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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VOLTA AO PAÍS DAS SOMBRAS LONGAS / Hans Ruesch
VOLTA AO PAÍS DAS SOMBRAS LONGAS / Hans Ruesch

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                              A Gravidez

Pela primeira vez em que Vivi se recusou a sorrir para ele, Papik se deu conta de que ela havia concebido, embora nenhum deles soubesse por que a gravidez levava as mulheres de sua raça, corso os animais da selva, a esconder do macho os dentes e as unhas: era para garantir a segurança do filho que estava por vir.

E o próprio Papik sentira mais vontade de dormir do que de rir, depois que a noite polar envolvera seu iglu construído no gelo do mar.

Quando a luz da primavera, filtrando-se através da parede circular de neve, despertou o casal de seu torpor de inverno, seus corpos haviam consumido todas as gorduras e muito de suas carnes, as últimas provisões estavam acabadas, e era preciso encontrar alimento para sobreviver. Mas Vivi não estava pensando em comida e nem mesmo na criança que já se agitava em seu ventre, como que impaciente para sair de dentro de sua mãe.

— Uma tola mulher chorou de novo enquanto dormia, sonhando com uma menina — disse ela com um sorriso que parecia uma expressão de pesar, enquanto se ajoelhava para ajudar seu marido a ajeitar as botas.

—        Quando o menino nascer, você vai esquecer a menina

—        disse-lhe Papik confiantemente.

As evoluções dos cormorões, precipitando-se em queda, não deixavam margem à dúvida de que, desta vez, ela teria um menino.

—        Agora alguém vai procurar comida.

—        Sim, um menino pequeno não pode ficar muito tempo sem comer.

Logo que Papik se arrastou através do túnel, empurrando a matilha em direção à abertura, dando pancadas e gritos, seu hálito se transformou em vapor e ele sentiu as garras do frio em seu globo ocular, a única parte que não podia cobrir com pele ou com gordura. Demorou-se um pouco, de gatinhas, explo­rando a região ilimitada de gelo revirado, eternamente toman­do novas formas sob o efeito dos ventos e das correntes marinhas, a qual se espraiava diante dele. A promessa da primavera já fizera com que os picos mais altos ficassem avermelhados. Do contrário, a paisagem de gelo estaria cinzenta. Aquilo era o topo do mundo. A terra das longas noites. Onde tudo é diferente: os homens, os animais, a própria natureza. Onde o oceano é sólido. Só a estação tépida traz a neve. O inverno é frio demais para permitir qualquer precipitação. Em sua altura máxima, o sol permanece muito baixo, circulando ininterruptamente sobre o horizonte ao longo de curto verão. Os cães são os melhores inimigos do homem. Há pássaros que não voam, mamíferos que vivem na água, criaturas marinhas que andam na terra, e seres humanos dispersos que se arrastam no gelo para se aquecerem. O mundo os chama Esquimós, o que significa comedores-de-carne-crua, embora eles se definam simplesmente como Inuit

—        Os Homens.

Para que o mundo saiba que eles são os únicos verda­deiros.

 

 

 

 

Então Papik se tinha colocado de pé, sua respiração já lhe havia enregelado a testa e a borda do capuz de seu casaco. Cuspiu, e ouviu-se o tinir de gelo batendo contra o gelo. Positivamente, não estava quente.

Levantando suas peles esbranquiçadas como um isola­mento adicional contra o frio penetrante, os cães clamavam por comida, latindo a plenos pulmões, rosnando com dentes que tinham sido quebrados com pedras para evitar que roessem seus arreios, ou ganindo na tola esperança de derreter os corações de seus donos. Tão logo Vivi abriu caminho através do túnel com sua barriga inchada, agarrou um pau na saída e estalou com ele em cima de todos, indiscriminadamen­te, poupando somente Toctoo, porque ele era o líder.

Depois que a matilha foi convencida da necessidade de silêncio, tornou-se audível o distante ruído de fungadas e urros. Eram focas que subiam para tomar ar através de buracos abertos na crosta de gelo ao longo de todo o inverno. Papik não pudera localizá-las na noite polar, nas poucas vezes em que saiu de seu torpor em busca de caça.

Vivi sorriu para ele e bateu levemente na barriga:

—        O menino está com fome.

Ela era bonita, particularmente quando sorria, o que ultimamente não se dava com freqüência. Seus olhos vivos, negros como a fuligem, destacavam-se na palidez invernal de sua pele. Lábios carnudos, moldados por um verdadeiro artista, e a ossatura alta da face, acentuavam a aparência asiática de seu rosto. Ela era mais alta e, quando estava sem a criança, mais delgada do que a maioria das mulheres dos Homens.

—        Vá para dentro ordenou Papik. E mantenha os cachorros quietos, se é que alguém tem de voltar antes do sol.

E ele saiu gingando como um ganso, pisando como uma pomba devido às botas de pele de foca que lhe iam até a virilha.

O Oceano Glacial ressoava sob seus pés à medida que ele pisava em seu tapete cinzento, levando-o a mover-se como uma pena até que seu caminhar se tornasse silencioso.

As focas não gostam de acasalar nas águas frígidas, pelo que ninguém as pode culpar. Assim, com a chegada da primavera, elas começam a vir do mar para fazer o reconheci­mento de um parceiro adequado. Antes de chegar ao local em que as focas respiravam, Papik descobriu uma forma familiar que jazia sobre o gelo, como uma afilada e exausta salsicha de gordura. Uma foca fêmea, prematuramente chegada, já viera encontrá-lo. Assim, não devia ele esperar indefinidamente sobre um buraco de respiração, preparando a isca, sob pena de congelar-se.

Tudo o que tinha a fazer era aproximar-se da foca e matá-la.

As focas não têm uma boa visão, mas possuem um ótimo faro, e Papik estava com tanta gordura sobre o corpo que cheirava mais a uma foca do que a um homem. Antes de entrar no limite de visão de sua caça, despiu as peles de urso que a poderiam assustar e começou a engatinhar com sua roupa de peles de pássaros. Feita exclusivamente de pássaros pretos, cosida por mulheres que contam o tempo por estações ao invés de horas, não era apropriada para o frio, mas ajudava Papik a ter a aparência de uma foca enquanto se aproximava de uma delas.

Ele não sentia frio. A partir do momento em que localizou a caça, começou a babar. Seu queixo tremia, sua boca se enchia de água.

A foca jazia entre dois buracos, pronta para mergulhar e ficar em segurança. Exausta de uma interminável vigília de inverno, durante a qual ela tinha tido de manter aberta a crosta de gelo para respirar, agora ela tentava recuperar o sono perdido, tirando breves cochilos que duravam nada mais que umas poucas batidas de coração. Entre um cochilo e outro, estendia o pescoço, explorando o campo de gelo para preca­ver-se contra algum urso que se aproximasse, ou coçava-se com um dos membros, avançava um pouco ou torcia-se sobre a barriga.

Quando a cabeça da foca ficou ereta, apontando para ele, Papik percebeu que havia sido descoberto e entrou em ação.

Escondeu o rosto com seu cabelo preto e corrido e ficou deitado por um momento, como uma foca cochilando. Observou o horizonte, girando a cabeça. Segurando suas armas e o arpão contra o tronco e cruzando os pés, avançou serpentean­do. Esticou o pescoço, deu um berro e coçou a virilha com um dos pés.

Então, o brilho do sol escondido desenhara um quarto de círculo no horizonte e a foca pareceu muito intrigada pelo escuro e misterioso estranho. Ela estava ao alcance de Papik. Ele não suportaria perdê-la. Tinha de reunir todas as forças para controlar sua impaciência. Somente quando estava próximo o bastante para olhar nos olhos grandes, redondos e atentos da foca é que atirou o arpão, numa explosão de violência que sentiu em todas as suas vísceras. Com a ilusão de que apanhara a presa.

Não tinha notado o urso polar — o único sério rival do homem. O mesmo ocorrera com a foca, fascinada pelas artimanhas de seu pretendente. Só quando viu o arpão ser disparado é que ela fugiu pelo buraco, movendo-se rapidamente com suas barbata­nas curtas.

Mas o arpão foi mais veloz.

Quando a correia se enroscou, a extremidade farpada fechou-se com força em torno da carne de seu pescoço, o que não interrompeu sua fuga. Mas antes que ela pudesse mergu­lhar no buraco, a pata do urso saiu de trás de um bloco de gelo e a golpeou. A foca rolou e ficou imóvel, com a gorda barriga virada para cima. Então, o resto do urso saiu vagarosamente, bamboleando.

Era um macho grande, abatido pela fome e sábio pela experiência. Como o focinho preto podia trair sua presença no gelo, o manhoso caçador o havia esbranquiçado, esfregando-o contra a crosta do mar de gelo. O urso sentou-se sobre as coxas, manteve uma pata sobre a atordoada foca e observou o homem que os olhava atentamente.

O velho salafrário trouxera consigo sua mulher grávida, que agora saía de trás do bloco de gelo. Os dois deviam ter estado espionando o homem por algum tempo, rindo à socapa entre suas barbas, esperando colher os frutos de seus esforços.

A mão de Papik foi à sua faca de pederneira, mas seus dedos estavam rijos demais para puxá-la e seus joelhos viravam gordura, de medo.

Ao mesmo tempo, ele viu por que tudo tinha dado errado e ainda podia ser pior. Não estava com suas ferramentas de caçador. Isso explicava tudo. Para assegurar-se de que ele não as esqueceria, Vivi as tinha cosido dentro do casaco de que ele se desvencilhara. Não era de admirar que, naquele momento, estivesse à mercê dos ursos. Não poderia correr mais rápido do que eles. E seu arpão estava enfiado na foca. De um golpe, sentiu toda a violência do frio que até então ignorara, o arrepio fundo na medula de sua espinha. Teve uma visão fugaz de Vivi, congelando-se até a morte com a criança no ventre, esperando pela volta do marido.

O topo do mundo é salpicado de pequenos iglus que se tornaram túmulos, imersos no gelo.

Mas os ursos estavam satisfeitos com o que pegaram. Esqueceram o homem completamente quando a foca, recobrando os sentidos, começou a se contorcer. Com um violento golpe de sua pata, o macho fez um talho na barriga dela, expondo um filhote de pele branca, retorcendo-se em gordura, com olhos rosados numa pequena cabeça enrugada. A fêmea do urso levantou o fardo encharcado pelo pescoço e foi andando a passos lentos para devorá-lo a sós.

Pobre perdedor, Papik achou melhor botar a culpa no silencioso animal que o tinha superado em esperteza. Só um marido oprimido permitiria à mulher ir-se com o melhor pedaço! Frio consolo. Papik dava a Vivi a mesma liberdade.

Mas só quando ninguém estivesse olhando.

Vivi não mostrou mais alegria pela volta de Papik do que mostrara tristeza quando ele partira. Ele nunca deve saber como ela se sentiu, sozinha com a matilha faminta no túnel e a criança no ventre.

E ansiosa por saber se ele regressaria.

Com um gemido, Papik caiu no leito de neve e fitou a abóbada baixa acima dele. Para economizar gordura, Vivi não acendera a lâmpada, pois a gordura fornece mais aquecimento quando comida do que ardida, e o iglu se achava enevoado com a umidade de sua pele. Com a pederneira e um material inflamável de cogumelos, ela fez fogo e acendeu o pavio de fezes secas de cães. Quando a gordura começou a derreter-se na lâmpada de pedra-sabão, cresceu uma pequena chama, comendo a névoa e espantando o frio.

Puxando com as mãos e os dentes, ela conseguiu sacar as botas geladas de Papik.

Sempre que estava abastecido de alimento, Papik irradia­va mais calor do que uma lâmpada e podia aquecer um iglu inteiro por si só. Mas agora ele parecia um monte de carne fria. Vivi abaixou as calças e colocou suas coxas em torno dos pés gelados de Papik, prendendo-os com suas partes mais quentes e sorrindo para ele. Nenhuma reação. Então, ela lambeu os dedos dos pés dele para aquecê-los e limpá-los. Como ele se mantivesse insensível e imóvel, ela tocou em seu rosto e o achou duro como osso.

Seu sorriso desapareceu.

Ela bateu nas faces dele até que a gordura congelada se partiu como uma máscara de barro. Vendo os pontos brancos da ulceração no nariz dele, ela o cobriu com sua boca, exalando calor, e então esfregou-o com seu próprio nariz.

Depois de muito tempo, o nariz de Papik começou a amolecer, seus olhos tornaram-se vivos e ele respirou fundo.

—        Aconteceu a coisa mais engraçada resmungou, com o queixo ainda rijo.

—        Uma mulher estava imaginando.

Tranqüilizada, Vivi inclinou-se para trás.

—        Ouça isto. Um homem crava o arpão numa foca. A boca dele já está cheia de água ao pensar na comida. E então, o que acontece?

—        O que acontece?

—        Dois ursos se apoderam dela e alguém perde não só a foca, mas também o arpão! Você já ouviu algo mais engraçado?

Provavelmente Vivi ouvira, pois enquanto Papik contava a história, ela só pôde reunir forças para um pálido sorriso.

—        É... agora teremos de comer um de nossos cães prosseguiu ele, convencido de que aquilo era cada vez mais engraçado. Como se tivéssemos cães sobrando.

A sensação da pele dela começava a acordá-lo, afastando os últimos pontos de insensibilidade de seus membros, e ele sugeriu que ela despisse as calças. Vivi franziu o nariz. Nada disso! Ela apontou para a pouca luz do céu na abóbada de gelo e gritou:

—        O sol!

Papik e Vivi puseram-se para fora do túnel com os rostos lubrificados. A única coisa que importava agora era não perder o primeiro raio de sol que definharia brevemente no topo do mundo, em seu aparecimento inaugural do ano. Quem não estivesse pronto a lhe dar as boas-vindas não estaria vivo para vê-lo desaparecer em sua queda. Entre os campos cinzentos de gelo e o céu que sangrava apareceu um pequeno traço verde, rapidamente ganhando brilho e intensidade.

Nesse ínterim, os cães se aglomeravam em torno de seus donos, lembrando-os de que estavam esfomeados e de que era preciso abater um deles.

Papik agarrou Karipari, mas ainda uma vez o mais turbulento membro do grupo recusou-se a cooperar e evitou a captura. Assim, ele prendeu uma cadela que estava sempre chorando e ganindo, dizendo-se a si mesmo que ela era indigna dos outros. A covarde choramingou vergonhosamente enquan­to Papik a esfolava com a faca. Depois de tirar-lhe a carcaça, sacou apenas uma fatia de fígado para Vivi e para si próprio. Seus estômagos estavam encolhidos e não sonhavam com carne de cachorro. O resto foi dado à matilha.

O dito segundo o qual lobo não come lobo pode ser verdadeiro. Mas cães de esquimós comem cães de esquimós, uma vez que a pele seja removida.

Os caês arrancaram a maior parte das carnes e trituravam os ossos com seus dentes cegos quando Papik urrou triunfal­mente:

O sol!

O traço verde transformara-se numa luz dourada e brilhante que crescia e se derramava sobre o horizonte, tingindo o cinza de um rosa-pálido e emudecendo o casal. A tonalidade rosada espraiou-se sobre o gelo, correndo em direção a eles, lançando longas sombras além de todos os cumes, blocos e elevações. Papik e Vivi permaneceram imó­veis, respirando fundo, fascinados pela maré do sol, famintos dela. Até que ela se esguichou sobre suas botas, arrastou-se sobre suas roupas, envolveu a gordura de seus rostos numa ilusão de calor.

O sol! — explodiu Papik de novo, e começou a despir seus trajes.

Vivi fez o mesmo.

Ela tinha seios firmes, que nunca haviam conhecido outro suporte senão os músculos que trabalhavam duro, e ainda estavam aumentados pela gravidez. Urrando de alegria, Papik agarrou as mãos de Vivi e rodopiou em torno dela, diante dos latidos dos cães escandalizados. Papik era capaz de dançar com mais graça do que a maioria dos ursos polares. Todos o confirmavam e nenhum urso jamais o negara.

De repente, ele parou a música. Arreganhando os dentes e arquejando, olhou por um momento o riso de Vivi. Então, jogou-a ao chão, com o rosto para baixo, segurando-a rapidamente pela nuca. Ela tentou livrar-se, derretendo uma porção de gelo sob seus joelhos, mas sentindo que ele não lhe permitiria contrariá-lo. Sem saber por que razão.

Papik sabia.

Era a primeira vez que ele a via rir desde a última primavera, quando mataram sua filhinha

 

                             Não chore

Eles haviam conseguido uma vitória sem par.

Em tempos pré-históricos, atormentados restos de algu­mas tribos asiáticas se deslocaram de seu território e venceram uma luta titânica de adaptação a uma região em que não se poderia supor que algum homem ou muito poucos animais pudessem viver. Mas sua conquista os escravizou, tributando lhes todas as energias para as necessidades de sobrevivência, de tal maneira a impedir a evolução de seu desenvolvimento cultural, preservando, assim, inalterados seus primitivos modos de vida, tal como se tivessem sido congelados.

Sua luta nunca termina; nem sua escravidão. Ainda que não se submetam a nenhuma lei humana, não podem escapar das agruras de seu habitat. Como a vida selvagem não é compatível com as multidões, eles têm de viver em pequenas unidades — um ou dois caçadores com uma única esposa — e continuar a viajar em trenós construídos com madeira flutuan­te ou carne congelada, puxados por cães quase selvagens e eternamente famintos. E porque a chama da vida arde intensamente no grande frio e a idade chega rapidamente, sua principal ambição, além da imediata procura de alimento, é criar um filho tão cedo quanto possível, para ser mais um arrimo de família.

Tal é a lei da sobrevivência.

Embora levem a vida mais dura conhecida pela humani­dade, de todos os povos são os mais alegres e, assim, provavelmente os mais felizes. Há quem atribua isso à sua alimentação exclusivamente carnívora. Outros acreditam que só rindo é que podem triunfar sobre suas provações. Com efeito, eles riem de tudo.

Exceto da morte de uma criança.

Para Papik e Vivi tudo corria bem até a época em que as coisas começaram a mudar. Primeiro, seu trenó, construído com os ossos e a carne congelada da primeira foca que Papik enfim conseguira matar, dançava alegremente sobre o Oceano Gla­cial, sobre patins recentemente congelados, corria levado pelo vento norte que sempre se abranda na primavera, e eles tinham de agarrar-se às travas para não cair. Uma fatia maior do sol aparecia a cada uma de suas voltas, mas o ar permanecia frio e uma cobertura de névoa do calor dos corpos cobria os cães e seus donos. Não obstante, às vezes Papik e Vivi andavam no trenó de busto nu, sorrindo infantilmente com os desenhos que o veículo fazia e sugando os pálidos raios do sol através de seus dentes.

Presos ao trenó e esparramados como um leque atrás do líder Toctoo, os cães o arrastavam rápido e com força porque estavam magros e famintos. Um gemido baixo de seu dono levava-os a mudar o rumo para a esquerda. Um som mais alto, para a direita. Mas se localizavam algum sinal de animais, tornavam-se surdos a ordens e chicotadas até que devorassem o que tivessem encontrado. E quando Papik ou Vivi não estavam agachados, um dos dois ficava de pé, com o bastão levantado para manter a impaciente matilha afastada.

Embora o gelo se movesse lentamente durante todo o inverno, o período da noite tinha sido relativamente seguro, com todos os elementos acalmados pela baixa temperatura. A primavera vinha alterar tudo isso. Em cima, os Espíritos do Ar se tornaram desatrelados, enquanto sob a crosta do oceano a velha Rainha do Mar começava a agitar-se. As gigantescas massas de água entravam em movimento, com tal intensidade que, em alguns pontos, arrebentavam a carapaça gelada, triturando-a com um estrondo ensurdecedor e produzindo um labirinto de grandes blocos de gelo que subiam uns sobre os outros, afundavam e emergiam de novo. Ou então a crosta se separava, abrindo canais escuros nos quais o trenó atolava, até que as águas geladas se juntavam outra vez, formando cumes difíceis de transpor.

Durante a viagem, com uma flecha de ponta de pedra atirada com seu arco de osso de baleia, Papik matou uma raposa azul, a única que não muda a pele no inverno e é fácil de ser avistada na brancura. Verificou-se que estava grávida, como todas as fêmeas naquela estação. Papik e Vivi comeram os filhotes por nascer, os quais estavam prontos para ser paridos, mas ainda menos duros que a mãe. Esta foi feita em pedaços e dada aos cães.

Logo depois, o anjo da guarda deles saiu de cena.

Papik e Vivi ainda estavam lambendo o sangue da raposa, que escorria pelos seus dedos, quando a temperatura caiu e a ventania firme se transformou em lufadas que golpeavam os cães e levantavam a neve rala e fofa do Oceano Glacial em ofuscantes turbilhões. Para afastar as rajadas, Papik cuspiu contra elas, mas elas não lhe seguiram o conselho e cuspiram de volta contra ele, tornando-se mais insolentes. O ar ficou branco, e quando os cachorros começaram a embaralhar seus caminhos, Papik parou no primeiro cume que cercava a neve movediça de que precisava para construir um abrigo.

Encurvada pela nevasca enquanto carregava o fardo de que precisariam dentro do abrigo, Vivi tropeçou e caiu. Uma dor aguda como uma cãibra menstrual fez com que ela se dobrasse toda. Mas ela sabia que só o riso podia ser comparti­lhado; não a dor. Assim, ela a guardou para si. A primeira pontada foi absorvida rapidamente. Então veio outra. E outra.

Eram as dores do parto.

Papik estava cortando blocos de neve, à sombra do vento, atrás do trenó tombado, quando percebeu que os cães se estavam ajuntando em torno de Vivi e enrolando-se na neve aos pés dela, embora ela batesse neles furiosamente com um pau. Indo em socorro dela, ele viu que de suas calças gotejava sangue.

A criança está vindo? — gritou ele excitado no ouvido dela, livrando-a da corte de Karipari com um chute que ensinou o cão a voar.

Não é impossível! — gritou Vivi.

Os cães voltavam de novo, enlouquecidos pelo cheiro de sangue, e Papik teve de dominá-los, um a um, prendendo-lhes as patas dianteiras em seus arreios, antes de poder prosseguir em seu trabalho.

—        Uma mulher está causando-lhe incômodo — disse Vivi.

—        Um homem está acostumado a isto — respondeu Papik gentilmente. — E é para nosso filho... seu primeiro iglu.

Vivi não respondeu. Pisou nos fundos das fileiras de blocos de neve que Papik tinha disposto em círculo, pôs-se de joelhos e começou a retirar os fardos das costas. Mas logo desistiu, apoiando a fronte ardente no gelo e fechando os olhos bem apertados.

Enquanto levantava em torno dela um abrigo para dois, com largura e altura simplesmente de um homem, Papik viu que Vivi abaixava suas calças sobre suas longas botas e, permanecendo de joelhos, abria um buraco no gelo para receber a cabeça da criança que ia nascer. Mas, por enquanto, somente sangue gotejava no buraco.

Papik trabalhava tão rapidamente quanto podia, arriscan­do-se mortalmente a ter a transpiração congelada. Ajuntando um bloco a outro em fileiras que se estreitavam, ele perdeu de vista a mulher, que ficara do lado de dentro. Quando o iglu ficou pronto e ele se engatinhou pela porta, encontrou-a reclinada num tapete de sangue, pressionando contra o peito uma pequena trouxa enrolada em peles.

Ela estava em lágrimas.

Na quietude do iglu, o ruído do oceano podia ser ouvido por debaixo do gelo e, acima, abafados pela parede espessa, os sons dos Espíritos do Ar, uivando e guinchando como vozes humanas.

—        Não chore — ordenou Papik a Vivi, mas ela não podia parar e ele entrou em pânico. — Uma menina outra vez? — perguntou.

Ela torceu o nariz em sinal de negação, enquanto suas lágrimas continuavam a jorrar, grossas e lentas como sangue.

Era um menino — disse ela. — Um menino morto.

Morto?! Mas ele estava se mexendo!

Parou há algum tempo. Uma mulher não lhe quis dizer.

Papik agachou-se tristemente.

Devemos ter quebrado algum tabu. Vamos consultar um feiticeiro já. Mas você não deve chorar.

Uma mulher deveria rir?

Não. Mas chorar também não. Você terá outro filho.

Vivi torceu o nariz.

Uma mulher jamais tornará a rir.

Sim, você vai rir.

—        Não. Porque uma mulher não quer perder outra criança. Ela se sente doente. Ela só é um peso morto. Leve o trenó e deixe-me morrer em paz ao lado de meu filho.

Papik fez uma carranca.

—        Você fala como se tivesse sido mordida por um carcaju.

—        Por quê? Uma vez você se livrou de minha mãe.

—        Sua mãe estava velha e doente, sempre choramingan­do e queixando-se. Um homem fez um favor a ela e a todos, jogando-a na água.

—        Quando sua mãe se afogou, ninguém a impediu.

—        Naturalmente. Ela já tinha perdido a maioria dos dentes, além do marido. E não queria ser um fardo para ninguém. Com você é diferente. Alguém precisa de você.

Vivi apertou de leve as mãos dele.

—        Você precisa mesmo?

—        Decerto. Quem cuida das minhas botas e esfrega minhas peles? Mas você tem de aprender a não chorar.

Quanto mais ele dizia isso, mais ela chorava.

—        Ouça — disse Papik. — Veja como um garotinho aprendeu a não chorar. Esta foi a única regra que meu pai me ensinou: não chorar. Durante um maremoto, meu braço direito ficou preso entre dois blocos de gelo e meu pai já se preparava para amputá-lo. Minha mãe me acariciava a face e batia os lábios com tanta força que eles sangravam, mas ela não chorava. Quando meu pai acabou de afiar o machado de pedra e estava a ponto de cortar meu braço, um menino começou a chorar. Então, meu pai sentou-se a meu lado e disse: "— Quanto mais você lutar contra uma dor, mais forte ela será. Você deve acolher a dor, dar-lhe boas-vindas, pedir mais, e assim você não a sentirá. As raposas e os carcajus apanhados numa armadilha metem os dentes nas próprias pernas para escapar e não choram. E seus dentes machucam mais que este machado. Agora, o que quer que um animal pode suportar um homem também pode."

Ainda chorando, Vivi bateu na mão de Papik e ele continuou:

—        Meu pai disse: "— Quem tem uma dor sente-se rancoroso e solitário, como se fosse o único. Mas não é assim. O mundo está cheio de dores. Se ela pode fazê-lo sentir-se menos só, alguém o acompanhará em sua dor." E meu pai feria seu próprio braço, tão fundo que se podia ver os tendões brancos antes que o sangue os envolvesse.

Não penso que seu pai não sente a dor. Ele quer apenas que você se sinta menos só na sua dor. Mas se você não parar de chorar já, nós vamos embora sem você, e se você quiser continuar a viver, terá de mastigar seu braço para livrá-lo você mesmo, a menos que algum urso o faça para você. Assim, o menino que tinha parado de chorar para ouvir disse a seu pai que lhe metesse o machado.

E seu braço? perguntou Vivi, que tinha parado de chorar para ouvi-lo.

Aconteceu a coisa mais engraçada disse Papik rindo. O menino desmaiou, provavelmente de medo. Quando voltou a si e deu com seu ombro ferido e enrolado em peles ensangüentadas, pensou que seu braço tivesse ido embora. Seus pais esqueceram de dizer-lhe que os blocos de gelo se tinham separado da mesma forma com que se tinham juntado. Até que as ataduras foram retiradas e ele se surpreen­deu ao ver que o braço ainda estava ali. Mas desde esse tempo ele aprendeu a não chorar nunca.

—        Uma mulher não chorou quando teve seu primeiro filho, nem este — disse Vivi. — Ela chorou quando os perdeu.

Papik correu um dedo sobre as pálpebras de Vivi.

—        Talvez não seja culpa sua que seja tão duro para você. Você é uma mulher da água, do sul, onde o mar se derrete à cada verão. Mas se você quer tornar-se a mãe de um verdadeiro homem, antes de tudo tem de aprender a não chorar. Ou então, como você poderá ensinar isso a ele?

Papik esfregou o nariz de Vivi com o seu próprio nariz, cutucou-lhe as bochechas com ele e fungou no rosto dela. Repentinamente, saltou para trás aterrorizado e lembrou-lhe que um lugar onde alguém morre tem de ser abandonado imediatamente.

—        Ele ainda não era uma pessoa verdadeira — disse Vivi. — Uma mãe está certa de que sua sombra não tentará prejudicar-nos. Você não pode sair na nevasca agora.

E deitou-se para aormir, apertando o tardo contra o peito, e Papik ficou sozinho com seu pavor da sombra.

Que era muito maior do que o medo que tinha da velha Rainha do Mar sob seus pés ou dos Espíritos do Ar do lado de fora.

— Por que não? — perguntou Papik quando a tempestade amainou e eles se preparavam para partir. — Os cães comem tudo o que lhes damos. Eles nos comerão também algum dia, ou então outros animais o farão.

—        Uma tola mãe não quer alimentar os cães com seu filho — disse Vivi. — Vamos deixá-lo descansar em paz no seu primeiro e último iglu.

Papik não quis discutir. Vivi não estava bem. Pelo cheiro, ele podia sentir que sua hemorragia não tinha cessado.

Quando tudo estava pronto para a partida, ele tapou a entrada. O pequeno iglu, agora túmulo de um Homenzinho que cessara de viver antes de nascer, parecia parte da paisagem de gelo. A neve já havia alterado sua forma. Logo, o vento norte, que agora soprava com intensidade, o apagaria da vista, ajudando a preservar a criança morta nas profundezas do gelo.

Talvez para sempre.

 

                               O Anfitrião

Algum espírito do mal o perseguia. Papik estava convencido disso. Quando nada, o fantasma da mãe de Vivi, que ele atirara no mar. Seria justamente como a velha fêmea de foca. Tinha sido um assassinato de misericórdia, é certo, aprovado por um e por todos. Mas os beneficiários nem sempre são reconhecidos.

Como Vivi tinha ficado deitada, com indiferença, no trenó, na maior parte do trajeto, sem falar, sem sorrir, sem queixar-se, apenas sangrando lentamente, Papik diagnosticou um caso de estômago cansado e prognosticou pronto restabele­cimento tão logo ela tivesse algo para comer.

Mas agora a crosta do mar não se achava mais tão espessa que pudesse servir para enterrar um homem de pé, mas só um homem deitado. Assim, durante um período de descanso dos cães, Papik serrou um círculo na geleira com a mandíbula de tubarão e começou a pescar.

Pelo menos, tentou.

Com o nariz quase deslizando na água que saía do buraco depois que o gelo tinha sido retirado, com as costas voltadas para o céu, uma das mãos manobrando a isca e a outra segurando o arpão suspenso para sei atirado, ele esperou que algum peixe aparecesse até que seus joelhos ficaram dormentes e suas nádegas já tremiam. Mas, em vâo.

Ele estava decidido a não mover-se quando sentiu o cheiro de gordura ardendo, cheiro que vinha de longe, mas que não enganava. Os cães também o sentiram e começaram a farejar e uivar.

Há alguém em algum lugar exultou Papik.

Saltou, levantou os cães e foi gingando atrás do trenó, empurrando as travas para acelerá-lo. Os cães não precisavam de chicote nem de quaisquer outros comandos senão os de seus próprios narizes.

Dirigiram-se para uma pequena cúpula de neve ao lado de uma crista. Embora não houvesse cães anunciando a chegada deles, o iglu parecia habitado. Um bocado de fumaça saía de sua passagem de ar. Eles pararam a uma pequena distância e olharam fixamente para a evidência de vida com os corações batendo forte. Não viam seres humanos desde o último verão, quando encontraram um trenó da tribo Netchillik.

Onde a companhia humana é preciosa, as aproximações são cautelosas. Fazendo um esforço, Vivi sentou-se para inspecionar a aparência de Papik. Então, deixou seu cabelo cair, penteou-o com uma espinha de peixe e prendeu-o no alto da cabeça, fazendo a torrinha alta que distingue as mulheres polares e que oscila quando elas se movem. Só quando eles acharam que estavam vendo bem é que ordenaram à matilha que entrasse no túnel e anunciasse sua presença. Viram um pedaço de foca pendurado na parede do iglu.

Um rosto enrugado e dentuço apareceu fora do buraco do iglu e inspecionou os visitantes com olhos furtivos sob a ruga mongólica. E o resto de um Homem saiu lá de dentro e se pôs de pé, acompanhado de sua mulher.

A região dos Homens é muito vasta, mas é um pequeno mundo e todos conhecem os sucessos e infortúnios de cada família. Quando esse homem se apresentou como Ammahladok, Papik e Vivi se deram conta de que a mulher devia ser Egurk. Souberam também que, a despeito de seu nome, que significava Barriga Pequena, houvera tempo em que ela compartilhava sua vida e seus deveres conjugais com três maridos, pois a vida no norte é dura e as mulheres são escassas.

Os ursos tinham devorado um dos três maridos alguns anos antes, tirando uma boa carga das costas de Egurk.

Uma vez estabelecidas as identidades, trocaram-se sorri­sos e saudações, todos se curvando muito enquanto apertavam as mãos acima de suas cabeças. Proeza nada fácil. Depois disso, Ammahladok convidou os viajantes a entrar no que ele chamou sua esquálida e miserável residência.

Não tinha exagerado.

Afora a circunstância de ter leitos duplos, pois fora construído para dois maridos, o iglu era como outro qualquer, e os visitantes nele viram e sentiram os aspectos familiares e os odores. A parede circular manchada de sangue... o calor de corpos humanos... o cheiro do pavio que flutuava na gordura derretida e da urina guardada no recipiente de gelo para a lavagem e o curtimento de peles... peças de roupas secando no varal... filhotes de cachorro brincando ruidosamente entre suas fezes... e a doce fragrância de matéria deteriorada...

Os olhos de Papik buscaram logo o monte de foca ou urso que deveria estar apodrecendo atrás da lâmpada de pedra-sabão, mas, para sua decepção, nada havia. Egurk simples­mente encheu um recipiente de pedra com neve tirada do bloco de beber, colocou-o para derreter sobre o pavio e sentou-se ao lado do marido, colocando as mãos no colo afetadamente.

Egurk não era nenhuma beleza, mais moça do que velha, porém mais velha do que moça, e seus dentes estavam ralados até as gengivas pela mastigação de couro, como era de se esperar de alguém que amaciara botas e roupas para tantos maridos. O que a redimia em sua aparência eram o sorriso radiante e a gargalhada feliz — marcas registradas de todas as mulheres dos Homens.

E também dos Homens, aliás.

Ammahladok era mais velho que sua mulher, provavel­mente chegando aos quarenta e ao fim da vida. Os rigores da existência no frio tinham produzido fendas em seu rosto e adelgaçado seus cabelos, mas ele disfarçava isso usando um enorme bigode, coisa incomum no gelo ártico, onde normalmente só estrangeiros e morsas usam bigodes.

Você ouviu aquele do Ippi — perguntou Papik logo que sentaram — que comeu os próprios pés congelados para sobreviver?

Não — disse Ammahladok.

Sim, foi há pouco tempo — exclamou Papik, e seus anfitriões explodiram em gargalhadas ásperas e curtas, típicas dos Homens, gargalhadas que terminam tão bruscamente quanto começam.

Papik sentiu-se encorajado a continuar no mesmo tom.

E a dos policiais que prenderam meu pai, mas como não sabiam viajar caíram na água e meu pai teve de salvá-los?

Conte-nos.

Um homem morreu!

Isso causou nova onda de hilaridade, apoiando a crença de Papik de que ele era um irresistível contador de histórias.

As histórias sobre os homens brancos sempre são as mais engraçadas — disse Ammahladok, enxugando as lágrimas de suas orelhas.

Como a do velho Pohol. Você ouviu?

Seus anfitriões não tinham ouvido, a menos que dissessem isso só por questão de polidez, e Papik foi adiante com o melhor de seu repertório.

—        Meu pai conheceu vários homens que tinham viajado na expedição de Pohol, a mais famosa entre os homens brancos. Durante anos, os homens brancos tentaram chegar tão perto do norte de tal modo que vissem o sul em todas as direções para que se voltassem. Ninguém sabe quantos morre­ram tentando e quantos comeram os outros para sobreviver, para não falar dos navios esmagados quando o mar se congelou. Eles insistiam em viajar como em suas próprias terras, carregando desde a partida todo o alimento e o carvão de que precisariam. Assim, todos se davam mal, a não ser que voltassem a tempo, como o bom e velho Pohol e seus companheiros fizeram antes. Até que os Homens decidiram mostrar-lhe como viajar no gelo, lamentando que ele fosse tão velho. Parece que durante um ano inteiro todas as tribos de homens brancos abaixo da linha das árvores não falaram de outra coisa: o velho Pohol vai conseguir chegar ao norte exato? Eles pronunciavam seu nome de modo diferente. A viagem não era fácil, mesmo para os Homens que o acompanhavam, porque Pohol e seus companheiros não eram fortes e não se sentiam aquecidos na maior parte do tempo, e os Homens tinham de levar todas as cargas desnecessárias dos homens brancos. Bem, todos trilharam para o norte até que o instrumento mágico dos homens brancos lhes disse que final­mente haviam alcançado o norte exato. E o que vocês pensam que encontraram lá?

—        O quê?

—        Nada! — Os olhos de Papik se encheram de água com o regozijo. — Absolutamente nada!

Uma coisa era certa. Se a parede de neve não se desintegrou com a gargalhada que se seguiu, os ventos nunca a poriam abaixo. Mesmo que o iglu estivesse destinado ao colapso dentro de pouco tempo.

Mas por um motivo bem diferente.

A etiqueta pedia que Papik continuasse ridicularizando os homens brancos por mais um longo tempo ou trocando mexericos relativos aos homens verdadeiros, mas seu estômago exigiu que o assunto de comida fosse abordado. Assim, disse:

—        Enquanto pescava, alguém sentiu cheiro de gordura derretida. Do contrário, não teria tido o prazer de encontrá-lo.

Ammahladok replicou em alto estilo:

—        A perda seria nossa. Que tal a pescaria?

Papik franziu a testa.

—        Os peixes ainda não tinham saído do sono de inverno. Eis por que seguimos o cheiro de gordura queimando.

—        Você veio à procura de comida?

A triste confirmação de Papik de que ele chegara sem coisa alguma para comer, exceto seu trenó, pôs seus anfitriões aos urros de hilaridade, que Ammahladok explicou tão logo pôde controlar-se.

Durante um ano eles vinham enfrentando a inanição e, além disso, outro membro da família tinha saído para caçar muito longe com os poucos cães que mal davam para puxar um homem. Mas agora ele estava tão atrasado que devia ter-se dado mal. Assim, Ammahladok, não querendo matar seus únicos dois filhotes, tinha queimado a última porção de gordura para atrair algum urso. O pedaço de carne do lado de fora da parede estava ligado a um alarme feito de dois ossos que se sacudiriam a algum puxão. Era um truque velho e experimentado, que possibilitava aos moradores do iglu fisgar um urso com uma lança através da parede sem sair no frio. Mas agora a gordura tinha terminado em fumaça, atraindo outro casal faminto em vez de algum urso. Se não fosse o caso de rir...

Papik percebeu logo o humor da situação, especialmente quando Ammahladok decidiu que agora eles poderiam consu­mir a isca e mandou Egurk lá fora para pegá-la. E o alarme funcionou perfeitamente.

Só Vivi não participou da risada que se seguiu, mas disse:

—        Perdoem uma mulher aborrecida que gostaria de esticar-se um pouco.

Os anfitriões liberaram um leito para ela e todos passaram uns aos outros uma caneca de crânio cheia de neve derretida. Vivi preferiu mastigar um pouco de gelo que tirara debaixo das peles do chão e fez a todos felizes ao recusar sua parte na isca de urso.

—        Vocês devem desculpá-la disse Papik. Alguns espíritos do mal acabam de dar-nos um filho morto. E antes disso, uma menina sadia.

—        Que coisa triste disse Egurk.

—        Uma tola mulher é de pouca ajuda para seu marido disse Vivi.

—        Ela não pode sequer rir com ele agora. Egurk riu em silêncio e olhou para o marido.

Para ajudá-la a ter um menino sadio disse Papik estamos com vontade de consultar Siorakidsok, o velho feiticeiro que sabe prever o tempo, curar doenças e dar ajuda a mulheres estéreis.

Siorakidsok está velho demais para ajudar mulheres estéreis disse Ammahladok soltando outra gargalhada. É uma fraude total. Ele não foi capaz de tornar Egurk reprodutora.

Egurk acrescentou.

—        Nem mesmo quando ela tinha três maridos e ficava olhando para a lua cheia.

Ammahladok balançou a cabeça.

Siorakidsok a fez engolir poções mágicas até que ela desistiu, e insistiu em explorá-la com seu dedo, mas não adiantou nada.

Assim, ainda não temos nenhum filho — disse Egurk. — E este bem poderá ser nosso último iglu. Quando ele virar gelo, quem terá forças para construir outro novo?

Papik se sentiu cada vez mais deprimido, uma condição mental nada boa para um Homem. Mas aquela era a primeira vez que tinha sido convidado a um iglu apenas para arranhar uma isca de urso e, pior, sem ser capaz de humilhar os anfitriões impingindo-lhes uma parte exagerada do produto de sua própria caçada. Matutou um pouco até que, de repente, pôs-se de cócoras, arrastou-se através do túnel e voltou agitando na mão um pedaço de carne congelada: uma trava de seu trenó.

Você não pode desfazer-se disto — disse Ammahla­dok com os olhos arregalados.

Nosso trenó tem mais travas — assegurou-lhe Papik, e ajuntou uma mentira: — Além disso, um homem gosta de correr com os cães.

Os anfitriões tentaram recusar um presente que as circunstâncias tornavam muito valioso e, portanto, particularmente humilhante. Mas depois que Papik começou, ele próprio, a sugar a trava, seria grosseiro da parte deles não compartilhá-la. Assim, o pedaço de carne congelada passou de boca em boca, descongelando-se e desaparecendo rapidamente à medida que aguçava os apetites.

Até Vivi deu duas lambidas, mas, sobretudo, para ser sociável.

A trava acalmou momentaneamente as angústias da fome e abrilhantou a convivência de corações famintos de companhia humana.

Só Vivi não participava.

Quando ela virou-se para a parede e puxou uma pele cobrindo a cabeça, indicando que desejava dormir, Ammahla­dok relanceou os olhos da direção de sua mulher para a direção de Papik e sorriu:

A vida é triste quando uma esposa está doente.

Muito triste — retrucou Papik.

Muito — disse Egurk abafando um risinho.

Ficaram a trocar sorrisos e olhares até que Papik, impaciente mas contendo as maneiras, declarou:

Alguém não deseja abusar.

Não é abuso algum.

Ammahladok puxou sua corada mulher pela mão, encaminhou-a gentilmente para a frente de Papik e exclamou:

—        Seja uma mulher.

Risadas não são motivo para sexo, mas sexo é sempre motivo para risos. Papik e Egurk riram em silêncio, envergo­nhados, e Ammahladok repetiu:

Um homem fica triste se sua mulher não pode rir. De repente, Papik teve outros pensamentos e disse:

Alguém não lhe pode retribuir a gentileza. Ammahladok assegurou-lhe:

—        Podemos encontrar-nos outra vez. Assim, não despre­ze o oferecimento sem valor de um pobre anfitrião.

Papik teve bastante força de caráter para esquecer seu orgulho quando Ammahladok, demonstrando ser possuidor de grande tato, agarrou suas peles de urso e disse:

—        Pelo barulho, um homem acha que os cães estão brigando. Ele já vai ver o que é.

Era verdade. Um rugido de cães se fizera ouvir por um momento. Egurk ajudou o marido a calçar as botas e Papik apressou a partida de seu anfitrião ajudando-o a vestir o abrigo.

Quando Ammahladok se enfiou pelo túnel, Papik olhou para Vivi. Ela parecia dormir, a menos que fingisse, como esposa bem-educada e discreta que era. Ele se pôs de joelhos para fechar a entrada com o bloco de neve e virou-se para Egurk com um riso embaraçado.

Ela ria à socapa atrás da mão, com o rosto em chamas até a raiz dos cabelos.

Apesar do mútuo acanhamento, Papik fazia um bem­humorado progresso com a anfitriã quando a voz abafada de Ammahladok ressoou no túnel e o bloco que tapava a entrada avançou para dentro, como se alguém quisesse entrar. Do lado de fora, os cães pareciam cada vez mais agitados e Papik pensou que eles estivessem dando trabalho a Ammahladok, mas ele não podia prestar atenção a isso naquele momento.

Afastou-se de Egurk para pôr o bloco de neve de volta no lugar e gritou que ainda não era a hora de um marido voltar para casa. Mas Ammahladock insistia a ponto de ser grosseiro, causando o risco de esfriar o ardor de Papik e acordar Vivi. Resmungando ininteligivelmente, continuou a empurrar o tampão do lado de fora e Papik, com o peito para baixo e as nádegas para cima, agüentava firme do lado de dentro. Até que o bloco desintegrou-se e o rosto cheio de neve de Ammahladock apareceu, olho no olho de Papik.

—        Os ursos estão aqui falou de modo confuso, retorcendo-se freneticamente. Estão farejando minhas calças!

Subiu, e ia à procura de sua lança, mas Papik ultrapassou-o e empurrou-o contra a parede, trovejando:

—        Fora do meu caminho! Agora você é meu anfitrião...

 

                         A comida

Há muitas maneiras de matar um urso e os Homens conhecem a maioria delas. Mas eles nunca sabem quem vai vencer, pois suas armas são feitas de madeira flutuante e osso, de sílex e marfim, e para matar suas presas eles têm de chegar perto delas o suficiente para olhá-las nos olhos.

O urso é superior ao homem em muitos pontos: pode andar em duas pernas, como o homem, mas também em quatro, o que o homem não pode fazer. Ultrapassa o homem em força e resistência. Nada mais do que o homem em águas geladas, corre mais do que ele no gelo liso com suas garras e patas acolchoadas, e pode vencer a sufocante nevasca sem abrigo. O homem não tem senão uma vantagem sobre o urso, e não é o seu cérebro; são os dez dedos das mãos.

Nem mesmo golpear através de um buraco na parede quando o urso vem bater na porta da casa é inteiramente seguro. O urso pode não colaborar, colocando-se no lugar errado ou recusando-se a ficar imóvel, e se ele é apenas ferido, pode ficar muito aborrecido e decidir esmagar o iglu.

Os ursos que tardiamente atenderam ao chamado de Ammahladok com gordura ardente não tiveram que derrubar seu iglu porque Papik o fez para eles. Em sua impaciência para sair, ele abriu caminho através da parede com uma cabeçada, amando a abóbada e emergindo do lado de fora com neve na cabeça e a lança na mão.

A área em frente ao iglu, brilhando ao sol que acabara de levantar-se, era um campo de batalha para os cachorros que coxeavam e quatro ursos polares, um deles ainda filhote.

Alguns cães haviam arrebentado seus arreios. Dois ja­ziam sangrando. Um destes era Toctoo. Ainda coxeando, com uma pata dianteira metida na coleira, o cão-líder tinha seguido suas pegadas e atacava os atacantes. Agora ele estava caído, com a perna estraçalhada: uma brancura lustrosa de osso em vermelho aveludado. Embora dando os últimos suspiros, Toctoo ainda encontrava forças para rosnar para os ursos com seus dentes despedaçados e para dar boas-vindas a seu dono com um ganido e uma abanada de rabo.

Após um magro inverno, os ursos estavam suficientemen­te famintos para vencer sua natural timidez diante do homem. O macho mais próximo levantou-se em seus traseiros e, como uma torre diante de Papik, saltou com suas patas, mas a ponta da lança penetrou-lhe através da boca e do véu palatino, até o cérebro. Papik torceu a meia tonelada que desabou com um baque que sacudiu o gelo.

Esse golpe foi rápido e arriscado. Qualquer desvio da lança teria feito do vitorioso a vítima. Entrementes, outro macho estava acossado por cães que faziam sua perna em farrapos. Rosnando, ele batia com as patas, mas mesmo os cães que tinham sido agarrados se penduravam nele. Seus dentes cegos não podiam penetrar no couro peludo, mas eles dificultavam os movimentos do urso, de modo que Papik pôde espetá-lo com a lança, antecipando-se a Ammahladok, que tinha saído com seu machado.

Naquela altura, a ursa escapou de um cabo-de-guerra com Karipari que rosnava furiosamente e saiu trotando. O filhote, que tomara a batalha por um jogo, brincando entre mortos e matadores, continuou por ali. Então a mãe veio saltando e deu-lhe uma bofetada.

Após o que, ambos partiram juntos.

Depois que o sangue que jorrava dos ursos foi bebido diretamente da torneira, o cérebro foi sugado através de um buraco aberto na base do crânio. Como os apetites cresceram e os estômagos aumentaram, muita carne foi consumida. Os ursos deviam ter estado muito famintos, pois havia liquens e galhos em seus intestinos.

Durante as voltas seguintes do sol, não houve tempo para reconstruir o iglu. Vivi, ainda sangrando, estava fraca demais para trabalhar, e os outros três se achavam muito ocupados, comendo e rindo, comendo e narrando os detalhes, comendo e alimentando a matilha, comendo e esfolando os ursos e comendo e esfregando as peles, comendo e salgando as carnes.

Os nômades têm de viajar sem muito peso, com escassas provisões, e Papik só podia aproveitar-se da carne que ia para seu estômago antes da partida. Assim, ele se saturou com vontade, admirando sua barriga nua que estufava à luz do sol. Quando não podia mais ficar de pé, esticou-se de costas e permitiu a Egurk que deixasse cair petiscos em sua boca escancarada.

Mas a matilha recebeu rações mesquinhas; até os filhotes. Os Homens Polares tinham desenvolvido uma raça especial de cães, os quais, apenas um pouco mais fracos que os do sul, eram bem menores e precisavam de muito menos alimento.

Para substituir Toctoo, Papik escolheu Karipari, uma ousada decisão que estava destinada a dar bons resultados.

Para provocar a auto-estima dos membros mais sacrifica­dos da matilha, Karipari foi admitido no leito de sua dona, entre os misteriosos odores de sua pele; foi brindado com bocados selecionados; desfrutou dos carinhos de seus donos em seu focinho em vez de batidas em seu lombo; e recebeu protestos de afeto em voz baixa e suave.

Até o rebelde se tornou um aliado.

E Karipari conhecia seus deveres sem ter de ser instruído a respeito: separar membros da matilha em luta, colocando-se impetuosamente entre eles com rosnados bravios. E, pela primeira vez que pegou um deles roendo o trenó, interveio com tanto zelo que o criminoso perdeu metade de uma orelha.

Depois de ajudar seus anfitriões a reconstruir o iglu, Papik e Vivi se despediram com emoção, pois onde a companhia é rara as separações são dolorosas e, portanto, evitadas no mais alto grau. Quando o trenó estava pronto para partir, Ammahladok e Egurk se afastaram, fingindo estarem terrivelmente ocupados.

Papik os humilhara, deixando-lhes toda a carne que tinha conseguido, para não falar das peles que não quis. Os anfitriões se vingaram, dando-lhe seus dois filhotes, para ajudá-lo a repor as perdas.

Vivi meditava quando partiram:

Egurk está com medo de que este seja seu último iglu.

Não é impossível disse Papik estalando o chicote.

Eles viajavam por um império de gelo, onde o sol nunca se põe. O globo vermelho da primavera perdeu o sangue e se esbranquiçou em seus esforços no sentido de manter-se alto, e agora passeava continuamente acima do horizonte, levantando-se um pouco de um lado e abaixando-se levemente do lado oposto, projetando lentas sombras circulares que eram todas longas e leves porque os raios eram baixos e fracos. Mas sua ininterrupta presença e a reverberação no gelo produziam um tal aquecimento que do chão saíam vapores, parcialmente escondendo o horizonte, as ilhas cónicas e os icebergs pontia­gudos que se levantavam da crosta do mar, trazendo as primeiras lufadas de neve.

Como eles se deslocavam em direção ao sul, a crosta do mar foi-se tornando mais perigosa. Abria-se freqüentemente, e uma vez Karipari teve de desviar-se bruscamente, para que o oceano não os engolfasse a todos matilha, trenó e condutores. Às vezes, o vento norte amainava, e então o ar se enchia com os perfumes do verão, perfumes de flores distantes e do sal do mar aberto.

Viajavam sem contar as voltas do sol, sem ver quaisquer homens; apenas alguns animais.

Devido à constante exposição ao sol, suas faces perderam a pálida cor amarelada do inverno e se tornaram cor de cobre. Como sempre era dia, eles nunca dormiam, com a exceção de pequenos e ocasionais cochilos. Tinham acumulado suficiente repouso durante a longa noite, o que dava para todo o verão.

Agora queriam arranjar carne e armazenar luz do sol para o próximo inverno.

Desde que a luz do dia penetrava na névoa, os peixes voltavam à vida e se deixavam atrair à superfície e serem apanhados nos buracos que Papik serrava na crosta de gelo. principalmente trutas iridescentes e de barriga vermelha e salmões pintados e coloridos pelo sol. Mais importante foi a foca que ele pegou fingindo que era uma delas. O sangue oleoso e a carne avermelhada, comida entre fatias de gordura, fizeram maravilhas para Vivi. Ela voltou a pegar pesos, raspar peles e mascar botas, embora nem a ferida de seu ventre nem a de seu coração estivessem inteiramente curadas.

Mas Papik estava certo de que, empanturrando-se no verão e encontrando um feiticeiro capaz, o assunto teria o devido tratamento.

De uma feita, o forte vento norte e algumas tempestades submarinas separaram a crosta em que viajavam da crosta principal, e por duas ou três voltas do sol eles se viram à deriva, no oceano aberto, sobre uma massa de gelo flutuante que era menor do que uma ilha. porém não muito menor, até que deram numa costa e seguiram para terra, onde a vegetação anã começava a aparecer entre a neve derretida, e as geleiras ruíam estrondosamente e produziam os primeiros icebergs da estação no oceano liquefeito.

E lá eles toparam com um grande e inesperado obstáculo.

 

                           O massacre

Eles tinham acabado de comer o que havia no trenó e tentavam localizar sua posição numa região que mudava de aspecto a cada ano quando Vivi exclamou excitada que tinha avistado uma embarcação.

Era um navio de homens brancos, deslocando-se por meios próprios, navegando junto da costa. Alguém a bordo fez um aceno de mão e o casal respondeu, encantado e lisonjeado. O navio arriou uma lancha e desembarcou três homens brancos.

Um deles, muito cabeludo, que falava a língua dos Homens de modo bastante inteligível, mas que não perdia tempo algum com cerimônias, informou Papik de que os homens brancos que voavam no céu tinham avistado um ajuntamento de focas que flutuava, e que ele seria elegante­mente recompensado se participasse da matança. Encontrar mãos era o grande problema numa terra de largos espaços e pouca gente.

Vivi lembrou-se de seu pai lhe haver contado a respeito de grandes baleeiros vindos do lado de lá da linha das árvores a cada verão, pilotados por diabos louros que convidavam os esquimós a bordo e os tornavam inconscientes, com aguarden­te ou uma porrada na cabeça, e quando eles voltavam a si achavam-se em alto-mar. Era a única maneira pela qual as tripulações dos navios podiam ser completadas em suas expedições de caça às baleias nas perigosas águas árticas.

Aqueles tempos estavam acabados. O mesmo acontecia com a maioria das baleias.

Agora os estrangeiros queriam ajuda em suas expedições de caça às focas. Não davam porrada na cabeça de Papik; hoje em dia isso é tabu. Mas prometiam-lhe focas e presentes, e aceitavam levar Vivi para bordo, e até sua matilha.

Papik aceitou o convite com entusiasmo. Mas não pela recompensa. Ao contrário. Ele estava ansioso por mostrar àqueles estrangeiros como se caçavam focas. Como todos os heróis modestos, ele almejava reconhecimento, tanto por seu heroísmo como por sua modéstia.

Porém, cada vez que ele se tinha aventurado no traiçoeiro e imprevisível sul, Papik o lamentava. O mundo abaixo do gelo perene parecia ser habitado principalmente por estrangeiros que não sabiam viver e faziam coisas extravagantes. Isso lhe ocorreu novamente logo que a lancha dos homens brancos rumou para o navio foqueiro. Era a primeira vez que ele não navegava num bloco de gelo flutuante, mas num barco de madeira, e logo ele descobriu que ali havia algo de sinistro, além do perigo de afogar-se. O mar, salpicado de icebergs, estava encrespado, a Papik já experimentava as misérias do enjôo, agravado pela necessidade de salvar a face perante os esírangeiros, escondendo seu estado.

Para não falar da humilhação causada por Vivi que, simples mulher que era, provava ser um marinheiro muito melhor.

Embora Papik estivesse sentado, com a cabeça erguida, no banco da pequena lancha, olhando estoicamente para a frente, os três homens brancos notaram sua situação. Naquela oportunidade, ele não conseguiu ver nenhum humor numa situação que os outros achavam hilariante.

O gentil homem que sabia falar prometia a Papik que ele se sentiria melhor na embarcação maior, mas não podia estar mais enganado. A velocidade do foqueiro fazia com que ele jogasse muito, a despeito de seu maior peso, e o cheiro das máquinas encarregou-se de fazer o resto.

Até que Papik decidiu esquecer sua dignidade diante de todos os homens brancos e estirou-se no convés, gemendo lamentavelmente.

Embora fosse apenas um pequeno e encardido navio, o foqueiro devia parecer uma ilha abarrotada de novidades para aquela gente que considerava um iglu de um metro e meio como um castelo. E, de fato, Vivi deu uma volta pelo navio com encantada curiosidade, inspecionando cada teia de aranha e cada barata, escoltada pelo comandante, o qual foi logo recebendo um chute de Karipari no momento em que tomou a liberdade de pôr a mão no ombro de Vivi.

Papik, sempre deitado de costas, com os olhos fechados, estava indiferente ao mundo em torno dele. Não lhe importava quantos homens havia a bordo, e mesmo que tentasse sabê-lo, de nada adiantaria, pois só tinha vinte dedos nos pés e nas mãos, e o navio carregava um punhado de homens além de vinte.

Tudo o que ele queria era pôr os pés no bloco de gelo flutuante e nunca abandoná-lo novamente até chegar à terra ou ao gelo.

Os que exigiam números precisos para plotar sua posição tinham estabelecido que alguns dos blocos de gelo e icebergs que flutuavam na direção do sul, em cada verão, depois da ruptura da calota polar, ou que eram produzidos pelas geleiras de terra, deviam medir mais de oitocentos quilômetros. Contudo, o bloco para o qual o foqueiro navegava se verificou ser o menor de todos. Mas tinha uma vantagem. Não era branco, mas preto, abarrotado de focas de tal maneira que umas tantas se penduravam nas bordas.

E o negrume estava salpicado pelas peles brancas dos recém-nascidos.

Centenas de fêmeas de foca tinham-se reunido no bloco de gelo para parir seus filhotes e amamentá-los, até que eles deixassem cair suas felpudas peles de recém-nascidos e fossem capazes de nadar. O período de gravidez coincide com a ruptura do gelo uma razão a mais pela qual os Homens respeitam a inteligência das focas — e quando ele chega, as focas do norte nadam para o sul por sob a grande camada de gelo e se alojam nos blocos, transformando-os em protegidas maternidades flutuantes que resguardam seus filhotes dos ursos.

Mas só dos ursos.

Todos fizeram a abordagem do bloco de gelo, exceto dois tripulantes e Vivi, que se escondeu abaixo do convés, porque as focas têm vergonha de serem vistas por uma mulher quando são mortas. O navio continuou vigiando a ilha das focas, que navegava de vento em popa sob um forte vento norte e um céu nublado.

No seu enjôo, Papik não procurara saber como os estrangeiros conduziriam a caçada. Ao desembarcar, o homem louro deu-lhe a mesma espécie de porrete de carvalho, fabricado industrialmente, que todos seguravam, e gritou alguma coisa. Ainda enjoado, Papik permaneceu na beira do bloco.

Urrando como uma horda de conquistadores, os homens de porrete na mão arremeteram contra a massa de focas, atacando os roliços filhotes brancos.

Não tendo outra defesa se não fugir, as mães bateram em retirada, berrando roucamente, e muitas mergulharam na água. As poucas que ousaram resistir aos atacantes com o peso de seus corpos eram logo esbordoadas e submetidas.

Vendo-se abandonados aos monstros armados de porre­tes, os filhotes guinchavam em pânico. Os homens seguravam-nos pelas barbatanas da cauda e esmagavam seus crânios moles. Então, torciam-nos, apunhalavam-nos na garganta e sacavam-lhes as peles e a gordura com rápidos golpes de suas lâminas afiadas como navalhas. Alguns filhotes escaparam de seus atacantes depois dos primeiros golpes e se agitaram desesperadamente em suas barbatanas enquanto o sangue jorrava de suas cabeças, com os olhos salientes através da vermelhidão. Mas a maternidade se tinha transformado, sem apelação, num verdadeiro matadouro.

À medida que um número cada vez maior de mães se lançava na água e o massacre se ampliava, o gelo se tornava um gigantesco campo de esguichos vermelhos entre carcaças rosas esfoladas, algumas ainda movendo-se.

Segurando seu porrete, Papik permaneceu boquiaberto. O espetáculo dissipara seu enjôo. Ele compreendia por que aqueles homens tinham lambuzado suas faces sem gordura com o primeiro sangue que derramaram: era para protegê-los contra o vento que soprava. O que ele não podia compreender era a razão daquela matança por atacado. Para Papik, caçar era a razão de viver. Ao ponto que ele não sabia se caçava para viver ou se vivia para caçar. Mas a caça sempre significara alimento, agasalho e utensílios. Aquela era a primeira caçada que ele não podia apreciar ou compreender.

As focas, animais gentis e generosos, amam os Homens e lhes fornecem tudo o que precisam, a maioria das alegrias da vida. Não é de admirar que os Homens também amem as focas e evitem matá-las em quantidade maior do que a de que necessitam, guardando o resto para futuras ocasiões. E às vezes adotam um filhote de foca órfão o melhor de todos os animais de estimação, afetuoso e brincalhão e o criam até que ele atinja a idade em que possa nadar.

Papik também não podia compreender por que as caras daqueles caçadores se contorciam sob suas máscaras vermelhas, com uma expressão de raiva ou de lascívia em relação ao sangue. Como os Homens se orgulhavam da falta de haveres, que lhes deixava livres para perambular, Papik não conhecia sua contrapartida, a ganância.

Os caçadores de foca trabalhavam com furiosa velocida­de, sempre se esquecendo de perfurar as gargantas de suas vítimas. Alguns filhotes recobravam os sentidos depois de serem esfolados e bamboleavam às cegas em suas carnes rosadas sujas de sangue, até que paravam arquejando, dando um último suspiro, ou tombavam na água gelada e salgada.

Entrementes, muitas mães começavam a voltar, procu­rando seus filhotes. Reconheciam-nos mesmo sem as peles, pois suas faces ficavam intactas. Acariciavam-nos e beijavam-nos, chorando amargamente. Algumas ofereciam seu leite às pequenas carcaças, na esperança de fazê-las reviver.

Até que elas próprias eram submetidas a porretadas até a morte.

Papik ainda estava de pé, estuporado, na beira do bloco de gelo, quando um golpe em suas costelas cortou-lhe a respiração. Dois caçadores de foca estavam junto de seu cotovelo. Um deles era o louro que sabia falar.

Mate! rosnou com os dentes cheios de sangue, sacudindo o porrete diante do nariz de Papik.

Como Papik o olhasse imóvel, o homem deu-lhe um soco no estômago e o outro deu-lhe um empurrão que o derrubou.

Um tombo no gelo é a pior de todas as quedas. Nem mesmo uma pele calejada do frio pode suportá-la.

Papik levantou-se de um salto, tomado pela fúria cega que pode dominar o mais suave dos Homens. E Papik não era o mais suave. Rangia os dentes, seu queixo tremia tanto como quando via a primeira presa após a noite de inverno. Então, seu porrete rodopiou sobre os cabelos louros. O homem branco curvou-se como um filhote de foca. A seguir, Papik fez saltarem os miolos do segundo e partiu para cima dos outros. Mas disso ele não se lembrou depois.

Veio a sabê-lo antes do julgamento.

 

                                 Aquele que ouve

O julgamento se realizou no Cabo Miséria, um promontório de terra vestida de gelo que sobressaía num oceano profundo, onde o comandante do navio foqueiro tinha desembarcado Papik, para que este se houvesse com a justiça dos homens brancos. Sob os penhascos dos pássaros havia umas poucas casas dispersas, com armações marrons e amarelas e telhados de folhas de ferro corrugadas, construídas por homens brancos, além de cabanas de nativos, feitas de terra e pedras, construídas para durar um curto verão.

Como as habitações dos esquimós, as casas rudimentares de madeira e ferro que os homens brancos tinham importado para as desoladas regiões árticas do extremo norte consistiam de uma única pequena peça. Mas no acampamento de Cabo Miséria havia um posto de comércio que se gabava de ter uma cozinha, que era o orgulho da mulher estrangeira do comer­ciante estrangeiro, embora o item mais progressista que ela continha fosse um fogão de ferro alimentado com carvão. E foi nessa cozinha que o juiz itinerante Boas decidiu instalar o tribunal, pois a casa em que alguns julgamentos se tinham realizado anteriormente havia-se incendiado.

Como o Juiz Boas era careca e a cozinha, aberta, ele se vestiu com uma pele de animal, com rabo e tudo, que comprara numa loja de brinquedos, mas que ele considerava melhor adequada à dignidade de suas funções do que o gorro de esquiador com que chegara do sul.

A maioria dos funcionários das terras dos homens brancos que pediam para fazer um pé-de-meia nas regiões árticas era constituída de aventureiros ou idealistas, ou simples malandros. O Juiz Boas era um pescador. Quanto ao conselheiro legal, Aage, o jovem de olhos claros mandado para defender Papik, tratava-se de um incorrigível idealista.

Na noite anterior, Aage tinha conhecido o navio do juiz quando ele fundeou na baía. Eles eram hóspedes do comerciante Tor, um homem com aparência de urso, e um dos quatro residentes brancos da cidade, mas não discutiram sobre o caso para evitar preconceitos. Beberam o suficiente para se tratarem pelos prenomes, mas não o bastante para se levanta­rem sem as idéias claras e lamentarem sua decisão.

Em suma, as premissas para um julgamento honesto e agradável estavam presentes.

Os procedimentos judiciais na região ártica são toscos e a acusação é decisivamente branda para com os infantis nativos.

Ninguém estava presente, exceto o Juiz Boas, que se sentou à mesa da cozinha, o advogado Aage, defendendo Papik, os policiais brancos que representavam a acusação, o comerciante Tor, que atuava como intérprete, sua mulher Birgit, que voluntariamente se apresentara como escrivã do tribunal, de modo a ficar de olho em sua cozinha, Vivi, de curiosidade, e Karipari, o cão-líder, porque ameaçara alguém que o quisera afastá-lo do lado de sua dona.

Depois que Papik foi acusado de homicídio e de ferimen­tos em duas pessoas, numa nota lida pelo policial, Aage falou sobre o caso.

— Uma coisa devemos ter sempre em mente ao julgar esta gente, Meritíssimo. Nosso código penal nem sempre se aplica a sua sociedade, e nos últimos anos isso tem sido cada vez mais levado em consideração...

Embora achasse difícil respirar na cozinha abafada, com seu rosto e o peito banhados de suor, Papik estava orgulhoso por se achar sentado numa posição privilegiada, no meio do cômodo, como o hóspede mais preeminente. Como Vivi, ele seguia o processo com um sorriso impaciente, querendo saber o que aconteceria.

O advogado Aage era um principiante nas lides advocatícias, mas ouvira a respeito de trágicas reações dos esquimós que se tinham metido em dificuldades com a justiça dos homens brancos. Exibindo sabedoria e perspicácia, explicou a Papik que, por ter golpeado aqueles crânios humanos, ele tinha infringido alguns dos mais severos tabus dos homens brancos, e que teria de corrigir-se.

Papik era a última pessoa na terra indiferente a tabus, e era grato a Aage por explicar-lhe que provavelmente ele teria de ficar confinado por algum tempo numa casa grande, bem longe, ao sul, próxima da linha das árvores, onde Aage lhe mostraria exatamente como exorcizar os espíritos ultrajados dos homens brancos.

Aage era tão hábil que Papik estava planejando visitar a cidade do sul enquanto cumpria a pena.

Na sociedade dos esquimós, o crime geralmente se restringia ao assassinato, e a maneira nativa de lidar com isso era tão simples quanto uma faca de neve. Se um assassino não era imediatamente morto por vingança dos parentes da vítima, ficava para sempre excluído da comunidade dos Homens. Um castigo que sempre significava a morte para gente cuja sobrevivência, cedo ou tarde, dependeria da solidariedade humana.

Entretanto, o ato de matar diante de provocação ou por razões de sobrevivência não era considerado assassinato, mas simplesmente um acidente a ser logo esquecido. Só o ato de matar maliciosamente era assassinato, como no caso de um homem que matasse outro para apoderar-se de sua matilha ou de sua mulher. Mas tal malícia era rara entre pessoas que eram por natureza amigáveis, consideradas por seus vizinhos, a ponto de serem as únicas na terra que nunca tinham conhecido a guerra.

Embora novato em coisas do norte, o Juiz Boas estava ciente de tudo isso, tendo sido cuidadosamente informado antes de ser mandado para a região. Como verdadeiro jurista, ele não via por que permitir que costumes locais empanassem a cristalina clareza da lei. Porém, ele sabia que uma severa sentença levantaria o coro grego dos que comumente protesta­vam quando ele voltasse para casa.

Expunha-se ao risco de ser chamado de volta antes que se lançasse a alguma pescaria.

Aage falava de modo sonolento, amplamente ignorado pelo juiz, que tentava reproduzir em seu bloco de apontamentos a soberba truta Dolly Varden que Birgit tinha preparado para seus hóspedes. Embora ele tivesse comido apenas uma pequena porção, tivera logo uma erupção de pele acima da clavícula que o fato de ingerir peixe nunca deixava de causar-lhe. Num mundo cambiante e imprevisível, essa era a reação em que o Juiz Boas podia sempre confiar.

Enquanto completava sua Dolly Varden, interrompendo o trabalho de vez em quando para coçar a clavícula, ele queria saber se teria tempo para ir pescar antes de passar ao próximo caso de sua agenda, o qual prometia ser particularmente aborrecido para seu entendimento legal: um pai acusado de matar e devorar sua própria filha. Mas isso também não era crime aos olhos dos esquimós. Desterrada num bloco de gelo flutuante, a família enfrentava a inanição. Mãe, filho e filha, todos tinham oferecido suas vidas para salvar as dos outros, até que o pai decidiu sacrificar o membro menos útil.

Assim, para não pensar naquilo, o Juiz Boas desviou a atenção para o jovem advogado.

— Eles estão mais próximos dos animais do que de seres humanos — dizia Aage. — Levando a vida mais primitiva em milhões de quilômetros quadrados de gelo permanente, sempre sob temperaturas inferiores a 60° abaixo de zero, eles não têm leis escritas, substituem a religião pela superstição, e são, de fato, uma gente fraca, exaurida, à beira da morte, cerrada em velhos padrões, incapaz de ajustar-se a novos tempos. Assim, é nosso dever ajudá-los.

—        Deus! — o juiz implorou ao céu.

Ele se orgulhava de nunca perder a calma, e através de absoluta força de caráter e treinamento, lutava consigo mesmo para fechar os ouvidos tão bem quanto uma foca debaixo de água, quando chegou a um ponto além de sua resistência.

Pegou sua caneta outra vez e começou a fazer um novo desenho.

O juiz estava tentando reproduzir o milagre da criatividade nativa que era o longo arpão que tinha visto pendurado na parede da loja do comerciante Tor. Mas era um dispositivo complexo demais para ser lembrado em detalhes depois de uma observação superficial ou para um artista amador colocá-lo no papel, e de fato o desenho era um desastre. Contudo, servia a seus propósitos de absorver-se e, assim, relaxar-se.

Boas! — chamou Aage. — O senhor está ouvindo, Meritíssimo?

Estou ouvindo! — respondeu o juiz, irritado, porque não estava.

Obrigado, Meritíssimo Juiz Boas. O senhor vê... nós temos dificuldades até para nos comunicar com essa gente. Sua língua não tem nada a ver com qualquer outra no mundo. Ela não tem muitos termos sem os quais não poderíamos falar. Não tem nem palavrões. Para jurar eles têm de tomar emprestadas nossas palavras. Não têm nenhuma palavra para roubar. Estou certo, Tor?

Certo — disse Tor. — Eles dizem tomar.

Nem têm palavras para culpado ou inocente — prosse­guiu Aage.

E isto — disse o juiz sem se impressionar, e Aage começava a aborrecer-se com sua atitude.

Embora a língua deles seja tão complicada que chega a possuir mais de mil formas para a palavra homem, dependendo da maneira pela qual é usada, não tem nenhuma palavra para Deus, e muito menos para juiz! — anunciou vingativa­mente.

Então, quem sou eu? — perguntou o juiz.

Traduzindo, o senhor vem a ser AQUELE QUE OUVE.

O Juiz Boas abanou a cabeça, mexendo com o rabo da pele de animal com que se cobria.

Gosto disso. AQUELE QUE OUVE. E quem é você?

Eu sou AQUELE QUE FALA — disse Aage.

Boa! Esta é a língua estrangeira que eu quero aprender.

Nessa altura, Vivi assustou a platéia e fez o cachorro latir com um ronco junto a suas calças de pele de urso, devido aos vegetais enlatados com que tinha sido alimentada — um choque para um estômago exclusivamente carnívoro. Sendo uma dama, ela corou e escondeu seu rosto, com vergonha.

Mas Papik saudou a explosão de sua mulher com uma tal gargalhada que até o juiz achou difícil manter uma cara séria.

Em certas áreas — Aage estava dizendo quando o Juiz Boas achou seu último desenho e desviou a atenção para o processo — nós proibimos aos esquimós matar mais de três focas por ano e por pessoa, embora seu sustento dependa de focas. Isso explica por que, testemunhando a matança de milhares de focas, meu cliente ficou confuso e embaraçado. Até que foi dominado por um súbito êxtase — a bem conhecida condição chamada pelos médicos de histeria ártica - e decidiu intervir contra aqueles que, segundo acreditava, estavam pisoteando a lei. Sim, Meritíssimo! E minha argumen­tação de que meu cliente achou que ele devia substituir a polícia ausente e defender as leis de nosso grande país! Como poderia ele saber que nós permitimos a nossos caçadores matar nada menos que duzentos e cinqüenta mil focas por ano? E outros governos, a matança de muitas mais?

Pela primeira vez o Juiz Boas olhou para Aage com real interesse. O jovem ainda não produzira um argumento válido, mas começava a chegar perto.

Em outras palavras — prosseguiu Aage — meu cliente foi dirigido por um impulso irresistível: fazer justiça sem considerações racionais. E em tais casos a lei confere o perdão incondicional por razões de insanidade temporária.

Assim, você alega insanidade temporária?

Sim, Meritíssimo! Mas se o tribunal não se achar em condições de libertar meu cliente sob esse argumento, então eu proponho considerar que ele agiu em defesa pessoal.

Defesa pessoal? Por favor, construa o raciocínio — disse o juiz de um modo cordato.

Quando se recusou a participar da matança, meu cliente foi fisicamente atacado pelos caçadores de foca e achou que sua vida estava em perigo.

Você está ficando quente, Aage, disse o juiz. — Prossiga.

Obrigado, Meritíssimo!

Encantado com esse encorajamento inesperado, Aage retomou a palavra com renovado entusiasmo.

Caso minha tese de defesa pessoal não seja aceita, então eu peço ao tribunal que considere a ação de meu cliente como assassinato não intencional, aplicando-lhe uma sentença mínima. Entretanto — Aage agora disparava — se o tribunal acreditar que a ação de meu cliente foi intencional, então ao menos seja considerado que, em nenhum tempo, foi desejo de meu cliente causar a morte à infortunada vítima, mas, ao contrário, infligir-lhe a mesma concussão, a título de lição, que infligiu aos outros dois caçadores de foca que parecem estar sobrevivendo muito bem às suas fraturas de crânio. Entretan­to, se o tribunal escolher, contra toda a lógica, declarar meu cliente culpado de premeditação e assassinato intencional, então a sentença deverá ser muito branda, uma vez que, para essa gente, a permanência na cadeia equivale à morte, e nós abolimos a pena de morte há muito tempo.

Hum? Não estou entendendo.

É fato estabelecido, Meritíssimo, que nenhum esqui­mó jamais sobreviveu a qualquer espaço de tempo em uma de nossas cidades, e muito menos no confinamento de uma cadeia.

Mas isto não é uma questão legal, meu amigo Aage — disse o juiz num tom paternal de reprovação.

Mas temos de levar isso em consideração.

Agora, continue, Aage, e conclua, pelo amor de Deus.

Certamente, Boas. Para concluir, meu cliente se põe diante da misericórdia do tribunal e o tribunal deve considerar que abrindo mão de um julgamento, meu cliente economiza uma considerável soma de dinheiro para nossos contribuintes. Só reunir as necessárias testemunhas geralmente se torna muito caro e freqüentemente impossível nestes lugares.

Como assim?

Na maior parte do tempo elas estão todas dispersas no mar ou ocupadas com focas em algum outro bloco de gelo.

O Juiz Boas fuzilou com os olhos.

Algum outro bloco de gelo, você disse? Esta coisa aconteceu num bloco de gelo?

Sim, claro, Boas. Num bloco de gelo. Gelo flutuante.

Você nunca disse isso, meu amigo Aage — disse o juiz mansamente. — Admiti que você sabia disso. Deve estar no dossiê da polícia.

Agitado, o juiz se embaralhou em seus papéis.

Aqui está apenas o depoimento tomado sob juramen­to do comandante, de acordo com a polícia. Eu presumi que o homicídio tivesse ocorrido no navio.

Ocorreu no curso de uma grande caçada às focas, Boas — disse Aage deliberadamente. — E as hordas de focas geralmente se reúnem no mar, no gelo ou nas praias, mas nunca, repito, nunca a bordo de navios.

O juiz estava vexado.

Mostre-me o local preciso onde ocorreu — disse estalando os dedos.

Aproximadamente aqui — disse o policial desempoeirando o mapa.

O tribunal não quer aproximações. — Repentinamen­te, o juiz achou muito difícil manter a calma.

Mas, Boas — disse Aage — é impossível apontar a localização precisa de um bloco flutuante.

O policial aduziu:

—        Estava à deriva no momento, a centenas de quilôme­tros de terra.

O juiz bateu de leve com sua caneta na mesa, inclinou-se para trás e respirou fundo. Então, olhando para Aage, disse:

Você está fazendo o tribunal perder tempo, meu bom homem.

Não compreendo.

É claro, você não compreende! Essa coisa aconteceu a centenas de quilômetros de qualquer terra, certo? Não num navio, não num avião, mas num bloco de gelo, navegando sem bandeira, sem pertencer a qualquer nação, flutuando em águas extraterritoriais. Extraterritoriais! Você percebe as implica­ções legais? Nenhum tribunal do mundo tem jurisdição sobre o que é feito em águas extraterritoriais, por um homem sem nacionalidade, nascido em algum lugar do gelo ártico. Assim, ele não pode ser trazido a julgamento. E eu retiro este caso do tribunal.

Mas... mas... — gaguejou Aage.

Não tenho escolha. E porque seu cliente obviamente precisa de ajuda legal superior, o tribunal determina sua imediata soltura.

Aage enrubesceu, enquanto os circunstantes pareciam perplexos. Até Papik e Vivi perceberam que nem tudo estava bem.

—        Apelo. Meritíssimo — gritou Aage com a voz embar­gada.

O juiz inquiriu glacialmente:

—        E por que você deveria apelar, quando o tribunal põe seu cliente em liberdade?

_— Eu... eu apelo da motivação — Aage falou excitado. — E uma ofensa à minha reputação profissional!

Você não perdeu nenhuma reputação, meu bom homem!

Permita-me lembrá-lo de que eu não fiz acusações. O Estado as fez.

E permita-me lembrá-lo de que acusações são feitas automaticamente quando ocorre um homicídio. A sessão está encerrada. — O juiz se levantou, ajuntando seus papéis.

Aage se dirigiu para a mesa, respirando fundo.

—        Se o senhor é tão inteligente, por que não estudou o caso primeiro, como exigem os seus deveres?

O juiz ficou rubro, rompendo seu autocontrole, e tro­vejou:

Cale-se! Já disse que a sessão está encerrada!

Agora essa, Boas! Acusando-me, de modo a esconder sua própria incompetência!

Incompetência?! Cassarei sua carteira de advogado se você não pedir desculpas já! Você está doente! Doente! E não ouse chamar-me Boas outra vez! Para você eu ainda sou o juiz.

Não quando a sessão já está terminada!

Papik puxou a manga de seu advogado, mas Aage deu de cotovelo e continuou a trocar opiniões em voz alta com o juiz. Papik então segurou Tor pela manga e perguntou:

Como é que fica a estada de um homem na cidade?

Nada de estada na cidade — disse Tor.

Nada de estada na cidade? — ecoou Papik indignado.

O homem branco prometeu! — protestou Vivi.

—        Nada de estada na cidade — confirmou Tor.

Papik foi paciente, o que lhe custou considerável esforço, e amável, o que nele era natural. Mas o que era demais era demais. Os dois estrangeiros continuavam trocando gritos em torno da mesa, ignorando seus hóspedes. Papik não gostava de fazer isto, mas alguém tinha de ensinar-lhes boas maneiras, para o próprio bem deles.

Assim, ele segurou AQUELE QUE FALA pela gola de seu casaco de nylon e AQUELE QUE OUVE pela gola de seu quebra-vento e bateu as suas cabeças uma contra a outra.

—        Desgrude este animal do meu cabelo! — gritou o juiz, esquecendo-se de que era careca.

Todos se tinham levantado, clamando por calma ou contribuindo ainda mais para a confusão, inclusive Karipari. Até aquela altura, o comportamento do cachorro tinha sido exemplar. Mas ao ver seu dono se agarrando com os dois estrangeiros, o cão se lançou sobre eles e conseguiu arrancar sangue dos dois, com todos os seus dentes. Não era culpa de Karipari se os homens brancos tinham nádegas de manteiga e não usavam calças à prova de cães.

Diante daquela situação, o policial lembrou-se de seu papel pacificador e descarregou sua pistola para o teto e Papik, apavorado, soltou os homens.

Os gemidos dos dois contundidos restabeleceram a ordem e o silêncio no tribunal, com a exceção do persistente rosnar de Karipari e dos gritos de Vivi, ordenando a seu cachorro que ficasse quieto.

Os ferimentos não eram sérios, mas dolorosos, especialmente para o juiz, quando eles estavam combinando uma pescaria para as semanas seguintes, e ele encontrou lenitivo para as dores de suas feridas condenando Papik a dez meses por tentativa de agressão e ofensa física, além de desrespeito ao tribunal, colocando-o sob a custódia de seu advogado. Sem deixar que Aage se fosse sem pagar uma multa.

 

                                 Tabus

Se Papik sabia alguma coisa, sabia o seguinte: enquanto os Poderes que regem os Homens são terríveis, os que regem os homens brancos são ainda piores.

E os tabus foram feitos para serem obedecidos e não compreendidos.

Sua experiência com os homens brancos vinha desde a adolescência, tempo em que perdeu os pais. Ambos haviam morrido de causas naturais. Seu pai acabou totalmente esgotado por um ferimento sofrido ao matar dois ursos. Sua mãe se suicidou por afogamento, como ela desejou, para reunir-se ao marido no paraíso e não constituir um fardo para mais ninguém.

Depois disso, juntamente com alguns outros Homens, Papik escoltou uma expedição de exploradores. Naquela ocasião, ele aprendeu que a melhor coisa a fazer na companhia de estrangeiros era não fazer coisa alguma. Era a única maneira pela qual um Homem poderia esperar não violar nenhum de seus tabus.

Sobretudo um incidente mostrou-lhe o poder dos espíritos dos estrangeiros.

Os homens brancos tinham um tabu seriíssimo com relação à carne deteriorada, o que podia ser a razão Papik conjecturava pela qual eles eram tão irritáveis. Durante a caminhada, os exploradores provaram e até gostaram das comidas nativas, evitando apenas as carnes deterioradas. Até que o mais valente deles decidiu desafiar seus espíritos e rompeu o velho tabu. Fez uma careta ao saborear o primeiro pedaço de foca que se tornara tenro e perfumado pelo processo de deterioração, mas foi mastigando intrepidamente até que consumiu uma porção relativamente grande. De fato, a carne o matou.

O que impressionava Papik era a rapidez com que os espíritos estrangeiros golpeavam. O transgressor ainda estava palitando os dentes quando, de repente, seu rosto ficou verde e ele botou as duas mãos no estômago. Mas os espíritos ultrajados não ficaram nisso. Fizeram-no contorcer-se em dores durante duas voltas do sol, enquanto seus alarmados companheiros tentavam vários exorcismos, pingando líquidos mágicos pela garganta do pecador e forçando misteriosos sólidos em seu traseiro.

Tudo para nada.

Os Homens, é claro, afastaram-se do explorador morto, aterrorizados por seu fantasma. O que não aconteceu com seus companheiros. Eles não tinham sequer medo de tocar o cadáver com as mãos, o que, para os Homens, era a maior das loucuras. E nenhum deles morreu por causa disso, enquanto o companheiro deles havia morrido simplesmente por ter comido uma iguaria proibida.

Depois disso, uma coisa ficou estabelecida de uma vez por todas na mente de Papik: os estrangeiros têm tabus diferentes e o melhor que um Homem prudente faria era conformar-se com aquilo enquanto se achasse na companhia dos brancos.

Não só Papik era grato a Aage por mostrar-lhe como apascentar aqueles espíritos malignos, mas Aage também tinha uma vaga gratidão por Papik, que lhe dera a oportunidade de satisfazer seu desejo de ajudar o próximo.

Pela decisão do juiz, Papik ficava ainda mais próximo dele do que qualquer próximo. Colocado sob a custódia de Aage, ele era, desde logo, seu inquilino e seu hóspede.

Aage levou seu tutelado de navio para a cidade do sul onde se achava baseado. Quis levar Vivi também, para o conforto de Papik. Mas os cães não foram convidados e não puderam seguir viagem. Vivi não podia ir, pois a matilha é uma das únicas riquezas de um Homem. Assim, Vivi permaneceu no Cabo Miséria com Tor e sua mulher Birgit, ajudando-os em seu posto comercial.

Localizada na boca de um fiorde, abaixo da fronteira dos cães, mas ainda bem acima da linha das árvores, a cidade era bem ao sul, muito populosa para os padrões de Papik, muito ao norte e muito pequena para os padrões de Aage, contando umas duas mil almas e existindo principalmente em razão da indústria pesqueira dos homens brancos, na qual Papik ia trabalhar como meio de exorcismo.

Embora habitada, sobretudo, por esquimós, a cidade era a sede administrativa, na região ártica, da Polícia Suprema, como os nativos chamavam o governo dos homens brancos. Ficava num território áspero, de rochas graníticas entremeadas de musgo, liquens e poças de barro semi-congelado, ainda não coberta de neve quando Aage e Papik chegaram. As casas, erguidas com blocos de cimento e espalhadas numa desordem selvagem, como se houvessem caído do céu, tinham sido pre­fabricadas no país dos homens brancos e enviadas de navio para aquela região carente de madeira. A maioria delas eram pequenas cabinas com telhados pontudos, além de uns poucos edifícios de apartamentos espalhados a esmo.

A única rua, começando no porto e cortando a cidade pelo meio, não levava a parte alguma, mas era flanqueada por umas lojas isoladas cheias de artigos usados pelos homens brancos. Para chegar às habitações atrás delas, tinha-se de desviar do sortimento de refugos que os ocupantes jogavam pelas janelas e da lama que endurecia as botas.

Isso era o sul.

Papik se maravilhou com os bandos de crianças soltas que via por toda parte, ocupadas em fumar ou pedindo tabaco aos transeuntes, e com a total ausência de cães perambulando. Aage explicou que, uma vez que a cidade se situava abaixo do Círculo Ártico, o que aproximadamente corresponde à frontei­ra dos cães, onde a economia dos esquimós não dependia de trenós, a polícia tinha ordens de atirar em qualquer cão desatrelado, para garantir a segurança das crianças.

Papik perguntou qual era a finalidade de se manterem tantas crianças vivas, mas dessa vez Aage foi incapaz de dar uma boa resposta a uma boa pergunta.

 

Aage alojou o tutelado em sua própria casa, um pequeno apartamento inteiramente mobiliado à maneira dos homens brancos, num prédio grande que abrigava somente membros da Polícia Suprema, e tratou-o como um hóspede de honra. O mesmo fez a mulher de Aage, uma loura pequena e bonita. Corajosamente, ela não tomou conhecimento da aparência desgrenhada de Papik, que não tinha sido limpo por Vivi desde que o sol de levantara, bem como do estado de suas peles, que não tinham sido lavadas com urina desde então.

Entretanto, logo à primeira refeição, surgiu o problema da alimentação. Para ser cortês, Papik engoliu tudo o que lhe foi oferecido, mas seus anfitriões podiam notar que ele não estava feliz. E Aage, complementando as poucas palavras de seu repertório com a linguagem de sinais, prometeu-lhe comestíveis mais adequados no futuro. As hordas de focas que anteriormente eram abundantes naquelas águas tinham sido exterminadas pelos homens brancos, mas uma vez ou outra um nadador de longa distância das águas do norte entrava na rede de alguma traineira e aparecia no mercado de peixe. E então sempre havia caribu para comer, congelado, defumado ou ressecado.

Mas Papik não tinha fome. Seu estômago ainda estava enjoado, em conseqüência da dura e interminável viagem marítima, e ele tinha de sentar-se numa poltrona e submeter suas coxas a um teste severo. Além disso, sentia-se quase sufocado na habitação fechada e aquecida. O suor escorria-lhe no peito para dentro de suas calças de peles de pássaros e pingava com barulho no elegante piso de linóleo.

Depois do jantar, quando Aage indicou-lhe desejar que ele se retirasse para outro cômodo, Papik levantou-se e encarou a dona da casa com um jeito de conquistador e um cativante sorriso. Esperava que sorrir um pouco para aquela mulher pequena e exótica pudesse clarear aqueles tempos sombrios. Uma vez que Aage não pronunciou o esperado convite, Papik dirigiu-lhe um olhar interrogativo, aproximou-se da anfitriã e riu silenciosamente diante de seu rosto.

A jovem parecia apavorada. Torceu o nariz, sentindo um cheiro ruim, e olhou para o marido como a pedir socorro.

Uma vez que torcer o nariz significava NÃO entre os Homens, a interpretação de Papik não era imprópria e seu sorriso se desvaneceu. Aquela gente não tinha coração com alguém que se achava distante de sua mulher. Ignorava insensivelmente as mais elementares regras de hospitalidade. Papik recebia mais uma demonstração de que todos os estrangeiros eram pessoas rudes e rabugentas, que nada mais tinham em mente senão diminuir e ofender os Homens. Por quê? Porque — não podia haver outra explicação — eles os invejavam.

Papik era um homem por demais educado e superior para manifestar sua desaprovação, a não ser mostrando-se amuado.

No dia seguinte ele começou a trabalhar na fábrica de bacalhau, um imponente edifício de vidro e concreto, erguido ao lado do cais por uma empresa dos homens brancos.

A despeito das baixas temperaturas ocorridas na noite ártica, uma tépida corrente marinha mantinha o fiorde navegá­vel ao longo de todo o ano, e traineiras de várias nações, abrindo caminho por entre o gelo flutuante, podiam chegar até lá, mesmo no auge do inverno, e desembarcar suas cargas de bacalhau diretamente na fábrica, para serem secadas, salgadas ou congeladas, antes de serem despachadas para o sul.

A fábrica empregava muito mais homens e mulheres do que Papik podia contar. O gerente e alguns supervisores eram homens brancos, mas a força de trabalho era constituída de esquimós do sul. Como os esquimós tinham o hábito de desaparecer após o dia de pagamento ou de ir pescar quando lhes aprouvesse, o gerente estava satisfeito por contratar um condenado de bom comportamento que não podia deixar o emprego antes de cumprir sua sentença.

A única condição era que Papik primeiro tomasse um banho de chuveiro e esfregasse o corpo com escova e sabão. Intimidado pelas circunstâncias, Papik submeteu-se humildemente a essa nova indignidade como parte do castigo. Então, fizeram-no vestir o uniforme dos operários: tamancos de madeira desenhados para manter seus pés secos, meias de lã para conservá-los aquecidos e as primeiras calças e camisa tecidas de sua vida, cobertas por macacões brancos e um gorro redondo dentro do qual ele tinha de meter seus longos cabelos negros. Os inesgotáveis tabus dos homens brancos incluíam mais um: não se podia carregar peixe lavado sobre cabelos oleosos.

Ele foi designado para trabalhar com uma máquina que ocupava todo um cômodo e era tão barulhenta que impedia qualquer conversa. O aparelho ia até o teto, com um escorregador de metal junto ao qual trabalhavam dois homens de pé numa plataforma de ferro.

Um deles era Papik.

Uma esteira rolante levava até eles os bacalhaus, os quais tinham de ser jogados de cabeça para baixo para deslizar pelo escorregador, um por um. Do ponto em que se encontrava, Papik podia ver como as lâminas mecânicas decepavam as cabeças e as caudas dos peixes logo antes de serem engolidos pela máquina que, então, cuspia filés numa esteira que ia para a esquerda e o refugo em outra esteira que ia para a direita. Ao longo de cada esteira, uma fila de operários, todos vestidos da mesma maneira engraçada que Papik. Estes punham os filés e os refugos em carrinhos de mão que outros operários condu­ziam para fora quando ficavam cheios. Isso era tudo.

Fora disso, nada mais acontecia.

Depois que a novidade se esgotou, a monotonia da rotina começou a encher Papik de um enfado insuportável e ele passou a arrancar pedaços de peixes antes de colocá-los no escorregador. Não porque tivesse necessidade de alimento, mas porque a única angústia que tivera até então fora a fome e comer era a única cura. Desta vez o resultado não foi o esperado. Logo ele se sentiu saturado de bacalhau, mas nem um pouco mais feliz.

Subitamente as máquinas e o barulho pararam e o companheiro de Papik lhe disse que era hora de comer.

Os operários se dirigiram para um salão mobiliado com mesas compridas e cadeiras de formas retas, todas feitas de madeira, o material mais valioso que Papik conhecia, e das quais ele admirava a perfeita simetria. O que admirava menos era a comida: batatas e bolinhos de peixe disfarçados num molho grosso. Alegrou-se por ter comido suficientemente na plataforma.

Todos comiam com as mesmas armas perigosas de metal brilhante que Papik tinha visto na mesa de Aage, as quais ele prudentemente evitara, por não querer machucar a boca ou arriscar um olho.

Observando como seus colegas comiam, Papik descobriu que muitos deles eram mestiços, de uma cor mais clara que os verdadeiros Homens, com feições que nitidamente traíam a mistura de sangue aguado. Não viu dentes gastos pela mastiga­ção de peles, mas todos os dentes pareciam moles e podres e eram da cor de tabaco. Não era para menos. Os homens e as mulheres fumavam furiosamente e os que fumavam cachimbo até pegavam os tocos de cigarro dos outros, jogavam as cinzas quentes na boca e as mastigavam ruidosamente. Todos fala­vam uma espécie de dialeto bastardo da língua dos esquimós, que era difícil de compreender, e eles recorriam a palavras estrangeiras para designar objetos estrangeiros em vez de defini-los. Assim, usavam o termo dos homens brancos para designar o refeitório em vez de chamá-lo o LUGAR ONDE AS PESSOAS COMEM, como um verdadeiro Homem devia fazer.

Isso não importava muito, porque eles falavam raramente e riam menos ainda. Papik nunca vira tanta gente rir tão pouco.

Quando a campainha tocou de novo, todos retornaram ao trabalho, sem qualquer alteração, até que outro sinal pôs fim à provação. Entorpecido e cansado, Papik cambaleou em dire­ção à saída e à cara amiga de Aage, que viera para levá-lo para casa e dizer-lhe que o supervisor estava muito satisfeito com ele.

Diante dessa notícia, Papik riu desdenhosamente. Então, a capacidade de jogar peixe morto de cabeça para baixo num escorregador era suficiente, naquela cidade, para o recebimen­to de um elogio!

Entretanto, nem tudo com ele estava bem.

Desde a época em que sua mãe o havia limpado com lambidas depois de jogá-lo no buraco de gelo sobre o qual ela se ajoelhara, o corpo de Papik não tinha sido tocado por água, e os únicos detergentes que tinha experimentado eram gordu­ra, urina ou saliva. Assim, a esfregação com água quente e sabão na ducha da fábrica fez com que sua pele tivesse uma erupção logo que ele se deitou para dormir e que o manteve acordado com uma coceira enlouquecedora.

O que ele suportou estoicamente, admitindo que era parte da retaliação dos espíritos.

Como ele deixou a janela aberta durante toda a noite, na manhã seguinte o radiador de seu quarto explodiu, inundando o prédio e causando consideráveis danos. Em conseqüência disso, Aage arranjou para que ele dormisse num beliche no compartimento de refrigeração da fábrica.

Papik não ficou mais feliz lá. A temperatura era suportá­vel, mas faziam-lhe falta o ar puro e o esforço físico. Ou um bom sono de inverno. Todas as vezes que ele estava entrando num adequado torpor, a campainha o tirava de seu sono e o mandava de volta ao trabalho, em conseqüência do que, ele nunca podia estar bem acordado. Naquela época, a fraca luz do dia durava só uma ou duas horas, mas a gente da cidade trabalhava e dormia tanto tempo no inverno quanto no verão, ignorando deliberadamente o ritmo da natureza.

Juntamente com sua alegria de viver, o apetite de Papik também estava desaparecendo, o que era um sintoma inquietante. Aquela era a estação em que a medida da cintura de um Homem deveria equivaler mais ou menos à sua altura. Mas durante a longa espera até a chegada do juiz ao Cabo Miséria, e depois, até que o navio chegasse ao sul, com a viagem interrompida por paradas em vilarejos costeiros, tinha engor­dado pouco naquele verão e agora se sentia indisposto e miserável. Ele, que costumava apreciar a companhia dos homens, começou a evitá-la, preferindo a solidão.

Ali, ninguém sabia ou se importava com o fato de que ele era um grande caçador. Ressentiu-se da indiferença geral, se não do absoluto desprezo para com ele. Certamente, ninguém levantava contra ele o fato de que tinha matado um homem branco. É claro que fora um acidente, devido a um acesso de fúria, pelo qual só a vítima era responsável. Mas alguns não o podiam perdoar por ser diferente. Não era só um que tinha o desplante de sorrir divertindo-se com seu cabelo, que ele usava longo e despenteado, de maneira máscula. Ao passo que aqueles esquimós do sul procuravam parecer com os estrangei­ros em tudo por tudo, até mesmo fazendo questão de nunca comer carne ou peixe crus, a não ser às escondidas. E aqueles que não iam caçar ou pescar nos domingos iam à igreja, segurando visivelmente o Livro Sagrado, ainda que não soubessem ler, mantendo seus amuletos cuidadosamente escondidos, com medo de que o pregador se zangasse.

Assim, Papik fez a espantosa descoberta de que muitos esquimós do sul admiravam os estrangeiros e fingiam não saber que seus irmãos polares, e somente eles, representavam a aristocracia dos Homens.

Bem, Papik não estava ali para divertir-se, nem para ser venerado, mas para expiar. E isso ele estava fazendo.

Depois do trabalho, Papik teve permissão para passear pela cidade, olhando os bandos de crianças com seus estúpidos jogos. Realmente, não era culpa delas se não tinham nada de sério para fazer. Sua maior excitação, além de mendigar fumo dos estrangeiros e apanhar tocos de cigarro, era quebrar vidraças com pedras sem serem descobertas.

A cidade era iluminada com eletricidade e o ininterrupto zumbido dos motores que convertiam combustível em quilowatts e enchiam o ar com um cheiro era o barulho dominante, abafado pela neve que começara a cair abundantemente, cobrindo as poças de lama e liquens congelados com uma brancura uniforme.

As vitrinas exibiam todos os tipos de mercadorias dos homens brancos e aparelhos mecânicos. Quanto mais misterio­sos eles pareciam, menos interessavam a Papik. Ele podia apreciar uma faca de caça de aço brilhante, mas repudiava objetos mais complicados como feitiçaria dos homens brancos, com a qual não queria ter nenhuma relação. Mas pela primeira vez que viu uma pele de caribu e quartos de sua carcaça pendurados na parede de uma casa para secar, permaneceu ali por um longo tempo, com o coração cheio de incontidas saudades do prazer de caçar.

Durante as refeições, um colega de trabalho chamado Pilutok conseguiu finalmente quebrar o gelo do ressentimento de Papik com o calor de seus sorrisos e a revelação de que ele próprio viera da região acima da fronteira dos cães. Chegara ele à conclusão de que a vida urbana era a melhor coisa depois que perdera a mulher, o companheiro, o filho coletivo e a matilha num acidente no gelo e a polícia o transportou todo quebrado, de trenó e de navio, para o hospital daquela cidade.

Pilutok não usava a palavra estrangeira para designar hospital, mas uma definição de esquimó: LUGAR ONDE AS PESSOAS SE RECUPERAM, dessa forma inspirando Papik a confiar nele.

Aqui os Homens não são mais amigos do que os estrangeiros — queixou-se Papik. Não se pode entrar numa casa e pegar comida sem ser convidado.

Há uma razão para isso disse Pilutok cuspindo no seu prato. Todos devem dinheiro às lojas. Se as dívidas ficam grandes demais, as lojas param de fornecer. E também há necessidade de dinheiro para comprar cerveja no LUGAR DA MÚSICA ALTA. E isso Pilutok sorriu maliciosamente é o lugar onde um homem encontra jeito de dar risadas.

—        Mulheres casadas?

Pilutok torceu o nariz.

—        Solteiras. Você não precisa da permissão de ninguém, mas das mulheres.

As mulheres sempre eram um assunto interessante e seus companheiros de mesa começaram a acompanhar a conversa.

Os homens não podem ter suas próprias mulheres? perguntou Papik.

Não, pois eles não precisam disso. Aqui você compra suas roupas na loja. Você não precisa de uma mulher para costurar para você. E as mulheres não dependem dos homens para se alimentarem, porque elas também compram tudo nas lojas com seus salários. Se elas não trabalham, a Polícia Suprema lhes dá salários para não fazerem nada.

—        Os homens não querem filhos?

—        Filhos? — Pilutok cuspiu de novo no prato, pois era proibido cuspir no chão. — Para quê? A Polícia Suprema toma conta do homem até que ele morra. Você viu os mais velhos sentados nos bancos, sem nada para fazer a não ser esperar a morte?

Mas o que faz uma mulher com seus filhos?

Ela pode levá-los para o LUGAR DOS ÓRFÃOS.

Como se pode pedir uma mulher se não há marido com quem se falar?

Você não pode — disse Pilutok. — Ela pede você. As mulheres nos excedem em número porque elas vivem mais que nós se ninguém as mata. E até as mulheres muito velhas só têm uma coisa na cabeça.

—        O que você quer com mulheres muito velhas?

Pilutok riu à socapa.

—        Você ainda não sabe? Mesmo que ela não possa amaciar botas, uma mulher desdentada pode satisfazer um homem em pequenas coisas melhor do que uma mulher jovem com dentes compridos!

Desta feita seus colegas de mesa riram alto.

—        Você teve o bom senso de deixar sua mulher para trás — concluiu Pilutok, dando um tapinha na coxa de Papik. — Alguém lhe vai mostrar como rir.

 

                               A Cidade

O LUGAR DA MÚSICA ALTA, onde Pilutok levou Papik no dia do pagamento, estava abafado de tanta gente, cheio de fumaça de cigarro, cheirando a cerveja, e tão barulhento que os tímpanos de Papik doíam, embora estivessem calejados pelo barulho da fábrica de bacalhau.

Como prisioneiro, ele não poderia ir lá sem escolta e Aage, prestimoso, concordou em acompanhá-lo. Ele não deixaria Papik tomar cerveja, mas permitiu-lhe fumar. E Papik estava contente porque Aage sabia tão bem o que era permitido e o que era tabu.

Papik se assustara com o gosto de cerveja em uma ou duas oportunidades anteriores, em seus rápidos contatos com homens brancos. Sua experiência com o fumo tinha sido só um pouquinho menos terrível. Mas daquela vez, apesar de tossir, ele tirava baforadas, decidido a aceitar tudo o que lhe fosse oferecido. Primeiro, porque via que todos fumavam e também porque admitia que, já que se tratava de uma das poucas coisas permitidas, os espíritos brancos olhavam o fumo com indul­gência.

Assim, ele observava tudo com olhos que lacrimejavam por causa da fumaça, mas estavam arregalados de pasmo.

Não havia escassez de mulheres, todas nativas e muitas velhas. E também havia poucos estrangeiros. Em sua maioria, os homens brancos daquela cidade de fronteira eram sossegados funcionários civis, como Aage, ou pessoas malévolas, empregadas pela indústria pesqueira ou pelos empreiteiros de construção, geralmente as mais rudes e violentas de suas tribos, vindas para o norte sem suas mulheres para fazer um pé-de-meia com trabalho duro remunerado com altos salários.

As mesas estavam cheias de garrafas e a pista de dança cheia de homens em manga de camisa e mulheres de vestido que se aplicavam com grande energia a seguir a selvagem pulsação produzida por uma caixa de luzes. Embora só houvesse cerveja, todos estavam altos e muitos pareciam bêbedos, andando com as pernas trêmulas e os rostos gotejan­do do esforço e do calor. Papik reconheceu diversos homens e mulheres da fábrica de bacalhau. Geralmente taciturnos no trabalho, agora estavam tão excitados quanto todos os outros.

Pilutok, o companheiro de Papik, era um dos mais ativos. Rodopiava na pista como um bloco de neve e serpenteava entre as mesas em busca de novas parceiras, com reduzido sucesso, a despeito de seu entusiasmo e da prévia jactância. Embora seu nome significasse Folha Pequena, era um suarento barril de gordura, atarracado e malcheiroso, que continuava a ser rejeitado pelas damas que convidava para dançar ou abandonado pelas poucas que aceitavam. Depois de cada fracasso, ele se projetava em direção ao balcão para tomar outra garrafa de cerveja e então partia com renovadas energias para uma nova tentativa.

Pilutok não era o único que fica trocando de parceiras. A maioria dos pares fazia o mesmo, embora se agarrassem enquanto dançavam, mantendo os olhos fechados e apalpando-se mutuamente. Muitas mulheres eram mais ousadas do que os homens, especialmente as mais maduras. Papik estava escandalizado com o procedimento de uma delas, tão velha que deveria estar perambulando na noite para morrer se tivesse alguma noção de decência. Mas, em vez disso, ela tentava agarrar homens jovens e puxá-los para a pista de dança, para beijá-los da maneira indecente dos homens brancos. Positivamente, aquela mulher não fora feita para a terna esfregação de narizes e a fungada no rosto do parceiro.

Isto acontece em todas as suas cidades? — Papik perguntou a Aage, que observava com visível ar de desapro­vação.

Não é bem assim. Aqui as mulheres bebem mais depressa, falam mais alto e têm mais filhos, especialmente as não casadas.

—        Por quê?

Embora fizesse considerável progresso no aprendizado da língua Aage não sabia como dizer tudo o que se passava em sua cabeça. De qualquer forma, tentava.

—        Vocês são por natureza mais amigos do que os outros. O álcool torna as suas mulheres amigas demais e às vezes os homens ousados demais. Nós sabemos os perigos do álcool. Vocês não sabem. Compreende?

—        Não.

E Papik voltou sua atenção para a multidão que se divertia.

Os homens brancos dançavam com as moças mais bonitas e mais jovens, as quais pareciam preferi-los aos de sua própria gente. E seu comportamento era claramente um prelúdio para risos mais íntimos. Quando Papik estava justamente ficando curioso com aquilo, Pilutok deu voluntariamente a explicação, por ocasião de uma de suas breves paradas junto da mesa:

—        As mulheres desta cidade acreditam que ter um filho com um homem branco dá sorte.

Entretanto, ainda havia algumas mulheres esquimós que apreciavam Homens verdadeiros e reconheciam um deles onde sentiam o cheiro. Pelo menos uma mulher o fez. Uma dama metida num vestido vermelho berrante que não era a mais nova do grupo, mas que ainda tinha todos os dentes e cuja tez de uma cor amarelo-tostado e cujo cabelo preto azulado permitiam reconhecer que pertencia a uma tribo cujo sangue ainda não estava aguado pelo sangue branco. Claramente enamorada da cabeleira emaranhada e do rosto batido pelo vento de Papik, fez sinal e sorriu para ele enquanto dançava com outros. Quando ela resolutamente pegou-o pela mão e tentou puxá-lo de sua cadeira, enquanto ele se agarrava teimosamente à mesa, até Aage empurrou-o pela cabeça e não pôde deixar de rir.

Para o próprio Papik foi uma imensa surpresa o fato de ele se recusar a seguir a dama, pois sempre tinha sonhado o sonho impossível de encontrar manadas de mulheres sem fazer esforço. Mas agora descobria que desgostava mais daqueles modos estranhos do que pegar o bacalhau que lhe era levado por uma escada rolante sem fim.

Quando a boa dama voltou para uma segunda tentativa, Pilutok a olhou e a agarrou. Bamboleando e movendo-se aos trancos pela pista com sua nova parceira, ele a informou em altas vozes de que Papik era seu irmão e estava com ele.

De boa paz, como sempre, Papik não o negou.

A surpresa final da noite veio quando, incapaz de decidir se suas mãos lhe deveriam servir para esfregar os olhos doloridos ou para tapar seus ouvidos ainda mais doloridos, Papik decidiu partir e descobriu que seu casaco de pele de urso tinha desaparecido.

Ele jurou matar o ladrão no instante em que pusesse os olhos nele, mas Aage disse que aquilo era um serviço para a polícia. E Papik se surpreendeu ao ouvir que o papel da polícia não estava restrito a atirar em cães e prender Homens. Como assinalou Aage, ninguém usava peles de urso naquela cidade, mas principalmente blusões de tecido de pele falsa, encontrados nas lojas, e se Aage usasse os seus poderes oficiais e desatrelasse toda a força policial de quatro homens, havia uma boa chance de se recuperar o casaco de Papik.

Aage provou ter razão.

Papik precisou de pouco tempo para aprender os novos costumes e descobrir que mulheres que não pertencem a ninguém pertencem a todos. Depois de duas noites de sono perturbadas por certos pensamentos, resolveu voltar ao LUGAR DA MÚSICA ALTA com a mente mais aberta. Mas os espíritos do mal interferiram mais uma vez em seus extrava­gantes projetos.

Por vários dias ele vinha se sentindo imprestável. Não havia dúvida de que os espíritos estavam atuando sobre ele. Mas como seguia todas as instruções de Aage destinadas a apascentá-los, esperou confiantemente que aquela sua sensação passasse. Porém, ela continuou a piorar: o nó no estôma­go, as ferroadas na cabeça, a dor de ouvido. Sentia-se quente e, logo a seguir, frio. E quando começou a ver dois bacalhaus em suas mãos quando só havia pegado nada mais que um, deu-se conta de que estava mal.

Finalmente, desmaiou no serviço.

Acordou num hospital, depois que seu companheiro de plataforma conseguiu agarrá-lo quando estava a ponto de tombar dentro do escorregador, arriscando-se a perder a cabeça, o rabo e a pele dentro da máquina.

Sentiu atordoamento e náusea. Estava vestido com uma camisa branca, deitado numa cama portátil que fazia parte de duas longas filas de camas idênticas. Através da porta aberta, podia ver outra enfermaria semelhante. Nunca suspeitara que houvesse muitas pessoas doentes no mundo. Aquele era o hospital localizado mais ao norte, construído pelos homens brancos para abrigar pessoas doentes e feridas num território que se estendia por milhares de quilômetros.

Um jovem homem branco e duas mulheres esquimós, todos vestidos com aventais brancos e exalando cheiros de doença, moviam-se de uma cama para outra, examinando os pacientes. A enfermeira mais velha descobriu o peito de Papik e perguntou-lhe como se sentia.

Não estou bem — murmurou Papik.

Ele se sente próximo da morte — traduziu a enfer­meira.

Algo parece terrivelmente errado — exclamou o médico, olhando para a inchação do tamanho de um punho que bombeava espasmodicamente no peito de seu paciente.

É só um coração muito inchado — disse a enfermeira. — O senhor verá isto na maioria dos nossos homens do norte.

O médico passou a cuidar de Papik da maneira dos feiticeiros brancos, tomando-lhe o pulso, beliscando, batendo e apertando-o. Quando os ouvidos foram pressionados, o paciente soltou um berro e o médico riu. Era o mais estranho exorcismo que Papik já testemunhara.

— Você tem uma doença de criança — informou a enfermeira.

Embora a caxumba num adulto não fosse coisa para rir, era engraçado descobrir que um marmanjo pudesse pegar uma doença de criança. Mas Papik não podia participar das risadas, porque isso fazia doerem seus ouvidos.

Então, a enfermeira mais jovem meteu uma agulha em sua nádega, mas Papik não era o tipo que recebesse uma estocada de agulha deitado, especialmente de uma mulher. Deu um salto da cama com um rugido, mas antes que pudesse agarrar a garganta da enfermeira, o médico deu a volta por trás dele e gritou pelo socorro dos outros pacientes. Apesar de suas condições, Papik entrou numa boa luta, mas finalmente foi dominado e recebeu outra injeção, diferente da primeira.

Uma injeção que o pôs a dormir.

A doença de Papik foi longa e dolorosa. Todas as vezes que uma infecção do sul atacava esquimós que eram livres do contágio por inúmeras gerações, os corpos desacostumados se revelavam tão frágeis que o número daqueles que sucumbiam ultrapassava o número dos que se recuperavam.

Papik, como sempre, pertencia à minoria. Mas sua convalescença era lenta e monótona, dando-lhe um bocado de tempo para pensar.

As circunstâncias impiedosas havia muito vinham acaban­do não só com os Homens mais frágeis, mas também com os estúpidos, produzindo uma linhagem particularmente inteligente. E de que ele próprio era um dos mais inteligentes da linhagem Papik nunca tivera a menor dúvida. Daí ele deduziu que, enquanto os homens brancos quisessem que ele ficasse no sul, ele não poderia escapar. Ali eles eram mais fortes do que ele, principalmente porque eram aliados de espíritos diabóli­cos, o que lhes permitia, entre outras coisas, injetar magia negra nas carnes de um honesto homem, pondo-o a dormir. Por outro lado, sabia, por experiência própria, que no gelo estaria novamente livre deles, pois o grande frio entorpecia os espíritos estrangeiros e os tornava inofensivos.

Para reconfortar-se, Papik recordava o tempo em que seu pai, Ernenek, tinha sido preso por matar acidentalmente um explorador branco que o insultara, desprezando sua hospitalidade. Dois tolos policiais andaram de trenó por todo o gelo do norte durante dois anos até encontrá-lo, e enquanto ele estava sendo algemado, seu anjo da guarda abriu o oceano, engolfan­do o trenó da polícia. A maioria dos cães se afogou e um dos policiais morreu depois que foi pescado, porque suas roupas ensopadas se congelaram instantaneamente na formidável ventania, encerrando-o em gelo e parando seu coração. Como todas as provisões e armas também estavam perdidas, o outro policial ficou à mercê de Ernenek. Mas em vez de abandoná-lo ao destino que ele merecia, Ernenek preferiu humilhá-lo, salvando-lhe a vida. Conseqüentemente, o policial se mostrou agradecido, reportando que Ernenek tinha morrido e poderia ser eliminado da lista dos procurados.

Tudo aquilo provava que, se os Homens eram desampara­dos e ignorantes no sul, os estrangeiros eram tão ignorantes e desamparados no norte. E Papik devia voltar para lá para ficar, logo que pudesse.

Sua fraqueza persistiu longo tempo depois que a dor e a inchação cessaram, e ele se sentia como num longo e restaura­dor sono de inverno, apesar do calor, se o médico e as enfermeiras não continuassem a acordá-lo para apalpá-lo e alimentá-lo.

O amigo Aage também vinha confortá-lo, geralmente com pedaços de caribu cru. Uma vez presenteou-o com um pedaço de carne de foca. Mas a visão do vermelho e da gordura cor de mármore fez Papik sentir-se miserável com a saudade, sem satisfazer seu paladar, que preferia foca viva, deteriorada ou congelada.

Uma vez Aage trouxe notícias de casa.

Recebera do comerciante Tor uma carta que levara metade do inverno para chegar à cidade em sua viagem de trenó e de navio. Tor escreveu que Vivi estava bem e esperava pela volta de Papik.

Naturalmente que ela está esperando disse Papik. Ela sabe que se partir com outro homem ambos serão mortos.

Aage estremeceu:

Não não! Quando você vai aprender que não pode ficar matando gente? Você teve sorte uma vez, mas da próxima eles vão trancá-lo na cadeia e deixá-lo lá.

Quem fará isso? Um homem estará seguro no gelo.

A polícia vai procurá-lo até encontrá-lo.

Por um instante o grande rosto de Papik se iluminou.

A polícia! Ela devolveria a mulher de um homem, exatamente como tinha devolvido seu casaco.

Não é a mesma coisa. Eles não podem levar-lhe Vivi de volta.

Você quer dizer que a polícia permitiria que um homem levasse a mulher de outro?

Papik, de acordo com nossas leis, uma mulher pode fazer o que quiser.

Não de acordo com as nossas. Um homem não pode deixar sua mulher ser levada e conservar a honra.

Você tem de aprender a viver com nossas leis.

Papik sabia que não era cortês contradizer os estrangei­ros, pois eles simplesmente não sabiam das coisas, e ele o fez com grande relutância.

Nós não vamos à sua terra levando as nossas leis — disse ele pacientemente. — Por que vocês vêm à nossa terra trazendo as suas?

Nós consideramos a terra como nossa — disse Aage. — Sinto dizer isso, mas é, uma vez que somos mais fortes.

Papik deu uma risada brusca e Aage suspirou.

—        Papik, só estou tentando ajudá-lo. Provavelmente poderei convencer a Polícia Suprema a deixá-lo ir mais cedo, já que você não está bem. Assim, tenha um pouco mais de paciência. E estou certo de que encontrará Vivi esperando por você.

Papik sorriu.

—        Isso é o que um homem impertinente já lhe disse.

 

                                   Siorakidsok

A Polícia Suprema deixou Papik ir embora antes do tempo, mas foi uma viagem longa e vagarosa para o Cabo Miséria. Era outono e o mar estava congelado novamente quando ele se reuniu a Vivi.

Ela o recebeu com um sorriso, mesclado de muito embaraço. O embaraço era em relação à pessoa que se encontrava por perto e não em relação a Papik, que nem mesmo olhou para ela, com medo de que alguém suspeitasse de que ele sentira falta dela. Assim, Papik não notou que ela tinha adquirido formas consideravelmente avantajadas na cintura durante sua ausência.

Vivi chamou a atenção dele para isso quando ambos se retiraram para o pequeno quarto dela para discutir negócios de interesse mútuo.

Vivi tinha uma notícia boa e uma notícia má. A boa: embora Papik tivesse estado ausente por quase um ano, ela estava grávida. A má: todos os sinais e presságios que indicavam o sexo do bebê por nascer tinham sido alarmante­mente vagos e contraditórios, e algo tinha de ser feito com urgência.

Papik não ouviu a segunda declaração de Vivi. Estava meditando sobre a primeira.

Você olhou para a lua cheia na minha ausência?

Todo o tempo disse Vivi rapidamente.

Entretanto, um cidadão do mundo como Papik estava ciente de que a luz da lua cheia, por si só, não poderia fazer uma mulher ficar grávida, e perguntou:

Por acaso você riu com algum homem?

Vivi corou até os olhos.

Não é impossível.

Papik respirou fundo.

—        Um homem deve estar distraído. Ele não se lembra de ter sido solicitado ou dado permissão.

Vivi encarou-o secamente.

—        Como sempre, você tem razão. Ela forçou seus bonitos lábios a sorrir. Mas não havia maneira de pedir-lhe e nem tempo a perder. Você estava impaciente para ter um filho. Não se lembra?

—        Sim concordou Papik, infeliz.

No Cabo Miséria, os cães se haviam juntado em matilhas de dez ou doze, cada qual dominada por um que era capaz de subjugar os outros. Tal líder natural era Karipari. Ocupada com os afazeres domésticos e incapaz de alimentar seus animais, Vivi não tinha podido manter a matilha reunida e os cães se haviam dispersado. Dos seguidores de Karipari faziam parte cães da matilha original e alguns outros novos, e Papik reuniu toda a matilha no trenó ao chegar. Karipari não fora admitido em nenhuma família, pois continuara a morder quem quer que ousasse aproximar-se de Vivi.

Assim, Papik e Vivi deixaram a cidade (cidade? quatro homens brancos e cerca de quarenta esquimós quando todos estavam em casa, o que nunca ocorria) no crepúsculo do outono, num trenó construído com ossos e alguma coisa congelada, contentes por retomar a viagem em direção ao feiticeiro depois da longa interrupção.

A despedida de Tor e Birgit foi comemorada com muitas saudações e promessas. Os homens brancos não compartilham do ponto de vista dos esquimós de que as partidas são tristes e devem ser ignoradas. Eles parecem gostar de despedidas, como se ficassem felizes com a partida de alguém.

Eles são simpáticos, mas burros — disse Vivi a Papik logo que o trenó arrancou.

Não são burros, mas ignorantes — disse Papik. — Como todos os estrangeiros.

É verdade! Até que uma tola mulher lhes dissesse, eles não tinham idéia de que o vento norte é macho e se chama Nakrahyak. E que o vento sul é sua mulher, Pettahrak. E o sudeste é Kahdannek, sua filha.

Um homem não está surpreso — Papik riu, estalando o chicote sobre a matilha. — Muitos homens brancos nem sabem que AQUELE QUE ANDA é o urso e AQUELE QUE CORRE é o cão.

Vivi riu tanto diante disso que perdeu o equilíbrio e quase foi jogada fora do trenó, que deslizava e dançava mais do que de costume, pois a matilha ainda não estava cansada.

—        Mas lembre-se de uma coisa — disse Papik. — Mesmo os estrangeiros mais simpáticos podem ser perigosos, porque são tão loucos como carcajus. Nenhuma de suas coisas faz sentido: polícia, leis, espíritos. E a única maneira de estar seguro é ficar longe deles.

Mas primeiro eles tinham de chegar ao vilarejo na enseada que tinha sido a terra de Vivi por longo tempo. De acordo com informações que não eram mais antigas do que dois ou três anos, Siorakidsok ainda vivia ali.

Se o mais velho de todos os feiticeiros não pudesse ajudar Vivi a ter um filho homem, ninguém poderia.

O sol se movia no céu como uma espiral, permitindo que o mar endurecesse, mas a luz do dia ainda estava presente — o melhor período para viajar — e eles avançavam bem, patinando sobre as vastidões brancas sob as quais o oceano fazia um ruído surdo, ladeando icebergs, formados pelo vento e presos na crosta do mar, e tiras de terra escura e desprotegida, flanqueadas por geleiras.

O circuito regular dos Homens Polares abarca as cabeças brancas de três continentes — América, Ásia e Europa — e territórios que várias nações consideram seus, contanto que encontrem as fronteiras. E sempre todas podem fazê-lo. Mas só nos mapas.

Os Homens viajam para o Canal da Língua de Urso, à procura de madeira flutuante; para a Muralha Branca, à procura de peles de pássaros; para a Baía Engraçada, à procura de marfim de morsa; para o Desfiladeiro Espiri­tual, à procura de pedra-sabão; para a Baía das Risadas, à procura de caribu; para as Planícies Marrons, à procura de boi almiscarado. No gelo perene só se encontram umas focas esparsas e alguns ursos errantes.

Quando não há feiticeiros a procurar, nenhuma interfe­rência da polícia, nenhuma quebra do gelo ou tremores de gelo, nenhuma perda de cães ou travessuras dos espíritos, nenhum assassinato ou mutilação, um trenó leva dois anos para fazer toda a volta do círculo. Se leva mais, ninguém se queixa. Os homens não têm pressa, estando convencidos de que a velocidade não prolonga a vida, mas a encurta.

Daquela vez, porém, Papik e Vivi estavam impacientes por chegar a algum lugar. Uma nova vida se desenvolvia no ventre dela e eles poderiam não ter chances com seu sexo. Tinham de alcançar o onisciente Siorakidsok antes do parto.

Alcançaram.

Os Homens não contavam os anos e nunca sabiam que idade tinham, exceto Siorakidsok. Da última vez que o viram, ele costumava dizer que tinha trezentos anos. Agora, punhado de anos mais tarde, ele dizia ter quatrocentos. Algumas pessoas suspeitavam de que ele exagerasse, mas Siorakidsok sustentava impertinentemente que os feiticeiros não calculavam como simples mortais.

Ele não era só um dos mais velhos e desatentos Homens vivos, mas também um dos mais vigorosos, embora fosse um mirrado pigmeu, coberto com peles de cães sarnentos, paralisado da cintura para baixo, sem nenhum dente em sua boca imensa e pouco cabelo em sua cabeçorra, que era toda ouvidos, nariz e lábios. Suas pernas se tinham encolhido tanto pelo desuso que ele parecia apoiado em seu tronco. Seus detratores asseveravam que sua paralisia tinha sido causada pela preguiça, numa época em que era tão poderoso que sempre podia encontrar bastante gente para coçar suas costas e disposta a carregá-lo em seu tapete de caribu.

Mas a chegada de um missionário à enseada tinha causado a sua decadência.

O homem branco, barbado e de aspecto pavoroso, viera pregar a pobreza aos pobres, enquanto levava o que para eles era uma vida luxuosa, e a comunidade do bem que eles sempre haviam praticado, enquanto ele próprio proibia que se tocasse nas provisões da missão. Persuadira os habitantes do povoado de que acreditar na eficácia de amuletos — que ele arrancava de seus pescoços com suas mãos descobertas — e de feiticeiros era um pecado que os levaria ao fogo eterno. E os esquimós não ousavam ignorar as advertências de alguém que pertencia à raça mais terrível do mundo. Mas tampouco ousaram renunciar a seus vários amuletos, os quais, de então em diante, guardavam cuidadosamente escondidos sob suas roupas.

Então, o missionário recusou-se a unir numa cerimônia cristã Papik e Vivi, e a irmã de Papik, Ivaloo, com Milak, porque os jovens eram pagãos que não podiam casar com moças recentemente batizadas, a menos que se estabelecessem no povoado e tomassem lições de religião cristã por um ou dois anos. Assim, os dois casais se evadiram. Conseqüentemente, o missionário também partiu, deixando seu rebanho completamente desnorteado, com todo um novo conjunto de assustado­res tabus em competição com os seus próprios, imaginando como seus antepassados tinham conseguido sobreviver sem a orientação de missionários brancos.

Eles tentaram resguardar-se e não incorrer na ira nem dos espíritos estrangeiros, nem dos seus próprios.

Entrementes, ninguém ousou atirar o feiticeiro para fora do gelo, como convinha a um homem de sua idade. Os aldeões tinham medo do que seu fantasma lhes poderia fazer. E aqueles que se lembravam das advertências do missionário temiam ainda o castigo do Alto Espírito dos homens brancos, o qual proibia todo assassinato, inclusive dos velhos e das crianças.

Porém, cada vez mais gente parou de adular e reverenciar Siorakidsok. Alguns aldeões simplesmente deixavam alguns estômagos de lagópodes ou outras coisas rejeitadas em sua porta, para o caso de seu fantasma poder lembrar-se da generosidade deles depois da morte e não vir assustá-los na escuridão. Siorakidsok tinha de arrastar-se até fora de sua cabana de pedra e torrões com suas mãos para recolher os donativos. Assim, em tudo por tudo o velho homem tinha uma vida dura.

Até que Papik e Vivi o encontraram.

Além da velha pele de caribu sobre a qual ele ficava e suas roupas de cachorro usadas sobre o corpo, nada havia que Siorakidsok pudesse considerar como seu, exceto suas fezes que se espalhavam pelo chão e os ossos e cabeças de peixe que ele chupava até que ficassem brilhando.

Ele não reconheceu Papik e Vivi até que eles gritaram seus nomes diversas vezes no gigantesco pavilhão de suas orelhas. Então o feiticeiro sorriu com suas gengivas pretas e seus pequenos olhos de raposa brilharam.

Você é o filho do Ernenek, que era um grande escândalo no gelo? rangeu sua voz de homem velho.

—        Não é impossível disse Papik.

Alguém se lembra da chegada de seu pai com um trenó carregado de presuntos de urso nesta aldeia!

A caça está ficando rara disse Papik com um sentimento de culpa.

Siorakidsok indignou-se.

—        Nada de presuntos de urso?

Temos problemas. Eis por que viemos. O senhor tem de ajudar-nos a ter um filho homem.

É, há alguns Homens inteligentes que se foram, mas que sabem aonde voltar para receber ajuda.

Primeiramente, Siorakidsok insistiu num exame explora­tório de Vivi. Mandou-a chegar perto dele e a penetrou com o dedo.

—        O senhor está-me fazendo cócegas! disse ela envergonhada.

Não a estrague! disse Papik, contrariado.

Hi! hi! cacarejou o velho homem, sorrindo de orelha a orelha. — Um feiticeiro está tentando descobrir se é menino ou menina.

Ele prosseguiu cacarejando e serpeando seu dedo em Vivi, que não podia estar mais embaraçada. Até que Papik bateu o pé e pediu o veredicto.

Siorakidsok estava preocupado.

—        Não se pode apressar os espíritos!

Amuado, ele terminou o exame médico e lambeu o dedo.

—        O gosto é de menina. A menos que seja um menino. O Homem da Lua ainda não decidiu. Um feiticeiro vai visitá-lo em seu nome, se você arranjar o que é necessário.

Mais do que a habilidade para predizer o tempo e curar doenças, eles têm a capacidade de voar através do espaço e consultar o Homem da Lua, que estabelece o prestígio do feiticeiro na família dos Homens, sendo o Homem da Lua, naturalmente, responsável por todas as coisas relativas a gestações e nascimentos.

—        Nós vamos angariar a ajuda dos aldeões — disse Papik.

Embora aquelas palavras não chegassem aos velhos tímpanos, Siorakidsok sabia exatamente o que Papik tinha dito. Um feiticeiro não chega aos quatrocentos anos sem saber alguma coisa.

Os aldeões têm medo de ajudar — arfou. — O invejoso missionário convenceu-os de que ajudar um feiticeiro a ir à lua é pecado.

Então, qual é a solução?

Siorakidsok inclinou-se para a frente e abaixou a voz num sussurro conspirador, olhando para a porta aberta, embora não houvesse vivalma à vista.

Você tem de levar um feiticeiro para outro lugar, um lugar ainda não corrompido por superstições estrangeiras. Mas você deverá fazê-lo clandestinamente, porque os dois homens brancos da aldeia certamente tudo farão para mantê-lo aqui.

Por quê?

Eles ficarão com medo dos poderes de um feiticeiro, uma vez que ele esteja livre para comunicar-se com nossos próprios espíritos.

Papik mudou de posição sobre os pés.

Um homem gostaria de visitar sua irmã em breve. O senhor se lembra de Ivaloo? Dizem que ela está vivendo na Montanha Grávida. Não é impossível que o senhor seja aceito lá.

Um feiticeiro começa a preparar sua partida, contra as maquinações dos homens brancos! anunciou Siorakidsok triunfalmente.

Embora o ar estivesse cortante na enseada congelada, o casal armou a tenda de pele sobre o trenó, para servir de abrigo, não desejando compartilhar as sórdidas instalações de Siorakidsok durante sua breve estada. A conselho de Siorakidsok, eles não falaram com ninguém mais. De acordo com ele, quem quer que soubesse do plano deles de levá-lo da aldeia poderia revelá-lo aos homens brancos, que então se oporiam à partida. Além disso, a população sedentária consistia sobretudo de vovós na maioria das aldeias. Os homens tinham o mau hábito de perderem a vida na água ou no gelo muito antes de atingir idade avançada, e as poucas pessoas jovens que ainda podiam conhecer Vivi estavam todas caçando ou pescando.

A partida, quando Siorakidsok tinha de ser levado em segredo para fora da aldeia, foi um momento de suspense.

Ele mandara Papik e Vivi prepararem um ungüento mágico de óleo de foca e várias carnes cuidadosamente mastigadas que o tornaria invisível aos homens brancos assim que cobrisse o rosto com ele pelo lado de fora e o estômago pelo lado de dentro.

Quando o trenó passou próximo das habitações, com Siorakidsok empoleirado em cima dos fardos, nenhum aldeão prestou atenção a ele, é claro, porque obviamente se tratava de uma partida. Mas os dois homens brancos olharam-no com indisfarçável curiosidade. Não eram residentes verdadeiros. Apenas dois caçadores que empregam armadilhas, pai e filho, e que usavam a aldeia como base antes de voltar ao sul com suas peles.

Papik e Vivi não sabiam se o misterioso unguento era eficaz, já que era apenas contra os tolos homens brancos, e de fato eles próprios podiam ver Siorakidsok com perigosa clareza, todo embrulhando em suas peles de cachorro, que eles rechearam, para melhorar o aquecimento, com algumas peles de raposa.

Mas, evidentemente, a mágica funcionou, pois os homens brancos não fizeram nenhum movimento no sentido de impedir a partida do feiticeiro.

Papik e Vivi fizeram um acordo muito claro com Siorakidsok. Eles o levariam à aldeia de Ivaloo, que ficava além da influência dos homens brancos e onde ele poderia encontrar o reconhecimento merecido por um feiticeiro. Em troca, Siorakidsok, chegando a terreno seguro, voaria ao Homem da Lua e tentaria ganhá-lo para a causa deles.

Papik e Vivi eram, ambos, por demais conhecedores do mundo para acreditar cegamente nas alegações de qualquer feiticeiro. Nenhum homem pensante, a começar pelos fundadores de grandes religiões, tinha sido completamente isento de dúvidas. Mas eles não viam outro meio de agir. E sabiam da reconhecida incapacidade dos feiticeiros dos homens brancos para influenciar o sexo de uma criança por nascer, enquanto seus feiticeiros tinham razão em pelo menos metade das vezes.

A esperança era o fundamento da fé do casal.

E sua fé, ou esperança, tinha de ser grande, para fazê-los conspirar com Siorakidsok, que se revelou um desagradabilíssimo companheiro de viagem. Durante todo o tempo ele reclamava por comida, mas com pouco êxito, mesmo quando, maliciosamente, ameaçava morrer se Papik não o satisfizesse. Papik não se impressionava e o alimentava com base nos mesmos princípios com que alimentava os cães — só o suficiente para manter sua alma presa ao corpo, uma vez que algo mais só poderia fazer aumentar seu estômago encolhido e resultar em novas reivindicações.

Vivi respeitosamente mastigava as carnes para o desden­tado hóspede, mas se recusava a alimentá-lo boca a boca como a um bebê, como ele persistentemente pretendia. Sugeria ele também que ela o alimentasse com seus seios, alegando que, como feiticeiro, ele sabia extrair leite de uma mulher grávida. Como Vivi se recusava, ele ficava de mau humor.

Mas logo começaria tudo de novo.

Freqüentemente, Papik era tentado a usar o velho como comida de cachorro. Só o medo de sua sombra e o desejo de um filho continham suas mãos. Quando a primeira nevasca os forçou a erguer um abrigo, deixaram Siorakidsok no túnel com a matilha. Quando ele protestou, lembrando-lhes em altas vozes que eles lhe deviam um triplo respeito — como feiticeiro, como velho e como hóspede — Papik simplesmente forneceu-lhe um chocalho, com o qual ele poderia chamar por socorro caso a matilha o atacasse.

Mas nem os cães pareciam particularmente interessados naquele esquelético pigmeu, vestido com peles de seus compa­nheiros, e Papik teve de intervir uma única vez.

Chegando a seu destino, uma surpreendente descoberta fez com que todos os três lamentassem que Siorakidsok tivesse deixado sua antiga residência.

A Montanha Grávida já tinha seu feiticeiro. E era alguém por quem Papik e Vivi tinham tanto carinho que eles não teriam levado em consideração nenhum outro feiticeiro se soubessem daquilo. A pessoa que todo o lugar considerava um feiticeiro dotado de misteriosos conhecimentos era a própria irmã de Papik.

A doce Ivaloo.

 

                                     Ivaloo

O fato é que os Homens querem orientação, e se não têm um feiticeiro, arranjam qualquer um.

Basta apenas que um homem ou uma mulher seja tido como possuidor de poderes sobrenaturais. Ou alguma coinci­dência ou ainda um pouco de esperteza possa transformar a suposição em certeza. Ninguém mais estava vivo para lembrar-se da iniciação de Siorakidsok.

Mas todos conheciam a de Ivaloo.

No caso dela, uma correta previsão do tempo tinha sido o início de tudo. Ela predissera uma nevasca que os caçadores evitaram. Então, alguém se lembrou do milagroso nascimento de seu filho quando ela vivia em outro lugar, mais para o sul, na aldeia da enseada, onde não passara homem algum por mais de um ano. Exceto o missionário, é claro. E como uma moça cuidadosamente bem-educada, Ivaloo se abstinha o tempo todo de olhar para a lua. Embora o próprio missionário tivesse decididamente excluído a hipótese de milagre, e certamente ele era uma autoridade no assunto, os aldeões atribuíram a gravidez de Ivaloo à influência divina, numa ocasião em que ela caiu inconsciente após uma ingestão excessiva da aguarden­te do missionário.

A própria Ivaloo se recusava a admitir que tivesse qualquer poder extraordinário. Mas quanto mais ela dizia isso, mais crédito lhe era dado pelos aldeões. Quanto mais ela dizia que nunca havia visitado o Homem da Lua, mais certeza eles tinham de que ela voava até ele o tempo todo enquanto eles dormiam.

E de que o Homem da Lua a tinha em alta conta.

Papik e Vivi ainda não tinha visto Ivaloo quando tiveram notícia disso. Eles pararam na primeira cabana que encontraram ao pé da Montanha Grávida para arrumarem-se para a grande reunião e colherem informações. Na realidade, a Montanha Grávida era uma ilha, mas durante onze meses do ano só os peixes a podiam ver, pois ela estava unida à terra próxima pela crosta de mar congelado que lhe emprestava a aparência de uma grande pedra arredondada numa planície cheia de neve.

Papik e Vivi chegaram quando a precipitação estava bem avançada; o oceano, sólido; o ar cinzento e frio, anunciando a noite. A cabana em que eles tinham parado era do tipo que os Homens construíam, de pedra e musgos, sob os penhascos das aves depois das caçadas de verão no interior, antes de erguer seus iglus de inverno no gelo da baía que, devido à água subterrânea, é mais quente do que a terra super congelada.

A cabana era ocupada por dois Homens. O mais moço era tão arredio e tinha olhos tão lânguidos que parecia uma mulher. Os visitantes não se deram conta de que era um rapaz até que ele descobriu seu peito. Papik e Vivi riram disfarçada­mente, de bom humor. Como qualquer outra pessoa, eles tinham ouvido falar do velho Noluk e seu jovem companheiro, que costurava suas roupas e trinchava os animais que ele abatia.

Como vai Ivaloo, a irmã de alguém? — perguntou Papik, enquanto Vivi se ajoelhava a seus pés para limpar-lhe as botas.

Ainda está esperando pela volta do marido — disse Noluk.

Muito tempo atrás, Papik e Vivi tinham ouvido de condutores de outros trenós que Milak, o marido de Ivaloo, não dava sinal de vida desde que fora procurar ursos num bloco de gelo. Três anos constituíam um longo tempo de ausência para caçar ursos, pelo menos do ponto-de-vista de uma esposa, mas isso não era incomum. Na primavera, muitos Homens se deixavam ir, levados em blocos de gelo pelas correntes circulares de noroeste que poderiam transportá-los a centenas de milhas para o sul, e eles não encontravam em cada outono o vento sudeste adequado para voltar.

Ivaloo não tinha nenhuma dúvida de que Milak retorna­ria, por mais que todos os homens tentassem convencê-la do contrário. Não era de admirar. Ivaloo possuía um rosto bonito e um corpo musculoso, mas, para a grande mágoa deles, ela não era do tipo alegre.

Ela sorri para todos, mas não ri com nenhum — foi assim que Noluk explicou. E então ele contou sobre os poderes secretos de que era possuidora.

Um feiticeiro vai mostrar que ela é uma impostora, uma fraude — avisou Siorakidsok estridentemente depois que Papik lhe transmitiu as notícias por meio de gritos.

Noluk zangou-se e disse a Papik:

Ele deveria ter mais respeito por sua idade. Algumas pessoas poderão ser tentadas a usar sua língua como isca para urso se ele caluniar Ivaloo.

Cuidado com sua língua — Papik advertiu Siorakid­sok. — Ela corre perigo.

Siorakidsok estava tão aborrecido com a desleal competi­ção que rejeitou — acreditem ou não — o pedaço de fígado bichado que o companheiro de Noluk lhe ofereceu num prato de pedra-sabão.

Papik já não prestava atenção ao feiticeiro e muito menos à comida.

—        Vamos! — disse ele a Vivi, que estava ofegante de tanto esfregar suas botas. — Alguém quer ver sua irmã.

Irmão e irmã ficaram olhando um para o outro por um momento na entrada da escura residência dela. Um punhado de anos devia ter passado desde seu último encontro.

Ivaloo vivia sozinha numa cabana de grama, sustentada com ossos de baleia. Era baixa e gorda, uma verdadeira mulher polar, mas baixa e mais gorda que Vivi. Seu rosto afável ainda era muito agradável, mas seus olhos amendoados estavam um pouco menos vivos do que aqueles de que Papik se lembrava. Desde que se tornara mulher de Milak, deixara seu cabelo crescer e usava duas longas tranças, presas por uma fita, caindo sobre o peito à moda do sul. E, em vez de felpudas peles de urso, ela usava as extravagantes roupas de que uma vez caçoara de couro de caribu guarnecido com pele de raposa, contas e fitas.

Logo que se recuperou da surpresa, lançou-se aos braços de Papik, para esfregarem narizes, bochechas, e fungarem nos rostos, cacarejando e arrulhando de alegria.

Só depois de ter esfregado nariz com Vivi é que Ivaloo notou que no pacote que eles tinham trazido estava o tapete de caribu com Siorakidsok. Ela deu-lhe as boas-vindas com gritinhos e profundas reverências.

—        Você se diz feiticeira? Siorakidsok logo investiu contra ela. Você é uma falsa feiticeira e uma autêntica fraude.

Ivaloo respondeu-lhe com um sorriso amável:

—        É justamente o que uma tola mulher vive dizendo a todo mundo. Mas eles não querem ouvir. Talvez o senhor possa persuadi-los.

Siorakidsok fez-se de desentendido e respondeu gritando:

—        Não me chame de charlatão. Você é quem é charlata. Entrementes, algumas pessoas das habitações vizinhas

tinham visto o trenó e vieram à cabana, e um homem encolerizado cortou as palavras de Siorakidsok:

—        De quem é este cachorro? Chutem-no para fora!

—        Não, não! sorriu Ivaloo. Siorakidsok é um feiticeiro muito sábio. Que pode confirmar que uma tola mulher não o é.

—        Não acreditem nela!

Siorakidsok estava lutando por sua vida e os outros tinham de gritar até ficarem roucos para fazê-lo compreender que Ivaloo estava do lado dele.

Quando ele se deu conta de que, a despeito de ser uma simples mulher, ela exercia grande influência, mudou habilmente de atitude. Passou a ser todo sorrisos, asseverou que sempre tivera consciência dos poderes sobrenaturais de Ivaloo, prometeu seu apoio e augurou um brilhante futuro para ela, ganhando assim a aprovação de todos. Com a exceção da de Ivaloo.

—        Uma tola mulher é tida como sábia só porque não errou umas duas vezes disse ela. Se há uma migalha de bom senso em sua cabeça, ela o deve a Siorakidsok, que uma vez a deixou tirar alguns de seus piolhos.

Era verdade. Uma vez, quando ela exprimiu sua inveja da sabedoria do velho feiticeiro, ele permitiu tirar uns piolhos de sua cabeça, de modo que eles pudessem transmitir alguns de seus conhecimentos para a cabecinha ignorante dela.

—        É inútil negar a palavra de um feiticeiro guinchou Siorakidsok. Ouça, Ivaloo. Alguém tem uma proposta para você. Mas primeiro, que todos os visitantes voltem para casa.

Os visitantes se retiraram, mas a proposta de Siorakidsok tinha de ser aguardada. A família arrastou seu tapete, com ele em cima, para um canto, debaixo das carcaças de raposas esfola­das dependuradas no teto, e começou a conversar em particu­lar, sabendo que ele não podia ouvi-los secretamente.

Siorakidsok também sabia disso e decidiu ficar adorme­cido.

—        Por favor, não me digam que Milak está certo de voltar começou Ivaloo dando um largo sorriso. Largo até demais. Uma mulher sabe disso. Além do mais, que são três anos e pouco?

Ela tinha posto neve para derreter num vaso de pedra-sabão, adicionando uma pitada de folhas de chá da tundra. Isso era um luxo do sul, e as narinas de Vivi se alvoroçaram antecipadamente.

Papik riu numa de suas explosões curtas e rudes.

—        Claro! Que são uns poucos anos para um homem que se foi num bloco de gelo?

Ele recordou nomes, épocas e lugares de Homens que tinham ido caçar ursos e voltaram depois de muitos anos. Ivaloo ouviu com um vago sorriso, o olhar ausente, como se o assunto não lhe dissesse respeito.

—        E se Milak não voltar continuou Papik alegremente muitos outros vão querê-la. Você sabe costurar roupas à prova d'água. no caso de um homem cair na água.

Ivaloo continuava a sorrir e a olhar para o inverno, e quando a neve de beber se derreteu ela começou a circular o vaso.

Vivi bebeu um bom gole e disse abruptamente:

Uma mulher tem um problema. A criança que ela carrega tem de ser um menino, pois é a última criança que ela vai ter. Ela não pode esquecer a menina que teve de morrer.

Uma mulher sabe o que é sentir a perda de uma criança Ivaloo balançou a cabeça. E a dela era um sadio filho homem, começando a andar e falar. Um verdadeiro homenzinho. Esta perda foi muito pior.

Vivi faz muito espalhafato por causa da menina exclamou Papik. Além do mais, ela era ainda tão pequena! E um pai não a estrangulou ou torceu seu pescoço, como fazem alguns. Colocou-a no temporal, ainda molhada do parto, e tapou-lhe a boca com neve, para fazê-la congelar mais depressa. Depois pegou suas mãos, para ver como ela estava. Ela não teve nem tempo de chorar; foi dormir quase de uma vez. Não há morte mais fácil. Um homem sabe, um homem que uma vez esteve perto de congelar-se. E então a gente corta a cabeça de um de nossos melhores cães e a deixa com a menina, para guiá-la ao paraíso das crianças.

—        Ela não achou o caminho disse Vivi sombriamente.

—        Ela volta nos sonhos de sua mãe, nua e fria. E uma mulher não vai pôr seu novo rebento no gelo, mesmo que seja uma menina.

Papik cuspiu e bateu o pé.

Precisamos de um filho, um caçador. Ninguém pode criar duas crianças pequenas de uma vez. Você não pode carregar mais de uma no seu capuz. Fora dele uma criança acaba comida pelos cães, cai num buraco ou se perde.

O que você faria, Ivaloo? perguntou Vivi à cunhada. Você, que é tão sábia.

—        Uma mulher nunca disse isso. Os outros é que dizem.

—        É o que os outros dizem que importa. Que faria você no meu lugar?

Você tem fé, você terá um menino — disse Ivaloo, lembrando-se de sua doutrinação cristã e esquecendo o quanto desastrosa ela tinna sido.

Mas, e se for uma menina? — perguntou Vivi com insistência.

Ivaloo permaneceu calada.

—        Responda!

Ivaloo não respondeu. No silêncio, uma voz no canto esquecido assustou os três. Siorakidsok acordou e pediu para ser ouvido.

—        Ouça, Ivaloo. Um feiticeiro vai arriscar outro vôo no espaço para pedir o auxílio do Homem da Lua no parto de Vivi, mas com uma condição.

E ele fez uma pausa para ver o efeito de suas palavras.

Qual é? — perguntou Ivaloo.

Se um feiticeiro voltar vivo de sua perigosa viagem, vocês terão de convencer estes cabeças-duras que acreditam em vocês de que ele é o único que eles devem obedecer, reverenciar e alimentar, com o que houver de melhor. E enquanto ele estiver na lua, também se informará sobre o paradeiro do seu marido.

E antes que Ivaloo pudesse retomar a respiração, ele soltou o argumento decisivo:

Depois disso, ele lhe revelará os verdadeiros segredos dos feiticeiros.

Inclusive como viajar à lua? — perguntou Papik.

Será o primeiro de todos.

Como o senhor poderá saber de Milak? — perguntou Ivaloo contendo a respiração. — O Homem da Lua só trata de gravidez.

Ora! De suas alturas ele vê tudo. Mas você sabe que ele recebe presentes — além da habilidade e da experiência — para recolher a informação em outras partes.

Siorakidsok inclinou-se para a frente e perguntou ansiosa­mente:

Vocês serão capazes de arranjá-los?

Não é impossível.

Decerto, o Poder que rege a gravidez é cheio de artimanhas e não se deve poupar nenhum esforço para merecer suas boas graças.

Assim, Ivaloo fez o circuito das habitações, surrupiando todas as delicadas iguarias que pôde encontrar e que deveriam contribuir para o sucesso da viagem de Siorakidsok à lua — muco de pássaro, tripas de foca, carnes deterioradas por tanto tempo que estavam bichadas, e o supremo regalo de todos: uma pele inteira de foca abarrotada de gordura e pequenas aves marinhas não deplumadas. Quando enterradas por todo um ano, longe do sol para desacelerar o processo de decomposição, os conteúdos se transformam numa pasta violeta que tem o sabor de queijo e a fragrância de um cadáver. Nenhum Homem, e certamente nem mesmo o da lua, nunca tinha provado algo melhor.

As outras mulheres ajudaram Ivaloo a mastigar aquelas gulodices, pois o Homem da Lua, sendo muito velho, é desdentado. Mas quando ela apresentou o resultado de seus árduos esforços, Siorakidsok a mandou de volta, querendo mais. Por duas vezes.

— Os espíritos não são mais como eram — suspirou. — O Homem da Lua tem mais dificuldades a cada ano.

Enfim, quando Siorakidsok se deu por satisfeito, um pequeno abrigo foi construído fora da aldeia, e o destemido feiticeiro foi trancado dentro deles com gulodices suficientes para fazer feliz até o mais ranzinza Homem da Lua. No telhado, foi deixado um buraco para a alma escapar e, por três voltas do sol, a duração de uma viagem pelo espaço, ninguém ousou aproximar-se do lugar, pois nenhum mortal pode saber como um feiticeiro deixa a terra e a ela retorna.

Sob pena de morte imediata e terrível.

No fim do prazo, a família e um grupo de mulheres tagarelas da aldeia se reuniram diante do abrigo do feiticeiro, ansiosos por ouvir as últimas notícias da lua.

Uma surpresa os esperava.

Siorakidsok, de fato, tinha feito o caminho de volta à terra, mas não sobreviveu à provação. Era uma pena, pois os alimentos tinham sido consumidos até a última migalha, provando que o Homem da Lua devia ter gostado deles e dado as respostas pedidas.

Mas isso se mostrou ser apenas uma precipitada conclu­são. Um exame mais cuidadoso revelou que o velho feiticeiro tinha devorado, ele próprio, pelo menos algumas das gulodi­ces. Sua barriga esquelética não deixava margem a dúvidas.

Quaisquer que fossem os últimos segredos de Siorakidsok, ele os estava levando consigo para o além.

Nem mesmo Ivaloo podia dizer com certeza o que se passara lá no espaço. Talvez o Homem da Lua não tivesse achado as oferendas da terra a seu gosto e as arremessou de volta ao seu embaixador, cujo coração não pôde suportar desperdiçá-las. Além dessas suposições, havia uma certeza: o Homem da Lua devia estar zangado.

O que significava maus presságios para a família de Papik.

A urgência do presente não permitia que se preocupassem mais com o futuro do que com o passado. Antes de mais nada, havia que dar fim ao corpo de Siorakidsok. A maneira mais segura era abandoná-lo aos animais. Destruindo-o, eles estariam certos de que ele não poderia voltar exatamente sob a mesma forma, fazendo brincadeiras de mau gosto.

Uma vez que tocar um cadáver com as mãos desprotegi­das é letal e que quaisquer luvas usadas para isso têm de ser jogadas fora depois, os aldeões arrastaram a carcaça para fora por uma trilha, por meio de laços passados pelos tornozelos. Nessa ocasião, descobriram que suas peles sarnentas não eram os únicos pertences do feiticeiro. Quando ele estava sendo arrastado, caiu de seu corpo uma pequena sacola, contendo todos os dentes que o velho homem tinha perdido em sua vida. Então, jogaram a carcaça numa ribanceira, murmurando "boa viagem" enquanto a viam rolar pelas rochas abaixo. Depois, apressaram-se a exorcizar a sombra do homem morto, cuja animosidade contra os vivos ninguém poderia certamente subestimar.

Quanto mais velho é um homem, mais violenta é sua mágoa por ter de deixar este que é o melhor dos mundos.

Exaustos das cerimônias, todos foram dormir, preparando-se para o inverno iminente.

Era a época do ano em que, durante cada volta do sol, a escuridão já dura mais tempo que a luz do dia. Ao acordar, a comunidade ficou chocada ao descobrir que o corpo de Siorakidsok tinha desaparecido, embora não houvesse quaisquer pegadas de animais no fundo da ribanceira. Ninguém ousou descer para verificar. Todos estavam convencidos de que o feiticeiro tinha voltado à vida e estava espreitando nas sombras.

Esperando para atacar.

Se todos os outros estavam apenas apreensivos, Vivi e Papik estavam aterrorizados. Eles seriam o primeiro alvo da ira de Siorakidsok, já que tinham sido responsáveis por sua viagem fatal. Assim, os aldeões se sentiram preocupados com a presença do casal e consultaram Ivaloo.

Como sábia mulher que era, Ivaloo deu o inevitável veredicto: Papik e Vivi deviam partir já, pelo bem comum. Mas quando ela os foi procurar, eles já tinham levantado acampamento.

Evidentemente, tinham chegado à mesma conclusão e deixaram a Montanha Grávida sem despedidas lacrimosas.

 

                                         A Vingança do Homem da Lua

Era primavera e eles viajavam ao longo da costa de gelo, próxima de duas colinas graníticas chamadas Tetas do Diabo, quando Vivi teve sua criança.

Na hora do parto, um marido pode reduzir o trabalho de uma mulher. Quando ela se ajoelha sobre o buraco aberto no gelo, ele pode colocar os braços em torno dela, por trás, e ajudar a pressionar. Mas Papik tinha ido atrás de um caribu desgarrado e Vivi estava entregue à sua própria sorte, sem abrigo, quando as dores começaram, e tudo o que ela podia fazer era pôr o trenó de pé, para servir de uma espécie de biombo.

A experiência lhe ensinara respirar fundo a cada espasmo e contrair os músculos abdominais de modo a acelerar a expulsão. Como nada podia ser feito contra a dor, ela tinha pressa em dominá-la também.

Quando achou que não podia agüentar mais e o mundo estava começando a escurecer diante de seus olhos, a cabeça da criança apareceu do lado de fora, aliviando-a. Como o resto do bebê saiu rapidamente, a cabeça da criança tocou o buraco de gelo com um baque surdo, mas Vivi estava confiante em que ela era suficientemente elástica e esperta para absorver o choque.

O que preocupava Vivi não era a cabeça do recém-nascido.

Ela tinha guardado uma boa concha de ostra para cortar o elo que a ligava à criança, a mesma que usara para a sua filha, mas agora não a encontrava. Curvando-se para a frente, rangendo os dentes contra a torrente de dor, resolveu o problema sozinha, roendo o cordão umbilical, que, apesar de sua flexibilidade, era supreendentemente resistente.

Um bom augúrio para a resistência do recém-nascido.

Temendo a tempestade gelada, ela deixou para lamber mais tarde o fardo-gotejante de carne rosada que tinha produzido e o enfiou sob seu casaco, junto de sua pele. Então, levantou as calças e deitou-se, esperando pelas páreas. Como não tinha limpado o bebê, não fora capaz de determinar-lhe o sexo.

Ou talvez ela tenha preferido adiar a descoberta.

As dores que anunciavam as páreas logo se seguiram. Ela afastara os cães para o outro lado do trenó aos primeiros sinais do parto. Agora eles sentiam o cheiro de sangue e começavam a impacientar-se, embora Karipari ladrasse para impor a ordem e conter os mais exaltados.

Vivi estava contente por não ter perdido o bastão de bater nos cachorros.

No momento em que sentiu o calor suave da placenta em suas coxas, dois cães romperam seus arreios e vieram babando sobre ela. Muitas mulheres comiam suas placentas ainda quentes, não só porque comiam qualquer coisa que saísse e ficasse por ali, mas também porque era matéria vital, que se acreditava ser capaz de relaxar os nervos e até de amenizar a dor, além de fortalecer o corpo. Mas Vivi não tinha vontade de comer coisa alguma e deixou que os dois cães comessem o que era dela. Enquanto eles o faziam, seus companheiros redobra­vam os esforços para romper os arreios.

Vivi desejou que Papik voltasse.

Ele voltou morto de cansaço. Curvado, arrastava sua caça por uma tira de couro passada pelo ombro — um filhote de caribu que traçava uma linha vermelha no gelo.

Agora ele deveria poder cair de costas e deixar sua mulher encarregar-se do trabalho. Era dever dela cuidar da caça, trinchá-la, alimentar seu marido e olhar sua barriga inchar como um balão, enquanto deixava cair pedacinhos escolhidos em sua boca, até que saíssem pelo nariz.

Mas não daquela vez.

Papik agachou-se no gelo e olhou fixamente para a figura de Vivi. A saliência que se achava sob suas calças quando ele partiu se tinha transferido para debaixo do casaco durante a ausência dele.

—        É a criança? — perguntou ele.

Ela fez que sim com a cabeça e ele perguntou com ansiedade:

Tudo bem?

Um menino — disse ela calmamente.

Papik começou a pular, esquecendo o cansaço, e seus gritos de alegria fizeram calar os cachorros, que passaram a ganir e latir ao ver a caça. Então, ele esfregou o nariz em Vivi e ela levantou o casaco e lhe permitiu dar uma olhada no rostinho.

—        Ele é louro! E os olhos são claros. Além disso, ele é meio vesgo!

—        Com o tempo, seus olhos poderão ficar azuis — disse Vivi.

O queixo de Papik caiu.

Um filho de um homem branco? Do Cabo Miséria?

Não é impossível.

Nem era impossível que Papik preferisse um filho de seu próprio sangue. Mas qualquer filho era melhor do que uma filha, e ele estava em estado de arrebatamento pelo fato de que seu desejo tinha sido finalmente satisfeito.

Ali estava um pequeno homem branco que se ia tornar um verdadeiro homem.

O bebê não era muito mais feio do que outros recém-nascidos, com uma cara balofa e uma testa enrugada. À primeira vista, excluída a tonalidade clara dos cabelos e dos olhos, ele parecia mais semelhante aos Homens recém­nascidos, devido à forma asiática dos olhos, o mais aparente legado de Vivi.

O bebê começou a chorar quando o casaco foi levantado, mostrando as gengivas sem dentes, e Papik lembrou-se, rindo, do incidente que marcou seu próprio nascimento. Ninguém tinha informado seus pais de que a natureza produzia os seres humanos sem dentes, ao contrário de todos os animais que conheciam. O golpe foi cruel e a solução, inevitável. Pobre pequeno Papik, um monstrinho desdentado, teria sido conde­nado à morte, para seu próprio bem. Mas sua experiente avó o salvou a tempo, revelando a verdade, antes de ir morrer no gelo por sua livre e espontânea vontade.

Para não constituir um fardo a mais para um casal que agora tinha uma criança para criar.

Era uma sorte que a fadiga de Papik tivesse desaparecido com as boas notícias, pois agora ele tinha muitas coisas a fazer e todas elas urgentes. Os cães tinham de ser peados, a tenda de peles tinha de ser levantada sobre o trenó, de modo que Vivi pudesse, em segurança, lamber a criança até deixá-la limpa antes de cobri-la com gordura, e a caça tinha de ser esfolada e trinchada antes que endurecesse. Em seu entusiasmo, ele correu em círculos, tentando fazer todas as coisas de uma vez, até que o vento varreu a tenda antes que ela estivesse amarrada, exigindo um iglu mais robusto, feito de neve.

Mas quando ele estava pronto para iniciar a construção, uma súbita exaustão o derrubou, e ele caiu adormecido, com o rosto sobre a crosta de neve, o que sempre resultava num queixo duro, e Vivi empurrou o cabo de uma faca sob sua bochecha. Então, incapaz de suportar a incerteza por mais tempo, ela levantou o casaco e inspecionou o bebê.

Uma menina.

Uma tola mulher decidiu chamá-lo Ootuniah dizia Vivi.

Por que não Ernenek, como o pai de alguém? perguntou Papik.

Não é impossível que uma tola mulher saiba o que fazer. Ela sussurrou nomes de todos os nossos ancestrais em seu ouvido, de modo que qualquer um deles pode ter entrado nele, transmitindo-lhe seus conhecimentos. Mas Ootuniah era o avô de uma tola mulher. Ele apareceu em seus últimos sonhos, tremendo de frio. Seu nome ainda não encontrou um corpo para aquecê-lo. Eis por que ela chamará esta criança Ootuniah.

Uma alma se parece com uma pessoa pequena, com asas. Privada de seu corpo, ela entrará no primeiro recém-nascido que aparece. Um nome se parece muito com uma alma, mas ainda menor. Quando o corpo morre, seu nome é condenado a flutuar no frio, solitário e miserável, até que alguém lhe ofereça um novo ser que o mantenha aquecido. Almas e nomes não têm sexo; podem habitar indiferentemente em fêmeas ou machos, em seres humanos ou em animais.

—        A uma de nossas cadelas demos o nome de Ernenek, por causa de seu pai — Vivi lembrou a Papik.

—        Uma cadela que se extraviou.

—        Mas que ainda pode estar viva. Seu pai apareceu em seus sonhos, miserável e frio?

Não ultimamente — disse Papik.

Então seu nome está seguro e aquecido.

Assim estava a pequena família no iglu que Papik ergueu ao acordar. Construir sob a tempestade não tinha sido fácil sem a ajuda de Vivi. Ela ainda estava um pouco atordoada do parto e queria manter o bebê aquecido contra sua pele.

Pela primeira vez, nada fazia falta em um dos iglus do casal.

Havia o bloco de neve para beber fechando o túnel. O leito de neve forrado de peles. A lança e o arpão pendurados na abóbada para formar uma espécie de varal de secar. A lâmpada com a chama bruxuleante refletida pela parede circular. A tigela de pedra-sabão colocada sobre ela, para o caso de alguém ter sede e querer beber neve derretida. O vaso de gelo no qual a urina para a limpeza era guardada. A carne colocada de modo a ser aquecida pela lâmpada, e mais alguma sob a coberta do leito. Em algum lugar da parede, o arco e as flechas, os raspadores de roupas, e a faca da casa, que era circular, de modo a exigir apenas um movimento do pulso e não do cotovelo, o que seria difícil em espaço tão restrito.

Cada um de seus iglus tinha sido exatamente como este, seguindo uma arquitetura ditada pela necessidade e, portanto, imutável. Mas agora algo tinha sido acrescentado, completando o quadro.

A pequena Ootuniah.

A virilha da criança ainda estava protegida pelo rabo de raposa, uma vez que, de acordo com Vivi, a ferida umbilical ainda não estava curada. Os olhos de Papik se arregalaram da primeira vez em que viu as nádegas.

Onde está a marca? gritou em pânico, pois os Homens recém-nascidos devem ter a marca mongólica azul na base da espinha, se são meninos.

Ele é filho de um homem branco; por isso não tem marca alguma.

A resposta tranqüila de Vivi o acalmou. O bebê era todo boca e barriga e Papik se divertiu vendo-o sugar e arrotar nos braços de Vivi. Ela se recusou a cedê-lo, alegando que ele precisava do calor da mãe. Papik só tinha permissão para fazer cócegas no pequenino nariz e nas bochechas rechonchudas, tentando fazer o bebê sorrir, até que ele acabou chorando, ou para pingar óleo de foca ou carne mastigada embebida em saliva na pequena cavidade desdentada. E se, levado por seu entusiasmo, ele pingava alimento demais de uma vez, o inteligente bebê o devolvia inteiramente, vomitando-o junto com o leite.

Sentindo sutilmente as responsabilidades da paternidade, Papik decidiu que seria mais seguro não viajar logo. Não precisavam mais do conselho de um feiticeiro. E, embora a maioria dos animais já tivesse começado a entocar-se no terreno, ele permaneceu ali mesmo, perambulando pela costa cheia de neve em busca de caça.

O topo do mundo se tinha tornado cinzento e os olhos de Ootuniah tinham ficado azuis e podiam seguir um dedo que se movesse diante deles quando o inevitável ocorreu.

Acordando de uma soneca, Papik teve uma súbita intuição: ocorreu-lhe que Vivi não estava tão feliz quanto era de se esperar. Ele saltou do leito e, enquanto Vivi ainda sonhava, sacou o rabo de raposa de entre as pernas do bebê. Então, permanecendo de joelhos, olhou embasbacado de horror o que o Corvo Negro que criava os Homens não tinha criado para causar-lhe tanto pavor.

Embora Vivi nunca tivesse levado uma pancada em toda a sua vida, instintivamente levantou um braço para proteger o rosto.

Mas Papik simplesmente murmurou com o coração par­tido:

A vingança do Homem da Lua.

Uma tola mulher quer conservá-la.

—        Você sabe que não pode ser disse Papik sombria­mente. Em breve alguém estará velho. E um menino tem de estar crescido enquanto ele pode caçar. Então, só podemos criar uma menina se você ainda quiser mais um. Mas, primeiro, um caçador.

Uma mãe quer conservar Ootuniah.

E Vivi apertou o bebê em seu peito.

Você sabe que não pode ser.

O desapontamento de Papik era tão profundo quanto tinha sido grande sua alegria.

—        Agora vai ser mais difícil do que se o tivéssemos feito logo. Para ela também. É culpa sua.

Subitamente Vivi se desesperou.

Com os olhos inundados de lágrimas, ela segurou Ootu­niah pela cintura e a atirou contra Papik, que segurou o bebê e o fechou em seus braços. Vivi atirou-se ao leito e explodiu em soluços. Mas quase imediatamente, com os olhos vermelhos, o corpo tremendo, arrancou Ootuniah de Papik e gritou:

—        Então, faça-o agora!

Em desespero, ela mergulhou no túnel, empurrando Ootuniah que gritava estridentemente. Do lado de fora, ela colocou a menina nua na crosta de gelo e abafou seus gritos enchendo-lhe a boca com neve. Papik se desviou, mas Vivi o puxou para perto.

Veja! gritou ela na cara dele.

Um homem lhe disse que deveríamos ter feito isto

logo!

Vivi agarrou o queixo dele e o forçou a encarar a criança. Ootuniah já não chorava, porém mastigava o punhado de neve com prazer, sorrindo e arrulhando.

—        Olhe para ela! É minha última criança que você verá morrer. Pois uma mulher não vai rir nunca mais. Nunca! Ela está farta de homens!

Papik franziu as sobrancelhas. A pequena Ootuniah nunca tinha parecido mais amável, dando pontapés com prazer, sorrindo e fazendo bolhas com a boca cheia de neve derretida. Foi a ameaça que Vivi fez de golpear a menina que levou Papik a pensar duas vezes.

—        Pode haver alguma coisa que possamos fazer — ruminou.

Vivi retomou o fôlego. Aquela era a primeira suspeita de que ele não era insensível, e ela prosseguiu com todo o ímpeto. Freneticamente, esfregava neve no bebê nu, que ofegava como se estivesse sendo esfaqueado.

Papik segurou Vivi pelos ombros.

—        O que você está fazendo? Você foi mordida por um carcaju?

Vivi se desvencilhou e jogou mais neve sobre Ootuniah. Quando a neve sobre o corpo da criança começou rapidamente a transformar-se em gelo, Papik apressou-se a carregá-la para dentro.

Quando Vivi se foi atrás dele. suas bochechas estavam cinzentas com as lágrimas congeladas, seus olhos margeados pela geada.

—        Um homem acaba de ter um pensamento — disse-lhe Papik, tirando a crosta de gelo do pequeno corpo. — O tabu dos homens brancos contra a morte se aplica a meninas também. Vamos levar Ootuniah para eles.

—        Talvez eles não a queiram.

—        Por que você não me ouve? Eles não podem matá-la. É tabu.

O significado completo das palavras de Papik foi compreendido vagarosamente. As lágrimas de Vivi ainda eram abundantes, derretendo o gelo em suas bochechas, quando ela fez Ootuniah calar-se com seu hálito quente.

—        Nós a deixaremos com aquele que riu com você — disse Papik. — Quem foi?

Ele tinha sido por demais orgulhoso, além de muito maneiroso, para fazer essa pergunta antes. Vivi ponderou bem a resposta.

—        Poderia ser Tor. Sim Ootuniah estaria em boas mãos com Tor e Birgit.

Os olhos dela brilharam.

—        Eles são gente bem-educada, de bom coração, se considerarmos que são estrangeiros. Especialmente Birgit. Ela ficará encantada se lhe dermos de presente a filhinha de Tor.

E com essa decisão, o riso que desaparecera voltou ao iglu.

 

                                       O Filho

Eles conhecem dois métodos de controle da natalidade.

O primeiro é a lactação prolongada, que nas mulheres dos Homens geralmente evita o retorno dos fluxos menstruais e o estado de fertilidade. Muitas mães podem nutrir uma criança até a idade adulta e permanecer estéreis, para que seja descartada a outra alternativa.

O infanticídio.

Vivi e Papik agora não tinham esse problema. Depois de sua decisão de impingir Ootuniah aos homens brancos, gerar um filho tornava-se, mais uma vez, urgente. Assim, Vivi desmamou sua menina bem cedo, passando a dar-lhe maiores doses de óleo de foca com seu dedo e bolos de carne mastigados com sua boca. Logo a lactação se esgotou. Mas levou muito tempo até que voltasse a menstruação e, com ela, a possibilidade de procriar.

A pequena Ootuniah prosperou em sua dieta carnívora, apoiada por mexilhões e camarões dos estômagos das focas, sangue borbulhante e olhos de peixe que ainda pareciam capazes de enxergar. E ela podia brincar com um brinquedo que sua mãe esperançosamente construíra em suas muitas viagens sem criança: um chocalho feito de três estômagos secos de lagópode, inflados como pequenos balões, contendo os últimos grãos que os pássaros tinham engolido, e produzindo o barulho encantador que faz com que os olhos de todos os bebês se arregalem maravilhados e deliciados. Era um iglu feliz.

Freqüentes gargalhadas reverberavam na parede de neve salpicada de sangue enquanto eles invernavam no gelo do mar próximo da costa. O orgulhoso pai exultava de alegria quando brincava com Vivi de jogar bola, usando aquela boneca inquebrável que rapidamente estava aprendendo a sorrir.

Ele poderia ter caído num sono de inverno, permitindo que seu corpo vivesse do capital de gordura acumulado sob sua pele durante o verão. Mas como os bebês não eram feitos para hibernar, ele ficava acordado na maior parte do tempo. Para um verdadeiro homem, sempre havia muito o que fazer num iglu. Primeiro, ele podia rir com sua mulher. Podia arrancar o pouco cabelo que crescia em seu rosto, para evitar acumulação de umidade que poderia virar gelo; podia reparar seu equipa­mento; aperfeiçoar a lança e o arpão com um belo trabalho de escultura, pois os animais preferem ser atingidos por boas armas. Entre uma coisa e outra, ele se assegurava de que a pequena Ootuniah estava crescendo cada vez que ria para ela, o que acontecia com freqüência, pois ela ainda era só boca e barriga, e suas únicas atividades consistiam em chorar e dar risadinhas, comer e eliminar.

Ou ele passava gordura em sua face e se engatinhava para fora, a fim de observar o inverno.

Assim, foi no mais escuro da noite que ele localizou um urso esquivando-se no gelo sob as estrelas silenciosas. A linha sombria da costa estava nitidamente ornada contra a cintilante abóbada celeste, na qual a Estrela do Norte fulgurava em seu esplendor, e os icebergs e ilhotas jogavam sombras azuis no mar de pérola. A pele felpuda do urso, à luz do dia sempre amarela em contraste com o gelo, parecia branca à luz das estrelas.

Papik ajeitou um par de pulmões de foca para atrair a atenção da fera. Estava muito frio do lado de fora para que ele pudesse dispensar o traje de pele de urso, de modo a parecer­-se com uma foca. O tapete liso de neve era ruidosamente esmagado sob suas botas macias. Outros sinais de baixíssima temperatura eram a ausência de vento e o inebriante cheiro de ozônio que ele acreditava descer das estrelas, pois era sempre mais forte quando o céu estava todo estrelado. Exalou com força, fazendo uma experiência, e ouviu a rajada da umidade em seu bafo quando ele se congelou instantaneamente.

Positivamente, não estava quente.

O homem e o urso começaram a circular cautelosamente. O vapor de seus pulmões emitia uma luz trêmula, prateada pelo brilho das estrelas. Papik refletiu que os ursos não eram mais o que já tinham sido quando ele atingiu o nariz daquele que ali estava com um bloco de gelo e o animal retirou-se furtivamente, olhando para os lados para certificar-se de que não havia por perto testemunhas de sua covardia. Papik seguiu-lhe as pegadas, esperando provocá-lo a um ataque frontal. Ele não poderia impedir a fuga do urso sem a ajuda dos cães e, como sempre, não podia arriscar-se a perder nenhum deles.

O urso arrastou os pés calmamente ao longo da costa, até que sentiu um cheiro e começou a escavar. Aproximando-se com cautela, Papik o viu levantar da crosta gelada um carcaju tão grande quanto um cão, entorpecido de sono e sangrando pelo pescoço. Quando Papik avançou com a lança erguida, o urso abandonou sua presa.

Papik se apoderou dela.

O carcaju não só é a criatura mais louca e ávida de sangue, mas também a mais inteligente e mais valente. Comparados com ele, homens e ursos são desajeitados e tolos. Papik nunca tinha conseguido pegar um, mas muitas vezes tinha sido, como qualquer outro, a vítima das travessuras do carcaju. E quando ele trouxe aquele para casa, estava mais orgulhoso do que se tivesse abatido um urso macho.

Enquanto a pele grossa servia para fazer o casaco mais quente para uma criança, a carne se revelava inferior ao que Papik esperava de um animal tão feroz, mas ele comeu o fígado e o coração, para assimilar a coragem do carcaju. Quanto ao cérebro, achou que Vivi precisava mais do que ele, e deu-lhe um generoso pedaço. Vivi fez Ootuniah prová-lo também, desejando que ela crescesse muito esperta e matreira, capaz de estar à altura do mundo louco dos homens brancos que esperava por ela. Eles trataram de enterrar as mandíbulas no gelo, pois o simples contato com os dentes do carcaju podia transmitir sua hidrofobia.

Papik nunca se sentira mais confiante do que depois de comer as partes vitais do carcaju. Estava certo de que seus anjos da guarda tinham voltado para ficar. Vivi sorriu e riu de novo. Ootuniah era uma fonte inesgotável de alegria. Eles não mais se achavam ameaçados pela sombra de Siorakidsok, nem pelos tabus e punições dos homens brancos. Tinham de enfrentar apenas os acasos normais: tremores de gelo, abertu­ras de fendas no gelo, congelamento no inverno, afogamento no verão, inanição, ursos e os caprichos de seus próprios espíritos.

O que dava a cada Homem digno de seu nome uma chance ímpar de ver outra estação.

O otimismo de Papik pareceu justificado quando, ao levantar do dia, Vivi se achou novamente aquecida com uma criança.

Embora estivessem muito longe do Cabo Miséria, eles fizeram muito progresso durante o verão, uma boa estação para caçar, mas ruim para viajar. Tinham de arranjar alimento e ganhar peso. Com o resultado de que, nas circunstâncias, ainda se achavam tão longe do destino que era preferível permanecer por outro inverno no gelo do mar do que sair viajando por terra, onde era tão frio para se abrigarem, ainda mais com um bebê no colo de Vivi e outro em sua barriga.

A presença da pequena Ootuniah deu ao iglu deles um novo encanto. Quando o oceano gemeu sob o gelo, arranhan­do a pequena residência, Papik se preocupou com a menina, diante da possibilidade de que a crosta pudesse partir-se e engolfá-lo, a ele que era a garantia do sustento dela. Quando ele se aventurou a sair no escuro, a luz da pequena torre de neve e gelo, brilhando na distância, aqueceu-o como se ele estivesse dentro dela, pois sabia que lá estava Ootuniah. Ele era grato a Vivi por tê-lo induzido a preservar aquela pequena vida.

E quando a necessidade exigia que se arriscasse, ele não deixava de fazê-lo.

—        Como é possível? — estranhou, quando Vivi lhe disse que estavam sem comida.

Parecia que se passara apenas um curto sono desde quando eles haviam descongelado uma foca inteira que ele estocara no gelo alguns anos atrás. Uma foca não muito grande, para dizer a verdade. E para dizer toda a verdade, a nova gravidez de Vivi, agora bem avançada, tinha triplicado o apetite dela e, inexplicavelmente, dobrado o de Papik. Para não falar dos cães, que pareciam ter mais fome quanto menos eram alimentados.

Isso acarretou uma disputa doméstica.

Um homem se mata tentando caçar à noite! — Papik encarou Vivi numa posição de beligerância. — Além disso, ele afia as armas, repara os arreios, alimenta a matilha! E, quando quer tirar uma soneca, uma mulher diz:

Sabe de uma coisa? A despensa está vazia!

Ele imitou a voz e as maneiras de Vivi, muito desajeitadamente, e ela ficou ressentida.

Acontece que uma mulher está comendo um pouco mais, mas por quê? — retrucou ela com as mãos nos quadris. — Porque um urso voraz quis rir e agora ela carrega uma criança que está devorando sua barriga! Além disso, ela usa seus dentes nas botas do marido, derrete a neve, trincha as caças, arruma o pavio, mastiga o alimento de Ootuniah! Esfrega os dedos nos ossos para fazer agulhas e costurar roupas! Morre de dor nas costas esfregando peles! E o que recebe? Crítica!

Um homem está fazendo uma descoberta! — o grande peito de Papik se estufou. — Ele está sendo trapaceado por ter casado com uma foca desdentada e sem rabo, em vez de uma mulher! Sempre choramingando, nunca querendo rir! Mas a culpa é dele mesmo. Arranjar uma mulher do ridículo sul, uma mulher de água!

Aquilo era demais.

Vivi podia encolher os ombros diante de insultos pessoais, como era evidente a mentira de que ela nunca estava disposta a rir, mas não suportava calúnias contra o sul. Ela agarrou o objeto mais próximo — uma bota pendurada no varal, ainda rija do gelo — e com ela começou a desferir golpes em Papik, à direita e à esquerda, mais e mais, rosnando de raiva. O primeiro golpe o surpreendeu e fez sangrar-lhe o nariz, mas ele se protegeu contra os seguintes levantando os braços e tentando ficar fora de alcance.

Entre os Homens, como entre os animais selvagens, só a fêmea bate no seu parceiro. O macho nunca bate na mulher. Ocasionalmente, ele a mata. Mas isso é tudo. Os persistentes e vãos esforços de Vivi para reformar as feições dele transforma­ram a raiva de Papik em gargalhadas. E, como havia pouco espaço para a retirada, ele tropeçou para trás e caiu sobre Ootuniah, que estava no leito, causando seus estrepitosos protestos.

A pequena menina ganhou a briga sem fazer força.

O esforço aumentou o apetite do casal, agravando o problema da alimentação em vez de resolvê-lo. Papik queimou um pouco do resto de gordura que tinha, para servir de isca, removendo a pele de lagópode da entrada de ar no teto para deixar escapar o cheiro. Se esse truque não era garantido para atrair ursos, era garantido para refrigerar o iglu e, eventualmente, congelar seus habitantes. Mas eles tinham de tentá-lo.

Esperando pelos ursos, tiraram um cochilo, até que o latido dos cães os puseram alerta novamente. Eles tinham dormido muito, pois as botas no varal estavam quase secas. Papik saiu na noite.

E um urso estava lá, faminto o suficiente para ameaçar os cães, não tão faminto para aproximar-se do homem, nem mesmo quando Papik se fingiu de morto no gelo. A curiosidade o trouxe para um pouco mais perto, mas sua indiferença o manteve fora de alcance.

Um homem poderia alimentar um urso com uma bola de gordura premiada com uma espiral de dente de baleia que se abriria quando a gordura derretesse no estômago. Mas então ele teria de seguir sua presa até que ela perdesse todas as forças, às vezes por muitas voltas, e Papik estava desprovido de carne e gordura suficientes para uma longa caçada naquela temperatura. Quanto a fincar uma lâmina coberta de gordura no chão para a fera lamber, cortando sua língua em tiras e sangrando até a morte, isso funcionava com lobos e algumas vezes até com uma raposa.

Os ursos eram espertos demais para cair nessa.

Aquele contemplava Papik placidamente, sentado sobre as coxas, impenetrável ao frio. O urso era o único animal que podia invernar no gelo polar e agüentar qualquer nevasca sem abrigo. Seu iglu era só para os filhotes.

Quando Papik sentiu que o frio estava reduzindo o movimento de seus membros, voltou para casa e ordenou a Vivi que vestisse Ootuniah.

—        Você não vai usá-la como isca! — gritou Vivi aterrori­zada.

—        Vista-a! Antes que o urso vá pescar.

Ootuniah só conhecia o mundo exterior do vantajoso ponto que era o colo de sua mãe. Quando ela se achou abandonada pela primeira vez na vastidão do gelo, deitada sob as estrelas, sem sequer a face familiar de um cachorro por perto, manifestou sua indignação em altos brados, sacudindo as pernas e os braços.

Com a lança na mão, Papik deitou-se a uma distância própria para o arremesso.

A curiosidade pelos guinchos e pela agitação do fardo embrulhado em pele de foca e couro de carcaju finalmente venceu a timidez do animal. Mas quando ele se aproximou bamboleando para farejá-lo, Ootuniah estava na trajetória e Papik não pôde atirar a lança.

Ele esperou que o urso se mexesse, sabendo que um caçador experiente como ele primeiro daria uma volta em torno daquela presa incomum. Mas, no instante em que o urso expôs seu flanco, tanto ele como Papik se assustaram com um grito vindo do túnel, e Vivi veio saindo em socorro de sua filha, com os olhos flamejantes, segurando o machado.

No intervalo de tempo que Papik levou olhando para ela, o urso pegou Ootuniah e virou as costas.

Papik arremessou a lança, cegamente, confiando-a a seu anjo da guarda. O anjo não falhou. Mas não totalmente. A ponta da lança atravessou um tendão traseiro e o urso claudicou e diminuiu a marcha, atrapalhado pela pesada arma que a pata posterior arrastava, mas ainda agarrado a sua presa. Papik andava em sua perseguição e Vivi perseguia Papik, guinchando como uma foca e brandindo o machado.

O urso se sacudiu e pulou até que se desvencilhou da lança, e então deixou cair sua presa para lamber a ferida entre um salto e outro. Correndo, escorregando e arrastando-se, Papik recuperou a lança, alcançou o urso que coxeava em três pernas, paralisou seu traseiro atingindo-lhe a espinha e mergu­lhou a faca em sua goela.

Ootuniah tinha parado de gritar desde o momento em que o urso a pegou. Agora ela estava rindo silenciosamente para as duas enormes caras que a inspecionavam ansiosamente. Ela se tinha divertido muito.

Mas não sua mãe.

Logo que verificou que sua filha estava bem, Vivi curvou-se, apertando o estômago, como se estivesse doente ou com dores. Eram ambas as coisas. O susto pôs seu ventre em ação. Ela sentia as dores do parto.

Papik ajudou-a a entrar no iglu.

O recém-nascido tinha tudo o que confere a um Homem a aptidão para a vida no gelo. Um corpo atarracado e mãos ásperas, desenhados para reter o calor, grandes maxilares para receber dentes fortes, orelhas achatadas e traços sem relevo para repelir o enregelamento, a dobra mongólica sobre as fendas profundas dos olhos para reduzir a superfície exposta, narinas estreitas para aquecer o ar inalado. E a base da espinha exibia a mancha azul, marca registrada de todo filho verdadei­ro do Homem.

Esse bebê merecia ser chamado Ernenek, como o pai de Papik.

Por enquanto, ele estava tão tenro e ensangüentado quanto o ventre que o tinha expelido no buraco de gelo. Depois que Vivi o lambeu, deixando-o limpo, e o untou com gordura, colocou-o no leito vestido com nada mais nada menos que o rabo de raposa sobre a virilha. Ele não podia ficar desprotegido assim tão cedo, endurecendo a pele e formando o calo grosso entre as partes interiores e a superfície que lhe serviria de escudo contra o frio, e não só contra o frio, como o couro protege os animais.

Quando, ao primeiro sinal do dia, a família se preparou para mudar-se, um problema tinha de ser resolvido: onde colocar a segunda criança. Ou onde colocar a primeira.

Se o pequeno Ernenek não podia ficar fora do capuz de sua mãe, Ootuniah também precisava de proteção, pois ainda estava aprendendo a andar. Assim, no momento da partida, Vivi deu a Papik um capuz que preparara para ele às escondidas.

Papik o recebeu com um riso irônico, e anunciou a Vivi e ao mundo que ela devia ter sido mordida por um carcaju se acreditava que um homem se permitiria carregar um bebê, como uma mulher comum.

Vivi estava ocupada demais para ouvir. Quando ela empacotou as coisas e vestiu as crianças, botou o pequeno Ernenek nas costas e entregou Ootuniah a Papik. Ele olhou pasmado para seu filho, sua mulher, sua filha e para os cães. Então, enfiou Ootuniah em seu capuz novo, rosnando entre os dentes.

A maior preocupação de Papik enquanto eles deslizavam no trenó sobre a vastidão branca era que alguém pudesse vê-lo carregando uma criança nas costas e espalhasse a notícia.

— Não há ninguém em parte alguma por aqui — disse Vivi para acalmá-lo.

Mas em vão. Papik notou que seus cães já o estavam olhando de soslaio, desrespeitosamente, e ele os fustigou sem piedade, para prevenir qualquer insubordinação. Mas o que realmente o assustava era o pensamento de que alguma foca pudesse reportar a sua degradação a outras criaturas marinhas que, nobres almas que eram, certamente se recusariam a ser apanhadas por um marido dominado.

Uma cálida primavera e a precoce ruptura do gelo do mar desviou a família para o lado errado da terra. Transformar os cães puxadores de trenó em bestas de carga e andar a pé, cada um carregando uma criança, era um modo de viajar nada atraente para um casal polar. Assim, armaram a tenda e ficaram por ali, para mais uma estação de caça, esperando que o mar se congelasse.

Assim se passou outro curto verão.

Quando Papik estava caçando boi almiscarado ou caribu e Vivi se desdobrava em seus trabalhos domésticos com o pequeno Ernenek em seu capuz, Ootuniah tinha de ser amarrada numa estaca, para não fazer besteiras.

Como medida de precaução, recebeu um bastão maior do que ela própria e foi ensinada a bater com ele no nariz de qualquer cachorro que viesse farejar suas suculentas carnes.

Até que a matilha acabou por aprender não só a gostar da filha de seu dono, mas também a respeitá-la.

Encher os estômagos de duas crianças tomava uma boa parte do tempo de Vivi. Para prolongar a lactação e evitar a volta do temível estado de fertilidade, ela trouxe Ootuniah de volta a seus seios, cortando o alimento constituído de carne mastigada.

Entrementes, Papik tentava assegurar-se de que seu filho recebia uma educação adequada. Antes que a mancha mongólica desaparecesse das costas do menino, seu pai o colocava nos joelhos e comandava:

— Seja duro! Não chore! — como seu pai costumava fazer com ele.

Mas o tom imperioso e a carranca que se abatiam sobre a criança como uma trovoada aterrorizavam o pequeno, atiçando sua inquietação.

Até que Papik não resistia a rir e adiava seus esforços educacionais.

Papik não estava mais feliz do que Vivi diante da perspectiva de se separar de Ootuniah.

Ernenek já mostrava considerável personalidade, especialmente ao ser amamentado, tentando sugar sangue, além de leite, do mamilo de sua mãe com seus dentes que despontavam, de modo que ela tinha de colocar um osso entre suas gengivas para evitar que fosse mutilada. Mas Ootuniah já era uma menininha desenvolvida. Entretanto, à medida que as crianças cresciam e aumentavam suas exigências, o casal se convencia cada vez mais de que um dos dois tinha de ir-se. Assim, foi com alívio, a des­peito da grande tristeza em seus corações, que eles chegaram ao Cabo Miséria antes do fim do inverno.

Pararam à vista do posto comercial de Tor e Birgit e enfeitaram Ootuniah para o encontro com seus futuros pais.

 

                                                  A Procura do Pai

Eles estavam sentados no armazém. As cerimônias de saudação terminaram. As boas-vindas de Tor e Birgit foram afetuosas e generosas as suas congratulações pelo nascimento das crianças. Ernenek dormitava em seu capuz, chupando o polegar, e Ootuniah brincava com as botas de sua mãe, enquanto os quatro adultos trocavam elogios e sorrisos.

Sua pequena Ootuniah é maravilhosa! — assegurou Birgit ao orgulhoso casal, e Tor acrescentou:

Uma verdadeira beleza.

Pode ficar com ela! — sorriu Papik.

Mas não querendo humilhar seus anfitriões com um presente, acrescentou:

Em troca, nós ficamos com algumas de suas facas de aço e talvez um pacote de chá.

Uma tola mulher gosta de chá — confessou Vivi.

Nós não comercializamos crianças neste estabeleci­mento — disse Tor.

Vivi pode levar o chá como presente — acrescentou Birgit, sem medo de interromper a decisão do marido em público. — Nós gostávamos muito dela quando trabalhou para nós. Não é, Tor?

—        É claro que ela pode levar um pouco de chá! - Trovejou Tor.

—        Não queremos presentes — disse Papik. — Não foi fácil trazer uma menina junto com um menino. Assim, vocês deveriam dar-nos alguma coisa em troca. Qualquer coisa.

- O quê?

Tor pareceu vagamente alarmado.

Nada.

É um negócio! — Papik suspendeu Ootuniah e a jogou sobre o balcão.

Olhe, nós não ficamos com meninas — disse Tor com um sorriso indefinido.

Se uma mãe aflita puder falar — disse Vivi — vocês disseram uma vez que trocam qualquer coisa no seu armazém, até uma esposa velha por duas jovens.

Isso foi uma brincadeira!

Vocês sabem que uma menina pequena não pode viajar conosco — disse Papik. — Ainda mais que temos um menino. Assim, vocês têm de ficar com ela.

Enquanto Tor era um homem grandalhão como um urso marrom, Birgit era uma loura grande como uma ursa, e igualmente desconfiada.

—        Por que — perguntou ela intencionalmente — temos de ficar com sua menina, se há outras por aí?

Papik sorriu e virou-se para Vivi:

Vamos dizer?

Vamos — concordou Vivi, corando atrás de sua manga.

Porque Tor é o pai — disse Papik.

Tor ficou vermelho e Birgit, branca. Por um instante, só se ouviram as risadinhas abafadas do casal do norte. Birgit parecia congelada, embora estivesse muito quente, como era evidenciado pelo suor na testa de Tor.

Lembra-se? Quando Vivi trabalhou aqui — disse Papik querendo ajudar.

A pequena Ootuniah nos é muito cara — acrescentou Vivi. — Não nos agrada perdê-la. Mas ficamos felizes por deixá-la em boas mãos.

Birgit não estava ouvindo. Olhava de modo penetrante para Tor, que engolia em seco. Então, ela disse algo na língua deles, ele respondeu, e logo a conversa entre ambos se tornou agitada e inamistosa.

—        Eles não estão felizes por ficarem com Ootuniah? — perguntou Vivi a Papik com um cochicho.

—        Se eles não a querem, não a merecem!

—        Talvez estejam loucos. Neste caso, seria perigoso deixar Ootuniah com eles.

—        Então, que vamos fazer com ela?

Vivi refletiu, ignorando o barulho de seus anfitriões, antes de dizer:

Quem disse que Tor é o pai?

Você.

—        Uma tola mulher pode ter errado. Ela seria capaz de rir com um homem vulgar assim? Deve ter sido outro.

Papik coçou a cabeça.

—        Você não se lembra?

—        Faz muito tempo. Agora não comece a latir, a remoer coisas. Não havia tempo para lhe perguntar. Lembre-se disso. Você estava com pressa de ter um filho.

—        Bem, com quem você riu?

—        Talvez com Lars. Às vezes uma mulher arrumava a casa dele. Ele não tem esposa para dizer-lhe o que fazer e recusar a criança.

—        Vamos falar com Lars.

Lars, um jovem acanhado, de cabelos louros, representante do governo dos homens brancos, habitava uma casinha de madei­ra pintada de amarelo por fora e com as paredes por dentro forradas de jornais velhos. Ele pareceu surpreso ao ver Vivi, embaraçado ao conhecer seu marido, e aturdido ao ser presenteado com uma filha. Esperou que não tivesse ouvido corretamente, uma vez que seu conhecimento da língua era muito escasso, e para ajudar na questão ele chamou Tor, o que não ajudou em nada.

Enquanto esperava por Tor, Vivi passeava pela casa, curiosa a respeito dos muitos objetos misteriosos ou supérfluos que sempre atravancavam o alojamento de um homem branco.

Duas flores amarelas cresciam num vaso. Vivi as arrancou, deu uma a Papik e mastigou a outra. Os Homens tinham não só o direito, mas a obrigação de se ajudarem mutuamente no que se refere à comida que viam quando se visitavam, em sinal de apreço, e aquelas flores eram os únicos comestíveis por perto. Ela não permitiu que as crianças provassem. Seus pequenos estômagos inocentes ainda eram delicados demais para receber vegetais.

Tor não estava de bom humor quando chegou. No Ártico, poucas pessoas brancas têm de enfrentar uma briga doméstica. Ele pareceu ainda mais confuso quando soube que agora Vivi atribuía a paternidade de Ootuniah a outro homem.

—        Como pode? — falou zangado, como se estivesse sentindo a troca como um insulto pessoal.

Vivi sorriu.

—        Quem quer que me dê carne é meu pai.

Tor consultou Lars na própria língua deles e traduziu:

—        Primeiro de tudo, Lars está muito aborrecido porque vocês comeram as flores dele. Ele levou um ano para cultivá-las, com sementes e terras trazidas a alto preço do lado de lá da linha das árvores. Quanto à sua criança, ele diz que está prestes a voltar para sua terra para casar, e a jovem que o espera certamente começaria a gritar se ele se apresentasse com uma filha. Mas ele lhes dará um bom presente, e eu mesmo contribuirei, se vocês deixarem a cidade tranqüilamente.

Papik torceu o nariz para a oferta.

Não queremos presentes, mas um pai para nossa menina.

Não podemos ajudá-lo — disse Tor, endurecendo.

Havia outro homem branco aqui, na casa onde ficam as crianças — disse Vivi.

Você quer dizer Gaah, o Professor?

Sim. Gaah.

Ele foi substituído — disse Tor.

Se o professor riu com Vivi —disse Papik — a criança pertence ao professor, mesmo que seja um novo.

Tor não parecia seguir essa linha de raciocínio. Papik cuspiu raivosamente em seus pés e disse:

—        Se você nos deixa com Ootuniah, é como deixá-la morrer, e isso é tabu para vocês.

Tor também ficou com raiva.

—        Lembre-se, Papik: se você deixar esta criança morrer, você será punido.

Vivi pediu permissão a Papik para dar sua opinião.

—        Uma tola mulher gostaria de ver esse professor assim mesmo — disse ela. — Talvez ele pudesse ser convencido.

Tor sacudiu a cabeça.

—        Acontece que o novo professor é uma professora. Seria difícil para vocês convencê-la de que ela é o pai da criança.

Papik se enfureceu.

Sua gente pode encontrar mais buracos para fugir do que um carcaju! outros homens brancos aqui?

Knut — disse Tor. — Que bebe aguardente e no resto do tempo é policial. Mas ele não parece querer uma filha, especialmente se não é dele.

Uma tola mulher quer tentar — disse Vivi desespe­rada.

Knut era o mesmo policial que estivera presente ao julgamento. Forte, alto e de cara vermelha. Todos se dirigiram a sua casa, pegando-o num momento de lúgubre sobriedade, nada disposto a tornar-se pai sem arranjar uma esposa.

—        Uma tola mulher compreende suas razões — Vivi pediu a Tor que lhe dissesse — Mas, por favor, informe-o de que, como as mulheres são escassas, muitos homens se casam com uma menina e a criam até a maturidade.

Knut ficou chocado quando Tor traduziu aquilo.

—        Não vou casar-me com nenhuma menina — trovejou, agarrando a garrafa.

Entrementes, Ootuniah tinha ficado faminta e agitada, começando a chorar e molhar o chão, e a paciência de Papik estourou. Pôs a menina sentada na mesa e disse:

Você fica com ela. Nós vamos embora.

Com a menina — rugiu Tor, barrando a porta. Papik virou-se para Vivi.

Na cidade de Aage há um orfanato que recebe crianças.

E as alimenta?

Sim. Tanto que todos lá gostariam de ficar órfãos. Mas só podemos chegar lá no barco do homem branco. E eles não iriam querê-la a bordo, a menos que você tivesse matado alguém.

Lembre-se Papik — disse Tor. — Knut vai informar toda a polícia, e se você algum dia não puder dizer onde está a menina, você será punido por assassinato.

Devemos tentar Ivaloo — disse Vivi a Papik.

Mas agora Milak já deve ter voltado para casa, ou ela arranjou um novo marido. E é uma longa viagem.

Ivaloo ainda pode estar esperando.

Num repentino acesso, Papik arremessou o capuz no chão, cuspiu e pisou nele.

—        Um homem não carregará um bebê. Se Ootuniah pode andar, bem. Se não pode, está muito ruim. O que quer que a polícia faça ou diga.

Virou-se para os homens brancos:

—        Saiam do nosso caminho! Nenhum de vocês merece ser pai de Ootuniah!

Nunca ele ficara tão irritado com homens brancos quanto diante daquele grupo. Alegrou-se por ter sido convidado por todos a ficar com sua família como seus hóspedes por algum tempo, pois assim ele podia mostrar desprezo pela hospitalida­de deles, com um ar de desdém. Saiu da casa de Knut socando os pés, com o queixo e o peito empinados, ignorando Ootuniah. Vivi, já carregando Ernenek nas costas, levantou a menina em seus braços e seguiu gingando atrás de Papik.

Com a decisão do casal de ir embora, os homens brancos o escoltaram solicitamente até o trenó e o ajudaram a prender a matilha. E quando o trenó começou a mover-se eles abanaram as mãos, Papik fez algo que nunca tinha feito antes: retribuiu abanando suas próprias mãos.

Pois uma vez na vida ele estava satisfeito com uma despedida.

 

                                                 O casamento

Na primavera seguinte, no caminho entre a Praia do Massacre e a Montanha Grávida, Papik e Vivi levaram o maior susto de suas vidas ao ver o fantasma de Milak, o marido de Ivaloo.

Lá estava ele, em tamanho natural, na claridade do dia, parecendo meio frágil para condição de Homem, mas elegante como sempre, agachado sobre um buraco no gelo, junto com outro pescador e a mulher deles por perto.

Ele estremeceu quando foi chamado pelo nome, olhou pasmado para Papik e Vivi, com seus bonitos traços meio vagos, e disse com a própria voz de Milak:

Meu nome é Panipchuk.

Você não é o marido de Ivaloo? — perguntou Papik.

O homem o negou, torcendo o nariz, e virou a cabeça em direção à mulher:

—        Minha esposa.

Ao que Vivi puxou a manga de Papik e cochichou:

—        Corra!

E eles correram com os olhos arregalados de terror.

Pois aquilo só poderia significar que Milak tinha morrido e voltado à vida exatamente com o mesmo aspecto que tinha antes — havia até as duas pequenas cicatrizes em seu lábio, resultantes de um desafio travado com uma morsa mas habitado por outra alma e outro nome. Uma descoberta aterradora, como todas as coisas inexplicáveis, que levou seus parentes a rapidamente se colocarem a grande distância da aparição.

Na primeira parada, enquanto tentava tirar um sono, Vivi teve uma sinistra sensação, como uma brisa gelada acariciando-lhe o pescoço. Mal contou isso a Papik, ele sentiu a mesma coisa. Assim, daí em diante nenhum deles ousou dormir, a menos que o outro ficasse de vigia.

Mas o caso os perturbou mais por causa de Ootuniah. Se Ivaloo tivesse sido informada da morte de Milak, o que a teria impedido de casar de novo?

E uma Ivaloo casada não teria nenhuma utilidade para Ootuniah.

A viagem para a Montanha Grávida, através de um tortuoso caminho imposto pelas condições de vida selvagem e pelas estações, não levou muito mais do que um ano. Ou pouco mais de dois anos. Eles não estavam certos. Mas sabiam que era o auge do verão quando lá chegaram, pois agora a Montanha Grávida era uma ilha, rodeada de águas tranqüilas, escuras, mas puras, salpicadas de icebergs e recipientes para a evapora­ção de água salgada. Alguns umiaques se achavam na praia, lembrando o tempo em que o lugar era uma base de baleias. Agora eles só serviam para garantir as comunicações com o continente e para a caça às focas e morsas durante o curto período em que o mar era navegável.

Eles encontraram Ivaloo morando numa nova casa de terra e ossos de baleia, esperando com inalterada confiança que Milak voltasse de sua caçada aos ursos. Toda a aldeia soube com alívio que o Homem da Lua tinha praticado sua vingança punindo Vivi com uma menina e ninguém mais se incomodou com a presença do casal.

E o marido? perguntou Papik à sua irmã, sem mencionar Milak, já que ele estava morto, pois, se o nome não tivesse encontrado outro corpo, este seria prejudicado por ser citado.

Ivaloo deu um largo sorriso:

Disseram a uma tola mulher que Milak morreu e voltou à vida com outra alma e outro nome. Mexerico bobo, é claro.

É claro — concordou Papik forçosamente.

Nós vimos um homem que parecia exatamente ser ele — disse Vivi antes que Papik pudesse contê-la. — E que se virou quando o chamamos.

Mas ele disse que seu nome era Panipchuk — disse Papik.

Ivaloo olhou no vazio e sorriu de novo.

Há homens que se parecem com Milak.

A voz era a dele e ele tinha até as duas cicatrizes — disse Vivi.

Mas não o mesmo nome e a mesma alma. Ou então, teria voltado.

Enquanto espera por ele, você poderia tomar conta de Ootuniah — disse Papik. — Isso nos ajudaria a manter Ernenek em segurança.

Sim, mas com certeza Milak vai querer mudar-se e também ter um filho tão logo volte — disse Ivaloo. — Então, que fazer com Ootuniah?

Fique com ela só até Milak voltar — disse Vivi. — Então, você pode abandoná-la.

Os olhos de Ivaloo se arregalaram.

Você fala como se Milak nunca voltasse! Como se ele tivesse morrido!

Não, de modo algum — disse Papik. — Vivi só quer que nossa filha fique em segurança com você.

E impossível — disse Ivaloo com dureza.

Então, vendo o desespero estampado no rosto de Vivi, emendou:

Mas não é impossível que alguém tenha um marido para Ootuniah, disposto a ficar com ela enquanto ela cresce. Não é uma pretensão absurda, com esta escassez de mulheres.

É claro — disse Vivi. — Se um homem quiser ter sua própria mulher, deixe-o criá-la!

Tenha um pouco de paciência. O homem em questão está fora, caçando.

Tellerk era um esquimó polar cujo principal objetivo ao aventurar-se pelo sul era arranjar uma mulher, uma vez que as únicas fêmeas de bom tamanho e disponíveis que podia encontrar em sua própria região eram as ursas. No seu primeiro casamento, ele se revelara um marido dedicado, além de ser um verdadeiro homem.

Eis por que Ivaloo sugeriu o nome dele.

Certa ocasião, ele tinha deixado sua primeira mulher e seu filho recém-nascido num povoado. Durante sua ausência, o povoado foi devastado por uma epidemia, uma das doenças dos homens brancos que era letal para os esquimós. Quando regressou, quem tinha podido andar fugira, e os cães e os lobos estavam devorando os cadáveres e esperando que o último doente morresse.

Através da janela da cabana, ele viu sua mulher no leito de morte, amamentando o bebê. Embora com muito medo de entrar, por causa da peste, não abandonou a mulher, mas continuou a caçar por perto, jogando-lhe alimento através da janela. Só quando ele a viu morta, com o bebê sugando desesperadamente seu seio congelado, é que ele se foi.

—        Alguém vai ajudá-lo a esquecer sua finada esposa — disse-lhe Ivaloo com um de seus sorrisos cheios de meiguice. — O irmão de alguém chegou com sua filha. Ele poderá permitir que ela seja sua, se você prometer ficar com ela.

Tellerk mal podia acreditar em sua sorte.

—        Você tem um irmão? E ele tem uma filha?

Tratava-se de um tipo destemido e bonito, com um olho bom e uma porção de dentes, menos corpulento, porém mais alto que Papik.

Ivaloo fez que sim com a cabeça.

Uma filha mulher. Você promete ficar com ela?

Que idade ela tem?

Oh, ela não é nada velha.

É bonita?

Se não for, você poderá recusá-la.

Tellerk pôs-se a andar de um lado para outro, socando os pés, para mostrar que não poderia precipitar-se com um casamento feito às pressas, até que Ivaloo lhe disse:

—        Pense bem, Tellerk, você é o primeiro homem que recebe esta oferta, mas não será o último se continuar negaceando.

Então, Tellerk concordou e Ivaloo disse que agora o pai da menina também tinha de dar o consentimento. Ela tocou seu tamborzinho e Papik e Vivi, que tinham ficado escondidos atrás da casa, apareceram cheios de sorrisos.

Este é Papik, o irmão de alguém disse Ivaloo.

E esta é a noiva? olhou Tellerk, encantado.

Não, não! Ivaloo deu uma risada. Esta é a mãe. O que você vai dar-lhes para selar o acordo?

Onde está a moça?

Em nossa tenda disse Papik. Dormindo.

Ela tem todos os dentes?

Quase todos disse Vivi.

Então, o que é que você vai dar por ela? insistiu Ivaloo.

Tellerk não era de perder uma barganha.

—        Uma mandíbula de tubarão, que corta o gelo como se fosse gordura, e um grande arpão que um homem levou um inverno inteiro para fazer. Fiquem com tudo! Um homem vai buscar o dote.

E saiu correndo.

Depois que o noivo voltou com os presentes e os pais os aceitaram, o acordo ligava ambas as partes e nada mais havia a fazer senão trazer a noiva.

Quando Vivi reapareceu com a menina dormindo profundamente em seus braços, o queixo de Tellerk caiu.

Esta é Ootuniah! disse Vivi radiante, levantando a criança. É toda sua, para o que der e vier!

Para tratar com carinho e alimentar exclamou Papik.

Vocês formam um casal maravilhoso! disse Ivaloo, comovida.

Mas... mas...

Tellerk mal começava a encontrar forças para balbuciar e afundar no chão.

Ela não é bonita? perguntou Vivi.

Não é feia, mas é pequena demais!

Ela não é muito grande — Papik fez uma concessão — mas é bonita.

E vai crescer — prometeu Ivaloo. — Alguém lhe disse que ela não era velha. E você deve conhecer Kresuk. Não conhece?

O que é que há com Kresuk?

Ele se casou com uma mulher antes que ela nascesse. Agora, estão muito felizes.

É, mas não é nada disso que um homem esperava — disse Tellerk miseravelmente.

Ao vê-lo hesitante, Vivi decidiu intervir com força.

—        Por que haveríamos de criar uma menina para um estranho? Diga, por favor.

Papik atacou seu genro por outro flanco.

E deixá-la ir quando tivesse músculos e habilidade para coser e raspar?

Como você pode ser tão interesseiro? — acrescentou Ivaloo.

Tellerk perdia as forças sob o fogo cruzado e pareceu tão desanimado e culpado que seus parentes tiveram pena dele.

—        Você não tem de criar a pequena Ootuniah sozinho — disse Papik. — Você pode viajar conosco. E Vivi cuidará dela enquanto nós dois estivermos caçando juntos.

—        Você será hóspede de meu irmão — explicou Ivaloo.

Tellerk recuperou-se e notou que Vivi sorria para ele com dentes que pareciam quase novos e olhos que brilhavam, realçando o rubor em sua face.

E, de repente, ele se sentiu muito melhor com o negócio do casamento.

 

                                   Uma batalha de capacidades

Não querendo embaraçar Vivi e Tellerk com sua presença, enquanto eles se divertiam em sua tenda, Papik foi à casa de Ivaloo levando as duas crianças, para tomar chá e agradecer-lhe por ter assegurado a sobrevivência de Ootuniah.

Quando Tellerk e Vivi se dirigiam à habitação de Ivaloo, perceberam um rumor de conversa na casa. Um tal de Gaba estava visitando Ivaloo com toda a família. Como homem experiente, pretendia ficar de bem com todos os feiticeiros e desviou-se de sua rota somente para tributar seus respeitos àquela nova feiticeira.

Gaba era amplamente conhecido como um renomado marido e caçador. Durante anos, ele tivera três mulheres, substituindo periodicamente a que tinha gasto os dentes mastigando botas por outra cuja dentadura estivesse intacta. Em pelo menos um caso, ele tinha afogado os pais de uma nova noiva antes que ela viesse a pertencer-lhe de fato, mas o fizera com tanta habilidade que a polícia nunca foi capaz de prová-lo. Naturalmente, todos os homens o invejavam, mas as mulheres o reprovavam. Se a poliandria era perfeitamente aceitável para elas, o inverso lhes parecia chocante.

Uma disputa decisiva entre Papik e Tellerk era inevitável algum dia, mas foi a presença de Gaba que a motivou um pouco mais cedo.

Embora nunca o tivessem admitido, Papik e Tellerk se sentiam inferiores a Gaba, porque cada um deles tinha uma única mulher, e uma destas, além de tudo, era um tanto pequena. Particularmente Tellerk tomou a presença daquela celebridade com suas três mulheres e um filho pequeno como uma afronta pessoal.

Lidar com uma mulher é uma coisa considerada bastante difícil — disse-lhe ao encontrá-lo na casa de Ivaloo. — Como você consegue lidar com três?

É fácil — disse Gaba, dando uma cuspidela que produziu um bonito arco no chão. — Um marido fez um regulamento. Quando ele fala, todas as suas mulheres devem calar-se. Quando elas falam, ele não ouve.

Reconhecendo a superioridade intelectual de Gaba, Tel­lerk decidiu desafiá-lo num domínio mais varonil: a caça.

—        Suas boas senhoras — disse, rindo à socapa — são belas e elegantes, mas um pouco magras na cintura.

Isso machucou.

Um homem chegou sem provisões — disse Gaba secamente. — Mas ele pode convidá-los a todos para uma modesta refeição daqui a uma volta do sol, depois de tirar uma soneca?

Uma refeição? — perguntou Tellerk. — De quê?... se você não tem provisões e agora vai tirar uma soneca, presumivelmente na companhia de três belas senhoras.

Gaga ignorou as gargalhadas que se seguiram. Quando os risos diminuíram de intensidade, ele parou de coçar o nariz e disse com deliberada negligência:

—        Alguém vai caçar depois da soneca.

—        Nós aceitamos seu convite se você aceitar o nosso — disse Tellerk.

Gaba levantou-se e saiu num acesso de raiva, seguido pelo seu séquito, que dava umas risadinhas.

—        O bom nome de alguém está em jogo — disse Tellerk a Papik. — Temos de trazer bastante carne para casa para deixar Gaba envergonhado.

Papik não respondeu. Estava irritado, porque uma outra pessoa tinha sido o centro da festa. Tellerk tinha monopolizado a atenção de todos, tinha-se adiantado a ele na conversa todas as vezes, e ainda estava com a iniciativa. Além disso, Papik notou que Vivi tinha vindo mais radiante que nunca da sessão de risos com seu genro, e agora parecia ter olhos e ouvidos somente para ele, aplaudindo suas investidas mais loucas com seu sorriso de marfim.

—        Vamos pegar morsas na Baía do Urso Grande continuou Tellerk. Ivaloo disse que há gelo firme por lá, e uma morsa é justamente o que queremos para esvaziar este balão inchado de gordura chamado Gaba.

A paciência de Papik se esgotou.

Quem disse que nós vamos para a Baía do Urso Grande?

Este homem disse retrucou Tellerk arrogantemen­te. Por quê?

Papik engoliu em seco.

Quem decide o que caçar?

Tellerk disfarçou a surpresa.

Alguém acaba de decidir.

Este homem decide explodiu Papik.

Não é bem assim.

Por um instante ninguém riu. Aquele era um momento crucial. Com o peito arfando, Papik se levantou, arrancou a lança da parede e a apontou para o umbigo de Tellerk.

—        Alguém nunca recebeu ordens disse ele. Vamos deixar a lança decidir.

Tellerk ficou pálido e Ivaloo gritou:

Espere, espere! Vocês sabem que se um dos dois matar o outro, vai ter o que não queria. Mesmo que a polícia não o apanhe, ninguém mais vai querer a sua companhia. Assim, deixemos que o tambor decida, não a lança.

É a melhor maneira disse Vivi.

As canções de tambor são verdadeiras batalhas de capacidades. Constituem a única maneira honrosa de resolver disputas, em virtude do divertimento que provoca, e aceita por todos, menos o perdedor.

—        Um homem aceita disse Tellerk.

—        Porque você está com medo da lança! gritou Papik.

—        Ouça, Papik disse Ivaloo. Se você lutar com a lança, o perdedor será morto e o vencedor ficará pior que morto. Se você lutar com o tambor, o perdedor será apenas alvo de risos e o vencedor, aplaudido.

Papik não admitia que fosse melhor rirem dele do que morrer. E simplesmente disse:

—        Um homem não tem medo da lança.

—        Então, você tem medo de uma canção? perguntou Vivi astutamente.

—        Um homem não tem medo de nada!

Ser ou não ser Papik o maior caçador acima da fronteira dos cães poderia ser uma questão duvidosa. Mas ninguém, nem mesmo o próprio Papik, havia dito que ele era o maior cancioneiro do Ártico. E talento poético era uma exigência do confronto que logo se realizaria na casa de Ivaloo, cheia até os espigões de osso de baleia pela feliz platéia que se reuniu, logo que a notícia se espalhou.

Só Gaba e suas mulheres não tinham acordado de seu sono.

O exíguo espaço do alojamento estava sufocante, com tantos corpos que se apertavam uns contra os outros. Os peitos nus dos contendores reluziam, o suor pingava de seus rostos sobre os pequenos tambores em que batiam enquanto trama­vam e bamboleavam, cantando as farpas verbais destinadas a ferir os sentimentos do oponente, provocando o gozo da platéia, que seria o juiz decisivo se nenhum dos litigantes se desse por derrotado. A multidão, sentada no chão, deixava pouco espaço para os rivais, que permaneciam imóveis sobre seus pés para não tropeçarem nas muitas pernas, apenas contorcendo os troncos.

Os dons poéticos de Tellerk se mostraram muito pouco superiores aos de Papik. Ele se lançou à refrega com algumas estrofes que eram boas e outras que eram novas, mas a platéia já tinha ouvido as boas antes e não achou as novas muito boas.

Através de suas focas um homem fala contra você, ai, ai, ai! gemeu Tellerk. Através das muitas focas que ele matou, as muitas além das que você matou, ai, ai, ai! E que deram luz a seu iglu e felicidade a seus amigos.

Ai, ai, ai! — soou a réplica de Papik. — Onde estão as focas de Tellerk? Um homem só vê olhos de esperança e estômagos famintos, que ele vai encher, já que Tellerk não encheu, ai, ai, ai!

O pobre Papik é tão magro que se pode pendurar seu arco e seu arpão em suas costelas, ai, ai, ai! — Tellerk cantarolou, provocando gargalhadas que seriam mais baru­lhentas se Papik não estivesse estourando suas roupas com sua obesidade.

Oh! — Papik bufou de contente, balançando seu peito ensopado como uma foca apaixonada e batendo no tambor. — Tellerk tem de amordaçar seus cães e amarrá-los numa estaca, antes que o devorem para sobreviver, ai, ai, ai! Pobre Tellerk! Pobres cães!

Embora, em sua maioria, os homens e mulheres presentes tivessem sido testemunhas de duelos de tambor mais emocionantes, todos estavam decididos a divertir-se e aplaudiam os ataques mais canhestros para pôr lenha na fogueira, mas os gestos e contorções dos adversários eram mais comoventes que sua poesia e sua música. Logo, os dois homens estavam transgredindo as regras, um cortando a réplica do outro, até que o espetáculo passou a ser o de dois rivais que se sacudiam e cantavam simultaneamente, cada qual tentando gritar mais alto que o outro, uma vez que nenhum dos dois era capaz de vencer a contenda.

Quando Papik disse que alguém é tão esperto quanto uma raposa e tão forte quanto um boi almiscarado, Tellerk martelou seu tambor e replicou:

—        Alguém é, mas não Papik, que é tão forte quanto uma raposa e tão esperto quanto um boi, ai, ai, ai!

E enfiou o tambor na cara de Papik.

Como o local estivesse tumultuado com as gargalhadas, Papik deu uma cabeçada na testa de Tellerk, que revidou da mesma forma, abrindo um talho na fronte de Papik e outro em sua própria fronte. Papik respondeu arrebentando seu tambor na cabeça de Tellerk. Então, agarrou seu atordoado rival pela cintura, levantou-o acima de sua cabeça e passou a socá-lo contra o teto baixo, sacudindo as escoras de osso de baleia e dando um banho de terra em todo mundo.

Esta é a força de uma raposa? trovejou, com o sangue escorrendo de sua testa rasgada.

Não, não! choramingou Tellerk quando seu rosto estava suficientemente ensangüentado. — E a força de um boi.

E quem é tão esperto quanto uma raposa?

Você! Você!

—        Não é este o homem que deve comandar a caçada?

Como a resposta não viesse de imediato, Papik sacudiu-o novamente, até que Tellerk gritou:

Você comanda a caçada.

Agora e sempre?

Sim, sim!

Papik jogou seu rival no chão, mas ajudou-o a pôr-se de pé e apertou-lhe as mãos afavelmente, para mostrar que não lhe nutria rancor, sendo a total reconciliação um sagrado dever após uma batalha de capacidades.

Depois que os encantados visitantes se retiraram e os sentimentos feridos de Tellerk foram aliviados com uma xícara de chá, Ivaloo perguntou a seu irmão:

Bem, então... o que vocês vão caçar?

Morsa na Baía do Urso Grande disse Papik.

Mas esta era a proposta de Tellerk!

—        Sim. Mas ele tinha de aprender que o chefe da família comanda a caçada... e quem é o chefe?

Papik estava convencido de que resolvendo a questão da caçada tinha estabelecido todos os princípios de uma vida em família e de duradoura harmonia.

Mas logo ele teria de lidar com um problema diferente.

 

                                 A viúva

A caçada de morsa foi proveitosa, e Gaba ficou tão humilhado com as postas de carne com que Papik e Tellerk pretendiam empanturrá-lo e às suas mulheres, que nem ele nem elas aceitaram coisa alguma. Gaba deixou a Montanha Grávida encolerizado e morto de fome.

O êxito de Papik e Tellerk deveu-se principalmente a Ivaloo, que lhes revelou o lugar certo para caçar, e eles creditaram a revelação muito mais a seus poderes fantásticos do que a seu conhecimento das vizinhanças. O fim do verão, quando o mar começava a congelar-se, mas antes que a crosta se tornasse espessa, era uma época ruim para caçar. Os pássaros voavam para o sul e os animais passavam para o continente, exceto algumas focas e morsas, mas não havia jeito de alcançá-los. Os barcos não podiam navegar, sob pena de serem esmagados pela crescente formação de gelo, e a crosta que permanecia em poucas e pequenas ilhotas não era bastante espessa para suportar o peso de um homem.

Com uma exceção.

Ivaloo, que já estava vivendo naquela ilha por muito tempo, sabia que na Baía do Urso Grande o gelo permanecia sólido durante todo o ano, pois os raios do sol nunca o atingiam. Se outros aldeões também sabiam disso, não infor­maram Gaba a respeito, de modo que, mesmo que ele fosse um grande caçador, não seria durante sua curta estada na Montanha Grávida que ele o demonstraria.

Logo depois da partida de Gaba, Papik e Tellerk também se foram com a família deles, pois a ilha já tinha gente demais em relação à caça disponível.

A caçada continuava a absorver todo o tempo e a energia deles, mas não em vão. Dois caçadores unidos podiam conseguir mais caça do que separadamente. Um deles atraía a atenção da presa enquanto o outro se aproximava dela de outro ângulo. Ou um homem podia encurralar as focas num campo de buracos de respiração cada vez menor, ir tapando todos eles exceto aquele em que seu companheiro ficava de tocaia. E eles poderiam pôr em uso o grande arpão que tinha sido parte do dote de Tellerk e que exigia dois homens para seu manejo.

No verão, eles iam para o continente, em busca de boi almiscarado e caribu, consumindo in loco toda a carne que suas barrigas podiam suportar, e às vezes mais que isso, guardando o resto na esperança de enchê-las de novo em alguma futura ocasião.

Mas surgiu uma imprevista dificuldade entre Papik e Tellerk, relativa a Vivi.

Papik tratava Tellerk não só como genro mas também como hóspede, enquanto Tellerk agia como se fosse também um marido dentro da própria família de Papik. Isso foi descoberto uma vez em que Papik voltava para casa e ouviu Vivi discutindo acaloradamente com Tellerk.

Tendo passado a excitação da novidade, Vivi voltara a ser uma esposa comum, cuidadosa com o marido e ciosa dos valores morais de sua condição. De educação austera, ela respeitava a tradição de que, embora uma esposa pudesse ser emprestada, vendida ou dada de presente, nada podia aconte­cer sem o conhecimento e o consentimento do marido. Esta era uma regra básica, conhecida de todos, mas que deveria ser repetida, pelo menos para certas pessoas.

E Tellerk era uma delas.

Por que você está molestando Vivi? — perguntou papik zangado ao entrar.

Alguém queria falar sobre isto com você — disse Tellerk sem se perturbar, embora esfregando um olho incha­do. — Você deveria acertar as coisas com Vivi. Ela quer seu consentimento de cada vez. Mas nem sempre você está por perto.

Vivi está certa!

Por quê? Um homem não a está gastando.

—        Não é o gasto; é o princípio! — explodiu Papik. — Se um homem não pode confiar em você nas pequenas coisas, como pode confiar em coisas importantes?

—        Como o quê? — sorriu Tellerk desdenhosamente.

Como Papik não pudesse pensar num bom exemplo, Tellerk prosseguiu:

—        Se você quiser ser mesquinho, um homem lhe pergun­ta agora. Você pode sair? E deixá-lo trocar risos um pouqui­nho com Vivi?

Não adiantou o sarcasmo e Papik gritou:

Não!

Sovina!

Papik ruborizou-se, pois aquela era a primeira vez que tinha sido acusado daquela maneira, e não sem razão. Contu­do, um homem não podia recuar.

Vivi não é sua mulher, para você usá-la como quiser — disse ele. —Tenha paciência. Ootuniah vai crescer. Até lá, alguém vai ajudá-lo, mas quando ele quiser, não quando você quiser.

Um homem pode safar-se sem a sua ajuda!

E Tellerk saiu correndo, para dar vazão à sua fúria com os cachorros, enquanto Vivi, com as faces coradas por ter causado uma briga doméstica, retomou seus afazeres, evitando os olhos de Papik.

De então em diante, era óbvio que Tellerk não iria rebaixar-se pedindo qualquer favor a Papik. E suas relações com Ootuniah não eram o que se poderia esperar de um casal. Não havia qualquer intimidade entre eles. Era uma completa falta de comunicação.

—        Ootuniah não brinca comigo. Ela me chuta na virilha

—        queixou-se ele uma vez à sua sogra.

—        Ela é sempre um pouco acanhada diante de estranhos

—        acalmou-o Vivi. — Mas, com a idade, ela vai ganhar confiança, você vai ver. Tudo o de que você precisa é paciência.

Todavia, a paciência era um dos mais fracos traços característicos de Tellerk. Ele foi ficando carrancudo e suspen­deu todos os seus esforços no sentido de conquistar a afeição da esposa. Contudo, tinha certeza de que ela gostava muito de comer e freqüentemente cutucava sua barriga, para ver se ela estava crescendo. Mas sempre achava que ela fazia muito pouco progresso.

Porém, ele não tinha razão.

Ambas as crianças cresciam rapidamente e engordavam à custa do leite materno enriquecido com sangue, peixe, fígado, óleo de foca e bolos de carne que inicialmente os pequenos estômagos rejeitavam, mas finalmente aprenderam a aceitar.

Enquanto o pequeno Ernenek revelava desde cedo uma natureza alegre e brincalhona, Ootuniah desenvolvia um caráter mais reservado e propenso à reflexão. O colorido de seus cabelos finos e já crescidos e seus olhos azuis e glaciais, que eram ligeiramente estrábicos — não o menor de seus charmes — davam a seu rosto não muito asiático e bochechudo uma rara fascinação. A penugem que lhe adornava os braços e as pernas quando ela nasceu se transformou em pêlos cresci­dos, incomuns entre os Homens, que sempre ficam sem cabelo, mesmo na virilha. Exceto com estranhos, ela era ousada e segura de si, talvez porque Ernenek a olhasse como modelo e professora, e ela não queria deixar o irmãozinho decepcionado.

As únicas queixas vinham de Tellerk, que aparentemente esperava que ela se tornasse uma mulher feita da noite para o dia.

Ele se tornou tão rabugento que Papik teve pena dele e, uma vez, antes de sair do iglu, colocou-o outra vez diante de Vivi com o tradicional convite:

—        Sirva-se!

Tellerk continuava enfadado, até que Papik o lembrou de que nenhum homem poderia ofender uma senhora daquela maneira e conservar seu nome honrado. E Tellerk teve de concordar.

Assim, a harmonia foi restaurada.

Como todas as vozes experientes tinham predito, criar duas crianças pequenas era muito penoso e exigia a incansável assistência dos anjos da guarda.

Fora do capuz de sua mãe, uma criança corre perigo constantemente. O gelo é um elemento traiçoeiro, com suas ciladas, rachaduras e canais. Na primavera, ele se torna ainda mais perigoso. Nem o verão é uma estação segura, com toda aquela água e as incursões para caçar no continente. Há, então, a constante ameaça da matilha esfomeada. Os cães podem ser ensinados a não molestar as crianças por meio de pancadas. E uma criança bastante forte pode ser instruída a usar um pedaço de pau. Mas, se uma criança pequena tropeça e cai, a matilha logo avança sobre ela, fingindo pensar que se trata de carne jogada para os cães.

Vivi tinha outros problemas também.

Seus afazeres domésticos se haviam quase duplicado com mais um homem no iglu, e não havia ninguém para ajudá-la. Ainda tinha de cuidar das duas crianças, esfolar e trinchar as caças de dois e não apenas de um homem, costurar, raspar, mastigar e reparar as botas de todos, além das peles de urso, peles de pássaros e luvas, inclusive as suas próprias.

E a extenuação começava a manifestar-se.

Enquanto os homens roncavam, exaustos, mas satisfeitos, recuperando as forças, ela não podia descansar tranqüilamente nem por um curto espaço de tempo. Uma ou outra criança a acordava para importuná-la, pedindo para brincar ou para comer, ou para fazer o oposto. Ela concordava com tudo, numa profunda letargia, mergulhada em sonolência, e ainda tinha prazer em ser útil. De fato, era como se seu vigor e sua alegria estivessem diminuindo, não se perdendo de todo, mas transferindo-se às crianças. E ela sentia como se só as crianças fossem motivo de satisfação.

— Uma mulher não quer mais rir com Tellerk — uma vez ela confidenciou a Papik.

Por quê? Ele é desrespeitoso?

Não, não. Mas uma tola mulher está disposta a ser usada por um único homem e não gosta de pertencer a dois o tempo todo.

É preciso fazer pequenos sacrifícios, pelo bem de nossa filha.

Nada havia que Vivi pudesse responder diante desse argumento. Mas ela nunca mais compartilhou dos prazeres dos homens e simplesmente se submetia a eles, somente por obrigação e, portanto, rancorosamente.

Até que, sem aviso prévio, a morte atacou.

Aconteceu no começo da primavera, mais de dois anos após o casamento de Ootuniah, quando a família e os elementos da natureza emergiam de seu torpor sazonal.

Os Espíritos do Ar fustigavam o Oceano Glacial e Sedna encrespava as águas quando Papik, ao sair do túnel, avistou um urso polar e foi atrás dele.

O iglu estava encerrado no gelo do mar, próximo da costa, e o urso se dirigia a um promontório, onde o perigo de ruptura da superfície congelada durante uma tempestade era maior do que em qualquer outra parte. Mas Papik não podia resistir à atração de uma caçada ao urso.

Karipari, correndo na frente e latindo a plenos pulmões, parecia sentir-se da mesma forma.

—        Volte! — berrou Tellerk do iglu, enquanto os outros se engatinhavam para fora. Vivi foi ao encalço de Papik, chamando-o de volta, as duas crianças foram ao encalço dela, por uma questão de costume, e a matilha pôs-se a correr, ganindo atrás do líder.

Então, a crosta de gelo estalou, abrindo-se um grande canal que engolfou o iglu junto com Tellerk.

Toda a família voltou, esperando salvar seu membro mais recente. Se Tellerk pudesse ser pescado logo, estaria seguro. Suas roupas, bem costuradas com tendões de foca que se expandiam em contato com o líquido, eram impermeáveis. Mas o canal se fechou logo, sob a pressão da crosta que o rodeava, e o único sinal de Tellerk era o cabo de sua faca que emergia da camada de gelo, como o sinal de um túmulo.

Moralmente, era Papik quem devia ter sido engolfado por aventurar-se na zona de perigo. Mas os espíritos nem sempre distribuem justiça de acordo com o mérito.

Assim, a pequena Ootuniah experimentou a amargura da viuvez muito antes de provar a doçura do casamento.

Papik e Vivi não perderam tempo em exorcizar o fantasma de Tellerk.

Em altas vozes, lamentaram seu fim, enaltecendo-lhe as virtudes e ignorando-lhe os defeitos. Espalharam pedacinhos de carne no lugar de seu desaparecimento e o convidaram a comer, na esperança de que pudesse ser confortado pela generosidade deles e que talvez pudesse até ajudá-los a obter mais carne em suas próximas caçadas. E então eles se afastaram rapidamente para longe, parando somente para armar ciladas e armadilhas destinadas a reter o fantasma se ele tentasse persegui-los.

Que um homem morto odiasse os vivos era tão normal quanto os vivos proclamarem o luto pela sua perda, na esperança de agradá-lo. Mas a demonstração de tristeza de Ootuniah surpreendeu seus pais. Especialmente porque se prolongava, depois que eles lhe tinham assegurado haverem posto em prática todas as garantias contra o fantasma. A menina continuava a chorar histericamente, e quando foi regalada com o único conforto que jamais falhara antes o seio de sua mãe ela gritou e o esmurrou com seus pequenos punhos.

Seus pais estavam confusos. Ootuniah era muito viva e até muito mais precoce do que a maioria das crianças dos Homens. Mas, além de tudo, ela só tinha cinco ou seis anos, e até então mostrava mais agarramento com um dos filhotes de Karipari do que com qualquer membro humano do clã.

—        Talvez o fantasma nos tenha apanhado e esteja atacando disse Vivi.

Papik cuspiu e bateu os pés com raiva.

—        Era só o que faltava! A maioria de nossas coisas se foi com o iglu e tem de ser substituída. E agora também temos de nos aborrecer com o fantasma de um homem e o mau humor de uma criança!

O mistério foi resolvido logo depois que construíram outro abrigo de neve.

Eles já se preparavam para entrar em sua nova residência quando avistaram Ootuniah perambulando na escuridão da madrugada. Como ela ignorasse os chamados, eles foram atrás dela e a arrastaram de volta, lutando pelo caminho.

—        Deixem-me ficar! — gritava. — Deixem-me morrer!

—        Por que você haveria de morrer, menina? — pergun­tou Vivi, lambendo as lágrimas de sua filha e enxugando o nariz dela com seu próprio nariz.

Ootuniah não respondeu, mas chorou até dormir, e então seus pais também dormiram. Mas subitamente Vivi acordou Papik, dizendo:

Ootuniah desapareceu! Ela quer morrer!

Mas por quê? Ela nunca se importou com Tellerk.

Ela sempre ouviu todas as pessoas exaltarem a sua mãe por ter-se afogado voluntariamente quando se tornou viúva, e talvez ela ache que tem de fazer a mesma coisa. Ela é muito impressionável.

Ootuniah impressionável? — gracejou Papik. — Co­mo uma cabeça de urso congelada.

Mas entremente ele se vestia. Entregou o pequeno Ernenek a Vivi, que não esperaria as conseqüências em casa, e seguiram o faro de Karipari, um guia mais seguro do que as pequenas pegadas da menina na crosta varrida pelo vento.

Eles avançaram contra a ventania, Papik seguindo o rumo de Karipari. A ausência de Tellerk já se fazia sentir. O pequeno Ernenek pesava muito nas costas de Vivi, mas eles não o poderiam ter deixado sozinho no iglu, com medo de que acordasse e saísse.

Ou de que os cachorros entrassem.

Quando avistaram Ootuniah agachada no gelo, deixaram Karipari correr na frente e seguiram atrás do cão tão depressa quanto permitiam suas longas botas.

Ootuniah estava bem, mas não a presa que ela tinha arpoado no buraco de respiração ao pé dela e que estava cheio até as bordas de um vermelho espumante. Vivi foi premiada com uma cotovelada ao ajoelhar-se e tentar abraçar Ootuniah, pois a menina temia perder sua presa, que era uma das maiores. Papik teve de empregar todas as suas forças para puxá-la da água, depois de alargar o buraco. Era uma foca barbada, da espécie cuja pele é a melhor para fazer arreios de cães.

Papik estava aterrorizado.

—        O que você fez? — gritou ele.

Ootuniah fez um gesto de desafio.

Alguém é um caçador! Agora você não pode deixar-me morrer.

Mas ninguém, ninguém quer que você morra, minha querida! — disse Vivi.

Uma menina os ouviu conversando quando vocês pensavam que ela dormia. Vocês a conservaram só porque ela tinha um marido — disse ela.

Nós encontraremos um novo marido para você — disse Vivi.

Os homens não querem meninas pequenas e magras, mas mulheres gordas como você!

Vocês, mulheres! — gritou Papik. — Tagarelando num momento como este!

Ele batia na cabeça com tanta força que produzia um barulho como se ela fosse oca.

Nossa filha cometeu uma heresia contra o reino das focas. Agora as criaturas do mar nos evitarão!

Por quê? — perguntou Vivi aterrorizada. — O tabu se aplica às crianças também?

A afronta é pior. Ser morta não só por uma mulher, mas por uma mulher pequena!

Ootuniah não sabia! Que podemos fazer?

Só uma coisa — disse Papik desanimado. — Tentar correr mais do que a alma desta foca, e continuar correndo.


 

                                   Os meninos

Eles fizeram tudo o que lhes estava ao alcance para aplacar a ira do reino das focas. Primeiro, Papik procurou arranjar gelo doce. Os icebergs são potáveis, pois eles são os filhos das geleiras, nascidos na terra, da neve que se transforma em gelo. Os icebergs que Papik viu presos na crosta de gelo estavam longe demais, mas até o gelo do mar perde a salinidade e se torna potável quando permanece endurecido por muito tempo, pois a salmoura retida pelos cristais é drenada. Papik não sabia disso, embora soubesse como reconhecer pedaços de gelo doce por sua transparência escura, em contraste com o gelo salgado, que é branco e opaco.

Ele derreteu um bocado de gelo doce na boca e o cuspiu na goela da foca morta, pois os animais que vivem na água salgada estão sempre com sede. Então, cada membro da família comeu pedaços do coração e do fígado do animal, na esperança de que, se a foca voltasse à vida para vingar-se, respeitaria as pessoas de quem ela se tornara parte. Como regra geral, provar os órgãos vitais de uma vítima para se reconciliar com o fantasma era um ritual executado só com corpos humanos, após um assassinato, mas a gravidade da ofensa advertia Papik de que não deixasse de tentar o que quer que fosse. A seguir, em vez de devolver ao mar apenas os ossos da vítima, como prescrevia Sedna, ele jogou a carcaça inteira na água, esperando pacificar a velha rainha com um gesto tão nobre.

Depois, aprontou o trenó e saiu deslizando sobre o oceano, até que a matilha não agüentou mais.

Dali em diante, por muitas voltas do sol a família viveu com o medo aterrador de que a notícia do crime de Ootuniah pudesse espalhar-se entre as crianças do mar. A própria menina se sentia cada vez mais culpada de sua irresponsável façanha e começava a preocupar-se com a desaprovação de seus pais, embora em sua presença eles afirmassem que tinham esquecido o fato.

Em sua infantil ignorância de tabus, Ootuniah pensava que, se tinha feito os espíritos acreditarem que ela era um menino, a família podia ficar impune. Como se poderia distinguir fêmeas de machos? As fêmeas falavam baixo, cosiam, raspavam, trinchavam, ficavam silenciosamente em segundo plano, enquanto os homens discutiam assuntos impor­tantes. E as fêmeas enfeitavam o cabelo, fazendo um coque como sua mãe, usando tranças como sua tia ou deixando-o cobrir suavemente o rosto. Os homens falavam de modo rude, levantando o queixo e estufando o estômago, e deixavam os cabelos emaranhados, com negligência, caindo para todos os lados, no máximo cortando-os com uma faca acima dos olhos quando lhes atrapalhavam a visão.

Quaisquer outras diferenças não eram aparentes. Ho­mens e mulheres usavam roupas idênticas, e Ootuniah espera­va que os espíritos não dispusessem de nenhum modo particu­lar para diferenciá-los.

Recentemente, ela começara a aprender a coser e raspar, mas depois que matou a foca recusava-se a pegar numa agulha ou fazer qualquer tipo de trabalho doméstico. Parou de pentear o cabelo, passou a agir asperamente, a falar de maneira rude, a empinar o queixo e a estufar o estômago, e insistia em acompanhar o pai em todas as suas caçadas.

Construiu sozinha uma lança e aprendeu a manejá-la com tanta destreza que Papik fez para ela também um pequeno arco de osso e tendão, com o qual ela podia abater pássaros.

Mas só quando a estação de caça às focas começou, e Papik não encontrou mais nenhuma dificuldade fora do comum, e até Ootuniah pegou mais uma, foi que ele começou a acreditar na eficácia do estratagema da menina... ... e que a família não estava condenada.

No ano seguinte, viajando no Canal da Língua de Urso, à procura de madeira flutuante e possivelmente de algum outro homem solteiro a quem pudessem impingir a menina, cruzaram com um trenó dos Netchillik que levava uma comunicação de Ivaloo.

Os Netchillik andam pelo topo do mundo em seus trenós de carne congelada ou pescam até com mais vigor do que os Homens Polares, aos quais eles realmente se acham superiores. Assim, cada vez que Papik encontrava um deles, achava difícil não explodir numa gargalhada em sua cara.

Você é mesmo o Papik? O irmão de Ivaloo, a feiticeira? — indagou o homem Netchillik.

Não é impossível — disse Papik. — Por quê?

Alguém tem un mensagem para a sobrinha de Ivaloo. Mas só vemos dois meninos. As crianças de Papik estavam a seu lado, ambas em suas calças de pele de urso, de peito nu, queimadas do sol, como selvagens, agarradas às suas lanças sujas de sangue. Os olhos de Ootuniah eram particular­mente claros no verão, em contraste com sua pele cor de cobre. O cabelo de Ernenek era preto-azulado, como o de seus pais, e seus olhos tão negros como os deles.

Papik varreu a paisagem com os olhos, assegurando-se de que não havia nenhum animal por perto e que por acaso pudesse ouvir.

Estes são nossos filhos — disse ele. — O que parece mais rude que o outro é a menina.

A loura? — o Netchillik torceu o nariz e coçou a cabeça. — Ela é filha de um homem branco?

Não é impossível — respondeu Papik, enquanto a mulher Netchillik e Vivi trocavam sorrisos maliciosos e risadinhas. — Qual é a mensagem?

Ivaloo quer ver a menina na Montanha Grávida imediatamente.

Por quê?

Quem sabe? Recebemos a mensagem através de outros.

Eles conjecturaram que Ivaloo houvesse sabido do desaparecimento de Tellerk e tivesse arranjado outro noivo para a menina. Ou então, que Milak tivesse voltado e Ivaloo o convenceria a adotar Ootuniah, até que lhes viesse um filho. Em qualquer dos casos, era preciso que se apressassem.

Mas também era preciso comer.

Caçando, tirando peles, comendo as presas e guardando o excesso, esperando que o mar se congelasse e que a noite mais escura passasse, decorreu um bom ano até que eles estivessem uma vez mais esfregando o nariz da irmã de Papik na Montanha Grávida.

O sorriso de Ivaloo se mostrava mais largo e seu olhar fixo parecia mais acentuado.

Ela disse que Milak tinha voltado, mas somente em seus sonhos. Não era impossível que ele estivesse morto. Mas ela não queria ir embora com outro homem, pois Milak lhe prometera voltar regularmente durante o sono, e se ela partisse, ele poderia não achá-la novamente. Assim, por enquanto ela poderia cuidar de Ootuniah. Segura em sua posição de feiticeira de crescente renome, ela poderia aliviar as costas de seu irmão do peso da menina.

Quando Ootuniah soube que seus pais partiriam sem ela, explodiu em lágrimas, que somente cessaram diante da severa advertência de Papik de que os Homens não choram. Crescida tão agarrada a sua família quanto a um membro do corpo, não podia conceber a idéia de perdê-la, nem a de levar uma vida diferente, renunciando às corridas de trenó sobre o Oceano Glacial, às rápidas construções de abrigo sob as nevascas sufocantes, às incursões de caça junto às botas do pai, à preparação de armadilhas, às lutas com os ursos, à domesticação da matilha, à preparação dos instrumentos no aconchegan­te iglu, aos rugidos dos Espíritos do Ar e aos murmúrios da Rainha do Mar. Além dos deliciosos bolos de carne com que sua mãe às vezes ainda a alimentava boca a boca como uma maneira especial de tratá-la, para não falar da doçura de seu mamilo, enquanto o pequeno Ernenek sugava o outro com seus olhos negros pousados no de sua irmã, seu polegar brincando na bochecha dela.

Quando o inverno chegar Ivaloo tentou consolar Ootuniah nós construiremos um iglu no gelo da baía.

Grande coisa. Só ela e a velha tia.

Você terá companheiros para brincar continuou Ivaloo sedutoramente. Eles vão ensiná-la a dar cambalhotas com um caiaque sem molhar as roupas, catar ovos nos penhascos e participar de concursos de caça aos pássaros.

Concursos para pegar pássaros!

Ela foi negligentemente aos penhascos dos pássaros, com outras duas crianças armadas com ninhos ligados a varas compridas, para uma brincadeira de pegar mergulhões, mas só para ser sociável. Um esforço considerável para quem não se dava facilmente com estranhos. O pequeno Ernenek quis ir também, mas sua mãe não o deixava afastar-se de sua vista. A família precisava do filho.

Quando as duas crianças da aldeia pegaram o primeiro mergulhão, amarraram-no pelo bico, suspenderam-no entre duas estacas e ficaram esperando pelas outras aves que vieram atraídas pela agitação do pássaro aprisionado. Cada nova presa era colocada ao lado das outras, até que o lugar ficou cheio de mergulhões a se debaterem, o que atraía mais vítimas.

Por fim, as crianças tinham apanhado tantos pássaros que levá-los para casa era um problema.

Para Ootuniah era cômico o orgulho e a alegria de seus companheiros em conseguir uma ração de mergulhões. Mas ela não disse nada. Considerava indigno da parte dela revelar-lhes sua secreta ambição arpoar sozinha um grande urso polar enquanto os adultos dormissem o que seria uma boa façanha para uma menina que tinha cerca de sete anos, talvez um a mais ou um a menos. Ela queria que seu pai se orgulhasse dela, de modo a reconhecer que ela era uma verdadeira caçadora. Mas isso, agora, já era coisa do passado.

Ela não tinha a mais leve ambição de impressionar pescadores e caçadores de passarinhos.

Na casa de Ivaloo, os adultos estavam dormindo. Ootu­niah não conciliava o sono. Ela tinha medo de cair no sono, acordar e ver que sua família tinha partido. Sem despedidas, naturalmente, pois a separação seria dolorosa para eles também.

Ela olhou em volta na pequena casa escura. Seu pai dormia como uma morsa. Sua mãe se agitava espasmodicamente. Ivaloo dormia plácidamente, sorrindo em sua meiga loucura, provavelmente sonhando com Milak. E o pequeno Ernenek.

Ernenek não estava ali.

Ootuniah não acordou seus pais, sempre temendo que eles partissem. Depois de achar Ernenek, é claro. Ela pegou a lança e foi para o penhasco dos pássaros com Karip. Ernenek ficara muito triste quando seus pais não lhe permitiram ir caçar passarinhos com sua irmã.

E lá ela o avistou, num penhasco sobre uma rasa poça d'água que uma galhofeira família de morsas estava abrindo no gelo.

Ele tinha alcançado a primeira saliência do rochedo, com vários metros de altura, e estava engatinhando com dificuldade em direção a uma fila de mergulhões empoleirados ali. Ootuniah alertou-o que não se mexesse, mas ele simplesmente sorriu para ela e continuou a engatinhar. Abandonando a lança e Karipari, ela escalou o rochedo.

Os mergulhões deixaram Ernenek chegar quase a alcan­çá-los e, então, bateram asas. Como o menino estava pronto para agarrá-los, tropeçou e caiu na poça das morsas.

Ootuniah correu de volta para recuperar a lança, esfolan­do as mãos nas rochas, e entrou na poça onde Ernenek se debatia, com o fôlego perdido de terror, e até incapaz de gritar.

As perplexas morsas interromperam suas brincadeiras. Ao ver Ootuniah, um bicho grandalhão movimentou-se para investir contra ela.

O desafio de um monstro mais pesado do que dez focas seria perigoso até para Papik. Ootuniah conseguiu puxar Ernenek para fora e correu com ele para a praia de pedregu­lhos. As morsas, que na água são como peixes, não podiam mover-se mais rápido do que os peixes na terra.

As duas crianças pararam, ofegantes e risonhas. Ambas estavam molhadas, pois não vestiam suas roupas de viagem, e Ootuniah saiu em disparada, por uma ladeira com Ernenek para aquecê-lo, seguida do alegre Karipari.

Numa plataforma, no topo da ladeira, eles sentaram junto de dois ursos que estavam com dois filhotes crescidos. Como os Homens Polares, às vezes os ursos se aventuram pelo continen­te no verão, para satisfazerem sua natural curiosidade de explorar um território desconhecido.

Tão certamente quanto ela sabia que um dia mataria um urso, Ootuniah sentiu que aquele não era o dia. Ela não queria largar a mão de seu irmão. E não podia correr com suficiente rapidez. E ele nem estava consciente do perigo, rindo silencio­samente e apontando sua pequena lança para os ursos.

Quando o maior deles bamboleou aproximando-se, Kari­pari entrou em ação, rosnando, e atirou-se sobre a garganta do urso com seus dentes quebrados. O urso esmagou o cão com um abraço e começou a morder-lhe o pescoço. Os joelhos de Ootuniah tremiam. Se não estivesse com seu irmão, partiria em auxílio de Karipari, tentando perfurar um tendão traseiro do urso ou a fina pele sob seu queixo. Naquela ocasião, ela não podia sequer bater em retirada. Os outros ursos a cercaram.

O urso grande deixou cair o moribundo Karipari e avançou para as duas crianças.

Nunca Ootuniah se lamentara tanto de que ainda fosse tão pequena. Ela sabia que os ursos evitavam os homens, a menos que estivessem muito famintos, e aqueles não pareciam estar com fome. Mas tampouco pareciam ver as crianças como seres humanos, talvez devido ao tamanho delas. E começaram a aproximar-se.

Ela tentou lembrar-se dos ensinamentos de seu pai:

Não grite quando os animais selvagens se aproximam. Fale com eles em voz baixa, gentilmente, como faz uma mãe. Deixe-os confusos.

Ela colocou Ernenek sobre os ombros e lhe disse que levantasse os braços. Ele ria e se divertia. Com Ernenek em seus ombros, Ootuniah formou uma figura do tamanho das que já tinham enfrentado um urso polar. E se dirigiu ao atacante numa voz baixa e macia:

—        Ursinho, você pode ser o filho daquele que matou o avô Ernenek. Não lhe importavam as palavras, mas o tom em que eram ditas. Seu fígado é muito gostoso e quente, mas sua carne é melhor congelada, ninguém sabe por quê. Só sua língua e seu presunto sempre têm um bom gosto. Mas você pode ficar com eles, e também com seu grande coração, ursinho.

Então Ernenek arremessou a lança.

Ela atingiu e feriu a grossa pele do urso. Assustado, o animal pulou para trás. Naquela altura, os outros também pareciam perplexos com os ruídos e as artimanhas da figura em forma de torre com muitos membros, e Ootuniah iniciou uma cuidadosa retirada para um terreno mais seguro. Os ursos a seguiram por um pequeno trecho e então voltaram para inspecionar a carcaça de Karipari.

Quando desapareceram, Ootuniah sentou-se com um sopro de alívio.

Nunca mais saia sozinho! disse ao irmão.

Alguém quer matar um urso disse ele. E também um lobo.

Quando chegar sua vez. Agora, não.

Agora! Ernenek apontava. Lobo, lobo! A hora do lobo é agora!

Assim era: um bando de lobos tinha estado andando atrás das duas crianças.

Quando os pais, acompanhados de toda a matilha, localizaram-nas depois de meia volta do sol, as crianças se haviam abrigado numa caverna com uma pequena abertura, bloqueando-a. O pequeno Ernenek jogava pedras nos sitiantes. Ootuniah metia a lança no nariz de cada lobo que aparecia na abertura.

Enquanto Papik e os cães se batiam contra os lobos, Vivi abraçou suas crianças.

—        Uma mãe jamais a abandonará, minha querida disse ela a Ootuniah. Agora você é uma caçadora! Não poderíamos ficar sem você.

Mas enquanto Vivi esfregava o nariz de Ernenek, Ootu­niah, ainda ressentida, deu uma cotovelada na barriga de sua mãe.

 

                                   Os homens

Os anos passavam e a família de Papik continuava a viver. Uma vida que era sobretudo uma questão de sobrevivência.

Os pais envelheciam tão precocemente quanto cresciam os filhos, moldados por um inflexível habitat. Como os grupos dispersos de outros Homens que, protegidos pela solidez do gelo, ainda vivem da mesma maneira que seus ancestrais — resistindo às noites polares sob tempestades de neve, aquecidos apenas pelo calor de corpos humanos; praticando o infanticídio, o suicídio, a eutanásia, o incesto, a superstição, a comunhão de bens e a terapia do riso, tudo temperado por ocasionais carnificinas e atos de canibalismo.

E amando a vida sem temer a morte.

Era como se a família de Papik tivesse dois filhos. Desde que Ernenek se tornara bastante forte para segurar a pesada faca de seu pai, tinha permissão para manejá-la. Se ele se cortava, era uma boa lição. Amar um filho implicava acordá-lo para os acasos da vida. Muito cedo o menino aprendeu a ver o próprio sangue com um sorriso, uma vez que não lhe era permitido chorar. Começou produzindo montes de pássaros derrubados com arcos; e em breve apanharia também sua primeira foca.

Por aquela época, Ootuniah se tornava uma valorosa caçadora, muito antes que Ernenek a ultrapassasse. Mas um golpe de sorte que a ajudou a abater seu primeiro urso também a levou a confiar excessivamente em seu anjo da guarda, até que outro acontecimento lhe ensinou que nem sempre os anjos são confiáveis.

Às vezes, um Homem necessitado de comida tenta desentocar ursos de seus abrigos de inverno com o auxílio de um cão. O amor pode significar a desgraça de um urso, induzindo-o a cavar um iglu no gelo para os filhotes e para vigiar a fêmea durante o período de resguardo. O iglu dos ursos, de acordo com os quais os Homens conceberam os seus próprios, é dotado de um túnel sinuoso que admite ar, mas não permite a entrada de vento.

Os cães são infantis e impetuosos, muito menos prudentes e hábeis do que os animais do gelo, e eles não poderiam viver no Ártico sem a ajuda do homem. Em sua ânsia, o cão que fareja um urso pode conduzir seu dono ao topo do abrigo, causando o desabamento da cobertura. Papik conhecera um tal de Nessark que desapareceu desse modo. Assim, tão logo Ootuniah ficou suficientemente forte para segurar uma correia, ele passou a mandá-la na frente, com o cão, pois um iglu de urso é menos suscetível de ruir sob o peso de uma criança. E enquanto a menina ficava no topo do abrigo com o cão que espumava e rosnava, Papik determinava a posição do túnel e arremetia com a lança numa das mãos e a faca na outra.

Mas Ootuniah crescia. O quanto já estava crescida a família descobriu naquela vez em que ela se afundou num abrigo, despencando com o cão sobre um casal de ursos.

Quando Papik correu em sua ajuda, Ootuniah tinha cravado o macho na parede de gelo através do queixo escancarado, enquanto a ursa travava uma luta com o cão. Ootuniah não podia arrancar a ponta da lança do gelo e tinha puxado sua faca de pederneira. Mas nenhuma garota meio crescidinha pode vencer uma tonelada de urso com uma faca, a menos que, antes, o faça apaixonar-se por ela, e Ootuniah só foi salva pela chegada do pai. Depois disso, Papik passou a lançar mão de Ernenek para procurar ursos em seus abrigos de inverno, para o imenso encantamento do menino.

Mas Ootuniah não se considerava em segundo lugar, e Papik tinha de ter constante cuidado com ela.

Diante de tudo isso, Vivi continuava sobrecarregada com todo o trabalho doméstico, e qualquer tentativa de chamar a atenção de sua filha para os deveres femininos resultava em malogro.

Se você não sabe coser, nunca encontrará um marido — ameaçou Vivi uma vez.

Uma caçadora não precisa de marido — respondeu Ootuniah.

Mas você precisa de roupas. Que vai fazer, então?

Ela poderia arranjar uma esposa — foi a sugestão do pequeno Ernenek, o que quase fez a casa cair.

Não haverá sempre uma mãe para coser para você — continuava Vivi.

Subitamente alarmada, Ootuniah refugiou-se no colo de Vivi.

Por quê? Você não vai desaparecer.

Cedo ou tarde todos desaparecem, minha querida.

Mas não você! Você sempre está em casa.

Todos desaparecem. — Vivi a apertou e a embalou como quando ela era pequena. — Mas não deixe que isso a aborreça. Você deixará sua mãe antes que ela a deixe.

Uma menina nunca a deixará!

Você deixará, querida. Quando descobrir que você quer um marido, mais que um pai e uma mãe. E então você desejará que saiba coser.

Nunca!

Apesar do agarramento de sua filha, Vivi sentia falta não só de sua ajuda em casa, mas acima de tudo do conforto de sua companhia. Como ambas as crianças iam caçar longe com o pai, elas não podiam mais sugar os seios de sua mãe regularmente, e para conservar a lactação e assegurar sua esterilidade, Vivi tinha de pôr os filhotes de cães em seus mamilos negros, que estavam prodigiosamente alongados e rachados devido ao uso incessante.

Quando Ootuniah voltava de suas incursões com os homens, estava tão exausta quanto eles. Se o mau tempo os prendia dentro de casa, ela dormia ou trabalhava na prepara­ção das armas e apetrechos, com o pai e o irmão. Só falava de caçadas, nunca de trabalhos caseiros. Nas raras vezes em que eles cruzavam com outros trenós ou passavam por iglus, e ela conseguia vencer o acanhamento diante de estranhos, conver­sava com os homens e não com as mulheres, com as quais não tinha interesses a compartilhar. E como ela queria passar por um menino, esforçava-se por agir de modo mais rude do que qualquer um deles. Falava asperamente e deixava seu longo e fino cabelo ficar emaranhado e enrolado com fuligem e gordura, como seu pai, em vez de lavá-lo com urina e penteá-lo com a longa espinha de peixe, como sua mãe, que estava sempre elegantemente enfeitada, mesmo quando não tinha a quem impressionar senão o marido.

O que normalmente acontecia o ano todo.

Nunca mais ouviram falar de Aage, nem encontraram qualquer outro membro de sua tribo ou alguém que o tivesse conhecido ou estado naquela remota cidade pesqueira. Mas eles tinham notícias dos destinos de seus Homens através do encontro de outros trenós ou iglus. As notícias nunca eram recentes, e raramente eram confiáveis, mas sua raridade as fazia sempre interessantes e às vezes sensacionais, como uma relativa a Ivaloo.

De acordo com diversos depoimentos, a irmã de Papik tinha tido uma criança, mas ninguém lhes podia dizer se Milak voltara ou se Ivaloo o tinha substituído.

Outra história suculenta se referia a Gaba, tido como o matador de três mulheres, que se dera mal numa ruptura do gelo. O boato era de que, antes de sucumbir na água, ele fora assassinado pelos cinco solteiros que então resolveram consolar suas três viúvas.

O velho Ammahladok e sua mulher Egurk não foram mais vistos, e o iglu onde Papik e Vivi os deixaram anos atrás provavelmente se transformara em seu túmulo, derretendo-se na paisagem do gelo.

Nada está destinado a durar, nem mesmo os túmulos, mas há uma remota chance de que os que são enterrados no gelo polar durem para sempre.

A família de Papik descobriu um desses túmulos de gelo enquanto cavava para ver se encontrava um esconderijo de provisões numa das vezes em que estava sem alimento. Nunca acharam o esconderijo, mas descobriram um iglu construído e equipado exatamente como os deles, com a exceção de que as faces dos ocupantes, um casal com um menino, todos perfeita­mente preservados, pareciam feitos de couro azulado e encera­do, e os objetos familiares incluíam um item que era uma charada — uma presa afiada e encurvada, de marfim, tão grande quanto um homem, de algum animal desconhecido. Embora desajeitadamente, Papik carregou-a em seu trenó, esperando que ela pudesse constituir um poderoso amuleto para dar sorte.

Mas a caça continuava a ser tão escassa que ele chegou à conclusão de que a presa era mais um instrumento de má sorte, e livrou-se dela.

Quando o pequeno Ernenek já não estava muito pequeno, entrando na puberdade e com a estatura aproximando-se da de Ootuniah, começou a incomodar-se com a autoridade e as maneiras dominadoras de sua irmã. Ele descobrira que machos e fêmeas tinham tarefas claramente separadas e definidas; que outras meninas não caçavam; e que nenhum outro menino seguia a liderança da irmã.

Fora-se o tempo em que Ootuniah tinha sido duas vezes maior e três vezes mais esperta que ele — uma razão válida para respeitá-la. Mas depois que ela parou de crescer e que ele estava rapidamente alcançando o tamanho dela, descobrindo que ela não era tão alta quanto parecia antes, não viu mais nenhuma razão pela qual a dominação dela devesse continuar. Sua rebelião acendeu uma acalorada disputa entre eles, pois competiam no sentido de obter a consideração do pai.

Por essa rivalidade, Papik pagou com três dedos da mão esquerda.

Desprezando a regra de nunca afastar-se para longe sozinha, Ootuniah deixou a família dormindo para perseguir um urso que tinha avistado perambulando na escuridão do outono. O manhoso animal a atraiu para uma geleira que era segura para suas patas eriçadas, mas escorregadia para botas de pele de foca. Tentando pegar um atalho que a colocaria face à face com o animal, Ootuniah saltou sobre uma estreita fenda, escorregou e caiu dentro dela.

Fendas de geleiras são bonitas de ver, mas feias para se cair em seu interior cunhas de um azul-escuro, como um gigantesco machado, estreitando-se em direção ao fundo e prendendo firmemente o que cai lá dentro.

Quando Papik localizou Ootuniah, com a ajuda de seu cão de melhor faro, ela estava plenamente consciente e meio congelada. E eles a encontraram principalmente porque o urso tinha invertido os papéis, transformando-se de caça em caça­dor, agitando a cabeça por cima da fenda, tentando encontrar um jeito de apanhar a vítima.

Papik teve de rasgar seu casaco em tiras, emendá-las e formar uma corda, empregando toda a sua força e habilidade de pescador para resgatar a menina. A seguir, substituiu as luvas congeladas dela pelas suas próprias e a colocou nos ombros, deixando as mãos expostas.

No iglú, a família e os cães se amontoaram sobre a menina para aquecê-la. Um dos cães estava morto, de modo que Ootuniah podia mergulhar as mãos em suas entranhas, que ainda ferviam. Ao mesmo tempo, seus pais tentavam aquecê-la de dentro para fora, fazendo graça, o que podia ser quase tão eficaz quanto a zanga. Finalmente, ela explodiu numa garga­lhada salvadora, quando Papik lhe contou a história do explorador branco cujo rosto congelado foi esfregado com tanta força por seus companheiros que acreditavam em tratamento rápido para reativar a circulação que seu nariz se quebrou como uma pedra de gelo. Mas ainda foram necessá­rias várias sonecas até que Ootuniah voltasse a ser o que era.

Mas não Papik. Esgotado, caiu no sono, com os pés gelados contra o estômago de Vivi mas esquecido da dormên­cia de suas mãos. Quando acordou, era tarde demais. Três dedos não podiam ser reativados. Tinham ficado azuis. Era a gangrena. Quando foi preciso amputá-los, ele pediu a Ootu­niah que o assistisse, como castigo e lição. E ela obedeceu sem uma palavra, apenas estremecendo quando baixou o machado com toda a força.

Para provar que ela era um verdadeiro Homem.

Muito antes que a febre e a dor cedessem, Papik tentava rir do pequeno infortúnio, dizendo que era melhor perder três dedos do que dois pés. Além do mais, ele ainda podia contar com dezessete. Mas a verdade é que ele perdeu um pouco de sua disposição junto com aqueles dedos. O incidente o lembrava de que ele não era indestrutível, e fê-lo notar outras deficiên­cias inerentes à idade que avançava. Ele já era menos ágil ao levantar-se após uma queda. Seus filhos passaram a ter cada vez mais razão quando afirmavam que ele confundia um bloco de gelo com um urso; ou que seus olhos viam uma foca onde só havia madeira flutuante. E, ao lado dessas deficiências, ele notava também que as ancas de Vivi se alargavam e que seus belos dentes se tinham tornado pequenos e escuros de tanto mastigar peles. Mas havia uma compensação para a idade: ver crescerem os filhos.

Ernenek parecia cada vez mais com seu avô. E, quando ficou mais alto e mais robusto que sua irmã, recuperou a alegria dos verdadeiros Homens, a qual lhe tinha faltado por um certo período.

Quanto a Ootuniah, muito cedo seu corpo começou a passar pelas esperadas mudanças. De seu peito, anteriormente como o de um menino, brotaram seios que pareciam desafiar a lei da gravidade, com a cumplicidade de vigorosas armaduras. A barriga projetada, marca registrada de todos os verdadeiros Homens, encolheu junto com seu apetite, enquanto as nádegas chatas apresentavam protuberâncias que nem mesmo as calças de pele de urso podiam esconder inteiramente. E os pêlos escuros que antes sombreavam seus membros desapareceram, concentrando-se em outro lugar.

Vivi descobriu tudo isso de um dia para o outro, durante a esfregação de corpo a que ela submetia a família em cada primavera, depois que cada um se despia para receber os primeiros raios de sol.

Novos e perturbadores instintos cedo começaram a tu­multuar o sangue da menina, tornando-a inquieta e alarmando-a, porque ultrapassavam sua compreensão. Ela não confia­va em ninguém e foi ficando cada vez mais taciturna. Mas Vivi não devia saber. Em vão ela exagerava o cansaço de sua vista e a falta de firmeza de seus dedos, na esperança de contar com a ajuda da filha e começar a treiná-la como dona-de-casa.

Ootuniah continuava a agir como se tocar numa agulha ou raspar uma roupa fosse um tabu.

Embora a Montanha Grávida estivesse fora de seu circuito regular, Vivi pediu para visitar Ivaloo depois de vários anos sem que a vissem. Primeiro, porque desejava que Ootuniah encontrasse gente e também para satisfazer a própria curiosidade sobre os rumores de que Ivaloo tinha várias crianças, embora não houvesse informações sobre a existência de um marido.

Só esse mistério por certo justificava o mais longo dos desvios.

Eles chegaram à Montanha Grávida na escuridão da noite, quando o gelo da baía reluzia com o brilho vermelho-amarelado de todos os pequenos iglus de inverno. Num deles, acharam Ivaloo, com sua velha placidez, um pouco mais cheia de corpo e mais bochechuda, e aquecida por nada menos que cinco crianças, três meninas e dois meninos, para não falar de um que estava prestes a nascer e para cuja manutenção toda a comunidade contribuía, desejando manter feliz a sua feiticeira. Mais dois filhos dela tinham morrido, um afogado e outro estraçalhado por cachorros. Nisso tudo, nenhuma sombra de marido. Mas certamente Ivaloo podia explicar.

Você os adotou ou inadvertidamente olhou para a lua cheia? — inqueriu Papik, que não se esquecera de que a exposição aos raios da lua cheia pode levar à gravidez, como um bom número de mulheres sem marido podia confirmar.

Não é impossível — disse Ivaloo com seu vago sorriso. — Mas uma mulher tem certeza de que não foi só a lua cheia. Foi Milak, que continua aparecendo em seus sonhos, como íiavia prometido. Mas isso tem de ficar como um segredo.

—        Por quê?

—        Porque poderia levantar novos rumores de interferência do Alto, e novamente pôr uma mulher em dificuldades.

Papik e Vivi prometeram guardar segredo, e estavam contentes por vê-la deleitando-se em seu crescente viveiro de meninos e meninas.

Naturalmente, naquele período havia aparecido homens de todos os lados, e continuavam a aparecer, propondo tomar Ivaloo como esposa e deixarem que as crianças se arranjassem por si mesmas. Mas ela não tinha intenção alguma de abandoná-las e continuava a declinar das lisonjeiras ofertas.

—        Como está Ootuniah? perguntou ela. Qualquer solteiro ficaria contente em casar com ela, agora que está pronta para isso.

Vivi, que tinha apreciado a conversa até aquele ponto, franziu as sobrancelhas e disse:

Ela não está. Não sabe coser e se recusa a aprender. Uma mãe espera que ela encontre um homem que a faça mudar.

Uma menina não quer marido algum para lhe dar ordens! disse Ootuniah.

Tempo virá em que você vai querer ter filhos, minha querida — disse-lhe Ivaloo. Você vai ver.

Nunca! As crianças são barulhentas, sujas e incô­modas.

Há coisas que você não pode compreender antes de ficar bem crescida. E então você desejará que tivesse dado ouvidos àqueles que sabem.

Ootuniah levantou o queixo com ar de desprezo e torceu o nariz.

Porém, menos de um ano depois, a profecia de sua tia se verificou da maneira mais inesperada, pegando toda a família desprevenida.

E abalando a rotina de suas vidas com um acidente e uma fratura.


 

                               Onde a gente se despe

A melhor coisa a fazer para enfrentar uma tempestade de neve no topo do mundo é ficar em segurança dentro de um aconchegante iglu, tendo compaixão dos infelizes diabos do lado de fora.

No fim do inverno, quando viajavam sobre o Oceano Glacial, durante o período em que uma breve luminosidade anuncia a chegada do sol a cada volta, eles tinham avistado misteriosas luzes na escuridão da costa. Elas vinham de um pequeno grupo de edifícios — edifícios angulares de cimento e cabinas de ferro corrugado, os quais só podem significar a presença de homens brancos, mas nitidamente pertencentes a uma tribo diferente da de Aage, que construía cabinas pontudas e casas espalhadas a esmo com a estrutura sobre estacas. Nunca haviam eles encontrado homens brancos na­quela longínqua região do norte. Também havia algumas cabanas nativas, parcialmente cavadas no terreno, protegidas dos elementos. E pilhas de caixotes e tambores de óleo.

Quando a família chegou ao lugar, tudo estava escuro e nada se movia, como se todos estivessem dormindo.

Como se sentiam cansados e não estavam com uma boa apresentação, jogaram a âncora do trenó, levantaram um abrigo de neve, penduraram suas roupas molhadas e resolveram descansar.

Estavam dormindo, com o calor uns dos outros, e a tênue luz do dia batia na parede de neve, quando Vivi foi despertada por um concerto de latidos da matilha, dirigida por Noonah, o novo cão-líder. Ela ficou aturdida, ouvindo um estrondo surdo e sentindo a terra tremer, pois estava certa de que não tinham erguido o iglu no gelo do mar, mas na costa, perto das casas. Ela estava espetando a grossa pele do estômago de Papik para acordá-lo quando o abrigo deles desabou e um monstro de ferro passou trovejando por cima, enchendo o ar de mau cheiro e deixando a pequena cúpula como um campo de batalha, os membros humanos movimentando-se entorpecidos na neve.

O monstro era uma motoniveladora.

Como seu tamanho era maior do que o do iglu inteiro e o chão do abrigo estava cavado na superfície do terreno, as lagartas da motoniveladora passaram sem causar dano aos corpos deitados, com a exceção de Papik. Ele se pôs de pé rápido demais e a máquina roçou em sua perna e seu quadril, quebrando ossos e fazendo jorrar sangue.

Quando ele descobriu que o homem branco que conduzia o monstro não lhe fez mal intencionalmente, mas estava agitado e ansioso para reparar os prejuízos, Papik pediu desculpas pelo fato de estar no caminho e tentou sorrir, enquanto fazia uma careta de dor o que exigia providências. Ele foi carregado para dentro de uma pequena cabina de ferro, equipada com uma enfermaria, com jarros e garrafas mágicas num armário, instrumentos de metal que inspiravam medo, pendurados nas paredes de ferro, e um feiticeiro branco com uma daquelas assistentes treinadas para dar picadas no coita­do. Aquela enfermeira também era esquimó.

A cabana só tinha um quarto, o quarto tinha quatro camas e as camas tinham um único ocupante: Papik.

Ele ficou apreensivo quando viu mais uma vez o que os homens brancos podiam fazer com sua parafernália mágica, como remover a dor de seus ossos fraturados com uma simples injeção. Aquilo realmente o assustava. Quem quer que pudesse fazer isso era obviamente um aliado do diabo.

Com o qual os Homens, para sua grande tristeza, nunca tinham sido capazes de estabelecer uma sólida aliança.

Ao acordar, com a cabeça rodando do profundo sono em que estivera mergulhado depois da injeção, Papik teve outro choque ao ver o feiticeiro branco e a enfermeira pairando sobre ele, com máscaras de pano que só deixavam expostos seus olhos. Então ele se lembrou de ter visto máscaras semelhantes no hospital da cidade de Aage e se sentiu mais seguro: elas deveriam servir para afugentar os espíritos do mal que causam a dor.

Sua coxa e sua perna feridas foram engessadas e, sob tração, levantadas por uma corda ligada ao teto — um exorcismo dos homens brancos contra ossos quebrados.

— Você tem sorte de os homens brancos estarem aqui — disse-lhe a enfermeira com uma risadinha. — Sem eles, quem consertaria seus ossos?

Papik estava fraco demais para responder.

Havia um fogão de ferro que queimava um combustível fedorento e mantinha o quarto aquecido demais, mas o feiticeiro branco usava seu casaco de pele mesmo enquanto trabalhava com seu paciente. Quando ele removeu a máscara, mostrou que usava peles até no rosto, sob a forma de uma asseada barba loura, enquanto Papik estava inundado em suor, embora não vestisse nada a não ser um pedaço de gesso.

Para aliviar-se, olhou para as vidraças cobertas de geada.

O médico saiu e o sol ausente tinha dado meia volta antes que Papik encontrasse forças para perguntar a Igah, a enfer­meira, sobre sua mulher e seus filhos. Eles tinham ficado do lado de fora, no trenó, sobre o qual ergueram a tenda contra o mau tempo e esperavam pacientemente.

Igah os chamou para dentro.

Noonah, o cachorro deles, foi saltando sobre seu dono para lamber a gordura de seu rosto, enquanto os outros membros da família se movimentavam no quarto com gemidos de expectativa, batendo a neve de suas botas e fungando com os cheiros esquisitos. A visão de Papik deitado nu em seu suor, a perna engessada ligada ao teto, quase os fez sair correndo. Então, eles tiraram suas peles e as penduraram na lâmpada e por todo o quarto, para escorrer e secar, com medo de que apodrecessem.

Enquanto Ernenek investigava o gesso de Papik, dando-lhe pancadinhas, Ootuniah trazia pedaços de carne congelada para apressar a recuperação de seu pai. Mas a injeção acabara com o apetite de Papik, junto com a dor, e seus parentes, encantados, trataram de consumir, eles próprios, as iguarias, jogando os ossos para Noonah.

A partir do momento em que eles entraram, a enfermeira Igah viu-se incomodada, opondo-se a tudo o que eles faziam e tentando chutar o cachorro para fora. Isso era surpreendente, pois Igah era uma esquimó e devia conhecer os costumes. Eles ainda não tinham descoberto que ela era dada ao álcool, o que afetava suas maneiras. Quando Papik acordou da operação, ela estava embriagada com xarope para tosse e com uns ares alegres. Agora, estava sóbria e briguenta.

Os membros da família de Papik tinham aprendido a tolerar praticamente tudo quanto estivesse num iglu alheio, especialmente o de um homem branco, e demonstraram sua desaprovação ao comportamento de Igah simplesmente ignorando-a. Uma estratégia que se revelou eficaz.

Quando finalmente a enfermeira saiu batendo os pés e murmurando misteriosamente, os visitantes suspiraram com alívio e soltaram seus cabelos. Abriram as janelas para deixar entrar o ar frio e escaparem os odores quentes. Ernenek deitou-se ao lado do pai e ao mesmo tempo Vivi tentou o outro lado. Como a cama não tinha sido feita para três, mas para apenas um, arriou com um estrondo, deixando Papik dependu­rado pela perna. Todos urraram. Papik urrou de dor.

Mas logo ele aderiu à alegria geral.

Teria sido uma visita muito agradável se a enfermeira Igah não a tivesse prejudicado, voltando com o médico.

As crianças, que enquanto esperavam no trenó tinham visto pela primeira vez naquele dia o homem branco, não muito de perto, olharam para ele apavoradas.

Não eram os únicos que mostravam surpresa. O médico, ao ver o quarto, ficou pasmado: roupas penduradas para secar, a cama quebrada, os ossos jogados em todos os cantos, o cão que nunca havia cheirado um homem branco antes e que latia para ele furiosamente. Então, dirigiu-se à enfermeira em tom de raiva. Era uma sorte que a família não o entendesse. Porém, mais uma vez, Igah não podia suportar tudo sozinha e fez o papel de intérprete.

—        Vocês estão sujos! — xingou os consternados visitan­tes. — E estão cheirando mal!

Logo que se recuperou da surpresa, Vivi vociferou:

—        Você é que está suja! E está fedendo! Puh! —e cuspiu nas botas de Igah.

O feiticeiro branco falava fluentemente três palavras da língua dos Homens: "Menino", "Mulher" e "Fora", e usou todas as três, sublinhando-as com gestos. Vivi se arrependeu logo de sua resposta grosseira e começou a compreender que eles podiam ficar em dificuldades.

Vamos tirar o papai daqui — cochichou com as crianças. — Esta gente é perigosa.

Vocês não podem levá-lo enquanto ele não puder andar — disse Igah.

Nós lhe daremos toda a comida que temos no trenó e depois vamos caçar para você.

Igah não podia deixar de rir.

—        Vocês não compreendem. Não há perigo algum para ele aqui. Os homens brancos se sentem responsáveis por seus ferimentos e não podem deixá-lo ir embora antes de curá-lo.

Você quer dizer... como um tabu?

Mais ou menos.

Vivi depôs as armas. Ela sabia quando estava derrotada.

—        Fora, mulher! — repetiu o médico, apontando a porta. — Fora, meninos!

Ootuniah olhou embasbacada para ele, coçando a cabeça.

—        Meninos? — torceu o nariz e declarou: — Alguém é uma menina e não um menino.

—        O que ela disse? — perguntou o médico.

—        Parece que temos uma menina aqui — disse Igah.

Incrédulo, o médico olhou fixamente para Ootuniah, pediu à enfermeira que repetisse, e então explodiu numa tonitruante gargalhada, e pela aparência de seus dentes e pela cor rosada de sua gengiva Ootuniah podia dizer que ele era muito jovem. Tinha uma cara divertida, com um nariz engraçado que se movia quando ele ria.

Ootuniah não esperava achar tanta graça num homem branco. De início ofendeu-se com a gargalhada dele, que tinha a ver com ela. Mas era uma coisa que parecia tão cordial e destituída de malícia que, finalmente, ela também começou a fazer uma tentativa de rir. A menos que fosse outro motivo. Aquela era a estação em que as focas, sentindo a excitação da primavera, se preparavam para desafiar o perigo, aventuran-do-se fora das águas em busca de um parceiro.

E aquela era a primeira primavera de Ootuniah, desde que se tornara mulher feita.

 

                                         Branca de Neve

Quando o céu clareou e eles rasparam o gelo das vidraças, Papik e sua família contemplaram mais de perto algo que até então tinham visto raramente e só de muito longe: aviões. Os que haviam presenciado antes, riscando o céu do Ártico e ligando continentes, lhes tinham parecido minúsculos. Os que eles agora observavam eram muito menores, mas pareciam maiores, pois passavam próximo da janela antes de aterrissar com seus pontões deslizantes na faixa costeira que a motonive-ladora tinha preparado para eles.

Em sua maioria, os estrangeiros ali pareciam feiticeiros, descendo do céu e partindo de novo pelos ares num barulho infernal. O acampamento, estabelecido por uma empresa estrangeira algumas estações antes, e chamado Branca de Neve, preparava-se para um curto verão de intensa atividade. Não só os estrangeiros que viviam nas habitações de cimento e ferro, mas também os esquimós que trabalhavam para eles ou gravitavam em torno do Escritório da Companhia, eram mais numerosos do que Papik podia contar com seus dedos das mãos e dos pés, e mesmo com os de Vivi, que ainda tinha todos eles.

Não que ele pensasse naquilo, enquanto se achava sob o efeito das injeções de Igah.

A família tinha escassas provisões, as duas crianças queriam partir logo em busca de caça, mas os outros esquimós já os haviam informado de que o barulho das máquinas, ecoando ao longe, tinha afastado todos os animais, e quase todas as focas e peixes estavam evitando aquelas águas desde o verão anterior, quando o navio da Companhia descarregou óleo das máquinas, de uma espécie fétida e perniciosa que se agarrava na praia e afastava os animais.

Quando Vivi e seus filhos estavam construindo uma pequena casa de terra, pedras e neve, uma mulher chamada Kio veio dar-lhes uma ajuda. Ela já tinha conversado com Vivi, enquanto a família estivera esperando do lado de fora da enfermaria, e ofereceu-lhe uma lata de comida dos homens brancos. Vivi não pôde aceitá-la, é claro, sem antes pedir a permissão de Papik, ainda mais porque ela não podia dar a alguém comida de sua própria família sem autorização.

Kio era tão gorda quanto alta, com um rosto largo e maneiras gentis. Uma verdadeira mulher dos Homens. De dois Homens, na realidade — Nualik e Kutsikitsok — que acharam conveniente compartilhá-la, nômades do norte que eles eram.

Aos poucos, apareceram outras mulheres, para ajudar, trocar informações e tagarelar. Ninguém sabia, nem realmente se importava em saber, o que os homens brancos estavam procurando em Branca de Neve, porque eles perfuravam a crosta de gelo com máquinas que eram tão grandes quanto barulhentas. Devia ser alguma coisa que tivessem perdido, ou, de qualquer forma, que tivessem estocado ali em grande quantidade, pois não gostavam de viver acima da fronteira dos cães. Para mantê-los ali, a Companhia tinha de pagar-lhes altos salários. E ninguém se lembrava de já ter visto mulheres brancas naquela longínqua região do norte, exceto nas revistas com que os operários cobriam as paredes de suas habitações.

A família soube que a Companhia acusava os esquimós de não serem de confiança, o que era uma evidente calúnia. Um esquimó trabalhava tão bem quanto qualquer homem branco, a menos que visse uma foca ou um urso, o que por ali acontecia raramente naquela época, ou que ficassem cansados, com sono, entediados ou com sede. Então, é claro, ele tinha de tirar uma folga. Mas, quando um esquimó estava disposto a trabalhar, nada e ninguém podia detê-lo.

Eram os esquimós que tinham maiores razões de queixa. Como em todas as sociedades livres, eles não estavam acostumados a receber ordens, mas a discutir cada um dos problemas com todo o grupo e a ouvir a opinião de todos. Este não era o costume entre os homens brancos. Eles simplesmente davam ordens e esperavam cega obediência. Se um esquimó indagava do motivo ou sugeria uma solução diferente, o homem branco ficava furioso e, nas mais das vezes, com a cara vermelha. Mas os esquimós não ficavam ressentidos com os modos estranhos do homem branco. Tinham pena dele, dizendo-se a si mesmos que provavelmente ele era mal-humorado de natureza e não podia deixar de agir daquela forma.

Quando achavam que os modos do homem branco estavam por demais insuportáveis, simplesmente punham os arreios nos cães e partiam, desprezando os salários a receber em sinal de protesto.

A Companhia estava fazendo todo o esforço para reter os operários em Branca de Neve. Dotou seu edifício principal, o Centro, de um armazém cujas prateleiras ficavam abarrotadas no verão, quando o navio da Companhia chegava, uma cantina equipada com mesas e cadeiras, onde se podia ouvir música, jogar cartas e comprar cerveja forte e comida fraca, e até uma pequena sauna, capaz de dissolver a crosta mais gordurosa. Tudo — cadeiras, mesas, beliches, as próprias paredes — tinha sido fabricado no país dos homens brancos e era iluminado com eletricidade produzida por uma máquina que nunca parava de zumbir.

O que os esquimós achavam mais duro de suportar era o cumprimento de horários. Uma vez que nem os animais nem o tempo respeitavam o relógio, eles nunca tinham visto a necessidade de respeitar horários. Caçavam quando tinham fome, devoravam toda a carne quando ela era abundante, a despeito de inevitáveis períodos de escassez, e dormiam quando estavam cansados ou quando o tempo os matinha abrigados, e não quando o relógio mandava, como faziam os homens brancos.

— Eles também riem de acordo com o relógio? — perguntava Vivi, causando estrondosas gargalhadas.

Mas não tão estrondosas quanto as da mulher que respondia afirmativamente.

Além disso, os homens brancos reprovavam a falta de espírito de economia dos esquimós, pois eles não eram propensos a acertar suas dívidas com o armazém, mas a gastar seus salários tão depressa quanto possível, principalmente com cerveja.

Uma razão que os esquimós apresentavam para beber era que os tabus dos homens brancos relativos ao trabalho eram incompreensíveis para eles. A bebida não os tornava mais compreensíveis, mas os ajudava a deixar de ficar tentando compreender. Como, por exemplo, por que havia tarefas só para homens brancos, mesmo quando os esquimós as podiam executar melhor. Parecia que os trabalhadores brancos tinham de pertencer a uma união, o que significava que eles deveriam ser submetidos a uma misteriosa iniciação em seu país de origem antes de terem permissão para executar aquelas tarefas. Como não passavam por tal tipo de iniciação, os esquimós só recebiam tarefas simples, como carregar equipa­mentos pesados, limpar coisas ou segurar utensílios para os trabalhadores estrangeiros. Todo homem branco admitia que os esquimós assimilavam habilidades técnicas com uma facili­dade fabulosa, graças a seu senso prático e a sua memória fotográfica. Mas os estranhos tabus relativos ao trabalho impediam que eles fossem empregados nos serviços mais difíceis, cuja execução, aliás, seria bem divertida, pelo menos por um curto período.

Os esquimós não podiam esconder dos estrangeiros o que pensavam deles, como, por exemplo, quando tomavam conheci­mento de que um trabalhador branco que executava a mesma tarefa que um esquimó tinha um salário mais alto. Quando descobriam isso, alguns deles tinham de tapar a boca com as mãos para não rir na cara do chefe da pagadoria. Agora, ali estavam aqueles poderosos homens que voavam através das nuvens, fazendo um bocado de barulho e sempre calculando coisas com lápis e papel. E eles não se davam conta de que os esquimós faziam as mesmas coisas melhor, mais rápido e por um número maior de horas do que os homens brancos, e por isso deveriam receber não mais baixa, porém mais alta remuneração!

Que pândega!

Tudo isso e muito mais a família ficou sabendo por intermédio da mulher que ajudava a atrasar a construção da casa com conversa fiada. Eles se ofereceram para levar Vivi e seus filhos para conhecerem AQUELE QUE PAGA, o homem branco que eles acreditavam ser o dono da Companhia porque era ele quem fazia os pagamentos. Certamente, ele lhes daria trabalho, pois os esquimós que contratara continua­vam a desertar, e ele precisava contar com todos os braços que pudesse encontrar. Com o dinheiro eles poderiam comprar alimento no armazém.

Vivi disse que tinha de perguntar a Papik. Mas não havia pressa. Primeiro, ela tinha de terminar a casa e então pôr as roupas em ordem. Entrementes, podiam comer seu trenó, que em breve iria descongelar-se, já que eles não podiam ir embora.

Da vez seguinte em que o médico encontrou toda a família de Papik acampada na enfermaria, fez uma careta e instruiu Igah a informá-los de que todos tinham de tomar banho antes de entrar novamente.

—        Neste caso, nós vamos embora — anunciou Papik.

—        Não, voce não vai embora! —disse a enfermeira Igah, mais uma vez de modo petulante.

—        Mas ninguém vai tomar banho!

Como as surpresas dos esquimós diante das artimanhas dos estrangeiros não tinham fim, também o médico tinha mil motivos de estupefação cada vez que encontrava a família de Papik na enfermaria, como no dia em que viu Ootuniah deitada completamente nua no chão, sendo esfregada da cabeça aos pés por sua mãe com um esfregador de roupa. Acanhada diante de estrangeiros e particularmente diante daquele, Ootuniah procurou logo uma coberta.

—        Que estão fazendo? — perguntou o médico quando recuperou a fala.

—        Anteciparam a data do esfregamento de primavera — disse Igah, outra vez embriagada com remédios para tosse. Para terem certeza de que não terão de tomar banho.

Por que eles têm tanto medo disso?

Porque a água enfraquece a pele.

Superstição!

E o médico levantou a manga e mostrou seu braço cabeludo.

—        Pergunte a este homem se minha pele é fraca.

Papik apalpou com o polegar, experimentou e finalmente sentenciou:

—        Não é forte.

A chegada do verão produziu o constante brilho do sol, interrompido por ocasionais precipitações de neve; partiu a crosta do mar, preparando-o para sua viagem em direção ao sul; trouxe nuvens de estridentes pássaros que pescavam nos canais escuros entre as tinas de gelo; e enxames de mosquitos ávidos de sangue que devastavam as faces dos homens brancos mas deixavam em paz as calosas peles dos esquimós; e assistiu à desajeitada corte do feiticeiro branco, que estava começando a enamorar-se dos singulares encantos da menina polar.

Entre os quais o menor deles não era o terror que ele parecia inspirar-lhe.

Enquanto Papik permaneceu deitado, esperando que seus ossos se emendassem, seus parentes passaram a ser parte da vida do acampamento. AQUELE QUE PAGA estava conten­te por engajar membros de uma família obrigada a ficar ali tanto tempo quanto seu pai permanecesse ligado ao teto do LUGAR ONDE A GENTE SE DESPE.

O chefe da pagadoria era um homem pequeno mas aprumado, com um cabelo cor de areia, pele avermelhada e um cinto de cartuchos cheios de lápis. Como ele não falava a língua, colocou um tal de Pootoo como encarregado de todos os nativos constantes da folha de pagamento da Companhia um esquimó que tinha vivido entre uma tribo de homens brancos abaixo da fronteira dos cães e que tinha participado de suas iniciações, podendo fazer as vezes de intérprete num dia em que estivesse com a mente clara.

Vivi foi designada para a cantina, que os esquimós chamavam de LUGAR ONDE A GENTE FICA SEM DI­NHEIRO, mas seu trabalho era na cozinha, que era uma pequena dependência da cantina e que os esquimós chamavam de LUGAR ONDE AS CARNES SÃO QUEIMADAS. Ela tinha de ajudar outra mulher que raramente aparecia a executar as tarefas mais pesadas, como cabia às mulheres, como carregar tambores de combustível para o fogão e o gelo para o abastecimento de água potável, além de lavar as coisas.

Como regra geral, esquimós e homens brancos se davam bem, especialmente quando ninguém morria assassinado. Mas havia algumas pequenas conspirações maldosas de um lado contra o outro, como no caso dos talheres.

Os homens brancos queriam que seus talheres fossem lavados com água verdadeira após cada refeição, como em seu próprio país, onde a água era de fácil obtenção. Em Branca de Neve, isso significava arrastar e derreter um bocado de gelo. Então, as mulheres esperavam até que nenhum homem branco estivesse olhando e seguiam o método tradicional: punham os pratos sujos do lado de fora da janela e os cachorros os lambiam bem limpos, executando uma tarefa tão meritória quanto a de qualquer dona-de-casa.

Uma boa amizade se desenvolvia entre Vivi e a boa gorducha Kio. Para passar mais tempo com sua nova amiga, Kio a ajudava freqüentemente no LUGAR ONDE AS CAR­NES SAO QUEIMADAS, sem receber pagamento. E Vivi precisava do conforto de sua companhia, uma vez que pouco via os outros de sua própria família.

Ootuniah estava muito orgulhosa de trabalhar e passava muito tempo na enfermaria, para consolar seu pai da imobilidade forçada, o que o tornava muito inquieto. E o médico sempre lhe pedia alguma ajuda, pois Igah permanecia cada vez menos no LUGAR ONDE A GENTE SE DESPE e cada vez mais no LUGAR ONDE A GENTE FICA SEM DINHEIRO. O médico também ordenou a Ootuniah que parasse de honrá-lo com o título de Velho Feiticeiro e que se dirigisse a ele pelo nome, que era Hendrik, mas dos lábios dos esquimós saía como Indalerak.

Ela aprendeu rapidamente a língua dos homens brancos, que era simples demais se comparada com a dela. Mais heróica era a decisão do Dr. Hendrik de aprender a língua de Ootuniah, cuja complexidade normalmente frustrava a com­preensão dos homens brancos. Mas a garota parecia atraí-lo com o charme do desconhecido, senão com a fascinação da impenetrabilidade, e ele estava ansioso por escavar aquele território virgem, a despeito das dificuldades e perigos.

Uma vez ele lhe pediu que limpasse uma faca que havia usado para lancetar peles humanas. Ela o fez lambendo-a com a língua. Isso o levou a fazer uma apaixonante conferência sobre higiene, que não logrou convencê-la, pois sua família não estaria viva se metade do que ela entendeu fosse verdade. Mas ela gostava de ver como o nariz dele se mexia quando ele falava com raiva. E, quando ele a viu bocejando para ele, sua severidade se dissolveria em riso, ao que ela corresponderia. Contudo, ela tentava seguir as recomendações do médico mesmo quando ele se achava ausente.

Sua mãe caçoaria dela se soubesse. Mas pouco tempo depois Ootuniah não quis mais falar de Indalerak e ficava nervosa e zangada quando ele era mencionado.

Só o espírito juvenil de Ernenek é que estava fascinado, sem reservas, com as novidades estrangeiras, e havia pouco espaço para sua família em seus pensamentos, enquanto descobria o mundo dos homens brancos. Sempre despreocupado, ele já tinha experimentado, durante uma única volta do relógio, a novidade do álcool, do fumo e da sauna comunal, que significou o primeiro banho de sua vida.

Isso não era tudo o que ele fazia. Pootoo, o esquimó encarregado dos esquimós, designara-o para ajudá-lo nos hangares onde os pequenos aviões e a grande motoniveladora eram guardados.

 

                                         O rompimento do gelo

— Trabalhar para os outros! Empregados! — Papik tentava fazer comicidade enquanto Vivi o levava para casa. Ele andava mancando, com sua perna engessada, apoiando-se numa bengala.

—        Não há caça — disse Vivi. — O mar está todo em pedaços. Não podemos viajar antes que ele se congele de novo. E não teremos como fazê-lo antes que Indalerak diga que sua perna está bem.

A seguinte providência de Papik foi derrubar a pequena casa da família, construída sem as vantagens de suas diretrizes, e começar a reconstruí-la adequadamente. Entretanto, queixava-se de que seu filho não estava lá para ajudá-lo, como um filho deveria fazer e um pai gostaria que o fizesse.

Alguém está trabalhando — explicou Ernenek quando apareceu. — Pootoo está dizendo que no fim do verão poderemos arranjar uma espingarda. Então, poderemos matar uma porção de ursos.

Não é impossível que você precise de balas quando tiver sua espingarda — disse Papik.

Alguém vai trocar peles por balas.

Você precisará de peles para fazer roupas.

Alguém matará mais ursos e comprará um casaco de nylon.

E morrerá congelado dentro dele Papik tentava não ser desdenhoso com a alma de seu pai que morava dentro de seu filho.

Um menino tolo vai pegar ainda mais ursos e comprar um fogão para ficar aquecido disse Ernenek.

Então você precisará de mais peles para comprar combustível.

—        É fácil, com uma espingarda.

Papik torceu o nariz.

—        Na maioria das regiões próximas de entrepostos comerciais e da polícia, os homens brancos tomam sua espingarda se você mata mais de dois ursos por ano, ou mais que algumas focas. Enquanto eles matam mais focas do que qualquer um poderia contar, sem se preocupar em devolver os ossos a Sedna.

—        Deve haver um motivo.

—        Sempre há. É o motivo é que eles são loucos. Tão loucos que acreditam que só eles têm razão. Mas não devemos acreditar no que eles acreditam. Temos apenas de ficar longe deles. Perdoe um tolo pai por dizer-lhe o que ele sabe.

Ernenek sorriu timidamente.

—        Perdoe um filho tolo que gostaria de algum dia caçar ursos com uma espingarda e arranjar uma máquina grande para dar um passeio.

Os regulamentos da Companhia proibiam os esquimós em Branca de Neve de possuírem armas de fogo. Primeiro, havia o perigo de que algum deles que tivesse bebido cerveja demais fosse tomado da excitação dos Homens e começasse a atirar em todos que visse somente pela graça do barulho. O outro motivo era que aquele que tivesse uma espingarda certamente perderia o interesse pelo trabalho e seguiria a atração da caçada.

De fato, nenhum esquimó em Branca de Neve tinha uma espingarda. Todos os que lá trabalhavam queriam comprar uma. Mas não podiam fazê-lo antes que o chefe da pagadoria declarasse encerrada a estacão de trabalho.

Waloonga, um mestiço que controlava o armazém da Companhia, tinha uma bela espingarda em exposição, como uma tentação.

Parecia importante para a Companhia que os projetos elaborados para o verão fosse executados a tempo. Tinham de ser instaladas certas máquinas e devia ser construído um cais, de modo que no ano seguinte os navios pudessem descarregar as mercadorias diretamente em terra, sem ter de transferi-las para pequenos barcos, como ocorria até então.

E pouco depois que a crosta do mar começou a rachar-se, um navio da Companhia veio rompendo através do gelo flutuante com sua proa de aço e descarregou um monte de mercadorias, materiais e utensílios em lanchas que os trouxe­ram para a praia. O navio desembarcou também um grupo de homens brancos que eram pagos para trabalhar doze duras horas por dia, sete dias por semana, para arrancar o máximo do curto verão.

Enquanto o navio permaneceu fundeado ao largo, havia no ar o cheiro de algas, óleo combustível e alcatrão. Branca de Neve tornou-se plena de atividade e cheia de barulho, e havia também mais movimento na enfermaria. Muitos operários machucavam os polegares ou deixavam cair pesos nos dedos dos pés. Ou saíam pancadarias no LUGAR ONDE A GENTE FICA SEM DINHEIRO e, de vez em quando, havia também brincadeiras com facas.

Era uma época excitante.

Era também o período em que o Dr. Hendrik mais precisava de sua enfermeira e mal podia contar com ela, pois Igah preferia saracotear com operários brancos, que estavam fortes e sadios, a assistir os que se achavam doentes ou machucados. Ela ficava à espera deles após o trabalho e ia tomar cerveja com eles ou ver como eram seus alojamentos por dentro. Igah não era bonita nem jovem, e só era agradável quando tomava bastante cerveja ou xarope para tosse, mas estava disponível, e isso era tudo o que os homens pergunta­vam, quer fossem brancos ou Homens verdadeiros. E o Dr. Hendrik recorria cada vez mais a Ootuniah, em quem sempre podia confiar.

Os sentimentos negativos de Papik contra os estrangeiros atingiram uma nova exacerbação. Eles o ignoravam, nenhum deles procurava seus conselhos, que ele ficaria encantado em dar. Aqueles selvagens pareciam de fato mais interessados em Vivi do que nele.

Algumas mulheres recebem permissão para rir com os homens brancos uma vez ela lhe disse com um acanhado sorriso.

Neste acampamento há pelo menos uma mulher que não tem essa permissão disse Papik franzindo a testa.

Os homens brancos podem ser simpáticos. Eles dão presentes às mulheres e às vezes dão dinheiro a seus maridos disse Vivi numa tentativa.

Um tolo marido pode conseguir-lhe tudo o que você quer exagerou Papik. E você é inteligente se se lembra disso.

Decerto Vivi abaixou os olhos. Alguém apenas achou que você deveria saber.

E Ootuniah? Você a avisou?

Ela nunca tinha sorrido para nenhum homem antes. Uma mãe estava começando a preocupar-se. Mas agora ela sorri para Indalerak, o feiticeiro branco, e para ninguém mais.

Um homem notou isso no LUGAR ONDE A GEN­TE SE DESPE. E ele espera que você lhe tenha dado todas as instruções vitais.

Ootuniah sabe que ela não pode rir com homens, nem olhar para a lua, antes que arranje um marido que queira tomar conta de uma criança.

Por que ela deve sorrir para um estrangeiro, com tanta gente por aí? disse Papik furioso. Eles têm doenças repulsivas e levam vidas loucas, em terras que não servem para homem algum.

Ootuniah sabe disso tudo. Mas quem pode comandar o coração?

Vivi cutucou o estômago dele e franziu os lábios:

—        Em sua juventude, uma tola mulher teve simpatia por um jovem urso do gelo do norte. Os pais dela continuaram a dizer-lhe que ela não iria querer viver lá. Mas agora ela não desejaria morrer em qualquer outra parte.

Papik recebeu a declaração com um grunhido e agarrou seu equipamento de pesca.

Umas poucas tinas de gelo ficavam bloqueadas no extremo da praia até que a pressão de outras que chegavam levava as de fora novamente para o mar. Papik foi pescar numa das tinas de gelo mais ao largo, esperando que as correntes não o levassem de repente. Mas ele estava disposto a arriscar-se para obter uma comida decente.

Empregou toda sua habilidade de pescador e sua expe­riência. Como isca, jogou migalhas de pão na água. Fez bolhas na superfície para atrair a curiosidade dos peixes. Manteve-se imóvel, com as costas voltadas para o céu, ignorando as cãibras em sua coxa ferida. E uma vez conseguiu fisgar um bacalhau de bom tamanho.

Mas, depois que o navio da Companhia despejou óleo nas águas puras, a única coisa que ele pescou foi um filhote de tubarão comida para cachorro. E ainda comeu um pouco dele, e não os pedaços mais saborosos, como as bochechas e os olhos, antes de dar o resto à matilha.

Então, um golpe de sorte lhe permitiu ser colocado na folha de pagamento da Companhia sem ter de submeter-se à indignidade de trabalhar efetivamente. Depois que alguém fugiu com a espingarda em exposição no armazém e também as latas de manteiga passaram a desaparecer das prateleiras, pediram a Papik que ficasse como vigia enquanto Waloonga descansava, tornando-se, assim, o último membro da família a ser proveitosamente empregado. E sem perder a face.

O chefe da pagadoria rabiscava pequenos algarismos num grande quadro-negro, mostrando quanto a Companhia devia aos operários e quanto eles deviam ao armazém, o qual pertencia à Companhia. No fim da estação, cada trabalhador saberia quanto dinheiro lhe era devido, se era algum. E se dava para comprar uma espingarda.

Papik não aceitou aquele emprego para conseguir uma espingarda, mas porque Waloonga o convencera de que, se ele pegasse em flagrante o criminoso que tinha assaltado o armazém, ele estava não só autorizado a matá-lo na hora, mas fazendo isso ele ganharia também a estima dos espíritos brancos, os quais, ao contrário dos espíritos dos Homens, consideravam pecado a apropriação das coisas de outras pessoas. Assim, os instintos de caçador de Papik foram reanimados, dispondo-o a afiar as pontas de suas flechas e a ajustar seu arco, antes de ajeitar um beliche nas proximidades das latas de manteiga.

Contudo, o corpo de Papik estava acostumado a cair no sono quando não havia nada de realmente importante para fazer, com o resultado de que mais manteiga desapareceu enquanto ele estava de serviço de guarda, causando-lhe considerável perda de prestígio e induzindo-o a tentar com mais afinco para recuperá-lo.

Finalmente, depois de muito tempo, seus esforços foram recompensados, mas ele estava definitivamente atravessando um período de má sorte, pois o único pecador que viu revelou-se ser seu próprio filho, Ernenek. Assim, nada havia que Papik pudesse fazer senão fechar novamente os olhos que tinha deixado cuidadosamente abertos e fingir que não tinha sido acordado.

O sol ficava de tora o tempo todo e o mesmo acontecia com os Homens, que não queriam dormir e perder uma parte do verão de curta vida, como os estrangeiros faziam sempre que seus relógios lhes diziam que era hora de estar cansado. E foi durante um dos períodos de descanso dos homens brancos que um grupo de esquimós que estava na praia, fumando cachimbo e discutindo sobre a situação do mundo, ficou em silêncio e embasbacado diante de um iceberg cintilante que vinha nave­gando.

Desde que a crosta congelada da costa se tinha deslocado para o sul com as correntes, o mar vinha sendo ornamentado com pedaços do gelo de todos os tamanhos e formas, desde fragmentos tão pequenos quanto um palmo até icebergs tão grandes quanto ilhas, que chegavam a dezenas de metros acima do nível do mar. Alguns se chocavam contra a praia antes de se amontoarem ali. Mas o iceberg que prendia a atenção dos homens era diferente de qualquer coisa que tivessem visto naquele verão.

Ele estava povoado de ursos polares, em quantidade maior do que podia ser contada por um homem até o fim.

Os ursos ignoravam Branca de Neve. Valsavam sem maiores cuidados naquele mundo, sobre as encostas azuis e brancas de suas ilhas flutuantes, mergulhavam para pescar em águas escuras, tomavam gostosos banhos junto das margens ou descansavam de sua labuta, secando ao sol os pedacinhos de gelo que ficavam pendurados em suas barrigas peludas.

A visão de um inteiro clã de ursos divertindo-se num cruzeiro de verão inflamou os Homens com uma instantânea febre de caçar e transformou o acampamento num tumulto.

Ignorando as ordens de Pootoo no sentido de não se mexerem, os esquimós correram em busca de suas armas. Os primeiros que voltaram com as lanças e arcos tentaram pôr para flutuar as duas lanchas do navio que estavam na praia. Membros da tripulação, alertados por Pootoo, vieram correndo para detê-los, começando uma luta de sopapos.

Outros esquimós, dando-se conta de que não poderiam usar as lanchas, foram diretamente para as tinas de gelo bloqueadas na extremidade da praia.

Nessa conjuntura, o chefe da pagadoria emergiu de sua cabana, sonolento e alarmado. Vestindo o casaco de pele sobre suas roupas de baixo, gritou para Pootoo que lembrasse os homens de que eles não poderiam partir antes que seus contratos expirassem. Mas, embora Pootoo repetisse o aviso alto e claro na língua verdadeira, ninguém parecia ouvi-lo.

No decurso do verão, o chefe da pagadoria descobrira que todos os esquimós tinham grande respeito por Papik, ainda que ele não visse nenhuma razão para isso. E ele estava convencido de que um homem que tinha toda a família na folha de pagamento poderia servir para influenciar seus irmãos em nome da Companhia.

Assim saiu a galope em direção à casa de Papik, rebocando Pootoo com ele.

Papik estava deitado de costas depois de uma inútil sessão de pescaria e meditando sobre que pecados a família tinha cometido para merecer aquele rol de infortúnios. Ninguém era punido sem razão. Não seria provável que Vivi tivesse guardado peixe e carne na mesma vasilha? Pecados eram a especialidade das mulheres. Ou que as crianças tivessem matado um caribu branco? Ou então, que os espíritos tivessem finalmente recorrido a sua sabedoria e houvessem decidido vingar-se da família porque Ootuniah ousara caçar focas em vez de ficar em casa? Mas era tão terrível contemplar essa possibilidade que ele a baniu de uma vez de seus pensamentos. Tão logo o mar se congelasse, reabrindo a estação das viagens, eles novamente consultariam Ivaloo, cuja reputação como feiticeira, segundo se dizia, aumentava não menos que sua prole.

Indiferente e abatido, Papik não prestava atenção alguma à confusão do lado de fora. Mas quando viu Pootoo cambalear com AQUELE QUE PAGA e o ouviu balbuciando excitado algo sobre homens e ursos, seus olhos brilharam. Saltou, pondo-se de pé, pegou as peles e a lança e saiu coxeando.

Viu o iceberg cheio de ursos. Viu os Homens e os cães avançando para as tinas de gelo retidas na extremidade da praia e viu Ootuniah sair correndo da enfermaria em direção à casa para apanhar apetrechos de caça e roupas.

Quanto a Ernenek, agarrara-se a Waloonga e lhe implo­rava que lhe fornecesse uma espingarda sem esperar o fim da estação de trabalho. O menino não poderia ter escolhido um momento pior. O excitado chefe da pagadoria, ajudado por Waloonga e Pootoo, segurou-o, sacudiu-o e recusou-se a deixá-lo sair, sem perder tempo com explicações.

Saltando de tina em tina, os dois maridos de Kio, Kutsikitsok e Nualik, foram os primeiros a chegar à camada de gelo mais afastada da praia e tentavam separá-la de suas vizinhas usando os pés e as lanças. A camada roçava nas outras, possibilitando que mais homens subissem nela antes que flutuasse livremente.

Mancando com a perna engessada e agitando-se com o apoio da lança, Papik foi o último dos cinco que lá chegaram.

 

                                        Surpreendidos pela noite

Com a chegada da escuridão, o gelo se tornava mais uma vez o território dos Homens. Branca de Neve ficou gelada e silencio­sa. Os pássaros marinhos e os aviões tinham voado para o sul. A pista de aterrissagem estava abandonada. As máquinas hibernavam, exceto a que produzia energia elétrica. E quase todos os homens brancos tinham voltado para além das árvores.

Para trás ficaram somente o chefe da pagadoria, como encarregado das instalações da Companhia, e o feiticeiro Indalerak ou Dr. Hendrik.

Ninguém sabia por que o médico tinha ficado. Ele tinha pouco que fazer. Os raros casos que lhe exigiam atenção eram queimaduras nas coxas e nádegas nativas, e somente no princípio do inverno. Os Homens que pescavam nos buracos no gelo. no penetrante frio da noite, cobriam-se com um cobertor de caribu, para aquecer e para fazer os peixes acreditarem que a luz do dia tinha voltado e era hora de eles subirem e serem pescados, para tanto usando uma lâmpada que ardia sob o cobertor Normalmente, os Homens ficavam na mesma posição até que pegassem um peixe ou que suas roupas pegassem fogo. Mas como o inverno avançava, a camada de gelo ficou espessa demais para poder ser lurada por alguém a não ser focas e morsas, não permitindo aos Homens qualquer pescaria.

E assim o Dr. Hendrik não tinha mais nem queimaduras para tratar.

Quase não havia animais por perto. Os ursos que ocasionalmente perambulavam no gelo eram tão difíceis de ser espionados quanto as raposas que traíam sua presença sobretu­do pelos seus curtos e regulares latidos que cortavam o silêncio da noite. E aparentemente as focas continuavam evitando aquelas águas, depois que o navio da Companhia havia despejado mais óleo, uma vez que, por mais que se procuras­sem, não se achavam buracos de respiração.

Culminando todos os infortúnios, Waloonga tinha acaba­do com a cerveja, pois o consumo durante o verão tinha excedido as expectativas. A maioria dos poucos esquimós remanescentes partiu de Branca de Neve, abandonando tanto os seus salários como as suas dívidas.

Mas enquanto alguns iam embora, outros chegavam naquela estação de viagens em trenós, com cães de carga, ou a pé, com uma mulher ou alguns companheiros, tendo as costas curvadas sob o peso de fardos seguros por correias passadas pela testa querendo trocar peles por armas e fumo e talvez algo para beber.

Os esquimós não constituíam a única raça dotada de criatividade. Os homens brancos, havia muito tempo, tinham revelado ao encarregado do armazém que existiam infinitas maneiras de fazer bebidas fermentadas tóxicas se surgisse a necessidade. E como o tabu da Companhia contra bebida alcoólica forte não se aplicava fora da estação de trabalho, Waloonga ressuscitou a receita de sua memória, pegou farinha de batata, frutas secas, açúcar e fermento em suas prateleiras, e pôs tudo para fermentar em vasilhas nas quais tinha havido querosene e adicionou o próprio sabor delicado delas à mistura.

Foi um grande sucesso.

Waloonga foi o primeiro a ficar bêbedo com aquilo, para assegurar-se de que a coisa estava bem feita. O próximo foi um viajante que acabara de chegar de longe. Ele bebeu a mistura com tal entusiasmo que caiu ao lado de seu trenó e foi devorado pela matilha sem sequer levantar-se.

Seu infortúnio fez a fortuna de outros dois Homens, que partiram de Branca de Neve com a mulher e os cães da vítima.

Os esquimós ficaram sabendo que AQUELE QUE PAGA não era o dono da Companhia, mas simplesmente outro funcionário branco, e que seus chefes abaixo da linha das árvores — que nunca se aventuravam naquelas paragens do extremo norte e eram funcionários de outras pessoas — queriam continuar o trabalho sem a colaboração nativa na estação seguinte, uma vez que nenhum dos projetos calculados para estarem executados no verão passado tinha sido concluído e alguém tinha de ser culpado pelo fracasso geral. Assim, o chefe da pagadoria pôs a culpa nos operários esquimós, porque desertavam ou se mostravam indignos de confiança.

Os Homens riram afavelmente quando Pootoo lhes contou isso, o que justamente mostrava o grau de ignorância dos estrangeiros. Qualquer um com um pouco de bom senso se sentiria feliz e orgulhoso por ter um esquimó para ajudá-lo.

Para ficarem perto do Centro da Companhia, os poucos que permaneceram viviam numa casa comunal que construí­ram com terra e pedras antes que a superfície do terreno se congelasse, em vez de se mudarem para o gelo do mar para passar o inverno. Eles se sentiam aconchegados e abrigados entre os cheiros misturados de óleo queimado, couro secando, urina, filhotes de animais, pele humana e carnes deterioradas.

Mas tudo aquilo não representava conforto para Vivi.

Quando ela acordava de seus prolongados sonos, sentia-se perdida, achando-se entre estranhos e, mais que tudo, despojada de sua família. Assim, inclinava-se cada vez mais por Kio, que se sentia obrigada a estar duas vezes mais triste que Vivi, uma vez que não lhe faltava apenas um, mas dois maridos, que tinham partido com Papik. Para não falar de seu filho já crescido que deixara Branca de Neve mais cedo, à procura de caça, e não tinha sido mais visto.

Os homens orbitavam em torno das duas gordas viúvas desde que seus maridos tinham partido. Mas Vivi e Kio avisaram cada pretendente que esperasse o retorno dos maridos se desejasse um riso rápido ou até que houvesse prova definitiva de suas mortes se o assunto era casamento. Elas diziam aquilo sobretudo por uma questão de delicadeza. Ambas estavam confiantes na volta de seus maridos.

Agora havia pouco que fazer ONDE AS CARNES SÃO QUEIMADAS, poucas roupas a reparar com as crianças levando uma vida sedentária, e as duas senhoras passavam o tempo entre dormir, fumar cachimbo, jogar cartas e beber a mistura — atividades que Vivi aprendera a apreciar com sua amiga mais experiente. Kio não tinha dinheiro algum, pois seus maridos e seu filho a haviam mantido ocupada demais em coser e mastigar para que pudessem trabalhar na Companhia, mas Vivi atendia todas as necessidades dela, e estava orgulhosa por fazê-lo.

Como sua família tinha salários atrasados por receber, Waloonga a deixava pegar toda a mistura, fumo, alimento seco ou enlatado que ela pedia, debitando na conta da família e então acertando com o chefe da pagadoria.

As duas mulheres eram hábeis para fumar cachimbo, mas tinham de inventar novas regras para o jogo de cartas todo o tempo, pois ninguém se lembrava das regras originais. Além disso, cada alteração nas regras aumentava o interesse pelo jogo. Entrementes, elas comparavam seus destinos e contavam seus tormentos.

—        Os homens se foram de repente demais, sem cães e equipamentos suficientes Vivi se inquietava. Especialmente a falta de amuletos poderia ser desastrosa.

E Kio:

—        E nem mesmo uma lâmpada, nem material para coser, nem uma mulher para lhes aquecer os pés ou reparar suas roupas ou botas, que agora devem estar cheias de rombos. Se eles escorregam e metem um braço ou uma perna na água é o fim.

—        Os ossos do marido de alguém ainda não estavam bem.

Vivi não ousava pronunciar o nome de Papik, embora estivese convencida de que ele devia estar vivo. Por ora, ela preferia jogar com a certeza.

Kio sentia-se da mesma forma, nunca mencionando os nomes de Nualik e Kutsikitsok.

Os maridos de uma mulher estão ficando velhos — dizia ela simplesmente.

O marido de alguém está ficando muito mais velho — respondia Vivi para encorajá-la. — Além de estar coxo.

Não, não! Os maridos de uma mulher são mais velhos. E trôpegos. Mas, por favor, não diga a ninguém.

E então se seguiam intermináveis sessões de cachimbo e jogo de cartas, até que a mistura de Waloonga as fazia esquecer seus queridos ausentes e as punha a dormir, com as bochechas descansando sobre as cartas espalhadas.

Ootuniah estava ficando cada vez mais nervosa. Às vezes se achava tão irritada quando estava em casa que sua mãe desejava vê-la de volta ao LUGAR ONDE A GENTE SE DESPE. Mas então seu humor poderia mudar com a rapidez do tempo ártico, como da vez em que confidenciou a sua mãe, sorrindo como o sol nascente:

—        Não é impossível que uma moça gostasse de ter um filho.

Vivi olhou fixamente para ela.

—        Antes você pensava que as crianças só eram sujas e uma completa chateação.

E não são?

Claro. Olhe para você mesma.

Tudo acabou com uma gargalhada e um abraço.

Ootuniah achava sua vida na enfermaria perturbadora e interessante ao mesmo tempo. Era interessante, sobretudo, porque era perturbadora. O Dr. Hendrik lhe pedira que substituísse Igah permanentemente, pois a enfermeira se tinha evaporado de Branca de Neve, provavelmente num trenó de partida.

Ootuniah não só aprendia a tratar de polegares feridos como a falar a língua do Dr. Hendrik, enquanto lhe ensinava a sua própria. Ela estava aprendendo, também, sem a ajuda de ninguém, a olhar cada vez menos como um rapaz e cada vez mais como uma moça. Deixou seus longos e finos cabelos caírem sobre os ombros, como um homem fazia, mas agora os penteava com cuidado, como uma mulher.

Era a primeira vez em sua vida que ela se preocupava com sua aparência, e ainda não sabia o que fazer com a imagem ligeiramente vesga que via ao mirar-se no espelho. Ela era realmente tão encantadora quanto dizia o Dr. Hendrik enquanto tateava seu narizinho achatado ou seguia o traçado de seus lábios levemente protuberantes com seu dedo macio? Não era impossível, mesmo que ninguém lhe tivesse dito isso. Seu povo nunca exaltava a aparência de uma moça na sua frente, de modo a não constrangê-la.

Ela estava intrigada e também assustada pela excitação que a proximidade ou simplesmente a lembrança do Dr. Hendrik lhe causava. Não era uma excitação sexual. Pelo menos assim pensava ela, pois o sexo tem poucos mistérios para quem cresce na intimidade dos iglus.

O que a perturbava e desconcertava era o tumulto em seu coração.

 

                                   Uma história de amor

Antes que a noite levasse os peixes para as profundezas, uma vez Ootuniah levou o Dr. Hendrik para pescar no gelo do mar. Ela já o tinha feito raspar sua barba para passar o inverno, com receio de que ela acumulasse gelo que poderia congelar-lhe o rosto, avisando-o de que a deixasse crescer novamente no verão para espantar os mosquitos.

Era a primeira vez que o Dr. Hendrik a via em seu ambiente, agachada tão imóvel quanto um homem de neve sobre o buraco que ela abriu no gelo. Depois que ela manifestou sua desaprovação porque ousou mexer-se, ele permaneceu estoicamente imóvel, até que ela mergulhou sua lança de três dentes na água e rapidamente a levantou, carregada com um salmão preto que mal teve tempo de ofegar antes de congelar-se em silêncio. Ele observou como ela sugou com deleite um olho de sua cavidade, mas recusou com agradecimentos o convite que ela lhe fez para sugar o outro olho.

Depois daquela sessão de pescaria, o Dr. Hendrik teve de esperar por várias voltas do relógio antes que soubesse que não devia deixar de fora o seu nariz, severamente afetado pela baixa temperatura, apesar da gordura com que Ootuniah o havia protegido. Daí em diante, ele preferiu aprender mais sobre a vida dela quando estivessem dentro de casa.

—        Por favor, nunca me pergunte o que fazemos nos nossos iglus — disse-lhe Ootuniah uma vez com um de seus acanhados e fugazes sorrisos.

—        Por quê?

—        Há muitas coisas da sua vida que uma moça tola não gosta ou não pode compreender. Como você poderia com­preender a nossa?

Criada dentro de um grupo pequeno e restrito, ela possuía a curiosidade e a desconfiança de um urso. Mas aquele homem branco, embora fosse um poderoso feiticeiro, parecia tão compreensivo e desejoso de agradá-la que ela se sentia lisonjeada e comovida e, com ele, saía de sua concha muito mais do que o fazia com sua própria família. As esquisitices que a amedrontavam também a atraíam. As mãos dele eram pálidas e macias, como as de um bebê. Coisa cômica num homem feito. Nenhuma cicatriz, nenhum calo, nenhuma fenda, nenhuma unha quebrada. Só frieiras. Ela preferia não pensar o que a haste de um arpão faria com aquelas mãos se alguma vez ele tivesse de arrastar uma foca, enfrentar sozinho uma morsa, lutando embaixo da água. Outra peculiaridade que a fascinava e lhe repugnava ao mesmo tempo eram os cabelos que ela via nos braços dele e que supunha se espalharem por todo o corpo, como no diabo. A despeito de tudo, e embora ele não fosse um grande caçador, excitava-a fortemente. Ela recuava quando sua mão a tocava.

E já não podia passar muito tempo sem vê-lo e muito menos sem tê-lo em seus pensamentos.

Antes que o último avião partisse, o Dr. Hendrik lhe tinha perguntado se ela iria embora com ele. Ootuniah ficou perplexa. Ele deveria saber que ela precisava do consentimento de seu pai.

—        Eu não deveria dizer isto observou o Dr. Hendrik naquela ocasião. Mas duvido de que seu pai volte.

Ela fitou-o com seus olhos azuis como as geleiras.

—        Não é impossível que você esteja enganado, Indalerak.

—        Assim espero.

E assim era por enquanto. Mas no coração da noite, quando nem um nariz achatado e bem besuntado poderia suportar o frio cortante, Ootuniah compreendia onde se operava a mudança por que ela passava.

Se ele tiver frio ou ficar sem comida, sempre poderá construir um abrigo e entrar em hibernação disse ela abruptamente enquanto eles passavam o tempo no LUGAR ONDE A GENTE SE DESPE.

Quem?

Meu pai.

Seres humanos não hibernam, Ootuniah! Só uns poucos animais fazem isso. Como os ursos.

Ootuniah colocou a mão no braço do Dr. Hendrik e sorriu em direção a seu rosto cômico.

Perdoe uma moça tola por contradizer um sábio velhote, mas você é tão ignorante... No gelo, os ursos são os únicos animais que não hibernam. Os Homens, sim.

Como?

Quando não temos provisões suficientes para todo o inverno; todos paramos de comer e deixamos nossos corpos esfriarem. É uma sensação estranha mas também deliciosa. Devagar, quando eles se esfriam bastante, nossos corpos entram no sono. Às vezes acordamos no meio da noite de inverno, tremendo. É um alarme de que o corpo já consumiu tanta gordura e carne que está a ponto de se congelar e morrer. Então, pomos um pouco de gordura e neve na boca para derreter e dormimos de novo. Quando a luz da primavera se levanta, nossas roupas estão largas. Se o sinal não funciona com o corpo, os outros acham um cadáver no iglu.

Você fez isso?

Muitas vezes. E sem nunca ter encontrado um cadáver ela sorriu.

Vocês não têm medo de dormir sem saber que acordarão?

Por quê? Mais cedo ou mais tarde todos nós vamos dormir sem acordar. É mais fácil no iglu do que do lado de fora.

Muita gente faz isso?

—        Toda a gente do gelo do norte. E muita gente da água também. A menos que tenham crianças pequenas. As crianças são estúpidas demais para acordarem antes que se congelem.

"Mas então — Ootuniah falava ao Dr. Hendrik de outra feita, seus pensamentos sempre voltando a seu pai — quase nunca acontece que num grupo todos morram.

Por quê?

Na água, um grupo inteiro poderia morrer ao mesmo tempo. No gelo, raramente acontece. Se um homem morre, os outros podem comê-lo e ficam aquecidos. E certamente meu pai não vai antes dos outros.

Você deve estar brincando!

O Dr. Hendrik olhou tão chocado de horror que fez Ootuniah rir.

Por quê? É melhor que todos morram ou que alguns vivam?

Não me diga que você já comeu carne humana!

Nunca comemos. Mas o pai de minha mãe comeu. Através dele, ela soube que o gosto de homem parece com o gosto de urso, mas é melhor.

Como o Dr. Hendrik ficasse calado, ela cutucou seu peito com o dedo e disse:

Agora você tem de fazer uma pergunta.

O quê?

Você acaba de saber que o gosto de homem é melhor que o de urso. Então você deveria perguntar se o gosto de mulher é melhor que o de homem.

Ele riu junto com ela, esperando, mas não acreditando, que tudo fosse uma grande brincadeira, e perguntou:

Ah, é? O gosto de mulher é melhor que o de homem?

Experimente.

Aquela foi a primeira vez em que ele a beijou. Os dentes dela, comedores de carne crua, se mostraram tão sedutora­mente na face radiante, que ainda não tinha perdido toda a cor de cobre do sol do verão, que ele a apertou em seus braços e deu um beijo no sorriso dela.

Ela hesitou durante algumas batidas aceleradas do cora­ção antes de jogar a cabeça para trás, deu-lhe um soco no meio dos olhos e cuspiu no seu rosto.

Como a moça bem-educada que era.

— Quantos existem lá? Os homens do gelo? Quem vive como você?

—        Quem sabe? Mais de um homem contou até o fim. Nós só sabemos os nomes.

—        Diga-me os nomes. Eu lhe direi o número. A princípio, ela gostou do jogo dele.

—        Há o Kanuk, o Nasak, o Ookalik, o Orpa, o Intedi. E o Nuga, o Odin, o Ippi, o Mekiana, o Igadaghik, o Simigak, o Uvdloriak e o Avatak. Há o Nualik e o Kutsikitsok, que por acaso estavam aqui no acampamento. E o Ekeluk, o Serkok, o Kiviyok, o Angutivdluarsuk e o Panik.

Ela continuou até esgotar os nomes e estava certa de que não tinha esquecido muitos.

São mais de oitenta homens — disse o Dr. Hendrik, que estava contando magicamente, sem recorrer ao dedos das mãos e dos pés. — Todos eles têm uma mulher?

Não. Alguns só têm meia mulher, como Nuaük e Kutsikitsok, que dividem Kio entre si.

Todos têm filhos?

Não. Mas alguns têm dois. Como nós.

—        Isso significa que vocês são mais de cem. É tudo o que resta dos Homens Polares?

Nós nunca fomos muitos mais. Nem muitos menos.

Como você sabe?

—        Todos sabem disso. No gelo que nunca se derrete, há muito pouca caça. Algumas focas e ursos. Só poucos homens podem viver desses animais.

—        Os outros morrem?

—        Ou vão para o sul e se transformam em gente da água, que têm a ver com o gelo só em três das quatro estações.

Mas Ootuniah não estava muito interessada em números.

—        Agora diga-me, Indalerak, para onde você me leva­ria? Para a terra das árvores, onde os homens definham e morrem?

O Dr. Hendrik não era capaz de responder. Ele sabia que o povo de Ootuniah não podia viver abaixo da linha das árvores; que pessoas de todas as raças iam a qualquer parte, mas que os verdadeiros Homens só podiam permanecer acima da linha das árvores, pois fora dali morriam. Tudo o que podia dizer naquela hora era que ele detestaria partir sem ela, e o espanto dela aumentou.

—        Uma tola moça também não quer deixá-lo — disse ela. — Mas você não pode viajar conosco. Você não serve para nada. E quando você cair num buraco e se afogar, uma moça ficará muito triste, muito triste...

O Dr. Hendrik refletia.

Você acha que eu poderia acostumar-me com o frio? E viver como vocês?

Alguns conseguem; outros, não. Quem pode dizer?

Você deve saber que para minha própria gente eu sou um nortista. De bem perto da linha das árvores.

Isto é muito ao sul!

Muito ao norte para nós. Nós caçamos caribu no verão. Mas no inverno ficamos a maior parte do tempo em casas aquecidas.

Você pode aprender a gostar do frio. Não há nada pior, mas também nada melhor. Ouça, Indalerak. No inverno nós temos fome de sol e ansiamos por toda a carne e a sensação que ele traz. Mas quando o ar fica quente e cheio de insetos e há água por toda parte, nós nos sentimos mal; e mal podemos esperar que o sol volte para casa e o mar se congele. Talvez o que o meu pai diz seja verdade.

O que diz ele?

Que os homens brancos continuam a viajar por terras estrangeiras porque estão à procura do melhor lugar para viver. Nós não precisamos disso; já encontramos o melhor lugar.

Ele pode estar com a razão.

Mas se os homens brancos não gostam do frio, por que todos vocês continuam a vir?

Realmente, poucos vêm. Alguns porque ganham mais. Outros, embora ganhem menos, porque querem ajudar. Quer dizer: entre nossos homens que vêm para o norte há alguns dos melhores e alguns dos piores. Compreende?

Não. Por que você veio?

Porque eu podia ganhar mais dinheiro aqui. Mas agora que eu a conheci, estaria mais disposto a ajudar do que a ganhar dinheiro.

—        Uma moça tola ainda não compreende. Quem você quer ajudar?

—        Você. E sua gente.

—        Uma moça gosta de você porque você a faz rir muito. Nós temos de ajudar você o tempo todo. Perdão, mas você não sabe nem caçar e pescar.

—        A vida não consiste só em comer!

É claro que não. Mas principalmente disse Ootuniah sobriamente.

É de onde vem a próxima refeição tudo o que vocês se perguntam?

—        O que mais deveríamos perguntar?

O Dr. Hendrik explodiu.

—        De onde todos nós viemos! Quem fez as estrelas. E por quê. Coisas assim.

Ootuniah fitou-o surpresa.

Mas nós sabemos tudo isso. Você não sabe?

Não. Realmente, não.

Você está brincando comigo, Indalerak!

Não, Ootuniah. Nós não temos certeza sobre uma única das coisas importantes.

E você fica aí sentado, sem tentar saber?

Nós tentamos saber.

Por que você não nos pergunta?

Bem, diga.

Ouça bem, Indalerak. Assim, você poderá ensinar a sua gente. Uma vez, quando o oceano congelado se quebrou e se abriu com um grande estrondo, o barulho criou o Corvo Preto. Como ele não sabia o que fazer de si mesmo, começou a fazer pequenos homens de gelo. Os homens, querendo ter alguém para xingar, fizeram mulheres de pequenos torrões. Como o Corvo não podia vê-los na noite de inverno, ele fez duas lâmpadas, o Pai Lua e a Mãe Lua, e os mandou viajar do leste para o oeste. A Mãe Lua logo ficou aborrecida escoltando seu marido e foi para o sul, para ver o que o Sol estava fazendo. Assim, o Corvo a cortou em pedacinhos. Daí é que vêm as estrelas. Você sorri! Você não acredita?

—        Por que não? Pelo menos faz tanto sentido quanto o que nossos próprios feiticeiros nos dizem.

Como os acidentes estivessem em inatividade, como tudo o mais, durante o inverno suas conversas eram raramente interrompidas. Mas daquela vez o foi. Por um grupo que carregava uma Vivi inconsciente e azul.

Ela tinha tentado enforcar-se.

Nada permitia prever seu gesto. Ela vinha fazendo seus poucos trabalhos e estava levando sua vida costumeira, com suas maneiras sorridentes e suaves, e continuou sorrindo durante sua tentativa de suicídio e depois dela.

Algumas pessoas na casa comunal estavam dormindo, mas outras se achavam no LUGAR ONDE A GENTE FICA SEM DINHEIRO, e quando duas dessas pessoas voltaram para casa, cambaleando em conseqüência da bebida, viram Vivi pendurada no teto, como um enorme morcego, com seus dedos do pé tocando o chão. Então, apressaram-se a acordar todo mundo e carregá-la para o LUGAR ONDE A GENTE SE DESPE, pois se ela morresse dentro da casa, ela teria de ser abandonada e uma nova teria de ser construída.

—        Dê-lhe sua respiração — ordenou o Dr. Hendrik a Ootuniah, ajuntando seus instrumentos secretos e preparando-se para fazer seus exorcismos.

Ele tinha ensinado a Ootuniah algumas de suas feitiçarias, como a transmissão de respiração a pessoas que tinham perdido o fôlego. Coisa misteriosa. Mas Ootuniah não tinha medo de coisa alguma se aquilo pudesse trazer sua mãe de volta à vida. Assim, ela apertou o nariz de Vivi para evitar que o fantasma escapasse se ainda estivesse dentro dela, pôs os seus lábios contra os de sua mãe e deu tudo o que tinha, enquanto o Dr. Hendrik injetava um de seus fluidos mágicos na veia de Vivi.

Depois de muito tempo, Vivi tossiu levemente e abriu os olhos, e Ootuniah se atirou abraçando seu pescoço, fungou e esfregou os narizes, e deixou o rosto de sua mãe banhado de lágrimas. Diante disso, Vivi olhou zangada para ela e a empurrou, ordenando:

—        Não chore!

—        Primeiro, diga-me por que você fez isto, minha querida! disse Ootuniah.

—        Quando você parar de chorar, querida!

Ootuniah parou e Vivi falou.

Uma mulher não tem motivos para viver. O pai continua a aparecer em seus sonhos. Ele deve estar morto.

Ele costumava aparecer em seus sonhos também antes de ir embora.

Mas agora é doloroso quando ele aparece.

Porque você sente falta dele, querida disse Ootu­niah.

Há muito tempo que o gelo está transitável. Então, por que ele não volta?

Ele voltará. Ele não é o tipo que pode ser comido por algum urso estúpido ou que pode ser engolido por um buraco. Você sabe disso.

Mas o que você não sabe, querida, é que às vezes uma mãe deseja que ele não possa voltar.

Isto é impossível! exclamou Ootuniah. Por quê?

Que dirá ele se nos encontrar tão mudados? Quando você vem para casa, está com cheiro de sabão e água, e pior. Ernenek cheira a fumo e aguardente, quando acontece de vir para casa. Como acontece com uma tola mãe. E ela descobriu que seu filho vai à sauna, sem ela saber! E ele sempre se aborrece ao dar-lhe respostas, exceto para dizer que ela não sabe nada.

Uma moça vai dar-lhe tanta pancada na boca que ela vai gritar de dor cada vez que se abrir!

Vivi sorriu languidamente.

Você sabe que não pode bater nele. Ele tem o nome do seu avô. O pai não faria isso, se voltasse um dia.

Ele de voltar! disse Ootuniah duas vezes, com muito vigor e batendo o pé.

Como se não acreditasse nisso.


 

                                             Onde estão os ursos

Dos cinco homens que partiram no encalço do iceberg dos ursos, apenas dois regressaram a Branca de Neve.

Navegar num bloco de gelo flutuante perseguindo ursos não é coisa isenta de riscos. Uma tempestade pode fazer o bloco tombar, afogando todos os que estiverem a bordo. Ou a Rainha Sedna, que é generosa, tanto que fornece o peixe, também pode ser malvada, como qualquer mulher velha, e pode desviar o bloco de gelo para as águas tépidas do sul, dissolvendo-o, em vez de deixá-lo seguir as correntes circulares do norte.

Dotados de conhecimentos que ultrapassam os dos ho­mens, os ursos fogem de um bloco de gelo quando este se torna inseguro, e nadam para a costa ou para um icerberg melhor, fazendo babau para seus perseguidores, com o polegar no nariz. Porém, o que o verdadeiro Homem não arriscaria de bom grado ao aventurar-se em lugares perigosos para uma caçada aos ursos, afinal de contas a maior sensação da vida?

Para sobreviver durante as primeiras voltas do sol, os cinco homens tiveram de comer um de seus cães, os quais, aliás, eram todos de qualidade inferior. Os melhores estavam ocupados em outra parte na hora da partida. Noonah, por exemplo, estava lutando com vários rivais pelos favores de uma cadela no cio.

As águas que circundavam o bloco de gelo estavam agitadas com hipoglossos e bacalhaus, mas o alto-mar se aproximava, e quando dois homens tentavam, com a lança, pegar alguma coisa para comer, deitados de bruços, as águas do mar varreram o bloco de gelo, forçando-os a permanecer no centro.

O bloco de gelo se deslocava mais rápido do que o iceberg dos ursos e, até certo ponto, seu rumo podia ser controlado, em função da posição em que os homens se colocavam para receber o vento. No momento em que fizeram a abordagem do iceberg, os homens e os cães se achavam tão famintos que o cheiro daqueles ursos os fez ficar com água na boca. Porém, os ursos estavam saturados de peixe e pouco dispostos a lutar. Os homens e os cães acossaram os ursos, tentando imergi-los, mas continuaram escorregando, até que fizeram uma pausa, com a língua de fora.

Os homens tinham guardado um pedaço da carne do cachorro abatido. Ataram-no bem firme a um pedaço espirala­do de osso de baleia arrancado de uma de suas armas e o lançaram aos ursos. Alguns destes farejaram a isca até que um deles premiou os caçadores, engolindo-a. Quando o primeiro filete de sangue apareceu no urso, os homens retomaram o assalto, mas o sol ainda deu duas voltas até que a presa estivesse bastante fraca para que eles pudessem correr mais que ela.

Depois que o urso foi morto e esquartejado, Nualik, um dos maridos de Kio, guerreiro por natureza, tentou estragar o apetite de todos mostrando que a tempestade piorava e ameaçava afastar o iceberg das correntes circulares.

Mas Papik cortou-lhe a palavra.

Primeiro, coma; depois, preocupe-se — arreganhou um sorriso com a boca cheia de fígado, e todos concordaram, comendo tanto quanto podiam e adiando as preocupações. E nenhum esqueceu a tradicional etiqueta ao dividir as partes do urso com as mesuras de praxe.

Todos esqueceram de preocupar-se e até ignoraram a ventania cortante depois que se abasteceram até que estives­sem prontos para evacuar. Alguns o fizeram. Só Amainalik dormiu tão profundamente que rolou pela beira do iceberg e caiu no mar. Acordou todos os outros com seus gritos de socorro enquanto lutava contra as ondas, mas tudo o que seus companheiros puderam fazer foi acenar-lhe com as mãos, dando-lhe adeus.

Todos aqueles que vêem um homem afogar são colocados diante de um dilema. Se o salvam, entram em antagonismo com a Rainha do Mar, que tem direitos sobre suas vítimas. Por sorte, o rumo do iceberg não podia ser alterado, de modo que os quatro caçadores foram dispensados da embaraçosa esco­lha. E tiveram sorte duplamente, pois se afastavam com tanta velocidade que provavelmente já não estavam ao alcance da sombra do homem morto.

Embora tenha havido alguma discussão sobre a velocida­de com que uma alma poderia nadar num oceano tempestuoso.

Antes que o sol passasse a dar voltas completas acima do horizonte, os quatro não tinham tempo para se preocupar com o morto. A presença dos homens tornou os ursos nervosos demais para pescar, e quando eles ficaram com fome, vence­ram sua natural timidez diante dos homens e começaram a fazer um cerco em torno deles. Alguns ursos formaram um círculo em volta dos quatro, outros simplesmente sentaram para observá-los maliciosamente, com os olhos injetados de sangue, soltando um bafo de peixe nas caras deles.

Os cães, normalmente medrosos de se aproximarem de ursos, estavam saciados com as sobras do urso morto e fingiram estar ocupados em outra parte, provando que tinha sido um erro deixá-los comer.

Brandindo as lanças, os homens tomaram a posição defensiva que tinham aprendido com o boi almiscarado, e dispuseram-se numa formação como um trevo de quatro folhas. É claro, os bois almiscarados tinham razão. Mas, entre os Homens, sempre havia um que queria sobressair entre seus pares. Papik tratou de refrear esse impulso. Mas Kutsikitsok, o outro marido de Kio, que era o mais velho e deveria ser o mais sabido, decidiu de vez provar sua virilidade, talvez porque a estivesse perdendo. Urrando, ele rompeu a formação. Mas o animal que ele visava desviou-se da lança e derrubou o caçador, que foi imediatamente golpeado na virilha por outro sitiante, preso nas garras por um terceiro e arrastado pelo quarto para um lugar mais tranqüilo.

Para grande alívio dos três caçadores remanescentes, todo o grupo de ursos se retirou para a parte mais alta do iceberg, para fazer em paz o festim com Kutsikitsok, enquanto conti­nuavam a vigiar seus companheiros. Os homens resolveram irritar os animais, e trocavam lembranças de caçadas mais bem sucedidas, falando em altas vozes para fazer com que as feras se sentissem inferiorizadas. Mas os ursos fingiam não ouvi-los.

Quando o iceberg se chocou com estrondo contra uma faixa costeira de gelo flutuante, os caçadores rapidamente se transferiram para lá, deixando os ursos em seu cruzeiro de verão.

Com os melhores votos.

Se fugir de uma família rebarbativa tinha sido fácil, o caminho de volta foi muito menos fácil. O trio sobrevivente Papik, Nualik e um tal de Kigutikak não encontrou nem focas nem madeira flutuante ao longo da costa. Apenas avistaram um pedaço de morsa fora de alcance sem um barco. Caminhando por terra com os poucos cães, capturaram algumas raposas, bois almiscarados e um pequeno veado.

Sob o sol contínuo, os homens transpiravam abundantemente. O solo acidentado, umedecido pela neve derretida, parecia transpirar também. Entre a vegetação anã e os seixos polidos pelo vento, uma infinidade de pequenos lagos, lagoas e poças, e riachos tão tortuosos como cérebros de carcaju. O tecido musgoso de muitas tonalidades desde o cremoso líquen de caribu até os musgos marrons de turfa era esparsamente marcado por papoulas amarelas, plantinhas vermelhas e ericáceas azuis, florzinhas e talos atrofiados. Os homens colheram alguns musgos verdes, para secar e usar como pavios, em vez de fezes de cachorro, e como isolamento em suas botas, em lugar de pêlos de cães.

Com a repentina queda da temperatura, eles voltaram para a costa com seus cães, carregados com pedaços da carcaça de um grande caribu como material de construção para um trenó. Mas quando atingiram o oceano congelado, estavam tão famintos que o trenó foi comido antes de ser construído.

Para grande alívio de Papik, seu gesso partiu-se e o deixou livre dele. Seus dois companheiros quase morreram de rir ao ver sua perna fina e arqueada e seu modo de coxear pior que antes.

Depois de construir um trenó com peixes desintegrados, eles atingiram uma região de gelo mole quando a escuridão ia chegando. Os cães eram insuficientes para puxá-los sobre o terreno irregular e eles passaram o inverno num abrigo de neve, depois de ter apanhado as raposas com armadilhas e localizado o esconderijo onde algum animal guardava pássaros e ovos. Eles não conheciam a região, e a extensão do gelo mole os manteve encalhados numa costa onde a primavera quebrou a crosta do mar.

Depois que pegaram uma morsa, as coisas pareceram mais brilhantes, mas não por muito tempo. O mau humor começou a acentuar-se à medida que eles iam tendo de passar mais tempo executando o trabalho de mulheres fazendo agulhas de ossos de pássaros e fios de tendões de morsa, além de consertar suas roupas estragadas do que caçando. E Kigutikak ficou tão cansado de ter de permanecer sempre sentado e tratar de todos os problemas com seus companheiros que uma vez ele saiu andando e resmungando.

E nunca mais foi visto ou dele se ouviu falar.

Quando Papik chegou a Branca de Neve com Nualik, ainda coxeava, seu corpo e seu rosto estavam esqueléticos, suas roupas em petição de miséria, mas ele estava feliz e sentia uma disposição enorme. Na ocasião, o sol tinha mergulhado mais uma vez abaixo do horizonte, mas ainda lançava alguma luz no topo do mundo a cada volta.

Os caçadores de ursos tinham estado fora por mais de um ano. O navio da Companhia tinha feito sua visita regular, uma vez mais manchando as águas e repondo o estoque de cerveja. O último avião tinha partido. E Branca de Neve preparava-se para outra longa e silenciosa noite.

Os entusiasmos de Papik tinham vida curta. Ele não se incomodou muito com o desaparecimento de todos os seus utensílios e armas deixados para trás e que lhe tinham custado muito trabalho. Alguma coisa que não estivesse efetivamente em uso poderia ter sido apropriada por outro. O que o enfureceu, de fato, foi que sua mulher e sua filha não lhe puderam oferecer uma imediata recepção na casa comunal e que seu filho estava ocupado demais para que ele o pudesse ver logo.

Vivi devia estar no LUGAR ONDE AS CARNES SAO QUEIMADAS, Ootuniah continuava seu aprendizado como feiticeira no LUGAR ONDE A GENTE SE DESPE, e Ernenek se achava ocupado no LUGAR ONDE AS MÁQUI­NAS SÃO DOMESTICADAS. Com efeito, era como se apenas Noonah, seu cão-líder, tivesse tempo para ele.

Durante a última estação de trabalho, os únicos esquimós constantes da folha de pagamento da Companhia tinham sido os três membros da família de Papik, pois se podia assegurar que eles não partiriam de Branca de Neve enquanto estivessem esperando pelo retorno dele. O chefe da pagadoria esperava que isso fosse para sempre e lhes abriu uma exceção ao novo regulamento da Companhia que proibia a contratação do trabalho de esquimós. Do mesmo modo, ele também teria contratado Kio, mas a gorda mulher se recusou a engajar-se num trabalho regular enquanto Vivi a mantivesse.

Enquanto Vivi e Ootuniah informavam Papik desses acontecimentos, Kio também se achava na casa comunal, sem saber como manifestar alegria pela volta de um de seus maridos e, ao mesmo tempo, mostrar tristeza pela perda do outro. E Vivi não podia dar-lhe conselhos, pois tinha suas próprias dificuldades diante de Papik.

—        Pootoo pode explicar-lhe que não é vergonhoso acei­tar o dinheiro e a comida dos homens brancos em troca do nosso trabalho dizia ela a Papik.

Ootuniah falou:

Há muitas coisas que podemos aprender com eles. Diante dessa informação, Papik escarneceu:

O que vocês aprenderam?

—        É importante que nos limpemos o tempo todo, porque o ar e nossos corpos estão cheios de pequenos animais tão pequenos que só podem ser vistos com instrumentos mágicos que nos causam doenças e dores.

Papik deu uma gargalhada com menosprezo.

—        Oh! Sempre a mais idiota das superstições! A doença e a dor não vêm de pequenos animais invisíveis, mas dos espíritos do mal que nossos feiticeiros podem ver muito bem.

Ootuniah ousou contradizer seu pai.

Se os pequenos animais forem mortos a tempo, a gente não fica doente.

Mas nós não ficamos doentes, menina. Desde que estejamos longe dos espíritos estrangeiros! E o Ernenek?

Ele já está quase aprendendo a domesticar as máqui­nas. E arranjou uma espingarda no fim da estação de trabalho.

Papik fez uma carranca.

—        Uma espingarda?

—        Sim. Que ele carrega para toda parte. Até para a cama.

Papik levantou-se, para abafar sua fúria e reter o sorriso.

—        Há mais notícias ruins?

—        Sim confessou Ootuniah, abaixando a cabeça e olhando para o chão. Uma tola moça deseja casar-se com Indalerak, o feiticeiro branco.

Papik virou-se para Vivi com um sorriso azedo.

Os ouvidos de um homem não lhe servem para mais nada. Será que ele deve ir embora e morrer?

Você ouviu corretamente — disse Vivi. Ootuniah estava esperando sua permissão. E você não pode negá-la.

Papik olhou pasmado e incrédulo para Vivi e Ootuniah. Mexeu com os pés, engoliu em seco e seus olhos se inundaram. Assustada, Vivi apertou o braço dele.

—        Papik, você está chorando?!

—        Chorando? Rindo! e explodiu num rugido. Ha! ha! ha! Pense em tudo o que fizemos. Oh! oh! Um homem perdeu três dedos por causa de sua filha. Ha! ha! ha! Você ficou com as costas encurvadas carregando-a, você zombou de suas próprias pernas tortas para fazer o marido dela feliz, você estragou seus dentes e seus olhos para fazer as roupas dela. E agora ela nos abandona! Oh! oh!

Era irresistível.

Ootuniah jogou-se abraçando o pescoço de seu pai e fungou em seu velho rosto triturado.

Eis por que uma moça não foi feliz por longo tempo — disse ela. — Seu coração não queria deixá-lo por um estranho. Ao mesmo tempo ela sabia que não podia viver sem ele.

Pobre mundo! Ele não é caçador. É fraco e ignorante, e tem um cheiro ruim!

Ele tem de ser do agrado dela, não do seu agrado — lembrou Vivi.

Ele deve ter feito uma mágica com ela. Com uma dessas injeções.

Uma tola moça sempre diz isso a ele — falou Ootuniah. — Perto dele ela treme. Mas Indalerak diz o contrário, que ela é quem faz mágica com ele. Ele ia voltar para o lado de lá das árvores, onde outra moça espera por ele, pois ambos são de uma tribo sedentária. Mas agora ele gostaria de ficar no norte. Ele diz que aqui há alguém que não quer deixar. Nós podemos ir para a terra dos caribus juntos, porque uma moça que é uma moça não pode ficar caçando focas por mais tempo, mas ainda pode caçar caribu.

Papik achou que as más notícias tinham chegado ao cúmulo. Mas só até que Ernenek chegou, com um casaco de nylon cuidadosamente jogado em seus ombros e com uma espingarda na mão.

O rapaz ficou radiante ao ver seu pai e os dois trocaram apertos de mãos, mantendo-as altas e abaixando as cabeças. Ernenek, em sinal de respeito a seu pai; Papik, por causa da alma de seu próprio pai que morava em seu filho.

Ele cresceu! — gritou Papik. — E parece com o pai de um homem. Os mesmos olhos. O mesmo queixo. O mesmo peito.

Ele está mais alto que Ootuniah — disse Vivi. — E continua crescendo.

Ernenek, você não vai ter mais de trabalhar para os homens brancos — disse Papik. — O mar está congelado, a luz está boa, é a estação das viagens. Vamos!

Ernenek fez uma cara feia.

—        Um tolo rapaz gosta de ouvir música alta no LUGAR ONDE A GENTE FICA SEM DINHEIRO.

Desta vez Papik não riu.

E ele bebe aguardente e come comida enlatada, e provavelmente toma banho com água quente e sabão!

E com vapor na sauna — confessou Ernenek. Mas também aprende coisas, e não é impossível que algum dia ele dê uns passeios na mesma máquina que lhe quebrou os ossos.

Você não quer voltar para onde estão os ursos? Você prefere um acampamento de homens brancos?

Não, não! Mas a gente quer aprender mais sobre máquinas. Algumas delas podem mesmo voar até a lua.

Nossos feiticeiros sempre fizeram isso.

Mas eles não me dirão como fazê-lo. Os homens brancos, sim.

Certamente Ivaloo também vai dizer-lhe — falou Papik. — Mas saiba que há sérias dúvidas sobre as visitas dos homens brancos à lua. Parece que tudo o que eles têm a mostrar são fotografias, que são fraudes.

Por quê?

Nenhum de nossos feiticeiros jamais encontrou os mais leves sinais dos feiticeiros deles na lua. Nem suas fezes. Nualik tem certeza disso. Seu cunhado lhe contou.

Um tolo rapaz sem importância ainda quer andar na máquina grande por aí — disse Ernenek obstinadamente. — Uma vez só.

Vamos esperar até lá — disse Vivi a Papik. — Parece que os homens logo se aborrecem com as máquinas e voltam a caçar. Então, poderemos partir.

Alguém mais sabe que depois de permanecer muito tempo com estrangeiros, muitos Homens ficam fracos para partir — disse Papik. — Nós vamos agora!

Vivi deu com a língua nos dentes.

Há mais uma coisa que você tem de saber. Nós prometemos trabalhar aqui até a chegada da estação, pois não sabíamos quando você voltaria. De acordo com AQUELE QUE PAGA, Waloonga permitiu a Ernenek ter uma espingarda e este casaco verdadeiro de nylon.

Ernenek não pagou com seus salários?

Seus salários foram-se com a cerveja, comida e fumo. E uma tola mulher também recebeu muitas coisas que ela ainda tem de pagar.

Nós devolvemos tudo.

A cerveja que ela e Kio tomaram? Os cigarros que elas fumaram? Ela também comprou comida para os cães quando eles estavam a ponto de se devorarem uns aos outros.

Ninguém pode segurar um Homem! — anunciou Papik. Ernenek devolverá a espingarda e partirá.

Não agora — Ernenek evitou os olhos do pai, mas seu tom de voz era firme.

Estamos velhos demais para irmos sem um filho — disse Vivi.

Velhos demais — repetiu Papik indignado. — AQUE­LE QUE PAGA torceu suas idéias. Onde está ele?

ONDE A GENTE FICA SEM DINHEIRO — disse Ernenek.

Um homem vai até lá.

Excitado, Papik começou a vestir-se e Vivi entrou em pânico.

—        Cuidado! Você sabe o que acontece se você machuca homens brancos ou quebra os móveis deles.

—        Um homem tolo sabe tudo! — rugiu Papik.

Numa fração de segundo, Vivi agarrou a lança dele, a única que lhe restava, quebrou-a no joelho, jogou as duas partes no chão e cuspiu nelas. Mas sabendo que as façanhas de uma mulher são sempre inferiores às de um verdadeiro Homem.

Então, Papik correu para fora da casa, ignorando-a.

 

                                         Os Primeiros Homens

AQUELE QUE PAGA estava sentado com todos os seus lápis no LUGAR ONDE A GENTE FICA SEM DINHEIRO, tirando baforadas de um cachimbo, bebendo cerveja a grandes goles diretamente de uma lata e ouvindo a música que saía de uma caixa. Assim também estavam o Dr. Fendrik e Waloonga. Embora seus relógios estivessem congelados, eles sabiam pelo rádio que era hora de estar com sede. E havia também os poucos esquimós deixados em Branca de Neve, inclusive o velho Pootoo.

Quem aconselhou Ernenek a não partir com seu pai? — Papik perguntou-lhe ao chegar, seguido de sua família, além de Nualik e Kio. — Pergunte ÀQUELE QUE PAGA!

Não é preciso perguntar — disse Pootoo sem tirar o cachimbo da boca. Ele estava com os olhos vermelhos e as pálpebras caídas, como se tivesse bebido bastante. — Este homem aconselhou. E você também faria melhor se trabalhas­se para nós, Papik. Você está velho demais para partir!

Papik ficou rubro. Um homem velho chamando-o de velho! À única resposta adequada seria dar-lhe uma cabeçada na boca. Tudo o que Pootoo pôde fazer foi tirar rapidamente o cachimbo da boca antes que a cabeça de Papik se arrebentasse contra seu rosto e o arremessasse contra a parede. Os circunstantes detiveram Papik antes que fosse tarde demais e o seguraram com força. Mas ele estava satisfeito por ter lavrado seu tento.

Pootoo levantou-se, olhou de banda o sangue que lhe escorria do nariz e cuspiu um punhado de pedaços de dentes pretos, o que era engraçado para qualquer verdadeiro Ho­mem. O próprio Pootoo gostou de ver seus próprios dentes no chão e saudou o acontecimento com um sorriso embaraçado.

Sem se impressionar com o desempenho de Papik, o Dr. Hendrik lhe disse:

Alguém também acha que na sua idade o sul é mais seguro que o norte. Ele surpreendeu Papik por usar a própria língua dos Homens.

Onde todos são empregados de alguém? Não! Um homem nascido no gelo há de morrer no gelo.

—        Fale com ele, Pootoo disse o Dr. Hendrik.

Pootoo cuspiu mais um pouco de sangue e cavacos de dentes, passou a língua nos lábios e virou-se para Papik.

Se formos para a cidade próxima da linha das árvores, a Polícia Suprema de lá cuidará para que não passemos fome balbuciava através de seus dentes quebrados, causando mais risos. Depois de cada sono os velhos recebem um pouco de comida de presente.

Mas nenhuma foca assinalou Papik, causando uma tempestade de gargalhadas, pois conseguira imitar o novíssimo modo de falar de Pootoo.

Mas às vezes baleia e caribu. E quando perdemos os dentes, ganhamos novos.

—        Então você deveria ir disse Papik rindo.

—        Não é impossível que um homem vá. Subitamente Papik lembrou-se do punhado de homens

velhos que costumavam ficar sentados num banco na cidade de Aage, ocupados em observar as estações passarem, enquanto esperavam as dádivas do governo.

—        É lá continuou Pootoo seu filho poderia comprar armas a crédito, pagando com as peles e a gordura conseguidas com elas. E ele pode mandar seu próprio filho para a CASA ONDE FICAM AS CRIANÇAS. Elas aprendem a falar como os estrangeiros, a contar além do número de dedos de um homem, além de outras mágicas brancas. — Pootoo virou-se para o Dr. Hendrik: — Ele ouviu tudo isso antes, mas sua cabeça é dura como gelo.

—        Elogios me fazem ficar frio, Pootoo — disse Papik. — Agora um homem já falou bastante e ouviu demais.

Dirigiu-se à saída, mas o Dr. Hendrik o reteve.

—        Papik! Saiba que alguém deseja tomar sua filha como esposa.

—        Quem não iria querer? Mulheres são raras por aqui.

—        Não, não! Não é este o motivo! —disse o Dr. Hendrik com uma risada. — Há muitas moças abaixo das árvores. Mas nenhuma como sua filha. Para mim, é Ootuniah ou nenhuma. E por ela, alguém seria capaz até de viver para sempre aqui no norte.

—        É verdade?

—        Não é impossível — disse o Dr. Hendrik. — Mas primeiro, a gente gostaria de ajudá-lo.

—        Um homem não precisa de ajuda!

—        Todos precisam de ajuda, Papik. Mas já que você não pensa assim, ninguém em Branca de Neve lhe dará coisa alguma. Assim, você não pode partir.

Waloonga também se fez ouvir.

Na sua ausência sua mulher teve de tudo, Papik. E agora você deve corresponder a isso.

Trabalhando! — disse Pootoo com uma maligna satisfação.

Nualik apoiou Papik:

—        Um homem que quer um novo parceiro partiria com você e Kio, mas temos de esperar um filho aqui.

—        Um homem não quer parceiro algum.

Papik afastou todos de seu caminho e saiu no outono.

Do lado de fora estava escuro, com o cinza da neblina limitando-se com o negro do norte, que anunciava a noite. E, positivamente, não estava nada quente. O bafo era branco, e uma tempestade soprava com rajadas que cortavam como facas, mas elas passaram ao largo do couro bem besuntado do rosto de Papik.

Em seu caminho, ele foi dando pontapés nos cães que estavam sempre rosnando, soltando fumaça e abanando o rabo, à espera de pratos sujos para lamber, ou em alguém que acelerava os passos para socorrê-lo, e todos os demais seguiram atrás, vestindo suas peles. Agitações constituíam um tipo de festa rara em Branca de Neve, em sua maioria restritas a ocasionais acidentes de avião, os quais se podiam tornar monótonos a longo prazo. Até Kio esqueceu suas alegrias e tristezas e estava ansiosa por testemunhar o cabo-de-guerra entre Papik, que queria ir embora, e os outros, que queriam detê-lo.

—        Você não está levando nem uma faca! — gritou Vivi, curvando-se ao vento e lutando contra as lágrimas. — Nem um filho. Nem todos os seus dedos. E você está mancando!

Papik não lhe prestava atenção alguma, mas Ernenek disse a sua mãe:

—        Não tenha medo, querida. O pai está velho demais para viajar sozinho. Mas não está velho demais para querer morrer.

Papik respirava profundamente o cheiro do inverno, saboreando a agradável friagem que penetrava em seus pulmões, expandindo-os com força contra as costelas. Respirar fundo era o remédio mais rápido contra o frio, pois o aumento de oxigênio agita o sangue, gerando calor imediatamente.

Outro meio é usar a baixa temperatura em proveito próprio.

Mostrando os porretes junto à saída, ele disse a Vivi que o protegesse da matilha. Então, diante dos olhos incrédulos dos dois homens brancos, ele arriou as calças e agachou-se, virando as nádegas para a pequena multidão. Foi um triunfo para Vivi conseguir manter os cães afastados sob a ameaça dos porretes.

—        Está vendo? — ela riu. — Nem isto você pode fazer sem a ajuda de uma tola mulher.

Martelando sua presa fumegante com os punhos, Papik aplainou-a até que tomasse a forma de uma faca, esforçando-se por trabalhar mais depressa do que o frio que penetrava em tudo. Então, ele se endireitou e, encarando os espectadores, ajuntou uns pingos. Soltando vapor e rachando-se, sua água formou instantaneamente uma estalagmite de gelo brilhante cor de âmbar que se enregelou na fonte. Ele agarrou o cone afiado na ponta, pegou um cachorro com a outra mão e desfechou-lhe um golpe na garganta com o punhal de gelo. O berro do animal extinguiu-se rapidamente, num borbulhar de sangue.

Da mesma maneira ele matou mais um cão.

Então, dissolveu na boca um punhado de neve raspada da crosta formada pelo vento e a esguichou sobre a lâmina feita de sua matéria orgânica, alisando-a com uma lasca de gelo que afiou com o calor da palma da mão. Empenhava-se em atingir a precisão enquanto corria contra a temperatura. Tudo o que não respirava ficou imediatamente rijo e de difícil manejo. Depois de experimentar o fio da lâmina com a língua, ele esfolou as carcaças dos cachorros, cortando e arrancando as peles para usá-las como melhor lhe prestassem.

O que ele está fazendo? perguntou o Dr. Hendrik a Ootuniah.

Construindo um trenó. Qualquer coisa serve. Até o corpo de um homem.

Será que ele realmente vai partir?

Mesmo que lhe custe a vida.

—        Mas custará.

Ootuniah ofendeu-se.

—        Você se esqueceu? Uma vez você disse que ele não voltaria.

Embora bem enroladas e esmaltadas com gelo, peles congeladas de cachorro não deslizam suavemente se não são cobertas com marfim. Mas era tudo o que Papik tinha. Por outro lado, ele não precisava de travas melhores do que os pedaços de carne de cachorro que ligou aos patins, ajuntando mais neve derretida nos pontos de união.

Entre a matilha, Noonah esperava a ordem de comando de seu dono, rodeado de seguidores e súditos. Papik reconhe­ceu alguns antigos membros de sua matilha que tinham crescido de modo estranho e que se juntaram aos caês que perambulavam em sua ausência. Mas quem quer que me alimente é meu dono, e Papik recuperou cinco deles com amostras da carne fresca de cachorro. Ele atrelou os cães ao trenó com tiras de pele de cachorro emendadas, bem curtas para economizar tempo e material. Não havia nada a carregar no trenó além dos restos dos cães abatidos, senão ele próprio.

Quando tudo estava pronto, sua tensão diminuiu e ele caminhou em direção a seu filho, conseguindo andar com firmeza, apesar de mancar.

Você não vem? perguntou.

Sim disse Ernenek, querendo dizer não. Aquilo significava:

Sim, você tem razão, eu não vou.

E o rapaz apertou sua espingarda contra o peito.

—        Então você não pode mais chamar-se Ernenek disse Papik calmamente. Um pai lhe toma de volta o nome que lhe deu.

Enquanto Ernenek permanecia pasmado, atordoado e assombrado, Vivi disse:

—        Uma mãe não vai sem seu filho.

Papik olhou para ela, sem fala. Percorreu com os olhos o grupo em torno dele. Todos estavam rígidos, imóveis.

—        Ah! bufou Papik. Quem precisa de uma mulher? Um homem só quer cachorros.

Ele não tinha razão e sabia disso. Ninguém sabia melhor do que ele que. na aritmética da vida ártica, a menor unidade era o casal. Mas não podia reconhecê-lo, com todos aqueles olhos enfeitiçados e fixados nele. Ele nunca tinha estado mais orgulhoso de ser um Homem, nunca mais desafiador de todos e do mundo, pronto para o impossível.

—        Papik! suplicou Vivi. As únicas fêmeas que você pode encontrar lá são as ursas e elas vão comê-lo.

Ele não reagiu. Papik tinha visto Ootuniah em lágrimas, agarrada ao seu Indalerak. Não a tinha visto chorar desde o tempo em que ela era pequena e sua família quis deixá-la com Ivaloo. Chegou mancando perto dela para lembrá-la de que não devia chorar. Ootuniah chorou ainda mais e caiu em seus braços. Ele rodou junto com ela, virando-a de costas para a ventania.

—        Se você tem de chorar, pelo menos não chore contra o vento — disse-lhe. — As lágrimas podem congelar-se nos pequenos túneis e explodir seus olhos. Agora você sabe por que nós temos de aprender a não chorar nunca, querida. Nem de raiva.

Ele tomou a vara da mão de Vivi e marchou com firmeza para o trenó. Noonah estivera dando tapas e dentadas em seus colegas, mas teve muito trabalho para colocá-los em forma, até que Papik estalou a vara e eles começaram a puxar, ganindo atrás do vapor branco de seus focinhos, rodeados de um punhado de filhotes.

Quando o trenó parou de dar solavancos na faixa costeira e começou a dançar sobre o gelo liso do mar, Papik saltou numa trava. Mas colidiu com alguma coisa e levou um tombo, pois Vivi também tinha subido e o trenó era pequenino, construído para um único homem.

Que você quer? — gritou ele, mancando ao lado do trenó.

Se você não precisa de ninguém, uma tola mulher precisa de alguém!

Não temos cães suficientes para dois.

Teremos.

Enquanto Papik ia andando como podia, Vivi arrancou com os dentes pedaços da carne de cachorro que levavam e jogou-os para trás, gritando que era comida, e logo toda uma matilha os estava puxando.

Pois é! — ela exultou. — O que você faria sem uma tola mulher?

Iria de trenó em vez de correr — respondeu Papik de cara feia.

Nesse ínterim, Ernenek parecia não importar-se com a partida de seus pais. Contudo, isso não era verdade. E nem os outros podiam tirar os olhos daquele casal desgrenhado e dos cães, correndo em direção à noite com um trenó provisório.

Ninguém pode dizer o que se passou na cabeça do rapaz naquela ocasião. Se o espanto ou a secreta admiração que notou nos olhos dos homens brancos acordou seu orgulho da vida de família que estava deixando para trás. Ou se queria recuperar o nome de seu avô. Todos só viram o que ele fez.

Arremessou a espingarda aos pés de Waloonga e partiu atrás do trenó, correndo como uma pomba com suas compri­das botas que iam até a virilha.

A pequena família andava e se arrastava contra o vento norte que piorava, de vez em quando mastigando punhados de neve arrancados do chão ou raspando a borda enregelada formada pelos cílios. Até que os cães cambalearam, pisaram em falso e o trenó parou.

Então, pela posição do sol, a escuridão tinha atingido o máximo.

Ernenek soltou os cães e eles começaram a furar o terreno e a enrolar-se, esperando que a neve escavada os aquecesse como um cobertor. Papik jogou um pedaço de carne de cachorro congelada em sua boca, e sem falar, para economizar a respiração, e também porque todos sabiam o que fazer, começou a cortar blocos de construção que Ernenek dispôs numa estreita espiral, de acordo com o padrão costumeiro, enquanto Vivi, com um pedaço de pele congelada, jogava neve contra a parede que crescia, enchendo as fendas.

A ventania estava tão forte que às vezes eles tinham de virar as costas para ela, para poder retomar a respiração antes de prosseguir.

Ernenek trabalhava devagar, mas os blocos de Papik também chegavam devagar. A lâmina que ele tinha improvisa­do era menos eficiente do que sua grande faca de neve, que desaparecera em Branca de Neve. Mas daria conta do recado, desde que a ventania sufocante lhes desse tempo.

Não deu.

Papik não tinha descansado após sua volta. Não houve tempo para que suas peles secassem e para que Vivi as reparasse. E ele não tinha posto em seu estômago comida bastante para evitar que ele ficasse enrugado. A carne que comeu não estava descongelando com rapidez suficiente para repor as energias que se esvaíam, e antes que a construção do iglu estivesse pela metade, suas forças se acabaram de vez. Ele baqueou, caindo sobre os quadris, inclinando a cabeça e imaginando se os que o chamavam de velho não teriam razão.

Vivi sacudiu-o.

— Levante-se! — Não obtendo resposta, ela o censurou com severidade: Você se considera um homem?

Ela cuspiu nas botas dele, mas em vão. Ele sabia que ela estava tentando aquecê-lo, e isso fez sorrir em vez de ficar com raiva.

Pegue as minhas peles murmurou ele.

E então?

Deixem-me morrer. Vocês dois podem comer-me.

Não ela deu-lhe um soco po estômago, brincando. Você não é um valentão?

Ela tomou-lhe a faca e a entregou a seu filho.

—        Termine o iglu, meu querido.

Mas Ernenek continuou olhando para ela com os olhos cobertos de neve e incapaz de fazer qualquer coisa em seu casaco comprado no armazém.

—        Que é? perguntou Vivi.

—        Alguém não está quente resmungou o rapaz. Encostando suas bochechas no rosto dele, Vivi descobriu

que ele não estava untado, a pele estava seca e fina. O escudo de couro grosso que se desenvolve em muitas e longas noites polares tinha ficado macio e vulnerável por causa da sauna, do sabão e das casas aquecidas. O estômago dela deu o alarme. A baixa temperatura estava ganhando a batalha. Ela agarrou seu filho pelos ombros.

—        Seus pais dependem de você, meu querido. Mostre-lhes o que você pode fazer!

Ernenek não podia nem torcer o nariz.

Ela tentou agitar o sangue dele dizendo-lhe palavrões, ela, uma simples mulher, nada melhor que uma mulher das águas, ainda pior do que um homem branco, mas falhou de novo. Ela o pôs deitado e colocou-se sobre ele, esfregando o rosto dele com o dela e exalando sua respiração no nariz do rapaz. Ele continuava mole e indiferente. O frio já tinha causado profundos estragos. Aquilo não teria acontecido um ano atrás.

Como ela não podia aquecê-lo com fúria, tentou-o com carinho.

—        Meu querido murmurou faça o que uma mãe está pedindo. E uma mãe fará tudo o que você quiser.

Ela flutuava sobre ele, com seu sorriso, olhos nos olhos, nariz contra nariz, esperando que ele não notasse seus dentes gastos na escuridão, mas visse apenas sua face, bonita como sempre, e mais que isso, mais macia, mais quente. Se seus seios não se tivessem secado, por negligência, durante o último ano, ela poderia tentar aquecê-lo com seu leite.

Depois que tudo falhou, ela enfiou sua mão por sob as roupas de seu filho e acariciou a pele dele, para cima e para baixo, cochichando.

—        Mostre a uma mãe como um homenzinho se torna um homem grande.

Ela continuou a esfregar o nariz dele com o dela e a exalar sua respiração dentro do nariz do rapaz, falando em voz baixa como se estivesse cantarolando. Até que o acordou. Até que viu o sangue voltar às bochechas dele e seus olhos brilharem. E ela sentiu que ele reagia. Então, deu-lhe uma palmada forte no quadril e levantou-se.

—        De pé, querido! Vamos terminar o iglu.

Quando o abrigo ficou pronto baixo, espesso, en­curvado para reter o calor e repelir os ventos, eles arrastaram Papik através do túnel, penduraram suas roupas para se descongelarem, e todos se amontoaram, ajuntando os filhotes de cães para preencher o espaço em excesso. Depois, nada mais havia a fazer senão rir por terem mais uma vez escapado da morte e esperar que seus corpos aquecessem o pequeno alojamento.

Todo o medo e a ansiedade tinham desaparecido. Eles se sentiram seguros e em casa naquele novo iglu, pois ele era como todos os outros. A abóbada, menos elevada do que a cabeça de um homem; o túnel, nada mais largo do que as ancas de uma mulher; o chão, não mais comprido do que um casal fazendo amor; nenhuma parte grande demais e nenhuma parte pequena demais, num milagroso equilíbrio entre economia e eficiência.

Embaixo, a Rainha Sedna punha o oceano a dormir; em cima, os Espíritos do Ar escoravam o pequeno abrigo, jogando mais neve sobre ele.

Eles poderiam matar um cão para os cães e outro para si mesmos, a fim de recuperar as forças. Então, entrariam em hibernação, deixando cair as temperaturas de seus corpos e dormir para dominá-las, de modo que as gorduras sob suas peles pudessem ser queimadas vagarosamente, talvez durando até que as primeiras focas aparecessem no despontar da primavera.

Uma vez que matassem uma foca, sua sobrevivência estaria garantida. Eles devorariam sua carne viva até que lhes saísse pelo nariz e o sangue deles apareceria no branco de seus olhos e daria cor aos lóbulos de suas orelhas. De seus ossos, de sua carne congelada e de alguma de suas matérias orgânicas, inclusive as deles próprios, eles poderiam fazer os instrumen­tos exigidos para mais facilmente conseguir pegar mais focas e completar seu equipamento. Eles tinham feito isso antes. Não era impossível que o fizessem de novo.

Para dizer a verdade, quando entregaram seus corpos gélidos à doçura do sono, eles não sabiam se aquele seria seu último iglu.

Mas sabiam que seu último iglu seria exatamente como aquele.

   

                                                                                Hans Ruesch 

 

 

                      

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