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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A IRMANDADE DAS ENFERMEIRAS / Michael Palmer
A IRMANDADE DAS ENFERMEIRAS / Michael Palmer

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A IRMANDADE DAS ENFERMEIRAS

 

-Está tudo bem, mãezinha... Eu estou aqui, mamã...

Os dedos afuselados estenderam-se por cima do lençol bem engomado da cama de

hospital. Com muita lentidão, cerraram-se em volta da mão gorducha de pele branca, restringidos pelos adesivos e pela correia de couro que prendia a mão à extremidade lateral da cama.

A doente, que tinha o outro braço e as pernas presos de maneira similar, olhava sem

pestanejar para o teto; a pintura começava a lascar. Os movimentos rítmicos ascendentes e descendentes do lençol que lhe cobria o peito, assim como o passar da língua pelos lábios ressequidos, eram os únicos sinais exteriores de vida. Os seus cabelos grisalhos e desalinhados emolduravam um rosto que em tempos fora considerado de grande beleza.

Agora, a pele colava-se aos ossos devido à extrema magreza, enquanto os seus olhos eram obscurecidos por uma película de sofrimento. Embora fosse fácil calcular que ela deveria rondar os sessenta e cinco anos, desde o dia do quadragésimo quinto aniversário daquela mulher haviam decorrido apenas cinco meses exatamente o mesmo dia em que lhe tinha sido diagnosticada, pela primeira vez, a doença terminal.

A rapariguinha mantinha-se sentada a um dos lados da cama de latão, cerrando o aperto da sua mão quando virou a cabeça para ocultar uma lágrima que lhe corria pela face.

Usava um casaco comprido, de uma fazenda espessa azul marinho, e calçava botas de inverno de onde escorria a neve derretida, que ia formando uma pequena poça no chão de linóleo.

Os cinco minutos seguintes foram de completa imobilização; os únicos sons que se

ouviam naquele lugar vinham dos outros doentes acamados no interior de outros quartos.

Finalmente, a rapariga despiu o casaco, aproximando mais a cadeira da cabeceira da cama e recomeçando a falar.

- Mãezinha, consegue ouvir-me? Continua a doer muito? Mamã, por favor. Diga-me o que é que posso fazer para a ajudar.

Decorreu outro minuto antes que a mulher lhe desse resposta. A sua voz, embora baixa e enrouquecida, encheu o quarto.

- Mata-me! Por amor de Deus; por favor, acaba com a minha vida.

- Mamã, pare com isso! Não sabe o que está a dizer. Vou chamar a enfermeira, ela poderá dar-lhe qualquer coisa que alivie as dores.

- Não, minha querida. Não existe nada que possa aliviar-me. Há vários dias que não há nada que me tire estas dores. Mas tu podes ajudar-me. É forçoso que me ajudes!

A garota, que se sentia mais confusa e atemorizada do que se sentira em qualquer outra altura ao longo dos seus quinze anos de vida, ergueu o olhar para a garrafa de fluido translúcido, cujo conteúdo entrava gota a gota no braço da mãe. Levantou-se da cadeira e, a medo, ensaiou alguns passos na direção da porta, até que as súplicas da mulher mais velha lhe imobilizaram os passos.

Com alguma hesitação regressou para junto da cama, mas a menos de um metro deteve-se.

Vindo de algures, mais ao fundo do corredor, ouviu-se um grito lancinante de agonia.

Seguiu-se um outro. A rapariga cerrou os olhos e rilhou os dentes, tentando conter o ódio que nutria por aquele lugar.

- Por favor, aproxima-te e ajuda-me-implorou-lhe a mãe. -Ajuda-me a pôr cobro a este sofrimento. Apenas tu podes fazê-lo. A almofada, minha querida. Só tens de a colocar em cima do meu rosto e fazeres tanta força quanta te seja possível. Não será preciso muito tempo.

- Mãezinha, eu...

- Eu sinto muito amor por ti, se tu também me amas, não permitirás que eu continue a sofrer desta maneira. Todos eles dizem que sou um caso desesperado... Não permitas que a tua mãe continue a viver nesta agonia atroz...

- Eu amo-a, mãezinha. Gosto muito de si...

A garota continuou a sussurrar aquelas palavras, enquanto, com toda a gentileza, erguia a cabeça da mãe para retirar a almofada pouco alta mas firme.

- Eu amo-a, mãezinha... -repetiu ela vezes sem conta, colocando a almofada sobre o rosto de feições esguias e fazendo pressão com todas as forças que conseguiu reunir. Obrigou os seus pensamentos a recuarem até ao período da sua vida onde imperara a felicidade: as longas caminhadas durante a Primavera, a aprendizagem de doçaria, as canecas cheias de chocolate fumegante nas tardes em que nevava. O seu corpo era magro e leve; deixava adivinhar somente uns ligeiríssimos traços de

mulher madura. Esforçando-se por encontrar um ponto de apoio, agarrou firmemente na almofada e soergueu os joelhos, mantendo as pernas dobradas à medida que as imagens iam desfilando na sua mente, ela exercia cada vez mais força sobre a almofada com todo o seu corpo. Os passeios num passo saltitante até ao lago, os piqueniques à beira de água, as corridas até à jangada...

Os movimentos que sentia por baixo da almofada começaram a abrandar, até que cessaram por completo.

O seu choro convulsivo misturava-se com o matraquear da saraivada contra os vidros da janela; a rapariga deixou-se ficar imobilizada, sem se aperceber do pedaço de fronha que inconscientemente havia rasgado e que mantinha fechado na sua mão.

Ao cabo de quase meia hora, ergueu-se, voltou a colocar a almofada no seu lugar e beijou os lábios sem vida da mãe. Em seguida, voltou costas à cama e encaminhou-se resolutamente para o corredor que percorreu sem hesitar, abandonando o hospital e saindo para o tempo agreste de invernia que fazia naquele fim de tarde.

Era um dia de Fevereiro, mais concretamente, o dia 17. O ano era o de 1932.

 

BOSTON - 1o DE OUTUBRO

O sol da manhã banhava o interior do quarto, momentos antes do rádio-despertador

começar a transmitir as primeiras notas musicais. David Shelton, com os olhos ainda

fechados, deixou-se ficar a ouvir durante alguns segundos, após o que tentou adivinhar em silêncio qual o tema: As Quatro Estações de Vivaldi, muito provavelmente o concerto "Verão". Aquele era um jogo com que ele se entretinha todas as manhãs havia muitos anos. Ainda assim, as ocasiões em que identificara corretamente uma determinada peça eram bastante raras, pelo que eram merecedoras de uma pequena celebração.

Entretanto,começou a ouvir uma voz masculina e acariciante, selecionada criteriosamente pela estação de rádio para se misturar com o amanhecer, identificando o tema musical como sendo uma sinfonia da autoria de Haydn. David sorriu para si mesmo. “Estás a ficar cada vez mais arguto. O continente correto, até mesmo o século certo. Voltou a cabeça na direção da janela, abrindo os olhos muito ligeiramente e preparando-se para o jogo de adivinhação seguinte, o que fazia sempre durante aquele seu ritual matinal. Através das suas pestanas filtravam-se os arcos-íris obscurecidos dos raios solares”.

- Não há lugar a competição - disse semicerrando as pálpebras para que as cores bruxuleassem.

- O que é que disseste?-resmungou a mulher sonolenta que se encontrava deitada ao seu lado, encostando firmemente o seu corpo ao dele.

- Temos um dia cintilante de Outono. Dez, não... treze graus. Sem uma única nuvem no céu David abriu completamente os olhos e, confirmando a sua previsão, rolou para o outro lado e fez deslizar o braço por baixo das costas de pele macia da mulher.

- Um Outubro feliz, acrescentou ele beijando-lhe a testa, ao mesmo tempo que a mão que tinha livre lhe acariciava o pescoço, deslizando até aos seios.

David ficou a observar as feições da mulher enquanto esta despertava, maravilhado perante a sua beleza sem mácula. Cabelos da cor do ébano. Maçãs do rosto salientes.

Uma boca carnuda e sensual. Lauren Nichols era uma mulher estonteante. Até mesmo às seis horas da manhã. Durante uma fração de segundos, os seus pensamentos foram atravessados pela imagem de uma outra mulher. À sua maneira muito pessoal, Ginny também apresentara sempre um aspecto maravilhoso às primeiras horas da manhã.

Aquela imagem breve desapareceu quando ele passou os dedos pelo estômago raso de Lauren, tendo começado a massagear, com toda a suavidade, a elevação por baixo dos seus pêlos macios.

- Vira-te de barriga para baixo, David, para eu te dar uma massagem às costas -disse Lauren sentando-se de repente.

A desilusão ficou bem patente na expressão dele, embora tivesse dado lugar imediatamente a um sorriso rasgado.

- A escolha pertence às senhoras -cantarolou ele amarfanhando a almofada por baixo da sua cabeça. -A noite passada foi maravilhosa -acrescentou, sentindo os músculos maciços na base da sua nuca começarem a relaxar-se ao toque das mãos de Lauren. -Tu és uma mulher muito especial, Nichols, sabes disso, não é verdade?

Fora do ângulo de visão de David, Lauren forçou-se a esboçar o sorriso de uma pessoa adulta que tentasse partilhar um entusiasmo juvenil que há muito deixara de ter qualquer significado para si.

- David -continuou ela, imprimindo mais vigor à massagem-, achas que és capaz de

conseguir cortar o cabelo antes do jantar dançante na Sociedade das Artes que está

marcado para a próxima semana?

Ele voltou-se, ficando deitado de costas a olhar para ela com uma expressão que era um misto de confusão e perplexidade.

- O que é que o corte do meu cabelo tem a ver com o estarmos a fazer amor?

- Lamento muito, querido - retorquiu ela sem esconder alguma ansiedade. -De verdade que lamento. Deve ser porque hoje tenho um milhar de coisas a preencherem-me os pensamentos. Para mim também foi maravilhoso. De verdade que sim.

- Maravilhoso? Estás mesmo a falar a sério?-retorquiu David recuperando de imediato todo o seu arrebatamento.

- O teu corpo continua excessivamente tenso, doutor, embora um pouco menos do que há pouco. Sem dúvida que a noite passada foi a melhor de todas.

A melhor de todas. David inclinou a cabeça de lado, procedendo a uma avaliação das palavras que ela proferira. Progressos e não perfeição. Concluiu que aquilo era tudo o que tinha direito a pedir. Certamente que, ao longo dos seis meses decorridos desde que se conheciam, haviam sido alcançados alguns progressos.

A vida em conjunto que ambos levavam era com bastante freqüência uma autêntica

montanha-russa de emoções, bastante o oposto dos anos fáceis, e sem grandes contratempos, em que estivera casado com Ginny. Não obstante esse aspecto, as diferenças que existiam entre ambos não eram inultrapassáveis: os amigos dela tão críticos, o cinismo dele, as exigências diversificadas da carreira profissional por que cada um deles optara. Com o aparecimento de cada crise, que era ultrapassada e deixada para trás, David sentia que o carinho que existia entre ambos saia reforçado. Embora houvesse alguns aspectos que ele desejava que tivessem sido diferentes, sentia-se grato pela simples existência de afeto e vontade de tentar.

Era essa vontade que David tinha pensado ter morrido para si havia oito anos, por entre gritos, vidros estilhaçados e a amálgama de metal retorcido.

Apercebendo-se de que Lauren já dissera tudo o que tinha a dizer com referência à relação física entre ambos, David retomou a posição anterior. A massagem às costas continuou. "Talvez estejas finalmente preparado", pensou para consigo. “É possível que tenha chegado a altura. Mas, por amor de Deus, Shelton, não apresses os acontecimentos. Não faças com que ela se afaste de ti, mas por outro lado, também não deves restringi-la. Enquanto aqueles sentimentos passavam pela sua mente, a apreensão em que ambos se encontravam envoltos começou a dissipar-se”.

- Sabes... - prosseguiu ele ao fim de algum tempo. - De todas as apostas e previsões que fiz comigo próprio, tu foste a perda mais surpreendente.

- O que é que queres dizer com isso?

- Pois bem, acho que agora será seguro dizer-te. Quando do nosso primeiro encontro, apostei comigo mesmo uma pizza gigante especial do Luigi, com tudo menos anchovas, em como ao fim de uma semana já não teríamos nada a dizer um ao outro.

- David! - exclamou Lauren.

- Muito simplesmente, eu não era capaz de imaginar o que é que um cirurgião nada sofisticado, do mais vulgar que existe, poderia encontrar para tema de conversa com uma repórter chique das colunas sociais dos jornais, só isso.

- Mas agora já sabes, não é verdade?

- Tudo o que sei é que o meu corpo te excitou tanto que não foste capaz de resistir a

brincar ao gato e ao rato com o resto de mim. - David riu-se, descrevendo meia volta para lhe dar um abraço ursino, uma manobra que, regra geral, dava origem a uma espécie de luta corpo a corpo em que tudo valia. Quando Lauren não mostrou a mínima inclinação de embarcar naquela brincadeira, ele largou-a, inclinando-se para trás com o peso do torso apoiado sobre as mãos.

- Passa-se alguma coisa? - perguntou ele a Lauren.

- David, ontem à noite, enquanto dormias, gritaste. Tiveste outro pesadelo?

- Eu... calculo que sim - replicou David com alguma hesitação, enquanto exercitava os músculos das mandíbulas. Só então é que se apercebeu de que os sentia magoados. - Sinto o rosto dorido, o que significa que passei a maior parte da noite com os dentes cerrados.

- Consegues recordar-te com o que é que sonhas-te desta vez?

- Foi um sonho que já tive anteriormente, acho eu. Menos perceptível do que em outras noites, mas sem dúvida que foi o mesmo. É um pesadelo que deixou de me afligir com tanta freqüência como antigamente.

- Qual é? - perguntou ela.

David adivinhou a preocupação na voz de Lauren, mas a sua expressão mostrava mais qualquer coisa. Seria impaciência? Irritação? David afastou o olhar.

- A auto-estrada - disse ele numa voz murmurada. - Era a auto-estrada. - A entoação

cadenciada das suas palavras até então adquiriu um aspecto estranho e impessoal, como se ele houvesse voltado a mergulhar no pesadelo. - Durante algum tempo, tudo o que eu vejo à minha frente é o pára brisas... os limpa pára brisas que se deslocam freneticamente de um lado para o outro... cada vez com maior rapidez, numa luta sem tréguas para conseguirem acompanhar o ritmo da chuva. O traçado do centro da estrada tenta serpentear por baixo do automóvel. Eu insisto em fazê-lo retroceder com a roda. Por breves instantes, a face da Ginny está presente... assim como a da Becky... ambas adormecidas... ambas com uma expressão tão plácida... - Os olhos de David mantinham-se fechados. Interrompeu as suas palavras, mas a recordação do sonho não o tinha abandonado. Surgindo por entre a escuridão e as bátegas de chuva, os máximos começavam a aproximar-se. Dois de uma vez. Dirigiam-se diretamente na sua direção, para em seguida se dividirem, passando num clarão, um de cada lado. Vaga após vaga de luz desfocada. E então, acima das luzes, ele avistou o rosto. As feições enlouquecidas da embriaguez, contorcidas e avermelhadas como que por ação do fogo; olhos que cintilavam dourados no meio das chamas. As suas mãos cerraram-se e ele rezou para que os faróis que se aproximavam se separassem como todos os outros. Mas sabia que isso não aconteceria. Nunca o faziam. Em seguida, ouviu o som estridente dos travões a fundo. Viu que os olhos de Ginny se abriam, arredondando-se numa expressão de terror. Por fim, ele ouviu o grito. Dela? Dele? Nunca soube dizer de qual dos dois é que saíra.

- David?

A voz de Lauren atalhou o grito. Estremeceu e voltou-se para ela. As suas frontes estavam perladas de gotas de transpiração. As mãos tremiam-lhe. Respirou fundo e lentamente exalou o ar com que enchera os pulmões. Os tremores pararam.

- Imagino que por alguns instantes me perdi em devaneios, não? - Esboçou um sorriso tímido.

- David, tens ido ao teu médico? Talvez devesses entrar em contacto com ele – sugeriu Lauren.

- O velho Brinker, o Espreme-Miolos? Ele deixou-me completamente depenado... tanto da cabeça como da carteira há cerca de três meses e disse-me que eu já me tinha licenciado. Porque é que estás tão preocupada? Não passa de um pesadelo. O Brinker informou-me que eles são uma ocorrência normal em situações como a minha.

- Sinto-me preocupada, mais nada.

- Lauren Nichols, deves estar com medo que eu me vá abaixo durante o banquete da Sociedade das Artes, fazendo com que vejas cancelado o teu estatuto de sócia vitalícia!

O riso de Lauren pecava pela falta de convicção. Decorridos alguns segundos, ela desistiu de tentar prestar homenagem ao sentido de humor que ele mostrava.

- David, por acaso existirá alguma coisa que tu leves a sério? Numa só frase, tu consegues troçar de mim por me preocupar com o teu estado de saúde, assim como por me interessar o suficiente em relação às artes, o que me leva a manter um papel ativo na sociedade. O que é que se passa contigo?

David esteve prestes a apresentar as suas desculpas, mas engoliu as palavras. A expressão que via nos olhos dela disse-lhe que, subitamente, havia algumas questões muito básicas que se encontravam em foco. Era necessário algo bastante mais substancial do que um simples "lamento muito". Durante alguns segundos de silêncio, que lhe pareceram intermináveis, o olhar de ambos manteve-se preso.

- Aqui vou eu de novo, certo?-disse ele ao fim de algum tempo com um encolher de ombros. -Uns quantos gramas de frivolidade equivalem a um quilograma de se ser forçado a enfrentar os verdadeiros sentimentos. Eu sei que faço isso, mas por vezes até mesmo esta percepção não é o suficiente. Bem vês, Lauren, o que eu disse não foi com qualquer intenção maliciosa. Verdadeiramente que não. Os pesadelos continuam a assustar-me. É me extremamente difícil encarar essa situação. Compreendes?

Lauren continuava sem se sentir apaziguada.

- Não respondeste à minha pergunta, David. Existe algum assunto que para ti tenha um significado suficientemente relevante para impedir que o encares de animo leve?

- Para te ser franco -redargüiu ele-, devo dizer-te que a maior parte das questões é relevante no que me diz respeito. Merda, nesta fase da nossa relação tu já devias estar bem ciente disso.

- Mas acontece que somente tu é que tens a certeza do que é o quê, não é verdade?

- Que diabo, Lauren, eu sou um médico; na verdade, um cirurgião, e já agora acrescento que muito bom. É evidente que as coisas são importantes para mim. Claro que me interesso. Preocupo-me com as pessoas e com o seu sofrimento, com as dores que as afligem, com a vida. O meu mundo encontra-se repleto de ferimentos, de doenças, de decisões em que nem sempre se sai a ganhar. No dia em que eu perder a minha capacidade de rir, será o dia em que terei deixado de conseguir fazer frente às adversidades. -Reprimiu o impulso que o levava a desejar continuar, tendo a percepção de que era o culpado pelo ataque ao pequeno arrufo matinal com um martelo de forja.

- Vou tomar um duche -disse Lauren momentos depois. Já se tinha levantado da cama, envolvendo-se num roupão de tecido aveludado azul.

- Queres companhia?-perguntou David.

- Está a parecer-me que esta altura é bastante apropriada a um pouco de espaço pessoal, uma ensaboadela e água bem quente. Vai preparar qualquer coisa para o pequeno almoço. Vou ficar muito bem lavadinha, após o que poderemos dar a este dia um bom começo, enquanto tomamos uma chávena de café.

David deixou-se ficar sentado em cima da cama, olhando para a luminosidade do dia até que começou a ouvir o som da água a bater contra os azulejos. Aquele dia, possivelmente o mais importante para si em muitos anos, não estava a começar da maneira que ele o havia planeado. Naquela altura, ele já deveria ter partilhado com Lauren as alterações empolgantes que se haviam verificado no hospital. Acontecimentos que poderiam muito bem assinalar o início do fim de tantas frustrações, e desilusões, que tinham vindo a colorir a sua vida. Naquele momento, já ele deveria ter reafirmado o seu desejo de que ela se mudasse para sua casa, com o que ela finalmente teria concordado, chegando à conclusão de que estava na altura de tomar aquela medida.

- Acalma-te, Shelton, e deixa que as coisas aconteçam com naturalidade -disse David para consigo, enclavinhando as mãos, relaxando-as logo que tomou consciência do que fazia. -Finalmente, todas as peças estão a começar a enquadrar-se de forma adequada. Nada nem ninguém, a não ser tu mesmo, poderá estragar tudo de novo. De uma das gavetas da cômoda tirou um conjunto de roupas verdes de cirurgia, bastante puídas, de entre a meia dúzia de peças que mantinha em casa, vestiu-se e dirigiu-se para a janela. Quatro andares mais abaixo, avistou uns quantos madrugadores que atravessavam as zonas centrais, destinadas aos pedestres, existentes entre as faixas de rodagem de direções contrárias, espaços que continuavam envoltos em sombras, da Commonwealth Avenue. Perguntou a si mesmo quantas daquelas pessoas sentiriam o mesmo sentimento de antecipação, que ele próprio sentia, a expectativa de um novo dia prestes a começar. Começar, começar. Aquele pensamento fez com que lhe aflorasse aos lábios um sorriso esperançoso. Quantas vezes é que ele próprio tinha sentido aquele empolgamento. No liceu, principalmente durante os últimos anos, ao que se seguira a faculdade de medicina. Ginny, Becky. Tantos começos. Começos que haviam sido tão promissores como aquele. David suspirou. Seria o raiar da manhã o início de uma nova página, de um capítulo ou talvez de toda uma história? O que quer que fosse que viesse a acontecer, ele sentia-se preparado. Não obstante todos os começos promissores que tinham existido na sua vida, desde o acidente e do ano de pesadelos que se seguiram à morte da mulher e da filha, aquele era o primeiro em que realmente confiava por inteiro.

O apartamento, embora fosse pequeno, dava a ilusão de ser espaçoso, o que era realçado pelo tamanho, bastante grande, das janelas altas, aliadas a um pé direito com mais de três metros, características de muitas das casas situadas na zona da cidade com o nome de Back Bay. O quarto encontrava-se ligado à sala de estar por um corredor estreito e comprido; esta era uma área bem separada para as refeições, e estava mobiliada com um excesso de peças que imitavam o mobiliário antigo; também havia uma cozinha ínfima que dava para um beco nas traseiras do edifício. A porta da frente e a da casa de banho situavam-se de frente uma para a outra, a meio do vestíbulo.

Cantarolando uma sinfonia de Haydn numa entoação desafinada, David dirigiu-se à

cozinha num passo arrastado. Habitualmente, teria feito uma corrida e demais exercícios físicos antes de se sentar para o pequeno almoço; contudo, decidiu que aquela manhã constituiria uma exceção. Ele era um homem bem musculado e de ombros largos; dos seus braços emanava uma grande força; aquele tipo de constituição dava a impressão de que ele pesava mais do que os cerca de oitenta quilogramas que eram o seu peso. Por entre os abundantes cabelos negros viam-se alguns fios prateados. Os seus olhos bem espaçados, e de expressão juvenil, abrangiam todo um espectro de cores que iam do azul cintilante a um verde-esmaecido, de acordo com o grau de luminosidade. A sua testa, assim como a cana do nariz, eram atravessadas por uns traços finos que em tempos haviam sido transitórios, mas que presentemente eram indeléveis.

David deixou-se ficar no centro da cozinha, esfregando as mãos e fingindo um profissionalismo trocista.

- Então, agora vamos criar o pequeno almoço. - Abriu a porta do frigorífico toda para trás. - As escolhas são muitas, certo?-A sua voz reverberava das prateleiras quase vazias.

"Está-me a parecer que vou escrever um livro sobre artes culinárias destinado aos homens solteiros", anunciara ele a Lauren numa ocasião em que tinha estorricado irremediavelmente dois bifes. "Vou dar-lhe o título de Cozinhar Para Ninguém.”

A escolha do pequeno-almoço não era tarefa muito complicada.

- Ora vamos a ver... podemos tomar sumo de tomate ou... sumo de tomate. Pãezinhos de trigo com manteiga... têm bom aspecto, não? E cinco ovos; estão a pedir para serrem cozinhados, não estão?

Enquanto ele colocava o pequeno almoço sobre a mesa na área da sala destinada às refeições, Lauren entrou com um passo ligeiro.

- Está com bom aspecto -comentou ela observando a refeição que David preparara. -Um dia destes serás uma excelente dona de casa para a pessoa com quem te casares. - Por debaixo da toalha, que trazia enrolada à cabeça, saíam umas quantas madeixas de cabelos brilhantes. Tal como havia dito, o seu sorriso anunciava que estava a dar início a uma nova manhã.

- Então... -começou David a dizer num timbre de voz deliberadamente hesitante. -Quais é que são os teus planos para hoje?-Sentia-se satisfeito por ter conseguido refrear o impulso que quase o levara a partilhar precipitadamente com ela as boas novas.

Tencionava anunciá-las de uma forma casual, da mesma maneira desinteressada que Lauren usava para lhe dar a saber que tinha almoçado na Casa Branca, ou que fora incumbida de fazer a cobertura da campanha eleitoral de determinado senador.

- David, há alguma coisa que queiras contar-me?-perguntou ela.

- Desculpa, não ouvi o que disseste. -Espreguiçou-se numa atitude despreocupada.

- Houve uma ocasião em que a minha colega de quarto na faculdade organizou uma festa surpresa com que me brindou -retorquiu Lauren com um sorriso. -Exatamente antes de toda a gente ter irrompido pela sala, começando aos gritos, ela mostrava a mesma expressão que neste momento vejo no teu rosto.

- Bom... estou em crer que tenho algumas notícias que são boas -admitiu David cuja

atitude de desinteresse naquele momento era a fingir. - O doutor Wallace Huttner... o

doutor Wallace Huttner amanhã vai para fora por alguns dias.

- E?...

- Ele pediu-me que fizesse a ronda aos seus doentes esta tarde na sua companhia, a fim de assumir as suas funções até que regresse à cidade.

- Oh, David, mas isso é uma maravilha! -exclamou Lauren, entusiasmada O Wallace Huttner! Tenho de confessar que me sinto impressionada. O par de mãos, oriundo de Boston, que mais amplamente tem vindo a ser aclamado desde Arthur Fiedler.

- Pois bem, agora já sabemos que ele é suficientemente esperto para ser capaz de reconhecer os verdadeiros talentos cirúrgicos quando estes se lhe apresentam. Vou ficar responsável pelos seus doentes, até ele regressar de uma conferência de três dias que se vai realizar em Cape.

- E aí estás tu sentado, tentando impressionar-me com o fato de conseguires mostrar-te tão desinteressado relativamente a todo este assunto tão empolgante. Mas que fulano tão engraçado que tu és, David.

Os ovos mexidos, que não tinham um aspecto muito apetitoso, continuavam no prato de Lauren enquanto esta lhe fazia uma sucessão de perguntas.

- Sabias que a Time já publicou alguns artigos sobre o Huttner?

- Acontece que ele já operou uns quantos xeques assim como alguns primeiros-ministros. Apesar disso, continua a ser obrigado a usar as roupas de cirurgia e veste as calças uma perna de cada vez, à semelhança do que todos nós fazemos.

- Importas-te de tentar falar a sério, ao menos uma vez na vida? Isto pode vir a significar mais dinheiro para ti?-perguntou Lauren.

Os olhos de David estreitaram-se. Durante breves segundos, examinou atentamente

expressão dela, tentando detectar mais do que um mero interesse superficial por detrás da sua pergunta. Embora não fosse muito freqüente que a sua falta de um salário, que deveria ser o correspondente ao de um cirurgião típico, viesse à baila; sempre que tal acontecia, estava-se na iminência de uma espécie de guerra. Lauren dava a impressão de ser incapaz, ou de não desejar, aceitar as realidades instáveis de caráter econômico de uma especialização médica, as quais dependiam muito das referências que eram dadas por outros médicos, especialmente numa cidade como Boston, onde o número de médicos era excessivo.

Até mesmo depois de ter vindo a exercer medicina no Hospital Médicos de Boston havia dois anos, David dava-se conta de que muitos dos seus colegas continuavam a manifestar algumas reservas a seu respeito. Haviam-lhe chegado aos ouvidos certos comentários tecidos à sua pessoa.

"O Shelton? Oh, sim, suponho que o poderia indicar a esta mulher; no entanto, ela não é uma pessoa de trato muito fácil e, francamente, não estou bem certo de que ele seja capaz de lidar com ela. Estou a referir-me aos problemas por que ele passou, em que ficou completamente destroçado depois da morte da mulher e da filha. Eu gostava muito de poder ajudá-lo, de verdade que sim. Mas em que posição é que eu ficaria perante a minha doente, se lhe indicasse um cirurgião que de um momento para o outro se fosse abaixo...”

A situação não era nada fácil. Verdade fosse dita que nunca esperara que o fosse. As preocupações que Lauren manifestava em relação à sua situação econômica eram bastante compreensíveis embora, até certo ponto, não deixassem de ser bastante desencorajadoras. Seria necessário algum tempo, tentou David explicar. Apenas isso: mais algum tempo.

A expressão dela não era de crítica. Ainda assim, David contornava o assunto com pezinhos de lã.

- Bem vês, o Huttner é chefe de departamento. O que se traduzirá numa maior aceitação por parte dos médicos que indicam cirurgiões aos seus doentes. -Qualquer grau de aceitação que a maioria dos seus colegas pudesse mostrar já seria um progresso na direção certa, refletiu David com uma expressão acabrunhada. As suas aparições no bloco operatório eram tão pouco freqüentes que, por vezes, as enfermeiras se deixavam ficar no mesmo lugar depois de ele entrar, como se aguardassem a chegada do cirurgião.

- Ele está a preparar-te para seres seu sócio?

- Lauren, o homem mal me conhece! Ele viu apenas a oportunidade de lançar umas quantas migalhas, na direção de um cirurgião que se esforça, mais nada.

- Pois bem, Senhor Balde de água fria -retorquiu ela com um sorriso-, podes agir da maneira que melhor te aprouver. Eu sentir-me-ia suficientemente empolgada pelos dois. A que horas é que assumes as funções dele?

- Combinei encontrar- me com o Huttner no hospital às dezoito horas. Lá para as vinte ou vinte e uma horas já deveremos ter terminado e... meu Deus, já me tinha esquecido. Os Rosetti convidaram-nos para jantar esta noite ou amanhã. Eu disse-lhes que nós...

- Não posso ir -interrompeu Lauren. -Quer dizer, tenho de trabalhar.

- Tu não gostas deles, não é verdade?

- David, por favor. Esta não é a primeira vez que abordamos este assunto. Na minha

opinião, os Rosetti são pessoas muito simpáticas. -As suas palavras soavam a falso. As tentativas falhadas que David vinha a fazer, no sentido de que houvesse uma aproximação quanto àquela relação de amizade que havia muito ele mantinha com o

proprietário de um pub, assim como com a mulher deste, continuavam a ser uma fonte de tensão.

- Muito bem, vou telefonar ao Joey para lhe dizer que o jantar ficará para outra oportunidade -disse David, sentindo-se aliviado por poder pôr aquele assunto para trás das costas, sem que se verificasse uma confrontação de grandes proporções.

- Parece-me uma solução excelente. De verdade. -Aquela era a maneira de Lauren lhe agradecer pela contenção que ele mostrara. -Na realidade, tenho mesmo de trabalhar. De fato, esta manhã ainda tenho de apanhar um vôo para Washington. O presidente vai anunciar os pormenores do seu programa econômico mais recente; fui incumbida de fazer a cobertura desta reportagem sob uma perspectiva humana e pessoal. O mais provável será eu ter de me manter ausente durante dois dias.

- Nesse caso, vais necessitar de toda a alimentação que consigas ingerir. -David acenou para o prato onde o pequeno-almoço permanecia intacto. -Queres que eu te prepare outros ovos?

Lauren lançou um olhar ao seu relógio de pulso, levantou-se da mesa e espreguiçou-se o mais que o corpo lhe permitia.

- Deixa-os ficar no prato até eu regressar de Washington. -Já se encontrava a meio caminho do quarto quando acrescentou:-Só poderão melhorar com a passagem do tempo. - Riu-se à socapa e começou a percorrer o corredor num passo apressado. De um salto, David levantou-se da sua cadeira com o intuito de lhe dar perseguição. Ela aguardou até ele estar prestes a atingir a porta do quarto, antes de a fechar e de trancar a maçaneta.

- Hás de viver para lamentares o que fizeste -gritou David através da porta fechada. -Um dia destes, hei de transformar-me num cozinheiro famoso, após o que desposarei a condessa de Lusitânia. Nessa altura, ter-me-ás perdido para todo o sempre.

Vinte minutos mais tarde, Lauren saiu do quarto. A sua aparência era de cortar a respiração, com o seu fato de saia e casaco bordeaux e blusa bege. à volta do pescoço enrolara um lenço que mantinha solto.

- Nada de manobras à homem das cavernas, David -advertiu ela em antecipação ao

abraço que ele tencionava dar-lhe, bloqueando-o com uma mão que mantinha estendida na sua direção. -Este vestuário tem de me durar pelo menos durante um dia. Já me esquecia de te dizer uma coisa. É muito possível que tu estejas em posição de poderes ajudar-me.

- Somente a troco das coisas à homem das cavernas.

- David, o assunto é sério -redargüiu Lauren.

- De acordo. -Ele fez um gesto que indicava estar pronto a ouvir o que ela tinha a dizer-lhe.

-O gabinete do senador Cormier informou que ele será admitido no teu hospital, dentro de um ou dois dias para ser operado. Parece-me que é à vesícula.

- Tens a certeza? O Cormier dá-me a impressão que é mais do gênero do Hospital White Memorial, do que do Médicos de Boston.

- Achas possível que ele seja admitido como doente do Huttner? -perguntou Lauren com um acenar de cabeça.

- Não há hipótese nenhuma de isso vir a acontecer. O Huttner jamais iria para fora, no caso de uma pessoa da craveira do Cormier vir a ser internado no seu serviço.

- Parece-te que poderias falar com ele? Ou, melhor ainda, proporcionar-me o acesso a ele? A campanha que ele está a levar a cabo contra as companhias petrolíferas, com vista a que estas empresas passem a pagar mais impostos, está a fazer com que ele seja uma figura predominante na cena política. Se eu conseguisse uma entrevista em exclusivo, isso seria um grande feito na minha carreira jornalística.

- Vou tentar, mas não posso garantir-te nada de...

Lauren desejou-lhe felicidades nas suas novas responsabilidades profissionais, apertou-lhe as mãos e deu-lhe um beijo ao de leve nos lábios. Em seguida, com um "Agora porta-te como um bom rapaz", saiu do apartamento, começando a percorrer o corredor até ao elevador.

Durante vários minutos, David deixou-se ficar imobilizado à porta de sua casa, cheirando a fragrância do perfume de Lauren; no entanto, tudo o que sentia era um estranho vazio.

- No mínimo dos mínimos, ela poderia ter provado os ovos -disse para si próprio quando começou a levantar a mesa. -Apesar do aspecto que possam ter tido.

O segurança do turno da noite era um homem gordo. Adiposo e agonizantemente vagaroso. De uma ombreira meio oculta, a enfermeira, uma mulher de aspecto frágil que tinha uns cabelos da tonalidade de um sol empalidecido, observava e aguardava, enquanto ele caminhava pesadamente pelo corredor. De vez em quando, o porteiro parava para espreitar o interior de uma arrecadação, ou inspecionar uma das fileiras de cacifos do pessoal médico, os quais estavam encostados à parede. A área Oeste B-2, um dos pisos subterrâneos da Ala Oeste do Hospital Médicos de Boston, encontrava-se deserta com a exceção da presença dos dois.

A enfermeira olhava para a camada de sujidade que a rodeava, iluminada pelas lâmpadas suspensas do teto sem qualquer quebra luz, começando a sentir um formigueiro na pele. Era uma mulher de estatura pequena, impecavelmente arranjada; a sua maquiagem fora aplicada com tanta meticulosidade que se tornava quase imperceptível. Com impaciência, ela fez deslizar os polegares pela ponta dos outros dedos. O segurança da noite levava uma eternidade. Lançou uma olhadela ao seu relógio. Quarenta e cinco ou talvez mesmo cinqüenta minutos até à hora em que seria seguro, mais do que o tempo suficiente, desde que ela pudesse apressar-se, evitando assim quaisquer demoras inesperadas. Viu uma barata que se arrastava pela biqueira do seu sapato; durante breves instantes ocorreu-lhe que talvez lhe provocasse vômitos. Obrigou-se a descontrair, continuando a aguardar sem fazer qualquer movimento.

Finalmente, o guarda deu a sua tarefa por concluída. Fechou à chave o cofre, começando a assobiar uma marcha e, após ter dado alguns passos ao ritmo da música, recomeçou a caminhar na sua cadência pessoal. Na perspectiva de algumas pessoas, o homem poderia ter apresentado uma atitude disparatada, jovial ou mesmo engraçada. Contudo, para a mulher delicada que o observava, ele provocava-lhe somente uma sensação de repulsa.

Ela esperou mais alguns segundos, após o que se deslocou apressadamente para a fileira de cacifos, concentrando-se no número 178, e começando a marcar a combinação de números indicada no cartão que Dahlia lhe enviara. A seringa fina e cheia até meio encontrava-se precisamente no lugar onde lhe tinham dito que estaria. De fugida, ergueu-a contra a luz e depois colocou-a na algibeira da frente do seu uniforme sem mácula.

Voltou a ver as horas e dirigiu-se para o túnel que permitia o acesso à Ala Sul. Seguiu de elevador até a Dois Sul, após o que se encaminhou para as escadas, subindo dois lanços de degraus num passo célere. Entrando sub-repticiamente no quarto 438, deteve-se para recuperar o fôlego, respirando grandes lufadas de ar em silêncio. Por entre a semi-obscuridade, conseguia avistar John Chapman. O homem dormia todo aninhado numa posição fetal e com o rosto virado para ela. De debaixo do lençol saía um cateter por onde se escoava a urina límpida, que se acumulava num recipiente de plástico translúcido.

A recuperação de Chapman, no prosseguimento de uma intervenção cirúrgica renal,

decorrera sem dificuldades de maior... até agora.

Ela inspecionou o corredor. Uma auxiliar de enfermagem, a primeira chegada do turno de trabalho diurno, havia acabado de sair do elevador. O silêncio pouco duradouro que reinava durante a noite continuava a manter-se; todavia, a enfermeira sabia de antemão que, dentro de trinta minutos, este daria lugar ao caos característico daquela hora do dia.

Chegara a altura. Sentiu que a sua pulsação se acelerava. O choque anafilático! Ao longo de quase quinze anos de uma carreira de enfermagem em hospitais, nunca presenciara um caso em franco desenvolvimento, quanto mais ter a oportunidade de observar um desde o seu início até à fase final.

Aproximou-se da beira da cama. Ali, sobre a mesa-de-cabeceira haviam sido colocadas as flores. Um magnífico ramo de lírios. Havia um cartão preso à jarra por fita gomada: "Com votos de uma rápida recuperação, Lily." Sussurrou as palavras sem que de fato as tivesse lido. Não havia necessidade disso. Aquelas palavras tinham sido da sua autoria.

Sobre uma mesa que se encontrava próxima da jarra, encontrava-se o fio de prata de Chapman, assim como uma medalha de advertência médica. Ela iluminou-a com a sua pequena lanterna em forma de lápis. Voltou a esboçar um sorriso.

Leu a inscrição:

DIABÉTICO ALÉRGICO à PENICILINA, ALÉRGICO às FERROADAS DE ABELHAS

A pequena seringa que mantinha na mão continha um concentrado de veneno de abelhas, que costumava ser utilizado pelos especialistas em alergias, com a finalidade de dessensibilizar os seus doentes de elevado risco. Embora para todos os efeitos práticos aquela dose fosse excessiva, continuava a ser suficientemente diminuta para não vir a ser detectada durante um processo convencional de autópsia.

A tez cor de cacau do rosto de John Chapman tinha uma expressão despreocupada e descontraída. Até mesmo adormecido, o homem dava a impressão de sorrir. A enfermeira arrastou uma cadeira de costas direitas e sentou-se. Com uma mão, introduziu a agulha no dispositivo de vedação de borracha do seu tubo intravenoso, enquanto com a outra o sacudia pelo ombro com gestos suaves.

- Mister Chapman, John, acorde -murmurou ela. -Já amanheceu.

- Pequena Ângela?-perguntou Chapman abrindo os olhos. -É você?-A sua voz era bastante grave. Uma adolescência passada havia vinte e cinco anos na Jamaica continuava a modular-lhe as palavras. Focou o olhar no rosto dela e sorriu-lhe. - Com a breca, você é uma visão que dá prazer aos olhos -continuou ele. - Já é realmente manhã ou você é apenas um dos meus sonhos?

-Não está a sonhar-respondeu ela. - Mas eu cheguei um pouco mais cedo. O meu turno só começa dentro de mais ou menos meia hora. -Ela descomprimiu o êmbolo, introduzindo o líquido no interior do tubo intravenoso. -Vim mais cedo com o único propósito de poder vê-lo.

- O quê?

Ela não lhe deu resposta. Em contrapartida, começou a observar atentamente quando o rosto de Chapman foi atravessado por uma expressão interrogadora, a qual muito rapidamente deu lugar à apreensão.

- Eu... eu estou a sentir-me esquisito, Ângela -disse ele. -Verdadeiramente estranho. - A sua voz era trespassada por um sentimento de pânico. - Estou a sentir um formigueiro por todo o corpo... Ângela, está a acontecer-me qualquer coisa. Algo de terrível. Tenho a sensação de que estou prestes a morrer.

A mulher ficou a olhar para ele com uma fisionomia abstrata. "E estás", pensou ela. "De fato, estás." Nesse instante, toda a força da reação anafilática fez sentir o seu impato. Os tecidos internos do nariz e da garganta de Chapman começaram a inchar, encerrando quase totalmente aquelas cavidades. Os músculos que circundavam as suas vias bronquiais entraram em espasmos. A enfermeira voltou-se para trás, a fim de se certificar de que a porta do quarto se mantinha cerrada. A reação deu-se mais rapidamente e com maior espetacularidade do que ela havia imaginado. Na realidade, concluiu a enfermeira, era ainda mais espetacular do que qualquer outra coisa que alguma vez houvesse testemunhado.

- Ân... gela, por favor... - As palavras de Chapman mal eram audíveis. As suas pálpebras tumefactas mantinham-se fechadas.

Instintivamente, ela verificou a pulsação, apesar de saber que o colapso vascular já tinha ocorrido. Uns segundos mais tarde, a última passagem de ar existente no sistema respiratório de Chapman ficou obstruída. Manteve-se deitado de costas, completamente imobilizado.

A enfermeira de cabelos do tom de um sol empalidecido, susteve a respiração durante uns momentos finais, para em seguida expirar. O seu rosto de traços impecáveis foi iluminado por um sorriso de grande placidez, o que traduzia a percepção de que, uma vez mais, ela se incumbia da sua tarefa a contento.

O relógio Seth Thomas, que se encontrava numa das paredes da sala de estar, mostrava que eram sete horas e trinta minutos, quando David acabou de empilhar a louça no lavalouça, depois de ter vestido um fato de treino azul-marinho. Começou a examinar criteriosamente a sua pequena coleção de discos, antes de selecionar o Rodeo de Copeland, após o que deu início a uma série de movimentos lentos de distensão e exercícios calistênicos.

A obra de Copeland era uma escolha perfeita, pensava ele enquanto arrastava um conjunto de halteres que se encontravam atrás do sofá. Durante dez minutos, ergueu-os em várias posições e ângulos, obrigando-se a esforçar-se mais do que era habitual, até que a tensão provocada pela partida desprovida de qualquer traço de emoção de Lauren o abandonou.

Os halteres haviam-se transformado tanto num meio terapêutico mental como físico -um ritual matinal a que dava cumprimento há quase cinco anos, o qual começara no mesmo dia em que David tinha decidido regressar à cirurgia, repetindo os dois anos estafantes de estágio. Nesse mesmo dia, fumou o seu último cigarro, tendo corrido o seu primeiro quilômetro ao cabo de alguns meses, já havia recuperado toda a energia que perdera durante os três anos em que se mantivera afastado da sala de operações.

Com o brilho do suor devido ao exercício físico, agarrou no cronômetro e nas chaves que meteu na algibeira das calças do fato de treino, enquanto saía porta fora.

Dispensou o elevador estreito que subia e descia aos solavancos, tendo optado pelas escadas localizadas ao fundo do corredor. Desceu os três lanços num passo saltitante, atravessando o átrio pouco iluminado do prédio onde vivia e saiu pelas portas da frente que lhe deram o acesso à Commonwealth Avenue.

A luz do Sol atingiu-o como se fosse um clarão de grande intensidade. Estava um daqueles dias de que as pessoas oriundas da Nova Inglaterra se costumavam gabar, sempre que afirmavam aos forasteiros que não existia lugar nenhum ao cimo da Terra melhor para se viver. Era um daqueles dias que reduzia Fevereiro a pouco mais do que uma vaga recordação muito à distância, ajudando os residentes a esquecerem-se dos dias lamacentos e chuvosos de Abril, assim como o calor sufocante e opressivo característico de meados de Agosto; pelo menos, por algum tempo.

Inicialmente, com alguma rigidez a que se seguiu uma mobilidade de movimentos cada vez mais acelerada, começou a correr ao longo de alguns quarteirões na direção da alameda. Os carvalhos e os olmeiros parecia deslizarem rapidamente cheios de folhagem de tonalidades profusas de vermelhos, laranjas e dourados. A atmosfera, que naquele dia não estava disposta a sucumbir às emissões dos escapes dos automóveis de quem vivia nos subúrbios, dava a impressão de ter o sabor das águas cristalinas das montanhas.

David atravessou até Storrow Drive, acelerando o passo ao entrar no pavimento de asfalto que corria paralelo à margem do rio. Durante alguns momentos continuou a correr com os olhos quase fechados, aspirando o ar do dia, sentindo-se cada vez mais satisfeito pela resposta positiva que todos os músculos do seu corpo lhe proporcionavam.

Observou um remador solitário aos remos de um Charles como se a embarcação fosse um inseto aquático gigantesco. Até mesmo àquela hora tão matutina já se avistavam algumas pessoas espalhadas pela margem relvada, as quais liam ou desenhavam, ou ainda os que desfrutavam somente do ar da manhã. Por ele passavam os ciclistas silenciosos que seguiam em ambas as direções. Os cães puxavam, presos pelas trelas, pelos seus donos.

Os estudantes de expressões atentas levavam os livros às costas, como se estes fossem coletes de tortura, arrastando os seus passos com alguma relutância em direção às salas de aula, onde a luz fluorescente e estéril substituiria aquele sol de Outono.

David consultou o seu cronômetro, olhando em redor. Conseguira chegar à ponte em menos de cinco minutos. Tinha ganho a sua primeira aposta quanto à corrida. Mais cedo ou mais tarde, haveria de poder chamar seus a um Rolls Royce, assim como a uma casa em Berkshires com a fachada e traseiras triangulares e telhado até ao solo. Limpando o suor que lhe perlava a região em volta dos olhos, acelerou um pouco o ritmo da sua corrida.

À sua direita avistou uma rapariga descalça, que usava calças de ganga e uma camisola de algodão de um vermelho garrido, a qual lançava um disco de plástico na direção do namorado.

- Dois Twinkies e um Big Mac em como ele consegue apanhá-lo. - David arquejou exatamente antes de o disco revoltear acentuadamente na direção do rio, caindo no solo e rolando até à margem do rio - Nosso Senhor - disse ele rindo em voz alta.

Quando atingiu a marca de quatro quilômetros e meio, deu meia volta e encetou o

caminho de regresso.

- Está tudo a ficar mais de feição -acrescentou ele em voz alta, imprimindo a cada

sílaba o ritmo da passada dos seus Nike sobre o pavimento. - Melhor e melhor,

cada vez melhor. Jesus!, sabia-lhe bem ter recomeçado a sentir-se vivo.

 

Christine Beall abrandou a velocidade do seu Mustang azul claro, passando pelo guarda de serviço ao Lote C do parque de estacionamento, forçando-se a exibir um pequeno sorriso em resposta ao seu gesto de saudação. Atravessou com lentidão vários espaços vazios sem sequer reparar neles, até que avistou um lugar no canto mais afastado do portão, onde estacionou. Saindo para o piso de gravilha, começou a ajeitar o seu uniforme de enfermeira que tinha um corte impecável, semicerrando os olhos devido à intensidade do sol da tarde; no entanto, foi com rapidez que desistiu de tentar absorver qualquer da magia daquele dia de Outono de uma luminosidade tão radiante. A preocupação que a assolava, e que tinha a ver com outros pensamentos e outras questões, tornava isso absolutamente impossível.

O Lote C era uma das três zonas satélites de estacionamento, propriedade do Hospital Médicos de Boston, áreas que iam ao encontro das necessidades de um pessoal médico que não parava de aumentar. Christine encaminhou-se para a paragem do mini autocarro, para logo decidir que necessitava do tempo e da caminhada ao longo de três quarteirões, como se aquele percurso fosse uma ponte entre o seu mundo fora do hospital e este. Mais à sua frente, avistou outras duas enfermeiras que também trabalhavam no turno da noite, as quais lhe acenaram para que se lhes juntasse; mas, depois de ter dado alguns passos apressados, Christine deteve-se e indicou-lhes que prosseguissem sem ela.

Parando junto da montra de uma loja de mobiliário em segunda mão, começou a

examinar a sua imagem refletida na vitrina empoeirada.

- Estás com uma aparência de cansaço - disse para si própria. - Extenuada e preocupada... além de assustada.

Não era uma mulher de estatura elevada: mal tinha um metro e sessenta. Os cabelos, de um dourado-arenoso, mantinham-se presos num rabo-de-cavalo que ela prenderia por baixo da touca de enfermeira, antes de iniciar o seu dia de trabalho. As sardas, que continuavam escurecidas pelo sol do Verão, pontilhavam a região superior dos malares, assim como a cana do nariz.

- O que é que tencionas fazer, garota?-perguntou ela ao reflexo da sua própria imagem em voz baixa. - Estarás tu realmente preparada para engrenares tudo isto? É possível que a Peg Não Sei Quantos esteja pronta. Talvez a Charlotte Thomas também esteja a postos. Mas e tu, estarás? - Cerrou os lábios numa linha firme e olhou com fixidez para o passeio.

Finalmente, com um encolher de ombros que denotava indecisão, fez mais meia volta e começou a andar pelo quarteirão abaixo.

O Hospital Médicos de Boston era uma hidra maciça construída de tijolos e vidro, com três tentáculos que se estendiam para norte e oeste, entrando em Roxbury, havendo ainda outros três que se alargavam para sul e leste em direção à baixa da cidade. Ao longo da sua existência, que já contava com mais de cento e cinco anos, houvera várias alas que não tinham resistido incólumes à passagem do tempo, tendo acabado por ficar em ruínas, vindo a ser substituídas por outras mais elevadas e de maiores dimensões. Os trabalhos de construção, que parecia nunca terem fim, faziam tanto parte do hospital como os uniformes brancos que entravam e saíam apressadamente das suas entranhas.

Sem nunca terem sido capazes de desdenhar um benfeitor suficientemente generoso que doasse todo um edifício, os administradores do hospital haviam perfilhado uma política que carecia de todo e qualquer sentido de imaginação, ao identificarem aqueles tentáculos pela direção em que se estendiam. As portas que deslizavam sobre calhas e que Christine transpôs, entrando no átrio principal, localizavam-se entre o Sul e o Sudeste.

Olhou de relance para o enorme relógio dourado colocado sobre um bloco de mármore, em cima do balcão das informações. Eram catorze horas e trinta minutos. Ainda faltavam vinte ou vinte e cinco minutos antes que o turno que se encontrava de serviço no Quatro Sul passasse a pasta ao grupo que trabalharia das quinze às vinte e três horas.

Christine encostou-se a uma coluna de pedra, começando a examinar toda a atividade fervilhante à sua volta. Os doentes e as visitas ocupavam todos os assentos existentes, enquanto algumas dúzias de outras pessoas se apinhavam em redor do balcão de informações, ou então atravessavam a multidão passando de uma ala para outra. Havia cadeiras de rodas que pontuavam as várias fileiras de cadeiras de plástico moldado.

Aquela cena, que ela tivera oportunidade de observar em centenas de ocasiões anteriores ao longo dos últimos cinco anos, continuava a enchê-la de um estranho fascínio, provocando-lhe uma certa perplexidade. Havia dias, determinados dias muito especiais, em que ela chegava a sentir verdadeiramente uma espécie de fusão do seu corpo com a fibra do hospital. Dias esses em que sentia a pulsação do edifício tão acentuadamente como se esta fosse a do seu próprio corpo. Num passo vagaroso, começou a atravessar o átrio, juntando-se ao fluxo de gente que se dirigia à passagem principal da Ala Sul.

No piso onde Christine trabalhava, o Quatro Sul, à semelhança da maioria dos outros

sete andares situados naquela ala, os doentes internados constituíam uma mistura de pessoas submetidos a cirurgia, assim como a outros tratamentos hospitalares, sendo cada uma delas assistida pelo seu médico particular. Existiam alguns médicos

estagiários, espalhados pelas várias áreas do hospital, os quais serviam como reforço de emergência. No Quatro Sul, à semelhança de todos os outros pisos particulares nos demais hospitais, as enfermeiras eram a única presença médica durante a maior parte do dia.

Saindo do elevador, Christine observou o corredor, procurando qualquer carrinho com o equipamento de reanimação ou quaisquer outros indícios que assinalassem uma situação de emergência num dos quartos. No entanto, naquele piso via-se somente o movimento habitual, mas um instinto que se desenvolvera ao longo de cinco anos de enfermagem sussurrou-lhe que havia algo que não estava bem.

Christine aproximava-se do balcão das enfermeiras quando os gritos começaram a fazer-se ouvir: expressões de dor lancinantes, que só podiam provocar dó, vindas do fundo do corredor. Encaminhou-se pressurosa, para o sítio de onde viera o som. Quando passou pelo quarto 412, olhou de fugida para Charlotte Thomas, que dormia, embora o seu sono fosse desassossegado devido a toda aquela perturbação.

Os gritos vinham do quarto 438, do quarto de John Chapman. Chegada à ombreira da porta, Christine deteve-se abruptamente. O quarto estava num autêntico caos. Havia guloseimas, livros, flores e um vaso quebrado, tudo espalhado pelo chão. Sentada numa cadeira, e com as faces enterradas nas mãos, encontrava-se a mulher de John Chapman, uma mulher de expressão orgulhosa e senhora de uma constituição corpulenta, que Christine ficara a conhecer quando da admissão do marido. A cama estava desfeita e desocupada.

- Oh, meu Deus -murmurou Christine atravessando o quarto e ajoelhando-se ao lado da mulher, cujos gritos haviam sido substituídos por gemidos de impotência. -Mistress Chapman?

- O meu John morreu. Desapareceu. Todos diziam que ele ficaria bom e agora está

morto. - Olhando através dos dedos, ela não despregava os olhos do chão, enquanto falava mais para si própria do que para Christine.

- Mistress Chapman, eu sou a Christine Beall, uma das enfermeiras do turno da noite. Posso ajudá-la em alguma coisa? Quer que vá buscar-lhe qualquer coisa para tomar? - Christine sentia-se verdadeiramente pesarosa ao pensar na morte de John Chapman.

Quando ela saíra do hospital havia somente dezesseis horas, o quase lendário defensor dos direitos civis das pessoas de raça negra e outras minorias já conseguia deslocar-se pelos seus próprios meios, mostrando boas condições físicas.

- Não, não, eu estou bem -disse a mulher por fim, com alguma dificuldade. -Eu... eu não sou capaz de acreditar que o meu John esteja morto.

Christine olhou à sua volta. Avistou algumas jarras que ainda se mantinham intactas,

apesar de a maior parte destas ter sido arremessada para o chão ou lançada contra as paredes, transformando-se em estilhaços.

- Mistress Chapman, quem é que fez isto?

A mulher soergueu o olhar; os seus olhos estavam raiados de vermelho e pareciam

vitrificados; a sua fisionomia encontrava-se distorcida pela dor.

- Eu. Fui eu -respondeu ela. - Eu vim até aqui acima para reunir as coisas pessoais que o Johnny tinha no quarto. De repente, tive a percepção de que ele tinha desaparecido. Jamais regressaria. Depois disso, só me recordo de uma enfermeira que tentava impedir-me de quebrar mais algum dos presentes que o John recebera. Não sei se sabe, mas ele até recebeu um livro e um cartão enviados pelo governador. Meu Deus, só espero que eu não os tenha danificado. Eu...

- Essa oferta continua intacta, Mistress Chapman. Tenho-a aqui comigo. E aqui está o sumo de laranja que pediu.

Christine voltou-se na direção de onde viera a voz.

Ângela Martin acenou com a cabeça num gesto de saudação, aproximando-se com o livro e com o sumo.

- Já chamei o seu pastor, Mistress Chapman -informou ela. - Já não deve demorar muito.

Perante a visão de Ângela, cujo uniforme se mantinha impecável e de uma brancura

imaculada, apesar do trabalho esgotante de um turno de oito horas, a mulher acalmou-se visivelmente.

- Muito obrigada, minha filha. Você tem sido tão simpática para comigo. E também com o meu John. - Fez um gesto que abarcava a desarrumação. - E... eu lamento muito tudo isto.

- Não se preocupe -tranqüilizou-a Ângela. - Já chamei o pessoal de limpeza. Tratarão de arrumar e limpar tudo. Venha, vamos esperar a chegada do pastor numa sala tranqüila. - Com aquelas palavras, colocou um braço esguio em redor dos ombros da mulher que tão desditosa se sentia, conduzindo-a para fora do quarto.

Christine ficou sozinha entre toda aquela destruição, recordando-se da surpresa que

sentira inicialmente perante o bom humor e a erudição nada intimidativa que John

Chapman demonstrara possuir. Haveria alguma coisa que ela pudesse fazer naquele momento para minorar o desgosto da viúva? Chegou à conclusão que efetivamente não havia nada que estivesse ao seu alcance. Desde que ela se encontrasse na companhia de Ângela Martin, tudo correria pelo melhor; a mulher não poderia ter estado em mãos mais capazes e excepcionalmente caridosas.

Christine dirigiu-se para a porta, mas parou e aproximou-se das duas jarras com flores que continuavam intactas. Era possível que Mrs. Chapman gostasse de as levar consigo para casa, ocorreu-lhe naquele momento. Olhou para o cartão preso com fita adesiva ao vidro da jarra verde. Lírios... da Lily? Que Deus nos valesse! O que é que viria a seguir?

Abanou a cabeça. Uma morte inesperada e o grotesco caráter homônimo da oferta das flores. Todos aqueles acontecimentos lhe davam a impressão de se enquadrar num dia que, os primeiros minutos, lhe parecera estar fora do seu controlo.

As suas colegas de apartamento, Lisa e Carole já tinham saído para o trabalho quando o telefone começou a tocar. Christine estendera imediatamente a mão para o despertador, mas então identificou a origem daquele toque insistente. Ainda tentou meter a cabeça debaixo da almofada. Acabou por se dirigir à cozinha num passo vacilante, certa de que a campainha do telefone deixaria de tocar no preciso instante em que levantasse o auscultador. O que não veio a verificar-se.

- O meu nome é Peg - apresentou-se uma voz do outro lado da linha, a qual, simultaneamente, era suave e firme. - Eu sou um dos membros da direção da sua Irmandade. Existe uma doente no seu piso, no Hospital Médicos de Boston, cujo caso eu gostaria muito que você avaliasse e, se concluir que é apropriado, apresentá-lo à consideração do seu Comitê Regional de Avaliação. Não me é possível ser eu própria a ocupar-me desse processo sem que se verifique um mal- estar que poderá não escapar à atenção dos outros, uma vez que eu já deixei de exercer ativamente a profissão de enfermeira.

Christine molhou a mão na água fria que saía da torneira, passando-a pelo rosto. Embora a menção da palavra Irmandade a houvesse despertado como se tivesse sido esbofeteada, quis ter a certeza absoluta.

- Bem... nunca ninguém me tinha telefonado, pedindo-me que... - começou ela a gaguejar. - O que quero dizer é que... A mulher já contara com as reticências de Christine.

- Por favor, Christine, limite-se a ouvir o que eu tenho para lhe dizer-continuou ela. -Tal como sempre foi do regulamento no nosso movimento, você não está vinculada a qualquer que a force a fazer alguma coisa que, bem no fundo do seu coração, sinta não ser o mais correto. Há já muitos anos que conheço a mulher que me levou a telefonar- lhe. Tenho a certeza absoluta de que ela não desejaria sobreviver às condições em que presentemente se encontra a viver. Sofre de dores excruciantes e o seu estado de saúde, tanto quanto eu averigüei, não permite que se alimente a mínima esperança de recuperação.

Naquele preciso momento, Christine soube, sem que houvesse necessidade de lhe

dizerem, qual a identidade da doente que lhe pediam que avaliasse.

- Trata-se da Charlotte, não é verdade? - perguntou. - A Charlotte Thomas.

- Sim, Christine, é precisamente ela.

- Eu... ultimamente... eu tenho pensado muito nela, em especial na agonia por que ela tem passado durante os últimos dias.

- Tinha intenções de ser você própria a participar o caso dela? - inquiriu a mulher do outro lado da linha.

- Ontem à noite. A noite passada estive prestes a falar com ela. Houve qualquer coisa que me impediu de o fazer. Não sei bem o que é que foi. Ela é uma mulher tão extraordinária... Eu... - A voz de Christine enfraqueceu.

- O caminho que optamos trilhar nunca será fácil - acrescentou a mulher. - Caso alguma vez ele venha a tornar-se fácil, saber-se-á, de uma maneira qualquer, que perdemos de vista o nosso objetivo.

- Estou a compreender -replicou Christine numa voz ensombrada. - O meu turno começa às três horas desta tarde. Nessa altura, caso eu não sinta qualquer mal-estar em relação ao assunto, recolherei o seu histórico médico para que seja o comitê a decidir.

- Isso é tudo o que eu, nestas circunstâncias, posso pedir-lhe ou esperar de si, Christine. Talvez num futuro próximo, em condições mais auspiciosas, possamos vir a conhecer-nos. Adeus.

- Até outro dia -retribuiu Christine, mas a mulher já tinha desligado o telefone.

Antes de ter adormecido na noite anterior, Christine elaborara uma lista de projetos ambiciosos que desejava pôr em prática ao longo do dia. Subitamente, com uma simples chamada telefônica, todos os seus planos haviam deixado de ter qualquer importância.

Levou um bule cheio de chá para a sala de estar, afundando-se num sofá onde ficou

profundamente embrenhada em pensamentos sobre "A Irmandade da Vida". Ao longo dos dez meses que se seguiram à sua iniciação no seio do movimento, na sua vida passara a existir um novo significado e propósitos. Agora pediam-lhe que pusesse à prova esses mesmos objetivos. Com a vida de Charlotte Thomas em risco, esse teste não seria nada fácil.

Concentrada nos seus pensamentos, cujo tema era Charlotte Thomas e John Chapman, Christine dirigiu-se ao vestiário para pendurar o seu casaco. Duas das enfermeiras do turno diurno tinham posto de lado os apontamentos que na altura elaboravam, optando por abordar o tema sobre a medicação que havia sido ministrada a John Chapman e que muito provavelmente lhe teria provocado a reação fatal. Christine não se sentia inclinada a participar na discussão. Saudou as duas colegas com um acenar de cabeça.

- Vou ver a Charlotte por alguns minutos - anunciou ela. - Se eu não estiver de volta quando forem horas de começar a trabalhar, peçam a alguém que vá chamar-me ao

quarto quatrocentos e doze. De acordo? - As duas mulheres indicaram-lhe com um gesto que fosse à sua vida, retomando a sua conversa.

Haviam decorrido quase duas semanas desde que Charlotte Thomas fora submetida a uma intervenção cirúrgica, uma quinzena ao longo da qual Christine entrara dúzias de vezes no quarto 412. Apesar daquelas visitas tão freqüentes, ao aproximar-se da porta ocorreu-lhe à mente uma imagem estranha. Tratava-se de uma visão que lhe surgia em quase todas as ocasiões, sempre que se encontrava prestes a transpor a porta daquele quarto. Bem... não era exatamente uma imagem, compreendeu Christine: tratava-se mais de uma expectativa. Era bastante acentuada, a despeito daquilo que ela sabia através da sua faceta profissional e experiência prática. Charlotte encontrar-se-ia sentada na sua cadeira de vinil junto da cama, enquanto escrevia uma carta. Os seus cabelos de um castanho-claro estariam apanhados na nuca num penteado descuidado, presos num laço pouco apertado de um tecido rosa. As rugas finas que se viam ao canto dos olhos, juntamente com as que tinha na comissura dos lábios, enrugar-se-iam para cima numa manifestação de contentamento perante a entrada da sua "super enfermeira". O seu aspecto seria tão saudável, radiante e cheio de vida aos sessenta anos como ela, muito provavelmente, teria mostrado quando tinha dezesseis anos de idade. Uma mulher completamente em paz consigo própria.

Aquela era a aparência que ela apresentara sempre durante todos os dias do seu internamento em Agosto, período em que fora submetida a variados exames clínicos. Nos momentos que antecederam a sua entrada no quarto, Christine imaginou a sua voz tão suave e cristalina como as águas de um riacho.

- Ah, minha doce Christine. O meu pelotão de uma só mulher que vem trazer alento a uma velha senhora adoentada...

Quando chegou aos pés da cama, Christine deteve-se e cerrou os olhos, abanando a cabeça como se tentasse desalojar o pouco que ainda lhe restava das suas expectativas e esperança.

Charlotte encontrava-se deitada sobre o lado direito, posição em que só conseguia manter-se com a ajuda de várias almofadas. Com os lábios úmidos, Christine abeirou-se da cabeceira da cama em bicos de pés. Charlotte parecia estar adormecida. A sua respiração farfalhada, que mais se assemelhava a um ressonar, fazia-se com dificuldade e de forma pouco natural. Os tubos de oxigênio, concebidos para se manterem inseridos nas narinas, haviam deslizado para uma das faces, provocando uma irritação avermelhada na pele causada pela pressão contínua. O seu rosto estava inchado; a sua tez era de um amarelado pastoso. Dos suportes altos existentes à cabeceira de ambos os lados da cama, mantinham-se suspensos sacos de plástico onde gotejava um fluido que era administrado por via intravenosa, através de tubos de um plástico translúcido.

Christine encontrava-se à beira das lágrimas quando estendeu a mão para ajeitar os

cabelos de Charlotte, afastando-os das faces. Os olhos da mulher de idade pestanejaram por breves instantes, para logo os abrir.

- Mais um outro dia -disse Christine com um timbre de voz animador, embora o seu sorriso não conseguisse ocultar a tristeza que sentia.

- Mais um outro dia -ecoou Charlotte numa voz enfraquecida. -Como é que está a minha menina?

Christine pensou que aquela pergunta era bem característica da sua maneira de ser. "Deitada numa cama de hospital, perguntando-me como é que eu me sinto.”

- Um pouco cansada, mas para além disso sinto-me ótima. Como é que está a minha rapariga?

Os lábios de Charlotte contorceram-se no arremedo de um sorriso antes de lhe responder.

- Já devia saber que essa é uma pergunta que não deve ser feita. - Ergueu uma mão, onde se viam hematomas, tocando ao de leve no tubo de borracha vermelha, preso com adesivo à sua cana do nariz, o qual se encontrava enfiado numa das narinas. - Isto não me agrada nada - afirmou ela num murmúrio.

Christine abanou a cabeça. Quando largara o serviço na noite anterior, a doente não tinha aquele tubo no nariz. As palavras que proferiu em seguida saíram-lhe da boca a custo.

-Deve... estar com algum problema no estômago... Esse tubo impede-o de inchar devido ao fluido. Está ligado a uma máquina de sucção. É daí que vem o som sibilante que tem ouvido. - Afastou o olhar. Os tubos, os hematomas, as dores... Christine sentia aqueles padecimentos como se fossem no seu próprio corpo. Compreendia que com Charlotte, mais do que com qualquer outro doente de quem houvesse cuidado, as suas perspectivas tinham-se distorcido. Foram muitas as vezes em que lhe apetecera desatar a fugir daquele quarto... fugir dos seus próprios sentimentos. Tivera vontade de entregar Charlotte Thomas aos cuidados de outra enfermeira. No entanto, nunca chegara a concretizar esses impulsos.

- Como é que está esse seu namorado? - perguntou Charlotte.

A mudança de assunto era a sua maneira de dizer que compreendia. Não havia nada que se pudesse fazer em relação ao tubo. Christine baixou-se e, com um acentuado constrangimento juvenil, retomou a conversa.

- Charlotte, se você está a referir-se ao Jerry, devo dizer-lhe que ele não é meu namorado. Para lhe ser franca, nem me parece que goste muito dele. - Desta feita, Charlotte conseguiu esboçar um pequeno sorriso, acompanhado de uma piscadela de olho. - Charlotte, é verdade. E não me dê nenhuma das suas piscadelas matreiras. O homem é... um vaidoso egocêntrico e um... pedante.

Charlotte estendeu uma mão para lhe acariciar a face. De súbito, àquela luz semi obscurecida, Christine fitou-a bem nos olhos. Refletiam um brilho de uma estranheza

maravilhosa que ela nunca tinha visto. A voz de Charlotte encontrava-se imbuída de uma força, de um poder, que eram quase palpáveis.

- As respostas estão todas dentro de si, minha querida Christine. Ouça apenas o que o seu coração lhe diz. Sempre que tenha realmente necessidade de saber, preste atenção ao seu coração. - Deixou descair a mão. Fechou os olhos. Ao fim de alguns segundos, Charlotte tinha entrado num sono induzido pela exaustão.

Christine fitou-a atentamente, tentando descobrir o significado que as suas palavras

encerravam. "Ela não esteve a falar do Jerry", pensou Christine. "Eu sei que não." Como se tivesse entrado em transe, saiu para o corredor para dar início ao seu turno de trabalho.

A sala das enfermeiras começara a encher-se. Havia oito enfermeiras-seis que pertenciam ao turno que terminara e duas que trabalhavam no de Christine - todas sentadas em redor de uma mesa cheia de relatórios, papeletas, chávenas de café, cinzeiros e vários tubos espremidos de loção para as mãos. Uma das mulheres, Gloria Webster, continuava a escrever os seus apontamentos. Gloria tinha a mesma idade de Christine; os cabelos, descolorados, tinham ficado com uma cor platinada. Usava uma maquiagem espessa nas pálpebras, que lhe dava uma tonalidade iridescente. Ergueu o olhar, bebeu um gole de café e retomou a sua escrita, ao mesmo tempo que falava.

- Olá, Beall.

- Olá, Gloria. Tiveste um dia atarefado?

- Não foi muito mau -respondeu a loura platinada, continuando a escrever. - A mesma merda de sempre, só que um pouco mais do que o habitual, se é que percebes onde quero chegar. - Pousou a chávena de café.

- Ainda falta muito para acabares o teu relatório? - perguntou Christine.

- Dentro de um minuto. Como de costume, eu sou a última a elaborar o raio dos apontamentos relativos ao meu turno. Na minha opinião, o que se deveria fazer era fotocopiar um conjunto e colá-lo em cada uma das papeletas. Seja como for, dizem todos o mesmo, se sabes o que quero dizer.

A pequena risada que Christine soltou deveu-se apenas a uma atitude de simpatia para com a outra mulher.

Entretanto, uma das outras enfermeiras sumariou num ápice as capacidades de Gloria.

- É possível que ela seja uma descuidada quanto aos medicamentos, relatórios clínicos e similares, mas, da mesma forma, está-se absolutamente nas tintas para os doentes afirmou ela.

As duas últimas enfermeiras chegaram e sentaram-se à volta da mesa. O relatório começou com uma discussão sobre os novos doentes que haviam sido admitidos naquele piso, durante os últimos dois turnos, desde que o pessoal da noite tinha largado o serviço.

Os casos dos recém-chegados foram discutidos mais pormenorizadamente do que os demais internados. Mesmo assim, a maior parte das observações que se ouviam em redor da mesa não era sobre os doentes, mas sim acerca dos médicos que tratavam cada um destes.

- Sam Engles, doente do doutor Bertram...

-... Ora bem, Jack, o Estripador, ataca de novo.

- Bert, o Namoradeiro, dez polegares no bloco operatório, mas uma dúzia de mãos em redor das enfermeiras.

- Stella Vecchione, doente do doutor Malchman...

- Boa sorte, Stella...

- Donald McGregor, um doente da doutora Armstrong...

- Ela é simpática, não acham?

- Simpática, mas senil. Escreve como a minha avó.

- Edwina Burroughs, doente do doutor Shelton...

- Quem?

- Shelton... aquele que é muito engraçado, com o cabelo encaracolado.

- Estou a ver a quem é que estás a referir-te. Não é ele que toma drogas ou qualquer coisa do gênero?

- O quê?

- Drogas. A Penny Schmidt, do piso três, disse que ouviu isso a uma das enfermeiras do bloco operatório... que o Shelton anda a tomar drogas.

- A velha Penny. Sempre com uma palavra simpática para toda a gente. Aposto que ela é capaz de descobrir porcaria num esterilizador.

Continuaram a rever os casos dos outros doentes daquele piso, quarto a quarto.

Enquanto prestava atenção ao que estava a ser dito, Christine previa quais as enfermeiras que limitariam os seus relatórios aos fatos, tal como estes eram: as análises laboratoriais, os sinais vitais, assim como as que apresentariam algum comentário relativo à aparência e atividades dos doentes aos seus cuidados. Três delas atribuíam mais ênfase aos números, enquanto outras três davam mais importância às pessoas.

Christine marcou cem por cento, apercebendo-se com alguma satisfação de que os relatórios orientados para o aspecto humano eram apresentados pelas enfermeiras cujo trabalho ela mais admirava. Gloria Webster não se inseria nesse grupo.

- Beall, imagino que vais ficar outra vez com o quatrocentos e doze, aliás como sempre - comentou Gloria enquanto apagava um cigarro num fundo de um copo de matéria plástica. Ela tinha por hábito tratar todas as enfermeiras da sua categoria pelos apelidos, o que se devia mais a um sentimento de camaradagem do que a qualquer esforço para manifestar dureza. - Bom, não há muito a acrescentar, exceto que as coisas estão ainda piores do que estavam ontem à noite, o que inclui a escara que a aflige, se percebes o que quero dizer. A temperatura e a tensão arterial mantêm-se muito instáveis. De duas em duas horas é necessário que se faça uma sucção nasotraqueal. Eu já tratei da escara, pelo que não terás de te preocupar com isso durante quatro horas. Jesus, que mal que aquela coisa cheira. Bem... calculo que não haja mais nada a acrescentar. Tens alguma dúvida ?

Christine lutou contra o impulso de lhe responder como lhe apetecia: “Sim, tenho uma. Como é que tu és capaz de falar dessa maneira de uma mulher que tem mais magia e mais sentimento numa só célula do que tu em todo o teu corpo? Em vez disso, conteve o desprezo e a cólera que sentia, limitando-se a abanar a cabeça”.

A passagem de informações de um turno para o outro só levou mais dez minutos. Em seguida, as seis enfermeiras que trabalhavam no turno diurno vestiram as suas capas e foram-se embora. O testemunho dos cuidados médicos havia sido passado.

Depois de todas terem saído da sala, Christine deixou-se ficar sentada com a papeleta de Charlotte, começando a examiná-la com toda a minúcia. Todo aquele histórico médico deixava adivinhar um grande sofrimento. Página após página de apontamentos, relatórios e administração de medicamentos. A cronologia de todo um pesadelo médico. Enquanto tomava algumas notas mais importantes num pequeno bloco de apontamentos, o sentimento de determinação de Christine aumentava gradualmente. Aquilo era suficiente.

Tal como Peg dissera ao telefone. Já chegava. Estava disposta a apresentar o caso de Charlotte Thomas perante a Irmandade.

Despendeu vários minutos a passar a limpo os seus apontamentos, verificando-os com toda a minúcia, para se certificar de que não havia omitido qualquer informação que pudesse ser importante. Sentindo-se satisfeita, abriu uma pequena agenda onde tinha endereços e números de telefone, tendo copiado um destes para um pequeno pedaço de papel. Mas então hesitou. Sentia a boca ressequida. Deixou-se ficar sentada com uma expressão absorta, passando a ponta dos dedos por uma unha. "Vamos lá a decidir, minha senhora", urgiu a si mesma. "Se tencionas levar isso para a frente, não estejas a vacilar." Nos instantes antes de se levantar da cadeira, ocorreu-lhe ao pensamento a imagem dos olhos de Charlotte. Aquela sensação de uma tranqüilidade radiante, aliada a uma paz infinita, era ainda mais nítida do que antes. "...Sempre que tenha de saber realmente, ouça o seu coração.”

Ao fundo do corredor havia um telefone público que proporcionava uma certa privacidade devido a uma divisória em vidro. O corredor nas proximidades do aparelho encontrava-se deserto. Christine sentiu-se hesitar uma vez mais, apercebendo-se de que a sua determinação estava a esboroar-se. Talvez o comitê nem sequer retribuísse o telefonema.

Era muito possível que quando revissem o caso este nem sequer merecesse a aprovação de quem o avaliasse. Talvez...

Sentindo uma enorme tensão em todos os seus músculos, colocou o bocado de papel à sua frente e começou a ligar o número. Ao fim de dois toques da campainha, ouviu um clique que foi seguido por um breve sinal sonoro. Logo de seguida soou uma voz de mulher que não tinha a mínima modulação.

- Bom dia. Dez segundos depois de ter ouvido a minha voz, ouvirá um sinal sonoro.

Disporá de trinta segundos para deixar a sua mensagem, a hora a que telefonou, e o

número de telefone onde poderá ser contatado. Logo que possível, o seu telefonema será retribuído. Muito agradecida.

Christine aguardou pelo sinal sonoro.

- Daqui fala Christine Beall, do turno da noite. Da Ala Quatro Sul do Hospital Médicos de Boston. Gostaria de submeter um paciente à vossa avaliação. O número da cabine telefônica é o cinco cinco, cinco, sete, um, oito, um. Neste momento são quinze horas e cinqüenta minutos. Poderei ser contatada através deste telefone até às vinte e três horas desta noite. Depois dessa hora poderei... - Antes de ter tido oportunidade de deixar o número de telefone de casa, ouviu-se um som abrupto quando o atendedor de chamadas interrompeu a ligação. Fez menção de voltar a ligar o mesmo número para poder concluir a sua mensagem. Mas, então, sentiu-se assolada por uma incerteza que se renovara, voltando a colocar o auscultador sobre o descanso. “Se estiver destinado a que aconteça, certamente que isso virá a concretizar-se, pensou Christine para consigo”.

Harrison Weller olhava com uma expressão vazia para o teto, sem se ter dado conta da entrada de Christine. No televisor Sony, de ecrã reduzido, suspenso acima da cama por um braço metálico, via-se o logotipo e a música de encerramento do programa A Luz Orientadora. Ele não prestava atenção nenhuma ao programa. Tinha setenta e cinco anos, mas as suas feições afiladas, de traços muito acentuados, mostravam a expressão serena de um rosto sem idade determinada.

- Mister Weller, como é que tem passado?-perguntou Christine, aproximando-se da cama do doente. - Porque é que tem os cortinados fechados? Lá fora está um dia lindo. A luz solar só lhe fazia bem.

Ele olhou para ela com um sorriso que se via ser forçado.

- O seu nome é Charlene, não é verdade?-perguntou.

- Mister Weller, sabe bem como é que eu me chamo. Desde que foi internado que eu

venho quase todos os dias ao seu quarto. Chamo-me Christine.

- Disse-me que o dia estava soalheiro? - A voz de cana rachada de Weller trazia à mente de Christine um estudante liceal aspirante a ator, tentando imitar um homem de idade.

Ele fora internado naquele piso por causa de uma fratura que sofrera na bacia, passando imediatamente a ser o doente preferido das enfermeiras. Embora ele não desse mostras de se sentir incomodado por ser o alvo do carinho delas, isso não significava que lhes retribuísse. Era bastante freqüente que se mostrasse confuso ou alheado de tudo o que o rodeava, um comportamento que tinha levado o seu cirurgião de ortopedia a classificá-lo como senil.

Christine correu os cortinados, inundando o quarto com a luminosidade que fazia naquele fim de tarde. Ergueu Weller de forma a que este ficasse sentado, instalando-se junto dele numa posição que permitia ao doente ver o rosto dela. Durante breves instantes, o homem idoso semicerrou os olhos, após o que esboçou um sorriso rasgado.

- Ora bem, e que bonita que você é - disse ele ao mesmo tempo que estendia a mão e lhe dava um ligeiro beliscão numa das faces.

Christine sorriu, tomando a mão dele nas suas.

- Como é que a sua bacia se tem portado, Mister Weller? - perguntou ela.

- A minha quê?

- A sua bacia - respondeu ela espaçando as sílabas e falando numa voz extremamente elevada. - O senhor foi operado à bacia. Quero saber se está a sentir algumas dores.

- Dores? Na minha bacia?... Não, não - replicou Weller quando ela já estava prestes a repetir a mesma pergunta. - Nem uma dorzinha, exceto às vezes quando mexo o pé para o lado esquerdo - acrescentou o doente.

Christine quase ficou sem respiração. Aquela era de longe a resposta mais elaborada que ele dera a alguma pergunta, desde que ela o conhecia. De chofre, compreendeu o que é que se estava a passar.

- Mister Weller, por acaso costuma usar um auxiliar auditivo? - perguntou ela numa voz quase gritada.

- Um auxiliar auditivo? - repetiu Weller na sua voz de cana rachada. - É claro que tenho um auxiliar auditivo. Há já muitos anos que o tenho.

- Porque é que ainda não o colocou?

- É um bocado difícil colocar qualquer coisa que neste momento está numa gaveta em minha casa, não lhe parece? - retorquiu ele como se aquela dedução devesse ter sido mais do que óbvia para ela.

- E a sua mulher? Ela não pode trazer-lhe o aparelho para a surdez?

- Quem, a Sarah? O artritismo tem-lhe dado tanto que fazer que ela ainda nem sequer conseguiu sair de casa para poder visitar-me no hospital.

- Mister Weller, eu posso mandar alguém a sua casa para ir buscar o seu auxiliar auditivo. Quer que eu faça isso?

- Claro que gostaria muito que mandasse alguém buscá-lo, Charlene - respondeu ele apertando-lhe a mão. - E, já agora, diga-lhes que me tragam também os óculos. A Sarah sabe onde é que eles estão. Sem eles não consigo ver nada à frente do nariz.

A expressão amistosa de Christine transformara-se num sorriso radiante.

- Mister Weller, quem é que ajuda a Sarah nas tarefas domésticas enquanto ela está

doente? - perguntou.

- Não tenho a certeza. A Annie Grissom. Vive ao nosso lado e sempre que pode dá uma ajuda.

- Eu posso enviar uma enfermeira a sua casa, Mister Weller. Caso ela conclua que a sua mulher necessita de quem a ajude, providenciará para que tenha uma empregada doméstica.

- Uma quê?

Christine esteve à beira de se repetir mas deteve-se a meio da frase, dando-lhe um abraço.

- Não se preocupe com isso. Eu trato de tudo - disse ela numa voz que era um misto de grito e de riso.

Bruscamente, Christine estremeceu e, com lentidão, afastou os braços que a abraçavam.

Tinha a sensação estranha de que havia uns olhos que a observavam por detrás dela.

Deu meia volta. Avistou Dorothy Dalrymple na ombreira da porta, a diretora de todo o pessoal de enfermagem do hospital. A mulher devia rondar os cinqüenta e cinco anos; tinha um rosto de querubim e um cabelo com um corte bastante curto. O seu uniforme expandia-se como se fosse uma massa de tundra coberta de neve, contendo um volume corporal que pesava aproximadamente cem quilogramas. Acima dos seus sapatos brancos e rasos de enfermeira viam-se uns tornozelos inchados. As dobras carnudas em redor dos olhos haviam-se aprofundado mais enquanto ela avaliava aquela cena.

De um salto, Christine levantou-se da beira da cama, começando a ajeitar o uniforme.

Apesar de conhecer Dalrymple desde que começara a trabalhar no hospital, esse conhecimento limitara-se sempre aos contactos profissionais, o que fazia com que nunca se sentisse à vontade na presença da mulher. Talvez isso se devesse ao seu tamanho, que se impunha aos outros ou, possivelmente, à sua atitude de arrogância. Não podia dizer que ela não se tivesse mostrado suficientemente simpática e aberta para consigo.

A chefe das enfermeiras começou a aproximar-se de Christine, detendo-se a menos de um metro dela e mantendo as mãos na cintura.

- Muito bem, Miss Beall - começou ela a dizer num tom de reprovação, mostrando-se

contudo incapaz de ocultar um sorriso um tanto de esguelha - Será que me encontro perante uma nova técnica de enfermagem, ou terei eu, inadvertidamente, perturbado um romance estival em franco florescimento?

Christine esboçou um sorriso muito recatado, olhando para Weller.

- Harrison - começou ela a dizer numa voz suave - eu bem te disse que acabaríamos por ser descobertos. Muito simplesmente, não podemos continuar a encontrarmo-nos desta maneira. - Christine apertou-lhe as mãos de uma forma que lhe indicava não haver nada a temer, após o que foi atrás de Dalrymple, que entretanto já saíra do quarto.

Ao longo dos mais de quinze anos em que ela chefiara as enfermeiras dos Médicos de Boston, Dotty Dalrymple tornara-se numa espécie de lenda, o que em grande parte se devia à proteção quase feroz que proporcionava "às suas enfermeiras". Sem nunca ter sido considerada uma pensadora brilhante, isso não obstava a que fosse bem conhecida no seio da comunidade médica, não só devido ao seu carisma ursino, mas também porque a sua gêmea univitelina, Dora, era a chefe das enfermeiras do Hospital Suburbano, localizado a pouco menos de vinte e cinco quilômetros a ocidente da cidade.

As duas eram conhecidas pelo nome das Manas Catatuas, apesar de nunca ninguém se atrever a dirigir-se a elas por essa alcunha. Ambas eram, tanto quanto qualquer pessoa sabia, as únicas diretoras do pessoal de enfermagem, naquela área da cidade, que continuavam a usar escrupulosamente os seus uniformes sempre que iam trabalhar. Era um simbolismo, ainda que pouco estético, que contribuía para a popularidade de que ambas gozavam.

Dalrymple colocou uma mão maternal sobre o ombro de Christine.

- Ora vamos lá a ver, Christine, o que é que foi tudo aquilo? - perguntou ela.

Em poucas palavras, Christine relatou a forma como havia descoberto as causas prováveis da "senilidade" de Harrison Weller.

A chefe das enfermeiras partilhou do empolgamento que ela sentia.

- Sabes... - começou ela a dizer. - Eu passo tanto do meu tempo embrenhada na papelada, em negociações laborais e política hospitalar que, por vezes, me passa por completo ao lado o que é efetivamente o trabalho de enfermagem. - Numa atitude de modéstia, Christine acenou com a cabeça. - O entusiasmo que tu mostras pelo teu trabalho traz-me à recordação que, independentemente da pouca consideração que os médicos nos possam mostrar, apesar do muito que possam menosprezar a nossa inteligência ou a nossa capacidade de discernimento, nós continuamos a ser as pessoas que prestam diretamente cuidados médicos aos doentes. As que, na realidade, os conhecem como seres humanos, que eles são de fato. Estou firmemente crente que a maior parte dos doentes que conseguiram recuperar a sua saúde deve essa recuperação aos cuidados das enfermeiras e não aos que lhes são prestados pelos médicos.

"E quanto àqueles que não conseguem recuperar?", apeteceu a Christine perguntar.

Por uns instantes, ambas percorreram o corredor em silêncio.

- Christine, tu és uma enfermeira muito especial - prosseguiu Dalrymple pouco depois, detendo-se e voltando-se para Christine. - Este hospital precisa de ti e de outras como tu. Espero que te sintas sempre à vontade para falares comigo sobre o que quer que seja que te preocupe. Seja o que for.

Em princípio, as palavras dela deveriam ter instilado segurança em Christine; contudo, havia algo indefinido na expressão da mulher que não se enquadrava no seu discurso. De súbito, Christine sentiu calafrios e uma sensação de mal-estar. Procurava uma resposta na sua mente, quando o telefone público ao fim do corredor começou a tocar. Girou sobre os calcanhares como se o som da campainha tivesse sido o disparo de uma arma de fogo.

- Pois bem, Christine, não me parece que aquele telefone tencione atender-se a si próprio - disse Dalrymple, começando a dirigir-se para o aparelho.

- Eu vou atender - apressou-se Christine a dizer atabalhoadamente, passando num passo rápido pela chefe das enfermeiras, que se mostrava espantada com a sua atitude.

Quando já se encontrava próxima do telefone, abrandou a passada, na esperança vaga de que este deixasse de tocar antes de ela poder atender; e, contudo, ao mesmo tempo sentia receio de que isso viesse a acontecer. Hesitou, após o que agarrou no auscultador, levando a mão à algibeira onde guardara os apontamentos relativos a Charlotte Thomas.

Não sabia bem como, mas tinha a certeza que aquele telefonema era para si.

A voz que respondeu do outro lado da linha era a de uma mulher, cuja entoação inflexível talvez se devesse a um ligeiríssimo sotaque.

- Queria falar com Miss Christine Beall, uma enfermeira de serviço nesse piso.

- Daqui fala Christine Beall - disse ela, tentando engolir, numa tentativa para afastar a secura que uma vez mais lhe reaparecera na boca.

- Miss Beall, o meu nome é Evelyn. Estou a telefonar-lhe em resposta à mensagem que deixou ao princípio da tarde. Represento o Comitê Regional de Avaliação da Nova Inglaterra.

Com um olhar de corça amedrontada, Christine perscrutou o corredor. Dalrymple já se tinha ido embora. Encontravam-se presentes várias pessoas, pessoal médico e algumas visitas, embora ninguém se encontrasse à distância de poder ouvi-la.

- Eu... eu tenho um caso que gostaria de apresentar para avaliação e recomendação - continuou ela numa voz gaguejada, sem ter bem a certeza de se recordar da seqüência que deveria ser dada à conversa.

- Muito bem - replicou a mulher. - Vou começar a tomar apontamentos. Portanto, peço-lhe o favor de falar com clareza e devagar. Não tenho a intenção de a interromper, salvo se for absolutamente necessário e essencial. Faça o favor de começar.

As mãos de Christine começaram a tremer enquanto colocava os apontamentos à sua frente. Decorreram trinta segundos, durante os quais os seus pensamentos e emoções desfilavam a uma tal velocidade que a impossibilitavam de articular as palavras.

Raciocinou para consigo própria que Charlotte desejava tanto pôr cobro à sua situação que a sua atitude só poderia ser a mais correta. Era imprescindível que fosse a mais adequada. No entanto, algures bem no seu âmago pairava a semente da dúvida. Só foi capaz de retomar a palavra depois de se ter convencido a si mesma de que, ainda que o caso fosse aprovado, em qualquer altura teria sempre a oportunidade de mudar de idéias.

- A doente em questão é Mistress Charlotte Thomas - prosseguiu Christine num timbre lento, monótono e factual, que esperava pudesse ocultar o estremecimento que sentia na voz. - É uma mulher de raça branca com sessenta anos de idade, uma enfermeira diplomada. A dezoito de Setembro, foi submetida a uma ressecção Miles, assim como a uma colostomia devido a um cancro no cólon. Desde o processo cirúrgico que ela não tem andado nada bem. Eu conheço Mistress Thomas desde que foi internada, depois de ter sido diagnosticada em Agosto, o que me permitiu passar muitas horas a conversar com ela, quer antes quer após a operação. Sempre foi uma mulher atlética, ativa e vigorosa, tendo-me dito em várias ocasiões que seria incapaz de enfrentar a vida numa situação em que ficasse tolhida ou de invalidez devido às dores. Recentemente, ainda em Julho passado, ela trabalhava a tempo inteiro para uma agência que presta cuidados médicos ao domicílio.

Christine apercebeu-se de que se expressava um pouco incoerentemente. Sentia as mãos frias e umedecidas. Soubera de antemão que aquilo não seria nada fácil. Naquela mesma manhã, Peg tinha-lhe afirmado que não seria. No entanto, nunca imaginara que viria a sentir aquela espécie de tensão. E ainda se encontrava apenas no relatório inicial do caso.

E se eles viessem a dar a sua aprovação? E se realmente ela fosse forçada a...

- Miss Beall, faça o favor de continuar - instigou Evelyn. Nesse instante, Christine ouviu o som de passos próximo de si. Entrando em pânico, voltou-se para descobrir a origem do ruído. - Miss Beall? Continua aí? - perguntou a sua interlocutora.

Dotty Dalrymple encontrava-se a menos de um metro de distância. "Meu Deus, o que é que estará a acontecer?” perguntou Christine a si própria. "Terá ela ouvido a minha conversa?”

- Miss Beall, continua ao telefone?

Os nós dos dedos à volta do auscultador ficaram brancos.

- Sim, sim, tia Evelyn - respondeu ela a custo - , aguarde só por um minuto, pode ser? A minha chefe quer falar comigo. - Pousou o braço em cima da bancada do telefone. Mesmo assim continuava a senti-lo a tremer.

- A voz era mais intima.

- Christine, estás a sentir-te bem? - perguntou Dalrymple num tom de voz que lhe parecia ser demasiado suave, exageradamente despreocupado. - Estás com um aspecto um pouco pálido.

"Quantas mais explicações é que ela pretenderá?", interrogava-se Christine. Até que ponto é que as mentiras deveriam ir?

- Oh, não. Sinto-me lindamente, Miss Dalrymple. É a minha tia. A minha tia Evelyn.

- Desde que estejas a sentir-te bem... - retorquiu Dalrymple com um encolher de ombros.

- Tu deste-me a impressão de estares prestes a saltar para fora da tua pele, quando o telefone começou a tocar. Há pouco, ao ver que tu ainda não tinhas regressado, comecei a ficar preocupada, pensando que talvez te tivesse acontecido alguma coisa...

Christine cortou-lhe a palavra com uma risada que, sem dúvida, era demasiado forçada.

- Não, está tudo bem. Trata-se... do meu tio. Ele foi operado hoje; tenho estado à espera de notícias do seu estado. Mas correu tudo bem. - Mentiras, umas atrás das outras. Não se recordava de qual tinha sido a última ocasião em que mentira até então.

- Diz à tua tia que me congratulo muito por a operação ter corrido pelo melhor.

- Só demoro mais uns minutos, Miss Dalrymple - redargüiu Christine numa voz sumida.

- Não tem importância, fala durante o tempo que for necessário. - Dalrymple brindou-a com um sorriso mecanizado e começou a afastar-se, seguindo pelo corredor. Christine sentia-se como se estivesse prestes a vomitar. Os apontamentos relativos a Charlotte Thomas eram uma bola machucada dentro do seu punho cerrado.

- Evelyn, ainda está aí? - perguntou ela numa voz que mal se ouvia.

- Sim, Miss Beall.

- Agora já pode continuar?

Christine pensou "Não!", mas retomou a palavra.

- Sim... sim. Já estou bem. Só preciso de um segundo para organizar os meus apontamentos. - Sentia os dedos rígidos, parecendo que estes se recusavam a obedecer-lhe.

Primeiro fora o telefonema de Peg, ao que se seguira a agonia sentida pela mulher de John Chapman, depois fora Charlotte, e por último Miss Dalrymple que aparecera tão inopinadamente e na pior ocasião possível, dando a impressão de que a mantinha sob uma observação mais cerrada do que a que dedicava às outras enfermeiras.

Acontecimentos que certamente não tinham qualquer ligação entre si, ou se esta existia seria quase imperceptível; contudo, de súbito ela sentia-se quase paralisada, enquanto a sua imaginação tecia uma corda entrançada de pânico que se mantinha apertada à volta do seu peito e garganta. Em movimentos desajeitados, Christine começou a alisar os apontamentos em cima da pequena bancada, esforçando-se por recuperar o domínio sobre si própria.

- A... a agência de cuidados médicos ao domicílio. Eu já lhe tinha falado desta agência? - O receio que se adivinhara na sua voz já tinha começado a dissipar-se.

- Sim, já mencionou - continuou Evelyn num tom cheio de paciência.

- Muito bem. Vamos a ver. Oh, sim, eu ia aqui. - As palavras saíam-lhe estranguladas e sem a mínima coerência. - Mistress Thomas tem estado submetida a um tratamento de hiper alimentação através da tubagem interna subclavicular, o que já dura há quase duas semanas, para além de continuar a ser medicada com antibióticos por via intravenosa, terapia pulmonar de hora a hora e oxigênio contínuo. - Naquele momento, Christine deu-se conta de que tinha passado em branco uma página inteira. Na realidade, não tinha a certeza do número de pormenores que já mencionara. - Evelyn, eu... eu acho que omiti alguns aspectos. Posso voltar atrás para rever as minhas notas?

- Pode fazer tudo o que lhe pareça ser melhor, minha querida. Nós havemos de conseguir deslindar todos os elementos. Agora, aconselho-a a descontrair-se, fornecendo-me todas as outras informações que coligiu.

As primeiras palavras calorosas que a mulher proferira tiveram um efeito imediato. Christine respirou fundo, sentindo que grande parte da tensão que a afligira tinha desaparecido.

- Muito obrigada - retorquiu ela com suavidade. A sensação de segurança que Evelyn lhe instilara trouxera-lhe algo à recordação: ela não se encontrava a agir numa situação de isolamento. Fazia parte de um grupo, um movimento firmemente empenhado na obtenção do bem supremo. Se o seu papel era difícil, por vezes, mesmo assustador, a situação era a mesma para o resto da "irmandade". Pela primeira vez, da sua voz trespassou uma nota de calma. - O que eu omiti foi o fato de ela ter sido obrigada a submeter-se a outra intervenção cirúrgica, logo após a primeira, para que pudessem ser drenados vários abcessos bastante volumosos na pelve. Há uma semana, foi acometida por uma pneumonia; ontem à noite foi necessário inserir-lhe um tubo nasogástrico, devido à possibilidade da existência de uma obstrução de natureza intestinal. - Christine continuava a tremer; todavia, agora as palavras saíam-lhe da boca com maior facilidade. - Recentemente, a doente começou a sofrer de uma ferida, conseqüência de uma pressão enorme e dolorosa no osso sacro, pelo que passou a necessitar de Demerol vinte e quatro horas por dia, a par das terapias locais que são habituais nestas situações. Desde ontem que as anotações feitas pelo seu médico na papeleta atestam que a pneumonia está a agravar-se. A despeito de todo este problemático quadro clínico, ela está escalonada para receber cuidados intensivos de ressuscitação, no caso de o seu organismo falhar. - "Graças a Deus que estou quase a terminar", pensou Christine. - Mistress Thomas é casada, tem dois filhos e vários netos. E com isto concluo a minha apresentação. - Soltou um profundo suspiro.

- Miss Beall - atalhou Evelyn - , poderá fazer o favor de me dizer se no seu historial médico existem provas documentais que atestem a existência de disseminação do tumor a outros órgãos?

- Sim, sim. Lamento muito. Passei em branco parte de uma página. Existe um pormenor. Um relatório radiológico. Trata-se de um exame feito ao fígado na semana passada. O radiologista diz: "Anomalias múltiplas sob a forma de cavidades consistentes com o tumor.”

- Qual foi o último caso que teve em mãos?

- O único caso. Foi há quase um ano. Mistress Thomas será o meu segundo caso, se vier a concretizar-se. - Da última vez, as coisas não se tinham passado daquela maneira, pensou Christine. Fora uma maravilha e não um calvário. Sentia as pernas sem ação.

Instintivamente, olhou em seu redor à procura de uma cadeira.

- Estou-lhe muito agradecida por nos ter telefonado - acrescentou Evelyn - , assim como pela apresentação que fez do seu caso que, devo dizer foi excelente. O Comitê Regional de Avaliação da Irmandade da Vida procederá a um estudo em relação ao estado da doente, após o que entrará em contacto consigo num período de vinte e quatro horas. Entretanto, tal como está bem ciente, não deve tomar qualquer medida que seja de sua própria iniciativa.

- Eu compreendo. - O assunto estava prestes a terminar.

- Só mais uma coisa, Miss Beall - prosseguiu Evelyn. - Qual é o nome do médico dessa doente?

- O médico dela?

- Sim - respondeu Evelyn.

- É o doutor Huttner. Wallace Huttner, o chefe de cirurgia do hospital.

- Muito obrigada - concluiu Evelyn. - Manter-nos-emos em contacto consigo.

 

David Shelton tamborilava impacientemente com os dedos no braço do cadeirão, enquanto folheava uma edição de há três meses de The American Journal of Surgery. O empolgamento e a expectativa que sentia perante a perspectiva de fazer a ronda da noite com Wallace Huttner haviam sido atenuados por uma espera que até ao momento se alongara por três quartos de hora. A Huttner deveria ter-se-lhe deparado dificuldade inesperada no bloco operatório.

Durante algum tempo, David andara de um lado para o outro na sala dos cirurgiões, onde na altura se encontrava a sós, fechando portas de cacifos - um gesto que lhe parecia, inexplicavelmente, repor alguma ordem naquela situação. Quarenta e cinco minutos passados numa sala deserta, tendo apenas por companhia um conjunto de cacifos, era um aspecto que não fazia minimamente parte do cenário que concebera para aquele fim de tarde.

Sentindo uma preocupação crescente perante a probabilidade de Huttner se ter esquecido por completo do encontro marcado com ele, David despiu o fato que havia feito ressuscitar do mais recôndito do seu guarda-fatos, especialmente para aquela ocasião, tendo optado por um conjunto de roupas verdes próprias para cirurgia, após o que cobriu os sapatos de pala, já bastante usados, com proteções de papel, metendo dentro da zona do calcanhar o fio elétrico negro de ligação à terra. Ainda pensou em calçar os seus sapatos de lona verde, que se destinavam à sala de operações, mas rejeitou a idéia receando que os sapatos, um par novo e limpo, pudessem dar a impressão de que ultimamente não passara muito tempo no bloco operatório, o que era uma verdade incontestável.

O ritual de mudar de traje, passando a usar o de cirurgia, teve o efeito imediato de lhe elevar o moral, que tão abalado se encontrava. Colocando uma máscara de papel e uma touca para proteção dos cabelos, começou a trautear distraidamente os acordes da abertura de A Virgem de Macarena, uma melodia que tinha ouvido pela primeira vez há muitos anos, anunciando a chegada de um toureiro numa corrida que tivera lugar numa arena na cidade do México.

Subitamente, apercebeu-se daquilo que entoava e começou a rir-se em voz alta.

- Shelton, não há dúvida de que estás completamente passado do juízo. A seguir vais exigir duas orelhas e o rabo, a troco de uma apendicectomia realizada com sucesso. - Parando em frente de um espelho, meteu dentro da touca vários tufos de cabelo que lhe haviam escapado, após o que se dirigiu para o piso de cirurgia.

A Ala Cirúrgica Dickenson, cujo nome era uma homenagem ao primeiro chefe de cirurgia do hospital, compunha-se de vinte e seis quartos que não possuíam janelas, ocupando inteiramente o sétimo e oitavo pisos do edifício virado a oriente. Os relógios de parede, que davam a impressão de terem o dom da ubiqüidade, propiciavam o único vestígio da forma como a vida decorreria fora das paredes do hospital. No que respeitava a atmosfera, política, ordem social e até mesmo linguagem, a ala de cirurgia constituía um mundo dentro de um mundo, inserido num outro mundo.

Desde os seus primeiros dias de estudante de medicina, e até mesmo antes, David sempre sonhara em vir a fazer parte desse mundo. Adorava o som ensurdecido que vinha dos vários equipamentos clínicos, das vozes sussurradas que se faziam ouvir pelos corredores de paredes imaculadamente pintadas, assim como a tensão que se verificava nas muitas horas de cirurgia meticulosa, os segundos de ação frenética que ocorriam nas crises em que estava em jogo a vida ou a morte. Naquele momento, e pela segunda vez na sua vida, o seu sonho estava prestes a realizar-se.

Examinando o corredor de azulejos de um verde-lima, viu alguns indícios de atividade somente em duas salas de operações. As outras haviam sido meticulosamente limpas e preparadas para os primeiros casos da manhã seguinte, após o que as luzes se manteriam desligadas ao longo da noite.

Apostou consigo mesmo em como Huttner estaria a operar na sala à sua direita; o resultado foi perder um fim-de-semana em Acapulco na companhia de Meryl Streep.

- Posso ser-lhe útil? - perguntou-lhe a enfermeira que não dava assistência direta ao

cirurgião, falando-lhe da ombreira da porta. Ela usava uma bata verde de cirurgia que quase lhe ocultava totalmente a constituição física, que mais se assemelhava à de um jogador de futebol de grande corpulência. De entre uma touca de tecido com um padrão florido que lhe protegia os cabelos, e uma máscara que lhe cobria a boca e nariz, ela observava-o com uns olhos de cor turquesa.

"Mostra-te seguro de ti próprio", pensou David. “Não escondas uma consternação”.

ligeiramente desabrida por não teres sido reconhecido.”Tentava formular uma réplica que intimidasse a mulher, quando Huttner o fitou do seu lugar ao lado direito de uma mesa operatória”.

- Ah, David, seja bem-vindo - saudou ela em voz alta. - Edna, este é o doutor Shelton. Por favor, arranje-lhe um escabelo. Coloque-o... ali, por detrás do doutor Brewster. - Fez um acenar de cabeça na direção do médico estagiário, o qual lhe prestava assistência do outro lado da mesa.

David subiu para o escabelo e baixou o olhar para a incisão.

- Tudo começou como sendo uma simples sutura demasiado apertada de uma úlcera que sangrava - começou Huttner a explicar, sem se dar conta... ou, pelo menos, sem que o desse a conhecer, que já estava atrasado para a ronda aos doentes que haviam combinado. - Mas, depois de termos cortado, deparou-se-nos um pequeno problema, o que nos levou a decidir prosseguir com uma hemigastrectomia, e uma anastomose Bilroth. - David tomou mentalmente um apontamento da escolha dos pronomes utilizados por Huttner, tendo arquivado aquele conhecimento bem no fundo da sua mente.

Ao cabo de alguns segundos, o ritmo de trabalho na sala de operações, que fora quebrado pela chegada de David, já se restabelecera. Não foi preciso muito tempo para que David se apercebesse de que a destreza, poder de concentração e capacidade de domínio que Huttner mostrava, eram extraordinários. Ali não existiam palavras ou movimentos supérfluos. Tão pouco se verificava qualquer aparência exterior de indecisão. Embora existissem outros na sala de operações a desempenhar os seus papéis, ele era, sem margem para qualquer dúvida, tanto solista principal como regente.

Subitamente, houve um par de tesouras que escaparam da mão de Huttner, quando a enfermeira que o assistia lhas entregou. Tombaram no chão com estrondo que mais se assemelhava a uma explosão em pequena escala. Os olhos azul-acinzentados do cirurgião coruscaram.

- Raios partam isto, Jeannie - exclamou ele com brusquidão. - Importa-se de prestar mais um pouco de atenção ao que está a fazer?!

A enfermeira adquiriu uma postura rígida, tartamudeando um pedido de desculpas enquanto lhe entregava outra tesoura, o que fez com todas as cautelas. Os olhos de David semi cerraram-se ligeiramente. Do seu ponto de observação, que lhe proporcionava uma certa vantagem, a passagem do instrumento cirúrgico parecera-lhe ter sido devidamente adequada. Lançou um olhar para o relógio de parede. Dezenove horas e trinta minutos.

Foi então que se deu conta de que Huttner, provavelmente, teria estado a operar durante a maior parte de doze horas consecutivas.

Um minuto mais tarde, Huttner avaliou os resultados do seu trabalho, rodando a cabeça para aliviar a tensão que sentia no pescoço.

- Muito bem, Rick, ela é toda tua. Podes prosseguir com a sutura - instruiu ele, dirigindo-se ao médico estagiário. - As precauções são as normais num estado pós-operatório. Não me parece que ela tenha necessidade de ir para a Unidade de Cuidados Intensivos, mas você deve fazer o que lhe parecer melhor, quando ela estiver pronta para sair da sala de recuperação. Se houver qualquer complicação, deve contatar o doutor Shelton. É ele quem fica a substituir-me enquanto eu estiver no congresso vascular em Cape. Alguma dúvida que queira esclarecer?

David julgou ter visto um vislumbre de respeito mais acentuado, aliado ao interesse, que se refletiu no olhar da enfermeira que dera apoio ao cirurgião. Fosse verdadeira ou imaginária, aquela expressão reacendeu de imediato o empolgamento que os três dias seguintes teriam reservado para si.

Huttner retrocedeu, afastando-se da mesa de operações e começando a despir as roupas de cirurgia ensangüentadas, assim como as luvas, o que fez num único movimento; encaminhou-se para a sala dos médicos com David, que seguia logo atrás de si. Em vez de se deixar cair em cima do sofá que estivesse mais próximo, tal como David esperara que viesse a acontecer, Huttner encaminhou-se num passo casual para o seu cacifo, de onde retirou o seu cachimbo e uma bolsa de tabaco. Encheu e compactou o elegante cachimbo antes de se instalar num sofá forrado a couro espesso. Fazendo um gesto com o cachimbo, indicou a David que se sentasse junto de si no mesmo sofá.

- Há dois dias que o Turnbull deveria ter encaminhado aquela mulher para que fosse operada - disse ele, referindo-se ao médico estagiário que não fora capaz de conter a ruptura na úlcera. - Aposto que eu não teria sido forçado a remover parte do estômago da doente, caso ele tivesse procedido dessa forma. - Huttner cerrou os olhos e massageou a cana do nariz com uns dedos que mais pareciam de porcelana, e cujas unhas estavam cuidadosamente arranjadas.

Com sessenta e poucos anos, Huttner era um homem de estatura elevada e constituição angular, que media uns bons centímetros mais do que um metro e oitenta, tendo uns cabelos negros onde se via a quantidade apropriada de fios grisalhos na região da fronte; era, até ao mais ínfimo pormenor, a figura de aspecto patrício que as fotografias nos jornais reproduziam.

- Chegaram-me aos ouvidos palavras elogiosas a respeito do seu trabalho, por parte das enfermeiras do bloco operatório, David - acrescentou Huttner no sotaque bem cultivado e tão característico da Nova Inglaterra.

Palavras elogiosas. David passou vários segundos a avaliar aquele cumprimento. Tratava-se de uma reação em reflexo, que tinha a sua origem em quase oito anos de conversas condescendentes e colegas pseudo-solícitos. David não gostava daquela forma de atuação, embora tivesse acabado por se habituar. Tinha a certeza de que as palavras elogiosas de Huttner eram sinceras.

- Obrigado - agradeceu ele. - Tal como teve oportunidade de ver hoje, algumas dessas pessoas nem sequer me conhecem. O que estou a tentar dizer é que um caso importante por semana, ou de quinzena a quinzena, não pode ser considerado como sendo uma base sólida para se poderem tirar conclusões. - As suas palavras não eram de amargura, expressando meramente o reconhecimento de um fato. David sabia que Huttner poderia realizar quinze ou mais operações importantes, por cada uma das suas.

- Paciência, David, paciência - aconselhou Huttner. - Estou recordado de lhe ter dito precisamente isso quando você veio falar comigo pela primeira vez, a fim de me solicitar os privilégios especiais de que gozam os médicos que fazem parte do quadro. Não se deve esquecer de que, da mesma forma que os médicos são constantemente elevados a pedestais, também ficam sujeitos a um exame minucioso constante. - Uniu a ponta dos dedos enquanto escolhia criteriosamente as suas palavras. - Os problemas semelhantes aos... enfim... àqueles por que você passou não são esquecidos com muita facilidade pela comunidade médica. Constituem uma ameaça, apontando para uma vulnerabilidade que a maior parte dos médicos não deseja admitir ter. Você deve continuar a limitar-se a executar um trabalho de qualidade e consciencioso, tal como tem vindo a fazer, e os casos começarão a surgir. - Com aquelas palavras, Huttner recostou-se para trás numa atitude pontifical, colocando as mãos em redor do cachimbo.

- Espero bem que sim - retorquiu David com um sorriso nada forçado. - Gostaria que soubesse o quanto me sinto agradecido pela confiança que depositou em mim, escolhendo-me para o substituir. Em termos pessoais, para mim isso tem um grande significado.

Com um gesto vago feito com o cachimbo, Huttner ignorou o cumprimento, embora a sua expressão sugerisse que este fora esperado, pelo que a sua ausência não teria passado despercebida.

- Isso não tem a mínima importância, eu é que lhe devo estar agradecido. É um grande alívio saber que os meus doentes terão um jovem empreendedor, como você, que trate deles enquanto eu estiver fora. Se a memória não me atraiçoa, você fez o seu estágio no Hospital White Memorial, não é verdade?

- Sim, senhor. Em tempos, ocupei o lugar de chefe dos médicos estagiários.

- Nunca consegui ser aceite para esse programa - comentou Huttner, abanando a cabeça num gesto que poderia ser interpretado como uma manifestação de melancolia. - E deve tratar-me por Wally. Os "sim, senhor" que me são dirigidos todos os dias davam para encher a corte do rei Artur.

David acenou com a cabeça, esboçando um sorriso enquanto se impedia no último instante de replicar com um "sim, senhor".

Dando um impulso ao corpo, Huttner pôs-se de pé.

- Um duche rápido e depois transferirei para os seus cuidados os doentes dos dois pisos. - Lançou as roupas de cirurgia para dentro de um recipiente de lona; em seguida, tirou uma publicação médica de dentro do seu cacifo, entregando-a a David. - Dê uma olhadela por este artigo escrito por mim sobre o método de cirurgia drástica, onde eu abordo um mal no peito de natureza metastática. Estou interessado em conhecer a sua opinião acerca deste assunto.

Com aquelas palavras, Huttner dirigiu-se para os chuveiros.

- Você joga tênis, David? - perguntou ele em voz alta antes de abrir a torneira. - Temos de combinar um dia para batermos umas quantas bolas, antes que o tempo comece a piorar.

- É bastante freqüente que não consiga distinguir entre o meu estilo de jogar tênis e a forma como faço halterofilismo - replicou David numa voz suficientemente baixa para ter a certeza de que Huttner não podia ouvir nada do que ele dissera. Folheou o artigo. A publicação em que fora inserido era um tanto obscura. Huttner defendia o processo cirúrgico radical, quer fosse aos seios, ovários ou à glândula supra-renal, nos casos em que as doentes sofriam de um cancro da mama já muito disseminado. Aquele conceito não tinha nada de revolucionário. Em determinadas circunstâncias era bem aceite. No entanto, apesar de aquele tipo de doença se revestir de todo o horror que era sobejamente conhecido, a abordagem da cirurgia radical escrita em letra de forma, onde se avaliavam os índices de sobrevivência, trouxe à garganta de David um sabor a bílis. Sobrevivência.

Seria esse efetivamente o fator base? Num gesto brusco, fechou a publicação e voltou a colocá-la dentro do cacifo de Huttner.

Através dos alto falantes anunciava-se que havia terminado a visita das vinte horas, na mesma altura em que os dois cirurgiões iniciaram a ronda aos pisos do edifício virado a ocidente. Algumas horas antes, David visitara os doentes que tinha no hospital: um garoto de dez anos que fora hospitalizado devido a uma hérnia, e Edwina Burroughs, uma mulher de quarenta anos, cujo emprego e quatro gravidezes lhe haviam provocado veias varicosas agravadas, as quais se encontravam contorcidas e enodadas, quais raízes da árvore chamada baniano.

Wallace Huttner tinha mais de vinte e cinco doentes espalhados por três edifícios afastados uns dos outros. Quase todos eles se encontravam em fase de recuperação após operações de grande risco. Em todos os pisos, a chegada de Huttner provocava imediatamente um grande impacto. As brincadeiras nas salas das enfermeiras cessavam no mesmo instante. As vozes baixavam de timbre. A enfermeira de serviço materializava-se, sendo portadora de relatórios clínicos, preparada para acompanhar os dois médicos na ronda aos doentes. As respostas a algumas perguntas ocasionais formuladas por Huttner eram gaguejadas, monossilábicas ou tinham a forma de uma torrente excessiva de informações, articulada com nervosismo. ao longo das visitas aos doentes, Huttner mantinha uma atitude de cortesia, deslocando-se determinadamente da cabeceira de uma cama para a seguinte, sem manifestar o mínimo vestígio de cansaço, o que David sabia que ele necessariamente teria de sentir. Sem dúvida nenhuma que o homem era um espécime único, reconheceu ele perante si próprio. Um verdadeiro fenômeno. Decorrido pouco tempo, aquela ronda aos doentes começou a adquirir um ritmo fácil de acompanhar. Huttner permitia que a enfermeira responsável os conduzisse para a entrada de um quarto. Em seguida, agarrava na papeleta do doente que ela trouxera consigo, chegando-se à beira da cama. David, a enfermeira de serviço e, com freqüência, uma outra enfermeira responsável pela pessoa internada seguiam atrás dele. Logo depois, Huttner entregava a papeleta por abrir a David, apresentava-o ao doente, passando a sintetizar o histórico clínico inicial do caso em questão, abordando o tipo de cirurgia utilizado e os tratamentos subseqüentes, dando os pormenores numa linguagem médica que ninguém, para além de um médico ou de uma enfermeira, poderia ter compreendido por muito que se esforçasse.

Finalmente, o cirurgião procedia a um breve exame clínico enquanto David dava uma olhadela pelo histórico médico, servindo-se de um bloco de apontamentos para registrar os dados laboratoriais mais pertinentes, assim como a abordagem terapêutica generalizada que Huttner administrava ao doente em questão, e o curso de tratamento a seguir. De uma maneira geral, David tentava não ser intrusivo, falando somente quando lhe dirigiam a palavra, embora optasse por restringir as suas perguntas ao que parecia ser um mínimo razoável.

De tempos a tempos, lançava um breve olhar a Huttner. Tanto quanto lhe era dado perceber, o homem parecia estar satisfeito por os seus doentes ficarem entregues a um médico competente. A despeito disso, ao fim de pouco tempo David começou a sentir um certo mal estar. Não obstante todas as lendas, a assistência prestada pelos estagiários e as inquestionáveis capacidades cirúrgicas, talvez sem paralelo, Wallace Huttner era descuidado: as anotações relativas aos progressos clínicos eram breves, sendo bastante freqüente que carecessem de determinadas informações; existiam ainda alguns resultados laboratoriais, deveras anômalos, que não eram detectados por muitos dias, até que alguém reparasse neles e mandasse que fossem repetidos. Eram coisas de pouca monta.

Quase imperceptíveis. No entanto, era inquestionável que se verificava aquele tipo de procedimento. Não se tratava do gênero de descuido que poderia vir a afetar todos os casos; todavia, era inevitável que se viesse a manifestar em determinada altura - durante um internamento hospitalar prolongado ou numa segunda operação, podendo mesmo resultar numa morte.

"Ele deve estar a par disto", disse David para consigo próprio. "Ele sabe, mas até ao momento ainda não encontrou uma maneira de lidar com esses problemas." David concluiu que aquela situação não tinha nada a ver com falta de orgulho profissional, de interesse ou de eficiência: era por de mais evidente que Huttner possuía essas três qualidades. O que acontecia era que o homem se via forçado a correr a muita coisa ao mesmo tempo. O número de casos clínicos era excessivo, para não mencionar o acréscimo de demasiados comitês, grupos de trabalho e obrigações de caráter docente. Qual o número de tarefas de que um homem se poderia ocupar ao longo de um só dia? Mais cedo ou mais tarde, o indivíduo em questão ver-se-ia obrigado a estabelecer limites ou a fazer concessões, ou ainda... arranjar quem o ajudasse. Talvez Lauren tivesse razão, compreendeu David extremamente excitado. Era muito possível que Huttner se encontrasse à procura de um associado. Ou talvez, David riu-se de si próprio, Huttner o houvesse selecionado para cuidar dos seus doentes, acreditando que de todos os cirurgiões que existiam no hospital ele fosse, muito plausivelmente, aquele que menos repararia naquelas negligências médicas. Mas tudo aquilo não interessava por aí além. Os descuidos e as omissões eram de somenos importância. Ele examinaria todas as papeletas no dia seguinte, remediando todas aquelas pequenas falhas.

"Limita-te a manter-te de boca fechada", disse David a si mesmo. "Só falta cobrir alguns casos, após o que ficarás inteiramente por tua conta.”

Minutos depois, a decisão que David tomara de se manter calado foi desafiada. O doente era um homem já perto dos sessenta anos, cuja atividade profissional era a pesca, de nome Anton Merchado. Havia já várias semanas que ele tinha sido internado no hospital, devido a uma massa abdominal. Huttner havia drenado e extirpado um quisto alojado no pâncreas de Merchado, o qual se encontrava a recuperar muito bem, quando começou a manifestar sintomas de uma infeção respiratória das vias superiores. Tendo dado as suas instruções por contacto telefônico, Huttner medicamentara o homem com tetraciclina, um antibiótico que era muito utilizado.

O estado do doente deveria ter melhorado com aquela medicação, pensou David, uma vez que não havia mais qualquer menção à anomalia nos breves apontamentos de Huttner.

Contudo, a terapia com o antibiótico nunca chegara a ser anulada. Havia quase duas semanas que continuava a ser ministrada.

Ansioso por apressar a ronda aos doentes, Huttner apresentava a sua versão sumariada do histórico médico do homem, ao mesmo tempo que examinava o seu coração, os pulmões e o abdômen. David mantinha-se um pouco afastado ao lado do outro cirurgião, concentrando a sua atenção mais na papeleta do que naquilo que o colega mais velho lhe dizia.

No dia anterior àquele em que Merchado deveria de ter tido alta do hospital, fora acometido por uma diarréia grave. O diagnóstico inicial de Huttner indicara uma virose enterítica, mas, no decurso de alguns dias, o seu estado agravara-se para além daquilo que uma simples infecção viral poderia ter causado. Começaram a surgir os primeiros sinais sintomáticos de um caso de desidratação.

David passou dos apontamentos relativos ao desenvolvimento do estado de saúde do doente para as análises laboratoriais, voltando atrás. A preocupação crescente de Huttner manifestava-se todos os dias no número acrescido de instruções no sentido de serem efetuados mais exames de laboratório, em conjunto com práticas de diagnóstico, sem que nenhuma das medidas fosse conclusiva. Tinham-se intensificado os esforços que permitiam o acompanhamento do estado de saúde de Merchado, que entretanto se deteriorara acentuadamente, não deixando lugar a qualquer dúvida de que o homem se encontrava a piorar de dia para dia.

À medida que David continuava a ler os relatórios clínicos, na sua mente começou a germinar uma idéia. Examinou página a página os resultados laboratoriais, procurando as conclusões das análises às fezes que haviam sido feitas ao longo de vários dias consecutivos.

- Pois bem, qual é a sua opinião? - perguntou Huttner, dirigindo-se a David. - David?...

- Oh, peço desculpa - disse o interpelado erguendo o olhar. - Reparei que o homem ainda está a ser medicado com tetraciclina; eu só estava à procura de quaisquer sinais de que ele tivesse contraído estafilocolite, um efeito secundário do tratamento. Não é muito comum que isso aconteça, mas...

- Tetraciclina? - interrompeu Huttner. - Há já vários dias que eu telefonei a cancelar esse tratamento. Eles continuam a administrar-lhe o antibiótico?

Por detrás de Huttner, enquadrada no raio de visão de David, a enfermeira de serviço naquele piso acenou afirmativamente com todo o vigor.

- Bom, não interessa - prosseguiu Huttner com uma ligeira hesitação. David quase conseguia ouvi-lo a interrogar-se se teria ou não dado essa ordem, ou se tinha apenas pensado em fazê-lo. - As análises às culturas deram todas resultados negativos. Talvez seja melhor você anotar uma ordem para que cessem de lhe administrar tetra. Se achar que é preferível, mande fazer outra cultura.

David estava prestes a fazer o que o outro lhe dizia, quando a sua atenção foi despertada pelos resultados pormenorizados da análise a uma cultura. Indicados ao fundo da página impressa a computador. a qual enumerava todos os resultados verificados no doente até à data.

9/24 ANALISE AS FEZES UM DESENVOLVIMENTO MODERADO, S. AUREUS, SENSIBILIDADES A SEREM INDICADAS POSTERIORMENTE S. aureus, a forma mais virulenta da bactéria. David cerrou os olhos por breves instantes, na esperança de que quando voltasse a olhar para o relatório as palavras tivessem desaparecido misteriosamente. Levou vários segundos para chegar à decisão de não mencionar aquela descoberta, tencionando corrigir o problema numa fase posterior. Mas a sua hesitação foi demasiado prolongada.

- O que é que se passa, David? - perguntou Huttner. - Descobriu alguma coisa de anormal?

"Raios partam isto!", praguejou ele para si próprio. Através dos seus pensamentos desfilaram uma dúzia de respostas possíveis, sendo estas avaliadas para logo de imediato serem rejeitadas. Não havia nenhuma maneira fácil de contornar aquele assunto. Não tinha como sair daquela situação embaraçosa. Pelo canto do olho avistou duas enfermeiras, que se mantinham imobilizadas aos pés da cama. Dar-se-iam elas conta de que, dentro dos poucos momentos seguintes, o sucesso daquele fim de tarde e, possivelmente, a carreira de David poderiam desvanecer-se como fumo?

Para ele, toda aquela cena adquiriu contornos estranhamente semelhantes a um sonho. A sua mão a entregar com lentidão a Huttner a papeleta de Merchado, o dedo a apontar para a linha escrita com letra de imprensa tão ofensivamente impessoal... ações que haviam tido origem numa outra pessoa que não ele.

A expressão do olhar que David tivera a oportunidade de ver dirigido à enfermeira que ajudara Huttner no bloco operatório cintilou nos olhos do cirurgião. Prenderam-se nos seus por uma fração de segundos, após o que o seu olhar assentou nas enfermeiras. Com um gesto brusco, entregou o relatório clínico à enfermeira de serviço ao piso.

- Mistress Baird - disse ele numa voz rosnada. - Quero que averigúe qual foi a pessoa responsável por ter negligenciado chamar a minha atenção para este relatório. Quem quer que seja, enfermeira ou secretária, quero que se dirija ao meu gabinete na segunda-feira logo de manhã. Está a compreender bem o que eu acabei de lhe dizer?

A enfermeira, uma mulher robusta e já com muita experiência profissional, a quem já coubera a sua quota-parte de guerras hospitalares, olhou para a página em questão, encolheu os ombros e abanou a cabeça. David perguntava a si mesmo se Huttner teria a intenção de dar andamento àquilo que, de uma maneira tão evidente, não passava de uma tentativa para encontrar um bode expiatório.

- Continuemos, doutor Shelton - prosseguiu Huttner numa voz ríspida. - Está a ficar tarde e ainda nos restam vários doentes a examinar.

Eram quase vinte e duas horas quando ambos chegaram à Ala Quatro Sul, a fim de visitar o último dos doentes de Huttner. Era Charlotte Thomas. Durante todo aquele fim de tarde e início de noite, Huttner desviara-se da sua rotina previamente estabelecida.

- Venha sentar-se um pouco na sala das enfermeiras, David - disse ele, agarrando na papeleta que a enfermeira de serviço ao piso lhe entregou. - A próxima doente é de longe o caso mais complicado que tenho em mãos. Quero poder dispor de alguns minutos para rever consigo com algum pormenor o estado dela, antes de começar a examiná-la. Talvez haja alguém que possa trazer-nos uma chávena de café. - Aquela última observação era dirigida, de uma forma bastante clara, à chefe das enfermeiras, a qual conseguiu esboçar um vago sorriso de aquiescência, o que fez a custo. - Fraco e sem açúcar, e para o doutor Shelton!...

- Simples - respondeu David. Durante uns escassos segundos foi-lhe difícil ocultar um sentimento sombrio.

- Cá vamos nós, doutor - continuou Huttner, passando a papeleta para as mãos de David, sentado no outro lado da mesa. - Examine os dados clínicos enquanto esperamos pelo café.

Antes de ter lido uma única palavra, David já se tinha apercebido de que Charlotte Thomas se encontrava num estado muito grave. O seu histórico médico era deveras volumoso. Começou a recordar os seus dias de estagiário, pensando num nova-iorquino de estatura elevada e esgalgado, de nome Gerald Fox, o qual se encontrava um ano mais adiantado do que ele. Fox conseguira atingir a imortalidade, pelo menos no Hospital White Memorial, ao fotocopiar uma lista de máximas de definições cheias de cinismo, composta por três páginas, a que dera o título de "As Leis de Ouro da Medicina de Fox".

Entre os seus muitos axiomas encontrava-se a definição de Um Caso Complicado ("Quando a combinação dos diâmetros de todos os tubos inseridos no corpo de um doente excedem a medida do seu chapéu"), Ginecologista ("O disseminador das superstições de velhotas") e Uma Doença Fatal ("Uma papeleta de hospital com mais de dois centímetros e meio de espessura").

O café chegou no momento em que David começara a leitura do histórico referente ao internamento a par do exame clínico. 

- Ah, Miss Beall, muito agradecido. Você é um anjo misericordioso - dizia Huttner.

David soergueu o olhar que mantivera na papeleta. Não era a mesma enfermeira a quem Huttner tinha pedido que lhe trouxesse o café; aquela era bastante mais jovem ele nunca a tinha visto pelo hospital, ou pelo menos nunca reparara nela. Durante vários segundos, todo o seu mundo consistiu apenas em dois olhos enormes, de formato amendoado e ligeiramente sombreados. Sentiu o seu corpo percorrido por um ardor suave. Os olhos perderam-se nos seus e sorriram.

- Com que então está você de novo com a nossa senhora Charlotte, certo? - perguntou Huttner sem se dar conta do encontro silencioso que estava a ter lugar.

- Hem? Oh, sim. - Christine quebrou a ligação, voltando-se para Huttner. - Ela não está com muito bom aspecto. Eu ofereci-me para lhe trazer o café, porque queria falar consigo sobre...

- Mas que grosseiro que eu sou - interrompeu Huttner. - Esta é Miss Beall e este é o doutor David Shelton. Talvez vocês dois já se conheçam?

- Não - respondeu Christine numa voz frígida. Ela estava familiarizada com a falta de interesse que Huttner mostrava sempre para com os conhecimentos e sugestões das enfermeiras. Com o passar dos anos, desistira de tentar partilhar o que sabia com o médico. No entanto, o estado de Charlotte era suficientemente grave para a levar a fazer outra tentativa. Se ao menos o cirurgião concordasse em aliviar o tratamento agressivo que prescrevera. se cancelasse a ordem de ressuscitação, era muito possível que ela não viesse a interferir, ainda que o Comitê de Avaliação aprovasse a sua proposta.

Conseqüentemente, Christine fizera a sua tentativa e, tal como seria de prever, o homem havia posto fim às suas palavras, o que desta feita levou a cabo com uma amenidade inócua de caráter social. Apesar disso, Christine sentia-se firmemente determinada em dizer o que tinha a dizer. Era o tubo dele que se encontrava enfiado no nariz de Charlotte.

Fora dele que emanara a ordem de prolongar o sofrimento da doente, independentemente de quaisquer que fossem os fatos. Ele que brincasse aos títeres com os seus outros doentes, tanto quanto lhe apetecesse, mas nunca com Charlotte. Ele seria obrigado a ouvi-la ou... os fios que o prendiam a ela seriam cortados. Christine engoliu o nó de cólera que se formara na sua garganta.

Huttner não acusou a frieza que se adivinhava na voz da enfermeira..

- O doutor Shelton é quem vai ficar responsável por todos os meus doentes, incluindo Mistress Thomas, durante alguns dias - informou Huttner.

Christine acenou com a cabeça na direção de David, interrogando-se se ele teria autoridade para alterar o tratamento, excessivamente zeloso, que Huttner prescrevera para Charlotte; compreendeu de imediato que não existia a mínima hipótese de o chefe de cirurgia vir a permitir uma coisa dessas.

- Doutor Huttner - começou ela a dizer com determinação. - Gostaria muito de poder falar consigo, apenas por alguns minutos, sobre o estado da Charlotte.

- Não vejo qualquer problema nisso, Miss Beall - retorquiu o cirurgião olhando de soslaio para o seu relógio de pulso. - Porque é que não nos deixa acabar de rever os dados clínicos da Charlotte, para depois a examinarmos? Em seguida poderá abordar o caso aqui com o doutor Shelton. Ele saberá com exatidão o tratamento que pretendo seja administrado a esta mulher. - Huttner afastou o olhar antes que a primeira chispa, qual adaga, que os olhos de Christine pareciam expedir o tivesse atingido. David conteve o constrangimento que sentia, mas Christine já tinha girado sobre os calcanhares, abandonando o quarto sem mais delongas.

Huttner bebeu um gole de café, retomando a conversa sem sequer fazer um gesto ou dizer uma palavra na direção da enfermeira que acabara de sair.

- Mistress Thomas é uma enfermeira diplomada. Estou em crer que terá quase sessenta anos. - David lançou um olhar à data de nascimento registrada na papeleta. A doente tinha quase sessenta e um. - O seu marido, Peter, é professor de Economia na Universidade de Harvard. Ela foi-me enviada pelo seu médico assistente que suspeitou da existência de um cancro no reto. Há várias semanas submeti-a a uma ressecção Miles. O tumor era um adenocarcinoma que se estendia através das paredes intestinais.

“No entanto, todos os nódulos que extirpei apresentaram resultados negativos. Estou em crer que existe uma probabilidade excelente da limpeza que lhe fiz poder ter eliminado todo o mal”.

David ergueu o olhar da mancha de café que limpava absortamente com o polegar. O índice médico, que se cifrava em cinco anos de sobrevivência, após a remoção de um cancro do reto com uma extensão daquela magnitude, era inferior a vinte por cento. Uma probabilidade? Certamente que sim. Uma "probabilidade excelente"? Recostou-se para trás, perguntando a si próprio se valeria a pena pedir a Huttner que clarificasse as razões do seu otimismo. Chegou à conclusão de que não seria assisado questioná-lo fosse sobre o que fosse.

Confortavelmente envolvido no manto das suas próprias palavras, Huttner continuou com a sua apresentação do caso clínico.

- Tal como dá a impressão de ser sempre o caso, quando se trabalha com enfermeiras ou médicos, tudo o que possa vir a acontecer de forma adversa, durante o período pós operatório, veio a concretizar-se. Em primeiro lugar, surgiu um abcesso pélvico... Vi-me forçado a voltar a operar a fim de o drenar, ao que se seguiu uma pneumonia. Depois apareceu-lhe uma grave ulceração acima do osso sacro. Ontem começou a mostrar indícios de obstrução intestinal, o que me forçou a inserir-lhe um tubo. Esta medida parece estar a solucionar o problema, o que me leva a ter o pressentimento de que ela já conseguiu ultrapassar o pior.

Huttner entrelaçou as mãos em cima da mesa à sua frente indicando que a sua exposição do caso chegara ao fim. Entretanto, ao canto do seu olho direito tinha-lhe aparecido um tique quase imperceptível. David pensou que o homem deveria estar a sentir-se absolutamente esgotado. Com uma sensação de mal-estar e ansioso por fazer qualquer outra coisa, além de olhar para o outro, David voltou a concentrar a sua atenção na papeleta.

- E caso ela tenha necessidade de voltar a ser operada devido à obstrução intestinal? - perguntou ele, tendo começado logo a rezar para que tal não viesse a suceder.

- Nessa circunstância, você fará aquilo que achar melhor em sua opinião. Fica inteiramente responsável pelo bem-estar dos meus doentes - prosseguiu Huttner com alguma cerimônia.

David resolveu não levantar mais nenhuma questão. "O que quer que seja que pretendas saber, terás de o decifrar por ti próprio. Limita-te a ultrapassar esta noite." Apesar daquela decisão, já começara a afigurar-se-lhe um outro problema potencial.

Ainda tentou encontrar uma solução, embora houvesse chegado rapidamente à conclusão de que somente Huttner é que se encontrava em condições de lhe fornecer a resposta. A resolução a que chegara destendeu-se, após o que deu de si.

- E se ela sofrer uma paragem cardíaca? - perguntou David em voz baixa.

- Que raio de coisa, homem, ela não vai entrar em nenhuma paragem cardíaca! - respondeu Huttner com uma veemência impressionante. Mas, logo depois, apercebendo-se da irracionalidade da sua irritação, respirou fundo, exalou o ar com lentidão e acrescentou: - Pelo menos, tenho esperança de que isso não venha a acontecer. Se for o caso, quero que ela seja reanimada por todos os meios ao seu alcance, incluindo a intubação por via traqueal, assim como a ligação a um ventilador, se tal for necessário. Está a entender?

- Certamente - redargüiu David. Voltou a olhar para a papeleta.

Se existia alguma crítica a fazer a Wallace Huttner, a falta de tratamentos aplicados a Charlotte Thomas não seria uma delas, do que não restava a mínima dúvida. Já haviam sido gastos milhares de dólares em análises laboratoriais, cuidados hospitalares e exames radiológicos. Não obstante tudo isso, pelo menos no papel, a mulher parecia encontrar-se muito longe de "ter ultrapassado o pior".

- Proponho que examinemos a doente. - O timbre de voz de Huttner manifestava mais uma ordem do que uma sugestão.

David estava prestes a acatar o que o colega mais velho lhe dissera, quando reparou no relatório referente ao exame ao fígado de Charlotte. As palavras parecia quererem saltar para fora da folha de papel: "Anomalias múltiplas sob a forma de cavidades hepáticas consistentes com a existência de tumor." David sentiu-se invadido por um entorpecimento, enquanto olhava com fixidez para as palavras escritas à sua frente. Só muito raramente é que tinha ouvido dizer que um doente houvesse sobrevivido por muito tempo, desde que existisse disseminação de células cancerosas do reto até ao fígado. Sem dúvida nenhuma que, com aquele tipo de doença tão disseminada, não havia maneira nenhuma de se justificar a terapia tão agressiva que, sistematicamente, estava a ser administrada a Charlotte Thomas. Se, à semelhança do caso de Merchado, aquele relatório clínico pecasse por omissões, não se sabia bem como, o que quer que restasse de qualquer eventual bom relacionamento com Huttner que David ainda mantivesse corria sérios riscos de desaparecer com a mesma finalidade de uma explosão nuclear.

- O que é que se passa desta vez, doutor! - perguntou Huttner com animosidade.

- Oh... muito provavelmente nada de mais - respondeu David, desejando estar num outro lugar qualquer que não ali. - Eu... hum... Estava só a ler o relatório do exame hepático.

- Ah!!! - A exclamação de Huttner abreviou-lhe as palavras. - Anomalias múltiplas consistentes com a existência de um tumor, certo? - De súbito, o homem apresentava uma expressão mais feliz do que aquela que mostrara desde que se haviam encontrado. - Olhe para o nome do radiologista que nos elaborou esse relatório. O doutor G. Rybicki, a anedota polaca ao vivo de toda a medicina radiológica. Ele fez rigorosamente a mesma leitura num exame que fizemos antes da operação, o que me levou a examinar o fígado da doente com todos os cuidados quando ela esteve no bloco operatório. Cheguei mesmo ao ponto de mandar fazer uma biópsia. São apenas quistos, David. Quistos múltiplos de natureza congênita, completamente benignos.

“Até me dei ao trabalho de enviar ao Rybicki uma cópia do relatório patológico - continuou Huttner. - O mais provável é nunca ter sequer olhado para ele, o que se pode inferir a partir da repetição da má interpretação que fez com base na sua leitura inicial”.

Talvez seja preferível eliminarmos o relatório dele do histórico clínico da doente. - Machucou a folha de papel, formando uma bola que arremessou para dentro do caixote do lixo. - Agora, caso não tenha mais perguntas a fazer, proponho que examinemos a mulher.

- Não tenho mais questões, Meritíssimo. - Com aquelas palavras, David abanou a cabeça numa expressão de perplexidade e sorriu, sentindo-se agradecido por lhe ser permitido ver-se livre daquele aperto. Havia algo de indefinível no sorriso rasgado de Huttner que contribuía grandemente para dispersar as dúvidas que David começara a albergar a respeito do homem.

Ombro a ombro, ambos começaram a percorrer o corredor da Ala Quatro Sul, rumo ao quarto.

 

A única luminosidade que existia no quarto 412 era proveniente de uma luz de tratamento, com um formato curvo, dirigida para uma região mesmo acima das nádegas de Charlotte Thomas. Huttner abeirou-se desse lado da cama com David, que ia logo atrás de si, tendo afastado a luz para trás cerca de trinta centímetros. Contraiu-se, mas logo em seguida obrigou-se a relaxar um pouco a sua postura. Espantado e até certo ponto divertido, David conteve um sorriso ao ver a reação do homem; mas, então, baixou o olhar para o motivo daquela atitude. A escara que Huttner descrevera como sendo "grave" era muito pior do que isso. Estava perante uma chaga aberta com um pouco mais de quinze centímetros de largura. Os tecidos musculares das paredes da cavidade estavam inflamadíssimos, manchados de branco por uma cataplasma de secagem. Havia uma espécie de olho do tamanho de uma moeda no osso sacro, que fitava sem ver a partir do centro do ferimento.

Huttner fez o gênero de encolher de ombros que dizia: "Nada pior do que outras maleitas com que já nos tivemos de haver, não é verdade?”

David tentou fazer um comentário, mas só foi capaz de abanar a cabeça. Já perdera o conto às escaras e demais ferimentos que tivera ocasião de ver, com origem nos males mais inconcebíveis. Todavia, aquilo...

- É o doutor Huttner, Charlotte - anunciou o cirurgião enquanto desligava a lâmpada de tratamento e ligava a luz fluorescente, pouco intensa, no interior de uma cornija por cima da cabeceira da cama. Afastou o lençol dos pés até à cintura da doente e dirigiu-se para o outro lado da cama. David seguiu-lhe o exemplo, olhando para os sacos de soluções intravenosas, para as correias que a mantinham imobilizada de lado, para o cateter das vias urinárias que saía por debaixo do lençol, observando também os tubos de oxigênio e de sucção. Compreendia a necessidade daqueles meios de tratamento, aceitando a sua presença sem sequer lhes dedicar um segundo pensamento. Constituíam tanto as ferramentas da sua atividade profissional quanto o gigantesco disco que continha as luzes, assim como os instrumentos de aço inoxidável existentes na sala de operações.

Contudo, nos segundos iniciais, a coisa em que reparou mais em relação a Mrs. Thomas foi o vazio que se refletia no seu rosto - uma aura estática indicadora da inexistência de alma que se centrasse nos seus olhos, os quais o observavam através da luminosidade mortiça com uma abstração lacrimosa. Até mesmo o som da sua respiração, semelhante a um choro suave e rítmico, provocava uma sensação de vazio.

Charlotte Thomas tinha "aquele olhar", de acordo com a classificação que David dava àquela situação. Ela perdera todo o gosto pela vida, faltava-lhe aquele suplemento de energia essencial que permitia que se sobrevivesse a uma doença que ameaçava a vida. A centelha, que muito freqüentemente era a única diferença entre um milagre médico e as estatísticas da mortalidade, tinha-se dissipado por completo.

David perguntava a si próprio se Huttner se daria conta da mesma situação que ele observava, se sentiria o mesmo vazio. E então, como se em resposta à sua pergunta, o cirurgião de estatura elevada ajoelhou-se junto da cama, fazendo deslizar a sua mão por baixo da cabeça de Charlotte, posicionando-a para o lado, de molde a que ela pudesse olhar diretamente para o seu rosto. Durante quase um minuto ou dois permaneceram naquela posição, médico e doente, imobilizados num espaço de tempo silencioso. David mantinha-se a uma distância de mais de um metro, engolindo em seco numa tentativa para dissipar o peso que sentia alojar-se na sua garganta. A ternura que Huttner demonstrava era tão genuína quanto surpreendente: fora-lhe revelada uma outra faceta daquele homem, que mais parecia ser um estranho caleidoscópio.

- Não se pode dizer que esteja a sentir-se nos píncaros do mundo, não é verdade? - disse Huttner finalmente.

Com dificuldade, Charlotte obrigou os seus lábios a unirem-se - uma tentativa de sorriso que não foi coroada de êxito - e abanou a cabeça. Huttner alisou-lhe os cabelos, afastando-os da testa e acariciando-lhe a face.

- Ora bem, a sua temperatura hoje desceu quase ao normal, o que acontece pela primeira vez em algum tempo. Estou em crer que talvez estejamos a conseguir controlar essa infecção que tem no peito. - Continuou a conversar, misturando cuidadosamente as notícias encorajadoras com as perguntas que sabia de antemão seriam respondidas de forma negativa. - As dores que sente nas costas abrandaram? - A resposta foi um outro abanar de cabeça. - Bem, se as coisas melhorarem da forma que espero venha a suceder, estaremos em condições de poder retirar esse tubo do seu nariz dentro de um ou dois dias. Eu sei bem que lhe causa muito mal-estar. Vou aproveitar enquanto a tenho virada desta forma para lhe auscultar o peito, em seguida vou deitá-la de costas, para poder examinar-lhe a barriga; vamos a ver se continua a fazer barulhos. Examinou-a com rapidez, após o que verificou o nível dos fluidos nos sacos que continham as soluções intravenosas, observando também o cilindro do cateter do dreno antes de se ajoelhar de novo à beira da cama.

- Você vai conseguir safar-se, Charlotte. Tem de acreditar nisso - concluiu ele com um tom intenso cheio de suavidade.

Desta vez Charlotte conseguiu esboçar um sorriso de desanimo que acompanhou a sua resposta negativa.

- Por favor, seja um pouco paciente e não desanime, acredite em que será capaz de vencer a doença - implorou Huttner. - Eu percebo bem o sofrimento por que está a passar. Sob diversos aspectos, é tão horrível para mim como o é para si. Mas também sei que, pouco a pouco, está a chegar onde pretendemos. Quando mal dê por si, estará a pôr baton nos lábios, a arranjar-se para se encontrar com esses seus maravilhosos netos de quem tanto me falou. - O cirurgião fez uma pausa. No silêncio que se estabeleceu, David observou o rosto do homem. As suas sobrancelhas mantinham-se franzidas, enquanto o queixo estava tenso que nem a corda de um arco. Dava a impressão de tentar. através de uma enorme força de vontade, transplantar a energia e a esperança que se adivinhavam nas suas palavras. A mulher não mostrava qualquer tipo de reação. - Meu Deus. estava quase a esquecer-me - acrescentou Huttner por fim. - Charlotte. tenho uma surpresa para si. Eu sei até que ponto é que deve estar farta de ver a minha fronha sorridente todos os dias. Pois bem, vai ver-se livre da minha presença por uns tempos.

“Estou de partida para uma conferência a realizar em Cape que durará alguns dias. Este médico muito bem-parecido é quem vai substituir-me. Ele foi o chefe dos médicos estagiários do White Memorial há alguns anos. Eu nem sequer consegui ser aceite para fazer um estágio nesse hospital. Chama-se David Shelton. - Com um gesto, Huttner indicou a David que se aproximasse da cabeceira da cama”.

David tomou o lugar de Huttner, apoiando os braços sobre o lençol e colocando o queixo sobre estes, tendo ficado a cerca de quinze centímetros da face de Charlotte. Foram precisos vários segundos para que ela se concentrasse nele.

- Eu sou o David, Mistress Thomas. Como está? - perguntou ele dando-se conta de que ela já tinha respondido à sua saudação descabida por várias vezes. - Neste momento, necessita de alguma coisa em especial? Qualquer coisa que eu possa fazer por si? - Aguardou até ter a certeza de que não receberia resposta, após o que fez menção de se erguer. Subitamente, Charlotte Thomas estendeu uma mão contundida e com um aspecto esponjoso, agarrando na sua com uma força surpreendente.

- Doutor Shelton, por favor ouça o que tenho a dizer-lhe - pediu ela numa voz enrouquecida e entrecortada, num timbre que possuía uma força inesperada. - O doutor Huttner é uma pessoa maravilhosa e um médico magnífico. Ele deseja tanto poder ajudar-me. Tem de fazer com que ele compreenda. Não quero mais ajuda nenhuma. Tudo o que mais desejo é que tirem estes tubos do meu corpo e que me mantenham confortável até que eu adormeça. Tem de fazer com que ele compreenda isto. Por favor. Para mim, tudo isto é uma tortura. Um pesadelo. Faça com que ele entenda a minha situação.

Os seus olhos cintilaram por breves instantes, para logo se cerrarem. Respirou fundo várias vezes, voltando a recostar a cabeça na almofada. A sua respiração recomeçou a fazer-se com mais lentidão. A David pareceu que poderia parar de todo, mas, decorrido um minuto, a doente começou a respirar num ritmo pouco regular, de uma forma estertorosa que se manteve inalterável.

- Vai ficar bem, Mistress Thomas - foi tudo o que David foi capaz de articular numa voz sussurrada, enquanto Huttner o agarrava por um braço e o conduzia para fora do quarto.

Já no corredor, os dois homens olharam-se frente a frente. Huttner foi o primeiro a quebrar o silêncio.

- Isto é que foi uma noite que ambos tivemos, não acha? - comentou ele com um sorriso de compreensão.

- Sim... - respondeu David. Bateu com um pé no chão. Apetecera-lhe ter dito algo mais, não fora um resquício do receio que tinha de se poder ir abaixo em frente do homem de um momento para o outro.

Huttner examinou atentamente o seu rosto antes de retomar a palavra.

- David, nunca se esqueça de que, por vezes, os doentes que sofrem de doenças graves expressam o desejo de morrer, quando se encontram num estado de sofrimento debilitante. Há já muito tempo que pratico medicina. Já tive oportunidade de ver muitos enfermos tão doentes como a Charlotte Thomas, ou ainda mais, que conseguem recuperar a sua saúde. Esta mulher vai conseguir vencer a doença. É imperativo que ela receba um tratamento completo e agressivo e, caso seja necessário, todo e qualquer meio de reanimação ao nosso dispor. Está a compreender?

- Sim, senhor... quero dizer, sim, Wally - retorquiu David de uma maneira mecânica, uma vez que procurava na sua recordação a última vez em que tinha visto um doente de sessenta e um anos que houvesse recuperado de uma doença tão grave, em que tantas funções do sistema eram afetadas, como aquela que tanto atormentava Charlotte Thomas.

- Bom, isto quer dizer que estamos de acordo - continuou Huttner, radiante de prazer por ter feito prevalecer com sucesso o seu ponto de vista. - Vamos tratar de tomar nota de algumas instruções de terapia para esta mulher, após o que poderemos dar o dia por encerrado.

Quando ambos se dirigiam para a sala das enfermeiras, David apostou consigo próprio uma viola e seis meses de lições de iniciação em como o último momento crítico daquele fim de dia frenético havia ficado para trás.

Instantes depois, saiu da sala de visitas, situada ao fundo do corredor, um homem corpulento, que usava uma camisola de gola alta e um casaco desportivo de tweed, o qual começou a encaminhar-se em direção aos dois. Ainda se encontrava a uma distância de cerca de nove metros, e já adquirira a certeza de que tinha perdido outra aposta. A cólera que a sua maneira de caminhar, de queixo firmemente estendido para a frente, não ocultava, espelhava-se no seu rosto avermelhado, bem como nos lábios lívidos que formavam uma linha. Os seus punhos mantinham-se posicionados na extremidade dos braços rígidos, vários centímetros afastados do corpo.

David olhou de relance para Huttner, que mostrou vagos indícios de ter reconhecido o indivíduo, sem deixar ver qualquer outra emoção.

- É o professor Thomas? - perguntou David num murmúrio.

Huttner respondeu afirmativamente com um breve acenar de cabeça, continuando a andar em frente. David abrandou o passo e ficou a observar os dois homens que se iam aproximando um do outro, como se fossem dois adversários numa peleja medieval. A grande arena do confronto entre os dois era o balcão das enfermeiras, onde várias destas profissionais, uma auxiliar e a secretária da enfermaria, permaneciam em silêncio, quais espectadoras fascinadas.

- Doutor Huttner, o que raio é que se passa aqui? - perguntou Thomas numa voz desabrida. - Disse-me que não haveria mais tubos, mas quando cheguei aqui deparou-se-me um tubo de borracha vermelha a sair do nariz da minha mulher, e que está ligado a uma maldita máquina.

- Ora vamos lá a ver, professor Thomas, acalme-se só por um minuto - retorquiu Huttner sem perder a calma. - Eu tentei telefonar-lhe ontem à noite, a fim de o manter ao corrente do que estava a acontecer, mas ninguém atendeu. Passemos à sala de visitas e terei todo o gosto em conversar consigo sobre este assunto.

Thomas não deu sinais de abrandar a beligerância da sua atitude.

- Não, vamos aclarar toda esta questão aqui mesmo, tendo estas pessoas como testemunhas. - Fez um gesto na direção das pessoas presentes. - Eu trouxe a Charlotte à sua consulta porque o nosso médico assistente nos disse que você era o melhor. No que me diz respeito, ser o melhor significa que o seja somente no bloco operatório, mas também que seria o melhor para tratar da minha mulher, na sua qualidade de ser humano e não apenas como se ela fosse uma peça de... carniça sem quaisquer sentimentos.

A veemência e a dor que emanavam da voz de Peter Thomas era deveras surpreendente.

Junto do balcão das enfermeiras, Christine Beall voltou-se cautelosamente para Janet Poulos, a enfermeira-chefe do turno da noite. Poulos retribuiu-lhe o olhar com uma expressão imperturbável, respondendo-lhe com um acenar de cabeça quase imperceptível. Era uma mulher que tinha uma figura esbelta, aparentando ser uns dez anos mais velha do que Christine. Os seus cabelos negros mantinham-se apanhados num carrapito apertado, penteado que acentuava as suas feições alongadas e os olhos escuros, onde se refletia uma expressão felina. Tinha uma cicatriz estreita paralela ao nariz, que imprimia, até mesmo ao seu sorriso mais caloroso, um ligeiro desdém, o que, inquestionavelmente, contribuía para a reputação de que gozava entre o pessoal de enfermagem, sendo ela considerada uma pessoa sem o mínimo sentido de humor e que não fazia a mais pequena concessão.

Por seu lado, Christine via-a a uma luz completamente diversa, uma vez que fora Janet quem supervisionara o seu período de iniciação na Irmandade da Vida. O secretismo do movimento atingia tais proporções que Janet continuava a ser o único membro da Irmandade que ela conhecia pelo nome e pessoalmente. Aquele acenar de cabeça indicava que Poulos também avaliava o drama que se desenrolava à frente de ambas.

- Muito bem, professor - continuou Huttner num timbre de voz que não escondia uma ligeira irritação. - Se é isso que deseja, pois então discutamos o assunto aqui mesmo. Tem mais alguma coisa a acrescentar ou prefere saber exatamente o que é que está a acontecer com a Charlotte?

- Pode continuar - retorquiu Thomas, abrindo os punhos cerrados e encostando um cotovelo à superfície lateral do balcão alto, mesmo em frente de uma secretária de enfermaria absolutamente embasbacada.

Mostrando a atitude de paciência condescendente de quem sabia de antemão que, mais cedo ou mais tarde, levaria a sua avante, Huttner passou em revista, de uma forma sistemática as circunstâncias que o haviam decidido a inserir em Charlotte Thomas um tubo para drenagem intestinal.

- É muito possível que para si esta necessidade não seja evidente - acrescentou ele numa voz mais suave - , mas estou em crer que os nossos tratamentos estão a começar a fazer efeito. Neste momento, a Charlotte poderá estar prestes a atingir um ponto de viragem positivo a qualquer altura.

Peter Thomas baixou o olhar e retrocedeu meio passo. Naquele momento, David ficou com a sensação de que Huttner conseguira, de fato, conquistar o homem. E então, como se em imagens ao retardador, Thomas ergueu a cabeça abanando-a para a frente e para trás enquanto falava.

- Doutor Huttner, eu estou convencido de que a minha mulher se encontra às portas da morte. Acredito nesta realidade e estou preparado até mesmo para a aceitar. Também estou em crer que, por causa daquilo que classifica como tratamento, ela se encontra a morrer milímetro a milímetro, sem o benefício de uma só réstia de dignidade. Quero que os tubos sejam todos retirados.

Por detrás do balcão, houve uma enfermeira que segredou qualquer coisa à outra próxima de si. Com um olhar que poderia ter congelado um vulcão, Huttner silenciou a mulher.

Mostrando uma alteração instantânea na expressão do seu rosto, que quase se poderia chamar teatral, ele voltou a concentrar a sua atenção em Peter Thomas, exibindo um sorriso.

- Professor, agradeço-lhe que fique ciente de que eu compreendo o que sente, de verdade que sim - afirmou o cirurgião. - Mas o certo é que tem de entender a minha posição e as minhas responsabilidades em relação a este assunto. Ambos abordamos esta questão quando trouxe a Charlotte à minha consulta pela primeira vez, tendo o senhor concordado que eu faria tudo o que achasse ser o melhor para ela. Sugeri que se obtivesse uma segunda opinião médica, mas nessa altura achou que não havia necessidade de consultar mais nenhum médico. Agora, aqui está o senhor a pôr em dúvida o meu tratamento. Vou dizer-lhe o que é que se pode fazer: aqui, mesmo ao meu lado, temos uma segunda opinião mesmo à mão de semear. - Com aquelas palavras, Huttner fez um gesto na direção de David. - Este é o doutor Shelton. É um excelente cirurgião, embora jovem, tendo ocupado a posição de chefe dos médicos estagiários de cirurgia no Hospital White Memorial. Acabamos de observar a Charlotte com todo o pormenor, dado que o doutor Shelton será o responsável pelos meus doentes durante os dias mais próximos. David, este é Peter Thomas. Agradeço-lhe que partilhe com ele a sua opinião em relação ao estado da Charlotte.

David estendeu a mão que Thomas apertou denotando alguma insegurança. Durante os poucos segundos em que os dois homens se avaliaram mutuamente, Thomas deu a impressão perceptível de que começara a acalmar-se.

- Pois bem, doutor Shelton - disse ele por fim -, o que é que pensa quanto às probabilidades de recuperação da minha mulher?

David baixou o olhar por alguns instantes e fechou os olhos. Algures, num canto muito recôndito da sua mente, havia uma voz que lhe dizia insistentemente que, se ele fosse capaz de empatar aquela situação durante alguns minutos, o seu rádio-despertador começaria a tocar acordando-o do seu sonho. Com um esforço tremendo soergueu o olhar até prendê-lo de novo no de Thomas.

- Mister Thomas, acabei agora mesmo de rever o histórico clínico da sua mulher, tendo-a observado pela primeira vez - começou ele a dizer com uma lentidão deliberada. - Neste ponto da situação, é-me absolutamente impossível avaliar todo o seu estado de saúde de uma maneira conscienciosa.

Thomas ainda abriu a boca para contestar aquilo que segundo a sua opinião fora uma resposta inadequada, mas David impediu-o de prosseguir, erguendo uma mão.

- No entanto - continuou este último - , posso adiantar-lhe que considero a sua mulher como estando gravemente enferma, cuja única hipótese de conseguir ultrapassar esta doença tão crítica se encontra, não só no fato de receber os melhores tratamentos clínicos possíveis, quer da parte do médico quer do pessoal de enfermagem... os quais, diga-se de passagem, lhe estão a ser ministrados, mas também no fato de ela ter força de vontade para conseguir sobreviver. E esta é a parte que ainda não estou em condições de avaliar. Esta força não provém somente do seu íntimo, mas também de si própria e do doutor Huttner, assim como dos outros que lhe dispensam cuidados e se preocupam com o seu bem-estar.

“Eu compreendo que o senhor gostaria de ouvir uma avaliação mais clínica quanto às perspectivas de vida mas, dadas as circunstâncias, não me encontro em posição de poder satisfazer-lhe esse desejo”.

Pelo canto do olho, verificou que a expressão radiante de Huttner refletia toda a sua aprovação. "Deus seja louvado! Consegui safar-me desta!", foi tudo em que David conseguiu pensar. Mas então, antes mesmo que Thomas tivesse oportunidade de replicar, ele sentiu uma centelha de cólera contra si próprio. Nem sequer indicara o mais pequeno resquício dos seus verdadeiros sentimentos, que eram sombrios, em relação às hipóteses de recuperação de Charlotte.

Enquanto Thomas falava, aquela centelha começou a ficar de um branco incandescente.

- Na realidade, você não está a ver a questão, pois não? - perguntou Thomas, olhando à sua volta e mostrando uma expressão selvática. - Nenhum de vocês é capaz de compreender. Há mais de trinta anos que a Charlotte e eu somos casados. Trinta anos cheios de felicidade. Não lhe parece que me assista algum direito de me opor à espécie de torturas por que ela tem obrigatoriamente de passar, com a finalidade de prolongar a agonia daquilo que, até há bem pouco tempo, foi uma vida extremamente enriquecedora e preenchida?

Desta vez, David não afastou o olhar. Durante vários segundos, abateu-se sobre os presentes um silêncio extremamente penoso. Ao fim de algum tempo, começou a falar. Na sua voz sentia-se a angústia por que passava, a par do poder da sua convicção.

- Que diabo! Eu também penso dessa maneira. Exatamente como você, Mister Thomas. Sinto isso de uma forma bastante forte.

Uma vez mais, o silêncio era agonizante. David sentiu os olhos de Huttner presos em si, tendo a sensação de que o mundo lhe fugia debaixo dos pés. O seu tom de voz suavizou-se.

- Mas tem de compreender - continuou ele. - Eu não sou o médico principal da sua mulher, isso cabe ao doutor Huttner. Devo acrescentar que ele tem mais experiência do que eu próprio em todos os aspectos da medicina e da cirurgia. É a ele que cabe a última palavra em tudo o que diga respeito ao tipo de tratamento que a sua mulher deverá ou não receber. Tenho a intenção de dar continuidade aos seus métodos terapêuticos, em tudo o que encontrar ao meu alcance.

- Eu compreendo até bem de mais - respondeu Thomas lançando um olhar enfurecido a Huttner. - Compreendo inteiramente. - Girando sobre os calcanhares com tanta rapidez que esteve quase a perder o equilíbrio, dirigiu-se num passo desabrido para o quarto da mulher. A explosão de temperamento a que o homem dera largas foi a última gota de água para Huttner. Tinha sido um dia muito longo e esgotante. Deu alguns passos à retaguarda, posicionando-se de forma a abarcar David e todas as enfermeiras presentes no seu olhar.

- Tenciono dizer isto apenas uma vez, não fazendo a mínima intenção de voltar a repetir. - A sua voz era a expressão de uma secura levada ao extremo. - Quero que a Charlotte Thomas receba um tratamento tão agressivo quanto seja necessário, com vista a salvar-lhe a vida. Será que me fiz entender com toda a clareza? Ótimo. Agora, todos vocês deverão retomar as vossas tarefas. Doutor Shelton, talvez seja preferível que vá para casa um pouco. Restabelecer a ordem na minha prática de medicina poderá vir a provar ser uma experiência exaustiva, que recairá em cima de si.

Com aquela tirada, começou a percorrer o corredor num passo decidido, indo no encalço de Peter Thomas até ao quarto 412.

David ficou sozinho no meio do corredor. O grupo de enfermeiras que se encontravam por detrás do balcão, a uma distância de mais ou menos quatro metros, mantinha-se imobilizado e em silêncio. Ele olhou em seu redor com o acanhamento característico de um empregado de limpeza que tivesse sido apanhado a varrer um palco depois de a cortina subir inesperadamente, numa sala apinhada de espectadores. Durante alguns instantes, sentiu o impulso de desatar a correr. Mas então, pelo canto do olho avistou Christine Beall que saía de detrás do balcão, encaminhando-se na sua direção. Aquele não poderia ser considerado o momento triunfante que ele teria escolhido para um segundo encontro com a mulher.

À medida que ela se aproximava, afastou o olhar examinando a marca de um calcanhar deixada pelo seu sapato. Sentia os olhos dela que o examinavam de alto a baixo. Quando a tinha visto pela primeira vez, sentira-se cativado pela sua expressão suave, embora determinada. Agora, perante aqueles olhos de um castanho-dourado sentia um vago mal-estar. Momentos antes de ela começar a falar, cheirou o seu perfume, uma ligeira sugestão a Primavera.

- Doutor Shelton, todas nós estamos muito orgulhosas pela maneira como fez prevalecer aquilo em que acredita - disse ela numa voz suave. - Não se preocupe. As coisas têm sempre uma forma de se solucionarem por si próprias.

As palavras que ela proferira. A entoação que lhes imprimira. Aquela atitude não foi em nada o que David tinha esperado de Christine. Repetiu-as em pensamento, embora não lhe parecesse que fosse capaz de apreender o significado que elas continham.

- Obrigado... muito obrigado - retorquiu ele com alguma dificuldade, preparando-se para aqueles olhos antes de erguer a cabeça. Quando finalmente o fez, Christine já tinha desaparecido. A atividade por detrás do balcão das enfermeiras fora retomada, regressando ao normal, embora ela não se encontrasse presente.

David decidiu pôr por escrito novas instruções relativas ao tratamento de Anton Merchado, antes de tentar esquecer aquele fim de dia que tão desagradável fora. Na

manhã seguinte já estaria por sua conta. Enquanto se afastava num passo lento, ocorreram-lhe à mente alguns pensamentos relativos ao dia seguinte, os quais se focavam na recuperação do controlo da sua vida, servindo para suavizar os acontecimentos desagradáveis que haviam ocorrido ao longo das últimas cinco horas.

 

Oculta na ombreira de uma porta, Christine observava David que abandonava a Ala Quatro Sul. Aguardou até ter a certeza de que ele não regressaria, antes de começar a percorrer o corredor iluminado por uma luz fraca. O seu turno de trabalho estava prestes a terminar. Na sala das enfermeiras, tal com o acontecia em outras semelhantes em todos os pisos do hospital, o pessoal do turno da noite compilava os seus apontamentos, preparando a transição para o turno das vinte e três até às sete da manhã, aquele que era chamado o turno do cemitério.

Dentro de menos de uma hora, haveria duzentas e sessenta e três enfermeiras que sairiam do hospital, dirigindo-se para restaurantes, bares ou para as suas casas, onde os seus companheiros, muito freqüentemente, estariam demasiado cansados para poderem satisfazer as suas obrigações de amantes. Seriam substituídas por outras cento e cinqüenta e quatro enfermeiras, que se esforçariam por manter um equilíbrio biológico, inserido numa ocupação que exigia a tomada de decisões de vida ou de morte, ao longo das horas em que a maior parte do mundo se encontrava adormecido.

Durante alguns instantes, Christine deixou-se ficar no corredor deserto, escutando o silêncio clamoroso da noite que reinava no hospital. Os suspiros intercalados pela tosse.

Os gemidos e as respirações estertorosas que se faziam a custo. O ruído do fluxo de oxigênio através de meia dúzia de cilindros de segurança. O obediente sinal sonoro que vinha de um monitor, formando um dueto com o som sibilado de um ventilador irracional. E, nos quartos escurecidos, os doentes internados na Ala Quatro Sul eram trinta e seis, a braços com a sua própria luta, uma luta que não tinha como objetivo a riqueza, o poder ou até a felicidade, mas muito simplesmente o regresso ao mundo fora daquelas paredes. O retorno às suas vidas.

Mais do que em qualquer outra altura do dia. era durante a noite que Christine sentia a extraordinária responsabilidade da sua profissão. À semelhança de qualquer outra atividade, a enfermagem também tinha a sua rotina. Contudo, para lá da labuta enfadonha e das queixas, para além do trabalho fatigante e da atitude depreciativa por parte de muitos dos médicos, existiam, acima de tudo o mais, os doentes. Por vezes tinha-se a impressão de que havia uma conspiração silenciosa entre os médicos, os funcionários administrativos e as organizações do pessoal de enfermagem, cujo único objetivo era expungir das enfermeiras qualquer noção de que a sua responsabilidade primordial era cuidar desses mesmos doentes. Neste grupo de pessoas encontravam-se incluídas as próprias enfermeiras, estando muitas delas totalmente desprovidas do sentido de generosidade e de interesse, fatores que em primeiro lugar as haviam levado a enveredar por aquela profissão.

Christine observou o corredor na direção da porta do quarto número 412. Em silêncio, renovou o juramento de nunca vir a ceder perante o negativismo e a confusão. Jamais deixaria de se preocupar com os que sofriam. Se o compromisso que assumira perante A Irmandade da Vida era a única maneira de honrar essa promessa, pois que assim fosse.

De uma maneira qualquer, sabia que desde que fizesse parte da Irmandade, se encontraria a salvo das frustrações, e do sofrimento emocional, que haviam afastado

tantas enfermeiras da enfermagem praticada em hospitais.

No que dizia respeito a Christine, o seu compromisso tivera início num domingo. Fora do Hospital Médicos de Boston, o dia fora açoitado por um vendaval de Inverno. No interior da sala das enfermeiras, na Ala Quatro Sul, tinha germinado uma outra espécie de borrasca. A maior parte da fúria que então grassara havia emanado de Christine, tendo sido toda canalizada contra um médico de nome Corkins, o qual acabara de ordenar a realização de uma traqueotomia numa mulher de oitenta anos que fora vitima de uma trombose fulminante que a deixara paralisada, parcialmente cega e incapaz de falar.

Christine tinha passado horas a fio a tratar dessa doente. Apesar de a mulher de idade se encontrar incapaz de falar ou de se mexer, ela conseguia comunicar através dos seus olhos. Para Christine, a mensagem era suficientemente clara: "Por favor, permitam que eu adormeça para sempre. Permitam que esta vida de inferno chegue ao fim." Agora, devido àquela operação, o inferno continuaria indefinidamente.

Durante quase uma hora, Christine mantivera-se sentada na sala das enfermeiras, partilhando as suas lágrimas e a cólera que sentia com Janet Poulos. Com todas as cautelas e gradualmente, Janet introduzira-a no conhecimento da existência d'A Irmandade da Vida.

Ao longo dos dois dias que se seguiram à traqueotomia a que a mulher de idade foi

submetida, Christine passara inúmeras horas a discutir com Janet a situação deplorável em que a doente se encontrava, enquanto em simultâneo ia adquirindo cada vez mais informações sobre A Irmandade. Durante toda a sua carreira de enfermagem, conseguira sempre achar alguma alegria, até mesmo nos aspectos mais desagradáveis dos cuidados diários a prestar aos doentes. No entanto, em cada minuto que passava a ajudar a prolongar a agonia daquela senhora idosa, a frustração que Christine sentira ia aumentando de intensidade. O ter de desligar o ventilador hora a hora, a fim de permitir a sucção do tubo. O virar do corpo com muita freqüência. A substituição dos cateteres das vias urinárias. As injeções intramusculares que eram administradas em profundidade. O fato de ter de tentar freneticamente manter-se atenta às escaras sucessivas que parecia não terem fim. E sempre aqueles olhos que não paravam de a fitar, olhando através dela, cuja mensagem era ainda mais desesperada do que anteriormente.

Por fim, o compromisso foi feito. Christine seguiu as instruções que Janet Poulos lhe dera, tendo participado o caso da senhora de idade ao Comitê Regional de Avaliação. Um dia mais tarde, deram-lhe a conhecer a sua aprovação, juntamente com as devidas instruções.

Quase no fim do seu turno de trabalho, ela entrara furtivamente no quarto da mulher idosa. O som ensurdecido do ventilador aliava-se, numa atmosfera fantasmagórica, com a ventania ululante do Inverno que se fazia ouvir no exterior. Na escuridão, sentia os olhos da doente que a observavam. Inclinou-se sobre a cama, premindo as lágrimas que lhe deslizavam pela face contra a fronte da mulher. Decorridos alguns momentos, apercebeu-se de que ela acenava com a cabeça, uma vez e depois outra. Ela sabia! Fosse de que maneira fosse, ela compreendera. Com suavidade, Christine beijou-a na testa.

- Gosto muito de si - segredou ela junto do ouvido da doente.

Ergueu uma mão e desligou o ventilador; depois, aguardou no meio da escuridão durante cinco minutos, antes de voltar a ligá-lo.

Decorridas quatro horas do turno seguinte, houve uma enfermeira que informou não ser capaz de sentir a pulsação, nem tão pouco conseguira obter uma leitura de pressão arterial da doente. Chamaram um médico estagiário, que depois de ter observado um traço a direito num eletrocardiograma, declarou que a doente tinha falecido. Mais tarde, ainda nessa mesma manhã, os dois filhos da mulher, extremamente aliviados por verem que o sofrimento da mãe havia chegado ao fim, trataram de levar o corpo para as instalações de uma agência funerária local. Por volta das onze da manhã, aquela cama já estava ocupada por uma jovem mulher divorciada, a qual optara por se submeter a um aumento dos seios. Tal como as águas de um charco, momentaneamente perturbadas por um seixo, o ambiente no hospital havia sido o mesmo de sempre, tendo desaparecido da sua superfície os últimos vestígios de ondulação das águas.

- Christine?

A interpelada voltou-se na direção da voz. Era Janet Poulos.

- Estás a sentir-te bem?

Christine acenou afirmativamente.

- Parecia estares a posar para a capa da Nurse Beautiful.

- Seria mais apropriado o termo Nurse Troubled?.

- Estás a referir-te à cena do Huttner com o professor? - perguntou Janet.

- Hum... hum.

- Apetece-te falar sobre o assunto?

- Não - respondeu Christine. - Quer dizer, talvez um pouco. O que pretendo dizer é que tu és a única que...

Erguendo uma mão, Janet silenciou-a.

- Não está ninguém na sala das visitas - continuou ela, acenando com a cabeça na direção da sala das enfermeiras. - A julgar pelo que se passa ali, dispões de dez minutos antes de fazeres o relatório do teu turno. Esta noite, a atmosfera por aqui tem sido um tanto ou quanto de loucura, não te parece? Ouvi dizer que surgiram alguns problemas depois de Mister Chapman ter sido encontrado morto - acrescentou Janet.

Enquanto ambas se dirigiam para a sala das visitas, Christine descreveu a reação da viúva destroçada pelo desgosto da morte de John Chapman.

- Porque é que te parece que ela decidiu arremessar com as flores pelo quarto? - perguntou Janet, abanando a cabeça numa atitude de quem não queria acreditar no que ouvia.

- Ela não se limitou a arremessar só com a jarra das flores. Também deu largas à sua fúria com outros objetos. - Christine sentou-se num sofá e Janet optou pela cadeira à frente da colega.

- Isso quer dizer que ela destruiu tudo? - perguntou esta.

- Quase. Ainda conseguimos salvar duas jarras.

- Oh?! - Janet agitou-se na sua cadeira.

- Sim, e uma das coisas a que ela lançou mão pareceu-me um pouco estranha.

- O que é que queres dizer com isso? - A pergunta foi feita num tom neutro, apesar e a postura e a expressão de Janet sugerirem mais do que um interesse passageiro.

Christine olhou para o seu relógio de pulso, mostrando-se impaciente. Tinha apenas cinco minutos até ter de fazer o seu relatório.

- Na verdade não se tratou de nada de mais. Só que as flores na última jarra eram lírios, e o cartão que as acompanhava dizia algo semelhante a "Com os melhores votos, Lily", mais nada.

- Oh! - exclamou Janet com uma neutralidade que não se espelhava no seu olhar. Coçou distraidamente a cicatriz que tinha junto do nariz, após o que bruscamente mudou de assunto.

- Estás a pensar em submeter o caso da mulher do Thomas à aprovação do Comitê de Avaliação?

- Já tomei essa medida - disse pouco segura. - ainda não sei se ela foi aprovada ou não. Bem vês, a Charlotte e eu começamos a desenvolver uma grande amizade, que é mútua...

- Ora bem, permite-me que te cumprimente pela tua iniciativa - interrompeu Janet.

- O quê? - perguntou Christine sem compreender.

- Só espero que o caso dela venha a ser aprovado.

- Janet, tu não conheces a pessoa em questão... nem tão pouco a situação. Como é que poderás dizer...

- É possível que eu não a conheça, mas em contrapartida conheço bem o doutor Huttner. De todos os sacanas pomposos e presumidos que estão convencidos que têm sempre razão, e que se escudam sistematicamente por detrás do raio do título de doutor, o Huttner é o pior deles todos.

Aquele desabafo tão veemente de Janet foi absolutamente inesperado. Durante breves instantes, Christine ficou sem fala. Sem dúvida alguma que teria sido o zelo em excesso, e por vezes a agressividade dos médicos, tudo com base no seu egocentrismo, os fatores que haviam dado origem ao surgimento da Irmandade; todavia, no que respeitava a Christine, aquilo sempre fora um conflito de filosofias e nunca de personalidades.

- O que... o que é que a presunção do Huttner tem a ver com o caso da Charlotte? - inquiriu ela, sentindo-se confusa e estranhamente apreensiva.

Janet acalmou-a com um sorriso rasgado.

- Com a breca, calma aí - disse ela, dando uma palmada amigável no joelho da colega. - Eu estou do teu lado. Ou já te esqueceste? - Christine aquiesceu com um acenar de cabeça, embora a incerteza não a houvesse abandonado. - Eu acredito firmemente na Irmandade e em tudo aquilo que fazemos, tal como acontece contigo. Por que outra razão é que eu te teria recrutado? Tudo o que eu tentei dizer-te foi que nos casos como o dessa Mistress Thomas o nosso benefício é... a dobrar. Respeitamos os desejos da mulher, assim como os do marido, ao restabelecermos um pouco de dignidade na sua vida, ao mesmo tempo que temos a oportunidade de chamar a atenção de uma pessoa como o Huttner para o fato de ele não ser Deus. É verdade, não é?

Christine avaliou aquele conceito. Descontraindo-se e retribuindo o sorriso da outra.

- Sim... calculo que seja isso mesmo. - Ergueu-se preparada para abandonar a sala de visitas.

- Se precisares de qualquer apoio - acrescentou Janet - , podes contar com o meu. Estou convencida de que tomaste a medida adequada ao apresentares o caso dessa mulher; agora só depende do Comitê de Avaliação cumprir a parte que lhe cabe.

Christine acenou com a cabeça, dando a entender a sua concordância.

- Sabes, Christine - continuou ela quando a colega já se encontrava perto da porta, fazendo uma pausa para poder examinar a expressão da mulher mais jovem - , não existe nada de impróprio quando se beneficia de qualquer coisa em que acreditamos. O bem que possa advir de qualquer tarefa não fica diminuído pelo fato de que talvez possamos, de uma forma qualquer, tirar algum proveito das nossas ações. Estás a compreender?

- Eu... estou em crer que sim - mentiu Christine. - Obrigada por teres conversado comigo. Quando souber, informar-te-ei daquilo que o comitê decidir.

- Por favor não te esqueças de me manter ao corrente. E, Chris, quero assegurar-te e que estarei aqui, caso precises de mim.

Continuando a sentir um certo mal-estar, Christine apressou o passo em direção à sala das enfermeiras. Deteve-se do lado de fora da porta, tentando recompor-se. A explosão de Janet em relação ao assunto de Wallace Huttner deixara-a perplexa, embora aquilo não fosse tão perturbador como inicialmente lhe parecera ser. Havia vários anos que Janet fazia parte da Irmandade; com certeza absoluta que já lhe havia passado pelas mãos um determinado número de casos. O propor levar a cabo uma morte, até mesmo uma morte por eutanásia, era um assunto que se revestia de uma enorme tensão emocional e que afetaria as entranhas de qualquer pessoa. Ao longo dos anos, a necessidade de se enfrentar as mesmas decisões vezes sem conta, haveria de, inevitavelmente, ter o seu preço, fosse sob que forma fosse. No caso de Janet, concluiu Christine, aquilo assumia o aspecto de uma certa agressividade, dirigida aos que faziam com que aquelas opções deveras extraordinárias fossem uma necessidade inevitável.

Lançou um olhar pelo corredor a tempo de avistar Janet, que entretanto entrava no elevador. A mulher era uma excelente supervisora e, ainda mais importante do que esse aspecto, uma enfermeira dedicada aos mais verdadeiros ideais da sua profissão. Nos momentos que precederam a sua entrada na sala das enfermeiras, Christine sentiu um ressurgimento do seu orgulho devido aos segredos que partilhava com a sua "irmã".

 

Carl Perry tentou couraçar-se contra a dor que sabia de antemão lhe trespassaria a garganta; em seguida, engoliu com todas as precauções possíveis. As dores, na realidade quase qualquer grau de dor, seriam preferíveis àquele maldito babar contínuo que se verificava desde que os pólipos, tumores ou o que quer que fossem, tinham sido extirpados das suas cordas vocais. Seria obrigado a passar mais dois dias acamado, em que ficaria submetido à administração de fluidos por via intravenosa e a ter de escrever bilhetinhos, a fim de poder comunicar, até que o perigo de as suas cordas vocais virem a inchar, obstruindo-lhe a garganta, passasse de todo. Pelo menos, fora isso o que o doutor Curtis lhe explicara.

Estendeu a mão e tocou no adesivo que mantinha o tubo intravenoso no seu devido lugar, no antebraço direito. Havia vários pêlos que se espetavam da pele, levando-o a sibilar uma praga contra a enfermeira que lhe inserira o tubo, cuja negligência deixara passar aquela região sem a barbear.

"Adesivo, tubo intravenoso: queixar-me aos médicos, Administ. Hosp.", garatujou ele num bloco de apontamentos, arrancando a folha que se foi juntar às outras de conteúdo similar, que rapidamente estavam a encher uma gaveta.

Agarrou no pequeno espelho colocado sobre o tabuleiro de fórmica do hospital e começou a examinar-se. Até mesmo com os arranhões que os instrumentos de Curtis lhe haviam provocado aos cantos da boca, gostou daquilo que viu. Um par de olhos de um profundo azul, uma pele bronzeada apenas com os vincos suficientes, um queixo de linhas quadradas e uns dentes perfeitos. A sua aparência física era aquela com que a maior parte dos homens de quarenta e oito anos sonhava poder vir a ter. As mulheres também se apercebiam do seu aspecto, até mesmo as mais jovens. Lutavam pela oportunidade de poder passar umas escassas horas na sua companhia, no alojamento que ele mantinha permanentemente no Hotel Ritz. Para não mencionar o fato de todas elas regressarem a suas casas satisfeitas.

Mas que idéia tão perfeita que fora o ter dado início ao rumor que circulava nos bares onde as pessoas solteiras costumavam ir, de acordo com o qual, a rapariga que fosse a melhor na cama ganharia um Porsche livre de qualquer encargo; todos os anos haveria uma premiada, cortesia dos Motores Estrangeiros Perry. Até era muito possível que ele o viesse a fazer, no dia em que perdesse a sua boa aparência física.

Sentindo-se enfadado e desconfortável entre os lençóis transpirados, acionou o controlo à distância do televisor, desligando-o com a mesma rapidez com que o ligara. Não havia programa nenhum para além do noticiário das vinte e três horas, que começara a ser apresentado em todos os canais. Massageou a parte da frente das calças do seu pijama de seda azul, sentindo a pulsação de uma ereção. Não, ainda não, decidiu ele. "Espera até estares pronto para adormecer, altura em que o poderás fazer.”

Naquele momento, entrou no quarto uma enfermeira, que fechou cuidadosamente a porta atrás de si. Era a mesma que se tinha sentado na beira da sua cama a falar com ele, na noite anterior à operação. Já era entrada nos anos, talvez tivesse uns quarenta, calculou ele, apesar de ter um corpo que se recusava a desistir. Perry sentiu imediatamente uma agitação súbita no órgão flácido que tinha debaixo da mão, tendo recomeçado a massagear-se a si próprio sob os lençóis, visualizando a enfermeira nua, com a sua bela figura, deitada na sua cama de hotel, à espera dele.

- Como é que se sente, Mister Perry? - perguntou ela com suavidade. Encontrava-se a menos de trinta centímetros do doente. Numa atitude convidativa, sabia ele.

Por um momento, sentiu-se dividido pelo dilema de ter de deixar de se tocar, a fim de poder escrever umas palavras. Finalmente garatujou: "Sinto-me ótimo, minha doçura, e você, como está?”

- Há alguma coisa que eu possa fazer por si antes de largar o serviço esta noite? - perguntou ela, aproximando-se uns escassos centímetros.

Com o olhar, Perry procurou a mão esquerda da enfermeira, para ver se ela usava aliança de casamento. Não era o caso, mas isso pouco teria acrescentado à sua fantasia em plena floração. "Isso depende...", escreveu ele.

- De quê?

A atazaná-lo, tentadora... era o que ela estava a fazer. Ele decidiu correr o risco. "De tratarmos do assunto agora ou depois de eu ter alta!”

Ainda hesitou se deveria mencionar ou não o Porsche de borla, mas acabou por ejeitar a idéia como sendo desnecessária.

- Fazemo-lo sozinhos, ou acha que devamos convidar a sua mulher para nos fazer companhia?

Na sua nova abstração cheia de leviandade, imaginava-a com as pernas estendidas para cima, mantendo os calcanhares apoiados contra a parede acima da sua cama. "A minha mulher não me compreende", escreveu ele, entrando no jogo e acrescentando à frase um pequeno rosto sorridente, que desenhou ao fundo da página.

- Muito bem. Quando se sentir um pouco melhor, havemos de voltar a esse assunto disse ela. - Sou forçada a admitir que a idéia de passar uns bons bocados consigo já me ocorreu ao pensamento. - Começou a brincar com o botão de cima do seu uniforme e, durante alguns instantes, Perry pensou que ela estaria disposta a desabotoá-lo para seu benefício.

"É só você dizer quando", acrescentou ele à sua nota, levando a mão livre à coxa da enfermeira, que acariciou.

- Dentro em pouco - continuou ela esboçando um sorriso e afastando-se do seu alcance. - Primeiro tenho aqui dois presentes para si. Um é do seu médico e o outro é de mim própria. Qual é que deseja receber primeiro?

Deliberadamente, Perry escreveu: "O seu.”

A mulher saiu do quarto, regressando pouco depois com qualquer coisa que ocultava atrás das costas. Perry respirou com sofreguidão, ao reparar na forma como o uniforme da enfermeira estava repuxado à largura dos seios. De certeza que o soutien devia ser grande. Ergueu o olhar até à face radiante da mulher, reparando, pela primeira vez, numa cicatriz estreita que corria quase paralela a um dos lados do nariz. Uma pequena imperfeição, decidiu ele. Contudo, à luz de velas e com um pouco de maquiagem, puf!, aquela cicatriz dissipar-se-ia.

Depois de o ter mimoseado com um longo olhar cheio de deliberação, a enfermeira, numa atitude teatral, afastou as mãos que mantivera atrás das costas. Trazia um ramo de flores. Umas flores de um púrpura garrido e cintilante.

"Maravilhosas", escreveu Perry.

- São jacintos - elucidou a enfermeira.

Depois de uma breve inspeção à procura de uma jarra, ela colocou as flores dentro de um pequeno mitório que se encontrava em cima da mesa-de-cabeceira. Perry retraiu-se ao ver a forma um tanto grosseira como ela quebrava a atmosfera amorosa que reinava naquele momento. Talvez ela apreciasse o sexo aberrante, pensou ele, sem se sentir muito certo de estar na disposição de entrar no jogo de outra pessoa.

"E o segundo presente?", escreveu ele.

- Trata-se apenas de um novo medicamento. - Ela movimentava-se a poucos centímetros do rosto do doente, enquanto exibia uma seringa cheia de líquido translúcido que retirara de uma algibeira, começando a injetá-la dentro do tubo de alimentação intravenosa.

Perry estendeu a mão e, uma vez mais, agarrou-a pela região posterior da coxa. Desta feita, ela não fez qualquer tentativa para se afastar dele. Subitamente, ele sentiu um estranho aperto no peito. A força com que lhe agarrava a perna enfraqueceu, após o que em menos de um minuto se desvaneceu de todo. Com dificuldade e sentindo um pânico crescente, voltou a cabeça para cima e ficou a olhar para a enfermeira. Ela mantinha-se imobilizada, olhando para ele com um sorriso complacente. Perry ainda tentou gritar, mas só conseguiu articular um som sibilado que lhe saía das cordas vocais inchadas e paralisadas.

O ambiente tornou-se tão pesado e espesso como melaço. Independentemente de todos os esforços que ele fazia, não era capaz de obrigar o ar a entrar nos seus pulmões. O seu braço esquerdo mantinha-se flácido e inútil por cima da beira da cama.

- Tem o nome de pancuronium - disse a enfermeira com uma expressão afável. - É um sucedâneo do curare de ação rápida. Tal como se fossem dardos envenenados. Bem vê, a sua mulher compreende-o muito melhor do que aquilo que você julga, Mister Perry. Ela entende-o tão bem que está disposta a partilhar conosco uma boa porção do seu seguro de vida, a fim de o eliminar da sua existência de uma vez por todas.

Perry ainda tentou replicar-lhe, mas já nem sequer conseguia pestanejar. Tinha a impressão de que todos os objetos existentes no quarto estavam cobertos por uma película turva enquanto gradualmente aquela sensação de pânico dava lugar a um sentimento de euforia que o desligava de tudo o que sucedia em seu redor. Através de uns olhos que naquele momento se mantinham imóveis e cuja visão era cada vez mais desfocada, observava a enfermeira a desabotoar cuidadosamente os dois primeiros botões de cima do seu uniforme, expondo o rego profundo que lhe unia os seios.

- Não se preocupe com as flores, Mister Perry. Eu certifico-me de que elas sejam postas dentro de um pouco de água. - Aquelas foram as últimas palavras que ele ouviu.

Janet Poulos colocou o braço de Perry sobre a cama, inspecionou o corredor da Ala Três Oeste, mergulhado numa semi obscuridade, e com toda a calma abandonou aquele piso.

Quando a porta das escadas se fechou depois de ela ter passado, cedeu perante o sorriso que lhe brincara nos lábios desde o momento em que injetara o que havia restado do pancuronium. O dia havia sido inacreditavelmente rentável para O Jardim. Tal como Dahlia prometera que seria. Em primeiro lugar, havia sido o desempenho de mestre da parte de Lily e agora fora a sua vez, Hyacinth, que se saíra no mínimo tão bem como a outra. Riu-se, pondo-se a ouvir o eco do seu rir a reverberar pelo poço das escadas, naquela altura deserto.

Já no seu gabinete, na Ala Um Norte, Janet instalou-se por detrás da sua secretária, cerrando os olhos enquanto revivia mentalmente a cena que tivera lugar no quarto de Carl Perry. O sentimento de poder - de controlo máximo - fora, no mínimo, tão empolgante como o que sentira à beira da cama do doente. Era uma sensação de excitação que ela, à semelhança de todas as outras d'O Jardim, havia descoberto através d'A Irmandade da Vida. A Irmandade, com o seu elevado espírito de nobreza, era excelente para algumas pessoas, refletiu Janet; todavia, a criação de Dahlia, O Jardim, fora fruto de uma inspiração, na mais pura acepção da palavra. O fato de elas poderem ser remuneradas, na realidade muito bem pagas, pelos seus esforços, era um aspecto que servia para adoçar aquele jogo. Janet abençoou Dahlia por ter feito com que Hyacinth revivesse.

E então, tal como acontecia com tanta freqüência depois de ter tratado de um caso que dissesse respeito à Irmandade ou ao Jardim, Janet começou a pensar no homem - o primeiro homem que a possuíra, o único homem que ela alguma vez tinha amado.

Naquele momento seria ele um professor de cirurgia, de acordo com os planos que em tempos fizera? Por que motivo é que ele não voltara a telefonar depois daquela noite?

Bom, certamente que ele agora a teria visto a uma luz diferente. Ela também era detentora de poder. Tanto quanto o mais poderoso cirurgião do mundo. Se ao menos ele pudesse vê-la, haveria de... Janet encolheu os ombros.

- Quem é que se interessa por isso? - perguntou ela em voz alta. - Seja como for, quem diabo é que se importa?

Agarrou no telefone. Chegara a altura de partilhar a excitação do dia com Dahlia.

 

Já passava das onze e meia quando o turno de serviço na Ala Quatro Sul concluiu o seu relatório, dando lugar ao turno das onze da noite às sete da manhã, o qual ficaria de serviço durante o resto da noite. Christine Beall apanhou o mini-autocarro Pinkerton até ao Lote C do parque de estacionamento. Sentindo-se exausta, declinou um convite para tomar uma bebida que as quatro enfermeiras que seguiam com ela no autocarro lhe haviam dirigido, tendo optado por ir diretamente para casa.

A pouco mais de trinta quilômetros de distância, no subúrbio dormitório de Wellesley, o Dr. George Curtis bebia dois dedos de conhaque, após o que regressou ao quarto num passo arrastado, saindo do seu estúdio de paredes forradas com painéis de carvalho. A sua mulher, que entretanto ligara o candeeiro da mesa-de-cabeceira, confortavelmente encostada a várias almofadas, olhou para ele com uma expressão de ansiedade.

- Então, como é que correu a conversa com Mistress Perry? - perguntou ela.

O Dr. Curtis deixou-se cair em cima da beira da cama e suspirou de alívio.

- Ela ficou bastante abalada, mas, se tivermos tudo em consideração, dá-me a impressão de estar a agüentar-se muito bem. Ofereci-me para ir a sua casa a fim de falarmos sobre o assunto. No entanto, ela respondeu-me que não seria necessário, alegando que tinha gente em casa. Melhor do que tudo o mais, ela não fez qualquer alusão ao querer que se efetuasse uma autópsia.

A mulher do médico mostrava-se perturbada.

- O que é que queres dizer com "melhor do que tudo o mais"? Passa-se alguma coisa de anormal?

- Bem... a julgar pelo que o médico de serviço me disse, o Perry... Das duas uma: ou sofreu um ataque das coronárias ou sangrou para as cordas vocais, na região que eu operei. Em qualquer dos casos, a mulher poderia intentar um processo judicial por negligência médica, com base no fato de ele dever ter sido assistido na Unidade de Cuidados Intensivos. Na ausência de uma autópsia, ela não terá nada de concreto que possa alegar, pelo que não terá fundamento para um processo judicial: e eu digo "Amén" a isso.

- Amén - repetiu a mulher enquanto desligava o candeeiro e se virava, aproximando-se mais do marido.

Christine conduzia com lentidão, manobrando o volante com gestos maquinais, sem se dar conta do movimento de tráfego automóvel em seu redor. Nos passeios iluminados pelos candeeiros de rua, o mundo noctívago da zona mais degradada da cidade encontrava-se numa atividade fervilhante. As prostitutas e os que viviam de expedientes, os drogados e os bêbedos, lado a lado com os amontoados de homens jovens que se reuniam à entrada dos bares. Aquele era um mundo que habitualmente exercia um grande fascínio sobre Christine, mas, naquela noite, toda a atividade daquelas pessoas lhe passou despercebida. Na sua mente visualizava uma cena inteiramente diversa.

Tinha a ver com um jogo de tênis. Duas mulheres num campo cujo relvado era de um verde-esmeralda. Ou talvez houvesse apenas uma, uma vez que nunca via as duas em simultâneo. Somente uma figura vestida de branco que saltitava, a qual efetuava umas jogadas energéticas e perfeitas.

Completamente embrenhada naquela visão, passou inadvertidamente uma luz vermelha, entrando numa via ampla que a levaria para fora da cidade.

De súbito, Christine apercebeu-se da razão por que aquela imagem lhe parecia ser um jogo. Com cada investida, cada jogada, o rosto da mulher mudava de identidade. Primeiro aparecia-lhe a face de Charlotte Thomas, radiante e rindo-se de excitação de cada vez que pontuava; em seguida era o rosto retraído e descorado da sua própria mãe, uma mulher holandesa de caráter inflexível, cuja devoção que dedicara aos seus cinco filhos tinha acabado por a desgastar ao ponto da sua morte ter sido bastante prematura.

As jogadas faziam-se cada vez com maior rapidez, e em cada uma destas verificava-se uma alteração relâmpago na fisionomia da jogadora, até que pouco mais era além de uma mancha de contornos pouco definidos.

Subitamente Christine olhou de relance para o conta quilômetros. Seguia a uma velocidade de quase cento e trinta quilômetros por hora. Segundos mais tarde, passou velozmente por um sinal da estrada. Seguia numa direção que era bastante a oposta da de sua casa.

Tremendo de uma forma quase incontrolável, aplicou os travões a fundo, imobilizando a viatura na berma da estrada; a sua respiração era arquejante como se tivesse acabado de correr uma maratona. Decorreram vários minutos até estar em condições de poder fazer inversão de marcha, retomando o percurso até casa.

Quando chegou à rua sossegada e bordejada por árvores, onde vivia com as suas parceiras de apartamento havia dois anos, já era quase meia-noite. A decisão de procurarem um apartamento em Brooklin fora unânime.

- É uma parte antiga da cidade com um coração jovem - fora a forma como Carole D'Elia classificara aquela área, referindo-se aos milhares de estudantes e de gente jovem que já encetara uma carreira profissional e que residiam nas confortáveis vivendas de dois andares e prédios de apartamentos.

Decorridas três semanas em que haviam procurado casa, descobriram, tendo-se apaixonado imediatamente, o apartamento num rés-do-chão de uma vivenda pintada de branco e castanho para duas famílias. A senhoria, uma viúva de cabelos azulados, de nome Ida Fine, vivia no andar de cima. No dia seguinte ao da mudança, encontraram uma grande panela de sopa, que fora deixada do lado de fora da porta, anunciadora da intenção de Ida em adotar as três raparigas. De início, Christine não se sentira nada agradada com aquela intrusão na vida das três; todavia, Ida era irreprimível - embora habitualmente tivesse a sabedoria suficiente para sentir quando é que a sua permanência excedia o período de tempo em que era bem-vinda.

Christine, Carol e Lisa Heller tinham personalidades bastante diferenciadas, apesar de parecer terem sido talhadas para viver em conjunto. Carol, uma desembaraçada advogada especializada em direito criminal, era a que tinha a cargo o pagamento das compras, enquanto a Christine cabia a tarefa de fazer as compras, assim como tratar de outros assuntos essenciais do dia-a-dia característicos de uma vida em comum. Lisa, uma agente de compras da Filene, era a orientadora das atividades de caráter social.

Com um gemido de alívio e de fadiga, Christine abrandou a velocidade do Mustang,

subindo pelo caminho de acesso à casa, onde estacionou no seu lugar habitual ao lado do VW em mau estado de Lisa. A garagem de dois lugares estava tão cheia de "tesouros", os quais Ida prometia constantemente deitar fora, que no seu interior nunca houvera lugar para mais nada além das bicicletas das três. Enquanto contornava a casa até à fachada, Christine reparou, pela primeira vez, nas luzes intensas que se viam através das janelas de todas as divisões. Uma festa. A última coisa no mundo que naquele momento ela desejaria ter de suportar.

- A Lisa ataca de novo - resmungou para si própria, abanando a cabeça.

O cheiro inconfundível a marijuana chegou-lhe às narinas assim que abriu a porta. Vindo da sala de estar, chegou-lhe o som da música de um álbum dos Eagles à mistura com o tilintar dos copos, em conjunto com meia dúzia de conversas que eram travadas em simultâneo. Procurava na sua mente um lugar para onde pudesse ir sub-repticiamente, e onde lhe fosse possível passar o que restava da noite, quando Lisa saiu inesperadamente da sala de estar.

Era três anos mais nova do que Christine e cerca de quinze centímetros mais alta; Lisa usava aquilo que se tornara no uniforme não oficializado da casa: calças de ganga bem coçadas e uma camisa de homem largueirona, que fora surrupiada a um antigo namorado. O seu rosto tinha uma perpétua expressão intelectual, quase piedosa, e que invariavelmente dava a impressão de atrair os homens que se interessavam por Mahler e alimentação orgânica, duas coisas que Lisa detestava de igual modo.

- Ah! A filha pródiga regressou ao lar - disse ela, rindo-se à socapa.

Existia algo em Lisa que desarmava qualquer pessoa, o que, até mesmo em relação a Christine, tinha sempre o condão de fazer com que os momentos mais sombrios parecessem mais suportáveis.

- Lisa - retorquiu ela, esboçando um sorriso - , quantas pessoas é que estão aí dentro?

- Oh, oito ou dez, ou talvez mesmo doze. É difícil contá-las porque, compreendes, algumas não são verdadeiramente pessoas.

- Bem, então, faz-me um favor - implorou Christine. - Vai buscar um bocado de corda e o teu casaco de guaxinim, e vê se consegues fazer com que eu passe pela porta disfarçada do teu irlandês de caça aos lobos, ou qualquer coisa do gênero. Eu só quero ir para a cama.

- Ah! A cama - exclamou Lisa com uma expressão sonhadora, procurando o apoio da parede. - Não há de faltar muito para que todo o Gallo Chablis e a esplêndida droga colombiana que estão ali dentro nos forcem todos a ir para a cama. A única questão que ainda se põe é quem é que se deitará com quem. A propósito do que...

- Lisa, ele está aí dentro?

- Tão certo como a própria vida. Não sei se sabes que foi ele quem trouxe a droga.

Na fisionomia de Christine desenhou-se um esgar. Jerry Crosswaite pairava qual constipação irritante. Sacudiu a cabeça.

- A culpa é minha - acrescentou ela com uma expressão de pesar deveras teatral. -

minha regra mais importante e fui eu quem a infringiu.

- Que regra é essa? - perguntou Lisa, pontuando as suas palavras com um soluço de embriaguez.

- Nunca sair mais do que uma vez com um homem que tenha chapas de matrícula personalizadas no seu carro, para mais com o seu nome, sinal de vaidade. - As duas amigas deram uma gargalhada e abraçaram-se.

Apesar de a presença de Jerry ainda lhe fazer passar alguns momentos agradáveis, estes começavam a tornar-se cada vez mais raros e mais intervalados. O que acontecia desde a decisão unilateral, a que ele chegara, de que ambos haviam sido "feitos um para o outro".

Jerry montara toda uma campanha, a fim de fazer de Christine "A Mulher do Executivo Sênior Mais Jovem dos Financiamentos na História do Boston Bank and Trust". Durante várias semanas, ele tinha-a submetido a uma autêntica barragem de rosas, prendas e chamadas telefônicas. Para grande pesar de Christine, sentimento este cada vez mais crescente, Carol e Lisa haviam-se sentido tão fascinadas pelo romantismo daqueles pretextos de amor que tinham conseguido minar os seus esforços no sentido de desencorajar todo aquele ardor amoroso.

- Chrissy, pára de te queixar - dizia Lisa naquele momento. - Quer dizer... tu já passaste dos trinta anos e ele é um homem muito simpático, para além de ser possuidor de um Alfa. Que mais é que qualquer rapariga poderia desejar?

Christine não tinha bem a certeza se a amiga estava a brincar com ela ou não.

- Lisa, o homem tem menos facetas do que uma folha de papel...

- Bem, doçura, eu não correria com ele da minha cama - retorquiu Lisa.

- Mantém-te por cá, Heller, verás que ainda terás oportunidade de ver se realmente estás a falar a sério. - Christine passou por ela e dirigiu-se para a sala de estar.

Jerry Crosswaite pousou o seu copo com vinho e desenvolveu esforços, que se faziam por etapas, para se levantar do sofá com a intenção de a saudar. Christine obrigou-se a esboçar um sorriso, fazendo um gesto para que ele se deixasse ficar onde estava. Na sala encontravam-se mais doze pessoas, muitas das quais tinham um aspecto ainda mais gelatinoso do que Jerry.

- Brutal - resmungou Christine ao mesmo tempo que não foi capaz de conter um sorriso dirigido a Carol D'Elia, extremamente embrenhada num jogo da sua criação, a que dera o nome de "Scrabble para Drogados". Nesta versão, que só poderia ser jogada com o auxílio de marijuana, qualquer palavra, verdadeira ou inventada, contava, desde que pudesse ser satisfatoriamente definida perante os outros jogadores.

Carole chamou-a.

- Olá, Chrissy, tu és a única que tem algum bom senso por aqui. Aproxima-te e serve e árbitro numa dúvida que temos. Z-O-T-L é ou não o substantivo de um arranjo decorativo com salamandras mortas?

- Absolutamente - anuiu Christine, dando-lhe um abraço pelas costas.

Nenhuma das mulheres que partilhavam aquela casa fumava marijuana com regularidade, mas de tempos a tempos, e durante as festas, esta substância materializava-se muito simplesmente e, com bastante freqüência, nessas ocasiões a droga era parte integrante. Apesar da relativa falta de atividade que se verificava na sala de estar, pairava um ambiente de vitalidade que Christine sentia sempre que se encontrava na companhia das suas colegas de apartamento. Chegou à conclusão de que a presença delas seria o tônico ideal para aquele dia tão esgotante. Ainda que isso significasse ter de suportar a presença de Jerry Crosswaite.

- A propósito - disse Carol. - Telefonaram para ti ainda não há muito tempo. Era uma

mulher qualquer. Disse que voltava a ligar. Não deixou mais nenhuma mensagem.

- Era uma mulher de idade? Jovem? - perguntou Christine sem esconder a ansiedade que sentia.

- Sim - respondeu Carol com um acenar de cabeça definitivo, acabando o resto do seu vinho e tomando nota dos seus treze pontos.

Entretanto, Crosswaite lá conseguira atravessar a sala num passo vacilante, aproximando-se por trás de Christine e colocando as mãos em cima dos ombros dela.

Esta girou sobre os calcanhares como se lhe houvessem tocado com ganchos de pendurar peças de carne.

- Ei, acalma-te, Christine, sou só eu - disse ele.

Tinha despido o casaco do seu fato Brooks Brothers, tendo desabotoado o colete, uma atitude que para ele era o máximo no que dizia respeito a uma postura completamente relaxada. Somente a rede de artérias finas e vermelhas nos seus olhos é que desmentiam aquela imagem de playboy, que ele tanto gostava de projetar.

- Olá, Jerry - saudou Christine. - Lamento muito não ter estado presente na festa até

agora. Com um gesto amplo, ele abarcou a sala.

- Que diabo, tu não perdeste a festa. A festa é que tem estado à tua espera. A Lisa disse-me que gostaste do colar. Fico satisfeito com isso.

Christine olhou à sua volta procurando Lisa para lhe lançar um olhar furibundo.

- Quem me dera que tu parasses de me mandar coisas. Eu... eu não me sinto bem em aceitar as tuas ofertas.

- Mas a Lisa disse-me...

Ela interrompeu-o, tentando expressar-se numa voz calma.

- Jerry, eu sei bem o que é que a Lisa te disse, assim como a Carol. Mas a verdade é que eu não sou nenhuma delas. Vê bem, tu és realmente um homem bastante simpático. Elas têm-te em muita consideração, o mesmo acontecendo comigo mas o certo é que tenho vindo a sentir-me muito pouco à vontade, por causa de algumas das prendas que me tens oferecido, ao que se deve acrescer muitas das suposições que tens vindo a arquitetar.

- Queres ser um pouco mais específica? - perguntou Crosswaite, deixando adivinhar um tom de hostilidade na sua voz.

Christine mordeu o lábio inferior, decidindo consigo própria que não estava com disposição para confrontações.

- Esquece o que eu acabei de dizer - limitou-se ela a dizer. - Poderemos resolver todo este assunto noutra ocasião qualquer, numa altura em que tenhamos um pouco mais de privacidade e um pouco menos de vinho.

- Não, Chris, eu quero discutir o assunto agora mesmo. - Todo o domínio que Crosswaite pudesse ter sobre si próprio desapareceu por completo. - Não sei bem qual é o teu jogo, mas tu conduziste-me a um ponto em que este relacionamento se tornou realmente importante para mim. Agora, assim de chofre, apresentas uma atitude de frigidez. - O timbre de voz do homem era suficientemente elevado para que as suas palavras chegassem até aos ouvidos dos mais sonolentos que se encontravam na sala. Os olhares de constrangimento iam de um para o outro, ao mesmo tempo que Lisa e Carol se levantavam com a intenção de intervir. No entanto, o bancário continuou: - Para começar, não se pode dizer que tu sejas exatamente um tigre na cama, mas, do mal o menos, estavas lá. Agora, sem qualquer explicação, sempre que eu estou perto de ti pareces a porra de um glaciar. Exijo que me dês uma explicação! - Todos os presentes se imobilizaram de espanto.

Christine retrocedeu um passo e levou as mãos às ancas, mantendo os punhos fortemente cerrados.

O ruído da campainha do telefone quebrou o silêncio que se abatera sobre a sala.

Carol dirigiu-se apressadamente para a cozinha.

- Chrissy, é para ti - chamou ela passados alguns segundos. - É a mesma mulher que telefonou há pouco.

Christine relaxou os punhos e baixou os braços, antes de afastar o olhar da figura de Crosswaite.

Havia três pessoas na cozinha. Com um único olhar, Christine correu com elas para

sala de estar. Em seguida, agarrou no auscultador.

- Daqui fala Christine Beall - anunciou ela ainda com alguma rispidez na sua voz.

- Christine, fala a Evelyn do Comitê Regional de Avaliação. Podemos falar sem correr o risco de ser interrompidas?

- Posso, sim. - Christine instalou-se no banco alto de sólida madeira que encontrara na feira da ladra de Gloucester, e a que posteriormente dera os últimos acabamentos.

- A Irmandade da Vida louva a sua grande preocupação e profissionalismo - anunciou a mulher com toda a solenidade. - A sua proposta com referência a Mistress Charlotte Thomas foi aprovada.

Na cozinha em silêncio, Christine começou a tremer, ainda que muito ligeiramente, à medida que cada palavra caía como se fosse uma gota de água tombando sobre um solo seco e endurecido.

- O método que foi selecionado será o de sulfato de morfina por via intravenosa, a ser ministrado na altura mais apropriada durante o seu turno de trabalho amanhã ao início da noite - continuou a mulher. - A ampola de morfina, assim como a respectiva seringa, estarão por baixo do assento da frente do seu automóvel amanhã de manhã. Por favor certifique-se de que a porta do passageiro da frente fica aberta esta noite. Depois de o embrulho ter sido colocado no devido lugar, essa porta será trancada.

“Pretendemos que você administre a medicação sob a forma de uma única injeção rápida. Depois do processo consumado, não há qualquer necessidade de se manter no quarto à espera. Por favor, desfaça-se da ampola e da seringa de uma maneira segura e sem deixar o mínimo vestígio. De acordo com os nossos regulamentos, quando acabar o seu turno de trabalho no hospital, fará o favor de telefonar para o atendedor de chamadas, onde deixará gravado o relatório do seu caso. Todos nós partilhamos a esperança, e acreditamos em que chegará o dia em que o nosso trabalho possa ser do conhecimento geral. Nessa altura, os relatórios do teor do seu, os quais compreendem quase quarenta anos deste tipo de ação por parte de enfermeiras espalhadas por todo o país, passarão a poder ser adequadamente louvados, sendo alvo dos elogios que tanto merecem. Ao transmitir o seu relatório não tem a mínima necessidade de repetir o histórico clínico da doente. Tem alguma pergunta que gostasse de fazer?”.

- Não - respondeu Christine em voz baixa. Os nós dos seus dedos estavam brancos de tanto apertar o auscultador. - Não tenho pergunta nenhuma a fazer.

- Sendo assim, muito bem - retorquiu a mulher. - Miss Beall, quero dizer-lhe que lhe

assiste todo o direito de sentir um grande orgulho pela dedicação que mostra perante os seus princípios, assim como pela sua profissão. Boa noite.

- Muito obrigada. Boas noites - retribuiu Christine. Mas já estava a falar para uma linha que lhe dava o sinal de ligação cortada.

Com o olhar virado para a porta fechada que dava para a sala de estar, Christine agarrou num casaco de malha verde de Lisa, que se encontrava pendurado nas costas de uma cadeira. Em movimentos silenciosos, saiu pela porta das traseiras do apartamento.

O firmamento da noite era infinito. Christine estremeceu ao sentir a frialdade do Outono, agasalhando-se melhor no casaco. Vindo da rua mais próxima, ouviu o rugir do motor de um automóvel que dobrava uma esquina. À medida que o ruído se perdia na distância, um silêncio tão profundo quanto a noite começou a envolvê-la. Ergueu o olhar para as estrelas - sóis incontáveis, sendo cada um deles a mãe de mundos. Ela era um mero fragmento, menos do que um momento e, contudo, a decisão que tomara parecia-lhe ser gigantesca. A pressão que sentia na garganta e no peito dificultavam-lhe a ação de engolir. O pânico, a incerteza e um profundo sentido de isolamento apertavam-na como se fossem um torno, enquanto ela se deslocava num passo lento em direção ao seu carro, abrindo a porta do lado do passageiro da frente.

Christine contornou uma vez a pé o quarteirão deserto, percurso que voltou a repetir.

Oculta dos olhares indiscretos sentou-se num muro baixo feito de pedra situado do outro lado da rua onde ficava o apartamento, tendo permanecido a observar a partida das últimas pessoas que haviam estado na festa e que finalmente tinham decidido ir para as suas casas; as luzes que se viam através das janelas começaram a ser desligadas. Com um último olhar alongado ao céu que parecia pontilhado de jóias, suspirou e dirigiu-se para casa. Tudo o que restara na sala de estar eram uns quantos copos meio cheios, iluminados por uma só luz de fraca intensidade, a qual fora deixada ligada pelas suas colegas de casa, para quando chegasse.

Christine desligou o candeeiro. Já se tinha despido ainda mesmo antes de chegar ao seu quarto. Colocando-se em frente do toucador, soltou os cabelos compridos cor de areia, sacudindo-os para os soltar e começando a escová-los em movimentos lentos, enquanto ia contando as vezes que levava a escova à cabeça.

"Sempre que tenha realmente necessidade de saber..." As palavras de Charlotte dominavam os seus pensamentos, enquanto se encaminhava para a cama.

Só quando dobrou a coberta para trás é que viu o sobrescrito que fora colocado em cima da almofada.

Leu a mensagem que ele continha; sentia o corpo rígido e machucou o papel, formando uma pequena bola apertada que arremessou para o chão.

Dizia: "Christine, fui-me embora. Talvez para sempre. Se te apetecer, poderás telefonar, mas só o deves fazer quando tiveres qualquer coisa de relevante a dizer. Jerm,.”

 

David começou o seu primeiro dia na qualidade de substituto de Wallace Huttner a

identificar uma peça musical de Berlioz como sendo da autoria de Mendelssohn, apesar de ter recuperado alguma vantagem momentos mais tarde, pressentindo que do lado de fora da sua janela se desenrolava um dia de mudanças.

No ar fazia-se sentir alguma frialdade, o que o impedia de ficar a suar profusamente, fato que lhe agradava bastante sempre que corria em paralelo ao rio. A oriente encontrava-se um sol anêmico, que gradualmente ia perdendo o controlo que tentava adquirir sobre a manhã, dando lugar a um exército de nuvens pesadas e sombrias que lhe ganhava terreno, tendo cada uma delas contornos brancos e brilhantes. O dia espelhava o seu estado de espírito: a ronda aos doentes feita na noite anterior, na companhia de Huttner, havia-o deixado com um vago sentimento de mal-estar e um presságio que não augurava nada de bom e que nem a noite de um sono inquieto a par do exercício matinal haviam sido capazes de dispersar completamente.

Tinha planeado fazer a ronda da manhã nos mesmos moldes que ele e Huttner tinham adotado na noite anterior; contudo, logo depois de ter chegado ao hospital, sentiu-se invadido de uma impaciência crescente que o impelia a desejar ver de imediato como Anton Merchado estava a reagir ao seu novo regime de tratamento.

A fisionomia curtida e bronzeada do pescador desfez-se num sorriso rasgado assim que David entrou no quarto. Com aquele sorriso único, as apreensões que David sentira a respeito daquele dia desvaneceram-se.

- Consegui fazer um cagalhão, doutor! - informou a voz grave, deixando adivinhar todo o orgulho de uma mãe a quem tivesse acabado de nascer um filho. - Foi esta manhã. Um cagalhão maravilhoso que caiu na água. Doutor, os meus agradecimentos nunca serão suficientes. Nunca pensei que voltasse a fazer outro.

- Pois bem, não comece já a ficar todo excitado, Mister Merchado - acautelou David, mal conseguindo controlar o seu próprio entusiasmo. - Não há dúvida de que está com muito melhor aspecto do que ontem à noite, mas não me parece que a diarréia tenha desaparecido de todo. Pelo menos, ainda não.

- A minha febre também baixou e as guinadas de dor desapareceram quase totalmente - acrescentou Merchado enquanto David lhe apalpava o abdômen, procurando regiões de sensibilidade e auscultando por alguns momentos com o estetoscópio.

- Parece-me que está tudo bem - concluiu David, voltando a colocar o instrumento dentro do bolso da sua bata branca - , mas ainda não pode ingerir comida sólida. Deve restringir-se a uns quantos goles de líquidos, e a vários dias de novos fluidos administrados por via intravenosa e antibióticos. Poderá informar a sua família de que terá de ficar internado no hospital durante só mais uma semana, se as coisas continuarem a correr bem. Talvez tenha de ficar um pouco mais.

- Importa-se de ser o meu médico assistente depois de eu ter alta? - perguntou o doente.

- Não, somente por alguns dias. Depois, o doutor Huttner regressará. Você tem muita sorte por o ter como seu médico, Mister Merchado. Ele é um dos melhores cirurgiões que conheço.

- Talvez seja... mas, por outro lado, é possível que não. - O olhar semi cerrado e o sorriso, que denotavam sensatez, diziam que não tinha a intenção de aprofundar aquele assunto.

- Mas pelo sim pelo não, é melhor dar-me o seu cartão. Eu tenho uma data de familiares que lhe hão de bater à porta, para que você lhes faça uma operação qualquer. Mesmo que não tenham necessidade de fazer nenhuma.

Com uma careta risonha que não mostrava todo o deleite que sentia, David saiu do

quarto e consultou a lista de doentes que ainda tinha de examinar da parte da manhã. Os nomes enchiam as duas faces de uma ficha onde ele os escrevera a letra de imprensa. A alegria fazia com que se sentisse efervescente. Haviam sido os anos em que ele não se permitira, nem sequer em sonhos, pensar em vir alguma vez a ter uma tal quantidade de casos. Quando se aproximava do fim do corredor, deu um grito de júbilo e foi a dançar que transpôs a porta. Atrás de si, duas enfermeiras roliças e de aspecto matriarcal observavam as suas manifestações de alegria, após o que trocaram vários olhares e expressões de reprovação antes de se dirigirem pomposamente para as tarefas que as aguardavam.

A ronda aos doentes iniciada por David era mais excitante do que qualquer outra coisa que ele tivesse feito em medicina de há muitos anos a esta parte. Até mesmo Charlotte Thomas dava a impressão de ter melhorado um tudo nada, embora o simples fato de a poder ver com a vantagem da luz do dia pudesse ter alguma coisa a ver com essa impressão. A cabeceira da sua cama fora articulada num ângulo de quarenta e cinco graus, o que permitia a uma auxiliar de enfermagem dar-lhe à colher pedaços ínfimos de gelo, um de cada vez. David tentou determinar por várias maneiras como é que ela se sentiria; todavia, a única resposta que conseguia obter da doente traduzia-se num sorriso enfraquecido, acompanhado de um ligeiro acenar de cabeça. Examinou-lhe o abdômen, retraindo-se por dentro ao verificar a total ausência de atividade intestinal. Ainda não havia causa para entrar em pânico, mas, em cada dia que passava sem que se verificassem quaisquer sons no abdômen, aumentava as probabilidades de vir a ser necessário fazer outra operação. Por um breve momento, David ainda pensou em impedir até mesmo a ingestão dos pedacinhos de gelo; então, com um último olhar a Charlotte, decidiu deixar as coisas na mesma situação em que as encontrara.

Chegado ao balcão das enfermeiras, começou a escrever um alongado relatório de acompanhamento clínico, assim como prescreveu um tratamento que, tinha ele esperanças, pudesse vir a melhorar o estado clínico da doente. Quando terminou já eram quase treze horas. Tinha vinte minutos para poder comer um sanduíche e tomar um café, antes de ir para o seu próprio gabinete. Entretanto tinham passado cinco horas e trinta minutos num espaço de tempo que lhe parecia não ter existido. Tentou recordar-se da última vez em que aquilo lhe acontecera, tendo-se apercebido que muito provavelmente teria sido há oito anos. Nunca, refletiu ele com tristeza, desde o acidente.

Até mesmo as horas despendidas da parte da tarde no seu gabinete, as quais por vezes haviam sido morosas de uma forma embaraçosa, foram naquele dia agradavelmente caóticas, devido às freqüentes chamadas telefônicas vindas das enfermeiras do bloco hospitalar, que desejavam esclarecer qualquer pormenor das prescrições ou problemas entretanto surgidos.

Precisamente às cinco da tarde, quando a porta se fechava depois da saída do último doente que fora à sua consulta, a enfermeira que assistia David no seu gabinete de consulta, Mrs. Houllhan, chamou-o.

- Doutor Shelton, tem um telefonema da doutora Armstrong. A secretária dela vai estabelecer a ligação. Pode atender na linha três.

- Muito engraçada - gritou David do seu gabinete. Ele só tinha uma linha telefônica: por acaso o número acabava em três. Era agradável ver que Houllhan estava a desfrutar daquele dia tão movimentado tanto quanto ele próprio.

- Vou-me embora para preparar alguma coisa de comer para a minha prole. Boa noite, senhor doutor - despediu-se ela falando em voz alta.

- Boas noites, Houllhan - retribuiu David.

Alguns momentos mais tarde, surgiu na linha a voz da Dra. Margaret Armstrong. Na sua qualidade de primeira mulher a ser nomeada para chefe do serviço de cardiologia de um dos hospitais mais importantes, Armstrong granjeara quase tanta notoriedade no seu campo de medicina como Wallace Huttner no seu. De todos os médicos que faziam parte do quadro clínico do Hospital Médicos de Boston, ela sempre se mostrara a mais cordial e cooperante para com David, muito em especial durante o seu primeiro ano. Embora ela canalizasse os seus doentes, quase exclusivamente, para os cirurgiões cardiovasculares ou, sempre que apropriado, para Huttner, aquela médica tinha enviado alguns casos a David, o que fizera em várias ocasiões, tendo-se dado ao trabalho de lhe enviar sempre uma nota de agradecimento pelos cuidados excelentes que ele prestava aos seus doentes.

- David? Como é que vão as coisas? - perguntou ela.

- Hoje foi um dia muito movimentado, mas todos os minutos me agradaram extraordinariamente, doutora Armstrong. - Talvez devido à postura nobre, o ar aristocrático que envolvia a mulher, ou talvez à diferença de vinte e tal anos de idade que os separava, qualquer que fosse a razão, David nunca sentira o impulso, nem uma só vez, de se dirigir a Margaret Armstrong pelo seu primeiro nome. Tão pouco fora encorajado a fazê-lo.

- Pois bem, estou a telefonar-lhe numa tentativa de o tornar ainda mais atarefado para si - continuou Armstrong. - Para ser absolutamente honesta para consigo, primeiro telefonei para o gabinete do Wally Huttner, mas foi com grande satisfação que fui informada de que você estava a substituí-lo.

- Obrigado. Então, o que é que temos?

- Trata-se de um senhor de idade, de nome Butterworth... Mais concretamente, Aldous Butterworth. Já tem setenta e sete anos, mas continua alerta e lépido que nem um cachorrinho. Ele estava a recuperar muito bem na seqüência de uma intervenção cirúrgica de pouca monta às coronárias, até que há pouco tempo, de repente, começou a queixar-se de formigueiros e dores na perna direita. Deixou de sentir o que quer que fosse das virilhas para baixo.

- Será uma embolia? - inquiriu David mais por cortesia do que por sentir qualquer incerteza com referência ao diagnóstico.

- Na minha opinião acho que é isso mesmo, David. A perna já começou a mostrar alguma descoloração. Está com disposição para nos pescar um coágulo?

- Fá-lo-ei com todo o prazer - retorquiu David, radiante. - Já lhe chamou a atenção para os riscos em que ele incorrerá?

- Sim, mas não seria má idéia se você também abordasse esse aspecto com ele. David, tenho de confessar que me sinto um pouco preocupada por causa de uma anestesia geral num homem de idade tão avançada. Acha que seria possível fazer...

David sentia-se tão excitado por culminar o seu dia com um caso de grande importância que não hesitou em interrompê-la.

- Operá-lo apenas com uma anestesia local? Absolutamente. É a única forma de realizar essa operação.

- Eu sabia que podia contar consigo - disse Armstrong. - Ficarei ansiosa por saber como é que as coisas correrão. O Aldous é um velho amigo muito querido, para além de ser meu doente. Ouça, dentro de uma hora vai reunir-se um comitê executivo e, sendo eu chefe do pessoal médico desta casa de loucos, necessariamente vou ter de estar presente. Está de acordo em que nos encontremos algures mais lá para o fim do dia?

- Com certeza - concordou David. - Ainda tenho de examinar vários doentes antes de dar o dia por concluído. E que tal se nos encontrássemos na Ala Quatro Sul? Tenho uma doente nessa enfermaria cujo estado de saúde entrou num colapso total. Até é possível que você me dê alguma sugestão.

- Será com todo o prazer que tentarei - anuiu Armstrong. - Às oito horas está bem para si?

- Às oito horas - ecoou David.

Mãos escrupulosamente lavadas e unidas à sua frente numa medida de proteção, David retrocedeu para a Sala de Operações Número Dez, onde o ajudaram a vestir uma bata de cirurgia, após o que ele começou a fazer os preparativos para conduzir e orquestrar a sua própria sinfonia. Aldous Butterworth, de figura pequena e aspecto vulnerável, encontrava-se estendido em cima da estreita mesa de operações.

David deu instruções para que o pé direito do doente fosse colocado dentro de um saco de plástico transparente, a fim de que continuasse visível sem que contaminasse o seu campo de intervenção cirúrgica. O pé tinha a cor do mármore branco.

Por meio de injeções pequenas, começou a entorpecer a região direita da virilha do

homem. Sem ter qualquer tipo de pulsação que o pudesse orientar, David sabia que a artéria femoral poderia situar-se a uns dois centímetros ou pouco mais do local onde faria a incisão. Um único erro de cálculo e ele ver-se-ia perante uma operação tão difícil que uma segunda incisão seria o único recurso possível. "Concentra-te no que estás a fazer", pensou ele. "Tenta ver." Ocultos debaixo da máscara de proteção, os cantos da sua boca ergueram-se num pequeno sorriso sabedor. Encontrava-se pronto para começar.

- Bisturi, por favor - pediu ele, retirando o instrumento da mão da enfermeira que o assistia. Fez uma pausa e cerrou os olhos, absorvendo a eletricidade que envolvia aquele momento. Pouco depois abriu-os, examinando os rostos de expectativa que o observavam, enquanto aguardavam que ele desse início à intervenção cirúrgica. Com um ligeiro acenar de cabeça ao anestesista e um último olhar ao pé exangue de Butter Worth, fez a sua incisão. A epiderme tense abriu-se imediatamente, expondo a artéria femoral.

- Mesmo em cheio - murmurou o cirurgião.

Ao cabo de alguns minutos, a artéria rígida devido à oclusão provocada pelo coágulo, encontrava-se isolada e sob controlo, por meio de duas tiras de gaze colocadas a uma distância de cerca de dois centímetros e meio entre si. David fez uma pequena incisão na parede do vaso sanguíneo entre os dois pedaços de gaze. Suavemente, começou a inserir ao longo do interior da artéria, em direção ao pé, um tubo comprido e estreito, em cuja extremidade havia uma bolha por insuflar. Quando concluiu que a extremidade se encontrava na posição correta, insuflou a bolha e com todas as precauções retirou-a através da incisão. Antes de David ter a oportunidade de soltar a bolha, começaram a aparecer cerca de sessenta centímetros de coágulo escurecido e de consistência fibrosa.

Repetindo o processo na direção oposta, procedeu à remoção do coágulo mais espesso que havia sido o grande responsável por aquela oclusão sanguínea. Seguiu-se uma irrigação com uma substância destinada a liquefazer o sangue, após o que ele estava pronto para suturar. Apertou as faixas de gaze a fim de impedir o fluxo de sangue através da artéria, e em seguida suturou a incisão que fizera no vaso sanguíneo com uma série de pontos ínfimos.

Pela segunda vez em menos de vinte minutos, David partilhou um olhar de fugida com cada uma das pessoas presentes na sala operatória. Só então é que respirou fundo e, mantendo-se em silêncio, conteve a respiração e soltou os dois pedaços de gaze.

Instantaneamente, o pé de Butterworth foi percorrido por um fluxo que lhe deu a coloração da vida. Da equipa médica presente ouviu-se um grito de triunfo. Uma operação perfeita, de acordo com os textos médicos. Toda aquela intervenção cirúrgica correra na perfeição. Sentindo-se absolutamente maravilhado, o cirurgião deu as boas novas a Butterworth, despertando-o do sono em que o homem estivera mergulhado durante toda a operação.

- "Isso é que foi realmente um trabalho excelente, doutor Shelton. Efetivamente, foi um trabalho excelente, doutor Shelton. Isso é que foi um trabalho verdadeiramente excelente, doutor Shelton.” - David repetia incessantemente as palavras da enfermeira que o assistira, a qual tinha muita experiência. Tentando reproduzir com exatidão a mesma inflexão que ela imprimira à sua voz. "Talvez devesses telefonar-lhe, pedindo-lhe que repita as palavras uma vez mais, de forma a poderes dizê-las exatamente com a mesma entoação", aconselhou ele a si próprio. Já ditara os resultados pós-operatórios, após o que tomara um duche e se vestira. Naquele momento, já começara a percorrer o corredor que o levaria à Ala Quatro Sul, decidido a partilhar com a Dra. Armstrong as notícias da bem sucedida operação a que submetera Butterworth.

Olhou para o seu relógio de pulso. Passavam dez minutos das oito da noite. O segundo dia sucessivo em que ficava no hospital até tarde. O que lhe acontecia pela primeira vez, desde que começara a fazer parte do corpo de cirurgia havia dezoito meses.

Verificou que Margaret Armstrong já chegara ao piso, tendo-se sentado por detrás do balcão das enfermeiras, onde partilhava o café e se entretinha numa conversa trivial com Christine Beall, na companhia da chefe das enfermeiras do turno, Winnie Edgerly. Quando David se aproximou do grupo, os seus olhos foram atraídos por Christine. O seu olhar e o seu sorriso parecia dizerem-lhe ao mesmo tempo um milhar de coisas diferentes.

Ou talvez aquilo fossem palavras suas, os seus próprios pensamentos, e não dela. O rosto de Lauren, de uma perfeição de jóia, atravessou-lhe a mente momentaneamente; todavia, aquela imagem dissipou-se quando os olhos de um castanho-dourado se prenderam nos seus.

- Olá, David - saudou a voz da Dra. Armstrong num timbre de jovialidade, libertando-o daquele feitiço. - Já se fala por todo o hospital a respeito do novo pé do meu pequeno homem. Um bravo para si. Aproxime-se, vamos brindar à sua operação cheia de êxito com uma chávena deste café. - Lançou um olhar para o interior da chávena, fez uma careta e acrescentou: - Se é que, de fato, isto é café.

A médica vestia uma saia preta e uma camisola de caxemira de um azul-claro. A única peça de joalharia que usava era um alfinete de peito simples, em ouro e com o formato de uma borboleta. A bata branca dava-lhe pelo joelho e mantinha-se desabotoada: o tipo de vestimenta que, a título não oficial, era reservada apenas para os professores ou para aqueles que gozavam de uma antiguidade suficiente na comunidade docente.

Os seus cabelos escuros e ondulados tinham um corte bastante curto, num estilo que se adequava perfeitamente aos seus olhos de um azul cintilante, assim como às feições de um traçado impecável. A sua pessoa encontrava-se envolta numa áurea de energia, que suscitava de imediato respeito e atenção. Um artigo que havia sido escrito há já alguns anos, sobre os contributos que ela dera no seu campo da medicina, granjeara-lhe o nome de "Grande Dama da Cardiologia Norte-Americana"; na altura só tinha cinqüenta e oito anos.

Enquanto David abrangia a cena que decorria no balcão das enfermeiras, foi forçado a refletir no relacionamento animado e à vontade que existia entre a Dra. Armstrong e as duas enfermeiras. Bastante o oposto daquilo que se verificava com o Dr. Wallace Huttner, até mesmo depois de se levar em consideração o fato de a médica ser uma mulher. O contraste acentuou-se ainda mais quando ela se levantou e lhe serviu uma chávena de café.

Apresentou-o às duas enfermeiras como sendo o "herói do dia" e, com uma piscadela maliciosa dirigida a Christine, acrescentou que David era, tanto quanto ela sabia, um homem livre. O visado corou e cobriu os olhos sentindo-se genuinamente embaraçado, compreendendo ao mesmo tempo que evitava qualquer outro contacto visual com Christine, o que fazia com toda a deliberação. Segundos mais tarde, Armstrong incitara-o a descrever ao pormenor a intervenção cirúrgica que realizara em Butterworth. Pelo menos momentaneamente, o perigo tinha passado.

Rona Gold, uma auxiliar de enfermagem, juntou-se ao grupo na altura em que David se servia de canetas com tinta azul e vermelha, para desenhar imagens que ilustravam a sua operação.

David compreendeu que era bem patente o conhecimento que Armstrong já possuía de todas as minúcias referentes à intervenção cirúrgica, das quais, plausivelmente, se inteirara através de uma das enfermeiras presentes no bloco operatório. No entanto, sempre que a ocasião se lhe deparou, ela encorajou-o a prosseguir.

- Bom... - disse a médica finalmente. - Quando vinha para aqui, parei na sala de recuperação com intuito de ver o Aldous e ele não se recorda de nada. Manteve-se adormecido durante toda a cirurgia. Ali estava ele, correndo o risco de perder uma perna, ou pior ainda, e dorme durante toda a operação. Essa é que é a idéia que eu tenho de uma boa anestesia local... É ou não é?

- Eu acho que o pus a dormir quando lhe tentei explicar aquilo que ia fazer - atalhou David.

Armstrong partilhou com as três enfermeiras uma gargalhada de apreciação antes de retomar a palavra.

- David, você mencionou o fato de ter uma doente num estado complicado, aqui na Ala Quatro Sul. A Charlotte Thomas, não é verdade?

- Na realidade, assim foi - redargüiu David. - Para além de ser uma cardiologista, também lê os pensamentos dos outros?

- Nada que seja tão exótico como isso. As enfermeiras e eu deduzimos que ela era a única doente neste piso que se ajusta à sua definição. Assim, aproveitei a oportunidade para examinar a sua papeleta.

- E ?...

- E você tem toda a razão. Ela está a chegar rapidamente a um estado terminal. De fato, só tenho uma observação a acrescentar aos resultados anotados esta manhã, o que, diga-se de passagem, você fez de uma maneira excelente, onde foca os inúmeros problemas de que ela sofre. A sua Mistress Thomas manifesta, a adicionar a tudo o mais, sinais evidentes de doença nas artérias coronárias, o que se encontra bem patente no último eletrocardiograma. Pelo menos, de acordo com a interpretação que eu faço desse exame - acrescentou a médica com modéstia. - Na realidade, não tenho nada de relevante que possa contribuir de forma positiva ao que já está a ser posto em prática. Parece-lhe que a obstrução intestinal venha a exigir uma nova exploração cirúrgica?

- Meu Deus, espero que não - disse David. - Isso significa que seria a terceira intervenção cirúrgica de grandes proporções a que ela seria submetida em menos de três semanas.

- Doutor Shelton, gostaria de lhe fazer uma pergunta - interveio Christine.

- É cinco, cinco, cinco, dois, oh, um, seis - replicou ele com toda a prontidão.

- O que é isso?

- O meu número de telefone! - retorquiu David, apercebendo-se de imediato que deveria ter tentado conhecer mais da maneira de ser de Christine Beall antes de a expor ao seu sentido de humor.

Gold e Edgerly soltaram uma pequena risada, embora Christine não houvesse esboçado o mais ínfimo sorriso.

- Isso não tem graça nenhuma - redargüiu ela. - Eu estou é preocupada com uma mulher muito doente e que está num sofrimento muito grande... A Charlotte Thomas...

David tartamudeou um pedido de desculpas, que ela ignorou.

- Aquilo que eu quero saber - prosseguiu Christine - é por que motivo, uma vez que ela sofre de tantos problemas incuráveis e para os quais aparentemente não existe solução, o doutor Huttner ordenou que lhe fossem aplicados todos os meios de reanimação. Muito em especial, depois do que aconteceu na noite passada.

- Na noite passada? - perguntou a Dra. Armstrong. - O que é que sucedeu ontem à noite?

David hesitou, sem saber bem a quem é que ela se dirigia. Christine recostou-se mais para trás, fitando-o com uma expressão de expectativa enquanto aguardava a sua versão dos acontecimentos.

- Bem - começou ele finalmente. - O marido de Mistress Thomas e o doutor Huttner

tiveram uma discussão sobre a abordagem de tratamento agressivo e sobre a razão por que Huttner optou assim em relação ao estado de saúde da doente. O marido mostrou-se frustrado e, diria eu, mais do que um pouco encolerizado. O que calculo seja bastante compreensível, apesar de não deixar de ser algo que todos nós estamos acostumados a ter de enfrentar.

- Como é que o Wally lidou com o assunto? - Armstrong inclinou-se mais para a frente, mostrando o interesse que o assunto lhe despertava, enquanto distraidamente fazia rolar entre as mãos a chávena de café.

- Tão bem como seria de esperar dadas as circunstâncias, penso eu - retorquiu David. - É possível que ele tenha tido uma reação um tudo nada excessiva. Manteve-se fiel às suas teorias filosóficas. Recusou-se a alterar o seu método de tratamento independentemente do quanto Thomas, que se encontrava debaixo de uma pressão e tensão que eram por de mais evidentes, lhe exigiu que o fizesse. Finalmente, o Huttner acabou por me arrastar para o assunto; receio muito que a minha opinião e a maneira como a expressei não tenham correspondido exatamente àquilo que ele desejava ouvir. - David conseguiu esboçar um sorriso que traduzia pesar, ao aperceber-se da pouca exatidão do que acabara de dizer.

- E qual é a sua opinião a respeito de todo este caso clínico David?

A voz da Dra. Armstrong era suave. Na sua expressão via-se uma abertura que lhe assegurou que, da parte dela, não haveria qualquer espécie de recriminação.

- Eu acho que a situação é uma grande... merda, se me permite a expressão - respondeu ele. - O que pretendo dizer é que é sempre mais difícil uma pessoa decidir-se a não utilizar um determinado tratamento num doente do que prosseguir com a terapia por meio de todos os métodos que a medicina põe ao nosso dispor: toda uma multiplicidade de máquinas e operações ao nosso alcance. É por essa razão que acabamos por ficar com um número tão elevado de doentes que continuam a viver, embora o seu estado seja pouco mais do que vegetativo.

"Pessoalmente - continuou o cirurgião - , devido ao fato de ter tido oportunidade de observar vários membros da minha família morrerem de uma morte prolongada e dolorosa, parece-me que existem ocasiões em que o médico deve tomar uma decisão: exercer contenção e deixar que a natureza retome o seu curso. Não está de acordo comigo?”

Exercer contenção... Deixar que a natureza retome o seu curso... Existia algo naquelas palavras, na maneira como haviam sido articuladas. Margaret Armstrong cerrou os olhos enquanto elas repercutiam na sua mente, após o que deu lugar a outras palavras. Outras palavras proferidas na voz de uma rapariguinha.

"Está tudo bem, mãezinha... Eu estou aqui, mamã.”

- Não está de acordo comigo, doutora Armstrong?

"Mãezinha, diga-me o que é que posso fazer para a ajudar... Continua a doer muito? Diga-me o que é que posso fazer para a ajudar... Por favor, diga-me o que é que posso fazer...”

- Doutora Armstrong?

- Oh, sim - replicou ela por fim. - Ora bem, David. Receio estar bastante mais de acordo com a abordagem do doutor Huttner do que com a sua. - Durante quanto tempo é que ela se teria mantido abstraída daquilo que se passava em seu redor? Estariam eles à espera que lhes desse uma explicação?

- O que é que quer dizer com isso?

"Não,", decidiu a médica para consigo. Não haveria lugar a qualquer explicação.

- À forma como eu vejo as coisas, no seguimento da sua filosofia, qualquer médico seria confrontado constantemente com a necessidade de desempenhar o papel de Deus. Sendo forçado a decidir quem é que viveria e quem é que morreria. Uma espécie de Nero da medicina. Polegares erguidos e aplica-se um tubo intravenoso. Polegares para baixo e não o fazemos.

David respondeu com uma carga emotiva de um vigor tal que, momentaneamente, também o deixou deveras surpreendido.

- Eu acredito que a responsabilidade principal de qualquer médico não se traduz numa batalha constante contra a morte, mas sim no fazer tudo o que estiver ao seu alcance com a finalidade de minimizar a dor e melhorar a qualidade de vida dos seus doentes. O que pretendo dizer - prosseguiu ele com um pouco menos de veemência - é o seguinte: devemos nós utilizar todos os tratamentos, todo o tipo de operações a que seja possível submeter um doente, até mesmo quando sabemos de antemão que existe apenas uma probabilidade num milhão, ou mesmo uma em dez milhares, de que lhe virá a ser benéfico? - No silêncio que se seguiu às suas palavras, ele apercebeu-se de que, uma vez mais, se servira de um canhão verbal, onde uma simples fisga ou uma luva de veludo seriam mais apropriadas.

Nesta altura da conversa, Winnie Edgerly, uma mulher de poucos rodeios e um tanto rude, a qual rondaria os cinqüenta anos, sentiu-se impelida a participar na discussão.

- Eu dou o meu voto à doutora Armstrong - afirmou ela com toda a firmeza. - Eu não quereria que me retirassem quaisquer tubos, ainda que as hipóteses de sobrevivência fossem mínimas. Quer dizer, quem é que sabe o que é que poderá acontecer ou o que é que possivelmente surgirá no último minuto, e que possa dar algum contributo. É verdade ou não?

- Ora vamos lá a ver, não quero que me interprete mal, Mistress Edgerly - retrucou David, tendo o cuidado de tentar minimizar cautelosamente a intensidade do seu tom de voz. - Eu não estou a defender que se devam retirar quaisquer tubos de quem quer que seja. O que eu argumento é que, em primeiro lugar, devíamos pensar duas vezes, ou mesmo mais do que duas, antes de inserirmos os tubos no organismo de qualquer pessoa. Sem dúvida alguma que eles dão o seu contributo, mas em contrapartida também podem prolongar inutilmente a agonia. O que eu acabei de dizer contribui para que as minhas convicções tenham ficado mais claras?

Edgerly acenou afirmativamente, apesar da sua expressão dar a entender que não estava nada de acordo.

- Portanto, David, onde é que tudo isto se aplica à sua Mistress Thomas? - perguntou a Dra. Armstrong por fim.

- Não se aplica - respondeu ele incisivamente. - O programa de tratamento a ser ministrado a Mistress Thomas foi delineado de forma bastante explícita pelo doutor Huttner. Cabe-me a responsabilidade de o seguir à risca dentro de tudo o que se encontrar ao meu alcance. E a respeito deste assunto não há mais nada a argumentar.

Armstrong fez menção de estar prestes a acrescentar qualquer coisa; nesse momento, o sistema de alto falantes acima deles começou a fazer-se ouvir, chamando David às urgências.

- Não há fome que não dê em fartura - comentou ele com um sorriso de expectativa dirigido à Dra. Armstrong.

- Mas aposto que você não se sente nada incomodado em empanturrar-se desta forma - retorquiu ela com afabilidade. - Sinto-me muito feliz por si, David.

- Muito obrigado, doutora Armstrong. - Bebeu o resto do seu café. - Quero agradecer-lhe por tudo.

Com um acenar de cabeça na direção de Edgerly e de Gold, ao que se seguiu um olhar prolongado a Christine, David encaminhou-se para o serviço de urgências.

Christine deixou-se ficar sentada em silêncio por detrás do balcão das enfermeiras, enquanto as outras se dispersavam, seguindo cada uma a caminho das suas tarefas. No seu rosto via-se uma expressão intrigada e irônica; levou a mão direita à algibeira do casaco de malha e, durante um minuto ou dois, apalpou a seringa e a ampola de morfina que embrulhara num lenço antes de as guardar no bolso. Em seguida, ergueu-se e começou a percorrer o corredor em direção ao quarto 412, forçando-se a mostrar uma expressão de indiferença.

 

- Também trata de mãos, doutor Shelton? - perguntou Harry Weiss, o médico de serviço, senhor de nariz adunco, que havia chamado David ao Serviço de Urgências, o qual poderia ter obtido com a maior das facilidades o papel de Ichabod Crane na produção de The Legend of Sleepy Hollow.

- Mostre-me o que é que tem para mim - disse David.

O Serviço de Urgências encontrava-se no estado habitual do caos característico do fim do dia, início da noite. Viam-se duas dúzias de doentes em vários graus de desconforto e cólera contra o hospital, os quais permaneciam sentados na apinhada sala de espera. As macas passavam rapidamente por eles, qual carga de navios num porto movimentado, transportando a sua carga humana a caminho do Serviço de Radiologia, para a ala de observação de pouca duração ou para um quarto de internamento. Ouvia-se o tocar da campainha de vários telefones. Ao mesmo tempo que se travavam uma dúzia de conversas em simultâneo, que parecia competirem umas com as outras para se fazerem ouvir. David apanhou trechos de vários diálogos enquanto o médico de serviço o conduzia ao Serviço de Traumas Oito.

- O que é que pretendia dizer com isso de não poder ter os resultados até daqui a uma hora? Este homem está a esvair-se em sangue. Precisamos deles imediatamente...

Mistress Ramirez, eu compreendo como é que está a sentir-se, mas não posso fazer nada para a ajudar. Muito simplesmente, até este momento não deu entrada nenhum Juan Ramirez no Serviço de Urgência... Agora vai sentir uma ligeira picada de agulha...

O doente para quem David fora chamado era um trabalhador de cerca de quarenta anos, o qual perdera um breve, mas inquestionavelmente violento, encontro com a sua moto serra. As duas metades superiores de dois dos seus dedos tinham desaparecido completamente, enquanto um terceiro se mantinha suspenso do primeiro nó por um pedaço de tendão. Era uma outra situação em que não haveria vencedores, pensou David para consigo próprio, enquanto examinava a mão mutilada. Trocou umas breves palavras com o homem, o qual deixara de suar profusamente, embora a sua tez continuasse com a coloração de ossos branqueados. Pouco depois, conduziu o médico de serviço às urgências, um jovem excessivamente nervoso, até ao corredor. Cabia a David a decisão de ser ele próprio a reparar as lesões, ou a gastar o tempo necessário para explicar o processo ao médico estagiário. Optou por gastar o tempo, recordando-se das muitas ocasiões noite adentro em que outros cirurgiões haviam despendido o seu tempo a ensiná-lo. Decorreu quase meia hora até se sentir confiante, sabendo que Weiss se encontrava em condições de ser ele próprio a tratar da reconstrução da mão lesionada.

Quando David saiu do elevador na Ala Quatro Sul, e enquanto se dirigia para o quarto 412, achou bastante invulgar o silêncio que reinava no piso. Uma explosão de gargalhadas que veio da sala das enfermeiras indicou-lhe que elas deveriam estar a fazer o intervalo para tomar café, pelo menos algumas delas. Pensou em Christine Beall, sentindo algumas esperanças de a ver sair de um dos quartos enquanto ele percorria o corredor.

Somente a imagem dela era o suficiente para lhe reacender uma sensação estranha.

«Portanto, ela tem um aspecto interessante e uns olhos pouco vulgares», pensou David. «E a Lauren é maravilhosa e possui uns olhos inacreditáveis. Estás a reagir desta maneira porque ela está fora e mais nada. Tens de reconhecer que em Lauren tens tudo aquilo que sempre quiseste numa mulher: beleza, inteligência e sentido de independência. Certo?» Certo. A lógica encontrava-se toda ali, preto no branco e irrefutável. Contudo, algures nos recônditos da sua mente, havia uma voz a medo que lhe repetia: «Pensa de novo... pensa de novo...»

As luzes no quarto de Charlotte Thomas mantinham-se desligadas. David deteve-se junto da ombreira da porta, olhando fixamente através da escuridão, tentando focar o olhar na cama. A máquina de drenagem gastrintestinal, regulada para sucção intermitente, emitia o seu ruído abafado, parava e recomeçava de um modo tranqüilizador. As bolhas de oxigênio atravessavam a água da garrafa de segurança fixa à parede. Debateu consigo mesmo se deveria ou não perturbar o seu sono a fim de examinar fatos que na melhor das hipóteses, sabia ele de antemão, se manteriam inalteráveis. Finalmente, entrou no quarto, dirigindo-se para a cama, onde ligou a luz fluorescente acima da cabeceira.

Charlotte permanecia deitada de costas, mostrando um meio sorriso no seu rosto tranqüilo. Foram necessários vários minutos para que David se desse conta de que ela não respirava.

Num gesto instintivo, estendeu a mão para o pescoço a fim de verificar a pulsação na carótida. Por um breve instante pensou que a sentia, mas compreendeu que se tratava do bater do seu próprio coração, o qual pulsava na ponta dos seus dedos. Com ambos os punhos desferiu uma pancada forte no meio do peito de Charlotte. Em seguida, fez-lhe respiração boca a boca por duas vezes, o que acompanhou com várias compressões rápidas sobre o esterno. Uma outra verificação na carótida não revelou a mínima pulsação.

Correu para a porta, dando o alarme.

- Tragam a máquina de reanimação! - gritou ele para o corredor deserto. - Tragam a máquina de reanimação! - Regressou a correr ao quarto, recomeçando as tentativas de ressuscitação feitas por uma só pessoa.

Passaram trinta segundos, num espaço de tempo que lhe pareceu ser o de um ano, antes de Winnie Edgerly entrar de rompante no quarto, empurrando o carrinho onde trazia a máquina de reanimação. No mesmo instante, a pessoa de serviço ao sistema de alto falantes, alertada pelo balcão das enfermeiras, anunciou a emergência.

- Pedido de máquina de reanimação para a Ala Quatro Sul. Máquina de reanimação para a Quatro Sul. Máquina de reanimação para a Quatro Sul.

Segundos mais tarde, o quarto 412 começou a encher-se com pessoal médico e máquinas.

Edgerly inseriu um tubo curto para passagem do ar na boca de Charlotte, começando a fornecer-lhe respiração o melhor que podia com uma bomba de ar para o efeito. David continua a fazer as compressões cardíacas external. Entretanto, entrou uma auxiliar de enfermagem num passo apressado, a qual se dirigiu humildemente para um dos lados do quarto, aguardando que alguém lhe dissesse o que devia fazer. Surgiram mais duas enfermeiras todas afogueadas, seguidas de Christine, que empurrava um carrinho onde transportava um aparelho que servia para fazer eletrocardiogramas. As correias do equipamento foram fortemente apertadas aos pulsos e tornozelos de Charlotte.

Entretanto, apareceu um dos médicos de serviço, seguido logo de outro que vinha atrás; ambos precedidos pelo anestesista de serviço que chegara finalmente. Era um homem gigantesco de ascendência oriental que se apresentou como sendo o Dr. Kim. Este substituiu Edgerly à cabeceira da cama, lançando um olhar a David, o qual passara a tarefa das massagens cardíacas a um dos médicos de serviço, tendo-se ele próprio encarregado de manobrar o cardiógrafo.

- Quer que a entube? - perguntou o Dr. Kim. Como resposta, David acenou afirmativamente com a cabeça.

À medida que o quarto se ia enchendo com a chegada de mais pessoas, onde se incluíam os técnicos laboratoriais e de inalação, Kim começou a executar a sua tarefa. Agarrou num laringoscópio de aço inoxidável, inserindo o ângulo a direito da lâmina iluminada em profundidade na garganta de Charlotte, e ergueu-o contra a base da língua da doente, a fim de revelar as delicadas meias-luas prateadas das suas cordas vocais.

- Dêem-me um tubo sete ponto cinco - pediu ele à enfermeira que ao seu lado lhe dava assistência. O tubo de plástico transparente, cujo diâmetro era de seis milímetros e trinta e cinco, tinha uma bolha de plástico por insuflar presa exatamente acima da extremidade.

Com toda a perícia, o homem gigantesco fez deslizar o tubo entre as cordas vocais de Charlotte, começando a introduzi-lo até à traquéia. Serviu-se de uma seringa para insuflar a bolha, selando a área em redor do tubo para não permitir folgas de ar. O passo seguinte foi aplicar a bomba negra Ambu de respiração manual à parte exterior do tubo, permitindo a passagem do oxigênio, começando depois a fornecer ar a Charlotte ao ritmo de trinta respirações por minuto.

Christine mantinha-se à direita de David, observando enquanto ele tentava centrar a agulha do cardiógrafo. De imediato, o seu olhar fixou-se no traçado ascendente e descendente executado pelo estilete. Existia ritmo - um ritmo persistente e regular. «Oh, meu Deus, ele está a fazê-la reviver!», pensou ela. Os seus pensamentos gritavam as palavras. Aquela era a única possibilidade que ela nunca levara em linha de conta, e que naquele momento estava a concretizar-se. Com cada uma das batidas, ocorria-lhe à mente uma nova imagem de horror. Charlotte ligada a um ventilador. Mais tubos. Dia após dia. infindáveis, em que uma pessoa se interrogava se o cérebro privado de oxigênio da mulher voltaria a despertar. O que é que ela tinha feito?

Por fim, começou a endireitar o papel que fluía da máquina, qual jacto de lava, formando um amontoado aos pés de David. O traçado entrecortado por linhas de ritmo continuava.

- Pare por uns segundos! - gritou David ao médico estagiário, para que este interrompesse os impulsos das compressões cardíacas, o que lhe permitiria uma leitura fiel fornecida pela máquina.

Logo de imediato, desapareceram as oscilações da agulha, sendo estas substituídas por um traçado hesitante. O padrão de respiração fora artificialmente induzido: uma mera resposta aos esforços do médico estagiário.

Christine fizera uma interpretação errônea do cardiógrafo. Sentiu-se prestes a sucumbir.

- O ritmo dela assemelha-se a uma fibrilação enfraquecida. Por favor, continue com as compressões. - A voz de David era firme mas calma. Christine sentiu que recuperava algum domínio sobre si própria. - Christine, faça o favor de se preparar para lhe aplicar quatrocentos joules.

Aquela ordem começou a registrar-se com lentidão no seu cérebro. Com demasiada

morosidade.

- Miss Beall! - chamou David numa voz vociferada.

- Oh, sim, senhor doutor. É para já. - Christine, num passo apressado, dirigiu-se para a máquina de desfibrilação. Estaria alguém a observar os seus movimentos? Não era capaz de se obrigar a erguer o olhar, enquanto girava o botão regulador da máquina para quatrocentos. A substância gelatinosa de contacto começou a esguichar de um tubo, cobrindo a superfície das duas almofadas de aço e entregando-as a David.

Com um gesto, este indicou ao médico de serviço que se afastasse. Em seguida e com rapidez, fez pressão com uma das almofadas ao longo do interior do seio esquerdo de Charlotte, enquanto a outra foi colocada a cerca de sete centímetros abaixo do sovaco esquerdo.

- Toda a gente afastada da cama! - gritou ele. - Prontos? Agora!

Descomprimiu o botão vermelho no cimo da almofada da mão direita. Ouviu-se um som ensurdecedor e ressonante quando os quatrocentos joules de eletricidade atravessaram o peito de Charlotte, percorrendo o resto do seu corpo. Como se fossem uma marionete, os seus braços sofreram um impulso na direção do teto, após o que tombaram flacidamente sobre a cama. O seu corpo arqueou com rigidez por breves instantes, para logo em seguida se imobilizar. O traçado produzido pelo cardiógrafo não mostrou qualquer alteração.

O médico estagiário retomou as compressões cardíacas, mas ao cabo de pouco tempo fez um gesto na direção do estudante de medicina que se encontrava perto, indicando-lhe que se sentia cansado. Os dois trocaram rapidamente de posição.

De imediato, David começou a dar ordens para que fosse administrada medicação a

Charlotte através dos tubos por via intravenosa, bicarbonato para neutralizar o acréscimo de ácido láctico existente no sangue e nos tecidos, assim como adrenalina que serviria para estimular a atividade cardíaca, ministrando-lhe até mesmo glicose, prevendo a hipótese de os níveis de açúcar terem baixado demasiado por qualquer razão. Não houve a mínima alteração. Foi-lhe dada outra injeção de adrenalina, logo seguida por mais quatrocentos joules de contrachoque. A reação continuava a ser nula. Cálcio, mais bicarbonato, ao que se seguiu um quarto choque. Naquele momento, o cardiograma mostrava uma linha a direito. Até mesmo a fibrilação enfraquecida havia desaparecido. O médico estagiário voltou a ocupar o seu lugar, substituindo o estudante e continuando com as compressões. Na cabeceira da cama, o anestesista corpulento continuava a apertar implacavelmente o saco Ambu, que pouco mais parecia do que uma pequena bola maleável nas suas mãos enormes.

- Introduzam uma agulha cardíaca numa ampola de adrenalina, por favor - ordenou

David. A despeito de uma injeção dada através do tubo intravenoso subclavicular ter

como destino o coração, era muito possível que a extremidade, de uma maneira qualquer, se houvesse desalojado. David colocou uma mão ao longo da região esquerda do esterno de Charlote servindo-se da ponta dos dedos para contar no sentido descendente o espaço de quatro costelas, enquanto segurava numa ampola de adrenalina com a outra mão; em seguida introduziu a agulha, que media cerca de onze centímetros e que já se encontrava inserida na ampola, perfurando diretamente o peito de Charlotte. Quase instantaneamente, no interior da ampola começou a entrar um jacto de sangue escurecido. Tinha acertado em cheio. A agulha alojara-se algures no coração. Por detrás de David, Christine sustinha a respiração, mantendo o olhar afastado.

David começou a injetar a adrenalina. Durante um breve momento, a agulha do cardiógrafo começou a saltar impulsionada pelo seu próprio movimento. Foi então que reparou no estudante de medicina, cujo corpo oscilava para a frente e para trás, tocando inadvertidamente no braço esquerdo de Charlotte, de todas as vezes que ele oscilava. Com um gesto, indicou ao estudante que se afastasse da cama. De imediato, o traçado da máquina começou a delinear uma linha a direito.

Christine sentia que a tensão que pairava no quarto tinha começado a dissipar-se.

Mantinha o olhar preso no chão. Tudo estava prestes a terminar. David olhou para o anestesista, encolhendo os ombros numa atitude que perguntava: «Tem alguma sugestão?»

Com uma expressão de placidez, o Dr. Kim retribuiu-lhe o olhar.

- Tenciona abrir-lhe o tórax?

Durante breves instantes, David ainda contemplou aquela hipótese.

- Como é que estão as pupilas dela? - Sabia que estava a tentar ganhar tempo.

- Fixas e dilatadas - respondeu Kim.

David olhou para um dos cantos do quarto. Fechou apertadamente os olhos, abrindo-os pouco depois. Finalmente, avançou e desligou o cardiógrafo.

- É tudo. Agradeço a toda a gente a ajuda que me prestaram. - Aquele agradecimento foi tudo o que ele conseguiu dizer.

Os presentes começaram a sair do quarto. David deixou-se ficar durante algum tempo, baixando o olhar para o corpo sem vida de Charlotte. Apesar dos tubos e das equimoses, assim como das queimaduras circulares no seu peito, provocadas pelas correntes elétricas, existia algo de indefinidamente belo e de grande serenidade que envolvia a mulher.

Finalmente, ela tinha paz.

De súbito, algum do impacto de tudo o que tinha sucedido nos últimos minutos começou a registrar-se na sua mente. A palma das suas mãos e os sovacos começaram a esfriar com a transpiração.

Enquanto David abandonava o quarto 412, com a intenção de telefonar a Wallace Huttner, sentia-se a tremer. Bem fundo no seu íntimo alojara-se um sentimento que lhe provocava calafrios e que, de uma maneira que lhe era desconhecida, tinha tocado na ponta de um pesadelo. Lançou um olhar fugaz ao relógio de parede. Durante quanto tempo é que haviam tentado reanimá-la? Quarenta e cinco minutos? Uma hora?

- Que raio de diferença é que isso faz? - resmungou para si próprio, enquanto se sentava por detrás do balcão das enfermeiras para anotar a morte de Charlotte Thomas na sua papeleta.

- Está a sentir-se bem? - perguntou Christine numa voz suave, ao mesmo tempo que lhe colocava à frente uma chávena de café espesso.

- Hem? Oh, sim, estou bem. Obrigado - retorquiu David apoiando o queixo sobre a

superfície do balcão e examinando de perto o copo de uma matéria sintética. - Obrigado pelo café.

- Lamento muito por si que ela não tenha conseguido sobreviver - disse ela.

David continuava a olhar para o copo, como se procurasse resposta para um qualquer mistério de natureza cósmica.

- Potássio! - exclamou ele de chofre.

Christine, que já tinha começado a deslocar-se, afastando-se daquele silêncio que lhe causava constrangimento, voltou-se para ele.

- O que é que tem o potássio?

- Houve qualquer coisa que não bateu certo naquele quarto, Christine - respondeu David soerguendo o olhar. - Estou a referir-me a algo que ultrapassou o que é óbvio. É provável que eu esteja enganado, mas não tenho memória de alguma vez ter de lidar com uma paragem cardíaca onde não pudesse vir a obter uma só réstia que fosse de atividade cardíaca... até mesmo depois de ter decorrido algum tempo entre a paragem e a utilização da máquina de reanimação. Merda! Quem me dera que tivéssemos tido tempo para verificar o nível de potássio no organismo da Charlotte. Potássio, cálcio... não sei o que é que foi, mas o certo é que fiquei com a sensação de que havia algo que fugia ao normal.

- Agora já não é possível obter-se o nível de potássio? - perguntou Christine.

- Claro que sim, mas neste momento não serviria para grande coisa. Durante a tentativa de ressuscitação e depois da morte, o potássio que se encontra nos tecidos liberta-se para o fluxo sanguíneo, pelo que habitualmente e nestas circunstâncias os níveis são bastante elevados. - David cerrou os punhos numa demonstração de frustração.

- Em primeiro lugar, como é que o nível de potássio no seu organismo se poderia ter descontrolado? - perguntou Christine sentindo um aperto no coração.

- Existem muitas maneiras. - David encontrava-se demasiado absorvido nos seus pensamentos, para ter reparado na alteração que se verificara no semblante de Christine.

- O colapso súbito dos rins, um coágulo sanguíneo, até mesmo um erro de medicação...

Agora qualquer destas hipóteses não faz a mínima diferença. O mais provável é eu estar muito longe da verdade dos fatos. A morte é a morte. - Foi então que se apercebeu da angústia por que ela estava a passar. - Eu... lamento muito - acrescentou David. - Eu não disse isso com intenção alguma. Receio bem que a agradável tarefa de telefonar ao doutor Huttner, que está em Cape, me deixa um pouco abalado. Não me parece que este seja o gênero de notícias que ele aprecie que eu reserve até ao seu regresso ao hospital. E que tal se um dia destes ambos nos sentássemos e tivéssemos uma conversa sobre Mistress Thomas? De acordo?

- Numa outra ocasião, talvez sim... - sussurrou Christine para si própria desviando o olhar.

David procurou o número de telefone que Huttner lhe dera. Depois das dificuldades habituais com a telefonista do hospital, a sua ligação foi estabelecida. A saudação de Huttner não deixou dúvidas de que estivera a dormir.

- Grande começo - resmungou David para consigo, erguendo o olhar para o teto como se procurasse algum auxílio celestial. - Doutor Huttner, daqui fala David Shelton - disse ele para o bocal do aparelho.

- Sim, o que é que se passa, David? - Até mesmo naquelas parcas palavras iniciais existia um timbre de impaciência.

Naquele momento, David compreendeu que deveria ter deixado aquele telefonema para o dia seguinte.

- Trata-se da Charlotte, doutor Huttner, a Charlotte Thomas. - Sentia-se como se a língua lhe inchasse com toda a rapidez, tendo já adquirido o tamanho de uma toranja.

- Ora bem, o que é que se passa com ela?

- Há cerca de hora e meia, ela foi encontrada na cama sem pulso. Tentamos ressuscitá-la através da máquina de reanimação durante quase uma hora, mas não obtivemos qualquer resultado. Ela faleceu, doutor Huttner.

- O que é que pretende dizer com o tentaram ressuscitá-la? O que raio é que aconteceu, homem? Eu examinei-a esta manhã antes de ter partido. O seu estado pareceu-me ser suficientemente estável.

David não previra que a conversa com Huttner decorresse com facilidade, mas também não esperara a eclosão de uma guerra. Sentiu a língua passar do estado de toranja para o de uma melancia.

- Eu... eu não sei bem o que aconteceu - replicou ele. - Talvez uma concentração excessiva de potássio. Ela teve um período de fibrilação fraca, o que acusou no cardiograma, e depois mais nada. Uma linha a direito. Apesar de todos os nossos esforços. Absolutamente nada.

- Uma concentração excessiva de potássio? - A voz de Huttner deixava adivinhar mais perplexidade do que cólera. - No passado ela nunca teve quaisquer problemas com os níveis de potássio.

- Quer que eu telefone a Mister Thomas? - perguntou David por fim.

- Não, deixe esse assunto comigo. Seja como for, o que sucedeu é precisamente o que ele pretendia. - A voz de Huttner enfraqueceu, para logo recuperar uma intensidade renovada. - O que pode fazer por mim é entrar em contacto com Ahmed Hadawi. o chefe de patologia. Diga-lhe que amanhã quero que ele faça uma autópsia a essa mulher. Pretendo saber com toda a exatidão o que é que aconteceu. Se por qualquer razão, o Thomas não der o seu consentimento, eu próprio me encarregarei de informar o Hadawi de que a autópsia foi cancelada. Diga-lhe que amanhã, às oito horas em ponto, estaremos na sala de autópsias com a autorização por escrito assinada pelo Peter Thomas. Boas noites.

- Boa noite - retribuiu David um minuto depois de Huttner ter desligado o telefone.

Pousou o auscultador e acrescentou para si: - Deus nos valha.

O balcão das enfermeiras não tinha movimento nenhum: estava deserto à exceção da presença de David e da secretária do piso, a qual fazia grandes esforços para parecer ignorar a presença do médico. Mantendo os olhos fechados, este permaneceu sentado enquanto massageava a fronte, esforçando-se por equacionar o misto de emoções desagradáveis que se apoderara da sua pessoa. Confusão? Sem dúvida que sim, o que era bastante compreensível. Depressão? Talvez um pouco. Tinha acabado de perder uma doente. Solidão? Que diabo! O quanto ele desejava que Lauren estivesse em casa.

Contudo, havia algo mais. Qualquer coisa vaga e difusa. De concentração difícil. Mas de fato existia algo indefinido, um outro sentimento que não era capaz de identificar.

Decorreram vários minutos até David ter começado a compreender. Subjacente a todas as suas reações, a todas as emoções, havia uma vaga névoa de receio. A tremer, por razões que não se lhe apresentavam com um mínimo de clareza, ligou o número de Lauren, desligando só depois de o telefone ter tocado pela décima vez. Embora ainda tivesse assuntos por concluir no hospital, sentia uma necessidade urgente de sair dali para fora.

Decidiu que telefonaria a Hadawi de sua casa.

Christine encostou-se à ombreira da porta, observando David que abandonava o hospital.

Não sentia quaisquer dúvidas quanto à retidão daquilo que fizera; no entanto, o desencorajamento que ele mostrava era-lhe doloroso.

Mais tarde, escusou-se de elaborar o relatório de turno, começando a percorrer o corredor deserto em direção ao telefone público. O número que ligou não era o mesmo que usara no dia anterior. Deus do céu, teria passado somente um dia? Daquela vez não foi atendida por nenhuma voz: apenas um clique e um sinal.

- Daqui fala Christine Beall do Hospital Médicos de Boston - começou ela a dizer numa entoação deliberadamente monocórdica. - Em nome dos cuidados médicos aplicados com compaixão, e no seguimento das instruções emanadas d'A Irmandade da Vida, a dois de Outubro, ajudei a pôr cobro ao sofrimento e às dores irremediáveis de Mistress Charlotte Thomas, o que fiz através de uma injeção de sulfato de morfina aplicado por via intravenosa. O prolongamento de um sofrimento humano desnecessário deve ser banido e eliminado sempre que possível. A dignidade da vida humana, assim como a de uma morte humana, devem ser preservadas a todo o custo. Fim do relatório.

Desligou o telefone; mas, num impulso irreprimível, voltou a agarrar no auscultador, ligando o número de Jerry Crosswaite. Ao ouvir o som da voz do homem, o impulso

desapareceu de imediato.

- Está lá? - atendeu ele. - Está... Está?

Num gesto lento, Christine desligou o aparelho.

Oculta pelas sombras em que o fundo do corredor se encontrava mergulhado, Janet

Poulos observou Christine escusar-se da elaboração do relatório de turno, a fim de fazer o telefonema que Janet tinha a certeza seria para informar o resultado do caso de Charlotte Thomas.

- Devias sondá-la em relação ao Jardim - urgira Dahlia.

- Tem cuidado com o que dizes, mas não deixes de a sondar. Janet contrapusera com o argumento de que Beall ainda era muito novata n'A Irmandade, razão por que não se encontrava preparada para O Jardim; no entanto, Dahlia insistira em que ela avançasse.

- Não te esqueças - argumentara ela - do que te teria acontecido há três anos, se eu

tivesse decidido que tu não estavas preparada. Tanto quanto me recordo, antes de eu te telefonar andavas tu a pensar em acabar com a tua própria vida. De fato, Janet

encontrara-se para lá da fase de pensar. No momento em que Dahlia lhe fizera aquele telefonema, ela já tinha colocado mais de cem comprimidos para dormir em cima da colcha da cama. O desprezo que sentia por si própria, aliado a um sentimento de impotência, haviam-na arrastado para o limiar do suicídio.

Durante vários anos ela tinha vivido no ódio - ódio contra os médicos de uma maneira geral, embora fosse especificamente dirigido a um deles. Janet filiara-se n'A Irmandade, com a finalidade de utilizar a organização para conseguir pôr no seu lugar determinados médicos. Nos casos onde tal foi necessário, chegara ao ponto de fabricar dados sobre os doentes, a fim de obter a aprovação do Comitê Regional de Avaliação, bem como as suas recomendações.

No entanto, ao cabo de seis anos e de quase duas dúzias de casos, o pouco ânimo que conseguira dessas atividades acabou por se dissipar.

E foi então que, com um simples telefonema, tudo se alterou. De uma maneira qualquer, Dahlia tivera conhecimento das análises laboratoriais e dos exames radiológicos falsificados, estando também inteirada do ódio que ela nutria pelos médicos e pelo poder que estes detinham, encontrando-se também a par de muitos pormenores íntimos da sua vida. Todavia, tratavam-se de aspectos que não lhe interessavam.

No decurso dos anos que precederam a sua filiação n'O Jardim, Janet começou a ser iniciada lentamente. De tantas em tantas semanas, Dahlia transmitir-lhe-ia o nome de um determinado paciente no Nordeste, o qual fora aprovado pela Irmandade para ser sujeito a uma eutanásia. Então, Janet organizava um encontro com a família sofredora do doente, oferecendo-lhes uma morte misericordiosa para o ente querido, a troco de um pagamento substancial. O contrato, depois de celebrado, era então honrado pela enfermeira d'A Irmandade que inicialmente submetera o caso a avaliação, sem que esta tivesse consciência do acordo.

Era uma diversificação maravilhosa e lucrativa; no entanto, O Jardim tinha muito mais, substancialmente mais, de reserva para Hyacinth. Havia outras flores a desabrochar no seio do Hospital Médicos de Boston. Uma destas, Lily, fora transplantada pela própria Janet das fileiras d'A Irmandade. Decorrido um curto período de tempo, ambas as mulheres foram incumbidas de outras responsabilidades, primordialmente na área a que Dahlia se referia como sendo a de «contacto direto com os doentes». Tinham deixado de estar vinculadas aos casos d'A Irmandade: a eutanásia deixara de ser uma preocupação; os novos casos tinham provado ser mais compensadores em todos os sentidos. John Chapman e Carl Perry haviam sido apenas dois destes últimos.

Enquanto Christine ligava o número, Janet começou a aproximar-se dela. Dahlia chegara à conclusão que, depois da Beall se ter visto a braços com um caso tão traumático como o de Charlotte Thomas, era possível que ela já se encontrasse receptiva à sua proposta.

Hyacinth continuava a manter sérias reservas. Estava disposta a conversar com a mulher, mas somente até que as suas próprias desconfianças fossem confirmadas. Beall necessitava de sofrer ainda mais alguns anos de agressividade verbal por parte dos médicos, os quais, com mais freqüência do que era de esperar, eram por si próprios armas mortíferas. Ela estava a precisar de mais uns quantos casos d'A Irmandade em que não haveria lugar a agradecimentos.

Nessa altura, haveriam fortes probabilidades de se encontrar preparada.

Christine deu pela aproximação de Janet e aguardou.

- Já está feito? - perguntou esta com solenidade. Christine acenou afirmativamente. -

Podemos falar por uns minutos? - Uma vez mais, a resposta foi um acenar de cabeça.

Em silêncio, ambas se encaminharam para a sala de visitas. Christine deixou-se cair em cima do sofá e desta vez Janet sentou-se junto da colega.

-Nunca é fácil, não é verdade! - Janet dobrou uma perna debaixo do corpo, observando Christine quando esta começou a mexer numa lasca de madeira solta numa das extremidades do tampo da mesa.

- Eu estou bem, Janet. De verdade que sim. Tenho bem consciência daquilo que fiz, de que aquilo que fazemos é o mais correto. Eu compreendo até que ponto é que a Charlotte desejava acabar com o seu sofrimento. Um cancro disseminado por todo o fígado, enquanto o doutor Huttner só pretendia continuar a enfiar-lhe tubos pelo corpo dentro. Foi a medida certa. - A sua voz denotava tensão, embora estivesse sob controlo.

- De mim não ouvirás qualquer objeção, rapariga - retorquiu Janet, estendendo a mão para apertar a da colega, num gesto que pretendia instilar-lhe confiança. Christine retribuiu-lhe o gesto caloroso. - É só uma lástima, e nada mais, que tenhamos de ser nós quem deve arcar com toda esta maldita responsabilidade. - Christine respondeu-lhe com um acenar de cabeça, seguido de um encolher de ombros que exprimia o pesar que sentia.

Talvez Dahlia tivesse razão; Janet optou por ir um pouco mais longe.

- Toda essa responsabilidade e no fim que vantagens é que isso nos traz? Nenhuma.

Christine voltou-se para a outra com uns olhos que coruscavam.

- Janet! O que é que pretendes dizer com isso? Nada?

Altura de bater em retirada, concluiu Janet. Pelo menos uma vez na vida, Dahlia fizera um mau julgamento de caracteres. A chama idealista e ingênua que ardia no coração de Beall ainda não se extinguira. Esforçou-se bastante por olhar de frente para Christine.

- O que quero dizer é que ao fim de todos estes anos, depois de todas as centenas, que agora calculo que já andem pelos milhares, de recrutas d'A Irmandade, nada se alterou na postura da classe médica.

- Oh... - exclamou Christine sentindo-se mais tranqüilizada.

- Por conseguinte, até que as coisas venham a sofrer uma transformação, teremos de continuar a fazer aquilo que achamos ser a nossa obrigação. Certo?

- Sem dúvida.

- Ouve, Christine. Vamos jantar as duas um dia destes, está bem? Nós duas temos muito em comum, mas este não é exatamente o lugar apropriado para que possamos discutir os interesses que ambas partilhamos. Vê o teu horário que eu farei o mesmo. Combinaremos qualquer coisa para estes dias mais próximos. De acordo?

- Por mim, está bem. Janet, quero agradecer-te o teu interesse. Peço desculpa por ter sido brusca contigo. O dia tem sido um inferno, o que me leva a sentir tão irritada.

Janet sorriu-lhe calorosamente.

- Quando não puderes descarregar na tua "irmã", com quem é que poderás fazer? Certo?

- Certo.

- Tenho de ir tratar da Charlotte - concluiu Janet levantando-se do sofá. - O marido informou que não tenciona vir vê-la. Sempre que precisares de desabafar, podes telefonar para minha casa. - Com aquelas palavras, a enfermeira começou a afastar-se. No mínimo dos mínimos, Dahlia teria conhecimento de que ela tentara. Mas acontecia muito simplesmente que Beall ainda não estava preparada. Era uma lástima.

Christine regressou à sala das enfermeiras a tempo da conclusão do relatório de turno.

Sentindo-se inquieta e saturada com a enfermagem e com o Hospital Médicos de Boston, encostou-se a uma parede até o caso do último doente ter sido discutido? após o que saiu antes de qualquer das suas colegas. À sua frente, esperando pelo elevador, encontrava-se Janet acompanhada de uma auxiliar de enfermagem. Entre as duas em cima de uma maca, encontrava-se o corpo de Charlotte Thomas coberto por um lençol.

Hipnotizada com aquela cena e pelo reflexo de si própria que lhe imprimira, Christine

ficou a olhar enquanto a maca era manobrada para o interior do ascensor. Só depois de as portas se fecharem é que ela conseguiu mover-se de novo.

 

As "letras de ouro da Medicina" de Fox definiam patologista como sendo "o especialista que aprende tudo ao atalhar caminho, para chegar diretamente ao coração do assunto sem deixar uma pedra por voltar (de rim ou de bexiga)".

Como de costume, a recordação de uma das definições imortais de Gerald Fox conseguiu extrair um sorriso dos lábios de David. O que aconteceu apesar do desconforto que sentia perante a perspectiva de ter de assistir à autópsia de Charlotte Thomas.

Já se tinha atrasado dez minutos; todavia, sabia que nada estaria concluído, com a

exceção, talvez, da preparação do corpo de Charlotte e da primeira incisão. Embora as observações de Fox habitualmente acertassem em cheio, David nunca esperara que a sua máxima, cheia de cinismo, a respeito dos patologistas correspondesse inteiramente à verdade. Recuou no tempo, recordando-se da primeira vez que estivera exposto à patologia forense, por ocasião de uma palestra dada pelo médico legista do distrito, antes de o grupo de David, composto por estudantes de medicina do segundo ano, ter sido conduzido apressadamente para uma sala onde assistiriam à sua primeira autópsia.

- A causa da morte, senhoras e senhores - dissera o patologista já de idade - , isto é,

aquilo que nos é pedido, no campo da medicina forense, que determinemos para os

nossos colegas do foro judicial e demais médicos. Na realidade, ninguém, para além de Deus, sabe quais são as causas que determinam a morte de uma pessoa. Absolutamente ninguém. Em lugar disso, aquilo que nós podemos determinar são as condições em que se encontra cada um dos órgãos do corpo de um doente, na altura da sua morte. A partir destes conhecimentos, estaremos aptos a deduzir, com alguma precisão, o motivo que provocou a interrupção das funções cardíacas, pulmonar ou cerebral.

“Por exemplo, se uma pessoa morreu por causa da bala de uma arma de fogo que lhe tenha perfurado o coração, poderemos afirmar com bastante segurança que a morte se ficou a dever a uma paragem cardíaca, com origem num ferimento em profundidade sofrido pelo próprio músculo do coração. Mas... e o que dizer em relação ao doente que sofre de uma doença, como por exemplo o cancro? É possível que sejamos capazes de localizar tecidos cancerosos no fígado, no cérebro, nos pulmões ou em outros órgãos e, sem dúvida alguma, sob um aspecto poder-se-á dizer que a causa da morte teve origem cancerígena. No entanto, a determinação de uma morte imediata é quase impossível. Terá o coração parado porque foi envenenado por alguma substância, ainda desconhecida, segregada pelas células cancerosas? Ou teria a falta de um volume de fluxo suficiente, devido a razões que talvez não se relacionem com o próprio cancro, teria ela sido a causa de uma tal perturbação no sistema circulatório, ficando o coração impedido de continuar”.

a funcionar e limitando-se a parar?

"Todos vós devem ter estes aspectos bem presentes na vossa mente, sempre que se vos deparem diagnósticos como o de” cancro “,” enfisema “ou” arteriosclerose “, em que seja atribuída qualquer destas causas à morte de um paciente. E muito plausível que tenham sido a causa que levou à morte, mas no que diz respeito à causa direta dessa mesma morte... isso, meus amigos, continua a ser um grande mistério na grande maioria dos casos”.

Um mistério. David hesitou do lado de fora das duas portas de vidro opaco onde se lia SALA DE AUTÓPSiAS em letras folheadas a ouro. Uma noite sem dormir, a par de um início de manhã caótico, haviam-no deixado tenso e com uma certa sensação de mal-estar.

A perspectiva da autópsia a Charlotte servia apenas para agravar aquele estado de

espírito.

Havia ainda que ter em conta a pessoa de Huttner. Cape Cod encontrava-se apenas a uma distância de pouco mais de cento e dez quilômetros, suficientemente perto para ele poder fazer a viagem de automóvel naquela manhã, sem dificuldades de maior. Quanto ao ele vir a optar por regressar ou não ali, depois de ter assistido à autópsia, isso já era uma história muito diferente. David apostou consigo mesmo uma muito receada visita ao dentista, a qual já devia ter sido feita há bastante tempo, em que Huttner optaria por permanecer em Boston, onde retomaria os cuidados a serem prestados aos seus clientes.

Ainda pensou em inverter a aposta, de forma a que pelo menos fosse forçado a enfrentar a novocaína e a broca, no caso de vir a perder os últimos dois dias da sua aventura. No entanto, no fim acabou por decidir que, no caso de vir a perder poderia submergir a sua desgraça de uma visita ao mercador de dentes, juntamente com outras desgraças mais substanciais.

Ao entrar na sala, David sentiu picadas profundas de vapor de formalina no interior das suas narinas. Deparou-se um espaço, extenso em comprimento, que media quase vinte e cinco metros de um extremo ao outro. O teto era alto, havendo um excesso de luzes fluorescentes que, em parte, colmatavam a inexistência de quaisquer janelas. Viam-se sete mesas de aço onde eram realizadas as autópsias; cada uma delas fora munida de uma mangueira para fornecimento de água e um sistema de escoamento, equipamento este que se encontrava espaçado a intervalos regulares sobre o chão revestido de linóleo da cor do marfim. Para além da mangueira, que era utilizada para a lavagem dos órgãos durante a autópsia, assim como para limpar a mesa depois desta concluída, todos os postos de trabalho tinham o seu próprio lavatório, um quadro de ardósia e uma balança suspensa. Embutido no chão viam-se grandes números vermelhos de um a sete, os quais marcavam individualmente cada uma das mesas. Isto é, com a exceção do posto de

trabalho número quatro.

Em ambos os lados dessa mesa, haviam sido instaladas ao alto seis fileiras de bancos corridos de madeira, idênticos aos que se viam nos ginásios dos liceus. Em determinadas ocasiões, estes encontravam-se pejados de estudantes, cujo estado de espírito atravessava várias fases de perturbação ou de fascínio. Havia outras alturas em que eram ocupados por grupos de médicos estagiários, de patologia ou de cirurgia, que se esforçavam por estudar as capacidades de dissecação de um patologista veterano. O posto de trabalho número quatro era o ponto central das atividades que tinham lugar na Sala de Autópsias do Hospital Médicos de Boston.

Às oito horas e quinze minutos da manhã do dia três de outubro, os postos de trabalho número um, quatro e seis encontravam-se em plena atividade, enquanto no posto de trabalho número dois se via um corpo embrulhado num lençol. Wallace Huttner encontrava-se de pé, com os braços cruzados à frente do peito, junto do posto de trabalho número quatro. Os bancos estavam vazios, excetuando a presença de um médico estagiário destacado para colocar o cadáver em cima da mesa dots, acompanhado por três estudantes de medicina. Enquanto David se aproximava, avistou a boca aberta de Charlotte Thomas, assim como o rosto de um branco ceráceo. Mordeu o lábio inferior e engoliu um jacto de bilis, concluindo que seria preferível concentrar-se nas outras partes da anatomia do cadáver. Ele era capaz de encarar razoavelmente qualquer autópsia, desde que a visse sob a perspectiva do estudo das diversas partes do corpo. Quanto mais próximo ele se permitisse aproximar do aspecto humano, mais desagradável se lhe tornava todo aquele processo.

Ahmed Hadawi, um homem de estatura baixa, pele escura e movimentos rápidos, senhor de umas mãos excepcionalmente desproporcionadas, já tinha feito a incisão inicial, encontrando-se com os braços até aos cotovelos metidos na cavidade torácica, atarefado na separação dos órgãos abdominais e do peito, soltando-os das ligações que os mantinham presos ao pescoço e às paredes do corpo. Enquanto prosseguia, dava uns estalidos abafados com a língua, sons que acompanhavam o seu trabalho, mas para além disso não se via qualquer manifestação de emoção ou expressão. Ocasionalmente, debruçava-se mais sobre o cadáver, murmurando algumas palavras para um gravador que era operado através de um pedal.

Huttner acenou com frieza em resposta à saudação de David. A sua postura e maneira de agir não mostravam qualquer resquício da atitude do médico quase paternal, descontraído e interessado, que se sentara com David na sala dos cirurgiões havia apenas trinta e seis horas. Depois daquele seco acenar de cabeça, voltou a concentrar toda a sua atenção no processo de dissecação, evitando cuidadosamente qualquer outro contacto visual com David. Este olhou para o homem com uma atitude de impotência. Em seguida, tal como acontecia com tanta freqüência em situações difíceis, a faceta macabra do seu sentido de humor assenhoreou-se da situação. "Se ele se abraçar com mais força", pensou David, "talvez se quebre num milhar de bocados, permitindo-me cuidar dos seus doentes até que alguém cole os bocados do seu corpo.”

Nesse momento, lançou outro olhar de fugida ao rosto de Charlotte. “Pára com isso”,

Shelton!", gritou mentalmente a si próprio.” Isto não tem graça nenhuma. Pára com isso!”“.

Aquela bofetada mental foi o suficiente. Distribuiu o seu peso por ambos os pés por várias vezes, movimentando-se de um lado para o outro, até que finalmente se aquietou, concentrando toda a sua atenção no médico patologista.

- Ora vamos lá ver. Estamos prontos para dar uma olhadela a umas quantas coisas -

disse Hadawi. O médico estagiário desceu do banco, a fim de poder ter um ângulo melhor de observação, enquanto Huttner se abraçava ainda com mais força, quando o patologista começou a apontar o estado anatômico de cada um dos órgãos de Charlotte, tal como estes se haviam encontrado no momento da sua morte.

- O coração - começou ele - está moderadamente alargado, tendo havido engrossamento do músculo e dilatação nos ventrículos. Podemos ver uma pequena perfuração recente que foi feita através do ventrículo esquerdo posterior, o que presumo seja o resultado da injeção intracardíaca que foi dada com toda a precisão pelo doutor Shelton, o que é de louvar.

David pensou que o momento talvez fosse apropriado para um modesto sorriso e um ligeiro acenar de cabeça, mas então compreendeu que ninguém olhava para si. Ainda assim, sorriu e acenou.

À medida que continuava a dissecar, o patologista de estatura baixa ia falando.

- Existe um estreitamento bastante substancial, e num estado bastante avançado, em todas as artérias coronárias, embora não existam provas à primeira vista da existência de lesões recentes, aspecto que seria indicador da possibilidade de um enfarte do miocárdio.

- A interpretação que Margaret Armstrong fizera do eletrocardiograma de Charlotte acertara em cheio, concluiu David para consigo.

- No entanto, não devemos esquecer-nos de que as provas de uma enfartação grave... digamos, que tenha ocorrido num espaço menor do que vinte e quatro horas... Bem, essas provas freqüentemente só são visíveis através de um exame ao microscópio do próprio tecido muscular do coração e, mesmo assim, só se conseguirmos acertar na secção certa de tecido. Logo que esses diapositivos tenham sido examinados quero ser informado imediatamente - ordenou Huttner e, ao que tudo indicava, dirigia-se a David, mais pela necessidade de tecer uma qualquer espécie de comentário do que por outro motivo.

Hadawi ergueu o olhar para o cirurgião e, sem qualquer outra manifestação de o ter ouvido, concentrou a sua atenção nos pulmões. Logo de imediato, o grau de eficiência profissional do patologista subiu vários pontos na consideração de David, o que se refletiu na sua expressão. Tanto num pulmão como no outro verificava-se que mais de metade do seu volume se encontrava consolidada, o que se devia à sobrecarga do fluido proveniente de uma infecção. Ainda que não houvessem existido quaisquer outros problemas, parecia ser inteiramente plausível que Charlotte nunca viesse a conseguir sobreviver àquela pneumonia fulminante.

O que restou do exame aos órgãos era mais impressionante, principalmente devido àquilo que não revelou. Dependendo, como é evidente, das observações realizadas ao microscópio dos nódulos linfáticos abdominais, Hadawi anunciou que não havia sido capaz de encontrar qualquer prova de cancro residual no corpo da mulher. Os quistos no fígado, os quais haviam sido erroneamente diagnosticados pelo radiologista Rybicki, estavam disseminados por todo o órgão, tendo sido encontradas bolsas similares cheias de fluido nos dois rins.

- Encontramo-nos perante uma multiplicidade de quistos do parênquima renal e hepático - continuou Hadawi a ditar para o seu gravador.

Finalmente, o patologista afastou-se da mesa.

- Ainda me restam algumas coisas a fazer neste corpo - anunciou ele - , mas não terão qualquer relevância no que descobri até agora. Para todos os efeitos e propósitos, Wally, podemos dar esta autópsia por concluída. Mais significativo do que tudo o mais que eu te possa dizer, é o fato de a escara de que esta mulher sofria, por estar acamada, já ter começado a espalhar-se por debaixo da pele, ao ponto de eu duvidar que, até mesmo com enxertos múltiplos de pele, viesse alguma vez a sarar. A infecção nos ossos sacros já se tinha iniciado, sendo quase impossível de tratar.

“A arteriosclerose das coronárias, de que ela sofria já estava num estado bastante avançado, o que me leva a assumir que a sua morte se deveu provavelmente a uma”.

paragem cardíaca. Tenho a intenção de indicar como causa da sua morte um colapso cardiovascular, secundado pelas infecções de natureza pulmonar e como conseqüência da escara. Também é inquestionável que ela sofria de um mal adicional, devido em parte à pequena obstrução intestinal que a afligia, o que, tal como tiveste oportunidade de verificar, foi provocado pelas aderências que tiveram origem na intervenção cirúrgica mais recente.

- Doutor Hadawi, doutor Huttner, talvez pudéssemos sentar-nos aqui, uma vez que gostaria de ter resposta a algumas dúvidas - atalhou David. Não conseguia suportar a idéia de ter de discutir o caso de Charlotte junto do seu corpo já dissecado.

Hadawi respondeu-lhe com um breve sorriso arreganhado de compreensão, sentando-se num dos bancos em escada. Por seu lado, Huttner, que continuava a manter os braços cruzados em frente do torso, seguiu os dois sem esconder uma certa relutância. David aferiu a expressão do rosto do homem, classificando-a como sendo algo que se situava entre o desprezo e a fúria. Em parte alguma dos seus olhos, ou na sua maneira de estar, se vislumbrava um só vestígio de simpatia ou de pesar. Independentemente da doença subjacente, Charlotte Thomas fora internada no hospital como doente de Huttner, tendo sido operada e vindo a perecer. O que atribuía ao caso a classificação de mortalidade pós-operatória. A intervenção cirúrgica a que fora submetida, e as muitas complicações que daí advieram, seriam debatidas em pormenor durante as mesas redondas onde habitualmente eram discutidas as mortes cirúrgicas. O que não poderia ser considerado como uma perspectiva que agradasse àquele homem, compreendeu David. Ele encontrava-se muito mais acostumado a fazer as perguntas do que a ter de lhes responder.

- Vamos a ver, David - continuou Hadawi - , o que é que está a perturbá-lo em relação ao que viu?

- Bem, grande parte da minha preocupação concentra-se no coração, que se mostrou tão renitente em responder a tudo o que lhe fiz com os métodos de reanimação. É muito possível que, pura e simplesmente, tenha decorrido demasiado tempo entre o momento em que ela sofreu a paragem cardíaca e a altura em que comecei a tentar reanimá-la. No entanto, não é essa a convicção com que fiquei. Pergunto a mim mesmo se haverá a hipótese de os seus níveis de potássio, não sei bem como, se terem elevado em demasia, tendo dado origem a uma arritmia cardíaca que lhe foi fatal.

- Existe sempre essa probabilidade - replicou Hadawi pacientemente. - Eu tive o cuidado de guardar várias colheitas de sangue. Terei todo o prazer em analisar os níveis de potássio. No entanto há que ter em mente os limites de exatidão desse tipo de análise realizada ao sangue postumamente... muito em especial, no caso da colheita ser proveniente do corpo de uma pessoa a quem foram aplicadas compressões cardíacas externas prolongadas.

Finalmente, Huttner falou. Não constituía surpresa nenhuma para David o fato de ele não estar disposto a render-se sem que antes se batesse pelos seus pontos de vista.

- Vê bem, Ahmed - começou ele. Os segundos e terceiro dedos de uma mão agitavam-se para cima e para baixo na direção do homem, embora Hadawi não mostrasse qualquer sinal exterior de se sentir ofendido com aquele gesto. - Não me sinto completamente satisfeito com estas conclusões. Aqui o doutor Shelton tem uma certa razão. Uma vez que não se detecta nada de evidente num exame grosso modo, que possa explicar a morte repentina desta mulher, isso quer dizer que deveríamos fazer um exame mais minucioso, antes de se concluir como causa da sua morte algo de tão pouco específico como uma paragem cardiovascular. Talvez tenha havido uma enfermeira que a medicou erroneamente, provocando-lhe uma qualquer espécie de reação alérgica de natureza anafilática. A sua alergia à penicilina era do conhecimento geral.

Era por de mais evidente que Hadawi estava habituado a lidar com o ego de Huttner.

Limitou-se a um encolher de ombros.

- Se quiseres, terei todo o prazer em mandar fazer uma análise aos níveis de penicilina encontrados na sua corrente sanguínea - retorquiu ele. - Desejas que se proceda a qualquer outro exame?

Huttner agarrou naquela oportunidade de evitar uma apresentação nas mesas redondas de mortes cirúrgicas, tal como um marinheiro em vias de se afogar, se agarraria a um bocado de madeira que passasse por ele à deriva. Um erro de medicação propiciar-lhe-ia uma absolvição imediata.

- Sim, existem outras coisas que na minha opinião deveriam ser feitas - continuou Huttner numa voz com um timbre professoral, intercalando várias pausas cheias de significado. Na realidade, o homem dava a impressão de estar a saborear as suas próprias palavras. - Estou em crer que deveríamos efetuar uma despistagem completa às substâncias químicas. aos níveis de antibióticos, toxinas, eletrólitos... em suma, tudo o que seja de natureza química.

- Sem que tenhamos previamente uma noção daquilo que procuramos, devo dizer-te que esse processo será excessivamente dispendioso - retorquiu Hadawi numa voz suave, como se antecipasse a erupção que se seguiria à objeção que apresentara de maneira tão delicada.

- Que se lixe o dinheiro, homem! - vociferou Huttner com os dedos a descreverem gestos ainda mais rápidos do que anteriormente. - Estamos a falar de uma vida humana. Limita-te a fazer o raio dos exames e a entregar-me os resultados.

- Como queiras, Wally - anuiu Hadawi.

Huttner acenou numa manifestação de satisfação, fazendo menção de estar prestes a afastar-se. Quando passou por David, fez estalar os dedos.

- Estava quase a esquecer-me, David - disse ele por cima do ombro. - O Congresso

Vascular de Cape não é nada daquilo que prometia ser. Decidi não regressar. Quero

agradecer-lhe a ajuda que me deu ontem. Parece-me que vai realizar-se um congresso em Janeiro a que me interessa assistir. Talvez nessa altura possamos combinar para que você me substitua de novo.

De acordo com o que David pensava, o tom da sua voz tinha tanta sinceridade como a de Dom Juan dizendo: "Claro que terei todo o respeito por ti amanhã de manhã.”

 

Na escolha de um hospital, à semelhança do que fazia em relação a todos os outros aspectos da sua vida, o senador Richard Cormier não delegava a tarefa em ninguém.

Enquanto muitos dos políticos em Washington consideravam um símbolo de estatuto

social o fato de se receberem cuidados médicos no Bethesda Naval ou no Walter Reed, Cormier ignorou as objeções dos seus adjuntos, insistindo em ser operado pelo Dr. Louis Ketchem no Hospital Médicos de Boston.

- É sempre preferível confiar nos da nossa espécie - argumentou ele. - O Louis é um velho cavalo de batalha, tal como eu próprio. Ou é ele que me corta ou recuso-me a ser cortado.

As paredes do quarto de Cormier estavam cobertas do chão ao teto com cartões, havendo várias caixas de cartão que continham mais umas quantas centenas, ordenadamente empilhadas a um canto. Para além de uma enfermeira e do senador, a presença de uma secretária e de dois adjuntos contribuíam para que estivesse criado um ambiente no quarto tão caótico como o que reinava constantemente no seu gabinete em Washington.

- Senador Cormier, tenho de lhe dar os medicamentos pré-operação, o que significa que todas estas pessoas vão ter de sair do quarto. - A enfermeira, uma matrona corpulenta de nome Fuller, exprimia apenas o grau de autoridade suficiente para que o senador acatasse o seu pedido.

Cormier passou os dedos pelos cabelos bastos e grisalhos, semicerrando os olhos na direção da enfermeira.

- Só mais dez minutos.

- Dois - contrapôs ela com toda a firmeza.

- Cinco. - A negociação trouxe aos olhos de Cormier uma centelha de vivacidade.

- De acordo, cinco - anuiu ela. - Mas um só minuto a mais e usarei a agulha quadrada para lhe injetar este medicamento. - Com aquelas palavras, começou a sair apressadamente do quarto; chegada à porta, fez meia volta para lançar um olhar a Cormier que dizia que falava a sério. O senador dirigiu-lhe um piscar de olhos.

- Muito bem, Beth, está na altura de guardar tudo isso - disse ele à sua secretária. - Não se esqueça de que quero que envie uma nota de agradecimento a toda a gente que indicou o remetente no sobrescrito dos cartões. Ontem assinei o que me pareceu ser um milhar, mas, no caso de se acabarem, mande imprimir mais algumas, que eu assinarei depois da operação. Gary, telefone ao Lionel Herbert e diga-lhe que apanhe um avião até aqui, para termos uma reunião depois de amanhã. Informe-o ainda de que deve vir preparado para fazer algumas concessões em relação ao projeto de lei da energia ou, por Deus, o contrário significará que o seu chefe terá de voltar à estaca zero, o mesmo acontecendo àquela gente do petróleo de quem ele é tão diabolicamente amigo. Bobby, telefone à minha sobrinha e diga-lhe que estou bem, que não se preocupe e, acima de tudo, ela que não se sinta preocupada por não ter encontrado ninguém com quem pudesse deixar as crianças, afim de poder estar aqui comigo. Eu próprio tenciono telefonar-lhe assim que me deixarem chegar perto do meu telefone. Outra coisa... Bobby, tomou nota do nome de todas as pessoas que me enviaram flores? Quero enviar a cada uma delas uma mensagem pessoal. Parece-lhe que iria ferir as sensibilidades de alguma delas, se lhes pedisse que me enviassem guloseimas da próxima vez? Este lugar parece uma agência funerária, além de que tem o cheiro característico de um bordel.

Bobby Crisp, um jovem advogado esperto e rápido de raciocínio, sorriu para o seu chefe.

- Deve estar a sentir mais confiança em mim, senador - disse ele. - Esta é apenas a quarta vez que me disse para fazer a mesma coisa. A verdade é que, quando comecei a trabalhar para si, dizia o mesmo sete vezes. Já tratei de tudo. Assim que estiver em condições de escrever, terei a lista pronta para lhe entregar, o que muito provavelmente acontecerá trinta minutos depois de acordar da anestesia, se é que eu o conheço. A propósito, conhece alguém que se chame Camellia?

- Quem? - perguntou Cormier.

- Camellia. Está a ver aquelas flores brancas e cor-de-rosa em cima da mesa? Chegaram esta manhã com uma nota que dizia apenas: "Obrigada por tudo. Camellia.”

- Homens - comentou Beth, desdenhosa. - Aquelas flores brancas e cor-de-rosa como lhes chamaste são camélias. Deixa-me ver essa nota. - Começou a ler e encolheu os ombros. - Realmente é tudo o que diz.

- Muito agradecido por teres confirmado - redargüiu Crisp com mordacidade. - Durante todo o curso de direito, as minhas notas em leitura foram sempre muito baixas.

- Ora vamos lá ver... Vocês dois acalmem-se - interveio Cormier. Esfregou o queixo. - Camellia é um nome suficientemente estranho para que eu não o tivesse esquecido. Camélias oferecidas pela Camellia, não é?... - A sua voz interrompeu-se ao tentar estabelecer uma ligação entre o nome e a pessoa. Finalmente, abanou a cabeça. - Pois bem, imagino que um pequeno lapso de memória aqui e ali é um preço pequeno a pagar pela frustração que sou capaz de causar no senado, servindo-me do resto da minha senilidade. Quem quer que ela seja, terá de continuar a viver sem a minha nota de agradecimento.

Naquele momento, Mrs. Fuller reapareceu à entrada do quarto.

- Eu disse cinco minutos e já passou mais do que isso - acentuou ela. - Estou pronta a jurar que o senhor é o doente mais obstinado e impertinente que alguma vez me passou pelas mãos.

- Muito bem, muito bem, já acabamos - retorquiu Cormier, fazendo um gesto para que os outros três saíssem do quarto. - Sabe, Mistress Fuller, se não adoçar o seu temperamento dentro em pouco, passará da classe dos cruzeiros elegantes para a categoria dos navios de combate. - Sorriu para a enfermeira, acrescentando: - Mas, mesmo assim, continuará a ser a minha enfermeira preferida. Agora vá com muita calma ao espetar essa agulha.

A enfermeira limpou com álcool a região da nádega esquerda de Cormier e deu-lhe a injeção que continha o medicamento pré-operatório. Quinze minutos mais tarde, o

senador começou a sentir a boca seca, sendo invadido por uma sensação de que o seu corpo não lhe pertencia, à semelhança da luz de um farol, as luzes de teto do corredor passavam por si com toda a rapidez, enquanto era levado de maca para o bloco operatório.

Louis Ketchem era um médico com uma vasta experiência de estatura elevada e ombros encurvados, que exercia a atividade de cirurgião havia mais de vinte e cinco anos.

Durante esse período, já realizara centenas de operações à vesícula biliar. Nenhuma lhe tinha corrido tão bem como a do senador Richard Cormier. A remoção do saco inflamado e cheio de pedras não tinha oferecido qualquer problema, à exceção da quantidade de sangue proveniente do fígado adjacente. Tal como procedera em centenas de ocasiões, ordenou que se fizesse uma unidade de transfusão de sangue, durante a última meia hora da intervenção cirúrgica.

O anestesista, John Singleberry, agarrou no recipiente de plástico que continha o sangue que a enfermeira, uma jovem mulher de nome Jacqueline Miller, lhe entregara. Verificou por duas vezes o número do saco, antes de o aplicar ao tubo intravenoso. A fim de apressar a transfusão, envolveu o saco com o sangue numa almofada de ar, começando a apertá-la. Cormier, profundamente anestesiado e a receber oxigênio através de um ventilador, dormia um sono despovoado de sonhos, enquanto o sangue fluía pelo tubo abaixo em direção ao seu braço, qual serpente de uma tonalidade carmim.

No mesmo instante em que o sangue começou a fluir por baixo da coberta de papel verde, Jacqueline Miller afastou-se. A droga que lhe haviam dito que utilizasse, aquela que injetara no interior do recipiente de plástico, era ouabama, a forma mais poderosa e de ação mais rápida de digitalis, uma droga que desaparecia tão rapidamente da corrente sanguínea, sem deixar quaisquer vestígios da sua presença quando submetida a uma análise química, que até mesmo a dose maciça que ela utilizara era virtualmente impossível de detectar. O espaço de três minutos era tudo o que a ouabama requeria para atuar.

Sem qualquer aviso prévio, o traçado do monitor do ritmo cardíaco passou de lento e

regular para um estado absolutamente caótico. John Singleberry olhou para a luz dourada que oscilava para cima e para baixo no ecrã do monitor acima de si, passando vários segundos com os olhos fixos nele sem querer acreditar no que via.

- Mas que grande merda, Louis! - gritou Singleberry. - Ele entrou em fibrilação!

Ketchem, que não se lhe deparava uma paragem cardíaca na sala de operações havia muitos anos, ficou como que paralisado, com as duas mãos no interior do abdômen de Cormier. As suas instruções, quando finalmente foi capaz de as dar, foram inadequadas.

Não fora o expediente das enfermeiras, incluindo Jacqueline Miller, podiam ter decorrido vários minutos sem que se verificasse uma ação firme da sua parte. Com muda rapidez, começaram a ser inseridas compressas esterilizadas no interior da incisão, tendo sido aplicados dois contrachoques que não mostraram quaisquer resultados positivos.

Segundos mais tarde, a leitura no monitor era a de uma linha direita.

Sem qualquer aviso, Ketchem agarrou num bisturi e alongou a incisão que havia feito, prolongando a abertura através do fundo do diafragma de Cormier. Meteu a mão por essa abertura e agarrou no coração do homem, começando a apertá-lo em movimentos rítmicos. Entretanto, houve uma enfermeira que foi a correr em busca de auxílio, embora todos os que se encontravam presentes na sala de operações já soubessem que aquela iniciativa seria inútil; estava tudo terminado. Ketchem continuava a comprimir, mas pouco depois parou e olhou para o monitor. Viu uma linha a direito. Continuou a fazer mais algumas compressões.

Durante vinte minutos não desistiu, sem que conseguisse obter a mínima atividade na luz dourada. Finalmente, interrompeu os seus esforços. Durante mais de um minuto ninguém se mexeu naquela sala. Ketchem mordeu o lábio inferior, olhando por cima da máscara para o corpo do amigo. Então, aproximaram-se duas enfermeiras que o agarraram pelos braços, ajudando-o a afastar-se da mesa de operações e conduzindo-o para a sala dos cirurgiões.

Tendo-se posto de lado, afastada dos demais, Jacqueline Miller cerrou os olhos, receando que eles pudessem refletir o sorriso excitado que ocultava por detrás da máscara. A maior aventura de toda a sua vida estava a chegar ao fim coroada de triunfo. Oh. claro que fora Dahlia quem lhe dissera onde teria de ir e o que dizer, mas tinha sido ela quem efetivamente consumara o ato. A pequena Jackie Miller, fazendo o que bem quis de um dos mais ricos e poderosos homens em todo o mundo da indústria petrolífera.

Sentia um formigueiro de excitação devido ao que acontecera: desde a sua adolescência, passada numa habitação esquálida, até ao encontro secreto em Oklahoma com o presidente da Beecher Oil. Que diria Mr. Jed Beecher se soubesse que a mulher que estava a dar-lhe instruções, a mulher que auferiria o seu quarto de milhão de dólares, a mulher que lhe ditava todos os seus movimentos, tinha acabado de efetuar a sua primeira viagem a bordo de um avião?

Em silêncio, Jacqueline celebrava a boa fortuna que trouxera Dahlia e O Jardim à sua vida. Continuava a saber muito pouco quer de um quer do outro, mas presentemente isso era coisa que não lhe interessava em nada. Quando Dahlia estivesse pronta para revelar a sua identidade, ela fá-lo-ia e, portanto, não havia mais nada a acrescentar quanto a esse assunto. Desde que o empolgamento e os pagamentos mensais continuassem a verificar-se com regularidade, Camellia estava disposta a fazer tudo o que lhe fosse pedido, mantendo os olhos e os ouvidos bem abertos para os casos que poderiam vir a ter interesse para O Jardim. Em relação a à Irmandade da Vida, muito simplesmente, a organização teria de sobreviver sem mais qualquer participação de Jackie Miller. Tinham-se acabado as borlas.

México, Jamaica, Grécia, Paris, Jacqueline assinalou mentalmente todos aqueles lugares.

Só mais um caso como aquele e ela estaria em condições econômicas de poder visitá-los todos. As brochuras eram de fazer perder a cabeça.

Atrás dela, sobre a estreita mesa operatória, tapado com um lençol até ao pescoço, o senador Richard Cormier tinha o mesmo aspecto que mantivera ao longo de toda a operação. Com a única diferença de que o seu sono vazio de sonhos duraria para toda uma eternidade.

 

- Minhas senhoras e meus senhores, se todos ocuparem os vossos assentos, ser-nos-á possível começar a albergar esperanças de que possamos chegar ao fim deste inquérito, dentro de um período de tempo razoável.

Semelhante a uma rainha do cinema já idosa, o Anfiteatro Morris Tweedy, do Hospital Médicos de Boston, conseguira manter-se ao ritmo da pressão inexorável que acompanhava a passagem dos anos, o que fora feito com graciosidade e estilo. A despeito de se encontrar inegavelmente deteriorada em pequenos pormenores, a acolhedora sala abobadada de conferências continuava a manter com altivez a sua magnificência, no cimo da Ala Oeste, a qual já fora objeto de trabalhos de renovação em três ocasiões. Em tempos idos, os setenta e cinco bancos corridos daquele espaço, dispostos em socalco, conhecido por "o anfi", conseguiram acomodar quase todo o pessoal médico do hospital: enfermeiras, médicos e estudantes de medicina. No entanto, em 1929, depois de quase cinqüenta anos de serviço, fora substituído por um anfiteatro consideravelmente mais espaçoso e construído na cave e da Ala Sudeste, deixando de ser a sala de conferências mais ampla do hospital, destinada também a outras ocasiões formais.

No decurso de horas intermináveis passadas em discussões acaloradas, ocasiões essas em que haviam sido sopesados os prós e os contras que envolviam a demolição daquelas paredes de um verde-jade. os argumentos foram interrompidos abruptamente em 1952 quando o corpo legislativo estadual lhe atribuiu o estatuto de marco histórico. As clarabóias com vitrais, os assentos de madeira de aspecto severo e as figuras em baixo relevo reproduzindo momentos cheios de significado na história da medicina foram assim preservados para as gerações vindouras de médicos estagiários ansiosos por mostrarem os seus méritos.

Porém, apesar de um século de serviço ininterrupto, o Anfiteatro Morris Tweedy jamais presenciara uma sessão com as características daquela, em que se havia reunido um grupo de cinqüenta homens e mulheres. Eram vinte horas; um domingo, dia cinco de Outubro, dois dias depois do exame póstumo ao corpo de Charlotte Thomas.

Na sua qualidade de chefe do pessoal médico do hospital, Margaret Armstrong sentava-se por detrás de uma pesada mesa de carvalho maciço, de frente para os assentos colocados em forma de meia-lua. Ao seu lado, fazendo várias tentativas para imprimir alguma ordem à sala, encontrava-se o tenente John Dockerty. Era um homem magro que usava umas roupas sempre amarfanhadas, prestes a atingir os cinqüenta anos. Envergava um fato de fazenda de gabardine que dava a impressão de ser, pelo menos, dois tamanhos acima da sua medida. Os seus olhos de um verde mortiço sondavam o anfiteatro, após o que se concentraram numa pilha de papéis que colocara sobre a mesa à sua frente.

Quando baixava o olhar, algumas madeixas do seu cabelo ralo de um castanho-avermelhado tombavam-lhe sobre um dos olhos. Com um gesto absorto, o detetive

afastava-as para trás, para repetir o mesmo ritual momentos mais tarde.

O seu aspecto, um tanto ou quanto lânguido, de uma quase distração total, sugeria que ele já fora ao encontro da maior parte de tudo o que existia na vida que pudesse ser visto.

De fato, ele já contava com mais de quinze anos ao serviço das forças policiais de Boston, período de tempo em que se aplicara no refinamento dessa maneira de estar, ao mesmo tempo que aprendia qual a melhor forma de a utilizar em seu benefício.

Voltou a olhar para a sala e começou a falar com Margaret Armstrong, articulando as

palavras através do canto da boca.

- É óbvio que este grupo de gente está mais vocacionado para dar ordens do que para recebê-las.

Margaret soltou uma risada que dizia estar de acordo com ele, após o que bateu por

várias vezes com um bloco de apontamentos sobre a superfície da mesa.

- Querem fazer o favor de se sentarem? - disse ela em voz alta. - Caso não possamos dar a nossa cooperação ao tenente Dockerty, no mínimo dos mínimos, temos a obrigação de lhe mostrar boas maneiras. - Em menos de um minuto, todos os presentes tomaram os seus lugares.

O administrador do hospital encontrava-se sentado numa das extremidades laterais do anfiteatro, rodeado pelos seus assistentes. Era um homem pançudo e de trato afetado, o qual fugira de sua casa em Brooklyn com a idade de dezessete anos, tendo mudado o seu nome de Isaac Lifshitz para Edward Lipton. Durante vários anos conseguira manter o seu emprego, fazendo com que os seus inimigos estivessem sempre uns contra os outros, o que pusera em prática com tal artimanha que nenhum deles jamais conseguira formar uma frente unida que lhe desse o apoio suficiente para correr com ele da administração do hospital.

Na extremidade oposta do anfiteatro sentavam-se os membros. homens e mulheres, da direção do hospital. Os homens, um grupo homogêneo e de aspecto patrício, estavam bastante mais preocupados com o impacto que a sua posição na direção pudesse ter na listagem do Quem É Quem do que com a influência que exerciam sobre o Hospital Médicos de Boston. O homem de raça negra que fazia parte da direção por mero simbolismo só se distinguia dos outros pela cor da sua pele, enquanto as quatro mulheres não tinham nada que as distinguisse entre si. O inquérito assinalava a primeira vez em que aqueles vinte e quatro membros, que formavam o conselho de direção, se encontravam todos presentes numa reunião.

A meio da coxia central, sentava-se Wallace Huttner acompanhado de Ahmed Hadawi, assim como dos outros membros do Comitê Executivo do Corpo Médico. Fazendo parte desse grupo sentado logo à direita de Huttner, encontrava-se Peter Thomas.

A parte posterior do anfiteatro era o domínio das enfermeiras. Havia um grupo de oito, todas com roupas normais, com a impressão de formar uma roseta em redor de Dotty, a qual apresentava uma aparência vulcânica com o vestido negro de grande simplicidade.

Janet Poulos também se encontrava presente, juntamente com Christine Beall e várias outras enfermeiras da Ala Quatro Sul, onde se incluía Angela Martin.

No lado direito do anfiteatro, várias filas atrás de Edward Lipton III, sentava-se David.

Manteve-se sozinho até quase ao último minuto, quando Howard Kim, o anestesista que ajudara na reanimação fracassada de Charlotte Thomas, desceu as escadas no seu passo pesado, instalando o seu corpo corpulento junto do de David.

John Dockerty tinha elaborado a lista dos convidados da noite. Por seu lado, a Dra.

Armstrong tratara dos preparativos adicionais.

- Quero agradecer a todos por terem vindo - começou Dockerty. - Têm de me acreditar quando vos digo que os inquéritos, como o que pedi para esta ocasião, ocorrem com muito mais freqüência na série Columbo e nos romances da Agatha Christie do que no trabalho do dia-a-dia das forças policiais. No entanto, tenho a intenção de prosseguir com a máxima rapidez que for possível no caso de Charlotte Thomas, em que todos se encontram envolvidos de uma maneira ou de outra. Pondo a questão nestes termos, devo dizer que a teatralidade nunca foi o meu prato forte. Todavia, esta reunião parece-me ser a forma mais eficaz de me permitir reunir as informações preliminares de que necessito, enquanto ao mesmo tempo mantenho elucidadas todas as partes interessadas. Ao longo dos dias mais próximos, contatarei alguns de vós com a finalidade de conduzir averiguações individuais.

O detetive olhou para Margaret Armstrong, a qual acenou num gesto de aprovação para com as suas palavras de abertura. Em seguida, passando a mão pelos cabelos para os colocar no seu devido lugar, Dockerty chamou Ahmed Hadawi, indicando-lhe um assento que ficava do outro lado da mesa de carvalho, num ângulo que permitia ao patologista olhar para ele sem que fosse forçado a virar totalmente as costas aos que assistiam a reunião.

- Doutor Hadawi, quer fazer o favor de nos explicar a natureza do seu envolvimento no caso de Charlotte Thomas? - perguntou Dockerty.

Hadawi espalhou umas quantas folhas com apontamentos à sua frente, após o que tomou a palavra.

- No dia três de Outubro procedi a um exame clínico póstumo ao corpo da mulher em questão. À primeira vista, esse exame revelou que ela tinha uma escara agravada, devido ao fato de se encontrar acamada há muito tempo, localizada acima do osso sacro, para além de um estreitamento, moderadamente avançado, da artéria coronária, assim como uma pneumonia extensiva. A minha impressão inicial foi que ela tinha morrido por causa de uma paragem cardíaca súbita, a qual fora provocada pelas infecções de que sofria, a par das suas condições de saúde que, de uma maneira geral, eram gravemente debilitantes o que teve como origem as duas intervenções cirúrgicas a que havia sido submetida.

- Doutor Hadawi, essa continua a ser a sua impressão? - perguntou Dockerty.

- Não, não. Os médicos da falecida, o doutor Wallace Huttner e o doutor David Shelton, assistiram à autópsia. Ambos pediram uma análise química pormenorizada ao sangue do cadáver.

- Peço-lhe que me esclareça um ponto, doutor Hadawi - interrompeu o detetive. - Não é costume fazerem-se rotineiramente essa espécie de exames químicos em cada um dos... hum... doentes?

Hadawi esboçou um sorriso sarcástico, colocando as mãos entrelaçadas sobre a mesa.

- Quem me dera que isso fosse possível - retorquiu ele. - Infelizmente, os exames póstumos têm de ser custeados pelo estabelecimento hospitalar envolvido, devendo

acrescentar-se que são muitíssimo dispendiosos, uma vez que compreendem estudos histo fisiológicos bastante sofisticados, diverso apoio logístico e tudo o mais que seja necessário. Embora jamais omitamos deliberadamente uma análise ou exame ao microscópio que sejam importantes, nós os que trabalhamos no Serviço de Patologia, temos a obrigação, apesar disso, de equilibrar o nosso zelo com a capacidade de discernimento, o que nos permitirá manter-nos dentro dos limites do nosso orçamento. - Fez uma pausa de alguns momentos, lançando um olhar prolongado e hostil na direção de Edward Lipton III.

- Faça o favor de continuar - disse Dockerty, tomando algumas notas no bloco de apontamentos que tinha à sua frente.

- Das muitas análises clínicas que foram realizadas, houve duas que apresentaram resultados com índices elevadamente anormais - continuou Hadawi depois de consultar as suas notas. - A primeira destas, feita ao nível do potássio, cifrava-se em sete ponto quatro, quando o limite máximo normal é de cinco ponto zero. A segunda dizia respeito ao índice de morfina encontrado no sangue de Mistress Thomas, o qual se situava bastante acima da quantidade normal que deveria ser encontrada no organismo de um doente a quem são ministradas as doses habituais de sulfato de morfina, com a finalidade de atenuar as dores.

- Doutor Hadawi, é capaz de nos dizer qual a sua opinião com referência a essas conclusões? - A voz de Dockerty não deixava adivinhar o mais leve vestígio de tensão.

- Ora bem, a minha impressão no que respeita ao nível potássico excessivo, e agradeço-lhe que considere isto como sendo apenas a minha opinião pessoal, é de que este foi induzido artificialmente a tal índice, o que se deverá ao efeito das ocorrências verificadas nos tecidos durante e logo após a paragem cardíaca. Por seu lado, a subida do nível de morfina já é uma história completamente diversa. Sem qualquer dúvida, o índice que se encontrou no cadáver desta mulher é desmesuradamente elevado. Embora seja possível que tal não tenha acontecido, este era suficientemente elevado para, com toda a facilidade, ter provocado a interrupção do processo respiratório, o que, em última análise, poderá ter sido a causa da morte.

Dockerty passou alguns segundos a pentear os cabelos distraidamente com os dedos.

- Doutor, deduzo pelas suas palavras que a morte foi causada por uma dose excessiva de morfina. - Hadawi acenou afirmativamente. - Diga-me se, na sua opinião, uma dose dessa magnitude poderia ter sido administrada acidentalmente.

Hadawi ficou com uma respiração entrecortada, fitou o detetive por breves instantes e abanou a cabeça.

- Não - respondeu. - Não estou em crer que isso fosse possível.

No anfiteatro não se via o mais pequeno movimento. Durante vários segundos, Dockerty permitiu que aquele silêncio sepulcral se mantivesse.

- Este aspecto, minhas senhoras e meus senhores - prosseguiu por fim o detetive num timbre suave de voz - , faz com que a morte de Charlotte Thomas seja classificada de homicídio. Este assassínio é o que nos levou a reunirmo-nos aqui. - Uma vez mais o silêncio pairou naquele espaço. Desta feita, Hadawi agitou-se desassossegadamente no seu assento, mostrando-se ansioso por dar a sua participação por terminada.

- Muito obrigado pelo seu contributo, senhor doutor! - agradeceu-lhe Dockerty. Enquanto Hadawi se levantava para se retirar, O detetive acrescentou: - Só mais um pequeno pormenor. O senhor mencionou que os testes químicos foram feitos por ordem dos médicos de Mistress Thomas, ah... - Lançou um olhar de relance aos seus apontamentos - Sim... Os doutores Huttner e Shelton. Recorda-se de qual deles é que, especificamente, deu instruções para a realização dessas análises?

Os olhos escuros de Hadawi semi cerraram-se ao perscrutar o rosto de Dockerty, procurando algum sinal quanto ao significado daquela pergunta. Por fim, com um encolher de ombros que denotava perplexidade respondeu:

- Bem, se a memória não me atraiçoa, foi o doutor Shelton quem pediu a análise ao nível do potássio. Os restantes exames foram efetuados por instruções do doutor Huttner.

Com um gesto Dockerty indicou ao patologista que regressasse ao seu lugar entre os que assistiam à reunião, enquanto murmurava outro agradecimento. Examinou os presentes por breves instantes.

- Doutor Shelton? - chamou o detetive quando já tinha começado a desviar o olhar.

Howard Kim elevou uma manópula maciça e deu uma palmada nas costas de David

quando este passou à frente do seu corpo volumoso, deslocando-se de lado em direção à coxia. Havia vinte e quatro horas que David tivera conhecimento dos resultados anormais da análise feita ao sangue, tendo mesmo ouvido pelas enfermarias os rumores mais inconcebíveis, os quais diziam estar em curso uma qualquer investigação policial. Apesar de a Dra. Armstrong não lhe ter dito que ele seria chamado a prestar declarações não se sentiu nada surpreendido por ser convocado pelo detetive.

Dockerty sorriu, apertou-lhe a mão com firmeza, indicando-lhe com um gesto que se

sentasse no lugar acabado de vagar por Hadawi; em seguida, mostrando-se um tanto desinteressado, levou-o a que descrevesse minuciosamente todos os acontecimentos que haviam ocorrido logo após a paragem cardíaca de Charlotte Thomas. Gradualmente, as declarações de David foram-se tornando mais fluentes e animadas. O estilo de conversa de Dockerty fazia com que ele se expressasse com maior facilidade. Ao cabo de pouco tempo, David partilhava informações com o detetive de aspecto mal aprontado da mesma maneira descontraída que dois amigos teriam mostrado em amena cavaqueira numa qualquer cervejaria. Mas, a certo ponto, sem alterar a cadência e o tom em que a conversa era travada, o detetive retomou a palavra.

- Diga-me, doutor Shelton. Pelo que me foi dado entender, pouco antes de Mistress

Thomas ter sido encontrada por si, tendo o senhor verificado que ela não respirava nem tinha pulso, o senhor havia trocado impressões com a doutora Armstrong, aqui presente, acerca dela e de outro doente em estado grave, conversa em que também participaram algumas enfermeiras, nomeadamente... ah, sim... - continuou ele consultando os seus apontamentos. - Ah, as enfermeiras Edgerly, Gold e Beall. Importa-se de me elucidar quanto ao que foi dito ao longo dessa troca de impressões?

Durante cinco segundos, dez ou talvez mesmo quinze, David sentiu-se incapaz de proferir qualquer palavra. Aquela conversa não se enquadrava. Não fazia o mínimo sentido, a não ser que... A sua mente examinava num turbilhão todas as implicações da pergunta que Dockerty fizera a Hadawi, em que o detetive quisera saber qual dos médicos é que tinha ordenado as análises que posteriormente tinham revelado o nível excessivo de morfina no organismo do cadáver. O mesmo sentimento de receio, indefinível e tão imperceptível, que manifestara a sua presença entre as emoções do médico na noite em que fora à Ala Quatro Sul, invadia-o naquele momento de forma contundente. A sua fronte começou a latejar. Sentiu as mãos rígidas e entorpecidas. "Mas que grande merda! Ele anda atrás de mim! Ele prepara-se para me dar caça!”

Naquele momento, apercebeu-se de que os olhos de Dockerty tinham mudado da forma líquida para a do aço, mantendo-se presos em si, sondando e avaliando, penetrando o seu corpo. David dava-se conta de que estava a levar muito tempo - de fato, um período de tempo excessivo - a reagir à pergunta do detetive. Respirou fundo e tentou banir o pânico que se apossara de si. "Descontrai-te e tenta não fazer uma leitura tão sinistra de tudo isto", pensou ele. "Limita-te a dizer ao homem aquilo que ele pretende saber.”

- Doutor Shelton, está recordado do incidente a que estou a aludir? - Sob a paciência elaborada que se sentia na voz de Dockerty, adivinhava-se um timbre cortante.

Ainda antes de responder, David pressentiu que as suas palavras sair-lhe-iam da boca com uma entoação gaguejada e atabalhoada. O que veio a acontecer. Expressando os seus pensamentos de forma incoerente e intercalando várias hesitações, começou a falar. - Eu limitei-me a dizer-lhes que... um doente que se encontra... debaixo de um grande sofrimento e com muito poucas esperanças de poder vir a recuperar do mal que o aflige, poderia... poderia ser tratado com alguma contenção. Especialmente, se os métodos terapêuticos estabelecidos forem... particularmente dolorosos ou... desumanizados... tal como ser ligado a um ventilador. - Contrariou com toda a sua força de vontade a ansiedade de dizer mais, evitando conscientemente o tipo de discurso que refletiria pânico, o qual resulta muitas vezes do fato de se tentar elucidar uma explicação antecedente.

Em movimentos lentos, Dockerty correu a ponta da língua pelos dentes; começou a

tamborilar com a extremidade de borracha do seu lápis sobre o tampo da mesa. Coçou a cabeça.

- Doutor Shelton - prosseguiu o detetive ao fim de algum tempo - , não sabe que a não aplicação de tratamentos a um doente é uma forma de morte misericordiosa? Mais concretamente, de eutanásia?

- Não, não me parece que seja qualquer forma de matar. - Por baixo do receio que sentia, começou a surgir o travo da cólera. A sua voz tornou-se mais tensa. As palavras assomavam-lhe à boca com demasiada celeridade. - É, isso sim, o exercício de uma prática clínica com sensibilidade e de boa qualidade. Tem tudo a ver com o ser-se um bom médico. Por amor de Deus, eu nunca advoguei que se desligasse um ventilador, nem tão pouco a administração de qualquer substância letal, em relação a um só paciente que fosse.

- Nunca? - Dockerty lançou a palavra com suavidade.

- Raios partam isto! - explicou David. - Tenente, já aturei mais do que o suficiente das suas insinuações! - Naquele momento abstraíra-se por completo de todos os que se encontravam presentes no anfiteatro. - Caso tenha alguma acusação a apresentar, deve fazê-lo de imediato. E, enquanto concretiza isso, aproveite para explicar por que motivo fui eu quem repetiu incessantemente que havia algo que não jogava certo em todo o processo de reanimação. Por que é que fui eu a pessoa que pediu a análise ao nível do pot... - A palavra imobilizou-se na boca. Compreendeu, mesmo antes de Dockerty ter recomeçado a falar, onde é que o detetive queria chegar. - Maldição! - sibilou ele entre dentes, dando largas à sua frustração.

- Eu tive a oportunidade, doutor Shelton, de falar de fugida com alguns dos outros médicos e enfermeiras que estiveram consigo no quarto da Charlotte Thomas, quando da tentativa de reanimação. Tal como o senhor, algumas dessas pessoas sentiram-se perturbadas ao perceberem que havia qualquer coisa que não era absolutamente normal. Ao que tudo indica, o problema foi por de mais evidente para não ter escapado à atenção de outros, além de si. Quer eles tivessem ido tão longe como pedir que fossem realizadas análises ao sangue desta mulher, quer não, é um aspecto que jamais viremos a conhecer, uma vez que o senhor se lhes antecipou. Pelo menos no que diz respeito ao potássio, foi precisamente o que fez.

- E está a tentar dizer que eu procedi assim com a finalidade de me salvaguardar, e com o intuito de que ninguém pensasse em qualquer outra coisa, como por exemplo na morfina?

Dockerty limitou-se a um encolher de ombros.

- Isso é ridículo! Quero dizer que essa suposição é uma verdadeira loucura - gritou David.

- Doutor Shelton - retorquiu o detetive com toda a calma - , por favor, tente controlar-se. Eu não estou a acusá-lo, nem a qualquer outra pessoa, seja do que for.

- Por enquanto - ripostou David com brusquidão.

- Desculpe, mas não entendi o que disse?

- Nada. Já perguntou tudo o que me tinha a perguntar? - retorquiu David.

- Já sim, muito obrigado. - Uma vez mais, a postura de Dockerty era tão mecânica como se tinha mostrado ao longo da maior parte do inquérito.

Enquanto David regressava ao seu lugar, reparou que a meio da coxia central Wallace Huttner permanecia sentado, olhando-o fixamente com uns olhos de expressão metálica.

Involuntariamente, sentiu-se estremecer.

Dockerty sussurrou algo à Dra. Armstrong durante alguns segundos, após o que chamou Dorothy Dalrymple. A chefe das enfermeiras conseguiu levantar-se a custo do seu lugar, executando os movimentos laterais de uma rolha a sair do gargalo de uma garrafa. Depois de se ter libertado do assento, deslizou pela coxia com uma graciosidade paradoxal.

Trocou um aperto de mão cheio de feminilidade com Dockerty, após o que se instalou na cadeira de carvalho, exibindo um sorriso que dizia estar pronta a começar Dockerty levou-a a descrever o aspecto de Charlotte Thomas no dia anterior à sua morte, tal como se encontrava sumariado nos apontamentos elaborados pelas enfermeiras.

- O relatório das enfermeiras é feito geralmente no final de cada turno de trabalho -

explicou Dalrymple. - Por conseguinte, os apontamentos referentes ao turno da noite de dois de Outubro, só foram escritos depois da morte da doente. No entanto, a enfermeira que nessa noite tinha a seu cargo Mistress Thomas, Miss Christine Beall, viu-a às dezenove horas, aproximadamente duas horas antes do falecimento. O seu relatório, elaborado de uma maneira excelente, é bem claro ao dizer que a paciente se encontrava, e passo a citar, "alerta, com sentido de orientação e um tudo nada menos deprimida do que se mostrara ultimamente". Miss Beall acrescentou ainda que os seus sinais vitais, pulso, respiração, temperatura e tensão arterial encontravam-se todos estáveis. - Neste ponto das suas declarações, Dalrymple virou os seus ombros maciços na direção da assistência, olhando para a zona onde as enfermeiras se mantinham agrupadas. - Miss Beall - chamou ela - , tem alguma coisa a acrescentar ao que eu acabei de dizer ao tenente?

Christine, que se sentira extremamente deprimida e alheada dos acontecimentos em seu redor desde a explosão temperamental de David, não prestava atenção ao desenrolar dos acontecimentos. Havia menos de vinte e quatro horas que ela se inteirara da existência de morfina no corpo de Charlotte. A informação fora-lhe dada através do telefone por Peg, a enfermeira que lhe tinha pedido que avaliasse o estado de saúde de Charlotte Thomas.

- Christine, quero mantê-la a par de tanto quanto nós sabemos daquilo que está a passar-se no hospital, sem que no entanto você se sinta preocupada por motivos desnecessários - dissera-lhe a mulher. - Amanhã à noite vai ter lugar uma espécie de inquérito relativo a este caso, de acordo com as informações que me foram facultadas. Vão enviar um detetive ao hospital. No entanto, a sua "irmã" a Janet Poulos, reviu os seus apontamentos na papeleta da doente. Ela está convicta de que não existe nada nesse documento que possa implicá-la, seja de que forma for. Estamos em crer que essas averiguações não produzirão quaisquer resultados, pelo que será de pouca duração. Acreditamos também que a morte de Charlotte Thomas será atribuída às ações de qualquer pessoa, cujo nome e motivos jamais virão a ser descobertos. Todas as atividades d'A Irmandade, que têm lugar no seu hospital, serão reduzidas indefinidamente, pelo que dentro de pouco tempo todo esse assunto deverá ser esquecido. Você não corre qualquer perigo, seja este de que natureza for, Christine... Por favor acredite no que estou a dizer-lhe.

Christine, com os lábios fortemente cerrados, olhava, absorta, para a abóbada dourada e azul quando Dalrymple se lhe dirigiu.

Afastada por vários lugares, Janet Poulos observava sem poder fazer nada, com todos os músculos tensos perante a perspectiva de Christine se pôr de pé, fazendo a sua confissão aos gritos para que todos os presentes a ouvissem, no prosseguimento do que gritaria o único outro nome d'A Irmandade de que tinha conhecimento: o de Janet. Deus do céu, como ela desejava que tivesse havido um período de aviso suficiente para poder ter telefonado a Dahlia. Esta teria sabido com exatidão a melhor maneira de lidar com aquele assunto.

O olhar de Janet afastou-se de Christine, concentrando-se no lugar onde Angela Martin se encontrava sentada, a qual mantinha os seus frios olhos azuis na cena que se passava mais abaixo de si; os seus cabelos dourados mantinham-se no seu lugar num penteado impecável. A mulher era totalmente desprovida de nervos. Mesmo que fosse o seu nome o que Christine Beall conhecesse, Janet duvidava que Angela se mostrasse minimamente perturbada. Durante aproximadamente dez anos ambas haviam sido membros d'A Irmandade, sem nunca terem travado conhecimento pessoalmente. Agora eram melhores amigas; partilhando o empolgamento e as compensações que Lhes advinham d'O Jardim e tecendo especulações acerca da mulher que as reunira.

Janet perscrutou o anfiteatro, interrogando-se sobre se Dahlia teria arranjado maneira para que estivessem presentes outros olhos e ouvidos para além dos de Hyacinth e de Lily. Reconheceu que, muito possivelmente, esse seria o caso.

A mulher continuava a não passar de uma voz sussurrada ao telefone; todavia, Janet sentia-se impressionada pela sua lógica plena de frieza, assim como pela sua fonte de informações que parecia ser inesgotável. Devido a ela, O Jardim crescia com estabilidade, tanto em outros hospitais como no Médicos de Boston. Em todos os lugares onde existisse um membro d'A Irmandade da Vida, havia uma flor em perspectiva. Dahlia acreditava mais nisso do que em qualquer outra coisa. As diretrizes de base das duas organizações eram as mesmas: enfermeira e doente a sós num quarto. Talvez ela se tivesse mostrado demasiado precipitada em relação a Christine Beall, embora continuasse a ser uma mulher com uma capacidade de discernimento quase perfeita, a qual Janet desejava desesperadamente vir a conhecer.

Encontrando-se impotente de momento, Janet recostou-se mais para trás no seu assento, limitando-se a observar os acontecimentos.

- Miss Beall? - voltou a chamar Dalrymple. Entretanto, Winnie Edgerly acotovelou

Christine. - Perguntei-lhe se tinha alguma coisa a acrescentar àquilo que eu já disse ao tenente.

Christine engoliu em seco. Uma vez e depois outra. Apesar disso, quando tentou falar só lhe assomou à boca um som abrasivo semelhante ao de uma folha de lixa. Aclarou a garganta, apertando mais os braços da sua cadeira.

- Lamento muito - disse ela com dificuldade. - Não tenho mais nada a acrescentar.

Janet soltou um suspiro de alívio e cerrou os olhos. Beall conseguira ultrapassar aquela situação adversa.

Christine baixou o olhar até ao lugar onde David permanecia sentado; este mantinha a cabeça apoiada na palma de uma das mãos, mostrando um olhar vazio que não se despregava de Dalrymple e de Dockerty. Ela sentia tanto quanto via o seu isolamento. Na realidade, apercebeu-se de que ela própria também se encontrava isolada. Não obstante os telefonemas de Peg, apesar das palavras de Janet e do conhecimento que tinha de que A Irmandade da Vida lhe dava todo o apoio, Christine sentia-se como se estivesse à deriva. Naquele momento, almejava poder correr para ele, instilando-lhe confiança fosse de que maneira fosse. Para lhe dizer que ela, acima de toda a gente, sabia que ele não tivera nada a ver com a morte de Charlotte Thomas.

- Vai correr tudo da melhor maneira - murmurou Christine para consigo própria, o que repetiu vezes sem conta. - Limita-te a deixar estar as coisas como estão e tudo irá compor-se. - Forçou-se a concentrar a sua atenção nos acontecimentos que se

desenrolavam um pouco mais abaixo de si.

- Miss Dalrymple - continuou Dockerty - , tem consigo uma lista dos medicamentos que foram administrados a Charlotte Thomas?

A interpelada acenou que sim.

- Ela estava a ser medicada com Cloramphenicol, o que é um antibiótico, e Demoral, um analgésico.

- Nada de morfina?

- Nada de morfina - ecoou ela com um abanar de cabeça para dar mais ênfase às suas palavras.

- Nada de morfina - repetiu Dockerty, deixando que a palavra ficasse a pairar no ar,

embora nem por isso a sua voz deixasse de ser sobejamente elevada para que todos os presentes a ouvissem. - Diga-me - prosseguiu o detetive - , é plausível que uma das enfermeiras, ou qualquer outro membro do pessoal hospitalar tenha conseguido apoderar-se de sulfato de morfina em quantidades como as que o doutor Hadawi sugeriu terem sido administradas a Mistress Thomas?

Dalrymple ponderou cuidadosamente a pergunta antes de falar.

- A resposta à sua pergunta será, como é lógico, que qualquer pessoa pode lançar a mão a qualquer droga, desde que possa dispor da quantia suficiente em dinheiro, estando disposto a procurar fora dos canais legais para atingir os seus objetivos. No entanto, eu diria que é virtualmente impossível a uma das minhas enfermeiras, ou a qualquer outra pessoa conseguir apoderar-se de mais do que uma quantidade ínfima dos narcóticos existentes no hospital. Bem vê, em cada um dos pisos só existe uma quantidade muito reduzida de narcóticos injetáveis, o que é estritamente controlado por duas enfermeiras em cada mudança de turno, uma do grupo que tenha acabado o seu serviço e outra daquele que vai começar a trabalhar. A enfermeira que supervisiona o turno da noite tem acesso ao armazém do hospital, mas, até mesmo aí, os narcóticos encontram-se fechados à chave com a maior segurança, e só os farmacêuticos do hospital é que possuem a chave.

“Portanto - concluiu ela, mudando a posição do corpo rotundo na cadeira e entrelaçando as mãos, formando uma bola rechonchuda - , partindo do princípio que estamos a debater a forma legal, somente um médico ou um farmacêutico é que poderia obter uma quantidade substancial de morfina de uma só vez”.

Dockerty acenou com a cabeça, voltando a conferenciar numa voz murmurada com a Dra. Armstrong

- Miss Dalrymple - continuou ele pouco depois -, os apontamentos das enfermeiras

indicam se houve ou não quaisquer visitantes que tivessem ido ao quarto de Charlotte Thomas na noite da sua morte, não é verdade?

- As visitas aos quartos dos doentes, para além dos médicos, não são habitualmente

registradas no relatório das enfermeiras. Todavia, estou em posição de lhe poder dizer que não foi mencionada qualquer visita.

- Nem sequer a do médico que encontrou Mistress Thomas sem respiração e sem pulso? - perguntou Dockerty.

A expressão que se refletia no rosto de Dalrymple indicava que aquela referência dúbia, por parte do detetive, não merecia em nada a sua aprovação.

- Não - respondeu ela numa voz ponderada. - Não houve qualquer menção relativa à

entrada do doutor Shelton no quarto da doente. Apesar disso, apresso-me a acrescentar que a maior parte das enfermeiras fazia um intervalo nessa altura, precisamente no momento em que se verificou a paragem cardíaca. Nessa ocasião não havia ninguém no piso que pudesse ter dado conta da sua chegada.

Dockerty deu a impressão de ignorar aquele último aspecto.

- É tudo, muitíssimo obrigado - agradeceu o detetive. Enquanto ele indicava com um

gesto à mulher que poderia regressar ao seu lugar, David mostrou-se inflamado de novo.

- Tenente, eu estou a ficar farto disto tudo? - Num passo pouco seguro, pôs-se de pé

agarrando-se às costas da cadeira à sua frente. À sua esquerda, o rosto de lua cheia de Howard Kim ergueu-se na sua direção, exibindo uma fisionomia impassível. - Não sou capaz de compreender porque é que pensa aquilo que pensa, ou até mesmo até que ponto é que pretende chegar, mas permita-me que declare, aqui e agora, que eu jamais administraria uma droga, ou um tratamento, a um doente com o único objetivo de o prejudicar fosse de que maneira fosse. - Nos segundos que se seguiram à sua tirada David ouviu de novo a sua pequena voz mental, a qual lhe dizia que, uma vez mais, ele navegava ao sabor das suas próprias palavras, seguindo ao encontro de um redemoinho. "Senta-te, por amor de Deus", insistia a voz. "Ele não tem meios para te poder prejudicar, meu idiota. Somente tu é que podes prejudicar-te a ti mesmo. Senta-te e cala a boca!”

A raiva e o pânico que cada vez eram maiores abafavam o som daquela voz. As suas palavras eram estranguladas.

- Porque eu? Certamente que existirão outros... o marido da falecida, familiares ou

amigos, que tenham estado nesse quarto antes de mim. Por que razão é que está a

acusar-me?

- Doutor Shelton - redargüiu Dockerty numa voz neutra. - Eu não o acusei de nada. Já lhe disse isso há pouco mas dado que foi o senhor quem trouxe a questão a lume, nessa noite, o professor Thomas assistia a um seminário. Encontravam-se presentes vinte e três estudantes. Decorreu das dezenove às vinte e duas horas. E, tanto quanto ele sabe, não estavam programadas quaisquer visitas à mulher. Agora, se achar que já respondi cabalmente às suas questões, talvez possamos dar continuidade ao...

- Não! - gritou David, exaltado. - Todo este inquérito é um embuste. Não passa de um qualquer simulacro de um tribunal perverso. Um estudante do primeiro ano de direito poderia conduzir uma averiguação mais imparcial do que esta. Se a sua intenção é arrastar-me para qualquer coisa, então faça-o num tribunal onde, no mínimo dos mínimos, você terá de responder perante um juiz. - David interrompeu-se, esforçando-se por encontrar um resquício de domínio pessoal. Dentro da sua mente, a voz retomou o seu discurso.

“Não estás a ver, meu palerma, todo este inquérito foi uma cilada para que fizesses precisamente aquilo que fizeste até agora. Eu bem tentei dizer-te que mantivesses a”.

cabeça fria, mas tu nem sequer sabes como fazer isso, não é verdade?”“.

- Muito bem - continuou Dockerty. - Parece-me que por agora já ouvimos o suficiente. Num futuro próximo, entrarei em contacto com alguns de vós, o que será feito individualmente. Agradeço a todos o terem estado presentes. - Murmurou algumas palavras finais dirigidas à Dra. Armstrong e, em seguida, reuniu os seus apontamentos e deixou o anfiteatro, sem sequer lançar um olhar à figura petrificada em que David se transformara.

Quando finalmente este se acalmou o suficiente para largar as costas de madeira do

assento à sua frente e olhar em seu redor, o Anfiteatro Morris Tweedy encontrava-se

quase vazio. Christine e as outras enfermeiras já se tinham ido embora. Tal como o fizera Howard Kim. Quando examinou a parte de trás da sala, o seu olhar encontrou o de Wallace Huttner. Os olhos do cirurgião de estatura elevada estreitaram-se. Em seguida, com um abanar desdenhoso de cabeça, voltou-lhe costas e encaminhou-se para a saída, seguindo de braço dado com Peter Thomas.

David deixara-se ficar sozinho, fitando a tabuleta de luzes vermelhas que dizia SAÍDA por cima da porta do fundo, quando sentiu uma mão que lhe tocava no ombro. Girou sobre os calcanhares e o seu olhar foi ao encontro dos olhos azuis, de expressão preocupada, de Margaret Armstrong.

- Está a sentir-se bem? - perguntou a médica.

- Sim, com certeza, magnífico. - Não fez qualquer tentativa para acalmar a rouquidão no seu tom de voz.

- David, lamento tanto tudo aquilo que sucedeu aqui. Se eu soubesse que o tenente Dockerty iria atirar-se a si com tanta violência, jamais teria permitido que esta reunião se tivesse realizado. Ele só me disse que queria examinar o grau de espontaneidade das reações de várias pessoas. Acontece que você foi uma delas. De súbito, você entrou em erupção, não me tendo dado a mínima oportunidade de... - A médica desistiu de tentar explicar. - Veja bem, David - continuou ela ao fim de algum tempo. - Eu gosto bastante de si, o que aconteceu desde o primeiro dia em que você começou a trabalhar neste hospital. Só lhe peço que me dê a oportunidade de poder dizer o que tenho a dizer. Depois de tudo o que acabou de lhe acontecer, eu sei que isso não será nada fácil, mas, por favor, faça uma tentativa. Eu só pretendo ajudá-lo.

David olhou para ela; conteve a cólera que o invadia e acenou que sim.

- Que tal conversarmos um pouco no Popeye's? - O sorriso dela era sincero e caloroso.

- Pois seja, vamos até ao Popeye's - aquiesceu David agarrando no seu casaco. Lado a lado, os novos aliados deixaram o hospital.

O Popeye's, um marco local, já vira quase trinta anos de médicos e enfermeiras que

levavam os seus problemas, assim como as suas vidas, para as suas mesas. Do lado de fora do bar, um reclame de luzes de néon garridas - motivo de orgulho e alegria da gerência - representava as personagens extraídas das histórias aos quadradinhos, as quais iam em perseguição de Wimpy, que levava os braços cheios de hamburgers, cena que abrangia toda a largura da fachada do edifício. Quando entraram, David avistou quatro das enfermeiras que haviam estado presentes no inquérito. Nem Dotty Dalrymple nem Christine Beall se encontravam entre elas.

- Há anos que eu não vinha aqui - comentou a Dra. Armstrong depois de ambos se terem instalado a uma mesa do fundo. - O meu marido fez-me a corte em algumas destas mesas compartimentadas. Não há nada que tenha mudado realmente, com a exceção daquele reclame espalhafatoso do lado de fora, na fachada.

David reparou que ela não usava aliança de casamento.

- O seu marido está vivo? - perguntou ele.

- Não, ele morreu há oito... não, há nove anos.

- Sim, sim, que estupidez da minha parte - retorquiu David, recordando-se que ele, à

semelhança de toda a gente do Hospital Médicos de Boston, sabia que a médica era a viúva de Arne Armstrong, um neurofisiólogo de renome mundial e um possível laureado com o Prêmio Nobel, houvesse vivido o tempo suficiente para poder completar o seu trabalho. - Lamento muito.

- Não seja disparatado... - atalhou a Dra. Armstrong, detendo-se a meio da sua frase quando uma loura de boa figura, que usava uma saia curta preta e uma camisola

vermelha colada ao corpo, se aproximou para lhes perguntar o que tomavam. - Eu quero uma cerveja, de pressão. E aqui o meu namorado? - Sorriu a David.

- Uma Coca-Cola - disse ele. - Dupla e com muito gelo.

A empregada de mesa afastou-se e Armstrong pôs-se a olhar para David.

- Nem sequer... com tudo o que lhe aconteceu esta noite?

Ela sabia. É claro que ela sabia. Toda a gente estava a par. Mas ela não estava a pô-lo à prova. Da sua voz transpirava, compreendeu David, um sentimento de respeito.

- Já passaram quase oito anos desde que bebi a última gota de álcool. Ou que tomei uma pílula - acrescentou ele. - Será preciso muito mais do que aquilo que o Dockerty possa vir a arranjar contra mim para eu voltar de novo a isso. Apesar de saber que os meus dentes acabarão por se evaporar devido a toda a Coca-Cola que consumo. - A sua voz esmoreceu.

Ocorreu-lhe à mente o pensamento do detetive como que a observá-lo placidamente

através do corpo, ao que se seguiram as imagens de outras confrontações a que ele fora forçado a fazer frente ao longo dos anos, desde que Ginny e Becky haviam morrido.

Como se lesse os seus pensamentos, Armstrong prosseguiu.

- David, você sabe que eu estou ao corrente de muito do que aconteceu no passado. – Ele acenou que sim. - Pelo que você deve estar bem ciente de que o tenente Dockerty também está a par desses fatos. Não tenho bem a certeza de como é que ele se inteirou de tanto em tão pouco tempo, mas é inquestionável que ele se mostra bastante eficiente no seu trabalho, pelo menos é o que me parece. E você sabe que um hospital não passa de uma gigantesca casa de telhados de vidro. A vida de todos é assunto que diz respeito a todos os outros, e aquilo de que as pessoas não conseguem falar mal com um certo grau de certeza, habitualmente, são capazes de arranjar formas de preencher as lacunas.

David soltou uma única gargalhada de pesar.

- Já anteriormente me vi na situação de ser o centro dos rumores de um hospital -

retrucou ele. - Eu sei com toda a exatidão o que é que quer dizer. No entanto, desta feita não se trata apenas de algumas especulações inofensivas. Eu jamais me decidiria a prejudicar quem quer que fosse, quanto mais cometer um assassínio.

- Não tem necessidade de me dizer isso - replicou a médica. - Eu já acredito em si. Tal como lhe disse antes, parece-me que o tenente Dockerty é muito bom no trabalho que faz. Estou firmemente convicta de que esse aspecto virá a ser-lhe benéfico. Tenho a impressão de que ele não é o gênero de indivíduo que parará, até se encontrar perante um caso a toda a prova.

Entretanto, chegaram as bebidas que tinham pedido. David sentiu-se grato por ter a

oportunidade de interromper aquela conversa por alguns minutos.

- Talvez fosse preferível eu deixar de exercer voluntariamente as minhas funções, até que todo este assunto seja esclarecido - alvitrou ele por fim.

Armstrong bateu com o fundo da caneca sobre a mesa derramando algum do líquido e provocando uma expressão de perplexidade no casal que se sentava a uma mesa próxima.

- Raios o partam, meu jovem - exclamou ela -, nunca ao longo de toda a minha vida, encontrei alguém que fosse tanto o seu pior inimigo quanto você é de si próprio. Com base em tudo aquilo que ouvi esta noite, e naquilo que acredito ser a verdade, o nosso amigo tenente terá de desenterrar muito mais em termos de provas incriminatórias, antes de eu permitir a quem quer que seja, incluindo você próprio, que tome qualquer medida no sentido da sua suspensão de atividade. E, se por acaso você pensa que eu não possuo essa espécie de poder por estas bandas, então é melhor que me observe atentamente.

O sorriso que David esboçou assomou-lhe aos lábios com mais facilidade do que

acontecera durante toda a noite.

- Estou-lhe muito agradecido - disse ele. - Muitíssimo obrigado.

- Ora bem, deixemo-nos disso. - Ela lançou um olhar ao seu relógio de pulso. - Este velho pássaro tem um dia muito agitado amanhã no hospital. Portanto, sugiro que consideremos a noite por terminada. Havemos de ter oportunidade de voltar a conversar. Entretanto, você tem de se obrigar a descontrair-se um pouco mais. Seja paciente. As pessoas como o detetive Dockerty, entre as quais se inclui o seu amigo Wallace Huttner, não se lhes pode dizer grande coisa. Eles próprios é que têm de deslindar os assuntos. - Com aquelas palavras Armstrong alisou uma nota de cinco dólares que havia colocado sobre a mesa e, sem esperar pelo troco, encaminhou-se para o seu automóvel acompanhada de David.

Quando entrou e desceu o vidro da janela, David recomeçou a falar.

- Eu já me repeti em tantas ocasiões, que às vezes tenho a impressão de que sou um disco riscado, mas... muito obrigado. Imagino que não existam palavras mais adequadas para exprimir o que sinto. Estou-lhe deveras agradecido.

- Preocupe-se apenas em ter cuidado consigo, David - retorquiu a médica - , a fim de

conseguir ultrapassar esta situação adversa sem grandes contrariedades. Esses serão os únicos agradecimentos de que preciso.

David ficou a olhar enquanto o automóvel se afastava e desaparecia ao virar da esquina; depois começou a andar numa atitude absorta para o lote adjacente do parque de estacionamento onde deixara o carro. Este, um Saub amarelo que comprara havia menos de um ano, encontrava-se apoiado sobre as jantes. Os quatro pneus haviam sido maldosamente golpeados. No painel lateral do lado do condutor, estava escrita a palavra assassino, desenhada de forma grosseira a tinta em aerossol vermelha.

- Uma casa grande com telhados de vidro - resmungou David enquanto olhava para

aquele ato de vandalismo. - Foi você quem o disse, minha senhora. Um estupor de um grande animal sob a forma de uma casa de vidro.

 

Barbara Littlejohn esperava havia apenas um minuto do lado de fora do terminal da TWA, quando o táxi chegou. O que foi o tempo suficiente para que o clima agreste daquele fim de dia em Nova Inglaterra, lhe penetrasse nas roupas, enregelando-lhe as articulações e fazendo com que a pele ficasse tão contraída que lhe doía. O vôo de Los Angeles já tinha sido suficientemente punitivo, pensou ela, mas aquilo... Continuava a tremer quando o táxi passou pela portagem, circulando em marcha lenta devido ao grande aglomerado de trânsito e entrando no Túnel Sumner, a passagem úmida e cheia de gases emitidos pelos tubos de escape, que ligava a zona leste de Boston com o centro da cidade. Quando por fim conseguiram sair da baixa já tinha começado a chover.

Barbara insistiu em que o taxista tomasse o caminho que a deixasse o mais próximo

possível do hotel Copley Plaza. Entrou apressadamente no vestíbulo, perguntando a si própria como é que em tempos achara o clima na Nova Inglaterra encantador e fantástico.

Era uma mulher atraente prestes a atingir o fim da casa dos quarenta; tinha uma estatura elevada e tez bronzeada, sendo quase tão magra como nos dias em que freqüentara a escola de enfermagem, altura em que trabalhara como modelo para poder custear as suas despesas. O recepcionista do hotel, embora fosse no mínimo dez anos mais novo do que ela, despiu-a com os olhos.

- Eu faço parte da Fundação Donald Knight Clinton - anunciou ela, ignorando o olhar de soslaio que o homem lhe lançara. - A reunião do conselho de direção vai ter lugar?

- Oh, sim, minha senhora. às vinte horas no salão trinta e três no primeiro andar. Os

elevadores são do outro lado do vestíbulo - Olhou para o seu saco de viagem. - Tenciona ficar alojada no hotel esta noite? - perguntou ele, lançando-lhe o mesmo olhar de soslaio.

- Não, obrigada, ficarei em casa de pessoas amigas. - Afastou-se deixando o homem entregue às suas fantasias.

Entretanto, entraram duas mulheres, uma de Chicago e a outra de Dallas, as quais

avistaram Barbara quando chegaram ao vestíbulo, alcançando-a já no elevador. Houve uma troca de olhares breve mas calorosa, após o que as três subiram ao primeiro andar.

Era segunda-feira; ainda nem sequer tinham decorrido vinte e quatro horas desde que se realizara o inquérito no Hospital Médicos de Boston. As mulheres ali reunidas, ao todo dezesseis, haviam reorganizado apressadamente os seus horários de trabalho a fim de poder participar na reunião que teria lugar no Copley; eram oriundas de todas as partes do país: Nova Iorque, Filadélfia, São Francisco, Miami. Participavam naquela reunião porque Peggy Donner as tinha convocado. A outra razão da sua comparecimento era o empenhamento que dedicavam à organização, uma vez que eram diretoras regionais d'A Irmandade da Vida.

O salão com o número 133 era luxuoso. As paredes estavam revestidas de veludo machucado de um verde-seco; viam-se algumas litografias de cavalos de linhas alongadas, as quais reproduziam imagens das corridas de Punchestown realizadas em 1862. Havia ainda uma mesa de reuniões no centro do salão; o mobiliário era complementado por uma outra de apoio num dos lados, assim como um grande sofá de couro verde, exageradamente estofado, situado por baixo de uma janela isolada.

Barbara trocou apertos de mão com as que tinham chegado primeiro - procedendo a uma contagem rápida. Doze. As quatro que vinham de Boston estavam atrasadas - número em que se incluía Peg.

- Não há café? - perguntou Barbara sem se dirigir a ninguém em especial, enquanto abria a sua pasta de onde extraiu um processo volumoso assinalado pela designação Fundação Clinton, colocando-o à cabeceira da mesa de madeira polida.

A animação não tardaria a subir. O seu sentido de humor quebrou a tensão que reinava na sala, embora aquela pausa fosse transitória. A convocação daquela reunião de emergência não tinha precedentes e, de todas as que se encontravam presentes, somente Barbara é que sabia ao pormenor qual a finalidade desta. Olhou para o seu relógio. Vinte horas e dez minutos. A reunião trimestral que costumavam realizar só muito raramente é que começava para além da hora marcada. Mas aquele assunto fora organizado por Boston e, embora ela tivesse agendado outros aspectos que tencionava abordar, teria de esperar.

Em várias partes do salão, formando pequenos grupos que conversavam em voz abafada, as mulheres partilhavam novidades respeitantes às suas famílias, à sua carreira de enfermagem e aos estabelecimentos hospitalares onde trabalhavam. Eram oriundas de mundos onde cada uma delas era detentora de uma posição de relevo, poder e influência.

Susan Berger, a enfermeira coordenadora do Consórcio Hospitalar de São Francisco, travava uma conversa trivial com June Ullrich, a qual era a diretora de estudos de mercado da maior empresa farmacêutica do país. Elas sabiam, tal como todas as outras, que deviam as suas posições de prestígio ao envolvimento que mantinham com A Irmandade da Vida. Funcionando através da sua atividade visível, a Fundação Donald Knight Clinton, a organização publicava mensalmente um boletim informativo, no qual se atualizava a situação de vários projetos de natureza filantrópica, da iniciativa d'A Irmandade, assim como informava os particulares relativos a lugares superiores no campo da enfermagem que se encontrassem em aberto e para os quais os membros da organização teriam preferência.

Na sua qualidade de diretora coordenadora d'A Irmandade, Barbara Littlejohn também acumulava o cargo de diretora da Fundação Clinton, o que era acompanhado de meio milhão de dólares de donativos, que eram feitos voluntariamente todos os anos pelas enfermeiras pertencentes à organização. Embora fosse ela a detentora dos títulos, a influência e muito do poder continuavam nas mãos de Peggy Donner. Barbara voltou a ver as horas, espalhando os apontamentos que trouxera sobre a mesa. Dentro de mais cinco minutos ela iniciaria a sessão, quer Peg estivesse presente quer não.

Nesse preciso momento, o paquete, um homem com cara de fuinha e cabelos cheios de brilhantina, entrou com um carrinho onde vinha o café. Estendeu uma toalha sobre a mesa de apoio, distribuindo as chávenas, os talheres e o bule do café, o que fez com gestos onde abundavam os floreados. Para toque final, saiu do salão onde regressou logo depois com um arranjo floral para centro de mesa, o qual colocou com toda a cerimônia entre as chávenas meticulosamente distribuídas.

- Flores - comentou Susan Berger. - Ora bem, é a primeira vez que isto acontece. A Peggy deve estar a tentar amansar-nos para outro dos seus esquemas. Mas não há dúvida que são muito bonitas.

O paquete sorriu, como se o cumprimento lhe fosse dirigido pessoalmente. Ainda passou alguns momentos a desempenhar o papel de figura central, dando os últimos retoques ao arranjo floral, após o que retrocedeu em direção à porta do salão, continuando a exibir o seu sorriso. Não obstante os seus esforços, o recipiente continuava a dar a impressão de estar a extravasar de dálias. As flores advertiam que O Jardim se manteria vigilante e à escuta; o rebento procedia à avaliação do progenitor. Era um aviso que somente uma das pessoas presentes na reunião é que estaria em condições de compreender.

Ruth Serafini, a diretora robusta e dinâmica da Escola de Enfermagem do Hospital White Memorial, foi a primeira do grupo de Boston a chegar. Peggy Donner disseminara o movimento na região de Boston e, embora este se houvesse espalhado com celeridade aos restantes hospitais por todo o país, a representação de Boston continuava a ser, de longe, a maior. Eram necessárias três diretoras, incluindo Ruth, só para supervisionar as atividades nos estados da Nova Inglaterra. Peggy deixara de se envolver pessoalmente nas operações do dia-a-dia.

- As outras ainda vão demorar muito tempo? - perguntou Barbara depois de um breve aperto de mão.

- Não faço a mínima idéia. Fiquei presa no tráfego. - Ruth serviu-se de uma chávena de café, após o que se sentou à mesa.

- Peço desculpa a todas pelo atraso - disse Barbara finalmente. - Acho que deveríamos começar, a fim de tratarmos primeiro dos assuntos relacionados com a fundação. Só passaram seis semanas desde a última reunião, pelo que esta noite não será apresentado nenhum relatório financeiro. - As enfermeiras que ainda permaneciam de pé ocuparam os seus lugares. Barbara examinou o grupo, olhando para cada uma individualmente e dirigindo-lhes um sorriso. O quão longe elas tinham chegado, desde os tempos em que formavam um pequeno grupo de enfermeiras, que costumavam reunir-se na casa de Peggy com o propósito de partilhar as suas visões e ideais, o que mais tarde daria origem à estruturação d'A Irmandade. Enquanto se preparava para iniciar os trabalhos, chegaram as duas que ainda faltavam. A primeira, Sara Duhey, era uma mulher de raça negra de grande beleza, diplomada em cuidados de enfermagem especialmente dedicados aos doentes em estado crítico. A segunda era Dotty Dalrymple

- Bem-vindas - saudou Barbara calorosamente. - Não há nada como chegar com vinte minutos de atraso à nossa própria festa.

- Não é nossa, Barb - atalhou Dalrymple. - A festa é da Peggy. Ela chegará dentro em pouco. Quer que tu dês seguimento a quaisquer assuntos que tenhas a abordar.

- Muito bem - Barbara deu uma olhadela pelos assuntos que tinha agendado. - Está

aberta a sessão. Em primeiro lugar temos os relatórios de progressos dos centros rurais de saúde. As consultas externas tiveram um acréscimo de quase cem por cento, tanto nas clínicas do Kentucky como nas da Virgínia do Oeste. As enfermeiras que administram esses estabelecimentos asseguram-nos que, dentro de um ano, estes serão completamente autônomos. - As diretoras aplaudiram aquelas notícias; as duas que se encontravam sentadas junto de Tania Worth de Cincinnati bateram-lhe amigavelmente nas costas. Aqueles centros haviam sido obra sua, tendo sido aprovados, em grande parte, devido ao empenhamento que ela lhes dedicara. Tania mostrava uma expressão radiante.

A discussão passou rapidamente a outros assuntos: os centros de dia para os filhos de enfermeiras que trabalhavam, equipamento moderno para hospitais cujos financiamentos eram insuficientes, bolsas de estudo com vista a níveis mais avançados de enfermagem, num esforço para melhorar a imagem e as funções das enfermeiras hospitalares. Susan Berger apresentou um breve relatório do que havia sido feito em todo o país, quanto à elaboração de documentos que expressassem as últimas vontades, o que proporcionaria a cada pessoa o direito de limitar, a tempo, as medidas de prolongamento de vida a serem utilizadas, em caso de doença grave. Até à data, esses esforços, concebidos havia muito tempo por Peggy Donner tinham tido muito pouco êxito.

- Por último, embora não seja menos importante - continuou Barbara - , recebemos uma carta da Karen. Algumas de vocês nunca tiveram oportunidade de a conhecer, mas ela fez parte da direção durante vários anos, antes de o marido ter sido nomeado para a Embaixada Americana em Paris. Ela manda cumprimentos e deseja que todas estejamos bem de saúde. Em menos de dois anos, conseguiu ascender ao lugar de assistente da chefe das enfermeiras do hospital onde trabalha. - Várias das mulheres mais velhas aplaudiram aquelas notícias. Barbara sorriu. - Parece - prosseguiu ela - que a Karen conseguiu localizar quatro membros d'A Irmandade, a partir de uma lista que eu lhe enviei das que se mudaram para a Europa. Diz ela que esses membros da nossa organização se encontram muito perto de estabelecer um comitê de avaliação, mas não são capazes de chegar a um acordo quanto à língua que deve dar o nome à sucursal européia: inglesa, francesa, holandesa ou alemã.

- Talvez devêssemos levar em consideração como é que o nome "A Irmandade" soaria em esperanto - sugeriu uma das presentes.

As diretoras riam-se daquela sugestão quando Peggy Donner entrou no salão. Fez-se imediatamente silêncio.

No meio daquele mutismo, Peggy estabeleceu deliberadamente contacto visual com cada uma das mulheres. Quase que de uma maneira relutante, pelo menos foi essa a impressão com que se ficava, a seriedade da sua expressão deu lugar a uma de orgulho.

Aquelas eram das mais amadas dos seus vários milhares de filhas.

- O fato de vos poder ver de novo eleva o meu espírito, como nada mais o poderia fazer. Peço desculpa pelo meu atraso. - Dirigiu-se para a cabeceira da mesa, detendo-se junto do enorme arranjo de dálias. Os seus lábios esboçaram um sorriso enigmático. Então, selecionou uma flor branca em botão de grande pureza e magnificência, que manteve nas mãos enquanto mostrava uma fisionomia pensativa. Por fim, com um olhar na direção de Barbara, a qual confirmou que chegara a altura Peggy assumiu a condução dos trabalhos.

- Já decorreram quase quarenta anos, quarenta anos, desde que quatro enfermeiras, que não se encontram entre nós, e eu própria formamos a sociedade secreta que haveria de se transformar na nossa Irmandade. A Charlotte Thomas morreu no Hospital Médicos de Boston. Quando nos conhecemos o nome dela era Charlotte Winthrop, nessa altura ela era apenas uma finalista do curso de enfermagem, embora fosse um elemento extremamente vital e muito especial. A Charlotte manteve-se ativa na nossa organização durante somente mais ou menos uma década. Contudo, durante esse período ela foi uma das pessoas responsáveis, tanto como qualquer outra, pelo nosso extraordinário desenvolvimento.

“Foi acometida por uma doença terminal, estado de saúde que se agravou devido a uma escara de dimensões cavernosas, tendo expressado perante mim o desejo desesperado que tinha pela liberdade que a morte lhe traria. Também manifestou esse desejo ao seu médico assistente, mas, à semelhança do que acontece com tanta freqüência na sua profissão, ele fez ouvidos de mercador, continuando a utilizar os métodos de tratamento mais agressivos, com o propósito de prolongar a agonia irremediável por que ela estava a passar”.

“Há vários dias, chamei à nossa Irmandade uma jovem enfermeira de qualidades excepcionais, Christine Beall, pedindo-lhe que avaliasse a situação da Charlotte, a fim de ser apresentada posteriormente ao nosso Comitê Regional de Avaliação. Por várias razões, tanto pessoais como profissionais, foi-me impossível tratar desse assunto pessoalmente. O comitê aprovou e recomendou a administração de morfina por via intravenosa. Como conseqüência de uma série de circunstâncias imprevisíveis e adversas, realizou-se uma autópsia invulgarmente minuciosa, a qual veio a revelar um índice de morfina no sangue muito acima dos valores normais”.

As enfermeiras mantinham-se sentadas num grande mutismo, enquanto Peggy descrevia em traços largos a investigação que se seguira, assim como a reunião que tivera lugar no Anfiteatro Tweedy por iniciativa de John Dockerty. Enquanto falava, ela andava de um lado para o outro, servindo-se distraidamente do arranjo floral como uma espécie de adereço. A entoação que dava à voz era constante e calma, cingindo a apresentação apenas aos fatos. Só quando começou a discutir David Shelton é que se percebeu alguma emoção nas suas palavras.

Começou a descrever o passado do médico com grande minúcia, acentuando as dificuldades que se lhe haviam deparado, em conseqüência da sua habituação ao álcool, juntamente com os estupefacientes. A sua voz, bem como a expressão do rosto, não ocultava o desprezo que sentia.

- Trata-se de um homem jovem deveras perturbado - afirmou ela categoricamente. - Um indivíduo que prestaria um grande serviço à comunidade médica se se afastasse dela de uma vez por todas.

A passada de Peggy adquiriu um ritmo mais rápido, enquanto procurava as palavras mais adequadas

- Minhas irmãs - continuou ela com uma fisionomia inflexível - há mais de vinte anos que o nosso sistema dos Comitês Regionais de Avaliação foi estabelecido. ao longo de todos estes anos, já lidamos com mais de três mil e quinhentos casos. sem que se tenha verificado qualquer indício do mais pequeno envolvimento da nossa parte, ou de qualquer outra pessoa. Existem todas as razões possíveis, e imaginárias, para se poder acreditar que a situação ocorrida em Boston jamais voltará a acontecer. Infelizmente, sucedeu desta vez. Desde o início da investigação policial que eu me tenho mantido em contacto com o tenente Dockerty. Embora ele suspeite da culpabilidade deste Shelton na morte da Charlotte, o detetive não está cem por cento convencido. Cada vez mais, ele vai ficando ciente do relacionamento especial que existia entre Christine Beall e esta doente. Ele até já mencionou a possibilidade de ela se submeter a um teste poligráfico. É evidente que eu nunca permitirei uma coisa dessas!

Pela primeira vez, várias das enfermeiras sentadas à volta da mesa trocaram olhares de preocupação. Nenhuma delas a tinha visto alguma vez tão próxima de perder o controlo.

A atmosfera que reinava no salão começou a ficar cada vez mais opressiva.

- Nós somos uma irmandade - continuou Peggy. - O nosso juramento é tão sagrado e imutável como se fosse um pacto de sangue. Sempre que uma de nós sofre, todas nós devemos partilhar da sua dor. Quando uma de nós se encontra sob a ameaça de ser exposta, tal como acontece presentemente com a Christine, temos a obrigação de acorrer de imediato em seu socorro. Eu e cada uma de vós temos o direito de esperar esse comportamento por parte das nossas irmãs. Temos a obrigação de a proteger! - A voz da mulher elevara-se numa estridência estrangulada, onde se detectava um timbre de desespero. Durante algum tempo reinou o silêncio, quebrado apenas pelo bater pesado da chuva contra os vidros da janela por detrás dela. Na sala, a sensação de mal-estar deu lugar à tensão e, para algumas das presentes, a um pressentimento de mau agouro. As pétalas da flor que Peggy amarfanhara na mão começaram a tombar para o chão.

Barbara Littlejohn levantou-se da sua cadeira a fim de restabelecer o controlo da

situação.

- Peggy, queremos agradecer o teu contributo - disse ela, tentando ocultar a tensão que se adivinhava na sua voz.

- Sabes bem que todas nós nutrimos os mesmos sentimentos que tu própria pela organização. Sem sombra de dúvida que estamos firmemente empenhadas em proporcionar à Christine Beall todo o apoio que estiver ao nosso alcance. - Esperava contra todas as suas expectativas, que a confiança que tentava instilar tivesse algum

impacto sobre o que Peggy estava prestes a exigir. O olhar vazio da mulher disse-lhe o contrário.

- Eu quero que esse homem venha a ser inculpado. - As palavras de Peggy, que mal eram audíveis, foram articuladas através de dentes cerrados.

As outras mulheres ficaram de boca aberta para ela, sem quererem acreditar no que estavam a ouvir. Dotty Dalrymple ocultou o rosto com as mãos.

- O que é que está para aí a dizer? - perguntou Susan Berger, a primeira a reagir. Da sua voz emanava um sentimento de alguma cólera e de incredulidade.

Peggy lançou-lhe um olhar de poucos amigos; todavia, Susan não afastou os olhos.

- Susan, eu quero aliviar a pressão a que neste momento a Christine Beall se encontra sujeita. Não temos maneira de saber o que é que poderá acontecer-lhe, assim como à nossa Irmandade, caso a Polícia tente demolir as suas defesas. Eu trabalhei muito para não permitir que nos suceda uma coisa dessas. O nosso trabalho é demasiado importante. Quero a aprovação do conselho de direção, o que me permitirá tomar as medidas necessárias, com o objetivo de proteger a Christine, assim como os nossos interesses. Com um pouco de empenho da nossa parte, tenho a certeza de que conseguiremos convencer a Polícia da culpabilidade do doutor Shelton. Levando em consideração o seu passado, o mais grave que lhe poderia acontecer seriam alguns meses internado num hospital qualquer, a par de um ano ou dois em que seria afastado da medicina. O que me parece ser um preço baixo a pagar por...

- Peggy, não posso estar de acordo com uma coisa dessas - afirmou Ruth Serafini. -

Não me interessa o que esse Shelton possa ter feito. Qualquer coisa dentro desses moldes atenta contra a dignidade da vida de um homem, para além de estar em total oposição a tudo o que nós defendemos. - As suas palavras provocaram murmúrios de aprovação e de apoio da parte de bastantes das enfermeiras presentes. Serafini olhou em redor da mesa.

Das quinze mulheres havia sete que dariam o seu apoio a Peggy, independentemente daquilo que ela lhes pudesse pedir. E quanto às outras? Numa votação a diferença seria diminuta. Ruth continuou, numa tentativa para fazer prevalecer o seu ponto de vista. - E se deixarmos que as coisas sigam o seu curso normal à espera de ver o que acontece? Caso venha a ser necessário, poderemos proporcionar à Christine Beall os meios financeiros suficientes, para além de advogados e tudo o mais de que ela possa vir a precisar. Neste ponto da situação nem sequer existe a certeza de que...

- Não! - A palavra mais parecia uma bofetada. Ruth Serafini afastou-se do olhar de Peggy, como se este expedisse dardos contra o seu peito. Peggy reforçou o seu ataque. - Não estás a compreender? A pouco e pouco, não interessa o quão esforçadamente ela possa resistir, a Christine acabará por falar de nós à Polícia.

“Não estás a ver as distorções que seriam publicadas pela imprensa? Seriam a nossa ruína. Isso poria fim ao nosso sonho para todo o sempre. Jamais permitirei que isso venha a suceder - Arremessou a flor mutilada para cima da mesa, voltando-se para a janela. Os seus ombros soergueram-se de tão arquejante que era a sua respiração”.

Durante algum tempo, o único som que se ouvia era o da sua respiração ofegante e a música fantasmagórica da tempestade de Outono. E, contudo, quando Peggy se voltou de novo para a mesa, sorria. A sua voz era suave. - Minhas irmãs, há um ano apresentei-vos um plano por meio do qual poderíamos, por fim, informar o público da nossa existência, assim como da tarefa sagrada que chamamos a nós. De posse da gravação de vários milhares de relatórios de casos, provenientes das enfermeiras mais qualificadas e respeitadas espalhadas por todo o mundo, concluí que poderíamos organizar uma campanha, com vista a uma aceitação numa escala alargada, que aqueles que mais se opõem àquilo em que nós acreditamos não teriam outra opção para além de aceitar de bom grado. Isso teria sido o ponto culminante do trabalho de toda uma vida, tanto para mim como para todas vós.

“Tal como se encontra estipulado nos nossos estatutos, submeti a minha proposta à”.

vossa votação. Saí derrotada. Tal como é da minha maneira de ser, aceitei os desejos da nossa Irmandade. Quero afirmar-vos neste momento que, caso esta noite não decidirmos agir com vista a proteger esta mulher das ameaças que impendem sobre ela, não hesitarei em avançar com esse plano, em vez de arriscar uma divulgação sensacionalista, distorcida e aviltante por parte da Polícia e da imprensa. Estou disposta a tornar estas gravações públicas. Encontram-se em meu poder... todas elas, e não hesitarei em fazê-lo.

As que estavam sentadas em redor da mesa trocaram olhares inquietos. Aqueles relatórios gravados eram o pacto de sangue que as unia inexoravelmente. Uma vez apresentados - dado que todos aqueles testemunhos eram provenientes de uma enfermeira - não havia maneira de ela renunciar ao compromisso que mantinha com o movimento. Desde os primórdios da organização que isso ficara estabelecido.

Inicialmente, eram apresentados por escrito, mas numa fase posterior passaram a ser gravados. Todas as que se encontravam presentes tinham sido responsáveis por eles - algumas por várias vezes - e agora Peggy propunha-se torná-los do domínio público.

Qualquer tipo de desafio que ainda restasse entre as diretoras dissipou-se por inteiro.

- Barbara, gostaria que se procedesse a uma votação que me desse a autoridade para poder fazer tudo o que seja necessário, com a finalidade de me assegurar de que o doutor Shelton venha a ser incriminado - continuou Peggy, dirigindo-se a Barbara Littlejohn -, a fim de proteger os interesses da Christine Beall, assim como os d'A Irmandade da Vida.

Barbara sabia de antemão que qualquer outro argumento adicional não produziria resultados positivos. As expressões que se refletiam nos rostos que via à volta da mesa secundavam a conclusão a que chegara. Com lentidão, Sara Duhey ergueu o braço.

Seguindo uma determinada ordem, o olhar de Barbara chamou cada uma das enfermeiras a votarem; uma a uma, todas as mãos se levantaram. O voto de apoio à

proposta era unânime.

Quebrando silêncio que se seguiu, Dotty Dalrymple aclarou a garganta, fazendo uso da palavra pela primeira vez.

- Peggy, tal como tu estás bem ciente, a Christine Beall é uma enfermeira que faz parte da minha equipa de trabalho. Com o decorrer do tempo, tive oportunidade de a conhecer bastante bem, embora ainda não tenha decidido pô-la ao corrente do compromisso que assumi para com A Irmandade. Tal como tu acabaste de descrever, ela é uma enfermeira extraordinária, dedicada aos ideais que todas nós partilhamos. Podemos nós estar seguras de que ela permitirá que esse homem responda pelos atos de que ela própria é responsável, independentemente das decisões que possamos tomar aqui, esta noite?

Aquela pergunta estivera no pensamento de todas as enfermeiras que ali se encontravam

- Esse aspecto, Dorothy, deve ser da nossa responsabilidade... tua e minha. Quando a ocasião for a mais apropriada, tu terás de falar com ela. Explicar-lhe a situação como só tu poderás fazer. Eu sei que conseguirás com que ela compreenda. É muito possível que te vejas forçada a partilhar o teu segredo com ela, mas estou em crer que ela merece essa prova de confiança. Caso venha a ser necessário, eu e todas nós aqui presentes estamos dispostas a pô-la ao corrente do nosso segredo. Esta solução parece-te ser aceitável?

- Há já muito tempo que te conheço, e bem de mais, para te perguntar se tenho qualquer alternativa - retorquiu Dalrymple com um sorriso. - Eu falarei com ela.

Peggy acenou com um gesto de satisfação, retribuindo o sorriso.

Na verdade, Dorothy Dalrymple conhecia Peggy bastante bem. Desde o início que Dotty acompanhara a sua ascensão profissional, chegara ao ponto de ter tido influência na sua decisão de entrar na escola médica, na altura em que isso tinha sido suficientemente difícil para as mulheres de uma maneira geral, quanto mais para uma enfermeira. Havia seguido atentamente o extraordinário sucesso de Peggy no campo da cardiologia, o que ela culminara com o casamento com um dos mais famosos cientistas e defensor dos direitos humanos em todo o mundo. Observara-a a assumir a chefia do pessoal médico de um dos mais prestigiados hospitais do país.

Ela sabia, tão certo como sabia que existia o nascer do Sol que Margaret Donner Armstrong poderia atingir qualquer objetivo que se propusesse alcançar. A sentença que haviam votado, quanto ao destino de David Shelton, era como se já tivesse sido

concretizada.

Com umas escassas palavras de despedida, Barbara Littlejohn deu a sessão por encerrada. Enquanto fazia as suas despedidas, Dotty deteve-se junto do elaborado

arranjo floral, debruçando-se para poder cheirar a sua fragrância acentuada, e para tocar ao de leve numa pétala suave ao tacto. Em seguida, lançando um último olhar a Peggy dirigiu-se para a porta.

O salão esvaziou-se rapidamente. ao fim de pouco tempo, restavam apenas duas pessoas: Peggy Donner, olhando com serenidade através da janela, e Sara Duhey, que parou já do lado de fora da porta, após o que retrocedeu. Ainda se encontrava a uma distância de cerca de três metros quando, sem se voltar, Peggy começou a falar.

- Sara, que simpático da tua parte teres ficado para trás. É tão raro que tenhamos uma oportunidade de poder conversar.

A mulher de raça negra, de figura esbelta, imobilizou-se, tendo reparado no seu próprio reflexo no vidro da janela.

- Com que então é assim que a Peggy Donner granjeou a reputação de alguém que tem olhos na nuca.

- É uma das maneiras - continuou Margaret Armstrong, voltando-se e mostrando um sorriso caloroso. Fora ela quem pessoalmente tinha recrutado Sara. - Detecto uma

expressão conturbada nesses teus olhos maravilhosos, Sara. Estás preocupada com o que aconteceu aqui esta noite?

- Um pouco. Mas não foi por isso que fiquei para poder falar contigo.

- Oh?...

- Peggy, há alguns dias, o John Chapman morreu no teu hospital, devido a uma reação alérgica fulminante... provavelmente como conseqüência de qualquer medicamento, de acordo com o que se diz. Por acaso, já tinhas ouvido falar dele e do trabalho que realizou?

Armstrong acenou afirmativamente.

- Pois bem, havia vários anos que eu conhecia John. Fiz parte de tantos comitês juntamente com ele que já lhes perdi o conto.

- E?...

- Bom. falei com várias pessoas a respeito da sua morte... bem vês, gente que faz parte da minha comunidade. Pelo menos uma delas está convencida de que não houve nada de acidental na sua morte. É muito provável que possas imaginar até que ponto o Johnny era um espinho cravado no flanco de muita gente importante, o que vinha a acontecer há uns anos a esta parte.

- Minha querida, de cada vez que uma pessoa importante ou com influência morre, existe sempre alguém que formulou uma teoria que explica o motivo por que essa ocorrência nunca poderia ter sido natural ou acidental. Invariavelmente, esse tipo de teorias são um completo disparate.

- Eu compreendo - replicou Sara - e espero que tenhas razão em relação a este caso. Jamais viremos a saber ao certo uma vez que a religião que o Johnny perfilhava proíbe autópsias. Foi a mulher dele que me deu essa informação. Ela insistiu para que isso ficasse escrito em grandes letras vermelhas na folha da frente da sua papeleta, juntamente com uma série de coisas a que ele era alérgico.

- Onde é que tu pretendes exatamente chegar? - perguntou Armstrong agitando -se numa demonstração de mal-estar.

- Peggy, há um homem que me disse ter ouvido dizer que o Johnny Chapman nunca

haveria de deixar com vida o Hospital Médicos de Boston. O que veio a verificar-se ser verdade. Então, dois dias depois de o Johnny subitamente ter entrado em anafilaxia, em conseqüência da qual veio a morrer, o senador Cormier foi acometido de uma paragem cardíaca fatal quando estava na mesa operatória. Os papéis dizem que morreu de um ataque cardíaco, mas também mencionam que, devido ao fato de o ataque ter sido instantaneamente fatal, não se detectou qualquer lesão relevante de natureza cardíaca quando da autópsia.

- Sara, continuo sem entender onde é que...

- Peggy, dois dos casos que vieram parar-me às mãos através da Irmandade envolveram a administração de ouabaína através de via intravenosa. Ambos deram a impressão de terem sido ataques do coração. É absolutamente impossível detectar essa droga. Não será possível que tenha havido alguém que...

- Minha menina, estou em crer que já vi mais do que o suficiente. As tuas insinuações são de muito mau gosto, para além de serem bastante despropositadas. Mas, ainda pior do que isso, é o fato de serem feitas numa altura em que o nosso movimento tem necessidade de uma unidade absoluta.

- Peggy, por favor - atalhou Sara Duhey assumindo uma postura rígida. - Não te irrites comigo. Não é minha intenção criar qualquer problema. Tudo o que eu pretendo saber é se poderá existir alguém no teu hospital que esteja a servir-se dos nossos métodos. Continua a haver mais membros d'A Irmandade no corpo de enfermagem do Médicos de Boston do que em qualquer outro hospital do país.

- E eu conheço pessoalmente cada uma dessas enfermeiras - retorquiu Armstrong. -

Todas elas são profissionais de grande qualidade, para além de serem pessoas de uma grande verticalidade. Agora, a não ser que tenhas algo mais concreto do que aquilo que me apresentaste até aqui, eu sugeriria... não, insistiria, que guardes para ti própria essas idéias que não têm qualquer cabimento. Temos preocupações muito mais prementes, tu e eu, a começar pelo homem que constitui uma ameaça a toda a nossa organização.

Armstrong apercebeu-se do impacto da sua explosão temperamental e suavizou o seu tom de voz. - Sara, depois deste assunto do Shelton estar resolvido, teremos oportunidade de discutir as tuas preocupações mais pormenorizadamente. Estás de acordo?

- De acordo - respondeu Sara Duhey depois de observar atentamente a mulher mais

velha, acenando com a cabeça num gesto de concordância.

As duas mulheres deixaram juntas o salão 133. No exterior. a tempestade intensificara-se, dando origem a que o vento fustigasse com tal violência que sacudia os edifícios.

 

- Uma lenda que tinha o hábito de se parecer com um coelho.. - David repetiu aquelas palavras sucessivamente, enquanto examinava as séries de linhas que, numa seqüência arbitrária, tinham aparecido no teto da sua sala de estar.

- ... tinha o hábito engraçado de se parecer com um coelho. - Onde é que ele lera aquilo? Quais eram as palavras exatas? Não interessava, decidiu David. Nenhuma das fendas se assemelhava em nada a um coelho. Além do mais, o zelador do prédio dissera que haviam de ser tapadas com gesso, pelo que o que ele estava a fazer não tinha qualquer sentido. Virou-se para o lado, colocou um braço debaixo da cabeça e pôs-se a olhar através da janela. O contorno dos edifícios do outro lado do beco ondulavam por entre as bátegas de chuva intensa e gelada.

Já haviam passado quase dois dias desde aquela sessão de pesadelo com o detetive Dockerty. Na manhã seguinte ao inquérito, David tentara dar seguimento às suas tarefas no hospital, de acordo com o que era a sua rotina habitual. Fora como se tivesse trabalhado numa câmara frigorífica. Era impossível que algum vírus se houvesse espalhado mais depressa pelas enfermarias do que os rumores da acusação implícita que havia sido proferida contra si. A maior parte das enfermeiras e demais pessoal médico faziam todos os esforços para não se cruzarem com ele. Algumas pessoas falavam em sussurro sempre que passavam por si, tendo havido uma enfermeira que se dera ao desplante de apontar na sua direção. Os poucos que falavam com ele escolhiam as suas palavras com as mesmas cautelas de um soldado a atravessar um campo minado.

Ao início da tarde, David não conseguira suportar aquele ambiente por mais tempo.

Aldous Butterworth e Edwina Burroughs eram os únicos doentes que ele tinha no hospital. No que dizia respeito a Buttenvorth, ele voltara a ser essencialmente um problema da Dra. Armstrong. A circulação sanguínea na perna que fora operada fazia-se melhor do que na outra. Edwina Burroughs mostrava-se desejosa de poder ir para casa e, muito provavelmente, estava tão preparada para ter alta naquela altura como o estaria na manhã seguinte. David escreveu uma nota na papeleta de Butterworth, para que a Dra. Armstrong arranjasse alguém que lhe removesse os pontos dentro de três dias; em seguida, prescreveu a medicação que Edwina teria de tomar e deu-lhe alta.

Caminhava de cabeça baixa, seguindo em direção à saída principal, quando foi de

encontro a Dotty Dalrymple. Ambos trocaram pedidos de desculpa.

- Vai para o seu gabinete? - perguntou ela.

David lutou contra o impulso de mentir, face àquela demonstração de cortesia.

- Não - respondeu. - Cancelei tudo o que tinha para o resto do dia. Na verdade, estou de saída para casa.

Sentiu-se surpreendido ao ver a expressão de preocupação e de interesse nos olhos da mulher. Embora ambos se conhecessem, nunca tinham conversado alongadamente.

- Doutor Shelton, quero que saiba o quanto me sinto perturbada por tudo o que

aconteceu ontem à noite. - Ela era, apercebeu-se David, a primeira pessoa que, em todo o dia lhe fizera qualquer comentário franco sobre a sessão no anfiteatro.

- Também eu - replicou ele entre dentes.

- Nunca tivemos a oportunidade de nos conhecermos mutuamente a fundo, mas eu já ouvi as minhas enfermeiras falarem muito acerca do seu trabalho; devo acrescentar que tudo o que elas disseram foi bastante elogioso para si. - O rosto de David contraiu-se no simulacro de um sorriso. - As minhas palavras não lhe servem de grande consolação, não é isso em que está a pensar? - perguntou ela. O sorriso de David rasgou-se mais; mostrava-se mais relaxado. Dalrymple encostou um braço carnudo à parede. - Receio muito que não tenha grande coisa a dizer-lhe que se possa traduzir em noticias mais animadoras. Contudo, posso informá-lo que o tenente Dockerty esteve esta manhã no hospital a fim de falar comigo. O seu nome veio à conversa mas só de uma maneira fugidia; se lhe servir de algum alento, digo-lhe que na minha opinião ele não está nada convencido de que você seja o culpado, apesar de todo aquele circo a que assistimos na noite passada.

- A julgar pelas reações de que fui alvo esta manhã nas enfermarias, Miss Dalrymple, atrevo-me a dizer que, se for esse o caso, ele encontra-se incluído numa minoria ínfima. De súbito, comecei a sentir tanto controlo sobre a minha vida como um rato de laboratório. Neste momento, o detetive Dockerty situa-se numa posição muito inferior na minha lista de pessoas preferidas.

- Imagino que, se eu me encontrasse na sua posição, muito possivelmente sentiria mais ou menos a mesma coisa - atalhou Dalrymple. Fez uma pausa como se procurasse as palavras que pudessem prolongar aquela conversa. Finalmente, encolheu os ombros, fez um gesto de despedida dando os bons dias ao médico e começou a afastar-se.

Ela já tinha começado a percorrer o corredor, encontrando-se a vários passos de

distância, quando David decidiu ir no seu encalço.

- Miss Dalrymple, por favor - chamou ele. - Se puder dar-me mais um minuto de atenção, existe uma coisa que talvez possa fazer para me ajudar. - A chefe das enfermeiras abrandou o passo, girou sobre os calcanhares num movimento lesto e esboçou um sorriso de expectativa. - Na noite passada, tinha consigo a papeleta da Charlotte Thomas - continuou David. - Se fosse possível, gostaria que ma emprestasse por um dia. Não faço a mais pequena idéia daquilo que devo procurar. No entanto, existe algo nessa papeleta cuja leitura não me parece que bata certo.

A expressão de Dalrymple ensombrou-se.

- Lamento muito, doutor Shelton - retorquiu ela. - A papeleta que eu tinha ontem à noite era somente uma fotocópia. O tenente é que possui o original - continuou ela com alguma hesitação. - Neste momento, nem sequer tenho essa cópia. - David ficou a olhar para ela com um semblante intrigado. Sentia-se perturbado pela maneira como ela parecia sopesar cada uma das palavras antes de as proferir. - Eu... ah... entreguei-a, senhor doutor... esta manhã... Wallace Huttner e o marido da mulher... e um advogado. Vieram ter comigo com uma ordem do tribunal para que eu lhes entregasse a cópia da papeleta.

Aparentemente, foi a única que o detetive deu autorização que se tirasse.

David sentiu as mãos a esfriarem. Delas saiu um calafrio que lhe percorreu todo o corpo.

Restavam-lhe muito poucas dúvidas quanto ao que eles se propunham fazer: mover-lhe um processo por negligência médica. Nenhuma outra explicação fazia o mínimo sentido.

Ele tinha um seguro no valor de um milhão de dólares. Peter Thomas queria estar preparado para agir logo que fosse tomada qualquer medida contra si. David estremeceu.

Para culminar tudo o resto, Thomas tencionava processá-lo por negligência médica. E o seu próprio chefe de cirurgia estava a ajudá-lo a levar essa intenção a cabo.

Dalrymple estendeu a mão, fazendo menção de lhe tocar no ombro, mas depois deu a impressão de ter mudado de idéias.

- Lamento muito, doutor - concluiu ela com frieza. -Quem me dera ter o poder de lhe

facilitar as coisas, mas o certo é que não tenho.

- Obrigado - retorquiu David num resmungo, cerrando os lábios para conter qualquer

explosão temperamental, após o que se dirigiu num passo apressado para a saída do hospital.

Quando chegou a casa, todas as suas emoções se encontravam veladas por uma espécie de mortalha, o que traduzia toda a frustração que sentia. Percorreu o apartamento por diversas vezes. Pouco depois, sentindo-se avassalado por um sentimento de impotência, atirou-se para cima da cama e agarrou no telefone. Tencionava telefonar à Dra. Armstrong ou a Dockerty, ou até mesmo a Peter Thomas. Falaria com alguém, desde que isso o fizesse sentir que estava a fazer qualquer coisa. Todavia, a indecisão impedia-o de ligar o número. A sua agenda com os números de telefone encontrava-se sobre a mesa-de-cabeceira. Abriu-a e começou a folheá-la, esperando de todo o seu coração que lhe saltasse à vista o número de alguém. O de qualquer pessoa que o pudesse ajudar.

A maior parte das páginas estava em branco.

Tinha o número de telefone dos irmãos, um na Califórnia e o outro em Chicago. Mas

ainda que ambos se encontrassem na porta ao lado, ele não lhes teria telefonado. Depois do acidente, depois do álcool e das pílulas e, por último, o hospital, pouco a pouco ambos o tinham afastado das suas vidas. Tudo o que restava em termos de contacto era um telefonema de seis em seis meses e os cartões de boas-festas.

Também tinha o telefone de alguns conhecimentos que fizera no Hospital White Memorial.

Alguns deles, de vez em quando e ao longo dos últimos oito anos, convidavam-no para algumas festas. David era uma pessoa divertida. conquanto que fosse divertido tê-lo por perto. Quanto mais ele se arriscara falar do percurso que a sua vida fizera entretanto, mais escassos se haviam tornado esses convites. De qualquer desses conhecimentos não valeria esperar que viesse alguma ajuda.

Na vida de um médico, segmentada pelo ensino liceal, universidade, anos de finalista num hospital, estágio e casamento, ao que se segue o nascimento dos filhos e o estabelecimento de uma prática de clínica, as amizades sinceras eram bastante raras.

Para David, o fato de ter sido forçado a reconstituir tantos passos tornara impossíveis as amizades chegadas.

A mortalha do isolamento tornou-se mais pesada. Não havia ninguém. Ninguém. Com a exceção de Lauren, e esta encontrava-se a uma distância de oitocentos quilômetros, possivelmente, a almoçar naquele mesmo momento com algum congressista e... "Espera!”

Existia alguém. Havia Rosetti. Durante dez anos, sempre que David se sentia em baixo ou necessitava de um conselho amigo, houvera sempre Joey Rosetti. Joey e também Terry ao longo dos meses em que se relacionara com Lauren, ele não tivera oportunidade de estar muitas vezes com eles; no entanto, Joey era o gênero de amigo para quem essa ausência não teria qualquer significado.

Sentindo-se excitado, David procurou o número do Bar Zona Norte de Joey que ligou de imediato. Ainda que Rosetti não lhe pudesse dar conselho nenhum - o que era duvidoso, uma vez que ele tinha sempre conselhos para tudo -, poderia encorajá-lo, o que provavelmente acompanharia por uma ou duas piadas mais recentes. Por si só, a perspectiva de poder falar com o amigo já era animadora.

Uma voz concisa e grave que atendeu no Bar Zona Norte informou-o de que Mr. Rosetti não podia atender de momento. A animação desapareceu imediatamente da voz de David.

- Daqui fala o doutor Shelton, o doutor David Shelton - repetiu ele imprimindo mais ênfase ao título, de uma maneira que utilizava apenas para fazer reservas de mesa em restaurantes ou quartos de hotel, ou ainda para poder ultrapassar a barreira da

telefonista de um hospital que não lhe fosse familiar - Eu sou um grande amigo de Mister Rosetti. Pode dizer-me a que horas é que ele volta ou onde é que o posso encontrar?

A voz chamou alguém sem se dar ao incômodo de tapar o bocal do auscultador.

- Ei, tenho ao telefone um médico qualquer. Diz que é um amigo de Mister Rosetti. Posso dizer-lhe onde é que ele foi?

Passados poucos minutos, a mesma voz voltou a falar com David.

- Ah, doutor, Mister Rosetti e a mulher foram para casa na margem norte. Esta noite

ainda virão ao bar.

David ouviu a voz que lhe perguntava se desejava deixar alguma mensagem, mas já

estava prestes a desligar o telefone. Em menos de um minuto, aquela inércia e o silêncio tornaram-se insuportáveis. Meramente devido ao desespero que sentia, decidiu telefonar a Wallace Huttner. Quando o aparelho começou a tocar, lutou contra a vontade de desligar, premindo fortemente o auscultador contra o seu ouvido. Quando Huttner atendeu, já ele sentia a orelha a latejar.

- Sim, doutor Shelton, o que é que se passa? - O tom de distanciamento na voz do homem poderia ser medido em anos-luz.

- Doutor Huttner, estou muito preocupado e perturbado por tudo o que aconteceu na

noite passada, assim como com outras coisas de que tive conhecimento hoje mesmo - começou David a dizer com alguma dificuldade. - Eu... eu gostaria de saber se existe alguma hipótese de podermos ter uma conversa breve sobre este assunto.

- Bem... acontece que tenho a papelada do gabinete muito atrasada e... - disse Huttner hesitante.

- Por favor! - interrompeu David. - Peço desculpa por ter elevado a voz, mas, por favor, ouça o que tenho a dizer-lhe. - Fez uma pausa por breves instantes, suspirando de alívio ao verificar que Huttner não apresentava mais objeções. Esforçando-se por manter uma certa coerência nas suas palavras e falando pausadamente, continuou: - Doutor Huttner, eu tive conhecimento de que ajudou Mister Thomas e o advogado dele a obter uma fotocópia da papeleta da Charlotte. Não sei como, mas é absolutamente imperativo que acredite em que eu não tive nada a ver com o assassínio da mulher. É muito possível que eu lhe tenha dado a impressão, assim como a outras pessoas, que sou a favor da morte misericordiosa, mas isso não corresponde à verdade. Eu... eu preciso da sua ajuda, da ajuda de qualquer pessoa, a fim de conseguir convencer o Peter Thomas e o detetive dessa

verdade. Eu... - Naquele momento, David compreendeu o quão mal concebido fora o seu telefonema. Na realidade, não tinha uma idéia clara daquilo que desejava dizer ou perguntar. Huttner pressentiu exatamente a mesma coisa.

- Doutor Shelton - retrucou ele com uma condescendência que não ocultava a frieza - , por favor, tente compreender. Nunca me passou pela cabeça considerá-lo culpado ou inocente. Esta manhã limitei-me a fazer um favor a um velho amigo que sofre um grande desgosto. Nada mais.

Velho amigo? David esteve quase a rir-se estrondosamente. Ainda não havia muitos dias que Peter Thomas deixara bem patente que os dois mal se conheciam. Agora já eram velhos amigos. Apertou o auscultador com mais força, obrigando-se a ouvir o que Huttner ainda tinha para lhe dizer.

- Ao princípio da manhã, o detetive veio falar comigo; parece-me que ele está a proceder a uma averiguação muito minuciosa com respeito a todo este assunto. Permita-me que lhe sugira que nos limitemos a aguardar, a fim de vermos qual a direção por onde enveredarão as suas investigações. No caso de, tal como afirma, não ter nada a ver com a morte da Charlotte, tenho a certeza de que o tenente estará em condições de vir a provar esse fato. E. agora, se não tiver mais nenhuma questão...

David desligou o telefone sem lhe dar réplica.

Quando acordou às cinco e trinta da manhã seguinte, ainda com as roupas vestidas,

sentia os músculos da mandíbula doridos.

David entreteve-se durante quase uma hora a contar os segundos entre os relâmpagos que se viam no beco e o subseqüente trovejar. Três cálculos sucessivos deram exatamente o mesmo resultado: a descarga elétrica encontrava-se a aproximadamente dois quilômetros de distância. Em aferição com as decepções que os últimos dois dias lhe haviam trazido, o seu triunfo matemático proporcionava-lhe a sensação de ter ganho uma medalha olímpica. Passou os quinze minutos seguintes a ler um livro de bolso a cujo enredo não prestou a mínima atenção. Dois a levantar os halteres. Mais alguns com a leitura do livro. Deu-se conta de que aquelas eram as ações, ao acaso e de ansiedade, de uma pessoa que não tinha lugar algum para onde se dirigir. A mesma espécie de inquietude que havia caracterizado as primeiras semanas da sua hospitalização no Instituto Briggs.

Pôs-se a olhar para o telefone, a pensar se deveria ou não tentar de novo telefonar a

Lauren. Já tinha experimentado no início do dia: o seu número de telefone de casa e até mesmo o dos hotéis em Washington onde ela habitualmente se alojava Disse a si próprio que dentro em pouco ela estaria de regresso. "Se não for ainda hoje, certamente que será amanhã." O único contacto que haviam tido, depois de ela ter ido para fora reduzia-se a uma breve conversa que tivera lugar pouco antes da sessão hedionda no anfiteatro com Dockerty. Lauren telefonara para explicar que não estaria num sítio certo, uma vez que fora incumbida de fazer a cobertura das reações das pessoas na seqüência da morte do senador Cormier. De fato, confessara ela, a razão principal que a levara a ligar (para além de ter dito que era "Só para dizer olá") fora para saber se David poderia falar com as pessoas do seu hospital, a fim de obter qualquer informação que não fosse do domínio público, que se relacionasse com aquela tragédia tão repentina. Nessa altura, ele sentira-se seguro de que teria possibilidade de descobrir alguma coisa de interesse. Como é

evidente, nessa ocasião não tivera qualquer maneira de adivinhar que, dentro de escassas horas, ele se transformaria num pária no seio do Hospital Médicos de Boston.

David dirigiu-se à cozinha para beber um pouco de água, após o que foi à casa de banho para beber mais alguma.

Lauren dissera que naquele dia estaria em Springfield a fim de fazer a cobertura do

funeral. Acrescentara que possivelmente, depois da cerimônia, ainda se manteria por ali durante mais um ou dois dias. Talvez ela pudesse telefonar para combinarem encontrar-se em Springfield. Até era possível que fossem os dois até Nova Iorque de automóvel ou... ou talvez mesmo até Montreal.

Movimentos ao acaso. pensamentos ao acaso.

Voltou a abrir o romance de mistério cuja leitura recomeçou por mais algum tempo, mas então chegou à conclusão de que faltavam as últimas dez páginas ao livro em mau estado. A sua reação foi quase nula - limitou-se a um encolher de ombros - dirigindo-se num passo arrastado para o chuveiro, o seu segundo duche do dia. Quando abriu a torneira da água quente, a campainha do telefone começou a tocar.

Saiu apressadamente para o corredor, dirigindo-se até ao quarto.

- Ei, por onde é que tens andado? - perguntou ele com a respiração arfante. - Tenho

estado preocupado contigo. Nem sequer sabia ao certo em que cidade é que estarias.

- David, daqui fala a doutora Armstrong. Você está a sentir-se bem?

- Hem?! - Oh, mas que grande gaita! - Peço-lhe desculpa, doutora Armstrong. Não, estou ótimo. Estava à espera de um telefonema da Lauren e... hum... ela é a mulher com quem eu...

- David? Pare por um minuto e descontraia-se. Prefere que eu telefone mais tarde?

- Não, não, eu estou ótimo. De verdade. - Esticou mais o fio do telefone para poder chegar à cômoda, tirando de uma gaveta um par de calças de cirurgia. Depois de as vestir, suspirou e deixou-se cair em cima da cama. - Para lhe dizer a verdade, não estou a sentir-me nada bem. Tenho estado para aqui sentado durante todo o dia. Metade do tempo limito-me a esperar, enquanto a outra metade é passada a decifrar aquilo por que estou à espera.

- Mas não?... - Ela deixou que a pergunta pairasse no ar.

- Não, nem sequer estou próximo - retorquiu ele soltando uma gargalhada forçada. - Nem sequer uma pílula ou uma gota do que quer que seja alcoólico. Eu disse-lhe na outra noite que não havia nada que me levasse de regresso a esse caminho. - De fato a vontade manifestara-se em diversas ocasiões... Ainda que vagamente, estivera bem presente.

Esses momentos nunca tinham chegado a durar o tempo suficiente para poderem

representar uma ameaça de vulto; contudo, depois de terem passado tantos anos o

mínimo indício dessa necessidade era deveras assustador.

- Ótimo. Fico satisfeita por ouvi-lo dizer isso - continuou Armstrong - Quero afirmar-lhe o quanto lamento sinceramente ter levado tanto tempo a voltar a contatá-lo.

- Eu compreendo - atalhou David, na esperança de poder poupar-lhe qualquer

justificação que a deixasse pouco a vontade relativamente ao turbilhão de adversidade que o rodeava, assim como a ela própria, no hospital. - Há alguma...

- Para lhe ser franca, não. Desde domingo que o nosso amigo tenente tem estado presente em diversas ocasiões. Vem sempre ter comigo ou com o Ed Lipton, para que saibamos que anda por aqui, mas isso é mais ou menos tudo

- Pela minha parte, ontem encontrei por acaso Miss Dalrymple, e aproveitei para lhe pedir uma fotocópia da papeleta da Charlotte Thomas. Pensei que talvez me surgisse alguma idéia luminosa se pudesse examinar os dados clínicos

- E Miss Dalrymple entregou?

David não se apercebeu do ligeiro traço de interesse súbito que se revelava na voz da médica.

- Não. Mas acho que ela teria acedido caso ainda se encontrasse em seu poder. – Em traços largos, David descreveu a conversa que travara com Dotty Dalrymple, após o que passou ao telefonema subseqüente que fizera a Huttner.

- Portanto - retorquiu ela depois de uma curta pausa - os abutres começaram a descrever o seu vôo circular.

David sorriu com amargura perante aquela imagem.

- Descrevem círculos e aguardam - corroborou ele. - Sinto-me tão absolutamente tolhido de pés e mãos. Só queria poder fazer qualquer coisa que mostrasse a todos eles que continuo vivo e a lutar, mas nem sequer sou capaz de encontrar um pau com que possa acenar.

- Eu compreendo bem o que é que sente - redargüiu ela. - Se eu estivesse no seu lugar, deixava-me ficar quietinha a ver como é que as coisas irão desenrolar-se.

- Muito provavelmente terá toda a razão, doutora Amstrong, mas, infelizmente, a passividade nunca foi um dos meus pontos mais fortes. Se não for eu a fazer qualquer coisa que deslinde toda esta trapalhada, quem é que o fará?

- Fá-lo-ei eu, David - afirmou a médica.

- O quê?

- Eu disse-lhe na noite em que conversamos que faria tudo o que estivesse ao meu

alcance.

- Eu não me esqueci - disse David.

- Pois bem, eu tenho uma pessoa amiga no Departamento de Pessoal, que concordou em procurar nos dados do computador do hospital a existência de alguns casos de doentes antigos com problemas mentais ou de estupefacientes, ou ainda com cadastro prisional. Enfim, esse gênero de irregularidade.

- Mas isso é uma idéia excelente! - exclamou David sem esconder o seu entusiasmo. - E que tal o antigo emprego da Charlotte na clínica de enfermagem?

- Também podemos tentar essa probabilidade - anuiu a Dra. Armstrong.

- E as enfermeiras que se diplomaram na escola de enfermagem que ela freqüentou? E... e os ativistas que se batem pelos direitos dos doentes? Vontades expressas em vida? Enfim, coisas desse teor. E...

- Isso é que é! Acalme-se um pouco, David. Em primeiro lugar, as primeiras coisas. Você deixe-se ficar num local onde eu possa contatá-lo, e veja se luta contra esse impulso de autodestruição que está a sentir. Eu encarregar-me-ei do resto... não se preocupe. Tenciona regressar ao trabalho?

- Amanhã. Pensei que talvez tente amanhã. Qualquer coisa é preferível a deixar-me estar para aqui sentado, como tenho estado, a pensar na morte da bezerra. Graças a si, agora ser-me-á muito mais fácil concentrar-me no trabalho, sabendo que, pelo menos, está a ser feita qualquer coisa.

- Está a ser feita qualquer coisa - ecoou Armstrong.

Margaret Armstrong colocou o auscultador no descanso, olhando através da porta

parcialmente aberta do seu gabinete, para observar os doentes que aguardavam na sala de espera: meia dúzia de problemas complexos que ela, quase de certeza absoluta, diagnosticaria e de que trataria sem grandes obstáculos. Até mesmo depois de passados tantos anos, as suas próprias capacidades continuavam a deixá-la perplexa.

- Mãezinha, por favor. Diga-me o que é que posso fazer para a ajudar

Agora ela compreendia. Possuía os conhecimentos e o poder; entendia. Mas como é que se teria podido esperar que ela soubesse nessa altura o que é que estava certo? Não passara de uma rapariguinha que mal tinha quinze anos feitos.

- Mata-me! Por amor de Deus; por favor, mata-me.

- Mãezinha, por favor. Não sabe o que está a dizer. Deixe-me ir buscar qualquer coisa que lhe tire as dores. Quando se sentir melhor, já não dirá essas coisas. Tenho a certeza que sim.

- Não, minha doçura. Não existe nada que possa aliviar -me. Há vários dias que não há nada que me tire estas dores. Mas tu podes ajudar-me. É forçoso que me ajudes.

- Mamã, eu tenho medo. Não sou capaz de pensar como deve ser. Aquela senhora ao fundo do corredor não pára de gritar, e eu não sou capaz de pensar como deve ser. Estou tão assustada. Eu... eu odeio este lugar.

- A almofada. Só tens de a colocar em cima do meu rosto e fazeres tanta força quanta te seja possível. Não será preciso muito tempo.

- Mãezinha, por favor. Eu não sou capaz de fazer uma coisa dessas. Tem de haver outra maneira. Qualquer coisa. Por favor, ajude-me a compreender. Ajude-me a saber o que devo fazer...

Entretanto, a recepcionista de Margaret Armstrong tocou várias vezes através do intercomunicador; sem obter resposta resolveu dirigir-se ao gabinete e bateu à porta.

- Doutora Armstrong?

A porta abriu-se para trás; a recepcionista apercebeu-se imediatamente de que deveria ter sido mais paciente. Encontrava-se perante uma daquelas ocasiões em que a chefe de cardiologia se achava totalmente embrenhada nos seus pensamentos. Uma dessas alturas em que ela ficava sentada, enquanto mantinha um pequeno pedaço de pano nos dedos, olhando fixamente numa atitude abstrata para um ponto qualquer do gabinete. O que acontecia com pouca freqüência e por períodos de tempo que não duravam muito.

Com suavidade, a recepcionista fechou a porta, regressando à sua secretária. Minutos mais tarde, ouviu o besouro do intercomunicador.

A conversa que tivera com Margaret Armstrong e o plano de ação que haviam estabelecido, embora não primasse pela estruturação, injetaram uma nota de otimismo no dia de David. Alguma música para órgão de Bach, a par de vinte minutos vigorosos, quase violentos, a levantar halteres transformaram o estado de espírito de David. Tomou duche, vestiu-se e deitou-se ao comprido enquanto passava uma vista de olhos por uma publicação médica. De repente, ouviu uma chave que era metida à fechadura da porta da frente. Saiu disparado para o corredor e já se encontrava perto da porta quando Lauren entrou em casa. Envergava uma gabardina e um chapéu de feltro mole, mas sob qualquer outro aspecto parecia ter acabado de sair de uma festa num jardim. O seu vestido azul de um tecido leve colava-se ao corpo, dando a impressão de que isso acontecia mais por mero acaso do que pelo corte. No colo de um bronzeado de Outono, brilhava um fio fino de ouro.

Naqueles primeiros momentos, tendo-se imobilizado enquanto olhava para ela, não havia mais nada que interessasse a David. Mas então, quando se concentrou no rosto dela, Lauren afastou o olhar. Subitamente, David sentiu-se assustado até com o pensamento de lhe tocar.

- Bem-vinda a casa - saudou ele com insegurança, estendendo uma mão a medo na

direção dela. Lauren agarrou-a e aproximou-se dele; todavia, não havia calor nenhum no seu abraço. A frieza que ela mostrava e a fragrância do seu perfume, a mesma fragrância que ela usara na manhã em que partira, encheram-no de um sentimento de vazio e de apreensão. - Não fazia a mínima idéia de quando é que tencionavas regressar - acrescentou ele, na esperança que qualquer coisa na resposta dela dissipasse aquele sentimento.

- Quando te telefonei aqui há dias disse-te que ficaria detida por causa da história do

Cormier - retorquiu ela, sentando-se numa das poltronas da sala de estar. David reparou que ela tinha evitado o sofá. - Que merda de coisa que tinha de acontecer - continuou ela.

- De todas as pessoas que eu alguma vez entrevistei em Washington, o Dick Cormier era o único em que eu confiava realmente. O que acontecia com toda a gente. O seu funeral foi muito comovente. O Presidente fez um discurso, assim como o presidente do Supremo Tribunal e...

David não conseguia agüentar por mais tempo a tensão que sentia dentro de si, não

suportando também a conversa banal por que ela enveredara. demonstrando algum

nervosismo.

- Lauren - atalhou ele - . há mais qualquer coisa, não é verdade? Quer dizer. não se trata apenas do assunto do senador. Existe qualquer outra coisa que está a roer. Por favor, fala comigo. Estou... estou a sentir um grande mal-estar por causa do ambiente que reina nesta sala neste momento. Tenho muita coisa a contar-te. mas em primeiro lugar temos de desanuviar um pouco esta atmosfera.

Pensou que se trataria de um outro homem. Lauren tinha conhecido outro homem. Na sua expressão, não conseguia ler nada que desencorajasse essa suspeita. Ela pôs-se a olhar através da janela, mordendo o lábio inferior. Por breves instantes David pensou que ela estava prestes a chorar, mas, quando Lauren finalmente recomeçou a falar, na sua voz adivinhava-se muito mais um sentimento de irritação do que de tristeza.

- David - começou ela a dizer. - Quando cheguei a casa havia um polícia à minha espera. Passei mais de duas horas numa esquadra, respondendo a perguntas que me foram feitas por um tal detetive Dockerty e, por sinal, algumas delas eram bastante pessoais, a teu respeito e também sobre o nosso relacionamento.

- Esse Dockerty disse-te qual o motivo do interrogatório? - perguntou David, sentindo-se aliviado por se ter enganado quanto à existência de outro homem.

- Apenas superficialmente - respondeu Lauren com um abanar de cabeça. - De início, ele mostrou-se bastante simpático, mas pouco depois as suas perguntas começaram a ser cada vez mais diretas... mais e mais ofensivas. Por fim, não fui capaz de me conter e disse-lhe que me recusava a continuar a falar com ele sem que fosse na presença de um advogado. A maneira como ele falou deu a entender que tu te encontravas verdadeiramente doente do juízo e que eu, não sei bem como, estava a proteger-te. David, eu não posso correr o...

- Raios partam o homem! - vociferou David. - Quando tudo isto terminar, ele será obrigado a responder por toda esta merda. Já agüentei tudo o que consigo suportar. - Os seus punhos estavam esbranquiçados, mantendo-se fortemente cerrados contra as coxas.

- Lauren, esta situação tem sido um verdadeiro pesadelo. O homem anda a exercer uma espécie qualquer de vingança. Desde o primeiro minuto que entrou em ação, tem andado atrás de mim como se estivesse cego. Eu não fiz nada de mal. Ele agarrou num monte de merda constituído por provas circunstanciais e tem tentado moldar esses dados de forma a formular um caso qualquer contra mim. - David encontrava-se quase a perder o domínio sobre si próprio. Teve a percepção disso, mas foi incapaz de se conter. Umas a seguir às outras, as palavras jorravam-lhe da boca; a última era sempre mais elevada e esganiçada do que a anterior. - Eu sou capaz de agüentar a trampa que ele tem arranjado no hospital. Isso sou eu capaz de suportar. Mas arrastar-te a ti para o assunto... O sacana está a ir longe de mais. - naquele momento, David começou a andar pesadamente de um lado para o outro na sala, enquanto batia com o punho contra o flanco.

- David, por favor! - gritou Lauren. - Estás a agir de uma maneira própria de loucos. Por favor, vê se consegues controlar-te. Assusta-me ver-te nesse estado David deteve os seus passos, obrigando-se a abrir as mãos. Antes de recomeçar a falar, respirou fundo.

- Peço-te desculpa, minha querida. Lamento muito. Primeiro, temos um excesso de

brincadeiras, para logo ser a loucura que é demasiada. - A custo, esboçou um pequeno sorriso. - Calculo que eu seja... de mais, certo? - Deixou-se cair desamparado em cima do sofá. - Lauren, importas-te de me abraçar por uns momentos? - perguntou ele estendendo-lhe as mãos.

Lauren apertou os lábios. Olhou para o chão e abanou a cabeça.

- David, temos de falar.

- Nesse caso, diz o que tens a dizer. - David colocou as mãos juntas em cima das coxas.

- O nosso serviço de informações tem gente por toda a parte, David, incluindo nas forças policiais de Boston. Os assuntos desta natureza, ser interrogada na esquadra e tudo o mais... O meu chefe é muito conservador e inflexível. Se este assunto lhe chega aos ouvidos...

- Jesus Cristo! - explodiu David. - Quem te ouvir falar dirá que eu estou a fazer tudo isto com o único fito de te prejudicar. Não és capaz de compreender que eu não fiz nada de mal? Meu Deus, aqui estou eu a ser assediado sem tréguas por um monomaníaco, correndo o sério risco de vir a perder a minha carreira ou mais ainda, e a minha namorada está preocupada por poder vir a sentir-se constrangida perante o seu chefe no escritório. Isto é de doidos. É uma loucura absoluta!

- David... - A voz de Lauren era baixa e comedida devido à cólera que a assolava. - Eu já te disse por inúmeras vezes o quanto me desagrada a etiqueta de "namorada". Agora, faz o favor de te acalmares e tenta compreender também qual é a minha posição no meio de tudo isto.

Incapaz de articular uma única palavra, David só conseguia olhar para ela, enquanto

abanava a cabeça.

Lauren endireitou o vestido, sentando-se rigidamente com as costas bem direitas; foi ao encontro da expressão de incredulidade de David com um ar de desafio.

- Eu sei que ficarás satisfeito em ouvir que, de todas as coisas com que tens de te preocupar, o ter de aturar o jantar dançante na Sociedade das Artes na próxima quinta-feira não será uma delas. Depois de o tenente me ter levado a casa, o Elliot May telefonou para me perguntar se eu tinha intenções de ir ao jantar. Eu sabia até que ponto é que essa perspectiva te desagradava; por isso, aproveitei a oportunidade para te libertar desse peso. - A fúria que se refletia nos olhos dela era assustadora. Obrigou os lábios a esticarem-se para a frente, fazendo um beicinho de orgulho ferido e voltando-se para a janela.

David levantou-se do sofá e aproximou-se dela. Naquele momento terrível que parecia ter parado no tempo, sentiu que perdia todo o controlo que tinha sobre si. Cerrando os punhos, avançou outro passo.

Bruscamente, a campainha do átrio do prédio começou a tocar. David girou sobre si mesmo e, num passo entre o cambaleado e o arrastado, dirigiu-se para o intercomunicador instalado na parede do corredor.

- Sim? - gritou, premindo o botão do aparelho.

- É o tenente Dockerty, doutor Shelton. - Vinda de quatro andares mais abaixo, a voz do detetive não soava com nitidez. - Posso subir, por favor?

- Resta-me qualquer outra escolha? - perguntou David enquanto premia o botão que

abria a porta da rua.

Durante os trinta segundos seguintes, o único som que se ouvia era o da respiração de David: golfadas de ar frenéticas e de amargura que, gradualmente, iam adquirindo um ritmo mais normal à medida que ele se esforçava por se recompor.

Durante os últimos dois dias, tinha estado à espera de receber uma visita de Dockerty.

Era típico do homem ter aparecido numa ocasião daquelas. Ouvia o barulho do maquinismo do elevador que subia, oscilante. Permanecendo junto da porta, David

abanou a cabeça num gesto desdenhoso ao ouvir o ruído dos cabos sujeitos a tensão. O ascensor antiquado levava mais de um minuto para fazer a viagem até ao quarto andar.

Um segundo estrépito, seguido de um ruído chocalhado da porta automática interior,

assinalou a chegada do detetive. David saiu do seu apartamento no momento em que Dockerty corria a pesada porta exterior do elevador. Vinha acompanhado de um agente uniformizado de elevada estatura.

- Doutor Shelton, este é o agente Kolb - apresentou o detetive. - Dá-nos licença que

entremos? - Aquilo era mais uma ordem do que uma pergunta. David pensou fugazmente em Lauren, mas encolheu os ombros conduzindo os dois homens para a sua sala de estar

- Miss Nichols - saudou Dockerty com um acenar de cabeça, embora não fizesse menção de lhe apresentar Kolb.

- Se me dão licença - retorquiu Lauren com formalidade, levantando-se da poltrona e

agarrando na gabardina - eu já estava de saída.

Já dera um passo em direção à porta quando a voz de Dockerty a deteve.

- Parece-me que seria preferível que ficasse, Miss Nichols. - Os olhos desta estreitaram-se ao fitarem-no. O seu corpo adquiriu uma postura rígida quando ela regressou à poltrona de onde acabara de se levantar

No íntimo de David, começou a formar-se um sentimento de pânico e de confusão.

Dockerty olhava com fixidez para o chão, mantendo-se naquela posição por alguns segundos num silêncio total; pouco depois, levou a mão a uma das algibeiras do casaco de onde retirou um bloco de apontamentos com capa de manila. Os impressos no interior eram verdes.

- Doutor Shelton - prosseguiu o detetive entregando o bloco a David - , reconhece isto?

David começou a folhear o bloco, respondendo numa voz gagueJada.

- Sim, são do meu bloco de impressos C dois, vinte e dois. Mas não estou a ver o que é que...

- Servem para requisitar narcóticos, não é verdade? - perguntou Dockerty.

- Sim, mas...

- Foram impressos com o seu nome, não é assim?

- Já chega! - As palavras foram proferidas com cólera. - Já agüentei o que tinha a agüentar. Importa-se de me dizer que é que deseja ou... ou o melhor é ir-se embora. - David quase gritava. Dentro das suas entranhas, no interior do seu peito, estavam a formar-se nós monstruosos cada vez mais apertados.

Enquanto o polícia de estatura elevada lhe lia os seus direitos escritos num cartão, as palavras do homem suavam-lhe aos ouvidos, arrastadas e incoerentes, David observava como se aquilo não tivesse nada a ver consigo, sendo ele apenas um mero espectador, enquanto os braços uniformizados se estendiam na direção dos seus pulsos, que foram algemados atrás das costas. O pedido de desculpas que Dockerty apresentava por ser obrigado a usar as algemas, quase se perdeu no zunido crescente.

David sentia-se desorientado, e tão assustado que tinha a impressão de estar prestes a perder toda a sua capacidade de raciocínio. Tentou soltar-se.

Mortificada e aturdida, Lauren afastou-se quando David, necessitando que o ajudassem a manter-se de pé, era conduzido na direção da porta.

- Doutor Shelton, avisei todas as farmácias da cidade no sentido de me informarem do nome de todas as pessoas que tenham comprado morfina injetável durante o último mês.

- Apresentou um único impresso verde que tirou do bolso do peito do casaco. - Este

impresso C dois, vinte e dois foi utilizado para a compra de três ampolas de sulfato de morfina as quais foram adquiridas na Farmácia Quigg em Roxbury Oeste tem a data de dois de Outubro, o dia em que Charlotte Thommas foi assassinada. Este impresso pertence-lhe, doutor Shelton?

- Esta assinatura não é a minha - afirmou David; num gesto automático arrancou o papel das mãos do detetive. Olhou com fixidez para o que estava escrito no impresso e fechou os olhos. Havia anos que era o alvo de brincadeiras, ele próprio dissera piadas sobre o assunto, por causa do gatafunho que era a sua assinatura. "Qualquer chimpanzé sem escrúpulos poderia prescrever medicamentos aos meus doentes", dissera ele em tempos, gracejando. A assinatura no C222 poderia ter passado pela sua secretária sem que ele lhe dedicasse um segundo de atenção.

- Talvez sim - replicou DocKerty numa voz sem qualquer entoação. - Mas eu desconfio que seja sua. Bem vê, doutor ainda há mais. O mandado que obtive, para poder passar uma busca ao seu gabinete, permitiu-me não só ficar de posse dos seus impressos mas também disto. - Voltou a levar a mão à algibeira de onde tirou uma pequena fotografia emoldurada a dourado. - Mister Quigg, da farmácia, identificou-o de forma bastante positiva nesta fotografia, afirmando que foi o senhor quem comprou a morfina no seu estabelecimento.

David olhou para a fotografia. Nunca conseguira desfazer-se dela. Retratava toda a família David, Ginny e Becky que na altura tinha três anos de idade. Becky... numa pose junto dos barcos que navegavam entre os cisnes do Jardim Público de Boston. Fora tirada apenas dois meses antes do acidente.

Por alguns instantes, Dockerty deu a impressão de estar intrigado.

- David Shelton, dou-lhe voz de prisão pelo assassínio de...

Aquelas palavras abateram-se sobre David como se fossem marteladas. Começou a sentir na cabeça um zunido agudo e extremamente elevado. Tentou libertar-se daquele ruído.

Dockerty fez menção de seguir atrás dele, mas então voltou-se:

- Ele vai precisar de um advogado, Miss Nichols – disse ele com uma fisionomia sombria. - Se eu estivesse no seu lugar, certificar-me-ia de que contratava um dos melhores. - Com um breve acenar de cabeça, começou a percorrer o corredor.

O vento tinha-se acalmado, mas a chuva pesada e fria continuava a cair. Dockerty

colocou um blusão de tecido sintético em redor dos ombros de David, correndo o fecho à frente até ao pescoço. Mesmo com aquela precaução, quando o arrastaram pela curta distância até ao carro-patrulha, ele ficou completamente encharcado. Através de visões aberrantes e sem ligação entre si David observava os eventos que rodeavam a sua detenção prisional. As luzes azuis estroboscópicas de aspecto fantasmagórico que brilhavam no tejadilho do automóvel... formas perfeitas de diamantes ínfimos que se refletiam na rede metálica... os peões, cheios de frio, que tentavam proteger-se das bátegas de chuva, aconchegando mais as suas roupas, o que via através do pára-brisas e da rede metálica à sua frente. David observava tudo aquilo como que em imagens ao retardador. Uma seqüência de diapositivos grotescos.

- Esvazie as algibeiras, meu filho, está a ouvir-me? Rapaz?... Aqui está a carteira. Tira toda a treta de que precisas da carta de condução... Dê-me a sua mão direita, primeiro o polegar... Aqui, deixe-se ficar aqui... Agora a outra mão. Ouça lá, é só um número. Deixe isso pendurado aí.. Olhe bem em frente... agora vire a cabeça para o lado... não, assim desta maneira... A três está vazia. Ponham-no lá...

Em seguida eram os barulhos. O entrechocar de metal com metal... um som estrondoso...O elevador?

- Não, aqui não...

Não podia ser o elevador... música... vinda de onde?... de onde é que a música viria?... Mais vozes...

- ... aqui chefe, para aqui... uma luz, preciso de outra luz. A merda do meu cigarro está todo ensopado... A que horas é que é a porra do jantar? Eles aqui nem nos dão de comer, ou quê?...

Finalmente, as faixas largas e desfocadas... para cima e para baixo em frente dele.

Gradualmente, as manchas pouco nítidas estreitaram-se e escureceram... Barras! Eram barras!

Uma vez mais, o crescendo do zunido na cabeça. Imagens de outras barras, outras redes divisórias de arame, que explodiram deflagrando através da sua mente.

- Não! Por favor, meu Deus, não! - gritou ele. Girou sobre si próprio e caiu de joelhos

junto da sanita; à garganta assomavam-lhe arrancos de vômitos incontroláveis, que se misturavam com a água já turva devido aos desinfetantes.

Mal se apercebendo da bílis que ardia nas narinas e na garganta, David arrastou-se pelo chão de pedra, içando-se para cima de uma tarimba de estrutura metálica. Mergulhou num sono cheio de frialdade e desinquieto, muito antes de os soluços de choro terem desaparecido.

 

- Está na hora de irmos, meu filho. Este copo contém um pouco de Listerine. Espalha um pouco de água fria pelo rosto e bochecha com isto durante um minuto. Verás que te ajuda a despertar.

Com dificuldade, David conseguiu entreabrir os olhos; uma fenda apenas. A sua primeira visão da manhã foi a mesma que tivera na noite anterior. Barras. Desta feita, as barras brancas e azuis manchadas de suor da fronha da sua almofada, por baixo do rosto.

O agente era um homem de aspecto imponente, que rondaria mais ou menos os cinqüenta anos, com uma barriga que se mantinha suspensa uns quantos centímetros por cima do cinto das calças. Encontrava-se encostado à ombreira da porta da cela observando com toda a paciência enquanto David se levantava e limpava dos olhos as ramelas do sono da noite.

- Consegues falar, meu filho? - perguntou o polícia.

David acenou que sim e olhou para o homem por entre olhos semi cerrados, após o que levou à boca o desinfetante bocal. O agente não dava a impressão de estar com muita pressa, pelo que David levou um minuto a espreguiçar-se, tentando livrar-se da tensão que sentia nos músculos das costas e do pescoço, ao mesmo tempo que se esforçava por ter alguma percepção da sua pessoa. Pelo menos de momento, o terror e a confusão da noite anterior iam-se dissipando. Em seu lugar tinha uma sensação estranha, embora fosse bastante apaziguadora de bem-estar. Com os joelhos unidos, inclinou-se para a frente, colocou a ponta dos dez dedos sobre o chão. "Estou em paz". pensou ele. "Este buraco de merda, toda esta loucura e aqui estou eu sentindo-me em paz.”

Foi então que lhe ocorreu à memória. Tinha-se passado num acampamento de Verão. Ele tinha onze - não, doze anos na altura. Sentira uma cãibra repentina enquanto nadava afastado da jangada. Num instante deu consigo no fundo com as dores a invadirem-lhe as entranhas, sentindo a água que forçava o seu caminho até aos pulmões. E então, com a mesma rapidez com que haviam começado, o terror e as dores desapareceram. No seu lugar, surgira o mesmo sentimento de paz alheado de tudo. Ele encontrava-se prestes a morrer - então e agora -, a morrer sem que houvesse nada que o pudesse evitar.

As bochechas avermelhadas do sargento incharam-se com um sorriso rasgado.

- Fico satisfeito por ver que estás a sentir-te melhor - disse ele. - Os rapazes da noite

ficaram preocupados. Disseram que tu não foste capaz nem de segurar numa moeda, quanto mais fazeres o telefonema que eles te permitiram fazer. - Ao ver que David não lhe respondia, acrescentou: - Estás a sentir-te melhor, não é verdade?

- Oh, sim. Estou a sentir-me bem, obrigado - respondeu David numa voz distanciada, continuando a testar o seu corpo e sentimentos, numa tentativa para detectar sofrimento.

- Hum... seja como for, onde é que eu estou?

- Na Esquadra do Distrito Um - respondeu o guarda. Olhou para David com uma preocupação acrescida.

- Estás na do Distrito Um de Boston. Estás a compreender o que te digo? - David acenou afirmativamente. - Agora devemos pôr-nos a caminho. Tens de ser apresentado em tribunal. O juiz e as outras pessoas que estiverem no tribunal ajudar-te-ão. Não te sintas preocupado.

David olhava para o homem com uma curiosidade divertida, enquanto este fechava a algema à volta do seu pulso direito, levando-o depois para fora da cela. Sorriu com

cortesia ao prisioneiro de raça negra e cabelos grisalhos que ficara preso pela outra

algema. Calmamente, com um olhar que mais parecia uma fuga musical, focou a sua atenção nas mãos algemadas - uma branca e outra negra - , seguindo atrás delas para o assento de trás do carro-patrulha.

- O meu nome é Lyons - apresentou-se o homem de raça negra quando a viatura se pôs em marcha. - Reggie Lyons. - O seu rosto que denotava sabedoria, era atravessado por inúmeras rugas finas, acumuladas com a passagem dos anos de uma vida dura, havendo algumas bastante mais vincadas, claramente talhadas por outras adversidades mais tangíveis.

- David. Eu chamo-me David - replicou ele.

- Tu nunca percorreste este caminho, David, pois não? - perguntou Lyons. David encolheu os ombros, olhou através da janela e abanou a cabeça - Prepara-te para passar um mau bocado. A choldra em Suffolk é do pior que há, homem. Quero dizer que é do pior. - David olhou para a moto que passava ao lado deles, fazendo um acenar de cabeça.

- Ei, estás a sentir-te bem? Bom, isso não interessa muito, quer seja de uma maneira

quer da outra. Se calhar é melhor ser-se dado como maluco. Deixa-te estar sempre ao pé do velho Reggie. Ele trata de ti.

A choldra, na realidade, era uma jaula. A cela de detenção para os prisioneiros que

aguardavam ser presentes a tribunal. Eram vinte homens, todos eles "presumivelmente inocentes", amontoados no interior - violadores, bêbados, vagabundos, assassinos e os acusados de atentados contra o pudor. Do lado de fora da cela encontravam-se meia dúzia de advogados que tentavam sobrepor a sua voz à dos colegas, esforçando-se por se fazerem ouvir acima do ruído abafado que vinha do interior da cela.

- Perkins? Qual de vocês é que é o Perkins?...

- Francamente, Arnold, estou-me a cagar para o facto de o miúdo ser culpado ou inocente. Ou ele aceita a primeira acusação ou acaba por ser condenado pelas duas com direito a uma estada de três a cinco anos em Walpole...

- Olha, miúdo, eu sei o que é que tu viste nos filmes do Perry Mason, mas essa não é exatamente a maneira como as coisas funcionam. Hoje em dia não falamos de culpado ou inocente. Nos nossos tempos fala-se em dinheiro. Se tiveres algum ou puderes arranjar algum, pomos-te cá fora sob fiança. Caso contrário, vais ter de esperar pelo teu julgamento em Charles Street. Hoje ninguém se interessa pela tua história. Isto é só para a fiança. Está compreendido? Somente para a fiança. . .

David conseguiu passar pelo amontoado de prisioneiros colocando-se a um canto da

choldra e olhando através da rede de malha de ferro para uma janela, cujos vidros eram opacos devido a uma camada de sujidade. Pouco a pouco, a realidade - e o terror - estavam a regressar. Os seus pensamentos concentraram-se no hospital. Naquela altura, as salas operatórias já iriam nas segundas operações do dia.

- Ei, David, tens um advogado? - perguntou Reggie Lyons que se aproximara de si,

encostando-se às barras da jaula. Um cigarro, machucado e torto, subia e descia ao canto da sua boca enquanto ele falava.

- Ah, não, Reggie, não tenho - respondeu David distraidamente. - Pelo menos, que eu tenha conhecimento. - Sentiu uma pressão crescente e desconfortável por baixo do esterno. Tentou recordar-se da última ocasião em que tinha comido. Quando correra pela última vez ao longo da margem do rio. Com o olhar inspecionou a jaula; a percepção do que o rodeava aumentava com a passagem de cada segundo, e com ela vinha um desespero sem limites.

- Shelton? David Shelton? Qual de vocês é que se chama Shelton? - O oficial de diligências era um homem atarracado e gordo, que andaria pelos seus cinqüenta anos.

Tinha um aspecto - uma expressão nos seus olhos - indicador de que o seu passatempo favorito, fora das paredes do tribunal, seria arrancar as asas dos insetos.

- David, não te mostres assustado - aconselhou Reggie Lyons numa voz segregada,

aproximando-se mais do seu colega de cela. - Quando estiveres lá dentro pensa só na praia ou na garota de quem gostas mais, qualquer coisa desse gênero. Todos os uniformes e togas não passam de encenação. Um jogo de que eles gostam para se impressionarem uns aos outros. e para nos fazerem tanto medo que nos borramos todos.

David voltou-se e olhou para o rosto envelhecido de Reggie, cuja expressão não deixava adivinhar a sua idade.

- Obrigado - agradeceu ele numa voz enrouquecida. - Estou-te muito grato.

O homem fitou-o com curiosidade, agarrando numa das mãos de David que tomou nas suas. A pele da palma das suas mãos era espessa e calejada.

- Boa sorte, homem - sussurrou ele. - Não cedas perante eles.

O oficial de diligências, um homem gordalhufo, colocou as algemas nos pulsos de David logo que este saiu da jaula. Momentos mais tarde, encontrava-se sentado no banco dos réus.

Aquela espécie de ilha de madeira com a altura de cerca de um metro e mais ou menos um metro e vinte de superfície, mantinha-o separado do resto da sala do tribunal. Depois de lhe ter sido dito que se levantasse, procurou apoio encostando-se a um painel baixo, enquanto palavras novas, vozes e cenas recentes se introduziam no seu pesadelo A funcionária que leu as acusações proferidas contra si era uma solteirona, que dava a impressão de ter nascido naquela sala de tribunal tão antiga e ornamentada - Quanto à acusação número três, um, nove, quatro, sete, a pessoa que o indicia, John Dockerty, o qual representa respeitosamente a cidade de Boston no condado de Suffolk, em nome da já referida Confederação de Estados, David Edward Shelton de Boston, condado de Suffolk, no segundo dia de Outubro em violação da legislação, capítulo dois, seis, cinco, secção um, matou premeditadamente uma tal Charlotte Winthrop Thomas com a intenção de a assassinar, ao injetar no seu corpo uma determinada quantidade de sulfato de morfina.

O tribunal apresentou uma petição a favor do acusado, para que seja pronunciado inocente.

David encostou-se mais pesadamente contra o painel enquanto o promotor de justiça, um homem jovem e magro que usava dois anéis em cada uma das mãos, delineava a traços largos o processo de acusação. Na mente de David só ficavam registradas palavras e frases sem qualquer nexo.

- ... com premeditação... existindo uma utilização inconsciente dos seus conhecimentos e capacidades... uma injeção que não havia sido prescrita... positivamente identificado como... assassínio, tão odioso como qualquer outro cometido sob o efeito da paixão...

- Doutor Shelton, compreende as acusações que foram proferidas contra si? - perguntou o juiz com uma expressão de desinteresse. - David acenou que sim. - Faça o favor de falar mais alto. Compreende o teor das acusações?

- Sim - respondeu David com dificuldade.

- E tem algum advogado que o represente?

Durante vários segundos fez-se um silêncio total na sala do tribunal. Foi então que se ouviu uma voz proveniente da última fileira de assentos.

- Sim. sim, tem, Meritíssimo. - Um homem magro, que envergava um fato de três peças num tecido com riscas finas ergueu-se e caminhou em passos vigorosos pela coxia, dirigindo-se ao juiz.

- Representa este homem, doutor Glass?

- Sim, senhor juiz.

- Que fique registrado que o acusado é representado pelo doutor Benjamin Glass.

Os olhos de David estreitaram-se ao examinar o homem que se apresentara com o propósito de lutar pelos seus interesses. Uns cabelos negros... ralos... umas quantas

madeixas cuidadosamente penteadas à largura do topo da cabeça... uma pasta de couro castanho já muito usada... uma aliança de casamento larga em ouro, intrincadamente trabalhada.

Glass aproximou-se de David esboçando um sorriso de encorajamento.

- Está a sentir-se bem? - perguntou o advogado em voz baixa. David conseguiu acenar com a cabeça. - Você está tão branco como um fantasma. Precisa de consultar um médico ou de qualquer outra coisa? - Desta vez, a reação foi um sacudir de cabeça. A tez do advogado era escura com uma coloração trigueira; era jovem e sem quaisquer rugas e, contudo, ao mesmo tempo possuía uma expressão que instilava confiança; era a fisionomia de uma pessoa sabedora da vida. A intensidade do seu olhar era acentuada pelas olheiras fundas. - Peço desculpa por ter vindo atrasado. Só esta manhã é que a Lauren conseguiu entrar em contacto comigo. Primeiro, deixe-me tirá-lo daqui para fora e depois já poderemos conversar.

- Meritíssimo - disse Ben Glass aproximando-se do juiz -, gostaria de passar à fiança a atribuir ao meu cliente, e submeter uma petição para que tenha lugar uma audiência de causa provável. - Na óptica de David, o advogado tinha um aspecto franzino, quase de fragilidade. No entanto, da sua postura e da inclinação que dava à cabeça emanava uma grande segurança.

Aquele era o seu mundo, compreendeu David, a sua sala de operações.

- Muito obrigado, Lauren - sussurrou David para consigo próprio. Pela primeira vez, surgiu uma centelha de esperança no meio do seu pesadelo.

- Com que fundamento? - perguntou o juiz.

- Meritíssimo, o doutor Shelton é um cirurgião respeitável sem cadastro criminal e que não possui qualquer histórico recente que pudesse sugerir a necessidade de observação psiquiátrica e avaliação.

- Muito bem. Cinqüenta mil dólares em dinheiro.

- Doutor juiz - interpôs Glass mostrando apenas a medida certa de incredulidade - , é possível que este homem seja um médico, mas posso assegurar-lhe que não é nenhum milionário. Por favor, poupe-nos a viagem esta tarde para que o caso seja revisto pelo Supremo Tribunal de Justiça. Pode aumentar para cem mil dólares, mas permita-me que pague a um fiador.

O juiz uniu a ponta dos dedos durante alguns segundos, antes de anunciar a sua decisão.

- Muito bem, doutor Glass. A fiança fica estabelecida em cem mil dólares.

- Muito obrigado, Meritíssimo.

Ben agarrou em David pelo braço e, com o oficial de diligências bem perto, conduziu-o para fora da sala de audiências.

- Já está quase em casa, David - disse o advogado. - O meu amigo fiador vai querer

receber dez mil dólares. Você tem essa quantia?

- Eu... não me parece que tenha - respondeu David.

- A família. Os seus pais podem emprestar-lhe esse dinheiro, ou pode arranjá-lo em qualquer outro sítio?

- Os meus pais morreram. Eu... eu tenho dois irmãos e... ah... oh, uma tia que talvez me possa ajudar. E se eu não conseguir arranjar esse dinheiro?

- Acredite em mim quando lhe digo que não vai querer que isso aconteça. A cela onde ficou a noite passada é um palácio em comparação com Charles Street, para onde o enviarão se não puder pagar a fiança. Vou dizer-lhe o que é que vamos fazer. Maury Kaufman, o fiador, tem enriquecido tanto à custa dos meus clientes que está em dívida para comigo. Ele há de concordar em não exigir o pagamento por um dia, em vez de correr o risco de perder o negócio que eu lhe proporciono. Hoje é quarta-feira. Dou-lhe até sexta-feira de manhã para arranjar os dez mil. De acordo?

- Muito bem - concordou David, enquanto o oficial de diligências lhe retirava as algemas e lhe indicava com um gesto que regressasse à cela. - E doutor Glass... muito obrigado.

- David, espero que isto não abale demasiado a sua confiança, mas, enquanto você

andava a marrar na universidade de medicina, eu era um desses hippies esquisitos, filhos das flores, que eram empurrados de um lado para o outro em demonstrações contra a guerra. O nome é Ben. Pode chamar-me doutor Glass, apenas no caso de ser mais fácil para si ter de aceitar os honorários que terá de me pagar - O advogado virou costas e começou a percorrer o corredor, quando o oficial de diligências fechava estrondosamente a porta da cela.

- Ei, David, esse tipo, o Glass, é o teu advogado? - O cigarro ao canto da boca de Reggie Lyons havia sido substituído por um palito.

- Eu... eu calculo que seja - retorquiu David, satisfeito ao reparar no ligeiro tom de animação que tinha regressado à sua voz.

- Bem, nesse caso imagino que já posso deixar de me preocupar tanto contigo. Ele não tem lá grande presença, mas eu já o vi em ação no tribunal umas quantas vezes. O fulano é um leão. O que quero dizer é que ele é o homem.

- Obrigado por me dizeres isso, Reggie. As tuas palavras ajudam-me muito. - Na realidade, David até mostrou uma careta risonha. - A verdade é que tu tens sido fantástico para comigo. Afinal, por que é que tu estás aqui?

- Só estou aqui, meu - replicou Lyons com um sorriso e um piscar de olho. - Eu estou

aqui só para estar aqui.

O reclame acima da porta do bar dizia: “Charcutaria Paddy O’Brien: A casa do melhor fígado picado, e do mais famoso judaico-irlandês desde Briscoe, presidente da Câmara Municipal”.

- Eu nem sequer tinha ouvido falar deste lugar - disse David sorrindo enquanto deslizava por cima do banco corrido de madeira, sentando-se em frente de Ben. As estrelas de David e os shamrocks eram os motivos decorativos que mais se viam por todo o lado. Na parede, por cima da mesa compartimentada onde ambos se sentavam, havia uma fotografia de um grupo de revolucionários farroupilhas irlandeses, pendurada ao lado de um tanque de guerra israelita novinho em folha.

- Você é judeu? - perguntou Ben.

- Não.

- Irlandês?

- Não - respondeu David.

- Dou o meu caso por encerrado. Não admira que nunca tenha vindo aqui. No entanto, mais cedo ou mais tarde, a maior parte das pessoas acaba por vir parar a este lugar. E aqui está você.

- Graças a si.

- É o que eu faço - respondeu Ben de uma maneira casual. - Se um dia destes o meu apêndice rebentar, então é possível que eu acabe aqui a saborear o fígado picado, graças a si. É esta a maneira como tudo funciona, não é verdade?

- Certo - concordou David. Ele tinha bem a percepção de que a conversa descontraída partilhada por ambos desde que tinham saído da sala do tribunal fora tão bem orquestrada por Ben como a escolha daquele restaurante, com o seu ambiente tão vibrante e cheio de vida. Também sabia que eram escolhas sensatas. Pouco a pouco, começava a descontrair-se. Gradualmente, ia sentindo o ressurgir de um sentimento e esperança.

Ben mandou vir "uma amostra das delícias", um prato que com toda a facilidade poderia ter alimentado dez pessoas. Durante algum tempo comeram em silêncio, antes de o advogado ter retomado a palavra.

- Provavelmente, não é lá muito justo que eu tenha esperado até termos acabado de

comer, para depois levantar o assunto dos meus honorários, mas é assim que os pirralhos que tenho em casa podem comer. É dez mil dólares, David.

Por uns momentos, David ficou atordoado, encolheu os ombros e bebeu um gole de água.

Subitamente, dava consigo a ter uma dívida de vinte mil dólares, o que era substancialmente mais do que uma insignificância no seu pesadelo.

- Não tenho essa quantia - disse ele sem estar com quaisquer rodeios.

- Eu sou bastante mais tolerante no esquema de pagamentos que me são pedidos do que o Maury, o fiador - retorquiu Ben - , mas espero vir a ser pago.

- Imagino que depois de ter sido acusado de assassínio - retorquiu David com os lábios contraídos -, e de ter passado a noite numa cela, não existam efetivamente muitos motivos para que eu mostre um falso orgulho. Tenho a certeza de que poderia pedir esse montante emprestado, se puser de lado a minha vaidade durante o tempo suficiente para o pedir. Muito possivelmente, os meus irmãos estarão dispostos a ajudarem-me. Além de que tenho um amigo que é proprietário do Bar Zona Norte...

- O Rosetti? - perguntou Ben.

- Você conhece o Joey?

- Não o conheço muito bem, mas o suficiente para saber que ele pertence ao gênero de amigos que se deve ter. De uma maneira qualquer, ele foi sempre capaz de equilibrar as coisas entre os rapazes da zona norte e o sistema, sem nunca pender para nenhum dos lados. Se ele é seu amigo, sugiro que lhe dê um telefonema.

- No caso de vir a ser necessário, certamente que o farei

- Pois bem, tal como eu já lhe disse, espero vir a ser pago pelos meus serviços. - David aquiesceu com um acenar de cabeça. - Nesse caso, temos negócio fechado - concluiu Ben estendendo a mão por cima da mesa para apertar a de David - Agora posso dizer-lhe o que é que terá a troco do seu dinheiro... assim como o que deve fazer para me reter como seu advogado. Você obterá tudo o que estiver ao meu alcance, David. Tempo, amigos, influência, suor... tudo o que poderá vir a necessitar. Em troca disso, só pretendo uma coisa de si, isto é para além dos meus honorários. - Fez uma pausa para causar mais efeito. - Honestidade. E quero dizer que tem de ser total, não pretendo uma honestidade de merda. Não existem segundas oportunidades. Caso eu o apanhe numa aldrabice, por mais pequena que seja, você terá de encontrar outro advogado que o represente. Na minha atividade, tal como as coisas estão, já existem surpresas desagradáveis em número suficiente, sem que eu tenha de me sentir constantemente preocupado sem saber se os meus clientes estão a mentir-me ou não.

- Continuamos de negócio firmado - confirmou David.

- Excelente. Porque é que você não começa por pôr-me a par de um pouco do seu

passado? Parta do princípio de que eu não sei absolutamente nada.

Nesse momento, um homenzinho cheio de sardas, com um cabelo que começava a

encanecer, e que era a expressão da vivacidade, aproximou-se num passo saltitante, debruçando-se sobre a mesa. Usava um avental que tinha algumas nódoas de gordura, e cujo motivo decorativo era uma estrela de Davi verde de um tamanho enorme. O sotaque na sua voz esganiçada transformava cada palavra numa toada musical.

- Ben!, meu rapaz. Estou a ver que voltaste a abrir a sucursal do teu escritório.

- Olá. Paddy. Já há algum tempo que eu não vinha aqui. - Ben deu um aperto de mão ao outro. - O teu restaurante está com um ambiente bastante agradável. Olha, este é o meu amigo David. Ele é um cirurgião, portanto, é melhor que mantenhas essa multidão barulhenta calada, enquanto nós trabalhamos, caso contrário digo-lhe que faça um enxerto ao alvo dos dardos servindo-me das tuas partes mais perigosas.

Paddy O'Brien soltou uma gargalhada, dando uma palmada amigável no ombro de David.

- À vontade, se isso fizer com que funcionem melhor. Aqui o Benjy é do melhor que existe em direito, e também em sacar o cheque. Portanto, mantenha-se alerta. Vocês dois tratem do vosso assunto. Vou mandar duas canecas... cortesia da casa.

- Só uma, Paddy - corrigiu Ben. O seu olhar prendeu-se no de David por instantes. - Para mim.

- Uma caneca e uma Coca-Cola a saírem - disse o homem de estatura baixa sem sequer pestanejar.

- Por conseguinte, devo partir do princípio que você não sabe nada, não é verdade? - David sorria.

- Esta manhã cheguei atrasado porque estive a falar com o John Dockerty - explicou Ben. - A conversa não se prolongou o suficiente para me permitir inteirar-me de muita coisa mas posso dizer-lhe que ele não guardou este assunto numa gaveta. Por favor, faça-me a vontade e limite-se a assumir que não sei rigorosamente nada. De acordo?

- Muito bem - anuiu David com um encolher de ombros. - Até que ponto é que quer que eu recue no passado?

- A história é sua - respondeu Ben.

- A minha história... - Por uns momentos, a voz de David enfraqueceu à medida que os fragmentos de acontecimentos. acompanhados pelos rostos dispersos de pessoas, desfilavam pelos seus pensamentos. - Calculo que tenha começado da maneira mais inocente. - Encolheu os ombros de novo. - Dois irmãos mais velhos. Uns progenitores decentes e afetuosos., uma casa com uma cerca de madeira pintada de branco. Tudo como deve ser. Quando eu tinha cerca de catorze anos tudo isso foi por água abaixo. A minha mãe foi diagnosticada com cancro. O mal alojara-se no cérebro, antes que alguém soubesse do que é que ela sofria. Ainda assim, ela conseguiu sobreviver por mais oito meses de sofrimento. O meu pai tinha uma pequena loja, de artigos elétricos. Acabou por ter de a vender para poder cuidar da minha mãe... isto é, entre os períodos de hospitalização. Poucas semanas antes de ela morrer, foi ele quem sofreu um ataque fulminante das coronárias. Faleceu antes de cair no chão, disseram os médicos. Continuo sem ter a certeza do motivo, mas, desde essa altura, tudo o que eu desejava era vir a ter uma carreira no campo da medicina. Especializar-me em cirurgia. Até mesmo já nesses tempos.

Haviam decorrido muitos anos desde a última vez em que David revivera todo aquele período da sua vida. Sentiu-se surpreendido ao ver a facilidade com que as palavras lhe assomavam à boca.

- É este o gênero de pormenores que deseja saber? - perguntou ele. Ben acenou que sim.

- Os meus tios acabaram de me criar até eu ter ido para a universidade; a partir de então fiquei essencialmente por minha conta. Nunca fui um grande gênio, mas sabia bem o que é que queria, pelo que fiz tudo ao meu alcance com vista a realizar os meus objetivos. Durante todos os anos em que freqüentei a universidade de medicina, foram-me concedidas várias bolsas de estudo, para além de ter tido diversos empregos. Estabelecia aquilo que seria o meu limite, após o que fazia tudo para o atingir. A meio do meu estágio hospitalar, comecei a sentir-me afetado. No hospital, eu era uma espécie de menino prodígio.

Todavia, fora deste sentia que estava a desfazer-me em pedaços. Fumava cigarros a mais, passava muitas noites sem dormir, o que era acompanhado por períodos de depressão que se recusavam a desaparecer. Combati o problema da única maneira que sabia. Esforçava-me ainda mais no trabalho. Recuando no tempo, tenho a certeza de que, se não tivesse sido por causa de um sinal de trânsito que alguns miúdos tinham roubado, eu teria caído irremediavelmente no abismo em que a minha vida se transformara.

Ben mostrou-se espantado com aquela estranha associação. mas logo depois sorriu.

- Uma mulher?

- A Ginny - confirmou David com um acenar de cabeça. - O carro dela e o meu chocaram num cruzamento. O sinal a que ela deveria ter obedecido tinha desaparecido. A ironia de todo este acaso continua a ser-me extremamente dolorosa. Conheci-a através de um acidente de automóvel, e então... - Pela primeira vez, David sentia dificuldade em articular as palavras

- David, se neste momento esta conversa está a ser demasiado difícil, poderemos retomá-la noutra altura - disse Ben erguendo uma mão. - No entanto, mais cedo ou mais tarde teremos de a ter, uma vez que tem a ver com aspectos de que devo inteirar-me.

- Não - retorquiu David mexendo no seu copo -, eu estou bem. Interrompa-me se a narração se tornar sentimental demais... ou demasiado maçadora. - Ben sorriu, fazendo-lhe sinal para que continuasse... - Seis meses mais tarde casamo-nos. Ela era decoradora de interiores. Uma pessoa rara e muito terna. Toda a minha vida se transformou só porque ela se encontrava presente ao longo dos quatro anos seguintes, tudo o que eu fazia revestia-se de magia. O chefe de Serviço de Cirurgia do Hospital White Memorial pediu-me que ficasse um ano suplementar, como chefe dos médicos estagiários. Essa posição é quase a única maneira de um cirurgião passar a fazer parte do quadro clínico desse hospital. Portanto, tudo estava a correr pelo melhor. Pelo menos durante algum tempo.

Tivemos uma filha, a Becky. Acabei o estágio e comecei a exercer. Mas foi então que se deu o acidente. Era eu quem ia ao volante. Eu... bem, calculo que os pormenores não tenham grande importância. A Becky e a Ginny morreram. Assim, sem mais nem menos... Eu sofri apenas uns cortes e umas esfoladelas, mas nada de mais. Exceto que, à minha própria maneira, eu também morri nesse dia. Nunca cheguei a retomar verdadeiramente o meu trabalho. Fui da fase em que bebia com moderação, quase um abstêmio, à da embriaguez. Uma viragem muito acentuada. Graças a Deus que, durante esse período, tive o discernimento suficiente para me manter afastado do bloco operatório.

No entanto, tentava tratar dos casos de menor importância na minha consulta. Foi nessa altura que se iniciou o ciclo das pílulas. A minha versão de trocar de lugar a bordo do Titanic. Estimulantes para iniciar o dia, soporíferos para conseguir dormir. Com certeza que você já conhece esta história. Ao princípio, os meus colegas de trabalho mostraram-se tolerantes. Até se pode dizer que me ajudavam. No entanto, consegui violar a sua lealdade para comigo de uma forma sobejamente brutal, o que foi acontecendo a um de cada vez, levando-os a afastarem-se de mim. Comportei-me dessa maneira durante quase um ano. Acabei por ser excluído do quadro médico do hospital. Nem sequer me apercebi de que isso tinha acontecido, uma vez que me encontrava perdido noutro ponto de viragem.

- É uma porra de um ciclo para se conseguir sair dele - comentou Ben.

- A sós, realmente é. Que não restem dúvidas quanto a isso. Pois bem, houve uma manhã em que acordei numa jaula. O meu último amigo não foi capaz de suportar a situação por mais tempo. Na realidade, foi ele quem me levou para um hospital. O Instituto Briggs. Conhece? - Ben acenou indicando que já tinha ouvido falar daquele lugar. - Veio a verificar-se que essa instituição era excelente para mim, mas tal não se verificou nas primeiras semanas. Não havia maçaneta na porta do meu quarto. A janela tinha barras de ferro. Não faltava nada àquele cenário... Ainda está acordado?

- Eu tive conhecimento de algumas partes da sua história através da Lauren e do Dockerty - respondeu Ben com um abanar de cabeça, soltando uma pequena gargalhada que lhe saiu a custo -, mas não com toda esta minúcia. O fato de você ter sido encarcerado ontem à noite deve ter sido...

- Eu não sofro de claustrofobia clássica - atalhou David sentindo um estremecimento. - Pelo menos, não me parece que sofra. O que acontece é que, desde essas primeiras semanas passadas no Briggs, o pensamento de me encontrar fechado, ou encurralado, num lugar onde o espaço é reduzido provoca-me sempre esta sensação horrível de ter algo a abocanhar-me as entranhas, e por vezes sinto um calafrio que... - interrompeu-se e esboçou um sorriso a muito custo. - Efetivamente, dá a impressão de ser claustrofobia, não lhe parece?

- Eu não gosto muito de etiquetar situações - retorquiu Ben.

- Bom, isso não interessa para o caso. - David engoliu tentando libertar-se da secura que sentia na boca, bebendo meio copo de água. - Vamos a ver... Não resta muito mais para contar. Depois de vários meses passados no instituto, senti-me preparado para regressar à medicina. Mas não à prática da cirurgia. Passei quase três anos a exercer como médico de clínica geral, numa das clínicas da zona degradada da cidade, após o que regressei ao hospital para repetir os últimos dois anos de estágio cirúrgico. Há quase dois anos que consegui entrar para o quadro médico do Hospital Médicos de Boston. Não tem sido nada fácil, mas as coisas têm vindo a melhorar substancialmente. Pelo menos, era isso o que estava a acontecer até há uma semana.

- David, tudo o que você me contou é muito mais do que eu poderia ter esperado que você fosse capaz de partilhar comigo neste ponto da situação - disse Ben. - Estou-lhe muito grato por ter conseguido. Torna o meu trabalho muito mais fácil.

- Devo confessar-lhe que estou com uma certa curiosidade - retorquiu David com uma expressão intrigada. - Por que motivo é que ainda não me perguntou se sou culpado pelo assassínio ou não?

Ben exibiu um sorriso rasgado, apoiando o queixo sobre as mãos.

- Mas já o fiz, meu amigo. Em doze ocasiões diferentes e de uma dúzia de maneiras

diversas. Você já arcou com demasiados fardos para que eu não remexa o céu e o inferno, a fim de impedir que volte a sofrer de novo desta forma.

- Estou-lhe muito grato - agradeceu David de sussurro. - Ben, quando você falou com a Lauren, ela...? Bem, o que pretendo dizer é que nós tivemos uma discussão e...

- David, não desejo interpor-me em nada semelhante a isso. mas na realidade tenho algo que gostaria de lhe dizer. Há muitos anos que conheço a Lauren Nichols. Ela é uma mulher brilhante e inacreditavelmente bela que, por acaso ou devido às circunstâncias, não se tem visto obrigada a enfrentar demasiadas adversidades ao longo da vida. Ela.. bem... ela pediu-me que lhe entregasse isto. - O advogado tirou um sobrescrito cor-de-rosa de um dos bolsos; tinha o timbre do papel de carta em que Lauren costumava escrever, passando-o para a mão de David.

- Não restam muitas dúvidas quanto ao que ela terá escrito não será? - David dobrou o sobrescrito que guardou numa algibeira enquanto dizia aquelas palavras.

- Não, imagino que não - respondeu Ben numa voz suave. - Sente-se bem para poder ir sozinho para casa? Quer dizer, se acha que precisa de ficar esta noite noutro lugar...

- Não, obrigado, Ben. Eu sinto-me bem. De verdade que sim.

- Amanhã telefono-lhe - disse o advogado.

- Amanhã - ecoou David

O céu pardacento era ameaçador; contudo, a chuva constante que havia caído ao longo dos últimos dias abrandara um pouco. A caminhada desde o restaurante de Paddy O'Brien até ao apartamento era uma distância de pouco mais de três quilômetros e, sem nada que o levasse a apressar-se para chegar a casa, David forçou-se a andar num passo lento, parando uma vez para passear pelo velho cemitério onde Paul Revere se encontrava sepultado. O seu raciocínio disse-lhe que o cemitério seria o lugar apropriado para ler a carta que Lauren lhe escrevera.

Depois de a ter lido, chegou à conclusão de que não houvera necessidade de se dar a esse incômodo. A curta missiva dizia aquilo que ele já esperava... semi formal... um terço composto por agradecimentos por tudo, e dois terços de "não me parece que as coisas viessem a resultar entre nós dois".

- Calculo que ela me tomou pelo melhor ou para o melhor - disse David para consigo

enquanto rasgava a missiva em pedaços ínfimos, lançando cerimoniosamente os bocados, que mais pareciam pétalas cor-de-rosa, por cima de uma campa antiga. Ficou surpreendido ao verificar o pouco desgosto que sentia. Talvez porque a perda daquele relacionamento não passasse de mais outro tijolo na parede que estava a encarcerá-lo, afastando-o da vida. Então, ao encaminhar-se meditativo em direção ao parque público de Boston, começou a perceber que só em raras ocasiões é que se tinha sentido verdadeiramente à vontade na presença de Lauren. Em grande parte, a culpa fora sua, uma vez que tentara forçá-la a ajustar-se aos pedaços que Ginny havia preenchido na sua vida. Antes mesmo da relação se ter iniciado, ele já a condenara ao fracasso, em virtude de todas as esperanças que entretanto albergara.

O pelotão avançado, formado pelas pessoas que se apressavam em direção a suas casas, tinha começado a encher os caminhos do parque público. Homens de negócios de aspecto cansado, grupos de secretárias que se riam à socapa e mulheres de carreira vestidas com bom gosto - gente que atravessava o parque relvado e cujo dia de trabalho já terminara, dando início à sua noite. Durante algum tempo, David entreteve-se a tentar manter contacto visual com todas as pessoas por quem passava. Ao longo dos primeiros minutos, o resultado foi de zero pontos, o que aconteceu ao cabo de vinte e cinco ou trinta tentativas. Baixou os olhos para o pavimento, perguntando a si próprio se existiria qualquer coisa de que ele não tivesse a percepção. Por fim, acabou por fazer uma aposta consigo mesmo em como, se conseguisse estabelecer um contacto visual, absoluto e inquestionável, antes de chegar a casa, o pesadelo que se seguira à morte de Charlotte Thomas chegaria ao fim dentro em pouco.

Na altura em que chegou à Commonwealth Avenue, tinha recomeçado a cair uma chuva miúda acompanhada de uma ligeira bruma. Ergueu os olhos semi cerrados e apressou o passo.

Um quarteirão mais à frente avistou um homem magro, de aspecto cavalheiresco, sentado num banco enquanto lia a edição do primeiro vespertino do dia, o Boston Globe. Estendeu a palma da mão para aferir a intensidade da chuva, decidindo que ainda lhe restava tempo para acabar de ler os últimos parágrafos do artigo, cujo tema era a morte misericordiosa que tivera lugar no Hospital Médicos de Boston.

Fora publicado na terceira página e ocupava duas colunas, descrevendo com algum

pormenor a prisão de David e a acusação subseqüente. Na impossibilidade de descobrir uma fotografia de David na altura, o repórter do jornal, de serviço no tribunal, conseguira desencantar uma de Ben Glass nos arquivos do periódico.

O homem elegante de estatura baixa acabou de ler o artigo. dobrou o jornal que colocou debaixo do braço e começou a caminhar para casa. Perdido em pensamentos relativos à história que acabara de ler, o homem não reparou na tentativa de David no sentido de estabelecer contacto visual.

 

- Chrissy, vai ver a casa de banho. Parece-te que esteja bem? - perguntou Lisa enquanto vestia uma saia e apertava o fecho na anca.

- Lisa, acho que a casa de banho não poderia estar mais limpa. Eu já te disse para não te preocupares com a casa. Ainda tenho uma hora antes de ela chegar. É tempo mais do que suficiente para limpar. - Christine meteu um disco na respectiva capa e voltou a colocá-lo no seu lugar na prateleira, aproveitando para endireitar a fileira de álbuns colocados ao alto. Sentira um nervosismo crescente, a par da apreensão desde o telefonema que Dotty Dalrymple lhe fizera ao fim da tarde, e agora só desejava que as suas companheiras de casa saíssem, dando início às atividades que tinham programadas para aquela noite, de forma a que ela pudesse dispor de algum tempo a sós, antes da chegada da mulher.

A diretora do pessoal de enfermagem não lhe dera a mais pequena indicação da razão que a levara a querer ir a sua casa no entanto, era bastante difícil a Christine acreditar que aquela visita se relacionasse com algo mais para além da morte de Charlotte Thomas.

Ainda pensara em telefonar para o Comitê Regional de Avaliação, procurando conselho quanto à forma de lidar com a situação, tendo concluído que seria um disparate, uma vez que ela não tinha a certeza de qual exatamente era a situação.

De repente, Lisa, nua da cintura para cima, surgiu na sala de estar.

- Carole, com soutien ou sem soutien para este tipo?

- Lisa, vais ter um encontro com um homem que não conheces - gritou Carole do seu quarto. - Não permitas que ele te toque e o homem jamais saberá se estás a usar ou não.

- E tu, Chrissy, o que é que te parece? Levo soutien ou não?

Christine olhou-a por breves instantes com uma expressão de avaliação.

- A estação tem sido bastante aborrecida - disse ela. - Na minha opinião, devias atirar-te de cabeça. - A sua voz soava muito menos animada do que fora a sua intenção.

- Tu dás a impressão de estar tão tensa como o couro de um tambor - retorquiu Lisa com um encolher de ombros, vestindo a blusa. - Trata-se de alguma coisa de que queiras desabafar?

- Acredita em mim - redargüiu Christine -, se eu tivesse alguma coisa acerca da qual

desejasse falar não hesitaria em fazê-lo; Miss Dalrymple nunca me visitou desta maneira, mais nada. É possível que ela queira promover-me, mas por outro lado não ponho de parte a idéia de querer despedir-me. Não faço a mais pequena idéia. Vocês as duas divirtam-se. Só espero que ele seja simpático. E quero agradecer-vos por me terem ajudado a arrumar a casa.

- Alto aí, espera um minuto! - Lisa fez estalar a ponta dos dedos e correu para o seu

quarto, enquanto falava ao mesmo tempo.

- Isto veio ao princípio da tarde, acho que foi quando saíste. - Regressou com uma jarra cheia de flores. - Parece-me que elas ficarão perfeitamente bem aqui, junto da janela... Não, em cima da mesa... Não, parece-me que talvez fiquem melhor ali...

- Lisa, essas flores são uma maravilha. Quem é que as mandou?

- A consola da lareira. Sim. É o lugar perfeito para as flores.

- Lisa, quem?

- Oh, foi o Arnold quem mas ofereceu. Arnold Ringer, o homem que pôs todos os corações do escritório em alvoroço. O doido acredita que são um atalho para o meu corpo. E queres saber que mais?

- Ele tem toda a razão! - Ambas pronunciaram as mesmas palavras em uníssono, o que fez com que desatassem a rir-se.

Christine dava uma arrumadela à cozinha quando ouviu a campainha da porta.

Momentos mais tarde, Carole e Lisa fizeram as suas despedidas e ela ficou sozinha.

Todavia, a sua solidão durou um suspiro, um passo na direção da sala de estar e outro no sentido inverso. Com um bater à porta puramente simbólico, Ida Fine entrou pela porta das traseiras. Dobrado debaixo do braço trazia uma cópia da edição vespertina do Globe. Começou a falar sem dar a Christine a oportunidade de lhe dizer que a sua visita era inoportuna.

- Então, onde é que estão as minhas outras duas meninas? Esta noite saíram? E por que razão é que tu não saíste também? - Era muito raro que Ida fizesse uma pergunta sem que fosse ela própria a dar-lhe resposta, ou então dava seqüência à anterior com uma posterior, que muitas vezes não se relacionava em nada com a antecedente.

- Ambas tinham encontros marcados, Ida - respondeu Christine, esperando que a falta de entusiasmo que se refletia na sua voz lhe transmitisse a mensagem de uma forma que não fosse ofensiva.

- E tu, a mais bonita das três, não tens um encontro marcado? Estás doente; é esse o problema? Não estás a sentir-te bem? Eu tenho sopa lá em cima. Eu bem sei que vocês, as enfermeiras, são demasiado sofisticadas para acreditarem no bem que uma sopa faz, mas...

- Não, Ida, eu sinto-me lindamente. - Não havia nada que impedisse a mulher de levar a cabo o seu ataque frontal. - Acontece que esta noite estou ocupada. A minha chefe deve chegar dentro em pouco e eu tenho de me aprontar. Talvez amanhã, ou mesmo ainda esta noite, mas mais tarde, possamos conversar. De acordo?

- Aposto que ela quer falar contigo sobre aquele médico que assassinou a mulher no

hospital onde trabalhas - alvitrou Ida, batendo com o jornal sobre a mesa. - E para mais, um médico. A minha mãe sempre quis que eu me casasse com um médico, mas não, eu tive de ser teimosa e casar com o meu marido, que Deus tenha a sua alma em descanso...

- Os olhos de Christine arredondaram-se de espanto, fitando Ida que continuava a falar sem dar mostras de tencionar parar. - ... não que o Harry tenha sido um mau marido, posso eu dizer-te. Ele era um homem muito bom. Mas às vezes...

- Ida, de que é que estás para aí a falar?

- Do assassínio. O David qualquer coisa. Ele deve ser judeu. Não, é impossível que seja judeu. Um rapaz judeu que assassina uma doente? Não posso...

- Ida, por favor! - O grito de Christine produziu um silêncio imediato. - De que diabo é que estás para aí a falar?

- Vem tudo escrito aqui. No Globe. Pensei que estivesses a par do assunto. Toma, fica com o jornal. Dá-me só a secção da programação da televisão. Quando fui ao supermercado esqueci-me de comprar a TV Guide.

Ela continuou a falar, mas Christine deixara de prestar atenção ao que a mulher dizia. As folhas do jornal continuavam a fazer o barulho característico do papel, mesmo depois de ela as ter dobrado para trás. "CIRURGIÃO ACUSADO DE MORTE MISERICORDIOSA; FOI LIBERTADO SOB FIANÇA", leu ela.

O rubor assomou-lhe às faces, para logo desaparecer.

- Oh, meu Deus - murmurou ela numa voz inaudível, enquanto continuava a ler o artigo que descrevia a prisão de David, assim como a acusação. - Oh, meu Deus...

A chacina verbal de Ida prosseguiu por mais um minuto, até que abrandou, cessando por completo. Christine leu o artigo, uma palavra de cada vez, sem se dar conta de que o olhar da sua senhoria se mantinha preso em si.

Entretanto, Ida foi buscar uma cadeira da cozinha onde Christine se deixou cair entorpecida, lendo as últimas linhas do artigo.

"Fontes fidedignas do Globe informam que Shelton passou receitas para grandes quantidades de morfina, no dia da morte de Mrs. Thomas. O advogado do médico, o Dr. Glass, não quis fazer qualquer comentário relativo às provas incriminatórias, embora tenha afirmado convictamente que acreditava na inocência do seu cliente.” Quando todos os fatos forem apresentados “, disse ele,” tenho a certeza de que a verdade virá ao de cima, e o meu cliente será ilibado.”O Dr. Shelton foi libertado sob uma fiança no valor de cem mil dólares. A data do julgamento ainda não foi marcada.”

Ida dirigiu-se apressadamente para o lava-louça e molhou um pano que colocou sobre a testa de Christine. Durante quase um minuto, esta não fez qualquer gesto para a impedir.

Finalmente, fez um breve acenar de cabeça, afastando com suavidade a mão de Ida.

- Imagino que ainda não tivesses conhecimento disto, não é? - deduziu Ida. - Conheces este David? - Miraculosamente, a mulher ficou-se por aquelas duas perguntas.

- Sim. Eu... conheço-o - retorquiu Christine. David Shelton tinha estado muito dentro e fora dos seus pensamentos, desde o dia em que se tinham conhecido na Ala Quatro Sul.

Nada de persistente ou de avassalador - nem sequer bem definido - , mas o certo é que ele se encontrava presente na sua mente. O inquérito de Dockerty tinha-lhe propiciado uma razão para falar sobre ele com as outras enfermeiras, sem que se mostrasse demasiado óbvia nem parecesse estar muito interessada.

Num gesto de ansiedade, Ida Fine esfregou as mãos.

- Christine, as tuas faces têm a cor da minha hera-sueca. Queres que te ajude a ir para a cama ou... ou que chame um médico?

- Ida, eu estou bem - disse Christine com um abanar de cabeça. - De verdade que sim. Mas tenho de ficar sozinha durante algum tempo. Fazes-me esse favor?

- De acordo, vou-me embora. Já estou de saída - anuiu Ida. A entoação de amuo surgiu na sua voz mais por reflexo do que pela intenção. - Se precisares de mim, estou lá em cima. Também tenho comida, se sentires apetite... Fica com o jornal... - Enquanto transpunha a porta continuava a falar.

Christine leu o artigo pela segunda vez, após o que tomou nota na sua agenda do nome e endereço do escritório de advocacia de Ben Glass. O que é que teria levado David a comprar uma quantidade tão grande de morfina? E logo no dia da morte de Charlotte?

Seria uma mera coincidência? Talvez, embora não fosse algo que se aceitasse facilmente.

Era possível que os rumores que circulavam no hospital desta feita fossem verdadeiros.

Talvez ele consumisse drogas. Ou então que estivesse envolvido no tráfico de estupefacientes. Talvez tanto uma coisa como a outra. Contudo, a opinião que ela formara do homem, ainda que um pouco vaga, não lhe permitia acreditar que aquilo fosse verdade.

Com a ponta dos dedos fez pressão sobre as fontes, quando sentiu o latejar de uma dor pouco intensa que acompanhava o ritmo do bater do seu coração. O fato inquestionável era que a razão por que David tinha comprado a morfina não fazia qualquer diferença, apercebeu-se ela. Christine sabia bem o que é que tinha feito com as ampolas que A Irmandade lhe havia deixado; resumindo e concluindo, era absolutamente impossível ela permitir que ele viesse a sofrer as conseqüências do seu ato. Na altura, a sua ação parecera-lhe ser tão justa, pensou ela. Que diabo, fora justa. Tinha sido o que Charlotte quisera. O comitê havia aprovado a sua iniciativa. Christine não agira sozinha. Fechou os olhos com força e encostou-os aos pulsos, os quais parecia terem-se transformado em martelos. O mais pequeno movimento da cabeça fazia com que o latejar aumentasse de intensidade.

- Vai-te deitar - disse ela a si própria. - Toma uma aspirina, um Valium... uma coisa qualquer, e deita-te. - Pestanejou sob a luz da cozinha que de súbito adquirira a luminosidade do Sol; levantou-se da cadeira. Nesse mesmo instante ouviu a campainha da porta.

Dirigiu-se em passos vacilantes para o fogão. Chá, tinha de preparar um chá, pensou ela.

A campainha voltou a tocar, desta feita com maior insistência.

Com um gemido, Christine voltou-se e começou a percorrer apressadamente o corredor a fim de abrir a porta.

Dotty Dalrymple, usando um casaco comprido de cor púrpura, tinha um aspecto mais

imponente do que nunca. Sorriu calorosamente por baixo do seu chapéu de lona com uma orla larga da mesma tonalidade do casaco, transpondo a porta do apartamento.

- Isto está a pingar - disse ela, estendendo o guarda-chuva negro como se este fosse um bastão. - Onde é que eu o posso pôr? - O seu aspecto era o de quem se sentia absolutamente à vontade.

O latejar que Christine sentia na cabeça começou a abrandar, quando colocou o guarda-chuva junto da porta e pendurou o casaco, que mais se assemelhava a uma tenda ampla.

- Um chá - disse ela, esquecendo-se de convidar a mulher a entrar. - Deseja tomar um chá?

- Um chá seria excelente, Christine. - O sorriso de Dalrymple alargou-se ao fazer um gesto indicando o corredor. - Na sala de estar?

- Oh, peço desculpa, Miss Dalrymple - redargüiu Christine começando a acalmar-se um pouco. - Não foi minha intenção mostrar tanta descortesia. Faça o favor de entrar... Peço-lhe que me desculpe a desarrumação da casa, mas...

- Deixe-se disso - atalhou a diretora do pessoal de enfermagem, interrompendo-a. - O seu apartamento é encantador. Por favor, Christine, descontraia-se um pouco. Eu prometo que não lhe mordo. - Com um olhar rápido, inspecionou a sala de estar, optando por uma cadeira estofada sem braços, colocada em frente do sofá, onde se sentou. - Por acaso, você mencionou uma chávena de chá?

- Sim, sim. Já pus a água ao lume. Deixe-me só fervê-la.

- Tomo o meu com limão, se tiver - adiantou Dalrymple da sala de estar. - Se não houver, tomo-o simples.

- É só um minuto - disse Christine da cozinha, onde se atarefava na preparação do chá.

Mordeu um biscoito da única caixa que encontrou. - Raios! - exclamou cuspindo para o lixo o bocado de biscoito bastante retardado.

Nos poucos minutos de que necessitou para colocar duas chávenas de chá e algumas rodelas de limão num tabuleiro, Christine chamuscou um antebraço e fez um pequeno corte num dos lados de um polegar. Depois de ter dado dois passos na sala de estar, imobilizou-se, mal evitando que as chávenas tombassem no chão. Dotty Dalrymple tinha um exemplar do vespertino Globe aberto no regaço.

- Assumo pela sua reação que já leu o jornal da tarde - disse a chefe das enfermeiras.

Christine cerrou os olhos e respirou fundo. Caso a sua chefe tivesse estabelecido uma ligação entre ela e Charlotte Thomas, isso só poderia significar que havia algo que correra bastante mal. Agora desejava ter telefonado para o Comitê de Avaliação da Irmandade, a fim de se ter aconselhado.

- Eu... a minha senhoria mostrou-me há pouco tempo - gaguejou ela. - É horrível.

- Conhece bem o doutor Shelton? - perguntou Dalrymple, indicando-lhe com um gesto para que se sentasse no sofá.

- Não, verdadeiramente, não. Mal trocamos algumas palavras. Eu... eu só o conheci na semana passada. - Pensou que tinha dito demasiadas palavras. O que é que a outra quereria?

- Está a par do seu passado?

Do seu passado ? Aquela pergunta apanhou Christine desprevenida. Por que motivo é que Dalrymple faria uma pergunta daquelas? Seria que a mulher tinha alguma suspeita?

Estaria ela, fosse de que maneira fosse, a tentar encobri-la? Christine decidiu dar continuidade àquela peleja verbal até que os propósitos da mulher se apresentassem com maior clareza.

- O passado dele? Para dizer a verdade, não estou muito a par. Nada mais sei além de uns rumores que correm pelo hospital.

- O homem é conhecido por ser um viciado em drogas, para além de, muito provavelmente, também ser um alcoólico - atalhou Dalrymple sem estar com meias palavras. - Você tinha conhecimento deste aspecto? - Christine sentia-se deveras chocada com o que a chefe das enfermeiras dissera para poder responder. Momentos depois, a mulher continuou: - Há vários anos, ele foi demitido do quadro clínico do Hospital White Memorial. A sua contratação, para que passasse a fazer parte do pessoal médico do nosso hospital, rodeou-se de inúmeros protestos por parte de muitos dos outros médicos. O David Shelton não é um crédito para a sua profissão.

A imagem de David surgiu nos pensamentos de Christine: gentil e intensa, com uns olhos de expressão generosa e de grande honestidade. Em paralelo com aquela imagem, as palavras de Dalrymple não faziam o mínimo sentido.

- Eu... eu não sei o que dizer.

Dalrymple, continuando sentada, inclinou-se mais para a frente e fitou-a com grande

intensidade.

- É por de mais evidente que me encontro aqui, a partilhar estes pensamentos consigo... por uma razão. - A sua voz revestia-se de um timbre estranho e um tanto místico. - Christine, nós somos irmãs, você e eu. Irmãs. - Christine ficou sem respiração. - Naquela tarde na Ala Quatro Sul senti uma vontade tão grande de lhe dizer, mas os nossos regulamentos proíbem que façamos isso. Desde os meus primeiros tempos de enfermagem que eu faço parte d'A Irmandade da Vida. Na realidade, eu represento a região nordeste no nosso conselho de direção.

- Eu jamais teria pensado... O que quero dizer é que nunca desconfiei...

- Somos vários milhares, Christine - atalhou Dalrymple com uma gargalhada. -

Espalhadas por todo o país. Do melhor que a enfermagem tem para oferecer. Unidas pelos nossos ideais e pelo compromisso que assumimos feito com a dignidade humana.

- Isso quer dizer que tem conhecimento do caso da Charlotte? - perguntou Christine.

- Sim, minha querida, claro que sei. Todas as diretoras estão a par... O Comitê de Avaliação da Nova Inglaterra sabe e... como é claro, a Peggy também tem conhecimento. Estou aqui em representação de todas. Encontro-me aqui para a ajudar.

- Para me ajudar?

- Sim - respondeu a chefe das enfermeiras.

- E quem é que vai ajudar o doutor Shelton? - inquiriu Christine com um abanar de cabeça, mostrando uma expressão cabisbaixa.

- Minha querida, tenho a impressão de que você não compreendeu o que eu lhe disse. - A fim de dar mais ênfase às suas palavras, Dalrymple inclinou-se ainda mais para a frente - O homem é um...

Christine interrompeu-a, erguendo uma mão e levando um dedo aos lábios. Olhou fixamente para um dos lados da sala. Dalrymple fitou-a com uma expressão intrigada, seguindo a direção do seu olhar até ao ponto onde ela o fixara.

- Ouvi qualquer coisa - sussurrou Christine. - Do lado de fora, junto da janela.

Dalrymple inclinou a cabeça para o lado pondo-se à escuta.

- Não ouço nada - retorquiu ela em voz baixa.

Christine não se mostrou muito convencida. Caminhando na ponta dos pés, dirigiu-se para a ombreira da janela, tentando perscrutar a noite. Não viu qualquer movimento no caminho de acesso à garagem, nem tão pouco na extensão de rua que o seu olhar conseguia abarcar. Durante vários minutos manteve-se encostada à parede junto da janela. Não ouviu mais som nenhum. Finalmente, com um encolher de ombros, correu as persianas e regressou ao sofá.

- Tenho a certeza de que ouvi um ruído lá fora - insistiu ela. - Uma espécie de som

ensurdecido.

- Provavelmente foi um gato - adiantou Dalrymple.

- É possível que sim. - No entanto, faltava convicção à sua voz. Dalrymple bebia pacientemente o seu chá em pequenos goles, aguardando que a concentração de Christine voltasse a ser suficiente para permitir-lhe retomar a conversa

- Eu... eu lamento muito esta interrupção - disse por fim Christine.

- Eu compreendo a situação por que está a atravessar, minha querida - redargüiu Dalrymple com um sorriso amigável.

- Todas nós compreendemos, embora nunca se nos tenha deparado uma situação com as características da sua, o que, muito plausivelmente, jamais voltará a acontecer. A nossa tarefa não é nada fácil. Ao longo de todo o percurso das nossas vidas é necessário que façamos escolhas, existindo muito poucas que não sejam dolorosas. - A voz da mulher tinha um timbre que Christine achou inquietante

- Exatamente o que é que está a sugerir que eu faça? - perguntou ela.

- Que idéia a sua! Nada, Nada de nada.

Christine olhou para a mulher sem querer acreditar no que ouvia.

- Minha querida - replicou Dalrymple.

- Miss Dalrymple, eu não posso permitir que esse homem sofra as conseqüências por algo cuja responsabilidade é inteiramente minha. Nunca mais poderia viver comigo própria.

Dalrymple lançou-lhe um olhar impassível, acompanhado de um abanar de cabeça.

- Receio muito, Christine, que possa haver muito mais pessoas a sofrer, caso você

tomasse alguma medida no sentido de o ilibar.

Bem no seu íntimo, Christine sentiu-se assolada por um receio.

- O que... o que é que pretende dizer com ISSO!

- A mulher com quem falou ao telefone, é a Peggy Donner. Há quase quarenta anos que ela fundou A Irmandade da Vida. Dedicou toda a sua vida ao desenvolvimento da organização. Christine, ela não lhe permitirá, assim como a alguma das irmãs, que a prejudique por ter feito o que considera ser correto. Ela receia que, se você tornar este caso do domínio público, mais cedo ou mais tarde todo o nosso movimento venha a ser prejudicado.

- Mas isso não é verdade! - gritou Christine. - Eu nunca prejudicaria fosse o que fosse acerca...

- O que interessa não é o que você possa pensar que aconteceria, mas sim o que a Peggy acha que sucederá. Antes de ela se arriscar a que o público pudesse vir a ter conhecimento da nossa existência, através de uma investigação sórdida por parte da Polícia e do sensacionalismo da imprensa, seria ela própria quem tomaria a iniciativa de pôr tudo a descoberto. - A expressão de Dalrymple denotava gravidade. - Ela tem as nossas gravações, Christine. Todas as que foram feitas. Caso você decida dirigir-se à Polícia, ela afiançou perante o conselho de direção que as tornará públicas, o que fará à sua maneira. Há já vários anos que o seu desejo é que isso tivesse acontecido. Somente a pressão que todas nós exercemos sobre ela é que a impediu de concretizar essa grande vontade. Não achamos que as circunstâncias fossem as mais apropriadas a essa revelação.

O latejar que Christine sentira na cabeça recomeçou.

- ISTO... ISTO não pode estar a acontecer.

- Mas a realidade é que está, Christine. E as carreiras de todas as que pertencem à

Irmandade encontram-se suspensas por um fio que você controla. Não me sinto nada feliz com esta situação, a despeito do desagrado pessoal que sinto em relação aos médicos degenerados, categoria em que se enquadra o doutor Shelton. Todavia, é forçoso que acredite em mim, sendo eu uma pessoa que conhece a Peggy há já muitos anos. Ela insistirá em pôr em prática o que afirmou.

A reação de Christine foi um abanar de cabeça.

- Nós gostaríamos que tirasse umas férias do hospital - prosseguiu Dalrymple numa voz suave. - Eu não terei qualquer dificuldade em lhe conceder uma licença de, digamos, três ou quatro semanas. Quando regressar das suas férias, haverá um lugar de supervisora à sua espera. Talvez pudesse ir até à Grécia? Nesta altura do ano, as ilhas são paradisíacas. Poderá passar um mês ao Sol enquanto todo este assunto será esquecido.

- Eu... eu não me parece que pudesse fazê-lo.

- Para bem de todas nós, Christine, terá de proceder como lhe digo. Peço-lhe o favor de acreditar em mim. A ameaça da Peggy não foi proferida em vão. Tendo em consideração o número de membros da nossa organização, e a imagem positiva que esta projetaria, ela está convencida de que nesta altura A Irmandade está em condições de poder resistir à revelação. Se você optar por falar com as autoridades, nada nem ninguém poderá detê-la. Até é muito possível que ela tenha razão, mas, não desejo ficar sem a minha vida.

- A situação seria caótica - disse Christine

- Preciso de tempo. Tenho necessidade de parar para poder pensar.

- Quanto mais depressa iniciar a sua viagem, melhor será para todos nós - retorquiu

Dalrymple. - Posso garantir-lhe que o fato de se afastar desta cidade facilitar-lhe-á em muito todo este processo. - Levantou-se e retirou um sobrescrito de dentro da mala de mão, que entregou a Christine. - Isto poderá ajudá-la a decidir o que é mais aconselhável. Por favor, não hesite em me telefonar se eu a puder ajudar em mais alguma coisa. Eu sei que se trata de uma situação deveras difícil, Christine, não é fácil ser-se obrigado a magoar uma pessoa, a fim de evitar que muitas mais venham a sofrer. Mas a opção é sua.

Christine seguiu-lhe as passadas até ao corredor, imobilizando-se como que entorpecida, enquanto a mulher vestia outras roupas.

- Nós... sentimo-nos muito gratas pelo que você vai fazer. - Com aquelas palavras, estendeu a mão e apertou a de Christine, após o que voltou costas e transpôs a porta que dava para a rua.

O automóvel azul, estacionado num recanto escuro entre dois candeeiros de rua, encontrava-se virtualmente oculto. Mantendo o corpo baixado por detrás do volante, Leonard Vincent mantinha a sua atenção concentrada na casa, esforçando-se por recuperar a respiração. O ter sido quase apanhado em flagrante por baixo da janela a corrida que fora forçado a fazer até ao carro tinham-no deixado ofegante e todo transpirado, apesar do ar frio da noite. Sobre as coxas tinha a mão direita, que descrevia círculos contínuos, afiando a lâmina de uma faca numa pedra de amolar, executando os mesmos movimentos ternos de um violinista num concerto. A lâmina tinha o comprimento de cerca de vinte centímetros, sendo afunilada e ligeiramente curva na extremidade. O cabo, de osso entalhado, quase se perdia na mão gigantesca que mantinha fechada em seu redor. Aquela faca era o orgulho de Leonard Vincent.

A porta da frente abriu-se. Vincent fez uma expressão desdenhosa ao avistar a mulher corpulenta, que descia os degraus de cimento da porta da frente com alguma dificuldade.

Enquanto ela atravessava a rua dirigindo-se ao seu automóvel, ele entreteve-se a planear a descrição que faria no seu relatório.

- Precisamente às dezessete e trinta, houve um pequeno dirigível que flutuou até ao

interior da casa. - As faces descoradas de Vincent arrepanharam-se, exibindo um arreganho de desconsolo. - Algum tempo depois, ela deu a impressão que saiu da casa a rebolar, descendo os degraus num passo vacilante, após o que se encaminhou para o carro. Exatamente às dezoito e quinze minutos, começou a instalar-se por detrás do volante. Às dezoito e trinta conseguiu os seus intentos.

Distraído com a sua própria perspicácia, Vincent reagiu com lentidão quando a mulher inverteu subitamente a marcha, começando a conduzir na sua direção. Instantes antes de os faróis o iluminarem, ele lançou-se velozmente sobre o assento da frente, batendo com a testa contra o fecho da porta do lado do passageiro. Amaldiçoou o fecho, ao que se seguiu a porta, culminando com uma maldição dirigida à bruxa gorda que fizera com que batesse com a cabeça. Mas acima de tudo o mais, amaldiçoou-se a si próprio por ter aceito um trabalho, sem que previamente conhecesse com precisão a identidade de quem contratara os seus serviços, para não mencionar que não fazia a mínima idéia daquilo que se esperava que ele fizesse.

Tinha começado tudo com um telefonema de um empregado de bar seu amigo.

- Leonard - dissera o homem -, parece-me que tenho qualquer coisa para ti. Apareceu por aqui uma gaja a perguntar se eu conhecia alguém que estivesse interessado em ganhar uma pipa de massa. Ela diz que a pessoa que se encarregar do serviço tem de saber manter a boca bem fechada, limitando-se a fazer aquilo que lhe disserem. Ainda tentei descobrir alguns pormenores, mas ela só me lançou um olhar de merda, pondo sobre o balcão uma nota de cinquenta, dizendo que havia mais se eu conseguisse arranjar alguém que fizesse menos perguntas do que eu. Estás a perceber? Deixa-me que te diga, Leonard, que a gaja é mesmo esquisita, mas acho que não faltará à palavra dada. Além de que tem umas mamas e peras.

Logo de imediato, a descrição daquela situação não agradou muito a Vincent. O nome que a mulher lhe dera, Hyacinth, era uma aldrabice, do que ele não tinha a mínima dúvida.

Mas para o caso isso não interessava muito. Para além de lhe indicar qual o serviço a executar, tudo o que ela teria de fazer era o respectivo pagamento.

E fora assim que ele acabara por vir a ter em seu poder dois mil e quinhentos dólares, pagos adiantadamente, um número de telefone e um nome: Dahlia. Outro nome falso.

Vincent esfregou o galo que já tinha começado a formar-se acima do olho esquerdo.

Amaldiçoou Dahlia, a responsável por ele ser forçado a andar na rua no meio de um

furacão, e por ter batido com o raio da cabeça contra a maldita porta do carro.

- Enfrenta os fatos, Leonard - disse ele a si próprio -, desta vez chegaste mesmo ao fundo, independentemente do quanto a merda do dinheiro possa vir a calhar.

Manteve a casa sob vigilância até se sentir razoavelmente seguro de que Christine Beall não tencionava sair, após o que meteu a faca numa bainha de couro feita à mão, conduzindo o automóvel até uma cabina telefônica situada à esquina da rua. Ao segundo toque foi atendido por uma mulher.

- Sim?...

- Daqui fala Leonard. - A sua voz era enrouquecida e sem qualquer entoação.

- Sim?

- Você disse que queria ser informada sobre toda a gente que falasse com esta Christine.

- E?...

- Pois bem, acabou de sair de casa dela uma mulher alta e gorda. Chegou há quarenta e cinco minutos, mais coisa menos coisa.

- Mister Vincent, as instruções que recebeu eram para que telefonasse assim que ela se encontrasse com alguém, e não que esperasse até que essa pessoa se fosse embora.

- Ei, você não me parece ser a Dahlia. Estou a falar com a Dahlia?

- Mister Vincent, por favor. Quando a Hyacinth lhe pagou, ela disse-lhe simplesmente que ligasse para este número a fim de dar as informações que possuísse. Agora, ou se dispõe a fazer exatamente aquilo para que foi instruído, ou prometo-lhe que terá problemas. Grandes problemas. Estou a fazer-me entender com clareza?

A ameaça era verdadeira. Leonard Vincent não tinha receio nenhum fosse do que fosse que pudesse ver; contudo, uma voz cheia de frieza, que não sabia a quem pertencia, era uma coisa completamente diferente. Uma vez mais, amaldiçoou-se a si próprio por ter aceite aquele serviço.

- Sim, está tudo bem claro - confirmou ele.

- Muito bem. Durante quanto tempo mais é que manteve a casa sob vigilância depois de essa mulher ter saído?

- Talvez uns dez ou quinze minutos; não posso precisar exatamente. No entanto, fi-lo durante o tempo suficiente. Ela hoje já não tenciona sair de casa.

- De acordo. Faça o favor de regressar ao seu posto.

- E com respeito a dormir?

- Você está a ser pago, devo acrescentar que muito bem pago, para vigiar essa mulher e para nos informar de todos os seus movimentos, Mister Vincent. Agora, faça o favor de retornar ao seu posto de observação. E não se esqueça de que nós queremos ser informados no mesmo momento em que ela fale com alguém... e não depois de isso ter acontecido. Telefone para este número às duas horas e nessa altura discutiremos o assunto do seu sono. Oh, só mais uma última coisa. Antes de lhe ter pago adiantadamente, a mulher que o contratou averiguou umas coisas a seu respeito. Inteirou-se da tendência que você tem para fazer mal às pessoas, o que por vezes acontece sem qualquer provocação. Ninguém deve ser beliscado sem que nós digamos que tal deverá ser levado a cabo. Está a compreender isso de forma bem clara?

- Tal como você já disse, o dinheiro é seu - respondeu Vincent com um encolher de ombros. Desligou o telefone, que olhou por alguns instantes, após o que cuspiu para cima do auscultador. Num gesto de puro reflexo, inspecionou a cavidade que se destinava à devolução das moedas; em seguida, meteu-se no automóvel e dirigiu-se de novo para a casa.

A única luz que se via no apartamento filtrava-se através das venezianas da janela da sala de estar. De poucos em poucos minutos, a silhueta de Christine aparecia para logo desaparecer. Leonard Vincent agarrou na sua pedra de amolar e começou a trautear uma melodia de uma só nota, enquanto retirava uma outra faca do porta luvas.

Christine sentira-se incapaz de se sentar desde que Dotty Dalrymple tinha saído de sua casa. Andava de um lado para o outro, percorrendo todas as divisões do apartamento, enquanto batia com o sobrescrito por abrir contra a palma da mão. Subitamente, baixou o olhar como se reparasse nele pela primeira vez. Em seguida, rasgou-o para o abrir.

Dentro havia cinco maços perfeitos de notas de cem dólares - dez em cada um deles.

- A escolha é bastante clara - disse ela em voz alta, pondo à prova as palavras da sua chefe de enfermagem. Uma vez mais, a imagem de David surgiu-lhe ao pensamento. Olhou para as notas envoltas em cintas, após o que as lançou para dentro da gaveta da sua cômoda. - A escolha é clara - acrescentou num murmúrio.

 

Na quinta-feira, dia nove de Outubro, à semelhança dos três dias anteriores, o serviço meteorológico de Boston anunciou a previsão do fim de um sistema de baixas pressões, assim como da chuva. Pelo quarto dia consecutivo, aqueles serviços enganaram-se.

Em Huddleston, Nova Hampshire, a norte da cidade e a uma distância de noventa minutos, houve uma ponte coberta construída havia cento e cinqüenta anos que desapareceu, desmoronando-se sobre o ribeiro Crystal, cujo caudal durante o mês de Agosto pouco mais costumava ser do que um fio de água.

Os acidentes na Estrada 128, os quais nunca eram uma raridade, mais do que triplicaram.

No entanto, sobre David Shelton, tal como acontecia na maior parte daquela região, os efeitos daquelas chuvadas que se recusavam a abrandar eram ainda mais insidiosos. A distância a percorrer desde o seu apartamento até ao distrito financeiro, onde se situavam os escritórios de advocacia de Wellman, MacConell, Enright e Glass, era superior a quilômetro e meio. Sentindo-se irritado e frustrado pela inatividade em que se mantivera, optou por desafiar o vendaval, decidindo ir a pé para a reunião que marcara com Ben. Depois de ter percorrido um quarteirão, já se encontrava completamente encharcado, pelo que qualquer pensamento quanto ao regressar a casa lhe parecia ser inútil.

- Molhado é molhado - concluiu para consigo pondo à prova a sua resistência, baixando a cabeça numa tentativa para se proteger do vento fustigante.

Os escritórios ocupavam a maior parte do vigésimo terceiro andar de um edifício todo revestido a vidro, cujo nome e endereço se situava no número um de Bay State Square.

- Não admira que ele me leve dez mil dólares de honorários - resmungou David enquanto se aproximava da área de recepção Havia três mulheres que atendiam quem se dirigia aos escritórios, mostrando uma experiência cheia de calma num espaço tão grande como a sala de consulta que David tinha no hospital.

Com a vista percorreu aquelas instalações, sentindo-se como um roedor prestes a afogar-se.

Durante um momento ainda lhe ocorreu pedir à recepcionista, de expressão severa,

algumas toalhas e uma muda de roupas, mas nada no semblante da mulher lhe indicava que poderia dar-se àquele estilo de frivolidade.

- O doutor Glass - disse ele com humildade. - Eu tenho uma reunião marcada com o

doutor Glass, não é? - A mulher, fazendo esforços para ocultar uma expressão divertida, indicou-lhe uma correnteza de cadeirões forrados a pele. Uma campainha discreta informou Ben da sua presença.

David concluiu que, quaisquer que houvessem sido os objetivos dos decoradores de interiores daquele escritório, fazer com que os clientes que tivessem um aspecto de

roedores prestes a afogarem-se passassem despercebidos não fora um deles. Toda aquela opulência, cujo aspecto era de esterilidade, compreendia alcatifas espessas de um tom dourado, pinturas originais a óleo nas paredes, assim como uma verdadeira selva de palmeiras de bambu e fetos enormes. Os móveis estantes, bem fornecidos, exibiam de forma proeminente os livros que continham por detrás de portas de vidro. Mas o que para ele ainda era mais impressionante era o fato de haver pessoas que consultavam aqueles volumes.

Ben apareceu vindo de uma esquina, sorriu ao ver a aparência de David e estendeu-lhe as duas mãos.

- Das duas uma: ou você veio a pé até aqui ou este Outono é uma réplica da tempestade de setenta e oito - comentou o advogado.

- Ambas - retorquiu David, agarrando nas duas mãos que o advogado lhe estendia,

apertando-as calorosamente nas suas. Ben representava uma fresta de luz entre as

nuvens, uma ilha de sanidade mental na loucura e na confusão da sua vida.

- Já almoçou? - perguntou o causídico enquanto se dirigiam para o seu gabinete.

- Ontem. Mas, por favor, para mim não quero nada. Não me permita que o impeça de almoçar.

- Rolo de carne a la Amy? - perguntou Ben, apresentando um saco de papel castanho que retirou de uma gaveta da secretária. - Tenho aqui o suficiente para os dois. Tem a certeza que não quer?

- Não, muito obrigado. De verdade que não me apetece - respondeu David com um abanar de cabeça. Olhou em redor. O gabinete de Ben, onde reinava a desordem, contrastava acentuadamente com o resto das instalações de aspecto austero. Viam-se diversos livros e publicações espalhados por todo o lado, muitos por abrir ou marcados com folhas de papel dobradas. Nas paredes havia um excesso de fotografias emolduradas, ao lado de desenhos feitos a lápis e a tinta.

- Os seus associados permitem-lhe ter o seu gabinete nesta confusão? - perguntou David fazendo um gesto na direção de toda aquela desorganização.

- Pensam que estou acampado aqui - replicou Ben com um esgar risonho. - Um dos meus sócios disse numa ocasião que o meu gabinete era uma bagunça. Imagine-se, mil dólares mensais somente por este espaço e ele chama-lhe bagunça! - Deu uma trincadela na sua sanduíche continuando a conversar enquanto comia. - Até mesmo todo encharcado, você está com melhor aspecto do que tinha ontem. Está a conseguir agüentar-se bem?

- Fui suspenso do quadro médico do hospital - respondeu ele com um encolher de ombros, numa voz que não mostrava qualquer emoção.

- O quê?!

- Suspenso. Esta manhã a doutora Armstrong fez-me uma visita. Ela é a chefe do corpo clínico e a única naquele lugar que, a julgar pelas aparências, se interessava minimamente pelo que me possa vir a acontecer. Seja como for, ela disse-me que passasse pelo seu gabinete. Eu já adivinhava o que ela tinha para me dizer, pelo que lhe sugeri que me dissesse ao telefone, mas ela insistiu em fazê-lo pessoalmente. O que corresponde ao gênero de mulher que ela é.

- E então?

- Então, acontece que ontem à noite o comitê executivo procedeu a uma votação, fazendo tábua rasa das objeções que ela apresentou, com a finalidade de me pedirem que me suspendesse voluntariamente das minhas atividades no bloco Operatório, o mesmo acontecendo em relação às que exerço no corpo clínico do hospital, até que este assunto esteja devidamente esclarecido

- Esse seu comitê executivo não é composto por gente que perca muito tempo - comentou Ben abanando a cabeça.

- De acordo com o que a doutora Armstrong me disse, o Wallace Huttner, o chefe de

cirurgia, foi quem pressionou a decisão. Ele também está a prestar ajuda ao viúvo da mulher assassinada, para que este possa reunir elementos que lhe permitam dar entrada a um processo judicial contra mim, por negligência médica. Caso eu seja dado como culpado, querem estar preparados para me instaurar imediatamente uma ação. A doutora Armstrong diz que eles optaram pela suspensão voluntária para me beneficiarem... a fim de evitarem uma suspensão que eles se veriam obrigados a pôr em prática, o que ficaria registrado no meu cadastro profissional. Na minha opinião, procederam desta maneira porque o trabalho de burocracia será menor para eles.

- Merda! - exclamou Ben entre dentes.

- Provavelmente, é o melhor que poderia ter acontecido. Até mesmo antes de eu ter sido preso, o ambiente no hospital tinha-se transformado num autêntico iceberg, no mesmo minuto em que punha um pé na porta. Tudo isto é uma loucura. Eu... eu nem sei bem o que raio é que hei de fazer. Eu estaria disposto a enfrentar tudo, se por acaso tivesse a mais pequena idéia contra quê, ou contra quem, é que tenho de me debater, mas...

- Ei, acalme-se - urgiu Ben. - A luta ainda agora começou. Por agora, serei eu quem desferirá os golpes, mas você haverá de ter a sua oportunidade. Esta tarde vamos partilhar idéias sobre quem e porquê. Amanhã delinearemos um plano quanto às ações a tomar. A resposta encontra-se algures. Você só tem de ser paciente, sem fazer nada de precipitado nem cometer loucura nenhuma. Havemos de a descobrir.

David concordou com um acenar de cabeça, esboçando um sorriso que não ocultava a tensão que sentia.

- Ei, quase me esqueci disto. - Tirou um sobrescrito úmido de um dos bolsos das calças. - É uma coisa boa que a escrita a lápis não se esborrata - acrescentou ele, entregando o sobrescrito a Ben. - A doutora Armstrong não quer que eu tenha mais complicações no hospital. Portanto, a troco da minha promessa de que me manteria sossegado, ela averiguou umas coisas a meu pedido. Na folha que se encontra aqui dentro estão mencionados quatro nomes. Extraiu-os dos dados do computador do Departamento de Pessoal do hospital. Dois serventes com cadastros prisionais, uma enfermeira que tem um histórico de uso de estupefacientes, e uma outra que está a exercer pressão sobre o hospital a fim de que seja aprovado um regulamento que proteja os direitos dos doentes. Não conheço nenhuma destas pessoas. Não é grande coisa. Todavia, a doutora Armstrong prometeu-me enviar estes nomes ao tenente Dockerty.

- Ela já fez isso, David - interrompeu Ben.

- O quê?

- O detetive telefonou-me ainda não há muito tempo. Falei com ele durante meia hora. Ele quer que você... e a doutora Armstrong deixem de brincar aos Holmes e aos Watson, permitindo-lhe que faça o seu trabalho.

- Que faça o seu trabalho? - A voz de David expressava incredulidade. - Ben, o homem passou quase uma semana a tentar pôr-me a corda ao pescoço. Ele encontra-se do outro lado da barricada. É uma das pessoas que deveríamos enfrentar.

- Não, meu amigo, ele não é um desses - retorquiu Ben com firmeza, abanando a cabeça. Ele é um detetive de primeira qualidade. Eu conheço-o há tantos anos quanto os que exerço advocacia. Quer você acredite quer não, ele não deseja vê-lo acusado deste assassínio.

- Então por que porra é que ele me prendeu?

- Foi forçado a isso - retorquiu Ben encolhendo os ombros. - O que se deveu à pressão que sentia vinda de todos os lados, em conjunto com uma tonelada de provas circunstanciais. O motivo, a oportunidade, a arma... mas você já está inteirado de toda esta matéria.

- Também sei que não matei essa mulher - retrucou David cerrando os punhos.

- Pois bem, o John Dockerty também não se encontra cem por cento convencido de que você seja o responsável por essa morte. Não fosse esse o caso, e ele não andaria a trabalhar o Marcus Quigg, o farmacêutico que...

- O Dockerty já me pôs ao corrente de quem ele é - interrompeu David. - Mas, Ben, eu nunca pus a vista em cima desse homem. Por que motivo é que ele está a fazer-me uma coisa destas?

- Essa questão é uma das três mais importantes - redargüiu Ben. - Vingança, medo e dinheiro.

- Ben, até o Dockerty ter mencionado esse nome, eu tenho a certeza de nunca ter ouvido qualquer menção a respeito dele - disse David com um sacudir de cabeça. – Marcus Quigg não é exatamente um nome corriqueiro como John Jones, não está de acordo? Se alguma vez tratei de algum Quigg... não, a vingança não tem a mais ínfima razão de ser.

- A menos que se tratasse de uma irmã ou filha - aventou Ben. - Com um apelido diferente.

- Imagino que essa hipótese não seja de pôr de parte. - David bateu com a mão em cima da secretária, dando largas à exasperação que sentia. - No entanto, existem demasiados elementos imprevisíveis para que eu possa acreditar que alguém pudesse ter maquinado uma cilada dessas. Existem muitos imponderáveis.

- David, neste momento, o fato de nos debruçarmos em excesso sobre esse assunto só poderá ser prejudicial. Resumindo e concluindo, as informações de que dispomos são muito poucas... por enquanto. - Ben fez uma pausa, fazendo girar no dedo a aliança de casamento, como se procurasse as palavras mais adequadas. - David - disse ele finalmente. - Não era minha intenção mencionar hoje este assunto, mas talvez seja melhor não estar com mais demoras. Ontem, eu disse-lhe que queria a maior honestidade da sua parte, está recordado? - David acenou que sim. - Você não aludiu ao fato de em tempos ter sido acusado de ter prescrito, deliberadamente, um excesso de medicação a um doente seu que sofria de cancro. Isto é verdade?

David assumiu uma atitude defensiva. A descrença arredou-lhe os olhos.

- Ben, eu... mas isto é uma verdadeira loucura - replicou ele numa voz entrecortada. - Isso aconteceu há pelo menos nove anos. Eu fui completamente exonerado. Eu... Como é que teve conhecimento desse assunto?

- O tenente Dockerty sabe. Não sei quem foi, mas o certo é que houve alguém que lhe deu a dica.

- A enfermeira, só pode ter sido a maldita da enfermeira. Como raio é que?...

- O que é que aconteceu concretamente?

- Não foi nada de mais. De verdade. Eu prescrevi analgésicos para uma senhora de idade que se encontrava à beira da morte... de quatro em quatro horas, de acordo com o que ela necessitava. E acredite em mim quando lhe digo que ela estava a sofrer atrozmente. Pois bem, vim a descobrir que a enfermeira era inacreditavelmente preguiçosa, pelo que não se dava ao trabalho de verificar se a doente estava ou não necessitada do medicamento. Conseqüentemente, alterei o horário da medicação, instruindo que esta fosse administrada de duas em duas horas, tendo reduzido a dose e eliminado a instrução, "de acordo com as suas necessidades", certificando-me assim de que ela seria medicada adequadamente. No dia seguinte, essa enfermeira participou de mim. Houve um inquérito e estou em crer que ela acabou por receber uma reprimenda.

- Ora bem, parece-me que agora essa mulher está a vingar-se de si - concluiu Ben. - Ouça uma coisa, David, é imprescindível que você me conte tudo. Independentemente do quanto lhe possa parecer insignificante. Seja o que for. Esta enfermeira que se apresenta ao fim de nove anos também poderá ser uma mera coincidência. O artigo foi publicado no vespertino de ontem. Mas se houver alguém que a incite, ver-nos-emos a braços com mais problemas do que aqueles com que contávamos. E talvez, note que estou a dizer somente talvez, você esteja de posse da resposta que esclareceria toda esta situação, sem sequer se aperceber de que a tem.

- É possível que sim... - A voz de David enfraqueceu. Durante alguns momentos semicerrou os olhos e coçou a região acima de uma orelha.

- O quê? O que é que se passa? Está a recordar-se de alguma coisa?

- Sou capaz de jurar que me ocorreu qualquer coisa à mente que desapareceu de imediato - replicou David com um abanar de cabeça. - Trata-se de algo que alguém disse a respeito da Charlotte Thomas. Eu... - Encolheu os ombros num gesto de impotência. - O que quer que tenha sido... se é que foi alguma coisa, desvaneceu-se da minha memória.

- Bem, vá para casa e leve as coisas com calma, meu amigo. Amanhã voltaremos a

encontrar-nos. à mesma hora, está bem para si?

- À mesma hora - aquiesceu David numa voz sumida.

- Ouça uma coisa. Se por acaso amanhã à noite estiver livre, porque é que não organiza as coisas de maneira a estar aqui às quatro da tarde? Teremos oportunidade de falar, e depois você poderá ir até minha casa para jantar conosco. Ficará a conhecer a Amy e os miúdos, além de que, com esse negócio, ainda ganha uma boa refeição. Ela adoraria conhecê-lo. O que continuaria a verificar-se, ainda que eu não lhe tivesse dito que você está a pagar pelo trabalho de ortodontia de que o pequeno Barry necessita.

- É uma idéia excelente - anuiu David sem dar mostras de grande entusiasmo.

- Será bom para si - acrescentou Ben. - Além do mais, a Amy tem uma irmã... - Sorriu e de súbito ambos se riram. David não era capaz de se recordar da última vez que se tinha rido.

- Estás a ficar marado do juízo, Shelton - disse David falando consigo próprio enquanto andava de um lado para o outro no seu apartamento. - Estás a passar-te e sabes isso muito bem. - As duas horas que haviam decorrido desde que saíra do escritório de Ben parecia-lhe terem sido dez.

Lá fora, a chuva constante continuava a cair, pontuada de quando em vez pelo som

sincopado dos trovões que se faziam ouvir à distância. Num dado momento, as três

divisões davam-lhe a impressão de serem um coliseu deserto, para no seguinte lhe

parecerem uma jaula. Cada vez lhe era mais difícil sentar-se, a dificuldade em concentrar-se era crescente, fixar-se em qualquer coisa específica. "Telefona a alguém", sugeriu David a si mesmo. "Ou telefonas a alguém ou então opta por ignorar a chuva e vai correr. Mas pára de andar de um lado para o outro." Agarrou nos sapatos de tênis com que costumava correr e aproximou-se da janela. As bátegas de chuva ensombravam ainda mais o céu daquela tarde, já de si escura. Então, como se fosse um aviso, o céu foi cortado por um relâmpago que iluminou o quarto de um branco-azulado espectral.

Momentos depois, ouviu um troar ensurdecido que aumentava num crescendo até se dar a explosão, reverberando pelo interior de todo o apartamento. Arremessou com os sapatos para dentro do roupeiro.

"Foi isto exatamente o que eu senti", reconheceu ele. Depois do acidente. "Foi assim que tudo começou." Apesar daquela percepção racional da situação, a inquietação aumentou.

Haveria alguma coisa no armário dos medicamentos? Não teria Lauren tido sempre qualquer coisa para as dores de cabeça? Apenas para o caso de aquele andar inquieto de um lado para o outro não cessar. Na hipótese de a solidão se tornar insuportável. "Tu não necessitas de nada, mas caso venha a ser necessário..." Não fosse o sono recusar-se a vir. Numa antecipação da perspectiva de aquela noite não terminar.

David percorreu o corredor de um extremo ao outro, repetindo o mesmo percurso. De cada vez que passava pela porta da casa de banho detinha-se. Apenas para o caso de...

Sem se aperceber do que fazia, David encontrava-se lá, estendendo a mão para a pequena porta espelhada do armário dos medicamentos. A estender a mão, compreendeu ele de súbito, em direção a si próprio. Imobilizou-se enquanto a mão estendida tocava no reflexo da sua própria imagem. O seu olhar ardente mostrava uma expressão de receio e isolamento; olhos fechados em si próprios, hipnotizados. Decorreu um minuto. Em seguida, um outro. Gradualmente, o tremor nos seus lábios começou a desaparecer. O ritmo da sua respiração abrandou, fazendo-se mais profundamente.

- Tu não estás sozinho - disse David a si próprio numa voz segredada. - Tens um amigo que aprendeu ao longo de oito anos adversos a gostar de ti... apesar de tudo o que possa acontecer-te. Tens-te a ti próprio. Abre essa porta, toca numa só que seja dessas estuporadas pílulas e perdê-lo-ás. Decorridos todos estes anos e ele, sem mais nem menos... ir-se-á embora. É então que ficarás inteiramente sozinho.

A sua mão afastou-se da porta espelhada. A determinação refletia-se no seu rosto,

atuando aos cantos da boca, até que David começou a esboçar um sorriso. Acenou para si mesmo - uma vez e depois outra. A uma velocidade crescente. Detectou a força e a determinação que cada vez se acentuava mais nos seus olhos.

- Tu não estás sozinho - afirmou David de novo, estendendo-se no sofá. - Tu não estás...

Vinte minutos mais tarde, quando o telefone começou a tocar, continuava deitado no

sofá. Passou uma vista de olhos pelas últimas linhas do poema da autoria de Frost que estava a ler, virou-se para o lado e agarrou no auscultador.

- David! Estava com receio de que ainda não tivesse voltado a casa. - Era Ben quem falava do outro lado da linha.

- Não, já cheguei há algum tempo - replicou David. Sorriu e acrescentou: - De fato, estou muito aqui.

- Pois bem, desfrute do seu tempo livre enquanto puder - continuou Ben com uma nota de excitação -, porque estou em crer que dentro de um ou dois dias já poderá regressar ao seu trabalho.

- Bem, o que é que sucedeu? - perguntou David com uma súbita ansiedade. - Fale

devagar para eu compreender tudo como deve ser.

- Acabei de receber um telefonema, David, de uma enfermeira que trabalha no seu

hospital. Ela disse que, de uma forma inequivocamente positiva, poderá ilibá-lo por

completo da morte da Charlotte Thomas. Combinei encontrar-me com ela num café

dentro de duas horas. Estou convencido de que ela falava a sério, meu amigo. Se eu tiver razão, o seu pesadelo vai chegar ao fim.

Com o olhar, David percorreu o corredor, olhando para a porta da casa de banho.

- Graças a Deus - disse ele, meio para o telefone e meio para si próprio. - Ben, importa-se que eu vá consigo? Não lhe parece que eu deveria estar presente?

- Até eu saber ao certo o que é que esta mulher tem a dizer, não quero que você se

envolva diretamente no assunto. Mas vou dizer-lhe o que podemos fazer. Irei a sua casa por volta das nove da noite... Não, é preferível marcarmos para as nove e meia desta noite. Nessa altura, pô-lo-ei ao corrente de tudo. Com um bocado de sorte, o jantar que combinamos para amanhã à noite será de comemoração.

- Isso seria esplêndido - retorquiu David, esperançado. - Diga-me... quem é essa enfermeira?

- Oh, ela disse que o conhece. Chama-se Beall. Christine Beall.

À menção do nome da mulher, David sentiu outro baque momentâneo de ansiedade.

- Ben, foi isso mesmo o que eu tentei recordar no seu gabinete. Está lembrado? Quando houve qualquer coisa que me ocorreu ao pensamento e de que me esqueci logo a seguir?

- Sim, sim, estou a lembrar-me - confirmou o advogado.

- Bem vê, foi algo que ela disse. Christine Beall. Depois de eu ter falado com o marido da Charlotte Thomas. Ela segredou-me que se sentia orgulhosa pela forma como eu fizera frente a Wallace Huttner, e... e depois ela ainda acrescentou: "Não se preocupe. As coisas têm sempre uma forma de se solucionarem por si próprias." Em seguida, e sem mais nem menos, ela afastou-se. Ben, você acha que?...

- Ouça uma coisa, meu amigo. Se puder, faça um grande favor a nós dois. Tente não dar largas às suas especulações. São só algumas horas até ficarmos a par de tudo. De acordo?

- De acordo - anuiu David. - Mas você sabe bem que, apesar do seu conselho, é isso precisamente o que farei, não acha?

- Sim, eu sei - retorquiu Ben. - Às nove e trinta.

- De acordo. - David olhou para o seu relógio de pulso. - Pelo menos pode sincronizar o seu relógio pelo meu, para que eu não dê em doido à sua espera?

- Faltam cinco minutos para as dezessete horas - disse Ben, soltando uma gargalhada sonora. - No meu relógio tenho cinco para as cinco, meu caro.

- Nesse caso, são dezesseis e cinqüenta e cinco - confirmou David numa voz cantada. Pousou o auscultador no descanso.

O sentimento de exaltação que sentia foi de pouca dura. Ao longo dos últimos dias, os pensamentos conscientes que tivera em relação a Christine haviam sido submersos no pesadelo que o atormentava. Naquele momento, apercebeu-se de que nunca tinham estado muito distanciados da superfície.

- Não foste tu, pois não? - perguntou em voz baixa. - Sabes quem é o responsável, mas a realidade é que não foste tu.

A preocupação que sentira a respeito de Christine desvaneceu-se repentinamente, quando o impacto do que Ben lhe dissera começou a arraigar-se na sua mente. Cerrou os punhos, elevando-os e descendo-os por várias vezes. No seu rosto espelhou-se um arreganho risonho, riu-se à socapa e soltou uma gargalhada. Dirigiu-se apressado para a sua coleção de discos. Segundos mais tarde, percorria a sala de estar em passos saltitantes, desferindo murros violentos através do ar. A música da banda sonora do filme Rocky soava por todo o apartamento.

Com a fanfarra a ecoar-lhe ainda nos ouvidos, atravessou o corredor e dirigiu-se para a casa de banho. Colocou-se em frente do armário dos medicamentos, observando a sua imagem no espelho.

- Conseguiste, rapaz - disse David para o seu reflexo. - Agora estás mais forte do que nunca. Sinto-me muito orgulhoso de ti. A sério que sim.

Movido por um sentimento de curiosidade e não por necessidade, estendeu a mão e abriu a portinhola do armário.

As prateleiras encontravam-se completamente vazias.

Depois de um duche e de ter escrito as cartas que há muito devia aos irmãos, chegou à conclusão de que preenchera o espaço de uma hora e meia. Em seguida, banqueteou-se com um prato de macarrão com molho e pedaços de carne, o que lhe levou outros trinta minutos. Depois do noticiário das dezenove horas, faltavam duas horas até ao encontro marcado com Ben.

David começou a andar impacientemente de um lado para o outro, atividade que lhe

ocupou mais algum tempo. Retirou de um armário o tabuleiro de xadrez, juntamente com uma edição do Chess Openings Made Simple. Ao fim de pouco tempo, desistiu. Os pensamentos recentes acerca de Christine faziam com que fosse impossível concentrar-se.

De uma maneira qualquer, durante as breves conversas que haviam tido, no decurso dos contactos entre ambos, ela tocara-o profundamente. Christine dava-lhe a impressão de estar envolta numa inocência de grande intensidade, aspecto que conseguia desarmar qualquer pessoa: uma espécie de energia que ele só muito raramente vira ser capaz de sobreviver aos anos de escola de enfermagem ou de uma licenciatura em medicina. Além do mais, também havia os olhos dela - grandes e calorosos, convidativos na exploração de um momento, para logo cintilarem de cólera no minuto seguinte. David sentia-se cada vez mais esperançado, chegando mesmo ao ponto de rezar para que ela não houvesse tido qualquer envolvimento direto na morte de Charlotte Thomas. Quando chegaram as nove da noite, já ele se convencera de que não havia qualquer maneira de Christine se encontrar implicada naquela tragédia.

Durante algum tempo, entreteve-se a aferir todos os aspectos que conhecia do caráter da mulher, colocando-os em paralelo com Lauren. Rapidamente, compreendeu que, tal como era característico que viesse a acontecer, estava a atribuir a Christine as qualidades que ele desejava que ela possuísse.

- Quando é que acabarás por aprender, Shelton? - admoestou-se David em voz alta, após o que regressou ao tabuleiro de xadrez.

Por volta das vinte e uma e quinze, já passeava de novo sem destino pelas divisões da casa. Houve uma ocasião em que ouviu o funcionamento do mecanismo do elevador, o que o levou a correr para o corredor. Mas então ocorreu-lhe que teria de ter aberto a porta da rua através do intercomunicador, a fim de permitir a entrada de Ben no prédio. Ainda assim, aguardou, não fosse dar-se o caso de ele ter conseguido entrar por outro meio. O elevador deteve a sua subida no andar de baixo.

Regressou à sala de estar, onde preencheu cerca de cinco minutos entabulando um a conversa com Wallace Huttner, ao longo da qual o chefe de cirurgia lhe apresentava as suas desculpas por se ter precipitado erroneamente em conclusões tão apressadas, sugerindo mesmo que ambos considerassem a hipótese de formarem uma sociedade.

Então, David começou a ensaiar um discurso de recusa; todavia, para o caso de Huttner se mostrar sinceramente arrependido, também ensaiou um de aceitação.

Precisamente às nove e trinta, ouviu o som da campainha da porta da rua. De um salto, David aproximou-se do intercomunicador.

- Sim?... - perguntou.

- David, sou eu. - O entusiasmo que adivinhou na voz do advogado era bem patente, a despeito das más condições de funcionamento do aparelho. - A mulher não estava a brincar. É uma história triste, mas indiscutivelmente verdadeira. Está tudo terminado, meu amigo, este assunto chegou ao fim.

A palavra "triste" sobressaía das outras.

- Suba - convidou David premindo o botão que abria a porta. Surpreendentemente, a sua voz denotava muito pouco entusiasmo.

Trinta segundos mais tarde, ouviu-se o entrechocar metálico do elevador, o que indicava o início da subida. "Merda!". pensou David, "Foi ela." Manteve-se na ombreira da porta depois de a ter aberto, ouvindo os rangidos dos cabos. Passar para Christine Beall o seu pesadelo, não tinha sido exatamente a maneira como ele pretendera que as coisas acabassem, não obstante tudo aquilo por que tivera de sofrer como conseqüência das ações da enfermeira. Já se encontrava no corredor a meio caminho do elevador quando surgiu a luz na pequena portinhola de vidro, em forma de diamante, recortada na porta exterior Um segundo mais tarde, o ascensor deteve a sua marcha com um solavanco. A porta interior automática abriu-se com um entrechocar de metal.

David parou a pouco mais de um metro, aguardando a saída de Ben. Decorreram cinco segundos, ao que se seguiram outros cinco. A medo, deu um passo em frente. A porta permanecia fechada. Por fim, decidiu espreitar pela pequena janela de vidro sujo. O advogado permanecia de pé, com o corpo inclinado de lado, calmamente encostado contra a parede do elevador.

- Ei, Ben, o que é que se passa? - perguntou David, abrindo a pesada porta toda para trás. Os olhos do advogado olhavam-no com fixidez, umedecidos e com uma expressão vazia. O tom da pele do seu rosto era ceráceo. Subitamente, as comissuras da sua boca arreganharam-se para cima, no arremedo de um sorriso. - Ben, isto não tem graça nenhuma - continuou David. - Agora deixe-se de trampas e saia daí. Estou morto por ouvir tudo o que tem para me contar.

Os lábios de Ben entreabriram-se enquanto ele dava um único passo em frente. A boca expeliu um jacto carmim que começou a escorrer-lhe pelo queixo abaixo. Já se

encontrava prestes a tombar para o chão quando David reagiu, conseguindo ampará-lo a tempo de o impedir de cair. Na parte de trás da gabardine bege de Ben via-se um círculo de sangue, que ia aumentando cada vez mais. Saindo do centro deste via-se o cabo branco e entalhado de uma faca.

A vida morna e pegajosa jorrava em cima das mãos e das roupas de David, enquanto este arrastava o amigo para fora do elevador.

- Socorro! - gritou ele. - Alguém que me ajude!

Retirou a faca das costas do advogado, arremessando-a para cima da alcatifa, após o que rolou o corpo de Ben de forma a que este ficasse com o rosto voltado para cima. Os olhos escuros do advogado fixavam sem pestanejar o teto. David procurou sentir a pulsação na carótida, sabendo de antemão que o sangue que naquele momento escorria de um dos cantos da boca de Ben, era o indicador de um ferimento fatal infligido ao coração, ou que tivesse atingido uma das artérias principais.

- Por favor, ajudem-me... - A súplica de David não passava de um gemido. - Por favor!

A porta que dava acesso às escadas de emergência, situada ao fundo do corredor, abriu-se de rompante. Leonard Vincent imobilizou-se; os contornos do corpo, de constituição corpulenta, eram escurecidos pela luz que brilhava por detrás do homem. Numa atitude quase casual, levou a mão à cintura, de onde retirou um revólver. Da extremidade do cano saía um silenciador de aspecto ameaçador.

- Chegou a sua vez, doutor Shelton - anunciou Vincent numa voz enrouquecida, certo de que se encontrava perante o homem que Dahlia lhe descrevera. Seguira em perseguição de Christine Beall até ao café, onde reconhecera o advogado criminal com quem ela se fora encontrar. A resposta que Dahlia dera ao seu telefonema fora imediata: o primeiro a abater seria Glass, em seguida chegaria a vez de Shelton e, por último, seria a rapariga.

Agora, graças ao advogado, ele poderia tratar dos dois primeiros casos quase de uma só cajadada.

David cambaleou para trás, tentando endireitar-se. Contudo, a sua mão coberta de

sangue escorregou da parede, e ele estatelou-se em cheio no chão. A uma distância de alguns centímetros, encontrava-se a faca que retirara do cadáver de Ben. Agarrou-lhe pela ponta e lançou-a contra a figura que avançava na sua direção. Foi cair a cerca de dois metros do alvo. Com toda a calma, Vincent apanhou-a do chão e limpou às calças o sangue que cobria a lâmina. O homem estava a pouco mais de quinze metros. Entre os dois, continuava caído o corpo sem vida de Ben, à largura do corredor. A luz que era emitida por uma lâmpada no teto iluminou o rosto do homem entroncado. Sorria. O seu sorriso alargou-se ainda mais quando começou a erguer o revólver munido de um silenciador.

Em movimentos atabalhoados, David começou a retroceder; mantinha a boca aberta, articulando um grito silencioso. A sua mente registrou uma centelha que saiu da extremidade do silenciador, no mesmo instante em que a ombreira da porta junto da orelha de David se fragmentava; lançou-se de cabeça para dentro do apartamento, agitando os pés com esforço para conseguir fechar a sólida porta de madeira. O trinco da fechadura cerrou-se exatamente instantes antes de se ouvir um som ensurdecido, e do surgimento instantâneo de dois orifícios do tamanho de uma moeda de dois cêntimos, que perfuraram uma área junto da maçaneta.

David olhou desnorteado em seu redor, após o que se forçou a levantar-se do soalho. Deu uma corrida até à sala de estar. A saída de emergência! Abriu a janela e olhou para os seus pés calçados apenas com as meias. Durante alguns instantes ainda pensou no roupeiro onde se encontravam os seus sapatos de tênis. Não tinha a mínima possibilidade de os ir buscar, concluiu ele. Com um gemido de resignação, saiu para o patamar das escadas de metal. Do interior do apartamento, ecoou um barulho estrondoso, na altura em que a porta da frente era forçada a abrir-se. Instantes mais tarde, David descia apressadamente em direção ao beco que se encontrava quatro andares mais abaixo.

A noite estava escura que nem breu, para além de fria. Os degraus de metal, escorregadios por causa da chuva que caía em bátegas, magoavam-lhe os pés. No

entanto, a sua mente mal registrava aquele desconforto. Pouco depois de ter passado pelo terceiro andar, um dos seus calcanhares desequilibrou-se na extremidade fronteira de um degrau, tendo-o ele deixado de sentir debaixo dos pés. Tombou com grande impacto, caindo abaixo de meio lanço de escadas. Esfolou vários centímetros da pele do antebraço direito. Acima de si, ouviu passadas pesadas quando Leonard Vincent chegou ao patamar do quarto andar. Naquele momento, ocorreu a David um pensamento absurdo; deveria ter tido a precaução de abrir a janela que dava para as escadas de emergência, escondendo-se depois no roupeiro.

- Aposto que essa manobra teria resultado - disse para consigo mesmo, enquanto se

esforçava, arquejante, por atingir o patamar de ferro do segundo andar. Escorregou outra vez; sentia como que a pulsação de impulsos elétricos que lhe percorriam a coluna vertebral, ao deslizar pelos últimos degraus. Através dos espaços abertos que existiam nas escadas acima de si. Avistou a figura do homem, uma sombra escura de contornos mal definidos que se recortava contra o céu escuro da noite.

Apoiado sobre as mãos e joelhos, David recorreu a todos os seus esforços para soltar a escada de mão com que terminavam os degraus do primeiro andar, o que lhe permitiria descer até ao pavimento do beco. Através do tecido encharcado da camisa, as gotas de chuva davam-lhe a sensação de serem alfinetadas nas costas. As travessas de metal parecia quererem perfurar-lhe os joelhos. A escada de mão com que terminava aquele lanço de degraus recusava-se obstinadamente a desprender-se.

Lançando um rápido olhar acima de si, David agarrou-se à extremidade do patamar e posicionou-se. Manteve-se naquela posição por breves instantes, tentando avaliar a distância que mediava até ao pavimento, após o que se deixou cair. Sentiu e ouviu o estalar do seu tornozelo esquerdo ao chocar contra o chão. Imediatamente, aquela perna ficou sem qualquer ação. Gritou e mordeu a ponta de um dedo com tal força que fez sangue.

Estendido sobre o pavimento molhado, ouvia o ressoar dos passos pesados, juntamente com a respiração esforçada do homem, acima da sua cabeça. O assassino já se encontrava próximo do patamar do primeiro andar.

Em desequilíbrio, David apoiou-se sobre o pé que não estava lesionado e hesitou. Se tivesse distendido o tendão do tornozelo, sentiria um mal-estar enorme mas conseguiria deslocar-se. Na hipótese de estar fraturado, encontrava-se irremediavelmente prestes a morrer. Mantendo os dentes cerrados, apoiou o pé lesionado sobre o chão. Sentiu uma dor atroz que lhe atravessou o artelho, mas foi capaz de se manter naquela posição: um passo e depois outro e mais outro. De súbito, deu consigo a correr.

Quando chegou ao fundo do beco olhou para trás. O homem já tinha conseguido baixar a escada de mão e, com toda a calma, descia da última travessa.

Àquela hora, a Clarendon Street encontrava-se quase deserta. Sem saber bem o que fazer, David deteve-se, tendo acabado por decidir dirigir-se para Boylston Street, onde o movimento do trânsito era bastante intenso. Foi então que avistou uma figura meio quarteirão à sua frente, caminhando na direção oposta à sua, a caminho do rio. Por mero instinto, começou a correr nesse mesmo sentido. A sua postura era deveras estranha.

Cada um dos passos que dava era uma verdadeira agonia. Ainda assim, continuou a

aproximar-se da figura.

- Socorro! - gritou ele. - Por favor, ajude-me. - O seu grito perdeu-se imediatamente na tempestade noturna. - Por favor, socorra-me.

Estava aproximadamente a três metros da silhueta, quando o vulto se voltou ficando de frente para si. Era um homem de idade, desdentado, por barbear e embriagado. A chuva gotejava das abas do seu chapéu que já vira dias bastante melhores. David fez menção de começar a falar, mas tudo o que conseguiu fazer foi abanar a cabeça. Respirando com dificuldade, apoiou-se a um automóvel que ali se encontrava estacionado. Sem qualquer aviso ou som prévio, o vidro da traseira estilhaçou-se. David girou rapidamente sobre os calcanhares. Através da chuvada e da escuridão da noite, avistou o vulto do seu perseguidor, o qual se ajoelhara sobre um joelho, assumindo a posição de quem se preparava para disparar de novo. David já tinha começado a correr quando o silenciador da pistola cuspiu fogo. Encetara a corrida quando a bala que se destinara a si atingiu o homem de idade, fazendo-o rodopiar até ter acabado por cair desamparado sobre o pavimento.

Com esforço, David lançou-se em frente por entre as bátegas de chuva e das dores que sentia. Esforçou-se a correr como jamais o havia feito em toda a sua vida. Os seus calcanhares pisavam pesadamente as pequenas pedras do caminho, enviando golpes de adaga que lhe trespassavam as pernas. Ainda assim, não parou de correr, atravessando Marlborough Street, passando a Beacon Street, seguindo sempre em direção ao rio.

Aquele era o seu percurso habitual, era o sítio por onde costumava correr - o caminho por onde se exercitara ao longo de tantas manhãs prometedoras banhadas pela luz do Sol.

Agora era forçado a correr para fugir da sua morte. Atrás de si, o homicida gigantesco ganhava-lhe terreno com cada passada que dava. O tráfego que percorria Storrow Drive era ligeiro. David atravessou o piso coberto de água sem abrandar a cadência da sua passada, percorrendo a ponte de pedra destinada aos peões que se elevava acima das águas espelhadas da bacia à sua frente, as luzes de Cambridge cintilavam através da chuva, executando um estranho bailado sobre a superfície do rio Charles, que na altura era de um negrume de pez.

«Volta atrás», pensava David. «Volta atrás e ajuda o Ben. Talvez ele precise de ti. É

possível que ele não esteja realmente morto. Por amor de Deus, faz qualquer coisa.»

Arriscou-se a lançar um olhar por cima do ombro. O homem, que entretanto se atrasara devido a várias viaturas que percorriam Storrow Drive, perdera algum terreno, mas não o suficiente David apercebia-se de que a perseguição estava prestes a chegar ao seu termo.

Devido ao medo que o assolava, as suas passadas eram poucas e dadas a um ritmo

reduzido; estava quase a deixar-se ir abaixo. Perscrutou a alameda deserta, procurando um sítio onde pudesse esconder-se. O assassino já se encontrava demasiado próximo de si. A única esperança que lhe restava era o rio. As pedras existentes ao longo da margem rasgavam-lhe o pouco tecido que ainda lhe restava das meias, enquanto David as pisava com grande dificuldade e mergulhava nas águas frígidas e escorregadias.

Não lhe ficara grande capacidade de continuar a sentir mais dores; contudo, estiletes gelados descobriam as regiões do seu corpo que não estavam doridas, começando a trespassá-las impiedosamente. Leonard Vincent atravessou a ponte para pedestres, começando a aproximar-se da margem.

Tão profundamente quanto lhe era possível, David aspirou todo o ar que coubesse nos seus pulmões, mergulhando nas águas. A distância que mediava entre ele e a terra era de seis metros; foi-se deixando arrastar pelo leito lodoso. Sentia que as roupas lhe pesavam que nem chumbo, o que inicialmente o ajudava a manter-se em baixo, para em seguida ameaçarem retê-lo.

Emergiu uma vez para poder respirar. O que repetiu. Continuava a forçar-se a avançar. A água provocava-lhe ardor nos olhos, impossibilitando-o de ver fosse o que fosse. O seu sabor era acre e repugnante, a despeito de vários anos de controlo de poluição e tratamento de detritos, obstruindo-lhe o nariz e a boca.

Bruscamente, a sua cabeça bateu contra qualquer coisa. Entontecido e quase cego,

inspecionou o objeto servindo-se das mãos. Era uma doca flutuante - uma jangada em forma de T feita de madeira que fora instalada no rio, servindo de ponto de amarração para algumas das dúzias de pequenas embarcações que passavam os meses mais quentes a desfazer as imagens da cidade que se refletiam na superfície do rio.

Por um minuto ou dois, tudo permaneceu em silêncio, com a exceção da chuva que caía sobre a doca flutuante ou nas águas do rio. David encolheu-se junto da jangada numa profundidade de cerca de um metro de água, tentando remover o lodo que sentia nos olhos. As pernas e os pés estavam entorpecidos. Foi então que ouviu o som de passos: passadas pesadas e cuidadosamente medidas. O assassino encontrava-se sobe a doca flutuante! David premiu a região lateral da sua face contra a madeira áspera e viscosa. O ruído dos passos aumentou de intensidade, cada vez mais próximos. Fez deslizar a mão por baixo da jangada. Deixaria esta passar água? Haveria espaço que lhe permitisse respirar? Se ele se ocultasse por baixo da sua superfície poderia muito bem ficar sem ar. Se ele não...

Inspirou profunda e lentamente, dando-se conta de que aquela lufada de ar poderia ser a sua última. Com os olhos fortemente cerrados, mergulhou abaixo da jangada. De imediato a sua cabeça bateu contra a madeira. Sentiu-se invadido por uma sensação de terror. Encontrava-se encurralado, com os pulmões quase vazios de ar. Apalpando desesperadamente acima da sua cabeça, as mãos tocaram na face lateral de uma viga.

Um meio de suporte inferior! Afastou-a para um dos lados e logo de imediato a cabeça libertou-se da água. Havia mais ou menos cinco centímetros de abertura por onde poderia respirar. Esboçou um sorriso a medo com os lábios apertados num ricto de sofrimento, que desapareceu logo de seguida. O som dos passos fazia-se ouvir diretamente acima do seu rosto. Através das fendas estreitas que existiam entre as vigas ele poderia ter tocado na sola dos sapatos do homem, que naquele momento se encontravam a escassos centímetros dos seus olhos. O som dos passos parou. David dobrou o pescoço para trás, tanto quanto lhe foi possível, fazendo pressão com a testa contra a parte inferior da doca flutuante. Por entre os lábios que mantinha cerrados, inspirou o ar com lentidão e em silêncio. Por cima das suas faces, ouvia o arrastar dos passos, primeiro numa direção e depois na inversa, enquanto Vincent perscrutava a superfície do rio. Pouco depois, com uma morosidade agonizante, o homem encaminhou-se para o outro braço do T.

Mergulhado naquela água gelada, David começou a tremer. Agarrou-se com toda a força, a fim de evitar que os dentes batessem uns contra os outros, ajustando o corpo de forma mais apertada entre o fundo do rio e a doca flutuante. Não sentia absolutamente nada do pescoço para baixo. Começou a ouvir o ruído dos passos cada vez mais à distância, acabando por desaparecer completamente. Aquele espaço confinado exercia já sobre si o seu próprio terror lúgubre. Ter-se-ia o homem deixado ficar indefinidamente lá em cima?

Perguntava David a si mesmo. Estaria sentado à sua espera? Durante quanto mais tempo é que ele tencionaria permanecer ali? Durante quanto mais tempo é que eu serei capaz de me agüentar.

Começou a contar. Até cem, após o que regressou ao número zero. Entoou canções para si próprio: pequenas melodias disparatadas dos tempos da sua meninice. Gradual e inexoravelmente, perdeu o domínio sobre o bater dos seus dentes. No entanto, continuava sem fazer o mais pequeno movimento.

- ... Este velho tocou dois, tamborilou em cima dos meus sapatos... Eu conheci um

homem que tinha sete mulheres e sete gatos... os Red Sox, os Withe Sox, os Yankees, os Dodgers. os Phillies, os Pirates...

A frialdade entranhara-se profundamente no seu corpo. Não conseguia impedir os estremecimentos. Há já quanto tempo é que estaria ali? Tinha a sensação de que as

pernas haviam ficado paralisadas. Poderia ele movê-las?

- ... Red Rover, Red Rover, venham cá, venham cá... aposto que não são capazes de me apanhar, aposto que não, aposto que não... Aposto... Aposto... Aposto que vou morrer.

 

Joey Rosetti fechou os olhos e respirou a fragrância que emanava do corpo excitado de Terry. Aquele aroma, o sabor que ela tinha, a maneira como os seus mamilos enegreciam e começavam a ficar firmes sob a carícia das suas mãos - mesmo ao fim de doze anos, as sensações eram estimulantes, continuando a ter a mesma frescura de um ardor acolhedor.

Ele esfregou as faces pela pele acetinada entre as coxas da mulher, após o que introduziu a língua através das dobras de tecidos umedecidos.

- É bom, Joey. Tão bom - gemeu Terry fazendo pressão para que o rosto dele se aproximasse mais de si. Sorriu ao marido, passando os dedos da mão pelos cabelos

anelados e de um negro asa de corvo do marido.

Sentindo-se percorrida por um frêmito, levou a boca de Joey à sua e colocou os calcanhares à volta do seu torso, enquanto o desejo despertado pelo beijo se intensificava cada vez mais. Ele penetrou-a em movimentos profundos e lentos.

- Joey, amo-te - sussurrou Terry. - Quero-te tanto.

Sugou os lábios dele, acariciando o rego existente entre as suas nádegas. Os músculos maciços ficaram mais tensos ao sentirem os dedos dela, que trabalhavam a maior profundidade.

As investidas de Joey tornaram-se mais aceleradas, tendo-lhes ele imprimido mais vigor.

Ambos sabiam que o clímax ocorreria dentro de pouco tempo, o que sucederia aos dois em simultâneo.

Bruscamente, a campainha do telefone em cima da mesa-de-cabeceira começou a tocar.

- Não - gemeu Terry. - Deixa-o tocar. - No entanto, ela já sentira um abrandamento no entusiasmo de Joey. - Deixa-o tocar - implorou ela de novo. O aparelho tocou por seis vezes, sete... aquele ruído intruso não pararia. A pressão no interior dela enfraqueceu. Uma oitava tocadela e depois uma nona.

- Raios! - resmungou Joey soltando-se do corpo da mulher e virando-se para o lado. - É melhor que não seja uma porra de engano. - Tartamudeou algumas palavras de atendimento, ficando a ouvir ao longo de meio minuto, após o que proferiu uma só palavra: - Onde? - momentos mais tarde afastava os cobertores com os pés e em movimentos pouco firmes saía da cama.

- Terry, era o doutor - explicou ele. - O doutor Shelton. Está ferido e necessita de ajuda. - Ligou o candeeiro da mesa-de-cabeceira, dirigindo-se, apressado, para o guarda-fatos.

- Eu vou contigo - disse Terry com uma nota de exigência, pondo-se de pé.

- Não, querida, por favor. - Joey ergueu uma mão. - Ele está como que enlouquecido. - Eu mal consegui compreender o que ele me disse ao telefone. Mas o certo é que disse que se encontrava em dificuldades. Não quero que te envolvas neste assunto. Telefona para o bar. Pergunta se Rudy Fisher ainda está a trabalhar. Se estiver, diz-lhe que vá imediatamente até à alameda, na zona do rio Charles. Junto do Hatch Shell. É aí que tenciono encontrar-me com ele.

- Joey, não tens outra pessoa a quem possas telefonar? Tu sabes bem o que eu sinto em relação a esse hom...

- Ouve uma coisa, não posso estar a perder tempo com discussões. O Rudy trabalha comigo há mais tempo do que t... há já muito tempo. Caso se venham a verificar quaisquer problemas, quero tê-lo ao meu lado.

Doze anos haviam ensinado a Terry a inutilidade de argumentar com o marido, especificamente a respeito de assuntos daquela natureza. Mesmo assim, a sua insistência em Rudy Fisher, um homem gigantesco com propensão para a violência. atemorizava-a.

- Joey, por favor - urgiu ela. - Tem muito cuidado. Nada de violências. Por favor, promete-me isso. Se o David estiver ferido, limita-te a levá-lo para um hospital e regressa a casa.

- Querida, o homem salvou-me a vida - retorquiu ele enquanto vestia as calças. - Tudo o que ele possa vir a precisar de mim, é garantido que o terá.

- Mas tu prometeste...

- Ouve - ripostou Joey. - Eu tenciono ter cautela. Não te preocupes. - Forçou-se a exibir um sorriso mais descontraído. - Presentemente sou um homem de negócios, coisa de que tu estás bem ciente. Se ele estiver ferido, levo-o para um hospital. Não fiques apreensiva e limita-te a fazer o que eu te pedi. - Tirou uma camisa do roupeiro.

Terry sentou-se na beira da cama, admirando-o enquanto ele se vestia. Aos quarenta e dois anos, o marido continuava a manter um corpo musculado e umas feições estreitas que pareciam talhadas a cinzel; possuía uma figura que se assemelhava à de um ídolo das matinês cinematográficas. Dele emanava uma atitude vigorosa que não mostrava quaisquer indícios da existência de situações de risco de vida a que ele conseguira sobreviver. No entanto, as recordações encontravam-se presentes, sob a forma das cicatrizes cor de borgonha que atravessavam o seu abdômen. Uma delas, um crescendo que media mais de quarenta e cinco centímetros em redor do seu flanco esquerdo, a qual era uma recordação dos tempos da sua juventude em que fora o chefe de um bando de malfeitores na zona norte de Boston. Interceptando-a logo acima do umbigo havia uma outra cicatriz - a qual já tinha dez anos - resultado do disparo de uma arma de fogo, que ele sofrera ao tentar impedir um assalto à mão armada na zona norte.

Rosetti fora um dos primeiros doentes particulares de David que haviam ido à sua consulta no White Memorial, implicando uma operação que se prolongara por doze horas, da qual algum pessoal médico que na altura tinha estado presente no bloco operatório ainda falava hoje em dia com uma expressão de reverência. Durante o período de convalescença desenvolvera-se entre os dois homens uma grande amizade.

- Terry, queres parar de cismar e fazeres essa chamada telefônica? - insistiu Joey com alguma rispidez enquanto calçava uns sapatos maleáveis de pala. Esperou que ela tivesse voltado as costas para agarrar no coldre do revólver, próprio para prender aos ombros, retirando-o de debaixo da prateleira do roupeiro onde estavam guardadas as camisolas.

Já se dirigia para a porta do quarto, quando Terry recomeçou a falar.

- Joey, por favor, não te sirvas dele.

Rosetti regressou até junto da mulher e beijou-a com ternura.

- Não tenho intenções de o utilizar, minha doçura. A menos que me veja absolutamente forçado a fazê-lo. Prometo-te.

Terry Rosetti aguardou até ouvir o barulho da porta a ser batida, suspirou e agarrou no telefone.

David deixara-se ficar no mesmo lugar da alameda, continuando agarrado ao auscultador do telefone público, o que o impedia de cair redondo no chão. Tremia

descontroladamente. entrando e saindo de períodos de percepção, à medida que a chuva açoitante o salpicava de lama. Tentando espreitar por entre as bátegas de água, conseguia avistar o Anfiteatro Hatch Shell. A gigantesca meia cúpula, que se erguia a uma altura de várias centenas de metros, era o único marco que lhe ocorrera indicar a Joey como ponto de encontro.

Com bastante sofrimento e lentidão, largou o telefone e girou sobre os calcanhares no meio de um charco de lama, começando a arrastar-se na direção de uma luz que ficava ligada toda a noite, fixa numa das faces laterais da cúpula. Durante cerca de dez ou quinze minutos, arrastou-se esforçadamente pelo chão encharcado. A lâmpada ínfima, que de início era uma mera luz de presença, ao fim de pouco tempo transformou-se em todo o seu mundo. À medida que percorria cada centímetro agonizante num passo arrastado, esta dava a impressão de se encontrar cada vez mais distanciada. Tentou por inúmeras vezes pôr-se de pé, apenas para voltar a cair sob o efeito das dores que sentia no tornozelo, e também por causa do frio inacreditável que se assenhoreara de todo o seu corpo. De todas as vezes que caía por terra, conseguia apoiar-se sobre as mãos e os joelhos, continuando a avançar. Em duas ocasiões foi obrigado a dobrar-se sobre si mesmo, devido aos espasmos que lhe contraíam as entranhas, forçando a água fétida do rio, de mistura com a bílis, a sair-lhe pelas narinas e boca. A luminosidade daquela luz atormentadora era cada vez mais fraca, situando-se mais à distância.

- Isto não pode terminar desta forma. - David articulou aquelas palavras vezes sem conta, utilizando-as como se fossem uma cadência que lhe forçava uma mão, e depois um joelho. num avanço à frente do anterior. - Não pode acabar desta maneira...

Inesperadamente, o relvado deu lugar a um pavimento de cimento, ao que se seguiu um chão de mármore macio. Ele encontrava-se nas escadas da base do Shell. Os tremores que sentia foram substituídos por uns tiques paroxismais que lhe afetavam as mãos, os ombros e o pescoço, anunciadores de uma convulsão de grande intensidade. O sangue gotejava-lhe de um dos cantos da boca, o que era o resultado do entrechocar dos dentes, quais martelos pneumáticos que lhe trituravam os extremos da língua. Acima de si, a luz noturna bruxuleou por breves momentos, após o que se apagou. David começou a sentir o sentimento de uma paz incongruente anunciadora da morte, o qual se instalava no seu íntimo. Lutou contra essa sensação, servindo-se das poucas forças e do escasso poder de concentração que ainda lhe restavam. "A Christine sabe", pensou ele. "Ela sabe por que motivo é que o Ben foi assassinado e agora ela será a próxima a morrer. Tenho de me agüentar, custe o que custar. Agüentar-me para poder ajudá-la. Isto não pode terminar desta forma... É impossível.”

A sensação de vazio fizera sentir a sua presença somente um minuto depois de Christine ter declinado a oferta de boleia que Ben lhe fizera, começando a encaminhar-se para sua casa. Era como se alguém houvesse aberto uma torneira, escoando do seu corpo todos os resquícios de qualquer emoção ou sentimento. Já tinha desistido da tentativa de se abrigar por baixo dos telheiros dos prédios, caminhando no centro do passeio totalmente alheada das bátegas da chuva que continuava a cair.

O encontro que tivera com Ben correra sem dificuldades de maior - pelo menos, mais facilmente do que ela previra. Com a sua postura de grande à-vontade, característica de quem não submetia as pessoas aos seus juízos de valor, ele assegurara-lhe por mais de uma vez que a sua decisão em confessar era a mais correta, a única medida que ela poderia ter tomado. O advogado aceitara as justificações que ela achara por bem dar-lhe - de acordo com as quais, Christine, agindo sozinha, honrara os desejos de uma amiga chegada e muito especial, a qual se encontrava às portas da morte no meio de um grande sofrimento. O momento mais difícil do diálogo verificara-se quando o advogado começou a abordar o assunto do impresso de medicamentação C222, que havia sido falsificado.

- O quê? - perguntara Christine, numa tentativa para conseguir ganhar algum tempo.

- Estou a referir-me ao impresso. Aquele que o Quigg, o farmacêutico, afirma que o doutor Shelton aviou na sua farmácia.

Os pensamentos de Christine corriam-lhe à desfilada pela mente. Era por de mais evidente que Miss Dalrymple, ou então uma das outras enfermeiras, tinha utilizado aquele impresso para a proteger. Sem qualquer aviso prévio que a alertasse para aquela situação, não tinha qualquer resposta preparada que pudesse dar ao advogado.

- Eu... eu utilizei-a e... e depois subornei o farmacêutico.

- Como é que, e para começar, conseguiu obter esse impresso? - perguntou Ben. A

expressão do seu rosto não mostrava o mínimo vestígio de dúvida.

- Eu... eu prefiro não entrar nesse assunto, pelo menos nesta fase da situação. - Christine conteve a respiração, na esperança de que o advogado não a forçasse a falar daquela questão. Decorridos alguns dias, ela havia de pensar em alguma coisa. No caso de Miss Dalrymple continuar a desejar proteger A Irmandade, ela teria de fazer tudo o que estivesse ao seu alcance com o objetivo de se certificar de que o farmacêutico não a desmentiria. Para além de também lhe caber a tarefa de tentar convencer Peggy de que Christine se encontrava firmemente determinada em manter o movimento fora da sua confissão.

Ben examinou-a por uns momentos, após o que fez um acenar de cabeça.

- Nesse caso, muito bem - continuou ele. - Passemos à forma como me parece que você deveria encarar este assunto. Isto é, se desejar o meu conselho.

- Eu gostaria de mais do que isso, doutor Gl... quero dizer, Ben. Se houver alguma possibilidade, gostaria que fosse você a representar-me legalmente.

- Vou ter de pensar nessa hipótese, Christine, a fim de me certificar de que não virá a verificar-se um conflito de interesses. - O advogado sorriu. - Mas, à primeira vista, não me parece que isso venha a verificar-se. Vamos marcar um encontro para segunda-feira de manhã no meu escritório, às nove horas. Tratarei das coisas de forma a que o detetive Dockerty se encontre presente. Não se preocupe, tenciono explicar-lhe com exatidão e antecipadamente tudo o que deve dizer-lhe. Na segunda-feira. De acordo?

Christine acenara que sim.

Segunda-feira Christine repetiu continuamente aquelas duas palavras, enquanto se

esgueirava por entre a chuva. Três dias antes de a sua vida, para todos os efeitos, chegar ao fim. Que raio, compreendeu ela, já tinha terminado. Entretanto passou um autocarro, que lhe salpicou as botas e a gabardina com a água enlameada que ressaltara do pavimento. Ela nem sequer abrandou o ritmo da sua passada. Num tumulto de imagens, Christine começou a visualizar o que estava prestes a suceder-lhe: a prisão... o juiz...

Miss Dalrymple... os seus irmãos e irmãs... os jornais... o seu pai, o qual já se encontrava confinado a um lar para idosos... as alcunhas, Anjo da Morte, A Assassina Misericordiosa.... as suas companheiras de casa e as suas famílias... Mas, talvez mais punitivo do que tudo o mais, eram as imagens de David, a par do ódio que ela sabia de antemão ele acabaria por nutrir pela sua pessoa.

Ultrapassou a esquina onde teria de virar para se dirigir à sua rua. Pouco a pouco, o

enorme buraco negro começou a crescer dentro de si. O alívio e a paz que sentira ao falar com Ben haviam-se dissipado por completo. As gotas de chuva suplantaram as lágrimas que ela não conseguia chorar; o vazio que sentia dentro de si era excessivo.

Sem que lhes prestasse atenção, examinava as montras dos estabelecimentos comerciais por que passava. De repente, viu-se em frente de uma farmácia, a farmácia onde costumava ir. O farmacêutico, um homem já de idade, conhecia-a bem, o mesmo acontecendo em relação às suas companheiras de casa de fato, ele nutria um sentimento de estima por todas elas. Como se estivesse em transe, Christine entrou, trocando algumas banalidades amenas, após o que pediu ao homem que lhe aviasse o Darvon que esporadicamente ela tomava para combater as cãibras. A última receita, que aviara havia seis meses, ficara em casa dentro de uma gaveta da cômoda, com o frasco quase cheio.

Depois de ter feito uma verificação rápida à sua ficha, o farmacêutico entregou-lhe o

medicamento.

No caminho para casa Christine começou a compor a mensagem que tencionava deixar.

- Rudy, ele está aqui - gritou Joey. - Mãe de Deus, mas que grande confusão! Penso que ele está morto.

O corpo de David, que não fazia qualquer movimento, encontrava-se com o rosto em cima de um charco de água, tendo-se posicionado num dos lados dos degraus do anfiteatro. Conseguira subir alguns dos degraus, anichando-se por detrás de uma pedra de mármore, escondendo-se de forma a não poder ser visto do passeio mais abaixo. Com gestos suaves, Joey voltou o corpo do amigo colocando-o de costas. A chuva implacável espalhava a sujidade e o sangue que cobriam o rosto de David. Nesse mesmo instante, ele gemeu em voz baixa, um som que quase se perdeu no vento noturno.

- Jesus, vai buscar um cobertor! - gritou Joey. - Ele ainda respira! - Gentilmente, colocou a cabeça de David sobre uma das suas mãos, começando a dar-lhe pequenas palmadas nas faces... cada vez mais rápidas e com maior força. - Doutor, é o Joey. Consegues ouvir-me? Verás que vais ficar bom. Doutor?...

- Christine... - Foi a primeira palavra que David proferiu por entre um gorgolejar quase inaudível. - Christine... Tenho de encontrar a Christine. - Os seus olhos mantiveram-se abertos por breves instantes, esforçando-se por focar o olhar no rosto de Joey, após o que se fecharam. Rosetti apoiou uma mão sobre o peito de David. Acenou excitadamente ao sentir o fraco ritmo cardíaco que lhe soerguia o corpo.

- Agüenta-te - encorajou ele. - Vamos levar-te para o hospital. Ficarás bom, verás, doutor. Vê se consegues agüentar-te. - Ergueu o olhar e resmungou uma maldição dirigida à chuva que não abrandava. Ao fim de alguns momentos, o vento amainou. A chuva que caíra inclementemente até então deu lugar a uma morrinha ligeira e nevoenta. Joey fixou o olhar acima de si mostrando-se espantado; em seguida, acenou num gesto de aprovação.

- A primeira coisa que tenciono fazer amanhã de manhã é dar-te um aumento de ordenado - disse ele com um sorriso rasgado.

David ouvia a voz de Rosetti, tendo compreendido apenas a palavra hospital. "Não”,

pensou ele. "Para o hospital não." Esforçou-se por se concentrar nesse pensamento,

tentando expressá-lo por palavras; todavia, a sua consciência enfraqueceu, cedeu,

fazendo com que mergulhasse na escuridão.

Cinco minutos mais tarde, já David se encontrava embrulhado num cobertor, encostado a Joey e sentado no banco de trás do Chrysler de Rudy Fisher. Os tremores incontroláveis que o sacudiam persistiam, mas, momento a momento, ele sentia que recuperava a consciência. Joey deu instruções a Fisher para que seguisse em direção ao Serviço de Urgências do Hospital Médicos de Boston. Como se fossem ecos a percorrerem um túnel extenso, David ouviu as suas próprias palavras: gemidos quase inaudíveis sem qualquer coerência.

- O Ben está morto... A Christine está morta. Por favor, para o hospital, não... Tenho de encontrar a Christine... Sinto frio... tanto frio. Por favor, ajudem-me a aquecer o corpo...

Havia várias ambulâncias estacionadas à entrada das urgências, com as suas luzes

intermitentes que emitiam os seus clarões, qual contraponto hipnótico. Joey saiu do

automóvel, regressando momentos depois com uma cadeira de rodas.

- Este lugar parece uma porra de um jardim zoológico - comentou ele enquanto retiravam David do carro, o que faziam com todas as cautelas. - Deve ser por causa da chuva. Dá a impressão de ser uma cena tirada de um filme de guerra. Rudy, espera por mim ali. Estás a sentir-te bem, doutor?

David tentou acenar com a cabeça, mas as luzes, as tabuletas e as faces, tudo aquilo formava uma amálgama desfocada que o entontecia. Quando Joey o empurrou através das portas corrediças, entrando na luminosidade artificial da área de recepção, os arrancos de vômito subiam-lhe à garganta. Aquela atmosfera e o movimento traziam-lhe à recordação a atividade que habitualmente, se desenrolava na enfermaria de um hospital de campanha. Havia um fluxo constante de doentes - alguns destes a sangrar e outros dobrados sobre si mesmos - que acorriam entrando por diversas portas. Por toda a parte se viam macas. Joey abarcou todo aquele cenário, optando por empurrar a cadeira de rodas através da multidão, contornando a enfermeira que fazia uma primeira triagem.

A mulher, uma enfermeira morena e aprumada, que desempenhava as funções de

avaliação dos doentes que chegavam, tarefa que executava ia fazer dois meses, ouviu-o com uma incredulidade crescente, após o que se apressou em aproximar-se de David.

Este gemia em voz baixa, movimentando a cabeça de um lado para o outro, embora se esforçasse por mantê-la imobilizada.

- Meu Deus, ele parece uma pedra de gelo - verificou ela, colocando uma mão por baixo do queixo de David. - Veja se consegue manter-lhe a cabeça sossegada, enquanto eu vou chamar um auxiliar de enfermagem. O que é que lhe aconteceu? - Afastou-se apressadamente sem ter esperado pela resposta que Joey lhe tentava dar. A funcionária das admissões, uma matrona de postura imponente que empunhava uma prancha de escrita, chegou ali uns segundos depois, começando a disparar perguntas.

- Nome? - perguntou a mulher.

- Este não é o Josenh Rosetti - contradisse ela lançando um olhar a David - , é, isso sim, o doutor Shelton.

- Oh, eu pensei que estava a referir-se ao meu nome. Se já sabia quem ele é, por que motivo é que me perguntou qual o seu nome?

Joey encontrou a carteira ensopada de David, de onde retirou algumas das informações que a mulher pretendia. Em várias ocasiões esteve à beira de perder as estribeiras, mas esforçou-se por conter o seu temperamento, no receio de que ela arrancasse outra folha de papel para recomeçar de novo todo o processo de admissão.

Joey olhou para David, cuja pele naquele momento adquirira uma tonalidade de um

verde-ervilha.

- Vamos lá a ver uma coisa - ripostou ele, desabrido. - Este homem está doente. Essas perguntas não podem aguardar até ele ser visto por um médico?

- Lamento muito, meu caro senhor - retorquiu ela ríspida. - Não sou eu quem estabelece os regulamentos do hospital, limito-me a pô-los em prática. Religião de preferência?

Joey lutou contra o impulso que sentiu de agarrar a mulher pela garganta. Naquele preciso instante, a enfermeira de cabelos negros regressou, vindo acompanhada de um auxiliar de enfermagem, poupando assim a Joey uma decisão final.

- Já disponibilizei a Unidade de Trauma Doze - informou ela. - Leve o doutor Shelton para lá. Quando o processo de admissão estiver concluído, poderá esperar. Assim que alguém tenha oportunidade de o examinar, informa-lo-ei dos resultados. - Olhou para o rosto de Joey e apercebeu-se pela primeira vez do quanto ele era bem-parecido. O seu sorriso alargou-se. - Tem alguma questão que gostasse de ver esclarecida? - Joey piscou o olho à jovem enfermeira, cujas faces enrubesceram de imediato.

No Serviço de Urgências, que naquela altura fervilhava de movimento, havia somente um par de olhos que seguia atentamente o auxiliar de enfermagem, o qual começara a empurrar a cadeira de rodas onde David se encontrava sentado. Pertenciam a Janet Poulos. Apenas os seus ouvidos é que escutaram compreenderam a única palavra que ele gemia: "Christine." Por causa da ocorrência de acidentes múltiplos e dois ferimentos provocados por disparos de armas de fogo, o que exigia toda a atenção do pessoal médico, Janet tinha concordado em fazer horas extraordinárias, até que o fluxo de doentes se reduzisse um pouco. Agora, compreendia ela, aquela decisão poderia vir a ser extremamente compensadora, sob vários aspectos bastante inesperados. A sua mente funcionava a grande velocidade enquanto ela tentava apreender todo o significado.

Leonard Vincent tinha sido contratado pelo Jardim com a finalidade de vigiar Christine Beall, tendo sido instruído para intervir apenas no caso de Dahlia ter a impressão de que a mulher decidiria confessar, expondo assim A Irmandade. Até aí, Janet encontrava-se inteirada da situação. Dahlia tomara a decisão de proteger O Jardim, custasse o que custasse; todas as flores eram membros dA Irmandade, quer estas se mantivessem ativas no movimento quer não.

"Beall e Shelton deviam ter estabelecido qualquer contacto", raciocinou Janet. Sem dúvida que ela deveria tê-lo abordado. Certamente que teria falado com ele sobre A

Irmandade. Por que outro motivo é que ele estaria no hospital, chamando ChrIstine.

Contudo, fosse de que maneira fosse, Shelton conseguira escapar-se. Aquela era a única explicação que fazia um mínimo de sentido. Caso esta fosse verídica, isso significava que Hyacinth tivera a boa fortuna de se encontrar no sítio certo, exatamente na altura certa.

Janet começou a tremer devido à excitação que toda aquela situação lhe provocava. A oportunidade fora-lhe dada de mão beijada. Se ela conseguisse lidar com as coisas de forma apropriada, tomando as decisões mais adequadas era muito possível que Dahlia achasse por bem envolvê-la mais a fundo nos trabalhos d'O Jardim. As recompensas seriam gigantescas.

Janet olhou discretamente em seu redor. A Polícia, uma presença constante no Serviço de Urgências, estava ocupada com as vítimas dos disparos de balas. Pareceu-lhe que se poderia deslocar através do caos sem que ninguém reparasse em si, mas somente se agisse com rapidez. Haveria tempo para telefonar a Dahlia? Inspecionou o corredor, concentrando-se na zona de Unidade de Trauma Doze. As imediações dessa sala encontravam-se desertas. Muito possivelmente, não voltaria a deparar-se-lhe outra oportunidade como aquela.

Adrenalina. Potássio. Insulina. Digitalis. Pancuronium. Janet passou em revista todas as possibilidades, enquanto se dirigia num passo apressado para o balcão das enfermeiras.

Perguntou a si mesma por onde é que Christine Beall andaria. Teria Vincent tratado dela?

Decidiu que isso não tinha importância, dadas as circunstâncias atuais. O único problema a que ela poderia acorrer naquele momento encontrava-se à sua espera na Unidade de Trauma Doze.

- Doutor Shelton, o meu nome é Clifford. Consegue levantar o rabo para que eu possa despir-lhe essas calças encharcadas? - O auxiliar de enfermagem, um homem gorducho, já passara a casa dos trinta; no entanto, parecia que necessitava de se barbear pela primeira vez na vida.

David resmungou uma resposta e com um esforço que lhe exigiu muito lá conseguiu fazer o que o rapaz-homem lhe pedia. Gradualmente, começou a sentir pequenas ondas de calor no interior do seu organismo, afastando a intensa frialdade que se apoderara de si. A medida que o seu sentido de percepção era cada vez mais lúcido, o mesmo acontecia às dores latejantes que sentia no tornozelo lesionado e num braço, a par de umas dores menores na região acima do ouvido direito e na sola dos pés.

- Você tem todo o aspecto de quem andou a divertir-se à brava - comentou Clifford com uma expressão jovial, estendendo as calças ensopadas de David em cima das costas de uma cadeira.

- O rio... eu... estive no rio. - A voz de David era distante e sem entoação. - O Ben está morto...

- Consegue manter isto debaixo da língua? - perguntou o auxiliar metendo um termômetro na boca de David. - Quem é esse Ben? - David tartamudeou, tentando agarrar no termômetro. - Não, não, não pode tocar nisso - admoestou Clifford. - O médico chegará dentro em pouco para o examinar. Deixe ficar isso debaixo da língua até eu voltar.

"Nunca se deve tirar a temperatura oral a uma pessoa que quase morreu de hipotermia, grande idiota!" A reprovação silenciosa refletiu-se nos olhos de David, enquanto o corpulento auxiliar de enfermagem abandonava o quarto. Então, os seus lábios apertaram-se num meio sorriso. Ele estava a recobrar a lucidez. Pouco a pouco, os seus pensamentos ao acaso começavam a ter alguma coerência. Subitamente, a imagem do rosto de Ben surgiu-lhe à mente, com o sangue a jorrar-lhe da boca. Sentiu-se assolado por um sentimento de terror renovado. Num grande desespero, David conseguiu soerguer-se, primeiro apoiado sobre um cotovelo e depois sobre uma mão estendida.

- Christine - disse ele com a respiração entrecortada, cuspindo o termômetro para fora da boca. - Tenho de chegar junto dela. - Quando endireitou a cabeça, as paredes começaram a girar à sua volta, inicialmente com lentidão, para pouco depois o fazerem com uma celeridade crescente.

David lutou contra as tonturas e a náusea que se apoderavam de si, obrigando-se a

sentar-se. A transpiração encharcava-lhe a fronte, correndo-lhe pelas faces abaixo. O chão abaixo de si era uma mancha sem contornos. Quando se inclinou para a frente o quarto começou a escurecer e soube que se encontrava a cair. Por um momento incrível, sentiu uma total ausência de peso, como se flutuasse num mar de uma luminosidade cintilante. Pouco depois, perdeu toda a percepção de tudo o que o rodeava.

Janet Poulos agarrou em David pelos ombros quando ele começou a tombar para a frente, voltando a colocá-lo com cuidado sobre a maca. A sua respiração era cava e rápida; a pulsação que ela verificou no pulso não era constante. Por breves instantes ainda pensou em voltar a sentá-lo. A queda da pressão sanguínea seria tão precipitada, caso ela tomasse aquela medida, que seria muito possível que eliminasse a necessidade de utilizar a seringa cheia de adrenalina que tivera o cuidado de meter na sua algibeira. Demasiado arriscado, concluiu ela erguendo os pés de David que colocou sobre a maca. Inspecionou o corredor uma última vez. A uma distância de vários quartos, verificara-se uma crise qualquer, pelo que o carrinho com o equipamento de reanimação estava a ser levado para aí. Perfeito, pensou ela, retrocedendo para o interior do quarto e fechando a porta atrás de si. Agora só precisava que toda a gente se deixasse ficar onde estava por mais algum tempo.

- Doutor Shelton, consegue ouvir-me? - perguntou Janet. - Vou aplicar um torniquete no seu braço para poder fazer uma colheita de sangue. Só levará um minuto.

David gemeu e afastou o braço enquanto ela colocava o tubo de borracha à volta do

braço.

- Ora vamos lá a ver, David - continuou ela com uma grande doçura. - Deixe-se estar

quieto. Não vai doer nada. - Bateu na pele acima da junção do cotovelo à procura de uma veia. Aquela região encontrava-se esbranquiçada e gelada; todos os vasos sanguíneos da epiderme estavam constritos ao máximo. Janet soltou um gemido e bateu com maior frenesi, amaldiçoando-se por se ter esquecido da reação que o corpo teria perante uma situação de hipotermia e choque.

David abanava com a cabeça de um lado para o outro, à medida que recomeçava a

recuperar a sua capacidade de raciocínio. Num estado de pânico, Janet espetou-lhe a agulha no braço, na esperança de perfurar uma veia por mero acaso. Nesse preciso instante, Clifford entrou de rompante no quarto. A seringa soltou-se e escorregou da mão enquanto Janet girava sobre si própria ao ouvir o barulho inesperado. Na região da pele do braço de David onde ela picara, apareceu uma gota de sangue.

- Ora bem, doutor, aqui estou eu de volta. Lamento muito ter... - Clifford interrompeu-se, atônito, ao ser confrontado com o olhar fulminante que Janet lhe lançou.

- Raios o partam! - invectivou ela numa voz sibilada, arrancando o torniquete e apanhando a seringa com toda a rapidez. Colocando-se de molde a que Clifford não

pudesse ver o que ela fazia, esguichou a adrenalina da seringa para debaixo da maca, após o que se voltou de frente para o auxiliar de enfermagem. - Não lhe ensinaram a bater sempre que as portas estão fechadas? Eu estava a meio de fazer uma colheita de sangue a este homem e você prejudicou tudo.

- Eu... eu peço muita desculpa. - O auxiliar apoiava-se ora num pé ora noutro, numa

demonstração de nervosismo, olhando fixamente para o chão.

- Há de ter notícias minhas com respeito a este assunto - vociferou Janet. A sua mente era um turbilhão de pensamentos quanto ao que fazer em seguida. Mas então imobilizou-se.

Harry Weiss, o cirurgião de serviço, mantinha-se na ombreira da porta.

- Há algum problema? - perguntou ele com uma expressão tranqüila.

- Eu... - começou Janet a explicar - eu não sabia quando é que alguém viria examinar o doutor Shelton, pelo que me ocorreu fazer algumas colheitas de sangue, iniciando assim o processo de diagnóstico.

- Muito obrigado. Essa medida foi bastante acertada - retorquiu Weiss com um sorriso. - Se ainda não retirou o sangue, sugiro-lhe que espere até eu acabar de o examinar.

- Muito bem, doutor. - Janet ainda lançou outro olhar venenoso a Clifford, saindo do

quarto e começando a correr para o telefone mais próximo.

- Doutor Shelton, sou eu, Harry Weiss. - Um estagiário de nariz adunco, que David orientara no caso da mão com os dedos decepados, olhava para ele com uma expressão de ansiedade. David mantinha os olhos abertos, mas era óbvio que tinha dificuldades em se concentrar. Weiss inclinou-se mais para ele. - Consegue ver-me bem?

David abriu e fechou as pálpebras e acenou que sim. Momentos depois esforçava-se para se levantar.

- A Christine. Deixe-me telefonar à Christine - ouviu-se ele a dizer. Recomeçou a sentir as tonturas; todavia, lutou contra a sensação de náusea e começou a agitar as duas mãos.

Harry Weiss agarrou-o pelos pulsos, forçando-o a deitar-se para trás.

- Por favor, doutor Shelton, eu não quero ser obrigado a amarrá-lo - implorou o jovem médico. Com o olhar procurou Clifford, enquanto os movimentos agitados de David não davam sinais de abrandamento, mas verificou que o auxiliar já se tinha ido embora.

- Enfermeira! - chamou ele. - Por favor alguém que chame um auxiliar de enfermagem e traga para aqui um conjunto de quatro correias de imobilização. Imediatamente!

Em menos de um minuto, David fora preso à maca pelos pulsos e tornozelos, tendo ficado imobilizado por correias de couro. Os seus esforços enfraqueceram, dando lugar a soluços de choro.

- Por favor... deixem só que eu a encontre... permitam que eu lhe telefone. - As suas

palavras eram ininteligíveis.

Weiss baixou o olhar para o cirurgião e abanou a cabeça com tristeza.

- Estou em crer que agora já não há problema - disse ele, dirigindo-se ao pequeno grupo de pessoas que acorrera em sua ajuda. - Deixem-nos a sós para eu poder examiná-lo. Telefonem para o laboratório e digam que eu quero um exame completo e uma contagem dos glóbulos sanguíneos. Eles que procedam também a uma análise para se ver se existe algum abuso de estupefacientes. Depois de eu acabar de o examinar iniciem a administração intravenosa... uma solução salina normal, trezentos centímetros cúbicos por hora, pelo menos até sabermos o que é que se passa. Um de vocês descubra quem é que está de serviço esta noite em psiquiatria, após o que me deve informar. Se for uma pessoa competente, é possível que acabe por lhe pedir para vir até cá abaixo. Mas se for um desses marados que ainda estão mais doentes do que os próprios doentes, o mais provável é não o fazermos. - O grupo sorriu perante o seu comentário, mas só o auxiliar de enfermagem é que se riu em voz alta. Harry Weiss lançou-lhe um olhar momentâneo, agarrou num fragmento do termômetro partido e acrescentou: - E, Clifford, quando é que vais aprender que nunca se deve tirar a temperatura oral num caso de hipotermia? É demasiado imprecisa. Nestas circunstâncias, só se tiram as temperaturas retais. Não

quero voltar a ouvir que fizeste de novo a mesma coisa. - Acenou com a cabeça. indicando que as suas instruções estavam concluídas, o que fez com que todos os presentes abandonassem rapidamente o quarto.

"Assim é que é, Harry, meu rapaz", desejava David dizer, embora estivesse incapaz de articular as palavras. O terror, o choque e a hipotermia cobravam o seu preço. Ainda que o auxiliar de enfermagem tivesse utilizado um termômetro retal, a temperatura do corpo de David não teria ficado registrada. Mesmo assim, era capaz de manter os olhos abertos.

Observava todos os movimentos do médico estagiário, um homem de estatura elevada, quando este começou a examiná-lo. "Diz ao homem", pensou David. "Senta-te e diz-lhe que não precisas da merda de um médico de malucos. Diz-lhe que o Ben está morto. Diz-lhe que tens de encontrar a Christine. Que é muito possível que ela já esteja morta. Diz-lhe que não estás louco. Mas... mas talvez tu estejas louco. Talvez isto seja isso. É como uma pessoa se sente. Ali está ele, a mexer e a agarrar em tudo o que faz parte do teu corpo, e tu nem sequer és capaz de falar com ele. Talvez a loucura seja precisamente isto. Quer dizer... as pessoas de repente não aparecem com uma tabuleta de luzes de néon pendurada ao peito, dizendo:” ESTA PESSOA PERDEU O JUÍZO. ESTA PESSOA ESTÀ LOUCA.”Onde raio é que o Joey se meteu? Ainda há pouco ele estava aqui. Para onde diabo é que ele foi agora?”

Quando Weiss começou a examinar-lhe o tornozelo, David sentiu uma guinada de dor que lhe percorreu toda a perna. Soltou um gemido, esforçando-se por se sentar. As correias de couro que o imobilizavam não cederam.

- Lamento muito - disse Weiss com suavidade. - Não foi minha intenção magoá-lo, doutor Shelton. Consegue compreender-me? É capaz de me contar o que é que lhe aconteceu?

"Sim, sim", pensou David. "Eu posso contar-lhe tudo. Dê-me só um minuto. Não me dê pressa. Poderei dizer-lhe tudo o que sucedeu.”

Harry Weiss viu que ele acenava, ficando à espera de algo mais sob a forma de uma

resposta.

- Bem, do mal o menos, você está a começar a ficar mais quente - disse ele finalmente. - Mandei fazer alguns exames. Vamos tirar umas radiografias ao seu tornozelo, ao braço e não vá o diabo tecê-las, também umas quantas chapas ao seu crânio. Na minha opinião, parece-me que está tudo bem. Mas em relação ao tornozelo não posso ser peremptório. Está a compreender?

- Joey - retorquiu David. - Onde é que está o meu amigo Joey? - Durante breves momentos não teve a certeza se efetivamente proferira aquelas palavras ou se tinha

apenas pensado que as dissera.

O rosto do médico de serviço iluminou-se, radiante.

- O Joey? Foi ele quem o trouxe para o hospital? - David acenou afirmativamente. -

Esplêndido! Bom, parece-me que você está a recuperar muito bem. Eu vou falar com o seu amigo. Em seguida, ele virá para junto de si até o Serviço de Radiologia estar preparado para o receber. Esta noite estamos bastante atarefados, pelo que, muito provavelmente, terá de esperar um pouco mais. Vou desligar a luz acima da cabeceira. Tente descansar alguma coisa e não tente afastar este cobertor do corpo.

- Muito obrigado - sussurrou David. - Obrigado. - Weiss lançou-lhe um breve olhar, abanou a cabeça e saiu do quarto, desligando a luz a caminho da porta.

David experimentou a resistência das correias, uma de cada vez. Ali não tinha a mais pequena hipótese. Respirou fundo, expirou o ar com lentidão e deixou-se ficar todo deitado sobre as costas. Os tremores haviam cessado e grande parte da frialdade que sentira dentro de si já tinha desaparecido. Havia qualquer coisa de tranqüilizante na obscuridade do quarto, onde chegava o barulho ensurdecido, que tão familiar lhe era, vindo do exterior.

- Está na altura de descansar - disse David a si próprio. - Descansa para poderes recuperar as forças. Quando o Joey chegar, podemos ir os dois à procura da Christine. Quando o Joey chegar... - Lentamente, os seus olhos fecharam-se. A respiração tornou-se mais espaçada e regular.

Através de uma sonolência serena e pouco profunda, David deu pela entrada do amigo no quarto. "Não me acordes. Joey", pensou David. "Dá-me mais um ou dois minutos e depois pomos pés ao caminho. Certo, muito bem, eu sei que te sentes preocupado comigo. Posso dormir até mais tarde." Os seus olhos pestanejaram exatamente antes da mão maciça de Leonard Vincent lhe ter tapado a boca, imobilizando-o violentamente contra a maca. Tendo vestido o uniforme branco dos auxiliares de enfermagem que Hyacinth lhe entregara, a Vincent não se lhe deparou o mínimo problema em entrar por uma porta das traseiras, seguindo para a Unidade Trauma Doze. Embora de má vontade, foi obrigado a reconhecer a sensatez de Dahlia, ao ordenar-lhe que se mantivesse junto de uma cabina telefônica perto do Hospital Médicos de Boston. Ela justificara-se dizendo-lhe que se tratava de um palpite. Ele mostrara-se reticente perante a perspectiva de ser forçado a percorrer o Serviço de Urgências, mas, quando ela lhe garantiu que os agentes policiais que ali estavam de serviço se encontravam todos demasiado atarefados, ao que acrescentou a promessa de um bônus, Vincent ficou convencido, dispondo-se a tentar. Agora, congratulava-se em silêncio por aquela decisão.

- Você tem sido uma grande dor de cabeça, doutor Shelton - disse ele numa voz rosnada.

- Estou a pensar em fazer com que isto lhe doa mais do que seria de esperar. Porém, devido ao fato de, pelo menos, você ter tentado sair-se desta, vou fazer isto com rapidez, facilitando-lhe as coisas.

David observava-o completamente indefeso; os seus olhos eram esferas de terror quando Vincent ergueu a faca acima do seu rosto, permitindo-lhe a visão da lâmina lúgubre de gume bem afiado.

Continuando a manter a mão sobre a boca de David, o assassino ajustou dois dedos

espessos abaixo do queixo que ergueu.

- Uma incisão, tal como os cirurgiões costumam fazer - murmurou ele, percorrendo

lentamente o pescoço exposto de David com a extremidade não cortante da lâmina.

- Por amor de Deus, espere! Eu não fiz coisa nenhuma. - Aquelas palavras foram tudo em que David conseguiu pensar para dizer naquele momento final. Mantendo os olhos cerrados ficou à espera de ouvir o seu próprio grito de morte. Em vez disso, deu-se conta de um barulho pesado: o ruído da faca de Vincent a cair no chão. Os seus olhos abriram-se a tempo de ainda ver o corpo do assassino tombar de lado, após o que se dobrou sobre si mesmo. Por detrás do homem, Joey Rosetti ergueu o pesado revólver que utilizara à laia de bastão preparado, caso isso viesse a ser necessário, para lhe desferir outra pancada violenta.

- Isto é que é um belo lugar que vocês aqui têm, doutor - comentou Joey enquanto

desapertava as correias com toda a presteza.

- Ele é o tal homem - disse David em palavras atropeladas devido à excitação. - O homem que matou Ben.

- Eu sei o que é que ele pretendia fazer - atalhou Joey desapertando as fivelas das correias. - O Leonard e eu já tivemos oportunidade de nos conhecer em tempos idos. É o que ele faz como meio de vida. Que grande merda. Na hipótese de andar atrás de ti, meu amigo, isso só pode significar que estás metido num negócio muitíssimo sério.

David sentou-se. Desta vez, as tonturas que sentia eram suportáveis. Num gesto instintivo, levou a mão à garganta. A pressão causada pelo terror tinha feito mais para o recompor do que qualquer outra coisa.

- Joey, tira-me daqui para fora esse animal e depois leva-me para fora deste lugar. Temos de auxiliar Christine.

Joey olhou de fugida para Vincent, o qual permanecia deitado de lado com uma face

contorcida contra o chão.

- Vamos deixar que sejam os polícias a tratar do Leonard - decidiu ele. - Eu prometi à Terry que não me serviria da arma... quer dizer... da outra extremidade do cano, a menos que fosse obrigado a isso. Alguém acabará por o encontrar aqui. Consegues andar? Onde raio é que estão as tuas calças?

- Sou capaz de andar com alguma ajuda. - David saiu da cama e apoiou-se ao braço de Joey para não perder o equilíbrio. Sentia o tornozelo a latejar, embora conseguisse suportar parte do peso do seu corpo, enquanto ele vestia as calças de ganga umedecidas e cheias de lama. - Joey, há uma mulher, Christine Beall. Ela é a única pessoa que pode esclarecer a sarilhada em que me encontro metido. É forçoso que a encontremos. - Suspirou de alívio ao compreender que, por fim, o seu pedido fora ouvido.

- Muito bem - concordou Joey - , mas primeiro temos de conseguir sair deste lugar com a mínima confusão possível. Eu reparei neste gorila vestido de médico, ou com uma vestimenta do mesmo gênero, que se dirigia ao teu quarto. Ninguém lhe lançou sequer um segundo olhar. Imaginei que ele não ia examinar-te. Agora ouve... o meu gerente está estacionado em frente da porta principal. Deixa-me ir buscar uma cadeira de rodas. Com isso vamos tão longe quanto nos for possível, e depois temos de correr como se tivéssemos fogo no rabo. É um carro vermelho, um Olds ou um Chrysler, uma banheira qualquer semelhante a essas. Não te esqueces?

- Eu hei de encontrá-lo, Joey, não te preocupes - afirmou David com um acenar de

cabeça. - Não podemos perder tempo, temos de nos pôr daqui para fora.

Rosetti ajudou-o a sentar-se na cadeira de rodas; casualmente, empurrou-a pelo corredor da ala da Unidade de Trauma, tendo atravessado a área da recepção. Quando as portas eletrônicas se abriram deslizando para os lados, ouviu-se movimentos descoordenados. David saiu da cadeira de rodas agarrando-se ao braço de Joey, enquanto ambos percorriam os últimos metros num passo de corrida até ao Chrysler.

- Acelera a fundo - instruiu Joey, arquejante, quando ambos entraram de rompante para o assento de trás da viatura.

Fisher fez um gesto de compreensão, abrandando ao passar por dois automóveis que circulavam em sentido contrário.

Janet Poulos deixou-se ficar, sem saber o que fazer, num dos extremos laterais da área de recepção, observando os dois homens que saíam do hospital. Não dissera nada a Dahlia em relação à sua tentativa abortada de solucionar o assunto pelos seus próprios meios.

Agora tinha outra decisão a tomar: se iria ou não tentar descobrir se Leonard continuava vivo, necessitando de assistência. Uma vez que ela era a única pessoa que o homem poderia vir a identificar, caso fosse preso, de contrário, teria de levar o homem a encontrar uma maneira de poder fugir do hospital. Talvez ainda conseguisse salvar algum do elevado prestígio de que gozara aos olhos de Dahlia.

Janet amaldiçoou a sua pouca sorte e David Shelton por lhe ter causado tantas dificuldades. Pouco depois, começou a percorrer o corredor dirigindo-se para a Unidade de Trauma Doze, na esperança de se lhe deparar Leonard Vincent morto.

- Auu! Que droga é essa? - perguntou David retraindo-se, enquanto Terry Rosetti lhe

limpava o golpe profundo e extenso que tinha no braço coberto de lama.

- É um produto que eu costumo usar para limpar os vidros das janelas - replicou ela. - Agora deixa-te ficar sossegado para eu poder acabar o curativo.

O apartamento que os Rosetti habitavam na zona norte era antigo mas espaçoso, tendo sido redecorado recentemente. Terry arranjara a casa com bom gosto, fazendo uso de toda uma coleção de mobiliário de família, que teria sido bem-vinda em qualquer das lojas elegantes de antiguidade situadas em Newbury Street.

David permanecia estendido na enorme cama de carvalho maciço de casal, no quarto dos hóspedes, desfrutando da textura e da fragrância dos lençóis de linho, perguntando a si mesmo se alguma vez haveria de sentir o corpo aquecido de novo. Sentia-se enfraquecido e um pouco tonto, com dores em meia dúzia de regiões diferentes do corpo. Ainda assim, apercebia-se de que a capacidade de concentração era cada vez maior, à medida que o nevoeiro mental provocado pela hipotermia começava a levantar-se. Em silêncio, agradeceu a Joey por este o ter convencido a desistir de tentar encontrar Christine, levando-o a optar por um duche quente.

Terry Rosetti, uma beldade vibrante de seios generosos, ligava-lhe, com toda a habilidade, o braço com ligaduras de gaze.

- Macarrão e primeiros socorros - disse David. - Não há dúvida de que tu és a mulher

consumada.

- Diz isso ao teu amigo que está ali - redargüiu ela com um sorriso que iluminou o quarto.

- Ando cá a pensar que ele está convencido de que eu já não fujo. Sabes que ele até foi capaz de parar a meio de fazermos amor para poder atender o telefone quando tu ligaste?

- Não admira que me tenha dado a impressão de que ficaria a tocar para todo o sempre - disse David. - Estive quase a desligar.

- Ainda bem que não fizeste isso - continuou Terry. - David, o Joey não matou esse

homem, pois não?

O medo que se espelhava nos olhos dela não deixava qualquer dúvida quanto à importância que a sua resposta teria para ela.

- Quando estávamos no hospital, Terry, eu bem desejei que ele premisse o gatilho, De verdade que foi o que eu mais quis. Aquele animal matou o meu amigo. Mas o Joey argumentou que te tinha prometido e conseguiu conter-se.

Terry Rosetti engoliu o nó que sentia na garganta.

Nesse momento, Joey entrou no quarto num passo determinado, trazendo consigo um carregamento de roupas, um par de muletas e a lista telefônica de Boston.

- Parece-me que a mulher é esta - adiantou ele. - C. Beall, trezentos e noventa e um

Belknap, Brookline. Também vi nas outras listas, mas este é o único nome que se ajusta. A propósito, as roupas e toda a outra trampa é cortesia da "Associação dos Homens de Negócios da Zona Norte".

- O que é isso? - perguntou David admirado.

- Uns tipos, gente de negócios como eu, que gostam de ajudar as pessoas pobres e

desafortunadas, as quais são perseguidas até ao rio por um gorila qualquer. - Joey

esboçou um sorriso de conspiração dirigido a Terry, piscando-lhe o olho. Não reparou na falta de reação da parte dela. - Achas que estás em condições de viajar, doutor? - perguntou ele.

- Sim, com certeza. A propósito, que horas são?

- Meia-noite e trinta. O nascer de um novo dia.

- Três horas. - David abanou a cabeça num gesto de perplexidade - Só passaram três horas...

- O quê?

- Nada. Por favor, chega-me o telefone. Só espero que ela esteja bem.

- Tens a certeza absoluta que tu estás a sentir-te bem? - perguntou David, olhando-o de soslaio.

- Sem dúvida que sim. Porquê?

- Bom, tu é que tens a educação escolar, as licenciaturas e todas essas merdas. Tudo o que eu tenho a meu favor são as espertezas que aprendi na rua. Mesmo assim, sou capaz de pensar em pelo menos seis ou sete boas razões que nos levariam a dizer a essa C. Beall, face a face, tudo aquilo de que lhe queremos falar, e nunca através do telefone. Não te esqueças de que já foste preso sob a acusação de assassínio. Neste momento, essa mulher é a única esperança que te resta para saíres desta embrulhada.

David compreendeu imediatamente. No caso de Christine não ter nada a ver com o caso da morte de Ben, as notícias poderiam levá-la a entrar num estado de pânico em que ela, possivelmente, poderia tomar qualquer medida que viesse a provar ser fatal para David.

Se, por outro lado, ela estivesse envolvida no assunto, fosse de que forma fosse, ou tivesse conhecimento de quem é que poderia ter contratado os serviços de Leonard Vincent...

David não se permitiu concluir aquele raciocínio.

- Quando tudo isto tiver terminado - acrescentou ele -, tenciono escrever à minha universidade de medicina, sugerindo-lhes que te convidem como conferencista ocasional. Tu serias muito capaz de ensinar os estudantes de medicina a movimentarem-se no mundo verdadeiro. Vamos lá à procura dela.

Decorridos dez minutos, ambos estavam de volta ao automóvel de Rudy Fisher, seguindo em direção a Brookline.

- Não vás com tanta velocidade, Rudy - ordenou Rosetti. - Não queremos que a Polícia nos mande parar. Se o Vincent já mandou a mulher para os anjinhos, nem todas as velocidades do mundo poderão ajudá-la.

David esboçou um esgar risonho, começando a olhar através do vidro da janela do seu lado.

Depois de percorrerem quilômetro e meio em silêncio, Joey retomou a palavra.

- Doutor, há uma coisa que quero dizer-te. Caso assim o entendas, poderás chamar-lhe uma lição, uma vez que pretendes transformar-me num professor.

David voltou-se para o seu amigo, esperando ver o brilho no olhar um tanto dúbio que costumava acompanhar todas as suas histórias. Os olhos escuros de David mantinham-se semi cerrados, mostrando uma seriedade mortífera.

- Avança - instigou David.

- O Leonard Vincent pode não ser o homem que aja da maneira mais correta do mundo, mas não há dúvida de que é um verdadeiro profissional. E, desde que ele ou qualquer outra pessoa deseje mantê-lo em ação, tu estarás a jogar de acordo com as suas regras. Estás a compreender? - David acenou que sim. - Pois bem, nós não dispomos de muito tempo. Portanto, vou tornar a lição simples para que a possas compreender. Existe somente uma regra que tens de manter em mente. Um fator que é fundamental à sobrevivência no jogo do Vincent. Não agi de acordo com ela no hospital porque a Terry me obrigou a prometer que não o faria. Mas tu não tens nenhuma Terry, por conseguinte, presta muita atenção e faz o que vou dizer-te. Se te passar pela cabeça que há alguém que te vai arrumar de vez, é melhor que sejas tu a arrumá-lo antes que ele tenha a oportunidade de te mandar desta para melhor. Estás a perceber? - Com aquelas palavras, Joey meteu a sua arma no bolso de David. - Aqui tens. O que quer que possa vir a acontecer, tenho o pressentimento de que vais precisar mais disto do que eu. Verás que a Terry te preparará algo de muito especial, quando souber que tu fizeste com que eu te desse o revólver.

John Dockerty ajoelhou-se à porta do apartamento de David observando a equipa do

médico legista que havia terminado o que tinha a fazer com o corpo de Ben, levando-o de maca para o elevador. Olhou para o agente policial que andara a fazer perguntas às pessoas dos outros apartamentos daquele andar. O homem encolheu os ombros com um abanar de cabeça.

- Nada - desenhou ele com os lábios.

As novidades tinham sido uma surpresa para Dockerty. A sobrevivência naquela cidade significava manter os ouvidos bem atentos, observar e participar o mínimo indispensável.

Examinou os orifícios dos projéteis na ombreira da porta, após o que reconstituiu todos os passos que, aparentemente, tinham sido dados no decurso da ação. Havia sangue espalhado pelo chão do corredor e numa das paredes do apartamento de David, assim como ao longo da parte inferior da janela aberta do quarto. Tomou um apontamento para não se esquecer de verificar as fichas clínica e militar de David, onde viria mencionado o seu tipo sanguíneo.

Um ferimento provocado por uma faca que fora fatal à vítima. Orifícios de balas, sangue derramado por toda a parte, um coelho bêbedo que fora assassinado à distância de dois quarteirões sem que houvesse uma única testemunha ocular que tivesse presenciado a ocorrência. Dockerty tentou afastar a facha de luz que fazia com que os olhos lhe ardessem, avançando para a reconstituição de todo aquele cenário. Existiam várias probabilidades, nenhuma delas se apresentava de feição para Shelton. Restavam-lhe poucas dúvidas de que o homem estivesse envolvido.

- Tenente, fala o sargento McIlroy da Esquadra Quatro, acabamos de receber uma chamada de um dos nossos de serviço ao Hospital Médicos de Boston. Aparentemente, esse David Shelton... sabe, aquele que o senhor engaiolou. Pois bem, esse Shelton deu entrada no Serviço de urgência. Telefonei para a sua esquadra, e de lá disseram-me que o senhor havia de querer tomar conhecimento deste assunto imediatamente.

- Não vale a pena. Ele desapareceu. Saiu com um tipo qualquer poucos minutos depois de ter chegado. Ninguém se apercebeu disso até já ser tarde de mais. Os nossos homens estavam ocupados a ouvir os depoimentos de dois caras que se tinham entretido com um tiroteio no Bar.

- A questão é precisamente essa. Não existem quaisquer vestígios desse impresso de admissão. A funcionária jura a pés juntos que o datilografou, mas ninguém é capaz de o encontrar.

- Jesus, O que raio é que está a acontecer?

- Eu não sei, meu tenente

- Bom, diga aos homens de serviço no hospital que já estamos...Jesus! - Dockerty pousou o auscultador no aparelho, afastando dos olhos algumas madeixas de cabelos colocando-as debaixo do chapéu. Aquela ia ser uma história!

Fisher passou por três vezes pela rua de Christine até que Rosetti se sentisse seguro de que não se lhes iriam deparar "surpresas". Deu instruções ao homem corpulento, dizendo-lhe que esperasse à distância de um quarteirão, após o que ajudou David a subir os degraus de acesso à porta da frente da casa.

- O mais certo é o velho Leonard estar muito divertido neste momento - disse Joey com uma gargalhada. - Estou a imaginá-lo a tentar sair-se da situação no hospital, servindo-se somente das dez ou doze palavras que formam todo o seu vocabulário.

David firmou-se em pé tentando espreitar através da fileira de vidraças pequenas que a porta tinha na vertical num dos lados. Deslocava-se a medo, mas até um ligeiro voltar de cabeça, ou o deixá-la cair um pouco, provocava-lhe de novo tonturas e náuseas. O estado de hipotermia prolongada em que estivera mergulhado, compreendeu ele então, afetara de uma maneira qualquer o seu sentido de equilíbrio, ou na capacidade que o seu organismo possuía para proceder a ajustamentos rápidos na pressão arterial.

A casa encontrava-se às escuras, à exceção de uma luz de fraca intensidade que se

filtrava de uma divisão à direita - a sala de estar, calculou David. Olhou para o seu relógio, o melhor será tocar à campainha, não?

- Pois bem, doutor, dadas as circunstâncias, eu diria que esse foi o teu melhor palpite. Sinto-me muito feliz por tu nunca estares assim tão tenso na sala de operações.

David conseguiu rir-se de si próprio: pouco depois tocou na campainha. Ambos aguardaram, à espera de ouvirem uma resposta. Nada. David estremeceu, sabendo de antemão que aquele calafrio refletia mais do que o frio do nevoeiro esparso que era açoitado pelo vento. Tocou uma vez mais. Decorreram dez segundos. E depois passaram mais vinte.

- Arrombamos a porta? - alvitrou ele.

- É muito possível que o tenhamos de fazer, mas por mim sugiro que experimentemos primeiro a porta das traseiras.

Joey encaminhou-se para a rua, informando Rudy Fisher, por gestos, que iam dirigir-se para a parte de trás da casa. David tocou à campainha uma última vez, enquanto se esforçava por afastar um ataque de tonturas, seguindo atrás do amigo.

Foi aquele terceiro toque que despertou Christine. Encontrava-se estendida sobre a cama, enquanto passava continuamente de um sonho pavoroso para outro. Por todo o soalho viam-se pedaços de papel rasgado que continha uma mensagem, juntamente com dois frascos de pílulas. Ambos continuavam cheios.

- Só um momento, já vou abrir - disse ela em voz alta. Ter-se-iam as suas duas companheiras de casa esquecido de levar as chaves? Conhecendo-as como ela as conhecia, aquela probabilidade era muito plausível. Levantou-se da cama e ficou a olhar fixamente para o chão. A missiva feita em pedaços, os frascos que continham a morte cor de laranja e cinzenta; apanhou-os e colocou-os dentro de um cesto dos papéis. Decorrida aquela hora terrível e ensombrada que se seguira ao momento em que entrara em casa, Christine resolvera perante si mesma que não existia nada que a levasse alguma vez mais a pensar em acabar com a sua própria vida. Absolutamente nada, para além de, possivelmente, uma situação como aquela por que Charlotte Thomas tinha passado.

Estava firmemente determinada em enfrentar o que quer que fosse que lhe surgisse pela frente.

Uma vez mais, ouviu o som da campainha da porta. Desta feita era a da porta das

traseiras.

- Já vou. Estou a caminho. - Num passo apressado atravessou a cozinha, e já se encontrava a meio caminho do pequeno lanço de escadas que servia as traseiras quando se imobilizou de súbito. Era ele, David, apoiado às muletas e a espreitar através da janela. Estendeu a mão para o interruptor e ligou a luz do lado de fora; e foi então que Christine ficou sem respiração. O rosto dele estava cadavérico, mostrando uma expressão tensa, enquanto os seus olhos mal se avistavam perdidos em olheiras enormes e enegrecidas. Havia um segundo homem, cujas costas se mantinham voltadas e que se encontrava por detrás dele. A pulsação de Christine acelerou-se ao sentir-se invadida, primeiro, pela confusão e, depois, por um sentimento de inquietude.

- Christine, sou eu, David Shelton. - A sua voz soava enfraquecida e como se surgisse de uma grande distância.

- Sim... sim, eu sei. O que é que deseja? - Sentia-se temerosa, incapaz de fazer qualquer movimento.

- Por favor, Christine, é imperativo que eu fale consigo. Aconteceu uma coisa, algo

terrível.

- Estás doido? - perguntou Joey num sussurro, agarrando-o por um braço e colocando-se em frente da janela.

- Miss Beall - começou ele a falar com toda a serenidade -, o meu nome é Joseph Rosetti. Sou um amigo chegado do doutor. Ele foi atacado. - Joey fez uma pausa, avaliando a expressão no rosto de Christine, a fim de detectar se haveria necessidade de qualquer outra explicação adicional antes de ela lhes permitir entrar em sua casa.

Christine ainda hesitou por alguns instantes antes de começar a descer os últimos dois degraus, abrindo a fechadura dupla.

- Eu... eu peço desculpa - justificou ela quando já entravam no corredor. - Vocês apanharam-me de surpresa, e... Por favor, subam para a sala de estar. Consegue caminhar? Está muito magoado? - perguntou ela a David.

Durante os quinze minutos seguintes, Christine não proferiu uma única palavra, limitando-se a ouvir os dois homens que lhe descreviam os acontecimentos daquela noite. A medida que se inteirava de cada pormenor, nos seus olhos espelhava-se uma nova emoção.

Surpresa, perplexidade, terror, sofrimento... vazio. David examinava todas aquelas manifestações de emoção, à medida que estas iam surgindo. Perguntava a si mesmo se ela seria capaz de dizer uma mentira de forma convincente. O que quer que ela tivesse feito, ele não tinha a certeza de que ela fosse a responsável pelo assassínio de Ben.

A despeito dessa incerteza, estava convencido de que Christine, fosse como fosse, se encontrava envolvida no assunto. Essa realidade despertou a atenção de David,

desviando-lhe o olhar do rosto dela.

- Christine, exatamente, o que é que você contou ao Ben? - Ela dava a impressão de estar incapaz de falar. - Por favor, diga-me o que é que lhe contou. - Na sua voz adivinhava-se uma nota de cólera e de urgência.

- Eu... eu disse-lhe que fui eu. Contei-lhe que fui eu quem... quem deu a morfina à Charlotte.

David sentiu o coração a bater com mais força. A sua prisão, a imundície e as condições degradantes daquela noite passada numa cela, o desmoronamento de tudo o que conseguira alcançar na sua carreira, a morte de Ben Glass... Ela era a responsável

- Não! Quero dizer... Não sei. - Os músculos do seu rosto mostraram a tensão que a

invadia. Os seus lábios tremiam. A única explicação que lhe ocorria ao pensamento era a verdade; mas qual é que seria a verdade? A Irmandade decidira sacrificar David com o fim de a proteger; quanto a isso não lhe restava a mínima dúvida. Mas porquê Ben? Já lhe era suficientemente difícil aceitar que tivessem estado decididas a enviar para a prisão um homem inocente, mas recorrer ao assassínio?... - Oh, meu Deus - tartamudeou Christine. - Sinto-me tão confusa. Não compreendo o que está a suceder. Não sou capaz de entender.

- O quê? - perguntou David num timbre de exigência. - O que é que não compreende? - Das suas crateras, os olhos do médico chispavam ao olhar para ela.

- Não percebo - respondeu Christine começando a chorar inconsolavelmente. - Está a acontecer tanta coisa sem que nada faça o mínimo sentido. É horrível. O sofrimento que eu lhe causei. E o Ben Glass... Mataram o Ben. Porquê? Porquê? Eu... eu preciso de tempo para poder pensar. De tempo para deslindar tudo isto. É uma verdadeira loucura. O que é que as levou a fazerem uma coisa destas?

- Quem são elas? - perguntou David. Christine não lhe deu resposta. - Raios partam tudo isto! - vociferou ele.

- De que é que você está para aí a falar? Quem são elas?

- Ora vamos lá a ver, acalmem-se um pouco. - Joey ergueu uma mão dirigindo-se a

ambos. - Tanto um como o outro vão ter de serenar um pouco os ânimos, caso contrário é muito possível que nos vejamos metidos em sérias dificuldades. Muito provavelmente, o Leonard Vincent já saiu de cena. No entanto, não existe qualquer garantia de que ele estivesse a trabalhar sozinho. Quanto mais tempo vocês passarem a discutir um com o outro, mais hipóteses existem de que um estupor qualquer irrompa por aqui adentro, sem que nós esperemos, não hesitando em nos tratar da saúde. - Joey fez uma pausa, permitindo que aquele pensamento penetrasse bem na mente dos seus interlocutores, ficando a observá-los até sentir que a tensão existente abrandava um pouco. - Muito bem. Vamos lá a ver Miss Beall, eu não a conheço, mas conheço bem aqui o nosso doutor, assim como estou a par de toda a merda por que ele tem vindo a passar. De acordo com a maneira como eu interpreto as coisas, vocês dois estão metidos em grandes apuros, até que toda esta situação venha a clarificar-se. Não me passou despercebido que as notícias que lhe demos a deixaram bastante abalada. Apesar disso, este homem merece uma explicação.

- Eu... eu não sei bem o que dizer - replicou Christine, falando numa voz sumida e dirigindo-se tanto a si própria quanto aos dois homens.

Joey apercebia-se de que ela se encontrava prestes a ir-se completamente abaixo. Lançou um rápido olhar a David, cuja expressão deixava adivinhar que ele pensava a mesma coisa.

- Vamos lá a ver - disse Joey finalmente -, talvez fosse preferível telefonarmos à Polícia e...

- Não! - atalhou Christine com dificuldade. - Por favor, não façam isso. Pelo menos, ainda não. Há tanta coisa que eu não sou capaz de compreender. Existe muita gente inocente que poderia vir a sofrer, caso decidamos tomar a medida errada. - Interrompeu-se, respirando profundamente. Quando retomou a palavra, adivinhava-se na sua voz uma nova serenidade. - Por favor, têm de acreditar em mim. Eu não tive nada a ver com a morte do Ben. De fato, devo confessar que simpatizei bastante com ele. O Ben mostrou-se disposto a ajudar-me.

Entretanto, David inclinou-se para a frente, ocultando o rosto nas mãos.

- Muito bem - começou ele a dizer, erguendo lentamente o olhar. - Nada de polícia... por enquanto. O que é que você pretende?

- Que me dêem algum tempo - retorquiu Christine. - Quero apenas que me concedam um pouco de tempo para poder desvendar toda esta situação. Tenciono pôr-vos ao corrente de tudo o que sei. Prometo-vos que sim.

David deu consigo a suavizar a sua atitude, ao aperceber-se da tristeza que lia nos olhos de Christine, o que o levou a afastar o seu olhar.

- Vê uma coisa, doutor - atalhou Rosetti com mostras de alguma impaciência. - Tudo o que eu disse antes foi a sério. Ao continuarmos aqui mais tempo do que o estritamente necessário, não estamos a mostrar grande inteligência. Se chegarmos à conclusão de que não queremos a intervenção da Polícia, pois que assim seja. Se chegou a altura de se falar, nesse caso não devemos perder mais tempo. Só que não o devemos fazer nesta casa.

David adivinhou a nota de urgência na voz de Rosetti, tendo visto, pela primeira vez, uma expressão fugidia de medo nos olhos do amigo.

- De acordo, vamos sair daqui - anuiu ele. - Mas para onde? Para onde é que podemos ir? Certamente que não será para o meu apartamento. E que tal o teu bar... ou mesmo se fôssemos para tua casa? Achas que a Terry se aborreceria se aparecêssemos no teu apartamento?

- Tenho uma idéia melhor. A Terry e eu temos um pequeno esconderijo na margem

esquerda. Se vocês dois conseguirem parar de se atirar à garganta um do outro, sem fazerem de mim o árbitro, este lugar parece-me ser o ideal. Doutor, tu não podes ver-te a ti próprio, mas deixa-me que te diga que estás com todo o aspecto de quem se encontra preparado para ser embalsamado. E que tal se fosses para lá esta noite e descansasses um pouco? Amanhã poderemos dispor de todo o tempo de que necessitares a fim de destrinçarmos toda esta situação. - David fez menção de protestar, mas Rosetti apressou-se a interrompê-lo. - Esta altura não é a mais apropriada para estarmos com argumentos, rapaz. Tu és meu amigo. A Terry também é uma amiga. Por conseguinte, tenho a certeza de que compreenderás o fato de eu não querer envolvê-la numa situação tão complicada como esta. Ou é a margem esquerda ou vocês dois ficam inteiramente por vossa conta. Agora, vamos lá a ver o que é que têm a dizer à minha proposta.

David olhou para Christine. Esta mantinha-se sentada numa postura de desanimo, olhando fixamente para o soalho. Da sua pessoa emanava uma aura de inocência - dava a impressão de um grande desamparo - o que para David era difícil reconciliar com o sofrimento que sentia, atitude que se devia àquilo por que ela o fizera passar. "Quem és tu?", perguntou David para consigo. "Exatamente, o que é que tu fizeste? E: por que motivo?”

- Eu... eu calculo que sim, isto é, caso a Christine não tenha qualquer objeção. Por mim está tudo bem - concluiu ele por fim.

Christine cerrou os lábios e acenou que sim.

- Nesse caso, está decidido - anunciou Joey. - Para casa. Nesta altura do ano, não anda muita gente por Rocky Point, pelo que não deverão ser incomodados por ninguém. Vou desenhar um mapa para que possam orientar-se. Levem o carro da Christine. O Rudy e eu acompanhar-vos-emos até à auto-estrada, para o que der e vier. É um sítio bastante agradável. Muito em especial, se a chuva decidir desaparecer de uma vez por todas. Na garagem está um velho jipe que não se encontra nas melhores condições. As chaves ficaram dentro da caixa de ferramentas junto da parede ao fundo. Se quiserem, poderão servir-se dele. De acordo?

- Dêem-me só um minuto para poder meter algumas coisas num saco - pediu Christine. - Também tenho de deixar uma mensagem para as minhas companheiras de apartamento, para que saibam que esta noite não durmo em casa.

- De acordo, mas que não seja muito longa - replicou Joey. - E, Christine... Diga às suas amigas que mantenham a porta fechada à chave... não vá o diabo tecê-las.

- Mister Vincent, o senhor complicou gravemente as coisas. Muito possivelmente, de

molde a que não possam ser corrigidas. A Hyacinth correu um risco enorme ao ajudá-lo a escapar da confusão que se instalou no hospital, mas isso jamais voltará a acontecer. Desta vez quero ver resultados positivos. Em primeiro lugar, a rapariga, e a seguir, o doutor Shelton. Está a compreender-me?

- Sim, sim, percebo muito bem - redargüiu Vincent batendo estrondosamente com o

auscultador do telefone sobre o descanso levou os dedos à fina camada de sangue

coagulado que se formara em cima dos pontos que tinha levado na cabeça. Aquela

mulher, tola. Hyacinth, não era propriamente o seu tipo, mas o fato de ter conseguido manter a calma no meio de tanto rebuliço era um mérito que ele não lhe poderia negar.

Depois de ter recobrado os sentidos, sentira-se incapaz de se manter de pé. Recordava-se de que ela o havia ajudado a deitar-se numa maca. Segundos depois, chegara um médico.

Foi nessa altura que a mulher deu realmente mostras de toda a sua garra, começando a explicar como é que aquele pobre servente tinha escorregado, batendo com a cabeça contra o chão; ela dissera mesmo que se encarregaria de toda a papelada do tratamento hospitalar, se o fulano fizesse o favor de dar uns pontos para suturar o ferimento.

«Sim, senhor», pensou Vincent; na realidade era forçado a tirar o chapéu à velha Hyacinth. Em seguida, ocorreu-lhe ao pensamento a forma como ela o fitara antes de o mandar para fora do hospital: todo o ódio que vira refletido nos olhos da mulher.

- Seu grande cara de cu! - tinha ela dito. - Você é um idiota chapado.

Aquela recordação desencadeou uma onda de náusea, acompanhada de uma respiração acelerada, intercalada por arrancos, o que lhe acontecia pela terceira vez desde que saíra do hospital. Vincent procurou apoio no tronco de uma árvore, até que os vômitos que lhe assomavam à garganta começaram a passar-lhe.

- Existem algumas pessoas que vão ter uma morte certa - afirmou ele, enfurecido, lutando contra as dores e a frustração que sentia, com a única arma sua conhecida. - Há gente que vai ter uma porra de uma morte.

Cautelosamente, sentou-se por detrás do volante do seu automóvel, começando a dirigir-se para Brookline. Virou em Belknap Street quando um outro carro, que se afastava à sua frente, se aproximava da esquina ao fundo da rua. Vincent contraiu-se, tentando perscrutar a escuridão, numa tentativa para concentrar toda a sua atenção na viatura antes que esta desaparecesse ao virar da esquina. Era vermelha, de um vermelho vivo. O assassino descontraiu-se encostando-se mais para trás. Parou do lado oposto à casa de Christine, observando o caminho de acesso à garagem. Verificou que o Mustang azul não se encontrava ali.

Resmungando uma obscenidade, levou a mão ao interior do porta luvas, de onde retirou um sobrescrito que Hyacinth lhe entregara.

- Pois bem, Dahlia, quem quer que tu sejas, grande estuporada - disse ele. - Calculo que primeiro vais ter o teu médico, quer tu queiras quer não que as coisas se passem dentro desta ordem.

Rasgou o sobrescrito, abrindo-o, após o que endireitou sobre o assento do passageiro da frente a papeleta relativa à admissão de David no Serviço de Urgências do hospital. A toda a largura do espaço assinalado com «Relatório do Médico» leu as palavras "SAIU SEM TER ALTA E SEM TER SIDO TRATADO", escritas a vermelho em letra de imprensa. As secções no topo, destinadas a informações suplementares, haviam sido impecavelmente datilografadas. Com uma mão pouco firme, Vincent desenhou um círculo à volta da linha que identificava a pessoa de família mais chegada.

 

A escuridão e o silêncio que reinavam na doca eram mais fantasmagóricos do que o

habitual. John Dockerty retrocedeu para a ombreira de uma porta, ficando à escuta até que o eco dos seus próprios passos fosse absorvido pela noite opressiva. Foram-lhe necessários vários minutos para conseguir identificar a variedade de ruídos que se faziam ouvir em seu redor. O entrechocar das correntes de amarração. Por seu lado, as gaivotas faziam uma algazarra enorme enquanto se banqueteavam com o seu festim da meia-noite.

Ouvia ainda o marulhar das ondas que se desfaziam contra os pilares espessos. O som ensurdecido e tranqüilizante de uma sirena de nevoeiro.

Gradualmente, começou a sentir que a tensão nos músculos do pescoço desaparecia. Encontrava-se sozinho no molhe do cais.

Através das brumas de um negro-prateado, começou a examinar a correnteza de armazéns, quais sentinelas espectrais que mantivessem vigilância sobre o interior do porto. Em seguida, atravessou a estreita faixa de pavimento, entrando numa pequena viela. No extremo mais afastado, avistou uma nesga de uma luminosidade fraca, que se filtrava por uma fresta existente na parte inferior da porta de um armazém sem qualquer indicação. Dockerty bateu ao de leve e aguardou.

- Podes entrar, Dock, a porta está aberta. - A voz de Ted Ulansky troou por entre todo aquele silêncio.

Dockerty entrou com movimentos furtivos, fechando rapidamente a pesada porta de metal logo depois de ter entrado.

- Cristo, Ted! - disse ele. - Passei a porra de vinte minutos a espreitar por tudo quanto é sítio, para me assegurar de que não tinha sido seguido, e tu pões-te para aí a berrar mais alto do que a sirena de nevoeiro.

- O que só demonstra a confiança que deposito em ti, Dock. Aproxima-te e estaciona o traseiro. - Com aquelas palavras, Ulansky apertou a mão de Dockerty, indicando-lhe uma cadeira de madeira de carvalho de costas altas que se encontrava ao lado da sua secretária. Ele era um homem expansivo. senhor de um físico que mostrava ainda vagas semelhanças com o do jogador americano, bem querido por todos, que ele fora no ataque da equipa de basebol da Universidade de Boston, duas décadas e meia antes.

- Tens aqui um lugar muito acolhedor - comentou Dockerty com sarcasmo, observando o escritório espaçoso e fracamente iluminado. - É só isto?

- E nada mais - respondeu Ulansky, exibindo um falso orgulho. - O quartel-general da tão lendária Força de Investigação de Narcóticos de Massachusetts. Queres dar uma volta pelas instalações?

- Não, obrigado. Estou em crer que sou capaz de abarcar tudo o que existe do lugar onde me encontro.

Na realidade, a FINM, embora não fosse do conhecimento público, tinha conseguido

granjear uma reputação quase mítica, o que se devia à eficiência das suas ações levadas a cabo sem o mínimo alarde, assim como pelas prisões que eram efetuadas e que não permitiam a mais pequena hipótese de fuga com base num qualquer tecnicismo de natureza legal. Ulansky, na sua qualidade de responsável por aquela unidade, ia gradualmente adquirindo a reputação de um ser sobre-humano, qualificativo que granjeara estritamente pelo seu mérito pessoal. No entanto, aqueles escritórios não se enquadravam naquilo em que habitualmente as lendas eram fabricadas. Era um espaço espartano e frio. Paredes de cimento sem qualquer motivo decorativo, ao longo das quais só se viam armários arquivos, em número superior a duas dúzias, todos pintados de um verde-azeitona, a cor padronizada do mobiliário de escritório fornecido pelo governo.

Dockerty sabia que no interior das gavetas de metal existia virtualmente toda e qualquer informação de que se tivesse conhecimento sobre o tráfico ilegal de estupefacientes que tinha lugar por todo o país.

Num dos cantos daquela sala, parcialmente oculto pelo casaco do fato de Ulansky, que fora arremessado de uma maneira descuidada, havia um terminal de computador, ligado através de Washington, que permitia o acesso a todas as agências governamentais de investigação de narcóticos espalhadas por toda a parte.

- Queres tomar uma bebida? - ofereceu Ulansky, baixando-se por detrás da sua mesa de trabalho. - Um café? Dockerty declinou a oferta com um abanar de cabeça. - O assunto deve ser de grande gravidade, para que tu te tenhas deslocado até aqui, neste tempo capaz de amedrontar qualquer um.

- Calculo que sim - aquiesceu Dockerty com uma expressão distraída, recomeçando a sua batalha contra algumas madeixas mais obstinadas do seu cabelo branco.

Ulansky tragou de uma só vez dois dedos de Old Grand.

- Acredita em mim quando te digo que com a transmissão do combate de boxe de Czernewicz a ser difundida esta noite pela televisão a partir da costa, tu és quase o único da rapaziada da esquadra que me teria arrancado de casa. Jackie Czernewicz, o Polaco do Punho Demolidor. Costumas acompanhar?

- Para mim parecem-se muito com qualquer dia passado no escritório - respondeu Dockerty abanando a cabeça.

- Então, conta-me coisas - instigou Ulansky com um sorriso. - O que é que te levou a

fazer uma visita a este hotel.

- Estou envolvido num assunto verdadeiramente aberrante, Ted - começou Dockerty a explicar, coçando a ponta do nariz. - Trata-se do caso de uma senhora de idade que foi assassinada, numa altura em que esteve internada no Hospital Médicos de Boston, com morfina. Até ao momento, consegui reduzir o número de suspeitos até aproximadamente três dúzias.

- Eu sei, li nos jornais qualquer coisa sobre esse assunto. Dizia respeito a um médico. não é?

- Sim, é isso mesmo. Há aspectos circunstanciais que apontam para o homem, mas é tudo demasiado certinho, se é que me faço compreender. O comandante, o pilar da justiça, foi pressionado por um gato gordo qualquer do hospital, tendo insistido em que eu prendesse esse médico. O que eu fiz, embora nunca me tivesse sentido muito convencido da sua culpabilidade. Agora o advogado do fulano também foi assassinado. Ben Glass. Tu conhecias o tipo? - Ulansky fez uma careta, negando com um gesto da cabeça. - Pois bem, o homem foi esfaqueado. Mesmo do lado de fora da porta do apartamento. Ainda não há muito tempo, o doutor foi levado para o Serviço de Urgências do hospital, onde chegou todo encharcado, enregelado e meio demente. Então, antes de receber qualquer tipo de tratamento, pôs-se ao fresco na companhia de outro fulano. Quando eu venho a ter conhecimento do assunto e vou até ao hospital, ao chegar, verifico que não existe qualquer vestígio que indique que ele alguma vez lá tenha dado entrada. Tanto quanto sei, neste preciso momento o homem até é muito capaz de estar morto. Já dei as instruções habituais para que ele seja encontrado, mas estou encostado à parede quanto a tudo o mais que diga respeito a este assunto. Sinto que a grande porra em que esta trapalhada se encontra se deve, em parte, a mim próprio, por ter permitido que o comando atuasse. A minha única esperança de conseguir descobrir alguma pista é um farmacêutico de nome Quigg. Marcus Quigg. É proprietário de uma pequena farmácia na zona oeste de Roxbury. Ele jura a pés juntos que este doutor Shelton aviou uma receita para uma grande quantidade de morfina, no dia em que a mulher morreu por um excesso de medicamentação.

O rosto arredondado de Ulansky franziu-se, enquanto procurava num arquivo mental

qualquer menção daquele nome. - Não sei bem onde, mas temos qualquer coisa em relação a esse homem - disse ele. - Tenho quase a certeza absoluta de que assim é. E quanto ao médico afirma que foi roubado do seu gabinete, alegando que nunca encomendou nenhuma morfina. Consegui apenas um "talvez" por parte dos tipos da grafologia, porque a assinatura do Shelton é um mero rabisco fácil de falsificar.

- Nesse caso, é possível que seja mesmo a assinatura dele - alvitrou Ulansky.

- Talvez - admitiu Dockerty com um encolher de ombros. - Não seria a primeira vez que os meus palpites me saem errados.

- Com certeza, o que costuma acontecer com tanta freqüência quanto a de um eclipse solar.

Dockerty aceitou aquele cumprimento com um esgar de cansaço.

- Necessito de qualquer coisa a respeito desse farmacêutico, Ted - acrescentou o detetive.

- O homem dobra mas não quebra. Cheguei à conclusão de que, se ele alguma vez aceitou um suborno para fazer algo desta natureza, deve ter sujado as mãos com outra coisa qualquer, numa ocasião ou noutra.

- Bem... - começou Ulansky a sugerir - ... podemos passar revista ao que temos em arquivo, além de consultar os dados em computador. Tenho um pressentimento de que possuímos qualquer coisa escrita a respeito desse indivíduo. - Fez uma pausa, após o que prosseguiu em voz mais baixa. - Dock, tu sabes bem que, caso não se venha a descobrir nada sobre ele, poderemos sempre armar-lhe uma cilada com toda a facilidade, o que terá o mesmo resultado. Talvez até melhor. Queres que se faça alguma coisa nesses moldes?

Dockerty contraiu-se, levantou-se da cadeira e num passo lento dirigiu-se para o outro extremo da sala. Ulansky deu a impressão de querer acrescentar qualquer coisa mais, mas recostou-se no assento, deixando que o silêncio continuasse a prevalecer.

Dockerty apoiou um braço sobre um dos armários de arquivo. Durante mais de um minuto, deixou-se ficar a observar a parede vazia.

- Sabes, Ted - prosseguiu o detetive, finalmente -, ao longo de todos estes anos de trabalho policial, nem sequer uma só vez armei propositadamente uma cilada a quem quer que fosse. Caso decidisse fazê-lo nestas circunstâncias, sei que seria com a finalidade de emendar erros que já cometi. - Abanou a cabeça e voltou-se de frente para Ulansky. - Não quero fazer uma coisa dessas, Ted. Independentemente de tudo aquilo que a merda dos meus erros obrigaram o doutor a passar, não desejo fazer isso. - Ulansky acenou com a cabeça num gesto de compreensão. O detetive acrescentou: - Agradeço-te que investigues tudo o que tens em arquivo; pode ser que consigas desenterrar alguma coisa em desabono do Quigg. Telefona-me amanhã logo de manhã. Caso eu não tenha conseguido descobrir nada, o mesmo acontecendo contigo, então voltaremos a conversar.

- Não te preocupes, Dock - retorquiu Ulansky com uma expressão empedernida. - Ainda que o Quigg só tenha mijado em cima da tampa de uma sanita pública, garanto-te que hei de ser capaz de pôr isso a descoberto. Não vale a pena moeres mais a cabeça com esse assunto.

- Foi isso mesmo o que aconteceu. Era essa a saída. Eu disse-lhe que era a vinte e sete, e você passou por ela sem reparar. - David agasalhou-se mais no cobertor do exército, todo encostado contra a porta do lado do passageiro da frente. Lançou um olhar de fugida a Christine, desviando-o antes que ela se apercebesse.

- Lamento muito - retorquiu ela num tom de voz neutro. - Os meus pensamentos estavam concentrados noutros assuntos. - Virou na saída seguinte para poder mudar de direção.

O tráfego era pouco intenso, mas a dificuldade que ela tinha em concentrar-se era tal que se mantinha a uma velocidade inferior a oitenta quilômetros horários. Durante algum tempo prosseguiram a viagem em silêncio; tanto um como o outro sentia que a tensão existente entre ambos era cada vez mais crescente.

Finalmente, Christine apercebeu-se de que não era capaz de continuar a suportar aquela situação. Estacionou no parque de estacionamento em terra batida de um restaurante entaipado, voltando-se numa posição que lhe permitia ficar de frente para David.

- É muito possível que isto não seja uma idéia muito boa. . Talvez devêssemos voltar

atrás.

David olhava para o vazio através do vidro da janela, esforçando-se por compreender a existência, assim como o alcance inacreditável que A Irmandade da Vida tinha. Christine limitara-se a descrever-lhe aquela organização em traços largos, ao que acrescentara a promessa de pormenores adicionais na manhã seguinte. Ainda assim, aquilo que ela já lhe tinha contado era absolutamente espantoso. Vários milhares de enfermeiras! Sendo Dorothy Dalrymple uma delas. Ele ouvira-a, mantendo os olhos fechados e sentindo a cabeça prestes a explodir, enquanto a voz dela, factual e curiosamente desapaixonada, lhe divulgava segredos que poderiam, com toda a facilidade, dizimar todo o sistema hospitalar a que ele tão fielmente servia.

Naquele momento sentia-se enojado. Extenuado, irritado. Aquele estado de espírito não passava despercebido a Christine, embora ela não conseguisse conter a sua própria curiosidade.

- Com o diabo, David! - exclamou ela - Eu tenho estado a tentar explicar-lhe, tão bem quanto me é possível, aquilo que aconteceu. Nunca esperei vir a receber uma recompensa, mas...

- Exatamente, de que é que você estava à espera? - O sentimento de irritação chispava na voz de David.

- Um pouco de compreensão...? - retrucou ela.

- Meu Deus! Ela matou um dos meus doentes, fez com que eu fosse parar à cadeia por causa das suas ações, provocou o assassínio de um dos meus amigos, vindo este a morrer quase nos meus braços, e, para cúmulo, quer que eu a trate com compreensão. E... ainda temos essa sua Irmandade. De todas as presunções e insanidade que possam existir...

- David, eu revelei-lhe a existência d'A Irmandade porque achei que você merecia ter

conhecimento do movimento. Quando ainda estávamos em minha casa, você deu-me a impressão de me querer ouvir, fazendo pelo menos um esforço para tentar compreender. Em vez disso, tudo o que você fez foi fechar-se numa concha, falando comigo desabridamente de tantos em tantos quilômetros. Vou repetir-lhe pela última vez que não fui eu a causa da sua prisão. Nem sequer sabia que isso tinha acontecido até ter lido a notícia nos jornais. Imagino que a responsabilidade caiba à Irmandade, o que francamente me enoja. Eu filiei-me na organização em virtude da dedicação que mostra para com os atos de misericórdia. Agora venho a descobrir que o movimento se encontra envolvido em crimes inconfessáveis... cometidos contra si, contra o Ben e só Deus sabe contra mais quem. Se eu tivesse tido conhecimento antecipadamente, jamais teria permitido que qualquer dessas ocorrências sucedessem. Não lhe parece que eu confessei tudo ao Ben?

Christine fez uma pausa à espera de resposta. mas David ficou calado.

- Pensei que você talvez estivesse em condições de poder ajudar-me a clarificar todo este assunto - continuou Christine -, mas estou a chegar à conclusão de que isso foi uma tolice da minha parte. Você tem todo o direito de se sentir encolerizado. Assiste-lhe todo o direito de me odiar. Tenciono regressar à minha casa. - Voltou-se para o volante e ligou a ignição.

- Por favor, espere um pouco. Eu... eu lamento muito... -

O seu discurso era entrecortado e proferido numa voz pastosa. - Tenho estado a dar

ouvidos à minha própria amargura e cólera, tentando compreender qual a origem destes sentimentos. Pensei que eram as dores que sinto a falarem, a frustração ou até mesmo o receio, mas comecei a entender-me melhor. Acontece que eu simpatizei consigo... talvez mesmo mais do que aquilo que permito a mim próprio aceitar. É esse aspecto que está a impedir-me de crer que você pudesse estar envolvida neste assunto. Agora diz-me que fazia parte deste imbróglio. No entanto, pede-me que acredite que não estava a par de tudo aquilo que a sua Irmandade era capaz de fazer. Pois bem, eu desejo acreditar nas suas palavras. De verdade que sim. Mas acontece que... - David desistiu de procurar palavras. Até que ponto é que tudo o que ela lhe contara havia ficado registrado na sua mente? - Veja bem - continuou ele ao fim de algum tempo -, eu sinto-me absolutamente exausto. Estou com grandes dificuldades em apreender o que quer que seja. Por favor, sugiro que declaremos tréguas por esta noite, preocupando-nos apenas em chegar à casa do Rosetti. Amanhã de manhã veremos em que ficamos.

- Muito bem, declaremos tréguas - concordou Christine com um acenar de cabeça seguido de um suspiro. Com alguma relutância estendeu a mão a David. Ele apertou-a, primeiro com uma mão e depois tomando-a em ambas. O calor que sentia ao tocar na pele dela só contribuiu para aumentar a confusão que se instalara na sua mente. Por que razão é que teria de ter sido assim?

Aquela questão ficou a pairar-lhe nos pensamentos, qual ladainha, repetindo-se incessantemente, fazendo com que as pálpebras lhe pesassem e acalmando o turbilhão que sentia no seu íntimo. Ouviu a engrenagem do motor que começara a funcionar, sentindo o Mustang a guinar para a estrada, no preciso momento em que cedeu perante a exaustão que se apoderara de si.

- David? Peço desculpa... mas tem de acordar. - Christine afastou o cobertor do rosto dele, esperando que ele abrisse os olhos a custo. - Está a sentir-se melhor?

- Somente se existirem graus de falecimento - tartamudeou ele. Puxou o cobertor para cima das coxas, perscrutando através do pára-brisas. Encontravam-se estacionados na berma de uma estrada escura como breu. - Onde é que estamos?

- Estamos na região dos perdidos - respondeu Christine de uma maneira casual. O seu sentido de humor, inesperado, quase passou despercebido a David.

Este olhou para ela durante breves instantes, antes de recomeçar a falar, o que fez a gaguejar.

- Mas... mas nós não íamos para... Acho que deveríamos entrar na próxima à direita ou pelo menos à esquerda, a seguir.

- Pelo menos... - Ambos desataram a rir.

- Que horas são?

- Duas horas. Passam alguns minutos. De acordo com o mapa, nós nos encontrávamos no sítio onde supostamente deveríamos estar, mas de repente, há cerca de quinze ou vinte minutos, os marcos da estrada desapareceram por completo. - Com aquelas palavras, Christine entregou-lhe o mapa que Joey fizera.

David abriu a janela do seu lado, respirando profundamente. O ar, que ficara limpo após quatro dias de chuva ininterrupta, era fresco e doce; a atmosfera estava impregnada das fragrâncias do Outono. As brumas quase imperceptíveis formavam um manto baixo acima da estrada. Ao cabo de algumas golfadas de ar, David conseguia sentir o sabor salino impregnado nas gotículas. Foi então que começou a ouvir o ruído que vinha do mar, como se fosse o barulho surdo de uma composição ferroviária que não tivesse fim, atravessando os bosques, surgindo à direita de ambos.

- Já passamos por Gloucester? - perguntou ele.

- Sim, precisamente antes de me ter perdido.

- Fez lindamente, Christine - retorquiu David com um sorriso - O oceano fica mais além, por detrás do arvoredo. Tenho a impressão que nos encontramos bastante acima dele. Aposto um devil dog em como nos encontramos próximos deste lugar que o Joey assinalou como sendo “os penhascos”.

- Aposta o quê? - perguntou Christine.

- Um... devil dog. Bem vê, eu... não tem importância. Amanhã explico-lhe o significado desta expressão. Isto é, assumindo que a minha mente não está demasiado toldada para decifrar o que este mapa nos diz, e caso não existam outras estradas entre nós e o oceano, devemos estar próximos do entroncamento que nos levará a Rocky Point. Por mim, voto que continuemos em frente.

Christine manobrou o Mustang de regresso à estrada envolta numa escuridão cerrada.

Depois de percorridos quatrocentos metros, o pavimento elevava-se abruptamente para a direita. Momentos mais tarde, saíram do bosque. A panorâmica abaixo deles era de cortar a respiração. A encosta íngreme, pontilhada por árvores e penedos, descia a pique ao longo de algumas centenas de metros, antes de dar lugar a um Atlântico negro de azeviche. Acima de ambos, abrira-se um espaço de grandes dimensões entre o manto de nuvens, revelando várias estrelas em redor da forma branca em cimitarra de uma lua de tonalidade cerácea. Christine abeirou-se da berma do caminho, desligando o motor da viatura.

- Ainda que não fizéssemos a mínima idéia do lugar onde nos encontramos, isso não

significa que estivéssemos perdidos - disse David com suavidade. - Está a ver aquela massa escura do outro lado da enseada? Estou em crer que aquilo é Rocky Point.

Christine não lhe deu réplica. Afastou-se do carro, aproximou-se da extremidade da

escarpa. Permaneceu naquele lugar durante vários minutos, qual estátua de ébano

recortada contra o firmamento de um azul-enegrecido. Quando regressou ao automóvel as lágrimas brilhavam nos seus olhos. O resto da viagem foi feito em silêncio.

Aquele pequeno esconderijo, expressão com que Joey o designara, era esplêndido: uma cabana hexagonal construída de madeira de sequóia e vidro, que se erguia acima da extremidade da língua de terra.

- David, este lugar é uma verdadeira maravilha - comentou Christine.

- Sugiro que vá à frente e abra a porta de casa - disse David. - Eu não demoro muito.

- Precisa de ajuda?

David negou com um abanar de cabeça, mas então apercebeu-se de que não tinha a certeza de poder andar sozinho. Com dificuldade, saiu do automóvel e apoiou-se nas muletas. Imediatamente, as náuseas e as tonturas apoderaram-se da sua cabeça. Foi com esforço que se encaminhou para o fundo do pequeno lanço de degraus que davam acesso à porta da frente. Durante muitas horas, a energia feita de tensão e de nervosismo havia-o ajudado a ultrapassar as dores e os efeitos da pós -hipotermia que sofrera. Naquele momento tinha a impressão de que dentro de si não restava nada. Agarrou-se ao corrimão; contudo, desequilibrou-se e caiu, desamparado. Poucos segundos depois, já Christine se encontrava junto dele, dando-lhe apoio e conduzindo-o para o interior da casa.

As enormes janelas panorâmicas e os tetos elevados, com as suas vigas à mostra, pouco mais eram do que uma mancha nublada, meros contornos em rodopio enquanto ela o ajudava a passar em frente da espaçosa lareira de pedras, encontradas nas proximidades, levando-o para o quarto de cama. Quando o ajudava a deitar-se, o telefone começou a tocar.

- Vá atender, eu fico bem - disse ele, cerrando os olhos. - Muito provavelmente é o Joey.

Deu conta de Christine sair do quarto e, durante vários minutos, lutou contra a escuridão que começara a instalar-se dentro de si, ficando a aguardar. Quando ela regressou para junto dele estava prestes a perder aquela luta.

- David, ainda está acordado? - A resposta limitou-se a um acenar de cabeça. - Tinha razão. Foi o Joey quem telefonou. Queria ter a certeza de que tínhamos chegado bem. Por favor, acene caso esteja a compreender o que eu lhe digo. De acordo? Ótimo. Ele tomou a iniciativa de telefonar a alguns amigos que tem nas forças policiais. David, ninguém tem qualquer informação quanto ao fato de o Leonard Vincent ter sido detido esta noite. Toda a gente em Boston anda à sua procura, mas o Vincent deve ter conseguido fugir do hospital, antes de alguém ter dado pela sua presença. O Joey disse que continuaria vigilante e que nos telefonaria mais tarde ainda hoje, ou no sábado de manhã. Enquanto nos mantivermos por aqui, estaremos em segurança, mas advertiu que é necessário termos muito cuidado caso decidamos regressar à cidade. Está a perceber, David?

Desta vez ele não deu qualquer sinal de a ter ouvido.

Horas mais tarde, David pestanejou, despertando de um sono pesado em que os seus pensamentos ainda estavam toldados.

Encontrava-se despido e entre os lençóis da cama, com o tornozelo lesionado apoiado em cima de almofadas. Ao lado do pé, tinha um saco de plástico cheio de água - o que restava de um saco de gelo improvisado.

Soergueu-se apoiado sobre um cotovelo e olhou através das janelas rasgadas a toda a altura, do chão ao teto. Naquele momento, avistava todo um mar de estrelas múltiplas, que cintilavam num firmamento noturno sem qualquer traço de neblina.

Ouviu um grito que viera do exterior do quarto. David agarrou nas suas muletas e, a

coxear, dirigiu-se para o local de onde surgira o grito. Christine dormia no sofá da sala de estar. Voltou a gritar, mas desta feita numa voz mais baixa. David aproximou-se dela com a intenção de a despertar, mas deteve-se. Poderia acordá-la por um minuto ou dez, talvez lhe fosse possível mantê-la acordada durante uma hora, mas isso não faria a mínima diferença. Ele conhecia bem a persistência implacável dos pesadelos.

 

O frigir do toucinho fumado, acompanhado do aroma que vinha da frigideira, induziu

David a despertar de um sono livre de sonhos, mantendo os seus primeiros pensamentos da manhã afastados de todo o horror da noite anterior.

A luz solar, isolada da brisa que soprava do oceano pelas janelas panorâmicas de parede a parede, banhava-o num calor quase desconfortável. O Sol! David abriu os olhos, semicerrou-os e fitou toda aquela luminosidade. Ao longo de quase uma semana, o mundo fora de um tom pardacento, monótono e úmido. Agora tinha a impressão de poder saborear o céu de um azul-esbranquiçado.

Sentia o antebraço a latejar por baixo das ligaduras volumosas que Terry lhe colocara, embora o desconforto não fosse insuportável. Sentou-se mantendo as pernas suspensas sobre a beira da cama. De fato, apercebeu-se ele, as dores permitiam-lhe sentir um estranho conforto que o tranqüilizava - o que talvez se traduzisse na afirmação de que, uma vez que tinha dores, e dado que recuperara a faculdade de sentir, deveria continuar vivo. Aquele raciocínio fez com que lhe assomasse aos lábios um sorriso fugaz. Quantas vezes é que ele teria encontrado doentes a quem as dores que sentiam parecia agradarem? Da próxima vez que isso voltasse a suceder, ele haveria de ser mais compreensivo para com eles.

Ouviu o ruído dos movimentos de Christine atarefada na cozinha e, inesperadamente, começou a ouvir o som do rádio. Música clássica! Telemann? Concluiu que sim, sem dúvida alguma. Apostou uma pizza jumbo, e ainda seis horas despreocupadas e ininterruptas em frente do televisor, em como se tratava de Telemann. Ficou a ouvir durante algum tempo, com os pensamentos concentrados na mulher e na história fantástica que ela lhe havia contado. Na noite anterior, mostrara-se furioso. Tão encolerizado e frustrado como não tinha memória de alguma vez se ter sentido. Todavia, agora, com a música, aliada à luminosidade solar, compreendeu que sob muitos aspectos ela estava tão inocente, tendo sido apanhada inadvertidamente naquele pesadelo, quanto ele próprio. Era verdade que fora ela quem ministrara a morfina a Charlotte Thomas, embora fosse absolutamente impossível que pudesse ter previsto os acontecimentos que se seguiram à sua ação. Era necessário que David acreditasse naquilo. Em nome da sua própria sanidade mental, era forçoso que acreditasse.

Fechou os olhos, saboreando os poucos segundos finais da promessa de um novo dia. Em seguida, agarrou numa das muletas e num passo vacilante saiu do quarto.

A cozinha, separada da área de lazer e das refeições por uma bancada de madeira ao estilo da dos talhantes, situava-se no lado ocidental da casa em forma de hexágono.

Christine encontrava-se junto do lava-louças, batendo manualmente a massa que se

destinava às panquecas. A visão dela desencadeou uma onda de calor que percorreu o corpo de David. Nenhum sol da tarde poderia ter iluminado um espaço como ela o fazia naquele momento. Os seus cabelos, de um tom de areia, presos numa trança solta, oscilavam até meio das costas. Usava uma camisa de homem de um azul-claro, cujas pontas da fralda apertara à cintura, o que lhe acentuava as formas arredondadas dos seios, expondo um pedaço de pele de um tom de mel, acima da cintura. Mais abaixo, as calças de ganga azul desbotadas colavam-se às nádegas e às ancas.

Enquanto a observava, David começou a sentir um martelar dentro do seu peito, exercendo toda a sua força de vontade para o obrigar a parar.

- Bom dia - saudou ele com uma expressão casual, perguntando a si mesmo se a sua aparência seria mais tranqüila do que aquilo que na realidade sentia.

- Não consegui decidir se deveria acordá-lo ou esperar, correndo o risco de arruinar o pequeno-almoço - replicou ela voltando-se para David -, portanto, optei pela maneira cobarde de ligar o rádio. Dormiu o suficiente?

David tentou perscrutar a fisionomia de Christine. Estaria ela a pedir-lhe que dessem

continuidade às tréguas, o que lhe permitiria abordar o assunto quando lhe fosse mais conveniente, e à sua própria maneira?

- Dormi muito bem - retorquiu David. - Obrigado por me ter deitado.

- Fiquei com algum receio de que você ficasse aborrecido por eu ter feito isso. - Christine pousou o batedor e aproximou-se dele.

- Acontece que eu não estava consciente quando você me deitou - acrescentou ele. O riso dela deu-lhe a deixa. Optaria por manter a situação desanuviada até que Christine se encontrasse preparada para falar. - Posso ajudá-la a fazer alguma coisa? Devo dizer-lhe que sou um cozinheiro magnífico... para preparar qualquer gênero de refeição, cujo ingrediente principal seja a água.

- Estou em crer que tenho tudo sob controlo. Mas podia acender a lareira. Neste lado da casa está um pouco frio. A madeira já está na lareira. Esta tarde, caso lhe apeteça, ficará encarregue de preparar o almoço.

- Parece-me justo - concordou David encaminhando-se para a lareira.

Quando Christine retomou a sua posição junto do lava-louças, ouviu-o a resmungar.

- Talvez faça uma sopinha e um purê de batata instantâneos... ou talvez umas fatias de carne de conserva num molho branco feito com vinho... - Em silêncio, Christine agradeceu-lhe. Ao semblante assomou-lhe um sorriso taciturno, quando lhe ocorreu a avaliação que Dotty Dalrymple fizera dele: "Um degenerado", fora o epíteto com que a mulher o tinha classificado. "E, levando em consideração essa avaliação, o que é que nós seremos?", interrogou-se Christine. "Nós que chamamos a nós próprios a responsabilidade de sopesar o valor da vida humana. Nós que acreditamos tão inexoravelmente no nosso compromisso em pôr-lhe fim, sempre que tal se nos afigure apropriado às circunstâncias. Em que é que isso nos torna?”

Olhou de relance para a sala de estar. David encontrava-se sentado junto de um fogo ainda pouco intenso, tendo apoiado o tornozelo inchado em cima de uma almofada.

- Mostre-me como é que isso se faz, David - murmurou ela para consigo própria. -

Explique-me como é que é possível sobreviver ao inferno por que você passou, e para o qual eu dei a minha contribuição. Eu sei que é pedir demasiado, mas, por favor... peço-lhe encarecidamente que tente.

O jipe de Joey Rosetti era antigo no espírito e em carroçaria. Ainda que o não fosse nos anos que tinha. Sentado no lugar do passageiro da frente, David observava Christine, sem ocultar a admiração que sentia, enquanto ela manobrava a besta resfolegante, contornando as pedras e os charcos de lama existentes ao longo de todo o caminho em declive até ao oceano.

O diálogo travado entre os dois durante toda a manhã primara pela trivialidade, tendo ambos feito somente algumas referências muito vagas aos horrores que os haviam reunido. Quando Christine sugeriu que fizessem um piquenique à beira de água, David começou a levantar objeções, tencionando insistir em que ambos enfrentassem as questões com que inevitavelmente teriam de se haver. Contudo, sem muitas demoras, reconheceu que também desejava que aquele intervalo de tranqüilidade continuasse.

Depois do almoço, ambos teriam tempo mais do que suficiente para abordar o assunto.

O caminho de pedras e terra batida por que haviam optado tinha um traçado serpenteante, que seguia através de uma floresta emaranhada, própria de um conto de fadas, onde abundavam as ameixeiras silvestres, roseiras selvagens e pinheiros altos.

Depois de terem percorrido várias centenas de metros, o traçado piorava bastante,

sucedendo-se uma série de curvas acentuadamente fechadas, de cortar a respiração.

- Talvez não fosse má idéia voltar atrás e tentarmos descobrir um caminho melhor -

sugeriu David.

- Talvez sim... - replicou Christine, ao mesmo tempo que o jipe dava um solavanco ao passar por um buraco pelo qual David tivera a certeza de ser impossível passar. - Mas aposto consigo um... um bolo de frutas em como conseguiremos chegar ao mar por este caminho.

Momentos mais tarde, a vegetação cerrada abria-se em ambas as bermas; após uma última curva fechada, a vereda dava lugar a uma passagem oval e arenosa, que mal tinha a extensão de trinta metros, formando um medalhão perfeito de um branco-dourado, parecendo descansar no seio do Atlântico. Christine fez uma paragem que envolveu a viatura numa nuvem de poeira, depois de ter derrapado. O ruído do motor enfraqueceu. Ambos se deixaram ficar sentados, absorvendo as cores no meio do silêncio que se fez.

- Um tostão?... - perguntou David quebrando a quietude.

- Pelos meus pensamentos?

- Hum... hum.

- E ainda há de querer troco! - acrescentou Christine.

- Experimente - incitou David.

- Pois bem, só estava a pensar em qual seria o melhor lugar onde estender a manta, para nos banquetearmos com o nosso piquenique.

- Só isso? - perguntou David.

- Mais nada. - Christine retirou uma manta do jipe e a cesta onde trouxera a refeição;

servindo-se das biqueiras descalçou os sapatos e saltou para a areia. - Depois de

comermos poderemos conversar, está de acordo? - perguntou ela. David acenou

afirmativamente. - Então, vem ou não vem?

- Dentro de um minuto. Vá você à frente.

A preocupação ensombrou o semblante de Christine, para logo desaparecer. Soltando um grito que manifestava a alegria que sentia, começou a correr através do areal da praia.

David recostou-se mais para trás, tendo a percepção do desconforto opressivo e indefinível que sentia na região superior do peito. Nos minutos que se seguiram, aquela sensação acentuou-se ainda mais. Esforçou-se por compreendê-la, o que lhe permitiria classificá-la. Gradualmente, começou a ficar com uma noção mais clara. Estava a ser atraído para o mundo de Christine, arrastado para a sua vida. Quase com a passagem de cada minuto, o seu interesse por ela crescia. Sentia-se interessado pela mulher cujas ações, aliadas a uma confiança exagerada em si própria, haviam desencadeado o seu pesadelo e culminado, fosse como fosse, na morte do seu amigo. O seu interesse fora despertado por uma mulher que confessara ter cometido um assassínio, por uma mulher cuja situação era... desesperada.

"Isto é uma autêntica loucura", pensou ele. "Absolutamente irracional. Esta mulher não vai a parte alguma - exceto, muito plausivelmente, para a cadeia. Neste momento não pode dizer que tenha uma carreira. Não tem futuro nenhum para lá do turbilhão da iminência de uma prisão, ao que se seguirá um julgamento. Por seu lado, Lauren possuía tanto: talento, beleza, orientação de vida e confiança em si própria. O que é que a Christine Beall tem?”

- David?... - Sobressaltou-se ao ouvir a voz da mulher que lhe preenchia os pensamentos. Por breves instantes, não foi capaz de a localizar. Mas então, avistou-a através do pára-brisas: apoiara os cotovelos em cima do capô do jipe, examinando- atentamente. - Está a sentir-se bem?

- Hem? Oh, certamente que sim; sinto-me lindamente - mentiu ele.

- Esplêndido. Não fui capaz de destrinçar se estava em transe, ou apenas amuado, por eu me ter esquecido de lhe permitir que preparasse o almoço. Quando você estiver pronto, a refeição também estará.

David esboçou um sorriso pouco convincente, descendo do veículo e começando a

percorrer o areal a coxear, até ao recanto parcialmente protegido pela sombra onde ela estendera a manta que haviam trazido.

O silêncio instalou-se entre ambos, enquanto escolhiam entre a amálgama de comestíveis que Christine descobrira na casa: sardinhas em lata, o miolo de alcachofras de conserva, biscoitos de farinha de trigo, ovos cozidos, azeitonas pretas, queijo e pão doce português.

- Estava delicioso - disse David finalmente. - Quer tirar à sorte quem é que fica com o direito à última alcachofra?

- Não, obrigada. Estou cheia. Coma-a você. - Christine fez uma pausa, após o que recomeçou a falar quase sem alterar a entoação que dera à sua voz. - A Charlotte não estava a morrer de cancro, não é verdade? - Era mais uma declaração do que uma pergunta.

"Lá se vai o ambiente de romance", pensou David. Com uma atitude deliberada que esperava o ajudasse a formular uma resposta, colocou o garfo dentro de um boião vazio e voltou-se ficando de frente para ela.

- Está a referir-se aos resultados da autópsia - disse ele. Christine engoliu em seco, acenando que sim. - Pois bem, a resposta mais simples à sua pergunta é que provavelmente não era esse o caso. Durante a autópsia não foram encontrados sinais evidentes de cancro. Certamente que poderia ter voltado a surgir ao cabo de seis meses ou um ano, até mesmo dentro de dois. Mas, por agora, esta é a resposta que tenho para lhe dar.

Christine fez menção de iniciar a sua réplica, mas mordeu o lábio inferior e desviou o

olhar. Sem o mais pequeno aviso, do que até ele próprio não se apercebeu, David começou a falar-lhe desabridamente.

- Raios partam isto, Christine, não faça isso a si própria. Caso se proponha encontrar uma solução para todo este imbróglio... o que me parece ser a medida mais acertada, então faça-o tendo em vista todas as perspectivas e não apenas aquelas que mais acentuam a sua culpabilidade. Ou optamos por examinar as coisas atentamente, a partir de todos os ângulos, ou, caso contrário, será preferível regressarmos às conversas sobre banalidades. Está a compreender?

Christine indicou que sim, acenando com a cabeça. Os seus olhos vitrificados mostravam uma expressão vazia.

- Eu... eu sinto-me tão diabolicamente perdida - disse ela numa voz enrouquecida. - Tão assustada, tão... tão desesperada.

Uma vez mais, aquela palavra. Desta feita, foi David quem desviou o olhar. Não era capaz de se libertar de um pressentimento que lhe dizia que ela tinha razão. O que é que o destino tinha de reserva para ela? Então, David pensou em Lauren. "Para melhor ou pelo melhor." Fora dessa forma que David descrevera o compromisso que ela tivera para com ele. Agora cabia-lhe a vez de tomar uma decisão.

Nesse preciso momento, sentiu uma centelha renovada de cólera. Christine Beall fizera as suas próprias escolhas e, em conseqüência dos seus atos, existiam algumas pessoas que haviam saído magoadas... e cujo destino fora a morte. Agora sentia-se indefesa e desesperada. Não estaria ela a ter exatamente aquilo que merecia? Aquilo que merecia. David abanou a cabeça. Naquele momento, quantos dos seus colegas é que pensariam que o fato de ele ter sido preso, ao que se seguira a suspensão do quadro clínico do Hospital Médicos de Boston, seria aquilo que ele merecia. Assistir-lhe-ia um direito maior de fazer um juízo de valor do que a eles?

Inclinou-se para a frente e agarrou numa das mãos de Christine. Os dedos dela cerraram-se à volta dos seus. Ele conseguia sentir o desespero que a assolava.

Logo de imediato, David cruzou os braços, adotando uma postura rígida de profissionalismo.

- Com que fundamento é que você se acha no direito de fazer esse diagnóstico? - perguntou ele com uma expressão de altivez.

- O diagnóstico?

- Do desespero. Aqui se encontra você na presença daquele que é, talvez, o maior perito mundial sobre esse assunto, e tem a ousadia de se diagnosticar a si própria, sem lhe pedir uma consulta? Isso é absolutamente inaceitável. Vou assumir a responsabilidade deste caso. - O vazio que se adivinhava nos olhos de Christine começou a dissipar-se. - É necessário que façamos uma espécie de inventário - acrescentou David. - Em primeiro lugar, devemos considerar os aspectos básicos. Estou a ver dez dedos das mãos e dos pés, assim como duas de todas as partes que, supostamente, deverão ser duas. As partes encontram-se todas em bom funcionamento, miss? - Christine susteve uma risada e acenou que sim. - Até aqui, a situação não se me afigura nada desesperada. Por acaso está familiarizada com o estudo clássico de Zurique sobre essa matéria? Os cientistas aferiram a situação de desespero numa escala de zero a dez, numa amostragem que efetuaram num universo de um milhar de indivíduos, em que a metade estava viva e a outra metade morta. Foi considerado um índice absoluto de desespero numa escala de dez. É capaz de adivinhar o desenrolar dessa mesma pesquisa? - Naquele momento, Christine ria-se a bandeiras despregadas. - Não consegue adivinhar? Muito bem, vou dizer-lhe. Obteve-se uma diferença acentuada entre os dois grupos. De fato, os que se inseriam no grupo dos falecidos, invariavelmente, enquadravam-se na escala dez, o outro inseriu-se sistematicamente na zero. - David coçou o queixo e olhou-a de alto a baixo. - Lamento muito, miss, de verdade que sim, mas receio muito que apesar do quanto deseje efetivamente sentir-se desesperada, a realidade é que esse não é o caso. Estou-lhe muito agradecido por ter vindo. Enviar-lhe-ei a fatura dos meus honorários pelo correio. O próximo?

- Muito obrigada - agradeceu ela, colocando os braços à volta do pescoço de David. Os seus lábios roçaram-lhe pela orelha enquanto falava. - Muito agradecida pela consulta. - Recuou a cabeça para poder olhá-lo melhor. O beijo que se seguiu limitou-se a acontecer... um contacto físico terno e reconfortante que nenhum deles desejava que terminasse ou que fosse diferente. Passou um minuto, ao que se seguiu um outro.

Finalmente Christine afastou-se dele.

- Correu tudo muito mal - acrescentou ela em voz baixa. - Parecia ser a medida mais

adequada, para logo tudo passar a ser... uma loucura. Porquê, David? Diga-me uma

coisa. Como diabo é que eu posso voltar a confiar nos meus sentimentos, quando uma coisa em que eu tanto acreditava se transformou em algo que resultou em tanta

amargura? - Sentada na areia, Christine vergou os ombros, pondo-se a olhar para o

Atlântico.

- Você quer saber por que razão? - perguntou ele, sentando-se junto dela. - Porque você não é perfeita, é esse o motivo. Porque não existe ninguém que seja perfeito; o porquê é esse. Porque todas as equações que envolvem seres humanos são irresolúveis ou, no mínimo dos mínimos, nunca são resolúveis da mesma maneira em duas situações diferentes. Eu acredito tanto na eutanásia quanto você própria. Sempre acreditei. No que me diz respeito, é uma concepção absolutamente correta. A diferença é que, não sei bem como, tenho vindo a compreender que, embora seja uma idéia certa em absoluto, pura e simplesmente, não existe uma maneira de a pôr em prática da forma mais correta. Mais cedo ou mais tarde, o elemento humano, o fator X, imprevisível e incontrolável, mostra a sua cabeça repugnante e é então que toda a situação se desmorona.

- E as pessoas inocentes morrem - retorquiu Christine.

- Chris, com referência àquilo que eu penso, sempre que o assunto é a morte, todos nós estamos inocentes. Aí é que reside o problema. Houve alguém da sua Irmandade, possivelmente essa mulher, a Peggy, que se assenhoreou abusivamente das convicções honestas e generosas de algumas das enfermeiras maravilhosamente idealistas, tendo-as adulterado. Uma vez mais, encontramo-nos em presença do elemento humano. Dinheiro, ganância, luxúria, fanatismo. Quem é que poderá saber o que é que toca nessa corda, tão especial e que se mantém oculta no âmago de qualquer pessoa, fazendo-a perder toda a perspectiva das coisas? Você esteve prestes a expor A Irmandade, ou pelo menos foi o que alguém concluiu. Essa corda é tocada, o que dá origem a que sejam tomadas decisões

irracionais e de demência. Existe um enigma que ouvi em tempos - continuou David. - Pergunta-se a uma pessoa o que faria, se lhe apresentassem um recém-nascido saudável e lhe prometessem que, caso aniquilasse essa criança, poderia curar de imediato todos os males que afligem a espécie humana. Houve alguém que no seio da sua Irmandade respondeu a esse enigma por sua alta recreação. O Ben, você, eu... nenhum de nós é tão importante para essa pessoa, ou pessoas, quanto os seus ideais. Temos, pois, o caso do indivíduo que é sacrificado em nome do bem maior. É uma coisa que acontece constantemente.

- Mas isso é horrível - atalhou Christine.

- Talvez sim. Mas mais importante é o fato de ser uma característica humana. Você poderá arcar com a responsabilidade pelo sofrimento que me causou, ou até mesmo pela morte do Ben, caso seja essa a sua decisão. Contudo, isso significa ser demasiado dura para consigo própria, apenas porque se limitou a pôr em prática aquilo em que acredita, assim como por ter confiado em que outros seres humanos seriam tão constantes, e tão puros, nas suas convicções como você própria o era. Não há dúvida que você tem de tomar algumas decisões, Chris. Imensas e devastadoras, decisões essas que são horríveis. Se quiser, eu poderei dar-lhe a minha ajuda. Mas não espere que eu me mantenha ao seu lado, enquanto seguro nos fósforos e você se rega a si própria com gasolina. Eu... eu interesso-me em demasia para poder fazer uma coisa dessas.

Com lentidão, Christine voltou-se para David. Os seus olhos prenderam-se nele, tal como havia acontecido nos primeiros momentos em que estiveram juntos. As mãos de Christine acariciaram as faces de David. O beijo que trocaram, desta vez ardente, profundo e doce, levou-os para a areia. Momento a momento, enquanto se despiam um ao outro, tudo o que se encontrava para além daquela praia desapareceu por completo. David beijou-lhe os olhos e depois enterrou os seus lábios na suave concavidade do pescoço de Christine.

As mãos dela percorriam todo o corpo dele, extraindo uma nova excitação para si própria, ao mesmo tempo que a originava em David.

Com cada beijo, com cada carícia, o sentimento de solidão e de receio, alojado no interior de ambos, ia-se atenuando. Com cada nova descoberta, a sensação de desespero continuava a afastar-se tanto de um como de outro.

O rosto de Christine mostrava uma radiância dourada sob o sol daquele fim de tarde,

enquanto ela se colocava em cima de David. Ele acariciou os seus seios firmes, primeiro com as mãos e depois com a língua.

Ela sorria enquanto estendia a mão para baixo, a fim de o guiar para dentro de si.

- Bárbara, pára de me aborrecer e dá-me os nomes. Eu própria encarregar-me-ei deste assunto.

- Mas...

- Os nomes, por favor - insistiu Margaret Armstrong proferindo as palavras com grande rispidez; formou uma bola com o pedaço de tecido que tinha na mão fechada, obrigando-se a relaxar.

Bárbara Littlejohn hesitou. Sentia a cabeça a latejar, o que começara durante o vôo que tivera início em Los Angeles e que entretanto se intensificara. Finalmente abriu um dossiê de manila, entregando uma carta de cada vez à cardiologista, passando-as por cima da mesa.

- Ruth Serafini - passou ela a explicar. - Demitiu-se tanto do conselho de diretoras como do movimento. Alega que compreende que tu estás a fazer aquilo que consideras ser o mais acertado; todavia, não pode, em boa consciência, dar-te o seu apoio.

- Nem sequer me enviou uma cópia - comentou Peggy entre dentes, examinando a carta, após o que a colocou de lado.

- Susan Berger - continuou Bárbara. - Essencialmente diz a mesma coisa que a Ruth, mas acrescenta ainda que, até estas questões estarem resolvidas, tenciona suspender todas as operações d'A Irmandade na região norte da Califórnia. Não dá a sua aprovação a novos casos, recomendando também que todas as contribuições monetárias a favor da Fundação Clinton sejam interrompidas.

Peggy colocou a carta em cima da outra sem sequer a ler.

- Tenho a certeza que a Susan ouvirá a voz da razão - retrucou ela num timbre de voz neutro, sopesando a possibilidade de adulterar a meia dúzia de fitas magnéticas de Susan que tinha fechadas num cofre na cave de sua casa. Na hipótese de não ser feita qualquer referência à Irmandade da Vida, aquelas gravações constituiriam uma confissão de provocar calafrios. Depois de ter meditado um pouco sobre o assunto, acrescentou: - Ela é uma mulher excessivamente ambiciosa para fazer ouvidos moucos à razão. - Distraidamente, Peggy desdobrou o bocado de tecido, fazendo-o passar por entre a ponta dos dedos.

Bárbara Littlejohn, que apresentava um aspecto contraído onde a palidez se acentuara, não obstante os cosméticos cuidadosamente aplicados, passou à terceira carta.

- Esta é a mais perturbadora de todas as outras - continuou ela. - Foi enviada por Sara.

- Raios! - Aquela exclamação foi mais pensada do que dita.

Ela diz que está disposta a reconsiderar a sua demissão, caso nós conduzamos uma investigação minuciosa relativa ao envolvimento d'A Irmandade, ou de qualquer dos seus membros, na morte de John Chapman e do senador Cormier... Estas duas ocorrências tiveram lugar no hospital, Peggy, mas estou em crer que não tivemos nada a ver com...

- Claro que não - atalhou Peggy de imediato. - O John Chapman era um amigo da Sara. Não admira que ela esteja preocupada. Quanto ao senador Cormier, ele foi autopsiado, na seqüência do que o seu caso foi ampla e pormenorizadamente discutido na conferência dos índices de morte. Insisti em estar presente nessa reunião. O homem sofria de uma doença agravada das artérias coronárias, pelo que, muito simplesmente, foi acometido por um ataque cardíaco mortal durante a cirurgia. E quanto a esse assunto não há mais nada a acrescentar.

- Congratulo-me com isso. - No rosto e na voz de Bárbara detectava-se um alívio genuíno.

- Peggy, não sei bem o que é que eu teria feito se tu não te tivesses mostrado disposta a discutir esta questão. Tive a impressão de que tudo estava prestes a desmoronar-se.

- Não digas disparates. Tu tens vindo a fazer um trabalho excelente. Não só a nossa

Irmandade sobrevive ao longo de quarenta anos, mas também se tem desenvolvido. Uma situação como este assunto do Shelton poderá afetar o espírito de solidariedade que existe entre nós; no entanto, não conseguirá aniquilá-lo. Não te preocupes e deixa essas cartas comigo. Lá para o fim do dia já eu terei todo este assunto sob controlo.

- Obrigada - agradeceu Bárbara, agarrando na mão de Peggy - Muito obrigada. – Dirigiu-se para a porta sem que a outra a acompanhasse.

A almofada, minha querida. Só tens de a colocar em cima do meu rosto e fazeres tanta força quanta te seja possível. Não será preciso muito tempo. Eles estão a tentar destruir-me, mãezinha. Andam a tentar destruir a nossa Irmandade. Os olhos de Margaret Armstrong tinham-se fechado até mesmo antes de a porta exterior do seu gabinete se ter cerrado, após a saída de Bárbara. A recordação daquele fim de tarde, havia tantos anos, do quarto de hospital, do sofrimento que tinha visto no rosto da mãe... Bruscamente, todos aqueles sentimentos a tocavam muito de perto, o que acontecia uma vez mais.

"Mãezinha, eu. . .”

- Por favor, mamã. Por favor, não me obrigue a fazer isso.

"Eu sinto muito amor por ti, se tu também me amas, não permitirás que eu continue a sofrer desta maneira.”

Peggy Donner sussurrou aquelas palavras vezes sem conta, enquanto Margaret Armstrong a observava e ouvia; o pedaço de tecido andava entre as pontas dos seus dedos sem interrupção.

"Eu amo-a, mãezinha...", tinha dito Peggy enquanto colocara a almofada por cima do

rosto de feições estreitas, fazendo pressão em cima dela com todas as suas forças.

Margaret ficara a observar os movimentos por baixo do lençol, cada vez mais enfraquecidos, até que haviam parado de todo. Tremia, enquanto a rapariga voltava a colocar a almofada no seu lugar, após o que beijou os lábios da mãe morta. Olhou para o bocado de tecido, como se o visse pela primeira vez.

Uma vez mais, aquela situação difícil tinha chegado ao fim. John Dockerty andava impacientemente de um lado para o outro, na sala atulhada das traseiras da farmácia de Marcus Quigg. Mantendo-se afastado, próximo de uma das paredes, Ted Ulansky observava o amigo; as suas faces largas eram uma máscara que não deixava adivinhar qualquer emoção. Havia quase duas horas que interrogavam Quigg implacavelmente, depois de terem descoberto no seu cadastro irregularidades em número suficiente que justificasse, no mínimo dos mínimos, o homem ficar com a licença suspensa, o que o impediria de manter a farmácia aberta. O palpite de Dockerty acertara em cheio. Não tinha havido necessidade de maquinar quaisquer provas que viessem a incriminar o farmacêutico amedrontado. Em apenas umas escassas horas de trabalho na investigação das prescrições que ele satisfizera, e depois de alguns telefonemas para o mesmo número de médicos, haviam conseguido obter o tipo de elementos que lhes permitiriam pôr Quigg de rastos, implorando que chegassem a algum gênero de acordo.

Não obstante aquela expectativa, o homenzinho havia provado ser surpreendentemente resistente... ou estar demasiado assustado.

O detetive bateu com uma pequena pilha de receitas falsificadas contra a palma da mão.

Ele e Ulansky tinham combinado antecipadamente que Dockerty assumiria o papel de duro, o vilão ameaçador, durante o interrogatório. Por seu lado, Ulansky aguardaria até sentir que o grau de tensão era o adequado, após o que acorreria em defesa de Quigg, qual cavaleiro errante.

- Faça-se a sua vontade - resmungou Quigg. Esforçava-se por manter a pouca compostura que ainda lhe restava, fumando cigarro atrás de cigarro e evitando qualquer contacto visual. No entanto, do seu lugar, que lhe proporcionava uma certa vantagem, Ted Ulansky reparou que, pela primeira vez, as mãos de Quigg tremiam. Não seria necessário muito mais tempo para que ele cedesse.

- Eu já lhe expliquei tudo o que tinha a explicar - ripostou Dockerty. - No mínimo, estas prescrições dizem-me que você é um trapaceiro. Na pior das hipóteses, pode ser considerado uma merda de um traficante de drogas, o qual coloca o pão sobre a sua mesa à custa de vender pílulas a menores de idade. Vamos lá a ver, das duas uma: ou você diz aquilo que pretendemos saber, ou seja, quem é que lhe pagou para incriminar o David Shelton, ou tomarei todas as medidas para que a licença de porta aberta de que goza a sua farmácia seja revogada e enfiada pela sua garganta abaixo, como sendo a sua primeira refeição na prisão. Está a perceber?

Quigg mordeu o lábio inferior. Os tremores eram cada vez mais perceptíveis.

Pelo canto do olho, Dockerty viu que Ulansky acenava com a cabeça. Chegara a altura do grande final. O detetive cerrou as mandíbulas e falou através de dentes cerrados.

- Quero que me diga um nome, Quigg, e desejo ouvi-lo imediatamente. Caso contrário, existe uma cela em Walpole que está preparada à sua espera. E, acredite em mim, um homem engraçadinho e pequeno como você passará a ser carne para canhão para os tipos que lá estão encarcerados. Passada uma semana, o seu olho do cu estará tão grande por ter sido fodido que, de cada vez que der um passo, cagará nas calças. - Naquele momento a voz do detetive era ribombante. - Quigg, o nome... eu quero esse nome!

- Chega! - Ulansky proferiu a palavra como se fosse uma chicotada.

O rosto cadavérico de Quigg voltou-se para ele. O investigador da brigada de estupefacientes posicionou-se entre os dois homens, qual árbitro num jogo de pugilismo.

Colocou uma mão no peito de Dockerty, num gesto apaziguador, apenas para a ver afastada de repelão. Por breves instantes, não teve a certeza se o irlandês estaria a fingir aqueles modos desabridos.

- John, acalma-te. Por favor, tem calma. Esse teu mau feitio já te causou problemas suficientes no Ministério do Interior, tendo em vista a situação em que as coisas estão. Portanto, vê lá se fazes um esforço para te controlares.

Com uma expressão de benevolência, Ulansky concentrou a sua atenção em Quigg,

reparando com grande satisfação que as faces do homem tinham readquirido um pouco de cor.

- Marcus, eu só pretendo dar-te uma ajuda, de verdade que sim - continuou ele com uma entoação que instilava confiança em cada uma das palavras que proferia. - Mas é preciso que compreendas aquilo que tens pela frente. Estás aqui a arriscar a tua carreira, a tua liberdade e a tua saúde, e tudo porque te recusas a dizer um nome. Somente um simples nome. Isso é tudo o que o tenente está a pedir-te. Eu sei que te sentes assustado quanto ao que poderá acontecer-te, no caso de nos dizeres esse nome, mas pensa só nas conseqüências que virás a sofrer se te recusares a fazê-lo. Pelo menos, nestas circunstâncias, o detetive pode oferecer-te alguma esperança. Será que o nome que nós pretendemos de ti te poderá oferecer o mesmo?

Ulansky examinou minuciosamente a fisionomia do homem. Detectou temor e incerteza, embora não avistasse traços de derrota, nem tão pouco a capitulação que esperara ver naquela fase do interrogatório. Olhou para Dockerty e sacudiu a cabeça.

- Eu... eu quero falar com o meu advogado - declarou Quigg com firmeza.

Saindo disparado do lugar onde se encontrava, Dockerty atravessou a sala, agarrou no homem pelas lapelas, colocando-o violentamente de pé.

- Não vais ter direito a nada até que me tenhas dado algumas respostas. - Com alguma relutância, soltou o farmacêutico. - Vamos levar-te conosco, Quigg - acrescentou o detetive. - Quero que vejas com os teus próprios olhos como é que é o interior de uma prisão. Nós continuamos a ter assuntos a tratar: tu e eu. Põe-te a mexer, grande estupor, começa a andar à minha frente.

Marcus Quigg sentiu no esterno uma dor que se assemelhava ao golpear de uma faca, pensando fugazmente que tudo estava prestes a terminar ali mesmo. O aneurisma com a espessura de uma hóstia, que substituíra grande parte da massa muscular do seu coração, encontrava-se em expansão. Desde o início do interrogatório que lhes quisera dizer que não era um vigarista. Naquele momento, desejava dizer-lhes que as prescrições falsificadas eram estritamente uma operação que envolvia apenas uns quantos trocados: meros pensos rápidos que tentavam agüentar o seu negócio à beira da falência, o que se devia à sua saúde deteriorada e à sua mulher, a qual vivia no terror de vir a ser deixada sozinha com os filhos por criar. Queria poder dizer-lhes tudo aquilo, mas estava incapaz de o fazer.

Fosse como fosse, que diferença é que isso faria?, perguntou o farmacêutico a si próprio, repetindo a pergunta sucessivas vezes, enquanto Dockerty lhe colocava as algemas à volta dos pulsos, conduzindo-o para fora da farmácia. Por conseguinte, aquele tipo, Shelton, estava metido em dificuldades por causa do que ele tinha feito. Pois bem, ele próprio também se via a braços com alguns problemas. Encontrava-se em grandes apuros. A porra do balão que tinha no peito continuava a expandir-se, e a médica tinha-lhe dito que poderia ser uma questão de um ano, ou mesmo um só mês... ou ainda uma hora. Ela dissera que não havia mais nada que se pudesse fazer por ele. Será que Dockerty compreenderia? Entenderia ele que, depois de toda uma vida passada a esforçar-se por fazer sempre o que estava certo, tudo aquilo que possuía era uma mulher atemorizada, quatro filhos que necessitavam de ser alimentados e uma bola de sangue dentro do peito, a qual corria o risco de explodir em qualquer altura?

Quigg sentia o nó nas suas entranhas, assomando-lhe à garganta o sabor do ácido a fervilhar. Desejava poder dizer-lhes para que depois o deixassem ir para casa, deitar-se na sua própria cama. Mas sabia de antemão o que é que iria suceder. Sabia que o dinheiro deixaria de lhe ser entregue. Também sabia que os milhares de dólares suplementares que lhe haviam sido prometidos, logo que toda aquela trapalhada tivesse terminado, jamais chegariam à sua mão.

Enquanto era empurrado para o assento de trás do automóvel do detetive, em silêncio, Marcus Quigg amaldiçoou a Dra. Margaret Armstrong e toda a desgraça que ela levara à sua vida.

Uma cafeteira de café, um duche a dois, e de súbito o fim de tarde dera lugar a uma noite de uma limpidez de cristal. Um tronco de madeira de vidoeiro, que ardia na lareira, tinha transformado a sala de estar de Joey numa espécie de ventre acolhedor. Estendidos em cima do sofá, Christine e David alternavam alguns diálogos breves, com olhares prolongados ao firmamento de veludo.

- Seda vermelha - disse David, apalpando o roupão que retirara do roupeiro de Rosetti. - Nunca pensei em mim como sendo o tipo de homem que usasse seda, mas o certo é que proporciona uma sensação deveras agradável.

Christine sentou-se a direito e, com a orla do seu roupão, cobriu as coxas.

- David, quero que compreendas todo o significado que este dia teve para mim. - Os olhos dele estreitaram-se. - Tu sabes bem que não planeei as coisas para que acontecessem desta maneira, não sabes? - Ele acenou que sim. Christine apercebeu-se da tensão que se espelhava no rosto de David, assim como da umidade que via nos seus olhos. - De súbito, sinto-me... assim como que egoísta... até mesmo cruel.

- Isso não passa de um disparate - atalhou ele.

- Não, não é. Fui eu quem permitiu que isto sucedesse, sabendo minuto a minuto que estava destinado a não ter continuação.

- Não se pode dizer que tenhas estado exatamente sozinha - replicou David numa voz enrouquecida.

- Não, calculo que não... - A sua voz esmoreceu. - David - continuou Christine pouco

depois -, tenciono regressar à cidade amanhã de manhã.

- Só mais um dia. - A réplica dele foi tão rápida que ambos se aperceberam de que aquele pensamento já se tinha formulado na sua mente.

- Não me parece que essa seja a atitude mais justa... - retorquiu Christine com um abanar de cabeça - quer para ti quer para mim. Eu sei o que é que estás a sentir. Sinto precisamente o mesmo. É um sentimento que não me tem largado ao longo de todo o dia. Os meus pensamentos rodopiam, saindo de fantasias daquilo que eu desejava ter acontecido, para entrarem logo de seguida na realidade daquilo que sei irá suceder. O fato de permanecer aqui... ainda que só por mais um dia, só fará com que nos custe mais quando me for embora. Já te causei sofrimento suficiente.

- Eu não quero que tu partas. - David lutava contra a verdade que existia no que ela dissera. Compreendia que assim era. A despeito disso, foi incapaz de conter a torrente de palavras. - Acontece... acontece que não é seguro. O Joey disse-te isso mesmo ontem à noite. Algures em Boston, o Vincent continua à solta. A sua missão é encontrar-me e, quer aceitemos quer não, também anda à tua procura. No caso de decidirmos regressar, a única alternativa que nos resta é falarmos com o Dockerty. E o que é que lhe diríamos? Ainda não chegou a altura de podermos voltar. Que diabo, Chris, é muito possível que nunca mais possamos regressar a Boston. Podíamos ir para qualquer parte. Neste exato momento. Esta noite mesmo para o Canadá... ou para o México. Eu sei falar um pouco de espanhol. Talvez conseguíssemos abrir uma pequena clínica algures. Trabalharíamos em conjunto. O que é que lucraríamos em voltar neste momento?

- Essa solução não resultaria, David - retorquiu Christine beijando-o ao de leve. - Sabes isso tão bem como eu. A minha Irmandade cometeu alguns atos terríveis. Eu nunca mais conseguiria viver comigo mesma, se não tentasse pôr cobro a essas ações. Só espero poder encontrar uma maneira de o fazer, sem vir a prejudicar todas aquelas enfermeiras que, à semelhança de mim própria, acreditavam...

- Raios partam tudo isto! Tem de haver uma forma qualquer!

David assumiu uma atitude de rigidez, para logo em seguida tartamudear um pedido de desculpas por aquela explosão temperamental, mantendo-se sentado no sofá com uma expressão cabisbaixa. Ela tinha toda a razão. A sua faceta racional e lógica compreendia isso mesmo. Tinha a percepção de que, se as circunstâncias em que ambos se viam se invertessem, ele estaria a alegar precisamente os mesmos argumentos. Contudo, naquele momento, a sua faceta lógica e racional não estava capaz de lhe controlar a língua.

- Olha - continuou ele - , talvez exista uma outra maneira. É possível que pudéssemos partir para qualquer lugar seguro, de onde tu enviarias ao Dockerty todas as informações de que tens conhecimento ou... ou mesmo para a doutora Armstrong. Com certeza, é isso mesmo... para a doutora Armstrong. Ela tem-se mostrado muito minha amiga, foi a única que me tem ajudado desde o início de todo este pesadelo. Se existe alguém que nos possa ajudar a convencer as autoridades a respeito da existência d'A Irmandade, é ela. - Para surpresa de David, aquela idéia começou a arraigar-se na sua mente. - Chris, a mulher seria a pessoa perfeita. Tu própria a ouviste naquela noite na Ala Quatro Sul. Ela é absoluta e convictamente contra a prática da eutanásia. Tanto quanto sabemos, se alguém da estatura da doutora Armstrong se colocar contra elas, é muito possível que os membros d'A Irmandade concluam que chegou a altura de encerrar todas as atividades da organização. Poderíamos escrever-lhe, e ela talvez pudesse...

- David, por favor, não faças isso - atalhou ela.

- Não, espera, ouve o que eu tenho a dizer. Deixa-me terminar a minha linha de raciocínio. A Charlotte Thomas desejava a morte. Tanto quanto nos é dado saber, ela morreria independentemente de tudo o que veio a acontecer. Sim, talvez tivesse outro dia de sofrimento agonizante ou mesmo algumas semanas, mas era inevitável que morresse ao fim de pouco tempo. - Entretanto, a voz que existia no interior da mente de David começou a implorar-lhe que se apercebesse bem da inconsciência daquilo que estava a dizer, que compreendesse a pressão que exercia sobre Christine. As súplicas não tiveram qualquer efeito. - Com base em tudo o que conhecias acerca da mulher, parece-te que ela haveria de querer que tu, que nós víssemos as nossas hipóteses destruídas, só porque tu a ajudaste a conseguir aquilo que ela, na realidade, não tinha forças para levar a cabo pelos seus próprios meios? Concede-nos apenas mais um ou dois dias para podermos avaliar bem toda esta situação. É tudo o que te peço. Havemos de encontrar outra maneira, caso contrário, regressaremos a Boston e encararemos o assunto em conjunto. Pelo menos, vamos esperar até que o Joey nos dê mais noticias. Talvez ele venha a descobrir, ao fim e ao cabo, que o Vincent já se encontra preso algures.

Christine cerrou os olhos, mantendo-os fechados com toda a sua força. No silêncio que se seguiu, o cenário que David começara a descrever crescia nos seus pensamentos. Adquiria os contornos de uma pequena povoação empoeirada, aninhada num recanto de montanhas escarpadas. Chegou ao ponto de conseguir visualizar a clínica que ambos fundariam: um edifício de barro, caiado de branco, situado no extremo de uma rua de piso batido bastante solarenga. Sentia mesmo o calor e a serenidade que existiriam na vida que ambos construiriam em comum. Adivinhou o sentimento de paz que lhe adviria por se dedicar àquele homem, bem como a um lugar com aquelas características.

Christine cerrou firmemente os lábios, anuindo com um gesto de cabeça.

- Muito bem. Mais um dia. Mas nada de promessas.

- Nada de promessas - concordou David. Sentia apenas uma alegria momentânea perante aquela vitória, antes de ter começado a ter a percepção daquilo que sempre estivera nos seus pensamentos: a menos que ambos conseguissem encontrar uma opção verdadeiramente satisfatória, jamais lhe permitiria que fugisse de si.

Fizeram amor numa harmonia cheia de ternura e sem pressas. Ao longo de quase uma hora, os olhos, as bocas e a ponta dos dedos de ambos exploraram-se mutuamente. Por fim, quando sentiram que nenhum deles poderia tolerar outra carícia sem que explodissem, David penetrou-a.

Marion Anderson Cooper era um homem empedernido. Não era somente um polícia duro, embora também fosse isso. A dureza da sua personalidade revestia-se de aspectos que só os rapazes que cresciam nas ruas de Roxbury, aos quais fora dado um nome com uma conotação efeminada, a poderiam possuir. A sua dureza fora forjada pelas mordidelas de ratazanas, quando ele se deitava no colchão miserável que partilhara com os seus dois irmãos; era possuidor de uma maneira de ser que fora temperada pelos dois anos, no meio da morte e do lamaçal, passados no Vietname. A sua têmpera fora posta à prova inúmeras vezes, e em várias situações, pelo fato de ter sido um dos primeiros sargentos de raça negra a ser destacado para a área de Boston, conhecida pelo nome de Pequena Itália, a zona norte da cidade.

Às primeiras horas da manhã do dia onze de Outubro Cooper fazia a sua segunda ronda pelas ruas em grande parte desertas da sua área de patrulha. De tempos a tempos, parava o carro-patrulha, fazendo incidir a luz da lanterna através da montra ou vitrina de uma loja ou de um restaurante, sempre que desconfiava que poderia haver algo de invulgar. Em todas essas ocasiões, ele conseguia identificar a fonte do mal-estar que sentira - um novo produto em exposição ou uma mesa que se encontrava numa posição diferente - retomando a sua ronda.

O Fiat de um tom púrpura, que se encontrava estacionado junto dos contentores do lixo de um dos becos mais recuados, sem nada que pudesse despertar a atenção de alguém, não tinha estado ali quando da sua primeira patrulha naquela área. Cooper bloqueou a entrada da viela com o seu carro-patrulha fez incidir o feixe de luz sobre a chapa da matrícula e entrou em contacto com o operador de rádio da esquadra.

- Daqui fala Alfa Nova? Vinte e Um - informou ele - peço que verifiquem o furto de um carro marca Fiat, de cor púrpura, na lista de carros roubados, com chapa de matrícula de Massachusetts, número três, cinco, três, Manuel, Washington, Quebeque. Existe alguma informação em registro?

- Negativo, Alfa Nova, Vinte e Um. Por favor, repita o número da chapa de matrícula.

Cooper repetiu as informações e ficou a aguardar. O automóvel fora roubado - tinha a certeza disso. De fato, ele sentia-se surpreendido que não tivesse havido uma nova redistribuição de outros veículos, logo na primeira noite em que o tempo se apresentava razoável, depois de mais de uma semana de mau tempo. Caso houvesse sido furtado, seria coisa de miúdos e não de profissionais. Se fosse obra destes últimos, o pequeno Fiat já teria sido pintado, instalada outra chapa de matrícula, encontrando-se já a caminho de satisfazer uma encomenda em Springfield, Fall River ou qualquer outro lugar semelhante. A demora deu-lhe a impressão de ser maior do que era habitual Cooper começou a tamborilar impacientemente com os dedos sobre o volante. Agarrou no seu radio transmissor portátil: ao iniciar a saída do carro-patrulha, o rádio da viatura começou a dar sinais de vida.

- Alfa Nova, Vinte e Um. Tenho informações de um Fiat de quatro portas de mil novecentos e setenta e nove, com chapa de matrícula de Massachusetts três, cinco, três, Manuel, Washington, Quebeque. - A voz da mulher, sensual e tentadora, era uma das que Cooper reconhecia, pertencendo a uma mãe de cinco crianças, que pesava cerca de oitenta quilogramas e tinha bigode.

- Daqui fala Alfa Nova Gladys - disse ele. - O que é que tens?

- Até ao momento, esse automóvel não foi participado como tendo sido furtado, Alfa

Nova... não existe nada de nada em registro. Encontra-se registrado sob o nome de

Joseph Rosetti, cujo endereço é o Apartamento C, Damon Street, número vinte e um.

- Alfa Nova dá a comunicação por terminada - replicou Cooper. Quando entrou no beco, num gesto instintivo, desapertou a correia do seu revólver de serviço.

A porta do Fiat do lado do condutor encontrava-se aberta. Cooper dirigiu a luz da lanterna para os assentos e em seguida para o chão. Nada. Subitamente, retraiu-se. O cheiro nauseabundo e encorpado do sangue - o perfume característico da morte – encheu-lhe as narinas. Viu um corpo entalado por detrás dos assentos traseiros, o qual fora tapado com uma manta velha de cor bege. Respirou fundo e com rapidez afastou a manta para o lado. Naquele momento, toda a dureza, todas as ações de combates ferozes travados nos arrozais e nas selvas do teatro de guerra, assim como a violência nas ruas da cidade, não o ajudaram em nada.

Marion Anderson Cooper girou sobre os calcanhares, afastando-se do automóvel para vomitar sobre o pavimento.

Joey tinha as mãos e os pés amarrados. Fora esfaqueado dúzias de vezes antes de ter acabado por morrer. Cuidadosamente colocada sobre o seu peito, via-se uma das suas orelhas e parte de três dedos. Os jornais da manhã não mostrariam grande interesse pela sua morte, atribuindo-a a "uma matança provavelmente levada a cabo numa área controlada por malfeitores" cerca de trinta quilômetros da zona norte da cidade, o verdadeiro motivo, um mapa desenhado em linhas grosseiras e manchado de sangue, arrancado à vítima após uma hora de tortura, encontrava-se sobre o assento do passageiro da frente do automóvel de Leonard Vincent.

 

Deslocando-se sem fazer o mais pequeno ruído, Christine colocou o seu saco de viagem junto da porta da frente, regressando ao quarto. Através de olhos avermelhados, a conseqüência de quase uma hora de pranto incontrolável, lançou um olhar a David através da luminosidade pouco intensa do radar da manhã. Ele dormia um sono cheio de serenidade, com uma parte dos cabelos abundantes contra a almofada que mantinha junto à face. Olhando com uma expressão de sofrimento para a carta que entalara na moldura lateral do espelho da cômoda, Christine abandonou a casa caminhando em bicos de pés.

A manhã estava fria e sem vento. O bafo da sua respiração, que mal era perceptível,

mantinha-se suspenso no ar. Bastante mais abaixo, havia um espesso manto prateado que cobria o oceano até onde a sua vista conseguia alcançar. Com movimentos que lhe davam a impressão de serem feitos num sonho, tal como um sonho parecia ser o mundo em seu redor, agarrou as chaves da ignição do jipe, colocou-as dentro de um sobrescrito e, com lentidão, dirigiu-se para o seu próprio carro. A qualquer momento, esperava ouvir a voz dele a chamá-la do alpendre da casa. Christine sabia que, se o visse, a sua resolução quebrar-se-ia como se fosse um galho seco e quebradiço.

Sem sequer um olhar para trás, deslizou por detrás do Volante do Mustang, destravando-o para que rolasse pelo caminho de acesso sem fazer ruído, antes de ligar a ignição. Já junto do cruzamento onde teria de virar para se dirigir a Rocky Point, aproximadamente a quatrocentos metros de distância da casa, parou e colocou o sobrescrito que continha as chaves do jipe sobre um pequeno amontoado de pedras. Inspecionou o local uma última vez, certificando-se de que David não teria grandes dificuldades em encontrar as chaves; em seguida, virou à esquerda começando a percorrer a estrada sinuosa do oceano, tomando a direção norte, que a levaria a Boston.

Os pensamentos e os sentimentos que sentia em tumulto de dentro de si tornavam

impossível qualquer espécie de concentração. Não reparou no automóvel de cor escura que passou por ela, seguindo na direção oposta; também não reparou no homem corpulento, cujas feições eram indistintas, que se encontrava sentado por detrás do volante. Isto é, não se apercebeu da presença do outro veículo, até que este surgiu de repente no seu espelho retrovisor, à distância de apenas alguns metros atrás de si.

Leonard Vincent manobrou o veículo, de molde a aproximar-se do Mustang. A cólera

momentânea que Christine sentiu ao verificar que estava a ser perseguida transformou-se rapidamente em terror, ao sentir que os dois pára-choques estabeleciam contacto. De início, não passara de um mero toque de raspão, mas logo de seguida sentiu um impacto violento. Subitamente, Vincent acelerou pela direita de Christine tentando forçá-la a sair da estrada. Os nós dos dedos dela ficaram esbranquiçados, devido aos esforços que fazia para impedir o automóvel de entrar em derrapagem. Olhou para a sua esquerda, procurando um caminho que lhe permitisse a fuga; contudo, sentiu-se imediatamente coberta por um suor gelado, tal o pavor que se apoderara de si.

A uma distância de menos de três metros, encontrava-se a extremidade do penhasco - a elevada escarpa rochosa coberta de árvores, onde havia trinta e seis horas, que lhe pareciam toda uma vida, ela estivera a olhar pela primeira vez para Rocky Point. No sopé de um declive de várias centenas de metros abaixo de si, estendia-se o oceano Atlântico.

Ao som de um outro impacto mais estridente do que o anterior, A cabeça de Christine girou para a direita. A parte da frente do carro de Vincent encontrava-se em paralelo com a porta do passageiro da frente da viatura de Christine. Atrás dele, abriu-se um sulco pouco profundo que deu lugar a uma parede de arenito. O Mustang vibrou com toda a violência, enquanto os pneus derrapavam com um impulso lateral. Christine meteu travões a fundo. O interior do automóvel ficou impregnado com o cheiro de borracha queimada.

A expressão no rosto de Leonard Vincent não traía qualquer emoção; poder-se-ia mesmo dizer que refletia paz, enquanto ele a forçava cada vez mais a aproximar-se do precipício.

Havia menos de metro e meio entre o Mustang e a berma do caminho, quando Christine soltou o travão e começou a acelerar a fundo. O seu carro arrancou com um súbito impulso para a frente. Pelo canto do olho, verificou que o outro automóvel se distanciava de si. Pouco depois, os pára-choques dos dois veículos prenderam-se um ao outro.

No instante seguinte, os dois carros rolavam completamente desgovernados, executando peões, qual dança macabra da morte a toda a largura da estrada. Christine tentava dominar o volante com todas as suas forças; no entanto, este soltou-se das mãos. A sua mão direita bateu violentamente contra a alavanca das mudanças, resultando numa fratura exatamente acima do pulso. O automóvel de Christine embateu contra a parede de granito. A sua cabeça foi violentamente projetada para a frente, batendo contra o pára-brisas mesmo acima do seu ouvido esquerdo. O vidro estilhaçou-se de imediato e, logo de seguida, o seu mundo mergulhou numa escuridão total.

Já não ouviu o estrépito do metal a separar-se quando os dois carros se distanciaram um do outro. Nem sequer viu os olhos arregalados de Leonard Vincent, num rosto que era a expressão do terror absoluto, no momento em que o seu automóvel se soltou do dela, num impulso que mais parecia um golpe de chicote, após o que se catapultou em direção ao oceano, embatendo de frente contra a encosta alcantilada e ressaltando sucessivamente das árvores e dos penedos, até acabar por desaparecer no espesso manto de nevoeiro. Tão pouco teve oportunidade de ver o seu próprio carro a ressaltar da superfície da parede rochosa, descrevendo um círculo completo, após o que rolou até à extremidade do penhasco.

Continuava inconsciente quando as rodas traseiras do Mustang se desequilibraram por cima da ribanceira. O automóvel imobilizou-se com a carroçaria a oscilar em cima da terra de piso macio. Em seguida deslizou por cima da berma.

David sentiu o vazio mesmo antes de ter despertado por completo. Entreabriu os olhos, para logo voltar a fechá-los com firmeza, numa tentativa da sua força de vontade para que aquilo que pressentia ser verdade o não fosse. Ela está na sala de estar, sentada com toda a tranqüilidade, a olhar para o oceano. Aposto um dólar em como ela não está na sala de estar. Susteve a respiração. O silêncio que reinava em toda a casa era mais do que a simples ausência de qualquer som. Constituía todo um vazio, um não existir de nada. No ar não havia o mínimo movimento, não se sentia qualquer sentido de energia; a vida era absolutamente inexistente.

"Ela saiu para dar um passeio", concluiu David em desespero. “Apenas um pequeno”.

passeio matinal “e, imediatamente, o grande cirurgião entra num estado de pânico. Rolou na cama, voltando-se para a janela, pestanejando ao ver a falta de luminosidade do Sol. O firmamento parecia estar envolto numa fina camada pérola: o gênero de bruma que, miraculosamente, desapareceria a meio da manhã, descobrindo-se qual cortina na extravagância do surgimento de um novo dia. Um passeio matinal e nada mais”.

Soergueu-se, apoiando-se sobre um cotovelo, e olhou em redor. A compreensão de que as roupas de Christine já não se encontravam no quarto registrou-se na sua mente, apenas momentos antes de ter avistado o sobrescrito entalado na moldura lateral do espelho.

Parecia uma cena extraída de inúmeros filmes de orçamento reduzido, com a diferença que desta feita a situação era inexoravelmente verdadeira. Ocorreu-lhe um sentimento de tristeza tão apático quanto o céu da manhã que sentia acima de si.

- Merda! - Foi a sua primeira palavra do dia. Seguiu-se a segunda e a terceira. Levantou-se da cama passando deliberadamente pela cômoda, em direção à casa de banho. Urinou após o que se lavou e barbeou. A coxear foi até à cozinha, colocando a chaleira ao lume para preparar o café. Sentia o tornozelo rígido e lento, embora quase não tivesse dores nenhumas. A sua enfermeira fizera o curativo como devia ser.

Arrumou a sala de estar enquanto esperava que a água fervesse. Numa última réstia de esperança, inspecionou o caminho de acesso à garagem. O Mustang primava pela ausência. Christine havia partido. O México, assim como qualquer hipótese de uma nova vida a dois, sem dificuldades de maior, desvaneceram-se por completo.

Como que entorpecido, David regressou ao quarto num passo arrastado.

O seu nome fora escrito em letra de imprensa no centro do sobrescrito totalmente branco.

Observou as suas mãos a rasgarem-no. Outra mensagem. A segunda que recebia em menos de uma semana. No entanto, desta vez, cada uma das palavras provocava-lhe uma grande angústia - tal como estavam escritas e à medida que as ia lendo. “Querido David”.

Não pude correr o risco de acordares; sem dúvida que tentarias convencer-me a desistir dos meus planos. Tentei durante toda a noite obrigar-me a acreditar que poderia haver alternativa. Meu Deus, como eu tentei. Mas, no fim, tudo aquilo em que consegui pensar resumiu-se ao sofrimento e à tristeza que te causei. Tudo isto é uma verdadeira loucura.

Algo que pareceu ser tão bom e estar tão certo. E agora... tenciono falar com o tenente Dockerty, com o objetivo de fazer uma confissão sem quaisquer restrições, sobre a morte da Charlotte Thomas. Mas, antes de o fazer, tenho intenção de me encontrar com a doutora Armstrong. Aquilo que disseste na noite passada tem toda a razão de ser. Eu sei que ela poderá ajudar-me. A despeito de tudo o que aconteceu, bem no fundo do meu coração, sei que a maioria de nós se rege apenas por princípios em que acreditamos firmemente. Com um pouco de sorte, a doutora Armstrong terá possibilidade de pôr fim a este assunto, com o mínimo de revelações de caráter público que lhe seja possível. Para começar, tenho três nomes que lhe indicarei, para além de alguns números de telefone, assim como alguns boletins informativos publicados pela Fundação Clinton. Sei que não é muito, mas pelo menos já é um começo. Talvez consigamos encontrar uma maneira de desvendarmos o segredo. Também não devemos esquecer-nos da questão relativa à identidade de quem contratou os serviços do assassino do Ben. Antes de envolver a Polícia no assunto, farei tudo o que estiver ao meu alcance para descobrir esse mistério.

Finalmente existes tu... um homem muito especial e cheio de magia. Num espaço de

tempo tão curto, conseguiste chegar a lugares do meu íntimo, dos quais não tenho a

certeza de eu própria ter tido conhecimento da sua existência. Por isso, e por muito mais, sinto-me em dívida para contigo. Devo-te uma vida liberta de fugas, em que tinha de olhar constantemente por cima do ombro. Devo-te a oportunidade de poderes cumprir os sonhos para que tu tanto te esforçaste e pelos quais sofreste tanto. Caso as circunstâncias se revestissem de alguma diferença, meu doce e terno David - qualquer que fosse a diferença -, eu não teria hesitado em me arriscar. Teria ido para onde quer que fosse que houvéssemos decidido ir. Acredito com toda a honestidade que tu terias sido merecedor de qualquer risco.

Todavia, as circunstâncias não são diversas. São aquilo que são. Não te preocupes por causa de mim. Depois de ter falado com a doutora Armstrong, tenho a intenção de me encontrar com o Dockerty. Tem cuidado contigo.

Por favor, tenta compreender, sê forte e, acima de tudo o mais, peço-te que me perdoes por te ter causado tanto sofrimento. Com amor, Christine

PS: A chave da ignição do jipe vai ficar no cruzamento onde se vira para Rocky Point. Estará dentro de um sobrescrito como este.”“.

O jipe. David riu-se, embora o fizesse a contragosto. Ainda que ambos os veículos houvessem partido ao mesmo tempo, era muito duvidoso que o jipe conseguisse acompanhar o Mustang de Christine, por mais de uns escassos metros. Não lhe restava a mínima dúvida de que ela se encontrava firmemente determinada em não se deixar dissuadir. Pois bem, ele também se recusava a ser dissuadido. Não estava ao seu alcance alterar a situação; por conseguinte, teria de se limitar a alterar as suas expectativas. O que quer que fosse que ela tivesse de enfrentar, ele encontrava-se firmemente determinado a estar ao seu lado, o que faria durante tanto tempo quanto ela desejasse a sua presença junto de si.

David vestiu-se enquanto visualizava na sua mente as situações que aos dois poderiam vir a deparar-se, ao longo dos dias e semanas que ambos tinham pela frente. Reparou na camisola de lã grossa que usara durante a viagem para Rocky Point. Christine colocara-a cuidadosamente dobrada sobre a cadeira junto da cômoda. David esboçou um sorriso rasgado. Talvez a pudesse devolver a Joey, como contributo para o guarda-roupa do próximo homem que fosse perseguido até ao rio Charles. Quando a tirou da cadeira, o pesado revólver de Rosetti caiu para o chão. David tinha-se esquecido completamente da existência daquela arma. Empunhou o revólver com uma das mãos. sentindo uma tensão estranha que já se habituara a sentir sempre que agarrava em armas de qualquer espécie. Tentou recordar-se de quando é que Christine lhe dissera que Joey voltaria a telefonar. Teria sido na noite passada? Esta manhã? Após alguns momentos de reflexão, dirigiu-se para o telefone. O número de telefone de Rosetti em Boston estava escrito num pequeno cartão preso ao aparelho, por fita gomada.

A voz de mulher que o atendeu do outro lado da linha pertencia a uma pessoa mais velha do que Terry.

- Está? É de casa dos Rosetti? - perguntou David.

- Sim. O que é que deseja?

- Gostaria de falar com Mistress Rosetti ou com Mister Rosetti, por favor. - Durante algum tempo reinou o silêncio no outro lado da linha.

- Quer fazer o favor de me dizer quem fala? - perguntou finalmente a mulher. A sua voz parecia uma pedra de gelo.

David começou a agitar-se, inquieto, apoiando o peso do seu corpo ora sobre um pé ora sobre o outro.

- O meu nome é David Shelton. Sou um amigo do Joey e da Terry, e estou inst...

- Eu sei bem quem o senhor é, doutor Shelton - disse a mulher num tom de voz sem

emoção. Uma vez mais, reinou o silêncio na linha telefônica. David sentiu um nó enorme nas suas entranhas. - Daqui fala Mistress D'Ambrosio. A mãe da Terry. De momento, ela não pode vir ao telefone. O médico deu-lhe um remédio e... - De súbito, a mulher começou a chorar. - O Joey morreu... assassinado - acrescentou ela num pranto convulsivo. David deixou-se cair desamparado em cima do sofá, olhando sem ver em seu redor. - A Terry não se tem sentido em condições de falar com a Polícia, mas falou comigo. Ela disse que foi por causa do Joey ter ido em sua ajuda que neste momento está morto. - Com aquelas palavras, a mulher foi-se completamente abaixo; qualquer demonstração de raiva contra David perdera-se no meio de um intenso desgosto.

- Mas isso é... impossível - tartamudeou ele; os seus pensamentos desfilavam em rodopio.

Fora Leonard Vincent. Só poderia ter sido ele. Fechou os olhos com força, tentando parar o turbilhão que lhe ia na mente. Primeiro tinha sido Ben, agora Joey... e Christine que andava por lugar incerto. - Quando é que isso aconteceu? - A sua voz dava a impressão de não ter vida.

- Ao princípio desta manhã. Encontraram-no dentro do automóvel, esfaqueado e amputado e... Doutor Shelton, eu não quero continuar a falar consigo, pelo menos por agora. O funeral do Joey é na terça-feira. Depois da cerimônia fúnebre, terá ocasião de falar com a minha filha.

- Mas, espere um pouco... - Sem atender ao seu pedido, a mulher desligou o telefone.

Passaram vários minutos em que David permaneceu sentado, sem fazer qualquer movimento, completamente alheado do ruído que vinha do auscultador desligado em cima das suas coxas. Pouco depois, agarrou na camisola de lã e no revólver, sem se esquecer das muletas, saindo de casa num passo rápido. Esperançado, embora o raciocínio lhe dissesse que não existia a mínima esperança, inspecionou o jipe. Não avistou as chaves.

Arremessou com a arma para cima do assento, forçando-se a percorrer o caminho,

andando em semicírculos alongados e vacilantes. Ainda assim, quando retornou ao ponto de partida, já tinham decorrido quase trinta minutos. Sentia o corpo encharcado em transpiração, respirando com grandes dificuldades. As suas vértebras, magoadas pelos apoios das muletas que não eram almofadadas, gritaram quando se içou para se sentar por detrás do volante. Então, imobilizou-se.

- Queres acalmar-te, por favor - disse David para si mesmo com a respiração entrecortada. - Ela está bem. Não lhe aconteceu nada. - Ligou o motor do jipe. O mais provável seria ela estar, naquele preciso momento, no gabinete da Dra. Armstrong, ou até mesmo a falar com Dockerty. Tudo o que tinha a fazer era acalmar-se e tentar chegar a Boston de corpo inteiro.

Lançou um olhar ao revólver e ocorreu-lhe o conselho que Rosetti lhe dera. Como é que ele tinha posto a questão? Faz aos outros aquilo que suspeitares que eles se preparam para te fazer? Qualquer coisa naquele gênero. David sentiu-se estremecer e agarrou no revólver. Teria Joey morrido porque não trazia consigo a arma na altura em que mais teria necessitado dela? Aquela probabilidade esvaziou David de qualquer resquício de racionalidade que ainda lhe pudesse restar. Tudo o que lhe ficara era um sentimento de cólera. A ira e um ódio que o consumiam. Havia de descobrir o paradeiro de Vincent, ou qualquer outra pessoa que fosse responsável pelo assassínio de Joey. Encontrá-los-ia e... ou os mataria ou morreria, tentando levar isso a cabo. Agarrou na alavanca das mudanças com uma mão que depois apertou com a outra, até começar a sentir dores.

Finalmente conseguiu engrenar a marcha atrás do jipe e começou a rolar pelo caminho de acesso à garagem.

A preocupação que sentia pelo bem-estar de Christine atenuou a cólera que o invadira, manifestando-se com um sentimento de urgência. Tentou acelerar, mas o carburador obstruído pela areia e pela poeira afogou-se. Então, ocorreu-lhe a idéia de que uma boa oferta de agradecimento a Joey teria sido uma afinação do motor e um alinhamento da direção do jipe.

Teria sido. David abanou a cabeça numa atitude de frustração e olhou para o relógio que Joey lhe havia dado. Já passava das nove. Acima de si, o esparso manto de nuvens dava os primeiros sinais de rendição perante aquele sol de Outono. Obrigou-se a descontrair-se, ligando de novo a ignição do motor. Na altura em que chegou à estrada do oceano, conseguira entrar num ritmo que lhe permitia engrenar as mudanças, a par do grau de aceleração adequado, de molde a que ambas as manobras fossem aceitáveis por parte daquela relíquia motorizada. Os seus pensamentos regressaram a Christine. Talvez ele devesse ter tido a precaução de telefonar à Polícia. Caso ela não lhe levasse muito avanço, pelo menos, eles poderiam detê-la até ele a ter alcançado. Mas exatamente quem?... A Polícia estadual? Mostrar-se-ia ela aborrecida se ele envolvesse as autoridades no assunto, antes de estar inteiramente preparada para isso? Ficou a magicar naquela probabilidade. Tinha decidido que pararia no próximo telefone público, quando viu o

clarão das luzes intermitentes e as barreiras de um bloqueio na estrada mais adiante.

À sua frente, havia uma pequena camioneta de caixa aberta, castanha e bastante maltratada, que com dificuldade executava uma inversão de marcha. David inclinou-se para fora da janela do jipe, a fim de falar com o motorista.

- O que é que se passa ali?

- O quê? - O homem parou a camioneta, atravessando-a à largura do caminho; ainda lhe faltavam várias manobras para completar a inversão de marcha.

- Ali mais à frente, o que é que sucedeu? - tentou David uma vez mais inteirar-se do que tinha acontecido, fazendo a pergunta aos gritos.

- Um acidente. E bastante grave, com os diabos. - A entoação da voz do homem de idade não deixava a mais pequena dúvida que considerava aquele inconveniente como tendo sido dirigido pessoalmente à sua pessoa. - Dois carros que se precipitaram pelo penhasco abaixo. Acabaram de içar um deles agora mesmo. O outro está a caminho, o que caiu mesmo no fundo. A Polícia diz que a manobra ainda levará uns quinze ou vinte minutos. O mais certo é ser uma hora, a julgar pela maneira como o Mac Perkins opera o guincho antigo com que está a trabalhar.

David sentiu-se percorrido por uma sensação de mal-estar, enquanto tentava ver o que se passava à frente da pequena camioneta.

- Viu algum dos automóveis envolvidos no acidente? - perguntou em voz baixa.

- O quê?

- Os carros - insistiu David aos gritos, depois de ter soltado um gemido. - Você conseguiu ver algum dos... Oh, não tem importância. Permite-me que eu passe, por favor?

- Com certeza, mas não pense que irá a algum lado. E também não vale a pena refilar a esse respeito. - De súbito, as perguntas de David registraram-se na mente do homem. - Os carros, perguntou você? Se eu vi os carros? - Completamente exasperado, David acenou que sim. - Só vi um azul, pequeno - gritou o homem. - Está todo desfeito.

As mãos de David cerraram-se com toda a força à volta do volante. Dentro de si sentiu um terror crescente. Fechou os olhos enquanto o homem de idade manobrava a camioneta, de forma a retirá-la do caminho. Naquele momento, a imagem, semelhante a uma fotografia de um outro acidente, surgiu-lhe ao pensamento. A chuva, as luzes, as faces de Becky e de Ginny, até mesmo os gritos de ambas. Queria abrir os olhos, a fim de pôr cobro àquela imagem pavorosa; contudo, sabia que. quando o fizesse, aguardá-lo-ia um novo pesadelo. Não lhe restava qualquer dúvida de que o automóvel azul que o homem de idade tinha visto era o de Christine.

- A estrada está bloqueada; receio que tenha de fazer meia volta.

David voltou-se para o lugar de onde viera aquela voz.

Era um agente da Polícia estadual, alto e magro, com um rosto de mestre-escola que lhe dava uma aparência ligeiramente ridícula, naquele uniforme azul que pretendia instilar autoridade. Antes de David poder replicar, o seu olhar concentrou-se para lá do local onde a pequena camioneta estivera, focando-se no grupo de carros-patrulha da Polícia, reboques e ambulâncias, veículos que se encontravam estacionados mais à frente. No meio destes, apoiado sobre os pneus completamente em baixo, via-se o monte de sucata de metais retorcidos que em tempos fora o Mustang de Christine.

- Senhor?... - A voz do jovem polícia denotava alguma preocupação.

As faces de David haviam ficado da cor de mármore branco.

- Eu... eu conheço a mulher que conduzia aquele automóvel - explicou ele numa voz cava e distanciada. - Era minha... amiga.

- Está a sentir-se bem? - Ao ver que David não lhe dava resposta, o agente policial chamou alguém que se encontrava mais à frente. - Gus, diz a um dos paramédicos que venha até aqui. Tenho a impressão de que este tipo está quase a perder os sentidos, ou qualquer coisa do gênero. - Abriu a porta do jipe. Quando o fez, David passou disparado pelo homem, começando a correr num passo cambaleante em direção ao carro acidentado, sem se aperceber das salvas de dor que o seu tornozelo disparava. Ao longo dos últimos cinco metros desequilibrou-se, tendo embatido violentamente contra a porta do veículo. Com a respiração arquejante, estendeu os braços por cima do tejadilho para se apoiar. O interior não tinha ninguém. O pára-brisas desaparecera por completo, enquanto o motor se encontrava esmagado na posição inversa, quase na parte dianteira do veículo. No assento, cujo estofo era de um azul-claro, via-se uma mancha de sangue acastanhado de aspecto horroroso.

- Raios partam tudo isto - gritou ele numa voz abafada. - Raios partam isto... Raios

partam tudo isto! - articulava ele cada vez mais alto, até que proferiu as últimas palavras aos gritos.

Vários homens apressaram-se a correr na sua direção, enquanto o polícia que se lhe tinha dirigido o agarrava por um braço.

- Por favor, veja se consegue acalmar-se - disse ele, mais num tom de súplica do que de quem dava uma ordem. Conduziu David para a berma do caminho, onde o ajudou a encostar-se ao tronco de um vidoeiro meio morto.

Decorrido um minuto, David recuperou a faculdade de falar.

- Ond... onde é que está o corpo dela? - perguntou David numa voz entrecortada.

- O quê?

- O corpo dela, porra! - vociferou ele. - Para onde é que o levaram?

- Meu caro senhor, não existe corpo nenhum - respondeu o jovem polícia, exibindo um sorriso rasgado. - Quer dizer, nenhum que esteja morto. Pelo menos que seja proveniente deste automóvel.

David tombou, apoiando-se sobre um joelho e erguendo um olhar fixo para o homem.

- Alguém que passava na altura encontrou a senhora a andar sem destino pelo caminho fora - explicou o agente. - Estava bastante magoada, com um ou dois cortes graves e provavelmente um braço fraturado, mas sem que corresse qualquer perigo de vida. E agora parece-lhe que é capaz de se acalmar o suficiente para se poder identificar?

O percurso até ao Hospital Comunitário de Kensington, situado a uma distância de cerca de vinte minutos de automóvel a fazer fé na informação prestada pelo polícia, demorou trinta e cinco minutos ao volante do jipe. David deixara-se ficar na cena do acidente durante pouco tempo, o suficiente para se inteirar do que lhe era possível. A sobrevivência de Christine era um verdadeiro milagre. Ela fora encontrada por um casal, ensangüentada e falando de maneira incoerente, enquanto caminhava pela estrada sem saber para onde se dirigia. Mais tarde, a equipa de socorro encontrou o seu Mustang entalado contra uma árvore na posição de capotado, a pouco mais de quinze metros na escarpa rochosa mais abaixo, a uma distância de quase oitocentos metros do lugar onde ela fora encontrada.

David permaneceu ali durante o tempo suficiente para poder observar, sem qualquer

traço de compaixão, o corpo desfeito de Leonard Vincent quando foi arrancado do interior do seu automóvel, sendo depois transferido para uma ambulância. Afastou-se durante o burburinho que teve origem na descoberta, entre os destroços, de um revólver com silenciador, assim como uma grande diversidade de facas. Durante a sua viagem até ao hospital, sentiu-se invadido por um ódio renovado que cada vez se acentuava mais... - ódio esse que já não era dirigido a Leonard Vincent, mas sim àqueles que o tinham contratado.

O hospital era razoavelmente recente e bastante pequeno: teria cinqüenta camas ou

menos, calculou David. Depois de ter transposto a porta principal, fez uma breve pausa, tentando adivinhar qual seria o ambiente que reinava naquele estabelecimento hospitalar.

O átrio encontrava-se deserto, salvo a presença quase despercebida da voluntária vestida de salmão que se encontrava por detrás do balcão da entrada, organizando o conteúdo da sua mala. À sua direita, via-se um quadro de latão deveras impressionante, onde se encontrava afixada a lista de mais ou menos duas dúzias de médicos que faziam parte do corpo clínico. Ao lado de cada um dos nomes, via-se uma pequena lâmpada de uma tonalidade âmbar, que o respectivo médico poderia ligar quando se encontrava de serviço.

Apenas uma delas é que mostrava a sua luminosidade âmbar. Ninguém poderia acusar o Hospital Comunitário de Kensington de ter um excesso de pessoal médico, pensou David com alguma mordacidade.

A ala onde fora instalado o Serviço de Urgências era assinalada por letras negras destacáveis, colocadas acima das portas duplas automáticas. Enquanto se fechavam depois de ele ter passado, David ouviu a voz da voluntária.

- Posso ajudá-lo em alguma coisa? - Sem se incomodar em olhar para trás, David abanou a cabeça num gesto negativo.

A médica de serviço, uma mulher indiana com uns olhos escuros que mostravam cansaço, foi ao seu encontro a meio caminho do corredor. Usava um sari de um tecido leve cor de laranja por baixo da sua bata branca, onde se via uma pequena placa de identificação do Hospital Comunitário de Kensington com o nome de Dra. T. Ranganathan.

- Peço-lhe desculpa - começou David a dizer, dando mostras de ansiedade -, o meu nome é David Shelton. Sou cirurgião do Médicos de Boston. Uma amiga minha, Christine Beall, foi trazida para aqui há pouco tempo, não é verdade?

- Ah, sim. O acidente de viação - retorquiu ela num inglês impecável - Examinei-a apenas de fugida, antes de o doutor Saint Onge chegar e... ah... assumir a responsabilidade pelo caso dela. Ela tem um pulso fraturado e, possivelmente também algumas vértebras quebradas no lado esquerdo. A estas lesões há que juntar duas lacerações no couro cabeludo. No entanto, na altura em que o doutor Onge dispensou os meus serviços, ela não me deu a impressão de correr qualquer perigo imediato. Encontrá-la-á ali - concluiu a médica, apontando para um dos quartos.

Juntamente com o doutor Onge, havia mais três pessoas no quarto de Christine: um

auxiliar de enfermagem, o técnico do laboratório e uma enfermeira. David ignorou-os a todos e num passo apressado encaminhou-se para a mesa de observações.

- Doutor Saint Onge, eu sou o doutor David Shelton - apresentou-se David, que só tinha olhos para Christine. Esta encontrava-se deitada de lado e tinha compressas esterilizadas sobre a cabeça. Haviam-lhe rapado uma grande área do couro cabeludo, na região do ouvido esquerdo. As compressas rodeavam um ferimento aberto, com um aspecto bastante feio, com cerca de oito centímetros de extensão; o golpe encontrava-se quase totalmente suturado.

- David? - A voz de Christine era como o gemido desolado de uma criança perdida.

David ajoelhou-se junto da mesa a uma distância segura do campo esterilizado.

- Sim, querida, sou eu. - A segurança que a sua voz tentava instilar desvirtuava a cólera e a tristeza que sentia no seu íntimo. - Estás ótima. Algumas mossas, mas de resto está tudo bem.

- Isto é que nós fazemos um par, não achas? - retorquiu ela numa voz enfraquecida.

Aquelas escassas palavras foi tudo o que conseguiu articular.

- Quem diabo é você? - Era evidente que Saint Onge não se sentia satisfeito com as

informações que David dera quando se tinha apresentado. O médico era um homem de estatura pesada e tronco largo, com umas mãos possantes. O tom escuro do seu

bronzeado continuava a ser próprio de meados do Verão; as suas roupas eram feitas por medida. David calculou que ele deveria rondar a casa dos cinqüenta.

- Oh, peço-lhe desculpa - disse David enquanto retrocedia um passo. - O meu nome é Shelton. David Shelton. Faço parte do corpo cirúrgico do Hospital Médicos de Boston. A Christine é uma... amiga bastante chegada.

- Pois bem, neste momento, ela é minha doente - continuou Onge numa voz de poucos amigos. - Tenho a certeza que não veria com muito bons olhos o fato de alguém se intrometer no seu trabalho. Ainda que essa pessoa fosse um colega cirurgião.

David engoliu aquilo que realmente lhe apetecia dizer e recuou outro passo.

- Lamento muito - resmungou ele. - Pode informar-me quanto ao estado clínico dela?

Saint Onge remexeu no seu conjunto de instrumentos, onde encontrou um suporte de agulha, voltando a dedicar a sua atenção ao golpe.

- Ela sofreu um outro ferimento, que já suturei, mesmo acima deste. Tem um braço

fraturado que, provavelmente, o Stan Keys terá de tratar no bloco operatório. Isto é, partindo do princípio que ele não se virou e afogou na regata estúpida em que participava hoje mesmo.

- Ele é o único médico ortopedista a que podem recorrer? - perguntou David sentindo-se inquieto.

- Sim, senhor. Mas não se preocupe. Felizmente, ele é um cirurgião ortopedista muito mais qualificado do que como velejador. - Saint Onge riu-se à socapa. - Não haverá problemas com o braço até ele regressar ao hospital.

David concentrou a sua atenção nos quatro conjuntos de chapas radiológicas que se

encontravam no quadro de visualização na parede do outro lado da maca, examinando as imagens feitas à região torácica de Christine, assim como ao abdômen, vértebras, antebraço e crânio. A fratura que ela sofrera no antebraço era bastante grave, dada a existência de múltiplos fragmentos; contudo, afortunadamente, estes não haviam afetado os ligamentos. Existiam boas hipóteses de ela não perder nenhum grau de mobilidade nas funções da mão. Ocorreu-lhe ao pensamento o esplêndido corpo de ortopedia que exercia no Médicos de Boston, perguntando a si mesmo se não haveria viabilidade de se efetuar uma transferência para esse hospital.

Entretanto, Onge concluiu a sutura da laceração, na mesma altura em que David colocava as quatro radiografias do crânio de Christine no seu lugar. Com um gesto cheio de floreados, o outro médico descalçou as luvas de borracha, deixando-as cair para o chão.

- Utilize um dos meus relatórios-padrão relativos às lesões na cabeça. Tammy – instruiu ele. - Em qualquer dos casos o mais provável é o Keys querer que ela seja transferida para o seu serviço, quando a operar ao pulso. Tem alguma pergunta a fazer, doutor...

- Shelton - concluiu David numa voz cheia de frieza, roçando pelo homem ao passar por ele para se poder ajoelhar junto de Christine. As compressas esterilizadas haviam sido retiradas, o que permitia a David examinar pela primeira vez a extensão das lesões que ela sofrera. Não obstante algumas tentativas para a limparem, ela ainda tinha no pescoço e nas faces algumas camadas de sangue coagulado e quebradiço. Quase toda a parte esquerda do couro cabeludo tinha sido rapada, o que expunha os dois ferimentos graves.

Havia alguns estilhaços ínfimos de vidro, como se fossem diamantes, que cintilavam por todo o cabelo que lhe restara. O seu lábio superior tinha as dimensões e a cor de uma pequena ameixa.

- Christine - começou David a dizer numa voz afetuosa -, como é que estás a sentir-te?

- Oh, David... - As suas palavras eram soluços de um choro angustiante e sem lágrimas.

David sentiu os punhos a cerrarem-se contra as coxas.

- Doutor Saint Onge, as radiografias já foram observadas por um radiologista? – Ergueu-se do chão com uma lentidão que era deliberada, voltando-se para o homem.

- Ora bem, de fato, não. O radiologista já terminou o seu dia de trabalho. Caso seja

necessário, encontra-se de plantão; no entanto, eu não vejo qualquer motivo para o

chamar, uma vez que com chapas tão evidentes como...

- Por favor, miss - interrompeu David - , pode emprestar-me um otoscópio? E já agora, traga-me também um oftalmoscópio. - A mulher mostrou uma expressão ao mesmo tempo perplexa e divertida, enquanto entregava a David os instrumentos que este lhe pedira. Saint Onge ficara sem palavras.

David introduziu a extremidade do otoscópio no ouvido esquerdo de Christine.

Nesse mesmo instante, Saint Onge readquiriu a capacidade de mobilidade da sua língua.

- Ora vamos lá a ver... espere aí a merda de um minuto - começou ele a dizer. - Essa mulher continua a ser minha doente, e se você...

- Não! - vociferou David. - Você é que vai esperar a merda de um minuto - continuou ele. - Esta mulher vai ser transferida para Boston.

- Ora bem, você tem cá uma merda de uma lata! - As faces de Saint Onge estavam da cor do carmim. - Não pense que as suas credenciais de médico numa grande cidade me impedirão de apresentar este assunto perante a Ordem dos Médicos.

- Por favor, faça isso mesmo - redargüiu David num tom de súplica. O pouco domínio que ele conseguira exercer sobre si até ao momento tinha desaparecido por completo. - E, quando se apresentar perante esse organismo, descanse que lhe perguntaremos por que motivo é que se mostrou tão arrogante, ao ponto de não ter chamado um radiologista que procedesse ao exame destas radiografias. Perguntar-lhe-emos ainda por que razão é que lhe passou despercebida a fratura basilar no crânio, que pode ser vista em duas das chapas. Também vamos querer ver esclarecido o fato de não ter reparado no derrame de sangue, por detrás do tímpano do ouvido esquerdo, o qual tem origem nessa mesma fratura. Está a compreender? - O silêncio que se fez no quarto era doloroso. David baixou o seu tom de voz, dirigindo-se às enfermeiras: - Uma de vocês é capaz de chamar uma ambulância, por favor?

A enfermeira que se chamava Tammy ainda hesitou antes de responder.

- Sim, senhor doutor - anuiu ela com um cintilar nos olhos que era inequívoco, saindo pressurosamente. Saint Onge parecia estar à beira de uma apoplexia.

- Vou necessitar de alguns paramédicos e equipamento durante a viagem - acrescentou David, dirigindo-se a outra enfermeira - Tenciono enviar tudo de volta juntamente com a ambulância. Entretanto, quer fazer o favor de aplicar à doente uma solução láctea Ringer por via intravenosa? Cinqüenta centímetros cúbicos de hora a hora.

- Hei de lixá-lo por causa disto, Shelton. - Saint Onge sibilou cada uma das palavras que articulou, após o que num passo brusco saiu do quarto.

David serviu-se do telefone no balcão das enfermeiras para telefonar à Dra. Armstrong.

Enquanto ligava o número ouvia os risos à socapa, assim como as manifestações reprimidas de alegria por parte do pessoal de enfermagem que se encontrava no quarto de Christine.

- David, tenho andado numa preocupação de morte por causa de si - disse a Dra. Armstrong assim que ouviu a voz do médico. - O que é que se passa? Você está bem?

- Eu estou ótimo, doutora Armstrong. De verdade - replicou David. - Mas a Christine Beall não está nada bem. Está recordada de quem ela é? Uma enfermeira que trabalha na Ala Quatro Sul?

- Parece-me... sim, claro que me recordo. Uma rapariga amorosa. O que é que aconteceu?

- Ela teve um acidente. De automóvel. Neste momento encontramo-nos no Hospital Comunitário de Kensington, mas eu vou acompanhá-la até ao Serviço de Urgências do nosso hospital. Seria possível que a doutora esperasse por nós, para poder orientar o tratamento a que ela terá de ser submetida? A Christine tem um braço fraturado e uma fratura basilar craniana, para além de ter sofrido algumas lesões no tórax. Por conseguinte, o mais provável será a doutora acabar por ser o polícia sinaleiro que orientará as atividades dos médicos de um circo de três pistas. Acha que poderá fazer isso?

- É evidente que sim - afirmou a Dra. Armstrong sem hesitar. - Tem a certeza que ela

poderá resistir à viagem?

- Estou suficientemente certo para o tentar. Vale a pena corrermos qualquer risco, só

para a podermos tirar deste hospital. Muito em especial porque a doutora estará à espera que ela chegue. Tenho muita coisa acerca de que desejo falar consigo, mas tudo isso pode esperar até que se comece a tratar da Christine. Contamos estar aí dentro de mais ou menos uma hora.

- Isso será esplêndido - retorquiu a Dra. Armstrong numa voz cheia de suavidade. -

Estarei à vossa espera.

 

De acordo com as instruções de David, a viagem de ambulância foi efetuada a uma

velocidade constante de oitenta quilômetros horários. Nem as luzes nem as sirenas foram ligadas. Aquele percurso de cinqüenta e cinco minutos pareceu ser interminável; todavia, o pouco tempo que poderiam ter poupado, ao efetuarem uma corrida veloz e dramática até à cidade, não valia o risco de que viesse a acontecer uma catástrofe por causa de um acidente inesperado.

Ao longo de toda a viagem, Christine manteve-se numa sonolência de que despertava constantemente. David, que permanecia sentado do seu lado direito, verificava sistematicamente a sua pulsação, respiração e tensão arterial, assim como o grau de dilatação das pupilas, procurando alterações que pudessem indicar um aumento súbito de pressão intracraniana. Qualquer acréscimo significativo, quer este se devesse a uma hemorragia ou ao inchaço, e ele só poderia dispor de alguns minutos para tentar inverter o processo, antes que começassem a ocorrer lesões irreversíveis.

A tensão que sentia dentro de si era sufocante. Agira de maneira decisiva na forma como lidara com Saint Onge, mas teria ele sido demasiado apressado? Aquele pensamento consumia-lhe o íntimo. Qualquer crise que pudesse acontecer na ambulância em movimento seria incomensuravelmente mais difícil de resolver do que num hospital.

Aquele era o tipo de decisão em que despendera anos de formação, o gênero de decisão que ele fora forçado a tomar, ao longo de muitos anos, sem que se verificasse a mínima hesitação da sua parte. Todavia, aquela situação era bastante diferente.

- Christine? - chamou David apertando-lhe a mão. Não obteve qualquer resposta. -

Passemos revista ao equipamento uma vez mais - disse ele, dirigindo-se ao paramédico que seguia ao seu lado. Fora do campo de visão de David, o homem, um antigo militar do Vietname, abanou a cabeça numa manifestação exasperada. Era um fato que aquela era a primeira vez que levava consigo o equipamento necessário à execução de uma preparação craniana; apesar disso, aquela era a terceira vez que David lhe pedia que procedesse à verificação do material.

Esporadicamente, Christine conseguia ouvir o que se passava à sua volta; David voltou-lhe as costas, enumerando numa voz sussurrada todos os instrumentos e os

medicamentos. O paramédico erguia cada um dos artigos mencionados, ou indicava que sabia exatamente onde é que se encontravam. Os bisturis, as brocas, o anestésico, o laringoscópio, tubos, máscara de oxigênio, adrenalina, cortisona, cateteres de sucção, agulha intracardíaca... estavam preparados para o pior.

Sentindo-se relutante em afastar de novo os olhos de Christine, David começou a

perguntar onde é que se encontravam quando já estavam a menos de vinte e cinco

quilômetros do hospital, sem sequer tentar registrar na mente aquela informação.

- Pulsação: cento e dez, firme; respiração: vinte; tensão arterial: dezesseis, seis; pupilas: quatro milímetros, iguais e reativas. - As palavras transformaram-se numa litania que se sucedia de dois em dois minutos. Imbuído do espírito de dever, o paramédico repetia os dados, após o que os registrava por escrito. Entre os dois homens não se trocava qualquer dito espirituoso. Na realidade, a comunicação entre ambos era nula, para além da enunciação dos dados, o que era feito de dois em dois minutos. Pulsação... respiração... tensão arterial... pupilas.

Quando entraram na zona suburbana de Boston, a tensão aumentou. David movimentava-se numa agitação constante verificando, voltando a inspecionar, despertando Christine. O paramédico, enervado com toda aquela agitação, contra a sua vontade mas num gesto involuntário, tocava nos instrumentos antecipando a eventualidade de uma crise. O motorista, um homem jovem e corpulento, cujos fartos cabelos castanhos eram anelados, começou a proferir algumas palavras através do radiotransmissor, entretendo-se a mexer nos botões que controlavam as luzes e a sirena.

Agora já se encontravam suficientemente próximos do hospital. Ao primeiro sinal de

problema na parte de trás da ambulância, ele prosseguiria a toda a velocidade, quer o médico desse ordem para isso quer não.

Subitamente, a viagem chegou ao fim. A ambulância foi manobrada de forma a fazer uma inversão de marcha bastante fechada, encostando a traseira à plataforma elevada que se destinava à recepção dos doentes. As portas posteriores abriram-se de par em par. Houve uma enfermeira que irrompeu pelo interior da ambulância e, depois de lançar um rápido olhar a Christine, dirigiu-se de imediato para o saco que continha a solução intravenosa.

Logo atrás de si, apareceu um auxiliar de enfermagem que agarrou num dos lados da maca. Um rápido acenar por parte do paramédico e ambos começaram a conduzir a doente. A enfermeira corria para conseguir acompanhá-los, enquanto mantinha o saco da intubação intravenosa suspenso no ar.

David fez menção de ir atrás deles, mas então deixou-se cair sobre o assento. Avistou de fugida a figura de Margaret Armstrong, na altura em que a médica foi ao encontro da equipa de enfermagem, já a meio caminho da plataforma de cimento, tendo começado a examinar Christine ainda antes de terem chegado à entrada do hospital. As orlas da sua bata branca, toda desabotoada, adejavam atrás de si como se fossem o manto de uma rainha. De todos os seus movimentos e de cada uma das suas expressões, emanava competência e poder de decisão.

Tinham conseguido chegar. Encontravam-se em casa. A decisão de levar a transferência avante, ainda que pudesse ter sido precipitada, não tivera quaisquer conseqüências graves Ao mesmo tempo que se sentia invadido por uma grande sensação de alívio, David começou a tremer.

A custo, passou por entre as pessoas que se apinhavam nas áreas de recepção e de triagem, muito movimentadas, dirigindo-se diretamente para a Ala dos Traumas. Quer a percepção fosse real ou imaginária, tinha a impressão de que toda a gente - tanto o pessoal médico como os doentes - olhava fixamente para si. Fênix que se erguia das cinzas; Lázaro que se elevava dos mortos.

Detendo se do lado de fora do quarto 12 que se destinava aos casos de trauma, olhou para o interior. O quarto encontrava-se vazio. Estremeceu ao ocorrer-lhe a imagem de Leonard Vincent, quando este empunhara a faca e fizera deslizar a lâmina à largura da sua garganta. Em seguida, David pensou em Rosetti. Logo que Christine estivesse fora de qualquer perigo imediato, e depois de acabar de falar com a Dra. Armstrong, tencionava visitar Terry.

Quando David se aproximou da Unidade de Trauma Um, Armstrong chegou à porta, indicando-lhe com um gesto que entrasse na sala. Christine estava acordada. Através de um mar de batas brancas - médicos estagiários, técnicos de laboratório e enfermeiras -, os olhos dela, sombras profundamente encovadas, prenderam-se nos seus. Durante alguns instantes, tudo o que detectou foi sofrimento. Então, quando se aproximou mais, avistou a centelha... o bruxulear da força. Os lábios tumefactos e descolorados de Christine cerraram-se tensamente, ao tentar esboçar um sorriso.

- Conseguimos - sussurrou ela. David secundou-a com um acenar de cabeça. - Agora já não tens de perfurar buracos no meu crânio.

- Mantiveste-te acordada durante a viagem? - perguntou David de olhos arregalados.

- Digamos que suficientemente desperta - respondeu ela com dificuldade. - Est... estou satisfeita por estarmos aqui.

Christine fechou os olhos. Entretanto, um médico de serviço à cirurgia, um homem esguio que nem um caniço, abeirou-se da doente para lhe aplicar um anti-séptico de um vermelho-acastanhado sobre a região superior direita do tórax, preparado para inserir uma linha intravenosa subclavicular. A medida que o homem introduzia a agulha por baixo da clavícula de Christine, David fez um esgar e desviou o olhar, afastando-se. Ficou frente a frente com Margaret Armstrong, a qual se mantinha a cerca de um metro atrás de si, observando em silêncio.

- David, sinto-me tão aliviada por ver que você está bem - disse ela. - As histórias que circularam após a sua breve visita ao hospital, há algumas noites atrás, eram bastante assustadoras.

- Existem alguns problemas neste hospital... De fato, o mesmo sucede em muitos outros estabelecimentos hospitalares. Eu tenho muita coisa a discutir consigo, doutora Armstrong - acrescentou David. Por cima do ombro, olhou para o médico de serviço, o qual, em movimentos calmos, suturava o cateter intravenoso de plástico, colocando-o no seu lugar com um ponto dado através da pele do peito da doente. - E a respeito de Christine?

- Bem... - começou a Dra. Armstrong a dizer, conduzindo-o para fora do quarto. - Assim que toda aquela gente tenha terminado o que está a fazer, tenho intenção de a examinar mais minuciosamente. As minhas impressões iniciais pouco mais acrescentam às suas. Não resta qualquer dúvida de que ela sofreu uma fratura craniana, havendo algum derrame de sangue por detrás do tímpano. No entanto, até ao momento, ela dá a impressão de não ter sido afetada neurologicamente. Providenciei para que tanto um médico ortopedista como um neurocirurgião estejam a postos no hospital, mas parece-me que vamos aguardar quanto à fratura do pulso, até termos a oportunidade de poder examiná-la. O neurocirurgião é o Ivan Rudnick. Conhece-o? - David acenou afirmativamente. Rudnick era o melhor dos médicos daquela especialidade que trabalhavam no hospital, se é que não era o mais competente de toda a cidade. - Pois bem, o Ivan examiná-la-á, submetendo-a a uma tomografia axial computadorizada, logo que esse exame seja possível. Caso não se encontrem vestígios de hemorragia ativa, só nos restará aguardar com esperança a evolução do seu estado clínico.

- E quanto ao trauma que ela sofreu no tórax? - perguntou David.

- Tanto quanto me foi dado observar, essa lesão não apresenta problemas de maior. O eletrocardiograma não mostra qualquer indício de lesões cardíacas. O exame mais extensivo que eu tenciono fazer-lhe ajudar-nos-á a confirmar essa situação.

- Doutora Armstrong, sinto-me verdadeiramente grato por estar a coordenar este assunto.

- Não diga disparates - replicou a médica. - Você nem calcula o quanto me sinto lisonjeada... e agradada, por me ter pedido que tratasse deste caso. A propósito - acrescentou ela - , temos um pequeno problema.

- Oh?... - Os olhos de David estreitaram-se.

- Nada que possa ser considerado crítico, David, mas não há nenhuma cama disponível na Unidade de Cuidados Intensivos. Nem uma sequer. Neste momento, estamos a examinar um doente que já se encontra numa fase pós-operatória, mas a realidade é que o seu estado tem sido muito instável, o que me leva a duvidar que possamos transferi-lo. Cheguei à conclusão de que não se verificará qualquer problema, caso instalemos a Christine num dos pisos. Na Ala Quatro Sul há um quarto particular que se encontra vago. Eu sei que as enfermeiras que estão de serviço nesse piso lhe prestarão mais atenção do que todos os cuidados que ela pudesse receber num outro serviço qualquer, incluindo na U. C. I. Logo que seja possível, ela será transferida para esse quarto.

- Isso parece-me ser uma idéia excelente - anuiu David. - Caso as enfermeiras não se sintam incomodadas com a minha presença. Tenciono manter-me por perto, fazendo o que estiver ao meu alcance para poder monitorizar a evolução do seu estado. Isto é, depois de nós dois termos tido a nossa conversa.

- Sim - retorquiu a Dra. Armstrong, exibindo uma atitude de distanciamento.

- Bem, não permita que eu a impeça de efetuar o seu exame. Eu espero por si na sala dos médicos, até que possa dispor de tempo para conversarmos. A propósito, em que quarto é que a Christine ficará?

- Desculpe, não percebi a sua pergunta.

- O quarto - repetiu David. - Para que quarto é que ela vai ser transferida?

- Ah, sim, apontei o número aqui. É o quarto doze. Fica na Ala Quatro Sul, quarto quatrocentos e doze. - A cardiologista esboçou um sorriso antes de desaparecer no interior da Unidade de Trauma Um.

Quarto doze! David engoliu em seco, tentando ver-se livre do nó que de súbito lhe obstruíra a garganta. O mesmo quarto onde Charlotte Thomas estivera internada! O primeiro passo que havia sido dado na estrada empedrada e ensangüentada que conduzira a uma terra de loucura onde a demência parecia não ter fim. David lutou contra o pressentimento aziago que se apoderou de si, tentando em vez disso concentrar-se na ironia daquela coincidência. O quarto 412 seria o posto de comando da vanguarda, ao longo da batalha que serviria de instrumento para acabar com as atividades d'A Irmandade da Vida. Aquele exercício mental teve resultados positivos, pelo menos, na medida em que o impediu de sair disparado no encalço da Dra. Armstrong, exigindo-lhe que houvesse uma troca de quartos. Começou a andar sem destino pela área onde era feita a triagem dos doentes, acabando por se dirigir para a sala dos médicos, onde se estendeu num sofá com uma cópia de uma revista mensal de nome Medical Econômica. O artigo principal tinha o título de "Dez Maneiras de Fugir aos Impostos que Possivelmente Até o seu Contabilista Não Conhecerá". Antes de dedicar a sua atenção à maneira número um, David já tinha adormecido.

Uma hora mais tarde, o telefone fixo à parede acima de si despertou-o em sobressalto, afastando-o de uma seqüência de sonhos assustadores - a paragem cardíaca que Charlotte sofrera, assim como os acontecimentos estranhíssimos que se seguiram, desfilaram nos seus pensamentos com a alternância de todas as personagens envolvidas; todas, isto é, com a exceção de Christine, cuja morte acontecia consecutivamente, de maneiras em que a última era sempre mais macabra do que a procedente.

David sentia as suas roupas desconfortavelmente umedecidas, enquanto a espécie de lixa que juraria ter na garganta lhe dificultava a fala.

- Fala da sala dos médicos. Daqui Shelton - disse ele, atendendo o telefone com uma voz empastelada.

- David? Fala Margaret Armstrong. Dar-se-á o caso de eu o ter acordado?

- Não, quero dizer, sim. Quer dizer, eu não estava exatamente...

- Bem - interrompeu ela -, a nossa Christine já se encontra sã e salva no seu quarto. Não tenho nada de novo a acrescentar àquilo que já é do nosso conhecimento. Estou em crer que o seu estado não sofrerá qualquer complicação.

- Esplêndido.

- Sim. de fato assim é. - Armstrong fez uma pausa. - Você não tinha dito que queria falar comigo?

- Sim, sim, sem dúvida que quero. Isto é, caso não...

- Esta seria uma oportunidade excelente - interrompeu-o ela uma vez mais. - Estou no meu gabinete... não no que fica na torre, mas sim o que se situa na Ala Dois Norte.

- Eu sei onde é que fica - retorquiu David, que finalmente se encontrava totalmente desperto. - Lá estarei dentro de cinco minutos.

O laboratório de exercícios cardíacos também servia de gabinete a Margaret Armstrong.

David bateu uma vez à porta que estava assinalada com a indicação "EXPERIÊNCIA DE TENSÃO E EXERCíCiO", após o que entrou. A pequena sala de espera, bastante confortável, encontrava-se deserta. Hesitou antes de chamar.

- Doutora Armstrong? Sou eu, o David.

- David, entre - convidou a cardiologista, surgindo à porta. - Eu estava a preparar um

pouco de café.

Quando passou pelo sítio onde ela estivera, David cheirou o odor distinto de uma bebida alcoólica.

Movido pelo instinto, viu as horas no seu relógio de pulso. Ainda não eram treze horas.

Pela mente passou-lhe um determinado número de justificações quanto ao motivo que pudesse levar a chefe de cardiologia à ingestão de bebidas alcoólicas naquelas

circunstâncias, especialmente àquela hora do dia. Nenhuma destas lhe parecia ser inteiramente aceitável. Apesar daquela reserva, a mulher dava-lhe a impressão de se encontrar perfeitamente sob controlo. Pelo menos de momento, David obrigou aquela preocupação a afastar-se bem para o fundo da sua mente.

O laboratório era espaçoso e encontrava-se bem equipado. Viam-se várias máquinas com tapetes rolantes e bicicletas para exercício; cada um daqueles equipamentos estava munido de um conjunto de aparelhos monitores instalados por todo aquele espaço. O equipamento de emergência, o qual era exigido em instalações daquela natureza, incluía uma unidade de desfibrilação, aparelhos que haviam sido colocados de forma despercebida num dos lados da sala, num esforço, sabia David, de evitar aos doentes quaisquer apreensões adicionais, os quais já se sentiriam enervados perante a perspectiva de um teste às suas capacidades cardíacas.

Uma das extremidades daquelas instalações fora destinada a uma área de reuniões, onde havia um sofá de um tom bege e vários cadeirões de costas direitas, mobiliário que fora disposto de forma a circundar uma mesa baixa de café. Armstrong indicou a David com um gesto que se sentasse no sofá, após o que trouxe uma cafeteira e duas chávenas. A atitude da médica era de uma suavidade maior do que David alguma vez lhe tinha visto.

 

- Está com um aspecto de cansaço - comentou ele. - Talvez seja preferível que conversemos mais tarde.

- Não, não. Esta altura é ótima para falarmos - retorquiu ela com demasiada rispidez. 

Bem vê, são as políticas hospitalares. Mas, para variar, tenho a oportunidade de me recostar e ouvir aquilo que me têm a dizer. Permita-me que sirva o café e em seguida poderá pôr-me ao corrente de tudo o que lhe tem vindo a suceder.

Ela empurrou um pacote de natas na direção de David, mas ele recusou com um abanar de cabeça.

- Não sei bem por onde começar - admitiu ele, tentando encontrar as palavras adequadas entre uns quantos goles de café.

- Talvez pelo princípio? - sugeriu ela, encorajando-o com um sorriso que pretendia pô-lo mais à vontade.

- Pelo princípio. Sim. Bem... Acho que o princípio é que não fui eu quem administrou a morfina à Charlotte Thomas, tendo sido a Christine a fazê-lo. - David bebeu mais algum do café. - Doutora Armstrong, o que eu tenho para lhe contar é quase inacreditável, trata-se de um assunto potencialmente explosivo. A Christine e eu decidimos partilhá-lo consigo, porque... bem, porque temos esperanças de que possa utilizar a sua posição e influência para nos ajudar.

- David, você sabe bem que estarei disposta a colocar-me a mim própria, bem como qualquer influência de que eu possa gozar, à vossa disposição. - Inclinou-se mais para a frente, a fim de lhe proporcionar uma visão mais próxima do sentimento de confiança que ela pretendia que ele lesse nos seus olhos.

Ao cabo de alguns minutos, David já tinha mergulhado totalmente na história de Charlotte Thomas, passando à d'A Irmandade da Vida.

Inicialmente, Armstrong incentivou-o a que prosseguisse com a sua narrativa, atitude que secundou uma série de acenos de cabeça, gestos e sorrisos, intercalados por algumas interrupções ocasionais, cuja finalidade era o esclarecimento de um determinado ponto.

Não obstante estes sinais de encorajamento, ao cabo de pouco tempo, a postura da médica começou a mostrar-se cada vez mais rígida, enquanto a expressão do seu olhar se tornava mais impassível. Gradualmente, e de forma bastante imperceptível, o convite caloroso à narração que se refletia nos seus olhos azuis deu lugar a uma extrema frieza.

Ainda assim, David continuou a falar, sentindo-se aliviado por poder partilhar o peso

daqueles segredos que tanto o oprimiam, os quais, até ontem, o haviam sobrecarregado, a única pessoa totalmente alheia à organização que lhes dera origem. Decorreu quase meia hora até que ele começou a ver a transformação que se havia operado na atitude da mulher.

- Pass... passa-se alguma coisa? - perguntou ele mostrando algum alarme.

Sem lhe dar resposta, Armstrong levantou-se do cadeirão e começou a caminhar num passo vacilante em direção a um telefone que se encontrava sobre uma pequena mesa situada no extremo oposto do laboratório. Depois de uma conversa breve travada num tom de voz sussurrante, regressou para junto dele, sentando-se pesadamente numa cadeira do outro lado da mesinha em frente de David. Inesperadamente, ela apresentava um aspecto frágil bastante mais envelhecido.

- David - recomeçou ela com uma expressão extremamente séria -, por acaso você

discutiu este assunto com qualquer outra pessoa além de mim?

- Não, certamente que não. Eu já lhe tinha dito isso mesmo. Nós estávamos esperançados em que nos pudesse ajudar, sem que se envolvesse...

- Gostaria que você recomeçasse a sua narrativa. Existem alguns aspectos que desejo ver mais clarificados.

- Chris, estás acordada? Consegues ouvir-me?

A voz dava a impressão de ecoar vinda de uma grande distância. Christine abriu os olhos, pestanejou por várias vezes tentando focar o seu campo de visão. Reconheceu a mulher que se lhe dirigia como sendo uma das enfermeiras, embora as suas feições continuassem a ter uns contornos pouco visíveis, o que lhe causava algum mal-estar. Tentou voltar-se para poder ficar deitada de lado. Sentia um latejar que lhe provocava náuseas, a par de uma pressão excruciante dentro da cabeça, o que lhe tornava impossível mudar de posição. O quarto mantinha-se numa semiobscuridade, mas até mesmo a pouca luminosidade que vinha da luz do corredor lhe era insuportável.

- Estou acordada - disse ela. - A luz magoa-me os olhos. - Com lentidão, fechou-os.

- Chris, a doutora Armstrong deu instruções para que as tuas pupilas fossem verificadas de hora a hora. Fá-lo-ei tão depressa quanto me for possível.

Christine sentiu os dedos da enfermeira sobre a sua vista direita, ao que se seguiu uma dor penetrante quando o feixe de luz, projetado pela diminuta lanterna, lhe incidiu sobre a pupila. Uma pequena pausa e foi a vez de o olho esquerdo sofrer o mesmo tormento.

Tentou erguer as mãos; contudo, estas recusavam-se a mexer-se. Estaria ela presa à cama? Sentia o braço direito, muito especialmente, entorpecido e pesado. Por uns

momentos pensou que teria sido amputado. Mas foi então que se recordou de que a Dra. Armstrong lhe dissera que estava quebrado. Acomodou-se melhor sobre a almofada e obrigou-se a descontrair o corpo.

- Ouve, vou deixar-te dormir por mais algum tempo - disse a enfermeira. - Dentro de cerca de vinte minutos, temos de substituir a solução intravenosa. Nessa altura estou a pensar em te acordar, e podemos aproveitar para retirar mais alguns destes estilhaços de vidro do teu cabelo. Estás de acordo? - Christine acenou que sim o melhor que lhe foi possível. - Ei, quase me esquecia. Só chegaste há algumas horas ao hospital e já estás a receber flores. Foram entregues há uns dois minutos. São lindíssimas. Vou colocá-las nesta mesa perto de ti. Sei que não consegues vê-las, mas talvez lá mais para a noite já sejas capaz de olhar para elas. Trazem um cartão. Queres que te leia o que diz?

- Sim, por favor - retorquiu Christine numa voz enfraquecida.

- Deseja-te os melhores votos de uma recuperação rápida, e está assinado por uma

Dahlia.

Dahlia? As dores e o inchaço que Christine sentia no cérebro dificultavam-lhe o poder de concentração.

- Mas... eu... não conheço... nenhuma... Dahlia - replicou ela.

A mulher já tinha saído do quarto.

- David, esse assassino, esse... esse Vincent, tem de me dizer outra vez como é que acha que ele conseguiu descobrir que você se encontrava no Serviço de Urgências, e também como é que deu com o paradeiro do seu amigo.

David começou a mexer na capa de uma revista que largou logo em seguida, colocando-a sobre a mesinha de café e esfregando os olhos. Aquilo que se iniciara como sendo um confortável partilhar de um fardo, que há muito esperava ser partilhado, havia-se transformado num interrogatório cheio de tensão, à medida que a Dra. Armstrong o sondava para obter todo e qualquer pormenor. Sentia-se pouco seguro, perplexo e ameaçado pelas perguntas da mulher, assim como pela tensão que adivinhava no seu timbre de voz.

- Bem vê - continuou ele sem sequer tentar disfarçar a apreensão crescente que não o abandonava -, já lhe contei tudo aquilo que sei, por duas vezes. As minhas teorias quanto à maneira como o Vincent encontrou o Ben, eu próprio e depois o Joey, não passam disso mesmo... meras teorias. Doutora Armstrong, eu sei que neste hospital está a passar-se qualquer coisa de estranho. Existe algo que eu lhe disse que lhe causou preocupação. Não tenciono partilhar mais nenhum pormenor consigo, a menos que se decida a usar de franqueza para comigo. Agora, por favor, qual é o problema?

A expressão nos olhos dela era absolutamente glacial.

- Meu jovem, a maior parte daquilo que me contou é absolutamente impossível, não pode ter acontecido. É um autêntico absurdo. Tudo isso não passa de uma série de conclusões doentias e aberrantes, que só poderão causar sofrimento e desgosto a muita gente boa e inocente. - David olhava fixamente para ela sem querer acreditar nos seus ouvidos. - Está a atiçar as labaredas de uma fogueira cuja amplitude você não compreende. Esse tão famoso assassino que você acabou de me descrever... É absolutamente impossível que ele tenha alguma ligação com a Irmandade da Vida.

- Mas...

- Já lhe disse que é impossível! - ripostou a médica aos gritos.

- Exatamente, o que é que é impossível? - As cabeças de ambos voltaram-se simultaneamente em direção da porta. Dotty Dalrymple observava com uma postura plena de calma, mantendo as mãos nas algibeiras do seu uniforme. David começou a sentir a pele arrepiada perante a visão da mulher.

- Oh, Dorothy, ainda bem que conseguiste vir até cá abaixo tão depressa. - A voz de Armstrong denotava uma grande tensão, embora não houvesse perdido a compostura. - Telefonei-te porque o doutor Shelton esteve a contar-me uma história absolutamente ridícula a respeito d'A Irmandade da Vida: assassinos sob contrato e...

- Eu tenho conhecimento de tudo o que ele te contou - atalhou Dalrymple com as faces inchadas por um meio sorriso - Eu sei muito bem o que é que ele tem estado a contar-te - Ergueu a mão direita que tirou do bolso. Quase perdido no seu punho carnudo via-se um revólver de cano empinado.

- A luz... por favor, desliguem a luz. - Mesmo através das pálpebras fortemente cerradas, Christine conseguia sentir a intensidade da luz.

Duas mulheres - uma enfermeira e uma auxiliar - retiravam fragmentos de vidro dos seus cabelos, servindo-se de pinças.

- De acordo, Chris - disse uma delas. - Imagino que já te tenhamos torturado o suficiente por agora. Vou ter de te despertar dentro de quarenta minutos. Nessa altura, poderemos tentar tirar mais alguns estilhaços. Estás de acordo? - Desligou a luz do teto. - Espera um minuto, peço-te desculpa mas vou ter de a ligar de novo. É só mais alguns segundos para poder ajustar o fluxo da tua solução intravenosa, que acabamos de substituir.

- Na tua pequena ementa vinha mencionada uma costeleta de vaca de carne de primeira, assim como faisão, servidos numa cama de bocados de vidro, mas dado que tu não assinalaste nenhum destes pratos, decidimos servir-te a especialidade da casa: uma combinação de dextrose e água.

Uma explosão que durou dez segundos e, uma vez mais, o quarto ficou obscurecido.

Christine tentou ignorar o latejar que sentia no crânio.

- A propósito - acrescentou a enfermeira -, a Mamã Catatua esteve no nosso piso ainda não há muitos minutos. A laia de manada, levou-nos a todas para a sala de reuniões, onde acentuou bem que as cabeças rolariam se tu não recebesses, da parte de toda a gente, um tratamento de primeira classe. Como se nós pudéssemos tratar-te de maneira diferente. Bem... até mais tarde.

Christine ouviu a mulher sair do quarto. A Mamã Catatua. Por alguns instantes, debateu-se com aquela expressão. Ao fim de algum tempo recordou-se. Dalrymple! Subitamente, sentiu um turbilhão na cabeça formado por fragmentos desarticulados de várias informações. Dalrymple a condenar David. Dalrymple a oferecer-lhe um suborno. A sua mente entrou numa atividade ao retardador, que tinha lugar através de tecidos lesionados e tumefactos, esforçando-se por compreender. Bem no fundo do seu íntimo, a apreensão que sentia começou a firmar-se, alimentando o latejar já de si insuportável que lhe atormentava a cabeça. Dalrymple! Seria possível que ela fosse a responsável? Nada daquilo fazia o mínimo sentido. Nada, com a exceção de que tinha de encontrar David.

Era forçoso que Christine falasse com ele. Tentou mexer-se para conseguir chegar ao telefone em cima da mesa-de-cabeceira. Tocou-lhe com a mão livre, mas fê-lo tombar no chão com um estrondo enorme.

Procurou o botão da campainha para chamar a enfermeira de serviço. Tinham-no prendido algures. Mas onde? Onde é que elas tinham dito que estava?

Vindas da escuridão que reinava acima da sua cama, as gotas de solução intravenosa continuavam a fluir inexoravelmente do saco de plástico, passando através do tubo e entrando no seu peito.

Christine remexia por entre a roupa da cama, continuando à procura do botão da campainha, quando sentiu que as dores começavam a abrandar. Bem dentro do seu organismo sentia um calor desconfortável que se espalhava por todo o corpo. Trinta segundos sozinha no balcão de serviço das enfermeiras... fora tudo o que Dotty Dalrymple necessitara.

David... telefonar a David. Christine esforçava-se por manter a sua força de vontade. As suas pálpebras cerraram-se, recusando-se a abrirem-se de novo. Havia tanta coisa a fazer, pensava ele. David... A Irmandade... tanta coisa ainda a fazer. A sua cabeça tombou contra a almofada. A mão ficou flácida caindo inerte para o lado. Bruscamente, nada daquilo parecia ter qualquer importância. Nada de nada.

Durante algum tempo, Christine ficou a ouvir um ruído ensurdecido que enchia o quarto.

Então, com um suspiro audível, rendeu-se à escuridão.

Dalrymple indicou a Armstrong com um gesto que se sentasse na cadeira junto de David.

Os seus olhos castanhos chispavam, sem ocultar um sentimento de ódio que era dedicado aos dois. O dedo semelhante a uma salsicha deslocou-se nervosamente contra o gatilho.

- Dorothy, por favor - suplicou Armstrong. - Conseguimos chegar tão longe. Partilhamos tanta coisa. Tu só estás a sentir um excesso de cansaço. Talvez se... - Oh Peggy, limita-te a permanecer sentada e cala a boca - ripostou a outra desabridamente.

David olhou atônito para a Dra. Armstrong.

- Peggy? Você? Mas você é uma...

- Uma médica? - adiantou Armstrong suprindo a palavra que interrompera. - Somente mais alguns anos de estudo e nada mais. Acredite no que lhe digo: a escola de enfermagem foi igualmente difícil. - Voltou a sua atenção para Dalrymple. - Dorothy, tu sabes bem que eu estou do teu lado.

- Estarás? Será que tu tomas o partido de alguém, para além do teu próprio? Não foste tu quem foi falar com a Beall. Não é o teu nome que ela associa à Irmandade. Não é a tua vida que ficará arruinada assim que ela falar com a Polícia. Eu tenho demasiadas coisas a meu favor, para me deixar ficar indiferente, enquanto isso acontece.

- Então... isso quer dizer que tu realmente é que és a responsável. Contrataste um assassino? - Dalrymple acenou uma vez com a cabeça. - Dorothy, como é que foste capaz de fazer uma coisa dessas?

- Não comeces a mostrar-te superior e importante comigo. A morte é o nosso jogo, não será verdade? Foste tu quem me ensinou. Agora tu traças os teus limites num lugar, enquanto eu traço num outro. Não mostraste a mais pequena relutância em falsificar receitas, para além de estares disposta a sacrificar o Shelton, aqui presente, com a finalidade de salvares a tua preciosa Irmandade. Aposto que se fosses tu quem tivesse falado com a Beall... caso houvesse sido o teu pescoço sobre o cepo, terias tomado as mesmas medidas que eu tomei, a fim de te protegeres a ti própria.

Armstrong começou a protestar, mas Dalrymple silenciou-a com um sacudir da arma.

Levou a mão a uma das algibeiras e, com um sorriso, agarrou numa seringa de grandes dimensões completamente cheia. Em seguida, viu as horas no seu relógio de pulso.

- São duas horas - continuou ela. - Se as minhas enfermeiras forem tão eficientes no seu trabalho como eu as treinei para que o fossem, a solução intravenosa que medicaste à nossa jovem Miss Beall já deve ter sido ministrada, tendo começado a entrar no seu organismo.

A sentença de morte de Christine! Sentindo um pânico súbito, David ficou a olhar mesmerizado para Dalrymple.

- O que é que você lhe deu? - Mudou a posição dos pés de molde a encontrar um ponto onde pudesse firmar-se melhor, começando à procura de uma abertura, ainda que muito diminuta.

Dalrymple pressentiu aquela alteração, o que a levou a empunhar o revólver de forma a que este ficasse diretamente apontado para o rosto de David.

- Seria inútil tentar o que quer que fosse. - Uma vez mais lançou um rápido olhar ao seu relógio. - Além do mais já é demasiado tarde. - Pousou a seringa em cima da mesa em frente dele. - Vocês dois serão um caso de assassínio e suicídio - continuou ela com toda a calma. - Francamente, é-me absolutamente indiferente o que corresponderá a cada um de vós, desde que a Polícia se sinta satisfeita por não existirem quaisquer dúvidas. Doutor, dou-lhe a escolha. A agulha ou a bala. Sendo você o médico astuto que de fato é, com toda a certeza que estará em condições de concluir que um dos métodos é consideravelmente mais doloroso do que o outro.

- Dotty, por favor, tu não sabes o que é que estás a fazer - implorou Armstrong, levantando-se da cadeira com o intuito de agarrar na mão livre de Dalrymple. Antes de David ter tempo para reagir, a chefe das enfermeiras descreveu um arco com o braço livre, mantendo as costas da mão viradas para a frente e desferindo um golpe violento e em cheio contra a face da mulher. Com um estalar audível, o malar esquerdo de Armstrong ficou fraturado. O seu corpo foi arremessado a toda a largura da sala, tendo ido embater contra a parede que se encontrava a uma distância de pouco menos de cinco metros.

Dalrymple continuava a manter David sob mira; o revólver encontrava-se apontado diretamente para o ponto entre os olhos do médico. A mulher olhou por cima do ombro para o corpo amarfanhado de Armstrong caído no chão.

- Há tanto tempo que eu desejava ter feito isto - disse ela com um sorriso. - Agora nós, doutor, tem uma escolha a fazer. - Ela contornou a mesa, empurrando-a para trás com uma perna que mais parecia o tronco de uma árvore, o que lhe permitiu ter mais espaço para poder movimentar-se. O orifício do cano do revólver encontrava-se a apenas trinta centímetros da testa de David, enquanto ela lhe oferecia a seringa. - Faça o favor de se decidir - urgiu Dalrymple numa voz suave.

David olhava fixamente para a mulher quando, pelo canto do olho, detectou movimentos.

Margaret Armstrong, apoiada sobre as mãos e os joelhos, avançava pelo chão centímetro a centímetro. Cheio de desespero, David obrigou os seus olhos a continuarem a manter contacto com os de Dalrymple.

- Ora bem?... - inquiriu ela. - A minha paciência está a começar a esgotar-se.

David agarrou na seringa e examinou-a minuciosamente.

- Eu... Não me parece que consiga prosseguir com isto, a menos que seja aplicado um torniquete - disse ele numa tentativa para ganhar tempo. No momento em que Dalrymple baixou o olhar, ele aproveitou para observar os movimentos de Armstrong. A cardiologista estava cada vez mais próxima. Foi então que reparou nas mãos da médica. - Em cada uma tinha uma pequena placa de metal. O desfibrilador! Armstrong tinha ligado o mecanismo. As placas que se encontravam ligadas àquele equipamento por fios em espiral tinham a potência de transmitir quatrocentos joules.

David arregaçou a manga, fechando e abrindo o punho por diversas vezes. Os fios já estavam quase inteiramente distendidos, embora Armstrong ainda se encontrasse a uma distância de mais ou menos três metros.

A mão de Dalrymple fechou-se com maior firmeza à volta da coronha do revólver.

- Agora! - ordenou ela.

- Dotty! - gritou Armstrong.

Ao ouvir a voz, Dalrymple girou subitamente sobre os calcanhares, na mesma altura em que David investia sobre ela. Com toda a violência, impeliu um ombro contra o tórax largo da mulher. Esta cambaleou para trás, embatendo contra a mesinha do café, que era baixa, com a parte de trás dos joelhos. Tombou como se fosse uma sequóia gigantesca, fragmentando a pequena mesa. Quando o seu corpo enorme caiu no chão, Armstrong lançou-se sobre ela, fazendo pressão com ambas as placas contra as faces da mulher e, em simultâneo, aliviou a pressão sobre o botão que transmitia a carga.

O crepitar ensurdecido e a centelha que saíram das placas foram, imediatamente, seguidos por uma pequena nuvem de fumo. Os braços de Dalrymple ergueram-se em movimentos descontrolados, enquanto o seu corpo era atravessado por espasmos, elevando-se vários centímetros acima do chão. O cheiro a carne queimada enchia o ar. Da sua boca jorraram jactos de vomitado; a cabeça da mulher dobrou-se para trás como que desligada do resto do corpo. No momento da sua morte, os esfíncteres da sua bexiga e intestinos deixaram de exercer controlo sobre essas funções do seu organismo.

Durante vários segundos, David manteve-se imobilizado, olhando com fixidez para as duas mulheres - uma lesionada e a outra morta. Então, com um sentimento de terror que lhe ressurgia, saiu disparado da sala num passo desajeitado, devido às dores que sentia, em direção à Ala Quatro Sul.

Margaret Armstrong, mal se agüentando sobre as pernas, mantinha-se encostada ao

lavatório, espargindo água fria sobre as faces. Sentia-se como se estivesse drogada,

incapaz de enquadrar o poder de concentração da sua mente. Atrás de si encontrava-se estendida a montanha de morte que tinha sido, momentos antes, a pessoa de Dorothy Dalrymple.

Com grande dificuldade, obrigou a sua concentração a focar-se na situação presente. No caso de Christine já estar morta, compreendeu ela, David Shelton era o único empecilho que poderia impedir a continuação da sua Irmandade. Poderia ele ser eliminado? Deveria essa ação ser levada a cabo? Peggy Armstrong sabia que confessaria de bom grado um assassínio - estaria disposta a sacrificar-se a si própria - com o objetivo de salvar o movimento. Mas teria ela a coragem de matar uma pessoa inocente?

Num passo vacilante, dirigiu-se para a porta onde se voltou para trás, olhando com desprezo para o corpo de Dalrymple. Se uma mulher que ela estivera convencida de

conhecer tão bem, o que implicitamente a levara a depositar toda a sua confiança nela, havia sido capaz de tentar comprar a sua própria segurança por um custo tão elevado, como é que ela poderia ter a certeza de que num período de crise não existiriam outras?

Sentindo-se tremer, o que se devia mais aos seus pensamentos do que aos ferimentos que sofrera, Armstrong procurou apoio numa parede a que se encostou. Estaria tudo terminado? Depois de tantos anos, de tantos sonhos, teria aquilo que ela mais almejara chegado ao fim?

Saiu do seu gabinete fechando a porta à chave. O zelador não iria ali até depois do início da manhã seguinte. Dentro de menos de vinte e quatro horas. Caso ela desejasse salvar A Irmandade, restava-lhe somente aquele espaço de tempo para poder arquitetar os seus planos, para se preparar, para agir. As perguntas, uma após outra, desfilavam incessantemente pelos seus pensamentos. Valeria aquilo o preço de uma outra vida?

Estaria ela em condições de o fazer? Haveria alguma explicação que se mantivesse viável?

Naquele momento, as respostas àquelas questões não se vislumbravam no horizonte.

- Vá, vá - urgiu ela. -constantemente.

David acenou num gesto de agradecimento, encaminhando-se apressadamente para o balcão das enfermeiras.

- Peçam a máquina de reanimação para o quarto quatrocentos e doze - disse ele, ofegante.

- Também preciso de pessoal que me ajude. Peçam a máquina de reanimação para o quarto quatrocentos e doze.

A secretária daquela ala, que se mostrou assarapantada por breves momentos, agarrou no telefone.

Para David, a cena que se lhe deparou no quarto 412, foi a reprise de um sonho pavoroso.

A obscuridade, o som do borbulhar do oxigênio, a tubagem por onde passavam as soluções intravenosas, o corpo imóvel. Ligou as luzes do quarto e correu para a cama.

Christine, que se encontrava serenamente deitada de costas, era a expressão de uma máscara de morte. Através do alto falante do corredor, a operadora de serviço começou a dar o alerta num tom de voz onde transparecia uma urgência incaracterística.

- Máquina de reanimação à Ala Quatro Sul... Máquina de reanimação, Quatro Sul...

Durante um segundo, talvez dois, os dedos de David percorrem o pescoço de Christine, procurando a pulsação na artéria carótida. Conseguiu senti-la. O batimento rítmico e enfraquecido contra a ponta dos dedos indicador e médio. Seria o seu próprio pulso ou o de Christine? Naquele mesmo momento, como que em resposta à incerteza que sentia, ela respirou audivelmente, um sopro de ar único e maravilhoso, embora pouco profundo.

Com aquele primeiro som, o seu peito soergueu-se quase imperceptivelmente, o que fez com que David entrasse em ação sem mais perdas de tempo. Interrompeu o fluxo que fluía através da tubagem, debruçou-se sobre ela e aplicou-lhe respiração boca a boca por duas vezes.

Antes de ter terminado, surgiu uma enfermeira que irrompeu quarto adentro, trazendo atrás de si o carrinho com a máquina de reanimação. Ao longo dos minutos que se seguiram, os dois, enfermeira e cirurgião, uniram esforços funcionando como se fossem uma só pessoa. Aquela mulher jovem era uma verdadeira maravilha, uma coordenadora nata em situações de emergência tendo sempre à mão o medicamento ou o instrumento que eram necessários na altura, mesmo antes de David os pedir.

 

Servindo-se do corrimão para se firmar, David desceu rapidamente as escadas que

ligavam a Ala Dois Norte à Um Norte. As vagas de adrenalina abafaram os gritos que o seu tornozelo soltava. Irrompeu esbaforido pela entrada do corredor central, dispersando um grupo de freiras horrorizadas com a sua atitude.

No átrio principal, assistia-se à situação caótica característica do meio do dia. David

esgueirou-se por entre as pessoas, dando encontrões, qual jogador em campo aberto a jogar ao ataque, e deixando à sua passagem dois homens esparramados no chão enquanto estes praguejavam contra ele.

- Agüenta-te, querida, por favor, não desistas - disse David arquejante, subindo desesperadamente as escadas da Ala Sul. Até mesmo percorrendo os degraus dois a dois, estes davam-lhe a impressão de serem infindáveis, parecendo que se duplicavam por si próprios em cada um dos patamares. - Luta contra a besta. Faz frente ao veneno que ela instila. Por favor...

Os seus pés pesavam-lhe que nem chumbo. As pernas cederam entre o terceiro e o quarto andares, o que voltou a acontecer enquanto ele entrava num passo cambaleante na Ala Quatro Sul.

O corredor encontrava-se deserto, com a exceção de uma auxiliar de enfermagem que se esforçava por prender um homem, de forma segura, de idade à sua cadeira de rodas. No espaço dos poucos segundos em que ela se dedicou a olhar embasbacada para aquela aparição que coxeava na sua direção, o seu doente, que fora vítima de uma trombose, conseguiu libertar-se, tendo caído desamparadamente no chão. A auxiliar, ao aperceber-se da urgência, fez-lhe sinal que passasse.

- Vá, vá - urgiu ela. - O Clarence costuma fazer isto constantemente.

David acenou num gesto de agradecimento, encaminhando-se apressadamente para o balcão das enfermeiras.

- Peçam a máquina de reanimação para o quarto quatrocentos e doze - disse ele, ofegante.

- Também preciso de pessoal que me ajude. Peçam a máquina de reanimação para o quarto quatrocentos e doze.

A secretária daquela ala, que se mostrou assarapantada por breves momentos, agarrou no telefone.

Para David, a cena que se lhe deparou no quarto 412, foi a reprise de um sonho pavoroso.

A obscuridade, o som do borbulhar do oxigénio, a tubagem por onde passavam as

soluções intravenosas, o corpo imóvel. Ligou as luzes do quarto e correu para a cama.

Christine, que se encontrava serenamente deitada de costas, era a expressão de uma máscara de morte. Através do altifalante do corredor, a operadora de serviço começou a dar o alerta num tom de voz onde transparecia uma urgência incaracterística.

- Máquina de reanimação à Ala Quatro Sul... Máquina de reanimação, Quatro Sul...

Durante um segundo, talvez dois, os dedos de David percorrem o pescoço de Christine, procurando a pulsação na artéria carótida. Conseguiu senti-la. O batimento rítmico e enfraquecido contra a ponta dos dedos indicador e médio. Seria o seu próprio pulso ou o de Christine? Naquele mesmo momento, como que em resposta à incerteza que sentia, ela respirou audivelmente, um sopro de ar único e maravilhoso, embora pouco profundo.

Com aquele primeiro som, o seu peito soergueu-se quase imperceptivelmente, o que fez com que David entrasse em ação sem mais perdas de tempo. Interrompeu o fluxo que fluÍa através da tubagem, debruçou-se sobre ela e aplicou-lhe respiração boca a boca por duas vezes.

Antes de ter terminado, surgiu uma enfermeira que irrompeu quarto adentro, trazendo atrás de si o carrinho com a máquina de reanimação. Ao longo dos minutos que se seguiram, os dois, enfermeira e cirurgião, uniram esforços funcionando como se fossem uma só pessoa. Aquela mulher jovem era uma verdadeira maravilha, uma coordenadora nata em situações de emergência, tendo sempre à mão o medicamento ou o instrumento que eram necessários na altura, mesmo antes de David ter oportunidade de expressar os seus pensamentos por palavras.

Em face de um veneno cuja natureza ignorava, a abordagem de David foi feita sem que estivesse com meias-medidas: começou a ministrar-lhe uma nova solução intravenosa, cuja finalidade era diluir as toxinas, ao mesmo tempo que ajudava o organismo de Christine a manter uma tensão arterial constante; também lhe aplicou um tubo por via oral, tendo ela começado a receber respiração através de uma bomba manual Ambu, o que a mantinha adequadamente ventilada; estas medidas foram acompanhadas da administração de bicarbonato, que se destinava a contra-atacar a acumulação de ácido láctico.

A coloração da epiderme de Christine escureceu ainda mais. David arriscou afastar-se por uns momentos da bomba de ventilação manual, erguendo-lhe as pálpebras. As suas pupilas eram pontos negros e ínfimos, perdidos nos círculos castanhos que as retraíam: pupilas da dimensão de cabeças de alfinete devido a uma dose excessiva de uma qualquer droga. "Meu Deus, que seja morfina." Pediu que fossem buscar Naloxone, o antídoto altamente eficaz para combater as drogas narcóticas. Ao fim de poucos segundos, a enfermeira já tinha injetado o fármaco.

Ao cabo de mais uns quantos sopros de ar, David interrompeu-se de novo. Desta vez foi para voltar a verificar o ritmo da pulsação da carótida. Com uma profunda sensação de quem se afogava, verificou que esta era inexistente.

- Por favor, coloque-lhe uma prancha por baixo do corpo - instruiu ele, soerguendo os ombros de Christine acima da cama. - Vai ter de se esquecer do pessoal médico de emergência e começar a fazer compressões torácicas sucessivas até que apareça alguém para nos auxiliar. Cristo! Onde é que pára todo o pessoal médico deste hospital? - David expressava-se com ansiedade e rapidez.

- Uma das enfermeiras foi para casa porque se sentia adoentada - explicou a mulher, articulando as suas palavras com a mesma cadência que imprimia às compressões que fazia sobre o esterno de Christine, servindo-se apenas das mãos. - Há duas que estão na hora de almoço. Estas não hão de tardar muito.

David continuava a aplicar a ventilação artificial.

- Precisamos de alguém que trabalhe com o equipamento de reanimação - resmungou ele.

- Temos necessidade de alguém na merda do carrinho de reanimação. - Uma vez que a enfermeira não podia interromper as massagens cardíacas, os tabuleiros que continham os medicamentos, que tão críticos eram numa situação daquelas, poderiam muito bem estar na lua, que o resultado teria sido rigorosamente o mesmo.

Entretanto, apareceu um auxiliar de enfermagem. Com modos bruscos, David disse-lhe que verificasse a tensão arterial.

- Nada - concluiu o homem depois de ter tentado por duas vezes.

- Sabe fazer ressuscitação cardiopulmonar? - perguntou David esperançado em poder libertar a enfermeira, para que esta pudesse operar a máquina de reanimação. O homem abanou a cabeça, afastando-se da cama. - Merda! - exclamou David numa voz sibilada.

Baixou o olhar para Christine. A respiração espontânea deixara de existir; qualquer indício de vida era absolutamente nulo. A sua pele adquirira o mosqueado de uma coloração de um azul-profundo. A menos que tivesse ajuda dentro de muito pouco tempo - sob a forma de um par adicional de mãos capazes - Christine entraria numa fase em que qualquer tipo de reanimação seria inútil. Durante cinco ou dez segundos, David manteve-se imobilizado. A jovem enfermeira observava-o; os seus olhos encontravam-se semi cerrados, deixando transparecer uma preocupação crescente.

- O que quer que seja de que tenha necessidade... é só pedir, doutor - disse a voz de Margaret Armstrong, que se colocara junto da máquina de reanimação. O seu olho esquerdo estava tão inchado que ela mal conseguia abrir a pálpebra, o que se devia a um hematoma enorme que abrangia completamente a face desse lado. De uma das narinas escorria-lhe um fio de sangue. Apesar daquelas lesões, ela mantinha a sua habitual postura régia, sem que parecesse dar-se conta dos olhares inquiridores por parte dos que se encontravam presentes no quarto.

A capacidade de decisão de David, que já sentia bastante abalada pela falta de resposta de Christine, agudou-se ainda mais pelo receio que a incerteza lhe inspirava.

- Você... você poderá aplicar as massagens cardíacas retorquiu ele, desejando que a mulher não se tivesse colocado tão próximo do carrinho onde se encontravam os medicamentos. Nele existia um variado número de fármacos que poderiam ser utilizados como armas letais.

- Não, não - contrapôs Armstrong, dando mais ênfase às suas palavras com um abanar de cabeça. - Vocês dois são bastante mais fortes do que eu. Para já não mencionar o fato de eu também ter curso de enfermagem e, devo acrescentar, que sou uma enfermeira das mais qualificadas. Eu responsabilizo-me pelos medicamentos. Agora... que raio de coisa, não percamos mais tempo!

David hesitou por um momento antes de começar a agir com toda a celeridade, pedindo os antídotos que haviam de neutralizar as substâncias que Dalrymple, muito

provavelmente, teria utilizado. O violento golpe que Armstrong sofrera na face não parecia ter afetado as suas reações, nem tão pouco a eficiência que lhe era característica. Na realidade, ela era, tal como tinha afirmado, uma enfermeira incrivelmente bem qualificada. A adrenalina, o concentrado de glucose, mais Naloxone, cálcio, mais bicarbonato - substâncias que ela manuseou e administrou com rapidez, com uma grande economia de movimentos supérfluos.

Entretanto, começou a chegar o auxílio suplementar. Houve outra enfermeira que se

ofereceu para substituir a Dra. Armstrong; no entanto, esta foi incumbida de monitorizar a tensão arterial.

- Ela não está a respirar pelos seus próprios meios - disse David. - Acho que seria

preferível entubá-la.

Armstrong estendeu o braço e começou a exercer pressão com os dedos sobre a região das virilhas de Christine, tentando encontrar a pulsação da artéria femoral. Olhou para David com uma expressão sombria, seguida de um abanar de cabeça.

- Nada - observou a médica.

- Muito bem. Dêem-me um laringoscópio e um tubo sete ponto cinco.

- Espere! - Os olhos de Armstrong começaram a sorrir. - Espera. . espere... está aqui, doutor - anunciou ela. - Já a encontrei.

- Tenho uma leitura - informou a enfermeira que vigiava a tensão arterial alguns segundos mais tarde, exibindo um ar satisfeito. - Estou a ouvir a tensão! Fraca, a sessenta. Não, esperem, passou para oitenta. Cada vez é mais elevada! Estou a ouvir com uma grande nitidez!

David voltou a examinar as pupilas de Christine. Sem sombra de dúvida que se haviam alargado um pouco mais. Decorridos outros quinze segundos, ela recomeçou a respirar. A jovem enfermeira que desde o início dera a sua ajuda ergueu os polegares na direção de David, dando murros ao alto no vazio. numa demonstração de todo o contentamento que sentia.

A última preocupação que afligia a mente de todos desapareceu, quando Christine começou a gemer suavemente, rolando a cabeça de um lado para o outro; a pouco e pouco, foi entreabrindo as pálpebras. Com os olhos completamente abertos, fitou David de imediato.

- Olá - saudou ele num murmúrio.

- Olá, também para ti - respondeu ela.

Pelo quarto, as pessoas congratulavam-se umas às outras.

- Eu... eu estou a sentir-me muito melhor. Já quase não sinto dores de cabeça. - A sua expressão ensombrou-se. - David, Miss Dalrymple. Eu tenho a impressão que é muito possível que ela seja a...

David silenciou-a com um dedo que levou aos lábios.

- Eu sei, minha querida - retorquiu ele com uma expressão com que pretendia tranqüilizá-la. - Eu já estou a par de tudo.

Christine esforçou-se por conseguir ler nas entrelinhas, com o que se acalmou notoriamente.

- Estou a sentir-me melhor. Muitíssimo melhor, David. A doutora Armstrong é uma enfermeira miraculosa.

- Sim... - redargüiu David, lançando um olhar na direção da médica. - Uma enfermeira miraculosa.

O olhar de Margaret Armstrong foi ao encontro do dele, onde se manteve por breves instantes. Em seguida, agradeceu numa voz sussurrada a todos os que se encontravam presentes no quarto, o que fez um a um, indicando-lhes com um gesto que saíssem.

A jovem enfermeira foi a última a abandonar o quarto. Armstrong acompanhou-a até ao corredor.

- Você fez um trabalho maravilhoso ali dentro - disse ela à jovem. - Sinto-me extremamente orgulhosa de si.

- A senhora... a senhora doutora está ferida - comentou a enfermeira, corando de orgulho ao ouvir as palavras da outra - Posso ajudá-la em alguma coisa?

- Eu estou bem - replicou Armstrong. - Agora você deve regressar para junto dos seus doentes. - Dito aquilo a médica girou sobre os calcanhares e voltou a entrar no quarto 412. Bem no seu intimo, sabia que no mesmo instante em que se aproximara no carrinho onde viera a máquina de reanimação, tendo selecionado os medicamentos adequados à situação de emergência, selara inexoravelmente o destino d'A Irmandade.

Christine permanecia adormecida. No lado oposto do quarto, David abrira parcialmente os cortinados, olhando através da janela para a tarde nublada. As suas mãos mantinham-se pesadamente caídas ao longo dos flancos; a sua postura não refletia nenhum do sentimento de vitória que acabara de conseguir alcançar. Armstrong abeirou-se dele em passos silenciosos. Mas ele não desejava olhar para a médica. Durante breves momentos, o único som que se fazia ouvir no quarto era o gorgolejar da garrafa de oxigênio, substância que passava através do dispositivo de segurança, assim como a respiração tranqüila e estável de Christine.

- É um hematoma e peras o que tem no rosto - comentou David ao fim de algum tempo, mantendo o olhar sobre a cidade abaixo de si. - Acho que deveria ser examinada por alguém.

- Hei de tratar disso - disse ela. - Mais tarde.

- Aquela mulher, aquela... besta que está estendida no seu gabinete... ela foi o fruto da sua criação. O seu monstro.

- Talvez sim. Suponho que sob certos aspectos você tem toda a razão. Será que o fato de eu continuar a acreditar, verdadeiramente, no bem que A Irmandade da Vida tem vindo a fazer terá alguma relevância? A luta pela dignidade da morte humana será justa e terá alguma importância?

- Certamente - retorquiu David com uma certa rispidez. - Tem importância. Tal como é relevante em relação à fratura que a Christine sofreu no crânio. Tal como interessa no que se refere à trampa toda que ela terá de enfrentar... se... conseguir recuperar a sua saúde. Tal como é relevante para a merda do juiz e do promotor público, assim como para os jornais, que a irão julgar pelo assassínio da Charlotte Thomas. Tal como tem importância para os meus amigos que morreram, apenas porque... - A cólera e a frustração que o assolavam embargaram-lhe as palavras.

Decorreu um minuto de profundo silêncio antes de Armstrong Lhe dar réplica.

- David, eu compreendo o que é que você está a sentir. De verdade que sim. Também sei que a ajuda que prestei à Christine, e aquilo que fiz à Dalrymple, não conseguirão eliminar o sofrimento por que vocês dois passaram. Mas também tenho conhecimento de outra coisa. Algo que contribuirá bastante para sanar as vossas mágoas. - A médica hesitou. - Sei que a Christine jamais será forçada a responder sob a acusação de assassínio.

- O que é que você disse? - perguntou David, atônito, voltando-se subitamente para ela.

- A Christine não foi responsável pelo assassínio da Charlotte Thomas. - Com aquelas palavras, a médica fitou-o mostrando uma expressão de grande seriedade.

- Como... como é que pode afirmar uma coisa dessas?

- Não foi ela - retorquiu Armstrong num tom de voz neutro -, porque a responsável sou eu. O que posso vir a provar como sendo verdade.

- Christine, eu sou a Peg - continuou Armstrong pouco depois numa voz suave. - Peggy Donner.

Através da semi-obscuridade, Christine examinou o rosto da médica e, então, estendeu a mão, agarrando na da outra.

- A Irmandade... acabou?

- Ainda não, minha querida. Mas... mas dentro em pouco é o que acontecerá.

David perscrutou o semblante de Christine, tentando detectar raiva ou até surpresa; porém, não leu nenhuma destas emoções. Entre as duas mulheres, começara a estabelecer-se um laço de união, um vínculo que se situava muito fora do seu âmbito de compreensão. Observava as duas com um grande fascínio, mantendo-se em silêncio, hipnotizado por aquela cena.

- Christine - prosseguiu Armstrong, forçando-se a articular cada uma das palavras -, depois de sair deste quarto, vou começar a desmembrar A Irmandade. O que será feito em moldes que permitam que nenhuma das enfermeiras que dela fazem parte saia prejudicada de todo este processo. Isto é, desde que você e o David possam continuar a viver com os segredos que nós três partilhamos. Está a compreender o que lhe digo?

- Compreendo - replicou Christine com um ligeiro acenar de cabeça. - Mas... e os relatórios... as fitas gravadas?...

- Tudo isso será destruído. Tudo, isto é, com a exceção de um. Esse ser-lhe-á enviado. Foi elaborado por mim depois de ter injetado na Charlotte uma dose fatal de potássio.

Christine, a quantidade de morfina que você lhe ministrou não foi o suficiente. Ela era mais forte, bastante mais resistente do que todos nós pensávamos. A Charlotte era minha amiga. Ela era... ela era uma das nossas irmãs. Eu tinha-lhe prometido que lhe proporcionaria uma morte serena. Depois de você ter saído do quarto dela, eu fui lá para me despedir. Para lhe dizer um último adeus. Verifiquei que a Charlotte continuava a respirar com facilidade. Esperei um pouco, mas a respiração parecia ser cada vez mais forte. Chegou mesmo a abrir os olhos por breves instantes. Eu tinha-lhe feito uma promessa. Eu amava-a como... Gostava tanto dela como se fosse a minha própria mãe.

Eu... - Armstrong não conseguiu continuar. Pela primeira vez em quase cinqüenta anos, começou a chorar.

Christine soltou os dedos, passando-os pelas lágrimas que corriam pelas faces da mulher mais velha.

 

Armstrong fechou a porta do quarto 412, na altura em que David verificava a tensão arterial de Christine, o que fazia pela primeira vez desde a reanimação. Em seguida, e com todos os cuidados, soergueu-lhe a cabeça afastando-a da cama. Tinha estado a ouvir a história da mulher durante um minuto ou dois, antes de se aperceber da importância que teria para Christine inteirar-se daquele assunto.

Sentado à beira da cama, colocou uma mão debaixo da cabeça da enfermeira. O quarto mantinha-se numa semi-obscuridade, com a exceção de um feixe de luz solar pálida que se filtrava através de uma abertura dos cortinados parcialmente afastados. David tremia de excitação quando começou a acariciar-lhe as faces tumefactas e magoadas

- Chris, acorda, minha querida - chamou ele. - Tens de despertar.

Armstrong arrastou uma cadeira para junto da cabeceira da cama.

Christine abriu os olhos e mostrou a David um pequeno sorriso, após o que voltou a

cerrar as pálpebras.

- Eu estou acordada - afirmou ela numa voz enfraquecida. - É que sinto menos dores se mantiver os olhos fechados. Mas não te preocupes, estou a sentir-me bem. Mais uns dias e estarei em forma.

- Aposto que sim - disse David. - Chris, a doutora Armstrong está aqui. Ela quer dizer-te uma coisa. Eu... Eu pensei que talvez quisesses ouvir o que ela tem a dizer.

- Christine? Consegue ouvir-me? Sou a Margaret Armstrong. - Christine virou a cabeça na direção da voz e, uma vez mais, abriu os olhos. Pelo espaço de vários segundos, as duas mulheres entreolharam-se.

- Sinto um grande afeto por si, Peggy - afirmou ela numa voz entrecortada. - Por tudo o que tentou fazer, amo-a do fundo do coração.

Passou um longo minuto antes de Armstrong retomar a palavra.

- Fiz tudo o que é necessário à nossa Irmandade. Agora tenciono falar com o tenente Dockerty, assumindo toda e qualquer responsabilidade pela morte da Charlotte. Acredite em mim, Christine, fui eu quem cometeu essa ação. - Voltou-se para David. - Também assumirei a responsabilidade do que aconteceu à Doroty, assim como pela morte dos seus amigos. Estou em crer que haverá muito menos perguntas, se não for sugerir que houve mais do que uma pessoa envolvida em todo este assunto.

David reparou na preocupação que se reflectia no rosto de Christine, à menção da palavra amigos.

- Mais tarde, explicar-te-ei, Christine - adiantou ele. - Doutora Armstrong, quero dizer-lhe o quanto dei apreço a tudo o que fez durante a reanimação. Por esse motivo, prometo-lhe que, desde que cumpra o que disse, da minha parte não existirá qualquer interferência.

- Muito obrigada - agradeceu Armstrong, observando a frieza que se espelhava nos olhos dele; inclinou-se para baixo e beijou Christine na testa. Momentos depois, a médica já tinha abandonado o quarto.

David ajoelhou-se junto da cama. A escassa luminosidade que havia no quarto não

ocultava os olhos umedecidos de Christine.

- Quando saíres daqui - continuou ele - uma viagem até uma qualquer pequena povoação empoeirada no México.

- Mas depois regressamos aqui, está bem? - No seu sorriso via-se um misto de alegria e de tristeza.

- Sim, havemos de voltar - confirmou David.

Ela fechou os olhos. Por alguns instantes, deu a impressão de ter voltado a adormecer, mas, quando ele fez menção de se ir, Christine agarrou-lhe na mão.

- David, importas-te de me dizer só mais uma coisa agora? - perguntou ela.

- De que é que se trata?

- A chapa de matrícula do teu carro é personalizada?

John Dockerty bebeu de um trago o que restava do café já retardado da sua caneca e recostou-se mais na cadeira onde se sentara. Fora necessária toda a noite e parte da manhã para fazer com que Marcus Quigg cedesse finalmente, acabando por lhe indicar o nome que pretendia saber. O triunfo - se é que poderia classificar-se nesses termos - tinha um sabor pouco satisfatório. Muito possivelmente, a imagem daquele homem de estatura baixa iria assombrá-lo por toda a vida.

O fato de a responsável pelos assassínios ser Margaret Armstrong, assim como pelos demais erros, eram fatores que, aliados àquele farmacêutico tão patético, só faziam com que as coisas houvessem piorado. Ela era uma pessoa por quem ele sentira respeito e, ainda mais deprimente do que isso, alguém em quem ele tinha depositado toda a sua confiança.

- John Dockerty, o detetive inato - disse ele com mordacidade. - Dançou na praça pública ao som da batuta de uma senhora, que veio a descobrir-se mais tarde ser completamente tarada. - Pois bem, do mal o menos, ele tivera a satisfação de poder dizer ao seu comandante, embora não o tivesse feito por tantas palavras, o cara de cu que o homem fora por ter ordenado precipitadamente a prisão de David Shelton.

Dockerty viu as horas no seu relógio de pulso. Já havia passado quase uma hora desde que o comandante lhe prometera encontrar um magistrado que lhe passasse um mandado de captura provisório, que lhe permitiria proceder à detenção de Armstrong.

Coçou a face com a barba já um pouco crescida, ponderando se se barbearia ou não, quando a campainha do telefone começou a tocar.

- Investigações. Fala Dockerty - atendeu o detetive. - Sim, comandante... isso é esplêndido, chefe... eu desço imediatamente para o ir buscar... Sim, senhor, eu sei que ele deu a impressão de ser tão culpado quanto o próprio pecado. Se eu estivesse no seu lugar, teria tomado a mesma decisão... Muito obrigado. Dentro de cinco minutos estarei aí em baixo... nem mais um segundo. - As últimas palavras de Dockerty dirigiram-se a um telefone cuja linha já fora desligada. Passou os dedos pelos cabelos para os alinhar um pouco, levantando-se da cadeira. Nesse momento, batendo à porta ao de leve, Margaret Armstrong entrou no seu gabinete.

- Tenente Dockerty, tenho alguns assuntos que gostaria de poder abordar consigo -

anunciou ela.

- Sim - replicou o detetive. encostando-se à extremidade da sua secretária - , sem dúvida alguma que terá.

Decorridos trinta minutos, Dockerty já tinha ouvido o suficiente da confissão de Armstrong, o que justificava a presença de um estenógrafo. Num gesto final de desafio, ligou para o comandante, pedindo-lhe que fosse testemunha daquele depoimento. O homem, senhor de uns cabelos de um negro asa de corvo, que era um misto de político e de polícia e cuja maneira de ser era um tanto evasiva, ouvia num silêncio cheio de perplexidade, à medida que Armstrong, mostrando uma calma extraordinária, admitia toda e qualquer responsabilidade pelos assassínios de Charlotte Thomas e de Doroty Dalrymple. Informou em seguida que também lhe cabia a responsabilidade da contratação do assassino de Ben Glass e de Joseph Rosetti. Aquela era uma história que ela ensaiara cuidadosamente, antes de ter ido de automóvel para a Esquadra Um: uma explicação com que ela esperava deixar Dockerty satisfeito quanto ao fato de ter agido inteiramente sozinha. Causava-lhe um certo nojo ser forçada a pintar Dalrymple como se esta fosse uma heroína, a qual teria morrido em virtude de ter descoberto a verdade por um mero acaso; no entanto, qualquer alusão à possível existência de uma conspiração teria sido arriscar a revelação da existência do movimento. Ela sabia bem o que é que os polícias semelhantes a Dockerty poderiam fazer. Além do mais, Margaret tinha a certeza absoluta de que, até mesmo ao derradeiro momento, Dotty fora sempre tão dedicada à Irmandade quanto ela própria. A mulher tinha receado a possibilidade de vir a perder a sua posição, assim como a influência de que gozava, e nada mais. A confissão de Armstrong era bastante coerente, embora se verificassem umas ligeiras omissões a respeito de alguns pormenores, o que causava um certo mal-estar a Dockerty.

Ainda tentou encostá-la à parede, tendo sido silenciado pelo comandante, o qual recuperou o uso da língua a tempo de se imiscuir no assunto.

- Ora vamos lá a ver, tenente, tenho a certeza de que a doutora estará disposta a esclarecer alguns destes pormenores, o que fará a seu tempo. Tal como pode verificar, ela também passou por um mau bocado.

Armstrong agradeceu-lhe, o que complementou com uma expressão que transformava inequivocamente Dockerty num estranho; encontrava-se perante uma espécie de cumplicidade existente entre duas pessoas de uma estatura social afim.

No entanto, Dockerty decidiu forçar a sua sorte.

- Só mais uma coisa - aventurou-se ele a dizer. - Exatamente, como é que procedeu para contratar um assassino a soldo com as características do Leonard Vincent?

- Dentro de momentos esclarecerei esse aspecto - retorquiu ela, brindando-o com a sua expressão mais patrícia e mortífera - , mas, primeiro, agradeço-lhe o favor de me indicar onde é que são os lavabos das senhoras.

- Se esperar um pouco - retorquiu Dockerty -, pedirei a uma das nossas agentes que a acompanhe...

- Que disparate - interrompeu o comandante. - Oficialmente, a doutora Armstrong ainda não foi indiciada pelo que quer que seja. A... ah... a casa de banho das senhoras fica à direita, mesmo ao fundo do corredor. É impossível passar-lhe despercebida.

Uma vez mais, Armstrong agraciou o comandante com um olhar especial e, cuidadosamente, alisou a saia antes de sair do gabinete.

Os lavabos das senhoras eram uma autêntica pocilga. O chão de mosaico daquela instituição governamental encontrava-se manchado e cheio de rachas. As toalhas de papel que ali se viam transbordavam do caixote do lixo, colocado num dos lados do lavatório. O ar encontrava-se fortemente impregnado com um misto do fedor a urina e desinfetante.

Margaret Donner Armstrong não reparou na imundície. Olhou em seu redor, após o que se dirigiu imediatamente para a sanita, fechou a porta de madeira prensada e sentou-se.

Sentia-se deveras satisfeita com a maneira como conseguira manipular Dockerty e o

comandante. Caso Christine e David se mantivessem fiéis à palavra dada, A Irmandade da Vida dissolver-se-ia com dignidade. A ironia de que se revestia aquela situação propiciou-lhe algum alívio.

Depois de ter saído do hospital, Armstrong fora a sua casa com a finalidade de honrar a promessa que fizera: as gravações - todas à exceção de uma única - foram incineradas.

Enquanto tratava daquela tarefa, de vez em quando interrompia-se para poder ouvir um relatório em especial, ou para refletir numa amizade que mantivera com uma determinada mulher em particular. O seu sonho - o sonho máximo - estivera prestes a concretizar-se por inteiro. se não se houvesse dado a circunstância de Dorothy se ter ido abaixo.

Bárbara Littlejohn concordara em que tinham deixado de existir condições para que o movimento continuasse a existir. Por várias ocasiões, durante a conversa telefônica que ambas haviam mantido, a mulher chegara ao ponto de se mostrar aliviada. Aquela atitude levou Armstrong a perguntar a si mesma se Bárbara não teria reagido exatamente da mesma maneira que Dalrymple, na hipótese de ter sido a sua própria reputação e carreira a correrem riscos. O aspecto mais doloroso era que, muito simplesmente, ela jamais teria a certeza absoluta, tanto em relação a Bárbara ou a qualquer das outras.

Por conseguinte, ficara decidido. Bárbara encarregar-se-ia de fazer os telefonemas e de escrever as cartas, após o que faria tudo o que se encontrasse ao seu alcance com vista a dar continuidade aos projetos da Fundação Clinton. Enquanto o auscultador era colocado sobre o descanso, Armstrong teve a certeza de que, depois de quarenta anos de trabalho, tudo estava terminado.

Naquele momento, permanecia sentada na sanita, olhando para as mensagens sórdidas que acompanhavam os desenhos toscos, inscrições que tinham sido feitas na porta à sua frente, recuando cinqüenta anos no tempo até à última ocasião em que estivera num lugar semelhante àquele. Nessa altura, sentira-se bastante atemorizada. Assustada e conspurcada. Receara os detetives e os olhares presos aos seus seios. Tinha conseguido concentrar a sua mente em lugares especialmente ocultos, o que a impediu de lhes dizer aquilo que eles desejavam que ela lhes contasse. Hora após hora, fora capaz de opor resistência ao domínio que eles queriam exercer sobre a sua pessoa; chegara ao ponto de se sentir molhada pela urina, o que preferira a ter de lhes pedir licença para se ausentar do gabinete. No fim, Margaret saíra vencedora. Armada com aquela vitória, arriscara-se a pôr em prática uma missão sagrada, uma jornada que estivera tão próximo - oh, tão próximo - de concretizar.

Agora havia chegado a altura de embarcar numa outra.

Armstrong levou a mão por dentro da blusa até ao elástico do cós da saia, de onde retirou a seringa que Dotty Dalrymple estivera prestes a obrigar David a usar. Durante alguns momentos, apalpou a forma arredondada daquele cilindro da morte. Em seguida, arregaçou uma das mangas e, com toda a habilidade, inseriu a agulha numa das veias.

Encostou a cabeça contra a parede e cerrou os olhos. Com um dedo esguio e delicado empurrou o êmbolo.

- Está tudo bem, mãezinha... Estou aqui. mamã – disse ela.

 

A brisa, que pouco mais fora do que um zéfiro ao longo de todo o dia, de súbito, aumentou de intensidade, açoitando amontoados de folhas secas que formavam remoinhos em redor das pedras tumulares acinzentadas.

Dora Dalrymple deteve-se no caminho estreito para poder agasalhar-se melhor dentro do seu amplo casaco comprido. Ela era, tanto de rosto, como em tamanho, maneira de ser e de vestir, o espelho virtual da sua falecida irmã gêmea. Os seus pés, incongruentemente pequenos, percorriam a vereda em declive no sentido descendente, com a segurança que lhe advinha do fato de ter feito aquele caminho todos os fins de tarde, durante as últimas três semanas.

A sepultura, que continuava a ser uma elevação de terra revolvida recentemente, encontrava-se circundada por um anel de pinheiros. No mesmo talhão, via-se um bloco de mármore pequeno, onde ainda não havia qualquer inscrição, o qual assinalava a sepultura onde um dia ela própria seria enterrada. Com gestos rituais, agarrou no pequeno banco articulado de metal que ali deixara no primeiro dia em que fora ao cemitério, colocando-o sobre o solo de terra escura. Em seguida, pôs uma única flor no local onde sabia estar o coração da sua irmã.

- É um crisântemo, Dotty - disse ela -, mais ou menos da cor da ferrugem. Eu sei que não são as tuas flores preferidas, mas este é tão bonito e tão alegórico ao Outono. Espero que não te sintas perturbada com a minha escolha de hoje. Não estás, pois não? - Dora fez uma pausa, como se estivesse a ouvir a voz confiante da irmã e prosseguiu: - ótimo, pensei que havias de compreender.

“Agora, as pessoas do hospital são extremamente simpáticas para comigo. Até estou em crer que deixaram de me chamar a Mamã Catatua, o que costumavam fazer nas minhas costas... Sim, eu sei. Ora bem, na minha opinião, é por causa do respeito que sentem por ti que já não fazem isso. Dotty, hoje recebeste um telefonema da Violet, que está em Detroit. Eu disse-lhe que estarias ausente durante toda a tarde, aconselhando-a a ligar mais tarde. Eu... eu tenho a impressão de que não sou capaz de continuar com O Jardim sem a tua presença. Quer dizer, eu sei que dei a minha ajuda e tudo o mais, mas foste tu que o fundou e quem deu origem ao seu desenvolvimento contínuo... Mas acontece que A Irmandade acabou. Todas as enfermeiras, incluindo as nossas flores, foram notificadas”.

Nenhuma delas deseja que O Jardim venha a morrer, mas para podermos sobreviver temos de crescer. Como é que eu poderei encontrar novas enfermeiras que se unam a nós?... Talvez. E possível que tenhas razão. Tu sempre conseguiste ter uma compreensão da natureza humana muito melhor do que a minha... Certo, eu sempre cozinhei melhor do que tu... mas o que é que isso prova? No que me diz respeito, isso não passa de uma ninharia.

“Hoje falei com Mister Stevens. A tua laje tumular está quase pronta. É uma autêntica maravilha. Vais adorá-la, sei que vais... Muito bem, de acordo, de fato estou a tentar mudar de assunto. Tenho medo de vir a tomar uma decisão errada, mais nada. Tu sempre te mostraste tão confiante nas tuas capacidades, sempre tão decisiva... Isso é uma promessa?... Esplêndido. Nesse caso, está a parecer-me que vou seguir a tua sugestão e pedir à Janet, que é tão encantadora, que venha viver para minha casa... Dorothy, tens a certeza que sabes o que é que estás a dizer? Para sempre é um período de tempo demasiado longo para nos mantermos ao lado de uma pessoa... Bem, de acordo. Hoje mesmo tenciono telefonar à Hyacinth. Mas não te esqueças de que nós as duas estaremos a contar contigo, ao longo do caminho que teremos de percorrer”.

Terminada aquela conversa, Dora colocou o banco junto de um dos lados da campa e regressou ao seu automóvel, sem se aperceber da chuva esparsa que começara a cair.

Já no interior da mansão estilo Tudor que ela e Dotty haviam adquirido pouco antes da criação d'O Jardim, começou a preparar um bule de chá, instalando-se numa poltrona demasiado grande que fazia parte de um par que as duas irmãs tinham desenhado pessoalmente. Quinze minutos mais tarde, a campainha do telefone começou a tocar.

- Gostaria de falar com a Dahlia - disse a voz de uma mulher que deveria ser jovem.

- Lamento muito, mas de momento a Dahlia não pode atender o telefone - informou Dora, imitando o timbre de voz sussurrada que ouvira Dotty utilizar em inúmeras ocasiões. - Contudo, daqui fala a irmã... Chrysanthemum. Caso o deseje fazer, poderá confiar tanto em mim como o faria com Dahlia.

- Bem... de acordo, acho eu - replicou a mulher, denotando alguma insegurança. - O meu nome é Violet; estou a telefonar de Detroit. Mais concretamente, do Hospital Saint Bart. Detectei uma situação que me parece aconselhável submeter a uma avaliação mais minuciosa.

- Faça o favor de continuar - urgiu Dora, tentando instilar confiança na mulher.

- Trata-se de uma mulher que se chama Agnes Morgan. O marido dela é Carter Morgan, um dos diretores executivos da Ford. Ela tem apenas quarenta e dois anos, mas este ano é a terceira vez que se submete a uma cura de desintoxicação, no nosso hospital, por problemas relacionados com o alcoolismo. A fazer fé nos mexericos que correm por cá, há já vários anos que o marido tenta que ela lhe conceda o divórcio, de forma a poder casar com a sua secretária. Aparentemente, Mistress Morgan não quer dar-lhe o divórcio sem antes extorquir ao homem todos os bens que ele possui, para além de fazer todos os seus esforços para lhe arruinar a carreira profissional.

- Essa situação parece ser bastante prometedora - comentou Dora, rabiscando os contornos de um automóvel no bloco de apontamentos, por cima do qual desenhou o símbolo do dólar, muito rebuscado. - Eu encarrego-me de averiguar mais pormenorizadamente essa situação, após o que entrarei em contacto consigo. Entretanto, você deve descobrir tantas informações quantas lhe for possível, a respeito desse Mister Morgan e da mulher. Pela aparência das coisas, parece-me que os benefícios deste caso poderão ser bastante avultados, assumindo que o cavalheiro opta por fazer negócio conosco.

- Na minha opinião, estou em crer que isso é muito possível - retorquiu Violet. - Quando é que pensa que poderá telefonar-me?

- Dentro de um ou dois dias - respondeu Dora. - Tal como você sabe, nós trataremos de todos os preparativos relativos ao negócio. Poderá contar com toda a ajuda que lhe for necessária.

Pousou o auscultador, agarrando numa fotografia de Dotty, que se encontrava numa

moldura sobre uma mesinha. As semelhanças físicas consigo própria eram tais que ela poderia muito bem estar a ver-se ao espelho.

- Bem, minha querida, a nossa atividade prossegue de vento em popa - disse ela, colocando a fotografia em cima do seu amplo regaço. - No entanto, nunca poderei levar isto a cabo sem o teu auxílio. Por conseguinte, é bom que não te esqueças da promessa que me fizeste. Seja como for, não é para isso que as irmãs servem? Não estás de acordo?

 

                                                                                            Michael Palmer

 

 

                      

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