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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A DAMA DOS CRAVOS / A. J. Cronin
A DAMA DOS CRAVOS / A. J. Cronin

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A DAMA DOS CRAVOS

 

      NAQUELE dia úmido de novembro só a miniatura de Holbein podia ter atraído à Galeria Vernon tantos amadores e marchands [negociantes]. Porque ela sobrepujava, de muito, em interesse e em valor, os outros objetos que iam a leilão. Era, aliás, conhecida pelo nome de "A Dama dos Cravos". Que a família Kneller houvesse consentido em desfazer-se dessa preciosidade, é que constituía um acontecimento de todo inesperado. A miniatura representava a Senhorita de Quercy, filha de um embaixador da França junto à corte de Henrique VIII. Holbein a pintara em 1532, pouco depois do seu regresso de Bâle para Londres, e nela se encontrava a melhor maneira do mestre na época mais feliz de sua fecunda carreira de artista.

      A ampla sala estava lotada, quando precisamente às 4:30 foi apregoada a miniatura. Os primeiros lances, expressos num tom de polidez cordial e um pouco arisca, começaram em 2 mil guinéus, e muito rapidamente subiram a 5 mil. Depois de ligeira pausa, atingiram 7 mil, após o que houve uma nova hesitação. Enfim, a competição prosseguiu numa cadência alternada, sinal de que por enquanto somente dois concorrentes sérios se defrontavam. Aos 9 mil e 400 guinéus, produziu-se um compasso de espera.

      — Nove mil e quatrocentos guinéus!

      O leiloeiro, que dominava o salão do alto do seu estrado vermelho, com trejeitos obsequiosos, o cabelo bem penteado e uma pérola cuidadosamente espetada na gravata, repetiu o lance para Bernard Rubin. A oferta era contra Rubin; mas este não tinha de modo nenhum o ar de quem aceitasse o desafio. Afinal fez simplesmente um pequeno sinal irritado com os olhos que mal se podiam ver debaixo da aba do chapéu. Então o leiloeiro anunciou:

      — Nove mil e quinhentos!

      Uma resposta quase imperceptível surgiu do outro lado do salão.

      — Nove mil e seiscentos!

      Tomado de secreta cólera, Rubin seguiu o movimento das ofertas:

      — Nove mil e setecentos! — gritou o leiloeiro num tom de voz que era ainda uma provocação a novos lances.

      Desafiado de novo, seu oponente não se fez esperar.

      — Nove mil e oitocentos — disse o leiloeiro, voltando-se para Rubin.

      Desta vez, porém, Rubin dera sua última palavra. Já fora além do limite que prefixara e seu rosto tomou a expressão de uma indiferença estóica. Seu sucesso no negócio de antigüidades devia-o o velho Bernard Rubin justamente à faculdade que possuía de saber exatamente, quase por uma questão de centavos, quando devia parar.

      — Nove mil e oitocentos!

      O leiloeiro repetiu o lance, atirando um olhar interrogativo à assistência. Ninguém se mexeu.

      — Nove mil e oitocentos... dou-lhe uma... dou-lhe duas...

      Silêncio. Então, fatídico e sonoro, abateu-se o martelo.

      — Nove mil e oitocentos... dou-lhe três! É de Miss Lorimer.

      Catherine Lorimer levantou-se da cadeira, postada atrás da grande mesa, e, atravessando o vasto salão de arquitetura pomposa, dirigiu-se para a porta aberta. À sua passagem, alguns dos marchands lhe murmuraram felicitações; ela respondeu apenas com um ligeiro sorriso e não lhes deu nenhuma atenção. Na verdade, não saberia nesse momento o que lhes dizer.

      A despeito de uma energia conquistada à custa de duras experiências, aqueles últimos segundos lhe pareceram intermináveis, e, depois desta fatigante tensão, tal coro de aplausos lhe fazia mal. Ela jurara possuir aquela miniatura, e Rubin, se houvesse mais uma vez coberto o lance, tê-la-ia obrigado a declarar-se vencida.

      Como Catherine Lorimer descesse a escada, Bernard Rubin aproximou-se e a acompanhou em silêncio. Havia nele qualquer coisa de enigmático. Seu carro, uma limusine negra e prateada, de dimensões e de luxo extraordinários — Rubin nunca se furtava ao prazer de dizer ao primeiro que aparecesse o preço por que o comprara — esperava-o junto ao meio-fio. No limiar, os dois pararam um instante. Já se sentiam de novo dominados pela febre e ruído da rua, pelas luzes e o tumulto de Londres, e da sala de leilões lá em cima não conservavam mais do que uma imagem irreal e distante.

      — Será o mesmo, por acaso, o nosso caminho? — perguntou Rubin.

      Era a sua maneira de oferecer condução.

      Iam soar as 5 horas. Catherine resolveu, bruscamente, não voltar ao escritório, e ir para casa. Fez sinal de que aceitava o automóvel.

      Uma rajada de chuva fê-la estremecer. Num movimento rápido, jogou-se para dentro do carro.

      Em King Street, o automóvel quase não andava; mas em Picadilly foi ainda pior: um formigueiro de ônibus e táxis. À força de parar e de retomar a marcha, acabaram, entretanto, por atingir Curzon Street. Debaixo das sobrancelhas espessas e salientes, os olhos de Rubin fixavam Catherine com uma expressão de astúcia e ironia.

      — Subiu muito, Miss Lorimer — murmurou, por fim.

      — Você quer dizer muito alto... para você, não é, Rubin?

      — Talvez, talvez — concedeu ele, num tom displicente.

      O comerciante calou-se por um momento para observar o magnífico diamante que espelhava no dedo mínimo da mão esquerda da rival.

      — Seus negócios devem caminhar admiravelmente, Miss Lorimer, para que pudesse pagar tal preço pela miniatura, não é?

      — Sim, não vão mal — replicou Catherine, no tom mais natural que pôde imprimir à sua voz.

      — Ótimo! Estou muito contente! É espantoso! Enquanto isto, nós outros, comerciantes de obras de arte, estamos numa situação bem deprimente. Não há dinheiro, nem clientes, nem trabalho. E a senhora chega, e muito simplesmente oferece 10 mil guinéus por um minúsculo Holbein! Meus cumprimentos. Quase podemos dizer que é bonito demais para ser verdade.

      Os lábios de Catherine já se entreabriam para a resposta, mas preferiu calar-se. Sorriu, apenas, um sorriso rápido e contido, que criava em redor dela uma espécie de barreira de silêncio, e, com o olhar distante, derreou-se sobre o assento. A expressão resoluta que nunca a abandonava afirmava-se assim do modo mais chocante. Sob sua aparência de calma adivinhava-se, entretanto, um temperamento singularmente impulsivo, sempre pronto a explodir, e nos seus olhos sombrios perpassavam clarões fugazes que traíam uma vitalidade em constante ebulição. Ao mesmo tempo o rosto estava impregnado de melancolia, e a ruga que lhe vincava a fronte denunciava pesadas preocupações e duras canseiras. Tinha feições delicadas, a tez clara, belos cabelos castanhos, olhos pardos e ardentes, o rosto oval e pálido. Os dentes eram tão brancos que iluminavam de frescor o mais furtivo dos seus sorrisos. Não tinha mais de 35 anos. Suas atitudes serenas, a gravidade absorta e a maneira por que controlava todos os seus gestos traíam alguma coisa de impenetrável e quase inquietante.

      Trazia um vestido de lã escura, muito simples, visivelmente escolhido às pressas e sem cuidado. O chapéu, que costumava pôr um pouco atirado para trás, não tinha chique. Era evidente que ela não dava a menor importância ao modo de vestir-se.

      Só os sapatos, feitos sob medida e de couro muito fino, revelavam a pequenina vaidade que Catherine podia ter em mirar os pés, que os possuía delicados e bonitos.

      — Naturalmente — observou matreiramente Rubin — se a senhora pode contar com um lucro seguro de, digamos, 10%, e, sobretudo, com um pagamento rápido e em dinheiro vivo...

      Catherine sacudiu bruscamente a cabeça.

      — Muito obrigada, Rubin! Se me empenhei tanto em adquirir esse Holbein, é porque conto tirar dele um grande lucro.

      — Um grande lucro? Será que ainda há isso? Aqui, de qualquer modo, é difícil. Não, aqui — chacoteou, parodiando uma canção popular — "aqui não o encontrarás"...

      — É possível — confessou Catherine — mas, escute-me, Rubin, e pare com essa amolação. No mês que vem levo a miniatura a Nova York e a vendo a Brandt. Ele foi à Argentina, mas a 12 de dezembro estará de volta. Vai comprar-me a miniatura e me dará por ela 20 mil libras.

      — Ah! Ah! Então é Brandt? — fez Rubin com uma entonação respeitosa. — A senhora é uma mulher esperta, mas, para lhe falar com franqueza, minha cara, eu não teria me exposto a tal risco.

      — Posso dar-me a esse luxo — replicou Catherine cordialmente.

      — Meus parabéns. — E Rubin fez uma pequena reverência. — Bem entendido. A senhora conhece suas possibilidades melhor do que eu.

      Encarou-a de novo com uma insistente curiosidade, à qual se misturava um sentimento de involuntária deferência. Mas a moça retomara a sua expressão séria e tranqüila, querendo, sem dúvida, com isto, dar a entender que a conversa já se prolongara demais. Calaram-se os dois, então, até o momento em que Rubin, evidentemente desejoso de que ela não se fosse guardando dele a impressão daquelas indiscrições, encontrou outro assunto para conversar:

      — Como vai sua sobrinha Nancy?

      Referia-se à jovem atriz Nancy Sherwood. Catherine mudou de cara, e seus traços exprimiram a maior ternura.

      — Vai otimamente! Acaba justamente de ficar noiva.

      — Magnífico. E quem é o felizardo?

      Catherine mordeu os lábios.

      — Vou saber hoje. Estou convidada para uma reunião à noite, a fim de conhecê-lo. Mas peço-lhe um pouco de... Que época engraçada a nossa! No meu tempo as coisas se passavam de outro modo...

      — Mas, minha cara, a senhora ainda é jovem! — interrompeu Rubin em tom caloroso.

      — Muito obrigada! Você sabe o que quero dizer... Eis que Nancy parte para passar duas semanas em Nice, a fim de repousar um pouco antes do novo papel, e na volta nos traz o futuro marido como se fosse uma bolsa que acabasse de comprar!

      — Sim, sim, hoje em dia essas coisas se fazem rapidamente — disse Rubin, rindo — mas no fundo, a cantiga é sempre a mesma.

      Quando o carro fez a volta em Curzon Street e parou em frente à casa de Catherine, Rubin tentou uma última espertezazinha.

      — Quer dizer que a senhora, na pior hipótese, assegurou um destino para o Holbein?

      Batia-lhe na mão enquanto ela se levantava. E continuou.

      — Se não chegar a desfazer-se dele, será um soberbo presente de noivado, não?

      Estas palavras irônicas ainda ressoavam aos ouvidos de Catherine, quando ela entrou em casa. Morava ali num luxuoso edifício moderno. O frio esplendor dessa construção ofendia-lhe o gosto, mas o local lhe convinha para os negócios, e sua profissão exigia um endereço importante. O porteiro abriu-lhe a porta e a acompanhou até o elevador. Um segundo empregado, tão agaloado quanto o primeiro, conduziu-a ao sexto andar, onde se separou dela.

      De origem modesta e levando uma vida muito simples, Catherine ainda se divertia com toda essa encenação, e às vezes sentia uma alegria infantil diante do aparelho pneumático que lhe trazia a correspondência, e diante das meias brancas dos criados. Mas naquela noite estava completamente absorvida por seus pensamentos. Com os supercílios franzidos, recordava as palavras de Rubin, e se perguntava até que ponto a velha raposa estava a par de suas dificuldades financeiras. Afinal, com um suspiro, confessou a si mesma que ele podia nada saber de preciso, mas havia razão para que lhe atribuíssem graves dificuldades.

      No instante em que entrou no apartamento, seus traços se distenderam, e ela pareceu imediatamente triste e apreensiva. Pensava no dia árduo que acabava de viver. Depois de uma trabalhosa e estéril discussão com um cliente, mal tivera tempo de almoçar. Depois, fora a excitação dos lances. Tinha agora uma forte dor de cabeça que lhe dava vertigens, e um arrepio correu todo o seu corpo exausto. Num gesto nervoso, arrancou da cabeça o chapéu e o atirou, com as luvas, ao divã. Em seguida, foi para a pequena cozinha preparar o chá e cozer um ovo.

      Um quarto de hora depois, diante do bule e do porta-ovos vazios, mediu subitamente o nada que era a sua existência. Quatrocentas libras por ano só para o aluguel do apartamento e outras 600 para o escritório. Acabava de dar 10 mil por uma simples miniatura. E seu jantar não chegara a lhe custar quatro pence [centavo de libra]. De súbito, pôs-se a rir às gargalhadas até o momento em que os olhos se lhe encheram de lágrimas. Eram lágrimas amargas, e se ela as deixasse correr livremente teria desabado sobre si mesma, soluçando.

      Voltou para o quarto. A peça estava tranqüila, e continha alguns poucos móveis, escolhidos com gosto. Tirando os sapatos, Catherine atirou-se a uma poltrona e acendeu um cigarro. Raramente fumava; só quando estava ou muito contente ou muito triste. E naquela noite sentia-se totalmente abandonada. Nos últimos tempos, seus negócios vinham andando muito mal. No comércio de antigüidades há um incessante movimento de fluxo e refluxo. Como os outros, ela conhecera a prosperidade; agora estava no último degrau, e não havia mais quase esperança. Continuaria, decerto, a lutar corajosamente. Já se impusera todas as restrições possíveis. Não podendo fazer economia nos dois aluguéis, renunciara ao carro e sacrificara tudo que não fosse estritamente indispensável. E, no entanto, a situação ia sempre piorando.

      Revestindo-se de decisão, proibiu a si mesma de pensar por mais tempo em suas dificuldades de dinheiro. Teria muito tempo para isso segunda-feira, quando se avistaria no banco com o Sr. Farrer. Por enquanto sua tristeza tinha causas mais profundas e mais íntimas. Sentia-se tão terrivelmente só! Aos olhos dos amigos mais chegados e dos parentes, aos olhos de todo o mundo, sua vida era um sucesso. Recordava o tempo dos seus começos, revia-se jovem de 17 anos, quando acabara de deixar a escola, na casa meio vazia de Tulse Hill. Nesse tempo não passava de uma tímida datilografazinha em Twiss & Wardrop, artigos de ferro em grosso, Duck Court, High Holborn. Nesse bazar, de uma categoria superior, deram-lhe um lugar de praticante, porque seu pai conhecia um dos sócios, como ele, muito dado às coisas da igreja. Mas, apesar dessa recomendação, cada vez que o Sr. Twiss lhe dirigia a palavra ou o Sr. Wardrop franzia a testa, ela começava a tremer.

      Desse tempo para cá, sua vida mudara muito. Dirigia agora a casa Antica, de King Street, St. James, e de Park Avenue, em Nova York e era respeitada pelo seu gosto e sua competência. Consideravam-na uma especialista em instalações de estilos antigos, e em todas as questões concernentes às artes decorativas e à pintura. Era, talvez, entre todas as mulheres do mundo inteiro que fazem comércio de antigüidades, a mais conhecida. Tudo isto, entretanto, só lhe despertava sombrios pensamentos. Se triunfara foi por ser dotada de uma vontade de ferro, porque cerrara os dentes e resolutamente sacrificara tudo. Para fazer sua carreira impusera ao seu jovem coração timorato a mais severa disciplina e as mais duras privações. Quisera a qualquer preço chegar à meta, ser alguém. Atingira agora o fim visado, e seu orgulho estava satisfeito. Mas, pobre dela!, como, ao fim de toda essa luta, tudo lhe parecia inútil e vão!

      Ao seu lado o telefone tocou. Num gesto fatigado — porque um dos tormentos de sua vida era estar assim sempre à mercê desse instrumento — retirou o fone. Era sua mãe que a chamava, da confortável vilazinha que Catherine instalara para ela, cinco anos antes, em Wimbledon.

      — Afinal a encontro, Catherine!...

      Mesmo na extremidade do fio, a velha Sra. Lorimer tomava desde logo o tom de censura de uma mulher abandonada:

      — Que milagre ter eu a felicidade de encontrá-la! Levei o dia todo a sua procura. Parece que nunca tem tempo para trocar algumas palavras com sua velha mamãe. Nunca!

      — Mas eu não liguei para você ainda ontem à noite? — perguntou Catherine com indulgência.

      — É verdade, mas de qualquer modo. . . — replicou a velha num tom lastimoso. — Alô, alô! Está ouvindo?

      — Estou sim, mamãe.

      — Bem, mas não desligue! Tenho uma infinidade de coisas para lhe dizer. Espere um pouco. Tomei nota de tudo... Onde estão meus óculos? Ah, estou com eles no nariz! Bem, para começar, você vem aqui amanhã para o fim de semana com a Nancy e o noivo?

      — Sim, provavelmente...

      — Bem, minha querida. Agora, escute. Eu queria que me trouxesse algumas bagatelas, lã, amêndoas confeitadas, bolachas de chocolate e um bom romance novo. Sobretudo não se esqueça das amêndoas confeitadas, Catherine! Sim, e enquanto estivermos aqui compre-me também pastel de anchova. Gosto tanto deles. É tão bom, nas noites de inverno, com chá, no canto da lareira. Escute ainda, Catherine... Está entendendo? A lã tríplice de que eu necessito para meu novo xale, logo disso eu havia de me esquecer...

      Catherine, que ouvia pacientemente, fez um ligeiro sorriso.

      — Muito bem, mamãe, suas ordens serão cumpridas.

      — Ordens? Veja só!

      Logo a voz da Sra. Lorimer readquiriu o tom choramingas:

      — Eu lhe peço algumas ninharias, e logo você se arrebita toda. Na verdade, Catherine, o modo como trata sua velha mãe passa dos limites. Ah, se seu pobre pai ainda fosse vivo!...

      A habitual alusão ao túmulo paterno provocou um sobressalto em Catherine.

      — Vamos, minha mãe — interrompeu com vivacidade — você compreendeu mal.

      Houve uma pausa.

      — Está zangada comigo?

      — Ora, não, mamãe!

      — Está bem. — Um pequeno suspiro de alívio correu pelo fio. — Aliás, é natural... está ouvindo? Alô! Esta idiota da telefonista sempre corta as nossas ligações! Então, boa-noite. Deus te proteja, minha querida! E não se esqueça das amêndoas confeitadas...

      Catherine repôs o fone no lugar, abanando a cabeça. Se bem que a mãe se houvesse tornado bem mais tratável depois que tinha sua casa própria e tudo de que necessitava, sofria duma idéia fixa: a de ser uma perpétua vítima. Adorava queixar-se, e a força de lamúrias chegava freqüentemente ao limite do suportável.

      Mas, lançando um olhar rápido ao relógio, Catherine afugentou resolutamente da cabeça todas as suas preocupações. Retomando a energia, passou para o banheiro e abriu as torneiras. Se bem que não tivesse nenhuma vontade de sair, não queria por nada deste mundo desapontar Nancy. Despiu-se rápido, e mergulhou na banheira. Enquanto seu corpo se reanimava ao calor caricioso da água, pensava na sobrinha, e insensivelmente as rugas se apagavam da testa, e um sorriso de expandiu nosseus lábios. Adorava Nancy, a filha de sua irmã mais velha Grace, que se casara, contra a vontade da mãe, com Joe Sherwood. Grace conheceu 15 anos de felicidade com Joe. Mas, confirmando uma sombria predição havia muito esquecida, os dois tiveram morte misteriosa e súbita num acidente de automóvel, viajando pelo campo. Desde esse triste dia Catherine tomou conta de Nancy, que a esse tempo não passava de uma débil menina de 14 anos. Catherine cumulou-a de solicitude, pô-la numa escola de arte dramática, e, cedendo às suas instâncias, dois meses antes permitiu-lhe enfim subir à ribalta. No seu transbordamento de afeto, Catherine se zangava com todos os que se permitiam dar a entender que ela estragava a sobrinha com uma excessiva indulgência. Para ela, Nancy era a mais gentil e a melhor moça do mundo e não havia criatura tão bonita.

      Espantava-se ao pensar que agora Nancy era uma mulher, e voltava de Cote d'Azur para anunciar friamente que estava noiva. No entanto, o que podia lhe acontecer de melhor era justamente casar-se, construir para si o mais cedo possível um lar, e passar os melhores anos da existência entre um esposo e filhos. Nada Catherine desejava mais ardentemente para ela, e o desejava naquela noite com mais fervor do que nunca.

      Saindo da banheira, friccionou fortemente a bonita pele clara. Era grata àquele corpo cheio de saúde, que lhe permitira suportar as fadigas e provações dos últimos anos.

      Vestiu-se mais lentamente do que de costume, escolhendo um vestido que comprara quando de sua última viagem a Paris. Habitualmente quase não se preocupava com o traje. Achava que não tinha tempo nem razões especiais para se pôr elegante; e às vezes mesmo vestia-se com um desleixo que fazia sorrir, porque os outros viam nisso uma manifestação de originalidade da parte de uma mulher rica e que triunfara na vida. Naquele momento queria fazer-se bonita para Nancy.

      Às 8h30min, estava pronta, e diante do estreito espelho de Vauxhall que encimava a mesa de toalete, verificou que, apesar dos sinais de fadiga que lhe marcavam o rosto, não estava desagradável de olhar. Algumas tênues sombras lhe sublimavam os olhos, mas a tez, que não carregava o peso do pó, era clara e fresca. A cor bonita dos lábios, cortados sobre a resplendente alvura dos dentes, atestava um sangue puro e vigoroso.

      Lá fora, a chuva cessara. O asfalto, que uma leve brisa secara, convidava a caminhar. Nada Catherine apreciava tanto quanto andar a pé pelas ruas tranqüilas. Mas, lembrando-se dos seus sapatos de soirée, resistiu à tentação. Tomou um táxi para chegar até Adelphi, onde Nancy morava no último andar de uma velha casa nas proximidades de John Street.

      O edifício, onde havia principalmente escritórios, não tinha elevador. E enquanto galgava a escadaria, Catherine já percebia o rumor de vozes. Quando a bonita criada de quarto de Nancy a introduziu, e o criado especialmente contratado para a festa a ajudou a tirar o casaco, as duas peças contíguas já estavam cheias de convidados, e todos excitados pelo fumo e pelo ruído.

      Mal Catherine deu alguns passos, Nancy precipitou-se para ela e a beijou com a maior efusão.

      — Oh, Catherine, como estou contente de vê-la! Todos estes dias senti tanto sua ausência!

      Catherine sorriu.

      — Mas então por que não me fez uma visitinha? Não está de volta desde quarta-feira?

      — Eu teria ido de bom grado, querida, mas não pode imaginar como estive absorvida pelos ensaios, e por Chris, e por tudo o mais!

      — Faço idéia.

      Catherine pôs-se a mirar com ternura a sobrinha. Como estava encantadora aquela noite! Se bem que tivesse apenas 24 anos, sua beleza esbelta e racée [de linhagem] já atingira pleno desenvolvimento. O rosto era gracioso, mas de traços nítidos, com maçãs salientes, olhos azuis amendoados, e pequenos supercílios altos. Os cabelos, em tom pálido, conforme a última moda, brilhavam como fios de ouro. A boca estreita estava escarlate porque ela não espalhara o baton. Sob uma aparência displicente, uma vivacidade eletrizante animava-lhe o corpo delicado.

      — Sabe — disse Catherine com fingida severidade — que sempre acreditei que sua arte fazia o papel de marido?

      Nancy deu uma risada.

      — É verdade, mas isto não me impede de casar com Chris.

      — Ora vejam — respondeu Catherine com um sorriso e olhando em redor. — Mas onde está Chris?

      — Vou deixar que você vá procurá-lo, querida.

      — O quê?

      — É engraçado. Você está sempre tão perdida entre meus amigos, querida, que aposto que não vai encontrá-lo.

      — Se ele é um cavalheiro — observou Catherine, em tom de gracejo — parece-me que compete a ele descobrir-me.

      Nesse instante mesmo, vários dos convidados entraram. Depois de fazer uma careta para a tia, Nancy correu a recebê-los. Catherine dirigiu-se ao buffet e se instalou numa cadeira diante de um prato de fatias de pão com caviar. Estava muito prevenida para se misturar desde logo com os presentes, e preferia retardar-se um pouco na companhia de um sanduíche. Era extraordinariamente senhora de si, o que devia menos à frequentação da sociedade — a que entretanto estava habituada — do que à sua perfeita simplicidade natural. Gostava da vida social, mas a observação de Nancy era justa; e a maior parte dos amigos que a sobrinha reunira naquela noite lhe eram totalmente estranhos. Pensou ter reconhecido alguns, o jovem ator David Almoner, que fazia papéis de Shakespeare, e sua mulher, Nina George, a pianista; o fotógrafo Arnold Rigby, John Harris, o diretor dramático da Rádio de Londres; e, depois, Tony Ulrick, cujos poemas humorísticos ilustrados por ele mesmo tinham grande sucesso, se bem que Catherine, pela sua parte, os achasse muito insípidos. Mas, na sua maioria, aquelas caras não lhe diziam absolutamente nada. Bebeu uma taça de champanha e mordiscou um sanduíche. O buffet estava excelente. Sem o confessar, ela apreciava tanto mais essas iguarias, quando não podia dar-se ao luxo de comprá-las.

      Chegavam incessantemente novos convidados. David Chesan, autor da peça "Noite de Luar na Arcádia", na qual Nancy devia aparecer, fez sua entrada, seguido de perto por Sam Bertram, o célebre Bertie, que eclipsava todos os outros empresários. Ambos foram recebidos por Nancy com explosões de alegria. Bertram fez para Catherine um pequeno sinal em que se lia uma profunda amizade e significava que ele não tardaria em ir fazer-lhe companhia. Catherine respondeu com um sorriso. Conhecia Bertie desde alguns anos, fornecia-lhe às vezes a decoração necessária a uma mise-en-scène [entrada em cena] e apreciava-lhe a natureza vigorosa e a jovialidade de bom escocês.

      O ruído crescia. Em meio ao tumulto, Ulrick recitou um dos seus poemas, enquanto Nina George improvisava ao piano um acompanhamento burlesco. Catherine começava a se sentir exausta, quando de súbito uma voz se elevou ao seu lado, destacando-se entre todas pelo tom calmo e também pelo sotaque americano.

      — Parece-me que nós somos aqui as duas únicas pessoas de juízo.

      Catherine virou-se surpresa. Um homem pequeno e um pouco pálido postara-se junto a ela numa atitude displicente, as mãos nos bolsos, e correspondia ao seu olhar de curiosidade com um sorriso cheio de malícia.

      Era moreno e sólido, e podia ter 35 anos. Uma fina cicatriz alva cortava-lhe o lábio superior um pouco grande, e dava-lhe ao rosto estreito uma expressão de obstinação e de frieza. A tranqüila segurança que revelaram suas palavras desagradou a Catherine.

      — Quererá o senhor dizer que estou nesse número? — perguntou ela, erguendo ligeiramente as sobrancelhas.

      — A menos que isso não lhe convenha...

      — Então o senhor seria o único e derradeiro representante duma humanidade sábia e sofredora...

      Ele se pôs a rir, e uma discreta alegria se espelhou nas pequenas rugas que lhe circundavam os olhos.

      — Estou estarrecido, Miss Lorimer. Parece-me que a senhora tem ainda mais espírito do que Nancy me diz. E ela afirma que tem muito.

      Catherine ficou estupefata.

      — Quer dizer que o senhor é...

      — Pois não! — interrompeu ele com uma inclinação de cabeça e um risinho seco. — Sou Chris Madden. Vamos, não faça essa cara de enjôo. Sei bem que não sou digno de Nancy, mas farei os maiores esforços para o ser.

      Num gesto mecânico, Catherine segurou a mão que se estendia para ela, e procurou refazer-se.

      — Tola que sou! — exclamou. — Mas eu não podia imaginar que Nancy casasse com um americano...

      — Sim, e eu — acrescentou Madden, sempre com a mesma voz tranqüila — nunca pensei que acabaria tomando uma inglesa por esposa.

      Catherine teve de reconhecer que a lição não fora de todo imerecida. Corou, e pôs-se a examinar o rapaz furtivamente. Muito à vontade, fleumático, ele prosseguiu:

      — Sim, como vê, tudo acontece de modo diferente do que prevemos. Quando encontrei Nancy em Nice... Deus! nunca esquecerei esse instante; fazia um bonito sol, nada que se parecesse com o seu nevoeiro daqui, Miss Lorimer... perdi o fôlego. — Hesitou, e retomou a calma. — Sim, isto se passou entre nós dois, como tem invariavelmente acontecido desde Adão e Eva.

      — É, então, um verdadeiro idílio...

      O tom em que ele pronunciara aquelas palavras, que tinham a aparência de uma espécie de declaração, era tão pouco convincente, que Catherine pôs na sua resposta uma pontinha de dúvida e quase de hostilidade. Talvez estivesse enciumada. Mordeu os lábios e seus olhos mediram o rapaz de novo. Era um segundo exame, ainda mais severo do que o primeiro. Examinou-lhe a roupa, que em nada lembrava as elegâncias de West-End, depois a camisa, que estava longe de ser nova. Seus olhos se apertaram. Toda a sua solicitude por Nancy despertou.

      — E que fazia em Nice, Sr. Madden?

      — Bem, gozava umas férias. Era a primeira vez, depois de muito tempo. Tinha visitado Roma, Florença e Veneza, e de repente senti saudade da França. Não a via há 22 anos, desde a guerra. É muito tempo, e entretanto, quando a gente repara, vê que passou tão depressa!

      — Certamente — disse Catherine com indiferença — o tempo sempre engana. Pensa passar aqui muito do seu tempo, Sr. Madden?

      — Depende de Nancy, Miss Lorimer. Eu gostaria que pudéssemos casar o mais breve possível. Mas Nancy é tão ocupada com o seu teatro! O papel na nova peça a está cansando muito. A primeira representação deve ser dentro de duas semanas em Manchester, e Nancy passa os dias em ensaios e preparativos. Enquanto isto durar, ficarei com ela, depois procurarei convencê-la a ir comigo para a América.

      — Tudo isto me parece um pouco precipitado, Sr. Madden, não acha? — E Catherine fez um sorriso glacial. — Todos nós gostamos de Nancy, e, quanto a mim, tenho-lhe uma profunda afeição...

      — Oh, sei disso — replicou ele, cortando-lhe a palavra. — Nancy me fala tanto da senhora. Foi simplesmente admirável para com ela.

      — Chame a isto como achar melhor; a felicidade de Nancy é tudo para mim. Compreenderá, portanto, que eu deseje saber alguma coisa do homem que vai ser o marido dela.

      Madden pareceu dobrar-se sobre si mesmo, e sua fisionomia tomou uma expressão dura.

      — Estou ao seu dispor — replicou, com um olhar de esguelha.

      Houve um silêncio. Catherine desviou os olhos, porque sentia que sua vivacidade magoara Madden e se censurava ao mesmo tempo pela sua impaciência. Mas, perguntava-se enervada, como poderia ter agido de outro modo? Estava um pouco aborrecida com a sobrinha por tê-la mantido assim na ignorância de quem era o noivo. Esperava encontrar um homem de todo diferente, um homem de quem não tivesse dificuldade em decifrar os pensamentos e a vida. Aquele estrangeiro, aquele americano desenvolto que se impunha a ela com tanta sem-cerimônia, inspirava-lhe não antipatia, mas uma espécie de desconfiança, que ela devia aprofundar, por amor a Nancy. Engolfada nessas reflexões, sentia-se muito pouco à vontade junto de Madden, quando Nancy se aproximou deles e lhes dirigiu um sorriso irradiante.

      — Estou contente de ver que vocês já se conhecem. Agora que já sabe o pior, Catherine, diga-me: que pensa dele? Não é horrível?

      Madden olhou para Nancy, e seu rosto retomou a sua animação.

      — Receio que ela realmente me ache horrível. O mais estúpido é que eu não estava preparado para descobrir uma Miss Lorimer tão jovem e tão bonita, e ela, por seu lado, não imaginava ter de encontrar-se com um personagem assim tão mal-ajambrado. Devo confessar-lhe que ainda não paramos de discutir.

      — Ela é terrivelmente arrogante — disse Nancy — mas, quando a conhecemos melhor, não é tão terrível.

      Catherine teve um sorriso forçado. Era extrema a sua tensão nervosa.

      — Falando sério, minha querida — continuou Nancy — eu gostaria que se entendesse bem com Chris. Não acreditará, mas afirmo-lhe que ele ganha se for visto mais de perto. Convencer-se-á disto se formos sábado a Wimbledon.

      — Muito bem, pois, estou pronta para tudo — replicou Catherine com uma sombra de sarcasmo que era bem surpreendente nela.

      — De qualquer modo, está avisada — concluiu Nancy com um ar de confiança satisfeita. — E agora venham comigo, e divirtamo-nos!

      Mas, embora se esforçasse muito por se dominar, Catherine não chegava a se integrar no ambiente.

      Uma hora depois voltava para casa. Experimentava uma estranha sensação de insegurança e mal-estar.

    

      Chegou o sábado. Um vento úmido e frio soprava em rajadas nas esquinas. Desde alguns dias fazia muito mau tempo, e Nancy se resfriou. Estava de cama e proibida de levantar-se enquanto a febre não passasse. Insistiu, porém, com Madden para que fosse pontual no encontro marcado e não deixasse de ir passar pelo menos uma noite em Wimbledon. Assim ele não perderia o seu tempo vagando, no apartamento da noiva, de uma sala para outra. Nada, aliás, tinha que fazer em Londres.

      Catherine, que não estava satisfeita com a feição tomada pelos acontecimentos, retardou o mais que pôde a hora da partida. Já eram quase 16 horas quando telefonou, do escritório, a Madden para dizer-lhe que estava pronta. Sem dúvida ele ficara à espera do aviso, pois alguns minutos depois chegava a King Street. Catherine alugara os dois primeiros pavimentos de um prédio estreito, cuja fachada se abria em arco de círculo, e que pela parte traseira dava para um pátio de calçamento irregular, aonde se chegava por uma viela eriçada de mourões de ferro e de veneráveis bicos de gás. Era o cenário ideal para uma atividade como a de Catherine, e ela pusera um cuidado verdadeiramente amoroso em valorizá-lo. A decoração exterior, de um gosto muito seguro, evocara a época dos George. Debalde se procuraria um reclame ou um cartaz, e a estreita placa de cobre pregada acima do caixilho vermelho tinha esta simples inscrição: "Antica Ltd."

      Através das vidraças de tons opalinos via-se uma vasta peça ocupada por objetos de madeira, harmoniosamente dispostos, e onde a pátina sombria dos móveis de nogueira, estilo Rainha Ana, temperava o esplendor dos brocados do século XVIII.

      No andar superior, para onde se subia por uma larga escadaria, cuja balaustrada esculpida tinha uma curva muito bonita, Catherine instalara seu escritório particular. Era uma peça ampla e clara, com uma lareira, e no centro uma pesada escrivaninha quadrada. A um canto um cofre. No chão um precioso tapete persa, e aqui e ali, em quadros, na parede, alguns desenhos de tons vivos. Uma das especialidades de Catherine era, com efeito, a confecção de projetos para decoração de casas antigas. Conseguira assim uma reputação especial. Muitas vezes executara a transformação interior de amplas vivendas senhoriais inglesas, auferindo disso grandes proventos. Por outro lado, não era uma simples comerciante de móveis, e evitava acumular peças heterogêneas. Só conservava em depósito uma pequena quantidade delas, e cuidadosamente escolhidas. Só as comprava depois de madura reflexão, e com um objetivo bem definido. A segurança do seu gosto constituía seu melhor capital. Esse faro particular que ela possuía de pressentir a utilização de uma obra de arte é que a havia levado a adquirir a miniatura de Holbein, a qual contava vender à famosa Galeria Brandt, em Nova York.

      As 4 horas soavam no velho relógio de laca quando Madden entrou no escritório. Catherine foi postar-se em frente a ele e lhe estendeu a mão. Depois do encontro dos dois em casa de Nancy, ela havia refletido, e, obedecendo à sua congênita lealdade, resolvera superar suas prevenções contra Madden e dar-lhe ao menos uma oportunidade.

      — Como vai Nancy? — perguntou Catherine.

      — Não muito bem. Tem de ficar na cama, e continua com febre. Mas ainda assim, insistiu para que eu viesse.

      Catherine fez sinal de que sabia disto.

      — Ela me avisou pelo telefone. Lamento tê-lo feito esperar.

      — Não tem importância, Miss Lorimer. Já esperei tantas vezes por Nancy, no teatro, que me acostumei. É mesmo para mim uma coisa nova dispor do tempo e não precisar economizar segundos. Aposto que acabarei por achar prazer nisso.

      Enquanto Catherine enfiava as luvas, ele examinava em detalhes o escritório com um olhar demorado e tranqüilo, em que se lia a curiosidade de um entendido.

      — Muito bonito tudo isto. Deixe-me dizer-lhe que estas coisas me agradam imensamente, sobretudo este maravilhoso tapete.

      — É, sim — concordou Catherine. E num tom cortês, acrescentou: — É persa do século XVIII. O artesão que ligou os fios, trabalhou nisso, creio, 10 anos. E todas essas cores são velhas tinturas vegetais...

      — Naturalmente — concordou Madden — é um Kirman de Laver, não é?

      Catherine encarou-o um pouco espantada. Era preciso uma verdadeira competência no assunto para identificar, não apenas a província, mas o lugar de origem do tapete, que procedia, precisamente, de Laver.

      — Conhece antigüidades? — perguntou curiosa. Ele respondeu com um ar muito sério:

      — Não, não entendo nada, pelo menos não entendo tanto quanto pensa. Mas me interesso pelo assunto, e procuro tomar pé. Tenho lido alguma coisa, e na Europa corri bastante os museus. Há assim domínios que a nossa civilização americana ignora, como os tapetes da Pérsia e os velhos móveis italianos. Sim, e depois, naturalmente, se isto não a contraria, a salada à francesa... — Ele deu uma gargalhada. — No que se refere ao preparo da salada à francesa, sou um especialista.

      — Vejam só! — disse Catherine.

      Ela se sentia cada vez mais desconcertada ante os aspectos imprevistos daquele homem, cuja originalidade não podia deixar de reconhecer. Os pensamentos mais contraditórios lhe passavam pela mente, e enquanto descia as escadas sentia-se tomada por uma sensação de azedume que, entretanto, não deixava de ser agradável.

      Na rua um automóvel azul os aguardava.

      — Espero — explicou ele, rápido — que lhe convenha este carro. Nancy me disse que a senhora desistiu do seu automóvel, e então eu arranjei este.

      — É o seu?

      — Não — respondeu Madden, surpreso. — Aluguei-o.

      Sem querer, Catherine mordeu os lábios.

      — Nem por isto deixa de ter um certo ar de riqueza... — murmurou com uma ponta de zombaria.

      Mal acabava de dizer isto, arrependeu-se; Madden, porém, não reagiu, fez como se não tivesse ouvido.

      O automóvel rodava macio. Madden conhecia bem o caminho. Atravessou o Parque St. James, depois seguiu pelo cais do Tâmisa, sobre cujas vagas o sol poente espalhava uma suave bruma dourada. Madden se inclinava um pouco para diante, o chapéu mole amarfanhado entre os joelhos, e contemplava com uma atenção fixa a paisagem que desfilava ante seus olhos.

      — É tão atraente para mim — falou afinal. — É um espetáculo tão diferente do de Cleveland, que estou inteiramente fascinado.

      — Há muitas coisas que o fascinam, Sr. Madden?

      Ele hesitou em responder.

      — É verdade. Vejo que lhe dou a impressão de um casca-grossa. Mas que quer? Há 15 anos trabalho tanto que ainda não pude respirar. Depois da morte de meu pai, no tempo da guerra, atravessei uma fase muito dura. Então comecei a subir a encosta e tive de andar de rastros para não cair. Não pode imaginar, Miss Lorimer, a situação de um homem que o trabalho agarra pela garganta, que chega a não poder mais nem admirar um pôr-de-sol, e que nunca tem tempo, se ouso dizer, de conhecer uma moça como Nancy.

      — Sim, compreendo muito bem.

      Um clarão de simpatia passou pelos olhos de Catherine, porém ela logo se dominou.

      — Espero — acrescentou — que não se decepcione com o que vai ver durante este fim de semana.

      — Gosto de fazer novas relações. E depois, trata-se dos parentes de Nancy e seus.

      Disse estas últimas palavras num tom de perfeito à vontade. Catherine, ao contrário, teve um sorriso contrafeito.

      — É que me vejo na obrigação de preveni-lo. Talvez nos ache um pouco simples, minha mãe e eu. Pertencemos à classe média, Sr. Madden, e somos desesperadamente pequenos-burgueses. Não se deixe iludir pelo luxo de minha instalação. Entro às vezes em relações de negócio com os grandes deste mundo, mas não me esqueço de que comecei minha carreira como datilógrafa, a 15 xelins por semana. Levava para o trabalho o almoço num saco de papel. E, acredito, não mudei muito.

      — Verdade?

      Virando-se para Catherine, Madden viu que ela falava muito a sério.

      — Pois bem — disse — a senhora começa a subir na minha estima.

      Ela não pôde deixar de rir a essa resposta, pronunciada num tom de extrema dignidade. Pelo menos — pensou — ele tem o dom do humor, o que facilita muito as coisas. No entanto, sua desconfiança não se desarmara. Com a intuição que lhe era própria ele se deu conta disto. Após uma pausa, prosseguiu calmo:

      — Aborrece-lhe não saber nada a meu respeito, não é, Miss Lorimer?

      Por motivos que ela própria desconhecia, Catherine corou.

      — Suplico-lhe — falou, retomando o ar sério — que me compreenda bem. Não me preocupo com exterioridades. Penso no homem em si, no que quer casar com a Nancy.

      Fez-se um silêncio. Estranhamente comovido pela simpatia que julgava discernir nas palavras de Catherine, e se bem que isto lhe fosse penoso, sentiu-se tentado a falar-lhe ao menos de alguma daquelas coisas exteriores a que a moça aludira.

      Madden havia notado que, desde o começo, ela o tratava desdenhosamente. Com sua falta de pretensões e o desleixo do seu traje, acontecia-lhe freqüentemente ver-se nesta situação; isso mais o divertia do que o contrariava. Detestava a pose; sempre a detestara. Desdenhava da elegância moderna, dos restaurantes chiques, dos hotéis de luxo, da agitação da vida mundana. Assim é que fizera a viagem à Europa num navio de emigrantes, percorria o continente como um turista modesto, hospedava-se em hotéis medíocres, viajava de terceira classe pelo prazer de freqüentar gente simples, e se contentava, muitas vezes, em almoçar um sanduíche e um copo de vinho.

      Talvez tivesse herdado essa sobriedade dos seus ascendentes, em particular de sua mãe, uma senhora de Vermont, chamada Suzanne Emmet, que aliava uma grande doçura a um senso inflexível do dever. Seu pai, Seth Madden, originário da Virgínia, possuía também toda a amabilidade da gente do sul dos Estados Unidos, mas não sua indolência. Era um homenzinho ossudo e barbudo, com olhos encovados e um humor de santarrão. Fixara-se em Cleveland, e como boticário laborioso pusera-se a fabricar uma cola especial, que patenteara com o nome de Fixfast. Seu pequeno laboratório nunca prosperara muito, mas após sua morte, em 1917, quando Chris se batia no front europeu, veio a degringolada e o descrédito. Quando o jovem Madden, voltando da guerra, assumiu a direção do negócio, custou-lhe muito tomar pé. Entretanto, estava decidido a restaurá-lo e desenvolvê-lo, e entrou de corpo e alma no trabalho.

      Quinze anos se passaram e os que nesse tempo viram o estabelecimento não o reconheceriam agora. Madden não fazia ruído nem frases, mas, sob suas atitudes tranqüilas, dissimulava-se uma energia metódica e refletida. Lançou no mercado uma nova cola, de um vermelho-cereja, que secava muito rápido. O negócio crescia constantemente. Com muita prudência começou por comprar as pequenas fábricas de cola da região, assim como suas patentes, e fechar os laboratórios que trabalhavam por processos anacrônicos; depois concentrou sua indústria em Cleveland. O capital duplicou, triplicou, quadruplicou e, finalmente, passou a exprimir-se por milhões. Madden era mais rico do que nunca chegara a imaginar no tempo dos seus devaneios de criança. A bem dizer, pouco se preocupava com dinheiro, salvo quando se tratava de animar sua velha mãe, a quem amava ternamente. Em 1929 comprara para ela em Graysville, no Estado de Vermont — porque a velha tinha grande apego à terra natal — uma pequena e confortável vivenda em estilo colonial.

      Proprietário das Fábricas de Cola Reunidas, Madden era uma das personalidades mais conhecidas de Cleveland. Mas conservara sua simplicidade de maneiras e se expressava por frases curtas, com uma tranqüila modéstia. Tinha agora 35 anos, e durante cinco trabalhara como um forçado. Tendo atingido o fim que se prefixara, dissera a si mesmo que chegara o momento de parar um pouco. Assim, na primavera anterior, fechara o escritório para umas férias na Europa.

      Essas imagens do passado lhe voltavam ao espírito enquanto rodava ao lado de Catherine, e sentia-se tentado a revivê-las para ela.

      Mas não se decidia a abordar o assunto, e ainda hesitava quando o automóvel desembocou em frente a Beechwood, que era como a velha Sra. Lorimer batizara sua "vila". Eram quase 5 horas, e a fachada da pequena casa, cheia de bonitos ornatos, já se divisava entre as sombras da noite. Madden guardou o carro, pegou o saco e os pacotes de Catherine e seguiu a moça ao longo da estreita vereda que conduzia à porta de entrada. Penetraram na sala de visitas onde a Sra. Lorimer, junto à lareira, se balançava impaciente numa cadeira de balanço.

      — Como se atrasaram! — gritou a velha irritada, e sem ao menos lembrar-se de cumprimentar os recém-chegados. — Um minuto mais, e o chá estaria intragável.

      Era uma mulherzinha de 70 anos, rechonchuda e curta de pernas, cujos olhos piscavam incessantemente como os das aves, e que abanava a cabeça de maneira agressiva. Trazia um vestido de seda negra, pois não tirara o luto desde a morte do marido, nove anos atrás. Na cabeça, onde debalde se procuraria um fio branco, tinha um gorro de renda branca, e este toucado, juntamente com a idade, e toda a sua aparência — e, principalmente, as bochechas pendentes — davam-lhe uma curiosa semelhança com a Rainha Vitória. Semelhança de que ela estava perfeitamente consciente e de que, no íntimo, não se orgulhava pouco.

      Naquele momento, é verdade que a Sra. Lorimer nada tinha duma Graciosa Majestade, e parecia animada, ao contrário, de intenções francamente belicosas. Sem ligar à presença de Madden, que se limitara a mimosear de passagem com um aceno de cabeça, submeteu a filha a um bombardeio de perguntas relativas às pequenas encomendas que lhe fizera e à saúde de Nancy. Depois, quando Catherine lhe satisfez enfim a curiosidade, a velha se levantou e passou diretamente para a sala de jantar. A mesa estava cheia de comidas abundantes e imprevistas. Não era nem um almoço, nem um lanche, nem um jantar, mas uma estranha combinação das três refeições. Havia pão branco e pão preto, em côdeas e em fatias, duas espécies de bolo, fatias de queijo com aipo, e biscoitos num prato de prata. Ao centro, debaixo do lustre, um pudim de creme, junto a uma compoteira com ameixas cozidas. Peggy, a criadinha, trouxe logo em seguida uma imponente torta de peixe fumegante, e, numa enorme bandeja, apareceu um majestoso bule de chá.

      A Sra. Lorimer deitou o chá nas xícaras e serviu a torta. Teve o cuidado de escolher para si a melhor porção, provou-a, bateu com a cabeça num ar de crítica e deu a entender, com uma ligeira careta, que estava ao seu gosto. Só então teve tempo para atentar na pessoa de Madden. Ainda que tardio, o exame foi muito severo. E a conclusão, mais severa ainda.

      — Então, o senhor quer casar com Nancy? Só posso dizer-lhe, rapaz, que a noz será dura de roer!

      — Nancy e eu — respondeu ele, no mesmo tom — nos entenderemos sempre, Sra. Lorimer.

      — Talvez — disse a velha com um ar sobranceiro. — Mas precisará de tempo e de trabalho para chegar a isso. E que Deus o proteja, rapaz, se não vencer!

      Foi o começo de toda uma série de observações, de perguntas, de provérbios e citações bíblicas que a velha atirou à cabeça de Madden. Dado o rigor puritano que decorria de sua educação, e graças a um egoísmo profundamente enraizado, ela era muito de temer. Mas, estimulada por várias xícaras de um chá muito forte, e por consideração de alta moral, parecia estar aquela noite em perfeita forma, esmagadora.

      Catherine conhecia a mãe, e aprendera a suportar seus piores acessos de mau humor. Dando conta, com dificuldade, da horrível torta de peixe, que detestava desde muito criança, observava Madden e o modo como ele enfrentava a fuzilaria de sua mãe. A contragosto, admirava-lhe o espírito e o domínio de si mesmo. Naturalmente, ele dissimulava o seu estado de espírito porque, com o rumo impossível que a conversa tomara, devia sentir-se como um peixe fora dágua. Entretanto, escutava com interesse o que se dizia, e comia com apetite.

      Pouco a pouco, e quando já haviam chegado às ameixas, Catherine descobriu que Madden, tivesse ou não feito esforços para isso, estava a pique de conquistar a velha. Quando voltaram ao salão, onde ardia um bom fogo, projetando uma tépida claridade sobre a pele de urso estendida diante da lareira, bem como sobre a guarnição estilo Rainha Vitória, as peças de porcelana e os bibelôs que decoravam a mesinha, a Sra. Lorimer soltou um suspiro de satisfação.

      — Sente-se nesta poltrona, Sr. Madden — disse ela. — Verá que é muito confortável. Pertencia ao meu saudoso marido, e não consinto que qualquer um se sente nela. Pode ficar assistindo à nossa "paciência".

      O jogo de paciência a dois em que ela pensava, e que constituía uma surpreendente infração aos seus princípios puritanos, era, com o rádio, pelo qual tinha loucura, sua principal paixão. A cada fim de semana obrigava impiedosamente Catherine a servir-lhe de parceira. Madden lançou um olhar interrogativo à moça e, sem a menor dúvida, leu em sua fisionomia, porque tomou um tom suplicante:

      — Sua filha parece um pouco cansada. Que acha de uma partida comigo?

      — Meu Deus! Catherine está sempre cansada quando se trata de proporcionar um prazer à velha mãe.

      — Não, não é isto, minha senhora. Eu é que estou com muita vontade de jogar — replicou Madden — e esteja certa de que não sou um adversário desprezível.

      — Verdade? — exclamou a Sra. Lorimer, aprestando-se para a peleja. — Não é um adversário de se desprezar? Muito bem. Veremos.

      Olhou o relógio.

      — Dispomos de uma boa meia hora. Às 8 haverá um belo programa no rádio: "A Pérola Negra". Devemos ouvi-lo.

      Sentaram-se junto à lareira em torno à mesa coberta com um pano verde, enquanto Catherine, feliz por haver escapado à tarefa, instalava-se no divã e acompanhava o jogo com crescente atenção. Sabia, por uma longa experiência, que, se Madden não cedesse em toda linha, haveria discussão e briga.

      A Sra. Lorimer saiu bem. Foi mão, tirou boas cartas. Com as lunetas no nariz, e conservando ao alcance das mãos as famosas amêndoas confeitadas, recostou-se no espaldar da poltrona com um ar satisfeito. Tinha a chance e dirigia o jogo. Mas após um instante, Madden, que se mantinha de guarda, passou a conduzi-lo.

      Como Catherine previra, sua mãe se pôs a trapacear. Tinha um feio defeito: não se conformava em perder. Isto nunca! Houvesse o que houvesse, e a todo custo, queria ganhar. Fosse ou não um caso de consciência, pouco lhe importava. Antes que suportar a vergonha de uma derrota a velha se resignava a enganar o próximo, e isto sem nenhuma precaução.

      Naturalmente, Madden o percebeu imediatamente. Catherine, cujos olhos sombrios permaneciam fixados nos jogadores, esperava o momento de ver a batoteira desmascarada. Se ele protestasse haveria uma cena; se nada dissesse, é que lhe faltava de todo energia. Mas Madden adotou outra tática. Com o ar mais sério do mundo, pôs-se a ajudar a velha nas suas trapaças, a princípio com discrição, depois cada vez mais ostensivamente. Em lugar da carta ruim a que ela tinha direito, passava-lhe uma boa e insistia em não se aproveitar de suas próprias chances. Cada vez mais, assim, ele colaborava nas manhas da parceira. A princípio, a Sra. Lorimer estourava de rir, com íntimo contentamento, e aceitava os presentes de boas cartas que Madden lhe fazia; depois, foi pouco a pouco mudando a expressão do rosto. Atirou ao adversário um ou dois olhares desconfiados, e enfim, após uma série de lances felizes, parou, hesitou um momento, e corou.

      — Por que o senhor me olha assim? — perguntou, exaltada.

      — Admiro-a, Sra. Lorimer — respondeu Madden em tom sério. — Corri o mundo inteiro, e nunca encontrei um jogador que valha a senhora!

      — Que diz? — exclamou a velha.

      — É verdade, nunca, minha cara senhora.

      Sua voz tomava aquelas inflexões arrastadas, características da gente do sul dos Estados Unidos.

      — A senhora é o maior campeão que eu já enfrentei na vida!

      A velha senhora suspirou profundamente. Seus olhos em forma de botões pareciam sair das órbitas, e ela se preparou para fulminar o interlocutor. Mas de súbito caiu na risada. Ria de estofar o pescoço, e, atirando à mesa as cartas, emborcou a taça de amêndoas confeitadas. Em toda a sua vida, Catherine nunca vira coisa semelhante.

      — Meu Deus! Meu Deus! — exclamou afinal a Sra. Lorimer arquejante. — Que graça! Campeão! Ouviu, Catherine?... É incrível!

      — Não, é verdade, minha senhora — repetiu Madden. — Asseguro-lhe...

      Não conseguindo dominar-se, ela se balançava na cadeira e mandava, com um gesto de mão, ao rapaz que se calasse, enquanto as lágrimas provocadas pela hilaridade lhe corriam pelas faces.

      — Pare — suspirava — o senhor me mata, rapaz! Não é muito engraçado... Campeão no jogo de cartas! E eu trapaceei o tempo todo!

      Nunca talvez naquela pequena sala aborrecida haviam ressoado semelhantes gargalhadas. Afinal, a velha conseguiu retomar sua dignidade.

      — Meu Deus! — exclamou, enxugando as lágrimas. — Perdemos o programa.

      Com uma agilidade de que ninguém a julgaria capaz, correu para o rádio e o ligou.

      Por um instante o aparelho fez ouvir uns grunhidos confusos, depois encontrou a voz natural. A peça já começara realmente. Era uma moça que falava.

      Madden encarou Catherine, e viu que ela igualmente o olhava, espantada. Os olhos da velha se arregalaram e erraram algum tempo de um para o outro. A moça do rádio continuava a falar.

      — É impossível! — disse Madden.

      Não, não era possível. Nancy estava de cama com febre, não o avisara de nada. Nancy estava doente; não se achava em condições de poder levantar-se.

      — Que é que há? — exclamou a Sra. Lorimer, completamente aturdida.

      — Deve ser engano — disse Catherine, consternada e perplexa.

      Mas não era engano. A voz que chegava até eles, clara e nítida, através do espaço, era, sem a menor dúvida, a de Nancy.

     

      Nancy ficara na cama o dia todo. A cabeça lhe andava à roda, e sentia os membros pesados. Mas detestava ficar de cama, e estava cada vez mais agitada. Não é que se preocupasse muito com a "Noite de Luar na Arcádia". O estudo da peça ia muito adiantado e não estava previsto nenhum ensaio para aquele fim de semana. Mas o imprevisto contratempo que viera perturbar o minucioso método de sua vida a punha de mau humor. Quando tudo não corria de acordo com os seus desejos, aconteciam-lhe essas explosões de egoísmo que a tornavam insuportável. Se bem que Catherine se recusasse a reconhecê-lo, tinha feito a menina muito caprichosa, à força de mimá-la. Para desculpar a sobrinha, dizia a si mesma que ela não passava de uma criança. E Nancy considerava, até certo ponto, que tudo que faziam por ela era uma obrigação.

      Naquele dia, por exemplo, Catherine não admitiria que se pudesse censurar Nancy por falta de docilidade. Ela havia tomado religiosamente o remédio cada quatro horas e engolira sem protestar todas as beberagens quentes que a empregada, a Sra. Baxter, lhe trazia fumegando. Pela manhã encostara-se aos travesseiros para escrever algumas cartas que vinha adiando desde muito tempo. Cumprido esse dever, passou uma hora confortável a pensar em Madden. Depois pegara um livro, esforçando-se por lê-lo.

      Poder-se-ia supor que uma doente assim caprichosa buscara refúgio num romance policial ou em alguma pequena história de amor. Mas o volume a que ela se lançara pertencia a outra categoria muito diversa. Era o teatro de Shakespeare. Sua biblioteca bem sortida continha, aliás, quase somente obras teatrais, e sobretudo clássicos: Molière, Ibsen, Sheridan, Shaw, todos lá estavam. Havia igualmente biografias de atores célebres. Biblioteca surpreendente para uma jovem artista aparentemente frívola.

      O arranjo do quarto de Nancy, do mesmo modo, tinha por que causar admiração. Nada do bricabraque, que se poderia esperar encontrar nele. Nem um cofrezinho exótico para esconder o telefone, nem bonecas excêntricas. A peça era austera e nua, e a ordem minuciosa que nela reinava fazia pensar numa cela de convento. Sobre a cômoda, apenas duas fotografias: a de Madden e a de Catherine. Nas paredes, simplesmente pintadas de branco, um único quadro: um grande e belo desenho da Duse. Esse retrato de uma das maiores atrizes de todos os tempos desvendava o mistério, muito maior ainda, da personalidade de Nancy.

      Estava, até o mais profundo de si mesma, dominada pelo teatro. Não era o impulso irrefletido que habitualmente leva as mulheres até o palco, mas uma ardente e profunda necessidade de se exprimir pela criação de belas imagens, cheias de paixão e de vida. Era difícil discernir de onde lhe viera essa necessidade. Sem dúvida, já existia em estado latente em seu pai, que tinha um temperamento expansivo. De qualquer modo, manifestara-se nela desde a mais tenra idade. Para seu grande pesar, não pudera dar-lhe livre curso. Só algumas das suas amigas mais íntimas tinham podido medir a sinceridade de sua ambição e de sua paixão pelo palcoa, mas não acreditavam que essa inclinação chegasse um dia a impor-se. Os seres que lhe eram mais caros, Catherine, e agora Madden, tendiam antes a sorrir de seu amor ao teatro. Não podiam nem queriam levá-lo a sério.

      Num certo sentido, a culpada era a própria Nancy. Na verdade, era ainda muito jovem e tinha todas as hesitações e inabilidades de uma moça da sua idade. Seus acessos de mau humor, que traíam uma grande vivacidade e uma natureza fantasista, podiam levar a duvidar da constância das suas aspirações. Freqüentemente dava-se a extravagâncias, e, em sociedade, usava esses modos levianos e desembaraçados que passam por elegantes. Em última análise era, antes, uma criatura complicada. Alternadamente exaltada e deprimida, oscilava sem cessar dum extremo a outro, e era bem difícil prever o rumo que tomaria no dia em que encontrasse afinal o equilíbrio.

      Esta descrição do seu caráter, se lhe chegasse aos ouvidos, a faria dar gritos. No fundo, era séria e sensível e nunca ninguém pensara em esclarecê-la sobre sua própria personalidade. Havia assim poucas possibilidades de que ela, naquele dia, procedesse a um exame de consciência. Estava por demais absorvida pelo seu Shakespeare e, apesar da enxaqueca, mergulhou no estudo do "Rei Lear". Viu-se a princípio no papel de Goneril, depois no de Regan, e enfim no da doce Cordélia.

      Quando terminou a leitura, deixou cair o livro. Sentia-se extremamente mal. O tempo corria, e, insensivelmente, veio a noite. A arrumadeira foi embora mas prometeu passar por lá de novo às 9 horas para ver se tudo ia bem. Nancy se pôs a devanear, e a imagem de Madden era a que lhe vinha mais freqüentemente à lembrança. Comparava aquelas horas aborrecidas com o futuro venturoso que a aguardava.

      Súbito a campainha aguda do telefone veio interromper suas divagações. Pegou o fone e reconheceu a voz de John Harris antes mesmo que ele dissesse o nome. (Possuía o dom de reconhecer as vozes.) Harris pareceu aliviado por havê-la encontrado.

      — É você, Nancy — exclamou com um suspiro de felicidade. — Agradeço ao Criador tê-la encontrado. Sim, estou na rádio e numa situação difícil. Sabe que irradiamos hoje "A Pérola Negra"? É um programa muito importante, às 8 horas. Ora, compreende, Nancy, Sylvia Burke faltou. Está doente. Pode avaliar o que é isto! A estrela! E temos de dar início ao programa dentro de quatro horas! Tem que me ajudar, Nancy; é preciso que faça o papel. Seja boazinha, e venha imediatamente! Podemos ainda ler rapidamente o papel juntos.

      — Mas, John! — protestou Nancy. — Não sei se posso ir.

      — Está louca? Não vê o que isto significa para você? Substituir Sylvia Burke? Com aqueles milhões de ouvintes para a escutarem!

      Perplexa, Nancy passou a mão nas têmporas ardentes. Harris tinha toda razão. Sylvia Burke era, provavelmente, a comediante mais célebre no momento. Ali estava uma oportunidade única para se projetar, para se fazer conhecida dos inúmeros ouvintes que estariam naquela noite à escuta.

      — Que tem Sylvia? — perguntou, cada vez mais espantada.

      — Um resfriado. Trinta e oito graus de febre. Proibição absoluta de levantar-se.

      Em qualquer outra ocasião Nancy teria rido.

      — Mas o papel não lhe mete medo, não é? — insistiu Harris. — Temos apenas que ler juntos o original.

      — Não, não é isto — replicou Nancy.

      Tomando o termômetro, que conservava ao alcance da mão, acrescentou:

      — Aguarde um momento ao telefone.

      Pôs o termômetro na boca. Sessenta segundos de espera enervante. Depois olhou o mercúrio. Marcava 39. Sentiu um aperto no coração. Era impossível aceitar o convite; sair seria uma verdadeira loucura.

      — Vamos, que é que se passa? — falou Harris num tom agastado. — Será que vai me deixar mofando aqui a noite toda? Que há, Nancy? Sempre pensei que tinha a cabeça solidamente plantada nos ombros. Vem ou não vem?

      Os lábios de Nancy chegaram a se abrir para dizer que não, quando uma espécie de inspiração lhe fez voltar os olhos para o retrato da Duse. A grande artista, em quem se concentrava toda a sua admiração, e que tomara para modelo, preferia sempre representar, apesar das nevralgias que a punham meio louca, antes que faltar ao público. Nancy sentiu que a sua garganta se apertava.

      — Naturalmente que vou, John! — Tinha a impressão de que era outra pessoa que falava. — Não me sinto muito em condições, mas em meia hora estarei aí.

      Cortou qualquer efusão de alegria do amigo, desligando o telefone. O que ia fazer era verdadeiramente louco. Saindo aquela noite, arriscava a própria vida. Catherine ficaria terrivelmente zangada com ela; e Chris...

      Não lhe tinha dito que se sentia bastante mal para poder acompanhá-lo a Wimbledon? Percebeu que estava com medo, mas logo se dominou. Chris a amava; não guardaria rancor e compreenderia.

      Reunindo todas as suas forças, levantou-se. Todo o corpo tremia, e precisou de um grande esforço para se vestir. Escolheu as roupas mais quentes que tinha, enfiou o casaco de pele, e enrolou ainda mais uma echarpe no pescoço.

      Depois tragou uma boa dose do remédio e pediu pelo telefone um táxi. Lançando, enfim, um último olhar ao espelho, abanou tristemente a cabeça, fez um breve gesto melodramático, e apagou a lâmpada.

     

      Para seguir a praxe, o autor teria de introduzir aqui uma cena sensacional, de efeito irresistível. Com grande horror dos milhões de ouvintes, Nancy cairia sem sentidos diante do microfone e seria transportada para casa debaixo de uma tempestade de neve, em conseqüência do que contrairia uma pneumonia dupla e morreria, com acompanhamento de violinos, no espaço de 24 horas.

      Na realidade, malgrado o pouco tempo de que dispunha para estudar o papel, e apesar de sua enxaqueca, Nancy se saiu brilhantemente. Ao voltar para casa, pensava em Beechwood, e preparava-se para receber uma saraivada de censuras. A essa hora, Madden já estava em caminho para encontrar-se com ela.

      Na manhã do dia seguinte, a vida retomou seu curso regular. Não apenas Nancy escapou ao trágico destino que acabamos de descrever, mas até se sentia melhor. A temperatura era de novo normal, e na segunda-feira ela estava em condições de recomeçar os ensaios de "Noite de Luar na Arcádia".

      Entrementes, também Catherine voltara ao trabalho. Sentada no escritório, a cabeça entre as mãos, contemplava com ar ansioso a miniatura de Holbein que repousava num estojo de veludo verde. O Sr. Sugden, um dos diretores da Galeria Vernon, fizera questão de trazê-la em pessoa. O olhar de Catherine, ao mesmo tempo perscrutador e grave, pousava longamente sobre o pequeno retrato.

      Era uma obra-prima de delicadeza, e dela emanava uma impressão de sutil melancolia. Lucie de Quercy estava de pé, ao lado de uma mesa de dois planos, um dos quais, o de cima, era coberto de um pano de brocado vermelho, enquanto o de baixo suportava um bandolim e alguns livros. Usava um vestido marrom enfeitado de arminho; e sua mão, descansando negligente sobre o brocado, segurava um ramo de cravos. Era muito bonita, de uma beleza pálida, frágil e cismadora, que irradiava um encanto esquisito, meio enigmático. Sobretudo os olhos, de um castanho acentuado e profundo, exprimiam uma compreensão infinita. Ela parecia fixar Catherine com a insistência de uma pessoa viva. Havia qualquer coisa de tão íntimo e de tão eloqüente em seu olhar que Catherine tinha a impressão de ler nele uma confidência que, há séculos, lhe estava especialmente destinada, e que a arrastava a um passado remoto. E ela se surpreendeu quase respondendo ao olhar de Lucie de Quercy, como se se abandonasse à influência dessa mulher tão misteriosamente bela naquele seu ar absorto.

      Catherine a conhecia bem a história dessa dama dos cravos, inseparável da miniatura e baseada em dados históricos. A jovem francesa viera para a corte de Henrique VIII com seu pai, o Conde de Quercy, para se iniciar na vida mundana, mas, principalmente, para mandar fazer seu retrato por Holbein. Após muitos e sérios aborrecimentos de dinheiro, o artista pouco antes deixara a Suíça para vir fixar-se em Londres. Lucie deixara em Paris o noivo, Pierre de Noailles. Não estava ligada a ele por um sentimento superficial, mas por um amor ardente, sincero e puro. O retrato foi executado (figura hoje na Galeria Real de Haia), e Lucie pediu ao mestre que fizesse uma cópia em miniatura para o noivo. Holbein acedeu, e a miniatura ficou mais perfeita do que o próprio quadro. Na primavera desse mesmo ano Lucie o levou para Paris, mas, ao chegar, soube que dois dias antes Noailles havia sido morto em duelo. Ficou-lhe a miniatura como uma trágica testemunha do seu incurável desgosto. Nunca se casou. Com o coração despedaçado, suportou o destino. Consagrou-se às obras de caridade, e morreu num convento com 37 anos.

      Pancadas na porta chamaram Catherine à realidade. Ficou ainda um instante imóvel; depois, com a voz ligeiramente trêmula, falou:

      — Entre.

      Era o seu procurador, o Sr. Walters. Ele parou junto à mesa com um grande pacote escuro na mão, e olhou gravemente a miniatura por cima dos ombros de Catherine.

      — Muito bonito, Miss Lorimer — murmurou em voz baixa e deferente — muito bonito de verdade!

      O Sr. Walters era sempre extremamente digno e respeitoso. Era um velho de aspecto paternal, muito bem tratado. Com o seu colarinho alto e engomado e seu modo de vestir quase sacerdotal, lembrava um alto dignitário da Igreja. O andar era também eclesiástico e, a cada passo, seus pés pareciam acariciar o tapete. Já há longos anos trabalhava para Catherine, e ela conhecia de cor e salteado todas as pequenas fraquezas do empregado. As principais eram uma paixão excessiva pelo chá muito forte e sua devoção pela arte gótica. Apegava-se tão imperturbavelmente aos seus hábitos que encarnava em si uma verdadeira instituição; e seu amor pela profissão de antiquário, sentimento que o punha em constante conflito com os marchands, cuja grosseria o exasperava, era verdadeiramente tocante. Acontecia às vezes que Catherine, por brincadeira, o perturbava gritando-lhe do alto da escada "rápido, rápido, Sr. Walters!", mas no fundo tinha-lhe grande estima.

      — Uma pequena obra-prima — prosseguiu o Sr. Walters com admiração. — É notável que todos esses detalhes em nada prejudiquem a impressão do conjunto.

      — Notável, realmente — disse Catherine aprovando secamente a observação, como se tivesse de fazer um esforço para falar.

      — E tão característico desse pobre Holbein! A senhora achará talvez engraçado que eu o chame de "pobre". Mas é sempre com piedade que me lembro da terrível moléstia de que ele morreu. Não tinha mais de 46 anos. Conhecera maus momentos em Bâle e, para cúmulo da infelicidade, perdeu todo o dinheiro que possuía. Entretanto, deve ter sentido uma grande alegria em pintar essa miniatura. Que mulher encantadora! Sabe também, Miss Lorimer... perdoe-me a observação... que ela se parece com a senhora?

      — Está gracejando!

      — É verdade, parece. A semelhança é mesmo impressionante. Esses olhos são exatamente os seus. — Fez uma pausa. — Creio que conhece a história dessa mulher.

      — Claro que conheço — replicou friamente Catherine. — Todos os negociantes de antigüidade a conhecem, e não vamos repisá-la. Pobre criatura!

      O Sr. Walters pareceu surpreso com o tom da resposta.

      — Está bem, está bem, Miss Lorimer. Eu apenas dizia comigo mesmo que essa história parecia interessar-lhe.

      Catherine se voltou para ele, com um sorriso forçado.

      — O que me interessaria ainda mais seria vender a miniatura. Precisamos de dinheiro, Sr. Walters; e o senhor sabe. Como vamos com Lady Ansen?

      Walters hesitou na resposta.

      — Lady Ansen telefonou hoje de manhã. — Sua voz tomou uma entonação inquieta. — Resolveu não fazer a restauração que planejava.

      — Como! — exclamou Catherine com um ar de contrariedade. — Ainda quarta-feira ela nos dizia que ia começar.

      — Eu sei — disse Walters, baixando a voz. — Mas mudou de opinião. Disse que os tempos estão muito duros.

      — Duros... — repetiu Catherine com azedume. Conteve-se. Chegara ao ponto de ceder ao enervamento, mas para que se entregar?...

      — Lamento muito — prosseguiu Walters. — Fiz tudo para convencê-la.

      — Sei, sei. Evidentemente a culpa não é sua. Não o censuro. E Lady Ansen tem toda razão. Os tempos estão verdadeiramente difíceis. Para todo o mundo e para nós também — acrescentou com um suspiro.

      Seus olhos se fixaram de novo na miniatura.

      — Temos de vender esse Holbein nas melhores condições possíveis e rápido!

      — A senhora está pensando em Brandt, de Nova York, não é?

      — Sim, em Brandt. Ele pode aproveitá-lo para a exposição, estou certa. Se não houvesse partido para a Argentina, não teria faltado a esse leilão. Teria, sem dúvida nenhuma, chegado a 20 mil libras, Sr. Walters. É o que deve dar-me pela miniatura.

      — De acordo, Miss Lorimer. — Baixou a voz. — A senhora teve ocasião de fazer ótimo negócio com ele, da outra vez. Tem muito gosto e uma enorme fortuna.

      — Uma enorme fortuna? Deus o sabe! — respondeu Catherine abatida.

      — A senhora mesma vai fazer a viagem, Miss Lorimer?

      — Sim. Informe-se dos navios que vão partir no começo do mês que vem. Creio que há o Pindaric no dia 7; é um bom navio. E sobretudo conseguirei nele um camarote muito barato.

      Walters conservava os olhos fixos no chão.

      — Será que as coisas vão assim tão mal, Miss Lorimer? Eu pensava... decerto, estou a par da situação... Mas não pensei que chegasse a tanto.

      Calou-se, e depois prosseguiu, elevando a voz num pequeno crescendo dramático:

      — Se posso fazer alguma coisa, Miss Lorimer, ajudá-la, não importa como...

      A fisionomia de Catherine iluminou-se, num sorriso gracioso e sincero.

      — Seria completo, Sr. Walters! O velho empregado de cabelos brancos, sacrificando as economias de toda uma existência para salvar a patroa da falência! Não, não chegamos, apesar de tudo, a esse ponto. Temos sempre saído das dificuldades, e sairemos ainda desta vez. E agora, não fique aí plantado diante de mim, com os olhos arregalados, como se o oficial de justiça já estivesse esperando atrás da porta. Vamos, ao trabalho!

      — Decerto, Miss Lorimer — balbuciou o velho, retirando-se.

      Ao chegar à soleira, lembrou-se do embrulho que trazia na mão.

      — Ah! Eu ia me esquecendo. Eis aqui, Miss Lorimer, o que trouxeram para a senhora.

      Voltou, depôs o embrulho na escrivaninha, e saiu dignamente na ponta dos pés, fechando a porta sem fazer ruído.

      Ficando só — porque ela jamais deixaria transparecer diante de Walters a gravidade da sua situação — Catherine retomou sua expressão apreensiva. Com um gesto cansado, pegou o pacote. Ocupou-se um instante em desatar o nó, porque nunca se decidia a arrebentar brutalmente um cordão, muito menos um bonito cordãozinho tricolor como aquele. Conseguiu-o, afinal, e o papel se abriu. Os seus olhos se arregalaram, traindo um verdadeiro encantamento e alegria: a caixa regurgitava de magníficos cravos. Antes mesmo de notar o cartão que os acompanhava, já sabia que as flores vinham de Madden, porque se lembrava de haver dito, quando passavam à margem de um jardim, no caminho de Beechwood, que o cravo era a sua flor preferida. Pegou o cartão: não era impresso e trazia estas palavras escritas em boa caligrafia: "Chris Madden, Cleveland, Ohio". No verso, leu esta breve frase: "Em sinal de reconhecimento pelo fim de semana interrompido — e por Nancy".

      Não pôde reprimir um riso divertido à idéia de que seus direitos de propriedade sobre Nancy estavam assim reconhecidos e proclamados. Mas que alegria receber aquelas flores maravilhosas! Havia uma eternidade que ninguém se lembrava de oferecer-lhe cravos, e como era gentil da parte de Madden ter se recordado daquela declaração feita de passagem! Depois de pôr o ramo num velho vaso de Worcester, cuja tonalidade dum marrom-fosco e dourado combinava bem com a cor dos cravos, disse a si mesma num pequeno acesso de alegria interior: "Não convém, entretanto, que eu o deixe pegar o costume...".

      Um perfume intenso e suave encheu logo a sala. Ela escolheu um lugar para o vaso em cima da escrivaninha. Já calma, trancou a miniatura no cofre, e depois mergulhou de novo no trabalho, que nada tinha de agradável. Tomando de um lápis e de um bloco, começou a fazer a conta das suas dívidas.

      Tivera de tomar emprestados 6 mil guinéus para pagar a miniatura, porque a soma líquida de que dispunha chegava no máximo a 4 mil libras. Felizmente os bancos lhe facilitavam crédito de bom grado, e o Sr. Farrer, do Banco de St. James, levara a boa vontade ao extremo, adiantando-lhe as 6 mil libras necessárias, sob a garantia exclusiva do conceito de sua casa. Esse empréstimo ela o devia realmente menos ao seu ativo do que à sua reputação pessoal.

      Até aí tudo estava em ordem, mas os compromissos que sobre ela pesavam nesse fim de ano eram tão esmagadores que nem se animava a pensar neles: despesas e impostos, impostos vertiginosos, amarga lembrança dos anos de vacas gordas, e montando tudo a 2 mil libras. As contas não pagas, relativas ao material e mão-de-obra, importavam, além disto, em 800 libras. Sem entrar em detalhes, Catherine fez a soma. Os pagamentos que tinha de fazer em janeiro elevavam-se a cerca de 5 mil libras. Essa dívida, inelutável e ameaçadora, é que a levara a lançar-se à aventura desesperada que representava a compra da miniatura. Sabia perfeitamente que estava acuada pela amarga necessidade de conseguir esse negócio com Brandt. Só depois disso poderia fazer face às suas obrigações, cobrir seu déficit no banco, e com os lucros que lhe restassem esperar tempos talvez melhores. De qualquer modo, era-lhe absolutamente necessário revender a miniatura.

      Assim que tomou essa decisão, pôde considerar com mais serenidade a longa coluna de cifras. Depois pôs-se a escrever a Breuget, seu representante em Nova York, para lhe anunciar sua próxima chegada e lhe recomendar que entrasse desde logo em contato com Brandt. Era uma carta importante, e, se bem que tivesse ao alcance das mãos a máquina desocupada de Miss Miller, Catherine a escreveu do próprio punho com a sua letra alongada e clara.

      Acabava de terminar esse trabalho, quando bateram à porta. Era Miss Miller. No seu rosto magro esboçou-se um sorriso contrafeito e pudico, que revelou de imediato a Catherine a identidade do visitante que lhe era anunciado.

      — O Sr. Upton está aí — murmurou Miss Miller. — Ele diz que marcou entrevista com a senhora.

      — Creio que é para o almoço, não?

      — Parece-me que sim, Miss Lorimer.

      Catherine encarou a vermelha Miss Miller com uma curiosidade divertida. Charley Upton tinha seus encantos, não há dúvida, mas causava em Miss Miller uma impressão profunda, e a discreta exaltação, bem feminina, que sua chegada sempre provocava nela, a cada vez produzia em Catherine um novo espanto. "Então", pensava ela estupefata, "um homem representa ainda alguma coisa na vida reconcentrada e árida de nossa Miss Miller!"

      — Muito bem. Mande-o entrar.

      Um instante depois Charley Upton dava entrada na sala.

      — Sabe, Charley? — disse-lhe Catherine, antes que ele pudesse abrir a boca (e ela deve ter se apressado para ser a primeira a falar) — um dia mandarei Miss Miller almoçar com você. Ela era capaz de ter uma síncope de alegria; mas creio que acharia não ser uma recompensa excessiva.

      O ligeiro sorriso que Charley deixou escapar ia muito bem com a gardênia que ele trazia à lapela.

      — As mós do Senhor giram lentamente — replicou num tom desembaraçado — mas fazem boa obra. Ela nem sempre há de ter sido a triste solteirona que parece.

      — Meu Deus, Miss Miller não é velha! Está acabada devido ao excesso de zelo no trabalho, pela freqüência ao seu estúpido clube de mulheres, pelo uso do leite e dos bolos, pelas correrias ao metropolitano e pelas preocupações que lhe traz a bolsa de água quente. Se não tivesse a cada semana sua dose de cinema, de Clark Gable e de você mesmo, Charley, ela definharia lentamente. É o tipo clássico da pobre moça de escritório e da mulher que trabalha para viver; sou eu quem diz, Charley, e sei o que é isso.

      Charley continuou rindo:

      — Parece-me que você quer discutir comigo hoje. Habitualmente tem tanto o que fazer que não consigo que me ouça.

      Catherine o observou com gravidade. Como ele era sempre o mesmo! Um homem moço ainda, impulsivo e generoso, não muito sobrecarregado de inteligência, um pouco enfeitado e envemizado, perfeitamente agradável e gentil. Sua principal qualidade era nunca se fazer passar pelo que não era, e não procurar impor-se. Tinha 45 anos, mas não parecia; e nunca na vida suas mãos conheceram trabalho algum. Seu pai começara a vida num pequeno escritório de advogado em Birmingham, subira à força de diplomas e de método, e finalmente se tomara co-proprietário dum pequeno jornal de província, que dirigiu durante cinco anos. Concentrando todas as suas ambições nas empresas jornalísticas, desenvolvera seu negócio, procurara apoios financeiros, comprara ações, e depois liquidara tudo para prosseguir na carreira em Londres. De sucesso em sucesso, tornara-se o único proprietário do Sunday Searchlight, uma estranha folha dominical, especializada em histórias de crimes e divórcios, com uma tiragem de 5 milhões e meio de exemplares.

      Com a morte do velho, Charley se encontrou diante de uma fortuna grande demais para que ele pudesse esperar vir a gastá-la toda, algum dia, se bem que tivesse boas aptidões para isso. Tinha um lugar na direção do jornal, mas raramente o ocupava; era sempre, ao contrário, o primeiro a chegar ao banquete anual da empresa e ao baile que se lhe seguia. Quanto ao mais, não fazia rigorosamente nada. Contudo, desempenhava o seu papel do modo mais elegante. Pertencia a meia dúzia de clubes, tinha inúmeros amigos, montava a cavalo e caçava um pouco, sabia apreciar um jantar e uma boa anedota, dava pancadinhas no ombro de uma porção de alegres companheiros, cuidava de sua "forma" como bom sportman, passava longas horas com o alfaiate, o camiseiro, o sapateiro, ia à tarde às duchas quentes, emprestava dinheiro a todo o mundo e entretanto nunca se deixava embrulhar. Em suma, era impossível descobrir-lhe o menor defeito.

      Oito anos atrás, conhecera Catherine num baile de caridade, e, como confessava, perdera completamente a cabeça. Na semana seguinte, propôs-lhe casamento, e desde então a intervalos regulares a punha na penosa obrigação de recusar-lhe a mão. Entrementes, consolava-se com bonitas garotas de balé, mas isto não passava de rápidas aventuras, de que, aliás, não fazia mistério algum — o que constituía um argumento em seu favor.

      Em meio a esses namoricos, seu amor por Catherine esplendia como uma flor preciosa num jardim antes desolado. Tinha em sua dedicação tanta fidelidade, e sua esperança de chegar um dia, de qualquer modo, aos seus fins denunciava uma obstinação tão comovente, que Catherine odiaria a si mesma se o magoasse.

      Catherine tinha de render-se à evidência de que não amava Charley. Lançando-se à carreira que escolhera, renunciara a qualquer idéia de casamento. No mais profundo de sua consciência dormia, contudo, como uma suspeita, a idéia de que a inabalável constância de Charley, associada à solidez de uma fortuna igualmente inabalável, numa hora de fraqueza poderia levá-la a se atirar aos seus braços para neles buscar um refúgio contra as canseiras e sofrimentos em que gastava a existência. A idéia de que ela, Catherine Lorimer, "que se fizera por si mesma", poderia ver-se um dia, para escapar à miséria, na absurda situação de pertencer a um homem que lhe era inferior pela inteligência surgia-lhe como um pesadelo. Mas não chegava a libertar-se inteiramente da inquietação que lhe causava esse pesadelo, sobretudo quando Charley estava sentado ao seu lado e lhe pegava na mão. Olhava-o então franzindo as sobrancelhas como para forçá-lo a recuar. Era assim que ela o fitava naquele momento.

      — Ainda não me explicou por que vem perturbar-me em meu trabalho nesta hora não habitual.

      — Mas é justamente essa a hora conveniente. Venho buscá-la para almoçar.

      Ela teve um gesto de enérgica recusa.

      — Estou muito ocupada.

      — Sempre está ocupada, Catherine. Mas tem de vir.

      — Não. Não vou.

      — Sim, virá. Reservei uma mesa no Embassy.

      — Escute, Charley, já lhe disse que tinha de trabalhar. Como quer que eu me desembarace honestamente na vida se você me atrapalha deste modo?

      Ele se pôs a rir.

      — Mas não tenho culpa de você ser a mulher mais célebre do West-End... Seu nome está em todos os jornais a propósito da miniatura de Holbein.

      — Não vai dizer-me que o Sunday Searchlight fala de mim...

      — Ainda não, mas falará a seu tempo. Para ficarmos na questão capital, sabe que encomendei o almoço?

      — Que foi que encomendou?

      — Vou começando, também, a conhecer seus gostos: língua "bonne femme", salada à Flórida, suflê de queijo.

      Como poderia ela resistir? A contragosto seu, a sua fisionomia se iluminou.

      — Magnífico! — disse, levantando-se de um salto — Vou. Mas saiba que dentro de uma hora estarei de volta, sentada aqui à escrivaninha. Compreendeu? Às 2 horas, precisamente. E não vou por você, mas pela língua!

      Charley riu de novo e lhe pôs nos ombros sua curta capa de pele.

      — Basta-me que venha!

      E como descessem a escada, ele acrescentou:

      — Diga-se de passagem que tenho uma questão a lhe propor à sobremesa. Porque positivamente já é tempo de eu lhe fazer de novo uma pergunta.

     

      No sábado, último dia de novembro, Nancy foi com toda a companhia para Manchester, a fim de representar "Noite de Luar na Arcádia", e, como ficara combinado, Madden a acompanhou. A première [estréia] devia realizar-se na segunda-feira no Teatro Real, e uma première de Chesham era sempre um grande acontecimento. Assim, uma pequena multidão assistiu à partida da companhia, na estação de St. Pancrace. Nancy estava de excelente humor. Com os braços carregados de flores, foi fotografada no centro de um grupo pelos repórteres, que em seguida lhe fizeram a homenagem de bater uma chapa dela sozinha ao lado do próprio Chesham. Catherine, que conhecia a queda de Nancy pela publicidade, havia arranjado as coisas previamente com uma agência.

      Madden — tinha de reconhecer — portara-se de modo impecável. Como de hábito, conservava-se sempre ao lado de Nancy mas sem nunca tornar-se importuno. Cercava-a de cautelas hábeis e discretas. Antes que o trem partisse, Catherine pôde trocar com ele apenas algumas frases convencionais e recomendar-lhe ainda uma vez que cuidasse da pequena. Voltando para casa, tinha a impressão de estar com melhores disposições para com ele.

      Na terça-feira, Catherine correu, curiosa, aos jornais. Como era de prever, os de Londres não diziam grande coisa, limitavam-se a fazer o elogio da peça. Os de Manchester, ao contrário, davam resenhas detalhadas, e o tom dos comentários era em geral caloroso. Catherine deparou com uma passagem em que o critico elogiava a interpretação de Nancy, e sentiu-se orgulhosa. Até então, ela assistira a todas as representações em que Nancy tomava parte, e não duvidava do seu talento. A garota tinha muitas qualidades e era excelente, sobretudo, nos papéis de jovens modernas. Desempenhava-os com uma arte sem afetação, e juvenil; comunicava-lhes uma certa verve ácida, cheia de verdade e ironia. Não transmitia apenas o caráter do personagem; fazia-lhe também a sátira.

      Contudo, Catherine, se bem que orgulhosa de Nancy e encantada de vê-la afirmar-se, não abandonava certa afetuosa reserva em relação à sobrinha. Não conseguia levar de todo a sério suas explosões de entusiasmo quando falava da profissão e de sua vocação teatral. O drama — dizia consigo mesma — é um domínio imenso e obscuro; e Nancy, com sua graça, sua leviandade, e aquela sede de felicidade que lhe era própria, parecia viver num mundo inteiramente diverso. Isto não a impedia de rejubilar-se com o sucesso da menina. Desejava que a peça alcançasse salas cheias em Londres durante algum tempo; e daqui até lá — calculava — a aventura com Madden seguiria seu curso normal ou terminaria.

      Nos dois dias seguintes esteve inteiramente absorvida pelos preparativos de viagem. Tinha a cabeça ocupada por coisas mais sérias do que aquela peça teatral. Mas esta voltou-lhe à lembrança na quarta-feira, da maneira mais inesperada. Foi à tarde. O telefone tilintou, e a voz de Madden lhe soou aos ouvidos.

      — Está ainda em Manchester? — foi a primeira pergunta de Catherine.

      — Não. Estou no hotel. Voltei a Londres ontem, para tratar de um negócio urgente. Lamentei, mas era indispensável.

      — Como vai a peça?

      — Oh! bem, muito bem — respondeu ele um pouco precipitadamente. — Nancy está obtendo um sucesso incontestável. Darei detalhes pessoalmente. Gostaria, Miss Lorimer, de almoçar comigo?

      Ela refletiu um instante. Estava livre, mas não queria dever nada a Madden.

      — Não. O senhor é que será meu convidado.

      — Como queira. Venha então apanhar-me e me leve a um recanto tranqüilo. A um desses restaurantes de Fleet Street, de que tanto tenho ouvido falar. Concorda?

      Uma hora mais tarde estavam sentados, um defronte do outro, no Fromage of Cheshire. Grande animação reinava em torno. Madden teve de contar os dias passados em Manchester. Falava com calor. O ensaio geral correra bem, a sala estava cheia, e Nancy foi simplesmente notável. Entretanto, Catherine, que o ouvia sem interrompê-lo e sem tirar os olhos do rosto bronzeado e imóvel do americano, podia descobrir-lhe nas palavras certas reticências. Alguma coisa nele não combinava com as suas palavras.

      — Eles vão encurtar algumas cenas — concluiu — o fim do segundo ato será um pouco modificado. Ficará melhor para as representações que vão dar aqui.

      — O senhor não aprecia muito a peça, não é? — insinuou Catherine.

      Ele confessou francamente:

      — Não. Pelo menos, não acho bastante boa para Nancy.

      Sem que Madden o desconfiasse, e Catherine nada deixasse escapar do que sentia, era essa a resposta que ela desejava ouvir. A simplicidade e a franqueza de Madden a comoveram e dissiparam suas últimas prevenções. A partir desse instante, ela compreendeu que tinha simpatia por Madden e que se encontraria com ele daí em diante sem desprazer.

      — Gosta muito de Nancy, não é?

      — Sim, Miss Lorimer, e bem gostaria hoje de falar de tudo isso consigo.

      Calaram-se ambos. Catherine distraidamente esfarelava o pão. Depois ele falou:

      — A senhora deve ter pensado que lhe seria difícil entender-se comigo. Talvez não tenha confiança em mim, mas esteja certa de que tenho um amor infinito por Nancy. Ela é tudo no mundo para mim.

      Catherine levantou os olhos rapidamente para Madden, como para se desculpar, e ligeiro rubor subiu-lhe às faces.

      — Lamento-o, devo parecer-lhe sentimental e antiquada, mas tento apenas explicar-lhe minha atitude. Desejo tão ardentemente a felicidade de Nancy, e sei bem, malgrado todo o cinismo moderno, que o caminho da felicidade para ela é encontrar o homem que lhe convenha, o homem que a ame de verdade, que a arranque dessa tola vida de teatro e que lhe dê um verdadeiro lar... Meu Deus, sei que é a eterna canção... Mas, fora de moda ou não, é exatamente o que desejo para Nancy!

      — Creia-me — respondeu ele com profunda sisudez — era justamente isso que eu queria dizer. Sinto-me muito contente de ver que neste ponto a senhora pensa exatamente como eu. Nancy é uma encantadora atrizinha, mas, coitada, detesto vê-la rebaixar-se assim em peças estúpidas e ouvi-la declamar aquelas bobagens. Na minha opinião, é tempo perdido. Se ao menos ela pudesse representar Shakespeare! Não é esse o sonho de todas as jovens atrizes? E, para falar com franqueza, se eu me casar com ela, preferirei, mesmo não sendo um Romeu, que ela interprete Julieta a domicílio...

      Esta linguagem, que combinava tão perfeitamente com os sentimentos que ela experimentava, fê-la rir.

      — Então nós nos compreendemos. Somos amigos, não é assim? E o senhor será para Nancy o homem que lhe convém.

      — É uma grande alegria para mim, Miss Lorimer. E desde que estamos em vias de concluir um pacto de amizade, gostaria, se está de acordo, de chamá-la de Catherine.

      — Combinado, Chris. Mas sob a condição de que não me tome por um dragão!

      — Se é um dragão — retrucou ele, jovial — você é de qualquer modo, o dragão mais encantador que jamais conheci.

      Riram às gargalhadas, e a tensão que até esse momento lhes paralisava as relações, desapareceu de um golpe. Houve um silêncio. Madden, que já devia estar achando demorada demais essa explicação sobre assuntos delicados, não experimentou retomá-la. Observava com curiosidade a velha sala cujas paredes patinadas pelos séculos conservavam inúmeros sinais desse remoto passado.

      — Sempre desejei vir uma vez aqui. Talvez esse desejo lhe pareça muito banal e muito americano, mas eu o sentia. E sempre me causará certa impressão lembrar-me de que comi no Fromage of Cheshire.

      — A cozinha é ótima — disse ela.

      Madden pôs-se a rir.

      — Oh! a senhora sabe muito bem, Miss Lorimer... perdão, Catherine. Sabe muito bem o que quero dizer. Em todo o caso, a torta é excelente. Mas o que sobretudo me comove é pensar que o Dr. Johnson, Boswell e Goldsmith estiveram aqui, sentaram-se debaixo deste mesmo velho forro esculpido, aqui conversaram e escreveram. E nada mudou. Os garçons de avental vão e vêm, e gritam seus pedidos através da portinhola da cozinha exatamente como no tempo das diligências. Sim, vai me achar ingênuo, mas não posso deixar de dizer: gosto dessas coisas do tempo antigo, e creio que nunca me cansarei delas.

      Seu entusiasmo era comunicativo.

      Catherine observou:

      — Há uma infinidade de coisas a ver em Londres.

      Ele fez com a cabeça um gesto de aprovação e serviu-se de aipo.

      — Eu sei. Estava até agora muito ocupado com a Nancy para ter tempo de vê-las. Não queria pedir a Nancy que me acompanhasse aos museus. — Sorriu de novo, e depois ficou sério. — Mas gostaria de dedicar a tarde de hoje aos museus. Há muitas descobertas a fazer aqui na City... se é que não vou perder-me.

      Havia algo de tão tocante no tom caloroso das palavras de Madden que Catherine se comoveu. Lembrou-se de que ele não conhecia decerto em Londres ninguém a não ser ela própria, e imaginou-o perguntando o caminho aos policiais e vagando através do crepúsculo, muito perplexo e solitário, para se perder nos pátios das velhas casas. E então exclamou:

      — Escute. E se eu lhe servisse de guia? Se alguém conhece essas coisas, sou eu.

      O rosto de Madden irradiou um tal clarão de alegria que ela se sentiu enternecida.

      — Verdade? Vai me fazer isso? Mas seria um aborrecimento, e você tem tantas coisas mais importantes a fazer.

      — Ora, o tempo! Arranjarei tempo. Depois, não me aborreço tão facilmente quanto pensa.

      Era uma hora e meia quando eles deixaram Fleet Street e se afastaram na direção do Strand. A alta cúpula da catedral de S. Paulo recortava-se no céu azul. Havia anos que Catherine não voltava a esse bairro do centro e experimentava uma sensação estranha ao pisar aquele mesmo calçamento que fora, na sua juventude, a testemunha das suas primeiras lutas. Enquanto iam andando ao longo dos Law Courts, ela reviu aqueles lugares caros ao seu coração: St. Clement Danes, com sua estação do metrô, a leiteria onde ela almoçava habitualmente duas pequenas salsichas e uma xícara de chocolate. Vendo desenrolar-se aos seus olhos o panorama dos velhos tempos, sentiu uma breve e suave nostalgia. A despeito do progresso, como tudo aquilo mudara pouco!

      Catherine conduziu o companheiro através dos "Inns of Courts" para mostrar-lhe a casa onde trabalhou Ben Jonson e a capela cujo carrilhão ainda hoje toca todas as noites. Visitaram depois a Igreja St. Mary the Strand, aonde ela ia muitas vezes na sua hora livre da tarde. Madden descobriu em si uma predileção por essa igreja. Mas Catherine o apressava. Seus passos e seus pensamentos a arrastavam irresistivelmente para Holborn, e foi com o coração batendo forte que tomou o caminho de "Staple Inn Courtyard". Alguns segundos antes, ainda estavam mergulhados no alarido e no tumulto da rua. Súbito fez-se silêncio em torno deles, e se encontraram diante da venerável fachada cuja severidade era atenuada pelo pipilar dos pardais nos grandes olmos.

      — Que maravilha! — disse Madden quando se sentaram num banco. — Em pleno coração de Londres! Nunca vi a descrição de coisa parecida em parte alguma... Que lugar predestinado para o sonho!

      — Era aqui que eu vinha cismar — respondeu Catherine.

      Madden olhou-a, atento, comovido pelo estranho timbre de sua voz. E após um minuto de silêncio, continuou, com uma insistência que não lhe era habitual:

      — Estou convencido de que todos estes lugares têm uma grande significação para você. Conte-me um pouco da sua vida.

      — Não tenho na realidade grande coisa a contar.

      E, forçando um sorriso, ela prosseguiu:

      — Eu tinha nesse tempo 17 ou 18 anos, e trabalhava aqui pertinho. Então nas minhas horas vagas vinha para cá e me sentava num banco... Como vê, é sempre a mesma velha lengalenga sentimental. Para que repetir-lhe essas coisas?

      — Eu gostaria de saber — insistiu ele. — Gostaria de conhecer a história dos começos da sua vida. Creio que a compreenderei. Eu também, de início, tive dias difíceis.

      Catherine estava muito admirada da emoção que a assaltara ao rever aqueles lugares, mas, antes que se refizesse, começara, tanto para si mesma quanto para ele, a evocar as reminiscências da sua vida de mocinha. Por cima das suas cabeças o céu resplandecia de uma luz densa, lépida e tranqüila. A tarde era de uma rara doçura. Aos seus pés os pombos mariscavam e se pavoneavam. O ruído abafado da cidade chegava até eles como o das ondas numa praia longínqua.

      A princípio Catherine teve dificuldade em encontrar as palavras, mas a simpatia com que Madden a fitava ajudou-a a reunir essas remotas imagens.

      Falou do seu começo de vida, como datilógrafa, na firma Twiss & Wardrop. Em sua casa a vida não era alegre, porque sob o tênue verniz de respeitabilidade burguesa transparecia a nudez da pobreza. O pai, que conciliava sua profissão de pequeno corretor sem clientela com uma atividade de evangelista fanático, escolhera para ela aquele meio de vida. Era um homem severo, de fronte dura e sorriso glacial. Não a compreendia, e não tinha nenhuma esperança de fazer dela alguém. Twiss, pertencente à mesma seita que o velho Sherwood, só aceitara Catherine em seu escritório por comiseração.

      Estas medíocres circunstâncias explicavam sua precoce ambição, e o fato de sua alma sensível se haver interiorizado e endurecido. Queria mostrar ao pai, e a todos os seus, o quanto era capaz. Vastos planos germinavam-lhe no espírito. Com suas meias pretas de algodão e seu vestido modesto, era a esse tempo uma pobre menina marcada pelas privações, mas bem-posta e ativa, sempre apressada em retomar o trabalho. A febre da vida londrina era para ela o melhor dos estimulantes. Com os grandes olhos espantados, via desfilar à sua frente a riqueza e o luxo. Quando saía, tarde, do seu escritório abafante, ficava esperando, debaixo de chuva, em frente ao teatro lírico de Covent Garden, para assistir à chegada das personalidades importante. Entrementes acabava de aprender datilografia, estenografia e contabilidade. Assim foi que conseguiu a estima do Sr. Twiss e mesmo a do rabugento Sr. Wardrop. Duas vezes teve aumento de ordenado, até que este atingiu a soma vertiginosa de duas libras e cinco xelins por semana. Quando levou essa grande nova ao pai, este a princípio só manifestou uma incredulidade repreensiva.

      Ao fim de quatro anos, quando ela contava apenas 24, enfim encontrou sua oportunidade. O velho Eugene Hart, cuja loja de antigüidades ficava muito perto de Oxford Street, abordou-a um dia no escritório e perguntou-lhe se aceitava ser sua secretária particular, com 200 libras por ano. Eugene Hart era um judeu de cabelos negros, trigueiro, com um aspecto de criança e conhecido por sua habilidade. Ia freqüentemente a Twiss & Wardrop mandar consertar objetos antigos, mas mais freqüentemente para mandar fabricá-los de novo. Com o seu olho agudo, observava muitas vezes Catherine e, graças ao instinto infalível de sua raça, adivinhara-lhe as qualidades.

      Para ela foi uma coisa pungente deixar a casa Twiss & Wardrop, mas a oferta de Hart abria-lhe perspectivas muito promissoras. Como agora não ficava pregada à sua mesa de trabalho, iniciou-se nas sutilezas do ofício. Familiarizou-se com os estilos e logo aprendeu a identificá-los ao primeiro golpe de vista. Em companhia de Hart, assistia a toda espécie de transações, nas galerias do West-End de Londres e também nas mansões senhoriais da Escócia. Tendo podido apreciar os talentos da moça, e torturado por uma saúde muito precária, Hart a deixou muitas vezes trabalhar sozinha.

      Era para ela uma grande responsabilidade fazer compras para Hart; e nunca se esqueceu do dia em que, com voz trêmula, lançou sua primeira oferta num leilão, em meio a uma multidão de marchands de idéias tão rígidas como seus chapéus altos. Conquistou a consideração deles. Não era ainda a notoriedade, mas, quando aparecia, todos começavam a se interessar por ela. Começou a economizar, porque, além de seu ordenado, Hart lhe dava ainda uma comissão, e, quando ela conseguia negócios proveitosos, fazia no fim do mês uma bonita soma. Sobretudo, afeiçoou-se apaixonadamente ao seu ofício; gostava da atmosfera da profissão e das suas amplas e múltiplas possibilidades.

      Eugene Hart morreu três anos mais tarde. Catherine, para quem ele fora um admirável amigo, ficou só. Quando todo o espólio estava vendido e o síndico fechou a loja, pareceu-lhe que sua vida terminara. Estava completamente desamparada, quando, graças a um acontecimento imprevisto, se aprumou de novo.

      Tinha conhecido um advogado chamado Cooper, cujo escritório estava em plena prosperidade. Georges Cooper era um rapaz trabalhador e simpático. Sua vida, perfeitamente digna. Por origem e educação, pertencia, como Catherine, à pequena burguesia. Jurara a si mesmo, por amor-próprio, que nunca renegaria o meio em que nascera. Os dois se encontravam muito freqüentemente, e Catherine gostava da companhia dele. Muito naturalmente o advogado se apaixonou por ela e propôs-lhe casamento.

      Para Catherine a tentação era grande. Estava com 25 anos, um sangue generoso circulava-lhe nas artérias. Não ia bem quanto ao trabalho; o pai, que era agora um velho enfermiço e rabugento, tornava-lhe a vida insuportável, e ela se sentia profundamente desgraçada. Que alegria não seria possuir um marido, filhos, um lar! Cada vez que pensava nisto, atormentava-a uma sede de ternura. Como o outro caminho lhe parecia ingrato, e que pouca era a sua esperança de, se o seguisse, atingir o seu fim!

      Viu-se numa terrível dificuldade para tomar uma decisão. Mas Georges instava para que ela respondesse. Chegou um dia (um dia de inverno como aquele) em que teve de escolher entre uma carreira e um lar. Triste, desanimada, procurou um refúgio neste velho pátio e se sentou num banco para travar o seu combate solitário. Quando se levantou, chegara a noite, e sua resolução estava assentada. Naquela mesma noite escreveu a Cooper para lhe comunicar sua recusa; e ao mesmo tempo ofereceu-se para um lugar de redator suplente no Collector, uma revista mensal de arte e decoração.

      Uma semana mais tarde, fazia parte da redação, e ao fim de um ano ocupava o posto de redator-chefe. Em seguida montou seu próprio negócio, Antica, Sociedade Anônima de Responsabilidade Limitada. Daí em diante o vento soprava a favor. Suas relações com personalidades de primeiro plano lhe valeram uma real notoriedade na profissão, tanto em Nova York quanto em Londres. Naturalmente tinha de lutar; quem não tem suas dificuldades? Mas começava a ganhar muito dinheiro, e o gastava; pôde cuidar da mãe e de Nancy.

      Terminada a narrativa, houve um longo silêncio. Sem a olhar, Madden lhe apertou com força a mão.

      — Sinto-me feliz e orgulhoso, Catherine, por me haver contado tudo isto. Só uma pessoa me causa pena.

      — Quem é?

      — Georges Cooper — respondeu lentamente. — Porque ele bem deve compreender tudo que perdeu.

      Ela sorriu com uma ponta de melancolia.

      — Não perdeu grande coisa. Creio que se casou, e que encontrou a felicidade.

      Talvez Madden estivesse dominado por essa pesada melancolia que tão freqüentemente nos deixa a evocação do passado. Bruscamente, após olhar para o relógio, levantou-se.

      — Quase passou a hora do chá! Você deve estar gelada, assim tanto tempo imóvel. Vamos nós dois a essa casa de chá que você freqüentava, e tomaremos chá quente.

      Agora era ele que assumia o ar de cicerone, e a conduziu através da multidão diretamente para a casa de chá, cuja recordação ela tão bem guardara. No interior estava claro e fazia calor. O bule fumegava e silvava no balcão, e ao longo das paredes os espelhos refletiam os garçons atarefados e os grupos de fregueses que se reconfortavam, riam e tagarelavam em torno das pequenas mesas de mármore. Os dois devoraram grandes xícaras de chá e fatias torradas com manteiga.

      — Como é bom! — disse Catherine.

      Enquanto comia, ela se olhou no espelho, e ajeitou sob o chapéu uma mecha de cabelo rebelde, que caía sobre a fronte.

      — Meu Deus, que cara a minha! Mas eu bem a mereci; toda mulher que conta sua vida devia ser punida.

      — Não fui eu que pedi que contasse? Um dia também eu lhe contarei a minha história.

      Ela riu.

      — Contando que não me diga que vendeu jornais nas ruas de Cleveland.

      Ele fez uma careta.

      — Está bem. Só que não eram jornais, mas amendoim.

      — E naturalmente andava descalço, não?

      — Naturalmente! — Madden acabou de comer, com ar cismador, a sua torrada. — A única coisa que ainda me preocupa é saber como passarei a noite. Pode imaginar como me sinto perdido sem Nancy. Ficarei contando os minutos até que ela volte. — Hesitou um instante. — Isto não sugere a idéia de ocupar comigo ainda um pouco hoje de noite? E ir a um espetáculo qualquer em minha companhia? — Desdobrando rapidamente um jornal que comprara na rua, passou em revista com a ponta do indicador a coluna dos anúncios de espetáculos. — A julgar pelos títulos, devem levar, um pouco por toda parte, boas coisas.

      Catherine observou:

      — Não nos devemos fiar nos títulos.

      Ela sentia que já fizera muito por ele naquele dia, e não estava muito disposta a ir ao teatro. Entretanto seguiu com o olhar o dedo de Madden até o momento em que parou no nome do Savoy, e verificou com alegria que levavam Gilbert e Sullivan.

      — Iolanthe! — exclamou. Madden levantou os olhos.

      — Gosta dessa velha opereta?

      Catherine corou um pouco.

      — Agora sou eu a ingênua, mas adoro Gilbert e Sullivan. Talvez porque toda vez que desejava ouvir uma das peças deles não podia. Quantas vezes, neste mesm a casa de chá, não sonhei com um lugar de pé, para ouvir Pinafore, O Micado ou Iolanthe! Mas havia a escola noturna, onde eu tinha horas suplementares de aula, e nunca fui ao teatro...

      — Ótimo. Então iremos hoje — concluiu ele, chamando a garçonete para pagar.

      Encontraram sem dificuldade cadeiras bastante atrás, e assim se notaria menos que estavam sem traje de rigor. A orquestra atacou a ouverture [abertura]. Subiu o pano, e Catherine logo se sentiu mergulhada num encantamento.

      Acontecia-lhe freqüentemente ser obrigada a assistir à première de uma revista em voga ou duma opereta moderna, cujos ritmos trepidantes a deixavam indiferente. Agora era coisa muito diversa, e o espetáculo se adaptava ao seu estado de alma. Pouco lhe importava que aqueles achados de fantasia e de melodia fossem coisa moderna ou não. Arriscando-se a passar por antiquada, confessava abertamente o prazer que sentia.

      Mas Madden experimentava as mesmas sensações, e ela o notava porque o companheiro falava pouco. Nos intervalos ele se absteve de comentários, e também não a importunou oferecendo-lhe café ou gelados. A maior parte do tempo ficava sentado, muito quieto, com o queixo na mão e os cotovelos apoiados nos braços da poltrona, e os olhos pregados no palco. À saída, enquanto esperavam um táxi à porta, sussurrou rápido:

      — Mais uma coisa pela qual lhe sou grato. E acrescentou:

      — Nancy ficará muito contente de saber que foi tão gentil comigo. Contarei tudo a ela, assim que volte.

      Catherine sorriu.

      — Não. Foi você que me fez companhia.

      — De modo nenhum! — protestou ele com vivacidade. — Eu sou um companheiro insípido, e creio que fui muito aborrecido hoje. Estou sempre me perguntando o que teria se passado em Manchester.

      Enquanto rodavam para Curzon Street, pensavam ambos em Nancy. Quando o automóvel parou, Catherine convidou Madden a subir para tomar uma última xícara de chá. Ele aceitou. Na antecâmara, viram um telegrama na bandeja de prata. Ela o abriu e leu:

      "Première insucesso completo stop Londres adiado abandono definitivo provável regresso amanhã querida stop choro raiva Nancy."

      Mordendo os lábios, Madden arrancou das mãos o telegrama.

      — Pobre menina! É horrível! Eu não queria que a carreira dela terminasse assim...

      E quase imediatamente despediu-se de Catherine.

     

      No domingo, às 10 horas, Nancy deu entrada em Curzon Street. Passara a noite num canto de vagão de terceira, pobre criaturinha abandonada e sucumbida. O resto da companhia ficara em Manchester para, ao menos, fazer a viagem de dia. Mas Nancy sentira necessidade de voltar logo para casa. O fracasso da peça, na qual fundara tão grandes esperanças, abalara-a terrivelmente. Enquanto o trem varava a escuridão, seu rosto pálido espelhava toda a enormidade de sua decepção. Perdera sua expressão habitual de ligeireza, e a alegre mascarazinha sob a qual a gente a conhecia. Todos os que julgavam Nancy pelo seu ar de garota empreendedora e bonita deviam vê-la naquele momento. Dir-se-ia uma criança que acabasse de ser repreendida.

      Entretanto, antes de chegar a Londres já se dominara. Como ela própria costumava dizer, podiam picá-la em pedacinhos sem que deixasse transparecer nada. Empoou as faces, que traziam as marcas da longa viagem e talvez também de alguma lágrima furtiva. Mas ao chegar já havia premeditado uma pequena cena em estilo de ópera. Atirou-se aos braços de Catherine que a esperava para o desjejum.

      — Catherine, minha querida! — exclamou como se estivessem separadas desde alguns anos. Encostou o rosto no da tia, afastou uma almofada e deixou-se cair no divã ao lado de Catherine. — Fiz uma viagem de enlouquecer, lá no norte! Catherine aproximou dela o bule de chá.

      — Coma primeiro; depois me contará tudo.

      — Querida! — Nancy teve um frêmito teatral. — Ser-me-ia impossível engolir coisa alguma. Estou terrivelmente nervosa!

      — Como! Nada comeu ainda hoje?

      — Não quero nada, absolutamente nada! Nada além de uma pequena omelete, ou qualquer coisa parecida, e torradas, suco de laranja... Ah! ia me esquecendo. — Solicitada ao mesmo tempo pelo gosto da tragédia e pelos seus hábitos de criança amimada, desempenhava seu papel. — Digo-lhe que fiquei às tontas, como uma louca!

      — Já esteve com Chris?

      — Já, ele foi muito gentil, verdadeiramente ideal. Foi buscar-me à estação e levou-me para casa. Mas eu queria vê-la, Catherine, e falar com você a sós.

      — Muito bem — disse a outra, já tranqüila.

      Deitou o chá na xícara da sobrinha, serviu-lhe açúcar e creme.

      — Eu bem sabia que viria aqui. Não precisa criar cabelos brancos por causa dessa peça.

      — Peça! — exclamou Nancy com uma careta. — Se ao menos fosse uma peça! Talvez pudesse dar alguma coisa se a Renton, essa lamentável Renton, não a matasse. Massacrou-a tão bem que no fim parecia que estávamos diante de um carneiro estrangulado. Nada temos a esperar daquela mulher. Não tem talento, e nunca terá. E sobretudo está muito velha. Ah! se tivessem me dado o papel dela, Catherine! Tal como eu sou, obrigada pelo elogio!, eu teria salvo a peça. Pelo menos teria evitado o fracasso dessa desgraçada representação. Oh! Catherine! Eu que contava com um grande sucesso em Londres! Isto me ajudaria tanto em minha carreira neste momento!

      Sob o peso do desgosto, engoliu de um trago a xícara de chá.

      Catherine reprimiu um sorriso. Apesar do cansaço nervoso da longa viagem noturna, Nancy nunca fora tão bonita como nessa manhã, enquanto se deixava arrebatar por uma emoção ao mesmo tempo sincera e simulada. Sem dúvida alguma, pensava Catherine, Nancy sente um grande prazer em demonstrar a si mesma seu talento dramático, e isto não lhe vai de todo mal.

      — É lamentável — falou por fim Catherine — mas vale a pena se chatear tanto?

      — Se vale a pena?

      Nancy encrespou-se, indignada:

      — Que pergunta estúpida, Catherine!

      A tia respondeu com ar absorto:

      — Eu estava pensando em nosso amigo Madden.

      — Minha cara, sei aonde quer chegar. Eu adoro Chris. Mas adoro igualmente o teatro. Como artista, tenho, positivamente, deveres para comigo mesma. Você sabe como foram brilhantes meus começos e a rapidez com que me afirmei. E justamente no momento crítico, caio nesta esparrela! Verdade, a peça é tola, e o insucesso foi merecido. Mas eu me comprometi e não posso voltar atrás; seria uma covardia. — Saltou na ponta dos pés, e começou a andar pelo quarto. — Não, minha querida Catherine. Seria o fracasso total. Estou resolvida a casar com Chris, mas quero antes conhecer o sucesso. Quero justificar-me perante mim mesma. Preciso de sucesso, sucesso...

      — Ahn... estou vendo.

      Fez-se silêncio. Nancy parou com suas idas e vindas e, numa brusca mutação, sua fisionomia exprimiu uma ardente súplica.

      — Só há um meio para me ajudar — começou, plantando-se diante da tia com um olhar e uma atitude que lembravam ao mesmo tempo o jogo de cena da Duse, de Ellen Terry e de Sara Bernhardt. — Tem de me ajudar!

      — Eu? Mas como, Nancy?

      — Não me olhe assim, como se eu estivesse louca, minha querida, você bem sabe em que estou pensando.

      — Precisará de um papel em outra peça?

      — Exatamente!

      Nancy deixou-se cair, com um suspiro, no banco do piano, e tirou uns acordes solenes.

      — Neste justo momento, Catherine, pode intervir em meu favor. Tem uma influência tão grande... Sim, faz das pessoas o que quer. Toda gente a ouve. Por exemplo, Sam Bertram.

      — Por que precisamente Bertram?

      — Porque... — Nancy tirou um novo acorde ao piano — porque, se é que ainda não sabe, Bertram vai partir para Nova York com a nova peça, Dilemme. E porque ainda não recrutou a companhia. E porque na peça haveria um papel fabuloso para mim!

      — Mas, Nancy, é impossível! — respondeu Catherine com vivacidade. — Não posso pedir tal favor a Bertram.

      — Deve pedir, querida — insistiu Nancy, premindo energicamente o pedal forte. — Deve pedir, se não quer arruinar minha vida e fazer-me infeliz.

      — Não, não posso!

      — Deve pedir. Há em Dilemme um papel que parece escrito para mim. Não é um grande papel, querida, mas é exatamente o que me serviria. Se me dessem esse papel, eu ressuscitaria os mortos. Mas não é só isso. Eu poderia ainda seguir para a América com você. Quero ir com Chris; os negócios o chamam. Resolveu levar-me para nos casarmos lá. Vê, portanto, como tudo se arranjaria admiravelmente se pudesse encaixar-me na companhia de Bertram. Viajaremos os três juntos, e faremos uma viagem maravilhosa.

      Catherine encarou fixamente Nancy, e, como sempre, experimentava uma surpresa misturada à desconfiança, à idéia de que aquele demoniozinho, tão prodigioso de astúcia e de candura, a puxava pela ponta do nariz para onde queria. Entretanto, isto a divertia.

      — Parece-me que você pensou cuidadosamente nesse negócio desde muito tempo, não é verdade?

      — É claro, querida!

      — Mas nada indica que Bertram se deixará convencer tão facilmente quanto eu.

      — Basta que lhe peça! — exclamou Nancy.

      Catherine refletiu ainda um momento, e cedeu.

      — Está bem, tentarei.

      — Como você é boa!

      Depois de um último acorde, Nancy precipitou-se sobre a tia e passou-lhe os braços pelo pescoço.

      — Oh! Eu bem sabia que me faria isso! Tinha confiança em você. Como sou feliz! Sei que quando se mete em qualquer coisa já está de antemão vitoriosa.

      Olhou Catherine nos olhos com a mais terna gratidão. Em seguida, após um rápido olhar ao minúsculo relógio de platina que trazia no pulso:

      — Agora preciso ir. Prometi a Chris encontrar-me de novo com ele às 11 horas. Chris é sempre tão gentil, e eu detesto fazê-lo esperar. Vá hoje, Catherine, vá hoje mesmo, à casa de Bertram, ou, em último caso, amanhã de manhã. Adeus e mais uma vez um milhão de agradecimentos.

      Após a partida de Nancy, Catherine sentiu-se perplexa. Por um lado, não podia fugir à idéia de que Nancy abusava dela tão calculada quanto gentilmente; mas por outro dizia consigo mesma que nenhum serviço que prestasse à sobrinha era demais para a afeição que lhe tinha. Era certo que exercia alguma influência sobre Bertram. Se Nancy estava bem informada, Catherine conseguiria mesmo convencê-lo. Se bem que lhe fosse penoso, com seu gênio independente, pedir um favor, sabia que com isso ia causar uma grande alegria a Nancy, que nela depositara toda a sua confiança. Sua fisionomia abriu-se, e já estendera a mão para o telefone. Na verdade, duvidava que Bertram tivesse ficado em Londres no fim de semana, mas pelo menos saberia por Winter, o criado de quarto, onde poderia encontrá-lo na semana seguinte.

      A voz grave de Winter, fácil de reconhecer, fez-se ouvir na outra extremidade do fio. Com uma ligeira hesitação, e num tom misterioso, respondeu que o patrão estava em casa.

      — Ótimo — exclamou Catherine. — Então diga que eu vou imediatamente conversar com ele alguns minutos.

      — Oh, não, Miss Lorimer! Não é possível...

      — Por quê? Ele não há de estar ocupado o dia todo.

      — Lamento, Miss Lorimer. Mas ele está doente.

      — Doente?

      Na entonação de Winter havia certa expressão de angústia.

      — Que tem ele?

      Depois de um silêncio cheio de reticências, a voz retomou um tom de majestosa discrição:

      — Se Miss Lorimer faz questão de saber, o patrão está com dor de dente.

      Havia tanta solenidade nessa comunicação, que Catherine fez um esforço para conter uma gargalhada. Para não ferir os sentimentos de Winter, cuja extrema suscetibilidade ela conhecia, apressou-se em desligar. Persistia entretanto no propósito de ir à casa de Bertram. Desde que ela queria fazer a vontade a Nancy, era melhor não se retardar.

      Lá pelas 3 horas, calculou que o dente de Bertram já não o fazia sofrer tanto, e pôs-se a caminho para Portman Square. Tocou a campainha no n° 16, e Winter em pessoa, sempre alto, magro e digno, apresentou-se diante dela.

      — Lamento muito, Miss Lorimer... — começou.

      Ela notou que o criado ainda não sabia muito bem se devia deixá-la entrar ou não. Antes que ele tivesse tempo de adotar uma resolução, já Catherine estava no vestíbulo e lhe dirigia um sorriso tranqüilizador:

      — Não há nada, Winter, conheço o caminho.

      Sob o olhar embaraçado do criado, ela penetrou no escritório, onde, conhecendo como conhecia os hábitos de Bertram, esperava encontrá-lo.

      Não se enganara, mas antes por efeito do acaso do que de sua sagacidade. Bertram não estava com jeito de trabalhar. Enrolado num robe de chambre e a cabeça envolta num xale escocês, achava-se arriado a um canto da lareira, como a imagem viva da angústia e da miséria humana.

      — Então, que tem, Bertie? É assim tão terrível?

      — Mais do que isto — resmungou ele.

      Ao cabo de um instante, Bertram virou com dificuldade a cabeça e olhou-a com uns olhos vesgos:

      — Que diabo quer de mim?

      Se bem que ela estivesse cheia de compaixão, Bertram apresentava uma figura tão digna de lástima com seu cachecol e o rosto inchado, que Catherine teve dificuldade em conter o riso. Explicou às pressas:

      — Vim por um minuto, de passagem, e com muito prazer. Deixe-me tratar de você.

      — Você não pode fazer nada — murmurou ele, triste. — Não quero ser incomodado, e disse isto a Winter.

      — Winter não tem culpa. Vamos, Bertie...

      — Não quero ouvi-la. Dor de dente, atrozes dores faciais! Não posso pensar agora em comprar antigüidades.

      — Mas eu não quero vender-lhe nada!

      — Você não viria aqui se não fosse por alguma coisa. Eu a conheço! Sobretudo num domingo. Vá embora, Catherine!

      — Não, não vou — respondeu ela, resoluta, aproximando-se do doente. — Não suporto vê-lo sofrer assim. Esteve no dentista?

      — Odeio os dentistas! Nunca fui a nenhum. Odeio toda a classe...

      Um novo acesso arrancou-lhe gemidos e o fez emborcar na poltrona.

      — É um abscesso. Não se vê nada. Não se pode fazer nada.

      — Mas pode-se arrancar o dente.

      — Arrancar? — Ele estremeceu. — Sem injeção? Arrancar a frio? Você está louca? Esta mulher pensa que sou de ferro. Deus lhe perdoe!

      Indignado, Bertram deu as costas para a amiga, e, segurando a face inchada, pôs-se a mimá-la. Catherine, que o observava com carinhosa solicitude, reconheceu mais uma vez a exatidão da velha fórmula, talvez cediça, mas sempre verdadeira, segundo a qual os homens podem comportar-se como verdadeiras crianças, sobretudo quando não têm uma mulher que cuide deles.

      — Deixe-me ver, Bertie.

      — Não se meta!

      — É preciso. Seria simplesmente ridículo ficar nesta situação.

      Aproximou-se mais um passo. O olho de Bertram, que era só o que se mexia ainda na face inchada, rolou ferozmente para um lado. Enroscado como um cãozinho que o dono ameaça com o chicote, entregou-se, gemendo, à sua sorte e abriu a boca. Um caco de molar punha uma escura mancha na gengiva inflamada.

      Depois de estabelecer a causa de tanto sofrimento, Catherine voltou a sentar-se em frente à lareira, e pôs-se a refletir sobre o caso.

      — Você está vendo, Bertie, que é uma loucura deixar as coisas nesse estado. É preciso arrancar o dente já, já.

      — Impossível! — retrucou ele com a voz sumida. — Não se pode dar injeção...

      — Recorreremos ao gás hilariante — replicou laconicamente Catherine.

      Bertram empalideceu sob o cachecol em que de novo enrolara a cabeça. Só o instinto de conservação é que ainda o sustentava.

      — Gás?

      — Naturalmente, Bertie. Aplicar-lhe-ão o gás hilariante.

      Ele fez um supremo esforço de resistência.

      — Não suporto narcótico. Só em pensar desfaleço. Nunca na vida suportei narcótico.

      — Pois bem, será a primeira vez — falou com ar severo Catherine. — Vou chamar agora mesmo o Dr. Blake, ele lhe tirará esse desgraçado dente num abrir e fechar de olhos.

      — Não, não! Experimente! Uma vez que eu adormeça, morro para sempre. Aliás já estou melhor. Estou inteiramente bom... ai! ai!

      Sempre protestando, fazia laboriosas tentativas para se levantar da poltrona quando uma nova crise o fez abater-se de novo no assento.

      Catherine encarou o velho amigo com um ar tão compadecido quanto inflexível. Depois foi ao vestíbulo de onde telefonou para o Dr. Blake, seu dentista, que morava muito perto, em Queen Ann Street, e lhe pediu que fosse até lá. A Winter, que estava sucumbido e lívido como uma sombra, pediu água quente e guardanapos limpos.

      Ficou no vestíbulo até a chegada do dentista.

      Recomendou-lhe:

      — Faça um bom serviço, e rápido.

      — Compreendo, Miss Lorimer — respondeu o Dr. Blake, rindo. — Nunca deixes para amanhã o que podes fazer hoje.

      Foram encontrar sua vítima num quarto do andar superior. Humildemente ele se entregava à sua sorte, e, mesmo, sentia-se muito fraco para poder reagir. Num minuto o aparelho foi posto a funcionar. Bertram atirou um olhar furtivo aos sombrios cilindros e aos tubos vermelhos, e se pôs a tremer como se soprasse um vento gelado.

      — Não sobreviverei a isto — murmurou com uma voz desfalecida. — Vocês vão me assassinar!

      — Não diga bobagens — falou Blake, com bom humor.

      — Não será necessária uma chaise longue [poltrona]especial, ou coisa parecida? — balbuciou Bertie.

      Blake respondeu, sempre cordial:

      — Seria inteiramente inútil.

      Arregaçou a manga direita, de acordo com todas as regras da arte.

      — Desabotoe o colarinho e sente-se direitinho.

      O paciente respondeu com um risinho de dor.

      — Sentar direitinho — repetiu, como um eco moribundo. — Se não houvesse chegado meu último momento, eu riria na sua cara...

      Nesse instante, a porta abriu-se e Winter avançou com uma bacia na mão, solene como um carrasco que vai espalhar rios de sangue. Foi o golpe de misericórdia. Bertram cerrou fortemente os olhos. Quando Blake lhe aplicou a máscara de borracha no rosto, algumas palavras ainda escaparam do fundo da sua garganta contraída:

      — Segure minha mão, Calherine. Por Deus, aperte com força...

      Três minutos depois ele abriu os olhos, e, sem saber o que dizer, olhou para o Dr. Blake, que, assoviando, arrumava os ferros. Winter e sua bacia tinham desaparecido. Desaparecidos também — e isto foi, no espírito de Bertram, a aurora que desponta — o dente, a dor e todo aquele pesadelo. A certeza do milagre o esmagava. Ficou tranqüilamente sentado até que o dentista se foi. Então ergueu-se e encarou Catlherine com um largo sorriso no qual se lia todo o seu alívio.

      — Foi você...

      Quis certificar-se de que não era vítima duma ilusão, e palpou as faces. Depois riu de novo como uma criança.

      — Maravilhoso esse éter. Não fui bastante corajoso?

      — Admirável de coragem, Bertie.

      — Com os diabos, não era nada divertido. Qualquer um se teria portado assim. Quando penso no narcótico e em todo o resto...

      — Sim, você se comportou bravamente. E era um dente de meter medo.

      Acompanhando a direção do olhar de Catherine, ele descobriu o molar: estava ali junto, numa cama de algodão. Pegou o dente e considerou-o com orgulho.

      — Ah! Aqui está ele. Uma grande raiz inflamada. É melhor que esteja fora do que dentro, hein, Catherine? Graças a Deus, tenho bons nervos, e foi isto o que me permitiu resistir.

      Levantando subitamente os olhos, Bertram notou no olhar da moça qualquer coisa que o sobressaltou, como um colegial pegado em falta. Olhou-a como se não tivesse a consciência tranqüila, depois baixou lentamente a cabeça. Os cantos da boca se lhe puseram a tremer, e finalmente participou de uma ruidosa e alegre gargalhada, que durou muito tempo.

      — Deus do céu, Catherine, como eu tremia! E como você fez bem em usar a violência comigo! Se não fosse você, eu estaria ainda conhecendo o inferno em vida. — Estendeu a mão e tocou a sineta. — Agora, vamos tomar chá. Estou com fome. Tenho um apetite feroz. Não comi nada o dia todo, você sabe.

      — Não, só eu tomarei chá. O que está lhe fazendo falta é uma boa sopa fortificante.

      — Boa idéia! Preciso alimentar-me. Parece até que não como há uma semana.

      Um pouco mais tarde, depois que Winter chegou e novamente se foi, Bertram, com o guardanapo passado em torno do pescoço, atacando a vigorosos golpes de colher um saboroso potage [sopa], exclamou:

      — Catherine, você errou a vocação. Devia ter-se feito enfermeira ou médica. Não, não; estou brincando. Você devia casar-se. Comigo, por exemplo. — E brandiu a colher no ar. — É uma idéia. Case comigo, Catherine, e faça de mim um homem como se deve ser.

      Ela se limitou a rir, sem responder.

      — Se não me quer para marido, que posso fazer por você? Mas, por favor, não me peça que lhe compre coisa alguma; minha nova tournée está me arruinando.

      Catherine suspirou. Se bem que preferisse abordar ela própria o assunto, aquelas palavras de Bertram lhe forneceram uma oportunidade que não devia deixar escapar.

      — Pois bem, Bertie, tenho um pedido a fazer-lhe. Trata-se justamente de sua turnê. Não quererá você dar um papel à minha sobrinha Nancy Sherwood?

      Chocou-o menos o objeto do pedido do que o tom caloroso em que ela o formulou. Lentamente escorregou até o fundo da poltrona.

      — Ah! Ah! Então é isso? Ela a lançou nos meus calcanhares, o demoniozinho...

      — Certamente, ela é esperta — retrucou vivamente Catherine — e você sabe que é uma boa atriz.

      — Sim, não é má — concedeu ele. Calou-se. — E tem topete. Ouvi falar da intervenção dela, à última hora, no rádio. São coisas que se comentam. — Calou-se de novo. — Hum... seria melhor que ela esperasse ainda um pouco. Daqui a um ou dois anos, terá mais experiência.

      — Daqui a um ano ou dois, será muito tarde — disse Catherine gravemente. — Ela se casará antes disso, e deixará a Inglaterra. Agora mesmo é que precisa de um papel. Você compreende, Bertie, com o temperamento que ela tem, quer demonstrar a si mesma o quanto é capaz. Desde que vai abandonar a profissão, deseja fazê-lo com um sucesso.

      Ele escutava meditativo.

      — Estou entendendo.

      — Além disso — prosseguiu ela com empenho — eu gostaria muito que ela fosse comigo para a América. Trata-se do futuro, da felicidade da menina, de tudo que conta na vida de Nancy.

      Houve um silêncio. Durante um bom momento, Bertram, com ar pensativo, alisou o queixo com a mão.

      — Está combinado, Catherine — falou por fim. — É só por você que faço isto. Na peça há um papel para Nancy, feito sob medida. Diga a ela que passe amanhã pelo meu escritório.

      Fremente de alegria, Catherine saltou aos pés de Bertram e lhe tomou as duas mãos entre as suas:

      — Obrigada, Bertie, nunca me esquecerei disto!

      — Não é nada. Penso aliás que Nancy será uma boa partenaire [parceira] para Paula Brent, que faz o papel principal.

      Bertram não ocultava o contentamento que sentia em atender à amiga.

      Pouco depois, ela se despediu. Sentia um grande alívio, e correu para casa a fim de telefonar a Nancy. Sua partida para a América lhe apareceria doravante sob novos e mais felizes auspícios. Sempre pensara em fazer aquela viagem com a sobrinha. E além disto, como devia confessar a si mesma, muito em segredo, foi para ela uma grande alegria pensar que Madden também ia.

     

      Na antevéspera do embarque, o tempo estava carregado e brumoso. Um sol, de um vermelho desmaiado, piscava de vez em quando, como um grande olho, por entre as nuvens amareladas. Numa cabina reservada do trem que corria para Southampton, através de paisagens pontilhadas de chaminés negras, estavam todos os quatro; porque Charley tomara o hábito sentimental de, a cada viagem de Catherine, acompanhá-la até o navio.

      Madden e Upton, que se sentaram defronte um do outro, haviam travado relações falando sobre futebol; enquanto Nancy, com o casaco de pele na prateleira do trem, e o novo estojo de toalete ao lado, folheava nervosamente os jornais ilustrados, com a esperança de encontrar neles uma fotografia sua ou de suas companheiras. Tivera uma pequena decepção à idéia de que Bertram e a companhia não haviam tomado passagem no Pindaric, e, sim, embarcariam dois dias depois no Imperial, um navio mais rápido, e, como não deixava de observar, mais elegante. Entretanto, já se refizera desse golpe de azar.

      Catherine experimentava uma sensação de beleza a que não estava habituada. Sentia-se induzida ao otimismo; e a vida se lhe afigurava digna de ser vivida. Como era bom ter amigos!

      Bertram, por exemplo, se mostrava extraordinariamente gentil com ela, e que alegria de se encontrar em companhia de Nancy e de Madden! Seus pensamentos galopavam. Dentro de algumas semanas, revenderia a miniatura a Brandt, libertar-se-ia de todos os seus apertos financeiros, e assistiria à felicidade de Nancy. De repente, sentiu que esta se inclinava para ela.

      — Olhe, Catherine — disse Nancy com um sorriso estudado — a minha fotografia que publicaram aqui. Acha boa?

      Catherine lançou os olhos ao jornal. O retrato era recente e muito bonito. Fora tomado sob um ângulo de todo imprevisto, em plena luz. Nancy era vista nele de alto a baixo, a cabeleira jogada para trás, lembrando Hermes, o mensageiro dos deuses ao alçar o vôo.

      — Excelente — opinou calorosamente Catherine — e muito original!

      — Não é vaidade... mas é tão importante para mim! Sabe, para a publicidade, e o resto.

      Madden e Upton contemplaram igualmente o retrato, e Upton se preocupou particularmente com a semelhança.

      — A semelhança — interrompeu Catherine — é muitas vezes uma questão de ponto de vista. Aqui está, por exemplo, um retrato que acham parecido comigo. Não posso julgar se é verdade ou não. Vejam vocês mesmos.

      Apertou o fecho do estreito e luxuoso estojo e estendeu-o aos amigos. O Holbein circulou de mão em mão, em meio a profundo silêncio. Madden contemplou-o longamente e disse, afinal:

      — É verdade, parece com você, Catherine. E é um quadrinho encantador.

      Upton, que olhava por cima do ombro do companheiro, concordou.

      — Por que preço — acrescentou — poderão vendê-lo a um americano?

      — Vinte mil libras, é o que espero — respondeu Catherine rindo.

      — Vale — disse Madden sisudo. — É uma obra de grande classe.

      Nancy, na outra extremidade da cabina, interveio com uma gargalhada:

      — Será que vai querê-la para você, Chris?

      Madden respondeu com bom humor:

      — Decerto.

      E entregou o quadrinho a Catherine, que o guardou de novo no estojo.

      Upton olhou para o relógio, o que indicava nele menos a preocupação pelas horas do que o desejo de matar a fome e a sede.

      — E se almoçássemos? Tenho uma fome de lobo, e reservei uma mesa no carro-restaurante para o meio-dia.

      O repasto decorreu o melhor possível. Catherine estava de excelente humor, e contagiou de sua alegria a roda. Logo depois, chegaram a Southampton, e, um instante após, o trem parou na estação marítima diante de uma longa fila de camareiros vestidos de branco, em cujos gorros se liam nomes de navios. Encostada ao cais erguia-se a possante massa negra do Pindaric. Se bem que semelhante viagem não fosse para ela uma novidade, Catherine nem por isto deixava de sentir no momento do embarque a febre da aventura. O hábito não lhe destruíra o prazer que encontrava em cada viagem. Aspirando o ar fresco do mar com uma alegria impaciente, agarrou-se afetuosamente a Nancy para subir a longa ponte.

      Ao chegar a bordo, teve uma recepção triunfal. Já havia viajado tantas vezes no Pindaric que todos os homens da equipagem a conheciam, e ao vê-la expressaram uma viva e respeitosa satisfação. Essa desvanecedora acolhida foi doce como o mel para Nancy, que ainda estava fazendo sua aprendizagem nessas coisas.

      — Diga-me, será que o navio é seu? — perguntou à tia, depois de haverem desfilado diante de uma fila de moços a bordo.

      Catherine riu:

      — Se é, está ao seu dispor.

      Tinham um grande camarote duplo, com comunicação interna, na ponte C. O de Madden era mais para trás, a estibordo. Nancy logo mergulhou no mundo desordenado de telegramas, cartões e flores que já esperava encontrar, enquanto Catherine se entretinha com a Sra. Robbins, a camareira que a servia em todas as viagens. Pouco depois apareceu o Sr. Pym, o comissário de bordo. Era um homem corpulento, de faces vermelhas e olhos saltados. Era estrábico mas dissimulava esse pequeno defeito olhando de banda.

      — Estou encantado — declarou, conservando a mão de Catherine na sua como se fosse um privilégio — estou encantado de ver que é dos nossos, Miss Lorimer! Espero que façamos uma boa travessia. Se posso ser-lhe útil basta uma palavra.

      — Então, peço-lhe que ponha isto no seu cofre — respondeu Catherine, entregando-lhe a miniatura.

      O comissário a recebeu com a devida deferência.

      — Oh! sim, já ouvi falar, Miss Lorimer, pode ficar inteiramente tranqüila, que ficará bem guardada. — Esfregando as mãos, transpôs a porta de costas. — Permita-me que mande lhe levar frutas. Nada mais agradável do que algumas frutas num camarote!

      Esta era uma das fórmulas consagradas do Sr. Pym, mas ele a reservava para os seus passageiros preferidos. De fato, assim que o comissário partiu, apareceu um moço com uma bandeja cheia de magníficas frutas de estufa.

      Nancy exclamou:

      — Querida! Como está! Que recepção principesca! É um verdadeiro conto de fadas!

      — Não sei — replicou Catherine com um ar um pouco distante. — Não me preocupo com isso, e todos aqui sabem que não sou nenhuma princesa.

      — Não há nada mais agradável do que algumas frutas num camarote — continuou Nancy, imitando de modo impecável o digno comissário de bordo. — E a senhora trouxe sua sobrinha! Espero que façamos uma boa travessia. Com frutas no camarote! — Torcia-se toda de tanto rir, mas havia em seu riso uma certa dissonância desagradável. — O velho é grotesco, não acha, Catherine?

      Catherine recusou associar-se a esse acesso de alacridade:

      — Não gosto, Nancy — respondeu, tranqüilamente — que fale assim. Esse velho grotesco é um dos meus melhores amigos. Desde minha primeira viagem, tem me prestado uma infinidade de serviços. Eu não era, nesse tempo, mais velha do que você hoje, mas era muito nervosa e tímida para que me animasse a dirigir a palavra a qualquer pessoa. Ele teve para comigo cuidados de mãe, apresentou-me a outros passageiros. Por mais que o ache ridículo, há muitas pessoas, muito conhecidas, que se sentem felizes de chamar o Sr. Pym seu amigo. É um grande tipo!

      — Catherine querida — exclamou Nancy, cuja expressão galhofeira cedera lugar a uma cara de perfeita contrição — não me compreendeu! Eu não sabia que o estimava tanto, eu também estou muito comovida com a amabilidade dele.

      Catherine voltou a rir.

      — Está bem. Eu sabia que não fazia por maldade; desde que se sente bem aqui, estou contente.

      Alguns minutos após elas subiram ao convés, onde Upton e Madden as esperavam. A ameaça da separação estava já no ar. Um moço deu o primeiro golpe de gongo, e os que não iam viajar começaram a deixar o navio.

      — Tenho de ir — disse Charley com um profundo suspiro. — Prometa-me, Catherine, cuidar-se, e etc. etc...

      — Naturalmente, Charley.

      Como acontecia em cada separação, ele parecia tão sucumbido de tristeza que Catherine sentiu um aperto no coração. Charley dedicava-lhe uma afeição tão fiel, tão devotada e tão perdidamente sentimental, que cada vez ela se sentia comovida quase a ponto de sentir amor por ele.

      — Palavra! — prosseguiu ele. — Cada vez que parte, fico num estado deplorável. Se me abandona por muito tempo, e se eu não vou à sua procura para trazê-la com minhas próprias mãos, quero ser enforcado!

      A sirena deu um longo mugido, e logo uma ligeira vibração abalou a enorme carcaça do navio. O momento era emocionante. Upton despediu-se de Nancy e de Madden, apertou a mão de Catherine entre as suas e, desviando a vista, desceu a escada correndo. Uma tal tristeza emanava da sua silhueta que Catherine ficou toda perturbada. Enquanto Nancy e Madden, apoiando-se à balaustrada, acompanhavam com os olhos as operações da partida, ela se afastou e subiu para o convés de cima.

      Banhada na leve bruma do mar, pôs-se a caminhar de um lado para outro, num recanto solitário, e bruscamente sentiu-se engolfada num abismo de melancolia. Puxado por dois rebocadores, o navio embicou para o poente. Logo a vibração se acentuou e foi se acelerando. A proa cortava com velocidade crescente as ondas dum escuro pálido, gaivotas turbilhonavam por cima da esteira soltando seus gritos dissonantes, e pouco a pouco a terra firme ia se apagando no horizonte.

      Eram instantes estranhamente solenes e emocionantes aqueles, e se bem que Catherine resistisse à tentação de analisar suas impressões, experimentava uma curiosa sensação de incerteza. A vida lhe aparecia sob uma nova luz, com contornos confusos e vagos. Um rumor de passos que se aproximavam cortou suas reflexões desencantadas. Voltando-se, ela viu Madden. No mesmo instante suas dúvidas se desvaneceram, e essa presença amiga lhe causou um forte prazer.

      — Nancy me mandou para cá. Ela foi ao camarote descansar um pouco.

      Catherine respondeu com um aceno de cabeça, e, durante algum tempo, ficaram os dois passeando sem dizer palavra.

      — Não é bom pôr o seu casaco? — perguntou ele enfim. — Está frio.

      — Não. Estou bem.

      Calaram-se de novo por algum tempo, quando de repente Madden se pôs a falar, mas como se tivesse dificuldade em entrar no assunto:

      — Esse Upton é um belo rapaz. À primeira vista parece leviano e descuidado, mas tem o coração no lugar próprio. — Vacilou um instante. — E depois está terrivelmente apaixonado por você...

      Catherine não respondeu.

      — É uma coisa que não me sai da cabeça — continuou Madden, num tom um pouco constrangido e mesmo perturbado. — Meto-me às vezes em coisas que não são de minha conta... Apesar de eu só a haver encontrado há pouco tempo, parece que sempre nos conhecemos. Não posso evitar isso... É mais forte do que eu.

      Interrompeu-se. Ambos continuaram em silêncio. Catherine olhou-o de esguelha: parecia sentir-se desamparado, e, no entanto, resoluto. Então, sorridente, ela falou:

      — E daí?

      — Bem. Vou dizer o que penso. Aprendi nestes últimos dias a conhecê-la, e digo sempre a mim mesmo que nunca teve da vida tudo que podia receber dela. Você dá sempre, dá, criatura, ninguém a vê aceitar ou tomar nada. Sinto-me tão feliz com a Nancy que tenho um imenso desejo de vê-la feliz também. Mas não conseguirá me fazer afastar a idéia de que tem algum segredo no coração. Desculpe-me se digo bobagens. O que eu queria dizer era... Por que não se casa com Charley e não deixa que ele tome conta de você para toda a vida?

      Ela tardou a responder. Se qualquer outro lhe houvesse falado nesses termos, ela ficaria gravemente ofendida; mas não queria mal a Madden. Estava, ao mesmo tempo, surpreendida e agradavelmente emocionada. Decerto, era ridículo da parte de Madden fazer, assim, o tio velho, mas sua evidente solicitude e a afeição que parecia ter por ela a comoviam profundamente.

      — Não — falou por fim — não se trata de o pobre Charley tomar conta de mim.

      — Por que não? Ele é bastante rico!

      — E é isto o que conta na vida?

      — Penso que isto conta.

      Ela sacudiu a cabeça.

      — Não alteraria nada. Como vê, sou de todo antiquada, incuravelmente romântica, e desesperantemente teimosa. Se estivesse disposta a casar-me, o dinheiro não teria nenhum papel nisto. Por infelicidade, não tenho amor por Charley.

      De novo o silêncio reinou. Esta explicação não parecia satisfazer inteiramente a Madden.

      — Santo Deus! — falou pausadamente, com uma ruga profunda vincando-lhe a fronte. — Então, não há nada a fazer?

      — Nada — respondeu tranqüilamente Catherine.

      Desceram pela ponte prestando ouvido às rajadas do vento nas superestruturas do navio e ao ruído das vagas que batiam contra o costado. Quando o crepúsculo chegou, e o barco se constelou de luzes, ela se despediu de Madden e foi para o camarote.

    

      O jantar correu rápido e sem protocolo, porque o capitão Ireland não aparecia na primeira noite, e nenhum dos passageiros habituados à travessia pensou em se vestir a rigor. Mas, a julgar pelos vizinhos de mesa, a viagem prometia ser agradável. Lá estavam Jay Freench, o célebre jornalista internacional, Edward Brett, um arquiteto de reputação mundial e Lady Blandwell, que empreendia sua primeira turnê de conferências na América.

      No dia seguinte, a vida de bordo se organizou num quadro restrito mas divertido. Atendendo às exortações do Sr. Pym, o mar permanecia calmo. Catherine retomou seus hábitos de passageira, como se nunca tivesse vivido de outra maneira. De manhã eram os exercícios de ginástica, e em seguida o banho na bela bacia de mármore pomposamente chamada de piscina olímpica. Nancy, que tinha certa tendência para a preguiça, ficaria de bom grado na cama se Catherine, em quem as viagens punham o diabo no corpo, não a obrigasse a jogar a bola, a fazer exercício na máquina de remar e montar no cavalo elétrico.

      Depois do lanche, as duas se enrolavam em cobertores, estendiam-se nas espreguiçadeiras, liam, contemplavam o desfilar das nuvens. A pedido de Catherine tomavam muitas vezes o chá no convés de cima, de preferência a irem fechar-se no suntuoso jardim de inverno onde a orquestra praguejava. Um coquetel antes do jantar e uma sessão de cinema completavam esse programa cotidiano.

      A grande preocupação de Catherine era que a viagem deixasse uma recordação agradável a Nancy. Sua primeira travessia fora para ela um encantamento; conservara dessa viagem uma impressão inapagável. Esforçava-se, assim, por despertar o mesmo estado de espírito e o mesmo entusiasmo em Nancy. Mas cada dia tinha de defender-se contra um ligeiro sentimento de desilusão. A garota não era facilmente acessível ao entusiasmo, e não estava em sua natureza entregar-se sem reservas à admiração. Muito jovem ainda para já estar blasée [calejada], era-lhe inconcebível que ela pudesse aborrecer-se; mas diante da vida guardava uma atitude fria e distante.

      Pela primeira vez, Catherine começou a compreender que, se bem que elas tivessem apenas 10 anos de diferença na idade, estavam separadas em suas concepções da vida por um verdadeiro abismo, e pertenciam a duas gerações diversas. Procurou, então, aproximar-se da sobrinha. Às vezes se perguntava se não estaria com a menina e com Madden mais assiduamente do que eles desejariam. Tratou de deixá-los mais tempo a sós, mas era constantemente chamada a restabelecer a trindade do seu pequeno grupo, que freqüentemente se fazia o centro de uma sociedade. Nancy, com efeito, gostava de ver muita gente em torno de si.

      Mas não se equivocaria em suas suposições. Superficialmente, Nancy ostentava todos os defeitos da geração nova; contudo, tinha também sua vida interior. O fracasso de Manchester deixara-lhe uma ferida sempre aberta, e secretamente ela aspirava refazer-se dessa derrota com um sucesso ruidoso. Se bem que nunca falasse do assunto, só pensava na futura temporada de Nova York, e pensava constantemente no seu papel. Costumava retirar-se inopinadamente, em geral à noite, para estudá-lo. Como era muito independente, ninguém se preocupava com essas vigílias solitárias; mas Nancy levava a sério a tarefa.

      Aconteceu assim que, numa quinta-feira à noite, Nancy se fechou às 9 horas no camarote, deixando a Madden o cuidado de acompanhar Catherine ao cinema. Era uma noite sombria e tempestuosa.

      Os filmes, uma grosseira farsa e alguns aspectos de viagens, eram insípidos. Além disso, o navio jogava desagradavelmente, e assim a sessão nada tinha de atraente. Entretanto, Catherine poucas vezes sentira tanto prazer no cinema. Sentada na escuridão, acompanhava distraída as imagens que desfilavam na tela. Experimentava um grande bem-estar em sentir a presença de Madden ao seu lado e a marcha agitada do navio no mar grosso. Súbito, Madden virou-se com o rosto iluminado por um sorriso que ela bem conhecia.

      — Parece-me que o tempo piora. Como se sente?

      — Nunca me senti tão bem — respondeu ela, gracejando.

      — Quer descer?

      — Se você não for também, não.

      Ela seguia de novo as peripécias do filme, quando um pensamento súbito lhe passou pela cabeça. Por que estava achando prazer em ficar ali sentada e suportar aquele espetáculo medíocre, com todos os incômodos da tempestade? Num sobressalto de contrariedade, reconheceu que esse prazer provinha da presença de Madden ao seu lado; e a última coisa que ela poderia desejar era que esse estranho bem-estar terminasse. Seu sorriso apagou-se. Em vão tentou refletir, mas não teve mais tempo. Bruscamente uma terrível claridade se fez no seu espírito.

      Madden estendera a mão para segurar a cadeira de Catherine, que se empenhava com os assentos contíguos num verdadeiro jogo de empurra. No mesmo instante o navio adernou pesadamente e atirou a moça contra ele. Durante alguns segundos, enquanto a marcha do navio se normalizava, Madden a segurou fortemente para impedi-la de cair. De um golpe, tudo se baralhou aos olhos de Catherine: o navio, o mar, o mundo inteiro. Quando o barco readquiriu o equilíbrio, Madden a reinstalou cuidadosamente no seu lugar.

      — Que recompensa terei? — perguntou ele. — A medalha do Rei Alberto para os atos de salvamento em pleno mar?

      Catherine não respondeu. Dependesse disso sua própria vida, ela não poderia proferir uma sílaba. Pálida até os lábios, os membros paralisados, permanecia inerte, ferida pela terrível revelação que se abatera sobre ela como um raio. Amava Madden; amava-o com toda a sua alma. Tudo agora se fazia claro, de uma clareza inexorável: a alegria que experimentava na companhia dele, os votos que fazia por sua felicidade; aquela secreta esperança de obter dele um olhar ou um sorriso... Tudo se tornara claro, claro e aterrorizante como uma cena que se desenrola na escuridão e que é iluminada de repente pela chama ofuscante de um clarão imprevisto. Uma vertigem mortal a dominou. Por um instante acreditou que ia desmaiar. Mas, cravando os dedos no braço da poltrona, dominou a própria fraqueza. Continuava ali sem um movimento, toda perturbada por grande agitação interior, cega e ferida de estupor.

      Lentamente o filme chegou ao fim. A luz se reacendeu, e os espectadores que haviam resistido trocaram pequenos sinais de felicitações. Com a cabeça abaixada, Catherine se dirigiu para a saída, acompanhada por Madden. Não havia quase ninguém no convés. Nessa calma e nesse silêncio, Catherine se sentiu ainda mais desgraçada. Não podia encarar o companheiro. Sabia que seus olhos trairiam a mudez de sua alma; e no entanto se sentia no torturante dever de ocultar a luta que se travava no seu íntimo.

      — Creio que vou descer — disse por fim.

      Como conseguira reaver sua voz natural, nem ela mesma o soube.

      — Já? Mas você sabe que Nancy nos pediu que a deixássemos só. Vamos dar um pequeno passeio pelo convés.

      O tom em que Madden falava era perfeitamente natural. Ela não podia saber se o companheiro adivinhava ou não o terrível estado em que se via mergulhada.

      — Não. Prefiro descer. Já está tarde.

      — Que importa? Nós hoje quase não fizemos exercício. Você gosta tanto de respirar a brisa do mar alto.

      Com um esforço indizível, ela se impôs olhá-lo. A amistosa solicitude que leu nos olhos dele fez-lhe mal.

      — Não. Vá sozinho. Esses filmes estúpidos me cansaram.

      — Bem, se prefere... — disse Madden com um ar reticente. — Então, boa noite!

      — Boa noite!

      Estas palavras, pelo menos, ela pôde pronunciar sem embaraço, e forçou os lábios a esboçar um sorriso furtivo. Deu as costas e correu para a escada, deixando Madden no convés.

      Chegando ao pavimento inferior, parou e levou a mão à garganta. O palpitar do seu coração a paralisava. Antes de ir ao encontro da sobrinha, precisava refazer-se, coordenar os pensamentos, compor uma atitude. Ao pensar em Nancy, aumentou seu sofrimento, e a situação lhe pareceu ainda mais medonha. Vencendo o corredor às carreiras, deslizou pela escotilha para o convés da proa. Na escuridão tropeçou em cordoalhas e utensílios de bordo, mas não lhes deu atenção. Nenhuma dor física podia comparar-se ao sofrimento de seu coração. Chegou afinal à proa e lá, agarrada ao corrimão, com todo o corpo açoitado pelo vento, envolta na noite profunda e no poderoso tumulto das ondas, sua alma mergulhou num tal abismo de dor que ela rebentou em soluços.

     

      Na manhã do dia seguinte, o vento desaparecera. O céu estava claro e o mar calmo. Quando Nancy se encontrou com o noivo no convés às 10 horas, Catherine não estava com ela.

      — Escute — gritou Madden — onde está a nossa terceira associada?

      — Associada honorária, por esta manhã — respondeu ela, jovial. — Está com enxaqueca.

      Madden fez um ar de espanto.

      — E no entanto, não faz muito tempo que ela disse nunca ter tido dor de cabeça em viagem.

      — Talvez tenha se esquecido de bater na madeira — disse Nancy rindo. — Mas fique quieto, querido. Sua pequena aqui está, saudável e bem disposta.

      — Por que não foi fazer exercício?

      Ela fez uma careta. Sua seriedade da véspera cedera lugar à petulância habitual. Na frescura daquela bela manhã, sentia-se reviver.

      — Não discuta comigo, querido — interrompeu alegremente — não discuta antes do nosso casamento. Não me amole, e dê-me um cigarro.

      — Como não fuma dos meus, vou comprar da sua marca. Desceram pelo elevador até o hall principal, onde Madden comprou um pacote dos cigarros preferidos da noiva. Encarando Nancy, ele teve de confessar a si mesmo que ela nunca estivera tão encantadora. Esbelta, viva, com aqueles modos de rapaz, trazia um casaco de pele de camelo, muito justo ao corpo, e esta visão cortava a respiração do noivo. Atirava o cabelo para trás e estava pondo batom nos lábios.

      — Gosta de mim, Nancy? — perguntou ele a meia voz.

      Ela suspendeu a operação. Uma onda inesperada de ternura a envolveu, e o seu ar de estouvamento a abandonou. Sua respiração se fez difícil, e de súbito ela teve a medida de como Madden lhe era caro, de tudo que o noivo representava para ela. Olhando-o com ar sério, através dos seus longos cílios, respondeu simplesmente:

      — De todo o coração.

      Calaram-se ambos. O rosto de Madden tornou-se alegre, e ele tomou-lhe a mão. Por um segundo seus dedos se acariciaram; depois ela fez um risozinho de embaraço. Havia encontrado de novo seu equilíbrio.

      — Não se esqueça de que estamos no meio do Atlântico — sussurrou, dando-lhe o braço.

      Durante um minuto consultaram os avisos de bordo, e no momento em que iam retornar à escada o olhar de Madden caiu sobre o compartimento de venda de flores. Veio-lhe uma inspiração.

      — De passagem, poderíamos mandar um buquezinho a Catherine. Ela gostaria.

      — Boa idéia! Compre-lhe cravos; ela gosta. E olhe estas orquídeas roxas. Não são maravilhosas? Eu gostaria de ter uma.

      Madden riu, pediu os cravos para Catherine, e Nancy teve sua orquídea.

      Catherine não apareceu também no almoço, e só às 2 horas foi que Nancy e Madden deram com ela num canto do convés de cima. Parecia muito contente de estar ali, estendida na espreguiçadeira, bem enrolada num cobertor; e a bandeja ao lado indicava que pelo menos tomara alguma coisa. Nancy gritou:

      — Olá! Como vai a cabeça?

      — Já está bem melhor.

      Confortavelmente instalada, Catherine os recebeu rindo. Depois, virando-se para Nancy, disse:

      — Pensei que estavam jogando pingue-pongue.

      — Exatamente. Este torneio é um verdadeiro suplício. E você conhece a energia impiedosa de Chris.

      Após ligeira hesitação, Madden interrompeu-a:

      — Estávamos preocupados com você, Catherine. Está melhor, de verdade?

      — Muito melhor. Eu me cansei muito nestes últimos tempos. Preciso refazer-me até o fim da viagem.

      Ele não estava completamente tranqüilo.

      — Ficou sem graça não a vermos à mesa. Nem no exercício, hoje de manhã. Está em grande falta conosco.

      — Lamento.

      Madden encarou-a, como se o tom de indiferença de suas respostas o afligisse. Nancy afastou-se, cantarolando em direção à mesa de pingue-pongue, porém ele não parecia disposto a abandonar Catherine.

      — Recebeu nossos cravos?

      — Recebi, Chris. — Ela se deteve. — Mas, peço-lhe, não me mande mais flores. Sério, não precisa.

      Ele pareceu mais penalizado ainda. Hesitou um instante, e depois, cedendo a um impulso repentino, disse:

      — Será que a contrariei em alguma coisa?

      Ela lhe examinou longamente a fisionomia, e depois desviou os olhos:

      — Será indispensável que briguemos esta tarde? — murmurou, afinal, num tom amistoso. — Claro que não me fez nada. Apenas preciso estar um pouco só.

      Madden corou, e uma expressão de sofrimento passou em seu rosto. Depois olhou-a como de costume:

      — Desculpe-me, Catherine. Eu me esquecia de que estava com dor de cabeça. Desculpe-me por ter incomodado.

      Afastou-se em seguida, e foi ao encontro de Nancy.

      Catherine estendeu-se na cadeira, com o livro nos joelhos; parecia absorta na contemplação do mar e do céu. Ninguém adivinharia seu tormento, nem o amargo e intolerável fardo que pesava sobre seu coração. Parecia-lhe haver mergulhado um punhal no coração. O único pequenino vislumbre de consolo que lhe restava era a sensação de haver começado a pôr em prática a resolução que tomara durante aquela cruel noite de insônia. Devia manter sua integridade pessoal a qualquer preço; e preferiria morrer a prejudicar no mínimo que fosse a felicidade de Nancy.

      Os dois dias seguintes passaram muito rápido. O navio aproximava-se celeremente de Nova York. A travessia fora excepcionalmente favorável, e esperava-se, a bordo, encontrar o navio-farol de Nantucket na sexta-feira de manhã. Sentindo chegar o fim da viagem, os passageiros manifestavam crescente sociabilidade. Mas Catherine, a pretexto de que precisava de repouso, mantinha-se em amável reserva, se bem que se visse às vezes na obrigação de integrar-se na vida de bordo. Entretanto, geralmente conseguia isolar-se. Em várias ocasiões sentiu pousar sobre ela o olhar furtivo e inquieto de Madden, mas poupou-se o sofrimento de encontrar-se a sós com ele, até o grande baile tradicional da última noite de viagem.

      Essa festa, com seu inevitável acompanhamento de champanha, confetes, gorros de papel e outras futilidades de carnaval, afigurava-se-lhe a mais dura prova a que sua resistência poderia ser submetida. Era impossível escapar-lhe. No começo, as coisas não lhe correram mal, porque pôde entreter-se com o comandante e com Lady Blandwell e fingir um profundo interesse pelas banalidades náuticas de um, e as pretensiosas tagarelices da outra. Mas quando a orquestra começou a tocar, e os projetores lançaram suas luzes multicores através das colunas do salão, e os passageiros entraram a dançar, seus nervos ficaram extremamente tensos. Ficar sentada no seu canto, sorrir, opor a toda aquela alegre agitação uma cara amável e tranqüila era mais do que ela podia suportar. Por momentos, pensou que ia trair-se; esta sensação a fazia perder a segurança e podia levá-la a cometer uma falta.

      O velho comandante convidou-a a dançar; aceitou, alvoroçada, para fugir àquela inércia. Depois de alguns giros pelo salão, ele a reconduziu ao seu lugar. Neste instante o olhar de Catherine se encontrou com o de Madden. Até então, ele só havia dançado com a noiva; mas veio tirar Catherine.

      Por um segundo, que lhe pareceu um ano, ela ficou parada olhando para a mesa, e o movimento de suas artérias lhe dava uma vertigem. Tentou esquivar-se:

      — Eu danço mal.

      — Dança muito bem; acabo de verificar.

      Com um cigarro entre os dedos de unhas pintadas de vermelho, Nancy colocou-se entre os dois. Trajava um vestido de seda negra que lhe realçava o brilho dourado dos cabelos, e sapatos prateados, de salto alto. Parecia assim mais encantadora do que nunca, e duma juventude inverossímil. Com um sorriso de encorajamento, exclamou:

      — Vamos, Catherine, dá-lhe esse prazer, por mim!

      Não havia saída. Catherine levantou-se e deu alguns passos ao lado de Madden; então ele a envolveu com o braço, e se bem que não fosse um ás, acompanhava bem o ritmo da música.

      — Por que não queria dançar comigo? — perguntou, afinal, com uma voz inteiramente natural e calma.

      Agora que qualquer retirada estava cortada por aqueles braços que a enlaçavam, ela sentia as batidas do coração, que lhe ressoavam nas têmporas como golpes de martelo. Mordendo os lábios, apelou para toda a sua energia a fim de esboçar um pálido sorriso.

      — Estou muito velha para essas coisas...

      — Que bobagem! — replicou ele com o seu riso tranqüilo. — Parece-me, ao contrário, que agora é que você começa a viver.

      — Oh! Talvez seja também porque estou pensando era outras coisas, no desembarque amanhã, nos meus negócios, no futuro.

      Calaram-se por um momento. A música os embalava com o seu ritmo. Catherine sentia o olhar de Madden pesar sobre ela.

      — Então, meus projetos não lhe interessam mais? — perguntou pausadamente.

      — Como não? — Ela procurava conservar inflexões banais na voz. — Vai ficar algum tempo em Nova York?

      — Sim. Eu planejava passar lá alguns dias com a Nancy e com você, e "ciceroneá-las" na cidade. Esperava que depois vocês fossem comigo a Vermont para conhecer minha mãe, e alguns amigos de Graysville.

      Catherine fez um sinal de contrariedade.

      — Creio que não vou poder ir.

      — Mas eu visitei sua mãe — replicou Madden com um sorriso eloqüente e persuasivo.

      Fez-se silêncio. Ela havia compreendido.

      — Bem — disse afinal, desamparada — tratarei de arranjar as coisas.

      — Como você é amável! Precisa conhecer a paisagem de Vermont. Eu achava ótimo, quando passava lá minhas férias, em criança, e é por isto que hoje ainda gosto mais dela.

      Fez uma pausa, e, depois, continuou de súbito, falando rápido mas sempre no mesmo tom:

      — Que será que não está correndo bem, entre nós, Catherine? Era tão bonito, e depois tudo mudou. Você me evita; os outros nada percebem, mas eu noto. Tudo que posso dizer-lhe, Catherine, é isto: Você é uma criatura maravilhosa! Sua amizade tem para mim um valor infinito, não apenas porque vou ser o marido de Nancy, mas por mim mesmo. Não podemos voltar a viver em boa harmonia?

      Apesar de todo o domínio que tinha sobre si mesma, Catherine sentiu um calafrio de terror mortal percorrer-lhe o corpo. Ela, que procurara fugir de Madden a qualquer preço, por amor de Nancy! De súbito constatava que essa completa mudança de atitude era uma flagrante inabilidade. Não sabia mais a que santo agarrar-se e experimentava um vago sentimento de consternação.

      — Está redondamente enganado — balbuciou — Já lhe disse que tenho estado preocupada estes últimos dias, mas isto nada tem que ver com a nossa amizade.

      — Quer dizer que nada notou por você mesma?

      Ela abanou a cabeça.

      — Ah! É assim? — Madden calou-se. Depois teve um sorriso meio embaraçado. — Então, a verdade é que nada há a fazer!

      A música parou, e eles voltaram para a mesa. Alguém havia enchido a taça de Catherine. Ela a esvaziou de um trago, e o champanhe que borbulhava em suas veias a reanimou um pouco. Quando olhou em torno, viu Madden que novamente dançava com a noiva, e o médico de bordo que se aproximava da mesa para tirá-la. Em seguida dançou com o Sr. Pym, que nunca deixava de fazer um giro com ela pela sala, e depois, mais uma vez, com o comandante. Por fim, aproveitou o fato de algumas pessoas abandonarem o salão para se retirar também e recolher-se ao camarote.

      Ler era-lhe impossível, e não podia pensar em dormir. Deitou-se e ficou a lutar interminavelmente com os pensamentos os mais diversos que a assaltavam. Virava-se para um e outro lado, e só quase de manhã foi que caiu num sono profundo.

      Quando a camareira a despertou, o navio já entrava no porto, e diante dela desfilava, lento, o panorama de Nova York. Esse espetáculo e a perspectiva de chegar enfim ao final da viagem, de tomar pé em terra firme e poder em breve escapar, restituíram a Catherine um pouco de sua segurança. Vestindo-se rápido, ela subiu para o convés. Estava, sobretudo, decidida a nada deixar perceber, a não ceder e manter sua decisão até o fim.

      No convés superior, avistou Nancy e Chris. Contemplavam a silhueta duramente recortada da cidade, que se desenhava no céu como uma Acrópole moderna. Tendo reconquistado sua confiança em si mesma, podia ostentar uma postura tranqüila.

      Depois de um vago cumprimento, dirigido tanto à sobrinha quanto a Madden, ela falou:

      — Não é admirável? Sinto-me feliz de que Nancy tenha a oportunidade de ver Nova York sob um aspecto tão favorável.

      — Sim — respondeu Nancy — parece uma cidade magnífica. — Seu olhar refletia um interesse desacostumado. — Ver a América pela primeira vez é um acontecimento que conta na vida de uma pessoa.

      — Poderia ser confundida com Cristóvão Colombo — sussurrou Catherine.

      — Exatamente — replicou Nancy. E semicerrando os olhos: — Apenas, desta vez é a América que vai me descobrir!

      O Sr. Pym aproximou-se, mais respeitável do que nunca. Voltando-se para Catherine, murmurou com ar misterioso:

      — Os repórteres estão a bordo, Miss Lorimer. Quer, como é de praxe, ficar alguns instantes à disposição deles?

      Catherine compreendeu a intenção amistosa de Pym. Ele queria dar-lhe a oportunidade de explorar com fim comercial a nova da sua chegada com a miniatura. Ninguém tinha mais nítida noção da importância da publicidade do que o silencioso Sr. Pym. Virando-se, ela avistou o grupo de repórteres que se aproximava lentamente. De colarinho aberto e chapéu desabado, eram na sua maioria rapazes de ar altivo e indiscreto.

      — Morning, Miss Lorimer — fez o que vinha na frente, tocando na aba do chapéu.

      Catherine reconheceu Kelly, representante de um dos principais vespertinos.

      — Alegra-me vê-la de novo. Como vai? Bonita atualidade, esse velho quadrinho antigo que traz do outro lado do mar, não?

      Catherine concordou, e se preparava a descrever a miniatura sob as cores mais atraentes quando seus olhos caíram sobre Nancy, que observava a cena com uma viva curiosidade. Um sentimento a empolgou, afastando de um golpe todas as suas preocupações pessoais. Sem pensar mais, falou:

      — Touxe algo mais interessante. A miniaturazinha não tem tanta importância, ou pelo menos, pode esperar. Mas quero apresentar-lhes minha sobrinha Nancy Sherwood. Vai trabalhar na nova temporada de Bertram. Se querem tirar-lhe a fotografia de antemão, aproveitem a oportunidade, porque ela vai dar o que falar!

      Instantaneamente nove pares de olhos se desviaram de Catherine para se colarem em Nancy e nove abas de chapéus fizeram um pequeno salto no ar. Houve um breve silêncio.

      — Escute, Miss Lorimer — falou depois Kelly com um ar compenetrado — parece-me que a senhora tem razão. Que acham vocês, rapazes?

      Enquanto Catherine se afastava, todos os obturadores estalaram e depois uma saraivada de perguntas caiu sobre Nancy. Ela a enfrentou sem pertanejar e respondeu habilmente a tudo, distribuindo os sorrisos mais amáveis.

      Quando terminou a entrevista, Nancy exclamou, esfalfada:

      — Muito obrigada, Catherine. Era justamente o novo começo que eu desejava.

      Apoiado ao corrimão, Madden seguira de longe a cena. Aproximou-se e, pela primeira vez naquele dia, dirigiu a palavra a Catherine:

      — Nancy prometeu almoçar comigo no Waldorf. Não quer ir conosco?

      Catherine esboçou um gesto de pena.

      — Tenho o que fazer — respondeu, agradecendo o convite com um sorriso intencionalmente convencional — e nos primeiros dias estarei muito absorvida.

      — Mas não se esquecerá de Vermont, não é?

      — Não, decerto. Não esquecerei.

      Deixaram o tombadilho juntos e, quando Catherine se despediu de todos os conhecidos, as formalidades de polícia foram rapidamente atendidas. Fosse de propósito ou por acaso, perdeu de vista Nancy e Madden. Uma vez na rua, chamou um táxi e foi sozinha para o hotel.

      

      Catherine mergulhou de cabeça baixa no trabalho, porque via nisto o único remédio para o atroz sofrimento que lhe dilacerava o coração, sem lhe dar tréguas.

      Logo que chegou ao Tower Carlton, onde costumava hospedar-se, telefonou a Breuget, seu correspondente em Nova York. Ele não fora recebê-la no cais por determinação dela mesma, mas esperava o chamado e correu logo ao hotel. Catherine mal tivera tempo para se instalar no pequeno quarto verde e dourado que tantas vezes já a acolhera, de lançar um olhar pela janela que da altura de 30 andares dominava o gigantesco desfile da Quinta Avenida, de cumprimentar o gerente do hotel, Sr. Lenz, que a cumulara de flores, de frutas e de manifestações de júbilo e confirmara que um segundo quarto de dormir, contíguo ao dela, estava reservado para Miss Sherwood, e já Breuget se precipitava com as mãos estendidas, a barbicha em bico à francesa, fremindo de contentamento.

      George Breuget, parisiense, era, de profissão, especialista em objetos de arte e relógios do século XVIII. Vindo para Nova York tentar sua oportunidade, falira, e teria literalmente morrido de fome se Catherine não o socorresse.

      Beijando-lhe a mão, o francês lhe fez uma série variada de cumprimentos, cada qual mais galante, instalou-se numa poltrona e apoiou sobre os lábios o castão da sua célebre bengala de cana, como se quisesse ele próprio pôr um termo à sua inesgotável loquacidade, e ficou à espera das perguntas e das ordens da moça.

      — É verdade, Breuget — disse ela, virando-se para trás e olhando-o nos olhos. — Trouxe a miniatura.

      — Perfeito, Miss Lorimer.

      — Entrou em contato com Brandt, como lhe pedi?

      — Está tudo bem encaminhado. Brandt é esperado em Nova York dentro de 10 dias — Breuget puxava pelo "r" com ingênua suficiência. — Quarta-feira às 15 horas ele virá ao meu escritório para ver a miniatura. E... para a comprar, Miss Lorimer, a senhora verá. É o que lhe digo. Confie em mim.

      Catherine cerrou os lábios.

      — Que você esteja com a razão! De qualquer modo, agiu bem. Nesse meio tempo, vou expor a miniatura. Toda Nova York deve admirá-la, habilmente realçada num estojo de veludo verde. É preciso também que os marchands a vejam; todos eles, Ascher e os outros. É necessário que se fale muito dela; isto nos ajudará. Não tenho o menor desejo de que o nosso amigo Brandt acredite poder impor-nos o seu preço. O preço somos nós que o fazemos. Não é, Breuget?

      — Naturalmente, Miss Lorimer. Evidentemente, as circunstâncias atuais são desfavoráveis.

      — Desfavoráveis? São francamente más. Mas escute, meu velho amigo, vou dar-lhe um rude golpe. Se não conseguirmos vender essa miniatura, 100 mil dólares sonantes, nós dois teremos que procurar outro meio de vida.

      Breuget deu de ombros, com otimismo, como para tranqüilizá-la.

      — Conseguiremos, Miss Lorimer, e em seguida galgaremos a encosta. Estou convencido de que os negócios vão se animar. Se conseguirmos atravessar estas próximas semanas, estaremos salvos.

      Catherine fez um sinal de aprovação, e seu olhar se perdeu de novo no vazio.

      — Sim, — murmurou — mais algumas semanas e depois tudo andará melhor.

      Fez um esforço para coordenar as idéias, levantou-se e pôs o chapéu.

      — Ao trabalho, vamos expor o Holbein. Mas primeiro olhe-o.

      Breuget pegou a miniatura e pôs-se a estudá-la com um ar diferente de êxtase.

      — Maravilhoso, maravilhoso! — exclamou por fim.

      De pé, ao lado dele, Catherine contemplava também o retrato com novos olhos, e sentia-se invadida por um sentimento de piedade que nunca antes experimentara. Aquela fisionomia agora lhe parecia viva. Lia nela as suas próprias angústias e as próprias aspirações. Naqueles traços que todos diziam parecidos com os dela, vislumbrava uma tristeza muito próxima da sua, destino de solidão e de melancolia semelhante àquele de que ela própria estava ameaçada. Parecia-lhe que sua alma escapava misteriosamente para ir fundir-se com a de Lucie de Quercy. Experimentava no fundo do seu coração uma impressão estranha, a impressão de retroceder no espaço e no tempo; e em meio ao tumulto da vida moderna, parecia-lhe perceber o eco longínquo de épocas passadas.

      — É curioso, Miss Lorimer, este retrato parece com a senhora de maneira surpreendente.

      Catherine fez um gesto de enérgica discordância sob o qual procurava ocultar o efeito que essas palavras lhe causavam. Com uma voz ligeiramente rouca, respondeu:

      — O primeiro que agora me disser isto, atiro-lhe uma cadeira à cabeça.

      Depois, fazendo meia volta, encaminhou-se para a porta.

      Os dois desceram a Avenida em direção ao escritório, numa pequena loja apertada entre um atelier de alta costura e uma elegante casa de flores. No caminho, e como já passasse de 1 hora, Catherine induziu Breuget a ir almoçar com ela. Foram a um pequeno bar, onde comeram sanduíches com café e bolos.

      Chegando ao escritório ela se entregou prazerosamente ao trabalho de dispor a miniatura na pequena vitrina com moldura de bronze sobre um fundo de veludo de Gênova cor de borra de vinho. Enquanto se entregava a esse pequeno trabalho de decoração, disse consigo mesma que aí estava toda a razão de ser de sua existência.

      As francas felicitações de Ascher, que não tardou em aparecer, a alegraram muito. De todos os marchands de Nova York era sem dúvida o mais competente, e Catherine notou que ele aprovava inteiramente a aquisição. Mais tarde, porém, quando retomou o caminho do hotel, sentiu-se de novo deprimida e muito fatigada.

      No hotel, Nancy tomara posse do seu quarto à sua maneira habitual, isto é, espalhara suas coisas por todos os cantos e se estendera no divã, tendo ao lado a lâmpada acesa e o chá preparado. Esse cenário familiar lhe restituiu um pouco do seu bom humor. Tirou os sapatos, enfiou os chinelos e em dois tempos trocou o vestido por um robe de chambre [roupão] confortável e macio, cinzento-rola. Então sentou-se perto de Nancy e serviu o chá. Descobriu, com um sorriso, que Nancy desdenhara o chá do hotel e se servira da provisão que ela trouxera de Londres.

      — Como passou a noite? Bem?

      — Um verdadeiro encanto, querida — respondeu Nancy, abandonando o estudo do papel e encarando Catherine com seus grandes olhos brilhantes. — Um jantar magnífico com ostras excelentes, Chris chama-as, parece-me, bluepoints, e um faisão tenro, verdadeiramente divino. Depois levei Chris ao teatro. Uma pura maravilha. Podemos começar os ensaios no Imperial quinta-feira. Oh! Catherine, como gosto de Nova York! E aposto com você um chapéu novo como ela corresponderá ao meu amor.

      Comeu o último pastel que havia deixado no prato.

      — Ainda não olhou os jornais, querida? Estão ali no chão. Em gera!, está bem. Meia coluna de texto e quatro fotografias excelentes.

      Catherine pegou os jornais e os percorreu com atenção.

      — É. Ótimo. Para começar em Nova York, você entrou com o pé direito.

      Nancy ria e se estirava como um gatinho que a gente acaricia.

      — E todo mundo é tão gentil comigo! Chris é incomparável. Não pode avaliar quanto gosto dele. Imagina, ele quer por força que nos casemos logo após a estréia, e creio que será muito bom assim. Seria um verdadeiro conto de fadas se desde o meu primeiro contato com o público eu tivesse o meu sucesso... porque sinto, querida, que vai ser um grande sucesso!... e ainda por cima um casamento em puro estilo romântico!

      Interrompeu-se.

      — Você gosta de Chris, não é, querida?

      — Bem sabe disto.

      — E ele gosta de você também — prosseguiu Nancy — e tem por você a maior estima. Ainda agora falava a respeito. Teria um grande prazer em que fosse almoçar conosco no Waldorf, amanhã ou um destes dias.

      Catherine encarou-a surpresa:

      — Não quer dizer que ele está hospedado no Waldorf...

      — Está sim, querida. Por que não? Eu sei bem que ele preferiria um hotel modesto, mas eu sou pela sofisticação e o convenci.

      — Mas o Waldorf é horrível de caro! — observou Catherine num sobressalto. — Está certa mesmo de que ele pode com todas essas despesas, essas mudanças, essas flores, esses presentes, e hotéis tão luxuosos? Se não pode, não fica bem impeli-lo a isso.

      — Não fez objeção — replicou Nancy, dando de ombros.

      — Você não há de pensar que ele protestaria. Não é homem para o fazer. Detesto falar dessas coisas, Nancy, mas é um capítulo no qual temos de ser francos uns com os outros!

      Nancy sorriu com o seu sorriso mais sedutor.

      — Não se preocupe, querida. Tudo vai bem para Chris. Em Cleveland ele vive como um alto personagem. Foi meu dedo mindinho quem me disse. Não me olhe com um ar assim severo! Não tenho vontade de discutir por causa dessas histórias. Já me zanguei bastante com Chris hoje à tarde devido à viagem a Vermont.

      Calaram-se. Nancy atravessava visivelmente um desses momentos de total despreocupação em que nada se poderia obter dela.

      — Você pensa — perguntou Catherine para romper o silêncio — que Chris gostaria de a apresentar à mãe?

      — Sim — suspirou Nancy, resignada. — E a todos os tios, e a todos os primos, à moda da Bretanha. E creio que a todos os moradores da aldeia. Queria que fôssemos quinta-feira para passar lá dois ou três dias. Justamente quando vou estar cheia de serviço com os ensaios. Pode calcular o que seria isso. Em pleno inverno trocar Nova York por um buraco perdido em pleno campo!

      — Há pessoas que gostam do campo.

      — Bom proveito!

      — Precisa ir — disse Catherine com uma voz grave. — É o seu dever.

      — Então você vem comigo — respondeu Nancy, amuada.

      — Está bem. Fica combinado: não falaremos mais nisso. Ligue o rádio para ouvirmos um pouco de música.

     

      Na quarta-feira de manhã, Catherine tomou às 8h30min o rápido que a levaria a Graysville. Ia só. Nancy e Madden haviam seguido na véspera. Bem instalada numa boa poltrona reclinável, onde fazia uma temperatura tépida, agradável, enxugou a vidraça com as luvas para poder ver desfilar a paisagem hibernal. Em marcha cada vez mais rápida e fazendo um ruído crescente, o trem varava os campos cobertos de neve. Passou-se o dia. À noite Catherine teve de trocar de trem, para seguir por uma pequena estrada regional. E partiu de novo na direção do poente. O sol de um vermelho ardente espalhava sobre a terra rude e nua todos os esplendores do céu. Meia hora depois, o condutor passou pelo vagão, e avisou, cortesmente:

      — Dentro de alguns minutos chegaremos a Graysville, Madame.

      Catherine estava ligeiramente emocionada. Era a sensação de chegar, enfim, ao término da viagem, sensação a que se misturava a de impaciência, curiosidade e uma espécie de receio. A locomotiva apitou, os freios rangeram e o trem parou. Ela foi o único passageiro a descer na plataforma estreita. Com a valise aos pés, as faces avermelhadas pelo vento, e o coração apertado pela emoção da espera, contemplou a estação deserta.

      Súbito, uma silhueta surgiu da sombra e se aproximou a passos lentos. Era um velho magro. Tinha as pernas arqueadas e trazia um casaco de couro com capuz, sob o qual seu rosto curtido esboçava um vago sorriso de boas-vindas.

      — É mesmo a senhora, Miss Lorimer? — perguntou, enquanto deixava expandir-se o seu sorriso. E apresentou-se:

      — Meu nome é Hickey. — Pegou a valise. — Venha. O automóvel está lá fora, na praça.

      Ela o acompanhou até o carro — um cupê antediluviano, alto, mas tão bem conservado que a carroçaria verde espelhava e as peças metálicas pareciam de cristal. Os próprios pneus estavam caprichosamente lavados. Muito orgulhoso de sua máquina, Hickey ajudou Catherine a subir, chamou à atividade os pistões gastos, e se pôs em marcha com prudente lentidão. Desceram a rua principal aos solavancos. Os transeuntes eram raros, e a cada um Hickey dirigia um pequeno aceno de mão, ou um cumprimento cerimonioso.

      — Não há muita gente aqui — assinalou, como uma explicação a Catherine. — Todos estão se preparando para patinar. Faz exatamente o tempo apropriado, e eles gostam muito. O Sr. Chris manda dizer-lhe que a senhora encontrará todos embaixo, no alpendre.

      — Os senhores têm aqui um bom rinque? — perguntou ela.

      — Maravilhoso! Trinta milhas em redor, o lago está gelado.

      Parou o carro. Dois jovens com os seus patins cumprimentaram-no sorrindo, e, com um gesto largo, Hickey os convidou a entrar no automóvel. Eram uma moça e o irmão, parentes longe de Madden, como o chofer sussurrou a Catherine ao retomar a marcha. Hickey era de uma loquacidade inesgotável. Cônscio dos seus privilégios de velho serviçal, sabendo além disso que era considerado por todos como um fenômeno único no seu gênero, continuava a tagarelar incessantemente enquanto Catherine contemplava a bonita paisagem hibernal.

      À saída da aldeia, a estrada descia para o lago e serpenteava ao longo do rio gelado, marginado de moitas de salgueiros e de zimbros. Ao longe, as colinas se desenhavam no crepúsculo. Já se avistava o rinque, e no oriente erguia-se o disco pálido da lua.

      O mistério da hora e o encanto da paisagem agiam sobre Catherine, despertando em seu coração reminiscências perturbadoras. Ficou imóvel, enquanto o velho Hickey deixava os dois passageiros ocasionais perto de um pequeno embarcadouro particular, dando-lhes toda espécie de conselhos e advertências, e recomendando-lhes, sobretudo, que não chegassem tarde para o jantar.

      Depois botou de novo o carro em movimento e o dirigiu para uma casinha branca que se erguia na volta do caminho, no centro de um pequeno pomar de fruteiras enfezadas. Era uma construção simples e sem pretensões em estilo colonial, com uma fachada Império sem ornatos. Um instante depois, o carro parava diante da porta, que logo se abriu. A Sra. Madden estendeu a mão a Catherine.

      A moça reconheceu imediatamente a mãe de Chris. Alta e magra, parecia-se impressionantemente com o filho. No seu rosto desenhava-se a mesma expressão tranqüila do de Madden. Dele se desprendia a mesma certeza e a mesma firmeza, revelando a disciplina interior de toda uma vida feita de paciência, constância e bondade. Fixando Catherine com um olhar estranhamente profundo, no qual se lia uma calorosa e cordial acolhida, disse após os cumprimentos:

      — Deve estar gelada. Entre logo, venha aquecer-se.

      Fê-la subir a escada e a introduziu num quarto. Um bom fogo ardia numa lareira holandesa de ferro e projetava seus reflexos no cortinado, na pesada arca esculpida e nas cadeiras maciças.

      — Espero que esteja bem aqui — disse a Sra. Madden com uma súbita solicitude que foi direta ao coração de Catherine. — O lugar é muito modesto porque somos gente simples.

      — Mas é encantador, verdadeiramente encantador! — exclamou a visitante.

      A Sra. Madden sorriu com um sorriso tranqüilo, que lhe iluminou o rosto austero. Pareceu estar procurando as palavras para exprimir sua satisfação, mas, sem dúvida, tinha dificuldade em traduzir em palavras seus sentimentos. Ficou assim um instante parada, certificou-se de que nada faltava a Catherine, avisou que o jantar ia ser servido, e retirou-se.

      Meia hora depois Catherine descia para a sala de refeições, uma peça espaçosa e bem iluminada dando para o hall e onde se comprimia naquele instante uma imprevista multidão. Os patinadores tinham voltado e trouxeram consigo muitos amigos e vizinhos. Catherine teve assim uma primeira visão da larga hospitalidade que se praticava na casa de Lakeside.

      Madden e Nancy estavam de pé em frente à lareira, com os dois irmãos de caras sorridentes que haviam viajado no automóvel e que agora lhe eram apresentados com os nomes de Luke e Betty Lou. Perto estava sentado, muito teso em sua cadeira de balanço, um velho de cara enrugada e inteligente, o tio Ben Emmet, irmão da Sra. Madden. Em frente a ele, tomaram lugares o professor da escola de Graysville e sua irmã. Depois vinham Doc Edwards, pequeno e roliço, metido num grosso capote de piloto, e Pop Walters, gordo e calvo, de olhos piscantes e cheios de malícia. Lá estava Sammy Emmet, neto de Ben, com o nariz todo cheio de sardas, e que, como Luke, trazia no peito um emblema de clube. No último plano, enfim, uns 20 rapazes e moças, de camisas de esporte em cores claras, as faces queimadas pelo vento e o olhar brilhante, que conversavam e riam.

      Catherine levou algum tempo entrando em contato com toda essa sociedade. Graças à Sra. Madden, que levava muito a sério seu papel, ela travou conhecimento com cada um. Era uma gente simples, sem nada de chocante; via-se que trabalhavam arduamente para ganhar a vida, mas todos manifestavam uma cordialidade espontânea e sincera que impressionou Catherine ao extremo. Imediatamente a forasteira se sentiu à vontade com eles.

      Catherine quase não teve ensejo de conversar com a sobrinha e Madden, porque a Sra. Madden lhe deu o braço, e todos passaram para a sala de jantar.

      Após a longa viagem e aquela ducha??? de ar frio, Catherine tinha muita fome, e comeu com ótimo apetite. Em meio a uma assistência tão numerosa, ninguém poderia ocupar-se especialmente dela. Madden, que ostentava??? uma camisa de pólo cinzenta, estava sentado no começo da mesa e constantemente ocupado em passar os pratos. Nancy mostrava uma fisionomia meio carrancuda. O cigarro numa das mãos e o garfo na outra, fumava e comia sem prestar atenção à tagarelice de Sammy Emmet, que estava sentado à sua direita. Admirada, Catherine franziu involuntariamente a testa. Mas seus dois vizinhos, Walters e o pequeno Doc Edwards, não lhe deixaram tempo para refletir.

      — Experimente esse vinho de sabugueiro, Miss Lorimer — disse Doc Edwards, sério. — Foi prensado pela própria Suzan Madden. Nada como vinho para acabar com o frio.

      Catherine degustou o vinho admiravelmente temperado e achou-o excelente. Voltou-se rindo para o homenzinho:

      — O senhor deveria levá-lo em suas visitas aos doentes. Deve ser penoso, nesta estação, estar sempre em viagem.???

      Ele a olhou sem compreender, e depois soltou uma gargalhada.

      — A senhora se engana, — disse por fim — chamam-me "Doc" mas não sou médico. Tenho apenas a farmaciazinha na esquina da rua principal, ao lado da igreja batista.

      Catherine corou, porque esse pequeno mal-entendido a encabulou; mas Doc continuou tranqüilamente, com a mesma amabilidade e modéstia:

      — Nós aqui não tomamos ar de gente importante, Miss Lorimer. Veja Chris Madden: fez uma belíssima carreira mas nunca esqueceu o velho Joe Edwards que o levava para pescar quando ele não era mais do que um moleque de sete anos.

      — Verdade? — perguntou Catherine com interesse.

      — Sim. Toda vez que Chris vinha aqui à casa do tio Ben. E eu creio que Suzan não gostava que ele fizesse essas despesas em estrada de ferro. Mas nós não nos preocupávamos. Nós bordejávamos pelos lagos e, palavra!, a senhora precisava ver o pirralho a primeira vez que pescou uma grande carpa!

      Catherine imaginou imediatamente a cena: o barco banhado de sol e balançando ao vento, o caniço vergado sob o peso, o peixe de escamas de prata caindo com ruído sobre a tábua, o rosto infantil, excitado mas atento, de Chris. Mediu de repente a solidez dos laços que prendiam Chris ao lugar do nascimento da mãe, e compreendeu por que ele era ali tão conhecido, estimado e querido. Agora ele vencera, obtivera grande sucesso; e entretanto era sempre o meninote de Suzan Emmet e Graysville.

      Terminado o jantar, voltaram todos para a sala de visitas. Os jogadores de bridge sentaram-se a uma das mesas, e em outra se organizou uma partida de animal crakers, um jogo loucamente movimentado. Quanto a Catherine, o jovem Sammy Emmet lhe pediu que assasse umas castanhas na lareira.

      Sentada a um canto do fogo, apreciava a descuidada alegria da roda. Na mesa redonda, presidida por Madden, o alarido crescia. Uma ou duas vezes pareceu a Catherine que o tom de voz de Chris traía um bom humor afetado. Mas o calor do fogo a mergulhava pouco a pouco numa benéfica sonolência. Meia hora depois, despediu-se discretamente da Sra. Madden e se esgueirou para o quarto.

      Quase logo após, Nancy entrou, com o indefectível cigarro nos lábios.

      — Contente de ter podido escapar, não? — falou.

      — Por que "escapar"? — perguntou Catherine, surpresa.

      Nancy não respondeu, mas ergueu os ombros nervosamente. A tia prosseguiu:

      — Como, Nancy? Não se sente bem aqui?

      Nancy franziu a testa.

      — É muito bonito, querida... mas talvez um pouco cômico.

      — Cômico? — repetiu Catherine, confusa.

      Nancy fez um sinal afirmativo. Via que Catherine não a compreendia e se tornava agressiva.

      — Há muitos tapetezinhos por toda parte, muitos parentes pobres que comem fazendo ruído e riem de tudo e de coisa alguma. E todas essas imagens de santos pelos cantos! E todos esses versículos bíblicos nas paredes, como aqui acima da cama!

      Catherine seguiu com os olhos o olhar de Nancy.

      — Isto não é um versículo da Bíblia — replicou secamente — mas um modelo de bordado, e muito bem trabalhado.

      — Estou vendo — prosseguiu Nancy com crescente irritação — mas de qualquer modo minha situação aqui nada tem de divertido. Uma semana mais, e eu enlouqueceria. Sinto que me olham de esguelha porque sou atriz. Toda vez que acendo o cigarro, examinam-me como se eu houvesse cometido um pecado contra o Espírito Santo. Não há nem um miserável cinema neste canto perdido. Por que Chris não podia apresentar-nos sua aborrecida parentela em Cleveland, em lugar de nos trazer aqui. Se Deus quiser, voltaremos para Nova York depois de amanhã.

      — Mas, Nancy...

      — Oh, Catherine, peço-lhe perdão...

      Já Nancy se arrependia de suas palavras. Tremiam-lhe os lábios e seu olhar exprimia uma contrição sincera.

      — Eu sei que sou insuportável. Só devia ter vindo aqui depois da première. Isso me dá pena por causa de Chris; mas estou fora de mim. É porque tenho na cabeça bastantes preocupações, muito diversas.

      — De que se trata?

      — Mas está claro que de minha peça! Não sabe o que a profissão representa para mim? Sim. Tenho Chris e sinto-me loucamente feliz com ele. Mas há também o teatro. Tenho necessidade de sucesso, Catherine, da embriaguez do sucesso!

      Emocionada pela veemência dessas palavras, Catherine ficou em silêncio. Pela primeira vez, media a violência da paixão de Nancy pelo teatro. Sérias dúvidas a assaltaram. Nancy aspirava à glória. Muito bem. Mas teria as qualidades necessárias para alcançá-la? Não lhe faltavam beleza, inteligência e talento; mas possuía essa qualidade que não se adquire e sem a qual não há grande artista: a profundeza e a solidez de caráter? Súbito, Catherine se viu tomada de angústia. Receava por Nancy.

      — Não lhe parece que pede um pouco demais à vida? — perguntou à sobrinha com voz surda.

      — Talvez, mas preciso disso — respondeu Nancy.

      Aproximou-se de Catherine, beijou-a, e num instante desapareceu.

      Imóvel, os lábios cerrados, Catherine ficou um momento à janela. Uma beleza serena revestia a paisagem, e ela se sentia dominada pela paz que reinava naquela pequena comunidade de seres sadios e tranqüilos. Gostaria de ir ao encontro de Nancy, falar-lhe, consolá-la, acalmá-la. Se não o fez foi porque sabia que seria de todo inútil. Ela própria se sentia constrangida e intimidada. E, com um suspiro, foi para a cama.

     

      Quando Catherine despertou, o sol inundava o quarto, e dentro da casa, como fora, a vida já retomara seu curso. Esse rumor de atividade a estimulou. Saltando da cama, enfiou às carreiras um robe de lã e desceu para a sala de jantar. A Sra. Madden, Chris, o tio Ben e o jovem Sammy iam naquele mesmo instante para a mesa.

      — Mas como? — exclamou a Sra. Madden com o rosto esfuziante de alegria. — Nós nunca imaginamos que você desceria. Nancy pediu café na cama.

      — Numa manhã destas, a gente tem de levantar-se, sobretudo quando se tem a perspectiva de ir patinar.

      — Muito bem — falou Sammy, tirando um filhós. [biscoito frito de farinha e ovos, com açúcar e canela ou calda doce] — Então vem conosco?

      Catherine sentou-se. A Sra. Madden serviu-lhe café e Madden lhe passou o toucinho frito. Os filhoses, que Sammy informou serem uma especialidade da Sra. Hickey, eram frescos e leves. Catherine sentia-se deliciada. Como na noite anterior, deixara-se arrastar a essa atmosfera de alegria natural e acolhedora, que lhe reaquecia o coração. Notara que a mãe de Chris estava encantada, e isto simplesmente porque ela havia descido para a primeira refeição do dia.

      Logo depois todos se dirigiram ao lago. Nancy ainda não dera sinal de vida, mas Sammy, que havia adotado Catherine, não se retardou. Tirando da garagem um bonito par de patins para ela, acompanhou-a até a beira do lago. Madden foi também.

      A manhã estava maravilhosa. Catherine caminhava entre Madden e Sammy pela estrada gelada, e gostaria que esse passeio durasse toda a vida. Todos os passantes conheciam Chris e o cumprimentavam com uma cordial deferéncia. Depois do que ela observara e soubera na véspera, tinha agora uma nítida impressão do caráter do rapaz e dava-lhe o justo valor. Admirava aquele equilíbrio entre a bondade e a força que explicava o apego de Madden às tradições familiares, assim como sua fidelidade às velhas amizades.

      No embarcadouro, Sammy se ajoelhou com uma cavalheiresca solicitude e lhe apertou os patins. Depois os dois se precipitaram. Com uma ligeireza de pássaro deslizavam pela superfície gelada. Madden, que ficara na praia, seguia-os com o olhar até que desapareceram na volta do golfo. Seu rosto assumira uma expressão estranha. Gostava de patinação, se bem que não tivesse tido muitas oportunidades de praticá-la no curso daqueles últimos anos. Bem que desejaria ter acompanhado os dois... Era talvez essa a razão por que tinha o ar tão abatido enquanto voltava lentamente para casa, a fim de esperar Nancy.

      Era quase 1 hora, quando Catherine e Sammy por sua vez regressaram. O almoço, sem dúvida, acabara havia muito tempo, porque a mesa estava nua e a casa vazia. Mas a Sra. Madden respondeu às desculpas dos retardatários com um gesto cheio de compreensão.

      — Não se preocupe — disse a Catherine, rindo gostosamente — porque eu guardei o almoço quentinho.

      Ao fim de cinco minutos, tudo estava pronto, e a dona da casa sentou-se à mesa com os dois, satisfeita de os ver comer com tanto apetite.

      — Vão voltar a patinar de tarde? — perguntou, por fim.

      — Já não sinto os tornozelos. E depois, Chris falou de um passeio para a noite, todos juntos. Vão acender uma fogueira numa das ilhas, e eu gostaria de estar lá.

      A velha senhora teve um momento de hesitação.

      — Não gostaria de tomar chá comigo? Tenho sempre água quente na chaleira às 3 horas.

     

      Uma confortável tranqüilidade reinava no salão. O relógio fazia o seu tique-taque solene a um canto, e o castiçal sobre a cômoda de nogueira refletia as chamas da lareira. Sammy fora à granja com Hickey para ver uma ninhada de cachorrinhos. A Sra. Madden serviu o chá; depois calou-se por um momento. Afinal, depois de uma tossezinha, pôs-se a falar, desviando os olhos para os lados.

      — Estou muito contente de você haver vindo até aqui, Catherine. Agora que já começo a envelhecer, não faço muita questão de novas relações. Mas quando faço alguma, isto para mim assume grande significação.

      Catherine não respondeu. Sentia-se comovida, e agradavelmente tocada por aquelas palavras afetuosas. Estendendo o braço para a mesa, a Sra. Madden pegou um volumoso álbum de fotografias encadernado em pelúcia. Majestoso e um pouco ridículo, era um desses velhos álbuns de família, recordação de dias muito remotos. Involuntariamente Catherine disse a si mesma que ele teria provocado os motejos de Nancy. Mas nada havia na voz da Sra. Madden que pudesse provocar o riso quando ela acrescentou:

      — Aqui está um velho retrato de Chris. Acho-o muito bom.

      Catherine pegou o álbum aberto que ela lhe estendera, e seus olhos caíram na fotografia muito empalidecida dum menino de seis a sete anos, de calças curtas, com um velho chapéu de palha atirado para trás. Sim, era bem Chris. Catherine teria reconhecido, em qualquer idade, aqueles olhos sombrios que a fixavam através de uma fisionomia de criança com um ar sisudo de interrogação. Sentiu na garganta um aperto de enternecimento; foi com grande esforço que conteve as lágrimas sob as pálpebras abaixadas.

      — Um retratinho encantador — disse por fim. — A senhora deve mostrá-lo a Nancy.

      — Ela já o viu — respondeu, pausadamente, a mãe de Chris.

      Catherine levantou os olhos para a velha senhora, e, rápido, os desviou. Surpreendera-lhe no olhar uma expressão apreensiva que foi um golpe no seu coração.

      — É uma tolice minha falar assim — prosseguiu a Sra. Madden em voz ainda mais lenta. — Mas eu desejo tanto que Chris seja feliz!

      — Será — retrucou a moça.

      — Nancy é uma moça encantadora — tornou a Sra. Madden com certo embaraço na voz — mas não me acostumo facilmente à idéia de que ela é atriz. É verdade que sou muito antiquada...

      — Tudo se arranjará bem — interpretou Catherine em tom caloroso.

      A Sra. Madden retomou a palavra com uma entonação grave:

      — Falamos precisamente do assunto de todo casualmente ontem à noite enquanto você estava fora. Nancy parece firmemente decidida a não deixar o teatro, mesmo depois de casar-se com Chris. Ela fez para nós a esse respeito uma verdadeira conferência. Acha que uma mulher dos nossos dias pode perfeitamente ser casada e seguir uma carreira de artista. No meu tempo, a carreira da mulher era o casamento; mas talvez as idéias hajam evoluído muito; temos de ser indulgentes. Gosto muito de Nancy. Contanto apenas que o meu Chris seja feliz com ela!

      — Será — reafirmou convictamente Catherine. — Eu conheço Nancy; é ainda muito jovem, mas tem muito boa índole. E, falando sério, não acredito que ela fique muito tempo no teatro. Assim que vir que não é uma grande estrela, dirá adeus à cena para não ser mais do que uma boa esposa. Deixemo-la agir, e tudo se arranjará por si mesmo.

      — Esperemos — suspirou a Sra. Madden com a mesma expressão grave, calma e pensativa nos olhos.

      A conversa foi interrompida pela chegada da Sra. Hickey que trazia uma bandeja de bolos quentes; e após isso nem Catherine nem a Sra. Madden voltaram ao assunto.

      À tarde, Catherine preferiu não sair. Previa que o passeio organizado para a noite seria muito fatigante. Realmente, os convidados foram ainda mais numerosos do que na véspera, e ninguém perdeu tempo à mesa. Todos tinham pressa de se pôr a caminho, e às 8 horas umas 20 pessoas se dirigiram alegremente para o lago. Madden era uma delas. Nancy, ao contrário, se recusara a ir, jurando pelos seus santos que a simples vista de um par de patins a punha louca. Queria — disse — ficar em casa para trabalhar.

      No embarcadouro, uma vez calçados os patins, todos se deram as mãos cruzando os braços e a longa cadeia humana se distanciou na suave luz do crepúsculo. Eles avançavam num ritmo regular dentro do encantamento da noite que descia. A lua, muito alta no céu, parecia um enorme lampião, e projetava na água reflexos de prata. Para o sul os tetos familiares da aldeia cintilavam sob a geada. A leste, as cadeias de montanhas formavam uma ponte imensa que parecia conduzir à morada dos deuses. Mas diante dos patinadores, à saída do golfo, o lago gelado estendia a perder de vista o seu espelho sombrio, liso como o mármore e macio como a ágata.

      Catherine, ofegante, fendia o espaço. Muitas vezes ela patinara nas lagoas dos arredores de Londres, nas quais flutua sempre um leve nevoeiro e há sempre o perigo do degelo. Mas nunca encontrara uma tal extensão diante de si, um ar assim puro, um gelo como aquele, virgem de qualquer rastro e de qualquer mancha. A alegria inundava o seu coração. O leve ranger dos patins cantava aos seus ouvidos como uma música. O vento lhe açoitava as faces, fazia voar atrás dela as pontas do xale e lhe fustigava o sangue. Sentia correr em suas veias uma embriaguez semelhante à do champanhe.

      Atingiram enfim sua ilha, um montículo redondo, cinco milhas ao largo, coberto de arbustos secos e de pequenos salgueiros. Alguns minutos depois, a grande fogueira preparada de antemão estava ardendo. Os patinadores formaram um grande círculo em torno do fogo. Apareceram as garrafas térmicas, e os copos de café circularam de mão em mão. Com o ar de quem desenterra um tesouro, Betty Lou tirou do agasalho de pele um pacote de biscoitos. Depois, Andy Dunn, o caixeiro da grande loja local, pegou o acordeão. Tocava velhas canções populares impregnadas de ternura e de romantismo, Swanee River, Aunt Dinah, Uncle Ned. Simples e bonitas, as melodias se elevavam no céu noturno, e todos, quase sem o sentirem, puseram-se a cantar.

      Catherine olhava em torno de si os rostos dos cantores iluminados pelos reflexos do braseiro, e pela segunda vez naquele dia sentiu as lágrimas virem aos olhos. De todo o coração, desejaria que Nancy estivesse ali. Sentia-se reinar em todos aqueles seres assim reunidos uma solidariedade muda e profunda, essa fraternidade que une, sobre a terra, os homens de boa vontade.

      Súbito, passaram a entoar uma canção que era a mais graciosa de todas: Juanita. Catherine não se conteve mais. Era deles, e se pôs a cantar com eles.

      Ao mesmo tempo lançou um olhar furtivo a Madden, e notou que ele tinha os olhos fixos nela. Todo o dia, e mesmo desde a chegada, mal o vira. Mas naquele momento surpreendeu-lhe na fisionomia uma expressão de perturbação estranha e profunda. Olhava-a como se tivesse dificuldade em reconhecê-la, como se a visse pela primeira vez na vida.

      Quando cessou o canto, houve um longo silêncio; todos verificaram que o repertório se esgotara. Então levantaram-se todos, e os risos e tagarelices recomeçaram mais animados. De repente Catherine se apercebeu de que Madden estava de pé ao seu lado.

      — Foi tão gentil de sua parte! — disse ele com uma voz estranhamente embaraçada — Juntar-se assim a nós.

      — Por que não? — Ela se pôs a rir, e no seu riso havia uma certa angústia. — Só que eu não chego a cantar duas notas certo!

      — Que é que tem? Estava ótimo.

      Quando novamente todos se deram as mãos, entrelaçando os braços, Madden ficou junto a Catherine. As mãos dele, dentro das luvas de lã dura, apertaram as da moça com uma suave firmeza. Todo o tempo da correria através do lago, ele mal pronunciou algumas palavras. Quando chegaram à casa, Chris não dirigiu a Catherine mais do que um rápido olhar, que logo desviou, e lhe deu um breve boa noite.

      Entretanto, não foi deitar-se logo. Deixando os outros, esgueirou-se para o pomar, onde, sob o clarão da lua, as fruteiras contorciam, com gestos grotescos, os ramos nodosos e os troncos devastados. Um instante ficou imóvel. Depois, maquinalmente, procurou acender o cachimbo. Mas este logo se apagou, e Madden, sem o sentir, conservou-o entre os dentes. De súbito, atrás das cortinas do quarto de Catherine, fez-se luz. Com a respiração suspensa, Madden conservava os olhos fixos na janela. Depois apoiou a fronte contra a fria casca de árvore. Seu rosto, sob a pálida claridade da lua, tinha o mesmo ar de devastação dos velhos troncos rugosos que projetavam suas sombras em torno dele.

     

      Catherine estava de novo em Nova York. Ainda era segunda-feira, e fazia apenas três dias que ela desembarcara na gare da Grand Central. Mas esses três dias lhe pareciam uma eternidade. No tumulto da grande cidade que a envolvia novamente, os dias passados em Graysville lhe deixavam a lembrança de um sonho longínquo e muito doce.

      Nancy e Madden igualmente haviam voltado. Bertram assinara contrato com o Imperial Theater, e os ensaios recomeçaram. Tendo resolvido adiar sua viagem a Cleveland, para ser agradável a Nancy, Madden se instalara de novo no Waldorf.

      Nos dias que se seguiram, Catherine quase não se encontrou com ele, e viu-se igualmente privada da companhia da sobrinha. Se bem que Nancy estivesse de todo absorvida pelo seu teatro e pelos ensaios, Madden quase nunca a abandonava. Acompanhava-a ao meio-dia, à tarde e à noite aos restaurantes mais elegantes, e lhe satisfazia todos os caprichos. Nancy se entregara ao trabalho com um zelo desesperado, mas nos intervalos atirava-se loucamente aos prazeres da vida mundana. Assim ela combinou para a quinta-feira à noite ir a uma boate com Catherine e Madden.

      Catherine não tinha muita vontade de ir, mas cedeu para fazer a vontade de Nancy. Procurava concentrar todas as suas energias nos negócios. Estava obsedada pelo pensamento de que tinha que vender a miniatura de qualquer modo, e aguardava com impaciência a chegada de Brandt. Notava que essa inquietação submetia a sua resistência nervosa a uma dura prova.

      Quando chegou quinta-feira, sentia-se irritável e esgotada. Só uma coisa era clara demais: o intenso desejo que sentia de rever Madden.

      Quando se encontraram à noite, ela ficou aterrorizada com a mudança que se operara nele. Parecia ter emagrecido e envelhecido, e tinha olheiras profundas.

      Foi um encontro estranho. Sua encantadora amizade, a lembrança das horas passadas em Londres e durante a primeira parte da travessia, depois a noite em que patinaram lado a lado no lago de Graysville, tudo isso parecia expelido de seu espírito. Sua atitude traía uma reserva dolorosa. Não olhava para ela; e quando lhe estendeu a mão, estava gelada. Para Catherine foi este um instante cruel. Quanto a Nancy, estava muito ocupada com a sua própria pessoa para se aperceber de qualquer coisa.

      Ficaram alguns minutos no saguão do hotel. A conversa esmorecia. Madden saiu e chamou um táxi. Quando chegaram à boate, a sala estava cheia mas haviam reservado uma boa mesa. Catherine ficou de novo admirada da facilidade com que Madden, que ela revia, na lembrança, em meio de gente fracassada, sabia dar ordens.

      Ele pediu um Magnum. Apesar do champanhe, a conversa se arrastava. Felizmente pouco depois da entrada dos três, as luzes se apagaram para o primeiro número do programa de cabaré. Apareceu Daisy Jervis. Avançando sob a luz deslumbrante do projetor para o microfone instalado no meio do palco, começou a cantar seu repertório. Era uma artista conhecida do rádio e das boates. Não era bela, mas sua transbordante vitalidade exercia fascinação.

      Nancy a escutava com atenção fixa e uma atitude de prevenção crítica que é própria do ofício. Se bem que não se abstraísse do ambiente, Catherine não podia desviar os olhos do perfil de Madden. Sob a luz que caía do palco, ele parecia ainda mais magro e abatido. Fumava sem parar, e seus dedos, agitados em movimentos febris, estavam amarelecidos pelo tabaco. Ela ainda não o havia notado. Seria o sinal de uma preocupação secreta que se houvesse abatido bruscamente sobre ele? Madden evitava sempre olhá-la. Tinha os lábios cerrados e a boca imobilizada numa expressão de grande abatimento.

      O número ia terminar, e Nancy, que nada notava nos companheiros, bebia o seu champanhe e fazia observações sobre os vizinhos de mesa. Reconhecia já a maior parte dos "dez mil" da alta sociedade nova-iorquina, e em qualquer outra ocasião os pequenos reparos que ela fazia com ares de superioridade teriam produzido o efeito de uma sátira muito divertida. Subitamente fez um sinal com a mão para um canto do salão, onde descobrira alguns amigos da companhia.

      — Bertram está aqui, Catherine! Com a Brent e John Sidney. Estão numa mesa que nem de longe se compara com a nossa! À sua saúde, Chris!

      Daisy Jervis fez ouvir uma nova canção, uma rouca melodia da Broadway, toda em dissonâncias brutais e síncopes bruscas. Era o clou [fecho] do seu programa, e todos a escutavam em profundo silêncio. A voz rude da cantora interpretava admiravelmente o ritmo agudo e cortante da vida das ruas, e refletia todas as crueldades e todo o ruído da vida moderna.

      Catherine agora se deixara conquistar. Não podia fugir à instância daquelas cadências marteladas. Mas o canto lhe fazia mal e ela tinha o coração opresso. Lançou um olhar ao salão superaquecido, resplandecente de flores e de jóias. No meio daquele luxo provocante, entre as decorações exóticas e as garrafas de alto preço, estava uma humanidade perfumada e bem-posta, cheirosa e bem tratada, congelada em vestidos de seda e plastrões engomados, homens de fisionomias astutas e duras cabeças de mulheres empoadas como máscaras e duma beleza quase metálica.

      Um grande desânimo se apoderou dela, e uma intensa necessidade de evasão. Involuntariamente, reviu Graysville e a bonita paisagem de Vermont, pensou em tudo que a vida pode oferecer de simples e de belo, ar fresco, uma alimentação sadia e a aspereza dos claros horizontes campestres. Uma nostalgia dolorosa, como nunca experimentara em sua vida, a empolgou. Gostaria de escapar daquele ambiente artificial e acabar seus dias num tranqüilo retiro. Essa mesma nostalgia — pensava — Lucie de Quercy devia ter sentido quando, após haver assistido às solenidades da corte, soube da morte do bem-amado do seu coração e encontrou destruída a sua felicidade.

      As luzes se acenderam de novo. Catherine não pôde ver Madden porque ele ocultava o rosto com a mão. Mas Nancy teve um grito de entusiasmo:

      — Esta mulher é formidável. É verdadeiramente um número sensacional!

      Catherine bebeu um gole de água gelada. A exclamação de Nancy quase lhe fazia mal. Tudo que a cercava lhe parecia cada vez mais estúpido e vão. Para grande alívio seu, um garçom se aproximou da mesa no mesmo instante para lhe avisar que chamavam Miss Lorimer ao telefone. Catherine pediu licença, levantou-se e acompanhou o rapaz.

      Fez então na mesa um estranho silêncio. Por fim, Nancy observou:

      — Catherine não se sente bem de todo. Nada disto interessa a ela.

      — É verdade — disse Madden. — Nada disso interessa a ela.

      — Coitada! E faz tanto esforço para se interessar.

      Madden lançou a Nancy um olhar rápido.

      — Ela já se sacrificou muito por você, não?

      — Oh! sim, naturalmente — concordou Nancy. — E podemos dizer que de todo o coração.

      Madden se endireitou na cadeira. Levantando a cabeça, encheu de novo a taça de champanhe e a bebeu de um trago. Depois fincou os cotovelos na mesa, e falou num tom sisudo:

      — Escute, Nancy, tenho uma coisa para lhe dizer. Depois que voltamos de Graysville, estive refletindo. Acho que devemos nos casar imediatamente.

      — Se você quer — respondeu Nancy com um ligeiro sorriso.

      Os olhos sombrios de Madden não a largavam.

      — Quero dizer, imediatamente mesmo. É preciso acabar com isto. Casaríamos nos últimos dias da semana que vem.

      — E por que, Chris?

      — Por que não? Você gosta de mim, não é?

      — Bem sabe que gosto.

      — Então está combinado. Sábado, 8, quando eu voltar de Cleveland; e você já terá dado a primeira representação.

      O tom de instância que havia na voz de Madden a comoveu. Baixou os olhos.

      — Está bem, querido — murmurou. — Combinado. Sinto-me realmente muito feliz, você sabe. Imagine que em Graysville eu estava atormentada pela idéia de que ia exigir-me que abandonasse o teatro antes do nosso casamento.

      — Você abandonaria?

      Ela fez sinal que sim.

      — Não era talvez coisa minha só. Porque eu tinha a impressão de que lá em Graysville eu não era bem vista. Parecia-me que não gostavam de mim por ser atriz. E no entanto, querido, o teatro representa tanto para mim! — Seus olhos, que o fixavam com ternura, refletiram nesse momento uma emoção real. — Mal estreei. Mas mostrarei o que sou, você verá! E não com esses papéis imbecis em farsas idiotas, mas com autênticas criações: Ibsen, Shaw, Shakespeare. Um dia, Chris, farei Ofélia, e de cortar a sua respiração. Sei que posso fazê-lo, e é preciso que chegue até lá. Quero que se orgulhe de mim. Oh! querido, é horrível ter no sangue semelhante vocação! Ela é tão forte quanto o meu amor por você. Nada posso fazer; jamais renunciarei à vocação! E por que havia de renunciar? Nosso amor é compreensivo; e vivemos no século XX, não é? Não há razão no mundo que fosse capaz de me impedir de o possuir continuando na minha carreira. Conhece alguma, querido? Diga!

      Esta declaração feita num tom de imprevisto calor perturbou-o profundamente. Conservou os olhos abaixados, mas segurou a mão de Nancy por baixo da mesa e apertou.

      — A princípio eu não podia compreendê-la, Nancy, mas agora, sim. Pensava que não tinha pelo teatro mais do que um encantamento superficial. Mas, acredite-me, se lhe agrada conciliar o casamento e sua carreira, eu me arranjarei perfeitamente, também eu.

      Fez-se silêncio.

      — A humanidade sempre se desaveio por essa questão de casamento e carreira. Mas nós dois saberemos resolvê-la, não é, Chris?

      — Sim. Saberemos.

      — Agradeço-lhe, Chris — murmurou ela. — Meu amor por você ficará ainda maior.

      Calaram-se de novo; depois Nancy perguntou:

      — E você, querido, continua a gostar do mesmo modo de mim?

      Ele a encarou com um olhar calmo e franco.

      — Sim. Eu a amo, Nancy. Não lhe disse já mil vezes?

      Quando Catherine voltou, eles falaram de coisas sem interesse. Fazia-se tarde. A orquestra tocou um desses trechos acelerados que anunciavam o fim da festa. Pela primeira vez durante a noite, Madden olhou Catherine nos olhos. Parecia ter reencontrado seu equilíbrio, e perguntou num tom amável:

      — Boas notícias, espero, não?

      Catherine sorriu.

      — Era Breuget. Brandt telefonou de Chicago para marcar um encontro. Recebeu as fotografias que mandei, ampliações em cor da miniatura, e está entusiasmado. Chega amanhã de avião aqui, e nós nos encontraremos às 3 horas. Só terei de entregar a miniatura a ele, e o negócio está feito.

      — Formidável!

      Nancy gritou sua satisfação por cima da mesa. Seu olhar irradiava, como se se tratasse de sua própria felicidade.

      — Felicito-a, querida. Como estou contente!

      — Sim. É um peso que me tiram de cima do coração — disse Catherine.

      — E a mim também.

      A orquestra emudeceu. Eram 2 da madrugada, e a assistência se levantava para sair.

      — Creio — falou Madden — que vamos todos dormir.

      Nancy pôs-se a rir.

      — Está louco, querido! Ainda é muito cedo. Devemos festejar o acontecimento. — Vestiu o casaco de pele. — Vamos ao Longchamps comer um sanduíche com Bertram e a companhia.

      Uma sombra passou pelo rosto fatigado de Madden, mas ele se dominou. Catherine também não tinha vontade de prolongar a noitada. Quis dizer alguma coisa, mas desistiu. No vestíbulo encontraram Bertram e os companheiros. Leslie, Jean Marcks e Gloria Bishops se juntaram a eles, e, contemplando a imagem impressionante que o grupo formava nos grandes espelhos, Nancy se sentiu muito lisonjeada no seu orgulho.

      Daí em diante, Catherine não teve ocasião de conversar com Madden. No dia seguinte ele partiu para Cleveland.

     

      Perto de 3 da tarde, Catherine foi para o escritório, a fim de esperar Brandt. Uma chuva fina ensopava o ar. Contra os seus hábitos, a essa hora ela tomou um táxi, e, enquanto o carro rodava lentamente através das ruas, seus pensamentos lhe pareciam tão turvos, obscuros e confusos quanto as pesadas nuvens que se arrastavam no céu. Revia de mistura as cenas da noite passada, o clube, Daisy Jervis, o grupo de Longchamps, os modos desenvoltos de Nancy, e o rosto rígido de Madden.

      Em seguida, com uma perfeita lucidez, evocou a imagem de Chris, que, após várias semanas de ociosidade não habitual, chegava a Cleveland para se entregar ao trabalho de todos os dias. Via-o descer do trem, a maleta na mão, a gola do casaco levantada e o chapéu desabado. Ele parava, depois, para contemplar, com aquele olhar sombrio e sério, a pequena fábrica que fora o ponto de partida de sua fortuna e na qual todos, empregados, operários, vendedores e representantes, se apressavam em dar-lhe as boas-vindas.

      Em que se baseava ela para reconstituir essa cena, não o poderia dizer, mas estava tão convencida de que não se enganava como se a ela tivesse realmente assistido.

      Suspirou e tentou fugir aos seus devaneios para concentrar todas as energias que lhe restavam e utilizá-las no seu encontro com Brandt. Uma vez vendida a miniatura, poderia tomar suas resoluções e voltar imediatamente para a Inglaterra. Logo no dia seguinte ao da estréia da peça de Nancy, nada a reteria mais. Madden e Nancy não precisariam mais dela. Na lua-de-mel — pensava com uma certa amargura — ela só poderia ser-lhes importuna.

      Um ligeiro estremecimento a dominou quando desceu do automóvel e atravessou a rua debaixo da chuva. Breuget a esperava no gabinete privado, uma pequenina peça, o bastante para acomodar uma escrivaninha, um radiador elétrico e duas cadeiras. Ele estava nervoso, e Catherine o percebeu logo, se bem que o rosto magro do velho, de perfil aquilino, ostentasse uma polida despreocupação. Preparara café no pequeno aquecedor e, com ares solenes, ao mesmo tempo ridículos e comoventes, serviu-o com biscoitos. Ela aceitou, agradecida. Era um bom café à francesa, quente e forte.

      Enquanto ela o bebia, observava o velho, sua figura característica, o terno que trazia os sinais de várias lavagens e cujas mangas estavam bastante puídas, a camisa de uma alvura impecável mas deixando entrever, sob o alto colarinho engomado, alguns consertos cuidadosos, os sapatos tão bem engraxados que as rachaduras do couro se tornavam quase invisíveis. E súbito se sentiu dominada por uma infinita piedade. Nunca prestara uma atenção especial a Breuget, salvo quando se tratava de seus negócios, mas de repente experimentava para com ele um sentimento inteiramente novo, o da compaixão humana; lia claramente na pessoa do velho auxiliar a história de uma longa luta contra a decadência, num esforço desesperado para salvar a honorabilidade de sua existência medíocre.

      — E depois — disse ela bruscamente — se vencermos, procuraremos melhorar um pouco sua situação.

      Breuget corou até a raiz dos seus raros cabelos grisalhos. — Oh! não, Miss Lorimer.

      — Sim, sim! — replicou Catherine em tom resoluto.

      O velho a encarou com um ar tímido, e depois desviou os olhos. Balbuciou:

      — Obrigado, Miss Lorimer, muito obrigado.

      Calaram-se. Ele tirou o relógio, um relógio trabalhado em ouro e esmalte, em estilo Luís Felipe, lembrança dos bons tempos passados.

      — Eu esperava que o Sr. Brandt viesse.

      — Não são ainda 3 horas?

      — Exatamente 3, Miss Lorimer.

      — Vamos, não se aflija, Breuget. — E ela lhe dirigiu um olhar amistoso e encorajador. — Quero dizer que você terá seu aumento.

      Catherine imaginava que fosse essa a razão do nervosismo do pobre homem.

      Ele se apressou em explicar:

      — Oh! Não é isso. É pela senhora que estou preocupado. Trata-se de um negócio de tal importância...

      Interrompeu-se com um vago alçar de ombros.

      — Brandt virá. — Ela falava num tom de absoluta certeza. — Depois de tudo o que disse... Nós o conhecemos, não é? Manterá a palavra.

      Houve um momento de silêncio, durante o qual os dois pensaram no seu famoso cliente. Segundo a expressão de Catherine, Brandt sabia o que queria, e sempre o conseguia. Era um homenzinho escuro e esperto, que dissimulava o olhar penetrante sob os óculos, e que juntara uma fortuna fabulosa com a hábil combinação de duas atividades: os transportes e o negócio de madeiras para construção. Em todo o país, o seu nome evocava um extraordinário espírito de empreendimento. A história de suas realizações, desde a imensa cadeia dos seus depósitos de madeira no noroeste até o novo instituto de química que acabava de construir em São Francisco com finalidade humanitária, era quase lendária. E a conta dos tesouros acumulados em seu castelo espanhol, em seu palácio de Veneza e em sua grande casa em estilo barroco nos arredores de Key West se exprimia por milhões.

      Uma tal vitalidade se desprendia de sua pessoa que bastava pensar nele para que se tivesse a sensação de sua presença. Catherine teve um sobressalto quando emergindo dos seus devaneios se apercebeu de que continuava sozinha com Breuget. O relógio do velho, com seu tique-taque implacável, marcava agora 3h 15min.

      — Não é estranho, Miss Lorimer? — disse Breuget, apertando o pescoço com a mão. — Devo telefonar para ele?

      Catherine fez um sinal que não.

      — Não o apressemos. Se não está ocupado em outros negócios, ainda virá. Se não vier, ele mesmo nos telefonará.

      — Está bem, Miss Lorimer.

      Breuget, entretanto, não podia suportar a tensão da espera. Esgueirando-se pela loja, ele postou-se atrás da porta de vidro, de onde podia ver uma parte da rua. Catherine apoiou-se sobre os cotovelos e ficou imóvel. Espreitava os ruídos da entrada, mas só o vozeiro da rua e os gritos de um jornaleiro lhe chegavam, aos ouvidos. Esses pregões — não sabia por quê — lhe produziam um efeito praticamente enervante. Então Breuget correu para ela com um jornal na mão. Tinha o ar espantoso de quem houvesse recebido uma violenta pancada na cabeça. A princípio não pôde dizer uma palavra. Ofegante, uma expressão de loucura nos olhos, branco como cal o rosto onde só se viam as duas manchas vermelhas das maçãs, permanecia estatelado.

      — Veja, Miss Lorimer — exclamou afinal com a voz entrecortada. — Veja!

      Ela deu um salto, tomada de um grande pavor.

      — Que houve?

      — Brandt está... ele não... não comprará a miniatura...

       Sumiu-lhe a voz. Seu rosto se crispou, e ele se abateu sobre uma cadeira em pranto.

      Catherine arrancou-lhe das mãos o jornal, e um grande título, na primeira página, lhe deu notícia de que Brandt havia morrido com 10 outros passageiros num terrível desastre de aviação.

     

      Catherine deixou cambaleando o escritório, e enquanto caminhava dentro do espesso nevoeiro só tinha um desejo: o de não ver nem ouvir ninguém, de ficar sozinha na sua desolação. A cabeça levantada, os olhos fixos e vagos, desceu a rua e, atravessando a Madison Avenue, foi ter, por uma espécie de instinto obscuro, a um ponto deserto do Central Park. Durante alguns minutos ainda errou por ali, depois deixou-se abater sobre um banco, perto do lago gelado, e lutou desesperadamente por estabelecer um pouco de ordem em suas idéias.

      A notícia do fim trágico de Brandt deixara-a num estado de estupor e vertigem. Tinha simpatia por ele. Em todas as questões de negócios, Brandt se mostrara sempre irrepreensível; e através da auréola daquela imensa fortuna, ela descobrira uma natureza tão simples e tão generosa que se acostumara a considerá-lo não apenas um mecenas mas um verdadeiro amigo. E estava morto...

      Imóvel e solitária no fundo do grande parque deserto, Catherine se sentia totalmente abandonada. Na pálida claridade do crepúsculo, as silhuetas dos edifícios e dos monumentos apareciam como o símbolo de uma civilização poderosa e transbordante de vida. Ela, porém, estava só. Algumas crianças tinham passado pela sua frente, mas haviam desaparecido fazia muito, deixando somente no gelo os riscos e arabescos dos patins. Abrigadas numa ilhota, galinhas-dágua, com asas descidas sobre as patas abertas, abandonavam-se às suas tranqüilas meditações. As luzes da alameda formavam uma cadeia interminável que se perdia ao longe no nada. Tudo era sombra, angústia e silêncio.

      Pouco a pouca ela teve uma visão mais clara de sua situação. Estava perdida. Desaparecido Brandt, as chances de vender a miniatura sem demora e a bom preço se desvaneceram. Aproximava-se o vencimento da letra no banco. Para lhe fazer face, bem como a outros compromissos, precisava reduzir a dinheiro tudo que possuía, estoques, créditos, encomendas e até a firma com a reputação de que gozava. Poderia mesmo dar-se por feliz se conseguisse assim evitar a vergonha da falência. Mas de qualquer modo estava vencida e arruinada. Era o fim de sua carreira, o lamentável desmoronamento do edifício que levantara com tanto trabalho. Uma dor aguda lhe apertou o coração ao recordar suas esperanças tão cedo decepcionadas, a doce embriaguez do seu efêmero sucesso... Tudo estava aniquilado, disperso como um punhado de cinzas ao vento.

      Pensou, depois, naqueles que ia arrastar na desgraça, e cresceu seu tormento. Walters e Miss Miller, Breuget — oh, o pobre Breuget! — e sobretudo sua mãe, sofreriam o duro contragolpe de sua ruína. Só Nancy — graças a Deus! — já não precisava dela. Mas todos os outros! Era-lhe insuportável pensar que todos iam sofrer por causa dela.

      Naturalmente, continuaria a trabalhar, e, se bem que ainda fosse jovem, encontraria refúgio numa atividade feita de esforços incessantes, de inexorável renúncia e de constante escrúpulo, de acordo com a concepção da vida que nela era uma herança do puritanismo paterno. Mas conseguiria algum dia reconquistar uma posição análoga à que perdera? Outros — ela pensava em Bertram — eram capazes de perder, de cara alegre, uma fortuna, e refazê-la num ano. Ela não era desses. O curso de sua estrela estava regulado por leis severas; se caísse não se levantaria mais.

      Nos últimos tempos estivera constantemente obsedada por um estranho sentimento de impotência, como se entregue sem defesa aos golpes da sorte. Adquiria naquele instante mais nítida consciência do seu destino. Em suma, não era mais do que uma pobre mulher inerme, e precisaria de um braço vigoroso a que se agarrar, precisaria da proteção de uma vontade mais forte.

      No terror da miséria e do desespero, sentiu-se tentada a matar-se. Seria tão fácil deixar-se arrastar nas sombrias e acolhedoras profundezas do esquecimento... Um simples passo em falso à passagem de um carro, um acidente banal, e estaria liberta de toda a sua miséria, adormeceria para sempre, e ninguém mais se lembraria dela.

      Mas no mesmo instante voltou à lucidez, e repeliu todas essas imagens que lhe apareciam como uma nódoa. Coragem! Esta palavra tinha sido sempre a divisa de sua vida. Só a coragem contava e, diante daquela derrota, precisava de coragem mais do que nunca. Levantando-se de um salto, ajustou mais o casaco ao corpo e dirigiu-se a passo firme para o hotel.

      Nancy, que se preparava para ir ao ensaio, correu ao encontro da tia e lhe passou os braços em torno do pescoço.

      — Catherine, querida, eu estou tão triste!

      Lera a notícia nos jornais. E prosseguiu com uma voz precipitada:

      — Mas devemos esperar que nem tudo esteja perdido! Que azar! Se ao menos fosse depois!

      Catherine havia readquirido o completo domínio de si mesma. Respondeu, calma:

      — Brandt morreu, não deve esquecer.

      — Evidentemente, querida...

      Nancy hesitou.

      — É bem o seu modo de encarar a vida.

      Ficou ainda um momento, cumulou Catherine de demonstrações de solidariedade e de gentis tagarelices, fê-la sentar, ofereceu-lhe um coquetel e um cigarro, instou para que ela comesse alguma coisa. Mas tudo isso era perfeitamente superficial; no fundo, Nancy, ardia do desejo de correr ao teatro, fazer o ensaio e voltar para os seus pequenos negócios pessoais. Afinal foi embora com um gesto de pena.

      Catherine tinha a garganta bastante apertada para poder comer. Mandou buscar um copo de leite quente e o engoliu com dois comprimidos de um soporífero. O sono era agora para ela o único meio de se reconfortar. Tirando a roupa, deitou-se imediatamente.

      Sob o efeito da droga adormeceu profundamente, mas se pôs a sonhar, e um mundo de imagens confusas e grotescas a torturava sem cessar.

      Perseguia-a a louca idéia que já lhe passara pela mente desde muito e que ainda mais agravava seu sofrimento. Lucie de Quercy, a mesma cujos traços a miniatura reproduzia, voltava à vida e se identificava com a personalidade de Catherine, integrando-se na sua desgraça e no seu abandono. Ela mesma, Catherine Lorimer, não era mais do que a imagem daquela que Holbein pintara, a vítima da vida e do amor. Eram os seus próprios lábios que se forçavam a esboçar aquele sorriso pálido e fixo; era a sua própria mão que, num gesto cansado, segurava o ramo de cravos. Todas as circunstâncias, através das quais o retrato viera a ser propriedade dela, formavam uma cadeia inelutável. Era ao mesmo tempo uma reminiscência e uma profecia. Não era somente a história, mas o próprio destino da desgraçada Lucie de Quercy que se repetia nela. E a evidência dessa fatalidade, surgindo-lhe em meio às sombras agitadas do seu pesadelo, arrancou-lhe um grande grito de terror.

      Sobressaltou-se. Tinha a garganta seca. Notou que amanhecera. E tão logo retomou consciência da situação em que se encontrava, a sua dor despertou de novo, mais aguda e mais viva. Para escapar-lhe, pulou da cama, tomou um banho frio e se vestiu às carreiras. Lançando um olhar ao quarto vizinho, verificou que Nancy ainda dormia.

      Saiu. Não tinha nenhum projeto. Não queria voltar ao escritório porque não podia suportar a idéia de ver Breuget e o teatro de sua desgraça. Seus gestos lhe surgiam ao olhar como dentro de um nevoeiro. Atordoada, foi andando ao longo da Rua 52. Numa esquina, entrou num bar e pediu café e pão. Depois atravessou Times Square e se deixou levar pela multidão que se precipitava à escadaria de uma estação subterrânea do metropolitano. Escapar e fugir!... Achava-se agora num carro superlotado, e o trem varava, rangendo e silvando, a escuridão. Catherine só pensava nos meios de evadir-se, e já chegava a uma das últimas estações. No cais deserto, o vento tinha gosto de sal, e o rumor longínquo das ondas encheu-lhe de repente os ouvidos. Seguiu por uma rua escura e suja, cheia de lojas em desordem, de bares onde saboreavam ostras e peixes, de pavilhões de tiro ao alvo, com as paredes esburacadas cheias de velhos cartazes aos pedaços. Diante dela elevavam-se as magras e grotescas armações dum Luna Park. Uma luz se fez no seu espírito e lhe produziu um sentimento de amarga irrisão. Seus lábios se crisparam num ricto doloroso. Estava em Coney Island.

      Mais ao longe, um cais solitário marginava a perder de vista o duplo nada do mar e do céu. O ar estava claro. Durante muito tempo, Catherine seguiu pela calçada deserta. Andou o dia todo, a cabeça baixa e os olhos fixos como se procurasse alguma coisa. Mas se bem que houvesse readquirido um pouco da sua lucidez e do seu equilíbrio, na sua alma só havia abandono e desespero. Depois, o crespúculo a arrastou para as luzes da cidade, atirou-a ao turbilhão irônico e excitante de Nova York, aos clarões multicolores e deslumbrantes, no burburinho selvagem das ruas.

      Ao voltar para o hotel, sentia-se no último grau do abatimento e da fadiga quando, de súbito, seu olhar caiu sobre um monte de papeizinhos brancos, todos trazendo os dizeres usuais: "Há um recado para a senhora no escritório". No mesmo instante, o telefone interno tilintou.

      — Oh! Miss Lorimer — disse uma voz polida e cantante — o Sr. Breuget procurou a senhora inutilmente o dia todo. Tocou várias vezes e veio aqui pessoalmente.

      "Ora, foi só Breuget", pensou Catherine tristemente. E respondeu:

      — Está bem, obrigada. Telefonarei a ele mais tarde.

      Ia desligar num gesto frouxo, fatigado, quando a voz se fez ouvir de novo:

      — Um instante, por favor, Miss Lorimer. Está na linha justamente o Sr. Breuget.

      Houve um estalido e Breuget falou:

      — Alô! Alô! É a senhora, Miss Lorimer? Deus do céu, onde se escondeu a senhora?

      Segurando com a mão a têmpora dolorida, Catherine forçou um tom calmo:

      — Estive andando um pouco o dia inteiro, Breuget. Não se preocupe.

      — Mas, meu Deus!, a senhora não sabe o que aconteceu?

      Surpreendida com a delirante excitação de Breuget, Catherine sentiu os lábios úmidos.

      — Que há?

      — Procuro-a por toda parte desde a manhã — exclamou Breuget, ofegante. — Não posso mais conter-me senão rebento como um balão. Miss Lorimer, minha cara Miss Lorimer, vendemos o quadro!

      — Quê?!

      — É verdade, sim! Tão certo quanto há um Deus no céu. Tenho vontade de rir, de cantar, de dançar de alegria!

      Catherine viu tudo girando aos seus olhos. Não podia acreditar, e pensava que o velho tinha enlouquecido. Encostando mais o fone ao ouvido, disse numa voz lenta e penetrante:

      — Oh, Breuget, você está doido?

      Ele a interrompeu com uma onda de palavras ruidosas.

      — Graças a Deus, não. Meus cinco sentidos funcionam normalmente, Miss Lorimer. Escute! Deixe-me explicar, por favor, ou terei um ataque. Hoje de manhã, apareceu Ascher, amigo e fraternal. Deplora a morte de Brandt, e tudo que se lhe segue. Tagarela meia hora sobre uma porção de coisas. Depois desembucha seu negocinho: está incumbido de nos oferecer 100 mil dólares pela miniatura.

      Catherine teve nova vertigem. Segurou-se às bordas da mesa e teve de reunir todas as forças para não cair. Devia, sem dúvida, acreditar no que Breuget lhe contava. Murmurou, com a voz sumida:

      — Espero que você tenha aceito.

      — Mas é claro — urrou ele.

      Houve um silêncio emocionado, e depois Catherine baibuciou:

      — Então, apesar de tudo, vendemos a miniatura... Cem mil dólares.

      — É fato! — vociferou Breuget, numa explosão de alegria. — O cheque está passado. Mandei-o ao banco às 11h30min. O dinheiro já está à nossa disposição. Fique no hotel, Miss Lorimer. Chego aí imediatamente.

      Sentindo que as forças a abandonavam, Catherine deixou cair o fone. Um forte soluço lhe sacudiu a garganta, e ela rolou no divã. A luz apagou-se em torno; fez-se noite. Pela primeira vez na vida, Catherine desfalecera.

     

      O dia nasceu claro e frio, sob a imensidão do céu azul. O sol dourava a cidade. Catherine, cuja agitação cedera lugar a um sentimento de profundo e sereno reconhecimento, estava sentada, no quarto, e escrevia para Londres. Já dera por telegrama a boa-nova a Walters, determinando-lhe as providências a tomar junto ao banco, e queria contar igualmente tudo à mãe.

      Mal terminou, bateram à porta. Era um telegrama. Abriu-o e leu:

      "Chego segunda Europa stop Première Nancy má desculpa stop Vou buscar-te stop Amo-te Charley"

      Então Charley punha em execução sua ameaça? Sorriu com doçura, enquanto largava o telegrama. Sentia-se, de certo modo, reconfortada em pensar que ia revê-lo. Era um amigo fiel e tão certo! Tinha, é verdade, aquela insensata pretensão. Se até aqui ela lhe dera poucas esperanças, com maioria de razões agora não lhe daria mais nenhuma. Contudo, sabia que encontraria sempre em Charley um refúgio e um amparo. Ele estava presente sempre que Catherine precisava de ajuda. Não seria esta a solução do problema criado pelo seu amor por Madden, a resposta fácil a todas as suas angústias? Por um momento, ficou mergulhada nesses devaneios, e seu rosto retomou uma expressão melancólica.

      Depois se dominou, fechou e selou as cartas e levou-as ao correio. Ao voltar para o quarto, olhou pela janela. O tempo estava de uma beleza irresistível. Oh! a alegria de sentir de novo a terra firme debaixo dos pés! Mas para isso fora preciso um verdadeiro milagre.

      Ascher comprara a miniatura. Evidentemente não era para ele, mas para algum cliente. Breuget suspeitava que fosse Joe Sharp, o magnata do aço de Pittsburg, para quem Ascher habitualmente trabalhava. Até então, Sharp só comprara obras da escola pré-rafaelita, mas podia ter tido uma veneta e se interessar agora por outros gêneros. Que importava aliás a pessoa do comprador? Com aquele dinheiro, Catherine encontrara de novo sua chance, e estava profundamente convencida de que não a deixaria escapar nunca mais.

      O telefone tilintou:

      — O Sr. Madden deseja vê-la, Miss Lorimer. Pode subir?

      Tomada de espanto, ela ficou imóvel, e o sangue refluiu-lhe das veias para o coração. Sentia de novo aquele martelar que lhe fazia arfar o peito e lhe apertava a garganta.

      — Sim — conseguiu, afinal, responder. — Mande subir.

       Era natural que ele voltasse para assistir à première de Nancy, mas o simples fato de ouvir pronunciar o seu nome mergulhava Catherine numa perturbação feita de medo e de alegria.

      Madden entrou com uma pressa que não lhe era comum, mas por isto ou por aquilo se esqueceu de apertar a mão dela. De pé, a alguns passos de Catherine, observava-a com singular insistência.

      — Nancy está no teatro — disse ela. — Tem muito que fazer e quase nunca pára aqui. Mas vou telefonar já para ela.

      — Não telefone. Eu a verei mais tarde.

      Catherine deixou cair a mão que já estendia para o telefone. Se bem que Madden se comportasse com a reserva habitual, ela o sentia preso de uma superexcitação que a intimidava. A despeito de sua inquietação, forçou um sorriso.

      — Quando chegou?

      — Agora mesmo. Passei toda a noite no trem.

      Ele falava entre dentes, mas sua voz tinha um timbre estranho, diferente do habitual.

      — Catherine, eu gostaria de conversar com você, se não se importa.

      Ela o encarou surpresa. Seu rosto pálido e sombrio traía, sob a máscara rígida, um profundo sofrimento. Estava vestido ainda mais negligentemente do que de costume, e rodava o chapéu entre as mãos. Bruscamente, Catherine adquiriu a convicção, que lhe já aflorara à mente, de que ele tinha preocupações de negócios.

      Mais de uma vez suspeitara que Madden gastava mais do que devia; recentemente discutira com a sobrinha a esse respeito. Ele tinha também obrigações em Graysville: a mãe, a manutenção da casa e tudo que com isso se relacionava. E agora, após longas e dispendiosas férias, voltava para Cleveland, e sem dúvida encontrara a fábrica em muito má situação.

      Ainda que não houvesse fundamento para essas suposições, era assim que Catherine explicava a aparência de derrota de Madden. Depois das experiências por que acabava de passar, sentia-se cheia de compaixão, e experimentava um terno desejo de ajudá-lo, e, se possível, aliviá-lo das suas preocupações. Aproveitou a ocasião:

      — Escute — disse ela com a voz mais jovial que pôde — num dia tão bonito não se pode ficar fechado em casa. Eu não tenho nada que fazer. Se almoçássemos juntos?

      — Almoçar? — fez Madden como se fosse a última coisa em que ele pudesse ter pensado.

      — Sim, almoçar — repetiu Catherine com decisão. — Poderemos assim conversar tranqüilamente: se começamos, devemos ir até o fim. Você parece terrivelmente preocupado. Um dia de ar livre lhe fará bem, e Nancy não estará aqui antes das 4 horas. Tenho uma idéia. Vamos subir o Hudson, até o Mountain Bear Inn. Com este tempo, será maravilhoso!

      A fisionomia de Madden resplandeceu, e ele repetiu as palavras da amiga:

      — Será maravilhoso! — Houve uma pausa, durante a qual ele pareceu voltar à realidade. — Vou arranjar um carro.

      — Não — protestou Catherine, decidida. — Isto é comigo. Se acredita que pode continuar a atirar dinheiro pela janela, está errado.

      Ela telefonou para a gerência, e pediu um automóvel. Dez minutos depois, enrolados em cobertores no fundo de uma comprida limusine, os dois rodavam através das ruas escuras, atravessavam a ponte e atingiam a margem esquerda do rio. Passado o subúrbio, vararam pelo campo ao longo do Hudson, cujas águas rugidoras estavam acrescidas das que se desprendiam das neves. Do outro lado, erguiam-se as colinas nevadas cobertas de pinheiros entanguidos. O ar estava puro e gelado, a estrada endurecida como pedra, e uma forte claridade banhava todas as coisas.

      Catherine mal compreendia como lhe acudira a idéia daquela escapada. Talvez fosse o desejo secreto de encontrar de novo um pouco de atmosfera de Vermont. Seu coração transbordava de alegria. De qualquer modo, era impossível alguém escapar ao encantamento que emanava da paisagem. Num movimento rápido e revestido de boa camaradagem, ela se voltou para Madden e lhe perguntou num tom que se esforçava por tornar tão despreocupado quanto possível:

      — Não está arrependido de ter vindo?

      — Não — respondeu Madden, sem a olhar. — Sinto-me muito feliz.

      Ela sorriu, e como não podia impedir-se de estabelecer uma comparação entre aquele dia e o da véspera, descreveu para o companheiro sua peregrinação desesperada e o feliz desfecho da aventura.

      — Então vendeu o quadro? — fez Madden, quando ela terminou. — Estou muito contente.

      — Sim, agora estou rica, e é o momento oportuno para me tomarem dinheiro emprestado.

      Ele não prestou atenção a essa observação, que, entretanto, visava estimulá-lo a falar dos seus negócios. Sem mesmo tentar renovar a conversa, mergulhou no silêncio. A cabeça um pouco inclinada para a frente, parecia absorvido numa meditação profunda e sem finalidade.

      Súbito, uma parede de rochedos se levantou diante deles, mas, por uma brecha que parecia ter sido aberta pelo punho de algum gigante, seus olhares descortinaram uma paisagem de suaves ondulações, por onde corria o rio. Abandonaram, então, o curso do Hudson, tomaram um caminho particular, contornaram o sopé de Mountain Bear e pararam defronte de um restaurante. Nesse recanto, a neve era mais espessa, e, nas escarpas menos íngremes, grupos de jovens divertiam-se com seus esquis.

      Catherine e Madden desceram do automóvel. A neve rangia sob seus passos. Um velho porteiro, de boné e com grandes luvas de pele, fê-los atravessar o vestíbulo e galgar uma larga escadaria cujas paredes eram decoradas com caixas de vidro contendo borboletas exóticas. Entraram no refeitório, um salão com forro de madeira, ornado de troféus de caça, e bem instalado. Numa lareira em semicírculo, ardiam enormes achas.

      A última vez que Catherine estivera ali fora em pleno verão, e a sala regurgitava de passeantes e automobilistas. O décor de uma simplicidade rústica lhe agradava mais assim como estava agora. Disporiam do local para eles só, provavelmente, porque eram duas horas passadas. Sentaram-se diante de uma janela, perto do fogo, tendo à sua frente o magnífico panorama das montanhas.

      O almoço foi simples mas suculento. Madden não tinha grande apetite. Quase não falava, mas se mostrava muito solícito com Catherine, e seu olhar perquiridor e profundo não a largava. Sob seus olhos, que a fixavam, Catherine se sentia tomada de uma vaga sensação de fraqueza. Depois de um silêncio particularmente prolongado, falou, forçando um sorriso:

      — Nós tínhamos alguma coisa a discutir, não é verdade?

      — Sim — aquiesceu Madden pausadamente — ou pelo menos eu lhe havia rogado que me ouvisse, porque tenho alguma coisa a lhe dizer, Catherine.

      Ela baixou os olhos. Madden pronunciava o seu nome num tom que lhe transtornava o coração. Como seria feliz em poder ajudá-lo, e, não importa como, facilitar-lhe as coisas!

      — Está preocupado — insinuou ela precipitadamente — mas deve saber que poderá sempre contar comigo.

      E, depois de uma pausa, acrescentou:

      — Trata-se de assunto de dinheiro?

      Uma expressão de aturdimento manifestou-se na fisionomia de Madden. Ele a encarou e sacudiu lentamente a cabeça.

      — Como pôde ocorrer-lhe essa idéia, Catherine? Dinheiro eu tenho bastante.

      Sua tranqüila segurança era mais convincente do que todos os protestos. Não havia dúvida. Aterrorizada, ela percebeu que estava em pista errada. Mas, então, que haveria? Estremeceu; não podia olhá-lo de frente.

      Com uma voz calma, como um homem que enuncia uma verdade incontestável, Madden falou:

      — É alguma coisa mais importante, Catherine, muito, muito mais importante. Eu te amo!

      Ela ficou completamente imóvel na cadeira. Em suas artérias o sangue pôs-se a rolar em ondas precipitadas, como uma torrente selvagem. Os dois estavam inteiramente a sós na sala. O corpo de Catherine se distendera ao calor do fogo, e uma sensação de bem-estar lhe perpassava os membros.

      — Eu julgava amar Nancy — continuou Madden com a mesma voz contida e baixa — mas era pura imaginação, era o efeito de uma cara bonita depois de tantos anos de trabalho duro. A juventude, o Mediterrâneo e todo aquele cenário. Agora eu sei. Não sabia antes de encontrá-la. É o grande amor que só aparece uma vez na vida. Nunca pensei que pudesse haver isso. Há dias tento lutar. Mas isto não tem sentido. Não posso mais, não posso, absolutamente, resistir. Quero que ao menos você saiba: eu a amo... sim, Catherine, eu a amo.

      Não podendo mais suportar, Catherine desviou o rosto.

      — Não pode ser — disse ela — é impossível.

      — É verdade.

      Ela tinha lágrimas nos olhos. Levantou-se como cega, e apoiou-se à janela.

      — Perdoe-me, Catherine. Eu precisava dizer-lhe. Experimentei silenciar mas não pude.

      Madden levantou-se, por sua vez, foi até ela e se conservou numa atitude de súplica muda. Fora, começara a nevar. Espessos flocos passavam por trás das vidraças como sombras claras; e era essa a única nota viva na paisagem. A Natureza inteira estava parada numa imobilidade total; as árvores pareciam sentinelas com capotes brancos.

      O céu era de um amarelo-açafrão e sob sua cúpula infinita a terra jazia, alva e brilhante. Essa calma e essa beleza deram o último golpe no coração de Catherine. Apertou as têmporas com as mãos: sentia-se vencida e sem forças.

      — Deixe-me só — cochichou ao amigo — peço-lhe, deixe-me só.

      Recaiu o silêncio, um silêncio profundo e torturante. Os flocos de neve evolavam-se agora mais rápidos, como minúsculos pássaros brancos arrebatados no espaço.

      — Compreendo — disse afinal Madden em voz surda — não gosta de mim.

      Então a primeira resistência de Catherine foi quebrada. Seu coração batia tão forte no peito que todos os seus pensamentos se embaralhavam. Um frêmito de ternura a percorreu toda, e, reprimindo um soluço, virou-se para ele:

      — Chris, você bem sabe que eu o amo de todo o coração...

      E viu-se nos braços dele, seus lábios entregues aos dele, as faces ensopadas de lágrimas. Durante alguns segundos, ela o estreitou contra si. Uma felicidade indizível, tal que o seu coração não podia contê-la toda, a envolveu.

      Depois, soltando um grito, ela se desprendeu de um golpe.

      — Chris! Não devemos fazer isso! É impossível! Devemos pensar em Nancy.

      Ainda mais pálido do que ela, Madden tomou-lhe da mão e a conservou entre as suas como se não quisesse mais largá-la.

      — Devemos também pensar em nós mesmos. Nós nos amamos. Nada mais tem importância.

      Ela havia readquirido a lucidez. Estava perturbada até o mais profundo do seu ser, mas lutava desesperadamente para se dominar.

      — Há sim, Chris, outra coisa. Nancy o ama. Contra isso nada podemos. Nunca, nunca, nunca! Você tem deveres para com ela, e eu também.

      Ele cerrou os dentes, e, apelando para todas as suas forças, quis resistir.

      — Catherine, meu amor, compreenda! Você gosta de mim, me pertence...

      — Eu compreendo, Chris. Mas era preciso primeiro que você pudesse pertencer-me, e você pertence a Nancy. Sabe o que eu represento para ela. Não posso fazer-lhe nenhum mal. Nunca na vida! E você também não, não pode.

      Ele não respondeu. Tinha o rosto desfigurado pelo sofrimento. Olhou-a nos olhos, porém ela sustentou o olhar, e então ele baixou as pálpebras. Fora, a neve, que continuava a cair, amontoava-se suavemente contra as vidraças.

      Com um soluço sufocado, Catherine se pôs a arrumar a bolsa para partir. Havia nos seus gestos alguma coisa de decisivo, que o aterrou. Estava tão perto dela que podia respirar-lhe o perfume dos cabelos. Contendo a respiração, disse-lhe numa voz despedaçada:

      — Eu sabia que seria assim, Catherine, desde o primeiro instante em que a vi. Mas, ao menos, sabendo o que sente por mim, meu sofrimento fica menos pesado.

      Ela não respondeu; apenas o encarou. Madden sentiu-se como inundado pela grave beleza daqueles olhos, mas a amorosa angústia que lia neles impôs-lhe silêncio. Seu coração ficou gelado em seu peito, e ele a acompanhou à saída.

     

      A volta para Nova York foi uma silenciosa tortura. Madden permanecia calado, encolhido no seu canto. Catherine olhava fixamente a paisagem através da portinhola. Seu rosto estava pálido, marcado pelas olheiras, e ela apertava o queixo de encontro ao agasalho de pele. Como conseguiu chegar até o seu quarto sem cair, era o que, depois, não podia compreender.

      Cinco horas. Nancy voltara do teatro, trazendo consigo Bertram, Paula Brent e John Sidney. Os coquetéis circulavam, e Nancy, que ia esvaziar o seu segundo copo, ficou encantada de rever Madden.

      — Alô, querido! — exclamou em tom jovial. — Eu só o esperava amanhã de manhã. Como é gentil de sua parte. Vem, que lhe dou um beijo bem gostoso!

      Na sua excitação, Nancy não atentara na dolorosa hesitação de Madden ao atravessar a porta. Não desconfiou tampouco da luta penosa que se travava nele, enquanto se aproximava dela. Correu ao encontro do noivo, pendurou-se no pescoço dele e beijou-o.

      — É tão bom vê-lo de novo — suspirou com satisfação. — Tive um dia tão fatigante! Bertram nos trata como cachorros, e eu precisava sentir você junto de mim.

      Tinha as faces rosadas e os olhos brilhantes. Atraiu-o para si e observou-o com riso feliz. Catherine desviara os olhos; estava pálida mas se dominara. Só o tremor dos seus lábios traía ainda o seu tormento.

      Paula Brent, estendida numa espreguiçadeira em atitude pitoresca, examinou, surpresa, os dois recém-chegados.

      — Mas de onde vêm vocês? Parecem gelados, como se viessem do alto da montanha!

      Catherine sentiu todos os olhares convergirem sobre ela.

      — Acertou — disse enfaticamente, retirando as luvas — fomos às montanhas. Estivemos sentados lá em cima, acima do Hudson. Estava magnífico, com essa neve.

      — Nas montanhas do Hudson? — repetiu Sidney, incrédulo.

      Era um rapaz insípido e displicente, de cabelos ondulados, elegantemente vestido.

      — Deus do céu! — exclamou ainda com um arzinho superior.

      — Não, acho muito interessante — replicou Paula Brent. — Já viu uma avalancha? John, dê-me um cigarro.

      Catherine corou imperceptivelmente. Bertram, também ele a observava. Mas com um ar de segurança tranqüila, ela se aproximou de Nancy e sentou perto dela.

      — Então teve um dia de muito trabalho?

      Nancy ergueu um copo vazio.

      — Simplesmente terrível para todos nós — exclamou, exaltada. — Graças a Deus, começamos segunda-feira. Bertie nos dirige como a animais de circo. Já lhe disse, não é verdade? Jumbo, salta! Salta comigo através dos arcos! Ou: cuidado com a gravata! Mas eu estou muito contente porque Chris voltou. Vamos sair todos juntos, não é? E passar uma noite agradável. Será maravilhoso. Tome um coquetel, Catherine!

      Catherine recusou. Após o ar puro e gelado da montanha, aquela atmosfera superaquecida e fumacenta fazia-a sentir-se como doente. Viu que Madden também não bebia nada. Então, voltou-se para Bertram:

      — Está satisfeito com os ensaios?

      Ele riu, espichou as pernas, e com ar misterioso olhou para o bico dos sapatos.

      — Será que algum dia estou contente, eu? Mas uma coisa posso dizer-lhe: é que esta sua impertinente sobrinha não é, entretanto, destituída de talento.

      Nancy fez uma careta.

      — Um cumprimento do domador! Jumbo, salta! Que alguém ligue o rádio e em seguida partamos em bando e vamos nos divertir!

      O jovem Sidney aumentou o volume do rádio, e Nancy largou Madden para ir pintar os lábios. Com um traço preciso e minucioso, espalhava o baton, que combinava exatamente com o esmalte vermelho das unhas.

      Uma vez mais Catherine admirou o encanto e a vida que emanavam do rosto da sobrinha. Os supercílios estavam talvez depilados demais, e a boca sublimada de modo um pouco arbitrário; mas a fronte era inteligente e os olhos notáveis por sua beleza. Se bem que seus movimentos fossem calculados, só queria fixar o que restava neles de graça espontânea e de juventude. Estremeceu ligeiramente. Não, nunca seria capaz de fazer-lhe mal. Nancy podia ter seus defeitos, ser egoísta, fria e muito leviana; mas era ainda uma criança. Quando chegasse à maturidade, suas qualidades profundas se expandiriam. Seu casamento com Madden lhe abriria novos horizontes. E sobretudo ela adquiriria uma concepção da vida inteiramente diversa.

      — Que houve? Não vêm? — perguntou Nancy. — Poderíamos ir jantar no Rainbow, e depois ir ouvir os novos cantores tiroleses, não?

      Madden tomou uma expressão imperturbável. Foi com esforço que falou:

      — Não creio que tenha disposição para sair ainda esta noite, Nancy.

      — Parece-me — falou Paula, olhando-o por cima dos ombros — que os montanheses estão um pouco cansados.

      — Mas, querido — protestou Nancy com um ar dengoso — não fará isto com sua mamãezinha. O amorzinho vai ser bem bonzinho com a mamãezinha!

      O próprio Bertram explodiu numa gargalhada. Era verdadeiramente cômico ver Nancy arremedar assim a denguice dos americanos. Só Madden, que olhava pensativo para o soalho, não participou da hilaridade. Sentia o olhar de Catherine, que pesava sobre ele. Afinal, fez um sinal de assentimento, e levantou-se.

      — Está bem, Nancy, vou.

      Prepararam-se todos para sair. Nancy tomou o braço de Madden, Sidney engoliu às carreiras um último aperitivo, e Bertram ajudou Paula a vestir o casaco. Mas Catherine, que pretextara dor de cabeça, não os acompanhou. Desejava que Madden e Nancy pudessem ficar a sós. Rogou a Deus que tudo se arranjasse entre eles, e foi do fundo do seu coração que partiu esta súplica.

     

      Na manhã seguinte, Catherine tinha uma entrevista de negócios em Riverside Drive, com uma Sra. Van Beuren, que, por informações de Breuget, manifestara interesse pelas suas tapeçarias de Beauvais. Na realidade, essas tapeçarias não lhe pertenciam mas lhe foram confiadas pela casa Richet & Cia., de Paris. Se as vendesse bem, caber-lhe-ia uma comissão importante.

      Graças àquele domínio de si mesma, que era um dos traços marcantes do seu caráter, Catherine readquirira toda a sua destreza. Vestiu um costume, e, às 9h30min, punha-se a caminho para o escritório. Breuget que, mais ainda do que habitualmente, brilhava como uma moeda nova, já a esperava. Correu-lhe ao encontro.

      — Embalei tudo bem, Miss Lorimer. Podemos apanhar o pacote imediatamente.

      — Está bem.

      Ele ria, esfregando as mãos.

      — Não disse, desde o primeiro dia, que íamos galgar a encosta? Venderemos as tapeçarias. Faremos este ano excelentes negócios...

      Fez um pequeno gesto de cabeça, cheio de promessas, saiu na frente, chamou um táxi, instalou cuidadosamente Catherine, amarrou o precioso embrulho e entrou no carro.

      — É estranho, Miss Lorimer — disse após sentar-se confortavelmente — eu submeti Ascher a um torniquete em regra, mas nada pude arrancar dele quanto ao comprador da miniatura.

      — Tem alguma importância isto? — perguntou ela distraidamente.

      — Meu Deus, não, desde que não temos mais nada com o negócio. Mas, de qualquer modo, a gente tem curiosidade. Pense: uma obra tão célebre, e de repente puf! desaparece do mercado.

      — Você não disse que o comprador devia ser Sharp?

      — Não. Não foi ele. Isto eu sei. Sharp continua fiel aos pré-rafaelitas.

      — Será que Ascher quis ficar com o quadro para si mesmo?

      — Não. Ele me convenceu de que já o mandou ao cliente.

      — Realmente — suspirou Catherine — é estranho... Mas não quebremos a cabeça com isso. É página virada. Pensemos nos nossos projetos.

      Chegados a Riverside, eles se encontraram diante de uma casa coberta de telhas, de janelas emolduradas de faiança e com uma bela grade de ferro fundido, cujo aspecto mostrava que aquela residência outrora célebre conservava vestígios do antigo esplendor. A Sra. Van Beuren se tomara de paixão pelas tapeçarias mas não sabia onde as pôr. Tinha já muitos quadros nas paredes da sala de jantar, e as tapeçarias não combinavam com o salão do primeiro andar.

      Catherine falava pouco. Seguia a Sra. Van Beuren através da casa e a escutava atenta. Mas, ao primeiro golpe de vista, verificou que o hall de entrada constituiria o lugar ideal.

      — Está inteiramente satisfeita com o seu hall? — perguntou à cliente, descendo para o térreo.

      — Para dizer a verdade, não estou.

      A Sra. Van Beuren olhou em torno de si com um ar de dúvida.

      — Acho que falta proporção.

      — Então deixe-me tentar uma experiência. Poderíamos fazer dele a melhor peça da casa.

      Com a ajuda de Breuget e de um empregado da casa, Ca-therine retirou uma série de gravuras bastante insípidas que decoravam a parede principal e colocou no lugar delas uma tapeçaria representando uma cena de caça. Puxando para trás uma arca italiana que estava meio escondida a um canto, instalou nas duas extremidades dois altos castiçais que descobrira no salão atravancado e colocou entre os dois um prato retangular de prata lavrada.

      A metamorfose era surpreendente. O hall ganhara um aspecto inteiramente diverso, e o próprio Breuget aplaudiu calorosamente a reforma, balançando a cabeça. Mas a mulherzinha no seu entusiasmo não parava de falar.

      — Sobretudo não mexa mais! — gritava. — Nem um milímetro! Isto deve ficar assim, exatamente assim!

      — Sim, mas defronte, na outra parede, falta um grande espelho biseauté de moldura estreita — opinou Catherine. — Nós temos um exemplar magnífico do tempo de George I, que resolveria muito bem.

      — Sim, sim — murmurou a Sra. Van Beuren — irei logo amanhã vê-lo.

      No caminho de volta, Breuget se pôs a rir e depois, voltando-se respeitoso para Catherine, falou:

      — Eu não tinha razão? A encosta está vencida, e chegamos ao cimo. Eu o havia sentido nestes velhos ossos!

      O cimo... Que significação podia ainda ter essa palavra para Catherine, pobre dela! A um pretexto qualquer, ela se fez conduzir à Rua 57 e voltou a pé para o hotel. Lembrara-se, de repente, de que Upton ia chegar naquele mesmo dia, e que ela devia ir esperá-lo. Mas a que horas o Europa atracaria?

      Ao entrar no quarto, seu primeiro pensamento foi que Charley já devia ter chegado, porque um grande pacote de flores descansava sobre a mesa. Mas quando o abriu, viu que se enganara. Era um magnífico ramo de cravos. Tinham um frescor virginal, exalavam um doce perfume e seu aspecto era um bálsamo para os olhos. Vinha da parte de Madden. Então reacendeu-se a dor no coração de Catherine. Com os olhos semi-cerrados ela premiu suavemente a face contra as macias corolas. A beleza dos cravos lhe era intolerável, tanto aquelas flores lhe pareciam conter em si toda a tristeza de sua felicidade perdida. Ficou assim muito tempo, e, como levantasse os olhos, deu com o espelho na parede. A visão que se apresentou ao seu olhar deixou-a num estupor. Tinha diante de si, como a evocar um passado distante, a imagem exata da miniatura, enriquecida de toda sua história. "A Dama dos Cravos"... — pensou tristemente. — Estava ali, em verdade, todo o seu destino.

      Nem uma carta, nem uma palavra acompanhava o buquê. Ela sabia que Madden ia telefonar-lhe; e quase no mesmo instante a campainha tocou. A voz era baixa e morna.

      — Preciso vê-la, Catherine — disse ele. — Preciso vê-la imediatamente.

      Catherine refletiu rapidamente. Fortalecida pelos acontecimentos das últimas horas, havia firmado de modo irrevogável sua decisão. Mas era claro que devia conceder ainda a Madden um último encontro nem que fosse para lhe comunicar sua resolução. Sua descaída passara. Saberia agora ser forte, e não perder de vista o fim que se traçara. Não querendo almoçar com ele, pensava num lugar a lhe propor para o encontro. De repente, lembrou-se do Metropolitan Museum. Era um cenário que lhe convinha.

      Às 2h 15min, transpôs a porta do museu. Madden já a esperava, andando de um lado para outro, no saguão, diante da borboleta. Estendeu-lhe a mão em silêncio. Mas se ela imaginara que a conversa se desenrolaria naquele local varrido pelas correntes de ar, sob o olhar das estátuas majestosas que os contemplavam do alto, enganara-se. Madden a levou para uma sala afastada, onde estavam expostos móveis do primeiro período da história dos Estados Unidos. E em seguida a arrastou para uma peça de madeira lavrada, procedente da costa do Maine, e aí parou e pôs-se a contemplá-la. Ela mediu então a profundeza do sofrimento do amigo. Sua vivacidade da véspera desaparecera. Parecia esgotado, e em sua voz se percebia um estranho cansaço.

      — Catherine, eu precisava estar com você! Ontem não pudemos conversar. Você tomou aquela resolução num momento de exaltação. Talvez tenha refletido melhor. Catherine, nós não podemos viver um sem o outro. Vê-la é para mim uma felicidade inexprimível. Passei toda a noite sem dormir, pensando em você. Só há uma resolução. Devemos partir juntos.

      Ela compreendeu desde logo que seria mais duro, infinitamente mais duro do que pensara, e foi buscar no mais profundo do seu ser a coragem necessária para resistir.

      — Fugir? — perguntou com um pálido reflexo do seu antigo sorriso nos olhos. — Fugir como duas crianças? Eu tenho outro modo de ver as coisas, Chris. Estamos acima disto, parece-me.

      — É preciso agir — disse ele com a voz alterada. — Não podemos despedaçar as nossas vidas.

      À custa de um esforço extremo, ela conseguiu adotar um acento aparentemente despreocupado.

      — Seria o que nós faríamos, se fugíssemos. Nós mesmos nos julgaríamos lamentáveis e covardes.

      — Mas por que, Catherine?

      — Você se esquece de Nancy?

      — Não a esqueço. Mas não é a mesma coisa; a vida de Nancy não depende da minha. Nancy pertence a outra geração, mais dura e mais fria. Não notou, ontem de noite, quando voltamos? E em Vermont? Os outros bem que o observaram, ainda que não dissessem nada. Ela refará a vida mais facilmente do que nós, e terá menos dificuldade em esquecer.

      Catherine sacudiu a cabeça.

      — Ela o ama. Não, Chris! Não podemos fazê-la sofrer, afastá-la para que nós mesmos sejamos felizes. Muito menos podemos desonrar-nos aos nossos próprios olhos. Se, como diz, temos uma concepção profunda da honra e da fidelidade, não devemos traí-la. Não vê, Chris, que só uma coisa prima sobre todas as outras, e que é a retidão?

      — Não sobre "todas" as outras.

      Arrebatado pela emoção, Madden tomou-lhe a mão e a apertou contra a sua face.

      — Não, Chris, não!

      Ele a largou, ficou ofegante, as mãos pesadamente caídas sobre uma mesa, o rosto esquivo, como se não suportasse mais olhá-la face a face.

      — Por que faz isto? — disse Catherine com uma voz surda. — Não vê que torna o dever ainda mais duro para nós?

      Presa de uma vertigem de paixão, ele a contemplou por muito tempo. Mas Catherine conseguiu encouraçar-se contra o desejo selvagem que lia nos seus olhos. Sentia que estava na obrigação de resistir; devia resistir de qualquer modo. Se não, estariam perdidos.

      Um longo e pesado silêncio se fez entre os dois. Madden permanecia de pé diante dela, branco como um morto, e lhe escrutava a fisionomia. Leu-lhe nos olhos uma resolução inabalável. O olhar fixo, como o de um cego, ele olhava pela janela. Alguns minutos se passaram. Por fim falou:

      — Está bem, Catherine. Se pensa assim, nada mais tenho a dizer. Vou levá-la para casa.

     

      Naquela mesma tarde, Nancy chegou ao hotel às 3h 30min. Não esperava estar livre antes das 5, porque Bertram decidira fazer ainda um ensaio geral antes da première. E avisara Catherine de que não estaria de volta antes da hora do chá, mas não previra que Bertrand mudaria de opinião e despacharia toda a companhia com ordem formal de repousar, a fim de que todos estivessem saudáveis e bem dispostos às 8 horas.

      Nancy foi docilmente para casa a fim de deitar-se. Desejando cair na cama imediatamente, evitou passar pelo salão e entrou para o quarto pela porta lateral, sem fazer ruído. Estava inteiramente absorvida pelos seus pensamentos, preocupada exclusivamente com sua próxima entrada em cena. Súbito ouviu vozes ao lado. Surpresa, ficou imóvel no meio do quarto. Reconheceu, perplexa, a voz de Catherine e a de Madden. Sua fisionomia mudou. Percebia nitidamente todas as palavras do que diziam os dois. Eles evidentemente acabavam de chegar e se despediam. Um estranho adeus, cheio de reserva, e, entretanto, sombriamente eloqüente. Cada palavra atingia Nancy como um golpe de clava. Permaneceu pregada no mesmo lugar até que percebeu que Madden se retirava. Cinco minutos depois, Catherine também saía.

      Um grito que era ao mesmo tempo um soluço e uma infantil exclamação de horror subiu da garganta de Nancy. Inteiramente atordoada, entrou na sala. Estava incapaz de pensar, as frases que acabara de surpreender ocupavam-lhe toda a mente. Seu olhar errava sobre as coisas, abstrato. Então Chris amava Catherine! Sim. Chris, com quem ela ia casar-se no sábado seguinte, amava Catherine. Uma onda de cólera a percorreu, cedendo depois a uma frieza mortal. Atirou-se ao sofá, mordendo os lábios. Compreendia o que se passara, como se houvesse visto. Catherine e Madden se esforçavam, ambos, por lhe proporcionar a felicidade. Sua altivez encrespou-se. Sentia-se impotente e escarnecida, ela tão segura e confiante em si mesma. Sim, toda a vida foi assim: aceitara todos os bens, como se lhe fossem devidos, achava natural. Por uma revelação fulminante, descobria agora o que era na verdade, e onde estava. Rebentou em soluços.

      Não sabia há que tempo estava ali estendida a chorar. Deitou-se de costas. Seus olhos tomaram uma expressão estranha, seu corpo vigoroso e encantador jazia num total abandono. Não estava em condições de coordenar as idéias, mas parecia-lhe que sua sensibilidade ganhara em acuidade e em profundeza. Bastaram aqueles minutos intensos para que se despojasse de sua aparência infantil. Bruscamente deixara de ser uma criaturinha superficial e atingira a plena consciência de si mesma. Em seu derredor, os contornos das coisas se esfumavam. Imóvel, seguia o curso das réstias do sol na parede; mas constantemente voltava-lhe o sofrimento para paralisar o esforço do seu pensamento. Tinha a obscura intuição de um lento trabalho de dissolução, que nela se processava, de uma espécie. de renascimento interior em que seu espírito se expandia como uma luz, e que lhe trazia um calor novo.

      Suspirou profundamente, ergueu-se e olhou o relógio. Eram quase 5 horas. Pediu chá, bebeu uma xícara e acendeu um cigarro. Pouco depois abriu-se a porta e Catherine entrou.

      — Como? — exclamou atirando o chapéu sobre a mesa — Já está aí?

      Nancy fez um breve sinal de cabeça.

      — Cheguei neste instante. Tome uma xícara de chá comigo.

      Nancy falava com uma calma extraordinária. Serviu o chá, e ficou escutando Catherine que lhe contava a chegada do Europa. Upton estava de excelente humor, e muito contente por poder assistir à première.

      Calaram-se as duas, e depois Catherine perguntou com um ligeiro sorriso:

      — Como se sente para a estréia?

      Nancy olhou para o teto.

      — Muito bem. Por quê?

      Catherine pousou a xícara na mesa.

      — Oh! Não sei. Receava que estivesse nervosa. Oferecia-me para qualquer coisa em que lhe pudesse ser útil.

      Houve uma pausa. Nancy esmagou o cigarro no cinzeiro sem voltar a cabeça.

      — Não preciso reanimar-me com licores ou bolos — observou com um sorriso misterioso. — É coisa do tempo dos espartilhos, do medo, dos desmaios e das crises de choro.

      — Tudo correrá bem, espero. Não é preciso dizer mais nada.

      O ar distante de Nancy surpreendia Catherine. Ela contava que a sobrinha ficasse, antes da première, numa certa agitação febril. Ora, a garota parecia, ao contrário, extraordinariamente calma, indiferente mesmo.

      Não tirou disto outra conclusão senão a certeza em que Nancy estava de sua felicidade. Quanto ao mais, muito pouco se preocupava com o sucesso ou o insucesso da peça. Isto pouca importância tinha para ela. Por amizade a Nancy, devia assistir ao espetáculo, mas estava firmemente resolvida a deixar logo em seguida, o mais rápido possível, os lugares onde vivera seu doloroso romance de amor. Era uma resolução irrevogável. O Pindaric partia no domingo seguinte. Uma vez a bordo, esse episódio de pungente loucura estaria para ela definitivamente encerrado. Tinha a convicção de que, entregues a si mesmos, Nancy e Madden acabariam por se entender e por esquecê-la.

      Vestiu-se para a noite. Marcara encontro com Upton a fim de jantarem no Pierre. Soaram exatamente as 7 horas; era tempo de sair. Beijou cordialmente Nancy, desejando-lhe felicidade. De novo a impressionou a tranqüilidade da moça. Pensou compadecida: "Está nervosa, e procura disfarçar".

      O jantar foi com um pequeno grupo: o Coronel Ogden, sua mulher, uma Sra. Moran, e, enfim, Charley e Catherine. Ela mostrara o desejo de que fossem poucos os convidados, porque sabia que Charley, que tinha tantos amigos em Manhattan quanto em Mayfair, convidaria de bom grado uma vintena deles. A despeito do sofrimento que lhe feria o coração, o jantar servido à perfeição, a boa acolhida e os vinhos excelentes, e sobretudo a companhia agradável tiveram sobre Catherine um efeito calmante. Os Ogden eram gente importante, sendo o marido considerado um dos maiores banqueiros de Nova York; e a Sra. Moran, uma mulher franzina, morena e inteligente, era esposa ou, como diziam, a "viúva de pólo", de Ralph Moran, um dos ases desse esporte. Catherine suspeitava de que Charley tivera com a Sra. Moran um caso, que, com o tempo, tomara a forma de uma terna amizade.

      Naquela noite, Charley se superou. Com sua loquacidade e suas anedotas manteve a mesa sempre em hilaridade. Deitava champanhe, sem parar, nas taças. À sobremesa, seu riso tinha qualquer coisa de estranho. Gaguejava, ligeiramente, mas nele isto não chocava porque, ao contrário, combinava com sua bonomia natural. Depois de conferenciar com o homem da adega, insistiu em oferecer uma garrafa de um Tokay muito raro. Esse vinho dourado, aromático, capitoso deu o golpe final em Catherine. No momento da partida, ela sentiu que devia a essa leve embriaguez o esquecimento momentâneo de suas preocupações. Era uma sensação muito agradável.

      À sua chegada ao teatro, a sala estava já quase cheia e um incrível vozerio agitava-se no foyer [sala de espera]. Graças ao renome internacional e às suas relações, Bertram tinha, mesmo em Nova York, um imenso público. Não podia contar com esse público como uma claque — e mesmo, mais de uma vez, a assistência não se embaraçara em lhe demonstrar o seu vivo desagrado — mas ele lhe assegurava na premiére a presença de numerosos amigos, mais inclinados à severidade do que à indulgência.

      Do seu lugar, nas cadeiras da orquestra, Catherine examinou a sala e reconheceu muitos habitués [freqüentadores habituais] célebres. Súbito, tudo pareceu rodar ante seus olhos: na extremidade da mesma fila estava Madden, sentado muito perto de Bertram. Sua impressão foi tal que ela pensou ter uma síncope. O sangue deixou de correr-lhe nas veias, depois agitou-se em torrente batendo-lhe nas têmporas. Baixou a cabeça sobre o programa, segurando-o com a mão trêmula, para fingir que lia. Ele não a tinha visto. As luzes se apagaram, e cessou o rumor das conversas. Aliviada, Catherine levantou a cabeça e olhou o cenário, que representava o salão de uma casa de campo inglesa. Aliás, já conhecia a peça.

      O personagem central era um homem de negócios, de idade incerta, chamado Renton, que amava apaixonadamente a mulher. Esta era encarnada por Paula Brent, que fazia uma criatura displicente e felina, inclinada às aventuras. Ao começar a peça, a heroína estava justamente empenhada numa experiência desse gênero, e o primeiro ato era, sobretudo, consagrado às suas efusões e aos acessos de ciúme de Renton.

      Os atores eram bons, e os caracteres bem apresentados. Contudo, o público ainda se mostrava reservado. Talvez fosse um pouco lento o ritmo da peça. Paula Brent, no papel principal, tinha muito estilo. Sua criação era calcada na vida: uma mulher bela e indolente, já madura, com uma predileção pelos deshabillés de seda e pelas luzes coloridas, expandindo-se em olhares langorosos e apertos de mão furtivos. Entretanto, Paula nada tinha de particularmente original. Já aparecera muitas vezes em papéis análogos, e ao cair o pano a assistência não manifestou mais do que uma aprovação cortês .

      — Muito bem — observou Upton, satisfeito — mas ainda não vimos Nancy.

      A Sra. Ogden inclínou-se para ele:

      — É uma desvantagem não aparecer desde o primeiro ato.

      — Não sei — disse o marido num tom de dúvida. — Estou curioso de ver qual será o antídoto dessa Brent. Ela é ótima, mas a gente tem vontade de moê-la a pancadas.

      O segundo ato passava-se no escritório de Renton, alguns dias depois. Nancy fez sua entrada no papel de Madge Rogers, a secretária de Renton. Quando ela apareceu em cena, Catherine teve um pequeno assomo de orgulho. Imediatamente notara que o Coronel Ogden estava com a razão. O público esperava, impacientemente, senão Nancy, pelo menos a artista que devia enfrentar a Sra. Renton, ou, na expressão do coronel, servir-lhe de antídoto, e de ver como o conflito ia se desenrolar. Desde as primeiras frases, que Nancy pronunciou com uma displicente segurança, Catherine se convenceu de que ela até então não tivera melhor papel. De qualquer modo a menina era particularmente dotada para encarnar caracteres ultramodernos; mas dessa vez o personagem parecia feito sob medida. Dava da pequena secretária, bonita e obstinada, uma imagem tão nítida e tão verdadeira que chegava quase a incomodar. Comparada com as travessuras da Sra. Renton, o papel de Nancy ganhava um relevo importante.

      Madge amava Renton. Esse homem honesto e fatigado lhe contava, numa hora de abatimento, todas as suas desgraças domésticas. Com muito sangue-frio, e mesmo audácia, a secretária lhe explicou que ele agia mal com a mulher, era muito tolerante. Devia defender-se mais energicamente, e isto arranjando uma ligação com outra mulher. Era esse o melhor meio de reconduzir a sua esposa à razão. E por devotamento ela se oferecia para fazer nessa aventura o papel de partenaire.

      — Meu Deus! — cochichou Upton a Catherine — Nunca pensei que Nancy fosse tão emancipada.

      A partir dessa cena, o público começou a se esquentar. Desaparecera a reserva do começo; uma atmosfera de tensão ia se apossando da sala. Catherine estava simplesmente encantada. Sabia que Nancy tivera o pressentimento de que aquele papel lhe oferecia as maiores oportunidades; e agora agarrava a sua chance. Fascinava os espectadores pela sua segurança sob a qual transparecia seu amor egoísta pelo Sr. Renton, e pela sua ardente vontade de vencer graças à sua beleza e à sua habilidade. Catherine se agarrava aos braços da poltrona. Jamais vira Nancy representar tão bem. Esqueceu tudo o que a rodeava, e na obscuridade seu rosto se iluminou. De todo coração desejava a Nancy o maior dos sucessos.

      O ato terminava com a resposta de Renton, que, infeliz e fascinado, aceitava a proposta da moça. Logo a sala explodiu em aplausos; eles foram em crescendo até o momento em que Nancy se apresentou só à frente do pano. Fez-se, então, um grande alarido. Ainda febricitantes, os espectadores se levantavam. Em todos os lábios adejava uma pergunta que tocava os ouvidos de Catherine como uma carícia.

      — Quem é ela?

      Sim, era Nancy Sherwood, a descoberta de Bertram. Recordavam-se as reportagens anunciando a chegada de Nancy a bordo do Pindaric. Na sala de espera e nos corredores, o tema era retomado e desenvolvido, acompanhado das suposições mais absurdas. O próprio Bertram, cuja fisionomia estava radiante, era assaltado por pessoas que o interrogavam com curiosidade. Quando Catherine passou por ele, para voltar ao seu lugar, o empresário atirou-lhe por cima do ombro um sorriso cúmplice:

      — Eu não disse?

      Ele acrescentou com um ar confidencial:

      — E tudo isto graças a uma dor de dentes...

      Terminado o intervalo, toda a gente correu para seus lugares.

      — É uma beleza, não se pode nem fumar um cigarro até o fim.

      Ogden exclamou:

      — Tanto pior para o cigarro. Eu quero saber o que vai acontecer!

      Era o estado de espírito geral. Todo o público estava concentrado na atitude de intensa curiosidade. Subiu o pano em meio a um profundo silêncio. O cenário era um quarto de hotel em Littleton-on-Sea, onde Renton fora passar o fim de semana com a secretária. Estava-se no verão, e pela janela entreaberta viam-se o céu azul e o mar. Quando Nancy apareceu, houve algumas palmas, logo reprimidas. Era evidente que ela já conquistara completamente o público.

      Trajava um elegante vestido de praia, de listras grandes, e uma atitude frívola marcava seus menores gestos. Acendendo um cigarro, estendeu-se na espreguiçadeira e considerou com um ar satisfeito os pés de unhas pintadas de vermelho. Anunciou então a Renton, como uma coisa muito natural, que a mulher dele resolveu divorciar-se. Renton não podia acreditar. Mas não era propriamente um gracejo. Madge sabia desde o começo que, longe de reconciliar Renton com a mulher, aquela aventura lhe fornecia o pretexto que ela procurava para obter a desejada separação com todas as desejáveis compensações morais e financeiras. E realmente a Sra. Renton, um instante depois, entrava no quarto.

      A cena que punha frente a frente as duas mulheres, enquanto Renton permanecia aniquilado a um canto, era das mais emocionantes da peça. Dela se desprendia uma impressão de rara violência. Nas intenções do autor, fora escrita para a Sra. Renton. Segundo todas as leis do teatro, esta devia ser a figura dominante do drama. Mas todas as leis do teatro foram subvertidas. Impelida por uma força misteriosa, Nancy não consentia em ser eclipsada pelo personagem principal. Cada golpe recebido, ela o revidava com sangue-frio. Seu texto não a ajudava como o da rival, mas ela sabia como o utilizar de modo a forçar a admiração dos espectadores. A significação do conflito que estava na raiz daquela disputa era ainda mais sublinhada e ampliada pelo choque dos caracteres. Na platéia, que escutava, ofegante, a tensão atingira um grau extremo.

      — Meu Deus, que demoniozinho! — cochichou alguém atrás de Catherine. — Ela representa a peça sozinha.

      À saída, Paula Brent não recebeu mais do que algumas fracas palmas. Todos os olhares continuavam fixos em Nancy. Agora que a mulher fora embora, a secretária usava toda a sua influência para fazer o desgraçado Renton aceitar a solução que ela friamente premeditava: casar com ela. E passando para o quarto vizinho, deixou-o entregue ao seu dilema. De onde o título da peça.

      Renton descobriu então a cilada que Madge lhe armara. Desde o início, ela decidira forçar o casamento. Na sua derrota, Renton percebeu que tinha sido vítima de duas mulheres: a esposa e a amante. Elas haviam tecido a teia em que se deixou prender. No auge do desespero, empunhou um revólver e meteu uma bala na cabeça.

      Era o ponto culminante da peça, e devia ser o ponto final. Mas o original foi superado, com a volta de Nancy à cena. Bertram previra o efeito, e habilmente modificara, em conseqüência, o desfecho. Nancy ouvira o tiro. Trazia ainda o traje de praia, e avançava lentamente, quando tropeçou no corpo de Renton estendido no assoalho. Estava morto. Então se desenrolou uma cena sem palavras que superou de muito os minutos precedentes e os relegou ao esquecimento.

      Era uma cena contida e emocionante, de pura pantomima, porém em que Nancy atingiu os mais altos cimos da arte dramática. Em presença do cadáver, despojou-se dos seus ares de frivola superioridade. Ajoelhou-se aos pés dele; a fisionomia se lhe transfigurou, seus traços se desmancharam sob a crispação da dor. Amara aquele homem, e ele estava morto. Esta revelação fulminante aniquilava as ilusões, as imposturas e as burlas de que ela vivera até então. Fechando os olhos, pegou a mão do morto e a levou aos lábios num gesto tão trágico em sua simplicidade que ia direto ao coração. Nenhuma palavra saiu de sua boca, até o momento em que, num gesto de abatimento, deixou cair a mão inerte, foi ao telefone e disse com uma voz desesperada:

      — Venha ligeiro, por favor, alguém acaba de se matar!

      Era empolgante. O pano caiu em meio a um silêncio total. Uma emoção inesquecível apertou a garganta dos espectadores; ficaram sem voz. Em seguida estalou uma tempestade de aplausos e bisados no meio dos quais se ouvia a cada momento o nome de Nancy. Era o triunfo. Vários jornalistas logo o proclamaram: não foi apenas um enorme sucesso, mas uma grande sensação. E isto valia enormes manchetes; eles se conheciam!

      Nancy voltou ao proscênio, a princípio pela mão de Paula Brent, pálida e um pouco apagada, depois sozinha, trazendo nos braços um ramo de flores. Empolgada por essas manifestações de entusiasmo, inclinou-se. Afinal caiu o pano de vez. Na sala de espera muitos se deixavam ficar gesticulando. Não havia mais dúvida: era uma sensação de verdade. Catherine, ainda excitada pelo triunfo de Nancy, e penetrada da impressão trágica da última cena, virou-se para Upton e os outros.

      — Então, que dizem? — falou com a voz trêmula. — Não esteve fabulosa?

      — Meu Deus! — disse Charley, assoando-se com ruído — Era preciso assistir para crer. Nunca vi Nancy tão boa.

      — Ela é maravilhosa! — exclamou a Sra. Ogden, cujos olhos ainda estavam úmidos — Simplesmente maravilhosa!

      Na multidão que se comprimia em direção à saída, o nome de Nancy estava em todas as bocas. Catherine surpreendeu um crítico célebre que, espremido no meio da balbúrdia, trocava impressões com um colega de outro jornal, no tom aborrecido que lhe era habitual.

      — Estava bem — disse Grey. — Que acha você, Sam?

      — É, pode ser — rosnou Sam Izzard entre dentes. — De qualquer modo, uma garota terrível, que não tem medo de nada!

      — E a Brent?

      — Assim, assim.

      — Não chega ao calcanhar da outra, não é?

      — Talvez.

      — Mas a pequena é boa.

      — Não há dúvida. Mas ouça. Há tantas que começaram assim e depois se evaporaram. Mas essa pequena não terminará assim, ah, não! Ela tem qualquer coisa em si. E nessa idade! Ela cumprirá as promessas.

      A multidão escoou-se aos poucos, arrastando os dois críticos. Mas as palavras deles ficaram gravadas na memória de Catherine. No corredor que conduzia ao palco, ela deu de cara com Madden, Bertram e vários outros que iam para os bastidores.

      Encarou Madden e exclamou, entusiasmada:

      — Não é uma criação maravilhosa?

      — Sim, maravilhosa, e o próprio Bertram está entusiasmado. Diz que esperava muito de Nancy, mas que ela lhe ultrapassou a expectativa.

      Na entonação da voz de Chris, Catherine discerniu uma determinação e uma vontade de renúncia que lhe produziram a impressão de desafogo e também de profunda tristeza. Sabia bem que Madden respeitaria o compromisso que assumira para com ela até o fim.

      Diante do camarote de Nancy, ela foi detida por Bertram, cujos ombros maciços barravam a entrada. A cordial expressão do seu rosto parecia proclamar que se tratava de uma coisa perfeitamente normal, duma reação bem natural numa artista que acaba de passar por uma tensão extrema. Com efeito, ouvia-se dentro Nancy que, nessa hora de estrondoso triunfo, soluçava perdidamente.

     

      Na manhã seguinte, Nancy despertou com a plena consciência do seu sucesso. Por alguns minutos ficou confortavelmente estirada, entregue aos seus devaneios e respirando o perfume das flores que recebera no teatro e que trouxera ao quarto uma nota tropical. Enquanto uma expressão distante perpassava no seu bonito rosto, ela evocava os rápidos acontecimentos da véspera.

      Sentia-se quase aterrorizada à idéia de que o triunfo que desejara, para o qual tanto trabalhara, chegara afinal, mas não se deixava levar por ilusões. Compreendia que aquela criação era infinitamente superior a tudo que fizera até então. Talvez os outros tivessem na verdade motivos para dizer que fora notável; ela, porém, não se iludia. Antes, sua vaidade se demoraria saboreando o maravilhoso sucesso. Agora estava mudada. Reconhecia que devia seu êxito à dor, ao sofrimento que a amadurecera e que libertara todas as forças secretas da sua natureza. Não desempenhava seu papel; pela primeira vez, vivia-o. E, com uma humildade que não lhe era usual, rogava agora que lhe fosse dado continuar nesse caminho.

      Mas só uma ligeira sombra na sua fronte denunciava esse profundo trabalho interior. Sentando-se na cama, acendeu um cigarro e ficou fumando pensativa. Depois telefonou, pedindo o almoço.

      A rapidez e a deferência com que a serviram foi para Nancy mais uma prova da consideração que conquistara. Dois garçons e uma camareira acorreram sem ruído como se desde algumas horas estivessem esperando que ela desse sinal de vida. Num instante, as cortinas foram afastadas, arrumadas as flores e a mesa de rodas empurrada para junto da cama com a toalha irrepreensivelmente limpa, sua prataria, os sucos de frutas geladas, o chá fervendo e os bolos.

      Reclinada sobre os travesseiros passou a vista pelos jornais. Choviam os superlativos. Em muitas das críticas o espetáculo era celebrado como o melhor da temporada e todos rivalizavam em elogios a Nancy.

      Soou o telefone. O primeiro chamado era de Bertram.

      — Bom dia, Nancy. Espero que tenha repousado bem. — Havia em sua voz uma solicitude paternal e muito carinho. — Bem, muito bem, filha. Já leu os jornais?

      — Já, Bertram.

      — Está contente?

      — Sim, naturalmente — respondeu Nancy com os olhos perdidos ao longe.

      — Espero. Ah! ah! Com os diabos! — O riso estalou na outra ponta do fio. Depois, Bertram ficou sério. — Escute, Nancy. Você triunfou, e sabe disto. Triunfou de um golpe, e bem. Escute, eu me incumbo de tudo. Seu papel será modificado e ampliado. Irei cedo para o teatro, mas gostaria de antes almoçar com você. E agora, guarde bem o que vou lhe dizer, abra os dois ouvidos. Vão bombardeá-la com todas as ofertas possíveis. Não assine nada, nem o papel mais insignificante, sem antes me mostrar. Compreendeu? Nada antes de me pedir opinião. E agora, até logo. Encontrar-nos-emos às 2 horas.

      Desligando o telefone, Nancy sorria com ar sonhador. Mas quando a porta se abriu, logo retomou uma expressão de triunfo. Correspondeu ao beijo de Catherine e deu resposta às suas perguntas em tom alegre.

      — Mas naturalmente, Catherine, dormi admiravelmente bem. Que estava pensando? Pesadelos? Ah! querida, seja boazinha, atenda ao telefone. Isto não vai parar: ofertas, perfumes grátis, pó-de-arroz grátis, fotografias. Toda a Quinta Avenida desfilará por aqui.

      Catherine pegou o fone, e o cobriu com a mão.

      — Madame Lilien da Rua 57. Deve saber quem é...

      — Sim, sei, diga-lhe que irei, que madame... - (sou eu) gostaria de ver as últimas criações dela...

      Depois de dar o recado Catherine sentou-se à beira da cama e observou Nancy com uma expressão divertida.

      — Para uma estrela, até que não perde a cabeça. Não está nervosa, nem um pouquinho?

      Nancy, que bebia um suco de frutas, mergulhou o nariz no copo e, encarando Catherine com os seus grandes olhos, fez um gesto negativo muito divertido.

      — Por que nervosa? São coisas que eu previa há muito. Era o que desejava. Agora consegui, estou lançada. E, acredite-me, não vou dormir no meio do caminho.

      — Não fie-se muito nisto — respondeu pausadamente Catherine.

      — Querida, então eu devo tomar uns ares modestos e acanhados? Não, fique tranqüila, seja gentil e ajude-me a tirar a bandeja daqui. Não estou bonita? Quer estender o braço e me passar o estojo de manicure?

      Documente, Catherine levantou-se e obedeceu. Não saberia dizer por que, mas a atitude Nancy a surpreendia. Observava dissimuladamente a sobrinha, o rosto fino e bonito, as maçãs salientes, os supercílios depilados, e aquele belo corpo vigoroso que se estendia no leito, ágil como o de um animal novo.

      Tilintou de novo o telefone, e Catherine atendeu.

      — É Carl Morris, da Vestris. Pede uma entrevista.

      Nancy se inclinou para a frente.

      — Morris! Morris, da Vestris-Film! — Nancy mordeu os lábios, o que nela era sinal de uma reflexão intensa e rápida. — Quando quer vir?

      — Logo que possível.

      — Diga-lhe então que às 11.

      Marcada a visita, Nancy voltou ao seu suco de laranja.

      — É um personagem muito importante, não é? — fez Catherine.

      — Morris! Mas é, creio, o homem mais poderoso de Hollywood. A metade da Vestris e meia dúzia de outras companhias pertencem a ele. Gira com milhões; é uma espécie de deus do cinema. Tem um firmamento pessoal, semeado de estrelas que são dele, cintilando ao longe. De tempos em tempos, cria uma nova estrela e a acrescenta ao seu estoque.

      Catherine olhou-a com ar interrogativo. Havia no tom de Nancy uma nuança nova que a chocava. Porque não estava em sua natureza zombar do Olimpo de Hollywood.

      Calaram-se ambas. Por fim, Catherine falou:

      — Bem. Vou tratar da vida. — Sorriu. — Deixo-a, portanto, entregue ao Sr. Morris.

      Um quarto de hora depois, ela deixava o hotel.

      Nancy não se apressava de modo nenhum, e quando chamou a camareira às 10h30min, seus movimentos não denunciavam nenhuma impaciência. Enfiou um leve robe de chambre por cima do elegante pijama, arrumou cuidadosamente o rosto e o cabelo, mandou trazer todas as flores para a sala, e ficou lá.

      Estendida no divã, não teve de esperar muito. Exatamente à hora marcada, Morris chegou. Contrariamente à lenda de que todos os diretores de Hollywood são altos, corpulentos e ruidosos, era um homem magro, alerta e discreto.

      Entrou como uma rajada, como quem receia perder um trem. Batendo os calcanhares à alemã, inclinou-se sobre a mão de Nancy, pegou uma cadeira junto do divã, sentou-se e ficou a observar a moça com um olhar insistente. Ficou um momento calado, e pareceu satisfeito com o exame. Suas narinas se dilataram para aspirar o perfume das rosas. Tirando do bolso uma cigarrara de ouro maciço, acendeu um cigarro turco. Depois recostou-se no espaldar da poltrona com o ar de um artista que vai atacar a execução de sua obra-prima.

      — Encantadora, encantadora — constatou com um gesto bondoso de mão. — Pode-se fazer dela alguma coisa. Que diz, miss... como é? Sherwood? Para a sociedade dos filmes Vestris! Publicidade, publicidade, nada como a publicidade.

      Antes que ela pudesse responder, Morris inclinou-se para a frente e continuou com crescente entusiasmo:

      — Escute, Miss Sherwood, eu sou um homem franco nos negócios. Todos os que conhecem Carl Morris sabem disto. Compreende por que estou aqui?

      — Adivinho — respondeu Nancy, impassível, olhando-o nos olhos.

      Morris sacudiu a cabeça.

      — Bem. Começamos a nos entender. A senhora teve um grande sucesso, não é verdade?

      — Não foi ainda o que espero obter.

      Morris fez um gesto de assentimento.

      — Cada vez melhor! Aprecio a ambição naqueles com quem trabalho. Escute, minha filha, cartas na mesa. Eu estava ontem no teatro. Você me agradou. Precisava, porém, confirmar minha primeira impressão. Aí está por que vim aqui. Agora estou completamente tranqüilo. — Fez-se um silêncio impressionante. — Quero contratá-la.

      Nancy não disse nada. Seu olhar imperturbável continuava cravado no pequeno Morris que se inclinava sobre ela com ares confidenciais, e lhe dava pancadinhas nos joelhos com amável sem-cerimônia.

      — Você sabe, minha filha, o que eu posso fazer. Posso fazer de você uma estrela como a Garbo ou a Hepburn. Posso transformá-la numa vedete. E o farei. Sabe quem sou eu? Carl Morris. Sei o que digo. Se desejo fazer alguma coisa, faço instantaneamente. Não ligo ao dinheiro. Para fazer a Herman, gastei um milhão. Agora ela me rende 10 milhões e até mais. Viu o último filme da Herman? Simplesmente fabuloso. Arte, drama, paixão, tudo; só para a cena dos esponsais, o leito do imperador Napoleão, autêntico, nada de imitação, custou-me 30 mil dólares.

      Tirou uma fumaçada, e continuou cada vez mais importante:

      — Então, escute, Miss Sherwood. Vamos ser bons amigos. Venha hoje à noite à minha casa. Sim, sim, nada tem a recear. Conhecerá minha mulher e minha garota, a Sofia. Sendo um grande homem de negócios, também sou um bom pai de família. Precisa conhecer minha pequena Sofia. Seria uma segunda Shirley Temple, se eu quisesse. Vá lá em casa, minha filha. Falaremos de todas as coisas. Ouer assinar um contrato a longo prazo?

      Um contrato com Morris! Nancy sabia de sobra o que isso significava. Era a ascensão, o cimo, o paraíso! O contrato resolveria tudo e satisfaria os seus menores desejos: dinheiro, fama, tudo que pudesse valorizá-la. Bem. Assinaria o contrato. Hollywood não poderia prejudicar-lhe a carreira teatral; seria intransigente nesse ponto. Seus olhos erravam por muito longe. Havia lutado e vencido, e de um salto chegava à glória.

      Os dois conversaram ainda 20 minutos. Depois que se puseram de acordo quanto aos pontos essenciais do seu trato, o homenzinho levantou-se, bateu de novo os calcanhares e desapareceu.

      Nancy perdeu a calma. Tomada de vertigem, encolheu-se sobre si mesma. Aquele cômico homenzinho, com todo o seu poderio e os seus milhões, acreditava nela. Sob a hábil orientação de Morris, ela ia conhecer a glória. A despeito do seu domínio sobre si mesma, teve de repente a sensação de que ia enlouquecer. Apertando fortemente a fronte com a mão, esforçava-se em vão por sufocar os soluços que lhe subiam à garganta.

      Enquanto assim se debatia, ouviu tocar o inexorável telefone. Gostaria de atirá-lo para um canto. Mas a gerência anunciava que Madden estava lá embaixo.

      Esta notícia a fez empalidecer. Ficou um instante com os lábios trêmulos se perguntando o que devia responder. Depois que surpreendera a conversa de Madden com Catherine, não vira mais o noivo a sós. E ele estava lá...

      — Diga que suba — respondeu em voz firme — e mande logo dois coquetéis de champanha.

      Esfregou nervosa as mãos. Durante os poucos minutos que lhe restavam, lutou com todo o ânimo para encontrar a atitude que combinaria melhor com a decisão que tomara. "Meu Deus", rezou, "dai-me forças para desempenhar este papel até o fim!"

      Quando Madden entrou, ela foi ao seu encontro, e estendeu-lhe as mãos alegremente.

      — Meu desejo está satisfeito — exclamou virando o rosto. — Chegou no momento oportuno, Chris! Tive uma manhã maravilhosa! Felicite-me!

      — Por quê? Um novo sucesso?

      Ela fez um sinal afirmativo.

      — Um contrato com Morris.

      Ele a olhou de alto a baixo, com sua reserva habitual.

      — É verdade — prosseguiu Nancy — estive tão ocupada pela manhã que nem tive tempo de vestir-me. É verdade que este era o melhor trajo para receber um magnata de Hollywood. Não me acha bonita?

      — Decerto — respondeu ele com um sorriso franco. — Você sabe que sim. E Morris deixou-se seduzir?

      Ela riu.

      — Devia ter visto. Uma verdadeira cena de teatro! O pequeno Morris, que tem quatro pés de altura, recitava o seu monólogo: "Preciso da senhora, Miss Sherwood. Só o leito de Napoleão me custou 30 mil dólares. Mas eu vou fazer da senhora uma estrela. E a senhora será apresentada a Sofia, que seria, se eu quisesse, uma segunda Shirley Temple. Vá, minha filha. Sim, sim, nada tem a recear. Quer um contrato a longo prazo?"

      Nancy arremedava o homenzinho à perfeição, e parecia encontrar nesse gracejo tanto prazer que custou a responder ao garçom que lhe trazia os aperitivos.

      — Ponha aí — disse, ainda rindo, e indicando a mesa junto ao divã, onde se sentou, assim que a porta se fechou novamente.

      — Não pudemos ainda falar da noite passada, Chris. Enfim estamos um instante a sós. Bebamos pelo meu sucesso, e não faça esse ar de desaprovação. Tudo vai caminhando tão perfeitamente bem!

      Ela engoliu o seu coquetel de um trago, enquanto Madden bebia lentamenle. O dia estava escuro e feio; era agradável a temperatura tépida do quarto.

      — Estou terrivelmente nervosa, Chris — disse ela. — Tenho o ar muito calmo, mas no fundo não estou calma. E tem que ser gentil comigo! Porque tenho a dizer-lhe uma coisa que não lhe agradará.

      Ele descansou a taça e virou-se para Nancy, com uma expressão de surpresa.

      — Que há, Nancy?

      Ela ficou um instante em silêncio.

      — Não me animo a dizer-lhe.

      — Mas por quê? — replicou Madden, amigavelmente. — Esquece que sábado estaremos casados?

      Novo silêncio.

      — É disso justamente que se trata, Chris!

      — Mas, Nancy, por Deus, aonde quer chegar?

      Ela levou à boca o cigarro e aspirou profundamente a fumaça.

      — Isto me dá pena, Chris, muita pena. Mas, sejamos francos... eu preferiria... por algum tempo... não me casar.

      A cara de Madden tornou-se dura. Franziu a testa, e seus lábios empalideceram. Parecia fulminado.

      — Não me prometeu que nos casaríamos sábado?

      — Sim, eu sei. Mas desde ontem tudo mudou. Meus negócios subiram a alturas vertiginosas. Ficarei simultaneamente ligada por contrato a Bertram e a Morris. Não tenho tempo para ser uma mulher casada. Nas circunstâncias atuais, devo entregar-me unicamente à minha carreira.

      Ela acentuou com um sorriso o que havia de abrupto em sua declaração, e continuou:

      — Oh! Você me compreende, Chris! Amo-o muito. Mas bem vê que a situação agora não é mais a mesma. Quando nos conhecemos em Nice, eu estava ainda começando. Atravessava uma fase ruim. Afeiçoei-me a você porque precisava de alguém que se ocupasse de mim. Mas agora tenho o meu destino entre as mãos. Oh, Chris, não creia que eu tenha perdido minha afeição por você! Por nada deste mundo eu quereria dar-lhe um desgosto. Mas não reconhece que tudo se tornou muito difícil para mim?

      — Difícil... — repetiu Madden num tom amargo. — Nem sabe o que essa palavra significa. Quer dizer que, porque agora teve sucesso, não deseja mais casar-se?

      — Nós podemos, de qualquer modo, esperar — respondeu ela com uma voz hesitante.

      — Esperar? Você já me fez esperar por toda parte como um caixeirinho! Eu tinha de estar presente para lhe trazer as luvas, para lhe comprar flores, para levá-la ao restaurante quando lhe dava na cabeça, e agora teria de...

      Aqui ele elevou a voz.

      — ... Teria de ir atrás de você para Hollywood, fazer o papel de cão de fila quando saísse do estúdio. Não conte com isto, Nancy! Já fiz tudo isso durante semanas, e não é o meu gênero. Não lhe pedi para ser seu cãozinho, mas seu marido.

      Ela ficou em silêncio. Via muito bem que era aquela crise que desejava provocar. Mas nada, nada devia impedi-la de levar a bom termo o que resolvera.

      — Desde que nos enganamos, Chris — disse pausadamente — sejamos leais. Certamente você não toleraria que eu continuasse a fazer teatro. . .

      — Tem razão — exclamou ele. — Eu preciso é de uma esposa, e não...

      — Não diga mais nada. Já dissemos o bastante...

      Nancy levantou-se bruscamente, e, virando as costas, tirou as últimas baforadas do cigarro.

      Madden olhava-a fixamente. Seu rosto estava sombrio. Parecia exausto; sentia-se completamente desamparado. Tinha-a amado; pelo menos acreditou amá-la. Seu amor não estava de todo morto. Ficou muito tempo em silêncio. Depois lembrou-se da promessa que fizera a Catherine, e tentou ainda uma vez transpor o abismo que os separava.

      — Escute, Nancy, é absolutamente indispensável que nos separemos? Não podíamos fazer um esforço para nos compreendermos?

      Ela se mantinha ereta, sem se mexer.

      — Isto não tem sentido, Chris — disse, voltando-se para ele. — Eu previ durante muito tempo este momento. Minha vida não é sua. Nós nos amamos, mas isto não altera em nada a situação. Devemos renunciar um ao outro. Não lhe quero mal, mas é preciso acabar com isto...

      Nada mais lhe restava a dizer. Cinco minutos depois ele se despedia, e voltava para o seu hotel. Andava num passo de autômato, engolfado em seus pensamentos, sacudido por sensações contraditórias. Por um estranho fenômeno, não experimentava nenhum desafogo. À sua decepção juntava-se a esmagadora convicção de haver faltado, de certo modo, à palavra dada a Catherine. Não conseguia imaginar o que seria o futuro.

      Ignorava que Nancy, imóvel no mesmo lugar, os lábios tremendo, lutava com as suas próprias lágrimas.

     

      Quando Catherine entrou em casa, às 5h30min, teve a impressão do que alguma coisa se passara. Nancy estava em traje de sair, e voltava, sem dúvida, do seu almoço com Bertram. Se bem que a menina nada deixasse perceber, Catherine adivinhava que Nancy não estava à vontade. A princípio nada disse, depois pediu chá. Somente quando este estava servido, foi que ela se voltou para Nancy e lhe perguntou num tom de afetuosa solicitude:

      — Então, que há? Será que o contrato deu em nada?

       Nancy fumava, pensativa, o seu cigarro.

      — Não, o contrato está assinado.

      — Mas, então, que é que há?

      Nancy calou-se um instante.

      — Para falar em linguagem de romance, querida — disse por fim — acabo de fazer o maior sacrifício de minha vida.

      — Sacrifício? — indagou Catherine, aterrada. — Por quem?

      — Pela minha carreira — respondeu Nancy, escandindo as sílabas.

      Catherine pousou a xícara na mesa e franziu a testa:

      — Quer afinal, ou não, explicar-me de que se trata?

      O olhar de Nancy era vago. Mas não se conteve:

      — Devolvi a Madden a liberdade, e para sempre.

      Fez-se um silêncio de consternação. Catherine se viu presa de um tremor, e seu rosto fremiu. Depois desencadeou-se nela uma tal tempestade de sentimentos diversos, cólera, piedade, indignação, medo, que ficou atordoada.

      — Nancy — exclamou, em tom severo — deixe de fazer comédia, e diga-me enfim o que se passa!

      Nancy tinha os olhos pregados na brasa do cigarro.

      — É inútil ficar nervosa, o sacrifício está consumado. Ou Chris ou minha carreira. Cabia-me escolher. Ora, jamais, jamais eu renunciaria à minha vocação.

      — Entretanto, sempre sustentou que podia conciliar as duas coisas.

      — Agora já não sustento. Desde ontem à noite.

      Qualquer outra explicação era supérflua. Catherine compreendia perfeitamente a situação, mas recusava admiti-la. Insistiu.

      — Você não pode fazer isto, Nancy! Está um pouco embriagada pelo seu sucesso de ontem e por todos esses acontecimentos. Mas é uma loucura renunciar assim à sua felicidade!

      — Quem lhe disse que renuncio à felicidade?

      — Eu sei que renuncia — respondeu Catherine, séria — posso julgar o que é isso.

      Nancy lhe atirou um olhar rápido e eloqüente.

      — Não. Não pode julgar, desde que se trata de mim. Uma mulher não pode conciliar o casamento e o teatro. Já se tentou mil vezes a experiência, e nunca deu certo. Oh! Sim, eu sei bem que costumava dizer... É inútil insistir. Eu acomodei Chris. Mas com você, Catherine, quero ser inteiramente sincera. Esta mudança é a conseqüência do sucesso. Todas as portas se abrem para mim, uma carreira sensacional, o triunfo.

      Sua voz tomou uma entonação surda e estranhamente distante:

      — Serei um dia uma grande, uma grandissíssima artista...

      — Não esteja tão certa disso — interrompeu Catherine num tom cortante. — Muitas outras têm acreditado assim no sucesso, e...

      — Comigo a coisa é outra — retrucou Nancy, com uma expressão sonhadora. — Subirei sempre cada vez mais. Prepare-se para me ver um dia representar Ofélia.

      Catherine lembrou-se das palavras de Izzard, o crítico. Sentiu-se envolver por uma onda de resignação, mas numa suprema tentativa tornou com voz suplicante:

      — E se conseguir, enfim, esse grande triunfo, que acontecerá? Será mais feliz? O sucesso não faz a felicidade. Sei que isto lhe parece insensato, e no entanto é verdade, é terrivelmente verdadeiro. Sou mais velha do que você, querida, e conheço a vida. Fala de sua carreira. Escute, eu também fiz uma carreira e sacrifiquei tudo por ela. Acredite-me, não vale a pena. Se eu tivesse de recomeçar, preferiria um lar, meu, mesmo que fosse no bairro mais pobre; filhos, e alguém para me amar na velhice, antes que toda a glória e toda a popularidade do mundo.

      Catherine interrompeu-se, um pouco vexada. Impassível, Nancy a olhava com uma comiseração a que se misturava a arrogância. Respondeu, num tom distante:

      — É o seu modo de encarar as coisas. Eu as vejo de outra maneira.

      — Vai se arrepender.

      — Não, nunca!

      Fez-se um silêncio, angustioso. Catherine fitava a sobrinha com olhos entristecidos. Estava consternada, mas ainda não se confessou vencida:

      — Diga-me, Nancy, já não tem amor por Chris?

      — Amo-o sim. Mas não o bastante. Há qualquer coisa que me fala mais ao coração do que a presença de Chris. E foi por isto que tive de separar-me dele.

      — Não posso crer — murmurou Catherine. — Não posso acreditar nisso, em você menos do que em ninguém.

      Nancy levantou-se. Sua fisionomia continuava impenetrável.

      — Lamento que pense assim, querida! É triste, mas nada há a fazer. Cada um deve viver sua vida. Eu escolhi este caminho. E é tudo!

      Olhou o relógio, arrumou os cabelos para trás, num gesto tranqüilo, e voltou para o quarto de dormir.

      — Às 7 horas, tenho de estar no teatro.

      — Nancy! — exclamou Catherine, súplice.

      Mas Nancy já não a ouvia. A porta se fechava com um ruído seco. Esse ruído, em que se resumia a inutilidade de tantos esforços, atingiu Catherine no coração. Ela fizera todo o possível para induzir Nancy a voltar atrás na sua decisão; fracassara. Talvez estivesse errada, mas Nancy lhe parecia uma criança mimada e caprichosa que arruinava sua vida e se lançava estouvadamente à infelicidade, estendendo os braços às bolhas de sabão de suas ilusões, cujos reflexos irisados lhe ofuscavam os olhos. Estremeceu. Com uma tristeza feita de ternura, recordava o dia em que Nancy, pequena criatura abandonada, viera para sua companhia. Tinha o coração despedaçado, mas conservava os olhos estranhamente enxutos. De quanto amor não cobrira a sobrinha! Quantos planos arquitetados, quantos sacrifícios consentidos na esperança de fazê-la feliz!

      Seu desgosto se expandiu num profundo suspiro. O coração lhe sangrava à idéia de que Nancy abandonara Chris. Tinha a impressão desesperante de os haver perdido a ambos... Nada mais lhe restava senão o sentimento doloroso de sua impotência.

     

      Sábado de tarde. O quarto de Catherine, cheio de papéis de embrulho, de cabides, de cobertores, oferecia o espetáculo melancólico de uma partida precipitada. As malas grandes já tinham sido mandadas para bordo, e Catherine acabara de despachar a arrumadeira. Sentara-se um instante para descansar, e seus olhos erravam pelo quarto em desordem. Os tapetes estavam juncados de destroços, os jarros vazios, as flores acabavam de fenecer nas bordas da janela. Esse caos surgia aos olhos de Catherine como a própria imagem da sua vida. Em vão dizia consigo mesma que tudo seria reposto em ordem num piscar de olhos, limpo, arejado e refrescado. Mas — pobre dela! — para outro viajante...

      Três horas depois deveria partir no Pindaric, o mesmo velho navio fiel que a trouxera. Ao seu ver, esse simples fato era uma prova típica da inanidade de suas caminhadas errantes através da existência. Upton embarcava com ela. Com aquela obsequiosidade que lhe era natural, fora, pouco antes, à agência da companhia comprar-lhe a passagem, porque ela só no último momento se lembrara de tratar das formalidades da viagem.

      Devia reconhecer mais uma vez que a solicitude de Charley lhe era infinitamente preciosa. Um rapaz gentil e um bom amigo.

      Mas também sabia perfeitamente que ele jamais poderia ser outra coisa para ela. Era muito indeciso, muito fácil, muito emotivo para dominá-la. Ela precisava de uma criatura que a subjugasse e que soubesse, à força de retidão e de simplicidade, fazê-la despertar para o amor.

      A Madden, ela amava de todo o coração, de um amor de que antes nunca fora capaz. Nunca deixaria de amá-lo. Seria seu destino, como fora o da pobre Lucie de Quercy, trazer eternamente uma dor secreta no fundo do coração. Para pensar nele, necessitava de recorrer a todo o seu bom senso e a toda a sua razão. Não o vira mais depois da noite do triunfo de Nancy, e apenas sabia que deixara o hotel. Não se admirava de ele não a ter procurado mais. Talvez a princípio, sem o confessar a si mesma, esperasse que ele viesse. Mas agora refletia que a situação era muito complicada para um desfecho tão simples. Sentimentos por demais delicados estavam em jogo. A atitude de Nancy devia tê-lo ferido mortalmente e transtornado a sua vida interior.

      Estava firmemente convencida de que Madden já seguira para Cleveland, que já havia suportado bastante caprichos de mulheres e decidira, de uma vez por todas, pôr um ponto final nesse doloroso capítulo de sua existência. Seu olhar caiu sobre o telefone. Aquele pequeno instrumento era o mais indicado para restabelecer o contato com Madden. Mas preferiria morrer antes de recorrer a ele. Sua altivez o impedia. Não fora ela própria que propusera a separação? Não, não! Se Madden não voltava por iniciativa própria, ela só tinha de ficar onde estava. Uma separação nítida e definitiva era a melhor solução. Para ela aí estava, também, a única chance de salvar-se.

      Sem dúvida ele a esqueceria rapidamente. Casaria com uma jovem americana que soubesse fazê-lo feliz. Catherine teve um calafrio à idéia do pequeno episódio que lhe voltava à memória. Georges Cooper não a chorara muito tempo, Madden seguiria o exemplo... Sem amor, e com as mãos vazias, ela seguiria até o fim o seu caminho solitário.

      Levantou-se lentamente, reuniu suas forças e se pôs a embrulhar as últimas coisas. Nancy estava no ensaio e era pouco provável que pudesse estar livre antes da hora do embarque. Ao pensar em Nancy, seu coração ficava duplamente pesado: de repente, Nancy lhe parecera tão mudada, tão distante. Não lhe falaria mais de Madden nem das suas próprias preocupações, ela que, numa cabeçada, sacrificara o amor à arte.

      O sucesso de Nancy estava assegurado. Iria afirmando-se sem cessar, e sua carreira se apresentava sob os mais brilhantes auspícios. Não fora em vão que ela abandonara Madden. Estava assinado o contrato com Morris; na primavera, ela iria para Hollywood com honorários que ultrapassavam seus mais ousados sonhos. Apesar do seu compromisso com Morris, continuava nos melhores termos com Bertram que continuaria a ser seu manager quando ela voltasse ao palco. O empresário já tinha remodelado a peça para valorizar mais o papel de Nancy. Estava cheio de entusiasmo, e acariciava uma porção de belos projetos. Reservava para Nancy o estrelato na próxima tournée, e mandara aos jornais, sob o título de "Uma Nova Estrela Surge no Horizonte", uma entrevista em que só falava da sua extraordinária descoberta — descoberta, aliás, cujo mérito ele se atribuía todo.

      Num gesto definitivo, Catherine fechou a maleta. Tudo estava acabado. Só lhe restava dar suas instruções ao porteiro, e ir embora sem dizer nada. Um silêncio esquisito enchia o quarto. Do outro lado do corredor, a música de uma estação de rádio chegava aos ouvidos de Catherine, uma música irreal, que lhe era ao mesmo tempo estranha e familiar. Imediatamente pôs-se a escutar, e sentiu um aperto no coração. Era a ária a cujo som dançara com Madden no Pindaric. Palavras banais e uma melodia sentimental... As lágrimas lhe subiram aos olhos, porém ela as reprimiu. Coragem! A coragem era tudo que lhe restava. Entretanto, a música não parava, e aquele ritornelo monótono crispava seus nervos doloridos.

      Pôs o chapéu e o casaco. Correu com um último olhar todo o quarto e se aprontou para sair. Os membros lhe pesavam, e sentia a cabeça oca. Passou para a sala. E aí encontrou Madden, de pé, à entrada.

      Seu coração parou; depois começou a bater loucamente. Aquela visão era tão inesperada e dolorosa que se julgou vítima de uma alucinação. E, no entanto, era mesmo ele. Com um ar grave e calmo, Madden foi ao encontro dela.

      — Eu não podia deixá-la partir — disse-lhe num tom de cordialidade tranqüila — sem lhe ter dito adeus.

      Então era para isso? Ele viera só para se despedir. O pulso de Catherine aquietou-se um pouco. Uma sensação de frio estranho lhe percorreu todo o corpo.

      — Afinal — prosseguiu ele com um ar desembaraçado — há muito que nós combinamos ser bons amigos. Separemo-nos, então, como bons amigos.

      O rosto de Catherine estava pálido e desfigurado.

      — Sim — murmurou ela com dificuldade — separemo-nos como amigos.

      — É o que espero!

      Olhou tudo em torno de si, surpreso.

      — Onde está Upton?

      — Já foi — respondeu ela surdamente.

      — Oh! Que pena! Eu queria muito apertar-lhe a mão, a ele também.

      Catherine baixou a cabeça e seus olhos se conservaram fixos no chão. Um rubor lhe subiu às faces. Aquele bom humor forçado que ela nunca vira em Madden era-lhe uma tortura. Apelou para toda a sua altivez.

      — Eu direi a ele.

      — Obrigado, Catherine. Ele tem a sorte de poder fazer a viagem com você.

      — Acha?

      Essas palavras, nas quais ela punha todo o desembaraço de que era capaz, faziam-na sofrer insuportavelmente. Calaram-se ambos. Catherine sentia que aquela prova se prolongava; sentia-se morrer. Levantando com dificuldade a cabeça, tentou encará-lo.

      — Bem, agora tenho de ir. Creio que nada mais temos a dizer um ao outro.

      Ele pegou-lhe a mão.

      — Perdão, um instante ainda.

      Sentando-se na beira da cama, Chris fez um gesto displicente para tirar um embrulho do bolso.

      — Antes da nossa separação, desejo dar-lhe uma pequena lembrança.

      Pegada de surpresa, ela o olhou com um olhar de tristeza e espanto; depois, num movimento mecânico, tomou o embrulho que Madden lhe estendia. Sob seus dedos crispados o cordel se soltou e o invólucro caiu. Aturdida, ela reconheceu o estojo verde e abriu. Continha a miniatura de Holbein.

      — Você! — exclamou. — Então foi você!

      — Por que não? — respondeu ele num tom muito à vontade. — Podia dar-me esse prazer.

      Catherine sufocava. Compreendeu, de um golpe, que fora Madden, fora a intervenção dele, que a salvara da ruína. Com a morte de Brandt, ele tomara a si o negócio por intermédio de Ascher. E agora? Consternada por essa revelação, e pelo rumo que tomara a conversa, sentia-se incapaz de pensar, e lutava com as suas lágrimas.

      Ele sacudiu a cabeça.

      — Você não sabia o que pensar a meu respeito, não é verdade, Catherine? A princípio em Londres, depois em Vermont. Ora, eu não sou pobre. Não. Sou mesmo rico, tão rico que não preciso parecer que o sou. Não sou simplesmente o proprietário de uma pequena fábrica em que comecei. Nestes 10 anos subi à força de trabalho. Antes de minha partida para a Europa concluí a última operação de fusão. Se lhe interessa, Catherine, sou hoje o presidente do Truste Internacional das Colas.

      Estupefata, ela o contemplava. O nome que ele acabava de dizer lhe cortava a respiração. Era uma empresa gigantesca, uma organização conhecida no mundo inteiro. Da costa ocidental à costa oriental, inúmeros cartazes lhe recordavam o poderio. Ela englobava tudo, fabricava tudo que leva cola, desde a cera de sinete até o esparadrapo. Em Nova York e em Londres suas ações eram disputadas na bolsa. Catherine se lembrava vagamente daquelas fotografias de imensas instalações: grandes usinas, fundições, curtumes, entrepostos e oficinas de embalagem, cantinas e acomodações para os empregados, campos de esportes, um estádio, uma piscina. E ele, Madden, que ela julgava pobre, estava à testa de tudo aquilo, controlava aquela enorme empresa. No estado de perturbação em que estava, essa descoberta ultrapassava o seu entendimento.

      — Agora preciso ir — murmurou. — Charley está à minha espera.

      Os olhos vagos, a cabeça baixa, ela pôs a miniatura em cima da mesa e se dirigiu para a porta.

      Então Madden lhe barrou a saída. Operara-se nele uma completa metamorfose. Como quem tira uma máscara, abandonara seu ar indiferente e despreocupado. Uma profunda ternura lhe animava a fisionomia, e seus olhos brilhavam.

      — Upton não está à sua espera. Ele toma o avião da noite para a Flórida. Mas dois lugares estão do mesmo modo reservados no navio, o seu, Catherine, e o outro para mim.

      Ela deu um grito.

      — Chris!

      Ele a olhou nos olhos, e falou pausadamente:

      — Então pensava que eu ia realmente deixá-la partir? Depois que Nancy fez tudo para nos aproximar?

      Catherine olhou para ele, perplexa.

      — Não compreendo.

      — Escute, Catherine — prosseguiu Chris com a mesma voz descansada. — Nancy soube que nós nos amávamos. Descobriu um pouco antes da première, e se mostrou à altura do seu destino. Toda a nobreza do caráter dela se revelou subitamente. Fez o que achou que era o mais acertado, e foi, na verdade, a melhor solução.

      Súbito, a situação apareceu a Catherine sob uma feição inteiramente nova.

      — Nancy! — balbuciou.

      Madden fez um sinal afirmativo.

      — Foi Bertram quem me abriu os olhos. E então compreendi. Ele me explicou que essa crise ia marcar para Nancy o começo de sua verdadeira ascensão. Ela atingirá os mais altos cimos da arte, e encarnará Ofélia, é certo. Mas nós dois, nós nunca haveremos de esquecer o que lhe devemos.

      Agora as lágrimas rolavam pelas faces de Catherine e a cegavam. Parecia-lhe que seu coração ia estalar. Então atirou-se nos braços de Chris. Ele a apertou algum tempo contra si mesmo, e sentia o bater desordenado do seu coração contra o seu próprio peito. Falou-lhe com doçura para a acalmar.

      — Sim. Agora tudo está bem — cochichou-lhe numa voz carinhosa — e nós nos casaremos na sua velha igrejinha, naquele recanto de Old Inn Yard. Porque, como sempre pressenti, foi lá que eu descobri que a amava. Ficaremos algum tempo em Londres, liquidaremos seu negócio, e voltaremos para Vermont. Conheço umas pessoas que ficarão diabolicamente alegres de a possuírem. E depois talvez tenha vontade de ir também a Cleveland, não? Há lá recantos deliciosos, bem no alto da colina. Poderíamos fazer construir lá uma casa, a casa da nossa felicidade...

      Ela não dizia mais nada; seu coração transbordava. Premiu a face contra o casaco de Chris e, nesse momento, seu olhar caiu sobre a miniatura. Ela continuava em cima da mesa, no estojo aberto. Uma nova onda de felicidade e de alívio submergia. Como pudera ela imaginar que seu destino estava ligado ao luto que evocava aquela imagem? Seu destino, o dela, Catherine, era a alegria. Tudo o mais não passava de uma criação de sua fantasia, um pesadelo que não voltaria. Os olhos de Lucie de Quercy estavam fixados nos dela. Estavam cheios de tristeza mas sem inveja, e como banhados de um sorriso distante.

     

      Duas horas mais tarde, eles estavam no convés superior do Pindaric, e contemplavam os edifícios geométricos de Nova York, sua silhueta faiscante que se destacava muito alto no céu. A noite estava agradável, serena e clara, agitada apenas pelo movimento das vagas e o ritmo ligeiro dos hélices. Por cima das suas cabeças a lua projetava um grande halo luminoso, e seus raios desenhavam sobre as ondas uma longa esteira brilhante sobre a qual o navio deslizava tranqüilo. Estavam de pé, face a face, apoiados na balaustrada, e Madden mantinha Catherine apertada contra ele. Não precisavam mais de palavras. Um mensageiro se aproximou.

      — Que há? — perguntou Chris.

      — Recebi ordem — respondeu o rapaz — de entregar-lhe isto pessoalmente, cavalheiro.

      Madden desatou o cordel e abriu a caixa. Depois entregou-a, sem dizer nada, a Catherine.

      Um buquê de maravilhosos cravos resplendia ao clarão do luar. O cartãozinho que o acompanhava trazia estas simples palavras assinadas por Nancy:

      "Sejam felizes!"

                                                                                            A. J. Cronin

 

 

                      

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