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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VOLTAREI AQUI / Corin Tellado
VOLTAREI AQUI / Corin Tellado

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

VOLTAREI AQUI

 

Burt Kelsey olhou de novo o rosto imóvel e amarelento, e com brusco gesto cerrou a tampa do féretro.

 

Vamos, Jim exclamou com firmeza. Se tu me ajudas...

 

O chamado Jim torceu o gesto.

 

Lá fora tens os homens da funerária, Burt resmungou. Eu não mancho as mãos nisso.

 

Burt olhou-o de cima abaixo, e de repente empurrou-o para a porta, gritando:

 

Desaparece daqui.

 

Ouve, ouve, Burt. Não te ponhas assim, rapaz. Ao fim e ao cabo, um morto é um morto, eh? E com expressão estúpida, acrescentou: Não morreu meu pai? Não morreu minha mãe? Julgas que o tomei tão tragicamente como tu? Fiquei só, ou não? E então?

 

Desaparece exclamou Burt com voz enrouquecida. Já disse que desapareças. Ouves-me? Sai daqui.

 

Que bárbaro, que bárbaro encolheu os ombros. Bem, eu vim aqui para dizer-te que vás ao castelo depois de teres enterrado teu pai. Lord Crowther quer ver-te.

Burt não o ouvia. Com firmeza empurrou Jim para a porta e este resmungou:

 

Não há quem te entenda. Que pensas que tens aqui? Demónio, um morto nada mais. Que era teu pai? Outros o perdemos antes. Abriu a porta, e de costas para ele ainda acrescentou: Já sabes, uma vez enterrado teu pai, sobe ao castelo.

 

E saiu assobiando. Na rua, estreita, não havia ninguém, excepto uma carroça puxada por dois cavalos e um moço que os sujeitava. Chovia, e no solo se acumulava o barro. O céu estava cinzento e as nuvens ameaçavam vento. Jim saltou os charcos e encaminhou-se para um carro que havia parado no outro extremo da rua. Subiu para ele e pô-lo em andamento.

 

Na humilde casita do mineiro morto, seu filho Burt, com os olhos secos e uma indiscritível dor, que o humilhava e o empequenecia, levantou de novo a tampa do caixão e contemplou seu pai pela última vez. Com voz rouca que parecia sair do mais profundo do seu ser, exclamou:

 

Voltarei aqui, pai. Um dia voltarei...

 

Tapou o caixão e sem ajuda de ninguém o arrastou para a porta.

 

Era um rapaz alto e forte. Tinha o cabelo negríssimo, e os olhos castanhos e frios como o aço. Não teria mais de dezassete anos, e adorava seu pai. Ninguém podia saber até que ponto o adorava, até que ponto o admirou. Por isso, não podia perdoar jamais que, depois de trabalhar tantos anos, no dia da sua morte o deixassem só. Só com ele!

 

Ouve, rapaz, que fazes? gritou o empregado da funerária. Espera que eu te ajudo.
Desceu do carro apressadamente, e correu para a porta da humilde casita.

 

Estas coisas não se podem fazer só.

 

Burt não fez caso. Dispunha-se a levantar em peso o caixão, quando o empregado da funerária chegou a seu lado. Sem dizer palavra, ajudou-o a depositar o caixão no carro, cerrou a porta e disse:

 

Hala, sobe para o meu lado.

 

Vou atrás de meu pai disse Burt friamente.

 

O homem contemplou-o assombrado. Com um resmungo exclamou:

 

Isso não pode ser. Crês que é um enterro de luxo?

 

É meu pai bramou Burt com voz desesperada. O homem não se impressionou.

 

Bem disse encolhendo os ombros. Não és o primeiro filho que perde o pai. Deves saber que levo ao cemitério mais de doze pais por ano.

 

Este é o meu gritou Burt com voz rouca. Entende você? Este é o meu!

 

Adiante, rapaz. Não posso perder tempo. Vai atrás, se assim o preferes, mas eu advirto-te que porei os cavalos a meio trote. Vai nevar, os caminhos até ao cemitério estão intransitáveis, e terás que correr atrás de mim.

 

Suba você disse Burt calmamente. Eu irei atrás.

 

Como queiras, rapaz, como queiras.

 

Subiu para o assento, estalou o chicote sobre o lombo dos cavalos, e o carro fúnebre pôs-se em marcha. Burt deitou a correr atrás. Em redor da rua estreita, alinhavam-se as casitas dos mineiros. Burt não os viu sentados, nem um rosto, nem uma sombra. Corria atrás do carro,
e ofegante, chegou ao cimo da rua. O carro torceu à direita e Burt, sempre correndo, seguiu-o ao mesmo passo. A água que corria cobria o seu corpo, começou a confundir-se com as suas lágrimas. Era a primeira vez que Burt Kelsey dava rédea solta à sua dor. Aquela dor profunda, lacerante, que pretendia dominar e não podia.

 

Eu te ajudarei disse o empregado do carro funerário. É a primeira vez que o faço resmungou mas... demónios, não sei o que me acontece contigo, rapaz. Depois deste correr sem desfalecer, me impressionaste. Sinto respeito por ti. Agarra por ali. O coveiro nos ajudará. Oh, tu gritou ao homem que, impassível, esperava no outro lado dá-nos uma mão.

 

O aludido, muito devagar, deu a volta. Começava a nevar, e sobre as fortes costas de Burt se poisara a neve.

 

Ajuda-nos pediu o cocheiro.

 

O coveiro fez o que lhe mandavam e, com indiferença, agarrou no caixão pelo lado que lhe pedia o cocheiro.

 

Com cuidado pediu Burt, sem poder conter-se.

 

Não é nenhum tesouro, rapaz resmungou o coveiro. Ao fim e ao cabo, é um morto.

 

É meu pai disse o jovem como num gemido.

 

Cocheiro e coveiro olharam-se. Nada disseram. Depositaram o caixão junto da cova aberta na terra, e o coveiro se dispôs interná-lo nela.

 

Faça-o com cuidado pediu Burt muito baixinho fixos os olhos no caixão de madeira de pinho. Peço-lhe. E bruscamente tirou umas moedas do bolso e as depositou nas mãos calosas do coveiro.

 

Bem... temes que se esfrie? perguntou jocosamente, metendo as moedas no bolso. Deu de ombros e procedeu a depositar o caixão na cova, com mais cuidado.

 

Logo começou a tapá-lo. Burt, de pé junto dele, cravava os olhos naquela terra que cobria para sempre seu pai. Seus olhos muito abertos, não se afastavam da cova nem um instante. Tanto foi assim, que os dois homens, o cocheiro e o coveiro, se olharam, e o segundo deles disse:

 

Rapaz, afasta-te um pouco. Tenho de encher a cova, antes de que me cubra a neve.

 

Burt deu um passo atrás.

 

Vens, rapaz? Levo-te até à cidade. É muito caminho daqui até lá a fazê-lo a pé e nevando.

 

Burt não se moveu. O coveiro terminava a sua tarefa naquele instante, e o jovem se inclinou, fez uma cruz com dois paus, e os cravou na terra. De novo o cocheiro e o coveiro trocaram de olhares. Era a primeira vez que um filho fazia semelhante coisa. Pelo normal, eram mais as pessoas que presenciavam aquele trabalho e, uma vez terminado, colocavam um ramo de flores sobre a terra removida, e se iam. Burt parecia cravado ali.

 

Bem exclamou o coveiro. Já podes marchar, rapaz.

 

Não se moveu. Molhado. Coberta a sua cabeça arrogante de neve, os braços caídos ao longo do corpo, firme e quieto, mais que um ser humano parecia uma estátua.

 

O cocheiro tocou-lhe no ombro.

 

Rapaz, não posso esperar mais. Burt agitou-se. Com voz rouca disse:

 

Pode ir.

 

Não... me acompanhas?

 

Pode ir.

 

Bem, bem. Adeus, Tomás. Não cerres a porta aconselhou não vai acontecer que esse fique aí dentro.

 

O coveiro não respondeu. Carregou a enxada ao ombro e se perdeu entre os altos ciprestes.

 

Burt ficou ali, rígido, ante a cova de seu pai. Não voltaria a vê-lo, e isto era para ele como uma agonia. Tinha adorado seu pai de tal modo, admirava-o tanto, que lhe parecia impossível que houvesse na vida um ser mais perfeito e carinhoso que ele.

 

Molhada e coberta a sua cabeça de neve, se deixou cair sobre uma pedra, e esteve ali até que anoiteceu, rígido, silencioso, como se o tempo não transcorresse ou pudesse ele detê-lo.

 

Rapaz gritou o coveiro. Vou fechar. Sai daí. Ouves-me? Vou fechar.

 

Burt pôs-se em pé. Lançou um breve olhar sobre a terra húmida que cobria para sempre o corpo amado de seu pai, endireitou a cruz, e muito devagar começou a andar para a porta.

 

Deixaria Merthyr-Tydfl no dia seguinte. Um dia voltaria. Não sabia quando nem o que faria ali, mas voltaria.

 

Seu pai tinha sido um picador importante nas minas de Crowther. E estes... o ignoravam na hora da sua morte. Chamavam-no a ele, talvez para entregar-lhe o último pagamento do morto. Iria. Sim, iria até ao castelo na manhã seguinte. E depois... iria até Londres, juntar-se a seu tio Robert. Seu tio o reclamava sem cessar. Ele jamais quis deixar seu pai. Agora seu pai o tinha deixado só a ele.

 

Apertou os punhos e fechou os olhos com força. Necessitava dormir. Teria que dormir para olvidar... Olvidar aquela solidão em que o deixou o autor dos seus dias. Merthyr-Tydfl não era uma cidade caritativa. Mas ele sempre foi nos enterros dos mortos, e a seu pai não o acompanhou ninguém.

 

Aonde estás, Burt? gritou uma voz desde a rua. O rapaz não respondeu. Uma mão empurrou a porta e entrou.

 

Burt...

 

Olá, Japp.

 

Tratava-se de um homem baixinho, de negros cabelos emaranhados. Avançou para o quarto e se deixou cair numa cadeira, junto de Kelsey.

 

Lamento, rapaz. Não pude vir antes. A faina nas minas acabou tarde.

 

Outras vezes acabou mais, e vos deram licença para acompanhar ao cemitério um companheiro sussurrou Burt friamente.

 

Não nos podes reprovar. Desde há algum tempo, a ordem foi terminante. Não podemos deixar o trabalho para acompanhar à sua última morada. É a ordem de lord Crowther. Já sabes, esses tipos se julgam tão poderosos, que, descer até um simples picador, os humilha. Não sei, rapaz, quando mudará isto tudo. Burt não respondeu.

 

Já sei disse Japp ao cabo de uns instantes que acompanhaste o teu pai.

 

Eu só! exclamou Burt. Eu só...

 

Sim, já mo disseram. E depois de um silêncio. Que pensas fazer? Trabalharás nas minas?

 

Não.

 

Não podes continuar os teus estudos, Burt. Teu pai fazia um grande esforço, mas agora...

 

Meu tio Robert me ajudará disse baixinho. Meu pai nunca devia ter ficado aqui. Meu tio tem muito dinheiro, e lhe ofereceu trabalho a seu lado... Tenho uma carta aqui e paumeou o bolso. Diz que deseja fazer-me engenheiro, que serei seu herdeiro... seu firme rosto se iluminou por instantes. Se algum dia for rico... voltarei, Japp e com ardor acrescentou: E os encarregarei. Viverei... o resto da minha vida para esmagá-los.

 

Nós não temos a culpa, rapaz se queixou o mineiro. Dize-lo a lord Crowther.

 

Não olvidarei jamais... este dia nem esse homem.

 

Não te chamou?

 

Penso fazer-lhe uma curta visita amanhã.

 

Não penses que ele te recebe. O fará seu secretário.

 

Eu sei. Vou... preparado.

 

Burt estava muito quieto frente à mesa.

 

De modo disse senhor Dawes que tu és o filho... Bem, rapaz. Esta companhia não desampara jamais os órfãos dos seus obreiros consultou com indolência uns livros. Aqui está, Burt Kelsey. A companhia decidiu oferecer-te um emprego. Consiste este na limpeza das oficinas dos engenheiros.

 

Burt sentiu fogo na cara. Por um instante teve desejos de esbofetear o empregado, mas conteve-se. Com frialdade disse:

 

Olvida o senhor que cursei seis anos de liceu.

 

Oh, não, não o olvido. admitiu com uma indiferença. Mas, morto o teu pai, não podes continuar estudando. Oferecem-te um emprego cómodo.

 

Não o necessito. Olhou-o boquiaberto.

 

Caramba, podias dar-te por satisfeito, rapaz...

 

Eu nada lhe pedi.

 

Bem, bem, como queiras, se preferes pedir esmola...

 

Não o farei jamais gritou Burt energicamente. Bons dias.

 

Espera, espera...

 

O jovem se voltou na porta. Com acento concentrado, disse:

 

Nem olvidarei que deixaram ir só meu pai morto, até ao cemitério. Não gritou não o olvidarei.

 

”Sir” Dawes desatou a rir e cochichou, depois da porta cerrada:

 

Um rapaz muito orgulhoso.

 

E se dedicou aos seus papéis, como se nada tivesse ocorrido.

 

Burt cruzou o largo parque caminhando seguro e firme. De súbito, uma bola de neve lhe deu em plena cara. Deteve-se e olhou para o alto do terraço. A filha de lorde Crowther o contemplava, sorridente. Era uma menina de uns sete anos, espigada, altiva, de olhar frio como o punhado de gelo que apertava na sua pequena mão.

 

Burt se inclinou sobre a neve, agarrou um punhado desta e levantou o braço. Antes que pudesse lançá-lo sobre a bonita figura infantil, esta gritou:

 

Tem cuidado, mendigo. Sou ”lady” Sónia.

 

E uma mão o agarrou por detrás. Burt deu a volta e viu o frio rosto de um criado.

 

Deita fora essa neve gritou ameaçador. Não te esqueças que essa menina é aqui como uma rainha. Ajoelha-te.

 

Jamais gritou Burt. Jamais.

 

Quero que se ajoelhe, Jim gritou Sónia desde o terraço. Obriga-o.

 

A mão do criado caiu como ferro sobre o peito de Burt. Este quisesse ou não, ficou de bruços sobre a neve. Sónia ria, e o jovem foi pondo-se em pé pouco a pouco. Olhou-a cegador. Parecia que sobre seus olhos bailava uma nuvem de sangue.

 

Começou a andar lentamente. Atrás dele ficava o riso de Sónia e os grunhidos de Jim.

 

Burt desceu do carro em frente do importante edifício, saltou em terra, e, dando uma passada, se dirigiu à entrada. Passou pelo porteiro sem o olhar e entrou no elevador, a toda a pressa. Este se deteve no décimo quarto andar, e atravessou as oficinas, saudando aqui e ali.

 

Empurrou a porta da direcção e foi directamente ao seu despacho.

 

Burt.

 

Este se dispunha a tirar a gabardina e o chapéu, e se sobressaltou.

 

Li! exclamou. Não esperava ver-te aqui a estas horas. Há algo importante?

 

Tu.

 

Oh! riu Burt, satisfeito. Que fiz?

 

Tira o abrigo e senta-te. Temos de falar.

 

Se é para tratar do assunto Merthyr-Tydfl, já sabes como penso.

 

Tenho que dissuadir-te, rapaz.

 

Lamento, Li-Chau-Yen riu. Já tenho tudo tratado.

 

Li-Chau se deixou cair num cadeirão e suspeitou.

 

No dia em que faleceu teu tio e te deixou herdeiro da sua fabulosa fortuna, devia lamentá-lo. E fui tão inocente que me alegrei.

 

Burt sentou-se na sua cadeira e tamborilou na mesa com os dedos.

 

Sim disse pausadamente. Não só te alegraste por mim. Como para ti não foi mau. Não possuías tanto dinheiro como meu tio, e eras seu sócio. Desde que eu estou aqui à frente do negócio, teu capital aumentou consideràvelmente, que te seria difícil contar todo o teu dinheiro sem te cansares.

 

Bem, isso é certo, mas...

 

É um bom negócio, Li, e por sua vez saldo uma conta que tenho pendente. Enviei a Merthyr-Tydfl minha resposta. Precisamente hoje recebi a contestação. Assinaram-se os contratos. Vemos grandes vantagens sobre essas minas. Quase todas as acções são nossas. Tem em conta Li, que é o produto do meu trabalho desde que me deram o diploma de engenheiro. Nunca me atrevi a sonhar tal ventura. Mas, como bem se diz, perda de uns, benefícios de outros. Eu estava na expectativa. Um falhanço... chasqueou a língua e eu o aproveitaria.

 

Mas arriscas boa parte do capital da Companhia.

 

Da qual sou presidente geral, Li, não o esqueças. E exponho minha fortuna. E tu sabes que eu nunca expus minha fortuna sem antes assegurar-me do êxito.

 

Burt... tudo isso eu sei, mas pensa um instante. Que necessidade temos dessas acções? Não temos bastante com as nossas próprias minas?

 

Já sabes o meu modo de pensar sobre o assunto.

 

Demónio, Burt, por muito que tenha sofrido um rapaz de dezassete anos não me irás dizer que depois de quinze anos ainda segues pensando igual.

 

Exactamente igual exclamou Burt, friamente.

 

Não te compreendo, na verdade. Quinze anos alimentando um ódio... é absurdo.

 

Só se pensa assim quando não se sente. Eu sinto, Li disse surdamente. Sinto como no primeiro dia. Não te admires, pois, que meus investigadores em Merthkr-Tydfl me tenham dito os falhanços de lord Crowther e da sua companhia. Tiveram seus erros no decorrer destes anos, tantos como eu triunfos.

 

Sabes com quem se associaram?

 

Por certo. À companhia mais poderosa do mundo. A nossa, Li. À companhia Kelic estiraçou-se no cadeirão giratório e acrescentou trocista. É o que menos eles podiam esperar. Umas minas arruinadas associando-se à Kelic. Isto foi um triunfo para eles.

 

Suponho resmungou o chinês que será um triunfo e último fracasso.

 

Bem, em questão de negócios não podemos ter escrúpulos. Nossa companhia adquiriu a maioria das acções. Temos direito a enviar a Merthyr-Tydfl um representante...

 

Um representante riu Li ironicamente que será um chefe.

 

É lógico, ou não?

 

Sempre jogámos honradamente.

 

E continuaremos com o nosso lema, Li. Não sejas aborrecido. Que culpa temos nós de que essa companhia necessite dinheiro? Se o emprestámos.

 

Diz-me o que pensas fazer.

 

Esta noite, Li, espero-te para comer no meu apartamento. Agora temos de tratar de outro assunto.

 

Escuta, Burt. Teu enviado a Merthyr-Tydfl me disse que tinhas adquirido as fundições de ferro e aço...

 

Também o consideras mau negócio?

 

Não, mas considero que os encerraste por todos os lados.

 

Esse era o meu propósito. À noite continuaremos a nossa conversa, Li. Agora vou receber o meu secretário.

 

Eric e Sheila serviram a comida. Li-Chan-Yen e Burt sorriam, depois dos suculentos manjares.

 

Já me convenceste resmungou Li. A quem vais enviar a Merthyr-Tydfl? perguntou depois de um silêncio.

 

Eu mesmo.

 

Oh! cochichou Li. Isso não esperava.

 

Tenho verdadeira curiosidade por saber como enterram agora os mortos.

 

Burt...

 

Escuta, Li. Não me digas nada. Quinze anos esperando este instante. Não compreendes que cheguei à meta da minha depressão, não é coisa para rir?

 

Suponho que não pensarás que, depois de quinze anos, vão recordar o nome de Kelsey.

 

Claro que não. Mas eu não olvidei o de lord Crowther nem o de sua filha Sónia, nem o de ”sir” Dawes.

 

Uma vingança estúpida, Burt.

 

Nem é estúpida, nem tem desvantagens para nós. Espera um ano.

 

Que pensas fazer?

 

Terei arruinado a companhia mineira e teremos conseguido a propriedade.

 

Achas possível consegui-lo?

 

Como consegui outras coisas importantes, Li.

 

Bem admitiu o chinês, deixando a um lado os escrúpulos. Os negócios são os negócios. Estou de acordo, Burt. Quando vais para lá?

 

Não sei. Possivelmente, na próxima semana. Enviei hoje uma carta anunciando a minha chegada.

 

Como?...

 

Um agente da Companhia.

 

Magnífico.

 

É um bom negócio, Li, não o duvides.

 

Seu rosto, frio e impenetrável, demonstrou a Li que Burt não se enganava. Já em vida de Robert Kelsey, este pôs seu sobrinho à frente do fabuloso negócio de carvões e minerais. Havia, pois, muitos anos que trabalhava a seu lado. Burt demonstrou, desde o princípio, um grande espírito comercial, até ao ponto de que tanto Li-Chan como Robert Kelsey depositaram no jovem toda a sua confiança.

 

Se Li-Chan parecia duvidar naquele negócio de Merthyr-Tydfl, não era porque desconfiasse de Burt, mas sim porque conhecia o ocorrido havia quinze anos, e temia que, pela primeira vez, se deixasse arrastar pelas suas paixões pessoais. Depois de saber que a Companhia havia adquirido as fundições de ferro e aço, era de esperar que as minas de carvão passassem igualmente, e depressa, para sua propriedade.

 

Vais só?

 

Por agora irei com o objectivo de fazer uma investigação, modernizar o sistema de trabalho e ordenar um meio dia de passagem obrigatória, quando faleça um companheiro.

 

Li deu um salto na cadeira.

 

Vês? guia-te a paixão pessoal da vingança.

 

Não vou negar-te replicou Burt gravemente que me encontro obsecado por aquele passado. Jurei que voltaria, e não pensava fazê-lo vencido e maltrapilho, sim, triunfante e vingador. Mas tu, Li, conheces de sobra os meus pensamentos para surpreender-te agora de certas coisas.

 

Diplomacia.

 

Já estou em vias de arruinar lord Crowther, e não descansarei até consegui-lo.

 

Em benefício da tua vingança ou da Companhia?

 

Burt emitiu um risinho. Era um homem muito parecido ao rapaz de dezassete anos, com a diferença de que tinha quinze anos mais sobre a sua pessoa. Alto, forte, varonil, muito moreno, e sério, com uns olhos castanhos e brilhantes que pareciam esmagar quando olhavam. Seus modos, pausados e frios, suas frases contudentes, precisas, seu sorriso indiferente, seu olhar frio e calculador.

 

Comunicarei contigo por telefone, Li disse quando naquela noite se despediam. Amanhã devo tomar o avião para Filadélfia. Estarei de regresso na segunda. Depois seguirei para Merthyr-Tydfl.

 

E pensas ficar ali muito tempo?...

 

Duas semanas. Espero que nesse tempo se dêm conta do que fizeram.

 

Mas já não terá remédio.

 

Não, por certo sussurrou, triunfal. O contrato já está assinado.

 

Boas noites, Burt.

 

Dorme tranquilo riu este, propinando-lhe uma palmada nas costas.

 

Sempre que a olhava, sentia aquela súbita ansiedade. Teria que dominá-la. E um dia se atreveria a dizer: ”Não me olhe...”. Bem talvez não se decidisse nunca. Ele não era homem de sociedade. Não sabia lidar com mulheres. Ou pelo menos não conhecia a arte de murmurar as palavras mais adequadas para dirigir-se a uma senhora. Ele era homem de negócios. Desde muito novo se dedicou a eles, e não teve tempo para piropear as mulheres. Havia tido um amor do qual se casou. Depois conheceu uma artista de variedades, e lhe comprou um rubi, pernoitou umas quantas vezes no seu luxuoso apartamento, mas, como lhe ocorreu anteriormente, se cansou dela. Depois teve relações íntimas com algumas outras, e um dia chegou à conclusão de que ele não era homem para suportar uma mulher o resto da sua vida.

 

”Sou variável, pensou, variável e insaciável de sensações novas”. Se olvidou um pouco de mulheres. Mas quando via a Flossie sentia uma inquietação desconhecida. Dominava-se, concentrando sua atenção em assuntos que devia tratar com ela. Era Flossie Wilson uma perfeita secretária, e, às vezes, ainda sentindo-o muito, prescendia dela, devido sempre à perturbação que lhe causava a sua presença. Era a primeira vez que isto lhe ocorria com uma mulher determinada, pois com outras não dava lugar a tais perturbações, já que ao amá-las as possuía.

 

Com Flossie não podia ser. Era uma mulher muito atractiva, mas honesta; pertencia a uma grande família, seu pai era um accionista da companhia, - e, por outra parte, a atitude da jovem era distante e indiferente.

 

Naquela manhã Burt penetrou no seu escritório particular, instalado no décimo quarto andar do edifício, e encontrou a sua secretária depositando cartas para a firma, sobre a mesa. Ao sentir a porta, voltou-se. Era uma jovem de uns vinte anos, alta, muito elegante, de porte distinto. Tinha o cabelo ruivo e os olhos muito verdes. Olhava com indiferença, e seus lábios, bem formados, não sorriam.

 

Bons dias, senhor Kelsey saudou.

 

Burt respondeu com um resmungo. Teria que dizer a Li que ficasse com Flossie e lhe enviasse outra secretária. Havia seis meses que a jovem trabalhava a seu lado, e desde o primeiro instante sentiu aquela sensação de inquietação.

 

As cartas que me ditou ontem, senhor Kelsey disse ela aí as tem para assinar.

 

Obrigado.

 

Espero, senhor?

 

Enviá-las-ei pelo ”groom”.

 

Obrigada. Necessita-me?

 

Não. Pode retirar-se.

 

Ao anoitecer daquele dia dizia a Li-Chan, quando ambos se despediam no aeroporto:

 

Não podes mudar-me a secretária?

 

Não é eficiente?

 

Sim, sim, mas não a entendo.

 

E que necessidade tens de entendê-la?

 

Altera-me os nervos respondeu, sem se deter.

 

Oh!

 

Burt olhou-o de relance e continuou caminhando.

 

Ouve, Burt, tem cuidado, é filha de James Wilson.

 

Eu sei muito bem.

 

Porque não te casas com ela?

 

Deteve-se e olhou para o seu sócio como se este fosse um animal de raça especial.

 

Casar-me com Flossie? Que disparate! Nem com ela nem com outra. Não sou homem de lar, bem o sabes. Tu casaste-te?

 

Bem me arrependo não fazê-lo. Aos cinquenta e cinco anos já não me quererão a mim, mas sim ao meu dinheiro.

 

Boladas.

 

Não posso mudar-te a secretária, Burt. Lamento. Wilson deseja que sua filha trabalhe e a Flossie lhe agrada trabalhar. É uma rapariga inteligente.

 

Fria como um tímpano.

 

Que sabes tu?

 

Prefiro não averiguá-lo.

 

Tem em conta uma coisa. Que seria desagradável dizer a verdade a Wilson.

 

Estás louco. Como vais dizer isso?

 

O avião...

 

Apertou a mão a Li e rindo exclamou:

 

Isto passará.

 

Não entendo essas perturbações. Eu nunca as senti.

 

Burt desatou a rir. Enquanto se dirigia ao avião, pensava. Pensava que Li devia ser um homem jovem sem apetites de nenhuma classe, excepto seus negócios. Logrou fazer-se rico, mas ignorou o que era uma hora feliz.

 

Estava metida num sofá, com uma perna cruzada sobre a outra. Frente a ela, seu pai, imóvel, silencioso; se diria que muito longe de sua filha.

 

Sónia pensou que, de um tempo àquela parte, seu pai tinha alguma séria preocupação. Não se atrevia a perguntar-lhe, mas naquela noite leu no rosto paterno, sinais, não de preocupação, mas sim de angústia, e, decidida a conhecer as causas, se pôs em pé, e sentou-se a seu lado no sofá e perguntou quedamente:

 

Ocorre alguma coisa, papá? Lord Crowther olhou-a rapidamente.

 

Quê? perguntou. Que dizes?

 

Em que pensavas, papá, para estares tão longe de mim?

 

Oh! fez uma careta e esboçou um sorriso. Sem dúvida, a teu lado, minha filha.

 

Não parece.

 

Porque não?

 

Vejo-te tão abstraído, tão longe... Até se diria que foges do meu olhar... Há realmente, algo que te preocupa e que eu ignoro?

 

Pois...

 

Já não sou uma criança, papá. Sei que os teus negócios não marcham... tão bem como antes.

 

Lord Crowther pôs-se em pé e passeou pelo salão de ponta a ponta, com as mãos nos bolsos. Sónia não interrompeu o seu silêncio.

 

De súbito o cavalheiro se deteve e ficou olhando para sua filha com expressão absorta.

 

Sónia era uma bela rapariga e além disso uma das primeiras damas de Merthyr-Tydfl. Loira, com uns olhos verdes, grandes e expressivos. Alta e esbelta, cheia de distinção, era sem dúvida, uma das mais bonitas da cidade. Anos antes, pensou o cavalheiro, sem afastar dela os olhos, era também a mais rica herdeira de Merthyr-Tydfl. Em troca... agora não.

 

Porque me olhas assim, papá? perguntou, alarmada.

 

O aludido tratou de esboçar um sorriso. Não lhe diria o ocorrido. Limitar-se-ia a dar algum detalhe do que se estava passando. Não devia intranquilizar Sónia com o verdadeiro estado das suas finanças.

 

São os teus negócios o que te preocupa, papá?

 

Não precisamente disse, sentando-se em frente dela. O que se passa é que estou algo intranquilo. Dentro de uns dias recebemos o nosso representante em Londres, e ignoramos as suas ideias com respeito às nossas minas.

 

Ignorava que tivessem representante em Londres.

 

Bem, com respeito aos negócios, ignoras muitas coisas.

 

Não tantas como tu supões, papá. Lord Crowther pôs-se em guarda.

 

A rapariga prosseguiu.

 

O salão de recepção é muito perto do meu gabinete particular. Há uns dias ouvi, sem querer, o que tratavam na última sessão.

 

Ah!

 

E ficou-se diante dela, mudo e absorto, esperando as palavras de Sónia. Esta acrescentou:

 

Vos haveis associado com a companhia Keltic. Tão precioso vos era, papá?

 

Um pouco. É uma companhia muito potente.

 

As minas são ricas e te pertencem.

 

Sim, claro.

 

Porquê, papá?

 

Estender o mercado é interessante. Os tempos de agora não são como antes.

 

Não necessitávamos estender o mercado apontou Sónia, como se estivesse a par dos assuntos de seu pai. As fundições de ferro e aço são suficientes para manter florescentes ambos os negócios.

 

Sónia, quem te disse isso?

 

A lógica, papá.

 

Observo que sabes muito de negócios.

 

O bastante para julgar este assunto.

 

Bem... esboçou um sorriso Que te parece se jogarmos uma partida de xadrez, e deixarmos este assunto para os meus empregados e sócios?

 

Parece-me bem, mas tem em conta que sou tua filha, e não vivo tão à margem dos teus assuntos como julgas.

 

Sónia...

 

Sim apressou-se a dizer ela. Sei que passas por um mau momento, papá. Talvez o momento mais crítico da tua vida comercial. Porque não me permites que te ajude na oficina?

 

Lord Crowther levantou-se muito devagar e exclamou:

 

Tu na oficina? Tu uma ”lady” inglesa? Sónia, minha filha... Como podes dizer isso?

 

Sónia riu, desdenhosa.

 

Não podemos viver de sonhos, papá. Nem de brasões. Temos um negócio que defendes, e o defenderemos. E como se nada dissesse, acrescentou: Jogamos a partida?

 

Sónia desceu do potro e atou-o a uma árvore. Deu a volta ao edifício de ladrilho vermelho e penetrou no vestíbulo. Vestia trajo de amazona, de cor negra e vermelha. Ocultava os loiros cabelos sob a viseira branca. Agitando a justa, avançou pelo corredor, e, como sentia sede, penetrou no bar para tomar um refresco.

 

O bar da mina estava vazio.

 

Ali entravam os mineiros quando desejosos de tomar algo, carregavam um botão, depositando na ranhura uma quantia equivalente ao que se desejava tomar. Imediatamente a máquina se punha em movimento e surgia no exterior o que se desejava. Assim se dispunha a fazer Sónia, quando ouviu, na oficina contígua, a voz de seu pai.

 

”Sir” Dawes gritava lorde Crowther, não temos outro remédio que enfrentar os factos.

 

O meu primeiro erro, milorde, foi vender a fundição.

 

Era preciso. Disse-o a você em outras ocasiões. Para fazer frente às más invenções feitas, era preciso vender.

 

Demo-nos por satisfeitos de que os compradores se tenham associado a nós.

 

Não me fio dessa gente, milorde. Saiba que a companhia Kelic se compõe de dois sócios importantes. Os outros são... como somos nós agora com respeito a eles.

 

Sónia franziu o cenho. As coisas estavam piores do que seu pai dizia. Tomou o refresco e acendeu um cigarro, apoiando-se no pequeno balcão. A porta agitava-se suavemente.

 

”Sir” Dawes, temos que fazer frente à situação, olvidemos o que devemos fazer antes. É preciso dar uma sensação de segurança.

 

Se não a temos. Eles o ignoram.

 

Se darão conta num instante. Saiba o senhor, que o representante de Kelic chegará no fim da próxima semana. Não creio que enviem nenhum estúpido. Mandarão um dos seus melhores engenheiros.

 

Convidá-lo-ei para o castelo. Será nosso hóspede. Sónia ouviu a risada irónica de Dawes. Suas palavras não se deixaram esperar.

 

Isso não evitará que faça aqui uma investigação. Sónia não esperou mais. Empurrou a porta e penetrou na sala.

 

Sónia!

 

”Milady”!

 

A jovem, bonita decidida, com uma suave expressão nos olhos, aproximou o rosto e beijou seu pai, deu uma palmada cariciosa ao velho Dawes e sentou-se no braço de um cadeirão.

 

Queridos sócios começou.

 

Sónia...

 

Tenho um plano, papá.

 

Minha filha...

 

Deixa-me falar, papá! Depois ralha comigo, se te aprover. Desculpa-me por ter ouvido toda a vossa conversa. Não pude evitá-lo. Falaram demasiado alto, e eu dispunha-me a tomar um refresco.

 

A desculpamos, ”milady” disse Dawes. Se me apercebo tem um bom plano de ataque.

 

”Sir” Dawes alterou-se o aristocrata. Não quero meter a minha filha neste assunto.

 

Escuta, papá. Olvida-te um momento da nossa elevada origem. Educaste-me num colégio moderno, de onde não só se aprende a brilhar em sociedade e comer com elegância. Ensinaram-me a desenvolver-me na vida, e fizeram-me olvidar que era uma ”milady” inglesa e tu eras um homem de negócios, desde que te instruíram na vida. Eu devo ser digna de ti. E hei-de demonstrá-lo defendendo o que é nosso.

 

E como, Sónia?

 

De uma maneira digna e sagaz. Eles, pelo que observo, foram astutos. Permite-me que durante esta semana ponha-me ao serviço de ”Sir” Dawes como secretária. Como mulher que sou e que entendo bastante de negócios, farei que o enviado da Companhia Kelic não possa penetrar até ao fundo deste.

 

E que pretendes, querida? perguntou o pai, ainda sem compreender.

 

Muito simples. Se consigo que não se inteire da verdade...

 

Não podemos fazê-lo, porque ela existe acrescentou o aristocrata com desalento.

 

Para isso estou eu aqui. Parece-me bem que o convides para o nosso castelo como hóspede de honra. E, por sua vez, eu me converterei em sua secretária.

 

Sónia, tu, minha filha...

 

Papá, desce das nuvens. Sou tua filha, mas não um ser inconsciente que se limita a adornar nosso elegante lar. Devo ser uma mulher de negócios, digna filha tua.

 

Eu disse o cavalheiro com amargura não sube ser um bom homem de negócios. Lamento-o minha filha.

 

”Sir” Dawes, ajude-me a convencer o papá.

 

Já está convencido indicou, mas não crê na sua astúcia.

 

Não se trata disso, ”Sir” Dawes gritou, irritado, lorde Crowther. Trata-se de minha filha. E não quero vê-la envolvida neste assunto. Temos perdido muito dinheiro durante estes últimos anos. Devemos dar graças a Deus por encontrar uma companhia que se associa à nossa ruína.

 

E não te sugere nada esse facto, papá?

 

Não te compreendo.

 

Se eles se associam à nossa ruína, sendo como dizes tão poderosos, é de temer que eles não o consideram ruína. Seu plano, sem dúvida, é fazer sua essa ruína, que logo elevarão.

 

Esse é o nosso receio objectou ”Sir” Dawes.

 

Pois punhamo-nos em guarda, e permite-me tomar parte no assunto. Quantos dos nossos altos empregados conhecem o verdadeiro estado das nossas finanças?

 

Ninguém, excepto seu pai eu.

 

De acordo. Vamos, papá? Falaremos tu e eu de passagem para o castelo. Amanhã participaremos a ”Sir” Dawes o que tenhas concordado.

 

Hum!

 

E com o significativo grunhido, seguiu docilmente a filha.

 

”Milady”!...

 

Nada de tratamentos, ”Sir” Dawes. Chame-me menina Sónia. Agrada-me...

 

Que faz aqui?

 

Encontrava-se revolvendo as gavetas. Tinha sobre a mesa um montão de papéis. Fumava um cigarro e estudava atentamente aqueles documentos, quando ”Sir” Dawes penetrou no escritório.

 

Passei a noite no gabinete do castelo com o papá, estudando os assuntos da mina. Permita-me que lhe diga, ”Sir” Dawes, que houve muito descuido nestes últimos anos.

 

Mais do que descuido, perdas sem fundamento. É lamentável. Ignorar porquê se originaram essas perdas.

 

Não via que alguém mais poderoso do que vocês preparava a vossa ruína?

 

Pensei muitas vezes, mas nunca pude certificar-me com exactidão. E mais, em algumas ocasiões tive a suspeita de que alguém aproveitava, em seu benefício, o mais ligeiro falhanço da nossa companhia.

 

Nunca fez uma investigação?

 

Quando tratei de fazê-la, tínhamos um ”déficit” de tal envergadura, que me assustei.

 

E indicou a meu pai a possibilidade de uma venda.

 

Foi quando vendemos uma fundição.

 

Seu primeiro grande erro, meu amigo.

 

Certamente.

 

Bem, vamos tratar de afogar o inimigo que trabalhou na sombra. Pelo menos, não poderão saber a nossa arma actual, que será o dissimulo e a ignorância.

 

A ignorância?

 

Dos seus propósitos, se é que os têm.

 

Hum!

 

Quando se apresentar aqui o enviado especial da Companhia Kelic, faça-lhe você ver que não só sou sua secretária, mas sim sua conselheira. Como filha de Crowther, tenho direito a alguma autoridade.

 

Contemplou-a, admirado.

 

Quem a ensinou a desenvolver-se nos negócios?

 

Papá teve a boa ideia de enviar-me a um colégio de onde se aprendia de tudo. E, há algo ainda mais importante, ”Sir” Dawes. Amo o papá, amo a minha posição económica, e não estou disposta a perdê-la. Estimo que possamos formar sociedade com a Companhia Kelic, mas nunca permitir que nos trate como se nós fôssemos uns miseráveis.

 

Que armas pensa esgrimir para a defesa?

 

Ainda não sei. Prefiro ver primeiro com as que eles vão atacar.

 

É uma inteligente posição.

 

Pois eu trabalho, ”Sir” Dawes. E quando o papá me atacar, defenda-me você. A ele o humilde que me misture nestas coisas, que me sente atrás desta mesa. Você tem ascendente sobre ele. Faça-lhe ver que hoje a mulher não representa algo na vida só pelo que é, sim pelo que sabe.

 

E agradar-me-ia demonstrar ao papá que não só sou uma ”milady” inglesa.

 

Admiro-a.

 

Obrigada, ”Sir” Dawes. Vamos trabalhar? Fizeram-no durante todo o dia e toda a semana. No final desta, Sónia Crowther achava-se tão a par do negócio de carvões como seu pai, se bem as ideias modernas da filha, ultrapassavam as do pai.

 

Lorde Crowther dizia naquela tarde a ”Sir” Dawes:

 

Não creio que possamos fazer frente à situação.

 

Tal como sua filha a apresenta, sim, senhor.

 

São fantasias.

 

Claro que não. Ela trabalha sobre esmagantes realidades. Asseguro-lhe que jamais conheci jovem mais decidida, lutadora e por sua vez inteligente. Temos mudado os livros verdadeiros por outros falsos.

 

E isso é honrado?

 

Isso é essencial. Por estes livros não serão capazes de conhecer a nossa verdadeira situação, e é do que se trata.

 

Estamos cometendo uma fraude.

 

Uma fraude que nos livra da ruína, e por sua vez nos pode colocar numa situação favorável. Só se trata de mudar a aparência; de outra forma aproveitar-se-iam dela. Deste modo não nos receiam, mas tão-pouco trataram de provocar-nos, por receio à mordedura.

 

”Sir” Dawes!

 

Por favor, limite-se a ver com indiferença e naturalidade, ao mesmo tempo, a nossa posição de alertas.

 

É minha filha a que fragua esta insenta posição.

 

É sua filha, com efeito, a primeira que viu a cilada em que tínhamos caído nós. Desde quando no-la a estão estendendo?

 

Não nos estenderam nada.

 

Pelo que for, a Companhia Kelic deseja a nossa ruína.

 

Isso não é certo.

 

Asseguro-lhe que o é. O desesperante é que não o tínhamos descoberto até agora. Esperemos que ainda tenha remédio a queda.

 

Burt apeou-se do luxuoso automóvel, e fez um sinal ao seu ajudante.

 

Bill, espere-me aqui. Tinha interesse em cumprimentar ”Sir” Dawes no seu escritório.

 

Sim, senhor.

 

Logo iremos para o hotel. E cerrando a porta, acrescentou. É possível que ”Sir” Dawes ainda não tenha chegado. Esperarei por ele.

 

Atravessou a rua e perdeu-se no edifício de ladrilho vermelho, onde se encontravam as oficinas centrais das minas.

 

Reconheceu aqueles lugares. Sentiu dor e pesar. Por aqueles estreitos corredores, havia cruzado mais de uma vez, em busca de seu pai. Pensou: ”Sou morboso. Nunca devia voltar ao lugar da minha humilhação e minha dor. E, não obstante, sinto um profundo prazer vendo de novo tudo isto...

 

Na larga sala havia muitas janelinhas, atrás das quais viu rostos indiferentes que nem sequer reparavam nele. Burt encolheu os ombros e saiu daquela sala para se dirigir a outra. Mais janelinhas e mais rostos indiferentes, e ruído de máquinas de escrever.

 

Um ”groom” aproximou-se:

 

Posso servi-lo em algo, senhor?

 

Olhou-o com curiosidade. Teria a mesma idade que ele quando deixou a comarca. Se não tivesse morrido seu pai, ele também seria um ”groom”, depois chegaria a empregado, e mais tarde, talvez, um delineante. Sacudiu a cabeça.

 

Procuro ”Sir” Dawes.

 

Não chegou ainda, senhor. Mas se deseja falar com a sua secretária...

 

Gostaria.

 

Por ali, senhor assinalou um corredor escuro e uma porta de vidro. Aonde diz ”Direcção”. Acompanho-o, senhor?

 

Não é preciso, obrigado, rapaz.

 

De nada, senhor.

 

Burt olhou-o com simpatia. Via-se a si mesmo, se não tivesse existido seu tio Robert. Inesperadamente, meteu a mão no bolso, extraiu uma moeda e depositou-a na mão do rapazinho.

 

Obrigado, senhor sussurrou este, emocionado. Burt sorriu-lhe, e, rapidamente, dirigiu-se à porta de vidros indicada. Bateu com os nós dos dedos. Uma voz feminina, suave e educada, disse:

 

Entre.

 

Burt empurrou a porta e encontrou-se numa sala ampla e aquecida, com uma mesa ao fundo, atrás da qual se sentava uma jovem loira, de grandes olhos cor de mel e boca bem desenhada.

 

Entre senhor convidou Sónia sem imaginar que o elegante desconhecido de gabardina e chapéu azul marinho era o enviado especial da Companhia Kelic. Entre, senhor.

 

Burt, um tanto impressionado pela beleza daquela secretária, avançou, ao mesmo tempo que tirava o chapéu.

 

Permita-me que me apresente disse. Sou o enviado especial da Companhia Kelic.

 

Sónia teve de conter um sobressalto. Certamente, devia confessar que não esperava encontrar-se com um enviado tão jovem. Porque aquele homem teria pouco mais de trinta anos.

 

Estendeu a mão e disse amavelmente:

 

Pode sentar-se, senhor...

 

Kelsey disse Burt com simplicidade.

 

Encantada de conhecê-lo, senhor Kelsey. Eu sou Sónia Crowther.

 

Burt esteve a ponto de denunciar-se. O facto de que aquela bela jovem, tão pessoal e segura de si mesma, fosse a mesma menina ante a qual o obrigou um criado a ajoelhar-se, o encheu de indignação. Mas era bastante diplomático para dominar a sua irritação:

 

Alegro-me de conhecê-la.

 

Tome assento. Saiba, senhor Kelsey, que meu pai esperava-o esta tarde no castelo.

 

Quis visitar primeiro as oficinas. Pareceu-me mais correcto.

 

De igual modo o teria sido se se dirigisse ao nosso castelo. Com gentil desenvoltura, que molestou Burt ainda que não o confessasse, acrescentou. Telefonarei ao papá e a ”Sir” Dawes. Agradar-lhes-á, saudá-lo.

 

Dispôs-se a marcar o número mas Burt inclinou-se para ela e apressou-se a dizer:

 

Não o faça. Trocarei impressões consigo e logo irei descansar um pouco no meu hotel. Pela tarde terei muito gosto em visitá-lo de novo.

 

De modo algum, senhor. Meu pai tem intenção de convidá-lo a visitar o nosso castelo. Se se instala no hotel, ofender-se-ia.

 

Não o desejava. Ele tinha ido a Merthyrt-Tydfl despojar aquela gente das suas minas. E esperava liquidar o assunto quanto antes. Não estava, pois disposto a admitir as suas amabilidades. A filha de lorde Crowther, secretária na oficina? Era o que menos podia esperar.

 

Ele recordava uma menina de tranças loiras e olhos melados, orgulhosa e fria. Uma menina de sete anos que lhe atirou neve à cara. E agora encontrava-se com uma jovem afável, belíssima, cheia de encanto, que, com simplicidade, o convidava a instalar-se no castelo. Não, não. Necessitava de toda a sua força moral para fazer-lhes dano como lhe fizeram naquele dia que, correndo, seguiu só o féretro de seu pai, para o cemitério.

 

Por favor disse ela, detendo os pensamentos de Burt, tome assento.

 

Prefiro voltar noutro momento. Agradeço a sua amabilidade, menina Sónia, mas tenho precisão de descansar. Há vários dias que viajo sem deter-me, cheguei ontem de Filadélfia, e viajei boa parte da noite para chegar aqui esta manhã.

 

Servir-lhe-ei uma taça de café.

 

Oh, não! Não se moleste.

 

Não é tal, senhor Kelsey. É um prazer para mim poder ser-lhe útil.

 

Não, não queria tanta amabilidade. Ele não tinha ido ali para tomar café, servido por aquelas mãos, nem para ouvir a voz suave e educada da aristocrata elegante, convertida de repente em secretária.

 

Deteve seus pensamentos. Sónia se pôs em pé, e Burt, que não era homem indiferente nem muito menos aos encantos femininos, palpadeou. Ante aquele corpo esbelto, e aquela cabeça arrogante e aqueles modos esquisitos que lhe faziam recordar Flossie Wilson... Maldita sejas! Porque tinha ele que ser tão impressionável? Apertou os lábios e desviou os olhos daquele corpo. Sónia, indiferente à muda contemplação de que era objecto, ainda que a pressentia porque estava habituada à admiração dos homens, aproximou-se de uma janelinha, carregou um botão, a janelinha abriu-se e Sónia meteu a mão e tirou uma chávena de fumegante café.

 

Tome-o, você. Faz muito frio nestes lugares. Sem dúvida acrescentou depositando a chávena de café sobre a mesa em frente de Burt em Londres também faz frio, mas nunca como nestas cidades. No centro de Merthyr-Tydfl não se sente tanto. Tome assento, por favor.

 

Como sugestionado, Burt sentou-se e aceitou o café.

 

Obrigado disse. Muito obrigado.

 

Se me permite sentar-me-ei à sua frente.

 

Fê-lo sem esperar resposta, e acendeu um cigarro, que fumou com prazer, e tanta feminilidade, que Burt de novo afastou dela o olhar.

 

Recusa estar muito tempo entre nós, senhor Kelsey?

 

Depende.

 

Saiba que sou a encarregada de fazer-lhe as honras. Olhou-a, prescrutador.

 

Você é a filha de lord Crowther?

 

Sim. E então?

 

É o que eu me pergunto, ”lady” Sónia.

 

Oh, não! riu ela divertida. Não me chame ”lady”... Aqui sou Sónia apenas. Quando uma jovem se dedica aos negócios, não se pode perder o tempo em tratamentos.

 

Não saía do seu assombro, e, com franqueza, exclamou:

 

Imaginava-a num salão perfumado, entre flores e móveis de luxo.

 

Sónia abriu muito os olhos.

 

É que... conhecia a minha existência? Burt mordeu os lábios. Rapidamente disse:

 

Não desconhecíamos que lord Crowther tinha uma filha.

 

Ah! e com curiosidade. Conhece meu pai?

 

Temos negócios com ele desde há muitos meses.

 

Conhece-o pessoalmente?

 

Não.

 

Não toma o seu café? Uma vez o tenha feito, terei muito gosto em acompanhá-lo ao castelo.

 

De modo algum. Tenho o carro esperando. Irei para um hotel, e pela tarde uma vez que tenha descansado, os visitarei no castelo.

 

Asseguro-lhe que não o permitirei riu ela gratamente. O papá não o admitiria. Você se instalará no nosso castelo enquanto permanecer na cidade.

 

Senhorita...

 

Não aceito desculpas disse ela, enérgica e afàvelmente.

 

Burt sentiu-se molestado. Tanta amabilidade surpreendeu-o. Ele era um homem de negócios, e tinha ido ali despojar Crowther. E pouco lhe restava das suas minas. Era um assunto ligeiro, sem muitos quebra cabeças. E ele não estava para perder o tempo. E aquela amabilidade o confundia.

 

Pôs-se de pé, e Sónia imitou-o.

 

Perguntou-se se aquela mulher tinha sido posta ali precisamente para refrear seus impulsos. Não por certo. Tratou de desculpar-se amavelmente, mas ela, como se penetrasse em seus pensamentos, apressou-se a segurar o abrigo e exclamou:

 

Estou pronta, senhor Kelsey. Então Burt, disse:

 

Agradeço-lhe, mas não posso aceitar.

 

Foram tão secas as suas palavras que Sónia, paralizada, não teve coragem para insistir.

 

Ainda não se tinha instalado no hotel quando irrompeu no vestíbulo lord Crowther em pessoa. Reconheceu-o. Mais velho, cabelos brancos, rugas no rosto, se bem que o mesmo galhardo e elegante aristrocrata. O mesmo que deixou enterrar seu pai sem acompanhamento. O mesmo que por intermédio de outro lhe ofereceu um lugar de limpador de oficinas... Mordeu os lábios. Não teria piedade dele. Que, entretanto não o despojava de seus bens, devia ser amável e complacente? Sê-lo-ia, mas nem por isso, no final da sua investigação, deixaria de proceder como se havia proposto. Fá-lo-ia, sim, porque lhe agradaria vê-lo chorar. Chorar como ele chorou naquele dia, quando a fria e fúnebre carroça rodava solitária a caminho da última morada de seu pai.

 

Lord Crowther, elegante, muito senhor, muito bem vestido, aproximou-se dele com a mão estendida.

 

Cavalheiro exclamou quanto me alegra conhecê-lo. Porque riu amável suponho que será o enviado da Companhia Kelic.

 

Por certo.

 

Eu sou lord Crowther.

 

Encantado de conhecê-lo disse Burt, apertando a mão que se lhe estendia.

 

Não posso consentir que se instale aqui. Minha filha telefonou-me advertindo-me da sua chegada, e eu apressei-me a vir. Você terá que acompanhar-me, senhor...

 

Kelsey.

 

Kelsey? forma parte da companhia? Burt respondeu com simplicidade:

 

Sou um dos accionistas mais importantes.

 

Oh! E ocultando o seu receio apressou-se a acrescentar: Terá você que acompanhar-me. Não posso consentir...

 

Agradeço-lhe, senhor, mas...

 

Não, não. Não me faça essa desfeita.

 

De modo algum queria acompanhá-lo, mas quando quis dar-se conta já se encontrava no carro de lord Crowther, e o seu rodava atrás, conduzido pelo seu ajudante.

 

Agradar-lhe-á o castelo e seus arredores. Saiba que tem coutos de caça, grandes alamedas, e minha filha lhe fará as honras. Compreenda, senhor Kelsey, você não pode hospedar-se num hotel. Tem que ser nosso hóspede de honra.

 

Terei que vir muitas vezes a Merthyr-Tydfl disse Burt e não posso abusar da sua hospitalidade.

 

Muito pelo contrário. Sentir-me-ei ofendido se não se hospeda no meu castelo e sem transição, enquanto conduzia o automóvel, perguntou: Conhecia MerthyrTydfl?

 

Sim.

 

Olhou-o com assombro.

 

Conhecia? Tanto melhor. Se sentirá a seu gosto entre nós. De certo não terá pressa em regressar a Londres.

 

”Tão depressa ponha tudo em claro e fiques sem uma libra”, pensou Burt. Mas em voz alta exclamou:

 

Tenho muitos negócios pendentes em Londres e em Filadélfia, e inclusive em Nova Iorque, aonde me desloco uma vez por mês, mas de todos os modos penso passar aqui uma ou duas semanas.

 

Magnífico. Organizarei uma caçada, e se divertirá você.

 

Burt acendeu um cigarro e pensou que a atitude de lord Crowther, assim como da sua filha, tinha algo de suspeito. Não se deixaria enganar. Ele tinha ido àquela cidade, não só ultimar um negócio, mas sim vingar a desumana forma em que seu pai foi trasladado ao cemitério, e a acção que teve lugar no parque daquele castelo, onde um criado o obrigou a ajoelhar-se diante de uma mocosa aristocrata. A mocosa que agora era uma esplêndida mulher. ”Sou demasiado impressíonável pensou seguidamente. Parece-me muito formosa a rapariga que agora faz o papel de secretária. Se tivesse tido Flossie, talvez não me tivesse parecido tão bonita esta mulher...”.

 

Viu ”sir” Dawes?

 

Não, senhor.

 

É um grande homem de negócios. Trabalha comigo desde que meu pai me deixou em propriedade estas minas.

 

Burt pensou que diria ”sir” Dawes quando o visse. Reconhecê-lo-ia? Não, tinham passado muitos anos, e, por outra parte, o nome de Kelsey lhe seria tão indiferente como a lord Crowther. Claro... seu pai tinha sido apenas um mineiro. Um mais dos muitos que faleciam em cada ano naquela comarca. Mas havia uma diferença, Kelsey tinha sido seu pai. E os outros não lhe importavam.

 

Chegámos exclamou lord Crowther, detendo o carro diante da escadaria principal.

 

No alto, Burt viu Sónia.

 

Kelsey desapareceu atrás do lacaio metido numa rica libré, que o conduzia ao seu quarto, e Sónia olhou para seu pai.

 

Creio que no princípio nos comportamos bem disse o cavalheiro, passando uma das mãos pela fronte. Mas, repito, não me agrada nada ver-te metida neste assunto, Sónia.

 

Não creias que o convenceste, papá. Esse homem traz algum objectivo, e por nada nem ninguém o olvidará sentou-se numa cadeira e acendeu um cigarro. Pensativamente, acrescentou: Dir-se-ia que não fomos capazes de derreter o gelo que o recobre. E sabes, papá? Dá-me a sensação de que nos conhece.

 

Possivelmente. Ainda que não sei que relação possa ter esse gelo connosco.

 

Eu tampouco. Mas recorda que estudei três anos de psicologia.

 

E então? Que descobriste?

 

Que há algo mais sob a sua fronte. Algo mais que a ideia de fazer uma simples investigação.

 

Sónia, dir-te-ei uma coisa. Se este homem descobre a nossa verdadeira situação, considerará que a Companhia Kelic é demasiado poderosa para nós, e anulará não só o contrato, sem que, com todo o direito, nos liquidará a nós, e ficarei apenas com as minas.

 

É isso o que temos de evitar, ou não?

 

Isso é o que tu e ”sir” Dawes vos empenhais em evitar, e eu vos faço caso.

 

Vai nisso a nossa honra, papá disse a jovem amargamente. Nossa honra e nosso prestígio económico. Não estamos em tempo de feudalismo em que os brasões eram mais importantes que o dinheiro.

 

Eu sei.

 

Lutaremos. Asseguro-te que lhe será difícil descobrir o verdadeiro estado da nossa economia.

 

Um criado anunciou naquele instante a chegada de ”sir” Dawes.

 

Que entre imediatamente. Já o tinham diante deles.

 

Acabo de inteirar-me disse o recém-chegado, nervosamente.

 

Sente-se ”sir” Dawes convidou Sónia. O papá e eu estamos tratando de evitar a derrota.

 

Será possível?

 

Será opiniou Sónia com energia. Não creio que se atreva com uma mulher.

 

Um homem de negócios, Sónia, minha filha...

 

Um homem de negócios cortou ela com decisão é um ser vulnerável como outro qualquer. Terá um pouco de delicadeza, e não se atreverá a lutar com as cartas de boca para cima, com uma mulher que se empenha em não as ler.

 

Senhorita Sónia...

 

Porque não deixam este assunto de uma vez?

 

Porque não pode ser. Abandonaremos uma parte, mas de modo algum todo.

 

Deixemo-lo por um momento disse lord Crowther. Oiça-me, ”sir” Dawes, não se trata de um tipo vulgar. Não é um engenheiro mais da Companhia, é um accionista da dita companhia.

 

Um accionista?

 

Um dos principais: Chama-se Kelsey. ”Sir” Dawes franziu o cenho.

 

Kelsey? Adiante, a que me soa esse apelido.

 

Também a mim. Mas não sei de quê.

 

Há muitos apelidos iguais opinou Sónia, indiferente. E tampouco me assusta o facto de que pertença à companhia. Temos armas para lutar contra ele.

 

Que armas? perguntou o pai. Sónia deu de ombros.

 

A astúcia, já lho disse. Porque não me deixais a mim?

 

Não seria honrado que recaísse todo o peso sobre os seus ombros, ”milady”.

 

Já lhe disse muitas vezes, ”sir” Dawes, que se esqueça do tratamento quando falarmos de negócios. Vamos tomar o chá?

 

Correctamente vestido de castanho com um cigarro entre os lábios, Burt achava-se no terraço, junto do seu ajudante.

 

Bill exclamou de repente. Isto é uma prisão.

 

Talvez te enganes.

 

Sabes que não me engano facilmente. Eu vim aqui tratar de negócios, não para receber cortesias.

 

Podemos tratar de negócios amanhã, Burt impacientou-se o outro engenheiro. À última hora, acabamos de chegar, como quem diz. Esta gente julga-se obrigada a nós. Trata-nos como merecemos.

 

Não sejas absurdo. Já te disse que este homem tão cortês recalcou deixou que meu pai fosse enterrado sem acompanhamento.

 

Bem, isso pertence ao passado.

 

Um passado que eu tenho presente, porque o vivi e sofri. E essa menina...

 

Que é uma bela mulher acrescentou Bill, trocista.

 

Bem, essa foi quem me fez ajoelhar...

 

Olvida o passado, Burt. E dedica-te ao presente. Não pôde responder, porque Sónia, bela e encantadoramente feminina, apareceu no terraço.

 

Senhor Kelsey, senhor Whalley, que abandonados os tenho.

 

Bill disse entre dentes:

 

Assusta-me tanta beleza. Vou buscar o carro e irei dar uma volta pela cidade. Aí te deixo com ela.

 

Inclinou-se diante da jovem e afastou-se. Sónia despediu-o com um sorriso, e aproximou-se da balaustrada.

 

Agrada-lhe a música, senhor Kelsey? perguntou amavelmente.

 

Conforme a música replicou Burt, o mais cortês que pôde.

 

A clássica.

 

Pois não disse sincero a música clássica enche-me de nostalgia, e eu sou um homem optimista. Prefiro a música moderna.

 

Não coincidimos.

 

Lamento-o por si.

 

Interessa-lhe dar um passeio pela alameda do parque?

 

Como queira, mas advirto-lhe que não vim aqui para passar o tempo. Vim tratar de negócios.

 

Oh! Há tempo para tudo. Olvide por um instante que é um homem de negócios, e dedique-se a descansar e dar gosto ao espírito. Nosso castelo é digno de ser contemplado detidamente.

 

Burt sentia-se mal-humorado por várias coisas. Porque desejava odiar aquela gente e não podia. Porque a amabilidade de que era objecto rectava energias à sua vingança. Porque estava ali para falar de negócios e desejava marchar quanto antes; porque o tinham convidado e se sentia comprometido e obrigado a uma cortesia que não ia de harmonia com o seu carácter, e porque aquela rapariga era demasiado bela e lhe agradava. Agradava-lhe, sim, mas antes lhe agradaram outras, e nem por isso as amou.

 

Descortês, disse:

 

Não sou aficionado das velhas fortalezas, senhorita Crowther.

 

Que faz você em Londres? perguntou ela de repente, como se não se desse por aludida, com encantadora ingenuidade.

 

Kelsey olhou-a brevemente. Ou era tonta ou demasiado esperta. E nenhuma de ambas coisas lhe agradava.

 

Dedico-me aos negócios.

 

Você é solteiro?

 

Por certo disse rapidamente.

 

Di-lo de uma forma riu como se o casamento lhe causasse espanto.

 

Em certo modo me causa. Não sou homem que se ate a uma obrigação sentimental.

 

Pelos vistos, para você o amor é tão pouco importante como a nossa fortaleza.

 

Engana-se. O amor é muito importante na vida do homem, quando o homem o sente, naturalmente.

 

Pelo que observo, você jamais o sentiu. Olhou-a outra vez e perguntou trocistamente:

 

Você sentiu-o?

 

Ela ruborizou-se sob o peso do seu olhar. A Burt lhe pareceu mais feminina e infinitamente mais bela.

 

Não. Nunca o senti disse em voz baixa.

 

E gostaria de sentir.

 

Como todas as mulheres. Não creio que você me julgue diferente da generalidade feminina.

 

Não disse como a considerava. Passavam pelo parque e, de repente, Sónia deteve-se.

 

Olhe quem chega. ”Sir” Dawes. Terei muito gosto em apresentá-lo.

 

O cavalheiro de cabelos brancos e olhar agudo, já estava a seu lado.

 

Burt olhou-o e ”sir” Dawes, parpadeante, exclamou:

 

Nós vimo-nos em alguma parte?

 

Possivelmente.

 

Senhor Kelsey apresentou Sónia sem reparar na atenção com que ambos se apresentavam mutuamente. ”Sir” Dawes.

 

Os dois homens apertaram as mãos e, juntos os três, dirigiram-se ao castelo.

 

Ficou pensativo, ”sir” Dawes disse Sónia quando a alta figura de Burt se perdeu atrás da porta.

 

Com efeito. Há algo nesse homem que me resulta familiar. Apostaria que não é a primeira vez que o vejo.

 

Confundi-lo-á com outro.

 

Não. Vi-o antes, não sei aonde nem em que circunstâncias, mas é evidente que o seu rosto me é familiar e até o seu apelido. Lord Crowther acrescentou, olhando o cavalheiro que, recostado na janela olhava para o jardim não lhe diz nada esse apelido?

 

Foi uma impressão repentina quando o ouvi disse sem se voltar mas logo o associei à Companhia Kelic.

 

Não se trata disso.

 

Que olhas, papá?

 

O senhor Kelsey. Passava pelo parque fumando quando Jim, o nosso jardineiro, o deteve. Falaram um pouco e Kelsey continuou o seu caminho, e Jim ainda permanece parado, contemplando as largas costas do nosso convidado.

 

Chame o Jim pediu ”sir” Dawes trocista, ao mesmo tempo que chupava no cigarro. Talvez este, com os seus olhos de lince velho, possa tirar-nos desta dúvida. Chame-o, por favor.

 

Sónia carregava na campainha naquele mesmo instante, e apareceu uma criada.

 

Diga ao jardineiro que venha cá imediatamente.

 

Sim, ”milady”.

 

Segundos depois, Jim apresentava-se no salão, com o boné enrodilhado entre os dedos.

 

Que lhe disse o senhor que deteve você há instantes? perguntou Sónia.

 

É o filho do velho Kelsey, ”milady”. Era ”milady” muito jovem quando seu pai faleceu. Recordo que eu próprio o fiz ajoelhar diante de ”milady”.

 

Pai e filha olharam-se. ”Sir” Dawes, mais sereno, acercou-se do jardineiro e tomou a palavra:

 

A que velho Kelsey se refere você?

 

Casou-se já entrado. Sua esposa morreu ao dar à luz o jovem que encontrei no parque explicou o jardineiro confrangido de poder falar ante seus amos. O menino se criou nos braços dos vizinhos. Mais tarde, quando o jovem tinha uns dezassete anos seu pai faleceu.

 

A que se dedicava seu pai, Jim?

 

Era mineiro, ”milady”.

 

Mineiro?

 

Sim, ”milady”. Eu o recordo porque vi Burt Kelsey seguir o féretro de seu pai, só e correndo, pois se negou a subir para o carro.

 

Já...”sir” Dawes molhou os lábios. Já sei a quem se refere. Pode retirar-se, Jim. E obrigado. Peço-lhe que não fale disto ao senhor Kelsey.

 

Sim, senhor.

 

Afastou-se. Houve um longo silêncio no salão. Os três olharam-se, intranquilos, um tanto assustados.

 

Bem exclamou lord Crowther, rompendo aquele silêncio. Já sabemos... porque nos é familiar o apelido.

 

Receio que as coisas se compliquem.

 

Porquê, ”sir” Dawes? perguntou Sónia, intrigada.

 

Era demasiado criança quando ocorreu aquilo. Eu recordo o jovem orgulhoso que se apresentou no meu gabinete e se negou a limpar as oficinas. Recordo também que o velho Kelsey, com o pouco que ganhava, pagava os estudos a seu filho. Recordo assim mesmo que tinha um irmão rico em Londres...

 

E tu Sónia? perguntou muito baixo o pai. Não recordas o jovem que se ajoelhou diante de ti?

 

Não tenho nenhuma ideia, papá.

 

Bem. Agora já sabemos que não se trata de uma companhia interessada em nossos negócios, mas sim de uma vingança pessoal.

 

Podes enganar-te, papá.

 

Não, filhinha. Dou-me conta neste instante de tudo o que persegue esse homem. Kelsey, pelo que se passou, não olvidou que existíamos, e ao ver-se feito engenheiro e com muito dinheiro, concentrou a sua atenção em nós. Porque um homem foi mineiro e não o acompanharam ao cemitério, ou porque um criado o fez ajoelhar-se diante de uma criança.

 

Ou também pode ser porque eu lhe ofereci como emprego, limpar as oficinas.

 

Como quer que seja, temos de ver-nos a contas com um sujeito perigoso, que não está disposto a permitir nosso ressurgimento. Parece-me Sónia, que deves retirar-te deste assunto.

 

Agora decidiu a jovem me interessa mais do que antes. Creio que, para lutar com ele, o primeiro que devemos fazer é ignorar que sabemos quem é.

 

Considero acertada a sugestão de sua filha, ”milord”.

 

Façam vocês o que lhes pareça. Considero que vamos ao fracasso, de qualquer forma que seja.

 

Estava só no escritório quando Burt, muito cedo, se apresentou nele. A jovem recebeu-o sorridente, mas ele estava de mau humor, ou não desejava o sorriso da aristocrata jovem que brincava a ser secretária.

 

Deu os bons dias, pendurou o chapéu e a gabardina, e entrou em cheio no assunto.

 

Senhorita Crowther, gostaria de fazer uma investigação aos arquivos e aos livros de contabilidade.

 

Naturalmente, senhor Kelsey. Precisamente eu ia falar-lhe disso esta tarde.

 

Sinto ter-me adiantado.

 

Está no seu direito. Prefere que o acompanhe o seu ajudante?

 

Não veio comigo.

 

Então, permita-me que lhe preste a minha ajuda.

 

Aceito.

 

Não esperamos por ”sir” Dawes?

 

Burt sentou-se numa cadeira, em frente da mesa atrás da qual estava sentada a jovem, e tamborilou com os dedos no tampo. Ela apressou-se a oferecer-lhe uma caixa de cigarros.

 

Pode fumar, senhor Kelsey.

 

Obrigado. Nunca fumo antes do almoço.

 

Você é metódico.

 

Não sou. É um costume adquirido do meu pai.

 

Engenheiro como você?

 

Mineiro.

 

Ah! e com um sorriso encantador. Quando quiser podemos começar.

 

Trabalharam toda a manhã.

 

Sónia intercalava as suas opiniões pessoais por qualquer outra coisa que não vinha ao caso, mas que distraía a mente de Kelsey. Mostrou-se ingénua, enternecedora, pessoal, avispada, optimista. Até ao extremo de que Burt, quando chegou a hora da comida, enrugou a fronte e exclamou, enfadado:

 

Que sarilho têm vocês aqui? Não entendo nada. Ou foi que a sua conversa me distraiu, ou que isto é um verdadeiro embrulho. Não percebo que classe de contabilidade usam vocês. De quando data isto?

 

De sempre, senhor Kelsey disse com serenidade tal, que Burt se sentiu desarmado, e, apertando os punhos, jurou afastar-se dali quanto antes e enviar Bill. Não estava ele para tratar com secretárias semelhantes. Necessitava, trabalhar bem e muito, Bill que o fizesse pois sabia-o tão bom como ele.

 

Tenho os nervos desfeitos comentou Burt, ao cabo de momentos. Pode dar-me agora um cigarro?

 

Não almoçou, senhor Kelsey.

 

Ao diabo. Oiça, senhorita, não me parece próprio que uma jovem como você carregue com este trabalho.

 

Não é assim, senhor Kelsey riu suavemente. Eu estou na direcção. Mas se você fizer um percurso pelas dependências desta casa, verá que cinquenta homens trabalham sem descanso nos departamentos contíguos.

 

Escute...

 

Não se sente fatigado?

 

Claro que não.

 

Mas estava cansado como jamais o estivera, e toda a culpa era dela. Não pensava dizer-lho. Não teria coragem. Era tão ingénua e tão bela por sua vez, e parecia tão inocente! Era a primeira vez que tropeçava com uma secretária formosa, feminina, que não olvidava a sua condição de mulher nem mesmo tratando de negócios.

 

Vemos empregados disse, sarcástico muitos milhares de libras nestes negócios. Temos considerado que a inversão merecia a pena. Cheguei aqui há uma semana para investigar, é hoje o primeiro dia que o faço e estou mais desconcertado que antes de chegar.

 

Não se preocupe. Ainda tem uns dias, e prometo-lhe que o ajudarei.

 

Ajudou-o, com efeito. Mas não fez mais que interrompê-lo, e o curioso é que Burt, tão experiente com as mulheres, não se deu conta daquela astúcia feminina que o envolvia e fazia fracassar suas investigações. E para maior cúmulo, ao finalizar a semana, Sónia lhe fez, com a sua ingenuidade habitual, esta pergunta:

 

Não poderemos recuperar a fundição, senhor Kelsey?

 

Ficou desconcertado. Desde há seis dias apenas se se detinha no castelo. Viu lord Crowther uma só vez, fora das horas das refeições, em que não se falava de negócios.

 

E ”sir” Dawes o encontrou várias vezes, indiferente, fazendo o seu percurso matinal, tranquilo e optimista. Isto o intrigou e o desconcertou.

 

Fê-lo compreender que a sua impressão com respeito ao estado económico daquelas minas era equivocada, e mais ainda o acreditou assim, quando a própria Sónia, serena e afável, lhe fez aquela pergunta.

 

Encontravam-se os dois dando fim à exploração investigadora, da qual Burt não tirou a limpo nada em absoluto, devido na maior parte à conversa simpática da jovem. Distraiu-o de tal modo com a sua voz e seus ditos graciosos, que não foi capaz, ele tão esperto nos negócios, de saber com certeza o que ocorria naquelas minas.

 

Por isso ficou paralizado quando Sónia fez aquela pergunta. Levantou a cabeça e ficou olhando-a, assombrado.

 

Vocês desejam tartamudeou recuperar a fundição?

 

Foi o que disse, senhor Kelsey.

 

Mas... espalmou a mão sobre o último livro aberto aqui não vejo... lucros fabulosos.

 

Não o são. Mas nossos fundos em reservas as ressaldam. Saiba você que a venda da fundição foi devida a uma imprudência do administrador. Por isso riu encantadoramente ocupei eu este lugar. Meu pai recebeu um grande desgosto e com subliteza acrescentou: Estamos dispostos a dar por ela o dobro do seu valor.

 

Ao dizer isto, pediu a Deus que lhe perdoasse a mentira, e, sem assustar-se, pensou que, ao aceitar Kelsey, pediria a seu pai que hipotecasse o castelo. Era uma operação perigosa, mas a única capaz de devolver-lhe a estabilidade económica e dar-lhes valor diante daquele homem que os odiava e ocultava o seu ódio sob um sorriso mundano.

 

De modo que estão vocês dispostos a recuperar a fundição.

 

Naturalmente. Já lhe disse, que nos encontramos bem de fundos. Por outra parte, as minas nos produzem bons dividendos...

 

Não os vejo claros.

 

Qual é o seu propósito, senhor Kelsey? Enquanto desfolhava distraidamente um livro, Burt recolheu os óculos e aguardou, ou seja reservou seus propósitos.

 

Bem disse por fim, sempre observado pelos bonitos olhos cor de mel. Que lhe parece se nos despedirmos ceando em Merthyr-Tydfl?

 

Meu pai nos espera no castelo.

 

Telefone-lhe.

 

Terei que vestir-me, senhor Kelsey, supondo que aceite o seu convite.

 

Você está muito bonita.

 

Era a primeira vez que o dizia, e ela desatou a rir com coqueteria.

 

É um galanteio, senhor Kelsey?

 

Burt paspadeou. Demónio de mulher! Pois não, não era um galanteio como tantos outros. Era a pura verdade. E o assombro para ele era que estava olvidando a morte de seu pai, a cena do parque, quando teve de pôr-se de joelhos diante de uma menina de sete anos, e até o emprego de limpar as oficinas, que lhe ofereceu ”sir” Dawes. Irritado consigo mesmo, pôs-se em pé e exclamou:

 

Não, não é um galanteio. Você aceita?

 

Por certo.

 

Pois, vamos.

 

Em princípio, e ainda sem dar-se conta, olharam-se com receio. Depois, à medida que a comida avançava, animaram-se os dois, e viram-se unicamente como dois amigos.

 

Não tem você amigos na cidade? perguntou ele, de repente.

 

Eduquei-me num colégio londrino. Passo verões fora. Os invernos me agrada dedicá-los ao papá!

 

E aos negócios.

 

Pois sim.

 

E não se aborrece?

 

Nunca. O aborrecimento não pode entrar em mim, porque sou optimista.

 

Contemplava-a, intrigado.

 

Você é muito bela disse ele, de súbito. É estranho que os homens a deixem em paz.

 

Você é um homem riu ela e, não obstante, se limitou sempre a tratar de negócios.

 

Vim para isso. Mas saiba você que nem um só momento deixei de dar-me conta de que você é uma mulher formosa.

 

Devo agradecer-lhe?

 

Se o faz, é porque não acredita na sua autêntica beleza.

 

Nunca me detive a contemplar-me a mim mesma. Nem nunca acreditei nos homens que mo diziam.

 

Nem em mim?

 

Você o faz de passagem. Quase posso acreditá-lo.

 

Sónia... Permite-me que a chame assim?

 

Desde já. Se é que vamos continuar sócios.

 

E continuaremos.

 

Teremos que nos ver com frequência.

 

Quer que lhe diga uma coisa? Há uns dias que cheguei aqui, convencido de que vocês estavam na ruína.

 

Oh! Como é possível que tenha acreditado isso?

 

Meus investigadores assim o confirmaram.

 

Dispôs você de um investigador péssimo.

 

Assim o observo. De todas as formas, alegro-me, por você, de que as coisas não se tenham desenrolado como eu esperava.

 

Sónia pensou que se descobria algum dia a cilada em que tinha caído, não lho perdoaria tão facilmente como o homem ajoelhado na neve. Por outra parte, teria que pedir a seu pai que hipotecasse o castelo, e sabia o terrível, que para o autor dos seus dias ia resultar aquela solução.

 

Deseja dançar? perguntou-lhe de repente.

 

É tarde senhor, Kelsey.

 

Se você é para mim Sónia, eu serei para você, Burt. E ao dizer isto, pensou no que diria Li-Chan-Yen se o ouvisse. ”Perdem-te as mulheres. As mulheres não são como os homens. Como é possível que esperes ser duro com os Crowther? Sê-lo-ias se não aparecesse esta mulher”.

 

Sacudiu a cabeça, afastando estes pensamentos, e pôs-se em pé.

 

Vamos, Sónia. Temos trabalhado demasiado esta semana. Olvidemos por um instante que somos sócios comerciais. Pensemos que somos um homem e uma mulher.

 

Asseguro-lhe que é muito tarde.

 

Uma dança apenas. E com súbito ardor, muito característico nele. Não me prive de abraçá-la um instante.

 

Senhor Kelsey...

 

Chame-me Burt.

 

E enlaçando-a pela cintura, levou-a até à pista.

 

Sónia sentia-se um pouco aturdida. Aprendeu a dançar no colégio. Foi apresentada na sociedade num salão familiar, dois anos antes, e desde então se recluiu no castelo e não fez vida de sociedade.

 

De repente, um homem diferente surgia na sua vida... Que ascendente chegaria a ter aquele homem na sua existência? Nenhum talvez. Partiria no dia seguinte, e talvez os deixasse em paz, limitando-se a seguir na sociedade, sem fazer mais investigações. Era preciso que, por si se lhe ocorria voltar a investigar, tivessem preparada a hipoteca do castelo.

 

Em que pensa você? perguntou ele, atraindo-a para si.

 

Oh!

 

Em quê?

 

Em nada que possa interessar-lhe.

 

Burt olhava-a. Ela viu-se obrigada a baixar os olhos, vermelha como uma papoila. Naquele instante já não era a mulher de negócios, mas sim uma simples mulher, e esta mulher dominara-a Burt.

 

Recordarei sempre os seus olhos, Sónia.

 

Por serem meus, ou porque lhe agradam?

 

Chame-me absurdo, mas deixe-me dizer-lhe que pelas duas coisas.

 

Observo que você está muito habituado a piropear as mulheres. Eu, em troca, não estou acostumada a tratar com homens.

 

Compreende-me, Sónia. A verdade é que sou um homem que vai direito ao objectivo, sem preâmbulos. Não estou habituado a piropear as mulheres, sim a tê-las quando as desejo.

 

Burt, você não é um vaidoso? Afastou-a um pouco para mirá-la.

 

Digo-lhe a verdade, Sónia!

 

Agradecer-lhe-ei.

 

No amor não creio. Creio, sim na existência da recordação amorosa. A você galanteio-a porque me afluem as palavras sem molestá-la. E porque com você a recordação teria sido uma ofensa.

 

Obrigado pela consideração que lhe mereço disse, trocista.

 

Pareço-lhe um pedante?

 

Deixa-me que lhe diga a verdade?

 

Agradeço-lhe.

 

Sim riu. Você pareceu-me um pedante chistoso. Ficou desconcertado. Nem esperava parecer-lhe um pedante, nem que ela se mostrasse tão sincera para lho dizer. Raciocinou, e sua paciência, seu sentimentalismo evaporou-se.

 

Certamente disse ao cabo de instantes. É tarde. Deseja que a leve a casa?

 

Se já se despediu de meu pai e de ”sir” Dawes, e parte ao amanhecer, suponho que seu ajudante se encontrará no hotel.

 

Assim é.

 

Pois não se incomode em levar-me a casa. Pela janela vejo o ”chauffeur” e o nosso carro. Papá me terá enviado o carro para evitar-lhe voltar ao castelo.

 

Acompanhou-a até à rua, e ali beijou os seus dedos.

 

Sónia! disse como homem, decepcionei-a.

 

Ela pensou que como homem não, mas como financeiro, sim.

 

Isso é impossível, Sónia gritou lord Crowther, irritado. Minha filha, enlouqueceste. Como podes pensar tu, uma Crowther, em semelhante coisa? Salvámos o momento crítico acrescentou, sufocado. Não há, pois, porque preocupar-se.

 

Sónia não respondeu em seguida. Dir-se-ia que naquele instante seu pai a havia convencido, dada a impossibilidade do nosso olhar. Mas não era assim. Catalogava o seu progenitor e pensava que jamais havia sido um homem industrial, ainda que sim um exagerado aristocrata. E para ser um bom industrial não podia pensar em sua aristocracia.

 

Descruzou as pernas e com calma acendeu um cigarro. Expeliu o fumo lentamente. Sentia sobre o seu rosto a aguda mirada de seu pai e a não menos aguda mirada de ”sir” Dawes, que sentados frente a frente, esperavam sem dúvida alguma um novo ataque, pois dado o carácter decidido e empreendedor de Sónia, era inútil confiar em que se conformasse com aquela breve explicação.

 

Com efeito, a jovem sacudiu elegantemente a cinza do seu cigarro. Pouco depois, disse serenamente:

 

E o senhor, ”sir” Dawes, vá pensando em hipotecar a sua formosa granja avícola.

 

De um salto, o aludido pôs-se em pé e contemplou Sónia como se esta fosse uma aparição do outro mundo.

 

Não me olhem assim, porque não sou um ser ressuscitado. Estou viva, e calculei bem as consequências de tudo nos últimos dias. Tenham em conta que tão depressa chegue a Londres, Burt Kelsey investigará. Consegui distraí-lo, mas só de momento. Estou segura de que não foi satisfeito dos resultados obtidos. É óbvio que não só o trouxe o desejo de levar a cabo um bom negócio,! sim um ódio pessoal, que graças a Deus, consegui aplanar em parte. Mas não é isso tudo. Quando faça as averiguações pertinentes ao caso, voltará, e desta vez ninguém poderá evitar o escândalo, a menos que eu possa justificar os fundos em reserva que mencionei, e só podemos obtê-los se hipotecarmos a granja e este castelo. Desconcertado e receoso, lord Crowther exclamou:

 

Jamais hipotecarei a casa dos meus antepassados, Sónia. Tua arma de trabalho não é eficaz.

 

Temia que pensasses assim replicou a jovem quietamente. Pois te advirto, papá, que não há outro remédio. E o senhor, ”sir” Davves, terá que colaborar comigo, a menos que deseje ver-nos envolvidos num escândalo.

 

Sónia, minha filha...

 

Não, papá, não trates de enternecer-me, porque de nada valeria. Desde que tenho uso da razão, vi-te lutando pelas minas. Centos de homens dependem de ti, e não só esses homens, sim as famílias destes. Advirto-os acrescentou com frialdade que Burt Kelsey se dará conta do engano de que foi objecto, e desta vez não o perdoará.

 

Não podemos evitá-lo, Sónia.

 

Oh, sim, ”sir” Dawes! O senhor é bastante inteligente para dar-se conta de que há uma forma digna de evitá-lo. Com dinheiro. E visto que não o possuímos, temos que hipotecar as quintas e fazer frente valentemente à situação.

 

Sónia, filha! -gritou afogadamente seu pai. A jovem olhou-o, serena.

 

Teus antepassados, papá, preferiram mil vezes que sejas um homem digno, a que, por guardar a tradição familiar, arruines a tua vida, a de tua filha e a de todos esses empregados. Pôs-se em pé, como dando por terminada a conversa. Não me fica nada mais que dizer. Tenham em conta que a bomba convertida em Burt Kelsey não tardará em estalar.

 

Minha filha...

 

Senhorita...

 

Lamento, meus queridos. Haveis dado poderes para me sentar ante a mesa do vosso gabinete. Fiz grandes descobertas. Não haveis sido previsores nem cuidadosos durante estes últimos anos. Burt Kelsey decidiu arruinar-nos e o conseguiu. Mas ainda fica uma arma ao nosso serviço, e só esgrimindo-a bem, poderemos salvar o escolho. Dinheiro, necessita-se dinheiro.

 

E não o temos, Sónia gritou, aterrado, lord Crowther.

 

Podemos obtê-lo, papá, só com hipotecas das vossas respectivas quintas de recreio. É bem pouco o que vos peço, ou não? Centos de famílias dependem da nossa decisão. Se quando Burt Kelsey regressar, eu possa manter a minha oferta de compra da fundição, teremos triunfado. Se isso não me é possível, a Companhia Kelic tomará conta das minas e vós haveis ido à ruína, porque não creio que possais manter a vossa posição só com as quintas.

 

Lord Crowther e ”sir” Dawes olharam-se ansiosamente. Sónia, com fingida indiferença, dirigiu-se à porta, e antes de sair acrescentou:

 

Por mim não me preocupa a ruína. Descobri uma coisa interessante. Agradam-me os negócios, e asseguro-vos que não morrerei de fome nem de impotência.

 

Sónia...

 

Só há uma solução, papá. Pensa nela e, sem transição, acrescentou: Vou dar um passeio a cavalo.

 

 

Kelsey empurrou a porta e penetrou no seu escritório. Flossie escrevia umas cartas à máquina.

 

Ao ver o seu chefe, pôs-se em pé e saudou-o. Burt olhou-a brevemente, correspondeu às saudações e, enquanto pendurava a gabardina e o chapéu no bengaleiro, indicou:

 

Diga ao senhor Li-Chan que o visitarei imediatamente.

 

A jovem, com a sua habitual parcimónia, abriu a palanca do ditafone e anunciou a visita do seu chefe.

 

Burt lançou sobre ela outro olhar. Comparou-a a Sónia Crowther. Vinha injectado de Sónia, e, com grande assombro, comprovou que sentia a mesma ansiedade ante aquela serena e imóvel rapariga de olhar verde e quieto.

 

Mal-humorado, passou diante dela e penetrou no gabinete contíguo, atravessou logo um corredor e encontrou-se nas dependências do seu sócio.

 

Burt exclamou este, pondo-se em pé. Já julgava que ficavas em Merthyr-Tydfl apertaram as mãos.

 

Toma assento, rapaz, e conta-me que se passou por lá. Quando chegaste?

 

Ao meio dia. Tens um cigarro? Empurrou-lhe uma caixa de laca.

 

Tu, como sempre, sem cigarros e com cinzeiro.

 

Tenho uma verdadeira mania. Esquece-me os cigarros em casa e logo fumo os dos meus amigos.

 

Um copo?

 

Não. Acabo de tomar café. Ouve, Li, tenho que dizer-te que fracassei ou já o adivinhavas?

 

Li tamborilou com os dedos sobre a mesa.

 

Não és tu dos que fracassam. Seria a primeira vez, Burt. E com picardia, acrescentou: Acaso outra secretária... atractiva?

 

Li!

 

Bem riu este. É o que costumam fazer os que estão à beira do fracasso. As secretárias bonitas e atractivas dão resultados satisfatórios.

 

Li... agitou-se não me metas o fracasso no corpo.

 

Li-Chan olhou-o com assombro.

 

Queres dizer que, com efeito, houve uma secretária?

 

e antes que ele respondesse, jocoso e irritado, acrescentou: Burt, és uma calamidade. Jamais tiveste noiva, nunca te conheci uma amante determinada, e, não obstante, te irritas como um condenado, enquanto tens a teu lado uma rapariga bonita. Um homem tão completo, tão pessoal, tão inteligente como tu, e as mulheres fazem-te em pó.

 

Burt pôs-se em pé e gritou, descomposto, pois lhe molestava que LI metesse o dedo na chaga tão certeira mente.

 

Não é certo. Não me irrito. O que se passa é que... passou os dedos pela fronte. O que se passa é que...

 

O que se passa sei o perfeitamente. Senta-te e põe-me ao corrente do ocorrido.

 

Bem mais sereno, deixou-se cair em frente dele. Fumou com pressa como se o cigarro fosse um sedativo para os seus nervos alterados.

 

Li desatou a rir.

 

Aposto que pensas que a amas.

- Li...

 

Era bonita?

 

Burt não pôde mais que exclamar:

 

Como uma aparição.

 

Meu querido amigo...

 

Sim, sim, já sei o que vais dizer. Cala-te, por mil demónios.

 

Quem era ela?

 

Sónia Crowther.

 

Viva! A menina que te obrigou a permanecer de joelhos na neve uns momentos. Caramba, Burt, que depressa guardaste o teu ódio.

 

Muito agitado, pôs-se de novo em pé. De costas para o sócio, resmungou:

 

-- Por ódio cheguei a fazer-me rico. Por ódio adquiri as acções da fundição. Senti-me bem, não é verdade?

 

Voltou-se para ele. Toda a vida tive esta enfermidade. Sou inimigo do casamento, e no entanto...

 

As mulheres enlouquecem-te.

 

Bem... nunca sentiste ânsia? Foste sempre tão frio. Li?

 

Não fales de mim. Toma assento de novo e refere me tudo.

 

-- Não há ruína. Fizeram-me uma proposta.

 

E qual?

 

A compra da fundição.

 

Que dizes?

 

Que a tua secretária bonita como uma aparição, te enganou. É mais esperta do que supões. E uma coisa, Burt. É a primeira vez que fracassas ergueu a voz. Existe a ruína. Tão palpável é que, se não o remediámos antes, terão ido à bancarrota antes de um ano, e se verão obrigados a fechar as minas. Cada dia que as minas permaneçam fechadas, a companhia se empenha em mais centenas de milhares de libras.

 

Não!

 

Sim, amigo. Escuta com calma e te darei a explicação prontamente.

 

Li-Chan-Yen terminou de falar e Burt permaneceu calado.

 

Só há uma solução para eles. Que nós, em vez de apoderar-nos das suas minas, os ajudemos. Em um ano recuperarão e terão pago o empréstimo. Mas tue olhou-o agudamente não quererás ajudar os teus inimigos.

 

Por mil demónios que não!

 

De acordo. Eu acrescentou burlão não teria inconveniente. A larga, essas minas representarão muito dinheiro.

 

Mas podem ser inteiramente nossas.

 

Não o olvido, se bem as conseguimos à força de vingança.

 

E pergunto-me, que se ganha com a vingança? Dinheiro algumas vezes, outras, as mais, decepções...

 

Que queres dizer?

 

Falaste-me muitas vezes de mulheres disse Li, impassível. No teu gabinete há uma dessas mulheres que te incendeia o sangue, mas jamais uma delas te incendiou o coração, Burt.

 

Não vais pensar que agora...

 

Não determinei ainda, mas sim posso dizer que me parece que te interessa mais que às outras.

 

Parvoíces!

 

Possivelmente e sem transição, como se olvidasse a existência de Sónia. Que pensas fazer?

 

Voltarei.

 

Se fracassas novamente e conseguem enganar-te...

 

Uma vez, Li, mas duas não há quem engane Burt.

 

De acordo, como necessito de ti aqui esta semana, sairás para Merthyr-Tydfl na próxima. Que te parece?

 

Gostaria de voltar hoje mesmo.

 

E teremos perdido um bom negócio aqui.

 

Burt pôs-se em pé, e Li-Chan olhou-o ironicamente. Com sarcasmo disse:

 

Vejo-te preocupado.

 

É a primeira vez que fracasso ante um caso tão evidente.

 

Distrai-te com Flossie.

 

Com essa? resmungou. É mais fria do que um ”iceberg”.

 

E que fazes tu que não derretes o gelo que a rodeia?

 

Já te disse irritou-se. Porque não me vou casar com ela, e Wilson seu pai, não conhece o sentido do humor.

 

Li desatou a rir.

 

És um D. Juan elegante, Burt, mas careces de imaginação.

 

O jovem sorriu sem responder, e quando chegou ao seu gabinete encontrou Flossie no mesmo sítio. Olhou-a. Continuava bonita e chamativa, silenciosa e fria. Mas já não lhe interessava como dantes. Não lhe chamava tanto à atenção.

 

Que trabalhos temos pendentes, menina Flossie? perguntou amavelmente.

 

Ela pôs-se em pé e Burt contemplou-a pensativamente. De súbito disse:

 

Quererá cear comigo esta noite? Ela olhou-o.

 

Porquê, senhor? perguntou. Burt enrugou o sobrolho.

 

Porquê? repetiu. Pois porque estou só e você não tem compromisso.

 

Ah!

 

A que horas posso ir buscá-la?

 

Às oito, senhor.

 

Obrigado.

 

Sentou-se atrás da secretária e Flossie fê-lo atrás da sua.

 

Burt abriu uma pasta. Pensou que não era interessante aquela rapariga. O facto de aceitar o seu convite sem se fazer rogar o desconcertou. É que reparava e desejava realmente aquela? Sentiu-se enervado. De súbito, tudo deixava de ter interesse para ele. Flossie, o assunto das minas, as outras mulheres... Sónia? Tinha uns olhos de cor do mel maravilhosos, e demais era diferente. Não sabia explicar-se em que radicava aquela diferença, mas era evidente que existia.

 

Às sete pôs-se em pé. Com grande assombro, observou que estava sozinho. Consultou o relógio. Tinham passado as horas sem sentir. Tinha o tempo suficiente e à justa para chegar a casa, mudar de roupa e ir buscar Flossie.

 

Sentiu-se decepcionado. Ao sair encontrou-se com Li.

 

- Que há?

 

Vou cear com Flossie.

 

Eu sei.

 

Sabes?

 

Disse-me seu pai riu. És um bom objectivo, Burt. Tem cuidado.

 

Afastou-se rindo. Kelsey sentiu de novo aquele asco que o empequenecia.

 

Estava recordando uma ceia olvidada. Por mais que fugisse, não conseguia concentrar a sua atenção na mulher que o acompanhava. Era muito formosa, certamente, mas carecia de encanto pessoal. Era como se, ao sair de casa, seu pai lhe tivesse dito.

 

”Olha bem o que fazes, Flossie. Esse homem convém-nos. É um dos melhores partidos do país, e possivelmente ser-te-á fácil caçá-lo. Mas olha bem como o fazes.”

 

E se isto não era certo, para ele como se o fosse, visto que Burt o havia imaginado assim, e a mulher perdia pontos, cada minuto que transcorria. A culpa de tudo era de Li-Chan, por lhe ter dito que o pai conhecia a notícia daquela ceia.

 

Você não tem noivo? perguntou Burt por dizer algo, já que o silêncio se prolongava e o desconcertava.

 

Não, senhor Kelsey.

 

E porquê?

 

Porque não achei ainda o homem da minha vida. Burt desatou a rir.

 

É um argumento que expõem todas as mulheres. Diga-me, é que todas necessitam encontrar o homem da sua vida?

 

Sem dúvida, senhor.

 

E os homens?

 

Também existe a mulher da sua vida.

 

Oh, muito interessante! E como deve ser o seu homem?

 

Observou-a sarcástico. Flossie não tinha aspecto de romântica nem sequer de sentimental. Era uma mulher que sabia o que queria. Por isso a havia colocado o astuto Wilson no seu escritório? Possivelmente. Pensou que, a não ser aquela breve viagem a Merthyr-Tydfl, talvez tivesse caído como um encanto. Claro que ele não estava enamorado da aristocrata, mas notou que era diferente da generalidade feminina, e isso, para um homem como ele, que conhecia de sobra o sexo oposto, significava muito.

 

Não me disse como é o seu ideal masculino? perguntou novamente.

 

Parece-se com o senhor.

 

Ah, ah! rapidamente perguntou. Agrada-lhe a comida?

 

Muito saborosa.

 

Encontrará você o homem da sua vida, ainda que não se pareça comigo riu, indiferente.

 

E, com assombro, compreendeu que Flossie não lhe interessava nem sequer como entretenimento de umas horas.

 

Levou-a a casa no seu carro, e ao despedir-se beijou-lhe a mão.

 

Menina Flossie disse passei um serão muito agradável a seu lado. Boas-noites, minha amiga.

 

Boas-noites, senhor.

 

De regresso a casa cantarolava. De súbito, sentia como uma libertação.

 

”Sou uma calamidade sussurrou. Ocorre-me sempre igual. Primeiro interessa-me uma mulher, obtendo-a mais ou menos, e já não volto a pensar nela jamais. Se todos os homens pensassem ou sentissem como eu, não haveria casamento, nem filhos, nem felicidade conjugal, comecei a conhecer a mulher demasiado cedo, sim, é isso o que me ocorre. Não creio nelas, nem nas palavras, nem nos seus sorrisos.

 

E pensou no sorriso de Sónia. Agradava-lhe aquele sorriso. E seus belos olhos cor de mel.

 

Bem resmungou. Não me terei enamorado? Seria absurdo que ocorresse, precisamente, com quem não tinha que ocorrer.

 

E porquê não pode ocorrer?

 

”Pois porque não resmungou. Porque não é mulher para mim”. E porquê não era mulher para ele? Por ter nascido com um título de ”lady”? Patetices.

 

Os títulos significam muito pouco, dada a evolução da vida. E Sónia havia-se comportado como uma autêntica financeira. Claro que o havia enganado. Bem, disso já falaria ele com calma.

 

Descobriu, assombrado, que não o feria o engano, e o curioso era que tão-pouco o humilhava ter fracassado.

 

Ficou suspenso com as mãos no volante.

 

Bem resmungou, mas é certo. Não me sinto nem ofendido nem humilhado. É absurdo.

 

Encolheu os ombros e conduziu o carro até à garagem.

 

Fechou a porta com um golpe seco e atravessou a estrada. Como em outra ocasião, penetrou no edifício e saíu-lhe ao encontro um ”groom”.

 

Que deseja?

 

Ver a menina Sónia.

 

”Milady” ainda não veio. Se deseja ver ”Sir” Dawes.

 

Não replicou rapidamente. Sabes aonde posso encontrá-la?

 

No castelo.

 

Obrigado.

 

Saiu de novo e, subindo para o carro, dirigiu-o para a estreita estrada que conduzia à cidade. Atravessou a mesma e subiu até ao castelo. Este erguia-se no alto da colina, soberbo e desafiante, quase fantasmagórico. Agradava lhe aquela fortaleza. Muitas vezes subira por aquele caminho, pela mão de seu pai, e aquele explicava-lhe o que significava o castelo. Ele sentia-se muito emocionado. E o velho Kelsey dizia-lhe:

 

Algum dia tu serás um homem, e não serás um mineiro como eu. E terás acesso ao castelo pela porta grande.

 

Sorriu ante aquelas recordações. Tanto tempo albergando ódio em seu coração, acumulando desejos de vingança, e, quando chegava a hora de a levar a cabo, só sabia esperar. Que esperava? Era absurdo. Claro que a sua vingança maior foi chegar aonde chegou. Ter sido filho de um humilde mineiro e conseguir ser quase poderoso.

 

”Sou-o? perguntou-se, sem deixar de contemplar, absorto a paisagem. Sou poderoso, ou sou como todos os outros mortais, um pobre homem dominado pelas paixões humanas?”

 

Encolheu os ombros. O carro freou ante o grande portão. Lentamente apareceu o rosto vermelho de Jim.

 

Senhor Kelsey.

 

Bons dias, Jim.

 


Quer passar, senhor?

 

É o que pretendo. Se é que... ”milady” está no castelo.

 

Não tardará em chegar. Como todas as manhãs, saiu a cavalo, a dar o passeio matinal.

 

Esperarei o seu regresso. E lorde Crowther?

 

Saiu no seu carro há instantes. Não o encontrou o senhor?

 

Não.

 

Então é porque desceu para as minas pela parte direita da colina. Por esse lado o caminho é mais curto.

 

Sim.

 

Conduza o carro para a entrada, senhor.

 

Assim o fez. Jim já estava a seu lado, com a ferramenta ao ombro.

 

Pelos vistos tu morrerás na casa. Sempre te vi aqui. Casaste-te?

 

Tenho dois meninos, senhor. Claro que morrerei aqui. Morreu meu pai, minha mãe, meu avô e meu bisavô.

 

Diz-me, Jim. Continuam indo os mortos sós até ao cemitério?

 

Não, senhor. Isso já passou. Agora acompanham-nos os amigos.

 

Lorde Crowther nunca acompanha os seus mineiros?

 

Por certo que sim.

 

Quando meu pai morreu, não o fazia.

 

Certamente. Tudo muda na vida, senhor Kelsey disse filósofo. Dizem que há que viver com o tempo. ”Milady” conseguiu várias coisas.

 

Foi ”milady” quem conseguiu que acompanhassem os mortos até à sua última morada?

 

Sim, senhor Kelsey. Tinha doze anos. E um dia, da torre do castelo, aonde há uns binóculos para observar a paisagem, ”milady” viu um enterro. Desceu ao salão e perguntou a milorde. Este disse-lhe que teria morrido algum mineiro. E ”milady” procurou a sua ”mursey” e, puxando-a pela mão, disse-lhe: ”miss” Bela, vamos ao cemitério”. Foram e rezaram ante a cova do mineiro. Desde então, todo o mundo o segue. Os enterros, no coração da cidade, são de outro modo. Aqui na mina, ninguém se fixava em quem morria.

 

Compreendo.

 

Um cavalo aproximava-se a trote.

 

Burt cravou os olhos no ginete.

 

Sónia, pois era ela, sem fixar-se nele, conduziu o potro para a cavalariça, desmontou de um salto, agitou a justa, e, esbelta, graciosa, feminina, muito bela, deu a volta sobre si mesma e dirigiu-se ao castelo.

 

Foi então quando o descobriu.

 

Burt! exclamou. Que satisfação vê-lo de novo. Ele saiu ao seu encontro, com a mão estendida.

 

E foi então, ao apertar a sua mão e seguir a trajectória dos olhos da jovem, quando viu o homem alto, elegante, grave e atilado que os contemplava desde o terraço.

 

É meu primo Alex disse ela.

 

E como olvidando-se que os observava, olhou-o a ele e perguntou, interessada:

 

Que milagre por aqui, Burt! Não o esperávamos.

 

Assuntos de negócios. Você sabe que deixei as coisas no meio.

 

Eu pensei que as deixava solucionadas.

 

Não desejava adquirir a fundição?

 

Ah, é certo! Bem, como agora não vamos falar de negócios, acompanha-me ao castelo? Terei muito gosto em oferecer-lhe um refresco.

 

Não queria molestá-la, Sónia. Ela lançou uma gargalhada sonora.

 

Agradou-lhe aquela gargalhada, e, sem saber porquê, molestou-o que a ouvisse o primo chamado Alex. Como se ela adivinhasse seus pensamentos, começou a andar a seu lado e explicou:

 

Alex Crowther hospeda-se no castelo, desde há uns dias. Vai de passagem para Londres, e ficou-se connosco. É um grande diplomata.

 

Não me agradam as diplomacias, Sónia disse Burt com a sua habitual brusquidão.

 

Pois você o é.

 

Demónio, claro que não. Se o tivesse sido... Olhou-o perspicaz.

 

Se o tivesse sido, Burt?...

 

Bem, falaremos disso noutra ocasião.

 

Vem por muitos dias?

 

Não sei depende do que faça aqui e a rapidez com que o faça.

 

Pensa vender a fundição?

 

Pois de certo. Tem com que pagá-la?

 

Se não fosse assim, não lhe teria proposto o negócio.

 

Certamente.

 

Chegaram ao terraço. Alex tinha desaparecido, e Sónia não se preocupou em absoluto.

 

Sente-se convidou. Servir-nos-ão aqui uns refrescos.

 

Agradeço a sua amabilidade, mas receio ser incómodo.

 

Olhou-o, sarcástica.

 

Burt, você é um principiante.

 

Porque me diz isso?

 

Porque, dado o seu modo de ser, pouco lhe importa ser incómodo ou não.

 

Pensei que me conhecia menos.

 

E riu por sua vez. De repente, os dois contemplaram-se e pareceram aturdir-se. Deixou de rir, e ele, suavemente, disse:

 

Poderei vê-la à tarde?

 

Por certo. Nos veremos no escritório. Hospeda-se no castelo?

 

Penso fazê-lo no hotel. Parece-me que sou mais livre.

 

E a você agrada-lhe a liberdade.

 

Por agora, sim.

 

Por agora? A tem em suspenso?

 

Não.

 

Calou-se, pois ia dizer: ”Agrada-me você, e a seu lado a perderia com gosto”. Mas, como sempre, dominou a sua língua, suspeitando que ela se teria rido dele, e ele, mesmo, a sós mais tarde, se teria dito que era um imbecil ou um impulsivo sem remédio.

 

Falaram de vários assuntos alheios aos negócios e, depois, Burt despediu-se. Ela, sempre com a fusta na mão, bonita e atenta, acompanhou-o. Ao chegar junto do carro, não pôde conter-se e disse:

 

Esse trajo a faz mais gentil, Sónia.

 

Você não é homem de piropos.

 

Mas sou um homem sincero.

 

É um encanto.

 

Eu?

 

Sua sinceridade riu.

 

Quando o carro se perdeu atrás do portão. Alex disse, atrás dela.

 

Quem é?

 

Engenheiro e accionista da Companhia Kelic. E agrada-te...

 

Olhou-o quietamente.

 

É um homem cortês.

 

Sónia, não vim aqui de passagem. Vim ver-te. Sabes muito bem...

 

Alex, já tratamos sobre isso.

 

Teu pai...

 

Não estou disposta a casar-me com quem o papá diga, só porque tens a hipoteca do nosso castelo.

 

Sou o único rico da família Crowther, Sónia cortou ele com aspereza. A tia Debbil não possue uma libra. Tenho que sustentá-la. Teu pai recorreu a mim, com a ânsia de não perder o castelo. Um casamento entre os dois...

 

Já te disse que isso não é possível.

 

Amas esse...mineiro?

 

Não amo ninguém. Mas se tivesse que fazê-lo, te diria que, antes que a ti, o amaria a ele.

 

Sónia... Lamento.

 

Teu pai não te perdoará. Não penses que sou homem piedoso. Se não cedes a casar-te comigo, um dia se vencerá a hipoteca, não terás com que pagá-la, e sairás daqui...

 

Com grande assombro de Sónia, naquela tarde, quando chegou Burt ao escritório, não falou de negócios. Sentou-se no braço de um cadeirão, acendeu um cigarro e começou a falar de coisas tão alheias aos mesmos que deu lugar a pensar se estaria preparando um ataque violento e decisivo.

 

O que não compreendo disse Burt, balanceando um pé é como pode você passar a vida nesta comarca.

 

Num escritório riu ela, divertida.

 

Sem encantos para uma mulher, tão feminina. Não convive você?

 

Já lho disse.

 

Que faz durante todo o ano?

 

Curiosidade?

 

Chame-o como quiser. Confesso que me intriga.

 

Levanto-me muito cedo. Sou madrugadora. Dou o meu costumado passeio a cavalo, como você mesmo viu esta manhã. Pela tarde desço ao escritório. Ajudo ”Sir” Dawes e o papá. As vezes passo a tarde na oficina com os empregados, pondo um pouco de ordem em tudo.

 

E depois?

 

Saio daqui às cinco. E sabe o que mais me encanta? Dar um passeio a pé pela campina.

 

Sento-me numa pedra e fumo um cigarro.

 

Sem homens, sem festas, sem amigos...

 

Só, já lho disse.

 

A pergunta surgiu de modo brusco, como todas as de Burt.

 

E esse... Alex?

 

É meu primo.

 

Só isso?

 

Burt, que lhe interessa a você? Ele ficou desconcertado.

 

Perdoe. É verdade. Sou um perguntador incorrigível. Não quis molestá-la Sónia.

 

E não me molestou.

 

Lançou um breve olhar ao relógio e propôs:

 

Damos esse passeio pela colina? e de repente. Saiba você que eu sou oriundo daqui e conheço essa colina tão bem como você mesma.

 

Ela fez outra pergunta com naturalidade e certa ternura, que estremeceu Burt.

 

Nunca subiu ao cemitério?

 

Sónia!

 

Ela notou a amargura que encerrava a voz masculina ao pronunciar o seu nome.

 

Burt, sei... quem é você. Sei o muito que o humilhou ver-se obrigado a ajoelhar-se ante mim. Jim venceu-o.

 

Não contestou. Olhava-a. De súbito, desatou a rir e exclamou:

 

A você não se lhe pode odiar, uma vez se a conhecermos Sónia. Essa é a verdade. E sem transição, acrescentou:

 

Damos esse passeio?
Não se cansará? Há decorrido muito tempo desde que você brincava por estes caminhos. A pé...

 

Agrada-me caminhar.

 

Saíram juntos. Silenciosos, internaram-se pelo estreito caminho.

 

Você é muito amável, Sónia.

 

Sei... sei o muito que se quer a um pai.

 

Olhou-a, procurando os seus olhos. Sónia subia a seu lado, mas não o observava. Um ao lado do outro, caminharam em silêncio.

 

De repente, ele disse:

 

Não sei o que tenho... Sónia. Venho a esta cidade pensando no muito que tenho que fazer, e quando chego... só sei olhá-la a você e passear a seu lado.

 

Você necessita um pouco de distracção.

 

Odiei-a acrescentou como se não a ouvisse. É certo que a odiei. Mas ao vê-la convertida numa mulher deixei de odiá-la.

 

Não pense no seu ódio, Burt. Eu não sei o que é, porque nunca odiei ninguém.

 

É terrível odiar, Sónia. Uma pessoa só vive para alimentar o fogo do ódio e odiamos tanto que...

 

Porque não me fala da sua vida em Londres?

 

Interessa-lhe?

 

Ruborizou-se sob o peso do seu olhar e disse, aturdida:

 

Não faça caso.

 

Gostaria que lhe interessasse, Sónia. Ela não contestou.

 

Sentiu mil sensações ante a tumba de seu pai, coberta de flores, tão cuidada, com uma cruz nova sobre a terra recém-movida.

 

Quem a tratou? perguntou Burt gravemente.

 

Fui eu, Burt.

 

Foi você? E porquê?

 

Quando soube que era seu pai...

 

Porquê?

 

Olhava-a firmemente. Ela fugiu do seu olhar e disse muito baixinho, aturdida:

 

Julguei-o um dever. Era seu pai, e eu, conhecia-o a si. E ele estava muito abandonado.

 

Sorria... não sei que dizer-lhe. Há quinze anos eu estava aqui, só, contemplando essa terra. Sob ela ficava o ente mais querido da minha vida. Deve ser muito triste perder o pai quando se tem poucos anos, mas doloroso, infinitamente doloroso, quando se conhece a miséria e a morte, e se sabe o que isso significa. Pensei que o mundo se acabava para mim naquele instante.

 

Falava calmamente, olhando para a terra com abstracção. Sónia muito quieta a seu lado, escutava e sentindo um nó na garganta.

 

Não se acabou. Nada se acaba porque morre um homem e um rapaz fica órfão e só. Mas é espantoso. Como se afoga uma pessoa, como se lhe aperta a garganta e procura ar com ansiedade. E o ar acode, pouco a pouco, causando um profundo mal-estar. Uma pessoa respira cada vez mais tranquilamente, e com tristeza compreende, em um dado momento, que pode respirar plàcidamente. É... terrível que se possa respirar, e aí dentro...

 

Agarrou-a pelo braço.

 

Vamos, Sônia. Não devia vir aqui. Talvez você não me tenha compreendido, mas eu desejava sentir este instante. Desejava-o e temia-o. Tinha medo de mim mesmo, de sentir aquela dor insofrível que me acompanhou durante anos. Sabe porque cheguei a ser alguém? Por ele. Prometi-lhe. Também que voltaria para vingá-lo. Mas encontrei-a a você.

 

Tranquilize-se Burt.

 

Já... já estou tranquilo. Você não sabe o que é perder um pai, e ficar só. Sentir que chega a noite e a companhia que tinha no dia anterior já não existe. Sónia, não sabe o que é lutar por um pai. De repente, emitiu um risinho afogado e acrescentou. Sou absurdo. Estou ficando sentimental, e, na verdade, desde que faleceu meu pai não o sou.

 

Não me parece absurdo disse baixo.

 

E pensou na luta diária, pelo seu. Sim, ao contrário do que supunha o jovem, ela lutava por seu pai. Lutava tanto e de tal maneira, que teria sido absurdo dizer o contrário. Mas que sabia Burt. Porque seu pai ocupou, no escritório um lugar que não lhe pertencia. Porque seu pai suportava Alex, e talvez... talvez... um dia fosse sua esposa, indo contra aos seus próprios sentimentos, porque jamais poderia amá-lo.

 

Sónia exclamou de repente, agarrando-a por um braço. Que pensa?

 

Pensar? perguntou ela, distraída.

 

Nota-se no seu rosto uma grande dor.

 

Não... oh, não! Pensava... em você.

 

Que pensava de mim? Pareço-lhe tão pedante como me disse a última vez que nos vimos?

 

Aquilo... foi uma brincadeira.

 

Não lhe pareço pedante?

 

Olhou-o. Os olhos de Burt, fixos nos seus, não pestanejaram.

 

Ela afastou o olhar e murmurou:

 

Vamos, Burt, faz se tarde. E com um sorriso suave, acrescentou. Não me parece pedante...

 

Obrigado, Sónia.

 

E oprimiu-lhe o braço intimamente. Ela não se desprendeu. Continuaram caminhando, colina abaixo, silenciosos, como abstraídos, sumidos cada um nas suas reflexões. De repente, desatou a rir.

 

Por aqui disse baixo vinha todos os dias a caminho da mina, com a comida para o meu pai.

 

Que fazia depois?

 

Depois?

 

Quando ficava livre.

 

Estudava. Meu pai tinha a ilusão que eu fosse engenheiro.

 

E chegou a sê-lo.

 

Cheguei a sê-lo, com efeito. E advirto-lhe que se meu tio Robert não me tivesse ajudado, de igual modo o teria sido. Estava disposto a lutar até ao fim dos meus dias por comprazer o desejo de meu pai.

 

Admiro-o muito, Burt disse ela, de súbito. Kelsey olhou-a. Houve um intenso brilho no seu olhar.

 

Sónia, minha filha...

 

Sónia, sim, papá... Mas deixa-me agora.

 

Já te adverti antes de te meter neste assunto. Há três dias que Kelsey está aqui, ainda não pôs interesse em conhecer o verdadeiro estado da nossa economia. E não obstante, nós hipotecámos o castelo, e ”Sir” Dawes, a granja e tudo pertencerá a teu primo...

 

Antes poderemos pagar, papá.

 

Quando? Há demasiado embrulho nas minas, Sónia, e tu o sabes. Não seremos capazes de encontrar saída nem uma ajuda. A Companhia Kelic julga-nos poderosos. Julga-nos na realidade, ou espera o menor deslize para apanhar-nos? Se isso ocorre, não só será a ruína, Sónia, será o escândalo.

 

Que devo fazer para reparar o mal causado, papá? O cavalheiro replicou:

 

Não sei, filha. Há uma solução, mas não é do teu agrado.

 

Não, papá.

 

Compreendo. Tão-pouco eu desejo para ti um marido como Alex. É meu sobrinho, sua carreira é bonita, a sua posição económica e social é brilhante, mas não é o homem indicado para fazer-te feliz. Tu és simples, sincera e piedosa, e Alex é o contrário.

 

Mas diz-me, minha querida, que podemos fazer?

 

Até agora não fracassámos. E se a fundição...

 

Tão-pouco isso redundará em benefício nosso, dado que, se bem podemos recuperá-la, não sustentá-la. Dás-te conta? Fui demasiado débil, querida, e deixei-te fazer, mas é evidente que não devia confiar na tua habilidade comercial.

 

Papá...

 


Não te reprovo sussurrou, aprisionando a sua mão. És minha filha, és inteligente, e fizeste todo o possível para ajudar-nos. Fizeste-lo bem a primeira vez, conseguindo enganar Kelsey. Pelo teu conhecimento comercial? Não, querida. Pela tua beleza.

 

Papá...

 

Não trates agora também de usar teus dotes físicos e espirituais para enganá-lo. Kelsey não está aqui só por ver-te. Veio porque sabe que não lhe dissemos a verdade, e deseja conhecê-la.

 

Até agora não perguntou...

 

Não perguntará, Sónia, compreende. O que fará será embargar tudo e voltar a Londres. Dentro de muito pouco tempo chegarão aqui uns técnicos, e nós passaremos a ser empregados a ordenado fixo.

 

Isso não ocorrerá.

 

Em que pensas fazer, para evitá-lo.

 

A jovem pôs-se em pé e aproximou-se da janela. O cavalheiro não interrompeu o seu silêncio. Ao cabo de um instante, Sónia, sem se voltar, perguntou:

 

Quando pensa partir Alex?

 

Não sei.

 

Papá voltou-se para ele que ocorrerá se me casasse com ele?

 

Sónia!

 

Supondo que refiro a Alex a nossa situação. Que lhe peço um empréstimo e lhe prometo casar-me com ele...

 

Mais sacrifícios, não. Não o permitirei gritou, excitado. Já foi muito. A solução mais apropriada é dizer a verdade sinceramente a Kelsey.

 

Isso sufocou-se não.

 

Porque não desejas que descubra o teu engano?

 

Não sejas ingénuo, papá murmurou tristemente. Isso já o conhece.

 

Que conhece?

 

Não dizes tu mesmo que está aqui porque deseja conhecer a verdade? Se sabe que existe uma verdade, é que sabe que houve engano.

 

Certamente.

 

Portanto, está a par do verdadeiro estado da nossa economia comercial.

 

Não ficaria bem pedir clemência?

 

Não agitou-se. Não. Não poderia resistir ao seu desprezo.

 

O cavalheiro agitou-se.

 

Sónia, é que o amas?

 

Papá...

 

Amas-lo?

 

Não sussurrou. Não creio...

 

Estes homens, Sónia, querida, não se casam. Estão habituados a conseguir quanto desejam. Eu eduquei-te demasiado espiritualmente. És uma sentimental. Desconheces os prazeres da vida.

 

Sim, sou, mas creio-me bastante consciente para tomar o cargo da situação.

 

Sim, querida. És consciente e corajosa. Mas tem cuidado. E pensa no que te digo. E descarta a ideia de casares com Alex. Nem o amas, nem o amarás jamais.

 

Quanto à outra solução, se tu não queres abordar o assunto permite que o faça eu ou ”Sir” Dawes.

 

Não. É coisa minha. Eu vos meti neste sarilho e hei-de tirá-los dele.

 

À custa da tua futura felicidade?

 

À custa do que for.

 

Espera, querida. Espera a ver como se desenrolam os acontecimentos.

 

Bem, esperarei, pois, que Kelsey aborde o assunto. Quando o fizer, serei sincera ou não o serei. Não sei.

 

Posso entrar, Burt? perguntou Bill Whalley, desde e umbral.

 

Entra gritou, saindo do banho envolto num roupão, e secando a cabeça com uma toalha. Senta-te, Bill. Atendo-te já. Permite que me vista.

 

Bill deixou-se cair numa cadeira e acendeu o cachimbo.

 

Faz um frio de espantar por estas latitudes. Vamos permanecer muito tempo aqui?

 

O jovem vestia-se com muita calma. Vestiu as calças e a camisa, procedeu a calçar-se, e para isso sentou-se em frente do seu amigo e ajudante.

 

Que há? perguntou por resposta.

 

O que te insinuei e confirmei, Burt. Tudo é uma cilada.

 

Sim.

 

Parece que ”sir” Dawes hipotecou a sua formosa granja.

 

Viva! exclamou sem deixar de calçar-se.

 

E, o que é mais assombroso, também pesa sobre o castelo outra hipoteca.

 

Burt puxava as peúgas e ficou com o pé no ar e os olhos fixos no seu amigo. Era difícil ver no seu olhar.

 

Passado um segundo, continuou calçando-se. Bill prosseguiu:

 

Ambas datam de um mês, aproximadamente.

 

Ah!

 

Parece que nada te assombra.

 

No decurso destes dias, adivinhei muitas coisas. Diz-me... que banco tem a hipoteca?

 

Isso é estranho. Não há banco pelo meio.

 

Não?

 

Tampouco pareceu assombrar-se. Bill deu de ombros.

 

Tem-na Alex Crowther.

 

Caramba!

 

Que vamos fazer, Burt?

 

Não sei ainda. E com um sorriso de picardia. Não existe uma mulher agradável que te entretenha uma temporadazinha?

 

Burt, recorda que tenho noiva e penso casar-me breve.

 

Ah! riu, trocista. Esquecia-me que tu és fiel a um só amor. Bem, Bill, não te preocupes. Li-Chan-Yen nos pedirá uma conferência qualquer dia, reclamando-nos. Entretanto, diverte-te, caramba. Que mais descobriste?

 

Mal se pode manter a mina, Burt. Um dia qualquer se sublevará o pessoal. Os altos empregados não recebem desde há seis meses.

 

Muito divertido. E aonde têm o produto das hipotecas?

 

Pressinto que é um truque para tapar-nos a boca.

 

Não respondeste devidamente.

 

Está claro, Burt. Trata-se de uma cilada muito bem preparada. Se vendermos a fundição como eles pretendem, terão assim com que pagá-la, mas terão perdido ao mesmo tempo o castelo e a granja.

 

Por certo. Continua.

 

Que mais queres que te diga? É um negócio acabado. Podemos pôr-lhe fim quando quiseres.

 

Sim, claro... contemplou o brilho dos seus sapatos e continuou recostado no cadeirão. Vês como brilham?

 

Mas, Burt...

 

Aqui há menos barro que em Londres. Brilham-me os sapatos pela manhã e o seu brilho mantém-se incólume até ao anoitecer.

 

Burt...

 

Ergueu a cabeça.

 

Que se passa, querido Bill?

 

Estamos perdendo o tempo. Li, pensará que não conseguimos nada.

 

Temos conseguido pôs-se em pé. Não te preocupes.

 

Não pensas actuar?

 

Sim, por certo encolheu os ombros. Temos tempo aproximou-se da janela. Está uma esplêndida manhã.

 

Digo-te que faz um frio medonho.

 

Sim, sim, mas caiu uma boa orvalhada, e dentro de umas horas brilhará o sol. Agrada-me o sol descendo pela colina.

 

Burt impacientou-se. Isto é assunto concluído. Obriga-os a pôr as cartas na mesa, e toma as cartas, porque são tuas.

 

Não te impacientes riu tranquilamente. Há que ser um pouco cortês.

 

Achas que a Li lhe interessa ser cortês?

 

Então Burt voltou-se, olhou friamente para o companheiro e disse com certa frieza, que não pôde reprimir:

 

Sei muito bem o que faço. Não me importa o que Li pensa deste assunto. Sou tão dono como Li da Companhia Kelic.

 

Parou o carro em frente do edifício ladrilhado de vermelho, quando saíam os empregados para comer. Soavam as sirenes naquele instante, e vários homens, manchados de carvão, deslizavam ao longo da colina.

 

Sónia também apareceu à porta, vestindo o casaco, saudou aqui e acolá, e atravessou a rua em direcção ao carro de Kelsey. Este, sem descer, abriu a porta e a jovem entrou.

 

Bons dias, Burt.

 

Atrasei-me um pouco. O pegajoso do Bill visitou-me olhava-a sorridente. Aonde vamos, Sónia?

 

Pôs o carro em marcha e a jovem acendeu um cigarro.

 

Dá-me-lo? perguntou ele.

 

Mas... da minha boca?

 

Agrada me a tua boca, Sónia.

 

Ruborizou-se. Sabia que aquelas horas maravilhosas acabariam um dia qualquer. Pressentia que, não demoraria muito. Burt entraria no escritório central, encararia com ”sir” Dawes e com seu pai e lhes diria: ”Acabou-se o dissimulo. Haveis-me enganado desde o princípio, servindo-se para isso de uma bela rapariga ingénua, que sabe ser interessante, mas não mulher de negócios”.

 

Em que pensa, Sónia? Sobressaltou-se.

 

Tome... o cigarro.

 

Dava-lhe outro. Burt, com naturalidade, recusou-o e tomou o da sua boca. Levou-o à sua e envolveu-a num profundo olhar. Por isso a cativara. Era... diferente dos homens que tinha conhecido. Tinha uma maneira de fazer as coisas, de olhar, de dizer...

 

Sabe a si, Sónia. -- Burt...

 

Olhou-a de novo. Conduzia com uma das mãos e com a outra segurava o cigarro que, a pequenos intervalos, levava à boca.

 

Diga-me, Sónia... Ela fugiu do seu olhar.

 

Aonde vamos?

 

Isso lhe pergunto. Sabemos que caminhamos juntos para algum lado, mas ainda não decidimos aonde. Você conhece estes lugares melhor do que eu.

 

Nasci aqui.

 

Mas quando eu tinha quinze anos não passeava de carro pelos arredores de Merthyr-Tydfl. Portanto, desconheço os lugares de recreio onde se possa comer bem.

 

A três quilómetros encontraremos uma à direita da estrada. Come-se bem.

 

Seu pai sabe que come comigo?

 

Disse-lhe esta manhã.

 

Há uma semana que saíam juntos. Lord Crowther perguntava todos os dias a sua filha: ”Porquê”? Sónia encolhia os ombros. Que podia dizer? Saía com Burt porque lhe agradava a sua companhia, porque, a verdade, não podia recusá-lo, porque a seu lado se esquecia do grave problema que se suspendia sobre suas cabeças. Imaginava o final de tudo. Ele a desprezaria. Ficaria com as minas, ou embargaria tudo, e iria para Londres, e jamais voltaria a recordá-la. Chamar-lhe-ia ladra e enganadora, e ela, para evitar a desonra e a vergonha, teria que casar-se com Alex.

 

Estremeceu como se a agitassem.

 

Ele pareceu sentir aquele sobressalto interno, porque com súbita ansiedade atirou o cigarro pela janela e sua mão caiu sobre os dedos de Sónia. Oprimiu-os e, sem dizer palavra, reteve aqueles dedos entre os seus, largo tempo, até que se divisou o restaurante.

 

Em que pensa, Sónia?

 

Pestanejou. Uma semana saindo para todas as partes, quase todo o dia juntos. Ele a tratava com delicadeza, enchia-a de atenções, quase a adorava. Mas, porquê? Jamais lhe disse uma palavra de amor. Só aqueles olhares que a aturdiam, aqueles súbitos apertos de mão que a ruborizavam, aqueles sorrisos cheios de promessas, aquela boca que às vezes parecia beijar...

 

Não me diz em que pensa?

 

Oh, pois!... Não pensava.

 

Não sabe mentir.

 

Olhou-o. Ele parou o carro em frente do restaurante.

 

Mentir? perguntou ela.

 

Sim. E você não sabe fazê-lo.

 

Mas não voltou a perguntar-lhe em que pensava, nem porque sabia que mentia. Desceu do carro, deu a volta a este e abriu a porta para ela sair. Sorriu-lhe daquele modo entre amoroso e grave. Nunca sabia bem o que pensava Burt. Era um homem reservado, respeitoso, mas indecifrável.

 

Vamos, Sónia.

 

Agarrou-a pelo braço, e juntos se dirigiram ao moderno restaurante.

 

Conduziram-nos a um canto sobre o qual caía o sol a pino.

 

Rodeados de janelas, viam toda a colina e a pradaria. Sentados frente a frente, esperavam a refeição, Burt tirou os cigarros e ambos fumaram, primeiro em silêncio, depois falando de coisas sem importância alguma para eles. Notava-se que ambos desejavam romper de alguma forma aquele silêncio embaraçoso que os cobria aos dois.

 

Pergunto a mim mesmo, Sónia exclamou ele, de repente como pode suportar uma vida tão monótona.

 

Já lhe disse que passo grandes temporadas em Londres.

 

É o que me assombra. Que nunca a tenha visto.

 

Pois convivo muito quando estou ali. O que se passa é que aqui, nas minas, por estas estarem afastadas de Merthyr-Tydfl, um rosto feminino se grava mais. Em Londres você vê caras de mulheres a cada segundo.

 

Mas não a sua riu ele, amável. É inconfundível.

 

Quando estou só. Confundível quando há muitas.

 

Nunca lhe disseram que é bonita, Sónia? Ela riu amavelmente.

 

Muitas vezes, Burt. É algo que ouvimos todas as mulheres sem distinção, ainda que sejamos feias.

 

Você sabe que não o é.

 

Se hei-de ser-lhe sincera, nunca me detive a reparar em mim.

 

Vou-lhe dizer uma coisa, Sónia. Durante os meus anos de adolescents e do homem quase maduro, ao recordar a menina de seis anos, imaginei-a altiva, orgulhosa e distante.

 

A imaginação excede-se por vezes.

 

Eu recordava a menina de sete anos, que me atirou neve à cara.

 

Há coisas que divertem uma menina e irritam uma mulher.

 

Diga-me, Sónia, olvidando a menina de sete anos. A mulher não tem inquietações?

 

Inquietações?

 

Entendeu-me bem. Nunca sentiu o desejo de algo extraordinário?

 

Gostaria de ter um iate riu ela quedamente.

 

Não, não é isso, e você sabe-o. Refiro me a inquietações interiores, espirituais, profundas, dessas que deixam profunda marca no nosso ser.

 

Burt, nunca senti essa inquietação.

 

Terá pensado no amor.

 

Bem... que mulher não pensa nisso alguma vez?

 

Há duas formas de pensar. De uma forma física, ou impura, se quer. E há outra, em que intervém o espírito e o coração, e nos causa dor.

 

Digo-lhe deveras que nunca senti inquietação até esse extremo.

 

Porque não tem inquietações?

 

Porque as sufoco se aparecem.

 

Isso é dominar-se.

 

Nunca o fez, você?

 

Burt tardou um segundo em contestar. Logo desatou a rir e exclamou:

 

A verdade, a verdade, nunca me detive a pensar se realmente dominei as minhas exaltações alguma vez.

 

Foi você feliz? perguntou ela, de repente. Não soube que responder.

 

Sónia, você fez-me uma pergunta embaraçosa. Não posso contestar-lhe em vão.

 

A felicidade é algo, Burt, que não necessita ser meditada. Existe ou não existe. Existiu ou não existiu.

 

Pois diga o que disser, é coisa que não posso responder sem reflectir. Verá, eu fui feliz quando cheguei junto de meu tio Robert e comprovei que um dia poderia comprazer meu pai morto, sendo o que cheguei a ser. Fui feliz quando me entregaram o diploma de engenheiro, e fui feliz muitas vezes nos braços de mulheres que me agradavam.

 

Uma felicidade fugaz.

 

Sónia, e quando não é fugaz a felicidade? Tenha em conta uma coisa, que se a felicidade consistisse em algo simples e quotidiano, não nos causaria prazer algum, porque, ao converter-se em algo rotineiro, perde o interesse e o valor.

 

Você é dos que vivem dos prazeres sempre novos?

 

Não nos entendemos, Sónia. Você está buscando quatro pés ao gato. Você sabe o que para mim seria neste instante um gozo de infinita felicidade?

 

Não faço ideia.

 

Beijá-la.

 

Oh!

 

Burt desatou a rir. Ela estava vermelha como uma papoila. E pouco depois, disse ele com ternura, oprimindo carinhosamente a mão feminina.

 

Não tema, Sónia. Não lho vou pedir.

 

Ela vestia, calças negras, compridas até aos tornozelos e um ”jersey” vermelho, sob uma samarra de cor castanha. Calçava mocassins, em redor do pescoço, um lenço de seda natural, atado com graça e ele um ”jersey” negro, pelo pescoço do qual assomava a camisa branca.

 

Riam os dois, e de mãos dadas, desceram pela colina entre os arbustos.

 

Um gritou Burt alegremente imagina que ainda tem quinze anos.

 

Ela era mais baixa que ele, e para olhá-lo teve de levantar um pouco a cabeça.

 

Teus olhos são como o trigo quando maduro, Sónia exclamou:

 

Era a primeira vez que a tratava por tu, e ficou um pouco desconcertado. A jovem desatou a rir e, com a sua habitual espontaneidade, sussurrou:

 

Agrada-me... agrada-me que me trates assim, Burt.

 

Agrada-te...

 

Sim.

 

Tinha a mão dela entre as suas e oprimiu-a intimamente. Não disseram nada, mas algo penetrou neles. Algo como uma corrente de compreensão e ternura. Seguiram caminhando. Ela desatou a rir e murmurou:

 

Logo anoitecerá, Burt, e o orvalho nos cobrirá. Se não nos apressamos, não chegaremos à falda da colina para recolher o carro com a claridade do dia.

 

Agrada-me o crepúsculo disse ele.

 

És romântico?

 

Nunca o imaginei. De repente, parece-me que o sou. Porque estou a teu lado? Porque tu és preciosa? Porque eu sou um sentimental?

 

Burt, nunca te ouvi dizer absurdos.

 

Não te agradam os homens sentimentais?

 

Não sei como são.

 

Tu não conheces os homens.

 

Não muito, Burt.

 

Não te agradaria?

 

Olhava-a muito de perto. Com efeito, a luz do dia se ia e as sombras da noite faziam ver nova expressão no rosto masculino. De repente, a jovem, resvalou, e Burt apertou-a contra si. Foi algo inesperado, quase fugaz, mas que não evitou que ambos ao sentirem-se muito perto um do outro, se encontrassem bem. Como surgiu o beijo? Burt jamais o soube. Sónia... não quis pensar nele. Mas aquele instante que... existiu, foi... estranho, grato, emocional para ambos. Burt, que jamais beijou tão fugazmente uma mulher, sentiu-se ridículo e por sua vez satisfeito de si mesmo, emocionado, absurdamente emocionado, segundo pensou.

 

A boca de Sónia sabia a rosas, a mimo, a paixão. Eram uns lábios suaves, ternos, receosos... Reteve-a contra si, e ela não se afastou. Mas depois de beijá-la, Burt sentiu-se aturdido, sem saber que dizer. Era a primeira vez que uma mulher o coibia. Por instantes, pensou que seria bom beijá-la o resto da vida, e nunca se cansaria. E quando a soltou, não encontrou palavras para desculpar-se.

 

Olhou-a, desconcertado. Ela fugiu do seu olhar. Caminhava adiante.

 

Sónia chamou.

 

A jovem deteve-se, mas não voltou a cabeça.

 

Sónia... não sei como foi... Não contestou.

 

Sónia...

 

Vamos, Burt... Se... faz tarde.

 

Chegou a seu lado e agarrou-a por um braço.

 

Sónia... perdoa-me.

 

Vamos, faz-se tarde.

 

O feitiço quebrava-se, mas nascia algo estranho, inquietante, diferente.

 

Subiram os dois para o carro. Burt, pô-lo em marcha sem dizer palavra. Sónia acendeu um cigarro, e, sem pronunciar frases que teriam resultado inúteis naquele instante, estendeu a mão e meteu o cigarro na boca do homem.

 

Obrigado sussurrou ele. Obrigado.

 

Ela não respondeu. Acendeu outro para si, recostou a cabeça no respaldar do banco e, com o cigarro na boca e os olhos meios fechados, ficou imóvel.

 

De repente, Kelsey exclamou com voz surda:

 

Não sou dos que beijam as mulheres só pelo prazer de fazê-lo.

 

Olvidemo-lo, Burt.

 

Ofendi-te.

 

Ela sacudiu a cabeça.

 

Não... não sua voz tremia. Não me ofendeste.

 

Quero que saibas uma coisa, Sónia.

 

Não mo digas, se isso te humilha.

 

És tão diferente...

 

Mas tu...

 

Di-lo, Sónia.

 

Não. Tanto faz.

 

Que ias dizer?

 

Conduz pela parte da ponte velha. Chegaremos antes ao castelo. O papá me está esperando. Há duas semanas que chego a casa muito tarde.

 

Sónia...

 

Por favor... Se é para falar disso... muda de assunto.

 

Já não me estimas como antes. Olhou-o brevemente.

 

Burt, não sejas absurdo e com um sorriso, acrescentou: Pensemos os dois que foi algo... irreal, que não teve importância, porque nem tu desejavas ofender-me, nem eu desejava... os teus beijos.

 

Não os desejavas reprovou.

 

Olhou-o de novo, desta vez com assombro.

 

Porque havia de desejá-los?

 

Sim, certamente. Quero que saibas que eu careci sempre de amor. Os beijos troquei-os por libras esterlinas, segundo o preço da mulher. É a primeira vez que me porto assim.

 

E consideras que isso te diminui.

 

Sónia, estás ofendendo-me.

 

Não o pretendo.

 

Que se passa?

 

Nada. Se algo se passa é que de repente descobrimos que somos um homem e uma mulher.

 

Um homem e uma mulher que se agradam acabou ele, com brusquidão.

 

Não disse isso.

 

Diz-me, Sónia. Que pedes à vida e ao homem?

 

Amor, ternura, compreensão, delicadeza.

 

E consideras que careço de tudo isso.

 

Não olhou-o outra vez. Possues tudo, e isso é estranho. Que possuindo tudo, sejas tão desconcertante.

 

Pareço-te desconcertante?

 

E és. Já se divisam as luzes do castelo.

 

Posso... ir buscar-te amanhã?

 

Burt, continuo pensando que és absurdo. Porque não hás-de ir? Não creio que um beijo, que nenhum dos dois desejámos, nos separe. Salvo e isto repisou que tu tenhas posto maldade nisso.

 

Sónia, tornaste-te agressiva de repente.

 

Enganas-te. És tu quem com a tua atitude me obriga a comportar-me assim.

 

Perdoa.

 

Olvidemo-lo.

 

Tão fácil te é olvidar?

 

É... meu dever.

 

Fazes tudo por dever?

 

Até à data, sim.

 

Beijaram-te muitos homens? perguntou ele com voz enrouquecida.

 

Sónia voltou a olhá-lo. Depois desviou os olhos e cravou-os nas luzes do castelo.

 

Não tenho porque contestar-te, Burt. E sem transição. Jim abre o portaló. Queres aceitar o meu convite?

 

Para quê?

 

Para cear connosco.

 

Não. Detesto gritou, sem saber porquê o teu primo Alex.

 

Sónia não contestou. Sentia-se inquieta, desassossegada. Duas semanas saindo com ele, e não sabia ainda o que pretendia aquele homem. Não parecia preocupar-se pelos negócios que o tinham levado ali, e, não obstante, seu comportamento para com ela não era nada claro. Que se propunha? Enamorá-la e fundi-la ainda mais? Pois já o havia conseguido. Já estava enamorada. Amava-o, sim. Amava-o, apesar da sua incerteza.

 

O carro parou ante a escadaria. No alto desta estava Alex, olhando para sua prima com desdém.

 

Até amanhã, Burt disse ela com voz afogada. Não respondeu. Trocava uma breve olhadela com Alex e esta não era nada tranquilizadora.

 

Não estranhou que lhe anunciassem a sua visita. Compreendeu desde que trocou com ele aquela olhadela.

 

Que entre para aqui ordenou à criada.

 

Tirou o robe e ficou vestido, com calças e jaqueta desportiva. Esperou. Fumava um cigarro e olhava para a porta por onde esperava ver aparecer Alex. Imaginava o que este ia dizer-lhe? Pois sim... quase o poderia assegurar.

 

Bons dias saudou o atilado Crowther, com voz esquisitamente bem educada.

 

Entre.

 

Não lhe deu a mão, nem o aristocrata pareceu ofender-se por isso.

 

Tome assento convidou Burt novamente.

 

Alex não o fez. Ficou à sua frente, contemplando-o como se analisasse os seus méritos.

 

Senhor Kelsey, tenho entendido que veio a Merthyr-Tydfl tratar de negócios.

 

Burt esboçou um sorriso.

 

Vim para isso e distrair-me um pouco, senhor... Crowther. Espero que isso não o desagrade.

 

Há duas ou três semanas que você está aqui. Tenho entendido assim mesmo, que não é homem que possa dispor de três semanas de férias.

 

Sabe você mais do que eu, senhor Crowther.

 

Advirto-lhe que não vim aqui jogar com palavras mais ou menos engenhosas.

 

Imagino. Você é riu, Burt, com a mesma serenidade com que desde o princípio o recebeu um bom diplomático. Portanto pode jogar com as palavras e o significado destas, muito melhor que eu. Mas dá-se a casualidade de que eu não sou diplomático, sim homem de negócios. Deseja falar de negócios.

 

Com efeito.

 

Escuto-o.

 

Você veio aqui resolver um assunto importante para a sua companhia. Tenho entendido que a investigação que levou a cabo, há uns meses, não deu o resultado esperado.

 

Engana-se. Estou satisfeito da investigação realizada. Sumamente satisfeito, senhor Crowther.

 

Este esboçou um sorriso trocista, e, com acento mordaz, observou:

 

Você é ingénuo com respeito às mulheres. Conheço a sua firma acrescentou, sem que Burt desse mostras de enjoar, ainda que as estava dando de aborrecimento. É difícil que em Londres, e inclusive em Nova Iorque, passe despercebida a sua firma comercial, e, não obstante, é um negócio de envergadura para vocês, observou numa negligência, e uma ignorância inexplicáveis.

 

Burt exclamou com a mesma serenidade:

 

Devo entender que pretende abrir-me os olhos, senhor Crowther? Participo-lhe que a minha firma não necessita relatores secretos.

 

Senhor Kelsey ofendeu-se está falando com um Crowther.

 

Não o esqueci. O que me estranha é que se ofenda, e, não obstante, você está delastando um Crowther

 

Ficou desconcertado. E então tirou a máscara e gritou:

 

Sónia será minha esposa.

 

Ah! riu Burt tranquilamente. Quanto preço lhe pôs? A hipoteca do castelo ou estende até à granja de ”sir” Dawes?

 

Proibo-lhe...

 

Burt não esperou mais. Foi para a porta, abriu-a e com uma daquelas reacções que o caracterizavam, desde que foi um ser com vontade própria, pediu:

 

Teria a amabilidade de deixar-me só? Suponho que Sónia se inteirará da visita que você me fez esta manhã. Parece-me que conhece pouco a sua futura esposa. Não é das mulheres que lhe agrada ser tratada tão tiranamente.

 

Senhor Kelsey...

 

Peço-lhe. Bons dias, senhor Crowther.

 

Oiça-me...

 

Alex Crowther saiu pisado fortemente. Ao transpor o umbral, voltou-se, mas já Burt, de costas para ele, acendia tranquilamente um cigarro.

 

Bons dias.

 

Cerrou-se a porta atrás de Crowther, e Burt chamou Bill pelo telefone.

 

Que ocorre?

 

Nada importante. Vou para Londres agora mesmo. Espero voltar em breve.

 

Que se passa, Burt?

 

Adiante, nem eu mesmo sei; necessito afastar-me uns dias. Não sei se amo Sónia passou os dedos pela fronte. Maldito se o sei.

 

Claro que a amas.

 

A distância mo dirá. Se é assim, voltarei por ela. Se passada esta semana não regressar, faz a tua mala e reune-te comigo em Londres.

 

Burt... é estranho que procedas assim.

 

Necessito fazê-lo.

 

Ama-te ela?

 

Suponho que sim. Não há mulher que resista a um homem três semanas seguidas, se não o ama. Em troca, o homem suporta a mulher duas semanas e um ano, se lhe agrada, naturalmente. Tenho que necessitá-la em minha vida, como se necessita da própria vida, e isso é o que desejo saber. Se a necessito assim.

 

Vais-te sem despedir-te?

 

Assim é, se ela tem coragem, que se case com seu primo.

 

E se o faz por temor à hipoteca e ao escândalo que, de vencer esta se originaria?

 

Então exclamou é que não merece ser minha esposa, e se não o merece sou bastante homem para olvidá-la.

 

Burt, concretemos. Se tu não vens...

 

Li o decidirá desde Londres.

 

Querida!

 

Não te preocupes por mim, papá sussurrou Sónia, o mais serenamente possível. Já te disse que me sinto bem.

 

Desde que... se foi, estás como que ausente.

 

Asseguro-te, papá, que te enganas.

 

Querida, eu... não sei que dizer-te.

 

Estavam os dois no salão particular da jovem. Sónia, fundida num maple, em frente da janela contemplava o parque com olhar hipnótico. Lord Crowther, frente a ela, tratava de animá-la. Sónia sorria de vez em quando, com alegria artificial. Se não sentia a fuga de Burt? Oh, sim! Nunca julgou que o amasse tanto. E amava-o. Indubitavelmente, muito mais do que pensou ao princípio. Cada dia transcorrido, e já iam sete dias que soube da sua fuga, parecia que o mundo se derrubava um pouco em cada dia sobre ela, até esmagá-la por completo.

 

Sónia...

 

Já sei, papá. Que devo fazer? Meti-os neste sarilho, desejando elevá-los. Devo, pois, pagar as minhas culpas.

 

Querida, tu o fizeste...

 

Sim, sim, papá; eu o fiz julgando acertar, mas nunca imaginei que o filho de teu irmão se deitasse assim sobre nós.

 

Não o amas... Olhou-o assombrada.

 

Como podes conceber que eu, que tanto admiro a lealdade, ame um canalha semelhante? Papá entristeceu

 

já sei o desgosto que te ocasiono com estas palavras, mas se bem que ele é teu sobrinho, eu sou tua filha. E não o amo. Deus meu, não! Quase... seus olhos brilharam humedecidos quase prefiro morrer que ser sua esposa.

 

Pois não o serás, querida.

 

E as hipotecas? Não compreendes que levará tudo, e não terá compaixão?

 

”Sir” Dawes e eu trataremos disso. Estamos decididos a ir a Londres. Falaremos com Kelsey e com Li-Chan-Yen. Pedir-lhe-emos tréguas. Suplicaremos que nos deixem um lapso de tempo prudencial para recuperar-nos.

 

Esqueces-te, papá disse ela com tristeza que em assuntos de negócios não há tréguas. Terás que deixar tudo o que até agora te pertenceu e foi o teu orgulho, por minha culpa.

 

Isso não, Sónia disse uma voz receosa desde o umbral. Estou ouvindo-os, e me parece impossível que se considere culpada de algo que fizemos os três.

 

”Sir” Dawes!

 

Não permito acrescentou, ao mesmo tempo que penetrava na sala que pague as nossas culpas. Certo é que existem as hipotecas e a ameaça de Alex, mas não é menos certo que a Companhia Kelic fragou a nossa ruína.

 

Eu os enganei, ”sir” Dawes.

 

Não. Nos enganámos todos, com a ansiedade de recuperar o tempo perdido e os lucros de vários anos olhou para o sócio. Lord Crowther, é preciso que o senhor e eu vamos a Londres. Tudo menos que sua filha case com Alex. A Companhia Kelic, não tardará em descobrir a verdade, e é preferível que a saiba por nós que pelos seus investigadores.

 

É o que não percebo exclamou lord Crowther que pessoas tão competentes em assuntos de negócios, se tenham deixado enganar assim por uma mulher.

 

Talvez por ser mulher opiniou ”sir” Dawes cautelosamente.

 

Sónia pôs-se em pé e atravessou a sala a passo curto. Ao fechar-se a porta atrás dela, os dois homens olharam-se. Houve um silêncio.

 

Está... está destroçada manifestou lord Crowther amargamente. E fui eu, com a minha negligência, quem a conduziu a esta situação.

 

Não vamos lamentar isso agora. O essencial é ela, e parece-me que está sofrendo muito. Não compreendo porque Kelsey se foi...

 

Lord Crowther não respondeu. Com a vista baixa, imóvel e silencioso, permaneceu alguns minutos.

 

”Milord”...

 

Não diga nada, ”sir” Dawes. Estou inquieto por Sónia. Há tempo que descobri que amava Kelsey, mas nunca tive a certeza disso como hoje. Que devo fazer?

 

Nada, excepto evitar a sua boda com Alex, se é que trata de realizá-la.

 

Isso... nunca! jamais consentirei essa boda. Seria... passou os dedos pela fronte como se a matasse com uma bênção falsa.

 

Estava sentada num banco do jardim. Tinha um cigarro entre os dedos, e de vez em quando levava-o à boca e expelia o fumo, muito devagar. Com expressão absorta, contemplava as caprichosas espirais que o fumo formava no ar, e rapidamente se desvaneciam.

 

”Assim sussurrou se desvanece tudo na vida. É uma filosofia barata, mas verdadeira.”

 

Encolheu os ombros. Que podia fazer no futuro? Tinha três saídas, e nenhuma delas era digna do seu nome, mas era menos digna da sua própria dignidade de mulher. Primeira, casar-se com Alex. Segunda, a que seu pai expunha: Visitar os sócios da Companhia Kelic e expor-lhes a verdade, que, de qualquer maneira se saberia. A terceira, fugir para longe com seu pai, organizar uma nova existência e trabalhar como uma simples mulher vulgar que ganha a vida.

 

Boas tardes, preciosa.

 

Estremeceu, e ergueu vivamente a cabeça.

 

Pensei... que te tinhas ido disse suavemente.

 

Penso fazê-lo muito em breve, mas antes desejo saber se estás decidida a...

 

Recusar-te? Já te disse há um instante. Não me casarei contigo, Alex, e não porque sejas tu precisamente, nem porque me sejas indiferente, sim porque te portaste como um repugnante traidor.

 

Querida, negócios são negócios. Sempre me irritou que teu pai ficasse com o título e o castelo, sendo meu pai seu irmão. O facto de que nascera o teu antes que o meu, não me consolava.

 

Ficarás com o castelo e suas possessões disse ela dignamente mas nunca com a consideração dos que habitam na comarca.

 

Minha querida disse, com voz melíflua não sejas tão sentimental. As gentes do lugar pouco me importam. O que me interessa és tu e o castelo. Claro que, se não te consigo a ti, me conformarei com esta possessão.

 

E olhou em redor com orgulho, como se já lhe pertencesse tudo. E foi então quando Jim abriu o portaló e penetrou um carro. Sónia pôs-se em pé de um salto. Não pôde reprimir um grito afogado e a exclamação de assombro, como se não desse crédito aos seus olhos.

 

Burt!

 

Este, tranquilo e sorridente, desceu, salvou a distância que o separava dos dois jovens, não olhou para Alex, e inclinou-se para a jovem.

 

Sónia, querida disse apenas.

 

E com grande assombro da própria Sónia, atraiu-a para si, e beijou-a na boca ligeiramente.

 

Burt... sussurrou ela quedamente.

 

Kelsey ria. E era seu riso como uma carícia. Seus dedos roçaram a face feminina, e então Alex desatou a rir e exclamou, despeitado:

 

Enternecedor!

 

Ah! você estava aí, senhor Crowther. Precisamente temos um assunto pendente. Permites, querida sussurrou, olhando para a jovem e enlaçando-a pela cintura. Meu sócio o espera no hotel, senhor Crowther. Parece que nos interessam umas hipotecas que você tem. Advirto-lhe que desejo oferecê-las a minha noiva como prenda de casamento e apertando a cintura da jovem, que tremia a seu lado, acrescentou, olhando-a largamente. Teu primo, Sónia, querida, foi tão amável, que antes de eu sair para Londres, me visitou no hotel, disposto a fazer-me saber algo que eu... já sabia.

 

Você é um...

 

Cuidado, senhor Crowther. Eu... não sou Sónia. Vamos querida? Tenho desejos de cumprimentar teu pai. E você, Crowter, pode passar pelo meu hotel. Esperam-no ali o meu sócio e os nossos advogados.

 

Levou Sónia, e Alex ficou ali, mudo e violento, compreendendo que a sua última jogada não havia sido precisamente muito diplomática.

 

Burt...

 

Não me digas nada, querida. Nós casamos hoje.

 

Mas...

 

Peço-te. Que pares com a tua cabeça, que ainda não consegui detê-la? Não te maneis tanto. Quero beijar-te.

 

Burt...

 

Não me interessa o que teu pai faça com as minas. Estamos de viagem de núpcias, Sónia minha vida.

 

Mas, meu amor, casei-me contigo e ainda não sei o que se passou.

 

Que importa? Acontece que nos casámos há umas horas. Que ”sir” Dawes e teu pai arranjaram os assuntos de lá. Que tu e eu estamos noivos, e vamos num comboio, a caminho de...

 

De onde, Burt? Aturdes-me.

 

Deixa-me beijar-te, Sónia.

 

Oh, sim, oh, sim! Mas...

 

Beijava-a. Sónia ria e chorava por sua vez, sob o fogo dos seus beijos. Era grato senti-la assim, tê-la nos seus braços, receber seus beijos e dar-lhe mais em troca. Muitos e largos beijos. Beijos hábeis por sua parte, igual pela dela.

 

Burt...

 

Não queres que te beije?

 

Céus, sim, mas dize-me.

 

Ria sobre a sua boca e falava e beijava por sua vez. Sónia estava como aturdida. Havia sido tudo tão rápido! Burt tinha que fazer as coisas assim ou não fazê-las.

 

Querido...

 

Fundaremos a grande sociedade, Sónia sussurrou. Se é isso o que queres saber, já o sabes. Uma sociedade que regentará teu pai, e logo tu e eu viajaremos por todo o país. Não te deixarei só nem um instante. Dás-te conta? Nem um instante.

 

Mas agora deixa-me respirar.

 

Sinto-te. Agradam-te os meus beijos, Sónia?

 

Sim...

 

E os meus abraços.

 

Sim, sim sussurrava ela afogadamente. Agradam-me, mas...

 

Queres saber mais coisas?

 

Beijava-a no cabelo, nos olhos... Acariciava com os dedos os lábios entreabertos. Ela sorria.

 

És tão bela Sónia.

 

Antes outras te pareciam.

 

Como tu, não. Tu entraste em mim e apagaste tudo. Vi-te e admirei-te. E na admiração ao amor há tão pouca distância...

 

Sê um pouco formal, querido.

 

Que mais queres saber?

 

Que fizeste com Alex?

 

É uma rata peçonhenta e beijava-a na garganta. Uma rata que fugiu temendo contagiar os outros, antes de ver-se perseguida por eles.

 

Fazes tudo assim?

 

Li, tem um método que nunca falha.

 

Qual é?

 

Que importa? Não gostas do movimento do comboio. E a granja de ”sir” Dawes?

 

É sua outra vez. Já te disse que a sociedade Kelic actuou. Nada menos... Mas, porque te digo tudo isto? Estou desejando amar-te como um louco.

 

Estás amando-me.

 

Beija-me, Sónia. Olvida-te dos negócios, pensa em ti e em mim, nos dois nada mais.

 

- Sim, estou pensando em ti. Deixas-me, acaso, pensar em nada mais?

 

Mantinha-a prisioneira, e afastou-a um pouco para contemplá-la.

 

Sónia..., não sabes que parti porque temia não te amar?

 

E quando o comprovaste?

 

Quando me vi só. Estive a ponto de dar a volta a meio do caminho, mas pensei que Li tinha que conhecer meus planos, e fui participá-los.

 

Quando descobriste que te enganava com respeito às minas?

 

Quando cheguei a Londres a primeira vez, de regresso de IMnrthyr-Tydfl. Tinhas-me encantado com a tua beleza.

 

E tu me havias conquistado com a tua masculinidade.

 

Sónia...

 

Agrada-me este silêncio, Burt, e tua proximidade, e teus beijos, e teu olhar, e...

 

Não a deixou continuar. O comboio continuava rodando. Os que cruzavam o corredor junto aquela porta, não suspeitavam que ali, a dois passos, dois seres se amavam.

 

Sónia pensou que ninguém podia amar como Burt, e este disse que ninguém amava como sua mulher, que nenhuma outra do mundo podia ter aqueles olhos tão expressivos, nem aqueles lábios tão suaves, nem aquele coração que, com enganos a bem de seu pai, lhe havia feito olvidar um dia o seu, e a vigança que havia anos corroía sua alma.

 

E pensou também que, se ela o havia enganado, como foi por seu pai, era um perdoável engano. O engano que criara o formoso amor filial. Ele também quis ao seu assim. E se o quis assim, mais ainda a queria a ela. E se ela quis assim a seu pai, infinitamente mais o quereria a ele, porque ia ser tudo na sua vida.

 

                                                                                Corin Tellado  

 

                      

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