Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AVANÇO DE AQUITÂNIA / Robert Ludlum
O AVANÇO DE AQUITÂNIA / Robert Ludlum

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O AVANÇO DE AQUITÂNIA

Primeira Parte

 

Genebra. Cidade de sol e de reflexos brilhantes. De velas brancas e trêmulas no lago — estruturas fortes e irregulares erguendo-se para o céu, suas imagens, em ondas concêntricas, descendo para o fundo da água. Genebra de miríades de flores cercando as bacias verde-azuladas dos chafarizes — duetos de explosões coloridas. De pontes pequenas e elegantes arqueando-se sobre superfícies vítreas de pe­quenos lagos artificiais, conduzindo a pequenas ilhas feitas pelo homem, santuários para os amantes, os amigos e para negociações amigáveis e secretas. Reflexos.

Genebra, a velha e a nova. Cidade de altos muros medievais e vitrôs coloridos, de catedrais sagradas e instituições menos santifi­cadas. Dos cafés nas calçadas e concertos à beira do lago, de anco­radouros em miniatura e barcos de cores alegres que passeiam ao longo da vasta linha da praia, os guias apregoando as virtudes — e o valor estimado — das residências de frente para o lago que, sem dúvida, pertencem a outras épocas.

Genebra. Cidade de propósito definido, dedicada à necessidade da dedicação, a frivolidade tolerada apenas quando é fator intrín­seco da agenda do negócio. O riso é medido, controlado — os olhares indicam a aprovação do suficiente e a censura do excesso. O cantão ao lado do lago conhece a própria alma. Sua beleza coexiste com a indústria, o equilíbrio não só é aceito, como zelosamente conservado.

Genebra. Cidade também do inesperado, da previsibilidade em conflito com a revelação súbita e indesejável, a violência da mente atingida por descargas de relâmpagos individuais.

Segue-se o ribombar do trovão. O céu escurece e a chuva cai. Um dilúvio, despejando-se sobre as águas furiosas, tomadas de surpresa, distorcendo a visão, explodindo numa vaporização gi­gantesca. A marca registrada de Genebra no lago, o jet d’eau, o geiser feito pelo homem para assombrar o homem. Quando chegam as revelações súbitas, a fonte gigantesca morre. Todas as fontes morrem e, sem a luz do sol, as flores murcham. Os reflexos bri­lhantes desaparecem e a mente se congela. Genebra. Cidade da inconstância.

 

Joel Converse, advogado, saiu do hotel Richmond para o sol ofus­cante da manhã, no Jardim Brunswick. Entrecerrando os olhos, virou para a esquerda, passando a pasta de executivo para a mão direita, consciente do valor do que continha, mas pensando princi­palmente no homem com quem ia se encontrar para café e crois­sants no Chat Botté, um café de calçada em frente ao lago. “Reen­contrar” seria mais preciso, pensou Converse, se o homem não o tivesse confundido com outra pessoa.

A. Preston Halliday era o adversário americano de Joel nas negociações em curso, os detalhes finais para uma fusão suíço-americana, que levara os dois homens a Genebra. Embora faltasse apenas pouca coisa — formalidades, na verdade, uma vez que as análises haviam concluído que os acordos estavam dentro do que estabeleciam as leis dos dois países e eram aceitáveis, segundo o critério da Corte Internacional de Haia —, Halliday era uma estra­nha escolha. Não fizera parte da equipe de advogados americanos escolhidos pelos suíços para investigar a firma de Joel. Esse fato não seria motivo para excluí-lo — um observador novo é freqüen­temente vantajoso — mas elevá-lo à posição de destaque de prin­cipal porta-voz era, por assim dizer, na melhor das hipóteses, pouco ortodoxo. Era também inquietante.

A reputação de Halliday — o pouco que Converse sabia sobre ela — era de um quebra-galho, um mecânico legal de São Francisco capaz de detectar um fio solto, arrancá-lo e provocar um curto-circuito na máquina. Negociações que haviam durado meses e que custaram centenas de milhões haviam sido abortadas pela sua pre­sença, isso Converse lembrava-se de ter ouvido sobre A. Preston Halliday. Mas era tudo. Halliday, porém, disse que se conheciam.

— Press Halliday falando — anunciara a voz no telefone do hotel. — Estou representando Rosen na fissão Comm Tech-Bern.

— O que aconteceu? — perguntou Joel, com o barbeador elé­trico desligado em uma das mãos, tentando localizar o nome; lem­brou-se quando Halliday respondeu.

— O pobre-coitado teve um enfarte, portanto os sócios me chamaram. — O advogado fez uma pausa. — Deve ter sido muito cruel com ele, conselheiro.

— Quase não discutimos, conselheiro. Meu Deus, eu sinto muito. Gosto de Aron. Como está ele?

— Vai se sair bem. Eles o puseram na cama, com doze versões de canja de galinha. Mandou dizer que vai verificar seus documen­tos finais para ver se não têm tinta invisível.

— O que significa que você vai verificar, porque eu não tenho nenhum documento e Aron também não. Este “casamento” baseia-se em pura cobiça, e se estudou os documentos deve saber tão bem quanto eu.

— O costumeiro jogo de contratos e investimentos — concor­dou Halliday — com um grande pedaço de mercado tecnológico. Sem tinta invisível. Mas, como sou novato no bloco, quero fazer algumas perguntas. Vamos tomar café.

— Eu ia pedir o meu no quarto.

— A manhã está linda, por que não tomar um pouco de ar? Estou no Presidem, assim vamos dividir as distâncias. Conhece Le Chat Botté?

— Café americano e croissants. Quai du Mont Blanc.

— Sim, você conhece. Que tal vinte minutos?

— Meia hora, está bem?

— Certo — Halliday fez uma pausa. — Vai ser bom ver você outra vez, Joel.

— Outra vez?

— Talvez não se lembre. Muita coisa aconteceu desde aqueles dias... mais para você do que para mim, acredito.

— Não estou compreendendo.

— Bem, primeiro o Vietnã e você esteve prisioneiro por muito tempo.

— Não foi isso que perguntei, e o Vietnã foi há alguns anos. De onde nos conhecemos? Qual foi o caso?

— Nenhum caso, nenhum negócio. Fomos colegas de escola.

— Na Duke? É uma escola muito grande.

— Muito antes. Talvez se recorde quando nos encontrarmos. Se não, eu o farei lembrar.

— Você deve gostar de adivinhações... Meia hora. Chat Botté.

Enquanto caminhava para o Quai du Mont Blanc, a vibrante avenida na margem do lago, Converse tentava colocar o nome Halliday em uma moldura de tempo, os anos de colégio, um rosto esquecido para um colega não lembrado. Nada, e Halliday não era um nome comum, a abreviação “Press” menos ainda... na ver­dade, única. Se tivesse conhecido alguém chamado Press Halliday, com certeza não se esqueceria. Contudo, o tom da voz sugeria familiaridade, intimidade mesmo.

Vai ser bom ver você outra vez, Joel. As palavras tinham sido pronunciadas calorosamente, bem como a referência gratuita à sua situação de prisioneiro de guerra. Mas afinal essas palavras eram sempre ditas em voz baixa, implicando simpatia, quando esta não era expressa abertamente. Converse compreendia também por que, dadas as circunstâncias, Halliday achara que devia trazer à baila o Vietnã, embora com uma referência passageira. Os não-iniciados supõem que todos os homens que estiveram nos campos de prisio­neiros no Vietnã do Norte, por algum tempo, sofreram danos men­tais, per se; que uma parte de sua mente foi alterada pela experiên­cia, sua memória completamente confundida. Até certo ponto, essa idéia era verdadeira, mas não no que se referia à memória. As lem­branças ficavam mais acentuadas porque eram examinadas com­pulsivamente, muitas vezes de um modo cruel. Os anos acumu­lados, as camadas de experiências... rostos com olhos e vozes, cor­pos de todos os tamanhos e formas; cenas passando como flashes na tela da mente, visões de sons, imagens e cheiros — o tato e o desejo de tocar... nenhum pedacinho do passado era considerado indigno de ser revelado e explorado. Freqüentemente era tudo o que tinham, especialmente à noite — sempre à noite, com a umidade fria e penetrante que enregelava o corpo e o medo infinitamente mais frio, que paralisava a mente — as lembranças eram tudo. Ajudavam a bloquear os gritos distantes no escuro, os estampidos abafados de pequenas armas de fogo, que de manhã eram expli­cados, gratuitamente, como execuções necessárias dos que não se arrependiam e não cooperavam. Ou de prisioneiros com menos sorte, que eram obrigados a participar de jogos, obscenos demais para serem descritos, por seus captores à procura de distração.

Como a maioria dos homens que ficaram isolados durante qua­se todo o tempo de prisão, Converse tinha examinado e reexami­nado cada estágio de sua vida, tentando juntá-los, compreendê-los... tentando gostar... do todo coerente. Muita coisa ele não com­preendia — ou não apreciava — mas podia viver com o produto daquelas investigações intensivas. Morrer com ele, se fosse preciso; essa a paz que conseguira alcançar. Sem ela, o medo seria intole­rável.

E porque esse auto-exame repetia-se noite após noite e exigia disciplina e exatidão, Converse tinha maior facilidade do que mui­tas outras pessoas para recordar segmentos completos de sua vida. Como um disco giratório do computador que pára subitamente, bastava uma informação básica para que ele isolasse uma pessoa ou um nome. A repetição havia simplificado e acelerado o processo, e era isso que o intrigava agora. A não ser que Halliday estivesse se referindo a um tempo tão distante, a um conhecimento breve e esquecido da infância, o nome Halliday não pertencia ao seu pas­sado.

 

Vai ser bom ver você outra vez, Joel. Seriam essas palavras um ardil, um truque de advogado?

 

Converse dobrou a esquina, e lá estava a grade de metal do Chat Botté brilhando, emitindo pequenas explosões de luz do sol. A avenida estava repleta de pequenos carros polidos e ônibus impe­cáveis; as calçadas lavadas, os transeuntes em vários estágios de progresso apressado, mas em perfeita ordem. As manhãs eram a melhor parte do dia para a energia benigna em Genebra. Os pró­prios jornais sobre as mesas do café eram dobrados com precisão, não amassados ou mutilados para facilitar a leitura. E veículos e pedestres não estavam em guerra; o combate era substituído por olhares e acenos, paradas e gestos de agradecimento. Quando Joel passou pela porta de metal aberta do Chat Botté, pensou breve­mente se Genebra não poderia exportar suas manhãs para Nova Iorque. Mas o Conselho da Cidade não aprovaria a importação, concluiu — os cidadãos de Nova Iorque não suportavam os bons modos.

Um jornal foi dobrado com vigor, imediatamente à sua es­querda na altura da mesa e quando foi abaixado Converse viu um rosto que conhecia. Era um rosto harmonioso como o seu, os traços compatíveis e no lugar certo. O cabelo era liso e escuro, com re­partido perfeito e bem penteado, o nariz fino sobre lábios bem defi­nidos. O rosto pertencia ao seu passado, pensou Joel, mas o nome de que se lembrava não pertencia ao rosto.

O homem de feições familiares ergueu a cabeça; seus olhos se encontraram e A. Preston Halliday levantou-se, o corpo baixo e compacto obviamente musculoso sob o terno caro.

— Como vai, Joel? — disse a voz agora familiar, estendendo a mão sobre a mesa.

— Alô... Avery — respondeu Converse, fitando o outro e desajeitadamente passando a pasta para o outro lado para apertar a mão estendida. — É Avery, não é? Avery Fowler. Taft, no começo dos anos 60. Você não voltou para fazer o último ano, e ninguém soube por quê; nós todos comentamos. Você era lutador de luta livre.

— Duas vezes campeão do AlL New England — disse o advo­gado, indicando a cadeira ao seu lado. — Sente-se e vamos recor­dar. Acho que é uma surpresa para você. Por isso quis que nos encontrássemos antes da conferência. Quero dizer, seria uma con­fusão dos diabos se você se levantasse gritando “impostor” quando eu entrasse na sala, não acha?

— Ainda não estou muito certo de que não vou dizer isso, mas não pretendo gritar. — Converse sentou-se com a pasta encostada nos pés, e estudou seu oponente legal. — Que negócio é esse de Halliday? Por que não disse alguma coisa no telefone?

— Ora, deixe disso, o que eu podia dizer? A propósito, amigo velho, você me conhecia como Tinkerbell Jones. Você nem teria aparecido.

— Fowler está na cadeia em algum lugar?

— Estaria se não tivesse dado um tiro na cabeça — respondeu Halliday, com expressão séria.

— Você é cheio de surpresas. É por acaso um clone?

— Não, o filho.

Converse fez uma pausa.

— Talvez eu deva pedir desculpas.

— Não, não precisa, não podia adivinhar. Por isso eu não voltei para o último ano... e que diabo, eu queria aquele troféu. Eu seria o único lutador livre a vencer três anos seguidos.

— Sinto muito. O que aconteceu... ou é informação confiden­cial, conselheiro? Aceitarei esse argumento.

— Não para você, conselheiro. Lembra-se de quando nós dois fugimos para New Haven e apanhamos aquelas donas na estação de ônibus?

— Dissemos que éramos yalies...

— E só fomos enganados, nem fomos para a cama.

— Nossas sobrancelhas não pararam um instante.

— Novatos — disse Halliday. — Escreveram um livro a nosso respeito. Somos realmente tão emasculados?

— De estatura reduzida, mas voltaremos. Somos a última mi­noria, portanto no fim vamos conseguir alguma simpatia... O que aconteceu, Avery?

Um garçom aproximou-se; o momento partiu-se. Os dois pe­diram café americano e croissants, nenhum desvio do padrão nor­mal. O garçom dobrou dois guardanapos vermelhos em forma de cones e colocou-os na frente de cada um deles.

— O que aconteceu? — repetiu Halliday, em voz baixa, retoricamente, depois que o garçom se afastou. — O belo vigarista que era meu pai deu um desfalque de quatrocentos mil no Chase Man­hattan na época em que trabalhava na seção de custódia e, quando o apanharam, deu um tiro na cabeça. Quem podia adivinhar que um respeitável residente de Greenwich, Connecticut, embora trans­plantado, tivesse duas mulheres na cidade, uma no Upper East Side, a outra em Bank Street? Ele era bonito.

— E muito ocupado. Ainda não compreendo o Halliday.

— Depois que isso aconteceu — o suicídio não saiu nos jor­nais — minha mãe fugiu para São Francisco, cheia de revolta. Nós éramos da Califórnia, você sabe... mas, pensando bem, por que deveria saber? Com maior sentimento de vingança ela se casou com meu padrasto, John Halliday, e todos os traços de Fowler foram cuidadosamente removidos durante os meses seguintes.

— Até o seu primeiro nome?

— Não. Sempre fui “Press” quando morávamos em São Francisco. Nós, os californianos, gostamos de nomes fáceis, Tab, Troy, Crotch — a síndrome dos anos 50, em Beverly Hills. No Taft, estava registrado como “Avery Preston Fowler”, por isso vocês começaram a me chamar de Avery ou com o terrível apelido, “Ave”. Como era aluno transferido, não me preocupei em recla­mar. Quando em Connecticut, siga o Evangelho segundo Holden Caulfield.

— Isso tudo está muito bem — disse Converse —, mas o que acontece quando você encontra alguém como eu? Pode acontecer.

— Ficaria surpreso se soubesse como é raro. Afinal, foi há muito tempo, e as pessoas com as quais cresci na Califórnia com­preendiam. As crianças lá mudam de nome de acordo com os capri­chos matrimoniais, e eu fiquei no Leste apenas alguns anos, o quarto e quinto, da escola. Não conhecia ninguém em Greenwich, e não fazia parte dos antigos alunos do Taft.

— Tinha amigos na escola. Nós dois éramos amigos.

— Não tinha muitos. Vamos admitir, eu era um estranho e você não era muito exigente. Procurei ser muito discreto.

— Não no tatame.

Halliday riu.

— Não são muitos os lutadores que viram advogados, há algo no tatame que queima o cérebro. De qualquer modo, para respon­der à sua pergunta, apenas cinco ou seis vezes nos últimos dez anos ouvi alguém dizer: “Ei, você não é fulano de tal e está dizendo outro nome?” Todas as vezes eu lhes contei a verdade. “Minha mãe casou-se outra vez quando eu tinha dezesseis anos.”

O café e os croissants chegaram. Joel partiu o pãozinho em dois.

— E você pensou que eu ia fazer a pergunta na hora errada, ou seja, na conferência. É isso?

— Cortesia profissional. Não queria que você ficasse preo­cupado com a questão do nome — ou comigo — quando devia estar pensando no seu cliente. Afinal, tentamos perder nossa vir­gindade juntos naquela noite em New Haven.

— Fale por você só — Joel sorriu.

Halliday deu um largo sorriso.

— Fomos enganados e admitimos, lembra-se? Incidentalmen­te, juramos guardar segredo, enquanto vomitávamos na lata de lixo.

— Estava só testando você, conselheiro. Eu me lembro. Então você trocou o pessoal da flanela cinzenta pelas camisas alaranjadas e os medalhões dourados?

— Completamente. Berkeley, depois do outro lado da rua, Stanford.

— Boa faculdade... E o campo internacional?

— Sempre gostei de viajar e achei que era o melhor modo de ter viagens pagas. Na verdade, foi assim que comecei. E você? Su­ponho que deve ter viajado mais do que podia desejar.

— Eu tinha ilusões sobre o serviço no exterior, corpo diplomático, departamento legal. Foi assim que começou.

— Depois de todas as viagens que fez?

Converse fitou Halliday, consciente da frieza dos seus olhos. Era inevitável, embora fora de lugar — como sempre.

— Sim, depois de ter viajado tanto. As mentiras eram muitas e só nos contaram quando era tarde demais. Fomos enganados e isso não devia ter acontecido.

Halliday inclinou-se para a frente, os cotovelos apoiados na mesa, as mãos cruzadas, o olhar fixo em Joel.

— Não consegui entender — começou em voz baixa. — Quan­do li seu nome nos jornais, e depois vi você na televisão, senti-me péssimo. Não o conhecia muito bem, mas gostava de você.

— É uma reação natural. Eu teria sentido o mesmo se fosse você.

— Não tenho muita certeza disso. Sabe, fui um dos honchos do movimento de protesto.

— Você queimou seu cartão de recrutamento substituindo-o pelo distintivo hippie — disse Converse delicadamente, toda a frieza desaparecendo dos seus olhos. — Eu não fui tão corajoso.

— Nem eu. Era um cartão de biblioteca, de outro Estado.

— Estou desapontado.

— Eu também fiquei — comigo. Mas eu era visível. — Halli­day recostou-se na cadeira e pegou a xícara de café. — Como foi que você ficou tão visível, Joel? Acho que não era bem o tipo.

— Não era. Fui pressionado.

— Pensei que tinha dito enganado.

— Isso foi depois. — Converse ergueu a xícara e tomou um gole de café, embaraçado com o rumo da conversa. Não gostava de discutir aquele tempo, e freqüentemente o obrigavam a isso. Eles o imaginavam como alguém completamente diferente do que era. — Estava no segundo ano da Amherst e não era ótimo aluno... Não muito bom, que diabo, eu era marginal-negativo, e qualquer di­lação que pudesse obter estava destinada ao fracasso. Mas eu voava desde os quatorze anos.

— Não sabia disso — interrompeu Halliday.

— Meu pai não era bonito e não tinha o benefício de concubinas, mas era um piloto comercial, mais tarde executivo da Pan Am. Era tradição da família Converse pilotar antes de ter idade para tirar carteira de motorista.

— Irmãos e irmãs?

— Uma irmã mais nova. Ela fez o solo antes de mim e nunca permitiu que eu me esquecesse disso.

— Lembro-me. Ela foi entrevistada na televisão.

— Só duas vezes — interrompeu Joel, sorrindo. — Ela estava no seu campo e pouco se importava de que todos soubessem. O quartel-general da Casa Branca deu ordens para ficarem longe dela. Não deslustrem a causa e verifiquem a correspondência dela en­quanto estão com a mão na massa.

— Por isso lembro-me dela — disse Halliday. — Então um mau aluno saiu da escola e a Marinha ganhou um bom piloto.

— Não muito bom, nenhum de nós era. Não havia muito para ser bom. A maioria deles foi queimada.

— Mas você devia odiar todos os que, como eu, estavam nos Estados Unidos. Não a sua irmã, naturalmente.

— Ela também — corrigiu Converse. — Odiava, detestava, desprezava — furiosamente. Mas só quando alguém era morto, ou ficava louco nos campos. Não pelas coisas que vocês diziam — nós todos conhecíamos Saigon — mas porque diziam sem nenhum medo real. Vocês estavam a salvo, e faziam com que nos sentísse­mos uns perfeitos idiotas. Cretinos, assustados idiotas.

— Eu compreendo.

— Muito gentil da sua parte.

— Sinto muito, não pretendia usar esse tom.

— Que tom usou, conselheiro?

Halliday franziu a testa:

— Condescendente, acho.

— Acha não — disse Joel. — Está perfeitamente certo.

— Você ainda está zangado.

— Não com você, só com a dragagem. Odeio o assunto e ele está sempre vindo à tona.

— A culpa é do Relações Públicas do Pentágono. Durante algum tempo vocês foram heróis bona fide nos noticiários notur­nos. Quantas foram, três fugas? Nas duas primeiras foram apa­nhados e torturados, mas na última você tentou sozinho, não foi? Arrastou-se por algumas centenas de quilômetros de selva inimiga antes de chegar às suas fileiras.

— Foram apenas cem quilômetros e eu tive muita sorte. Nas duas primeiras tentativas fui responsável pela morte de oito ho­mens. Não me orgulho muito disso. Podemos passar agora ao ne­gócio da Comm Tech-Bern?

— Dê-me mais alguns minutos — disse Halliday, empurrando o croissant para o lado. — Por favor. Não estou tentando dragar. Há algo em minha mente, se é que concorda que tenho uma mente.

— Preston Halliday tem uma mente, sua reputação confirma. Você é um perito, se meus colegas estão certos. Mas eu conheci alguém chamado Avery e não Press.

— Então, é Fowler que está falando, se fica mais à vontade com ele.

— Qual é o caso?

— Algumas perguntas para começar. Compreende, eu quero ser exato porque você também tem uma boa reputação. Dizem que é um dos melhores no cenário internacional, mas as pessoas com quem conversei não compreendem por que Joel Converse continua com uma firma relativamente pequena, embora bem organizada, quando é suficientemente bom para algo maior. Até mesmo para uma firma própria.

— Está oferecendo emprego?

— Eu não. Não aceito sócios. Cortesia de John Halliday, advogado, São Francisco.

Converse olhou para a segunda metade do croissant e decidiu contra ela.

— Qual é a pergunta, conselheiro?

— Por que trabalha para essa firma?

— Sou bem pago e praticamente dirijo o departamento; nin­guém fica espiando por cima do meu ombro. Também não gosto de correr riscos. Há uma pequena pensão alimentar, amigável mas muito exigente.

— Sustento de filhos também?

— Não, graças a Deus.

— O que aconteceu quando deixou a marinha? Como se sen­tiu? — Halliday inclinou-se para a frente outra vez, os cotovelos na mesa, o queixo apoiado nas mãos — o aluno inquisitivo. Ou outra coisa.

— Com quem você andou falando? — perguntou Converse.

— Informação confidencial, no momento, conselheiro. Aceita isso?

Joel sorriu.

— Você é um perito... Muito bem, o evangelho segundo Con­verse. Voltei daquela interrupção da minha vida querendo tudo. Zangado, sem dúvida, mas queria tudo. O não-estudante tornou-se uma espécie de estudioso e estaria mentindo se não admitisse um certo tratamento preferencial. Voltei para Amherst e em três semes­tres e um verão fiz dois anos e meio. Então a Duke me ofereceu um programa intensivo e fui para lá, e depois especialização em Georgetown, enquanto trabalhava.

— Trabalhou em Washington?

Converse assentiu com a cabeça.

— Sim.

— Onde?

— Na firma de Clifford.

Halliday assobiou baixinho, e recostou-se na cadeira:

— Território dourado, um passaporte para o céu de Blackstone e para as multinacionais.

— Eu disse que recebi tratamento preferencial.

— Foi então que pensou no serviço internacional? Quando es­tava em Georgetown? Em Washington?

Joel assentiu outra vez e um brilho de sol passageiro refletiu-se em algum lugar, na avenida do lago.

— Sim — respondeu em voz baixa.

— Você podia ter conseguido — disse Halliday.

— Eles me queriam pelos motivos errados, todos os motivos errados. Quando compreenderam quê eu tinha um conjunto de re­gras diferentes, eu não teria conseguido nem uma excursão de vinte centavos do Departamento de Estado.

— E a firma Clifford? Você tinha uma imagem dos diabos, mesmo para eles. — O californiano levantou as mãos sobre a mesa com as palmas para a frente. — Eu sei, eu sei. Os motivos errados.

— Números errados — insistiu Converse. — Havia mais de quarenta advogados no topo e uns duzentos na folha de paga­mento. Eu levaria dez anos para encontrar o banheiro dos homens e outros dez para conseguir a chave. Não era isso que eu queria.

— O que estava procurando?

— Quase exatamente o que consegui. Já disse, sou bem pago e estou na chefia da divisão internacional. Esta última é muito im­portante para mim.

— Não podia saber disso quando entrou para a firma — observou Halliday.

— Mas eu sabia. Pelo menos tinha uma boa indicação. Quan­do Talbot, Brooks e Simon — como você disse, aquela firma pe­quena mas bem organizada, para a qual trabalho — me procurou, fizemos um acordo. Se depois de quatro ou cinco anos meu tra­balho fosse aprovado, eu tomaria o lugar de Brooks. Ele traba­lhava no exterior e começava a ficar cansado de se adaptar a todos aqueles fusos horários — Converse fez outra pausa. — Aparente­mente fui aprovado.

— E também aparentemente, no meio de tudo isso, você se casou.

Joel recostou-se na cadeira:

— Isso é necessário?

— Nem mesmo pertinente, mas estou intensamente interes­sado.

— Por quê?

— Uma reação natural — disse Halliday com ar divertido. — Acho que sentiria o mesmo se estivesse no meu lugar e eu tivesse passado por tudo o que você passou.

— O perito pronto para o golpe — resmungou Converse.

— Naturalmente não precisa responder, conselheiro.

— Eu sei, mas, por estranho que pareça, não me importo. Ela agüentou muita coisa por causa desse negócio de tudo-o-que-você-passou. — Joel partiu o croissant mas não o tirou do prato. — Conforto, conveniência e uma vaga imagem de estabilidade — disse ele.

— Como disse?

— Palavras dela — continuou Joel. — Disse que eu tinha me casado para ter um lugar para ficar e alguém para cozinhar e lavar, e eliminar o trabalho irritante, a perda de tempo de procurar al­guém com quem dormir. Também disse que, legitimando a união, eu projetava uma imagem adequada... “E Cristo, eu precisava de­sempenhar esse papel” — também palavras dela.

— Era verdade?

— Já lhe disse, quando voltei eu queria tudo, e ela era parte de tudo. Sim, era verdade. Cozinheira, empregada, lavadeira, compa­nheira de cama, e um complemento atraente. Ela disse que nunca chegou a compreender a ordem de importância.

— Parece uma mulher e tanto.

— Era. É.

— Por acaso ouço um tom de possível reconciliação?

— De modo nenhum. — Converse balançou a cabeça, um meio sorriso nos lábios, mas apenas o vestígio de humor nos olhos. — Ela também foi enganada e isso não devia ter acontecido. Além disso, gosto da minha situação atual, gosto mesmo. Alguns de nós não foram feitos para uma lareira e o peru assado, embora muitas vezes desejemos tudo isso.

— Não é uma vida má.

— Você está nela? — perguntou Joel rapidamente, para mu­dar a direção da conversa.

— Bem acima, com ortodontista e Testes de Aptidão Escolar. Cinco filhos e uma mulher. Não quero nada diferente.

— Mas você viaja um bocado, não?

— Temos grandes regressos a casa — Halliday reclinou-se para a frente mais uma vez, como se estivesse examinando uma teste­munha. — Então você não tem nada que o prenda agora, ninguém para quem voltar?

— Talbot, Brooks e Simon poderiam se ofender. Meu pai tam­bém. Desde a morte de minha mãe, jantamos juntos uma vez por semana, quando ele não está voando por toda a parte, cortesia de alguns passes vitalícios.

— Ele ainda está muito ativo?

— Uma semana está em Copenhague, a semana seguinte em Hong-Kong. Ele se diverte; sempre em movimento. Tem sessenta e oito anos e é extremamente mimado.

— Acho que eu ia gostar dele.

Converse ergueu os ombros, sorrindo.

— Talvez não. Ele pensa que todos os advogados são uma grande droga, incluindo eu. É o último dos pilotos de echarpe branca.

— Tenho certeza de que gostaria dele... Mas, além dos seus patrões e do seu pai, não existem — digamos — ligações prioritá­rias na sua vida.

— Se quer dizer mulheres, existem algumas e somos bons ami­gos, e acho que esta conversa já chegou até onde pode chegar.

— Eu já disse, tenho um motivo — disse Halliday.

— Então, por que não o diz logo, conselheiro? O interroga­tório terminou.

O californiano assentiu com a cabeça.

— Está bem, vou chegar ao ponto. As pessoas com quem falei queriam saber sobre sua liberdade para viajar.

— A resposta é que não estou livre para viajar. Tenho um em­prego e responsabilidade para com a companhia. Hoje é quarta-feira; teremos terminado o negócio da fusão na sexta-feira. Vou 1Hdescansar no fim da semana e volto ao trabalho na segunda-feira — quando eles me esperam.

— Supondo que fizéssemos um trato que fosse aprovado por Talbot, Brooks e Simon?

— Isso é uma suposição.

— E que você ache difícil recusar.

— Isso é absurdo.

— Tente — disse Halliday. — Quinhentos mil para aceitar, numa base de melhor dos esforços, um milhão, se conseguir.

— Agora você está ficando louco. — Um segundo reflexo lu­minoso ofuscou os olhos de Converse, demorando mais do que o primeiro. Levantou a mão esquerda para proteger os olhos e obser­vou o homem que tinha conhecido um dia como Avery Fowler.

— Além disso, para não falar na ética, como você não tem nada a ganhar esta manhã, seu senso de oportunidade está todo errado. Não gosto de receber ofertas — nem mesmo as mais loucas — de advogados que estou prestes a encontrar no outro lado da mesa.

— Duas entidades separadas, e você tem razão, não tenho nada a ganhar e nada a perder. Você e Aron fizeram tudo, e res­peito tanto a ética que estou cobrando apenas meu tempo dos suí­ços — base mínima — porque não precisei fazer uso de nenhum talento especial. Minha recomendação esta manhã será para aceitar o pacote como ele é oferecido, sem mudar nem uma vírgula. Onde está o conflito?

— Onde está a sanidade? — perguntou Joel. — Para não falar daqueles arranjos que Talbot, Brooks e Simon vão considerar aceitáveis. Você está falando de aproximadamente dois anos e meio de salários e gratificações só por um movimento de cabeça.

— Faça o movimento —disse Halliday. — Nós precisamos de você.

— Nós? É uma nova prega no tecido, não é? Pensei que eram eles. Eles, as pessoas com quem você conversou. Troque isso em miúdos, Press.

A. Preston Halliday fitou os olhos de Joel.

— Faço parte deles, e algo que não devia acontecer está acontecendo. Queremos que você tire uma companhia do mercado. É perniciosa e perigosa. Daremos a você todos os instrumentos neces­sários.

— Qual companhia?

— O nome não significaria nada, não está registrada. Vamos chamá-la de um governo no exílio.

— Um o quê?

— Um grupo de homens com mentalidades idênticas que estão em via de organizar um conjunto de recursos tão extensos que lhes garantirá influência onde não devem ter — autoridade onde não devem ter.

— Onde é isso?

— Em lugares que este pobre mundo inepto não pode supor­tar. Podem fazer isso porque ninguém espera que façam.

— Você está sendo muito enigmático.

— Estou assustado. Eu os conheço.

— Mas você tem todos os instrumentos para evitar — disse Converse. — Suponho que isso significa que são vulneráveis.

Halliday assentiu com a cabeça.

— Pensamos que sim. Temos algumas pistas, mas precisam ser pesquisadas, todos os elementos postos no lugar. Temos todos os motivos para acreditar que eles violaram algumas leis, envolve­ram-se em atividades e transações proibidas por seus respectivos governos.

Joel ficou em silêncio por alguns momentos, estudando o californiano.

— Governos? — perguntou. — Plural?

— Sim. — A voz de Halliday ficou mais baixa. — São de nacionalidades diferentes.

— Mas uma companhia? — disse Converse. — Uma corpo­ração?

— De certo modo, sim.

— Que tal um simples sim?

— Não é tão simples.

— Vou lhe dizer de que se trata — interrompeu Joel. — Vocês têm pistas, então vão atrás dos lobos maus. Eu, no momento, estou satisfatoriamente empregado.

Halliday fez uma pausa e depois falou. — Não, não está — disse suavemente.

Outro silêncio, os dois homens se avaliando mutuamente.

— O que foi que você disse? — perguntou Converse, os olhos azuis frios como gelo.

— Sua firma compreende. Você pode tirar uma licença.

— Seu bandido presunçoso! Quem lhe deu o direito de sequer abordar...

— O general George Marcus Delavane — interrompeu Halli­day. Disse o nome com voz monótona.

Foi como se um raio tivesse atravessado a luz ofuscante do sol e atingido os olhos de Joel, transformando o gelo em fogo. O estrondo do trovão explodiu dentro de sua cabeça.

 

Os pilotos estavam sentados em volta da grande mesa retan­gular no refeitório, tomando café e olhando para baixo, para o líquido marrom, ou para cima, para as paredes cinzentas, ninguém com disposição de quebrar o silêncio. Há uma hora estavam voan­do velozmente sobre Pak Song, incendiando a terra, interditando os batalhões de norte-vietnamitas, dando um tempo vital para o rea­grupamento do ARVN e das tropas americanas, que logo estariam sob um cerco brutal. Tinham completado a missão e voltado ao transporte — todos menos um. Perderam o oficial comandante. O primeiro-tenente Gordon Ramsey fora atingido por um míssil “fle­cha”, que se desviou da trajetória sobre a linha da costa e partiu direto para a fuselagem de Ramsey; a explosão invadiu a saída de ar do jato; morte a seis mil milhas por hora no ar, a vida apagada num piscar de olhos. Uma violenta frente de tempestade caíra sobre o esquadrão; não haveria mais ataque, talvez durante muitos dias. Tinham tempo para pensar e seus pensamentos não eram agra­dáveis.

— Tenente Converse — disse um marinheiro na porta do refei­tório.

— Sim?

— O capitão pede sua presença na cabine dele, senhor.

O convite foi feito com muita delicadeza, pensou Joel, levan­tando-se e percebendo os olhares sombrios dos pilotos, em volta da mesa. O pedido era esperado, mas não bem-vindo. A promoção era uma honra que ele de bom grado teria declinado. Não se tratava de mais tempo de serviço ou superioridade, nem mesmo de idade, em relação aos outros pilotos; simplesmente porque tinha estado no ar há mais tempo do que qualquer outro e isso lhe dava a experiência necessária para ser o líder do esquadrão.

Subindo os degraus estreitos na direção da ponte, viu os con­tornos de um imenso helicóptero Cobra do exército, no céu dis­tante, dirigindo-se para o porta-aviões. Em cinco minutos mais ou menos estaria pairando sobre a amurada e desceria na pista; alguém da terra estava visitando a marinha.

— É uma perda terrível, Converse — disse o capitão, de pé ao lado da mesa de navegação, balançando a cabeça tristemente. — E uma carta difícil como o diabo para escrever. Deus sabe que ne­nhuma é fácil, mas esta é mais dolorosa do que as outras.

— Nós todos sentimos, senhor.

— Estou certo disso — o capitão balançou a cabeça. — Estou certo também de que sabe por que está aqui.

— Não especificamente, senhor.

— Ramsey disse que era o melhor, e isso significa que vai liderar um dos esquadrões de ataque ao sul do Mar da China. — O telefone tocou, interrompendo o capitão do porta-aviões. Ele o atendeu: — Sim?

O que aconteceu em seguida foi completamente inesperado para Joel. O capitão primeiro franziu a testa, depois os músculos do rosto ficaram tensos, os olhos alarmados e coléricos.

— O quê?! — exclamou, erguendo a voz. — Tivemos algum aviso prévio... algo na sala de rádio? — Uma pausa e depois o capitão desligou o telefone com violência, gritando: — Jesus Cris­to! — Olhou paro Converse. — Parece que temos a honra duvidosa de uma visita não anunciada do Comando-Saigon, e estou dizendo uma inspeção!

— Vou voltar para baixo, senhor — disse Joel, começando a fazer continência.

— Não já, tenente — disse o capitão em voz baixa mas firme. — Está recebendo ordens e, como afetam as operações aéreas deste navio, vai ouvi-las até o fim. Na melhor das hipóteses, faremos com que o Louco Marcus saiba que está interferindo nas atividades da marinha.

Os trinta segundos seguintes foram dedicados ao ritual da de­terminação de comando, um oficial superior investindo um subor­dinado com novas responsabilidades. Subitamente ouviram duas batidas enérgicas na porta, que se abriu dando passagem ao general do exército George Marcus Delavane, alto e de ombros largos, do­minando a cabine com a força da sua presença.

— Capitão? — disse Delavane, fazendo continência para o co­mandante do navio, apesar de o capitão ter patente inferior. A voz um pouco estridente era cortês, mas os olhos não; eram intensa­mente hostis.

— General — disse o capitão, respondendo à saudação junto com Converse. — Esta é uma inspeção de surpresa do Comando-Saigon?

— Não, é uma conferência urgentemente convocada entre mim e o senhor — entre o Comando-Saigon e uma de suas menores forças.

— Compreendo — disse o quatro-divisas, a ira mal disfarçada pela aparência de calma. — No momento estou transmitindo ordens urgentes para este homem...

— O senhor achou que podia cancelar as minhas! — interrom­peu Delavane com veemência.

— General, foi um dia triste e cansativo — disse o capitão. — Perdemos um de nossos melhores pilotos há menos de uma hora...

— Fugindo! — interrompeu Delavane mais uma vez, o mau gosto da observação acentuada pela voz anasalada. — Atiraram na sua maldita cauda?

— Oficialmente, considero essas palavras uma ofensa! — disse Converse, incapaz de se controlar. — Vou substituir aquele homem e sinto-me ofendido com o que disse, General!

— Você? Quem diabo é você?

— Calma, tenente. Está dispensado.

— Peço respeitosamente que me permita responder ao general, senhor! — gritou Joel, furioso, recusando-se a fazer um movi­mento.

— Você o quê, seu pilotinho atrevido?

— Meu nome é...

— Esqueça, não estou interessado! — Delavane voltou a ca­beça rapidamente para o capitão. — O que quero saber é por que acha que pode desobedecer às minhas ordens — às ordens do Co­mando-Saigon! Determinei um ataque exatamente às quinze horas. O senhor “respeitosamente declinou” o cumprimento dessa ordem!

— Uma frente de tempestade acaba de entrar e deve saber disso tão bem quanto eu.

— Meus meteorologistas dizem que podem perfeitamente voar com esse tempo!

— Desconfio que se pedir essa resposta durante a monção da Birmânia eles a darão.

— Isso é insubordinação grosseira!

— Este é o meu navio e os regulamentos militares são perfei­tamente claros a respeito de quem manda aqui.

— Quer me pôr em contato com sua sala de rádio? Vou cha­mar o Escritório Oval e veremos por quanto tempo mais terá O seu navio!

— Estou certo de que deseja falar em particular — provavel­mente com um misturador de palavras. Eu mandarei que o con­duzam à sala de rádio.

— Que diabo, tenho quatro mil homens — talvez vinte por cento de veteranos — movendo-se na direção do Setor Cinco! Pre­cisamos de ataque de baixa altitude, combinado por terra e por mar e vamos ter, nem que eu tenha de tirar seu assento daqui em uma hora! E eu posso fazer isso, capitão!... Estamos aqui para vencer, vencer, e vencer todas as batalhas! Não precisamos de maricas açu­carados agindo segundo suas malditas suposições! Talvez nunca tenha ouvido isso antes, mas toda a guerra é um risco! Não pode ganhar se não arriscar, capitão!

— Estou aqui há algum tempo, general. O bom senso diminui as perdas e se se consegue diminuir bastante as perdas é possível vencer a próxima batalha.

— Vou vencer esta, com ou sem o senhor, Menino Azul!

— Respeitosamente aconselho-o a moderar sua linguagem, general.

— O senhor o quê?! — O rosto de Delavane contorceu-se de fúria e os olhos pareciam os de um animal selvagem. — O senhor me aconselha? O senhor adverte o Comando-Saigon! Muito bem, faça o que bem quiser — Menino Azul, com suas calças de cetim — mas a incursão no vale Tho continua de pé.

— O Tho — interrompeu Converse. — É a primeira perna da via para Pak Song. Já o atacamos quatro vezes. Conheço o terreno.

— Você o conhece? — gritou Delavane.

— Conheço, mas recebo ordens do comandante deste navio, general.

— Seu maricas rola-bosta, você recebe ordens do presidente dos Estados Unidos! Ele é o seu comandante-em-chefe! E eu vou conseguir essa ordem!

O rosto de Delavane estava a poucos centímetros do de Joel, a expressão maníaca desafiando todas as extremidades nervosas do corpo do piloto: ódio combinado com revolta. Mal acreditando que as palavras eram suas, Converse disse:

— Eu também aconselho o general a ter mais cuidado com sua linguagem.

— Por quê, seu rola-bosta? O Menino Azul tem microfones na cabine?

— Calma, tenente! Eu disse que estava dispensado!

— Quer que tenha cuidado com minha linguagem, seu gran­dalhão, com essa pequena divisa prateada? Não, meu filho, você tenha cuidado com a sua, e muito cuidado! Se aquele seu esquadrão não estiver no ar às quinze horas, vou qualificar este porta-aviões como o maior covarde do Sudoeste da Ásia! Compreendeu isso, Menino Azul de calcinhas de cetim, terceira classe?

Mais uma vez Joel respondeu, pensando, enquanto falava, onde teria encontrado tanta audácia.

— Não sei de onde vem, senhor, mas sinceramente espero que nos encontremos em circunstâncias diferentes, no futuro. Acho que o senhor é um porco.

— Insubordinação! Além disso, vou parti-lo ao meio.

— Está dispensado, tenente!

— Não, capitão, está enganado! — gritou o general. — Afinal de contas talvez ele seja o homem adequado para liderar este ata­que. Muito bem, o que vai ser, Meninos Azuis? Levantam vôo, ou o presidente dos Estados Unidos — ou a qualificação?

 

Às 15h20m, Converse conduziu o esquadrão para fora do porta-aviões. Às 15h38m, quando voavam em baixa altitude contra a tempestade, ocorreram as duas primeiras baixas na linha da costa; os aviões de uma ala foram derrubados — morte flamejante a quase mil quilômetros por hora, em pleno ar. Às I5h46m o motor da direita de Joel explodiu; sua altitude facilitou o tiro direto. Às 15h46m30s, sem poder estabilizar, Converse ejetou-se na chuva das nuvens negras, e seu pára-quedas foi imediatamente apanhado pelo vórtice dos ventos desencontrados. Quando descia, balançando violentamente, as tiras do pára-quedas cortando sua carne a cada lu­fada de vento, uma imagem repetia-se na escuridão. A expressão alucinada do general George Marcus Delavane. Joel estava para começar uma estada indeterminada no inferno, cortesia de um louco. E como soube mais tarde, as perdas foram infinitamente mais pesadas em terra.

 

Delavane! O Açougueiro de Danang e Pleiku. Destruidor de mi­lhares, lançando batalhão após batalhão nas florestas e nas colinas, sem treinamento adequado e poder de fogo insuficiente. Crianças feridas e assustadas foram levadas para os campos, atônitas, esfor­çando-se para não chorar e, afinal compreendendo, soluçando des­controladamente. As histórias que contavam eram mil e uma varia­ções do mesmo tema apavorante. Homens inexperientes, sem trei­namento, enviados para a frente de batalha poucos dias depois de terem desembarcado; esperavam que o número vencesse, por si só, o inimigo geralmente invisível. E quando o número não foi sufi­ciente, mais homens desembarcaram. Durante três anos os quartéis-generais de comando deram ouvidos a um maníaco. Delavane! O senhor da guerra de Saigon, fabricante de cadáveres, sem tomar conhecimento dos rostos destroçados e dos membros arrancados, mentiroso e apologista da morte sem motivo! Um homem que afi­nal demonstrou ser muito letal, mesmo para os fanáticos do Pen­tágono — um fanático que superara seus iguais, que afinal os dei­xara revoltados. Tinha sido chamado de volta aos Estados Unidos e passado para a reserva — para escrever críticas injuriosas lidas por fanáticos, que com elas alimentavam suas fúrias pessoais.

Homens como aquele não devem nunca mais ser tolerados, não compreende? Ele era o inimigo. NOSSO inimigo! Essas tinham sido as palavras de Converse, gritadas em um acesso de revolta perante um grupo de interrogadores uniformizados que se entreolharam, evitando os olhos dele, evitando responder àquelas palavras. Agra­deceram por mera formalidade, disseram que a nação tinha para com ele, e milhares como ele, um grande débito, e quanto aos seus últimos comentários devia procurar entender que todas as questões têm vários aspectos e que a função complexa de um comando nem sempre era o que aparentava ser. De qualquer modo, o presidente pedira à nação que esquecesse os ressentimentos; de que adiantava alimentar controvérsias antigas? E então, o golpe final, a ameaça.

— O senhor também assumiu por um breve espaço de tempo a responsabilidade da liderança, tenente — disse um advogado naval de rosto pálido, mal olhando para Joel, examinando as folhas de uma pasta. — Antes de sua fuga final e bem-sucedida — sozinho, de um buraco no campo principal — liderou duas tentativas pré­vias, que envolveram um total de dezessete prisioneiros de guerra. Felizmente o senhor sobreviveu, mas outros homens morreram. Es­tou certo de que o senhor, como líder, orientador tático deles, jamais previu um risco de perdas de quase cinqüenta por cento. Muitas vezes já foi dito, e nunca é demais repetir: o comando é assustador, tenente.

 

Tradução: Não se alie aos que protestam, soldado. Você so­breviveu, mas oito morreram. Houve por acaso circunstâncias igno­radas pelo exército, táticas, que protegeram alguns mais do que os outros? Um homem que conseguiu escapar — sozinho — logrando os guardas que atiravam à primeira vista nos prisioneiros que apa­reciam durante a noite? O simples fato de levantar a questão, abrin­do um caso especial, produzirá um estigma que o acompanhará para o resto da vida. Desista, soldado. Podemos prejudicá-lo sim­plesmente levantando uma questão que todos nós sabemos não deve ser levantada, mas o faremos porque estamos fartos de tanto fala­tório. Nós o cortaremos o mais possível. Fique feliz por ter sobrevi­vido e saia dessa. Agora, saia.

 

Naquele momento, Converse tinha estado mais perto de arrui­nar conscientemente a própria vida do que jamais poderia imaginar. Atacar fisicamente aquele grupo de hipócritas santarrões não estava fora de cogitação, até estudar cada rosto à sua frente, percebendo com sua visão periférica as fileiras de fitas nas túnicas, as estrelas de combate em quase todas. Então aconteceu algo estranho: repug­nância, nojo — e pena — o assaltaram. Eram todos homens em pânico, muitos deles tendo dedicado a vida às práticas de guerra do seu país... só para serem enganados, como ele fora enganado. Se proteger o que era decente significava proteger o pior, quem podia acusá-los de estar errados? Onde estavam os santos? Ou os peca­dores? Podia haver um ou outro, quando todos eram vítimas?

A repugnância, porém, venceu. O tenente Joel Converse, USNR,0F[1] não conseguiu fazer a continência de praxe para aquele conselho de seus superiores. Em silêncio ele se voltou, sem nenhum porte militar, e saiu da sala como se tivesse deliberadamente cus­pido no chão.

 

Outro reflexo brilhante vindo da avenida, um eco ofuscante do sol, do Quai du Mont Blanc. Ele estava em Genebra, não em um campo norte-vietnamita, amparando meninos que vomitavam enquanto lhe contavam suas histórias, nem em San Diego, dando baixa na Mari­nha dos Estados Unidos. Estava em Genebra e o homem sentado do outro lado da mesa sabia tudo o que Converse pensava e sentia.

— Por que eu! — murmurou Joel.

— Porque, como eles dizem — explicou Halliday —, você pode ser motivado. Essa a resposta simples. Uma história foi con­tada. O capitão do seu porta-aviões recusou-se a permitir que os aviões levantassem vôo para o ataque ordenado por Delavane. Ha­viam entrado várias frentes de tempestade; ele considerava um sui­cídio. Mas Delavane o obrigou, ameaçou chamar o machão da Casa Branca e fazer com que o capitão fosse destituído do seu comando. Você comandou aquele ataque. E foi derrubado e feito prisioneiro.

— Estou vivo — disse Converse com voz inexpressiva. — Du­zentos garotos jamais viram o dia seguinte e talvez mil desejaram nunca ter visto.

— E você estava na cabine do capitão quando o Louco Marcus Delavane fez as ameaças e deu ordens.

— Eu estava lá — concordou Converse, sem nenhuma suges­tão de outro comentário. Então, sacudiu a cabeça, intrigado. — Tudo o que lhe contei — a meu respeito — você já tinha ouvido antes.

— Tinha lido — corrigiu o advogado da Califórnia. — Assim como você - e acho que somos os melhores neste negócio, com menos de cinqüenta anos — não acredito implicitamente na palavra escrita. Preciso escutar uma voz, ou ver um rosto.

— Não respondi à sua pergunta.

— Não precisava responder.

— Mas você precisa responder-me — agora. Não está aqui representando Comm Tech-Bern, está?

— Sim, isso é em parte verdadeiro — disse Halliday. — Só que os suíços não vieram a mim, eu fui a eles. Tenho observado você, esperando pelo momento. Tinha de ser o momento certo, perfeitamente natural, geograficamente lógico.

— Por quê? O que quer dizer?

— Porque estou sendo vigiado... Rosen teve um enfarte. Eu soube disso, entrei em contato com Bern e criei um caso plausível.

— Sua reputação seria suficiente.

— Ajudou, mas precisava mais. Eu disse que nós nos conhe­cíamos há muito tempo — e Deus sabe que é verdade — e que, por mais que eu o respeitasse, você era astuto demais, quando se tratava dos documentos definitivos, e que eu conhecia bem seus métodos. Além disso, pedi um preço bem alto.

— Uma combinação irresistível para os suíços — disse Con­verse.

— Fico satisfeito com sua aprovação.

— Mas eu não aprovo — observou Joel. — Não aprovo nada em você, muito menos os seus métodos. Não me disse nada, apenas observações enigmáticas sobre um grupo de pessoas não-identificadas que afirma serem perigosas, e o nome de um homem que, você tinha certeza, provocaria uma reação minha. Talvez seja só um excêntrico ainda ostentando aquele distintivo hippie.

— Chamar alguém de “excêntrico” é subjetivamente prejudi­cial ao extremo, conselheiro, e será retirado do relatório oficial.

— Contudo, foi anotado pelo júri, homem da lei — disse Con­verse em voz baixa, mais irritado. — E eu o estou reforçando agora.

— Não faça um prejulgamento da segurança — continuou Halliday também em voz baixa e calma. — Não estou a salvo, e além de uma tendência para a covardia há uma esposa e cinco filhos em São Francisco, aos quais amo muito.

— Então veio me procurar porque eu não tenho... Como se chama? Ligações prioritárias?

— Vim procurá-lo porque você é invisível, não está envolvido e porque é o melhor, e eu não posso fazer o trabalho. Legalmente não posso, e tem de ser feito legalmente.

— Por que não explica o que quer dizer? — perguntou Con­verse. — Porque se não o fizer vou me levantar e nos veremos mais tarde, um de cada lado da mesa.

— Eu representava Delavane — disse Halliday rapidamente. — Que Deus me ajude, eu não sabia o que estava fazendo, e poucas pessoas aprovavam, mas eu usava um argumento muito comum entre nós. Causas e pessoas impopulares merecem ser representados legalmente.

— Não posso negar isso.

— Você não conhece a causa. Eu conheço. Eu descobri.

— Que causa?

Halliday inclinou-se para a frente.

— Os generais — disse com voz quase inaudível. — Eles estão voltando.

Joel olhou atentamente para o californiano.

— De onde? Não sabia que estavam fora.

— Do passado — disse Halliday. — De muitos anos atrás.

Converse recostou-se na cadeira, com ar divertido.

— Meu Deus, pensei que a sua espécie estivesse extinta. Está falando sobre a ameaça do Pentágono, Press — é Press, não é? A abreviação de São Francisco, ou será de Haight-Ashbury, fulano de tal de Beverly Hills? Está um pouco atrasado; vocês já tomaram de assalto um posto militar.

— Por favor, não graceje. Não estou brincando.

— Naturalmente que não. Será Os Sete Dias de Maio ou Os Cinco Dias de Agosto? Estamos em agosto agora, portanto vamos chamar de Os Antigos Canhões de Agosto. Soa bem, eu acho.

— Pare com isso! Não tem nada de engraçado e, se tivesse, eu teria descoberto muito antes de você.

— Isso é um comentário, suponho — disse Joel.

— Pode estar certo que sim, porque eu não passei por tudo o que você passou. Fiquei de fora, não fui enganado e isso significa que posso rir dos fanáticos porque eles nunca me fizeram mal e porque ainda acho que é a melhor arma contra eles. Mas não agora. Não há motivo nenhum para rir, agora!

— Permita-me um riso breve — disse Converse, sem sorrir. — Mesmo nos meus momentos mais paranóicos jamais fui partidário da teoria de que o exército está governando Washington. Não pode acontecer.

— Pode ser menos aparente do que nos outros países, mas é tudo o que posso afirmar.

— O que significa isso?

— Seria naturalmente muito mais óbvio em Israel, certamente em Joanesburgo, bem possível na França e em Bonn, até mesmo no Reino Unido — nenhum deles leva tão a sério suas pretensões. Mas suponha que você esteja certo. Washington vai se enrolar nas vestes constitucionais até que elas se esgarcem e desapareçam — revelando um uniforme, incidentalmente.

Joel olhou fixamente para o rosto à sua frente.

— Você não está brincando, está? E é inteligente demais para tentar me convencer de algo impossível.

— Ou enganá-lo — disse Halliday. — Não depois da causa que defendi quando via você de pijama, do outro lado do mundo. Não seria capaz de fazer isso.

— Acho que acredito em você... Mencionou alguns países, especificamente. Alguns não estão se manifestando, outros muito pouco; alguns têm mágoas e péssimas lembranças. De propósito?

— Sim — assentiu o californiano. — Não faz diferença al­guma porque o grupo do qual estou falando acredita que sua causa, no fim, vai unir todos. E governar todos — ao modo deles.

— Os generais?

— E almirantes e brigadeiros, e marechais-de-campo — velhos soldados que armaram suas barracas no campo certo. Desde o Rei-chstag não havia um grupo tão da direita.

— Ora, vamos, Avery! — Converse sacudiu a cabeça exaspe­rado. — Um punhado de velhos e cansados guerreiros...

— Recrutando e doutrinando novos comandantes jovens, implacáveis e capazes — interrompeu Halliday.

— ...tossindo seus últimos alentos — Joel parou. — Tem pro­va disso? — perguntou, pronunciando cada palavra lentamente.

— Não suficiente... mas com alguma investigação... talvez o bastante.

— Que diabo, pare de falar por subentendidos.

— Entre os possíveis recrutas, vinte nomes mais ou menos do Departamento de Estado e do Pentágono — disse Halliday. — Ho­mens que liberam licenças de exportação e gastam milhões e mi­lhões porque têm permissão para isso, o que naturalmente aumenta o círculo dos seus amigos.

— E sua influência — declarou Converse. — E Londres, Paris e Bonn — Joanesburgo e Telavive?

— Nomes também.

— Com que constância?

— Eles estavam lá. Eu os vi. Foi um acidente. Quantos fize­ram o juramento eu não sei, mas estavam lá e suas divisas combi­navam com o padrão filosófico do grupo.

— O Reichstag?

— Mais abrangente. Um Terceiro Reich global. Só precisam de um Hitler.

— E como é que Delavane entra nisso?

— Talvez ele consagre um deles. Talvez indique o Führer.

— Isso é ridículo. Quem o levaria a sério?

— Foi levado a sério antes. Você viu os resultados.

— Isso foi naquele tempo, não agora. Não está respondendo à pergunta.

— Homens que acharam que ele estava certo antes, e não se engane, eles existem aos milhares. O mais espantoso é que alguns deles têm dinheiro suficiente para financiar os delírios dele e dos outros — que naturalmente não consideram delírio, e sim a evo­lução normal da história contemporânea, uma vez que todas as outras ideologias falharam miseravelmente.

Joel fez menção de falar, mas parou, seus pensamentos subita­mente tomando novo rumo:

— Por que não procurou alguém que possa impedi-los de continuar? Que possa impedir Delavane?

— Quem?

— Você deve saber tanto quanto eu. Uma porção de pessoas no governo — eleitas e nomeadas — e em mais de doze departa­mentos. Para começar, o departamento de Justiça.

— Washington inteiro ia rir de mim — disse Halliday. — Além de não termos provas — como eu disse, apenas nomes, supo­sições —, não se esqueça do distintivo hippie que eu usei. Eles o colocariam no meu peito outra vez e me diriam para desaparecer.

— Mas você representou Delavane.

— O que só serve para complicar o problema, com a intro­dução dos aspectos legais. Você devia saber disso.

— O relacionamento advogado-cliente. — Converse assentiu com a cabeça. — Você vai para o brejo antes de ter tempo de denunciar. A não ser que tenha prova palpável contra seu cliente, prova de que ele vai cometer outros crimes e que, com seu silêncio, você estará sendo cúmplice dos mesmos.

— E eu não tenho essa prova — interrompeu o californiano.

— Então, ninguém vai querer saber de você — concluiu Joel. — Especialmente os advogados ambiciosos do departamento de Justiça; não querem bloquear as avenidas dos cargos eleitorais. Como você diz, os Delavanes deste mundo têm seu eleitorado.

— Exatamente — concordou Halliday. — E quando comecei a fazer perguntas e tentei falar com Delavane, não quis me receber. Nem falou comigo e recebi uma carta comunicando que estava des­pedido, e dizendo que, se ele soubesse quem eu era, jamais teria me escolhido para seu advogado. “Fumando maconha e gritando im­propérios, enquanto os homens corajosos atendiam ao chamado da pátria.”

Converse assobiou baixinho.

— E ainda acha que não foi ludibriado? Você prestou ser­viços legais a ele, criou uma estrutura que ele pode usar para qual­quer fim e propósito dentro da lei, e, se alguma coisa começar a cheirar mal, você é a última pessoa que pode dar o alarme. Ele se enrola na bandeira do velho soldado e chama você de excêntrico vingativo.

Halliday assentiu com a cabeça.

— Havia muito mais naquela carta — nada que pudesse me prejudicar, exceto no que dizia respeito a ele, mas era brutal.

— Estou certo disso. — Converse tirou um maço de cigarros do bolso e estendeu-o para Halliday, que recusou, sacudindo a cabeça. — Como foi que você o representou? -- perguntou Joel.

— Estruturei uma corporação, uma pequena firma consultora em Palo Alto, especializada em importação e exportação. O que é permitido, o que não é, quais as quotas e como aproximar-se legitimamente de certas pessoas em D.C. que podem se interessar pelo seu caso. Essencialmente foi um lobbying, comercializando um nome, para quem ainda se recordava. Na ocasião achei meio pa­tético.

— Pensei que tinha dito que não foi registrada — observou Converse, acendendo o cigarro.

— Não é essa que nos interessa. Seria perda de tempo.

— Mas foi onde você conseguiu as primeiras informações, não foi? As pistas?

— Foi por acidente, e não vai acontecer outra vez. É tão legitimizada que é legalmente imaculada.

— Contudo é uma fachada — insistiu Joel. — Tem de ser, se tudo — ou alguma coisa — que você disse for verdade.

— É verdade, e é uma fachada. Mas nada no papel. É um instrumento para viagens, um pretexto para Delavane e os homens do seu grupo irem de um lugar a outro, tratando de negócios legí­timos. Mas, enquanto estão em uma determinada área, fazem seu trabalho verdadeiro.

— A colheita de generais e marechais-de-campo? — disse Con­verse.

— Achamos que é uma operação crescente de proselitismo. Muito secreta e muito intensa.

— Qual é o nome da firma de Delavane?

— Palo Alto International.

Joel subitamente apagou o cigarro.

— Quem é nós, Avery? Quem está contribuindo com o di­nheiro, quando quantias como essa significam que são pessoas que podem ter o que quiserem em Washington?

— Está interessado?

— Não em trabalhar para alguém que não conheço — e que não aprovo. Não, não estou.

— Você aprova os objetivos que descrevi?

— Se o que me disse é verdade, e não sei por que iria mentir sobre isso, naturalmente que aprovo. Você sabia que eu aprovaria. Isso ainda não responde à minha pergunta.

— Suponha — disse Halliday rapidamente — que eu lhe desse uma carta declarando que a quantia de quinhentos mil dólares, depositada em seu nome, em uma conta numerada, na ilha de Miconos, foi fornecida por um cliente meu da mais alta reputação e caráter. Que o seu...

— Espere um pouco, Press — interrompeu Converse aspera­mente.

— Por favor, não me interrompa, por favor! — Os olhos de Halliday estavam pregados em Joel com uma intensidade de louco. — Não há outro meio, não agora. Eu dou meu nome — meu nome profissional como penhor. Você será contratado para trabalho con­fidencial dentro da sua especialização, por um homem que eu ga­ranto ser um cidadão ilustre, que insiste em permanecer no anoni­mato. Eu endosso o homem e o trabalho que ele quer que você faça, e juro não só a legalidade dos objetivos como também os extraordinários benefícios que trará qualquer tipo de sucesso na sua missão. Você está protegido, tem quinhentos mil dólares e, estou certo, o mais importante para você, terá a oportunidade de deter um maníaco — maníacos —, evitando que execute um plano incon­cebível. Na melhor das hipóteses, criariam inquietação geral, crises políticas em toda a parte, enorme sofrimento. Na pior das hipóte­ses, podem mudar o curso da história a ponto de não haver mais nenhuma história.

Converse estava rígido na cadeira, os olhos fixos em Halliday.

— É um belo discurso. Praticou durante muito tempo?

— Não, seu cretino. Não foi necessário. Não mais do que o tempo que você levou ensaiando aquela pequena explosão há doze anos em São Diego. “Homens como esse não podem mais ser tole­rados, não compreendem? Ele era o inimigo, nosso inimigo.” Fo­ram essas as palavras, não foram?

— Fez muito bem seu dever de casa, conselheiro — disse Joel, controlando a raiva. — Por que seu cliente insiste em permanecer anônimo? Por que não pega o dinheiro, faz uma contribuição política e fala com o diretor da CIA, ou do Conselho Nacional de Segurança, ou com a Casa Branca? Seria fácil para ele. Meio milhão de dólares não é fígado de galinha picado, nem mesmo nos nossos dias.

— Porque ele não pode se envolver oficialmente de nenhum modo — Halliday franziu a testa e exalou o ar lentamente. — Sei que parece loucura, mas é assim. Ele é um homem eminente e eu o procurei porque me sentia encurralado. Francamente, pensei que ele ia pegar o telefone e fazer exatamente o que você disse. Falar com a Casa Branca, se fosse o caso, mas ele preferiu seguir outro ca­minho.

— Comigo?

— Desculpe, mas ele não o conhecia. Disse-me uma coisa estranha. Mandou que eu procurasse alguém para derrubar os ban­didos sem lhes conceder a dignidade da atenção do governo, nem mesmo o reconhecimento do que estão fazendo. A princípio não compreendi, mas depois vi perfeitamente o que ele queria dizer. Condiz com a minha teoria de que rir dos Delavanes deste mundo os torna muito mais impotentes do que qualquer outro método.

— Elimina também o espectro do martírio — concluiu Con­verse. — Por que este... cidadão eminente faz o que está fazendo? Por que vale tanto dinheiro para ele?

— Se eu lhe dissesse, estaria violando sua confiança.

- Não perguntei o nome dele. Só quero saber por quê.

— Se eu disser — explicou o californiano —, você vai saber quem ele é. Aceite minha palavra, você o aprovaria.

— Pergunta seguinte — disse Joel com voz áspera. — Que diabo você disse a Talbot, Brooks e Simon, que eles acharam tão aceitável?

— Resignaram-se a achar aceitável — corrigiu Halliday. — Contei com alguma ajuda. Conhece o juiz Lucas Anstett?

— Segunda Corte de Apelos — disse Converse, assentindo com a cabeça. — Devia estar na Suprema Corte há muitos anos.

— Aparentemente é o consenso. É também amigo do meu cliente e, pelo que ouvi dizer, encontrou-se com John Talbot e Nathan Simon — Brooks estava fora da cidade — e, sem revelar o nome do seu cliente, disse-lhes que havia um problema que poderia se transformar em crise nacional se não fosse executada uma ação legal imediata. Várias firmas dos Estados Unidos se achavam en­volvidas, explicou ele, mas o problema básico estava na Europa e exigia o talento de um advogado internacional experiente. Se o seu sócio mais jovem, Joel Converse, fosse escolhido e aceito, consenti­riam em lhe dar uma licença para que pudesse tratar do assunto confidencialmente? Naturalmente o juiz endossou o projeto.

— E naturalmente Talbot e Simon concordaram — disse Joel. — Ninguém recusa nada a Anstett. Ele é tremendamente razoável, para não falar no poder da sua corte.

— Acho que ele não faria uso disso.

— Mas está lá.

Halliday retirou do bolso do casaco um envelope comercial branco e longo.

— Aqui está a carta. Descreve detalhadamente tudo o que eu disse. Há também uma página separada que define o esquema em Miconos. Depois que tudo estiver providenciado no banco — como você quer que o dinheiro seja entregue ou se quer que seja transfe­rido —, eles lhe darão o nome de um homem que mora na ilha; é aposentado. Telefone para ele, para marcar encontro. Ele tem to­dos os instrumentos que lhe podemos fornecer. Os nomes, as co­nexões que pensamos existir, e as atividades nas quais eles prova­velmente estão envolvidos e que violam as leis dos seus respectivos governos — envio de armas, equipamento e informação tecnológica para onde não devem ser mandados. Estruture apenas dois ou três casos ligados com Delavane — mesmo que sejam circunstanciais — e será suficiente. Nós nos encarregamos de torná-los ridículos. Isso é o bastante.

— Onde diabo você arranja tanta audácia? — disse Converse zangado. — Não concordei com coisa alguma! Você não toma decisões por mim, nem Talbot, nem Simon, nem mesmo o sagrado juiz Anstett, e muito menos seu maldito cliente! O que pensa que está fazendo? Avaliando-me como um pedaço de carne de cavalo, fazendo planos para mim às minhas costas! Quem vocês pensam que são?

— Pessoas interessadas que estão certas de terem encontrado o homem certo para o trabalho certo, na hora certa — disse Halliday, colocando o envelope na frente de Joel. — Só que não temos muito tempo. Você esteve no lugar para o qual eles querem nos levar e sabe como ele é. — Subitamente, o californiano levantou-se. — Pense no assunto. Falaremos mais tarde. A propósito, os suíços sabem que nos encontramos esta manhã. Se perguntarem sobre o que conversamos, diga que concordamos quanto às disposições fi­nais das ações Classe A. É a nosso favor, embora você pense o contrário. Obrigado pelo café. Estarei do outro lado da mesa den­tro de uma hora. É bom ver você outra vez, Joel.

O californiano caminhou apressadamente pela passagem entre as mesas e saiu do Chat Botté para a luz do sol do Quai du Mont Blanc.

 

O consolo do telefone era embutido na extremidade da mesa longa e escura de conferências. Sua campainha abafada combinava com o ambiente majestoso. O arbitre suíço, representante legal do cantão de Genebra, atendeu e falou em voz baixa, assentindo com a cabeça duas vezes, e depois colocou o telefone no gancho. Olhou para os que estavam em volta da mesa; sete dos oito advogados estavam em seus lugares conversando em voz baixa. O oitavo, Joel Converse, estava de pé, ao lado de uma janela enorme flanqueada por cor­tinas, que dava para o Quai Gustave Ador. O gigantesco jet d’eau erguia-se além, seus borrifos rítmicos caindo em cascata para a esquerda, levados pelo vento norte. O céu começava a escurecer; uma tempestade de verão se aproximava, vinda dos Alpes.

— Messieurs — disse o arbitre. As conversas cessaram e todos os rostos se voltaram para ele. — Foi monsieur Halliday quem telefonou. Atrasou-se, mas pede que comecemos. Seu sócio, mon­sieur Rogeteau, pode representá-lo e sabemos que ele esteve com monsieur Converse esta manhã para resolver um dos últimos de­talhes. Não é assim, monsieur Converse?

As cabeças se voltaram outra vez, agora na direção para o homem ao lado da janela. Nenhuma resposta. Converse continuou a olhar o lago lá fora.

— Monsieur Converse?

— Perdão? — Joel voltou-se, a testa franzida, os pensamentos muito longe, longe de Genebra.

— Não é assim, monsieur?.

— Qual foi a pergunta?

— Encontrou-se esta manhã com monsieur Halliday?

Converse ficou em silêncio por um momento.

— Exato — respondeu.

— E então?

— Ele concordou com a disposição final sobre as ações Clas­se A.

Um suspiro audível de alívio da parte dos americanos e uma aceitação silenciosa do contingente de Berna, os olhos inexpressi­vos. As duas reações não passaram despercebidas a Joel, e em cir­cunstâncias diversas ele teria relacionado o item para futuras consi­derações. Apesar de Halliday ter declarado que seria vantajoso para Berna, a aceitação fora fácil demais; ele teria adiado o assunto de qualquer forma, pelo menos por uma hora, para análise. Mas, não importava. Maldito seja! pensou Converse.

— Então vamos começar, como monsieur Halliday sugeriu — disse o arbitre consultando o relógio.

 

Uma hora alongou-se para duas, depois três, o murmúrio de vozes fazendo contraponto com o ruído das folhas de papel, que passa­vam de um para outro, questões esclarecidas, parágrafos rubri­cados. E Halliday não tinha aparecido. As luzes foram acesas quan­do a escuridão cobriu o céu do meio-dia, do lado de fora das imensas janelas; falaram sobre a tempestade que se aproximava.

Então, subitamente se ouviram gritos vindos do outro lado da espessa porta de carvalho da sala de conferências, crescendo em volume até que imagens de horror inundaram as mentes de todos os que ouviam aqueles sons prolongados. Alguns dos homens escon­deram-se embaixo da mesa, outros levantaram-se e ficaram para­dos, em estado de choque, e uns poucos correram para a porta, entre eles Converse. O arbitre girou a maçaneta e abriu a porta com tamanha violência que a madeira pesada bateu na parede. O que viram foi uma cena que jamais esqueceriam. Joel lançou-se para a frente, empurrando, segurando, puxando os que estavam no seu caminho e correu para a ante-sala.

Viu Avery Fowler, a camisa branca encharcada de sangue, o peito uma série de pequenos orifícios sangrentos. Quando o homem ferido caiu, o colarinho alto separou-se da camisa revelando mais sangue na garganta. Joel conhecia bem aquela expulsão de ar; ele amparara cabeças de meninos nos campos, quando eles choravam de raiva e de medo incontrolável. Amparou a cabeça de Avery então, deitando-o lentamente no chão.

— Meu Deus, o que aconteceu! — gritou Converse, emba­lando o homem agonizante nos braços.

— Eles... voltaram — murmurou o seu colega de escola do passado tão distante, a voz entrecortada pela tosse. — O elevador. Eles me encurralaram no elevador!... Disseram que era por Aquitânia, foi esse o nome que usaram... Aquitânia. Oh, Cristo! Meg... as crianças! — A cabeça de Avery Fowler contorceu-se espasmodicamente para o ombro direito, depois a garganta sanguinolenta deixou escapar a última expulsão de ar.

 

 

Converse ficou parado na chuva, as roupas encharcadas, olhando para o lugar agora invisível na água, onde há uma hora a fonte se erguia para o céu proclamando que isto era Genebra. O lago estava revolto e uma infinidade de ondas brancas tinham substituído as velas alvas e graciosas. Não havia reflexos em lugar nenhum. Mas ouvia-se o trovão distante ao norte. Vindo dos Alpes. E a mente de Joel estava congelada.

 

Passou pelo balcão de mármore da portaria do hotel Richemond e dirigiu-se para a escada da esquerda. Era seu hábito: a suíte ficava no segundo andar e os elevadores com grades de cobre e o interior recoberto de veludo cor de vinho eram verdadeiros objetos de arte, mas não muito rápidos. Além disso ele gostava de passar pelas vi­trines de jóias de preços escandalosamente altos e brilhantemente iluminadas, que enfeitavam as paredes da elegante escadaria — diamantes cintilantes, rubis cor de sangue, colares rendados de ouro trabalhado. De certa forma faziam-no pensar em mudanças, mudanças extraordinárias. Para ele. Para uma vida que julgara que ia terminar violentamente, há milhares de quilômetros dali, em de­zenas de celas diferentes, mas sempre infestadas de ratos, com o ruído abafado dos canhões e dos gritos das crianças nas trevas distantes. Diamantes, rubis e ouro trabalhado eram símbolos do inatingível e do irreal, mas estavam ali, e passava por eles, obser­vava-os, sorrindo para a sua existência... e eles pareciam notá-lo, olhos grandes e brilhantes de profundidade infinita, retribuindo seu olhar, dizendo-lhe que estavam ali, que ele estava ali. Mudança.

Mas não os via agora, nem eles notavam sua presença. Não via nada, não sentia nada; cada tentáculo de sua mente e de seu corpo estava amortecido, suspenso no espaço sem ar. Um homem que conhecera quando menino, com outro nome, tinha morrido nos seus braços, muitos anos mais tarde, com outro nome, e as palavras que havia murmurado no momento brutal da morte eram tão in­compreensíveis quanto paralisantes. Aquitânia. Eles disseram que foi por Aquitânia... Onde estava a sanidade? Onde estava a razão? O que significavam as palavras e por que ele fora atraído por aquele significado obscuro? Ele fora atraído, sabia muito bem, e havia um motivo para aquela terrível manipulação. O ímã era um nome, um homem. George Marcus Delavane, senhor da guerra de Saigon.

— Monsieur! — A exclamação discreta veio de baixo; voltou-se nos degraus e viu o gerente vestido a rigor, correndo pelo vestí­bulo e subindo a escada. Chamava-se Henri e o conhecia há cinco anos. A amizade entre os dois homens ia além do relacionamento entre o gerente do hotel e um hóspede; muitas vezes tinham jogado juntos em Divonne-les-bains, do outro lado da fronteira francesa.

— Alô, Henri.

— Mon Dieu, está bem, Joel? Seu escritório em Nova Iorque telefonou várias vezes. Ouvi no rádio, toda Genebra já sabe! La drogue! Drogas, crimes, armas... assassinato! Está nos atingindo também agora!

— É isso que estão dizendo?

— Dizem que pequenos envelopes com cocaína foram encon­trados sob a camisa dele, um avocat international respeitado, uma conexão suspeita...

— É mentira — interrompeu Converse.

— É o que dizem, o que mais posso acrescentar? Seu nome foi mencionado; dizem que morreu quando chegou perto dele... Você não foi implicado, naturalmente; apenas estava lá com os outros. Ouvi seu nome e fiquei muito preocupado! Por onde andou!

— Respondendo a uma porção de perguntas sem resposta na delegacia de polícia. — Perguntas que tinham respostas, mas não para ele, nem para as autoridades de Genebra. Avery Fowler — Preston Halliday — merecia algo melhor do que aquilo. Uma res­ponsabilidade lhe fora dada e aceita, na morte.

— Meu Deus, está encharcado! — exclamou Henri, os olhos intensamente preocupados. — Esteve andando na chuva, não foi? Não havia táxis?

— Não procurei. Queria andar.

— Naturalmente, o choque, eu compreendo. Vou mandar co­nhaque ao seu quarto, um armanhaque bastante razoável. E jantar, talvez deva cancelar sua reserva no Gentilshommes?

— Obrigado. Dê-me trinta minutos e peça que me façam uma ligação para Nova Iorque, está bem? Eu nunca consigo o número certo.

— Joel?

— Sim?

— Posso ajudar? Há alguma coisa que precisa me dizer? Ga­nhamos e perdemos juntos, com muitas garrafas de grand cru, para que carregue sozinho agora algo que não precisa carregar. Eu co­nheço Genebra, meu amigo.

Converse fitou os grandes olhos castanhos, o rosto enrugado, rígido de preocupação.

— Por que diz isso?

— Porque você negou com tanta rapidez o comunicado da polícia sobre cocaína, só por isso. Eu o observei. Há muito mais em suas palavras do que aquilo que disse.

Joel piscou e por um momento fechou os olhos, sentindo in­tensamente a tensão na testa. Respirou fundo e disse:

— Faça-me um favor, Henri, e não faça conjeturas. Apenas consiga uma linha intercontinental em meia hora, está bem?

— Entendu, monsieur — disse o francês. — Le concierge du Richemond está aqui para servir os hóspedes, hóspedes especiais recebem tratamento especial, naturalmente... Estarei aqui se pre­cisar de mim, meu amigo.

— Eu sei. Se virar a carta errada eu aviso.

— Se tiver de virar qualquer carta na Suíça, me chame. Os naipes variam de acordo com os jogadores.

— Não me esquecerei disso. Trinta minutos? Uma ligação?

— Certainement, monsieur.

 

O chuveiro estava tão quente quanto sua pele podia tolerar, e o vapor enchia seus pulmões, interrompendo a respiração na gar­ganta. Então abriu a água fria e obrigou-se a suportar o contraste, até sentir a cabeça arrepiada. Pensou que o choque dos extremos tornaria sua mente mais clara, ou pelo menos reduziria aquela in­sensibilidade. Precisava pensar; decidir; precisava ouvir.

Saiu do banheiro com o robe de atoalhado branco enxugando a umidade do corpo e enfiou os pés num par de chinelos que estavam no chão, ao lado da cama. Apanhou os cigarros e o isqueiro em cima da cômoda e foi para a sala de estar. O preocupado Henri cumprira a promessa: na mesa de café um camareiro havia colo­cado uma garrafa de caro armanhaque e dois copos, mais para enfeitar do que para ser bebido. Sentou-se no sofá macio, serviu-se da bebida e acendeu um cigarro. Lá fora, a chuva pesada de agosto martelava o peitoril das janelas, com uma batida áspera e incansá­vel. Consultou o relógio; alguns minutos depois das seis — um pouco depois do meio-dia em Nova Iorque. Joel imaginou se Henri conseguiria uma linha transatlântica livre. O advogado em Converse queria ouvir as palavras de Nova Iorque, palavras que confirma­riam ou não a revelação de um homem morto. Já fazia vinte mi­nutos desde que Henri o detivera na escada; esperaria mais cinco e chamaria a telefonista do hotel.

O telefone tocou, a campainha estridente e vibrante do sistema europeu irritou-o. Atendeu o aparelho sobre a mesa, perto do sofá; sua respiração estava ofegante e a mão tremia.

— Sim? Alô!

— Nova Iorque chamando, monsieur — disse a telefonista do hotel. — É do seu escritório. Devo cancelar a chamada marcada para as seis e quinze?

— Sim, por favor. E muito obrigado.

— Sr. Converse? — A voz nervosa e aguda era da secretária de Lawrence Talbot.

— Alô, Jane.

— Meu Deus, estamos tentando falar com o senhor desde as dez horas! O senhor está bem! Soubemos da notícia mais ou menos às dez. É tudo tão horrível!

— Estou ótimo, Jane. Obrigado por seu interesse.

— O Sr. Talbot está fora de si. Ele não pode acreditar!

— Não acredite no que estão dizendo sobre Halliday. Não é verdade. Posso falar com Larry, por favor?

— Se ele souber que estou conversando com o senhor no tele­fone é capaz de me despedir.

— Não, não vai despedi-la. Quem ia escrever as cartas dele?

A secretária fez uma pausa breve, e então falou com voz mais calma:

— Oh, meu Deus, Joel, você não existe. Depois de tudo o que passou ainda encontra algo engraçado para dizer.

— É mais fácil, Jane. Deixe-me falar com Bubba, está bem?

— Você é o fim!

Lawrence Talbot, sócio principal de Talbot, Brooks e Simon, era um advogado extremamente competente, mas seu sucesso devia-se, em primeiro lugar, ao fato de ter sido um dos poucos jogadores de futebol americano de Yale, e depois à sua habilidade nas cortes de justiça. Era também um ser humano muito decente, mais pare­cendo um treinador coordenador do que a força motriz de uma firma jurídica conservadora mas altamente competitiva. Era tam­bém eminentemente justo e amante da justiça; cumpria sua palavra. Talbot era uma das razoes pelas quais Joel havia entrado para a firma; a outra era Nathan Simon, um homem gigantesco e um gigantesco advogado. Converse tinha aprendido mais sobre direito com Nate Simon do que com qualquer outro advogado ou pro­fessor que já conhecera. Tinha maior afinidade por Nathan, pois era muito mais difícil fazer amizade com Simon; as pessoas se aproximavam daquele homem discreto e extraordinário com um misto de carinho e reserva.

Lawrence Talbot explodiu no telefone:

— Deus do céu, estou abismado! O que posso dizer! O que posso fazer!

— Para começar, acabe com aquela conversa fiada sobre Hal­liday. Ele não era mais traficante de drogas do que Nate Simon.

— Não ouviu, então? Eles desmentiram isso. A história agora é assalto com violência; ele resistiu e os envelopes foram colocados sob a camisa, depois que atiraram nele. Acho que Jack Halliday deve ter queimado os fios telefônicos de São Francisco, ameaçando arrasar com todo o governo suíço... Ele jogava por Stanford, você sabe.

— Você é demais, Bubba.

— Nunca pensei que fosse gostar de ouvir isso de você, meu jovem. Mas gostei.

— Jovem e não tão jovem, Larry. Esclareça uma coisa para mim, está bem?

— Tudo que eu puder.

— Anstett. Lucas Anstett.

— Nós conversamos. Nathan e eu escutamos, e ele foi muito persuasivo. Nós compreendemos.

— Compreendem mesmo!

— Não os detalhes, naturalmente, ele não quis ser muito pre­ciso. Mas achamos que você é o melhor nesse campo, e não foi difícil atender ao pedido dele. T., B & S. tem o melhor, e quando um juiz como Anstett confirma isso em uma conversa como aquela, nós devemos nos congratular, não acha?

— Estão fazendo isso por causa da posição do juiz?

— Cristo, não. Ele até nos avisou de que seria mais severo conosco na corte de apelação se concordássemos. É um osso duro de roer quando quer alguma coisa. Diz que vamos ficar muito pior se concordarmos com ele.

— Acreditaram no que ele lhes disse?

— Bem, Nathan falou alguma coisa sobre bodes que têm cer­tas marcas, que não podem ser removidos sem muito berreiro, por­tanto devíamos concordar. Nathan freqüentemente confunde os assuntos, mas que diabo, Joel, ele quase sempre está certo.

— Se pode dispor de três horas para ouvir um sumário de cinco minutos — disse Converse.

— Ele está sempre pensando, meu jovem.

— Jovem e não tão jovem. Tudo é relativo.

— Sua mulher telefonou... Desculpe, sua ex-mulher.

— Oh?

— Seu nome foi citado no rádio ou na televisão, ou coisa assim, e ela queria saber o que tinha acontecido.

— O que você disse?

— Que estávamos tentando falar com você. Não sabíamos mais do que ela. Parecia muito preocupada.

— Telefone e diga-lhe que estou bem, por favor? Tem o nú­mero?

— Jane tem.

— Então vou sair de licença.

— Licença com pagamento integral — disse Talbot de Nova Iorque.

— Não é necessário, Larry. Vão me dar um bocado de di­nheiro, portanto economize na contabilidade. Devo estar de volta dentro de três ou quatro semanas.

— Eu poderia fazer isso, mas não vou fazer — disse o sócio principal. — Sei quando tenho o melhor e pretendo conservá-lo. Nós depositaremos no banco para você. — Talbot fez uma pausa, e então falou em voz baixa e ansiosa: — Joel, preciso perguntar. Essa coisa há poucas horas tem alguma relação com o negócio de Anstett?

Converse apertou o telefone com tanta força que seu punho e dedos doeram.

— Absolutamente nada, Larry — disse. — Nenhuma conexão.

 

Miconos, a ilha encharcada de sol, caiada de branco, nas Cidades, vizinha e adoradora de Delos. Desde a conquista de Barba-Roxa, tinha abrigado os sucessivos piratas do mar que navegavam nos ventos do Meltemi — turcos, russos, cipriotas e finalmente os gre­gos — instalados e deslocados durante séculos, uma pequena massa de terra alternadamente honrada e esquecida até a chegada dos elegantes iates e dos brilhantes aviões, símbolos de uma era dife­rente. Automóveis de linhas ousadas — Porsches, Maseratis, Jaguars — corriam agora pelas estradas estreitas, passando pelos moinhos de vento muito alvos e pelas igrejas de alabastro; um novo tipo de habitantes se havia juntado aos residentes lacônicos, tradiciona­listas, que viviam do mar e das lojas. Jovens de espírito livre, de todas as idades, com as camisas abertas no peito e calças justas, a pele queimada de sol servindo de fundo para colares e pulseiras de ouro maciço, tinham encontrado um novo parque de diversões. E a antiga Miconos, no passado um dos portos principais dos orgu­lhosos fenícios, tinha-se transformado na Saint Tropez do mar Egeu.

Converse tomara o primeiro avião da Swissair que saía de Ge­nebra com destino a Atenas e de lá fora em um pequeno avião da Olympic para a ilha. Embora tivesse perdido uma hora nos fusos horários, eram apenas quatro horas da tarde quando o táxi do aeroporto se arrastou pelas ruas do porto quente e de um branco ofuscante e parou na frente da fachada branca do banco. Ficava na beira do mar e as multidões de camisas floridas e vestidos de cores vivas, e as lanchas cruzando as ondas pequenas dirigindo-se para o embarcadouro principal, eram prova de que os enormes barcos de recreio que se viam lá fora eram manejados por homens experimentados. Miconos era uma cintilante armadilha para turistas; o dinheiro ficava na ilha caiada de branco; as tavernas e as lojas estavam cheias desde o nascer do sol até o anoitecer escaldante. O ouzo fluía generosamente e os bonés de marinheiro grego desapa­reciam das prateleiras e apareciam nas cabeças dos suburbanos de Grosse Point e Short Hills. E quando a noite chegava e o último efharistó e parakaló eram pronunciados desajeitadamente pelos vi­sitantes, começavam outros jogos — os grã-finos e as grã-finas, os belos, os eternos, os mimados filhos do Egeu azul, começavam a jogar. Ouviam-se risadas descontraídas enquanto as dracmas eram contadas e gastavam-se quantias que deixariam assombrados mes­mo aqueles que tinham suítes opulentas no mais alto convés do mais luxuoso navio. Onde Genebra era severa, Miconos era tole­rante — de um modo que os turcos do passado teriam invejado.

Joel telefonara para o banco, do aeroporto, sem saber o horá­rio de trabalho, mas apenas o nome do banqueiro com quem devia entrar em contato. Kostas Laskaris atendeu-o cautelosamente pelo telefone, deixando bem claro que esperava ver não só o passaporte que devia ser examinado por um espectógrafo, como também a carta de A. Preston Halliday com sua assinatura, a qual seria tam­bém submetida a um scanner para comparar com a assinatura que o falecido Senhor A. Preston Halliday deixara no banco.

— Ouvimos a notícia de que ele foi morto em Genebra. É uma pena — dissera Laskaris.

— Direi à mulher e aos filhos dele o quanto seus sentimentos me comoveram.

Converse pagou o táxi e subiu os degraus baixos e brancos da entrada, carregando a valise e a pasta de papéis, agradecido ao ver a porta ser aberta por um guarda uniformizado, que o fez lembrar-se de uma fotografia há muito esquecida de um sultão louco que chicoteava as mulheres do seu harém na praça, quando elas não conseguiam excitá-lo.

Kostas Laskaris não era de modo nenhum o que Joel esperava, baseado na breve e desconcertante conversa ao telefone. Era um homem semicalvo, de rosto agradável, com mais de cinqüenta anos, olhos escuros e cordiais, inglês relativamente fluente, mas pare­cendo pouco à vontade com essa língua. Suas primeiras palavras, enquanto se levantava indicando uma cadeira para Converse na frente da sua mesa, negavam a primeira impressão de Joel.

— Peço desculpas por meu comentário sobre o Sr. Halliday, que pode ter parecido um tanto rude. Entretanto, foi uma pena, e não sei como dizer de outro modo. E é difícil, senhor, sentir a morte de alguém que não se conhece.

— Eu estava confuso. Por favor, esqueça.

— É muito amável, mas creio que não posso me esquecer do que foi combinado — determinado pelo Sr. Halliday e seu sócio, aqui em Miconos. Deixe-me ver seu passaporte e a carta, por favor?

— Quem é ele? — perguntou Joel, tirando uma carteira com o passaporte e a carta, do bolso do paletó. — O sócio, quero dizer.

— O senhor é advogado e certamente sabe que essa infor­mação não pode ser transmitida até que as barreiras... tenham sido transpostas, por assim dizer. Pelo menos penso que é isso.

— Está bem. Apenas tentei. — Tirou o passaporte e a carta da carteira e entregou-o ao banqueiro.

Laskaris apanhou o telefone e apertou um botão. Falou em grego, aparentemente chamando alguém. Logo a seguir a porta se abriu e uma mulher de cabelos pretos, encantadoramente bron­zeada, entrou e caminhou graciosamente para a mesa. Ergueu os olhos para Joel, que sentiu que o banqueiro o observava atenta­mente. Um cumprimento mudo de Converse, outro olhar — pas­sando dele para Laskaris — apresentações seriam possíveis, acomo­dação tacitamente prometida e uma informação provavelmente sig­nificativa entraria nos arquivos do banqueiro. Joel não deu nenhum sinal de aquiescência; não queria a entrada dessa informação nos arquivos. Um homem não recebe meio milhão apenas com um mo­vimento de cabeça e depois sai à procura de uma gratificação. Não significava estabilidade; significava algo diferente.

Os dez minutos seguintes foram dedicados a uma conversa bem-humorada e sem conseqüências sobre viagens aéreas, alfânde­gas e a deterioração geral desse meio de transporte. Ao fim desse tempo, o passaporte e a carta foram devolvidos — não pela eston­teante mulher de cabelos escuros, mas por um jovem Adônis louro, com corpo de dançarino de balé. Laskaris, sempre com expressão amável, não perdia tempo; estava disposto a fornecer qualquer tipo de diversão que seu rico visitante desejasse.

Converse fitou os olhos cordiais do grego, sorriu e o sorriso transformou-se em riso tranqüilo. Laskaris retribuiu o sorriso e ergueu os ombros, indicando ao jovem atleta que podia se retirar.

— Sou gerente-geral deste banco, senhor — disse ele, quando a porta se fechou —, mas não determino toda a política do banco. Afinal, estamos em Miconos.

— E muito dinheiro passa por aqui — concluiu Joel. — Em qual deles apostou?

— Em nenhum dos dois — respondeu Laskaris sacudindo a cabeça. — Apenas exatamente no que o senhor fez. Seria um tolo se fizesse de outra forma, e não acho que seja tolo. Além de gerente-geral desta agência, sou também um excelente avaliador de caráter

— Por isso foi escolhido como intermediário?

— Não, não foi por isso. Sou amigo do sócio do Sr. Halliday aqui na ilha. A propósito, seu nome é Beale. Dr. Edward Beale... Como vê, tudo está, em ordem.

— Doutor? — perguntou Converse, inclinando-se para a fren­te a fim de apanhar o passaporte e a carta — Ele é médico?

— Não é doutor em medicina — esclareceu Laskaris. — É um erudito, um professor de história dos Estados Unidos, aposentado. Recebe uma pensão muito boa e mudou-se para Miconos, vindo de Rodes há alguns meses. Um homem muito interessante, muito cul­to. Trato das suas finanças — um assunto do qual ele não entende muito, mas assim mesmo é interessante. — O banqueiro sorriu outra vez, erguendo os ombros.

— Espero que seja — disse Joel. — Temos muita coisa para discutir.

— Isso não me diz respeito, senhor. Vamos tratar da dispo­sição dos fundos? Como e onde quer que sejam pagos?

— Uma grande parte em dinheiro. Comprei um desses cintos sensorizados para dinheiro, em Genebra — as baterias têm garantia de um ano. Se for arrancado do meu corpo, começa a soar um alarme tão estridente que é capaz de estourar os tímpanos. Gostaria que fosse em dólares americanos — exceto uns poucos mil, natu­ralmente.

— Esses cintos são eficazes, senhor, mas não se estiver incons­ciente, ou se não houver ninguém para ouvir o alarme. Posso su­gerir cheques de viagem?

— Naturalmente que pode, e talvez esteja com a razão, mas não quero. Posso não querer assinar.

— Como quiser. Seu nome todo, por favor — disse Laskaris, lápis na mão, bloco de papel à espera. — E para onde quer que envie o restante?

— É possível — perguntou Converse em voz lenta — abrir contas não no meu nome, mas às quais eu possa ter acesso?

— Naturalmente, senhor. Na verdade, é um método muito usado em Miconos — bem como em Creta, Rodes, Atenas, Istam­bul e em grande parte da Europa. Enviamos uma descrição por telex, acompanhada de algumas palavras escritas pelo senhor — outro nome, os números... Conheci um homem que usou versos infantis. Então são comparados. Naturalmente, deve-se usar um banco muito sofisticado.

— Naturalmente. Diga o nome de alguns.

— Onde?

— Em Londres, Paris, Bonn... talvez Telavive — disse Joel, tentando lembrar as palavras de Halliday.

— Bonn não é muito fácil; são por demais inflexíveis. Uma simples apóstrofe errada e eles chamam logo o que consideram suas autoridades... Telavive é simples; o dinheiro corre livremente, tão serpeante quanto o Knesset. Londres e Paris são padrões e, natu­ralmente, sua cobiça é imensa. Pagará um alto imposto pela trans­ferência, porque eles sabem que não vai criar um caso sobre di­nheiro secreto. Muito discreto, muito mercenário e muito lucrativo.

— Conhece bem todos esses bancos?

— Tenho experiência, senhor. Agora, e quanto às retiradas?

— Quero cem mil para mim — nada maior do que notas de quinhentos dólares. O resto pode dividir e me informar como posso retirar se for preciso.

— Não é difícil, senhor. Vamos começar a escrever nomes, números — ou versos infantis?

— Números — disse Converse. — Sou um advogado. Nomes e versos infantis estão em dimensões sobre as quais não quero pensar agora.

— Como quiser — disse o grego, apanhando um bloco de papel. — E aqui está o telefone do Dr. Beale. Quando concluirmos nossos negócios pode telefonar para ele — ou não, se preferir. Não me diz respeito.

 

Dr. Edward Beale, residente em Miconos, falou no telefone com palavras cuidadosamente escolhidas e a cadência lenta e pensativa de um erudito. Nada apressado; tudo deliberado.

— Há uma praia — mais rochas do que praia, e não é fre­qüentada à noite — a cerca de sete quilômetros da avenida da praia. Caminhe até ela. Vá pela estrada de oeste ao longo da costa até ver as luzes de várias bóias na água. Aproxime-se da beira do mar. Eu o encontrarei.

 

As nuvens corriam no céu noturno, carregadas pelos ventos de grande altitude, permitindo que o lugar penetrasse rápida e espora­dicamente, iluminando a faixa de praia escolhida para o encontro. Ao longe, na água, oscilavam as luzes vermelhas de quatro bóias. Joel subiu nas rochas e desceu para a areia macia, encaminhando-se para a beira da água; via e ouvia as pequenas ondas chegando na praia e voltando. Acendeu um cigarro, supondo que isso assinalaria sua presença. Estava certo; logo depois ouviu uma voz às suas costas, mas o cumprimento não era exatamente o que esperaria de um historiador idoso e aposentado.

— Fique onde está e não se mova — foi a primeira ordem, em voz baixa e autoritária. — Ponha o cigarro na boca e dê uma tra­gada, depois levante os braços e conserve-os estendidos em linha reta na frente do corpo... Muito bem. Agora, solte a fumaça; quero ver a fumaça.

— Cristo, estou sufocando! — exclamou Joel, tossindo, quan­do a fumaça, levada pela brisa do oceano, entrou nos seus olhos. Então, subitamente, mãos rápidas examinaram suas roupas, pas­sando pelo peito e pelas pernas. — O que está fazendo? — excla­mou, cuspindo o cigarro, involuntariamente.

— Você não está armado — disse a voz.

— Naturalmente que não!

— Eu estou. Pode abaixar os braços e voltar-se.

Converse virou rapidamente o corpo, ainda tossindo, e esfre­gou os olhos cheios d’água.

— Seu desgraçado!

— É um hábito horrível, o de fumar. Se fosse você eu deixava. Além das coisas terríveis que faz com seu corpo, agora vejo que pode ser usado contra você de outro modo.

Joel piscou e olhou para a frente. O enfático conselheiro era um homem magro de altura média e cabelos brancos. Estava de pé, em atitude quase marcial, e usava o que parecia ser uma jaqueta de lona e calça branca. O rosto — o que podia ser visto à luz intermi­tente da lua — tinha rugas profundas e um meio-sorriso. Havia também o revólver em sua mão, seguro com firmeza, apontado para a cabeça de Converse.

— Você é Beale? — perguntou Joel. — Dr. Edward Beale?

— Sim. Está mais calmo agora?

— Considerando o choque da sua calorosa recepção, acho que sim.

— Ótimo. Então vou guardar isto. — O homem abaixou a arma e ajoelhou-se ao lado de uma sacola de lona. Atirou o revól­ver para dentro da sacola e levantou-se. — Eu sinto muito, mas precisava ter certeza.

— De quê? De que eu não era um comando?

— Halliday está morto. Poderiam ter mandado um substituto no seu lugar! Alguém para eliminar um velho em Miconos! Nesse caso, essa pessoa certamente estaria armada.

— Por quê?

— Porque não poderia saber que eu sou um velho. Eu podia ser um comando.

— Quer saber, é possível — apenas possível — que eu estivesse armado. Teria estourado meus miolos?

— Um advogado conceituado, que visita a ilha pela primeira vez, tendo passado pelo serviço de segurança do aeroporto de Ge­nebra? Onde poderia ter conseguido a arma? Quem poderia co­nhecer em Miconos?

— Certas providências poderiam ter sido tomadas — protestou Converse, sem muita convicção.

— Mandei seguir você desde que chegou. Foi diretamente ao banco e depois para o hotel Kouneni, sentou-se no jardim e tomou um drinque antes de subir para o quarto. Além do motorista do táxi, meu amigo Kostas, o recepcionista do hotel e os garçons do jardim, não falou com mais ninguém. Desde que você fosse real­mente Joel Converse, eu não corria perigo.

— Para o produto de uma torre de marfim, você fala mais como um assassino profissional de Detroit.

— Nem sempre fiz parte do mundo intelectual, mas é verdade, tenho sido cauteloso. Acho que nós todos devemos ser cautelosos. Com um George Marcus Delavane é a única estratégia válida.

— Estratégia válida?

— Abordagem, se quiser — Beale enfiou a mão entre os bo­tões separados da jaqueta e retirou uma folha de papel dobrada. — Aqui estão os nomes — disse ele, entregando-a a Joel. — Há cinco figuras-chaves na operação de Delavane aqui. Uma da França, ou­tra da Alemanha Ocidental, de Israel, África do Sul e Inglaterra. Identificamos quatro — os primeiros quatro — mas não conse­guimos encontrar o inglês.

— Como conseguiu esses nomes?

— Originalmente em anotações encontradas entre os papéis de Delavane por Halliday, quando o general era cliente dele.

— Foi esse então o acidente de que falou? Ele disse que foi um acidente que não se repetiria.

— Não sei o que ele lhe disse, naturalmente, mas sem dúvida foi um acidente. Uma falha de memória da parte de Delavane, uma aflição que, posso lhe garantir, atinge os velhos. O general simples­mente se esqueceu de que tinha um encontro com Halliday e, quan­do Preston chegou, a secretária permitiu que entrasse no escritório para preparar os papéis de Delavane, que devia chegar dentro de meia hora. Preston viu uma pasta na mesa do general; ele a conhe­cia, sabia que continha material que podia consultar. Sem pensar duas vezes, sentou-se e começou a trabalhar. Encontrou os nomes e, conhecendo o recente itinerário de Delavane na Europa e na África, tudo subitamente começou a fazer sentido — um sentido espantoso. Para qualquer pessoa interessada em política, os quatro nomes são assustadores — trazem lembranças terríveis.

— E Delavane soube que ele os tinha visto?

— Na minha opinião, jamais teve certeza. Halliday os copiou e saiu, antes da volta do general. Mas Genebra nos diz o contrá­rio, não acha?

— Sim, que Delavane descobriu — disse Converse sombria­mente.

— Ou que ele não queria se arriscar, especialmente se havia um plano organizado, e estamos convencidos de que há. Estamos na contagem regressiva, agora.

— Para quê?

— Partindo do padrão das operações deles — o que consegui­mos descobrir —, uma série prolongada de conflagrações maciças, orquestradas, com o objetivo de descontrolar governos e os deses­tabilizar.

— É uma tarefa e tanto. Como pretendem fazer isso?

— Não imagino — disse o professor sorrindo. — Provavel­mente surtos de violência generalizados, coordenados, liderados por terroristas em vários locais — terroristas apoiados por Delavane e sua gente. Quando o caos se tornar intolerável, terão pretextos para interferir com unidades militares e assumir o controle, a princípio com a lei marcial.

— Já foi feito antes — disse Joel. — Criar um exército supostamente inimigo e depois enviar provocadores...

— Com quantias maciças de dinheiro e de material.

— E quando se revoltam — continuou Converse — puxar o tapete de sob seus pés, exterminá-los e tomar o poder. Os cidadãos agradecem e os chamam de heróis e salvadores, quando entram marchando ao som dos tambores. Mas como poderão fazer isso?

— Essa é a questão central e mais importante. Quais são os alvos? Onde estão eles, quem são? Não temos idéia. Se tivéssemos pelo menos um indício, poderíamos nos aproximar por esse lado, mas não temos, e não podemos perder tempo caçando desconhe­cidos. Devemos procurar o que já conhecemos.

— O tempo, também — interrompeu Joel. — Por que está tão certo que estamos na contagem regressiva?

— Aumento da atividade em todos os lugares — em muitos casos, atividade frenética. Mercadorias originárias dos Estados Uni­dos estão saindo dos armazéns da Inglaterra, Irlanda, França e Alemanha, destinadas a grupos de insurretos em todas as áreas de conflito. Há indicações disso em Munique, no Mediterrâneo e nos Estados árabes. Falam em termos de preparativos finais, mas nin­guém parece saber para quê, exatamente — só sabem que devem estar preparados. É como se grupos como o Baader-Meinhof, a Brigada Vermelha, o PLO e as legiões vermelhas de Paris e de Madri estivessem tomando parte em uma corrida sem que ninguém soubesse qual o percurso, apenas o momento em que vai começar.

— Quando é?

— Nossas informações variam, mas estão todas dentro de um certo limite de tempo. Entre três e cinco semanas.

— Oh, meu Deus! — Joel lembrou-se subitamente. — Avery — Halliday disse alguma coisa antes de morrer. Palavras profe­ridas pelos homens que o mataram. “Aquitânia... Eles disseram que foi por Aquitânia.” Essas foram suas palavras. O que signi­ficam, Beale?

O velho professor ficou em silêncio, os olhos brilhando sob a luz da lua. Virou a cabeça lentamente e olhou para a água.

— É loucura — murmurou.

— Isso não me explica nada.

— Não, naturalmente que não — disse Beale se desculpando, voltando-se para Converse. — É simplesmente a magnitude de tudo. É incrível.

— Não estou entendendo.

— Aquitânia — Aquitânia, como Júlio César a chamava — era o nome de uma região do Sudoeste da França que, no passado, nos primeiros séculos depois de Cristo, provavelmente ia desde o Atlântico até o Mediterrâneo, atravessando os Pireneus, e esten­dia-se para o norte, até a embocadura do Loire, a oeste de Paris, na costa...

— Tenho uma vaga noção disso — interrompeu Joel, impa­ciente demais para uma dissertação acadêmica.

— Se tem, merece elogios. A maioria das pessoas só tem co­nhecimento dos últimos séculos — digamos, do século VIII em diante, quando Carlos Magno conquistou a região, criou o reino de Aquitânia e deu-o ao filho Luís, e aos seus filhos Pepino I e II. Na verdade, esses e os trezentos anos seguintes são os mais perti­nentes.

— A quê?

— À lenda de Aquitânia, Sr. Converse. Como todos os gene­rais ambiciosos, Delavane se considera um entendido em história — na tradição de César, Napoleão, Clausewitz... até mesmo Patton. Eu fui, com ou sem razão, considerado um erudito, mas ele conti­nua sendo um estudante, e é assim que deve ser. Os eruditos não podem tomar liberdades sem provas substanciais — ou pelo menos não devem — mas estudantes podem e geralmente tomam.

— Aonde quer chegar?

— A lenda de Aquitânia torna-se confusa, a síndrome do e se por acaso, colocada acima dos fatos até que as suposições teóricas encontradas distorcem a evidência. Sabe, a história de Aquitânia está repleta de expansões súbitas, maciças e bruscas contrações. Simplificando, um estudioso de história bastante imaginativo diria que se não fossem os erros de cálculo, políticos, maritais ou militares por parte de Carlos Magno e seu filho, dos dois Pepinos e, mais tarde, de Luís XVII da França e Henrique II da Inglaterra, estes dois últimos casados com a extraordinária Eleanor, a Aquitânia teria dominado grande parte, se não toda a Europa — Beale fez uma pausa. — Começa a compreender? — perguntou.

— Sim — disse Joel. — Cristo, sim.

— Isso não é tudo — continuou o professor. — Uma vez que a Aquitânia foi, em certa época, considerada uma legítima possessão da Inglaterra, devia ter dominado todas as suas colônias, incluindo as treze originais, do outro lado do Atlântico — mais tarde os Estados Unidos da América... Naturalmente, erros de cálculo ou não, isso nunca teria acontecido, graças a uma lei fundamental da civilização ocidental, válida desde a queda de Rômulo Augústulo e do colapso do Império Romano. Não é possível massacrar e depois reunir, por meio da força, povos diferentes e suas culturas — não por muito tempo.

— Alguém está tentando fazer isso agora — disse Converse. — George Marcus Delavane.

— Sim. Em sua mente ele construiu a Aquitânia que nunca existiu, que jamais poderia ter existido. E isso é profundamente assustador.

— Por quê? Acabou de dizer que é impossível.

— Não de acordo com as regras antigas, não em qualquer período a partir da queda de Roma. Mas deve se lembrar, jamais houve um tempo registrado nos anais da história igual a este. Nun­ca esse tipo de armas, nunca tanta ansiedade. Delavane e a sua gente sabem disso, e estão jogando com essas armas, essas ansie­dades. Estão jogando apoiados nelas. — O velho professor apontou para o papel que estava na mão de Joel. — Você tem fósforos. Acenda um e veja os nomes.

Converse desdobrou a folha de papel, tirou o isqueiro do bolso e acendeu; e quando a chama a iluminou estudou os nomes.

— Meu Deus — disse, franzindo a testa. — Combinam com Delavane. É uma reunião de senhores da guerra, se forem quem penso que são. — Joel apagou o isqueiro.

— São — disse Beale —, a começar pelo general Jacques-Louis Bertholdier em Paris, um homem notável, extraordinário. Um membro da resistência durante a guerra, com a patente de major antes dos vinte anos, mas, mais tarde, um membro incon­formado da OEA1F[2] de Salan. Foi um dos responsáveis pelo atentado contra De Gaulle em agosto de 62, e se considerava o verdadeiro líder da república. Quase conseguiu. Acreditava então, como acre­dita hoje, que os generais argelinos eram a salvação da França enfraquecida. Sobreviveu, não só por ser uma lenda, mas porque sua voz não está desacompanhada — apenas, ele é mais persuasivo do que a maioria. Especialmente junto ao grupo de elite dos coman­dantes promissores produzidos por Saint-Cyr. Resumindo, é um fas­cista, um fanático que se esconde atrás de uma rede de eminente respeitabilidade.

— E este chamado Abrahms — disse Converse. — É o homem forte de Israel que se pavoneia por toda a parte com um paletó safári e botas, é esse? O uivante organizador de monstruosos comí­cios na frente do Knesset e nos estádios, dizendo a todo o mundo que haverá um banho de sangue na Judéia e na Samaria se os filhos de Abraão forem repudiados. Nem os israelenses conseguem fazê-lo calar-se.

— Muitos têm medo de tentar; ele se tornou eletrificado como o relâmpago, um símbolo. Chaim Abrahms e seus seguidores fazem com que o governo de Begin pareça reticente, discretamente pa­cifista. Ele é um sabra tolerado pelos judeus da Europa por ser um soldado brilhante, o que demonstrou em duas guerras, e tem tido o respeito — se não a afeição — de todos os ministros da defesa, desde o tempo de Golda Meir. Nunca sabem quando vão precisar dele no campo de batalha.

— E esse — disse Joel, acendendo o isqueiro outra vez — Van Headmer. Da África do Sul, não é? O “carrasco de uniforme”, ou algo assim.

— Jan van Headmer, o “assassino de Soweto”, como os ne­gros o chamam. Ele executa “infratores” com freqüência alarmante e com a tolerância do governo. Sua família é de linhagem antiga de africânderes, todos generais, desde a guerra dos bôeres, e não vê nenhuma razão para que Pretória seja trazida para o século XX. Incidentalmente, é amigo íntimo de Abrahms e vai freqüentemente a Telavive. É também um dos mais eruditos e encantadores generais que já estiveram presentes a uma conferência diplomática. Sua pre­sença nega sua imagem e reputação.

— E Leifhelm — disse Converse, o último dos nomes estran­geiros para nós. — Uma personalidade variada, se estou certo. Supostamente um grande soldado que obedeceu a ordens demais, mas ainda respeitado. Sei muito pouco sobre ele.

— O que é perfeitamente compreensível — disse Beale, assentindo com a cabeça. — De certa forma, a sua história é a mais estranha — de fato, a mais monstruosa, porque a verdade tem sido invariavelmente mantida em segredo, para que possam usá-lo e para evitar embaraços. O marechal-de-campo Erich Leifhelm foi o mais jovem general comissionado por Adolf Hitler. Ele previu o colapso da Alemanha e virou a casaca subitamente. Do assassino brutal e superariano fanático passou a um profissional contrito que detes­tava os crimes nazistas que lhe foram “revelados”. Enganou a todos e foi absolvido de toda culpa; nunca esteve no tribunal de Nurembergue. Durante a guerra fria os aliados usaram seus serviços extensivamente, com garantia de completa liberação de segurança e mais tarde, nos anos 50, quando foram criadas as novas divisões alemãs para as forças da OTAN, fizeram questão de colocá-lo no comando.

— Não houve uma série de reportagens a respeito dele há al­guns anos? Teve diversas desavenças com Helmut Schmidt, não foi isso?

— Exatamente — concordou Beale. — Mas essas histórias são muito brandas e não contavam nem a metade. Leifhelm foi citado apenas por ter afirmado que não se podia esperar que o povo alemão carregasse o fardo da culpa nas gerações futuras. Isso tinha de parar. O orgulho devia mais uma vez se estabelecer na herança da nação. Também uma suave ofensiva contra os soviéticos, mas nada de muito importante, além disso.

— E a outra metade?

— Ele queria que fossem canceladas as restrições do Bundestag às forças armadas, e lutou pela expansão do serviço secreto, segundo os padrões da Abwehr, incluindo sentenças de reabilitação para agitadores políticos. Procurou também conseguir que se fizes­sem extensas modificações nos livros didáticos alemães em todos os sistemas de ensino. “O orgulho deve ser restaurado”, repetia, e tudo o que dizia era em nome de um virulento anticomunismo.

— A estratégia do Terceiro Reich em tudo, quando Hitler su­biu ao poder.

— Tem razão. Schmidt compreendeu que haveria o caos se ele conseguisse o que queria — e ele tinha influência. Bonn não podia suportar o espectro de lembranças dolorosas. Schmidt obrigou Leifhelm a renunciar e retirou a sua voz de todos os negócios do governo.

— Mas ele continua falando.

— Não abertamente. Entretanto, é rico e mantém os amigos e os contatos.

— Entre eles Delavane e sua gente.

— Os principais agora.

Joel acendeu o isqueiro mais uma vez e leu as últimas linhas da página. Havia duas listas de nomes, a da esquerda sob o título Departamento de Estado, a da direita, Pentágono. Ao todo cerca de vinte nomes.

— Quem são os americanos? — Apagou o isqueiro, a chama morreu e ele o guardou no bolso. — Os nomes não me dizem nada.

— Alguns deveriam dizer, mas não tem importância — disse Beale enigmaticamente. — O caso é que entre esses homens há discípulos de Delavane. Obedecem às suas ordens. Quantos deles, é difícil dizer, mas pelo menos uns poucos em cada grupo. Esses são os homens que tomam as decisões — ou, ao contrário, que não se opõem às decisões —, sem os quais Delavane e seus seguidores seriam detidos na sua marcha.

— Troque isso em miúdos.

— Os da esquerda são figuras-chaves no Escritório de Con­trole de Munições do Departamento de Estado. Determinam o que é liberado para exportação, quem, sob o disfarce de “interesse nacional”, pode receber armamentos e tecnologia negados a outros. Na lista da esquerda estão os oficiais superiores do Pentágono cuja palavra determina o gasto de milhões e milhões em aquisição de armamentos. Todos são homens que tomam as decisões — e algu­mas dessas decisões têm sido questionadas, algumas abertamente, outras secretamente, por colegas diplomatas e militares. Soubemos isso...

— Questionadas? Por quê? — interrompeu Converse.

— Houve boatos — sempre há boatos — de grandes carrega­mentos impropriamente liberados para exportação. Então há o equipamento militar supérfluo — excesso de suprimento — perdido nas transferências dos armazéns provisórios e dos depósitos pouco usados. Equipamento supérfluo facilmente passa despercebido; é um embaraço nestes dias de enormes orçamentos e custos exceden­tes. Livre-se dele e não se preocupe como. Que sorte se nesse caso — e que coincidência — aparece um membro dessa Aquitânia para comprar, com todos os papéis em ordem. O conteúdo de depósitos e armazéns inteiros são enviados para onde nunca deviam ir.

— Uma conexão da Líbia!

— Sem dúvida nenhuma. Muitas conexões.

— Halliday mencionou e você disse o mesmo há pouco. Leis violadas — armas, equipamentos, informação tecnológica enviados a povos que não devem possuí-los. Eles criam descontentamento no momento determinado e há desordem, terrorismo...

— O que justifica uma ação militar — interrompeu o velho Beale. — Isso é parte do pensamento de Delavane. Escalação justificada do poder militar, os comandantes no controle, os civis inde­fesos, obrigados a darem ouvidos a eles, a obedecer-lhes.

— Mas acabou de dizer que houve questionamentos.

— Respondidos com chavões como “segurança nacional” e “desinformação adversária”, para deter os curiosos.

— Isso é obstrução. Não podem ser apanhados por esse lado?

— Por quem? Com o quê?

— Que diabo, pelos próprios questionamentos! — respondeu Converse. — Aquelas licenças de exportação irregulares, as transferências de armamentos perdidos, mercadoria que não pode ser encontrada.

— Por pessoas sem garantias para contornar classificações de segurança, ou sem habilidade para compreender os complexos detalhes das licenças de exportação.

— Isso é absurdo — insistiu Joel. — Você disse que algumas das indagações foram feitas por pessoal diplomático, colegas militares, homens que certamente tinham as garantias e a habilidade.

— E que, subitamente, como por um passe de mágica, desis­tiram de questionar. Naturalmente muitos deles foram convencidos de que as questões propostas estavam além do seu campo de ação; outros talvez ficassem com medo de se envolver; outros ainda foram obrigados a desistir — ameaçados abertamente. De qualquer modo, por trás de tudo estão aqueles que se encarregam de conven­cer, e seu número está crescendo em toda a parte.

— Cristo, é uma... rede — disse Converse em voz baixa.

O professor olhou fixamente para Joel, a luz noturna refletida na água mostrando seu rosto pálido e enrugado.

— Sim, senhor Converse, uma “rede”. Essa palavra foi mur­murada para mim por um homem que pensou que eu era um deles. “A rede”, disse ele. “A rede tomará conta de você.” Queria dizer Delavane e sua gente.

— Por que pensaram que era um deles?

O velho professor fez uma pausa. Olhou por um momento para longe, para o cintilante Egeu, e depois novamente para Con­verse.

— Porque para aquele homem isso parecia lógico. Há trinta anos deixei meu uniforme, substituindo-o pelo tweed Harris e pelo cabelo mal penteado do professor universitário. Poucos dos meus colegas compreenderam, pois eu era da elite, talvez uma versão americana atrasada de Erich Leifhelm — brigadeiro-general aos trinta e oito anos e minha próxima promoção seria provavelmente para a Junta Militar. Mas, enquanto o colapso de Berlim e o Götterdämmerung na casamata subterrânea produziram um efeito em Leifhelm, a evacuação da Coréia e a evisceração de Panmunjom tiveram efeito muito diferente em mim. Eu vi somente o desperdício, não a causa na qual acreditava — apenas a futilidade, onde antes havia razões lógicas. Eu vi morte, senhor Converse, não morte heróica contra hordas selvagens, ou numa tarde espanhola com a multidão gritando “Olé”, mas morte pura e simples. Morte feia, morte estarrecedora. E compreendi que não podia continuar fa­zendo parte daquelas estratégias que exigiam... Se eu tivesse bas­tante fé, teria me tornado um padre.

— Mas seus colegas que não puderam compreender — disse Joel, mesmerizado pelas palavras de Beale, palavras que traziam tanto do seu próprio passado — pensaram que era outra coisa.

— Naturalmente. Fui elogiado em relatórios de avaliação pelo próprio sagrado MacArthur. Ganhei até um apelido: a Raposa Ver­melha de Inchon — naquele tempo meu cabelo era vermelho. Meus comandos eram caracterizados por movimentos decisivos e contra-movimentos, tudo razoavelmente bem pensado e rapidamente executado. E então, certo dia, no Sul de Chunchon, recebi ordem para tomar três colinas adjacentes, que compreendiam terreno mor­to — posições vantajosas sem objetivos estratégicos — e passei um rádio dizendo que eram terras sem valor, que não valiam as possí­veis baixas. Pedi esclarecimento, o que significa, quando vindo de um oficial de campo, “está louco, por que vou fazer isso?” A resposta chegou em menos de quinze minutos: “Porque elas estão lá, general.” Isso foi tudo, “porque estão lá”. Naturalmente uma demonstração simbólica para alguém ou para informação de algum chefe em Seul... Tomei as colinas e desperdicei as vidas de trezentos homens — e por meu esforço recebi outro ramalhete da Cruz de Serviços Extraordinários.

— Foi então que deixou o exército?

— Oh, meu Deus, não, eu estava muito confuso, mas minha cabeça fervia. Acabou e eu vi Panmunjom, e afinal fui mandado para casa, com toda a expectativa de merecer distinção extraordi­nária... Entretanto, uma pequena promoção me foi negada por um bom motivo: não falava a língua de um posto importante da Eu­ropa. A essa altura, minha cabeça explodiu; usei a recusa e entrei com a minha deixa. Pedi baixa discretamente e segui meu caminho.

Foi a vez de Joel ficar em silêncio, estudando o velho professor à luz noturna.

— Nunca ouvi falar do senhor — disse, afinal. — Por que nunca ouvi falar do senhor?

— Não reconheceu os nomes das duas listas do fim da página também, reconheceu? “Quem são os americanos?”, perguntou. “Os nomes não me dizem nada.” Essas foram suas palavras, Sr. Converse.

— Não foram jovens generais condecorados — heróis — em uma guerra.

— Alguns foram — interrompeu Beale rapidamente — em vá­rias guerras. Tiveram seus momentos passageiros sob a luz do sol, e depois foram esquecidos, os momentos lembrados apenas por eles, revividos por eles. Constantemente.

— Parece uma desculpa para eles.

— Naturalmente que é! Pensa que não sinto por eles? Por homens como Chaim Abrahms, Bertholdier, até mesmo Leifhelm? Chamamos esses homens quando as barricadas são derrubadas, nós os elogiamos por atos além da nossa capacidade...

— O senhor era capaz. O senhor realizou esses atos.

— Está certo, e é por isso que eu os compreendo. Quando as barricadas são reconstruídas, nós os relegamos ao esquecimento. Pior ainda, nós os obrigamos a observar civis ineptos destruírem as engrenagens da razão e, por meio de vocabulário oblíquo, plantar os explosivos que destroçarão as barricadas novamente. Então, quando elas estão destruídas, chamamos nossos comandantes.

— Jesus, de que lado está?

Beale fechou os olhos com força, e Joel pensou que costumava fechar os seus assim, quando certas lembranças o assaltavam.

— Do seu, seu idiota — disse o erudito em voz baixa. — Porque sei o que eles podem fazer quando lhes pedirmos para fazê-lo. Quero dizer o que disse antes. Jamais houve na história um tempo igual a este. É muito melhor ter civis ineptos e assustados, falando ainda, ainda procurando, do que um de nós — perdoe-me, um deles...

Uma lufada de vento soprou do mar; a areia espiralou em volta dos pés deles.

— Aquele homem — disse Converse —, o que lhe disse que a rede tomaria conta do senhor. Por que ele disse isso?

— Pensou que podiam me usar. Era um dos comandantes de campo que conheci na Coréia, um espírito gêmeo, então. Ele veio à minha ilha — por quê, não sei, talvez em férias, talvez à minha procura, quem sabe — e me encontrou no cais. Eu estava saindo com meu barco do ancoradouro Plati quando ele apareceu subitamente, alto, erecto e muito militar sob o sol da manhã. “Precisamos con­versar”, disse ele, com a mesma insistência que sempre usávamos no campo. Convidei-o para bordo do meu barco e lentamente saí­mos da baía. Quando estávamos a algumas milhas ao largo de Plati ele apresentou seu caso, o caso deles. O caso de Delavane.

— E o que aconteceu?

O professor ficou em silêncio durante precisamente dois segun­dos e então respondeu simplesmente:

— Eu o matei. Com uma faca de escamar peixe. Depois joguei o corpo sobre o banco de tubarões, além dos baixios de Stéphanos.

Atônito, Joel olhou fixamente para o homem — a luz irides­cente da lua acentuava a força da revelação macabra.

— Assim, sem mais nem menos? — disse com voz inexpres­siva.

— Para isso é que fui treinado, Sr. Converse. Eu era a Raposa Vermelha de Inchon. Jamais hesitava quando podia ganhar terreno, ou quando podia eliminar uma vantagem do adversário.

— O senhor o matou!

— Era uma decisão necessária, não um desperdício inútil de uma vida. Ele era um recrutador e minha resposta estava nos meus olhos, na minha atitude ofendida e silenciosa. Ele viu e compreendeu. Não podia permitir que eu vivesse depois do que me contara. Um de nós precisava morrer e eu simplesmente reagi com maior rapidez do que ele.

— É um raciocínio muito frio.

— O senhor é advogado, todos os dias vê-se à frente de opções. Onde estava a alternativa?

Joel balançou a cabeça, não em resposta, mas com assombro.

— Como foi que Halliday o achou?

— Nós nos achamos. Jamais nos encontramos, jamais conver­samos, mas temos um amigo comum.

— Em São Francisco?

— Está freqüentemente em São Francisco.

— Quem é ele?

— Não pretendo discutir esse assunto. Sinto muito.

— Por que não? Por que o segredo?

— Ele prefere assim. Nas circunstâncias, acho que é um pe­dido lógico.

— Lógico? Mostre-me a lógica em tudo isso! Halliday entra em contato com um homem em São Francisco, que por acaso co­nhece o senhor, um ex-general que mora a milhares de quilômetros, numa ilha grega, que por acaso foi procurado por um dos homens de Delavane. Ora, isso é coincidência, mas tem pouquíssima lógica.

— Não pense no assunto. Aceite apenas.

— O senhor aceitaria?

— Nessas circunstâncias, sim, aceitaria. Compreende, não há alternativa.

— Naturalmente que há. Posso ir embora, mais rico em quinhentos mil dólares, pagos por um estranho anônimo que só pode vir atrás de mim revelando a própria identidade.

— Poderia, mas não fará. Foi escolhido cuidadosamente.

— Porque posso ser motivado? Foi o que Halliday disse.

— Francamente, sim.

— Estão todos loucos, todos vocês.

— Um de nós está morto. Você foi a última pessoa a falar com ele.

Joel sentiu a força da cólera outra vez, os olhos do homem agonizante queimavam sua memória.

— Aquitânia — disse em voz baixa. — Delavane... Muito bem, fui escolhido cuidadosamente. Por onde começo?

— Por onde acha que deve começar? Você é o advogado e tudo deve ser feito legalmente.

— Essa justamente é a questão. Sou advogado, não policial, não um detetive.

— Nenhuma polícia de nenhum dos países onde esses homens vivem pode fazer o que você pode, mesmo que concordassem em tentar, o que francamente duvido. O mais certo era alertarem a rede de Delavane.

— Muito bem, vou tentar — disse Converse, dobrando a folha de papel com a lista de nomes e colocando-a no bolso interno do paletó. — Vou começar por cima, em Paris. Com esse Bertholdier.

— Jacques-Louis Bertholdier — completou o velho professor, retirando da sacola de lona um grosso envelope pardo. — Isto é a última coisa que podemos lhe dar. Aqui está tudo o que sabemos sobre esses quatro homens, talvez possa ser útil. Seus endereços, os carros que dirigem, sócios de negócios, cafés e restaurantes que freqüentam, preferências sexuais, no caso de significarem vulnera­bilidade... tudo o que possa lhe fornecer um ponto de partida. Use tudo o que puder. E traga-nos relatórios completos sobre homens que se comprometeram, sobre leis violadas — acima de tudo, pro­vas de que não são os cidadãos sólidos e respeitáveis que seu estilo de vida faz supor. Constrangimento, Sr. Converse, constrangi­mento. Leva ao ridículo e Preston Halliday estava profundamente certo a esse respeito. O ridículo é o primeiro passo.

Joel fez menção de responder, de concordar, mas conteve-se, com os olhos fixos em Beale.

— Eu não lhe disse que Halliday tinha mencionado algo sobre o ridículo.

— Oh, não? — O professor piscou várias vezes na luz fraca, momentaneamente inseguro, apanhado de surpresa. — Mas natu­ralmente discutimos...

— Nunca se conheceram, nunca conversaram — interrompeu Converse.

— ...através do nosso amigo comum, as estratégias que de­víamos usar — disse o velho homem, com olhar firme novamente. — O aspecto do ridículo é a chave mestra. Naturalmente discutimos isso.

— O senhor hesitou.

— Você me assustou com uma declaração sem sentido. Minhas reações não são o que costumavam ser.

— Foram muito boas no barco, além de Stéphanos — corrigiu Joel.

-— Uma situação completamente diversa, Sr. Converse. Só um de nós poderia sair daquele barco. Esta noite, nós dois deixaremos esta praia.

— Muito bem, talvez eu esteja procurando saber mais. O se­nhor faria o mesmo, se fosse eu. — Converse tirou o maço de cigarros do bolso da camisa, levou um aos lábios nervosamente e apanhou o isqueiro. — Um homem que eu conheci quando éramos crianças procura-me anos mais tarde, usando outro nome. — Joel acendeu o isqueiro e levou a chama ao cigarro, dando uma tragada. — Ele me conta uma história maluca com credibilidade suficiente para não ser completamente ignorada. O aspecto de credibilidade é um maníaco chamado Delavane. Ele diz que eu posso contê-lo — contê-los — e que vou receber uma enorme quantia só para assentir com a cabeça — fornecida por um homem de São Francisco, que não quer que seu nome seja revelado e quem vai tratar disso é um ex-general, em uma ilha remota e muito em moda, no mar Egeu. E que, por seu trabalho, esse homem que eu conheci com dois nomes é assassinado em plena luz do dia, com diversos tiros, num eleva­dor, e morre nos meus braços, murmurando a palavra “Aquitânia”. E então o outro homem, o ex-soldado, o doutor, esse erudito, me conta outra história que termina com um “recrutador” de De­lavane sendo morto com uma faca de escamar peixe, seu corpo atirado ao mar, sobre um banco de tubarões além de Stéphanos — seja lá onde for.

— O Hághios Stéphanos — disse o velho professor. — Uma linda praia, muito mais popular do que esta.

— Que diabo, eu estou plantando verde, Sr. Beale, ou pro­fessor Beale; ou general Beale! É muita coisa para ser absorvida em dois malditos dias! Subitamente não me sinto confiante, sinto-me incapaz — para ser sincero, desarmado, não qualificado... e tremendamente assustado.

— Então não complique demais as coisas — disse Beale. — Eu costumava dizer aos meus alunos mais vezes do que posso me lem­brar. Sugeria que não olhassem para a totalidade que estava na sua frente, mas somente para cada fio da progressão, seguindo um de cada vez até ele se encontrar e se trançar com outro fio, e depois com outro, e se não aparecer um desenho definido, a culpa não é deles, mas minha. Um passo de cada vez, Sr. Converse.

— É um verdadeiro Mr. Chips. Eu teria abandonado seu curso.

— Não estou explicando muito bem. Costumava dizer isso melhor. Quando se ensina história, os fios são tremendamente im­portantes.

— Quando se pratica advocacia, são tudo.

— Vá à procura dos fios, então, um de cada vez. Não sou advogado, mas será que não poderia agir como se fosse represen­tante de um cliente que está sendo atacado por forças que violarão seus direitos, alterarão seu modo de vida, eliminarão a possibilidade da procura de uma existência pacífica — em suma, que o des­truirão?

— Não creio — respondeu Joel. — Tenho um cliente que não quer falar comigo, não quer me ver, nem sequer me dizer seu nome.

— Não estou pensando nesse cliente.

— Em quem então? O dinheiro é dele.

— É apenas um elo entre o senhor e seu verdadeiro cliente.

— E quem é ele?

— O que resta do mundo civilizado, talvez.

Joel estudou o velho professor à luz bruxuleante refletida na água.

— Disse algo sobre não olhar para o todo mas para os fios? Está me deixando morto de medo.

Beale sorriu.

— Posso acusá-lo de conclusão mal colocada, mas não o farei.

— É uma frase muito antiquada. Se quer dizer fora do contex­to, diga e eu negarei. O senhor está seguramente em contradição bem colocada, professor.

— Deus do céu, você foi escolhido cuidadosamente! Não deixa nem mesmo que um velho use um antigo chavão acadêmico.

Converse retribuiu o sorriso.

— É um homem muito simpático, general — ou doutor. De­testaria encontrá-lo do outro lado da mesa, se fosse advogado.

— Isso poderia ser na realidade confiança mal colocada — disse Edward Beale, sem sorrir. — Está apenas prestes a começar.

— Mas agora sei o que devo procurar. Um fio de cada vez — até que todos se encontrem e se entrelacem, e o desenho estará lá para que todos vejam. Vou me concentrar em licenças de expor­tação, e em quem estiver baralhando os controles, depois farei a conexão de três ou quatro nomes entre si e os seguirei de volta a Delavane em Palo Alto. E nesse ponto nós estouramos a coisa toda legalmente. Sem mártires, sem causas, sem militares do destino, crucificados por traidores, apenas simples e obscuros aproveita­dores que se dizem superpatriotas, quando durante todo o tempo estavam forrando seus bolsos não-patrióticos. Por que outro mo­tivo iriam fazer isso? Haverá outra razão! Isso é ridículo, Dr. Bea­le. Porque eles não podem responder.

O velho professor balançou a cabeça, com ar admirado.

— O professor torna-se um aluno — disse com hesitação. — Como vai fazer isso?

— Do mesmo modo que já fiz uma dúzia de vezes, em nego­ciações com companhias. Apenas, neste caso, darei um passo a mais. Nessas reuniões, sou como qualquer outro advogado, tento adivinhar o que o homem no outro lado da mesa vai pedir e depois, para o que ele quer. Não somente o que o meu lado quer, mas o que ele quer. O que se passa em sua mente. Compreende, doutor, estou tentando pensar como ele; colocando-me no seu lugar, nem por um segundo deixando que ele se esqueça de que eu estou fazendo isso. É enervante, como tomar notas sempre que o oponente diz alguma coisa, esteja ele dizendo algo importante ou não. Mas desta vez vai ser diferente. Não estou procurando oponentes, estou procurando aliados. Em uma causa, a causa deles. Começarei por Paris, depois Bonn, Telavive e depois provavelmente Joanesburgo. Mas, quando encontrar esses homens, não vou tentar pensar como eles, vou ser um deles.

— É uma estratégia muito ousada. Meus cumprimentos.

— Por falar em opções, é a única aberta. Além disso, tenho um bocado de dinheiro para espalhar por aí, não com exagero, mas de maneira eficaz, como convém ao meu cliente sem nome. Muito sem nome, muito no fundo de cena, mas sempre presente. — Joel parou, como se um novo pensamento o tivesse assaltado. — Sabe de uma coisa, Dr. Beale, retiro o que disse. Não quero saber quem é meu cliente — o de São Francisco, quero dizer... Vou criar a minha própria imagem dele, e se vier a conhecê-lo, isso poderia deformar esse retrato mental. Por falar nisso, diga-lhe que terá uma relação completa das minhas despesas; o resto será devolvido do mesmo modo que o recebi. Por intermédio do seu amigo Laskaris do ban­co, aqui em Miconos.

— Mas aceitou o dinheiro — objetou Beale. — Não vejo ra­zão...

— Queria saber se era real. Se ele era real. Ele é e sabe exata­mente o que está fazendo. Vou precisar de muito dinheiro, porque tenho de me transformar em alguém que não sou, e o dinheiro é o modo mais convincente de conseguir isso. Não, doutor, não quero o dinheiro do seu amigo, eu quero Delavane. Quero o senhor da guerra de Saigon. Mas vou usar o dinheiro, assim como o estou usando — do modo que desejo que ele seja. Para entrar naquela rede.

— Se Paris vai ser sua primeira escala e Bertholdier seu conta­to inicial, há uma transferência específica de munições que deve estar ligada diretamente a ele. Talvez valha a pena tentar. Se es­tamos certos, é um microcosmo do que pretendem fazer em toda a parte.

— Está aqui? — perguntou Converse, batendo com a mão no envelope com os dossiês.

— Não, só soubemos esta manhã — bem cedo. Suponho que não ouviu os noticiários.

— A única língua que falo é o inglês. Se ouvi algum noticiário não o reconheci. O que aconteceu?

— Toda a Irlanda do Norte está em chamas, os piores tumul­tos, o morticínio mais selvagem destes últimos quinze anos. Em Belfast e Ballyclare, Dromore e nos montes Mourne, vigilantes ultra­jados — dos dois lados — estão correndo pelas ruas e pelas colinas, assassinando, em sua fúria, tudo o que se move. É o caos completo. O governo de Ulster está em pânico, o parlamento imobilizado, emocionalmente desmembrado, todos tentando encontrar uma so­lução. Essa solução será uma infusão maciça de tropas e dos seus comandantes.

— O que tem a ver com Bertholdier?

— Escute com atenção — disse o professor, dando um passo à frente. — Há oito dias, um carregamento de munições, contendo trezentos caixotes de bombas múltiplas e duas mil caixas de explo­sivos, foi transportado por ar, de Beloit, Wisconsin. O destino era Telavive, passando por Montreal, Paris e Marselha. Não chegou lá, e um investigador israelense — por meio do Mossad — demonstrou que só os papéis da carga chegaram a Marselha, nada mais. O carregamento desapareceu em Montreal ou em Paris, e estamos certos de que foi desviado para extremistas provisórios — também dos dois lados — da Irlanda do Norte.

— Por que pensam isso?

— As primeiras baixas — mais de trezentos homens, mulheres e crianças — é de mortos ou feridos graves, feitos em pedaços pelas bombas múltiplas. Não é um modo muito agradável de morrer, mas talvez pior ainda de ficar ferido — as bombas arrancam partes inteiras do corpo. As reações foram ferozes e a histeria está se alas­trando. Ulster está descontrolada, o governo paralisado. Tudo em um dia, um único dia, Sr. Converse!

— Estão provando a si próprios que podem — disse Joel em voz baixa, o medo apertando-lhe a garganta.

— Exatamente — concordou Beale. — É um teste, um micro­cosmo do horror em alta escala que eles podem provocar.

Converse franziu a testa.

— Além do fato de morar em Paris, o que mais liga Bertholdier a esse carregamento?

— A partir do momento em que o avião entrou na França, os seguradores franceses são representados por uma firma da qual Bertholdier é diretor. Quem seria menos suspeito do que uma com­panhia que tem de pagar a perda — uma companhia, incidental­mente, que tem acesso à mercadoria que segura? O prejuízo foi de mais de quatro milhões de francos, não tão imenso a ponto de ser manchete, mas suficiente para afastar qualquer suspeita. E mais uma entrega letal é feita — mutilação, morte e caos.

— Qual o nome da companhia de seguros?

— Compagnie Solidaire. Poderia ser uma das palavras da operação, creio. Solidaire, e talvez Beloit e Belfast.

— Espero que eu possa confrontar Bertholdier com elas. Mas, se o fizer, preciso pronunciá-las na hora certa. Vou tomar o avião para Atenas de manhã.

— Leve consigo os urgentes votos de sucesso de um velho, Sr. Converse. E urgente é a palavra certa. Três a cinco semanas, é todo o tempo que tem, antes que a coisa toda estoure. Seja lá o que for, seja lá onde for, será a Irlanda do Norte, com violência dez vezes maior. É real e está chegando.

 

 

Valerie Carpentier acordou bruscamente, com os olhos arregalados, o rosto rígido, procurando ouvir sons que quebrassem o silêncio escuro que a envolvia e o ruído das ondas a distância. A qualquer minuto esperava ouvir a campainha estridente do sistema de alar­me, ligado em todas as janelas da casa.

O alarme não tocou mas houve outros sons, intromissões no seu sono, suficientemente penetrantes para acordá-la. Empurrou as cobertas e saiu da cama, caminhando lenta e apreensivamente para as portas de vidro que davam para o terraço, de onde se via a praia rochosa, o quebra-mar e o oceano Atlântico, ao longe.

Lá estava outra vez. As luzes trêmulas e fracas eram sem som­bra de dúvida as mesmas, iluminando o barco ancorado exatamente onde sempre ficava. Era o mesmo barco que durante dois dias tinha navegado de um lado para outro, paralelo à costa, sempre visível, sem nenhum destino óbvio que não fosse esse pedaço da praia de Massachusetts. Ao cair da segunda noite, lançara âncora a um quarto de milha da praia, na frente da casa de Valerie. Agora tinha voltado. Depois de três dias, tinha voltado.

Três noites atrás, ela chamara a polícia, que por sua vez se comunicou com as patrulhas de Guarda Costeira de Cape Ann, as quais voltaram com uma explicação que nada tinha de lúcida ou satisfatória. O barco tinha registro de Maryland, o proprietário era um oficial do Exército americano, e não tinha havido nenhum mo­vimento provocador ou suspeito que justificasse ação oficial.

— Eu diria que é provocador e extremamente suspeito — observou Valerie com firmeza. — Quando um barco estranho nave­ga de um lado para outro paralelo ao mesmo trecho de praia durante dois dias seguidos, e depois ancora na frente da minha casa à distância de um grito — e por distância de um grito entendo uma distância que pode ser vencida a nado —, isso é suspeito.

— Os direitos da propriedade que alugou sobre essa parte do mar não vão além de setenta metros, senhora — foi a resposta oficial. — Não podemos fazer nada.

Entretanto, à primeira luz da manhã seguinte, Valerie teve cer­teza de que alguma coisa tinha de ser feita. Assestou o binóculo para o barco e com uma exclamação abafada afastou-se das portas de vidro. Dois homens estavam de pé no convés, com binóculos — muito mais potentes do que o dela — voltados para a sua casa, para o quarto de dormir do andar superior. Para ela.

Uma vizinha que morava no cul-de-sac da praia tinha instalado recentemente um sistema de alarme. Era uma mulher divorciada também, mas com marido hostil e três filhos; precisava do alarme. Dois telefonemas e Valerie estava falando com o proprietário da firma Segurança e Vigilância. Um sistema temporário fora colocado no mesmo dia, enquanto desenhavam a instalação permanente.

Uma campainha — não estridente, mas suave e delicada. Era o discreto soar dos sinos de uma bóia, nas águas escuras, o badalo dançando com o movimento das ondas. Foi esse som que a acor­dou, e sentiu-se aliviada, mas ao mesmo tempo estranhamente per­turbada. Homens lá fora, de noite, com más intenções, não anun­ciam sua presença. Por outro lado, esses mesmos homens tinham voltado à sua casa e o barco estava apenas a algumas centenas de metros da praia. Tinham voltado na escuridão, a lua escondida pelas nuvens espessas, sem luar para guiá-los. Era como se qui­sessem que ela tomasse conhecimento da sua presença e de que a estavam vigiando. Os homens esperavam.

Esperavam para quê? O que estava acontecendo com ela? Na semana passada o telefone ficara mudo durante sete horas e, quan­do ela telefonou para a companhia da casa de sua amiga, um supervisor do departamento de manutenção disse que não tinha encon­trado nenhum defeito. A linha estava funcionando.

— Talvez para você, mas não para mim, e não é você quem paga as contas.

Voltou para casa; o telefone continuava mudo. Outro telefonema, mais indignado, teve a mesma resposta. Nenhum defeito. Então, duas horas mais tarde, lá estava inexplicavelmente o ruído de discar, o telefone funcionando. Valerie atribuíra ao equipamento inferior do complexo dos telefones rurais. Não tinha explicação para o barco que agora se balançava fantasmagóricamente na água, na frente da sua casa.

Subitamente, à luz fraca de bordo, ela viu uma figura sair da cabine. Por um momento foi encoberta pela sombra, e então houve um clarão de luz intensa. Um fósforo. Um cigarro. Um homem estava parado no convés, fumando. Olhava a casa de Valerie, como se a estudasse. Esperando.

Val estremeceu e arrastou uma poltrona pesada, encostando-a na porta do terraço — mas não muito perto, longe do vidro. Tirou o cobertor da cama e sentou-se, agasalhando-se com ele, olhando para a água, para o barco, para o homem. Sabia que se homem ou barco fizessem o menor movimento na direção da terra ela apertaria os botões que tinham lhe dito para apertar em caso de emergência. Quando ativados, as grandes campainhas circulares de alarme soa­riam em uníssono, abafando o som das ondas que batiam no quebra-mar. Podiam ser ouvidas a quilômetros de distância — o único som na praia, assustador, dominando todo o resto. Perguntava a si mesma se teria de ligar as campainhas naquela noite — naquela manhã.

Não entraria em pânico. Joel a ensinara a não entrar em pânico, mesmo quando achava que um grito na hora certa seria eficiente, nas ruas escuras de Manhattan. Uma vez ou outra o inevi­tável acontecia. Tinham sido atacados por viciados em drogas ou punks e Joel sempre ficava calmo — fazendo com que ela se encos­tasse na parede ao seu lado e oferecendo uma carteira barata que levava no bolso da calça, com algumas notas. Meu Deus, ele era o próprio gelo! Talvez por isso nunca tivessem sido realmente assal­tados, pois não podiam adivinhar o que havia por trás daquele olhar frio e pensativo.

— Eu devia ter gritado! — exclamara ela certa vez.

— Não — respondeu ele. — Você o teria assustado, ele entra­ria em pânico. E esses bandidos podem transformar-se em assassi­nos quando se assustam.

O homem no barco seria um assassino — os homens no barco seriam instrumentos da morte? Ou simplesmente marinheiros de primeira viagem, conservando-se perto da costa, treinando o bor­dejo, ancorando perto da praia para sua própria proteção — curio­sos, talvez preocupados, temendo que os moradores da praia recla­massem? Um oficial do exército não poderia pagar um capitão para seu veleiro e havia marinas a apenas alguns quilômetros ao norte e ao sul — marinas sem ancoradouros, mas com homens que repa­ravam avarias.

O homem que fumava no veleiro seria apenas um jovem ofi­cial preso à terra, aproveitando para aprender a velejar, sentindo-se mais seguro com o barco ancorado perto da praia? Era possível, naturalmente — qualquer coisa era possível —, e as noites de verão tinham um tipo especial de solidão que provocava as mais estranhas fantasias. Caminhava-se na praia à noite e os pensamentos se acumulavam.

Joel teria zombado dela, dizendo que eram todos aqueles demônios correndo dentro da sua cabeça de artista, à procura da lógica. E sem dúvida estaria com a razão. Os homens no barco provavelmente estavam mais tensos do que ela. De certa forma estavam invadindo, e tinham encontrado um porto seguro à vista dos na­tivos hostis; a investigação da Guarda Costeira tinha provado isso. E a garantia de que não seriam incomodados era o motivo de terem voltado ao lugar onde não eram bem-vindos. Se Joel estivesse com ela, Valerie tinha certeza do que ele faria. Iria até a praia e convidaria os vizinhos temporários para um drinque.

Querido Joel, tolo Joel, Joel frio como o gelo. Às vezes você era reconfortante — quando era reconfortante. E divertido, extre­mamente divertido — mesmo quando você não era reconfortante. De certa forma sinto falta de você, querido. Mas não o suficiente, muito obrigada.

Mas por que a sensação — o instinto talvez — persistia? O pequeno barco era como um ímã, puxando-a para ele, atraindo-a para seu campo magnético, levando-a para um lugar a que ela não queria ir.

Absurdo! Demônios à procura da lógica! Estava sendo tola — tolo Joel, Joel frio como gelo — pare com isso, pelo amor de Deus! Seja razoável!

Então estremeceu outra vez com um arrepio. Marinheiros no­vatos não navegavam ao longo de costas estranhas, durante a noite.

O ímã a atraiu até que seus olhos ficaram pesados e um sono agitado a dominou.

Acordou outra vez, assustada com a luz intensa do sol en­trando através do vidro da porta, aquecendo-a. Olhou para o mar. O barco não estava lá — e Valerie por um momento perguntou a si mesma se alguma vez ele estivera realmente.

Sim, tinha estado. Mas agora partira.

 

O 747 levantou vôo na pista do Aeroporto Helikon de Atenas, virando para a esquerda, na subida rápida. Lá embaixo, ao lado do campo, via-se claramente a Base Aérea da Marinha dos Estados Unidos, permitida por tratado, embora reduzida em tamanho e no número de aviões, nos últimos anos. Entretanto, os jatos de grande alcance dos americanos percorriam ainda os céus do Mediterrâneo, do mar Jônico e do Egeu, cortesia de um governo ofendido mas nervoso, consciente dos outros olhos, no norte. Olhando pela janela do avião, Converse reconheceu as formas do equipamento que lhe era familiar. Havia duas fileiras de Phantom F-4T e A-6E, uma de cada lado da pista dupla — versões atualizadas dos F-4G e A-6A, que ele tinha pilotado há muitos anos.

Era tão fácil escorregar para o passado, pensou Joel, observando os três Phantoms saírem da formação de terra; iriam até o fim da pista e outra patrulha estaria no céu. Converse sentiu as mãos tensas; mentalmente manipulava a coluna perfurada e grossa, estendendo o braço para apertar botões, os olhos examinando o painel, à procura de sinais certos e sinais errados. Então sentia a força, o impulso de toneladas pressurizadas atrás dele, e era como se estivesse encasulado no centro de um esguio e brilhante animal, que tentava fugir para voar no seu habitat natural. Checagem final, tudo em ordem; permissão para decolar. Liberte a força do animal, deixe que voe livre. Para a frente! Mais depressa, mais depressa; o solo é um movimento indistinto, os hangares uma massa cinzenta, o mar azul além, céu azul lá em cima. Deixe-o ir! Liberte-me!

Perguntou a si mesmo se ainda seria capaz, se as lições e o treinamento do garoto e do homem eram ainda válidos. Depois da Marinha, durante seus anos de estudo em Massachusetts e Carolina do Norte, Joel ia freqüentemente a pequenos campos de aviação e pilotava aparelhos monomotores, para afastar-se das pressões, para ter alguns minutos de liberdade azul, mas não havia desafios, não precisava domar animais todo-poderosos. Mais tarde, deixara tudo isso — por um longo, longo tempo. Não havia campos de aviação para visitar nos fins de semana, não podia brincar com belos aviões comerciais; havia prometido. Sua mulher tinha pavor desses seus vôos. Valerie não conseguia conciliar as horas que ele havia voado — civilmente e em combate — com sua própria avaliação das probabilidades. E num dos poucos gestos de compreensão do seu casa­mento, ele prometera jamais pilotar um avião. Não sentiu muita falta, até o momento em que soube — eles souberam — que o casamento não estava dando certo, e então ele começou a freqüen­tar um campo de aviação chamado Teterboro, em Nova Jersey, sempre que podia, e pilotava o que encontrasse disponível, em qualquer tempo, a qualquer hora. Contudo, mesmo então — especial­mente então — não havia desafio, nenhum animal possante — a não ser ele mesmo.

O solo desapareceu, o 747 estabilizou-se e começou a subir para sua altitude de cruzeiro. Converse afastou-se da janela e aco­modou-se na poltrona. As luzes apagaram-se subitamente no aviso de NÃO FUMAR, e Joel tirou o maço de cigarros do bolso. Acen­deu um e a fumaça desfez-se imediatamente na corrente de ar dos ventiladores sobre sua cabeça. Consultou o relógio; eram 12h20m. Deviam chegar ao aeroporto de Orly às 3h35m. Hora da França. Descontando as diferenças dos fusos horários, seriam três horas de vôo, durante as quais ele procuraria memorizar tudo o que pudesse sobre o general Jacques-Louis Bertholdier — se Beale e Halliday estivessem certos, o braço de Aquitânia em Paris.

No aeroporto de Helikon, Joel tinha feito algo que jamais fizera, algo que nunca lhe ocorrera antes, um capricho geralmente atribuído à ficção romântica ou aos astros de cinema e ídolos do rock. Medo e cautela haviam-se associado ao excesso de dinheiro, e ele pagou por dois lugares no avião na primeira classe. Não queria ninguém olhando para as páginas que ia ler. O velho Beale deixara assustadoramente claro na noite passada: se houvesse a mais remota possibilidade de aquele material cair em outras mãos — fossem quais, fossem — devia destruí-lo a todo custo. Pois eram dossiês secretos de homens que podiam ordenar execuções múltiplas com um simples telefonema.

Apanhou a pasta, a alça de couro escurecida pelo suor da sua mão, desde Miconos, naquela manhã. Pela primeira vez compreen­deu o valor de algo que aprendera nos filmes e nos romances. Se pudesse prender a alça da pasta ao punho, com uma corrente, estaria mais seguro.

 

 

Jacques-Louis Bertholdier, cinqüenta e nove anos, filho único de Alphonse e Marie-Therèse Bertholdier, nasceu no hos­pital militar de Dacar. O pai era oficial de carreira do Exército francês, conhecido como autocrata e disciplinador rígido. Pouco se sabe sobre sua mãe; talvez seja significati­vo o fato de Bertholdier jamais se referir a ela, como se procurasse ignorar sua existência. Deu baixa no Exército há quatro anos, com cinqüenta e cinco anos, e é agora diretor de Juneau et Cie., uma firma conservadora da Bourse des Valeurs, a bolsa de valores de Paris.

Os primeiros anos parecem ter sido típicos de filho de um oficial comandante, transferindo-se de posto para posto, de acordo com os privilégios e influência da patente dopai. Estava acostumado a ter empregados e ã lisonja do pessoal mi­litar. Se havia alguma diferença entre ele e os outros fi­lhos de oficiais, ela estava no próprio Bertholdier. Dizem que, aos cinco anos, era capaz de executar todas as instru­ções do manual de armas-e aos dez recitava de cor todo o li­vro de regulamentos.

Em 1938, os Bertholdier voltaram a Paris, o pai como membro do Estado-Maior. Foi um ano caótico, por causa da imi­nência da guerra com a Alemanha. O velho Bertholdier era um dos poucos comandantes conscientes de que a linha Maginot não era intransponível; sua franqueza enfureceu de tal modo os outros oficiais que foi transferido para o campo de ba­talha, no comando do Quarto Exército, estacionado na frontei­ra nordeste.

A guerra chegou e o pai foi morto na quinta semana de combate. O jovem Bertholdier tinha então dezesseis anos e estudava em Paris.

A queda da França, em junho de 1940, pode ser conside­rada como o começo da idade adulta do oficial em questão. Entrou para a resistência, a princípio como mensageiro, lu­tou durante quatro anos, elevando-se nas fileiras do movi­mento subterrâneo, até chegar ao comando do setor Calais-Paris. Fez varias viagens secretas à Inglaterra para coor­denar operações de espionagem e de sabotagem com os france­ses livres e a inteligência britânica. Em fevereiro de 1944, De Gaulle lhe conferiu o posto temporário de major. Tinha vinte e três anos.

Alguns dias antes da ocupação de Paris pelos aliados, Bertholdier foi gravemente ferido em um tumulto de rua en­tre os soldados da resistência e as tropas alemãs em reti­rada. A hospitalização o livrou de qualquer outra atividade até o fim da guerra na Europa. Depois da rendição, foi indi­cado para a Academia Militar Nacional de St.-Cyr, uma com­pensação que De Gaulle considerou merecida para o jovem he­rói da resistência. Quando se formou, foi promovido ao posto permanente de capitão. Tinha vinte e quatro anos e foram-lhe dados vários comandos no Dra Hamadã, Marrocos Francês, Argel e depois, no outro lado do mundo, na guarnição de Haiphong, e finalmente nos setores aliados, em Viena e Berlim ocidental. (Note este último posto em relação ã informação seguinte sobre o marechal-de-campo Erich Leifhelm. Foi onde se conheceram e fizeram amizade, a princípio abertamente; mais tarde, porém, negaram esse relacionamento, quando am­bos deixaram o serviço ativo do Exército.)

 

Deixando Jacques-Louis Bertholdier por um momento, Con­verse meditou sobre a jovem lenda que fora Jacques-Louis Berthol­dier. Embora Joel fosse tão antimilitarista quanto pode ser um civil, de certa forma identificava-se com o fenômeno militar des­crito naquelas páginas. Não era um herói, mas fora recebido como herói ao voltar de uma guerra onde poucos foram, considerados como tal, todos aqueles homens que vinham das fileiras dos que haviam suportado o cativeiro, muito mais do que enfrentado a luta. Entretanto, a atenção — a atenção absoluta — que levava a privilé­gios era uma indulgência perigosa. A princípio embaraçado, chega-se a aceitar tudo, e depois a esperar. A aceitação pode ser embriaga­dora, os privilégios logo considerados como certos. E quando a atenção começa a diminuir, entra em cena uma certa revolta; de­seja-se tudo de volta.

Esses eram os sentimentos de alguém sem sede de autoridade — sucesso, sim; poder, não. Mas o que dizer de um homem cuja vida toda tivesse sido moldada pela autoridade e pelo poder, cujas memórias mais antigas fossem de privilégio e patentes, e cuja subi­da meteórica acontecera quando era incrivelmente jovem. Como esse homem reage à atenção e ao crescente espectro de sua própria ascendência? Não se pode. tirar facilmente muita coisa desse ho­mem; sua ira pode-se transformar em fúria. Contudo Bertholdier tinha-se retirado aos cinqüenta e cinco anos, razoavelmente jovem para um homem tão proeminente. Não tinha sentido. Algo estava faltando no retrato desse Alexandre do último dia. Pelo menos até agora.

 

0 senso de oportunidade desempenhou um papel relevante no crescimento do renome de Bertholdier. Depois dos postos no Dra Hamadã e em Argel, em estado de pré-crise, foi trans­ferido para a- Indochina francesa, onde a situação se dete­riorava rapidamente para as forças coloniais, nessa época envolvidas em violento combate de guerrilha. Seus feitos no campo de batalha logo ficaram famosos em Saigon e em Paris. Os homens sob seu comando conseguiram poucas mas muito ne­cessárias vitórias que, embora não tivessem alterado o cur­so da guerra, convenceram os militares da linha dura de que as forças asiáticas inferiores podiam ser derrotadas pela coragem francesa superior e por sua estratégia; precisavam apenas do material retido em Paris. A rendição de Dien bien-phu foi um remédio amargo para aqueles homens e eles alega­ram que os traidores do Quai d’Orsay haviam levado a França à humilhação. Embora o coronel Bertholdier tenha surgido da derrota como uma das poucas figuras heróicas, foi bastante sensato, ou bastante cauteloso para não se manifestar, e pe­lo menos aparentemente, nao se juntou aos “gaviões”. Muitos dizem que estava esperando um sinal que jamais chegou. Mais uma vez foi transferido, servindo em Viena e em Berlim oci­dental.

Entretanto, quatro anos depois, quebrou o molde que ti­nha construído tão cuidadosamente. Segundo suas próprias pa­lavras, estava “enfurecido e desiludido” com os acordos fei­tos por De Gaulle com os argelinos que queriam a independên­cia; retirou-se para sua terra natal, a África do Norte, e ingressou na OEA rebelde, do general Raoul Salan, que com­batia violentamente uma política que considerava traidora. Durante esse intervalo revolucionário de sua vida esteve en­volvido em um atentado contra a vida de De Gaulle. Com a captu­ra de Salan, em abril de 1962, e o colapso dos insurretos, mais uma vez Bertholdier emergiu de uma derrota, espantosamente intacto. Em um ato que só pode ser descrito como extraordinário e que jamais foi compreendido totalmente, De Gaulle ordenou que Bertholdier fosse tirado da prisão e le­vado para o Elysée. O que os dois homens conversaram nin­guém jamais veio a saber, mas Bertholdier recebeu sua paten­te de volta. O único comentário oficial de De Gaulle foi feito durante uma entrevista coletiva em 4 de maio de 1962. Em resposta a uma pergunta relacionada com o oficial rebelde reconduzido as suas funções, ele disse (tradução Verbatim): “A um grande soldado-patriota deve ser permitido e perdoado um interlúdio mal orientado. Nós conversamos. Estamos satis­feitos.” Nada mais disse sobre o assunto.

Durante sete anos Bertholdier esteve em vários postos de grande influência, sendo promovido a general; muitas e muitas vezes era o chefe militar chargé d’affaires nas em­baixadas mais importantes no período em que a França parti­cipou do Comitê Militar da OTAN. Freqüentemente era chamado ao Quai d’Orsay, e acompanhava De Gaulle nas conferências internacionais, sempre aparecendo nas fotografias dos jor­nais, geralmente apenas a alguns metros do grande homem. Estranhamente, embora sua contribuição pareça ter sido considerável, depois dessas conferências de cúpula invariavel­mente era enviado de volta ao seu posto enquanto os debates internacionais continuavam e as decisões eram feitas sem a sua presença. Era como se estivesse constantemente sendo preparado, mas nunca chamado para o posto mais crítico. Se­ria esse chamado o sinal que estivera esperando durante se­te anos, antes de Dien bien phu? Não temos resposta para isso, mas acreditamos que seja de vital importância investigar o assunto.

Com a dramática renúncia de De Gaulle, depois de terem sido rejeitados seus pedidos para a reforma constitucional, em 1969, a carreira de Bertholdier entrou em declínio. Não era mais designado para os centros do poder e assim conti­nuou, até sua saída do Exército. Investigações feitas nos bancos e nas referências de cartões de crédito, bem como nos manifestos de passageiros, mostraram que durante os últimos dezoito meses o indivíduo em questão viajou para os seguintes lugares: Londres, 3; Nova Iorque, 2; São Francis­co, 2; Bonn, 3; Joanesburgo, l; Te1avive, 1 (combinada com a viagem a Joanesburgo). O padrão é evidente. E compatível com os pontos geográficos de pressão crescente da operação do general Delavane.

 

Converse passou a mão nos olhos e pediu um drinque. En­quanto esperava o scotch, leu rapidamente os parágrafos seguintes, sua lembrança do homem avivada agora; a informação era história conhecida e não muito relevante. O nome de Bertholdier fora indi­cado por algumas facções ultraconservadoras, procurando transfe­ri-lo do Exército para as guerras políticas, mas sem nenhum resul­tado. O chamado final passou em branco; jamais foi feito. Atual­mente, como diretor de uma grande firma na bolsa de valores de Paris, é basicamente uma figura de proa capaz de impressionar os ricos e manter afastados os que têm inclinações socialistas, pelo simples peso da sua lenda.

 

Viaja sempre na limusine da companhia (leia-se: car­ro do pessoal) e onde quer que vá é sempre esperado, e re­cebido devidamente. O veículo é um Lincoln Continental ame­ricano, azul-escuro, licença número 100-1. Os restaurantes que freqüenta são: Taillevent, Ritz, Julier e Lucas-Carton. Entretanto, almoça quase sempre em um clube particular chamado L’Étalon Blanc, pelo menos três ou quatro vezes por semana. É um estabelecimento muito reservado, cujos membros são exclusivamente militares das mais altas patentes, o que resta ainda da nobreza e ricos bajuladores que, não podendo ser militares nem nobres, gastam seu dinheiro com ambos, pa­ra serem aceitos por eles.

 

 

Joel sorriu; o redator do relatório sabia fazer humor. Alguma coisa, porém, estava faltando. Sua mente jurídica procurava o lap­so que não estava explicado. Qual era o sinal que Bertholdier não tinha recebido em Dien bien phu? O que o autoritário De Gaulle dissera ao oficial rebelde, e o que o oficial tinha dito ao grande homem? Por que ele era invariavelmente atendido em suas reivin­dicações — mas apenas atendido — e nunca chamado ao poder? Um Alexandre tinha sido preparado, perdoado, promovido e depois abandonado? Havia uma mensagem escondida naquelas páginas, mas Joel não conseguia encontrá-la.

Converse chegou à parte considerada importante para o reda­tor do relatório, apenas na medida em que completava o retrato, acrescentando muito pouco à informação anterior.

 

A vida privada de Bertholdier é pouco pertinente às atividades que nos interessam. Seu casamento foi de conveniência, no puro sentido de La Rochefoucauld: foi social, profissional e financeiramente vantajoso para as duas partes. Além disso, parece ter sido apenas um acordo comercial. Não têm filhos e, embora Mme Bertholdier apareça com freqüência ao lado do marido nos eventos sociais e oficiais, raramente são vistos conversando a sós. Como no caso de sua mãe, Bertholdier jamais se referiu à esposa. Talvez haja uma conexão psicológica nesse fato, mas não temos nenhum indício que a comprove. Especialmente considerando que Bertholdier é um con­quistador famoso, mantendo às vezes três amantes ao mesmo tempo, bem como vários compromissos periféricos. Entre seus pares é cha­mado por um apelido que jamais apareceu na imprensa: La Grand Machin, e, se o leitor precisar de uma tradução, recomendamos drinques em Montparnasse.

 

Com essa observação animadora, o relatório terminava. Era um dossiê que criava mais perguntas do que respostas. Em linhas gerais descrevia os o quês e os comos, mas poucos por quês; estes estavam enterrados e somente conjeturas imaginosas podiam desen­terrar algumas possibilidades. Mas havia fatos concretos em nú­mero suficiente para operar. Joel consultou o relógio; uma hora se passara. Tinha mais duas para reler, pensar e absorver tanto quanto possível. Já havia decidido quem ia procurar em Paris.

 

René Mattilon, além de ser um advogado astuto, freqüentemente chamado por Talbot, Brooks e Simon, quando precisavam de um representante nos tribunais franceses, era também um amigo. Em­bora dez anos mais velho do que Joel, a amizade era baseada na experiência comum, comum na compreensão da geografia global, da futilidade e do desperdício. Trinta anos atrás, Mattilon, um jovem advogado de vinte e poucos anos, fora recrutado por seu governo e enviado para a Indochina francesa, como consultor ju­rídico. Testemunhou o inevitável e jamais compreendeu por que a sua nação orgulhosa e intratável custou tanto a perceber. Além disso, ele era às vezes mordaz nos seus comentários sobre a partici­pação americana.

— Mon Dieu! Vocês pensaram que podiam fazer com arma­mentos o que não conseguimos com armamentos e cérebro? Déraisonnable!

Sempre que Mattilon ia a Nova Iorque ou que Joel ia a Paris era de praxe encontrarem-se para jantar e drinques. Além disso, o francês, era extremamente tolerante com as limitações lingüísticas de Converse: Joel simplesmente não era capaz de aprender outra lín­gua. Até as lições pacientes de Val tinham caído em ouvidos surdos e em um cérebro incapaz de receptividade. Durante quatro anos sua ex-mulher, cujo pai era francês e a mãe alemã, tentou ensinar a Joel frases simples, mas desistiu, declarando-o completamente incapaz.

— Como diabo diz que é um advogado internacional quando não pode se comunicar além de Sandy Hook? — perguntara ela.

— Eu emprego intérpretes treinados pelos bancos suíços e os organizo em um sistema — respondeu ele. — Não perdem nada.

 

Sempre que ia a Paris, ficava em uma suíte de dois quartos no opulento Hotel George V, uma indulgência permitida por Talbot, Brooks e Simon, pensava ele, mais para impressionar os clientes do que para satisfazer a contabilidade. A suposição era exata apenas em parte, como Nathan Simon explicou.

— Você tem uma elegante sala de estar — dissera Nate com sua voz sepulcral. — Use-a para conferências e evitará aqueles ridí­culos e caros almoços franceses e — Deus nos livre — os jantares.

— E se eles quiserem comer?

— Você tem outro compromisso. Dê uma piscadela e diga que é pessoal; ninguém em Paris vai insistir.

O endereço elegante podia ser de utilidade agora, pensava Con­verse, enquanto o táxi se movia freneticamente através do tráfego do meio da tarde, nos Champs-Elysées, em direção à avenida Geor­ge V. Se fizesse algum progresso — e pretendia fazer progresso — com os homens do círculo de Bertholdier, ou com o próprio Bertholdier, o hotel caro combinaria com a imagem de um cliente anônimo que enviava seu advogado particular para uma investi­gação muito confidencial. Naturalmente, não tinha feito reserva, uma falha da secretária substituta.

Foi calorosamente recebido pelo assistente do gerente, embora com surpresa e finalmente com desculpas. Nenhum pedido de reserva chegara pelo telex, de Talbot, Brooks e Simon, de Nova Iorque, mas naturalmente providenciariam acomodações para um velho amigo. Providenciaram a suíte de sempre com dois quartos no segundo andar, e antes de Joel começar a desfazer as malas o camareiro apareceu com uma garrafa de uísque escocês de sua pre­ferência, para substituir o que estava no bar da suíte. Joel tinha-se esquecido dos fichários completos que hotéis como aquele faziam sobre os hóspedes habituais. Segundo andar, o uísque certo, e sem dúvida durante a primeira parte da noite iam lembrá-lo de que sempre pedia para ser chamado às sete horas da manhã. Seria tudo igual.

Mas eram quase cinco horas da tarde. Se quisesse encontrar Mattilon antes que ele saísse do escritório, precisava apressar-se. Se René pudesse tomar uns drinques com ele, seria um começo. Ou Mattilon era o homem que procurava, ou não era, e a idéia de perder uma hora que fosse em qualquer fase da sua operação o preocupava. Apanhou a lista telefônica de Paris na mesa-de-cabeceira; encontrou o número da furna e fez a ligação.

— Meu Deus, Joel! — exclamou o francês. — Eu li sobre aquele terrível acontecimento em Genebra! Saiu nos jornais da manhã e tentei telefonar para Você — Le Richemond, naturalmente — mas disseram que já tinha deixado o hotel. Você está bem?

— Estou ótimo. Eu apenas estava lá, isso é tudo.

— Ele era americano. Você o conhecia?

— Só com uma mesa entre nós. A propósito, aquela história dele estar ligado a narcóticos é pura invenção. Ele foi assaltado, roubado, baleado e preparado para que houvesse confusão post mortem.

— E um funcionário superzeloso acreditou no óbvio, tentando proteger a imagem da sua cidade. Eu sei; foi explicado... É tudo tão terrível! Crime, mortes, terrorismo, estão em toda a parte. Um pouco menos aqui em Paris, graças a Deus.

— Vocês não precisam de assaltantes, os motoristas de táxi desempenham o papel perfeitamente. Apenas com maior violência, como é natural.

— Como sempre, você é impossible, meu amigo! Quando po­demos nos ver?

Converse ficou em silêncio por um segundo.

— Estava pensando nesta noite. Quando você sair do escri­tório.

— É muito em cima da hora, mon ami. Gostaria que tivesse telefonado mais cedo.

— Cheguei há dez minutos.

— Mas saiu de Genebra...

— Negócios em Atenas — interrompeu Joel.

— Ah, sim, o dinheiro voa dos gregos atualmente. Com abundância, eu acho. Como acontecia aqui.

— Que tal tomarmos uns drinques, René? É importante.

Foi a vez de Mattilon ficar em silêncio; evidentemente perce­bera a urgência na voz de Converse, em suas respostas curtas.

— Naturalmente — disse o francês. — Está no George Cinq, eu presumo?

— Sim, estou.

— Estarei aí logo que puder. Digamos, quarenta e cinco minutos.

— Muito obrigado. Vou reservar duas cadeiras na galeria.

— Eu encontro você.

 

O imenso vestíbulo com arcos de mármore, separado do bar do George V pelas portas de vidro colorido é informalmente chamado de “galeria” por causa dá galeria de arte protegida por vidros, no corredor da esquerda. Entretanto, o próprio salão merece esse nome. As poltronas macias de veludo, as banquetas e as mesas baixas, escuras e polidas, ao longo das paredes de mármore são verdadeiras obras de arte — tapeçarias imensas de castelos há muito esquecidos e enormes quadros heróicos de artistas novos e antigos. O assoalho de pedra lisa é recoberto por gigantescos tapetes orien­tais. Dos lustres elaborados do teto alto a luz desce suavemente, passando através das filigranas de ouro rendado.

Homens e mulheres ricos e poderosos conversam discretamente nos enclaves acolchoados, nas sombras bem distribuídas, sob quadros adequadamente iluminados e tapeçarias centenárias. Freqüentemente estão iniciando diálogos, lançando as bases de assuntos importantes, a serem resolvidos em salas de reuniões com presidentes, tesoureiros e grupos de advogados. Os autores de moções e os principiantes sentem-se à vontade nessa informalidade inicial — as explorações sem compromisso — dos primeiros encontros no salão extremamente formal. O ambiente cerimonioso de certa forma em­presta um ar de irrealidade ritual; facilita as negativas que virão mais tarde. A galeria faz jus às implicações do seu nome: dentro da fraternidade dos que alcançaram o sucesso no cenário internacional, costuma-se dizer que, se qualquer pessoa passar algum tem­po na galeria, cedo ou tarde verá todos os seus conhecidos. Por­tanto, quem não quiser ser visto deve ir a outro lugar.

O salão começava a se encher e os garçons, sabendo perfeitamente de onde vinha o dinheiro, afastavam-se do bar para atender às mesas. Converse encontrou duas poltronas desocupadas na extremidade da galeria, onde a luz era mais suave. Mal podia ver os ponteiros do relógio. Quarenta minutos haviam-se passado desde seu telefonema para René. Joel tinha tomado um banho de chu­veiro, livrando-se da poeira e do suor da viagem de um dia de Miconos a Paris. Tirou do bolso o maço de cigarros e o isqueiro, colocou-os sobre a mesa e pediu uma bebida ao garçom atencioso, sem tirar os olhos da entrada de mármore.

Doze minutos depois ele o viu. Mattilon passou, com sua habi­tual vivacidade, da luz ofuscante da rua para a penumbra repousante da galeria. Parou, entrecerrando os olhos para se habituar à obscuridade e então fez um gesto de reconhecimento. Atravessou o centro atapetado, olhando para Joel com um sorriso largo e franco. Rene Mattilon tinha mais de cinqüenta e cinco anos, mas seu modo de andar, sua aparência geral eram de um homem jovem. Envolvia-o aquela aura peculiar aos advogados criminais bem-sucedidos; o ar confiante parecia natural — fator essencial para o sucesso — embora fosse resultado de árduo trabalho, não apenas ego e de­sempenho. Era o ator seguro de si, perfeitamente à vontade no papel, o cabelo grisalho e os traços marcantes e másculos, tudo isso parte de um efeito calculado. Sob essa aparência, porém, havia algo mais, pensou Joel, levantando-se da poltrona. René era um homem essencialmente honesto. O que era extremamente tran­qüilizante. Deus sabia que ambos tinham suas falhas, mas eram homens decentes; talvez por isso gostavam da companhia um do outro.

Um firme aperto de mão precedeu o abraço breve. O francês sentou-se na frente de Converse e Joel chamou o garçom.

— Peça em francês — disse Joel. — Do contrário sou capaz de pedir para você um sundae hot fudge.

— Este homem fala inglês melhor do que qualquer um de nós. Campari e gelo, por favor.

— Merci, monsieur. — O garçom afastou-se.

— Mais uma vez obrigado por ter vindo — disse Converse. — Estou realmente grato.

— Tenho certeza disso... Você está bem, Joel, cansado, mas com boa aparência. Aquele chocante crime em Genebra deve ter-lhe provocado pesadelos.

— Não realmente. Como já disse, apenas estava lá.

— Mas podia ter sido você. Os jornais dizem que ele morreu praticamente nos seus braços.

— Fui o primeiro a chegar.

— Horrível!

— Já vi isso antes, René — disse Converse em voz baixa, sem a sugestão de outro comentário.

— Sim, naturalmente. Você está mais preparado do que a maioria de nós, imagino.

— Não acredito que alguém jamais esteja preparado... Mas já acabou. E você? Como vão as coisas?

Mattilon sacudiu a cabeça, o rosto vigoroso, curtido pelo tempo, crispando-se com uma expressão subitamente exasperada.

— A França é a própria loucura, naturalmente, mas sobreviveremos. Há meses e meses fazem-se mais planos do que os que podem existir em uma biblioteca de arquitetura, mas os autores desses planos passam o tempo colidindo uns com os outros nos corredores do governo. Os tribunais estão abarrotados, o negócio vai de vento em popa.

— Alegra-me ouvir isso. — O garçom voltou com o Campari; os dois homens agradeceram com um movimento de cabeça e então Mattilon olhou para Joel. — É verdade — continuou Converse quando o garçom se afastou. — Há tantos comentários.

— Por isso está em Paris? — O francês estudou Joel. — Por causa das histórias das nossas supostas desordens? Não são tão apavorantes assim, você sabe, nada diferente do que já conhecemos. Ainda não. A maioria das indústrias privadas são financiadas pelo governo. Mas naturalmente não dirigidas por governos incompe­tentes, e temos de pagar por isso. É o que o preocupa, ou para ser mais exato, aos seus clientes?

Converse tomou um gole de uísque.

— Não, não é por isso que estou aqui. É por outra coisa.

— Está preocupado, vejo muito bem. Sua loquacidade costu­Meira não me engana. Conheço você muito bem. Diga-me então, o que é tão importante? Foi a palavra que usou ao telefone.

— Sim, creio que foi. Talvez seja forte demais. — Joel esva­ziou o copo e apanhou um cigarro.

— Não na sua opinião, meu amigo. Vejo seus olhos e não os vejo. Estão cheios de nuvens.

— Entendeu mal. Como disse, estou cansado. Estive dentro de aviões o dia inteiro, com algumas escalas terríveis. — Apanhou o isqueiro e a chama só apareceu na segunda tentativa.

— Estamos perdendo tempo com bobagens. De que se trata?

Converse acendeu o cigarro, procurando conscientemente pa­recer natural.

— Conhece um clube privado chamado L’Étalon Blanc?

— Conheço mas não consegui passar da porta — respondeu o francês, rindo. — Eu era um tenente jovem sem importância — o que é pior, ligado ao auditor de guerra — recrutado por nossas forças apenas para lhes dar um ar de legalidade, mas, compreenda, só na aparência. Homicídio era uma contravenção e estupro devia ser elogiado. L’Étalon Blanc é o refúgio dos grands militaires — e dos que são bastante ricos ou bastante tolos para dar atenção às suas trombetas.

— Quero me encontrar com alguém que almoça no clube duas ou três vezes por semana.

— Não pode telefonar?

— Ele não me conhece, não sabe que quero me encontrar com ele. Tem de ser espontâneo.

— Realmente? Para Talbot, Brooks e Simon? Parece muito estranho.

— É estranho. Talvez estejamos tratando com alguém cuja causa não nos interesse.

— Ah, trabalho missionário. Quem é ele?

— Pode guardar segredo? Quero dizer, nem uma palavra a quem quer que seja?

— Eu sou um túmulo. Se o nome está em conflito com algo na sua agenda, eu lhe direi, e francamente isso não vai ajudar muito.

— É justo. Jacques-Louis Bertholdier.

Mattilon ergueu as sobrancelhas fingindo espanto, menos brin­cadeira do que espanto real.

— O imperador está com todas as suas roupas — disse o fran­cês, rindo mansamente. — Não importa que digam o contrário. Você começa no alto da linha, como dizem em Nova Iorque. Ne­nhum conflito, mon ami; não pertence à nossa liga — como vocês dizem também.

— Por que não?

— Ele convive com santos e guerreiros. Guerreiros que seriam santos e santos que seriam guerreiros. Quem tem tempo para essas fachadas?

— Quer dizer que não o levam a sério?

— Oh não, ele é levado muito a sério, mas por aqueles que têm tempo e inclinação para mover montanhas abstratas. Ele é um pilar, Joel, plantado em mármore heróico e completamente impos­sível de ser movido. Ele foi o De Gaulle que não aconteceu, e alguns dizem que é uma pena.

— E você, o que diz?

Mattilon franziu a testa, depois inclinou a cabeça para o lado, erguendo os ombros no estilo bem francês.

— Não estou bem certo. Deus sabe que o país precisava de alguém e talvez Bertholdier pudesse ter dado ao barco um curso melhor do que este em que navegamos agora, mas o tempo não era oportuno. O Elysée tinha-se transformado em uma corte imperial e o povo estava cansado dos editos reais, dos sermões imperiais. Mui­to bem, não temos mais isso; foram suplantados pelas banalidades inexpressivas e cinzentas do credo dos trabalhadores. Talvez seja uma pena, embora ele ainda possa conseguir, eu acho. Ele começou a escalada do Olimpo quando era muito jovem.

— Ele não pertenceu à OEA? Os rebeldes de Salan, Argélia? Foram desacreditados, classificados de desgraça nacional.

— Esse é um julgamento que, como os próprios intelectuais admitem, pode ser sujeito a revisão. Do modo que estão as coisas na África do Norte e no Oriente Médio, uma Argélia seria um grande trunfo hoje. — Mattilon fez uma pausa e levou a mão ao queixo, franzindo outra vez a testa. — Por que Talbot, Brooks e Simon iriam fugir de Bertholdier? Ele pode ser um monarquista de coração, mas Deus sabe que é a própria personificação da honra. É majestoso, talvez pomposo, mas um cliente muito aceitável, apesar de tudo.

— Ouvimos algumas coisas — disse Converse calmamente, er­guendo os ombros como para diminuir a credibilidade de meros boatos.

— Mon Dieu, não sobre as suas mulheres! — exclamou Matti­lon, rindo. — Ora, vamos, quando vai crescer?

— Não se trata de mulheres.

— O quê, então?

— Digamos alguns dos seus sócios, seus conhecidos.

— Espero que faça a distinção, Joel. Um homem como Ber­tholdier pode escolher seus associados, certamente, mas não seus conhecidos. Ele entra em uma sala e todo o mundo quer ser amável — e a maioria afirma que ele é um amigo.

— É o que queremos descobrir. Quero mostrar alguns nomes, verificar se são associados — ou conhecidos não lembrados.

— Bien. Agora você começa a fazer sentido. Posso ajudar; vou ajudar. Almoçaremos no Étalon Blanc amanhã e depois de amanhã. É o meio da semana e Bertholdier sem dúvida vai esco­lher um dia ou outro para almoçar lá. Se não, sempre há o dia seguinte.

— Pensei que não podia passar da porta.

— Não sozinho. Mas conheço alguém que pode, e ele terá o maior prazer, eu garanto.

— Por quê?

— Ele procura falar comigo sempre que pode. É um chato e infelizmente fala pouco inglês — números e expressões como “Den­tro e Fora”, e “Dodger-Roger”, ou “Roger-Dodger” e “Pista Seis”, ou “Decolar o Cinco” e uma coleção de frases incompre­ensíveis.

— Um piloto!

— Ele pilotou os primeiros Mirages, brilhantemente, devo dizer, e não deixa ninguém se esquecer disso. Vou ter de bancar o intérprete entre vocês dois, o que pelo menos elimina a necessidade de começar a conversa. Sabe alguma coisa sobre o Mirage?

— Um jato é um jato — disse Joel. — Puxar e “varrer”, o que mais?

— Sim, ele usa essa também. Puxar e “varrer” alguma coisa. Pensei que estivesse fazendo faxina na cozinha.

— Por que ele sempre procura falar com você? Pelo que en­tendi é um membro do clube.

— Claro que é. Nós o estamos representando em um caso fútil contra um fabricante de aviões. Ele tinha um jato particular, e perdeu o pé esquerdo numa dessas suas aterrissagens forçadas...

— Minha não, companheiro.

— A porta estava emperrada. Não conseguiu usar o ejetor para o solo quando o avião estava em velocidade suficientemente reduzida para evitar a colisão final.

— Ele não apertou os botões certos.

— Afirma que sim.

— Há pelo menos dois afogadores, incluindo um manual, instantâneo, até mesmo no seu equipamento.

— Já fomos informados disso. Não é o dinheiro, você compreende; ele é tremendamente rico. É o seu orgulho. Se perder, sua habilidade atual — ou, se quiser, dos últimos dias — será ques­tionada.

— Será muito mais questionada na reinquirição. Suponho que o avisou disso?

— Suavemente. Estamos conduzindo para esse lado.

— Mas nesse meio-tempo toda conferência significa honorá­rios significativos.

— Estamos também procurando salvá-lo dele mesmo. Se for­mos muito depressa ou sem diplomacia, ele simplesmente nos des­pede e vai procurar alguém menos honesto. Quem mais aceitaria um caso como esse? A fábrica hoje pertence ao governo, e Deus sabe que não vai pagar.

— Uma boa razão. O que vai lhe dizer a meu respeito? Sobre o clube?

Mattilon sorriu.

— Que como um ex-piloto e advogado você pode trazer esclarecimentos úteis ao caso. Quanto ao Étalon Blanc, vou sugerir, direi que você ficará bem impressionado. Vou descrever você como o Átila dos céus. O que acha?

— Não me impressiona muito.

— É capaz de representar o papel? — perguntou o francês. A pergunta era sincera. — Pode ser um meio de conhecer Bertholdier. Meu cliente e ele não são simples conhecidos, são amigos.

— Sou capaz.

— O fato de ter sido prisioneiro de guerra vai ajudar muito. Quando vir Bertholdier e expressar o desejo de conhecê-lo, um pe­dido como esse não pode ser facilmente recusado a um POW2F[3].

— Eu não enfatizaria tanto esse fato — disse Converse.

— Por que não?

— Se escavarmos um pouco podemos descobrir uma pedra que não pertence ao solo.

— Oh? — As sobrancelhas de Mattilon se arquearam outra vez, não de brincadeira nem de espanto, simplesmente de surpresa. — Escavar, como você diz, implica algo mais do que um encontro espontâneo, com nomes estranhos lançados ao acaso.

— É mesmo? — Joel virou o copo entre os dedos, aborrecido consigo mesmo, sabendo que qualquer argumento agravaria sua falha. — Desculpe-me, foi uma reação instintiva. Você sabe o que penso sobre o assunto.

— Sim, eu sei, e me esqueci. Que descuido o meu. Peço des­culpas.

— Na verdade, prefiro não usar meu nome. Você se importa?

— Você é o missionário, não eu. Como vamos chamá-lo? — O francês olhava atentamente para Converse.

— Não é importante.

Mattilon entrecerrou os olhos.

— Que tal o nome do seu patrão, Simon? Se se encontrar com Bertholdier, provavelmente lhe agradará. Le due de Saint-Simon, a crônica mais pura da monarquia... Henry Simon. Deve haver dez mil advogados com esse nome nos Estados Unidos.

— Então fica Simon.

— Você me contou tudo, meu amigo? — perguntou René, com ar inexpressivo. — Tudo o que quer contar?

— Sim, contei — disse Joel, seus olhos uma parede azul e branca. — Vamos tomar outro drinque.

— Acho que não. É tarde e minha mulher do momento sente um malaise se o jantar esfria. Por falar nisso, é uma excelente cozinheira.

— Você é um homem de sorte.

— Sim, eu sou — Mattilon terminou o drinque, pôs o copo na mesa e disse despreocupadamente: — Valérie também era. Nunca me esqueci daquele fantástico canard à l’orange que ela fez para nós há três ou quatro anos, em Nova Iorque. Tem notícias dela?

— Tenho notícias e a vejo — respondeu Converse. — Almocei com ela em Boston no mês passado. Dei-lhe o cheque da pensão e ela pagou a conta. A propósito, seus quadros começam a ser com­prados.

— Nunca duvidei de que seriam.

— Ela duvidava.

— Desnecessariamente... Sempre gostei de Valérie. Quando estiver com ela, por favor dê-lhe lembranças afetuosas.

— Darei.

Mattilon levantou-se da poltrona, os olhos agora expressivos.

— Perdoe-me, mas durante tanto tempo eu pensei que eram um par perfeito. Acho que é esse o termo. As paixões fenecem, mas não a suite, se compreende o que quero dizer.

— Acho que compreendo e, falando por nós dois, eu agra­deço — pela conclusão mal colocada.

— Je ne comprends pas.

— Esqueça, é antiquado — não quer dizer nada. Eu lhe trans­mitirei suas lembranças.

— Merci. Telefono de manhã.

 

 

L’Étalon Blanc era o pesadelo de um pacifista. As paredes do clu­be, de madeira pesada e escura, eram cobertas de fotografias e cartazes, entremeados de citações emolduradas e medalhas cintilan­tes — fitas vermelhas e discos dourados e prateados sobre veludo negro. Os cartazes eram um arquivo visual da carnificina heróica de dois séculos, enquanto a evolução da arte da guerra era mostrada em fotografias e os cavalos e carroças com canhões e sabres trans­formavam-se em motocicletas, tanques, aviões e canhões, mas os cenários não mudavam muito porque o tema era constante. Ho­mens vitoriosos de uniforme eram mostrados nos seus momentos de glória; qualquer sofrimento que pudesse haver estava estranha­mente ausente. Aqueles homens não eram perdedores — não lhes faltavam membros, não tinham faces deformadas; aqueles eram os guerreiros privilegiados. Joel sentiu um medo profundo ao estudar aquele aparato marcial. Não eram homens comuns; eram duros e fortes e a palavra “capacidade” estava escrita nos seus rostos. O que Beale tinha dito em Miconos? Qual tinha sido o julgamento da Raposa Vermelha de Inchon, um homem que sabia do que falava?

...Eu sei o que podem fazer quando lhes pedimos que façam. Contudo, o quanto mais seriam capazes de fazer quando eles pró­prios pediam? — pensou Joel. Sem os impedimentos das vaci­lantes autoridades civis?

— Luboque acaba de chegar — disse Mattilon em voz baixa, aproximando-se de Converse. —- Ouvi a voz dele no vestíbulo. Lem­bre-se, não precisa exagerar — de qualquer modo só vai traduzir o que for conveniente — mas faça um gesto de assentimento pro­fundo com a cabeça sempre que ele fizer uma de suas observa­ções furiosas. Ria quando ele fizer piada; são terríveis, mas ele gosta.

— Vou fazer o melhor possível.

— Aqui está um incentivo. Bertholdier tem reserva para o almoço. No lugar de sempre, mesa número onze, ao lado da janela.

— Onde nós estamos? — perguntou Joel, vendo que os lábios comprimidos do francês expressavam triunfo.

— Mesa doze. Então?

— Se algum dia precisar de um advogado, chamo você.

— Somos extremamente caros. Vamos, como dizem em todos aqueles seus maravilhosos filmes, “estamos no ar, monsieur Si­mon”. Represente o papel de Átila, mas não exagere.

— Sabe, René, para alguém que fala inglês tão bem, você tem uma tendência para as frases mais vulgares.

— A língua inglesa e as expressões americanas têm muito pou­co em comum, Joel, vulgar ou não.

— Muito esperto.

— Preciso dizer mais?... Ahh, monsieur Luboque, Serge, mon ami!

O sexto sentido de Mattilon percebera a chegada de Serge Luboque; voltou-se quando os passos soaram mais próximos. Lubo­que era um homem baixo e magro; lembrava um daqueles pilotos dos primeiros jatos quando o físico compacto era necessário. Era também quase uma caricatura de si mesmo. O bigode curto e bri­lhante fixava-se no rosto miniaturizado, que se franzia com ex­pressão de vaga hostilidade dirigida aos dois homens, a ninguém e a todos. Não importava o que fora; agora era um homem afetado cuja única habilidade era manter a pose. Com tudo o que era bri­lhante e excitante enterrado no passado, tinha apenas as lem­branças, o resto era raiva.

— Et voici l’expert judiciaire des compagnies aériennes — disse ele, olhando para Converse e estendendo a mão.

— Serge tem imenso prazer em conhecê-lo e está certo de que pode nos ajudar muito — explicou Mattilon.

— Farei o que for possível — disse Converse. — E peço desculpas por não falar francês.

O advogado evidentemente traduziu a frase, e Luboque ergueu os ombros, falando de maneira rápida e incompreensível, repetindo várias vezes a palavra anglais.

— Ele também pede desculpas por não falar inglês — disse Mattilon, olhando maliciosamente para Joel e acrescentando: — Se ele estiver mentindo, monsieur Simon, vamos ser encostados em uma dessas paredes decoradas e fuzilados!

— Não há perigo — disse Converse, sorrindo. — Nossos ami­gos poderiam amassar as medalhas e estragar as fotografias. Todo o mundo sabe que os franceses são péssimos atiradores.

— Qu’est-ce que vous dites?

— Monsieur Simon tient à vous remercier pour le déjeuner — disse Mattilon, voltando-se para seu cliente. — Il en est très fier car il estime que l’officier français est l’un des meilleurs du monde.

— O que foi que você disse?

— Eu expliquei — disse o advogado, para Converse — que você se sente honrado por estar aqui, pois acha que o soldado francês — especialmente os oficiais — é o melhor do mundo.

— Não só péssimos atiradores como pilotos da pior qualidade —disse Joel sorrindo e assentindo com a cabeça.

— Est-il vrai que vous avez participé à nombreuses missions en Asie du Sud? — perguntou Luboque, os olhos fixos em Joel.

— Como disse?

— Ele procura confirmar o fato de você ser um Átila dos céus, de ter realizado muitas missões.

— Algumas — disse Joel.

— Beaucoup — disse Mattilon.

Luboque falou outra vez rapidamente, mais incompreensível desta vez, enquanto estalava os dedos para chamar o garçom.

— Agora, o que é?

— Ele prefere falar sobre os feitos dele — no interesse do caso, naturalmente.

— Naturalmente — disse Converse, com um sorriso inexpres­sivo. — Péssimos atiradores, piores pilotos e egos insuportáveis.

— Ah, mas nossa comida, nossas mulheres, nossa incompa­Ravel compreensão da vida.

— Há uma palavra muito significativa em francês — uma das poucas que aprendi com minha ex-mulher —, mas acho que não devo usá-la. — O sorriso de Joel parecia cimentado nos seus lábios.

— Tem razão, eu tinha esquecido — disse Mattilon. — Eu costumava conversar com ela na notre belle langue, e você ficava irri­tado. Não use a palavra. Lembre-se do seu incentivo.

— Qu’est-ce que vous dites encore? Notre belle langue? — Luboque perguntou, quando o garçom se aproximou dele.

— Notre ami, Monsieur Simon, suit un cours à l’école Berlitz et pourra ainsi s’entretenir directement avec vous.

— Bien!

— O quê?

— Eu disse que você vai aprender francês na Berlitz para jan­tar com ele sempre que estiver em Paris. Basta um telefonema. Acene com a cabeça, espertinho.

Converse obedeceu.

E continuaram desse modo. Ponto, não-contraponto, nenhuma seqüência. Serge Luboque falou o tempo todo, enquanto tomavam drinques na sala de diversões dos guerreiros, Mattilon traduzia e avisava Joel sobre a expressão que devia usar, bem como a res­posta apropriada.

Finalmente, Luboque descreveu com grande alarde a aterris­sagem forçada que lhe custara um pé e as falhas óbvias no apa­relho, pelas quais devia ser compensado. Converse ouviu-o com a expressão correta de pena e indignação, e ofereceu-se para redigir um parecer jurídico para a corte, baseado na sua experiência como piloto de jato. Mattilon traduziu; Luboque deu um largo sorriso e lançou uma barragem rápida de vogais gargarejantes que Joel inter­pretou como agradecimento.

— Ele será seu eterno devedor — disse René.

— Não se eu escrever minha opinião — respondeu Converse. — Ele se trancou na cabine do avião e jogou a chave fora.

— Pois escreva — respondeu Mattilon sorrindo. — Acaba de pagar o meu tempo. Podemos usá-la como uma cunha para abrir a porta da retirada. Além disso, ele jamais vai convidá-lo para jantar quando vier a Paris.

— Quando vem esse almoço? Meu estoque de expressões fa­ciais está se acabando.

Caminharam em passo de marcha hesitante para a sala de jantar, procurando acompanhar Luboque, sobre o parquete enfeitado. A ridícula conversa trilateral continuou enquanto o vinho era servido — a primeira garrafa fora mandada de volta por Luboque — e os olhos de Converse dirigiam-se constantemente para a porta.

Chegou o momento: Bertholdier apareceu. Ficou de pé sob o arco de entrada, com a cabeça voltada levemente para a esquerda ouvindo o que dizia um homem com capa de gabardine bege-clara. O general assentiu com a cabeça e o subordinado se afastou. Então o grande homem entrou na sala, discreta mas majestosamente. As cabeças se voltaram e o homem recebeu a homenagem como um delfim que em breve será rei aceita as atenções dos ministros de um monarca debilitado. O efeito era extraordinário, pois não existiam reinos, nem monarquias, nem terras a serem divididas pela con­quista, entre os cavaleiros de Crécy ou outros, mas esse homem sem linhagem real estava sendo tacitamente reconhecido — por Deus, pensou Joel — como um imperador de direito.

Jacques-Louis Bertholdier tinha estatura média, entre 1,55 e l,57m, não mais, mas seu porte — a postura erecta, a largura dos ombros e o comprimento do pescoço forte fazia-o parecer mais alto, muito mais imponente do que qualquer outro. Estava entre os seus e, ali, sem dúvida, acima dos outros, elevado pelo consenso dos presentes.

— Diga algo bem reverente — disse Mattilon, quando Ber­tholdier se aproximou, dirigindo-se para a mesa ao lado. — Olhe para ele e demonstre intensa admiração. Eu faço o resto.

Converse obedeceu, murmurando o nome completo de Berthol­dier, de modo a ser ouvido. Acompanhou essa exclamação discreta com uma inclinação de cabeça para Mattilon, dizendo:

— Aí está um homem que eu sempre quis conhecer.

Seguiu-se uma breve troca de palavras entre René e seu cliente, em francês, Luboque assentiu com a cabeça, com o ar arrogante de quem concede um favor a um novo amigo.

Bertholdier chegou perto da mesa, com o maître e o chefe dos garçons dançando, solícitos, um de cada lado. A pavana teve lugar a poucos passos da mesa de Converse.

— Mon general — disse Luboque, levantando-se.

— Serge — saudou Bertholdier, adiantando-se com a mão es­tendida — um oficial superior consciente da invalidez do subordi­nado. — Comment ça va?

— Bien, Jacques, et vous?

— Les temps sont bien étranges, mon ami.

A troca de cumprimentos foi breve e o curso da conversa foi rapidamente desviado por Luboque, que fez um gesto na direção de Converse e continuou falando. Instintivamente Joel levantou-se, o corpo erecto, os olhos fitos em Bertholdier, com expressão tão inquisidora quanto a do general, mas acrescida de admiração res­peitosa. Ele estava certo — mas de um modo inesperado. A expe­riência compartilhada no Sul da Ásia era válida para Jacques-Louis Bertholdier. E por que não? Ele também tinha suas lembranças. Mattilon foi apresentado quase como um acessório, e o soldado o cumprimentou com uma leve inclinação de cabeça, enquanto pas­sava por trás de René, para apertar a mão de Joel.

— Um prazer, monsieur Simon — disse Bertholdier, em inglês correto, com um firme aperto de mão, um camarada cumprimen­tando outro camarada, deixando transparecer todo o seu encanto imperial.

— Tenho certeza de que deve ter ouvido isso muitas vezes, senhor — disse Joel, conservando a expressão firme e profissional —, mas esta é uma ocasião que jamais ousei esperar. Se me permite dizer, general, é uma honra conhecê-lo.

— É uma honra conhecê-lo — respondeu Bertholdier. — Vo­cês, os cavalheiros do ar, fizeram todo o possível e eu conheço alguns particulares sobre as circunstâncias. Tantas missões! Acho que foi mais fácil em terra! — O general riu discretamente.

“Cavalheiros do ar” — o homem não existia, pensou Converse. Mas a conexão era firme; ela existia, ele podia sentir, ele sabia. A combinação de palavras e olhares a definiu. Tão simples: o ardil de um advogado para domar o adversário — nesse caso, um inimigo. O inimigo.

— Não concordo com isso, general; era muito mais limpo no ar. Mas se houvesse muitos como o senhor no solo, na Indochina, jamais teria havido um Dien bien phu.

— Uma observação muito lisonjeira, mas não creio que corres­ponda exatamente à realidade.

— Eu estou certo — disse Joel em voz clara. — Estou convencido.

Luboque, que estava conversando com Mattilon, interrompeu:

— Mon general, voulez-vous vous joindre à nous?

— Pardonnez-moi. Je suis occupé avec mes visiteurs — res­pondeu Bertholdier, voltando-se novamente para Converse. — Devo declinar o convite de René, espero convidados. Ele me disse que o senhor é advogado, um especialista em litígios sobre assuntos de aviação.

— Apenas parte de um campo mais amplo, sim. Veículos de terra, mar e ar — tentamos representar todos os tipos. Na verdade, sou novato — não no conhecimento, espero — nesse tipo de representação.

— Compreendo — disse o general, evidentemente intrigado. — Está em Paris a negócios?

Está chegando, pensou Joel. Acima de tudo precisava ser cau­teloso. As palavras — mas especialmente os olhares — deviam transmitir o que não fosse dito.

— Não, apenas para tomar fôlego. Amanhã vou para Bonn, onde devo ficar um ou dois dias, depois, Telavive.

— Deve ser extremamente cansativo — Bertholdier fitava-o atentamente.

— E não é tudo — disse Converse, com um leve sorriso. — Depois de Telavive, um vôo noturno para Joanesburgo.

— Bonn, Telavive, Joanesburgo... — disse o soldado suave­mente. — Um estranho itinerário.

— Produtivo, creio. Pelo menos esperamos que seja.

— Nós?

— Meu cliente, general. Meu novo cliente.

— Déraisonnable! — exclamou Mattilon, rindo de alguma coi­sa dita por Luboque e ao mesmo tempo informando Joel de que não agüentava mais a conversa com seu impaciente litigante.

Mas Bertholdier não tirou os olhos de Converse.

— Onde está hospedado, meu jovem piloto de combate?

— Jovem e não tão jovem, general.

— Onde?

— No George Cinq. Suite dois três cinco.

— Um ótimo hotel.

— Um hábito. Minha antiga firma sempre me aloja no George Cinq.

— Alojar? Como em “ser designado para uma guarnição”? — perguntou Bertholdier, com um leve sorriso.

— Um lapso do inconsciente — disse Joel. — Mas afinal, explica o que quero dizer, não explica, senhor?

— Sem dúvida... Ah, meus convidados! — O soldado esten­deu a mão. — Foi um prazer, monsieur Simon.

Um rápido au revoir acompanhou acenos de cabeça e apertos de mão e Bertholdier voltou à sua mesa para receber os convi­dados. Por intermédio de Mattilon, Joel agradeceu a Luboque a apresentação; o piloto inválido fez um gesto com as palmas das mãos voltadas para cima, e Converse teve a impressão de ter sido batizado. O diálogo insano em triângulo continuou agora em alta velocidade e Joel esforçou-se ao máximo para manter um mínimo de concentração.

Tinha feito progresso; estava escrito nos olhos de Bertholdier e Joel percebia aqueles olhos, vez por outra, voltando-se para ele, mesmo quando a conversa, nas duas mesas, estava mais animada. O general estava à esquerda de Converse, na diagonal; ao menor movimento de cabeça, seus olhos se encontravam diretamente. Aconteceu duas vezes. Da primeira, Joel sentiu o olhar firme como se fosse a luz do sol queimando sua pele. Moveu a cabeça apenas alguns centímetros; entreolharam-se, a expressão do soldado pene­trante, severa, questionadora. Da segunda, meia hora mais tarde, o contato visual foi iniciado por Converse. Luboque e Mattilon dis­cutiam estratégia jurídica e, como que atraído por um ímã, Joel voltou-se lentamente para a esquerda e observou Bertholdier, que com voz baixa e metodicamente tentava convencer um de seus con­vidados de alguma coisa. Subitamente, quando o interlocutor respondeu, o general virou a cabeça rapidamente na direção de Converse, os olhos não mais inquisidores, mas frios como gelo. Então, com a mesma rapidez, Converse viu calor neles; o soldado célebre fez um gesto de assentimento com a cabeça, com um meio sorriso nos lábios.

 

Joel estava sentado na poltrona de couro ao lado da janela na sala de estar fracamente iluminada; a única luz vinha da lâmpada sobre a mesa. Olhava alternadamente para o telefone, na frente da lâm­pada e para fora, pela janela, de onde via o tráfego noturno de Paris e as luzes da grande avenida, lá embaixo. Então, concentrou-se apenas no telefone como fazia sempre que esperava o telefonema de um adversário legal disposto a capitular, sabendo de antemão que ele ou ela ia ceder. Era uma questão de tempo.

O que esperava agora era comunicação, não capitulação — uma conexão, a conexão. Não tinha idéia de como seria apresentada, mas estava certo de que viria. Tinha de vir.

Eram quase sete e meia, quatro horas desde que saíra do Éta-lon Blanc, depois de um forte aperto de mão trocado com Jacques-Louis Bertholdier. O olhar do soldado era inconfundível. Se não fosse por nada mais, raciocinou Converse, Bertholdier pelo menos precisava satisfazer sua curiosidade.

Joel tinha-se prevenido, distribuindo várias notas de 100 francos muito bem colocadas, na portaria do hotel. A tática era comum nesses dias de inquietação nacional e financeira — na verdade, era comum há anos, mesmo sem a inquietação. Homens de negócios em visita à cidade geralmente preferem usar pseudônimos por di­versas razões, desde negócios que devem permanecer em segredo, até ligações amorosas, que não deviam ser descobertas. No caso de Converse, o uso do nome Simon fazia com que parecesse lógico, ou mesmo eminentemente respeitável. Se Talbot, Brooks e Simon prefe­riam fazer todos os contatos em nome do sócio principal, quem po­deria questionar essa decisão? Joel, porém, levou o plano um pouco adiante. Depois de telefonar para Nova Iorque, explicou, haviam lhe dito que seu nome não devia ser usado de modo nenhum; nin­guém sabia que ele estava em Paris e sua firma preferia assim. Obviamente essas instruções atrasadas explicavam o mal-entendido no caso da reserva, que de qualquer modo estava sem efeito. Não deviam debitar nada. Ele pagaria em dinheiro e, como estavam em Paris, ninguém fez objeção. Dinheiro vivo era infinitamente me­lhor, pagamento a crédito era um anátema nacional.

Se acreditavam ou não nesse absurdo, não importava. A lógica era suficientemente adequada e as notas de 100 francos persuasivas; a ficha original de registro foi rasgada e outra a substituiu no fichário do hotel. H. Simon ficou no lugar de J. Converse. O endereço permanente era produto da imaginação de Joel, um nú­mero da casa, numa rua numerada em Chicago, Illinois, que pro­vavelmente não existiam. Quem perguntasse pelo Sr. Converse — o que dificilmente aconteceria — ficaria sabendo que não havia ne­nhum hóspede com esse nome atualmente no George V. O próprio René Mattilon não era problema, pois Joel fora específico. Como não tinha nada mais que fazer em Paris, ia tomar o avião das seis horas para Londres e passar alguns dias em casa de amigos, antes de voltar para Nova Iorque. Tinha agradecido a René profusa­mente, dizendo ao francês que a preocupação de sua firma a res­peito de Bertholdier não tinha razão de ser. Durante a conversa calma que tiveram, Joel havia citado três nomes-chaves e todos tinham sido recebidos por Bertholdier com olhar inexpressivo e um pedido de desculpas por sua memória fraca. — Ele não estava mentindo — dissera Joel.

— Não posso imaginar nenhuma razão para que ele mentisse — respondeu Mattilon.

Eu posso, pensou Joel. Todas elas se chamam Aquitânia.

Um ruído seco! Um som súbito, um estalido áspero e metá­lico, depois outro e outro — a lingüeta da fechadura saindo do lugar, a maçaneta girando. Além da porta aberta do quarto. Joel inclinou-se para a frente na cadeira, com um gesto brusco; depois, consultou o relógio, respirou fundo e relaxou. Era a hora da cama­reira do andar arrumar as camas para a noite; a tensão do telefo­nema esperado e o que ele representava tinham afetado seus nervos. Recostou-se outra vez, os olhos pregados no telefone. Quando ia tocar? Tocaria!

— Pardon, monsieur — disse uma voz feminina, acompanha­da de uma batida discreta na porta aberta. Joel não via a mulher.

— Sim? — Converse desviou os olhos do telefone silencioso, esperando ver a camareira.

O que viu o fez soltar uma exclamação abafada. Era Berthol­dier, o porte erecto, a cabeça angulosa rígida, os olhos um misto de avaliação fria, condescendência e — se Joel não estivesse enganado — um vestígio de medo. Entrou no quarto e ficou imóvel; quando falou, sua voz era como um lençol de gelo.

— Tenho um compromisso para jantar no quarto andar, mon­sieur Simon. Por acaso, lembrei-me de que estava neste hotel. O senhor me deu o número da sua suíte. Estou incomodando?

— Naturalmente que não, general — disse Converse levantando-se.

— O senhor me esperava?

— Não assim.

— Mas me esperava?

Joel demorou um pouco para responder.

— Sim.

— Um sinal enviado e recebido?

Outra pausa:

— Sim.

— Deve ser um advogado provocantemente sutil ou um ho­mem estranhamente obcecado. Qual dos dois, monsieur Simon?

— Se provoquei sua vinda e fui sutil ao fazê-lo, aceito a defi­nição de bom grado. Quanto a ser obcecado, a palavra implica preocupação exagerada ou desnecessária. Sejam quais forem mi­nhas preocupações, sei perfeitamente que não são exageradas nem desnecessárias. Nenhuma obsessão, general. Sou um advogado bom demais para isso.

— Um piloto não pode mentir para si mesmo. Se o fizer cegamente, estará morto.

— Já fui derrubado. Jamais caí por erro do piloto.

Bertholdier caminhou lentamente para o sofá de brocado perto da parede.

— Bonn, Telavive e Joanesburgo — disse em voz baixa, sen­tando-se e cruzando as pernas. — O sinal?

— O sinal.

— Minha companhia tem interesses nessas áreas.

— Meu cliente também — disse Converse.

— E o senhor, o que tem, Monsieur Simon?

Joel fitou o soldado.

— Um compromisso, general.

Bertholdier ficou em silêncio, imóvel, os olhos inquisitivos.

— Posso tomar um conhaque? — disse, finalmente. — Minha acompanhante ficará no corredor, do lado de fora desta porta.

 

Converse foi até o bar encostado na parede, sentindo os olhos do soldado em suas costas, tentando imaginar que curso a conversa tomaria. Estava estranhamente calmo, como sempre ficava antes de uma conferência importante ou um interrogatório anterior ao julga­mento, certo de saber coisas que seus adversários não sabiam — informação secreta desenterrada depois de horas de trabalho exaustivo. Na circunstância atual não realizara nenhum trabalho, mas o resultado era o mesmo. Sabia muita coisa sobre a lenda que estava do outro lado da sala, Jacques-Louis Bertholdier. Em uma palavra, Joel estava preparado, e durante todos esses anos aprendera a con­fiar nos seus instintos de pés-na-terra — como confiava naqueles que o haviam guiado através dos céus há muitos anos.

Além disso, como era parte do seu trabalho, conhecia a complexidade das manipulações em exportação-importação. Consti­tuíam um labirinto de autorizações geralmente desconexas, que po­diam facilmente ser incompreensíveis para os iniciados, e nos mi­nutos seguintes pretendia confundir esse discípulo de George Mar­cus Delavane — senhor da guerra de Saigon — até que o vestígio de medo no rosto do soldado se tornasse mais acentuado.

As licenças para embarque de material estrangeiro tinham uma enorme variedade de formas, desde a licença de exportação básica, com específicos conhecimentos de embarque até as limitações genéricas, menos específicas. Vinham depois as cobiçadas licenças exigi­das para diversos produtos sujeitos a revisões do governo; essas eram geralmente desviadas de um lado para outro, entre departamentos vacilantes, até que o prazo das mesmas obrigassem a to­madas de decisões burocráticas, geralmente baseadas no conceito das influências mais fortes e mais fracas.

Finalmente, havia a autorização mais mortal de todas, um do­cumento freqüentemente concebido pela corrupção e nascido no meio do sangue. Era o chamado Certificado do Destinatário, uma permissão com nome inócuo, que era a licença para embarque do material mais prejudicial existente nos arsenais da nação, por via aérea e marítima, para além dos controles daqueles que tinham direito a ele.

Em teoria, esse equipamento mortal era destinado unicamente a governos aliados com objetivos comuns, por isso o “destinatário” ou seja, o “uso” de acordo com a conveniência dos que o “re­cebiam”, era uma morte calculada, legitimada por um “certifi­cado” que ofuscava a intenção de todos. Mas, uma vez o equipa­mento embarcado, a regra era desviá-lo. Carregamentos destinados à baía de Haifa ou Alexandria iam parar no golfo de Sidra, para um louco na Líbia, ou um assassino chamado Carlos que treinava equipes de assassinos desde Beirute até o Saara. Firmas fictícias com funcionários inexistentes, mas de grande influência, operavam através de agentes obscuros e em armazéns afastados, construídos às pressas nos Estados Unidos e no exterior. Milhões e milhões eram ganhos; a morte era uma conseqüência sem importância e havia uma frase para tudo isso. Terrorismo de sala de conselho. Combina perfeitamente, e esse devia ser o método Aquitânia. Não havia outro.

Esses pensamentos — os métodos da operação — passaram pela mente de Converse enquanto servia a bebida. Estava pronto; voltou-se e atravessou a sala.

— O que procura, monsieur Simon? — perguntou Bertholdier, aceitando o conhaque.

— Informação, general.

— Sobre o quê?

— Mercados mundiais — mercados em expansão aos quais meu cliente possa fornecer seu produto. — Joel voltou para a pol­trona ao lado da janela e sentou-se.

— E o que ele pode fornecer?

— Ele é um corretor.

— De quê?

— Uma grande variedade de produtos. — Converse levou o copo aos lábios; tomou um gole e acrescentou: — Acho que os mencionei de um modo geral no seu clube esta tarde. Aviões, veí­culos, navios, munições. Toda a linha.

— Sim, mencionou. Creio que não compreendi.

— Meu cliente tem acesso a fontes de produção e armazena­mento mais extensas do que qualquer outra firma ou pessoa.

— Muito interessante. Quem é ele?

— Não tenho autorização para dizer.

— Talvez eu o conheça.

— Talvez, mas não do modo como o descrevi. Sua atuação nessa área é quase desconhecida, praticamente inexistente.

— E não vai me dizer quem é — disse Bertholdier.

— É informação confidencial.

— Contudo, segundo suas próprias palavras, procurou-me, enviou-me um sinal, agora diz que quer informação sobre mercados em expansão para todo tipo de mercadoria, em Bonn, Telavive e Joanesburgo. Mas não quer me dizer o nome do seu cliente que será beneficiado se eu tiver a informação — o que provavelmente não tenho. Não pode estar falando sério.

— O senhor tem a informação e, sim, estou falando sério. Mas acho que tirou conclusões errôneas.

— Não, não creio. Meu inglês é fluente e ouvi o que me disse. O senhor aparece do nada, nada sei a seu respeito, fala evasiva­mente sobre um homem muito influente...

— O senhor me perguntou, general — interrompeu Joel com voz firme, sem elevar a voz — o que eu procurava.

— E disse que era informação.

— Sim, eu disse, mas não disse que devia partir do senhor.

— Como disse?

— Nas circunstâncias — pelas razões que acaba de mencionar — o senhor não daria nenhuma informação, sei disso muito bem.

— Então, qual o motivo desta — digamos, conversa induzida? Não gosto que brinquem com o meu tempo, monsieur.

— Jamais faríamos tal coisa — eu jamais faria.

— Por favor, seja específico.

— Meu cliente quer a sua confiança. Eu a quero. Mas sabemos que só a teremos se for justificada. Em alguns dias — uma semana no máximo — espero poder mostrar essa justificação.

— Por meio de suas viagens a Bonn, Telavive, Joanesburgo?

— Francamente, sim.

— Por quê?

— O senhor mesmo disse há pouco. O sinal.

Bertholdier subitamente ficou desconfiado. Ergueu os ombros com naturalidade excessiva; estava batendo em retirada.

— Eu disse isso porque minha companhia tem investimentos consideráveis nessas áreas. Pensei que seria completamente plausí­vel que o senhor tivesse alguma proposta, ou propostas, relaciona­das com esses interesses.

— Pretendo ter.

— Por favor, seja mais explícito — disse o soldado, controlando a irritação.

— Sabe que não posso — respondeu Joel. — Não ainda.

— Quando?

— Quando for evidente para o senhor — e para todos — que o meu cliente e, por extensão, eu mesmo temos motivos para sermos uma parte do seu grupo, tão convincentes quanto os mais dedi­cados dos seus membros.

— Parte da minha companhia? Juneau et Compagnie?

— Desculpe-me general. Não vou responder a essa pergunta.

Bertholdier olhou para o copo que tinha na mão, depois para Converse.

— Disse que veio de São Francisco.

— Não estou estabelecido em São Francisco — interrompeu Joel.

— Mas foi de onde veio. Para Paris. Por que estava lá, então?

— Vou responder a essa pergunta apenas para provar o quan­to somos meticulosos — e como outros são muito mais do que nós. Nós descobrimos — eu descobri — remessas para o exterior com licenças de exportação originárias da área norte da Califórnia. As companhias beneficiadas com essas licenças não tinham história nem armazéns registrados — cadeias de quatro paredes erguidas para períodos breves, de acordo com a conveniência do momento. Era uma confusão maciça que levava a lugar nenhum e a todos os lugares. Documentos com nomes de pessoas inexistentes, originados em labirintos burocráticos praticamente impossíveis de localizar — carimbos, vistos oficiais, e assinaturas de autorização onde nenhu­ma autorização era concedida. Pessoal de nível médio, completa­mente ignorante do que estava acontecendo, seguindo ordens para expedir licenças de departamentos... Isso tudo eu descobri em São Francisco. Uma confusão de transações altamente questionáveis que não resistiriam a uma fiscalização mais intensa.

Os olhos de Bertholdier estavam fixos, completamente sob controle.

— Naturalmente, não sei nada sobre coisas como essas — disse ele.

— Naturalmente — concordou Converse. — Mas o fato de meu cliente saber — por meu intermédio — e o fato adicional de que nem ele nem eu desejamos chamar atenção sobre elas devem signi­ficar alguma coisa para o senhor.

— Francamente, não significam nada.

— Por favor, general. Um dos primeiros princípios da livre empresa é prejudicar a competição, entrar no negócio e preencher a vaga.

O soldado tomou um gole do conhaque, segurando o copo firmemente.

— Por que me procurou?

— Porque o senhor estava lá.

— O quê?

— Seu nome estava lá — entre a confusão, bem disfarçado, mas presente.

Bertholdier lançou-se para a frente.

— Impossível! Absurdo!

— Então, por que estou aqui? Por que o senhor está aqui? — Joel colocou o copo na mesa ao lado da cadeira, com o movimento de um homem que não acabou de falar. — Tente compreender. Dependendo do departamento com que se faz negócio, certas reco­mendações podem ser de grande utilidade. Não levantaria um dedo por alguém que apelasse em favor do Desenvolvimento Urbano e Habitacional, mas para o Departamento de Controle de Munições, do Pentágono, o senhor vale ouro.

— Jamais dei meu nome a esse tipo de recomendação.

— Outros deram, homens cuja palavra favorável vale muito, mas que talvez precisassem de um pistolão extra.

— O que quer dizer com pistolão?

— O empurrão final para conseguir a decisão afirmativa — sem nenhum envolvimento pessoal aparente. É chamado apoio de uma ação através de segundos e terceiros. Por exemplo, um memo­rando diz: “Nós” — o departamento, não uma pessoa — “não sabemos muito a esse respeito, mas se um homem como o general Bertholdier for favorável, e tivermos informação desse fato, por que discutir?”

— Nunca. Não podia acontecer.

— Aconteceu — disse Converse suavemente, sabendo que che­gara o momento de apoiar as abstrações com um fato real. Num momento ia verificar se Beale estava certo, se essa lenda da França era responsável pela carnificina e pelo caos nas cidades e vilas da violenta Irlanda do Norte. — Seu nome estava lá, não com muita freqüência, o bastante para que eu o encontrasse. Assim como es­tava, de modo diferente, quando um carregamento era transpor­tado por via aérea de Beloit, Wisconsin, para Telavive. Natural­mente nunca chegou ao destino. De um modo ou de outro foi desviado para maníacos, dos dois lados em Belfast. Onde teria acontecido? Montreal? Paris? Marselha? Os separatistas de Quebec naturalmente seguiriam suas ordens, bem como homens em Marse­lha ou Paris. Foi uma pena que a companhia chamada Solidaire tivesse de pagar o seguro. Oh, sim, o senhor é diretor da firma, não é? E é tão conveniente o fato de os seguradores terem acesso à mercadoria que seguram.

Bertholdier estava paralisado, os músculos do rosto pulsavam, os olhos arregalados fitos em Joel. A culpa estava controlada, mas nem por isso menos visível.

— Não acredito no que está insinuando. É chocante é incrível!

— Repito, por que estou aqui?

— Só o senhor pode responder, monsieur — disse Bertholdier, levantando-se bruscamente, o copo ainda na mão. Então, lentamen­te, com precisão militar, inclinou-se e colocou-o na mesa; era um gesto de conclusão — a conferência tinha terminado. — Obvia­mente cometi um erro tolo — continuou, os ombros retos outra vez, a cabeça rígida, mas agora com um sorriso tenso, contudo estranhamente convincente. — Sou um soldado, não um homem de negócios; é uma atividade adotada tardiamente em minha vida. Um soldado tenta aproveitar uma iniciativa e foi o que fiz; apenas não havia — não há iniciativa. Perdoe-me, interpretei mal o seu sinal esta tarde.

— Não interpretou mal coisa alguma, general.

— Por acaso está tentando me contradizer, o senhor, um estranho duvidoso — que consegue uma apresentação com motivos falsos e faz declarações ultrajantes sobre minha honra e minha conduta? Espero que não. — Bertholdier atravessou a sala com passos largos na direção da porta e Joel levantou-se. — Não se incomode, monsieur, sei o caminho. Já teve muito trabalho, por quê, não sei.

— Estou a caminho de Bonn — disse Converse. — Avise os seus amigos que estarei lá. Diga-lhes que me esperem. E por favor, general, diga-lhes que não me julguem com antecedência. Estou falando sério.

— Suas referências enigmáticas são bastante aborrecidas — tenente. Era tenente, não era? A não ser que tenha enganado o pobre Luboque também.

— Qualquer meio que eu tenha usado para que me apresen­tasse ao senhor foi em benefício dele. Ofereci-me para redigir um parecer jurídico sobre o seu caso. Talvez não seja muito do agrado de Luboque, mas vai lhe poupar muito sofrimento e dinheiro. E eu não enganei o senhor.

— Uma questão de opinião, creio eu — Bertholdier voltou-se e segurou a enorme maçaneta da porta.

— Bonn, Alemanha — insistiu Joel.

— Já ouvi. Não tenho a mínima idéia do que...

— Leifhelm — disse Converse em voz baixa. — Erich Leifhelm.

O soldado virou a cabeça lentamente, os olhos como duas brasas de carvão vermelho prontas a se transformar em fogo com a menor lufada de vento.

— Conheço o nome, mas não o homem.

— Diga-lhe que estarei em Bonn.

— Boa noite, monsieur — disse Bertholdier, abrindo a porta, o rosto cinzento.

 

Joel correu para o quarto, agarrou a valise e colocou-a na ban­queta. Precisava sair de Paris imediatamente. Dentro de algumas horas, talvez minutos, Bertholdier o mandaria vigiar e, se fosse seguido até o aeroporto, seu passaporte provaria que o nome Si­mon era falso. Isso não podia acontecer, não ainda.

Era estranho, perturbador. Nunca tinha saído de um hotel às escondidas, e não tinha muita certeza de como isso era feito — só sabia que tinha de ser feito. A alteração da ficha de registro fora um ato instintivo; muitas vezes, negociações legais precisavam ficar em segredo durante algum tempo para benefício de todos os inte­ressados. Mas isso era diferente — não era normal. Tinha dito a Beale, em Miconos, que ia se transformar em alguém que ele não era. Fácil dizer, não tão fácil fazer.

A mala arrumada, verificou a carga da pilha do barbeador elé­trico e, distraidamente, ligou o aparelho, passando-o pelo queixo, enquanto ia até o telefone. Desligou o barbeador enquanto discava, sem saber ao certo o que ia dizer ao gerente da noite, mas orientando os pensamentos para uma explicação comercial. Depois da troca de palavras iniciais, lisonjeiras dos dois lados, disse:

— Surgiu um imprevisto numa situação delicada e minha fir­ma deseja que eu parta para Londres o mais cedo possível — e o mais discretamente possível. Na verdade, preferia que não me vissem deixando o hotel.

— A discrição, monsieur, é muito respeitada por nós, e a pressa é uma exigência normal. Vou subir pessoalmente com sua conta. Em dez minutos?

— Tenho só uma mala. Posso carregá-la, mas preciso de um táxi. Não na frente do hotel.

— Não na frente, naturalmente. O elevador de carga, mon­sieur. Vai até o nosso corredor usado para entregas. Tudo será providenciado.

 

— Já tomei providências! — disse Bertholdier no telefone da limusine, com a divisória de vidro, entre ele e o motorista, fechada. — Um homem fica na galeria, de onde pode ver os elevadores, outro no porão, por onde passam as mercadorias entregues no hotel. Se ele tentar sair durante a noite, é a única saída que pode usar. Eu mesmo a usei várias vezes.

— Isso... é difícil de acreditar. — A voz do outro lado tinha um sotaque britânico acentuado, e revelava espanto, acompanhado pela respiração entrecortada de um homem assustado. — Tem cer­teza? Poderia ser outra conexão qualquer?

— Imbécile! Eu repito. Ele sabe sobre os embarques de mu­nições de Beloit! Ele sabe a rota seguida, até o método do roubo. Chegou a identificar Solidaire e minha posição como membro da diretoria! Fez referência direta ao nosso sócio em Bonn! E a Tela­vive... Joanesburgo! Que outra conexão poderia ser?

— Complexos de corporações, quem sabe. Não podemos eli­minar a possibilidade. Subsidiárias de multinacionais, investimentos em munições, nosso sócio da Alemanha Ocidental é diretor de di­versos deles... E os locais — o dinheiro está jorrando nessas áreas.

— Por Deus do céu, sobre o que pensa que estou falando? Não posso dizer mais nada agora, mas o que já lhe disse, minha flor inglesa, considere como o pior!

Um breve silêncio em Londres.

— Compreendo — disse a voz de um subordinado que acaba de receber uma censura.

— Espero que sim. Entre em contato com Nova Iorque. O nome dele é Simon, Henry Simon. Advogado de Chicago. Tenho o endereço, é o da ficha de registro do hotel — Bertholdier forçou a vista na luz do interior do carro, decifrando hesitantemente os nú­meros da casa e da rua escritos pelo assistente da portaria, muito bem pago pelos homens do general para obter informações sobre o ocupante da suíte dois-três-cinco. — Tomou nota?

— Sim. — A voz estava alerta agora, um subordinado pronto para tirar uma vingança. — Acha que foi prudente conseguir desse modo? Um amigo ou um empregado ambicioso podem dizer que alguém fez perguntas sobre ele.

— É mesmo, meu narciso britânico? Um inofensivo moço de recados verificando o registro para entregar uma peça de roupa perdida a um hóspede novo?

Outra vez o breve silêncio:

— Sim, compreendo. Sabe, Jacques, trabalhamos para uma grande causa — uma causa comercial, naturalmente —, mais im­portante do que qualquer um de nós, como fizemos há alguns anos. Preciso constantemente reavivar minha memória, do contrário acho que não toleraria seus insultos.

— E o que faria, 1’anglais?

— Cortava teus testículos de sapo em Trafalgar Square e os enfiava na boca do leão. O lugar não precisava ser muito grande, qualquer velha fenda serviria. Telefono em uma hora mais ou me­nos. — Um estalido e a linha emudeceu.

O soldado tirou o fone do ouvido e um sorriso apareceu len­tamente nos seus lábios. Eles eram os melhores, todos eles! Eram a esperança, a única esperança de um mundo muito doente.

Então o sorriso apagou-se, o sangue mais uma vez desapareceu do seu rosto, a arrogância transformou-se em medo. O que esse Henry Simon quer, o que ele quer realmente? Quem seria o homem desconhecido com acesso a fontes extraordinárias de informação — aviões, veículos, munições! O quê, pelo amor de Deus, eles sabiam?

 

O elevador acolchoado desceu lentamente, o interior feito para transportar móveis e bagagem, a velocidade ajustada para entregas de serviço de quarto. O gerente da noite estava ao lado de Con­verse, o rosto agradavelmente impassível, a bourse de couro na mão direita, com uma cópia da conta de Joel e os francos com que tinha sido paga — além de uma generosa gorjeta pela cortesia do francês.

Um leve zumbido precedeu a parada; as luzes do painel acen­deram-se em SOU-SOL e as pesadas portas se abriram. No corredor largo Joel viu um grupo de garçons de paletó branco, camareiras, carregadores e pessoal da manutenção carregando mesas, pilhas de lençóis, bagagem e os mais variados materiais de limpeza. A con­versa constante em voz alta, rápida, pontuada com explosões de riso e exclamações guturais, acompanhava a atividade intensa. Ao verem o gerente, houve uma diminuição no volume e um aumento de movimento concentrado, acenos de cabeça e sorrisos bajuladores para o homem que, com uma palavra, podia eliminar seus em­pregos.

— Se me mostrar o caminho, eu vou indo — disse Joel, sem querer chamar mais atenção para sua pessoa, na companhia do ge­rente. — Já tomei muito do seu tempo.

— Merci. Siga aquele corredor, vai dar na saída de serviço — respondeu o francês, apontando para o corredor da esquerda, além dos elevadores. — O guarda está na mesa e já foi avisado da sua partida. Lá fora, vire à direita na pequena passagem e estará na rua; o táxi está à sua espera.

— Eu agradeço — minha firma agradece — sua cooperação. Como já disse lá em cima, não há nada de realmente secreto ou fora do comum — apenas um assunto delicado.

A expressão impassível do homem não mudou, a não ser por um brilho de interesse acentuado dos olhos.

— Está bem, monsieur, não precisa explicar. Não pedi explicação e, se me perdoa por dizer, não deve sentir-se obrigado a oferecer nenhuma. Au revoir, monsieur Simon.

— Sim, naturalmente — disse Converse, mantendo a compos­tura, embora se sentisse como um menino de escola repreendido por falar fora de hora, por dar uma resposta quando nada lhe fora perguntado. — Voltaremos a nos ver quando eu regressar a Paris.

— Esperamos esse dia, monsieur. Bonsoir.

Joel voltou-se rapidamente, passando entre homens e mulheres uniformizados, na direção do corredor, pedindo desculpas sempre que sua maleta fazia contato com um deles. Acabava de aprender uma lição, que não precisava lhe ser ensinada. Ele a conhecia do tribunal e das conferências. Nunca explique o que não precisa explicar. Fique calado. Mas isso não era um tribunal e não era uma conferência. Era, e subitamente compreendeu, uma fuga, e a idéia era um tanto assustadora, sem dúvida muito estranha. Ou seria? A palavra fuga fazia parte do seu vocabulário e da sua experiência. Tentara três vezes antes, em sua vida — há muitos anos. E a morte estava em toda a parte. Afastou esse pensamento e caminhou pelo corredor, na direção da grande porta de metal, na outra extre­midade.

Diminuiu o passo; algo estava errado. Lá na frente, de pé, conversando com o guarda de segurança, estava um homem com um sobretudo de cor clara. Joel já o tinha visto antes, mas não sabia onde; então o homem fez um movimento e Converse começou a se lembrar — uma imagem formou-se em sua mente. Outro ho­mem tinha-se movido do mesmo modo — dando alguns passos para trás antes de se voltar — para desaparecer de um arco de entrada, e agora, o mesmo movimento para atravessar o corredor e encostar-se na parede. Seria o mesmo homem? Sim! O mesmo que acompa­nhara Bertholdier à sala de jantar do Étalon Blanc. O subordinado que se tinha despedido do superior estava ali agora obedecendo às ordens desse mesmo superior.

O homem levantou os olhos, com uma expressão de reconhe­cimento súbito. Espreguiçou-se, esticando o corpo todo, e virou para o outro lado, a mão procurando lentamente o bolso da capa. Converse ficou atônito. Estaria o homem realmente apanhando uma arma? Com um guarda armado a três metros de distância? Era insano! Joel parou; pensou em correr para trás, misturar-se com a multidão, na frente dos elevadores, mas sabia que não adiantava. Se Bertholdier colocara seu cão de guarda no porão, outros deviam estar lá em cima, nos corredores, no vestíbulo. Não podia voltar-se e correr; não tinha para onde ir, nenhum esconderijo. Continuou andando, mais depressa, na direção do homem de sobretudo mar­rom claro, a mente confusa, a garganta apertada.

— Ah, você está aí! — exclamou, com a impressão de que as palavras não eram ditas por ele. — O general disse que o encontraria!

O homem ficou imóvel, como em estado de choque, incapaz de falar.

— Le general? — disse por fim, em voz quase inaudível. — Ele... lhe disse?

O inglês do homem não era muito bom, o que convinha a Joel, Ele compreendia, mas pouco. Palavras ditas rapidamente, em tom persuasivo, talvez levassem ambos para fora daquela porta. Joel voltou-se para o guarda, encostando sua pasta de couro nas costas do companheiro:

— Meu nome é Simon. O gerente deve ter lhe falado a meu respeito.

A justaposição do nome e do título foi suficiente para o segu­rança confuso. Consultou seus papéis e assentiu com a cabeça.

— Oui, monsieur. Le concierge...

— Vamos! — Converse empurrou com a pasta o homem da capa, na direção da porta. — O general está esperando por nós. Vamos! Apresse-se!

— Le general...? — Instintivamente o homem puxou a barra de metal da porta; em menos de cinco segundos ele e Joel estavam sozinhos na estreita passagem. — Que se passe-t-il? Oú est le gene­ral?... Onde?

— Aqui! Ele mandou que o esperasse aqui. Você. Você espera aqui! Ici!

— Arrêtez! — O homem começava a se recobrar do choque.

Não saiu do lugar. Estendendo o braço, empurrou Converse contra o muro, enfiando a outra mão no sobretudo.

— Não faça isso! — Joel largou a pasta e, agarrando a mala, colocou-a na frente do corpo, pronto para atacar. Parou. O homem não tirou uma arma do bolso; era um objeto retangular envolto em couro preto, com uma longa agulha metálica em uma das extremi­dades. Uma antena... um rádio!

Converse já não pensava. Sabia apenas que tinha de agir imediatamente — só a ação contava agora. O homem não podia usar aquele rádio que com certeza alertaria todos os outros, espalhados pelo hotel. Reunindo suas forças, bateu com a mala nos joelhos do homem e com a mão esquerda arrancou o rádio que ele segurava, ao mesmo tempo lançando o braço direito para a frente, por cima do ombro do homem. Dobrou-o em volta do pescoço do francês, girando rapidamente. Então, sem pensar, empurrou o soldado de Bertholdier para a frente, acompanhando o movimento com o cor­po, fazendo a cabeça do homem chocar-se violentamente contra o muro de pedra. O sangue jorrou, escorrendo entre os cabelos e pelo rosto do homem, como minúsculos regatos vermelhos. Joel não podia pensar, não devia pensar. Se pensasse, ia ficar nauseado, tinha certeza. Movimento, movimento!

O corpo do francês amoleceu. Converse segurou o homem in­consciente pelos ombros e encostou-o na parede, longe da porta de metal, nas sombras da passagem. Inclinou-se e apanhou o rádio; arrancou a antena e enfiou o aparelho no bolso. Ficou parado, confuso, assustado, tentando se orientar. Então, apanhou a pasta e a mala e correu, saindo da passagem, consciente do sangue que tinha espirrado no seu rosto. O táxi estava à sua espera, o moto­rista fumando no escuro, sem idéia da violência que acabava de ter lugar a menos de trinta metros.

— Aeroporto De Gaulle! — gritou Joel, abrindo a porta e jogando a bagagem para dentro do carro. — Por favor, estou com pressa! — Encostou-se no banco, ofegante, o pescoço estendido sobre a borda do encosto, engolindo o ar que se negava a encher seus pulmões.

As luzes e sombras que bombardeavam o interior do carro contribuíam para manter seus pensamentos em suspenso, enquanto seu pulso voltava ao normal e o ar começava a chegar aos pul­mões, secando aos poucos a transpiração na testa e no pescoço. Inclinou-se para a frente, com vontade de fumar, mas temendo um acesso de vômito quando a fumaça chegasse à sua garganta. Fechou os olhos com tanta força que milhares de pontos de luz branca assaltaram a tela escura da sua mente. Sentia-se mal, e sabia que a náusea não era causada apenas peio medo. Era alguma coisa mais, algo tão paralisante quanto o pavor. Tinha cometido um ato de pura brutalidade e isso o chocava e apavorava. Atacara um homem fisicamente, com intenção de ferir, de matar — o que talvez tivesse feito. Não importava por quê, talvez tivesse matado um outro ser humano! Teria sido autodefesa? Que diabo, ele era um homem que usava palavras, lógica, não sangue! Nunca sangue; isso estava no passado, tão distante e tão doloroso.

 

Aquelas lembranças pertenciam a outro tempo, a um tempo não-civilizado, quando os homens se transformavam em coisas que eles não eram, para sobreviver. Converse jamais desejou voltar. Acima de todas as coisas, prometera a si mesmo jamais voltar, uma promessa feita quando o terror e a violência o envolviam por todos os lados, na forma mais horrível. Lembrou-se com clareza, com dor extrema, das horas que precederam sua fuga — e o homem tran­qüilo e generoso sem o qual teria morrido a seis metros de profun­didade, a escavação para onde eram mandados os prisioneiros re­beldes.

Coronel Sam Abbott, da Força Aérea dos Estados Unidos; ele seria sempre uma parte de sua vida, não importa quantos anos os separassem. Arriscando tortura e morte, Sam esgueirara-se durante a noite e tinha jogado uma cunha de metal toscamente fabricada no “buraco do castigo”. Com esse objeto primitivo, Joel fez uma escada na terra e na rocha e por ela subiu para a liberdade. Abbott e ele tinham passado os últimos vinte e sete meses no mesmo cam­po, dois oficiais tentando conservar o pouco de sanidade que res­tava. Mas Sam compreendia a chama que ardia no íntimo de Joel; o coronel tinha ficado e, durante aquelas horas finais antes da fuga, Joel fora atormentado pelas imagens do que poderia acontecer ao amigo.

— Não se preocupe comigo, marinheiro. Procure conservar a cabeça tanto quanto possível e jogue fora essa cunha.

— Tenha cuidado, Sam.

— Você tenha cuidado. É seu último tiro.

Eu sei.

 

Joel abaixou mais o vidro do carro para aumentar a circulação do ar. Cristo, ele precisava agora da objetividade fria de Sam Abbott! Sua mente de advogado aconselhava-o a se controlar; pre­cisava pensar e com os pensamentos estimular toda a imaginação que possuía. O importante em primeiro lugar. Pense! O rádio — precisava se desfazer do rádio. Mas não no aeroporto — poderia ser encontrado; era um indício e, pior do que isso, uma pista. Abaixou mais o vidro e jogou o rádio pela janela, observando o retrovisor sobre o pára-brisa dianteiro. O motorista levantou os olhos, viu o rosto manchado de sangue mas não demonstrou espanto; Joel res­pirou fundo várias vezes e fechou o vidro novamente, até em cima. Pense. Precisava pensar! Bertholdier esperava que ele fosse de Paris para Bonn e quando encontrassem o soldado do general — e sem dúvida já o haviam encontrado agora — todos os vôos para Bonn seriam vigiados, estivesse ele vivo ou morto.

Compraria uma passagem para qualquer outro lugar, onde houvesse possibilidade de conexão para Colônia-Bonn em curso regular. Quando a corrente de ar refrescou seu rosto, lembrou-se de tirar o lenço do bolso do paletó e limpar o sangue úmido que cobria a face direita e o queixo.

— Linha Aérea Escandinava — disse para o motorista. — SAS. Comprends?

— Muito bem, monsieur — disse o homem de boina, em bom inglês. — Tem reserva para Estocolmo, Oslo ou Copenhague? Saem de portões diferentes.

— Eu... não tenho certeza.

— Temos tempo, monsieur. Pelo menos quinze minutos.

 

A voz de Londres, no telefone, estava gelada, as palavras e o tom eram uma censura impessoal.

— Não existe nenhum advogado com esse nome em Chicago, e muito menos no endereço que você me deu. Na verdade, o endereço também não existe. Tem mais alguma coisa para me oferecer, ou devemos considerar tudo como mais uma de suas fantasias paranói­cas, mon général?

— Você é um tolo, l’anglais, com o cérebro de um coelho assustado. Eu ouvi o que ouvi!

— De quem? Um homem que não existe?

— Um homem que não existe, que mandou meu ajudante para o hospital! Fratura de crânio, grande perda de sangue e dano cere­bral. Talvez não sobreviva e, se viver, será um vegetal. Não me fale de fantasias, meu narciso. O homem é real.

— Está falando sério?

— Telefone para o hospital! L’hôpital Saint-Jérôme. Pergunte aos médicos.

— Está bem, está bem, controle-se. Precisamos pensar.

— Estou perfeitamente controlado — disse Bertholdier, levantando-se da cadeira ao lado da mesa, no seu escritório, e esten­dendo o fio do telefone até a janela. Olhou para fora; começava a chover, as luzes da rua tremeriam no vidro molhado. — Ele está a caminho de Bonn — continuou o general. — Era sua próxima parada, deixou isso bem claro.

— Detenha-o. Telefone para Bonn, para Colônia, dê a des­crição dele. Quantos vôos podem sair de Paris com um americano sozinho a bordo? Apanhe-o no aeroporto.

Bertholdier suspirou ruidosamente no telefone, e com voz desa­nimada, quase nauseada, disse:

— Nunca tive a intenção de apanhá-lo. Não adiantaria nada e provavelmente nos isolaria do que precisamos descobrir. Quero que seja seguido. Quero saber aonde ele vai, com quem fala, com quem se comunica; é isso que precisamos descobrir.

— Você disse que ele fez referência direta ao nosso sócio. Que ele tinha intenção de procurá-lo.

— Não a nossa gente. A gente dele.

— Pois eu repito — insistiu a voz de Londres. — Telefone para Colônia, para Bonn. Escute, Jacques, ele pode ser encontrado, e só então pode ser seguido.

— Sim, sim, vou fazer isso, mas pode não ser tão fácil quanto pensa. Há três horas eu pensava o contrário, mas isso foi antes de saber de quanto ele era capaz. Alguém que pode segurar um homem e bater com a cabeça dele na parede com aquela violência é um animal, um maníaco ou um fanático capaz de tudo. Na minha opinião, é um fanático. Disse que tinha um compromisso - e eu pude ver nos seus olhos. E ele vai agir com esperteza, já provou que é esperto.

— Você disse três horas?

— Sim.

— Então ele já pode estar em Bonn.

— Eu sei.

— Telefonou para nosso sócio?

— Telefonei, ele não está em casa e a empregada não sabe o número do telefone onde ele está. Nem a que horas deve voltar.

— Provavelmente de manhã.

— Sem dúvida... Attendez! Havia outro homem no clube esta tarde. Com Luboque e esse Simon, que não se chama Simon. Ele o apresentou a Luboque! Até logo, l’anglais. Eu o informarei.

 

René Mattilon abriu os olhos. As faixas de luz no teto pareciam tremular, miríades de pequenos pontos que explodiam, quebrando o desenho linear. Então ouviu a chuva na janela e compreendeu. A luz das lâmpadas da rua, atravessando o vidro molhado, distorcia as imagens que ele conhecia tão bem. Foi a chuva, concluiu; a chuva o acordara. E talvez o peso da mão da esposa entre suas pernas, também. Ela fez um pequeno movimento e René sorriu, tentando decidir-se — ou encontrar a energia suficiente — a abraçá-la. Ela preenchera um vazio que ele pensava que ia existir para sempre, depois da morte de sua primeira mulher. René era grato por isso, e com o sentimento de gratidão veio o desejo, duas emo­ções perfeitamente compatíveis. Começava a se excitar; virou para o lado e empurrou as cobertas, descobrindo a curva dos seios dela sob a renda de seda, a luz difusa e o barulho da chuva na janela aumentando a sensualidade do momento. Estendeu o braço para ela.

Subitamente ouviu outro ruído além da chuva e, embora envol­to ainda na névoa do sono, reconheceu-o. Retirou a mão rapida­mente e afastou-se da mulher. Ouvira aquele barulho há pouco; o som que o tinha acordado, insistente, quebrando o ritmo regular das gotas de chuva: a campainha da porta.

Mattilon saiu da cama com o maior cuidado possível, apanhou o roupão que estava na cadeira e enfiou os pés nos chinelos. Saiu do quarto, fechando a porta silenciosamente e acendeu a luz da sala de estar. Olhou para o relógio sobre a lareira; quase duas e meia da manhã. Quem poderia ser a essa hora? Amarrou o cinto do roupão e foi até a porta.

— Quem é?

— Sûreté, monsieur. Inspetor Prudhomme. Minha identifica­ção é número zero-cinco-sete-dois-zero. — O sotaque era gascão, não parisiense. Diziam que eram os melhores policiais. — Eu vou esperar enquanto telefona para minha delegacia, monsieur. O tele­fone é...

— Não é preciso — disse Mattilon, alarmado, abrindo a porta.

Sabia que o homem era um policial, não só pela informação ofere­cida, mas pelo fato de que um chamado da Sûreté a essa hora só podia ser porque sabiam que era advogado. A Sûreté era legalmente circunspecta.

Havia dois homens, as capas molhadas, os chapéus enchar­cados; um era mais velho e mais baixo do que o outro. Ambos ofereceram a René seus cartões de identificação. Ele não os apa­nhou e convidou os homens para entrar, dizendo:

— É uma hora estranha para visitas, senhores. Deve ser al­guma coisa muito importante.

— Muito importante, monsieur — disse o homem mais velho, entrando primeiro. Era ele que tinha falado do lado de fora da porta, dizendo chamar-se Prudhomme, e era evidentemente o supe­rior. — Pedimos desculpas pela inconveniência, naturalmente. — Os dois tiraram os chapéus.

— Naturalmente. Querem me dar suas capas?

— Não será necessário, monsieur. Com sua cooperação não demoraremos mais do que alguns minutos.

— Estou muito interessado em saber como posso cooperar com a Sûreté a esta hora da noite.

— Uma questão de identificação, senhor. Monsieur Serge An­toine Luboque é seu cliente, segundo fomos informados. Certo?

— Meu Deus, aconteceu alguma coisa ao Serge? Estive com ele esta tarde!

— Monsieur Luboque aparentemente está com ótima saúde. Estivemos em sua casa de campo há uma hora. E é seu encontro com ele esta tarde — ontem à tarde — que interessa à Sûreté.

— Como?

— Havia uma terceira pessoa com o senhor. Um advogado também, que foi apresentado a monsieur Luboque — um homem chamado Simon. Henry Simon, um americano.

— E um piloto — disse Mattilon cautelosamente. — Com considerável conhecimento de litígios com companhias e indústrias aeronáuticas. Espero que Luboque tenha explicado isso; esse o motivo da presença dele, a pedido meu. Monsieur Luboque está mo­vendo uma ação desse tipo. Naturalmente, isso é tudo o que posso dizer sobre o assunto.

— Não é o que interessa à Sûreté.

— Então, o que é?

— Não existe nenhum advogado chamado Henry Simon em Chicago, Illinois.

— É difícil de acreditar.

— O nome é falso. Pelo menos não é o nome dele. O endereço que deu também não existe.

— O endereço que ele deu no hotel? — perguntou René atô­nito. Joel não precisava dar endereço no George V — eles o conhe­ciam e conheciam a firma Talbot, Brooks e Simon muito bem.

— Escrito por ele próprio, monsieur — acrescentou o homem mais jovem secamente.

— O gerente do hotel confirmou isso?

— Sim — disse Prudhomme. — O gerente da noite foi muito cooperativo. Disse-nos que acompanhou monsieur Simon no ele­vador de carga para os porões do hotel.

— O porão?

— Monsieur Simon queria deixar o hotel sem ser visto. Pagou a conta no quarto.

— Um minuto, por favor — disse Mattilon perplexo, fazendo um gesto de protesto e caminhando agitadamente em volta de uma poltrona. Parou, segurando o encosto da poltrona. — Exatamente o que desejam de mim?

— Queremos que nos ajude — respondeu Prudhomme. — Achamos que sabe quem ele é. O senhor o apresentou a monsieur Luboque.

— Para um assunto confidencial, ligado a uma opinião legal. Ele concordou em ouvir e avaliar a condição, desde que sua identidade fosse protegida. Não é raro, quando se procura a opinião de um especialista e se está envolvido com, digamos, um indivíduo tão rico e temperamental quanto o Sr. Luboque. Já falaram com ele; o que mais querem que eu diga?

— Nada sobre esse assunto — disse o homem mais velho da Sûreté, com um leve sorriso. — Ele pensa que todo o pessoal do governo trabalha para Moscou. Ficamos rodeados de cães no vestíbulo da sua casa, todos com a língua de fora, devo acrescentar.

— Então compreendem por que meu colega americano prefere permanecer anônimo. Eu o conheço muito bem, é um homem es­plêndido.

— Quem é ele? E sabe por acaso onde podemos encontrá-lo?

— Para que querem encontrá-lo?

— Queremos interrogá-lo sobre um incidente ocorrido no hotel.

— Sinto muito. Assim como Luboque é um cliente, Simon também é, por extensão.

— Isso não é aceitável nessas circunstâncias, monsieur.

— Sinto, mas terá de ser aceito, pelo menos por algumas ho­ras. Amanhã tentarei me comunicar com ele através do seu escri­tório em... nos Estados Unidos, e tenho certeza de que entrará em contato com os senhores imediatamente.

— Achamos que não fará isso.

— Por que não?

Prudhomme olhou rapidamente para seu companheiro emper­tigado e ergueu os ombros.

— Ele pode ter morto um homem — disse impassivelmente.

Mattilon olhou para o homem da Sûreté, incrédulo.

— Ele... o quê?

— Foi um ataque particularmente violento, monsieur. A ca­beça do homem foi batida contra um muro; sofreu extensos danos no crânio e o prognóstico não é bom. À meia-noite, sua condição era crítica, as possibilidades de se recuperar não chegavam a cin­qüenta por cento. Talvez esteja morto a esta hora, o que, segundo o médico, seria uma bênção.

— Não... não! Estão enganados! Estão errados! — As mãos do advogado crisparam-se no encosto da poltrona. — Foi cometido um erro terrível!

— Nenhum engano. A identificação foi positiva — isto é, monsieur Simon foi identificado como a última pessoa vista com o homem espancado. Ele obrigou-o a sair para a passagem atrás do hotel; foram ouvidos ruídos de luta e alguns minutos depois encon­traram o homem, o crânio fraturado, sangrando, quase morto.

— Impossível! Vocês não o conhecem! O que estão insinuando é inconcebível! Ele não faria isso.

— Está nos dizendo que ele tem alguma deficiência física que o torne incapaz de atacar outra pessoa?

— Não — disse Mattilon, sacudindo a cabeça. Então, subita­mente, ficou imóvel. - Sim - continuou, pensativo, com um gesto de assentimento, falando rapidamente. — Ele é incapaz, sim, mas não fisicamente. Mentalmente. Nesse sentido, ele é incapaz. Não podia ter feito o que estão dizendo.

— É mentalmente desequilibrado?

— Meu Deus, não! É um dos homens mais lúcidos que co­nheço. Precisam compreender. Passou por um longo período de extremo sofrimento físico e angústia mental. Suportou castigos, tanto no corpo quanto na mente. Não houve dano irreparável mas as lembranças são indeléveis. Como tantos outros sujeitos a esse tratamento, ele evita toda forma de confronto físico ou violência. É repugnante para ele. Não pode infligir castigo porque sofreu muito.

— Quer dizer que não se defenderia, nem aos seus? Ofereceria a outra face se ele, a mulher ou os filhos fossem atacados?

— Naturalmente que não, mas não foi isso que o senhor descreveu. Falou em um assalto particularmente violento, o que sugere algo muito diferente. E se fosse o contrário — se fosse ameaçado ou atacado e se defendesse — sem dúvida não abandonaria o local. É um advogado bom demais para isso. — Mattilon fez uma pausa. — Foi esse o caso? É isso que está dizendo? O homem era fichado na polícia? É um...

— Motorista de limusine alugada — interrompeu Prudhomme. — Um homem desarmado que estava esperando o seu passageiro daquela noite.

— No porão!

— Aparentemente é um serviço costumeiro, conhecido por muitos. Essas firmas são discretas. Esta enviou outro motorista antes de interrogar sobre a condição do seu freguês. O cliente não sabe de nada.

— Muito elegante, sem dúvida. O que eles dizem que acon­teceu?

— De acordo com uma testemunha, um guarda que trabalha no hotel há dezoito anos, esse Simon aproximou-se do motorista falando alto, em inglês — o guarda acha que ele estava irritado, embora não compreenda essa língua —, e obrigou o homem a sair com ele.

— O guarda está enganado! Devia ser outra pessoa.

— Simon se identificou. O gerente dera ordem para que saísse pelos fundos. A descrição combina; era o homem que se dizia cha­mar Simon.

— Mas por quê? Tem de haver um motivo!

— Gostaríamos que nos dissesse, monsieur.

René sacudiu a cabeça confuso; nada fazia sentido. Um ho­mem pode se registrar num hotel com qualquer nome, naturalmen­te, mas havia as contas, cartões de crédito, visitantes; um nome falso não adiantava nada. Especialmente num hotel onde era conhe­cido, e, se uma pessoa é conhecida e deseja viajar incógnita, não terá a proteção da recepção do hotel contra interrogatório da po­lícia.

— Preciso perguntar outra vez, inspetor, verificou com o pes­soal do hotel?

— Não pessoalmente, monsieur — respondeu Prudhomme. — Eu estava interrogando as pessoas que estavam perto do local do assalto.

— Falei pessoalmente com o gerente, monsieur — disse o ho­mem mais jovem e mais alto, falando como um robô programado. — Naturalmente o hotel não deseja que o incidente desperte muita atenção, mas a gerência foi muito cooperativa. O gerente da noite trabalhou até pouco tempo no hotel Meurice e quis minimizar o incidente, mas mostrou-me o cartão de registro.

— Compreendo. — E Mattilon compreendia, pelo menos no que dizia respeito à identidade de Joel. Centenas de hóspedes em um grande hotel e um gerente nervoso protegendo a imagem do seu novo patrão. A fonte óbvia fora aceita como verdadeira, outra verdade provavelmente surgindo na manhã seguinte, dita por ho­mens mais a par do assunto. Mas isso era tudo o que René com­preendia — nada mais. Precisava de alguns momentos para pensar, para tentar entender. — Estou curioso — disse, procurando as pala­vras certas. — Na pior das hipóteses, é um caso de assalto com resultados graves, mas de qualquer modo um assalto. Por que não é um simples assunto policial? Por que a Sûreté?

— Minha primeira pergunta, monsieur — disse o sincero Prudhomme. — A razão que nos deram foi que o incidente envolve um estrangeiro, obviamente um estrangeiro rico. Nestes dias não se sabe aonde uma coisa como essa pode levar. Temos certos controles não acessíveis à polícia do arrondissement.

— Compreendo.

— Compreende mesmo? — perguntou o homem da Sûreté. — Permita que diga que como advogado o senhor tem obrigação de defender as cortes de justiça e a lei? Nós lhe oferecemos nossas credenciais e sugeri que telefonasse à minha seção para verificar o que desejasse. Por favor, monsieur, quem é Henry Simon?

— Tenho outras obrigações também, inspetor. Minha palavra, para um cliente, para com uma velha amizade...

— Coloca tudo isso acima da lei?

— Só porque sei que estão errados.

— Então, que mal pode fazer? Se estamos enganados, provavelmente encontraremos esse Simon em algum aeroporto e ele mes­mo nos dirá a verdade. Mas, se não estamos, vamos encontrar um homem muito doente que precisa ser ajudado. Antes que faça mal a outros. Não sou psiquiatra, monsieur, mas o senhor descreveu um homem perturbado — um homem que esteve muito perturbado, de qualquer modo.

Mattilon ficou embaraçado com a lógica contundente do ho­mem... e com algo mais que não podia definir. Seria Joel? Estaria na nuvem que vira nos olhos do amigo, no lapso verbal inconsciente sobre a rocha que não pertencia ao solo? René consultou mais uma vez o relógio sobre a lareira; ocorreu-lhe uma idéia. Eram apenas oito e quarenta e dois em Nova Iorque.

— Inspetor, vou pedir que esperem aqui enquanto vou ao meu escritório para dar um telefonema na minha linha particular. Aliás, a linha não está ligada a este telefone.

— Isso não era necessário, monsieur.

— Então, peço desculpas.

Mattilon caminhou rapidamente para a porta da sala ao lado, abriu-a a entrou. Foi até a mesa de trabalho, sentou-se e apanhou um livro de telefones de couro vermelho. Abriu-o na letra T, e correu os dedos pela página até encontrar Talbot, Lawrence. Tinha os números do escritório e da residência; o último era necessário porque os tribunais em Paris começavam a funcionar antes de a costa leste da América sair da cama. Se Talbot não estivesse em casa, tentaria Nathan Simon, e depois Brooks, se fosse preciso. Não precisou fazer uso de nenhuma alternativa. Lawrence Talbot aten­deu o telefone.

— Que surpresa, como vai, René? Está em Nova Iorque?

— Não, Paris.

— Parece que está ali na esquina.

— Você também. É sempre estranho.

— E é também muito tarde, aí onde você está, se não estou enganado.

— É muito tarde, Larry. Acho que temos um problema, por isto estou telefonando.

— Um problema? Eu nem sabia que estivéssemos trabalhando num mesmo caso. Do que se trata?

— Seu trabalho missionário.

— Nosso o quê?

— Bertholdier. Seus amigos.

— Quem?

— Jacques-Louis Bertholdier.

— Quem é ele? Já ouvi o nome, mas não consigo me lem­brar.

— Não consegue... se lembrar quem é?

— Sinto muito.

— Estive com Joel. Eu arranjei o encontro.

— Joel? Como vai ele? Está em Paris agora?

— Vocês não sabiam?

— A última vez que falei com ele foi há dois dias em Genebra — depois daquele terrível incidente com Halliday. Ele me disse que estava bem, mas não estava. Achei-o muito abalado.

— Vejamos se estou compreendendo, Larry. Joel não está em Paris tratando de negócios para Talbot, Brooks e Simon, é o que está me dizendo?

Lawrence Talbot fez uma pausa antes de responder:

— Não, não está — disse o sócio principal em voz baixa. — Ele disse que estava?

— Talvez eu tenha compreendido mal.

Outra pausa.

— Não, acho que você não faria isso. Mas creio que deve dizer a Joel para me telefonar.

— Isso é parte do problema, Larry. Não sei onde ele está. Disse que ia tomar o avião das cinco horas para Londres, mas não tomou Saiu do George Cinq tarde da noite em circunstâncias muito estranhas.

— O que quer dizer?

— Sua ficha de registro foi alterada, o nome mudado - aliás, um nome que sugeri, porque ele não queria usar o dele no almoço. Então ele insistiu em sair pela entrada do porão.

— Isso é estranho.

— E temo que seja a parte menos estranha. Dizem que ele atacou um homem. Talvez o tenha matado.

— Jesus!

— Naturalmente, eu não acredito - disse Mattilon rapida­mente. - Ele não faria isso, ele não podia...

— Espero que não.

— Você não pensa...

— Não sei o que pensar — interrompeu Talbot. — Quando ele estava em Genebra e falamos pelo telefone, perguntei se havia al­guma ligação entre a morte de Halliday e o que ele estava fazendo. Garantiu que não havia, mas ele estava tão distante, sua voz parecia tão vazia.

— O que ele está fazendo...! O que é que ele está fazendo?

— Não sei. Não creio mesmo que possa descobrir, mas vou fazer todo o possível. Estou preocupado. Alguma coisa aconteceu com ele. Sua voz parecia vir de uma câmara de eco, sabe o que quero dizer?

— Sim, eu sei — disse Mattilon em voz baixa. — Eu o ouvi, eu o vi. Estou intrigado também.

— Encontre-o, René. Faça o que puder. Se for preciso, diga uma palavra e deixo tudo aqui e vou para Paris. Ele deve estar sofrendo em algum lugar, de algum modo.

— Vou fazer tudo o que puder.

Mattilon saiu do escritório e enfrentou os dois homens da polícia.

— Seu nome é Converse, Joel Converse — começou.

 

— Seu nome é Converse, primeiro nome Joel — disse o ho­mem mais jovem e mais alto da Sûreté, falando no telefone público do Bulevar Raspail, enquanto a chuva tamborilava na cabine. — Trabalha para uma firma jurídica em Nova Iorque, Talbot, Brooks e Simon; o endereço é na Quinta Avenida. O nome falso, Simon, entretanto, era aparentemente uma conveniência, e nada tem a ver com a firma.

— Não compreendo.

— Seja lá o que for em que esse Converse está envolvido, nada tem a ver com a firma. Mattilon falou com um dos sócios em Nova Iorque e ele deixou bem claro. Os dois homens estão também preo­cupados; querem ser informados. Se encontrarmos Converse, Mat­tilon insiste em ter acesso imediato a ele, como advogado. Pode estar escondendo alguma coisa, mas na minha opinião está confuso. Em estado de choque, pode-se dizer. Ele não sabe de nada impor­tante. Eu perceberia, se soubesse.

— Entretanto, ele está escondendo alguma coisa. O nome Si­mon foi usado por minha causa, para que eu não soubesse a identi­dade desse Converse. Mattilon sabe disso; ele estava lá e são ami­gos; foi ele quem o apresentou a Luboque.

— Então ele foi manipulado, general. Ele não mencionou o senhor.

— Talvez mencione, se for interrogado por mais algum tempo. Não posso ser envolvido de modo nenhum.

— Naturalmente — concordou o homem da Sûreté com ênfase discreta.

— Seu superior, qual é o nome dele? O que está encarregado do incidente?

— Prudhomme, inspetor de primeiro grau Prudhomme.

— Ele fala com você francamente?

— Sim. Pensa que eu sou assim como um ex-soldado mecâ­nico, cujos instintos não podem superar o intelecto dele, mas reco­nhece minha boa vontade. Ele fala comigo.

— Você ficará com ele por algum tempo. Se ele decidir voltar a ver Mattilon, avise-me imediatamente. Paris talvez venha a perder um advogado respeitado. Meu nome não pode aparecer.

— Ele só voltará a ver Mattilon se Converse for achado. E se a Sûreté souber alguma coisa sobre o paradeiro dele, eu falarei com o senhor imediatamente.

— Pode haver outra razão, coronel. Um motivo que pode le­var um homem persistente a reexaminar seu progresso — ou a falta dele — a despeito de ordens em contrário.

— Ordens em contrário, senhor?

— Serão expedidas. Esse Converse é só o que nos preocupa agora. Tudo o que precisamos é um nome. Sabemos qual é seu destino. Nós o encontraremos.

— Não compreendo, general.

— Tivemos notícias do hospital. Nosso motorista está melho­rando.

— Boas notícias, sem dúvida.

— Gostaria que fossem. O sacrifício de um único soldado é repulsivo para qualquer comandante de campo, mas devem ser le­vadas em conta táticas mais vastas que devem ter prioridade. Não concorda?

— Sim, naturalmente.

— Nosso motorista não deve escapar. A estratégia mais abran­gente, coronel.

— Se ele morrer, os esforços para encontrar Converse se inten­sificarão. Sim, tem razão, Prudhomme vai reexaminar todo o caso, incluindo o advogado, Mattilon.

— Serão emitidas ordens em contrário. Mas vigie Mattilon.

— Sim, senhor.

— E agora precisamos de seus conhecimentos, coronel. Os talentos que desenvolveu com tanta eficácia no serviço da Legião, antes de o trazermos de volta a uma vida mais civilizada.

— Minha gratidão não é volúvel. Farei tudo o que puder.

— Pode entrar no Hospital de Saint-Jérôme sem ter de avisar ninguém com antecedência?

— Sem que ninguém perceba. O hospital tem escadas de incên­dio nos quatro lados e a noite está escura e chuvosa. A própria polícia fica dentro de casa. É brinquedo de criança.

— Mas trabalho de homem. Tem de ser feito.

— Não questiono essas decisões.

— Um bloqueio na faringe, uma convulsão na garganta.

— Pressão aplicada através de pano, senhor. Gradualmente e sem deixar marcas, um acidente provocado pelo próprio paciente... Mas eu estaria sendo negligente se não repetisse o que disse há pouco, general. Haverá uma busca em toda Paris, depois uma ca­çada humana em larga escala. O assassino procurado será um rico americano, um alvo convidativo para a Súreté.

— Não haverá busca nem caçada humana. Ainda não. Se hou­ver, será mais tarde, e nesse caso o corpo de um convicto será apanhado na rede... Vá para o campo, meu jovem amigo. O moto­rista, coronel; a estratégia mais ampla deve ser servida.

— Ele está morto — disse o homem na cabine telefônica, desli­gando.

 

Erich Leifhelm... nascido em 15 de março de 1912, em Muni­que, filho do Dr. Heinrich Leifhelm e sua amante, Marta Stoessel. Embora o estigma de sua ilegitimidade não lhe per­mitisse ter uma infância normal na classe média alta da Ale­manha ultramoralista daquela época, foi o fator mais impor­tante da sua importância, mais tarde, no movimento socialis­ta. Ao nascer foi-lhe negado o nome Leifhelm; até 1931 era conhecido como Erich Stoessel.

 

Joel estava sentado no café ao ar livre, do aeroporto Kastrup de Copenhague, tentando se concentrar. Era a segunda tentativa nos últimos vinte minutos, tendo abandonado a primeira quando percebeu que não estava entendendo nada, que via apenas as letras formando uma fileira infindável de palavras vagamente conhecidas, relacionadas com uma figura fora do alcance de sua mente. Não conseguia focalizar a atenção naquele homem; havia muitas inter­ferências, reais e imaginárias. Também não tinha conseguido ler durante as duas horas de vôo de Paris, tendo optado pela classe turista, na esperança de se misturar com um maior número de pessoas na parte maior do aparelho. O conceito pelo menos era válido; as poltronas eram tão estreitas e o avião estava tão cheio que cotovelos e braços ficavam praticamente imóveis. As condi­ções o impediram de tirar o dossiê da pasta, quer por motivo de espaço, quer por temer olhos curiosos.

 

Heinrich levou a amante e o filho para a cidade de Eichstëtt, a uns oitenta quilômetros de Munique, e os visitava uma vez ou outra, proporcionando-lhes um padrão de vida adequado, mas não muito confortável. O médico aparen­temente estava com o dilema de manter sua clínica bem-sucedida e sem nenhuma falha social, em Munique, e a vontade de não abandonar a mãe e o filho. De acordo com conhecidos de Erich Stoessel-Leifhelm, esses primeiros anos tiveram um efeito muito profundo sobre ele. Embora muito criança para compreender o impacto total da Primeira Guerra Mundial, a lembrança gue mais tarde o atormentava era a do baixo nível de subsistência de sua casa, quando o pai teve de diminuir a contribuição, por causa dos impostos de guerra. Além dis­so, as visitas do pai acentuavam o fato de que ele não podia ser reconhecido como seu filho e não tinha direito aos pri­vilégios recebidos por dois irmãos e uma irmã por afinidade, estranhos que ele jamais conheceria e em cuja casa não po­dia entrar. A ausência de uma ascendência decente, atestada por documentos hipócritas e por uma igreja mais hipócrita ainda, fazia-o sentir que lhe tinha sido negado o que de di­reito lhe pertencia, e assim criou-se em seu espírito um ressentimento furioso, um senso de competição, e uma cólera profundamente enraizada contra as condições sociais existen­tes. Segundo suas próprias palavras, seus primeiros desejos conscientes foram os de conseguir o máximo possível para si mesmo, tanto materialmente quanto sob a forma de reconheci­mento, por meio da força de sua capacidade, e, fazendo isso, atacar com violência o status quo que tentara emasculá-lo. Quando tinha mais ou menos quinze anos, Stoessel-Leifhelm era um homem consumido pela cólera.

 

Converse parou de ler, notando subitamente a mulher que es­tava na outra extremidade do café semideserto; ela estava sozinha e olhava para ele. Seus olhos se encontraram e ela virou a cabeça, apoiou o braço na grade branca e baixa que cercava o restaurante e observou a multidão, que se tornava mais escassa àquela hora tar­dia, no terminal, como se estivesse esperando por alguém. Sur­preso, Converse tentou decifrar o olhar da mulher. Era como se o conhecesse? Ou o seu rosto? Ou era um olhar de avaliação? Uma prostituta bem vestida, passeando no aeroporto à procura de um homem de negócios solitário, longe de casa? Ela virou a cabeça lentamente e olhou para Converse outra vez, aparentemente sobressaltando-se ao ver que ele ainda a fitava. Então, bruscamente, com movimentos rápidos e bem definidos, consultou o relógio, arrumou o chapéu de abas largas e abriu a bolsa. Retirou uma nota de uma coroa, colocou-a na mesa, levantou-se e caminhou apressadamente para a entrada do café. Depois de passar pelo portão, começou a caminhar mais depressa, com passos largos, na direção do arco que dava para a área de retirada de bagagem. Converse observou-a sob a luz inexpressiva de néon, do terminal, sacudindo a cabeça, abor­recido com o próprio sobressalto. Vendo-o com a pasta e o relató­rio com capa de couro, a mulher provavelmente pensou que fosse um funcionário do aeroporto. Quem seria a presa, então?

Estava vendo sombras demais, pensou, seguindo a figura graciosa que se aproximava do arco. Muitas sombras que não traziam surpresas, nem alarme. Havia um homem no avião de Paris sentado várias filas à sua frente. Tinha-se levantado duas vezes para ir ao banheiro, e das duas vezes, ao voltar, olhara fixamente para Joel — na verdade o examinara. Esses olhares tinham sido suficientes para ativar sua adrenalina. Teria sido identificado no aeroporto De Gaulle? O homem seria um dos empregados de Jacques-Louis Bertholdier?... Como o homem na passagem atrás do hotel — não pense nisso! Converse tirou com a ponta do dedo um pingo oval de sangue seco da camisa quando dava essa ordem a si mesmo.

— Eu sempre reconheço um bom e velho ianque! Nunca me engano.

Essa fora a sua saudação em Copenhague, quando os dois americanos esperavam pela bagagem.

— Bem, errei uma vez. Um desgraçado em um avião em Ge­nebra. Estava sentado ao meu lado. Um verdadeiro italiano, com um terno completo, isso é o que ele era! Falou inglês com a aeromoça, portanto pensei que fosse um daqueles cubanos ricos da Flórida, sabe o que quero dizer?

Um emissário com roupas de vendedor. Um dos diplomatas.

Genebra. Tudo tinha começado em Genebra.

Sombras demais. Sem surpresas, sem alarmes. A mulher pas­sou pelos arcos e Joel desviou os olhos, obrigando-se a prestar aten­ção ao dossiê de Erich Leifhelm. Então viu um movimento súbito e breve com o canto dos olhos; olhou outra vez para a mulher. Um homem surgira de um nicho invisível e tocava o cotovelo dela levemente. Trocaram algumas palavras rápidas e separaram-se tão bruscamente quanto se tinham encontrado; o homem ficou no terminal e a mulher desapareceu. Teria o homem olhado em sua direção? Converse observou atentamente; aquele homem tinha olhado para ele? Impossível saber; ele virava a cabeça em todas as dire­ções olhando ou procurando alguma coisa. Então, como se tivesse finalmente encontrado, dirigiu-se apressadamente para os balcões de recepção. Aproximou-se da mesa da linha aérea do Japão e, tirando uma carteira do bolso, começou a falar com o funcionário oriental.

Sem surpresas. Sem alarmes. Um viajante confuso tinha pe­dido informações, as interferências eram mais imaginadas do que reais. Contudo, sua mentalidade de advogado funcionou. Interfe­rências eram reais, quer fossem baseadas na realidade ou não. Oh, Cristo! Deixe para lá! Concentre-se!

 

Quando tinha dezessete anos, Erich Stoessel-Leifhelm terminou o curso no Eichstätt II Gymnasium, sobressaindo-se tanto nos estudos quanto nos esportes, nos quais era consi­derado um competidor agressivo. O mundo estava no caos fi­nanceiro do colapso da bolsa de Nova Iorque em 1929, o que agravava a economia desesperada da República de Weimar e so­mente os alunos bem-relacionados iam para a universidade. Seguindo um impulso que mais tarde ele descreveu como de fú­ria juvenil, Stoessel-Leifhelm foi a Munique procurar o pai e pedir ajuda. O que encontrou, apesar de tê-lo chocado pro­fundamente, transformou-se em uma oportunidade importante, estranhamente atingida. A vida pacífica e bem-organizada do médico tinha se desmoronado. Seu casamento, desde o princí­pio desagradável e humilhante, o levara a beber com uma fre­qüência crescente até começar a cometer inevitáveis erros de julgamento na profissão. Foi censurado pela comunidade médica (que contava com grande número de judeus), acusado de incompetência e expulso do Karlstor Hospital. Sua clínica estava em ruínas; a mulher o expulsou de casa, valendo-se da influência do pai, bastante velho, mas ainda poderoso e além disso membro do quadro de diretores do hospital. Quando Stoessel-Leifhelm encontrou o pai, este morava em um apar­tamento barato no bairro mais pobre da cidade, ganhava uma miséria dando receitas (para drogas) e um pouco mais por abortos.

O velho Leifhelm, num gesto que aparentemente (segundo amigos daquela época) demonstrava emoções há muito contidas, abraçou o filho ilegítimo e contou-lhe a história de sua vida torturada com uma esposa desagradável e um sogro tirâ­nico. Era a síndrome clássica de um homem ambicioso com um mínimo de talento e um máximo de relações importantes. Além dis­so, o médico afirmou que jamais abandonara sua adorada aman­te e o filho. E durante essa confissão longa e sem dúvida orientada pela embriaguez ele revelou um fato completamente novo para Stoessel-Leifhelm. A mulher de seu pai era judia. 0 jovem não precisava ouvir mais.

O rapaz desprivilegiado tornou-se o pai do homem ven­cido.

 

Os alto-falantes do aeroporto deram o aviso em holandês e Joel consultou o relógio. Foi repetido, agora em alemão. Prestou atenção às palavras; mal podia distingui-las, mas ali estavam. Hamburgo-Colônia-Bonn. A primeira chamada para o vôo noturno para a capital da Alemanha Ocidental, via Hamburgo. Eram menos de duas horas de vôo, a escala em Hamburgo justificada pela ne­cessidade de certos executivos de estarem nos seus escritórios logo de manhã. Converse tinha despachado sua mala para Bonn, ano­tando mentalmente, quando o fazia, a conveniência de trocar a pesada valise de couro por uma maleta de mão. Não tinha muita experiência no assunto, mas o bom senso lhe dizia que a demora imposta pela espera da bagagem — onde podia ser visto — não condizia com a necessidade de viajar rapidamente evitando que olhos curiosos o notassem. Colocou o dossiê de Erich Leifhelm na pasta, fechou-a e girou o disco do segredo. Levantou-se, saiu do café e atravessou o terminal, dirigindo-se para o portão da Luft­hansa.

 

Sua testa estava coberta de suor, as batidas dentro do peito acele­raram-se como uma fuga executada por timbales martelados. Ele conhecia o homem que estava ao seu lado, mas não tinha idéia de onde ou de quando. O rosto vincado de rugas, os sulcos profundos na pele queimada de sol, os olhos azuis intensos, sob as sobran­celhas espessas e o cabelo castanho entremeado de fios brancos — tudo isso ele conhecia, mas o nome não vinha, nenhuma pista da identidade do homem.

Joel esperou por algum sinal de reconhecimento. Mas não per­cebeu nenhum e, involuntariamente, olhava o homem com o canto dos olhos. Mas não notou nenhuma reação; o homem estava absor­vido no estudo de um maço de folhas datilografadas, os tipos maiores do que os usados para mandados ou citações judiciais. Talvez fosse quase cego, pensou Converse, e usasse lentes de con­tato para disfarçar a deficiência. Mas havia algo mais? Não apenas uma deficiência, mas uma conexão a ser disfarçada. Teria visto esse homem em Paris — como vira o outro com a capa marrom-clara no corredor da recepção do hotel? Esse homem teria estado também no Étalon Blanc? Talvez um membro do grupo de ex-soldados imó­veis na sala de brinquedos dos guerreiros... num canto, sem chamar atenção entre tantos outros? Ou na mesa de Bertholdier, de costas para Joel, certo de não ter sido visto pelo americano que estava seguindo agora? Estaria seguindo Joel naquele momento? - pen­sou Converse segurando firmemente a pasta de couro. Virou um pouco a cabeça e estudou seu companheiro de viagem.

Subitamente o homem ergueu os olhos das páginas datilogra­fadas e fitou-os em Joel. Não demonstrou curiosidade nem irri­tação, apenas indiferença.

— Desculpe-me — disse Converse embaraçado.

— Certo, está bem... por que não? — foi a resposta lacônica e estranha, com sotaque americano, definidamente texano. O homem voltou aos seus papéis.

— Nós nos conhecemos? — perguntou Joel, sem poder evitar a pergunta.

O homem levantou os olhos outra vez.

— Acho que não — disse secamente, voltando mais uma vez ao relatório ou fosse lá o que fosse.

Converse olhou pela janela, para o céu escuro, para os intermi­tentes fachos de luz vermelha que iluminavam o metal prateado da asa do avião. Distraidamente tentou calcular o ângulo direcional do avião mas seu raciocínio de piloto não funcionou. Conhecia o ho­mem, e a frase estranha, “por que não?” o perturbava mais ainda. Seria um sinal, um aviso? Como as suas palavras para Jacques-Louis Bertholdier tinham sido um sinal, uma advertência para que o general entrasse em contato com ele, o reconhecesse.

A voz da aeromoça da Lufthansa interrompeu seus pensa­mentos.

— Herr Dowling, é um prazer tê-lo a bordo.

— Obrigado, querida — disse o homem, o rosto enrugando-se mais num largo sorriso. — Traga-me um uísque com gelo e eu retribuirei o cumprimento.

— Naturalmente, senhor. Tenho certeza de que deve estar cansado de ouvir isto, mas seu programa de televisão é muito popular na Alemanha.

— Mais uma vez obrigado, querida, mas não é meu programa. Há uma porção de jovens bonitas correndo para lá e para cá na tela.

Um ator. Um bendito ator! — pensou Joel. Sem alarmes, sem surpresas. Apenas instruções, muito mais imaginárias do que reais.

— É muito modesto, Herr Dowling. Elas são todas iguais, todas desagradáveis. Mas o senhor é tão gentil, tão masculino... tão compreensivo.

— Compreensivo? Vou lhe dizer uma coisa. Vi um episódio em Colônia, na semana passada, e não consegui compreender uma palavra do que eu dizia.

A aeromoça riu.

— Uísque com gelo, é isso, senhor?

— É isso, querida.

A moça caminhou pela passagem da primeira classe na direção da copa e Converse continuou olhando para o ator. Com voz hesi­tante disse:

— Peço desculpas. Devia tê-lo reconhecido antes, natural­mente.

Dowling voltou o rosto queimado de sol e examinou Joel, de­pois desviou os olhos para a pasta de couro. Sorriu com ar diver­tido.

— Provavelmente eu o embaraçaria se perguntasse de onde me conhecia. Não parece um fanático pelo Santa Fé.

— Santa Fé...’! Mas, naturalmente, esse é o nome do pro­grama. — E era, pensou Converse. Um desses fenômenos da tele­visão que, simplesmente pela força do extraordinário índice de au­diência e dos lucros da rede de televisão, aparecera na capa do Time e do Newsweek. Converse nunca tinha visto o programa.

— E naturalmente — continuou o ator — o senhor segue os ritos tribais — e os erros — as dificuldades dramáticas da imperiosa família Ratchet, proprietária da maior extensão de terra ao norte de Santa Fé, bem como o histórico Chimaya Flats, que roubou dos índios empobrecidos.

— Quem? Histórico o quê?

O rosto queimado de sol de Dowling iluminou-se com um largo sorriso:

— Só Pa Ratchet, o amigo dos índios, não sabe deste último item, embora seja acusado por seus irmãos vermelhos. Sabe, os filhos imprestáveis de Pa ouviram dizer que havia petróleo no Chimaya e resolveram agir. Por falar nisso, espero que tenha perce­bido as associações verbais do nome Ratchet; pode escolher. Pode ser simplesmente “rato”, ou “miserável”, ou “chave de catraca” que torce tudo o que encontra com uma simples pressão.3F[4]

Havia algo de diferente no ator agora, pensou Joel, intrigado. Seriam suas palavras? Não, não as palavras, a voz. O sotaque do Oeste quase tinha desaparecido.

— Não sei do que está falando, mas sua voz está diferente.

— Ora, vejam só — disse Dowling rindo, com forte sotaque texano. Voltou ao tom sem sotaque: — Está vendo um rene­gado, um professor universitário de língua inglesa e arte dramá­tica, que há doze anos mandou para o inferno a segurança do cargo vitalício à procura de um sonho. O que o levou a vários empregos engraçados e pouco dignos, mas o espírito de Téspis age de modo misterioso. Um antigo aluno, com um daqueles empregos indefiní­veis como “coordenador de produção”, viu-me em uma cena de rua; ficou extremamente embaraçado. Apesar disso, indicou meu nome para vários papéis secundários. Alguns tiveram bons resul­tados e alguns anos mais tarde ocorreu o acidente chamado Santa Fé. Foi quando meu respeitável nome, Calvin, passou a ser Caleb. “Combina melhor com a imagem”, disseram dois desocupados com mocassins Gucci, que nunca tinham estado perto de um ca­valo, a não ser em Santa Anita... É uma loucura, não é?

— Uma loucura... — concordou Converse, vendo a aeromoça se aproximar deles.

— Seu uísque, senhor — disse ela, entregando o copo ao ator.

— Ora, muito obrigado, queridinha! Ora, ora, você é mais bonita do que qualquer potranca do meu programa! — com forte sotaque texano.

— É muito gentil, senhor.

— Quer me trazer um scotch, por favor — pediu Joel.

— Assim está melhor, meu filho — disse Dowling, com um largo sorriso. — E agora que já sabe do meu crime, o que faz para ganhar a vida?

— Sou advogado.

— Pelo menos tem alguma coisa real para ler. Este script não tem nada de real.

 

Embora considerado pela maioria dos cidadãos respeitá­veis de Munique como uma coleção de desajustados e assassi­nos, o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores da Ale­manha, com sede nessa cidade, começava a ser conhecido em todo o país. O movimento populista-radical criava raízes, baseando sua mensagem inflamada no termo antigermânico e de conotação sinistra “eles”. Atribuía os males da nação a um vasto espectro de alvos, desde os bolchevistas até os ban­queiros judeus; dos espoliadores estrangeiros que violenta­vam a terra ariana até, finalmente, tudo o que nao fosse ariano, especialmente os judeus e suas fortunas ilegais.

A cidade cosmopolita de Munique e sua comunidade judai­ca ria desses absurdos; não estavam prestando atenção. Mas o resto da Alemanha estava; estava ouvindo o que queria ou­vir. E Erich Stoessel-Leifhelm ouvia também. Era o seu pas­saporte para a fama e a oportunidade.

Em poucas semanas o jovem praticamente pôs o pai em for­ma. Mais tarde ele contava a história com doses pesadas de humor cruel. Ignorando objeções histéricas do médico, o fi­lho fez desaparecer todo o álcool e cigarros da casa, nun­ca perdendo o pai de vista. Instituiu um regime rigoroso de exercício e dieta. Com o zelo de um treinador fanático, Stoessel-Leifhelm começou a levar o pai ao campo, para Gewalt marschen, marchas forçadas, gradualmente chegando a longas caminhadas diárias nas trilhas difíceis das montanhas da Baviera, gritando continuamente que o velho não parasse, só descansasse quando ele mandasse, só tomasse água com sua permissão.

A reabilitação foi tão notável que as roupas do médico dançavam no seu corpo como se tivessem sido feitas para um homem muito mais gordo. Além disso estavam gastas e velhas. Precisavam comprar um novo guarda-roupa, mas naquele tempo isso estava além das posses da maioria dos cidadãos de Mu­nique e Stoessel-Leifhelm só queria o melhor para o pai, não por devoção filial, mas, como veremos mais tarde, por uma razão bem diferente.

Precisava arranjar dinheiro, o que significava roubar. Interrogou o pai exaustivamente sobre a casa que o médico fora obrigado a deixar, ficando a par de tudo o que preci­sava saber. Algumas semanas mais tarde, Stoessel-Leifhelm entrou na casa da Luisenstrasse, às três horas da manhã, le­vando tudo o que havia de valor, inclusive prataria, cris­tais, quadros a óleo, baixelas de ouro e o conteúdo de um cofre de parede. Não era difícil encontrar um comprador de objetos roubados em Munique, em 1930, e, depois de ter ven­dido tudo, pai e filho tinham o equivalente a oito mil dóla­res americanos, uma fortuna naquela época.

A restauração continuou; roupas sob medida foram en­comendadas na Maximilianstrasse, sapatos da melhor qualidade feitos por especialistas da Odeonsplatz, e finalmente a apa­rência do médico foi alterada. O cabelo sempre em desordem foi aparado e tingido de um louro nórdico bem masculino, a barba maltratada foi rapada, deixando apenas um bigode pe­queno e bem desenhado. A transformação foi completa; falta­vam agora as apresentações.

Todas as noites, durante as longas semanas de reabili­tação, Stoessel-Leifhelm lia em voz alta, para o pai, toda a literatura que podia conseguir editada pela sede do Partido Nacional-Socialista, um extenso material. Havia uns panfle­tos inflamados de praxe, páginas sobre a teoria biológica artificialmente fabricada, supostamente provando a superio­ridade genética da pureza ariana e o declínio racial resul­tante das misturas indiscriminadas, todas as diatribes na­zistas de costume, mais longos trechos do Mein Kampf, de Hitler. O filho lia e relia, incessantemente, até o pai sa­ber de cor a ultrajante mensagem nacional-socialista. E, du­rante todo o tempo, o jovem de dezessete anos dizia para o pai que acompanhar o programa do partido significaria recu­perar tudo o que lhe haviam tirado, vingar os anos de humi­lhação e ridículo. A Alemanha tinha sido humilhada pelo res­to do mundo e o Partido Nazista seria o vingador, o restau­rador de tudo o que era realmente alemão. Era, sem dúvida, a Nova Ordem para o Solo Pátrio, e estava ã espera de homens de grande estatura para fazer com que fosse reconhecida.

Chegou o dia, o dia em que Stoessel-Leifhelm sabia que os funcionários de mais alto nível do partido estariam em Munique. Eram eles o propagandista aleijado, Joseph Goebbels, e o futuro aristocrata Rudolf Hess. O filho acompanhou o pai à sede do Partido Nacional-Socialista, onde o bem-vestido, imponente, obviamente rico Doktor ariano solicitou uma au­diência aos dois líderes nazistas para tratar de assunto ur­gente e confidencial. Foi concedida e, de acordo com os ar­quivos históricos do partido, suas primeiras palavras para Hess e Goebbels foram:

- Cavalheiros, sou um médico com credenciais impecáveis, ex-cirurgião-chefe do Hospital Karlstor e durante anos tive uma das mais importantes clínicas de Munique. Isso foi no passado. Fui destruído por judeus que roubaram tudo o que eu possuía. Estou de volta, estou bem, e inteiramente à sua dis­posição.

 

O avião da Lufthansa começou a descida em Hamburgo e Joel, sentindo a queda de altitude, dobrou a ponta da página do dossiê de Leifhelm e apanhou sua pasta. Caleb Dowling, ao seu lado, espreguiçou-se, com o script na mão, e depois jogou-o em uma sacola aberta aos seus pés.

— A única coisa mais idiota do que este filme — disse ele — é o dinheiro que estão me pagando para participar dele.

— Vai filmar amanhã? — perguntou Converse.

— Hoje — corrigiu Dowling, consultando o relógio. — Vamos começar cedo. Preciso estar no local da filmagem às cinco e meia — nascer do sol no Reno, ou qualquer coisa desse tipo. Se transfor­massem a coisa toda em um guia turístico seria muito melhor. Cenário muito bonito.

— Mas esteve em Copenhague.

— Sim.

— Não vai ter muito tempo para dormir.

— Não.

— Oh.

O ator olhou para Joel, os pés-de-galinha em volta dos olhos generosos acentuando-se com o sorriso.

— Minha mulher está em Copenhague e eu tirei dois dias de licença. Este era o último avião que eu podia tomar.

— Oh? É casado? — Converse imediatamente se arrependeu da pergunta; não sabia por quê, mas parecia ridícula.

— Há vinte e seis anos, meu jovem. Como acha que consegui perseguir meu sonho idealista? Ela é uma esplêndida secretária; quando eu lecionava era sempre o braço direito deste ou daquele diretor da universidade.

— Filhos?

— Não se pode ter tudo. Nenhum.

— Por que ela está em Copenhague? Quero dizer, por que não está com o senhor, no local da filmagem?

O sorriso desapareceu do rosto queimado de sol; as rugas eram menos visíveis, mas de certo modo mais profundas.

— É uma pergunta óbvia, não? Isto é, como advogado, não podia deixar de fazê-la.

— Não é da minha conta, naturalmente. Esqueça.

— Não, está tudo bem. Não gosto de falar a respeito — rara­mente o faço —, mas companheiros de vôo amistosos são feitos para a gente contar as coisas. Jamais voltamos a vê-los, então, por­que não desabafar um pouco e sentir-se melhor? — O ator tentou o sorriso e falhou. — O nome da minha mulher era Oppenfeld. É judia. Sua história não é muito diferente da de milhões de outros, mas para ela é... bem, é a sua história. Foi separada dos pais e dos três irmãos mais novos em Auschwitz. Viu quando os levaram — enquanto gritava, sem compreender. Teve sorte; foi designada para trabalhar cosendo uniformes, até demonstrar outros talentos para outro tipo de ocupação. Quando soube o que pretendiam, ficou histérica e se descontrolou, correndo pelo campo todo à procura dos pais. Chegou à seção que eles chamavam de Abfall, o lixo, corpos retirados das câmaras de gás. E lá estavam eles, a mãe, o pai e os três irmãos, o quadro e o cheiro tão revoltantes que ela jamais esqueceu. Jamais esquecerá. Nunca mais pôs os pés na Alemanha e não vou pedir que o faça.

Sem alarmes, apenas surpresas... e outra Cruz de Ferro para os Erich Leifhelms do passado, retroativamente representados.

— Meu Deus, desculpe-me — murmurou Converse. — Não tive intenção...

— Não foi você. Fui eu... Sabe, ela reconhece que não faz sentido.

— Não faz sentido? Talvez não tenha ouvido o que acaba de descrever.

— Ouvi, eu sei, mas não terminei. Quando tinha dezesseis anos, ela foi colocada em um caminhão com outras cinco moças, enviadas para outro tipo de trabalho. As meninas, agarrando sua última oportunidade, atacaram o cabo da Wehrmacht que estava de guarda no caminhão, e o dominaram. Depois, com a arma dele dominaram o motorista e fugiram. — Dowling parou de falar, os olhos fitos em Joel.

Converse, em silêncio, retribuiu o olhar, não muito certo do seu significado, mas comovido.

— É uma história maravilhosa — disse tranqüilamente. — Maravilhosa.

— E — continuou o ator — durante dois anos foram escon­didas por diversas famílias alemãs, que naturalmente sabiam o que elas estavam fazendo e o que aconteceria se fossem apanhadas. A caçada às meninas foi frenética — com muitas ameaças, mais por causa do que elas podiam contar do que por outra coisa. Os ale­mães, porém, continuaram a escondê-las, levando-as de um lado para outro, até serem conduzidas, uma de cada vez, através da fronteira para a França ocupada, onde as coisas eram mais fáceis. Foram contrabandeadas pelo movimento subterrâneo, o movimento subterrâneo alemão. — Dowling fez uma pausa e acrescentou: — Como diria Pa Ratchet: “Pegou a direção da deriva, filho?”

— Eu diria que é óbvia.

— Ela guarda muito sofrimento e muito ódio e Deus sabe que eu compreendo. Mas devia existir um pouco de gratidão também. Às vezes, encontravam algumas peças de roupa e aquelas pessoas — aqueles alemães — eram torturadas, algumas fuziladas. Eu procuro não insistir, mas ela podia compensar os sentimentos com um pou­co de gratidão. Talvez lhe desse uma perspectiva mais ampla. — O ator colocou o cinto de segurança.

Joel fechou a pasta de couro, sem saber se devia responder ou não. A mãe de Valerie tinha pertencido ao movimento subterrâneo alemão. Sua ex-mulher contava histórias divertidas ouvidas da mãe sobre um oficial do serviço secreto francês, rigoroso e inibido, obri­gado a trabalhar com uma moça alemã de personalidade forte e com opiniões próprias, um membro do Movimento Subterrâneo. Quanto mais discordavam e se provocavam por causa de suas na­cionalidades, mais se aproximavam um do outro. O francês era o pai de Valerie; ela tinha muito orgulho dele, mas de certo modo orgulhava-se mais da mãe. Era uma mulher sofrida também. E que também odiava. Mas tinha motivos, inequívocos. Como Joel Con­verse, alguns anos mais tarde.

— Já disse isso antes e repito — disse Joel hesitante, não muito certo de que devia dizer alguma coisa. — Não é da minha conta, mas eu nunca insistiria, se fosse o senhor.

— É o advogado falando com o velho Pa? — perguntou Dow­ling usando seu dialeto da televisão, o sorriso falso, o olhar dis­tante. — Devo pagar seus honorários?

— Desculpe-me, vou calar a boca. — Converse colocou o cin­to de segurança.

— Não, eu peço desculpas. Eu provoquei. Diga, por favor.

— Muito bem. Primeiro vem o horror, depois o ódio. Em linguagem legal é chamado prima fade — o óbvio, a primeira vis­ta... o real, se quiser. Sem eles, não haveria motivo para gratidão, nenhuma necessidade. Assim, de certo modo, a gratidão é dolorosa porque não devia ser necessária.

O ator estudou o rosto de Joel outra vez, como no começo da conversa.

— Você é um cara danado de inteligente, não é?

— Profissionalmente adequado. Mas eu estive lá... isto é, co­nheço pessoas que passaram pelo que sua mulher passou. Tudo começa com o horror.

Dowling olhou para as lâmpadas do teto e, quando falou, suas palavras flutuaram no ar, a voz áspera e tensa.

— Se vamos ao cinema, precisamos escolher os filmes com cuidado; se assistimos televisão juntos, eu consulto o programa... às vezes nos noticiários — com alguns daqueles malditos doidos — fico tenso, imaginando o que ela vai fazer. Não pode ver uma suástica, nem ouvir ninguém gritando em alemão, ou soldados mar­chando com passo de ganso; não suporta nada disso. Corre e co­meça a vomitar e todo o seu corpo treme... e eu tento acalmá-la... e às vezes ela pensa que sou um deles e grita. Depois de todos estes anos... Cristo!

— Já tentou ajuda profissional — não legal — mas do tipo que ela talvez precise?

— Ora, diabo, ela se recupera bastante rápido — disse o ator em atitude defensiva, como se estivesse representando um papel, a gramática do professor propositadamente deslocada. — Além disso, até alguns anos atrás não tínhamos dinheiro para essas coisas — acrescentou com sua voz natural.

— E agora? Não deve ser problema, hoje.

Dowling baixou os olhos para a sacola de viagem aos seus pés.

— Se eu a tivesse conhecido antes... talvez. Mas começamos tarde; quando nos casamos tínhamos mais de quarenta anos — dois excêntricos procurando alguma coisa. É muito tarde agora.

— Sinto muito.

— Eu nunca devia ter feito esse maldito filme. Nunca.

— Por que fez?

— Ela disse que eu devia. Para mostrar que era capaz de algo melhor do que aquele veículo de chavões de quinta categoria. Eu disse que não me importava... estive na guerra, no Corpo de Fuzileiros Navais. Vi alguma coisa no sul do Pacífico, mas nada que se compare com o que ela passou, nem uma gota. Jesus! Pode imagi­nar o que deve ter sido?

— Sim, eu posso.

O ator levantou os olhos com um meio sorriso no rosto quei­mado de sol.

— Você, meu amiguinho? Só se foi apanhado na Coréia...

— Não estive na Coréia.

— Então não pode imaginar mais do que eu. Você era muito jovem e eu tive muita sorte.

— Bem, houve... — Converse calou-se; não adiantava. Tinha acontecido tantas vezes que não se incomodava em pensar naquilo agora. Nam fora apagado da mente e da conversa nacional. Sabia que, se reavivasse a memória de um homem como Dowling, um homem decente, o ar se encheria de desculpas, mas de nada adian­tava trazer lembranças desagradáveis de volta. Não no que dizia respeito à senhora Dowling, nascida Oppenfeld. — Lá está o sinal de “não fumar”. Estaremos em Hamburgo dentro de alguns mi­nutos.

— Fiz esta viagem meia dúzia de vezes nos últimos dois meses — disse Caleb Dowling — e acredite, Hamburgo é uma droga. Não tem alfândega, uma das vantagens, pelo menos não a esta hora. Aqueles carimbos parece que voam e a gente passa em dez minutos no máximo. Mas depois, espera-se. Duas vezes, talvez três, levou mais de uma hora para chegar o avião de Bonn. A propósito, acompanha-me em um drinque na sala de espera? — O ator subita­mente voltou ao seu dialeto sulino: — Aqui entre nós, eles fazem tudo muito agradável para o velho Pa Ratchet. Eles passam um telex e um bando de cowboys corre para me levar ao poço d’água.

— Bem...? — Joel ficou lisonjeado. Não só gostava de Dow­ling, como lhe agradava a idéia de ser convidado por uma celebri­dade. Nos últimos dias não tinha havido muitas coisas agradáveis.

— Devo também avisá-lo — acrescentou a celebridade — que mesmo a esta hora os fãs sobem pelas paredes, e o pessoal de Relações Públicas da companhia arranja sempre a presença de fotó­grafos de jornais, mas nada disso toma muito tempo.

Converse ficou grato pelo aviso.

— Tenho de dar alguns telefonemas — disse casualmente —, mas se acabar em tempo terei muito prazer em lhe fazer companhia.

— Telefonemas? A esta hora?

— Para os Estados Unidos. Não é a mesma hora em... Chi­cago.

— Telefone da sala de espera; eles a mantêm aberta para mim.

— Pode parecer coisa de louco — disse Joel, escolhendo as palavras —, mas eu penso melhor quando estou sozinho. Preciso dar umas explicações complicadas. Depois da alfândega vou pro­curar uma cabine telefônica.

— Nada parece coisa de louco para mim, meu filho. Eu tra­balho em Holl-yyy-wood. — A exuberância bem-humorada do ator desapareceu como por encanto. — Nos Estados Unidos — disse em voz baixa, as palavras flutuando outra vez, os olhos distantes. — Lembra-se daquele negócio em Skokie, Illinois? Passaram na televisão... Eu estava no escritório estudando o script quando ouvi os gritos e o ruído de uma porta que se abria com violência. Vi minha mulher correndo pela praia. Tive de arrastá-la para fora da água. Sessenta e sete anos e parecia uma menina, de volta àquele campo maldito, vendo as filas de prisioneiros de olhos encovados, sabendo para onde se dirigiam... vendo a mãe, o pai, os irmãos. Quando se pensa nisso é fácil compreender por que essa gente re­pete sem cessar: “Nunca mais.” Não pode acontecer outra vez. Eu quis vender aquela maldita casa; não quero que fique sozinha nela.

— Está sozinha agora?

— Não — disse Dowling, sorrindo novamente. — Essa é a parte boa. Depois daquela noite, resolvemos enfrentar o problema; resolvemos que não pode ficar sozinha. Arranjei uma irmã para ela, foi isso o que eu fiz. Uma coisinha miúda que sabe mais histórias malucas do que todas as que já foram impressas. Mas é forte; tem estado nos estúdios, de um lado para outro, há quarenta anos.

— Uma atriz?

— Não conhecida, mas é um rosto magnífico em meio à mul­tidão. É uma boa mulher, também, boa para fazer companhia à minha.

— Alegra-me saber isso — disse Joel, quando as rodas do avião entraram em contato com a pista e os motores guincharam com a força da marcha à ré. O aparelho correu na pista e depois virou para a esquerda, na direção do seu ponto de parada.

Dowling voltou-se para Converse.

— Quando terminar seus telefonemas, pergunte onde fica a sala VIP. Diga que é meu amigo.

— Tentarei estar lá.

— Se não for — acrescentou o ator, com o sotaque de Santa Fé —, vejo você no curral de aço. Temos ainda um pedaço a andar neste transporte de gado, companheiro. Estou satisfeito por viajar­mos juntos.

— Em um transporte de gado?

— Certo. Odeio cavalos.

O avião parou e a porta da frente foi aberta em menos de trinta segundos; os passageiros levantaram-se para sair. Era eviden­te — pelos murmúrios e pelos que ficavam nas pontas dos pés — que todos queriam ver Caleb Dowling. E o ator representava seu papel, dispensando bênçãos de Pa Ratchet com sorrisos calorosos, piscadelas significativas e uma risada sonora, tudo com a humil­dade do bom vaqueiro. Joel sentiu um assomo de compaixão por aquele homem estranho, aquele ator que aceitava o risco constante do inferno particular que compartilhava com a mulher amada.

Nunca mais. Não pode acontecer nunca mais. Palavras.

Converse olhou para a pasta de couro que segurava com as duas mãos no colo. Dentro dela estava outra história, uma bomba-relógio prestes a detonar.

Estou de volta, estou bem, à sua disposição. Palavras de um outro tempo — mas cheias de ameaças para o presente, pois eram partes da história da volta silenciosa de um homem vivo. Um dos raios na roda de Aquitânia.

O primeiro grupo de curiosos fez fila na direção da porta, atrás do ator de televisão, e Joel entrou na fila dos menos apressados. Passaria pela alfândega o mais discretamente possível, e depois pro­curaria um canto escuro do aeroporto para esperar na sombra a chamada para o vôo Colônia-Bonn.

 

Goebbels e Hess aceitaram com entusiasmo o oferecimen­to do Dr. Heinrich Leifhelm. Pode-se imaginar o especialis­ta em propaganda visualizando a imagem daquele médico aria­no louro, com “credenciais impecáveis” espalhada por meio de milhares de panfletos, confirmando as teorias falsas da ge­nética nazista, bem como sua condenação voluntária dos ju­deus, inferiores e avaros; era uma dádiva do céu. Quanto a Rudolf Hess, que desejava, mais do que seus rapazes, ser aceito pelos Junkers e pelos ricos, o Herr Doktor era a res­posta; o médico era obviamente um verdadeiro aristocrata e, com o tempo, possivelmente um amante.

A confluência dos preparativos, horários e apresenta­ções foi muito mais intensa é numerosa do que o jovem Stoessel-Leifhelm tinha imaginado. Adolf Hitler voltou de Berlim para um dos seus comícios na Marienplatz e o imponente Doktor, ao lado do filho emotivo e bem-educado, foi convidado para jantar com o Führer. Hitler ouviu tudo o que queria ouvir, e Henrich Leifhelm a partir daquele dia, até sua morte, em 1934, foi o médico particular de Hitler.

O filho podia ter tudo o que quisesse,e logo tratou de conseguir tudo o que queria. Em junho de 1931, numa cerimô­nia realizada na sede do Partido Nacional-Socialista, o ca­samento de Heinrich Leifhelm com “uma judia” foi declarado nulo, em virtude de uma “família de hebreus oportunistas” haver omitido o fato de que “tinha sangue judeu”, e todos os direitos, heranças e reivindicações dos descendentes daque­la “união insidiosa” foram declarados sem valor. Foi reali­zado o casamento civil de Leifhelm e Marta Stoessel, e o verdadeiro herdeiro, o único filho que tinha direito ao no­me de Leifhelm era um garoto de dezoito anos chamado Erich.

Munique e a comunidade judaica riam ainda, mas não tão alto, da absurda declaração colocada pelos nazistas nas co­lunas dos jornais locais. Consideravam uma tolice; o nome Leifhelm estava desacreditado, e naturalmente não existia nenhuma herança paterna; e, para terminar, tudo isso era contra a lei. O que apenas começavam a compreender era que as leis estavam sendo mudadas na Alemanha. Em apenas dois anos haveria apenas uma lei: as determinações dos nazistas.

Erich Leifhelm vencera e sua ascensão no partido foi rápida e segura. Com dezoito anos era Jungführer do Movimento da Juventude de Hitler; fotografias mostrando o rosto e o corpo, fortes e atléticos, convidavam os filhos da Nova Ordem a entrarem para a cruzada nacional. Durante o tempo em que foi um símbolo, foi mandado para a Universidade de Munique, onde completou o curso, em três anos, com altas hon­ras acadêmicas. Mas desta vez Hitler conseguiria chegar ao poder; ele controlava o Reichstag, que lhe conferia poderes ditatoriais. O Reich dos Mil Anos tinha começado e Erich Leifhelm foi enviado para o Centro de Preparação de Ofi­ciais, em Magdeburgo.

Em 1935, um ano após a morte do pai, Erich Leifhelm, agora um jovem favorito do círculo íntimo de Hitler, foi promovido a Oberstleutnant do comando 1, em Berlim, sob o comando de Rundstedt. Envolveu-se profundamente na expansão militar que se efetuava na Alemanha, e, com a proximidade da guerra, entrou no que se pode chamar de terceira fase da sua vida complicada, que finalmente o levou ao centro do poder nazista, dando-lhe ao mesmo tempo um meio extraordinário pa­ra se separar da liderança da qual era parte intrínseca e in­fluente. Isso é relatado brevemente nas páginas seguintes, um prelúdio da quarta fase, que, como sabemos, é a sua fantás­tica fidelidade às teorias de George Marcus Delavane.

Mas, antes de deixarmos o jovem Erich Leifhelm de Eichstätt, Munique e Magdeburgo, cumpre-nos registrar dois fatos que demonstraram a mentalidade psicótica desse homem. Já mencionamos o furto da casa de Luisenstrasse e o resulta­do desse ato criminoso. Leifhelm até hoje não nega o inci­dente, contando a história com prazer, por causa das imagens desprezíveis que apresenta da primeira mulher de seu pai e de seus “prepotentes” progenitores. Porém ele nunca se refe­re, e ninguém o faz, em sua presença, ao relatório original da polícia de Munique, o qual, pelo que pudemos descobrir, foi destruído em agosto de 1934, uma data que corresponde à da morte de Hindenburg e à tomada por Hitler do poder abso­luto como presidente e chanceler da Alemanha, com o título de der Führer elevado a status oficial obrigatório.

Todas as cópias do relatório policial foram retiradas dos arquivos, mas dois velhos aposentados do departamento de Munique lembram-se delas perfeitamente. Ambos têm quase oitenta anos, há anos não se vêem e foram interrogados se­paradamente.

O roubo foi o crime de menor importância naquela madru­gada na Luisenstrasse; o mais sério jamais foi comentado, por insistência da família. A filha de Leifhelm, de quinze anos, foi violentada e tão barbaramente espancada que os mé­dicos do Hospital Karlstor tinham pouca esperança de que so­brevivesse. Ela se recobrou fisicamente, mas permaneceu emo­cionalmente perturbada pelo resto de sua curta vida. O homem que cometeu a violência devia conhecer o interior da casa, devia saber onde ficava a escada dos fundos, que levava ao quarto da menina, separado do dos dois irmãos e do da mãe, na frente. Erich Leifhelm havia interrogado o pai detalhada­mente sobre a disposição interna da casa; esteve lá, segundo sua própria admissão, e conhecia o orgulho feroz e o rigoroso código de moral dos “tirânicos sogros”. Não há nenhuma dúvida; seu fanatismo era tão grande que teve de infligir o insulto mais degradante que pôde imaginar, e o fez sabendo que a família influente insistiria no silêncio oficial.

O segundo acontecimento teve lugar no mês de janei­ro ou fevereiro de 1939. Os detalhes não são definidos, pois há poucos sobreviventes que conheciam bem a família e não existem registros oficiais, mas os que foram encontrados e entrevistados revelaram alguns fatos. A mulher legítima de Heinrich Leifhelm, os filhos e parentes, durante muitos anos tentaram em vão sair da Alemanha. O argumento oficial do par­tido era que, uma vez que o conhecimento de medicina do ve­lho patriarca havia sido adquirido na Alemanha, era proprie­dade do Estado. Além disso houve questões legais não-resolvidas, provenientes da união dissolvida entre o Dr. Heinrich Leifhelm e um membro da família, questões especificamente relacionadas a bens comuns e aos direitos hereditários, que afetavam um eminente oficial da Wehrmacht.

Erich Leifhelm não queria arriscar nada. A mulher e os filhos de seu pai foram mantidos quase como prisioneiros, seus movimentos restritos, a casa de Luisenstrasse vigiada, e, sempre que queriam um visto de saída, eram mantidos sob completa “vigilância política, para evitar que fugissem”. Essa informação foi prestada por um banqueiro aposentado, que se lembra das ordens do Finanzministerium em Berlim, ins­truindo os bancos de Munique a informar imediatamente sobre qualquer retirada feita pela ex-Frau Leifhelm e/ou qualquer pessoa da sua família.

Não conseguimos descobrir a semana ou o dia, mas, em ja­neiro ou fevereiro de 1936, Frau Leifhelm, os filhos e seu pai desapareceram.

Entretanto, os registros legais de Munique, apreendi­dos pelos aliados em 23 de abril de 1945, dão uma idéia cla­ra, embora incompleta, do que aconteceu. Obviamente levado por sua compulsão para validar perante a lei seus direitos às propriedades, foi feito um memorando em favor do Oberstleutnant Erich Leifhelm, relacionando os agravos sofridos por seu pai, Dr. Heinrich Leifhelm, nas mãos de uma cabala familiar, dita família, composta de criminosos, que haviam fu­gido do Reich ao serem indiciados legalmente. As acusações, como era de esperar, eram mentiras ultrajantes: desde o desvio de contas bancárias inexistentes ã agressão contra o ca­ráter, com o fim de destruir a clínica do grande médico. Ha­via o certificado legal do divórcio “oficial” e uma cópia do último testamento do velho Leifhelm. Existia uma só união verdadeira e um só filho verdadeiro e todos os direitos, pri­vilégios e bens de herança deviam passar para ele: Oberstleutnant Erich Stoessel Leifhelm.

Pudemos encontrar os sobreviventes graças às datas razoavelmente exatas que possuímos. Foi confirmado que Frau Leifhelm, os três filhos e o velho pai morreram em Dachau, a dezesseis quilômetros de Munique.

Os Leifhelm judeus tinham desaparecido; o Leifhelm aria­no era agora o único herdeiro de considerável fortuna e pro­priedades que, nas condições reinantes, teriam sido confis­cadas. Antes dos trinta anos, tinha apagado todo o seu pas­sado e tirado vingança dos males que, segundo acreditava, tinham-se abatido sobre sua origem superior e seus talentos. Um matador tinha amadurecido.

 

— Você deve ter um caso danado de importante aí — disse Caleb Dowling, com um largo sorriso, cutucando Joel com o coto­velo. — Seu cigarro queimou sozinho no cinzeiro há alguns minu­tos. Estendi o braço para fechar a maldita tampa e tudo o que você fez foi erguer a mão como se eu estivesse fazendo algo fora de hora.

— Desculpe-me. É... é um assunto complicado. Cristo, eu não levantaria a mão para você, uma celebridade. — Converse riu por­que sabia que era o que devia fazer.

— Muito bem, minha segunda notícia para você, amigo velho, é que, celebridade ou não, a luz para não fumar está acesa há algum tempo e você tem ainda um cigarro na mão. Agora, posso garantir que não o acendeu, mas estamos atraindo uma porção de olhares nazistas.

— Nazistas...? — Joel repetiu a palavra involuntariamente, enquanto enfiava o cigarro no cinzeiro; não tinha percebido que estava com ele na mão, apagado.

— Uma figura de linguagem e uma piada sem graça — disse o ator. — Chegaremos a Colônia antes que você consiga guardar toda essa papelada jurídica. Vamos, amigão, o aparelho está fazendo tomada de campo.

— Não — observou Joel, sem perceber, — Está dando uma volta à espera das instruções da torre. É a manobra de praxe... temos pelo menos três minutos.

— Você parece que sabe exatamente de que diabo está fa­lando.

— Vagamente — disse Converse, colocando o dossiê Leifhelm na pasta. — Já fui piloto.

— Não brinque! Um piloto de verdade?

— Bom, eles me pagavam.

— Trabalhava para uma companhia de aviação? Quero dizer, uma companhia de verdade?

— Maior do que esta, acho.

— Diabo, estou impressionado. Nunca ia pensar isso. Advo­gados e pilotos não parecem muito compatíveis.

— Foi há muito tempo. — Joel fechou a pasta de couro e trancou-a.

O avião deslizou pela pista, fazendo uma aterrissagem tão perfeita que se ouviu um aplauso do fundo da cabine. Dowling disse, enquanto abria o cinto de segurança:

— Eu costumava ouvir isso depois de uma aula muito boa.

— Agora, ouve muito mais — disse Converse.

— Por muito menos. A propósito, onde vai se hospedar, conselheiro?

Joel não estava preparado para a pergunta.

— Na verdade, não tenho certeza — respondeu, mais uma vez procurando as palavras. — Esta viagem foi uma decisão de última hora.

— Talvez precise de ajuda. Bonn está superlotada. Vou lhe dizer o que faremos. Eu estou no Königshof e acho que tenho alguma influência. Vou ver o que posso arranjar.

— Muito obrigado, mas não será necessário. — Converse pen­sou rapidamente. A última coisa que queria era a atenção que podia despertar se ficasse com o ator. — Minha firma vai mandar alguém me esperar e com certeza terá providenciado as acomodações. Por falar nisso, devo ser um dos últimos a sair do avião, para que não precise me procurar entre o povo.

— Bem, se tiver tempo e quiser se divertir um pouco com alguns atores, telefone para o hotel e deixe seu número.

— Provavelmente terei tempo. Foi um prazer viajar em sua companhia.

— Num transporte de gado, companheiro?

Joel esperou. Os últimos passageiros estavam deixando o avião, com um movimento de cabeça para as aeromoças, uma de cada lado da porta, alguns bocejando, outros num combate desajeitado com bolsas a tiracolo, equipamento fotográfico e cabides de ternos. O último passageiro passou pela porta côncava do avião e Converse levantou-se, segurando com força a alça da pasta, e atra­vessou a passagem rapidamente. Por instinto, sem nenhum motivo consciente, olhou para a direita, para o fundo da cabine.

O que viu — e quem o viu — o deixou gelado. O ar explodiu silenciosamente no seu peito. Sentada na última fila da longa fuse­lagem estava uma mulher. A pele pálida sob a aba larga do chapéu e os olhos assustados e atônitos que se desviaram bruscamente — tudo isso formava uma imagem da qual ele se lembrava claramente. Era a mulher do café no aeroporto Kastrup de Copenhague! Da última vez que a vira ela caminhava rapidamente para a área da bagagem, para longe dos balcões de embarque. Um homem apres­sado a fizera parar; palavras foram trocadas — e agora Joel sabia que eram a seu respeito.

A mulher tinha voltado, sem ser notada entre o movimento de embarque. Ele sentia isso, ele sabia. Ela o seguira desde a Dina­marca!

 

Converse atravessou rapidamente a passagem, passou pela porta e entrou no túnel atapetado. Quinze metros abaixo as paredes estrei­tas abriam-se para uma área de espera, com o número do portão impresso nas cadeiras de plástico e nas pequenas colunas ligadas por cordas. Não havia ninguém; o lugar estava vazio, os outros portões fechados, as luzes apagadas. Um pouco além, pendentes do teto, havia indicações em alemão, francês e inglês, orientando os passageiros para o terminal e para a sala de bagagens no subsolo. Não tinha tempo de apanhar a mala; precisava correr, sair do aero­porto o mais depressa possível, fugir sem ser visto. Então, perce­beu o óbvio e sentiu-se nauseado. Tinha sido visto; sabiam que estava no vôo de Hamburgo — fosse lá quem fosse. No momento em que entrasse no terminal seria localizado e não havia nada mais a fazer. Eles o haviam encontrado em Copenhague; a mulher o encontrara e recebera ordem para tomar o mesmo avião, a fim de se certificar que Joel não ia ficar em Hamburgo, ou mudar de avião para outra parte qualquer.

Como? Como tinham feito isso?

Não tinha tempo para pensar, agora; pensaria mais tarde — se houvesse um mais tarde. Passou pelos arcos dos detectores de metal, agora desligados, e pela passadeira rolante, onde a bagagem era exposta aos raios X. À sua frente, a apenas 22 metros estavam as portas do terminal. O que ia fazer, o que devia fazer?

 

NUR FÜR HIER BESCHÄFTIGTE

MÄNNER

 

Joel parou na frente de uma porta. O aviso era enfático, as letras em alemão, ameaçadoras. Mas já tinha visto essas palavras antes. Onde? O que significavam?... Zurique! Estava em um magazine em Zurique quando foi atacado por um mal-estar incômodo. Tinha falado com um balconista que o levou ao banheiro dos homens naquele andar. Num daqueles estranhos momentos de gratidão e alívio, ele havia gravado as palavras escritas na porta, Nur für hier Beschäftigte. Männer.

Não precisava pensar mais. Empurrou a porta e entrou, sem muita certeza do que poderia fazer, além de pôr os pensamentos em ordem. Um homem de macacão verde estava na outra extremidade da fila de lavatórios pregados na parede; penteava o cabelo, en­quanto examinava uma marca no rosto, bem perto do espelho. Converse caminhou para a fila de mictórios, além dos lavatórios, com a pose de um executivo de companhia aérea. Essa afetação foi aceita; o homem murmurou qualquer coisa cortesmente e saiu. A porta fechou-se e ele estava sozinho.

Joel afastou-se do mictório e estudou o espaço ladrilhado, ouvindo pela primeira vez o som de muitas vozes... lá fora, em algum lugar lá fora, além... das janelas. A três quartos da altura da pa­rede, encaixadas no azulejo no lado oposto, havia três janelas com vidro fosco, as esquadrias pintadas de branco, combinando com a cor de todo o ambiente. Ficou confuso. Nesses dias em que tanto se cuidava da segurança nas viagens aéreas, enfatizando-se o perigo de armas e narcóticos escondidos, um cômodo dentro da área do portão de desembarque com uma saída, antes de se chegar à alfândega, não fazia sentido. Então, ocorreu-lhe o óbvio! Podia ser seu meio de fuga! O vôo de Hamburgo era um vôo doméstico, esta parte do aeroporto Bonn-Colônia, um terminal doméstico; não tinham al­fândega! Naturalmente que devia haver janelas dando para fora, em um cômodo como aquele. Que diferença fazia? Os passageiros tinham de passar pelos arcos eletrônicos e, por outro lado, se as autoridades quisessem apanhar um passageiro nessa linha domés­tica, só precisavam esperar no portão certo.

Mas ninguém estaria esperando por ele. Fora o último — o penúltimo — passageiro a desembarcar do vôo tardio noturno. O portão protegido por cordas estava deserto; qualquer pessoa em uma das cadeiras de plástico ou de pé ao lado do balcão seria perfeitamente visível. Portanto, aqueles que o estavam vigiando não queriam ser vistos. Fossem quem fossem, estavam esperando, em algum lugar remoto dentro do terminal. Pois que esperassem.

Aproximou-se da janela da direita e colocou a pasta de couro no chão. De pé, com o corpo esticado, o parapeito ficava apenas a alguns centímetros da sua cabeça. Segurou as duas alças de metal e empurrou; a janela abriu-se facilmente alguns centímetros. Enfiou os dedos no espaço aberto; não tinha tela. Levantando toda a ja­nela poderia passar para fora.

Ouviu um ruído de metal contra madeira. Voltou-se rapida­mente quando a porta se abriu e apareceu um velho de costas arqueadas com o uniforme branco do pessoal da manutenção, car­regando um esfregão e um balde. Lentamente, com deliberação, o velho tirou um relógio do bolso, entrecerrou os olhos para ver melhor, disse alguma coisa em alemão e esperou a resposta. Não só Joel sabia que devia responder, como supôs que o homem estava avisando que o banheiro ia ficar fechado até de manhã. Precisava pensar; não podia sair; a única saída do aeroporto era pelo terminal. Se existia outra, Joel não conhecia, e não era hora de correr de seção em seção, em um aeroporto fechado para o resto da noite. Guardas noturnos podiam complicar mais ainda seus pro­blemas.

Baixou os olhos para o balde de metal e, desesperado, descobriu um meio, embora não tivesse certeza de ser capaz. Com uma careta súbita de dor, Joel gemeu e agarrou o peito, caindo de joelhos. Seu rosto se contraiu e ele deslizou para o chão.

— Um médico... um médico! — gritou, repetidamente.

O velho deixou cair o esfregão e o balde; uma enfiada de frases guturais e cheias de pânico acompanharam alguns passos cautelosos para a frente. Converse rolou para a direita, contra a parede; res­pirou ruidosamente olhando para os olhos arregalados e inexpres­sivos do alemão.

— Um médico...! — murmurou.

O velho tremeu e deu um passo atrás, na direção da porta; voltou-se, abriu-a e correu, a voz fraca gritando por socorro.

Tinha apenas alguns segundos! O portão estava a menos de cinqüenta metros à direita. Joel levantou-se rapidamente, correu para o balde, virou-o de cabeça para baixo e levou-o para perto da janela. Colocou-o no chão e apoiou um dos pés em cima dele, as palmas das mãos segurando a base da janela; empurrou. O vidro ergueu-se cerca de oito centímetros e parou, a moldura presa no peitoril. Empurrou outra vez com toda a força que podia, naquela posição. A janela não se moveu; ofegante, estudou a situação, seu olhar intenso fixando-se em dois pequenos objetos de aço que pedia a Deus não estivessem no lugar, mas estavam. Duas barras de pro­teção aparafusadas dos lados, impedindo que a janela se abrisse mais do que alguns centímetros. Colônia-Bonn podia não ser um aeroporto internacional com uma panóplia de aparelhos sofisti­cados de segurança, mas tinha suas proteções.

Ouviu gritos distantes no outro lado da porta; o velho tinha encontrado alguém. O suor escorria pelo rosto de Converse quando desceu do balde e apanhou a pasta, do chão. Ação e decisão foram simultâneas, apenas o instinto governando ambas. Joel segurou a pasta, deu um passo à frente e bateu com ela com força contra o vidro, quebrando-o e finalmente partindo a armação inferior de madeira. Subiu novamente no balde e olhou para fora. Além — lá embaixo — havia uma passagem de cimento, ladeada por uma cerca protetora, holofotes a distância, ninguém à vista. Atirou a pasta pela janela e com um impulso ergueu o corpo, seu joelho esquerdo atirando fragmentos de vidro e de madeira no chão de concreto. Desajeitadamente passou o corpo pela abertura, enfiando a cabeça, depois os ombros e atirou-se para fora. Quando caiu no chão ouviu gritos vindos de dentro; cresceram em volume, todos em contra­ponto, um misto de espanto e raiva. Ele correu.

Minutos mais tarde, numa curva súbita da passagem de ci­mento, viu a entrada iluminada do terminal e a fila de táxis espe­rando que os passageiros do vôo 817 de Hamburgo apanhassem suas bagagens para que os motoristas pudessem cobrar seus infla­cionados preços noturnos nas corridas até Bonn e Colônia. Vias de acesso e de saída levavam até a plataforma, com faixas para a tra­vessia de pedestres e, além delas, um imenso estacionamento com várias vagas iluminadas funcionando ainda para os que estavam com seus carros particulares. Converse saltou a cerca baixa de pro­teção e correu por uma passagem transversal até chegar à principal, continuando a correr na sombra, evitando a luz dos holofotes. Precisava chegar a um táxi, um táxi com um motorista que falasse inglês; não podia continuar a pé.... Tinha sido capturado a pé, uma vez, há muitos anos. Numa trilha da floresta, onde, se tivesse um jipe — um jipe inimigo — teria... Pare com isso! Não está em Nam, está em um maldito aeroporto, com um milhão de toneladas de concreto espalhadas entre flores, grama e asfalto! Continuou a cor­rer, saindo e entrando nas sombras, até completar um semicírculo — um-oito-zero. Estava no escuro, o último táxi da fila bem à sua frente. Aproximou-se do primeiro, que era o último.

— Inglês? Fala inglês?

— Englisch? Nein.

O segundo também não falava, mas o terceiro disse:

— Como vocês americanos dizem, só um idiota ia dirigir um táxi aqui sem saber alguma coisa de inglês. Certo?

— Sim, é razoável — disse Joel, abrindo a porta.

— Nein! Não pode fazer isso!

— Fazer o quê?

— Entrar no táxi.

— Por que não?

— A fila. Sempre na fila.

Converse enfiou a mão no bolso e tirou um maço de notas de marcos.

— Sou generoso. Pode entender isso?

— Além disso é um caso urgente de doença. Entre, mein Herr.

O táxi saiu da fila e dirigiu-se rapidamente para a saída.

— Bonn ou Colônia? — perguntou o motorista.

— Bonn —- respondeu Converse —, mas ainda não. Quero que vá pela outra pista e pare na frente daquele estacionamento.

— O quê...?

— A outra pista. Quero observar aquela entrada. Acho que um conhecido meu estava no avião de Hamburgo.

— Muitos já saíram. Só os que têm bagagem...

— Ela ainda não saiu — insistiu Joel. — Por favor, faça o que estou dizendo.

— Ela?... Ach, ein Fràulein. Ist ja ihr Geld, mein Herr.

Ele virou o carro numa passagem que dava para a entrada de acesso e para o estacionamento. Parou na sombra, um pouco além da segunda vaga; as portas do terminal estavam à esquerda, a uns cem metros. Converse observou os passageiros exaustos, com inú­meras malas, sacolas de golfe e o eterno equipamento fotográfico, que começavam a sair do terminal, a maioria deles erguendo a mão para os táxis, poucos atravessando as passagens na direção do esta­cionamento.

Vinte minutos se passaram e nenhum sinal da mulher de Co­penhague. Não devia ter bagagem, portanto a demora era voluntá­ria ou ordenada. O motorista assumira o papel de não-observador; apagara as luzes e parecia cochilar. Silêncio... Do outro lado das estradas paralelas, os passageiros de Hamburgo eram poucos, agora. Vários jovens, sem dúvida estudantes, dois com jeans cortados, os companheiros tomando cerveja em lata, riam enquanto davam um balanço nos marcos que possuíam. Um homem de negócios, bocejando, com um terno completo, lutava com uma mala estofada e uma enorme caixa de papelão, embrulhada em papel floreado, enquanto um casal idoso discutia, a disputa enfatizada por duas cabeças brancas que se agitavam. Cinco outros, homens e mulheres, estavam na beira da calçada, na outra extremidade da plataforma, evidentemente esperando transporte. Mas onde...

Subitamente ela estava ali, mas não sozinha. Caminhava com um homem de cada lado, um terceiro bem atrás. Os quatro an­davam lenta e despreocupadamente, passaram pelas portas automá­ticas de vidro, dirigindo-se para a esquerda, apertando o passo até chegarem à área mais escura da entrada em arco. Então os três homens rodearam a mulher, como se estivessem fazendo uma cerca protetora, voltando as cabeças, falando com ela sobre os ombros, enquanto observavam os últimos passageiros. A conversa se animou mas continuou controlada, a raiva misturando-se à confusão, todos procurando se conter. O homem da direita afastou-se, passou pelo canto do prédio e sumiu nas sombras. Tirou um objeto do bolso interno e Joel reconheceu imediatamente o que era; o homem levou-o aos lábios. Falava no rádio para alguém que estava dentro ou nas proximidades do aeroporto.

Em poucos segundos a luz de faróis atravessou o vidro sobre o ombro direito de Converse, iluminando a parte de trás do táxi. Encostou-se no banco, a cabeça virada, o pescoço arqueado, o rosto perto da janela traseira. Na saída do estacionamento estava parada uma limusine, o braço do motorista estendido para fora, com uma nota na mão. O encarregado apanhou o dinheiro, vol­tou-se para fazer o troco, mas o carro partiu, deixando o homem da cabine confuso. A limusine passou pelo táxi e dirigiu-se para a curva que levava à entrada do terminal. O cálculo de tempo fora perfeito; tinham feito contato pelo rádio. Joel disse para o moto­rista:

— Eu disse que sou generoso — falou, assustado com as pala­vras que se formavam em sua mente. — Posso ser muito generoso se fizer o que vou lhe pedir.

— Sou um homem honesto — respondeu o alemão, com voz incerta, olhando para Joel pelo retrovisor.

— Eu também — disse Converse. — Mas sou também hones­tamente curioso, e isso nada tem de errado. Vê aquele carro vermelho-escuro, o que está parando no canto do prédio?

— Ja.

— Acha que pode segui-lo sem ser visto? Tem de ficar bem para trás, mas não perder o carro de vista. Pode fazer isso?

— Não é um pedido razoável. Até onde vai a generosidade do Amerikaner?

— Duzentos marcos acima do que registrar o taxímetro.

— É generoso, e eu sou um ótimo motorista.

O alemão não tinha subestimado seus talentos de motorista. Habilmente virou o carro para um atalho, voltando rapidamente para a esquerda, entrando na estrada de saída, paralela e passando ao largo da entrada do terminal.

— O que está fazendo? — perguntou Joel, confuso. — Quero que siga...

— É a única saída — interrompeu o motorista, olhando pelo retrovisor, para o aeroporto, enquanto mantinha uma velocidade moderada. — Vou deixar que eles passem. Sou apenas mais um táxi insignificante, na Landstrasse.

Converse recostou-se no banco, com a cabeça longe das ja­nelas.

— É um raciocínio razoavelmente bom — disse.

— Superior, mein Herr. — Mais uma vez o homem olhou brevemente para trás, depois concentrou-se na estrada e no retro­visor. Momentos depois, acelerou; quase não se percebia; nenhum impulso brusco para a frente, apenas um passo mais rápido. Passou pela esquerda de um Mercedes, depois por um Volkswagen, e então voltou para a pista da direita.

— Espero que saiba o que está fazendo — resmungou Con­verse.

Não precisou responder, pois o veículo vermelho-escuro estava passando pela esquerda.

— Logo adiante a estrada se bifurca — disse o motorista. — Uma vai para Colônia, a outra para Bonn. Disse que está indo para Bonn, mas e se seu amigo for para Colônia?

— Fique com ele.

A limusine entrou na estrada de Bonn e Converse acendeu um cigarro, pensando na realidade de ter sido descoberto, o que significava que tinham consultado a lista de passageiros. Que fosse. Preferia que as coisas se passassem de modo diferente, mas, uma vez feito o contato inicial com Bertholdier, não era tão importante. Poderia operar com seu próprio nome; seu passado poderia ser uma vantagem. Além disso, havia um lado positivo na situação atual; tinha descoberto alguma coisa — várias coisas. Os que o estavam seguindo — que agora tinham perdido a pista — não pertenciam às autoridades; não tinham ligação nem com a polícia alemã, nem com a francesa, nem com a Interpol. Do contrário o teriam detido na saída ou no próprio avião, e isso indicava uma coisa. Joel Converse não estava sendo procurado por assalto — ou, que Deus não permitisse — por assassinato, em Paris. E essa suposição só podia levar a uma terceira probabilidade: a luta violenta e sanguinária na passagem atrás do hotel estava sendo encoberta. Jacques-Louis Ber­tholdier não queria correr o risco de que, por causa do seu ajudante, seu nome aparecesse em conexão com um hóspede rico do hotel, que havia feito insinuações alarmantes ao adorado general. A pro­teção de Aquitânia vinha em primeiro lugar.

Havia uma quarta possibilidade, tão realista que podia ser con­siderada um fato. Os homens na limusine vermelho-escura, que es­tavam à espera do avião de Hamburgo, pertenciam também a Aquitânia, subordinados a Erich Leifhelm, o porta-voz de Aqui­tânia na Alemanha Ocidental. Nestas últimas cinco horas, Berthol­dier havia descoberto a identidade do falso Henry Simon — pro­vavelmente através dos gerentes do George V — e entrado em con­tato com Leifhelm. Então, alarmados porque em nenhuma lista de passageiros constava o nome Converse, um americano que tinha voado de Paris para Bonn, tinham verificado nas outras compa­nhias e descobriram que fora para Copenhague. Os alarmes devem ter sido estridentes. Por que Copenhague? Ele disse que ia para Bonn. Por que esse homem estranho, com essa extraordinária infor­mação, foi para Copenhague? Quem são os seus contatos, com quem vai se encontrar? Encontrem-no. Encontrem todos eles! Ou­tro telefonema, uma descrição e a mulher o vigiara no café do aeroporto Kastrup. Era tudo tão evidente!

Joel tinha ido para a Dinamarca por um motivo, mas outro objetivo tinha sido realizado. Eles o encontraram, mas com isso haviam revelado o próprio pânico. Um agitado comitê de recepção, o uso do rádio, à noite, para falar com um veículo invisível apenas a alguns metros de distância, uma limusine apressada; os ingre­dientes da ansiedade. O inimigo estava abalado e o advogado Con­verse, satisfeito. Nesse momento, o inimigo estava quatrocentos metros na sua frente, indo para Bonn, sem saber que um táxi, habilmente manobrado por um motorista que procurava se escon­der entre o tráfego intermitente, não o pedia de vista.

Joel apagou o cigarro no cinzeiro quando o motorista dimi­nuiu a marcha, dando passagem a um caminhão. Via o grande carro vermelho-escuro claramente na longa curva. O alemão não era um amador; sabia o que tinha de fazer e Converse compreen­deu. Quem estava na limusine podia ser um proprietário influente, e nem mesmo duzentos marcos valiam a provável inimizade de um homem poderoso.

Probabilidades... tudo era probabilidade. Sua reputação jurídica fora criada com o estudo das probabilidades, e era um pro­cesso muito mais simples do que muitos dós seus colegas pensavam. Isto é, a abordagem era mais simples, não o trabalho; este nunca era fácil. Exigia disciplina para se concentrar nos menores detalhes e o incentivo da imaginação para se expandir, até que todas as minúcias fossem ordenadas e reordenadas em dezenas de equações diferentes. Esse exaustivo processo do “e se” era a chave-mestra do pensamento jurídico: simples assim. Era também uma armadilha verbal, refletiu Joel, lembrando-se do passado, sorrindo desconfortavelmente sozinho, no escuro. Num dos seus momentos de irri­tação, Val dissera que se ele gastasse com eles dois uma fração mínima do tempo que gastava com suas “malditas probabilidades”, “provavelmente” ele chegaria a compreender que a “probabilida­de” de continuarem a viver juntos era “provavelmente nenhuma”.

Nunca pecava por ser sucinta, nem sacrificava seu humor pela sinceridade. Além da beleza, Valerie Charpentier Converse era uma mulher muito engraçada. Sem poder se conter, Joel tinha sorrido ante essa explosão, tantas noites atrás, e depois tinham rido juntos; havia muita verdade nessas palavras.

Prédios grandes e pitorescos substituíam agora o campo tran­qüilo, lembrando a Converse as imensas casas vitorianas com fili­granas e beirais salientes, balcões de ferro trabalhado com janelas grandes e retangulares — formas perfeitamente geométricas. Os edifícios, por sua vez, cederam lugar a uma fileira contraditória de residências atraentes mas comuns, o tipo que é encontrado em qual­quer subúrbio rico tradicional, nas vizinhanças das principais ci­dades americanas. Scarsdale, Chevy Chase, Grosse Pointe ou Evanston. Chegaram então ao centro de Bonn, onde ruas estreitas com iluminação de gás desembocavam em avenidas mais largas com iluminação moderna, praças bem tratadas a apenas alguns quartei­rões dos bancos, lojas modernas e butiques. Era um anacronismo arquitetônico — ambiente do Velho Mundo coexistindo com estru­turas moderníssimas, mas sem o efeito de uma cidade, de eletrici­dade ou grandeza. Parecia uma grande cidade, crescendo rapida­mente, os patriarcas da comunidade incertos quanto à direção que devia ser tomada. A terra natal de Beethoven e o portão para o vale do Reno era a capital menos parecida com a sede de um grande governo. Era tudo, menos a sede da orgulhosa Bundestag e de uma série de primeiros-ministros astutos e requintados, que enfrentavam a Rússia nas suas fronteiras.

— Mein Herr! — exclamou o motorista. — Estão indo para Bad Godesberg. É o Das Diplomatenviertel.

— O que quer dizer isso?

— Embaixadas. Eles têm Polizeistreifen! Patrulhas. Podemos ser, como é que vocês dizem, reconhecidos!

— Descobertos — explicou Joel. — Não se preocupe. Conti­nue com o que está fazendo, está indo muito bem. Pare, se for preciso, estacione, se for o caso. Depois continue. Agora tem tre­zentos marcos além da corrida. Quero saber onde eles vão parar.

Pararam seis minutos mais tarde, e Converse ficou estarrecido. De tudo o que tinha pensado, tudo o que sua imaginação podia criar, nada o preparara para as palavras do motorista.

— Aquela é a embaixada americana, mein Herr.

Joel tentou pôr seus pensamentos em ordem.

— Leve-me ao Hotel Königshof — disse, lembrando-se, sem saber o que dizer.

 

— Sim, creio que Herr Dowling deixou um recado a respeito — disse o recepcionista, procurando embaixo do balcão.

— Deixou? — Converse estava atônito. Tinha usado o nome do ator na esperança de algum tratamento preferencial. Não espe­rava nada mais, se conseguisse pelo menos isso.

— Aqui está — o recepcionista escolheu dois recados telefônicos do maço que tinha na mão. — O senhor é Joel Converse, um advogado americano.

— Perfeito. Sou eu.

— Herr Dowling disse que talvez tivesse dificuldade em encontrar acomodações apropriadas em Bonn. Se por acaso aparecesse no Königshof esta noite, queria que fôssemos bastante cooperativos. É possível, Herr Converse. Herr Dowling é um homem muito po­pular.

— Ele merece — disse Joel.

— Vejo que deixou também uma mensagem para o senhor.

O recepcionista voltou-se e retirou um envelope fechado de um dos escaninhos. Entregou-o a Converse, que o abriu:

 

Oi, companheiro

Se não apanhar esta nota à noite, me será devolvida de manhã. Per­doe-me, mas você falava como muitos dos meus colegas menos afortunados, que dizem não quando querem dizer sim. De um modo geral, no caso deles trata-se de um tipo de orgulho deformado, porque pensam que estou suge­rindo uma caridade — isso, ou não querem encontrar alguém que prova­velmente vai estar onde eu estou. Mas, pelo que vi de você, vou eliminar a primeira hipótese e ficar com a segunda. Há alguém que não quer encontrar aqui em Bonn, e não precisa encontrá-lo. O quarto está reservado no meu nome — mude isso, se quiser —, mas não discuta sobre a conta. Eu lhe devo seus honorários, conselheiro, e sempre pago minhas dívidas. Pelo menos tenho pago nos últimos quatro anos.

A propósito, você seria um péssimo ator. Suas pausas não convencem.

Pa Ratchet

 

Joel colocou a nota no envelope, resistindo à tentação de tele­fonar para Dowling. O homem não tinha muito tempo para dormir antes de começar o trabalho; os agradecimentos podiam esperar até de manhã. Ou até a noite seguinte.

— As providências tomadas pelo Sr. Dowling são generosas e mais do que satisfatórias — disse para o recepcionista. — Ele tem razão. Se meus clientes souberem que cheguei um dia antes, não terei oportunidade de conhecer sua bela cidade.

— Sua privacidade será respeitada, senhor. Herr Dowling é um homem muito atencioso, e generoso, naturalmente. Sua baga­gem está no táxi, talvez?

— Não, por isso estou tão atrasado. Foi embarcada no avião errado, em Hamburgo, e estará aqui de manhã. Pelo menos foi o que me disseram no aeroporto.

— Ach, tão inconveniente, mas muito comum. Vai precisar de alguma coisa?

— Não, obrigado — disse Converse, erguendo a pasta de couro. — As coisas mais necessárias viajam comigo... Bem, uma coisa. Seria possível um drinque?

— Naturalmente.

 

Joel sentou-se na cama, o dossiê ao lado, a bebida na mão. Preci­sava de alguns minutos para pensar, antes de voltar ao mundo do marechal-de-campo Erich Leifhelm. Com a ajuda da mesa telefô­nica, ligou para a Lufthansa, que atendia durante a noite toda, e lhe garantiram que sua mala seria guardada no aeroporto. Não deu nenhuma outra explicação a não ser que estava viajando há dois dias e duas noites e não estava disposto a esperar pela bagagem no aeroporto. A funcionária podia interpretar suas palavras como entendesse, não importava. A mente de Joel estava em outros assun­tos.

A embaixada americana! O que o espantava era a realidade crua das palavras do velho Beale: ...por trás de tudo estão aqueles encarregados da convicção e esses crescem em número em toda a parte... Estamos na contagem regressiva... três a cinco semanas, é todo o tempo que temos... É real e está chegando. Joel não estava preparado para a realidade. Podia aceitar Delavane e Bertholdier, certamente Leifhelm, mas o choque de saber que pessoas comuns da embaixada — pessoal americano — estavam recebendo ordens da rede de Delavane era paralisante. Até onde Aquitânia já tinha chegado? Qual a extensão coberta por seus seguidores, por sua influência? Os acontecimentos dessa noite seriam a resposta assus­tadora para essas duas questões? Pensaria nisso tudo de manhã. Primeiro precisava se preparar para o homem que viera procurar em Bonn. Estendeu a mão para o dossiê e lembrou-se do pânico súbito e profundo nos olhos de Avery Fowler — nos olhos de Preston Halliday. Há quanto tempo ele sabia? Quanto ele sabia?

 

Não é necessário descrever os feitos de Erich Leifhelm no começo e até o meio da guerra, a não ser dizendo que sua reputação cresceu e, o mais importante, que foi um dos pou­cos oficiais superiores que subiram nas fileiras do partido aceito pelos generais profissionais da velha guarda. Não só o aceitaram, como o procuravam para seus comandos. Homens como Rundstedt e Von Falkenhausen, Rommel e von Treskow; to­dos eles pediram a Berlim que lhes fossem concedidos os ser­viços de Leifhelm. Era indubitavelmente um estrategista brilhante e um oficial ousado, mas havia algo mais. Esses ge­nerais eram aristocratas, parte da classe dominante de antes da guerra na Alemanha, e odiavam os nacional-socialistas, considerando-os assassinos, exibicionistas e amadores. Não é difícil imaginar Leifhelm, sentado entre esses homens, expon­do modestamente o que era claramente notado no seu currícu­lo militar. Era filho do falecido e eminente cirurgião de Munique, Dr. Heinrich Leifhelm, que havia deixado uma for­tuna considerável e propriedades. Entretanto, não precisa­mos fazer conjeturas para compreender o quanto ele se esfor­çou para se insinuar, pois o que se segue é um trecho da en­trevista com o general Rolf Winter, do Standortkommandant Wehrbereischskommando nos setores do Saar.

 

Sentávamos juntos tomando café depois do jantar, nossa conversa muito deprimente. Sabíamos que a guerra estava perdida. As ordens insanas de Berlim, à maioria das quais concordávamos em não obedecer, significavam um massacre completo de soldados e civis. Era loucura, suicídio nacional. E sempre o jovem Leifhelm dizia coi­sas como esta: “Talvez os idiotas me ouçam. Pensam que sou um deles, pensam isso desde os primeiros dias,em Mu­nique...” E nós ficávamos na dúvida. Seria ele capaz de levar alguma sanidade ao front em colapso? Era um bom oficial, muito estimado, e filho de um médico conhecido, como constantemente nos fazia lembrar. Afinal, os pen­samentos dos jovens estavam voltados, naqueles primeiros tempos, para os rugidos cavernosos e perturbadores do Sieg heil, das multidões fanáticas; as bandeiras e os tambores marchando à luz de milhares de tochas ã noite; era tudo tão melodramático, tão wagneriano. Mas Leifhelm era diferente; não era um dos gângsteres; patriota, na­turalmente, mas não um criminoso:.. Assim, enviamos des­pachos, por seu intermédio, para nossos camaradas mais chegados de Berlim, despachos que significariam nossa execução se caíssem em mãos erradas. Disseram que ele tentou de todos os modos, mas não conseguiu levar a sa­nidade aos homens que viviam diariamente com o pavor da morte causada por boatos e comentários. Mas ele conser­vou a própria sanidade - e lealdade -, que eram cons­tantes. Fomos informados por um dos seus ajudantes, não por ele, notem bem - que Leifhelm foi abordado por um coronel da SS, que o seguiu na rua e exigiu que mos­trasse o conteúdo da sua pasta. Ele recusou, e quando foi ameaçado de prisão imediata, matou o homem, para não nos trair. Era um dos nossos. Era um risco nobre e só um bombardeio noturno salvou sua vida.

 

É evidente o que Leifhelm estava fazendo, como é evi­dente também que jamais mostrou os despachos a outra pessoa, e que nem existiu um coronel da SS fuzilado na rua durante um bombardeio aéreo. Segundo Winter, os despachos do Saar eram tão explosivos que alguém teria se lembrado de tê-los vistos, ninguém se recorda. Mais uma vez Leifhelm agarrava uma oportunidade. A guerra estava Pedida, e os nazistas prestes a se tornar os maiores vilões do século XX. Mas não a elite, o corpo de generais era diferente. Ele apagou outra página e aliou-se aos “prussianos”. Teve tanto sucesso que correu o boato de que fazia parte do plano para assassinar Adolf Hitler em Wolfsschanze, e foi convidado para membro da equipe de capitulação de Dönitz.

Durante a guerra fria, o Comando Central Aliado pediu que ele se juntasse aos outros elementos-chaves do corpo de oficiais da Wehrmacht, no Bundesgrenzschutz. Tornou-se um consultor militar importante com plena garantia de seguran­ça. Um matador maduro tinha sobrevivido, e a história, com a ajuda do Kremlin, encarregou-se do resto.

Em maio de 49, foi criada a República Federal, e em se­tembro a ocupação aliada terminou oficialmente. Com a esca­lada da guerra fria e a recuperação notável da Alemanha Oci­dental, as forças da OTAN pediram apoio material e de pes­soal aos seus antigos inimigos. As novas divisões alemãs fo­ram criadas sob o comando do ex-comandante de campo, mare­chal Erich Leifhelm.

Ninguém havia pesquisado as decisões duvidosas das cor­tes de Munique relativas a quase duas décadas atrás; não ha­via sobreviventes e seus serviços eram requisitados pelos vitoriosos. Durante a reconstrução do pós-guerra, quando, por toda a Alemanha, se procurava estabelecer acordos e re­solver resoluções labirínticas, ele recebeu todos os bens e propriedades previamente doados por decreto, incluindo imó­veis de grande valor, em Munique. Assim termina a terceira fase da historia de Erich Leifhelm. A quarta fase que real­mente nos interessa, é a que menos conhecemos. A única coi­sa certa é que se envolveu profundamente na operação do ge­neral Delavane, tanto quanto qualquer outro homem na lista principal de Aquitânia.

 

Bateram na porta. Joel saltou da cama, o dossiê de Leifhelm espalhou-se no chão. Consultou o relógio, com medo e confuso. Quase quatro horas. Quem iria procurá-lo a essa hora? Eles o te­riam encontrado? Oh, Cristo! O dossiê! A pasta!

— Joe...? Joe, está acordado? — A voz era um murmúrio e um grito ao mesmo tempo — um ator falando em sotto voce. — Sou eu, Cal Dowling.

Converse correu para a porta e abriu-a, com a respiração ofe­gante. Dowling estava vestido, com as duas mãos levantadas pe­dindo silêncio e olhando para os dois lados do corredor. Satisfeito, entrou rapidamente, empurrando Joel e fechando a porta.

— Desculpe-me, Cal — disse Converse. — Estava dormindo. Acho que me assustei.

— Sempre dorme com suas calças e com a luz acesa? — per­guntou o ator em voz baixa. — Fale baixo. Verifiquei os corre­dores, mas nunca se sabe o que não se viu.

— Não se sabe o quê?

— Uma das primeiras coisas que aprendemos em Kwajalein, em 44. Uma patrulha não tem sentido a não ser que tenha alguma informação concreta. Do contrário, significa apenas que eles são melhores do que nós.

— Eu ia lhe telefonar para agradecer...

— Deixe disso, companheiro — interrompeu Dowling, sério. — Estou calculando o tempo até o último minuto, que é tudo que temos. Há uma limusine lá embaixo, esperando para me levar para as câmaras que estão a uma hora daqui. Não quis sair do quarto mais cedo porque alguém podia estar andando por aí, e não lhe telefonei porque uma mesa telefônica pode ser vigiada e subornada — pergunte a qualquer pessoa na terra dos doidos. Não me preocupo com a recepção; não gostam muito do nosso pessoal aqui — o ator suspirou. — Quando cheguei ao meu quarto, tudo o que queria era dormir e tudo o que consegui foi um visitante. Estou no outro lado do corredor e estava torcendo para que — se você chegasse — ele não o visse.

— Um visitante?

— Da embaixada. Embaixada dos Estados Unidos. Diga-me, Joe...

— Joel — interrompeu Converse. — Mas não é importante.

— Desculpe-me. Tenho pouca audição no ouvido esquerdo, mas isso também não é importante. Ele passou quase vinte e cinco minutos fazendo perguntas a seu respeito. Disse que fomos vistos conversando no avião. Agora, diga-me, conselheiro, você está limpo, ou meus instintos estão completamente malucos?

Joel olhou firmemente para Dowling:

— Seus instintos estão perfeitos — disse, inexpressivamente. — O homem da embaixada disse o contrário?

— Não exatamente. Na verdade, ele não disse muita coisa. Só que queria falar com você, queria saber por que você veio a Bonn, onde você estava.

— Mas eles sabiam que eu estava no avião?

— Certo, disse que você veio de Paris.

— Então, eles sabiam que eu estava no avião.

— Foi o que eu disse — o que ele disse.

— Então, por que não me esperaram na saída e me pergun­taram pessoalmente?

O rosto de Dowling enrugou-se mais ainda, os olhos se aper­taram, acentuando as linhas na pele bronzeada.

— É, por que não fizeram isso? — perguntou para si mesmo.

— Ele não disse?

— Não, e mesmo só falou sobre Paris quando estava indo embora.

— O que quer dizer?

— Era como se ele pensasse que eu estava escondendo alguma coisa — o que eu não estava —, mas não tivesse certeza. Também sou muito bom nisso, Joe — Joel.

— E se arriscou — disse Converse, lembrando-se de que fa­lava com um homem que vivia se arriscando.

— Não, eu me protegi. Perguntei especificamente se havia alguma acusação contra você, ou coisa parecida. Ele disse que não.

— Mas ele estava...

— Além disso, não gostei dele. Um desses tipos prepotentes. Ficava repetindo as coisas e, quando não conseguiu nada, disse: “Sabemos que ele veio de Paris”, como se estivesse me desafiando. Eu disse que não sabia.

— Não temos muito tempo, mas pode me dizer o que foi que ele perguntou?

— Já disse, queria saber sobre o que conversamos. Eu res­pondi que não tenho um gravador na cabeça, mas que falamos sobre coisas sem importância, o tipo de conversa de quem se encontra em um avião. Sobre o meu programa, os negócios. Mas ele não se contentou com isso; continuou insistindo, o que acabou por me irritar.

— E o que aconteceu?

— Eu disse, sim, falamos sobre outras coisas, mas era muito pessoal, e não era da conta dele. Ficou muito agitado com isso, e eu fiquei mais zangado ainda. Trocamos algumas palavras desagradáveis, mas as dele não eram muito eficazes, ele estava muito tenso. Então, perguntou-me pela décima vez se você tinha dito alguma coisa sobre Bonn, especialmente onde pretendia ficar. E então, pela décima vez, eu lhe disse a verdade — pelo menos o que você me disse. Que você é um advogado, está aqui para se encontrar com clientes e que eu não sabia onde diabo você estava. Quero dizer, na verdade eu não sabia que você estava aqui.

— Ótimo.

— É mesmo? Instintos são muito bons para primeiras reações, conselheiro, mas depois a gente fica pensando. Um cara Ivy League funcionário do governo, sacudindo um cartão de identificação da embaixada e agindo de modo ofensivo, pode ser muito incômodo no meio da noite, mas ele é do Departamento de Estado. Que diabo é isso tudo?

Joel voltou-se e caminhou para perto da cama; olhou para o dossiê de Leifhelm no chão. Voltou-se mais uma vez e falou claramente, ouvindo a exaustão na própria voz:

— Algo em que, por minha vida, não deixaria que você se envolvesse. Mas oficialmente os seus instintos estão certos, compa­nheiro.

— Vou ser franco — disse o ator, os olhos claros com um brilho divertido, rodeados de linhas finas — foi o que pensei. Eu disse para aquele idiota que, se me lembrasse de alguma coisa mais, telefonaria para Walter não sei do quê — só que eu disse Walt — e o avisaria.

— Não compreendo.

— É o embaixador em Bonn. Imagine, com todos os proble­mas que têm aqui, aquele joguete diplomático me ofereceu um almoço, a mim, um mero ator de televisão! Bem, a sugestão do meu telefonema ao embaixador deixou aquele cara mais nervoso do que nunca; ele não esperava. Disse então — três vezes, se estou bem lembrado — que o embaixador não devia ser incomodado com esse problema. Não é tão importante e ele já tem muito com que se preocupar, e que, na verdade, nem estava a par disso. E preste atenção, senhor advogado. Ele disse que você era um “caso” in­terno do Departamento de Estado, como se um ator simplório não soubesse o que significa uma expressão burocrática. Acho que foi aí que eu disse: “Cretinice.”

— Obrigado — disse Converse, sem outras palavras, mas certo agora do que queria saber.

— E foi também quando achei que meus instintos não estavam tão errados. — Dowling consultou o relógio, olhou fixamente para Converse. — Eu fui fuzileiro naval, mas não sou fanático, amigão. Mas gosto da nossa bandeira. Não viveria sob nenhuma outra.

— Nem eu.

— Então fale claro. Está trabalhando para ela?

— Sim, do único modo que sei, e isso é tudo o que posso lhe dizer.

— Está procurando alguma informação aqui em Bonn? Por isso não queria ser visto em minha companhia? Por isso ficou longe de mim em Hamburgo - e quando saímos do avião aqui?

— Sim.

— E aquele filho de uma boa mãe não queria que eu telefo­nasse para o embaixador.

— Não, ele não queria. Ele não quer. Não lhe convém. E por favor, eu lhe peço, não telefone.

— Você é... oh, Cristo! Você é um daqueles agentes secretos que a gente encontra nos livros? Encontro um cara no avião que não pode ser visto quando chega no aeroporto...

— Não é nada tão dramático. Sou um advogado procurando informações sobre uma suposta irregularidade. Por favor, aceite isso. E agradeço muito o que fez por mim. Sou meio novato nisso.

— Você tem sangue-frio, companheiro. Homem, você tem co­ragem. — Dowling voltou-se e caminhou para a porta. Parou e olhou para Converse. — Talvez eu esteja louco — disse. — Na minha idade é permitido, mas há alguma coisa em você, meu jo­vem. Parte vá-em-frente, parte fique-onde-está. Percebi quando fa­lei sobre minha mulher. É casado?

— Fui.

— Quem não é? Fui casado, quero dizer. Desculpe-me.

— Não sou. Nós não somos.

— E quem é? Desculpe-me outra vez. Meus instintos estavam certos. Você está limpo. — Dowling estendeu a mão para a maça­neta da porta.

— Cal?

— Sim?

— Preciso saber. É extremamente importante. Quem era o ho­mem da embaixada? Deve ter-se identificado.

— Sim, identificou-se — disse o ator. — Sacudiu o cartão de identificação na frente do meu rosto quando abri a porta, mas eu estava sem óculos. Mas, quando ele ia sair, deixei bem claro que queria saber quem era.

— Quem era?

— Disse que seu nome é Fowler. Avery Fowler.

 

— Espere!

— O quê?

— O que foi que você disse? — Converse cambaleou sob o impacto do nome. Teve de se apoiar, agarrando o primeiro objeto que encontrou, o pé da cama, para não cair.

— O que está acontecendo, Joe? O que há com você?

— Aquele nome! É uma espécie de piada — uma piada de mau gosto — uma fala medíocre! Você foi colocado naquele avião? Eu caí na armadilha? Faz parte de tudo isso, senhor ator? É muito bom na sua profissão!

— Você está bêbado ou doente. De que está falando?

— Este quarto! Seu bilhete! Tudo! Aquele nome! Toda esta maldita noite é uma armadilha?

— Já é de manhã, meu jovem, e se não gosta deste quarto pode ir para onde quiser, que pouco me importo.

— Em qualquer lugar... — Joel tentava evitar os reflexos ofuscantes do Quai du Mont Blanc e livrar-se do bloqueio áspero na garganta. — Não... eu vim para cá — disse com voz rouca. — Você não podia saber que eu viria. Em Copenhague, no avião... comprei a última passagem de primeira classe, o lugar ao meu lado estava vendido, uma poltrona na passagem.

— É onde sempre viajo. Ao lado da passagem.

— Oh, Jesus!

— Agora, você está delirando — Dowling olhou para o copo vazio sobre a mesa, depois para o aparador, onde havia uma ban­deja de prata com a garrafa de scotch providenciada pelo recepcio­nista. — Quanto já bebeu?

Converse sacudiu a cabeça.

— Não estou bêbado... Desculpe-me. Cristo, eu sinto muito! Você não tem nada a ver com isso tudo. Eles o estão usando — tentando usá-lo para me encontrar! Você salvou meu... meu em­prego... e eu perdi a paciência. Perdoe-me.

— E você não parece estar muito preocupado com um empre­go — disse o ator, a expressão severa demonstrando mais preo­cupação do que zanga.

— Não é o emprego, é... terminar o trabalho. — Joel respirou fundo procurando se controlar, adiando o momento em que teria de encarar as espantosas implicações do que acabava de ouvir. Avery Fowler! — Quero ter sucesso no que estou fazendo; quero vencer — acrescentou em voz inexpressiva, procurando corrigir o lapso que Dowling certamente tinha percebido. — Todos os advogados querem ganhar.

— Naturalmente.

— Sinto muito, Cal.

— Esqueça — disse o ator, a voz despreocupada, mas o olhar demonstrando apreensão. Onde eu trabalho, essas brincadeiras são comuns — só que elas não significam nada. Mas para você significa alguma coisa.

— Não. Eu reagi exageradamente. Já disse que sou novato. Não na advocacia, mas nisto... neste negócio de não poder falar diretamente, acho que é isso.

— Será?

— Sim, por favor, acredite.

— Está certo, se você quer — Dowling consultou outra vez o relógio. — Preciso ir, mas acho que há outra coisa que pode ajudar a salvar — o ator fez uma pausa convincente — esse seu emprego.

— O que é? — perguntou Converse, procurando não se pre­cipitar.

— Quando aquele Fowler estava saindo, comecei a pensar. Primeiro, que eu tinha sido muito duro com um cara que, afinal, estava fazendo o seu trabalho, e segundo, foi um pensamento muito egoísta. Eu não tinha cooperado e isso podia virar contra mim. Naturalmente, se você não tivesse vindo para cá, eles devolveriam meu bilhete e tudo estaria bem. Mas se você voltasse com um cha­péu preto, meu traseiro estaria em um balde cheio de chumbo fer­vendo.

— Essa devia ter sido sua primeira preocupação — disse Joel com sinceridade.

— Talvez tenha sido, eu não sei. De qualquer modo, eu disse a ele que, durante nossa conversa, eu o tinha convidado para tomar uns drinques, para me visitar no local da filmagem, se quisesse. Ele pareceu intrigado com a última parte, mas compreendeu a primeira. Perguntei se devia telefonar para a embaixada a fim de informá-lo, se você aceitasse um dos convites, e ele disse que não, que eu não devia fazer isso.

— O quê?

— Resumindo, ele deixou bem claro que se eu lhe telefonasse ia estragar todo esse “caso interno”. Disse para aguardar o seu telefonema. Vai me telefonar mais ou menos ao meio-dia.

— Mas você vai estar filmando. No local da filmagem.

— Essa é a melhor parte, mas que diabo. Existem telefones móveis no local da filmagem; os estúdios fazem questão, atual­mente. É outro tipo de brincadeira de mau gosto chamada controle orçamentário. Nós recebemos nossos telefonemas.

— Não estou entendendo.

— Então procure entender. Quando ele telefonar, eu chamo você. Devo dizer que você entrou em contato comigo?

Surpreso, Converse olhou para o ator idoso, o homem que enfrentava riscos.

— Você está um bocado na minha frente, não está?

— Você é muito óbvio. Ele também, pensando bem — e eu pensei. Esse Fowler quer encontrar você, mas sozinho, longe da­quela gente que você não quer encontrar. Sabe, quando ele estava na porta e trocamos nossas últimas palavras, alguma coisa não me parecia certa. Ele não conseguia se manter no papel — como você, no avião — mas eu não tinha certeza. Na saída, ele se desmoronou, por assim dizer, e isso não se faz, nem que se tenha um ataque de diarréia... O que digo a ele, Joe?

— Peça o número do telefone, acho.

— Feito. Vá dormir um pouco. Você parece uma estrelinha novata que acaba de saber que vai representar Medéia.

— Vou tentar.

Dowling tirou um pedaço de.papel do bolso.

— Tome — disse, aproximando-se de Converse com o braço estendido. — Não tinha certeza de que ia lhe entregar isto, mas quero que fique com ele agora. É o número do local de filmagem. Telefone depois de ter falado com esse Fowler. Vou ficar um trapo de nervoso até ter notícias suas.

— Dou minha palavra... Cal, o que quis dizer quando mencio­nou a “melhor parte” e sobre esquecer?

O ator lançou a cabeça para trás, em ângulo perfeito para ser ouvido pela platéia.

— O filho da mãe me perguntou o que eu fazia para ganhar a vida... Como dizem no Polo Lounge, ciao, querido.

 

Converse sentou-se na cama, a cabeça latejando, o corpo tenso. Avery Fowler! Jesus! Avery Preston Fowler Halliday! Press Fowler... Press Halliday! Os nomes o bombardeavam, torturando-o e ricochetando nas paredes da sua mente, com ecos uivantes por toda a parte. Não conseguia controlar-se; começou a oscilar, para a frente e para trás, apoiando-se nos braços, sentindo um ritmo es­tranho, a cadência acompanhando o nome — os nomes — do ho­mem que tinha morrido nos seus braços em Genebra. Um homem que ele conhecera quando menino, um adulto que o havia manipu­lado introduzindo-o no mundo de George Marcus Delavane e de uma doença contagiosa chamada Aquitânia.

Esse Fowler quer encontrar você, mas sozinho, longe daquela gente que você não quer encontrar... O julgamento de um homem que enfrentava riscos.

Converse parou de balançar, os olhos no dossiê Leifhelm espalhado no chão. Tinha pensado o pior porque estava além da sua compreensão, mas havia uma alternativa, uma possibilidade ex­terna, nessas circunstâncias, talvez uma probabilidade. O traçado geométrico estava ali; ele não conseguia defini-lo, mas ele estava ali. O nome Avery Fowler não significava coisa alguma para nin­guém, só para ele — pelo menos, não em Bonn, pois fazia parte de um assassinato em Genebra. Dowling estaria certo? Joel pedira ao ator que conseguisse o telefone do homem, mas sem muita convic­ção. A imagem da limusine vermelho-escura entrando na embai­xada não o abandonava. Essa era a conexão que abrangia o choque do nome de Avery Fowler. O homem que o usou era da embaixada, e pelo menos uma parte da embaixada era parte de Aquitânia, por­tanto o impostor fazia parte da armadilha. Essa era a lógica; sim­ples aritmética... mas não era geometria. Supondo que houvesse uma interrupção na linha, a inserção de outro plano que anulasse a progressão aritmética? Nesse caso, teria a forma de uma explicação que ele não conseguiria descobrir a não ser que alguém lhe dissesse.

O choque diminuía; estava encontrando o equilíbrio outra vez. Como fizera freqüentemente nos tribunais e nas salas de conferên­cia, começou a aceitar o totalmente inesperado, sabendo que nada tinha a fazer enquanto algo não acontecesse, algo sobre o qual ele não tinha o menor controle. A parte mais difícil do processo consis­tia em se obrigar a funcionar até que acontecesse, fosse lá o que fosse. Conjeturas eram inúteis; todas as probabilidades estavam além da sua compreensão.

Apanhou o dossiê Leifhelm.

 

Os anos que Erich Leifhelm passou no Bundesgrenzschutz foram excepcionais e é preciso dizer alguma coisa sobre essa organização. No fim de todas as guerras, é necessária uma força policial nacional nos países ocupados, por diversas razões, desde o problema da língua à necessidade de compreen­são, pela potência vencedora, dos costumes e tradições lo­cais. Deve haver um intermediário entre as tropas de ocupa­ção e o povo vencido, para manter a ordem. Há também um pro­blema colateral, raramente analisado nos livros de história, mas nem por isso menos importante. Os exércitos vencidos con­servam seus talentos e, a não ser que sejam utilizados, a humilhação da derrota pode crescer, na melhor das hipóteses destilando-se sob a forma de hostilidades contraprodutivas pa­ra um clima político estável, ou, na pior das hipóteses, gerando subversão interna, que pode levar a violência e a der­ramamento de sangue à custa dos vencedores e de qualquer no­vo governo em formação. Falando francamente, o Quadro de Ge­nerais Aliados reconheceu que tinha nas mãos outro militar brilhante e popular, que não suportaria o anonimato da re­forma antecipada ou a diretoria de uma corporação. O Bun­desgrenzschutz, literalmente: polícia federal de fronteira, era, e é, como todas as organizações policiais, uma força pa­ramilitar, e, como tal, o repositório lógico de homens como Erich Leifhelm. Eles eram os líderes; melhor fazer uso deles do que provocar sua hostilidade. E, como sempre acontece en­tre lideres, há os que se destacam, conduzindo o bando. Du­rante aqueles anos, o mais destacado de todos foi Erich Leif­helm.

Seu trabalho inicial no Grenzschutz foi o de consultor militar durante a desmobilização maciça alemã, depois, chefe de ligação entre a organização policial e as forças aliadas de ocupação. Terminada a desmobilização, suas atividades passaram a se concentrar nas áreas problemáticas de Viena e Berlim, onde estava sempre em contato com os comandantes dos setores americano, inglês e fran-cês. Procurou fazer com que suas convicções definitivamente anti-soviéticas fossem conhecidas nos centros de comando e notadas pelos oficiais su­periores. Cada vez mais insinuava-se na confiança desses ho­mens até que, como tinha acontecido com os prussianos, pas­sou a ser praticamente considerado como um deles.

Foi em Berlim que Leifhelm conheceu o general Jacques-Louis Bertholdier. Desenvolveu-se uma forte amizade, que ne­nhum dos dois queria que fosse divulgada, por causa da anti­ga animosidade entre os militares alemães e franceses. Con­seguimos entrar em contato apenas com três ex-oficiais do co­mando de Bertholdier, que se lembravam, ou estavam dispostos a falar, e afirmaram que viam freqüentemente os dois homens jantando juntos em restaurantes e cafés afastados, absorvidos na conversa, obviamente muito à vontade. Entretanto, quando Leifhelm era chamado ao quartel-general francês em Berlim, as formalidades eram observadas com frieza, os nomes raramente eram usados, especialmente os prenomes, apenas patentes e tí­tulos. Nos últimos anos, como já foi dito acima, os dois negaram ter se conhecido pessoalmente, embora admitindo que seus caminhos talvez se tivessem cruzado.

Se antigamente evitavam a revelação da amizade por mo­tivos de preconceitos tradicionais, as razões atuais são mui­to mais válidas. Ambos são cabeças de lança da organização Delavane. A ordem dos nomes na lista principal tem sua ra­zão de ser. São homens influentes que fazem parte das direto­rias de várias corporações internacionais que negociam com produtos e tecnologia que vão desde a construção de represas até a instalação de usinas nucleares; e, no meio, centenas de subsidiárias por toda a Europa e na África, que podem expe­dir facilmente ordens de venda de armamentos. Como é relata­do em detalhe nas páginas seguintes, pode-se supor que Leifhelm e Bertholdier mantém contato através de uma mulher chamada Ilse Fishbein, em Bonn. Fishbein é seu nome de casada, o ca­samento questionável, no sentido de motivos, uma vez que foi dissolvido há anos quando Yakov Fishbein,um sobrevivente dos campos, emigrou para Israel. Frau Fishbein, nascida em 1942, é a filha ilegítima mais nova de Hermann Göring.

 

Converse colocou o dossiê sobre a cama e apanhou um bloco de notas na mesa-de-cabeceira. Tirou a caneta de ouro Cartier, presente de Val, do bolso da camisa e anotou o nome Ilse Fishbein. Examinou a caneta e o nome. O símbolo de status — a Cartier — era uma lembrança de dias melhores — não, não real­mente melhores, mas pelo menos mais completos. Valerie, por insis­tência dele, tinha deixado a agência de publicidade em Nova Ior­que, com seu horário insano e começara a trabalhar como free-lancer. No seu último dia de trabalho na agência, foi à loja Cartier, onde gastou uma considerável parte do seu salário nesse presente.

Quando ele lhe perguntou o que tinha feito além da sua ascensão meteórica em Talbot, Brooks e Simon para merecer um presente de opulência tão pouco prática, ela respondeu: “Por me convencer a fazer o que eu devia ter feito há muito tempo. Por outro lado, se o trabalho free-lance não der certo, eu roubo a caneta e ponho no prego... Que diabo, você provavelmente vai perdê-la.”

O trabalho free-lance tinha dado resultado e ele não perdeu a caneta.

Ilse Fishbein deu origem a outro tipo de pensamento. Por mais que quisesse enfrentá-la, estava fora de cogitação. Tudo o que Leif­helm sabia tinha sido relatado por Bertholdier em Paris e retrans­mitido por Frau Fishbein, em Bonn. E a comunicação evidente­mente continha uma descrição detalhada e um aviso; o americano era perigoso. Ilse Fishbein, que gozava da confiança de Aquitânia, sem dúvida poderia levá-lo a outros, na Alemanha, que fizessem parte da rede de Delavane, mas aproximar-se dela poderia signifi­car... fosse lá o que fosse que eles pretendiam fazer com ele no momento, e Joel não estava preparado para isso. Contudo, era um nome, uma informação, um fato que não esperava encontrar, e a experiência o ensinara a guardar esse tipo de detalhe bem vivo na mente e revelá-lo, inesperadamente, no momento certo. Ou fazer uso dele pessoalmente, quando ninguém estivesse olhando. Joel era um advogado, e os caminhos da lei antagônica eram um labirinto; tudo o que fosse conservado em segredo constituía terra de nin­guém. Para os dois lados; para o mais paciente, os despojos.

Mas a tentação era tão convidativa. A descendente de Her­mann Göring envolvida com a insurreição dos generais! Na Ale­manha. Ilse Fishbein poderia ser um meio imediato de abrir uma represa de lembranças indesejáveis. Ele tinha nas mãos uma arma aguçada; chegaria a hora de usá-la.

 

As atividades de comando de Leifhelm 2Hno campo, com as di­visões da OTAN na Alemanha Ocidental, foram exercidas duran­te dezessete anos, quando então foi promovido a membro do quartel-general do comando supremo aliado na Europa (SHAPE), perto de Bruxelas, como porta-voz militar dos interesses de Bonn.

Mais uma vez sua atuação foi marcada por atitudes extremas anti-soviéticas, freqüentemente contrariando a abordagem pragmática do seu governo ao plano de coexistência com o Kremlin, e nos últimos meses que esteve no SHAPE era mais apreciado pelas facções anglo-americanas de extrema direita do que pela liderança política de Bonn.

Somente quando o chanceler da República Federal chegou à conclusão de que a política exterior americana, no começo da década de 80, fora tirada das mãos de profissionais e usurpada por ideólogos belicosos, ordenou a volta de Leifhelm a Bonn e criou um posto inócuo para manter o soldado afasta­do.

Leifhelm, porém, nunca fora um tolo simplório e não o foi também no seu novo e improvisado status. Compreendeu por que os políticos haviam criado esse posto; era uma prova de que reconheciam sua força. Por toda a parte as pessoas se voltam para o passado, para os homens que falavam claramente, com sinceridade, e não obscureciam os problemas dos seus países e do mundo, especialmente do mundo ocidental.

Então, ele começou a falar. A principio para grupos de veteranos e organizações dissidentes, onde ex-militares e po­líticos partidários lhe garantiam uma recepção favorável. Ani­mado pelas reações entusiásticas que provocava, Leifhelm co­meçou a procurar platéias mais numerosas, seus pronunciamen­tos cada vez mais estridentes, suas declarações mais provo­cantes.

Um homem ouviu o que ele dizia e ficou furioso. O chanceler soube que Leifhelm havia levado sua semi-politicagem até o próprio Bundestag, insinuando um eleitorado muito maior do que de fato possuía, mas, com a pura força da sua personali­dade, convencendo membros que não deviam ser convencidos. A mensagem de Leifhelm chegou ao chanceler: um exército maior, mais numeroso do que permitiam os acordos com a OTAN; um ser­viço secreto nos moldes da extraordinária Abwehr; uma atua­lização geral dos livros didáticos, retirando todo o material injurioso ou calunioso; campos de reabilitação para os agitadores políticos e para subversivos que se diziam “pensado­res liberais”. Estava tudo ali.

O chanceler não precisava ler mais. Chamou Leifhelm ao seu escritório e exigiu sua demissão na presença de três tes­temunhas. Além disso, deu ordens para que Leifhelm se afas­tasse de todas as áreas da política alemã, que não aceitas­se novos convites para falar e que não emprestasse seu nome nem sua presença a qualquer causa. Devia se afastar comple­tamente da vida pública. Conseguimos entrar em contato com uma das testemunhas, cujo nome não é pertinente a este rela­tório. Lembrou-se do seguinte:

 

“O chanceler estava furioso. Disse para Leifhelm: ‘Herr General, o senhor tem duas opções e, se me perdoa, uma so­lução final. Primeira, faz o que estou mandando. Ou per­derá sua patente e todas as pensões e benefícios finan­ceiros a ela atribuídos, bem como a renda de valiosas propriedades em Munique, as quais, na opinião de qualquer corte legal esclarecida, lhe serão tiradas instantaneamen­te. Essa é a sua segunda opção.’

Eu lhe digo, o marechal-de-campo estava apoplético. Invocou seus direitos, como os chamava, e o chanceler gritou: ‘Já teve os seus direitos, e eles estavam erra­dos! Ainda estão errados.’ Então Leifhelm perguntou qual era a solução final, e eu juro, por mais doido que pare­ça, o chanceler abriu uma gaveta da mesa, apanhou um re­vólver e apontou-o para Leifhelm. ‘Eu próprio o matarei agora mesmo’, disse. ‘Você não vai, eu repito, não vai nos fazer voltar ao passado.’

Por um momento pensei que o velho soldado fosse ata­car e receber uma bala, mas não o fez. Ficou parado, ta­lhando fixamente para o chanceler, os olhos cheios de ódio, enfrentando a expressão fria e decidida do estadis­ta. Então Leifhelm fez uma coisa estúpida. Estendeu o braço, não na direção do chanceler, mas para o outro lado e gritou: ‘Heil Hitler.’ Depois, deu meia-volta com gar­bo militar e saiu da sala.

Ficamos calados por alguns momentos, até o chance­ler quebrar o silêncio: ‘Eu devia tê-lo matado’, disse ele. ‘Ainda vou me arrepender. Nós todos vamos nos arre­pender.’

 

Cinco dias depois desse confronto, Jacques-Louis Bertholdier fez a primeira das suas duas viagens a Bonn, logo de­pois de se ter retirado do Exército. Na primeira visita hos­pedou-se no Hotel Schlosspark, e, como os registros dos ho­téis são conservados por três anos, conseguimos cópias das suas despesas. Houve vários telefonemas de firmas que tinham negócios com Juneau et Cie., muito numerosos para serem ve­rificados individualmente, mas um número estava repetido com muita freqüência e o nome aparentemente nada tinha a ver com os negócios de Bertholdier ou de sua companhia. Era o tele­fone de Ilse Fishbein. Entretanto, depois de examinarmos as contas de telefone de Erich Leifhelm correspondentes a essas datas, verificamos que ele tinha telefonado para Ilse Fish­bein tantas vezes quantas foram as chamadas de Bertholdier. Investigações e vigilância posteriores estabeleceram o fato de que Frau Fishbein e Leifhelm se conhecem há alguns anos. A conclusão é evidente: ela é o contato da organização de Delavane entre Paris e Bonn.

 

Converse acendeu um cigarro. Lá estava o nome outra vez, a tentação outra vez. Ilse Fishbein podia ser o atalho de que precisava. Ameaçada de denúncia, essa filha de Hermann Göring pode­ria revelar muita coisa. Podia confirmar que não só era o contato entre Leifhelm e Bertholdier, como também muito mais, pois os dois generais precisavam trocar informações. Os nomes das compa­nhias, dos subsidiários ocultos e das firmas relacionadas com Delavane em Palo Alto podiam vir à tona, nomes que ele podia pro­cessar legalmente, procurando as contravenções que pudessem exis­tir. Se tivesse um meio de fazer sua presença sentida sem ser visto.

Um intermediário. Havia usado intermediários no passado, o suficiente para conhecer o valor desse processo. Era relativamente simples. Aproximava-se de um terceiro para fazer contato com o adversário com informação que só teria valor para ele se signifi­cassem prejuízo para seus interesses, e, se os fatos apresentados fossem bastante significativos, geralmente se chegava a uma solução equitativa. A ética era duvidosa, mas, ao contrário da crença geral, a ética tinha três dimensões, se não quatro. O fim não justifica os meios, mas meios justificáveis que levam a uma solução justa e necessária não deviam ser postos de lado.

E nada mais justo e mais necessário do que a demolição de Aquitânia. O velho Beale estava certo naquela noite na praia enluarada de Miconos. Seu cliente não era um homem desconhecido de São Francisco, mas uma grande parte do que chamamos de mundo civilizado. Aquitânia precisava ser detida, destruída.

Um intermediário? Era outra coisa que podia adiar até a ma­nhã seguinte. Apanhou o dossiê, com os olhos pesados de sono.

 

Leifhelm tem poucos amigos íntimos que parecem constan­tes, provavelmente por saber que está sob vigilância do go­verno. Faz parte dos quadros de diretores de diversas orga­nizações importantes, as quais declararam francamente que seu nome justifica o que recebe...

 

A cabeça de Joel caiu para a frente. Endireitou-a rapidamente, arregalou os olhos e leu as últimas páginas, absorvendo apenas as impressões gerais; sua concentração estava enfraquecendo. Havia menção de vários restaurantes, os nomes sem sentido; um casa­mento durante a guerra, que terminou quando a mulher de Leif­helm desapareceu em novembro de 43, supostamente vitimada por um bombardeio; nenhuma outra mulher ou mulheres. Sua vida privada era extraordinariamente privada, se não austera; a exceção era o gosto por pequenos jantares, com uma lista de convidados sempre variada, mais nomes, todos sem sentido. O endereço de sua residência nas cercanias de Bad Godesberg... Subitamente Converse retesou os músculos do pescoço, com os olhos atentos.

 

A casa fica bem afastada no campo, no rio Reno e longe de todas as áreas comerciais e concentrações suburbanas. O terreno é rodeado por cercas e guardado por cães que latem ameaçadoramente para todos os veículos que se aproximam ex­ceto o Mercedes vermelho-escuro de Leifhelm.

 

Um mercedes vermelho-escuro! O próprio Leifhelm estava no aeroporto! Leifhelm tinha ido diretamente para a embaixada! Co­mo podia ser? Como?

Era demais para compreender, demais para ele. A escuridão se aproximava, o cérebro de Joel lhe dizia que não podia mais aceitar dados de nenhuma espécie; simplesmente não podia mais funcionar. O dossiê caiu para o lado; ele fechou os olhos e dormiu.

 

Estava mergulhando de cabeça em um buraco cavernoso, forrado de rochas escarpadas, a escuridão no fundo. As paredes irregulares de pedra gritavam freneticamente, uivando como camadas descen­dentes de monstros deformados, com bicos aguçados e garras afia­das que atacavam seu corpo. O clamor histérico era insuportável. Onde estava o silêncio? Por que ele estava mergulhando no nada escuro?

Abriu os olhos; sua testa estava molhada de suor, a respiração ofegante. O telefone na mesa-de-cabeceira tocava, a campainha irregular dissonante. Tentou livrar-se do sono e do medo naquele estado de semiconsciência; estendeu o braço para o instrumento barulhento, consultando o relógio ao mesmo tempo. Doze e quinze, meio-dia e um quarto, o sol entrando pela janela do hotel. Ofus­cante.

— Sim? Alô!

— Joe? Joel?

— Sim.

— Cal Dowling. Nosso amigo telefonou.

— O quê? Quem?

— O tal de Fowler. Avery Fowler.

— Oh, Jesus! — estava voltando, tudo estava voltando. Via-se sentado no Chat Botté, no Quai du Mont Blanc, raios de sol refletindo-se na grade da avenida do lago. Não... não estava em Genebra. Estava no quarto de hotel em Bonn, e há poucas horas mergu­lhara na loucura ao ouvir aquele nome.

— Sim — engasgou, tomando fôlego. - Conseguiu o número do telefone?

— Ele disse que não há tempo para jogos, e além disso ele não está jogando. Você deve se encontrar com ele no lado leste do Alter Zoll o mais cedo possível. Fique por lá que ele o encontrará.

— Isso não é o bastante! — exclamou Converse. — Não de­pois de Paris! Não depois do aeroporto a noite passada! Eu não sou idiota!

— Tive a impressão de que ele não acha que seja — respondeu o ator. — Pediu-me que lhe dissesse uma coisa; acha que isso vai convencer você.

— O que é?

— Espero que esteja dizendo certo; não gosto nem de repetir... Ele disse que um juiz chamado Anstett foi assassinado a noite passada em Nova Iorque. Ele acha que você está sendo aban­donado.

 

Alter Zoll, a antiga torre, parte da fortaleza de Bonn no Reno — arrasada três séculos atrás — era agora um posto turístico rodeado por um gramado cheio de canhões antigos, relíquias de um poder que havia sido dissipado pelas desavenças entre imperadores e reis, sacerdotes e príncipes. Um mosaico sinuoso de pedra vermelha e cinzenta elevava-se sobre o rio imenso, lá embaixo, onde barcos de todos os tipos abriam sulcos na água, acariciando as margens dos dois lados, diligentes e sombrios nas suas tarefas; não era o lago Genebra, nem tampouco as águas verde-azuladas do encantador lago de Como. Contudo, a distância, via-se um espetáculo invejado no mundo todo: o Siebengebirge, as sete montanhas do Westerwald, magníficas, interrompendo a linha do horizonte.

Joel ficou perto do muro baixo, tentando concentrar-se na vista, esperando que ela o acalmasse, mas em vão. A beleza que via estava sendo desperdiçada, não o distraía dos seus pensamentos; nada podia distraí-lo... Lucas Anstett, Tribunal de Apelação Se­gundo Circuito, juiz extraordinário e intermediário entre Joel Con­verse e aquele homem desconhecido de São Francisco. Além do homem desconhecido e do professor aposentado da ilha de Miconos, a única pessoa que sabia o que Joel estava fazendo e por quê. Como fora descoberto, no espaço de dezoito horas ou talvez me­nos? Descoberto e morto!

— Converse?

Joel voltou-se com um movimento brusco da cabeça, o corpo rígido. A uns seis metros, na extremidade de um caminho coberto de cascalho, estava um homem de cabelos claros muito mais moço do que Converse, com trinta e poucos anos; um rosto infantil que envelheceria lentamente, mantendo-se jovem durante muito tempo. Era também mais baixo do que Joel, não muito — 1,75 ou l,80m talvez — com calça cinza-clara e paletó de tecido canelado, a ca­misa branca aberta no pescoço.

— Quem é você? — perguntou Converse com voz rouca.

Um casal passou entre os dois e o jovem fez um movimento com a cabeça, para a esquerda, indicando que Joel devia acompa­nhá-lo. Converse obedeceu e os dois se encontraram ao lado da imensa roda de ferro de um canhão de bronze.

— Muito bem, quem é você? — repetiu Joel.

— O nome da minha irmã é Meagen — disse o homem de cabelos louros. — Assim, para que nenhum de nós cometa um erro, você me diz quem eu sou.

— Como diabos...! — Converse parou, as palavras voltando-lhe à lembrança, palavras murmuradas por um homem agonizante em Genebra. Oh, Cristo, Meg, os meninos.

— Meg, os meninos — disse em voz alta. — Fowler chamava a mulher de Meg.

— Apelido de Meagen, e ela era mulher de Halliday — só que você o conhecia como Fowler.

— Você é o cunhado de Avery.

— Cunhado de Press — corrigiu o homem, estendendo a mão. — Connal Fitzpatrick — acrescentou.

— Então, estamos do mesmo lado.

— Espero que sim.

— Tenho uma porção de perguntas, Connal.

— Não menos do que eu, Converse.

— Vamos começar com beligerância? — perguntou Joel, notando o uso seco do seu sobrenome e soltando a mão de Fitzpa­trick.

O homem piscou várias vezes, depois corou, embaraçado.

— Desculpe-me — disse. — Sou um irmão furioso — dos dois lados — e não tenho dormido muito. Ainda estou funcionando no horário de San Diego.

— San Diego? Não São Francisco?

— Marinha. Sou advogado da base naval.

— Opa! — Converse deu um assobio. — Mundo pequeno.

— Sei tudo sobre geografia — concordou Fitzpatrick. — E você também, tenente. Como pensa que Press conseguiu essa infor­mação? Naturalmente eu não estava em San Diego nessa época, mas tinha amigos.

— Nada é sagrado, então.

— Está errado; tudo é. Tive de manejar muitos cordões para conseguir esse material. Isso foi há cerca de cinco meses, quando Press me procurou e fizemos nosso... acho que você chamaria de contrato.

— Esclareça, por favor.

O oficial da Marinha apoiou a mão no cano do canhão.

— Press Halliday não era apenas meu cunhado, era também meu melhor amigo, mais do que um irmão, creio.

— E você pertence às hordas militaristas? — perguntou Joel, meio em tom de brincadeira, uma interrogação insinuada.

Fitzpatrick sorriu embaraçado, um sorriso de menino.

— Na verdade, isso faz parte de tudo. Ele ficou do meu lado quando eu quis entrar para a Marinha. As forças armadas precisam de advogados, mas as faculdades de direito não falam muito sobre isso. Não vão conseguir nenhuma doação desse lado. Quanto a mim, acontece que gosto da Marinha, e gosto da vida que levo — e dos desafios, acho que os chamaria assim.

— Quem opôs objeções?

— Quem não opôs? Nas nossas duas famílias os piratas — que datam do tempo em que pilhavam as vítimas do terremoto — sem­pre foram advogados. Os dois patriarcas atuais conheciam Press, foram em frente e leram o que eles próprios tinham escrito em suas próprias paredes. Aqui está esse esperto Wasp e esse bom menino católico; ora, se eles se juntarem a um judeu e a um mulato e talvez a um gay não muito escandaloso, terão o mercado jurídico de São Francisco nos bolsos das calças.

— E os chineses e italianos?

— Alguns clubes exclusivos têm ainda restos das gravatas das velhas universidades nos seus armários. Por que sujar a fazenda? Os negócios são fechados nos canais navegáveis, com ênfase em “canais”, não em “navegáveis”.

— E você não quis saber de nada disso, conselheiro?

— Nem Press, por isso ele voltou-se para a prática internacional. O velho Jack Halliday mijou sangue quando Press começou a juntar todos aqueles clientes; depois ficou roxo quando ele acres­centou uma porção de tubarões dos Estados Unidos que queriam realizar negócios no estrangeiro. Mas o velho Jack não podia se queixar; o enteado deslumbrado estava contribuindo generosamente para a linha de fundo.

— E você alegremente vestiu o uniforme — disse Converse, observando os olhos de Fitzpatrick, impressionado pela franqueza que via neles.

— De volta ao uniforme, e muito feliz — com a bênção de Press, legal e não-legal.

— Você gostava dele, não é?

Connal tirou a mão do canhão.

— Eu o amava, Converse. Como amo minha irmã. Por isso estou aqui. Esse foi o nosso contrato.

— Por falar em sua irmã — disse Converse suavemente —, mesmo que eu fosse outra pessoa teria sabido que seu nome era Meagan.

— Estou certo que sim; estava nos jornais.

— Então não foi um teste muito bom.

— Press nunca a chamou de Meagan, a não ser na cerimônia de casamento. Era sempre “Meg”. Eu teria perguntado de qualquer modo, e se você estivesse mentindo eu saberia. Sou muito bom em interrogatório direto.

— Acredito. Qual foi o contrato feito entre você e... Press?

— Vamos andar — disse Fitzpatrick, e enquanto caminhavam na direção da amurada, com o rio sinuoso atrás e as sete montanhas do Westerwald na frente, a distância, Connal começou: — Press me procurou e disse que estava envolvido com algo muito pesado e que não podia deixar. Tinha obtido informações que implicavam um certo número de homens muito conhecidos — ou conhecidos no passado — todos parte de uma organização que podia causar pre­juízo a muita gente e a muitos países. Ele ia impedi-los de fazer isso, mas precisava se afastar da arena da corte para fazer o que devia — legalmente. Eu fiz as perguntas de praxe: se estava envol­vido, se era culpado, esse tipo de coisas, e ele disse que não, não no sentido de poder ser indiciado, mas não tinha certeza de estar com­pletamente a salvo. Naturalmente, eu disse que ele estava louco; devia levar a informação às autoridades e deixar que resolvessem.

— Exatamente o que eu disse a ele — interrompeu Converse.

Fitzpatrick parou de andar e voltou-se para Joel:

— Ele disse que era muito mais complicado do que isso.

— Estava certo.

— Custo a acreditar.

— Ele está morto. Acredite.

— Isso não é resposta!

— Você não fez uma pergunta — observou Converse. — Va­mos andar. Continue. Seu contrato.

Com ar intrigado, o oficial da Marinha começou:

— Era muito simples — continuou. — Ele disse que me infor­maria sempre que precisasse viajar, dizendo também se ia se encon­trar com alguém ligado à sua principal preocupação — era assim que ele chamava o caso — “sua maior preocupação”. E também qualquer coisa que pudesse ser útil se... se... que diabo, se!

— Se o quê?

Fitzpatrick parou outra vez, e disse com voz áspera:

— Se acontecesse qualquer coisa a ele!

Converse esperou passar a emoção do momento.

— E ele lhe disse que ia a Genebra para se encontrar comigo. O homem que tinha conhecido Avery Preston Fowler Halliday como Avery Fowler há mais ou menos vinte anos, na escola.

— Sim. Conversamos sobre isso quando eu consegui para ele as informações sobre você. Ele disse que a hora era certa, as cir­cunstâncias corretas. A propósito, ele achava você o máximo — Connal permitiu que um sorriso breve e contrafeito lhe chegasse aos lábios. — Quase tão bom quanto ele.

— Eu não era — disse Joel, retribuindo o meio sorriso. — Estou ainda tentando descobrir a posição dele em relação às ações Classe B na fusão que estávamos tratando.

— O quê?

— Nada. E sobre Lucas Anstett? Fale-me sobre ele.

— Tem duas partes. Press disse que eles iam trabalhar por intermédio do juiz se você concordasse em...

— Eles? Quem são eles?

— Não sei. Ele jamais me disse.

— Droga! Desculpe-me, continue.

— Disse que Anstett tinha conversado com os sócios da sua firma e eles disseram que, se você concordasse, tudo bem. Essa é a primeira parte. A segunda é uma idiossincrasia pessoal; sou maníaco por noticiários, e, como quase todos desse tipo, estou sempre ligado na AFR.

— Esclareça.

— Rádio das Forças Armadas. Por estranho que pareça, é provavelmente a melhor cobertura jornalística do rádio; é um con­junto das notícias de todas as estações. Tenho um desses rádios pequenos transistorizados com duas faixas de ondas curtas que levo comigo quando viajo.

— Eu costumava fazer isso — disse Converse. — Ligado na BBC, especialmente porque não falam francês — ou qualquer outra língua.

— Eles têm boa cobertura, mas mudam muito de faixa. Mas eu estava escutando a AFR esta manhã e ouvi a história, como aconteceu.

— E como foi?

— Poucos detalhes. Seu apartamento em Central Park South foi invadido mais ou menos às duas da manhã, hora de Nova Iorque. Havia sinais de luta e ele foi baleado na cabeça.

— Isso é tudo?

— Não exatamente. Segundo a governanta, nada foi roubado, portanto roubo estava fora de cogitação. Isso é tudo.

— Jesus! Vou telefonar para Larry Talbot. Ele deve ter mais informações. Não disseram nada mais?

— Só uma breve biografia de um brilhante jurista. A questão é, nada foi roubado.

— Compreendo — disse Joel. — Vou falar com Talbot. — Recomeçaram a andar, para o sul, ao lado da amurada. — A noite passada — continuou Converse — por que disse a Dowling que era da embaixada? Você devia estar no aeroporto.

— Estive naquele aeroporto durante sete horas, indo de balcão em balcão pedindo informações sobre um passageiro, tentando descobrir em que avião você estava.

— Sabia que eu estava vindo para Bonn?

— Beale achava que você devia estar.

— Beale? — perguntou Joel, alarmado. — Miconos?

— Press me deu seu nome e o número do telefone mas disse que eu só devia usar se acontecesse o pior. — Fitzpatrick fez uma pausa. — O pior aconteceu — concluiu.

— O que foi que Beale lhe disse?

— Que você tinha ido a Paris e, ao que ele sabia, estaria em Bonn agora.

— O que mais?

— Nada. Disse que aceitava minhas credenciais, como ele as definiu, porque eu tinha o seu nome e sabia como entrar em contato com ele; só Press podia ter dado essa informação. Mas que qualquer outra coisa eu devia perguntar a você, se achar que tem algo a me dizer. Ele foi tremendamente seco.

— Não podia ser de outro modo.

— Mas ele disse que, se eu conseguisse encontrar você, ele queria me ver em Miconos antes que eu começasse a levantar a voz... “por tudo o que Halliday representava”. Foi o que ele disse. Eu ia esperar mais dois dias por você, se pudesse.

— E depois, o quê? Miconos?

— Não sei ainda. Pensei em telefonar para Beale outra vez, mas ele teria de me dizer muito mais para me convencer.

— E se ele não quisesse? Ou não pudesse?

— Então, eu ia diretamente para Washington falar com quem o Departamento da Marinha sugerisse. Se pensou por um minuto que fosse, que eu ia deixar esse negócio passar por algo que não é, está muito enganado, e Beale também.

— Se tivesse explicado isso a ele, sem dúvida Beale lhe daria mais alguma informação. Você teria ido a Miconos — Converse tirou o maço de cigarros do bolso da camisa; ofereceu a Fitzpa­trick, que balançou a cabeça. — Avery também não fumava — disse Joel, acendendo o isqueiro. — Desculpe-me... Press. — Deu uma tragada.

— Não tem importância; foi esse nome que o trouxe aqui.

— Voltaremos a isso em um minuto. Há uma pequena in­coerência no seu testemunho, conselheiro. Vamos esclarecê-la — apenas para que nenhum de nós cometa um erro.

— Não sei aonde quer chegar, mas continue.

— Disse que ia me dar mais dois dias para chegar a Bonn, certo?

— Sim, se eu conseguisse acomodações, pudesse dormir e me agüentar.

— Como sabia que eu não tinha chegado há dois dias?

Fitzpatrick olhou para Joel.

— Sou oficial advogado da Marinha há oito anos, como assistente da defesa e promotor em situações variadas — nem sempre corte marcial. Têm me mandado para a maioria dos países nos quais Washington mantém acordos recíprocos.

— Isso é impressionante, mas eu não estou na Marinha.

— Você esteve, mas eu não queria usar esse argumento se não fosse preciso, e não usei. Fui para Düsseldorf, mostrei minha iden­tidade naval para o Inspektor de imigração e pedi a cooperação dele. Ha sete aeroportos internacionais na Alemanha Ocidental. Em cin­co minutos o computador descobriu que você não tinha embarcado em nenhum deles nos últimos três dias, exatamente o que me inte­ressava saber.

— Mas então você teve de chegar a Colônia-Bonn.

— Cheguei depois de quarenta minutos e telefonei para o Ins-pektor. Nenhum Converse tinha chegado, e a não ser que você ti­vesse atravessado a fronteira incógnito — uma habilidade que acho que conheço mais do que você — teria de desembarcar cedo ou tarde.

— Você é persistente.

— Já lhe dei meus motivos.

— E Dowling e aquele negócio de embaixada, no hotel?

— A Lufthansa tinha seu nome na lista de passageiros de Ham­burgo — não imagina como fiquei aliviado. Não saí de perto do balcão de desembarque, para o caso de haver algum atraso ou qualquer coisa assim, quando aqueles três caras da embaixada apa­receram, exibindo suas identificações, o chefe deles falando um alemão péssimo.

— Você percebeu que ele falava mal o alemão?

— Eu falo alemão... e francês, italiano e espanhol. Tenho de tratar com pessoas de várias nacionalidades.

— Vou deixar passar essa.

— Acho que por isso sou um capitão-de-corveta aos trinta e quatro anos. Eles me mantêm sempre em movimento.

— Também passa. O que chamou sua atenção no pessoal da embaixada?

— Seu nome, naturalmente. Queriam confirmação de que você estava no vôo oito-dezessete. O funcionário da empresa olhou para mim e eu balancei a cabeça; ele cooperou, sem interromper o que estava dizendo. Sabe, eu lhe dei alguns marcos, mas não foi por isso. Essa gente não gosta das autoridades americanas.

— Ouvi dizer isso a noite passada. De Dowling. Como foi que ele entrou na história?

— O próprio Dowling, mais tarde. Quando o avião chegou fiquei na parte de trás da seção de bagagens; os rapazes da embai­xada estavam na entrada, ao lado dos portões, a uns vinte metros. Nós todos esperamos até a última mala na esteira rolante. Era a sua, mas você não apareceu. Afinal, uma mulher saiu do avião e o contingente da embaixada a rodeou, todo o mundo excitado e zan­gado. Ouvi seu nome, mas isso foi tudo, porque a essa altura eu tinha resolvido voltar e falar com o recepcionista do aeroporto.

— Para saber se eu tinha realmente vindo naquele avião? — perguntou Converse. — Ou se eu não ia aparecer.

— Sim — concordou Fitzpatrick. — Ele foi até engraçado. Eu me senti como se estivesse subornando um jurado. Dei-lhe o di­nheiro e ele me disse que Caleb Dowling — que aparentemente eu devia conhecer — falara com ele, quando desembarcou.

— E deixou instruções — disse Joel interrompendo, em voz baixa.

— Como sabe?

— Eu encontrei uma parte delas no hotel.

— Era isso, o hotel. Dowling disse ao funcionário do aeroporto que tinha conhecido um advogado no avião, um americano cha­mado Converse, que viajara com ele desde Copenhague. Estava preocupado porque seu amigo talvez não conseguisse acomodações em Bonn, e, se ele pedisse alguma sugestão à Lufthansa, deviam mandá-lo para o Hotel Königshof.

— Então você somou dois mais dois e resolveu ser um dos homens da embaixada que não me haviam encontrado — disse Converse sorrindo. — Para interrogar Dowling. Quem de nós dois se aproveitou de uma testemunha hostil?

— Exatamente. Eu mostrei minha identificação da Marinha e disse que era um adido naval. Francamente, ele não foi muito cooperativo.

— E você não foi muito convincente, de acordo com a crítica teatral de Dowling. Eu também não. Por mais estranho que pareça, foi por isso que ele resolveu promover este encontro. — Joel parou, apagou o cigarro na amurada e jogou-o no chão. — Muito bem, comandante, passou pelo inquérito, ou teste, ou não sei como chamam isso. Onde ficamos? Você fala a língua e tem conexões no governo, que eu não tenho. Você pode ajudar.

O oficial da Marinha ficou imóvel; olhou para Joel, piscando com a claridade, mas completamente concentrado.

— Farei o que puder — começou lentamente —, desde que faça sentido para mim. Mas precisamos nos entender, Converse. Não estou dando mais de dois dias. É tudo o que você tem — o que nós temos, se eu subir a bordo.

— Quem determinou esse limite?

— Eu determinei. Estou determinando agora.

— Pode não funcionar desse modo.

— Quem disse?

— Eu disse. Estou dizendo agora — Converse começou a an­dar ao longo da amurada.

— Você está em Bonn — disse Fitzpatrick, alcançando-o, sem impaciência ou súplica nos passos ou na voz, apenas controle. — Esteve em Paris e veio para Bonn. Isso significa que sabe alguns nomes, que conhece algumas áreas de evidência, tanto concretas como por ouvir dizer. Quero que me diga tudo.

— Precisa me convencer melhor, comandante.

— Fiz uma promessa.

— A quem?

— A minha irmã! Pensa que ela não sabe? Press estava obce­cado. Durante quase um ano ele levantava durante a noite e andava pela casa, falando sozinho, afastando-se dela. Era uma obsessão e ela não conseguia derrubar a barreira. Precisava conhecer os dois para compreender isso, mas viviam bem, viviam muito bem. Sei que é meio fora de moda hoje em dia, um casal com uma porção de filhos, que ainda se ama, que mal pode esperar o reencontro quan­do têm de se separar por algum tempo, mas eles eram assim.

— É casado, comandante? — perguntou Joel, continuando a andar.

— Não — respondeu o homem da Marinha, obviamente con­fuso com a pergunta. — Mas pretendo me casar. Talvez. Como já disse, viajo muito.

— Press também viajava... Avery.

— Aonde quer chegar, conselheiro?

— Ao que ele estava fazendo. Ele conhecia os perigos e sabia o que podia perder. Sua vida.

— Por isso eu quero os fatos! O corpo de Press chegou ontem. Os funerais serão amanhã e não vou estar lá porque fiz esta pro­messa a Meagen! Pretendo voltar, mas com tudo o que preciso para estourar com essa maldita coisa!

— A única coisa que vai fazer é implodi-la, enterrando-a por algum tempo, se não for detido antes disso.

— Essa é a sua opinião.

— É tudo o que tenho.

— Não acredito!

— Pois não acredite. Volte e comece a falar sobre o que ouviu dizer, sobre um crime em Genebra, que todo o mundo diz que foi assalto para roubar, ou um crime em Nova Iorque, que está sendo considerado e talvez fique sempre assim, como algo que não é. Se mencionar um homem de Miconos, acredite, ele vai desaparecer. Onde está, comandante? Será um excêntrico, afinal, um irmão de sangue de Press Halliday, que invadiu um posto militar e queimou seu cartão de recrutamento nos bons e velhos dias de vinho e ma­conha?

— Isso é um amontoado de bobagens!

— Está nos arquivos, comandante. A propósito, como auditor de guerra, quantos oficiais você condenou?

— O quê?

— Como advogado de defesa, quantos casos perdeu?

— Tive minha quota de ganhos e perdas, a maioria de ganhos, francamente.

— A maioria? Francamente? Sabe que certas pessoas podem tomar quinze números, inserir o que chamam de variáveis e fazer com que as estatísticas demonstrem o que eles querem que de­monstrem?

— O que isso tem a ver com o caso? Com a morte de Press, seu assassinato?

— Oh, ficaria surpreso, comandante Fitzpatrick. Sob essas di­visas pode estar um traidor, talvez um agente provocador, com um uniforme que não devia estar usando.

— De que diabo está falando?... Ora, esqueça, não quero sa­ber. Não sou obrigado a ouvir você, mas tem de me ouvir! Você tem dois dias, Converse. Estou a bordo ou não?

Joel parou e observou atentamente o jovem ao seu lado — jovem e não tão jovem, com sugestões de linhas em volta dos olhos zangados.

— Você não está nem na mesma frota — disse Converse, com voz cansada. — O velho Beale tinha razão. A decisão é minha e resolvi não lhe dizer nada. Não o quero a bordo, marinheiro. Você é um cara esquentado e me aborrece.

Joel deu meia-volta e se afastou.

 

— Certo, corta! Pode copiar. Belo trabalho, Cal, quase acreditei nessa bobagem. — O diretor, Roger Blynn, verificou a prancheta que lhe apresentava a encarregada do script e deu instruções ao chefe dos câmaras, antes de se dirigir à mesa de produção.

Caled Dowling ficou sentado sobre a grande rocha, na encosta da colina sobre o Reno; passou a mão na cabeça de um bode fedo­rento que acabava de defecar na ponta da sua bota.

— Gostaria de tirar o resto dessa porcaria de dentro de você, companheiro — disse em voz baixa —, mas não ia combinar com minha imagem tão bem promovida.

O ator levantou-se espreguiçando-se, sabendo que os curiosos do outro lado da corda que demarcava o local de filmagem o obser­vavam, enquanto conversavam sem parar, como turistas no zoológico. Dentro de alguns minutos ele ia andar — não, não andar, dar alguns passos lentos — até a armação de um dos refletores, soltar a corda presa nele e misturar-se à multidão de fãs. Nunca se cansava disso, provavelmente por ter começado tão tarde em sua vida e porque era um símbolo de tudo o que ele e a mulher podiam ter no momento. Além disso, vez por outra havia algo extra: a presença dos seus ex-alunos, que geralmente se aproximavam com cautela, temendo que a comunicação amistosa estabelecida na sala de aula não tivesse resistido ao ataque da fama, ou se, tivesse afogado na onda imensa do que chamavam de estrelato. Cal tinha boa memó­ria para rostos, e em geral conseguia lembrar pelo menos um dos nomes das pessoas que conhecia, portanto, nessas ocasiões, inva­riavelmente olhava para um dos seus ex-discípulos e perguntava se já tinha terminado o trabalho que ele pedira. Ou caminhava dire­tamente para ele — ou ela — e pedagogicamente perguntava algo como: “Entre os cronistas cujos trabalhos Shakespeare usou para suas histórias, quem teve o maior impacto em sua linguagem, Da­niel, Holinshed ou Froissart?” Se a resposta era Froissart, ele batia com a mão na perna e exclamava alguma coisa como: “Quente, quente, vaqueiro! Você acaba de domar um potro teimoso!” Todos riam e geralmente se reuniam mais tarde para drinques e reminis­cências.

Era uma boa vida, quase perfeita. Se ao menos alguns raios de sol conseguissem entrar nos cantos escuros da mente de sua mulher! Então, ela estaria ali, naquela colina em Bonn conversando com seu modo calmo e cheio de vivacidade com aquelas pessoas do outro lado das cordas — especialmente com as mulheres da idade dela —, dizendo que seu marido era exatamente igual aos maridos delas; sempre jogava as meias usadas no chão e era um desastre na cozinha; o povo gostava de ouvir essas coisas, mesmo quando não acreditava. Mas a luz do sol jamais chegou àqueles cantos escuros. E sua Frieda estava em Copenhague, caminhando pelas praias da ilha de Sjaelland, tomando chá nos jardins botânicos, esperando o telefonema do marido dizendo-lhe que teria alguns dias livres e ia sair da odiada Alemanha. Dowling olhou para a equipe eficiente e para os espectadores curiosos; as conversas eram pontuadas com risos e também com respeito. Não era um povo para ser odiado.

— Cal? — a voz de Blynn, o diretor, que caminhava rapida­mente pela encosta da colina. — Tem uma pessoa à sua procura.

— Espero que seja mais de uma, Roger. Do contrário, os ho­mens que se intitulam nossos empregadores estão me pagando de­mais.

— Não para este monte de kitsch. — O sorriso desapareceu dos lábios do diretor, quando chegou perto de Dowling. — Está em alguma encrenca, Cal?

— Constantemente, mas não dá para notar.

— Falo sério. Está aí um homem da polícia alemã — polícia de Bonn. Quer falar com você e diz que é urgente.

— Falar sobre o quê? — Dowling sentiu uma dor súbita no estômago; o medo que vivia com ele.

— Não disse. Só que era uma emergência e queria falar com você em particular.

— Oh, Cristo! — murmurou o ator. — Freddie!... onde está ele?

— No seu trailer.

— No meu...

— Calma — disse Blynn. — Aquele doublé, Moose Rosen­berg, está com ele. Se ele mexer em um cinzeiro, aquele gorila o atira contra a parede.

— Obrigado, Roger.

— Ele falou sério quando disse “em particular”!

Dowling não ouviu estas últimas palavras; correu para o pe­queno trailer que usava nos seus breves períodos de descanso. Re­zava, a ninguém em particular, para que fossem boas notícias, pre­parando-se para o pior.

Não era nem uma coisa nem outra, apenas outra complicação de um enigma. Frieda Dowling nada tinha a ver com o caso; tra­tava-se de Joel Converse, um advogado americano. O doublé saltou do trailer, deixando Caleb e o policial sozinhos. O homem não estava de uniforme, seu inglês era fluente, seus modos vagamente formais mas delicados.

— Desculpe-me por incomodá-lo, Herr Dowling — disse o ale­mão, em resposta às perguntas ansiosas de Caleb sobre sua mulher. — Não sabemos nada sobre Frau Dowling. Ela está doente, por acaso?

— Não tem passado muito bem ultimamente. Está em Cope­nhague.

— Sim, sabemos disso. O senhor vai a Copenhague com freqüência?

— Sempre que posso.

— Ela não quer ficar com o senhor aqui em Bonn?

— Seu nome de solteira é Oppenfeld, e da última vez que esteve na Alemanha não foi tratada como um ser humano. Suas lembranças são, por assim dizer, extremamente memoráveis. Vol­tam a ela com uma boa quantidade de azedume.

— Sim — disse o policial, olhando para Caleb fixamente. — Viveremos com isso por muitas gerações.

— Espero que sim — disse o ator.

— Eu nem existia, Herr Dowling. Sinto-me feliz por ela ter sobrevivido, sinceramente.

Dowling, sem saber por quê, baixou a voz, suas palavras quase inaudíveis, se não involuntárias:

— Os alemães a ajudaram.

— Exatamente o que eu esperaria que fizessem — disse o ale­mão em voz baixa. — Entretanto, o que me interessa é um homem que viajou ao seu lado ontem à noite, nos vôos Copenhague-Hamburgo e Hamburgo-Bonn. Chama-se Joel Converse, um advo­gado americano.

— O que há com ele? A propósito, posso ver sua identifi­cação?

— Certamente. — O policial retirou o cartão plastificado do bolso e estendeu-o para Dowling, que colocou os óculos. — Espero que tudo esteja em ordem — acrescentou o homem.

— O que é este Sonder Dezernat? — perguntou Dowling, len­do as letras miúdas do cartão.

— A melhor tradução é “especial” — “seção” ou “departa­mento”. Somos uma unidade do Bundespolizei, a polícia federal. Investigamos os assuntos que o governo considera mais delicados do que os casos comuns da jurisdição normal.

— Isso não diz nada, e você sabe disso — observou o ator. — Dizemos coisas como essas nos filmes e elas passam despercebidas porque ajuntamos todas aquelas reações, mas você não é Helmut Dantine ou Martin Kosleck, e eu não sou Elissa Landi. Troque em miúdos.

— Muito bem, vou trocar em miúdos. Interpol. Um homem morreu num hospital de Paris em conseqüência dos ferimentos in­fligidos por um americano, Joel Converse. Seu estado de saúde foi diagnosticado como em recuperação, mas infelizmente isso foi tem­porário; foi encontrado morto esta manhã. A morte é atribuída a uma agressão não-provocada de Herr Converse. Sabemos que ele estava no vôo Colônia-Bonn e que, segundo a aeromoça, o senhor conversou com ele durante três horas e meia. Queremos saber onde ele está. Talvez possa nos ajudar.

Dowling tirou os óculos, baixou o queixo e engoliu em seco.

— E acha que eu sei?

— Não temos a mínima idéia, mas falou com ele. E espero que saiba que as penalidades para recusa de informação sobre um fugi­tivo são muito severas, especialmente sobre um homem procurado por assassinato.

O ator passou os dedos pelas hastes dos óculos, seus instintos em conflito, agitados. Caminhou até a cama e sentou-se, levan­tando os olhos para o policial.

— Por que não confio em você? — perguntou.

— Porque se lembra de sua mulher e não acredita em nenhum alemão — respondeu o homem. — Sou um homem da lei e da paz, Herr Dowling. A ordem é algo que as pessoas escolhem pessoal­mente, eu inclusive. O relatório que recebemos afirma que esse Converse pode estar muito perturbado.

— Não me pareceu perturbado. Na verdade, achei que tem uma ótima cabeça. Disse um bocado de coisas muito inteligentes.

— Que o senhor queria ouvir?

— Nem todas.

— Mas uma boa parte, quase todas.

— O que quer dizer?

— Um homem insano é muito convincente; ele joga de todos os lados, sempre fazendo as coisas penderem para o seu. É a essên­cia da loucura, da psicose, das suas próprias convicções.

Dowling colocou os óculos na cama, respirando fundo, sen­tindo outra vez aquela dor no estômago.

— Um insano? — disse, sem convicção. — Não acredito.

— Então dê-nos uma oportunidade para provar que está com a razão. Sabe onde ele está?

O ator olhou para o alemão com os olhos semicerrados:

— Dê-me um cartão, ou um telefone onde possa encontrá-lo. Ele pode entrar em contato comigo.

 

— Quem foi o responsável? — O homem com robe de seda ver­melha estava sentado atrás da mesa, na semi-obscuridade, a lâmpa­da com pé de bronze formando um círculo luminoso à sua frente, o bastante para que se notasse o mapa imenso na parede, atrás dele. Era um mapa estranho, não do mundo todo, mas de fragmentos do mundo. As nações eram bem definidas, mas com sombras estra­nhas, cores fantasmagóricas, como se tivessem tentado criar uma única extensão de terra, juntando áreas geográficas separadas. In­cluía toda a Europa, grande parte do Mediterrâneo e alguns trechos da África. E como se a imensa extensão do Oceano Atlântico fosse um mero traço de união azul, o Canadá e os Estados Unidos estavam incluídos nessa entidade misteriosa.

O homem olhava fixamente para a frente. Seu rosto marcado pela idade, queixo quebrado, nariz aquilino e lábios finos, parecia moldado em pergaminho; o cabelo grisalho cortado curto combi­nava perfeitamente com os traços rígidos. Ele falou outra vez; sua voz era alta, sem ressonância mas com um tom inegável de co­mando. Era fácil imaginar essa voz com mais volume — num tom febril, mesmo — como a de um gato miando em um lago gelado. Mas não estava elevada agora; era a própria essência da urgência tranqüila.

— Quem foi o responsável? — repetiu. — Ainda está na linha, Londres?

— Sim — respondeu o homem que tinha telefonado da Grã-Bretanha. — Sim, naturalmente. Estou tentando pensar, ser justo.

— Admiro isso, mas precisamos tomar decisões. Ao que tudo indica, as responsabilidades serão compartilhadas, simplesmente precisamos conhecer a seqüência. — O homem fez uma pausa; quando continuou a falar, a voz adquiriu subitamente intensidade, afastando-se por completo do tom anterior. Era o miado agudo do gato através do lago coberto de gelo: — Como foi que a Interpol se envolveu?

Assustado, o inglês respondeu prontamente, com frases entrecortadas, as palavras se atropelando:

— O ajudante de Bertholdier foi encontrado morto às quatro horas da manhã, hora de Paris. Aparentemente devia receber medi­cação àquela hora. A enfermeira chamou a Sûreté...

— A Sûreté? — gritou o homem sentado na frente do mapa fragmentado. — Por que a Sûreté! Por que não Bertholdier? Era empregado dele, não da Sûreté!

— Esse foi o erro — disse o inglês. — Ninguém sabia que a recepção do hospital tinha instruções a respeito — aparentemente deixadas por um inspetor chamado Prudhomme, que foi acordado para receber a notícia da morte do homem.

— E foi ele que chamou a Interpol?

— Sim, mas tarde demais para interceptar Converse na imi­gração alemã.

— Pelo que devemos ser profundamente gratos — disse o ho­mem, baixando a voz.

— Normalmente o hospital teria esperado para avisar Berthol­dier de manhã. Como disse, o paciente era um empregado, não um membro da família. Depois disso, sem dúvida o arrondissement policial seria informado e finalmente a Sûreté. E então nossa gente já estaria devidamente colocada e capaz de evitar o envolvimento da Interpol. Ainda podemos detê-los, mas levará alguns dias. Trans­ferências de pessoal, novas provas, correções no arquivo, precisa­mos de tempo.

— Eles não perdem tempo.

— Foram aquelas malditas instruções.

— Que ninguém teve a idéia de verificar — disse o homem na frente do mapa sombrio. — Os instintos desse Prudhomme foram ativados. Muita gente rica, muita influência, circunstâncias muito estranhas. Ele fareja alguma coisa.

— Nós o tiraremos do caso, em alguns dias — disse o inglês. — Converse está em Bonn, sabemos disso. Estamos fechando o cerco.

— A Interpol e a polícia alemã também. Não preciso lhe dizer como isso pode ser trágico.

— Temos alguns controles na embaixada americana. O fugi­tivo é americano.

— O fugitivo possui informação! — insistiu o homem sentado à mesa de trabalho, com o punho fechado no círculo de luz. — Quanta e dada por quem, não sabemos e precisamos saber.

— Não descobriram nada em Nova Iorque? O juiz?

— Só o que Bertholdier já suspeitava e o que eu fiquei sa­bendo assim que ouvi seu nome. Anstett voltou depois de quarenta anos, mas apenas como um intermediário, ainda me caçando, ainda querendo o meu pescoço. Muito bem, ele se foi e sua santa hones­tidade com ele. O caso é que Converse não é o que diz ser. Agora, encontre-o!

— Como já disse, estamos fechando o cerco. Temos mais fon­tes, mais recursos do que a Interpol. Ele é um fugitivo americano em Bonn que, ao que sabemos, não fala a língua. Não tem muitos lugares para se esconder. Nós o encontraremos; nós o dominaremos e vamos descobrir quem o mandou. Depois, acabamos imediata­mente.

— Não! — o gato gritou outra vez através do lago gelado. — Nós vamos fazer o jogo dele! Nós o receberemos de braços aber­tos. Em Paris ele falou sobre Bonn, Telavive, Joanesburgo; por­tanto nós vamos fazer a vontade dele. Entregue-o a Leifhelm — ou melhor, faça com que Leifhelm vá até ele. Chame Abrahms de Israel, Van Headmer da África e, sim, Bertholdier de Paris. Obvia­mente ele já sabe quem são. Ele alega querer uma reunião de con­selho, quer ser um dos nossos. Portanto, realizaremos o conselho e ouviremos as suas mentiras. Ele nos contará mais com suas men­tiras do que com a verdade.

— Eu realmente não estou compreendendo.

— Converse é uma ponta de lança, mas apenas isso. Está explorando, estudando o terreno, tentando compreender as forças táticas que estão à sua frente. Se fosse mais, ele teria ido direta­mente às autoridades legítimas e usaria métodos legais. Não teria motivo para usar um falso nome ou dar informação falsa — ou para fugir, dominando pela força um homem que pensou que ia detê-lo. É um batedor da infantaria com alguma informação mas não sabe onde está indo. Muito bem, um batedor pode ser apa­nhado em uma armadilha, sua companhia toda detida. Oh, sim, devemos fazer a reunião que ele quer.

— Permita-me dizer que é extraordinariamente perigoso. Ele deve saber quem o recrutou, quem lhe forneceu os nomes, suas fontes. Podemos dominá-lo fisicamente, usando drogas para conse­guir essa informação.

— Provavelmente ele não sabe — explicou o homem, paciente.

— Batedores de infantaria não têm o privilégio de conhecer as de­cisões do comando; francamente, se soubessem, voltariam do meio do caminho. Precisamos saber mais sobre esse Converse, e às seis horas da noite de hoje terei na mão todos os relatórios, todos os resumos, todas as palavras que já foram escritas a respeito dele. Há alguma coisa que não estamos vendo.

— Já sabemos que é um homem de iniciativa — disse o inglês.

— Pelo que podemos deduzir das informações de Paris, é um advo­gado ilustre. Se descobrir nossos planos ou escapar de nossas mãos, pode ser catastrófico. Pois então terá conhecido nossos homens, falado com eles.

— Então, quando o encontrar, não o perca de vista. Amanhã terei mais instruções para você.

— Amanhã?

— Os relatórios que estão sendo recolhidos no país inteiro. Para fazer o que Converse está fazendo, é necessária uma manipulação muito cuidadosa, muito completa, a instalação de um impulso motor. Precisamos descobrir esses manipuladores. Não são quem pensamos. Amanhã falo com você.

George Marcus Delavane colocou o telefone no gancho e lenta e desajeitadamente virou o corpo na cadeira. Olhou para o mapa estranho e fragmentado, enquanto a primeira luz da manhã incen­diava o céu, o brilho alaranjado entrando pelas janelas. Então, com esforço, segurando com força os braços da cadeira, virou o corpo novamente, os olhos fixos no lago de luz sobre a mesa. Levou as mãos à cintura e cuidadosamente, tremendo, desabotoou o casaco de veludo vermelho-escuro, forçando os olhos para baixo, obrigando-se a observar mais uma vez a terrível verdade. Seu olhar passou pelo cinto de couro de dez centímetros que mantinha o corpo na posição, e ele então ordenou aos próprios olhos que focalizassem, que aceitassem com ódio o que lhe haviam feito.

Não havia nada a não ser a borda do assento de aço espesso e, mais abaixo, a madeira polida do assoalho. As pernas longas e fortes que haviam transportado o corpo musculoso e sempre em forma nas batalhas na neve e na lama, em triunfantes desfiles à luz do sol, em cerimônias de honrarias e desafios, lhe tinham sido roubadas. Os médicos haviam dito que suas pernas doentes eram um instrumento letal que levaria a morte a todo o seu corpo. Fe­chou os punhos e os apoiou sobre a mesa, um grito silencioso preso na garganta.

 

— Que diabo, Converse, quem você pensa que é? — exclamou Connal Fitzpatrick com voz baixa e furiosa, alcançando Joel, que caminhava rapidamente entre as altas árvores, perto do Alter Zoll.

— Alguém que conheceu Avery Fowler quando menino e viu um homem chamado Press Halliday morrer em Genebra, duzentos anos depois — respondeu Converse, apressando o passo na direção dos portões do monumento nacional onde ficavam os táxis.

— Não venha com essa conversa! Eu conheci Press muito me­lhor e por mais tempo do que você. Pelo amor de Deus, ele era casado com minha irmã! Fomos amigos íntimos durante quinze anos!

— Você parece um garoto brincando de quem manda mais. Desapareça.

Fitzpatrick correu e deu uma volta brusca, colocando-se na frente de Joel.

— É verdade! Por favor, posso ajudar, eu quero ajudar! Eu falo a língua, você não! Eu tenho contatos aqui, você não tem.

— Você tem também suas idéias sobre um prazo fixo, e eu não tenho! Saia do meu caminho, marinheiro.

— Ora, vamos — implorou o oficial da Marinha. — Está bem, então não consegui tudo o que queria. Não me deixe de fora.

— Como disse?

Fitzpatrick passou o peso do corpo de um pé para o outro, embaraçado.

— Joga duro, não é, conselheiro?

— Não quando não conheço as circunstâncias.

— Às vezes, é um meio de vir a conhecê-las.

— Não comigo.

— Então, meu erro foi não conhecer você; as circunstâncias estavam além dessa área. Com alguém diferente, podia ter dado certo.

— Agora está falando sobre táticas, mas falava sério quando disse “dois dias”.

— Pode estar certo que sim — concordou Connal, assentindo com a cabeça. — Porque eu quero tudo o que já sabe, quero que o responsável pague por isso! Estou furioso, Converse, danado da vida. Não quero que essa coisa se arraste ou seja esquecida. Quan­to mais tempo ficamos sem fazer nada, menos importante ela pa­rece; você sabe disso tanto quanto eu, melhor talvez. Já tentou reabrir um caso antigo? Eu já, algumas cortes marciais que, na minha opinião, tinham sido mal julgadas. Muito bem, aprendi uma coisa: o sistema não gosta disso! Sabe por quê?

— Sim, eu sei — disse Joel. — Há muitos casos novos nos tribunais, é muito mais gratificante trabalhar com eles.

— Bingo, conselheiro. Press merece mais do que isso. Meagen merece coisa melhor.

— Sim, ele merece — eles merecem. Mas há um problema que Press Halliday compreendia melhor do que nós. Em poucas pa­lavras — e cruelmente — sua vida não era tão importante, compa­rada com o que ele pretendia fazer.

— É mais do que cruel — disse o oficial.

— E mais do que exato — respondeu Converse. — Seu cunha­do teria lhe dado uma sova por se meter nisso e tentar impor condições. Volte, comandante. Volte para os funerais.

— Não, eu quero subir a bordo. Retiro o prazo.

— Muita delicadeza de sua parte.

— Você dá as ordens — disse Fitzpatrick, assentindo outra vez com a cabeça, respirando fundo, vencido. — Farei o que mandar.

— Por quê? — perguntou Joel fitando-o nos olhos.

O advogado da Marinha não hesitou; disse simplesmente:

— Porque Press confiava em você. Ele dizia que você era o máximo.

— Depois dele — acrescentou Converse, relaxando um pouco os músculos do rosto, com a sugestão de um sorriso. — Muito bem, acredito em você, mas há certas regras básicas. Ou você as aceita ou, como diz, não sobe a bordo.

— Vamos ver quais são. Eu vou estremecer apenas mental­mente, para que você não perceba.

— Sim — concordou Joel —, você vai estremecer. Para co­meçar, só lhe direi o que achar que deve saber, em cada situação. Qualquer outra teoria será por sua conta; assim posso agir livre­mente, você não pode de modo nenhum modificar a prova que conseguirmos.

— Isso é duro.

— Mas é assim. Vou lhe dizer um nome uma vez ou outra, quando achar que pode abrir alguma porta, mas será sempre um nome que você ouvirá de segunda ou terceira mão. Você tem imaginação; tente adivinhar suas fontes não-identificadas para se proteger.

— Já fiz isso em muitos portos.

— Já? Você sabe representar?

— O quê?

— Deixe para lá, acho que já respondeu. Você não desce nes­ses portos com seu uniforme branco de capitão-de-corveta.

— Que diabo, claro que não.

— Pois agora vai descer.

— Você precisa me dizer alguma coisa.

— Vou lhe dar uma visão geral, muita abstração e alguns fa­tos. À medida que progredirmos — se progredirmos — vai saber mais. Quando achar que chegou a uma conclusão, avise-me. Isso é essencial. Não podemos nos arriscar a estragar tudo por você ope­rar baseado em suposições falsas.

— Quem somos nós?

— Eu também queria saber.

— Isso é muito reconfortante.

— Não, não é.

— Por que não me diz tudo agora? — perguntou Fitzpatrick.

— Porque Meagen Halliday perdeu o marido. Não quero que perca o irmão.

— Aceito isso.

— A propósito, quanto tempo você tem? Quero dizer, está na ativa?

— Minha licença inicial é de trinta dias, com extensões, se forem necessárias. Cristo, minha única irmã com cinco filhos e o marido é assassinado. Provavelmente eu podia determinar o tempo da minha licença.

— Ficaremos com os trinta dias, comandante. É mais do que podemos esperar.

— Comece a falar, Converse.

— Vamos andar — disse Joel, voltando para a amurada do Alter Zoll e para a vista do Reno, lá embaixo.

A “visão geral” descrita por Converse incluía a situação pre­sente, na qual indivíduos com o mesmo objetivo, em vários países, estavam se reunindo e fazendo uso de sua considerável influência para burlar as leis e enviar armamentos e tecnologia para governos e organizações hostis.

— Para quê? — perguntou Fitzpatrick.

— Eu poderia dizer “lucro”, mas você não acreditaria.

— Como o único motivo, não — disse o advogado da Mari­nha, pensativamente. — Pessoas influentes — suponho que a pa­lavra “influente” diz respeito às leis vigentes — poderiam operar isoladamente ou, na melhor das hipóteses, em pequenos grupos dentro dos seus próprios países. Isto é, se o lucro fosse o principal objetivo. Não coordenariam a operação no exterior; não seria ne­cessário. É um mercado de vendedores; os lucros seriam diluídos.

— Bingo, conselheiro.

— E então? — Fitzpatrick olhou para Joel, enquanto cami­nhavam para uma abertura na pedra que acomodava um canhão de bronze.

— Desestabilização — disse Converse. — Desestabilização em massa. Uma série de pontos luminosos em áreas extremamente vo­láteis que questionarão a capacidade dos governos democráticos para enfrentar a violência.

— Tenho de perguntar novamente, para que fim?

— Você raciocina bem — disse Joel —, portanto vou deixar que responda a essa pergunta. O que acontece quando uma estru­tura política em vigor é danificada pela desordem, quando não tem mais meios de funcionar, quando as coisas ficam fora de controle?

Os dois homens pararam ao lado do canhão, os olhos do ofi­cial da Marinha examinando o cano imenso e ameaçador.

— Ela é reestruturada ou substituída — disse, voltando-se e olhando para Converse.

— Bingo, outra vez — disse Converse suavemente. — Essa é a visão geral.

— Não faz sentido — Fitzpatrick franziu os olhos para prote­gê-los do sol, e para pensar melhor. — Deixe-me recapitular. É permitido?

— Sim, é permitido.

— “Indivíduos influentes” significa pessoas bem posiciona­das. Supondo que não estamos falando de elementos criminosos — que o fato de o motivo não ser puro lucro elimina —, estamos falando de cidadãos razoavelmente respeitáveis. Existe alguma outra definição que eu não conheço?

— Se existe, eu também não conheço.

— Então, por que iam querer desestabilizar estruturas políticas que lhes garantem essa influência? Não faz sentido.

— Já ouviu a frase: “Tudo é relativo”?

— Até não poder mais. E daí?

— Daí, pense.

— Sobre o quê?

— Influência. — Joel tirou o maço de cigarros do bolso, levou um aos lábios e acendeu-o. O outro homem olhou para as sete montanhas do Westerwald, ao longe.

— Eles querem mais — disse Fitzpatrick lentamente, voltando-se para Converse.

— Eles querem tudo — completou Joel. — E o único modo de conseguirem é provar que suas soluções são as únicas possíveis, todas as outras comprovadamente ineficazes para lutar contra o caos que está em erupção por toda a parte.

Connal ouvia as palavras de Converse com uma expressão fixa, imóvel:

— Santa Maria.... — começou, sua voz um murmúrio, mas ao mesmo tempo um brado. — Um plebiscito internacional — a von­tade do povo — para o Estado todo-poderoso. Fascismo. É fascis­mo multinacional.

— Estou cansado de dizer “bingo”, por isso vou dizer “correto”, conselheiro. Você acaba de dizer tudo melhor do que nós todos já dissemos.

— Nós? O que significa nós, mas você não sabe quem eles são! — acrescentou Fitzpatrick, intrigado e zangado ao mesmo tempo.

— Procure viver com isso — disse Joel. — Eu estou vivendo.

— Por quê?

— Avery Fowler, lembra-se dele?

— Oh, Jesus!

— E um velho na ilha de Miconos. É tudo o que temos. Mas o que disseram é verdade. É real. Eu vi, e é tudo o que preciso saber. Em Genebra, Avery disse que tínhamos pouco tempo. Beale disse mais: afirmou que estamos na contagem regressiva. Seja lá o que está para acontecer, vai acontecer antes do fim da sua licença — duas semanas e quatro dias, é o cálculo inicial. Era isso que eu estava dizendo.

— Oh, meu Deus! — murmurou Fitzpatrick. — O que mais pode me dizer — quer me dizer?

— Muito pouco.

— A embaixada — interrompeu Connal. — Já faz alguns anos, mas eu estive aqui. Trabalhei com o adido militar. Não pre­ciso de apresentações. Podemos conseguir ajuda na embaixada.

— Também podemos ser mortos na embaixada.

— O quê?

— Não está muito claro. Os três homens que você viu no aeroporto, os homens da embaixada...

— O que há com eles?

— Estão do outro lado.

— Não acredito!

— Por que pensa que estavam no aeroporto?

— Para se encontrar com você, falar com você. Pode haver uma dúzia de razões diferentes. Não sei se está a par de que é considerado um advogado muito importante no cenário internacio­nal. O pessoal do departamento do exterior freqüentemente quer estar em contato com pessoas como você.

— Já conversei sobre isso antes — disse Converse irritado.

— O que quer dizer com isso!

— Se queriam me ver, por que não esperaram no portão?

— Porque pensaram que você ia passar pelo terminal, como todo mundo.

— E quando não apareci — segundo você — ficaram pertur­bados, zangados. Foi isso que você disse.

— Sim, ficaram.

— Mais uma razão para me esperar no portão.

Fitzpatrick franziu a testa.

— Mas ainda não é muito convincente...

— A mulher. Lembra-se da mulher?

— Naturalmente.

— Ela me descobriu em Copenhague. E me seguiu. Além disso há mais uma coisa. Mais tarde, na plataforma, os quatro entraram no carro de um homem que, sabemos — nós sabemos —, faz parte de tudo o que acabo de descrever. Foram para a embaixada, e você só tem minha palavra sobre isso. Eu os vi.

Connal fitou Joel intensamente, aceitando o que acabava de ouvir.

— Oh, Jesus — disse ele. — Está certo, a embaixada está fora. E o que me diz de Bruxelas, da SHAPE?4F[5] Há uma unidade de serviço secreto naval; já tratei com esse pessoal antes.

— Não ainda. Talvez nunca.

— Pensei que você queria fazer uso do meu uniforme, das minhas conexões.

— Talvez ainda faça. É bom saber que você está aqui.

— Muito bem, o que quer que eu faça? Tenho de fazer alguma coisa.

— Fala mesmo alemão fluentemente?

— Hochdeutsch, Schwäbisch, Bayerisch, e vários outros diale­tos intermediários. Eu lhe disse, falo cinco línguas...

— Já deixou mais do que claro — interrompeu Converse. — Há uma mulher chamada Fishbein aqui em Bonn. Esse é o primei­ro nome que vou lhe dar. Ela está envolvida; não temos muita cer­teza, mas suspeitamos que seja uma mensageira — ela passa infor­mações. Quero que a conheça, que fale com ela, que estabeleça um relacionamento. Precisamos pensar em algo bastante convincente para que possa fazer isso. Ela tem mais ou menos quarenta anos, e é a filha mais nova de Hermann Göring. Foi casada com um sobre­vivente do holocausto; por razões óbvias ele desapareceu há muito tempo. Alguma idéia?

- Naturalmente — disse Fitzpatrick, sem hesitar. — Herança. Todos os anos executamos mais de dois mil testamentos, porque o morto exigiu que sejam executados por militares. São de loucos que deixam tudo para outros sobreviventes. A verdadeira raça alemã ariana e toda aquela idiotice. Nós os devolvemos às cortes civis, que não sabem o que fazer com eles; assim, acabam num limbo e final­mente nos cofres do Departamento do Tesouro.

— Está falando sério?

— Eins, zwei, drei. Acredite-me, essa gente fala sério.

— Pode usar esse argumento?

— Que tal um legado de mais de um milhão, de um pequeno fabricante de cerveja do Meio-Oeste?

— Você serve — disse Joel. — Suba a bordo.

Converse não mencionou Aquitânia, George Marcus Delavane, Jacques-Louis Bertholdier ou Erich Leifhelm, nem cerca de vinte nomes do Departamento de Estado e do Pentágono. Também não descreveu a rede tal como aparecia nos dossiês, ou como foi des­crita pelo Dr. Edward Beale em Miconos. Deu a Connal Fitzpatrick apenas a estrutura básica da informação. Suas razões eram muito menos benignas do que tinha dito: se o advogado da Marinha fosse apanhado e interrogado —- não importa com que brutalidade —, só poderia revelar coisas sem muita importância.

— Você não está me dizendo muito — disse Fitzpatrick.

— Já disse o suficiente para fazer explodir sua cabeça, e essa não é uma frase comum no meu léxico.

— Nem no meu.

— Então, considere-me um camarada muito gentil — disse Converse, quando os dois homens caminhavam para a entrada do Alter Zoll.

— Por outro lado — continuou o cunhado de Halliday —, você já passou por muita coisa pela qual eu nunca passei. Li tudo sobre você nos arquivos da segurança — arquivos, não arquivo —, referenciados com os arquivos de muitos outros prisioneiros. Você era diferente. Segundo a maioria dos homens naqueles campos, você os manteve unidos — até que o puseram na solitária.

— Estavam enganados, soldado. Eu estava tremendo de medo e teria dormido com um marreco de Pequim se isso salvasse minha vida.

— Não é o que dizem os arquivos. Eles dizem...

— Não estou interessado, comandante — disse Joel quando saíam pelo portão ornamentado —, mas tenho um problema ime­diato que você pode me ajudar a resolver.

— Qual é?

— Prometi telefonar a Dowling para o telefone móvel que usam no local de filmagem. Não saberia como fazer a ligação.

— Há uma cabine telefônica logo adiante — disse Connal, apontando para uma bolha de plástico branco que se projetava de um pilar de concreto, na calçada, ao lado do caminho em que esta­vam. — Tem o número?

— Está aqui, em algum lugar — respondeu Converse, pro­curando nos bolsos. - Aqui está - disse, separando o pedaço de papel de varias contas de cartão de crédito.

— Vermittlung bitte. - O oficial de Marinha parecia convincente quando falou secamente no telefone. - Sieben, drei, vier, zwei. Bitte, Fraulein. - Então colocou uma série de moedas na caixa de metal e voltou-se para Joel. - Pronto. Está tocando.

— Fique aí. Chame Dowling — diga que é o advogado dele, o do hotel.

— Guten Tag, Fraulein. Ist Herr... Oh, não, eu falo inglês. Você fala inglês? Não, não estou falando da Califórnia, mas é uma emergência... Dowling, preciso falar...

— Caleb — disse Joel rapidamente.

— Caleb Dowling — Connal cobriu o bocal do telefone com a mão. — Que diabo de nome é esse?

— Alguma coisa a ver com sapatos Gucci.

— O quê?... Ja... Sim, obrigado. — Fitzpatrick estendeu o fone para Converse. — Foram chamá-lo.

— Joe?

— Sim, Cal. Disse que ia telefonar depois de me encontrar com Fowler. Está tudo bem.

— Não, não está, senhor advogado — disse o ator em voz baixa. — Você e eu temos de conversar seriamente e faço questão de dizer que um naco de carne chamado Rosenberg está a poucos metros de mim.

— Não compreendo.

— Um homem morreu em Paris. Isso esclarece as coisas para você?

— Oh, meu Deus! — Converse sentiu que o sangue todo des­cia de sua cabeça e um vazio no estômago. Por um momento pen­sou que ia ficar enjoado. — Eles foram procurar você? — mur­murou.

— Um homem da polícia alemã, há pouco mais de uma hora, e desta vez não tive dúvidas quanto à identidade do meu visitante. Era sincero.

— Não sei o que dizer —- gaguejou Joel.

— Você o matou?

— Eu... acho que sim — Converse olhou fixamente para o disco do telefone, vendo o rosto ensangüentado do homem, sen­tindo o sangue nos próprios dedos.

— Você acha? Isso não é coisa para se achar ou não.

— Então, sim... A resposta é sim. Eu o matei.

— Teve motivo?

— Pensei que tivesse.

— Quero ouvir essa história, mas não agora. Vou lhe dizer onde podemos nos encontrar.

— Não! — exclamou Joel, confuso, mas enfático. — Não posso envolver você. Você não pode se envolver!

— Esse cara deu-me um cartão e quer que eu telefone assim que você entrar em contato comigo. Ele foi muito claro a respeito de negar informação, o que é considerado como ajudar um fugi­tivo.

— Ele está certo, absolutamente certo! Pelo amor de Deus, diga tudo a ele, Cal! A verdade. Você me arranjou um quarto para uma noite, porque pensou que eu não tinha nenhuma reserva e porque tivemos algumas horas de conversa agradável no avião. Você o reservou no seu nome porque não queria que eu pagasse. Não esconda nada! Nem mesmo este telefonema!

— Por que não contei tudo a ele antes?

— Está tudo bem, você vai contar agora. Foi um choque, eu um americano e os dois em país estrangeiro. Você precisava de tempo para pensar, para refletir. Meu telefonema fez com que re­solvesse agir racionalmente. Diga que você me falou sobre a acusa­ção e que eu não neguei. Seja honesto com ele, Cal.

— Até que ponto? Devo incluir minha sessão com Fowler?

— Também, mas não é necessário. Deixe-me esclarecer as coi­sas. Fowler é um nome falso e ele nada tem a ver com Paris, dou a minha palavra. Falar dele só servirá para criar uma complicação inútil.

— Devo dizer que você está no Alter Zoll?

— Sim, estou telefonando daqui. Acabo de admitir.

— Você não vai poder voltar para o Königshof.

— Não tem importância — disse Joel rapidamente; queria dei­xar o telefone e pensar. — Minha bagagem está no aeroporto e também não posso voltar para lá.

— Você tinha uma pasta.

— Já providenciei. Está em lugar onde posso apanhá-la.

O ator fez uma pausa e depois falou lentamente:

— Então você me aconselha a contar tudo à polícia, toda a verdade?

— Sem nenhuma declaração não-relacionada com o caso. Sim, é meu conselho, Cal. É o único modo de ficar limpo, e você está limpo.

— Parece um bom conselho, Joe... Joel, e pode estar certo de que gostaria de segui-lo, mas acho que não posso.

— O quê? Por quê?

— Porque homens maus como ladrões e assassinos não dão conselhos como esse. Nunca vi isso em nenhum script.

— Isso é absurdo! Pelo amor de Deus, faça o que estou dizen­do!

— Sinto, companheiro, não é boa dramaturgia. Portanto, você vai fazer o que eu lhe digo. Há um grande edifício de pedra na universidade — belo lugar, na verdade restaurado — com um dese­nho de jardins, que há muito tempo não visito. Ficam no lado sul, com bancos aqui e ali, ao lado do caminho central. É um bonito lugar nas noites de verão, um pouco afastado e não muito freqüen­tado. Esteja lá às dez horas.

— Cal, não vou envolver você nisso!

— Já estou envolvido. Recusei informação e ajudei um fugi­tivo. — Dowling fez outra pausa. — Quero que conheça uma pes­soa — disse.

— Não.

Joel ouviu um estalido e o telefone ficou mudo.

 

Converse desligou o telefone e apoiou-se na cabine de plástico, tentando desanuviar a mente. Tinha matado um homem, não numa guerra conhecida por todos, e não na fúria pela sobrevivência, na selva do Sudoeste da Ásia, mas em Paris, numa viela, porque pre­cisava tomar uma decisão imediata, baseada em probabilidades. Certo ou errado, estava feito e não adiantava pensar. A polícia alemã estava à sua procura, o que significava que a Interpol estava no caso, transmitindo a informação de Paris, de algum modo for­necida por Jacques-Louis Bertholdier, que tinha ficado de fora, além do alcance da caçada. Joel lembrou-se de suas próprias pala­vras há poucos minutos. Se a vida de Press Halliday não era extre­mamente importante, comparada com o que ele pretendia fazer, muito menos a vida de um empregado de Bertholdier, discípulo de Delavane, a sucursal de Aquitânia na França. Não havia opções, pensou Converse. Tinha de continuar, precisava continuar em li­berdade.

— O que há? — perguntou Fitzpatrick, aproximando-se an­sioso de Joel. — Parece que levou um coice de mula.

— Levei um coice — concordou Converse.

— O que aconteceu com Dowling? Está em apuros?

— Ele vai estar! — explodiu Joel. — Porque é um idiota mal informado que pensa que está em um maldito filme!

— Não era sua opinião há poucos minutos.

— Nós nos conhecemos, tudo deu certo. Mas isso não pode dar certo não para ele. - Converse afastou-se da cabine e olhou para o advogado da Marinha, tentando desesperadamente concen­trar-se na situação do momento. - Talvez eu lhe conte, talvez não — disse, procurando um táxi. — Vamos, nós vamos pôr em fun­cionamento suas admiráveis aptidões lingüísticas. Precisamos de abrigo, caro mas não ostentoso, especialmente não um lugar pro­curado por turistas ricos que não falam alemão. Se há uma coisa que vão espalhar logo a meu respeito é que não sou capaz de encontrar caminho entre os cinco municípios de Nova Iorque. Quero um hotel de luxo que não precise de estrangeiros, que não sirva estrangeiros. Sabe do que estou falando?

Fitzpatrick assentiu com a cabeça.

— Exclusivo, como um clube, destinado aos homens de ne­gócios alemães. Toda cidade grande tem esses hotéis e custam vinte vezes meu soldo diário, só para o café da manhã.

— Está bem, tenho dinheiro aqui em Bonn. Preciso tentar retirar algum.

— Você é cheio de surpresas — disse Connal. — Quero dizer, surpresas de verdade.

— Acha que pode conseguir isso? Encontrar um hotel desse tipo?

— Posso explicar ao motorista do táxi o que eu quero, ele provavelmente conhece algum. Bonn é pequeno, nada como Nova Iorque, ou Paris, ou Londres... Ali está um táxi deixando passa­geiros. — Os dois homens correram para a calçada onde quatro passageiros com equipamento fotográfico e enormes malas Louis Vuitton desciam do táxi.

— Como vai fazer? — perguntou Converse, enquanto cumprimentavam os turistas com um aceno de cabeça, dois casais no meio de uma discussão, homens contra mulheres, Nikon contra Vuitton.

— Uma combinação do que nós dois dissemos — respondeu Fitzpatrick. — Um hotel calmo e agradável longe do Ausländerlärm.

— Do quê?

— Do clamor dos turistas — e pior. Eu direi que vamos nos encontrar com importantes homens de negócios alemães — ban­queiros, digamos — e gostaríamos de um lugar confortável para nosso encontro confidencial. Ele vai entender.

— Vai notar que não temos bagagem — observou Joel.

— Vai notar primeiro o dinheiro na minha mão — disse o oficial da Marinha, abrindo a porta para Converse.

O capitão-de-corveta Connal Fitzpatrick, Estados Unidos, membro da corte militar e portanto com jurisdição restrita, impressionou Joel Converse, o orgulhoso advogado internacional, a ponto de este último sentir-se como um tolo. Sem o menor esforço, o advogado da Marinha conseguiu uma suíte com dois quartos em uma esta­lagem às margens do Reno, chamada Das Rektorat. Era uma da­quelas propriedades restauradas de antes da guerra onde a maioria dos hóspedes aparentemente se conheciam, pelo menos o bastante para um cumprimento breve, e os empregados raramente olhavam as pessoas de frente, como se estivessem tacitamente confirmando sua subserviência — ou o fato de que certamente não podiam dizer que tinham visto fulano ou beltrano, se lhes perguntassem.

Fitzpatrick começou sua campanha com o motorista do táxi, inclinando-se para a frente e falando depressa e em voz baixa. À medida que o táxi se aproximava rapidamente da cidade, a conversa foi ficando cada vez mais confidencial; então, o motorista virou bruscamente o carro para o outro lado, atravessou os trilhos da via férrea que dividia a cidade ao meio e entrou em uma estrada plana, paralela ao rio, para o norte. Joel começou a falar, para perguntar o que estava acontecendo, mas o advogado da Marinha levantou a mão, mandando Converse ficar quieto.

Assim que pararam na entrada de uma estalagem, depois da estrada particular, comprida e bem tratada, Fitzpatrick saiu do carro.

— Fique aí — disse para Joel. — Vou ver se consigo dois quartos. E não diga nada.

Doze minutos depois, Connal voltou, a expressão severa, mas os olhos brilhando.

— Venha, presidente da diretoria, vamos diretamente para ci­ma. — Pagou ao motorista generosamente e mais uma vez abriu a porta para Converse — agora um pouco mais respeitosamente, pen­sou Joel.

O saguão do Das Rektorat era tipicamente alemão, com uma sugestão decididamente vitoriana; madeira espessa e pesada e poltronas de couro ao lado e embaixo de ornamentos de bronze filigranado que formavam arcos sobre as portas, elegantes molduras para imensos espelhos, e sanefas sobre janelas de sacadas que abso­lutamente não precisavam delas. À primeira vista, dava a impressão de um hotel elegante de estação de águas de algumas décadas atrás, a solenidade do ambiente acentuada pelos reflexos luminosos no metal e nos vidros. Era uma estranha mistura do antigo e do muito antigo. Cheirava a dinheiro.

Fitzpatrick conduziu Converse a um elevador com a porta re­vestida de lambris, meio escondido no corredor; não se via ne­nhum recepcionista, nenhum empregado. Era pequeno, com es­paço para apenas quatro pessoas, o interior de vidro pintado imi­tando mármore que vibrava quando o elevador se movimentava.

— Acho que vai aprovar as acomodações — disse Connal. — Eu as examinei; por isso demorei tanto.

— Estamos de volta ao século XIX, você sabe — respondeu Joel. — Espero que tenham telefones e não apenas o expresso hessiano.

— Todos os meios modernos de comunicação, certifiquei-me disso. — A porta do elevador se abriu. — Por aqui — disse Fitz­patrick, apontando para a direita. — A suíte é no fim do corredor.

— A suíte?

— Você disse que tinha dinheiro em Bonn.

Dois quartos de dormir um de cada lado de uma sala de estar mobiliada com muito gosto, com janelas francesas que se abriam para um pequeno balcão sobre o Reno. Os quartos eram ensola­rados e arejados, a decoração das paredes também uma mistura estranha: a reprodução de um arranjo floral impressionista ao lado de gravuras de cavalos de corrida campeões do passado, das pistas e coudelarias mais importantes da Alemanha.

— Muito bem, menino prodígio — disse Converse, olhando pelas janelas abertas e depois, voltando-se para Connal Fitzpatrick, que estava de pé no meio do quarto com a chave ainda na mão. — Como conseguiu?

— Não foi difícil — respondeu o advogado da Marinha, sor­rindo. — Você ficaria surpreso com o que podem fazer alguns papéis militares neste país. Os mais velhos se empertigam e parecem filhotes de boxers farejando um assado, e poucos aqui têm menos de sessenta anos.

— Isso não me diz muita coisa, a não ser que você esteja nos alistando nas forças armadas.

— Diz muito quando combinado com o fato de que eu sou um ajudante designado pela Marinha dos Estados Unidos para acompa­nhar um importante financista americano em importantes reuniões confidenciais com seus pares alemães. Em Bonn, naturalmente, meu excêntrico financista prefere viajar incógnito. Tudo está no meu nome.

— E as reservas?

— Eu disse ao gerente que você não gostou do hotel que tínhamos reservado porque havia muita gente conhecida. Sugeri tam­bém que os compatriotas dele, com quem você vai se encontrar, apreciariam muito a sua cooperação. Ele admitiu que eu estava com a razão.

— Como soubemos deste lugar? — perguntou Joel, ainda desconfiado.

— Simples. Lembrei-me de ter ouvido o nome em algumas conversas, durante a Conferência Econômica Internacional de Düsseldorf, no ano passado.

— Você esteve na conferência?

— Nem sabia que tinha havido alguma — disse Fitzpatrick, dirigindo-se para a porta da esquerda. — Fico com este quarto, está bem? Não é tão grande quanto o outro e é assim que deve ser, pois sou um ajudante — o que Jesus, Maria e José sabem ser verdade.

— Espere um pouco. — Converse deu um passo à frente. — E a nossa bagagem? Seu amigo lá embaixo não achou estranho, uma vez que somos tão importantes?

— De modo algum — disse Connal voltando-se. — Está ainda na cidade, naquele hotel sem nome que você rejeitou enfaticamente depois de vinte minutos da nossa chegada. Mas eu sou o único que pode apanhá-la.

— Por quê?

Fitzpatrick encostou o dedo nos lábios.

— Você tem também a mania do segredo. Lembre-se, você é excêntrico.

— O gerente engoliu toda essa complicação?

— Ele me chama de Kommandant.

— Você é um grande contador de histórias, marinheiro.

— Permita-me lembrar, senhor, que na terra de Erin go bragh5F[6] isso é chamado de conversa fiada boa e saudável. E, embora lhe faltem algumas qualificações, Press disse que é um mestre nessa arte, quando se trata de negócios. — Connal ficou sério. — Ele queria dizer no melhor dos sentidos, conselheiro, e isso não é con­versa fiada.

Quando Connal começou a caminhar na direção do quarto, Joel teve uma estranha sensação de reconhecer alguma coisa. O quê, no oficial, despertava uma lembrança obscura nele? Fitzpa­trick tinha aquela ousadia dos inexperientes, o destemor em peque­nas coisas que a cautela mais tarde lhe ensinaria que levam a coisas maiores. Testava as águas bravamente, nunca estivera a ponto de naufragar.

Subitamente Converse compreendeu. O que via em Connal Fitzpatrick era ele próprio, Joel — antes de as coisas começarem a acontecer. Antes de ter aprendido o significado do medo, do medo absoluto. E, finalmente, da solidão.

Ficou resolvido que Connal voltaria ao aeroporto Colônia-Bonn, não para apanhar a bagagem de Joel, mas a sua, que estava em um dos compartimentos, na área da seção de bagagens. Iria então a Bonn, para comprar uma valise cara e enchê-la com meia dúzia de camisas, roupa de baixo, meias e a melhor roupa que pudesse en­contrar no tamanho de Joel — três calças, um ou dois paletós e uma capa de chuva. Chegaram à conclusão de que roupas informais seriam mais apropriadas; um financista excêntrico podia se dar ao luxo de lapsos no gosto para se vestir, e, além disso, esse tipo de roupas não denunciava tanto o fato de não serem feitas sob me­dida. Finalmente, sua última parada, antes de voltar ao Das Rektorat, seria em um segundo compartimento, na estação de estrada de ferro onde Converse deixara sua pasta. Uma vez com a pasta nas mãos e dentro do táxi que estaria esperando, Connal não devia mais parar em lugar nenhum. Iria diretamente para a estalagem no campo.

— Queria perguntar uma coisa — disse Fitzpatrick antes de sair. — No Alter Zoll você falou sobre como “eles” espalhariam a notícia de que você é incapaz de achar o caminho entre os cinco municípios de Nova Iorque. Deduzi que se referia ao fato de não falar alemão.

— Certo. E nenhuma outra língua, exceto inglês. Tentei, mas nunca consegui. Fui casado com uma mulher que fala fluentemente alemão e francês e ela também desistiu de me ensinar. Não tenho ouvido para línguas, acho.

— E quem são “eles”! — perguntou Connal, mal ouvindo a explicação de Converse. — Os homens da embaixada?

Joel hesitou:

— Um pouco mais extenso do que isso, receio — disse, escolhendo as palavras cuidadosamente. — Você vai saber, mas não agora, não ainda. Mais tarde.

— Por que mais tarde? Por que não agora?

— Porque não ia lhe fazer nenhum bem, e poderia criar problemas que você não gostaria que fossem criados, digamos assim, em circunstâncias adversas.

— Isso é enigmático.

— Sim, é.

— Então é tudo? É tudo o que vai dizer?

— Não. Mais uma coisa. Quero minha pasta.

 

 

Fitzpatrick tinha garantido que a mesa telefônica do Das Rektorat podia fazer ligações em inglês — bem como em pelo menos seis outras línguas, inclusive árabe — e que ele podia perfeitamente tele­fonar para Lawrence Talbot, em Nova Iorque.

— Cristo, onde você está, Joel? — Talbot gritou no telefone.

— Amsterdã — respondeu Converse, pois tivera o cuidado de fazer a ligação telefone para telefone. — Quero saber o que acon­teceu com o juiz Anstett, Larry. Pode me dizer alguma coisa?

— Eu quero saber o que aconteceu com você! René telefonou a noite passada...

— Mattilon?

— Você disse a ele que ia para Londres.

— Mudei de idéia.

— Que diabo aconteceu? A polícia foi procurá-lo; ele não teve escolha, disse a eles quem você era. — Talbot fez uma pausa súbita, depois falou com voz mais calma, uma voz falsa: — Você está bem, Joel? Quer me dizer alguma coisa, algo que o preocupa?

— Alguma coisa que me preocupa?

— Escute, Joel. Nós todos sabemos de tudo por que passou, e o admiramos e respeitamos. Você é o melhor que já tivemos na divisão internacional...

— Sou o único que vocês já tiveram — interrompeu Converse, tentando pensar, tentando conseguir tempo e informação. — O que foi que René disse? Por que ele lhe telefonou?

— Agora você está falando como o velho Joel.

— Eu sou o velho Joel, Larry. Por que René telefonou? Por que a policia o procurou? - Joel percebeu a mudança; estava entrando em uma outra esfera e sabia disso, aceitava o fato. Viriam em seguida as mentiras, a astúcia aliando-se à fraude, porque tem­po e liberdade de movimento eram essenciais. Precisava continuar em liberdade; tinha tanto a fazer, em tão pouco tempo.

— Ele telefonou outra vez depois que a polícia permitiu que me contasse os detalhes — e, por falar nisso, eram da Sûreté. Segundo René, o motorista de uma limusine foi atacado na entrada de serviço do George Cinq...

— O motorista de uma limusine? — interrompeu Converse, involuntariamente. — Disseram que era um motorista!

— De um daqueles serviços de alto preço que transportam pessoas a lugares estranhos, em horas estranhas. Muito sofisticado e muito confidencial. Aparentemente o homem foi severamente espancado e dizem que você fez isso. Ninguém sabe por quê, mas você foi identificado e dizem que o homem talvez não escape com vida.

— Larry, isso é absurdo! — exclamou Joel, o protesto acompanhado por ofensa fingida. — Sim, eu estava lá — lá perto — mas não tive nada a ver com isso! Dois desordeiros brigavam, e como não consegui separá-los, resolvi sair dali e, antes de tomar um táxi, gritei para o porteiro, mandando-o chamar alguém. A última coisa que vi foi o homem tocando o apito e correndo para a passagem de serviço.

— Então, você não está envolvido — disse Talbot.

Era a afir­mação positiva de um advogado.

— Naturalmente que não. Por que ia estar?

— Exatamente o que não podíamos compreender. Não fazia sentido.

— Não faz sentido. Vou telefonar para René e voltar para Paris, se for preciso.

— Sim, faça isso — concordou Talbot hesitante. — Preciso dizer que talvez eu tenha agravado a situação.

— Você? Como?

— Eu disse a Mattilon que talvez você estivesse... bem, fora de si. Quando falei com você em Genebra, você parecia péssimo, Joel. Realmente péssimo.

— Meu Deus, como queria que estivesse? Um homem com o qual estava tratando de negócios morre na minha frente, sangrando por diversos ferimentos de bala. Como você se sentiria?

— Compreendo — disse o advogado em Nova Iorque —, mas René pensou também ter notado alguma coisa — ou ouviu alguma coisa — que o perturbou.

— Ora, vamos, querem deixar disso? — Os pensamentos de Converse estavam disparados; cada palavra tinha de ter credibili­dade, a atitude de “ultraje”, agora diminuída, precisava soar ver­dadeira. — Mattilon esteve comigo depois de minha viagem, en­trando e saindo de aeroportos por quase quatorze horas. Cristo, eu estava exausto!

— Joel? — começou Talbot, obviamente ainda não satisfeito. — Por que disse a René que estava em Paris a serviço da firma?

Converse fez uma pausa, não por falta de resposta, mas para efeito. Estava preparado para a pergunta; estava preparado para ela quando se encontrou com Mattilon.

— Uma mentira necessária, Larry, inofensiva. Eu queria al­gumas informações e pareceu-me o melhor meio de consegui-las.

— Sobre esse Bertholdier? É o general, não é?

— Afinal, não era a fonte certa. Eu disse isso a René e ele concordou comigo. — Joel falou em tom mais despreocupado. — Além disso, seria estranho se eu dissesse que estava em Paris tra­balhando para outra pessoa, não acha? Não teria sido bom para a firma. Boatos e conjeturas abundam nos nossos corredores; você me disse isso certa vez.

— Sim, e é verdade. Você agiu certo... Que diabo, Joel, por que diabo você tinha de sair do hotel daquele jeito? Pelo porão, ou seja lá o que...

Era o momento de dizer com total convicção uma pequena verdade inconseqüente que, se não fosse dita, o obrigaria a uma mentira maior e mais perigosa. Connal Fitzpatrick podia fazer isso muito bem, pensou Joel. O advogado da Marinha ainda não co­nhecia o medo das pequenas coisas; não sabia que certas pistas podiam levar alguém de volta para um buraco de rato, no rio Mekong.

— Bubba, meu amigo e único apoio — disse Joel, com o tom mais frívolo possível —, devo-lhe muita coisa, mas não a intimi­dade da minha vida privada.

— A quê? Da sua o quê?

— Estou chegando à meia-idade — pelo menos não está muito longe — e não tenho compromissos matrimoniais, nem sentimento de culpa quanto à minha fidelidade.

— Você estava fugindo de uma mulher?

— Pode ficar tranqüilo que não era de um homem.

— Je-sus! Estou tão instalado na meia-idade que nem penso mais nessas coisas. Desculpe, meu jovem.

— Jovem e não tão jovem, Larry.

— Então nós todos estávamos errados. É melhor você telefonar para René e esclarecer tudo. Não imagina como estou aliviado.

— Então agora pode me falar sobre Anstett. Foi por isso que telefonei.

— Naturalmente. — Talbot baixou a voz. — Uma coisa terrí­vel, uma tragédia. O que os jornais daí disseram?

Converse fora apanhado; não antecipara a pergunta.

— Muito pouco — respondeu, tentando se lembrar do que Fitzpatrick lhe havia contado. — Que foi baleado e que aparente­mente não roubaram nada.

— Exatamente. Nathan e eu pensamos logo em você e nesse negócio com o qual está envolvido, mas não se tratava disso. Foi vendetta da Máfia, pura e simplesmente. Você sabe como Anstett era severo nos apelos dessa gente; ele os descartava e chamava seus advogados de “desgraça da profissão”.

— Foi confirmado que se trata de crime da Máfia?

— Vai ser, a informação é de O’Neil, do escritório do comis­sário. Eles sabem quem cometeu o crime; um assassino pago, da família Delvecchio; no mês passado, Anstett jogou fora a chave do filho mais velho de Delvecchio. Foi condenado a doze anos, sem apelo; a Suprema Corte não quer nem tocar nele.

— Eles conhecem o homem?

— Agora é só uma questão de apanhá-lo.

— Como resolveram tudo tão depressa? — perguntou Joel, confuso.

— Os métodos usuais — disse Talbot. — Um informante que quer um favor. E como tudo aconteceu tão depressa e com tanta discrição, presume-se que a balística tenha provas concludentes.

— Tão rápido? Tão discreto?

— O informante procurou a polícia esta manhã. Enviaram uma unidade especial e só eles conhecem a identidade do homem. Acreditam que a arma ainda esteja com ele. Será apanhado a qual­quer momento; mora em Syosset.

Alguma coisa estava errada, pensou Converse. Havia uma in­consistência, mas ele não conseguia descobrir a falha. Então ele se lembrou.

— Larry, se tudo foi feito tão discretamente, como é que você sabe?

— Estava esperando que perguntasse isso — disse Talbot em­baraçado. — Acho melhor lhe dizer; provavelmente vai aparecer nos jornais, afinal. O’Neil está me mantendo informado; pode cha­mar de cortesia, e também porque estou nervoso.

— Por quê?

— A não ser pelo homem que o matou, fui a última pessoa a ver Anstett com vida.

— Você?

— Sim. Depois do segundo telefonema de René, resolvi tele­fonar para o juiz, com a aprovação de Nathan, naturalmente. Quando consegui encontrar Anstett, eu disse que precisava vê-lo. Não ficou muito satisfeito, mas eu insisti. Expliquei que era a seu respeito. Tudo o que eu sabia é que você estava em perigo e pre­cisávamos fazer alguma coisa. Fui ao apartamento do juiz em Cen­tral Park South e conversamos. Eu lhe disse o que havia acontecido e o quanto eu estava preocupado com você, e deixei bem claro que o considerava responsável. Ele não explicou muito, mas acho que estava assustado também. Disse que ia se comunicar comigo de manhã. Então eu saí, e de acordo com o relatório do legista, ele foi assassinado mais ou menos três horas mais tarde.

A respiração de Joel estava acelerada, sua cabeça a ponto de estourar. Concentrou-se profundamente.

— Larry, vejamos se entendi. Você foi falar com Anstett de­pois do telefonema de René — do segundo telefonema. Depois de ele ter dito para a Sûreté quem eu era.

— Certo.

— Quanto tempo demorou?

— Quanto tempo demorou o quê?

— Entre o telefonema de Mattilon e sua saída para o aparta­mento de Anstett.

— Bem, deixe ver. Naturalmente, eu procurei falar com Na­than, mas ele tinha ido jantar fora, portanto, esperei. A propósito, ele concordou e se ofereceu para me acompanhar...

— Quanto tempo, Larry?

— Uma hora e meia, duas horas no máximo.

Duas horas, mais três, um total de cinco horas. Mais do que o suficiente para colocar no lugar certo os falsos assassinos. Con­verse não sabia como a coisa tinha sido feita, mas tinha sido feita. Tudo entrou em erupção subitamente em Paris, e em Nova Iorque um agitado Lawrence Talbot fora seguido a um aparta­mento em Central Park South, onde alguém, de algum modo, reconheceu um nome e um homem e ficou sabendo do papel que ele tinha representado contra Aquitânia. Se não fosse assim, Talbot seria a vítima, não Lucas Anstett. Todo o resto era cortina de fumaça, atrás da qual os discípulos de Marcus Delavane manipulavam os bonecos.

— ... e as cortes deviam tanto a ele, o país lhe devia tanto — Talbot estava dizendo, mas Joel não o ouvia mais.

— Preciso desligar, Larry — disse. E desligou.

O assassinato era obsceno. O fato de ter sido realizado com tanta rapidez e eficiência, com um plano tão preciso, era mais assustador do que qualquer coisa que Converse podia imaginar.

 

Joseph (Joey Gentil) Albanese dirigia seu Pontiac pela rua tran­qüila de três pistas em Syosset, Long Island, e acenou para um casal que estava no jardim. O marido aparava a cerca sob orientação da mulher. Pararam o trabalho, sorriram e acenaram. Muito bom. Todos os vizinhos gostavam dele, pensou Joey. Eles o conside­ravam um cara muito gentil e muito generoso, pois deixava as crianças usarem sua piscina e servia aos pais somente a melhor be­bida quando eles o visitavam e os maiores bifes que o dinheiro podia comprar, nos churrascos de fim de semana — que ele fazia com freqüência, convidando os vizinhos num sistema rotativo, para que nenhum fosse excluído.

Ele era um cara bom, pensou Joey. Tratava todos bem, nunca erguia a voz para ninguém, oferecendo a mão amiga, uma palavra gentil e um sorriso feliz para todos, não importava como estivesse se sentindo. Era isso, que diabo! pensou Joey. Não importava como demônios se sentia, nunca demonstrava! Joey Gentil era como o chamavam, e estavam certos. Às vezes chegava a pensar que era uma espécie de santo — que Jesus Cristo lhe perdoasse por isso. Acabava de acenar para os vizinhos, mas na verdade tinha vontade de dar um murro no pára-brisa e mandar os cacos de vidro diretamente para as gargantas deles.

Não eram os vizinhos, mas o que tinha acontecido na noite passada. Uma noite doida, um golpe doido, tudo doido! E aquele gumba que tinham trazido da costa oeste, o que eles chamavam de Major, era o doido mais maluco de todos! E um sádico para com­pletar, o modo como espancou aquele velho e as perguntas malucas que fez e gritando o tempo todo. Tutti pazzi!

Num minuto ele está jogando cartas no Bronx, no outro o telefone estava tocando. Vá para Manhattan, depressa! Precisamos de ação attualmente. Ele vai, e o que encontra? Aquele juiz cora­joso, e que fechou as portas de ferro na cara do garoto de Del­vecchio! Que loucura! Na certa vão descobrir que foi o velho! Vai sofrer tanta afflizione por parte dos tiras e dos tribunais que pode se dar por feliz se acabar com um pequeno bordel em Palermo — se voltar algum dia.

Mas pode ser — apenas pode ser —, pensou Joey na ocasião, que houvesse um novo chefe na organização. O velho Delvecchio estava perdendo a força; talvez estivessem provocando essa affli­zione que sem dúvida viria. E possivelmente — só possivelmente — o próprio Joey estivesse sendo posto à prova. Talvez ele fosse muito bom, muito soave, para liquidar alguém como o velho juiz que estava sempre atrás deles. Pois bem, ele não era. Não, senhor, sua gentileza acabava no cabo de uma arma. Era seu trabalho, sua profissão. O Senhor Jesus decidia quem devia morrer e quem devia viver, mas ele falava através de mortais na terra, que indicavam a Joey quem ele devia liquidar. Não havia dilema moral para Joey Gentil. Mas era importante que as ordens viessem sempre de um homem respeitável; isso era necessário.

E tinha acontecido a noite passada; a ordem viera de um ho­mem muito respeitado. Embora Joey não o conhecesse pessoal­mente, há anos que ouvia falar do poderoso padrone de Washing­ton, D.C. O nome era sempre murmurado, jamais dito em voz alta.

Joey apertou de leve os freios do carro, diminuindo a marcha para entrar em casa. Sua mulher, Angie, ia ficar furiosa, talvez gritasse um pouco porque ele não tinha voltado para casa na noite passada. Mais uma irritação, depois de toda aquela loucura, mas que diabo ele ia dizer? Desculpe, Angie, mas fui contratado para meter cinco balas em um velho que decididamente discriminava os italianos. Portanto, como vê, Angie, tive de ficar do outro lado da ponte em Jersey, onde um dos carcamanos com quem costumo jogar cartas, e que por acaso é um policial, vai jurar que passei a noite.

Mas, naturalmente, não podia entrar nesses detalhes com a mulher. Era sua própria lei. Por mais furioso que estivesse, jamais levava o trabalho para casa. Se todos os maridos fossem como ele, haveria mais felicidade em Soysset.

Merda! Um dos malditos meninos tinha deixado a bicicleta na frente da garagem ao lado da casa; não podia abrir a porta automática. Tinha de sair do carro. Merda! Mais uma irritação. Não podia nem mesmo estacionar na frente da casa dos Millers; havia um carro estacionado ali, mas não era o Buick dos seus vizi­nhos. Duas vezes merda!

Joey parou o Pontiac no meio da entrada de automóvel e desceu. Foi até a bicicleta e inclinou-se para apanhá-la. O danado do menino nem tinha deixado a bicicleta de pé e ele precisava se abaixar, com toda aquela barriga.

— Joseph Albanese!

Joey Gentil voltou-se rapidamente, abaixando-se mais, enfian­do a mão no paletó. Aquele tom de voz era usado somente por um tipo de réptil! Tirou seu 38 e protegeu-se atrás do carro.

As explosões ecoaram por toda a vizinhança. Os pássaros fugi­ram assustados das árvores e ouviram-se gritos em todo o quartei­rão, na tarde brilhante e ensolarada. Joseph Albanese estava espar­ramado contra a frente do Pontiac, os filetes de sangue escorrendo lentamente pelo cromo polido. Joey Gentil tinha sido apanhado, e em sua mão estava a arma que usara na noite anterior. A balística poderia provar. O assassino de Lucas Anstett estava morto. O juiz fora vítima de um crime de gângsteres, e para o mundo nada tinha a ver com o que estava acontecendo a doze mil quilômetros de distância em Bonn, Alemanha.

 

Converse estava no pequeno terraço, as mãos apoiadas na grade, olhando para o rio majestoso que corria além da floresta que ladea­va suas margens. Eram mais de sete horas; o sol descia atrás das montanhas, lançando para o alto os raios alaranjados, formando blocos de sombras na terra — sombras móveis, que flutuavam so­bre as águas distantes. As cores vibrantes eram hipnóticas, a brisa refrescante, mas nada conseguia fazer cessar o eco no seu peito. Onde estava Fitzpatrick? Onde estava sua pasta? Os dossiês? Ten­tou não pensar, evitar que a imaginação mergulhasse em possibili­dades assustadoras...

Ouviu um som áspero, não no seu peito, mas no quarto. Vol­tou-se rapidamente quando a porta se abriu e Fitzpatrick entrou, tirando a chave da fechadura. Afastou-se para dar passagem ao carregador uniformizado que trazia duas malas, mandou que as deixasse no chão, enquanto tirava a gorjeta do bolso. O homem saiu e Connal olhou para Joel. Não tinha nenhuma pasta na mão.

— Onde está ela? — perguntou Converse, com medo de respi­rar, com medo de fazer um movimento.

— Eu não a apanhei.

— Por que não? — exclamou Joel adiantando-se.

— Não tenho certeza... talvez fosse só impressão, não sei.

— De que está falando?

— Ontem estive no aeroporto durante sete horas, indo de bal­cão em balcão, perguntando por você — disse Connal em voz bai­xa. — Esta tarde passei pelo balcão da Lufthansa e o mesmo fun­cionário estava lá. Quando eu o cumprimentei tive a impressão de que não quis me reconhecer; parecia nervoso, e não entendi. Quan­do voltei da seção de bagagens com minha mala, eu o observei. Lembrei-me de como tinha olhado para mim na noite passada e, quando passei por ele, era capaz de jurar que seus olhos se volta­vam constantemente para o centro do terminal, mas havia tanta gente, tanta confusão, que não pude ter certeza.

— Acha que foi identificado? Seguido?

— Esse é o caso, eu não sei. Quando fazia compras em Bonn, fui a várias lojas, e de quando em quando eu me voltava, ou virava a cabeça, para ver se descobria alguém. Uma ou duas vezes tive a impressão de ver as mesmas pessoas, mas também havia tanto mo­vimento, e — novamente — não tive certeza. Mas pensei naquele funcionário da Lufthansa; alguma coisa estava errada.

— E quando você tomou o táxi? Você...

— Naturalmente. Controlei o vidro traseiro. Mesmo quando vim para cá. Vários carros fizeram o mesmo caminho, mas eu dizia ao motorista que diminuísse a marcha e os deixasse passar na nossa frente.

— Viu para onde foram depois de passar?

— De que adiantava isso?

— Há uma boa razão — disse Joel, lembrando-se de um mo­torista esperto que seguiu um Mercedes vermelho-escuro.

— Tudo o que eu sabia era que você dá muita importância àquela pasta. Não sei o que há dentro dela, mas estou certo de que não quer que ninguém saiba.

— Bingo, conselheiro.

Bateram na porta e, embora fosse uma batida discreta, produ­ziu o efeito do staccato do rolar de um trovão. Os dois homens ficaram imóveis com os olhos pregados na porta.

— Pergunte quem é — murmurou Converse.

— Wer ist da, bitte? — disse Fitzpatrick, em voz alta. Uma breve resposta em alemão e Connal respirou fundo. — Está bem. É uma mensagem do gerente para mim. Provavelmente quer nos alu­gar a sala de conferências. — O advogado da Marinha foi até a porta e abriu-a.

Entretanto, não era o gerente, nem um mensageiro do hotel, nem o carregador. De pé na porta estava um homem idoso e magro com terno escuro, porte erecto e ombros muito largos. Olhou pri­meiro para Fitzpatrick, depois para Converse

— Desculpe-me, por favor, comandante — disse cortesmente, entrando na sala e se aproximando de Joel com a mão estendida. — Herr Converse, permita que me apresente. Meu nome é Leifhelm, Erich Leifhelm.

 

Joel apertou a mão do alemão, atônito demais para fazer qualquer outra coisa.

— Marechal-de-campo...? — murmurou, arrependendo-se ime­diatamente. Podia pelo menos ter tido a presença de espírito de dizer “general”. As páginas do dossiê de Leifhelm passaram pela mente de Converse enquanto ele observava o homem — o cabelo liso, ainda mais louro do que branco, os olhos azuis pálidos e glaciais, a pele rosada, marcada pelas rugas, com brilho de cera, como se fosse preservada para durar mais algumas décadas.

— Um título antigo e que, felizmente, não ouço há muitos anos. Mas o senhor me lisonjeia. Interessou-se em saber algo sobre meu passado.

— Não muito.

— Suspeito que o suficiente. — Leifhelm voltou-se para Fitzpatrick. — Peço desculpas pelo pequeno ardil, comandante. Achei que seria melhor assim.

Fitzpatrick ergueu os ombros intrigado.

— Aparentemente vocês dois se conhecem.

— Apenas de ouvir falar — corrigiu o alemão. — O Sr. Con­verse veio a Bonn para se encontrar comigo, mas estou certo que ele lhe disse isso.

— Não, eu não lhe disse isso — afirmou Joel.

Leifhelm voltou a estudar os olhos de Converse.

— Compreendo. Talvez seja melhor conversarmos em parti­cular.

— Acho que sim — Joel olhou para Fitzpatrick. — Coman­dante, já tomei muito do seu tempo. Por que não desce para jantar e eu estarei lá num minuto?

— Como quiser, senhor — disse Connal, um oficial represen­tando o papel de subalterno. Cumprimentou com um gesto de cabe­ça e saiu, fechando a porta firmemente.

— Um quarto muito agradável — disse Leifhelm, caminhando para as janelas francesas. — E com uma bela vista.

— Como me encontrou? — perguntou Converse.

— Ele — respondeu o antigo marechal-de-campo, olhando pa­ra Joel. — Ein Offizier, segundo a recepção. Quem é ele?

— Como? — repetiu Converse.

— Ele passou horas, a noite passada, no aeroporto perguntan­do pelo senhor; muitos funcionários se lembravam dele. Obviamen­te era um amigo.

— E sabiam que tinha deixado a bagagem no aeroporto? Que ia voltar para apanhá-la?

— Francamente, não. Pensamos que voltaria para apanhar a bagagem do senhor. Sabíamos que o senhor não o faria. Agora, por favor, quem é ele?

Joel compreendeu que era vital manter um certo nível de arrogância, como fizera com Bertholdier em Paris. Era a única atitude a adotar com esses homens; para ser aceito, era preciso que eles vis­sem algo deles próprios em Joel.

— Não é importante e não sabe de nada. É um oficial advoga­do da Marinha que já trabalhou em Bonn e está aqui agora, ao que sei, a negócios pessoais. Uma futura noiva, acho que foi o que mencionou. Encontrei-o na semana passada; conversamos e eu disse que viria para Bonn hoje ou amanhã e ele fez questão de me encon­trar aqui. É muito prestativo e persistente. Estou certo de que tem ilusões sobre a advocacia civil. Naturalmente — nessas circunstân­cias — eu me utilizei dele. Como o senhor.

— Naturalmente — Leifhelm sorriu; estava sendo delicado. — Não lhe disse a hora de sua chegada?

— Paris não me deixou nenhuma possibilidade disso.

— Oh, sim, Paris. Precisamos discutir Paris.

— Falei com um amigo que tem contato com a Sûreté. O homem morreu.

— Esses homens morrem. Freqüentemente.

— Disseram que era um motorista de limusines. Ele não era.

— Seria mais prudente dizer que era um homem de confiança do general Jacques-Louis Bertholdier?

— Naturalmente que não. Dizem que eu o matei.

— E é verdade. Concluímos que foi um incontrolável erro de cálculo, provocado pela própria vítima.

— A Interpol está à minha procura.

— Nós também temos amigos; a situação vai mudar. Nada tem a temer... desde que nós nada tenhamos a temer. — O alemão fez uma pausa, observando o quarto. — Posso me sentar?

— Por favor. Quer que peça uma bebida?

— Bebo só vinho leve e raramente. A não ser que queira... não é necessário.

— Não é necessário — disse Converse.

Leifhelm sentou-se per­to da porta que dava para o terraço. Joel pensou que só se sentaria na hora certa, não antes.

— Tomou medidas extremas no aeroporto para nos evitar — continuou o mais jovem marechal-de-campo de Hitler.

— Fui seguido desde Copenhague.

— Muito observador de sua parte. Compreende que não tí­nhamos nenhuma intenção de lhe fazer mal.

— Não compreendo nada. Só não gostei. Não sabia que efeito o caso de Paris teria na minha chegada a Bonn, o que tudo isso significava para vocês.

— O que Paris significava? — perguntou Leifhelm retorica­mente. — Paris significava que um homem, um advogado com nome falso, tinha dito coisas alarmantes a um dos mais distintos e brilhantes estadistas. Esse advogado, que se dizia chamar Simon, disse que vinha a Bonn para me ver. Antes de embarcar — e tenho certeza, por ter sido provocado — ele mata um homem, o que nos diz alguma coisa: é um homem decidido e muito capaz. Mas é tudo o que sabemos; gostaríamos de saber mais. Aonde ele ia, com quem falava. Na nossa posição, teria feito diferente?

Era o momento para sentar-se.

— Eu teria feito melhor.

— Talvez se tivéssemos conhecido os recursos que possui, não tivéssemos sido tão óbvios. Por falar nisso, o que aconteceu em Pari? O que o homem fez para provocá-lo?

- Tentou me impedir de deixar o hotel.

— Não foram essas as ordens que recebeu.

— Então ele não as entendeu. Tenho algumas marcas no peito e no pescoço para provar isso. Não tenho o hábito de me defender fisicamente, e não tinha a menor intenção de matá-lo. Na verdade, não sabia que o tinha matado. Foi um acidente, um caso de autode­fesa.

— Obviamente. Quem procuraria complicações desse tipo?

— Exatamente — concordou Converse com voz seca. — As­sim que puder me lembrar das minhas últimas horas em Paris, sem mencionar meu encontro com o general Bertholdier, pretendo vol­tar e explicar tudo à polícia.

— Como diz o ditado, pode ser mais fácil dizer do que fazer. O senhor e o general foram vistos juntos no Étalon Blanc. Sem dúvida o general foi reconhecido mais tarde, quando foi ao hotel; é um homem célebre. Não, acho que será mais prudente deixar que tratemos disso. Nós podemos, o senhor sabe.

Joel olhou fixamente para o alemão, com expressão fria mas intrigada.

— Admito que é arriscado fazer o que pretendo. Não gosto disso, nem o meu cliente. Por outro lado, não posso continuar sendo caçado pela polícia.

— A caçada será suspensa. Precisa ficar escondido durante alguns dias, mas até lá receberemos novas instruções de Paris. Seu nome desaparecerá das listas da Interpol; não o procurarão mais.

— Quero garantias.

— Que melhor garantia pode querer do que minha palavra? Não estou dizendo nada quando afirmo que temos muito mais a perder do que o senhor.

Converse controlou seu espanto. Leifhelm estava lhe contando muito, voluntariamente ou não. O alemão tinha praticamente admi­tido que fazia parte de uma organização secreta que não podia se expor. Era a primeira evidência concreta que Joel tinha ouvido. Mas, de certo modo, fora muito fácil. Ou seriam aqueles patriarcas de Aquitânia simplesmente velhos assustados?

— Concordo com isso — disse Converse, cruzando as pernas. — Bem, general, encontrou-me antes que eu o encontrasse, mas, afinal, como já dissemos, meus movimentos são limitados. Agora, para onde vamos?

— Precisamente para onde queria ir, Sr. Converse. Em Paris, falou em Bonn, Telavive, Joanesburgo. Sabia quem procurar em Paris e em Bonn. Isso nos impressionou muito e devemos supor que deve saber muito mais.

— Passei meses fazendo uma pesquisa detalhada para meu cliente.

— Mas quem é o senhor? De onde vem?

Joel sentiu uma dor aguda no peito. Já sentira algumas vezes antes; era a resposta física ao perigo iminente e ao medo real.

— Sou quem quero que pensem que sou, general Leifhelm. Tenho certeza de que compreenderá.

— Sim — disse o alemão observando-o atentamente. — Um companheiro fiel dos ventos que sopram no momento, mas com poder suficiente para ser conduzido ao seu destino.

— É um pouco de exagero, mas acho que explica. Quanto ao lugar de onde venho, estou certo de que já sabe.

Cinco horas. Mais do que o suficiente para colocar os fanto­ches no lugar certo. Um crime em Nova Iorque; tinha de ser arran­jado.

— Apenas parte, Sr. Converse. E, mesmo que soubéssemos mais, como ter certeza da verdade? O que as pessoas pensam que o senhor é talvez não seja real.

— O senhor é o que pensam, general?

— Ausgezeichnet! — disse Leifhelm, batendo na coxa e rindo. Era um riso franco, e o rosto de cera do homem franziu-se com bom humor. — É um ótimo advogado, mein Herr. Responde — como dizem em inglês — uma pergunta direta com outra pergunta, que é uma resposta e uma acusação.

— Nas atuais circunstâncias, apenas a verdade. Nada mais.

— Modesto também. Muito louvável, muito atraente.

Joel descruzou as pernas, depois cruzou-as outra vez com impa­ciência.

— Não gosto de elogios, general. Não confio neles — nas circunstâncias atuais. Estava falando sobre aonde eu pretendo ir, sobre Bonn, Telavive, Joanesburgo. O que quis dizer?

— Apenas que vamos realizar seu desejo — disse Leifhelm, estendendo as mãos abertas. — Em lugar de fazer todas essas via­gens tediosas, pedimos aos nossos representantes de Telavive e Joa­nesburgo, bem como a Bertholdier, naturalmente, que viessem a uma conferência em Bonn. Uma conferência com o senhor, Sr. Converse.

Tinha conseguido! pensou Joel. Eles estavam assustados — em pânico, talvez fosse melhor dizer. Apesar da palpitação e da dor no peito, falou calmamente, em voz lenta.

— Apreciei sua consideração, mas, para ser franco, meu clien­te não está preparado para uma conferência desse tipo. Ele queria compreender as partes antes de verificar o todo. Os raios são o suporte da roda, senhor. Eu devia descobrir a força de cada um — qual a força que eu achava que deviam ter.

— Oh, sim, o seu cliente. Quem é ele, Sr. Converse?

— Tenho certeza de que o general Bertholdier já o informou de que não tenho liberdade para dizer.

— O senhor esteve em São Francisco, Califórnia...

— Onde fiz grande parte do meu trabalho de pesquisa — inter­rompeu Joel. — Não é onde mora meu cliente. Embora admita que há um homem em São Francisco, Palo Alto, para ser mais exato — o qual eu gostaria muito que fosse meu cliente.

— Sim, sim, compreendo — Leifhelm juntou as pontas dos dedos e continuou: — Devo presumir que não aceita a conferência aqui em Bonn?

Converse tinha recebido milhares de perguntas iguais a essa nas manobras de abertura de um caso, de advogados à procura de um acordo entre corporações adversárias. Os dois lados queriam a mes­ma coisa; era simplesmente uma questão de uniformizar a responsa­bilidade, de modo que nenhuma parte aparecesse como suplicante.

— Bem, tiveram tanto trabalho — começou Joel. — E desde que fique subentendido que tenho a opção de falar com cada ho­mem individualmente se desejar, não vejo nenhum inconveniente. — Converse deu um sorriso tenso, o sorriso que tantas vezes tinha usado. — No interesse do meu cliente, naturalmente.

— Naturalmente — disse o alemão. — Amanhã, digamos, quatro horas da tarde. Mandarei o carro buscá-lo. Eu lhe garanto, minha mesa é excelente.

— Mesa?

— Jantar, naturalmente. Depois conversaremos. — Leifhelm levantou-se. — Não permitiria que viesse a Bonn e não passasse por essa experiência. Sou famoso por meus jantares, Sr. Converse. E se isso o preocupa pode tomar qualquer providência... referente à segurança. Estará perfeitamente a salvo. Mein Haus ist dein Haus.

— Não falo alemão.

— Na verdade, é um antigo ditado espanhol. Mi casa, su casa. Minha casa é sua casa. Seu conforto e bem-estar são minhas preocupações mais urgentes.

— Minhas também — disse Joel, levantando-se. — Não gosta­ria de ter ninguém me acompanhando ou me seguindo. Seria contraprodutivo. Naturalmente vou informar meu cliente, dizendo-lhe quando pode esperar meu próximo telefonema. Ele estará natural­mente ansioso por ouvir as notícias.

— Imagino que sim. — Leifhelm e Converse foram até a porta; o alemão voltou-se e mais uma vez estendeu a mão. — Até amanhã, então E permita-me sugerir outra vez que seja muito cauteloso enquanto estiver aqui, pelo menos durante alguns dias.

— Compreendo.

Os fantoches em Nova Iorque. O assassinato que precisava ser resolvido — o primeiro de dois obstáculos, duas pontadas agudas e dolorosas no seu peito.

— A propósito — disse Joel, soltando a mão do marechal-de-campo. — Ouvi uma notícia na BBC esta manhã que me interessou — tanto que telefonei ao meu sócio. Um homem foi assassinado em Nova Iorque, um juiz. Dizem que foi vingança, um contrato feito pelo crime organizado. Ouviu alguma coisa a respeito?

— Eu? — perguntou Leifhelm, as sobrancelhas louras, quase brancas, erguidas, os lábios de cera entreabertos. — Ao que sei, dezenas de pessoas são assassinadas diariamente em Nova Iorque, inclusive juízes, suponho. Por que deveria saber algo a respeito? A resposta, obviamente, é não.

— Só estava pensando. Obrigado.

— Mas... mas o senhor. O senhor deve ter uma...

— Sim, general?

— Por que o juiz lhe interessa? Por que pensou que eu o conhecia?

Converse sorriu, sem nenhum vestígio de humor.

— Não estarei lhe dizendo nada de novo afirmando que ele era nosso adversário mútuo — inimigo, se quiser.

— Nosso? Acho que me deve uma explicação.

— Como o senhor — e eu — dissemos, eu sou o que quero que pensem que sou. Esse homem sabia a verdade. Estou de licença da minha firma, trabalhando confidencialmente para um cliente parti­cular. Ele tentou me deter, tentou obrigar meu sócio a cancelar minha licença e me chamar de volta a Nova Iorque.

— E apresentou os motivos?

— Não, apenas ameaças veladas sobre corrupção e ilegalidades. Não passaria disso, está ocupando o cargo de juiz e não podia retroceder; sua própria conduta seria suspeita. Meu patrão não sabe de nada — está zangado como o diabo e confuso — mas eu o acalmei. É um assunto delicado; quanto menos for ventilado, melhor para nós todos. — Joel abriu a porta para Leifhelm. — Até amanhã — fez uma breve pausa, sentindo-se invadido por ódio pelo homem que estava a seu lado, mas só respeito transparecendo nos seus olhos.

— Marechal-de-campo — acrescentou.

— Gute Nacht — disse Erich Leifhelm, assentindo com a ca­beça bruscamente, numa saudação militar.

Converse persuadiu a telefonista do hotel a mandar uma mensagem ao americano na sala de jantar, o comandante Fitzpatrick. Não foi fácil encontrá-lo, porque não estava na sala de jantar, nem no bar, mas na Spanische Terrasse tomando um drinque com amigos, ven­do o pôr-do-sol no Reno.

— Que amigos são esses? — perguntou Joel no telefone.

— Um casal que conheci. Ele é um cara simpático — um executivo acho, com mais de setenta anos.

— E ela? — perguntou Converse, suas antenas de advogado sensíveis a qualquer sinal.

— Talvez... trinta, quarenta anos mais moça — respondeu Connal com menos entusiasmo.

— Suba já, marinheiro!

 

Fitzpatrick inclinou-se para a frente no sofá, os cotovelos nos joe­lhos, sua expressão um misto de preocupação e espanto, olhando para Joel, que fumava um cigarro na frente das janelas abertas do terraço.

— Deixe que eu recapitule — disse com voz cansada. — Quer que eu impeça alguém de conseguir sua ficha de serviço?

— Não toda, só uma parte.

— Quem diabo pensa que sou?

— Você fez para Avery — Press. Pode fazer para mim. Pre­cisa fazer!

— Está vendo tudo de trás para a frente. Eu abri aqueles arquivos para ele, não procurei mantê-los fechados.

— De qualquer modo, é controle, Você tem acesso; você tem uma chave.

— Estou aqui, não lá. Não posso recortar dos arquivos uma coisa de que você não gosta a doze mil quilômetros de distância. Seja sensato!

— Alguém deve poder, alguém tem de fazer isso! É um pe­queno segmento, e deve estar bem no fim. A última entrevista.

— Uma entrevista! — disse Connal espantado, levantando-se. — Numa ficha de serviço? Quer dizer uma espécie de relatório de operações? Porque, se for, você não estaria...

— Não um relatório — interrompeu Converse, sacudindo a cabeça. — A baixa — minha entrevista para baixa. Aquele negócio que Press Halliday citou para mim.

— Espere um pouco, espere um pouco — Fitzpatrick levantou as duas mãos. — Está se referindo às observações feitas na sua audiência de baixa?

— Sim, é isso. A audiência!

— Muito bem, descanse. Não faz parte da sua ficha de ser­viço, ou da ficha de qualquer outro.

— Halliday tinha... Avery tinha o documento! Eu já disse, ele o citou verbatim! — Joel caminhou até a mesa onde estava o cin­zeiro; apagou o cigarro. — Se não faz parte da ficha, como foi que ele conseguiu? Como foi que você o conseguiu para ele?

— Isso é diferente — disse Connal, obviamente lembrando-se. — Você era um prisioneiro de guerra, e muitas dessas audiências foram colocadas sob classificação confidencial de informação rece­bida, e estou dizendo confidencial. Mesmo depois de todos estes anos, muitas daquelas sessões são ainda delicadas. Muita coisa foi dita que ninguém quer que venha a público — para o bem de todos, não só das classes armadas.

— Mas você as conseguiu! Eu ouvi minhas próprias palavras, que diabo!

— Sim, eu consegui — admitiu o advogado da Marinha sem entusiasmo. — Consegui a transcrição, e seria rebaixado para mari­nheiro de terceira classe se alguém soubesse disso. Compreenda, eu acreditava em Press. Ele jurou que precisava do documento, preci­sava de tudo. Ele não podia cometer nenhum erro.

— Como foi que você fez? Nem estava em San Diego na época, foi o que você disse!

— Telefonei para os arquivos e usei meu número de isenção legal para pedir uma cópia. Eu disse que era uma emergência Qua­tro Zero e que assumia toda a responsabilidade. Na manhã seguinte, quando a autorização chegou pelo malote, para minha assinatura de endosso, fiz com que o oficial jurídico chefe da base a assinasse entre outros documentos. Simplesmente ficou misturada aos outros papéis.

— Mas como soube que esse documento existia, para co­meçar?

— Relatórios especiais de prisioneiros de guerra têm “bandei­ras” nos papéis de baixa.

— Esclarecimento, por favor.

— Exatamente o que eu disse, “bandeiras”. Pequenos selos azuis que indicam informação adicional ainda mantida sob estrita segurança. Sem “bandeiras”, tudo está limpo; mas, se houver uma, então existe algo mais. Eu disse a Press, e ele insistiu que preci­sávamos saber, fosse o que fosse, então eu consegui.

— Nesse caso, qualquer outra pessoa podia fazer o mesmo.

— Não, não qualquer pessoa. É preciso ser um oficial com número de isenção legal e não somos muitos nesse caso. Além disso, há um mínimo de espera de quarenta e oito horas para que o material possa ser vetado. Isso especialmente na área de armamen­tos e tecnologia, cujos dados podem vir a ser classificados como confidenciais.

— Quarenta e oito...! — Converse engoliu em seco, enquanto tentava calcular as horas desde Paris, desde o primeiro momento em que seu nome tinha vindo à superfície. — Ainda temos tempo! — disse, a voz tensa, às palavras acentuadas. — Se você pode fazer ainda temos tempo! E, se puder, eu lhe direi tudo o que sei, porque vai merecer. Ninguém merecerá mais do que você.

— Troque em miúdos.

Joel voltou-se com ar desanimado, sacudindo a cabeça:

— Engraçado, foi exatamente o que eu disse para Avery: “Troque em miúdos, Avery.” ...Desculpe-me, o nome dele era Press. — Converse olhou o advogado militar, um advogado da Marinha com um fantástico privilégio chamado número de isenção legal. — Escute e preste atenção. Há alguns minutos aconteceu uma coisa que eu não tinha certeza de que poderia acontecer — alguma coisa pela qual mataram seu cunhado, para que ela não aconte­cesse. Amanhã, às quatro horas da tarde, vou estar com aquele grupo de homens que se juntaram para promover um tipo de vio­lência que deixará o mundo atônito, derrubando governos, permi­tindo que esses homens tomem o poder e preencham os vazios. Eles governarão tudo ao seu modo, farão as leis ao seu modo. Uma Grande Suprema Corte, cada cadeira ocupada por um fanático com convicções específicas quanto ao que tem valor e ao que não tem, e quanto a quem pode ir para o inferno, sem possibilidade de apelos, na sua agenda... Vou encontrá-los frente a frente! Vou falar com eles, ouvir suas palavras! Admito que sou a raposa mais amadora que já entrou num galinheiro — só que nesse caso é no ninho de abutres, e estou falando de abutres que mergulham e arrancam a carne das suas costas com um só golpe. Mas tenho algo a meu favor: sou um advogado danado de bom e vou saber de coisas de que eles nem desconfiam. Talvez o bastante para armar um ou dois casos que destruirão todo o grupo — que destruirão todos eles. Eu tinha dito que não aceitava seu prazo fixo. Ainda não o aceito, mas agora não parece tão fora de questão. Naturalmente não dois dias mas talvez menos de dez! Acontece que eu pensei que teria de ir a Telavive e depois a Joanesburgo. Preparar todos, assustá-los. Agora, não preciso mais! Já conseguimos! Eles vêm a mim porque são eles que estão assustados agora! Não sabem o que pensar, e isso significa que estão em pânico. — Converse fez uma pausa, gotas de suor aparecendo na sua testa; depois continuou: — Não preciso lhe dizer o que um bom advogado pode conseguir com uma testemunha hostil em pânico. O material que pode obter para provas.

— Seu pedido foi aceito, conselheiro — disse Fitzpatrick, não sem admiração. — É muito convincente. Agora diga-me como minha interferência pode ajudar. O que vai conseguir com ela?

— Quero que esses homens pensem que sou um deles! Posso conseguir isso com todas as informações que eles obtenham a meu respeito — não me orgulho de todas elas; assumi certos compro­missos — mas não vou conseguir com a transcrição da minha baixa! Você não vê? Avery... Press... compreendeu isso! E eu com­preendo agora. Ele me conheceu há quase vinte e cinco anos e, quando penso bem, fomos grandes amigos. E não importa o que nos aconteceu individualmente, ele estava confiando no fato de que eu não tinha mudado tanto assim, não nas coisas mais profundas e importantes. Quando se atinge a idade do voto, em geral estamos mais ou menos formados, nós todos. As mudanças reais vêm mais tarde, muito mais tarde, ditadas por coisas como aceitação ou re­jeição e pela situação do nosso bolso — o preço que pagamos por nossas convicções, ou para alimentar nosso talento, defendendo o sucesso ou explicando o fracasso. A transcrição daquele documento confirma o que Halliday acreditava, pelo menos o suficiente para fazê-lo me procurar, falar comigo e finalmente me recrutar. Só que ele conseguiu tudo isso — afinal — morrendo enquanto eu segurava sua cabeça. Eu não podia me negar depois disso.

Connal Fitzpatrick saiu para o terraço, em silêncio. Inclinou-se sobre a grade de ferro enquanto Converse o observava. Então, endireitou o corpo, levantou as duas mãos e arregaçou um pouco a manga esquerda.

— São doze e quinze em San Diego. Ninguém do departamen­to jurídico vai almoçar antes da uma; o bar Conrado só começa a se movimentar depois das dez.

— Você pode conseguir?

— Posso tentar — disse o oficial de Marinha, dirigindo-se para o telefone. — Não, que diabo, se você fez os cálculos certos, posso fazer mais do que tentar, posso mandar uma ordem. Para isso serve a patente.

Os primeiros cinco minutos foram de verdadeiro sofrimento para Joel. Havia demora em todas as ligações internacionais, mas de algum modo o bi-, tri-, ou quadrilíngüe Fitzpatrick, falando em tom insistente mas respeitoso em alemão, conseguiu o que queria, repetindo a palavra dringend a cada passo.

— Primeiro-tenente Remington, David. Divisão Jurídica, SAND PAC. É uma emergência, marinheiro, capitão-de-fragata Fitzpatrick falando. Interrompa se as linhas estiverem ocupadas. — Connal cobriu o fone com a mão e voltou-se para Converse. — Se abrir minha valise encontrará uma garrafa de burbom bem no meio.

— Vou abrir sua valise, capitão-de-fragata.

— Remington?... Alô, David, é Connal... Sim, muito obri­gado. Direi a Meagen... Não, não estou em São Francisco, não telefone para lá. Mas apareceu algo que quero que faça para mim, algo na minha agenda que não consegui terminar. Para começar, é uma emergência Quatro Zero. Eu explico os detalhes quando vol­tar, mas até lá tem de se encarregar disso. Tem um lápis?... Há uma ficha de serviço de prisioneiro de guerra, com o nome de Con­verse. Joel, tenente, uma divisa e meia, Divisão Aérea, piloto — baseado em porta-aviões, serviço no Vietnã. Deu baixa nos anos 60... — Fitzpatrick olhou para Converse, que levantou a mão direi­ta e mais três dedos da esquerda. — Mil novecentos e sessenta e oito, para ser exato — Joel deu um passo à frente, com a mão direita espalmada e erguida, a esquerda mostrando agora só o indi­cador — junho de 68 — acrescentou o oficial de Marinha, assen­tindo com a cabeça. — Ponto de desligamento, nossa velha cidade natal, San Diego. Anotou tudo? Leia para mim, por favor, David.

Connal assentia de vez em quando com a cabeça, escutando com atenção.

— C-O-N-V-E-R-S-E, certo... junho, 68, Divisão Aérea, pilo­to, Vietnã, seção prisioneiro de guerra, desligamento San Diego; é isso, sim, você anotou tudo. Agora, o problema, David. Essa ficha de serviço de Converse tem status “bandeira”; a “bandeira” diz respeito à audiência de baixa, não envolvendo armamentos ou alta tecnologia... Escute com atenção, David. Ao que sei, pode haver um requerimento pendente acompanhado de um código de isenção legal para a transcrição da baixa. Em nenhuma circunstância essa transcrição deve ser liberada. A “bandeira” continua fixa e não pode ser removida por ninguém sem minha autorização. E se a liberação já se processou, deve estar ainda dentro do prazo de qua­renta e oito horas para a solução de veto. Mate-a. Compreendido?

Fitzpatrick escutou outra vez, mas em lugar de assentir com o cabeça, ele a sacudiu.

— Não, em nenhuma circunstância. Não quero saber se os secretários de Estado, da Defesa e da Marinha assinaram uma pe­tição conjunta em papel timbrado da Casa Branca, a resposta é não. Se alguém questionar essa decisão, diga que estou exercendo minha autoridade de oficial jurídico chefe do SAND PAC. Existe um artigo no “banco de areia” que diz que uma patente CLO pode impugnar material com base em provável informação confidencial relacionada à segurança do setor etc. etc. Não me lembro do ele­mento tempo — setenta e duas horas ou cinco dias, ou qualquer coisa assim — mas procure o estatuto. Pode precisar dele.

Connal escutou outra vez com atenção, franzindo as sobrancelhas, olhando para Joel. Falou lentamente e Joel começou a sentir a dor agonizante no peito.

— Onde pode se comunicar comigo...? — disse o oficial de Marinha, perplexo. Então, subitamente não parecia mais intrigado. — Retiro o que eu disse; telefone para Meagen, em São Francisco. Se eu não estiver com ela e com os meninos, ela saberá onde me encontrar... Mais uma vez obrigado, David. Lave o seu convés e faça isso para mim, está bem? Obrigado, direi a Meagen. — Fitz­patrick desligou e respirou ruidosamente. — Pronto — disse, re­laxando os músculos, passando a mão no cabelo castanho-claro. — Vou telefonar para Meagen e lhe dar esse número. Quero que ela diga que eu fui para as montanhas Sonoma, se Remington tele­fonar — Press tinha uma casa lá.

— Dê o número do telefone, mas não lhe diga nada mais — disse Joel.

— Não se preocupe, ela já tem muito em que pensar. — O oficial olhou para Converse, com a testa franzida. - Se seus cál­culos estiverem certos, tem todo o seu tempo agora.

— Meus cálculos estão certos. O tenente Remington também estará? Quero dizer, ele não permitiria que ninguém passasse por cima de sua ordem, não é?

— Não confunda minha boa vontade, com o que David pode fazer — respondeu Connal. — David não se deixa levar com faci­lidade. Eu o escolhi, e não um dos quatro outros oficiais superiores do departamento legal porque tem fama de ser um “muito certi­nho”. Ele vai descobrir aquele estatuto e o pregará na testa de qualquer quatro-divisas que queira cancelar minha ordem. Eu gosto de Remington; é muito útil. Assusta muita gente.

— Nós todos temos companheiros como ele. É o que chama­mos o ato do mocinho-bandido.

— David se encaixa nisso. Ele tem um olho que está sempre se desviando para a direita — Fitzpatrick empertigou o corpo, em atitude militar. — Pensei que ia servir o burbom, tenente?

— Sim, senhor comandante! — respondeu Joel, apanhando a valise de Fitzpatrick.

— E se bem me lembro, depois de nos servir a bebida, vai me contar uma história que eu quero muito ouvir.

— Sim, claro que sim, senhor. — disse Converse, colocando a valise no sofá. — E se posso sugerir, senhor — continuou —, um jantar no quarto viria a calhar. Estou certo de que o comandante precisa se alimentar, depois de ter passado o dia inteiro no timão.

— Muito bem pensado, tenente. Vou telefonar para o Emp-fang.

— Antes de telefonar para seu bookmaker, posso sugerir que telefone para sua irmã?

— Oh, Cristo, tinha me esquecido!

 

Chaim Abrahms caminhava pela rua escura em Telavive, o corpo atarracado vestido com o costumeiro paletó safári, botas sob a calça caqui, e uma boina cobrindo a cabeça quase toda calva. A boina era a única concessão que fazia ao seu objetivo daquela noite; normal­mente gostava de ser reconhecido, aceitando as adulações com hu­mildade bem ensaiada. Durante o dia, a cabeça descoberta e ereta, com o paletó tão conhecido, correspondia às homenagens com um movimento de cabeça, os olhos fixos atentamente nos que o seguiam.

— Antes de tudo, um judeu! — era a frase com que era sempre saudado, fosse em Telavive ou Jerusalém, em certas partes de Paris e em quase toda Nova Iorque.

A frase tivera origem há alguns anos quando, como um jovem terrorista do Irgun ele fora condenado à morte in absentia, pelos ingleses, pela destruição de um vilarejo palestino, com os corpos dos árabes expostos para Nakama! Nessa ocasião, ele lançara um brado que foi ouvido no mundo todo: “Sou antes de tudo um judeu, um filho de Abraão! Todo o resto vem depois, e rios de sangue virão depois se os filhos de Abraão forem rejeitados!”

Os britânicos, em 1948, para evitar a criação de outro mártir, comutaram a sentença e deram a ele um grande moshav. Contudo, a extensão da terra não confinou o sabra militante. Três guerras sol­taram seus grilhões agrícolas e libertaram sua ferocidade — e sua brilhante atuação no campo de batalha. Era um talento desenvol­vido e refinado nos primeiros anos de atividade constante com um exército fugidio, fragmentado, para o qual as táticas de surpresa, choque e ataque e desaparecimento completo eram uma constante, sempre em inferioridade numérica e de armamentos, mas que só aceitava a vitória como resultado. Mais tarde ele aplicou a estraté­gia e a filosofia desses anos na máquina de guerra em constante expansão que se transformou no Exército, Marinha e Força Aérea de um poderoso Israel. Marte estava no céu da visão de Chaim Abrahms e, os profetas à parte, o deus da guerra era sua força, sua razão de ser. De Ramat Aviv a Har Hazeytim, de Rehovot a Masada do Negev, Nakama! Era o brado. Retaliação aos inimigos dos filhos de Abraão!

Se ao menos os poloneses e tchecos, os húngaros e romenos, bem como os orgulhosos alemães e os impossíveis russos não ti­vessem emigrado para seu país em levas tão numerosas! Chegaram e com eles as complicações. Facção contra facção, cultura contra cul­tura, cada grupo tentando provar que tinha mais direito ao título de judeu do que o outro. Era tudo um absurdo! Estavam ali porque precisavam; tinham sucumbido aos inimigos de Abraão, permitido — sim, permitido — o massacre de milhões, em lugar de se ergue­rem aos milhões e massacrarem por sua vez. Muito bem, tinham visto ao que conduziam seus costumes civilizados, e o quanto lhes valiam suas cerimônias talmúdicas. Então, foram para a Terra Santa — a Terra Santa deles, segundo afirmavam. Mas não era deles. Onde estavam eles quando ela fora arrancada à rocha e ao deserto árido por mãos fortes, com instrumentos primitivos — instrumentos bíbli­cos? Onde estavam quando os odiados árabes e os desprezados ingleses sentiram pela primeira vez a fúria do judeu tribal? Estavam nas capitais da Europa, nos seus bancos e em suas elegantes salas de estar, fazendo dinheiro e bebendo conhaque caro em copos de cris­tal. Não, eles foram para lá porque tiveram de ir; eles foram para a Terra Santa do sabra.

Levaram consigo dinheiro e costumes requintados, palavras ele­gantes e argumentos confusos, influência e a culpa do mundo. Mas foi o sabra quem os ensinou a lutar. E um sabra conduziria Israel para a órbita de uma nova e poderosa aliança.

Abrahms chegou ao cruzamento de Ibn Gabirol com Arlosoroff; um halo de neblina circundava as lâmpadas da rua. Era melhor assim, não seria visto. Faltava um quarteirão para chegar ao endereço na Jabotinsky, uma casa de apartamentos de fachada sim­ples, onde havia um apartamento comum alugado por um homem que parecia um burocrata sem importância. Mas o que bem poucos sabiam era que esse homem, esse especialista que operava com equipamento sofisticado de computador, comunicando-se com a maior parte do mundo, era um fator essencial para a ação global do Mossad, o serviço secreto de Israel, considerado por muitos como o melhor do mundo. Ele também era um sabra. Era um deles.

Abrahms disse o nome em voz baixa no interfone do saguão externo; ouviu o estalido da fechadura da porta pesada e entrou. Começou a subir os três lances de escada que levavam ao aparta­mento.

— Vinho, Chaim?

— Uísque — foi a resposta seca.

— Sempre a mesma pergunta e sempre a mesma resposta — disse o especialista. — Eu digo: “Vinho, Chaim?” e você diz uma palavra. “Uísque”, diz você. Você tomaria uísque no Seder se eles deixassem.

— Eu posso e eu faço. — Abrahms sentou-se na poltrona de couro ressecado, observando a sala simples e em desordem, com livros por toda a parte, pensando, como sempre fazia, por que um homem de tanta influência vivia desse modo. Diziam que o oficial do Mossad não gostava de companhia e que um apartamento maior e mais atraente podia atrair visitantes. — Por seus resmungos e tosses no telefone, concluí que você tem o que eu quero.

— Sim, eu tenho — disse o especialista, entregando um copo com bom uísque ao seu convidado. — Tenho, mas acho que não vai gostar.

— Por que não? — perguntou Abrahms, tomando um gole, os olhos atentos sobre a borda do copo e fixos no homem sentado à sua frente.

— Principalmente porque é confuso e, nesse negócio, o que é confuso deve ser tratado delicadamente. Você não é um homem delicado, Chaim Abrahms, perdoe minha indelicadeza por dizer isso. Você me disse que esse Converse é seu inimigo, um espião que provavelmente quer se infiltrar na organização, e eu lhe digo que não encontrei coisa alguma que apóie essa conclusão. Antes de mais nada, deve haver um motivo pessoal muito forte para que um não-profissional tente esse tipo de trabalho, esse tipo de comportamento, se prefere. É preciso uma compulsão muito intensa para procurar vencer a causa que ele odeia. Muito bem, há um motivo e há um inimigo que ele deve odiar muito, mas nenhum deles é compatível com a sua sugestão. A informação, pode estar certo, é de toda a confiança. Vem do Quang Dinh....

— Que diabo é isso? — interrompeu o general.

— Uma seção especializada do serviço secreto do Vietnã do Norte — agora, naturalmente vietnamita.

— Você tem fontes no Vietnã?

— Nós lhes demos informações durante anos — nada especial­mente importante, o suficiente para conseguirmos sua atenção e sua colaboração. Precisávamos saber de certas coisas, entender certas armas; podiam ser usadas contra nós.

— Esse Converse esteve no Vietnã do Norte?

— Durante alguns anos, como prisioneiro de guerra; há uma extensa documentação a respeito. A princípio, seus captores pensa­ram que podia ser usado para propaganda, programas de rádio e televisão — implorando ao seu brutal governo que retirasse seus homens e parasse com os bombardeios, essas tolices de praxe. Ele falava bem, tinha boa aparência e era obviamente muito ameri­cano. Começaram por apresentá-lo na televisão como um assassino vindo do céu, salvo dos bandos furiosos pelos soldados caridosos; depois, eles o mostraram comendo e fazendo exercícios; compre­ende, eles o estavam programando para uma virada súbita e vio­lenta. Pensaram que era um jovem fraco da classe privilegiada, que podia ser facilmente levado a fazer o que mandassem, em troca de um tratamento melhor — depois de ter experimentado um período de severa privação. Mas o que descobriram foi coisa muito diferente. Sob aquela aparência suave, havia um forro interno de metal resis­tente, e o mais estranho foi que, à medida que os meses passavam, o metal ficou mais reforçado, até compreenderem que tinham criado — criado, é a palavra que usaram — um cão do demônio, forjado em aço.

— Cão do demônio, palavras deles também?

— Não, eles o chamaram de pavoroso criador de casos, o que, considerando a origem do termo, não deixa de ser irônico. O im­portante aqui é o fato de eles reconhecerem que o haviam criado. Quanto mais severo o tratamento, mais instável ele ficava, mais resistente.

— Por que não? — disse Abrahms asperamente. — Ele estava zangado. Provoque uma serpente do deserto e veja de que modo ela ataca.

— Posso lhe garantir, Chaim, que não é a reação humana normal, nessas condições. Um homem pode enlouquecer e contra-atacar, num acesso de fúria insana, ou pode se isolar de tudo ao ponto de catatonia, ou se desmoronar completamente, chorando, pronto a fazer qualquer coisa pela mais insignificante demonstra­ção de bondade. Converse não fez nada disso. Suas reações eram todas uma série calculada e criativa que se alimentava dos seus recursos íntimos para sobreviver. Ele liderou duas fugas — a pri­meira durou três dias, a segunda, cinco — antes de serem recap­turados. Como líder, foi colocado em uma jaula no rio Mekong, mas ele descobriu um meio de matar os ratos de água agarrando-os por baixo, como um tubarão. Foi então colocado em confinamento solitário, um buraco de quatro metros de profundidade com arame farpado na entrada. E foi desse buraco que, numa noite de tempes­tade, ele subiu para a superfície, dobrou o arame e fugiu sozinho. Foi para o sul, atravessando a floresta e andando dentro de regatos por mais de cem quilômetros, até chegar às linhas americanas. Não foi uma façanha fácil. Eles tinham criado um homem selvagemente obcecado que venceu sua guerra pessoal.

— Por que não o mataram simplesmente, antes disso?

— Também pensei nisso — disse o especialista — e telefonei para minha fonte em Hanói, a que me forneceu a informação. Ele disse uma coisa estranha, de certo modo muito profunda. Disse que naturalmente não tinha estado lá, mas achava que não o mataram por respeito.

— Respeito por um pavoroso criador de casos?

— O cativeiro na guerra faz coisas estranhas, Chaim, tanto aos captores quanto aos capturados. São muitos os fatores que influen­ciam o jogo maldito. Agressão, resistência, bravura, medo, e — não menos importante — curiosidade, especialmente quando os jogado­res são originários de culturas tão diversas como orientais e oci­dentais. Geralmente forma-se um elo anormal, tanto pela exaustão do jogo de teste constante quanto por outros motivos, talvez. Não ameniza as animosidades nacionais, mas algo se estabelece que diz a esses jogadores, a esses homens, que não estão no jogo por vontade própria. A análise mais profunda demonstra que é o captor, não o capturado, o primeiro a perceber essa verdade. O capturado está obcecado com a idéia de liberdade e sobrevivência, ao passo que o captor começa a questionar sua autoridade absoluta sobre as vidas e condições de outros homens. Começam a imaginar o que seria estar no lugar deles. Tudo isso é uma parte do que os psiquiatras chamam de síndrome de Estocolmo.

— O que, em nome de Deus, está tentando me dizer? Parece um daqueles chatos no Knesset lendo um documento que define alguma posição. Um pouco disto, um pouco daquilo e uma porção de vento!

— Definitivamente, você não é sensível, Chaim. Estou tentando explicar que, enquanto esse Converse alimentava seus ódios e suas obsessões, seus captores cansaram-se do jogo, e, como sugere nossa fonte de Hanói, eles relutantemente pouparam sua vida por respeito, antes da sua fuga final e bem-sucedida.

Para espanto de Abrahms, o especialista aparentemente termi­nara o que tinha a dizer.

— E? — perguntou o sabra.

— Bem, aí está. O motivo e o inimigo, mas são também o seu motivo e o seu inimigo — duas conclusões alcançadas por caminhos diversos, naturalmente. Seu objetivo último é vencer a insurreição onde quer que ela apareça, dominar a disseminação das revoltas do Terceiro Mundo, especialmente o mundo islâmico, porque sabem que são incitadas pelos marxistas — leia-se soviéticos — e uma ameaça direta a Israel. De um modo ou de outro, foi a ameaça glo­bal que os reuniu — e, na minha opinião, muito justamente. Há um tempo e um lugar para um complexo militar-industrial, e esse tempo é agora. Deverá dirigir os governos do mundo livre antes que esse mundo seja enterrado por seus inimigos.

Chaim Abrahms entrecerrou os olhos e controlou-se para não gritar.

— E?

— Você não vê? Esse Converse é um dos seus. Tudo indica isso. Ele tem o motivo e o inimigo, que teve oportunidade de ver com a maior clareza. É um advogado respeitado que ganha muito dinheiro trabalhando para uma firma conservadora, e tem como clientes os mais ricos conglomerados e corporações. Tudo o que ele tem sido e tudo o que representa só pode ser beneficiado pelos esforços do seu grupo. A confusão está nos métodos não-ortodoxos que ele emprega, e não sei como explicar, a não ser dizendo que talvez não sejam tão inortodoxos no trabalho que faz. Os mercados prosperam basea­dos em boatos; o segredo e o diversionismo são respeitados. Seja como for, ele não os quer destruir, ele quer ser um de vocês.

O sabra pôs o copo no chão e levantou-se. Com o queixo enfiado no peito e as mãos cruzadas nas costas, Abrahms começou a caminhar de um lado para o outro, em silêncio. Parou e olhou para o especialista.

— Suponhamos, apenas suponhamos — disse ele — que o poderoso Mossad tenha cometido um erro, que haja alguma coisa que ainda não encontrou.

— Acho muito difícil.

— Mas é possível!

— Considerando a informação que reunimos, duvido. Por quê?

— Porque eu tenho olfato, por isso!

O homem do Mossad olhou fixamente para Abrahms, como se estivesse estudando o rosto do soldado — ou pensando com um diferente ponto de vista.

— Há só uma outra possibilidade, Chaim. Se esse Converse não é quem e o que descrevemos, o que seria contrário a todos os dados que reunimos, então ele é um agente do seu governo.

— É isso... é isso que eu farejo — disse o sabra em voz baixa.

Foi a vez de o especialista ficar em silêncio. Respirou fundo e disse afinal:

— Respeito seu nariz, velho amigo. Nem sempre a sua conduta, mas sem dúvida seu olfato. O que os outros acham?

— Só que ele está mentindo, que está protegendo pessoas que talvez conheça, talvez não, que o estão usando como um batedor — um observador avançado da infantaria, como disseram em Palo Alto.

O funcionário do Mossad continuou a observar o sabra, mas seus olhos estavam fora de foco; estava vendo desenhos abstratos, retorcidos, volutas que poucos homens compreenderiam. Eram pro­duto de uma vida inteira dedicada à análise do visível e do invisível, inimigos legítimos e raciais, defendendo-se de golpes de adaga com contragolpes, na mais profunda escuridão.

— É possível — murmurou, como se respondesse a uma per­gunta não expressa em palavras, ouvida só por ele. — Quase in­concebível, mas possível.

— O quê? Que Washington esteja por trás disso tudo?

— Sim.

— Por quê?

— Como uma alternativa absurda, com a qual não concordo, mas a única que pode ter a mínima plausibilidade. Em poucas palavras, ele tem muita informação.

— E?

— Não Washington, no sentido comum, não o governo, no sentido mais lato, mas dentro de um departamento do governo, uma seção que ouviu algo sobre uma organização, mas não tem certeza. Acreditam que, se tal organização existe, deve ser invadida e des­mascarada. Assim, escolhem um homem com um passado certo, com as lembranças certas, e até com a profissão certa para o trabalho. Talvez ele acredite mesmo em tudo o que diz.

O sabra estava interessado, mas impaciente.

— Isso é muito complicado para mim — disse asperamente.

— Tente pensar do meu modo, primeiro. Tente aceitá-lo; ele pode ser genuíno. Ele precisa dar a vocês algo concreto; vocês podem obrigá-lo a isso. Ou talvez ele não possa dar essa informação.

— E?

— Se ele não puder, então vocês saberão que estão certos. Nesse caso procurem afastá-lo dos que o patrocinam, tanto quanto for humana e brutalmente possível. Ele deve se tornar um pária, um homem caçado por crimes tão insanos que sua loucura se torne uma certeza.

— Por que não matá-lo, simplesmente?

— Mas, naturalmente, porém não antes de ser considerado tão desequilibrado que ninguém se interesse em reclamá-lo. Dará a vocês o tempo de que precisam. Quando será a fase final de Aquitânia? Daqui a três ou quatro semanas?

— É quando começará, sim.

O especialista levantou-se e ficou na frente do soldado, pensati­vamente.

— Eu repito, tentem primeiro aceitá-lo, verifiquem se o que eu disse antes é verdadeiro. Mas, se o seu olfato for mais estimulado, se houver a mínima possibilidade de que seja, voluntariamente ou não, conscientemente ou não, um provocador criado por Washington, então arquitetem o plano contra ele e atirem-no aos lobos. Criem um pária, como os norte-vietnamitas criaram um cão do diabo. Depois devem matá-lo rapidamente, antes que alguém possa aproxi­mar-se dele.

— São as palavras de um sabra do Mossad?

— Tão claras quanto podem ser.

 

O jovem capitão do Exército e o civil um pouco mais velho saíram do Pentágono por portas de vidro adjacentes e entreolharam-se rapida­mente, sem nenhum sinal de reconhecimento. Desceram separados os poucos degraus e foram para a esquerda pelo caminho cimentado que leva ao enorme estacionamento; o oficial do Exército estava uns três metros na frente do civil. Chegando à imensa área asfaltada, cada um foi para um lado, para os respectivos carros. Se aqueles dois homens estivessem sob vigilância fotográfica durante os últimos cinqüenta segundos, não haveria nenhuma indicação de que se co­nheciam.

O Buick verde virou para a direita no meio do quarteirão, entrando na fenda profunda que era a porta da garagem subterrânea do hotel. No fim da rampa o motorista mostrou a chave do hotel ao vigia, este levantou a barreira amarela e fez sinal para que passasse. Havia um espaço vazio na terceira fila de vagas. O Buick entrou nele e o capitão do Exército desceu do carro.

Passou pela porta giratória e encaminhou-se para os elevadores do saguão do subsolo do hotel. As portas do segundo elevador se abriram, e ele viu dois casais que não pretendiam ter ido até o subsolo; eles riram e um dos homens apertou repetidamente o botão do térreo. O oficial apertou o botão do décimo quarto andar. Sessen­ta segundos depois, ele saiu no corredor e dirigiu-se para a escada. Ia para o décimo primeiro andar.

A caminhonete Toyota azul desceu a rampa, a mão do motorista para fora com uma chave, o número visível. Dentro do estaciona­mento ele encontrou um espaço vazio e cuidadosamente encostou o carro.

O civil saiu do carro e consultou o relógio. Satisfeito, dirigiu-se para as portas giratórias e para os elevadores. O segundo elevador estava vazio, e ele teve vontade de apertar o botão do décimo primeiro andar; estava cansado e não lhe agradava a idéia de ter de andar mais. Entretanto, podia haver outros passageiros, vindos de outros andares, por isso obedeceu às regras e colocou o dedo no botão do número 9.

Na frente da porta do quarto de hotel, o civil ergueu a mão, bateu de leve uma vez, esperou, depois bateu mais duas vezes. A porta foi aberta pelo capitão do Exército. Atrás dele estava um terceiro ho­mem, também de uniforme, a cor e a insígnia indicando primeiro-tenente da Marinha. Ele estava de pé ao lado de uma mesa sobre a qual havia um telefone.

— Ainda bem que chegou em tempo — disse o oficial do Exército. — O trânsito estava horrível. O telefonema não deve demorar.

O civil entrou, cumprimentando o oficial de Marinha com um aceno de cabeça.

— O que descobriu sobre Fitzpatrick? — perguntou.

— Ele está onde não devia estar — respondeu o tenente.

— Pode chamá-lo de volta?

— Estou tratando disso, mas não sei por onde começar. Ocupo uma posição muito inferior em um grande poste totêmico.

— Nós todos — disse o capitão.

— Quem pensaria que Halliday ia procurar Fitzpatrick? — perguntou o oficial de Marinha, com tom de frustração. — Ou, se tinha intenção de envolvê-lo nisso, por que não o fez logo no co­meço? Por que não lhe contou a nosso respeito?

— Posso responder às duas últimas perguntas — disse o oficial de Marinha. —- Ele o estava protegendo contra o contragolpe do Pentágono. Se afundarmos, seu cunhado sai ileso.

— E eu posso responder à primeira — disse o civil. — Halliday procurou Fitzpatrick porque, em última hipótese, ele não confiava em nós. Genebra provou que ele estava certo.

— Como? — perguntou o capitão defensivamente, mas sem sugestão de desculpa na voz. — Não podíamos ter evitado.

— Não, não podíamos — concordou o civil. — Mas também não pudemos fazer nada depois. Essa era parte do combinado e não correspondemos. Não tínhamos meios.

O telefone tocou. O tenente apanhou o fone e escutou:

— É Miconos — disse ele.



 

[1]Reserva da Marinha dos Estados Unidos. (N. da T.)

[2]Organização dos Estados Árabes. (N. da T.)

[3]Prisioneiro de guerra. (N. da T.)

[4]Ratchet. Em inglês: rat: rato; wretched: miserável (homofonia) e ratchet: chave de catraca.

[5]SHAPE — Supreme Headquarter of Allied Power in Europe = Comando Supremo das Forças Aliadas na Europa.

[6]Irlanda. (N. da T.)

 

                                                                                 CONTINUA

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades