvens baixas e grandes... Vai chover o resto da tarde.

o velho acenou a cabeça e fez sinal para o sentarem. "Se o levassem lá pra fora... Gostava tanto de estar agora no alto do monte!", pensou com ternura. "Se pudesse ir pelo seu pé..." ocheiro acre da terra encharcada entrou pela janela e fez o velho voltar a cabeça, deixando-o a arfar, como se aquele simples movimento exigisse dele um esforço sobrenatural. Chamou o filho com a mão e, quando o sentiu a seu lado, agarrou-lhe na cabeça, aproximando-a da sua; e disse-lhe um segredo:

- Não posso falar mais alto... Mas quero falar-te... - Aproveitava a posição para lhe passar a barba pelo rosto e cerrava os olhos para o sonhar menino. - Estive à tua espera... Só à tua espera... Não sei se fiz mal em não abalar quando a tua mãe... Tu sabes! Lembras-te?!... Eu sei que te lembras! A gente tem de acreditar nalguma coisa para viver... Eu acreditei no que era mais simples... no que se metia p'los olhos dentro... na terra...

As suas palavras eram ditas num bafo de respiração fatigada. A chuva caía com violência, parecendo chicotear as montanhas, para que acordassem.

- Quando não abalei pela filoxera...

"Tinha vontade de dizer tudo ao filho - não abalara porque ficara tolhido de medo. Nunca saíra dali e tivera a impressão de que não se saberia mexer noutro sítio, que lhe falariam, talvez, uma língua que ele não entendesse; e que a própria terra o podia estranhar..."

- Sabes porque não abalei? - "Já não tinha forças para lhe explicar." - Tu entendes, Francisco! Depois de a tua mãe fazer aquilo... *

Acenou a cabeça com frenesi e os punhos cerraram-se-lhe; depois ficou quedo por muito tempo, a arfar, com bagas grossas de suor a escorrerem-lhe pela barba. A tábua do peito mal se movia. Daí a momentos suspirou e teve um sorriso.

- Está a chover bem... Logo que possas, começa a trabalhar...

- O pai vai ver...

Esboçou um encolher de ombros e estendeu a mão, para agarrar melhor os dedos do neto.

- Quis abalar quando ela fez aquilo... Mas como ia levá-la comigo?! E continuei a ficar... Talvez não valesse a pena!...

Fez um esforço para abrir os olhos - já nem conseguiu distinguir uma sombra.

- Está tudo cinzento...

- Está, sim, pai.

- E a chuva já abre sulcos... A terra está seca... Deixou cair a cabeça e não se moveu. Francisco fez

sinal ao filho para sair; o rapaz esgueirou-se, pé ante pé, enquanto Francisco empurrava a janela, para que a água não molhasse a casa.

- - Não feches... Se pudesses chegar-me um pouquinho mais!...

- Faz-lhe mal...

"Que sabia ele disso?!" Mas não lhe respondeu, porque já antes começara a lembrar-se do seu garranote, do Doiradinho, que morrera naquela vindima em que a chuva parecia capaz de destruir o mundo. "Era bonito e esperto, o Doiradinho... E também morrera!..."

 

Depois daquela primeira chuvada, a terra ganhara um tom violáceo, de gangrena ou de tristeza, que podia ser da luz da tarde, caminhando lenta e magoada para o pôr do Sol. e reflectindo-se nas montanhas como numa

superfície transparente, ou da cor dos xistos, tão poderosa agora que nem a claridade do céu escapava à sua influência. Asas retardatárias procuravam o rumo sul, de terras mais quentes, fugindo em bandos, enquanto bandos de nuvens se deslocavam pesadas e negras, ou desciam em farrapos, tapando os cumes, para se abrirem em fios grossos de água que em pouco tempo iriam matar a sede a montanhas distantes.

A geada começara a queimar as poucas folhas de videira que se tinham mantido verdes naquela invasão de luto; e deixava umas vermelhas e outras douradas, em manchas ou em laivos; e nem esse colorido estranho se sobrepunha àquela mágoa profunda que se sentia enraizada nas coisas e nos corações. A angústia colhia-se no ar.

Chorava a terra e choravam os homens, presos ao mesmo destino de mãe e filhos, inseparáveis pelo cordão do sofrimento.

Em anos idos, por aquela época, falava-se nos almu-des de mosto, nas pipas de vinho e na sua qualidade e ainda em certas lembranças da vindima ou da lagarada que ficariam guardadas para sempre. Mas as raparigas das rogas haviam chegado e partido no mesmo rebanho - sem um namoro ou aventura. A "queima" fora para todos uma peste negra.

E dentro de dias - talvez já soprasse lá prò Sul! - viria um vento áspero e frio, encanado pelos vales silenciosos - e as folhas seriam arrastadas em rodopios ("bailavam as bruxas", diriam as velhas); e as lareiras iriam acender-se nos serões tristes e calados. Mas pior do que o vento áspero e frio seria o seu mugir, em ganidos de cão, como se as dores da terra ganhassem voz.

Contudo, as videiras assassinadas pelo míldio iriam ressuscitar, em breve, quando as folhas fossem varridas de todo pelo vento ou se tivessem integrado no estrume das valeiras.

Era a luta cruel de sempre entre a morte e a vida - uma luta que António Teimas já não via nem veria mais.

Só um fio prestes a quebrar-se de momento a momento impedia que Francisco desse largas à dor que sentia tomar-lhe o corpo e lhe dificultava os movimentos, o erguer de um simples olhar para os que entravam, ou ainda o reter mais demorado duma lembrança. E as recordações vinham numa enxurrada, da infância aos factos mais recentes, invocadas por aquelas mãos frias e brancas que estavam à sua frente e que nunca mais se estenderiam para lhe dar a bênção.

Fizera-lhe o caixão, vestira-o e metera-o lá dentro, sem ajudas de ninguém, como se quisesse que ele o absolvesse das culpas da sua ausência. Tivera vertigens, uma sensação de enjoo e um desejo absurdo de abalar outra vez, não para longe, mas para a montanha, isolado de todos, e ali distinguir os sentimentos e as recordações, para ficar só com ele, rememorando a brandura daquelas palavras: "Estava só à espera que tu chegasses..." E com elas o pai mostrara-lhe quanta injustiça houvera em muitos dos seus pensamentos. Não podia confundi-lo mais com o outro, cujas mãos também vira numa posição igual; não podia pensar na mãe como vítima da crueldade daquele homem, que nunca quisera abalar; não podia acusá-lo de tanta outra coisa de que lhe atribuíra culpas.

Ele morrera sereno, sem uma contracção, com aquele mesmo sorriso que se lhe desenhara na boca ao ouvir a chuva. Acabara feliz, na certeza de que a terra não se finara ainda e ficaria sempre, como lhe ouvira vezes sem conta. Devia ser bom morrer assim!... Sem um pecado, uma lembrança má ou a mancha dum arrependimento.

O corropio de gente começara, logo que a notícia batera às primeiras portas. E vinham todos, aos magotes, apressados e aflitos, para ficarem estáticos e lívidos junto do esquife, com uma ternura nos olhos que Francisco nunca vira naqueles rostos. Diziam uns para os outros: "Era um homem!" - e saíam do quarto para dar a vez aos que chegavam, atropelando-se, inquietos. Mas não se afastavam muito, como se fossem buscar a crença que lhes faltava para continuarem. Os velhos do seu tempo lembravam os anos da filoxera; outros, os conselhos e os exemplos que lhe deviam. E todos falavam pela mesma boca - "era um obom homem!..."

Francisco agradecia-lhes aquela homenagem, mas desejava também que abalassem; queria ficar sozinho com ele e distinguir o que devia guardar e esquecer. Uma imagem avantajava-se agora a todas as outras - e era a primeira vez que a retinha. Tinham chegado ambos à porta e a Lua estava no céu. Ele, uma criança, nunca a vira; e apontara-a com o dedito, receoso e maravilhado: "O que é aquilo, pai?" Lembrava-se duma daquelas mãos na sua cabeça, primeiro numa carícia branda, depois num frenesi que o espantara, e vira os olhos do pai cheios de lágrimas. "Estou a lembrar-me da tua mãe..." (Como pudera esquecer tanto tempo essa prova que contrariava a injustiça de o considerar culpado?)

E Francisco sentia que qualquer coisa se queria rasgar dentro de si, como se aquele fio de resignação, que o impedia de dar largas à sua dor, fosse partir-se para sempre. Apeteceu-lhe empurrá-los, gritar-lhes, pedindo-lhes que o não sufocassem. Foi abrir a janela e fê-lo com violência - um vidro quebrou-se e aquele som ficou a tilintar-lhe nos ouvidos. Devia ter um olhar estranho, porque as cabeças se voltaram para ele e todos o fitavam. Não percebiam que precisava de chorar e de ficar só, de recordar aquela carícia, de lhe gozar a ternura e de dizer ao pai que nunca mais sairia dali, houvesse o que houvesse.

O filho mais novo viera para o seu lado e perguntava-lhe em voz baixa: "O avô morreu?!... O avô morreu, pai?!..." Ele e todos sabiam que sim; mas precisava de dizer ao filho qualquer coisa que lhe desse a entender que homens daqueles nunca morriam. Explicar-lhe... "Mas explicar-lhe o quê? Um dia, mais tarde, o seu Luís havia de perceber." E, então, repetiu na cabeça do filho aquela carícia que o pai lhe fizera em pequeno quando ele vira a Lua pela primeira vez; não era, porém, capaz de falar, e essa inibição desesperou-o.

Foi direito à porta, desceu as escadas, empurrando aqueles vultos, e saiu para o quinteiro.

Também ali estava gente. O filho mais velho e Maria Dolorosa passaram por ele; pensou em parar e falar-lhes, mas logo se lembrou de Gracinda e de certas palavras do velho. "Deves dizer-lhe qualquer coisa... Foste injusto..." "Fora injusto toda a sua vida."

O cinzento da manhã começava a chegar, sorrateiro ainda, mais no canto dos galos do que nos sinais do horizonte. Francisco não sabia durante quanto tempo chorara, até fundir aquela mancha espessa de desespero que tivera no peito. Só percebia que estava mais leve, talvez um pouco atordoado, e que andara pelos montes, sem rumo certo, evitando a presença de gente. Falara com o pai junto daquelas videiras que ambos tinham visitado tempos antes; explicara ao filho - e porque não aos filhos? - que o avô não morreria nunca; rememorara pormenores da sua infância...

Estava agora perto do lagar, onde ainda não entrara, invadido por uma temperança que adoçava toda a sua vida, cortando-lhe arestas, deixando-o sem malquerenças por ninguém. A madrugada caminhava para ele em luz e em carinho. Parecia-lhe sentir a terra a respirar e a agradecer-lhe a resolução de nunca mais partir, tomando o lugar do pai. Havia coisas por resolver, era certo; mas tudo se lhe tornara fácil. "O Dr. Pimenta falara-lhe do tal caso dos vinhos com a Inglaterra; o pai dissera-lhe que devia procurar a Gracinda... Não tinham colhido meia dúzia de cestos em todos os prédios e a colheita do outro ano continuava no lagar..." Nada disso, porém, lhe parecia importante naquele momento.

Devia voltar a casa, ver os mesmos rostos angustiados, olhar aquelas mãos mais uma vez, e só depois, daí por uns dias, inteirar-se do que tinha para resolver. Sabia agora que Ele iria ajudá-lo com a sua coragem e o seu exemplo, e adiava o regresso sem saber porquê - talvez porque ali o sentisse melhor do que à beira do esquife. Sentou-se no degrau dum escadório e o coração deu-lhe uma picada,

"Não, assim não, Francisco!", dissera-lhe o pai. "Mete essa pedra mais a direito. Isso!... É um degrau para pôr os pés, mas não é só a gente que aí vai passar... Serão os teus filhos e os teus netos..."

Era por isso que Ele não estava morto lá em baixo. Cada dedo de terra trazia a marca da sua presença: cada pedra, cada cepa, cada bago de uva... E até o cinzento da madrugada, a curva áspera dos montes, o ruído do Douro lá em baixo... A própria voz dos homens e o piar dum pássaro que se esquecera do Inverno...

Tudo parecia agora ter sentido, só porque o pai vivera também.

Quando depois volveu a cabeça para o lado do lagar e viu aquele vulto junto da porta, não se lembrava de lhe ter escutado* os passos.

- Quem está áí? - perguntou.

"Estava a fazer falta lá em baixo e vinham procurá-lo..." O vulto pusera-se a caminhar para ele com a luz da manhã, como se o rasto da claridade do dia viesse nos seus passos.

Francisco estacou a distância, hesitante. "Porque não lhe dava a saudação? Bom dia!..."

- Bom dia! - Gracinda estava à sua frente, de olhos nos seus, num jeito submisso que não lhe conhecia. "O pai pedira para lhe falar e devia agora cumprir a sua vontade", pensou. E deu dois passos para ela.

- Ele contou-me... -Mas pareceu-lhe que as palavras se perdiam na quietude da manhã; aproximou-se mais e quase lhe tocava. - Disse-me tudo o que fizeste por Ele, p'los meus filhos... ("Mas como podia falar-lhe agora?") Queria agradecer-te... Sei que mandaste arranjar o lagar... ("Era melhor descerem até casa...")

E enquanto lhe ouvia a voz compassada pela amargura Gracinda transformava a indecisão dos primeiros instantes num sorriso de esperança, a que já renunciara.

- O dinheiro que te devemos... Eu agora sou o dono das coisas e vou pagar-te...

--Não fiz isso pra me pagares - respondeu ela com

vontade de lhe agarrar as mãos; mas levantou os olhos encadeados de lágrimas. - ¦ Estava à tua espera...

- Também tu?!... Mas tu sabes, Gracinda...

Ele não compreendeu como foi capaz de a trazer novamente para os seus braços, acariciando-lhe os cabelos. Via ainda aquela noite, mas achava-a distante.

- Tu sabes que... - "Que lhe havia de dizer mais, agora que não sentia vontade de magoar fosse quem fosse?!... O pai estava morto lá em baixo... E pedira-lhe..."

Ela tinha a cabeça encostada ao seu ombro e estendera a mão por detrás da sua cinta, e puxava-a, e depois oferecia-lhe a boca, esticando-se para ele. "Porque não podia afastá-la de si?! Porque não dizia tudo o que pensava a seu respeito?!..." £ beijava-a num desvairo selvagem, como se quisesse mordê-la. "Mas ela não pode ser minha..."

- Tanto tempo à tua espera...

O sino da igreja deu, porém, o primeiro repique e Francisco voltou-se para a aldeia, atordoado e arrependido, tendo ainda o seu braço a cingi-la. E num sacão brusco, como se a mão estivesse presa, abalou pelo carreiro. Por instantes, Gracinda correu a seu lado sem o compreender.

- Deixa-me ir contigo... Eu não m'importo do que o povo disser...

Mas Francisco não a olhava, atirando-se pelo monte abaixo, numa carreira que ela não conseguia acompanhar.

 

A Associação Comercial do Norte mantinha-se na mesma atitude que adoptara ao receber o telegrama que a Câmara do Comércio Anglo-Portuguesa, de Londres, lhe remetera na data da assinatura do tratado: ataque cerrado ao convénio, duma maneira geral, e em particular no que respeitava aos vinhos licorosos, embora alguns jornais, e na Câmara de Deputados, a acusassem de falta de patriotismo. O partido que estava no Poder insistia na necessidade de se acabar com tais agitações, verdadeira provocação ",à velha amizade com a nossa aliada", submetendo-se não só às conveniências económicas do Dr. Caldas e do **Barãona, mas também, o que era uma feliz coincidência, com os imperativos de política externa do Governo, sempre desconfiado com a possível trégua entre Ingleses e Alemães, ameaça permanente às nossas colónias em África.

Apesar disso, por constante pressão dos elementos atingidos com o convénio, e que dispunham de largas clientelas eleitorais, os deputados do partido que representavam os círculos nortenhos tinham subscrito uma moção contra o artigo 6.º Por seu lado, os monárquicos aliavam aos motivos comerciais os da conveniência duma agitação permanente, que levaria, no momento azado, a nova tentativa contra o regime. E faziam-no com discrição, amparando-se nos republicanos prejudicados, para levarem a água ao seu moinho.

Albano Freitas e Borges Alves conheciam todos estes meandros e atiçavam os amigos na Associação Comercial, embora soubessem das intenções do **Barãona, que os chamara a Lisboa; na sombra, ambos traíam o seu chefe financeiro - o Freitas porque continuava ligado ao Fischer, agora com as maiores cautelas, e percebia a conveniência de campanhas contra a Inglaterra; o Borges Alves por entender que deveria apoiar os seus velhos clientes e porque sentia passar para os exportadores do Sul a melhor parte do negócio de vinhos do Porto.

Albano Freitas, confiante numa rápida vitória alemã, desvairava-se com a possibilidade de galgar por cima dos anglófilos, não só nas exportações e na navegação, como ainda no próprio comércio bancário. oFischer mostrara-se muito compreensivo, segundo expressão sua para Luisinha Borges Alves, e essa promessa fizera-lhe perder a cabeça. Via-se já na direcção do Banco Nacional, com firmes ligações em Berlim, que passaria a ser a capital da Europa. Encarregara-se ele próprio de falar ao Medeiros do jornal, fazendo-lhe sentir a justeza de alguns artigos contra o tratado; o outro hesitava por causa dos exportadores ingleses, que permaneciam fechados a qualquer comparticipação nos protestos. "Nós temos o hábito de não nos metermos nos negócios dos outros países", diziam os da Feitoria.

O Dr. Albano insistia com moderação:

- Repare, Medeiros, o que vai ser do Douro sem a exportação de vinhos... Não sei mesmo se o seu jornal aqui poderá medrar. Tudo acabará!

- Mas o Governo não precisa de lições de patriotismo, meu caro Freitas.

- E nós precisamos?! Não percebe que isto é a morte da nossa querida região e que passaremos a depender estritamente do Sul?

Depois de muito apertado, o Medeiros garantiu ao Freitas que, se houvesse protestos colectivos, ele lhes daria eco no seu jornal, "estritamente informativo", como jurara de mão no peito, embora o outro soubesse donde lhe vinha o apoio para a empresa.

- E um artigo de fundo?!

- Vamos mais devagar!... A menos que o doutor queira escrevê-lo e assiná-lo... *

- O Medeiros sabe que me retirei da vida pública - respondeu o Freitas, embaraçado.

- Krupp, o fabricante de canhões, recebeu o grau de doutor pela Universidade de Bona. É espantoso! - disse Pimenta para a esposa, sem tirar os olhos da revista. E leu em voz alta: - "É talvez o primeiro desta Faculdade nova - ou, pelo menos, o primeiro oficial e catedraticamente investido neste título brilhante e homicida."

Como a mulher parecesse não entender o que ele dizia, Pimenta explicou:

- É o que deu o nome da esposa, Berta, ao canhão mais poderoso que o engenho dos empreiteiros da morte ainda concluiu. Fabricar a arma é um crime; uma Universidade festejá-la é um ultraje... Mas ele próprio pôr-lhe o nome da mulher, duma mãe, é abominável! Que sensibilidade terá este homem?!...

  1. Ermelinda procurava acalmar o espanto que via nos seus olhos tristes.

- Mas é tão longe daqui...

- Longe ou perto, é um homem que o faz, entendes? O que vai ser desta pobre humanidade, se os nomes que significam carinho já servem para designar...

- O pior é a arma! - disse a mulher.

- Tens razão!... E um fabricante de canhões não pode compreender estas susceptibilidades. Amanhã descobrirá uma bomba que mate milhares de crianças e irá pôr-lhe o nome do filho. E a criança sorrirá de orgulho.,.

Na Comissão de Vinicultura da Régua não faltava nenhum dos convocados.

Lá estavam o Dr. Moita, na presidência, que ascendera a senador e não ocultava um sorriso amarelo, sabendo que se tinha de medir com os outros; o Dr. Severino, sempre a mover-se por linhas, na sua magreza, e em política, pelos interesses do Baixo Corgo e dos evolucionistas; o Pinto da Fonseca, director da Companhia Velha, e o Gonçalves, já refeito da sua paixão, com anel de casamento no dedo e as quintas da D. Maria Albuquerque no património; os monárquicos mais influentes, como o Dr. Sepúlveda, médico na Régua, e o Meireles, de Joanes, o Brandão, mercador, e o Vitória, farmacêutico. O resto da assistência era constituída por lavradores da sede e das freguesias vizinhas e ainda por muitos outros de Santa Marta, onde a agitação escaldava.

oDr. Moita começara a falar, calmo, com o seu vozeirão bem timbrado, e apelava "para o bom senso e o patriotismo de todos", confiando - dando até a certeza - em que o Governo não deixaria de esclarecer o artigo 6.º, como era devido. E ao dizer isto arrefeciam-lhe as mãos, porque saía fora das normas que o directório do partido lhe indicara. Gostava de os ver ali, pensava, com aquela gente que lhe dera os votos, a olhá-lo com agressividade e a agarrar-lhe nas palavras mal as articulava, esbanda-Lhando-as em apartes. O Sepúlveda, muito ronha, deixava os outros meterem-se ao barulho e passava, na memória, o discurso que preparara, com o maior esmero, para o encaixar na altura própria.

Vigilante, o Dr. Moita esperava um deslize seu para lhe dar a ferroada. Conheciam-se ambos de sobejo, um médico, o outro advogado, pela rivalidade ""que mantinham desde os anos de Coimbra. E com o discurso do Severino, muito frouxo de voz, estava agora o Sepúlveda a refastelar-se de gozo, pois o ataque ao tratado e ao Governo na boca dum republicano era o melhor trunfo que lhe podiam oferecer.

- É favor falar mais alto! - pedia o Moita para embaraçar o outro.

Ostensivamente, punha a mão no ouvido e fazia expressões de quem não entendia, ante a indignação e o rubor do outro, que levantava a voz, mas se perdia em esganiçados ridículos que tiravam convicção às suas palavras. Mal o viu acabar, o Meireles, de Joanes, rompeu numa fúria de insultos que sacudiu toda a gente; mas certas alusões políticas puseram contra si os republicanos mais convictos, que lhe perceberam a manobra. oDr. Moita teve de o interromper, tal alarido se fez na sala quando o orador afirmou que "o Douro morreria, sim, mas de armas na mão!"

O Sepúlveda exultou também com o fracasso do correligionário, com quem tinha velhas contas a ajustar, e iniciou o seu discurso com certas expressões muito do seu agrado - "que era necessário, sem dúvida, ouvir o coração em assuntos daquela natureza, mas que não se devia esquecer a inteligência; que não se estava ali para levar o País à guerra civil do Norte contra o Sul, mas, bem pelo contrário, para se desejar uma mais estreita comunhão de todos, que eram portugueses, homens de bem e irmãos... (pensou dizer "em Deus", mas surripiou a palavra), que o Sul entendesse que as suas terras eram de pão e que não deviam roubar ao Douro (e aqui falou com arrebatamento) o direito de ganhar o seu pão, o único, que era o vinho..."

- Vossa Excelência disse... - interrompeu o Dr. Moita.

O Sepúlveda percebeu por onde o outro lhe pegava e não repetiu a frase: mas o Moita sublinhou-a:

- Vossa Excelência disse que o nosso pão era o vinho. Foi isso, não é verdade?

Houve sorrisos na sala. oGonçalves levantou-se e pediu compostura; o presidente mandou-o sentar, fazendo-Lhe sentir que não delegara as suas funções noutra pessoa.

Feito silêncio, o Sepúlveda prosseguiu no mesmo tom cordato, para terminar com a girândola que preparara em casa - uma descrição dramática do esforço dos durienses, confundindo-se ele próprio com os cavadores, os lagareiros, o pessoal das vindimas, nos sacrifícios sem par que o País lhes devia e o Governo, estava certo, não podia esquecer. E se o Governo estava de boa-fé, como todos acreditavam, só havia da sua parte que fazer um esclarecimento conveniente ao artigo 6.º; por isso mandava para a mesa uma moção a dirigir à Câmara Municipal e ao Governo Civil.

Era o golpe preparado no Porto para o reabrir das sessões legislativas.

Os de Alijó, com o Pereira de Sousa à frente - o Pereira Magro, como todos lhe chamavam - , mexiam-se no Alto Douro, percorrendo os concelhos centrais da região, de maneira a coordenarem as reclamações a fazer pelos municípios e pela lavoura, e também para se não deixarem ultrapassar pela "canalha" do Baixo Corgo, que bem seria capaz de se aliar aos do Sul, contra eles. Era uma questão de sempre, que um pequeno rio, o Corgo, delimitava e açulava.

O Pereira Magro chegou de tarde à aldeia com mais três companheiros - estivera de manhã no Pinhão - e procurou o Pimenta para que lhe indicasse os nomes mais destacados daquela zona. Claro que não o fazia por ignorância, mas antes para tentar colher boa cooperação do médico. Os ânimos andavam exaltados por ali e o Pereira Magro, embora republicano das primeiras horas, não estava disposto a pactuar com uma "malandrice daquelas". Pensara num comício, mas acabara por arranjar uma plataforma que satisfizesse um "água-na-fervura" que o acompanhava: pedira a entrada no jardim da Quinta Alta, que o Silva Costa cedera entusiasmado, por já ter recebido instruções do Azevedo e também de D. Fernando, e deixara o portão aberto para quem quisesse entrar.

O seu discurso fora persuasivo e não usara de meios tons - "ou o Governo esclarecia imediatamente o que se entendia por vinhos do Porto, ou os Durienses se levantariam como um só homem contra uma violência dessas. Responderemos a cada violência com outra violência!", dissera, arrebatado. Os aplausos constantes entonteciam-no e tornavam-no mais exigente.

"Não uso aqui de frases bonitas, porque a hora não é para punhos de renda. O que os do Sul prepararam no tratado com a Inglaterra é a fome para todos nós. Nunca mais venderemos um litro que seja de vinho tratado e seremos obrigados a abandonar as nossas casas, levando para a miséria os nossos filhos e as nossas mulheres..."

Francisco Teimas escutava-o, empolgado, e esquecia o seu caso com Gracinda. Estava arrependido de ter cedido naquela manhã; conseguira evitar que ela se lhe metesse em casa, mas queria afastá-la de vez da sua vida. A agitação provocada pelos artigos dos jornais e os comícios faziam-no adiar essa resolução. E batia palmas acenando a cabeça para o Dr. Pimenta, que lhe sorria com uma intenção que ele ainda não entendera. Tudo se lhe aclarou, porém, quando o ouviu falar em voz pausada, sem rasgos violentos.

"Sim senhor, o momento era grave e ele estava ao lado dos que protestavam. Mas desejava dizer que a aclaração do artigo 6.º não bastava aos justos interesses dos Durienses, que não eram só os que possuíam quintas com cem pipas de produção, ou vinte, ou dez, mas particularmente, já porque eram a maioria, já porque eram os mais desprotegidos, os lavradores de uma a cinco pipas, que se viam obrigados a entregar as suas produções por qualquer preço, e ainda os trabalhadores que não dispunham de qualquer protecção e sentiam, como ninguém, as consequências da crise. Quando ainda se pedia ao Governo para não se cobrarem impostos na região, esquecendo-se de que era com eles que se mantinham as necessárias despesas públicas, havia alguma coisa a acrescentar: que essa isenção se fizesse para os que só colhiam até três pipas e não tinham ainda vendido a colheita de 1913, mas que não fosse extensiva aos restantes. O que o Governo devia era ceder algumas verbas do orçamento para obras sociais."

oPereira Magro, o Silva Costa e os demais atingidos tentaram ainda cobrir-lhe as últimas palavras, mas o entusiasmo dos pequenos lavradores e da gente de trabalho aquietou-lhes a indignação.

Recolhidas todas as reclamações, a Associação Comercial do Porto enviara à Câmara dos Deputados um telegrama em que pedia que não-admitisse a proposta de lei sem que o comércio e a lavoura fossem ouvidos. "Estender, portanto, a faculdade do uso desta marca para além desta área e a todo o País, como no tratado em projecto, é um verdadeiro e gravíssimo erro económico, além dum atentado à propriedade regional."

E os telegramas dos municípios caíam todos os dias sobre a mesa dos presidentes das duas assembleias.

O Parlamento português aprovara, finalmente, a 22 de Janeiro, a lei sobre o horário de trabalho, fixando-o em dez horas, com excepção para certas indústrias tóxicas, que só fariam oito. A medida devia-se à luta prolongada e aguerrida da classe operária, mas também à necessidade que o Governo sentia de desviar a massa trabalhadora da agitação pacifista que exaltava os seus elementos mais progressivos. Satisfazendo aquela reivindicação, tentava pô-los também do seu lado nas lutas que se aproximavam.

Promulgar uma lei não era tudo; a dificuldade estaria em dar-lhe execução.

E os patrões só acediam com a condição de os salários serem reduzidos proporcionalmente às horas tiradas ao horário tradicional. Sucederam-se paralisações e greves parciais por parte dos operários.

Dias depois, era a ditadura do general Pimenta de Castro.

  1. Fernando metera-se na quinta do Loureiro, último baluarte dos Pimentéis, e rompera com D. Afonso quando o viu disposto a aceitar um emprego no Banco Borges Alves, em lugar do casamento que a tia lhe tinha preparado com a Clarinha da Torre.

- Foste desaustinado com a pequena e arranjámos mais um inimigo - dissera, agressivo. - A manga de alpaca é degradante para a nossa família. Vais receber ordens do Freitas...

- Acho vexame maior para todos dizer-se amanhã que o pai vende os filhos a quem mais oferece. oFreitas é hoje o marido da que devia ser esposa do Carlos e foi, durante muito tempo, o noivo de sua filha e minha irmã... Era sina do Freitas pagar a um Pimentel; eu, ao menos, compenso-o em trabalho.

Daqui ao rompimento a conversa entre ambos fora rápida.

O coronel House voltava à Europa como intermediário confidencial entre os beligerantes, mas a missão que Wilson lhe entregara não achava aplauso em qualquer das capitais. De resto, o coronel evitava as conversações com a Rússia e só fazia em Paris uma curta visita de cerimónia. Londres e Berlim é que lhe tomaram o tempo, porque o coronel House conhecia que eram agentes ingleses de Nova Iorque que davam aos barcos americanos, em viagem para certos portos "neutros", a documentação necessária que os punha a coberto das devassas feitas no alto mar pela marinha dos Aliados. E as mercadorias americanas continuavam a chegar à Alemanha.

Em Berlim, muitos elementos progressivos denunciavam os objectivos de guerra. Mas só o deputado socialista Liebknecht, em pleno Reichstag, erguia a sua voz para retirar o seu voto aos novos créditos para a guerra, "uma vez que a Alemanha empreendia uma guerra imperialista, uma guerra de conquistas".

Na sua Vila Hiigel, em Essen, Kruposorria com as palavras do deputado - e não era um sorriso de complacência nem de ironia.

 

Por toda a Estremadura vinícola estendiam-se os comícios de aplauso ao tratado com a Inglaterra, cujo fecho era sempre o mesmo: um telegrama vibrante, de apoio ao Governo, para que urgentemente se ratificasse o novo convénio dos vinhos, e protestando contra o anti-patriotismo do Norte, que, fechado no seu egoísmo tradicional, "esquecia que a nossa velha aliada dava o sangue dos seus filhos para defender a Europa e a liberdade dos povos".

No Douro, quase perdida a última colheita e ainda por vender a do ano anterior, os cavadores deslocavam-se em bandos, pedindo trabalho. Nas quintas acolhiam-nos com palavras de piedade, acusando o Governo e o Sul e culpando da miséria que todos sofriam os impostos cobrados.

"Os impostos!... Eram os impostos!... Como queriam as Finanças que eles pagassem?!... Como podiam dar trabalho ao povo, se o dinheiro não chegava para pagar as décimas?!..."

 

Francisco sabia que precisava de ter uma explicação com Gracinda, mas não se achava capaz ainda de lhe dizer o que sentia sem rancor. Queria mostrar-lhe que, por culpa de ambos - fazia-lhe essa concessão - , já não seria possível viverem juntos e serem felizes. Percebia-lhe uma exaltação que noutros tempos o teria desvairado; e agora, talvez com um fundo de amargura, verificava que ela não era a mesma mulher por quem estivera decidido a ser um criminoso. Via que se enganara, criando uma ilusão que se desfizera com o afastamento. E chegava a sentir compaixão pela morte do António Francisco, que nunca lhe fizera mal, a não ser por culpa sua, que o desafiara.

Gracinda chegava todos os dias, procurando encontrá-lo só para insistir - ele percebia-lhe a inquietação do corpo e a súplica do olhar - na sua vinda para ali. Tinha ainda na boca a repugnância que experimentara ao beijá-la. "E porquê?!", pensava. "Talvez a receasse... Sabia que dela nunca lhe viera o bem..." Mas logo se recordava dos primeiros tempos, antes de o marido ter voltado do Brasil, e nascia em si um misto de ternura e de desespero. Tentava esquecer, logo depois, aquela imagem do quarto com o morto e ela; e o corpo formigava-lhe de inquietação, revendo a fuga para o Alto das Monteiras, os dois tiros no podengo, a vertigem do abismo e, finalmente, o regresso à aldeia.

Era por tudo isso que evitava ficar a sós com ela. Queria percebê-la, mas acabava sempre por acusá-la e logo se alquebrava para atender às palavras do pai. "Seria bom que nada se tivesse passado... Que o marido não tivesse vindo e ficasse por lá, que ela não precisasse de o enganar..." Conhecia-a demasiado para fazerem vida; sabia o que lhe ocorrera naquela manhã em que saíra de junto do pai e se tinham encontrado. Aceitara-a pelo alquebramento que a morte do velho lhe provocara; mas não podia esquecer a alucinação que lhe viera depois com a invocação detalhada do passado. Ambos haviam destruído tudo - e nada ficara para ele que valesse a pena repetir.

Porém, a persistência de Gracinda embaraçava-o. E já pensara em criar uma situação com Maria Dolorosa que levasse a cunhada a afastar-se e a desiludir-se, procurando qualquer solução para si. Uma noite ainda retivera a outra, depois de o Luís se ter deitado, com o propósito de lhe descobrir qualquer interesse - uma ponta de amizade que fosse. "Muitos namoros, Maria Dolorosa?" Ela respondera-lhe que nunca mais olharia para qualquer homem. "Isso parece-te!... Também eu pensava assim... Mas agora vejo que preciso dalguém... duma afeição..." E Dolorosa falara-lhe de Gracinda. "Porquê a Gracinda?!..." (Quisera dizer-lhe: "Porque não hás-de ser tu?", mas o olhar dela fizera-o calar.) "Tens razão, Dolorosa! Nem a Gracinda, nem outra... Agora precisamos é de trabalho e de comer..." E acabara por achar na cunhada um embaraço na sua vida. "Seria só amizade o que sentia por Maria Dolorosa?!"

Albano Freitas tinha o (Fischer à sua frente e não sabia se o devia abraçar, se pô-lo fora do gabinete do banco.

- É preciso que o doutor - ele não podia agora ouvir aquele português gutural de leopardo - centralize aqui as informações que lhe forem chegando... Não deve abrir qualquer dos sobrescritos... Estabeleça amizades entre os Ingleses e faça também relatórios que possam interessar à causa alemã.

- Pede-me que seja espião?!

- Peço-lhe só que seja europeu. E que se recorde de que os Alemães sempre tiveram boa memória...

Ainda naquela manhã, tomando o pequeno-almoço com a mulher, ambos tinham falado com entusiasmo no palacete que o Borges Alves comprara na Figueira. Lui-sinha pedira-lhe para a levar até lá, no domingo próximo, porque queria modificar o jardim. Agora, em lugar de roseiras e de flores exóticas, o Fischer falava-lhe em centralizar informações de espionagem. "E se recusasse?!..." Mas o outro expunha-lhe agora outro plano:

- Criaremos uma empresa de pesca de sardinha ligada a um conserveiro de Matosinhos... - Fischer revi-rava os olhos cinzentos. - Percebe?!...

- Não! - disse secamente; e desejou juntar: "Nem quero saber..."

- Precisamos de aprovisionar os nossos submarinos... Paga-se bem à companhia, entende agora?!... A luta submarina romperá com o bloqueio. Estamos a afundar uma média impressionante de navios... Dentro de pouco tempo os mares estarão limpos de marinha mercante. Trabalhamos também para si, como representante da nossa empresa no Porto; depois da guerra, a concorrência dos Lloyds desaparecerá.

Albano Freitas não foi capaz de lhe responder; Fischer deixou-lhe um cheque em cima da secretária, estendeu-lhe a mão para um cumprimento à germânica, depois de bater com os calcanhares, e saiu, decidido e firme, como entrara.

"E se os Aliados desconfiam?!... Que me vai suceder?..." Luisinha pedira-lhe que comprasse uns pacotes de sementes para levarem no automóvel. Tinha de um lado a relação das flores para o jardim do palacete e do outro o cheque do Fischer - um cheque cor-de-rosa.

Aquele grupo de homens tinha saído de madrugada, à cata de trabalho, e voltava inteiro, ao anoitecer, sem uma esperança que fosse.

- Levantaram o pessoal nas Carvalhas... Na Roeda fizeram o mesmo...

Estavam no Carnaval e ninguém se mascarara na aldeia a não ser o Chasco, que continuava a julgar-se irmão dos cães e pusera na cabeça um chapéu de papel. Os rapazes olhavam-no a distância e nenhum ria como era costume. Não havia uvas para roubar nem pão em casa. Nos tempos do fidalgo ainda davam, às vezes, uma fatia de centeio na Casa Grande; mas agora o Azevedo nunca ali vinha e a D. Constança, a menina do D. Fernando, passava de automóvel com o filho do homem das fábricas de tecidos e nem acenava a mão, como nos tempos do pai. O grupo de homens voltou ao anoitecer e nenhum deles fez sinal aos filhos, que os esperavam na praça, mesmo depois de o Chasco ter desaparecido com os cães. Os rapazes perceberam-nos e foram-nos seguindo a distância, como se uns e outros tivessem vergonha de serem pais e filhos.

- Os dos comícios é que dizem bem. Não se deviam pagar décimas! Para darem dinheiro à Fazenda não podem dar trabalho à gente...

oDr. Caldas deslocara-se de Alpiarça para aquele jantar com o **Barãona e o ministro. Ambos sabiam que este dnha o prazer da mesa, e a Marques fornecera a ementa, toda com pratos à francesa. Estavam só os três no palacete de Sintra, que o **Barãona mandara arejar dias antes. Monserrate via-se a distância e uma morrinha caía lá fora.

- O Governo vai intervir no Norte? - perguntou o **Barãona.

O ministro continuava a comer, só respondendo com os olhos.

- Parece-me que há comícios a mais... E a violência começa a subir de tom, não lhe parece Dr. Caldas? - disse ainda o banqueiro.

- O nosso ministro sabe como us deve tratar - respondeu Caldas com um acenar significativo de cabeça. -

Estamos numa democracia. É claro que o comício de ontem em Vila Real foi um pouco... excessivo... Muito transmontano !

- Já se fala em guerra civil por lá...

O ministro deu uma gargalhada seca e forçada.

- Eles não percebem que desse modo nada conseguirão? Por prestígio, quanto mais não seja, o Governo não cederá... Manteremos a ordem na altura própria!

Os três entreolharam-se.

- Os nossos amigos é que se têm comportado com certa fraqueza. O Dr. Moita, o senador...

- Parece mais um magarefe que um senador - disse **Barãona num gracejo.

- É um homem com prestígio, apesar de tudo - replicou o ministro. - Falei-lhe há dias... É claro que há certos aspectos difíceis da questão que, da maneira como ele os expõe, são muito para ponderar.

- Mas, meu caro ministro - " interveio o Caldas - . "Port-Wine" é uma designação genérica de um certo tipo de vinho licoroso, e não o vinho duma região! Estamos em economia liberal e deve rasgar-se o tratado, se não se der liberdade de acção aos mais aptos.

- Toda a razão! - acentuou **Barãona, fazendo sinal ao mordomo para que servisse o champanhe. - Se o vinho deles é melhor, evidentemente que ninguém comprará zurrapas. É um estímulo para a qualidade... E, como o ministro sabe, os produtos portugueses precisam de se impor no mercado externo.

A rolha da garrafa saltou por detrás do Dr. Caldas, que teve um estremecimento.

- Sabe que designação tem este vinho, Sr. Ministro?! - Champanhe, certamente!

- Mas é feito no Douro. E eles, que se mostram tão zelosos pelo seu "Port-Wine", falsificam champanhe!...

- E falsificam o seu próprio vinho com baga de sabugueiro e açúcar - reforçou o Dr. Caldas, emproando-se na cadeira de espaldar, para vencer a insignificância da sua altura. - E se vêm comprar vinho ao Sul...

- Talvez não! - interveio o ministro.

- Arranjo-lhe quantas facturas quiser. De resto, os jornais têm falado, vezes sem conta, em vinho do Sul encontrado nas estações do Norte. É sinal de que precisam dele: é a prova de que são eles a falsificar, se continuam a chamar falsificação aos nossos vinhos licorosos. Que patriotismo é o deles, se o tratado defende os vinhos portugueses das imitações estrangeiras?! Não se importam com os "Tarragona" nem com os "Hamburgo"... Só lhes dói o vinho do Sul!

- Muito bem, Dr. Caldas! Está a pôr exactamente o problema no seu justo pé.

- Muito lúcido, como sempre! - corroborou o ministro, que sabia bem a hierarquia do Dr. Caldas dentro do seu partido. - Deu-me novos elementos, e preciosos, para julgar o assunto. A falsificação do champanhe é óptima.

 

Era já o terceiro dia seguido que o filho mais velho vinha à mesma hora, quando estavam a cear - um caldo de cebola ou uns "milhos" com um naco de centeio endurecido na arca - , e que Francisco lhe percebia aquele arrebatamento nos olhos inquietos, logo voltados para o chão, donde nunca mais se levantavam, mal lhe fazia a pergunta: "Queres comer?" O Chico rosnava um "obrigado" hostil e ficava naquele canto, com a cabeça entre as mãos, à espera que o pai saísse para o largo da aldeia, onde outros homens o esperavam, para lhes ler o jornal e comentarem juntos as notícias e os boatos que chegavam de todo o Douro. Mas assim que ele batia a porta e os podengos deixavam de ganir Chico Teimas voltava-se para Dolorosa e para o irmão, fazendo-lhes as queixas que trazia para atirar ao pai.

Naquele dia, porém, Chico Teimas entrou mais decidido e encaminhou-se para a mesa:

- Boa tarde!

O pai voltou-se, franzindo o sobrolho, e, como lhe visse insistência no olhar firme, perguntou-lhe, com ironia:

- Viste lobo ou há novidade?...

Chico sentiu as veias entumecerem-se no pescoço, como se fossem rebentar, e deu mais um passo; se o irmão e Dolorosa não estivessem ali, talvez achasse uma maneira de evitar o choque com o pai; mas sentia os olhares dos dois cravados sobre si e lembrava-se bem do que lhes dissera nos outros dias.

- Vinha só dizer... - O pai agarrara-o pelo pulso - ... dizer que a tia... ("Aquela cara não lhe metia medo, não!") ... que a tia não tem que comer.

Quando o pai lhe atirou o braço, como se o quisesse arrancar duma vez, e lhe voltou costas, Chico Teimas entendeu que podia dizer o resto:

- E a gente deve-lhe do tempo do avô!

Francisco sentiu a alusão como uma chicotada; voltou-se num sacão e caminhou para o filho lentamente. E pensava a cada passo: "Vou partir-lhe a cara... Pisá-lo... Agarrá-lo p'las orelhas e bater-lhe com a cabeça na parede..." Luís e Dolorosa viam-no sorrir duma maneira estranha; Chico continuava firme no mesmo lugar, com os braços a tremerem-lhe e as narinas a dilatarem-se. O pai já estava junto dele e sorria ainda.

- Obrigado p'la lembrança, meu rapaz!

E, antes que acabasse a frase, atirou-lhe uma punhada ao rosto; Chico Teimas viu uma névoa passar-lhe pelos olhos, ao mesmo tempo que o corpo se lhe esbandalhava a um canto da cozinha e uma dor aguda partia do maxilar, enchendo-lhe as faces e depois a cabeça. O pai percebeu-lhe a expressão e lançou-se sobre ele, encostando-o bem preso à parede.

- Foi ela que te ensinou o recado? - "Mas que estava a fazer?", pensou depois; então, com o mesmo desembaraço, ergueu o filho pela camisa, que se lhe rasgou nas mãos, e arrastou-o para a arca, onde o fez sentar. - Tens razão... Eu não sabia - disse numa voz grave e lenta; depois quis falar mais depressa e gaguejou: - Amanhã, o mais tardar, lá mandarei o dinheiro que puder... Era fiado o que a gente estava a comer! - gritou depois. E novamente se aproximou do rapaz; mas Dolorosa metera-se entre os dois. Francisco acenou-lhe a cabeça numa ameaça. - Nunca mais te quero ver à minha frente... pra não cantares de galo. - Doía-lhe que o filho defendesse aquela mulher. - Ela que diga quanto lhe devo... Tudo, hã? Dinheiro e juros!

Querendo aparentar serenidade, afastou Maria Dolorosa e conseguiu sorrir-lhe.

- Pra lição já lhe basta! - E, esquecendo-se do rapaz, prosseguiu: - Logo, quando fores, dá-lhe tu o recado. Que diga quanto lhe devo, pra se fazer a escritura. Passo o lagar e as terras que estão à volta para o nome dela. E se ainda não chegarem...

Apeteceu-lhe dizer uma infâmia, mas dominou-se.

- Que não lhe ficamos a dever cinco réis!

E saiu. Pensou em ir à loja aparelhar o burro, mas decidiu-se a fazer o caminho a pé. Quando passou à praça, um magote de gente chamou-lhe a atenção. "Teria

chegado mais vinho do Sul?!... Nunca se cansavam de os desafiar, mas um dia..."

Uma mulher passou por ele a benzer-se e, quando o reconheceu, voltou atrás:

- Desta vez não o salvaste, Francisco. oMal-Matado meteu um tiro nos miolos, salvo seja!

A manquejar, um farrapo negro pelo largo fora, a velha lá foi para a porta da taberna, quase levada de roldão por uma nuvem de rapazes que surgira, a correr, de um dos quelhos. Francisco ficou parado, sem saber o destino que trazia, para recordar num instante - a cabeça andava-lhe num rodopio - aquele dia em que salvara o outro do nó da corda e lhe vira o olhar espantado e agradecido, apesar das recriminações que lhe atirava: "Porque não -me deixaste, Teimas? Isto tem de acabar um dia, e agora, que tinha resolvido... Porque te meteste na minha vida?!" Desde então, o outro ganhara a alcunha e ficara-lhe com aquela gratidão silenciosa que lhe sabia melhor do que as palavras. E mirava-se na filha, com ternura, a Idalina, um pedaço de cachopa, que parecia outra depois do casamento com o António Marinho, um bruto! Quando quisera fugir à tentação da Gracinda chegara a pensar em fazê-la sua mulher; mas ela gostava do Espanhol e Francisco percebera que não tinha idade para uma rapariga. "Agora o Mal-Matado dera um tiro na cabeça; ele batera no filho com ganas de o matar. E ninguém sabia o rumo a dar à vida..."

Pensou ainda em entrar na taberna para ver o amigo. "Mas que ia lá fazer? Ver sangue?!..."

oSousa acobardou-se quando o viu entrar na loja naquela excitação, a mudar de conversa que nem um atolambado e a agitar-se de uma banda para a outra, ora à porta, a falar para a rua, ora junto do balcão, a dar punhadas no tampo e a contar a morte do Mal-Matado; depois voltava a insistir na oferta do vinho.

- Vendo-lhe as duas pipas p'lo preço que correr agora... Mas não me deixe voltar sem dinheiro, p'la sua rica saúde!

O merceeiro engolia em seco, a abanar o corpanzil espapaçado, e estava mais pálido ainda do que a sua cor habitual de sezonático, comum a toda a gente do Pinhão. Chamou-o, atarantado, para trás da armação da loja - onde havia garrafas de rótulo, à mistura com velas de sebo, lanternas de petróleo, cartas de escrever e latas de conserva - , dizendo-lhe que levasse o dinheiro, "com mil raios!, que andava tudo maluco, e lhe guardasse o vinho até ele dar ordem a um carreiro para lho trazer. Comprava-lho porque era seu amigo e o via aflito; já não mercaria mais um almude, pois o Sul é que iria vender todo o que os Ingleses precisassem. Dava vontade de abalar, com mil diabos!"

E lá ficara empoleirado no banco alto da secretária, que tinha a um canto da loja, retomando a soma do livro de fiados. "Havia de mostrá-lo ao zelador da Câmara, quando ele viesse dizer-lhe que as contribuições iam aumentar."

Luís esperava-o à porta do quinteiro com os dois podengos enrolados aos pés. - A sua bênção, pai! - A aldeia, mais recolhida no seu luto, parecia abandonada. Só uma aragem fazia estremecer o sino da igreja, fazendo-o tocar de vez em quando.

Entrou na cozinha, sentou-se à mesa e pôs-se a contar o dinheiro. "Duas pipas de vinho, aquela miséria! Com a última colheita perdida, era a produção de dois anos. Trazia dinheiro pra dois meses... E aquele dinheiro não era seu; ia entregá-lo logo que sentisse disposição para falar à cunhada."

Punha as notas de um escudo em pequenos montes e ficava-se a olhá-los com desgosto. "Porque havia de ficar ali, como dissera ao pai? Até ele, que sempre vivera para a terra, acabara por lhe dar razão... Talvez no Porto arranjasse trabalho numa fábrica. E os outros?..."

Luís aproximara-se, de mansinho, e corria os dedos pela borda da mesa, numa carícia que Francisco sentiu nas suas mãos. E sorriu para o filho - "que tinha ele com as suas queixas?" - puxando-o para si. O rapaz encostou a cabeça ao seu ombro, roçando a testa.

- Eu não devia ter feito aquilo ao Chico - disse num desabafo, aconchegando mais o filho. - Ele não sabe ainda o que diz... A tua tia é que...

- Ela é nossa amiga - interveio Luís, como se percebesse o que o pai lhe ia dizer. E, passando-se para o meio das pernas, prosseguiu num arrebatamento: - Mas a minha mãe era mais bonita, não era?!...

E enquanto o pai o puxava para os joelhos e lhe corria os cabelos com os dedos ansiosos, Luís deixava os olhos humedecerem-se, segredando-lhe:

- Nunca mais queira outra, não?!... Não, pai?!

 

Os amigos insistiam para que fosse falar ao Dr. Pimenta, dispostos, como estavam, a fazer alguma coisa contra a ameaça do "tal artigo 6.º", que andava em todas as conversas, embora bem poucos soubessem o que de facto continha. Mas tanto os jornais e os oradores dos comícios se lhe haviam referido que, para eles, o artigo 6.º era a expressão única de quantas dificuldades lhes embaraçavam a vida - os impostos, a falta de trabalho, o desaparecimento do sulfato e o preço exorbitante do pouco que se almejava, os juros das dívidas e a falta de víveres, com as duas vendas da aldeia de tulhas vazias, e a resposta agora certa: "Não posso fiar mais; acabou-se." Em Armamar já houvera um levantamento que forçara à intervenção de soldados, perante a impotência da Guarda Republicana em abrandar exaltações; em Alijó, o próprio Pereira Magro tinha encabeçado o povo e exigido ao administrador e à Câmara que mandassem um protesto para Lisboa. De toda a parte chegavam notícias da agitação que percorria o Douro, "ameaçado de assassínio pela fome", como dissera um senhor doutor da Régua, no último comício do Pinhão. "E eles tinham de fazer alguma coisa!", insistiam junto do Teimas. "Então os Ingleses nunca mais comprariam uma pipa de vinho dali, os do Sul mandavam no Governo como queriam, eles teriam de deixar as aldeias à bicharada, e iam deixar-se ficar de braços cruzados, à espera do que os outros quisessem?!... Quem é que pode ouvir os crianços a pedir de comer?! Já não há broa, quanto mais conduto!... E que vamos fazer? E para onde vamos?!..."

Agora já não estavam só à sua volta os cinco homens que o tinham ido buscar a casa, mas um magote de gente que engrossava sempre e vinha da taberna do Mal-Matado, desvairada pela dor de lhe ver a cara numa pasta de sangue.

"Que ia dizer ao Dr. Pimenta? E se ele lhe desse com o chiça, ia ficar parado?!... E se os soldados viessem?

Ia meter-se em sarilhos?!..." Estas interrogações perturbavam-no, enquanto abanava os braços para os outros, num sinal de que nada podia fazer.

- Se tu fores, Francisco - dizia-lhe o Arrepiado - , o doutor não se vai negar. É um homem direito e não pode deixar que a gente morra aqui "à míngua.

- P'los nossos meninos, Teimas! - gritou uma voz de mulher por entre aquela mole de cabeças.

E um alarido maior percorreu a praça, já tomada de lés a lés pelos que vinham de todos os quelhos, ignorando o que se passava. Francisco nem conseguia distinguir agora as caras das primeiras filas, com as tonturas que sentia, aquele suor incompreensível que lhe dava frio e uma sensação de impotência para ir com eles ou sair dali, à força, rompendo o círculo que o apertava.

- Estes homens d'agora nascem capados, raio me pele! - imprecou uma mulher.

- ¦ Mas que vou eu lá fazer? - dizia Francisco para os que estavam mais próximos, sem ser capaz de levantar a voz. Sentia-se humilhado consigo - "porque se tinham lembrado dele?" - ," compreendendo que não fazia o que era preciso e que os outros esperavam da sua parte. - Mas que vou eu lá fazer? - E acenava a cabeça, agitava as mãos, sem as poder levantar, e olhava de fugida para os que o encaravam, apetecendo-lhe empurrá-los e gritar-lhes que o deixassem só, porque a sua vida lhe bastava para o preocupar.

- Se o velho fosse vivo, outro galo cantaria! - ouviu Francisco junto de si.

- Já lá estávamos todos! - disse outra voz.

Das bandas da taberna uns gritos estridentes sobrelevaram-se ao sussurro e às imprecações dos que estavam no largo. E logo um silêncio agressivo ficou a esmagá-los, enquanto os rostos se volviam mais angustiados, como se da taberna avançasse para eles uma ameaça que a imagem da cabeça ensanguentada do Mal-matado tornava mais viva.

"Que iria suceder mais?", pensou Francisco. E uma sensação de frio fez-lhe tremer os lábios; engoliu a comoção e pôs-se em bicos de pés para falar; mas as ideias pareciam chocar-se, com ruído, dentro da sua cabeça, como se tivessem ganho volume e dureza. A pulsação do sangue martelava-lhe os ouvidos, num ritmo cada vez mais apressado.

Os rostos voltaram-se novamente para ele, mais expressivos ainda naquele misto de ódio e de súplica que o envergonhava. Por entre o povo, acotovelando, o velho Balsa tornara para a sua frente e fitava-o a curta distância, de braços arqueados. Se não estivesse ali toda aquela gente, Francisco gostaria de lhe perguntar que palavras havia de dizer ao Dr. Pimenta.

- Se o teu pai fosse vivo - disse o velho avançando com o punho - e se tu fosses seu filho...

Num arrebatamento, Teimas cresceu para o outro e pôs-lhe as mãos sobre os ombros, sentindo-se capaz de o esmagar contra as pedras do largo; mas a contracção que lhe apertava o estômago desatou-se quando viu Gra-cinda mais adiante, olhando para ele com a mesma ansiedade dos demais.

- Se todos forem! - gritou com esforço, como se estivesse a desafiá-los.

A resposta foi sentir-se arrastado.

Francisco caminhava à frente, com os cinco homens que o tinham ido procurar a casa; junto dele pusera-se também a Ti Inácia, uma velhota, viúva, que no seu tempo de moça ganhara a fama que ainda hoje tinha na aldeia; a de meter no lagar, à força, um capataz que quisera adiantar-se com ela.

- Que vais dizer? - perguntou-lhe a velha. - Sabes o que vais dizer?

- Não...

- ¦ Mas vais ficar calado? - Não...

- A mão de alguém apertava agora o braço de Francisco e ele não se sentia capaz de mover o rosto para " aquele lado; e seria um desvio curto do pescoço, cada

vez mais firme, à medida que o cortejo avançava pela

ruela. A mão ia no seu braço e dava-lhe coragem, destruía-lhe dúvidas, fazia-o esquecer os receios anteriores.

O rumorejar da avalancha fê-lo lembrar-se dos companheiros do caminho-de-ferro. A seu lado, aquela mão e....

é a Ti Inácia: "Sabes o que vais dizer, Teimas?"

Um grupo de rapazes adiantou-se, a correr, e foi postar-se à porta da casa do médico. Francisco reconheceu o seu Luís entre eles e, instintivamente, acariciou com a sua a mão que lhe apertava o braço.

- Gostei que viesses também - disse, emocionado; depois voltou a olhar para o filho mais velho e ambos sorriram.

Tinham chegado defronte da casa do Dr. Pimenta e uma cabeça espreitava por entre os vidros; depois correram a cortina, e mais ninguém apareceu. O sino da igreja " começava a dobrar a finados. Sentiu-se uma profunda

emoção percorrer aquela massa de gente; todos baixaram a cabeça com humildade e só as mães que levavam os filhos consigo tinham agora o olhar decidido.

Francisco sentiu, novamente, o mesmo frio a rasgá-lo; e um gosto amargo acentuava-se-lhe na boca seca.

- Morremos quietos aqui? - gritou a Ti Inácia, atirando uma punhada à porta.

O toque do sino prosseguia no mesmo repicar triste de despedida aos mortos.

- O Sr. Doutor? - perguntou Francisco. Uma voz interrogou-o de cima:

- Que quer? oSr. Doutor não está!... - Foi ele que mandou dizer?!

- Sim, está em casa, e depois? - interveio outra voz estridente, que Francisco reconheceu.

- A gente não vem por mal, minha senhora!

- Fale mais baixo, que o Sr. Doutor está a descansar. Deitou-se só há duas horas...

Mas já a voz áspera do médico se ouvia do fundo da casa:

- Quem está aí?! Eu já vou!...

- P'los crianços! - gritaram em coro as mulheres.

Então Francisco voltou para a porta e olhou os companheiros com um sorriso que os outros saudaram com os braços levantados e de mãos abertas.

- O jogo eleitoral não pode resolver estes problemas! - disse o Dr. Pimenta para o presidente da Câmara. - O senhor sabe - e dirigia-se para a janela que dava para a rua, onde o povo se amontoava - que foi prometido o esclarecimento do artigo 6.º na altura das eleições. E isso não se cumpriu!

- Mas, meu caro correligionário e amigo - dizia o outro, untuoso e cordato, como sempre que se tratava de convencer alguém. - O Governo obedece à Câmara dos Deputados, e estes foram nomeados pelo povo...

Pimenta percebia o tom irónico que o outro empregava, pois sabia-o afeiçoado à maneira forte de governar.

- O Governo, se obedecesse ao povo...

Francisco, de chapéu na mão, mal ajeitado no seu fato de casamento, que nunca mais vestira, ficara a um canto com outros três lavradores. oSilva Costa pretextara uma dor de estômago para não aparecer à última hora.

- Estávamos mal, se o Governo só obedecesse ao povo...

- Menos do que a certos interesses que determinam muitas leis - respondeu Pimenta, apertando o cavalete do nariz depois de tirar as lunetas. - Esta gente nada mais pede do que o prometido.

- Mas eu sei que é justo o que pedem! - respondeu o presidente, requebrando a voz. - Também sou lavrador, mas confio... E penso que os desmandos nada resolvem, antes pelo contrário! Há a lei! - E ergueu-se dirigindo-se aos outros delegados para os convencer sem o Pimenta. - Há a lei, compreendem, meus senhores?

Nem ele sabia porquê, mas postara-se defronte de Francisco Teimas com aquele dedo apontado.

- A lei que nos rege...

- A fome não tem lei, senhor!... ("Como fora capaz de dizer aquilo?!")

- Aí tem a resposta que eu não lhe podia nem sabia dar - interveio Pimenta. - Eles é que a sofrem... Eu, quando peço isenções de impostos, não é para mim, é para eles...

o outro estava espantado e os olhos moviam-se num azougue, ora fitando Francisco e o Dr. Pimenta, ora relanceando o olhar para a janela.

- A isenção, se viesse, seria para todos! A lei da República é igual para todos! - respondeu depois.

- O senhor e eu podemos pagar! - disse Pimenta, escabreado.

- Isso não é dum republicano...

- Talvez não, meu caro - retorquiu o médico a chalacear. - A República não é igual para todos... As opiniões divergem. A Monarquia... Mas disso sabe o senhor melhor do que eu.

O presidente da Câmara ficou lívido, com a alusão, e teve ganas de pô-los fora do gabinete, chamando o sargento da guarda, que devia estar no corredor. Lembrou-se, porém, da multidão que aguardava o resultado daquela entrevista e que o seu dever era contemporizar, manobrando. Francisco ouvia repetir-se dentro de si a frase que dissera: "A fome não tem lei, senhor!..."

- Vossa Excelência sabe que fui monárquico, por tradições de família, e hoje sou republicano, por imposições de consciência. Tenho servido a Republica e vou continuar a servi-la, enquanto ela representar a ordem neste país...

Pimenta acenava a cabeça com um sorriso maroto nos olhitos piscos.

- Não me guio por interesses pessoais...

- Ninguém o duvida - interveio o médico. - Monárquico também foi o ministro dos Estrangeiros que levou por diante este tratado. A República sabe escolher os seus servidores... Vossa Excelência, já que quer que assim o trate...

- Mas...

- Tratou-me por Vossa Excelência. Contrafeito, o presidente da Câmara pegou no braço

do médico e conduziu-o para um canto do gabinete; mas, como dali se visse a multidão, deu mais uns passos para o interior. E confidenciando:

- Não lhe parece que estes assuntos deviam ser tratados só entre os dois?

- De maneira nenhuma! - respondeu Pimenta. - Se nesta comissão alguém está a mais, sou eu...

E, encaminhando-se para junto dos três lavradores, forçou o outro a aproximar-se e a fazer conversa para todos.

- Nós vimos pedir que a Câmara deste concelho, a exemplo de todas as outras desta região, envie um telegrama ao presidente do Ministério... Mas um telegrama e não um bilhete de visita! Exigimos-lhe a palavra dada e a defesa desta terra, que faz parte de Portugal.

- E que se não nos ouvir... - juntou um lavrador de Valença que até aí estivera calado, a medir bem as palavras que devia dizer.

- Não posso permitir-lhe ameaças no meu gabinete - cortou o presidente com vivacidade.

Pimenta sorriu de modo significativo e para que o outro o visse bem.

- Aqui tem o que desejamos - disse depois. - Vou ler a Vossa Excelência um texto que pode servir e que não escrevi. É dum elemento preponderante do partido de Vossa Excelência - do actual, claro - , que o enviou para Lisboa: "Se até às 10horas de quinta-feira, 10do corrente, o Governo não der resposta clara e positiva às justas reclamações desta região, a Câmara deste concelho e a Comissão de Vinicultura fecharão (Pimenta acompanhava as reacções do rosto do presidente), cessando todos os seus serviços internos e externos e todas as suas relações oficiais."

- Mas isso é uma insurreição! - disse o outro.

- É a resposta a uma insurreição; muito diferente, portanto! - E prosseguiu a leitura: - "Se até à mesma hora de sexta-feira, 11 do corrente, se mantiver a situação, a Câmara renunciará o mandato que lhe foi conferido e os seus membros consideram-se absolutamente desligados das funções municipais. As juntas de paróquia tomarão igual atitude e o comércio encerrará as suas portas. Fará a respectiva comunicação ao Governo Civil. Se até à mesma hora..."

- Basta! - interrompeu o presidente com violência.

- Mas Vossa Excelência não está de acordo?!... É que eu sei que Vossa Excelência esteve na reunião onde se redigiu uma nota semelhante...

- Quem lho disse?!...

- Não esteve?!...

O outro perdera num instante a sua altivez premeditada e voltara à secretária. Tirou o lenço branco da algibeira do casaco e pôs-se a limpar os lábios enquanto falava.

- Estive a título particular... Mas como presidente da Câmara não posso... nem devo partilhar...

Pimenta indicava-lhe a janela: -Queira dizer isso ao povo!

- O senhor dá-me ordens?! - gritou fora de si, agarrando o médico pelas bandas do casaco.

- Não senhor! Quero que cumpra com as suas obrigações de português!

Francisco Teimas interveio para separar os dois; e parecia decidido a fazê-lo com violência para o lado do presidente. O Dr. Pimenta reteve-o com um olhar e prosseguiu:

- Quero que o senhor empregue a sua energia quando os talassas tentarem perturbar a vida do País. Mas agora, e já que tanto fala de lei, desejo que a cumpra!

- É o que estou a fazer, contra o que o senhor pretende.

- Então mande este telegrama, que é mais seu do que meu... O Dr. Sepúlveda, da Régua, seu amigo particular e chefe monárquico da região, também está de acordo, como sabe! Neste ponto todos estamos de acordo! E só por isso aqui me encontro com esta gente...

E, atirando com o texto escrito para cima da secretária, fez sinal aos três lavradores para o acompanharem; entre portas voltou-se ainda:

- Vou dizer lá em baixo que Vossa Excelência vai mandar agora mesmo o telegrama.

- Mas eu não sou a Câmara e o senhor não é esta região, Dr. Pimenta!

- Reúna-os, se acha que é preciso... Mas mande o telegrama!

Quando saiu da Câmara e o ajuntamento se fez à sua volta, num círculo de cabeças que o interrogavam em silêncio, Francisco só disse:

- O doutor falou direito que nem um livro aberto. A gente, se fosse capaz de se explicar, tinha dito o mesmo.

- E agora?! - perguntaram-lhe.

- Agora é esperar...

- Ou escavacar tudo! - disse a Ti Inácia. - Pra pouca saúde, mais vale nenhuma! E se havemos de morrer aos poucos...

Francisco achava que a velha tinha razão; mas, como fora à Câmara, entendeu que se diminuiria se lhe desse apoio.

- E que ganha a gente com isso?! Eles hão-de responder alguma coisa... Mandou-se um papel pra Lisboa, dos tesos: pão, pão; queijo, queijo! Ou acabam com o tal artigo...

- Acreditas nisso, Teimas?! - disse o Espanhol, pondo-se à sua frente, depois de furar por entre os outros. - A gente é que devia falar, cara a cara, a esses de Lisboa...

- E porque não vais lá?! - respondeu Francisco com azedume.

- Porque não posso nem me deixavam... Mas os do Governo é que cá deviam vir. A gente diz-te as coisas... Tu já contas menos ao Dr. Pimenta... Ele chega à Câmara e diz ainda menos... E as coisas passam por tantas bocas quando lá chegam que já não se entende o que eles dizem que a gente pediu...

- É assim mesmo! - grunhiu o Sandão.

- Agora precisam da gente e toca de atiçarem - insistiu o Espanhol. - Mas amanhã, quando tudo estiver resolvido prà banda deles, os outros que se amanhem... Vocês terão de vender-lhes as uvas por qualquer preço e a gente não arranja um palmo de terra onde matar o corpo...

Quatro guardas-republicanos tinham-se postado à porta do edifício das repartições com as espingardas prontas, enquanto o cabo, com outros dois, dava ordens para dispersar. "Vamos embora! Nada de ajuntamentos!... Vamos embora!"

- Que me interessam os impostos?! - gritava agora o Sandão para o cabo, enquanto o círculo se desfazia aos poucos. - Amanhã eles vão comprar vinho ao Sul, e a gente que soamanhe.

- E se sairmos da conta eles é que chamarão a guarda pra nos prender!

- Nada de ajuntamentos! - recomendava o cabo, como se não entendesse o que o Espanhol e o Sandão diziam; e, de costas voltadas, pôs-se a empurrá-los. - Vamos embora! Já basta de conversas!...

Todos os outros tinham desandado, e só os dois homens, com Francisco e a Ti Inácia, se mantinham no mesmo lugar. Da janela da Câmara, o presidente acenava a cabeça numa ameaça, contendo-se para não gritar à guarda que "os varresse dali como lixo".

Os grupos desfaziam-se e voltavam a reunir-se a distância. O cabo começa a perder a paciência com aqueles quatro que não arrancavam dali; e resolveu-se a sacudi-los, de arma agarrada nas duas mãos:

- Vamos embora, já disse!... Vamos embora! - E levava-os à frente da espingarda, olhando para o lado, como se não desse por aquilo que fazia. Num arremesso, o Espanhol voltou-se e ainda fez um gesto para lhe deitar a mão à arma; mas Francisco puxou-o, e o outro abalou sozinho pela estrada fora. Parecia doido, a gesticular; parava por momentos, voltava atrás, como se fosse dar largas ao seu rancor, e depois alargava o passo em direcção à aldeia. Fazia perguntas e respondia: "Queres pão? Toma balas! (Não tens trabalho? Pede esmola! E vêm os mansarrões e põem-se da banda deles!... Amanhã abalo pra Espanha!"

- É essa a tua valentia? - disse-lhe Francisco, já excitado com aquelas provocações.

- E que tens tu com isso?!... Não fugiste daqui sem cuidares dos teus filhos nem do velho?!...

E avançava de braços abertos, enquanto Francisco media a distância, atento; e, mal o viu chegar-se ao alcance, jogou-lhe um pontapé ao peito que o virou na berma da estrada.

Ainda não sabia o que iria dizer ao cunhado, além da recusa em receber o dinheiro da venda do vinho. O Chico nunca lhe ouvira a mais pequena queixa acerca da dívida, e fora ela quem o obrigara a aproximar-se do pai, no largo, com o propósito de lhe pedir desculpa.

Francisco mandara-a chamar por Dolorosa, e ela ali estava, sentada na arca, rememorando os seus encontros naquela casa, as vezes que haviam subido juntos a escada... E mais do que tudo - Gracinda não entendia porquê - a noite em que ele a olhara nos olhos pela primeira vez, estava a irmã morta lá em cima e ouvia-se o choro da menina nos braços da Ana Sarrifa; à sua beira, a Maria Dolorosa, com a mesma ansiedade; e o Dr. Pimenta a descer a escada, furtando-lhes o olhar, como se alguém o pudesse acusar do que se passara.

"Que deveria dizer ao cunhado? Seria bom que ele chegasse e a compreendesse logo!... "Gracinda!..." E nada de palavras. Que a apertasse nos braços e lhe desse a perceber que nunca mais a deixaria sair dali. Nem desculpas, nem queixas... Só os braços estendidos, para que ela chorasse no seu peito aquela ausência. Sim, ela tinha culpas, mentira-lhe, não quisera abalar quando ele lhe dissera... Mas devia falar-lhe nisso?! Talvez!... Para que o Francisco percebesse que estava arrependida de muita coisa. O bom seria que ele chegasse e a não quisesse ouvir. "Cala-te, Gracinda! O que lá vai, lá vai..." E havia de se mirar nos seus olhos, sem a recusa do olhar que ele usava desde que voltara; e tinha a certeza de que se desculpariam um ao outro. Iria falar-lhe nos ciúmes que sentia quando ele namorava a irmã e a obrigavam a guardá-los?! Ele havia, por força, de compreender... E o resto? Aquela vez em que ele lhe aparecera no caminho da fonte... "Vais prò Brasil, Gracinda?! - Quem é o meu marido?! " Ele talvez não lhe perdoasse essa resposta."

Francisco entrou e bateu à porta; depois reparou nela e disse:

- Ah!, és tu? - ¦ começando a subir a escada. Vinha desgrenhado, sem chapéu, o fato preto sujo de pó.

- Que foi?! - perguntou-lhe ela. Ele parou sem se voltar.

- Hoje é mau dia para conversas. - Depois hesitou e prosseguiu: - Trazes aí o papel do que te devo?

- Qual papel?!

- Não te devo dinheiro?

- Não!

Ele desceu os degraus que subira e aproximou-se.

- Deixa-te de histórias! Quanto dinheiro emprestaste cá pra casa?! - E a voz tornara-se mansa; mas Gracinda teve mais receio daquela brandura.

- Porque me falas com esse modo? Prometeste, quando o teu pai morreu...

- E quantas coisas prometeste tu?!...

Ela fingiu que o não ouvira e segurou-lhe as mãos, puxando-as para si, a querer levá-las à boca, como se nesse gesto lhe pedisse para nada dizerem; depois teve medo do silêncio que ficou entre eles e começou a falar. Não sabia bem o que lhe dizia, esquecera-se de tudo o que pensara antes, nas noites de insónia; atirava palavras à toa, numa fiada sem sentido, mas agora, que começara, que ele a obrigara a começar, queria ficar limpa a seus olhos, dizendo-lhe tudo.

- Menti muita vez... Tinha medo dele... Quando te disse que ia prò Brasil pensei que seria bom para todos. Que me esquecias...

Percebia nos olhos dele que o estava a magoar e não era capaz agora, que queria ser sincera até ao fim, de lhe esconder certos factos que ele desconhecia. Arrancava as palavras de si, como se estivessem presas por farpões que lhe doíam na carne.

Francisco pensava dizer-lhe: "Foste tu que tiveste a culpa de tudo!" E só balbuciava:

- Foi uma desgraça, Gracinda! - E não era capaz de a expulsar nem de levantar as mãos para lhe bater, como lhe apetecia.

- Não posso esperar mais tempo, Francisco - continuava Gracinda numa súplica. - Deixa-me ficar ao pé de ti... Não t'importes daquilo que os outros pensarem...

- E os meus filhos?!... Julgas que quero que os rapazes vivam no meio da pouca-vergonha?!...

- A gente gostar não é pouca-vergonha, Francisco! (A casa sufocava-o. Num momento pensou que seria bom ter ali um machado à mão. E olhou-a confrangido. ("Porquê um machado?") Batia-lhe cego até se cansar... Devia ter uma cara terrível, porque Gracinda se afastava dele, recuando, recuando até à porta; e ele perseguia-a. ("Porquê?!... Porque pensara no machado?!...")

Mas, numa reacção inesperada, Gracinda correu para ele e abraçou-o.

- Deixa-me ficar, Francisco!... Só estar ao pé de ti!... Ajudar-te!

Ele queria pedir-lhe que desaparecesse da sua vista, mas aquele rosto cheio de lágrimas, aquela ansiedade que a parecia tornar mais bonita, matavam-lhe toda a iniciativa.

- Quando o sossego voltar... S'a gente não tiver que deixar isto tudo!

E encostou-lhe o rosto, para não ver a súplica daqueles olhos que ainda o perturbavam.

- Se fores daqui, levas-me contigo?!... Nunca mais te deixo!

Francisco só acenava a cabeça, fugindo com a boca aos beijos que ela lhe dava junto da orelha, e o arrepiavam, e lhe davam vontade de a esmagar nos braços.

 

Os êxitos dos submarinos alemães envaideciam Albano Freitas quando ouvia referi-los nas conversas do Oporto Club, onde não faltava agora com frequência.

À noite, no seu quarto, com a demora na rápida vitória alemã que sempre esperara, é que sentia um certo receio com as consequências futuras daquela colaboração. E achava-se traído pelo Fischer. ("Quem podia assegurar-lhe que não se tratava de um agente dos serviços secretos ingleses?") E julgava-se enganado pelo Kaiser, que abrandara os rompantes dos seus primeiros discursos. Tinha insónias terríveis, que o punham a fumar toda a noite, enquanto Luisinha, no quarto ao lado, sonhava com a ida para Lisboa quando ele passasse a director do Banco Nacional. "Se os Ingleses descobrissem a meada...", pensava, inquieto, vendo-se rodeado pelo Roop, o Teage, o Fladgate, seus companheiros de brídege, feitos carrascos que o julgariam num tribunal de que tanto se falava no Oporto Club. Lia Júlio Dinis para se acalmar - adorava Os Fidalgos da Casa Mourisca - , mas o sono só lhe chegava com a manhã. E entrava tarde no Banco, irritava-se, se o procuravam para tratar de assuntos da companhia de pesca, e adiava as idas a Gaia, onde não lhe faltavam cartas do **Barãona a interessar-se por mais uma partida de vinho do Sul.

As notícias de novos torpedeamentos é que o reanimavam. Mas aquela indecisão permanente desfazia-lhe os nervos, tornando-o insuportável para os empregados e até para o sogro. "Pra que se metera naquilo?! É claro que a audácia é própria dos homens superiores; mas o momento mostrava-se cada vez mais cheio de perigos e a cartada que jogara podia ser fatal", pensava naquela tarde, junto da janela que dava para a praça. "A menos que..." Mas o seu empregado de confiança entrara muito manso e dera-lhe a notícia ao ouvido.

- Começa a irritar-me a insistência com que me procuram...

- Diz que é assunto urgente.

O delegado do Fischer, um negociante alemão de jóias antigas, apareceu à porta, sem aguardar que o introduzissem no gabinete; mal o empregado saiu, Albano Freitas mostrou-lhe o inconveniente de vir ao Banco, denunciando as ligações que havia entre eles. Era uma imprudência que não podia permitir.

- Mas porque não apareceu à entrevista que lhe marquei? - disse o outro com desprezo.

A resposta de Freitas foi humilde e atabalhoada. "Afazeres... A mulher estava grávida... Parecia que estava grávida..." onegociante de jóias zombou da desculpa; e disse-lhe depois do desagrado que certos deslizes da sua parte tinham provocado.

- Mas que quer o senhor que eu faça mais?! - respondeu o Dr. Albano, impaciente.

Antes que o contivesse, o outro disparara pela porta do gabinete; desvairado, o Freitas fez um gesto desabrido, que lhe mago ou os braços.

- Gaita! Estes também querem assaltos às propriedades inglesas... Os monárquicos, motins para levarem a água ao seu moinho... O **Barãona faz o seu jogo para o Governo intervir pela força, mostrando assim que o Norte é desordeiro... Os proprietários querem que se assaltem as Finanças e se queimem as contribuições...

E voltou a repetir o gesto.

Chico Teimas fizera as pazes com o pai, mas continuava ressentido, pelo vexame a que o sujeitara perante o irmão e Dolorosa. Tinham-no convidado para ir segar a Espanha, e ali estava agora, pronto a partir, assobiando o sinal combinado com a namorada. Arranjara a sacola, às escondidas, mas agora, que o momento se aproximava, sentia uma quebreira nos membros. As histórias das segadas enchiam-lhe a imaginação - aventuras com raparigas, bailes e descantes. Por isso levava a sua guitarra; ia aprender modas novas, que lhe aumentariam a sua fama de tocador, mas ia também ganhar a sua independência. Quando voltasse, daí por dois meses e meio, faria o casamento.

Das sombras frias da noite apareceu-lhe o vulto da namorada.

- Sempre vais ?!...

O tom da sua voz sumida comoveu-o; e fez-lhe uma carícia mais prolongada para a animar.

- É por pouco tempo!...

Nunca os haviam deixado tão perto e tão sós, depois da volta do julgamento na Pesqueira, e as ternuras amaciavam-lhe o corpo, derrancando-lhe as pernas. Atirou com a sacola para o lado e foi encostar a guitarra à corte do reco; depois agarrou a moça bem nos braços, puxando-lhe a cabeça para lhe ver os olhos.

- Tens olhos azuis, não tens?!

- São verdes, tolo!

E a rapariga deu uma gargalhada.

O jornal andava de mão em mão e aqueles períodos eram lidos e relidos nos grupos que não deixavam as praças das vilas e aldeias do Douro.

"Os governos de Lisboa mais uma vez hesitam diante do velho problema, cuja incógnita, por ser desfavorável ao Sul, continuará anos e anos sem solução, até que o povo duriense, farto de paliativos e de mordaças, lançando-se no caminho da inssurreição..."

O artigo fora escrito para impressionar os políticos, mas ajudava a excitar os ânimos. E a notícia de que as repartições de finanças iam levar à praça as propriedades dos que não tinham pago as contribuições fazia aumentar as ameaças.

Na Régua, o Dr. Moita tentava protelar certos acontecimentos que já se esboçavam, apelando para o bom senso de todos e insistindo nas providências que o Governo não deixaria de tomar na altura própria. Mas os seus amigos das freguesias e as novas que lhe chegavam de toda a região forçavam-no a não permitir que os monárquicos o ultrapassassem em violências de palavras quando era obrigado a falar nos comícios. Dentro de poucos dias o assunto voltaria a ser debatido na Câmara dos Deputados e era conveniente não afrouxar a agitação, embora tivesse mandado um recado ao Dr. Sepúlveda avisando-o de que não permitiria distúrbios com carácter político e de que o poderia responsabilizar pelos acontecimentos.

o outro, sempre calmo, manejava-o como queria, escondendo-se por detrás da frente económica, que reunia homens de todas as cores partidárias e desvairava, por igual, o grande proprietário, o comerciante, o especulador e o alugado.

oGonçalves preparara um encontro em sua casa, depois de ter convencido D. Maria Albuquerque - era assim que sempre chamava à esposa - , e ambos aguardavam agora a vinda de D. Fernando Pimentel, que devia chegar da sua quinta do Loureiro, onde pretendia acabar os seus dias em sossego. Mas a excitação que via em toda a gente obrigava-o a quebrar a sua retirada, metendo-se de novo nos assuntos da região. Alguém entendera que o prestígio da sua figura podia ser muito útil e que era conveniente chamar a atenção para ele, porque... "Ah, que se o rei voltasse!... Ainda gostaria de voltar ao Porto e pôr de banda certas caras... D. Fernando Pimentel, par do reino!"

A sua presença fora muito importante, assim lhe dizia depois o Sepúlveda naquela entrevista com o Moita. Ele próprio é que assegurava ao outro "que numa hora tão grave para o Douro, ameaçado pelo tradicional inimigo de sempre, ele e os outros não eram mais do que soldados da Pátria; e, se exigiam justiça, o faziam com o mesmo direito dos republicanos, que, honra lhes era feita, não se submetiam à disciplina partidária, quando esta era sinónimo de cobardia, perante interesses vis, que todos os durienses de bem repudiavam e estavam prontos a combater, houvesse o que houvesse."

- O nosso partido agora é o seu, Dr. Moita! - juntou o Sepúlveda com dignidade. - O partido do Douro!... Depois disto cada um voltará para a sua trincheira; mas neste momento as lutas partidárias não têm sentido.

- Em Armamar deram-se vivas a Couceiro - replicou o Moita com veemência.

- E que culpa temos nós de que o povo ache que só a Monarquia lhe pode fazer justiça?

Aquela intervenção do Gonçalves ia deitando tudo a perder. O Moita escabreara - "que não ia ali para ser convertido e não admitia que o desrespeitassem, a ele, um senador da República". D. Fernando assegurara, varando o Gonçalves com um olhar terrível, que o outro "dissera simplesmente: que o povo ache...". opaladino republicano da Régua não aceitara a subtileza e insistia para que eles ordenassem aos seus correligionários a interdição de gritos subversivos.

- Nada de Couceiro nem de rei...

- Estamos em democracia, Dr. Moita! - replicou o Sepúlveda, prazenteiro, dando-lhe uma palmada na perna. - Não se preocupe connosco, que somos tanto pela ordem como você. Deite mais as vistas para os operários dos caminhos-de-ferro, que andam por aí a minar. Os anarquistas e os sindicalistas é que nos põem em perigo!... E, se precisar, conte com os tais "talassas" para salvar a República.

À volta, o Sepúlveda insistiu em que entrassem juntos na Régua, como um símbolo da unidade que se fizera entre a gente de bem, pela defesa dos interesses durienses. O Moita titubeou, mas não conseguiu um argumento válido para se opor à sugestão do outro.

E, ao trote da égua do Dr. Moita, entraram na vila - o senador muito grave, já repeso daquela familiaridade; o Dr. Sepúlveda sorridente, distribuindo chapeladas para os grupos que comentavam as notícias dos jornais e enxameavam as portas batidas de sombra; porque o Verão ali estava, infernal como sempre, a estorricar o Douro.

O Sandão não fora para Espanha, como era seu hábito, todos os anos, naquela época. A mãe morrera-lhe e achava que devia tentar agora a sua sorte, embora a rapariga parecesse alheia aos seus rodeios. Começara por lhe atirar uns ditos quando a via passar para casa da Gracinda, à noite, mas percebera que ela não gostava e mudara de táctica: procurava encontrá-la de frente - "Boa noite!" - , deixara de se meter nos copos e enjeitava certas andanças por Espanha, de que antes era o primeiro a ufanar-se. A Gracinda adivinhara-lhe as intenções - - "sabia lá por que motivo o Francisco adiava sempre a sua ida para ao pé dele?" - e fizera-se intermediária entre o Sandão e a Dolorosa. "Era um rapaz trabalhador, sério... Fizera as suas estabanices, mas quem as não fazia? Que vida era a dela? Merecia bem ter casa sua e marido que olhasse pelo dia d'amanhã... Assim o que era?!... Comia numa banda, dormia noutra... E quando fosse velha?!"

- E as coisas que lá vão? - perguntou Dolorosa, um dia, já amolentada pela insistência dos dois.

- Ele sabe de tudo... E se te quer mesmo assim, é sinal de que gosta.

Avisado, o Sandão ficou-se à espera que a Dolorosa passasse naquela noite. Já há muito que ninguém cantava na praça - ¦ mas cantou ele, com mais sentimento do que nunca, numa voz grave e dolente, que fez os homens cerrarem os olhos.

A comunicação das casas de Londres não era de molde a deixar os exportadores ingleses de braços cruzados como até ali. Mister Smith enganara-se - ou viera propositadamente enganá-los. Muitos novos comerciantes de vinhos em Inglaterra dirigiam-se directamente à praça de Lisboa e fechavam negócios para os primeiros embarques, logo que o tratado fosse ratificado pelas duas Câmaras. No Parlamento português o assunto ia novamente entrar na ordem do dia, e a verdade é que nos comícios do Douro os lavradores se queixavam contra eles - as ameaças à Roeda e a armazéns de súbditos de Sua Majestade eram constantes; as tabuletas com a bandeira britânica e o dístico respectivo, que não tinham servido mais, desde as invasões francesas e das lutas entre liberais e miguelistas, voltavam aos portões das quintas e às cantarias das portas dos escritórios de Gaia.

- É preciso uma decisão! - disse Roop, levantando-se no fim do almoço mensal da Feitoria. - A opinião pública está contra nós, e, se dela não precisamos habitualmente, desta vez temos de a considerar, não só porque se verifica que começa agora a coincidir com os nossos interesses, como ainda porque um dever patriótico nos obriga a defender a popularidade inglesa ameaçada no Douro. Não basta, para fazermos amigos, que digamos estar a democracia do nosso lado e com a Alemanha a tirania.

O Roooestava diferente naquela tarde cálida; nunca o tinham visto tão aguerrido.

- Um amigo particular - "tipo direito, aquele Freitas!", pensou consigo - pôs-me ao corrente de certas manobras que devemos evitar. Proponho a redacção e publicação imediatas de um comunicado do comércio inglês no Porto, pondo-se ao lado da lavoura nas suas justas reclamações.

- Apoiado! Apoiado!

- Proponho que uma comissão composta de três membros passe à sala da biblioteca para dar forma ao documento e trazê-lo à nossa aprovação ainda esta tarde.

O Azevedo chegou à Quinta Alta com o filho e D. Constança Pimentel e mandou chamar o Silva Costa, embora o não tivesse já ao seu serviço. Certos favores e ainda uma gratificação anual que lhe concedia - "para que o seu olhar conhecedor fizesse frutificar as cepas", como lhe dizia sempre - davam-lhe direito àquela liberdade. O outro demorou-se e apareceu azedo, a queixar-se do estômago.

- Bicarbonato, homem! Tome bicarbonato!... Se não houver cá na farmácia, mando-lhe uns papeluchos. E o rapaz?!

(Naquele dia, nem falando-lhe do filho lhe faziam descer a viseira carrancuda. Helena tornara-se insuportável de exigências - queria abalar já para o Porto, falava em alugarem um palacete para receber visitas e atazanava-o pela sua indiferença quanto aos acontecimentos. Incitava-o a entrar nos comícios - "que ridícula seria a sua voz de gaitinha a falar de violências", pensava Silva Costa - ; entendera até chamar o Dr. Pimenta para conversarem no que se passava e sobre se realmente se não pagariam impostos.

(E Silva Costa sentia-se velho e desgostoso, sem interesse em aumentar a sua riqueza, porque tinha medo agora de a perder em poucos dias. ("Assanhavam o povo e quem se aguentava? Ele, claro, que bem sabia dos olhos com que o espiavam. Havia guerra pelo mundo e queriam trazê-la até ali. A mulher fugia para o Porto com o filho e deixava-o com a sogra - uma espécie de remorso escarquilhado por tê-la preferido. Se pudesse deixar correr a avalancha sem que dessem por ele!...")

- Como vai isto por aqui, Silva Costa?

- Isto?... Não percebo, Sr. Azevedo.

O outro riu-se por vê-lo tão fora das preocupações colectivas.

- E é você um lavrador do Douro, não há dúvida! Qual é o estado de espírito desta gente?... Percebe?!

- Estou cansado, Sr. Azevedo. Quando se chega à minha idade e se sofreram dissabores, que importam os estados de espírito?!

- Você é o derrotismo em pessoa! Então não percebe...

- Já percebi tudo, Sr. Azevedo. Mas quem fica aqui sou eu, compreende agora?!... O senhor incita, porventura, os operários das suas fábricas a fazerem distúrbios?!

O Azevedo encolheu os ombros num arremesso.

- Que diabo, Silva Costa! - disse depois, voltando às boas. - Claro que o faria, se amanhã quisessem fechá-las, em proveito doutros. E não tinha medo! Sabe que comecei do nada, e não m'importo de lá voltar, porque me sinto capaz de vir novamente à superfície... Tenho confiança nas minhas qualidades de trabalho!

- Mas eu é que já não tenho, Sr. Azevedo. Desculpe, mas não tenho!

- Ao menos, pelo seu filho!...

- o filho é de Helena e eu sou o homem que manda o dinheiro... Entende? Ora, assim, que conveniência tenho, ou estímulo, para empreender alguma coisa?!

- Os seus deveres...

- Palavras!...

Azevedo abriu os braços, lívido de indignação, e deu a conversa por finda.

- Mas era pra isso... Eu não percebi que... - Desajeitado, Silva Costa desculpava-se. - Pensei que me falava nisso por simples curiosidade... Mas se está interessado! Que pretende o Sr. Azevedo?!...

- Não vale a pena, Silva Costa; desculpe maçá-lo, e até à vista!

-Se assim o quer... Muito boa tarde!

Ainda estendeu a mão frouxa para o Azevedo, mas o outro fingiu não lhe perceber o gesto. "Caramba! Eram todos o mesmo!... Vinha com alguma incumbência das tais, como da outra vez com o comboio de vinho... Morrera um homem... Ele é que tinha de aguentar com os ódios. Nada!... Já lhe chegavam as preocupações!"

Ao atravessar o jardim, encontrou o João Ermida, que se lhe dirigiu para receber indicações quanto à última sulfatagem.

- Isso já não deve ser comigo, João! Fale com o Sr. Azevedo... Ele precisa de si. - E empurrou o caseiro para dentro da escada.

- E se formos presos? - perguntava, atarantado, o João Ermida.

- As autoridades sabem de tudo, homem de Deus! Assim que houver o primeiro ajuntamento," não tenha receio: arme banzé. E dê trabalho a uns tantos mais decididos.

- Estamos a acabar as sulfatagens, e até à vindima...

- Invente trabalho, homem! Eu é que pago... Estou a dizer-lhe que meta pessoal, é caso arrumado!

- Mas se houver alguma coisa

Azevedo voltou-se, indignado, para o filho:

- Já viste gente mais dessorada?!... -E para o caseiro: - Se houver alguma coisa, nada lhe faltará!...

- Muito obrigado, patrão!

E o Ermida saiu às arredias, bamboleando o tronco numa vénia confusa. %

- Aborrecimentos! - disse o Azevedo. - O **Barãona acha conveniente que se façam distúrbios... Ele lá sabe! A verdade é que isto é uma história desagradável... Que hei-de fazer ao Silva Costa, não me dizes?

- Passe por cima disso! O **Barãona que se entenda!

- Sabes que a nossa convivência traz compromissos... É um homem que não esquece os amigos. É da velha escola! Hoje por ele, amanhã por mim... É claro que, no fundo, esta história não me agrada! Sou do Norte... Mas a verdade é que esta guerra baralhou tudo!

Do salão ouviu-se uma escala no piano; logo depois uma valsa em voga encheu a casa duma música romântica.

- Que me diz, pai, do pedido para o meu cunhado? Azevedo olhou o filho de soslaio, tamborilando com

os dedos na perna.

- Compreende que é minha obrigação suavizar o desgosto de Constança...

- "iD. Afonso é incorrigível! Não viste o que deu a sua entrada no banco do Borges Alves?... Quer é prostíbulo e vinho! Artistas ao resto! Se o pai o tem metido aqui...

 

Depois das cavas de Março, e uns dias mais nas empas e nas sulfatagens, faltariam cerca de quatro meses para se chegar às vindimas. E nessa altura cairiam ali as rogas, chegadas da Beira e dos fundos da Terra Fria, para fazerem baixar o preço das jornas e raparem tudo numa quinzena. Em Novembro, uns dias escassos para as mulheres, na apanha da azeitona, e logo o Inverno prolongado, sem pão nem esperança.

As vendas só tinham cheios os livros dos fiados. Tudo lhes vinha de fora, e naquela terra nem o centeio nem a couve medravam. As montanhas sem fim lá estavam, gloriosas de verde, com os bagos a ganharem forma nas cepas atormentadas pela secura que se adivinhava na tremulina dum sol de inquisição.

Nem vinho havia para os homens se embriagarem e esquecerem - era a vida dura, cara a cara, sem mistificações.

Famintos, organizados em grupos, os rapazes assaltavam as quintas e comiam os cachos verdoengos e amargos, que punham alguns à beira da morte, em delírios de febres altas, com os ventres rotundos pelas infecções. Os homens andavam taciturnos, de cabeça baixa, em bandos que percorriam a aldeia e os montes, depois de terem dizimado, em poucos dias, toda a caça encontrada nos cerros e nas coitadas.

Um silêncio profundo gritava súplicas para além dos horizontes fechados pela fome.

Em todas as vilas e aldeias se tinham organizado comissões de resistência, para darem cumprimento às ordens que chegassem da comissão da Régua, avisada, hora a hora, do que se passava em Lisboa, onde alguns influentes políticos procuravam levar o Governo a esclarecer o artigo 6.º, enquanto os vinhateiros do Sul pressionavam por outro lado.

Dentro das comissões de resistência travavam-se disputas constantes acerca da maneira de interpretar as comunicações da Régua, que, no Alto Douro, ainda eram contrariadas pelos de Alijó, que entendiam lutar pela sua independência contra "os politiqueiros do Baixo Corgo", como lhes chamavam. Dum lado estavam os grandes proprietários rurais, ligados na maioria aos monárquicos, que se aproveitavam do momento para tentarem a baixa de impostos ou a sua isenção, ao mesmo tempo que, por manobra política, desejavam comprometer a República pelas concessões que fizera ao povo. "Para onde se caminhava com tantas escolas abertas? Que iria resultar da concessão das oito horas de trabalho a certos sectores operários? A lei do divórcio não era a morte da família? E a separação da Igreja do Estado? E as lutas anticlericais?" Eram estas as suas interrogações, ao mesmo tempo que muitos deles, perante a guerra europeia, tomavam o partido da Alemanha autoritária. O seu dinamismo, dentro da resistência do Douro, acobertava-se no regionalismo - "Nada de política!", diziam - , mas visava todos estes objectivos que poderiam levar à mudança de regime. Incitavam o povo, para depois lhe tirarem as conquistas. Os republicanos, por seu lado, dividiam-se, de novo, para as manobras parlamentares, começando a esquecer-se dos meses de ditadura: os do partido no Poder estavam nas comissões de resistência para travarem o movimento, sempre que lhes era possível, sem se comprometerem perante os eleitores, embora a atitude lhes custasse, porque estavam também em jogo os seus interesses económicos; os outros acirravam os ânimos ou amainavam-nos, segundo as suas vantagens pessoais. Aos elementos da esquerda faltavam direcção e uma base larga e consciente que a determinasse - caminhavam com o povo, mas alguns começavam a temê-lo, tanto como os demais.

- Pusemos esta gente em marcha - dizia o Moita numa reunião do seu partido - , e agora teremos de marchar com ela para não sermos ultrapassados ou esmagados.

- Estamos num declive - dizia o Sepúlveda entre os monárquicos. - Lá no fim teremos o rei ou a anarquia!

Em Lisboa, o Dr. Cunha Ferreira estudara os acontecimentos de 1907 no Midi, em França, e descrevia a **Barãona e ao Dr. Caldas os comícios de Argeliers e de Narbonne, de Perpinhão e de Béziers, mostrando os perigos da acção directa, que também o Douro começava a seguir. Falava-lhes de Marcelin Albert, o "redentor", como os camponeses da região vinícola lhe chamavam, e da semelhança perturbadora do movimento em França e em Portugal, perante a mesma situação.

- Mas Clemenceau resolveu o problema - disse o Dr. Caldas.

- E de que maneira?! - respondeu o lente, lívido de emoção. - Provocando ele próprio, com os seus agentes, um desafio directo aos soldados que dispararam sobre o povo... Correu sangue!...

- E o sangue que corre há um ano nas trincheiras?

Na comissão de resistência da aldeia, Francisco Teimas soubera que tinham começado a levar à praça as primeiras propriedades dos que não pagaram contribuições.

- E de quem? - perguntou.

Indicaram-lhe alguns nomes - eram todos pequenos proprietários.

- E então os outros, os grandes, que disseram pra não pagarmos?...

- Lá chegará, com certeza! - respondeu o Dr. Pimenta, comprometido, sem poder olhar o outro de frente. A ele tinham-no avisado para pagar depressa, mesmo com relaxe, porque as Finanças haviam recebido ordem para agir. Não o fizera ainda por vergonha; mas muitos outros sabiam-no também e iriam trair à última hora. "A mulher é que tinha razão", pensava. "Porque se metera naquelas andanças, se era médico?..."

Em magotes, os trabalhadores e pequenos proprietários olhavam para a casa onde se reuniam. Pimenta semtia um mal-estar inexprimível, um desejo de fugir para longe... "Devia pedir às Finanças para o accionarem? Sim, era um exemplo; depois compraria as terras, em praça... E os outros, que não tinham dinheiro para comprar as suas?!..."

- O Sr. Doutor sabe - prosseguiu Francisco - quem nos deu os papéis que levámos ao comício de Pinhão. "Sem colheitas não se pagam impostos!" Foi o Pereira Magro, e o senhor também...

Um burburinho levantou-se na rua, com gritos e correria de mulheres. Os da comissão de resistência chegaram à janela, e logo um grupo se aproximou para se dirigir ao Pimenta:

- O Joaquim Poças, de Valença, fechou-se no cortelho, deitou-lhe fogo e morreu lá dentro!

O sino da igreja tocava a finados, sem parar, horas e horas. Um grupo de mulheres tomara a iniciativa, encabeçada pela Ti Inácia, e revezava-se no puxar da corda, depois de o sacristão lhes explicar. E nunca o dobre do sino fora mais pungente e dramático.

Doutras igrejas o mesmo toque gemeu nos vales e nos corutos dos montes. Em Ervedosa, nos Casais, em Valença... E o desespero aumentava.

Os homens corriam a aldeia, de cabeça baixa, remordendo ódios e fome, como animais derramados.

 

Francisco estava só naquela madrugada. O Chico fora para Espanha, o mais novo andava com os outros à cata de comer - onde o acharia? - e ele para ali ficara, depois de ouvir o Sandão contar-lhe a proposta do caseiro da Quinta Alta.

"Quando houver um ajuntamento faz um desacato qualquer... Pago-te o que for preciso!... Foi ele que me pagou daquela vez do comboio... E o Fontelas morreu!..."

"Que queriam eles fazer com aquilo?!", perguntava-se Francisco atormentado. "O Dr. Pimenta já não era o mesmo. Ganhara receio... Dissera-lhe que o povo tinha razão, mas que podia suceder uma desgraça! Maior desgraça do que aquela de ver o rapazio com fome, eles sem trabalho e os operários a serem vendidos?!..."

O sino nunca mais se calara - todo o dia e uma noite.

Agora era a ele a quem procuravam na comissão de resistência. "Que sabia dizer?... Porque tinham oferecido dinheiro ao Sandão?! E a quem mais?!..." O padre Augusto ajudava-os; na missa do dia anterior falara da fome do povo. "Devia procurá-lo também? Mas o Dr. Pimenta era homem sério e não ia abandoná-lo, com certeza. Talvez os dois pudessem dizer-lhe alguma coisa!"

- Quem está aí? - perguntou ao ouvir um ruído no quinteiro. E abriu a porta.

- Que queres?... - disse para o vulto. O dobre do sino tornara-se alucinante.

- Porque não se calam com isso?

- A Ti Inácia diz que o sino só pára quando eles nos derem razão - disse Gracinda, atirando-se sobre a arca. - Deixa-me descansar aqui um bocadinho.

Francisco sentiu desejos pela primeira vez, depois daquela noite já tão distante e confusa, de se lhe aproximar e acarinhá-la.

- Daqui a bocado iça-se a bandeira preta que mandaste arranjar. Fui eu que a fiz - disse Gracinda, de olhos fechados pela fadiga. - Tínhamos pano pra vinte bandeiras... Apareceram saias pretas de todo o lado e foi o diacho para as convencer de que não precisávamos de tantas.

Teimas não conseguiu vencer por mais tempo aquele desejo de se sentar a seu lado.

- Que quer dizer a bandeira preta, Francisco?...

- Que o Douro tem fome!

- E eles vão dar razão à gente? - Têm de dar...

As mãos dela estavam agora sobre as suas, mas não o provocavam. E foi Francisco quem se pôs a falar lentamente, numa voz sumida, como se ele próprio escutasse a voz doutrem.

- Quando isto tudo acabar...

O dobre sinistro do sino entrava às golfadas pela casa dentro.

 

Pelos reposteiros de damasco carmesim coava-se uma luz macia, que contrastava com o ambiente pesado da sala, onde se reuniam, com o líder do partido na Câmara, os deputados eleitos que apoiavam o Governo. Alguns meses de ditadura militar e logo, era 14 de Maio, a revolta vitoriosa tinham dado ao partido uma nova coesão e uma força vibrante que era necessário não se perderem. Por isso, implacável de argumentos e arrebatado no gesto largo, o líder exigia a disciplina aos deputados do Norte, para que votassem o tratado, contra o qual se tinham erguido, na anterior legislatura, em protesto colectivo. "O Governo garantia ao Douro que tudo se faria para atender os seus direitos. Mas não se podia dar à Inglaterra a impressão de que em Portugal não se sabia onde estava o interesse nacional. O tratado assinara-se e devia ser ratificado desse lá por onde desse. A agitação no Norte não atemorizava o Governo, que dispunha de todos os meios, dos mais compreensivos aos mais fortes, para fazer cumprir as leis promulgadas pelos legais representantes do povo."

Incapazes de um gesto, os deputados do Douro votavam depois pela ratificação do convénio.

Junqueiro, o poeta do regime e lavrador do (Douro, dissera, exaltado: "O artigo 6.º significa uma inépcia monstruosa ou um crime imperdoável."

Mas agora chamavam-lhe poeta e encolhiam os ombros.

Os pendões brancos dos rabelos não eram já a bandeira de paz que navegava os caminhos do rio, por poços e galeiras, em descida alucinante para a foz, ou em jornada penosa até à fronteira de Espanha. Como os homens da terra, os marinheiros ouviam os toques de finados de todos os campanários das margens do rio. E sobre os pendões brancos dos seus barcos, em cujas proas pintores ignorados tinham deixado figuras líricas de mulheres e de flores, de pássaros estranhos e de estrelas, caíam agora as longas tarjas de luto, que o vento sacudia, numa súplica que o gemer das espadelas parecia clamar às fragas.

 

Contra o que era hábito, poucos lugares ficaram vagos na sala das sessões. Havia nervosismo, mesmo da parte dos deputados que só marcavam presenças e tinham à sua conta o coro dos "apoiados" e "não apoiados", apesar de se saber que o Governo dispunha da maioria e o debate não passaria dum ritual parlamentar. Na bancada da imprensa tomavam-se notas e não faltavam sorrisos, como se alguns dos repórteres viessem assistir a um espectáculo que, de antemão, pelos nomes de cartaz, garantisse umas horas bem passadas.

Feita a chamada, começou a leitura do expediente - uma chusma de telegramas de municípios e de comissões de vinicultura do Douro, contrariados por outros tantos das regiões vinhateiras do Sul, uns e outros apelando "para os altos interesses nacionais"; para intercalar, como desfastio, os dos empregados do comércio e caixeiros, a pedirem a regulamentação do horário do trabalho. A voz do leitor perdia-se na extensão da sala, onde a cavaqueira começara de bancada para bancada. A campainha presidencial lembrava, de vez em quando, que se estava em sessão.

Quando, finalmente, se entrou na ordem do dia, a palavra foi concedida a um deputado dum círculo du-riense que não alinhava com o Governo; anafado, movendo-se numa lentidão propositada, subiu as escadas da tribuna, enquanto uns pediam silêncio e outros se debruçavam nos lugares para o ouvirem melhor. Começou por lembrar que "ainda não tinha a honra de ser deputado quando o assunto ali se discutiu pela primeira vez". E lamentou a ausência do que fora ministro dos Estrangeiros responsável pelo tratado, e ainda seu redactor, um franquista que aderira à República, segundo se sublinhava em conversas nos corredores da Câmara e nas redacções dos jornais.

Depois começou a historiar os antecedentes do convénio: "Nos últimos anos da Monarquia, por três vezes, o Governo Português convidou o Governo de Sua Majestade Britânica a iniciar negociações para a conclusão dum tratado de comércio nas mesmas condições em que fora negociado o de 30de Novembro de 1908 com a Alemanha." E vieram a citação de memorandos e datas, projectos apresentados à Câmara e objectivos a atingir. As esperanças postas pelo Douro nestas negociações, que o deputado cantou em adjectivos, juntaram-se depois as suas citações de direitos e de graduações alcoólicas, da interpretação especial que a Inglaterra sempre dera ao Convénio de Madrid, do desfavor concedido aos vinhos portugueses e, por fim, "a lei de 23 de Janeiro de 1905, com a assinatura constitucional do Sr. Presidente da República e a referenda constitucional do ministro dos Estrangeiros, em que se assegurava que só ao vinho generoso do Douro exportado pela barra do Porto cabia a designação de "Porto".

"O Douro ficou tranquilo, confiante na sua ingénua boa-fé de sempre!", disse com desassombro.

Alguns deputados já repousavam a cabeça no punho, afadigados pela arenga. Mais telegramas caíam sobre a mesa da presidência. E de telegramas enviados por presidentes de ministérios acerca do assunto, e em que sempre se afirmava defenderem as pretensões durienses, falou o- deputado, que logo sublinhava: "Se fosse possível admitir o contrário (de que o presidente do ministério e o ministro dos Estrangeiros não cumpririam o que prometeram), se pudesse ter foros de cidade a hipótese de que a lei de 23 de Janeiro é letra morta, de que a sua doutrina não figura em notas anexas ao tratado, para valer no acto da troca da ratificação, como se do texto do próprio tratado constasse, chegaríamos à conclusão de que essa declaração fora apenas um truque de recurso, uma habilidade política, para arredar dificuldades." O deputado lembrava-se das eleições gerais.

E mais adiante: "De resto, não acredito que, porventura, se pretenda argumentar com a inflexibilidade da Inglaterra em matéria de convenções internacionais. Com esse mesmo país, nos prendem laços de radicado afecto" (um deputado socialista tossiu), "deu-se um caso que pode ser invocado, em reforço da nossa insistência junto do Governo de Sua Majestade. Refiro-me ao tratado de 12 de Junho de 1891. Depois de ele concluído, a Inglaterra reconheceu que tinha necessidade de uma cláusula nova, ou de uma declaração, que lhe permitisse passar tropas suas por território português, quando estivesse em guerra nas suas colónias. Trocaram-se notas reversais entre o marquês de Salisbury e o Sr. Conde de Valbom, então ministros dos Estrangeiros dos dois países - e o que a Inglaterra desejava ficou assegurado, tendo por sinal essa nova condição realização prática quando, em 1899, o general Carrington entrou pela Beira e invadiu o Transval pelo norte. E há mais exemplos."

Ostensivamente, bocejava-se na sala. A propósito da água que o deputado bebia sem cessar um outro teve um gracejo para o companheiro de bancada. E um riso reprimido levou o presidente a abanar a campainha com a dolência de um sonâmbulo.

Silva Costa acabara de ler uma carta da mulher e estava furioso, sacudindo-a na mão nervosa. "Todos o empurravam... oAzevedo, a D. Constança, a mulher... Mas ele é que estava ali no meio daquela canalha. É preciso ir pra diante, diziam-lhe todos. E o que seria capaz de fazer aquela gente?!..."

Ainda na véspera o Teimas falara aos outros na praça. E o João Ermida viera contar-lhe que ele dissera que seria melhor morrer de um tiro que de fome. "É esta a bonita coisa que arranjam!... Pedem-lhes que protestem, incitam-nos, e depois quem os aguentará?! Defesa do Douro!... Quem os não conhecesse que os comprasse! Ainda não havia muito que o Azevedo guardara um vagão de pipas de vinho do Sul..."

Agora Helena falava-lhe dos cem gramas que o filho já aumentara no peso e dizia-lhe que "no Porto todos achavam que se devia ir para a guerra civil, se os do Sul continuassem na sua". Com a mão cortou o espaço, num gesto de chicotada. "E o moiro aqui, rodeado de perigos, a fossar pra que ela ande a passear na Foz, tomando notas de doces, aprendendo rendas e dando-se ares de senhora fina."

Falava-se nos jornais que começavam a seguir tropas para algumas vilas do Douro - "e ainda bem! Mas para ali, onde cada homem, ao nascer, tinha uma espingarda, um reco, um burro e Um relógio, nem a sombra duma farda. Até o padre Augusto - um padre, calculem! - secundava o povo, deixando-o tocar o sino e consentindo uma bandeira negra no alto do campanário. Andava tudo doido! E ele também... Havia de ir a Lamego ou a Vila Real pedir providências. Ou então abalava!..."

E sorriu com a vingança que lhe ocorreu - ir até Lisboa, levar o dinheiro e gastá-lo com uma espanhola; é em seguida escrever à mulher para a informar de que emagrecera cem gramas.

Depois de alguns deputados do Norte atacarem o tratado, subira à tribuna um outro que se arregimentava no partido governamental. "Tinha a convicção de que esse tratado trazia grandes vantagens para o Douro e para o País. Mesmo que o tratado", sublinhou, "não trouxesse vantagens materiais para o País, tinha um grande significado político, em virtude de ter sido assinado com a nação nossa aliada, depois de termos celebrado o tratado de comércio com a Alemanha. A Monarquia quis então desviar o eixo da nossa política internacional para a Alemanha, por ver que esse país sustentava o regime e porque queria escolher uma princesa alemã para casar com o príncipe herdeiro. A Inglaterra, então, ficou como nação menos favorecida, apesar de ser a nossa aliada tradicional. Este tratado veio, pois, cimentar mais as relações que mantemos com a Inglaterra. Além de que a Inglaterra concede à nossa navegação as mesmas vantagens" {houve sorrisos na sala) "que concede à navegação do seu país e dá vantagens extraordinárias aos vinhos que sejam exportados de Portugal, em face das falsificações que se fazem no Egipto, na Itália, etc, e até nas próprias colónias inglesas."

O Pimenta varou a mulher com o olhar quando ela lhe disse:

- Os filhos estão de férias... Que bons exemplos lhes dás!

- Tens razão!... Se eles me vissem recuar no outro dia como um biltre, fariam do pai uma bem triste ideia!

- És médico, e isso já chega. Pra que te meteste nessas coisas?!

- As árvores também não escolhem o momento em que o vento as vai sacudir. Ou têm raízes, e aguentam, ou são arrancadas. E as minhas raízes são fracas, como já tive ocasião de perceber... E é isso que me dói!

Falava com amargura, de ombros derrancados sob o peso da consciência.

- Enquanto foi de raciocinar, estive sempre à altura. Mas agora, que a ventania começou a soprar, encolho-me, hesito... Não há dúvida de que a inteligência não basta; é preciso sentir as coisas na carne! E quando as não provamos a inteligência arranja maneiras de nos justificar. Habilidosa mas, no fundo, cobarde. - E reparando na expressão parada da mulher: - Não me entendes, claro! Acreditarias, se te dissesse, que fui quase um traidor das minhas palavras?!

- Não! Tens feito mais do que deves...

- Pois enganas-te... É pena que se saiba o fim do caminho e se não seja capaz de ir até ao cabo - disse para si, em voz baixa. - Há qualquer coisa, cujo nome não sei bem qual seja, que nos inibe. Acredita que é triste quando se é honesto!

- Que pensas fazer então? Os rapazes precisavam de férias...

Pimenta teve um sorriso doloroso.

- Que pensarias tu duma mulher que no meio dos combates desta guerra terrível que a Europa sofre, sem se saber porquê, recordasse ao marido que lhe ficava bem pó-de-arroz cor-de-rosa?

- Queres dizer... "

O médico acenou a cabeça com violência.

- Sim, quero dizer que estás perfeitamente inconsciente! E que é triste pensar...

Mas disse tudo o que lhe ocorrera, lembrando-se dos filhos. Pegou na maleta da profissão e saiu.

O dia escaldava. As montanhas pareciam adormecidas ao sol e, contudo, no seu ventre passavam-se fenômenos de que a maioria não suspeitava; também no fundo de si havia um desespero sereno que Pimenta não entendia.

Veemente, um deputado do Norte subira à tribuna.

"Cada pipa de vinho do Sul vale menos de metade do que vale cada pipa ;de vinho do Douro. Assim, por cada pipa do Sul que for substituir uma pipa de vinho do Douro são dez ou doze libras que se perdem para a economia do País...

" ... Dizem que há altas vantagens morais em ratificar prontamente o tratado. Mas um tratado comercial é, acima de tudo, comercial. E não se compreende um contrato em que uma das partes tem enormes benefícios, enquanto à outra se consigam apenas limitados e problemáticos interesses."

Muitos deputados afundavam-se nos assentos, como se quisessem esconder-se da responsabilidade de aquelas palavras serem ditas na sua presença. "Manobra alemã", cochichavam alguns, "para comprometer a Inglaterra aos olhos do povo."

Outro orador levantara também certas interrogações que não obtinham resposta.

"Deste facto fica-nos a impressão de que o Governo tem uma necessidade extraordinária de que tal tratado se aprove - necessidade que eu não sei explicar realmente. Já o disse outro deputado: que mistério pode haver em tudo isto? Pois então a tal condição 6.a do tratado convém, porventura, à Inglaterra? A Inglaterra tem algum interesse em considerar vinhos de Bucelas, de Carcavelos ou da Bairrada como vinhos do Porto?"

Um empregado de confiança do **Barãona tomava notas apressadas. No seu gabinete, com o Dr. Caldas, aquele aguardava o fim da sessão, reunindo também as notícias da agitação no Douro que lhe comunicavam do seu jornal.

Dum jornal republicano de Lisboa: "Na reunião que no sábado se realizou no Porto, um comerciante de vinhos protestou contra as calúnias que no Parlamento se produziram contra a sua classe. Não sabemos que calúnias foram aquelas. O que sabemos é que há casas comerciais do Porto que vendem o vinho denominado do "Porto" no Brasil, a 2$ cada dúzia de garrafas muito bem apresentadas. E também o sabemos, como o soube em tempo a Associação Comercial do Porto, que em Las Palmas se vendia como do Porto vinho a uma peseta a garrafa. Era contra estes inimigos do vinho do Douro que se deviam ndignar os lavradores da região e os comerciantes escrupulosos. Os comerciantes do Porto que exportam várias mixórdias como vinho desse nome é que têm feito, e hão-de fazer, gravíssimo mal aos interesses da região duriense, que aliás julgam defender."

 

(Pimenta voltou à comissão de resistência naquela tarde; Teimas notou-lhe um ar cansado, com as duas rugas, entre sobrolhos, mais vincadas ainda do que era costume. Mas no olhar havia um brilho mais intenso e uma franqueza de encarar os outros que não tivera nas últimas duas reuniões. Francisco sorriu-lhe do seu lugar.

- Não sei se têm acompanhado o que se passa em Lisboa... - Correu os olhos pelos circunstantes, que lhe responderam num aceno de cabeça. - Não devemos desanimar com o que os jornais dizem, se nos mantivermos firmes e unidos até ao fim... Coragem é que é preciso! Parece que há conveniências internacionais que não sabemos quais sejam, mas estamos também a ser vítimas de certas manobras de portugueses que têm interesse em nos calar, acusando-nos de traidores.

Por um momento cerrou os olhos e levou a mão à fronte, como se apanhasse uma tontura que lhe perturbara a visita; depois prosseguiu com a mesma calma:

- Todos sabemos que no Norte há muitos interesses que não são justos... Mas se ganharmos esta partida teremos mais força para dominar esses egoísmos. Onde houver a fraude há um inimigo... Onde se oferecerem preços baixos para os vinhos que vocês colhem, aí está o inimigo também... Ele oculta-se no comércio, na grande lavoura e também entre vós... pequenos proprietários. Reparem que aqui só vocês ficaram, porque vocês é que sentem o verdadeiro problema do Douro; os outros desertaram a pouco e pouco. Mas quando tudo voltar à normalidade não se esqueçam de continuar unidos. - E cerrou a mão com vigor. - Juntem-se em lagares, cedam o vosso aos outros, se o tiverem, e melhorem sempre a produção. Depois disto faltará ainda muita coisa, mas tudo virá se tiverem coragem e firmeza.

"A que vinha tudo aquilo?!", parecia perguntarem-lhe os outros. Mas Pimenta compreendeu-os e juntou:

- Vocês preferiam que lhes falasse da maneira de agirem prontamente sobre os acontecimentos. Mas o que lhes disse vale para o futuro, e nós todos somos culpados, em parte, do que se está a passar...

- E os impostos? - disse o Teimas.

- Não acredito que o Governo vos ouça. Também não paguei os meus... nem pago! A minha palavra está dada, disse-a só uma vez.

Um toque de clarim ouviu-se ao longe. Por momentos todos se voltaram para o lado da janela.

- Iremos passo a passo cumprindo aquilo que dissemos no telegrama para Lisboa. oDouro está de luto... E para nós... para vós isto não é manobra nem carpideira. Se nos tirarem o vinho, teremos todos de abalar. As nossas terras não acolhem sementes. Não temos terra nem água - só fragas. Mas as nossas fragas valem como exemplo para os campos ribeirinhos desprezados e que podiam dar pão...

Duas punhadas fortes bateram à porta. De um salto, Francisco Teimas espreitou à janela e viu Gracinda, a arfar, chamando-o com o braço.

- Que foi? - perguntou-lhe.

- A tropa! - disse em voz sumida. E deixou-se cair na soleira da porta, olhando a janela onde Teimas desaparecera.

- É a tropa que chega, Sr. Doutor! Todos se levantaram.

O líder do partido do Governo varrera com violência todas as ilusões acerca da possibilidade de modificar o tratado. A Câmara escutava-o em silêncio.

- Porque é que o Porto, que vê na ruína do Douro a sua própria ruína, como já ouvi dizer, apesar de ser quem mais tem contribuído para o descrédito dessa marca, só agora se apresenta a protestar? As associações de classe, os defensores do Douro, estiveram dormindo durante largo tempo, e só acordaram na véspera das eleições.

- Porque o Governo prometeu atendê-lo! - gritou uma voz.

- Houve primeiro esquecimento e indiferença - prosseguiu o líder - , e sinto não estar ainda habilitado com documentos para fazer a afirmação de que algumas das comissões que hoje se interessam pelo Douro foram chamadas a Lisboa pelo Governo Bernardino Machado para tratar da questão e não vieram. Deixaram passar o Governo Azevedo Coutinho e só apareceram quando se apresenta a ditadura, tratando com ela sem reclamações nem protestos. É preciso que a verdade se diga toda, para que os verdadeiros interessados saibam o que os agitadores políticos quiseram fazer na proximidade das eleições. - E implacável: - O que o Douro deve é defender-se dos falsificadores que aproveitam a barra do Douro para as suas fraudes!

A moção enviada para a mesa entregava ao Governo o assegurar pela forma mais conveniente os legítimos interesses da região do Douro.

O destacamento de infantaria entrou na aldeia com a rua principal e os quelhos sem sinais de gente, como se passasse por terra abandonada, onde os homens não pudessem viver. Nem o sino tocava agora.

O silêncio fez hesitar o comandante do destacamento, que distribuiu os soldados em formação de combate, recomendando-lhes atenção para os telhados das casas. Um mocetão dali, que recebera a notícia em Vila Real com alegria, caminhava aturdido, sem compreender o que se passava. Antes de abalar a praça da aldeia era àquela hora o ponto de reunião dos homens, que falavam da próxima colheita; mas agora não lhe aparecia uma cara amiga que pudesse saudar, nem a namorada estava à janela para o ver com a farda e o tachinho debruado na cabeça. "Raio me pele se percebo isto!" Uma nuvem de poeira ficava atrás deles com o rojar das botifarras. E o sol escaldava. Atónitos, olhavam uns para os outros sem entenderem a razão daquele silêncio. Sempre que saíam do quartel o rapazio corria ao lado a acompanhá-los, marchando ao rufar do tambor; e agora iam sós.

- Alto! - gritou o oficial.

Depois deu uns passos, afastando-se dos soldados, e olhou à volta, uma, duas vezes, sem saber que resolução devia tomar. "Onde moraria o regedor? Estaria a aldeia deserta?" Não, que ele bem sentia o viver de gente para lá daquelas portas cerradas. Não via ninguém, mas sentia que o espiavam.

E decidiu-se a bater a uma das portas. Como não lhe respondessem, insistiu com violência.

- Quem é?! - O postigo abriu-se e Gracinda espreitou para fora.

- Sabes onde mora o regedor?... - A mulher negou-Lhe com a cabeça. - Não sabes quem é o regedor?!... - Hesitou por momentos.

Gracinda perguntou-lhe:

- Deseja mais alguma coisa?!

- Porquê?!

- Não preciso de ter o postigo aberto - respondeu-lhe a mulher com a mesma expressão fechada.

- Dá-me um copo de água...

- Nem uma gota tenho, senhor... As fontes secaram... Nesta terra não há água nem pão...

O comandante olhou os soldados e depois acabou por voltar costas à mulher. - **Biva quem!... O postigo cerrou-se lentamente.

 

O comício de Santarém correra com excitação.

Milhares de pessoas de todo o distrito tinham acorrido com transportes postos à disposição pelos grandes lavradores e comerciantes de vinho. Dísticos e bandeiras desfilavam sem cessar, acompanhados por vivas e morras. orapazio exultava tanto como os organizadores da manifestação. No palanque estava a fina flor da região - e nem o Dr. Caldas faltara, para significar a importância que dava àquele comício, ele, que só parecia interessar-se por pequenas obras de arte.

No seu discurso fora diplomata: "Não quero dizer que os vinicultores do Douro não sejam dignos. São obcecados e estão sendo ludibriados por um comércio desonesto!"

Um vinhateiro do Sul que fizera parte da missão comercial a Inglaterra viera afirmar, orgulhoso, esquecendo a vantagem de se pôr na sombra, que as câmaras de comércio é que tinham levado o Governo britânico a aprovar o tratado em duas semanas. Depois fora a vez de um lavrador de Alenquer denunciar certos lavradores do Douro que lhe tinham ido comprar vinho, mandando-o seguir para o Norte.

"Se serve para eles o comprarem e exportar, porque não o poderemos nós exportar também?!"

A multidão rugia aplausos e morras ao Norte.

"A Inglaterra compra 150000pipas de vinho licoroso e o Douro só produz 60000no máximo. Porque não pode o Sul vender o restante, ou aquele que o comércio inglês lhe quiser comprar, se a qualidade o satisfaz e o preço é mais baixo?"

Mas a reunião atingiu o auge quando um lavrador gritou do alto do palanque: "Se no Norte há distúrbios e o Governo os não domina, iremos nós!... Nós, que não nos intimidamos e sabemos morrer pelas causas justas, como já o provámos muitas vezes."

"O Sul quer a guerra civil!", repetiu-se pelo Douro.

Gracinda falava-lhe junto do ouvido, com os cabelos a tocarem-lhe a face, mas Francisco não movia o rosto. Os pensamentos andavam à sua volta, decepados, como se a cabeça os atirasse para longe e eles quisessem regressar para si, num torvelinho. "O Sul queria guerra... As linhas telegráficas tinham sido cortadas... As propriedades iam à praça... O sino voltava a tocar a finados... Chegara tropa..."

- Mas quem te disse, Gracinda? - gritou sem se poder segurar por mais tempo. - E ainda lá estará?!

- O Sandão é que disse à Dolorosa; ele mesmo é que ajudou a metê-la no armazém.

- Não será mais alguma do Silva Costa?... Ela fixou-lhe os olhos, como se os quisesse meter dentro dos seus, e encostou-lhe a cabeça ao peito.

- Se tu quiseres, as mulheres vão lá. Eles não prendem a gente... O comandante foi à Pesqueira e os soldados são gente daqui e sabem de tudo!

Francisco fez-lhe uma carícia na cabeça. "Seria capaz de esquecer o que ficara para trás? Agora parecia que sim, mas andavam todos tão diferentes do que eram! Com o sossego talvez voltassem certas coisas..." Brandamente afastou-a de si, embora sentisse desejos de a apertar nos braços.

Ouviu-se um burburinho na rua.

Os acontecimentos desencadeavam-se numa vertigem. E as comissões de resistência recebiam ordens para se manifestarem nas sedes dos concelhos contra a falta de aclaração do artigo 6." Uma grande comissão estava em Lisboa a tratar com o Governo e era preciso insistir até à vitória. A maioria dos chefes republicanos da região partiram para Lisboa. E tinham ficado os outros.

A Ti Inácia, com um grupo de mulheres, arranjara duas bandeiras pretas; numa bandeira da República já se tinham colocado os sinais de luto com uma faixa de crepe. Agora a actividade girava à volta da grande tira branca que seria levada no cabo de duas enxadas e devia abrir o cortejo da aldeia, quando se resolvesse irem à sede com o pessoal das outras freguesias.

- O Sul mata-nos à fome! - disse Gracinda quando pensaram em pôr os dizeres na tira branca.

E depois, olhando para o Sandão e Dolorosa, que conversavam a um canto, ausentes dali, juntou, por gracejo:

- Quando a fome acabar, a gente casa-se!

Os dois riram e vieram juntar-se ao grupo, olhando a lata da tinta e o pincel que Francisco trouxera consigo. Luís Teimas, num bocado de papel, escrevia as palavras que a tia dissera, apurando-se na letra, como se lhe dessem a glória de as pintar.

- E se puséssemos: "O Douro morre à fome!" - disse Francisco do banco da lareira onde se sentara. - Acho que se deve falar do Douro.

- Doiro é mais bonito! - juntou Dolorosa com aquela voz cantaroleira de que se parecia ter esquecido.

- Os jornais dizem Douro...

- Mas Doiro é como a gente lhe chama - interveio Gracinda. - Parece mais nosso!...

Francisco não insistiu; escreveu os dizeres num papel e pô-lo à frente do filho, que o não entendeu.

- Está bem escrito, doutor? - perguntou, a sorrir, para Luís puxando-lhe a ponta da orelha.

O rapazola corou, acenando a cabeça:

- Ponha Doiro com letra grande, pai!

Sentado no chão, indeciso com o tamanho da tira, sem linhas onde apoiasse a escrita, Francisco já molhara o pincel duas vezes, e outras tantas o deixara dentro da lata.

Com o indicador esboçou no espaço o dístico escolhido: "O DOIRO MORRE À FOME."

Dos jornais de 18 de Julho:

"Freixo de Espada à Cinta, 17. - O povo deste concelho, reunido em frente dos Paços do Concelho, depois de tocar os sinos a rebate, fez um protesto enérgico contra a atitude assumida no Douro e impediu o funcionamento das repartições públicas, serviços de exames primários e trabalhos agrícolas. Embora a manifestação seja ordeira, receia-se que o desespero leve a actos violentos."

"Provesende, 17. - Segundo notícias recebidas, estão completamente paralisados todos os trabalhos agrícolas em todo o Douro. O comércio encerrou as suas portas e à hora a que telegrafo os sinos tocam o dobre de finados, fazendo lembrar ao povo duriense a sua morte económica, por falta de o Governo não atender à justiça do Douro. A classe trabalhadora, aglomerada, tenta fazer represálias nas repartições públicas, sendo impedida pelos viticultores, confiando que o Governo tome providências rápidas. Os meios de transporte, no Douro, circulam tarjados de luto. Nas torres das igrejas tremulam as bandeiras negras. Viva o Douro."

"Santa Marta de Penaguião, 17. - Deram-se aqui acontecimentos anormais como manifestação de protesto por não terem sido ainda atendidas as reclamações dos povos da região duriense. Os sinos tocaram a rebate e os populares, amotinados, lançaram o fogo à Repartição de Finanças. No mesmo edifício estavam instaladas a Câmara e outras repartições. Ardeu tudo, restando da casa apenas as paredes. Está já restabelecida a ordem pública e à hora a que escrevo estão chegando forças militares."

**Barãona acabara de ler as notícias do jornal e atirou-o para o lado, indicando-o com a cabeça ao Dr. Cunha Ferreira.

- Já leu?!...

O lente passou os olhos pelas notícias dispersas e ficou intimamente satisfeito.

- Na Régua parece que também houve qualquer coisa! - disse só para não ficar calado.

- E que lhe parece, doutor?... Acha que o Governo vai ceder?

- Talvez não - respondeu Cunha Ferreira, sabendo que aquela era a resposta que agradava ao outro.

- Pois eu penso o contrário...

E foi até ao mapa que cobria uma parte da parede do gabinete, entre as duas janelas que davam para a Rua Augusta; e continuou a falar, olhando para o cimo da carta:

- Admira-me a força pública... A verdade é que eles sabem bater-se pelas suas conveniências.

Depois passou para a janela e apontou a multidão que formigava em baixo:

- Em Lisboa, as senhoras fazem compras e os homens dizem-lhes gracejos. Mesmo aqui defronte, repare, Cunha Ferreira, um rapagão lê um livro, encostado a um candeeiro. Poesia, com certeza! E uma mulher apregoa flores...

Dos jornais de 20de Julho:

"Carrazeda, 19. - Ontem, ao princípio da tarde, o povo de diversas aldeias, em número superior a duas mil pessoas, armado de varapaus, foices, roçadoyras, machados e algumas espingardas caçadeiras, dirigiu-se ao Tua e, no meio de grande vozearia e ao toque de um clarim, invadiu a estação do caminho-de-ferro e, depois de se dirigir ao chefe, perguntando se ali havia vinho do Sul, foi revistar os vagões de mercadorias. Dentro em pouco, a golpes de machado, foram despedaçados três pipas de vinho e um casco de aguardente."

"Régua, 19. - Cerca das cinco horas da tarde tocaram a rebate, no sábado último, todos os sinos desta vila e freguesias limítrofes, afluindo aqui muitos milhares de pessoas de todo o concelho. Em seguida, esta enormíssima massa de povo, que por completo enchia as ruas da vila, dirigiu-se à estação de caminho-de-ferro, por lhe constar que ali existia uma remessa de vinho do Sul. Por nada ali ter encontrado, pois que o referido vinho já tinha seguido no dia anterior para o Alto Douro, toda aquela multidão se retirou ordeiramente, soltando vivas ao Douro e aos seus defensores, dirigindo-se em seguida à Repartição de Finanças, que estava fechada, arrombando as portas a golpes de machado. Uma vez lá dentro, os populares tiraram para o largo fronteiro toda a papelada e mobiliário que lá existia, deitando-lhe o fogo. Depois foram à recebedoria, cuja porta, que é de ferro, foi arrombada com fortes marras e picaretas, atirando para a rua todos os papéis que ali se encontravam, e que foram também queimados. Em seguida trouxeram para fora o cofre, que é de grandes dimensões e muito pesado, arrombando-o, e atirando para o lume todos os recibos e verbetes das contribuições em dívida. O dinheiro que o cofre continha foi cuidadosamente entregue ao ilustre alferes comandante da Guarda Fiscal, a quem, nesse momento, foi também confiada a administração do concelho."

À Câmara dos Deputados chegava um telegrama de Alpiarça: "Câmara Municipal viticultores comerciantes em grande reunião protestam energicamente contra atitude Governo que amedrontado perante actos criminosos e ameaças adrede praticadas parece transigir exigências ilegítimos representantes Douro e resolvem empregar todos meios contra novas concessões à custa legítimos interesses. - Presidente Câmara."

oDr. Caldas redigira o telegrama em sua casa, na noite anterior, e abalara para Lisboa. A comissão du-riense parecia ganhar terreno - "e se razão lhe fosse dada... acabaria com a política, estava decidido!", afirmara, impetuoso, a um lavrador que o acompanhara à estação. Jogava agora o seu prestígio pessoal, que sempre soubera preservar, e o rancor transtornava-lhe o rosto habitualmente plácido. "Ou eles ou eu..."

Com o filho mais novo entre os joelhos, Pimenta escutava-lhe o interrogatório habitual que diariamente o rapazola lhe fazia.

- Que sucedia se o céu fosse amarelo?

- Sei lá... - E sorria-se da pergunta. - É possível que chovesse menos... ou mais...

- E se chovessem passarinhos? - E o rapaz olhava à sua volta, imaginando como seria essa chuva.

- Lá vens tu com fantasias!...

A mulher entrou pela porta que dava para a cozinha, deteve-se atrás da cadeira e perguntou:

- Sempre vão amanhã?

- Já sabes que vamos - respondeu-lhe Pimenta. - Fizeste a mesma pergunta não sei quantas vezes...

- Incomodo-te?!

- Não!... Mas julgo que estás à espera de que, com a tua insistência e os teus suspiros, eu ainda acabe por dizer que não vou. E a tua esperança vexa-me.

O filho puxava-lhe a cara para o seu lado.

- Pra que serve a guerra, pai? E os soldados que aqui estão também vêm para a guerra?

- Não, filho! Aqui não é uma guerra... - "Tinha tanta coisa para lhe explicar e era tão difícil!... Ele próprio vivia ainda com tantas dúvidas!..."

- E onde há guerra os meninos brincam?...

- Não! Na guerra os meninos também morrem... O garoto arregalou os olhos de espanto e de medo.

- Julgavam que eram só os militares - disse numa vozita de choro.

- E nem os militares lá deviam morrer... Mas falemos noutra coisa! Já viste o pôr do Sol, como está bonito?!

Foram ambos até à janela.

- Parece que há sangue ali - disse o rapazito, ainda impressionado com a conversa, apontando a mancha vermelha que alastrava no céu. - E se fosse sangue, pai?

- Não podia ser. No céu não há sangue...

E puxou o filho para si.

 

A Ti Inácia, desde que os filhos tinham casado, passara a dormir junto da lareira, com o corpo enrolado no pavimento de terra batida e a cabeça apoiada numa das mãos, sobre o rebordo de madeira enegrecida pelo fumo. No Inverno, dali lhe vinha um resto d" calor das cinzas do borralho, podendo assim dispensar a manta que lhe cabia para a cama do mais novo, um fracalhote que não adregava forças para ir às cavas e gastava os dias no vício das tabernas.

Deitara-se mais tarde - o encontro das freguesias estava marcado para a manhã seguinte, na estrada real - , mas não havia maneira de o sono lhe chegar, por mais que fechasse os olhos e procurasse suster aquela excitação que lhe repuxava os nervos, como os dedos de um tocador nas cordas do seu violão. Tentava dominar a pressa de partir, aconchegando-se mais e puxando o lenço para a cara - "Que raio de coisa, hã?! "" - , e sempre certas lembranças lhe vinham perturbar o repouso de que precisava, pois teria de fazer umas léguas na manhã seguinte e não queria ficar para trás. Mas a imagem do Manel Foicinha com o animal esfolado às costas e a espingarda na bandoleira não lhe saía da cabeça. "Grande ceia, Manel!" Ele escapulira-se sem dar resposta, e quando insistira: "Boa caçada! Foi em Ventozelo?", o Manel dissera de fugida: "É um cabrito bravo..." Naquela tarde, porém, o Negrilho não viera lamber-lhe as mãos, como era costume, e a Ti Inácia estranhara. "Que diabo! Onde se teria metido o podengo?..." Ainda se aproximara da porta do outro para lhe fazer a pergunta, e nesse mesmo instante a ideia rebentara-lhe dentro da cabeça. "Querem ver..." A verdade é que a filharada deixara de gritar e de se bater, muito calma, a brincar na rua com o arco duma pipa. Ficou à espera que ele passasse, e, mal o enxergou, enraivecida, acusou-o com a sua desconfiança. O Foicinha baixara os olhos húmidos e só dissera: "Que queria vossemecê que fizesse aos crianços?" E logo, numa golfada, como se pretendesse libertar-se dum peso, confessou-lhe o resto: "Levei-o de noite e o Negrilho a lamber-me as mãos. Custava-me menos acabar comigo. E os rapazes?! Quem lhes ia valer?!... Meti a arma à cara, o cão brincava à minha frente, julgando que ia caçar, e dei-lhe dois tiros..."

A Ti Inácia queria dormir, mas as mãos não a deixavam, com aquele formigueiro danado, como se elas não pudessem descansar pela ausência dos carinhos do Negrilho naquela manhã. "Daí por umas horas... Aquilo tinha de acabar depressa!" Pôs-se a rezar, foi espreitar à porta, para descobrir os sinais da madrugada, e as estrelas lá estavam, aos punhados, no céu. Espreitou a gaiola do melro e viu-o quieto; bateu nas grades de cana e o bicho não se movia. "Credo!", disse, quando pensou naquilo. "Era o que faltava, depois do Negrilho..." Meteu, cautelosa, a mão na gaiola e hesitou, antes de a fazer avançar até ao canto; depois resolveu-se - "Pra que havia de ser agoirenta!" - e o melro ficou quieto entre os seus dedos.

Desesperado, o sino voltou a tocar, era noite cerrada. Num instante, as trevas encheram-se de vultos, que vinham às portas e aos postigos, faziam perguntas e logo saltavam para os quelhos, correndo sem destino, para depois voltarem aos cortelhos e saírem armados. Apertando os filhos de colo no peito, as mulheres saíam, desgrenhadas, para a rua.

- Já são horas?!... Vai tudo prò largo!...

De olhos acesos pela fome, os rapazes surgiam, espantados, dos buracos das portas e abalavam também, deixando a chorar os irmãos mais novos que os não podiam acompanhar. Da sua janela um cego sorria (c) incitava os outros:

- Tragam pão prós crianços! Não voltem sem pão!...

Quando apareceram as duas bandeiras negras, a multidão adensou-se atrás delas e todos as olhavam em silêncio, com o mesmo recolhimento de quando acompanhavam os santos na procissão da aldeia. Do fundo do vale outro sino fez ouvir a voz.

- É dos Casais!

E outro mais arriba.

- É de Valença!

E outro, e outro, que enchiam todos o céu do seu

frenesi.

Os mais tardios largavam a correr pelos quelhos fora,

como se receassem não chegar a tempo. A mulher do Balsa Velho, sentada na cama com a paralisia, chamara

ainda o marido:

- Leva no chapéu aquela flor de papel...

Ele insurgiu-se:

- Isto é alguma festa?!

Mas a mulher rebateu-o, agarrando-lhe o braço:

- É o que mais gosto da nossa casa; e se a levares é como se eu fosse também...

- Porque não abalamos já? - perguntavam os que

tinham chegado primeiro.

- Faltam o Dr. Pimenta e o Teimas...

- Eles levam a gente ao colo?! - respondiam os

mais excitados.

Sabiam todos que na Régua, em Santa Marta e em Armamar os papéis tinham sido queimados e ninguém pagaria as décimas. E queriam chegar depressa! No alto do campanário, o sino não se calara ainda, desafiando os outros, que lhe respondiam das trevas; e os seus ecos giravam na arena de montanhas que a noite mal deixava definir nos horizontes, gritando as dores e as violências que os homens calavam ainda no fundo dos corações. Francisco enrolava a tira de pano pintado quando a Gracinda e Dolorosa apareceram.

- Vai o povo todo! O largo está cheio!... E a Ti Inácia não larga a corda do sino. Parece ! douda!

- Que vamos fazer a esta hora?! - disse Francisco, a querer aparentar calma. Mas no seu rosto havia o tique nervoso que já quase esquecera.

iNa praça não cabia mais ninguém. Armados de paus e enxadas, foices e carabinas, machados e sachos, todos esperavam ordem de caminhada. ("Espingardas, não! A gente não vai desafiar a tropa!...") Eram todos uma só pessoa, um gigante de mil rostos onde havia serenidade e ódio, confiança e temor.

O Dr. Pimenta desceu as escadas e a mulher acompanhou-o até ao patamar.

- Volta depressa! - pediu com amargura; mas, quando ele volveu a cabeça, disse ainda: - Não é isso! Volta aquando eles!... - Ela adivinhou que o marido lhe sorria lá de baixo.

O Balsa Velho já pegara na enxada onde a tira ia presa e do outro lado postara-se a Gracinda.

- Mostrem! Voltem-se pra cá! - pediam os que não conseguiam mover-se na multidão para irem espreitar as letras.

- O que diz? - perguntavam uns aos outros. "O DOIRO MORRE A FOME."

E a frase ia de boca em boca, num sussurro, e ficava-lhes agarrada aos lábios, como a voz de todos eles.

Mais vultos nasciam nas trevas - velhos que manquejavam e não queriam faltar; jovens que corriam e chegavam envergonhados de terem demorado tanto, quando ninguém dormira na aldeia e todos ansiavam por que o sino chamasse.

- Vamos? - pediu uma voz lá do fundo daquele mar coalhado. E outras vozes a secundaram:

- Vamos embora! A manhã não tarda!...

- Falta a Ti Inácia! - respondeu o Sandão, com a Maria Dolorosa ao lado.

E logo um magote de rapazes disparou em direcção da igreja, assobiando como o bramar do vento. Alguém disse um gracejo e uma mancha de gargalhadas ficou a boiar no silêncio que se fizera. Emocionado, o Dr. Pimenta falava para os da comissão de resistência:

- Nada de violências pra provocar! Se houver alguma coisa, isso é com eles!... Nós vamos à frente!

Nem a Ti Inácia sabia - nem ninguém lho perguntou - porque espetara o melro morto na ponta daquela baioneta ferrugenta que o avô trouxera para casa depois de acabar a guerra da Patuleia. Francisco Teimas caminhara ao seu encontro e vira naquilo um símbolo, que, porém, não sabia decifrar.

- Traga-a para aqui! - disse uma voz na frente.

Quando se puseram em marcha, a terra pareceu acordar com aquele rumor estranho de botas cardadas e pés descalços. Era um som difuso e grave, que podia ser também o murmúrio do vento na rama das árvores ou o eco do rugir do ponto da Roeda, lá em baixo, no rio Douro. Depois ouviu-se o grito rouco dum corpo que parecia ter-se rasgado com a violência, a que outros responderam com "vivas" ao Douro e "morras" ao Sul.

Na estrada, batida pelo luar frouxo, aquela mancha de luto não tinha fim.

Os de Valença foram os últimos a chegar, era quase manhã, com o Sousinha à frente, montado no seu cavalo ruço e trazendo de cada lado uma bandeira negra, que dois homens erguiam nos braços possantes, para que as vissem bem. Era agora uma multidão com a gente das aldeias baralhada, o dístico a abrir o cortejo, com todas as bandeiras juntas, e a Ti Inácia com o melro morto espetado na baioneta, logo seguidos das comissões, que tomariam o lugar da cabeça quando se entrasse na vila, segundo fora resolvido.

Numa curva da estrada todos estacaram, surpreendidos com a imponência da paisagem, que a luz dum arrebol, todo ouro e sangue, pintava de cores que nunca tinham adivinhado. O rio mostrava-se em baixo, com um rabelo de vela enfunada aberta à brisa da manhã, rasgando as margens com a sua mancha branca, donde pendia um grande sinal de luto, que adejava solto, e parecia, por vezes, um enorme pássaro negro a planar nas alturas. Depois as montanhas todas verdes, com os socalcos muito certos a talhar as lombas e as curvas, as ravinas e os píncaros. Era para que tudo aquilo não morresse que eles empreendiam a jornada. E lá ao longe, bárbaros e ciclópicos, os cerros de um cinzento pesado, com manchas azuis, que apontavam S. Salvador do Mundo e a Terra Fria, mais arriba, na dentuça arreganhada dos penhascos distantes.

O padre de Ervedosa, que viera com a sua gente, estendeu as mãos postas para o lado da ermida de S. Salvador do Mundo e depois voltou-se para a multidão parada, fazendo sobre ela o sinal da cruz. Muitos descobriram-se e baixaram a fronte, para sussurrarem um padre-nosso que o pároco iniciara numa voz grave.

- Viva o Doiro! - gritou no fim. Respondeu-lhe um eco que parecia não se extinguir, duma ponta à outra daquela massa de gente, que voltava a excitar-se mais com a aproximação da vila.

Quando lá chegaram, uma fila de soldados barrou-lhes a passagem. O Dr. Pimenta, acompanhado com dois lavradores, dirigiu-se ao comandante da força e garantiu-lhe que não iam ali para fazer arruaças - "nada mais desejavam do que falar aos da Câmara e aguardarem a resolução do que se passava em Lisboa com o Governo e os delegados durienses". Antes, porém, que o comandante acedesse, os soldados começaram a recuar, perante a avalancha que avançava, lenta, mas firme, sem ameaças; alguns deles reconheceram amigos e parentes entre o povo, só a voz do alferes impediu que se desse uma confraternização total entre a força armada e os que se manifestavam; mas já não lhe foi possível tapar a brecha por onde a multidão se esgueirava para dentro da vila, enchendo as ruas de lés a lés e incitando os que estavam a juntar-se-lhe.

Num momento, todos os estabelecimentos encerraram as portas.

Compassados primeiro, logo aguerridos também, os sinos das igrejas começaram a badalar o sinal de rebate, juntando os seus gritos desvairados aos da gente que se aproximava da alameda das repartições. A malta da vila acrescentara-se ainda à das freguesias da parte norte do concelho; e a multidão adensava-se cada vez mais, comprimida como um corpo único que se deslocasse com dificuldade, e onde as mulheres se destacavam pela decisão. Roucas de gritar, erguiam umas os filhos nos braços, enquanto outras apontavam com os sachos e as foices as bandeiras negras e a tira branca com as letras pintadas, que a Gracinda e o velho Balsa mantinham sempre firmes, à cabeça do cortejo. "Isto hoje vai acabar", pensava Gracinda com alegria. A maneira como o Francisco a olhava dizia-lhe que a partir daquela hora nunca mais se separariam. "Quanto tempo!" Mas tudo valera a pena. porque ele não recusava agora o sorriso que lhe atirava sobre as cabeças que estavam entre os dois. Via-o decidido, a olhar de frente as baionetas que tapavam a porta da Câmara, mas vigiando sempre também certos grupos que se tornavam mais violentos e desafiavam os soldados de longe.

- Esses que se calem!... --gritou Teimas; mas o seu apelo perdeu-se no meio do alarido.

Das janelas do primeiro andar apareceram mais soldados, que apontavam as armas para baixo; via-se na lividez dos seus rostos que receavam alguma coisa de que lhes tinham falado lá dentro - já não sorriam nem acenavam os bonés, como no momento em que o povo se lhes aproximara.

O sol já ia alto e causticava, tornando a atmosfera densa.

- Viva o Doiro! - gritaram de um dos lados.

- Morra o Sul! - responderam em uníssono. Mais aguerridas as mulheres perguntavam:

- Que esperais?!...

A Ti Inácio ergueu mais a baioneta com o melro e rouquejou:

- Vão lá as saias!...

Mas, nesse instante, um dos sinos começou a dobrar a finados e os outros secundaram-no, naquela toada lenta e dolorosa que comunicou um desespero mudo à multidão, pondo lágrimas em muitos rostos. As bocas calaram-se; os braços, porém, tornaram-se mais frenéticos, erguidos para a janela, onde surgiram o padre de Erve-dosa, o Sousinha de Valença e um fidalgo que tinha quintas nos Casais. No silêncio brusco que se fizera entre a multidão só se ouvia o choro disperso dalgumas crianças.

- Os impostos! - gritou o João Ermida. - Os papéis dos impostos! - logo o secundaram outros que lhe estavam perto e se lembraram do que lhes tinham dito nas aldeias:

- Como se pode dar trabalho, se as décimas levam tudo e não houve colheita?

Um movimento febril, mais aceso do que até ali, rompia daquela banda e propagava-se aos poucos:

- Os impostos! Os impostos! - Como se o silêncio momentâneo lhes tivesse dado novas forças, os gritos cresciam de todos lados. Francisco pensou no que o Sandão lhe contara e quis furar por entre aquela massa cerrada que se unia mais. Com esforço, caminhando sempre, tentava perceber donde partira a provocação. Mas agora gritavam todos:

- Os impostos! Os impostos! - E ele ficara aturdido, preso naquelas malhas que se apertavam à sua volta e não o deixavam romper, porque um movimento se fazia agora em sentido inverso ao seu, enquanto das janelas pediam calma e os soldados brandiam as armas, como se de cima pudessem evitar o choque.

- Viva a Monarquia!

- Viva a República!

- Viva o Doiro!

- Viva Paiva Couceiro!

- Os impostos! Os impostos!

Era agora uma só boca que ululava todos aqueles gritos e um só corpo que se movia com o mesmo destino.

Mas um estampido ressoou sobre as cabeças e um poço abriu-se naquela massa cerrada; seguiu-se uma breve hesitação de espanto e logo um uivo de dor, que submergiu o povo e ficou no espaço, com ecos sem fim, na voz dos sinos que plangiam nos campanários. E com uma rajada de tiros veio a ânsia da fuga, depois do terror que petrificara todos. Os que caíam eram pisados pelos que procuravam abrigo: os que queriam manter-se sentiam-se arrastados por aquela mole desvairada, onde os gritos de raiva e de súplica se confundiam. De braços abertos para os soldados que guardavam a porta do edifício, oPimenta caminhava, clamando-lhes de mãos erguidas :

- Não matem os vossos! Não atirem!

E aos lamentos e estertores dos que tinham caído juntavam-se o desespero das mães, o choro das crianças e a voz irada dos que não queriam entender ainda o que se passara.

Francisco olhava à sua volta e só via aqueles corpos presos à terra, enrodilhados uns, pela ânsia frustrada, serenos outros, de olhos para cima, como se pretendessem levar consigo o sol das alturas. Tudo aquilo lhe parecia ainda um sonho. À fuzilaria seguira-se o silêncio da morte, cortado por gemidos que se sumiam aos poucos e lhe penetravam no sangue. A cabeça estalava-lhe; o coração doía-lhe. E na boca aquele travo amargo, dum sabor que nunca experimentara. Apetecia-lhe blasfemar, erguer os que tinham caído à sua volta e atirar-se com eles de encontro às baionetas e às montanhas, rasgando-se, para dormir também à sua beira.

Lá estava a tira branca que ele pintara, caída sobre dois corpos como um manto. E caminhou para ali, ébrio, com a pulsação do sangue a bater-lhe desesperos de marretas nos ouvidos atordoados; depois teve receio e estacou, levantando o olhar para as janelas, onde viu rostos que choravam. "Porque não podia chorar também?!" E, erguendo os braços, atirou-se, num soluço, sobre aquele corpo amputado que a tira cobria.

 

- Parece um quadro de El Greco! - - exclamou o Dr. Sepúlveda para o grupo que o acompanhava, mal saltou do automóvel e lhe surgiu, inesperadamente, o desfile que se arrastava pelo quelho, com as mulheres embiocadas nas saias e nos xales negros e os homens de cabeça descoberta. Os gestos eram lentos; os passos arrastados. Mas havia neles, e mais ainda nos seus olhos redondos de espanto, um misto de mágoa e de rancor que tornava o ar espesso.

- Reparem nesses rostos... Autênticos tipos de raça! - insistiu o Sepúlveda, enquanto o motorista lhe estendia a coroa de flores artificiais, donde pendia um dístico que dera caturrice com o Pereira Magro, de Alijó. Este queria que as letras douradas falassem de mártires e de Alto Douro; o outro entendia que Douro bastava - que diabo! pra que eram aquelas politiquices! - e que, em vez de mártires, se devia pôr heróis. Tinham acabado por incluir as duas palavras, a conselho do Dr. Severino, mas durante a viagem não se falaram.

Perturbado, o fotógrafo desceu o quelho numa corrida, com a máquina de tripé ao ombro, à espreita de um ângulo que lhe permitisse fazer o retrato sugerido pelo redactor do jornal do Meireles; o sol, porém, ficava sempre em contraluz, e ele não ia ensejo para meter, em pano de fundo, aquelas filas densas de gente que subia as escadas da casa onde se havia reunido a comissão de resistência e passava pelos três esquifes, sobre os quais todos se debruçavam, como a segredar aos fuzilados as notícias que tinham vindo pelo telégrafo. "Treze mortos e quarenta feridos em Lamego", comunicara a nota oficiosa. E aí nem sequer deixaram tomar conta dos cadáveres; levaram-nos, empilhados, numa carroça para o cemitério.

Horas depois, como se o sangue vertido pelos durien-ses tivesse espirrado até Lisboa, viera o telegrama decisivo, a anunciar que os direitos do Douro seriam reconhecidos pelo Governo na ratificação do tratado com a Inglaterra.

Era essa certeza que dava agora uma força poderosa e estranha ao silêncio daquele povo, envolvendo os seus mortos num reconhecimento que repelia a presença do Sepúlveda e dos companheiros. Quando as cabeças se voltaram para eles, num gesto sacudido de espanto, é que os cinco homens sentiram que as suas palavras vinham interromper uma intimidade que só agora entendiam; e baixaram as vozes, passaram a mover-se em bicos de pés, um tanto desorientados com a atitude que deviam tomar. "Meterem-se já no desfile ou esperarem que os funerais saíssem para dizerem os seus discursos no cemitério?"

Francisco voltara com o filho, depois de ali ter permanecido toda a noite. Quiseram deixá-lo passar à frente e recusou; desejava fazer o percurso, passo a passo, como os demais, sentindo à sua volta aquela dor espontânea e funda que nem um grito quebrava. O calor fez-lhe lembrar a malhada de centeio em que Gracinda o procurara para lhe dar a notícia que nesse dia parecera libertá-los. E ela estava morta lá em cima, com o sorriso que ele trazia agarrado aos seus olhos, tendo sobre o peito a rosa de papel que a mulher do velho Balsa pedira para o marido levar à Pesqueira. "Devia-lhe agora o direito de continuar nas suas terras?..."

O filho tocou-lhe no braço e disse, emocionado:

- O avô gostava da tia...

- Agora todos podem gostar dela! - respondeu, sem desviar os olhos da porta e puxando o rapaz para si; Luís percebeu-lhe a intenção do gesto e esfregou o rosto, com ternura, na sua mão.

Ocorrera-lhe agora aquele dia em que o avô, montado no Doiradinho, o levara com o Chico a ver as videiras destruídas pela enxurrada. Não sabia porquê, mas a conversa do avô estava presente dentro dele, como nos seus olhos os cumes das montanhas cheias de socalcos que se mostravam no horizonte distante. "ovinho do Doiro é a gente que o faz com nosso sangue..." Gostava de repetir essas palavras ao pai, na convicção de que lhe saberia bem ouvi-las. "Como as havia de dizer?!..."

A emoção agarrava-lhe a voz, talvez porque só naquele momento compreendesse o seu significado; e, embora tivesse lágrimas nos olhos, Luís Teimas achou-se feliz por sentir que a vida se alargava dentro de si.

 

                                                                                Alves Redol  

 

                      

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