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FÚRIA DIVINA - P.2 / José Rodrigues dos Santos
FÚRIA DIVINA - P.2 / José Rodrigues dos Santos

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

FÚRIA DIVINA

Segunda Parte

 

Sempre que Ahmed se aproximava do grupo de presos da Al-Jama'a al-Islamiyya que rodeava Ayman, ficava atento e escutava as conversas que se cruzavam no ar. Os temas eram variados, da teologia à política e à filosofia, mas nessas múltiplas conversas, umas serenas e outras apaixonadas, destacava-se sempre uma palavra por todos repetida a qualquer instante.

Jihad.

Como conhecedor de árabe e bom muçulmano, Ahmed sabia muito bem o que ela significava. A origem do termo estava em juhd, uma palavra que queria dizer esforço, luta, tentativa, acto de batalhar. O seu sentido correcto emergia naturalmente do contexto. Mas, ainda como conhecedor da língua árabe e bom muçulmano, Ahmed não ignorava que, no âmbito daquelas discussões, ela significava sobretudo guerra santa, o combate pelo caminho de Alá.

Nessa manhã, enquanto aguardava que Ayman estivesse disponível para lhe explicar mais uma questão teológica,

Ahmed sentiu o olhar de um dos elementos da Al-Jama'a pousar sobre ele. Era um homem com uma cicatriz a cortar--lhe a cara e de olhos negros penetrantes como adagas; dizia--se que já matara dois polícias.

"Meu irmão, porque não te juntas à jibad?", perguntou o homem, o tom entre a provocação e o desafio. "Porventura não queres agradar a Alá?"

"Claro que quero."

"Então a jihad é o caminho."

"Há muitas maneiras de fazer a jibad", argumentou Ahmed, papagueando o que o xeque Saad lhe ensinara anos antes.

O homem da Al-Jama'a riu-se, trocista, e abanou a cabeça com uma ponta de desprezo.

"Essa é a desculpa de quem não quer fazer a jibad e prestar serviço a Alá. Assim não vais pelo bom caminho, meu irmão."

A interpelação deixou Ahmed perturbado. Isto é uma desculpa? O que queria ele dizer com isso? Era ou não verdade que havia várias maneiras de fazer a jibad? O tom trocista implícito na observação do recluso da Al-Jama'a incomodou-o, não apenas pelo mérito da questão em si, mas também porque admirava aqueles homens. Por Alá, eles tinham enfrentado o governo e morto o faraó! Fizeram-no sabendo que iriam ser perseguidos, torturados e executados, mas fizeram-no! Que coragem! Fizeram-no porque estavam ao serviço de Alá e puseram Alá acima das suas próprias vidas! Que fé! Eram realmente dignos de admiração! E um destes homens, um destes bravos, um destes heróis que tanto admirava... troçara dele por causa da sua resposta!

Por Alá, teria de tirar tudo aquilo a limpo!

Quando Ayman ficou finalmente livre para o elucidar sobre a questão que o levara até ele, Ahmed mudou de ideias e preferiu questioná-lo sobre a guerra santa.

"O que sabes tu sobre a jihad?", perguntou Ayman quando o seu pupilo mencionou o assunto.

"Sei o que o xeque Saad me ensinou nas lições privadas e o que ele dizia na mesquita."

"Ah, o sufi!", exclamou Ayman com um tom de desprezo a colorir-lhe as palavras. "E o que te ensinou ele, meu irmão?"

"Disse-me que a jihad se refere a vários tipos de luta, não apenas à luta militar, e que pode ser a batalha moral que uma pessoa leva a cabo para resistir ao pecado e à tentação."

"E que versículo do Santo Alcorão citou ele para sustentar tão interessante observação?"

A pergunta, feita com inconfundível ironia, deixou Ahmed um pouco atrapalhado.

"Bem, quer dizer... ele não citou o Livro Sagrado..."

"Então? Citou o quê?"

"Um haditb."

"Que haditb é esse? Conta-me lá."

"É um haditb que relata que, quando Maomé veio de uma batalha, disse aos amigos que regressava da pequena jihad e que ia agora para a grande jihad. Quando os amigos lhe perguntaram o que queria ele dizer com isso, o apóstolo de Alá respondeu que a pequena jihad era a batalha da qual tinha vindo para lutar contra os inimigos do islão e que a grande jihad é a luta espiritual da vida muçulmana."

Ayman passou os dedos deformados pela barba grisalha, uma expressão sibilina a cintilar-lhe nos olhos.

"Diz-me, meu irmão, onde está relatado esse haditb?"

"Enfim... isso não sei."

"Mas sei eu!", atalhou o mestre, de repente peremptório, a voz a ganhar vigor. "Esse episódio é mencionado por Al-Ghazali, que viveu cinco séculos depois do Profeta, que a paz esteja com ele. Sabes quem foi Al-Ghazali, presumo..."

Ahmed baixou a cabeça, quase envergonhado.

"O fundador do sufismo."

"Não admira que o teu mullab te tivesse enchido a cabeça com esses disparates cristãos! A batalha em nome de Alá é pequena jihad? Hmpf! E preciso não ter vergonha!" Apontou o dedo ao pupilo. "Para tua informação, Al-Ghazali menciona esse badith sem citar a sua fonte. Esse hadith não consta da lista de ahadith compilada no Sabib Bukbari ou no Sabib Muslim. E, pois, um hadith falso, inventado pelos sufis para, aos olhos dos crentes, enfraquecer a importância da espada. Aliás, basta ler o Santo Alcorão e todos os ahadith credíveis para perceber que essa história disparatada é incoerente com a palavra de Alá ou a sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele. Em ponto algum do Livro Sagrado Alá descreve a jihad nesses termos, nem Maomé, que a paz esteja com ele, o fez em qualquer hadith citado por Al-Bukhari ou Al-Muslim, os mais fiáveis de todos os ahadith jamais compilados. Esquece, pois, essa história disparatada que te contaram."

Ahmed manteve a cabeça baixa, quase como se estivesse arrependido e se quisesse penitenciar.

"Sim, meu irmão."

"Que mais disparates te contou o teu mullah sobre a jihad?"

"Contou-me que existem três categorias de jihad: a jihad da alma, a jihad contra Satanás e a jihad contra kafirun e hipócritas. Disse-me que tem de se completar a primeira para passar à seguinte."

"Hmm!", murmurou Ayman, ponderando a exposição que acabara de ouvir. "O teu mullah é manhoso, usou a verdade para te enganar. Sabes, é verdade que essas três jibads existem e é verdade que são categorias. Mas o problema é que o teu mullah, embora reconheça explicitamente que elas são categorias, se finge despercebido e as trata como se fossem etapas. Não são etapas! Se fossem etapas, eu teria de deixar de lutar contra Satanás enquanto estivesse a lutar pela minha alma. Ora isso não faz sentido nenhum, pois não? A ve-rdade»é que essas três categorias caminham lado a lado, de mão dada! Eu faço a jibad da alma ao mesmo tempo que faço a jihad contra Satanás e ao mesmo tempo que faço a jibad contra kafirun e hipócritas. Uma jihad não exclui as outras, antes as complementa e as ajuda! Percebeste?" "Sim, meu irmão."

"Para entenderes a jibad e a ordem de Alá para a fazer tens de começar por compreender uma coisa", disse o mestre. "A revelação da sbaria foi gradual. O Profeta, que a paz esteja com ele, não recebeu todas as revelações de uma só vez. Alá preferiu desvendar a Lei Divina por etapas e ao longo de muitos anos. Primeiro nomeou o Seu mensageiro, que a paz esteja com ele, e mandou-o converter a sua família e as tribos, sem combater nem impor o pagamento de jizyab, o imposto que os kafirun têm de pagar para poderem viver com os crentes. Por ordem de Alá, os treze anos do Profeta em Meca, que a paz esteja com ele, foram assim passados apenas em pregação. Depois Alá mandou-o emigrar para Medina e pregar para as tribos que aí viviam. Mais tarde, Deus deu-lhe autorização para combater, mas apenas aqueles que o combatiam. O Profeta, que a paz esteja com ele, não foi autorizado a fazer guerra contra aqueles que não lhe faziam guerra. A seguir, Alá mandou-o combater os politeístas até que a Lei Divina fosse inteiramente instituída. Quando esta ordem de jihad foi dada, os kafirun foram divididos em três categorias: os que estavam em paz com os crentes, os que estavam em guerra com os crentes e os dbimmies, aqueles que viviam connosco e pagavam a jizyab, recebendo assim a nossa protecção. Finalmente, veio a ordem para fazer a guerra contra os Adeptos do Livro que nos fossem hostis, guerra que só iria parar se eles se convertessem ao islão ou, em alternativa, aceitassem pagar a jizyab e se tornassem dbimmies.

"Portanto só sobraram duas categorias de kafirun..."

"Nem mais. Os que estavam em guerra com os crentes e os dbimmies. Essa foi a etapa final, que ainda se mantém porque não há nada no Santo Alcorão ou na sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele, a removê-la." Inclinou-se na direcção de Ahmed. "E agora pergunto-te eu: por que razão é importante perceber estas fases?"

"Por causa da nasikb, a ab-rogação."

"Exactamente! A revelação da vontade de Alá decorreu por etapas e cada etapa anulou a anterior. Agora diz-me: quando o teu antigo mullah, esse kafir sufi que te andou a ensinar, falava de jibad, quais eram as etapas que ele mencionava?"

"As primeiras."

"E porquê?"

A pergunta extraiu uma expressão inquisitiva de Ahmed. "Não sei."

"Porque eram as que lhe convinham!", exclamou Ayman com grande veemência. "Porque eram as que lhe permitiam apresentar um islão em paz com os kafirunl Porque eram as que não chocavam os kafirun cristãos! Esse mullah maldito optou por ignorar que a jibad é o principal tópico do Santo Alcorão! Esse mullah herege optou por ignorar que a expressão jibad fi sabilillah, ou a guerra no caminho de Alá, é usada vinte e seis vezes no Santo Alcorão! Esse mullah apóstata optou por ignorar que o Santo Alcorão tem suras inteiras dedicadas exclusivamente à guerra e que algumas delas foram baptizadas com o nome de batalhas, como a sura Ahzaab, a sura Qital, a sura Fath e a sura Saff! O que diz Alá na sura 8, versículo 65? «O Profeta! Incita os crentes ao combate.» E o que diz Alá na sura 9, versículo 14? «Combatei-os! Deus atormentá-los-á pelas vossas mãos, humilhá-los-á e auydliar--vos-á contra eles.» Como ignorar estas ordens directas de Deus? Como se isso não bastasse, há milhares de abadith que ilustram a sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele, em relação à guerra! Só o Sabib Bukhari compila mais de duzentos capítulos com o título de jihad e o Sabib Muslim conta cem capítulos com o mesmo título! Não te esqueças que o Profeta, que a paz esteja com ele, disse: «Eu desci por Alá com a espada na minha mão e a minha riqueza virá da sombra da minha espada. E aquele que discordar de mim será humilhado e perseguido.»" Inclinou-se na direcção de Ahmed, os olhos em fogo, a voz alterada. "Sabes por que razão esse teu mullab optou por ignorar tudo isto, sabes?"

Sentindo o olhar intenso do mestre, o pupilo abanou a cabeça sem se atrever a dizer uma palavra.

"Porque ele faz parte da conspiração kafir que tenta impedir os crentes de compreenderem verdadeiramente o Santo Alcorão!", bradou. "Eis porquê!"

Ahmed engoliu em seco e, a custo, recuperou a voz.

"Mas, meu irmão, é um facto que Alá diz no Alcorão que não há compulsão na religião..."

"É um facto", concordou Ayman, baixando o tom de voz para readquirir a serenidade. "E essa a Sua vontade, ninguém pode ser obrigado a converter-se ao islão e a submeter-se a Alá. Claro, a recusa da conversão implica que a pessoa irá prestar contas no dia do juízo, mas esse problema é entre essa pessoa e

Alá, não é um problema dos crentes. Alá mandou-nos deixá-los em paz, Ele tratará do assunto no momento próprio. Porém, lembra-te de que as últimas revelações de Deus, que ab-rogam as anteriores, determinam que os kafirun que não se convertem são obrigados a pagar jizyah e a tornar-se dhimmies. Se não o fizerem, serão mortos. E ou não verdade?" bim.

"Como isto não lhes interessa, porém, os ditos crentes que querem agradar aos kafirun cristãos, como o teu mullah sufi, extraem dos primeiros versículos coránicos verdades finais, ignorando convenientemente que se trata de verdades provisórias e que só foram válidas numa etapa inicial da revelação da Lei Divina. Eles enunciam uma verdade, a de que não há compulsão na religião, para defender que as guerras só podem ser defensivas, o que é falso."

Ahmed ficou intrigado com esta última afirmação.

"O que quer o meu irmão dizer com isso? A jihad não é defensiva?"

O antigo professor de Religião fez uma careta de enfado.

"Defensiva? Então quando o Profeta, que a paz esteja com ele, atacou as tribos judias e mais tarde atacou Meca estava a fazer uma jihad defensiva? Então quando Omar, bendito seja, conquistou aqui o Cairo, conquistou Damasco e conquistou ainda Al-Quds, estava a fazer uma jihad defensiva? Que jihad defensiva? Onde está ela mencionada no Santo Alcorão? Falam em jihad defensiva como se ela fosse uma guerra defensiva. A jihad não é uma mera guerra! Não tenhamos medo das palavras: a jihad é o recurso à força para espalhar a Lei Divina entre os homens!"

"Mas... justamente, meu irmão. Não é isso uma contradição? Como podemos nós espalhar a Lei Divina à força se não há compulsão na religião?"

Ayman suspirou, num esforço para dominar a impaciência.

"Por Alá, vejo que as influências do mullab sufi ainda te perturbam o raciocínio", exclamou. "Estás a confundir duas coisas distintas. E verdade que não há compulsão na religião. Mas é também verdade que, nas últimas revelações que ab--rogaram as anteriores, Alá ordenou que os kafirun que não se convertessem teriam de pagar jizyah ou ser, mortos. A ordem de Alá na sura 9, versículo 29 do Santo Alcorão é muito clara: «Combatei os que não crêem em Deus nem no Último Dia nem proíbem o que Deus e o Seu Enviado proíbem, os que não praticam a religião da verdade entre aqueles a quem foi dado o Livro! Combatei-os até que paguem o tributo por sua própria mão e sejam humilhados»." Ergueu o dedo, peremptório. "«Combatei-os até que paguem o tributo»", repetiu. Fez um gesto a abarcar o pátio da cadeia, como se aquele espaço contivesse o mundo. "Acaso os kafirun hoje em dia pagam o tributo?"

"Que eu saiba, não."

"Então se não pagam, e em obediência às ordens de Alá, o que lhes devemos fazer?"

Confrontado directamente com a questão, Ahmed hesitou, na dúvida sobre se deveria levar o raciocínio até ao fim.

"Devemos... combatê-los?"

"Seguindo o exemplo do Profeta, que a paz esteja com ele, temos primeiro de dar aos kafirun um prazo para se converterem ou pagarem a jizyah." Inclinou-se sobre o seu pupilo, quase ameaçador. "Mas, se não respeitarem esse prazo, terão de ser mortos, claro."

Ahmed mordeu o lábio inferior.

"Isso não será um pouco... um pouco brutal?"

O rosto de Ayman enrubesceu, as sobrancelhas carregaram-se e o corpo tornou-se tenso.

"Brutal?", quase gritou, escandalizado. "O que queres dizer com brutal?"

"Bem... matar uma pessoa, mesmo um kafir... enfim... hoje em dia isso talvez não seja a..."

"Hoje em dia?", cortou Ayman, furioso. "Desde quando é que a sharia tem prazo de validade? A Lei Divina é eterna! As ordens de Alá são eternas! A lei da gravidade vale hoje como valia no tempo de Maomé, que a paz esteja com ele! A ordem de obrigar um kafir a pagar jizyab sob pena de ser morto vale hoje como valia no tempo de Maomé, que a paz esteja com ele! A sharia é eterna! Ainda não percebeste isso?"

Ahmed baixou a cabeça, constrangido.

"Sim, meu irmão", sussurrou, a voz num fio. "Tem razão. Desculpe. Rogo o seu perdão."

O recuo do pupilo acalmou Ayman. O antigo professor de Religião ergueu os olhos e varreu o céu com a mão.

"Por detrás do universo existe uma Lei que o regula, uma Força que o move, uma Vontade que o ordena", disse, a voz já mais controlada. "Em nenhum instante é possível desobedecer à Vontade e à Lei Divina. As estrelas, a Lua, as nuvens, a natureza, tudo se submete à Sua Lei e à Sua Vontade e é assim que o universo encontra a sua harmonia." Indicou os reclusos que se encontravam no pátio. "Ora o homem é parte deste universo e, assim sendo, as leis que o governam não são diferentes das leis que governam o universo. Da mesma maneira que Alá criou leis que regulam o universo, Ele criou leis que regulam o homem. Os seres humanos têm de obedecer à Lei Divina para estarem em harmonia com o universo e em paz consigo mesmos. Se, em vez de o fazerem, cederem às suas tentações e instintos e rejeitarem a sharia, então entrarão em confronto com o universo e aparece a corrupção e todos os problemas que estamos a ver no islão e no mundo. Está claro isto?"

"Sim, meu irmão."

"O islão é a declaração de que o poder pertence a Deus e a Deus apenas. Os kafirun são livres de escolher a sua religião, mas essa liberdade não significa que se podem submeter a leis humanas. Qualquer sistema instituído no mundo tem de ter a autoridade de Alá e as suas leis têm de emanar da Lei Divina. É sob a protecção deste sistema universal que cada indrVíduo é livre de adoptar a religião que quiser. Mas lembra-te: quem usurpar o poder divino tem de ser afastado. Esse afastamento é feito através da pregação ou, quando se levantam obstáculos, através da força. Ou seja, com recurso à jihad."

Ahmed abanou a cabeça, frustrado.

"Não foi nada disso que o xeque Saad me ensinou durante tantos anos. Ele dizia que a jihad era apenas defensiva e que..."

"Isso é conversa de cobardes que têm medo de assumir as consequências das ordens de Alá no Santo Alcorão ou da sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele", cortou Ayman, agastado. "Fingem que não está lá o que manifestamente está lá! Os kafirun cristãos distorcem o conceito de jihad, insinuando que ela impõe a tirania. Bem pelo contrário, a jihad liberta os homens da tirania. E esses cobardes que se dizem crentes ficam tão embaraçados diante dos kafirun cristãos que se põem a argumentar que a jihad é meramente defensiva e exibem os versículos já ab-rogados como suposta prova." Inclinou a cabeça. "Quando o teu mullah falava em jihad defensiva estava a referir-se à defesa de quê?"

"Bem... das terras do islão, suponho eu."

"Que vergonha! Como é possível que ele tenha sugerido isso? Quem diz tal coisa está a diminuir a grandeza do islão e a dar a entender que as terras são mais importantes do que a fé. A jihad só é defensiva no sentido em que defende o homem e o liberta dos grilhões de outros homens. Só nesse sentido é ela defensiva. De resto, a ordem de Deus é a de espalhar a Lei Divina por toda a humanidade! E como se faz isso? Só a pregar? Claro que não! Teríamos de ser muito ingénuos para pensar que as sociedades jahili aceitariam pôr as suas leis de acordo com a Lei Divina, de modo a viabilizar um clima de liberdade que permitisse que os kafirun escolhessem a religião que querem sem constrangimentos. E por isso que a jihad é necessária. A jihad não se destina a defender terras, destina-se a impor a Lei Divina!"

Ayman inclinou-se no seu lugar e varreu o chão do pátio com as palmas das mãos até fazer um pequeno monte de areia. Depois pegou num pedaço de areia e ergueu-o.

"Quanto achas que vale isto?"

Ahmed fitou a areia que se escapava em grãos por entre os dedos do mestre.

"Sei lá... nada, acho eu."

"Nada", ecoou Ayman, limpando as mãos uma à outra para se desfazer da areia. "Ou seja, as terras em si não têm valor. O islão procura a paz, mas não uma paz superficial que se limite a garantir a segurança das suas terras e das suas fronteiras. O que o islão procura é a paz mais profunda de todas: a paz de Deus e de obediência a Deus apenas. Enquanto essa paz não existir, teremos de lutar por ela. A luta faz-se através da pregação e, quando necessário, da jihad. Há algum verdadeiro crente que, depois de ler o Santo Alcorão e de conhecer a sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele, pense que a jihad diz apenas respeito à defesa das fronteiras? Deus diz no Livro Sagrado que o objectivo é limpar a corrupção da face da Terra! Se fosse a defesa das fronteiras, Ele tê-lo-ia dito. Mas não disse. A jihad não é pois uma mera fase temporária, mas uma etapa fundamental que existe enquanto existir jahiliyya entre os homens. É obrigação do islão lutar pela liberdade do homem até que todos se submetam à Lei Divina. O destinatário do islão é toda a humanidade e a sua esfera de acção é o planeta inteiro. Ou os kafirun se convertem ou pagam a jizyab. São essas as ordens de Alá e é para isso que existe a jihad."

"Sim, meu irmão."

Ayman recostou-se no seu lugar e fixou o olhar no firmamento.

"Se os kafirun não o fizerem, terão de ser mortos."

 

Crrrrrr. "Bluebird:'

A voz rasgou o ar com a sua tonalidade eléctrica, enxameada pelo ranger raspado da estática. "Bluebird, está a ouvir-me?" Crrrrrr.

Tomás ajeitou o aparelhinho que lhe haviam instalado no ouvido, tentando melhorar as condições de recepção. "Isso é comigo?", perguntou o historiador. "Sim", confirmou a voz. "Está a ouvir-me bem?" "Muito bem." Crrrrrrr.

A estática voltou.

"Já localizou o Charlie}", perguntou Jarogniew no auricular, quebrando mais uma vez a estática. "Qual Charlie}"

"O tipo com quem se vai encontrar, já lhe expliquei aqui na carrinha. Você é o Bluebird, ele é o Charlie."

O historiador olhou em redor, tentando reconhecer algum rosto na praça. Havia muita gente a circular por ali; eram sobretudo muçulmanos mas nenhum parecia o seu ex-aluno.

"Não, ainda não vi o Zacarias."

"Fuck!", protestou Jarogniew. "Não use o nome verdadeiro, goddam it! Ele é o Charlie, já lhe disse."

Tomás fez um estalido impaciente com a língua.

"Mas que charada mais absurda!", reclamou, revirando os olhos. "Qual é o problema de o chamar pelo nome? Para quê esses códigos idiotas? Isto é algum filme? Eu tenho cara de 007? Que palhaçada vem a ser esta?"

"Segurança."

"Segurança de quê?"

"Jesus! Odeio trabalhar com amadores porque só fazem disparates", resmungou Jarogniew, rangendo os dentes de impaciência. "Oiça, Bluebird, você tem de perceber que os tipos com quem estamos a lidar têm acesso a tecnologia. Se eles souberem deste encontro é muito natural que monitorizem as frequências de rádio. Se o fizerem vão dar connosco. Por isso aconselho-o a usar os nomes de código que eu lhe dei aqui na carrinha. Entendeu?"

O historiador suspirou, submetendo-se sem estar inteiramente persuadido.

"Sim."

Crrrrrr.

Olhou mais uma vez em redor. O forte de Lahore parecia--lhe um oásis tranquilo aberto no meio do inferno urbano. Apesar disso, na praça junto à entrada do forte havia muito movimento; eram os crentes a sair da mesquita Badshahi, uma das maiores e mais belas do mundo, elegante com os seus quatro minaretes e situada mesmo do outro lado da praça. O forte e a mesquita estavam construídos no imponente estilo mogul, caracterizado pelas paredes grossas, pela pintura vermelha atijolada, pelas cúpulas largas que lhe lembravam as stupas tibetanas. Eram linhas arquitectónicas soberbas, o que não o surpreendia; no fim de contas, o estilo mogul criara a grandeza do Taj Mahal.

Apesar da espectacularidade da mesquita, o que ali o deixava embasbacado era sobretudo o Portão Alamgiri, a porta de acesso ao forte. Tratava-se de uma entrada enorme. Tomás sabia pelos livros de história que era costume no tempo dos moguls passarem por ali elefantes com os membros da família real no dorso. Encarou a porta e esforçou-se por imaginar a cena: elefantes a cruzarem o Portão Alamgiri. Que espectáculo devia ter sido!

 

Espreitou o relógio. Onze e quarenta e cinco.

Faltavam quinze minutos para a hora que combinara com Zacarias. Passeou de novo os olhos pela praça, atento aos rostos que por ali circulavam, mas mais uma vez não identificou a face familiar. Teria havido algum problema? Será que o seu antigo aluno iria mesmo aparecer?

Crrrrrr.

"Bluebird."

Desta vez era uma voz feminina ao auricular.

"O que é, Rebec..." Não concluiu o nome, lembrando-se do que Jarogniew lhe dissera minutos antes. Não podia chamar ninguém pelo nome. Mas qual era o código que a identificava? "O que é, Sbopgirl?"

"Estou a..." Crrrrrr "... mesmo em..." Crrrrrr "... minarete que..."

Crrrrrr.

"Diga lá outra vez?" Crrrrrr.

"... e não sei..." Crrrrrr. "Shopgirl?" Crrrrrr.

A comunicação com Rebecca parecia comprometida. Por
segurança, Tomás chamou Jarogniew pelo nome de código.
"Alpha? Está tudo bem?"

Crrrrrr. "Alpha?" Crrrrrr.

Tornava-se claro que, por qualquer motivo, as comunicações tinham ido abaixo. Com uma interjeição irritada, Tomás deu meia volta e regressou para junto da carrinha.

 

"Fiquei sem comunicação."

Mal Tomás entrou na viatura, Jarogniew retirou-lhe do cinto o pequeno aparelho de recepção e emissão e pôs-se a fazer testes para localizar o problema. Apercebendo-se de que surgira um imprevisto, Rebecca voltou também para a carrinha para se inteirar do que se passava.

"Tens dez minutos para resolver isso", avisou ela na direcção de Jarogniew.

"Fica descansada", retorquiu o operacional, embrenhado no aparelho.

Tomás e Rebecca instalaram-se nos bancos de trás, numa expectativa nervosa. A hora do encontro estava a chegar e havia problemas nas intercomunicações. Que mais iria correr mal? Muito experiente em situações de tensão, a americana tinha consciência de que nada dependia dela nesse instante e o melhor era mesmo tentar descontrair-se. Precisava de afastar a cabeça daquela dificuldade e a melhor maneira era distraí-la com outro assunto.

"Ainda estou a pensar naquilo que me contou há bocado", murmurou. "Confesso que fiquei chocada."

"Compreendo", devolveu Tomás. "Mas não é caso para tanto."

"Como não é caso para tanto?"

O historiador balançou a cabeça. Explicar história a leigos tinha os seus inconvenientes...

"Você precisa de perceber que Maomé era um homem do século vil", disse. "As coisas que ele fez têm de ser compreendidas no contexto daquele tempo. O facto é que Maomé uniu os Árabes e ergueu uma civilização. Promoveu o monoteísmo, encorajou a caridade, estabeleceu regras de convivência social... fez muita coisa. Foi sem dúvida um grande homem. Não podemos é avaliá-lo à luz da moral vigente hoje em dia no Ocidente. A nossa moral está impregnada de valores cristãos, embora nem sequer nos apercebamos disso, pelo que temos tendência a olhar para as coisas segundo esses valores."

"Está a insinuar que devemos aceitar o que os fundamentalistas fazem?"

"Não, de modo nenhum. Temos de ser tolerantes com os tolerantes e intolerantes com os intolerantes. A Inglaterra e a América foram tolerantes com o nazismo e veja no que isso ia dando! Não podemos ser ingénuos ao ponto de pensarmos que há espaço de diálogo com os intolerantes. Não há! A Al-Qaeda é intolerante. A Lashkar-e-Taiba é intolerante. O Hamas é intolerante. Eles seguem à risca o Alcorão e ambicionam impor o islão a todo o mundo. Às vezes vejo intelectuais ocidentais a defender que se deve dialogar com a Al-Qaeda ou com o Hamas e isso dá-me vontade de rir. Só pode dizer isso quem não tem a mínima noção do que..."

"Rapaziada, não se querem calar?"

Era Jarogniew que testava o aparelho.

"Nós falamos mais baixo", prometeu Rebecca.

"Estou a tentar concentrar-me, goddam it!"

"Pronto, está bem!", disse ela, baixando de seguida a voz. "O que está a dizer, Tom, é que temos de enfrentar os muçulmanos."

"Errado."

"Desculpe, foi o que depreendi das suas palavras."

"O que eu disse é que temos de enfrentar o que habitualmente se designa por fundamentalismo."

"Mas os fundamentalistas aplicam os preceitos contidos no Alcorão e no exemplo do Profeta, certo?"

"Sem dúvida."

"Isso não faz deles os verdadeiros muçulmanos?" Tomás riu-se.

"Você parece o Bin Laden a falar."

Rebecca esperou pelo resto da resposta, mas, como ela não veio, insistiu.

"Faço notar que a minha pergunta não foi respondida..."

"Não sei se posso responder a essa pergunta", confessou o historiador. "Isso é muito sensível. Quando estive no Cairo apercebi-me de que, bem lá no íntimo, muitos muçulmanos se interrogavam sobre se os fundamentalistas não teriam afinal razão. Tudo o que os fundamentalistas dizem é, no fim de contas, sustentado por versículos do Alcorão e por exemplos reais da vida de Maomé. Nada daquilo é inventado. Isso deixa muitos muçulmanos desconfortáveis, como deve calcular, sobretudo porque o Alcorão estabelece que, para se ser verdadeiramente um muçulmano, é preciso respeitar todos os preceitos do islão, não apenas alguns. Goste-se ou não, fazer a jihad contra os infiéis é um dos preceitos. Ponto final."

"Se assim é, por que razão os muçulmanos em geral não cumprem à letra esses preceitos?"

"Isso dá uma longa conversa!" Fez uma pausa. "Quer mesmo que eu lhe explique isto?"

"Enquanto o Jerry não resolver o problema, sim."

Tomás olhou para o americano, que inspeccionava o interior do aparelho de som, e depois espreitou a multidão lá fora. Não havia sinais de Zacarias. Mesmo que houvesse, Rebecca tinha razão. Não se podia fazer nada enquanto o problema técnico não fosse resolvido.

"Oiça, uma parte importante dos muçulmanos são fundamentalistas no sentido em que acreditam no respeito e na aplicação dos fundamentos da lei islâmica", disse, tentando abstrair-se do problema que os preocupava naquele momento. "O que se passa é que uns acham que é preciso aplicar imediatamente a sharia na íntegra, e são esses que designamos habitualmente por fundamentalistas ou radicais. Estou a falar dos fanáticos que nos declararam uma guerra até à morte e andam a fazer matanças por toda a parte. Os outros fundamentalistas são os conservadores. Estes também querem exterminar o Ocidente, mas têm noção de que o inimigo é mais forte do que eles e preferem um entendimento temporário, enquanto esperam o momento mais propício para atacar. Os terceiros são os seculares, que percebem que os tempos mudaram e que certos preceitos estabelecidos por Maomé no século vii reflectem a realidade desse século e não podem ser transpostos para a actualidade. Estes são genuinamente pacíficos, mantêm-se muçulmanos mas querem viver em paz e aceitam o Ocidente."

"E os governos desses países? Que pensam eles?"

"Há de tudo, como sabe. Mas aqueles que não são fundamentalistas nem conservadores estão sob a mira de parte das suas próprias populações."

"Porquê?"

"Por estarem a violar a sharià", observou o historiador. "A lei islâmica requer, por exemplo, que se apedreje uma adúltera até à morte, na sequência do que já vem exigido no Antigo Testamento. Só que isso, como deve calcular, choca com a moral ocidental. Não foi Jesus que disse, em defesa de uma adúltera: «Atire a primeira pedra quem nunca pecou»? Acontece que há governos muçulmanos que estão $ob influência da cultura ocidental e estabeleceram penas mais leves para este tipo de crimes. Mas não foi Maomé que ordenou a lapidação até à morte das adúlteras? Se um governo é muçulmano, porque não executa essa ordem do Profeta? Estas duas perguntas são muito complicadas e põem estes governos em xeque."

"As populações muçulmanas acham que se deve lapidar uma adúltera até à morte?" "Muita gente acha, sim."

"Está bem, mas isso é o o povo ignorante a falar..."

"Está enganada! Muitos muçulmanos instruídos e esclarecidos são fundamentalistas. Repare que a principal característica de um fundamentalista islâmico é a sua vontade de respeitar integralmente, e com verdade, o islão. Se o Alcorão manda rezar cinco vezes voltado para Meca, ele reza. Se o Alcorão manda dar esmolas aos pobres, ele dá. Se o Alcorão manda cortar a mão aos ladrões, ele corta. Se o Alcorão manda matar os infiéis que não aceitam ser humilhados com o pagamento da taxa discriminatória, ele mata. É tão simples quanto isto. Para um fundamentalista não há zonas cinzentas. O que o Alcorão e o Profeta dizem para fazer é para ser feito e corresponde ao bem. Os que não obedecem ao Alcorão e ao Profeta são infiéis e estão ao serviço do mal. Mais nada. Os muçulmanos encontram-se no reino da luz e os infiéis mergulhados na treva."

"Tudo isso já eu sei", disse Rebecca. "Mas como é possível que essa gente não evolua com o tempo? E isso que não percebo!"

"Não percebe porque não conhece a história do islão", atalhou Tomás. Dobrou-se no assento e retirou um mapa do saco de viagens que tinha aos pés. Abriu o mapa no regaço e apontou direcções. "Repare, desde o tempo de Maomé que os muçulmanos se habituaram a estar na ofensiva e a dominar os outros povos. Espalharam-se rapidamente pelo Médio Oriente e pelo Norte de Africa, usaram a força para ocupar a índia, os Balcãs e a Península Ibérica e chegaram a atacar a França e a Áustria."

"Mas sempre ouvi dizer que as relações dos muçulmanos com as outras religiões eram pacíficas..." "Quem lhe disse isso?"

"Li num artigo qualquer. Dizia lá que as cruzadas é que abriram as hostilidades entre cristãos e muçulmanos." Tomás riu-se.

"Isso é conversa da treta! As cruzadas constituíram o primeiro esforço dos cristãos de abandonarem a defensiva, após quatro séculos consecutivos a serem atacados! Foi só com as cruzadas que os cristãos se ergueram contra os muçulmanos e passaram à ofensiva." O dedo de Tomás indicou outros pontos do mapa. "As cruzadas marcaram a primeira resposta dos cristãos aos contínuos ataques dos muçulmanos. Para além da reconquista da Terra Santa, os cristãos recuperaram a Península Ibérica e, com os Descobrimentos portugueses, começaram de repente a espalhar-se pelo mundo. De um momento para o outro apareceram impérios europeus por todo o planeta. Até pequeníssimas potências como Portugal ocuparam áreas de poderio islâmico, como partes da índia e o estreito de Ormuz, chegando até a erguer fortes em plena Arábia, terra que o Profeta, antes de morrer, dissera que só podia ser ocupada por muçulmanos. Apesar da espantosa expansão europeia, o islão manteve o objectivo declarado de conquistar toda a Europa e fez uma derradeira tentativa de retomar a ofensiva atacando de novo o Sacro Império Romano no século xvü, mas o segundo cerco de Viena fracassou e ps exércitos islâmicos bateram em retirada. Foi a consumação do descalabro. Seguiu-se derrota atrás de derrota, até que os europeus entraram em pleno coração do islão."

"No século xix", atalhou o americano.

"Antes", corrigiu Tomás. "Napoleão invadiu o Egipto em 1798. Como deve calcular, os muçulmanos ficaram em estado de choque. E o pior foi constatar que quem expulsou os infiéis franceses do Egipto não foram os exércitos islâmicos, como seria de esperar, mas uma pequena esquadra britânica. O islão percebeu nesse momento que as potências europeias podiam invadir a seu bel-prazer as suas terras e, para cúmulo, só outras potências europeias tinham capacidade de as desalojar!"

"Bem, de certa forma houve aí uma justiça poética, não acha?", observou Rebecca. "Os muçulmanos passaram séculos a comportar-se como imperialistas e a invadir país após país. Alguma vez tinham de provar o fruto que antes impunham aos outros..."

"Visto sob esse prisma, é verdade. Só que eles descobriram que esse fruto era até muito amargo, uma vez que a expansão europeia em território islâmico se acentuou no século xix, com os Britânicos a ocuparem Aden, o Egipto e o Golfo Pérsico e os Franceses a colonizarem a Argélia, a Tunísia e Marrocos. O auge deste processo ocorreu com a derrota do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial. A Grã-

Bretanha e a França abocanharam todo o Médio Oriente, com os Britânicos a ficarem com o Iraque, a Palestina e a Transjordânia e os Franceses a dominarem a Síria e o Líbano. O símbolo desse domínio ocidental sobre o islão foi a abolição do califado otomano, em 1924."

"Está bem, mas isso é tudo história!", contra-argumentou Rebecca. "Que eu saiba todos esses países já recuperaram a independência. Além do mais, quem aboliu o califado foram os próprios Turcos, não foi o Ocidente..."

O historiador dobrou o mapa e guardou-o de novo no saco de viagem.

"Acha que é tudo história? Olhe que os muçulmanos não vêem a coisa assim. Nós, os ocidentais, encaramos a história como uma coisa que já passou e que não deve condicionar-nos. E, mais uma vez, a cultura cristã que nos orienta, mesmo que não nos apercebamos disso. Mas os muçulmanos não são cristãos e olham para as coisas de maneira diferente. Encaram acontecimentos de há mil anos como tendo acontecido agora!"

"Lá está você a exagerar..."

"Quem me dera! Eu sei que para nós tudo isto parece estranho, mas o passado para os muçulmanos tem uma importância desmesurada, eles encontram aí orientação religiosa e legal. No fundo os muçulmanos acham que o passado reflecte os propósitos de Deus e por isso toda a história é muito actual. Daí que a colonização dos países islâmicos pelos europeus os choque acima de tudo."

"Mas já lhe disse que eles recuperaram a independência há muito tempo!", insistiu Rebecca. "Tanto quanto sei, a maior parte desses países libertou-se dos colonizadores entre 1950 e 1970..."

"E verdade, mas para eles é como se tudo tivesse ocorrido ontem. Repare que o islão foi a principal civilização do planeta na altura em que o cristianismo estava mergulhado na Idade Média. Os muçulmanos habituaram-se a encarar-se a si próprios como os guardiães da verdade divina e viam a sua supremacia como uma consequência natural e lógica disso mesmo. Mas eis que, de repente, se viram confrontados com a reconquista cristã, com as consequências dos Descobrimentos portugueses e com a idade das luzes- e, de um momento para o outro, aperceberam-se de que o Ocidente passou a mandar no mundo. Os infiéis ocidentais, até aí na defensiva, tornaram-se senhores do planeta e chegaram ao ponto de colonizar os países islâmicos! A capital do califado, Istambul, pôs fim ao próprio califado e, por decisão de Atatürk, passou a imitar a cultura e o sistema secular dos infiéis ocidentais, separando a religião do Estado. Como acha que os muçulmanos encararam esta transformação?"

"Imagino que não tenham gostado muito..."

"Claro que não gostaram! E, para agravar as coisas, o contraste entre a qualidade de vida das duas civilizações tornou-se gritante. Muitos muçulmanos começaram a comparar as suas vidas com as dos ocidentais e isso fê-los questionarem--se. Por que razão viviam os países islâmicos na pobreza e tinham governos tão corruptos? Porque motivo estavam tão atrasados em relação ao Ocidente? Por que diabo não conseguiam eles também fabricar belos automóveis e voar até à Lua? Incapazes de fazer frente ao domínio tecnológico e financeiro do Ocidente, esses muçulmanos concluíram que só conseguiriam responder na área cultural. E o que havia aqui? O islão! Não foi o islão que dominou o mundo, da índia até à Península Ibérica? Não tinha Maomé em poucos anos criado uma grande civilização? Como fizera ele isso? A resposta era: respeitando integralmente a lei islâmica. Logo, a resposta para os problemas de hoje também podia ser a mesma. Muitos começaram a achar que o problema é que haviam abandonado a verdadeira fé e passaram a acreditar que, se respeitassem de novo todos os preceitos do islão, o esplendor de outrora regressaria em força."

"E foi isso que os atirou para o fundamentalismo."

"Exactamente! Quando um muçulmano diz que se sente humilhado pelo Ocidente, não está a dizer que o Ocidente o maltrata. O que está a dizer é que é humilhante ver o Ocidente superiorizar-se ao islão nos planos económico, cultural, tecnológico, político e militar. O pecado do Ocidente é mostrar-se mais poderoso do que o islão. Daí ao raciocínio seguinte é um mero passo. Muitos muçulmanos acham que, se rejeitarem a modernidade e respeitarem à letra os preceitos do Alcorão e o exemplo do Profeta, a glória e o domínio do islão em todo o mundo voltarão."

"E foi isso que os fundamentalistas começaram a defender depois da queda do califado otomano..."

Tomás fez um trejeito com a boca.

"Na verdade este retorno aos fundamentos do islão começou com um xeque medieval chamado Ibn Taymiyyah, que defendeu a interpretação literal do Alcorão e do exemplo de Maomé, e foi sobretudo relançado no século xvni, no rescaldo do choque da invasão napoleónica do Egipto. Nessa altura apareceu na Arábia um teólogo chamado Al-Wahhab que, inspirado em Ibn Taymiyyah, rejeitou as inovações feitas ao longo do tempo e preconizou o regresso do islão às suas fontes mais originais, o Alcorão e a sunnah do Profeta, estabelecendo a jihad como um dever fundamental dos muçulmanos. Al-Wahhab declarou que todos os muçulmanos que não respeitavam o islão à letra eram infiéis e aliou-se a um emir tribal chamado ibn Saud. Juntos, os dois conquistaram o que é hoje a Arábia Saudita e criaram uma dinastia que ainda agora governa o país. Os Saud mantêm-se como chefes políticos e os descendentes de Wahhab como líderes religiosos. Mas o que é importante perceber é que é aos wahhabistas que está hoje entregue a gestão das madrassas e das universidades." "O quê?!"

"A sério. A educação saudita assenta hoje no fundanfenta-lismo mais primário que possa existir. Está a ver o problema que isso cria, não é verdade? O controlo pelos wahhabistas do sistema de ensino saudita significa que o islão que os sauditas aprendem desde pequenos na escola é o islão da jihad, da matança dos infiéis, da mutilação dos ladrões, dos apedrejamentos das adúlteras até à morte... e por aí fora. E como se isto não bastasse, no século xx apareceu o petróleo!"

Rebecca fez uma careta.

"O que tem o petróleo a ver com isto?"

O historiador esfregou o polegar e o indicador.

"Dinheiro", explicou. "O petróleo enriqueceu os Sauditas. De repente os wahhabistas ficaram cheios de dinheiro e imagine o que decidiram eles fazer?"

"Ergueram grandes mesquitas?"

Tomás soltou uma gargalhada.

"Também", disse. "Mas, sobretudo, puseram-se a financiar madrassas em,todo o mundo islâmico, assumindo o controlo da matéria pedagógica nelas ensinada."

"Meu Deus!"

"Pois é, pois é! De repente as escolas espalhadas pelo mundo islâmico e financiadas pelos wahhabistas sauditas puseram-se a ensinar por toda a parte o islão da jihad! Essas madrassas tornaram-se autênticos viveiros de fundamentalistas, com os novos currículos educativos a pregarem o regresso ao século vil, a defenderem a matança dos infiéis e a rejeitarem a modernidade, dizendo que o retorno ao islão original poria os muçulmanos de novo na vanguarda."

"Mas isso não faz muito sentido! Como é que rejeitar a modernidade os põe de novo na liderança? Não percebo..."

"Oiça, tem de entender que esta mensagem de regresso às origens os apanhou num momento de vulnerabilidade, em que muitos muçulmanos se sentiam humilhados pelo colonialismo e cidadãos de segunda classe na sua própria terra..."

"Mas não era isso justamente o que eles faziam aos cristãos, aos judeus e aos hindus? Não andaram eles séculos a fazer dos outros cidadãos de segunda, obrigando-os até a pagarem taxas discriminatórias e humilhantes para poderem viver nas suas próprias terras?"

"Claro que sim", reconheceu Tomás. "Mas quando os cristãos lhes fizeram o mesmo eles não gostaram e, como é evidente, sentiram-se humilhados. Essa humilhação foi a parte negativa, embora talvez pedagógica, da colonização europeia. Mas repare que a moeda tem uma outra face. Os europeus construíram infra-estruturas que eles não tinham, instituíram sistemas escolares e serviços públicos que não existiam e aboliram a escravatura. Se for a ver bem, não há comparação do grau de desenvolvimento das terras islâmicas que tiveram colonização europeia com o das terras islâmicas que permaneceram sob domínio muçulmano. Só os palestinianos criaram sete universidades desde a ocupação israelita em 1967. Compare isso com as oito universidades da imensamente rica Arábia Saudita ou com o atraso do Afeganistão! E isto para não falar no obscurantismo. Só para que tenha uma ideia, a soma de todos os livros traduzidos em todo o islão desde o século ix é de cerca de cem mil, que é exactamente o número de livros que hoje em dia se traduzem em Espanha num único ano!"

"Então qual é a dúvida dos fundamentalistas? Eles não percebem as vantagens da modernização?"

"Os fundamentalistas e os conservadores vêem as coisas de maneira diferente, o que quer que lhe faça? Eles acham que o islão foi ultrapassado pelo Ocidente justamente, por «e ter desviado das leis divinas e, influenciados pelos ensinamentos dos wahhabistas financiados pelo petróleo saudita, julgam que só o regresso às práticas do século vil os poderá pôr de novo na dianteira. Eles não têm uma visão humanitária do mundo, mas uma visão ortodoxa islâmica."

"Qual é a percentagem de muçulmanos que raciocinam dessa maneira?"

"E difícil de dizer. Eu diria que o muçulmano médio quer apenas viver a sua vida em paz e sossego, respeitar Deus e ser feliz. Penso que estes são a maioria. Têm um conhecimento superficial do islão, ignoram os fundamentos coránicos da jibad, mas sabem que não querem viver num país onde se aplique a sharia na íntegra."

"Portanto, a maioria é secular."

"Sim, acho que se pode dizer isso. E um facto, porém, que, em alguns casos, a maior parte de uma população muçulmana pode ser fundamentalista. Não foi a revolução islâmica que contou com amplo apoio popular no Irão? Não foi o Hamas que ganhou as eleições na Palestina? Não foi a Frente de Salvação Islâmica que venceu a primeira volta das eleições na Argélia - e só não ganhou a segunda volta porque o acto eleitoral foi cancelado? Os fundamentalistas argelinos andavam a cortar o pescoço a milhares de pessoas e, pelos vistos, a maior parte da população aprovava! Isso mostra que os fundamentalistas gozam de uma sustentação popular maior do que gostamos de pensar, embora em geral sejam de facto minoritários."

"Portanto, se bem entendi, temos os fundamentalistas, os conservadores e os seculares."

"Sendo que os seculares são tendencialmente maioritários", insistiu Tomás. "Mas não tenha ilusões: os dois outros grupos são muito perigosos e, pelo menos em alguns países islâmicos, constituem sem dúvida a maioria. Não podemos ser ingénuos ao ponto de acreditar que os muçulmanos são todos muito tolerantes e o conflito que existe se deve a meros problemas sociais e à existência de Israel. A questão é infelizmente muito mais vasta e perigosa do que isso. A maioria pode ser secular, mas, ao mesmo tempo, é também silenciosa. Já a minoria fundamentalista é muito activa e ruidosa."

"Estou a ver."

"O islão está, pois, a viver um grande despertar. Existe uma vontade muito forte por parte de alguns muçulmanos de passar à ofensiva e estender o islão a todo o planeta, impondo..."

"Está pronto!"

Olharam para a frente e viram Jarogniew com o aparelho na mão, preparado para o reinstalar. Tomás ergueu-se e foi ter com o americano, que pregou o aparelho ao cinto do historiador e começou a fazer as ligações.

"Então? Qual era o problema?"

"Havia uns fios que estavam a fazer mau contacto", explicou Jarogniew. "Este problema é muito frequente e às vezes põe em risco as operações. Eu lembro-me de uma vez em que..."

Mas Tomás já não o ouvia. Tinha os olhos presos num rapaz de shalwar kameez branca e turbante cinzento que viu a passar lá fora. O vulto parecia-lhe familiar, mas não tinha a

certeza; a barba negra era maior e o corpo ligeiramente mais magro. As dúvidas, porém, desfizeram-se no momento em que o rapaz levantou por instantes o rosto.

"Ele está aqui", murmurou.

"O quê?"

"O Cbarlie chegou."

 

A visita da mãe à cadeia de Tora era sempre um acontecimento aguardado com grande expectativa por Ahmed. O pai recusava-se a ir vê-lo, dizia que o filho o envergonhara e trouxera desgraça e desonra à família, mas mãe era mãe. As visitas aos reclusos que não estavam confinados a alas especiais eram autorizadas duas vezes por mês e a mãe jamais faltou a uma. Era dos primeiros visitantes a entrar e levava--lhe habitualmente merendas caseiras que faziam as delícias do filho e o compensavam pelo rancho austero da prisão.

A princípio os guardas inspeccionavam com grande cuidado essas merendas, abrindo-as e mergulhando os dedos sujos na comida. Quando ouviu o seu pupilo queixar-se destas inspecções, Ayman explicou-lhe o que devia fazer para evitar que a comida fosse assim conspurcada.

"Baksheesh."

"O quê?"

"Tens de pagar aos guardas!"

Embora fosse elementar, a ideia parecera-lhe genial. A partir do instante em que os carcereiros começaram a receber um suborno, que podia ser em dinheiro ou em tabaco, tudo se tornou de facto mais fácil.

A mãe trazia sempre a ansiedade desenhada no rosto; no fim de contas não era fácil ter um filho na prisão. Mas, nesse dia, quando a viu, Ahmed apercebeu-se de que, dess» feita havia algo de diferente nela; era a expressão que lhe bailava no rosto, não parecia tão ansiosa e tinha um ar de certo modo feliz, o que o surpreendeu.

"O que se passa?", perguntou-lhe logo que se sentaram juntos na sala das visitas.

Ela fitou-o com um sorriso luminoso.

"Não me digas que não sabes..."

"Eu não."

"A moção que submetemos ao tribunal foi deferida." Ahmed manteve um ar indiferente. "E então?"

A mãe fez um ar quase escandalizado, chocada com a displicência do rapaz.

"E então?", admirou-se. "Ó filho, o juiz decidiu que deves ser libertado! Achas pouco?"

Ahmed encolheu os ombros.

"Isso é uma mera formalidade", observou sem entusiasmo. "Não vale nada."

"O que queres dizer com isso?"

"Mãe, eu já estou preso há ano e meio. Cumprindo-se metade da pena, e não havendo queixas em relação ao meu comportamento, é normal que o juiz determine a minha liberdade condicional."

"Mas... e ainda te queixas? Condicional ou não, o que vais ter é a liberdade! O juiz mandou que te libertassem! Achas pouco?"

"Quando será isso?" "Daqui a duas semanas." Ahmed riu-se sem vontade. "O mãe, acredita mesmo nessa conversa?" "Claro que acredito." Olhou-o com ar desconfiado. "Porquê? Não devia acreditar?" "Claro que não." "Porquê?"

Ahmed apontou para o guarda prisional que vigiava a sala.

"Porque eles são uns mentirosos! Porque eles fazem o que querem! Alguma vez me vão libertar?"

"Mas a decisão não foi dos guardas, filho. Nem foi do governo. Foi do juiz."

"E depois? Olhe, já vi aqui quatro casos de irmãos da Al-Jama'a a quem o juiz deu ordem de libertação. Sabe o que lhes aconteceu? Continuam presos! O governo não quer saber das decisões dos juízes para nada! Se os juízes nos libertam, o governo invoca as medidas especiais previstas no estado de emergência e mantém-nos aqui fechados. Só sairemos daqui quando o governo decidir, não quando os tribunais decidirem..."

A mãe recuperou o sorriso.

"Olha lá, tu por acaso és da Al-Jama'a?"

"Bem... na verdade, não sou."

"Foi isso o que nos disse o tio Mahmoud, que conhece o pessoal da polícia. Parece que a polícia percebeu que não és da Al-Jama'a, e por isso não vai invocar o estado de emergência para impedir a tua libertação."

Ahmed cravou os olhos na mãe, perscrutando-a com atenção, como se tentasse ver através dela.

"A mãe está a falar a sério?"

"Claro que estou."

"A polícia disse isso ao tio Mahmoud?" Ela ergueu a mão frágil e, meiga e terna, passou-lhe os dedos quentes pelo rosto.

"Meu filho", disse, com doçura. "Vais para casa."

 

Também Ayman, já habituado às reiteradas práticas do governo em circunstâncias semelhantes, reagiu inicialmente com cepticismo à notícia. Mas os pormenores da conversa do tio Mahmoud com a polícia também acabaram por convencê--lo de que a libertação do seu pupilo estava agora iminente.

"Pois, a tua mãe tem razão", observou Ayman, balançando afirmativamente a cabeça. "Na verdade não estás filiado na Al-Jama'a. Eles devem ter procurado e, como é evidente, não encontraram nenhum documento nem nenhum testemunho que te ligue a nós. Portanto, é perfeitamente natural que te libertem."

Estavam na cantina da cadeia à hora do almoço e a sopa acabara de ser servida. Escutando distraidamente a opinião do seu mestre, Ahmed fez um gesto de abandono.

"E-me indiferente."

Ayman olhou-o com curiosidade.

"Não pareces muito satisfeito..."

"O que vou eu fazer lá para fora? O meu irmão disse, e muito bem, que vivemos numa sociedade jahili que se finge crente. Como acha que me sinto por estar lá fora e não poder fazer nada para impor a vontade de Alá? Como pode um verdadeiro crente viver no meio da jahiliyyar''

O mestre percorreu a cantina com os olhos, observando os reclusos a comer o almoço.

"A maior parte dos irmãos sai daqui quebrada, com medo de voltar a enfrentar os kafirun que se dizem crentes e mandam em nós." O olhar voltou a Ahmed. "E tu? O que achas que te fez esta experiência aqui na prisão? Também te sentes com medo?"

"Eu? Medo?", rosnou o seu pupilo, o olhar incendiando-se de indignação por tal hipótese ter sido ventilada. "Nunca! Quem julga que eu sou?"

"E então?"

"Saio daqui com raiva! Saio daqui revoltado! Alguma vez aceitarei o que o nosso governo nos está a fazer? Jamais! Como é possível que acredite que eu seja assim tão fraco?" Pousou a mão no peito. "Nós somos crentes e eles perseguem os crentes! Como se atrevem eles? E como se atreve o meu irmão a pensar que eu tenho medo desses... desses cães? Se acha que esta gente do Diabo me fez medo, a mim, engana-se!"

Ayman abriu as mãos num gesto de aprovação.

"Que Alá seja louvado, és um verdadeiro crente!", exclamou. "Perdoa-me por ter duvidado, mas deves saber que só uma minoria reage como tu. Quando submetida à tortura e à clausura, a maior parte dos irmãos quebra. Mas alguns, poucos e corajosos como tu, ganham determinação. São esses a vanguarda do islão, aqueles que marcham pelo oceano da jabiliyya com o archote na mão e guiam a humanidade até Deus."

Ao ouvir estas palavras, a indignação do pupilo afogou-se num carrossel de emoções e deu lugar a uma vaga inebriante de orgulho.

"Se houvesse maneira, também eu ergueria o archote." Bateu no peito. "Também eu!"

Ayman tamborilou os dedos na madeira da mesa à qual estavam ambos sentados.

"Há maneira."

"Qual?"

"A do Profeta, que a paz esteja com ele." Ahmed estreitou os olhos. "O que está a sugerir?" "A jihad."

O pupilo calou-se. Havia já muito tempo que andava a ponderar o assunto. Desde que começara a perceber realmente o Alcorão e a sunnah do Profeta que se questiqnava »e não seria sua obrigação obedecer às ordens de Alá: espalhar a fé pela pregação quando possível, pela força se a pregação falhar. O envolvimento de Ahmed na Al-Jama'a nunca fora explicitamente abordado entre ele e o seu mestre, mas permanecera sempre implícito, como um fantasma a pairar sobre as conversas entre ambos.

Havia uma coisa, porém, que se lhe afigurava cada vez mais clara: se Ahmed acreditava realmente em Alá e na Sua mensagem, teria de Lhe obedecer. A obediência não era realmente uma opção, mas uma ordem divina. E a ordem instituída nas últimas revelações de Deus ao Profeta era que a humanidade inteira teria de se submeter ao islão. "Combatei-os até que não exista tentação e seja a religião toda de Deus", diz Alá no Alcorão, sura 8, versículo 39. Combatei-os até que seja a religião toda de Deus! Por Alá, poderia a ordem ser menos explícita? Como poderia um crente ignorar esta instrução divina? Deus mandava combater os kafirun até que todos se submetessem!

E ele, Ahmed? Pois se se dizia crente, não deveria ser consequente com a sua crença? Se se submetera à vontade de Alá, não deveria obedecer às Suas ordens? Como poderia ele fingir que essa ordem inequívoca não estava gravada a ouro no Alcorão? Estava! Ele lera-a! Ele decorara-a! "Combatei--os até que não exista tentação e seja a religião toda de Deus." Se era verdadeiramente crente teria de obedecer, não dispunha de alternativa; a sua vontade e opinião pessoal não contavam para nada.

A vontade de Alá era soberana.

Virou o rosto e encarou Ayman com determinação, a decisão já tomada, a submissão a Deus finalmente completa. "O que tenho de fazer?"

 

A resposta à pergunta levou duas semanas a ser dada. Ayman explicou que tinha de consultar os irmãos para decidir qual o melhor caminho, pelo que Ahmed ficou a aguardar as instruções. Sentia-se pela primeira vez absolutamente em paz consigo mesmo. Decidira juntar-se à jihad e cumprir as ordens divinas. Por Alá, haveria maior prazer na vida que o de realizar a vontade de Deus?

Os dias passaram e recebeu uma notificação formal a informá-lo da data e da hora em que seria libertado. Seria dentro de setenta e duas horas. Mostrou a notificação ao mestre, que lhe pediu que tivesse paciência. Em breve teria novidades.

Na véspera da libertação, quando Ahmed estava já no pátio a despedir-se de companheiros de prisão que ocupavam outras celas e que não iria ver mais, Ayman apareceu e fez-lhe sinal de que o seguisse para uma zona discreta junto do muro.

"Os irmãos deram-me a resposta", anunciou-lhe o mestre num sussurro, lançando olhares em volta para garantir que não havia ninguém à escuta. "Já está tudo tratado."

"Então?"

"Queremos que prossigas os estudos." A decisão deixou Ahmed boquiaberto. "Estudos? Quais estudos? Eu quero é combater! Eu quero é juntar-me à jibad!"

Ayman lançou-lhe um olhar de leve reprovação.

"Tem calma, meu irmão. Acalma-te e escuta-me: a seguir ao nome de Deus, sabes qual é a segunda palavra mais usada por Alá no Santo Alcorão?"

Ainda afogado em frustração, o pupilo abanou a cabeça com uma veemência feita de fúria mal contida.

"Não.", disse o mestre, colando o indicador as têmporas. "Conhecimento. Em trezentos versículos do Santo Alcorão, Alá exorta os crentes a usarem a inteligência e o conhecimento. O próprio Profeta, que a paz esteja com ele, o afirmou: «A primeira coisa criada por Alá foi o intelecto.»" Bateu com o dedo na testa. "Temos pois de usar a cabeça."

"Está bem, eu uso a cabeça. Mas quero usá-la para fazer a jibad, como Alá ordena aos crentes!"

"E vais fazê-la", assegurou Ayman. "Podes estar tranquilo quanto a isso. Mas primeiro tens de adquirir conhecimentos."

"Que tipo de conhecimentos?"

O antigo professor de Religião voltou a olhar em volta, para se assegurar mais uma vez de que ninguém os escutava. "Engenharia."

Ao ouvir a palavra, Ahmed esboçou uma careta. "Para quê?"

"Eu lembro-me que, na madrassa, eras muito elogiado pelo professor de Matemática. Suponho que sintas afinidade com essa área, ou estou enganado?"

"Não, estás certo. E depois?"

"Os irmãos dizem que precisamos de engenheiros. Tu pareces vocacionado para essa área. Portanto, queremos que completes os teus estudos e tires Engenharia."

Ahmed respirou fundo, resignado.

"Muito bem, se essa é a vossa vontade..."

"E essa a vontade dos irmãos, sim."

"Mas garantes-me um lugar na jihad?"

"A seu tempo receberás instruções a esse respeito, inch'Allah. Mas isso só acontecerá quando terminares o teu curso de Engenharia."

"Está bem."

"E já escolhemos o sítio onde vais estudar." Apesar da frustração, Ahmed quase se riu. "Por Alá, isso é que é organização!", exclamou. "Vou para onde? Espero ao menos que seja no Cairo..." O mestre abanou a cabeça.

"O nosso país tornou-se demasiado perigoso, há muitos polícias nas universidades a vigiar os estudantes. Além do mais, não te esqueças de que tens cadastro. Terás de sair do Egipto."

"O quê?"

"Aqui serias logo apanhado."

"Então quero ir para a Terra das Mesquitas Sagradas", disse, peremptório. "E o único país que aplica a maior parte da sbaria."

Ayman voltou a abanar a cabeça.

"Não", repetiu. "Não vais para a Arábia Saudita, já aí está muita gente. Queremos-te totalmente fora dos circuitos habituais. Temos outro destino para ti."

"Qual?"

"A Europa."

A notícia deixou o pupilo chocado.

"Eu? Para a Europa?" Não queria acreditar no que acabara de ouvir. "Mas... mas vocês enlouqueceram? Querem-me mandar para junto dos kafirun?"

"Tem calma, meu irmão", pediu Ayman, pondo-lhe a mão no ombro para o sossegar. "O que queremos é mandar-te para um sítio onde ninguém te irá vigiar e onde te sentirás à vontade. O mundo islâmico está cheio de governos jabili que só fazem o que os kafirun querem que eles façam. Não estarias seguro aqui. Precisamos de te enviar para um sítio onde passes absolutamente despercebido." Ahmed esfregou o queixo, pensativo.

"Ir para a Europa é um grande sacrifício", disse. "Se realmente me querem nas terras dos kafirun, tenho^uma condição. Solicito que me dêem condições para casar."

Ayman abriu a boca, espantado.

"Por Alá, tu tens noiva?"

"Está-me prometida desde os doze anos."

"És uma caixinha de surpresas, meu irmão", exclamou o mestre. "Podes ficar descansado que terás a ajuda da Al-Jama'a. Aliás, o casamento é a forma ideal de te manteres invisível. E... perfeito!"

Ahmed encheu o peito de ar, muito satisfeito com a evolução dos acontecimentos.

"Então estamos de acordo", disse. "Para onde querem que eu vá? Há muitos irmãos a ir para Londres..."

"Justamente, e isso é um problema. Em Londres encontram-se já demasiados irmãos e os kafirun começam a desconfiar. Não podemos mandar-te para lá. Tens de ir para um sítio mais tranquilo, onde passes despercebido."

"O que tem a Al-Jama'a em mente?"

"O Al-Andalus", anunciou o mestre. "Queremos que vás para uma das grandes cidades do califado do Al-Andalus." "O califado de Córdova?" "Sim."

"Querem que eu vá para Córdova?"

Com um sorriso que deixou ver os dentes podres, Ayman abanou a cabeça uma última vez e anunciou então o destino reservado ao seu protegido.

"Al-Lushbuna." "O quê?"

O mestre tirou do bolso uma folha muito engelhada e abriu-a, exibindo-a ao seu pupilo; era um pequeno mapa da Europa. Apontou o dedo deformado e sujo para uma cidade no extremo ocidental da Península Ibérica.

"Os kafirun chamam-lhe Lisboa."

 

O vulto de Zacarias tinha emergido do Portão Alamgiri, o que significava que o rapaz já devia estar havia algum tempo dentro do forte à espera do seu antigo professor. Já com as intercomunicações restabelecidas Tomás apressou o passo e aproximou-se dele. O rapaz trocou um breve olhar com o historiador e seguiu em frente, como se não fosse nada, atravessando a praça entre o forte e a mesquita.

"Ele está a ir-se embora!", comunicou Tomás pela intercomunicação que Jarogniew lhe instalara na roupa.

"Bluebird, o Cbarlie estabeleceu contacto?"

"Quer dizer... ele viu-me, sim."

"E fez algum sinal?"

Tomás hesitou, os olhos fixos na figura de sbalwar kameez que caminhava à sua frente.

"Não tenho a certeza", disse. "Ele olhou para mim e reconheceu-me, isso é certo. Mas não posso garantir que me tenha feito qualquer sinal. Talvez. Não sei."

"Siga-o."

O historiador obedeceu às ordens de Jarogniew e pôs-se no encalço de Zacarias. Olhou em redor, à procura de Rebecca e Sam, mas não os viu. A praça não estava tão cheia como dez minutos antes, embora mantivesse algum movimento.

"Bluebird", voltou a chamar Jarogniew. "Qual é a situação?"

"Ele está a caminhar em direcção a um grande portão, situado do outro lado da praça, mas apenas com uma pequena passagem."

"E o Portão Roshnai", identificou a voz ao auricular. "Continue atrás dele."

Zacarias aproximou-se do portão e encolheu a cabeça para passar através da abertura estreita para o outro lado. Tomás seguiu-lhe o exemplo e, ao emergir na rua, viu o antigo aluno espreitar para trás, como se se quisesse certificar de que o homem com quem se ia encontrar permanecia no seu encalço. Esta troca de olhares encorajou o historiador, que viu nela um sinal claro de que devia prosseguir, pelo que apressou o passo e se chegou mais ao rapaz.

Caminhavam agora pelas ruas estreitas da cidade velha de Lahore. Habituado ao souq do Cairo, Tomás esperava que este sector fosse mais pitoresco, com bancadas por toda a parte e um certo charme exótico pelas ruelas. Mas ali não havia nada disso. A cidade velha era suja e parecia cair aos bocados, com os edifícios degradados e cabos de electricidade pendurados por toda a parte. As ruas estavam enlameadas por condutas de água rotas e esgotos a céu aberto e eram percorridas por motos, mulas, jumentos, carroças, auto-rique-xós e um automóvel ocasional, numa cacofonia de buzinadelas e rádios com o volume no máximo. Não havia ali elegância nenhuma, apenas uma nojeira contínua.

O seu ex-aluno meteu por uma ruela à direita, tão imunda como as outras, e entrou no que parecia ser uma casa de chá improvisada. Não tinha paredes para o exterior, apenas cadeiras de plástico e uma enorme vasilha a fermentar leite.
Zacarias sentou-se numa cadeira e disparou olhares em todas as direcções; dava a impressão de que se sentia acossado.

"Bluebird, qual é a situação?"

"Agora não! Silêncio nas comunicações!"

Crrrrrr.

Tomás abrandou o passo, entrou no mesmo estabelecimento e sentou-se a duas cadeiras de distância. Viu o rapaz pedir um lassi, uma bebida feita à base do leite que fermentava na vasilha, e seguiu-lhe o exemplo, pedindo outro. Depois ficou sentado em silêncio, à espera do que viesse a acontecer.

 

"Isto está complicado, professor."

Foi a primeira coisa que Zacarias disse. O antigo aluno falou em português, mas quase sem movimentar os lábios e a olhar para a rua, como se quisesse disfarçar. Quem o visse de longe poderia pensar que estava a cantarolar ou a murmurar uma prece.

Percebendo esta preocupação de esconder que haviam entabulado conversa, Tomás assentou o cotovelo na mesa e deixou cair a cabeça na mão, de modo que a palma lhe ocultasse a boca e ninguém lhe visse os lábios a mexer.

"Então?", perguntou. "O que se passa?"

"Julguei que os tinha despistado. Mas quando estava no forte à sua espera vi um deles. Quase entrei em pânico."

Tomás lançou um olhar para a rua, tentando vislumbrar qualquer figura suspeita, mas nada viu de anormal. Havia pessoas de um lado para o outro e motociclos a passar com grande fragor e muito fumo, mas cada um parecia metido na sua vida.

"Estão a vigiar-te?"

"Sim."

"Porquê?"

"Porque eu sei de mais e porque já lhes disse que não concordava com o que eles andam a fazer." Mordeu o lábio e revirou os olhos, como se estivesse a repreender-se. "Eu e a minha grande boca! Nunca mais aprendo a estar calado!..."

"Mas sabes o quê, concretamente?"

"Sei que vai haver um grande atentado. Será uma coisa terrível, pior do que o 11 de Setembro."

"Pior ainda?", admirou-se o historiador. "Onde?"

"No Ocidente."

"Sim, mas em que sítio?"

Zacarias abanou a cabeça.

"Isso não sei."

"Na Europa ou na América?" "Apenas sei que será no Ocidente." "E quando será isso?" "Está iminente."

"O que quer isso dizer? Vai ser hoje, amanhã, na próxima semana, daqui a um mês... quando?" "Iminente quer dizer iminente."

O empregado do estabelecimento aproximou-se e os dois calaram-se. O homem colocou um copo de alumínio diante de Zacarias e entregou outro a Tomás, regressando de seguida para junto da grande vasilha de leite a fermentar.

O historiador levou o copo à boca e provou o lassi; tinha o sabor fresco de iogurte. Pousou o copo de alumínio e limpou o líquido branco que lhe ficara a colorir os cantos da boca.

"Já percebi que o atentado pode ocorrer a qualquer momento", retomou ele. "Mas quem o vai levar a cabo?" "Um muçulmano português." Tomás abriu a boca, estupefacto. "O quê?"

"A sério. É um gajo de Lisboa."

"Como se chama ele?" 0 "Ibn Taymiyyah."

O professor esboçou uma careta incrédula. "Esse nome não soa lá muito português..." "O que quer? E como o gajo se chama." "E ele vai fazer um atentado assim sem mais nem menos, sozinho?"

"Claro que não será sozinho." "Então quem está com ele?" "A Al-Qaeda."

Ao ouvir este nome, Tomás sentiu os pelos eriçarem-se-lhe e teve de beber mais um gole de lassi para se acalmar e tentar reordenar o raciocínio. Tudo aquilo lhe parecia assumir proporções demasiado grandes para as suas capacidades. A Al-Qaeda? Caramba, no que se estava a meter! Teve ganas de conversar com Rebecca ou com qualquer dos outros americanos e receber os seus conselhos, mas sabia que não o podia fazer; teria de ser ele próprio a conduzir o processo naquele momento.

"Olha lá, como sabes tudo isso?"

"A Al-Qaeda pediu ajuda aos tipos com quem eu estou. Eles precisavam de fazer passar aqui pelo Paquistão material que retiraram do Afeganistão. Como estávamos sem pessoal, vieram ter comigo para dar uma mãozinha. Foi assim que me apercebi do que se estava a passar."

"E como sabes que há um português envolvido?"

"O Ibn Taymiyyah? Ora, falei com ele." "A sério?"

"Sim. Estive com o gajo apenas durante dez minutos, mas reconheci-o de Lisboa e meti conversa." "Tu conhecias o tipo?"

"Sim. Vi-o umas vezes na mesquita e outras na faculdade." "Qual faculdade?"

Zacarias lançou um olhar fugaz na direcção do seu antigo professor.

"A nossa", disse, afastando de novo a cabeça. "A Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa."

"Estás a gozar comigo..."

"Acho até que ele foi seu aluno."

Tomás voltou a abrir a boca, absolutamente atónito. A conversa adquiria tonalidades surreais. Tinha tido um aluno que agora era elemento da Al-Qaeda? E esse seu antigo estudante ia fazer um grande atentado? Mas que raio de disparate vinha a ser aquele?

"Desculpa, mas eu não me lembro de nenhum Ibn Taymiyyah nas minhas aulas...", disse, após um esforço de memória.

"O senhor professor decora os nomes de todos os seus alunos?"

"Claro que não, são demasiados. Mas um nome desses não é coisa que passe despercebida, não é? Ibn Taymiyyah? É evidente que me recordaria de um nome desses, sobretudo se considerarmos que se trata de um nome com forte carga histórica!"

Zacarias encolheu os ombros.

"Se calhar não foi seu aluno", admitiu. "Mas que o vi na faculdade, disso não tenho quaisquer dúvidas."

O historiador endireitou-se no seu lugar, decidindo largar aquele assunto de momento. Havia outras prioridades.

"Bem, depois vemos isso", murmurou. "Agora explica-me quem é a malta de quem andas a tentar fugir."

Zacarias ficou um instante calado, como se até tivesse medo de pronunciar o nome.

"Já ouviu falar na... na Lashkar-e-Taiba?", sussurrou» atirando novos olhares em todas as direcções para se assegurar de que ninguém o tinha ouvido.

"São os tipos dos atentados de Mumbai, em 2008. Andas metido com essa gente?"

"Infelizmente."

"Mas... como?"

O jovem encolheu os ombros, como se até ele fosse incapaz de perceber em que circunstâncias se metera naquela trapalhada.

"Sabe, eu vim para cá para estudar num complexo educacional aqui perto de Lahore", disse, apontando vagamente numa direcção. "Chama-se Muridke, não sei se já ouviu falar."

"Não."

"O Muridke tem um campus a uns quarenta quilómetros daqui. Lá dentro existe um hospital, escolas, uma mesquita, laboratórios... tudo. Chamam-lhe complexo educacional, mas é também, de certo modo, um campo de treinos."

"Treinos? Treinos de quê?"

"Ora, da fihadr

Tomás lançou-lhe um olhar perscrutador.

"Tu vieste para o Paquistão para te treinares para a jihad?"

"Não é bem isso. Eu vim para o Muridke sem saber bem no que me vinha meter. No fim de contas, quem gere o complexo é a Jamaat-ud-Dawa, a Associação de Profissão de Fé, que dirige mais de uma centena de escolas e seminários por todo o Paquistão, e ainda uma rede de hospitais e serviços sociais. Confiei nisso, claro." Hesitou. "O que eu não sabia é que... que a Jamaat-ud-Dawa não passa de uma espécie de fachada da Lashkar-e-Taiba."

Fez-se um breve silêncio, quebrado pelo estrépito de uma moto a passar defronte do estabelecimento.

"As autoridades sabem disso?"

Zacarias riu-se sem gosto.

"As autoridades apoiam isso", exclamou.

"O governo paquistanês apoia essa organização?"

O jovem abanou a cabeça.

"O governo não manda nada", disse. "Quem está por detrás disto tudo é o ISI, os serviços secretos paquistaneses. São eles quem manda no país. Articulam-se com os talibãs, articulam-se com a Lashkar-e-Taiba... se calhar até se articulam com a Al-Qaeda, não sei."

O historiador abanou a cabeça, como se tudo aquilo fosse de mais para ele.

"Que terra esta!"

"Os tipos da Lashkar-e-Taiba recrutaram-me em Muridke. Eu era muito ingénuo e nem percebi bem no que me estava a meter. Quando compreendi, era demasiado tarde."

Zacarias deixou os olhos perderem-se no casario degradado da cidade velha de Lahore, como se tivesse ficado imerso nos seus pensamentos, ponderando o emaranhado de circunstâncias que o arrastara inexoravelmente para aquele momento e para aquele local, como se ele não passasse de uma folha à mercê dos humores instáveis do vento.

"Os tipos da Lashkar-e-Taiba estavam no forte a vigiar-te?"

O rapaz fez uma careta.

"Não sei", disse, estremecendo, como se o seu espírito tivesse nesse instante voltado ao corpo. "Vi lá um deles, isso é certo. Mas pode ter sido coincidência."

Tomás coçou o queixo, pensativo. Gostaria mesmo de pedir instruções a Jarogniew ou a Rebecca, mas parecia-lhe desaconselhável de momento.

"O que queres fazer agora?"

"Não sei." Hesitou. "Quero ir-me embora daqui, mas receio que seja demasiado arriscado."

"Eu vim acompanhado de gente."

"Quem?"

"Forças de segurança."

A informação deixou Zacarias horrorizado. O rapaz arregalou muito os olhos, como se lhe tivessem falado do Diabo.

"O quê? Não me diga que falou com a polícia paquistanesa?!" Pôs as mãos na cabeça, o alarme a toldar-lhe a face. "Oh, não! Não ouviu o que eu lhe disse? Esses tipos dão-se com a Lashkar-e-Taiba, andam todos metidos uns com os outros!" Olhou em redor, desorientado. "Meu Deus, o que vamos fazer agora?"

"Tem calma", disse Tomás num tom tranquilo. "Não falei com polícia paquistanesa nenhuma."

"Então falou com quem?"

"Americanos."

Zacarias espreitou a rua, tentando identificar rostos ocidentais.

"Onde estão eles?"

O historiador fez um gesto displicente na direcção do exterior.

"Andam por aí..."

"E esses gajos podem tirar-me daqui?"

"Claro. Neste preciso momento, se quiseres. Escondem-te num carro e levam-te para uma base militar aqui perto. Depois metem-te num avião da força aérea americana e retiram--te imediatamente do país. E só dizeres."

O rapaz respirou fundo. Era como se o seu corpo fosse um saco de preocupações que se esvaziava. "Ufa! Ainda bem!" "Então? O que fazemos?"

Zacarias ergueu-se de um salto, de repente cheio de energia e entusiasmo.

"Vamos embora!", exclamou, já sem tentar disfarçar que estava na conversa com Tomás. "Não há tempo a perder." Fez um gesto na direcção do caminho por onde tinham vindo. "Mas primeiro temos de ir ali ao forte."

"Porquê?"

O rapaz atirou uma nota para a mesa e saiu para a rua, acompanhado pelo seu antigo professor. "Trouxe comigo uma prova." "Que prova?"

"A prova de que se está a preparar um grande atentado. Mas quando estava no forte e vi o gajo da Lashkar-e-Taiba por ali, entrei em pânico e deitei-a numa caixa, não queria ser apanhado na posse dela. Agora temos de ir lá buscá-la! Quando o senhor vir..."

"Ibn al Kalb!"

O grito insultuoso interrompeu a conversa e paralizou Tomás. Sentiu um vulto negro posicionar-se entre ele e Zacarias, apercebeu-se de uma lâmina a cintilar ao sol e, como num sonho, viu-a despenhar-se sobre o corpo do seu antigo aluno.

"Ahhhh!"

O desconhecido apunhalava Zacarias.

 

Lisboa chocou Ahmed.

Foi a primeira vez que saiu do Egipto e visitou um país estrangeiro, para mais ocidental, pelo que sentiu um brutal embate ao deparar-se com a diferença entre os dois mundos. Os contactos com os kafirun no souq do Cairo já lhe haviam dado alguns indícios, mas uma coisa era intuir as diferenças e outra ser esmagado por elas.

A novidade que de início mais o espantou, e para a qual não estava verdadeiramente preparado, foi a riqueza que encontrou em Portugal. Os automóveis brilhavam de tão novos que pareciam, os autocarros tinham portas que se abriam automaticamente, as estradas eram impecáveis, não havia papéis nem plásticos espalhados pelos passeios, as pessoas tinham um aspecto bem tratado e dos seus corpos emanavam fragrâncias perfumadas, não se viam bairros degradados nem esgotos a céu aberto nem lixeiras pelos cantos nem revoadas de mendigos, o ar respirava-se limpo e tudo parecia ordeiro e arrumado.

Que contraste com o Cairo!

E que dizer dos comportamentos? Nunca tinha visto tanto kafir de uma só vez, mas o mais chocante foi observar as mulheres a andarem por toda a parte com a pele branca exposta - por Alá, iam praticamente nuas! Viam-seThes os braços, as pernas, o cabelo, os ombros; algumas até vestiam camisinhas tão curtas que expunham a barriga e deixavam mesmo antever o rego dos seios!

"Prostitutas!", vociferou em voz baixa, indignado. "Todas umas prostitutas!"

E o mais extraordinário é que os homens mal pareciam fazer caso disso; não deram sinais de se incomodar com tamanha falta de vergonha. Via-os até a lidar com as mulheres como se fossem iguais, misturando-se sem pudor. Observou inúmeros casalinhos a andarem na rua de mão dada e, com os olhos que Alá lhe dera, chegara a vê-los beijarem-se na boca em plena via pública! Que imundice!

Sentindo-se afogar naquele mar de imoralidade e degeneração, decidiu procurar refúgio no aconchego de uma mesquita. Disseram-lhe que havia uma a funcionar perto do Martim Moniz e procurou-a, mas por mais que andasse não havia meio de a encontrar. Deambulou perdido pela Baixa de Lisboa e assustou-se quando viu um polícia aproximar-se dele. Pensou que ia ser preso e preparou-se para fugir, mas sentia-se paralisado de medo e ficou pregado ao chão. O polícia interpelou-o em português e, muito hirto, Ahmed abanou a cabeça e fez sinal de que não entendia. Após as primeiras palavras confusas, ouviu o guarda mudar para um inglês primário mas perceptível.

"Precisa de ajuda?"

O polícia queria ajudá-lo! No Cairo sempre vira os polícias como repressores agressivos e corruptos, pessoas que deviam ser evitadas a todo o custo. Mas aquele guarda mostrava-se desconcertantemente afável. Desconfiado, Ahmed balbuciou uma desculpa improvisada e afastou-se o mais depressa que pôde, convicto de que haveria ali uma artimanha qualquer. Que terra aquela!

 

"Estes Portugueses devem-se fartar de roubar aps crentes", observou após o seu primeiro passeio pela cidade.

Ahmed fora instalado na casa dos Qabir, uma família de muçulmanos de origem moçambicana que vivia em Odivelas. Ninguém suspeitava da ligação do visitante à Al-Jama'a e o acolhimento resultava de uma mera paga de favores antigos.

"Porque dizes isso, meu irmão?", perguntou o chefe da família, Faruk. "Aconteceu alguma coisa?"

"Estou-me a referir a toda esta opulência, a todo este dinheiro que os Portugueses exibem. Isto é gente muito rica, com certeza foram roubar a algum lado."

Faruk riu-se.

"Quem? Nós?" Mais uma gargalhada. "Somos dos povos mais pobres da Europa ocidental! Meu irmão, tens de viajar mais pela Europa para veres o que é realmente riqueza! Há por aí povos muito mais ricos do que o nosso!"

Ahmed cravou os olhos no anfitrião, o esgar exprimindo um misto de incredulidade e escândalo.

"Os outros kafirun são ainda mais ricos? Por Alá, a roubalheira deve ser muita!"

"Não é bem assim, meu irmão. Nós investimos muito na educação e sabemos que a verdadeira riqueza é gerada pelo conhecimento. Se andares por este país ou por toda a Europa, verás que por aqui existem poucas riquezas naturais nas terras. Não há petróleo, não há ouro, não há diamantes." Colou o indicador às têmporas. "Mas possuímos conhecimentos.

Aqui no Ocidente sabemos fazer carros, aviões, pontes, computadores... é essa a nossa riqueza."

Ahmed calou-se. Pareceu-lhe evidente que aquela família era desviante e vivia em jahiliyya. Estes supostos crentes estavam de tal modo integrados que até se referiam aos kafirun ocidentais como nós, não eles! Onde já se vira uma coisa assim? Além do mais tinham comportamentos impróprios. Pois não andava a filha mais velha de Faruk, Fátima, vestida de jeans e a exibir impudicamente o rosto e os cabelos pela rua, sujeitando-se aos olhares lúbricos dos kafirun? E que dizer da mulher do seu anfitrião, Bina, que às vezes parecia ser quem verdadeiramente mandava lá em casa? Como podia Faruk autorizar tais coisas? Porque não as punha ele na ordem? Como se tudo aquilo não bastasse, Ahmed já vira com os seus próprios olhos cervejas no frigorífico daquela casa! Seria possível?

O recém-chegado começou a frequentar a mesquita de Odivelas, mas achou-a demasiado desviante. Onde estavam os apelos à jibad? Onde se exigia a aplicação da sbaria? Onde se ouvia recitar as ordens de Deus no Alcorão para emboscar os idólatras? Em parte alguma! Por Alá, que muçulmanos eram aqueles?

As instruções da Al-Jama'a a Ahmed iam no sentido de que jamais poderia deixar perceber que era um verdadeiro crente. Devia ocultar em todas as circunstâncias o seu pensamento, mesmo diante dos muçulmanos portugueses. Tratava-se de uma medida de segurança, não podia chamar as atenções sobre si uma vez que a organização o queria manter a todo o custo afastado das listas dos crentes identificados pelos serviços secretos ocidentais. Permaneceu por isso em silêncio, mas sentia-se baralhado e indignado com tanta jahiliyya.

A gota de água que fez transbordar o copo da sua paciência ocorreu ao fim da segunda semana, quando jantava com os Qabir. Fátima chegou a casa nessa noite muito excitada com uma notícia que lhe acabara de ser dada. Uma amiga muçulmana fora, um ano antes, obrigada pela família a casar com um desconhecido. Acontece que se descobrira agora que a rapariga tinha um namorado secreto e,apelos vistos, mantivera o contacto com ele mesmo depois de casada.

"Vai para lá uma bronca!...", observou Fátima à mesa.

"Essa miúda já devia ter juízo", disse a mãe. "Sempre foi uma doidivanas!"

"Oh, já a conheces! Quando se lhe mete uma coisa na cabeça, ninguém a tira. Decidiu que o namorado é o homem da sua vida e não o vai largar de maneira nenhuma! Agora que tudo foi descoberto, acho que ela se vai divorciar do marido e casar com o namorado!"

O alvoroço despertou a curiosidade de Ahmed, que pediu que lhe explicassem a conversa. Fátima resumiu o assunto no seu árabe titubeante e deixou o convidado atónito.

"Ela continuava a ver o namorado?", espantou-se.

"E verdade", confirmou Fátima.

"E agora?"

"E agora... olha, vai divorciar-se." "Mas... mas... e o adultério?"

"Pois, é chato para o marido", reconheceu ela. "Não se tivesse casado por combinação! Quem anda à chuva molha--se, não é verdade?"

"Mas houve adultério!", insistiu Ahmed, escandalizado. "Isso é permitido?"

A família Qabir entreolhou-se.

"Bem... claro que não", disse Faruk.

"Ah, bom! Então qual é o castigo que vão aplicar a essa adúltera?"

O anfitrião disparou um olhar de repreensão à filha por ter trazido aquele assunto para a mesa, considerando a presença do hóspede e os seus hábitos manifestamente conservadores, mas logo encarou o egípcio e forçou um sorriso, algo embaraçado com o que ia dizer.

"Não haverá nenhum castigo."

Ahmed parou de comer.

"Como?! Não haverá nenhum castigo? Não lhe vão fazer nada?" "Não." "Porquê?"

"Porque... porque aqui o adultério não é crime."

Ao ouvir esta revelação o hóspede engasgou-se e desatou a tossir; tossiu tanto que parecia que os pulmões lhe iam saltar pela boca. Quando por fim recuperou, teve vontade de se levantar e de berrar com toda aquela gente e mandar as mulheres da casa porem o véu e atirar todas as cervejas pela janela e...

Conteve-se.

As suas ordens eram de que não deveria revelar os seus pensamentos. Teria de ocultar a todo o custo que era um verdadeiro crente. Por Alá, não podia deixar de cumprir as instruções da Al-Jama'a.

Mas percebeu que ia ser difícil.

 

Passou os primeiros três anos em Lisboa a aprender português e a fazer as disciplinas do liceu que lhe permitiriam inscrever-se na faculdade. Agastado com tanto comportamento desviante, saiu o mais depressa que pôde da casa dos Qabir e alugou um quarto a dois quarteirões de distância. A capacidade de memorização que desenvolvera ao decorar todo o Alcorão na infância ajudou-o consideravelmente e, ao fim desse tempo, falava português com apenas alguns vestígios de sotaque estrangeiro.

A modernidade que via à sua volta, em vez de o inspirar e o levar a questionar tudo o que até ali pensara, serviu apenas para reforçar as suas crenças e suscitar-lhe o maior dos ^essen«men-tos. Como era possível que os kafirun fossem tão abastados e os verdadeiros crentes tão pobres? Como pudera Alá permitir tamanha injustiça? A resposta era clara. Os crentes haviam-se desviado do verdadeiro caminho. Tinham abandonado a sbaria e Deus punira-os com aquela suprema humilhação!

Era preciso, pois, voltar às verdadeiras leis islâmicas. Era necessário respeitar integralmente a sbaria e trazer de regresso à Terra a Lei Divina. Só assim se agradaria a Deus e se receberia de volta o Seu favor, de modo que os crentes se tornassem de novo mais ricos e prósperos e poderosos do que os kafirun. Na verdade tornava-se fundamental regressar aos valores do passado para garantir a hegemonia no futuro.

Concluiu com sucesso o secundário e, conforme havia acordado com a Al-Jama'a, concorreu para Engenharia, pondo o seu nome nas candidaturas para o Instituto Superior Técnico e para a Universidade Nova de Lisboa. Foi aceite nos dois cursos, o que não era surpreendente se consideradas as suas excelentes notas do secundário e as relativamente baixas médias de acesso, e acabou por optar pela Nova, sempre era uma universidade.

Foi por essa altura que recebeu uma carta do Cairo. Abriu-a e viu que havia sido remetida por Arif, o seu antigo patrão no souq. Depois de o cumprimentar e dos preâmbulos habituais, o dono da loja dos cachimbos de água queixou-se de que Adara já estava em idade de casar e queria saber se o

seu antigo pupilo se mantinha na disposição de cumprir o que ambos haviam acordado anos antes.

Ahmed respondeu de pronto e, em dois meses, os papéis necessários foram tratados pelos pais e pelo noivo. Quando os documentos do casamento foram por fim assinados e tudo ficou pronto, Ahmed deu um derradeiro salto aos correios e enviou para o Cairo um envelope com o bilhete de avião. No momento em que saiu do edifício, não se conteve e soltou um urro e um salto de alegria.

A bela Adara vinha aí!

 

Parecia um filme.

O desconhecido agarrava Zacarias com o braço esquerdo, enquanto a mão direita, que segurava o punhal, caía consecutivamente sobre a sua vítima. Apunhalou-o uma, duas e três vezes, até que Tomás despertou do seu torpor e, ganhando vida, desferiu um brutal pontapé na cabeça do agressor. Apanhado em desequilíbrio, o homem tombou no chão, largando Zacarias, e encarou o português.

"Kafir!", vociferou.

O desconhecido ergueu-se de um salto, a faca a pingar sangue, e avançou na direcção de Tomás, ameaçador. Crrrrrr.

"Blackbawk! Blackbawk!" Era a voz de Jarogniew ao auricular, gritando freneticamente. "Go! Go!"

No meio da confusão, Tomás lembrou-se de que Blackbawk era o nome de código de Sam. Mas não havia tempo para se preocupar com os outros, a ameaça diante dele era demasiado premente.

Crrrrrr.

"Bluebird! Saia daí! Já!"

O agressor de negro deu um passo rápido, como um felino, e espetou o punhal na sua direcção. Tomás saltou para trás e conseguiu desviar-se. Aproveitando o desequilíbrio momentâneo do desconhecido, desferiu um novo pontapé, desta vez no estômago do homem, mas ele não vacilou e, lançando-se pelo ar, caiu sobre o historiador.

Crrrrrr.

"Blackhawk!? Go! Go/"

O português conseguiu suster-lhe a mão que empunhava o punhal, mas sentiu o agressor socar-lhe os rins. A dor fê-lo fraquejar e logo viu a lâmina a aproximar-se dos olhos. Fez força para a fazer recuar, mas o mais que conseguiu foi suster-The o avanço. A ponta do punhal estava a um mero palmo de distância e Tomás não tinha muito tempo para reagir.

Crrrrrr.

"Bluebird?"

Com um movimento rápido e desesperado, o europeu encolheu-se de modo a dar uma joelhada no ventre do agressor e, acto contínuo, voltou-se e acertou-lhe com o cotovelo na cara. Numa reacção reflexa, a mão com a faca recuou e Tomás aproveitou para cabecear o homem no rosto. O desconhecido soltou um urro de dor e, às cegas, numa fúria súbita, lançou o punhal contra a vítima com tal força que quebrou a defesa do inimigo, rasgando-lhe a camisa e passando-lhe a lâmina pelo corpo.

Crrrrrr.

"Blackhawk, o que se passa?"

O português sentiu uma dor aguda irromper-lhe no peito, junto ao coração, e percebeu que tinha sido esfaqueado. Quase entrou em pânico. Onde estava a ajuda?, interrogou-se naquele momento desesperado. Onde parava Sam? Onde se encontrava Rebecca? Porque demoravam tanto a ir em seu socorro? Será que tinham problemas de comunicação semelhantes aos seus no início da operação? Será que não ouviam os insistentes apelos de Jarogniew nos auriculares? Se assim fosse, estava perdido.

Crrrrrr.

"Onde estás, Blackkawk? O que está a acontecer?"

Apercebendo-se de que a sua resistência chegava rapidamente ao fim, Tomás contorceu-se numa tentativa desesperada de se libertar, mas o desconhecido imobilizou-o com o braço esquerdo, como havia feito momentos antes a Zacarias, e, já com o braço direito livre, ergueu bem alto o punhal para esfaquear o historiador com toda a força.

Pab.

Pab.

O pulso do desconhecido perdeu energia. Tomás olhou para cima e viu o seu agressor de olhos vidrados e um buraco aberto na testa a expulsar matéria branca e sangue. O homem de negro estava muito hirto e inclinou-se devagar, como uma árvore a tombar, até cair no chão, evidentemente morto.

Deitado de costas e finalmente sem ninguém por cima dele, o historiador ergueu a cabeça e viu Sam com as duas mãos agarradas a uma pistola em riste, os olhos a dardejarem em todas as direcções em busca de ameaças potenciais, o fumo a flutuar diante do cano da arma.

"Você está bem?", perguntou Sam sem olhar para ele.

Tomás soergueu-se, assentando o corpo sobre um cotovelo, e massajou o peito dorido.

"Acho que o gajo me atingiu no peito", disse, avaliando ainda a reacção do corpo. "Mas tenho a impressão de que só me apanhou de raspão."

"Já vamos ver isso."

A atenção do português desviou-se da ferida que lhe sujava a camisa com sangue para o americano.

"Estava a ver que nunca mais aparecia ninguém!", resmungou. "Você não ouviu o seu amigo chamar pelo auricular?"

"Ouvi."

"Então porque raio levou tanto tempo?"

"Fui retido por outros capangas." Indicou com a cabeça o fim da rua, onde se encontravam dois vultos prostrados no chão. "Levei uns instantes a despachá-los."

Crrrrrr.

"Blackhawk! Qual é a situação?"

"Bluebird está okay", revelou Sam. "Charlie está down. Standby."

O historiador levantou-se devagar e, cambaleante, aproximou-se de Zacarias, que se encontrava deitado no chão, inanimado, ao lado de uma poça de sangue que aparentemente lhe saíra do pescoço. Mas já não havia sangue a jorrar. Tomás ajoelhou-se ao lado do antigo aluno e pousou-lhe dois dedos por baixo da orelha, tentando captar-lhe a pulsação.

Nada.

Experimentou-lhe o pulso, mas voltou a não sentir a pulsação.

"Então?", quis saber Sam.

Tomás abanou a cabeça com tristeza. Libertando uma mão, o americano ajoelhou-se também ao lado de Zacarias e experimentou-lhe a pulsação. Levou apenas um breve momento a tirar as suas próprias conclusões.

"Está morto."

Crrrrrr.

"Hello?" Agora era a voz de Rebecca. "O que se passa? Aconteceu alguma

"Houve um incidente", respondeu Sam. " Perdemos Charlie. Temos de sair daqui."

"Mas o que se passa? Como está o Tom?" A voz era frenética e destilava ansiedade. "Tom! Você está bem?"

"Estou bem."

"Shopgirl, saia da linha", ordenou Sam. "Temos de fugir
daqui."

Uma multidão aproximava-se agora do local, espreitando os corpos inertes de Zacarias e do desconhecido. Sam mostrava-se ansioso por abandonar aquelas paragens antes que a polícia chegasse e puxou Tomás pelo braço. O historiador tinha, no entanto, relutância em abandonar o cadáver do seu antigo aluno, e sacudiu a mão do americano.

"Oiça, temos mesmo de sair daqui!", argumentou Sam com sentido de urgência. "Ele está morto, não há nada que possamos fazer."

Tomás deitou um derradeiro olhar a Zacarias, como se se estivesse a despedir. Mirou-lhe os olhos vidrados, o pescoço dilacerado, a mão esticada com o indicador a arranhar o chão...

"Espere!"

Sam impacientou-se. "O que é agora?"

Tomás voltou a abeirar-se do corpo e inclinou-se sobre a mão imóvel de Zacarias. "O que é isto aqui?"

O americano aproximou-se e espreitou para o local. "O quê?"

Diante do dedo a terra parecia revolver-se em traços. Tomás girou a cabeça, tentando decifrar o desenho que pelos vistos Zacarias fizera no chão enquanto agonizava. Tinha de ser uma coisa importante, percebeu. Ninguém gastava os

seus derradeiros instantes de vida a fazer um desenho irrelevante.

Girou mais uma vez a cabeça e fixou os traços. Não era um desenho, acabou por perceber. Eram letras.

"Use me?", interrogou-se Tomás. "O que raio quer isto dizer?"

"Ele pediu que o usasse", constatou Sam, traduzindo a frase.

O historiador fez uma careta intrigada e abanou a cabeça num gesto de incompreensão. "Isso não faz sentido nenhum!"

O som longínquo de uma sirene rasgou o ar e trouxe-os à realidade. Sam agarrou de imediato no braço de Tomás, dessa vez com a determinação de quem não admite mais hesitações, e puxou-o com força.

Let's go!

 

A figura que se materializou na rampa das chegadas do aeroporto de Lisboa atraiu os olhares de toda a gente. Era uma mulher coberta da cabeça aos pés por trajes islâmicos, uma imagem pouco comum na capital portuguesa.

Metido no meio daquela pequena multidão, Ahmed fixou a atenção na figura tímida e reconheceu-lhe os olhos.

"Adara!", chamou, erguendo o braço. "Adara! Por aqui!"

Foi recebê-la no final da rampa. Apesar de se terem visto com frequência na loja dos cachimbos de água, nunca haviam trocado mais do que breves palavras. Adara vinha adequadamente tapada, mas era evidente que se transformara numa mulher, o corpo mais largo e longo, os olhos ainda pérolas reluzentes, a face de um anjo.

A transbordar de felicidade, Ahmed levou-a para o seu novo apartamento no Monte de Caparica, para onde se mudara de modo a estar mais perto da faculdade, e deu-lhe

carneiro assado e arroz árabe, jantar que lhe havia sido preparado por Bina, a mulher de Faruk.

"Está bom?", perguntou ele, tentando fazer conversa.

Adara assentiu em silêncio.

"Sentes-te cansada?"

Ela voltou a acenar afirmativamente, os olhos sempre pousados na comida. A mulher não parecia faladora, o que desapontou Ahmed. Achava-a linda e queria-a alegre, mas ela parecia fechada como uma concha. O noivo encolheu os ombros, resignado. Em devido tempo ela desabrocharia, considerou.

 

Logo que terminaram a refeição instalou-se um certo aca-brunhamento entre eles. Ambos sabiam o que teria de acontecer a seguir, mas não era claro como chegariam a esse momento. Ahmed ponderou o assunto e optou por um caminho indirecto.

"Queres ver a casa?"

Adara levantou o olhar assustado; percebeu muito bem o sentido da pergunta. Ahmed interpretou o silêncio como consentimento implícito, a postura adequada de uma mulher modesta e recatada, e conduziu-a para o quarto. Havia uma grande cama de casal no meio e fez-lhe sinal de que se dirigisse a ela. Adara obedeceu e estendeu-se vestida na cama, o corpo hirto, os olhos a saltitarem de nervosismo.

O marido desligou a luz: e deitou-se ao lado dela. Não sabia bem o que fazer em tais circunstâncias, uma vez que aqueles assuntos eram proibidos até nas conversas entre homens, mas tinha a ideia de que tudo se passava entre as pernas dela. Ganhou coragem e meteu-lhe desajeitadamente a mão pela parte de baixo do vestido, explorando-a até lhe detectar a abertura quente. Sentiu a erecção formar-se-lhe nas calças e despiu-se com um movimento rápido.

Depois deslizou para cima dela e fez força para entrar. A coisa não resultou; devia haver qualquer mecanismo que ambos desconheciam. Teve então a ideia de lhe abrir as pernas e voltou a investir. Ela gemeu de dor no momento em que o marido conseguiu penetrá-la.

Foi uma refrega rápida e atabalhoada. Dois minutos depois, Ahmed levantou-se e foi lavar-se. A seguir foi a ve¿ dela de ir fazer as abluções. O marido voltou ao quarto, acendeu a luz e constatou, uma centelha de alívio a perpassar-lhe pelos olhos, que uma pequena mancha de sangue sujava o lençol.

 

O campus universitário da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova situava-se em Monte de Caparica, perto do apartamento onde viviam. Inscreveu-se em Engenharia Electrotécnica e os tempos seguintes foram passados às voltas com as diferentes matérias do curso. Frequentou cadeiras com nomes bizarros como Electrotecnia Teórica, Instrumentação e Medidas Eléctricas, Conversão Electromecânica de Energia e Electrónica de Potência em Accionamentos. Não eram as disciplinas mais galvanizantes do mundo, mas Ahmed completou-as com competência e dedicação.

Se as coisas iam bem nos estudos, a verdade é que em casa não pareciam famosas. Adara andava permanentemente deprimida. Era muito diferente da menina alegre e divertida que ele admirara na loja dos cachimbos de água no Cairo.

Certo dia, quando chegou das aulas, deu com ela sentada no sofá a chorar.

"Que se passa? Que aconteceu?"

A mulher passou a mão pela face, limpando apressadamente as lágrimas, e endireitou-se. "Não é nada."

"Como assim, não é nada? Porque estás a chorar, mulher?"

Adara recusava-se a responder, mas Ahmed não admitiu o silêncio e exigiu que ela lhe explicasse o que se passava; não sairia dali enquanto não tirasse tudo a limpo. Tanto insistiu que a mulher acabou por se abrir.

"Sinto-me infeliz."

"Porquê? Tens saudades da família?" Ela balançou afirmativamente a cabeça. "Mas não é só isso, pois não? Há mais?" Ela não disse nada. "Então? Porque andas tão triste?"

Adara voltou a fechar-se num mutismo teimoso. Mas a porta tinha sido entreaberta e Ahmed não ia aceitar que as coisas ficassem por ali; queria apurar o que se passava.

 

Voltou a insistir dias depois, até arrancar por fim uma confissão surpreendente.

"Não gosto do meu casamento." A revelação deixou-o chocado. "O quê? Que dizes?"

Pela primeira vez desde que se unira àquele homem, Adara levantou o rosto e fixou o marido nos olhos, em desafio, como se dizer aquilo a libertasse.

"Não gosto de estar casada."

Aquela declaração era inaudita e deixou Ahmed atónito. Onde já se vira uma mulher dizer tal coisa ao marido? Teria ela enlouquecido?

"O que queres dizer com isso? Porventura trato-te mal?"

"Não, claro que não."

"Então? Qual é o problema?"

Ela baixou os olhos, deixando uma lágrima solitária escorrer-lhe pela face.

"Não sinto amor por ti."

Ahmed ficou a olhar para ela embasbacado. Esperava que ela dissesse tudo menos aquilo.

"E desde quando isso é relevante?", perguntou por fim. "O que tem o amor a ver com isto? Es parva ou quê?"

A mulher encolheu-se toda, os olhos a saltitarem para um lado e para o outro, perdidos e desesperados.

"Eu queria um casamento... um casamento espexial, aetás a perceber? Um casamento em que houvesse uma grande paixão, em que me sentisse flutuar..."

"Estás maluca?"

"Eu quero um amor como os dos romances!"

O marido contraiu o rosto numa expressão perplexa.

"Quais romances? Do que estás tu a falar?"

"Estou a falar de uns livros que eu lia lá no Cairo às escondidas dos meus pais, como Barbara Cartland, Daphné du Maurier..."

"Lixo!", cortou Ahmed, subitamente enfurecido. "Isso é tudo lixo! Isso são tudo ordinarices dos kafirun!"

"São livros belos!", argumentou ela. "Falam de amor, mostram um mundo em que as mulheres podem escolher a sua vida, se apaixonam, casam com o homem que querem e não com quem o pai lhes manda, tomam decisões suas, podem..."

"Isso é lixo!", repetiu o marido num tom tão agressivo que a obrigou a calar-se. "Esses livros dos kafirun não passam de obras do Diabo! Querer estar bonita em público, desejar atrair homens, buscar o prazer, divertir-se... tudo isso são seduções de Satanás! Não te esqueças de que esta vida é um teste temporário! O Diabo tem inúmeros estratagemas para nos desviar do bom caminho e esses livros imorais dos kafirun são um desses estratagemas!" Apontou para cima. "Mas Alá Al-Hakam, o Juiz, tudo observa, e se Ele nos vir a ceder à tentação irá barrar-nos o caminho para os jardins eternos! É isso o que tu queres, ir para o grande fogo?"

Adara abanou negativamente a cabeça; vivia aterrorizada com a possibilidade de ir para o Inferno.

"Então tem juízo!", ordenou ele. "Uma boa muçulmana evita as sensações animalescas que estão contidas nesses livros. Islão é submissão. As mulheres devem obediência aos seus maridos e a Deus, não a Satanás e à animalidade do corpo."

Adara voltou a fitá-lo.

"Mas, justamente, quando estamos os dois juntos, quando tu queres intimidade... é animalidade o que acontece. Não há romantismo, não há... sei lá, não há nada. E horrível!"

Ahmed respirou fundo.

"Só falas assim porque andaste a ler esses livros dos kafirun, com as suas descrições licenciosas e não islâmicas da intimidade entre marido e mulher. Mas fica sabendo que nenhuma boa muçulmana deve copiar o comportamento das ímpias. Uma boa crente evita vestir-se como elas, comportar-se como elas, ter intimidade como elas!"

"Ao menos as kafirun são livres."

"São ímpias!", exclamou ele em tom de quem não admite discussão. "Esses livros nojentos que andaste a ler afastam as boas muçulmanas do caminho de Alá."

"Eu gosto dos meus romances!"

Ahmed aproximou o rosto da mulher e falou entre dentes, numa voz baixa e tensa, carregada de ameaças: "Estás proibida de voltar a ler essas imundices."

 

As coisas não iam nada bem em casa. A conversa permitiu enfim a Ahmed perceber o problema e a sua origem, mas não o resolveu. Adara andava permanentemente infeliz e o marido

começou a intuir que o sogro é que tinha razão; no fundo ela era uma rebelde. Ahmed sabia que teria de ter o pulso firme para a domar e passou a vigiá-la com mais atenção, tendo especial cuidado com o que a mulher lia ou via na televisão.

Com o casamento em banho-maria, investiu fortemente nos estudos. Concluiu Engenharia em 1994, aos 25 anos, e, graças a uma recomendação dos seus contactos na,Al-Ja*na'a, começou a trabalhar em projectos de uma empresa saudita que abrira um escritório em Lisboa. Mas a curiosidade e um certo enfado pelo trabalho e pelos silêncios pesados em casa impeliram-no a procurar coisas diferentes.

Logo que arranjou emprego mudou para uma casa mais bem situada. O casal deixou o Monte de Caparica e transferiu-se para um apartamento à Praça de Espanha, perto dos escritórios da empresa e da Mesquita Central. Logo que completou a mudança pôs-se a espreitar os diversos cursos oferecidos na universidade na qual se havia licenciado e descobriu que a Nova tinha uma outra faculdade a uns meros dois passos do seu novo apartamento.

Visitou a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas à primeira oportunidade. O que mais lhe chamou a atenção foi o curso de História, uma paixão desde os tempos em que o professor Ayman lhe ensinara a história do islão na madrassa de Al-Azhar. Decidiu por isso preencher os tempos livres a frequentar algumas cadeiras desse curso. Inspeccionou o currículo e a que mais lhe interessou foi Línguas Antigas. Quis saber quem a ministrava e fixou a atenção no nome do professor.

Tomás Noronha.

 

"Temos de voltar para trás!" "O quê?"

"Temos de voltar para trás!", repetiu Tomás. "Imediatamente!"

O historiador estava de tronco nu no assento da carrinha e Rebecca limpava-lhe a ferida no peito com um pedaço de algodão embebido em álcool. Mas Tomás tinha a cabeça voltada para trás e os olhos presos às muralhas vermelho-atijoladas do forte que se afastava na traseira da viatura.

"O que se passa?", perguntou Jarogniew, agarrado ao volante.

"Ele quer voltar para trás", explicou Rebecca enquanto preparava o penso. "Porquê?"

Os olhares caíram sobre o historiador, que mantinha a atenção colada ao forte, lá ao fundo.

"O Zacarias disse-me que deixou uma coisa muito importante escondida no forte. Temos de ir lá buscá-la."

"Você está louco?", insistiu Jarogniew. "A esta hora a polícia já anda à volta do corpo do seu amigo. Se você voltar pode ser identificado por alguma testemunha."

"Mas temos mesmo de ir procurar o que o Zacarias lá
deixou."

"Que raio de coisa é assim tão importante?"

"Pelo que percebi trata-se de uma prova relacionada com o grande atentado que está em preparação."

"Você sabe onde se encontra isso?"

"No forte."

"Sim, mas em que sítio?" "O Zacarias não me disse."

"Então como tenciona descobrir essa prova? O forte é muito grande..."

Tomás voltou a cabeça e cravou os olhos em Sam. "Use me."

O americano fez a expressão vazia de quem não entende alguma coisa. "Hã?"

"A mensagem que o Zacarias deixou escrita no chão", explicou o historiador. "E uma pista para chegar ao que ele escondeu."

Fez-se um curto silêncio dentro da carrinha, com os americanos a considerarem as consequências do que acabavam de escutar. Como tinha sido o único a ver a derradeira mensagem de Zacarias, Sam foi o primeiro a perceber onde Tomás queria chegar. Vencendo as últimas hesitações, inclinou-se no seu lugar, abriu um saco e extraiu um tecido branco do interior.

"Vista esta shalwar kameez e este pakoV, disse, estendendo a Tomás os trajes paquistaneses. "Assim ninguém o reconhecerá."

Sentado ao volante, Jarogniew encarou o seu companheiro com um esgar inquisitivo. "O que estás a fazer?"

Sam indicou o forte que desaparecia lá atrás. "Vamos voltar."

 

Dessa vez Tomás cruzou mesmo o Portão Alamgiri e entrou no complexo do forte de Lahore. Ao seu lado ia Sam, igualmente disfarçado com uma shalwar kameez, a pistola oculta dentro das vestes, os olhos a saltitarem atentos a qualquer ameaça.

"Por onde quer começar?", perguntou o americano.

O Portão Alamgiri ficara para trás e ao lado deles estava a Porta de Musamman Burj, já dentro do complexo. Diante dos dois ocidentais de shalwar kameez estendia-se um vasto espaço harmoniosamente preenchido por edifícios e jardins.

"Pelo centro."

Atravessaram o grande jardim em passo rápido. Uma placidez beatífica pairava naquele local. Os corvos crucitavam e os pardais chilreavam sem cessar, o pipilar melodioso a sobrepor-se ao rumor distante, mas sempre presente, da cidade. O forte era defendido por canhões antigos que ornavam os cantos das muralhas; para além delas estendia-se o casario degradado da cidade velha, já quase uma lixeira de edifícios decadentes e ruelas imundas.

No entanto, ali, no meio do jardim do forte, reinava a harmonia. Aspersores gigantes espalhavam água pela verdura e os jactos da rega atingiam o tronco das árvores papiyal e o caminho dos visitantes, obrigando Tomás e Sam a especiais cuidados para não se molharem.

Contornaram o jardim e aproximaram-se do primeiro edifício, uma construção em pedra de portas baixas. Tomás tirou do bolso um folheto com a planta do complexo.

"Isto é o Diwan-i-Aam", identificou. "Era aqui que o im-
perador mogul recebia as visitas."

Os dois homens curvaram-se e passaram a porta de entrada.

"Esses moguls deviam ser uns anões", observou Sam ao constatar que todas as portas no interior do edifício eram igualmente baixas.

O Diwan-i-Aam parecia uma relíquia mal conservada no tempo. O mármore antigo que decorava o interior tinha um ar muito gasto, embora os arabescos cravados na sua superfície fossem claramente visíveis. As paredes pareciam de gesso e estavam rachadas, apresentando inscrições a giz feitas por visitantes desrespeitosos, provavelmente adolescentes apaixonados, enquanto o chão se quebrava em rachas. O interior era escuro e estranhamente fresco, num agradável contraste com a fornalha que ardia lá fora. As salas eram apertadas, pareciam extraídas de um Punjabe dos Pequeninos, e os dois homens percorreram-nas metodicamente sem encontrar nada.

 

"Não é aqui", concluiu Tomás.

Saíram para a varanda e contemplaram o pátio em frente, ornamentado por um pequeno jardim com um lago artificial seco que expunha os tubos das canalizações. Logo a seguir viam-se ainda mais edifícios e, para além das muralhas, de novo a cidade a espraiar-se no meio do smog.

Sam apontou para os restantes edifícios do complexo.

"Vamos procurar daquele lado."

Antes de se fazer à escada para descer para o jardim, Tomás lançou uma derradeira olhadela à varanda do Diwan--i-Aam. Foi nesse instante que reparou na mancha azul quase escondida por baixo da arcada, à esquerda. Era uma caixa cilíndrica de plástico azul, com uma abertura no topo e as letras pintadas a branco.

 

Um caixote de lixo.

Tomás ficou imóvel a olhar para as letras brancas no caixote azul; parecia hipnotizado. "O que foi?", perguntou Sam.

O historiador apontou maquinalmente para o caixote de lixo. Ficaram ambos um longo instante a contemplá-lo, quase como se receassem ver o que se escondia no interior. O primeiro a reagir foi o americano. Pôs a mão debaixo da shalwar kameez para agarrar a arma e, embora mantivesse a pistola escondida, assumiu uma postura vigilante, como se assim garantisse a segurança do perímetro.

"Veja o que está lá dentro."

Tomás aproximou-se devagar e inclinou a cabeça sobre a abertura, espreitando o conteúdo do caixote de lixo. Viu uma lata verde de refrigerante e um saco branco de batatas fritas. Estendeu a mão e afastou o saco, tentando vislumbrar o que se encontrava por baixo. Detectou uma superfície amarelo--torrada, pareceu-lhe cartão.

"Está ali qualquer coisa."

"Tire-a."

Movendo-se com mil cuidados, o historiador mergulhou o braço no caixote de lixo e tocou na superfície amarelada. Era realmente um cartão ou um papel grosso. Pegou nele e retirou-o, trazendo-o para a luz.

Um envelope.

Inspeccionou-o de frente e verso, mas não havia nada escrito. Indeciso, trocou um olhar com Sam. O americano im. um sinal com a cabeça, encorajando-o a abrir o sobrescrito. Tomás procurou a abertura e descobriu-a selada por uma pequena corda áspera. Desfez o nó e a abertura ficou exposta. Meteu a mão dentro do sobrescrito e sentiu uma superfície lisa e fresca no interior.

"Então?", impacientou-se Sam.

"Calma."

Depois de se certificar de que não havia ninguém em redor a espiá-los, Tomás extraiu a superfície macia que o envelope guardava. Parecia uma folha plastificada, de tamanho A4. Virou-a para si e pousou os olhos nela.

Sentiu um baque.

"Meu Deus!"

Ao ver o historiador arregalar os olhos, Sam não conseguiu conter a curiosidade.

"O que é? O que está aí?"

Lívido, Tomás girou a folha para o americano. Sam apercebeu-se então de que se tratava da imagem ampliada de uma fotografia de telemóvel. A imagem estava escura e algo desfocada, mas o seu conteúdo era bem visível. A foto mostrava uma caixa com caracteres cirílicos impressos à superfície. No topo, entre uma bandeira russa e os caracteres cirílicos, a caixa ostentava um símbolo universalmente reconhecido.

O nuclear.

 

Uma desagradável lufada de vento obrigou Ahmed a levantar-se e ir fechar a janela. Espreitou lá para fora e arregalou os olhos, horrorizado. Adara atravessava a rua e, espanto dos espantos, tinha a cabeça totalmente descoberta!

"Por Alá!", exclamou de pasmo. "Enlouqueceu!"

Ahmed não gostava que a mulher saísse sozinha para ir à mercearia, mas não havia maneira de contornar o problema. Encontrava-se num país kafir e não tinha consigo a família para acompanhar Adara sempre que ela precisava de ir à rua. Tivera por isso de se resignar, mas só a deixara sair com a promessa de que resguardaria o rosto e o corpo dos olhares impudicos. E eis que ela desobedecera à ordem.

No momento em que Adara abriu a porta, o lenço já voltara a cobrir-lhe o cabelo. A palma da mão do marido abateu-se-lhe sobre a face uma, duas, três, sucessivas vezes, cobrindo-a de estaladas.

"Sua prostituta! Sua desavergonhada! Como te atreves a desobedecer-me?"

Ahmed ficou descontrolado. Era a primeira vez que batia
na mulher, mas a fúria tinha tomado conta dele. Adara enco-
lheu-se no canto do hall de entrada do apartamento, os bra-
ços a cobrirem a cabeça, o corpo a tremer e reduzido a uma
bola defensiva.

"O que foi?", gemeu ela. "O que fiz?"

"Prostituta! Não tens vergonha? Estou farto! Vais aprender, ouviste? Vais aprender!"

"O que fiz? Por Alá, o que fiz?"

"Tu sabes muito bem! Sua cadela! Sua ordinária! Não prestas para nada!"

Quando o marido acabou de a espancar, Adara permaneceu um bom bocado encolhida no seu canto a soluçar. Aquela mulher era mesmo rebelde, repetiu Ahmed para si pela enésima vez, ofegante, os olhos pousados com despeito naquele corpo trémulo. Mas ele havia de a pôr na ordem, ele havia de a ensinar a ter recato e a comportar-se como uma boa muçulmana!

"Tu não me podes bater!", gemeu ela quando recuperou o fôlego. "Não tens o direito! Só um mau crente bate na mulher!"

"Quem te disse isso?"

"O mullab da Mesquita Central. Ele disse que o Profeta, no seu último sermão, mandou os crentes tratarem bem as suas mulheres!"

"Que eu saiba, trato-te bem..."

"Mas bateste-me! O mullah disse que o Alcorão garante a igualdade de homens e mulheres. Não podes maltratar-me!"

O marido soltou uma gargalhada forçada.

"Ou esse mullah é um ignorante ou está vendido aos kafirun. Onde se encontra tal coisa escrita?"

Ela ergueu os olhos revoltados e fitou-o com rancor.

"No Alcorão, já te expliquei. Eu própria li! Alá diz no versículo 228 da sura 2: «As mulheres têm sobre os maridos direitos idênticos aos que eles têm sobre elas.» Está lá escrito!"

"Tu agora já decoras o Alcorão?"

"Conheço esse versículo."

"Então se conheces deverias citá-lo na íntegra. E verdade que Alá diz no Alcorão que os direitos são idênticos. Mas logo no mesmíssimo versículo Alá esclarece que «os homens têm predomínio sobre elas»."

"«Têm predomínio»", admitiu Adara. "Embora disponham de «direitos idênticos» aos delas."

"Pois sim. Mas não te esqueças de que Alá estabelece no Livro Sagrado que o testemunho de uma mulher vale metade do de um homem, que a herança que cabe a uma filha é metade da que cabe a um filho e que um homem pode estar casado com quatro mulheres ao mesmo tempo mas nenhuma mulher pode estar casada com mais de um homem ao mesmo tempo. E no versículo 223 da sura 2 está dito por Alá: «As vossas mulheres são vossa pertença. Desfrutai-as como quiserdes»."

"«Desfrutai-a», diz Alá", argumentou Adara, sempre combativa. "Ele não diz que batas."

"Di-lo na sura 4, versículo 34: «Àquelas de quem temais desobediência, admoestai-as, confinai-as nos seus aposentos, castigai-as.»"

"Lá está", insistiu Adara. "Alá diz «admoestai-as» e «castigai-as», mais uma vez não diz que lhes batam."

"A que tipo de castigo e admoestação achas tu que Alá se está a referir?"

"Não sei. Mas Ele não fala em bater."

"Falou o Profeta."

A mulher lançou-lhe um olhar interrogativo. "O que queres dizer com isso?"

"Há um hadith que regista estas palavras do mensageiro de Deus: «Nenhum homem será questionado sobre os motivos pelos quais bate na sua mulher.» E num outro hadith está escrito que o Profeta se queixou de que as mulheres estacam a ficar atrevidas com os maridos e deu-lhes autorização para bater nelas."

"O meu mullah diz que esses ahadith não são totalmente seguros", argumentou ela. Ahmed encolheu os ombros.

"São citados por Abu Dawud", esclareceu, como se tal facto fosse suficiente. "E há um outro hadith de Al-Bukhari em que alguém pergunta ao Profeta se pode bater na mulher e ele responde que sim, acrescentando que se deve dar o correctivo com um miswak."

Adara tinha dificuldade em aceitar tal coisa. Embora soubesse que jamais conseguiria derrotar Ahmed nos argumentos coránicos, não se deu por vencida.

"Pois que eu saiba não me bateste com nenhum miswak", protestou. "Além do mais, para um crente bater na mulher tem de ter um motivo válido. Não pode bater porque lhe apetece!"

"É verdade."

"Então se é verdade, porque me bateste?"

"Porque me desobedeceste!"

"Eu?"

Ahmed deu um passo adiante, enervando-se, e apontou à mulher o dedo acusador.

"Não te faças despercebida porque eu vi tudo! Andaste na rua sem estar devidamente tapada, como ordenou o Profeta, como ordenei eu e como convém a uma muçulmana que se dê ao respeito! Ou negas?"

Adara ficou sem saber o que dizer. Era verdade que, nos últimos tempos, se destapava sempre que saía à rua. Estava cansada dos olhares bizarros que os kafirun portugueses lhe lançavam sempre que a viam naqueles preparos e queria integrar-se melhor, circular sem estar a ser observada a todo o momento. Sempre tivera o cuidado de se voltar a tapar quando chegava a casa, mas pelos vistos o marido apanhara-a a infringir as regras.

Ergueu os olhos e voltou a fitar Ahmed com uma expressão de desafio.

"Está bem, destapei-me na rua. E então? Qual é o problema?"

O marido olhou-a com uma expressão de pasmo, não acreditava no que acabara de escutar.

"Qual é o... o..." Abanou a cabeça, como se assim lograsse reordenar o pensamento. "Estás a brincar comigo, mulher?"

"Não, não estou! Qual é o problema de as mulheres se destaparem? Será que me podes explicar?"

"Estás doida? São ordens do Profeta!"

"Mas ele tinha de ter alguma razão para nos mandar cobrir..."

"Então não sabes que os homens... os homens ficam loucos de excitação quando vêem uma mulher destapada? Não sabes o efeito que a visão de uma mulher seminua tem nos homens? Eles ficam cegos de desejo! Eles ficam confusos!"

"Confusos?"

"Sim, confusos! Nem conseguem trabalhar! Instala-se o caos total! A sociedade mergulha na anarquia mais completa! É a fitna absoluta!"

Adara ficou um instante calada a olhar para o marido, como se tentasse decidir por onde começar. Depois levantou--se a custo e caminhou devagar em direcção da cozinha.

"Quando eu frequentava a minha madrassa no Cairo, as professoras também me davam essa explicação. Diziam que nós, as mulheres, temos um grande poder no nosso corpo e que, se o exibirmos em público, a sociedade se desintegra." Aproximou-se da janela e chamou o marido. "Anda cá ver uma coisa."

Sem perceber onde ela pretendia chegar, Ahmed aproximou-se.

"O que é?"

"As mulheres kafirun tapam-se?"

"Sabes bem que não", devolveu ele com desprezo. "Essas ímpias não passam de umas prostitutas que não têm vergonha de exibir o corpo aos olhares impudicos."

Adara apontou para a rua.

"Então olha lá para fora e diz-me: vês homens a correrem de um lado para o outro a ferver de desejo? Vislumbras anarquia em alguma parte? Se tudo o que tu e as professoras da minha madrassa dizem é verdade, como explicas que esta terra de kafirun seja muito mais organizada e ordenada do que a terra dos crentes? Como explicas que eu ande na rua destapada e não haja homens a lançarem-me olhares lúbricos? Como explicas que tudo funcione aqui tão bem quando há milhares de mulheres a circular destapadas por toda a parte? Onde está a fitnaf Onde está o caos? Onde está a anarquia?"

Os olhos de Ahmed passearam pela rua diante do seu apartamento. A paisagem era realmente muito mais harmoniosa do que a confusão a que se habituara no Egipto. As pessoas circulavam tranquilamente e os homens não davam sinais de se babarem sempre que se deparavam com um tornozelo feminino. É certo que já vira operários lançar piropos sujos a raparigas, mas eram ocasiões relativamente raras e no Cairo até já assistira a assédio bem mais intenso. Observou lá ao fundo uma mulher a passar com os ombros descobertos e o homem com quem ela se cruzou no passeio não sofreu qualquer ataque de nervos nem teve nenhuma erupção de lascívia sexual. Como explicar tal mistério?

Com um esgar de despeito, o marido voltou as costas à janela e abandonou a cozinha.

"A explicação é simples", resmungou ao sair. "Os kafirun não são verdadeiros machos!"

 

A ruiva lasciva inclinou-se sobre Tomás, deixando vislumbrar os seios opulentos por entre a gola entreaberta da camisa, e abriu-se num sorriso maravilhoso.

"Deseja mais alguma coisa?"

Ao ouvir esta pergunta, o historiador engoliu em seco. "Não, obrigado."

A ruiva pousou-lhe o copo de champanhe no tabuleiro, voltou a sorrir e deu meia volta, bamboleando o traseiro até desaparecer por entre as cortinas da parte dianteira do avião.

"Jesus!", exclamou Rebecca, que estava sentada ao lado de Tomás a observar a cena. "Você tem realmente saída com as mulheres. Até as hospedeiras lhe fazem olhinhos!"

O português de olhos verdes torceu a boca e esboçou um esgar de comiseração.

"Elas percebem que você não me liga nenhuma...", murmurou num queixume fingido.

A americana soltou uma gargalhada.

"Ah, lá está você a apalpar o terreno!"

"Infelizmente é a única coisa que apalpei até agora..."

Rebecca olhou-o de esguelha.

"Se quiser algo mais, tem de o merecer!"

"Ai sim?", animou-se Tomás, abrindo-se num sorriso sedutor. "Então o que preciso eu de fazer?"

A americana dobrou-se no assento e tirou uma pasta de cartolina que guardara no saco que tinha aos pés. A capa da pasta trazia impressa a águia americana no topo, a sigla da NEST por baixo e as palavras Top Secret carimbadas a vermelho no canto.

"Precisa de fazer o seu trabalho", respondeu ela, assumindo uma postura profissional e estendendo-lhe a pasta. "Leia."

Com ar resignado, o historiador pegou na pasta de cartolina e abriu-a. No interior encontravam-se resmas de papel com o nome da Al-Qaeda referenciado em título. Percebeu que havia fotografias mais adiante e foi direito a elas. Umas mostravam homens de roupas árabes e cabeça tapada, com armas nas mãos; outras eram imagens de edifícios, tiradas por meios aéreos ou mesmo no local, com uma legenda a indicar "campos de treino"; outras ainda exibiam cães mortos no interior do que parecia ser uma câmara estanque. Havia também fotografias exibindo diversos rostos árabes e duas delas eram de Osama Bin Laden, uma com o líder da Al-Qaeda a disparar uma Kalashnikov.

"Isto é um dossiê sobre a Al-Qaeda", constatou Tomás.

"Gee, Tom! Você é um génio!"

Ignorando o tom de ironia, o português fechou a pasta e devolveu-a a Rebecca.

"Oiça, eu não sou génio nenhum", disse. "Sou um historiador e esta matéria é do seu foro, não do meu."

"Mas você está a trabalhar para a NEST, Tom, e temos uma emergência em mãos", argumentou Rebecca. "O seu ex--aluno disse-lhe que a Al-Qaeda está na posse de material radioactivo. As palavras em russo inscritas nas caixas que ele fotografou revelam tratar-se de urânio enriquecido a mais de noventa por cento. Ou seja, é material militar. Isto é muito grave e, uma vez que você está envolvido na operação, era bom que se familiarizasse com este assunto."

"Você já leu essa papelada toda?"

"Claro."

Tomás pegou no copo de champanhe que a hospedeira ruiva lhe tinha oferecido e bebericou um trago.

"Então faça-me um resumo."

Rebecca suspirou, vencida, e abriu a pasta.

"Muito bem", disse. "O que aqui está é o que sabemos sobre os projectos da Al-Qaeda em relação à construção e uso de bombas nucleares, projectos que remontam à década de 1990. Um sudanês que desertou do movimento, um tipo chamado Jamal Ahmad Al-Fadl, revelou-nos que Bin Laden esteve nessa altura empenhado na compra de urânio enriquecido por um milhão e meio de dólares. O nosso informador disse ter visto, com os seus próprios olhos, um cilindro com uma série de letras e números gravados no exterior, incluindo um número de série e as palavras Africa do Sul, identificando a origem do urânio enriquecido."

"O que aconteceu a esse material?"

"Não sabemos."

Tomás espreitou a pasta.

"Considerando o volume desse dossiê, presumo que haja ainda mais pistas."

A americana folheou os documentos que se encontravam no interior da pasta.

"Claro que há", confirmou., extraindo uma fotografía que virou na direcção de Tomás. '"Está a ver isto?"

A imagem mostrava uma sequência de tendas miseráveis, com homens de turbante, mulheres a cozinhar sobre lenha e crianças andrajosas a brincar ma terra.

"Parece um campo de refugiados."

"Muito bem!", exclamou el;a, como se o historiador tivesse acertado uma pergunta num concurso televisivo. "E o campo de Nasirbagh, na fronteira entire o Paquistão e o Afeganistão. A polícia encontrou aqui, em 1998, dez quilos de urânio enriquecido. O material estava nas mãos de dois afegãos que iam partir para o Afeganistão.'" Baixou a voz, como se fizesse um aparte. "Sabe quem nessa altura operava livremente no Afeganistão, não sabe?"

"A Al-Qaeda."

Rebecca guardou a fotografia e tirou outras duas.

"Você hoje está imparável, acerta em todas", sorriu. Apresentou as duas novas fotografiias. "Conhece estes senhores?"

Os olhos do português deslizaram para as legendas por baixo das imagens.

"A acreditar no que está aqui escrito, este é o Bashiruddin Mahmood e este o Abdul Majieed", indicou, apontando para cada uma das fotografias. "M;as não faço a mínima ideia de quem sejam."

"São dois antigos elementos do programa paquistanês de armas nucleares", identificou ela. Apontou para a fotografia do primeiro homem. "O senhor Mahmood é um dos principais peritos do Paquistão em uirânio enriquecido. Trabalhou durante trinta anos na Comiissão de Energia Atómica do Paquistão e foi uma figura ceintral no complexo de Kahuta, onde os Paquistaneses produziram urânio enriquecido para a sua primeira bomba atómica. Chefiou ainda o reactor de Khosib, que produz plutónio para bombas atómicas, mas teve de se demitir depois de ter afirmado em público que as armas nucleares paquistanesas eram propriedade de toda a umma e de defender o fornecimento de urânio enriquecido e plutónio militar a outros países islâmicos. Isto era uma coisa que o Paquistão já estava a fazer, claro, mas pelos vistos não se podia confessar em público."

"Um rapaz com pouco tento na língua, portanto", gracejou Tomás. "Mas porque me está a falar desses cavalheiros pouco recomendáveis?"

"Porque eles se deslocaram a Cabul para uma reunião com Bin Laden em Agosto de 2001, um mês antes dos atentados de Nova Iorque e Washington. A notícia desse encontro chegou a Langley depois do 11 de Setembro e deixou a CIA à beira de um ataque de nervos. A coisa foi considerada tão grave que o director da CIA, George Tenet, foi direito a Islamabade para falar com o presidente Musharraf. Mahmood e Majeed foram então detidos pelas autoridades paquistanesas e interrogados por equipas conjuntas paquistanesas-americanas. Mahmood negou ter-se alguma vez encontrado com Bin Laden."

"E então, o que fizeram vocês? Mergulharam-lhe a cabeça na água, como fizeram aos fundamentalistas que meteram em Guantánamo?"

"Vontade não nos faltou", murmurou Rebecca, como quem faz um aparte. "Mas, tendo em conta as circunstâncias, não podíamos seguir de imediato para os métodos mais musculados. Em vez disso, o nosso pessoal da CIA decidiu submetê-lo ao teste do polígrafo. A máquina mostrou que o tipo estava a mentir."

"Surpreendente", ironizou Tomás.

"É, não é? Fomos então interrogar o filho. O rapaz revelou que Bin Laden tinha pedido ao pai informações sobre como fabricar uma arma nuclear. Depois de o filho se descoser, Mahmood lá confessou que realmente se deslocou a Cabul e se reuniu durante três dias com Bin Laden e o seu braço--direito, Ayman Al-Zawahiri. Mahmood admitiu por fim que a Al-Qaeda queria mesmo produzir armas nucleares. Os companheiros de Bin Laden ter-lhe-ão dito que o Movimento Islâmico do Usbequistão lhes tinha fornecido material nuclear e queriam saber como usá-lo. Mahmood ter-lhes-á explicado que o material que se encontrava na sua posse daria apenas para uma bomba suja, mas não poderia desencadear uma explosão nuclear. Disse-nos ter ficado com a impressão de que a Al-Qaeda tinha falta de conhecimentos técnicos e que o seu projecto se encontrava ainda nas etapas iniciais."

"De qualquer modo, isso tira todas as dúvidas", concluiu Tomás. "A Al-Qaeda quer mesmo construir armas nucleares."

Rebecca lançou-lhe novo olhar sarcástico.

"Eu não digo que você é um génio? Claro que quer construir armas nucleares! E aliás por isso que achamos que este senhor Mahmood não nos contou toda a verdade. Se a Al-Qaeda tinha falta de conhecimentos técnicos, de certeza que ele e Majeed lhe forneceram instruções detalhadas sobre como fazer uma bomba atómica. Só que o Mahmood não nos podia confessar isso, pois não?"

"Pois, enterrava-se todo."

A americana guardou as duas fotografias na pasta e retirou uma resma de folhas agrafadas.

"Agora gostava que visse isto", disse, mostrando-lhe o documento. "Traduza-me o título."

Tomás pegou na resma e folheou-a. Tinha vinte e cinco páginas escritas em árabe, com diagramas e desenhos por toda a parte. Voltou à primeira página e fixou os olhos nos caracteres árabes que se encontravam no título.

"Superbomba.'"

Rebecca voltou a pegar no documento.

"Quando invadimos o Afeganistão, depois dos atentados do 11 de Setembro, entrámos em edifícios, abrigos, grutas e campos de treino da Al-Qaeda e descobrimos milhares de documentos e imagens com pormenores sobre as actividades e os projectos da organização de Bin Laden. A análise'desse material revelou que a Al-Qaeda andava activamente a tentar deitar a mão a armas de destruição em massa." Indicou a resma de folhas. "Este documento, Superbomba, foi descoberto na casa de Abu Khabab em Cabul. O senhor Khabab era um destacado elemento da Al-Qaeda." Folheou o documento sem se deter em nenhuma página em particular. "Está aqui informação detalhada sobre os diversos tipos de armas nucleares existentes. Além do mais, pode encontrar nestas páginas todos os pormenores sobre a engenharia necessária para provocar uma reacção em cadeia, incluindo as propriedades dos materiais nucleares. Ou seja, isto é um verdadeiro manual para construir uma bomba atómica."

Guardou o manual em árabe na pasta e localizou mais uma fotografia, que voltou a mostrar a Tomás.

"Este senhor chama-se José Padilla e é de Chicago", disse. "Prendêmo-lo no Verão de 2002 depois de ele se ter encontrado no Paquistão com o chefe operacional da Al-Qaeda, Abu Zubaydah. O nosso amigo Padilla propôs-se fabricar uma bomba atómica, mas o Zubaydah pediu-lhe antes que regressasse aos Estados Unidos e começasse a adquirir material radioactivo para usar com explosivos vulgares e fazer assim uma bomba suja que permitisse contaminar uma área vasta. E interessante que a Al-Qaeda tenha recusado a proposta de Padilla, não acha? Só poderia ter feito isso se nessa altura já tivesse em marcha o seu próprio projecto de uma bomba atómica."

"A bomba do Zacarias."

"Exacto. De outro modo, o Zubaydah jamais recusaria a proposta de Padilla. Com toda a certeza, a Al-Qaeda já..."

"Senhores passageiros, vamos iniciar a nossa descida", anunciou uma voz adocicada, devia ser a hospedeira ruiva. "Por favor apertem os cintos e endireitem os assentos das vossas cadeiras. Deveremos aterrar no aeroporto de Ierevan às 13h35 locais, ou seja, dentro de aproximadamente meia hora. Obrigado por voarem com..."

"Ainda não percebi porque raio me arrastou para a Arménia", resmungou Tomás.

"Já lhe expliquei que temos de tirar tudo isto a limpo", disse Rebecca. "O meu contacto russo opera em Ierevan e nós, se queremos falar com ele, temos de ir ao seu encontro. Afinal somos nós os interessados, não é verdade? Tenha paciência."

"Este desvio por Ierevan é por causa das inscrições em caracteres cirílicos na fotografia do Zacarias?"

"Sim, mas não só." Voltou a indicar a pasta de cartolina. "Antes de partirmos de Lahore falei com Langley e eles disseram-me que a fotografia é muito credível porque bate certo com toda a informação de que dispomos. Sabemos que, na década de 1990, houve elementos da Al-Qaeda que se deslocaram a três estados centro-asiáticos que antigamente faziam parte da União Soviética e, aproveitando o caos que se seguiu ao desmoronamento do sistema comunista, tentaram comprar uma ogiva nuclear ou material que permitisse construir uma bomba atómica."

"E conseguiram?"

"Estamos convencidos que não. Mas em 1998 soube-se que eles pagaram dois milhões de dólares a um cazaque que prometeu entregar-lhes um engenho nuclear soviético do tamanho de uma mala."

"Que mala? Uma daquelas de que falou o general Lebed, o assessor do antigo presidente Ieltsin?" "Essas mesmo."

"Se bem me lembro da gravação que mister Bellamy nos mostrou em Veneza, o general Lebed disse numa entrevista à televisão americana que tinham desaparecido várias malas dessas. Está a dizer-me que a Al-Qaeda deitou awnão 9. uma delas?"

"E uma possibilidade. Aliás, nesse mesmo ano a revista árabe Al Watan Al Arabi noticiou que a Al-Qaeda tinha comprado vinte ogivas nucleares a mafiosos chechenos por trinta milhões de dólares e duas toneladas de ópio. Não conseguimos confirmar esta informação, mas o biógrafo de Bin Laden, Hamid Mir, revelou que Ayman Al-Zawahiri, o número dois da Al-Qaeda, lhe disse em 2001 que a Al-Qaeda já possuía engenhos nucleares. Al-Zawahiri ter-lhe-á contado que bastavam trinta milhões de dólares e uma viagem ao mercado negro da Ásia Central para adquirir material atómico de fabrico soviético. Segundo Al-Zawahiri, a Al-Qaeda já teria adquirido assim algumas armas nucleares em formato de pastas. Estamos a lidar com fontes diversas, mas a informação bate toda certa e parece até complementar-se. Como deve calcular, sentimo-nos mortalmente preocupados."

"Acha que a fotografia do Zacarias constitui a prova final de que isso é tudo verdade?"

Rebecca lançou um olhar pela janela do avião.

"É o que vamos saber em Ierevan."

O aparelho já havia iniciado a descida, abanando ligeiramente em função das variações do vento. A hospedeira ruiva passou ao lado de Tomás e lançou-lhe mais um sorriso encantador, mas o historiador estava de tal modo embrenhado nos seus pensamentos que nem notou.

"Quem é o tipo com quem vamos falar?", quis saber. "Prepare-se para encontrar uma figura um pouco bizarra. Chama-se Oleg Alekseev." "Sim, mas quem é ele?"

"E um antigo coronel do Komitet Gosudarstveno Bezopasnosti." "Hã?"

Rebecca arrumou a pasta de cartolina no saco e verificou o cinto de segurança, preparando-se para a fase final da aterragem.

"KGB."

 

As aulas de Línguas Antigas seduziram Ahmed, sobretudo porque os temas estavam relacionados com o Médio Oriente. O professor Noronha começou por ensinar os rudimentos das línguas da Mesopotâmia, a antiga Terra dos Dois Rios, o Iraque, e depois falou longamente sobre o Egipto e a descoberta de que a língua dos faraós era o copta.

A matéria era do natural interesse do estudante árabe, uma vez que abordava a história do seu próprio país. Embora fosse muçulmano, o aluno tinha-se também por bom egípcio e sentia um orgulho secreto nos seus antepassados, mesmo os do período pré-islâmico. Apesar de viverem em jabiliyya, tinham sido capazes de erguer as espantosas grandes pirâmides sobre as quais tantas vezes pousara o olhar durante a infância no Cairo. Não eram aqueles gigantes assentes no planalto de Giza dignos de admiração?

Foi quando se preparava para ir a uma destas aulas que, ao folhear o jornal no emprego, se deparou com uma notícia

que lhe prendeu a atenção. O título era Massacre em Luxor e revelava a matança de mais de sessenta turistas kafirun pelo que o jornal apelidava de "radicais islâmicos" e que Ahmed sabia serem verdadeiros muçulmanos.

"Allah u akbar!", exclamou, esforçando-se por conter a excitação que se apoderou dele. Verificando que ninguém o estava a observar, murmurou uma prece. "Que a grande jibad se declare enfim e que Deus, o Todo-Poderoso, nos ajude a vencer!"

Convencido de que aquele evento iria desencadear um movimento que culminaria com o colapso do regime jahili e a tomada do poder pelos verdadeiros crentes, teve ganas de partir de imediato para o Egipto e juntar-se à jibad. Logo que chegou a casa ligou para Salim, o seu contacto da Al-Jama'a Al-Islamiyya em Londres. Salim deu-lhe a entender, nas entrelinhas, que o movimento era de facto o responsável por aquela acção gloriosa.

Ahmed quase rebentava de orgulho e de excitação.

"E uma grande jornada para a umma", declarou com entusiasmo transbordante. "Será que posso apanhar o primeiro avião para me juntar à jibad}"

"Não é o momento certo", soprou-lhe a voz do outro lado da linha. "Os acontecimentos em Tebas levaram o faraó a lançar uma grande repressão contra os crentes. A situação é muito perigosa e instável. Dá graças a Alá por te encontrares aí. E aí que deves ficar."

Ahmed sabia que, por uma questão de segurança, o seu interlocutor falava por enigmas. Tebas era o antigo nome de Luxor e o faraó era o presidente Mubarak. Claramente o regime perseguia os verdadeiros crentes, tal como fizera após a matança de Sadat.

"Mas o povo está connosco?"

Salim hesitou, procurando as melhores palavras para descrever como aquela acção havia sido acolhida pelos Egípcios.

"A informação de que disponho, meu irmão, é a de que o nosso povo está mergulhado em jabiliyya. Temos por isso de ser mais prudentes nas nossas acções. O Profeta, que a paz esteja com ele, escolheu fazer a revelação por etapas, de modo a assegurar o triunfo da verdadeira fé. Precisamos ser pacientes e aprender com o seu belo exemplo."

Estas palavras judiciosamente escolhidas indiciavam que a jornada de glória e martírio não havia sido bem acolhida pelo cidadão comum. Era uma informação desconcertante.

Ahmed, porém, não se deixou desencorajar.

"Quando permitirão que me junte à jibad? Quando?"

"Sê paciente e aguarda."

"Não tenho feito outra coisa, meu irmão. Mas sinto que chegou a minha hora. Quando me chamarão?"

O seu interlocutor fez uma curta pausa, talvez para ponderar o que poderia dizer ao telefone. Respirou fundo e por fim respondeu.

"O dia aproxima-se."

 

O massacre de Luxor renovou o interesse de Ahmed pelo Antigo Egipto, matéria das primeiras aulas na faculdade. O problema é que, depois de abordar a civilização egípcia e os hieróglifos, o professor Noronha passou para o Antigo Testamento e o hebraico e depois para o Novo Testamento e o aramaico e o latim. A cadeira, todavia, era semestral e as aulas estavam prestes a terminar sem que o docente abordasse o maior e mais importante período da história da humanidade. O islão.

Ahmed sempre fez questão de se sentar num canto discreto da sala, de modo a manter-se longe dos olhares, mas a constatação de que o semestre se esgotava impeliu-o a procurar o professor numa das últimas aulas. Interceptou-o à saída da sala, identificou-se e lançou-lhe a pergunta.

"Senhor professor, não vai falar do islão?"

"Infelizmente, não."

"Porquê?"

"Primeiro, porque não há tempo", explicou Tomás. "Repare que esta cadeira é semestral. Depois, porque o árabe não é exactamente uma língua antiga, como deve saber. Ora esta cadeira chama-se justamente Línguas Antigas e..."

"O árabe do Alcorão é uma língua antiga", interrompeu Ahmed. "Há muitos falantes de árabe actual que não o entendem. Além do mais, o árabe é a língua de Deus. Foi em árabe que Alá falou aos crentes."

"Os judeus dizem que foi em hebraico..."

"Os judeus são uns falsos!", vociferou Ahmed, irritado com a referência ao povo que o Alcorão amaldiçoou por ter quebrado a aliança com Deus. "Maomé disse: «A última hora só virá depois de os muçulmanos combaterem os judeus e os muçulmanos os matarem até que os judeus se escondam atrás de uma pedra ou uma árvore e a pedra ou a árvore digam: muçulmano, servo de Alá, há um judeu atrás de mim; vem e mata-o.» Assim falou o Profeta e as suas palavras mostram o destino que daremos a esses miseráveis."

Tomás ficou um instante boquiaberto, espantado com a agressiva erupção verbal do aluno.

"Bem...", hesitou. "Isso... enfim, não é assunto para estas aulas."

Pressentindo que perturbara o professor, Ahmed baixou o tom de voz, mas não largou o assunto.

"Sim, mas como pode o senhor ignorar o islão?", insistiu. "É importante que as pessoas aqui neste país conheçam a palavra de Alá."

"Sem dúvida", concordou o professor, um tudo-nada agastado com o tom excessivamente assertivo do estudante. "Mas esta cadeira é sobre línguas antigas e o islão não consta no currículo pelos motivos que lhe indiquei e por mais um ainda: é que eu não sei árabe nem sou perito em assuntos islâmicos."

"Mas devia aprender. Não tem curiosidade?"

"Admito que sim. Aliás, para dizer a verdqde, a»do a pensar em ir estudar árabe para um país islâmico. Interesso--me muito por criptanálise e o primeiro tratado jamais publicado sobre este assunto está escrito em árabe. Gostaria de o ler na língua original."

"Isso é uma excelente ideia", aprovou Ahmed. "O senhor professor pode ir para um país árabe, aprender a língua e, já agora, iniciar-se no islão. Quem sabe se não acabará por se converter?"

"Sim, quem sabe?"

Tomás começou a andar, esforçando-se por se afastar daquele aluno que começava a achar inconveniente, mas ainda lhe ouviu as frases finais.

"Lembre-se de que a história ainda não acabou", lançou Ahmed lá atrás, em jeito de aviso. "Um dia serão os historiadores muçulmanos a analisar o passado cristão da Península Ibérica."

Já a subir as escadas, o professor levantou a mão e acenou. "Adeus."

"O islão estará de volta." Triiimmm.

Ahmed encontrava-se estendido na cama a reler os ahadith compilados no Sabih Bukhari, a forma que encontrara de se descontrair após mais um dia de trabalho, e resmungou ao escutar a campainha da porta, mas não se mexeu.

"Adara!" chamou. "Vai ver quem é!"

Os textos islâmicos eram a sua única companhia nos tempos livres e não lhe apetecia levantar-se. Já tinha entrado na casa dos trinta anos e andava havia algum tempo a pensar em arranjar mais uma mulher. Adara infernizava-lhe a vida; ainda por cima por enquanto não lhe dera nenhum filho. Já pensara em dizer-lhe em voz alta por três vezes "eu renego--te!" e assim divorciar-se, mas ia protelando.

Se calhar a melhor solução era arranjar uma segunda mulher, uma rapariga que fosse respeitadora, obediente e boa parideira. Ali em Portugal achava as moças muçulmanas demasiado desviantes, fruto da influência licenciosa dos kafirun, pelo que teria de pedir à família que lhe encontrasse uma virgem no Egipto.

Reconsiderou. Não podia ser. Vivia em Portugal e casar-se com uma segunda mulher poderia arranjar-lhe problemas com os malditos kafirun. Talvez a solução fosse mesmo divorciar-se.

Triiimmm.

Ao ouvir pela segunda vez o toque, Ahmed revirou os olhos e respirou fundo; lembrou-se de que Adara tinha saído para as compras. Com uma interjeição impaciente, pousou o volume na mesa-de-cabeceira e levantou-se para abrir a porta.

"Faz favor?", perguntou em português.

No corredor do prédio estava um homem de barba farta e vestes brancas islâmicas.

"Ahmed ibn Barakah?", quis saber o desconhecido, evidentemente um muçulmano.

"Sou eu", respondeu em árabe. "Em que posso ajudá-lo?"

"Chamo-me Ibrahim Sakhr", identificou-se o homem. "Venho da parte de Ayman bin Qatada."

Ao ouvir o nome do seu antigo professor, Ahmed abriu-se num sorriso deferente e convidou o desconhecido a entrar no apartamento. Deu-lhe o melhor sofá e ofereceu-lhe chá e biscoitos. Depois das habituais delicadezas preliminares, o anfitrião lançou a pergunta que abriu caminho a que o visitante lhe explicasse o propósito da sua presença.

"Como vai Ayman?"

"Está agora no Iémen."

"A sério?", admirou-se Ahmed. "A fazer o quê?" m "A servir o islão."

O anfitrião lançou um olhar sonhador pela janela, procurando o espaço para além do horizonte lisboeta.

"Ah, o Iémen!", exclamou. "Que sorte! Ele ainda trabalha para a Al-Jama'a?"

"Claro. Ayman é um bom muçulmano." Ibrahim bebeu um trago de chá. "E tu? Ainda és um bom muçulmano?"

"Eu? Claro que sim."

"Não foste corrompido pela jahiliyya que impera por esta terra de kafirun?" "Nunca!"

"Sabemos que não tens feito em público afirmações de um verdadeiro crente..."

Ahmed quase ficou ofendido com a observação.

"O que queres dizer com isso, meu irmão? Estás a insinuar alguma coisa?"

"Estou apenas a repetir o que ouvi."

"E verdade que tenho evitado fazer declarações que mostrem que estou no caminho da virtude. Mas essas foram as instruções que a Al-Jama'a me deu! Ayman pediu-me que não me fizesse notado e evitasse que me catalogassem como um verdadeiro crente! Como podes tu agora vir aqui com essas insinuações ofensivas? Por que razão me..."

O visitante pôs-lhe a mão no ombro.

"Acalma-te, meu irmão", disse, a voz serena, o tom pausado. "Estava apenas a testar-te."

"Nem sabes como me custa permanecer calado com as coisas que vejo à minha volta! Há nesta terra gente que se diz crente e bebe vinho e deixa as mulheres exporem-se aos olhares impudicos! Pensas que não tenho todos os dias vontade de os repreender? Mas as ordens da Al-Jama'a foram claras e, com a ajuda de Deus, esforço-me por cumpri-las."

"Eu sei, meu irmão", insistiu Ibrahim. "Quis apenas ter a certeza de que o teu silêncio significava obediência às nossas ordens e que não te tinhas deixado corromper por estes kafirun"

"Espero que nem uma sombra de dúvida tenha restado no teu espírito."

"Fica descansado", assegurou o visitante. "Agora estou certo do que Ayman dizia a teu respeito."

Ahmed pegou no bule fumegante e, esforçando-se por se acalmar, despejou mais chá na chávena do visitante.

"Ainda bem. Às vezes fico com a impressão de que a Al-Jama'a me esqueceu..."

"Não te esqueceu."

"Mas parece! Mandaram-me há mais de quinze anos para aqui e daqui ainda não saí. Para que me querem os irmãos nesta terra de kafirun? Que utilidade tenho eu aqui?"

Ibrahim pegou num biscoito e mergulhou-o na chávena, amolecendo-o no calor do chá.

"Na verdade, temos uma missão para ti."

O anfitrião arregalou os olhos, a esperança súbita a afogar-lhe o ressentimento. Desde que soubera do massacre de Luxor que aguardava este dia.

"A sério?" Olhou para cima, numa prece. "Deus é grande! Ele é Al-Karim, o Benévolo, e As-Samad, o Eternol" Encarou o visitante. "Como é bom saber que não fui esquecido!"

Ibrahim trincou a bolacha amolecida.

"Não foste."

"Que missão é essa que me está destinada, meu irmão?"

"Queremos que te treines para ser um mudahedin."

Ahmed nem queria acreditar no que estava a ouvir. Treinar para ser um mudjahedin?

"Mas... mas isso é o meu sonho! Por Alá, isso é maravilhoso! Não desejo outra coisa na vida!"

"Ainda bem", sorriu Ibrahim, satisfeito por verificar todo aquele entusiasmo. "Es um verdadeiro crente, não há dúvida." Soergueu o sobrolho. "Tens o passaporte em dia?"

"Está tudo em ordem."

O homem da Al-Jama'a retirou um envelope do bolso do casaco e estendeu-o na direcção de Ahmed. O anfitrião abriu-o com uma expressão intrigada e viu um maço de dólares e uma lista de contactos, com números de telefone e moradas. Levantou os olhos e fitou interrogadoramente Ibrahim.

"O que é isto?"

"São as pessoas com quem vais ter de falar quando chegares lá."

"Lá onde? Ao campo de treinos?"

O visitante apontou com o dedo rude para um dos endereços mencionados na lista e o seu olhar cintilou. "Ao Afeganistão."

 

"Está um tipo a seguir-nos."

Tomás espreitava pelos reflexos da vitrina de uma das lojas da Rua Abovyan, uma das principais artérias do centro de Ierevan, a atenção disfarçadamente presa no vulto que parecia vigiá-los.

"Eu sei", devolveu Rebecca, despreocupada. "Topei-o logo na recepção do hotel." "O que fazemos?" A americana encolheu os ombros. "Nada."

Esta resposta deixou Tomás desconcertado. "Mas... mas... deixamos o tipo seguir-nos? Não fazemos nada?"

"Tem alguma sugestão? Quer desatar a correr por aí fora? Ou prefere que eu tire a pistola e dispare sobre ele?"

"Bem, não sei... vocês é que estão habituados a lidar com estas situações."

Rebecca puxou Tomás pelo braço, fazendo-lhe sinal de que seguisse em frente.

"Deixe estar, não ligue. Vamos prosseguir o nosso passeio e ver o que acontece."

Tinham saído dez minutos antes do hotel, situado em plena Abovyan, e andavam a deambular diante de um pequeno largo dominado pelo datado Kino Moskva, um- grarrtlioso complexo de cinemas com a assinatura inconfundível do estilo arquitectónico soviético. Aos pés deste monumento da vanguarda comunista encontrava-se uma esplanada com os toldos cobertos por anúncios à Coca-Cola, uma ironia que não escapou a Tomás.

Atravessaram a rua e desceram a Abovyan. Era uma elegante via cheia de lojas e passeios espaçosos. Por toda a parte se publicitavam os principais produtos da Arménia, com destaque para as carpetes e os brandies, e as pessoas tinham um certo ar de Médio Oriente, embora de cultura marcadamente ocidental nas roupas e comportamentos. Não admirava; afinal aquele era o mais antigo país cristão.

Ierevan revelou-se-lhes uma cidade de aspecto globalmente desarranjado, dava a impressão de um grande bazar, embora o Centro tivesse um toque mais ordenado. Sobretudo ali, na Abovyan, a mais elegante das ruas. O passeio que calcorreavam alargou-se consideravelmente, abrindo espaço para uma enorme esplanada dominada por um restaurante chamado Square One.

O português girou a cabeça em redor, como se estivesse a apreciar o local, e pelo canto do olho procurou o vulto que os seguia desde o hotel.

"Ele ainda não nos largou", constatou.

"Deixe-o estar", disse Rebecca, quase indiferente. "Goze mas é o passeio."

"Mas eu não vim aqui para fazer turismo", argumentou Tomás, num tom entre o protesto e o queixume. "Quando é que nos encontramos com o seu russo?"

"Não sei. Estou à espera que o coronel entre em contacto connosco."

"Ele sabe que estamos aqui?"

"Claro que sabe." Fez um gesto com a cabeça em direcção ao indivíduo que os seguia. "Aliás, suspeito que este tipo faça parte da pandilha."

Num gesto quase reflexo, Tomás virou a cabeça e olhou directamente para o homem.

"Parece-lhe?", murmurou para Rebecca.

"Vamos ver."

 

A Abovyan desaguou na surpreendente Praça da República, o centro de Ierevan e o coração da cidade. A praça tinha um formato oval e estava cercada por edifícios graciosos, as fachadas de um tijolo amarelo e vermelho e com grandes arcadas; dava a impressão que aquele era o ponto de encontro do imponente estilo arquitectónico soviético com as linhas tradicionais arménias. O centro da praça era dominado por grandiosas fontes de água, para onde os dois visitantes se voltaram, admirando os bailados coreografados dos jactos líquidos.

Pelo canto do olho, Tomás manteve a atenção presa na sombra que os acompanhava. Aquilo poderia ser normal para Rebecca, mas o facto é que ele não estava habituado a que o seguissem na rua, pelo que a situação o punha algo nervoso. Apercebeu-se de que o homem estava a atender um telefonema e, instantes depois, viu-o a guardar o telemóvel e a dirigir--se directamente a eles.

"Atenção!", disse Tomás, tocando no ombro de Rebecca. "O tipo vem para aqui."

A americana voltou-se e encarou frontalmente o homem, que de facto se aproximava de forma ostensiva, sem o mínimo esforço de ocultar a sua presença. Agora que estavam mais perto e o observavam melhor, constataram que parecia arménio, com um nariz proeminente e a cara chupada.

"Quem é Scott?", perguntou o homem num inglês rudimentar.

"Sou eu", disse ela. "Rebecca Scott."

"Tenho uma mensagem do coronel Alekseev. Ele quer conversar consigo esta noite no CCCP."

Era o acrónimo em russo de URSS, a antiga União Soviética, o que surpreendeu os dois visitantes.

"CCCP?", admirou-se Rebecca. "Não percebo."

"É um estabelecimento na Nalbandyan, ao lado da Praça Sakharov." Apontou na direcção do outro lado da Praça da República. "É aquela rua ali. Esteja no CCCP às dez da noite em ponto." Colou a palma da mão à testa e fez continência. "Boa tarde."

O homem afastou-se, dando claramente por finalizada a sua missão. Tomás ficou a vê-lo ir-se embora, subindo pela Abovyan, até que sentiu o olhar azul de Rebecca colado nele.

"Está a ver?", disse ela. "O coronel não falha."

 

Peshawar.

Aquele nome era uma lenda e o inconfundível travo exótico da aventura percorria a grande cidade.

Quantas vezes não lera nos jornais egípcios referências àquele lugar mágico nos relatos da gloriosa epopeia que fora a jibad contra os kafirun soviéticos? Com uma mão na mala e a outra a agarrar um puxador, Ahmed esforçava-se por se equilibrar junto à porta do pitoresco autocarro que dançava pelas ruas de Peshawar, ziguezagueando apinhado de gente por entre o tráfego intenso; ia de tal modo a abarrotar que até tinha passageiros montados no tejadilho. O autocarro faiscava num colorido desconcertante, a chapa tapada por placas douradas ou de alumínio barrocamente pintado, os faróis decorados por pestanas metálicas; parecia um palacete ambulante.

Passaram por um grandioso edifício vermelho-acastanhado com cúpulas redondas no topo, ao melhor estilo neomogul, e

Ahmed lançou um olhar inquisitivo ao paquistanês que se espremia ao seu lado.

"E o museu", identificou o homem em inglês.

O autocarro desembocou numa rua incrivelmente caótica e imobilizou-se com um estremeção; havia automóveis por toda a parte a buzinar quase sem cessar, os escapes a libertar nuvens de fumo cinzento, e as pessoas misturayam-s^ por entre as viaturas como formigas. Enervado com a confusão em redor, Ahmed voltou a encarar o seu anónimo companheiro de viagem.

"A mesquita de Mehmet Khan ainda é longe?", perguntou, a impaciência a roer-lhe o estômago. O homem apontou para diante.

"E mesmo ali, no Bazar Khyber", indicou. "Quando lá chegar, vire à esquerda e meta-se na Rua dos Ourives. A mesquita é a meio da rua."

Ahmed saltou do autocarro e atravessou o mar de viaturas e carroças até chegar ao passeio esquerdo e meter em direcção ao fundo da artéria congestionada. A via pública estava entregue aos homens, todos com vestes tradicionais, e não se viam mulheres em parte alguma.

A rua desaguou no bazar, em pleno coração da cidade velha, onde a confusão era ainda maior, como se tal fosse possível. Havia lojas de óculos, de malas, de panelas, de roupas, de tudo e de nada, e pelos passeios estendiam-se bancadas ambulantes com miswak, os limpa-dentes feitos a partir de nogueira, mas também guloseimas como os tooth e os frutos secos, sobretudo tâmaras.

Lembrando-se das instruções que recebera ainda em Lisboa, o visitante egípcio parou diante de uma loja de roupas e apontou para uma túnica tradicional branca pendurada num cabide.

"Como se chama isso?"

O vendedor olhou para a túnica.

"Shalwar kameez"

Ahmed sorriu, achando graça à inesperada semelhança entre a palavra paquistanesa kameez e a portuguesa camisa. Ou Vasco da Gama trouxera a palavra portuguesa para o sub-continente indiano, pensou, ou então levara a palavra urdu para Portugal.

"Dê-me essa."

O comerciante mediu-lhe a estatura com o olhar e tirou uma shalwar kameez embrulhada num plástico, entregando-a ao cliente. Ahmed apontou de seguida para os chapéus tradicionais afegãos pousados uns em cima dos outros numa prateleira.

"E isso? O que é?"

"São pakolr

"Dê-me também um."

Pagou, pediu direcções para a Rua dos Ourives e seguiu o seu caminho com as compras embrulhadas num saco de plástico e a mala pendurada na outra mão. Aqui e ali irrompia o aroma das especiarias, visíveis em montinhos multicoloridos que espreitavam de sacos de serapilheira ou se erguiam em vasilhas de plástico. Por estas ruelas já não se viam carros, apenas motos e bicicletas e burros e carroças, e sobretudo muitos transeuntes, todos de shalwar kameez.

Do meio do bazar abriu-se uma rua estreita repleta de vitrinas com artigos de ouro e Ahmed percebeu que era aquela a Rua dos Ourives. Tratava-se quase apenas de um corredor, é certo que movimentado e rico, mas uma mera passagem estreita entre lojas.

O visitante viu ali algumas mulheres. Eram as primeiras que identificava no espaço público de Peshawar, e verificou, com satisfação, que vinham totalmente tapadas por hurkas negras e os olhos e o nariz ocultos por uma rede. Por ali se via que estava numa terra de gente pia, pensou aprovadoramente; não era como a pouca-vergonha que se via em Portugal ou até, embora em muito menor escala, no Egipto!

Palmilhou a rua em passo rápido e depressa deu com o minarete que se erguia à esquerda. Contemplou a estrutura e aproximou-se de um ourives que aguardava os cliçntes à» porta da loja.

"E esta a mesquita de Mehmet Khan?", perguntou. O homem assentiu. "É ela mesmo."

Ahmed olhou em redor e, como se não descortinasse o que procurava, pousou a mala no chão e tirou um papel do bolso. "Onde é o mercado Shanwarie?" O ourives apontou para um pátio à direita. "Aqui ao lado."

 

O pátio era um espaço fechado, totalmente cercado por varandas de apartamentos, algumas com roupas coloridas a secar em cordas. Ouviam-se pássaros a chilrear, provavelmente em gaiolas deixadas nas varandas, o pipilar alegre a ecoar melodioso pelo espaço fechado. Todo o rés-do-chão do pátio estava ocupado por pequenas lojas, com os comerciantes sentados no degrau da entrada a conversar num murmúrio. Não havia dúvidas, aquele era o mercado que Ahmed procurava, embora fosse bem mais discreto do que imaginara.

Sem perder tempo, consultou o papel que trazia no bolso e olhou em redor, para identificar a morada que buscava. Localizou-a, mergulhou numa entrada discreta e trepou a escadaria escura até ao segundo andar, imobilizando-se diante de uma porta de grades. Viu um botão ao lado da porta e carregou.

Dling-dlong.

Um homem calvo de shalwar kameez e longas barbas brancas abriu a porta e encarou-o.

"As salaam alekum", saudou o homem com um sotaque argelino. "Em que posso ajudá-lo?"

"Wa alekum salema", devolveu Ahmed. "Venho em nome da sura 9, versículo 5."

"«Matai os idólatras onde os encontrardes»", devolveu o homem, dando assim a contra-senha em árabe. "«Apanhai-os! Preparai-lhes todas as espécies de emboscadas!»" Terminada a recitação do versículo, o homem abriu os braços e abraçou-o. "Bem-vindo irmão! Fui informado da tua chegada!"

O dono da casa acolheu Ahmed e levou-o para um quarto onde havia dois pares de camas, cada par com um beliche em cima do outro, como uma camarata. As duas camas do topo já estavam ocupadas, embora os ocupantes não se encontrassem presentes, e o anfitrião atribuiu ao visitante a cama de baixo do lado esquerdo.

"Vais dormir aqui", disse, ajeitando os lençóis. "Amanhã de madrugada vem um irmão buscar-te e, com a graça de Deus, levar-te para os mukbayyam:''

Os olhos de Ahmed cintilaram ao ouvir a palavra mágica. Mukbayyam. Iam levá-lo para os mukbayyam! Seria possível? Sentiu ganas de dar pulos de alegria. Mukbayyam, todos o sabiam, era o nome que se dava aos campos de treino no Afeganistão. Estaria o seu sonho à beira de se concretizar? Por Alá, esperara tanto tempo por aquele momento!

"Amanhã?", perguntou o recém-chegado, incapaz de conter a excitação, quase com medo de ter entendido mal. "Vou... vou já amanhã para os mukbayaam'f

"lncb'Allab! Tens de estar pronto às seis da manhã."

Era verdade! Por Alá, era verdade! O seu rosto iluminou-se de alegria, mas fez um esforço para se conter.

"E... e qual o mukhayyam para onde vou?" Evitando divagar sobre o assunto, o anfitrião voltou-se para sair do quarto e deixar o convidado à vontade. "Se Deus quiser, a seu tempo saberás."

 

Ahmed repousava estirado na cama quando, uma hora depois, o dono da casa reapareceu. O homem queria saber se estava tudo bem e inspeccionou o seu convidado dos pés à cabeça, observando-lhe a jalabiyya egípcia com uma expressão reprovadora.

"Tens alguma sbalwar kameez?"

O recém-chegado foi buscar o saco e abriu-o, deixando o anfitrião espreitar o tecido imaculadamente branco das vestes tradicionais que acabara de adquirir no bazar.

"Está aqui." Exibiu com entusiasmo o chapéu tradicional afegão. "Comprei um pakol e tudo."

O homem abanou a cabeça com um esgar de censura e virou-se para um armário do quarto. Abriu uma gaveta e extraiu uma sbalwar kameez velha e esfarrapada.

"Amanhã vestes isto."

Ahmed pegou na túnica branco-suja, uma faísca de decepção a perpassar-lhe pelo olhar. "Isto, meu irmão?"

"Sim", confirmou ele, estendendo-lhe a mão. "Dá-me todos os teus documentos, incluindo o teu passaporte." "Porquê?"

"Eles ficam cá, juntamente com a tua mala. Ser-te-ão devolvidos quando regressares."

O visitante tirou os documentos do bolso e entregou-os ao anfitrião. O homem meteu-os num envelope sem sequer olhar Para eles e pegou numa caneta para os identificar.

"Como te chamas?"

"Ahmed", retorquiu o recém-chegado, ainda desgostado com o aspecto esfarrapado da sbalwar kameez que lhe fora entregue; pelos vistos queriam que ele fosse para os mukhayyam com ar andrajoso, como um pedinte a implorar por zakat. "Ahmed ibn Barakah. Venho do..."

Com um gesto rápido, o homem tapou-lhe a boca e impediu-o de prosseguir.

"Não quero saber", repreendeu-o. "Aqui ninguém diz de onde vem nem qual o seu verdadeiro nome, meu irmão. Tens de arranjar um nome pelo qual queiras ser conhecido e que fique aqui registado."

Ahmed olhou-o, hesitante.

"Bem... confesso que não pensei nisso."

"Pois tens de pensar, meu irmão. Quem chega aqui deixa tudo para trás, incluindo a família e a sua própria identidade. Deixamos de ser pessoas normais e, com a graça de Deus, tornamo-nos mudjabedin"

A palavra tinha uma conotação simbólica tão forte que Ahmed sentiu o coração disparar. Era a primeira vez que alguém lhe chamava mudjabedin! Primeiro ouvira a palavra mukhayyam e agora mudjahedin! Por Alá, a jihad estava mesmo próxima!

"Todos os mudjahedin mudam de nome?", perguntou Ahmed.

"Todos."

"Tu também?"

"Claro."

"Como te chamas aqui?"

"Aqui eu sou Abu Bakr", identificou-se o homem. Claramente, usava um nome de guerra inspirado no primeiro califa. Abu Bakr acenou com o sobrescrito que continha os documentos que lhe haviam sido entregues. "Agora tens tu de me dizer qual o teu nome porque preciso de identificar este envelope."

Ahmed vidrou os olhos, mergulhando a memória na história do islão, mas não precisou de pensar muito porque depressa identificou a figura histórica que queria reencarnar.

"Já sei!", exclamou. "Já tenho um nome."

"Diz lá." „

"Omar ibn Al-Khattab!", anunciou com satisfação. "Adopto o nome do conquistador do Egipto e de Al-Quds."

Abu Bakr abanou a cabeça.

"Não pode ser, já temos um Omar. Aliás, a maior parte dos irmãos escolheu os nomes dos grandes califas ou dos grandes guerreiros, como Saladino e outros. Tens de ser mais original."

Ahmed mordiscou o lábio inferior enquanto reflectia, a mente em busca de alguém cujo espírito gostasse de encarnar. Não teve de pensar muito.

"Acho que encontrei."

"Quem?"

O visitante inspirou com serenidade e sentiu o espírito do passado glorioso do islão tocar-lhe a alma quando pronunciou o nome que mais admirava, aquele pelo qual iria doravante ser conhecido enquanto mudjabedin.

"Ibn Taymiyyah."

 

O homem que daí em diante seria chamado Ibn Taymiyyah havia terminado a oração da madrugada três minutos antes quando a porta do quarto se abriu com suavidade e a barba branca de Abu Bakr espreitou pela frincha.

"Está na hora, meu irmão."

Ibn Taymiyyah arrumou a mala debaixo da cama, pegou no saco de viagem e saiu de imediato do quarto.

"Ele já chegou?", quis saber.

"Sim, o teu guia está aqui", confirmou. "Deves evitar falar com ele. Se o guia te mandar fazer alguma coisa, obedeces sem questionar. Nunca lhe faças perguntas. Percebeste?"

"Sim."

Percorreram o corredor e Ibn Taymiyyah viu um rapazinho de tez muito morena e cabelo negro gorduroso, obviamente um afegão, parado no hall de entrada do apartamento. Abu Bakr apresentou-os e o guia fez ao visitante sinal de que o seguisse.

Depois de se despedir de Abu Bakr, Ibn Taymiyyah saiu para as escadas, sentiu a porta do apartamento fechar-se atrás dele e, numa questão de minutos, já circulava no encalço do guia pelo Bazar Khyber, ainda sossegado àquela hora matinal.

Junto ao passeio estava estacionada uma pickup com homens, mulheres e galinhas na carga. O guia fez a Ibn Taymiyyah sinal de que entrasse. O visitante saltou para a parte de trás, a carrinha arrancou com um rugido e, aproveitando o facto de as ruas da cidade ainda estarem semidesertas, abandonou Peshawar em dez minutos.

A pickup meteu pela estrada da lendária Passagem do Khyber, parando apenas nos sucessivos checkpoints erguidos pelas diferentes milícias tribais. A viagem prolongou-se por algumas horas, incómoda e aos solavancos, até que, perto de Sadda, a carrinha abandonou a estrada principal e meteu por um atalho. Parecia que tinham entrado num caminho de burros.

Foram assim a saltitar durante vários quilómetros no meio da poeira. Com a pickup sempre em marcha, ao fim de algumas horas o guia apontou para uns montes áridos à direita e anunciou:

"Afghanistan!"

Ibn Taymiyyah colou os olhos aos montes, fascinado. Depois do que os mudjahedin haviam feito aos kafirun russos, considerava aquela terra sagrada. Havia anos que ouvia falar do Afeganistão, os relatos das grandes batalhas vitoriosas enchiam-lhe a imaginação, e por fim ali estava ele à beira de abraçar aquela terra abençoada!

 

Alguns minutos volvidos, a estrada confluiu para um largo com uma grande árvore e várias carrinhas estacionadas. A pickup imobilizou-se ao lado das outras e toda a gente saltou lá para fora. Sem perceber bem o que se estava a passar, mas vendo que o guia também se apeara, Ibn Taymiyyah seguiu--lhe o exemplo. As costas doíam-lhe e sentia as pernas doridas, pelo que fez exercícios para distender os músculos.

"Onde estamos?", perguntou Ibn Taymiyyah em árabe enquanto exercitava o tronco.

O guia afegão fez sinal de que não entendia. Ibn Taymiyyah repetiu a pergunta em inglês, mas obteve a mesma resposta. O visitante percebeu que teria de tentar de outra maneira.

"Afghanistan?", perguntou.

O guia apontou para umas viaturas estacionadas num outro largo, para lá das árvores, e disse qualquer coisa em pasto. Havia pessoas a cruzarem-se num caminho entre os dois largos e todas elas passavam por baixo da grande árvore. Ibn Taymiyyah olhou melhor e detectou dois vultos à sombra da árvore. Estavam vestidos com shalwar kameez negras, a farda da polícia paquistanesa.

Foi nesse instante que percebeu.

"A fronteira!", exclamou. "Isto é a fronteira!"

Seguiu o guia e os outros elementos da sua pickup em direcção à árvore. Apercebeu-se de que os dois polícias paquistaneses inspeccionavam as pessoas que passavam nas

duas direcções carregadas com sacos e que todas vinham com shalwar kameez andrajosas. Compreendeu nesse instante por que razão Abu Bakr não aceitara os trajes que ele havia adquirido no bazar; se tivesse ido para ali com uma shalwar kameez novinha em folha, sem dúvida teria sido notado.

O guia olhou para ele e, com dois dedos a simular pernas que andavam, deu-lhe a entender que deveria caminhar sem parar. Ibn Taymiyyah obedeceu e integrou a fila sem olhar para os polícias. Viu o guia aproximar-se dos paquistaneses, entregar-lhes uma mão-cheia de rupias para que não fizessem perguntas e retomar a marcha, aparentemente despreocupado.

Lá à frente, do outro lado, estavam mais pickups; pareciam táxis à espera dos clientes. Caminharam na sua direcção, mas Ibn Taymiyyah percebeu que havia homens de turbante branco armados com AK-47 que o estavam a vigiar. Olhou melhor e apercebeu-se de que não eram homens, mas rapazes. Pareciam muito novos, nenhum deles tinha mais de quinze anos, e exibiam uma expressão desconfiada no rosto.

Também o guia parecia incomodado com a presença daqueles rapazes armados. Baixou a cabeça e, dirigindo-se discretamente a Ibn Taymiyyah, pronunciou a palavra que de imediato tudo esclareceu.

"Taliban."

Estavam no Afeganistão.

 

A noite caiu quente e uma estátua de Andrei Sakharov no meio da pequena praça mostrou-lhes que se encontravam no sítio certo. Tomás olhou para a estátua e considerou-a adequada para aquele momento. Afinal Sakharov era o pai da bomba atómica soviética, o homem na origem remota dos caracteres cirílicos que se encontravam na caixa que Zacarias havia fotografado no Paquistão.

"Procure a Nalbandyan", pediu Rebecca, olhando em todas as direcções.

Tomás apontou para a direita.

"E aquela, está a ver? Vai paralela à Abovyan."

Meteram pela Rua Nalbandyan e desceram em direcção à Praça da República. Apesar de continuarem em pleno centro de Ierevan, esta artéria era consideravelmente mais tranquila que a Abovyan, onde estavam hospedados e haviam jantado.

"E aqui", disse a americana.

Tomás olhou para a direita e viu quatro enormes letras vermelhas a assinalarem o local. CCCP.

Junto do acrónimo russo da antiga União Soviética via-se uma foice e um martelo gigantes e, ao lado, umas escadas cavadas na rua afundavam-se para o que parecia ser uma cave. Tomás e Rebecca desceram as escadas e deram com uma porta a ostentar a efígie de Lenine. Havia um botão à direita e o historiador carregou nele.

Ding-dong.

Acto contínuo, a porta abriu-se, revelando um homem corpulento, obviamente um segurança. Rebecca meteu a mão no bolso e tirou um cartão da NEST que mostrou ao homem.

"Viemos falar com o coronel Oleg Alekseev."

O segurança inspeccionou o cartão e, com cara de poucos amigos, fez-lhes sinal com a cabeça de que passassem. Entraram num pequeno hall, dominado por um mapa gigantesco da antiga União Soviética que preenchia a parede à direita, e sentiram uma batida forte de música na sala ao lado.

"Venham comigo."

O homem assumiu a dianteira e entrou numa sala cheia de luzes avermelhadas em movimento rotativo. A música estava tão alta que quase fazia vibrar as paredes, mas o que de imediato atraiu a atenção de Tomás não foi a música estridente nem as luzes psicadélicas, mas o que se passava no meio da sala.

Uma mulher nua dançava de costas para a entrada, exibindo os seios gordos a vários homens sentados em cadeiras de bar com copos nas mãos. A luz vermelha dos holofotes bailava sobre o corpo transpirado e bamboleante da mulher, emprestando à cena um toque surreal. Alguns homens lambiam lascivamente os lábios e esfregavam o ventre enquanto observavam a stripper, claramente estimulados pelos peitos saltitantes, mas outros pareciam indiferentes, talvez a aguardar a atracção seguinte.

"Isto é típico do coronel", observou Rebecca aos berros, tentando fazer a sua voz ouvir-se acima da música.

"O quê?", perguntou Tomás, também aos gritos.

"Marcar um encontro num strip club. Só ele!"

O segurança fez-lhes sinal de que aguardassem p desapareceu por uma porta no canto, deixando os dois parados no meio da sala. Tomás levou a americana para um lugar encostado à parede e, como a música enchia o ar e não dava para conversarem, ficaram ambos a olhar para a stripper. Era uma mulher grande e morena, com cabelos negros encaracolados e um ar ordinário de rua. Balouçava as ancas largas ao ritmo das batidas da música e começava já a desfazer o laço que ainda mantinha as calcinhas presas ao corpo.

 

"Privei, Rebecca!"

Tomás voltou-se e viu um homem grande, já na casa dos sessenta, com cabelo branco, sobrancelhas negras e enormes arcadas supracilares; dava ares do actor americano Anthony Quinn.

Rebecca levantou-se e cumprimentou o homem com três beijos na face. Fez sinal a Tomás e apresentou-o ao russo. O coronel Alekseev apertou-lhe a mão com excessivo vigor e entusiasmo e convidou-os a passarem à sala ao lado.

"Venham", disse. "Aqui está demasiado barulho!"

A nova sala era pequena, mas tinha a enorme vantagem de estar protegida da cacofonia vibrante que animava o centro do strip club. Havia nas paredes uns posters com mulheres nuas, quatro sofás em torno de uma pequena mesa de vidro, um divã longo vermelho berrante e um pequeno bar ao canto, para onde o coronel se dirigiu.

"O que querem tomar?", quis saber, pegando nos copos. "Whisky, gin, vodka?"

Rebecca ficou-se por uma água com gás, mas Tomás hesitou, os olhos a dançarem por entre as várias garrafas.

"O que me aconselha?"

"Está na Arménia, beba a bebida nacional da Arménia!" O russo pegou numa garrafa com um líquido brilhante cor de caramelo. "Brandy! O Ararat é o mais famoso!"

"Vamos a isso!"

O coronel serviu as bebidas e acomodaram-se os três no sofá. O russo despachou de uma assentada um copo de vodka e suspirou longamente quando acabou.

"Aaah! Isto é o sabor da Santa Rússia!" Com os olhos subitamente congestionados, sem dúvida por causa do ardor do álcool, virou-se para Tomás. "E então, esse brandy?"

O português viu-se forçado a provar a bebida. Tinha um sabor ardente e adocicado.

"Não é mau."

O russo soltou uma gargalhada.

"Não é mau!? Não é mau!?" Nova gargalhada. "O brandy arménio é do melhor que há!" Inclinou-se na direcção de Tomás e piscou-lhe o olho. "E a devushka? Hã? E a devushkaV

"Quem?"

"A miúda, blin! A miúda que está lá fora! Homem, você não a viu? E maricas ou quê?" "Ah, sim! A... a dançarina." Nova gargalhada sonora.

"Dançarina! Dançarina!" Mais uma gargalhada e voltou--se para Rebecca. "Onde foi você desencantar este melro?", perguntou, referindo-se ostensivamente ao português. Sem esperar pela resposta, voltou-se de novo para Tomás. "E a primeira vez que oiço chamar dançarina a uma puta!" Voltou a baixar a voz, como se assumisse a postura de um confidente. "A Galina é boa, mas a melhor é a Natalya, que vem a seguir. Quer prová-la?"

A pergunta deixou Tomás embasbacado, sem saber o que responder.

"Eu?"

"Sim, você! Quer provar a Natalya ou não?" Estreitou os olhos, numa expressão desconfiada. "Ou querem lá ver que é mesmo maricôncio?"

"Coronel!", cortou Rebecca, indo em socorro do historiador. "O professor Noronha não veio cá para conviver com... com prostitutas. Foi ele que descobriu a fotografia que lhe enviámos. O professor Noronha tem um papel muito importante nesta operação. Ele é um perito de criptanálise e, além disso..."

"Eu sei muito bem quem ele é", atalhou o coronel russo com uma sobriedade que parecia impossível ainda cinco segundos antes. "Estive a ler a documentação do FSB."

O acrónimo deixou Tomás intrigado.

"FSB?", admirou-se. "O que é isso?"

"Federalnaya Sluzhba Bezopasnosti", disse o coronel, como se as suas palavras esclarecessem tudo.

O historiador manteve no rosto uma expressão interrogativa. "Sim, mas o que é isso?"

"O FSB é o sucessor do KGB", explicou Rebecca. "O coronel Alekseev é o nosso contacto informal no FSB." Voltou-se para o russo. "Oiça, presumo que vocês tenham analisado em pormenor a fotografia que vos enviámos do Paquistão. Será que já tem resposta para nos dar?"

O coronel pousou o seu copo vazio na mesa de vidro, agarrou na garrafa de vodka e despejou mais um pouco de aguardente russa no copo.

"Eu tenho tudo o que vocês precisam de saber", prometeu. "Mas primeiro têm de me fazer um favor." "O que quiser."

"Quero que vejam uma das maravilhas da natureza." "Ai sim?", espantou-se Rebecca. "O quê?" O coronel deu um berro. A porta da salinha abriu-se e a cabeça do segurança espreitou para saber o que era. "Sasha", disse Alekseev. "Vai-me buscar a Natalya."

 

"Biçmillab Irrahman Irrahim!", recitou uma voz longínqua.

Ao ouvir as primeiras palavras do Alcorão, Ibn Taymiyyah deu um salto no saco-cama. Estava escuro e estranhou o sítio onde acordara. Num primeiro reflexo interrogou-se sobre que lugar seria aquele, para logo responder num murmúrio entusiasmado:

"Estou num mukbayyam! Estou no Afeganistão! Allab u akbarr

O segundo pensamento foi quase de terror. O salat da madrugada já tinha começado e ele não estava a orar com os seus novos companheiros! Por Alá, o que iriam pensar dele os tnudjahedin? Que não era pio? Que lhe faltava zelo? Que não cumpria os seus deveres de crente?

Ainda meio grogue, saiu do saco-cama estendido no chão, fez rapidamente as abluções e foi a correr para a mesquita. O Sol ainda não tinha despontado e fazia um frio incrível, mas o

desconforto físico não era nada diante das recriminações com que se martirizava por quase ter falhado o primeiro salat. Como era possível que não tivesse acordado a horas?

O facto, percebeu de imediato, é que não se adaptara ainda ao horário solar da Ásia Central. Além do mais, com toda a excitação de ir para os campos de treino do Afeganistão, estava agora a pagar por ter dormido muito pouco durante quatro noites consecutivas, a começar pela sua última noite em Lisboa, passando depois pela noite no avião para Islamabade, seguindo-se a noite que passara em Peshawar e pela última noite ali em Khaldan.

Khaldan.

Como era belo e misterioso este nome! Khaldan. Era então ali que os mudjakedin se preparavam para a jihad! Era então aquele um dos vários mukbayyam que os irmãos tinham espalhado pelo Afeganistão! Parecia-lhe incrível estar ali, mas o facto é que estava. Chegara na véspera ao campo e começava nesse dia o treino para se tornar mudjahedin. Allah u akbarl Deus era sem dúvida grande!

Depois da oração, o chefe do campo, Abu Omar, mandou--os a todos para a grande praça diante dos edifícios. Omar era um jordano baixo e musculado; olhando para ele percebia-se que devia ser um guerreiro temível, talvez quase tanto como a figura histórica em cujo nome ele se inspirara, o califa Omar ibn Al-Khattab que sucedera a Abu Bakr, o homem que conquistara o Cairo e Damasco e Al-Quds.

Omar mandou-os correr à volta da praça e em seguida fazer exercícios para alongar os músculos. Enquanto se exercitava com os companheiros, Ibn Taymiyyah contemplou o campo quase em adoração. No centro do complexo estava a mesquita, um edifício de tijolo com telhado de zinco; à entrada do perímetro encontrava-se a cantina, construída em pedra e com um telhado de folhas secas, e, do outro lado, perto de um declive que ia dar a um riacho, estendia-se um cacho de pequenos edifícios rústicos construídos de uma forma de tal modo rudimentar que o chão era a própria terra. Tratava-se da zona residencial, onde estava o barracão que o abrigara durante a noite.

Depois dos exercícios de aquecimento, Abu Omar conduziu os instruendos em fila indiana para fora do campo, levando-os para as montanhas em redor. Nas primeiras centenas de metros, Ibn Taymiyyah reagiu bem, mas, após o entusiasmo das primeiras passadas, começou a sentir os músculos doe-rem-lhe e as pernas pesarem como chumbo.

A arfar, ergueu a cabeça e tentou localizar o resto do grupo. Iam todos bem lá à frente e pareciam fazer um pequeno compasso de espera, aguardando que o novato se lhes juntasse. Quase desanimou, mas num assomo de orgulho continuou a escalar a montanha até chegar finalmente junto dos companheiros, o coração aos saltos, os pulmões exangues, a força a faltar-lhe nas pernas.

"Maskaallah, meu irmão", acolheu-o Omar com um sorriso, fazendo sinal para o grupo retomar a escalada. "Yallah! Yallahr

Ibn Taymiyyah arregalou os olhos, horrorizado.

"Omar, espera!", conseguiu dizer por entre duas golfadas de ar. "Deixa-me ao menos repousar um pouquinho..."

"A jihad não espera", retorquiu Omar. "Um verdadeiro rnudjahedin transforma as fraquezas em forças." Voltou-se de novo para o grupo e deu ordem de que recomeçassem a correr. "Yallah! Yallahr

O instrutor e os instruendos retomaram a escalada. Sem °pções, Ibn Taymiyyah esforçou-se por ir atrás deles, rastejando pelo caminho de pedregulhos e tentando descansar nas descidas. Por Alá, já não era nenhum miúdo!, pensou. Tinha trinta e dois anos. Além disso nunca treinara a sério e, embora não fosse gordo, ganhara alguma barriga com os pratos de Adara e sem dúvida que precisava de perder uns quilos para ficar em forma.

Mas Abu Omar, para além de algumas gargalhadas e ocasionais palavras de incitamento, parecia indiferente às dificuldades do novo recruta e continuava a levar o grupo para cima e para baixo pelas montanhas. Ibn Taymiyyah arrastava-se como um farrapo alguns quilómetros atrás. Por vezes via os companheiros lá à frente, outras vezes perdia-os de todo.

A corrida tornara-se para ele um exercício penoso que só terminou uma eternidade mais tarde, quando Abu Omar os conduziu de regresso ao campo. Deitado na praça dos exercícios a recuperar o fôlego e a energia, o novo instruendo ainda teve forças para erguer o braço e consultar o relógio de modo a calcular o tempo que tinha durado todo aquele sofrimento.

Cinco horas.

 

A vida no campo de Khaldan era mais dura do que, na fantasia da distância, havia imaginado. A comida tinha um aspecto realmente duvidoso; não passava de um prato de feijões que os deixava sempre com fome. Os alimentos escasseavam, pelo que achavam uma delícia os poucos que tinham; às sextas-feiras a dieta forçada era compensada com a matança de um carneiro. Como sabiam bem a Ibn Taymiyyah aquelas sextas-feiras! Parecia que vivia para elas...

Os exercícios físicos revelavam-se de grande dureza. Umas vezes corriam pelas montanhas, outras ao longo de rios de água rápida e gelada, que tinham de cruzar com sacos de pedras às costas. Volta e meia Abu Omar dava ordens para que corressem descalços, o que invariavelmente levava Ibn Taymiyyah a terminar os exercícios com os pés ensanguentados; e noutras ocasiões corriam com armas, como Kalasbnikov ou morteiros.

"É duro o Omar, hem?", observou um argelino com um sorriso compreensivo durante uma das pausas para » descanso.

Ibn Taymiyyah encolheu os ombros.

"Se é o emir do campo, tem de ser duro, não é verdade?", observou. "Caso contrário não poderia comandar mudjahedin." "O Omar não é o emir do campo." A notícia surpreendeu Ibn Taymiyyah. "Ai não? Então quem é o emir?" "E o xeque." "Qual xeque?"

"O xeque, que Alá o proteja. Anda por cá desde a jihad contra os kafirun soviéticos." Fez um gesto para nordeste. "Vive numas montanhas para aquele lado e raramente passa por estas bandas. Mas é ele o emir deste mukhayyan. Deste e doutros que por aí existem. O Omar é apenas o seu lugar--tenente aqui em Khaldan."

Toda a umma parecia representada no campo. Havia sauditas, marroquinos, argelinos, iemenitas, chechenos, tadji-ques, usbeques, somalis, indonésios, caxemires, palestinianos e outros crentes; alguns eram até provenientes de países kafirun, como a Grã-Bretanha, a Espanha ou a França.

Depressa constatou que o mukbayyam, tal como a cadeia muitos anos antes, vivia ao ritmo de uma rotina própria. Depois do primeiro salat e da corrida da madrugada vinha o pequeno-almoço, feito apenas de pão e chá, que Ibn Taymiyyah devorava com uma sofreguidão quase animal.

Sentia permanentemente a fome a roer-lhe o estômago e ao fim de algumas semanas verificou, com um misto de orgulho e preocupação, que a pequena barriguinha de trintão já lhe desaparecera, substituída por costelas cada vez mais protuberantes. Nada disso o deixou admirado; o emagrecimento acelerado era afinal o fruto lógico da dieta forçada e da pesada carga de exercícios a que se submetera desde que ali chegara.

 

Após o pequeno-almoço, todavia, as coisas acalmavam um pouco no campo. Seguia-se uma lição militar num pequeno edifício perto da cantina, onde o instrutor de armas, um eritreu chamado Abu Nasiri, lhes apresentava o diferente armamento em geral utilizado pelos mudjahedin e expunha as suas especificações, incluindo pormenores sobre as respectivas munições.

Logo na primeira lição, Abu Nasiri exibiu uma pistola com um formato característico que todos se habituaram a ver nas mãos de oficiais alemães nos filmes americanos da Segunda Guerra Mundial.

"Sabem o que isto é?", perguntou ele.

"Uma Luger", respondeu de imediato um instruendo checheno, obviamente fascinado por aquela arma.

Abu Nasiri rodopiou a pistola na mão.

"Na verdade chama-se Parabellum", explicou. "Escolhi-a para esta primeira aula, não só porque é muito famosa, mas sobretudo por causa do nome, Parabellum. Sabem o que significa?"

Ninguém sabia.

"E latim", disse. "A empresa que inventou a Luger tinha como motto a frase em latim Si vis pacem, para bellum. O que quer isto dizer?"

"Qualquer coisa sobre a guerra", arriscou um recruta de aspecto argelino, embora proveniente de França. "Bellum em latim, bélique em francês."

"Isso mesmo, tem a ver com a guerra", assentiu Abu Nasiri. "Mas qual a tradução exacta do mottoV

Como era previsível, não obteve resposta.

"Si vis pacem, para bellum significa: se queres, prepara-te para a guerra." Acenou com a pistola. "E um motto muito apropriado para um mudjabedin, não acham? Embora deva ser reformulado, claro. Um guerreiro do islão diria: Si vis islam, para jibad; ou: se queres o islão, prepara-te para a jibad."

Depois da Parabellum, Ibn Taymiyyah aprendeu a manejar outra pistola alemã, a Walther PPK, seguindo-se as russas Tokarev TT e Makarov PM. Das pistolas, Abu Nasiri passou de seguida para a mais famosa arma de assalto do mundo, a Kalasbnikov AK-47; depois para as pistolas-metralhadoras, como a Uzi, e as metralhadoras ligeiras, designadamente a Degtyarev DP; as pesadas PK e PKM, alimentadas por cintos de munições; e as ultrapesadas Dusbkas, tão potentes que tinham de ser transportadas por carrinhos.

Para além das aulas teóricas havia exercícios para testar cada uma das armas. O grupo ia para um vale das redondezas praticar exercícios de fogo real e as tardes eram assim preenchidas com estampidos sucessivos. Da primeira vez que ouviu uma Dusbka ser disparada, Ibn Taymiyyah pensou que ensurdecia; a detonação reverberou pelas montanhas e os recrutas quase fugiram da arma. Também testaram róquetes antitanque de fabrico soviético, em particular as sucessivas versões da RPG.

Nos exercícios de tiro, Ibn Taymiyyah aprendeu a montar e desmontar as armas de olhos fechados, a respirar quando fazia pontaria e a efectuar cálculos de trajectória de balas e de granadas em função da distância e do vento. Na verdade, e apesar das suas limitações na parte dos exercícios físicos, revelou-se um instruendo de topo na precisão de tiro e na manutenção das armas; era capaz de montar e desmontar uma Kalasbnikou em setenta segundos, quando a maioria dos companheiros o fazia em dois minutos.

"Masha'allah, Ibn Taymiyyah", ronronou Abu Omar aprovadoramente quando lhe detectou o talento. "Mashaallah"

 

Como bom engenheiro, Ibn Taymiyyah gostava de toda a parte da instrução que envolvia o cálculo de tiro e de manejo das armas. Mesmo os sons das detonações a ecoar pelas montanhas e pelos vales, que antes o impressionavam, se haviam tornado familiares.

No campo desenvolveu-se um espírito de camaradagem entre os recrutas, como se todos fossem realmente irmãos, unidos pela fé e por aqueles laços invisíveis que aproximam os homens quando o mundo os ameaça. Para eles só o presente contava e o sentimento de irmandade era o aço que consolidava o grupo. O problema é que estavam proibidos de falar sobre a sua verdadeira identidade e as causas regionais em que se encontravam envolvidos. Era uma medida de segurança sensata, claro, mas deixava Ibn Taymiyyah algo frustrado; queria saber mais sobre os homens pelos quais se sentia disposto a dar a vida.

Havia, porém, coisas que transpareciam em pequenos gestos ou palavras soltas. Observando com atenção o comportamento de cada mudjahedin, percebeu que os chechenos e os tadjiques tinham abundante experiência de combate, enquanto os sauditas se revelavam os mais preguiçosos. Havia até uns que eram gordos e indolentes, mas com quem os instrutores mostravam uma especial deferência; tratava-se decerto de importantes financiadores da jibad.

As lições tácticas eram, para além das corridas, o ponto fraco de Ibn Taymiyyah. Para compensar, revelou grande destreza no manejo de explosivos, mais uma vez graças à sua formação de engenheiro. Mexia em dinamite como se o fizesse desde criança, embora o seu interesse residisse, sobretudo nos explosivos plásticos, em particular o Semtex, que se distinguia dos outros por ser quase completamente indetectável. Aprendeu a armar e desarmar minas e a armadilhar objectos.

Com os seus conhecimentos de engenharia chegou até a entrar em debate com o instrutor, Abu Nasiri, sobre a parte química e física dos explosivos, incluindo a composição e reacção química característica de cada um deles. Esta matéria apaixonava tanto Ibn Taymiyyah que ele passou noites com o instrutor a produzir nitroglicerina, pólvora negra, RDX, Semtex, TNT e outros explosivos com base em produtos facilmente adquiríveis em lojas, como café, açúcar, fósforos, limões, fertilizantes, lápis, produtos de limpeza, areia, baterias, óleo de milho e tinta, todos bens que continham componentes essenciais para a produção dos diferentes explosivos.

A coroa de glória do instruendo de Lisboa ocorreu no dia em que conseguiu fabricar uma bomba a partir da sua própria urina.

"E raro ver um mudjahedin tão habilidoso com os explosivos", observou Abu Nasiri, verdadeiramente impressionado. "És um fenómeno, meu irmão!"

Ibn Taymiyyah destacou-se tanto nesta área que passou a ter autorização de frequentar as grutas onde era guardado o arsenal para ir buscar munições ou explosivos. Tratava-se de cavernas cavadas na encosta da montanha sobranceira ao campo. As entradas eram estreitas, só tinham um metro de largura, e era preciso rastejar para entrar; mas, uma vez lá dentro, as grutas abriam-se em enormes galerias.

A primeira caverna estava pejada de munições, eram milhares e milhares de balas e granadas armazenadas em caixas de madeira empilhadas até ao tecto; muitas delas tinham estampados na madeira números e caracteres cirílicos. A segunda caverna, aquela que Ibn Taymiyyah mais visitava, guardava milhares de explosivos igualmente armazenados no mesmo tipo de caixa; só que, em vez de inscrições em caracteres cirílicos, apresentavam também rótulos que as identificavam como sendo oriundas de Itália e do Paquistão.

"E a terceira caverna?", perguntou ao fim de dois meses no campo, sentindo já confiança suficiente para interpelar o responsável de Khaldan. "O que se guarda lá?"

Abu Omar, sempre cioso da sua responsabilidade em gerir o mukbayyam, fez um ar grave.

"Não podes ir aí."

"Porquê?"

Omar abanou a cabeça. "Porque não podes."

O conteúdo da terceira caverna deixou Ibn Taymiyyah a morder-se de curiosidade e a proibição aguçou-lhe o interesse. O que raio estaria lá de tão importante que merecesse tanto secretismo?

 

Depois dos exercícios com armas, os instruendos recolhiam ao campo para o salat do crepúsculo e juntavam-se na cantina para o jantar, o inevitável prato de arroz cozinhado por dois afegãos. Ao fim de algum tempo, Ibn Taymiyyah cansou-se daquele prato repetitivo e decidiu ir à cozinha protestar junto dos cozinheiros, sobretudo porque já tinha visto galinhas a correrem à solta pelo campo.

Ao ver o recruta interpelar os homens da cozinha, Abu Nasiri foi buscá-lo e puxou-o para o refeitório deserto. "Não podes falar com eles", disse. "Qual é o problema?"

"São afegãos. Uma das regras dos mukhayyam é que os mudjahedin não podem falar com os afegãos." Ibn Taymiyyah continuou sem entender. "Mas porquê?" Abu Nasiri baixou a voz.

"Ninguém pode confiar neles, são traiçoeiros", sussurrou sem mexer os lábios. "Acredita em mim, é melhor não falares com os afegãos."

A seguir ao jantar vinha a instrução religiosa, que os instrutores consideravam a parte mais importante da formação de um mudjahedin. Juntavam-se na cantina à luz dos archotes, uma vez que não havia electricidade no campo, e umas vezes recitavam o Alcorão enquanto outras discutiam diferentes aspectos do islão.

Nessas situações revelou-se interessante ver as hierarquias no campo tornarem-se difusas. Depressa se tornou claro que a autoridade de Abu Omar e dos outros instrutores só era válida para questões de ordem prática; em tudo o resto sentiam-se todos irmãos. Podiam exprimir as suas diferentes opiniões e desafiar as palavras dos instrutores, sem quaisquer sentimentos de sujeição. A maior parte da matéria teológica já era aliás conhecida por Ibn Taymiyyah, que a aprendera com Ayman quando jovem, mas aqui e ali apareciam coisas novas.

"O que distingue um mudjahedin de um guerreiro kafir é a sua preparação moral e a sua pureza diante de Deus", explicou Omar. "Um mudjahedin é um soldado de Alá, pelo que, uma vez em combate, as regras que tem de respeitar são muito rigorosas. Deve evitar as matanças indiscriminadas, em particular de mulheres e crianças, e também a destruição de santuários religiosos, como igrejas ou sinagogas."

"E se as mulheres e crianças estiverem envolvidas no esforço de guerra dos kafirun?", perguntou um checheno, claramente a pensar numa situação que havia vivido. "Como se procede nessas circunstâncias?"

O instrutor tinha a resposta na ponta da língua.

"Nesse caso devem ser mortas", sentenciou. "As leis da jihad são muito claras nisso. Um hadith conta que uma vez perguntaram ao Profeta se era errado matar as mulheres e crianças dos kafirun. Ele respondeu: «Considero-os como se fossem os seus pais.» Ou seja, se os pais forem kafirun, em certas circunstâncias é permitido matar-lhes os filhos. Por exemplo, quem de alguma forma apoiar o inimigo, mesmo fornecendo apenas água ou até somente apoio moral, é também um inimigo e pode ser morto."

O grupo assentiu com um movimento sincronizado das cabeças.

"Imagina, meu irmão, que uma mulher kafir reza para que o marido mate um crente", insistiu o checheno. "Ou imagina que uma criança kafir reza para que o pai mate um mudjabedin.'"

"Devem ambos ser mortos", sentenciou Abu Omar sem hesitações. "Basta um kafir desejar a morte de um crente para poder ser morto, mesmo que se trate de uma criança. De qualquer modo, é importante sublinhar que o recurso à força deve ser evitado enquanto possível. No entanto, no momento em que a jihad for necessária, ninguém deve fugir às suas responsabilidades. Disse o Profeta: «Aquele que se encontrar com Alá sem alguma vez se ter envolvido em jihad encontrará Alá com um defeito»." Ergueu o dedo para sublinhar um ponto crucial. "A jihad ocupa muitas páginas do Santo Alcorão. São mais de cento e cinquenta versículos nos quais Alá Al-Hakam, o Juiz, enuncia as regras da guerra, tornando claro que a verdade tem de ter uma força física que a proteja e a propague. A maior parte das guerras decretadas por Maomé foram ofensivas, como toda a gente sabe. Ora como Alá nos manda no Alcorão seguir o exemplo do Seu mensageiro, também nós temos de lançar guerras ofensivas. Há até um ffadith que cita assim o Profeta: «Fui educado com a espada nas mãos da Hora até que apenas Alá seja venerado. Ele ofereceu--nos sustento por baixo da sombra das lâminas e decretou a humilhação de todos os que se me opõem.» Por aqui se vê que o apóstolo de Deus valorizava a espada e a necessidade de a usar até que todos os seres humanos se submetam a Alá. Num outro hadith, o Profeta é assim citado: «Eu ordeno por Alá que se faça guerra a toda a gente até que todos digam que Alá é o único Deus e que eu sou o Seu Profeta». Ou seja, o objectivo do islão é governar todo o mundo e submeter toda a humanidade ao islão. Há pessoas que se dizem muçulmanas mas que preferem fingir que estas palavras do Profeta não foram proferidas. Mas, meus irmãos, as ordens de Maomé são claras: enquanto houver kafirun há jihad para os converter ou para os obrigar a pagar jizyah."

"Mas quem decreta a jihad ofensiva, meu irmão?", perguntou um instruendo proveniente da Grã-Bretanha. "Há quem diga que só o califa o pode fazer..."

"Esse é um ponto em discussão", admitiu Omar. "Muitos dos nossos irmãos entendem que a jihad ofensiva está já decretada no Alcorão e na sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele. Para perceber isso basta ver os ahadith que acabei de citar ou ler a ordem de Alá na sura 2, versículo 216 do Alcorão: «Prescreve-se-vos o combate, ainda que vos seja odioso»." Ergueu o dedo e repetiu as palavras que considerava cruciais: "Ainda que vos seja odioso! Mas há outros irmãos que entendem que a jihad ofensiva, sendo de facto uma obrigação dos crentes, só pode ser decretada pelo califa. Existe, como sabem, tradição nesse sentido. O califa tem o dever de reunir um exército e atacar os kafirun uma ou duas vezes por ano, como fizeram no passado Abu Bakr e Omar ibn Al-Khattab e tantos outros. O califa que não o fizer estará a violar a vontade de Alá, expressa no Alcorão ou na sunnab. A jihad é obrigatória para os crentes e deve existir até que todos os seres humanos sejam crentes ou paguem a jizyab."

"Mas o último califado já foi abolido", observou o mesmo instruendo. "Como se faz agora que não há califa?"

"Na minha opinião aplicam-se as ordens de Alá dadas no Alcorão ou através do exemplo do Profeta", respondeu o instrutor. "Mas parece haver acordo no sentido de que, aconteça o que acontecer, é preciso reinstalar o califado para pôr fim a esse ponto de discórdia e, por consenso, podermos lançar guerras anuais contra os kafirun. Disse o Profeta num badith: «Se receberes a ordem de marchar contra o inimigo, então marcha.» Foi justamente porque negligenciámos a ordem divina de atacar os kafirun que Alá nos abandonou. Ignorámos as Suas regras e Ele ignorou-nos a nós. Foi porque deixámos de fazer a jihad ofensiva, conforme ordenado por Alá no Alcorão ou através da sunnah do Profeta, que nos vemos agora na contingência de fazer a jihad defensiva. Urge, consequentemente, reinstalar o califado e pôr fim à humilhação da umma, espalhando o islão por todo o planeta."

"E como se faz isso? Como se pode reinstalar o califado?" Abu Omar pegou na Kalashnikov que o acompanhava sempre e ergueu-a com veemência no ar. "Com a guerra!"

 

"Natalya!"

A loira oxigenada que assomou à porta apresentou-se roliça e vaporosa, com tantas curvas que a carne quase lhe transbordava pelo vestido, uma peça única em vermelho-vivo e muito justa no peito e no tronco, alargando-se em baixo numa saia rendilhada que lhe dava pelas coxas. Era o tipo de corpo que as mulheres odiavam ter, achavam-no gordo, mas gordura era a última coisa que os homens viam naquelas formas opulentas.

"Chamou, meu coronel?"

"Anda cá, devushkal"

"Mas o meu espectáculo está quase a começar..." "Ê só um minutinho, vá lá."

Natalya aproximou-se, muito consciente do efeito animal que o seu corpo lúbrico produzia nos homens.

"O que é, meu coronel?", ronronou, passando a mão pelo peito do russo. "Porque precisa da sua Natalya?"

Alekseev apontou para Tomás.

"E para te mostrar aqui a este senhor", disse. "Vai lá dar--lhe um beijinho..."

A loira de vermelho sorriu com malícia e aproximou-se do português, que trocou um olhar alarmado com Rebecca. A americana fez-lhe sinal de que estava tudo bem, o que Tomás entendeu como uma indicação de que não deveria contrariar o russo.

Natalya inclinou-se sobre ele e aproximou a cara; o português começou a cheirar-lhe o perfume barato e sentiu-lhe os lábios quentes e carnais colarem-se aos seus. Quis resistir, embaraçado por a americana estar ali ao lado a ver tudo, mas aquela boca húmida e ardente era mesmo deliciosa. Atrás dos lábios de Natalya veio a língua, que penetrou molhada na boca entreaberta do historiador, explorando-a com gula.

O beijo durou quase um minuto e terminou abruptamente. No instante em que a mulher lhe largou os lábios, Tomás sentiu as mãos dela apalparem-no entre as pernas, a testá-lo.

"Então?", perguntou o coronel.

Natalya voltou a cabeça para trás e piscou o olho garço, como quem diz que a missão fora cumprida. "Está duro."

O coronel soltou mais uma das suas gargalhadas ruidosas e deu uma palmada no traseiro farto de Natalya.

"Eu sabia!", exclamou. "Eu sabia! Ninguém resiste aqui à minha Natalya! Está para nascer o homem que fique indiferente a este pedaço de mulher!"

Natalya lançou um olhar para a porta.

"Posso ir, meu coronel? É que chegou a hora do meu espectáculo..."

"Vai lá, devushka. Arrasa com eles!"

A mulher lançou um olhar de despedida a Tomás, cheia de promessas, e voltou as costas, saracoteando o corpo para a porta e para além dela. Quando saiu, o coronel voltou-se para o português.

"Então? O que achou?"

Tomás trocou um novo olhar com Rebecca, como se pedisse novas instruções. A americana encolheu os ombros; çjepois do que vira parecia já estar por tudo.

"E... é bonita", disse o português.

"Quer prová-la? Olhe que é caro, mas vale a pena!"

"Eu... fica para uma outra oportunidade."

"Ah, vai-se arrepender! Esta rapariga faz um tratamento que nos põe de molho. Aqui há tempos tive uma sessão com a Natalya que me ia deixando a soro. Sabe, com aquela boca ela é capaz de..."

Rebecca pigarreou, já um pouco cansada daquele jogo e daquela conversa.

"Coronel, se me dá licença, nós temos um assunto que precisamos de tratar com uma certa urgência."

Alekseev ergueu as sobrancelhas espessas e respirou fundo, resignando-se à inevitabilidade da conversa que precisavam de ter.

"Ah, sim! A fotografia, não é?" "Isso mesmo."

"Então diga lá, o que querem saber?" "Nós enviámo-vos a fotografia. Explique-nos o que aquilo é."

O russo inclinou-se no sofá e pegou no copo de vodka que deixara sobre a mesa.

"Blin, aquilo é a Rússia no seu pior!", exclamou, bebendo um trago. "Oiça, tem de perceber que, quando a União Soviética se desintegrou, em 1991, a Rússia herdou a maior indústria nuclear do planeta, incluindo o maior arsenal de armas atómicas e as maiores quantidades de urânio enriquecido e plutónio militar do mundo. Tudo isto se encontrava em dezenas de complexos tão escondidos que nem constavam em mapas. Tínhamos dez cidades secretas que albergavam quase um milhão de pessoas e onde se concentrava toda a indústria nuclear soviética. Com o colapso da economia e com a quebra da disciplina, toda esta indústria ficou ao deus-dará. A inflação disparou para os dois mil por cento, as pessoas começaram a ser mal pagas e a ficar com os salários atrasados vários meses, os edifícios deterioraram-se, o material nuclear passou a ser negligenciado, até as vedações eléctricas foram desactivadas porque não havia dinheiro para pagar a electricidade. Para que tenha uma ideia, havia armazéns com toneladas de urânio enriquecido cujas portas estavam apenas protegidas por cadeados! E os guardas que vigiavam esses armazéns, sabe o que eles faziam? Ausentavam-se para ir buscar comida ou bebidas... ou ir ver uma devusbkaV

"Isso estava mesmo mau..."

"Imagine!"

"No meio de toda essa anarquia, qual foi o material que, na sua opinião, ficou mais vulnerável ao tráfico?"

"Olhe, o país tem dezenas de milhares de ogivas nucleares guardadas em mais de cem locais. O maior risco, a meu ver, diz respeito às armas nucleares tácticas portáteis, as RA-155 do Exército e as RA-115-01 da Marinha. São pequenas, pesam uns meros trinta quilos, podem ser detonadas por um único soldado em apenas dez minutos e estão guardadas em posições avançadas, onde a segurança é relativamente fraca. Muitos oficiais encarregados da sua protecção já se reformaram, mas continuam a viver nos complexos onde essas armas

tácticas nucleares se encontram armazenadas. Esses homens sabem onde esse material está, têm acesso fácil a ele e recebem reformas baixas. É uma mistura explosiva. Quem me garante a mim que, se alguém lhes oferecer uma quantia generosa de rublos que os tire da miséria, eles recusarão?

"E evidente", concordou Rebecca. "Mas já houve algum
roubo confirmado?" ^_ »

"De armas nucleares tácticas? Não lhe posso dizer."

"O general Lebed, assessor do antigo presidente Ieltsin, revelou em público que algumas dessas armas desapareceram..."

"Não posso falar sobre isso."

Rebecca retirou da sua pasta a fotografia de Zacarias.

"Bem, para todos os efeitos o que está aqui em causa não são as armas nucleares tácticas, pois não?", disse ela, exibindo a imagem da caixa com caracteres cirílicos e o símbolo nuclear. "É o urânio enriquecido. De onde veio este material? O que nos pode dizer sobre isto?"

O coronel tirou uns óculos do bolso, encavalitou-os sobre o nariz e inclinou-se para a imagem, examinando-a com cuidado.

"Então esta é que é a famosa fotografia?" "Não a tinha visto ainda?"

"Minha cara, vocês enviaram-na para Moscovo." Afastou os olhos da imagem e cravou-os em Rebecca. "Eu estou em Ierevan, não estou?"

A americana fitou-o interrogadoramente, uma expressão de alarme a cintilar-lhe nos olhos.

"O que quer dizer com isso? Não me diga que não tem respostas para me dar..."

Alekseev guardou os óculos, sorriu e rodou o corpo no sofá, voltando-se de novo para a porta.

"Sasha!"

A porta reabriu-se e o segurança voltou a espreitar.

"Sim, meu coronel?"

"O Vladimir já chegou?"

"Vem a caminho, meu coronel."

"Logo que ele chegue traga-o para aqui."

"Sim, meu coronel."

Assim que a porta se fechou, Alekseev pôs-se de novo confortável e voltou a encarar os dois visitantes.

"O homem do FSB que está a investigar este caso é da minha inteira confiança", disse. "Mandei-o vir cá de propósito para nos contar o que descobriu."

Rebbeca respirou de alívio.

"Ufa!", exclamou, o corpo esvaziando-se como um saco. "Cheguei a ficar preocupada."

O coronel agarrou no copo que havia deixado sobre a mesa e engoliu os últimos vestígios de vodka.

"Vocês têm de perceber uma coisa", disse o oficial russo, logo que recuperou do ardor do álcool. "Com a inflação a dois mil por cento, a palavra de ordem na Rússia passou a ser está tudo à venda! Naquele tempo vendia-se tudo! Kalashnikov, minas, tanques, aviões.... tudo! Houve até um almirante que vendeu sessenta e quatro navios, incluindo dois porta-aviões, da Esquadra do Pacífico!" Soltou uma gargalhada. "Já viu ao ponto a que as coisas chegaram? O homem vendeu uma esquadra russa!"

"Fale-me do urânio enriquecido."

O russo recostou-se no sofá e bufou, como se tivesse relutância em entrar nesse tema.

"Ah, pois. O urânio enriquecido!" Voltou a inclinar-se para a frente e encheu mais uma vez o copo com vodka. "Sabe qual a quantidade de urânio enriquecido que a Rússia tem? Novecentas toneladas."

"E bastam cinquenta quilos para fazer uma bomba atómica", observou Rebecca.

"Pois é", suspirou Alekseev. "O pior é que a maior parte desse urânio enriquecido está guardada em locais pouco seguros. Fizemos um levantamento e foram identificados mais de duzentos armazéns com graves problemas de segurança, incluindo vedações rebentadas e janelas de vidrov facilmente acessíveis a ladrões."

"Eu sei", disse a americana. "O nosso governo gastou milhões de dólares a ajudar-vos a recuperar essas instalações. Mal o nosso dinheiro deixou de fluir, a deterioração da segurança recomeçou. Roubar um complexo nuclear russo é, pelos vistos, mais fácil do que assaltar um banco."

"Isto é muito complicado", reconheceu o coronel, limpando as gotas de suor que lhe rolavam pela testa. "O problema é agravado pelo facto de o urânio enriquecido a oitenta por cento ou mais não ser apenas usado em instalações militares, mas igualmente noutros locais. Nós recorremos a urânio enriquecido em quarenta reactores de pesquisa científica, em reactores de navios e submarinos e em instalações de fabrico de combustíveis. Muito desse material físsil é guardado em simples depósitos, facilmente acessíveis."

"Acessíveis a que ponto? De que está a falar?"

"Olhe, vou dar-lhe um exemplo. Em Novembro de 1993, um capitão da nossa Marinha entrou nos estaleiros de Sevmorput, perto de Murmansk, por uma porta sem guarda e penetrou no edifício onde era guardado o combustível dos submarinos nucleares. Uma vez lá dentro, pegou em três peças do núcleo de um reactor com cinco quilos de urânio enriquecido, pôs esse material físsil num saco e saiu dos estaleiros da mesma maneira que tinha entrado. Ninguém soube de nada. Só viemos a tomar conhecimento do caso muitos meses mais tarde, quando o capitão foi apanhado a vender o urânio enriquecido."

"Isso é muito preocupante!", observou Rebecca.

O oficial russo encolheu os ombros.

"Acha?", perguntou. "O que é realmente preocupante é que esta história não tem nada de extraordinário, ela é semelhante a muitas outras. O que sucedeu em Sevmorput também já aconteceu na base naval de Andreeva Guba ou na base de submarinos de Vilyuchinsk-3, para citar só alguns exemplos. E os casos com civis também são frequentes, como ocorreu em Luch, em Sarov ou em Glazov. Um homem que foi apanhado com urânio altamente enriquecido roubado de Podolsk foi apenas condenado a três anos com pena suspensa porque o juiz teve pena dele. O ladrão só queria arranjar dinheiro para comprar um novo fogão e um novo frigorífico."

"Quantos incidentes desse género já ocorreram na Rússia?"

"Alguns, como vê."

"Quantos?"

Alekseev suspirou, agastado por estar a ser assim pressionado.

"Só a Agência Internacional de Energia Atómica identificou dezoito incidentes na Rússia entre 1993 e 2002."

"Isso é o que diz a agência. Qual é o verdadeiro número?" "E superior."

Rebecca inclinou-se na direcção do seu interlocutor, os olhos cravados nele com muita firmeza, como uma fera que não larga a presa.

"Qual é o número?"

O russo pegou na garrafa de vodka e voltou a encher o copo.

"Não lhe posso dizer", murmurou. "Essa informação é confidencial. Mas posso revelar-lhe que, só na transição da

União Soviética para a Rússia, perdemos material nuclear em quantidade suficiente para construir vinte bombas atómicas."

A americana arregalou os olhos, incrédula.

"Quantas?"

"Vinte bombas."

"Jesus!"

 

Os instruendos de Khaldan estavam nessa manhã a estudar a técnica e os princípios por detrás dos itisbadi, os atentados suicidas. Abu Omar, que dava a aula, começou por se centrar nos princípios teológicos que legitimavam as acções levadas a cabo pelos shabid, os mártires, uma vez que o suicídio era absolutamente proibido pelo Alcorão.

"A excepção são justamente os itisbadi", sublinhou o instrutor, referindo-se aos suicidas em acções de combate. "O martírio em jibad é até a única forma de garantir o acesso ao Paraíso. Alguém sabe qual o versículo do Alcorão onde isso é esclarecido?"

Ao lado de Ibn Taymiyyah encontrava-se um palestiniano de Gaza, decerto ligado ao Hamas. O rapaz levantou a mão.

"E na sura 3, versículo 169", exclamou de pronto. "«Não tenhais por mortos aqueles que morreram pela causa de Deus. Não! Estão vivos juntos do seu Senhor, estão alimentados»."

"Muito bem", aprovou Abu Omar. "Esse versículo torna claro que a morte em jihad nos leva para junto de Alá, nos jardins eternos onde há muita água e comida. Existe até um hadith que esclarece que o shahid tem à sua espera setenta e duas virgens. Isso é..."

Um burburinho alegre percorreu a aula.

"O que é?", perguntou o instrutor com um sorriso, "Já estão a pensar nas setenta e duas virgens?"

O burburinho transformou-se em risada geral.

"Lá em Gaza muitos irmãos só pensam em tornar-se shahid por causa das virgens", observou o palestiniano com um sorriso traquina.

Nova gargalhada geral.

"Realmente, como não desejar morrer se o shahid é o único dos crentes que tem assegurado um lugar no Paraíso?", perguntou Omar logo que o clamor acalmou. "Com a paz do Senhor e as virgens à nossa espera, qual é a dúvida? O que são as agruras desta vida quando comparadas com as recompensas que nos esperam? Há outros versículos do Alcorão e outros ahadith que falam sobre o Paraíso à espera dos shahid. Por exemplo, vejam o que Alá diz no..."

Roendo-se de curiosidade com a experiência do seu vizinho de carteira, Ibn Taymiyyah inclinou-se para o lado.

"Conheceste muitos shahid?", sussurrou.

"Sim", confirmou o palestiniano. "Eu próprio quero ser shahid."

"A sério?"

"Não vês o que nos espera, meu irmão? O Paraíso! O rio com jardins! O vinho sem álcool! A graça de Deus!" "E as virgens..." O palestiniano sorriu de novo.

"Sabes o que fazem muitos irmãos no momento de se tornarem shahid? Como não conseguem deixar de pensar nas virgens, protegem o ventre com cartão para garantir que, depois de se fazerem explodir, os órgãos genitais chegam intactos ao Paraíso!"

Ibn Taymiyyah riu-se.

"Não acredito!"

"Juro por Alá! Antes de partirem em missão, muitos shahid protegem os genitais. Diz-se que é muito eficaz para..." De repente, irrompeu um brutal tiroteio lá fora. Tac-tac-tac-tac-tac. "O que é isto?" Tac-tac-tac-tac-tac.

O fogo cerrado lançou o caos na sala de aula, com os recrutas a atirarem-se para baixo das mesas.

"O campo está a ser atacado!", gritou Abu Omar, agarrando de imediato na sua Kalashnikov e saltando lá para fora.

Após o primeiro momento de confusão, Ibn Taymiyyah e os companheiros seguiram o exemplo do instrutor e foram também buscar as suas armas. Com as mãos já treinadas a lidar com a Kalashnikov, desligaram a cavilha de segurança e saíram do edifício em corrida, os corpos curvados, os dedos colados aos gatilhos, os olhos a dardejar na direcção dos tiros para localizar a ameaça e neutralizá-la.

Com os companheiros a assumirem posição de tiro ao seu lado, Ibn Taymiyyah viu três vultos a disparar, ajoelhou-se e apontou igualmente a arma para eles.

"Alto!", ordenou Abu Omar, antes que os recrutas abrissem fogo. "Não disparem! São os nossos irmãos!"

Foi nesse instante que Ibn Taymiyyah se apercebeu de que o inimigo era Abu Nasiri e outros dois instrutores. Os três disparavam freneticamente para o ar, pareciam crianças, e o grupo que interrompera a aula ficou a observá-los sem saber o que pensar.

"O que se passa?", perguntou Abu Omar na direcção de Abu Nasiri, tentando sobrepor as suas palavras ao som das rajadas sucessivas. "Aconteceu alguma coisa?"

"Mashaallahr, gritavam os instrutores. "Masha'allab!"

Mais tiros.

"O que se passa?"

Abu Nasiri parou momentaneamente de disparar. „ "Liguem a rádio!", gritou, parecia histérico. "Oiçam o que os kafirun estão a noticiar!" "O quê?"

"Ajoelhámos a América! Ajoelhámos a América! Ma-sba'allab!"

Os instrutores retomaram os disparos de celebração, numa euforia sem limites. Intrigados, Abu Omar e os recrutas abandonaram a praça e precipitaram-se para a cantina; havia no refeitório um receptor de ondas curtas que por vezes escutavam à noite.

Ibn Taymiyyah sabia de cor a frequência da BBC em árabe, que desde pequeno se habituara a ver os pais sintonizarem, e procurou-a. O rádio emitiu os assobios habituais das ondas curtas e passou por várias estações até que se fixou na frequência pretendida.

Uma voz em árabe irrompeu então pela cantina.

"... não sabemos agora o que vai acontecer ao outro edifício", disse a voz, claramente a improvisar. "Foi danificado pelo primeiro avião e permanece em pé, enquanto a torre atingida pelo segundo aparelho já se desmoronou. Será que a primeira torre também vai cair?" Uma segunda voz, aparentemente ao telefone, respondeu à primeira. "Bom... nem quero pensar nisso! Isto é uma tragédia sem... sem precedentes. O facto é que está instalado o caos aqui no centro de Nova Iorque. Toda a gente se interroga sobre quem lançou este brutal ataque contra as torres gémeas do World Trade Center. O presidente Bush, que recebeu a notícia quando se encontrava numa..."

"Masha'allah!", gritou Abu Nasiri lá fora, louco de alegria.

O grupo que se juntara na cantina em torno do rádio desatou a correr para a praça, aos tiros e aos pulos, esfusiante, gritando em coro a resposta que lhes enchia o coração.

"Allah u akbarr

"Masha'allah!"

"Allah u akbarr

As celebrações só acabaram noite dentro.

 

A moto saltitava na terra, levantando uma nuvem de poeira avermelhada, e Ibn Taymiyyah agarrou-se com força ao tronco do condutor para não cair. Sentiu a moto abrandar e espreitou para a frente. Lá estava a figura humana sentada a uma mesa, na esplanada, a tomar um café.

Ibn Taymiyyah ajeitou a Waltber PPK na mão direita e preparou-se para actuar no instante em que recebesse a ordem.

"Agora!", disse o condutor.

Ibn Taymiyyah saltou da moto em andamento, destravou a Waltber enquanto dava uns passos rápidos, viu-se diante da figura sentada à mesa da esplanada, apontou-lhe a pistola à testa e carregou três vezes sucessivas no gatilho.

Pah. Pah. Pab.

A figura tombou desamparada para trás e o assassino desatou a correr, saltou para a parte traseira da moto e o veículo arrancou com grande fragor, desaparecendo rapidamente do local do atentado.

"Muito bem!", aplaudiu Abu Nasiri, irrompendo na esplanada. "Estás um assassino perfeito, meu irmão! Este teu exercício foi ainda melhor do que a simulação de sequestro."

A moto deu meia volta e regressou ao local. Ibn Taymiyyah apeou-se e foi verificar a precisão dos seus disparos na cabeça do boneco tombado no chão.

"Falhei um tiro", constatou.

"Não faz mal", consolou-o o instrutor. "Duas balas na cabeça chegam para arruinar o dia a qualquer hafir"

Ainda pouco convencido, Ibn Taymiyyah olhou para a moto, cujo motor continuava a ronronar.

"Posso tentar outra vez?"

"Claro. Mas desta feita destranca a pistola quando a moto começar a abrandar, não quando estiveres já a andar. E arriscado o que fizeste. Imagina que tinhas saltado mesmo em cima do alvo, o que fazias? Precisavas ainda de destravar a pistola e o kafir dispunha de tempo suficiente para se aperceber da ameaça e reagir, percebeste?"

"Sim, meu irmão."

Sem perder tempo, Abu Nasiri foi recolher o boneco e posicioná-lo outra vez à mesa. "Então vamos lá repetir isto."

Ibn Taymiyyah permaneceu parado a olhar para o boneco. "E se em vez de lhe disparar para a cabeça eu o matar da forma estipulada por Alá?"

"O que queres dizer com isso?"

"Diz Alá na sura 47, versículo 4 do Alcorão: «Quando encontrardes os que não crêem, golpeai-os no pescoço até os deixardes inertes»."

O instrutor cravou igualmente os olhos no boneco.

"Queres decapitá-lo?"

"Sim, é essa a ordem de Alá."

"E muito complicado, não tens tempo de o fazer em meio urbano", observou Abu Nasiri, abanando a cabeça. "Exercita o assassínio com a pistola. Os exercícios de decapitação ficam para outro dia."

O instruendo dirigiu-se de novo à moto, acomodou-se na traseira, travou a Walther e a moto arrancou para assumir a sua posição. Foi quando estava a postos para reiniciar o exercício de assassínio em meio urbano que Ibn Taymiyyah se apercebeu de um vulto a aproximar-se e a gesticular freneticamente na sua direcção.

"Quem é aquele?", perguntou ao condutor da moto.

"É o Omar", devolveu o companheiro. "Parece que nos está a chamar."

A moto arrancou e levou-os para junto do responsável pelo campo para ver o que ele queria.

"Ibn Taymiyyah, meu irmão", disse Abu Omar, pousando a mão no ombro do recruta. "Vai buscar as tuas coisas imediatamente."

"Quais coisas?"

"As que trouxeste para o campo." "Porquê?"

"Tens de partir dentro de cinco minutos."

A informação deixou Ibn Taymiyyah embasbacado.

"Partir? Partir para onde?"

"O xeque quer falar contigo. Mandou que te levássemos ao seu refúgio o mais depressa possível." "Mas porquê?"

Abu Omar esganiçou a voz e caricaturou Ibn Taymiyyah.

"Porquê, porquê... ai tanta pergunta!" Apontou na direcção dos barracões residenciais. "Por Alá, vai mas é buscar as tuas coisas e cala-te! Pareces uma alcoviteira, assim com tantas perguntas! Um bom mudjahedin não fala. Faz."

Ibn Taymiyyah mordeu o lábio, repreendendo-se pela sua falta de disciplina, e obedeceu.

"Sim, meu irmão."

Ao observar o recruta a afastar-se, Abu Omar fez um gesto rápido com a mão, como se o enxotasse.

"Yallah! Yallah! Despacha-te!"

Vendo o seu instruendo a ir-se embora, Abu Nasiri correu atrás dele para lhe dar os últimos conselhos.

"Leva um casaco", recomendou quando o alcançou. "Faz frio lá nas montanhas. E que Alá te acompanhe, porque vais precisar da Sua ajuda, meu irmão."

Esta observação fez Ibn Taymiyyah parar para encartar o seu instrutor.

"O que queres dizer com isso?"

"Quero dizer que te espera uma missão muito importante." "Que missão?"

Abu Nasiri abanou a cabeça e olhou em redor, como se receasse já ter falado de mais.

"Não te posso revelar. Só o xeque."

"Ah, o xeque, a figura mistério aqui do campo!", exclamou. "Mas afinal quem é ele?"

O instrutor arregalou os olhos, admirado com a pergunta.

"Não há mistério nenhum, ele é o emir do nosso campo", disse. "Por Alá, não sabes quem é o xeque?"

"Não."

"Olha lá, tu não tens lido os jornais que chegam aqui ao mukhayyam?"

"Claro que sim. Porquê?"

"O xeque é o herói da umma, meu irmão. O xeque é o homem que vergou a América!"

Ibn Taymiyyah não estava a perceber nada. De quem estaria o seu instrutor a falar?

"O quê?"

Abu Nasiri cravou os olhos no seu instruendo. "O xeque é Bin Laden."

 

Um homem minúsculo de cabelo loiro, escasso e fino, entrou obsequioso na salinha de estar do strip club. O coronel Alekseev rodou a cabeça e, ao vê-lo, ergueu-se de um salto e abriu os braços para um acolhimento efusivo.

"Vlad!"

Os dois homens abraçaram-se e o coronel levou o recém--chegado para o sofá, apresentando-o a Rebecca e Tomás.

"Este é Vladimir Tarasov, um camarada meu do FSB", anunciou. "Bom rapaz!"

"Muito prazer", respondeu Rebecca, apertando-lhe a mão.

"Como está?", disse Tomás quando chegou a sua vez de cumprimentar o recém-chegado. "Já vi que vocês os dois se conhecem há muito tempo..."

Alekseev olhou para Vladimir e soltou uma gargalhada cúmplice.

"Oh, desde os tempos da guerra no Afeganistão!" Agarrou em Vladimir pelo ombro e puxou-o para si. "Aqui o

Vlad trabalhava comigo na unidade de contra-informação do KGB em Cabul." Uma gargalhada sonora. "Grandes tempos, hem?"

"Se foram!...", concordou Vladimir com um sorriso acabrunhado. "Connosco aquela canalhada não brincava!"

Acomodaram-se no sofá, trocando palavras de ocasião. O coronel encheu mais um copo de vodka enquanto o r«cém--chegado se queixava do atraso no voo da Aeroflot que o havia impedido de chegar a horas a Ierevan.

Cumpridas as formalidades de cortesia, Rebecca voltou a pegar na fotografia de Zacarias e mostrou-a a Vladimir.

"Presumo que já tenha visto isto."

O russo assentiu.

"O FSB distribuiu essa foto por todos os escritórios espalhados pelo país", confirmou. "Recebi-a em Ozersk e passei os dois últimos dias a investigar esse assunto."

"E... descobriu alguma coisa?"

Vladimir aproximou a imagem dos olhos e analisou-a com cuidado.

"Dizem vocês que este material está na posse da Al-Qaeda?" "Sim."

Vladimir manteve a atenção fixada na fotografia por alguns instantes, como se quisesse confirmar uma vez mais o que já sabia, e depois devolveu-a à americana.

"Tenho uma má notícia para lhe dar."

"Diga lá."

"Este material é genuíno."

Fez-se um súbito silêncio na sala. Apenas se ouviam as batidas surdas da música no salão do strip club, do outro lado da porta.

"De certeza?"

"Sem sombra de dúvida."

Rebecca ficou com a fotografía nas mãos; parecia alimentar ainda a esperança de que ela fosse capaz de revelar mais algum segredo.

"E onde foram eles adquirir isto?"

"Supomos que tenha sido no complexo de Mayak."

"Mayak? O sitio do grande desastre nuclear de 1957?"

"Esse mesmo."

"Como é que a Al-Qaeda arranjou isto em Mayak? Houve aí algum incidente que vocês não nos tenham comunicado?" Vladimir riu-se nervosamente.

"Não temos tido outra coisa que não sejam incidentes naquele maldito complexo", exclamou. "Mayak está adstrita a Ozersk, pelo que infelizmente se encontra sob a minha jurisdição. Posso garantir-lhe que me tem dado enormes dores de cabeça. Em 1997 descobrimos por mero acaso que um grupo de trabalhadores da Fábrica de Radioisótopos Número 45, em Mayak, andava há dois anos a vender irídio radioactivo com documentos falsificados. O próprio director da fábrica estava envolvido no tráfico. No ano seguinte, o FSB desmantelou um plano arquitectado por funcionários de outra das unidades de Mayak, chamada Chelyabinsk-70, para roubar mais de dezoito quilos de urânio altamente enriquecido."

"Gee!", admirou-se Rebecca. "Isso é quase metade da quantidade necessária para fabricar uma bomba atómica."

"Pois é. Mais um ano volvido foi encontrada uma tonelada de aço radioactivo abandonada nos arredores de Ozersk. Uma investigação revelou que o material havia sido roubado de Mayak. Se o aço radioactivo não tivesse sido encontrado, ou se algumas pequenas coisas acidentais não tivessem permitido identificar os roubos de irídio e urânio altamente enriquecido, nada saberíamos. E se com amadores, que cometem erros parvos, foi difícil detectar estes roubos, imagine a quantidade de material nuclear que pode ter sido roubada de Mayak por profissionais sem que nós saibamos."

"Eu julgava que a segurança em Mayak havia sido reforçada", argumentou a americana. "Nós metemos lá muito dinheiro."

"Sim, agora está melhor. Mas não há dúvidas de que temos ali problemas. Basta dizer que até já detectámps redes de tráfico de droga envolvendo os soldados destacados para Mayak. Isso diz tudo sobre as debilidades do sistema de segurança ali instalado."

Rebecca voltou a exibir a fotografia.

"O que vos leva a pensar que esta caixa de urânio enriquecido veio mesmo de Mayak?"

"Os números de série que se encontram registados na caixa. Batem certo com o inventário de Mayak."

"E quando foi isto roubado?"

"Não temos a certeza", disse Vladimir. "Mas em 1997 apareceram num descampado de Ozersk os corpos de uns soldados e de vários funcionários que supostamente estariam na noite anterior de serviço no complexo de Mayak. Num outro local da cidade foram encontrados os cadáveres de familiares dos funcionários. Fizemos umas averiguações que não deram em nada e o caso foi encerrado. Mas agora, ao ver essa fotografia, comecei a interrogar-me sobre o que realmente se teria passado e decidi reabrir o caso."

"Descobriu alguma coisa nova?"

"Ainda estamos a fazer o inventário do material dentro do cofre de Mayak." Hesitou. "Mas já tropeçámos em duas coisas que nos chamaram a atenção."

"O quê?"

"Tentámos ver as gravações referentes aos vídeos internos nos locais e na noite em que os guardas e os funcionários mortos supostamente se encontravam de serviço. Por estranha coincidência, pelos vistos ocorreu uma avaria no sistema de videosegurança no edifício onde deveriam estar dois funcionários. Também fomos verificar as passagens assinaladas nos postos fronteiriços russos naquele período, para ver se foi registada alguma anomalia na altura em que os corpos foram descobertos." "E então?"

"A fronteira mais próxima de Mayak é a do Cazaquistão, situada a apenas quatro horas de distância para quem for a conduzir. Acontece que o nosso posto fronteiriço localizado na estrada entre Ozersk e o Cazaquistão registou a passagem de um grupo de homens umas horas antes de os corpos dos guardas, dos funcionários e dos seus familiares terem sido encontrados."

"O que tinham esses homens de especial?"

"A sua nacionalidade."

"Não me diga que eram árabes..."

"Chechenos." O homem do FSB levou a mão ao bolso e tirou uma fotografia de um homem moreno com aspecto de ser da região do Cáucaso. "Um deles chama-se Ruslan Markov e era muito activo na guerrilha. Temos até uma pasta sobre ele."

Rebecca e Tomás debruçaram-se sobre a fotografia, como se o rosto que ela mostrava lhes pudesse dar respostas.

"Acha que foi este tipo?"

"O que lhe parece?", perguntou Vladimir. "Os Chechenos são muçulmanos e muitos deles são fundamentalistas, com ligações a outros movimentos islâmicos. O Markov é checheno, tinha contactos com grupos fundamentalistas e sabemos que esteve envolvido na execução de reféns na Chechénia e no Sul da Rússia. Os nossos registos indicam que ele passou com um bando de chechenos pela fronteira mais próxima de Mayak

horas antes de serem encontrados os corpos dos soldados, dos funcionários e dos seus familiares. Considerando toda esta informação, o que conclui?"

Rebecca nem retorquiu, tão óbvia era a resposta. Em vez disso, indicou a fotografia que mantinha na mão.

"Onde está este Markov?"

"A informação que temos é que ele já morreu^ Parens que os nossos homens o abateram num combate nos arredores de Grozny."

"Damn!", praguejou ela.

"Por ele já nada saberemos, mas não é difícil adivinhar o que terá acontecido depois do roubo de urânio enriquecido em Mayak. Os chechenos largaram os corpos dos guardas, dos funcionários e dos seus familiares, estes provavelmente usados para fazer chantagem, fugiram para o Cazaquistão e desapareceram do mapa. Ali ou em qualquer outro ponto, naquele mesmo dia ou algum tempo mais tarde, acabaram por vender o urânio enriquecido à Al-Qaeda. Nada mais simples."

A americana girou a fotografia entre os dedos nervosos, indecisa quanto ao que fazer a seguir. "E agora?", perguntou ela.

Percebendo que o briefing do homem do FSB em Ozersk havia terminado, Tomás ergueu-se e puxou por Rebecca.

"Agora só há uma coisa a fazer", disse o português, rompendo o seu longo silêncio. "Temos de localizar essa caixa."

 

O jipe de fabrico russo saltitava sem parar pelos caminhos poeirentos e montanhosos do Sul do Afeganistão, a terra amarela e castanha recortada pelo céu azul e branco de nuvens. Ao volante ia um mudjabedin com gosto pela aceleração e atrás, ao lado de Ibn Taymiyyah, seguia um segundo mudjakedin armado com uma Kalashnikov. O jipe dava solavancos incríveis nos buracos da estrada, mas isso não impedia o condutor de continuar a carregar no acelerador a fundo.

Ao fim de duas horas, o jipe deparou-se com uma barreira na estrada e os mudjahedin pegaram de imediato nas armas, preparados para a emboscada, mas logo reconheceram os rapazes em shalwar kameez e turbantes brancos que operavam o posto de controlo. Embora tensos, os ocupantes do jipe voltaram a pousar as armas.

"Taliban", disse o motorista, a voz um tudo-nada irritada.

Os rapazes do posto de controlo inspeccionaram os documentos muito devagar e leram cada papel com enorme aten

ção, revirando as folhas como se elas ocultassem segredos. Quando se deram por satisfeitos, um deles extraiu do bolso uma pequena cassete áudio e disse algo de imperceptível em pasto ao motorista. O mudjabedin suspirou, enchendo-se de paciência, e pôs a cassete no gravador do carro.

Seria música?, interrogou-se Ibn Taymiyyah. De imediato teve a resposta. Dos altifalantes do jipe começou,a sai» uma voz cavada a recitar versículos em árabe antigo. Prestou atenção e percebeu que era a primeira sura do Alcorão.

Os talibãs sorriram em aprovação e, com um gesto, mandaram-nos avançar.

"Por Alá, são mesmo crentes", observou Ibn Taymiyyah quando se afastavam já do posto de controlo, voltando a cabeça para observar os vultos que iam desaparecendo por entre a nuvem de poeira levantada pelo jipe.

O mudjabedin que estava com ele assentiu.

"Às vezes até exageram", observou com acidez. "Exigem coisas que Alá não ordenou no Santo Alcorão ou através da sunnab do Profeta."

"Tais como...?"

O mudjabedin apontou para o leitor de cassetes de onde continuavam a jorrar versículos coránicos.

"Olha, a obrigatoriedade de ouvirmos o Santo Alcorão em viagem, por exemplo. Onde está exigida tal coisa no Livro Sagrado? Em que hadith está o Profeta, que a paz esteja com ele, a determinar tal preceito?"

Ibn Taymiyyah conhecia o Alcorão de cor e a maior parte dos ahaditb credíveis e sabia que o mudjabedin tinha razão. Em ponto algum se exigia tal coisa dos crentes. Aqueles talibãs eram mesmo uns exagerados!, concluiu; estavam em desvio. Mas sabia que não era boa política dizer mal dos anfitriões; os mudjabedin precisavam deles para poderem continuar a preparar a jihad nos mukhayyam e por isso tinham sempre o cuidado de evitar tecer observações críticas em voz alta.

Isto não impediu o motorista de, ao assegurar-se de que os afegãos já haviam ficado bem lá para trás, se inclinar sobre o rádio e desligar a cassete. No momento em que a recitação foi interrompida, os três homens do jipe riram-se, divertidos com aquela pequena revolta contra os talibãs, como se aquele gesto reproduzisse a vontade comum.

 

O incidente criou uma afinidade indefinida entre Ibn Taymiyyah e os mudjahedin que o levavam. Era um sentimento tão volátil como uma pena ao vento, mas o facto é que perdurou durante alguns momentos. Aproveitando a atmosfera benigna que se instalara no jipe, o recruta arriscou uma pergunta.

"Para onde vamos?"

"Para o Ninho da Águia", explicou o mudjahedin que seguia ao lado dele. "O que é isso?"

"E a nossa base nas montanhas." Deixou passar uns instantes e depois acrescentou, como se adicionasse um post scriptum: "E lá que está o xeque."

Ah, Bin Laden!, pensou o recruta, de repente excitado outra vez com a perspectiva do encontro.

"O que me quer ele?"

"Desconheço", devolveu o mudjahedin. "A seu tempo o saberás, inch'Allah!"

Ibn Taymiyyah ficou a ver a estrada, os olhos perdidos no pensamento.

"Vocês conhecem o xeque há muito tempo?"

"Desde a guerra contra os Russos."

"E como é ele?"

"Um dos melhores homens do mundo, que Alá o proteja e o guie. Um crente muito pio. Se todos fossem como ele, meu irmão, podes estar certo de que o islão já mandaria no mundo e os kafirun encontrar-se-iam todos submetidos à vontade de Alá. O xeque é o emir de vários mukhayyam que temos espalhados aqui pelo Afeganistão, incluindo Khaldan, onde te fomos buscar.

"Sim, eu sei. É por isso que fico admirado por uma figura tão importante me querer conhecer. Eu não sou ninguém."

"Es um crente. Por isso és importante."

"Sim, mas há milhões de crentes em todo o mundo. Por que razão quer ele falar comigo em especial?"

"O motivo exacto não sei, meu irmão. Mas, conhecendo o xeque como conheço há tantos anos, há uma coisa de que eu tenho a certeza."

"O quê?"

O mudjahedin deixou o olhar espraiar-se pela paisagem amarela e árida do Afeganistão.

"Se ele te chamou com tanta urgência é porque se vão passar grandes coisas", disse, deixando o olhar deslizar para o seu passageiro. "Espera-te uma missão muito importante."

 

Uma carrinha de caixa aberta irrompeu subitamente na estrada com grande aparato, pondo-se ao lado do jipe e fazendo Ibn Taymiyyah dar um salto de susto. Para além do motorista, a carrinha tinha três homens na caixa, dois a manejar um lança-róquetes e o outro agarrado aos manípulos de uma metralhadora assente numa pequena plataforma. Parecia-lhe que iam abrir fogo à queima-roupa contra o jipe.

"As salaam alekum!", saudaram os dois mudjabedin que traziam o instruendo de Khaldan.

Vendo a troca de cumprimentos, Ibn Taymiyyah acalmou--se. Eram todos conhecidos, não parecia haver problema. "Quem são estes?" "É a guarda do Ninho da Águia."

Ibn Taymiyyah inspeccionou a carrinha que os havia interceptado. Seguira durante algumas centenas de metros ao lado do jipe, aparentemente para se certificar da identidade dos seus ocupantes, mas de momento acompanhava-os pela cauda.

Voltou a cabeça para a estrada diante deles. Havia já algum tempo que o jipe escalava as montanhas nevadas e tinha a impressão de que se encontravam já bem alto. Fazia frio e o ar ali parecia mais leve.

O passageiro inclinou-se para o mudjabedin que ia ao seu lado.

"Estamos a chegar?"

O mudjabedin apontou para o topo das montanhas em frente.

"Sim", confirmou. "O Ninho da Águia é já ali."

A excitação por conhecer o homem que a América responsabilizava pela jibad nas suas cidades era muito grande, mas Ibn Taymiyyah fazia por permanecer calmo. Passara toda a viagem a pensar naquele encontro e no que lhe quereria Osama Bin Laden, e agora que estavam a chegar a curiosidade era maior do que nunca. A expectativa tornara-se enorme e obrigou-o a um esforço para distrair a mente.

"Isto é alto, hem?", observou, espreitando o vale lá em baixo.

"Estamos a três mil metros de altitude." O mudjabedin indicou um outro pico, mais distante. "Na jibad contra os Russos, os kafirun instalaram ali uma base que nos deu muitos problemas. Tivemos de a bombardear noite e dia para os expulsar de lá."

"Lutaste contra os Russos?", quis saber Ibn Taymiyyah, a admiração e o respeito estampados na cara.

"Alá, na Sua grandeza, concedeu-me essa oportunidade." "E que tal eram eles?"

"Corajosos. Não eram como os kafirun americanos, que fugiram mal lhes demos uma tareia em Mogadíscio. Os Russos eram duros e pacientes. Foi uma jihad muito difídl, fez muitos mártires entre os crentes."

O passageiro assentiu. Como gostaria de ter participado na jihad contra os Russos, essa guerra já mítica que trouxera grande glória ao islão! Esfregou as mãos para gerar calor e olhou em volta, os olhos atraídos pela deslumbrante paisagem que se abria diante deles. Contemplou os picos nevados e escarpados; eram de tirar o fôlego, sobretudo quando recortados sob o céu azul e laranja do crepúsculo, como acontecia nesse instante. A existência de um tal lugar na Terra parecia-lhe a prova consumada de que Alá era o supremo artista.

"Que montanha é esta?"

O mudjahedin lançou um novo olhar à montanha que escalavam antes de responder com um sentimento de protecção, como se ela lhe pertencesse.

"Tora Bora."

 

A encosta nevada da montanha era rasgada aqui e ali pela entrada de grutas. Apesar de a luz do dia estar a diminuir rapidamente, via-se actividade humana diante das cavernas, com mudjahedin armados para cá e para lá. O jipe prosseguiu a sua escalada mais algumas centenas de metros, mas virou junto a mais uma gruta e imobilizou-se com um guincho, a nuvem de poeira a planar atrás com lentidão.

"Chegámos!", anunciou o motorista, puxando o travão de mão e desligando o motor.

A calma instalou-se naquele lugar. Ibn Taymiyyah apeou--se devagar, incerto quanto ao que deveria fazer a seguir, mas logo deu de caras com um homem de meia-idade que saíra da gruta ao seu encontro. Depois de cumprimentar o recém--chegado, o homem fez-lhe sinal de que o seguisse. Ibn Taymiyyah despediu-se dos mudjahedin que o haviam trazido de Khaldan e acompanhou o seu novo guia.

"O xeque aguarda-te", anunciou-lhe o homem.

A gruta estava quase às escuras, apesar de um ocasional candeeiro de luz amarelada pregado às paredes. Ibn Taymiyyah percorreu os corredores com o coração aos saltos; pensava inicialmente que era de excitação, mas ficou tão ofegante que teve de parar para recuperar o fôlego.

"O que se passa?", perguntou o homem que o conduzia. "Sentes-te bem, meu irmão?"

O recém-chegado arfava e encostou-se à parede para descansar.

"Não sei", disse. "Sinto-me... fatigado." O homem observou-o com atenção e sorriu ao identificar o problema.

"Isso é normal, fica descansado", tranquilizou-o. "Estás a sofrer do mal da altitude. Passar de repente para os três mil metros de altitude deixa qualquer pessoa sem fôlego."

Logo que o visitante recuperou, o guia conduziu-o pelo resto do corredor até uma abertura a meio da parede. Dela vinha um clarão. Os dois homens franquearam-na e Ibn Taymiyyah deu consigo numa galeria bem iluminada e ocupada por três mudjahedin sentados de pernas cruzadas em tapetes, as Kalasbnikov pousadas no regaço.

Ao aperceberem-se da chegada do convidado, os três assentaram as armas no chão, levantaram-se e um deles, o mais alto, aproximou-se com um sorriso e os braços abertos.

"As salaam alekum, meu irmão", disse ele, dando-lhe as mãos. "Bem-vindo ao Ninho da Águia!"

Ibn Taymiyyah reconheceu-o das fotografias. Já se havia
cruzado com aquele rosto antes dos atentados de Nova Iorque,
mas só se familiarizara com ele nas duas últimas semanas, ao
ler os jornais que chegavam a Khaldan com pormenores do
sucedido na América.

Era Osama Bin Laden.

 

Rebecca desligou o telefone e olhou para Tomás. "Vou marcar voo para Washington", disse ela. "Também quer vir?"

O português estava de costas e contemplava a cidade iluminada e o céu estrelado sobre Ierevan. Encontravam-se ambos no terraço do hotel, junto à piscina escura e silenciosa, e já passava da uma da manhã. Logo que saíram do CCCP, a americana insistira em ir ali para falar com Frank Bellamy pelo seu telefone-satélite, o único meio de comunicação que lhe dava garantias de não estar sujeito a escutas.

Ao ouvir a pergunta, Tomás voltou-se, coçou o queixo e estreitou os olhos, pensativo.

"Que lhe disse mister Bellamy?"

"Que o presidente decretou DEFCON 4."

"O que raio é isso?"

"Defense Readiness Condition", disse ela, traduzindo o acrónimo. "É um estado de alerta das forças armadas dos

Estados Unidos. O estado normal é o grau 5. O alerta de grau 4 refere-se a uma ameaça ainda não muito clara e estende-se a todo o globo. Neste momento está montada a caça. Os serviços secretos de todo o mundo andam a apertar todas as suas fontes para tentar localizar a unidade da Al-Qaeda que anda a passear por aí com urânio enriquecido."

"Mas como diabo se faz uma busca dessas?"

"Falando com muita gente e fazendo muitas perguntas. Além do mais, não se esqueça de que temos uma pista." "Qual?"

"Não foi o seu antigo aluno que disse que o terrorista da Al-Qaeda se chama Ibn Taymiyyah? Agora toda a gente anda a ver se localiza esse tipo."

"E já apareceu alguma indicação sobre o seu paradeiro?"

A americana abanou a cabeça, um pouco apreensiva.

"Ainda não."

"Nem vai aparecer."

Rebecca levantou os olhos e fitou-o, admirada. "Porquê? Porque diz isso?"

"Oiça, Rebecca. Sabe quem foi Ibn Taymiyyah?"

A expressão de admiração acentuou-se ainda mais.

"Não estou a perceber essa pergunta..."

"Ibn Taymiyyah foi um xeque árabe que se ergueu contra a invasão mongol de Bagdade, na Idade Média. E um dos teóricos do jihadismo. Percebe o que lhe estou a dizer?"

"Não."

"Ibn Taymiyyah é um pseudónimo!", exclamou, peremptório. "Não existe ninguém com esse nome. Podem vasculhar todos os registos aduaneiros que quiserem, nunca o vão encontrar porque ele não existe! E, se por acaso aparecer alguém que tenha tal nome no passaporte, pode estar certa de que se trata do homem errado. Entendeu agora?"

"Acha?"

"Tenho a certeza. Além do mais, o Zacarias disse-me que o Ibn Taymiyyah andava na minha faculdade. Já liguei para a secretaria em Lisboa e pedi que me verificassem nos computadores se houve algum aluno inscrito na universidade com esse nome nos últimos dez anos. Não apareceu ninguém. Vocês já falaram com o SIS português?"

"Claro. Pedimos-lhes que identificassem Ibn Taymiyyah."

"E então? Qual foi a resposta?"

"Ainda não deram."

"Nem vão dar porque, como lhe expliquei, não existe ninguém com esse nome."

"Então como poderemos localizar o terrorista?"

"A luz do que me disse o Zacarias, a única certeza é que o nosso homem frequentava a Mesquita Central de Lisboa e a minha faculdade. Provavelmente até foi meu aluno, pelo menos a acreditar no Zacarias. E pois pela faculdade que devemos começar."

Rebecca ficou a brincar por alguns momentos com o fio do telefone-satélite, a mente a desenvolver a linha do raciocínio que Tomás lhe havia exposto.

"Tom, a sua universidade tem registados os nomes de todos os alunos que se inscreveram lá nos últimos dez anos?"

"Claro."

"E existem fotografias de todos eles?"

"São obrigatórias no acto de matrícula."

"Muito bem, vamos fazer o seguinte", disse com resolução. "Vou pedir a mister Bellamy que contacte o governo português no sentido de dar ordens à sua universidade para mandar tudo isso para Washington o mais depressa possível. Acha que pode ajudar-nos a identificar os nomes e os rostos dos que foram seus alunos?"

"Claro."

"Então terá de vir a Washington comigo. Outro passo que temos de dar é perceber onde vai ocorrer o atentado. Estamos já a fiscalizar todos os portos e passagens alfandegárias do mundo ocidental. Além do mais..."

"Eu sei onde vai ser."

"Como? Sabe?"

"Se tivermos em conta que este atentado implica uma nova escalada no judadismo e se conhecermos o tipo de raciocínio dos fundamentalistas islâmicos, não é difícil perceber qual será o alvo."

"Não me diga que vão ser os Estados Unidos..."

"Com toda a certeza."

"Porque pensa isso? Por sermos o Grande Satã?"

"Por serem os líderes do mundo ocidental", disse Tomás.

"Que disparate!", exclamou Rebecca. "Vão atacar-nos só por causa disso? Não faz sentido!"

O historiador suspirou e encheu-se de paciência.

"Oiça, você sabe de que vos acusam os fundamentalistas? Eles culpam a América por ter exterminado os índios, por ter escravizado os negros, por ter cometido crimes de guerra em Hiroxima e Nagasáqui, e ainda na Coreia, no Vietname, no Iraque, no Afeganistão e por aí fora, por apoiar Israel, por apoiar os tiranos árabes, por explorar o petróleo dos países árabes, por imoralidade, por prática de usura, por autorizar o consumo de álcool, por permitir a liberdade sexual, por garantir a liberdade de expressão, por defender a democracia, por deixar que as mulheres sirvam passageiros nos aviões, por..."

"Já entendi", atalhou Rebecca. "Somos culpados de tudo."

"Exactamente! Algumas destas acusações são muito estranhas, como decerto reparou. Por exemplo, esta acusação de a

América ter escravizado os negros. Vinda de quem vem, é hilariante! Não era Maomé que permitia a escravatura? Ele até tinha escravos! E a Arábia Saudita? Sabe quando foi que este país islâmico, o mais sagrado de todos, a pátria de Maomé, a terra onde se encontra Meca e Medina... sabe quando foi que a Arábia Saudita aboliu a escravatura? Em 1962! Como é possível que os fundamentalistas islâmicos estejam tão indignados com práticas na América que eram aprovadas e exercidas pelo próprio Profeta?" "Onde quer chegar?"

"A uma ideia muito simples: a interminável lista de queixas dos fundamentalistas islâmicos contra a América não passa de um conjunto de pretextos usados para disfarçar a verdadeira motivação. Repare, quando o Ocidente vai de encontro a uma exigência islâmica e satisfaz uma reivindicação, o antagonismo nunca é verdadeiramente resolvido e logo outra queixa se levanta, e depois outra e outra ainda. Pior, quando os Americanos se põem ao lado de muçulmanos contra cristãos, como aconteceu na Bósnia e no Kosovo, isso é liminarmente ignorado. Os fundamentalistas e os conservadores islâmicos chegam ao cúmulo de esquecer o enorme contributo americano na guerra do Afeganistão contra a União Soviética, afirmando explicitamente que os mudjahedin venceram sozinhos os Soviéticos. Ora tudo isto mostra que existe um problema de fundo, não lhe parece?"

"Sim, mas qual é esse problema? O que têm eles especificamente contra a América? E isso que eu não percebo..."

"Quando o islão nasceu, o grande inimigo era a tribo que dominava Meca. No momento em que essa tribo foi vencida, os grandes inimigos passaram a ser todos os não muçulmanos que viviam na Arábia. Logo que eles foram convertidos, assimilados, mortos ou expulsos, o grande inimigo passou a ser a Pérsia. Este império foi vencido e o grande inimigo seguinte tornou-se Constantinopla, que liderava o mundo cristão. Com a queda do Império Romano do Oriente, o grande inimigo transferiu-se para Viena, capital do Sacro Império Romano. Mas quando a liderança do mundo cristão se deslocou para a Grã-Bretanha e a França, estes >dois países passaram a ser o Grande Satã. E agora? Quem é o líder do mundo ocidental?" "A América."

"Então é a América o grande inimigo", sentenciou Tomás. "A América é atacada, não necessariamente porque esteja a maltratar os muçulmanos, mas simplesmente porque é o líder do Ocidente, a principal potência mundial, e consequentemente o maior obstáculo à expansão do islão a todo o planeta. O mais grave é que, pelo simples facto de se revelarem económica, cultural, política e militarmente mais poderosos do que todos os países muçulmanos juntos, os Estados Unidos estão a humilhar o islão porque mostram que um país que funciona segundo leis dos homens é mais forte do que muitos países que se regem pelas leis de Deus. Isso é insuportável para muitos muçulmanos em geral e para os fundamentalistas em particular. Daí que todos os pretextos sejam bons para demonizar o Ocidente e sobretudo o seu líder, a América. Eles constatam que os cristãos do Ocidente são a única força capaz de fazer frente ao islão e acreditam que, se fizerem cair o líder, o inimigo se desmoronará, abrindo as portas ao nascimento do grande califado que levará o islão a todo o planeta."

"Portanto, o verdadeiro crime da América é ser poderosa."

"Isso mesmo."

Rebecca revirou os olhos e abanou a cabeça. "Jesus Christr

Tomás ajoelhou-se junto da americana e ajudou-a a desmontar o telefone-satélite, dobrando as peças até o conjunto se reduzir ao que parecia ser uma pasta de mão metálica.

"E é por isso, minha cara, que não tenho a mínima dúvida sobre qual o alvo do grande atentado que está a ser preparado."

Rebecca selou a mala e ergueu-se, rendendo-se à evidência. "A América."

 

Foi o instante mais inolvidável da vida de Ibn Taymiyyah até àquele momento. O xeque estava ali, diante dele, ouvira-o cumprimentá-lo, via-o em carne e osso. Pestanejou, tentando certificar-se de que os olhos não o enganavam; não havia dúvida, o xeque era mesmo igual às fotografias.

Teve ganas de se beliscar; quase se recusava a acreditar, mas a semelhança com as imagens dos jornais não enganava. Por incrível que parecesse, à frente dele, sorrindo com afabilidade, encontrava-se de facto o homem que enfrentara a América, o crente que restituíra o orgulho ao islão. O grande Osama Bin Laden.

Por Alá, que privilégio!

"Allah u akbar!", exclamou Ibn Taymiyyah, inclinando o corpo em sinal de respeito. "Agradeço o convite que me fez. E uma grande honra estar aqui diante de si. O xeque é uma dádiva de Alá, o orgulho da umma, a luz que..."

"Então, então?", interrompeu-o Bin Laden, quase embaraçado com a adulação. "Aqui sou apenas um irmão. Tal como tu e todos os que se encontram neste Ninho da Águia, não passo de um mero súbdito de Alá, que Deus me ajude a servi-Lo até à eternidade!" Puxou o seu convidado pelo braço para junto dos outros dois. "Vem, instala-te aqui connosco." Apresentou os seus companheiros. "Este é o nosso irmão Uthman Bin Affan e este é o nosso irmão Ayman Al-Zawahiri... aliás um egípcio, como tu."

Ainda atarantado, Ibn Taymiyyah cumprimentou os dois companheiros do xeque e sentaram-se todos num tapete. Não se estava mal naquele lugar, pensou. A galeria tinha uns quatro por seis metros de diâmetro e era aquecida por um fogareiro a lenha que crepitava com brandura, envolvendo o lugar numa ambiência acolhedora. A luz amarelada das chamas bailava intermitentemente pela gruta, desenhando figuras dançantes sobre as estantes de livros e as Kalasbnikov penduradas nas paredes por pregos.

"Então?", perguntou Bin Laden, acomodando-se no seu lugar. "Foi boa a viagem?"

O xeque tinha uma voz suave e tranquila, quase melíflua, e sorria de uma forma agradável.

"Talvez um pouco longa", disse o recém-chegado. Inclinou-se um pouco, acariciou a região lombar e fez uma careta. "O jipe tinha a suspensão dura. Vou precisar de tempo para recuperar..."

Os anfitriões riram-se com cortesia.

"Peço desculpa por te ter sujeitado a esta provação, meu irmão", exclamou Bin Laden. "É por uma boa causa, acredita."

"Estou inteiramente às suas ordens, xeque. É uma grande honra que tenha pensado em mim! Nunca imaginei servir um crente tão ilustre."

"Não me serves a mim", retorquiu Bin Laden, apontando para cima. "Serves Alá."

"Ao servi-lo a si", disse com grande respeito, "sirvo Alá."

Um mudjahedin entrou na galeria a transportar um tabuleiro com um bule, duas chávenas e dois copos de água. Aproveitando a pausa, Ibn Taymiyyah estudou o herói da utnma. Bin Laden era um homem magro e sobretudo alto, o que o surpreendeu. Não esperava alguém com tão elevada estatura; as fotografias dos jornais não indiciavam is«o. O xeque tinha uma longa barba negra pontiaguda, vestia uma sbalwar kameez coberta por um casaco camuflado sem insígnias e trazia um turbante branco a tapar-lhe a cabeça.

O mudjahedin que acabara de entrar pousou entretanto o tabuleiro no chão, assentou os dois copos junto de Bin Laden e Al-Zawahiri, distribuiu as chávenas pelos outros dois homens sentados no tapete e começou a enchê-las de chá.

"Tens fome, meu irmão?", perguntou Bin Laden ao seu convidado.

Desde que entrara no Afeganistão que Ibn Taymiyyah vivia num estado de permanente subnutrição, devido às circunstâncias da sua presença em Khaldan. E verdade que de certo modo já se havia habituado a isso, uma vez que se tornara evidente que o treino se destinava também a familiarizar os mudjahedin com a fome ininterrupta, pelo que fez um esforço para dominar o apetite que o consumia.

"Estou bem, xeque."

Mas o anfitrião parecia conhecer a vida nos campos de treinos e fez um sinal ao mudjahedin que lhes servia o chá.

"Hassan, quando é que podemos jantar?"

"Daqui a quinze minutos, Abu Abdullah."

O visitante registou este novo nome. Pelos vistos as pessoas mais próximas do xeque chamavam-lhe Abu Abdullah, ou pai de Abdullah. Ansiou por um dia ter confiança suficiente para se dirigir a ele nesses termos.

O mudjahedin retirou-se e os quatro provaram as bebidas que lhes foram distribuídas. Bin Laden pousou o copo de água junto à Kalasbnikov e suspirou.

"Como deves saber", disse ele, mudando o tom de voz para assinalar que estavam a entrar na parte séria da conversa, "com a ajuda de Deus atingimos há duas semanas o coração da América."

"Foi uma grande vitória, xeque", afirmou Ibn Taymiyyah. "Graças a si, o islão está a reocupar o seu lugar. A umma sente-se orgulhosa do seu feito."

"Este é o caminho da virtude, mas é um caminho duro", retomou o anfitrião. "A gloriosa acção levada a cabo em Nova Iorque e em Washington pelos nossos irmãos, que Alá os tenha para sempre rodeados de virgens no Paraíso eterno, significa que a jihad atingiu o ponto de ignição. Nada será como dantes. Agora já não há retorno e com a graça de Deus a guerra vai generalizar-se. Embora não tenhamos reivindicado a operação, os kafirun da aliança cruzados-sionistas já sabem que fomos nós quem a levou a cabo e preparam-se para retaliar. Dentro de pouco tempo virão atacar-nos aqui no nosso santuário no Afeganistão."

"Deixem-nos vir", empolgou-se Uthman com o punho cerrado. "Vamos dar-lhes uma lição igual à que demos aos Russos na outra jibad. E estes kafirun americanos não têm a têmpera dos Russos, como já o demonstraram em inúmeras ocasiões. Dispõem de muita tecnologia e muita fanfarra, mas quando se sentem apertados com mais força... vão-se abaixo."

"E certo que sim", concordou Bin Laden. "Esta gente é de facto cobarde, meu irmão. É gente que gosta de usar aviões para não ter de arriscar a vida no solo. Mas aqui, nesta terra que tão bem conhecemos, as coisas vão ser diferentes. Iremos atraí-los a um combate para o qual não são suficientemente corajosos. Não me esqueço de que bastou uma explosão para que fugissem de Beirute, bastaram duas explosões para que fugissem de Aden, bastou caírem dois helicópteros e morrer um punhado de soldados para que fugissem de Mogadíscio! Por Alá, o que os espera agora é muito pior do que isso!" Suspirou. "Claro que, com toda a tecnologia e imensos recursos financeiros ao seu dispor, eles são muito poderosos a, não podem ser enfrentados de forma convencional. Nos primeiros tempos teremos mesmo de recuar e o Afeganistão deixará de ser um refúgio seguro."

"O Paquistão ajudar-nos-á, com a graça de Alá", alvitrou Uthman.

"Não acredites nisso, meu irmão", retorquiu Bin Laden. "Os kafirun dominam os nossos governos corruptos, quase todos incapazes de resistir à pressão da aliança cruzados--sionistas. Estamos rodeados de jahiliyya e é por isso que o islão precisa de nós. Tal como no tempo do Profeta, que a paz esteja com ele, terá de ser um pequeno grupo a assumir a vanguarda e a conduzir a humanidade à submissão a Alá. Não te esqueças do que Deus diz na sura 2, versículo 249: «Depois de atravessarem o rio, disseram: 'Não temos força hoje, frente a Golias e às suas tropas.' Mas outros, os que acreditaram no auxílio de Deus, disseram: 'Quantos pequenos grupos venceram grandes exércitos, com a permissão de Deus!'»"

"Esse pequeno grupo somos nós", esclareceu Al-Zawahiri, quebrando o mutismo. "Com a ajuda de Deus, seremos a luz que iluminará a umma e a conduzirá até ao resto da humanidade, como nos é ordenado por Alá no Santo Alcorão ou através da sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele. Chegará o dia em que só haverá crentes ou dhimmies que pagam a jizyah, incb'Allabr

"Vamos pôr fim à humilhação de ver os kafirun ter mais poder do que nós", afirmou Bin Laden. "Olhem o que eles fazem na Palestina! Olhem a forma como eles manipulam os nossos governos como se fossem fantoches! Olhem para as leis humanas contrárias à sharia que eles nos impõem com a sua cultura corrupta! Olhem para as bases militares que a aliança cruzados-sionistas instalou na Terra das Duas Mesquitas Sagradas, violando a vontade do Profeta no seu derradeiro sermão! Como é possível termos chegado a este ponto? Como é possível que os crentes se tivessem deixado humilhar desta maneira? Isto, meus irmãos, só foi possível porque nos desviámos da Lei Divina! Alá puniu-nos assim por ignorarmos a Sua sharia e por termos cedido às tentações e aos desejos humanos! Se Alá criou e rege o universo, quem sabe mais sobre as leis verdadeiras? Alá ou os seres humanos? O criador ou a criatura? Temos, pois, de retomar a Lei Divina, tal como fez o Profeta, que a paz esteja com ele, e como fizeram os primeiros califas, que Alá os abençoe. Se a umma cumprir todos os preceitos da Lei Divina, como é sua obrigação, o islão voltará a ser a força dominante da humanidade. Mas enquanto a sharia não for respeitada, permaneceremos humilhados e os kafirun da aliança cruzados-sionistas mandarão em nós.

"Isso não podemos mais tolerar!", vociferou Uthman. "A nossa jihad é justa! Os kafirun combatem por dinheiro e pelo desejo de submeter os outros homens à sua vontade, os mudjahedin combatem pelo dever de servir Alá e Alá apenas. Qual o combate que Deus favorecerá? O dos gananciosos ou o dos justos? A jihad dos mudjahedin está destinada a ter a graça de Alá! E por isso que, embora o caminho da jihad seja difícil, com a graça e a ajuda de Deus iremos vencer!"

"Atingimos o ponto de ignição", disse Bin Laden, repetindo a ideia que expressara momentos antes. "Para além de ser uma retribuição pelas humilhações a que os kafirun da aliança cruzados-sionistas sujeitaram a umma ao longo dos anos, a jihad que lançámos agora no coração da América destina-se sobretudo a provocá-los, a forçá-los a invadir a terra dos crentes. Mas esta é apenas a primeira fase de um longo caminho. A segunda fase será usar esse ataque dos kafirun para acordar o grande gigante adormecido, a maior força existente ao cimo da Terra: a umma. Com os kafirun a combaterem em terra islâmica, deixando cair as máscaras e mostrando-se como os cruzados que realmente são, os crentes irão despertar para a realidade e muitos juntar-se-ão a nós."

Ibn Taymiyyah, que até ali havia seguido a exposição calado, remexeu-se no seu lugar, inquieto.

"O xeque acha mesmo que os kafirun nos vão atacar aqui no Afeganistão?"

"Não têm alternativa, meu irmão. Provocámo-los e eu até ficaria decepcionado se não o fizessem. Tens de perceber que, nas actuais circunstâncias, não os poderemos vencer num combate convencional. Precisamos, pois, de os atrair para a terra dos crentes, onde, aqui sim, lhes iremos ministrar uma lição que jamais vão esquecer. Rezo, por isso, para que ataquem o Afeganistão e conto mesmo que não se fiquem por aqui e invadam outras terras islâmicas, como o Paquistão e a Terra dos Dois Rios, o Iraque, e mais ainda se for possível. Ao atacar-nos, os kafirun farão assim pela nossa causa mais do que mil fativas. De uma assentada, cairão numa gigantesca emboscada e, mais importante ainda, vão fazer milhares de crentes juntar-se às nossas fileiras para participarem na jihad. Ou seja, esses ataques da aliança cruzados-sionistas irão atear a umma e impulsioná-la à acção. Seguir-se-á assim a terceira fase, que é a expansão do conflito a todo o mundo islâmico. Com a graça de Deus iremos atrair os kafirun para uma guerra de atrito, para a qual eles não estão manifestamente vocacionados. Os kafirun gostam de guerras de Hollywood, com um princípio, um meio e um fim muito bem definidos, mas o que nós lhes vamos dar é uma guerra interminável. A quarta fase será tornar global a nossa jibad. Qualquer crente poderá juntar-se a nós através da Internet e lançar acções em qualquer parte do mundo. Já dispomos de algumas células adormecidas no Ocidente e estamos a constituir outras para que actuem no momento certo, inch'Allah." "Que será quando?"

Bin Laden exibiu os cinco dedos da mão.

"Será o momento que conduzirá à quinta fase", disse. "Tencionamos atrair os kafirun da aliança cruzados-sionistas a uma emboscada global e pressionar as suas capacidades militares até aos limites. Eles vão estar preocupados com o Afeganistão, com a Terra dos Dois Rios, com o Irão, com o Paquistão, com o Líbano, com a Somália, com os campos petrolíferos, com a protecção dos ocupantes sionistas da Palestina... com uma multiplicidade de coisas que acontecerão ao mesmo tempo. Quando derem por ela, já não terão capacidade militar ou financeira para sustentar a situação por mais tempo. Será nesse momento que a América entrará em colapso."

"E... e depois?"

"Com a implosão da América, os governos corruptos do islão ficam sem a sua base de apoio e, com a graça de Deus, serão derrubados pela umma. Chegaremos então ao objectivo final."

O xeque calou-se, como se tivesse concluído a sua exposição, e o visitante remexeu-se na cadeira, a curiosidade espicaçada por aquela visão de glória.

"Desculpe, xeque", disse com timidez. "Qual é esse objectivo final?"

"O novo califado."

Fez-se silêncio na gruta, apenas pontuado pelo estralejar acolhedor da lenha ao lume no fogareiro. A grandiosidade do que acabara de ser dito estava ainda a ser digerida pelo convidado.

"E isso que vai acontecer?", perguntou por fim Ibn Taymiyyah, os olhos a cintilarem de fascínio. "O çalifad* vai mesmo ser reinstituído?"

Bin Laden assentiu com a cabeça.

"E esse o plano, Deus seja louvado", disse. "Com a jihad lançada há duas semanas no coração da América, cruzámos o ponto de ignição. Vamos agora esperar que os acontecimentos que desencadeámos sigam o seu curso natural. Os kafirun irão levar tal lição que se verão forçados a deixar os crentes em paz. Sem os kafirun a fortalecer os nossos governos corruptos, os verdadeiros crentes contarão com a ajuda de Deus e assumirão o controlo dos seus países. Como um dominó, um país será libertado logo a seguir ao outro até a sharia entrar em vigor em todos. Deixará assim de haver muitos países muçulmanos e passará a haver um único. A umma estará então unida e o grande califado será proclamado, inch'Allah. Quando o califado voltar, o califa terá de seguir a vontade de Alá expressa no Santo Alcorão e na sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele, e ordenar uma ou duas jihads por ano contra os kafirun, até que o mundo inteiro esteja convertido e os que não estiverem paguem jizyah aos crentes, conforme o desejo de Deus."

"Com a graça de Alá, é isso mesmo que vai acontecer!", exclamou Uthman, num estilo empolgado que contrastava com o tom tranquilo das palavras de Bin Laden. "O mundo inteiro será constituído por crentes. Os que se recusarem a ver a verdade serão humilhados e transformados em dhimmies,

como é vontade de Alá! Os que não aceitarem pagar o tributo serão mortos."

O xeque pousou a mão no ombro de Ibn Taymiyyah.

"E é para esta grande jihad pelo califado mundial que precisamos de ti, meu irmão", disse. "Reservámos-te a maior de todas as missões, aquela que atingirá o ponto mais vulnerável da aliança cruzados-sionistas, provocando o seu colapso final. Graças a essa missão, a umma irá de novo..."

"Dá licença?"

A cabeça do mudjahedin que quinze minutos antes trouxera o chá e a água espreitou pela entrada da gruta e interrompeu a conversa.

"O que é, Hassan?"

"O jantar está servido."

 

"Este."

A fotografia foi salva num ficheiro separado e logo o jovem operador da NEST, um rapaz de face leitosa e cabelo preto liso, regressou à lista importada e foi mostrando mais imagens. Os rostos estudantis sucediam-se um a um no ecrã; cada um ficava durante uns dois ou três segundos e desaparecia, substituído pelo seguinte. Sempre que surgiam raparigas, que aliás eram a maioria, a imagem saltava imediatamente para o retrato que vinha a seguir.

"Este."

O operador americano guardou a nova fotografia e, de volta à lista importada, tentou prosseguir, mas a imagem anterior manteve-se fixa, como se estivesse congelada ou se se recusasse a mostrar a seguinte.

"Acho que já acabámos", concluiu o homem da NEST. "Não há mais fotografias."

"Quantas temos?", perguntou Tomás.

O americano clicou no ficheiro separado e consultou as estatísticas.

"Cinquenta e quatro."

"Cinquenta e quatro alunos masculinos em dez anos?", ponderou o professor português. "Sim, faz sentido. Aquela faculdade está cheia de mulheres. Não devo ter tido mais de cinquenta rapazes durante este tempo todo nas minhas aulas."

Um dos dois vultos que aguardavam na sombra, por detrás de Tomás e do operador, quebrou o silêncio.

"Portanto, os seus alunos estão todos identificados."

O historiador voltou a cabeça e olhou para ele.

"Sim, mister Bellamy", assentiu. "E agora? Que vão vocês fazer?"

"Vamos proceder a uma identificação biométrica." "O que quer isso dizer?"

"Trata-se de um processo de reconhecimento automático de pessoas através de traços anatómicos distintivos", explicou Frank Bellamy na sua voz rouca e tensa. "Como sabe, todas as pessoas que entram nos Estados Unidos são fotografadas por pequenas câmaras nos postos aduaneiros, quando apresentam o passaporte."

"Ah, sim", exclamou Tomás. "São aquelas câmaras redondas e amarelas, não é? Ainda hoje me fotografaram numa delas quando cheguei aqui ao aeroporto de Washington."

"É um procedimento que adoptámos depois do 11 de Setembro", explicou o responsável da NEST. "O que vai acontecer agora é que o Don irá ligar o ficheiro com o rosto dos seus alunos ao sistema onde estão registados os milhões e milhões de fotografias de todas essas pessoas que entraram aqui nos Estados Unidos nos últimos dois anos. O computador irá ver quais os rostos dos seus alunos que coincidem com rostos de pessoas que vieram visitar-nos. A investigação far-se-á a partir daí." "E é rápido?"

Bellamy balançou a cabeça.

"Pode levar algum tempo. O computador trabalha depressa, mas são muitas fotografias para comparar..."

Sentado diante do ecrã do computador, Don ia^licarldo ordens para fazer a ligação entre o ficheiro e o sistema aduaneiro. Quando terminou, o processo de identificação biométrica começou a funcionar, com a ampulheta do computador a aparecer sempre que processava uma comparação anatómica.

"Isto não pode ir mais depressa?", perguntou Tomás.

"E demasiada informação", retorquiu Don sem descolar os olhos do ecrã. "O sistema biométrico por reconhecimento de rosto funciona a baixa velocidade, devido às muitas semelhanças que as pessoas apresentam entre si. A taxa de sucesso é muito elevada em condições controladas, designadamente quando o indivíduo está a olhar de frente para a câmara e com uma expressão neutra, mas se há diferenças na pose ou nos apêndices faciais, como óculos ou outras coisas, o processo complica-se." Indicou as imagens no ecrã. "Felizmente as fotografias dos seus alunos e dos visitantes que chegam cá são todas frontais e relativamente neutras, o que viabiliza o reconhecimento biométrico. Mas mesmo assim o computador tem de tomar decisões com base em fotografias que não são exactamente iguais e precisa de reconstituir pequenas diferenças, como por exemplo o tamanho dos cabelos e das barbas. Isso leva tempo."

"Estamos a falar de quanto tempo exactamente?"

"Podemos estar aqui dias. Ou até semanas."

"O quê?!", espantou-se o português, erguendo a voz alarmada. "Nós não temos dias! E semanas muito menos! O meu contacto em Lahore foi muito claro quanto a isso! O atentado está iminente! Não haverá maneira de apressarmos isto?"

O outro vulto lá atrás deu um passo em frente e pôs a mão no braço de Tomás. Era Rebecca.

"Tom, como deve calcular ainda estamos mais ansiosos do que você," disse ela. "Não se esqueça de que, no fim de contas, este é o nosso país. Mas infelizmente não podemos fazer mais nada. Temos de aguardar que o computador faça o seu trabalho e rezar para que ele o conclua a tempo."

"Isto é muito lento", protestou o historiador, inconformado. "Não existem mais pistas?"

"Infelizmente, não."

Tomás manteve os olhos fixos na ampulheta que girava no ecrã, exasperado pela lentidão do processo de reconhecimento biométrico, a mente em busca de alternativas.

"E a charada?"

"Qual charada?"

O português fitou Rebecca.

"Não se lembra de eu lhe ter dito, quando nos encontrámos em Lahore, que tinha quebrado a cifra da charada?"

A americana levou a mão direita à cabeça.

"Pois é!", exclamou. "A mensagem enviada para Lisboa do endereço da Al-Qaeda! Com toda a confusão em Lahore e depois em Ierevan, nunca mais me lembrei disso! Porque não me falou no assunto mais cedo?"

"Porque você não mostrou o menor entusiasmo quando lhe dei a notícia em Lahore. Ao ver a sua reacção, achei que já não dava grande importância à charada..."

"Claro que dou! Hell, no meio desta loucura esqueci-me completamente!" Assumiu uma expressão interrogadora. "O que contém a mensagem? Há lá alguma pista?"

Tomás meteu a mão ao bolso e extraiu o seu bloco de notas.

"Não sei", respondeu, abrindo o caderninho. "Consegui identificar o sistema de cifra quando ia no táxi ao seu encontro, em Lahore, mas não completei a decifração."

Folheou o bloco de notas, com os dois americanos atrás
dele a espreitarem por cima do ombro. ^ *

"Goddam it!", praguejou Frank Bellamy. "Como puderam vocês negligenciar uma coisa dessas?"

"Mister Bellamy, a coisa em Lahore esteve muito difícil", desculpou-se Rebecca. "Com aquela confusão toda, a verdade é que tínhamos outras prioridades e esta questão... enfim, passou-nos um pouco ao lado."

Os dedos de Tomás imobilizaram-se numa folha do pequeno caderno com linhas azuis.

"Está aqui."

A atenção dos dois americanos convergiu para a folha, onde viram a charada que já lhes era familiar.

 

6 A Y-H A 5 1 H A S R.U

 

Tomás deslizou o indicador pelas múltiplas experiências que fizera, até se fixar na derradeira. "Estão a ver isto?"

 

£ A«-Y -H-A S ti t i t i

1-M A-8 R-U

 

"Seis Ayhas 1 Ha 8 Ru}", leu Bellamy. "O que diabo quer dizer isso?"

Tomás abanou a cabeça, mas deixou os lábios esboçarem um sorriso.

"Cortei a sequência original a meio e pus uma metade sobre a outra. A mensagem está em árabe, pelo que deve ser lida da direita para a esquerda e de cima para baixo, zigueza-gueando depois de baixo para cima, acompanhando o movimento destas setas que desenhei entre as letras e os números. E esse o itinerário."

"Não estou a perceber..."

"Já lhe mostro."

O historiador pegou numa caneta e rabiscou as letras na sequência sugerida pelo percurso que quebrava o segredo da cifra.

 

SUKAH S AYAH 16

 

Frank Bellamy fez uma careta. "O que é isto?" "Surah S Ayah 16."

"Eu sei ler!", rosnou o americano. "Mas o que significa isto?"

"É a mensagem que a Al-Qaeda enviou para o seu operacional em Lisboa."

 

"Sentem-se."

Só a rígida autodisciplina emocional desenvolvida no campo de Khaldan impediu Ibn Taymiyyah de deixar transparecer no rosto a decepção que sentiu ao ver o que lhe era oferecido para o jantar. Havia já alguns meses que não comia uma refeição decente, apenas feijão e pão, pelo que, ao perceber que iria visitar a base do xeque, não conseguira controlar o impulso salivante que lhe provocava a expectativa de uma refeição mais satisfatória. Se Bin Laden era assim tão poderoso, raciocinara, decerto que os seus repastos seriam lautos banquetes!

Agora que o momento havia chegado, o desapontamento quase lhe fazia doer o estômago. Sobre a toalha suja da mesa estavam batatas mergulhadas em óleo, uma pequena omeleta, um queijo e uma cesta com pão afegão. Mais nada. Os quatro ocuparam os seus lugares e Bin Laden fez sinal ao convidado de que se servisse primeiro.

Escondendo o desencanto, Ibn Taymiyyah cortou um quarto da omeleta, o que dava uma porção minúscula, pôs algumas batatas gordurosas no prato, escolheu umas fatias de queijo e tirou um pão da cesta. Não era pior do que no campo de Khaldan, claro; porém, considerando as suas elevadas expectativas, o jantar constituía um duro revés.

Depois de todos se servirem, Ibn Taymiyyah decidiu começar pelo queijo; sempre tinha um ar mais decente. Mas logo que o começou a mastigar apercebeu-se de que era muito salgado. Para disfarçar o sabor, trincou o pão e logo os dentes se puseram a ranger. Arregalou os olhos, atónito: havia areia no pão!

"Então?", perguntou Al-Zawahiri, que detectara a reacção. "Está bom?"

"Hmm-hmm", assentiu o convidado, corando de embaraço por ter deixado transparecer o que realmente pensava do jantar. "Muito bom."

"Um koshari caía. agora bem, não?", sorriu com uma simplicidade cúmplice.

Ibn Taymiyyah devolveu o sorriso. Lembrou-se de que Al-Zawahiri era egípcio, como ele, pelo que a referência aos pratos do seu país constituía um laço invisível que os unia.

"Isso", concordou o convidado. "Ou uma molokhiyya."

Bin Laden não parecia ser homem para comer muito, constatou ao passar os olhos pelos seus parceiros de mesa. Aliás, isso nem admirava, considerando quão magro ele era. O xeque engoliu as batatas gordurosas como se fossem caviar, comeu um pouco de pão com queijo, bebeu água e pareceu dar-se por satisfeito.

"Meu irmão", disse, enquanto mastigava os últimos pedaços de pão. "Deixa-me explicar-te a missão para a qual te convidámos. Calculo que te interrogues sobre os motivos que nos levaram a chamar-te aqui ao Ninho da Águia..."

Ibn Taymiyyah engoliu depressa a sua fatia de omeleta para poder responder.

"Pois... enfim, confesso que fiquei realmente um pouco surpreendido quando o Abu Omar me deu a notícia..."

O xeque afastou o seu prato para o lado, dando sinal de que a conversa entrava na fase realmente importante.

"O meu convite", disse devagar, medindo as palavras, como já te expliquei, relacionado com a grande jihad que se avizinha."

Ibn Taymiyyah ficou calado um instante até perceber que Bin Laden aguardava dele um sinal de aceitação ou rejeição, como se disso dependesse a continuação da conversa.

"Xeque, os seus desejos são ordens para mim", declarou com solenidade. "Diga-me o que eu tenho a fazer e eu fá-lo-ei."

Ao ouvir isto, Bin Laden olhou-o com tal intensidade que o convidado teve a impressão de que lhe via a alma.

"Estás disposto a tudo?"

"Aos maiores sacrifícios."

O xeque inclinou-se na direcção do seu convidado. "Mesmo a tornares-te um sbakid}"

A referência ao martírio chocou momentaneamente Ibn Taymiyyah. Então era disso o que se tratava! O xeque queria recrutá-lo para uma missão suicida! O xeque queria fazer dele um sbahid! Por Alá, isso era... era... era um orgulho!

"Seria para mim uma honra sem igual morrer ao serviço de Alá", proclamou, quase comovido. "O martírio em nome de Deus é o meu maior desejo e se Alá, na Sua infinita graça e generosidade, me conceder uma tal oportunidade, podeis estar certo de que não O decepcionarei."

"Sabes que te espera o Paraíso", afirmou Bin Laden com suavidade. "O Profeta, que a paz esteja com ele, numa ocasião em que enfrentava o inimigo disse: «As portas do Paraíso

estão sob a sombra das espadas.» Um homem que o ouviu ergueu-se, despediu-se dos amigos, lançou-se contra o inimigo e combateu-o até morrer. O homem sabia que não iria sair vivo, daí que se tenha despedido. Este baditb prova, para lá de qualquer dúvida, que o apóstolo de Deus defendia o ataque-suicida, desde que fosse para bem do islão, prometendo o Paraíso a quem o fizesse. O Profeta, que a paz esteja com ele, esclareceu num outro baditb: «O sbabid possui seis características para Alá: ele é perdoado, entre os primeiros a serem perdoados; ser-lhe-á mostrado o seu lugar no Paraíso; não será punido no túmulo; está a salvo do supremo terror do dia do julgamento; a coroa da dignidade será colocada na sua cabeça; casará com setenta e duas mulheres no céu; e poderá interceder por setenta dos seus familiares». Assim sendo, como não aproveitar esta magnífica oportunidade de ir para o jardim eterno? Como ignorar que o sbabid tem setenta e duas mulheres à sua espera no Paraíso?" "Eu sei, xeque."

Nesse instante, Ibn Taymiyyah não pôde deixar de se lembrar do mudjabedin palestiniano que conhecera em Khaldan e que sonhava com as setenta e duas virgens que o aguardavam no Paraíso.

"O próprio Alá o diz na sura 4, versículo 74 do Santo Alcorão", retomou Bin Laden. "«Combatam na causa de Deus os que trocam a vida mundana pela outra! A esses, que combatam na senda de Deus e sejam mortos ou vencedores, dar--lhes-emos uma enorme recompensa». A recompensa é, como todos sabem, o Paraíso. Já na sura 9, versículos 88 e 89, Alá o esclarece: «O Enviado e os que com ele crêem combatem com as suas riquezas e as suas pessoas. Esses terão os bens e esses serão os bem-aventurados. Deus preparou-lhes jardins por onde correm rios. Neles viverão eternamente.» A importância da jihad é tal que o Profeta explicou certa vez: «Permanecer uma hora nas fileiras de combate no caminho de Alá é melhor do que rezar durante sessenta anos.»"

Tudo aquilo já Ibn Taymiyyah conhecia. Haveria porventura algum mudjabedin que ignorasse que Alá lhe prometia o Paraíso em caso de se tornar sbabid? Na verdade, em ponto algum do Alcorão ou da sunnah do Profeta dava Deus garantias de que o crente iria para os jardins eternos. Por mais que se esforçassem e tentassem respeitar com extremo rigor a sbaria, os crentes acabavam sempre por cometer pecados e não havia garantias nenhumas de que Alá lhes perdoasse. A única circunstância em que essas garantias existiam ocorria justamente nos casos de martírio. Quem morresse em martírio iria com toda a certeza para o Paraíso, mesmo que tivesse cometido muitos pecados em vida. Assim sendo, como era possível um verdadeiro crente não desejar o martírio? Ser sbahid era ver abrir-se uma entrada directa e segura no Paraíso, pelo que qualquer mudjabedin só podia ansiar ardentemente pela morte em jibad.

"Se Alá me convidar para os Seus jardins, aceitarei com grande alegria", garantiu Ibn Taymiyyah. "Diz-me o que tenho de fazer e será feito."

Bin Laden estendeu a mão e pousou-a no ombro do convidado, num gesto de apreço.

"És um verdadeiro crente, meu irmão", proclamou. "São mudjabedin como tu que permitirão reencaminhar a umma e salvar a humanidade, com a graça de Deus."

"A tua generosidade embaraça-me, xeque. Limito-me a cumprir o meu dever de crente que se submete à vontade de Alá. Quais são as tuas ordens?"

Bin Laden endireitou-se e assumiu a sua pose de emir dos mudjabedin.

"Lembras-te de eu te ter explicado o nosso plano para provocar os kafirun da aliança cruzados-sionistas a virem combater na nossa terra, de modo a despertar a umma e a provocar o colapso do inimigo?"

"Sim, o plano do califado. Tens um papel para mim nesse plano?"

O xeque assentiu com a cabeça.

"Tenho um papel muito, muito importante."

Ibn Taymiyyah levou a mão ao peito.

"Muito me honras, xeque. Se Alá me criou para desempenhar um papel assim tão importante na expansão da verdadeira fé, quero que saibas que estarei à altura de tão elevada missão. Nada me honra mais do que servir a Deus."

"O teu nome foi-nos sugerido pelos irmãos que te treinaram em Khaldan", revelou Bin Laden voltando-se para Al-Zawahiri, que acompanhava a conversa em silêncio. "Meu irmão, podes explicar tu a ideia?"

O egípcio afinou a voz.

"A situação é a seguinte", começou por dizer. "Os kafirun vão atacar-nos aqui no Afeganistão. Todas as condições de segurança de que gozamos actualmente irão desaparecer nos tempos mais próximos. E por isso que estamos a plantar células adormecidas um pouco por todo o mundo. Quando passarem as primeiras vagas de ataques teremos de ter prontas respostas muito poderosas. Com a graça de Deus, as respostas serão dadas por essas células adormecidas, uma vez que eu receio que a operacionalidade do nosso comando esteja por essa altura comprometida." Fitou o convidado. "Estás a acompanhar o meu raciocínio até agora?"

"Sim, muito bem."

Al-Zawahiri apontou para ele.

"O que nós queremos é que tu sejas uma dessas células."

"Farei o que me for ordenado."

"A ideia é simples. A operação que os nossos valentes irmãos lançaram no abençoado dia 11 de Setembro, que essa data gloriosa fique gravada a ouro na história da humanidade, mostrou que a aliança cruzados-sionistas, por mais poderosa que seja, pode ser atingida nos seus pontos fracos. A América é uma grande potência, mas assenta numa fundação frágil e oca. Se atingirmos a fundação, o edifício desmoronar--se-á, inch'Allah! Precisamos, pois, de ti para lançar o mais mortífero dos ataques contra essa fundação."

"O que querem exactamente que eu faça?"

"Falei com Abu Nasiri para lhe dizer que estava à procura de um mudjahedin com um perfil muito específico para uma missão... digamos, especial. Abu Nasiri ouviu as minhas especificações e disse que, por acaso, tinha justamente em Khaldan um mudjahedin que encaixava na perfeição." Sorriu. "Eras tu, claro."

"Folgo em saber que Alá, na Sua imensa sabedoria, encontrou um papel para mim nos Seus altos desígnios."

"Queríamos alguém que estivesse muito familiarizado com explosivos e que não tivesse sido ainda identificado pelos serviços secretos dos kafirun. Quando o Abu Nasiri falou de ti, fomos investigar a forma como chegaste a Khaldan e constatámos que foste enviado pela Al-Jama'a. Ora acontece que eu próprio, sendo egípcio, tenho muitos conhecimentos dentro da Al-Jama'a, pelo que me fui informar. O que me foi dito revelou-se realmente muito encorajador. Não só és um verdadeiro crente, daqueles capazes de dar a vida por Alá, como tens um curso de Engenharia, o que é muito útil na área dos explosivos. Além disso, nunca estiveste inscrito na Al-Jama'a e vives em Al-Lishbuna, uma cidade que se encontra totalmente fora dos circuitos dos verdadeiros crentes! Isso significa que nenhuma polícia tem o teu nome referenciado! E a cereja em cima do bolo, meu irmão, é que tens agora treino de mudjahedin. E... perfeito! Eu nem queria acreditar que tu existias! E, no entanto, aí estás tu, Deus seja louvado! Es uma verdadeira dádiva de Alá para a grande jihad!"

Ibn Taymiyyah quase corou de orgulho.

"Farei o que precisarem."

"Precisamos que voltes para Al-Lishbuna e aí permaneças como uma célula adormecida, vivendo a tua vida normal até alguém te contactar e te entregar uma ordem codificada. Essa pessoa levará um plano para executar. Quando isso acontecer, obedecerás às instruções operacionais que te forem dadas."

"Mas o que precisam de mim exactamente? Que leve a cabo um assassinato?"

"Precisamos que montes uma bomba e a faças explodir no sítio que te for ordenado."

"TNT? Semtexr

Bin Laden fez um gesto a Al-Zawahiri, indicando querer ele próprio retomar a condução da conversa. Virou a cabeça e fitou Ibn Taymiyyah com gravidade.

"Nuclear."

O convidado abriu e fechou a boca, primeiro chocado, depois na dúvida sobre se teria escutado bem. "O quê?"

"Uma bomba nuclear."

Ibn Taymiyyah olhou em redor, para se certificar de que aquilo era a sério.

"Mas... mas...", gaguejou. Abanou a cabeça, tentando reordenar os pensamentos. "Desculpem, querem que eu construa e faça explodir uma bomba nuclear?"

"Isso mesmo."

"Mas... não pode ser. Não se constrói uma bomba nuclear assim às três pancadas! Uma bomba dessas é muito complexa, requer muitos meios e material sofisticado. Além disso..."

"Ao que nos dizem", cortou Bin Laden com a sua voz calma e suave, "o princípio é até elementar."

O mudjahedin afagou a barba, pensativo enquanto reconsiderava a questão.

"Bem... sim, é verdade", admitiu ao fim de alguns instantes. "Embora o fabrico de uma bomba dessas requeira primeiro a produção de materiais muito raros... plutónio ou urânio enriquecido. Eu não quero desanimar ninguém, mas só para obter esse combustível nuclear é preciso reunir uma equipa multidisciplinar e equipamento de ponta, comQ„centrifugadoras e coisas do estilo. Depois o trabalho levará, à vontade, uma década. Acima de tudo, é preciso considerar que não será fácil encontrar onde..."

"Nós temos o material nuclear."

"O quê?"

"Foi-nos entregue há uns anos por um comando checheno, como pagamento pelas acções de treino para a jibad contra os kafirun russos no Cáucaso."

"Onde o arranjaram eles?"

"Roubaram-no de umas instalações russas, acho eu. Não interessa. O facto é que, com a graça de Deus, temos o material."

"E que material é esse? Urânio? Plutónio?" "Urânio."

A sua mente de engenheiro começou a funcionar a grande velocidade, contemplando as possibilidades que inesperadamente se lhe abriam.

"E qual o grau de enriquecimento?"

"Noventa por cento."

"Por Alá, isso serve!", exclamou com súbito entusiasmo. "Onde está esse urânio?" Bin Laden sorriu. "Em Khaldan."

Ibn Taymiyyah abriu a boca, perplexo. Havia urânio enriquecido em Khaldan? Mas onde? Trabalhara em explosivos com Abu Nasiri e não se lembrava de ver qualquer material radioactivo no campo de treinos. Ele próprio fora muitas vezes buscar explosivos às grutas que serviam de arsenal e... e...

Bateu na testa quando a ideia lhe ocorreu.

"Por Alá!", exclamou. "A terceira gruta!"

O urânio estava na terceira gruta! Daí que Abu Nasiri o tivesse proibido de a visitar! Pudera! Havia urânio enriquecido na terceira gruta!

"Como dizes, meu irmão?"

A sua mente voltou à galeria onde decorria o jantar.

"Eu?", admirou-se por ter falado alto. "Nada, nada. Estava apenas a... a falar comigo próprio."

Bin Laden manteve o olhar preso nele, como se o avaliasse.

"Achas-te capaz de cumprir esta missão?"

"Sem dúvida!", exclamou sem hesitar. "Pode contar comigo, xeque."

"A construção da bomba... não é impossível, espero."

"Não, não. Se eu tiver urânio enriquecido em quantidade suficiente, isso faz-se sem grandes problemas técnicos. Como o senhor disse há pouco, os princípios são simples."

"E a tal década de que estavas a falar ainda há instantes?"

"Isso era para enriquecer o urânio ou para produzir plutónio. Mas se já dispomos de urânio enriquecido esse problema não se põe."

Finalmente convencido de que o homem diante dele estava à altura da missão, o xeque esfregou as mãos.

"Excelente! Excelente!", exclamou. "Vou então dar instruções ao Abu Omar e ao Abu Nasiri para te ajudarem. Considerando que os kafirun vêm aí, o material radioactivo vai ter de ser imediatamente transportado para um sítio mais seguro."

Ibn Taymiyyah ergueu o sobrolho.

"Atenção que há problemas de segurança muito importantes. E preciso levar o material para um local discreto, montar a bomba e depois transportá-la para o alvo. Isso não é tão simples como à primeira vista possa parecer..."

"Deixa isso connosco. Quero que sigas a tua vida normal e não te faças notar. Quando chegar o momento certo, serás contactado. Nessa altura, só terás de montar a bomba e, com a graça de Deus, fazê-la detonar no local apropriado. O resto é um problema nosso"

"Como saberei eu que a pessoa que me vai contactar é genuína?"

"Ela dir-te-á uma senha com o nome de código da operação. A senha é o versículo 16 da sura 8 do Santo Alcorão."

O convidado fez um esforço de memória para localizar o versículo em questão.

"Versículo 16... versículo 16..."

"É aquele que avisa os crentes de que não devem fugir da jihad sob pena de irem para o grande fogo."

"Ah, já sei!", exclamou Ibn Taymiyyah, identificando enfim o versículo. "«Quem volte então as costas - a menos que seja para retornar ao combate ou para se unir a outro grupo de combatentes — incorrerá na fúria divina, e o seu refúgio será o Inferno»."

O xeque assentiu.

"E essa a senha."

"Muito bem. E o nome da operação?" "Já te disse: está inserido nesse versículo."

O visitante fez um ar desconcertado.

"Mas o versículo é longo, xeque", argumentou. "Quais as palavras nele contidas que são o nome de código da operação?"

Antes de responder, Bin Laden ergueu-se da mesa e deu o jantar por terminado. Os outros três homens seguiram-lhe o exemplo e Ibn Taymiyyah ficou à espera da resposta.

O xeque olhou então para ele.

"Gbadhabum min'Allah", murmurou. "Fúria Divina."

 

As atenções do grupo estavam todas voltadas para a linha que Tomás rabiscara no bloco de notas a partir da mensagem interceptada à Al-Qaeda. Os homens da CIA olhavam para o gatafunho e abanavam a cabeça, sem entender o que viam.

 

SUKAtt S AYAH

 

"Shit!", praguejou Frank Bellamy na sua voz rouca e tensa. "É uma nova fucking charada!"

"Não, não é", corrigiu Tomás. "São palavras e números árabes. Mais do que isso, é uma referência corânica! Diz-se surah ou sura e significa capítulo. Ayab quer dizer versículo. Ou seja, capítulo 8, versículo 16. A mensagem remete para um versículo do Alcorão!"

"J be damned!", exclamou Bellamy, a atenção vidrada na linha decifrada. "Que versículo é esse?"

"Não sei." O historiador olhou em redor. "Tem aí algum exemplar do Alcorão?"

Rebecca dobrou-se e pegou na pasta que guardara aos pés de uma mesinha.

"Eu tenho!", anunciou, abrindo a pasta e começando a vasculhá-la. "Desde que ando a lidar com esta gente que não largo o Alcorão." A mão parou de remexer o interior, como se tivesse localizado o que procurava. "Aqui está!"

Entregou o livro a Tomás, que logo se pôs a folheá-lo.

"Sura 8... sura 8... sura 8...", murmurou, os dedos a passarem as páginas a grande velocidade. "Ah! Encontrei!" O indicador deslizou pelos versículos do capítulo. "Vamos lá ver o... o... o versículo 16."

A unha do historiador cravou-se na linha onde começava o versículo e os três inclinaram a cabeça para ler o que lá se encontrava.

"«Quem volte então as costas — a menos que seja para retornar ao combate ou para se unir a outro grupo de combatentes — incorrerá na fúria divina, e o seu refúgio será o Inferno»", leu Rebecca.

"Fucking bell!", praguejou Frank Bellamy, os dentes cerrados. "Mais um mistério! Eu não digo? Esta merda não acaba! Cada charada encerra uma nova charada e não saímos disto."

"Não há aqui mistério nenhum", disse Tomás, esforçando--se por interpretar o que lera. "Esta é uma ordem de Alá para que os muçulmanos façam a guerra contra os infiéis, proibindo os crentes de fugirem a não ser para prepararem um novo ataque." Bateu com o dedo na página do Alcorão. "O que temos aqui é uma ordem operacional."

"Uma ordem de Alá."

"Sim. Mas também uma ordem da Al-Qaeda. Ou seja, ao enviar a referência deste versículo, Bin Laden ordenou ao seu operacional em Lisboa que desencadeasse a operação terrorista." Ergueu a cabeça e mirou Rebecca. "Quando é que esta mensagem foi colocada no endereço da Al-Qaeda na Internet?" "Há dois meses."

Tomás voltou-se para o operador americano que vigiava o
processamento de dados da comparação biométrica em curso.
"Oiça... você chama-se Don, não é?"

O rapaz voltou a cabeça, surpreendido por ser interpelado. "Yes, sir. Don Snyder."

"Don, não é preciso fazer a comparação das fotografias dos meus alunos com a dos visitantes que entraram nos Estados Unidos nos últimos dois anos. Restrinja o universo de pesquisa aos visitantes que entraram no país nos últimos dois meses."

Don olhou para Frank Bellamy, como se pedisse autorização.

"Sí'rf"'

Bellamy assentiu. "Do ií."

O operador voltou-se para o ecrã e desatou a digitar no teclado as novas ordens.

"Isto vai acelerar consideravelmente as coisas", disse Don, visivelmente satisfeito. "Com um pouco de sorte, talvez amanhã já tenhamos a identificação biométrica completa."

Tomás levou os dedos à boca e pôs-se a mordiscar uma unha, os olhos perdidos no infinito.

"Ora bem, a mensagem foi enviada há dois meses...", murmurou, a mente perdida em cogitações. Olhou de novo para Rebecca. "Diga-me uma coisa, quanto tempo leva a montar e transportar uma bomba nuclear para um alvo?"

"Depende do alvo."

"Imagine que tem o urânio enriquecido no Paquistão e precisa de o transformar numa bomba para a fazer explodir algures nos Estados Unidos."

"Estou a perceber o seu raciocínio", observou Rebecca. "Se eu tiver o urânio enriquecido em quantidade suficiente, a montagem da bomba é uma coisa simples. Pode, em último caso, fazer-se em apenas vinte e quatro horas num sítio qualquer. Até numa garagem ali em Bethesda. Em todo este processo, o que leva mais tempo é colocar o urânio enriquecido aqui na América. E, claro, há o problema do tempo que leva obter o visto."

"O nosso suspeito é cidadão português", lembrou Tomás. "Não precisa de visto."

"Pois, tem razão. Nesse caso eu diria que toda a operação se pode completar em um ou dois meses."

Fez-se silêncio na sala. Apenas se ouvia o sussurro leve dos computadores a processarem informação. Os três viraram os olhos para a janela e contemplaram o exterior, como se esperassem ver, a todo o instante, a nuvem de cogumelo a formar--se no céu.

"Então o tempo esgotou-se."

 

O The Washington Post dessa manhã trazia as notícias do costume. A primeira página era dominada por um bombardeamento surpresa efectuado por Israel contra presumíveis alvos do Hamas na Faixa de Gaza e pela fotografia de uma criança palestiniana ensanguentada que havia sido resgatada dos escombros e exibida perante as câmaras como uma shahid. Um porta-voz do Hamas jurava vingança e citava as palavras do Profeta, mencionadas no final do artigo sétimo da constituição do seu movimento, prometendo que "o julgamento final não virá até que os muçulmanos lutem contra os judeus e os matem". Numa caixa à parte vinha o anúncio pelo Irão de que o seu presidente ia levar o assunto à Assembleia Geral da ONU, que se iria reunir daí a dois dias, enquanto os países da União Europeia, ao mesmo tempo que renovavam promessas de falar a uma só voz sobre o assunto, emitiam as habituais opiniões díspares.

"Sempre a mesma merda!", murmurou Tomás, agastado com o carácter repetitivo das notícias. Mudou de página.

O presidente americano fazia um qualquer apelo ao Congresso para que autorizasse um pacote de incentivos à indústria das energias alternativas. Seguiu em frente, passando distraidamente os olhos pelos cabeçalhos, e depressa chegou à página desportiva. Procurou notícias sobre o futebol europeu, mas as atenções do jornal americano pareciam concentrar-se numa vitória espectacular dos LA Lakers sobre os Chicago Bulis. Podia ser uma notícia galvanizante para os Americanos, mas ele, um europeu, pousou uns olhos entediados naquelas linhas.

Trrr-trrr.

O toque do telemóvel despertou-o da sua letargia. Meteu a mão no bolso e tirou-o. "Está lá?"

"Tom, por onde diabo anda você?"

"Estou aqui no business center do hotel a ler o jornal. Porquê?"

"Isso é mesmo aqui ao lado da recepção, não é?"

"Sim. Tem uma grande porta de vidro. Se vier pela porta principal, vire à direita e logo verá que..."

Quando ainda ia a meio da frase, Tomás viu a porta do business center abrir-se e o corpo ágil de Rebecca entrar apressadamente, o telemóvel colado à cabeça dourada.

"Até que enfim que o encontro!", exclamou ela, desligando o telemóvel e estendendo o braço na direcção do português. "Estou farta de lhe telefonar e você não atende."

"Desculpe, só liguei o telemóvel há instantes."

Rebecca pegou-lhe na mão e puxou-o, obrigando-o a levantar-se.

"Venha daí! Não há tempo a perder!"

Arrancado quase à força do seu lugar, Tomás ainda teve tempo de atirar o jornal para a mesa. "O que foi? O que aconteceu?"

Sem se voltar para trás, a americana empurrou a porta de vidro e arrastou o português para o lobby do hotel.

"O computador do Don já terminou a busca", anunciou.
"Temos a identificação biométrica completa."

 

Ao contrário do que acontecera na véspera, nesse dia a sala de operações da CIA em Langley estava apinhada de gente. As pessoas conversavam animadamente, as mãos a segurar canecas de café com o logótipo da agência, mas não pareciam fazer grande coisa.

No instante em que Rebecca entrou na sala com Tomás, o burburinho morreu e a pequena multidão abriu alas para os deixar passar. O português ficou intimamente surpreendido por lhe ser dada tanta importância, mas fingiu que tudo aquilo era normal e, muito seguro de si, acompanhou a loira americana até junto de Frank Bellamy.

"Você está fucking atrasado!", rosnou o responsável da NEST, o olhar duro a chispar na direcção do historiador.

"Tinha o telemóvel desligado", retorquiu Tomás, como se isso explicasse tudo. "Então o que se passa?"

Bellamy voltou-se na direcção de Don Snyder, que permanecia sentado no mesmo lugar em que o historiador o vira na véspera, como se nunca dali tivesse saído.

"Passa-se que o computador terminou a busca", disse. "Mostra-lhe, Don."

O operador digitou o teclado e o ecrã encheu-se com o retrato de um homem.

"A identificação biométrica entre as fotografias seleccionadas pelo professor Noronha e a nossa base de dados com as imagens de todos os homens que entraram nos últimos dois meses nos Estados Unidos estabeleceu duas dezenas de ligações, a maior parte inverosímeis. Descobrimos que oito antigos alunos do professor Noronha vieram ao nosso país nos últimos dois meses e que sete já voltaram para Portugal."

"Então há um que ainda cá está."

Don apontou para o rosto no ecrã.

"É este indivíduo", disse. "Rafael Cardoso. O suspeito chegou ao aeroporto de Miami há uma semana e está hospedado no Holiday Inn. Já pusemos alguns homens a vigiá-lo."

"O que acha, Tom?", perguntou Bellamy. "E este o nosso homem?"

Tomás observou o rosto imberbe do seu antigo aluno. A legenda por baixo da fotografia indicava que ele se chamava Rafael da Silva Cardoso. O professor lembrava-se vagamente dele, tinha frequentado as suas aulas de Línguas Antigas alguns anos antes.

"Não me parece", disse, abanando a cabeça com cepticismo. "Não têm mais ninguém?"

"Os outros sete já regressaram a Portugal."

"Mostre-mos."

O operador voltou a digitar o teclado e no ecrã passou uma sucessão de rostos, que Tomás perscrutou com atenção.

"Nenhum destes meus antigos alunos parece ter nada de extraordinário", concluiu no final, decepcionado. "Não há mais?"

"Receio que não."

Tomás respirou fundo e um burburinho de desalento percorreu a sala. Sentindo que todos os olhos e todas as esperanças estavam pousados em si, o historiador não se deu por vencido.

"Disse-me há pouco que a busca produziu dezenas de resultados..."

"Sim, mas os restantes são inverosímeis."

"Como assim, inverosímeis? O que quer dizer com isso?"

Don atacou o teclado mais uma vez.

"E normal a comparação dar resultados errados, uma vez que pode haver certas linhas do rosto semelhantes entre pessoas diferentes. Quando as semelhanças são muito grandes, isso confunde o computador." Duas fotografias apareceram no ecrã lado a lado. "Por exemplo, a imagem da esquerda é a do seu anjigo aluno Filipe Tavares. A da direita é de Dragan Radanovic, um serralheiro de Belgrado. Dadas certas semelhanças fisionómicas entre ambos, o computador emparelhou as fotografias e pensou que se tratava da mesma pessoa. É um erro, como é óbvio."

O português balançou afirmativamente a cabeça, percebendo o problema, mas ainda não estava disposto a atirar a toalha ao chão.

"Quantos erros destes ocorreram?"

Don carregou numa tecla e obteve as estatísticas.

"Trinta e um."

"Mostre-mos todos."

O operador olhou para Frank Bellamy, como quem diz que tudo aquilo era já perda de tempo. Porém, o superior hierárquico fez com a cabeça sinal de que obedecesse e Don foi buscar todas as comparações falhadas.

As parelhas de rostos começaram a suceder-se. O primeiro caso comparava um antigo aluno de Tomás com um visitante italiano, o segundo era o de outro aluno com um brasileiro e assim sucessivamente, sempre um antigo aluno emparelhado com um visitante de outra nacionalidade qualquer.

À décima sétima parelha, porém, Don quebrou o silêncio.

"Este caso é curioso", disse, indicando o ecrã. "Em vez de ser um ex-aluno seu português emparelhado com um visitante estrangeiro, é um ex-aluno seu árabe que o computador emparelhou com um visitante português." Soltou uma gargalhada. "Cómico, não é?"

A observação fez Tomás fixar os olhos com mais atenção nas duas fotografias.

"Como se chama este aluno?" Don procurou a tecla da legenda.

"Ahmed ibn Barakah. E egípcio. O computador emparelhou-o com o engenheiro Alberto Almeida, de Palmela."

O historiador manteve os olhos colados ao rosto do seu antigo aluno. Tinha uma vaga ideia dele. Tratava-se de um rapaz calado e, tanto quanto se lembrava, aparecera a poucas aulas alguns anos antes. A medida que Tomás olhava para a fotografia e fazia um esforço de memória, as lembranças iam fluindo. Teve a impressão de ter falado uma vez com aquele estudante e, logo que se recordou disso, sentiu uma reminiscência desconfortável dessa conversa. O rapaz dissera algo que lhe chamara a atenção. Que teria sido?

Cerrou os olhos e fez um novo esforço de memória. Fixava o rosto e procurava associar-lhe conversas; esforçou--se tanto que o pormenor desagradável acabou por se tornar presente. O seu antigo aluno fizera um comentário agreste contra os judeus e dissera-lhe qualquer coisa sobre o facto de a história não estar acabada... Como fora que ele pusera a questão? Ah, tinha dito que um dia seriam os historiadores muçulmanos a analisar o passado cristão da Península Ibérica e que...

Num gesto quase reflexo, esticou o braço e apontou para o ecrã.

"É ele!"

Os americanos em redor olharam para o português sem entenderem. "Como?"

"É ele o homem da Al-Qaeda!"

 

Os rostos estavam presos ao ecrã como se estivessem a reavaliar a imagem para a qual Tomás apontava o dedo acusador. A face imóvel do visitante suspeito fitava o vazio, eternizada pela câmara aduaneira ao lado da imagem fornecida pela Universidade Nova de Lisboa. A indicação por baixo de cada fotografia identificava o rosto do visitante como pertencendo ao engenheiro Alberto Almeida e o rosto do estudante como de Ahmed ibn Barakah.

Dois nomes diferentes, mas a face era a mesma.

Após um primeiro instante de silêncio entorpecido, uma algazarra de ordens explodiu na sala de operações da CIA e toda a gente se pôs em movimento.

"Don!", berrou Bellamy, os olhos presos na face exibida pelo ecrã. "Onde diabo está alojado este motherfucker?"

Nem tinha sido preciso emitir a ordem, uma vez que Don digitava já furiosamente no teclado. As fotografias desapareceram do ecrã e, em sua substituição, apareceram sequências

de palavras com toda a informação relativa ao visitante suspeito.

"Alberto Almeida deu entrada nos Estados Unidos pelo aeroporto de Orlando há exactamente... trinta e três dias. Proveniente de Madrid. Indicou como morada o Marriott de Orlando."

"Liga-me ao Marriott", ordenou Bellamy para Don. Depois olhou para o homem que estava ao seu lado "Passa-me a Casa Branca. Quero falar com o David Shapiro."

Don fez de imediato a ligação para a Florida pelo computador. O tom de chamada encheu por duas vezes os altifalantes até que se ouviu o clique de atendimento.

"Hotel Marriott, bom dia. Em que posso ajudá-lo?"

"Passe-me o gerente, por favor", ordenou Don. "E urgente."

"Com certeza. Espere um momento, por favor." O tom suave de uma música de salão encheu a linha por uns instantes, seguida do toque de chamada. "Daqui Hughs."

"O senhor é o gerente do Marriott de Orlando?" "Sim. Em que posso ajudá-lo?"

"O meu nome é Don Snyder e estou a ligar-lhe de Langley. Sou da CIA e preciso de obter com muita urgência uma informação sobre uma pessoa que se hospedou aí."

Fez-se um breve silêncio na linha.

"Isto é alguma brincadeira?"

"Infelizmente, não. Poderemos enviar alguém com as credenciais necessárias, mas o caso é de tal modo urgente que agradecia que confiasse em mim e me desse de imediato a informação. O meu número está decerto registado na vossa central telefónica e vocês podem confirmar que estou mesmo a ligar de Langley."

A voz do outro lado hesitou, como se estivesse a tomar uma decisão.

"Muito bem", suspirou o gerente do Marriott. "Como se chama esse hóspede?"

"Alberto Almeida. Quer que soletre?" "Sim, por favor."

Don soletrou o nome e fez-se silêncio na linha, enquanto o gerente verificava a informação no computador do hotel.

"Tivemos de facto um Alberto Almeida hospedado aqui no hotel. Era um indivíduo com nacionalidade do Paraguai... perdão, de Portugal. Dormiu cá uma noite e fez check-out logo na manhã seguinte. Pagou em cash."

"Não há indicações relativas ao sítio para onde ele foi?"

"Não. Como deve calcular, nunca perguntamos isso aos nossos clientes."

 

Quando Don pôs termo à ligação com o Marriott, já Frank Bellamy estava em linha com a Casa Branca a comunicar as novidades. O responsável da NEST afastou-se e saiu da sala de operações, fechando-se num cubículo envidraçado para não ser escutado.

"E agora?", perguntou Tomás.

"Já lançámos um alerta nacional para localizarem esse tipo", respondeu Rebecca com ar grave. "Mas se ele chegou há um mês aqui aos Estados Unidos... não sei, não. Com o urânio enriquecido em quantidade suficiente, a construção da bomba completa-se num instante."

Don voltou ao teclado.

"Vou proceder a uma busca com a NORA."

"O que é isso?"

"Non Obvious Relationship Analysis", disse, descodificando o acrónimo. "Acreditem ou não, é um sistema de cruzamento de dados que foi desenvolvido pelos casinos de Las Vegas. Muito eficiente." Pôs a língua no canto da boca, como uma criança, e começou a soletrar à medida que ia digitando. "A-l-b-e-r-t-o-A-l-m-e-i-d-a."

Acrescentou todos os dados que constavam da ficha aduaneira do aeroporto de Orlando e depois, por cautela, inseriu também o nome Ahmed ibn Barakah. A ampulheta do computador começou a girar enquanto processava a informação.

"Explica-me o que estás a fazer", pediu Rebecca, aproveitando a pausa dada pelo computador.

"A NORA combina a informação sobre a identidade de uma pessoa com as bases de dados das companhias de crédito, os registos públicos e a informação que consta dos computadores dos hotéis e de mais uma série de sítios. O sistema funciona através da construção de hipóteses baseadas em informação real."

"Não percebo."

"Isto foi uma ideia dos casinos para detectar fraudes", explicou Don, um olho na ampulheta que continuava a girar, o outro em Rebecca. "A NORA pode descobrir, por exemplo, que a irmã de um dealer de blackjack foi há dois anos vizinha de um homem que ganhou duzentos mil dólares durante um jogo controlado por esse mesmo dealer. A relação entre o dealer e o vencedor é assim estabelecida e permite ao casino investigar se houve ou não batota."

"Ah, já entendi!"

"O sistema permite fazer também outro tipo de associações. Um nome árabe pode ser grafado Otmane Abderaqib em Africa ou Uthman Abd Al Ragib no Iraque. A NORA consegue emparelhar estes dois nomes, o que..."

Uma voz encheu de repente os altifalantes da sala de operações, interrompendo a conversa.

"Atenção a toda a gente! Atenção!"

Era a voz rouca de Frank Bellamy. Tomás olhou para o cubículo envidraçado e constatou que o responsável da NEST havia terminado o telefonema com o conselheiro presidencial e tinha um microfone colado à boca.

"Acabei de falar com a Casa Branca e, com base na informação que lhe fornecemos, o presidente acabou de decretar DEFCON^2. Estamos em DEFCON 2. Estamos em DEFCON 2."

Um silêncio estarrecido impôs-se na sala de operações.

"Já vi isto nos filmes..." murmurou Tomás.

"DEFCON 2 é o segundo grau de emergência mais elevado dos Estados Unidos", explicou Rebecca também em voz baixa. "Isto significa que as nossas forças militares foram postas em estado de alerta máximo devido à possibilidade de um ataque iminente. Que eu saiba, a última vez que DEFCON 2 esteve em vigor foi durante a crise dos mísseis em Cuba."

"E no 11 de Setembro?"

"Estivemos em DEFCON 3."

"Portanto, isto agora é mais sério..."

Rebecca fitou-o fixamente.

"Tom, estamos a falar de uma bomba nuclear."

A ampulheta do computador parou de girar e o ecrã foi preenchido por uma avalancha de informações. Don aproximou os olhos e estudou as conclusões do gigantesco cruzamento de dados.

"Pessoal", chamou. "Venham ver isto."

As pessoas que estavam na sala convergiram para o lugar do operador e fixaram a atenção no ecrã, onde o programa NORA relacionava todos os dados e fornecia enfim o paradeiro de Alberto Almeida, aliás Ahmed ibn Barakah, aliás Ibn Taymiyyah.

"O motherfucker está em Nova Iorque."

 

O Chevrolet branco esperou pelo sinal verde para arrancar. Quando a luz se acendeu, pôs-se em marcha e virou imediatamente à direita, metendo pelo bairro de vivendas da classe média, uma área agradável cheia de árvores e zonas ajardinadas. O sol escondia-se por entre as nuvens cinzentas, espalhando uma luminosidade melancólica, e o rio Hudson corria com lentidão lá ao fundo, as águas escuras a espelharem a floresta de arranha-céus que se estendia pela outra margem.

"Tem a certeza de que é por aqui?"

Rebecca sacudiu a cabeça para afastar os cabelos loiros que lhe descaíam da testa para os olhos e deu uma nova espreitadela ao mapa.

"É por aqui, é", confirmou. "Não conheço muito bem New Jersey, mas fique descansado que eu já descubro o local."

O olhar de Tomás prendeu-se na ponta sul de Manhattan, do outro lado do rio. Mesmo passados todos estes anos era

estranho não ver ali as duas torres gémeas do World Trade Center.

"Como é possível que a Al-Qaeda tenha metido aqui cinquenta quilos de urânio altamente enriquecido e ninguém tenha dado por nada?", perguntou, vagamente irritado. "Vocês montam um grande aparato de segurança nos aeroportos e no fim deixam passar uma coisa dessas?! Como é isso, possi/el?"

Rebecca mantinha os olhos presos à estrada, em busca da sinalização que a ajudaria a reencontrar o caminho certo.

"Traficar grandes quantidades de urânio enriquecido para os Estados Unidos não é nada de especial", observou. "E até a coisa mais fácil do mundo!"

"Desculpe?"

Mais uma olhadela para o mapa de ruas, para se certificar da sua posição.

"Olhe, há uns anos uma estação de televisão aqui de Nova Iorque, a ABC, despachou em Djakarta uma pasta com sete quilos de material radioactivo para um endereço em Los Angeles. Depois ficou à espera para ver o que iria suceder. Pois sabe o que aconteceu? Algum tempo mais tarde, a pasta foi entregue absolutamente intacta na morada prevista. Ou seja, aquele material nuclear passou pela goddam alfândega do porto de Los Angeles sem que ninguém suspeitasse da mínima coisa!"

"Vocês não têm nas alfândegas equipamento para detectar material radioactivo?"

"Claro que temos."

"Então como foi possível que essa pasta não tivesse sido detectada?"

"Tom, você tem de perceber como as coisas funcionam nas alfândegas", disse Rebecca. "Antes de um navio chegar, os nossos fiscais aduaneiros consultam os manifestos de carga e os portos de origem para determinar o grau de risco que envolve cada cargueiro. Imagine que um navio partiu da Colômbia. Se considerarem que o risco de tráfico de droga é muito elevado nesse navio, podem decidir analisar a sua carga. Nesse caso submetem os contentores do cargueiro suspeito a uma análise de raios X e de outros sistemas que envolvem raios gama, de modo a obter uma imagem mais precisa do seu interior. Se detectarem alguma coisa estranha podem abrir o contentor e inspeccionar o seu conteúdo."

"Muito bem. Então porque não o fazem?"

"Porque todos os dias há cento e quarenta navios a entregar nos portos americanos cinquenta mil contentores com mais de meio milhão de produtos provenientes de todo o planeta! Eis porquê! Só o porto de Los Angeles, sabe quantos contentores recebe por dia? Onze mil! E sabe quanto tempo levam cinco funcionários a inspeccionar um único contentor? Três horas! E, já agora, tem a noção de quantos portos de águas profundas existem na América? Mais de trezentos! Isto significa que, se pegar em cinquenta quilos de urânio altamente enriquecido e os colocar numa caixa de produtos de ténis, e depois escrever no manifesto que o conteúdo da caixa são raquetes, pode ter a certeza de que a porra da caixa chegará ao seu destino sem grandes obstáculos! Foi isso o que aconteceu com a pasta da ABC. E se a ABC descobriu que é assim tão fácil traficar produtos radioactivos usando o sistema de correio normal, acha que a Al-Qaeda não descobriu também?"

"Pois, tem razão."

"As hipóteses de intercepção são diminutas e sabemos que a Al-Qaeda faz de facto uso frequente de cargueiros para transportar armas. E por isso que a aquisição de urânio altamente enriquecido é o único ponto verdadeiramente difícil numa operação para levar a cabo um atentado nuclear. Se eles conseguirem vencer esse obstáculo e tiverem acesso ao material nuclear em quantidade suficiente, transportá-lo depois para o alvo e construir a bomba não passa de uma brincadeira de crianças!"

Tomás manteve os olhos fixos nas vivendas pelas quais
passavam, a mente a considerar as opções. m

"Portanto, não tem dúvidas de que a bomba já está montada?"

"Nenhumas", disse ela, enfática. "Eles podem ter perdido algum tempo com o transporte do urânio enriquecido para os Estados Unidos. Um barco não é muito veloz, não é verdade? Mas se possuem de facto o material e se o nosso homem recebeu a ordem de passar à acção há dois meses, isso é tempo mais do que suficiente para completar a operação. A bomba atómica da Al-Qaeda já deve estar pronta."

"Então porque não a detonaram ainda?"

O carro fez uma curva para a esquerda, Rebecca verificou mais uma vez a sua posição no mapa e abrandou, encostando ao passeio por detrás de um carro cinzento-escuro.

"Não sei", disse ela. "Mas o nosso terrorista sabe." Inspeccionou as vivendas em redor e, identificando os números dos portões, apontou para um telhado ao fundo da rua, a casa protegida por muros altos. "E ali."

"O quê?"

"O poiso do suspeito."

 

Os dois agentes do FBI estavam a comer um hot dog e a ouvir a música do rádio quando Rebecca e Tomás lhes entraram no carro. Depois de os dois recém-chegados se identificarem, os homens do Bureau fizeram-lhes um briefing com o ponto da situação.

"O Fireball está lá dentro", apontou Ted, o homem do FBI que parecia liderar o duo. "Quem?"

"E o nome de código que demos ao suspeito. Vimo-lo entrar há pouco com um saco de compras. Tirámos muitas fotografias."

"Posso vê-las?", pediu Tomás.

Uma máquina fotográfica com um zoom tão grande que parecia um canhão materializou-se nas mãos do companheiro de Ted. O agente do FBI virou para o português o pequeno ecrã que se encontrava nas costas da câmara.

"Está aqui."

As imagens apareceram no pequeno ecrã, mostrando sucessivas fotografias de Ahmed a carregar enormes sacos de compras; viam-se até as pontas de carcaças pontiagudas a espreitar pelos cantos.

"E ele", confirmou o historiador. "A barba está maior e dá a impressão de ter emagrecido, mas é realmente ele."

"A comer desta maneira, até admira que esteja mais magro", gracejou Ted.

"Ele encontra-se sozinho?"

"Assim parece." Indicou as redondezas. "Os nossos homens já andam a questionar os vizinhos e as lojas da zona, mas parece que nunca viram o Fireball com ninguém."

"E o urânio?", quis saber Rebecca. "Já o detectaram?"

O homem do FBI abanou a cabeça, a boca agora a mastigar os últimos pedaços de hot dog.

"Nope."

"O que fizeram vocês para o localizar?"

"Pouca coisa", reconheceu Ted. "Quando o Fireball saiu para as compras, passámos diante dos muros da casa com o contador geiger. Não acusou nenhuma radioactividade."

"Isso não quer dizer nada", insistiu Rebecca. "O urânio pode estar na cave da casa, protegido por folhas de chumbo. Se for o caso, o contador não o consegue detectar."

"É verdade."

"Então o que planeiam vocês fazer?"

"Daqui a pouco vamos rebentar o sistema eléctrico da casa. Temos as linhas telefónicas interceptadas e, quando^ele telefonar a pedir assistência, a chamada será desviada para uma unidade nossa. A unidade fará deslocar um carro até à vivenda e apresentar-se-á para reparar a suposta avaria e restaurar a electricidade."

"Ah, estou a perceber. Vão meter o contador geiger a funcionar lá dentro."

"Isso. E vamos plantar microfones por toda a casa."

"E se o contador não detectar nada? Lembre-se de que o material pode estar bem protegido..."

"Se nada detectarmos e se considerarmos que a busca ficou incompleta, esta madrugada, quando o Fireball estiver a dormir, vamos inserir uma unidade na casa para fazer uma busca mais pormenorizada."

Tomás ficou admirado com esta parte do plano.

"Isso não é arriscado?"

Ted voltou-se para trás e sorriu.

"Viver é arriscado."

 

O plano desenrolou-se com a eficiência de um relógio. Ao anoitecer, e conforme previsto, as luzes da casa extinguiram--se subitamente. Tomás viu um ténue clarão passar por uma janela; era decerto Ahmed que deambulava pela casa com uma vela na mão.

Uma hora depois chegou ao local uma carrinha com as palavras General Electric estampadas nas portas. Dois homens de fato-macaco azul-escuro saíram da carrinha com equipamento e foram bater ao portão. Após um breve compasso de espera, o clarão reapareceu e o portão abriu-se. Um vulto indistinto, que Tomás presumiu ser Ahmed, espreitou do portão e, após o que pareceu uma breve troca de palavras, os três desapareceram para lá dos muros da vivenda.

"Aqui vamos nós", murmurou Ted, desligando a música do rádio e aumentando o volume do aparelho de intercomunicações.

Acto contínuo, os dois homens do FBI retiraram as pistolas dos coldres ocultos por baixo dos casacos e puseram-se a verificar as balas.

"O que é isso?", admirou-se Tomás. "Vai haver confusão?"

"Se houver alguma anomalia, os nossos homens têm ordens para dar o alerta", disse Ted sem tirar os olhos da pistola. "Nesse caso teremos de assaltar de imediato a casa."

Passaram-se duas horas de angustiante expectativa. De quinze em quinze minutos os agentes nos diferentes carros do FBI que vigiavam a casa estabeleciam comunicação entre si para verificar se estava tudo bem, e o facto é que a resposta era sempre a mesma.

"Nada a assinalar."

 

De repente as luzes foram restabelecidas na casa e, minutos mais tarde, os dois homens de fato-macaco apareceram no portão e fizeram adeus a Ahmed, que os acompanhara. Meteram-se na carrinha e arrancaram dali.

Crrrrrr.

"Electric One, Electric One", chamou uma voz na intercomunicação. "O que descobriram vocês?"

"Nada, Big Mother", devolveu outra voz, presumivelmente de um dos supostos electricistas. "O mostrador do geiger apenas se animou levemente numa passagem pela cozinha, mas nada de especial. No resto da casa o geiger registou tudo normal."

"E a cave?"

"Não conseguimos ir lá." "Porquê?"

"Estava fechada e o Fireball disse-nos que, assim às escuras, não conseguia encontrar a chave. Pareceu-me um n,ouco nervoso e achámos melhor não insistir."

"E os microfones?"

"Instalámos tudo. Pode começar a testar."

"Okay, obrigado Electric One. Bom trabalho."

O diálogo foi acompanhado do carro onde se encontravam Rebecca e Tomás. Uma vez terminada a troca de palavras, Ted baixou o volume do aparelho de intercomunicações e voltou a ligar o rádio para sintonizar uma estação de jazz.

"E agora?", perguntou Tomás.

"Não ouviu o que disseram os nossos homens?" perguntou Ted com uma ponta de impaciência. "A busca não ficou completa. Não conseguiram ir à cave."

"Isso quer dizer que vocês vão avançar com uma operação esta madrugada?"

"Yep."

Estava escuro lá fora e Tomás começava a sentir alguma fome. Interrogou-se sobre se valeria a pena permanecerem ambos ali, mas, como Rebecca não dava sinal de se querer ir embora, decidiu não levantar o assunto e deixou-se ficar.

"Há alguma dúvida de que o Ahme... uh... o Fireball é uma ameaça à segurança dos Estados Unidos?", perguntou ele.

"Nenhuma", respondeu Rebecca. "Não temos neste momento a mínima dúvida de que é ele o homem da Al-Qaeda encarregado de fazer explodir uma bomba atómica no nosso país."

"Então porque não o prendem imediatamente?"

"Porque não sabemos onde está a bomba."

A resposta deixou Tomás algo desconcertado.

"Bem... se o prenderem ele pode dizer-vos, não é? Além do mais, se o deixam à solta ele pode escapar-se a qualquer momento e fazer explodir o engenho!"

Rebecca cravou-lhe os olhos azuis.

"O seu antigo aluno é um fundamentalista islâmico, não é?" "Suponho que sim."

"Então não vai revelar nada em tempo útil", disse ela. "Se o prendêssemos, isso apenas serviria para alertar os seus companheiros da Al-Qaeda de que lhes estamos no encalço. Isso só iria precipitar as coisas. Se a bomba não estiver nesta casa, parece-me óbvio que se encontra nas mãos de outros operacionais que a poderão fazer explodir mais depressa. Temos, por isso, de ser pacientes e dar os passos certos no momento exacto."

"Daí a importância do raide desta madrugada." A americana assentiu e virou os olhos na direcção da casa que todos vigiavam.

"Temos de encontrar a maldita bomba."

 

Três dias.

Tomás começava já a sentir-se farto da inacção. O raide feito três dias antes não dera em nada e o FBI limitava-se agora a vigiar Ahmed. Isso significava que havia três dias que passava quase todo o tempo fechado naquela amaldiçoada carrinha, estacionada num passeio a dois quarteirões da casa onde o seu antigo aluno se alojara.

A carrinha era enorme, com monitores e câmaras e tudo o que se pudesse imaginar; afinal, era ela a Big Mother, o centro de controlo daquela operação. Os três homens do FBI que a tripulavam, incluindo o chefe da operação, conversavam descontraidamente entre si e Rebecca, mesmo ao lado, tinha a cabeça encostada ao vidro opaco e parecia ter adormecido.

O tédio da espera estava a dar cabo de Tomás. O português sentia o corpo dorido por causa das más posições em que se sentava e buscava constantemente uma postura mais confor

tável, mas sem grande sucesso. Olhou para o The New York Times estendido no chão e pegou nele pela terceira vez; já o tinha lido de uma ponta à outra, mas alimentava a esperança de encontrar ali qualquer coisa nova que o entretivesse.

Ajeitou o jornal com grande fragor e passou os olhos pelos títulos. A notícia do dia centrava-se em suspeitas de irregularidades financeiras envolvendo um senador qualquer. Folheou o jornal e deteve-se numa outra notícia dando conta de mais um escândalo de insider trading em Wall Street, com a detenção de um qualquer investidor famoso de que Tomás nunca tinha ouvido falar. Seguiu em frente. Um título especulava sobre o teor do discurso do presidente dos Estados Unidos na Assembleia Geral da ONU, essa tarde. Já tinha lido tudo aquilo. Saltou para o desporto e quase gemeu por não encontrar mais uma vez referências ao futebol europeu. O jornal parecia antes mais excitado com um jogo qualquer entre os Cardinais e os Philadelphia Eagles para o campeonato do American Football Conference.

"Que seca!", grunhiu com frustração, atirando o jornal para o chão.

Suspirou e recostou-se no assento, preparando-se para mais umas horas de espera entediante. Olhou para o lado e constatou que Rebecca ainda dormitava. Os cabelos cor de trigo espalhavam-se-lhe pelo rosto lácteo, dando-lhe um certo ar selvagem. Era bonita. Sentiu ganas de a acordar e conversar com ela, mas dominou o impulso. A americana andava cansada e precisava de recuperar forças. Estendeu o braço e acariciou-lhe o rosto com carinho, os dedos a deslizarem pelo veludo quente da pele.

"Hmm", ronronou ela, sentindo o afago meigo.

Agora a vontade de Tomás não era apenas de conversar com Rebecca, mas de lhe beijar os lábios húmidos e entreabertos. Inclinou a face em direcção ao rosto sereno, mas no derradeiro instante dominou o impulso de se colar à boca dela e, em vez disso, deslizou para junto da orelha.

"Shhhh", soprou-lhe Tomás ao ouvido, a voz infinitamente suave. "Dorme."

Tut-tut.

Os três agentes do FBI no interior da carrinha deram»um salto, como se tivessem apanhado um choque eléctrico, e assumiram de imediato as suas posições.

"O telefone!", exclamou o chefe da operação, gesticulando para os subordinados. "Bob, localiza-me a chamada. Carl, põe-me o gravador a funcionar."

A súbita agitação despertou Rebecca. Estremunhada, a americana girou a cabeça em redor e, sem perceber o que estava a acontecer, voltou-se para o português.

"Tom, o que se passa?"

Tomás pôs o indicador diante da boca.

"Chiu!", disse. "Alguém está a ligar para o Ahmed. Deixa ouvir."

Tut-tut.

"Hélio?"

Era a voz de Ahmed a atender.

"Ibn Taymiyyab?"

"Nam."

"Surat-an-Nisaa, ayah arba'a wa sabim." Ao ouvir estas palavras, Ahmed fez uma pausa, como se digerisse o seu significado, e clamou. "Allah u akbarr Click.

Na carrinha, os agentes do FBI e os dois elementos da NEST pareciam congelados, os ouvidos atentos aos sons do telefonema que haviam interceptado.

"Fuck!", vociferou o chefe da equipa operacional do Bureau. "Os motberfuckers já desligaram." Virou a cabeça para o lado. "Bob, conseguiste localizar a chamada?"

Bob abanou a cabeça, os olhos presos em desânimo ao monitor.

"Nope", disse. "Foi demasiado curta. A única coisa que consegui determinar é que se tratou de uma ligação doméstica."

O chefe da equipa revirou os olhos.

"Já calculava." Virou-se para o segundo subordinado. "Está tudo gravado, Carl?" "Sim."

"Ao menos isso. Manda-me a gravação imediatamente para a Federal Plaza. Quero o tradutor de árabe em cima desse material o mais depressa possível."

Tomás pegou na pasta de Rebecca, levantou-se e aproximou-se do chefe de equipa, a mão mergulhada na pasta à procura do livro que sabia estar ali guardado.

"Desculpe."

O americano girou a cabeça para trás. "O que é?", perguntou com irritação. "Não vê que estamos a trabalhar, goddam it!?" "Eu sei árabe."

O chefe da equipa encarou-o com súbito interesse.

"Porque não disse logo?", perguntou, evidentemente sem esperar resposta. "O que disseram aqueles motberfuckers ao telefone? Alguma coisa importante?"

"Foi uma chamada estranha. O tipo que telefonou comunicou ao Fireball um versículo do Alcorão. O Fireball disse que Deus é grande e a chamada terminou."

O responsável do FBI afagou o queixo.

"Um versículo do Alcorão, eh?" Girou no banco rotativo e voltou-se para os seus homens. "Algum de vocês tem aí um exemplar do Alcorão?"

Como um aluno bem comportado, Tomás estendeu o braço e pôs diante do rosto do americano o livro que acabara de retirar da pasta de Rebecca.

"Está aqui", disse. "Será que podem passar a gravação da conversa, para eu tomar nota da referência corânica?"

Carl colocou nos altifalantes da carrinha a breve troca de palavras entre Ahmed e o desconhecido que lhe ligara. Quando o desconhecido disse "surat-an-Nisaa, ayab arbaa wa sabiin", o historiador registou a referência no seu bloco de notas e pôs-se de imediato a folhear o livro sagrado do islão.

"Surat-an-Nisaa... surat-an-Nisaa... é a sura 4", identificou. Localizou o capítulo corânico e foi à procura do versículo referenciado na gravação. "Ayah arba'a wa sabiin é versículo 74." A ponta do dedo deslizou pelos sucessivos versículos daquela sura. "Deixa cá ver... deixa cá ver... aqui está, versículo 74!" Afinou a voz e leu. "«Combatam na causa de Deus os que trocam a vida mundana pela outra! A esses, que combatam na senda de Deus e sejam mortos ou vencedores, dar--lhes-emos uma enorme recompensa.»"

Ficaram todos um instante a amadurecer estas palavras.

"Uma enorme recompensa?", perguntou Carl. "Não me digam que o tipo ganhou a lotaria!?"

Os homens do FBI desataram às gargalhadas no interior da carrinha, mas a dupla da NEST não os acompanhou. Ignorando a galhofa em redor, Tomás releu em silêncio o versículo, buscando o seu verdadeiro sentido.

"Isto é sério."

"Porque diz isso?", quis saber Rebecca, intuindo uma ameaça escondida.

"Em primeiro lugar, repare no início do versículo: «Combatam na causa de Deus.» No original do Alcorão em árabe, a palavra combate deve ler-se jibad. Isto é, pois, uma ordem divina para que se faça a jibad. A seguir vem esta expressão estranha: «os que trocam a vida mundana pela outra». No original em árabe, a vida mundana é esta vida e a outra é a vida depois da morte, no Paraíso. Ou seja, com estas palavras Alá está a prometer o Paraíso aos muçulmanos que morram na jibad. Esta ideia é reforçada pela segunda parte do versículo: «A esses, que combatam na senda de Deus e sejam mortos ou vencedores, dar-lhes-emos uma enorme recompensa.» A recompensa para os que morrem é, como se percebe pela referência inicial à outra vida, o Paraíso."

"Então vamos lá a ver, como descodifica você esse versículo?"

"Trata-se de uma ordem de Alá aos crentes, dizendo-lhes que façam a jibad e prometendo o Paraíso aos shabid que morrerem", disse Tomás. "É isso o que este versículo quer dizer."

Os homens do FBI, que se calaram para ouvir o historiador, abanaram a cabeça quase em uníssono.

"Eles acreditam mesmo nisso?", interrogou-se o chefe da equipa. "Que idiotas!"

Tomás releu mais uma vez o versículo, situando-o no contexto da operação que a Al-Qaeda tinha em curso.

"Isto é uma ordem operacional", sentenciou. "O Fireball recebeu uma instrução para se preparar para o martírio e passar à acção."

"Que está para aí a dizer?"

Convicto de que tinha interpretado tudo o que havia a interpretar, o português fechou o Alcorão e encarou o responsável do Bureau.

"Prepare os seus homens." "Para quê?"

Sem perder mais tempo, Tomás pegou nas suas coisas, fez sinal a Rebecca de que o seguisse, abriu a porta da carrinha e saltou para a rua. Antes de desaparecer, porém, lançou da rua um derradeiro olhar para o homem do FBI.

"O atentado vai ser hoje."

 

O portão da casa abriu-se lentamente.

Crrrrrr.

"Standby."

Instantes depois de a voz do chefe operacional soar pela intercomunicação rádio do FBI, um Pontiac verde envelhecido emergiu no portão. Instalados nos assentos de trás do carro de Ted, Tomás e Rebecca viram os homens do Bureau disparar uma rajada de fotografias sobre a viatura em marcha.

"É ele", confirmou Ted, o olho colado à câmara com zoom. "O motherfucker está a sair."

Crrrrrr.

"Fireball em movimento. Sierra One, podes pegar nele?" Ted colou o microfone à boca e respondeu. "Roger, Big Mother", confirmou. "Sierra One em movimento."

O Pontiac passou por eles e o carro de Ted, que tinha ligado a ignição logo após a ordem de standby, arrancou com

suavidade e pôs-se no encalço de Ahmed. Era uma parte muito delicada da operação, com vários automóveis do FBI já em marcha ou a aguardar a passagem do suspeito em diferentes pontos dos itinerários possíveis, numa espécie de coreografia improvisada.

Para evitar denunciar as suas intenções, a viatura onde Tomás se encontrava seguia Ahmed com alguma cautela, mantendo quase duzentos metros de distância.

Crrrrrr.

"Sierra Two", chamou o chefe da equipa. "Ultrapassa o Fireball e faz uma verificação com o geiger."

"Roger, Big Mother. Sierra Two em movimento."

Um carro azul arrancou lá de trás, como se estivesse apressado, e ultrapassou a viatura onde Tomás se encontrava. Depois aproximou-se do Pontiac de Ahmed e ultrapassou-o também, mas sem muita pressa. A seguir virou à esquerda e desapareceu.

Crrrrrr.

"Sierra Two aqui. O geiger deu negativo."

"Tem a certeza, Sierra Two}"

"Roger, Big Mother. O geiger deu negativo."

Ted espreitou de relance pelo espelho retrovisor para os seus convidados da NEST.

"A medição não detectou nenhuma radioactividade no carro", disse. "O tipo não leva a bomba."

"E porque ela já deve estar posicionada", observou Rebecca, os dedos a tamborilarem pensativamente na janela do carro. "E estranho, não é?" Olhou para Tomás com a expressão de quem se sente baralhado. "Por que motivo não fizeram eles explodir a bomba logo que a colocaram no sítio? Não faz sentido..."

"Talvez ela ainda não esteja instalada no alvo", disse Tomás. "Às tantas o Ahmed vai agora buscá-la."

"Só pode ser isso..."

Continuavam a seguir pelas ruas de New Jersey e a operação de vigilância decorria sem novidades. A certa altura o Pontiac aproximou-se de uma rotunda e Ted preparou-se para o problema.

Crrrrrr.

"Aproximamo-nos de Blue Three." Blue Three era a rotunda. "Mantenha em Blue Three."

O Pontiac meteu-se na rotunda e Ted tentou acompanhado, mas o tráfego intensificou-se de repente, impedindo-o de avançar de imediato. Percebeu que teria de ser outro automóvel a assumir a cauda do suspeito.

"Fuck!", praguejou Ted, dando uma palmada frustrada no volante. Sem se desconcentrar, seguiu com os olhos o movimento do carro verde que contornava a rotunda, ao mesmo tempo que, com um gesto rápido, pegava no microfone da intercomunicação rádio e se mantinha atento à saída da viatura suspeita. "Fireball na Blue Three." Viu-o virar à direita e sair da rotunda. "Tomou dois." O Pontiac tinha tomado a segunda saída. "Tomou dois. Quem pode?"

Uma nova voz respondeu.

"Sierra Five, tenho o Fireball."

Ao ouvir uma outra viatura assumir o controlo, Ted descontraiu-se e contornou tranquilamente a rotunda. Identificou a rota escolhida por Ahmed e, com um sorriso de satisfação, virou à direita e foi dar a uma rua paralela. Meteu por ela e acelerou, num esforço para assumir uma nova posição mais adiante.

"Onde vamos?", perguntou Tomás, sem perceber os pormenores da manobra.

"Vamos esperá-lo lá mais à frente."

"Lá à frente como? Vocês já conhecem o itinerário que ele vai seguir?"

"Considerando a estrada que ele tomou depois da rotunda, até já percebemos qual é o destino." "Ai sim?"

Ted apontou para a floresta de betão que se erguia do outro lado do rio, o topo dos arranha-céus iluminados ptlas aberturas soalheiras, as ruas mergulhadas na sombra.

"Manhattan."

 

A boca do Lincoln Tunnel ia engolindo tráfego como um monstro sôfrego. Dentro do carro do FBI o grupo permanecia em silêncio, acompanhando pelas intercomunicações a progressão do automóvel de Ahmed e à espera de ver o Pontiac verde aparecer a todo o momento da Route 495.

"Está atrasado", observou Tomás, impaciente.

Ninguém respondeu. Ted manteve-se tranquilamente a mastigar a sua chewing gum, os olhos colados ao trânsito ininterrupto.

"Se ele se dirige para Manhattan é porque a bomba já está posicionada", observou Rebecca. "Não faz sentido que ele vá a Manhattan buscar a bomba para a instalar noutro sítio qualquer. Não existe nas redondezas alvo com um perfil mais elevado do que Manhattan. O atentado tem de ser aqui."

"Tem razão", admitiu Tomás. "Mas se assim é, porque diabo não a rebentaram já? De que estão eles à espera?" A americana encolheu os ombros. "Beats me."

Ted mantinha a atenção fixa no tráfego e fez-lhes sinal de que se calassem. "Ali vem ele!"

Ligou a ignição e esperou que o carro verde se aproximasse. Quando Ahmed passou, arrancou e posicionou-se atrás, tendo o cuidado de manter uma viatura entre os dois, uma medida de precaução para se fazer menos notado.

"Sierra One em movimento", comunicou pelo microfone.

"Roger, Sierra One", confirmou a viatura que até ali mantinha o contacto com o suspeito. "Sierra Five a passar o Fireball para o esperar na 30th West."

Mal acabou esta comunicação, o outro carro meteu-se pela faixa exclusiva para transportes públicos e ultrapassou em velocidade a lenta fila de trânsito no sentido de Manhattan. Tomás quase teve inveja de o ver acelerar daquela maneira, uma vez que o tráfego estava completamente embatucado no acesso ao túnel. A progressão revelou-se ainda mais vagarosa do que havia calculado, com as viaturas a avançarem num pára-arranca interminável.

Por fim, conquistando caminho metro a metro, os automóveis de Ahmed e de Ted percorreram todo o Lincoln Tunnel e desembocaram em Manhattan. O português consultou o relógio; só aquele curto troço entre New Jersey e a ilha tinha levado trinta minutos.

"Está um engarrafamento incrível", constatou Tomás. "É sempre assim?"

"O tráfego em Manhattan nunca foi simples", respondeu Ted. "Mas hoje o trânsito na cidade encontra-se muito condicionado pelas medidas de segurança, o que tem dificultado as coisas."

O pisca direito do Pontiac verde acendeu-se de repente e o carro virou no sentido que indicara. Ted invadiu de imediato a linha exclusiva para os transportes públicos e ultrapassou a viatura diante dele, pondo-se no encalço de Ahmed. O Pontiac meteu pelo emaranhado de ruelas, fugindo assim ao trânsito, e internou-se por Manhattan em direcção a leste, com os homens do Bureau sempre atrás.

 

Quatro quarteirões adiante, a viatura verde virou para o que parecia ser um túnel e desapareceu no interior. Os tripulantes do carro do FBI identificaram uma tabuleta azul com o P de Parking.

"Stop, stop!", ordenou Ted ao microfone. "Near side."

Era uma ordem para os automóveis do FBI que seguiam lá atrás pararem. Mas o próprio Ted nem sequer abrandou, optando antes por seguir em frente, não fosse o suspeito estar a vigiar o trânsito para verificar se alguém o seguira.

Crrrrrr.

"Sierra One, o que se passa?"

"O Fireball meteu-se no parque de estacionamento", explicou Ted, parando mais adiante. "Sierra Two e Sierra Three, fiquem onde estão. Sierra Four e Sierra Five, identifiquem outras saídas deste parque. Atenção que Sierra One vai ficar com um só homem porque eu e os nossos dois convidados vamos tornar-nos Foxtrot One."

"Porquê, Sierra One}"

"O Fireball pode colocar-se foxtrot."

"Roger that."

A um sinal de Ted, Rebecca e Tomás saltaram do carro e caminharam pelo passeio em direcção ao parque de estacionamento.

"O que é isso de o Fireball colocar-se foxtrot}", quis saber Tomás, a curiosidade sempre atiçada pelos códigos, quaisquer que eles fossem. "Que significa foxtrot}"

"Há uma forte probabilidade de o Fireball sair do carro", retorquiu o homem do FBI. "Foxtrot significa peão. Não se esqueça de que o nosso homem entrou num parking. Só costuma fazer isso quem quer estacionar um carro, não é verdade?"

Penetraram no parque de estacionamento com fingida descontracção, os olhos atentos a qualquer movimento. Vasculharam o primeiro piso e não detectaram nada de anormal. Meteram pela escada para ascender ao segundo piso, mas ouviram o som dos passos de alguém a descer e recuaram, ocultando-se atrás de um pilar.

Um homem de jeans e camisa verde emergiu da sombra das escadas e seguiu na direcção da saída.

"É ele!", identificou Tomás.

 

Assim que Ahmed cruzou a porta do parking e saiu para a rua, os três apressaram-se a abandonar o parque de estacionamento e a segui-lo à distância, conversando entre si da maneira mais insuspeita que conseguiram simular. O muçulmano caminhava cinquenta metros adiante de uma forma algo hirta, como se estivesse tenso.

"Estamos ao pé da Port Authority", constatou Ted, observando o grande terminal ali próximo.

Tomás ignorou a referência; preferia manter a atenção concentrada no seu antigo aluno.

"Já viram a cor da camisa dele?", perguntou.

Rebecca fez um trejeito indiferente com a boca.

"E verde", constatou. "O que tem isso de especial? Que eu saiba, o verde é a cor do islão. Sendo ele muçulmano..."

"E verdade", confirmou o português. "Mas, para os muçulmanos, o verde é também a cor do Paraíso. Claramente o nosso homem acredita que está a caminhar para o Paraíso."

Ted soltou uma gargalhada.

"Nova Iorque? O Paraíso? Essa é boa!"

Dobraram a esquina e Tomás viu cinco polícias a cavalo à sua esquerda e mais três à direita, todos de capacete. Ao fundo da rua identificou dois carros com o logótipo do NYPD estampado nas portas e ouviu várias sirenes a soar à distância. Olhou para cima e viu helicópteros a percorrer o céu de Manhattan. Enquanto observava os aparelhos a zunir, o seu olhar prendeu-se quase por acidente »um vfllto posicionado num terraço com o que parecia ser uma espingarda de mira telescópica. Era um atirador especial da polícia.

"Oiçam lá, vocês não estarão a exagerar um bocadinho?", perguntou o português, quase chocado com tanto aparato. "Porquê?", admirou-se Ted.

"Ainda pergunta porquê?" Fez um gesto na direcção dos polícias a cavalo. "Já viu o número de guardas que colocaram ostensivamente na rua? Acha isto normal? Pensa que o nosso homem é parvo e não vai desconfiar?"

O agente do FBI deitou um olhar desinteressado ao dispositivo policial.

"Claro que isto é normal."

"Está a gozar comigo?", perguntou Tomás. "Acha normal toda esta... esta catrefada de polícias? Acha que o nosso suspeito não vai topar que o estão a vigiar?"

Ted riu-se.

"O quê? Você julga que isto é tudo por causa do Fireball} Não, man, é a Assembleia Geral da ONU. Todos os anos é a mesma cowboyada aqui em Manhattan. Vêm chefes de Estado e de governo de todo o mundo discursar na Assembleia Geral e espalham o pandemônio na cidade. A vida aqui é um inferno nestas duas semanas."

"Quando há Assembleia Geral, isto é todos os dias assim?"

"Bem, hoje está pior, é verdade. No fim de contas, vem cá

o presidente, não é verdade? Quando ele aparece, o aparato de segurança é sempre um pouco mais espectacular." "Qual presidente?"

"Qual haveria de ser? O dos Estados Unidos, claro."

"O presidente dos Estados Unidos vai discursar diante da Assembleia Geral da ONU?"

Ted assentiu.

"Esta tarde."

"Ele... ele já cá está?"

O homem do FBI consultou o relógio.

"Deve estar, deve. O discurso está previsto para daqui a quinze minutos."

A notícia deixou Tomás embasbacado. Estancou a meio do passeio, os olhos fixos na camisa verde que se movimentava cinquenta metros adiante, a luz da compreensão iluminando-o enfim. Lera nos jornais a notícia do discurso na Assembleia Geral e, grande burro!, nunca fizera a relação entre as coisas.

Mas era tudo tão claro!

"É isso!", quase gritou, esmurrando a palma da mão. "É isso!"

"O quê?", assustou-se Rebecca. "O que aconteceu?" O historiador apontou num frenesim para o vulto distante de Ahmed, os olhos arregalados no horror da compreensão. "Ele está à espera do discurso! Ele está à espera do discurso! "O quê?"

"A Al-Qaeda vai fazer explodir a bomba atómica quando o presidente estiver a falar na ONU!"

 

"Foxtrot One para Big Mother."

Considerando as circunstâncias, Ted nem sequer fez um esforço para disfarçar quando efectuou a chamada pelo intercomunicador rádio portátil que trazia no cinto.

Crrrrrr.

"O que é, Foxtrot One}"

"Mandem evacuar Manhattan e retirem imediatamente o presidente da sede das Nações Unidas", disse com uma calma gelada. "Ponham os contadores geiger a funcionar no edifício e também em todos os quarteirões vizinhos. Vasculhem tudo de uma ponta à outra."

Fez-se um silêncio perplexo no espectro de comunicações.

"Porquê, Foxtrot One} O que aconteceu?"

"O presidente está em Manhattan! O Fireball também está em Manhattan! Existe uma elevada probabilidade de que ele faça detonar um engenho nuclear ainda hoje! Preciso de explicar mais alguma coisa?"

"Roger, Foxtrot One."

Observaram a figura de Ahmed a cruzar mais uma avenida no meio da multidão, neste caso a Quinta Avenida. Seguiam pela 42nd Street e as linhas clássicas da Biblioteca de Nova Iorque ficaram para trás. Não havia dúvidas de que o seu antigo aluno se encaminhava na direcção da sede da ONU, no outro lado da cidade.

"Considerando o que se passa, não seria mais aconselhável interceptá-lo já?", perguntou Tomás, nervoso com tudo aquilo. "Era capaz de ser mais seguro, não acham?"

"E a bomba?", quis saber Rebecca. "Onde está a bomba?"

"Isso vemos depois."

"Não pode ser assim", disse ela. "Se neutralizarmos o Fireball, a ameaça mantém-se. Parece-me altamente provável que a bomba se encontre na posse dos seus capangas. Eles não hesitarão em fazê-la explodir se o Fireball não aparecer. A nossa prioridade é, pois, localizar a bomba. Só depois de sabermos onde ela está poderemos avançar." Indicou o vulto verde de Ahmed. "De qualquer modo, o Fireball ainda não é uma verdadeira ameaça. Não leva a bomba com ele e por isso julgo que ainda dispomos de algum tempo."

Tomás espreitou nervosamente o relógio.

"O presidente começa a discursar dentro de sete minutos." Olhou para Ted. "Para além dele, quem mais está cá?"

"Deixe cá ver... temos hoje o presidente do Brasil, o primeiro-ministro espanhol, o primeiro-ministro italiano... o presidente do Irão, o primeiro-ministro de..."

"O do Irão também?"

Reflectindo sobre a presença do chefe de Estado iraniano, Ted sentiu-se subitamente encorajado.

"Pois é, está cá o iraniano! Isso é bom, não acham? O tipo é fundamentalista. Se ele também se encontra cá, a

Al-Qaeda não se atreverá a fazer explodir a bomba hoje, pois não?"

"A Al-Qaeda é sunita e considera que os xiitas são infiéis", explicou o historiador. "O presidente iraniano é xiita, logo é um infiel. A sua morte constitui, pois, um excelente bónus para a Al-Qaeda."

Ted abanou a cabeça e voltou-se para leste, olhando*na direcção da zona onde se encontrava a sede das Nações Unidas.

"E a ONU?", perguntou. "Eles nem ao menos respeitam a ONU?"

Tomás sorriu sem vontade.

"Respeitar a ONU? A Al-Qaeda já lançou ataques violentíssimos contra a ONU no Afeganistão, no Iraque, na Argélia, na Somália, no Sudão, no Líbano..."

"Mas porquê? As Nações Unidas são uma organização que junta todos os povos, que diabo! Até os muçulmanos estão lá! Como podem eles atacar a ONU?"

"A Al-Qaeda acusa a ONU de crimes contra o islão, incluindo o reconhecimento da existência de Israel", explicou Tomás. "Mas o principal problema é teológico."

"Está a gozar."

"A sério. A Carta da ONU estabelece a igualdade de todas as religiões e os muçulmanos não aceitam isso, uma vez que Maomé declarou a superioridade do islão. A declaração da igualdade das religiões desmente Maomé e isso é, consequentemente, algo que eles consideram que faz da ONU uma organização anti-islâmica."

Ted arregalou os olhos, perplexo com aquilo que para ele era uma total novidade.

"Mas... mas a liberdade de religião é um direito humano fundamental!"

"Isso achamos nós, mas não acham muitos muçulmanos", observou Tomás. "Aliás, o mundo islâmico levantou grandes objecções à Declaração Universal dos Direitos Humanos, por exemplo, e essas objecções não se limitam aos fundamentalistas. Se for a ver bem, muitos países muçulmanos nem sequer aceitam essa declaração porque ela estabelece o direito de as pessoas mudarem de religião conforme a sua livre vontade. Ora isso colide frontalmente com o crime de apostasia estabelecido pelo Alcorão e pelo Profeta e que prevê a pena de morte para quem renegar o islão. Além do mais, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece a total igualdade de direitos entre homens e mulheres e entre pessoas de qualquer religião, o que também vai contra as leis do islão. Daí que muitos muçulmanos, e não só os fundamentalistas, achem que essa declaração é anti-islâmica."

O homem do FBI grunhiu de frustração.

"Nem sei o que diga!"

 

O edifício das Nações Unidas encontrava-se já a uns meros quatro quarteirões de distância e Tomás vislumbrou na avenida seguinte, a Lexington Avenue, uma barreira metálica que bloqueava o acesso à continuação da 42nd. As ruas pareciam fechadas ao trânsito para além da barreira.

Crrrrrr.

"Big Mother para Foxtrot One." "O que é, Big Mother}"

"Está fora de questão a evacuação de Manhattan. Não há tempo para isso." "E o presidente?"

"Também não o podemos retirar da sede da ONU. Tecnicamente o edifício não é território americano, pelo que o presidente não tem prioridade sobre os outros governantes que lá estão. E estamos a falar de mais de trinta governantes. Teríamos de os retirar a todos ao mesmo tempo, o que não é possível em poucos minutos."

"O quê?", escandalizou-se Ted, perdendo a calma pela primeira vez. "Vocês estão loucos? O presidente tem de sair imediatamente de Manhattan!"

"Lamento, Foxtrot One. A decisão foi dele e é fiflal. Vocês têm mesmo de localizar essa bomba e de a neutralizar."

O homem do FBI teve vontade de atirar o intercomunicador para o chão, mas conteve-se. O momento era demasiado grave para que se desse ao luxo de ter um ataque de nervos. Respirou fundo e recuperou o autocontrole

"Os contadores geiger já detectaram alguma coisa?"

"A sede da ONU está limpa, Foxtrot One. E as ruas imediatamente em torno do edifício também. A busca está agora a ser alargada."

Ted guardou o intercomunicador portátil no cinto e consultou mais uma vez o relógio.

"Fuck!", praguejou. "Três minutos para o presidente começar a falar. Se calhar vamos mesmo ter de interceptar o Fireball."

"Já disse que primeiro precisamos de localizar a bomba", repetiu Rebecca, começando já a sentir-se cansada de frisar aquele ponto. "Quantas vezes tenho de vos lembrar que o objectivo último não é neutralizar o Fireball, mas neutralizar a bomba?"

O lado de lá da Lexington Avenue estava cheio de polícias e os vultos dos franco-atiradores formigavam nas varandas e terraços dos prédios; os helicópteros zumbiam por toda a parte e as sirenes não paravam de se fazer ouvir. Não havia dúvidas, a zona circundante da sede da ONU era naquele dia o local mais bem vigiado do planeta. Diante de tão espectacular

aparato, parecia uma loucura haver alguém que sonhasse desencadear um atentado naquele local e naqueles dias, mas pelos vistos nada daquilo impressionava a Al-Qaeda.

A atenção de Tomás voltou-se para a figura solitária de Ahmed, que caminhava agora ao longo da Lexington Avenue em direcção a norte e passava ao lado dos magotes de polícias e de carros-patrulha que protegiam o acesso à zona da sede da ONU. Estaria o seu antigo aluno a explorar o terreno? O historiador pôs-se a questionar todas as ideias que até ali dava por certas. Como ter a certeza de que o atentado estava iminente? E se, na verdade, tudo aquilo não passasse de...

Caiu.

Sem que ninguém o esperasse, Ahmed pareceu tropeçar de repente e estatelou-se desamparado no chão.

Os três perseguidores cravaram os olhos no corpo do homem que tombara no passeio do outro lado da avenida, tentando perceber o que se passara. O suspeito caíra e, pelos vistos, não se levantava.

Estaria bem?

Tomás e os dois companheiros mantiveram-se atentos ao vulto tombado, esperando que ele se erguesse, que se mexesse, que fizesse alguma coisa. Mas o corpo estendido no passeio permanecia quieto e os três chegaram à conclusão inevitável.

Ahmed fora abatido.

 

"Foxtrot One para Big Mother."

Ted estava de novo agarrado ao intercomunicador portátil, fervendo de irritação e sentindo um nervosismo crescente apossar-se dele.

"O que é, Foxtrot One}"

"O Fireball está down. Quem diabo disparou sobre ele?"

"Já vou verificar, Foxtrot One", foi a resposta. "Standby."

Ficaram os três na esquina da Lexington Avenue com a 43rd, junto ao edifício da Chrysler, a observar o corpo inerte de Ahmed. Viram alguns polícias a aproximarem-se e um homem de bata branca a sair de uma ambulância ali parada e a ajoelhar-se diante do vulto verde, verificando-lhe os sinais vitais. O homem de bata branca, obviamente um médico, começou a falar com os polícias; parecia evidente que lhes dava instruções sobre como proceder.

Quando terminaram de falar e gesticular, dois guardas pegaram no corpo e levaram-no para a ambulância, uma

carrinha branca com a cruz vermelha e o nome Bellevue Hospital por baixo. Ahmed foi deitado numa maca e introduzido na viatura pelas portas traseiras, que logo se fecharam.

"Se calhar é melhor irmos lá ver o que se passa", disse Tomás, enervado por ter perdido o contacto visual com Ahmed.

"E se o tipo volta a si?", perguntou Rebecca. "Vê-nos a fazer perguntas ao médico e somos desmascarados. Não, se calhar é melhor ficarmos quietos. Mais vale pôr o FBI a falar com os responsáveis do hospital e eles que questionem o médico pelos canais normais."

Ted assentiu com a cabeça, aceitando a sugestão, e puxou o intercomunicador para a boca.

"Foxtrot One para Big Motber. Será que pode verificar uma coisa, por favor?"

"Diga, Foxtrot One."

"O Fireball foi metido numa ambulância do Bellevue Hospital estacionada junto ao edifício da Chrysler. Será que o hospital pode indagar discretamente junto do médico da ambulância o que se passa com o seu novo paciente?"

"Roger, Foxtrot One."

O homem do FBI passeou os olhos pelo topo dos prédios. O recorte longínquo de um franco-atirador lembrou-lhe que havia ainda uma resposta para ser dada, pelo que voltou a colar o intercomunicador à boca.

"A propósito, Big Mother. Já se sabe quem foi o idiota que abriu fogo sobre o Fireball?"

"Negativo", foi a resposta. "Ainda estamos a tentar perceber o que se passou, mas até agora ninguém se acusou. Quem quer que tenha disparado está a fechar-se em copas. Provavelmente foi um franco-atirador mais nervoso, sei lá..."

"Não me admirava nada", resmungou Ted entre dentes, baixando devagar o intercomunicador enquanto abanava a cabeça. "Recrutaram uma série de novatos e está-se mesmo a ver que os tipos já fizeram merda." Voltou a colocar o intercomunicador diante da boca e carregou no botão. "Big Motber, já há notícias da inspecção com os geiger?"

"Afirmativo, Foxtrot One. Pusemos várias viaturas com contadores a percorrer toda a zona e também o resto da cidade. A busca está quase completa."

"E então?"

"Negativo. Não foram detectados sinais de radioactividade em parte alguma de Manhattan. Está tudo limpo. Pelos vistos não há nenhuma bomba, Foxtrot One."

Ted, Tomás e Rebecca entreolharam-se, sem saber o que fazer nem dizer. Os eventos pareciam tomar rumos imprevisíveis; o que era certo num momento tornava-se improvável no instante seguinte. Parecia que cavalgavam uma montanha--russa de emoções.

Num gesto que parecia ter-se tornado um tique nervoso, o historiador português espreitou o relógio pela enésima vez.

"Está na hora."

O homem do FBI recuou alguns passos e plantou-se diante da montra de uma loja de electrodomésticos a ver um televisor sintonizado na CNN. Tomás e Rebecca juntaram-se a ele. A estação de notícias transmitia em directo do interior da sede da ONU e mostrava um homem de fato azul-escuro e gravata vermelha subir tranquilamente ao pódio de mármore verde para fazer o seu discurso.

Era o presidente dos Estados Unidos.

 

Crrrrrr.

"Big Motber para Foxtrot One." "O que é, Big Motber"

"Você deve ter-se enganado quanto à ambulância."

"Enganado como?"

"O Bellevue Hospital diz que não tem nenhuma ambulância em Lexington. Aliás, nem sequer dispõe de qualquer ambulância nessa zona. Pode verificar melhor?

Os olhos de Ted fixaram-se no veículo branco de emergência médica, estacionado do outro lado da avenida. As portas da ambulância apresentavam, de facto, a inscrição Bellevue Hospital.

"Desculpe, Big Motber. Mas esta ambulância é mesmo do Bellevue Hospital, não há dúvida nenhuma quanto a isso."

"Negativo, Foxtrot One. O hospital diz que não tem nenhuma ambulância na zona."

Ted não desistiu.

"Eles estão enganados!", insistiu. "Eu estou a ver à minha frente..."

Num gesto impulsivo, Tomás, que seguia a conversa com crescente atenção, arrancou o intercomunicador portátil das mãos do homem do FBI e falou directamente com o comando da operação.

"Big Motber, aqui Tomás Noronha, da NEST", apresentou-se. "Estou a acompanhar o Foxtrot One e precisava de saber uma coisa."

A resposta tardou uns segundos; dava a impressão de que o comandante da operação estava a ponderar se iria falar com um amador estrangeiro que não pertencia ao Bureau. A gravidade das circunstâncias, porém, acabou por ditar a sua decisão.

"Go abead, mister Noronha."

"Vocês já passaram os contadores geiger por toda a cidade?" "Afirmativo."

"E eles não registaram nenhuma radioactividade em parte alguma?"

"Exacto. Não há nada."

"Estão-me a dizer que em momento algum a agulha do contador geiger registou qualquer actividade? Nada de nada?"

"Sim... quer dizer, há sempre circunstâncias em que o geiger acusa a existência de radioactividade, não é verdade?"

"Que circunstâncias?"

"Olhe, quando passa ao pé de hospitais, por exemplo.*Os hospitais estão cheios de equipamento radioactivo. Sempre que um contador geiger é apontado para algum hospital, a agulha mexe-se. Mas isso é normal e tem de ser descontado."

Tomás começou a sentir o coração bater mais e mais depressa. Os olhos arregalaram-se-lhe de terror e teve tanto medo da pergunta seguinte que esteve quase para não a fazer.

Mas fez.

"E... e as ambulâncias?" "E a mesma coisa."

Tomás olhou para Ted e para Rebecca, e os três caíram em si. As cabeças convergiram para a ambulância estacionada na base do edifício Chrysler e os rostos imobilizaram-se por um longo segundo, interpretando o que viam de um modo totalmente novo, o pavor tombando sobre eles como uma sombra.

A ambulância era a bomba atómica.

 

Como se tivessem recebido nesse instante um choque eléctrico, os três largaram a correr para atravessar a avenida, Ted e Rebecca a sacarem as suas pistolas, Tomás de mãos vazias mas a correr também, a mente dos três fixada obsessivamente na mesma ideia, na mesma descoberta, no mesmo horror.

A ambulância era a bomba atómica.

Acercaram-se do veículo já sem se preocuparem com manter-se furtivos; era tudo demasiado urgente para subtilezas. O homem do FBI agarrou o manipulo e puxou-o, de modo a abrir a porta traseira, mas ela manteve-se fechada. Estava trancada.

Sem hesitar, Ted apontou a pistola à fechadura, segurou o pulso para travar o coice da arma e carregou no gatilho. Pah.

O brutal estampido do disparo ecoou pelos tímpanos de Tomás e lançou o caos em redor. Os polícias que faziam a

segurança naquela zona aperceberam-se de que algo de anormal se passava, sacaram das armas e começaram a gritar. "Freeze!"

Mas Ted ignorou-os.

A fechadura da ambulância estava estilhaçada e ele puxou a porta, que se abriu de imediato, revelando dois homens no interior do veículo, um de camisa verde ajoelhado sobre alguma coisa, o de bata branca com uma arma na mão.

Pab.

Pab.

Ted abateu o homem da bata branca, que se dobrou em dois e caiu para a rua. O homem de verde, evidentemente Ahmed, sacou de uma pistola e apontou-a para o exterior.

Crack-crack-crack-crack-crack.

Uma chuva de balas abateu-se sobre Ted, que caiu desamparado no chão. Eram os polícias em redor a abrir fogo sobre ele, pensando que o homem do FBI acabara de balear um médico indefeso.

"CIA!", gritou Rebecca para os polícias. "Parem o fogo!"

Os polícias hesitaram e suspenderam os disparos.

Pab.

Um tiro partiu do interior da ambulância e Tomás rolou pelo chão, fulminado pelo disparo.

Acto contínuo Rebecca atirou-se ao asfalto e, deitada de barriga para baixo, apontou para Ahmed, que já virava a arma fumegante na direcção dela.

Pab.

Pab.

Ahmed tombou no interior da ambulância. Crack-crack-crack-crack-crack.

Dessa vez a polícia abriu fogo sobre Rebecca, mas como ela estava estendida no chão acabou por se revelar um alvo menos exposto. Além disso largou de imediato a pistola e protegeu a cabeça. Vendo-a indefesa, os guardas suspenderam os disparos e mantiveram as armas apontadas para toda a gente, mesmo os que haviam sido atingidos.

"Ninguém se mexe!", gritou um dos polícias. "Mantenham-se deitados no chão! Quem se levantar ou fizer alguma coisa será abatido!"

"CIA!", repetiu ela. "Sou da CIA! Há uma bomba na ambulância! Temos de a desactivar!"

Os polícias ficaram desconcertados com a informação. Olharam para a ambulância e depois para o mais graduado do grupo, um barrigudo que tentava ainda decidir o que fazer.

"Você é da CIA?"

"Sim. Deixem-me ir ver a ambulância. Está lá uma bomba!" "Esteja quieta!", ordenou o polícia barrigudo. "Tem algum cartão que a identifique?" "Sim."

"Com movimentos muito lentos, tire-o e mostre-nos. Mas, atenção, têm de ser mesmo movimentos muito lentos. Se fizer algum gesto brusco, abrimos fogo."

A mão ensanguentada de Rebecca mergulhou devagar no casaco e extraiu um cartão, que exibiu na direcção dos guardas. Os homens do NYPD aproximaram-se com cuidado, curvados e atentos, as armas sempre apontadas. Um deles inclinou-se com lentidão e pegou no cartão. O pequeno rectângulo plastificado apresentava a fotografia dela e o círculo com a águia americana no centro e as palavras Central Intelligence Agency em redor.

"Com os diabos, ela é mesmo da CIA!", constatou o guarda, mostrando o cartão ao mais graduado.

"Posso levantar-me?", perguntou Rebecca.

O superior hierárquico ponderou o pedido por um instan-
te. Olhou para o cartão, depois para Rebecca, de novo para o cartão e mais uma vez para Rebecca. Não encontrando moti-
vos para duvidar da autenticidade do documento, acabou por fazer sinal afirmativo com a cabeça. O polícia que pegara no cartão estendeu a mão e ajudou-a a erguer-se.

A americana sentia-se combalida e teve dificuldade em endireitar-se. Havia sido atingida por duas balas no braço direito e a manga da camisa estava molhada de encarnado. Olhou em redor e viu Tomás e Ted deitados no alcatrão com pequenas poças de sangue em redor.

"Meu Deus!"

"A senhora conhece esta gente?"

"Eles estão comigo", disse ela, aproximando-se o mais depressa que pôde do português. Ajoelhou-se junto dele e inclinou a cabeça cor de palha para lhe falar ao ouvido. "Tom, você está bem?"

Tomás gemeu e voltou-se devagar.

"Fui apanhado no ombro", arrulhou com um esgar de dor. "Mas acho que vou sobreviver."

Rebecca caiu sobre ele e abraçou-o, aliviada.

"Graças a Deus! Graças a Deus! Tive tanto medo..."

Tomás devolveu o abraço, embora com cuidado para proteger o ombro esquerdo, e beijou-a nas orelhas e no pescoço. Cheirou-lhe o perfume suave no cabelo dourado e sentiu-se flutuar, os músculos distendendo-se e o corpo descontraindo e entregando-se a ela.

"Está tudo bem", insistiu num sussurro, os dentes subitamente cerrados para dominar um inesperado recrudescer da dor no ombro. "Pronto, está tudo bem."

Os polícias rodearam-nos.

"Minha senhora", disse um deles, uma expressão alarmada no rosto. "Há um relógio dentro da ambulância."

Num sobressalto, Rebecca e Tomás viraram imediatamente a cara para ele.

"O quê?"

"Está em contagem decrescente."

 

Um polícia magro e alto ajudou Rebecca e Tomás a subirem para a viatura. Sentiam ambos dores fortes nas partes do corpo onde haviam sido baleados, mas a informação que o homem do NYPD lhes dera funcionara como uma chicotada. Fosse qual fosse a dor que sentissem, aquele assunto tinha prioridade sobre todos os outros.

O polícia indicou-lhes o relógio.

"É aqui."

Os dois inclinaram-se sobre o local e arregalaram os olhos ao ver os dígitos luminosos a movimentarem-se na sombra.

 

"Três minutos e dez segundos para a explosão", murmurou Tomás, aterrado. "Você consegue desarmar a bomba?" Rebecca abanou maquinalmente a cabeça. "Em três minutos? Isso não é possível!"

Levaram ambos as mãos à boca, sentindo-se impotentes para resolver o problema.

"Isto é uma bomba?", perguntou o polícia, de repente muito alarmado. "E melhor mandar evacuar esta zona!"

"Esta bomba é nuclear", observou Rebecca. "Já não vale a pena evacuar nada. É demasiado tarde para isso."

Tomás encarou-a.

"Oiça, Rebecca. Tem de haver uma maneira."

"E impossível, Tom! Teríamos de abrir a bomba e desactivar o propulsor da bala de urânio enriquecido. Isso não se faz em... em..."

Olhou de novo para o relógio.

08:53

 

"... em menos de três minutos! É absolutamente impossível!" Recusando-se a desistir, Tomás pegou na caixa negra com o mostrador do relógio a âmbar e analisou-a. "Isto é um teclado."

"Sim, faz parte do sistema de segurança", disse Rebecca. "O teclado serve para introduzir um código que activa a bomba."

A informação acendeu-lhe uma luz de esperança. "Isso significa que deve também haver um código que a desactiva..."

"E provável", admitiu ela. "O problema é que não sabemos que código é esse."

Tomás voltou a cabeça para o corpo do homem da bata branca, que permanecia estendido na rua.

"Mas sabem eles", disse. Levantou o olhar para o polícia que os acompanhava. "Algum dos tipos da ambulância sobreviveu?"

"O paciente", indicou o homem do NYPD, afastando--se para deixar ver Ahmed. "Foi atingido nos pulmões, mas safa-se."

Tomás arrastou-se para junto do seu antigo aluno. "Ahmed! Ahmed!"

O árabe tinha os olhos fechados, mas abriu-os ao ouvir alguém chamar o seu nome, coisa que não esperava. Olhou Tomás com surpresa, como se visse e não acreditasse.

"Professor!", exclamou em português. "O que está o senhor a fazer aqui?"

"É uma longa história", disse Tomás, esforçando-se por sorrir. "Tu estás bem?"

Ahmed suspirou com dificuldade.

"Estou pronto para entrar no Paraíso", murmurou. "Deus é grande e misericordioso e vai acolher-me no Seu belo jardim."

Ouvindo-o falar assim, Tomás percebeu que não ia ser fácil convencê-lo a revelar o código de desactivação.

"Ouve, Ahmed", disse com suavidade. "Es livre de ir para o jardim de Alá se quiseres e quando quiseres. Mas, sabes, eu não estou com muita pressa e gostava de continuar a viver por mais algum tempo."

"Compreendo", assentiu o homem da Al-Qaeda, manifestamente com dificuldade em falar devido à ferida nos pulmões. "Se o senhor morrer agora irá para o Inferno, uma vez que é um infiel." Tossiu. "Mas há uma solução."

"Diz."

"Converta-se ao islão agora", sugeriu. "Recite a sbahada, aceitando Alá como o único Deus e Maomé como o Seu Profeta. Tornar-se-á imediatamente muçulmano e morrerá como um sbabid. Deus, na Sua misericórdia infinita, acolhê--lo-á no Paraíso das virgens."

Estas palavras soaram a Tomás como uma sentença de morte; era evidente que Ahmed não iria falar. Mesmo assim, não desistiu. Apontou para o relógio cujos dígitos brilhavam na sombra, a dois metros de distância, saltitando na contagem decrescente.

"Estás a ver aquilo?"

Ahmed voltou a cabeça para lá.

 

m 37 u i :J/

 

"Falta um minuto e meio para Alá me receber no Paraíso", murmurou o árabe. "Deus é grande!"

"Quando a bomba explodir irá morrer muita gente, Ahmed. Mulheres, crianças, velhos. Não podes deixar que isso aconteça. Por favor, dá-me o código para desactivar a bomba."

"Se as vítimas forem muçulmanas serão todas shahid e irão para o Paraíso das virgens e dos rios de vinho sem álcool. Se forem infiéis, irão conhecer as chamas do Inferno. O senhor professor ainda tem tempo de se converter."

Tomás respirou fundo.

"Ouve, Ahmed, como sabemos nós que esta é mesmo a vontade de Deus? Porque não damos a Deus a hipótese de escolher?"

"Não percebo", murmurou o árabe, uma expressão interrogativa nos olhos. "Escolher o quê? Escolher como? Como se pode pôr Deus a escolher?"

"Dá-me uma pista para o código", sugeriu o historiador. "Se eu conseguir chegar à chave que pára a contagem decrescente, é porque Deus quis que a bomba não detonasse. Por outro lado, se eu não conseguir, é porque Deus quis que ela rebentasse. O que achas da ideia? Não me digas que tens medo de entregar a Deus a decisão..."

Ahmed voltou a espreitar o relógio.

 

Um minuto para a explosão. O que tinha ele a perder?
"Está bem", assentiu. "Deus, na Sua infinita sabedoria, decidirá. A pista é esta: Thy mania by /."

Tomás fez uma careta. "O quê?"

"Thy mania by I. E essa a pista para o código." "Isso é Shakespeare ou quê?"

O homem da Al-Qaeda lançou um derradeiro olhar na direcção do relógio e sorriu.

 

"Tem um minuto, senhor professor", disse, cerrando os olhos. "Que se cumpra a vontade de Alá e se solte a fúria divina!"

Percebendo que do seu antigo aluno não arrancaria mais nada, Tomás arrastou-se para junto do relógio e digitou Thy mania by I no teclado. Depois fixou os olhos no mostrador a âmbar.

 

00:5 í

nn çn uu.Ou

 

Os algarismos prosseguiram a sua marcha inexorável. "Então?", perguntou Rebecca, afogada em ansiedade. "Conseguiu parar o..."

"Chiu!", ordenou Tomás.

O historiador fez um esforço para se concentrar na charada.

 

Tby mania by I.

 

Parecia inglês antigo e queria dizer literalmente a tua mania por eu. Ou por mim. Shakespeare era uma possibilidade, mas, se fosse de facto uma referência a um qualquer verso do grande poeta inglês, estava tudo perdido. Não havia tempo para localizar a referência e o verso, e muito menos para extrair daí a palavra ou a frase que travasse a detonação da bomba.

Sem conseguir controlar o nervosismo, lançou uma espreitadela para o mostrador do relógio.

 

Duas gotas de suor percorreram a testa de Tomás. A verdade, a triste verdade, é que já não havia tempo para nada. A única esperança que via era tratar-se de um anagrama. Se fosse outra coisa, estava realmente tudo perdido. Seria um anagrama?

Mesmo que fosse, o tempo esgotava-se sem misericórdia.

 

Deixem cá ver, pensou, escrevinhando a charada num pedaço de cartão que arrancou de uma caixa pousada na viatura.

 

Tby mania by I.

 

Um espasmo de dor no ombro fê-lo gemer. Era como se uma agulha ali espetada remexesse na ferida latejante, mas respirou fundo, controlou o sofrimento e, embora a custo, voltou a concentrar-se.

Se fosse um anagrama, raciocinou, teria de manter estas letras mas alterar a sua ordem, de modo a encontrar uma outra frase ou palavra que usasse as mesmas letras. A haver tal palavra, considerou, provavelmente seria uma qualquer referência islâmica. Teria de ser uma palavra com dois y, dois a, um í, um m...

 

Seria Allah u akbar? Não, as letras não coincidiam. E os primeiros versículos do Alcorão? Biçmillah Irrahman Irrabim? Não, também não podia ser. Teria de ser uma coisa secreta, uma coisa que só Ahmed soubesse. Essas frases islâmicas eram demasiado óbvias para serem escolhidas para código.

A dor voltou, lancinante. Cerrou os dentes, fez força com o corpo todo, comprimiu os olhos até as lágrimas lhe nascerem pelos cantos e esperou que o espasmo passasse. Quando a dor finalmente recuou, olhou de novo para a charada, sabendo que, custasse o que custasse, tinha de se manter concentrado.

E se fosse um nome? Balançou afirmativamente a cabeça, encorajado com aquela linha de pensamento. Sim, um nome. Maomé ou Mubammad estavam fora de questão, as letras não coincidiam e, além do mais, tratava-se também de uma opção por demais evidente. Claro que o seu antigo aluno poderia ter utilizado o seu próprio nome.

Não, abanou a cabeça. Também não. Ahmed não dava. Era um nome demasiado curto e óbvio. Além disso, faltava à charada o e. A ser um nome, parecia-lhe claro que teria de ser um nome secreto, um nome que... que...

Caramba, se calhar... se calhar...

"Ibn Taymiyyah!", exclamou. "É Ibn Taymiyyah!"

00:26

Agarrou-se ao teclado e escreveu Ibn Taymiyyab, o nome de guerra de Ahmed na Al-Qaeda. Era Ibn Taymiyyah, convenceu-se no seu desespero. Só podia ser Ibn Taymiyyab!

Acabou de introduzir as letras, o rosto coberto de transpiração e o suor a pingar profusamente pela ponta do nariz e do queixo, e cravou os olhos ansiosos no relógio.

 

"Não!", exclamou, desesperado. "Não!" O relógio não parara.

A bomba atómica iria explodir dentro de vinte segundos, apagando Manhattan do mapa. Estava tudo perdido. A palavra de código que parava a contagem decrescente não era Ibn Taymiyyab! Era outra coisa. Outra coisa.

Mas o quê?

 

Os seus olhos voltaram-se de novo para a charada que Ahmed lhe dera e que Tomás rabiscara no pedaço de cartão. Tby mania by I. Pois, era evidente que não podia ser Ibn Taymiyyab. O nome de guerra de Ahmed tinha três y e a charada apenas continha dois y. Não podia ser a mesma coisa.

 

"Tom!", implorou Rebecca, a voz muito alarmada. "Tom!" Sentiu a americana a rezar ao seu lado e a dor lancinante no ombro voltou, como uma onda insaciável que ia e vinha cada vez mais depressa à medida que a ferida arrefecia; nesse momento vinha e no auge parecia uma adaga a dilacerar-lhe a carne, mas sabia que naquele instante tinha de ser superior a tudo, até ao sofrimento mais insuportável, até àquela dor que lhe dilacerava o ombro. Apertou os lábios e respirou fundo, esforçando-se por ignorá-la; a transpiração brotava-lhe do topo da testa como uma cascata, até que a onda retrocedeu por fim e Tomás conseguiu retomar a concentração.

Não havia tempo para procurar soluções alternativas à charada, percebeu. Além disso, intuía que Ibn Taymiyyah era o caminho certo, mas alguma coisa estava a falhar. O quê? O que seria?

Observou as letras das palavras que encerravam a solução e tentou arranjar uma nova forma de extrair dela o nome de guerra de Ahmed.

"Tom, isto vai explodir!", gemeu Rebecca, o medo a apossar-se da sua voz. "Tommm!"

A transpiração escorria ainda mais abundante pela face de Tomás e pingava num fio contínuo pelo queixo. Passou as costas do braço pela testa para limpar o suor, sabendo que o tempo voava e só havia oportunidade para uma última tentativa.

A derradeira.

Voltou a avaliar o enigma. Em boa verdade, as letras da charada e do nome coincidiam todas. Todas. A excepção era o maldito terceiro y. Onde diabo errara? Cravou os olhos nos dois y da charada, como se a intensidade do olhar pudesse arrancar o segredo que ela escondia. E se... e se... e se a ortografia fosse diferente? Caramba, porque não? Lembrou-se

nesse instante que a caligrafia árabe não estava uniformizada na referência a Ibn Taymiyyah e que certos textos usavam esse nome com apenas dois... "Oh, Deus, vamos morrer!"

 

O tempo esgotara-se.

Com os dedos a tremer, Tomás agarrou-se ao teclado e, em desespero de causa, escreveu Ibn Taymiyab com dois y em vez de três. Podia estar errado, mas já não tinha nada a perder. A seguir carregou no enter e cerrou os olhos com força. Embora não fosse um homem religioso, benzeu-se às cegas e entregou o destino à divina providência, resignando-se enfim à morte.

O tempo congelou.

Congelou.

Congelou tanto que se eternizou. Como nada parecia acontecer, o historiador abriu um olho e, a medo, espreitou o mostrador.

O relógio parara.

 

 

A cerveja jorrava com profusão pelos copos e as gargalhadas enchiam o bar. Um grupo de homens fardados do NYPD aproximou-se do sofá onde Tomás se sentava e agarrou-o pelo braço direito, puxando-o para o centro do bar.

"Come on, Tom!", disse um deles. "Você é o herói do momento! Venha daí festejar!"

Tomás fez sinal com a cabeça, indicando Rebecca, que ficara lá para trás.

"Mas eu já estava a festejar!", protestou. "Com um anjo!"

Um dos polícias voltou-se para a loira.

"Desculpe, miss Scott. Só o vamos roubar por uns minu-tinhos!"

Rebecca tinha o braço direito engessado, mas fez sinal com a mão esquerda de que não havia problema. "Tudo bem, guys..."

Os polícias arrastaram Tomás até ao pianista.

"You're the man, Tom!", insistia um deles, levado pelo entusiasmo. "You're the man!"

"No último segundo!", gritou outro, pondo a cabeça entre as pernas do historiador e erguendo-o em ombros. "Ele desactivou a bomba no último segundo! Nem em Hollywood! Nem o Spielberg!"

"You're the man!"

Tomás riu-se e deixou-se levar às cavalitas pelos polícias eufóricos. Os homens do NYPD desfaziam-se numa cascalhada de gargalhadas e deixaram-no cair sobre uma cadeira ao lado do pianista.

O músico aguardou pelo sinal e começou a dedilhar o teclado, lançando a melodia pelo piano. Ao escutarem as notas introdutórias, os polícias nova-iorquinos encheram os pulmões e berraram em coro, os copos virados para o português.

 

For he's a jolly good fellow, For he's a jolly good fellow, For he's a jolly good feeellowww... And so say all of us!

 

O coro desfez-se numa galhofa e Tomás aproveitou a confusão para escapar para junto de Rebecca.

"Jeez, você é mesmo o herói!", sorriu ela. "Estou impressionada!"

"E para si? Também sou?"

O sorriso da americana tornou-se ainda mais luminoso. Rebecca lambeu os lábios com malícia, inclinou-se na direcção do historiador e abraçou-o, terna e doce.

"Está a brincar? Depois do que fez esta tarde, para mim você é... é um deus!"

Tomás puxou-a para si e teve vontade de a beijar, mas não se atreveu. Preferiu sentir-lhe o calor e o perfume suave que exalava dos cabelos dourados.

"Posso pedir-lhe uma coisa?", murmurou ele, apertando-a ainda.

"O que quiser", retorquiu Rebecca. "Por si estou disposta
a fazer tudo. Tudo mesmo." , »

Ao ouvir estas palavras, o português sentiu uma erecção monstruosa e incontrolável formar-se-lhe nas calças.

"E se saíssemos daqui para fora?"

"Quer ir-se embora?"

"Sim. Estes polícias são simpáticos, mas a verdade é que não os conheço de parte alguma." Afagou-lhe o cabelo. "Prefiro mil vezes celebrar consigo."

Rebecca afastou ligeiramente a cabeça e fitou Tomás nos olhos.

"Está bem", concordou. "Vamos festejar para outro lado. Mas só mais daqui a um bocadinho."

O português fez beicinho.

"Oh, porquê? Porque não saímos já?"

"Não pode ser, Tom. Não se esqueça de que o pessoal de Washington está a caminho para se juntar a nós. Vem mister Bellamy e toda a gente da NEST. Temos ao menos de ficar um pouco com eles, não acha?"

Tomás esforçou-se por ocultar o desapontamento. Queria sair imediatamente com Rebecca e planeava beijá-la no elevador. Imaginava-se já a fazer amor, ele com o ombro esquerdo engessado, ela com o braço direito na mesma situação. Seria original. Sentia-se decepcionado por não saírem naquele instante, mas depressa se conformou. O que estava em causa era um mero adiamento dos instantes divinais que os lábios húmidos e o corpo ardente da americana lhe prometiam.

Um mero adiamento.

"Está bem", assentiu. "Quando é que eles chegam?" Rebecca espreitou o relógio. "Daqui a meia hora."

 

Nova Iorque à noite era uma gloriosa coroa de jóias brilhantes, todas a cintilarem como diamantes incrustados por entre rubis, safiras e esmeraldas. Mais espectacular ainda era contemplar das alturas a grande cidade, sentindo-a pulsar pela grande janela do Rainbow Grill, o bar situado no sexagésimo-quinto andar do edifício da RCA.

Dentro do piano-bar, os homens do NYPD não paravam de cantar e beber cerveja, mas Tomás e Rebecca preferiam observar em silêncio a metrópole resplandecente, como se estivessem hipnotizados pelas luzes e cores exuberantes que se estendiam e mexiam por toda a parte numa grandiosa coreografia.

"Estou mortinho por sair daqui", observou o historiador, que já mal conseguia pensar noutra coisa. "Acha que eles ainda estão muito atrasados? Já passou a meia hora..."

A americana verificou o relógio.

"Tem razão", constatou. "Levam vinte minutos de atraso. Se calhar é melhor eu ligar para..." "Fucking génio!"

O português reconheceu a voz baixa e arrastada e voltou-se. Atrás dele encontrava-se o rosto familiar do responsável da NEST a abrir-se nos vestígios de um sorriso.

"Mister Bellamy!"

"O que ando eu a dizer há anos?", perguntou o americano, sem tirar os olhos de Tomás. "Você é um fucking génio!" "Foi sorte..."

"Qual sorte! Ninguém faz o que vocês fizeram só por sorte! Estão os dois de parabéns!" Apontou para Rebecca. "Você também, babe. Esteve muito bem!"

"Obrigada, mister Bellamy."

"Fui informado de que o presidente vai conceder-vos aos dois uma Presidential Medal of Freedom, a mais alta condecoração civil do país, por especial mérito na defesa da segurança nacional dos Estados Unidos. E o tipo do FBI que
morreu, coitado, também vai levar uma medalha a título póstumo. Foi um herói."

A referência a Ted ensombrou os rostos de Tomás e Rebecca. Não se tratava propriamente de um amigo, mas ambos haviam passado três dias na companhia do operacional do Bureau enquanto vigiavam a casa onde estava Ahmed e tinham-no visto morrer diante deles. Uma estranha afinidade ligá-los-ia para sempre a Ted.

Tomás sentiu necessidade de desanuviar o ambiente.

"Então, mister Bellamy? Veio sozinho?"

"Claro que não."

Rebecca espreitou com súbita ansiedade para a entrada do bar, em busca dos seus colegas da NEST. "Onde está o resto do pessoal?"

"Vim à frente num carro com batedor", disse Bellamy. "Eles devem estar a chegar." "A Anne também vem?" "Claro."

Como em obediência a uma deixa de teatro, logo que o responsável da NEST se calou uma pequena multidão invadiu o Rainbow Grill numa grande algazarra. Mal viram Rebecca, os recém-chegados dirigiram-se directamente a ela. À cabeça do grupo vinha uma bonita morena de cabelos longos e encaracolados. Tinha lágrimas nos olhos e caiu nos braços de Rebecca.

"Oh baby!"

"Honey!"

Arregalando os olhos de estupefacção, vendo e recusando-se a acreditar no que os seus olhos lhe diziam, Tomás observou Rebecca e Anne mergulharem na boca uma da outra, viu-as afundarem-se com tal intensidade e paixão e volúpia que o coração se lhe contraiu e, esvaindo-se como oxigénio no vácuo, a esperança foi definhando até se transformar em desilusão completa.

 

 

                                                                                José Rodrigues dos Santos 

 

                      

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