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O AVANÇO DE AQUITÂNIA - p.2 / Robert Ludlum
O AVANÇO DE AQUITÂNIA - p.2 / Robert Ludlum

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O AVANÇO DE AQUITÂNIA

Segunda Parte

 

Connal Fitzpatrick e Joel estavam sentados, um na frente do outro, à mesa de serviço de quarto do hotel, terminando o café. Tinham acabado de jantar, a história toda fora contada, e todas as pergun­tas que o advogado da Marinha podia pensar tinham sido respon­didas por Converse, porque dera sua palavra; ele precisava de um aliado incondicional.

— Exceto por algumas identidades e algum material do dossiê — disse Connal —, não sei muito mais do que sabia antes. Talvez venha a saber quando vir aqueles nomes do Pentágono. Você disse que não sabe quem os forneceu?

— Não. Como Topsy, apenas estão lá. Beale disse que alguns talvez estejam na lista por engano, mas outros não; devem ser ligados a Delavane.

— Devem ter sido fornecidos por alguém. Devem ter entrado na lista por algum motivo.

— Beale os chamou de “os que tomam as decisões” nos ne­gócios militares.

— Então, eu devo ter estado com eles. Tratei de muitos casos.

— Você?

— Sim. Não freqüentemente, mas o bastante para conhecer o assunto.

— Por que você?

— Basicamente para traduzir pequenas particularidades jurídicas de uma língua para outra, quando se tratava de tecnologia da Marinha. Acho que mencionei que falo...

— Sim, mencionou — interrompeu Joel.

— Que diabo! — exclamou Fitzpatrick, amarrotando o guar­danapo.

— O que há?

— Press sabia que eu tratava com esses comitês, com os rapazes dos armamentos e tecnologia! Ele chegou mesmo a me fazer per­guntas sobre eles. Quem eu conhecia, de quem eu gostava... em quem confiava. Jesus! Por que ele não confiou em mim? De todas as pessoas que ele conhecia, eu era a mais lógica! Estou no lugar certo e era seu melhor amigo!

— Por isso ele não o procurou — disse Converse.

— Que idiota! — Connal levantou os olhos. — E espero que esteja ouvindo, Press. Podia ainda estar por aqui para ver o Connal II ganhar a Regata da Baía.

— Acho que você acredita mesmo que ele está ouvindo.

Fitzpatrick olhou para Joel.

— Sim, acredito. Sabe, conselheiro, eu acredito. Conheço todas as razões pelas quais não devia acreditar — Press as enumerava exaustivamente, quando estávamos meio embriagados — mas eu acredito. Certa vez eu respondi com uma citação de um dos seus patriarcas protestantes do passado.

— Que citação? — perguntou Joel sorrindo bondosamente.

— Há mais fé na dúvida honesta do que têm todos os arcan­jos, na mente de Deus.

— Muito bonita. Nunca tinha ouvido.

— Talvez eu não tenha citado corretamente... Joel, preciso ver aqueles nomes!

— E eu preciso da minha pasta, mas não posso ir apanhá-la.

— Então, fui eleito — disse o oficial. — Acha que Leifhelm estava dizendo a verdade? Acha que ele pode tirar a Interpol do caso?

— Vejo a coisa de dois modos. Para minha imediata liberdade de movimentos, espero que ele possa. Mas, se ele conseguir, vou ficar morrendo de medo.

— Estou com você — concordou Connal, levantando-se. — Vou ligar para a portaria e pedir um táxi. Dê-me a chave do armá­rio.

Converse tirou do bolso a chave pequena e redonda, com os números em alemão. — Leifhelm viu você. Pode mandar segui-lo; já o fez antes.

— Serei dez vezes mais cuidadoso. Se vir o mesmo par de faróis duas vezes, vou para uma Bierkeller. Conheço algumas por aqui.

Joel consultou o relógio.

— Faltam vinte para as dez. Acha que podia dar uma passada pela universidade, primeiro?

— Dowling?

— Ele disse que pretendia encontrar-se com alguém. Passe ape­nas por eles e diga que tudo está sob controle, nada mais. Eu devo isso a ele.

—-E se ele tentar me deter?

— Então, use seu cartão de identificação e diga que é alta prioridade, ou ultra-secreto, ou qualquer bobagem que ocorra a essa mente tão criativa.

— Será que percebo um leve indício de inveja judicial?

— Não, apenas reconhecimento. Eu sei de onde você está vin­do. Eu já estive lá.

 

Fitzpatrick caminhou lentamente pela passagem larga no lado sul do imenso prédio da universidade, em outros tempos o grande palácio de todos os poderosos arcebispos de Colônia. O luar banhava a área, refletindo as fileiras infindáveis de janelas de catedral e empres­tando uma dimensão luminosa aos muros de pedra clara da estrutura majestosa. Os jardins sinuosos de Augusto, além da passagem, ti­nham uma elegância misteriosa — círculos de flores adormecidas, sua beleza acentuada pela luz da lua. Connal sentiu-se envolvido pela beleza tranqüila do cenário noturno e quase se esqueceu do motivo que o levara ao local.

Lembrou-se imediatamente, ao ver uma figura esguia sentada em um dos bancos. O homem estava sozinho, as pernas estendidas para a frente, os tornozelos trançados e, na cabeça, um chapéu de pano que não escondia o cabelo longo, louro, grisalho das têmporas e do pescoço. Então esse Caleb Dowling era um ator, pensou o oficial, lembrando-se divertido de que Caleb fingira-se chocado quando Connal não o reconheceu. Mas Converse também não o tinha reconhecido; eram talvez uma minoria no mundo dos viciados em televisão. Um professor de universidade que realizara suas fan­tasias da juventude, um aventureiro, segundo Joel, que vencera a batalha contra obstáculos astronômicos, era um pensamento confor­tador; a única nota triste era a vida atormentada da mulher, a quem ele amava ternamente. Além disso, um fuzileiro naval que tinha lutado na confusão sangrenta de Kwajalein devia ser um homem digno de respeito.

Fitzpatrick encaminhou-se para o banco e sentou-se a alguns metros de Dowling. O ator olhou para ele, para a frente, e depois virou a cabeça rapidamente, numa reação autêntica de surpresa.

— Você?

— Sinto muito o que aconteceu a noite passada — disse Connal. — Soube que não fui muito convincente.

— Faltou um certo refinamento, meu jovem. Onde diabo está Converse?

— Desculpe-me outra vez. Ele não pôde vir, mas não precisa se preocupar. Tudo está mais do que O.K. e sob controle.

— O.K. de quem e controle de quem? — respondeu o ator, aborrecido. — Eu disse a Joel que viesse encontrar-se comigo e não que mandasse um lobinho dos escoteiros como intermediário.

— Isso me ofende. Sou capitão-de-corveta da Marinha dos Estados Unidos e o oficial comandante do departamento jurídico da base naval. O Sr. Converse aceitou uma missão que tem um elemento de risco pessoal para ele e é altamente confidencial e prioritária para nós. Desista, Sr. Dowling. Apreciamos — e falo por Converse e por mim — o seu interesse e generosidade, mas está na hora de se retirar. Para seu próprio bem.

— E a Interpol? Ele matou um homem.

— Que tentou matá-lo — acrescentou Fitzpatrick rapidamente, um advogado completando uma afirmação negativa da testemunha. — Isso será resolvido internamente e as acusações serão retiradas.

— Está muito seguro, comandante — disse Dowling, endirei­tando o corpo. — Muito mais do que na noite passada — esta manhã, para ser exato.

— Eu estava preocupado. Tinha perdido a pista dele e precisava encontrá-lo. Precisava lhe dar informações vitais.

O ator cruzou as pernas e inclinou-se para trás, o braço apoiado displicentemente no encosto do banco.

— Então, esse negócio no qual você e Converse estão envol­vidos é uma operação realmente secreta?

— Altamente confidencial, sim.

— E, sendo ambos advogados, tem algo a ver com irregulari­dades legais aqui em Bonn, que de algum modo atingem as forças armadas, certo?

— No sentido mais lato, sim. Temo não poder ser mais explí­cito. Converse disse que queria que ele conhecesse alguém.

— Sim, eu quero. Eu disse algumas coisas impensadas sobre ele, mas retiro agora; ele estava fazendo o que devia. Não sabia quem diabo eu era, como você também não. Converse é um homem inte­ligente, decidido, mas justo.

— Espero que compreenda que, nestas circunstâncias, Con­verse não pode atender ao seu pedido.

— Você serve — disse Dowling calmamente, retirando o braço do encosto do banco.

Connal ficou subitamente alarmado. Ouviu movimento às suas costas, nas sombras; virou a cabeça rapidamente, olhando por sobre o ombro. Das sombras protetoras do prédio, do escuro portal mais próximo, apareceu um homem atravessando o gramado verde. Um braço displicentemente apoiado no encosto do banco, e displicente­mente retirado. Os movimentos eram sinais! Identidade confir­mada; pode se aproximar.

— Que diabo você fez? — perguntou asperamente o oficial.

— Apostando no seu bom senso — respondeu Dowling. — Se meus famosos instintos são válidos, fiz a coisa certa. Se estão errados, ainda assim fiz a coisa certa.

— O quê?

O homem atravessou o gramado e entrou na claridade do luar. Era grande e usava um terno escuro e gravata; o rosto de meia-idade, com expressão severa, e o cabelo grisalho liso davam-lhe um arde próspero homem de negócios. Era evidente que estava furioso.

Dowling falou enquanto se levantava.

— Comandante, posso apresentar-lhe o ilustre Walter Pere­grine, embaixador dos Estados Unidos na República Federal da Ale­manha?

 

O tenente David Remington limpou os óculos com uma flanela tratada com silicone, jogou-a na cesta e levantou-se. Pôs os óculos, foi até um espelho pregado na porta do escritório e examinou sua aparência. Passou a mão no cabelo, arrumou o nó da gravata e verificou o vinco da calça. Levando-se em conta o fato de serem 17h30m e de terem estado trabalhando ativamente desde as oito da manhã, inclusive naquela emergência maluca Quatro Zero de Fitz­patrick, estava bem apresentável. Além disso, o contra-almirante Hickman não era muito exigente a respeito da aparência do pessoal de escritório. Sabia muito bem que a maioria dos executivos procura­ria imediatamente empregos mais lucrativos no setor civil se os uniformes e outros códigos disponíveis fossem levados muito a sério. Muito bem, David Remington não faria isso. Onde mais poderia um homem viajar pelo mundo todo, com a moradia mais encantadora possível para a mulher e três filhos, assistência médica e dentária de graça e sem as pressões para conseguir se promover num escritório civil de advocacia? Seu pai tinha sido advogado de uma das maiores companhias de seguros de Hartford, Connecticut, e aos quarenta e três anos tinha úlcera, aos quarenta e oito teve um colapso nervoso, o primeiro infarto com cinqüenta e um, e por fim uma trombose coronária aos cinqüenta e seis; todos diziam que era excelente no seu trabalho e que podia até chegar à presidência da companhia. Mas, afinal, sempre diziam coisas como essas quando um homem morria na linha do dever — e eles morriam com muita freqüência.

Nada disso para David Remington, não, senhor! Ia simplesmen­te ser um dos melhores advogados da Marinha dos Estados Unidos, servir seus trinta anos, dar baixa com cinqüenta e cinco, com uma aposentadoria generosa, e tornar-se um consultor jurídico da Mari­nha, muito bem pago quando tivesse cinqüenta e seis anos. Exatamente na idade em que o pai tinha morrido, começaria a viver tranqüilamente. Era só uma questão de construir uma reputação como um homem que sabia mais sobre as leis navais — e que as seguia à risca — do que qualquer outro advogado na Marinha. Se tivesse de pisar em alguém para conseguir isso, que fosse; serviria apenas para enriquecer sua reputação. Não dava a mínima impor­tância para a popularidade; só queria estar certo. E nunca tomava uma decisão antes de se certificar de que estava completamente am­parado pela lei. Consultores desse tipo eram muito requisitados na prática do direito civil.

Remington perguntava a si mesmo por que o almirante Hickman queria vê-lo, especialmente a essa hora, quando a maior parte do corpo de funcionários do escritório já tinha ido para casa. Havia uma corte marcial pendente que podia ser assunto delicado. Um oficial negro, formado por Annapolis, fora apanhado vendendo cocaína em um destróier ancorado nas Filipinas; devia ser isso. Remington tinha preparado a minuta inicial do caso para o auditor de guerra, que francamente não estava interessado em fazer a acusa­ção; a quantia em jogo não era muito grande, e outros certamente estavam vendendo por muito mais, e provavelmente eram brancos. Não era o caso, insistira Remington. Se havia outros, não tinham sido apanhados; se havia provas, não tinham sido encontradas. A lei não distinguia cores.

Diria a mesma coisa para Hickman. Remington sabia que o chamavam zombeteiramente de “certinho”, não na sua frente, mas isso não o demovia da sua atitude. Bem, com cinqüenta e seis, a idade em que seu pai tinha morrido por causa da política da com­panhia — um certinho teria todos os confortos de um clube de campo exclusivo, sem pagar as mensalidades. O tenente Remington abriu a porta, atravessou o corredor cinzento e dirigiu-se para o elevador que o levaria ao escritório da mais alta patente da base naval de San Diego.

— Sente-se, Remington — disse o contra-almirante Brian Hick­man, apertando a mão do tenente e indicando uma cadeira na frente de sua grande mesa de trabalho. — Não sei o que dizem agora, mas, no meu tempo, um dia como o de hoje era o que chamávamos de fodido. Às vezes queria que o congresso não liberasse tanto dinheiro para a base. Todo o mundo fica tão alto que é como se estivessem fumando tudo o que existe em Tijuana. Não se lembram que pre­cisam de arquitetos antes de começar a subornar os empreiteiros.

— Sim, senhor, sei o que quer dizer, senhor — disse Reming­ton, sentando-se com a deferência adequada, enquanto Hickman permanecia de pé, à sua esquerda. A referência a Tijuana e a drogas confirmava suas suspeitas; o almirante estava se preparando para começar a rotina do todos-fazem-isso, que conduziria a “por que a Marinha vai criar uma controvérsia racial com uma coisa que acon­teceu nas Filipinas?” Muito bem, ele estava pronto. A lei — lei naval — não distinguia cores.

— Vou tomar um drinque bem merecido, tenente — disse Hick­man, dirigindo-se para o bar embutido na parede. — Quer alguma coisa?

— Não, senhor, obrigado.

— Escute, Remington, apreciei muito você ter ficado até mais tarde para esta... conferência, acho que chamaria assim, mas não espero nenhuma versão de comportamento oficial. Francamente, sinto-me como um tolo bebendo sozinho, e o que temos de conver­sar não é assim tão importante. Apenas quero lhe fazer algumas perguntas.

— Comportamento oficial, senhor? Bem, aceito vinho branco, se o senhor tiver.

— Sempre tenho — disse o almirante com resignação. — Geral­mente para os membros do pessoal que estão para se divorciar.

— Sou muito bem casado, senhor.

— Fico satisfeito em saber. Eu estou na terceira mulher... de­via ter ficado com a primeira.

As bebidas servidas, a disposição das cadeiras em ordem, Hick­man falou do outro lado da mesa, a gravata solta, a voz indefinida.

Mas o que ele disse não tinha nada de indefinido para David Re­mington.

— Quem é esse tal de Joel Converse? — perguntou o almi­rante.

— Como disse, senhor?

O almirante suspirou, indicando que ia começar outra vez.

— Às doze horas e vinte e um minutos de hoje, você colocou um CLO negativo em todas as investigações relacionadas a um documento marcado com “bandeira”, sobre a ficha de serviço de um certo tenente Joel Converse. Ele foi piloto no Vietnã.

— Sei o que ele foi, senhor — disse Remington.

— E às quinze horas e dois minutos — continuou Hickman, consultando anotações sobre sua mesa — recebi um teletipo do Quinto Distrito Naval requerendo que a “bandeira” fosse removida a favor deles e o material liberado imediatamente. O requerimento baseava-se — como sempre — na segurança nacional. — O almi­rante fez uma pausa para tomar alguns goles da sua bebida; não parecia estar com pressa, apenas cansado. — Mandei meu ajudante telefonar para você e perguntar por que tinha feito isso.

— E eu respondi dando-lhe todas as explicações, senhor — interrompeu Remington. — Estava seguindo instruções do oficial chefe do departamento jurídico do SAND PAC, e citei o regulamen­to específico que diz claramente que o CLO de uma base naval pode proibir a liberação de documentos de arquivo, alegando que suas investigações poderão ser comprometidas pela entrada de terceiros. É a praxe na lei civil, senhor. O FBI raramente fornece à força policial metropolitana ou local a informação que conseguiu em uma investigação, simplesmente porque a mesma pode ser comprometida por indiscrições ou práticas corruptas.

— E seu oficial chefe do departamento jurídico, capitão-de-corveta Fitzpatrick, está fazendo investigações sobre um oficial que deu baixa há dezoito anos?

— Não sei, senhor — disse Remington com olhar inexpressivo. — Só sei que essas foram suas ordens. Estarão em vigor por setenta e duas horas. Depois disso, naturalmente, o senhor pode assinar uma ordem de liberação. E o presidente pode fazê-lo a qualquer momen­to, em caso de emergência nacional.

— Pensei que fossem quarenta e oito horas — observou Hick­man.

— Não, senhor. Quarenta e oito horas é a norma para liberação de qualquer documento com “bandeira”, independentemente de quem faça o pedido — exceto, é claro, o presidente. É chamado o prazo para veto. A inteligência naval verifica com a CIA, a NSA e G-Dois para certificar-se de que não é liberado nenhum material tido como confidencial. Esse procedimento nada tem a ver com as prerrogativas do oficial chefe jurídico.

— Conhece bem a lei, tenente.

— Acredito que a conheço como qualquer advogado da Mari­nha dos Estados Unidos, senhor.

— Compreendo. — O almirante recostou-se na cadeira girató­ria estofada e pôs os pés sobre o canto da mesa. — O capitão-de-corveta Fitzpatrick está fora da base, não está? Licença de emer­gência, creio?

— Sim, senhor. Está em São Francisco com a irmã e os sobri­nhos. O marido dela foi morto em um assalto em Genebra; o funeral é amanhã, acho.

— Sim, eu li a respeito. Coisa terrível... Mas você sabe onde pode encontrá-lo.

— Tenho o número do telefone, sim, senhor. Quer que telefo­ne, almirante? Para informá-lo sobre o requerimento do Quinto Distrito Naval?

— Não, não — disse Hickman, sacudindo a cabeça. — Não a esta hora. Eles podem secar seus esfregões pelo menos até amanhã à tarde. Devo supor que também conhecem os regulamentos; se a segurança for tão seriamente prejudicada, eles sabem onde é o Pentá­gono — e os últimos boatos de Arlington dizem que eles encontra­ram até o endereço da Casa Branca. — O almirante ficou de pé, franziu a testa e olhou para o tenente. — Suponhamos que você não soubesse onde encontrar Fitzpatrick?

— Mas eu sei, senhor.

— Sim, mas suponha que não soubesse? E que recebesse um requerimento legítimo — não com ordem presidencial, mas assim mesmo muito urgente — você poderia liberar aquela “bandeira”, não podia?

— Teoricamente, como a autoridade imediatamente inferior, sim, eu podia, desde que aceitasse a responsabilidade legal por esse ato.

— Aceitasse o quê?

— Desde que eu considerasse o requerimento suficientemente urgente para contrariar a ordem do oficial chefe jurídico, que lhe ga­rante setenta e duas horas para que se efetue qualquer ação conside­rada necessária. Ele foi muito enfático, senhor. Francamente, a não ser por uma intervenção presidencial, estou legalmente obrigado a manter o privilégio do CLO.

— Eu diria que moralmente também — concordou Hickman.

— Moralidade não tem nada a ver com isso, senhor. É pura­mente uma posição legal. Agora, devo dar aquele telefonema, al­mirante?

— Não, para o diabo com isso. — Hickman retirou o pé de sobre a mesa. — Eu apenas estava curioso e, francamente, você me convenceu. Fitz não teria dado a ordem se não tivesse motivos para tanto. O Quinto D pode esperar três dias, a não ser que aqueles rapazes estejam dispostos a aumentar a conta telefônica com chama­das para Washington.

— Senhor, posso perguntar quem especificamente fez o pe­dido?

O almirante olhou fixamente para Remington.

— Daqui a três dias eu lhe direi. Compreende, tenho também o privilégio de manter esse segredo. Mas você vai saber, de qualquer modo, porque na ausência de Fitz terá de endossar a transferência. — Hickman terminou de beber e o tenente compreendeu. A confe­rência tinha terminado.

Remington levantou-se e levou o copo de vinho, ainda pela metade, para o bar; ficou em posição de atenção e disse:

— Isso é tudo, senhor?

— Sim, é tudo — disse o almirante, olhando para a janela e para o oceano, ao longe.

O tenente fez continência e Hickman encostou a mão na testa. O advogado deu meia-volta e encaminhou-se para a porta.

— Remington?

— Sim, senhor? — respondeu o tenente, voltando-se.

— Quem diabo é esse Converse?

— Não sei, senhor. Mas o comandante Fitzpatrick disse que o status de “bandeira” era uma emergência Quatro Zero.

— Jesus...

 

Hickman apanhou o telefone e apertou uma combinação de botões. Momentos depois estava falando com um oficial da sua patente no Quinto Distrito Naval.

— Acho que vai ter de esperar três dias, Scanlon.

— E por quê? — perguntou o almirante chamado Scanlon.

— O CLO negativo é válido para o documento sobre Converse, segundo determinação do SAND PAC. Se quiser seguir o caminho de D.C. esteja à vontade. Nós cooperaremos.

— Eu já lhe disse, Brian, minha gente não quer recorrer a Washington. Você já viu isso acontecer antes. D.C. faz onda e nós não queremos ondas.

— Bem, nesse caso, por que não me diz por que querem o documento sobre Converse? Quem é ele?

— Eu diria se pudesse, você sabe. Francamente, não estou muito certo, e o pouco que sei jurei não revelar.

— Então, vá a Washington. Estou apoiando meu chefe jurídico que, aliás, nem está aqui.

— Ele não está? Mas você falou com ele.

— Não, o oficial imediatamente inferior, um tenente chamado Remington. Ele recebeu diretamente a ordem para o CLO. Acredite, Remington não vai ceder. Eu lhe dei a oportunidade e ele se entrin­cheirou nos termos jurídicos. Por aqui ele é conhecido como “cer­tinho”.

— Ele explicou por que foi pedido esse negativo?

— Não tem a mínima idéia. Por que não telefona para ele? Provavelmente ainda está lá embaixo e talvez você possa...

— Você não disse meu nome, disse? — interrompeu Scanlon, aparentemente agitado.

— Não, você me pediu para não dizer, mas ele vai saber em dois ou três dias. Ele terá de assinar a liberação do documento e eu tenho de dizer a favor de quem. — Hickman fez uma pausa e então, sem aviso prévio, explodiu: — Que diabo é tudo isso, almirante? Um piloto que deu baixa há mais de dezoito anos subitamente está em todas as listas como o mais procurado? Recebi um telex com priori­dade departamental do grande Quinto D e depois seu telefonema pessoal, fazendo o velho jogo de memórias de Annapolis, mas não me diz nada. Então eu descubro que meu próprio CLO, sem meu conhecimento, deu ordem para uma negativa nesse documento de Converse, classificando como status de emergência Quatro Zero. Ora, eu sei que ele tem problemas pessoais e não vou incomodá-lo até amanhã, e compreendo que você deu sua palavra de não dizer nada, mas que diabo, acho melhor alguém começar a me dizer alguma coisa!

Nenhuma resposta do outro lado da linha. Apenas o som da respiração; e ela estava trêmula.

— Scanlon!

— O que foi que você acabou de dizer? — perguntou a voz do almirante a quinhentos quilômetros de distância.

— Vou descobrir, de qualquer modo...

— Não, o status. O status do documento. — Scanlon falava com voz quase inaudível.

— Emergência Quatro Zero, foi isso que eu disse!

A interrupção foi brusca; apenas um estalido. O almirante Scan­lon tinha desligado.

 

Walter Peregrine, embaixador dos Estados Unidos na República Federal da Alemanha, confrontou-se com Fitzpatrick.

— Qual é o seu nome, comandante?

— Fowler, senhor — respondeu o advogado da Marinha, olhando brevemente mas com severidade para Dowling. — Capitão-de-corveta Avery Fowler, Marinha dos Estados Unidos. — Mais uma vez Connal olhou para o ator, que retribuiu o olhar, sob a claridade da lua.

— Se não me engano, há alguma dúvida a respeito disso — disse Peregrine, com expressão tão hostil quanto a de Dowling. — Posso ver sua identificação, por favor?

— Não está comigo, senhor. É por causa da natureza da minha missão, senhor. — As palavras de Fitzpatrick eram rápidas, precisas, seu porte ereto e firme.

— Quero verificação do seu nome, patente e ramo de serviço! Agora!

— O nome que lhe dei é o que me mandaram dar se alguém fora do campo da minha missão me perguntasse.

— Instruções de quem? — rugiu o diplomata.

— Meus oficiais superiores, senhor.

— Devo inferir que Fowler não é seu verdadeiro nome?

— Com todo o respeito, senhor embaixador. Meu nome é Fow­ler, minha patente é capitão-de-corveta, meu ramo no serviço é a Marinha dos Estados Unidos.

— Onde diabo pensa que está? Atrás das linhas, capturado pelo inimigo? “Nome, patente e número de série — é tudo o que podem me obrigar a dizer, segundo a Convenção de Genebra?”

— É tudo o que me permitem dizer, senhor.

— Vamos verificar isso, comandante — se é que é um coman­dante. E também sobre esse Converse, que parece ser um mentiroso muito estranho — num minuto, a própria imagem do homem sério, no minuto seguinte, um homem estranho em fuga.

— Por favor, tente compreender, senhor embaixador, nossa missão é ultra-secreta. Não envolve de modo nenhum a diplomacia, nem prejudicará seus esforços como principal representante do nosso governo. Mas é confidencial. Eu vou relatar esta conversa aos meus superiores e o senhor sem dúvida será procurado por eles. Agora, se os cavalheiros me dão licença, vou andando.

— Acho que não, comandante — ou quem quer que seja. Mas, se for quem diz que é, nada será divulgado. Não sou nenhum idiota. Nada será revelado ao pessoal da embaixada. O Sr. Dowling insistiu nisso e eu aceitei a condição. O senhor e eu falaremos em uma sala de comunicações com o telefone ligado ao “misturador” e o senhor vai telefonar para Washington. Não aceitei este emprego, deixando de ganhar três quartos de milhão por ano, para encontrar qualquer vendedor de sapatos fazendo uma investigação na minha própria companhia sem meu conhecimento. Se eu quiser uma auditoria ex­terna, eu mesmo a contratarei!

— Gostaria de poder atender à sua sugestão, senhor; parece uma exigência razoável. Mas acho que não posso.

— Pois eu acho que pode!

— Desculpe-me.

— Faça o que ele diz, comandante — interveio Dowling. — Como foi dito, ninguém vai saber de nada. Mas Converse precisa de proteção; é um homem procurado em país estrangeiro e nem mesmo fala a língua. Aceite a oferta do embaixador Peregrine. Ele cum­prirá a palavra.

— Com todo o respeito, senhor, a resposta é não. — Connal voltou-se e começou a caminhar pela passagem larga.

— Major! — gritou o embaixador, furioso. — Detenha-o! De­tenha esse homem!

Fitzpatrick olhou para trás; por motivos que não podia explicar, ele viu o que jamais esperou ver, e, no momento em que viu, compreendeu que devia ter esperado por isso. Saindo das sombras distantes do prédio imenso e majestoso, um homem correu na di­reção de Connal, obviamente um ajudante militar do embaixador — um membro do pessoal da embaixada! Connal ficou paralisado, voltando-lhe à mente as palavras de Joel. Aqueles homens que você viu no aeroporto, da embaixada... estão do outro lado.

Em qualquer outra circunstância, Fitzpatrick teria ficado onde estava e enfrentado a situação. Não tinha feito nada errado; nada ilegal, nenhuma lei fora violada, que ele soubesse, e ninguém podia obrigá-lo a falar sobre assuntos pessoais, desde que nada estava contra a lei. Então, compreendeu que estava errado! Os generais de George Marcus Delavane o obrigariam, podiam forçá-lo a falar! Voltou-se e correu.

Subitamente ouviram-se tiros. Dois tiros bem acima da sua cabeça! Lançou-se ao chão e rolou para a sombra dos arbustos quando uma voz de homem quebrou o silêncio da noite e dos jardins adormecidos.

— Seu maldito filho da puta! O que pensa que está fazendo!

Mais gritos, uma barragem de obscenidades, e os sons de luta encheram o tranqüilo enclave da universidade.

— Não se mata um homem assim! Além disso, seu bandido, podia haver outras pessoas por perto! Não diga nada, senhor embai­xador!

Connal arrastou-se pelo caminho de cascalho e abriu um pouco a folhagem dos arbustos. Na luz clara da lua, ao lado do banco distante, o ator Caleb Dowling — o ex-fuzileiro de Kwajalein — estava de pé sobre o corpo do major que tinha saído das sombras, sua bota na garganta do homem, a mão segurando o braço estendido do adversário para fazê-lo soltar a arma.

— Você é um idiota filho da puta, major! Ou, maldito seja, talvez outra coisa qualquer!

Fitzpatrick ficou de joelhos, depois de pé, e, curvado, correu para a sombra da trilha larga, na direção da saída.

 

— Não tive outra escolha! — disse Connal. Tinha jogado a pas­ta sobre a cama e sentara-se na cadeira ao lado, inclinado para a frente, ainda trêmulo.

— Acalme-se, procure relaxar — Converse foi até a elegante mesa rústica antiga sobre a qual havia uma bandeja de prata com uísque, gelo e copos. Joel tinha aprendido a fazer uso do serviço de quarto em inglês. — Você precisa de um drinque — disse, servindo a Fitzpatrick uma dose de burbom.

— Se preciso! Nunca ninguém atirou em mim. Em você já. Cristo, então é assim?

— É assim. Pode crer. São sons irreais que explodem em sua mente, os quais não podem ter nada a ver com você até... até você ver a evidência. É real, era dirigido a você, e você não se sente bem. Não há música suave, nenhum clarim, apenas vômito. — Converse entregou o copo ao oficial.

— Você está omitindo alguma coisa — disse Connal, segurando o copo e levantando os olhos para Joel.

— Não, não estou. Vamos pensar sobre os acontecimentos desta noite. Se você ouviu bem o que Dowling disse, o embaixador não ia dizer nada ao pessoal da embaixada...

— Sim, eu me lembro — interrompeu Fitzpatrick, tomando vários goles de burbom, os olhos fitos em Converse. — Estava num daqueles documentos secretos. Durante sua segunda fuga um homem foi morto; foi ao pôr-do-sol. Você chegou perto dele quando tinha acabado de acontecer, e o documento diz que você ficou doido por alguns minutos. Segundo esse homem — um sargento, se não me engano — você deu uma volta na floresta, apanhou o norte-vietna­mita, matou-o com a faca dele e apanhou seu rifle de repetição. Depois, matou a tiro mais três viets que estavam naquela área.

Joel ficou parado na frente do advogado da Marinha. Respon­deu em voz baixa, os olhos zangados.

— Detesto descrições desse tipo — disse com voz inexpressiva. — Trazem de volta todas as imagens que odeio... Deixe que lhe diga como foi — exatamente como foi, conselheiro. Um garoto, não mais de dezenove anos, precisou evacuar, e, embora nós estivéssemos nos mantendo sempre juntos, ele teve a dignidade de afastar-se alguns metros para o que tinha de fazer, usando folhas porque não tí­nhamos papel próprio. O maníaco — não usarei a palavra soldado — que o matou esperou o momento exato, e então atirou, destruindo o rosto do garoto. Quando cheguei perto dele, com a metade do seu rosto em minhas mãos, ouvi a risada, o riso obsceno de um homem obsceno que para mim personificava tudo o que eu desprezava — vietnamita ou americano. Se quer saber a verdade, tudo o que fiz, fiz contra os dois — porque ambos eram culpados, todos nós tínhamos nos transformado em animais, e eu não era exceção. Aqueles outros três homens, os inimigos, aqueles robôs de uniforme, provavelmente com mulheres e filhos em algum vilarejo do Norte, não perceberam que eu estava atrás deles. Eu os matei pelas costas, conselheiro. O que Johnny Ringo diria disso? Ou John Wayne?

Connal ficou em silêncio enquanto Joel ia até a mesa para se servir de uísque. O advogado tomou um gole do seu e falou:

— Há algumas horas você disse que sabia de onde eu vinha porque tinha estado lá. Muito bem, não estive onde você esteve, mas começo a compreender de onde você vem. Você realmente odeia tudo o que Aquitânia representa, não é? Especialmente os que a dirigem.

Converse voltou-se.

— Com todas as minhas forças — disse. — Por isso precisamos falar sobre o que aconteceu esta noite.

— Eu já disse, não tive escolha. Você disse que o pessoal da embaixada que eu vi no aeroporto era gente de Delavane. Eu não podia me arriscar.

— Eu sei. Agora nós dois estamos fugindo, caçados por nossa própria gente e protegidos pelos homens que queremos pegar. Pre­cisamos pensar, comandante.

O telefone tocou duas vezes, estridentemente. Fitzpatrick deu um salto da cadeira, sua reação inicial foi de choque. Joel obser­vou-o, acalmou-o com o olhar.

— Desculpe-me — disse Connal. — Ainda estou nervoso. Eu atendo - estou bem. — Foi até o telefone e atendeu: — Ja? — Escutou por alguns segundos, cobriu o bocal com a mão e olhou para Converse. — É a telefonista internacional. São Francisco. É Meagen.

— O que quer dizer Remington — disse Joel, sentindo a gar­ganta subitamente seca, o pulso acelerado.

— Meagen? Sim, estou aqui. O que há? — Fitzpatrick olhou fixamente para a frente enquanto a irmã falava, assentiu várias vezes com a cabeça, os músculos do queixo retesando-se com sua concentração. — Oh, Cristo!... Não, está bem. É verdade, tudo está bem. Você tem o número? — Connal olhou para a pequena mesa do telefone; viu um bloco de recados, mas nenhum lápis. Olhou para Joel, que já correra para a escrivaninha a fim de pegar a caneta do hotel. Fitzpatrick estendeu a mão, apanhou a caneta e escreveu uma série de números. Converse ficou um pouco afastado, quase sem respirar, os dedos apertados no copo. — Obrigado, Meagen. Sei que é uma época dura para você. não precisava de mais isso, mas se tiver de telefonar outra vez, faça a ligação de estação para estação, está bem?... Sim, Meg, dou minha palavra. Até logo. — O oficial desli­gou, deixando a mão sobre o fone por um momento.

— Remington telefonou, não foi? — disse Joel.

— Sim.

— O que aconteceu!

— Alguém tentou liberar o documento confidencial da sua ficha de serviço — disse Fitzpatrick, voltando-se e olhando para Converse. — Está tudo bem. Remington não permitiu.

— Quem foi?

— Não sei. Preciso falar com David. Meagen não tem a mínima idéia do que seja uma “bandeira”, e muito menos de quem você é. A mensagem dizia apenas que foi requerida liberação da “bandei­ra”, mas que ele impediu.

— Então, está tudo bem.

— Foi o que eu disse, mas não está.

— Esclareça, que diabo!

— Há um limite de tempo para a vigência da minha ordem. Só um dia ou dois além do processo de veto...

— Que é de quarenta e oito horas — interrompeu Joel.

— Sim, estou certo disso; é depois disso. Você achou que ia acontecer, mas eu não. Seja quem for que está pedindo a liberação daquela “bandeira”, não é um qualquer. Você poderia sair daquela reunião e algumas horas mais tarde seus novos sócios teriam o material nas mãos. Converse, o homem que odeia Delavane. Será agora o caçador de Delavane?

— Telefone para Remington — Joel foi até as portas do terra­ço, abriu-as e saiu para o pequeno balcão. Pedaços de nuvens esgar­çadas filtravam a luz da lua, e a leste, ao longe, relâmpagos de verão faziam Converse se lembrar do fogo silencioso da artilharia que ele e os outros prisioneiros avistavam nas colinas, sabendo que lá estava o santuário, mas não ao alcance de suas mãos. Ouvia a voz de Fitzpatrick no quarto, tentando uma ligação para San Diego. Joel tirou um cigarro do bolso e acendeu. Talvez por causa do reflexo brilhante que iluminou o movimento, Joel olhou para o lado. A uns dez metros à sua direita, dois balcões depois do seu, um homem o observava. Sua figura aparecia em silhueta contra a luz suave; ele cumprimentou com um gesto de cabeça e entrou. Seria apenas um hóspede que, por coincidência, saíra para tomar ar? Ou Aquitânia o estava vigiando? Converse ouvia a voz do oficial de Marinha falando calmamente; voltou-se e entrou no quarto.

Connal estava sentado no outro lado da mesa. Segurava o fone com a mão esquerda e na direita tinha a caneta, pronta para anotar no bloco de recados. Escreveu alguma coisa e depois disse, rapidamente:

— Espere um pouco. Você disse que Hickman mandou que deixasse tudo como está, mas não lhe revelou o nome do homem que fez o requerimento?... Compreendo. Certo, David, muito obrigado. Vai sair esta noite?... Portanto, se precisar de você, posso telefonar para este número... Sim, eu sei, são esses malditos telefones de So-noma. Qualquer chuva mais forte e não se consegue uma linha, especialmente uma na qual se possa falar claramente. Mais uma vez, obrigado, David. Até logo. — Fitzpatrick desligou e olhou de modo estranho, uma expressão quase de culpa, para Joel. Em vez de dizer alguma coisa, sacudiu a cabeça, respirando fundo e franzindo a testa.

— O que há? O que aconteceu?

— Você trate de conseguir tudo o que puder na reunião de amanhã. Ou hoje?

— Já passa da meia-noite. É hoje. Por quê?

— Porque vinte e quatro horas depois aquele documento vai ser liberado para uma seção do Quinto Distrito Naval — em Norfolk, e é muito poderoso. Eles vão saber tudo o que você não quer que saibam. O limite de tempo e de setenta e duas horas.

— Consiga uma prorrogação!

Connal levantou-se, com expressão de impotência.

— Com que motivo?

— Qual mais? Segurança nacional.

— Teria de explicar as razões, você sabe disso.

— Eu não sei disso. Prorrogações são concedidas para todo tipo de contingências. Você precisa de mais tempo para preparar o caso. Uma fonte ou uma testemunha teve seu depoimento adiado — doença ou acidente. Ou motivos pessoais — que diabo, os funerais do seu cunhado, a dor da sua irmã... tudo isso atrasou seu pro­gresso!

— Esqueça, Joel. Se eu tentasse isso, eles ligariam você com Press e adeus Charlie. Eles o mataram, lembra-se?

— Não — disse Converse com voz firme. — É o contrário. Isso nos separaria mais ainda.

— De que está falando?

— Tenho pensado sobre isso, procurado me colocar na pele de Avery. Ele sabia que estava sendo vigiado, seu telefone provavelmente interceptado. Ele disse que a geografia, a fusão Comm Tech-Bern, o café da manhã, Genebra, tudo tinha de ser lógico; não podia ser de outro modo. No fim daquele café ele disse que, se eu concor­dasse, falaríamos mais tarde.

— E então?

— Ele sabia que tínhamos sido vistos juntos — era inevitável — e acho que ia me instruir sobre o que devia dizer se alguém de Aqui­tânia perguntasse por ele. Press ia me dizer tudo e me dar o impulso que eu precisava para procurar aqueles homens.

— De que diabo você está falando?

— Avery ia me carimbar com o rótulo que me faria entrar na rede de Delavane. Nunca saberemos, mas tenho idéia de que ia me mandar dizer que ele, A. Preston Halliday, suspeitava que eu era um deles, que tinha entrado no negócio da fusão Comm Tech-Bern para me ameaçar, para me deter.

— Espere um pouco — Connal sacudiu a cabeça. — Press não sabia o que você ia fazer, nem como ia fazer.

— Só havia um meio de fazê-lo, e ele sabia disso! Sabia também que eu ia chegar à mesma conclusão quando compreendesse os detalhes. O único meio de deter Delavane e seus marechais-de-campo era me infiltrar em Aquitânia. Por que pensa que todo aquele dinheiro foi posto à minha disposição? Eu não preciso dele e Avery sabia que não podia me comprar. Mas tinha certeza de que poderia ser usado — teria de ser usado para entrar no grupo e começar a falar, começar a coletar provas... Telefone para Remington outra vez. Diga-lhe que prepare a prorrogação.

— Não é Remington, é o comandante da SAND PAC, um almirante chamado Hickman. David disse que eu devia esperar um telefonema dele amanhã. Eu tenho de pensar nisso e telefonar outra vez para Meagen. Hickman está nervoso; ele quer saber quem é você e por que todo esse interesse.

— Você conhece bem esse Hickman?

— Bastante. Estive com ele em New London e Galveston. Ele me requisitou para ser seu CLO em San Diego, e foi isso que me deu esta divisa.

Converse estudou o rosto de Fitzpatrick, depois, sem dizer nada, foi para perto das portas do terraço. Connal não quebrou o silêncio; ele compreendia. Tinha visto muitos advogados, incluindo ele próprio, assaltados por um pensamento que não conseguiam definir, uma idéia que podia ser essencial para o caso. Joel voltou-se lentamente, hesitante, as sombras tênues e abstratas de uma proba­bilidade entrando em foco.

— Faça — começou. — Faça o que eu acho que seu cunhado teria feito. Acabe o que ele teria dito mas não conseguiu dizer. Faça de conta que eu e ele nos encontramos depois daquela conferên­cia. Dê-me o trampolim de que preciso.

— Como você diz, esclarecimento, por favor, conselheiro.

— Apresente a Hickman um roteiro que poderia ter sido escrito por A. Preston Halliday. Diga que o documento tem de continuar secreto porque você tem razões para crer que eu tinha ligação com o assassinato do seu cunhado. Explique que, antes de ir para Genebra, Halliday esteve com você — o que é verdade — e lhe disse que ia se encontrar comigo, um advogado da outra parte no negócio, que ele suspeitava estar envolvido com licenças de exportação ilegais, uma fachada legal para alguns aproveitadores da bolsa de valores. Diga que ele ia me interpelar. Preston Halliday tinha um histórico de causas.

— Não nos últimos dez ou doze anos — corrigiu Fitzpatrick. — Ele entrou para o sistema como vingança e com um saudável res­peito pelo dólar.

— O que conta é a história. Ele sabia disso; foi um dos motivos por que me procurou. Diga que está convencido de que ele me inter­pelou e, uma vez que esse negócio rende milhões, você acha que eu metodicamente o afastei, protegendo-me da culpa por estar presente no momento do crime. Eu tenho fama de ser metódico.

Connal abaixou a cabeça e passou a mão pelos cabelos, depois caminhou pensativamente para a mesa das bebidas. Parou, ergueu os olhos para as gravuras de cavalos de corrida e voltou-se de novo para Converse.

— Você sabe o que está me pedindo?

— Sim. Dê-me o trampolim que me atirará bem no meio daque­les futuros Gêngis-Cãs. Para isso você precisa explicar mais para Hickman. Porque você está envolvido pessoalmente e porque está tão furioso — o que também é verdade —, diga a ele que explique sua posição a quem quer que seja que quer liberar o documento. É assunto não-militar, portanto você vai informar as autoridades civis, contando tudo o que sabe.

— Eu compreendo tudo isso — disse Fitzpatrick. — Tudo o que digo é a verdade como eu a via quando vim para Bonn à sua procura. Só que eu inverto os alvos. Em vez de ser o homem que pode me ajudar, você agora é o homem que eu quero ver destruído.

— Exatamente, conselheiro. E serei recebido por um comitê de boas-vindas na mansão de Leifhelm.

— Então, acho que não compreende.

— O quê?

— Está me pedindo para oficialmente implicar você em um crime de primeiro grau. Eu estarei pondo em você a marca do matador. Quando eu disser isso, não posso retirar minhas palavras.

— Eu sei. Faça isso.

 

George Marcus Delavane torceu o corpo na cadeira atrás da mesa, na frente do mapa estranhamente colorido e fragmentado. Não era um movimento controlado, era uma ação à procura de controle. De­lavane não gostava de obstruções e era exatamente o que um almirante do Quinto Distrito Naval estava explicando a ele nesse mo­mento.

— O status de “bandeira” é Quatro Zero — disse Scanlon. — Para liberá-la teremos de fazer uso dos procedimentos do Pentágono, e não preciso lhe dizer o que isso significa. Dois oficiais superiores, um do serviço secreto naval, mais uma assinatura de reforço da Agência Nacional de Segurança; tudo isso deve aparecer na folha de reque­rimento, bem como declaração do nível do inquérito, desse modo escalando o requerimento para demanda de setor. Ora, general, podemos fazer tudo isso, mas correremos o risco...

— Eu conheço o risco — interrompeu Delavane. — As assina­turas são o risco, as identidades são o risco. Por que o Quatro Zero? Quem determinou e por quê!

— O oficial chefe do departamento jurídico do SAND PAC. Eu o investiguei. É um capitâo-de-corveta chamado Fitzpatrick e nada na sua ficha indica por que fez isso.

— Vou lhe dizer por quê — disse o senhor da guerra de Saigon. — Ele está escondendo alguma coisa. Está protegendo esse Con­verse.

— Por que um oficial chefe jurídico da Marinha iria proteger um civil nessas circunstâncias? Não há nenhuma conexão. Além disso por que usar a condição Quatro Zero? Só serve para chamar a atenção.

— E também põe uma tampa no documento — Delavane fez uma pausa, depois continuou, antes que o almirante pudesse inter­romper: — Esse Fitzpatrick — disse. — Já verificou a lista-mestra?

— Ele não é um dos nossos.

— Alguma vez foi considerado como possibilidade? Ou foi procurado para isso?

— Não tive tempo para verificar. — Ouviu-se uma cigarra, fora da linha que eles estavam usando. Scanlon apertou o botão e Dela­vane ouviu a voz dele clara e formal: — Sim? — Silêncio, e alguns segundos mais tarde o almirante voltou para Palo Alto. — É Hickman outra vez.

— Talvez ele tenha alguma coisa para nós. Telefone depois.

— Hickman não nos daria coisa alguma se desconfiasse da nossa existência — disse Scanlon. — Em algumas semanas, ele será um dos primeiros a sair. Se dependesse de mim, seria fuzilado.

— Telefone depois — disse George Marcus Delavane, olhando para o mapa da nova Aquitânia na parede.

 

Chaim Abrahms estava sentado na cozinha de sua pequena casa de pedra estilo mediterrâneo, em Tzahala, um subúrbio de Telavive, favorecido pelos militares e pelos que tinham dinheiro ou influência suficientes para morar ali. As janelas estavam abertas e a brisa do jardim agitava levemente o ar pesado da noite de verão. Tinha ar condicionado em dois cômodos e ventiladores de teto em outros três, mas Chaim gostava da cozinha. Nos velhos tempos, ele e seus ho­mens sentavam-se em cozinhas primitivas e planejavam os ataques; no Negev, muitas vezes a munição era passada para os homens enquanto uma galinha do deserto assava no forno a lenha. A cozinha era a alma da casa. Dava calor e sustento ao corpo, iluminando a mente para as táticas — desde que as mulheres saíssem quando terminavam o serviço e não interrompessem os homens com suas incessantes frivolidades. Sua mulher estava dormindo no an­dar superior; assim era melhor. Ele tinha muito pouco para conver­sar com ela, e ela com ele; ela não podia ajudá-lo agora. E, se pudesse, não o faria. Tinham perdido um filho no Líbano, o filho dela, como costumava dizer, um professor, um erudito, não um soldado, não um matador por vontade própria. Muitos filhos tinham morrido dos dois lados, dizia ela. Os velhos, dizia, os velhos conta­giavam os jovens com seus ódios e usavam lendas bíblicas para justificar a morte em busca de terras cuja posse era questionável. Morte, exclamava ela. Morte em lugar de palavras que pudessem evitá-la! Ela tinha se esquecido dos velhos tempos; muitos esquecem depressa. Chaim Abrahms não tinha se esquecido e jamais esque­ceria.

E seu olfato estava tão agudo como sempre. Esse advogado, esse Converse, esse falatório! Tudo era muito inteligente; tinha o fedor das mentes frias e analíticas, não o calor dos crentes. O especialista do Mossad era o melhor, mas até o Mossad comete erros. O espe­cialista procurava um motivo, como quem faz a dissecção de um cérebro humano e diz: esta ação provoca tal reação; esta punição provoca aquele compromisso com a vingança. Muito inteligente! Um crente era alimentado pelo calor das suas convicções. Elas eram seus únicos motivos, e não precisavam de manipulações inteligentes.

Chaim sabia que era um homem simples, direto, mas não por ser pouco inteligente ou por lhe faltarem percepções sutis; sua eficiência no campo de batalha provava o contrário. Era direto porque sabia o que queria, e era perda de tempo querer ser esperto. Todos esses anos tinha vivido com suas convicções e nunca encontrara um crente que perdesse tempo.

Esse Converse sabia o bastante para encontrar Bertholdier em Paris. Mostrou o quanto sabia quando mencionou Leifhelm, em Bonn e especialmente Telavive e Joanesburgo. O que mais podiam provar? Por que provar se ali estava sua crença? Por que não apre­sentava seu caso com sua primeira conexão, sem perder tempo?... Não, esse advogado, esse Converse, era de algum outro lugar. O especialista do Mossad disse que o motivo era se afiliar ao grupo. Estava errado. O calor vermelho rubro do crente não estava presen­te. Só inteligência, só palavras.

E o especialista não tinha ignorado o olfato de Chaim. Nem podia, pois os dois sabras tinham lutado juntos durante anos, e vezes sem conta, contra os europeus, com seus modos coniventes — aque­les imigrantes que brandiam o Velho Testamento como se eles o ti­vessem escrito, chamando os verdadeiros habitantes de Israel de bandidos e palhaços ignorantes. O especialista do Mossad respei­tava seu irmão sabra; via-se no seu olhar esse respeito. Ninguém podia ignorar os instintos de Chaim Abrahms, filho de Abraão, arcanjo das trevas para os inimigos dos filhos de Abraão. Graças a Deus sua mulher estava dormindo.

Estava na hora de falar com Palo Alto.

— Meu general, meu amigo.

— Shalom, Chaim — disse o senhor da guerra de Saigon. — Está a caminho de Bonn?

— Vou partir amanhã de manhã — nós vamos partir. Van Headmer está viajando agora. Vai chegar ao Ben Gurion às oito e trinta, e juntos tomaremos o avião para Frankfurt, onde o piloto de Leifhelm deverá estar à nossa espera com o Cessna.

— Ótimo. Vocês podem conversar.

— Nós precisamos conversar agora — disse o israelense. — O que mais soube sobre esse Converse?

— Ele se tornou um enigma, Chaim.

— Sinto o cheiro de fraude.

— Eu também, mas talvez não a fraude do tipo que eu pensei. Você sabe qual foi a minha opinião. Pensei que não passasse de um observador avançado, alguém que estivesse sendo usado por homens mais bem informados — entre eles Lucas Anstett — pata obter informações complementares e confirmar boatos. Não estou igno­rando um certo grau de quebra de sigilo de menor importância; devem ser previstos e resolvidos, como resultado de paranóia.

— Vá direto ao assunto, Marcus — disse Abrahms impaciente. Sempre chamava Delavane pelo seu segundo nome. Para ele era um nome hebreu, apesar de o pai de Delavane ter insistido nele para homenagear o césar romano — o filósofo Marco Aurélio, um prosé­lito da moderação.

— Hoje aconteceram três coisas — continuou o ex-general em Palo Alto. — A primeira me deixou furioso porque não entendi, e, francamente, me preocupou, porque parecia indicar uma penetração muito maior do que a que julguei ser possível a um setor que eu considerava impossível.

— O que foi? — interrompeu o israelense.

— Foi colocada uma proibição definitiva em parte da ficha de serviço de Converse.

— Sim! — exclamou Abrahms triunfantemente.

— O quê?

— Continue, Marcus! Eu lhe direi quando terminar. Qual foi a segunda calamidade?

— Não calamidade, Chaim. Uma explicação oferecida com tanta boa vontade que não pode ser ignorada. Leifhelm telefonou dizendo que o próprio Converse falou sobre a morte de Anstett, afirmando que ela o aliviou, mas sem dizer muito mais, a não ser que Anstett era seu inimigo — essa foi a palavra que ele usou.

— Seguindo instruções! — a voz de Abrahms ecoou na cozinha. — Qual foi a terceira dádiva, meu general?

— A mais intrigante, bem como a mais esclarecedora — e, Chaim, não grite no telefone. Não está num dos seus comícios no estádio, nem provocando o Knesset.

— Estou no campo, Marcus. Neste momento! Por favor, con­tinue, meu amigo.

— O homem que colocou o tampão na ficha militar de Con­verse é um oficial de Marinha, cunhado de Preston Halliday.

— Genebra! Sim!

— Pare com isso!

— Mil desculpas, meu caro amigo. Mas tudo é tão perfeito!

— Seja lá o que for que está pensando — disse Delavane — pode ser negado pelas razões apresentadas por ele. O oficial de Marinha, esse cunhado, acredita que Converse mandou matar Halliday.

— Naturalmente! Perfeito!

— Queira falar mais baixo! — O grito do gato através do lago gelado.

— Mais uma vez minhas desculpas sinceras, meu general. E foi tudo o que esse oficial de Marinha disse?

— Não, deixou bem claro para o comandante da sua base em San Diego que Halliday o procurou e disse que ia se encontrar com um homem em Genebra, o qual acreditava estar envolvido em expor­tações ilegais com destino ilegal. Um advogado para os que lucram com armamentos. Ele pretendia interpelar esse homem, esse advoga­do internacional chamado Converse e ameaçá-lo de revelar tudo o que sabia. O que acha que temos aí?

— Uma fraude!

— Mas de que lado, sabra? O volume de sua voz não me convence.

— Pois fique convencido! Eu estou certo. Esse Converse é o escorpião do deserto!

— O que quer dizer com isso?

— Você não compreende? O Mossad compreende!

— O Mossad?

— Sim! Falei com o nosso especialista e ele sente também o que eu farejo — admite a possibilidade! Eu lhe garanto, meu general, meu honrado guerreiro, ele possui informação que leva a acreditar que esse Converse é sincero, que realmente quer ser um dos nossos, mas quando eu disse que sentia o cheiro de carne podre, ele admitiu uma outra possibilidade excepcional. Converse pode ser programado ou não, mas pode ser um agente do governo!

— Um provocador?

— Quem sabe, Marcus? Mas o quadro é tão perfeito. Primeiro, a proibição da sua ficha de serviço — isso nos alertaria, é claro. Depois, reage negativamente à morte de um inimigo — não dele, mas nosso, e afirma que era seu inimigo também —, tão simples, tão evidente. Por fim, insinuam que esse Converse é o responsável pelo crime de Genebra — tudo tão ordenado, tão arrumado a seu favor. Estamos tratando com mentes muito analíticas que estudam cada movimento do tabuleiro de xadrez e respondem a cada peão com um rei.

— Mas tudo isso que está dizendo pode ser invertido. Ele podia ser...

— Ele não pode ser! — exclamou Abrahms.

— Por quê, Chaim? Diga-me por quê.

— Não há nenhum calor, nenhuma chama nele! Não age como um crente! Nós não somos inteligentes, somos intransigentes!

George Marcus Delavane ficou calado por alguns momentos, e o israelense teve o bom senso de não dizer nada. Esperou que a voz calma voltasse.

— Realizem a reunião amanhã, general. Ouçam o que ele tem a dizer e sejam delicados; façam o jogo dele. Mas não o deixem sair daquela casa sem minha ordem. Talvez ele nunca saia.

— Shalom, meu amigo.

— Shalom, Chaim.

 

Valerie aproximou-se das portas de vidro do seu estúdio — iguais às do terraço do andar superior — e olhou para o mar calmo e enso­larado de Cape Ann. Pensou no barco que tinha ancorado na frente de sua casa algumas noites atrás, e que a deixara tão assustada. Não voltara; o que quer que fosse, pertencia ao passado, deixando in­terrogações sem resposta. Fechando os olhos podia ver ainda a figura do homem saindo da cabine, o brilho do cigarro, e tentava ainda adivinhar o que ele estaria fazendo naquele momento, em que estaria pensando. Então, lembrou-se dos dois homens à luz do nascente, emoldurados pela circunferência escura do seu binóculo — com suas lentes muito mais possantes assestadas para ela. Seriam marinheiros novatos procurando um porto seguro? Amadores navegando ao longo da costa à noite? Perguntas, nenhuma resposta.

Mas tudo isso agora era passado. Um interlúdio breve e estranho que provocava negros pensamentos — demônios à procura de lógica, como diria Joel.

Afastou para o lado o cabelo escuro e longo e voltou ao cavalete, escolhendo um pincel e dando as pinceladas finais de castanho-escuro sob as dunas de areia cobertas de relva. Deu um passo atrás, estudou o trabalho e pela quinta vez jurou que o quadro estava terminado. Era outra marinha; nunca se cansava delas, e felizmente começava a conseguir uma boa parte do mercado. Naturalmente havia os pintores do eixo Boston-Boothbay, convencidos de que ela praticamente tomara conta do mercado, mas isso era tolice. Na verdade, seus preços tinham-se elevado satisfatoriamente graças à critica favorável às duas exposições nas Galerias Copley, mas era ainda com dificuldade que conseguia morar onde morava e, se não fosse o cheque mensal de Joel, teria sido impossível.

Nem todos os artistas tinham uma casa na praia com estúdio de seis por nove metros com portas de vidro e um teto que era uma imensa clarabóia. O resto da casa, a parte original, na extremidade norte de Cape Ann, era mais pitoresco do que funcional. A arqui­tetura inicial era uma confusão de estilo antigo da costa, com uma infinidade de madeira branqueada e arabescos, um terraço com balaustrada no segundo andar, enormes janelas salientes no quarto da frente, bonitas para se ver e para olhar por elas, mas que deixa­vam entrar água quando sopravam os ventos ferozes do oceano. A massa de vidraceiro e caixilhos especiais não surtiam o menor efeito; a natureza cobrava um preço para ser apreciada.

Era, porém, a casa dos sonhos de Val, a casa que prometera a si mesma há muitos anos. Voltara da Ecole des Beaux Arts de Paris, preparada para tomar Nova Iorque de assalto, artisticamente, se­guindo o rumo Greenwich-Village-Woodstock, mas a realidade al­terou seus planos. A situação da sua família sempre lhe permitira viver confortavelmente, sem luxo, com três anos na universidade e dois em Paris. Seu pai era um pintor amador excessivamente en­tusiástico e medíocre que estava sempre se lamentando por não ter tido a coragem de abandonar a arquitetura para se dedicar à arte. Como resultado, deu todo o apoio à filha única, tanto moral quanto financeiro, de certa forma vivendo o progresso dela e devotando-se à determinação de Val. A mãe — vagamente desequilibrada, sempre amorosa, sempre apoiando Valerie em tudo — tirava terríveis fotos do trabalho mais elementar da filha e as mandava para a irmã e primos na Alemanha, escrevendo mentiras absurdas, falando de galerias, museus e encomendas insanas.

— A doida Berlinerin — dizia o pai ternamente, com seu pesa­do sotaque gaulês. — Você precisava vê-la durante a guerra. Nós quase morremos de medo! Estávamos sempre esperando que ela voltasse ao quartel-general com um Goebbels embriagado ou um Göring, drogado, dizendo que, se quiséssemos Hitler, era só dizer!

O pai de Valerie tinha sido oficial de ligação dos franceses livres entre os Aliados e o movimento subterrâneo alemão de Berlim. Um parisiense formal e autócrata que falava bem o alemão fora desig­nado para a célula de Charlottenburg, que coordenava todas as atividades do movimento subterrâneo de Berlim. Sempre dizia que teve mais trabalho para conter a Fraulein entusiasmada e de idéias impetuosas do que para evitar os nazistas. No entanto, eles se ca­saram dois meses depois do armistício. Em Berlim. Onde as duas famílias se negaram a qualquer aproximação. “Tínhamos duas pe­quenas orquestras”, costumava dizer a mãe. “Uma tocava a pura e bela Schnitzel vienense, a outra um molho branco e cremoso com fezes de veado.”

Se foi por causa dessa animosidade entre as famílias, eles nunca disseram, o fato é que o parisiense e a alemã de Berlim emigraram para Saint Louis, Missouri, nos Estados Unidos da América, onde ela tinha parentes afastados.

A realidade nua e crua. Há nove anos, depois de ter ela se instalado em Nova Iorque, vinda de Paris, o pai assustado e choroso a visitara, contando a Valerie a terrível verdade. Sua amada e doida berlinense estava doente há muitos anos; era câncer e estava à morte. Desesperado, gastara quase tudo o que tinha, incluindo três hipote­cas não-resgatadas sobre a pitoresca casa de Bellefontaine, tentando conter o curso da moléstia. Grande parte do dinheiro fora para clínicas no México; era tudo o que ele podia dizer. Chorava o tempo todo e suas lágrimas nada tinham a ver com o dinheiro gasto. E Valerie acalentou o pai e perguntou por que não lhe tinham dito antes.

— Não era a sua luta, ma chérie. Era a nossa. Desde Berlim, sempre fomos só nós dois. Lutamos juntos então; lutamos agora como sempre — como um só.

A mãe de Valerie morreu seis dias depois, e seis meses mais tarde o pai acendeu um Gauloise na varanda fechada e adormeceu miseri­cordiosamente, para não acordar. Valerie não podia chorar. Era um choque, mas não uma tragédia. Onde quer que ele estivesse, era exatamente onde desejava estar.

Então Valerie Charpentier saiu à procura de um emprego, uma atividade que não dependesse das vendas dos quadros de uma artista desconhecida. Ficou admirada ao constatar que não só era fácil conseguir emprego, como também ele nada tinha a ver com a espessa pasta de desenhos e linhas que ela apresentou. A segunda agência de publicidade que procurou interessou-se mais pelo fato de Valerie falar alemão e francês fluentemente do que por seus desenhos. Era a época das corporações, das alianças multinacionais, quando uma única companhia tinha lucros nos dois lados do Atlântico. Valerie Charpentier, artista estagiária dentro da firma, tornou-se um pau para toda obra, no exterior. Uma funcionária que desenhava rapida­mente, fazia apresentações e falava algumas línguas, e ela detestava isso. Mas era uma vida notável para quem previra um período de tempo antes que seu nome numa tela significasse alguma coisa.

Então um homem entrou em sua vida, que a fez esquecer todos os outros que tinha conhecido. Um homem bom, um homem decente — até mesmo um homem excitante —, que tinha os próprios pro­blemas mas não falava sobre eles, recusava-se a falar sobre eles, e isso devia lhe ter dado uma pista. Joel, o seu Joel, efusivo num minuto, reservado no outro, mas sempre com aquele escudo prote­tor, aquela fachada de humor inteligente, muitas vezes tão irônico quanto divertido. Durante algum tempo foi bom para os dois. Mas suas ambições tinham alvos diferentes — a dela era motivada pela independência trazida pela fama, a dele pelos anos perdidos que não podia recuperar — e ambos serviam mutuamente de amortecedor para os desapontamentos e adiamentos. Mas tudo começou a se desmoronar. As razões eram dolorosamente claras para ela, mas não para ele. Joel deixou-se hipnotizar pelo próprio progresso, pela própria determinação, excluindo todo o resto, inclusive ela. Ele jamais erguia a voz ou fazia exigências, mas as palavras eram geladas e as exigências cada vez mais subentendidas. Se houve um momento definido em que ela reconheceu que tudo estava se desfazendo, foi numa noite de sexta-feira, em novembro. A agência queria que ela fosse a Berlim; uma conta da Telefunken requeria serviço rápido e pessoal e Valerie foi escolhida para acalmar as águas encapeladas. Estava arrumando as malas quando Joel chegou em casa. Ele entrou no quarto do apartamento e perguntou o que ela estava fazendo, aonde ia. Quando Valerie lhe disse, Joel observou: “Não pode. Os Brooks nos esperam amanhã à noite em Larchmont. Talbot e Simon vão estar lá. Tenho certeza de que vamos falar sobre o trabalho internacional. Você precisa ir.”

Valerie olhou para ele, viu o desespero nos olhos do marido. Não foi à Alemanha. Foi o momento decisivo; a corrida morro abaixo começou e depois de poucos meses ela reconheceu que es­tavam perto do fim. Deixou a agência, passando ao trabalho árduo de free-lancer, na esperança de que tendo mais tempo para se dedicar a Joel salvaria o casamento. Não salvou; aparentemente ele ficou ressentido com o sacrifício, por mais que ela tentasse ocultar as dificuldades. Seus períodos de distanciamento aumentaram e, de certa forma, ela sentia pena dele. Joel estava sendo impelido por suas fúrias e obviamente não gostava do que estava acontecendo; não gostava do que estava se tornando, mas não podia fazer nada a respeito. Caminhava para a própria destruição e ela não podia ajudá-lo.

Se houvesse outra mulher, ela podia ter lutado, usando suas reivindicações legítimas, insistindo no direito de competir, mas não havia ninguém, apenas Joel e suas compulsões. Finalmente, ela compreendeu que não podia atravessar aquele escudo; Joel não tinha nada mais para oferecer a quem quer que fosse, emocionalmente. Foi então que ela disse agressivamente: “Destruição emocional!” Joel concordou, com aquela voz tranqüila e bondosa e no dia seguinte Valerie foi embora.

E então ela fez exigências. Quatro anos, o mesmo tempo que ele tinha tirado dela. Aqueles quatro anos de extraordinária generosida­de estavam para acabar, refletiu Valerie, enquanto limpava os pin­céis e a palheta. Em janeiro terminariam, o último cheque, como sempre depositado no dia 15. Há cinco semanas, quando almoçavam juntos no Ritz, em Boston, Joel se oferecera para continuar os paga­mentos. Afirmou que estava acostumado com eles e que ganhava mais em salário e bonificações do que podia gastar. Dinheiro não era problema, e além disso dava-lhe uma certa importância entre seus pares; e era também um ótimo meio de evitar relacionamentos pro­longados. Ela declinou, usando palavras do pai, ou talvez fosse melhor dizer da mãe, e disse que as coisas estavam muito melhores. Joel sorriu, com aquele sorriso meio triste mas contagioso, e disse: “Se ficarem piores, estou aqui.”

Para o diabo com ele!

Pobre Joel. Triste Joel. Era um homem bom, apanhado no vórtice dos próprios conflitos interiores. E Valerie tinha ido até onde podia — continuar teria sido negar sua própria identidade. E ela não faria isso; não tinha feito.

Colocou os pincéis na bandeja e foi até as portas de vidro que se abriam para as dunas e para o oceano. Ele estava lá, muito longe, em algum lugar da Europa. Valerie perguntou a si mesma se ele teria se lembrado do dia. Era o aniversário do seu casamento.

 

Resumindo, Chaim Abrahms foi moldado na tensão e no caos da luta pela sobrevivência quotidiana. Foram anos de escara­muças, de sobrepujar e sobreviver a inimigos decididos a eliminar não só todas as comunidades dos sabras, mas também as­pirações de um solo pátrio, liberdade política e religiosa aos judeus do deserto. Não é difícil compreender de onde ele veio e por que e o que é, mas é assustador pensar em para onde está indo. É um fanático sem nenhuma noção de equilíbrio ou de compromisso no que se refere a outros povos com aspi­rações idênticas. Se um homem tem algo diferente, seja da mes­ma espécie ou não, é um inimigo. As forças armadas têm pre­cedência sobre qualquer tipo de negociação, e mesmo os que, em Israel, pleiteiam atitudes mais moderadas, baseadas em fronteiras completamente seguras, são chamados de traidores. Abrahms é um imperialista que vê uma Israel em constante ex­pansão como o reino governante de todo o Oriente Médio. Uma conclusão apropriada para esse relatório é o comentário fei­to por ele sobre conhecida declaração do primeiro-ministro, durante a invasão do Líbano:”Nós não queremos nem um centí­metro do Líbano.” A resposta de Abrahms no campo, para suas tropas, de modo nenhum uma maioria que o aprovava, foi a se­guinte:

“Naturalmente, não queremos um centímetro! Mas todo o maldito país! E depois Gaza, o Golan e a Margem Oeste! E por que não a Jordânia, depois a Síria e o Iraque! Temos os meios e temos a vontade! Somos os poderosos filhos de Abraão!”

Este é o homem-chave de Delavane no volátil Oriente Mé­dio.

 

Era quase meio-dia e o sol escaldante incendiava o pequeno terraço com portas de vidro. Os restos do café tardio da manhã já tinham sido levados do quarto; sobre a mesa havia apenas uma terrina de prata. Os dois estavam lendo desde as seis, quando toma­ram a primeira xícara de café. Converse pôs o dossiê de lado e apanhou o cigarro na mesa ao lado da poltrona. Não é difícil compreender de onde Abrahms veio... mas é assustador pensar em para onde está indo. Joel olhou para Connal Fitzpatrick, que estava sentado no sofá, inclinado sobre a mesa de café, lendo uma única página e tomando notas no bloco de recados telefônicos; os dossiês Bertholdier e Leifhelm estavam arrumados em duas pilhas à sua esquerda. O advogado da Marinha disse quase as mesmas palavras, pensou Converse, acendendo o cigarro. Começo a compreender de onde você vem... E a pergunta surgida na mente de Joel era simples: e para onde estava indo? Gostaria de saber. Seria um inepto gla­diador entrando na arena romana para enfrentar um talento muito mais forte, mais bem armado e superior? Ou os demônios do seu passado o estavam dando em sacrifício na areia escaldante da arena onde esperavam os felinos ferozes e famintos, prontos a saltar sobre ele e despedaçá-lo? Tantas perguntas, tantas variáveis que ele era incapaz de enfrentar. Só sabia que era impossível voltar atrás.

Fitzpatrick ergueu os olhos.

— O que há? — perguntou, percebendo que Converse olhava para ele. — Está preocupado com o almirante?

— Com quem?

— Hickman, San Diego.

— Entre outras coisas. À luz clara do dia você está certo de que ele concordou com a prorrogação?

— Não posso garantir, mas eu lhe disse que ele vai telefonar se houver alguma emergência. Estou certo de que não fará nada sem me consultar. Se ele tentar me encontrar, Meagen sabe o que fazer e eu vou entrar de sola. Se for preciso, declaro que é caso de privilégio pessoal e peço uma reunião com os anônimos do Quinto Distrito, talvez chegue mesmo a sugerir que eles têm algo a ver com Genebra. Esse seria o círculo completo. Podemos acabar empatados — a liberação do documento só depois de uma investigação em alta escala, das circunstâncias. Ironia e empate.

— Você não terá um empate se o almirante estiver com eles. Ele passará por cima de sua ordem.

— Se estivesse com eles, não teria dito a Remington que ia me telefonar. Não teria dito nada; teria esperado mais um dia e pronto. Eu o conheço. Ele não estava só intrigado, estava zangado. O almi­rante está sempre do lado dos seus homens e não gosta de pressões externas, especialmente da Marinha. Estamos por cima e, enquanto estivermos, o documento está a salvo. Eu já disse, ele está muito mais zangado com Norfolk do que comigo. Eles nem sequer lhe apresen­taram um motivo, dizem que não podem.

Converse assentiu com a cabeça.

— Certo — disse ele. — Vamos dizer que estou nervoso. Acabei de ler o dossiê de Abrahms. Aquele maníaco pode explodir o Oriente Médio sozinho e arrastar todos nós com ele... O que achou de Leifhelm e Bertholdier?

— Segundo as informações, são tudo o que você disse e mais ainda. São mais do que generais influentes com muito dinheiro, eles são símbolos poderosos do que muita gente considera extremos justificados. A informação só vai até aí — mas a palavra de ope­ração para mim é a própria informação. De onde veio?

— isso é um passo atrás. Está aí.

— Sim, está, mas como? Você diz que Beale o deu para você. Que Press usou as expressões “nós” — “os homens que estamos procurando”, “os instrumentos que nós podemos lhe dar”, “as co­nexões como pensamos que são”.

— E falamos sobre isso — insistiu Joel. — O homem em São Francisco, o que forneceu os quinhentos mil e mandou Avery estru­turar casos legais contra essa gente, para depois, juntos, os apresen­tarmos como simples aproveitadores. É o máximo do ridículo para superpatriotas. Parece-me razoável, conselheiro, e isso é o nosso “nós”.

— Press e esse homem desconhecido de São Francisco?

— Sim.

— E eles podem pegar um telefone e mandar alguém fazer estes relatórios! — Fitzpatrick apontou para os dois dossiês à sua esquerda.

— Por que não? Estamos na era do computador. Ninguém mais vive numa ilha que não consta no mapa ou numa caverna ainda não-descoberta.

— Isso — disse Connal — não é produto de computador. São dossiês feitos com pesquisa cuidadosa, detalhada e profunda, que registram a importância de nuanças políticas e idiossincrasias individuais.

— Você é bom com as palavras, marinheiro. Sim, tem razão. Um homem que pode mandar meio milhão de dólares para deter­minado banco de uma ilha do Egeu pode empregar quem ele quiser.

— Não esses.

— O que quer dizer?

— Vamos voltar um pouco atrás — disse o advogado da Mari­nha, levantando-se e apanhando a folha de papel que estava lendo. — Não vou repetir os detalhes do meu relacionamento com Press, porque são dolorosos para mim. — Fitzpatrick fez uma pausa, vendo a expressão de Converse, que claramente rejeitava esse tipo de senti­mentalismo. — Não interprete mal — continuou. — Não falo da sua morte, do seu funeral, mas de outra coisa completamente diferente. Não falo do Press Halliday que eu conheci. Compreenda, acho que ele também não nos disse a verdade, para você ou para mim.

— Então você sabe de alguma coisa que eu não sei — disse Converse em voz baixa.

— Eu sei que não existe homem nenhum em São Francisco que combine com a imagem que ele descreveu para você. Morei toda a vida em São Francisco, estudei em Berkeley e Stanford, como Press. Eu conhecia todo o mundo que ele conhecia, especialmente os mais ricos e mais excêntricos; nunca escondemos nossas amizades um do outro. Eu estava a um mundo de distância de me formar e ele me informava sobre os novos que apareciam. Para ele, fazia parte do nosso divertimento.

— Isso é muito tênue, conselheiro. Tenho certeza de que ele devia ter amizades particulares.

— Não desse tipo — disse Connal. — Não era próprio dele. Não no que se refere a mim.

— Bem, eu...

— Agora, deixe-me ir um pouco mais adiante — interrompeu Fitzpatrick. — Esses dossiês — é a primeira vez que os vejo, mas já vi centenas iguais, talvez uns mil, a caminho de se tornarem idênticos a estes.

Joel endireitou-se na cadeira.

— Por favor, explique isso, comandante.

— Você acaba de dizer, tenente. A patente diz tudo.

— Diz o quê?

— Esses dossiês são produtos revisados e complementados de investigações do serviço secreto, utilizando partes de dados militares. Foram distribuídos pela comunidade, cada seção contribuindo para a informação — desde dados biográficos simples até supervisão passada e avaliação psiquiátrica — e coligidos por uma equipe de especialistas. Foram tirados dos cofres do governo e reestruturados, com adições e conclusões atuais, depois organizados para parecerem o trabalho de alguém de fora, autoridades não-gover-namentais. Mas não são. Em todos eles está escrito claramente: Confidencial, Extre­mamente Secreto, e Só para Ler.

Converse inclinou-se para a frente.

— Isso pode ser um julgamento subjetivo baseado em familiaridade limitada. Já vi relatórios bem detalhados, muito profundos, feitos por firmas caras que se especializam nesse tipo de coisa.

— Descrevendo com precisão incidentes militares da guerra? Localizando bombardeios e especificando regimentos e batalhões e as estratégias empregadas? Detalhando através de entrevistas os con­flitos entre oficiais de patente inimigos e as razões táticas para transferir pessoal militar para posições civis, depois da cessação das hostilidades? Nenhuma firma teria acesso a esse material.

— Podiam investigar — disse Joel, subitamente em dúvida.

— Bem, não este material — interrompeu Connal, segurando a folha com nomes datilografados, o polegar nas duas últimas colunas que relacionavam os “homens que tomam decisões” no Pentágono e no Departamento de Estado. — Talvez cinco ou seis — três de cada coluna, no máximo — mas não o resto. Esses homens estão acima daqueles com quem tenho tratado, executam seu trabalho sob vários títulos para não serem identificados — subornados, chantageados ou ameaçados. Quando você disse que tinha nomes, pensei que reconhe­ceria a maior parte deles. Não reconheço. Só conheço os executivos do departamento, o pessoal do escalão superior que precisa ir mais alto ainda e que obviamente entrega seus relatórios a essas pessoas. Press não poderia ter conseguido esses nomes sozinho, nem através de pessoas de fora. Ele não saberia onde procurar e eles também não — eu não saberia.

Converse levantou-se.

— Tem certeza do que está falando?

— Sim. Alguém — provavelmente mais de uma pessoa — com acesso aos porões mais secretos de Washington forneceu estes no­mes, bem como o material para os dossiês.

— Sabe o que está dizendo?

Connal ficou imóvel e depois assentiu com a cabeça.

— Não é fácil para mim dizer — começou com ar sombrio. — Press mentiu para nós. Mentiu para você no que disse, e para mim no que não disse. Você está amarrado a um fio e ele vai diretamente a Washington. E eu não devia saber nada a esse respeito.

— O fantoche está no lugar... — Joel falou tão baixo que Connal quase não conseguiu escutar, e caminhou para o sol brilhante que entrava pela janela do terraço.

— O quê? — perguntou Fitzpatrick.

— Nada, apenas uma frase que me veio à cabeça quando eu soube da morte de Anstett. — Converse voltou-se. — Mas se há um fio, por que o ocultaram? Por que Avery o escondeu? Com que objetivo?

O advogado da Marinha ficou imóvel, o rosto inexpressivo.

— Acho que não preciso responder. Você respondeu ontem à tarde quando estava falando de mim — e não pense que eu não sabia exatamente o que queria dizer, tenente. “Eu lhe direi um nome, uma vez ou outra, que talvez possa abrir uma porta... mas isso é tudo.” Essas foram suas palavras. Livremente traduzidas, você estava di­zendo a si mesmo que o marinheiro que aceitou a bordo podia descobrir alguma coisa, mas, se fosse apanhado pela gente errada, eles não poderiam obrigá-lo a dizer o que não sabia.

Joel aceitou a censura, não só por ser merecida, mas também porque esclarecia uma verdade maior, uma que ele não compreen­dera em Miconos. Beale dissera que entre aqueles que estavam crian­do questões em Washington havia militares que, por um motivo ou outro, não prosseguiram em suas investigações; tinham ficado em silêncio. Tinham mantido silêncio onde podiam ser ouvidos por pessoas erradas, talvez, mas não ficaram em silêncio total. Falaram em voz baixa, até que outra voz discreta de São Francisco — um homem que sabia como conseguir favores de um cunhado em San Diego — fizesse contato. Conversaram então, e dessas conversações secretas nasceu um plano. Precisavam de alguém para se infiltrar, um homem experiente, com o tipo de revolta para a qual eles tinham o combustível necessário e que, uma vez em ignição, podia ser lançado no labirinto.

A idéia foi um choque, mas estranhamente Joel não censurava a estratégia! Nem mesmo o silêncio mantido depois do assassinato de Preston Halliday; vozes vibrantes e acusadoras teriam feito com que essa morte não tivesse sentido. Mas eles continuaram silenciosos, sabendo que o fantoche deles tinha os instrumentos para abrir cami­nho através do labirinto das ilegalidades e realizar o trabalho que eles não podiam fazer. Compreendeu isso também. Mas uma coisa Con­verse não podia aceitar. A própria situação de objeto de sacrifício, como fantoche. Tinha tolerado a falta de proteção nas condições descritas por Avery Fowler-Preston Halliday, mas não nas condições presentes. Se estava amarrado a um fio, queria que seus manipulado­res soubessem que sabia. Queria ainda o nome de alguém em Bonn com quem pudesse comunicar-se, alguém que fosse da equipe. As re­gras antigas já não se aplicavam, uma nova dimensão fora acrescen­tada.

Dali a quatro horas seria conduzido através dos portões de ferro da mansão de Erich Leifhelm; queria alguém do lado de fora, um homem que Fitzpatrick pudesse procurar, se ele não voltasse até a meia-noite. Os demônios estavam fazendo, pressão, pensou Joel. Mas, ainda assim, não podia voltar atrás. Estava tão perto de apa­nhar o senhor da guerra de Saigon, tão perto de compensar tanta coisa que havia deturpado sua vida de um modo que ninguém com­preendia... Não, não “ninguém”, refletiu. Uma pessoa compreendia e tinha dito que não podia mais ajudá-lo. E não seria justo agora procurar sua ajuda.

— O que resolveu? — disse Connal.

— O que resolvi? — perguntou Joel, sobressaltado.

— Não precisa ir esta tarde. Jogue tudo fora! Isso pertence ao Estado, ao FBI, em conjunto com a CIA. Admira-me que não tenham seguido esse caminho.

Converse abriu a boca para responder, e parou. Precisava ficar bem claro, não só para Fitzpatrick, como para ele mesmo. Pensou que tinha compreendido. Vira a expressão de profundo pânico nos olhos de Avery Fowler — nos olhos de Preston Halliday — e ouvira o brado em sua voz. As mentiras eram sua estratégia, mas o olhar e o brado eram seus sentimentos mais íntimos.

— Já lhe ocorreu, comandante, que eles não podem seguir esse caminho? Que talvez não estejamos falando de homens que podem pegar um telefone — como você disse — e colocar essas engrena­gens em movimento? Ou que, se tentassem, seriam decapitados, talvez literalmente, com uma censura oficial e uma bala na nuca? Deixe que lhe diga, não acho que temam por si próprios, como não acredito que tenham escolhido o melhor homem para o trabalho, mas acredito que chegaram a uma conclusão definitiva. Não podiam trabalhar com alguém “de dentro”, porque não sabiam em quem confiar.

— Cristo, você é frio como gelo.

— Sim, gelo, comandante. Estamos tratando com uma fantasia paranóica chamada Aquitânia, controlada por homens comprovada­mente comprometidos, de grande inteligência e vastos recursos, que, se conseguirem o que querem, aparecerão como as vozes da força e da razão num mundo enlouquecido. Eles controlarão esse mundo — o nosso mundo — porque todas as outras opções serão empalide­cidas perto de sua estabilidade. Estabilidade, conselheiro, compa­rada com o caos. O que você escolheria se trabalhasse das nove às cinco, se tivesse mulher e filhos e nunca pudesse ter certeza, quando voltasse para casa, de que seu lar não tinha sido assaltado, sua mulher violentada, seus filhos estrangulados? Você optaria pelos tanques nas ruas.

— Com razão — disse o advogado da Marinha, as duas pala­vras espiralando suavemente no ar do quarto ensolarado.

— Acredite, marinheiro. Eles estão contando com isso, e é jus­tamente o que planejam fazer a nível internacional. E está somente a poucos dias ou semanas — seja o que for, seja onde for. Se eu pudesse ao menos ter uma pista... — Converse voltou-se e dirigiu-se para o seu quarto.

— Aonde vai? — perguntou Connal.

— O telefone de Beale em Miconos; está na minha pasta. É meu único contato e quero falar com ele. Quero que saiba que o fantoche acaba de receber uma inesperada liberdade.

Três minutos depois Joel estava ao lado da mesa com o fone no ouvido, esperando que a telefonista de Atenas fizesse a ligação para a ilha de Miconos. Fitzpatrick estava sentado no sofá, o dossiê de Chaim Abrahms à sua frente, na mesa, os olhos fixos em Converse.

— Está conseguindo? — perguntou o oficial de Marinha.

— Está tocando agora. — Os sinais erráticos e martelados repe­tiram-se — quatro, cinco, seis vezes. Na sétima alguém atendeu o telefone na ilha do Egeu.

— Hérete?

— Dr. Beale, por favor. Dr. Edward Beale.

— Ti thá thélete?

— Beale. O dono da casa. Vá chamá-lo para mim, por favor! — Joel voltou-se para Fitzpatrick. — Você fala grego?

— Não, mas estava pensando em aprender.

— Faça isso. — Converse escutou outra vez a voz masculina de Miconos. Frases em grego, ditas rapidamente, incompreensíveis. — Obrigado! Até logo! — Joel bateu no gancho do telefone várias vezes, esperando que a linha internacional estivesse aberta e que a telefonista grega que falava inglês estivesse ainda na escuta. — Telefonista? É a telefonista de Atenas?... Ótimo! Quero outro nú­mero em Miconos, do mesmo número de Bonn. — Converse apa­nhou as instruções que Preston Halliday lhe dera em Genebra. — É o banco de Rodes. O número é...

Momentos depois, o banqueiro Kostas Laskaris estava no tele­fone.

— Hérete.

— Sr. Laskaris, é Joel Converse. Lembra-se de mim?

— Naturalmente... Sr. Converse? — O banqueiro parecia distante, estranho, como se estivesse desconfiado ou espantado.

— Estou tentando falar com o Dr. Beale no número que o senhor me deu, mas só consigo falar com um homem que não fala inglês. Pensei que talvez pudesse me dizer onde está Beale.

Ouviu a respiração do banqueiro.

— Foi o que pensei — disse Laskaris em voz baixa. — O homem com quem falou é um oficial de polícia, Sr. Converse. Eu mesmo o coloquei lá. Um erudito tem muitas coisas valiosas.

— Por quê? O que quer dizer?

— Logo depois do nascer do sol, hoje, o Dr. Beale saiu de barco para fora da barra, com outro homem. Vários pescadores os viram. Ha duas horas o barco do Dr. Beale foi encontrado encalhado nas rochas além de Stéphanos. Não havia ninguém a bordo.

Eu o matei. Com uma faca de escamar peixe, e joguei o corpo no meio de um banco de tubarões além dos recifes de Stephanos.

Joel desligou. Halliday, Anstett, Beale, todos eles mortos — todos os seus contatos mortos. Ele era um fantoche desgovernado, seus fios embaralhados, conduzindo-o para as sombras.

 

A pele de cera de Erich Leifhelm empalideceu mais ainda, os olhos se estreitaram e os lábios brancos e secos se entreabriram. Então, o sangue subiu com ímpeto à sua cabeça, quando se inclinou para a frente, sobre a mesa da biblioteca, e falou no telefone:

— Quer repetir esse nome, Londres?

— Almirante Hickman. Ele é...

— Não — interrompeu o alemão asperamente. — O outro! O oficial que recusou liberar a informação.

— Fitzpatrick, nome irlandês. É o oficial jurídico de patente da base naval em San Diego.

— Capitão-de-corveta Fitzpatrick?

— Sim, como sabe?

— Unglaublich! Diese Stümper!

— Warum? — perguntou o inglês. — Em que sentido?

— Ele pode ser o que você diz, em San Diego, inglês, mas ele não está em San Diego! Está aqui, em Bonn!

— Está louco? Não, naturalmente que não. Tem certeza?

— Ele está com Converse! Falei com ele. Os dois estão regis­trados no seu nome no Rektorat! Foi por intermédio dele que encon­trei Converse!

— Não tentou esconder o nome?

— Ao contrário, usou seus documentos para entrar no hotel.

— Que atitude de terceira classe — disse Londres, intrigado. — Ou então, está muito seguro — acrescentou o britânico, mudando de tom. — Um sinal? Ninguém ousa tocá-lo?

— Unsinn! Não é isso.

— Por que não?

— Ele falou com Peregrine, o embaixador. Nosso homem es­tava lá. Peregrine tentou levá-lo à força para a embaixada. Houve complicações e ele fugiu.

— Então, nosso homem não foi muito bom.

— Uma obstrução. Um Schauspieler — um ator. Peregrine recusa-se a discutir o incidente. Não diz nada.

— O que significa que ninguém vai tocar no oficial de Marinha da Califórnia — concluiu Londres. — Há uma boa razão.

— Qual é?

— Ele é cunhado de Preston Halliday.

— Genebra! Mein Gott, eles estão na nossa pista!

— Alguém está, mas ninguém com muita informação. Con­cordo com Palo Alto, que por sua vez concorda com nosso espe­cialista do Mossad — e com Abrahms também.

— O judeu? O que é que o judeu diz? O que é que ele diz?

— Afirma que esse Converse é um agente de Washington em vôo cego.

— O que mais você precisa?

— Ele não deve sair de sua casa. As instruções serão dadas depois.

 

Atônito, o subsecretário de Estado Brewster Tolland desligou o telefone, recostou-se na poltrona, depois inclinou-se rapidamente para a frente e apertou alguns botões no seu consolo.

— Chesapeake — disse a voz feminina. — Código, por favor?

— Seis mil — disse Tolland. — Posso falar com Operações Consulares, Estação Oito, por favor?

— Estação Oito exige...

— Plantagenet — interrompeu o subsecretário.

— Imediatamente, senhor.

— O que há, seis mil?

— Deixe de bobagem, Harry, é Brew. O que você tem aí sobre Bonn que nós não sabemos?

— Assim de momento, nada.

— Quanto de momento é isso?

— Não, é certo. Você está a par de tudo o que estamos fazendo. Ontem de manhã houve uma revisão FRG, e eu teria me lembrado se houvesse alguma coisa excluindo você.

— Você talvez ainda venha a lembrar, mas se eu for excluído estou fora.

— Certo, e eu lhe diria pelo menos isso, nem que fosse só para que ficasse fora, sabe muito bem. Qual é o problema?

— Acabo de falar no misturador com um embaixador muito zangado, que talvez telefone para um velho amigo no Mil e Seis­centos.

— Peregrine? Qual é o problema dele?

— Se não é você, então alguém está brincando de agente do Go­verno. Supostamente trata-se de uma investigação secreta da embai­xada — da sua embaixada — de certa forma ligada ao Departamento Naval.

— A Marinha? Isso é loucura — quero dizer, loucura idiota! Bonn é porto?

— Na verdade, acho que sim.

— Nunca ouvi dizer que o Bismarck ou o Graf Spee tivessem subido o Reno. Não tem jeito, Brew. Não temos nada desse tipo, nem vamos ter. Tem nomes?

— Sim, um — respondeu Tolland, consultando um bloco de notas. — Um advogado chamado Joel Converse. Quem é ele, Harry?

— Pelo amor de Deus, nunca ouvi falar. Qual é o ponto de vista da Marinha?

— Alguém que diz ser oficial chefe jurídico de uma importante base naval, com a patente de capitão-de-corveta.

— Que diz ser?

— Bem, antes disso fez-se passar por um adido militar na embaixada.

— Em algum lugar, os doidos fugiram do hospício.

— Não tem graça, Harry. Peregrine não é tolo. Pode ser vai­doso, mas é muito bom e muito inteligente. Ele diz que essa gente talvez não seja real e que deve saber algo que ele não sabe.

— Em que se baseia para dizer isso?

— Primeiro, a opinião de um homem que conheceu esse Con­verse...

— Quem? — interrompeu Harry da Estação Oito.

— Ele não quer dizer, só que confia nele, confia no seu julgamento. Essa pessoa sem nome diz que Converse é um homem alta­mente qualificado, muito perturbado, não um chapéu negro.

— Um o quê?

— Foi a expressão usada por Peregrine. Obviamente, alguém que não é doido.

— O que mais?

— O que Peregrine chama de comportamento estranho isolado, em sua linguagem pessoal. Não explicou; diz que vai discutir com o secretário ou com Mil e Seiscentos se eu não puder satisfazê-lo. Quer respostas imediatamente, e não queremos sacudir esse barco.

— Vou tentar ajudar — disse Harry. — Talvez seja alguma coisa de Langley ou Arlington — os canalhas! Posso verificar os oficiais chefes jurídicos da Marinha em uma hora e tenho certeza de que a ABA6F[1] pode nos dizer quem é Converse — se souberem. Pelo menos limitar as possibilidades, se houver mais de uma.

— Telefone para mim. Não tenho muito tempo e não quero que a Casa Branca comece a gritar.

— A última coisa que queremos — concordou o diretor de Operações Consulares, divisão de atividades clandestinas no estran­geiro, do Departamento de Estado.

 

— Experimente isso dentro da lei! — gritou o contra-almirante Hickman, zangado, para Remington, pálido e rígido. — E diga-me, com o menor número possível de detalhes, se serve!

— Acho impossível acreditar, senhor. Falei com ele ontem — ao meio-dia — e outra vez a noite passada. Ele estava em Sonoma!

— Eu também falei, tenente. E fosse lá onde quer que estivesse, havia um rangido, ou um eco, e o que foi que ele disse? Toda aquela chuva nas colinas fez o diabo com as linhas telefônicas.

— Sim, essas foram suas palavras, senhor.

— Ele passou pela imigração em Dusseldorf há dois dias! Ago­ra está em Bonn, Alemanha, com um homem que ele jurou que está envolvido na morte do seu cunhado. O mesmo homem que ele está protegendo com aquele embargo no documento. Esse Converse!

— Não sei o que dizer, senhor.

— Muito bem, o Departamento de Estado sabe, e eu também. Estão abusando daquele intervalo de veto ou qualquer que seja o nome que vocês lhe dêem na sua algaravia legal.

— Material vetado, senhor. Significa apenas...

— Não quero ouvir, tenente — disse Hickman, voltando para sua mesa, e acrescentando em voz baixa: — Sabe quanto vocês, seus patifes, me custam por dois divórcios?

— Como disse, senhor?

— Nada, nada. Quero aquele embargo liberado. Eu trouxe Fitz para bordo aqui. Eu lhe dei a divisa e o filho da mãe mentiu para mim. Não só mentiu, como o fez a milhares de quilômetros — mentindo sobre onde estava quando sabia que não devia estar lá sem autorização. Ele sabia disso!... Tem alguma objeção, tenente? Al­guma coisa que possa colocar em uma sentença ou duas que não me obriguem a trazer outros especialistas em direito para traduzir?

O tenente Remington, um dos melhores advogados da Marinha dos Estados Unidos, sabia quando passar os motores para marcha à ré. A ética jurídica fora violada por informação falsa; o procedi­mento era claro. Retirada agressiva a todo vapor — ou força nu­clear, talvez, pensou, embora não tivesse certeza.

— Eu pessoalmente vou acelerar a liberação do veto, almirante. Como oficial responsável pelo estatuto CLO secundário, deixarei bem claro que a ordem direta está agora sujeita a cancelamento imediato. Uma ordem como essa não pode se originar em circunstân­cias questionáveis. Juridicamente...

— Isso é tudo, tenente — disse o almirante, interrompendo o subordinado e sentando-se.

— Sim, senhor.

— Não, não é tudo! — continuou Hickman, inclinando-se para a frente bruscamente. Como a transcrição vai ser liberada e quando?

— Com interferência do Estado, uma questão de horas, senhor, ao meio-dia ou logo depois, acredito. Um telex confidencial será enviado aos que pediram a liberação. Entretanto, uma vez que SAND PAC só colocou uma restrição e não um pedido...

— Faça o pedido, tenente. Traga o documento para mim no minuto em que o receber e não saia da base até ele chegar.

— Está bem, senhor!

 

O Mercedes vermelho-escuro serpenteou pela estrada sinuosa dentro da propriedade de Leifhelm. Os raios alaranjados do sol poente filtravam-se através das árvores altas que não só ladeavam a estrada, como também estavam por toda a parte, dos dois lados. A paisagem teria sido repousante se não fosse por uma cena grotesca: pelo menos uns seis dobermans gigantescos corriam ao lado do carro, em com­pleto silêncio. Havia algo de espectral naquela corrida silenciosa, nos olhos negros e furiosos fitos nas janelas do carro, as mandíbulas escancaradas, a respiração rápida e irregular, os dentes arreganha­dos, sem que nenhum som escapasse das gargantas. Converse tinha certeza de que, se descesse do carro sem que fossem emitidas as ordens adequadas, os imensos cães o estraçalhariam.

A limusine parou em um pátio circular, na frente de largos degraus de mármore marrom que levavam a um portal em arco, as almofadas da porta recobertas de baixo-relevo escuro — remanes­cente da pilhagem de alguma antiga catedral. De pé no último degrau estava um homem com um apito na boca. Não foi emitido nenhum som que ouvidos humanos pudessem perceber, mas subitamente os animais afastaram-se do carro e correram para o homem, ficando ao seu lado, olhando para a frente, sentados, as mandíbulas abertas molemente, os corpos pulsando.

— Por favor, espere, senhor — disse o motorista, descendo do carro e correndo para abrir a porta para Joel. — Se quiser ter a bondade de sair, e dar dois passos para longe do carro, senhor. Apenas dois passos. — O motorista tinha na mão um objeto preto com um tubo de metal saindo de uma das extremidades, que parecia uma miniatura de motor de arranque elétrico.

— O que é isso? — perguntou Converse.

— Proteção, senhor. Para o senhor. Os cães, senhor. São trei­nados para detectar metal pesado.

Joel ficou parado enquanto o alemão movia o detector eletrô­nico sobre suas roupas, seus sapatos, a parte interna de suas pernas e as costas, na altura da cintura.

— Vocês pensam mesmo que eu viria para cá com uma arma?

— Eu não penso, senhor. Cumpro ordens.

— Que original — resmungou Converse, vendo que o homem na escada levava outra vez o apito aos lábios. A falange de dobermans saltou subitamente para diante em uníssono. Em pânico, Joel agarrou o motorista, colocando-o entre si e os cães. Não houve resistência; o homem simplesmente virou a cabeça e sorriu largamen­te, enquanto os cães viravam para a direita e corriam pelo pátio circular para um atalho dentro da floresta.

— Não se desculpe, mein Herr — disse o motorista. — Acon­tece quase sempre.

— Não tinha intenção de me desculpar — disse Converse seca­mente, soltando o homem. — Eu ia quebrar o seu pescoço. — O alemão afastou-se e Joel ficou imóvel, assombrado com as próprias palavras. Não falava coisas como essa há mais de dezoito anos.

— Por aqui, senhor — disse o homem na escada, com puro sotaque britânico.

O grande vestíbulo era ornamentado com estandartes medievais que pendiam de um balcão interno. Do vestíbulo passava-se a uma imensa sala de estar, a decoração também medieval, ficando o con­forto a cargo de poltronas de couro macio e sofás, lâmpadas de mesa com franjas alegres e, por toda a parte, prataria sobre mesas poli­das. O grotesco ficava a cargo da profusão de cabeças de animais nas paredes; grandes felinos, elefantes e javalis olhavam para baixo em fúria desafiadora. Era a caverna de um marechal-de-campo.

O que prendeu a atenção de Converse, porém, não foi a deco­ração, mas os quatro homens que estavam de pé ao lado de quatro poltronas, de frente para ele.

Conhecia Bertholdier e Leifhelm; estavam um ao lado do outro, à direita. Converse olhou fixamente para os dois da esquerda. O homem de altura média e entroncado, com a franja de cabelo corta­do rente em volta da cabeça calva, vestido com um paletó safári amassado, as eternas botas sob a calça caqui, só podia ser Chaim Abrahms. O rosto gorducho, com olhos que eram apenas duas fendas, era o rosto de um vingador. O homem alto com traços aquilinos e macilentos e o cabelo liso grisalho era o general Jan van Headmer, o Carniceiro de Soweto. Joel tinha lido o dossiê de Van Headmer rapidamente; por sorte era mais curto, e o sumário final dizia tudo.

 

Resumindo, Van Headmer é um aristocrata de Cape Town, um africânder que nunca aceitou realmente os britânicos, pa­ra não falar dos negros. Suas convicções baseiam-se em uma realidade que para ele é inabalável. Seus antepassados edi­ficaram uma terra sob condições selvagens e com grande per­da de vidas, brutalmente retomada por selvagens. Seu modo de pensar é, sem nenhuma modificação, o dos homens do fim do século XIX e começo do século XX. Não aceitou as invasões so­ciológicas e políticas dos mais cultos bantos porque para ele jamais passarão de primitivos selvagens. Quando dá ordens para as mais austeras privações e execuções em massa, pensa que esta tratando com animais subumanos. Esse modo de pensar o levou a prisão em companhia do primeiro-ministro Verwoerd e do racista Vorster, durante a Segunda Guerra Mundial. Ado­tou completamente o conceito nazista de raças superiores. Sua associação íntima com Chaim Abrahms é a única diferença entre ele e os nazistas, e para ele não é uma contradição.

Os sabras edificaram uma terra na primitiva Palestina; são um dos paralelos históricos com seu país, e ambos se orgulham de sua força e de suas respectivas realizações. Van Headmer, aliás, é um dos mais encantadores homens que se possam conhecer. Superficialmente, é culto, extremamente de­licado e sempre disposto a ouvir. No íntimo, é um matador insensível e é o homem-chave de Delavane na África do Sul, com seus vastos recursos.

 

— Mein Haus ist dein Haus — disse Leifhelm, adiantando-se para Joel, com a mão estendida.

Converse deu um passo à frente e apertou a mão do alemão.

— Uma estranha recepção lá fora para um sentimento tão caloroso — disse Joel asperamente, soltando a mão de Leifhelm e voltando-se para Bertholdier. — É um prazer vê-lo novamente, general. Minhas desculpas pelo desagradável incidente em Paris. Não quero menosprezar a vida de um homem, mas naquelas frações de segundo creio que ele não estava dando muito valor à minha.

A ousadia de Joel surtiu o efeito desejado. Bertholdier olhou para ele, por um instante incerto do que devia dizer. E Converse percebeu que os outros três homens o observavam atentamente, sem dúvida atônitos com sua audácia, quer nos modos, quer nas palavras.

— Sem dúvida, monsieur — disse o francês, inoportunamente, mas mantendo a pose. — Como sabe, o homem desobedeceu às ordens.

— Realmente? Disseram-me que ele as interpretou mal.

— É o mesmo! — A voz pesada com sotaque marcante vinha de trás de Joel.

Ele se voltou.

— É mesmo? — perguntou secamente.

— No campo, sim — disse Chaim Abrahms. — Nos dois casos é um erro, e erros são pagos com vidas. O homem pagou o seu.

— Permita que lhe apresente o general Abrahms — interrom­peu Leifhelm, tocando no cotovelo de Converse e aproximando-o do israelense.

— General Abrahms, é um privilégio — disse Joel com sinceridade convincente enquanto se cumprimentavam. — Como a todos os presentes, sempre o admirei tremendamente, embora sua retórica seja às vezes excessiva.

O rosto do israelense ficou vermelho e risadas suaves encheram a grande sala. Subitamente Van Headmer deu um passo à frente e os olhos de Converse foram atraídos para o rosto forte, as sobrancelhas franzidas, os músculos tensos.

— Está falando com um dos meus mais íntimos amigos, senhor — disse ele; a censura era evidente. Então, um leve sorriso enrugou o rosto macilento de traços acentuados. — E eu não teria dito melhor. Um prazer conhecê-lo, meu jovem. — A mão do africânder esten­deu-se para Joel, que a apertou, entre os risos discretos.

— Sinto-me insultado! — exclamou Abrahms, erguendo as es­pessas sobrancelhas e baixando a cabeça com fingido desespero. — Sou insultado por tagarelas. Francamente, Sr. Converse, concor­dam com o senhor porque nenhum deles esteve com uma mulher no último quarto de século. Eles podem lhe dizer o contrário — outros podem dizer o contrário — mas, acredite-me, eles contratam pros­titutas para jogar cartas ou para ler histórias nos seus ouvidos velhos e cinzentos só para enganar os amigos! — As risadas aumentaram de volume e o israelense, agora representando para uma platéia, con­tinuou, inclinando-se para Joel, como se estivesse falando ao seu ouvido: — Mas, sabe, eu pago as prostitutas para me dizerem a verdade enquanto eu meto nelas! Elas me contam que esses tagarelas estão caindo de sono às nove horas, choramingando por um pouco de leite quente. Com chocolate, se for possível!

— Meu caro sabra — disse Leifhelm, rindo —, você lê sua própria ficção romântica muito assiduamente.

— Vê o que eu digo, Converse? — perguntou Abrahms, er­guendo os ombros, as mãos estendidas. — Ouviu isso? Assiduamen­te. Agora você sabe por que os alemães perderam a guerra. Eles sempre falaram dramaticamente sobre a Biltzkrieg e os Angriffe, mas na verdade estavam falando — assiduamente — sobre o que iam fazer depois!

— Deviam ter dado uma patente a você, Chaim — disse Bertholdier, divertido. — Você podia ter mudado de nome, chamado Rommel e os judeus de von Rundstedt e tomado as duas frentes.

— O Alto Comando podia fazer pior — concordou o israe­lense.

— Mas — disse o francês — será que você teria parado aí? Hitler era um bom orador, como você é um bom orador. Talvez você declarasse que ele também era judeu e tomasse conta da chance­laria.

— Oh, sei por fontes fidedignas que ele era judeu. Mas de péssima família. Nós também temos isso; naturalmente, são todas da Europa.

Continuaram as risadas e então rapidamente começaram a di­minuir. Joel aproveitou a deixa.

— Às vezes eu falo com muita franqueza, general — disse ele. — Devia ser mais prudente, mas, acredite, não tive intenção de insultá-lo. Tenho grande admiração por suas posições, sua política.

— E é isso precisamente o que vamos discutir — disse Erich Leifhelm, atraindo a atenção de todos. — Posições, políticas, filoso­fias generalizadas, se quiserem. Vamos nos manter afastados de assuntos específicos tanto quanto possível, embora um ou outro naturalmente possa entrar na conversa. Entretanto, o que conta é a atitude para com as grandes abstrações. Venha, Sr. Converse, sente-se. Vamos começar nossa conferência, a primeira de muitas, espero.

 

O contra-almirante Hickman colocou a transcrição lentamente sobre a mesa e olhou com ar abstrato — passando pelos pés apoiados na mesa — para o oceano, sob o céu cinzento que via da janela. Cruzou os braços, baixou a cabeça e franziu a testa. Estava tão perplexo agora como da primeira vez que leu o documento, tão convencido agora como antes de que as conclusões de Remington — na verdade, a conclusão — estavam erradas. Mas afinal o oficial jurídico era muito jovem para ter conhecimento dos fatos verdadeiros; ninguém que não tivesse estado lá podia compreender. Muitos outros com­preendiam; por isso o documento era confidencial, mas não fazia sentido aplicar esse raciocínio a esse Converse, dezoito anos depois. Era o mesmo que exumar um cadáver de um homem que tinha morrido de alguma febre, existisse ou não o que restava do homem. Tinha de ser outra coisa.

Hickman consultou o relógio, descruzou os braços e tirou os pés da mesa. Eram três e dez em Norfolk; pegou o telefone.

— Alô, Brian — disse o contra-almirante Scanlon do Quinto Distrito Naval. — Quero que saiba o quanto apreciei a ajuda do SAND PAC neste caso.

— SAND PAC? — perguntou Hickman, intrigado por não darem nenhum crédito ao Departamento de Estado.

— Está bem, almirante, a sua ajuda. Fico lhe devendo, velho Hicky.

— Comece a pagar dizendo aquele nome.

— Ei, vamos, não se lembra dos jogos de hóquei? Você vinha correndo sobre o gelo e todo o corpo de cadetes gritava: “Aí vem Hicky! Aí vem Hicky!”

— Posso destampar meus ouvidos agora?

— Só estou tentando agradecer, companheiro.

— É justamente isso, não estou muito certo por quê. Você leu o documento?

— Naturalmente.

— Que diabo encontrou nele?

— Bem — respondeu Scanlon com alguma hesitação. — Eu li muito depressa. Tive um dia terrível e, francamente, acabo de passá-lo adiante. O que você acha que possa haver? Aqui entre nós, eu gostaria de saber, porque mal tive tempo de dar uma lida rápida.

— O que eu acho que pode haver? Absolutamente nada. Oh, naturalmente assinalamos como confidencial material antigo como esse porque a Casa Branca determinou que puséssemos uma rolha em críticas oficialmente arquivadas e nós todos concordamos. Também estávamos fartos delas. Mas não há nada naquele documento que não tenha sido visto antes, ou que tenha algum valor para ninguém, a não ser para historiadores das forças armadas, daqui a uns cem anos, e assim mesmo como uma pequena nota de rodapé.

— Bem — disse Scanlon, ainda mais hesitante —, esse Converse disse algumas coisas bem duras sobre o Comando-Saigon.

— Sobre o Louco Marcus! Cristo, eu disse coisas muito piores durante as conferências da Força-Tonkin e meu comandante me fez muito melhor. Nós transportamos aqueles garotos para cima e para baixo, na costa, quando só estavam preparados para um dia na praia com cachorros-quentes e rodas-gigantes... Não compreendo. Você e o meu oficial jurídico chamaram atenção para a mesma coisa, mas eu acho que é assunto muito antigo e desacreditado. O Louco Marcus é uma relíquia.

— Seu quem?

— Meu executivo jurídico. Eu falei dele, Remington.

— Ah, sim, o certinho.

— Ele também notou aquele negócio de Saigon. “É isto aqui”, disse ele. “Estas observações. É Delavane.” Ele não estava presente naquele tempo para saber que Delavane era o alvo escolhido por todos os grupos pacifistas do país. Que diabo, nós o chamamos de Louco Marcus. Não, não é Delavane, é outra coisa qualquer. Talvez aquelas fugas, especialmente a última, de Converse. Talvez haja alguma informação MIA que nós não reconhecemos.

— Bem — repetiu o almirante em Norfolk, pela terceira vez, mas agora não com tanta curiosidade. — Talvez você tenha razão, mas não nos diz respeito. Vou ser honesto com você. Eu não queria dizer nada porque não quero que pense que tive um trabalhão para nada, mas ouvi dizer que a coisa toda é um sinal-negativo.

— Oh? — disse Hickman, subitamente prestando atenção. — Como assim?

— É o homem errado. Aparentemente um JG superentusiasmado estava fazendo uma pesquisa sobre o período, sobre circuns­tâncias idênticas. Ele viu a “bandeira” e tirou seis conclusões erra­das. Espero que aproveite a chamada das cinco horas da manhã.

— Então é isso? — perguntou o almirante da SAND PAC, controlando o espanto.

— Essa a informação que temos aqui. Seja o que for que o seu CLO pretende, não tem nada a ver conosco.

Hickman não podia acreditar no que ouvia. Naturalmente Scanlon não mencionara os esforços do Departamento de Estado. Ele não sabia nada sobre isso! Estava procurando colocar entre si próprio e o embargo do documento de Converse a maior distância possível, mentindo porque não lhe haviam dito nada. O Estado estava tra­balhando em silêncio — provavelmente através de operadores do Governo — e Scanlon não tinha motivos para pensar que o “velho Hicky” sabia alguma coisa sobre Bonn ou Converse ou sobre o paradeiro de Connal Fitzpatrick. Ou sobre um homem chamado Preston Halliday, que fora assassinado em Genebra. O que estava acontecendo? Não ia saber por Scanlon. Também não queria saber.

— Para o diabo com isso. Meu CLO vai voltar dentro de três ou quatro dias e talvez então eu fique sabendo de alguma coisa.

— Seja o que for, está de volta à sua caixa de brinquedos, almirante. Meu pessoal estava com o homem errado.

— Seu pessoal não seria capaz de navegar com um barco a remo no Lago dos Reflexos de D.C.

— Não posso culpá-lo por isso, Hicky.

Hickman desligou o telefone e voltou à sua posição preferida para pensar, olhando para o oceano por cima dos pés apoiados na mesa. O sol tentava, sem muito sucesso, abrir uma brecha no céu nublado.

Não gostava de Scanlon, por razões insignificantes demais para examinar. Exceto uma: sabia que Scanlon era um mentiroso. O que não sabia é que era um mentiroso estúpido.

 

O tenente David Remington ficou lisonjeado com o telefonema. O conhecido quatro-divisas o convidou para almoçar — não só o convidou, como pediu desculpas pelo atraso do convite e disse que compreenderia se fosse inconveniente para ele. Além disso, o capitão queria que ele soubesse que o convite era pessoal, e não tinha nada a ver com os negócios da Marinha. O oficial de alta patente, embora morasse em La Jolla, estava no porto por alguns dias e precisava de aconselhamento jurídico. Tinham-lhe dito que o tenente Remington era um dos melhores advogados da Marinha dos Estados Unidos. O tenente aceitava?

Naturalmente Remington deixara bem claro que qualquer con­selho que viesse a oferecer seria na base de amicus-amicae; não seria considerada nenhuma espécie de remuneração, pois estaria violando os estatutos...

— Posso lhe pagar o almoço, tenente, ou vamos dividir a con­ta? — perguntou o quatro-divisas, parecendo impaciente, pensou Remington.

O restaurante ficava numa das colinas de La Jolla, uma esta­lagem afastada que evidentemente servia a fregueses dessa área e os de San Diego e da Cidade Universitária, que não queriam ser vistos nos lugares mais freqüentados. Remington não gostou muito; prefe­ria ser visto no Coronado com o capitão, em vez de viajar dezesseis quilômetros para o norte para não ser visto nas colinas de La Jolla. O quatro-divisas, porém, não transigiu; era onde queria que se encon­trassem. David investigou o capitão. Muitas condecorações, estava na fila para promoção e era considerado um candidato em potencial para a Junta de Chefes de Pessoal. Remington teria ido de bicicleta pelo oleoduto exposto do Alasca para não faltar ao encontro.

O que era exatamente o que pensava estar fazendo, virando a direção para a direita, para a esquerda, para a direita e novamente para a direita na estrada íngreme. O importante era não se esquecer, pensava, virando a direção para a esquerda, que um conselho pessoal era também um conselho profissional, e sem nenhum pagamento constituía uma dívida que algum dia seria reconhecida. E se um homem era promovido para a Junta dos Chefes... Remington não tinha culpa disso; num impulso de vaidade tinha contado a um com­panheiro de trabalho — o mesmo que lhe dera o apelido de “certi­nho” — que ia almoçar com um importante quatro-divisas de La Jolla e talvez voltasse ao escritório mais tarde do que de costume. Então, para acentuar o fato, perguntou ao colega o caminho para o restaurante.

Oh, meu Deus! O que era aquilo? Oh, meu Deus!

No ponto mais alto de uma curva em esse surgiu um enorme caminhão preto, de quase dez metros de comprimento, completa­mente desgovernado. Oscilava de um lado para outro na estrada estreita, ganhando velocidade, um monstro negro contorcendo-se, amassando tudo à sua frente, um animal selvagem enlouquecido!

Remington virou a cabeça para a direita, girando a direção para evitar o impacto. Viu troncos finos de árvores novas e flores de fim de verão; lá embaixo o abismo florido. Essas as últimas imagens que viu quando o carro virou de lado e começou a capotar.

Lá em cima, em outra colina, um homem ajoelhado confirmou o assassinato com o binóculo assestado para a explosão. No seu rosto não havia satisfação nem tristeza, apenas aceitação. A missão fora cumprida. Afinal, estavam em guerra.

E o tenente David Remington, cuja vida fora tão bem ordenada e regular, que sabia exatamente para onde estava indo e como, neste mundo, que sabia, acima de tudo, que não se deixaria apanhar pelas forças que destruíram seu pai em nome da política de uma compa­nhia, foi assassinado em nome da política de uma companhia da qual nunca ouvira falar. Uma empresa chamada Aquitânia. Ele tinha visto o nome Delavane.

 

A opinião deles é que é a evolução normal da história contempo­rânea, uma vez que todas as outras ideologias falharam... As pala­vras de Preston Halliday, em Genebra, repetiam-se sem cessar na mente de Converse, enquanto ouvia as quatro vozes de Aquitânia. O mais assustador era que acreditavam incondicionalmente no que diziam, moral e intelectualmente, suas convicções baseadas em observações que remontavam a várias décadas, os argumentos per­suasivos iluminando erros passados de julgamento, que tiveram co­mo resultado sofrimento terrível e desnecessária perda de vidas.

O simples objetivo dessa coalizão — aliados e antigos inimigos — era trazer a ordem benevolente ao mundo no caos, permitir que os Estados industriais florescessem para o bem de todos os povos, disseminando a força e os benefícios do comércio multinacional pelo Terceiro Mundo empobrecido e não-engajado e fazendo isso garantindo seu engajamento. Só desse modo, reunindo suas forças, podiam deter o comunismo — deter e fazê-lo retroceder até que desaparecesse sob a força do poder armado superior e dos recursos financeiros.

Para realizar isso era necessária uma alteração dos valores e das prioridades. As decisões industriais do mundo todo deviam ser coordenadas para trazer a força total dos Estados livres. Departa­mentos do tesouro, corporações multinacionais e conglomerados gigantescos deviam formar uma série de comitês interligados, concordar em serem orientados por esses comitês, aceitar suas decisões — que na verdade seriam as decisões dos seus respectivos governos — , todos eles sempre a par de todas as agendas. Qual seria esse definitivo plano de negociadores? Quem seriam os membros desses comitês que na verdade falariam em nome das nações livres e deter­minariam suas políticas?

Através da história, apenas uma classe de pessoas conservou suas virtudes, e em épocas críticas teve um desempenhe além de todas as expectativas humanas — mesmo na derrota. Os motivos para essa extraordinária contribuição desse segmento da população, na guerra — e mesmo na paz, embora em menor grau —, eram historicamente claros: eles eram desprendidos. Pertenciam a uma classe treinada para servir sem esperar retribuição, a não ser o reconhecimento de suas virtudes. O dinheiro era irrelevante porque suas necessidades eram atendidas e os privilégios concedidos apenas através do desempenho excepcional no cumprimento do dever.

Na nova ordem, essa classe de pessoas não seria sujeita à cor­rupção do mercado de trabalho. Na verdade, estava extremamente bem equipada para vencer essa corrupção, pois não podia ser to­cada por ela. A mera presença de qualquer riqueza obtida ilegal­mente dentro das suas fileiras seria imediatamente descoberta e con­denada, levada à corte marcial. Essa classe da sociedade, esse novo ramo da raça humana, não só era incorruptível nos seus altos ní­veis, como seria também a salvadora da humanidade que conhe­cemos hoje.

A classe dos militares. Em todo o mundo, compreendendo tam­bém os inimigos. Juntos — mesmo como inimigos — só eles com­preendiam a fundo os resultados catastróficos da fraqueza.

Naturalmente, certas liberdades de menor importância teriam de ser negadas ao organismo político, mas esse seria um sacrifício pequeno a favor da sobrevivência. Quem faria objeção?

Nenhum dos quatro porta-vozes de Aquitânia levantou a voz. Eram os tranqüilos profetas da razão, cada um com sua história, sua própria identidade — aliados e inimigos, juntos em um mundo enlouquecido.

Converse respondeu afirmativamente a tudo o que disseram — não foi difícil — e fez perguntas abstratas sobre a filosofia do grupo, como esperavam que fizesse. O próprio bobo da corte, Chaim Abrahms, respondeu às perguntas de Converse com serie­dade e em voz baixa.

A certa altura, Abrahms disse:

— Acha que os judeus são os únicos na diáspora, meu amigo? Está errado. Toda a raça humana está espalhada pelo mundo, todos nós em luta, sem saber que caminho tomar. Certos rabis dizem que nós, os judeus, só teremos a salvação na era messiânica, no tempo da redenção divina, quando um deus vai aparecer para nos mostrar o caminho para a terra prometida. Mas ele está demorando muito para chegar; não podemos esperar mais. Nós criamos Israel. Com­preende o ensinamento? Nós — nós aqui — somos agora a inter­venção divina na terra. E eu — eu, um homem de realizações e personalidade — daria minha vida em silêncio pelo nosso sucesso.

Jacques-Louis Bertholdier:

— Precisa compreender, Sr. Converse, que Voltaire disse isso muito bem no seu Discours sur l’homme. Ele disse que o homem conquista sua mais alta liberdade somente quando compreende os parâmetros do seu comportamento. Nós vamos estabelecer esses parâmetros. O que poderia ser mais lógico?

Erich Leifhelm:

— Goethe disse isso talvez melhor quando insistiu em que o romance da política devia ser usado para atenuar e amortecer os temores dos não-informados. No seu definitivo Aus meinem Leben, afirma claramente que todas as classes governantes devem ser impregnadas, acima de tudo, com a disciplina. Onde é que ela é mais prevalente?

Jan van Headmer:

— Meu país, senhor, é o exemplo vivo desse ensinamento. Nós; eliminamos a besta que havia nos selvagens e formamos uma nação vasta e produtiva. A besta volta e minha nação está em desordem.

E assim foi durante horas. Dissertações tranqüilas, profunda­mente pensadas, refletidas, a paixão, aparentemente apenas na sin­ceridade das convicções. Por duas vezes pressionaram Joel para revelar o nome do seu cliente e por duas vezes ele se esquivou, explicando a posição legal da confidência — que poderia mudar dentro de alguns dias.

— Devo oferecer algo concreto ao meu cliente. Uma aborda­gem, uma estratégia que garanta seu envolvimento imediato, seu compromisso, se quiserem.

— Por que isso é necessário nesta conjuntura? — perguntou Bertholdier. — Ouviu nosso raciocínio. Naturalmente pode inferir um certo tipo de abordagem.

— Certo, ignorem a abordagem. Uma estratégia, então. Não o “porquê”, mas o “como”.

— Fala de um plano? — disse Abrahms. — Baseado em quê?

— No fato de que estariam exigindo um investimento que está além de qualquer coisa que já viram.

— É uma afirmação extraordinária — observou Van Head­mer.

— Ele tem recursos extraordinários — retrucou Converse.

— Muito bem — disse Leifhelm, olhando para cada um dos seus companheiros, antes de responder. Joel compreendeu: pedia permissão, de acordo com o que haviam combinado. A permissão lhe foi garantida. — O que diria do comprometimento de certos indivíduos poderosos de determinados governos?

— Chantagem? — perguntou Joel. — Extorsão? Não daria certo. Existem muitas verificações e confrontações. Um homem é ameaçado, a ameaça é descoberta e ele está livre. Então começam os ritos de purificação e, onde antes havia fraqueza, aparece uma grande força.

— É uma interpretação extremamente limitada — disse Bertholdier.

— Não está levando em consideração o elemento tempo! — exclamou Abrahms desafiadoramente, levantando a voz pela pri­meira vez. — Acúmulo, Converse! Aceleração rápida!

Subitamente Joel percebeu que os outros três homens estavam olhando para o israelense, mas não simplesmente observando-o. Em cada par de olhos havia uma advertência. Abrahms ergueu os ombros.

— É apenas uma opinião.

— Muito razoável — disse Converse, inexpressivamente.

— Nem tenho certeza de que possa ser aplicada — acrescentou o israelense, corrigindo o erro.

— Bem, tenho certeza de que está na hora do jantar — disse Leifhelm, tirando a mão do braço da poltrona. — Fiz tanta propaganda da minha mesa para nosso convidado que estou sem fôlego - apreensivo, naturalmente. Espero que o cozinheiro tenha feito jus aos meus elogios. — Como se atendesse a um sinal — que Joel estava certo de que fora feito —, o empregado britânico apareceu em uma das arcadas na outra extremidade da sala. — Sou clarivi­dente! - disse Leifhelm, levantando-se. - Venham, venham, meus amigos. Lombo de carneiro à citrón, um prato criado pelos deuses para si próprios e roubado pelo incorrigível ladrão que governa minha cozinha.

O jantar foi realmente soberbo, cada prato o resultado de um esforço isolado para alcançar a perfeição, tanto no paladar quanto na apresentação. Converse não era um gourmet, sua educação culi­nária lhe fora imposta em restaurantes caros onde sua mente pouco se ocupava com a comida, mas sabia instintivamente quando um prato era o melhor em sua classe. Não havia nada de segunda ordem na mesa de Leifhelm, inclusive a própria mesa, uma enorme massa sólida de mogno sobre dois imensos mas delicadamente tra­balhados tripés no parquete desenhado da sala. Das paredes de tecido aveludado vermelho-escuro da sala de teto alto, pendiam óleos com cenas de caçadas. Os arranjos de flores, baixos, na frente dos suportes de pratos de prata espelhada, não obstruíam a visão do convidado no lado oposto da mesa, uma arte que Joel achou que devia ser aprendida pela maioria das anfitriãs em Nova Iorque, Londres e Genebra.

A conversa desviou-se dos assuntos sérios explorados na sala de estar. Era como se estivessem em recesso, uma diversão para aliviar o fardo dos negócios de Estado. Se o objetivo era esse, foi muito bem atingido, e o africânder Van Headmer abriu o cami­nho. Com seus modos encantadores e voz pausada (o dossiê estava certo — o “matador insensível” era encantador) descreveu um safári nas savanas da África do Sul, para o qual tinha convidado Chaim Abrahms.

— Acreditam, senhores, que comprei para este pobre hebreu seu primeiro casaco no Safaric de Joanesburgo e não se passa um dia sem que me arrependa disso. Tornou-se a marca registrada do nosso grande general! Naturalmente sabem por que ele o usa. Absorve a transpiração e não precisa ser lavado freqüentemente, bastam generosas aplicações de rum. É um casaco diferente, não é, grande general?

— Ponha de molho, ponha de molho, digo para minha mu­lher! — respondeu o sabra com uma careta — para tirar o cheiro dos ateus traficantes de escravos!

— Por falar em escravos, deixem-me que lhes conte — disse o africânder, preparando-se para a história com um copo de vinho que era trocado com cada prato.

A história do primeiro e último safári de Chaim Abrahms me­recia estar no teatro de revista. O israelense parecia estar há horas perseguindo um leão, acompanhado pelo carregador de armas, um banto, a quem ele insultava constantemente, sem saber que o negro compreendia e falava inglês tão bem quanto ele. Abrahms tinha experimentado e regulado cada um dos quatro rifles antes da ca­çada, mas, sempre que tinha o leão na mira, errava o tiro. Aquele supostamente soberbo atirador, o general célebre, com olhos de gavião, não conseguia acertar um animal de dois metros de compri­mento, a cem metros de distância. No fim do dia, um Chaim Abrahms exausto, com seu mau inglês e efusivos gestos, subornou o carregador para não contar aos outros seu insucesso. O caçador e o banto voltaram ao acampamento, Chaim lamentando a ausência de felinos e a estupidez do carregador de armas. O nativo foi pro­curar Van Headmer e, como contou o africânder, imitando perfei­tamente o sotaque britânico do homem, disse o seguinte: “Gostei mais do leão do que do judeu, senhor. Alterei suas miras, senhor, mas evidentemente serei perdoado por essa indiscrição. Entre outras coisas, ele me ofereceu um bar-mitzva.”

Os convidados riram às gargalhadas — Abrahms, mais alto do que todos, o que depunha a seu favor. Obviamente ele já ouvira a história antes e gostava dela. Ocorreu a Joel que só as pessoas extremamente seguras de si podem ouvir histórias como aquela so­bre si mesmas e reagir com um riso sincero. O israelense era uma rocha na firmeza de suas convicções e podia tolerar facilmente uma piada a seu respeito. Isso também era assustador.

O empregado inglês entrou na sala, atravessou silenciosamente o assoalho de madeira e disse algumas palavras no ouvido de Leifhelm.

— Desculpem-me, por favor — disse o alemão, levantando-se. — Um nervoso corretor de Munique, que sempre obtém informa­ções em Riade. Um xeque vai ao banheiro e ele ouve trovões no leste.

A conversa animada continuou sem interrupção, os três ho­mens de Aquitânia comportando-se como velhos companheiros, sinceramente procurando fazer com que um estranho ficasse à von­tade. Isso também era assustador. Onde estavam os fanáticos que queriam destruir governos, tomando o controle violentamente e abalando sociedades inteiras, canalizando o poder político para sua visão de um Estado militar? Aqueles homens eram intelectuais. Citavam Voltaire e Goethe e tinham compaixão pelo sofrimento e dor desnecessários. Tinham senso de humor e eram capazes de rir de si mesmos, enquanto falavam calmamente em sacrificar as pró­prias vidas pela redenção de um mundo enlouquecido. Mas Joel compreendia a verdadeira natureza deles. Eram intrusos assumindo a forma de estadistas. O que Leifhelm tinha dito citando Goethe? “O romance da política devia ser usado para atenuar e amortecer os temores dos não-informados.” Assustador.

Leifhelm voltou, acompanhado pelo inglês que trazia duas gar­rafas de vinho, abertas. Se o telefonema de Munique trouxera más notícias, ele não demonstrou. Estava alegre como antes, o sorriso de cera espontâneo e o seu entusiasmo incontido pelo prato seguinte.

— E agora, meus amigos, o carneiro à citrón — medalhões de ambrosia e, deixando de lado a hipérbole, na verdade muito bom. Além disso, em honra ao nosso convidado teremos uma bonifi­cação extra esta noite. Meu astuto amigo e companheiro inglês esteve em Siegburg há alguns dias e encontrou algumas garrafas de Beerenauslese, 71. Não poderia haver mais alto tributo.

Os homens de Aquitânia entreolharam-se, e então Bertholdier observou:

— Um achado, sem dúvida, Erich. É uma das variedades ale­mãs mais aceitáveis.

— O Klausberg Riesling 82, de Joanesburgo, promete estar entre os melhores — disse Van Headmer.

— Duvido que possa rivalizar com o Richon-le-Zion Carmel — acrescentou o israelense.

— Você é impossível!

Um cozinheiro com o chapéu típico entrou na sala empurrando um carrinho de prata, tirou a tampa do prato de lombo de car­neiro e, ante os olhares apreciativos, começou a cortar e servir. O inglês apresentou os vários acompanhamentos a todos os convida­dos e depois serviu o vinho.

Erich Leifhelm levantou o copo, a luz cintilante das velas re­fletindo-se no cristal trabalhado e nas bordas dos suportes de prata.

— Ao nosso convidado e ao seu cliente desconhecido, que esperamos logo ter entre nós.

Converse assentiu com a cabeça e bebeu.

Tirou o copo dos lábios e subitamente percebeu que os quatro homens de Aquitânia estavam olhando fixamente para ele, seus copos ainda sobre a mesa. Ninguém tinha tomado o vinho.

Leifhelm falou outra vez, sua voz nasal, fria, a fúria contro­lada pelo intelecto.

— O general Delavane era o inimigo, nosso inimigo! Homens como esse não devem ser tolerados nunca mais, não compreendem? Essas foram as suas palavras, não foram, Sr. Converse?

— O quê? — Joel ouviu a própria voz, mas não tinha certeza de que era sua. As chamas das velas subitamente pareceram entrar em erupção; o fogo encheu seus olhos e o calor na garganta trans­formou-se em dor intolerável. Ele levou as mãos ao pescoço, ten­tando levantar-se, empurrando a cadeira para trás; ouviu o baru­lho, quando ela caiu no chão, mas só como uma sucessão de ecos. Estava caindo. A dor alcançou seu estômago, era intolerável; levou as mãos ao abdome, numa tentativa frenética de aliviar o sofrimen­to. Então sentiu o frio de uma superfície sólida e sabia que estava se contorcendo selvagemente no chão, enquanto braços fortes o se­guravam.

— O revólver. Para trás. Segure-o. — A voz era também uma série de ecos, pronunciados rispidamente com sotaque britânico. — Agora. Atire!

 

O telefone tocou, tirando Fitzpatrick de um sono profundo. Tinha-se atirado no sofá com o dossiê Van Headmer na mão, os dois pés no chão. Sacudiu a cabeça e piscou rapidamente, arregalando os olhos e tentando orientar-se. Onde estava? Que horas eram? O telefone tocou outra vez, agora um som prolongado e estridente. Levantou-se de um salto, a respiração irregular, a exaustão profun­da demais para ser vencida em poucos segundos. Não dormia desde que saíra da Califórnia; seu corpo e sua mente mal podiam fun­cionar. Agarrou o telefone, quase deixando-o cair quando perdeu o equilíbrio momentaneamente.

— Sim... alô!

— Comandante Fitzpatrick, por favor — disse uma voz mas­culina com sotaque britânico.

— Falando.

— Philip Dunstone, comandante. Estou telefonando a pedido do Sr. Converse. Pediu-me que lhe dissesse que a conferência está indo muito bem, melhor do que esperava.

— Você é quem!

— Dunstone. Major Philip Dunstone. Sou ajudante-de-ordens do general Berkeley-Greene.

— Berkeley-Greene?

— Sim, comandante. O Sr. Converse pediu-me que o avisasse de que, como os outros convidados, resolveu aceitar a hospitalidade do general Leifhelm por esta noite. Entrará em contato com o senhor amanhã de manhã.

— Quero falar com ele. Agora.

— Temo que não seja possível. Saíram todos na lancha para um passeio pelo rio. Francamente, são muito misteriosos, não são? Na verdade, não permitiram que eu assistisse à reunião, assim como o senhor.

— Não estou acreditando nisso, major!

— Na verdade, comandante, estou apenas transmitindo uma mensagem... Oh, sim, o Sr. Converse pediu-me que, caso o senhor ficasse preocupado, eu lhe dissesse que, se o almirante telefonasse, o senhor lhe devia agradecer e dar-lhe lembranças.

Fitzpatrick olhou para a parede. Converse não citaria o caso com Hickman se a mensagem não fosse sua. O pedido não signifi­cava coisa alguma, a não ser para eles dois. Tudo estava bem. E vários podiam ser os motivos pelos quais Converse não queria tele­fonar pessoalmente. Entre eles, pensou Connal ressentido, estava provavelmente o fato de ele não confiar em seu “ajudante” para dizer as palavras certas no caso de a conversa estar sendo ouvida por terceiros.

— Está bem, major... qual é mesmo seu nome? Dunstone?

— Certo, Philip Dunstone, primeiro ajudante do general Ber­keley-Greene.

— Por favor, diga ao Sr. Converse que espero notícias dele às oito horas.

— Não é um pouco cedo, meu velho? São quase duas da ma­nhã agora. O café da manhã geralmente começa às nove e meia aqui.

— Nove horas então — disse Fitzpatrick com firmeza.

— Darei o recado pessoalmente, comandante. Oh, mais uma coisa, o Sr. Converse recomendou-me que lhe pedisse desculpas por não ter conseguido falar com o senhor à meia-noite. Estiveram realmente muito ocupados por aqui.

Então era isso, pensou Connal. Tudo estava sob controle. Cer­tamente Joel não teria feito essa observação se não fosse assim.

— Obrigado, major, e, a propósito, desculpe-me por ter sido brusco. Estava dormindo e tentei acordar depressa demais.

— Homem feliz. Pode pôr a cabeça no travesseiro enquanto eu tenho de ficar de guarda. Da próxima vez pode ficar no meu lugar.

— Se a comida é boa, está valendo.

— Na verdade, não é. Uma porção de pratos de maricas, para dizer a verdade. Boa-noite, comandante.

— Boa-noite, major.

Aliviado, Fitzpatrick desligou o telefone. Olhou para o sofá, pensando brevemente em voltar aos dossiês mas resolveu o con­trário. Sentia-se vazio, as pernas vazias, o peito vazio, um vazio dolorido na cabeça. Precisava urgentemente de dormir.

Ajuntou os papéis e levou-os para o quarto de Converse. Co­locou todos na pasta, fechou-a e trancou com o segredo. Voltou para a sala de estar com a maleta na mão, verificou a porta, apagou as luzes e foi para o quarto. Jogou a pasta sobre a cama e tirou os sapatos, depois a calça, mas não passou daí. Caiu na cama conse­guindo apenas puxar a coberta para cima do corpo. A escuridão era uma bênção.

 

— Isso não era necessário — disse Erich Leifhelm para o inglês, quando este último desligou o telefone. — Comida de maricas não é bem uma descrição da minha mesa.

— Ele sem dúvida pensaria assim — disse o homem que se dissera chamar Philip Dunstone. — Vamos ver como está o pa­ciente.

Os dois saíram da biblioteca, atravessaram o corredor e che­garam a um quarto. Lá estavam os outros três homens de Aquitânia e um quarto, com uma maleta preta e seringas de injeção; um médico. Na cama estava Joel Converse, os olhos arregalados e ví­treos, a saliva escorrendo do canto da boca, a cabeça movendo-se de um lado para outro como se estivesse em transe. Sons ininteli­gíveis saíam dos seus lábios.

O médico ergueu os olhos e disse:

— Não pode nos dar mais nada porque não há nada mais. Estas injeções não mentem. Ele não passa de um agente sem infor­mações, enviado por homens de Washington, mas não tem idéia de quem são. Nem sabia da existência deles até que seu oficial de Marinha o convenceu de que são reais. Seus únicos pontos de refe­rência eram Beale e Anstett.

— Ambos mortos — interrompeu Van Headmer. — Anstett, todo o mundo sabe e, quanto a Beale, eu posso garantir. Meu empregado de Santorini foi a Miconos e confirmou a morte. Aliás, não há nenhuma pista. O grego está de volta aos penhascos brancos vendendo rendas e uísque falsificado na sua taverna.

— Prepare-o para a sua odisséia — disse Chaim Abrahms, olhando para Converse. — Como tão acertadamente disse nosso especialista do Mossad, a distância é agora a coisa mais necessária. Um vasto abismo entre este americano e os que o mandaram.

 

Fitzpatrick acordou quando a luz vibrante do sol da manhã entrou pela janela, invadindo a escuridão e formando sombras brancas que o obrigaram a abrir os olhos. Espreguiçou-se, batendo com o om­bro no canto da pasta de couro, o resto do corpo enrolado na coberta. Afastou-a com os pés e abriu os braços na cama, respi­rando profundamente, sentindo o movimento descansado do peito. Ergueu o braço esquerdo acima da cabeça e consultou o relógio. Nove e vinte; dormira sete horas e meia, mas parecia muito mais. Levantou-se e deu alguns passos no quarto; seu equilíbrio estava perfeito, a mente começava a clarear. Olhou para o relógio outra vez, e lembrou-se. O major chamado Dunstone tinha dito que o café da manhã na casa de Leifhelm era servido a partir das nove e meia; e se os homens tinham saído para um passeio de barco no rio às duas horas da manhã, Converse provavelmente não telefonaria antes das dez.

Connal foi para o banheiro; havia um telefone na parede ao lado do toalete, se tivesse se enganado no cálculo da hora do telefo­nema, não o perderia. Depois de fazer a barba e tomar um chuveiro quente e frio estaria perfeito outra vez.

Dezoito minutos mais tarde, Fitzpatrick voltou para o quarto com uma toalha amarrada na cintura, a pele estimulada pelo jato de água fria. Foi até a mala que estava na banqueta, apanhou o rádio em miniatura, colocou-o na penteadeira e, decidindo-se con­tra a faixa das forças armadas, ligou para o que restava do noti­ciário alemão. As usuais ameaças de greve na região industrial do Sul, bem como acusações e contra-acusações sobre o Bundestag, mas nada de muito importante. Escolheu roupas confortáveis — calça esporte de tecido leve, uma camisa azul e o paletó esporte. Vestiu-se e foi para a sala de estar dirigindo-se para o telefone; ia chamar o serviço de quarto, pedir alguma coisa leve e muito café.

Parou. Algo estava errado. O que podia ser? As almofadas do sofá estavam ainda amarrotadas, um copo com restos de uísque ainda sobre a mesa, bem como lápis e o bloco de notas. As portas do terraço estavam fechadas, as cortinas corridas e, no outro lado da sala, o balde de gelo de prata estava no centro da bandeja de prata sobre a mesa antiga. Tudo como tinha visto antes de se deitar, mas havia alguma coisa... A porta! A porta do quarto de Converse estava fechada. Ele a teria fechado? Não, tinha certeza que não!

Caminhou rapidamente até a porta e abriu-a. Examinou o quarto, consciente de ter parado de respirar. Tudo estava imacula­damente em ordem - limpo e arrumado. A mala tinha desapare­cido; os pouco objetos que Converse deixara sobre a cômoda não estavam mais lá. Connal correu para o armário e abriu-o. Vazio. Foi até o banheiro; completamente limpo, sabonete novo na sabo­neteira, os copos envoltos em papel protetor, prontos para os pró­ximos hóspedes. Saiu do banheiro, estupefato. Não havia o menor sinal de que alguém que não fosse a arrumadeira tivesse estado no quarto durante dias.

Voltou para a sala de estar e para o telefone. Em poucos segundos, estava falando com o gerente; o mesmo com quem tinha falado na véspera.

— Sim, seu homem de negócios é na verdade muito mais excêntrico do que disse comandante. Ele deixou o hotel às três horas da manhã, tendo pago todas as contas.

— Ele esteve aqui!

— Naturalmente.

— O senhor o viu?

— Não pessoalmente. Eu só entro em serviço às oito horas. Ele falou com o gerente da noite e acertou as contas antes de subir para fazer as malas.

— Como o seu homem sabia que era ele? Nunca o viu antes!

— Realmente, comandante, ele se identificou como seu companheiro e pagou a conta. Tinha também a chave; deixou-a na portaria.

Fitzpatrick fez uma pausa, atônito, depois falou com voz ás­pera:

— O quarto foi arrumado! Isso também foi feito às três horas da manhã?

— Não, mein Herr, às sete horas. Pela primeira turma de arrumadeiras.

— Mas não a sala de estar?

— O barulho podia acordá-lo. Francamente, comandante, a suíte precisa ser preparada para um hóspede que vai chegar hoje à tarde. Estou certo de que os empregados acharam que não deviam perturbá-lo se adiantassem o serviço. Obviamente não o pertur­baram.

— Hoje à tarde? Eu estou aqui!

— E é muito bem-vindo até o meio-dia; a conta foi paga. Seu amigo partiu e a suíte está reservada.

— E suponho que não tem outro quarto.

— Sinto, mas não temos nenhum vago, comandante.

Connal bateu o fone com força. Realmente, comandante... Essas mesmas palavras tinham sido ditas por outra pessoa no tele­fone às duas horas da manhã. Havia três listas telefônicas em sua estante de vime ao lado da mesa; apanhou a de Bonn e procurou um número.

— Guten Morgen. Hier bei General Leifhelm.

— Herr Major Dunstone, bitte.

— Wer?

— Dunstone — disse ele, e continuou em alemão: — É um convidado. Philip Dunstone. É primeiro ajudante do... do general Berkeley-Greene. São ingleses.

— Ingleses? Não há nenhum aqui, senhor. Não há ninguém aqui... isto é, nenhum convidado.

— Ele estava aí ontem à noite! Os dois. Eu falei com o major Dunstone.

— O general ofereceu um pequeno jantar para amigos, mas não havia nenhum inglês, senhor.

— Olhe. Estou tentando falar com um homem chamado Con­verse.

— Oh, sim, o Sr. Converse. Ele esteve aqui, senhor.

— Esteve?

— Acho que já saiu.

— Onde está Leifhelm! — gritou Connal.

Uma pausa e depois o alemão respondeu friamente:

— Quem devo dizer que quer falar com o general Leifhelm?

— Fitzpatrick. Capitão-de-corveta Fitzpatrick.

— Acho que ele está na sala de jantar. Se quiser esperar no telefone. — Connal esperou; o silêncio era enervante.

Afinal ouviu um estalido e a voz de Leifhelm ressoou no apa­relho.

— Bom-dia, comandante. Bonn nos está dando um belo dia, não acha? As sete montanhas estão claras como um cartão-postal. Acredito que o senhor pode vê-las...

- Onde está Converse? — interrompeu o advogado da Ma­rinha.

— Presumo que no Das Rektorat.

— Ele ia passar a noite na sua casa.

— Nada disso foi combinado. Não foi pedido e não foi ofe­recido Ele saiu bem tarde, mas saiu, comandante. Meu carro o levou de volta.

— Não foi o que me disseram! Um tal major Dunstone me telefonou às duas horas da manhã...

— Acredito que o Sr. Converse tenha saído um pouco antes disso... Quem o senhor disse que telefonou?

— Dunstone. Major Philip Dunstone. É inglês. Disse que era o primeiro ajudante do general Berkeley-Greene.

— Não conheço esse major Dunstone; não havia ninguém com esse nome aqui. Mas conheço quase todos os generais do Exército britânico e nunca ouvi falar de Berkeley-Greene.

— Deixe de conversa, Leifhelm!

— Perdão?

— Eu falei com esse Dunstone! Ele... ele disse as palavras certas. Disse que Converse ia ficar em sua casa... com os outros!

— Acho que devia ter falado diretamente com o Sr. Converse, porque não havia nenhum major Dunstone e nenhum general Ber­keley-Greene em minha casa a noite passada. Talvez possa verifi­car na embaixada inglesa; na certa devem saber se essas pessoas estão em Bonn. Talvez tenha ouvido mal; talvez se tenham encon­trado mais tarde, em algum café.

— Eu não consegui falar com ele! O tal Dunstone disse que todos tinham saído de lancha. — A respiração de Fitzpatrick estava agora entrecortada.

— Ora, isso é ridículo, comandante. É verdade que tenho uma pequena lancha para meus convidados, mas é fato conhecido que não sou muito amigo da água. — O general fez uma pausa e depois disse, com uma risada breve: — O grande marechal-de-campo fica enjoado em um caíque, a dois metros da praia.

— Está mentindo!

— Isso me ofende, senhor. Especialmente no que se refere à água. Nunca tive medo do front russo, só do mar Negro. E se tivéssemos invadido a Inglaterra, posso lhe garantir que eu teria cruzado o canal de avião. — O alemão estava brincando com ele, estava se divertindo.

— Sabe exatamente do que estou falando! — gritou Connal outra vez. — Disseram que Converse deixou o hotel às três horas da manhã! Pois eu digo que ele não voltou!

— E eu digo que esta conversa não tem nenhuma utilidade. Se está mesmo alarmado, telefone outra vez quando puder ser mais educado. Tenho amigos na Staatspolizei. — Outro estalido; o ale­mão tinha desligado.

Quando pôs o fone no gancho, Fitzpatrick lembrou-se de outra coisa. Assustado, foi rapidamente para o seu quarto, e a primeira coisa que viu foi a pasta de couro. Estava meio escondida sob o tra­vesseiro; oh, Deus! Tinha dormido tão profundamente! Apanhou a pasta e examinou-a. Respirando novamente, viu que era a mesma, o fecho de segredo na mesma posição; nenhuma pressão nos peque­nos botões faria abrir o fecho. Levantou a pasta e sacudiu-a; o peso e o som eram provas de que os papéis ainda estavam lá den­tro e intactos, prova também de que Converse não tinha voltado para o hotel e pago a conta. Pondo de lado todas as outras consi­derações e independentemente de qualquer emergência que pudesse ter surgido, ele jamais teria partido sem os dossiês e as listas de nomes.

Connal levou a pasta para a sala de estar, tentando pôr em ordem os pensamentos, colocando-os em seqüência alfabética para impor certa ordem. A: Devia supor que o embargo na ficha de serviço de Joel fora anulado, ou que a informação fora obtida por outro meio qualquer e Converse era agora prisioneiro de Leifhelm e do; contingente de Aquitânia que tinha vindo de Paris, Telavive e Joanesburgo. B: Eles não o matariam antes de fazer uso de todos os meios para descobrir o que ele sabia — o que era muito menos do que imaginavam, e isso poderia levar alguns dias. C: A casa de Leifhelm, segundo seu dossiê, era uma fortaleza; assim sendo, as possibilidades de entrar lá e libertar Converse não existiam. D: Fitzpatrick sabia que não podia recorrer à embaixada americana. Para começar, Walter Peregrine o colocaria em detenção territorial e os homens que o detivessem podiam meter uma bala na sua ca­beça. Um já tinha tentado. E: Não podia arriscar-se pedindo a ajuda de Hickman em San Diego, o que, em circunstâncias nor­mais, seria o procedimento lógico. Tudo o que sabia do almirante eliminava a possibilidade de ele ser um dos homens de Aquitânia; era um oficial independente cujas conversas eram temperadas com observações acerbas sobre a política e a mentalidade do Pentágono. Mas se aquele embargo tinha sido liberado — com seu consenti­mento ou apesar de suas objeções — Hickman não teria escolha senão chamá-lo de volta à base para um inquérito completo. Qual­quer contato teria como resultado o cancelamento de sua licença, mas se não houvesse contato e nenhum modo de encontrá-lo, obvia­mente a ordem não podia ser expedida.

Connal sentou-se no sofá com a pasta de couro no chão, aos seus pés, e apanhou um lápis: escreveu duas palavras no bloco de recados telefônicos: Telefone para Meagen. Pediria à irmã que dis­sesse que depois dos funerais de Press ele tinha partido sem nenhuma explicação, com destino desconhecido. Era compatível com o que tinha dito ao almirante, que ia levar as informações obtidas às autoridades que investigavam a morte de Preston Halliday.

F: Ele podia ir à polícia de Bonn e contar a verdade. Tinha motivos para acreditar que um colega americano estava sendo de­tido contra sua vontade na casa do general Erich Leifhelm. Então, naturalmente fariam a pergunta inevitável: por que o capitão-de-corveta não tinha procurado a embaixada americana? A implicação era evidente: o general Leifhelm era uma figura proeminente, e uma acusação tão séria precisava de apoio diplomático. A embaixada outra vez. Eliminada. Além disso, se Leifhelm afirmava que tinha “amigos” na Staatspolizei, provavelmente tinha nas mãos homens-chaves da polícia de Bonn. Se ele ficasse alarmado, Converse podia ser removido. Ou eliminado. G: ...era insano, pensou o advogado da Marinha, quando uma expressão jurídica surgiu lentamente em sua cabeça, subitamente adquirindo uma viabilidade meio obscura. Negociações. Era uma ocorrência diária em interrogatórios pré-julga-mento, tanto civis como militares. Nós abandonamos isto se você aceitar aquilo. Ficaremos fora desta área se você ficar fora daquela. Prática normal. Negociações. Seria possível? Podia ser ao menos considerado? Era loucura e era chocante, mas afinal nada era normal, nada tinha muita esperança. Uma vez que a força estava fora de questão, poderia ser feita uma negociação? Leifhelm por Converse. Um general por um tenente.

Connal não ousava analisar a possibilidade; havia muitos pontos negativos. Tinha de agir seguindo o instinto porque nada mais lhe restava, nenhum lado para onde se voltar que não o levasse a uma parede vazia ou a uma bala. Levantou-se do sofá, foi até a mesa do telefone e apanhou a lista que estava no chão. O que estava pensando era insano, mas não podia pensar muito nisso. Encontrou o nome. Fishbein, Ilse. A filha legítima de Hermann Göring.

 

O encontro foi marcado numa mesa de fundo do café Hansa-Keller na Kaiserplatz, a reserva em nome de Parnell. Fitzpatrick tinha tido o bom senso de pôr na mala, na Califórnia, um terno conser­vador; usava-o agora, como o advogado americano, Sr. Parnell, que falava alemão fluentemente e fora enviado pela firma de Mil-waukee, Wisconsin, para fazer contato com Ilse Fishbein, em Bonn, Alemanha Ocidental. Tivera também o bom senso, em Bonn, Alema­nha Ocidental, de conseguir um quarto de solteiro no Schlosspark no Venusbergweg e colocara a pasta de Converse onde estaria a salvo por muito tempo, deixando uma pista para que Joel a recuperasse se tudo se desmoronasse. Uma pista que ele reconheceria — se esti­vesse vivo e capaz de segui-la.

Connal chegou dez minutos antes, não somente para garantir a mesa mas também para se familiarizar com o ambiente e ensaiar silenciosamente seu plano de abordagem. Já tinha feito isso muitas vezes antes, entrando nos tribunais militares antes de um julga­mento, experimentando as cadeiras, verificando a altura das mesas, o tribunal visto da tribuna. Tudo ajudava.

Teve certeza de que era ela quando a mulher entrou e falou com o maître. Era alta e pesada, não obesa, mas cheia de corpo, no sentido escultural, consciente da sua sensualidade madura mas inte­ligente o bastante para não exibi-la em excesso. Usava um conjunto de verão cinza-claro, o casaco abotoado sobre os seios generosos, com a gola branca e larga da blusa para fora. O rosto era também cheio mas não flácido, as maçãs do rosto salientes, dando a im­pressão de caráter forte, que não se via em nenhum outro traço; o cabelo era escuro e ia até os ombros, com finas estrias de grisalho prematuro. Foi conduzida até a mesa pelo chefe dos garçons. Fitz­patrick levantou-se.

— Guten Tag, Frau Fishbein — disse ele, estendendo a mão. — Bitte, setzen Sie sich.

— Não precisa falar alemão, Herr Parnell — disse a mulher, retirando a mão da dele e sentando-se graciosamente na cadeira afastada pelo chefe dos garçons, que fez uma curvatura e afastou-se. — Trabalho como tradutora.

— Falaremos na língua que preferir — disse Connal.

— Acho que nestas circunstâncias prefiro o inglês, e fale deva­gar, por favor. Agora, o que é essa coisa incrível à qual se referiu no telefone, Sr. Parnell?

— Simplesmente uma herança, Sra. Fishbein — respondeu Fitzpatrick, com expressão sincera, os olhos fixos na mulher. — Se pudermos acertar algumas poucas questões de ordem técnica, e es­tou certo de que serão acertadas, como herdeira legítima receberá uma substancial quantia.

— De alguém da América, que eu não conheci?

— Ele... conheceu seu pai.

— Pois eu não — disse Ilse Fishbein rapidamente, olhando de relance para as mesas próximas. — Quem é esse homem?

— Fazia parte do pessoal que trabalhou com seu pai durante a guerra — respondeu Connal, abaixando ainda mais a voz. — Com a ajuda de seu pai — certos contatos na Holanda — ele saiu da Alemanha antes do julgamento de Nurembergue, com muito di­nheiro. Foi para os Estados Unidos passando por Londres, com sua fortuna intacta, e abriu uma firma no Meio-Oeste. Teve enorme sucesso. Morreu recentemente, deixando instruções seladas com a minha firma, seus advogados.

— Mas, por que eu?

— Uma dívida. Sem a influência e a ajuda de seu pai, nosso cliente teria com certeza passado anos na prisão em lugar de pros­perar na América, como fez. Ao que todos sabiam, era um imi­grante holandês cujo negócio de família fora destruído durante a guerra e que procurou o futuro na América. Esse futuro inclui considerável extensão de terra e uma fábrica de carne enlatada — tudo isso agora colocado à venda. Sua herança é de mais de dois milhões de dólares americanos. Quer um aperitivo, Sra. Fishbein?

A mulher não respondeu imediatamente. Arregalou os olhos, o queixo caiu, seu olhar parecia de alguém em transe.

— Acho que sim, Herr Parnell — disse afinal, em tom monó­tono. — Um uísque duplo, por favor.

Fitzpatrick chamou o garçom, pediu as bebidas e tentou várias vezes conversar sobre banalidades, comentando o belo tempo que estava fazendo e perguntando o que devia ver em Bonn. Não adian­tou. Ilse Fishbein estava muito mais próxima do estado catatônico do que Fitzpatrick podia imaginar. A mulher agarrou o pulso dele, em silêncio, com dedos extremamente fortes, entreabriu a boca e seus olhos pareciam duas contas de vidro. As bebidas foram servidas, o garçom afastou-se e ela continuava na mesma posição. Segurou o copo desajeitadamente com a mão esquerda.

— Quais são essas questões que precisam ser acertadas? Peça qualquer coisa, exija qualquer coisa. Já tem onde ficar? Bonn está tão cheia.

— É muito bondosa; sim, já tenho. Tente compreender, Sra. Fishbein, é um assunto extremamente delicado para a minha firma. Como pode muito bem imaginar, não é o tipo de trabalho que os advogados americanos gostam de fazer, e, francamente, se nosso cliente não tivesse condicionado a execução de outros aspectos do testamento à realização desta parte, nós teríamos...

— As questões! Quais são as questões?

Fitzpatrick fez uma pausa antes de responder, o advogado cau­teloso permitindo a interrupção, mas sem pensar em desistir do que tinha a dizer.

— Tudo será feito confidencialmente, o tribunal de validação atuará in camera...

— Com fotografias?

— Em sessão privada, Sra. Fishbein. Para o bem da comuni­dade, em troca de determinada extensão de terra e impostos locais, que não seriam pagos em caso de confisco. A senhora compreende, as altas cortes podem resolver que todas as propriedades estão aber­tas para questionamento.

— Sim, as questões! Quais são elas?

— Na verdade, muito simples. Preparei algumas declarações que a senhora deverá assinar e eu reconhecerei sua assinatura. Elas estabelecem sua descendência. Então, há um depoimento breve corroborando sua declaração. Precisamos de apenas um, mas deve ser feito por um ex-membro de alta patente das forças armadas alemãs, de preferência um homem conhecido, que os livros recentes da história da guerra estabeleçam como colega do seu pai natural. Naturalmente seria de grande vantagem se fosse alguém conhecido do Exército americano no caso de o juiz decidir perguntar ao Pen­tágono: “Quem é este homem?”

— Eu conheço esse homem! — murmurou Ilse Fishbein. — Foi um marechal-de-campo, um brilhante general!

— Quem é ele? — perguntou o advogado da Marinha, imedia­tamente erguendo os ombros, como se a questão de identidade do homem fosse irrelevante. — Não se importe com isso. Diga-me apenas por que acha que é o homem certo, esse marechal-de-campo.

— É muito respeitado, embora nem todos concordem com ele. Foi um dos grossmachtigen jovens comandantes, condecorado uma vez por meu pai por seu brilhantismo!

— Mas será que é conhecido por algum militar dos Estados Unidos?

— Mein Gott! Ele trabalhou para os Aliados em Berlim e Vie­na depois da guerra!

— Ah, sim?

— E no quartel-general da SHAPE em Bruxelas!

Sim, pensou Connal, estamos falando do mesmo homem.

— Ótimo — disse Fitzpatrick em tom despreocupado, mas sé­rio. — Não precisa me dizer o nome dele. Não é importante, e eu provavelmente nunca ouvi falar. Pode entrar em contato com ele imediatamente?

— Em minutos! Ele está aqui em Bonn.

— Esplêndido. Preciso tomar o avião de volta para Milwaukee amanhã ao meio-dia.

— O senhor vem comigo à casa dele e o general pode ditar o que é preciso ao seu secretário.

— Desculpe-me, não posso fazer isso. A declaração precisa ser reconhecida em cartório. Se não me engano, têm as mesmas regras aqui — e por que não? vocês as inventaram — e o Hotel Schlosspark tem serviço de datilografa e cartório. Digamos esta noite, ou talvez amanhã cedo? Eu teria muito prazer em providenciar um táxi para seu amigo. Não quero que tenha nenhuma despesa. Se houver alguma, minha firma terá prazer de reembolsar.

Ilse Fishbein deu uma risadinha — ligeiramente histérica.

— Não conhece o meu amigo, mein Herr.

— Tenho certeza de que nos daremos bem. Agora, que tal almoçarmos?

— Preciso ir ao banheiro — disse a alemã, com os olhos vi­drados outra vez. Connal levantou-se também e ela murmurou: — Mein Gott! Zwei Millionen Dollar!

— Ele nem quer saber o seu nome! — exclamou Ilse Fishbein no telefone. — É de um lugar chamado Milwaukee, Wisconsin, e está me oferecendo dois milhões de dólares americanos!

— Ele não perguntou quem eu era?

— Disse que não tem importância! Que provavelmente nunca o conheceu. Pode imaginar? Ofereceu-se para mandar um táxi para você. Disse que não quer que tenha nenhuma despesa!

— Na verdade, Göring foi excessivamente generoso nas últi­mas semanas — disse Leifhelm pensativo. — Naturalmente ele es­tava quase sempre drogado e os que forneciam os narcóticos, que eram obtidos com muita dificuldade, foram recompensados com a informação do paradeiro de valiosos tesouros de arte. O homem que contrabandeou para ele os supositórios envenenados vive ainda como um imperador romano no Luxemburgo.

— Então, é verdade! Göring fez essas coisas!

— Mas poucas vezes com noção exata do que estava fazendo — concordou o general com relutância. — Tudo isso é muito estranho e inconveniente, Ilse. Esse homem mostrou algum documen­to, qualquer prova do que disse?

— Naturalmente! — mentiu Fishbein, quase em pânico, apa­nhando palavras soltas que lhe vinham à memória. — Uma folha de declarações legais e uma... um depoimento — tudo para ser julgado confidencialmente pelo tribunal. Em sessão privada! Você com­preende, uma questão de impostos, que não serão pagos se o espólio for confiscado...

— Já ouvi tudo isso antes, Ilse — interrompeu Leifhelm com voz cansada. — Não existem estatutos para os chamados crimino­sos de guerra e fundos expatriados. Assim, os hipócritas sufocam suas próprias leis, quando vão lhes custar dinheiro, e as aban­donam.

— É sempre tão compreensivo, meu general, e eu tenho sido sempre tão leal. Nunca lhe recusei nenhum pedido, profissional ou de natureza mais íntima. Por favor. Dois milhões de dólares! Não lhe tomará mais do que quinze minutos!

— Você tem sido como uma boa sobrinha, não posso negar, Ilse. E ninguém poderia saber nada além disso sobre você... Muito bem, esta noite, então. Vou jantar no Steigenberger às nove horas. Passo pelo Schlosspark às oito e quinze mais ou menos. Você pode me comprar um presente com a sua — digamos — fortuna mal ganha.

— Eu o encontro no saguão.

— Meu motorista me acompanhará.

— Ach, pode levar vinte homens!

— Ele vale por vinte e cinco — disse Leifhelm.

 

Fitzpatrick sentou-se na pequena sala de conferências no segundo andar do hotel e examinou a arma e o manual de instruções que estava no seu colo. Tentou adaptar o que o vendedor lhe tinha dito aos diagramas das instruções e concluiu que estava preparado. Ha­via certas similaridades com o Colt 45 da Marinha, a única arma pequena que conhecia, e as informações técnicas iam além das suas necessidade no momento. A arma era uma Heckler & Koch PGS, uma pistola automática, com cerca de quinze centímetros de com­primento, calibre de nove milímetros, com tambor de vinte balas. As instruções acentuavam essas características chamando-as de “es-triamento poligonal” e “funcionamento deslizante de trava”; dei­xou que o manual escorregasse para o chão e praticou o movimento de remover o tambor e colocá-lo no lugar novamente. Podia carregar a arma, apontá-la e atirar; não precisava de mais, e esperava não precisar nem mesmo disso.

Consultou o relógio; quase oito horas. Enfiou a automática no cinto, apanhou as instruções e levantou-se, examinando a sala, veri­ficando mentalmente os movimentos e posições que tinha determi­nado para si mesmo. Como esperava, a mulher Fishbein dissera que Leifhelm estaria acompanhado por um “motorista”, e podia-se su­por que o homem tivesse outras funções. Nesse caso, ele não teria oportunidade de exercê-las.

A sala — uma das vinte e poucas salas de conferência do hotel — que ele tinha reservado em nome de uma companhia fictícia não era muito grande, mas havia certas disposições estruturais que po­diam ser usadas com vantagem. A mesa retangular de praxe estava no centro, três cadeiras de cada lado e uma em cada cabeceira, e um telefone. Havia outras cadeiras encostadas na parede para estenó­grafos e observadores — tudo isso era normal. Entretanto, no cen­tro da parede da esquerda havia uma porta que dava para uma saleta, aparentemente usada para conversas particulares. Nela havia outro telefone, o qual, quando tirado do gancho, acendia um dos botões do telefone na mesa da sala de conferências; em Bonn a privacidade era limitada. A porta da sala abria-se para um pequeno saguão, evitando que o recém-chegado visse todo o interior da sala, enquanto estivesse no corredor.

Connal dobrou o folheto de instruções da Heckler & Koch, colocou-o no bolso do paletó e foi até a mesa, examinando os objetos dispostos sobre ela. Tinha comprado em uma loja de arti­gos para escritório todos os itens necessários. Ao lado do telefone, que estava colocado de modo que os botões no consolo ficassem bem visíveis, havia algumas pastas pira papéis e uma pasta de executivo aberta (de longe, o plástico escuro parecia couro de boa qualidade). Connal tinha espalhado sobre a mesa papéis, lápis e um bloco de papel oficial, com as primeiras páginas viradas para cima. O arranjo era familiar a qualquer pessoa que já tivesse tido uma conferência com advogados, quando o experiente conselheiro ano­tava suas astutas observações antes do encontro.

Fitzpatrick mudou a posição da cadeira, e dirigiu-se para a porta da saleta. As luzes estavam acesas — duas lâmpadas de mesa, uma de cada lado de um pequeno sofá; apagou a que ficava ao lado do telefone. Voltou para a porta de ligação aberta e ficou entre ela e a parede, espiando pelo estreito espaço vertical entre as dobra­dicas. Via perfeitamente a entrada da sala; três pessoas entrariam e ele sairia.

Bateram na porta do corredor — as batidas impacientes de uma herdeira incapaz de se controlar por mais tempo, Connal disse­ra a Ilse onde ficava a sala, nada mais. Nenhum nome ou número, e na sua ansiedade ela não perguntara. Fitzpatrick foi até o telefone da saleta, tirou o fone do gancho e colocou-o de lado, sobre a mesa. Voltou para sua posição atrás da porta, olhando pela aber­tura, o corpo na sombra. Tirou a pistola do cinto, e gritou com voz amistosa, para ser ouvido no corredor do hotel:

— Bitte, kommen Sie herein! Die Türe ist offen. Ich telefo-niere gerade!

O som da porta se abrindo precedeu a entrada de Ilse Fishbein. Ela caminhou rapidamente para a mesa, os olhos fixos nos papéis. Atrás dela vinha Erich Leifhelm, que examinou a sala e depois virou-se para trás fazendo um gesto de assentimento com a cabeça. Um homem com uniforme de motorista apareceu, com a mão no bolso do paletó preto. Então Connal ouviu o ruído que esperava ouvir. A porta que dava para o corredor foi fechada.

Ele empurrou a pequena porta da saleta e deu um passo à frente, a arma apontada para o motorista.

— Você! — exclamou em alemão. — Tire a mão do bolso! Bem devagar! — A mulher soltou uma exclamação abafada e de­pois abriu a boca para gritar. Fitzpatrick interrompeu-a aspera­mente: — Fique quieta! Como o seu amigo poderá lhe dizer, não tenho nada a perder. Posso matar vocês três e sair do país em uma hora, deixando que a polícia procure um Sr. Parnell que não existe.

O motorista, contraindo os músculos do rosto, tirou a mão do bolso, com os dedos rígidos. Leifhelm olhou para a arma de Connal com raiva e medo, o rosto não mais pálido mas avermelhado.

— Você teria coragem?

— Tenho coragem, marechal-de-campo — disse Fitzpatrick. Como o senhor teve a coragem, há quarenta anos, de violentar uma menina e providenciar para que ela e toda a sua família fossem para o campo de concentração. Pode apostar que tenho coragem, e, se fosse o senhor, não me daria nenhum motivo para ficar mais furioso do que estou. — Connal falou para a mulher: — Você. Dentro daquela pasta há oito pedaços de corda. Comece com o motorista. Amarre as mãos e os pés, eu lhe direi como. Agora! Vamos!

Quatro minutos mais tarde, o motorista e Leifhelm estavam sentados em duas cadeiras com os tornozelos e os punhos amarra­dos e a arma do homem tinha sido tirada do seu bolso. Connal verificou os nós que tinham sido dados de acordo com suas instru­ções. Tudo estava bem; quanto mais eles se contorciam, mais os nós se apertavam. Mandou a mulher Fishbein, que estava em pânico, sentar-se em outra cadeira e amarrou-a também.

Levantando-se, Connal apanhou a automática que tinha dei­xado na mesa e aproximou-se de Leifhelm, que estava perto do telefone.

— Agora — disse, apontando a arma para a cabeça do ale­mão. — Assim que eu colocar no gancho o telefone da sala ao lado vamos fazer uma ligação deste aqui. — Foi rapidamente até a saleta, colocou o telefone no gancho e voltou. Sentou-se ao lado de Leif­helm e apanhou um pedaço de papel da pasta de plástico. Nele estava o número do telefone da casa do general, no Reno, além de Bad Godesberg.

— O que pensa que vai conseguir? — perguntou Leifhelm.

— Vamos negociar — respondeu Fitzpatrick, encostando o cano da arma na têmpora do general. — Vamos trocar você por Converse.

— Mein Gott! — murmurou Ilse Fishbein, e o motorista contorceu-se, forçando as cordas que começavam a lhe ferir os pulsos.

— Acredita que alguém vai dar atenção a você, e obedecer às suas ordens?

— Farão, se quiserem que viva, general. Sabe que estou certo. Esta arma não faz muito barulho, certifiquei-me disso. Posso ligar o rádio, matá-lo e tomar um avião, saindo da Alemanha antes que o encontrem. Esta sala está reservada para a noite toda, com ins­truções para não sermos interrompidos. — Connal passou a arma para a mão esquerda, apanhou o telefone e discou o número escrito no pedaço de papel.

— Guten Tag. Hier bei General Leifhelm.

— Chame alguém com autoridade — disse o advogado da Ma­rinha em perfeito alemão. — Estou com uma arma a menos de trinta centímetros da cabeça do general Leifhelm e vou matá-lo se não fizer o que estou mandando.

Ouviu gritos abafados do outro lado da linha; tinham tampado o bocal com a mão. Logo uma voz com sotaque britânico começou a falar em tom pausado, deliberadamente em inglês.

— Quem está falando e o que você quer?

— Vejam só que surpresa! Parece o major Philip Dunstone — era esse o nome, não era? Não está tão amistoso quanto a noite passada.

— Não faça nada impensado, comandante. Vai se arrepender.

— E não faça nada estúpido, ou Leifhelm vai se arrepender muito antes — isto é, até que ele não possa mais se arrepender de nada. Tem uma hora para levar Converse ao aeroporto e colocá-lo do lado de dentro do portão de segurança da Lufthansa. Ele tem reserva para o vôo das dez horas para Washington, D.C., via Frankfurt. Tomei todas as providências. Vou telefonar para a sala aonde ele deve ser levado e espero falar com ele. Depois disso, vou sair daqui e telefonar para você de outro telefone, dizendo onde está o seu patrão. Leve Converse para o aeroporto. Uma hora, major! — Fitzpatrick colocou o fone na frente do rosto de Leifhelm e mais uma vez pressionou o cano da arma contra a têmpora do alemão.

— Faça o que ele diz — disse o general, engasgado.

Dez minutos se passaram lentamente, depois um quarto de hora, depois trinta minutos, e afinal Leifhelm quebrou o silêncio.

— Então, você a encontrou — disse ele, apontando com a cabeça para Ilse Fishbein, que tremia com as lágrimas escorrendo pelo rosto gorducho.

— Como descobrimos também tudo sobre Munique há qua­renta anos passados, e uma porção de outras coisas. Vocês estão todos caminhando para aquele imenso salão dos guerreiros no céu, marechal-de-campo, portanto não se preocupe, vou cumprir a pa­lavra que dei ao seu mordomo inglês. Não perderia por nada do mundo o espetáculo de vê-los expostos como realmente são. Gente como vocês desonram a classe militar.

Ouviu-se uma leve comoção no corredor, ao lado da porta. Connal levantou os olhos, ergueu a arma e voltou a apontá-la dire­tamente para a cabeça do general.

— Was ist? — disse o alemão, erguendo os ombros.

— Keine Bewegung!

Ouviram-se vozes masculinas cantando desafinadamente no corredor. Outra conferência em outra sala tinha chegado ao fim, obviamente tanto pelo excesso de álcool quanto pela solução de todos os itens da agenda. Risadas roucas interromperam a canto­ria. Fitzpatrick abaixou a automática, relaxando os músculos; nin­guém sabia o número da sala.

— Você diz que homens como eu desonram a sua profissão — que é a minha também — disse Leifhelm. — Já lhe ocorreu, co­mandante, que podemos elevar essa profissão a um nível de indis­pensável grandeza em um mundo que precisa desesperadamente de nós?

— Precisa de nós? — perguntou Connal. — Nós precisamos do mundo e não da sua espécie de mundo. Vocês tentaram uma vez e não deu certo, lembra-se?

— Isso foi uma nação liderada por um louco que queria impor sua marca sobre o mundo. Mas agora são várias nações com uma 3Hclasse de profissionais abnegados que se uniram para o bem de todos.

— De quem é a definição? Sua? É um cara engraçado, gene­ral. Eu questiono suas tendências benevolentes.

— Indiscrições de um jovem desprivilegiado, a quem rouba­ram o nome e os direitos a qualquer oportunidade, não devem ser usadas contra ele meio século depois.

— Desprivilegiado ou depravado? Acho que recuperou o tem­po perdido muito rapidamente e com a maior brutalidade possível. Não me agradam os seus remédios.

— Não tem nenhuma visão.

— Graças a Jesus, Maria e José, não igual à sua. — A canto­ria no corredor diminuiu brevemente e depois recomeçou, mais de­safinada e alta do que antes. — Talvez alguns dos seus garotos de Dachau estejam dando uma festa de cerveja.

Leifhelm ergueu os ombros.

Subitamente a porta foi aberta, batendo contra a parede, e três homens entraram correndo na sala, silvos abafados enchendo o ar quando as armas com silenciadores detonavam, mãos movendo-se rapidamente, lascas de madeira voando pelo ar. Fitzpatrick sentiu as pontadas repetidas de uma dor intensa no braço e a automática voou de sua mão. Olhou para baixo e viu o sangue ensopando a manga do paletó. Em estado de choque olhou em volta. Ilse Fishbein estava morta, a cabeça ensangüentada quase destruída por uma série de balas; o motorista sorria obscenamente. A porta se fechou, como se nada tivesse acontecido.

— Stümper — disse Leifhelm enquanto um dos invasores cor­tava as cordas que o prendiam. — Usei esse termo ontem, coman­dante, mas não sabia o quanto estava certo. Pensou que um simples chamado telefônico não podia ser identificado para uma sala de hotel? Tudo tão coincidentemente simétrico. Converse está em nossas mãos e subitamente esta pobre prostituta recebe imensa for­tuna — dinheiro americano. Posso lhe garantir que é completamen­te impossível — essas doações são feitas geralmente por idiotas cheios de salsicha que não sabem o mal que estão fazendo — mas a coisa era perfeita demais, muito... amadora.

— Você é um filho da puta. — Connal fechou os olhos, ten­tando afastar a dor da sua mente, sem poder mover os dedos.

— Ora, comandante — disse o general, saindo da cadeira —, noto um tom de bravata ou de medo? Pensa que vou mandar matá-lo?

— Pode ficar certo. Não vou lhe dar nada mais do que isso.

— Está completamente enganado. Considerando a natureza da sua licença militar, pode nos prestar um serviço pequeno mas ex­cepcional. Uma estatística a mais para confundir o padrão. Será nosso convidado, comandante, mas não na Alemanha. Vai viajar.

 

Converse abriu os olhos lentamente, com um peso de chumbo nas pálpebras e náuseas subindo-lhe na garganta — escuridão total — e uma pontada terrível no lado do corpo — no braço — carne separada da carne, distendida e inflamada. Às cegas tentou tocar o lugar dolorido, depois, com uma exclamação abafada de dor, vol­tou à posição anterior. Em algum lugar a luz tentava penetrar na escuridão acima dele, abrindo caminho entre obstáculos móveis, espiando timidamente entre as trevas. Os objetos lentamente come­çaram a entrar em foco — a borda de metal da cama, perto do seu rosto, duas cadeiras de madeira uma na frente da outra com uma mesa entre elas, na distância; uma porta, também distante, mas muito mais afastada, e fechada... outra porta, esta aberta, uma pia branca com um par de torneiras de metal opaco, à esquerda, em um cubículo. A luz? Movia-se ainda, dançando agora, cintilando. De onde vinha?

Descobriu: no alto da parede, nos dois lados da porta fechada, havia duas janelas retangulares, com cortinas curtas que esvoaça­vam com a brisa. Estavam abertas, mas ao mesmo tempo não aber­tas, não completamente, os espaços interrompidos. Joel levantou a cabeça, apoiando-se no cotovelo e entrecerrou os olhos, tentando ver melhor. Observou as interrupções por detrás das cortinas balouçantes — barras finas de metal colocadas verticalmente. Estava em uma cela.

Deitou-se outra vez, engolindo repetidamente para aliviar o ardor na garganta, e moveu o braço em círculos tentando diminuir a dor do... ferimento? Sim, um ferimento, a bala! A certeza ativou sua memória; um jantar que se tinha transformado em campo de batalha repleto de histeria. Luzes cegantes e súbitas sensações de dor acompanhadas por vozes estridentes que o bombardeavam, ecos incessantes soando em seus ouvidos, enquanto tentava desespe­radamente repelir os assaltos penetrantes. Depois, momentos de calma, o tom monótono de uma única voz entre a névoa. Converse fechou os olhos, apertando as pálpebras com força, e lembrou-se de outra coisa que o perturbou profundamente. Aquela voz dentro da neblina turbilhonante era a sua voz; tinha sido drogado, e sabia que revelara segredos.

Já tinha sido drogado antes, muitas vezes, nos campos do Vietnã do Norte e havia sempre a sensação dolorosa de ultraje. Sua mente fora despida e violada, sua voz obrigada a obscenidades, contra os últimos vestígios da vontade.

E mais uma vez, como sempre, o vazio no estômago, um vácuo profundo que provocava fraqueza extrema. Tinha a impressão de estar faminto e talvez estivesse mesmo. As drogas geralmente pro­duziam vômito, pois o organismo rejeitava as substâncias anormais. Era estranho, pensou, abrindo os olhos e acompanhando os movi­mentos dos raios de luz, mas aquelas lembranças do passado pro­vocavam os mesmos instintos de autoproteção que o tinham aju­dado — há tantos anos. Não devia desperdiçar energia; precisava conservar as forças que lhe restavam. Adquirir novas forças. Do contrário não haveria nada além do ultraje vago e a mente e o corpo nada poderiam fazer contra ele.

Ouviu um som na outra extremidade do quarto. Depois outro, e mais outro. Metal girou sobre metal; uma fechadura que se abria; o ruído áspero da chave seguido pelo girar da maçaneta. A porta distante estava sendo aberta. Um clarão cegante inundou a cela. Converse protegeu os olhos, espiando por entre os dedos. A silhueta embaçada de um homem surgiu na porta carregando um objeto chato. Entrou na cela e Joel, piscando rapidamente, viu o motorista que o tinha revistado com o detector eletrônico na entrada da casa.

O homem de uniforme foi até a mesa e colocou o objeto sobre ela; uma bandeja coberta com um pano. Só então os olhos de Con­verse foram atraídos para a porta aberta por onde entrava a luz do sol. Do lado de fora, agrupados e ansiosos, estavam os dobermans, os olhos negros e brilhantes voltando-se continuamente para a porta, as bocas abertas, os dentes à mostra em arreganhos silen­ciosos.

— Guten Morgen, mein Herr — disse o motorista de Leifhelm, e depois, em inglês: — Outro belo dia no norte do Reno, não acha?

— Está ensolarado lá fora, se é isso que quer dizer — respon­deu Joel, ainda protegendo os olhos com a mão. — Acho que devo agradecer por ainda ser capaz de notar, depois da noite passada.

— A noite passada? — o alemão fez uma pausa, depois disse em voz baixa: — Há duas noites, Amerikaner. Está aqui há trinta e três horas.

— Trinta? — Converse ergueu o corpo e pôs as pernas para fora da cama. Imediatamente sentiu-se tonto — muita força lhe fora roubada. Oh, Cristo! Não desperdice movimento. Eles vão voltar. Os malditos! — Vocês, seus malditos — disse em voz alta mas sem emoção. Então, pela primeira vez percebeu as ataduras no braço esquerdo entre o cotovelo e o ombro. Sobre o ferimento de bala. — Alguém não conseguiu me acertar na cabeça? — per­guntou.

— Ouvi dizer que o senhor feriu a si mesmo. Tentou matar o general Leifhelm mas os outros tomaram sua arma.

— Eu tentei matar? Com minha arma inexistente? Aquela que você verificou que eu não tinha?

— Foi esperto demais para mim, mein Herr.

— O que vai acontecer agora?

— Agora? Agora você come. Tenho instruções do médico. Comece com o Hafergrütze. Como é que vocês chamam... o mingau?

— Papa quente ou cereal — disse Joel. — Com leite desnatado ou em pó. E ovos cozidos moles, que se comem com pílulas. E se tudo disso descer bem, um pouco de carne moída, e se isso fica lá dentro, algumas colheres de sopa de nabo, batatas ou abobrinha amassada. O que se tiver no momento.

— Como sabe? — perguntou o homem de uniforme, sincera­mente surpreso.

— É a dieta básica — disse Converse rispidamente. — Varia de acordo com o território e com os suprimentos existentes. Eu tive certa vez refeições relativamente boas... Vocês estão pensando em me drogar outra vez.

O alemão ergueu os ombros.

— Faço o que mandam. Trago a comida. Aqui está, deixe-me ajudá-lo.

Joel ergueu os olhos quando o homem se aproximou da cama.

— Em outras circunstâncias eu cuspiria no seu maldito rosto. Mas se o fizesse não teria aquela tênue, muito tênue possibilidade de cuspir nele em outra ocasião. Você pode me ajudar. Tome cui­dado com o meu braço.

— É um homem muito estranho, mein Herr.

— E vocês todos são cidadãos perfeitamente normais que vão tomar o primeiro trem para Larchmont para ter tempo de tomar dez martínis antes de ir para a reunião de pais e alunos.

— Was ist? Não sei dessa reunião.

— Estão mantendo em segredo; não querem que você saiba. Se fosse você, saía da cidade antes que eles o façam presidente.

— Mich? Präsident?

— Ajude-me a chegar até a cadeira, como um bom menino ariano, está bem?

— Ah, está brincando, ja?

— Provavelmente não — disse Converse, sentando-se. — É um hábito terrível do qual não consigo me livrar. — Olhou para o confuso alemão. — Compreende, eu continuo tentando — disse com a maior seriedade.

 

Mais três dias se passaram, e Joel só via o motorista acompa­nhado pela matilha de dobermans mal-humorados e nervosos. Sua mala, depois de bem revistada, lhe fora entregue, tendo sido remo­vida a tesoura e a lima de unhas de metal do estojo de viagem — o barbeador elétrico estava intacto. Era o modo de lhe dizerem que sua presença fora apagada de Bonn, deixando-o apenas com conje­turas penosas sobre a sorte de Connal Fitzpatrick. Mas havia uma contradição e, portanto, alguma esperança. Não disseram nada so­bre sua pasta de couro, nem tinha tido uma prova visual — uma folha de dossiê, por exemplo — ou algum indício através das suas breves conversas com o motorista de Leifhelm. Os generais de Aquitânia eram homens com egos imensos; se estivessem de posse daquele material eles o informariam.

Quanto às conversas com o motorista, limitavam-se a pergun­tas de sua parte e disciplinadas amabilidades da parte do homem, nenhuma resposta — pelo menos, nenhuma que fizesse algum sen­tido.

— Quanto tempo isto vai durar? Quando vou ver outra pessoa além de você?

— Não há ninguém aqui, senhor, só os empregados. O general Leifhelm está viajando — em Essen, acho. Nossas instruções são para alimentá-lo bem, para que recupere a saúde.

Incomunicável. Estava na solitária. Mas a comida não era igual à dos prisioneiros em outros lu­gares. Carne assada, carneiro, costeletas, aves e peixe fresco; vege­tais que deviam vir de uma horta próxima. E vinho — que, a prin­cípio, Joel hesitou em tomar, mas que, depois de experimentar, reconheceu ser da melhor qualidade.

No segundo dia, mais para não pensar do que por outro mo­tivo, começou a fazer algum exercício — como fizera tantos anos atrás. No terceiro dia chegou a transpirar em uma sessão de corrida sem sair do lugar, uma transpiração saudável, indicando que as drogas tinham sido eliminadas. O ferimento no braço ainda estava ali, mas pensava nele cada vez menos. Curiosamente, não era um ferimento sério.

No quarto dia perguntas e reflexão já não eram suficientes. O confinamento e a perturbadora frustração de não ter respostas obri­garam-no a voltar-se para outro lado, para o lado prático, para a consideração do fato mais necessário. A fuga. Fossem quais fossem os resultados. Não sabia que planos Delavane e seus discípulos ha­viam arquitetado para ele, mas evidentemente incluíam um homem sem o menor indício de drogas no organismo — e não um cadáver cheio de narcóticos. Do contrário, eles o teriam matado imediatamente, desfazendo-se do corpo de modo que jamais pudesse ser encontrado. Já tinha feito antes. Conseguiria fazer outra vez?

Não estava apodrecendo em uma cela cheia de ratos e não havia as explosões terríveis do tiroteio na escuridão distante, mas era muito mais importante ter êxito agora do que há dezoito anos. E havia uma ironia extraordinária: há dezoito anos ele queria fugir e falar a todos os que quisessem ouvir sobre um louco de Saigon que tinha enviado um número enorme de crianças para a morte — ou pior, que deixara que essas crianças sofressem perturbações mentais e uma sensação de vazio pelo resto de suas vidas. Agora, precisava falar para o mundo sobre esse mesmo louco. Precisava sair. Precisava dizer ao mundo o que sabia.

 

Converse ficou de pé na cadeira, abriu a cortina curta e olhou para fora, por entre as barras de metal. A cabine, ou cabana, ou prisão, fosse lá o que fosse, parecia ter sido baixada do alto sobre uma clareira na floresta. Um muro de árvores altas com folhagem es­pessa estendia-se em todas as direções, com uma trilha de terra à direita, sob as janelas. A clareira não tinha mais de seis metros entre a casa e as árvores; pensou que devia ser igual de todos os lados — como podia ver da outra janela, à esquerda da porta, mas não havia nenhuma trilha desse lado, apenas um pequeno espaço de relva. As duas janelas da frente eram as únicas aberturas para fora. O resto daquela prisão isolada consistia em paredes sólidas e uma pequena entrada de ar no teto do banheiro, nenhuma outra aber­tura.

A única coisa de que tinha certeza, uma vez que o motorista, os cães e as refeições quentes comprovavam, era estar ainda na pro­priedade de Leifhelm, e que portanto o rio não devia estar longe. Não podia vê-lo, mas estava ali e isso lhe dava esperança — mais do que esperança, uma sensação de mórbida alegria enraizada em sua memória. As águas de um rio tinham sido certa vez amigas, guias, a linha vital que o conduzira na parte mais dolorosa da jornada. Um tributário do Huong Khe, ao sul de Duc Tho, o levara silenciosamente durante a noite, por baixo de pontes e ao largo de patrulhas e acampamentos de três batalhões. As águas do Reno, como há tantos anos as correntes do Huong Khe, seriam sua rota de fuga.

Os sons múltiplos das patas dos animais sobre a terra endure­cida precedeu as formas escuras dos dobermans correndo sob a janela, parando subitamente e amontoando-se ferozes perto da por­ta. O motorista trazia um café da manhã que nenhum prisioneiro na solitária tinha o direito de esperar. Joel desceu da cadeira, le­vou-a rapidamente para perto da mesa, e sentou-se na cama. Tirou os sapatos e deitou-se, com as pernas estendidas sobre a coberta amassada.

O ferrolho foi aberto e a maçaneta girada; a porta se abriu. Como fazia sempre, o alemão empurrou a porta com a mão di­reita, segurando a bandeja com a esquerda. Mas, nessa manhã, tinha um objeto pesado na mão direita, a luz cegante do sol impe­dindo Converse de distinguir o que era. O homem entrou, mais desajeitadamente do que de costume, e colocou a bandeja na mesa.

— Tenho uma agradável surpresa, mein Herr. Falei com o general Leifhelm no telefone ontem à noite e ele perguntou sobre o senhor. Eu disse que estava se recuperando esplendidamente e que tinha trocado o curativo no infeliz ferimento. Então, ele lembrou que não tinha nada para ler e ficou muito preocupado. Portanto, há uma hora eu fui a Bonn e comprei três exemplares do Interna­tional Herald Tribune. — O motorista colocou os jornais enrolados perto da bandeja.

Mas não foram os jornais que atraíram e atenção de Joel. Foi o pescoço do alemão e o bolso externo superior do seu uniforme. Uma corrente fina de prata, pendurada no pescoço grosso, ia até o bolso, e o apito tubular de prata era perfeitamente visível através da fazenda do paletó. Converse olhou para a porta, os dobermans estavam sentados, respirando ruidosamente e salivando, mas imó­veis. Converse lembrou-se da sua chegada à toca monumental do general e do inglês estranho que tinha controlado os cães com um apito de prata.

— Diga a Leifhelm que agradeço o material de leitura, mas que ficaria muito mais agradecido se pudesse sair deste lugar por alguns minutos.

— Ja, com uma passagem aérea para as praias do sul da Fran­ça, nein?

— Pelo amor de Deus! Para andar um pouco e esticar as pernas! O que há? Você e aquele bando de mastins babões não podem com um homem desarmado que só quer tomar um pouco de ar?... Não, provavelmente têm medo de tentar. — Joel fez uma pausa, e depois acrescentou com um acento alemão elaborado e insultante: — Faço o que me mandam.

O sorriso desapareceu dos lábios do homem.

— Naquela noite, disse que não ia pedir desculpas mas que­brar meu pescoço. Foi uma brincadeira. Compreende? Uma brinca­deira tão engraçada que não posso parar de rir.

— Ei, pare com isso — disse Converse, mudando de tom, pondo as pernas para fora da cama e levantando-se. — É dez anos mais moço do que eu e vinte vezes mais forte. Senti-me insultado e reagi impulsivamente, mas se pensa que vou levantar um dedo con­tra você, está louco. Sinto muito. Você tem sido decente comigo e eu o ofendi outra vez.

— Ja, me ofendeu — disse o alemão sem rancor. — Mas estava certo também. Eu faço o que mandam. Por que não? É um privilégio receber ordens do general Leifhelm. Ele tem sido gut para mim.

— Está com ele há muito tempo?

— Desde Bruxelas. Eu era sargento na patrulha da fronteira da República Federal. Ele ouviu falar do meu problema e interes­sou-se pelo meu caso. Fui transferido para a guarnição de Brabante e passei a ser seu motorista.

— Qual era o seu problema? Sou advogado, como deve saber.

— Fui acusado de estrangular um homem. Com meu braço.

— E você estrangulou?

— Ja. Ele queria enfiar uma faca na minha barriga — bem embaixo. Disse que me aproveitei da sua filha. Eu não me apro­veitei; não foi preciso, ela era uma prostituta — a gente via pelas roupas que usava, o modo de andar — es ist klar! O pai era um porco!

Joel olhou para o homem, para a malevolência velada nos seus olhos.

— Compreendo a simpatia do general Leifhelm — disse.

— Agora sabe por que faço o que me mandam.

— Naturalmente.

— Ele vai telefonar ao meio-dia. Vou perguntar sobre seu pas­seio. Compreende que basta uma palavra minha e os dobermans arrancam sua carne dos ossos.

— Cachorrinhos bonitinhos — disse Converse, voltando-se pa­ra os cães do lado de fora da porta.

Chegou o meio-dia e o privilégio foi concedido. O passeio ia ser feito depois do almoço, quando o motorista voltasse para tirar a bandeja. Ele voltou e, depois de várias advertências severas, Joel aventurou-se fora da cabana, com os dobermans à sua volta, as ventas pretas dilatadas, os dentes brilhando, as línguas vermelho-azuladas pendentes, antegozando o que poderia acontecer. Con­verse examinou a clareira; pela primeira vez viu que a pequena casa era feita de pedra sólida e espessa. A patrulha de um só prisio­neiro começou a caminhada na trilha, e Joel ficava mais seguro à medida que os cães pareciam perder o interesse por sua pessoa, obedecendo às admoestações do alemão. Começaram a correr na frente, reagrupando-se em círculos, provocando-se entre si, mas sempre virando as cabeças para o dono e para o prisioneiro. Con­verse começou a andar mais depressa.

— Eu costumava fazer cooper em casa — mentiu ele.

— Was ist? Cooper?

— Correr. É bom para a circulação.

— Corra agora, mein Herr e não vai ter nenhuma circulação. Os dobermans se encarregam disso.

— Ouvi falar também de gente que tem ataques cardíacos por causa do cooper — disse Joel, diminuindo o passo, mas não a velocidade com que seus olhos perscrutavam a floresta em todas as direções.

A trilha de terra era como uma linha isolada, ligada a uma rede intrincada de trilhas secretas. Era ladeada por folhagem espessa, em quase toda a extensão, coberta por galhos pendentes, depois abrindo-se em pequenos pedaços de relva que podiam ou não levar a outras trilhas. Chegaram a um entroncamento, a trilha da direita fazia uma curva fechada na direção de um túnel de folhagem. Os cães instintivamente correram para ela, mas foram detidos pelo motorista, que gritou ordens em alemão. Os dobermans fizeram meia-volta, atropelando uns aos outros, e voltaram ao entronca­mento, e depois correram pela trilha mais larga da esquerda. Era uma subida e começaram a escalar a colina íngreme, as árvores agora menores e menos cheias, os arbustos rasteiros mais ásperos e em maior profusão. O vento, pensou Converse. Vento do vale; um vento que soprava de uma depressão, de uma longa e estreita fenda aberta na terra, o tipo de vento que o piloto de um pequeno avião procura evitar ao primeiro sinal de mau tempo. Um rio.

Ele estava ali. A sua esquerda. Caminhavam para o leste. O Reno estava logo abaixo, talvez a um quilômetro e meio da linha mais baixa das grandes árvores. Já vira o bastante. Começou a respirar ruidosamente. A satisfação que sentia era intensa; poderia caminhar quilômetros e quilômetros. Estava outra vez na margem do Huong Khe, a escura linha vital aquática que o levaria para longe das jaulas de Mekong, das celas, das injeções. Já fizera an­tes, ia fazer outra vez!

— Muito bem, marechal-de-campo — disse para o motorista de Leifhelm, olhando para o apito de prata no bolso do alemão. — Não estou com tanto preparo físico quanto pensei. Isso é uma montanha! Não tem nenhuma planície ou pastos tranqüilos?

— Faço o que me mandam, mein Herr — respondeu o homem com um largo sorriso. — As planícies são próximas da casa. O senhor deve passear por aqui.

— Pois é aqui que eu digo muito obrigado mas não, obrigado. Leve-me de volta à minha cabana de palha e eu lhe pago com uma simples canção.

— Não compreendo.

— Estou exausto e não acabei de ler os jornais. Falando sério, quero lhe agradecer. Precisava mesmo de um pouco de ar.

— Sehr gut. É um cara legal.

— Nem sabe quanto, bom menino ariano.

— Ach, tão divertido. Die Juden sind in Israel, nein? Melhor do que na Alemanha.

— Nate Simon ia amar você. Ele aceitaria seu caso sem cobrar nada, só para estourá-lo... Não, ele não faria isso. Provavelmente lhe daria a melhor defesa do mundo.

 

Converse ficou de pé na cadeira, sob a janela que ficava à esquerda da porta. Só precisava ouvir e ver os cachorros. Depois disso teria vinte ou trinta segundos. As torneiras estavam abertas no banheiro, a porta aberta; ia ter tempo suficiente para correr, atravessar o quarto, dar a descarga, fechar a porta e voltar à cadeira. Mas não ficaria em cima dela; estaria com ela na mão. O sol descia rapida­mente; em uma hora estaria escuro. A escuridão fora sua amiga uma vez, como as águas de um rio. Seriam suas amigas novamente. Tinham de ser!

O som chegou primeiro — patas velozes e explosões nasais —, depois os pêlos escuros e brilhantes, os corpos correndo em círculo na frente da prisão. Joel correu para o banheiro, concentrando-se nos segundos, enquanto esperava pelo ruído da fechadura. Chegou; deu a descarga, fechou a porta do banheiro e voltou correndo para a cadeira. A porta abriu-se alguns centímetros — segundos agora — e então a mão direita do alemão empurrou-a contra a parede.

— Herr Converse? Wo sind...? Ach, die Toilette.

O homem entrou com a bandeja, e Joel girou a cadeira com toda a força contra a cabeça do alemão. O motorista dobrou o corpo para trás, bandeja e pratos caindo ruidosamente no chão. Estava atordoado, nada mais. Converse fechou a porta com o pé e bateu com a cadeira pesada diversas vezes na cabeça do motorista, até o homem parar de se mover, e o sangue e a saliva começarem a escorrer pelo seu rosto.

A falange de cães saltara ao mesmo tempo em que a porta se fechou, pondo-se a latir e a arranhar a madeira.

Joel apanhou a corrente de prata, passou-a pela cabeça do alemão inconsciente e tirou o apito do seu bolso. Havia quatro pequenos orifícios no tubo; cada um significava uma coisa. Trans­portou a outra cadeira para baixo da janela, à direita da porta, subiu e levou o apito aos lábios. Cobriu o primeiro orifício e asso­prou. Nenhum som, mas surtiu efeito.

Os dobermans ficaram doidos! Começaram a atacar a porta em assaltos suicidas. Converse tirou o dedo, colocou-o sobre o segundo orifício e assoprou.

Os cães ficaram confusos; começaram a dar voltas, ganindo, rosnando, mas não desviaram a atenção da porta. Ele tentou o terceiro orifício e assoprou com toda a força.

Subitamente, os cães ficaram imóveis, as orelhas de pêlo curto levantadas, virando de um lado para outro — esperavam um se­gundo sinal. Converse assoprou outra vez, com todo o ar que tinha nos pulmões. Era o que eles estavam esperando e mais uma vez, todos juntos, correram para a direita, passando por baixo da ja­nela, dirigindo-se para outro lugar, o lugar onde deveriam estar, de acordo com as ordens recebidas.

Converse desceu da cadeira e abaixou-se ao lado do alemão. Revistou todos os bolsos rapidamente, tirando a carteira e todo o dinheiro que achou, bem como o relógio de pulso — e a arma. Por um momento Joel olhou para o revólver, odiando as lembranças que ele lhe trazia. Colocou-o no cinto e foi para a porta.

Fora da cabana, fechou a pesada porta, ouviu o estalido do ferrolho e colocou a tranca. Correu pela trilha de terra, calculando a distância até o entroncamento, onde o caminho da direita era verboten e o da esquerda levava para a colina íngreme e para o Reno, lá embaixo. Não tinha mais de duzentos metros, mas as curvas e a folhagem espessa faziam com que parecesse maior a distância. Se estava se lembrando bem — e na volta do passeio ele tinha usado os seus sentidos, como um piloto sem instrumentos —, havia um caminho plano de mais ou menos dois metros e meio de largura, logo abaixo do entroncamento.

Chegou à parte plana, sim, era a mesma, os dois caminhos divergentes lá em cima. Correu mais depressa.

Vozes! Zangadas, intrigadas? Não muito distantes e se aproxi­mando! Atirou-se para a direita da trilha, rolando sobre os arbustos espinhosos, até mal poder enxergar por entre a folhagem. Dois homens apareceram no seu campo limitado de visão, falando alto, como se estivessem discutindo, mas não brigando.

— Was haben die Hunde?

— Die sollten bei Heinrich sein!

Joel não tinha idéia do que estavam falando, só sabia que es­tavam indo para a cabana. Sabia também que não iam passar muito tempo tentando acordar quem estivesse lá dentro, antes de adota­rem métodos mais diretos. E, quando o fizessem, todos os alarmes na fortaleza de Leifhelm seriam ativados. Seu tempo era medido em minutos e tinha ainda muito que andar. Saiu cautelosamente do meio dos arbustos, de quatro. Os alemães tinham desaparecido nu­ma curva. Joel levantou-se e correu para o entroncamento e para a colina íngreme da esquerda.

 

Os três guardas no imenso portão de ferro na estrada da proprie­dade de Leifhelm estavam intrigados. Os dobermans andavam so­bre a grama em círculo, impacientes, obviamente confusos.

— Por que estão aqui? — perguntou um deles.

— Não faz sentido! — respondeu outro.

— Heinrich os deixou soltos, mas por quê? — disse o ter­ceiro.

— Ninguém nos diz nada — resmungou o primeiro guarda, erguendo os ombros. — Se não ouvirmos nada nos próximos mi­nutos, precisamos telefonar.

— Não estou gostando disto! — gritou o segundo. — Vou telefonar agora mesmo.

O primeiro entrou na cabine da guarda e apanhou o telefone.

Converse subiu correndo a colina íngreme, ofegando, os lábios se­cos, o coração disparado no peito. Lá estava ele! O rio! Começou a descer, cada vez mais rápido, com o vento fustigando-lhe o rosto. Era estimulante. Estava de volta! Estava correndo pelas clareiras que surgiam inesperadamente em outra selva, sem nenhum compa­nheiro com quem se preocupar, levado apenas pela força do insulto feito ao seu íntimo, saltando barreiras e de algum modo, em algum lugar, vingando-se daqueles que o tinham desnudado e violentado uma inocência — malditos! —, transformando-o em um animal. Um ser humano razoavelmente agradável transformado em meio-homem, com mais ódios do que uma pessoa pode agüentar. Ele se vingaria deles todos, todos inimigos, todos animais!

Chegou ao fim da rampa aberta de relva retorcida e arbustos rasteiros, as árvores mais uma vez uma parede a ser atravessada. Mas tinha se orientado; por mais densa que fosse a selva, ele sim­plesmente teria de manter os últimos raios do sol à esquerda, diri­gindo-se para o norte, e chegaria ao rio.

A explosão rápida o fez voltar-se. Cinco tiros acompanharam o primeiro, o som distante. Era fácil imaginar o alvo: um círculo de madeira em volta do cilindro da fechadura da porta numa cabana isolada na floresta. Sua prisão fora assaltada, a porta estava aberta. Os minutos tornavam-se mais curtos.

E então dois sons diferentes rasgaram o fim da tarde, entrelaçando-se em dissonância. O primeiro, uma série de toques de sereia, estridentes, curtos em staccato. O segundo, entre e sob o soar repetido, era o latir histérico de cães correndo. Os alarmes tinham sido ativados, pedaços de roupa e cobertas da cama seriam encos­tados nos focinhos febris e os dobermans iriam atrás dele, uma caçada sem quartel — a presa não seria encurralada — haveria somente dentes de animais rasgando carne humana, o prêmio es­perado.

Converse atirou-se sobre a parede verde e correu o mais de­pressa que pôde, desviando-se, abaixando-se, indo de um lado para o outro, os braços estendidos, as mãos trabalhando furiosamente, abrindo caminho na mata cerrada. O rosto e o corpo eram constan­temente castigados por ramos ásperos e obstinados, os pés tropeça­vam em galhos secos e raízes expostas. Quase caiu inúmeras vezes, um instante de silêncio que acentuava os latidos dos cães, que deviam estar entre o entroncamento e a colina e a parte baixa da floresta. Não podiam estar mais longe, talvez mais perto. Estavam mais perto, acabavam de entrar na floresta. Os ecos da histeria dos animais enchiam a mata, pontuados por ganidos de frustração quando um ou outro, ou vários ao mesmo tempo, se enredavam nos arbustos rasteiros, esforçando-se e rugindo para se libertar e con­tinuar a caçada.

A água! Podia ver a água entre as árvores. O suor escorria-lhe pelo rosto, as gotas salgadas o cegavam, fazendo arder os arra­nhões do pescoço e do queixo. Suas mãos sangravam, feridas pelas agulhas agudas e pelos troncos ásperos.

Caiu, o pé enfiado em um buraco cavado talvez por algum animal, torcendo o tornozelo.

Levantou-se, puxou a perna, libertou o pé e, mancando, tentou correr. Os dobermans se aproximavam, os ganidos e latidos mais ásperos e mais furiosos; tinham farejado a pista, a trilha de suor ainda úmido os enlouquecia, preparando-os para o golpe final.

A margem do rio! Estava cheia de lama macia e folhas e galhos secos, uma teia de lixo da natureza apanhado em uma cavidade, girando lentamente na água rasa, esperando a corrente mais forte para levá-lo dali. Joel agarrou a coronha da arma do motorista, não para tirá-la do cinto, mas para que não caísse, enquanto ca­minhava mancando para a margem, procurando o melhor caminho para entrar na água.

Não ouviu mais nada, até o momento em que com um rugido tremendo o corpo enorme de um animal saltou das sombras direta­mente sobre ele. A cara monstruosa do cão estava contorcida de fúria os olhos duas pontas de fogo, as mandíbulas escancaradas — só dentes e a boca negra e brilhante. Converse caiu de joelhos quando o doberman passou por cima do seu ombro direito, ras­gando sua camisa com o dente superior, e estatelou-se de costas na lama. O fracasso momentâneo foi demais para o animal. Contorceu-se furiosamente, rolou para o lado, rosnando, apoiou-se nas pernas traseiras e saltou para alcançar a virilha de Joel.

A arma estava em sua mão. Converse atirou, arrancando a parte superior da cabeça do cão; sangue e tecido espalharam-se nas sombras, e as mandíbulas moles e brilhantes caíram sobre suas pernas.

O resto da matilha corria agora para a margem, acompanhada pelos gritos ensurdecedores dos animais, num crescendo. Joel ati­rou-se na água e nadou o mais depressa que pôde, afastando-se da margem; a arma o atrapalhava, mas sabia que não devia largá-la.

Anos atrás — séculos atrás — ele tinha precisado desesperada­mente de uma arma, sabendo que poderia ser a diferença entre sobreviver e morrer, e durante cinco dias não conseguiu encontrar nenhuma. Mas naquele quinto dia encontrara a arma nas margens do Huong Khe. Estava dentro d’água, com parte do corpo para fora, escondendo-se de uma patrulha e viu o observador avançado, dez minutos mais tarde, rio abaixo — muito longe da patrulha, para ser lógico — um homem talvez zangado, caminhando mais depressa, ou entediado com o trabalho e procurando alguns mo­mentos de solidão, longe de tudo. Fosse o que fosse, não fez dife­rença para aquele soldado. Converse o matou com uma pedra ti­rada do rio e roubou-lhe a arma. Usou-a duas vezes, salvando a sua vida; antes de chegar a uma unidade avançada ao sul de Phu Loc.

Caminhando contra a corrente da margem do Reno, Joel subitamente se lembrou. Era o quinto dia da sua prisão na casa de Leifhelm — não uma cela na selva, nada disso, mas ainda assim um campo de prisioneiros. Tinha conseguido! E no quinto dia conse­guira uma arma! Quando se quer, encontram-se presságios por toda a parte; Joel não acreditava em presságios, mas naquele momento aceitou a possibilidade.

Estava agora na parte de sombra do rio, onde as monta­nhas bloqueavam a luz do sol poente. Bateu os braços, sem sair do lugar, e voltou-se. Na margem, em volta da cavidade que lhe servira de trampolim para entrar na água, os cães faziam círculos com fúria confusa, ganindo, rosnando, latindo, e alguns desciam, fa­rejavam seu líder morto e urinavam sobre ele — território e status estavam sendo estabelecidos. Subitamente as luzes de potentes lan­ternas penetraram a folhagem. Converse nadou para mais longe; tinha sobrevivido a holofotes no Mekong. Não o atemorizavam agora; ele tinha estado lá — e sabia quando era o vencedor.

Deixou que as correntes o carregassem para leste. Em algum lugar haveria outras luzes que o conduziriam a abrigo seguro e a um telefone. Precisava pôr tudo em ordem e organizar seu dossiê imediatamente; e agora podia. Mas o advogado que existia nele avisa­va-o de que um homem com um ferimento de bala, com roupas encharcadas e falando uma língua estrangeira nas ruas de uma ci­dade não era adversário à altura dos discípulos de Marcus Delavane; eles o achariam. Portanto tinha de ser de outro modo — com qualquer artifício que pudesse imaginar. Precisava chegar a um telefone. Tinha de fazer uma ligação internacional. Podia fazê-lo; ia fazê-lo! O Huong Khe desapareceu da sua lembrança; o Reno era agora sua via vital.

Nadando de peito, a arma ainda na mão, o braço doendo, viu as luzes de um vilarejo a distância.

 

Valerie franziu a testa, enquanto prestava atenção ao que lhe di­ziam no telefone do seu estúdio, o fio esticando-se quando estendeu o braço para colocar um pincel na bandeja do cavalete. Seus olhos examinavam as dunas iluminadas pelo sol, mas a mente estava nas palavras que ouvia, palavras que insinuavam coisas que não eram ditas.

— Larry, o que há com você? — interrompeu, sem poder mais se conter. — Joel não é um empregado ou um sócio sem impor­tância, ele é seu amigo! Você parece que está elaborando um caso contra ele. Qual é o termo que vocês usam?... Circunstancial, é isso. Ele estava aqui, ele esteve ali, alguém disse isto e alguém disse aquilo.

— Estou tentando compreender, Val — protestou Talbot, que estava telefonando do escritório em Nova Iorque. — Você deve procurar entender também. Muita coisa não posso dizer porque fui instruído por pessoas cujas posições eu respeito, no sentido de re­velar muito pouco, ou nada mesmo. Estou contrariando em parte essas instruções porque Joel é meu amigo e eu quero ajudar.

— Muito bem, vamos recapitular — disse Valerie. — Aonde exatamente você estava querendo chegar?

— Sei que não é da minha conta e eu não perguntaria se não achasse importante...

— Aceito isso — concordou Valerie- — Agora, de que se trata?

— Bem, eu sei que você e Joel tiveram um problema — con­tinuou o sócio prioritário de Talbot, Brooks e Simon, como se estivesse falando de uma briguinha sem conseqüências de crianças. — Mas há problemas e problemas.

— Larry — interrompeu Val outra vez. — Houve problemas. Estamos divorciados. Isso significa que os problemas foram sérios.

— Agressão física foi um deles? — perguntou Talbot rapida­mente em voz baixa, como se as palavras fossem repugnantes para ele.

Valerie ficou assombrada; não esperava essa pergunta.

— O quê?

— Sabe o que eu quero dizer. Em algum acesso de raiva, ele bateu em você? Feriu-a de alguma forma?

— Você não está no tribunal, e a resposta é não, naturalmente não. Eu teria até gostado — pelo menos num acesso de fúria.

— Como disse?

— Nada — disse Valerie, recobrando-se do espanto. — Não sei o que o fez perguntar isso, mas não podia estar mais longe da verdade. Joel tinha meios muito mais eficazes de aniquilar meu ego do que esse. Entre eles, meu caro Larry, sua dedicação à carreira de um tal Joel Converse na firma Talbot, Brooks e Simon.

— Sei disso, minha cara, e sinto muito. São alegações comuns nas cortes de divórcio e acho que nada podemos fazer contra elas — não nesta época, neste tempo, talvez nunca. Mas isso é diferente. Estou falando sobre seus momentos de depressão — sabíamos que ele os tinha.

— Conhece alguma pessoa racional que não tenha? — pergun­tou a ex-Sra. Converse. — Este não é o melhor dos mundos, é?

— Não, não é. Mas Joel viveu durante algum tempo em um mundo muito pior do que a maioria de nós pode imaginar. Não acredito que tenha saído da experiência sem uma cicatriz ou duas.

Valerie fez uma pausa, comovida com a sinceridade simples do homem; ele estava preocupado.

— Você é muito bom, Larry, e acho que está certo — na verdade, sei que está. Por isso, creio que deve me dizer mais alguma coisa. O termo “agressão física” é o que vocês advogados chamam de indicador de não sei o quê. Não é justo, porque pode ser às vezes fator de confusão. Ora, vamos, Larry, seja justo. Ele não é mais meu marido, mas não nos separamos porque Joel andava atrás de mulheres, nem porque bateu em mim. Posso não querer estar casa­da com ele, mas eu o respeito. Ele tem os seus problemas e eu tenho os meus, e agora você está insinuando que os dele são muito maiores. O que aconteceu?

Talbot ficou em silêncio por alguns momentos, e então falou rapidamente, em voz baixa; mais uma vez as palavras lhe repug­navam.

— Dizem que atacou um homem em Paris sem provocação. O homem morreu.

— Não, isso é impossível! Joel não, ele não faria isso!

— Foi o que ele me disse, mas estava mentindo. Disse que estava em Amsterdã, mas não estava. Disse que ia voltar para Paris para esclarecer tudo e não voltou. Estava na Alemanha — ainda está em algum lugar da Alemanha. Não saiu do país e a Interpol tem ordem de prisão contra ele; estão procurando por toda a parte. Aconselharam-no a procurar a embaixada americana mas ele se recusou. Ele desapareceu.

— Oh, meu Deus! Vocês todos estão errados! — explodiu Va­lerie. — Vocês não o conhecem! Se o que você disse aconteceu, ele foi atacado primeiro — fisicamente atacado —, e não teve alterna­tiva senão revidar ao ataque.

— Não de acordo com uma testemunha imparcial que não conhecia nenhum dos dois.

— Então não é imparcial, está mentindo! Ouça. Eu vivi com aquele homem quatro anos e, exceto por algumas viagens, todos eles na cidade de Nova Iorque. Eu o vi ser abordado por bêbados e pelo lixo da rua — punks que ele podia ter empurrado e derrubado na calçada, e talvez devesse ter feito isso com alguns deles — mas nunca o vi nem mesmo dar um passo à frente. Ele simplesmente levantava as mãos com as palmas para cima e se afastava. Às vezes aqueles idiotas lhe diziam palavrões e Joel ficava parado, apenas olhando para eles. E tem mais, Larry, aquele olhar fazia qualquer um ficar gelado. Mas era só o que ele fazia, mais nada.

— Val, quero acreditar em você. Quero acreditar na autode­fesa, mas ele fugiu, ele desapareceu. A embaixada pode ajudá-lo, protegê-lo, mas ele se recusa a procurá-la.

— Então ele está assustado. Isso pode acontecer, mas só por alguns minutos, em geral à noite, quando acordava subitamente. Dava um pulo na cama, os olhos fechados com força, o rosto contraído. Nunca durava muito, e ele dizia que era perfeitamente natural e que eu não devia me preocupar. E acho que ele não se preocupava; queria que tudo aquilo ficasse no passado, e nunca mencionava coisa alguma.

— Talvez tivesse sido melhor se mencionasse — disse Talbot em tom suave.

Valerie respondeu, também com voz branda:

— Touché, Larry. Não pense que não tenho pensado nisso nestes últimos dois anos. Mas, seja lá como for, ele está agindo assim porque tem medo — ou, você sabe, é possível que tenha sido ferido. Ou, meu Deus...

— Verificaram todos os hospitais e todas as clínicas particula­res — interrompeu Talbot.

— Muito bem, que diabo, tem de haver um motivo! Não com­bina com Joel, e você sabe disso!

— Aí é que está, Val. Nada do que ele fez combina com o homem que eu conheço.

A ex-Sra. Converse enrijeceu o corpo.

— Para usar uma das expressões favoritas de Joel — disse ela, apreensiva —, esclarecimento, por favor?

— Por que não? — respondeu Talbot, e a pergunta era diri­gida tanto a Valerie quanto a ele próprio. — Talvez você possa lançar alguma luz sobre isso tudo, ninguém mais pode.

— E o que sabe sobre esse homem em Paris, o que morreu?

— Não há muito a dizer; aparentemente era um motorista de um serviço de limusines. Segundo a testemunha, o guarda da saída de serviço do hotel, Joel aproximou-se dele, gritou alguma coisa e o empurrou para fora. Então o guarda ouviu ruído de luta, e alguns minutos depois encontraram o homem severamente espancado em uma rua lateral.

— É ridículo! O que diz Joel?

— Que saiu pela porta de serviço, viu dois homens lutando e correu para avisar o porteiro, antes de tomar o táxi.

— Então foi isso que ele fez — disse Val com firmeza.

— O porteiro do George Cinq diz que nada disso aconteceu. A polícia encontrou fios de cabelo no homem espancado que combi­nam com os de Joel, encontrados no chuveiro do hotel.

— Completamente incrível!

— Vamos dizer que houve provocação e que não sabemos disso — continuou Talbot rapidamente. — Não explica o que acon­teceu depois, mas, antes de contar, quero fazer outra pergunta. Você vai compreender.

— Não compreendo coisa alguma! O que é?

— Durante aqueles períodos de depressão, seus maus humo­res, Joel alguma vez criou fantasias? Isto é, alguma vez ele se entregou ao que os psiquiatras chamam de “representar um pa­pel”?

— Quer dizer, se assumia outras personalidades, outros tipos de comportamento?

— Exatamente.

— Absolutamente não.

— Oh.

— Oh, o quê? Diga logo, Larry.

— Falando sobre o que se pode acreditar e o que é incrível, prepare-se para um choque, minha querida. De acordo com aquelas pessoas que não querem que eu fale muito — e tem de acreditar em minha palavra quando digo que sabem o que estão dizendo —, Joel chegou à Alemanha dizendo que estava envolvido em uma investi­gação secreta da embaixada em Bonn.

— Talvez estivesse! Estava de licença de T.B. & S., não es­tava?

— Sobre um assunto no setor privado, isso sabemos. Não há nenhuma investigação — secreta ou não — da embaixada em Bonn. Francamente, as pessoas que me procuraram são do Departamento de Estado.

— Oh, meu Deus... — Valerie ficou calada, mas, antes que o advogado pudesse dizer alguma coisa, ela murmurou: — Genebra. Aquele caso horrível em Genebra!

— Se há alguma ligação — e Nathan e eu achamos que havia, a princípio —, está tão obscura que não pode ser considerada.

— Está aí. Foi aí que tudo começou.

— Supondo-se que seu marido esteja agindo racionalmente.

— Ele não é meu marido e está agindo racionalmente!

— As cicatrizes, Val. Tem de haver cicatrizes. Você concor­dou.

— Não do tipo de que você está falando. Não matar, mentir e fugir! Esse não é Joel! Esse não é — não foi — meu marido!

— A mente é um instrumento muito complexo e delicado. As pressões do passado podem aparecer muitos anos depois...

— Deixe disso, Larry! — gritou Valerie. — Guarde isso para o júri, mas não aplique essa tolice em Converse!

— Você está perturbada.

— Pode apostar que estou! Porque você está procurando explicações que não se adaptam ao homem! Elas se adaptam ao que lhe contaram. Essas pessoas que você diz que tem de respeitar.

— Só no sentido de que elas sabem — têm acesso a informa­ções que não podemos obter. E há também o fato importantíssimo de que não tinham a mínima idéia de quem era Joel Converse, até que a Associação Americana dos Advogados lhes forneceu o ende­reço e o número do telefone de Talbot, Brooks e Simon.

— E você acreditou nelas? Com tudo o que sabe sobre Wash­ington, simplesmente aceitou a palavra delas? Quantas vezes Joel voltou de uma viagem a Washington dizendo a mesma coisa para mim: “Larry diz que eles estão mentindo. Que não sabem o que fazer, por isso mentem.”

— Valerie — disse o advogado severamente. — Não era um caso de credibilidade burocrática, e depois de todos estes anos eu sei a diferença entre alguém que está fazendo um jogo e alguém que está realmente zangado — zangado e assustado, devo acrescentar. O homem que me procurou foi o subsecretário de Estado, Brewster Tolland — eu verifiquei sua identidade — e ele não estava repre­sentando. Estava atônito, furioso e, como já disse, muito preo­cupado.

— O que foi que você lhe disse?

— A verdade, naturalmente. Não só por ser a coisa certa, mas também porque se fizesse o contrário não estaria ajudando Joel de modo nenhum. Você compreende, eu realmente acredito que acon­teceu alguma coisa. Joel não é o mesmo.

— Espere um pouco — exclamou Valerie, percebendo o óbvio. — Talvez não seja Joel!

— É ele — disse Talbot simplesmente.

— Por quê? Só porque gente de Washington que você nem conhece diz que é ele?

— Não, Val — respondeu o advogado. — Porque falei com René em Paris antes de Washington entrar em cena.

— Mattilon?

— Joel foi a Paris para pedir ajuda a René. Mentiu para ele como mentiu para mim, mas foram mais do que mentiras — Matti­lon e eu concordamos com isso. Foi alguma coisa que eu ouvi e que ele viu nos olhos de Joel, algo que ouviu em sua voz. Um distanciamento, uma forma de desespero; René viu e eu ouvi. Ele tentou esconder de nós dois, mas não conseguiu. Da última vez que falei com ele, Joel desligou antes que eu acabasse de falar, no meio de uma frase, sua voz ecoando como a de um zumbi.

Valerie olhou fixamente para os reflexos dançantes do sol nas águas de Cape Ann.

— René concordou com você? — perguntou, a voz pouco mais do que um sussurro.

— Conversamos sobre tudo isso que acabo de lhe dizer.

— Larry, estou assustada.

 

Chaim Abrahms entrou na sala, as botas pesadas batendo no assoa­lho.

— Então, ele conseguiu! — gritou o israelense. — O Mossad estava certo. Ele é um cão do diabo!

Erich Leifhelm estava sentado à mesa de trabalho, só ele e o israelense no escritório com paredes cobertas de livros.

— Patrulhas, alarmes, cães! — exclamou o alemão, batendo com a mão delicada no mata-borrão vermelho. — Como foi que ele conseguiu?

— Eu repito — um cão do diabo — foi assim que nosso especialista o chamou. Quanto mais tem os movimentos limitados, mais furioso fica. Isso vem de muito longe no tempo. Então o nosso provocateur começa a sua odisséia antes do que planejamos. Já entrou em contato com os outros?

— Telefonei para Londres — disse Leifhelm, respirando profundamente. — Ele vai falar com Paris, e Bertholdier enviará uni­dades de Marselha, uma para Bruxelas, a outra para Bonn. Não podemos perder nem uma hora.

— Está procurando por ele, agora, naturalmente.

— Natürlich! Em cada centímetro das margens do rio, em duas direções. Em todas as estradas secundárias e caminhos que levam do rio para a cidade.

— Ele pode enganá-lo, já provou isso.

— Para onde pode ir, sabra? Para a embaixada? Nesse caso, é um homem morto. A polícia de Bonn ou à Staatspolizei? Será colocado em um carro blindado e trazido de volta. Ele não vai a lugar algum.

— Ouvi isso quando ele saiu de Paris e, depois, quando che­gou a Bonn. Foram cometidos erros nesses dois lugares, que nos custaram muitas horas. Digo que estou mais preocupado agora do que em qualquer momento das três guerras e de uma vida inteira de lutas.

— Seja sensato, Chaim, e tente se acalmar. Ele só tem a roupa com que entrou no rio e na lama; não tem identificação, nem passaporte, nem dinheiro. Não fala a língua...

— Ele tem dinheiro! — gritou Abrahms, lembrando-se. — Quando estava sob o efeito da injeção, falou de uma grande quan­tia que lhe foi prometida em Genebra e depositada em Miconos.

— E onde está ela? — perguntou Leifhelm. — Nesta mesa, é onde está. Quase setenta mil dólares americanos. Não tem um mar­co alemão no bolso, nem um relógio, nem uma jóia. Um homem todo sujo e encharcado, sem identificação, nem dinheiro, sem o uso coerente da língua, e contando uma história estranha de prisão, envolvendo der General Leifhelm; sem dúvida será atirado na ca­deia como um vagabundo ou um psicopata, ou as duas coisas. E, nesse caso, seremos informados imediatamente e nossos homens o trarão de volta. E não se esqueça, sabra, às dez horas, amanhã, já não fará a mínima diferença. Essa foi a sua contribuição, a engenhosidade do Mossad. Nós simplesmente tivemos os recursos para fazer acontecer — como diz o Velho Testamento.

Abrahms ficou de pé na frente da enorme mesa de trabalho, os braços na cintura, acima dos bolsos do paletó safári.

— Então o judeu e o marechal-de-campo puseram tudo em movimento. Irônico, não é, nazista?

— Não tanto quanto você pensa, Jude. A impureza, como a beleza, está nos olhos de quem vê. Você não é meu inimigo, nunca foi. Se outros de nós, nos velhos tempos, tivessem o seu compro­misso, sua audácia, não teríamos perdido a guerra.

— Sei disso — respondeu o sabra. — Observei e ouvi quando vocês chegaram ao canal da Mancha. Foi quando a perderam. Vo­cês foram fracos.

— Não nós! Os assustados Debutanten de Berlim!

— Então, conserve-os a distância enquanto criamos uma verdadeira nova ordem, alemão. Não podemos ter nenhuma fraqueza.

— Você me provoca, Chaim.

— É exatamente o que pretendo.

 

O motorista passou a mão pelos curativos do rosto, pelas pálpe­bras inchadas, pelos lábios doloridos. Estava no próprio quarto, e o médico tinha ligado a televisão — provavelmente como um insulto, pois ele mal podia enxergar.

Estava acabado. O prisioneiro fugira apesar dos seus formidá­veis talentos e da supostamente intransponível matilha de dober-mans. O americano usara o apito de prata, segundo os guardas lhe tinham contado, e o fato de ter sido removido do seu pescoço era uma agravante à dificuldade de sua situação.

Não pretendia adicionar nada à sua desgraça. Quase sem en­xergar, revistara todos os bolsos da roupa que estava usando — o que ninguém, no pânico da caçada, se lembrou de fazer — e des­cobriu que a carteira, seu caro relógio suíço e todo o dinheiro tinham desaparecido. Não diria a ninguém. Estava bastante atra­palhado, e se soubessem disso podia ser demitido — talvez morto.

 

Joel dirigiu-se para a margem o mais depressa que pôde, submer­gindo a cabeça sempre que a luz de uma lanterna passava por ele. Estavam em uma lancha a motor, o ruído dos motores indicando alta potência, as voltas rápidas e os círculos denotando facilidade de manobra. Passava junto das margens largas, depois ia para o meio do rio ao menor sinal de algum objeto na água.

Converse sentiu a lama macia sob os pés; meio nadando, meio se arrastando foi para o lugar mais escuro da margem, a arma do motorista firme na cintura. O barco se aproximou, o farol pene­trante varrendo cada metro, cada ramo ou galho que se movesse, cada arbusto aquático da margem. Joel encheu os pulmões de ar e lentamente mergulhou com o rosto voltado para a superfície, os olhos abertos, vendo apenas um embaralhado lamacento e escuro. O farol da lancha ficou mais forte e pareceu pairar sobre ele duran­te uma eternidade; moveu-se um pouco para a esquerda e o farol se afastou. Emergiu, os pulmões a ponto de estourar, mas subitamente percebeu que não podia emitir nenhum som, não podia encher o peito com inalações rápidas. Pois imediatamente acima da sua ca­beça, a menos de um metro e meio de distância, estava a larga popa da lancha, balançando sobre a água, o motor em ponto morto. Viu a silhueta escura de um homem com binóculos enormes assestados para a margem.

Converse ficou intrigado; estava muito escuro para ver alguma coisa, mesmo com lentes de aumento. Então lembrou-se, e a lem­brança explicava o tamanho do binóculo. O homem estava usando lentes infravermelhas; tinham sido usadas pelas patrulhas no Su­doeste da Ásia e quase sempre significavam a diferença, como lhe haviam dito, entre procure-e-destrua e procure-e-seja-destruído. Elas revelavam os objetos no escuro, soldados no escuro.

O bote se moveu, mas com pequena aceleração, na menor velocidade de pesca de arrasto. Mais uma vez Joel ficou confuso. O que teria trazido a equipe de busca de Leifhelm para esse ponto do rio? Havia outros barcos a distância, os faróis varrendo a água, mas sempre em movimento, fazendo círculos. Por que a grande lancha estava se concentrando naquele pedaço da costa? Eles o teriam visto com o binóculo? Nesse caso, estavam agindo estranha­mente; os norte-vietnamitas eram muito mais rápidos — mais agres­sivos, mais eficientes.

Silenciosamente, Converse mergulhou e nadou de peito, afas­tando-se do barco. Alguns segundos depois, levantou a cabeça, a visão clara agora, e começou a compreender a estranha manobra da patrulha de Leifhelm. Além da parte mais escura da margem, onde estivera escondido, estavam as luzes que vira há oito ou nove mi­nutos atrás, antes que a lancha com seus holofotes monopolizasse sua atenção. Pensou que fossem as luzes de um vilarejo, mas estava no lado errado do mundo. Eram as luzes de cinco pequenas casas, uma colônia à beira do rio, com um ancoradouro particular, casas de veraneio, talvez, dos que tinham a sorte de possuir propriedade na margem do rio.

Se havia casas e um ancoradouro, devia haver um caminho — uma passagem para a estrada ou estradas que levavam a Bonn e às cidades vizinhas. Os homens de Leifhelm estavam procurando em cada centímetro da margem, cautelosamente, silenciosamente, as lanternas viradas para baixo, para não alarmar os habitantes e não chamar a atenção do fugitivo, se tivesse chegado ao grupo de casas e estivesse se encaminhando para a estrada ou estradas. O rádio do barco seria ativado, a freqüência alinhada com as dos carros que passavam lá em cima, prontos a lançar a armadilha. De certa for­ma, era o Huong Khe outra vez para Joel, os obstáculos muito menos primitivos mas não menos mortais. E agora, como naquele tempo, havia um tempo para esperar, para esperar no silêncio negro e deixar que os caçadores fizessem seu jogo.

Eles se movimentaram rapidamente. A lancha parou no ancoradouro, as duas hélices potentes girando em marcha à ré e um homem saltou da popa com um cabo pesado, que enrolou em um dos suportes. Três outros o acompanharam, correndo do pequeno ancoradouro para a rampa gramada, um virando diagonalmente para a direita, os outros dois dirigindo-se para a primeira casa. O que estavam fazendo era óbvio: um deles se colocaria na entrada do bosque, na rampa de acesso, enquanto seus companheiros verifi­cavam a casa, procurando sinais de arrombamento.

Os braços e as pernas de Converse pareciam de chumbo, cada um uma bigorna que ele não podia suportar, muito menos mover, mas não tinha escolha. A luz do holofote continuava a iluminar a base da margem, o reflexo iluminando tudo em volta. Uma cabeça aparecendo no momento errado seria destruída na hora. Huong Khe. Ande pela água entre os juncos. Faça isso! Não morra!

Sabia que a espera não durava mais de trinta minutos, mas pareciam trinta horas ou trinta dias preso a um cavalete de tortura. Os braços e as pernas eram agora uma agonia; dores agudas passa­vam por todo o seu corpo; os músculos enrijeciam-se em cãibras que ele aliviava prendendo a respiração e mergulhando na posição fetal, os polegares pressionando os centros dos músculos doloridos. Duas vezes, ao tentar encher os pulmões de ar, engoliu água, engas­gando e tossindo sob a superfície, a água entrando pelas narinas, até conseguir tomar fôlego novamente. Em certos momentos atra­vessava sua consciência a idéia de que seria tão fácil largar o corpo e deixar-se levar. Kuong Khe. Não faça isso! Não morra!

Afinal, com os olhos cheios de água, viu os homens voltando. Um, dois... três?... Correram para o ancoradouro, para o homem que segurava o cabo da lancha. Não! O homem com o cabo adian­tou-se para os outros! Seus olhos estavam lhe pregando peças! Ape­nas dois homens correram para o ancoradouro, o do cabo juntan­do-se a eles, fazendo perguntas. O homem voltou para a estaca onde estava enrolado o cabo e soltou-o; os outros dois saltaram para bordo. O primeiro juntou-se outra vez aos companheiros, ago­ra um na proa da lancha — deixando outro na margem, obser­vador solitário invisível, entre o rio e a estrada lá em cima. Huong Khe. Um observador avançado da infantaria separado da sua pa­trulha.

A lancha afastou-se do ancoradouro e passou velozmente a poucos metros de Joel, que foi puxado para baixo pela sua esteira. Mais uma vez o barco apontou para a margem e diminuiu a velo­cidade, o farol de milha iluminando a folhagem densa, para oeste, na direção da casa de Leifhelm. Converse manteve a cabeça acima da superfície, a boca bem aberta, respirando avidamente enquanto caminhava devagar — muito lentamente — pela lama. Levantou o corpo quando chegou aos juncos molhados e aos ramos até sentir chão seco sob os pés. Huong Khe. Abrigou-se entre os arbustos o melhor que pôde, finalmente cobrindo o rosto voltado para cima. Descansaria até sentir o sangue voltar dolorosamente para os mem­bros entorpecidos, até que os músculos do pescoço se relaxassem — era sempre o pescoço; o pescoço era o sinal de alarme — e então pensaria sobre o homem na colina escura lá em cima.

Cochilou até ser acordado por uma pequena onda. Empurrou os galhos e as folhas para longe do rosto e consultou o relógio do motorista, entrecerrando os olhos para o mostrador de rádio en­fraquecido. Dormira quase uma hora — um sono inquieto, os me­nores sons obrigando os olhos a se abrirem, mas estava descansado. Balançou o pescoço para a frente e para trás, depois moveu os braços e as pernas. Tudo estava ainda dolorido, mas a dor lanci­nante tinha passado. E então olhou para o homem na colina. Ten­tou examinar seus pensamentos. Estava assustado, naturalmente, mas sua fúria controlaria aquele medo terrível; já tinha feito antes, faria o mesmo agora. O objetivo era o que importava — uma espécie de santuário, um lugar onde pudesse pensar e pôr as idéias em ordem e dar o mais importante telefonema da sua vida. Para Larry Talbot e Nathan Simon em Nova Iorque. A não ser que conseguisse fazer tudo isso, estava morto — como Connal Fitzpatrick certamente devia estar. Jesus! O que teriam feito com ele? Um homem com a pureza da vingança simplesmente procurada, apanhado em uma teia doentia chamada Aquitânia! Era um mundo injusto... Mas não podia pensar nisso agora, precisava se concen­trar no homem lá em cima.

Arrastou-se, apoiando-se nas mãos e nos joelhos. Pouco a pou­co, atravessou o bosque que ladeava a estrada de terra que ia da rampa da margem até o topo da colina. Quando um galho seco estalava ou uma pedra se soltava, ficava imóvel, esperando que o movimento se dissolvesse entre os sons da floresta. Repetia para si mesmo que estava com a vantagem; ele era o inesperado. Isso aju­dava a compensar o medo da escuridão e a consciência de que um confronto físico o esperava. Como o observador avançado no Huong Khe, aquele homem tinha as coisas de que ele precisava. O combate não podia ser evitado, portanto o melhor era não pensar nele mas simplesmente obrigar-se a uma atitude determinada e isen­ta de sentimentos, e fazer o que devia. Mas bem-feito; sua mente tinha de compreender isso também. Não podia haver hesitação, nenhuma intrusão da consciência — e nenhum som de tiro, só o uso do aço.

Viu o homem em silhueta contra a luz distante da única lâm­pada de rua da estrada. Estava encostado no tronco de uma árvore olhando para baixo, seu ângulo de visão abrangendo tudo o que se passava na margem. Quando Joel começou a subir a rampa, o espaço entre suas mãos e os joelhos era apenas de centímetros, as paradas mais freqüentes, o silêncio mais vital. Dirigiu-se, fazendo um arco, para a parte acima do homem e da árvore, e começou a descer como um grande felino caindo sobre a presa. Era o predador que fora há tanto tempo, tudo o mais desaparecendo para dar lugar às necessidades de sua sobrevivência.

Estava a uns dois metros do homem; podia ouvir a respiração dele. Um estalido atrás de Converse! Um galho seco! O homem voltou-se, os olhos vivos na luz que vinha da estrada. Converse saltou o cano da arma seguro pelos dedos firmes. Golpeou a têmpora do alemão e depois a garganta com a coronha de aço. O homem caiu para trás, atordoado, mas não inconsciente; começou a gritar. Joel saltou para o pescoço do inimigo e quase o estrangulou, antes de golpear a cabeça do alemão outra vez com a coronha da arma, com toda a força; imediatamente o sangue jorrou, de mistura com matéria encefálica.

Silêncio. Nenhum movimento. Outro observador separado da sua patrulha tinha sido removido. E, como há anos, Converse não se permitiu a menor sensação. Estava feito e ele tinha de ir em frente.

A roupa seca do homem, incluindo a jaqueta de couro escuro, serviram razoavelmente. Como a maioria dos comandantes de ta­manho pequeno ou médio, Leifhelm rodeava-se de homens altos, tanto para se proteger como para proclamar sua superioridade sobre os compatriotas mais altos.

Outra arma também; Joel abriu o pente, retirou as balas e jogou-as, com a arma, para dentro do bosque. O prêmio extra estava na carteira do alemão; uma grande quantia em dinheiro e um passaporte muito usado. Aparentemente esse empregado de con­fiança de Leifhelm viajava muito para Aquitânia — provavelmente sem saber de coisa alguma e como alguém que podia ser sacrifi­cado, mas sempre à mão quando fosse necessário. Os sapatos não serviram; eram muito pequenos. Então Converse enxugou os seus com as roupas molhadas, e as meias secas do alemão ajudaram a absorver a umidade do couro. Cobriu o homem com galhos e subiu a colina na direção da estrada.

Escondeu-se entre as árvores e cinco carros passaram, todos sedãs, todos possivelmente pertencentes a Leifhelm. Então apare­ceu um Volkswagen amarelo-brilhante, ziguezagueando levemente. Adiantou-se e levantou as mãos, o gesto de um homem em apuros.

O carrinho parou — uma loura no banco da direita, o moto­rista de uns vinte anos, se tanto, outro jovem atrás, também louro, que podia ser o irmão da moça.

— Was ist los, Opa? — perguntou o motorista.

— Sinto, mas não falo alemão. Vocês falam inglês?

— Eu falo um pouco — disse o jovem no banco de trás, arrastando as palavras. — Melhor do que esses dois! Eles só que­rem ir para nossa casa e fazer amor. Vê? Eu falo inglês!

— Certamente, e muito bem. Quer explicar, por favor? Para ser franco, briguei com minha mulher em uma festa lá adiante — sabem, naquelas casas — e quero voltar para Bonn. Eu pago, na­turalmente.

— Ein Streit mit seiner Frau! Er will nach Bonn. Er wird uns bezahlen.

— Warum nicht? Sie hat mich heute sowieso schon zu viel gekostet — disse o motorista.

— Nich fuer was du kriegst, du Drecksack! — exclamou a moça, rindo.

— Entre, mein Herr! Somos seus motoristas. Reze para que continuemos na estrada, ja? Em que hotel está?

— Na verdade, não vou voltar para o hotel. Estou realmente muito zangado. Quero lhe dar uma lição, ficando fora esta noite. Acham que podem me arranjar um quarto? Pagarei mais, natural­mente. Para ser franco, também bebi um pouco.

— Ein betrunkener Tourist! Er will ein Hotel. Fahren wir ihn ins Rosencafe?

— Dort sind meher Nutten als der alte knacker schafft.

— Somos seus guias, Amerikaner — disse o rapaz ao lado de Converse. — Estudamos na universidade e não só vamos lhe arran­jar um quarto, como também lhe daremos excelentes possibilidades de vingar-se de sua mulher, com algum prazer! Há também um café. Vai nos pagar uma cerveja, ou seis, ja?

— O que vocês quiserem. Mas quero também dar um telefo­nema. Para os Estados Unidos — negócios. Vai ser possível?

— Quase todo mundo em Bonn fala inglês. Se não falarem nesse Rosencafé eu mesmo me encarrego disso. Seis cervejas, po­rém, lembre-se disso!

— Doze, se quiserem.

— Da wird es im Pissoir eine Überschwemmung geben!

Ele conhecia a taxa de câmbio e quando entraram no barulhento café — na verdade um bar de segunda classe, freqüentado pelos universitários — contou o dinheiro que tinha tirado dos dois ale­mães. Mais ou menos quinhentos dólares, mais de trezentos do homem na colina. O recepcionista na portaria explicou em inglês macarrônico que naturalmente a mesa telefônica podia fazer uma ligação para a América, mas que podia demorar alguns minutos. Joel deu cinqüenta dólares em marcos alemães para os jovens bons samaritanos, desculpou-se e foi para o quarto — o que chamavam de quarto. Uma hora mais tarde a ligação foi completada.

— Larry?

— Joel?

— Graças a Deus você estava aí — exclamou Converse alivia­do _ Não queira saber como estava torcendo para que não esti­vesse fora da cidade. Conseguir uma ligação daqui é um inferno!

— Eu estou aqui — disse Talbot, a voz subitamente calma e controlada. — Onde você está, Joel? — perguntou em voz baixa.

— Uma imitação de hotel, em Bonn. Acabo de chegar. Nem sei o nome.

— Está em um hotel em Bonn mas não sabe qual?

— Não importa, Larry! Ponha Simon na linha. Quero falar com vocês dois. Rápido.

— Nathan está no tribunal. Deve estar de volta às quatro ho­ras — hora daqui. Mais ou menos daqui a uma hora.

— Que droga!

— Acalme-se, Joel. Não fique nervoso.

— Não ficar nervoso...! Pelo amor de Deus, estive preso em uma cabana de pedra com barras na janela durante cinco dias! Es­capei há horas e corri como o diabo pela floresta com uma matilha de cães e uns lunáticos armados atrás de mim. Passei uma hora na água e quase me afoguei antes de chegar em terra firme sem que me estourassem os miolos, e depois eu tive... tive de...

— Teve de fazer o quê, Joel? — perguntou Talbot, com uma estranha passividade na voz. — O que você teve de fazer?

— Que diabo, Larry, acho que matei um homem!

— Você teve de matar alguém, Joel? Por que achou que pre­cisava fazer isso?

— Ele estava esperando por mim! Eles estão à minha procura! Em terra, nos bosques, nas margens do rio — ele era um obser­vador, separado da sua patrulha. Observadores! Patrulhas! Eu ti­nha de sair, de fugir! E você me diz para não ficar nervoso!

— Acalme-se, Joel, tente se controlar... Você escapou antes, não foi? Essas lembranças devem estar sempre com você.

— Larry, isso é tolice! Escute o que vou dizer e tome nota de tudo... dos nomes, dos fatos... escreva tudo.

— Talvez seja melhor chamar Janet. Sua estenografia...

— Não! Só você, ninguém mais! Eles podem descobrir as pes­soas, qualquer um que saiba de alguma coisa. Não é tão compli­cado. Está pronto?

— Naturalmente.

Joel sentou-se na cama estreita e respirou fundo.

— O melhor modo de dizer isto — como me foi dito, mas não precisa escrever ainda, só compreender — é que eles voltaram.

— Quem?

— Os generais — marechais-de-campo, almirantes, coronéis — aliados e inimigos, todos comandantes do Exército e da Marinha, e patentes mais altas também. Eles se reuniram, vindos de toda a parte para mudar as coisas, mudar os governos e leis e políticas do exterior, tudo será baseado em prioridades e decisões militares. É coisa de doido, mas podem fazer. Nós viveremos a sua fantasia, porque eles estarão no controle, acreditando que estão certos e que são generosos e dedicados — sempre acreditaram nisso.

— Quem são eles?

— Sim, escreva isto. A organização chama-se Aquitânia. Ba­seia-se em uma teoria histórica segundo a qual a região da França outrora chamada Aquitânia poderia ter-se tornado toda a Europa e por extensão — como colônias — o continente norte-americano também.

— Teoria de quem?

— Não importa, é só uma teoria. A organização foi idealizada pelo general George Delavane — era conhecido como Louco Mar­cus, no Vietnã — e eu vi apenas uma fração do mal que aquele filho da puta fez! Ele atraiu pessoal militar de toda a parte, todos co­mandantes, e estão se espalhando, recrutando todos os da sua laia, fanáticos que acreditam que seu método é o único viável. Durante este último ano, mais ou menos, eles têm enviado armas e muni­ções ilegalmente para os grupos terroristas, encorajando a desesta­bilização geral, o objetivo último é serem chamados para restaurar a ordem, e então eles tomam o poder... Há cinco dias estive com os homens-chaves de Delavane, da França e da Alemanha, Israel e África do Sul — e acho que, possivelmente, da Inglaterra.

— Esteve com esses homens, Joel? Eles o convidaram para uma reunião?

— Pensaram que eu era um deles, que eu acreditava em tudo o que eles representam. Não sabiam, Larry, o quanto os odeio. Não estiveram onde eu estive, não viram o que eu vi — como você disse, há muitos anos.

— Quando você teve de fugir — acrescentou Talbot compreensivo. - Quando você precisou matar pessoas — um tempo que você jamais esquecerá. Deve ter sido terrível para você.

— Sim, foi. Que diabo, sim! Desculpe-me, vamos continuar. Estou tão cansado — e assustado ainda, também.

— Acalme-se, Joel.

— Certo. Onde eu estava? — Converse esfregou os olhos. — Ah sim, já me lembro. Conseguiram informação a meu respeito, informação da minha ficha de serviço, meu status de prisioneiro de guerra, que não era propriamente parte da ficha, mas eles conse­guiram e ficaram sabendo quem eu era. Leram as palavras que eu tinha dito, o quanto eu os odiava, o quanto detestava o que Dela­vane tinha feito, o que todos eles tinham feito. Eles me drogaram, arrancaram tudo o que eu sabia e me atiraram em uma casa de pedra no meio do nada, perto do Reno, numa floresta. Enquanto estive sob o efeito de substâncias químicas devo ter dito tudo o que sabia...

— Substâncias químicas? — perguntou Talbot, obviamente nunca tendo ouvido falar nisso.

— Sim. Amitol, pentotal, escopolamina. Já andei por essa estrada, Larry. Fui e voltei.

— Já? Onde?

— No exército. Mas não tem importância.

— Não estou tão certo.

— Mas é verdade! O caso é que eles descobriram o que eu sei. Isso significa que vão modificar seus planos.

— Planos?

— Estamos na contagem regressiva. Agora! Duas semanas, três, quatro no máximo! Ninguém sabe como ou quando e quais são os alvos, mas vai haver surtos de violência e terrorismo no mundo todo, dando-lhes o motivo para interferir e tomar o poder. “Acúmulo”, “aceleração rápida”, essas as expressões que usaram! Agora mesmo, na Irlanda do Norte — tudo está sendo destruído, nada mais há do que caos — divisões inteiras armadas estão en­trando. Eles fizeram isso, Larry! É um teste, um ensaio para eles! Vou lhe dar os nomes — Converse disse os nomes, surpreso e aborrecido porque Talbot não reagiu a qualquer um deles. — Ano­tou todos?

— Sim, anotei.

— Esses são os fatos mais importantes e os nomes que posso citar com certeza. Há mais — pessoas do Departamento de Estado e no Pentágono, mas as listas estão na minha pasta que foi roubada ou está escondida em algum lugar. Vou descansar um pouco e depois pretendo escrever tudo o que sei, telefono para você de manhã. Preciso sair daqui. Vou precisar de ajuda.

— Concordo, portanto, posso falar agora? — disse o advo­gado em Nova Iorque com aquela voz estranha, inexpressiva. — Primeiro, onde você está, Joel? Olhe no telefone ou veja o que está escrito em algum cinzeiro — ou pergunte na portaria; deve haver papel de carta...

— Não há nenhuma portaria e os cinzeiros são de vidro las­cado... Espere um pouco, apanhei fósforos no bar quando fui com­prar cigarros. — Converse tirou a caixa de fósforos do bolso do paletó. — Aqui está. Riesendrinks.

— Veja embaixo disso. Meu alemão é limitado, mas acho que isso quer dizer “grandes drinques”, ou coisa assim.

— Oh! Então deve ser este. Rosencafé.

— É, parece certo. Soletre para mim, Joel.

Converse soletrou, com uma sensação indefinida perturbando-o. — Tomou nota? — perguntou. — O número do telefone. — Joel leu o número escrito na caixa de fósforos.

— Ótimo, esplêndido — disse Talbot. — Mas, antes de desli­gar — e sei que precisa muito de descanso —, queria perguntar alguma coisa.

— Exatamente o que eu estava esperando!

— Quando falamos depois que aquele homem foi ferido em Paris, depois daquela luta que você viu na passagem atrás do hotel, você me disse que estava em Amsterdã. Disse que ia voltar a Paris e falar com René, acertar as coisas. Por que não foi, Joel?

— Pelo amor de Deus, Larry, acabei de contar o que me acon­teceu! Usei todos os minutos para acertar as coisas. Eu estava atrás daquela gente — dessa maldita Aquitânia — e só podia fazer isso de um modo. Tinha de me aproximar deles, não podia perder tempo!

— O homem morreu. Você tem alguma coisa a ver com a morte dele?

— Cristo, sim! Eu o matei. Ele tentou me deter, todos eles tentaram. Eles me encontraram em Copenhague e me seguiram. Estavam à minha espera no aeroporto aqui em Bonn. Foi uma armadilha!

— Para evitar que você encontrasse esses homens, esses generais e marechais-de-campo?

— Sim!

— Mas você acabou de me dizer que eles o convidaram para uma reunião.

— Explicou tudo de manhã — disse Converse cansado, a tensão das últimas horas — dias — culminando com exaustão completa e uma dor de cabeça lancinante. — Então já terei escrito tudo, mas talvez você tenha de vir até aqui para apanhar os papéis — e para me apanhar. O principal é mantermos contato. Você tem os nomes, a descrição geral, e sabe onde eu estou. Fale com Nathan, pense sobre tudo o que eu disse e nós três vamos decidir o que é melhor fazer. Temos contatos em Washington, mas precisamos ser muito cautelosos. Não sabemos quem está com quem. Mas há uma pista. Uma parte do material que eu tenho — que eu tinha — só pode ter vindo de Washington. Uma das opiniões é que fui posto em campo por eles, que homens que não conheço estão acompanhando todos os meus movimentos porque estou fazendo o que eles não podem fazer.

— Sozinho — disse Talbot, concordando. — Sem a ajuda de Washington. Sem a ajuda deles.

— Certo. Não podem aparecer, precisam ficar nos bastidores até que eu apresente algo concreto. Esse é o plano. Quando conver­sar com Nathan, se tiver alguma dúvida, telefone. Vou dormir por uma ou duas horas.

— Tenho outra pergunta, se não se importa. Sabe que a In­terpol tem uma ordem de prisão contra você?

— Sim, eu sei.

— E que a embaixada americana está à sua procura?

— Sei disso também.

— Disseram que o aconselharam a procurar a embaixada.

— Disseram?

— Por que não fez isso, Joel?

— Jesus, não posso] Acha que se pudesse não teria feito? A embaixada está cheia de gente de Delavane. Bem, talvez seja exage­ro, mas sei de pelo menos três. Eu os vi.

— Segundo o que me disseram, o embaixador Peregrine man­dou dizer que garantia sua proteção, confidencialmente. Isso não era suficiente?

— Segundo o que lhe disseram... A resposta é não! O próprio Peregrine não tem idéia do que há dentro da embaixada. Ou talvez tenha. Eu vi o carro de Leifhelm entrar por aqueles portões como se tivesse um passe permanente, às três horas da manhã. Leifhelm é um nazista, Larry, nunca foi outra coisa! Assim, o que acha que é Peregrine?

— Ora, Joel. Você está caluniando um homem por simples suposição e ele não merece isso. Walter Peregrine foi um dos heróis de Bastogne. Seu comando na batalha do Bulge é uma lenda de guerra. E era oficial da reserva, não da ativa. Duvido que os nazis­tas sejam seus convidados favoritos.

— Seu comando? Outro comandante? Então talvez ele saiba exatamente o que se passa na embaixada.

— Isso não é justo. Sua atitude francamente critica em re­lação ao Pentágono é uma parte documentada de sua carreira de pós-guerra. Ele os chamou de megalomaníacos com dinheiro de­mais para alimentar seus egos à custa dos pagadores de impostos. Não, não está sendo justo, Joel. Acho que devia ouvir Peregrine. Telefone para ele, fale com ele.

— Não estou sendo justo? — disse Converse em voz baixa, a sensação indefinida começando a entrar em foco, um aviso. — Espere um pouco! Você não está sendo justo. “Disseram... se­gundo me disseram?” Qual o oráculo que consultou? Quem está lhe fornecendo essas pérolas de sabedoria a meu respeito? Com que fundamento e de onde vêm?

— Está certo, Joel, está certo, acalme-se. Sim, estive falando com algumas pessoas que querem ajudar você. Um homem está morto em Paris e agora você diz que há outro em Bonn. Você fala de observadores e de patrulhas e daquelas drogas horríveis, e conta que correu pela selva e teve de se esconder no rio. Não compre­ende, filho? Ninguém o está culpando, nem o julgando responsável. Alguma coisa aconteceu; você está revivendo tudo isso.

— Meu Deus! — exclamou Converse atônito. — Você não acredita numa palavra do que eu disse!

— Você acredita, e isso é o que importa. Eu fiz minha parte no Norte da África e na Itália, mas nada que se compare com o que você passou mais tarde. Você tem um ódio profundo e compreen­sível pela guerra e por tudo o que é militar. Não seria humano se não tivesse, não depois de todo o sofrimento por que passou e as coisas terríveis que teve de suportar.

— Larry, tudo o que lhe disse é verdade!

— Ótimo, esplêndido. Então, procure Peregrine, vá à embai­xada e conte-lhes tudo. Eles vão ouvir. Ele vai ouvir.

— Será que você é mais obtuso do que eu pensei? — gritou Joel. — Acabei de dizer que não posso! Não chegaria nem a ver Peregrine! Eles me estourariam os miolos antes!

— Falei com sua mulher... perdão, sua ex-mulher. Ela disse que você tinha momentos, durante a noite...

— Você falou com Val? Você pôs Val nisto! Cristo, você está louco? Não sabe que eles descobrem todo o mundo? Estava bem debaixo do seu nariz, conselheiro! Lucas Anstett! Fique longe dela! Fique longe dela ou eu... ou eu...

— Você o quê, filho? — perguntou Talbot em voz baixa. — Vai me matar também?

— Oh, meu Deus!

— Faça o que estou dizendo, Joel. Telefone para Peregrine. Tudo vai dar certo.

Subitamente Converse ouviu um som estranho na linha, estra­nho no contexto, mas um som que tinha ouvido centenas de vezes antes. Um zumbido curto, quase insignificante, mas muito signifi­cativo. Era o sinal delicado de Lawrence Talbot para que sua secre­tária entrasse no escritório para apanhar uma carta, uma minuta ou um ditado gravado. Joel sabia o que significava agora. O endereço do hotelzinho em Bonn.

— Está bem, Larry — disse, procurando demonstrar toda a exaustão que realmente sentia. — Estou tremendamente cansado. Vou descansar um pouco e talvez depois telefone para a embaixada. Talvez deva mesmo entrar em contato com Peregrine. Tudo está tão confuso.

— Assim é que se fala, filho. Tudo vai dar certo agora. Es­plêndido.

— Até logo, Larry.

— Até logo, Joel. Eu o vejo em alguns dias.

Converse desligou e examinou o quarto mal iluminado. O que estava procurando? Tinha chegado sem nada e ia partir sem nada a não ser a roupa do corpo — que era roubada. E precisava sair rapidamente. Precisava correr. Dentro de alguns minutos carros estariam saindo da embaixada e pelo menos um dos homens teria uma arma e uma bala para ele!

Que diabo estava acontecendo? A verdade era uma fantasia sustentada por mentiras, e as mentiras eram seus meios de sobrevivência. Insanidade!

 

Ele correu, passou pelos elevadores e desceu a escada, dois degraus de cada vez, a mão no corrimão de ferro quando fazia a volta nos patamares, e chegou à porta do saguão, quatro andares abaixo. Abriu-a, subitamente diminuindo o passo para não chamar aten­ção. Não precisava se preocupar com isso. O pequeno grupo de pessoas de pé, na frente dos bancos encostados na parede ou an­dando sobre os azulejos aquecidos era formado pelos velhos da vizinhança, à procura de companhia para a noite, e por alguns bêbados que entravam e saíam pela porta iluminada a néon do café barulhento. Oh, Cristo. A mente de Joel estava num frenesi. Podia caminhar sozinho à noite, escondendo-se nas vielas mal iluminadas, mas um homem solitário em ruas desconhecidas seria facilmente notado pelos caçadores não-oficiais ou pela polícia. Precisava en­trar em algum lugar, de um modo ou de outro. Esconder-se.

O café! Seus samaritanos! Levantou a gola da jaqueta de couro e abaixou o cinto da calça, disfarçando o espaço entre a bainha e seus sapatos. Aproximou-se displicentemente da porta, fingindo um pequeno desequilíbrio ao abri-la. Foi recebido por níveis flutuan­tes de fumaça — nem toda de tabaco, de modo nenhum — e aco­modou os olhos ardidos às luzes irregulares e móveis, enquanto tentava bloquear o barulho agressivo — uma combinação de vozes guturais e música de discoteca, gritando nos alto-falantes de alta-fidelidade. Os seus bons samaritanos já tinham saído; procurou a moça loura como referência, mas ela não estava no café. A mesa que haviam ocupado tinha agora quatro pessoas — não, nem todos diferentes, apenas três, que se tinham juntado ao estudante que falava inglês. Eram três rapazes que pareciam também estudantes.

Joel aproximou-se deles, apanhando no caminho uma cadeira vazia e levando-a até a mesa. Sentou-se e sorriu para o estudante louro.

— Não estava certo de ter deixado dinheiro suficiente para aquelas doze cervejas que prometi — disse delicadamente.

— Ach! Estava falando em você, Herr Amerikaner. Estes são meus amigos — como eu, todos péssimos alunos! — Apresentou rapidamente os três, os nomes se perdendo no meio da música e da fumaça. Todos acenaram amavelmente com a cabeça; o americano era bem-vindo.

— Nossos outros amigos já saíram?

— Eu lhe disse — gritou o jovem louro superando o barulho. — Eles queriam ir para nossa casa e fazer amor. É só o que eles fazem! Nossos pais foram a Bayreuth para o festival de música, assim eles vão compor sua própria música na cama dela e eu vou para casa mais tarde.

— Um bom arranjo — disse Converse, pensando num modo de entrar no assunto que devia ser tratado rapidamente. Tinha pou­co tempo.

— Muito bom, senhor! — disse um rapaz de cabelos escuros à sua direita. — Hans naturalmente não percebeu; sua compreensão do inglês é inferior. Eu estudei em Massachusetts, no programa de intercâmbio cultural, durante dois anos. Arranjo é um termo musi­cal também. O senhor combinou os dois sentidos! Muito bom, senhor!

— Estou sempre tentando — disse Joel, olhando para o estu­dante. — Você fala mesmo inglês? — perguntou com sinceridade.

— Muito bem. Minha bolsa de estudos depende disso. Meus amigos aqui são todos boa gente, não pense o contrário, mas são ricos e vêm aqui só para se divertir. Eu, quando era criança, mo­rava em uma rua deste bairro. Mas eles protegem os rapazes aqui, e por que não? Deixe que se divirtam; ninguém é prejudicado e o dinheiro circula.

— Você está sóbrio — disse Converse, a afirmação equivalen­do quase a uma pergunta.

O jovem riu e assentiu com a cabeça.

— Esta noite, sim. Amanhã à tarde tenho um exame muito difícil e preciso estar com as idéias claras. Os exames de verão são os piores. Os professores preferiam estar de férias.

— Eu ia falar com ele — disse Joel, indicando com um gesto da cabeça o estudante louro que discutia com os companheiros, sacudindo a mão no meio da fumaça, falando com voz estridente. — Mas não ia adiantar. Você sim.

— Em que sentido, senhor, se me perdoa a redundância da expressão?

— Redundância? O que está estudando?

— Introdução ao direito, senhor.

— Não preciso disso.

— Está em dificuldades, senhor?

— Não, não eu. Escute, não tenho muito tempo e estou com um problema. Preciso sair daqui. Tenho de encontrar outro lugar para ficar — só até amanhã de manhã. Garanto que não fiz nada de errado, nada ilegal — no caso de minhas roupas e minha aparência indicarem o contrário. É rigorosamente pessoal. Pode me ajudar?

O alemão de cabelos negros hesitou, como se relutasse em responder, mas respondeu afinal, inclinando-se para a frente para que Joel o ouvisse bem.

— Já que falou no assunto, tenho certeza de que compreende que um estudante de direito não deve ajudar um homem em cir­cunstâncias duvidosas.

— Exatamente por isso é que toquei no assunto — disse Con­verse rapidamente, falando junto ao ouvido do estudante. — Sou advogado e sob estas roupas está um profissional razoavelmente respeitado. Acontece que aceitei o cliente errado, um americano, e mal posso esperar para tomar o primeiro avião amanhã de manhã.

O jovem ouviu, estudou o rosto de Joel e assentiu com a ca­beça.

— Então este não é o tipo de hotel onde costuma ficar?

— É do tipo que evito sempre que possível. Pensei que seria uma boa idéia, para não chamar atenção.

— Há poucos lugares iguais a este em Bonn, senhor.

— Para crédito de Bonn, conselheiro. — Observando o café e sua clientela, Converse teve outra idéia. — É verão! — disse com voz ansiosa, entre o barulho ensurdecedor. — Não existem outros hotéis de estudantes por aqui?

— Todos os das vizinhanças de Bonn ou Colônia estão lota­dos, senhor, especialmente com americanos e holandeses. Os que podem ter vagas são muito mais para o norte na direção de Hanôver. Mas há outra solução, a meu ver.

— Qual?

— Verão, senhor. As pensões onde moram os estudantes du­rante o ano letivo estão quase vazias nos meses de verão. Onde eu moro, dois quartos do terceiro andar estão vazios.

— Pensei que morasse por aqui.

— Isso foi há muito tempo. Meus pais são aposentados e mo­RAM com minha irmã em Mannheim.

— Estou com muita pressa. Podemos ir? Pagarei a você o que for possível esta noite, e mais amanhã de manhã.

— Pensei que ia tomar um avião de manhã.

— Tenho de ir a dois lugares antes. Pode ir comigo, para me mostrar o caminho.

O jovem e Joel pediram licença, sabendo que não seriam notados. O rapaz caminhou para a porta do saguão, mas Converse segurou-o pelo cotovelo, fazendo um gesto para a porta que dava diretamente para a rua.

— Sua bagagem, senhor! — gritou o estudante entre o baru­lho e as luzes errantes.

— Você pode me emprestar um aparelho de barba pela ma­nhã! — gritou Converse, puxando o jovem, abrindo caminho entre a profusão de corpos, na direção da porta. Passaram por uma cadeira vazia e Converse viu um boné de pano amassado sobre o assento. Apanhou-o, segurando-o contra o peito até chegarem à porta e saírem para a calçada, o estudante atrás dele.

— Para que lado? — perguntou, colocando o boné na cabeça.

— Por aqui, senhor — respondeu o jovem alemão, apontando para a entrada do hotel ao lado.

— Vamos — disse Joel, adiantando-se.

Pararam — isto é, Converse parou primeiro, agarrando o estu­dante pelo ombro e fazendo-o entrar no prédio. Um sedã preto entrou na rua cantando os pneus, e parou na frente do hotel. Dois homens saíram rapidamente da parte de trás do carro e correram para a entrada, o segundo mais atrás, tentando alcançar o primeiro. Joel inclinou a cabeça quando o jovem alemão olhou para ele. Re­conheceu os dois homens; eram americanos. Estavam no aeroporto de Colônia-Bonn oito dias atrás, esperando apanhá-lo, como espe­ravam apanhá-lo agora. O carro preto saiu da frente iluminada do hotel e parou no escuro. E esperou, um carro mortuário à espera de sua carga.

— Was ist los? — perguntou o jovem alemão, sem disfarçar o medo.

— Nada, realmente. — Converse tirou a mão do ombro do estudante e deu duas pancadinhas amistosas nas costas dele. — Que isto sirva de lição, conselheiro. Saiba quem é o seu cliente antes de se deixar levar pela cobiça de honorários avantajados.

— Ja — disse o jovem, tentando sorrir, sem sucesso, os olhos pregados no sedã negro.

Passaram rapidamente pelo automóvel parado, o cigarro aceso do motorista brilhando na escuridão. Joel puxou o boné de pano para o rosto e virou a cabeça outra vez, agora escondendo-se de um compatriota.

A verdade era uma fantasia alimentada por mentiras... A so­brevivência estava na fuga e em se esconder. Insanidade!

 

A madrugada foi sem acidentes, a não ser por seus pensamentos em turbilhão. O estudante, que se chamava Johann, conseguiu um quarto para Joel na pensão, e a proprietária ficou encantada com os cem marcos alemães. Dava de sobra para pagar também a gaze, o esparadrapo e o anti-séptico que ela deu a Joel para renovar o curativo do braço. Converse dormiu profundamente, embora acor­dado vez por outra por tremores transformados em sonhos maca­bros. Às sete horas não era mais possível dormir.

Precisava tratar de algo muito urgente; compreendia o risco, mas agora, mais do que nunca, precisava de dinheiro. Em Miconos, o esclarecido e astuto Laskaris tinha remetido 100 mil dólares para bancos em Paris, Londres, Bonn e Nova Iorque, usando a prática aceita de números em lugar de assinatura, para retirada do dinhei­ro. Laskaris tinha sugerido a Joel que não tentasse levar consigo, nem memorizar, os quatro grupos de números completamente dife­rentes. O banqueiro telegrafaria para os escritórios da agência de viagens American Express das quatro cidades para que guardassem durante três meses uma mensagem para... quem, Sr. Converse? Deve ser um nome que tenha significado para o senhor, para nin­guém mais. Será seu código, não precisando de nenhuma outra identificação — como fazem com alguns serviços bancários por telefone no seu país... Digamos Charpentier. J. Charpentier.

Joel compreendeu que devia ter revelado isso também sob a ação dos narcóticos. Ou talvez não; não estava pensando em di­nheiro. Tinha muito no bolso na ocasião e drogas tendem a revelar apenas prioridades febris. Havia também uma alternativa, apesar da ética. O jovem alemão, Johann, seria seu intermediário. Os riscos não podiam ser evitados, apenas minimizados; aprendera isso também há muito tempo. Se apanhassem o rapaz, ia sentir-se cul­pado, mas afinal qual seria a pior coisa que podiam fazer com ele? Não adiantava pensar nisso agora.

— Entre e pergunte se há uma mensagem para J. Charpentier — disse Joel ao estudante. Estavam no banco traseiro de um táxi, no outro lado da rua da American Express. — Se disserem que sim, diga o seguinte: “Deve ser um telegrama de Miconos”, acrescentou, lembrando-se das instruções de Laskaris.

— Isso é necessário, senhor? — perguntou o rapaz de cabelos pretos, franzindo a testa.

— Sim, é. Se não mencionar Miconos e o fato de a mensagem ser um telegrama, não a receberá. Isso também o identificará. Não precisa assinar nada.

— Tudo isso é muito estranho, senhor.

— Se vai ser um advogado, tem de se acostumar com meios estranhos de comunicação. Não há nada ilegal, simplesmente um meio de proteger a privacidade do cliente e da sua firma.

— Parece que tenho muito que aprender.

— Você não está fazendo nada errado — continuou Joel em voz baixa, olhando Johann nos olhos. — Ao contrário, está fazen­do algo muito certo, e eu vou pagar muito bem por isso.

— Sehr gut — disse o jovem.

Converse esperou no táxi, vigiando a rua, concentrando-se nos carros estacionados e nos pedestres que andavam muito devagar ou ficavam muito tempo parados, ou qualquer pessoa que parecesse olhar para o prédio da American Express. Johann entrou e Joel engoliu em seco várias vezes, sentindo um aperto na garganta; a espera era terrível, especialmente pelo fato de estar usando o estu­dante para uma situação de alto risco. Então, pensou brevemente em Avery Fowler-Halliday e em Connal Fitzpatrick; eles tinham perdido. O jovem alemão tinha uma chance infinitamente maior de viver muitos anos ainda.

Os minutos se passaram e o suor escorria da cabeça para o pescoço de Converse; o tempo suspenso no medo. Afinal, Johann saiu do prédio, piscando na claridade, a inocência personificada. Atravessou a rua e entrou no táxi.

— O que foi que disseram? — perguntou Joel, tentando pare­cer despreocupado, os olhos vigiando a rua.

— Perguntaram se eu estava esperando a mensagem há muito tempo. Respondi que esperava um telegrama de Miconos. Era a única coisa que eu sabia.

— Muito bem — Joel abriu o envelope e desdobrou o tele­grama. Viu uma série contínua de números, mais de vinte, calculou à primeira vista. E lembrou-se outra vez das instruções de Laskaris. Escolha cada terceiro número a começar do terceiro e terminando com o terceiro antes do último. Pense apenas em termos de três. É muito simples — essas coisas geralmente são — e de qualquer modo, ninguém pode assinar a não ser o senhor. Apenas uma pre­caução.

— Está tudo em ordem? — perguntou Johann.

— Por enquanto estamos um passo adiante e você deu mais um passo na direção de uma gratificação, conselheiro.

— Estou também mais perto do meu exame.

— A que horas é a prova?

— Três e meia, esta tarde.

— Bom presságio. Pense em termos de três.

— Como disse?

— Nada. Vamos encontrar um telefone público. Só precisa fazer mais uma coisa e esta noite poderá oferecer o jantar mais caro de Bonn aos seus amigos.

 

O táxi esperou na esquina, enquanto Converse e o alemão entraram na cabine. Johann escreveu o número do telefone do banco, depois de consultar a lista. O estudante relutava em continuar; as tarefas exóticas exigidas dele começavam a ser demais para sua compre­ensão.

— A única coisa que tem a fazer é dizer a verdade! — insistiu Joel. — Apenas a verdade. Você conheceu um advogado ameri­cano que não fala alemão e ele lhe pediu para dar um telefonema. Esse advogado precisa retirar dinheiro para um cliente, de uma conta de transferência confidencial e quer saber quem deve pro­curar. Isso é tudo. Ninguém vai perguntar seu nome, ou o meu.

— E, quando eu fizer isso, vai aparecer outra coisa qualquer, mein Herr? Nein. Acho que não vou fazer. O senhor telefona...

— Não posso cometer nenhum erro! Não posso deixar de compreender nenhuma palavra! E, depois disso, nada mais. Pode espe­rar onde quiser, no banco ou fora dele. Quando eu sair lhe darei dois mil marcos alemães, e no que me diz respeito — no que diz respeito a qualquer pessoa — nós nunca nos vimos.

— Tanto por tão pouco, senhor. Deve compreender meus te­mores.

— Nem se comparam com os meus — disse Converse em voz baixa e ansiosa. — Por favor, faça isso. Preciso da sua ajuda.

Como fizera a noite anterior, no meio do barulho, da fumaça e das luzes errantes do bar, o jovem alemão olhou fixamente para Joel, tentando encontrar alguma coisa que talvez não existisse. Afi­nal, assentiu com a cabeça sem entusiasmo.

— Sehr gut — disse, entrando na cabine com uma porção de moedas na mão.

Converse olhou através do vidro enquanto o estudante discava o número e, depois de breves trocas de palavras com duas ou três pessoas, conseguiu quem procurava. O diálogo unilateral observado por Joel parecia não ter fim —, muito longo e complicado para o simples pedido de um nome do departamento de contas de transferência. Em certo momento, quando escreveu alguma coisa no pedaço de papel onde tinha anotado o número do banco, Johann pareceu estar fazendo alguma objeção e Converse controlou-se para não abrir a porta e interromper a ligação. O jovem alemão desligou e saiu, confuso e zangado.

— O que houve? Algum problema?

— Só com a hora e com o procedimento de praxe, senhor.

— O que quer dizer com isso?

— Essas contas são atendidas só depois do meio-dia. Deixei bem claro que o senhor precisava estar no aeroporto a essa hora, mas Herr Direktor disse que o procedimento de praxe deve ser respeitado. — Johann deu o pedaço de papel para Converse. — Deve procurar um homem chamado Lachmann no segundo andar.

— Tomo outro avião — Joel olhou para o relógio de pulso do motorista. Eram dez e trinta e cinco; uma hora e meia para es­perar.

— Eu pretendia estar na biblioteca da universidade muito an­tes do meio-dia.

— Ainda pode fazer isso — disse Converse com sinceridade. — Podemos dar uma parada, comprar um envelope selado, e você escreve seu nome e endereço. Mandarei o dinheiro.

Johann olhou para o chão, obviamente hesitante.

— Acho que talvez... o exame não seja tão difícil para mim. É uma das minhas melhores matérias.

— Naturalmente — concordou Joel. — Não há nenhum mo­tivo no mundo para confiar em mim.

— Não está compreendendo, senhor. Acredito que vai mandar o dinheiro. Só que não sei se é uma boa idéia eu receber o enve­lope.

Converse sorriu; compreendeu.

— Impressões digitais? — perguntou suavemente. — Regras tradicionais para provar um crime?

— É também uma das minhas melhores matérias.

— Está certo, você fica comigo por mais algum tempo. Tenho ainda setecentos marcos alemães. Conhece alguma loja de roupas longe do centro comercial onde eu possa comprar talvez uma calça e um paletó?

— Sim, senhor. E, se permite, quero sugerir que, se vai retirar dinheiro suficiente para me dar dois mil marcos alemães, talvez uma camisa limpa e uma gravata.

— Sempre verifique a aparência do cliente. Você vai longe, conselheiro.

 

 

O ritual no Bank aus der Bonner Sparkasse era um verdadeiro estudo de eficiência complicada mas obstinada. Joel foi conduzido ao escritório de Herr Lachmann, no segundo andar, onde não lhe foi oferecido nem um aperto de mão, nem qualquer conversa preli­minar. Só trataram do negócio em curso.

— Origem da transferência, por favor? — perguntou o corpu­lento e áspero executivo.

— Banco de Rodes, agência de Miconos, escritório do cais. O nome do — “remetente”, acho que é assim que chamam, é Laskaris. Não me lembro do primeiro nome.

— O último também não é necessário — disse o alemão, como se não quisesse ouvir. De certo modo, a própria transação parecia ofendê-lo.

— Desculpe-me, só queria ajudar. Como sabe, estou com mui­ta pressa. Preciso tomar um avião.

— Tudo será feito de acordo com os regulamentos, senhor.

— Naturalmente.

O banqueiro empurrou uma folha de papel sobre a mesa.

— Escreva sua assinatura numérica cinco vezes, uma embaixo da outra, enquanto eu leio os regulamentos que governam o proce­dimento do Bank aus der Bonner Sparkasse, de acordo com as leis da República Federal da Alemanha. Então deverá assinar — assi­natura numérica — uma declaração no sentido de que compreende e aceita essas proibições.

— Pensei que tinha dito “regulamentos”.

— É tudo a mesma coisa, senhor.

Converse tirou o telegrama do bolso interno do paletó esporte recém-comprado e colocou-o ao lado da folha em branco. Tinha sublinhado os números e começou a copiá-los.

— O abaixo-assinado numericamente, identificado pela origem da transferência... — leu em voz monótona o obeso Lachmann, recostando-se na cadeira com a única folha de papel na mão — atesta que a quantia retirada do Bank aus der Bonner Sparkasse, desta conta confidencial, foi sujeita a todos os impostos, da pessoa física e jurídica, na fonte. Que não estão sendo processados em outra qualquer moeda para evitar os ditos impostos, ou com o fim de realizar pagamentos ilegais a indivíduos, companhias ou firmas com atividades ilegais e...

— Esqueça — disse Joel, interrompendo. — Já sei disso; eu assino.

— ...condenáveis fora das leis da República Federal da Ale­manha ou das leis da nação da qual o abaixo-assinado é residente legal com cidadania absoluta.

— Já tentou o enquadramento como residente temporário ou como estrangeiro? — disse Converse, começando a escrever a última linha de números. — Conheço um estudante de direito que pode encher essa declaração de buracos.

— Há mais, mas o senhor disse que assina?

— Tenho certeza de que há mais e naturalmente vou assinar. — Joel empurrou a folha com os números escritos, na direção do banqueiro. — Aí está. Agora, dê-me o dinheiro. Cem mil america­nos, descontando seus honorários. Divida em dois terços e um terço. Americano e alemão, nenhuma nota cima de seiscentos mar­cos alemães e de quinhentos dólares americanos.

— É uma considerável quantidade de papel, senhor.

— Eu dou um jeito. Por favor, o mais depressa possível.

— Essa quantia é o total da conta? Naturalmente só posso saber depois que a assinatura for eletronicamente verificada.

— É o total da conta.

— Poderá demorar algumas horas, natürlich.

— O quê?

— Os regulamentos, nossa política - o homem gordo esten­deu os braços em súplica.

— Não tenho algumas horas!

— O que posso fazer?

— O que pode fazer? Mil americanos para o senhor.

— Uma hora, senhor.

— Cinco mil?

— Cinco minutos, meu bom amigo.

 

Converse saiu do elevador. O áspero cinto para carregar dinheiro, recém-adquirido, era muito menos confortável do que o outro com­prado em Genebra, mas teria sido tolice recusar. Era cortesia do banco, tinha dito Lachmann enquanto passava quase doze mil mar­cos alemães para os próprios bolsos. Os “cinco minutos” tinham sido um exagero persuasivo, pensou Joel, olhando para o relógio de parede; eram quase doze e vinte e cinco. O ritual tinha demorado mais de meia hora, desde a “doutrinação” até a verificação eletrô­nica da sua “assinatura”, capaz de detectar a menor variação “fun­damental” nas características da escrita. Aparentemente ninguém ousava cometer erros nos bancos alemães, quando se tratava de práticas questionáveis. Os regulamentos eram seguidos até os limi­tes da legalidade, todo o mundo protegido pelo fato de estar obede­cendo a ordens que colocavam o peso da inocência apenas sobre os ombros dos receptores.

Converse dirigiu-se para as portas de bronze trabalhado e viu o estudante, Johann, sentado em um banco de mármore, parecendo deslocado mas não desconfortável. Estava lendo os impressos do banco. Ou, para ser mais exato, fingia ler; por cima das páginas, observava as pessoas que passavam pelo vestíbulo de mármore. Converse fez um sinal com a cabeça; Johann levantou-se e esperou que Joel chegasse à porta e depois o seguiu.

Alguma coisa tinha acontecido. Na calçada, as pessoas corriam em todas as direções, mas especialmente para a direita; falavam alto, faziam perguntas, as respostas eram um misto de raiva e igno­rância.

— Que diabo está acontecendo? — perguntou Converse.

— Não sei — respondeu Johann, perto dele. — Alguma coisa muito feia, acho. O pessoal está correndo para a banca de jornais da esquina.

— Vamos comprar um jornal — disse Joel tocando o braço do rapaz.

Seguiram a multidão.

“Attentat! Mordi Amerikanische Botschafter ermordet!”

Os jornaleiros gritavam, entregando os jornais e apanhando as moedas sem se preocuparem com o troco. Havia uma sensação de pânico crescente, provocado por acontecimentos inesperados que pressagiam grandes desgraças. Todos estavam comprando o jornal, ávidos por ler a manchete e a história.

— Mein Gott! — exclamou Johann, olhando para um jornal dobrado à sua esquerda. — O embaixador americano foi assassi­nado!

— Cristo! Compre um desses! — Converse jogou algumas moedas na banca enquanto o alemão pegava o jornal. — Vamos sair daqui! — gritou Joel, segurando o braço do estudante.

Mas Johann não se moveu. Ficou parado no meio da multidão histérica, olhando fixamente para o jornal, os olhos arregalados, os lábios trêmulos. Converse empurrou dois homens com o ombro e puxou o jovem, ambos agora rodeados de alemães ansiosos, gritan­do protestos, procurando chegar à banca de jornais.

— Você! — O grito de Johann foi abafado pelo medo.

Joel arrancou o jornal das mãos dele. No centro superior da primeira página havia duas fotografias. A da esquerda era do ho­mem assassinado, Walter Peregrine, embaixador dos Estados Uni­dos da República Federal da Alemanha. A da direita era de um americano Rechtsanwalt — uma das poucas palavras alemãs que Converse conhecia; significava advogado. Era sua fotografia.

 

— Não! — rugiu Converse, amassando o jornal com a mão esquerda, a direita agarrando o ombro de Johann. — Seja lá o que dizem, é uma mentira! Não tenho nada a ver com isso! Não vê o que estão tentando fazer? Venha comigo!

— Nein! — gritou o jovem alemão, olhando para os lados freneticamente, percebendo que sua voz se perdia na agitação.

— Pois eu digo sim! — Converse enfiou o jornal dentro do paletó e, passando o braço direito pelo pescoço de Johann, arras­tou-o para fora da multidão. — Pode pensar o que quiser, mas primeiro você vem comigo! Vai ler para mim cada maldita palavra deste jornal!

— Da ist er! Der Attentater! — gritou o alemão, estendendo o braço e agarrando a calça de um homem que disse um palavrão e bateu com a mão na de Johann.

Joel virou o pescoço do estudante para a esquerda, e gritou no seu ouvido, suas palavras assustando-o tanto quanto ao estudante.

— Se é assim que quer, é assim que vai ser! Tenho uma arma no bolso e se precisar eu faço uso dela! Dois homens de bem já foram assassinados — agora três —, por que você seria exceção? Porque é jovem? Isso não é motivo! Pensando bem, por quem esta­mos morrendo?

Converse arrastou o estudante para fora da multidão. Quando chegaram a um lugar mais tranqüilo, soltou o golpe de braço, subs­tituindo-o por dedos firmes na nuca do alemão. Empurrou-o para a frente, procurando um lugar onde pudessem conversar — onde Johann pudesse falar, depois de ler as mentiras criadas pelos ho­mens de Aquitânia. O jornal escorregou dentro do seu paletó; Converse agarrou uma ponta e puxou-o para fora, intacto. Não podia continuar andando, empurrando o prisioneiro pela calçada; algu­mas pessoas olhavam para os dois, um chamariz para os curiosos. Oh, Cristo! A fotografia! O seu rosto! Qualquer um podia reconhe­cê-lo, e estava chamando atenção empurrando o rapaz.

Um pouco adiante, à direita, havia uma confeitaria ou café, ou uma combinação dos dois, com mesas sob guarda-sóis, na calçada; havia várias mesas vazias em uma das extremidades. Converse teria preferido uma rua deserta ou uma lateral com calçamento de pe­dras, muito estreita para veículos, mas não podia continuar como estava — andando rapidamente segurando um prisioneiro.

— Ali! Na mesa de trás! Você senta olhando para fora. E lembre-se, eu não estava brincando quando falei do revólver; minha mão vai estar no bolso.

— Por favor, deixe-me ir! Já fez muita coisa comigo! Meus amigos sabem que saímos juntos a noite passada; a dona da pensão sabe que eu arranjei um quarto para você! A polícia vai me inter­rogar!

— Entre aí — disse Converse, empurrando Johann entre as cadeiras, na direção da mesa, na parte interna da calçada. Senta­ram-se; o alemão não estava mais tremendo, mas olhava para todos os lados. — Nem pense nisso — continuou Joel. — E, quando o garçom vier, fale inglês. Só inglês!

— Não há garçons. Os fregueses entram e apanham os doces e o café.

— Passaremos sem eles — você pode comer depois. Eu lhe devo dinheiro e sempre pago minhas dívidas.

...Eu sempre pago minhas dívidas. Pelo menos nestes últimos quatro anos tenho pago. Palavras de um recado deixado por um homem que aceitava riscos. Um ator chamado Caleb Dowling.

— Não quero o seu dinheiro — disse Johann, o sotaque mais gutural por causa do medo.

— Pensa que está contaminado, o que faz de você um verda­deiro acessório, é isso?

— Você é o advogado, sou apenas um estudante.

— Pois deixe que eu lhe explique. Não está contaminado por­que eu não fiz nada do que estão dizendo e não existe acessório de inocência.

— Você é o advogado, senhor.

Converse colocou o jornal na frente do jovem e enfiou a mão no bolso, onde tinha colocado dez mil marcos alemães em ordem ascendente de valor, para uso imediato. Contou sete mil e colocou o dinheiro na frente de Johann.

— Guarde isso antes que eu o enfie pela sua garganta.

— Não quero o seu dinheiro!

— Vai ficar com ele e dizer que eu dei para você, se quiser. Serão obrigados a devolver.

— O que quer dizer?

— A verdade, conselheiro. Algum dia vai descobrir que é o seu melhor escudo. Agora, leia o que está escrito nesse jornal.

— “O embaixador foi morto a noite passada” — começou o estudante fazendo uma pausa e, com um gesto hesitante, colocando o dinheiro no bolso... — “É difícil determinar a hora aproximada do crime antes de exames mais detalhados” — continuou, tradu­zindo aos pulos, tentando encontrar as palavras exatas — “...O ferimento fatal foi... Schädel — cranial, ferimento na cabeça — o corpo esteve na água durante muitas horas e foi encontrado esta manhã... O adido militar declarou que a última pessoa que, ao que se sabe, esteve com o embaixador foi um americano chamado Joel Converse. Quando esse nome surgiu houve...” — O jovem apertou os olhos, sacudiu a cabeça nervosamente. — Como diz isto, se­nhor?

— Não sei — disse Joel, a voz inexpressiva. — O que estou tentando dizer?

— “... muito excitadas” — frenéticas — “comunicações entre os governos da Suíça, França e da República Federal, em coorde­nação com a Polícia Criminal Internacional, conhecida como Inter­pol, e as... partes do trágico... Ratsel... quebra-cabeça, foram colo­cadas no lugar” — quer dizer, ficou claro. “Sem que o embaixador Peregrine soubesse, o americano Converse tem sido objeto de um... Suche... uma procura por parte da Interpol, em relação a crimes cometidos em Paris e em Genebra, bem como vários atentados ainda não esclarecidos.” — Johann olhou para Converse. Notou uma pulsação rápida na garganta do advogado.

— Continue — mandou Joel. — Não faz idéia do quanto isso é esclarecedor. Continue!

— “Segundo o escritório do embaixador, foi marcado um en­contro confidencial a pedido desse Converse, que afirmava ter in­formações sobre assunto prejudicial aos interesses americanos, cuja falsidade foi posteriormente demonstrada. Os dois homens deviam se encontrar na entrada da ponte Adenauer, entre sete e meia e oito horas da noite de ontem. O diplomata que acompanhou o embai­xador Peregrine confirmou que os dois homens se encontraram às sete e cinqüenta e um da noite e caminharam pela calçada da ponte. Foi a última vez que uma pessoa da embaixada viu o embaixador vivo.” — Johann engoliu em seco, suas mãos começaram a tremer. Respirou fundo várias vezes e continuou, os olhos acompanhando as palavras impressas, gotas de suor aparecendo na testa. — “Mais adiante, um completo... eingehendere... detalhes como são conhe­cidos, mas uma declaração da Interpol descreve o suspeito, Joel Converse, como um homem aparentemente normal que é na reali­dade um... wandernde...” — o alemão baixou a voz — “uma bomba ambulante com graves perturbações mentais. Vários espe­cialistas em comportamento, nos Estados Unidos, o classificam como um psicopata em virtude de ter sido prisioneiro de guerra no Vietnã, durante quatro anos...”

Enquanto Johann continuava gaguejando, assustado com a própria voz, as palavras reveladoras e as frases acusadoras saíam com regularidade marcante, comprovadas por “fontes” departa­mentais apressadamente consultadas e “autoridades” sem nome, sem rostos. O retrato era de um homem mentalmente perturbado que voltara ao passado, seu desequilíbrio provocado por algum fato violento que deixou intacta a inteligência mas eliminou todo o con­trole moral ou físico. Além disso, a procura da Interpol era citada em termos obscuros, sugerindo uma caçada humana secreta, que estava sendo processada há alguns dias, ou talvez semanas.

— “... Suas tendências homicidas são canalizadas” — conti­nuou o estudante, agora em pânico, lendo a citação de outra fonte “autorizada”. — “...Ele tem um ódio patológico para com os atuais ou passados homens de alta patente militar, especialmente os que conseguiram proeminência. ...O embaixador Peregrine foi um famoso comandante de batalhão na Segunda Guerra Mundial, na campanha de Bastogne, na qual muitas vidas americanas foram sacrificadas... Autoridades em Washington aventaram a hipótese de que esse homem perturbado, que depois de algumas tentativas frus­tradas finalmente conseguiu escapar de um campo de segurança máxima no Vietnã do Norte há alguns anos, atravessando mais de cem quilômetros de... Dschungel... selva em poder do inimigo para chegar às suas linhas, possivelmente está revivendo essas experiên­cias. ...Sua justificação para sobrevivência — de acordo com um psiquiatra militar — é o assassinato dos oficiais superiores, atuais ou não, que deram ordens de combate, ou até mesmo civis que, em sua imaginação, têm alguma responsabilidade pelo sofrimento que ele e outros tiveram de suportar. Contudo, tem a aparência de um homem normal, como sempre acontece nesses casos. ...Foram de­signados policiais em Washington, Londres, Bruxelas e aqui, em Bonn. ...Como advogado internacional, com acesso a vários ele­mentos criminosos que trabalham com passaportes ilegais...”

Era uma armadilha brilhantemente executada, as mentiras de­terminantes apoiadas por verdades, meias verdades, distorções e falsidades completas. Fora levada em conta até a hora exata. O encarregado dos negócios da embaixada declarara inequivocamente que tinha visto Joel na ponte Adenauer “às 7h51m”, aproximada­mente vinte e cinco minutos depois de ter escapado da prisão da casa de Leifhelm, e menos de dez minutos depois de ter entrado no Reno. Cada fragmento de tempo era explicado. O fato de ser “ofi­cialmente” colocado na ponte às 7h51m negava à sua história de captura e fuga qualquer credibilidade.

O incidente em Genebra — a morte de A. Preston Halliday — fora introduzido como possível explicação para o ato de violência que o fizera voltar ao passado, o pavio do comportamento ma­níaco de Joel. “...Informou-se que o advogado assassinado a tiros fora um líder muito conhecido do movimento de protesto da década de 60, nos Estados Unidos...” A conclusão velada era que Converse talvez tivesse contratado os assassinos. A própria morte do homem em Paris recebera uma dimensão diferente e mais importante — por mais estranho que fosse, baseada na realidade. “...A princípio, a identidade verdadeira da vítima foi ocultada, na esperança de que isso pudesse ajudar na procura do assassino, uma vez que haviam sido levantadas suspeitas depois de uma entrevista da Süreté com um advogado francês que conhece o suspeito há muitos anos. O advogado, que tinha almoçado com o suspeito naquele mesmo dia, deixou transparecer que seu amigo americano estava com ‘proble­mas sérios’ e que precisava de ‘cuidados médicos’. ...” O homem assassinado em Paris, naturalmente, era um importante coronel do Exército francês, e ajudante, sucessivamente, de vários “generais proeminentes”.

Afinal, para convencer algum descrente desse julgamento pú­blico feito pelo jornalismo “autorizado”, eram feitas referências não só à sua conduta, mas também observações sobre seu desliga­mento do Exército, há mais de uma década e meia. Essas infor­mações foram dadas pela Marinha dos Estados Unidos, Quinto Distrito Naval, e incluíam a recomendação feita na época para que o tenente Converse fosse colocado sob voluntária observação psiquiátrica; a recomendação fora recusada. A conduta do tenente tinha sido extremamente insultuosa para com o grupo de oficiais que só queriam ajudá-lo, e suas palavras não passaram de ameaças violentas contra vários oficiais de alta patente, sobre os quais, como piloto, ele não podia saber coisa alguma.

Tudo isso completava o retrato pintado pelos artistas de Aqui-tânia. Johann acabou de ler, agarrando o jornal com força, os olhos arregalados e assustados.

— Isso é tudo... senhor.

— Eu detestaria pensar que pudesse haver mais alguma coisa — disse Joel. — Você acredita?

— Não penso nada. Estou assustado demais para pensar.

— Uma resposta honesta. Sua mente está dominada pela idéia de que eu posso matá-lo, por isso não consegue enfrentar os pró­prios pensamentos. É isso o que está dizendo, na verdade. Tem medo de que eu me ofenda com um olhar ou uma palavra errada e puxe o gatilho.

— Por favor, senhor, não sou a pessoa certa!

— Eu também não era.

— Deixe-me ir.

— Johann. Minhas mãos estão sobre a mesa. Desde que nós nos sentamos.

— O quê...? — O jovem alemão piscou os olhos e olhou para os braços de Converse, ambos na frente do corpo, as mãos sobre o tampo de metal da mesa. — Não está armado?

— Oh, sim, eu tenho uma arma. Tirei de um homem que teria me matado, se pudesse. — Joel enfiou a mão no bolso e Johann ficou rígido. — Cigarros — disse Converse, tirando o maço e os fósforos. — É um vício terrível. Não comece se ainda não fuma.

— É muito caro.

— Entre outras coisas. — Joel acendeu um fósforo, levou-o ao cigarro, os olhos fixos no estudante. — Conversamos um pouco desde a noite passada. Exceto por alguns momentos no meio da­quela multidão, quando podia ter feito com que me linchassem, acha que me pareço com o homem descrito no jornal?

— Não sou médico, assim como não sou advogado.

— Dois pontos para a oposição. O ônus da prova de sanidade me pertence. Além disso, diz aí que eu pareço perfeitamente normal.

— Diz que sofreu muito.

— Há uns cem anos atrás, mas não mais do que milhares de outros e menos, muito menos, do que cerca de cinqüenta e oito mil que jamais voltaram. Não acredito que um homem insano seja capaz de fazer uma observação racional como essa, considerando as circunstâncias, você acredita?

— Não sei do que está falando.

— Estou tentando dizer que tudo o que acaba de ler é um exemplo de um homem sendo julgado por jornalismo negativo. Verdades misturadas com meias verdades, distorções e julgamentos implausíveis criados para apoiar as mentiras que deverão me con­denar. Nenhum tribunal em nenhum país civilizado admitiria esse tipo de testemunho ou permitiria que um júri o ouvisse.

— Homens foram mortos — disse Johann, sussurrando outra vez. — O embaixador foi assassinado.

— Não por mim. Eu não estava nem perto da ponte Adenauer às oito horas da noite passada. Nem sei onde fica.

— Onde estava?

— Onde ninguém podia me ver, se é isso que está insinuando. E as pessoas que sabem que eu não podia estar na ponte são as últimas pessoas na terra que admitiriam isso.

— Tem de haver alguma prova, em algum lugar. — O jovem fez um sinal de cabeça indicando o cigarro na mão de Converse. — Talvez um desses. Talvez um cigarro?

— Ou impressões digitais, das mãos ou dos pés? Pedaços de roupa? Deve haver tudo isso, mas não revelam a hora.

— Existem métodos — corrigiu Johann. — A tecnologia do... Forschung... as técnicas de investigação estão muito avançadas.

— Deixe que eu termine o pensamento para você. Não sou advogado criminal mas sei do que está falando. Teoricamente, por exemplo, as depressões deixadas no solo por um pé, comparadas com restos retirados da sola dos meus sapatos podem determinar onde eu estava em uma determinada hora.

— Ja!

— Não. Eu estaria morto antes que o material chegasse ao laboratório.

— Por quê?

— Não posso lhe dizer. Por Deus, bem que gostaria, mas não posso.

— Mais uma vez, posso perguntar por quê? — O medo nos olhos do jovem mesclava-se agora ao desapontamento, um último traço de credibilidade, talvez, desaparecendo ante a recusa de Joel.

— Porque não posso, não quero. Há alguns minutos você disse que eu já tinha feito muito para prejudicar você, e na verdade, sem querer, eu fiz. Mas não vou fazer isso. Você não está em condições de ajudar em nada, só seria morto. É o modo mais franco de explicar, Johann.

— Compreendo.

— Não, não compreende, mas gostaria de ter um meio de convencê-lo de que preciso entrar em contato com outras pessoas, pessoas que podem ajudar. Não estão aqui, não estão em Bonn, mas eu me comunicarei com elas se puder sair daqui.

— Mais alguma coisa? Quer que eu faça mais alguma coisa? — O jovem alemão ficou rígido novamente, as mãos começaram a tremer.

— Não. Não quero que faça nada. Estou lhe pedindo que não faça nada — pelo menos por algum tempo. Nada. Dê-me uma chance de sair daqui e entrar em contato com pessoas que podem me ajudar — ajudar a todos nós.

— Todos nós?

— Sim, é isso o que quero dizer, é tudo o que vou dizer.

— Essas pessoas não estão na sua embaixada, Amerikaner?

Converse olhou fixamente para Johann, mantendo o olhar o mais firme possível:

— O embaixador Walter Peregrine foi morto por um ou mais homens da embaixada. Eles foram ao hotel ontem à noite para me matar.

Johann respirou fundo, desviando os olhos.

— Na banca de jornais, no meio do povo, quando você me ameaçou... disse que três homens já tinham sido assassinados — três homens de bem.

— Sinto muito. Eu estava desesperado.

— Não é só isso, e sim o que disse depois. Você disse, por que eu devia ser exceção? Por ser jovem? Isso não era motivo, você disse, e depois gritou palavras muito estranhas — lembro-me delas exatamente. Você disse: “Pensando bem, por quem estamos mor­rendo?” Era mais do que uma pergunta, eu acho.

— Não vou discutir as implicações dessas palavras, conselheiro. E não posso lhe dizer o que deve fazer. Só posso repetir o que tenho dito a dezenas de clientes nestes anos todos. Quando uma decisão é reduzida a alguns fortes argumentos contrários — os meus in­clusive —, depois de ouvir todos eles, coloque-os de lado e siga seu próprio instinto. Dependendo do que e de quem você é, ele será o caminho certo para você. — Converse fez uma pausa, empurran­do a cadeira para trás. — Agora, vou me levantar e sair daqui. Se começar a gritar, vou correr e tentar me esconder em algum lugar, antes que me reconheçam. Depois, eu farei o que puder. Se você não der o alarme, terei mais chance, e na minha opinião é o melhor para nós — para todos nós. Você pode ir para a biblioteca da universidade e sair daqui a uma ou duas horas, comprar um jornal e ir à polícia. Espero que faça isso, se achar que é o certo. Essa é a minha opinião. Não sei qual é a sua. Adeus, Johann.

Joel levantou-se, levou a mão instantaneamente ao rosto, os dedos abertos, tocando a sobrancelha. Voltou-se e caminhou entre as mesas, virou à direita, dirigindo-se para o primeiro cruzamento. Mal respirava; seus pulmões estavam a ponto de estourar, mas ele não ousava nem mesmo deixar que a respiração perturbasse sua audição. Enquanto andava, esperava, o pulso acelerado, os ouvidos tão aguçados que a menor dissonância os teria incendiado.

Ouvia somente as conversas excitadas dos transeuntes e as bu­zinas estridentes dos táxis — não o grito de uma voz masculina e jovem, erguendo-se num alarme. Caminhou mais depressa, misturando-se aos pedestres que atravessavam a praça — mais depressa, mais depressa — passando por pessoas que caminhavam lentamen­te, sem nenhuma urgência. Chegou à calçada do lado oposto e diminuiu o passo — um homem andando rapidamente chama aten­ção. Mas o impulso de sair correndo era quase incontrolável, à medida que se afastava das mesas do café-confeitaria da outra cal­çada. Não ouvira nenhum grito de alarme e a ausência dele lhe dizia para correr para qualquer rua lateral menos movimentada que pu­desse encontrar.

Nada. Nada interrompeu os sons discordantes da praça, mas havia uma mudança, uma mudança sensível, e nada tinha a ver com alarmes estridentes provocados por uma única voz. Os próprios sons discordantes pareciam abafados, substituídos por erguer de ombros e gestos que indicavam incompreensão. A palavra Amerikaner era ouvida em toda a parte. O pânico provocado pela notí­cia tinha passado. Um americano tinha assassinado outro ameri­cano; não se tratava de um assassino alemão, ou de um comu­nista, nem mesmo um terrorista que tivesse enganado o serviço de segurança da República Federal.. A vida podia continuar; Deutschland não podia se responsabilizar pela morte — e os cidadãos de Bonn deram um suspiro de alívio.

Converse virou uma esquina onde havia um prédio de tijolos e olhou para o outro lado da praça, para as mesas do café-confei­taria. O estudante, Johann, continuava na mesma cadeira, a ca­beça inclinada para a frente, apoiada nas duas mãos, lendo o jor­nal. Então, levantou-se e entrou no café. Haveria um telefone lá dentro? Será que ele ia falar com alguém?

Quanto tempo eu posso esperar?, pensou Converse, preparan­do-se para correr, mas contido pelo instinto.

Johann saiu da confeitaria com café e doces numa bandeja. Sentou-se e meticulosamente retirou os pratos da bandeja, sem tirar os olhos do jornal. Então, olhou para cima, para nada em parti­cular — como se soubesse que estava sendo observado por olhos invisíveis — e fez um sinal afirmativo com a cabeça.

Outro que enfrenta riscos, pensou Joel, voltando-se, observan­do e ouvindo os sons e a vista não-familiar da rua onde estava. Tinham-lhe concedido algumas horas — como gostaria de saber o que devia fazer.

 

Valerie correu para o telefone. Se fosse outro repórter diria a mes­ma coisa que dissera aos outros cinco. Não acredito numa só pa­lavra disso tudo e não tenho nada mais para dizer! E se fosse outra pessoa de Washington — do FBI, da CIA, da VA ou qualquer outra combinação do alfabeto — ela ia gritar! Passara três horas sendo entrevistada naquela manhã, até resolver literalmente expul­sar os crucificadores. Eram mentirosos, tentando obrigá-la a corro­borar suas mentiras. Seria muito mais fácil deixar o fone fora do gancho, mas não podia fazer isso. Telefonou duas vezes para Lawrence Talbot em Nova Iorque, pedindo que o localizassem e lhe transmitissem o recado de telefonar para seu estúdio. Tudo era uma loucura. Insanidade! Como Joel costumava dizer com uma intensi­dade tão tranqüila que sua voz parecia um rugido de protesto.

— Alô?

— Valley? É Roger.

— Papai! — Só uma pessoa a chamava por esse nome e esse homem era seu ex-sogro. O fato de não estar mais casada com o filho não fazia nenhuma diferença no seu relacionamento. Ela ado­rava o velho piloto e ele sentia o mesmo por ela. — Onde você está? Ginny não sabia dizer e ela está frenética. Você se esqueceu de ligar sua secretária eletrônica.

— Não me esqueci, Valley. Muita gente pedindo que eu telefo­nasse. Tomei um avião em Hong Kong e quando desembarquei fui sufocado por cinqüenta ou sessenta repórteres, e luzes e câmaras, e não vou poder enxergar direito por uma semana.

— Algum funcionário da companhia cheio de iniciativa reve­lou que você estava a bordo. Seja quem for vai comer por uma semana com um generoso cartão de crédito. Onde você está?

— Ainda no aeroporto — no escritório do diretor de tráfego. Tenho de reconhecer, eles me tiraram da confusão... Valley, acabo de ler os jornais. Consegui as últimas edições. Que diabo é isso?

— Não sei, papai, mas sei que é uma mentira.

— Aquele menino é a coisa mais sã que já vi em minha vida. Estão deturpando tudo, transformando as coisas boas que ele fez em algo... não sei, sinistro, ou coisa assim. Ele é direto demais para ser louco.

— Ele não está louco, Roger. Está numa armadilha, está sen­do destruído.

— Para quê?

— Não sei. Mas acho que Larry Talbot sabe — pelo menos, mais do que me contou.

— O que foi que ele lhe contou?

— Agora não, papai. Mais tarde.

— Por quê?

— Não estou bem certa... Uma coisa que eu sinto, talvez.

— Não estou entendendo, Valley.

— Sinto muito.

— O que foi que Ginny disse? Vou telefonar para ela, naturalmente.

— Está histérica.

— Sempre foi — um pouco.

— Não, não assim. Está achando que é culpada. Acha que estão fazendo isso com o irmão pelas coisas que ela fez nos anos 60. Tentei dizer que isso era tolice, mas acho que piorei as coisas. Ela me perguntou com toda a calma se eu acreditava no que estavam dizendo sobre Joel. Respondi que naturalmente não.

— A velha paranóia. Três filhos e casada com um guarda-li­vros e tudo volta ainda. Eu nunca soube levar aquela menina. Um excelente piloto. Fez o solo antes de Joel e é dois anos mais moça. Vou telefonar para ela.

— Talvez não a encontre.

— Oh?

— Ela mandou trocar o número do telefone, e eu acho que você deve fazer o mesmo. Logo que falar com Larry vou trocar o meu.

— Valley. — Roger Converse fez uma pausa. — Não faça isso.

— Por que não? Tem uma idéia do que tem sido isso?

— Escute, nunca perguntei o que aconteceu entre você e Joel, mas eu geralmente janto com aquele advogado de meia pataca uma vez por semana, quando venho à cidade. Ele acha que é uma espé­cie de necessidade filial, mas sei que eu deixaria o hábito se não gostasse dele. Quero dizer, é um cara muito amável, engraçado, de certa forma, às vezes.

— Sei de tudo isso, Roger. O que está tentando explicar?

— Eles dizem que ele desapareceu, que ninguém consegue encontrá-lo.

— Então?

— Talvez telefone para você. Não sei de mais ninguém para quem pudesse telefonar.

Valerie fechou os olhos, ofuscada pelo sol da tarde que passava pela clarabóia.

— Diz isso baseado nas suas conversas no jantar semanal.

— Não é intuição. Nunca tenho nenhuma, a não ser no ar... Naturalmente que é. Nunca foi dito com todas as palavras, mas sempre esteve logo abaixo do manto de nuvens.

— Você é impossível, papai.

— Erro de piloto, como qualquer outro. Certas vezes não se pode errar... Não mude o número, Valley.

— Não vou mudar.

— Agora, e quanto a mim?

— O marido de Ginny teve uma boa idéia. Estão passando todas as perguntas para um advogado. Talvez fosse melhor você fazer o mesmo. Tem um advogado?

— Naturalmente — disse Roger Converse. — Tenho três. Tal­bot, Brooks e Simon. Nate é o melhor, se quiser saber a verdade. Sabia que com sessenta e sete anos o danado começou a aprender a voar? É qualificado em multimotores agora — pode imaginar?

— Papai! — interrompeu Valerie subitamente. — Você está no aeroporto?

— Foi o que eu disse. Kennedy.

— Não vá para casa. Não vá para o seu apartamento. Tome o primeiro avião para Boston. Use outro nome. Telefone dizendo em que vôo vai chegar. Eu o apanho no aeroporto.

— Por quê?

— Faça o que estou dizendo, Roger. Por favor!

— Para quê?

— Você vai ficar aqui. Eu vou viajar.

 

Converse saiu apressadamente da loja de roupas na movimentada Bornheimer Strasse e estudou seu reflexo na vitrine. Examinou o efeito geral das suas compras, não como um freguês na frente de um espelho de corpo inteiro, mas como um pedestre na calçada. Ficou satisfeito; nada nas roupas podia despertar a atenção. A foto­grafia dos jornais — a única que nos últimos quinze anos poderia estar nos arquivos de uma agência noticiosa ou de um jornal — fora tirada há um ano, quando foi entrevistado, com outros advo­gados de uma fusão comercial, pela Reuters. Era uma fotografia de cabeça e ombros, mostrando-o com suas roupas de advogado — um terno escuro, colete, camisa branca e gravata listrada — a imagem de um especialista internacional em ascensão. Era também a ima­gem que os leitores do jornal faziam dele, e uma vez que não ia ser mudada, mas, ao contrário, seria mais espalhada com as últimas edições, ele teria de mudar.

Não podia continuar com a roupa que tinha usado para ir ao banco. Lachmann, em pânico, sem dúvida daria uma descrição completa para a polícia, mas, mesmo que o pânico o fizesse ficar mudo, ele o tinha visto com um paletó escuro, camisa branca e gravata listrada. Inconscientemente ou não, pensou Joel, tinha-se coberto com a pátina da respeitabilidade. Talvez todos os homens que estavam em fuga para salvar a vida fizessem isso porque sua dignidade essencial lhes foi roubada. Além disso, com aquela roupa ele era o homem da fotografia dos jornais.

A aparência que tinha em mente pertencia a um professor de história que conhecera na faculdade, um homem cujos vários arti­gos de vestuário eram relacionados entre si. Os paletós eram de lã de cor discreta com protetores nos cotovelos, as calças cinzentas — flanela pesada ou leve, nunca outra coisa — e as camisas eram azuis, abotoadas de alto a baixo, também sem exceção. Sobre os óculos com lentes espessas e aros de tartaruga empoleirava-se um chapéu macio do tipo irlandês, com a aba abaixada na frente e atrás. Por onde quer que aquele homem passasse, por uma rua de Boston ou pela Quinta Avenida, em Nova Iorque, ou por Rodeo Drive em Beverly Hills — esta última Joel tinha certeza que ele nem conhecia — todo o mundo ficaria sabendo que era um intelectual da Nova Inglaterra.

Converse conseguira imitar a aparência do homem, exceto pe­los óculos escuros, que precisava substituir pelos de aro de tartaruga. Passou por um grande magazine, o equivalente em Bonn às lojas populares desse tipo na América e teve quase certeza de que teriam um balcão com óculos de vários tamanhos e formatos, al­guns com lentes de pouco aumento, para 1er, outros sem aumento.

Por motivos que só agora começavam a vir à tona, os óculos não eram essenciais para ele. E então compreendeu. Estava preo­cupado com o que sabia que podia fazer — mudar sua aparência. Estava procrastinando, incerto sobre o que faria depois, sem cer­teza de poder fazer alguma coisa.

Olhou para o próprio rosto no espelho oval da loja, mais uma vez satisfeito com o que via. Os aros de imitação de tartaruga eram grossos, as lentes sem grau; o efeito era intelectual, uma imagem de erudito. Não era mais o homem dos jornais e, ao mesmo tempo, importante, a concentração usada para mudar a aparência ajudara a esclarecer sua mente. Podia pensar outra vez, sentar-se em algum lugar e pôr as coisas em ordem. Precisava também de comida e bebida.

O café estava repleto, as janelas de vidro pintado transfor­mavam o sol de verão em raios azuis e vermelhos que atravessavam a fumaça. Foi conduzido a uma mesa encostada a um pequeno sofá de couro preto e o maître, ou quem quer que fosse, garantiu que tudo o que tinha a fazer era pedir um cardápio em inglês; os itens eram numerados. Mas, no continente, uísque era geralmente aceito como scotch; pediu um duplo e tirou do bolso o bloco de anotações e a esferográfica que tinha comprado. O drinque foi servido e ele começou a escrever.

 

Connal Fitzpatrick?

Pasta?

Mais 93.000 dólares

Embaixada fora

Larry Taibot et al. não.

Beale, não

Anstett, não

Homem em São Francisco, não.

Homens em Washington. Quem?

Caleb Dowling? Não.

Hickman, Marinha, San Diego? Possível.

... Mattilon?

 

René! Por que não tinha pensado em Mattilon antes? Compre­endia por que o francês fizera as observações anonimamente atribuí­das a ele na história dos jornais. René estava tentando protegê-lo. Se não havia defesa, ou se fosse tão fraca a ponto de não ser viável, o artifício mais lógico é insanidade temporária. Joel fez um círculo em volta do nome de Mattilon e escreveu o número 1 à esquerda, fazendo um círculo também em redor do número. Procuraria uma estação telefônica onde telefonistas determinam cabines para os tu­ristas confusos e telefonaria para René, em Paris. Tomou dois goles de uísque, relaxando com o calor que lhe percorreu todo o corpo, depois voltou à lista, começando pelo primeiro nome.

Connal....? A suposição de que estivesse morto era inevitável, mas não conclusiva. Se estava vivo, devia estar detido para tirarem dele toda a informação possível. Como oficial chefe jurídico da maior e mais poderosa base naval da costa oeste, e um homem que tinha em seu currículo reuniões com o Escritório de Controle de Munições do Departamento de Estado, bem como com os departa­mentos correspondentes do Pentágono, Fitzpatrick podia ser valio­so para os homens de Aquitânia. Contudo, chamar atenção para ele seria o mesmo que determinar sua execução, se já não estivesse morto. Se estava vivo, o único meio de salvá-lo era descobrir onde estava, mas não por meios ortodoxos ou oficiais; teria de ser feito secretamente. Connal tinha de ser salvo secretamente.

Subitamente Joel viu um homem com o uniforme do Exército dos Estados Unidos, no outro lado da sala, conversando com dois civis, no bar. Não conhecia o homem. Mas o uniforme chamou sua atenção. Lembrou-se do encarregado dos negócios militares da em­baixada, aquele oficial extraordinariamente observador, capaz de ver um homem na ponte no momento exato em que ele não podia ter estado lá. Um dos que mentiam para Aquitânia, alguém cujas mentiras o tinham identificado. Se aquele mentiroso não soubesse onde estava Fitzpatrick, podia ser obrigado a descobrir. Talvez houvesse um meio, afinal. Converse traçou uma linha no lado direi­to da lista, ligando Connal Fitzpatrick ao almirante Hickman em San Diego. Não colocou nenhum número, havia muita coisa a con­siderar.

A pasta? Ainda estava convencido de que os homens de Leifhelm não a tinham encontrado. Se os generais de Aquitânia esti­vessem de posse dos dossiês, teriam providenciado para que Joel soubesse. Não era próprio de homens desse tipo guardar em segredo um prêmio tão grande, não do prisioneiro que pensara que podia enfrentá-los. Não, eles lhe teriam dito, de um modo ou de outro, nem que fosse só para que soubesse que tinha falhado completa­mente. Se estivesse certo, Connal a escondera. Na estalagem cha­mada Das Rektorat? Valia a pena tentar. Joel passou um círculo em volta da palavra Pasta e colocou na frente o número 2.

— Speisekarte, mein Herr? — disse o garçom antes que Con­verse percebesse sua presença ao seu lado.

— Inglês, por favor?

— Certamente, senhor. — O garçom abriu os cardápios como se fossem cartas de jogar. Escolheu um e entregou-o a Joel, di­zendo: — A Spezialifät para hoje é o Wienerschnitzel — é o mesmo em inglês.

— Está ótimo. Pode levar o cardápio.

— Danke. — O homem afastou-se rapidamente antes de Joel ter tempo de pedir outro uísque. Talvez fosse melhor, pensou.

Mais 93.000 dólares. Não precisava acrescentar nada; o volume irritante em volta da sua cintura dizia tudo. Tinha o dinheiro, era para ser usado.

Embaixada, fora... Larry Talbot et al., não... Beale, não... Anstett, não... Homem em São Francisco, não. Enquanto comia considerou cada item, cada anotação, pensando em como cada coi­sa teria acontecido. Cada passo tinha sido cuidadosamente estu­dado, os fatos absorvidos, os dossiês memorizados, cautela acima de tudo. Mas tudo tinha ido pelos ares por causa de complicações muito além dos simples fatos fornecidos por Preston Halliday em Genebra.

Elabore apenas dois ou três casos que tenham ligação com Delavane — mesmo circunstanciais — e será suficiente.

Em vista das revelações de Miconos, depois Paris, Copenhague e Bonn, a simplicidade dessa observação era quase criminosa. Halli­day teria ficado atônito com a profundidade e extensão da influên­cia das legiões de Delavane, da sua penetração nos mais altos níveis das forças armadas, da polícia, Interpol e, obviamente, entre aque­les que controlavam o fluxo de notícias das chamadas “fontes au­torizadas” nos governos ocidentais.

Converse refreou bruscamente seus pensamentos. Compreen­deu que estava pensando em Halliday nas condições de um homem que via apenas um par de olhos à noite dentro da selva, sem saber o tamanho ou a ferocidade do animal invisível na escuridão. Estava errado. Halliday conhecia o material que Beale ia lhe entregar numa ilha do mar Egeu; sabia das conexões entre Paris, Bonn, Telavive e Joanesburgo; sabia dos homens que tomavam as decisões no Depar­tamento de Estado e no Pentágono — sabia de tudo! Tinha pla­nejado tudo com homens desconhecidos em Washington! Halliday tinha mentido em Genebra. Um lutador da Califórnia que fora seu amigo na escola, chamado Avery Fowler, era o manipulador, e em nome de A. Preston Halliday tinha mentido.

Onde estavam aqueles homens misteriosos de Washington que tinham a audácia de levantar meio milhão de dólares para um jogo incrível, mas que estavam assustados demais para agir abertamente? Que espécie de homens eram esses? O seu observador avançado fora morto, seu fantoche acusado de psicopata e assassino. Por quanto tempo ainda podiam esperar? O que eram eles?

Essas perguntas perturbavam Converse de tal forma que tentou não pensar nelas — conduziriam apenas à ira, que cega a razão. Ele precisava da razão e, acima de tudo, da força que vem com a consciência do que se está fazendo.

Estava na hora de procurar um posto telefônico e falar com Mattilon em Paris. René acreditaria nele, René o ajudaria. Não podia nem pensar que o amigo pudesse agir de outro modo.

 

O civil caminhou em silêncio para a janela do hotel, sabendo que esperavam dele um pronunciamento que seria a base de um milagre — não uma solução, mas um milagre, e no negócio que ele conhecia tão bem não havia esse tipo de coisas. Peter Stone era, para todos os efeitos, uma relíquia, um proscrito que vira tudo e que nos últimos anos se tinha desmoronado. O álcool substituíra a verda­deira audácia, transformando-o, no fim, em um mutante profissio­nal, uma parte dele ainda se orgulhando do passado, outra nau­seada pelo desperdício, por saber de tantas vidas desperdiçadas, de tantas estratégias desperdiçadas — a moralidade atirada em um cesto imenso de um inconsciente coletivo.

Contudo, tinha sido um dos melhores — não podia se esquecer disso. E, quando soube que tudo estava acabado, enfrentara o fato de que estava se matando com uma pletora de bourbom e auto-piedade. Tinha saído do abismo. Mas não antes de ter ganho a inimi­zade dos seus antigos empregadores na CIA, não por falar publica­mente, mas por lhes dizer em particular quem e o que eles eram. Felizmente, com a volta à sobriedade, ficou sabendo que seus ex-patrões tinham outros inimigos em Washington, inimigos que nada tinham a ver com complicações e competição no exterior. Homens e mulheres simples que serviam à república e que queriam saber que diabo estava acontecendo quando Langley se recusava a lhes contar. Ele tinha sobrevivido — estava sobrevivendo. Pensou em tudo isso, consciente de que os outros dois homens, no quarto, acreditavam que estava se concentrando no assunto a ser tratado.

Não havia nenhum assunto. O dossiê estava encerrado, com uma faixa negra em volta. Os dois que estavam com ele eram tão jovens — meu Deus, tão incrivelmente jovens! —, achariam difícil aceitar. Lembrou-se vagamente do tempo em que essa conclusão o teria deixado atônito. Mas isso fora há quase quarenta anos; tinha quase sessenta agora, e já ouvira a mesma conclusão repetida de­mais para que lhe provocasse lágrimas de arrependimento. O arre­pendimento — a tristeza estava ali —, mas o tempo e a repetição haviam embotado seus sentidos; a avaliação clara era tudo.

Stone voltou-se e disse com tranqüila autoridade:

— Não podemos fazer nada.

O capitão do Exército e o tenente da Marinha ficaram visivelmente confusos. Peter Stone continuou:

— Passei vinte e três anos nos túneis, incluindo uma década com Angleton, e estou dizendo que não podemos fazer absoluta­mente nada. Temos de deixar que ele se arranje, não podemos tocá-lo.

— Por que não podemos nos arriscar? — perguntou o oficial de Marinha, em tom mordaz. — Foi o que disse quando Halliday foi assassinado em Genebra. Não podemos nos arriscar.

— Não podemos. Nossa estratégia foi superada.

— Há um homem lá fora — insistiu o tenente. — Nós o mandamos...

— E eles o destruíram — interrompeu o civil, com voz calma, os olhos tristes e inteligentes. — Ele está praticamente morto. Te­mos de começar a procurar em outra parte.

— Por que isso? — perguntou o capitão do Exército. — Por que ele está praticamente morto?

— Eles têm muitos controles, sabemos disso agora. Se já não o trancaram em uma cela, sabem muito bem onde está. Seja quem for que o encontre, vai matá-lo. O corpo crivado de balas de um assas­sino louco é entregue e todos suspiram aliviados. Esse é o resumo da peça.

— E essa é a análise mais fria de um crime que já ouvi! Assas­sinato, uma execução desnecessária.

— Olhe, tenente — disse Stone, afastando-se da janela. — Vocês me pediram que me juntasse ao seu grupo — convenceram-me de que devia — porque queriam alguém com experiência. Com essa experiência chega um momento em que se reconhece e se aceita o fato de ter sido vencido. Isso não quer dizer que se está aca­bado, mas que se perdeu um round. Nós perdemos um assalto, e acredito que os golpes ainda não pararam.

— Talvez... — começou o capitão hesitando. — Talvez seja melhor irmos até a Agência e contar tudo o que sabemos — tudo o que pensamos saber — e o que já fizemos. Pode tirar Converse vivo de toda essa complicação.

— Eu sinto muito — respondeu o ex-agente da CIA. — Eles querem a cabeça dele e vão tê-la. Não teriam tido todo esse tra­balho se a palavra “morto” não estivesse estampada nele. Converse descobriu alguma coisa, ou eles descobriram alguma coisa sobre ele. É assim que funciona.

— Em que mundo você vive? — perguntou o oficial da Mari­nha em voz baixa, balançando a cabeça.

— Não vivo mais nele, tenente, e você sabe disso. Acho que é uma das razões pelas quais me procuraram. Eu fiz o que vocês dois — e seja quem for que está com vocês — estão fazendo agora. Toquei um apito — só que eu o fiz com dois meses de burbom em minhas veias e dez anos de desgosto na cabeça. Falam em procurar a CIA? Muito bem, vão em frente, mas sem mim. Ninguém que valha alguma coisa em Langley vai tocar em mim.

— Não podemos procurar o G-Dois ou o serviço secreto naval disse o oficial do Exército. — Sabemos disso, nós todos concordamos. O pessoal de Delavane está lá dentro; eles nos mandariam fuzilar.

— Muito bem dito, capitão. Acreditaria se eu dissesse que com balas de verdade?

— Eu sei — disse o homem da Marinha, fazendo um gesto de assentimento para Stone. — O relatório de San Diego diz que o oficial jurídico Remington morreu em um acidente de automóvel em La Jolla. Foi o último a falar com Fitzpatrick, e antes de sair da base perguntou a um companheiro o caminho para um restaurante nas colinas. Nunca tinha estado lá — e não acho que tenha sido acidente.

— Nem eu — disse o civil. — Mas isso nos leva a outra pessoa que precisamos encontrar.

— O que quer dizer? — perguntou o capitão do Exército.

— Fitzpatrick. SAND PAC não consegue encontrá-lo, certo?

— Está de licença — disse o oficial de Marinha. — Ainda tem uns vinte dias. Não recebeu ordens de informar seu itinerário.

— Ainda assim, tentaram encontrá-lo e não conseguiram.

— E eu ainda não estou entendendo — observou o capitão.

— Nós vamos procurar Fitzpatrick — disse Stone. — Fora de San Diego, não em Washington. Vamos, descobrir uma razão para realmente querer que ele volte. Uma emergência no SAND PAC, estritamente confidencial, um problema da base — de ninguém mais.

— Detesto ter de repetir — disse o oficial do Exército —, mas não estou entendendo. Por onde começamos? Como quem co­meçamos?

— Com um dos seus, capitão. Neste momento ele é uma pes­soa muito importante. O encarregado dos negócios na Mehlemer House.

— Na quê?

— A embaixada americana em Bonn. Ele é um deles. Mentiu quando a mentira era mais importante — disse Stone. — O nome dele é Washburn. Major Norman Anthony Washburn, IV.

 

O complexo telefônico era ao lado do saguão de um edifício co­mercial. Consistia em um salão quadrado com cinco cabines embu­tidas em três paredes e um balcão alto e quadrado no centro, onde quatro telefonistas se sentavam na frente dos consolos, cada uma delas obviamente capaz de falar duas ou mais línguas. Nas prate­leiras à esquerda e à direita da porta havia listas telefônicas das principais cidades da Europa e seus subúrbios; pequenos blocos para notas e esferográficas estavam colocados nas estantes para uso dos que iam procurar números de telefone. O processo era familiar; dava-se um número escrito para a telefonista, especificando- a for­ma de pagamento — dinheiro, cartão de crédito ou ligação a cobrar — e a telefonista indicava uma cabine. Não havia filas; meia dúzia de cabines estavam vazias.

Joel encontrou o número da firma de Mattilon em Paris. Ano­tou-o, levou-o a uma das telefonistas e disse que ia pagar em di­nheiro. Ela lhe indicou a cabine número sete e mandou-o esperar que o telefone tocasse. Joel entrou na cabine rapidamente com a aba do chapéu mole caída sobre os óculos de aros de tartaruga. Qualquer recinto fechado, um banheiro ou uma cabine de vidro, era melhor do que estar completamente exposto. Sentiu o pulso acelerado; pareceu explodir quando o telefone tocou.

— Saint-Pierre, Nelli, et Mattilon — disse a voz feminina em Paris.

— Monsieur Mattilon, por favor — s’il vous plaît.

— Votre...! — A mulher parou, sem dúvida reconhecendo a heróica tentativa de um americano para falar francês. — Quem devo dizer que está falando, por favor?

— Um amigo de Nova Iorque. Ele sabe quem é. Sou um cliente.

René sabia. Depois de vários estalidos, sua voz estava na linha.

— Joel? — murmurou. — Não acredito!

— Não acredite — disse Converse. — Não é verdade — não o que eles dizem sobre Genebra e Bonn, nem mesmo o que você disse. Não tive nada a ver com aqueles crimes, e Paris foi um acidente. Eu tinha motivos para pensar — eu pensei — que o homem ia tirar uma arma.

— Por que não ficou onde estava, então, meu amigo?

— Porque eles queriam me impedir de continuar. Era o que eu acreditava honestamente e não podia deixar que fizessem isso. Deixe que eu fale... No George Cinq você me fez perguntas e eu dei respostas evasivas e acho que você percebeu. Mas foi delicado e não insistiu. Não tem de que se arrepender, dou-lhe minha palavra — minha palavra muito sensata. Naquela noite, Bertholdier foi me procurar no quarto do hotel; nós conversamos e ele entrou em pânico. Há seis dias eu o vi outra vez aqui em Bonn — só que dessa vez foi diferente. Ele recebeu ordens para estar presente, com ou­tros três homens muito poderosos, dois generais e um ex-marechal-de-campo. É uma cabala, René, uma cabala internacional, e eles vao conseguir. Tudo é muito secreto e movem-se com rapidez. Re­crutaram pessoal-chave das forças armadas em toda a Europa, o Mediterrâneo, Canadá e Estados Unidos. Não é possível dizer quem está com eles e quem não está — e não temos tempo para cometer um erro. Eles têm milhões à sua disposição, armazéns repletos de munição, pronta a ser enviada para sua gente quando chegar o momento.

— O momento? — interrompeu Mattilon. — Que momento?

— Por favor — insistiu Joel, falando mais depressa. — Eles vêm enviando armas e explosivos para maníacos por toda a parte — terroristas, membros do I.R.A., lunáticos — com um único obje­tivo: desestabilização através da violência. É sua desculpa para in­terferir. Neste momento estão mandando pelos ares a Irlanda do Norte.

— A loucura em Ulster? — interrompeu o francês. — Os hor­rores que...

— É o horror criado por eles! Um ensaio. Eles o armaram com um carregamento maciço dos Estados Unidos — para provar que podem fazê-lo! Mas a Irlanda é só um teste, um exercício de pouca importância. A grande explosão será daqui a alguns dias, no máximo semanas. Preciso me comunicar com pessoas que podem detê-los e não vou poder fazer isso se estiver morto! — Converse fez uma pausa, apenas para tomar fôlego, sem dar a Mattilon opor­tunidade para falar. — Esses são os homens que eu estava pro­curando, René — legalmente, para elaborar alguns casos contra eles, expô-los nos tribunais, antes que conseguissem alguma coisa. Mas então eu descobri. Eles já estão agindo. Cheguei tarde demais.

— Mas, por que você?

— Começou em Genebra — com Halliday, o homem que foi morto. Foi assassinado pelos capangas deles, mas não antes de ter me recrutado. Você me perguntou sobre Genebra e eu menti, mas esta é a verdade. Agora, ou você me ajuda, ou tenta me ajudar, ou não. Não por mim — não sou importante —, mas isso em que estou envolvido é. E fui envolvido, compreendo isso agora. Mas eu os vi, falei com eles, e são tão tremendamente lógicos, tão astutamente persuasivos que vão transformar a Europa em um Estado fascista; vão instalar uma federação militar tendo meu país como progeni­tor. Porque tudo começou no meu país; começou em São Francisco com um homem chamado Delavane.

— Saigon? O Louco Marcus de Saigon?

— Vivo e em perfeita saúde e morando em Palo Alto, im­pondo suas patentes militares em toda a parte. É ainda um ímã e eles são atraídos por ele como moscas para um porco.

— Joel, você está... você está... bem?

— Vamos fazer uma coisa, René. Tirei uma porcaria de reló­gio de um homem que era meu guarda — um paranóico que apesar disso foi bom para mim — e ele tem um ponteiro de segundos. Você tem trinta segundos para pensar no que eu lhe contei, depois vou desligar. Agora, velho amigo, vinte e nove segundos.

Dez segundos se passaram, e Mattilon falou.

— Um homem louco não dá uma explicação tão exata. Muito bem, talvez eu esteja louco também, mas o que você diz de — Deus sabe que os tempos estão certos, o que mais posso dizer? Tudo é uma loucura!

— Preciso voltar aos Estados Unidos vivo, preciso ir a Washington. Conheço algumas pessoas lá. Se conseguir encontrá-las e me mostrar como realmente sou, me ouvirão. Pode ajudar?

— Tenho contatos no Quai d’Orsay. Vou falar com eles.

— Não — objetou Converse. — Eles sabem que somos ami­gos. Uma palavra para a pessoa errada e você é um homem morto. Perdoe-me, mas o mais importante é que, se você falar, vai acionar todos os alarmes. Não podemos correr esse risco.

— Muito bem — disse Mattilon. — Há um homem em Ams­terdã — não me pergunte como o conheço — que pode arranjar essas coisas. Suponho que você não tem passaporte.

— Tenho um mas não é meu. É alemão. Tirei de um guarda que estava disposto a meter uma bala na minha cabeça.

— Então, tenho certeza de que ele não está em condições de se queixar às autoridades.

— Não está.

— Em sua mente, você voltou para trás, não foi, meu amigo?

— Não vamos falar nisso, certo?

— Bien. Você é você. Guarde o passaporte. Pode ser útil.

— Amsterdã. Como chego lá?

— Está em Bonn, não é mesmo?

— Sim.

— Há um trem para Emmerich na fronteira holandesa. Em Emmerich tome o transporte local — bonde, ônibus, qualquer um. A alfândega é desorganizada, especialmente nas horas de movi­mento, quando os trabalhadores vão de um lado para o outro. Ninguém olha nada, portanto mostre só o passaporte, de relance, cobrindo parcialmente o retrato, talvez. Ainda bem que é alemão. Não terá problemas.

— E se tiver?

— Então, não posso ajudá-lo, meu amigo. Estou sendo ho­nesto. E então, preciso ir ao Quai d’Orsay.

— Certo. Eu passo, e depois?

— Chega a Arnhem. Daí toma o trem para Amsterdã.

— E então?

— O homem. Seu nome está em um cartão na última gaveta da minha mesa. Tem com que tomar nota?

— Pode dizer — falou Converse, apanhando o pequeno bloco de notas e a caneta, ao lado do telefone.

— Aqui está. Thorbecke. Cort Thorbecke. O prédio de apar­tamentos é na extremidade sudoeste de Utrechtsestraat e Kerkstraat. O telefone é zero-dois-zero, quatro-um-um-três-zero. Quando tele­fonar para marcar hora, diga que é um membro da família de Tatiana. Tomou nota? Tatiana.

— René? — disse Joel, escrevendo. — Eu nunca ia imaginar. Como é que conhece alguém como esse homem?

— Como já lhe disse, não faça perguntas, mas, por outro lado, ele pode experimentar você e precisa ter pelo menos respostas vagas — tudo sempre foi vago. Tatiana é um nome russo, de uma das filhas do czar supostamente executada em Ekaterinburgo, em 1918. Eu digo “supostamente” porque muitos acreditam que ela foi pou­pada com a irmã Anastasia e levadas para fora do país com uma ama, que levava também uma fortuna em jóias. A ama gostava mais de Tatiana e, quando ficaram livres, deu tudo para ela e nada para a irmã. Dizem que ela viveu no anonimato com uma grande fortuna — talvez ainda esteja viva — mas ninguém sabe onde.

— É isso que eu tenho de saber? — perguntou Converse.

— Não, isso é apenas a origem do significado atual. Hoje, é um símbolo de confiança depositada em poucas pessoas nos últimos anos, pessoas que têm a confiança dos homens mais desconfiados do mundo, homens que não podem se dar ao luxo de cometer erros.

— Meu Deus, quem?

— Russos, poderosos comissários soviéticos que têm uma que­da pelos bancos do Ocidente, que enviam dinheiro para fora de Moscou, para investimentos. Pode compreender por que o círculo é pequeno. Poucos são chamados e poucos são escolhidos. Thorbecke é um deles, e faz um grande negócio com passaportes. Vou me comunicar com ele e dizer-lhe que aguarde sua visita. Lembre-se, nada de nomes, apenas Tatiana. Ele embarcará você na KLM para Washington em pouco tempo. Vai, entretanto, precisar de dinheiro, e assim devemos pensar como...

— Dinheiro é uma das coisas de que não preciso — interrom­peu Converse. — Só um passaporte e uma passagem para o aero­porto Dulles, sem ser apanhado no caminho.

— Vá a Amsterdã. Thorbecke o ajudará.

— Obrigado, René. Eu queria contar com você e você não me desapontou. Significa muito para mim. Significa minha vida.

— Ainda não está em Washington, meu amigo. Mas telefone quando chegar lá, não importa a hora.

— Vou telefonar. Obrigado, mais uma vez.

Joel desligou, colocou o bloco de notas e a caneta no bolso e foi até o balcão. Enquanto a telefonista fazia as contas do quanto ele tinha de pagar, lembrou-se do item que tinha marcado com o número 2 na lista. Sua pasta, com os dossiês e os nomes dos ho­mens que tomavam decisões no Pentágono e no Departamento de Estado. Das Rektorat. Graças a uma extraordinária omissão de Leifhelm, teria Connal conseguido escondê-la em algum lugar? Te­ria sido encontrada, talvez por um empregado da estalagem? Con­verse disse à telefonista que lhe estendia a conta:

— Existe um lugar chamado Das Rektorat. É um hotel no campo — não tenho certeza de onde fica, mas gostaria de telefonar e falar com o gerente. Ouvi dizer que ele fala inglês.

— Sim, senhor, Das Rektorat tem esplêndidas acomodações, se tiver lugar.

— Não estou querendo fazer reserva. Um amigo meu hospe­dou-se lá na semana passada e pensa que deve ter deixado algo de muito valor no quarto. Pediu que eu verificasse por ele, para falar com o gerente. Se eu encontrar o número, quer fazer a ligação e chamá-lo ao telefone? Sinto dizer que não falo alemão; provavel­mente vou acabar falando com o chefe da cozinha.

— Certamente, senhor — respondeu a mulher, sorrindo. — Será mais fácil se eu procurar o número. Volte à cabine sete e eu o chamo. Pode pagar as duas ligações quando terminar.

Dentro da cabine de vidro Joel acendeu um cigarro, pensando no que ia dizer. Mal teve tempo de formular as palavras quando o telefone tocou.

— Está na linha o Vorsteher - o gerente - do Das Rektorat, senhor — disse a telefonista. — E ele fala inglês.

— Obrigado. - A telefonista saiu da linha. - Alô!

— Sim, em que posso ajudá-lo, senhor?

— Sou um amigo americano do comandante Connal Fitzpatrick, oficial chefe jurídico da base naval de San Diego, Califórnia. Ele hospedou-se no hotel a semana passada.

— Sim, senhor. Sentimos muito que não pudesse ficar mais tempo conosco, mas tínhamos uma reserva anterior.

— Oh? Ele partiu inesperadamente?

— Eu não diria isso. Falei com ele de manhã e acredito que compreendeu a situação. Eu próprio chamei o táxi.

— Estava sozinho quando partiu?

— Sim, senhor.

— Então, se me disser para que hotel ele foi, posso verificar lá também.

— Verificar, senhor?

— O comandante perdeu uma das suas pastas, de couro, com fechadura de segredo. O conteúdo só tem valor para ele, mas desejo muito encontrá-la. Foi presente da mulher dele, eu acho. Por acaso a achou?

— Não, senhor.

— Tem certeza? O comandante tem o hábito de esconder seus papéis legais, às vezes debaixo da cama ou em um armário.

— Não deixou nada aqui, senhor. O quarto foi examinado e limpo pelo nosso pessoal.

— Talvez alguém o tenha visitado e apanhado a pasta errada. — Converse sabia que estava pressionando demais, mas não havia razão para que não o fizesse.

— Não recebeu nenhuma visita — o alemão fez uma pausa. — Um momento, lembro-me agora.

— Sim?

— Diz uma pasta, dessas geralmente chamadas de pasta de executivo?

— Sim!

— Ele a levou. Estava com ela na mão quando partiu.

— Oh... — Joel tentou se recobrar rapidamente. — Então, se me disser o endereço que ele deixou, o hotel para onde foi.

— Sinto muito, senhor. Não deixou nenhum endereço.

— Alguém deve ter feito uma reserva para ele! Hotéis estão difíceis em Bonn!

— Por favor, senhor. Eu mesmo me ofereci para tentar, mas ele recusou minha ajuda — um pouco rudemente, devo dizer.

— Sinto muito. — Joel estava aborrecido por ter perdido o controle. — Os papéis legais eram importantes. Então não tem idéia de para onde ele foi?

— Mas eu tenho, senhor, se quisermos nos divertir. Fiz ques­tão de perguntar. Ele disse que ia para o Bahnhof, a estação de trem. Se alguém perguntasse por ele, devíamos dizer que ia dormir em um armário de bagagens. Temo que ele tenha dito isso também como um insulto.

A estação de trem! Um armário! Era uma mensagem. Fitzpatrick estava dizendo onde devia procurar! Sem dizer mais nada, Converse desligou, saiu da cabine e foi até o balcão. Pagou as duas ligações e agradeceu à telefonista; pensou em dar uma gorjeta, mas isso certamente atrairia atenção sobre ele.

— Foi muito gentil e, se for possível, queria pedir um último favor.

— Senhor?

— Onde fica a estação de trem?

— É fácil. Saindo daqui, vire à esquerda e na quarta rua à esquerda outra vez, por mais dois quarteirões. É um dos mais dis­cutidos motivos de orgulho de Bonn.

— Foi muita bondade sua.

Joel andou rapidamente pela calçada, lembrando-se constantemente de controlar o passo. Tudo dependia de controle agora, tudo. Cada movimento devia ser normal, despreocupado mesmo, nada para provocar um segundo olhar para ele. Mattilon tinha-lhe dito que tomasse um trem; Fitzpatrick lhe dissera que fosse à es­tação — um armário. Outro presságio! Começava a acreditar que presságios existiam.

Passou pelas grandes portas abertas da entrada e virou para a direita na direção dos armários onde tinha deixado a pasta antes de ir para o Alter Zoll, para se encontrar com “Avery Fowler”. No armário que tinha usado daquela vez havia uma chave e nada den­tro. Começou a examinar os armários mais próximos, dos dois lados, sem saber ao certo o que procurava, mas consciente de que devia haver alguma coisa. Achou! Duas fileiras acima, à esquerda! As iniciais eram pequenas mas claras, riscadas no metal por mão firme e forte: CF. Connal Fitzpatrick.

O advogado da Marinha tinha conseguido! Colocara os papéis explosivos onde só os dois podiam saber. Subitamente Converse sentiu-se mal. Como tirar a pasta do armário? Como ia chegar lá dentro? Olhou em volta, para a multidão de veranistas. O imenso relógio marcava duas e meia; às cinco horas os escritórios termi­navam o expediente e a multidão aumentaria. Mattilon dissera-lhe que procurasse Emmerich no horário de trabalho, quando os traba­lhadores atravessavam a fronteira de um lado para o outro, no fim do dia, e, se houvesse um trem, levaria duas horas para chegar a Emmerich. Tinha menos de meia hora para abrir aquele armário.

Na outra extremidade da cavernosa estação havia um balcão de informações. Joel dirigiu-se para ele, a mente outra vez trabalhando febrilmente, procurando as palavras que lhe forneceriam a chave. O peso incômodo do cinto com dinheiro deu-lhe esperança.

— Muito obrigado — disse ao empregado, os óculos de tarta­ruga quase na ponta do nariz, a aba do chapéu puxada para baixo. Tinham-lhe indicado um funcionário de meia-idade que falava in­glês, com uma expressão desanimada e irritada. — Eu simplesmente perdi a chave do armário em que guardei minha bagagem e preciso tomar um trem para Emmerich. A propósito, quando sai o pró­ximo?

— Ach, é sempre assim — respondeu o funcionário, consul­tando o horário. — Só complicações com o pessoal de verão. Per­dem isto, perdem aquilo; e esperam que todo o mundo os ajude! O trem para Emmerich saiu há vinte e sete minutos. Há outro daqui a dezenove Minuten, mas o seguinte sai uma hora depois.

— Obrigado. Preciso tomar o primeiro. Agora, e quanto ao armário? — Joel tirou uma nota de cem marcos alemães e levan­tou-a um pouco, até a borda do balcão. — É muito importante que eu retire minha bagagem e que tome aquele trem. Posso apertar sua mão para agradecer sua ajuda?

— É para já! — exclamou o homem, olhando para a esquerda e para a direita enquanto apertava a mão de Converse com o di­nheiro. Apanhou o telefone e discou impacientemente: — Schnell! Wir müssen ein Schliessfach òffnen. Standort zehn Auskunft! — Bateu o telefone no gancho e olhou para Joel com um sorriso esculpido nos lábios rígidos. — Um homem estará aqui imediata­mente para ajudá-lo. Sempre procuramos servir. Os Amerikanen, tão atenciosos.

Chegou o homem, sobrando por todos os lados do uniforme da estrada de ferro, olhos inexpressivos, sua autoridade duvidosa.

— Wasist?

O funcionário explicou em alemão, depois olhou outra vez para Converse.

— Ele fala um pouco de inglês, não muito bem, naturalmente, mas o suficiente, e vai ajudá-lo.

— Temos regulamentos — disse o guardião das chaves dos armários. — Mostre-me onde é.

— Feliz aniversário — disse Joel para o funcionário do bal­cão de informações.

— Não é meu aniversário, senhor.

— Como é que sabe? — perguntou Converse, sorrindo e segu­rando o braço do outro homem.

— Temos certos procedimentos — disse o burocrata da estrada de ferro, abrindo o armário com a chave-mestra. — O senhor assi­na pelo conteúdo ali no escritório.

Lá estava! A pasta estava de lado, nada quebrado, nem mesmo riscada. Joel enfiou a mão no bolso.

— Estou com muita pressa — disse, tirando uma nota de cem marcos para o homem, depois, sem hesitar, outra. — Meu trem parte dentro de alguns minutos. — Apertou a mão do homem, passando o dinheiro e perguntou calmamente, mas com expressão alegre: — Não podia dizer que foi um engano?

— Foi um engano! — respondeu com entusiasmo o homem de uniforme. — O senhor precisa tomar o trem!

— Obrigado. Você é muito gentil. Feliz aniversário.

— Was?

— Eu sei, deixe pra lá. Obrigado mais uma vez.

Olhando em volta rápida mas atentamente, esperando quase sem esperar não estar sendo vigiado, Joel foi até um banco vazio perto da parede, sentou-se e abriu a pasta — tudo estava ali. Mas não podia ficar com ela. Olhou em volta mais uma vez, sabendo o que estava procurando; encontrou. Uma papelaria, ou equivalente; devia vender envelopes. Fechou a pasta e levantou-se, certo de que alguém na loja devia falar inglês.

— Quase todos falam inglês aqui — disse a matrona atrás do balcão de papel de cartas. — É praticamente uma exigência, sobre­tudo nos meses de verão. O que deseja?

— Preciso enviar um relatório comercial para os Estados Uni­dos — respondeu Converse, com um grande envelope e um rolo de fita durex na mão direita, a pasta na esquerda -, mas meu trem parte em alguns minutos e não tenho tempo de ir até o correio.

— Há várias caixas de correio no Bahnhof, senhor.

— Preciso de selos. Não sei quanto — disse Joel desanimado.

— Se colocar o material no envelope, selar e escrever o endereço, eu peso e calculo o selo. Temos selos aqui, por conveniência, mas são mais caros do que no correio.

— Não tem importância. Queria mandar por via aérea, prefiro que vá com mais selo do que com menos.

Cinco minutos mais tarde Converse entregou à mulher presta­tiva o embrulho selado para pesar. Tinha escrito uma nota na pri­meira página do primeiro dossiê e o endereço bem claro no enve­lope. A mulher voltou com os selos necessários. Joel pagou e colo­cou o envelope no balcão, na sua frente.

— Obrigado — disse, consultando o relógio, enquanto lambia os selos apressadamente e os colava. — Por acaso sabe onde posso comprar uma passagem para... Emmerich, ou Arnhem?

— Emmerich é alemão, Arnhem é holandês. Qualquer guiché, senhor.

— Talvez não tenha tempo — disse Joel, colando o penúltimo selo. — Posso comprar no trem?

— Se tiver dinheiro eles não vão parar o trem.

— Aí está — terminara afinal. — Onde é a caixa de correio mais próxima?

— Na outra extremidade do Bahnhof.

Mais uma vez Joel consultou o relógio e mais uma vez seu peito pulsou acelerado enquanto corria para a estação; então, re­duziu o passo e olhou em volta para ver se estava sendo observado. Tinha menos de oito minutos para colocar o envelope na caixa, comprar a passagem e encontrar o trem. Dependendo das compli­cações que surgissem, talvez pudesse eliminar o segundo. Mas pagar a passagem no trem significaria conversar, talvez com um terceiro para traduzir — as possibilidades e as possíveis conseqüências eram apavorantes.

Enquanto procurava febrilmente a caixa de correio, repetia para si mesmo as palavras que tinha escrito na capa do primeiro dossiê: Não deixe — repito, não deixe — que ninguém saiba que está de posse disto. Se não tiver notícias minhas dentro de cinco dias, mande estes papéis para Nathan S. Eu telefonarei para ele se puder. Seu obediente ex-M ÁRIDO. Amor, J. Olhou então para o nome e endereço no envelope e pensou, assaltado por uma sensação dolorosa e sombria — como podia fazer isso com ela?

 

Sra. Valerie Charpentier R.F.D. 16

Dunes Ridge

Cape Ann, Massachusetts U.S.A.

 

Depois de três minutos encontrou a caixa do correio e deposi­tou o envelope, abrindo e fechando a aba da abertura para certi­ficar-se de que o envelope tinha caído lá dentro. Olhou para as placas indicativas, a escrita alemã confundindo-o, as filas na frente dos guichês desanimando-o. Sentiu-se impotente, querendo pergun­tar, mas com medo de abordar as pessoas, temendo que se lem­brassem do seu rosto.

Viu um guichê no outro lado da estação; dois casais acabavam de sair da fila — quatro pessoas que tinham mudado seus planos subitamente. Ficou só um na fila. Converse apressou-se, abrindo caminho, mais uma vez se controlando e minimizando seus movi­mentos.

— Emmerich, por favor — disse para o homem atrás do gui­chê, quando o homem à sua frente saiu. — Holanda — acrescen­tou, pronunciando com clareza.

O homem voltou-se e consultou o relógio na parede às suas costas. Então falou em alemão, com frases rápidas e guturais:

— Verstehen? — perguntou.

— Nein... Olhe! — Converse colocou três notas de cem mar­cos sobre o balcão, sacudindo a cabeça, erguendo os ombros. — Por favor, uma passagem! Eu sei, só tenho alguns minutos.

O homem apanhou duas notas, empurrando a outra para Converse. Fez o troco e apertou vários botões atrás dele; o bilhete saiu da máquina e ele o entregou a Joel.

— Danke. Zwei Minuten!

— A plataforma. Qual plataforma? Compreende? Onde7

— Wo?

— Sim, é isso! Onde?

— Acht.

— O quê? — Converse ergueu a mão direita levantando e abaixando os dedos para indicar números.

O homem respondeu, com as duas mãos para cima, cinco de­dos levantados e mais três.

- Acht! — repetiu, apontando para a esquerda de Joel.

— Oito! Obrigado. - Segurando a pasta com força, Con­verse caminhou o mais depressa que pôde, sem correr. Viu o portão além das pessoas à sua frente; um condutor dava o aviso, olhando para o relógio e afastando-se para a plataforma.

Uma mulher cheia de embrulhos chocou-se com Converse, ba­tendo no seu ombro esquerdo, os pacotes saltando dos braços dela, espalhando-se no chão. Ele tentou se desculpar entre as invectivas da mulher, palavras gritadas que atraíram a atenção dos passageiros mais próximos. Ele apanhou diversas sacolas de compras, enquanto a voz estridente da mulher elevava-se num crescendo.

— Enfie onde sabe muito bem, madame — resmungou Joel, deixando cair as sacolas e correndo para o portão de entrada. O condutor o viu e abriu o portão.

Joel sentou-se ofegante, o chapéu mole puxado para a testa. Sentia uma dor aguda no ferimento do braço esquerdo e pensou que talvez tivesse sido aberto outra vez, com o encontrão. Enfiou a mão no paletó, sentindo o volume da arma que tirara do motorista de Leifhelm. Não havia sangue e Joel fechou os olhos, aliviado.

Nem notou o homem, no outro lado da passagem, que o obser­vava.

 

Em Paris, a secretária sentada na frente da mesa de trabalho falava ao telefone em voz baixa, abafada pela mão em concha sobre o fone. Seu francês parisiense era culto, aristocrático mesmo, t— Isso é tudo — disse ela. — Tomou nota?

— Sim — respondeu o homem do outro lado da linha. — É extraordinário.

— Por quê? Por isso eu estou aqui.

— Naturalmente. Eu devia dizer que você é extraordinária.

— Naturalmente. Quais são suas instruções?

— As mais graves. Estou com medo.

— Foi o que pensei. Não tem escolha.

— Pode fazer?

— Já está feito. Vejo você no Taillevent. Oito horas?

— Use seu Galanos preto. Eu adoro.

— O Grande Spike antecipa.

— É sempre assim, minha querida. Oito horas.

A secretária desligou o telefone, levantou-se e alisou o vestido com as mãos. Abriu uma gaveta, apanhou uma bolsa a tiracolo, pôs no ombro e dirigiu-se para a porta fechada da sala do patrão. Bateu.

— Sim? — perguntou Mattilon.

— É Suzanne, monsieur.

— Entre, entre — disse René, recostando-se na cadeira quando ela entrou. — A última carta está cheia de linguagem incompreen­sível, não é?

— Absolutamente, monsieur. Só que... bem, não acho que deva dizer.

— Por que não? Se for alguma coisa imprópria, ficarei tão lisonjeado na minha idade, que provavelmente vou contar a minha mulher.

— Oh, monsieur.,.

— Não, é verdade, Suzanne, você está trabalhando aqui — há quanto tempo? — uma semana, dez dias? Pois parece que está há meses. Seu trabalho é excelente e agradeço-lhe ter preenchido a vaga.

— Sua secretária é uma amiga muito querida, monsieur. Eu não podia fazer por menos.

— Bem, eu lhe agradeço. Espero que Deus a faça ficar boa. Os jovens, hoje em dia, dirigem com tanta pressa — com tanta pressa e perigosamente. Sinto muito, o que é, Suzanne?

— Não almocei, senhor. Estava pensando se...

— Meu Deus! Que falta de atenção a minha! Acho que é culpa dos dois sócios que tomam agosto a sério e saem de férias ao mesmo tempo! Por favor, tire o tempo que quiser e insisto que me traga a conta e permita que a reembolse.

— Não é necessário, mas obrigada pelo oferecimento.

— Não é um oferecimento, Suzanne, é uma ordem. Tome bastante vinho e vamos fazer uma confusão com os clientes dos meus sócios. Agora, vá almoçar.

— Obrigada, monsieur. — Suzanne foi até a porta, entreabriu-a e parou. Virou a cabeça e viu que Mattilon estava absorto na leitura. Fechou a porta silenciosamente, tirou uma grande pistola da bolsa, com um silenciador adaptado ao cano. Voltou-se lenta­mente e caminhou para a mesa.

O advogado ergueu os olhos:

— O quê?

Suzanne atirou quatro vezes em rápida sucessão. René Matti­lon caiu para trás, a cabeça esfacelada do olho direito à fronte esquerda. O sangue escorreu pelo seu rosto sobre a camisa branca.

 

— Onde diabo você esteve? — exclamou Valerie ao telefone. — Estou tentando encontrá-lo desde cedo!

— Esta manhã — disse Lawrence Talbot —, quando ouvi as notícias, achei que devia tomar o primeiro avião para Washington.

— Você não acredita no que estão dizendo? Não pode acre­ditar!

— Acredito, e tem mais, sinto-me responsável. É como se, involuntariamente, eu próprio tenha puxado o gatilho, e de certa forma, foi exatamente o que aconteceu.

— Pelo amor de Deus, Larry, explique isso.

— Joel me telefonou de um hotel em Bonn — mas ele não sabia o nome. Não parecia racional, Val. Num momento estava calmo, no outro gritando e afinal admitiu que estava confuso e assustado. Falou — quase o tempo todo incoerentemente — con­tando uma história incrível de ter sido capturado e detido em uma casa de pedra na floresta, e como escapou, escondendo-se no rio, passando despercebido por guardas e patrulhas e como matou um homem que ele disse ser um “observador avançado”. Gritava que tinha de fugir, que homens estavam à sua procura, nos bosques, na margem do rio... Alguma coisa aconteceu com ele. Voltou aos dias terríveis de prisioneiro de guerra. Tudo o que ele diz, tudo o que descreve é uma variação daquelas experiências — a dor, a tensão, a fuga para salvar a vida, através das florestas e rios. Ele está doente, minha querida, e esta manhã tive a prova terrível.

Valerie sentiu um vazio na garganta, o vácuo súbito e terrível no peito. Não podia pensar, só podia reagir às palavras.

— Por que disse que de certa forma foi responsável, que pu­xou o gatilho?

— Eu o aconselhei a procurar Peregrine. Tentei convencê-lo de que Peregrine ia ouvi-lo, que não era quem Joel pensava.

— Quem Joel pensava? O que foi que Joel disse?

— Pouca coisa com sentido. Falou delirantemente sobre gene­rais e marechais-de-campo e uma obscura teoria histórica que reúne todos os comandantes das várias guerras e dos vários exércitos, num esforço combinado para controlar governos. Não estava lú­cido. Fingia estar, mas cada vez que eu questionava alguma decla­ração sua ou fazia uma pergunta sobre um ponto obscuro na estó­ria, ele explodia e dizia que não tinha importância, ou que eu não estava ouvindo, ou que eu era muito obtuso para compreender. Mas, no fim, admitiu que estava terrivelmente cansado e confuso e o quanto precisava dormir. Foi quando insisti sobre Peregrine, mas Joel não confiava nele. Sua hostilidade era devida, segundo ele, ao fato de ter visto o carro de um general alemão na embaixada e, não sei se você sabe, Peregrine foi um oficial destacado na Segunda Guerra Mundial. Expliquei com toda a paciência e firmeza que Peregrine não era um “deles”, que não era amigo dos militares... Obviamente, eu falhei. Joel o procurou, marcou um encontro e o matou. Eu não tinha idéia do quanto ele está doente.

— Larry — começou Valerie falando devagar, com voz fraca. — Ouço tudo o que diz, mas não soa verdadeiro. Não que não acredite em você — Joel disse uma vez que você era um homem embaraçosamente honesto —, mas alguma coisa está faltando. O Converse que conheço e com quem vivi durante quatro anos jamais distorceria os fatos para provar abstrações nas quais ele acredita. Mesmo quando estava infernalmente zangado não era capaz de fazer isso. Eu disse que ele daria um péssimo pintor porque não podia distorcer uma forma para que se adaptasse a um conceito. Não estava nele, e acho que ele explicou. A oitocentos quilômetros por hora, disse ele, você pode confundir uma sombra no oceano com um porta-aviões se seus instrumentos não estiverem funcio­nando.

— Está me dizendo que ele não mente.

— Estou certa que mente — estou certa que mentiu —, mas nunca em coisas importantes. Simplesmente, não está nele.

— Isso foi antes de ficar doente, violentamente perturbado. Ele matou aquele homem em Paris, admitiu para mim.

Valerie soltou uma exclamação abafada:

— Não!

— Sim, eu sinto muito. Como matou Walter Peregrine.

— Por causa de uma obscura teoria histórica? Está tudo erra­do, Larry!

— Dois psiquiatras do Departamento de Estado explicam, mas com frases que eu na certa confundiria se tentasse repetir. “Retrogressão latente progressiva”, acho que foi uma delas.

— Idiotice!

— Mas você pode estar certa em uma coisa. Genebra. Lem­bra-se que disse que tudo estava ligado a Genebra?

— Sim, lembro-me. E o que tem Genebra?

— Foi onde começou, todos em Washington concordam com isso. Não sei se você leu os jornais...

— Só o Globe; entregam em casa. Não saí de perto do tele­fone.

— Era o filho de Jack Halliday — na verdade, enteado. O advogado morto em Genebra. Parece que foi um líder importante do movimento pacifista, nos anos 60, e era o oponente de Con­verse na fusão. Combinaram um encontro no café da manhã, antes da reunião. A teoria é que ele provocou Joel, e pode-se presumir que tenha sido brutal, pois tinha a reputação de ir diretamente à jugular do adversário.

— Por que ele faria isso? — perguntou Val, os nervos tensos agora de sobreaviso.

— Para afastar Joel. Para distraí-lo. Lembre-se, era um negó­cio de milhões e o advogado que se saísse melhor ganharia um bocado — teria uma fila de clientes em Wall Street à procura dos seus serviços. Há mesmo indícios de que Halliday conseguiu.

— Que indícios?

— A primeira parte é de natureza técnica, portanto não ten­tarei explicar, tratava-se de uma transferência de ações com direito a voto que, sob certas condições isoladas de mercado, daria ao cliente de Halliday certa força, além do que eles pretendiam. Joel aceitou; acho que em condições normais não teria aceito.

— Normais? Qual é a outra parte?

— O comportamento de Joel na conferência. Segundo os re­pórteres — entrevistaram todos os presentes —, ele não parecia o mesmo, distraído, alguns disseram agitado. Advogados dos dois lados comentaram o fato de ele se manter afastado durante todo o tempo, de pé ao lado da janela, olhando para fora, como se espe­rasse alguma coisa. Sua concentração estava tão deficiente que as perguntas feitas a ele tinham de ser repetidas e, ainda assim, parecia não compreendê-las. Seu pensamento estava em outro lugar qual­quer, em alguma coisa que o consumia.

— Larry! — gritou Valerie. — O que está dizendo? Que Joel teve alguma coisa com a morte desse Halliday?

— Não podemos descartar a possibilidade — disse Talbot tristemente. — Psicologicamente e à luz do que as pessoas viram na antesala onde Halliday morreu.

— O que foi que elas viram? — murmurou Valerie. — O jornal diz que Joel amparou a cabeça dele.

— Infelizmente, há mais do que isso, minha querida. Eu li os relatórios. De acordo com um recepcionista e dois outros advoga­dos, houve uma violenta troca de palavras entre os dois, antes de Halliday morrer. Ninguém sabe ao certo o que disseram, mas todos concordam que parecia uma discussão, Halliday agarrado às lapelas de Joel, como se o estivesse acusando. Mais tarde, quando foi interrogado pela polícia de Genebra, Joel afirmou que não houve conversa coerente, apenas as palavras histéricas de um homem ago­nizante. O relatório policial diz que ele não foi uma testemunha cooperativa.

— Meu Deus, ele provavelmente estava em estado de choque! Sabe o que ele passou — aquele homem morrendo nos seus braços deve ter sido uma experiência traumática.

— Sem dúvida, é uma suposição após o fato, Valerie, mas tudo deve ser examinado — acima de tudo, o comportamento de Joel.

— O que eles pensam que Joel fez? Qual é a teoria agora? Que Joel saiu para a rua, viu alguém que servia e o contratou para matar um homem? Realmente, Larry, é mais do que absurdo.

— Há mais perguntas do que respostas, naturalmente, mas o que aconteceu — o que sabemos que aconteceu — não tem nada de absurdo. É trágico.

— Está certo, está certo — disse Valerie, falando rapidamente. — Mas por que ele faria isso? Por que queria matar Halliday? Por quê?

— Acho que é óbvio. Como Joel devia desprezar um homem como Halliday! Um homem que ficou em casa a salvo, que con­denava e ridicularizava tudo o que homens como Joel tiveram de suportar, chamando-os de capangas, assassinos e lacaios — e sacri­fícios desnecessários. Com os seus comandantes “odiados”, os Hallidays deste mundo deviam representar tudo o que ele mais detestava. Um grupo mandando homens para a batalha, para serem feridos, mortos, capturados... torturados; o outro zombando de tudo o que tinham sofrido. Seja lá o que Halliday disse naquele café da manhã deve ter feito alguma coisa se soltar na mente de Joel.

— E você acha — disse Valerie em voz baixa, as palavras ecoando na sua garganta — que por isso ele queria Halliday morto?

— Vingança latente. É a teoria que prevalece, o consenso, se quiser.

— Eu não “quero”. Porque não é verdade, não pode ser.

— Esses homens são especialistas altamente qualificados, Val, doutores das ciências do comportamento. Analisaram todos os relatórios e acreditam que há um padrão. Esquizofrenia instantânea, provocada por choque.

— Isso é muito impressionante. Deviam bordar as palavras nos seus bonezinhos de beisebol porque só aí ficaria bem.

— Acho que você não está em condições de discutir...

— Estou na melhor das condições — interrompeu a ex-Sra. Converse. — Mas ninguém se deu ao trabalho de perguntar a mim, ao pai do Joel ou à irmã dele — que, por coincidência, pertenceu ao grupo de protesto de que vocês tanto falam. De modo nenhum Halliday poderia ter provocado Joel como dizem — no café da manhã, no almoço ou no jantar.

— Não pode dizer isso, minha querida. Você simplesmente não sabe.

— Eu sei, Larry. Porque Joel achava que os Hallidays deste mundo, como você disse, estavam certos. Nem sempre achava ma­ravilhoso o modo como tinham feito as coisas, mas achava que estavam certos!

— Não acredito. Não depois do que ele passou.

— Então procure outra fonte — se é assim que você chama. Um daqueles preciosos relatórios dos sumos sacerdotes das ciências do comportamento convenientemente ignorados. Quando Joel vol­tou, fizeram uma parada para ele na Base da Força Aérea Travis, na Califórnia, e lhe deram tudo, menos as chaves dos apartamentos de todas as starlets de Los Angeles. Estou certa?

— Lembro-me que houve uma cerimônia militar de boas-vin­das para o homem que tinha escapado em circunstâncias extraordi­nárias. O secretário de Estado foi recebê-lo na porta do avião, na verdade.

— Verdade absoluta, Larry. E depois o quê? Onde mais fize­ram uma parada para ele?

— Não sei aonde quer chegar.

— Leia os relatórios. A lugar nenhum. Ele não consentiu. Quantos convites ele teve? De quantas cidades e companhias e organizações — todas pressionadas como o diabo pela Casa Branca? Cem, quinhentas, cinco mil? Pelo menos isso, Larry. E sabe quantas ele aceitou? Diga-me, Larry, você sabe? Aqueles sumos sacerdotes falaram sobre isso?

— Não era relevante.

— Naturalmente que não. Confundia o padrão; distorcia as formas que Joel Converse se negava a distorcer. A resposta é zero, Larry. Ele se recusou, recusou todos os convites! Achava que um dia a mais naquela guerra era um dia a mais no inferno. Recusou-se a emprestar seu nome.

— O que está tentando dizer? — disse Talbot severamente.

— Halliday não era seu inimigo, não como vocês estão ten­tando pintá-lo. As pinceladas não existem. Não estão na tela.

— Suas metáforas são demais para mim, Val. O que está ten­tando me dizer?

— Que alguma coisa cheira mal, Larry. Está tão podre que mal posso respirar, mas o fedor não vem do meu ex-marido. Vem de vocês todos.

— Tenho de fazer objeção a isso. Tudo o que quero é ajudar, pensei que soubesse disso.

— Eu sei, eu sei. Não é culpa sua. Adeus, Larry.

— Telefono assim que souber alguma coisa.

— Faça isso. Até logo — Valerie desligou e consultou o relógio. Estava na hora de ir ao aeroporto Logan, em Boston, para apanhar Roger Converse.

 

“Kötn in zehn Minuten!” anunciou a voz no alto-falante.

Converse estava sentado perto da janela, o rosto encostado no vidro, vendo as cidades que passavam, a caminho de Colônia -Bornheim, Wesel, Brühl. Três quartos do trem estavam ocupados, o que significava que cada banco duplo tinha pelo menos um ocupante. Quando saíram da estação, uma mulher estava sentada ao lado de Converse, uma suburbana bem vestida. Alguns bancos atrás deles outra mulher — uma amiga — a viu. Ela falou com Joel. A breve atenção provocada quando ela se dirigiu a ele e Joel não compreendeu o que a mulher dizia, aborreceu-o. Levantou os ombros e sacudiu a cabeça; ela suspirou impaciente, levantou-se irritada e foi sentar-se ao lado da amiga.

Ela deixara um jornal no banco, o jornal com a fotografia de Joel na primeira página. Ele olhou para a fotografia longamente, até perceber o que estava fazendo e imediatamente mudou de lugar, passando para perto da janela, apanhando o jornal e dobrando-o de modo que seu rosto ficasse escondido. Olhou em volta cautelosamente, com a mão casualmente sobre os lábios, a testa franzida em atitude pensativa, como quem não vê nada. Mas tinha visto outro par de olhos que o estudavam — fixos nele enquanto o ho­mem parecia absorto na conversa com a mulher ao seu lado. Os olhos se desviaram, e Converse teve uma fração de segundo para observar o rosto do homem, antes que este se voltasse para a janela. Conhecia aquele rosto; tinha falado com aquele homem, mas não se lembrava onde, só que tinham conversado. Era irritante e ao mes­mo tempo assustador. Onde tinha sido? Quando? O homem o co­nhecia, sabia seu nome?

Nesse caso, não fizera nada a respeito. Concentrou-se na mulher, a conversa ainda animada. Joel tentou lembrar-se do homem todo; talvez isso ajudasse. Era grande, não tanto em estatura como em envergadura e aparentemente jovial, mas Converse sentia uma certa revolta nele. Agora ou antes? Antes, quando? Onde? Dez minutos mais ou menos tinham se passado desde a troca de olhares e Joel ainda não conseguira levantar as camadas da memória. Es­tava bloqueado e com medo.

Wir kommen in zwei Minuten in Köln an. Bitte achten Sie auf Ihr Gepäck!

Grande número de passageiros levantou-se, ajeitando paletós e saias, apanhando a bagagem. Quando o trem diminuiu a marcha, Converse encostou o rosto no vidro frio da janela. Deixou que a mente relaxasse sem focalizar nada, esperando que os minutos se­guintes lhe dissessem o que devia fazer.

Os minutos se passaram, o alheamento continuou, a mente um vazio, enquanto passageiros desembarcavam e outros chegavam, muitos carregando pastas, algumas iguais à que ele tinha jogado numa lata de lixo em Bonn. Gostaria de tê-la conservado, mas não podia. Era presente de Valerie, como a caneta de ouro, as duas lembranças daqueles dias melhores... Não, não melhores, disse Joel para si mesmo, apenas diferentes. Nada era melhor ou pior, não havia comparações quando se tratava de comprometimentos. O compromisso continuava ou não. O deles não continuou.

Então por quê, perguntava a si mesmo, quando o trem parou em Colônia, enviara os dossiês para Val ? Sua resposta era a própria essência da lógica, pensou. Ela saberia o que fazer; os outros não. Talbot, Brooks e Simon estavam fora. Sua irmã, Virginia, mais fora ainda. Seu pai? O piloto garotão com uma noção de respon­sabilidade que não passava da ponta da asa do avião? Não podia ser o piloto. Ele amava o velho Roger, mais do que suspeitava que Roger o amasse, mas o piloto jamais conseguia ficar com os pés no chão. Terra firme significava relacionamentos e o velho Roger jamais soube o que fazer com eles, nem mesmo com a esposa que afirmava ter amado carinhosamente. Os médicos disseram que ela morrera de oclusão da coronária; o filho achava que fora por omis­são. Roger não estava na cena, tinha saído dela há semanas. Assim, restava Valerie... sua ex-mulher Valerie.

— Entschuldigen Sie. Ist dieser Platz frei? — A voz que inter­rompeu seus pensamentos pertencia a um homem mais ou menos da sua idade, com uma pasta de couro na mão.

Joel assentiu com a cabeça, supondo que ele se referia ao lugar vazio ao seu lado.

— Danke — disse o homem, sentando-se com a pasta de couro no chão aos seus pés. Tirou um jornal de debaixo do braço es­querdo e abriu-o. Converse ficou com o corpo tenso ao ver sua fotografia, sua face séria olhando de frente. Voltou-se para a jane­la, puxando a aba do chapéu mais para baixo, procurando parecer um viajante cansado tentando dormir. Minutos depois, quando o trem começou a se mover, convenceu-se de que tinha conseguido.

— Werrückt, nicht wahr? — disse o homem da pasta, lendo o jornal.

Joel moveu-se, abriu os olhos sob a aba do chapéu.

— Umm?

— Schade — acrescentou o homem, a mão direita largando o jornal e fazendo um gesto de desculpa.

Converse ajeitou-se virado para a janela, o frio do vidro uma âncora, os olhos fechados, a escuridão mais bem-vinda do que nunca... Não, não era verdade; lembrava-se. Nos campos havia momentos em que não tinha certeza de poder manter a fachada de força e de revolta, quando tudo o que existia nele desejava capi­tular, ouvir uma palavra amiga que fosse, ver um sorriso que signi­ficasse alguma coisa. Então vinha a escuridão e ele chorava, as lagrimas ensopando o rosto. E quando elas cessavam, a raiva estava de volta. De certo modo, as lágrimas o lavavam, o purgavam das duvidas e dos medos e o faziam inteiro outra vez. E outra vez zangado.

“Wir kommen in fünf Minuten in Dusseldorf an!”

Joel inclinou-se para a frente, o pescoço dolorido, a cabeça fria. Tinha cochilado por algum tempo, a julgar pela rigidez das omoplatas. O homem ao seu lado estava lendo e anotando um relatório ou coisa parecida, a pasta no colo, o jornal dobrado entre ele e Converse, com a fotografia para fora. O homem abriu a pasta, guardou o relatório e fechou-a. Voltou-se para Converse.

— Der Zug ist pünklich — disse, balançando a cabeça.

Joel balançou a sua também, subitamente consciente de que o passageiro, no outro lado do vagão, tinha-se levantado com a mu­lher idosa, apertava a mão dela e respondia a alguma coisa que ela lhe perguntara. Mas não olhava para ela; seus olhos estavam em Converse. Joel afundou no banco, reassumindo a aparência do via­jante exausto, a aba do chapéu puxada até os aros dos óculos. Quem era aquele homem? Se se conheciam, como ele podia ficar em silêncio dadas as circunstâncias? Como podia apenas olhar para ele uma vez ou outra, casualmente, e voltar a conversar com a mu­lher? Pelo menos, devia trair algum alarme ou medo, ou, no míni­mo, excitação por tê-lo reconhecido.

O trem diminuiu a marcha, aumentando o som metálico e ras­pante das placas de metal contra as imensas rodas; logo iam co­meçar os apitos anunciando a chegada a Dusseldorf. Converse per­guntou a si mesmo se o alemão ao lado ia saltar. Fechara a pasta mas não fez nenhum movimento para se levantar e entrar na fila dos que iam desembarcar. Apanhou o jornal e abriu-o, misericor­diosamente, numa página de centro.

O trem parou, passageiros desembarcaram e outros subiram a bordo — a maioria mulheres com embrulhos e sacolas de plástico com os logotipos de lojas caras e nomes famosos na indústria da moda. O trem para Emmerich era um trem suburbano, um “da rota do casaco de visão” como Val costumava chamar os trens da tarde que iam de Nova Iorque a Westchester e Connecticut. Joel viu o homem do outro lado da passagem acompanhar a mulher até o fim da fila, apertando a mão dela mais uma vez solicitamente antes de voltar ao seu lugar. Converse virou mais uma vez para a janela, a cabeça inclinada e fechou os olhos.

— Bitte, können wir die Plätze tauschen? Dieser Herr ist ein Bekannter. Ich sitze in der riächstem Reine.

— Sicher, aber er schiäftja doch nur — disse o companheiro de banco de Converse, rindo e levantando-se.

— Ich wecke ihn. — O homem do outro lado da passagem tinha trocado de lugar com ele. Sentou-se ao lado de Joel.

Converse espreguiçou-se, cobrindo o bocejo com a mão es­querda, a direita escorregando para dentro do paletó, para a coro­nha da arma que tirara do motorista de Leifhelm. Se fosse preciso, ele encostaria a arma naquele seu companheiro de viagem que lhe parecia tão familiar. O trem começou a andar, o ruído crescendo de volume; esse era o momento. Joel voltou-se para o homem, os olhos inexpressivos apenas com uma sombra de reconhecimento.

— Imaginei que devia ser você — disse o homem, obviamente um americano, com um sorriso largo mas pouco atraente.

Converse estava certo, havia uma certa sordidez no homem obeso; sentiu-a na voz, que já tinha ouvido antes — mas não se recordava onde.

— Tem certeza? — perguntou Joel.

— Naturalmente que tenho. Mas aposto que você não, não é?

— Francamente, não.

— Vou dar uma pista. Sempre sou capaz de reconhecer um bom e velho ianque! Em todos esses anos pra lá e pra cá vendendo minha velha linha de similares, quase originais, só cometi um ou dois erros.

— Copenhague — disse Converse, lembrando-se da compa­nhia desagradável do homem quando esperavam a bagagem. — E um dos seus erros foi em Roma, quando pensou que um italiano fosse um hispânico da Flórida.

— Então, lembrou! Aquele maldito italiano me enganou, pen­sei que fosse um spik com montes de dinheiro — provavelmente do comércio de drogas, sabe o que quero dizer? Sabe como são, como dominam o mercado, desde os Keys... Diga-me uma coisa, como é mesmo o seu nome?

— Rogers — respondeu Joel, pela simples razão de ter pensa­do no pai há pouco. — Você fala alemão — acrescentou, afir­mando.

— Droga, eu tenho de falar. A Alemanha Ocidental é talvez nosso maior mercado. Meu velho era um boche; só falava alemão.

— O que você vende?

— As melhores imitações da Sétima Avenida, mas não pense que sou um judeu. Você tem um Balenciaga, certo? Muda alguns botões e algumas pregas, põe um jabô talvez onde o latino não tem. Então manda o molde para o Bronx e Jersey, Miami e Pensilvânia, onde eles põem uma etiqueta como “Valenciana”, por exemplo. Então vende por atacado a um terço do preço e todo o mundo fica feliz — menos o latino. Mas não pode fazer droga nenhuma que compense o tempo perdido nos tribunais porque o negócio é, em sua maior parte, legal.

— Eu não teria tanta certeza sobre isso.

— Bem, o cara teria de arar uma estrada de chazzerai para provar que não é legal.

— Infelizmente é verdade.

— Ei, não me interprete mal! Nós fornecemos a mercadoria e um serviço para milhares de encantadoras mulherezinhas que não podem comprar aquela droga de Paris. E ganho o meu pão, velho ianque. Veja aquela velha enrugada com quem eu estava falando; ela é dona de uma meia dúzia de lojas em Colônia e Düsseldorf e agora pretende abrir algumas em Bonn. Pois eu lhe digo, eu a conquistei...

As cidades e pequenos centros continuavam passando. Lever-kusen... Lagenfeld... Hilden, e o vendedor continuava, uma piada de mau gosto depois da outra, a voz irritante, os comentários repe­titivos.

“Wir kommen in fünf Minuten in Essen an!” Aconteceu em Essen.

A excitação veio primeiro, mas não de súbito. Cresceu de vo­lume como uma imensa onda que ganha força ao se aproximar da costa escarpada, um crescendo contínuo que culmina com a colisão contra as rochas. Os passageiros que embarcavam pareciam falar todos ao mesmo tempo excitados, as cabeças se voltando para trás e para os lados, pescoços esticados para ouvir as vozes que vinham de vários rádios transistores. Alguns deles encostados nos ouvidos dos donos, outros com o volume no máximo, atendendo ao pedido dos passageiros. Quanto mais o trem se enchia, mais alto falavam, mas as conversas eram quase abafadas pelas vozes metálicas dos locuto­res de rádio. Uma moça magra com uniforme de escola particular, os livros em uma sacola de lona e um rádio estridente na mão esquerda, sentou-se no banco na frente de Joel e do vendedor. Os passageiros agruparam-se em volta dela, gritando, aparentemente pedindo à moça que aumentasse o volume do rádio.

— O que está acontecendo? — perguntou Converse, voltando-se para o homem obeso.

— Espere um pouco! — respondeu ele, inclinando-se para a frente com dificuldade e erguendo-se parcialmente do banco. — Deixe-me ouvir.

Houve uma calma súbita, mas só entre as pessoas que estavam em volta da moça, que agora segurava o rádio no alto com o braço erguido. Então, a sonância da estática e Converse ouviu duas vozes, além da voz do locutor, algo que vinha de longe. E então as pa­lavras faladas em inglês; quase não se entendia, porque o intérprete apressava-se a passar para o alemão.

— Um inquérito completo... Eine vollständiges Verkör... en­volvendo todas as forças armadas... sie erfordert alle Sicherheits­kräfte... foi ordenado... wurde veranlasst.

Converse agarrou o paletó do vendedor.

— O que foi... diga-me o que aconteceu? — perguntou rapidamente.

— Aquele doido atacou outra vez!... Espere, eles estão recapi­tulando. Deixe-me ouvir isso.

Outra vez a estática e o locutor excitado voltou. Uma sensação terrível de tragédia assaltou Joel, enquanto a investida em alemão estalava no rádio, cada frase mais excitada do que a outra. Final­mente terminou a narração gutural. Os passageiros endireitaram as costas nos bancos. Alguns se levantaram, aproximando-se, as vozes em contraponto, a conversa excitada recomeçando. O vendedor sentou-se, ofegante, aparentemente não por causa das notícias alar­mantes, mas por puro desconforto físico.

— Quer por favor me dizer do que se trata? — perguntou Joel, controlando a ansiedade.

— Sim, naturalmente — disse o homem gordo, tirando um lenço do bolso e enxugando a testa. — Este mundo de cão está cheio de doidos, sabe o que quero dizer? Pelo amor de Deus, nunca se sabe com quem diabo se está falando! Se dependesse de mim, toda criança que nascesse vesga ou que não pudesse encontrar um seio para mamar devia ser enterrada no lixo. Estou cheio de gente esquisita, sabe o que quero dizer?

— E muito esclarecedor — agora, o que aconteceu?

— Está bem. — O vendedor guardou o lenço no bolso, afrou­xou o cinto e desabotoou os botões sobre o zíper da calça. — O soldado, o que dirige o quartel-general em Bruxelas...

— O comandante supremo da OTAN — disse Joel, completa­mente apavorado.

— É, esse mesmo. Levou um tiro, sua cabeça foi pelos ares bem no meio da maldita rua, quando estava saindo de um restau­rante na parte velha da cidade. Ele estava à paisana.

— Quando?

— Há algumas horas.

— Quem eles dizem que fez isso?

— O mesmo doido que acabou com aquele embaixador em Bonn. O maluco!

— Como sabem disso?

— Eles descobriram a arma.

— Descobriram o quê?

— A arma. Por isso não deram a notícia imediatamente; que­riam verificar as impressões digitais em Washington. É dele, e acham que a balística vai provar que foi a mesma arma que matou o como se chama...

— Peregrine — disse Converse em voz baixa, sentindo que seu pavor não era completo. A pior parte só agora começava a entrar em foco. — Como conseguiram a arma?

— Sim, bem, foi aí que pegaram aquele bandido. O soldadi­nho tinha um guarda com ele que atirou e acertou o doido... acham que no braço esquerdo. Quando o lunático segurou o braço ferido, a arma caiu da sua mão. Os hospitais e os médicos foram avisados e todas as fronteiras estão sob vigilância, todos os homens com pas­saporte americano precisam levantar as mangas, e qualquer pessoa que se pareça com ele é levada para a prisão da alfândega.

— Estão fazendo o serviço completo — disse Joel, sem outra coisa para dizer, sentindo a dor do ferimento no braço.

— Mas uma coisa a gente tem de reconhecer — continuou o vendedor, arregalando os olhos e sacudindo a cabeça num gesto obsceno de respeito. — Ele os está fazendo correr do mar do Norte ao Mediterrâneo. Recebem avisos de que foi visto em aviões em Antuérpia, Roterdã e até em Düsseldorf. São só quarenta e cinco minutos de Düsseldorf a Bruxelas, como sabe. Tenho um amigo em Munique que vai de avião a Veneza umas duas vezes por semana para almoçar. Todo lugar fica a um pulo daqui. Às vezes nós nos esquecemos disso, sabe o que que quero dizer?

— Sim, eu sei. Vôos curtos... Ouviu mais alguma coisa?

— Dizem que ele pode estar indo para Paris ou Londres, ou talvez Moscou — ele pode ser um comunista, sabe? Estão vigiando os aeroportos particulares, para o caso de ter amigos — que ami­gos, hem? Um belo grupo de “píssicos” babões. Estão até comparando esse cara com o Carlos, o que chamam de “chacal”, o que acha disso? Dizem que, se for para Paris, os dois podem se unir e haverá mais algumas execuções. Mas esse Converse tem um método próprio. Ele atira na cabeça. Que belo escoteiro, hem?

Joel ficou tenso. O corpo todo rígido, uma dor aguda e oca no centro do peito. Era a primeira vez que ouvia seu nome dito assim displicentemente por um estranho, identificando-o como o assassino psicopata, um assassino caçado por governos cujas patrulhas de fronteira estavam examinando todo o mundo em todos os postos de controle — aeroportos particulares vigiados, uma batida policial em progresso. Os generais de Aquitânia tinham trabalhado com pre­cisão, até as impressões digitais numa arma e o ferimento no seu braço. Mas a hora — como tinham ousado? Como sabiam que ele não estava em alguma embaixada, pedindo asilo temporário até organizar sua defesa? Como podiam correr o risco?

Então, compreendeu e teve de apertar os pulsos com força para se controlar, para deter o pânico. O telefonema para Mattilon!

O telefone de René naturalmente estava “grampeado” pela Sûreté ou pela Interpol e com que urgência os informantes de Aqui­tânia haviam espalhado a notícia! Oh, Cristo! Nenhum dos dois tinha pensado nisso! Eles sabiam onde ele estava! E, não importa para onde fosse, seria apanhado! Como o vendedor tinha dito mui­to bem: “Todo lugar fica a um pulo daqui.” Um homem podia voar de Munique para Veneza para almoçar e estar de volta ao seu escritório para um encontro às três e meia. Outro homem podia matar em Bruxelas e estar em um trem para Düsseldorf, quarenta e cinco minutos depois. As distâncias eram medidas em meias horas. Partindo de Bruxelas, “algumas horas atrás” significavam um lar­go círculo de cidades e muitas fronteiras. Estariam os caçadores naquele trem? Podiam estar, mas Converse não via como poderiam saber qual trem ele tomaria. Seria mais fácil e economizaria tempo esperá-lo em Emmerich. Precisava pensar. Precisava agir.

— Desculpe-me — disse Converse levantando-se. — Preciso ir ao banheiro.

— Você tem sorte. — O vendedor moveu as pernas pesadas, segurando os joelhos da calça para dar passagem a Joel. — Eu mal consigo entrar naquelas caixinhas. Sempre dou uma urinada an­tes...

Joel caminhou pela passagem. Parou bruscamente, engolindo em seco, tentando decidir se continuava ou voltava para trás. Dei­xara o jornal no banco, e bastava virar a página para se ver a fotografia. Tinha de continuar; qualquer mudança de movimento, por menor que fosse, atrairia atenção. Seu objetivo não era o ba­nheiro dos homens, mas a passagem entre os dois carros; precisava vê-la. Muitas pessoas abriam a porta e entravam, aparentemente procurando alguém que esperavam encontrar no trem. Ele ia exa­minar a fechadura do banheiro e prosseguir caminho.

Ficou parado na passagem balouçante, sentindo a vibração, e estudou a porta de metal. Era uma porta de saída padrão, com duas partes; a parte de cima tinha de ser aberta em primeiro lugar, para depois abrir a parte inferior e empurrá-la, deixando então à mostra os degraus. Era tudo o que precisava saber.

Voltou ao seu lugar, e viu com alivio que o vendedor estava refestelado no banco, os lábios grossos entreabertos, os olhos fechados, um ronco sibilante e fino emanando da garganta. Converse levantou um pé, depois o outro, cuidadosamente, pulando as per­nas do homem e sentou-se. O jornal não fora tocado. Outro alívio.

Diagonalmente acima e na sua frente, viu um pequeno receptáculo, no canto curvo do trem com o que parecia ser uma coleção de horários de trem, abertos em leque. Pedaços de papel ignorados porque todos aqueles passageiros sabiam para onde estavam indo. Joel levantou-se, estendeu o braço e apanhou um, desculpando-se com vários movimentos de cabeça com a moça que estava sentada embaixo dos horários. Ela riu.

Oberhausen... Dinslaken... Voerde... Wesel... Emmerich. Wesel. A última parada antes de Emmerich. Não fazia a míni­ma idéia da distância entre Wesel e Emmerich, mas não tinha esco­lha. Desceria do trem em Wesel, não com os outros passageiros, mas sozinho. Desapareceria em Wesel.

Sentiu uma leve aceleração sob o trem, seus instintos de piloto dizendo que era o perímetro externo de uma tomada de campo, a parte final para o toque de solo. Ficou de pé e mais uma vez pulou cuidadosamente as pernas do homem gordo, para chegar à passa­gem entre os bancos; no último segundo, o vendedor bufou, mu­dando de posição. Entrecerrando os olhos sob a aba do chapéu, Joel olhou em volta displicentemente, como que incerto da direção a tomar. Moveu a cabeça lentamente; até onde podia ver, ninguém estava prestando a mínima atenção a ele.

Caminhou com passos cansados e cuidadosos, um viajante exausto à procura de alívio. O círculo branco sob a maçaneta dizia BESETZT. Sua primeira manobra tinha base de credibilidade; o banheiro estava ocupado. Voltou-se para a porta pesada do vagão, abriu-a e, saindo, atravessou a área estreita e vibrante que ligava os dois vagões, para a outra porta. Abriu-a, mas em vez de entrar no vagão deu um longo passo para a frente e depois se abaixou, retornando à passagem, onde não havia luz. Ficou de pé, as costas contra o anteparo externo e lentamente se arrastou para perto da janela de vidro grosso. À sua frente estava o interior do carro traseiro, e virando a cabeça tinha uma visão perfeita do carro da frente. Esperou, atento, voltando-se a todo momento, à espera de que alguém abaixasse um jornal ou interrompesse uma conversa olhando para seu lugar vazio.

Ninguém fez nada disso. A excitação sobre a notícia do crime em Bruxelas tinha-se acalmado, como o movimento de quase-pânico em Bonn quando souberam da morte do embaixador. Evidente­mente, muitos conversavam ainda sobre os dois crimes, sacudindo a cabeça e fazendo conjeturas sobre as implicações e futuras possi­bilidades, mas as vozes estavam mais baixas; a crise tinha passado. Afinal, não afetava basicamente aqueles cidadãos. Era um ameri­cano contra outro americano. Havia até mesmo uma certa satis­fação maldosa no ar; o tiroteio no O.K. Corral adquiria nova importância. Os colonizadores eram, sem dúvida, uma raça vio­lenta.

“Wir kommen in...” A batida rápida das rodas ecoando na calota de metal abafou o aviso do alto-falante. Alguns minutos agora, pensou Joel, olhando para a porta de emergência. Quando o trem diminuísse a marcha e as filas começassem a se formar par­tindo da porta interna, ele entraria em ação.

“Wir kommen in drei Minuten in Wesel an!”

Vários passageiros dos dois carros ficaram de pé, arrumaram pastas e sacolas de compras e alinharam-se na passagem. O som áspero das rodas gigantescas significava a proximidade da aterrissa­gem. Agora.

Joel abriu a alavanca superior da porta de emergência, empur­rando aquela parte para trás; o ruído do ar era ensurdecedor. Agarrou a alça da tranca inferior, preparando-se para puxá-la assim que o chão começasse a passar mais lentamente. Era uma questão de segundos. Os sons embaixo dos vagões tornaram-se mais fortes e o sol lá fora formava uma silhueta móvel do trem. Então as palavras terríveis quebraram a dissonância e Joel ficou paralisado.

— Muito bem pensando, Herr Converse. Uns ganham, outros perdem. Você perdeu.

Joel voltou-se rapidamente. O homem que gritava para ele no pequeno compartimento de metal era o passageiro que saíra do trem em Dusseldorf, o homem delicado que sentara ao seu lado até o vendedor pedir para trocar de lugar. Na mão esquerda tinha uma arma empunhada abaixo da cintura, na direita, a pasta sempre respeitável de executivo.

— Você é uma surpresa — disse Converse.

— Espero que sim. Quase perdi o trem em Dusseldorf. Ach, andei por três carros como um louco — mas não um louco como você, ja?

— O que acontece agora? Você dispara essa arma e salva o mundo de um louco?

— Nada tão simplista, piloto.

— Piloto.

— Os nomes não têm importância, mas eu sou um coronel da Luftwaffe da Alemanha Ocidental. Pilotos só matam pilotos no ar. No solo é embaraçoso.

— É muito confortador.

— E também exagerado. Um movimento suspeito da sua parte e eu serei o herói do Solo Pátrio, tendo encurralado um assassino louco e atirado nele antes que me matasse.

— Solo pátrio? Vocês ainda dizem isso?

— Natürlich. A maioria de nós. Do pai vem a força, a mulher é apenas o veículo.

— Elas iam adorar você na aula de biologia de Vassar.

— Isso é engraçado?

— Não, apenas desconcertante — muito vagamente, nada sé­rio. — Joel tinha feito um leve movimento, apoiando as costas no anteparo, toda a sua mente, todo o seu processo de raciocínio liga­dos em “preparar”. Não tinha outra escolha senão morrer, agora ou algumas horas mais tarde. — Suponho que tem um itinerário programado para mim — perguntou, estendendo o braço esquerdo para a frente ao fazer a pergunta.

— Bem definido, piloto. Vamos descer do trem em Wesel e nós dois vamos compartilhar um telefone, minha arma firme no seu peito. Em pouco tempo um carro nos apanhará e você será le­vado...

Converse apoiou o cotovelo direito, fora da vista do alemão, no anteparo do trem, com o braço esquerdo bem visível. O homem olhou para a porta do vagão da frente. Agora!

Joel lançou-se para a arma, as duas mãos estendidas para o cano preto, e com toda a força que conseguiu reunir deu com o joelho nos testículos do homem. Quando o alemão caiu para trás, agarrou-o pelos cabelos e bateu a cabeça dele contra a dobradiça saliente da porta oposta.

Estava acabado. Os olhos do alemão estavam arregalados, apavorados, vítreos. Outro observador avançado morto, mas não era um ignorante recrutado por um governo impessoal, este era um soldado de Aquitânia.

Uma mulher gorda gritou na janela, a boca escancarada, o rosto histérico.

“Wesel...!”

O trem diminuiu a marcha e outros rostos excitados apare­ceram na janela, a multidão frenética impedindo que abrissem a porta.

Converse lançou-se pela abertura vibrante de metal em direção à porta de emergência. Agarrou a alavanca, abriu a parte inferior, batendo-a contra o anteparo. Os degraus estavam ali, sobre o casca­lho e o pixe. Respirou fundo e mergulhou para fora, dobrando o corpo para minimizar o impacto e, quando fez contato com o chão duro, rolou, rolou e rolou.

 

Ricocheteou em uma pedra, caindo entre os arbustos. Folhas áspe­ras e agressivas o envolveram, arranhando-lhe o rosto e as mãos. Todo o corpo era uma massa de contusões, o ferimento no braço esquerdo estava úmido e ardia, mas não tinha tempo nem mesmo para sentir dor. Precisava fugir; dentro de minutos toda a área estaria infestada de homens à sua procura, caçando o assassino de um oficial da Força Aérea da República Federal da Alemanha. Não era preciso muita imaginação para saber o que aconteceria a seguir. Os passageiros seriam interrogados — inclusive o vendedor — subi­tamente um jornal estaria na mão de alguém, uma fotografia seria estudada, e a conexão estava feita. Um assassino louco visto pela última vez em uma rua de Bruxelas não estava indo para Paris, Londres ou Moscou. Ele estava em um trem que saia de Bonn, passava por Colônia, Essen e Düsseldorf — e tinha matado outra vez em uma cidade chamada Wesel.

Subitamente ouviu o chamado estridente de uma buzina. Olhou para cima na direção dos trilhos; um trem que ia para o sul acelerava a marcha saindo da estação a algumas centenas de metros de distância. Então ele viu o chapéu; estava na colina, na metade do caminho. Joel arrastou-se para fora do arbusto, ficou de pé, cam­baleou e correu para apanhá-lo, recusando-se a ouvir a parte da sua mente que lhe dizia que mal podia andar. Agarrou o chapéu e começou a correr para a direita. O trem para o sul passou; Joel correu para cima, atravessou os trilhos, na direção de um velho prédio aparentemente deserto. Havia mais janelas quebradas do que intactas. Podia descansar um pouco, mas não mais do que isso; era um esconderijo muito óbvio. Em dez ou quinze minutos estaria cercado por homens com armas apontadas para todas as janelas.

Tentou desesperadamente se lembrar. Como fizera antes? Co­mo enganara as patrulhas na selva, ao norte de Phu Loc?... Posi­ções favoráveis. Fique onde pode vê-los mas eles não o possam ver! Mas naquele tempo, naquela ocasião havia árvores altas e ele era mais jovem e mais forte e podia subir nelas, escondendo-se entre os biombos verdes da folhagem espessa, apoiado nos galhos firmes. Não havia nada parecido nas vizinhanças do pátio da estação... ou talvez houvesse! À direita do prédio viu um depósito de lixo, tone­ladas de terra e de lixo empilhadas em altas pirâmides; era sua única escolha.

Ofegando, os braços e as pernas doloridos, o ferimento infla­mado, correu para a última pirâmide. Contornou-a, e começou a subir pela parte de trás, os pés escorregando na terra fofa, em pedaços de papelão, madeira e lixo. O cheiro nauseante distraiu sua atenção da dor. Continuou a arrastar-se, agarrando-se cada vez que escorregava. Se fosse preciso, mergulharia naquela sujeira. Não havia regras para a sobrevivência, e se mergulhar em uma pirâmide podre pudesse evitar que uma saraivada de balas acabasse com sua vida, assim seria.

Chegou ao topo e deitou-se de bruços, o lixo rodeando-o completamente. O suor escorria-lhe pelo rosto, fazendo arder os arranhões; as pernas e os braços estavam pesados de dor e a respiração, irregular, por causa do tremor não só dos músculos cansados, mas do medo. Olhou para baixo para a área que circundava o pátio de manobras dos trens, depois para a estação, mais adiante. O trem tinha parado e a plataforma estava repleta de gente, amontoada, espantada. Homens de uniforme gritavam ordens, tentando separar alguns passageiros — provavelmente os que estavam nos carros que foram cenário do crime, ou qualquer pessoa que soubesse alguma coisa. No estacionamento ao lado da estação estava um carro da polícia com listras azuis e brancas, a luz vermelha girando na ca­pota, o sinal de emergência. Ouviu-se uma sereia distante e segundos mais tarde uma ambulância branca entrou no estacionamento, fez uma volta e parou perto da plataforma. As portas de trás se abri­ram e dois atendentes saltaram carregando uma maca; um policial, nos degraus, gritou alguma coisa, acenando com os braços. Eles subiram a escada de metal e o acompanharam.

Um segundo carro de polícia entrou no estacionamento, os pneus cantando quando parou perto da ambulância. Dois policiais desceram dele e subiram os degraus; o oficial que havia chamado os homens da ambulância juntou-se a eles, com dois civis, um homem e uma mulher ao seu lado. Os cinco conversaram e logo depois os dois policiais voltaram ao carro-patrulha. O motorista deu marcha à ré e virou para a esquerda, acelerando, dirigindo-se para a extremi­dade sul do estacionamento, diretamente para onde estava Converse. Pararam outra vez e saíram do carro, agora com as armas nas mãos; atravessaram correndo os trilhos e desceram a rampa de cascalho e pixe, para a relva. Em poucos minutos eles voltariam, pensou Joel, agarrando a superfície áspera à altura dos ombros. Iam parar e verificar o prédio abandonado, talvez pedir reforços, mas, cedo ou tarde, iam examinar os montes de lixo.

Converse olhou para trás; viu uma estrada de terra com marcas de pneus de caminhões pesados que levava a uma cerca alta, cujo portão estava fechado por uma corrente grossa. Um homem cor­rendo pela estrada e subindo a cerca seria visto; tinha de ficar onde estava, escondido no lixo fétido.

Outro som interrompeu seus cálculos frenéticos — um som que ouvira momentos atrás. À sua direita, no estacionamento. Um ter­ceiro carro-patrulha chegou a toda velocidade, tocando a sereia, mas, em vez de dirigir-se para a ambulância e para o primeiro veículo ao lado da plataforma, virou para a esquerda, aproximan­do-se do carro branco e azul, na extremidade sul do estaciona­mento. Os policiais no campo tinham pedido reforços pelo rádio e Joel teve uma sensação entorpecedora de desespero. Estava olhando para seus algozes. Seu algoz. O carro-patrulha recém-chegado tinha só um homem — mas seria um só? O motorista estava virando a cabeça e falando com alguém? Não, estava soltando alguma coisa, o cinto de segurança, provavelmente.

Um homem grisalho de uniforme saltou do carro, olhou em volta e começou a andar rapidamente para os trilhos. Atravessou-os e ficou no alto da rampa, gritando para os policiais que estavam sobre a relva ensolarada. Converse não tinha idéia do que o homem dizia, mas a cena lhe pareceu estranhamente fora de lugar.

Os dois policiais apareceram correndo no seu campo de visão, as armas agora nos coldres. Conversaram rápida e animadamente. O mais velho apontava para uma área distante ao sul do monte de lixo; a julgar pelo volume, suas palavras eram comandos. Joel olhou para o carro dele; na porta da frente havia uma insígnia que o outro carro não tinha. O homem tinha posto superior; estava dando ordens.

Os policiais mais jovens atravessaram os trilhos e correram para o carro, o superior atrás deles, mas sem correr. Abriram as portas saltaram para dentro e, com um ronco do motor, viraram para a direita e saíram a toda velocidade do estacionamento. O mais velho chegou perto do seu carro-patrulha, mas não fez ne­nhum movimento para abrir a porta ou para entrar. Ele falou — pelo menos moveu os lábios — e cinco segundos depois as portas de trás se abriram e surgiram dois homens. Um deles Converse conhe­cia muito bem. Sua arma estava no bolso de Joel. Era o motorista de Leifhelm, com um curativo na testa, outro no nariz. Ele tirou uma arma do casaco e latiu um comando para o outro homem; na sua voz havia a fúria vingativa do soldado desonrado em combate.

 

Peter Stone saiu do hotel em Washington. Dissera ao jovem tenente da Marinha e ao capitão do Exército, pouco mais velho, que tele­fonaria para eles de manhã. Crianças, pensou. Amadores idealistas eram os piores, porque sua honestidade era tão válida quanto eram pouco práticas suas ações. Seu desespero infantil pela duplicidade e pela fraude não aceitava o fato de que, para vencer os miseráveis maníacos freqüentemente era preciso usar de mais malevolência e maior malícia do que eles podiam imaginar.

Stone tomou um táxi — deixando o seu carro na área do estacionamento subterrâneo — e deu ao motorista o endereço de um prédio de apartamentos na avenida Nebraska. Era um aparta­mento encantador, mas não lhe pertencia; era alugado por um di­plomata albanês das Nações Unidas que raramente o ocupava — naturalmente por ter sua base em Nova Iorque. Mas o ex-agente secreto tinha trabalhado arduamente e fizera do albanês um agente duplo há alguns anos, não apenas com apelos ideológicos a uma requintada consciência de erudito mas também com fotografias desse mesmo erudito entregue às mais variadas formas de satis­fação sexual com mulheres muito estranhas — mulheres de sessen­ta e setenta anos, pedintes das ruas, que depois da violentação carnal eram sujeitas a maus-tratos físicos. Ele era um vencedor, o diplomata-intelectual. Um psiquiatra em Langley dissera algo sobre realização de desejo — matricídio sexualmente reprimido. Stone não precisava daquelas frases; ele tinha as fotografias de um sádico canalha. Mas o que o preocupava agora eram os meninos, não os excessos de um idiota que lhe permitia ter acesso a um apartamento luxuoso, muito além das suas posses.

Os garotos! Jesus! Estavam tão certos, suas sensibilidades di­retamente voltadas para o alvo, mas não compreendiam que quan­do encontravam os George Delavanes dos nossos dias tratava-se de guerra nas suas piores formas de brutalidade, porque era assim que esses homens lutavam. A honestidade tinha de se aliar ao compro­misso de arrastar-se nos esgotos se fosse necessário, sem quartel, pois nenhum seria pedido, nenhum seria dado. Estavam na última quinta parte do século XX e os generais estavam chegando; a paranóia da sua aversão e das suas frustrações não podia mais ser tolerada.

Stone há anos percebera o que estava sendo preparado e houve momentos em que esteve a ponto de aplaudir, erguendo as mãos em frustração, disposto a vender o que sobrava de sua alma. Estratégias tinham abortado — homens perdidos — por causa das insanas restrições burocráticas que conduziam a leis e a uma constituição onde nada fora escrito, tendo Moscou em mente. Os Loucos Mar­cus deste planeta — desta parte do planeta — defendiam alguns pontos plausíveis. Há alguns anos, havia homens na Companhia que eram intransigentes e não fugiam ao assunto. Diziam: “Bom­bardeiem as usinas nucleares em Tashkent e Tselinogrado! Explo­dam as de Chendu e Shenyang! Não permitam que comecem a funcionar! Nós somos responsáveis, eles não são!”

Quem sabe? Estaria o mundo melhor assim?

Então Peter acordava de manhã e aquela parte da sua alma que não fora vendida dizia não, não podemos fazer isso. Devia haver um outro meio, sem confronto e morte por atacado. Apegava-se ainda a essa alternativa, mas não podia ignorar os Delavanes como megabombas prontas a explodir. Para onde estavam indo agora?

Peter sabia para onde ele estava indo — para onde estava indo há anos. Por isso havia se unido àqueles garotos. A honestidade deles era justificada; sua indignação, válida. Já vira isso tudo antes em tantos lugares, sempre nos extremos do espectro da política. Os Delavanes deste planeta transformariam todos os homens em robôs. Sob muitos aspectos, era melhor a morte.

Stone entrou no apartamento, fechou a porta, tirou o casaco e preparou o único drinque que permitia a si mesmo ao cair da noite. Caminhou para a poltrona de couro ao lado do telefone e sentou-se, tomando vários goles antes de colocar o copo na mesa, sob a lâmpada. Apanhou o telefone e discou sete números, depois mais três, e mais um. Tudo estava em ordem. O chamado estava sendo dirigido através de um “misturador” diplomático da KGB em uma ilha do estreito Cabot a sudoeste da Terra Nova. Apenas na praça Dzerzhinsky, a própria KGB ficaria confusa. Peter tinha pago seus negativos para o serviço. Após o telefone tocar cinco vezes, uma voz masculina, em Berna, Suíça, atendeu.

— Alô!

— Quem está falando é o seu amigo de Bahrain, também o vendedor de Lisboa e o comprador dos Dardanelos. Preciso ainda cantar “Dixie”?

— Ora, mah wuhd — disse o homem em Berna, exagerando o dialeto do Sul dos Estados Unidos, sem nada do sotaque francês. — Você está voltando muito no tempo, não está, sufi?

— Sim, estou, senhor.

— Ouvi dizer que é um dos homens maus agora.

— Desamado, indigno de confiança, mas ainda apreciado — disse Stone. — Isso é mais exato. A Companhia não quer nem chegar perto de mim, mas há um punhado de desafetos dela na cidade que me consultam regularmente. Não fui tão esperto quanto você. Nenhum depósito em contas da Suíça, feitos pelo Tio Sem-Nome.

— Ouvi dizer que tem um problema complicado.

— Um grande problema, mas está acabado.

— Nunca negocie uma libertação de gente pior do que você, se não conseguiu passar no teste de álcool no seu hálito. Você precisa assustá-los, não diverti-los.

— Sim, descobri isso. Ouvi dizer que você está dando consul­tas também.

— Em base limitada e só para clientes que podem satisfazer os requisitos do Tio Sem-Nome. Aquele acordo e eu continuamos jun­tos. Ou faça isso ou algum Botticelli da arte de matar toma um avião até aqui e o velho patrão vai para a terra fria.

— Onde as ameaças não lhe servem para nada — disse o civil.

— Isso foi o combinado, meu caro. É a nossa pequena détente.

— Será que eu preencho os requisitos? Dou minha palavra de que estou trabalhando com gente boa. São jovens, estão numa boa pista e não têm nem um mau pensamento em suas cabeças, o que, nestas circunstâncias, não é uma recomendação. Mas não posso lhe dizer nada definitivo. Para sua segurança, a minha e a deles. Isso é suficiente?

— Se a consulta não for feita em espaço aberto, é mais do que suficiente, e você sabe disso. Você salvou a pele de Johnny Reb três vezes, só que com as seqüências de trás para diante. Nos Darda­nelos e em Lisboa você me tirou de lá antes de chegarem os ca­nhões. Em Bahrain você alterou um relatório sobre o desapareci­mento de fundos de emergência, e isso provavelmente me teria pos­to na fortaleza de Leavenworth por cinco anos.

— Você era muito valioso para ser perdido por uma pequena indiscrição. Além disso, não era o único, só que foi apanhado — ou quase.

— Seja como for, Johnny Reb tem uma dívida. De que se trata?

Stone apanhou o copo e tomou um gole. Falou, escolhendo as palavras cuidadosamente.

— Um dos nossos comandantes está desaparecido. É um pro­blema da Marinha, da base SAND PAC, e as pessoas com quem estou trabalhando querem conservá-lo em segredo. Nenhuma inter­ferência de Washington nesse estágio.

— Isso é uma parte do que não pode me contar — disse o sulista. — Certo. SAND PAC — é em San Diego e voltado para oeste até o prazo marcado, certo?

— Sim, mas isso não vem ao caso. Ele é oficial chefe jurídico — talvez deva dizer era, a esta altura. Se não for no tempo passado, se ainda estiver vivo, está mais perto de você do que de mim. Além disso, se eu tomar um avião, meu passaporte vai alertar os compu­tadores e isso não pode acontecer.

— O que também é parte do que não pode me contar.

— Confere.

— O que pode me contar?

— Conhece a embaixada em Bonn?

— Sei que tem problemas. Bem como as unidades de segu­rança em Bruxelas. Aquele maluco está deixando uma trilha tre­menda. É sobre Bonn?

— Tudo está relacionado. Nosso comandante foi visto pela última vez em Bonn.

— Ele tem alguma coisa a ver com esse Converse?

Steve fez uma pausa.

— Você provavelmente pode tirar mais deduções do que nos convém, mas os principais dados do enredo são os seguintes: nosso comandante é um homem muito perturbado. Seu cunhado — que, aliás, era também seu melhor amigo — foi morto em Genebra.

— Perto daqui — interrompeu o expatriado. — O advogado americano, cuja morte foi engendrada por Converse, pelo menos foi o que eu li.

— Foi o que nosso comandante pensou. Como ou de quem conseguiu essa informação ninguém sabe, mas evidentemente des­cobriu que Converse estava indo para Bonn. Tirou licença para ir atrás dele.

— Louvável, mas pouco inteligente. Um grupo de linchamento formado por um só homem?

— Na verdade, não. Por simples equacionamento podemos presumir que procurou a embaixada — pelo menos encontrou-se com alguém da embaixada para explicar sua presença em Bonn, talvez para alertá-los, quem sabe? Mas o resto fala por si mesmo. Esse Converse atacou e nosso comandante desapareceu. Gostaría­mos de saber se está vivo ou morto.

Foi a vez de o sulista fazer uma pausa, mas podia-se ouvir sua respiração ao telefone. Afinal:

— Brer Rabbit, você simplesmente precisa pôr alguma carne nesses ossos.

— Ia fazer isso, general Lee.

— Muito obrigado, ianque.

— É também relacionado com o caso. Se você fosse um capitão-de-corveta da Marinha dos Estados Unidos e quisesse entrar em contato com uma pessoa da embaixada em Bonn, alguém que estivesse à altura da sua patente, quem procuraria?

— O adido militar, quem mais?

— Esse é o homem, tio Remus. Entre outras coisas, é um mentiroso, mas não posso esclarecer isso. Nossa opinião é que o comandante falou com ele e o adido o despachou, considerando seu caso sem importância, provavelmente nem tentou arranjar para ele uma audiência com o embaixador Peregrine. E, quando aconteceu, para salvar a própria pele e a carreira — bem, as pessoas fazem coisas estranhas.

— O que está sugerindo é terrivelmente estranho.

— Não vou voltar atrás — disse o civil.

— Muito bem, como se chama ele?

— Washburn. É um...

— Norman Washburn? Major Norman Anthony Washburn, III, V ou VI?

— Esse mesmo.

— Não retire nada do que disse. Você deixou o trabalho de campo cedo demais. Washburn esteve em Beirute, depois em Ate­nas e finalmente em Madri. Deu um trabalho tremendo a todos os agentes da Companhia nesses territórios! É capaz de pregar sua mãezinha da Park Avenue em uma parede de veludo para conseguir uma boa ficha de serviço. Acredita que quando tiver quarenta e cinco anos será um dos membros da Junta do Comando Supremo — e trabalha para isso.

— Aos quarenta e cinco?

— Estive afastado durante alguns anos, mas ele não pode ter mais de trinta e seis ou trinta e sete. A última vez que ouvi falar de Norman eles iam promovê-lo a coronel, sem passar pelos postos intermediários, depois a brigadeiro. Ele é amado, ianque!

— Ele é um mentiroso — disse o civil no apartamento suave­mente iluminado da avenida Nebraska.

— Acredito — disse o homem em Berna —, mas nunca pensei que chegasse a tanto. Quero dizer, ele deve estar raspando esterco de mula para encontrar óleo, para fazer uma coisa tão radical.

— Não retiro nada do que disse — repetiu o civil, tomando um gole do burbom.

— O que significa que você sabe.

— Correto.

— E não pode falar sobre o assunto.

Uma afirmação.

— Correto também.

— Tem certeza?

— Sem nenhuma margem de erro. Ele sabe onde está o co­mandante — se estiver vivo.

— Jesus Cristo! No que foi que vocês, rapazes nortistas, se meteram?

— Vai procurar? Começando ontem?

— Com prazer, ianque. Como você quer que seja feito?

— Na zona crepuscular. Só palavras conseguidas sob pressão. Quero que ele acorde pensando que comeu um pedaço de carne estragada.

— Mulheres?

— Não sei. Você provavelmente tem melhor informação sobre isso do que eu. Acha que ele poria em risco a própria imagem?

— Com duas ou três Fräuleins que tenho em Bonn, até os jesuítas arriscariam o papado, senhor. O nome do comandante, por favor?

— Fitzpatrick. Capitão-de-corveta Connal Fitzpatrick. E, tio Remus, qualquer coisa que venha a saber informe somente a mim, a ninguém mais. Ninguém.

— E essa é a última parte do que não pode me dizer, certo?

— Certo.

— Meus antolhos estão bem colocados. Só um objetivo, só um alvo. Nenhum atalho e nenhuma curiosidade, somente um gravador na minha cabeça ou na minha mão.

Mais uma vez Stone fez uma pausa, depois quebrou o silêncio com um murmúrio:

— Gravador...! — Depois continuou: — Não é uma má idéia. Minimicro, naturalmente.

— Naturalmente. Essas coisinhas são tão minúsculas que po­dem ser escondidas nos lugares mais embaraçosos. Onde posso en­contrar você? Minha pena está pronta.

— Certo, o código da área é oito-zero-quatro. — O ex-agente da CIA deu ao expatriado de Berna um número de telefone em Charlotte, Carolina do Norte. — Uma mulher deve atender. Diga que você é da família de Tatiana e deixe um número para que eu telefone depois.

Despediram-se brevemente. Peter desligou, levantou-se e foi até a janela, com o copo na mão. A noite estava quente e parada em Washington, o ar lá fora quase não se movia, o prenúncio de uma tempestade de verão. Se chovesse, pelo menos as ruas seriam lavadas e a poluição diminuída.

O ex-agente secreto desejou que houvesse na terra ou caísse dos céus um bálsamo para lavar suas mãos e aquela parte de sua alma que não fora oferecida em leilão — ou, por algum tempo, vendida à bebida. Talvez tivesse apenas colocado mais um prego no caixão de Converse, mais um pouco de credibilidade para a imagem daquilo que o advogado não era. Stone compreendia que, em vez de criar dúvidas razoáveis, baseadas no que sabia com certeza, havia con­tribuído para a ficção de que Converse era o assassino psicopata descrito pela mídia internacional. Pior, tinha atribuído essa credibi­lidade a um homem responsável que estava desaparecido, um oficial de Marinha que talvez estivesse morto. Havia duas justificativas para a mentira e apenas uma era remotamente possível; a outra, entretanto, era talvez o movimento mais produtivo que podiam efetuar. A primeira supunha que Fitzpatrick podia estar vivo, uma fraca suposição. Mas, se estivesse morto, o comandante desaparecido era um bom pretexto para cobrar uma antiga dívida e inves­tigar o adido militar chamado Washburn, sem revelar nada sobre George Marcus Delavane. Mesmo que “Johnny Reb” fosse apa­nhado — e todo o homem numa operação cinza para preto devia considerar essa possibilidade —, nada seria mencionado sobre uma conspiração internacional de generais... O major Norman Washburn, IV, podia ou não saber do destino de Connal Fitzpatríck, mas tudo o mais que ele dissesse sob pressão — especialmente sobre o comandante — teria valor.

O que surpreendia o civil era o próprio Converse, em relação ao adido militar mentiroso. Se Converse estava fugindo e não prisioneiro, certamente devia saber sobre a mentira que o condenava. Nesse caso, por que o advogado não fizera nada a respeito? A mentira do major era o elo mais fraco da cadeia; podia ser quebra­do com um mínimo de esforço — o homem era um mentiroso. Eu estava em tal ou tal lugar, em qualquer lugar, menos onde ele disse que me viu, na hora em que disse que me viu. Stone tomou um pequeno gole da bebida; sabia da inutilidade de fazer conjeturas porque tinha a resposta. Por isso não sentia que tinha sido cortada outra parte de sua alma. Converse não estava em posição de fazer coisa alguma. Estava encurralado ou prisioneiro, para ser oferecido como vítima sacrificial pelos generais. Ninguém podia fazer nada por ele. Era um homem morto — um sacrifício na mais completa acep­ção da palavra — oferecido por sua própria gente.

Peter voltou para a poltrona e sentou-se, afrouxando a gravata e tirando os sapatos. Há muitos anos tinha aprendido a limitar as perdas sempre que possível. Se isso significava o sacrifício de peões, infiltradores ou desconhecidos, usava a abordagem estatística e dei­xava que fossem feitas as execuções. Era melhor do que perder algo mais importante. Mas o melhor era fazer progresso, fosse qual fosse a perda. Estava fazendo isso agora com a morte de Converse e com “Johnny Reb” em Berna — e com um mentiroso chamado Washburn.

Oh, Cristo! Estava bancando Deus outra vez com seus gráficos e diagramas — os mais e menos do valor humano! O objetivo, porém, valia mais do que qualquer coisa que já tivesse feito. Delavane e suas legiões deviam ser detidos, e não seriam detidos por Washington. Havia muitos olhos atentos, muitos ouvidos, muitos homens escondidos nos cantos que acreditavam no mito — homens que não tinham nada mais do que isso. Os meninos estavam certos. E agora não haveria garrafas vazias no chão, nem lembranças obs­curecidas das noites passadas, ou das palavras ditas. Apesar da idade, ele estava pronto; estava preparado.

Era estranho, pensou o civil. Ele não utilizara a família de Tatiana durante anos.

 

Joel, com os olhos na altura da borda do monte de lixo viu o motorista de Leifhelm e seu companheiro se aproximarem do prédio abandonado. Eram ambos homens experientes; um corria antes do outro escondendo-se atrás de rochas deslocadas e de barris usados para acender a fogueira todas as manhãs. Quase simultaneamente chegaram a duas portas, ambas com as dobradiças quebradas, pen­dendo em ângulo. O motorista fez um gesto com a arma e os dois homens desapareceram no interior do prédio.

Converse olhou outra vez para trás. A cerca estava a uns du­zentos metros. Conseguiria escorregar pelo monte de lixo, correr para o arame trançado e pular a cerca antes que os seus algozes saíssem do prédio decrépito? Por que não? Podia tentar! Levantou o corpo, apoiado no abdome, as mãos enterrando-se no monte malcheiroso, virou para a direita e escorregou.

Um ruído de algo se partindo e depois um grito. Joel virou-se rapidamente para o outro lado e subiu pelo monte de lixo, refa­zendo o caminho que seu impulso o fizera descer. O motorista saiu correndo da casa, em direção à porta pela qual o companheiro tinha entrado, a arma erguida, pronta para atirar. Aproximou-se cautelosamente e depois, tendo visto alguma coisa, entrou gritando imprecações. Segundos mais tarde apareceu na porta amparando o outro homem; aparentemente um degrau ou uma tábua do assoalho tinha desabado sob ele. O homem segurava a perna e mancava.

Dois apitos estridentes soaram na estação; a plataforma estava vazia, os passageiros a bordo novamente. O pânico passara e o trem ia fazer um esforço teutônico para não se atrasar. O último carro de polícia e a ambulância já tinham partido.

Lá embaixo, o motorista esbofeteava o companheiro, num acesso de fúria, jogando-o no chão. O homem levantou-se, gesti­culando, implorando, e o motorista acalmou-se, mandando que o subordinado se colocasse entre o prédio, o monte de lixo e a cerca, e, quando o homem obedeceu, voltou ao prédio abandonado.

Meia hora se passou, e o sol poente interceptado por nuvens baixas no oeste formava sombras longas em volta do pátio da es­tação. Afinal o motorista apareceu, saindo de uma porta invisível de um dos cantos do prédio. Ficou parado por alguns momentos e olhou para oeste, na direção dos trilhos, para o prado e os pântanos distantes. Então voltou-se, olhou para os montes de lixo e tomou uma decisão.

— Rechts über Ihnen! — gritou para o companheiro, apon­tando para o segundo monte. — Hinter Ihnen! Er schiesst.

Joel arrastou-se, escorregando para baixo como um caranguejo em pânico. Na metade do caminho sua mão esquerda prendeu-se em alguma coisa; puxou com força para se livrar e estava a ponto de jogar para longe a armadilha quando viu que era um pedaço de fio elétrico. Enrolou-o na mão e continuou sua descida frenética. Quando estava a uns dois metros do solo, balançou o corpo todo e agarrou-se à massa de terra e lixo. Bateu as pernas repetidamente contra o lixo e a terra solta e mergulhou o corpo naquela massa fétida, cobrindo a cabeça com ela. O fedor era espantoso e Joel sentia insetos penetrando por sua roupa, andando sobre sua pele. Mas estava escondido, disso tinha certeza. Começou a compreender o que sua mente fragmentada tentava lhe dizer. Estava de volta à selva, preparando-se para saltar de surpresa sobre um homem sepa­rado da sua patrulha.

Os minutos se passaram, e as sombras ficaram mais longas, depois permanentes, à medida que o sol prosseguia sua trajetória atrás do monte de lixo. Converse ficou imóvel, todos os músculos tensos, os dentes cerrados no esforço de se controlar para não sair daquela sujeira, sacudir os braços, rasgar a roupa, arranhar a pele para se livrar dos insetos enlouquecedores. Mas sabia que não devia se mexer. Ia acontecer a qualquer momento, agora.

Primeiro o prelúdio. O homem apareceu, mancando, olhou para o alto do monte de lixo, os olhos semicerrados contra o resto de luz lá em cima, a arma na mão, na diagonal, pronta para dis­parar. Ele deu alguns passos para o lado cautelosamente, com len­tidão, com medo do que não podia ver. Passou diretamente pela frente de Joel, a arma a menos de um metro do rosto de Converse. Outro passo e a linha de contato estaria livre.

Agora! Joel saltou para a frente, segurando a arma pelo cano, virando-a rápida e violentamente para baixo e para a direita. Quan­do o alemão caiu para a frente, Joel bateu com o joelho no nariz do homem, atordoando-o antes que pudesse gritar. A arma voou para o meio do lixo. O homem cambaleou, e estava a ponto de gritar quando Joel atacou outra vez com o pedaço de fio elétrico esticado entre as duas mãos; passou-o sobre a cabeça do homem e apertou-o com força em volta da garganta do alemão.

O corpo do homem amoleceu e Converse inclinou-se sobre ele, para empurrá-lo para a base do monte de lixo e escondê-lo sob a sujeira, mas parou. Devia haver outro modo, porque havia outra opção, uma que tinha escolhido há cem anos com outro observador adiantado em uma selva. Olhou em volta; viu uma pilha de dormen­tes a uns trinta metros de onde estava, à sua direita — dormentes velhos, alguns quebrados, formando um muro baixo. Um muro.

Era arriscado. Se o motorista de Leifhelm terminasse a revista do primeiro monte de lixo e passasse para o segundo, de qualquer lado que se aproximasse teria Converse em sua linha de visão. O homem fora mandado para o trem de Emmerich por duas razões — a primeira, conhecia a presa de vista, e, a segunda, a presa o fizera cair em desgraça; o corpo de Joel seria a sua redenção. O homem conhecia armas — a presa não. De que adiantava pensar? Desde Genebra, tudo era um risco, um jogo contra a morte.

Segurou o corpo do alemão pelas axilas e, respirando com dificuldade — por algum motivo contando idiotamente “Um, dois, três” —, começou a arrastá-lo pela zona de morte certa.

Chegou aos dormentes e jogou o corpo por cima deles, a sola dos sapatos do homem fazendo um arco na terra, quando o arras­tou para a base do muro. Então, sem pensar, agindo só por instin­to, Converse fez o que desejara fazer durante a última hora. Escon­dido atrás dos dormentes, tirou o casaco e a camisa e rolou no chão, como um cão infestado de pulgas, passando as unhas pelos cabelos e pelo rosto. Era tudo o que podia fazer no momento. Arrastou-se para os dormentes e encontrou um espaço entre duas peças de madeira.

— Werner! Wo sind Sie?

Os gritos precederam a figura do motorista de Leifhelm. Apa­receu na outra extremidade do segundo monte de lixo, movendo-se lentamente, a arma levantada, com passos cautelosos, virando a cabeça em todas as direções, um soldado experiente em patrulha de combate. Converse pensou como o mundo seria melhor se ele fosse um bom atirador. Mas não era. No seu treinamento para piloto fizera o curso breve e obrigatório de armas leves, e raramente acer­tava o alvo a oito metros de distância. Esse segundo soldado de Aquitânia precisava ser atraído para perto.

— Werner! Antworten Sie doch!

Silêncio.

O motorista ficou alarmado; deu uns passos para trás, agacha­do, examinando o monte de lixo, chutando qualquer objeto no caminho, a cabeça virando de um lado para o outro. Joel sabia o que tinha a fazer; já fizera antes. Desviar a atenção do matador, atraindo-o para mais perto, e depois, afastar-se.

— Aiii...! — Converse deixou que o gemido escapasse de sua garganta. Então, acrescentou em inglês: — Oh, meu Deus! — Arrastou-se rapidamente para a outra extremidade do muro de dor­mentes. Espiou pelo lado, a cabeça na sombra.

— Werner! Wo sind...! — O alemão levantou-se, os olhos seguindo a direção da voz. Subitamente começou a correr com a arma na frente do corpo — um homem encurralando um objeto odiado, as palavras em inglês levando-o para o inimigo abominado.

O motorista atirou-se de bruços sobre os dormentes, alerta, a arma na frente do rosto. Atirou no corpo que viu lá embaixo, um rugido de vingança acompanhando os disparos.

Joel ajoelhou-se, apontou a automática e puxou o gatilho só uma vez. O alemão voou de cima dos dormentes, um fio de sangue escorrendo do seu peito.

— Alguns ganham — murmurou Converse, levantando-se, re­petindo as palavras do homem no trem para Emmerich.

 

Estava no pântano com a roupa no braço. Tinha-se arrastado atra­vessando os trilhos e o campo de relva, chegando à umidade pega­josa do charco. Era água e isso era tudo o que lhe interessava. Água era uma dádiva, fosse na rota de fuga, fosse como agente purifi­cador de um corpo naufragado — lições aprendidas também há muitos anos. Sentou-se, nu, na borda escorregadia do pântano, tirando o cinto de dinheiro, imaginando se as notas dentro dele estariam encharcadas, mas sem se dar ao trabalho de verificar.

No entanto, examinou todos os bolsos da roupa que acabara de tirar dos seus perseguidores. Não tinha muita certeza sobre o que tinha valor e o que não tinha. Do dinheiro só lhe interessavam as notas pequenas; e, quanto às carteiras de motorista plastificadas, nenhuma delas valia o risco de serem usadas de um modo ou de outro. Encontrou uma faca de aparência ameaçadora, cuja lâmina saltava ao toque de um botão no cabo. Joel ficou com ela. Ficou também com uma lanterna barata e um pente — e, para um homem que gostava de beber, dois purificadores do hálito. O resto eram objetos de uso pessoal — chaves, um chaveiro em forma de trevo de quatro folhas, fotografias — não olhou para elas. Morte era morte, inimigos e amigos fundamentalmente se igualavam. Mas estava in­teressado nas roupas. Elas eram a opção, a opção que tinha usado na selva há tanto tempo. Espremera-se no uniforme do observador avançado, e por duas vezes, ao atravessar a estreita margem do rio, não fora morto pelo inimigo. Joel tinha acenado para ele.

Escolheu as peças de roupa que serviam melhor e vestiu-as; o resto jogou no pântano. Fosse qual fosse sua aparência, nada tinha agora do professor de Bonn. Quando muito, podia ser tomado por um trabalhador do Reno, um marinheiro ou capataz da tripulação de um barco de carga. Tinha escolhido o paletó do motorista, es­curo, de pano áspero, cintado e a camisa azul de algodão — os dois furos de bala lavados cuidadosamente. A calça do assassino subor­dinado; marrom, de veludo canelado, sem vinco, boca larga que, felizmente, cobria seus tornozelos. Nenhum dos dois homens tinha chapéu, e o de Joel estava em algum lugar do monte de lixo; encon­traria um, compraria ou talvez roubasse. Precisava; sem um chapéu ou boné cobrindo parte do rosto, sentia-se despido, tão exposto e amedrontado quanto se sentiria sem roupa.

Deitou-se sobre a relva seca enquanto o sol desaparecia no horizonte invisível e olhou para o céu.

 

— Ora, vejam só...! — disse o homem de aparência distinta com a esvoaçante cabeleira branca, as sobrancelhas grisalhas e espessas erguidas com espanto. — Você é o filho de Molly Washburn?

— Perdão? — disse o oficial do Exército na mesa ao lado, no restaurante Am Tulpenfeld, em Bonn. — Já nos conhecemos, se­nhor?

— Você não deve se lembrar, major... Por favor, perdoe a intrusão. — O sulista dirigiu suas desculpas ao companheiro do oficial, um homem de meia-idade, meio calvo, que falava inglês com acentuado sotaque alemão. — Mas Molly jamais perdoaria a esse branco pobre da Geórgia se eu não dissesse alô ao seu filho e não insistisse em lhe oferecer um drinque.

— Creio que não tenho a menor idéia — disse Washburn delicadamente, mas sem entusiasmo.

— Eu também não teria, meu jovem. Sei que é um chavão, mas você era deste tamanho naquele tempo. A última vez que o vi, estava com um blazer azul e danado da vida por ter perdido um jogo de futebol. Acho que estava pondo a culpa no seu ponta-esquerda, que, na minha opinião naquela época e agora, é sempre uma posição lógica para levar a culpa de qualquer coisa.

O major e seu companheiro riram com ar de entendidos.

— Meu Deus, isso foi há muito tempo — quando eu estava em Dalton.

— E era capitão do time, se bem me lembro.

— Como me reconheceu?

— Eu me encontrei com sua mãe na semana passada na casa de Southampton. Uma mãe muito orgulhosa, vi algumas fotogra­fias suas na sala de estar.

— Tem razão, no piano.

— Exatamente, com molduras de prata e tudo.

— Acho que me esqueci do seu nome.

— Thayer. Thomas Thayer, ou simplesmente T.T., como sua mãe me chama. — Os dois homens trocaram um aperto de mão.

— É bom vê-lo outra vez, senhor — disse Washburn, fazendo um gesto na direção do companheiro. — Este é Herr Stammler. É encarregado de grande parte das nossas relações públicas com a mídia da Alemanha Ocidental.

— Como vai, Sr. Stammler?

— Prazer, Herr Thayer.

— Falando da embaixada, e presumo que foi a isso que se referiu, prometi a Molly telefonar para você quando chegasse a Bonn. Palavra, ia fazer isso amanhã — hoje estou me recuperando do jet lag. Uma coincidência danada, não é? Você estar aqui e eu estar aqui, um ao lado do outro!

— Major — interrompeu o alemão delicadamente. — Duas pessoas que não se vêem há tantos anos devem ter muito que con­versar. E, uma vez que praticamente terminamos o que tínhamos de tratar, acho que vou me retirar.

— Não, fique, Sr. Stammler — disse Thayer. — Eu não per­mitiria que fizesse isso.

— Não, realmente, está tudo bem. — O alemão sorriu. — Na verdade, o major Washburn achou-se na obrigação de me convidar para jantar esta noite, depois dos terríveis acontecimentos que enfrentamos nos últimos dias — ele mais do que eu — e, para ser honesto, estou exausto. Também sou muito mais velho do que meu jovem amigo e não tenho a sua resistência. Preciso de uma cama, Herr Thayer. Acredite.

— Olhe, Sr. Stammler, tive uma idéia. Está exausto e eu estou procurando me recuperar do jet lag, então por que não deixamos este jovem por aqui e vamos para nossos travesseiros?

— Mas não posso permitir que faça isso. — O alemão le­vantou-se e estendeu a mão para Thayer. Depois apertou a mão de Washburn. — Eu telefono de manhã, Norman.

— Certo, Gerhard... Por que não me disse que estava can­sado?

— E arriscar ofender um dos meus melhores clientes? Seja sensato Norman. Boa-noite, cavalheiros. — O alemão sorriu outra vez e afastou-se.

— Parece que vamos ter de nos agüentar, meu jovem — disse o sulista. — Por que não vem para minha mesa e deixa que a embaixada economize alguns dólares?

— Está bem — respondeu Washburn, levantando-se com o copo na mão e sentando-se na frente de Thayer. — Como está minha mãe? Não falo com ela há algumas semanas.

— Molly é sempre Molly. Quando ela nasceu rasgaram a re­ceita, mas não preciso lhe dizer isso. Parece a mesma que conheci há vinte anos. Juro que não sei como consegue!

— E ela não vai lhe dizer, pode estar certo.

Riram e o sulista ergueu o copo estendendo-o para a frente. Os copos se encontraram com um som delicado. Era o começo.

 

Converse esperou oculto num portal escuro da rua pobre de Emme­rich. Do outro lado as luzes fracas iluminavam a entrada pouco convidativa de um hotel de terceira classe. Com sorte poderia con­seguir uma cama dentro de alguns minutos. Uma cama com um lavatório no canto do quarto e, com mais um pouco de sorte, água quente para lavar o ferimento e trocar o curativo. Nas duas últimas noites compreendera que lugares como esse eram suas únicas possibilidades de refúgio. Não faziam perguntas e a praxe era um nome falso no registro. Mas o menor cumprimento era uma ameaça para ele. Bastava abrir a boca para que o identificassem como um ameri­cano que não falava alemão.

Sentia-se como um surdo-mudo correndo entre duas fileiras de homens armados com paus, ricocheteando de um para outro. Estava indefeso, tão tremendamente indefeso! Os crimes em Bonn, Bruxe­las e Wesel tinham feito de todo americano com mais de trinta e me­nos de cinqüenta anos um suspeito. As suspeitas melodramáticas eram compostas por sugestões de que o homem obcecado estava sen­do ajudado, ou talvez manipulado por organizações terroristas — Baader-Meinhof, a OLP líbia, até mesmo por equipes de desestabili­zação da KGB enviadas pelo temido Voennaya. Estava sendo ca­çado por toda a parte, e desde a véspera o International Herald Tribune estava afirmando que o assassino dirigia-se para Paris — o que não significava que os generais de Aquitânia soubessem onde ele estava, mas que queriam que a concentração fosse em Paris, onde seus soldados poderiam persegui-lo, dominá-lo e matá-lo.

Para sair das ruas tinha de se misturar ao movimento e preci­sava de um hotel como aquele do outro lado da rua. Sabia que tinha de se abrigar; as armadilhas eram muitas nas ruas. Assim, na pri­meira noite em Wesel, lembrara-se do estudante Johann e procurara meios de criar circunstâncias semelhantes. Os jovens eram menos desconfiados e mais receptivos à promessa de recompensa em dinheiro por um serviço prestado.

Por mais estranho que fosse, aquela primeira noite em Wesel fora a mais difícil e a mais fácil. Difícil porque não tinha idéia de onde procurar; fácil porque tudo aconteceu tão rapidamente, com tanta lógica.

Em primeiro lugar, Joel foi a uma farmácia, comprou gaze, esparadrapo e anti-séptico e um elegante boné com visor. Depois foi ao banheiro de um café, lavou o rosto e o ferimento, fez um curativo bem apertado, unindo os dois lábios da ferida. Subitamente, quando terminou, ouviu a letra familiar de uma canção e vozes jovens: Para a frente, Wisconsin... Para a frente, Wisconsin... para a vitória...

Era um grupo de estudantes da Sociedade Alemã da Universi­dade de Wisconsin, ficou sabendo depois, viajando de bicicleta pela região norte do Reno. Aproximando-se displicentemente de um jovem que estava tomando mais cerveja do que os outros, Joel apresentou-se como americano e contou uma história incrível de ter sido roubado por uma prostituta e pelo seu companheiro, que ti­nham levado seu passaporte mas não o cinto com o dinheiro. Era um respeitável homem de negócios que precisava de uma noite de sono, pensar no que tinha acontecido e telefonar para sua firma em Nova Iorque. Mas não falava alemão; o estudante consideraria a possibilidade de ajudá-lo, por 100 dólares?

Sim, ele consideraria e o fez. Na mesma rua havia um pequeno hotel onde não faziam perguntas; o jovem pagou pelo quarto e levou o recibo e a chave para Converse, que estava esperando do lado de fora.

Durante todo o dia anterior tinha andado, acompanhando a linha do trem até chegar a uma cidade chamada Halden. Era menor do que Wesel, mas havia uma seção industrial na parte leste da estação. O único “hotel” que conseguiu encontrar, porém, era uma casa grande e dilapidada no fim de uma fileira de casas nas mesmas condições com tabuletas que diziam ZIMMER, 20 MARK, em duas janelas do primeiro andar, e uma maior sobre a porta de entrada. Era uma pensão. E um pouco adiante, sob a luz da rua, uma mulher idosa e um homem mais jovem discutiam animadamente. Alguns vizinhos estavam na janela, os cotovelos nos parapeitos, obviamente ouvindo a discussão. Joel escutou também as palavras esporádicas gritadas em inglês com forte sotaque.

— ... Detesto isto aqui! Das habe ich ihm gesagt. — Não quero ficar, Onkel! Vou voltar para a Alemanha! Talvez entrar para a Baader-Meinhof! Das habe ich ihm gesagt.

— Narr! — gritou a mulher, voltando-se e subindo os degraus na frente da casa. — Schweinehund! — rugiu ela, abrindo a porta. Entrou e bateu a porta com violência.

O homem olhou para a platéia nas janelas e ergueu os ombros. Alguns bateram palmas e ele agradeceu com uma curvatura exage­rada. Converse aproximou-se; não havia nenhum mal em tentar, pensou.

— Fala inglês muito bem — disse.

— Por que não? — respondeu o alemão. — Gastaram sacolas de alimentos durante cinco anos para me ensinar. Preciso ir para a casa do meu irmão na América. Eu digo Nein! Eles dizem Ja! Eu vou. Eu detesto!

— Sinto muito por ouvir isso. Sou americano e gosto do povo alemão. Onde você esteve?

— Yorktown.

— Virgínia?

— Nein! Na cidade de Nova Iorque.

— Ah!, aquela Yorktown.

— Ja, meu tio tem dois açougues em Nova Iorque, no lugar que eles chamam de Yorktown. Merda, como vocês dizem na Amé­rica!

— Eu sinto muito. Por quê?

— Os Schwarzen e os Juden! Se você fala como eu, os negros o assaltam com canivetes, para roubar, e os judeus roubam com suas caixas registradoras. Heinie, eles me chamavam, e Nazi. Eu disse para um judeu que ele me enganou — com delicadeza, não fui indelicado — e ele me disse que saísse da sua loja senão chamava os “tiras”. Eu era merda, disse ele!... Você usa um bom termo alemão e gasta bom dinheiro alemão, eles não dizem essas coisas. Você é um entregador querendo aprender, eles tiram até a sua pele. Eu não sei nada! Meu pai foi só um soldado de quatorze anos. Merda!

— Mais uma vez eu lhe digo que sinto muito. De verdade. Não é próprio dos americanos pôr a culpa nas crianças.

— Merda!

— Quem sabe, eu posso fazer alguma coisa para compensar o que passou. Estou encrencado — por ser um americano estúpido. Mas eu lhe pago cem dólares americanos...

O jovem alemão arranjou um quarto na pensão, com a maior das boas vontades. Não era melhor do que o quarto em Wesel, mas a água estava mais quente, o banheiro era perto.

 

Era uma noite diferente de todas as outras que passara na Alema­nha, pensou Joel, olhando para o outro lado da rua na direção do decrépito hotel em Emmerich. Essa noite poderia conduzir à sua entrada na Holanda. A Cort Thorbecke e um avião para Washing­ton. O homem recrutado por Joel era mais velho do que os outros que o haviam ajudado. Era um marinheiro da Marinha mercante de Bremerhaven, em Emmerich para visitar a família, com a qual não se dava muito bem. Tinha feito a visita obrigatória, fora severa­mente censurado pela mãe e pelo pai e voltara ao lugar e às pessoas de quem gostava — um bar numa curva do rio.

Aqui também, como em Wesel, a letra de uma canção em inglês tinha chamado a atenção de Joel. Olhou para o jovem mari­nheiro que cantava e tocava guitarra de pé, no bar. Desta vez não era uma canção universitária esportiva mas uma estranha e comovente combinação de lenta corrosão e triste madrigal. “...Quando você afinal desceu, quando seus pés tocaram o chão, você sabia onde estava? Quando você finalmente se tornou real, quando podia to­car o que sentia, sabia por acaso...”

Os homens reunidos no bar foram atraídos pelo ritmo preciso da música em tom menor. Quando o marinheiro terminou houve aplausos respeitosos, acompanhados pelo acelerado movimento de encher as canecas de cerveja. Alguns minutos depois, Converse es­tava ao lado do marinheiro trovador que tinha posto a guitarra no ombro, presa a uma correia larga que parecia uma arma. Joel ima­ginou se o homem sabia a letra de cor ou se falava inglês. Logo ia saber. O marinheiro riu de alguma coisa dita por um dos homens ao seu lado e, quando ele parou de rir, Converse disse:

— Queria lhe oferecer um drinque por me fazer lembrar de casa. É uma bela canção.

O homem olhou interrogativamente para ele. Joel gaguejou, pensando que ele não tinha a mínima idéia do que estava dizendo. Então, para seu alívio, ele respondeu:

— Danke. É uma boa canção. Triste, mas boa, como algumas das nossas. É Amerikaner?

— Sim. E você fala inglês.

— Sim. Não leio muito bem, aber falo direito. Estou num navio mercante. Viajamos para Boston, Nova Iorque, Baltimore — às vezes portos, Flórida.

— O que vai tomar?

— Ein Bier — disse o marinheiro erguendo os ombros.

— Por que não uísque?

— Ja?

— Naturalmente.

— Ja.

Um pouco depois estavam sentados a uma mesa. Joel contou sua história de uma prostituta inexistente e do seu companheiro. Contou devagar, não porque precisasse falar lentamente para seu companheiro entender, mas porque outra opção surgia no hori­zonte. O guitarrista marinheiro era jovem, mas havia nele uma pátina que indicava um profundo conhecimento das docas e dos cais e dos vários negócios que floresciam nesse mundo muito es­pecial.

— Devia ir à Polizei — disse o homem, quando Converse terminou. — Eles conhecem as prostitutas e não vão publicar seu nome. — O alemão sorriu. — Queremos que volte para gastar mais dinheiro.

— Não posso me arriscar. Apesar da minha aparência, trato com gente importante — aqui e na América.

— O que faz com que você seja importante, Ja?

— E muito idiota. Se eu pudesse ao menos ir para a Holanda, podia arrumar tudo.

— Die Niederlande? Qual é o problema?

— Eu lhe disse, meu passaporte foi roubado. E, por azar, todo americano que passe por qualquer fronteira está sendo examinado cuidadosamente. Você sabe, aquele doido que matou o embaixador em Bonn e o comandante da OTAN.

— Ja, e em Wesel também, há três dias — disse o alemão. — Dizem que foi para Paris.

— Infelizmente acho que isso não me ajuda... Olhe, você co­nhece o pessoal do rio, os homens que têm barcos que saem todos os dias. Eu disse que lhe pagaria cem dólares pelo hotel...

— Concordei. É generoso.

— Pois eu pagarei muito mais se conseguir me levar à Ho­landa. Minha companhia tem escritório em Amsterdã. Eles podem me ajudar. Você vai me ajudar?

O alemão fez uma careta e consultou o relógio.

— É muito tarde para providenciar isso e eu parto para Bremerhaven no trem da manhã. Meu navio vai sair às quinze horas.

— E eu estava pensando na quantia de mil e quinhentos.

— Marcos alemães?

— Dólares.

— Você é mais maluco do que o seu Landsmann que mata soldados. Se falasse alemão não pagaria mais de cinqüenta dólares.

— Não falo alemão. Mil e quinhentos dólares americanos — para você, se puder arranjar isso.

O homem olhou para Converse, depois recostou-se na cadeira.

— Espere aqui. Vou dar um telefonema.

— No caminho encomende mais uísque.

— Danke.

A espera foi um vácuo de ansiedade. Joel olhou para a gui­tarra muito usada, sobre a cadeira ao seu lado. Quais eram as palavras? “...Quando você afinal desceu, quando seus pés tocaram o chão... sabia onde estava? Quando você finalmente se tornou real, quando podia tocar... o que sentia, sabia por acaso...”

— Venho apanhar você às cinco da manhã — anunciou o marinheiro, sentando-se com dois copos de uísque na mão. — O capitão aceitará duzentos dólares, aber só se não se tratar de dro­gas. Se traz drogas, não sobe a bordo.

— Não tenho drogas — disse Converse sorrindo, controlando seu entusiasmo. — Está feito e você ganhou seu dinheiro. Eu lhe pago nas docas, no cais ou seja lá onde for.

— Natürlich.

 

Isso tinha acontecido há menos de uma hora, pensou Joel, obser­vando a entrada do hotel no outro lado da rua. Às cinco horas da manhã estaria a caminho da Holanda, de Amsterdã, para se en­contrar com um homem chamado Cort Thorbecke, o corretor de Mattilon que tratava de passaportes ilegais. Todas as listas de pas­sageiros de todos os aviões destinados aos Estados Unidos seriam verificadas por Aquitânia, mas há um século ele aprendera que havia meios de enganar essa vigilância. Tinha feito isso, saindo de um profundo buraco na terra, e a despeito da cerca de arame far­pado, na escuridão. Podia fazer outra vez.

Viu um homem saindo do hotel sob a luz fraca da entrada, era o jovem marinheiro mercante. Com um largo sorriso fez sinal a Converse para se aproximar.

 

— Por todo o fogo do inverno, e por Jesus Cristo, o que há, Nor­man? — exclamou o sulista, quando Washburn subitamente come­çou a se contorcer numa série de convulsões, os lábios trêmulos respi­rando com dificuldade.

— Eu... não... sei. — Os olhos do major arregalaram-se, as pupilas dançando descontroladas.

— Talvez seja esse Heimlich! — disse Thomas Thayer, levantando-se da banqueta e aproximando-se rapidamente de Washburn.

— Que diabo, não, não pode ser. Nossa comida não está aqui; você não comeu!

As pessoas mais próximas estavam assustadas, falavam alto e rapidamente em alemão. A uma observação de um dos fregueses, o sulista voltou-se e disse:

— Das glaube ich nicht — articulou Johnny Reb em alemão perfeito. — Mein Wagen steht draussen. Ich weiss einen Arzt.

O maître chegou correndo e, ao ver que eram dois ameri­canos, falou em inglês.

— O major está doente, senhor? Devo perguntar se há...

— Nenhum médico que eu conheça, obrigado — interrompeu Thayer, inclinado sobre o adido militar, que agora respirava fundo, com os olhos semicerrados, a cabeça balançando para a frente e para trás. — Este é o filho de Molly Washburn e eu vou provi­denciar para que tenha o melhor! Meu carro está lá fora. Se dois dos seus garçons me ajudarem, nós o levaremos até o carro e eu o levo ao meu médico. É um especialista. Na minha idade, é bom ter um em cada lugar.

— Bestimmt. Certamente! — O maître estalou os dedos e três empregados atenderam imediatamente.

— A embaixada... a embaixada! — disse Washburn com voz entrecortada enquanto os três homens o carregavam para fora do restaurante.

— Não se preocupe, Norman, meu rapaz! — disse o sulista, ouvindo o pedido. — Eu telefono para eles do carro, e digo-lhes que nos encontrem na casa de Rudi. — Thayer voltou-se para o alemão: — Sabe o que eu acho? Acho que este bom soldado está simplesmente esgotado. Tem trabalhado de sol a sol, sem descanso. Quero dizer, pode imaginar tudo o que ele teve de enfrentar nestes últimos dias? Aquele cão danado solto por aí numa missão de vingança, matando o embaixador, depois aquele cara em Bruxelas! Sabe, o garoto de Molly aqui é o adido militar.

— Sim, o major é nosso freguês assíduo — um cliente muito honrado.

— Bem, até os mais honrados entre nós têm o direito e a hora certa para dizer, “para o diabo, este vou assistir sentado”.

— Não estou entendendo.

— E eu tenho a impressão de que este jovem, que conheci como um potrinho, não conhece os efeitos quantitativos do velho demônio, o uísque.

— Oh? — O maître olhou para Johnny Reb — um fofoqueiro elegante ouvindo um novo boato.

— Ele tomou alguns a mais, isso foi tudo — e isso fica só entre nós dois.

— Os olhos dele estavam fora de foco...

— Ele começou a estourar rolhas antes de o sol atingir o te­lhado dos estábulos a oeste. — Chegaram à porta, os três homens passando Washburn para fora. — E tinha todo o direito. É isso que eu digo. — Thayer tirou a carteira do bolso.

— Ja. Concordo.

— Aqui está — disse o sulista, tirando algumas notas da car­teira. — Não tive tempo de trocar, portanto aqui estão cem ame­ricanos — que devem cobrir as despesas e as gorjetas para os ra­pazes... E aqui estão cem para você — para não falar demais, verstehen?

— Absolutamente, mein Herr! — O alemão guardou as duas notas de 100 dólares, sorrindo e sacudindo a cabeça obsequiosa­mente. — Não direi absolutamente nada!

— Bem, eu não iria tão longe. Seria bom para o filho de Molly saber que não é o fim do mundo se uma ou duas pessoas souberem que bebeu um pouco demais. Isso talvez o deixe um pouco mais desinibido e, na minha opinião de georgiano, ele precisa se descon­trair. Talvez você possa piscar um olho para ele quando entrar aqui outra vez.

— Piscarr?

— Dê-lhe um sorriso de amigo, como sabe dar. Verstehen?

— Ja, eu concordo. Ele merece!

Na calçada, Johnny Reb mostrou aos três rapazes exatamente como deviam colocar o major Norman Washburn, IV, no banco de trás ao carro. O corpo bem esticado, de costas, olhando para cima. O sulista deu dólares a cada um e disse que não precisava mais deles. Então talou com os dois homens que estavam no banco da frente, apertando um botão, para que o ouvissem do outro lado do vidro.

— Abaixei as duas banquetas — disse ele, puxando os encos­tos de veludo. — Ele está inconsciente. Venha me fazer compa­nhia, Médico Feiticeiro. E você, Klaus, vai nos distrair com um longo passeio pelo belo campo da sua terra.

Minutos depois, quando a limusine entrou em uma estrada secundária fora da cidade, a luz do teto do carro acendeu-se, o médico desafivelou o cinto de Washburn, abaixou as calças do adido militar e virou-o de lado. Encontrou a área que queria, na base da espinha, com uma seringa de injeção na mão firme.

— Pronto, companheiro? — perguntou o palestino moreno, abaixando a cueca do homem inconsciente.

— Vá em frente, Pookie — respondeu Johnny Reb, segurando um pequeno gravador perto do banco do carro. — Num lugar que ele não descubra durante semanas, se descobrir. Vá em frente, ára­be. Quero que ele voe.

O médico enfiou a longa agulha hipodérmica, empurrando o êmbolo lentamente com o polegar.

— Vai ser rápido — disse o palestino. — É uma dose forte e eu já vi um paciente abrir o bico antes de começar a ser interro­gado.

— Estou pronto.

— Oriente-o imediatamente. Faça perguntas diretas, centralize a concentração dele instantaneamente.

— Certo, vou fazer isso. Este é um homem muito mau, Po­okie. Um menininho sujo que conta grandes mentiras que nada têm a ver com o tamanho do peixe que arrebentou sua linha de pesca. — O sulista segurou o ombro esquerdo de Washburn e virou-o para o lado de fora do banco. — Muito bem, filho de Molly, vamos con­versar. Como foi que teve a audácia de se meter com um oficial da Marinha dos Estados Unidos chamado Fitzpatrick? Connal Fitzpatrick, menino! Fitzpatrick, Fitzpatrick, Fitzpatrick! Vamos, meni­no, conte para o papai, porque você não tem mais ninguém além do papai! Todos os que você pensa que podem ajudá-lo foram em­bora! Eles prepararam uma armadilha para você, filho de Molly! Fizeram você mentir para os jornais para que o mundo todo sou­besse que mentiu! Mas o papai pode consertar tudo isso. Papai pode arrumar as coisas e colocar você lá em cima — bem em cima! A Junta Militar — o chefão! Papai é o teu seio, garoto. Agarre ou engula ar! Onde foi que você pôs Fitzpatrick? Fitzpatrick, Fitzpa­trick.

O sussurro veio com um tremor do corpo de Washburn, sua cabeça foi sacudida de um lado para o outro, a saliva escorreu dos cantos da boca.

— Scharhörn, a ilha de Scharhörn... Baía de Helgoland...

 

Caleb Dowling não estava apenas zangado, mas atônito. Apesar de milhares de dúvidas não podia desistir; muita coisa não tinha sen­tido, muito menos o fato de que por três dias estava tentando sem sucesso uma entrevista com o embaixador interino. O adido encarre­gado da agenda dizia que a confusão era muito grande por causa da morte de Walter Peregrine e que uma audiência era impossível nes­sas circunstâncias. Talvez em uma semana... Em poucas palavras, ator, desapareça, temos coisas importantes a resolver e você não é uma delas. Estava sendo posto de lado, jogado para o canto, ouvindo desculpas que só eram dadas a pessoas notadamente insignificantes. Seus motivos e sua inteligência estavam sendo questiona­dos em voz alta por diplomatas arrogantes e confusos. Ou por alguém mais.

Por isso estava sentado agora a uma mesa de fundo no bar mal iluminado do Hotel Königshof. Descobrira o nome da secretá­ria de Peregrine, Enid Heathley, e tinha enviado o seu stuntman, Moose Rosenberg, à embaixada com uma carta selada supostamen­te de um amigo da Srta. Heathley nos Estados Unidos. Moose fora instruído para entregar o envelope pessoalmente e o tamanho de Rosenberg era impressionante, ninguém se opôs a ele na recepção da embaixada. Heathley tinha descido. A mensagem era curta e ia direta ao assunto.

 

Cara Srta. Heathley:

Acredito que é da maior importância que nos encontremos o mais breve possível. Estarei no bar do Kbnigshof às 7h30m esta noite. Se for conveniente, por favor tome um drinque comigo, mas peço-lhe, não conte a ninguém. Por favor, a ninguém.

Sinceramente,

C. Dowling.

 

Eram sete e meia e Caleb começava a ficar ansioso. Nos últi­mos anos acostumara-se a que as pessoas com quem se encontrava chegassem na hora; era uma das pequenas vantagens de ser PA Ratchet. Mas havia muitas razões para que a Srta. Heathley não quisesse encontrar-se com ele. Ela sabia que Peregrine e ele eram amigos e também que alguns atores procuravam se aproveitar de qualquer acontecimento para publicidade, sendo vistos na compa­nhia de estadistas e políticos quando não eram capazes nem de soletrar uma opinião sobre a escravatura. Ele esperava que...

Lá estava ela. A mulher de meia-idade acabava de entrar e semicerrava os olhos para ver melhor no bar mal iluminado. O maître conduziu-a à mesa de Dowling.

— Muito obrigado por ter vindo — disse Caleb levantando-se quando Enid Heathley se sentou. — Não teria pedido se não sou­besse que é importante — acrescentou, sentando-se.

— Concluí isso pelo seu bilhete — disse a mulher de rosto agradável, fios brancos entre os cabelos e olhos muito inteligentes. Pediu a bebida e conversaram sobre banalidades enquanto esperavam ser servidos.

— Imagino que deve ter sido muito difícil para você — disse Dowling.

— Não tem sido fácil — concordou a Srta. Heathley. — Fui secretária do Sr. Peregrine durante quase vinte anos. Ele costumava dizer que éramos uma equipe, e Jane e eu — a Sra. Peregrine — somos muito amigas. Eu devia estar lhe fazendo companhia agora, mas disse-lhe que tinha alguns assuntos de última hora para resolver no escritório.

— Como está ela?

— Ainda em estado de choque, naturalmente. Mas vai ficar bem. É muito forte. Walter Peregrine gostava que as mulheres que tinha ao seu lado fossem fortes. Achava que tínhamos valor e que não devíamos escondê-lo.

— Gosto desse modo de pensar, Srta. Heathley.

A bebida chegou, o garçom afastou-se e a secretária levantou os olhos interrogativamente para Caleb.

— Perdoe-me, Sr. Dowling, não posso dizer que seja fã devo­tada do seu programa de televisão, mas naturalmente assisti a ele algumas vezes. Parece que sempre que sou convidada para um jan­tar, e chega a hora mágica, a refeição é interrompida.

— Sugiro que essas pessoas promovam seus cozinheiros.

A mulher sorriu.

— É muito modesto, mas não é isso que quero dizer. Não fala nem um pouco como o homem da televisão.

— Porque não sou ele, Srta. Heathley — disse o ex-professor da universidade, sério, os olhos inteligentes nos dela. — Suponho que temos alguns traços comuns porque eu possuo o instrumento físico através do qual suas ficções são filtradas, mas a similaridade pára aí.

— Compreendo. Uma boa explicação.

— Tenho muita prática em dizer isso. Mas não lhe pedi para vir aqui a fim de lhe explicar minhas teorias sobre minha profissão. É um assunto de interesse muito limitado.

— Por que me convidou?

— Porque não sei mais a quem apelar. Bem, eu sei, mas não consigo chegar perto dele.

— Quem é?

— O embaixador interino, o que veio de Washington.

— Ele está até as orelhas...

— Alguém precisa lhe dizer — interrompeu Caleb. — Avisá-lo.

— Avisá-lo? — A mulher arregalou os olhos. — Um atentado contra a vida dele? Outro crime — aquele maníaco Converse?

— Srta. Heathley — começou o ator, o corpo rígido, a voz baixa. — O que vou dizer talvez a deixe chocada, talvez a ofenda, mas, como disse, não tenho outra pessoa com quem possa falar na embaixada. Sei, porém, que há certas pessoas lá que não devo procurar.

— De que está falando?

— Não estou convencido de que Converse seja um maníaco ou de que tenha assassinado Walter Peregrine.

— O quê? Não pode estar falando sério! Ouviu o que eles disseram dele, como está desequilibrado.-Foi a última pessoa a ser vista com o Sr. Peregrine. O major Washburn deixou isso bem claro!

— O major Washburn é uma das pessoas que não devo pro­curar.

— É considerado um dos melhores oficiais do Exército dos Estados Unidos — disse a secretária.

— Então, para um oficial, ele tem uma idéia muito estranha de como obedecer às ordens de um superior. Na semana passada, levei Peregrine para conhecer uma pessoa. O homem fugiu e Walter mandou o major detê-lo. Washburn tentou matá-lo.

— Oh, agora compreendo — disse Enid Heathley, em tom áspero. — Isso foi na noite em que arranjou um encontro com Converse — sim, foi o senhor, lembro-me agora! O Sr. Peregrine me contou. O que significa tudo isso, Sr. Dowling? Um ator de Hollywood protegendo a própria imagem? Com medo de ser res­ponsabilizado e ter seu índice de audiência diminuído — essa é a expressão, não é? Esta conversa é muito desagradável. — A mulher empurrou a cadeira, pronta para se levantar.

— Walter Peregrine era um homem de palavra, Srta. Heathley — disse Caleb, ainda imóvel, olhando fixamente a secretária. — Acho que concorda com isso.

— E então?

— Ele me prometeu uma coisa. Disse-me que, se Converse quisesse se encontrar com ele, queria que eu estivesse presente. Eu, Srta. Heathley. Especificamente, não o major Washburn, cujos atos aquela noite na universidade foram tão surpreendentes para ele quanto para mim.

A mulher de meia-idade ficou sentada, entrecerrou os olhos, com ar preocupado.

— Ele estava preocupado na manhã seguinte — disse em voz baixa.

— Danado da vida é uma descrição mais exata, eu acho. O homem que fugiu não era Converse — e também não é louco. Era um homem muito sério e falava como alguém acostumado a dar ordens. Havia — ou há — uma espécie de investigação relacionada com a embaixada. Peregrine não sabia o que era, mas pretendia descobrir. Disse que ia telefonar para Washington num telefone com misturador. Não estou a par da tecnologia, mas não acredito que uma pessoa dê um telefonema desses se não estiver preocupada com o fato de ter sua linha “grampeada”.

— Ele fez essa ligação. Ele lhe disse isso?

— Sim, ele disse. E há mais uma coisa, Srta. Heathley. Como disse muito bem, eu sou um dos responsáveis por Walter Peregrine ouvir falar em Converse, e não me sinto muito bem com isso. Mas não é estranho que, a despeito do fato de não ser segredo — a senhora sabia, Washburn sabia — ninguém me interrogou depois da morte de Walter?

— Ninguém? — perguntou ela incrédula. — Mas eu incluí seu nome no meu relatório.

— Entregou-o a quem?

— Bem, Norman estava tomando conta de tudo... — Enid Heathley parou de falar.

— Washburn?

— Sim.

— Não falou com ninguém mais? Não foi interrogada?

— Sim, naturalmente. Um inspetor da polícia de Bonn. Tenho certeza de ter mencionado seu nome... estou certa que mencionei!

— Havia mais alguém na sala?

— Sim — disse a secretária do embaixador assassinado. — Norman — murmurou.

— Comportamento estranho para um departamento de polí­cia, não acha? — Caleb inclinou-se para a frente, apenas um pou­co. — Deixe que eu acentue uma coisa que acaba de dizer, Srta. Heathley. Perguntou se eu era um ator de Hollywood tentando proteger minha imagem. É uma pergunta lógica, e se alguma vez viu as filas de desempregados em Los Angeles compreende o quanto é lógica. Não acha que outras pessoas pensam do mesmo modo? Não fui interrogado porque determinadas pessoas aqui em Bonn acham que estou sacudindo as botas de Pa Ratchet, ficando em silêncio para proteger a imagem e os índices de audiência que o tornam possível. Por estranho que pareça, esse raciocínio é a minha melhor proteção física. Não se mata Pa Ratchet, a não ser que queiram a ira de milhões de espectadores que, em minha opinião, se agarrariam à mais tênue sugestão para fazer perguntas histéricas. National Enquirer, seria isso.

— Mas não está procurando ficar em silêncio — disse Enid Heathley.

— Também não estou gritando — corrigiu o ator. — Mas não pelos motivos que acabo de descrever. Devo a Walter Peregrine — sei isso melhor do que qualquer pessoa. E não posso pagar essa dívida se um homem que considero inocente for enforcado por sua morte. Mas é aí que volto à minha própria confusão. Não tenho certeza. Posso estar errado.

A mulher olhou para Dowling, depois franziu a testa.

— Vou sair agora, mas gostaria que ficasse mais algum tempo, se não se importa. Vou telefonar para uma pessoa que acho que deve conhecer. Vai compreender. Ele o encontrará aqui — sem ser preciso que alguém indique onde está, naturalmente. Faça o que ele mandar, vá onde ele disser para ir.

— Posso confiar nele?

— O Sr. Peregrine confiava — disse Enid Heathley, assentindo com a cabeça. - E não gostava dele.

— Isso é confiança — observou o ator.

O telefonema foi feito e Caleb escreveu um endereço. O porteiro do Königshof chamou um táxi e oito minutos depois ele chegou a uma casa de estilo vitoriano nos arredores de Bonn. Foi até a porta e tocou a campainha.

Dois minutos mais tarde foi conduzido a uma grande sala — uma antiga biblioteca, talvez — mas agora com cortinas cobrindo as vistosas estantes. Sombras que eram mapas detalhados das duas Alemanhas. Um homem de óculos levantou-se da cadeira atrás da mesa de trabalho. Inclinou a cabeça cerimoniosamente e disse:

— Sr. Dowling?

— Sim.

— Agradeço-lhe ter vindo, senhor. Meu nome não é impor­tante — pode me chamar de George.

— Certo, George.

— Mas para sua informação confidencial — e devo acentuar, confidencial — sou o chefe da CIA, aqui em Bonn.

— Certo, George.

— O que o senhor faz, Sr. Dowling? Qual é sua profissão?

— Ciao, baby — disse o ator, sacudindo a cabeça.

 

A primeira luz indefinida da manhã subiu pela parede baixa do céu de leste, e no rio os barcos ancorados balançaram levemente, esti­cando os cabos, criando uma fantasmagórica sinfonia de rangidos e pancadas. Joel caminhava ao lado do jovem marinheiro, a mão inconscientemente subindo para o rosto, passando na barba crescida. Há quatro dias não se barbeava, desde Bonn, e agora tinha o princípio de barba com aparência de bem cuidada, não completa­mente cheia, mas uniforme. Mais um dia e começaria a apará-la, dando-lhe forma, outro plano a ser removido da fotografia dos jornais.

E com mais um dia ele teria de decidir se telefonava ou não a Val, em Cape Ann. Na verdade, já havia resolvido — negativo. Suas instruções tinham sido bastante claras, e a possibilidade de o telefone dela estar “grampeado” era mais do que Joel poderia suportar. Mas desejava ouvir a voz dela, ouvir o apoio que estava certo de encontrar. Negativo. Ouvi-la era envolvê-la. Negativo!

— É o último barco à direita — disse o marinheiro, diminuin­do o passo. — Preciso perguntar outra vez, porque dei minha pa­lavra. Não está transportando drogas?

— Não estou transportando drogas.

— Talvez ele queira revistá-lo.

- Não posso permitir isso — disse Converse, pensando no cinto com o dinheiro. O que poderia ser tido como um carrega­mento de drogas revelaria uma quantia em dinheiro pela qual a maioria dos homens do porto estaria disposta a matar.

— Talvez ele queira saber por quê. Drogas significam pesada penalidade, muito tempo na prisão.

— Explicarei a ele em particular — disse Joel, pensando outra vez. A explicação seria feita com a arma na mão e 500 dólares na outra. — Mas eu dou minha palavra. Não tenho drogas.

— Não é meu barco.

— Mas você arranjou tudo, e você já sabe o bastante a meu respeito para vir atrás de mim, se eles forem atrás de você.

— Ja. Eu me lembro. Connect-teecut — já estive visitando amigos em Bridgeport. A casa de um corretor, um vice-presidente. Eu encontro você, se for preciso.

— Não gostaria disso. Você é um cara legal que está me aju­dando e sou agradecido. Não vou lhe arranjar encrenca.

— Ja — disse o jovem alemão, assentindo com a cabeça. — Acredito. Acreditei em você a noite passada. Você fala muito bem, tem classe, mas foi tolo. Fez uma coisa tola e está corado. Um rosto corado vale mais do que você está disposto a pagar, por isso você paga muito mais para fazer a cor normal voltar.

— Seus sermões estão me impressionando.

— Wasist?

— Nada. Está certo. É a história da administração de alto nível. Aqui está. — Joel tinha colocado as notas no bolso esquerdo do paletó. Tirou-as. — Prometi mil e quinhentos dólares. Conte, se quiser.

— Para quê? Se não estiver tudo aqui eu falo alto e você fica na Alemanha. Você está muito assustado para correr esse risco.

— Você é um advogado nato.

— Venha, vou levá-lo ao capitão. Para você, ele é apenas o “capitão”. Vai ser deixado onde ele resolver... E tenha cuidado. Vigie os homens de bordo. Eles vão pensar que você tem muito dinheiro.

— Por isso não quero ser revistado — confessou Joel.

— Eu sei. Vou fazer o melhor que puder.

O melhor do marinheiro não foi suficiente. O capitão do barco imundo, um homem pequeno e forte com dentes estragados, levou Joel para a ponte de comando e em inglês arrevezado mas perfei­tamente claro mandou que tirasse o paletó.

— Expliquei ao meu amigo no cais que não posso fazer isso.

— Duzentos dólares amerikaner — disse o capitão.

Converse estava com o dinheiro no bolso direito. Quando fez o primeiro movimento para apanhá-lo, viu pela janela de bombordo dois homens subindo no barco, iluminados pela luz fraca. Não olharam para cima; não o tinham visto na casa do leme.

O golpe foi súbito e inesperado, o impacto tamanho que Joel dobrou o corpo, sem poder respirar, e levou as mãos ao estômago. Na sua frente, o capitão estava sacudindo a mão, com uma careta de dor. O punho do alemão tinha batido na arma no cinto de Converse. Joel cambaleou para trás, encostou-se no anteparo da cabine e escorregou para o chão, ao mesmo tempo enfiando a mão sob o paletó e apanhando a arma. Ainda abaixado, apoiando-se na parede da cabine, apontou a automática para o peito largo do capitão.

— Foi uma sujeira — disse Converse, respirando com dificul­dade, com uma das mãos ainda no estômago. — Agora, seu ordiná­rio, a sua jaqueta!

— Was...?

— Ouviu o que eu disse! Tire a jaqueta, segure-a de cabeça para baixo e sacuda essa porcaria!

O alemão, lentamente, com relutância, tirou a jaqueta, duas vezes olhando para a esquerda de Joel, na direção da porta da cabine de comando.

— Só estou procurando drogas.

— Não estou carregando drogas e, se estivesse, suspeito de que quem quer que as tivesse vendido para mim teria um meio muito melhor de viajar pelo rio do que no seu barco. Vire isso de cabeça para baixo! Sacuda!

O capitão segurou a jaqueta pela ponta de baixo e soltou-a. Um revólver curto e feio bateu no chão, ecoando na madeira, acompanhado pelo som mais leve de uma longa faca embutida no cabo chato de osso. Quando bateu no chão a lâmina saltou para fora.

— Isto é o rio — disse o alemão, sem maiores explicações.

— E eu só quero atravessá-lo sem nenhum problema — e problemas, para uma pessoa nervosa como eu, significa alguém en­trando agora por aquela porta. — Converse indicou com um gesto da cabeça a entrada da cabine à sua esquerda. — No meu estado de ânimo, disparo esta arma. Provavelmente mato você e quem quer que entre por ali. Não sou tão forte quanto você, capitão, mas estou com medo, e isso me faz muito mais perigoso. Entende isso?

— Ja. Eu não machuco você. Eu só procuro drogas.

— Você me machucou bastante — corrigiu Joel. — E isso me deixa assustado.

— Nein, Bitte... por favor.

— Quando o barco vai zarpar?

— Quando eu mandar.

— Quantos na tripulação?

— Um homem, nada mais.

— Mentiroso. — murmurou Converse asperamente, fazendo um gesto com a arma.

— Zwei. Dois homens... hoje. Vamos apanhar caixotes pesa­dos em Elten. Minha palavra, é normal só um homem. Não posso pagar mais.

— Ligue o motor — mandou Joel. — Ou os motores. Só conheço Chris-Crafts e Bertrams, o que é uma coisa idiota e estú­pida para se dizer.

— O quê?

— Faça o que mandei!

— Die Mannschaft. A... tripulação. Preciso dar as ordens.

— Espere! — Converse moveu-se para o lado, passou pela porta da cabine e olhou para a esquerda, sobre a madeira pesada da janela do piloto, nem por um segundo desviando a arma do peito do alemão. Mais uma vez apoiou-se nas pernas e na divisão de madeira; estava na parte não-iluminada, com visão perfeita da proa e da popa, e pelas duas janelas da cabine via também as estacas de atracação na frente e atrás, os cabos “enrolados na madeira casti­gada pela água e pelo tempo. Os dois homens da tripulação estavam sentados sobre o alçapão do porão, fumando, um deles tomando cerveja na lata. — Está bem — disse Joel, puxando o cão da auto­mática, uma arma que não tinha certeza de poder usar com precisão à distância de três metros. — Abra a porta e dê as ordens. E se um daqueles homens fizer alguma coisa além de soltar os cabos, eu o mato. Entendeu isso?

— Eu compreendo... tudo o que diz, mas você não me com­preende. Eu procuro drogas — não um grosse Mann — a Polizei não persegue essa gente, ela os deixa em paz. Vão atrás dos pequenos que usam os barcos do rio. É bom para a imagem dos policiais. Eu não faria mal a você. Só me protejo. Quero acreditar que meu Neffe — meu sobrinho — me disse a verdade, mas preciso ter certeza.

— Seu sobrinho?

— O marinheiro de Bremerhaven. Como acha que ele conse­guiu esse emprego? Ach, mein Bruder vende flores! Na loja da mulher dele! Antigamente ele navegou pelos oceanos, como eu. Agora, ele é um Blumenhändler!

— Juro por Deus que não entendo nada — disse Joel, abai­xando um pouco a arma.

— Talvez compreenda se eu lhe disser que ele me ofereceu a metade dos mil e quinhentos dólares que pagou a ele.

— Um consórcio de ladrões.

— Nein, eu não aceitei. Disse para ele comprar outra Gitarre.

Converse suspirou.

— Não tenho drogas. Você acredita?

— Ja, você é só um tolo, ele me disse. Tolos ricos pagam mais. Não podem dizer aos outros como foram tolos. Os pobres não se incomodam.

— Esses chavões são mal de família?

— O quê?

— Esqueça. Dê as ordens. Vamos sair daqui.

— Ja. Olhe pelas janelas, por favor. Não quero que fique com mais medo. Você tem razão. Um homem assustado é muito mais perigoso.

Joel inclinou-se sobre a divisão de madeira, enquanto o capi­tão gritava as ordens. Os motores foram ligados e os cabos soltos das estacas. Era tão estranho, pensou. Homens hostis e belige­rantes que atacavam quando enfurecidos não eram seus inimigos, ao passo que as pessoas agradáveis, aparentemente amistosas, que­riam matá-lo. Era um mundo que não conhecia, muito afastado de um tribunal ou de uma sala de conferências onde cortesia e “assas­sinato” podiam significar várias coisas. Não havia essas áreas cin­zentas há cem anos nos campos e nas selvas. Sempre se sabia quem era o inimigo; a definição era clara dos dois lados. Mas nesses últimos quatro dias aprendera que não haveria linhas definidas dali por diante, para ele. Converse olhou pela janela, para as massas de neblina que se erguiam da água, algumas espiralando para cima para alcançar a luz da manhã em suas nuvens de vapor. Sua mente ficou vazia. Não queria pensar por alguns minutos...

— Cinco, talvez seis minutos — disse o capitão, girando a roda do leme para a esquerda.

Joel piscou; estava num vácuo tranqüilo e repousante, por quanto tempo não sabia.

— Qual é o procedimento? — perguntou, vendo o sol cor de laranja acabando com o que restava da neblina do rio. — Quero dizer, o que eu faço?

— O menos Possível — respondeu o alemão. — Apenas ande, como se todas as manhãs andasse pelo cais, passando pelo estaleiro, a caminho da rua. Estará na parte sul da cidade de Lobith. Estará na die Niederlande e nós nunca nos vimos.

— Compreendo, mas como?

— Está vendo aquele Bootshafen? — perguntou o capitão, apontando para um complexo de docas com maquinaria pesada de carregamento e guindastes sobre a água.

— Uma marina.

— Ja, marina. Meu segundo tanque de óleo está vazio — eu digo que medi. Faço morrer os motores a trezentos metros da praia e entro. Grito com o holandês por causa do preço, mas pago, porque não compro do alemão ladrão nesta parte do rio. Você sai com um dos meus homens, fuma um cigarro e caçoa do seu estú­pido capitão — depois vocês vão andando.

— Assim, sem mais nem menos?

— Ja.

— É tão fácil.

— Ja. Ninguém disse que era difícil. Você só precisa ficar de olhos abertos.

— Por causa da polícia?

— Nein — disse o capitão erguendo os ombros. — Quando tem Polizei, eles vêm a bordo, e você fica a bordo.

— Então ficar de olhos abertos para quê?

— Homens que vigiam você, podem ver você andando.

— Que homens?

— Gesindel, Gauner — o que vocês chamam de rebotalho. Eles vêm todas as manhãs ao cais e procuram trabalho, a maioria ainda embriagada. Cuidado com esses homens. Eles vão pensar que tem drogas ou dinheiro. Eles quebram a sua cabeça e roubam.

— Seu sobrinho disse para tomar cuidado com os homens no seu barco.

— Só o novato, ele é Gauner. Ele se afoga em cerveja espe­rando clarear a cabeça. Pensa que me engana, mas não me engana. Eu o faço ficar a bordo, mando raspar a amurada, ou qualquer coisa assim. O outro não é problema para você. É fiel a mim, um Idiot com costas fortes e nenhum miolo. Os barcos do rio não o empregam. Eu sim. Verstehen?

— Acho que sim. A propósito, preciso chegar a Amsterdã. Há um trem aqui?

— Não há trem em Lobith. Você toma o ônibus para Arnhem. O trem para Amsterdã é em Arnhem. Eu uso muitas vezes quando meus navios ancoram em die Niederlande. O ônibus pára na estação da estrada de ferro. Não é uma longa viagem.

— Navios? Navios grandes? — perguntou Joel, estranhando as palavras do capitão.

— Eu já naveguei os oceanos, não um rio fedorento. Com quinze anos embarquei com mein Bruder. Com vinte e três eu sou Obermaat — “petit” oficial — bom dinheiro, boa vida... Muito feliz. — O alemão abaixou a voz enquanto cortava os motores virando a roda do leme para estibordo; o barco deslizou na água. — Para que falar? Acabou — disse irritado.

— O que aconteceu?

— Não é para você, Amerikaner! — O capitão empurrou o acelerador para a frente; os motores tossiram.

— Estou interessado.

— Warum? Por quê?

— Não sei. Talvez para distrair minha mente dos meus proble­mas — disse Converse honestamente.

O alemão olhou brevemente para ele.

— Você pergunta? Está certo. Nunca nos vemos... eu roubei dinheiro, muito dinheiro. O tesoureiro da companhia levou nove meses para me encontrar. Aber, ach, me encontrou! Isso foi há muitos anos. Não mais oceanos, só o rio.

— Mas você disse que estava ganhando bem. Por que roubou?

— Por que os homens roubam?

— Precisam dele — do dinheiro — ou querem coisas que não podem ter normalmente, ou são basicamente desonestos — o que acho que você não é.

— Volte para trás. Adão roubou a maçã, Amerikaner.

— Não exatamente. Quer dizer, uma mulher?

— Há muitos anos. Ela estava grávida e não queria seu ho­mem no mar e em navios. Ela queria mais. — O capitão permitiu a si mesmo um ligeiro brilho nos olhos e a sombra de um sorriso nos lábios. — Ela queria uma loja de flores.

Esquecendo por um momento a dor no estômago, Joel riu com vontade.

— Você é um cara e tanto, capitão.

— Eu nunca vejo você outra vez.

— Então o seu sobrinho...

— Nunca vejo você outra vez! — interrompeu o capitão, rindo alto, os olhos na água do rio, enquanto entrava na marina.

 

Converse encostou-se em uma das estacas de amarração, fumando, o visor do boné barato inclinado sobre a testa, os olhos vas­culhando o cais e além, a doca seca da marina holandesa. Os ho­mens agrupados em volta das máquinas enormes faziam suas tare­fas mecanicamente, enquanto os outros, em volta dos barcos, pare­ciam mais ocupados em examinar do que em fazer qualquer coisa, balançando as cabeças solenemente. O capitão discutiu com o ven­dedor de combustível, fazendo gestos obscenos para os números que subiam rapidamente nas bombas, enquanto o seu marinheiro fraco da cabeça ria, um pouco afastado dele. A bordo, o Gauner inclinava-se sobre a amurada, com uma grande escova de aço na mão, e voltava rapidamente ao trabalho cada vez que o capitão olhava para ele.

Estava na hora, pensou Joel, desencostando-se da estaca de atracação. Ninguém parecia prestar atenção nele; as tarefas monó­tonas e o descontentamento do começo do dia tinham precedência sobre tudo o que era insignificante e fora da rotina.

Começou a andar pelo cais, com passo despreocupado, pregui­çoso mesmo, mas os olhos atentos. Dirigiu-se para o pátio de re­paros, aproximando-se da fileira de cascos na doca seca. Além do último barco, a uns cem metros, havia uma cerca extremamente alta e um portão aberto. Um guarda de uniforme estava sentado à esquerda, tomando café e lendo jornal, a cadeira encostada no arame cruzado. Joel parou, conteve a respiração, um alarme soan­do dentro dele — sem razão especial. Homens entravam e saíam pelo portão, mas o guarda nem levantava os olhos, entretido no jornal sobre as pernas.

Converse voltou, um último olhar para o rio. Subitamente viu o capitão. O homem tinha corrido para a base do cais e fazia gestos frenéticos, agitando as mãos erguidas. Estava tentando avisar Con­verse. Então, gritou com toda a força dos pulmões; homens olha­ram para ele e continuaram seu caminho, sem querer se envolver. Já tinham visto muita coisa no cais a essa hora da manhã, as brigas com ganchos de ferro eram freqüentemente a linguagem das docas.

— Lauf! Corra! Saia!

Joel ficou atônito; olhou em volta. Então ele os viu. Dois — não, três — homens entroncados corriam do cais, os olhos fixos nele. O primeiro passou pela esquerda do capitão. O alemão agar­rou-o pelo ombro, detendo-o, mas apenas por alguns segundos, e os outros dois atacaram com socos o pescoço e as costas do capitão. Eram animais — Gauner — com as narinas dilatadas farejando a presa encurralada que lhes daria comida e bebida por muitos dias.

Converse mergulhou para baixo dos barcos erguidos na doca seca batendo a cabeça em vários cascos, correu para o outro lado, para os fachos de luz lá adiante. Via as pernas dos homens corren­do em seu encalço; estavam chegando mais perto; eles estavam correndo, Joel estava se arrastando. Chegou ao fim da fila de cas­cos suspensos, e correu para o portão. Tirou a camisa, rasgou um pedaço da parte inferior e apertou-o contra os ferimentos na ca­beça, passando rapidamente pelo guarda e pelo portão. Olhou em volta. Os três homens discutiam acaloradamente, embriagados, dois agachados e olhando atentamente embaixo dos cascos. Então o que estava de pé o viu. Gritou para os outros; levantaram-se e começa­ram a correr. Joel correu mais depressa, até perdê-los de vista; os animais tinham desistido.

Ele estava na Holanda; a recepção fora muito menos do que amistosa, mas ele estava lá, a um passo de Amsterdã. Por outro lado, não tinha a mínima idéia de onde se encontrava, a não ser que a cidade se chamava Lobith. Precisava tomar fôlego e pensar. Pa­rou na frente de uma loja vazia, onde uma sombra escura no inte­rior fazia da vitrine um espelho; era o bastante. Estava horrível. Pense. Pelo amor de Deus, pense!

Mattilon tinha dito que devia tomar o trem de Arnhem para Amsterdã, lembrava-se perfeitamente disso. E o capitão falara so­bre o “ônibus” de Lobith para Arnhem; não havia trem em Lobith. A primeira coisa a fazer era chegar à estação de Arnhem, lavar-se e se arrumar um pouco e depois estudar as pessoas e resolver se valia ou não a pena misturar-se com elas. E, pensando nisso, sua mente dirigia-se a todas as direções ao mesmo tempo. Os óculos sem grau há muito tinham desaparecido, sem dúvida durante os loucos acon­tecimentos de Wesel; Joel pensou em substituí-los por óculos es­curos. Quase nada podia fazer com os arranhões no rosto, mas pareceriam menos ameaçadores depois de lavados com água e sabão, e na estação com certeza poderia fazer alguma coisa para melhorar a aparência da sua roupa rasgada... E um mapa. Que diabo, ele era um piloto! Sabia como chegar ao ponto A saindo do ponto B — e precisava fazer isso rapidamente. Tinha de chegar a Amsterdã e entrar em contato com um homem chamado Cort Thorbecke — e telefonar para Nathan Simon em Nova Iorque. Tinha muito que fazer!

Quando saiu da porta da loja subitamente tomou consciência do que lhe estava acontecendo. Era uma repetição — de uma vida há muitos anos, na selva — do momento em que o medo dos sons noturnos passava e ele via o dia nascer, começando a se orientar, determinando sua linha de marcha, sua sobrevivência. Estava pen­sando, a mente outra vez em funcionamento. Considerando todas as circunstâncias, era muito menos do que fora naquele tempo, mas podia ser melhor — tinha de ser. Cada dia que passava aproximava os generais de Aquitânia da loucura que estavam planejando. Em toda a parte. Joel e eles precisavam inverter os papéis. A caça devia se transformar em caçador. Os discípulos de Delavane haviam con­vencido o mundo de que Joel era um psicopata, um assassino, e que, portanto, deviam encontrá-lo, capturá-lo, matá-lo e fazer dele mais um exemplo da insanidade que se alastrava no mundo e que só suas soluções podiam conter. Aquitânia tinha de ser exposta e des­truída antes que fosse tarde. A contagem regressiva estava em pro­gresso, os comandantes tomando suas posições com inexorável se­gurança, consolidando seus poderes.

Movimente-se! gritou Converse silenciosamente para si mesmo, apressando o passo.

Sentou-se no último vagão do trem, cansado ainda mas satisfeito com o progresso que tinha feito. Agira cautelosamente, mas sem desperdiçar um movimento, com absoluta concentração, consciente de todos os perigos possíveis — olhos que se fixavam nele, um homem ou uma mulher vistos duas vezes num curto espaço de tempo, um vendedor procurando atrasá-lo, mais atencioso do que a hora e o movimento permitiam. Essas possibilidades calculadas eram seus monitores, seus painéis, seus aferidores; sem certeza de segurança, interrompia todo o movimento para a frente, cancelava a decolagem, abria a saída de emergência e procurava o anonimato das ruas. Seu equipamento não era um avião que seria a extensão dele mesmo, era sua própria pessoa, e Joel jamais voara com tanta precisão em toda a sua vida.

ENGLISH SPOKE era o que dizia a tabuleta no teto da movi­mentada banca de jornais na esquina em Lobith. Joel tinha per­guntado como chegar ao “ônibus” para Arnhem, enquanto com­prava um mapa e o jornal, segurando ambos perto do rosto. O dono da banca estava muito ocupado com os fregueses para notar sua aparência e deu instruções rápidas em voz alta, ajudando mais com as mãos do que com as palavras. Joel encontrou o ponto de ônibus quatro quarteirões adiante. Sentou-se no veículo lotado, o rosto enfiado no jornal que não podia ler, e mais ou menos qua­renta minutos depois desceu na estação de Arnhem.

O primeiro item da sua lista era o lavatório mais isolado do banheiro da estação, onde lavou o rosto e as mãos. Escovou as roupas o melhor possível e olhou no espelho. Ainda estava horrível, mas de certo modo parecia mais um homem que sofrera um aciden­te do que uma vítima de espancamento; a diferença era importante.

Em seguida, do lado de fora da estação, converteu os marcos alemães e quinhentos dólares americanos em florins e guilders. Comprou então óculos escuros com aro grosso numa farmácia não muito distante da casa de câmbio. Quando entrou na fila da caixa, passou a mão casualmente pelos ferimentos do rosto, e viu um balcão de cosméticos na outra extremidade. Alguma coisa desper­tou em sua memória.

Logo depois do seu casamento, num daqueles acidentes que ocorrem nas ocasiões mais inoportunas, Valerie tinha escorregado no tapete do vestíbulo batendo a cabeça numa mesa antiga. Às sete horas da noite ela estava com o que Joel chamou de “um medalhão danado”; o olho roxo formava um oval quase perfeito, da base do nariz até a têmpora esquerda. Às dez da manhã seguinte ela ia conduzir uma apresentação bilíngüe para clientes da agência de Stuttgart. Valerie pediu a Joel que comprasse na farmácia um vidro de make-up líquido que, a não ser quando visto muito de perto, disfarçava o olho roxo muito bem.

 

— Não quero que pensem que meu marido novo em folha me dá pancada porque me recuso a satisfazer suas fantasias sexuais mais estranhas.

— De qual delas sentiu falta? — perguntou Joel.

 

Saiu da fila da caixa e examinou os cremes, colônias, xampus e esmaltes. Reconheceu o vidro, escolheu uma cor mais escura e vol­tou para a fila.

Uma segunda visita ao lavatório tinha levado dez minutos, mas os resultados compensaram o tempo perdido. Joel aplicou o líquido cuidadosamente; os arranhões e as manchas roxas desapareceram. A não ser que o examinassem muito de perto, não era mais um briguento vencido, mas um homem que talvez tivesse sofrido uma queda. Converse congratulou-se naquele banheiro da estação. Em outras circunstâncias, talvez não tivesse preparado um cliente tão bem, antes de um julgamento por assalto e espancamento.

Continuou a seguir os itens da lista. E estava agora no último vagão do trem direto de Arnhem para Amsterdã. Depois de com­prar a passagem para o que pensou ser um trem de baixo preço com numerosas paradas, saíra para a plataforma preparado para voltar, ao menor indício negativo no painel de vôo, o primeiro olhar fixo dirigido para ele. Viu apenas um grupo de homens e mulheres, casais da sua idade, falando e rindo, provavelmente amigos a cami­nho de um curto feriado de verão, talvez trocando o rio pelo mar. Os homens carregavam malas usadas e arranhadas, quase todas amarradas com cordas, e algumas mulheres levavam cestos nos bra­ços. A bagagem e as roupas indicavam classe trabalhadora — fá­bricas para os homens, casa e crianças, ou um emprego mais leve, de balconista, por exemplo, para as mulheres — tudo dentro do quadro que combinava com a aparência de Joel. Ele andou atrás deles, rindo silenciosamente quando eles riam e embarcando como se fosse parte do grupo; sentou-se em um banco interno, ao lado da passagem; do outro lado estavam um homem corpulento e uma mulher esguia que, apesar da estrutura delicada, ostentava um par de seios enormes. Converse mal podia tirar os olhos da mulher e o homem olhou para ele com um largo sorriso, sem malícia, levando uma garrafa de cerveja aos lábios.

Converse tinha lido em algum lugar que nos países do Norte os veranistas ocupavam os últimos vagões do Expresso Trans-Europa. Era um costume que de certa fornia definia seu status, levando a uma camaradagem geral que animava o piquenique dos trabalha­dores. Joel observou a transformação nada sutil. Homens e mulhe­res levantavam-se e andavam pela passagem, falando com amigos e estranhos, com latas de cerveja na mão. Na frente do vagão alguns começaram a cantar, obviamente uma canção popular; outros os acompanharam e logo suas vozes foram abafadas pelo grupo de Converse, que começou a cantar outra canção, até os dois grupos se interromperem com gargalhadas. A sociabilidade era, sem dúvida, a palavra de ordem no último vagão do trem para Amsterdã. As estações passavam, poucos passageiros descendo em cada uma, ou­tros embarcando, com malas, cestos e largos sorrisos, saudados com alegria barulhenta. Muitos dos homens usavam camisetas com os nomes dos times dos distritos e das cidades — futebol, pensou Converse. Os adversários de longa data os recebiam com apupos e assobios. O último vagão estava se transformando em uma estranha versão holandesa de um grupo de adultos subitamente libertados, dirigindo-se para um acampamento de verão. O volume cresceu.

As cidades eram anunciadas, as paradas breves, e Joel não saía do seu lugar, imóvel e discreto, vez por outra olhando para seu grupo de adoção, rindo ou sorrindo quando parecia conveniente. Parecia um homem de inteligência limitada, examinando um mapa com a concentração de uma criança, maravilhado e confuso. Estudava as ruas e os canais de Amsterdã. Havia um homem que mo­rava na esquina sudoeste da Utrechtsestraat com Kerkstraat, um homem que ele devia identificar, isolar e contatar... seu trampolim para Washington seria como “membro da família de Tatiana”. Precisava tirar Cort Thorbecke da sua base de operações sem aler­tar os caçadores de Aquitânia. Pagaria um intermediário que fa­lasse inglês para telefonar e usar palavras suficientemente plausíveis que conduzissem o corretor a algum lugar escuro, sem mencionar a conexão Tatiana ou sua fonte em Paris. Essas palavras tinham de ser encontradas; Joel as acharia de algum modo, tinha de achá-las. Psicologicamente estava a caminho da lareira amiga — em termos de tempo real, a menos de sete horas de Washington —-, ao encon­tro de homens que escutariam o que tinha a dizer, com a ajuda de Nathan Simon e com documentos extraordinários que os convence­riam a escondê-lo e protegê-lo até que os soldados de Aquitânia fossem desmascarados. Não era o modo de ação previsto por um homem que ele conhecera em Connecticut como Avery Fowler, não eram as táticas legais que os exporiam ao ridículo, aconselhadas por A. Preston Halliday em Genebra, mas não havia tempo para isso agora. Não havia mais oportunidade para manipular as teias da legalidade.

 

O trem diminuiu a marcha, aos solavancos, como se o maqui­nista lá na frente estivesse tentando enviar uma mensagem para o carro barulhento dos veranistas, que sentiu o choque com maior intensidade. Se era essa sua intenção, o tiro saiu pela culatra. O movimento brusco serviu apenas para aumentar as risadas e pro­vocar insultos gritados a um incompetente invisível.

— Amstel! — gritou o condutor, abrindo a porta entre os carros. — Amsterdã, Amst...! — O pobre homem não pôde ter­minar, teve de fechar a porta rapidamente, para se defender dos jornais enrolados que atiraram contra ele. Acampamento de verão na Holanda.

O trem entrou na estação e o contingente de camisetas e seios anunciou sua chegada com gritos de alegria. Cinco ou seis pessoas do grupo de Joel levantaram-se num só movimento para cumpri­mentar amigos; mais uma vez as latas de cerveja erguiam-se no ar e o riso ricocheteava nas paredes, quase abafando os apitos dos trens que partiam. Corpos caíam sobre corpos, trocavam-se abraços, seios eram afagados com gestos bem-humorados.

Na frente dos recém-chegados, com andar cambaleante, cami­nhava o alvo ilogicamente lógico das brincadeiras juvenis a que Converse assistia. Uma velha, obviamente embriagada, passava pelo corredor entre os bancos, as roupas em desordem combinando com a sacola de lona que segurava na mão esquerda, enquanto com a direita se apoiava nos encostos quando o trem acelerava a mar­cha. Com um largo sorriso, ela aceitou uma garrafa de cerveja, enquanto outra era atirada para dentro da sua sacola, acompa­nhada por diversos tipos de sanduíches embrulhados em papel im­permeável. Repetiram-se os cumprimentos de boas-vindas quando dois homens fizeram profundas reverências para a mulher, como se ela fosse uma rainha. Um terceiro deu-lhe uma palmada nas ná­degas e assobiou. O ritual continuou por alguns minutos, um novo brinquedo mecânico para as crianças do acampamento de verão. A mulher bebeu e dançou fazendo gestos maliciosos para os homens e mulheres, mostrando a língua e girando-a fora da boca, os olhos arregalados, o xale rasgado rodopiando como no balé de uma xeerazade macabra. Todos se divertiam com suas graças, e ela acei­tava tudo o que jogavam no xale estendido, inclusive moedas. Os veranistas holandeses eram bons, pensou Joel; preocupavam-se com uma pessoa infeliz, que seria expulsa por outros em outros vagões. A mulher aproximou-se dele, com a sacola de lona na frente do corpo, para recolher esmolas dos dois lados. Converse enfiou a mão no bolso para apanhar alguns guilders e colocou-os na sacola.

— Goedemorgen — disse a mulher, cambaleando. — Dank u wel, beste man, erg vriendeligk van u!

Joel assentiu com a cabeça, voltando ao mapa, mas a mulher não se moveu.

— Uw hoofd! Ach, heb je een ongeluk gehad, jongen?

Converse mais uma vez assentiu com a cabeça, enfiou a mão no bolso e deu mais algumas moedas para a velha. Apontou para o mapa e fez sinal com a mão para que ela fosse embora, enquanto outra canção começava.

— Spreekt u Engels? — gritou a mulher com a sacola, inclinando-se sem firmeza.

Joel ergueu os ombros, afundando mais no banco com os olhos no mapa.

— Acho que fala — disse a velha com voz rouca, clara, sóbria, a mão direita não mais se apoiando no encosto, mas dentro da sacola de lona. — Procuramos por você todos os dias, em todos os trens. Não se mova! A arma tem um silenciador. Com todo este barulho, se eu puxar o gatilho ninguém vai notar, nem mesmo o homem que está ao seu lado e que só quer juntar-se aos outros e à mulher de seios grandes. Acho que devemos deixar que o façam. Nós temos você, Meneer Converse!

Não havia acampamento de verão, afinal. Só a morte a poucos minutos de Amsterdã.

 

— Mag ik u even lastig vallen? — gritou a mulher, mais uma vez cambaleando e acenando para o passageiro ao lado de Converse. O homem desviou os olhos das festividades ruidosas e olhou para a velha. Ela gritou outra vez, com a mão direita ainda na sacola, o cabelo grisalho e despenteado agitando-se de um lado para outro, acenando com a cabeça para a direita, na direção da frente do carro. — Zou ik op uw plaats mogen zitten?

— Mij best! — O homem levantou-se com um largo sorriso, e Joel instintivamente afastou as pernas para lhe dar passagem. — Dank u wel — disse o homem, dirigindo-se para um banco vazio na frente de um casal que dançava na passagem.

— Vá para lá! — ordenou a mulher com voz áspera, balan­çando com o movimento do trem.

Ia acontecer, pensou Converse, ia acontecer agora. Começou a se levantar, os olhos fixos à sua frente, o cotovelo direito no en­costo, a poucos centímetros da sacola. Subitamente, enfiou a mão na sacola cheia e agarrou o pulso gordo da mulher que segurava a arma invisível. Pressionando para baixo, agarrando carne e metal, ele virou o corpo violentamente para a esquerda, obrigando-a a se voltar, empurrando-a para o lugar próximo da janela. Houve um estampido surdo e a bala atravessou a lona da sacola, a fumaça espiralou, o projétil penetrou embaixo do banco da frente. A força da velha era a de um maníaco, além de tudo o que Converse pode­ria imaginar. Ela lutava selvagemente, arranhando o rosto dele, até que Joel conseguiu torcer o braço dela para trás, apertando-o con­tra as costas da fera, as mãos livres de ambos lutando ainda dentro da sacola. Ela não largava a arma e Joel não conseguia fazê-la abrir a mão; continuava pressionando para baixo, imobilizando os dedos fortes, força contra força, o rosto contraído da velha dizendo-lhe que ela não ia ceder.

A festa matinal no vagão chegou a um crescendo; uma cacofo­nia de vozes que cantavam, competindo com os ecos das risadas. E ninguém prestava atenção à luta selvagem no banco estreito. Subi­tamente, no pânico daquela luta, no impasse violento, Joel percebeu que o trem diminuía a marcha, quase imperceptivelmente. Mais uma vez seus instintos de piloto avisavam que a descida estava iminente. Enfiou o cotovelo no seio esquerdo da mulher para obri­gá-la a largar a arma. Mas ela continuou resistindo, apoiando-se no banco, o braço preso nas costas, as pernas gordas estendidas, como grossas colunas ancoradas sob o banco da frente, o corpo obeso torcido, imobilizando o braço de Converse para que não lhe arran­casse a arma da mão.

— Largue! — murmurou ele com voz rouca. — Não vou ma­chucar você — não vou matá-la. Seja o que for que lhe prome­teram, eu pago mais!

— Nee! Iam me encontrar no fundo do canal! Você não pode escapar. Menheer! Esperam por você em Amsterdã, estão espe­rando o trem! — Com uma careta, a mulher deu um impulso para a frente, libertando brevemente o braço esquerdo. Ergueu a mão, com as unhas no rosto de Converse, puxando sua barba, até que ele conseguiu agarrar o pulso dela, torcendo-o, puxando o braço da mulher por cima do banco e batendo-o contra os joelhos dela, obrigando-a a ficar imóvel. Não fez nenhuma diferença. A mão direita da velha tinha a força de uma leoa protegendo os filhotes; não soltou a arma.

— Você está mentindo! — exclamou Converse. — Ninguém sabe que estou neste trem! Você só embarcou há vinte minutos!

— Errado, Amerikaan! Estou no trem desde Arnhem — vim do primeiro vagão até o último. Descobri você em Utrecht e te­lefonei.

— Mentirosa!

— Você vai ver.

— Quem a contratou?

— Homens.

— Quem?

— Você vai ver.

— Idiota, você não faz parte deles! Não pode fazer!

— Eles pagam. Por todo o trajeto, eles pagam. Nas docas, nos aeroportos. Eles dizem que você só fala inglês.

— O que mais eles dizem?

— Por que vou lhe dizer? Você foi apanhado. É você que tem de me soltar. Será mais fácil.

— Como? Uma bala na cabeça em lugar de uma jaula em Hanói?

— Seja lá o que for, a bala é melhor. É muito jovem para saber, Meneer. Nunca esteve num país ocupado.

— E você é velha demais para ser tão forte. Reconheço isso.

— Ja, aprendi isso também.

— Solte!

O trem estava freando e os alegres bêbados reagiram com apro­vação, enquanto os homens apanhavam as malas das redes perto do teto. O passageiro que estivera sentado ao lado de Joel retirou a sua rapidamente, encostando a barriga no ombro de Converse. Joel tentou fingir que estava conversando com sua meia-prisioneira; o homem afastou-se com um largo sorriso.

A mulher lançou-se para a frente, enfiando os dentes no braço de Converse, a alguns milímetros do ferimento. Mordeu-o selvagemente, os dentes amarelados penetrando na carne, o sangue espir­rando, escorrendo pelo queixo dela.

Converse puxou o braço com a dor intensa. Ela libertou a mão dentro da sacola; a arma lhe pertencia! A mulher atirou; o estam­pido abafado foi acompanhado pelo ruído do estilhaçamento do assoalho da passagem, passando a poucos centímetros do pé de Converse. Ele agarrou o cano invisível, virou-o para o lado, pu­xou-o, tentando com toda a força retirá-lo das mãos da mulher. Ela atirou outra vez.

Os olhos da velha se arregalaram quando ela caiu para trás no banco. Continuaram abertos enquanto o corpo escorregava para a janela, o sangue espalhando-se rapidamente na fazenda fina do vestido, acima do estômago. Estava morta, e Joel sentiu-se mal, nauseado — respirou fundo para não vomitar. Trêmulo, imaginou quem seria essa mulher, por que ela era o que era — o que tinha passado para ser o que era. Você é muito jovem para saber... Nunca esteve em um país ocupado.

Não tinha tempo agora para pensar nessas coisas! Ela queria matá-lo, isso era o que importava, e homens esperavam por ele a poucos minutos de distância. Precisava pensar, agir!

Tirando a arma da mão da mulher, dentro da sacola, enfiou-a rapidamente no casaco, sob o cinto, sentindo o peso da outra arma no bolso. Arrumou o vestido da mulher, colocou o xale sobre o ferimento e puxou o cabelo grisalho para o lado direito do rosto, a fim de esconder os olhos arregalados. A experiência adquirida nos campos dizia-lhe que não tentasse fechá-los; geralmente não era possível. Além disso, podia chamar atenção para ele — para ela. A última coisa que fez foi tirar uma lata de cerveja da sacola, abri-la e colocá-la no colo dela, o líquido se derramando, encharcando a roupa.

— Amsterdam! De volgende halte is Amsterdam-Centraal!

Um rugido elevou-se do pessoal do vagão e começaram a fazer fila para sair. Oh, Cristo! pensou Converse. Como? A mulher dis­sera que tinham dado um telefonema. Tinham dado, o que signifi­cava que não tinha sido feito por ela. Era lógico; o tempo era curto. Sem dúvida pagara a uma das suas amigas que percorriam os trens na estação de Utrecht, para telefonar. Sendo assim, a informação fora mínima, simplesmente porque não havia tempo. Ela era uma contratada especial, escolhida como só Aquitânia sabia escolher, uma mulher velha e forte, que sabia usar uma arma e que não hesitaria em matar — que não diria nada a ninguém. Apenas um número de telefone e instruções para repetir a hora da chegada do trem. Nesse caso... ele tinha uma chance. Todos os homens seriam examinados, todos os rostos comparados com o rosto que estava nos jornais. Mas ele era e não era esse rosto! E só falava inglês — essa informação fora espalhada enfaticamente.

Pense!

— Ze is dronken! — As palavras foram gritadas pelo corpu­lento acompanhante da mulher extremamente bem-dotada, apon­tando para o corpo da velha. Os dois estavam rindo, e Joel não precisava de um intérprete para compreender. Assentiu com a ca­beça, com um largo sorriso, erguendo os ombros. Tinha descoberto o caminho para sair da estação de Amsterdã.

Pois Converse compreendeu que existia uma linguagem univer­sal usada quando os decibéis eram tão altos que não se podia ouvir ou ser ouvido. Era usado também quando se estava entediado numa festa, ou quando se assistia a jogos de futebol na televisão, com palhaços convencidos de que sabiam muito mais do que os trei­nadores e os jogadores, ou quando se estava encurralado numa noite em Nova Iorque com o beautiful people — cuja maioria não se qualificava nem como belo nem como gente no sentido mais rudimentar das palavras, os egos afastando o talento e a humani­dade. Nessas situações, o melhor era assentir com a cabeça; sorrir; ocasionalmente encostar a mão amistosamente no ombro de al­guém, o toque significando comunicação — mas sem dizer coisa alguma.

Joel fez tudo isso quando saiu do trem, com o homem corpu­lento e a mulher. Parecia um maníaco, desempenhando o papel como se soubesse que nada mais havia entre a morte e a sobrevi­vência a não ser uma espécie de loucura controlada. O advogado que existia nele forneceu o controle; o menino piloto mediu os ventos, sabendo que seu aparelho ia reagir ã pressão dos elementos porque era perfeito e porque o piloto era bom e sentia prazer na loucura de uma parada do motor provocada por uma corrente des­cendente; saía do mergulho com facilidade.

Tinha tirado os óculos escuros e puxou o boné sobre os olhos. Sua mão estava no ombro do homem corpulento enquanto cami­nhavam pela plataforma, o holandês rindo e falando, Joel assen­tindo com a cabeça, dando pancadinhas no ombro do compa­nheiro, sempre que havia uma pausa no monólogo. O casal tinha bebido um pouco, e não dava muita atenção às suas respostas in­compreensíveis; ele parecia uma boa pessoa, e no estado em que estavam nada importava.

Saíram da plataforma, encaminhando-se para o terminal, e os olhos de Converse foram atraídos para um homem de pé no meio de amigos que vinham receber os viajantes, além da entrada, no fim da rampa. Joel a princípio notou-o porque, ao contrário das pes­soas que o rodeavam — com os rostos iluminados por vários graus de antecipação —, o homem estava sério, quase solene. Não estava ali para dar as boas-vindas. Então Converse compreendeu que ha­via outro motivo para que o homem lhe despertasse a atenção. No momento em que reconheceu o rosto lembrou-se de onde já o tinha visto — andando rapidamente em uma trilha no meio da folhagem, com outro homem, outro guarda. O homem era um dos membros das patrulhas da casa de Erich Leifhelm, nas margens do Reno.

Quando se aproximaram da entrada em arco, Joel riu um pou­co mais alto e bateu no ombro do holandês com mais entusiasmo, conservando o boné sobre os olhos. Balançou a cabeça várias vezes em assentimento, ergueu os ombros e depois sacudiu a cabeça com bom humor; com as sobrancelhas franzidas e os lábios em movi­mento constante, evidentemente mantinha uma conversa animada. Com os olhos semicerrados, Joel notou que o guarda de Leifhelm estava olhando para ele; depois, desviou a vista. Passaram pelo arco e com o canto dos olhos, Joel notou subitamente uma cabeça que se voltava rapidamente e alguém que abria caminho entre a multidão. Converse olhou por cima do ombro do holandês. E acon­teceu. Seus olhos se encontraram com os do guarda de Leifhelm. O reconhecimento foi imediato, e por um minuto o alemão entrou em pânico, voltando a cabeça para a rampa. Começou a gritar, depois parou. Pôs a mão dentro do paletó e adiantou-se.

Joel afastou-se do casal e começou a correr, ziguezagueando entre as pessoas, abrindo caminho naquela parede de corpos, na direção de rampas que subiam para saídas, pelas quais o sol entrava no terminal. Olhou para trás duas vezes, enquanto corria; da pri­meira, não viu o homem, da segunda sim. O guarda de Leifhelm gritava ordens para alguém, na ponta dos pés para ver e ser visto, apontando para as portas de saída mais adiante. Converse correu, abrindo caminho na direção dos degraus que levavam à saída. Su­biu a escada rapidamente mas acompanhando o passo dos passa­geiros mais apressados, mantendo-se no centro, tentando despertar o mínimo possível de atenção.

Lançou-se para a porta, para a luz do sol, em confusão total. Lá embaixo viu água e ancoradouros e barcos com cobertas de vidro balançando, pessoas passando por eles apressadamente, ou­tros embarcando sob os olhos vigilantes de homens com uniformes azul-e-brancos. Tinha saído do trem diretamente para um estranho cais. Lembrou-se então: a estação de Amsterdã ficava em uma ilha, de frente para o centro da cidade, por isso era chamada Central. Mas havia uma rua — duas, três ruas sobre a água, levando a outras ruas, a árvores e prédios... não tinha tempo! Ele estava em espaço aberto e aquelas ruas distantes eram suas cavernas de sobre­vivência; eram as ravinas e as extensões de arbustos espessos e impenetráveis e de pântanos que o esconderiam do inimigo! Correu o mais depressa que pôde pela avenida larga sobre a água e chegou a uma outra, mais larga, repleta de ônibus, bondes e automóveis, todos nos respectivos pontos de partida ansiosos pelas campainhas que dariam o sinal de largada. Viu uma fila que diminuía rapida­mente na porta de um bonde elétrico, os últimos dois passageiros estavam embarcando; Converse correu e, quando a porta começava a se fechar, entrou no bonde — o último passageiro.

Viu um banco vazio na última fila e caminhou rapidamente para o fundo do veículo. Sentou-se, a respiração ofegante, desespe­rada, o suor molhando a raiz dos cabelos e as têmporas, escorrendo pelo rosto, a camisa encharcada sob o paletó. Só então percebeu como estava exausto, como eram sonoras e rápidas as batidas no seu peito, como sua visão e sua mente estavam embaçadas. O medo e a dor combinados haviam criado uma espécie de histeria. O desejo de continuar vivo e o ódio a Aquitânia o mantinham em movi­mento. Dor? Subitamente tomou conhecimento da dor no braço, sobre o ferimento, o último ato de vingança de uma velha — vin­gança de quê? Para quê? Um inimigo? Dinheiro? Não tinha tempo!

O bonde começou a andar e ele voltou-se, olhando pela janela traseira. Viu o que queria ver. O guarda de Leifhelm corria pelo cruzamento. Outro homem vinha correndo do ancoradouro. En­contraram-se e obviamente as palavras que trocaram eram quase de pânico. Um terceiro juntou-se a eles, vindo de onde, Joel não sabia; subitamente apareceu ao lado dos outros dois. Os homens conver­saram rapidamente, o guarda de Leifhelm aparentemente o líder; ele apontava em várias direções, dando ordens. Um homem correu pela rua e começou a verificar a meia dúzia de táxis parados no engarrafamento; outro ficou parado na calçada, depois andou lentamente por entre as mesas de um café ao ar livre, entrando, em seguida. Finalmente, o guarda de Leifhelm vol­tou correndo para o cruzamento, esquivando-se dos carros, e ao chegar à calçada oposta fez um sinal. Uma mulher saiu de uma loja e foi ao encontro dele na esquina.

Ninguém tinha pensado no bonde. Era sua primeira caverna de sobrevivência. Recostou-se no banco e tentou pôr em ordem os pensamentos, sabendo que seria difícil enfrentá-los. Aquitânia pe­netraria em Amsterdã, procuraria pela cidade inteira até encon­trá-lo. Existiria algum modo de entrar em contato com Thorbecke ou estava enganando a si mesmo, confiando no passado, quando acidentes e arrogância inesperada haviam levado ao sucesso? Não, não podia pensar ainda. Precisava deitar-se no fundo da caverna e descansar, e, se o sono chegasse, esperava que não trouxesse pesa­delos. Olhou pela janela e viu uma placa. Estava escrito DAMRAK.

Ficou no bonde por mais de uma hora. As ruas movimentadas, a arquitetura encantadora dos prédios com séculos de existência e os canais infindáveis o acalmaram. O braço doía ainda por causa da dentada da mulher, mas não demais, e a idéia de limpar o feri­mento não o preocupava. Não podia lamentar a velha, mas, como acontecia com testemunhas estranhas no tribunal, gostaria de co­nhecer a história dela.

Hotéis estavam fora de cogitação. A infantaria de Aquitânia os examinaria de alto a baixo, oferecendo grandes quantias por qual­quer informação sobre um americano com sua aparência — que agora eles já conheciam. Thorbecke seria vigiado, seu telefone “grampeado”, cada movimento ou conversa verificados. Até a em­baixada, ou consulado — fosse lá o que fosse, em Amsterdã — teria outro adido militar ou seu equivalente preparado para o sinal de que um não-assassino queria asilo para iniciar um processo de ratificação. Se seu julgamento estava correto, restava-lhe uma única saída. Nathan Simon.

Nathan, o Sensato, Joel o chamara uma vez, obtendo como resposta que um não-judeu com sua inteligência devia inventar algo mais original. Depois de uma conferência longa no escritório, du­rante a qual Nathan explicara detalhadamente por que não deviam aceitar um cliente chamado Liebowitz, que na sua opinião carregaria demais a obrigação de respeitar a confidência do cliente, e durante a qual Lawrence Talbot tinha cochilado, Converse sugerira que mudasse o apelido para Nathan, o Talmúdico tedioso. Nate dera uma gargalhada sonora, acordando Talbot, e exclamara: “Gostei! E Sylvia vai gostar mais ainda!”

Joel aprendera mais sobre leis com Nathan Simon do que com qualquer outra pessoa, mas sempre houvera uma distância entre eles. Era como se Nate não quisesse se aproximar demais, a des­peito da evidente afeição que tinha pelo jovem advogado. Converse julgava compreender; era uma questão de lealdade. Simon tinha dois filhos que, segundo a frase convencional e discreta, “trabalha­vam por conta própria na Califórnia e na Flórida”. Um vendia seguros em Santa Bárbara e o outro tomava conta de um bar em Key West. Nate Simon era difícil de imitar, e Joel teve uma idéia disso certa tarde em que Simon o convidou para um drinque no “21” depois de uma conferência cansativa na Quinta Avenida.

— Eu gosto de seu pai, Converse. Gosto de Roger. Ele tem os mínimos predicados jurídicos, mas é um bom homem.

— Ele não tem predicados jurídicos, e tentei evitar que nos procurasse.

— Não conseguiria. Ele tinha de fazer esse gesto. Ter algum negócio onde o filho trabalha. Muito tocante.

— Com um testamento desnecessário pelo qual você generosa­mente cobrou duzentos dólares, e uma cláusula maluca doando as medalhas a três instituições diferentes — pela qual você não cobrou nada, alegando patriotismo.

— Estivemos no mesmo teatro de operações.

— Onde?

— Europa.

— Ora, vamos, Nate. Ele é meu pai e eu o amo, mas sei também que é um excêntrico. Tire-o da sua época e ele não saberá onde está. A Pan Am foi compensada do que lhe pagou, não no sen­tido administrativo, mas porque ele era uma figura importante nas convenções.

Nathan Simon tinha segurado o copo com força, naquela tarde no “21” e, quando falou, havia em sua voz o eco profundo de um homem extremamente perturbado.

— Respeite seu pai, ouviu, Joel? Meu amigo Roger fez um gesto de oferecimento para o filho, com tudo o que ele tem, tudo o que podia imaginar. Eu tive muito mais e não soube como fazer esse gesto. Só dei ordens... Ele disse que eu ainda posso. Vou aprender a pilotar.

Simon o ajudaria, mas só se estivesse convencido de que havia algo substancial em seu processo. Mas legalmente ele recusaria se pensasse que seu relacionamento ou qualquer sentimento pessoal estavam sendo usados para manipulá-lo. Naturalmente, se houvesse uma acusação, ele se apressaria em trabalhar para a defesa depois do fato. Era uma atitude profissional; essa era a ética. E, por essa altura, Valerie já teria enviado o envelope com os dossiês e com as espantosas implicações. Era a substância exigida por Simon. Co­nhecendo Val, tinha certeza de que ela havia enviado os documen­tos por motorista, o grande serviço postal americano tendo dado origem a uns vinte competidores que repartiam o dólar do pagador de impostos. A decisão de Joel estava tomada. Havia uma diferença de cinco horas para Nova Iorque, portanto esperaria até o cair da noite e então telefonaria para Nathan Simon. Estava funcionando outra vez.

O bonde chegou ao ponto final, de onde voltava pelo caminho percorrido. Era o único passageiro; desceu e viu outro bonde. Tomou-o. Asilo inviolável.

Umas cem ruas e uns doze canais mais adiante, Joel olhou pela janela, encorajado pela pobreza do bairro que atravessavam, limpo na superfície mas com a promessa de bactérias muito mais interes­santes por baixo. Viu uma fileira de lojas de pornografia, as merca­dorias expostas nas vitrines. Nas janelas do andar superior, mulhe­res muito pintadas em poses provocantes, com e sem sutiãs, com expressão entediada e letárgica giravam os quadris freneticamente.

Os transeuntes pareciam animados, alguns curiosos, outros fingindo-se chocados, outros interessados em comprar. Era uma atmos­fera de parque de diversões, na qual seria fácil se tornar invisível, pensou Converse, dirigindo-se para a porta do bonde.

Caminhou a esmo pelas ruas, atônito, embaraçado mesmo, como sempre se sentia quando o sexo era apresentado assim aber­tamente. Tinha prazer no ato sexual e correspondia perfeitamente às exigências do mesmo, mas para ele a privacidade era a garantia do prazer total. Não seria capaz de entrar em uma daquelas portas iluminadas com luz néon, a caminho do céu, como não seria capaz de evacuar na calçada.

Havia um café no outro lado da rua; ficava sobre o canal, mesas na calçada, escuro no interior. O que chamou sua atenção foram as pessoas paradas na porta, algumas apenas olhando rapi­damente para dentro e continuando seu caminho, atraídas bre­vemente por algo estranho. Foi a multidão que o atraiu; havia anonimato entre o povo. Atravessou a rua, abriu caminho e entrou. O sono talvez estivesse fora de questão, mas precisava comer. Não fizera uma refeição decente em quase três dias. Encontrou uma pequena mesa desocupada no fundo do café, e olhou espantado para um aparelho de televisão na parede, com o som a todo vo­lume. Converse não compreendeu. Não havia transmissão diurna na Holanda! Quantas vezes amigos e conhecidos haviam comen­tado que um dos mais civilizados aspectos da Holanda era a ausên­cia da caixa idiota até sete horas da noite? Por outro lado, os entusiastas de esportes reclamavam que não podiam assistir a certas competições, mas de um modo geral a opinião era favorável à educação e discrição do povo holandês. No entanto, ali estava uma televisão em pleno funcionamento. Sem dúvida por isso os tran­seuntes olhavam para dentro, balançando a cabeça, intrigados.

Então Joel viu o cartão dobrado sobre a mesa, impresso em quatro línguas, o inglês encabeçando a lista.

 

De acordo com o avanço da tecnologia temos o prazer de oferecer a nossos fregueses e visitantes do exterior as gravações dos nossos programas nacionais.

 

Era uma atração, uma forma de atrair fregueses; o bairro era próprio para isso. E compreendeu por que a língua inglesa encabe­çava a lista: e pluribus unum. Não podemos perder contato com a televisão. Pelo menos as gravações eram em holandês; ajudava, mas não muito.

Uísque puro ajudava, mas também não muito. A ansiedade do caçado voltou e virava a cabeça constantemente para a porta, es­perando ver a qualquer momento a infantaria de Aquitânia che­gando ao café, saindo do sol e entrando na caverna para apanhá-lo. Foi ao banheiro nos fundos do café, tirou o paletó, colocou a arma com o silenciador no bolso interno e despiu a manga esquerda. Encheu um dos dois lavatórios com água fria e mergulhou o rosto, jogando água na cabeça e na nuca. Sentiu uma vibração, um som! Levantou a cabeça rapidamente, engasgando-se, assustado, a mão instintivamente estendida para o paletó no cabide. Um homem cor­pulento de meia-idade cumprimentou-o com um leve movimento de cabeça e dirigiu-se para o mictório. Joel olhou para as marcas de dentes no seu braço; pareciam mordida de cachorro. Esvaziou o lavatório, abriu a torneira de água quente e com uma toalha de papel limpou a área ferida até tirar sangue. Era o melhor que podia fazer; séculos atrás tinha feito a mesma coisa quando ratos aquá­ticos o atacaram na sua jaula de bambu. Então, com outro tipo de pânico, Joel tinha aprendido que os ratos podiam ser assustados. E mortos. O homem no mictório voltou-se e dirigiu-se para a porta, olhando embaraçado para Converse.

Joel colocou a toalha de papel sobre as marcas de dentes, vestiu o paletó e penteou o cabelo. Abriu a porta e voltou para a sua mesa, mais uma vez incomodado com o volume da televisão na parede.

O cardápio, como o cartão sobre a televisão, era em quatro línguas, a última oriental, provavelmente japonês. Converse sentiu-se tentado a pedir o mais mal passado e maior bife que pudesse encontrar, mas seu controle de piloto lhe indicou o contrário. Não dormia o suficiente há dias — na verdade, desde sua fuga da casa de Leifhelm, onde o sono era induzido pelas grandes quantidades de alimento, tudo parte do processo de recuperação de um peão que se desviara da linha. Uma refeição abundante provocaria sono, e não era possível pilotar um jato a novecentos quilômetros por hora nessas condições. No momento a velocidade do ar aproximava-se de Mach I. Pediu filé de linguado e arroz; podia repetir, se quisesse. E mais um uísque.

A voz! Oh, Cristo. A voz! Estava tendo alucinações! Estava enlouquecendo! Ouvia uma voz — o eco de uma voz — que não podia estar ouvindo!

— ...Na verdade, considero isso uma desgraça nacional, mas como tantos outros só falo inglês.

— Frau Converse...

— Miss — Fräulein, acho — é o mais certo — Charpentier, se não se importa.

— Dames en heren... — interrompeu outra voz calma e autori­tária, em holandês.

Converse tentou respirar e não conseguiu, agarrou o próprio pulso com força, fechando os olhos com tanta intensidade que cada músculo do rosto ficou dolorido, e virou a cabeça para o outro lado, para longe da terrível, terrível alucinação.

— Estou em Berlim a negócios — sou consultora de uma firma em Nova Iorque...

— Mevrouw Converse, of juffrouw Charpentier, zoais we...

Joel estava certo agora de que estava louco, insano! Ouvia o impossível. Ouvia! Voltou-se rapidamente e olhou. A tela da tele­visão! Era Valerie! Ela estava ali!

— Tudo o que disser, Fräulein Charpentier, será traduzido com exatidão, posso lhe garantir.

— Zoais juffrouw Charpentier zojuist zei — a outra voz, a voz do holandês.

— Há alguns anos não vejo meu ex-marido — três ou quatro, creio. Na verdade, somos estranhos. Só posso expressar o choque sentido por todo o meu país...

— Juffrouw Charpentier, de vroegere mevrouw Converse...

— ...ele era um homem profundamente perturbado, sujeito a períodos de extrema depressão, mas nunca imaginei nada como isso.

— Hij moet mentaal gestoord zijn...

— Não há ligação nenhuma entre nós e surpreende-me o fato de terem sabido que eu estava em Berlim. Mas agradeço a oportuni­dade para “purificar o ar”, como dizemos.

— Mevrouw Converse gelooft...

— A despeito das terríveis circunstâncias, sobre as quais natu­ralmente não tenho nenhum controle, estou encantada por estar na sua bela cidade. Meia-cidade, creio, mas esta é a parte mais bonita. E me disseram que o Bristol-Kempinski... Sinto muito, é o que chamamos de “comercial” e eu não devia ter dito.

— É um marco da nossa cidade, Fräulein Charpentier. Aqui não é verboten. Sente-se ameaçada de algum modo?

— Mevrouw Converse, voelt u zieh bedreigd?

— Não, não realmente. Nada temos em comum há tanto tempo!

Meu Deus! Val viera procurá-lo! Estava enviando um sinal — sinais! Ela falava alemão tão fluente quanto a entrevistadora! Eles se viam todos os meses; tinham almoçado juntos há seis semanas em Boston! Tudo o que dizia era mentira e nas mentiras estava o código. O código deles! Entre em contato comigo!



 

[1] ABA — American Bar Association — Ordem dos Advogados dos Estados Unidos. (N.da T.)

 

 

                                                                               CONTINUA

 

                      

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