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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PRIORESA / Karen Blixen
A PRIORESA / Karen Blixen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "VT"

 

 

 

Sete Contos Góticos / Isak Dinesen

 

 

Em alguns países luteranos do Norte da Europa existem ainda casas que tomaram o nome de conventos e são dirigidas por uma prio-resa ou chanoinesse, conquanto não tenham carácter religioso. São recolhimentos para senhoras de sangue nobre que, viúvas ou solteiras, ali passam o outono e o inverno dos seus dias numa rotina de conforto e dignidade, conformes à tradição das casas. Muitas destas instituições são ex tremamente ricas, possuem grandes extensões de terra e têm recebido ao longo dos séculos vários legados e heranças. O espírito orgulhoso, gentil, feudal, dos tempos idos parece habitar os edifícios majestosos e reger a vida das comunidades.

 

A Prioresa Virgem de Closterseven, em cujas mãos o convento prosperou do ano de 1818 ao ano de 1845, tinha um macaco cinzento que lhe dera seu primo, o almirante Von Schreckenstein, no seu regresso de Zanzibar, e de que ela muito gos-tava. Quando se sentava à mesa de jogo, lugar onde passava algumas das horas mais felizes, o macaco ia de regra empoleirar-se nas costas da sua cadeira, de onde seguia com olhos cintilantes o movimento das cartas dadas e recolhidas. Noutras alturas iam dar com ele, de manhãzinha, no alto do escadote da biblioteca, puxando os frágeis fólios e espalhando pelo chão de mármore branco e negro as amarelecidas folhas onde se tratava da estratégia, dos contratos de casamento de príncipes e dos julgamentos de bruxas.

 

Numa outra sociedade a presença do macaco talvez não fosse bem vista. Mas o convento de Closterseven albergava, a par da sua estimável população feminina, todo um mundo variado de animais de estimação, bem cientes de uma ordem de pri-mazia. Ali habitavam papagaios e catatuas, cãezinhos, gatos graciosos de todas as partes do mundo, uma cabra angora, branca como a de Esmeralda, e um jovem gamo de olhos cor de púrpura. Havia até uma tartaruga que era suposta contar mais de cem anos. As velhas senhoras, portanto, usavam de in-dulgência para com os caprichos do favorito da Prioresa, a mesma talvez que nos velhos tempos uma corte mulheril teria mostrado para com os caprichos de uma real maìtresse-en-titre.

 

De tempos a tempos, particularmente no Outono, quando os frutos amadureciam nas sebes das estradas e nas extensas florestas que rodeiam o convento, acontecia que o macaco, sentindo o apelo de uma vida mais livre, desaparecia durante algumas semanas ou um mês, para voltar depois por sua iniciativa quando chegavam as geadas nocturnas. As crianças das aldeias pertencentes a Closterseven vinham então atrás dele, que corria pelas estradas ou trepava às árvores, de onde as observava atentamente. Mas quando elas se juntavam à sua volta e começavam a bombardeá-lo com as castanhas que traziam nos bolsos, o macaco fazia rolar os olhos e arreganhava os dentes para elas, rematando a questão ao subir velozmente para os ramos e desaparecer nas copas da floresta.        

 

Era a opinião geral do convento, ou o gracejo constante nele, que a Prioresa, durante estes períodos, caía em silêncios, vítima de um particular desassossego, e parecia avessa a agir na governação da casa, na qual de ordiário demonstrava uma grande energia. À puridade chamavam elas ao macaco o Geheimrat da Prioresa, e rejubilavam quando viam de novo o animal na saleta, um tanto friorento da escapada para a floresta.

 

Num belo dia de Outono, quando o macaco estava assim desaparecido há algumas semanas, chegou inesperadamente ao convento o jovem sobrinho e afilhado da Prio-resa, tenente do Real Corpo da Guarda.

 

A Prioresa era altamente respeitada por toda a parentela, e nos seus tempos levara à pia baptismal muitos bebés do seu nobre sangue, mas este jovem era o seu afilhado preferido. Era um airoso rapaz de 22 anos, de cabelos negros e olhos azuis. Conquanto não fosse o primogénito, a sua situação na vida era desafogada. Filho dilecto de sua mãe, que viera da Rússia e fora a herdeira de um título, o rapaz fez uma bela carreira. Os seus amigos espalhavam-se não pelo mundo inteiro, mas nesse mundo que é de consequência.   

 

Quando chegou ao convento não parecia, porém, um jovem nascido com uma boa estrela. Viera, como atrás se disse, em impetuoso galope, sem se fazer anunciar, e as senhoras com quem trocou algumas palavras, esperando ser recebido pela tia, repararam que ele estava pálido e parecia exausto, como se preso de uma grande agitação de espírito.

 

Elas não desconheciam, aliás, que o jovem tinha boas razões para tal. Sendo embora Closterseven um pequeno mundo fechado em si mesmo, movimentando-se numa particular atmosfera de paz e imutabilidade, as notícias do vasto mundo dos homens chegavam a ele com surpreendente rapidez, pois cada uma das recolhidas mantinha uma atenta e serviçal correspondente no exterior. Assim estas mulheres enclausuradas sabiam, tão bem como os mais bem informados, que, durante esse mês, nuvens de estranha e sinistra natureza haviam ensombrado o regimento e o círculo de amigos a que o rapaz pertencia. Um conluio de beatos, encabeçados pelo capelão da Corte, justamente ele, e muito escutados pelas altas personagens, tinham, no fingimento de uma indignação moral, erguido a voz contra estes jovens, a flor da nação, e ninguém poderia dizer ao certo, ou imaginar sequer, o rumo que as coisas tomariam.

 

As senhoras não haviam discutido muito entre si estes acontecimentos, mas o bibliotecário do convento, que era um teólogo e um eru-dito, fora arrastado para mais do que um tête-á-tête e convidado a dar a sua opinião sobre o proble ma. Com ele aprenderam a relacioná-lo de algum modo com o chão sagrado e romântico da Grécia antiga, que até esse dia elas sempre haviam tido na mais alta estima. Lembrando os dias da juventude, quando tudo o que era grego fora o dernier cri, e os vestidos e penteados foram apelidados á la grecque, elas interrogavam-se. Poderia a expressão designar também uma coisa tão estranha aos seus mortos sonhos de requinte em meninas? Elas tinham adorado esses vestidos, tinham valsado neles com príncipes; agora, se os recordavam, era com inquietude.

 

Poucas coisas teriam causado mais profunda agitação nessas mulheres. Não era só a impudência mostrada por esses heróis do púlpito e da pena ao atacar os valorosos que assim revoltava as velhas filhas de uma raça guerreira, nem era o pres sentimento de dificuldades e muito sofrimento que as afligia, mas uma coisa que nessa questão ultrapassava tudo o mais. Para todas elas fora um artigo fundamental da fé que a beleza e o fascínio da mulher, que elas mesmas representavam, na sua esfera e de acordo com os seus dons, devesse constituir a mais alta inspiração e o prémio de uma vida. No caso delas algumas houve talvez a quem o mundo armara ciladas, a capturar esse prémio dos seus seres feminis sem por eles pagar o caro preço pretendido; a outras, enredou-as talvez em algum estranho equívoco, em uma falta de apreciação - mas ainda assim o dogma se confirmara. Ouvi-lo agora contestado era para elas o mesmo que para um avaro o dizerem-lhe que o ouro já não tinha um valor absoluto, ou para um místico o afirmarem-lhe que o Senhor já não estava presente na Eucaristia. Soubessem elas que um dia o seu dogma havia de ser posto em causa e todas es tas vidas, que se encontravam agora tão perto já do fim, talvez tivessem seguido bem diferentes rumos. Para algumas poucas solteironas, que tinham os instintos estratégicos da raça desenvolvidos ao máximo, estas novas concepções foram um rude golpe. O mesmo rude golpe que seria para um velho general se, por uma longa campanha, em obediência a ordens superiores, valorosa e lealmente se tivesse mantido na defensiva, e viesse depois a saber que uma ofensiva teria sido a acção cor-recta e, mais ainda, digna de um louvor.

 

Embora inquietas, cada uma dessas velhas senhoras gostaria de conhecer algo mais dessa estranha heresia, como se afinal as ternas e perigosas emoções do coração humano fossem, mesmo dentro da segura reclusão delas, por direito o seu domínio. Era como se os altos bouquets de flores secas, sob os tremós do convento, se tivessem mexido e proclamado a sua autoridade numa qualquer questão de floricultura.

 

Dispensaram ao pálido rapaz um acolhimento indeci-so, hesitantes em ver nele um dos inocentes do massacre de Herodes ou um jovem sa-cerdote de magia negra ainda ao alcance da conversão; quando ele subiu a larga escadaria que levava aos aposentos da Prioresa, evitaram os olhares umas das outras.

 

A Prioresa recebeu o sobrinho na sua imponente sala de visitas. As três janelas altas, por entre pesados reposteiros com cercaduras de floridas grinaldas a ponto de cruz, davam para os relvados e alamedas do jardim outonal. Nas paredes forradas a damasco os pais da Prioresa, há muito já falecidos, contemplavam-no das largas molduras douradas com gravidade e graça juvenil, nos pós e laços de uma grande festa da Corte. Esses dois tinham sido os ami-gos do rapaz desde a mais tenra idade, e todavia ele hoje descobria nos seus rostos, com surpresa, um quê de perplexidade e mesmo de aflição. Julgou ainda por momentos sentir na sala um estranho odor, inquietante, misturando-se ao aroma do incenso, que fora mais amplamente queimado que o habitual. Seria este, pensou, um novo aspecto da sua propensão à catástrofe?

 

O rapaz, posto que sensível a toda aquela atmosfera de harmonia, tão sua conhecida, não queria nem ousava perder tempo. Depois de beijar a mão da tia, de perguntar pela sua saúde e pelo macaco, e de lhe dar notícias da família que dei xara na cidade, foi direito ao assunto que o trouxera a Closterseven.

 

- Tia Cathinka - disse ele - vim procurá-la por que a senhora sempre foi muito boa para mim. Gostaria - e o rapaz engoliu em seco, a sossegar um rebelde coração que não gostava de ser sufocado - de me casar, e espero que me dê o seu conselho e o seu auxílio.

 

O rapaz bem sabia que, em outras circunstâncias, nada que dissesse poderia agradar mais à velha senhora. Assim a vida, pensou ele, alcança satisfazer o seu gosto pelo burlesco, até em relação a pessoas como sua tia, que intimamente ele chamava pelo nome de uma divindade chinesa: Kuan-Yin, a deusa da misericórdia e da benigna subtileza. Pensou que, neste caso, ela sofreria mais até do que ele com as ironias do destino, e teve pena.

 

A caminho do convento, cortando por florestas e pequenas aldeias, deixando para trás os largos campos de resteva, onde pasciam bandos imensos de gansos, guardados por meninos de perna ao léu e por rapariguinhas, ele tentara imaginar como seria esse encontro com a tia. Conhecendo o seu fraco pelas sentenças latinas, viera interrogando-se qual ouviria dos seus lábios, se um Et tu, Bru-te, se um decidido Discite Iustitiam moniti et non temere divos. Talvez ela dissesse Ad sanitatem gradus est novisse morbum - seria um bom sinal.

 

Passado um momento, ele fitou o rosto da velha senhora. A sua cadeira de alto espaldar perdia-se no chiaroscuro da cortina de renda, enquanto ele estava na plena luz do sol da tarde. Da sombra dois olhos luminosos o fitavam, obrigando-o a desviar o olhar, e esta mímica repetiu-se ainda duas vezes.

 

- Mon cher enfant - disse por fim a Prioresa numa voz suave que deu ao rapaz uma impressão de firmeza, embora lhe surpreendesse um curioso e leve arrepio - há muito que o meu coração pedia a Deus para que o menino tomasse essa decisão. Pode com certeza contar, querido Boris, com todo o auxílio que a uma velha, retirada do mundo, seja possível oferecer-lhe.

 

Boris ergueu o rosto, os olhos sorridentes na face branca. Depois de uma semana extremamente agitada, e uma série de cenas tremendas que o amor e o ciúme da mãe haviam procurado, ele sentiu-se como alguém que, de uma cidade inundada, fosse içado para um barco. Assim que pôde falar, disse: - Deixo tudo nas suas mãos, tia Cathinka - confiando que a doçura do poder fizesse apelo a toda a sua generosidade. Ela continuou de olhos fitos nele, complacente. Aqueles olhos apoderavam-se de Boris como se ela o estivesse de facto atraindo ao seio, ou porventura ao círculo mais íntimo do coração. Levou o lencinho aos lábios, gesto comum nela quando se achava comovida. Ela o ajudaria, sim, pensou ele, mas tinha qualquer coisa a dizer primeiro.

 

- O que é - disse ela muito lentamente, à maneira de uma sibila - que só se ganha com sacrifício, é oferecido com gosto, e as mais das vezes recusado? É a ex-periência, a experiência dos velhos. Se os filhos de Adão e Eva estivessem preparados para fazer uso da experiência dos pais, há seis mil anos que o mundo viveria em sensatez. Dar-lhe-ei a minha experiência de vida numa pequena pílula, adoçada pela poesia para que o menino a possa engolir: «Pois de todos os caminhos da vida só um - o caminho do dever - leva à felicidade.»

 

Boris ficou por momentos em silêncio.

 

- Tia Cathinka - disse ele afinal - porque há-de haver um só caminho? Eu sei que os crentes julgam assim, e foi isto que eu também aprendi na Confirmação, embora a divisa da nossa família seja: «Acha um caminho ou faz o teu caminho». Não se lê um livro de cozinha em que não nos sejam dadas, pelo menos, três, quatro, ou mais maneiras de fazer um guisado de galinha. E quando Colombo partiu à descoberta da América - prosseguiu, porque eram estes os pensamentos que o vinham ocupando, e a Prioresa era sua amiga, a ela podia atrever-se a confessá-los - partiu de facto para tentar encontrar por ocidente o caminho para a Índia, o que foi considerada uma empresa heróica.

 

- Ah! - disse a Prio-resa com grande energia - o doutor Sass, que foi o pastor de Closterseven no século XVII, sustentava que no Paraíso, até ao momento da queda, todo o mundo era plano, a cortina de fundo do Senhor, e que foi o demónio que inventou uma terceira dimensão. Por isto são as palavras «chãmente», «lisura» e «rectidão» as palavras do homem nobre; e porque a maçã foi um orbe, assim o pecado dos nossos pri meiros pais foi a tentativa de tornear os desígnios de Deus. Eu, por mim, prefiro sem dúvida a arte da pintura à da escultura.

 

Boris não a contradisse. Os seus gostos diferiam nesse ponto, mas talvez ela tivesse razão. Até agora ele sempre se felicitara por gozar a vida de todos os ân-gulos, mas ultimamente vinha achando esse talento uma bênção enganosa. Era a isso, pensava ele, que estava devendo o que parecia ser o seu destino: obter tudo o que queria mas no momento em que já não o desejava. Sabia por experiência como o frenético desejo de uma orgia, ou de música, ou do mar, ou de autoconfiança, antes que se cumprisse o tempo de o satisfazer cessava de existir - como no caso de uma estrela, cuja luz apenas chega à Terra muito depois daquela se acabar - por isso no momento em que o seu desejo estava prestes a ser-lhe concedido, só uma tourada, ou a vida de um camponês arando a terra debaixo de chuva, satisfariam a fome da sua alma.

 

A Prioresa olhou-o de alto a baixo e disse:

 

É do dever a linha firme e recta.

É da beleza a linha sinuosa.

Segue na vida a linha do dever,

Que há-de seguir-te a outra mais formosa.

 

O rapaz meditou no poema.

 

Um cristal de vinho e alguma fruta foram-lhe então oferecidos e ele, compreendendo que a Prioresa o queria calado, bebeu dois copos, que muito bem lhe fizeram, e em silêncio descascou as afamadas e sedosas pêras de Closterseven, e uma a uma colheu do cacho as baças uvas tintas. Sem olhar para a tia, era capaz de seguir todos os seus pensamentos. A urgência dramática que o assunto lhe impunha talvez tivesse assustado outra pessoa da sua idade, mas a ela não perturbou minimamente. Tinha como antepassados grandes senhores da guerra, hábeis na preparação das campanhas, mas que também foram capazes de puramente ceder à inspiração no momento certo.

 

Boris compreendia que, para ela, nestes instantes, a sala vermelha se enchia de jovens virgens de alto nascimento - morenas ou louras, esbeltas ou junescas, boas donas de casa, boas cavaleiras, netas de amigas e companheiras da sua juven tude - todo um exército de jovens mulheres que ela passava em revista, sem que alguma pudesse esconder excelências ou defeitos dos seus olhos penetrantes. Mentalmente já lambia os lábios, como um velho connaisseur que vai percorrendo a sua adega, e o próprio Boris, seguindo-a em pensamento, era o mordomo que levantava a candeia, alumiando.

 

Nesse instante a porta abriu-se e o velho criado da Prioresa entrou de novo, desta vez com uma carta numa bandeja de prata, que lhe apresentou. Ela pegou na carta com mão trémula, como se não suportasse mais outra catástrofe. Leu-a até ao fim, releu-a, e ruborizou-se frouxamente.

 

- Está entregue, Johann - disse ela, guardando a carta nas sedas do regaço.

 

Ficou por algum tempo imersa em pensamentos. Depois voltou-se para o rapaz, os seus olhos escuros tão límpidos como cristais.

 

- O menino atravessou a minha nova plantação de abetos - disse ela com a animação de quem fala de um passatempo favorito. - Qual é a sua opinião?

 

O plantio e a conservação das florestas eram, de facto, um dos maiores interesses na vida da Prioresa. Gostosamente falaram, por algum tempo, de árvores. Não havia nada melhor para a saúde, dizia ela, que o ar da floresta. Ela mesma nunca fora capaz de passar bem a noite na cidade ou nos campos, mas deitar-se à noite sabendo que as árvores se sucediam por léguas em redor, as raízes profundas na terra, as copas movendo-se no escuro, considerava ela ser um dos prazeres da vida. A floresta sempre fizera bem a Boris, quando ele ia ficar a Closterseven em pequeno. Mesmo agora ele notava a diferença, depois que permanecia na cidade por longo tempo, e ela expressou o desejo de o ver ali mais vezes.

 

- E quem, Boris - disse ela, saltando bruscamente de assunto, e com uma benevolência alegre e resoluta - quem, já que falamos nisso, poderia ser realmente melhor esposa para si do que essa grande amiga sua, e minha, a pequena Athena Hop ballehus?

 

Nenhum outro nome associado à ideia de casamento seria para Boris mais inesperado. A surpresa foi tanta que ele não respondeu. A própria frase lhe soara absurda. Nunca ouvira Ninguém referir-se a Athena como pequena, e lembrava-se de ela ser meia polegada mais alta do que ele. Mas que a Prioresa lhe chamasse sua grande amiga revelava uma completa transformação, pois, desde que a filha do vizinho se fizera uma rapariga, sua tia e sua mãe, que raramente estavam de acordo, aliaram-se para o manter afastado de Athena.

 

Enquanto o seu espírito passava da inexplicável reviravolta da velha senhora para o efeito que ela teria no seu próprio destino, compreendeu que a ideia não lhe desagradava. O burlesco sempre fora do seu agrado, e talvez fosse uma stravaganza de primeira água levar Athena para a cidade como sua esposa. Por isso, quando olhou para a tia, o seu rosto era o de uma criança.

 

- Tenho toda a fé no seu discernimento, tia Ca-thinka - disse ele.

 

A Prioresa falava agora muito lentamente, sem o olhar, como se não quisesse misturar às suas as impressões de uma outra alma.

 

- Não iremos perder tempo, Boris - disse ela. - Nunca tive por hábito adiar seja o que for.

 

E quando ela diz nunca, é mesmo nunca, pensou Boris.

 

- Vá vestir o seu uniforme enquanto eu escrevo uma carta ao Conde velho. Dir-lhe-ei que o menino me confiou os segredos do seu coração, dos quais depende toda a sua felicidade, e pelos quais a sua querida mãe não pôde demonstrar simpatia, e o menino tem de se preparar para ir lá levá-la dentro de meia hora.

 

- A tia Cathinka acha que Athena me vai querer para marido? - perguntou Boris, que se levantava. Sempre fora pronto a ter pena dos outros. Agora, contemplando o jardim e vendo duas velhotas emergirem, de galochas, de uma das alamedas onde foram dar o seu passeiozinho da tarde, ele pensou em Athena e sentiu pena dela por simplesmente existir.

 

- Athena - disse a Prioresa - nunca teve uma proposta de casamento. Du-vido que, neste último ano, tenha visto outro homem para além do Pastor Rosenquist, que vai lá jogar xadrez com o papá. Ela tem ouvido as senhoras desta casa discutir os brilhantes casamentos que o menino podia ter feito, se quisesse. Se Athena o não quiser para marido, meu pequeno Boris - disse ela, e sorriu ao rapaz com muita doçura - quero eu.

 

Boris beijou-lhe a mão por isto, reflectindo na excelência de tal projecto, e imediata e subitamente sentiu a terrível impressão de astúcia e força que teria se tocasse numa enguia eléctrica. As mulheres, pensou ele, quando já ultrapassaram a idade de se preocuparem em ser mulheres e podem dar largas à sua força, devem ser as criaturas mais poderosas do mundo inteiro. E fitou o fino rosto de sua tia.

 

Não, não daria resultado, pensou ele.

 

Boris partiu de Closterseven na britzka da Prioresa, com a carta junto ao coração e o aspecto ideal do jovem herói dos romanceiros. Notícias da sua pretensão espalharam-se mis teriosamente pelo convento, qual nova espécie de incenso, e tinham calado fundo no coração das velhas senhoras. Duas ou três foram sentar-se ao sol na longa varanda para o verem partir, e uma sua particular amiga, uma corpulenta solteirona, descorada de ter-se quedado à margem das luzes da vida durante cinquenta anos, foi junto à carruagem para lhe entregar três brancos ásteres de longos caules, colhidos no seu jardinzinho de Inverno. Assim partira, há trinta anos, o homem que ela amara, e depois mataram-no em Iena. Uma gentil melancolia velava sempre o seu rosto e a sua companheira dizia dela: «A condessa Anastásia carrega uma pesada cruz. A gula é uma pesa da cruz.» Mas foi a memória desse último encontro que fez com que os seus olhos, no rosto débil, ficassem sempre brilhantes como o claro esmalte azul. Sentia nesse momento a ressurreição de todo um destino, e entregava-lhe as flores como se elas fossem parte dela, misteriosamente tornando à vida uma segunda vez, como se tivessem sido três filhas por nascer, agora altas e casadoiras, companheiras daquela jornada na qualidade de da mas de honor.

 

Boris deixara no convento o seu criado, pois sabia que ele andava de paixão por uma criada das senhoras, e julgara seu dever mostrar agora simpatia por todos os amores legítimos. Queria estar só. A solidão sempre fora um dos seus prazeres, e raramente lhe era dado gozá-la. Ultimamente parecera-lhe impossível estar sozinho. Quando as pessoas não se ocupavam dele, tumultuando as suas emoções, ainda conseguiam impor-lhe uma linha de pensamento, a tal ponto que lhe doíam como exaustas essas convoluções do cérebro que se ocupam de tais assuntos. Mesmo a caminho do convento fora obrigado a ter os pensamentos de outrem. Desta vez, previa ele com uma grande alegria, e por toda uma hora, iria pensar no que bem quisesse.

 

A estrada de Closterseven a Hopballehus sobe mais de quinhentos pés e serpenteia por toda uma floresta de abetos. De vez em quando a floresta clareia e oferece uma vista magnífica sobre as largas extensões dos campos no vale. Agora, no sol da tarde, os troncos dos abetos eram vermelhos de fogo e a paisagem ao longe parecia fresca, toda azul e ouro pálido. Boris podia agora acreditar no que o velho jardineiro do convento lhe contava, era ele pequeno: que uma vez tinha visto, por esta altura do ano, por esta hora do dia, uma manada de unicórnios surgindo da floresta para virem pastar nas encostas soalheiras, as éguas brancas e malhadas, rosadas do sol, pisando graciosas e procurando com os olhos as crias, o velho ga-ranhão, ruano mais escuro, sorvendo o ar e escarvando o chão. Os aromas aqui eram de abeto e cogumelos, e os ares eram tão puros que fa-ziam bocejar. E no entanto, pensava ele, eram diferentes do ar primaveril; a coragem e a alegria vinham tocadas de desespero. Era o finale da sinfonia.

 

Lembrou-se Boris de como, numa tarde de Maio nem há seis meses atrás, fora levado ao jovem coração da Primavera, como agora ao triste coração do Outono. Ele e um jovem amigo tinham por distracção vagueado pelo país durante três semanas, visitando os lugares onde ninguém julgaria que estivessem. Tinham viajado num carrocim, levando consigo um pequeno teatro de bonecos, apresentavam as peças que eles próprios inventavam nas aldeias por que iam passando. O ar fora cheio de doces aromas, os rouxinóis cantaram a plena voz nas cerejeiras bravas, a Lua erguera-se mais pálida que o céu dessas noites primaveris.

 

Uma noite chegaram, muito cansados, a uma casa no meio de um prado; deram-lhes uma larga cama num quarto onde havia um relógio de escada e um espelho baço. Quando o relógio bateu as 12 badaladas, três raparigas muito jovens apareceram à porta, em camisa, cada uma com a sua vela acesa, mas a noite era tão clara que as pequenas chamas pareciam go-tas de luar. Evidentemente não sabiam que dois jovens viandantes tinham sido recolhidos e alojados no quarto grande, e que as observa vam em profundo silêncio por detrás das cortinas da vasta cama. Sem trocarem um olhar ou uma palavra, uma a uma elas deixaram cair a leve roupa no chão e completamente nuas abeiraram-se do espelho onde se miraram, a vela erguida acima da cabeça, absorvidas na sua imagem. Depois sopraram as velas, e no mesmo solene silêncio se encaminharam para a porta, os longos cabelos soltos, vestiram as camisas e desapareceram. Os rouxinóis continuavam a cantar lá fora, num verde arbusto jun to à janela. Os dois rapazes lembraram-se que aquela era a noite das Walpurgis e conjecturaram que haviam assistido a alguma bruxaria pela qual estas jovens esperassem ver o rosto dos futuros maridos.

 

Boris não passava por ali há muito tempo, desde que, em criança, fora no pequeno landau com a Prioresa em visita aos vizinhos. Reconhecia as curvas da estrada, mas elas tinham diminuído, e ele caiu em meditação sobre o tema da mudança.

 

A real diferença entre Deus e a espécie humana, pensou, era que Deus não suportava a permanência. Mal criava uma estação do ano, ou uma hora do dia, logo desejava algo de comple tamente diferente, e tudo desfazia com um só gesto. Mal somos jovens e felizes, logo a natureza das coisas nos precipita no casamento, no martírio ou na velhice. E a espécie humana apega-se ao estado existente das coisas. Por toda a sua vida os homens lutam por agarrar o momento, enfrentando uma force majeure. Até a sua arte nada mais é que a tentativa de capturar, a todo o preço, o momento singular - um estado de espírito, uma luz, a momentânea beleza de uma mulher ou de uma flor - e torná-lo eterno. É absolutamente errado, pensou, imaginar o Paraíso como sendo um imutável estado de bem-aventurança. Será provavelmente, ao invés, e segundo o verdadeiro espírito de Deus, um incessante carrocel, um torvelinho de mu-danças. Talvez nós, por essa altura, possamos estar em união com Deus e comecemos a apreciar a mudança. Pen sou com profunda tristeza em todos os jovens que foram, através dos tempos, perfeitos na beleza e no vigor - jovens faraós de rostos burilados, caçando em carros ao longo do Nilo, jovens sábios da China, vestidos de seda, lendo na sombra viva dos salgueiros - e que se transformaram, contra o seu desejo, em esteios da sociedade, em sogros, e autoridades em gastronomia e moral. Tudo isto era triste.

 

Uma curva da estrada e um largo panorama recortado na floresta trouxeram-no fa-ce a face com Hopballehus, ainda à distância. O velho arquitecto de há duzentos anos conseguira, por cons truir um edifício tão enorme, harmonizá-lo com a Natureza ao ponto de nela parecer uma pequena formação de rocha cinzenta. A quem estivesse agora na varanda, pensou Boris, eu e a britzka e os cavalos negros e pardos havíamos de surgir diminutos, irreconhecíveis.

 

Ao ver a casa, os seus pensamentos voltaram-se para ela. Sempre apelara à sua imaginação. Mesmo agora, que a não via há anos, acontecia-lhe sonhar com ela à noite. Era em si mesma fantástica, repousando num largo planalto, envolvendo-se em milhas de alamedas, fileiras de estátuas e fontes, construída numa fase tardia do barroco e hoje barrocamente delapidada e quase em ruínas. Parecia uma sorte de Olimpo, mais olímpica ainda pela asa da morte que sobre ela pairava. Nessa casa a existência do Conde velho e da filha tinham também o seu quê de olímpico. Viviam, mas de que maneira cumpriam as 24 horas do dia e da noite era um mistério para os humanos.

 

O Conde velho, que fora em tempos um brilhante diplomata, um cientista e um poeta, absorvera-se por longos anos num grande processo judicial que corria na Polónia, e que herdara do pai e do avô. Se o ganhasse, retomaria a posse das imensas riquezas e propriedades que em tempos pertenceram à família, mas sabia-se que ele nunca poderia ganhar esse processo, e que se arruinava assim a cada vez mais largos passos. Vivia nessas gigantescas angústias como nas nuvens, o que tornava indistintos todos os seus movimentos. Boris por vezes interrogava-se como seria o mundo aos olhos da filha. O dinheiro, se é que o vira alguma vez, sabia Boris que não ocupava um lugar na sua vida; o mesmo acontecia com a sociedade, ou aquilo a que se chama os prazeres da vida, e duvidava que alguma vez tivesse ouvido falar do amor. Só Deus saberia, pensava ele, se ela alguma vez se olhou num espelho.

 

A ligeira carruagem rolou num silvo sobre as camadas de folhas caídas no pá-tio. Em alguns lugares eram tão cerradas que chegavam aos joelhos do veado de Diana e quase cobriam os balaústres de pedra. Mas as árvores estavam nuas; só aqui e além uma solitária folha dourada tremia num alto ramo negro. Dobrando a curva da estrada surgiu o pátio fronteiro e a casa, majestosa como a Esfinge no poente. O sol parecia ter encharcado de luz as sombrias massas de pedra. Vermelhas refulgiam agora, a transformar o edifício em morada misteriosa, resplendente, onde as altas janelas eram estrelas vespertinas.

 

Boris saltou da britzka em frente à imensa escadaria de pedra, e dirigiu-se a ela, com a mão tacteando o lugar da carta. Nada se movia na casa. Era como entrar numa catedral. E, pensou ele, quando eu voltar a subir para esta carruagem, como irão ver os meus olhos tudo isto?

 

Neste momento as pesadas portas ao cimo da escadaria abriram-se de par em par, e o Conde velho surgiu no de-grau, lembrando o irado Sansão prestes a derrubar o templo dos Filisteus.

 

Ele era sempre uma figura formidável, curto de pernas e com o torso de um gi-gante, a cabeça poderosa ro-deada por uma juba de cabelos grisalhos e revoltos, como a de um poeta ou de um leão. Mas hoje ele parecia singularmente inspirado, preso de alguma tremenda emoção que o fazia cambalear. Imóvel ficou por momentos perscrutando o visitante, como um velho gorila macho postado junto ao covil e pronto a atacar; depois atirou-se escada abaixo, impondo ao jovem uma presença como a que teria o Todo-Poderoso se descesse, uma só e aquela vez, a escada de Jacob.

 

Santo Deus, pensou Boris ao subir a escada ao seu encontro, este velho sabe tudo e vai matar-me. Julgou ver estampar-se no rosto do Conde um triunfo assassino, os olhos inflamando-se de brilho. No instante seguinte sentiu dois braços que o rodeavam e um corpo tremendo contra o seu.

 

- Boris - exclamou ele - Boris, meu filho! - pois ele conhecia o rapaz desde pequeno e fora em tem-pos, sabia-o Boris, um dos adoradores da sua linda mãe. - Seja bem-vindo. Seja bem-vindo hoje a esta casa. Já sabe?

 

- Já sei? - disse Boris.

 

- Ganhei a causa - disse o velho.

 

Boris quedou-se a fitá-lo.

 

- Ganhei a minha causa na Polónia - repetiu. - Lariki, Lipnika, Patnov Grabovo''' são todas minhas, como o foram dos meus avós.

 

- Os meus parabéns - disse Boris devagar, tomado nos pensamentos que, estranhamente, agora se formavam. - De todo o coração. É de facto uma notícia inesperada.

 

O Conde velho agradeceu-lhe repetidas vezes, e mostrou-lhe a carta do advogado, que acabara de receber e ainda segurava na mão. Ao falar com o rapaz fê-lo com vagar a princípio, procurando as palavras, como alguém desabituado delas, mas à me-dida que falava recobrou a voz antiga e a fluência que em tempos fascinara tanta gente.

 

- Uma grande paixão, Boris - disse ele - que realmente e verdadeiramente nos devora o coração e alma, não podemos senti-la por alguém em particular. Talvez não possamos senti-la por tudo o que nos possa amar também. Esses oficiais que amaram os seus exércitos, esses nobres que amaram a terra, eles, sim, podem falar da paixão. Meu Deus, como tenho sofrido o peso de toda a terra de Hopballehus sobre o meu peito, à noite, quando imaginava tê-la conduzido a uma batalha perdida. Mas isto agora - disse ele, respirando fundo - isto é a felicidade. Boris compreendeu que não era o gosto da riqueza o que assim fremia na alma do velho, mas o triunfo da jus-tiça, estando a virtude do universo inteiro, para ele, concentrada na sua pessoa. Começou ele então a explicar o julgamento em pormenor, ainda com uma das mãos no ombro do jovem, e Boris sentiu que era bem-vindo em seu coração como o amigo que sabia ouvir.

 

- Entre, entre Boris - disse ele - vamos beber um copo os dois, do vinho que eu tenho guardado para o dia de hoje. O nosso bom Cura está cá. Mandei chamá-lo quando recebi a carta, para me fazer companhia, porque não imaginava que o meu querido Boris vinha cá.

 

No prodigioso salão, ri-camente ornamentado a mármores negros, um pequeno canto fora tornado habitável por algumas cadeiras e uma mesa coberta com os livros e os papéis do Conde. Sobre ela pendia um gigantesco quadro, muito escurecido pelo tempo, um retrato equestre de um antigo senhor de Hopballehus, firmando-se, muito calmo, sobre um cavalo de cabeça pequena, que se erguia em curveta, e apontando com um rolo de papel para um campo de batalha pintado como ao longe abaixo da barriga do cavalo. O pastor Rosenquist, homem pequeno de faces vermelhas, de há muitos anos o guia espiritual da família, e que Boris bem conhecia, estava sentado numa das cadeiras, aparentemente mergulhado em profundos pensamentos. Os sucessos do dia tinham trazido a desordem às suas teorias, coisa que para ele era um mais sério desastre do que se tivesse ardido o presbitério. Sofrera a pobreza e o infortúnio toda a vida, e havia, no transcurso dela, conseguido viver segundo um sistema de contabilidade espiritual, onde as provações terrenas se tornaram um investimento que sacava juros no outro mundo. A sua conta pessoal, sabia-o ele, compunha-se de pequeninas moe das, mas tomara grande interesse pelas mágoas do Conde, que via como um fa-vorito do Senhor, e cujos tesouros continuamente se acumulavam na Nova Jerusalém como safiras, crisóprasos e ametistas, propagando-se a si mesmos. Agora estava perturbado e não sabia o que pensar, o que para ele era uma situação terrível. Procurara conforto no Livro de Job, mas nem mesmo nele as figuras concordavam, o Beémot e o Leviatão apa-reciam como num relato das suas próprias perdas e ganhos. Tudo aquilo lhe parecia, aliás, ser da natureza daquela dádiva que, segundo o Eclesiastes, destrói o coração, e ele não podia fu-gir de pensar que este velho, que ele tanto amava, ia trilhando os maus caminhos de ver anteciparem-se na Terra os estipêndios futu-ros.

 

- Como eu gostava - disse o Conde velho, ao trazer e abrir uma garrafa dourada - que o meu pobre pai e o meu querido avô aqui estivessem connosco neste dia, bebendo deste vinho. Quando passava as noites acordado, sentia que eles me acompanhavam nessa vigília, lá em baixo, dentro dos seus sarcófagos. Estou feliz - prosseguiu, ainda de pé, erguendo o copo - por ser o filho de Abunde (era o nome que outrora dava à mãe de Boris) que esta noite bebe comigo.

 

Na exuberância do seu coração dava palmadinhas ternas nas faces de Boris, enquanto o seu rosto irradiava uma suavidade que estivera exilada há muitos anos; e o rapaz, que sabia reconhecer as boas coisas, invejava ao velho esta inocência de coração.

 

- E à saúde do nosso bom Cura - disse o Conde, voltando-se para ele. - Meu amigo, o senhor verteu lágrimas de compaixão nesta casa. Ei-las que renascem, feitas vinho.

 

Os modos do Conde velho aumentaram o desassossego do pastor. Parecia-lhe que só um frívolo coração podia mo-ver-se assim tão facilmente numa nova atmosfera, esquecendo a passada. Ele próprio educado num sistema de exames e promoções, não estava preparado para compreender uma raça criada nas leis da sorte na guerra e nos favores da corte, adaptada ao imprevisível e acostumada ao inesperado, que julga ser a segurança, ou mesmo a salvação, a menos necessária de todas as coisas. E voltaram a lembrar-lhe as palavras da Escritura: «Ao sinal da trombeta, diz: Vamos!»: E pensou que talvez o seu velho amigo tivesse razão, afinal.

 

- Sim, sim - disse ele sorrindo - a água foi realmente mudada em vinho, um dia. É sem dúvida uma boa coisa, o vinho. Mas Vossa Excelência sabe o que os nossos bons camponeses dizem: os filhos gerados no vinho terão mau fim. Assim, temos razão para temer que o mesmo aconteça às esperanças e às emoções nascidas do vinho. Embora isso - acrescentou - não se aplique, evidentemente, aos filhos das bodas de Caná, a que me referia.

 

- Em Lariki - disse o Conde - há no tecto do vestíbulo um corno de caça pendurado de uma corrente de ferro. O avô da minha avó era um homem de força hercúlea. Quando ao cair da tar-de entrava o portão, costumava agarrar no corno e, elevando-se do chão com o seu cavalo, assoprava nele. Sempre soube que posso fazer o mesmo, mas pensava que nunca eu haveria de entrar esse portão. Athena talvez o possa fazer também - acrescentou, pensativo.

 

Voltou a encher os copos.

 

- Então como acontece ter cá vindo hoje? - perguntou ele a Boris, num sorriso que o envolvia a ele e ao seu uniforme de gala, como se a sua vinda fora um feito ímpar. - Que o traz a Hopballehus?

 

Boris sentiu a franqueza do velho reflectir-se no próprio coração, como um céu azul no mar espelhado. Fitou o rosto do amigo.

 

- Vim aqui hoje - disse - para pedir Athena em casamento.

 

O velho lançou a Boris um olhar imenso, luminoso.

 

- Pedir Athena em casamento! - exclamou. - Veio hoje cá para isso?

 

Ficou por momentos profundamente comovido.

 

- Estranhos de facto são os caminhos de Deus - disse.

 

O pastor Rosenquist ergueu-se da cadeira e voltou a sentar-se, refazendo as suas contas.

 

Quando o Conde velho voltou a falar, estava muito transformado. A Embriaguez dissipara-se, e ele parecia ter recuperado nas forças da alma a boa ordem. Era este equilíbrio que lhe dera a fama outrora, quando, jovem ainda, na embaixada em Paris, na estreia da sua tragédia A Ondina, se bateu em duelo com duas pistolas no entr'acte.

 

- Boris, meu filho - disse ele - veio aqui para me dar uma alma nova. Tenho vivido com o rosto voltado para o passado, ou para esta hora de triunfo. Este é o primeiro momento em que penso no futuro. Vejo que te-rei de descer de um pináculo para caminhar sobre a estrada. As suas palavras abrem-me um grande panorama. Que irei eu ser? O patriarca de Hopballehus, coroando as virtuosas donzelas da aldeia? O vovô, a plantar ma-cieiras? Ave, Hopballehus, naturi te salutem.

 

Boris lembrou-se da carta da Prioresa, e contou ao velho que tinha passado por Closterseven. O Conde perguntou pela senhora e, ávido sempre de qualquer sorte de papéis, pôs os ócu-los e todo se absorveu na leitura da carta. Boris sentou-se a beber o seu vinho numa feliz disposição de espírito. Durante a última semana ele já duvidara que a vida alguma vez encerrasse alguma coisa agradável. Agora o acolhimento em casa do Conde velho causara-lhe uma impressão absolutamente deliciosa, e afinal ele sempre passara facilmente de um estado de espírito a outro.

 

Terminada a leitura o Conde pousou a carta e, mantendo as mãos cruzadas sobre ela, ficou por longo tempo calado.

 

- Dou-lhe - disse ele por fim, com vagar e solenidade - a minha bênção. Primeiro, devo-a ao filho de tal mãe, e tal pai, em segundo lugar devo-a ao jovem que, vejo-o agora, há tanto tempo ama, contra tudo e contra todos. E finalmente sinto que foi mandado aqui, Boris, nesta noite, por outras mãos mais poderosas do que as suas. Dou-lhe, em Athena, a chave de todo o meu mundo. Athena - repetiu, como se lhe desse alegria pronunciar o nome da filha - é ela própria como um corno de caça em plena floresta.

 

E como se, sem quase o saber, alguma triste, estranha lembrança da sua juventude se tivesse apossado dele, acrescentou, quase num murmúrio:

 

- Dieu que le son du cor est triste au fond du bois.

 

Enquanto estiveram conversando um forte vento levantou-se lá fora. O dia fora calmo. Esta ventania viera com o crepúsculo, como um animal nocturno. Varria as longas paredes, dobrava as esquinas da casa, e erguia as folhas mortas que rodopiavam no ar. Em meio do vento os passos de Athena, que estivera nas cavalariças desatrelando do cabriolé o cavalo do pastor Rosenquist, cruzaram o pátio e subiram a escada.

 

O Conde velho, que estivera demorando o olhar no rosto de Boris, fez um mo-vimento súbito, como se o alarmasse alguma coisa que ele próprio não compreendia.

 

- Não fale com ela esta noite - disse ele. - Compreenda: o nosso amigo, o pastor, Athena e eu temos passado tantos serões aqui, os três. Seja este o último. Eu mesmo lho direi, e o meu querido filho virá de novo a Hopballehus amanhã de manhã.

 

Boris achou que era um bom plano. Ainda o Conde falava quando a filha entrou na sala, vestida com a sua grande capa.

 

Athena era uma forte rapariga de 18 anos, seis pés de altura, larga em proporção, e com dois ombros capazes de erguer e carregar uma saca de farinha. Aos 40 anos seria enorme, mas agora, direita como um pinheiro, era demasiado jovem para ser gorda. Sob a cabeleira flamejante, a testa nobre era alva como o leite; mais abaixo as faces, como os largos pulsos, cobriam-se de sardas. Era porém tão loura e clara de pele que parecia iluminar o salão ao entrar, como a luz que inunda a casa quando há neve lá fora. Os claros olhos de Athena tinham um aro mais escuro à volta da íris - dois olhos dignos de uma jovem leoa ou de uma águia - mas, à excepção deles, o semblante da forte rapariga era sereno, e no rosto redondo lia-se a expressão atenta e reservada que de ordinário se encontra nos surdos. Dantes, ao estar junto dela, Boris pensara por vezes na velha balada sobre a filha do gigante que, encontrando um homem na floresta, surpresa e satisfeita o leva para casa com a intenção de fazer dele o seu brinquedo. O gigante ordena-lhe que o deixe ir embora, dizendo-lhe que ela o irá por certo partir.

 

O próprio gigante, o Conde velho, demonstrou-lhe um cavalheirismo antiquado, que pareceu a Boris semelhante a uma velha moeda de ouro puro, desenterrada do chão, e mantendo o seu valor mesmo já não estando a circular. Dizia-se que o Con de fora, na juventude, um dos amantes da princesa Paulina Borghese, a mais bela mulher do seu tempo. Ele vira a Vénus Anadiomena face a face, e por amor a essa visão rendia homena gem às aparências da deusa, mesmo quando mais toscamente talhadas na madeira ou na pedra. Sem pretensões à beleza, Athena havia crescido numa atmosfera que incensava a beleza feminina.

 

Athena piscou os olhos um momento, perante a luz e o estranho, e de facto Boris, no seu alvo uniforme e alta gola dourada, nos caracóis reluzentes de pomada fazendo como que um halo de luz à sua volta, era um impressionante meteoro na grande sala escura. Todavia, na segurança da própria força, Athena perguntou-lhe - sustentando-se, como era seu hábito, numa só perna, qual grande cegonha - notícias de sua tia e das senho ras de Closterseven. Co-nhecia pouquíssima gente, e por estas velhotas que lhe haviam dado muitos bons conselhos, embora um tanto chocadas pela falta de romantismo das suas proporções, ela tinha, pensou Boris, aquela admiração que a filha do camponês sente numa feira pelos dançarinos hábeis que sobem à corda, recamados de lantejoulas. Se ela casar comigo, pensou ele, ao erguer-se e falar com ela numa voz doce como o mel, sob o olhar carinhoso do Conde velho que os envolvia a am-bos, ela poderá admirar-me as piruetas; mas estará a minha vida de casado condenada a ser uma perpétua feira? E se eu cair da corda - ela ajudar-me-á a levantar ou voltar-me-á as costas, abandonando-me?

 

Athena pediu-lhe que informasse a Prioresa que tinha visto o macaco numa dessas noites no pátio de Hopballehus, sentado no pedestal da estátua de Vénus, no lugar onde outrora estivera um pequeno Cupido, hoje quebrado. Falando do ma-caco, perguntou-lhe se não achava ele curioso que o solicitador do pai, na Polónia, tivesse um macaco da mesma espécie, que também viera de Zanzibar. O Conde velho falou então dos ídolos dos Wendes, região de onde a sua família era originária, e entre os quais a deusa do amor tinha o as-pecto e a face de uma linda mulher mas, se a voltássemos, apresentava do outro lado a imagem de um macaco. Como, perguntava ele, souberam essas selvagens tribos nórdicas da existência dos macacos? Poderia ter havido macacos vivendo nas sombrosas florestas de pinheiros dos Wendes, há mil anos atrás?

 

- Não, não é possível - disse o pastor Rosenquist. - Seriam sempre muito frias para esses animais. Mas há certos símbolos que parecem ter sido propriedade comum de todos os iconólatras pagãos. Seria um tema interessante a estudar; talvez se deva à ideia do pecado original.

 

Mas como, perguntou Athena, como sabiam eles, no caso dessa deusa do amor, qual era o lado da frente e qual o de trás?

 

Boris, nesta altura, mandou tirar a carruagem e despediu-se. O Conde velho parecia penalizado por mandá-lo embora, e arrependido da sua dureza para com um apaixonado. Apresentou desculpas pelo mau tempo em Hopballehus, segurou a mão do jovem com os olhos cheios de lágrimas, e disse a Athena que o acompanhasse à porta. O Pastor Rosenquist, por seu lado, só podia sentir satisfação em ver partir alguém que tanto se parecia com um anjo sem o ser.

 

Athena percorreu o pátio com Boris. À luz das lanternas da carruagem a grande capa, que esvoaçava em torno dela, desenhava estranhas sombras no cascalho, como um par de longas asas. Sobre o vasto relvado, de uma cor cinzenta de ferro ao luar, a Lua aparecia e desaparecia num céu de tempestade.

 

Boris sentiu nesse momento verdadeira pena de deixar Hopballehus. Aquele mundo caótico fizera-o recordar a infância, e parecia-lhe infinitamente preferível à ordem maquinal da existência que acharia no convento. Ficou por momentos em silêncio junto de Athena. As nuvens apartavam-se, e algumas constelações surgiam claras no céu. A Ursa Maior lá estava, exortando: mantém a individualidade por entre a multi dão.

 

- Ainda se lembra da caçada à ursa? - perguntou Boris a Athena.

 

Às crianças não fora permitido assistir à caçada, mas eles tinham-se escapulido e juntado aos caçadores do Conde, num dia muito quente de Julho, lá em cima na montanha. Dois cães ma lhados haviam morrido, e Boris lembrava-se do terrível tumulto que fora a luta, e dos rápidos movimentos da fêmea, enorme, castanha, maltratada, dentro das moitas de abetos e fetos, e de vê-la num relance rugindo de fúria, a língua vermelha de pendurada.

 

- Sim, às vezes - disse Athena, os seus olhos, como os dele, fitos no céu, seguindo uma estelar caçada à ursa. - Era à ursa a que os camponeses chamavam a Imperatriz Catarina. Tinha morto cinco homens.

 

- Ainda é republicana, Athena? - perguntou ele. - Em tempos queria cortar a cabeça a todos os tiranos da Europa.

 

O rosto de Athena, à luz da lanterna, ganhou mais cor.

 

- Sim - respondeu - sou republicana. Li a história da Revolução Francesa. Os reis e os padres eram indolentes e licenciosos, cruéis para o povo, mas esses homens que se intitularam «a Montanha» e colocaram o vermelho barrete frígio, esses eram corajosos. Danton foi um verdadeiro patriota, e eu gostava de o ter conhecido; como o foi o Abbé Sieyès.

 

No ar nocturno ela entusiasmava-se.

 

- Gostava de ver o lu-gar em Paris onde estava a guilhotina - disse ela.

 

- E usar o barrete frígio? - perguntou-lhe Boris.

 

Athena assentiu brevemente, imersa em pensamentos. Então, como se quisesse certificar-se de que ele entenderia cabalmente a verdade, ela principiou a dizer uns versos, deixando-se ar rebatar pelo pathos das palavras:

 

O Corse á cheveux plats, que la France était belle

au grand soleil de Messi dor.

C'était une cavale indomp table et rebelle

sans freins d'acier, ni rênes d'or.

Une jument sauvage, á la croupe rustique,

fumant encore du sang des rois.

Mais fière, et d'un pied libre heurtant le sol an tique.

Libre, pour la première fois!

 

 

Quando Boris se afastou de Hopballehus o vento soprava forte. A Lua corria os céus por trás de nuvens finas, fantásticas; o ar era frio. Deve andar perto do ponto de congelação, pensou ele. As lanternas perseguiam as árvores e as sombras, atirando-as em todas as direcções à sua volta. Um largo ramo seco de uma árvore, subitamente partido pelo vento, veio despenhar-se à frente dos cavalos assustados. Ele pensou, sozinho na escuridão, nas três pessoas que ficaram em Hop ballehus, e riu.

 

Continuando o caminho, lá em baixo no vale romperam luzes. Como se brincassem com ele, apareceram por entre as árvores, fitaram o seu rosto e desapareceram de novo. Um grande grupo de luzes fez-se como um reflexo, na Terra, das Plêiades. Eram os lampiões de Closterseven.

 

E, Subitamente ele deu-se conta que, algures, alguma coisa não estava bem, mesmo nada bem, e fora de toda a ordem. Era tão forte a sensação, tão inconfundível, como se uma mão gelada lhe tivesse arrepiado por um momento o couro cabeludo. Os cabelos chegaram a pôr-se em pé. Durante alguns minutos sentiu um verdadeiro e genuíno medo, e foi preso de um extraordinário terror. Na estranha turbulência dessa noite, em meio à vida enlouquecida das coisas mortas que o rodeavam, ele sentiu o próprio corpo, a britzka, os cavalos cinzentos e negros, coisas terrível e absurdamente pequenas, desamparadas e em perigo.

 

Dobrando a curva, ao entrar na longa alameda de Closterseven, as lanternas subitamente iluminaram um par de olhos cintilantes. Uma pequeníssima sombra atravessou a estrada e desapareceu na treva mais profunda dos arbustos da Prio-resa.

 

À sua chegada ao convento, disseram-lhe que a Prioresa tinha ido deitar-se. «Para que as forças - pensou Boris - a não abandonem amanhã.»

 

Uma ceia o aguardava na sala-de-jantar privada da Prioresa, que ela própria redecorara havia pouco. Antes fora branca, e os seus ornamentos de estuque tinham talvez cem anos. Agora estava belamente forrada a papel, cujos desenhos, sobre um fundo amarelo escuro, representavam diversas cenas da vida oriental. Uma bailarina dançava à sombra de uma palmeira, tocando tamborim, enquanto velhos de longas barbas e turbantes vermelhos ou azuis a observavam. Um sultão presidia ao tribunal sob um pálio dourado, e um grupo de caçadores a cavalo, precedidos pelos galgos e pelos negrinhos que os levavam, ia passando por umas ruínas. A Prioresa tinha também su-primido os candelabros antigos, e iluminara a mesa com altos, alegres, modernos candeeiros Carcel de porcelana azul com rosas pintadas. No aconchego da sala aquecida, Boris ceou sozinho. Como - pensou ele - Don Giovanni no último acto da ópera. «Até chegar o Comendador», acrescentaram os seus pensamentos por ele. Lançou um olhar fugaz à janela. O vento enfurecia-se ainda lá fora, mas a noite inquietante havia sido afastada quando se correram os pesados reposteiros.

 

Tia e sobrinho tomaram juntos o pequeno-almoço em agradável harmonia, de quando em vez absortos no samovar de prata da Prioresa, onde os seus rostos curiosamente se distorciam. Um pequeno sol radioso também ali brilhava, pois o dia que se seguiu à tempestade nocturna estava sereno e claro. O vento seguiu para outras paragens, deixando nus e expostos os jardins de Closterseven.

 

Boris tinha relatado à velha senhora o que se passara em Hopballehus, e ela escutara-o com grande contentamento e um profundo interesse no destino do seu velho amigo e vizinho. Incapaz de refrear-se, ela deixou a imaginação voar pelas glórias que aguardariam o rapaz no futuro, mas fê-lo com tanta delicadeza como se o Conde e Athena estivessem presentes.

 

- Julgo, meu querido - disse ela - que Athena devia agora viajar e conhecer um pouco do mundo. Quando eu tinha a idade dela, o papá levou-me a Roma e a Paris, e eu privei com muitas celebridades. Que prazer para um homem de talento acompanhar essa criança tão dotada a esses lugares, e mostrar-lhe o que é a vida.

 

- Sim - disse Boris, servindo-se de mais café - ela ontem disse-me que gostaria de ver Paris.

 

- Naturalmente - disse a Prioresa. - A pobre criança nunca teve um chapéu de Paris na sua vida. Em Lariki - prosseguiu, os pensamentos correndo em vaivém -, há esplêndidas caçadas ao urso e ao javali. Parece que estou a ver a sua figura divina, Boris, de lança em riste. Em Lipnika a adega está repleta de Tokay, oferecido em tempos pela imperatriz Maria Teresa. Athena há-de servi-lo com a liberalidade característica da família. Em Patnov Grabovo encontra-se a famosa série de jets d'eaux construídos pelo grande astrónomo dinamarquês Ole Roemer, o mesmo que fez as grandes eaux de Versalhes.

 

Enquanto assim se entretinham com as felizes possibilidades que a vida oferecia, o velho Johann trouxera duas cartas que haviam chegado ao mesmo tempo, embora a carta dirigida à Prioresa tivesse vindo pelo correio e aquela endereçada a Boris fosse trazida por um moço de Hopballehus. Boris, erguendo os olhos após a leitura das primeiras linhas, reparou no sorrisinho fino e duro que se desenhara no rosto da velha se-nhora, absorvida na sua carta. Não iria sorrir por muito tempo, pensou.

 

A carta do Conde velho rezava assim:

 

Escrevo-lhe, meu caro Boris, porque Athena se recusa a fazê-lo. É com profundo pesar e arrependimento que empunho a pena; na verdade, eu hoje sei o que é o desejo de cobrir a cabeça com cinzas, de que falam os autores antigos.

 

Tenho a dizer-lhe que minha filha rejeitou o pedido que ontem à noite me parecia vir coroar as benesses com que o destino estava fa-vorecendo a minha casa. Ela não sente, valha a verdade, qualquer relutância em aceitar esta aliança em particular, mas diz-me que não se casará nunca, e que lhe é impossível pensar sequer nesse assunto.

 

De certo modo, é bom que seja eu a escrever-lhe esta carta. Porque neste infortúnio a culpa é minha, a responsabilidade é toda minha.

 

Eu, que tive nas minhas mãos esta jovem vida, fiz da sua forte juventude aquele que me leva o archote para me iluminar na descida ao sepulcro. Passo a passo, nesse declinar da vida, o seu ombro tem sido o meu amparo, que ela nunca mo negou. Agora ela não quer - não pode - erguer os olhos.

 

Os camponeses da nossa província têm um ditado que diz: os filhos do casamento não podem olhar o Sol; só os bastardos o podem fazer. Ai de mim, até que ponto é a minha pobre Athena a filha legítima do meu corpo, da minha raça, e do meu destino! Tão incapaz é ela de olhar para o Sol, que não teme qualquer sorte de escuridão e os olhos se doem com a luz. Fiz da minha jovem pomba uma ave nocturna.

 

Ela para mim tem sido a filha e o filho, e com os olhos da alma a tenho visto envergar as velhas armaduras de Hopballehus. Demasiado tarde compreendo que ela não as veste como um jovem São Jorge, lutando contra os dragões, mas como Azrael, o anjo da morte da nossa casa. Ela de facto tem-se fechada aqui dentro e, por todos os anos futuros da sua vida, recusa-se a sair dela.

 

Nunca pequei contra o passado, mas vejo agora que tenho pecado contra o futu-ro; e, com razão, o futuro nada quer comigo. Sobre o túmulo de Athena donzela deporei flores por essas ge rações que não nasceram, e em cujos rostos, por momentos, meu querido filho, eu julguei ver os seus traços. Peço-lhe a si o meu perdão, e peço-o à tanta energia condenada, ao talento e à beleza por haver, às coroas de louros e de murta que ficaram perdidas. São delas as cinzas com que me cubro!

 

Boris estendeu a carta à Prioresa sem uma palavra, e encostou o queixo à mão para observar o seu rosto enquanto lesse. Quase a realidade ultrapassava a expectativa. Ela descoloriu-se numa tão mortal palidez que ele temeu que desmaiasse ou morresse, enquanto chamas rubras lhe subiram à cara como se alguém a açoitasse com um chicote. Sabe-se que o rei Salomão encerrou os mais proeminentes demónios da Judeia em garrafas, as selou e as mandou sepultar no fundo dos mares. Que diabólica agitação, nas profundezas, de fúria impotente! Semelhante, pensou Boris, às lutas que silenciosamente se travam no peito magro e seco das velhas, selado pela cera salomónica da educação. Provavelmente faltara-lhe a vista, e os damascos vermelhos da sala escureciam perante os seus olhos, porque ela pousava a carta sem ter tido tempo de a terminar.

 

- O quê! O quê! - disse numa voz rouca e quase inaudível. - O que lhe escreve o Poeta?

 

Faltava-lhe o ar; ergueu a mão direita e agitou o in-dicador, que tremia.

 

- Ela não quer casar consigo?! - exclamou.

 

- Ela não se quer casar com ninguém, tia - disse Boris para a consolar.

 

- Ah, não! Com ninguém? - escarneceu a velha senhora. - Uma Diana, então, é isso? Mas o bonito Acteon que o menino não fa ria, meu pobre Boris! E tudo o que lhe oferece, a posição, a influência, o fu-turo, isso nada conta para ela? O que é que ela quer da vida?

 

Olhava para a carta, mas na sua agonia pegara-lhe, enredada, de cabeça para baixo.

 

- Ser uma figura de pedra sobre um sarcófago, na escuridão, no silêncio, para sempre? Temos então aqui uma virgem fanática en plein dixneuvième siècle? Vraiment tu n'as pas de la chance! Aqui não há nenhum horror vaccui.

 

- A lei do horror vaccui - disse Boris, que estava realmente assustado, para lhe desviar a atenção - não se verifica a mais de trinta e dois pés de altura.

 

- A mais de quê?

 

- De trinta e dois pés - disse ele.

 

A Prioresa encolheu os ombros. Volveu para ele uns olhos cintilantes, puxando da carta que tinha vindo pelo correio até aparecer dela metade no seu bolso de seda, e voltou a guardá-la.

 

- Ela não vai ter nada - disse ela lentamente - e o menino não vai dar nada. Parece-me, em toda a modéstia, que faziam um belo par. Eu própria, dando-vos a minha bênção, nada tenho a objectar. Já era a norma dos meus antepassados: onde o nada existe, le Seigneur a perdu son droit. Boris, o menino vai voltar para a corte, e para a velha Rainha Viúva e para o seu Capelão, pelo mesmo caminho por onde veio. Porque - acrescentou ela, mais lentamente ainda - a porta por onde se entra é a porta por onde se sai.

 

Estas palavras impressionaram-na mais a ela que ao sobrinho, que já as tinha ouvido antes. A Prioresa caiu num grande silêncio.

 

Boris começou a sentir um nítido mal-estar, e quis pôr termo à conversa. Compreendia muito bem que ela queria fazê-lo sofrer. Enquanto fora feliz, gostou de rodear-se de pessoas felizes. Agora, torturada, tinha de rodear-se do mesmo que havia dentro de si, ou, como no caso do vácuo de que falara, ficaria esmagada. Mas neste caso em particular as próprias circunstân cias eram os seus mais fortes aliados. É verdade que ele ainda não se capacitara do que significaria a recusa de Athena. Se a velha se-nhora continuasse a açoitá-lo assim, com todas as suas forças, a infelicidade daquelas últimas semanas voltaria a desabar sobre a sua cabeça. Subitamente a Prioresa voltou-lhe as costas e encaminhou-se para a janela como se quisesse atirar-se dela abaixo.

 

Em meio ao seu infortúnio pessoal, Boris não podia impedir-se de pensar nas outras duas pessoas dessa trindade. Talvez Athena estivesse caminhando pelos pinhais de Hopballehus, o rosto tão desvairadamente sério como o da velha senhora naquela sala. Julgou ver-se no seu alvo uniforme, como uma marioneta, alternadamente puxada pela velha senhora, sobremaneira decidida, e pela também sobremaneira decidida Athena. Como se dava que as coisas ti-vessem tanto significado para elas? Que forças tinham dentro de si estas mulheres exaltadas, que as faziam preferir a morte à capitulação? Muito possivelmente ele tinha opiniões tão vincadas sobre o casamento como outra pessoa qualquer, mas não torcia as mãos nem perdia a fala.

 

A Prioresa abandonou a janela e veio ter com ele. Estava completamente mudada e já nada impedia o seu an-dar. Pelo contrário, ela parecia trazer-lhe uma grinalda para o coroar. Tão mais leve se tornara, como se na janela se tivesse li-bertado de algum peso, que flutuava agora, com graça, a uma polegada acima do chão.

 

- Meu querido Boris - disse ela - Athena tem ainda coração. Deve ao companheiro de folguedos da sua infância o vê-lo, dar-lhe ocasião a que ele lhe fale, e responder-lhe de viva voz. Dir-lhe-ei tudo isto, e vou mandar que levem a carta imediatamente. A filha de Hopballehus tem o sentido do dever. Ela virá.

 

- Onde? - perguntou Boris.

 

- Aqui - disse a Prioresa.

 

- Quando? - perguntou Boris, olhando em seu redor.

 

- Esta noite, para a ceia - disse a tia.

 

O seu sorrisinho era gentil, faceto mesmo, e ainda a sua boca parecia tornar-se cada vez mais peque-na, como um botão de rosa muito gracioso.

 

- Athena - disse ela - não pode sair de Closterseven amanhã sem ser'''

 

Fez uma breve pausa, olhou à direita, à esquerda, e enfim para ele.

 

- Nossa! - disse, sorrindo, num rápido murmúrio.

 

Boris fitou-a. O seu rosto era fresco como o de uma rapariga.

 

- Meu filho, meu querido filho - exclamou, na sú-bita explosão de uma paixão gentil e profunda - nada, nada se deve opor à sua fe-licidade!

 

Esta grande ceia da sedução, que haveria de ser um marco na existência dos que nela tomaram parte, foi servida na sala-de-jantar da Prioresa, e grupos de estadistas orientais e bailarinas a ela assistiram das paredes. A mesa estava bela mente decorada com camélias vindas do laranjal, e na toalha branca como a neve, entre os claros cristais, os copos verdes antigos punham sombras delicadas como génios das florestas de abetos no Verão. A Prioresa envergara um vestido de tafetá cinzento com rendas raríssimas, uma touca de renda branca com largas fitas, e adornara-se com os seus grandes pingentes de diamantes e broches a condizer. A heróica força de ânimo das velhas, pensou Boris, que, com grande bom gosto e trabalho, se põem belas - mais belas talvez do que nunca o foram na juventude - e que ainda assim não guardam esperança de acordar um desejo nos corações masculinos, é como a do homem justo que trabalha nas suas boas acções mesmo depois de ter perdido a fé numa recompensa divina.

 

Entre os bons manjares foi servida a famosa carpa de Closterseven, cuja confecção era um segredo do convento. O velho Johann enchia muito liberalmente os copos, e, antes do maçapão e das frutas cristalizadas, os convivas desta tranquila e digna ceia, uma velha solteira, uma jovem donzela e um amante desprezado, estavam já todos três mais do que um pouco tocados.

 

Athena estava ligeiramente embriagada no sentido literal da palavra. Pouco vinho bebera na vida, e nunca provara champanhe, e com as quantidades que a dona da casa a fazia beber, não haveria por força de aguentar-se nas pernas. Mas ela descendia de largas gerações de homens que no seu tempo rolaram para debaixo das pesadas mesas de carvalho da região, e que vinham agora em socorro da filha da sua raça. Mesmo assim o vinho subiu-lhe à cabeça. Pôs-lhe em cada face uma rosa e nos olhos um brilho intenso, libertando novas forças na sua natureza. Achou-se um tanto ou quanto impada de invenci bilidade, como um jovem capitão que avança para a batalha com grande coragem e altivez.

 

Boris, que bebia melhor do que os melhores, e que até ao fim permaneceu o mais sóbrio dos três, conhecia uma embriaguez de natureza mais espiritual. O que de mais profundo e verdadeiro havia na sua natureza era um grande amor pelo teatro em todas as suas formas. Sua mãe, em solteira, sentira essa mesma paixão e travara batalhas imensas com os pais, na Rússia, para subir a um palco. O filho não precisava de lutar com ninguém. Não tinha o dogmatismo de acreditar que têm de existir as tábuas e a ribalta para que surja o teatro; ele trazia o palco dentro de si. Criança ainda, representara muitos papéis femi ninos em espectáculos amadores, e o velho e famoso di-rector Paccazina tinha chorado copiosamente com a sua Antígona, tanto lhe lembrara a Mars. Para ele o teatro era a vida Real. Se não podia representar, via o mundo com perplexidade, inseguro do que faria nele; mas como actor era mais autêntico, e assim que podia ver uma situação à luz de uma ribalta sentia-se à von tade nela. Não temia a tra-gédia, e o seu desempenho seria gracioso numa pastoral, se lho pedissem.

 

Alguma coisa no seu modo de pensar exasperava a mãe, mau grado toda a sua simpatia por essa arte, pois ela suspeitava que ele, no seu íntimo, não tinha muita preferência pelo papel de um promissor e benquisto oficial. Estava pronto, pensava ela, a abandonar esse papel a qualquer instante, mal surgisse um outro que mais forte atracção exercesse sobre a sua personalidade do momento, fosse o de proscrito ou de mártir, ou até o papel trágico de um jovem subindo ao patíbulo. Por vezes desejara gritar-lhe, contrariamente ao Velho Franciscano: Ah, meu filho, temes pouco a impopularidade, o exílio e a morte!

 

Mesmo assim não podia deixar de admirá-lo nas suas personagens favoritas, e até de contracenar com ele, e estas representações de ambos podiam atingir grandes proporções.

 

Esta noite Paccazina haveria de deliciar-se com ele; jamais representara me-lhor. Por gratidão à madrinha, resolvera dar tudo de si. Pusera a sua máscara, com grande cuidado, frente ao espelho, e trocara o uniforme por esta cor preta que ele considerava mais apropriada ao papel. Sempre achara preferível o papel do amante infeliz ao do correspondido. O vinho ajudava-o, como o ajudavam os rostos dos outros actores, incluindo o velho Johann, que mostrava no semblante reservado um brilho discreto de felicidade. Mas ele próprio, intimamente, deixava-se arrastar pela situação, pela acção da peça e pelos seus próprios talentos. Pisava as tábuas, erguera-se o pano, cada momento era preciso, e não precisava de souffleur.

 

Ao olhar para Athena, ao seu lado esquerdo, ficou satisfeito com a sua jeune première dessa noite. Agora que juntos pisavam o pal-co, lia nela como num livro aberto.

 

Compreendia perfeitamente a profunda impressão que o seu pedido causara na rapariga. Não a lisonjeara; fizera-a ficar provavelmente furiosa no momento. E o facto de qualquer pessoa viva poder assim invadir a altiva solidão da sua vida fora um choque para ela. Concordavam nesse ponto. Tendo vivido toda a sua vida com pessoas que nunca estavam sós, ele tornara-se sensível àquela atmosfera de solidão. Acontecera-lhe, por vezes, passar uma noite completamente só, sonhando, não com as pessoas e coisas que lhe eram familiares, mas com cenas e pessoas totalmente criadas por ele, e a recordação dessas noites era-lhe muito grata. O que desconcertava agora a rapariga era o facto de o inimigo a ter abordado de uma maneira tão cheia de gentileza e de o criminoso pedir consolação. Quando Boris teve consciência de que ela sentia assim, acentuou a doçura e a tristeza da personagem.

 

Provavelmente era uma emoção tão nova para Athena sentir medo, que exerceu sobre ela uma estranha atracção. Ele duvidava que outra coisa para além do pressentimento de algum perigo a tivesse trazido a Closterseven nesta noite. De que teria medo?, pensou. De que eu e minha tia a façamos feliz? Eis a oração trágica de uma donzela: Livra-me, Senhor, de ser um sucesso na corte, uma noiva feliz e invejada, a mãe de filhos promissores. Sendo ele próprio um actor trágico de alto nível, aplaudiu-a.

 

A presença de algum perigo desconhecido, sentia ele, estava impressa na rapariga pela maneira como a Prioresa a tratava. A velha senhora tinha sido sua amiga antes, mas uma amiga severa. Muito do que a ra-pariga dissera e fizera até então fora mal visto neste convento, e ela sempre soubera que, por querer-lhe bem, a velha senhora pretendia pô-la numa jaula. Esta noite os velhos olhos repousavam nela com doce conten tamento, e o que ela dizia era recebido com pequenos sorrisos, tão gentis como carícias. A jaula tinha si-do hoje posta onde ninguém a visse. Esta sorte especial de incenso, que lhe era oferecido a ela individualmente, era tão novo para Athena quanto o champanhe, e como era queimado perante ela e a envolvia, ela talvez sentisse dificuldade em respirar na confortável sala-de-jantar de Closterseven, se não tivesse a certeza que a porta atrás de si podia abrir-se, quando ela o desejasse, para as florestas de Hopballehus.

 

Boris, que conhecia melhor essa porta, ergueu as pestanas macias como folhas de mimosas para o seu rosto ardente. Tinha-lhe o pai chamado ave nocturna, a que a luz fere os olhos? Ele próprio recuava agora lentamente perante ela, levando alguma sorte de candelabro que brilhava, tremulando, para ela. Ela piscava os olhos um pouco na luz, mas seguia-o.

 

A Prioresa, essa embriagara-se de alguma secreta alegria, que era um mistério para os outros convivas da ceia, e que cintilava na escuridão. De vez em quando levava aos olhos ou à boca o seu lencinho de renda, delicadamente perfumado.

 

- Minha bisavó - disse a Prioresa no decurso da conversa - foi pelo seu se-gundo casamento embaixatriz em Paris, onde viveu durante vinte anos. Foi isto durante a Regência. Deixou ela escrito nas suas memórias que, no Natal de 1727, a Sagrada Família desceu a Paris e soube-se que ali permaneceu durante doze horas. Todo o edifício da estrebaria de Belém mis teriosamente se deslocara, com a manjedoura e as panelas onde São José fizera a cerveja de especiarias para a Virgem, até ao jardim de um pequeno convento, o convento do Saint Esprit. A vaca e o burro foram também transportados, juntamente com as palhas que cobriam o chão. Quando as freiras anunciaram o milagre à corte de Versalhes, este foi mantido em segredo, pois temia-se que pressagiasse uma sentença de lascívia sobre os governantes da França. Mas o Regente foi, em grande pompa, com todas as suas jóias, acompanhado da filha, a duquesa de Berri, do cardeal Dubois e de alguns escolhidos senhores e damas da corte, render homenagem à Mãe de Deus e a seu marido. Minha bisavó foi admitida, pela grande estima que gozava na corte, nessa romagem onde era a única estrangeira, e conservou até ao fim dos seus dias o vestido de brocado e peles, de longa cauda, que en-vergou na ocasião.

 

«O Regente ficara grandemente comovido e agitado com a notícia. Ao ver a Virgem caiu num estranho êxtase. Contorcia-se e lançava gritinhos sufocados. Hão-de saber que a beleza da Mãe do Senhor, sendo sem par, era tal que não podia despertar qualquer espécie de terreno desejo. Isto o duque de Orléans nunca experimentara antes, e não sabia o que fazer. Por fim convidou-a, ora ruborizando-se de escarlate, ora empa lidecendo de morte, a cear em casa dos Berri, onde mandaria servir tais pratos e tal vinho como nunca se havia visto, e onde faria comparecer o conde de Noircy e Madame de Parabere.

 

A duquesa de Berri estava nessa altura en grossesse, e as más-línguas pre-tendiam que fosse do próprio pai, o Regente. Ela atirou-se aos pés da Virgem.

 

- Ó querida, ó doce Virgem - exclamou ela - perdoai-me. Vós nunca o teríeis feito, eu sei. Mas se soubésseis como esta corte é maçadora! Mortalmente, abominavelmente maçadora!

 

Fascinada pela beleza do Menino, ela secou as lágrimas e pediu permissão para lhe tocar.

 

- Como morangos e natas - exclamou ela - como morangos á la Zelma Kuntz!

 

O cardeal Dubois saudou São José com extrema polidez. Considerava ele que este santo não incomodaria muitas vezes o Altíssimo com as suas súplicas mas, quando o fizesse, seria ouvido, por o Senhor lhe de-ver tanto. O Regente abraçou-se ao pescoço da minha bisavó, todo lavado em lágrimas, e exclamou:

 

- Ela não virá, nunca, nunca. Ah, Madame''' a senhora, que é uma virtuosa mulher, diga-me o que eu hei-de fazer.

 

Tudo isto vem nas memórias da minha bisavó.»

 

Falaram de viagens e a Prioresa divertiu-os com grande cópia de reminiscências alegres da sua juventude. Estava de muito bom humor, e no velho rosto havia uma nova frescura de cores sobb a touca de renda. De vez em quando fazia uso de um pequeno gesto que lhe era peculiar, coçando-se graciosamente aqui e ali com a fina ponta do dedo mínimo.

 

- A minha amiguinha tem sorte - disse ela a Athena. - Para si o mundo é como um noivo, e cada revelação particular é uma surpresa e uma delícia. Nós, que já celebrámos, hélas, as nossas bodas de ouro com ele, temos uma curiosidade mais prudente. - Eu gostava - disse Athena - de ir à Índia, onde o rei de Ava combate agora o general inglês Amherst. Disse-me o pastor Rosenquist que ele usa tigres nos seus exércitos, treinados para combater ao lado das tropas.

 

No estado de agitação em que se encontrava, fez tombar o copo, partindo-lhe o pé, e o vinho correu pela toalha.

 

- Eu gostava - disse Boris, que não queria falar do pastor Rosenquist, em quem suspeitava um antagonista (desconfia, dizia-lhe uma voz, daqueles que no curso da vida nunca tomaram parte numa orgia ou não ti-veram a experiência de um parto, pois são gente perigosa) - de partir daqui e viver numa ilha esquecida, longe de tudo. Não há nada por que se anseie mais do que o mar. A paixão do homem pelo mar - prosseguiu, os olhos escuros fitos no rosto de Athena - está isenta de egoísmo. Ele não pode cultivá-lo, a sua água não a pode beber, e nele encontra a morte. Mas, mesmo assim, longe dele sentimos a nossa alma definhar, desaparecer, como uma medusa atirada para a terra enxuta.

 

- O mar! - exclamou a Prioresa. - Ir para o mar! Ah, nunca, nunca!

 

Aquela profunda aversão fez os seus olhos brilharem e o sangue subir-lhe às faces, que se tingiram de um vivo cor-de-rosa. Boris ficou impressionado, agora como antes, pela intensidade da antipatia da velha senhora para com tudo o que se relacionasse com o mar. Ele, em rapaz, tentara fugir de casa para se fazer marinheiro. Mas nada, pensou ele, atiça mais depressa a hostilidade mortal das mulheres que a simples menção do mar. Desde o cheiro a maresia ao primeiro contacto com o sal e o alcatrão dos cabos, elas sentem a aversão e a repulsa pelo mar em todas as suas formas; talvez a Igreja tivesse mantido as mulheres na ordem se lhes tivesse pintado um inferno ondulante, marítimo, frígido, cor de cinza. Porque o fogo elas não temem, esse aliado a quem prestaram já longos serviços. Mas falar-lhes do mar é o mesmo que falar do Demónio. No dia em que o domínio das mulheres tiver tornado a terra inabitável para os homens, eles terão de procurar a paz nos oceanos, pois as mulheres hão-de preferir morrer a segui-los.

 

Um pudim foi então servido, e a Prioresa, com destra gourmandise, retirou alguns dos cravinhos dele e comeu-os.

 

- Têm um aroma e um sabor muito adoráveis - disse ela - e a fragrância de um bosque de craveiros-da-Índia é incrivelmente deliciosa ao sol do meio-dia, ou quando a brisa vespertina espalha eflúvios de especiaria por toda a terra. Experimentem. É incenso para o estômago.

 

- Donde vêm, senhora minha tia? - perguntou Athena, que, de acordo com a tradição da província, costumava tratá-la deste modo.

 

- De Zanzibar - disse a Prioresa. Uma gentil me-lancolia pareceu por minutos abater-se sobre ela que, absorta em pensamentos, mordiscava os seus cravinhos.

 

Boris entretanto tinha estado a olhar para Athena, e deixara-se envolver por uma fantasia. Pensava que ela devia ter um bonito esqueleto, primorosamente belo. Jazeria na cova como uma renda sem par, uma obra de arte em marfim, e dali a cem anos, ao ser desenterrada, iria pôr a cabeça dos arqueólogos a andar à roda. Cada osso estava no seu lugar, tão perfeitamente acabado como um violino. Menos frívolo que o tradicional velho libertino que em pensamento despe as mulheres com quem se senta à mesa, Boris libertava a donzela não apenas da roupa mas ainda da sua carne forte e fresca, e imaginava que podia ser muito feliz com ela, que talvez se apaixonasse por ela, se a possuísse nuamente nos ossos esplêndidos. Imaginava-a assim, fazendo sensação montada a cavalo, ou arrastando os longos vestidos pelos salões e gale rias da corte, com a famosa tiara das avós, agora na Polónia, sobre o crânio po-lido. Muitas relações humanas, pensou ele, seriam infinitamente mais fáceis se tudo se passasse ao nível dos ossos.

 

- O rei de Ava - disse a Prioresa, acordando da doce rêverie em que caíra - tinha, na cidade de Yandabu, disse-me quem lá esteve, uma vasta colecção de animais. Como em todo o país nada mais houvesse que elefantes indianos, o Sul-tão de Zanzibar presenteou-o com um elefante africano, que é muito maior e mais magnífico do que os rotundos e domesticados elefantes indianos. São na verdade animais maravilhosos. Reinam nos planaltos da África Oriental, e os mercadores que vendem as suas enormes presas nos mercados de marfim conhecem muitos exemplos da força e ferocidade desses animais. Os elefantes de Yandabu e os tratadores ficaram aterrorizados com o elefante do Sultão, como sempre a África inspira medo à Ásia, e finalmente conseguiram que o rei o prendesse com correntes e o encerrasse numa casa feita de barras que para ele foi propositadamente feita no pátio dos animais. Mas a partir desse dia, em noites de luar, toda a cidade de Yandabu se encheu das sombras dos elefantes africanos errando por ela e abanando as largas orelhas de sombra nas ruas. Os habitantes de Yandabu acreditavam que estes elefantes fantasmas podiam caminhar pelo fundo dos mares, e emergir roçando o ancoradouro dos barcos. Ninguém já se atrevia a sair das casas depois de cair a noite. Mesmo assim não queriam derrubar a jaula do elefante cativo.

 

- Os corações dos animais enjaulados - prosseguiu a Prioresa - torram na sombra das grades como sobre a grelha. Ai, os corações queimados dos animais cativos! - exclamou com terrível energia.

 

- Mas - disse ela momentos depois, o rosto ligeiramente mudado, com um risinho surdo transparecendo na voz - foi muito bem fei-to, porque os elefantes eram grandes tiranos no seu país. Nenhum outro animal podia fazer o que queria por causa deles.

 

- E que aconteceu ao elefante do Sultão? - perguntou Athena.

 

- Morreu, morreu - disse a velha senhora, humedecendo os lábios.

 

- Na jaula? - perguntou Athena.

 

- Sim. Na jaula - respondeu a Prioresa.

 

Athena pousou as mãos cruzadas sobre a mesa, precisamente com o gesto do Conde velho depois de ter lido a carta da Prioresa. Olhou a sala à sua volta. A cor alegre esfumou-se do seu rosto. A ceia terminara e os copos de Porto estavam quase vazios.

 

- Penso, minha tia - disse ela - que, com sua licença, me vou deitar agora. Sinto-me muito cansada.

 

- O quê? - disse a Prioresa. - Não deve privar-nos assim tão cedo do privilégio da sua companhia, minha noz-moscada. Eu própria ia retirar-me agora, mas quero que os dois, como velhos amigos que são, conversem um pouco esta noite. Certamente que o prometeu a Boris, este querido rapaz.

 

- Sim, mas terá de ficar para amanhã de manhã - disse Athena - porque me parece que bebi demasiado do seu bom vinho. Veja: nem a mão tenho firme quando a coloco sobre a mesa.

 

A Prioresa fitou a rapariga. Provavelmente sentia, pensou Boris, que não devia ter falado de jaulas, que fora esse o seu único faux pas dessa noite.

 

Athena olhou para Boris, e ele sentiu que tinha obtido essa mínima vitória: ela tinha pena de separar-se dele. Talvez se apercebesse afinal que batia em retirada abrupta do campo de batalha e que, embora o lamentasse, era nas circunstâncias presentes a melhor atitude a tomar. Boris sentiu o seu olhar franco posto nele como uma condecoração recebida na frente de batalha. Não era uma alta condecoração, mas em campanha não se podia exigir mais. A rapariga desejou gentilíssimas boas noites à Prioresa, fez-lhe uma mesura, e retirou-se.

 

A Prioresa voltou-se, em grande agitação, para o sobrinho.

 

- Não a deixe ir embora - disse-lhe. - Vá atrás dela. Agarre-a. Não perca tempo.

 

- Deixemo-la só - disse Boris. - A rapariga disse a verdade. Ela não me quer para marido.

 

A dupla rebeldia dos dois jovens, cuja felicidade estava promovendo, deixou a Prioresa sem fala, ou sem fé nas suas próprias palavras. Permaneceram juntos na sala durante mais uns cinco minutos talvez, e pareceu a Boris, quando mais tarde pensou naquela ceia, que a conversa transcorrera toda em pantomina.

 

A Prioresa ficou absolutamente quieta, olhando o jovem, e este realmente não sabia se nos próximos minutos ela iria matá-lo ou bei-já-lo. Não fez uma coisa nem outra. Riu-se dele um pouco e, tacteando o bolso, exibia a carta que havia recebido nessa manhã e deu-lha para que a lesse.

 

Esta carta foi o golpe de misericórdia para o rapaz. Era escrita pela amiga da Prioresa, que era a pri-meira aia da Rainha Viúva. Com profunda compaixão pela tia do rapaz, ela dava-lhe, em tons negríssimos, as últimas notícias da capital. O seu nome fora citado, fora até apontado de modo especial pelo Capelão da corte como um dos corruptores da juventude no presente caso. Era evidente que o rapaz se encontrava neste momento à beira de um abismo e, a menos que conseguisse levar por diante o casamento, cairia no abismo e desapareceria.

 

Ele quedou-se de pé por momentos, o rosto alterado pela dor. Todo o seu ser se revoltava contra isto, que vinha roubar-lhe o papel de estrela nessa noite e desfazer-lhe o tom elegíaco do amante, para o atirar de novo para uma realidade que lhe repugnava. Ao levantar os olhos para devolver a carta a sua tia achou-a de pé junto de si. Ela ergueu a mão, mantendo o cotovelo junto ao corpo, e apontou para a porta.

 

- A tia Cathinka - disse Boris - talvez não o saiba, mas a força de vontade de um homem tem os seus limites.

 

A velha senhora continuou a fitá-lo. Estendeu a mãozinha seca e delicada e tocou-o. O rosto contorceu-se numa caretazinha perversa. Momentos depois rodeou-o e encaminhou-se para o fundo da sala, de onde trouxe uma garrafa e um pequeno copo. Com muito cuidado en-cheu o copo, passou-o ao rapaz, e assentiu com a cabeça duas ou três vezes. Por mero desespero, ele esvaziou o copo.

 

Enchia esse copo um licor colorido num tom de âmbar muito velho e escuro. Tinha um sabor penetrante e cáustico. Penetrantes e cáusticos eram também os olhos cor de âmbar muito velho e escuro da velha senhora, que o observavam por sobre a borda do copo. Quando ele bebeu, ela ria. Depois falou. Boris, coisa estranha, lembraria mais tarde estas suas palavras que ele não compreendeu:

 

- Ajuda-o, boa Faru - disse ela.

 

Quando ele já deixara a sala, passados um ou dois segundos, ela muito suavemente fechou a porta.

 

Seja esta a hora das lá-grimas, a hora de enternecer o altivo coração da bela, pensou Boris. Lembrou as histórias dessa horrível quadrilha de peregrinos, os velhos carrascos, que se diz terem vagueado por toda a Europa no século XII, visitando os lugares santos. Levavam consigo os atributos do seu mister: o torniquete, os açoites, os ferros e as tenazes, e estes ho mens, dizia-se, eram capazes de chorar quando queriam. «Pois sim - disse o rapaz de si para si - mas eu não esquartejei, não esfolei, não fritei vivo um número suficiente de pessoas. Al-guns, sim, evidentemente, como todos nós; mas sou apenas um jovem carrasco afinal - um aprendiz de carrasco - e o dom de chorar quando quiser ainda o não alcancei.»

 

Seguiu pelo corredor branco que levava ao quarto de Athena. Tinha à sua esquerda uma enfiada de retratos antigos de senhoras e à direita uma enfiada de janelas altas. O chão era revestido de ladrilhos de mármore, pretos e brancos, e tudo ali parecia olhá-lo seriamente na luz nocturna. Ouvia o som dos próprios passos, som fatal para os outros como para si próprio. Olhou por uma das janelas ao passar. A Lua permanecia alta no firmamento, clara e fria, mas sobre as árvores do parque e os relvados descera uma neblina de prata. Além fora estava o Universo azul e nobre, cheio de coisas, e onde a Terra flutuava e seguia por entre milhares de estrelas, umas perto e outras longe. Ó mundo, pensou, ó mundo de riqueza. No seu cérebro ardente surgiu um poema há muito esquecido:

 

Athena, alta senhora, mandado por Apolo

Aqui estou perante ti. Experimentado sou e so frido em muitas provas.

Uma casa, habitada por estranhos,

Estranha é já para mim.

Assim errei por largas terras, e pelo mar.

 

Chegara à porta. Rodou a maçaneta e entrou.

 

De todas as memórias que Boris havia de trazer consigo desta noite, a memória da transição da cor e da luz do corredor para as deste quarto seria a mais duradoura.

 

O pomposo quarto de hóspedes da Prioresa era enorme e quadrado, com janelas, onde agora estavam corridos os reposteiros, nas duas paredes. Todo ele era forrado a seda cor-de-rosa, e nesses abismos de sombra as cortinas carmesins brilhavam no leito de dossel. Havia dois candeeiros de globo cor-de-rosa, solicitamente acesos pela criada de quarto da Prioresa. Cobria o chão um tapete cor de vinho com ro-sas, que perto dos candeeiros parecia beber a luz, e mais longe deles se assemelhava a lagos de carmim escuro que a ninguém daria gosto pisar. Enchia o ar um forte aroma de incenso e flores. Um largo bouquet decorava a mesa junto ao leito.

 

Boris percebeu imediatamente o que sentia. Tinha sido em tempos, quando fora de visita a Madrid, um grande aficionado das corridas. Era-lhe bem conhecido o momento em que o touro, da escura antecâmara sob a tribuna, era empurrado para o sol ofuscante da arena onde muitas centenas de olhos caíam sobre ele. Assim ele de um momento para o outro fora atirado do corredor branco e preto, de manso luar, para esta atmosfera de encarnados. Sentia a cabeça a latejar; mal percebia onde se encontrava. Com a respiração opressa, perguntava-se se aquilo não seria já o efeito do filtro de amor da Prioresa. Não sabia se Athena era agora o cavalo de ventre aberto, que é arrastado para fora da arena já sem vontade própria, ou o matador que iria derrotá-lo. Um ou outro ela seria - mais nada ele poderia encontrar em tal lugar.

 

Athena encontrava-se de pé no meio do quarto. Tirara o vestido e estava apenas de camisinha branca e brancos calções. Parecia um ro-busto e jovem marinheiro que fosse esfregar o convés. Voltou-se quando ele entrou, os olhos fitos nele.

 

Ao imaginar o desenvolvimento da situação, Boris tivera medo de não conseguir impedir-se de rir. Esta ri-sibilidade já antes fora a sua ruína em ocasiões ternas. Mas de momento não corria esse perigo. Estava tão sério quanto a rapariga. Antes mesmo de reconhecer onde estava, agarrou-a por um pulso e puxou-a para si. Os hálitos dos dois tinham-se encontrado e confundiam-se, e ambos deixavam a descoberto os dentes, como num sorriso perplexo ou num desafio.

 

- Athena - disse ele - amei-a toda a minha vida. Sabe que sem si eu ficarei seco e murcho, nada restará de mim. Condescenda, devolva-me ao mar. Tenha piedade de mim.

 

Por um momento a luz nos olhos da rapariga incidiu sobre ele, e ela fitou-o confusa. Depois empertigou-se, como a cobra antes de atacar. Que não tentasse gritar por socorro mostrava a Boris que ela compreendia bem a situação, e sabia não ter um só amigo naquela casa, o que ele não lhe fizera a justiça de esperar; ou talvez o seu peito largo e jovem albergasse um puro amor do combate. No momento seguinte ela arremeteu contra ele. O seu punho veloz e poderoso e directo atingiu-o na boca e partiu-lhe dois dentes. A dor, e o cheiro e o gosto do sangue que lhe enchia a boca, puseram o rapaz fora de si. Li-bertou-a para a segurar melhor, e imediatamente se en-contraram nos braços um do outro, num abraço de vida e de morte.

 

Neste preciso momento o coração de Boris saltou-lhe do peito e cantou, sonoro, como o pássaro que se balança no cimo de uma árvore e ali rompe a cantar. Maior felicidade não lhe poderia trazer o mundo inteiro. Ele não sabia como iria resolver-se este conflito entre os dois, mas ela soubera; e como a costa que se afunda ao redor do barco que sai para o alto-mar, os tormentos da sua vida afundavam ao redor desta libertação de todo o seu ser. A sua existência poucas oportunidades lhe havia dado para a fúria. Agora entregava o coração a esse arrebatamento. A sua alma ria como as almas desses velhos teutões para quem a luxúria da cólera era em si mesma a maior volúpia, e que nada mais pediam ao seu paraíso que a possibilidade de serem mortos uma vez por dia.

 

Ele não poderia lutar assim contra um outro rapaz, nem que ele fosse um dos Einherjar do Valhalla, como lutou com esta rapariga. Todos os caçadores de caça grossa sabem que há uma diferença entre caçar o javali ou o búfalo, por mais perigosos que sejam, e os carnívoros que, a terem êxito, comerão o homem no fim do combate. Boris, de visita aos seus parentes na Rússia, tinha visto o seu cavalo ser devorado por uma alcateia de lobos. Depois disso nem os elefantes da Prioresa, nos paroxismos da cólera, acordariam nele o mesmo sentimento. O amor antigo, desenfreado, que a simpatia não pode conceder, e que o contraste e a oposição inspiram, enchia-o por completo.

 

Se as sombras dessas mu-lheres que o tinham enlaçado, macios braços de que o volúvel amante sempre se arrancava, pudessem neste momento juntar-se no róseo quarto de hóspedes da Prio resa, teriam visto satisfeito o orgulho feminil ao con templarem esta sua mortal perseguição de uma donzela que lutava agora menos por lhe escapar que por matá-lo. Tropeçaram abraçados os dois pelo quarto, por segundos, derrubando um dos candeeiros que caiu e se apagou. Depois estabilizou-se a luta. Deixaram de mover-se e abraçados ficaram de pé, vacilando até encontrarem um apoio, o equilíbrio de um tão dependente dessa amálgama com o outro que nenhum dos dois sabia ao certo onde findava o próprio corpo e começava o do adversário. Ofegavam. A respiração dela no seu rosto era fragrante como as maçãs. O sangue continuava a correr-lhe para a boca.

 

A rapariga não teve a inspiração feminina de arranhar ou de morder. Como uma jovem ursa, confiava na sua grande força e, quanto ao peso, levava a melhor. Contra as tentativas do rapaz para lhe dobrar os joelhos, ela erguia-se direita como uma árvore. Com um súbito movimento ela lançou-lhe as mãos à garganta. Ele segurava-a contra si, os cotovelos premindo-lhe as costelas. A postura da rapariga era a de um guerreiro, em punhando com firmeza a espada erguida, prestando um juramento vital. Ele não conhecia o poder das mãos e dos pulsos dela. Arquejando, a boca cheia de sangue, viu todo o quarto girar de um lado para outro. Pontos vermelhos e negros dançavam em frente dos seus olhos. Neste momento ele arremeteu para um último triunfo. Forçou a cabeça dela a inclinar-se com a mão que tinha sobre a nuca, e premiu a boca contra a sua boca. Os seus dentes rangeram contra os da rapariga.

 

Instantaneamente sentiu por todo o corpo, que se abraçava agora ao dela desde os joelhos até às ancas, o terrível efeito que o seu beijo provocou na rapariga. Ela, por certo, nunca havia sido beijada antes, nem sequer tinha ouvido falar ou lera alguma coisa sobre o beijo. A força usada contra ela fez com que todo o seu ser se levantasse numa repugnância mortal. Como se ele a tivesse varado com um estoque, todo o sangue lhe desapareceu da face, e o seu corpo ficou rígido nos braços do rapaz como o do licranço quando se lhe bate. Então toda a força e agilidade que ele combatera pareceram recuar e sumir-se, como faz a onda ao bater no corpo do banhista. Ele viu os olhos dela embaciarem-se, o rosto, próximo do seu, descolorir-se numa palidez de morte. Ela sucumbiu tão repentinamente que ele caiu com ela, como um afogado que o peso arrasta para o fundo, o seu rosto foi atirado contra o rosto dela.

 

Firmou-se nos joelhos, perguntando a si próprio se ela não estaria morta. Como visse que o não estava, levantou-a momentos depois, com alguma dificuldade, e depô-la sobre a cama. Ela era, de facto, agora, como a estátua jazente de um cavaleiro em cota de malha caído em combate. O seu rosto conservava a expressão de uma repugnância mortal. Observou-a por algum tempo, muito quieto ele também. Não sabia que o próprio rosto tinha a mesma expressão. Se ele se lembrasse do Capelão da corte, se o próprio Capelão em carne e osso ali estivesse, nem assim ele se moveria. O valor abandonara-o quase tão definitivamente como a ela. O efeito do vinho passara; como também passara o efeito do filtro de amor da Prio-resa, que talvez não tivesse sido calculado para mais do que uma batalha. Limpou o sangue da boca e saiu do quarto.

 

Já deitado na sua cama, no seu quarto, deu consigo a pensar se a donzela iria, ao acordar, lamentar a inocência perdida. Riu-se de si próprio no escuro, e pareceu-lhe que um riso agudo e fino, como o som da saída do vapor de uma chaleira fervente, respondia ao seu, algures, como num eco, na grande casa imersa na escuridão.

 

De manhã a Prioresa mandou chamar Boris. Ele ficou com um certo medo quando a viu, pois ela parecia ter mirrado. Não enchia a roupa nem a poltrona, e ele perguntava-se que horas nocturnas não teriam passado por ela, na sua cama solitária, que assim esmagaram toda a sua força. Se isto, pensou ele, ainda continua por muito tempo, nada restará dela. Mas provavelmente o meu aspecto ainda é pior. A Prioresa, no entanto, parecia estar de muito bom humor, e satisfeita por tê-lo ali, como se tivesse quase receado que ele fugisse. Disse-lhe para se sentar.

 

- Mandei também chamar Athena - disse.

 

Boris ficou aliviado por ela não lhe fazer perguntas. A boca inchara muito, e doía-lhe se falava. Enquanto esperavam pensou no visconde de Valmont, que amava, de passion, les mines de lendemain. Teriam as invulgares circunstâncias acrescentado um sabor particular a esta manhã, aos olhos do velho e prosaico conquistador de há cem anos atrás? Ou não seria mais provável que ele achasse um disparate todos os valores românticos da situação? A chegada de Athena pôs fim às suas reflexões.

 

Vestia a mesma grande capa cinzenta com que ele a vira em Hopballehus, e parecia disposta a partir. Dava de facto uma tal impressão de ter voltado as costas a Closterseven e de estar já longe do convento, que ele quase se sentiu abandonado. Enquanto ela relanceava lentamente os olhos à sua volta, ele sentiu-se vivamente impressionado com a sua aparência. Parecia estar já a caminho desse estado mais puro de esqueleto, no qual a imaginara na noite anterior. Era realmente uma máscara de morte o que ela sustentava nos ombros fortes. Os olhos, agora mais pálidos, afundavam-se em negras órbitas. Abandonara o costume de firmar-se numa só perna, como se precisasse agora de ambas para se manter direita e em equilíbrio. Confrontada pela Prioresa, cujo rosto mostrava ainda muita e ardente vida, ela bem poderia ser uma acusada no banco dos réus, trazida ali desde as mais fundas masmorras e do suplício da roda.

 

Boris, neste momento, pensou se não seria melhor contar-lhe tudo a ela, assegurá-la de que não lhe fizera mal algum, que nunca lho poderia fazer; e que, de facto, ela saíra vencida dessa prova de força com todas as honras da guerra. Mas achou que não seria o melhor. Quando nos preparamos, reflectiu ele, para levantar um peso de chumbo e ludibriados levantamos um cartão pintado, os braços ficam deslocados. Nesta sua admiração pelo esqueleto da rapariga, seria a última pessoa a desejar que isto lhe acontecesse a ela. Seria melhor que ela suportasse esse peso. Esta donzela, pensou ele, que não pode, que não quer ser feliz, que ela fique nesta hora saciada. Como o artista que, tendo a estátua pronta para a fundição, se acha com metal insuficiente para ela, e toma o ouro e a prata do seu tesouro, da sua mesa, dos guarda-jóias da mulher, assim ele lançou todo o seu ser, corpo e alma, aos abismos fatais da natureza de Athena. Agora, ela que fizesse dele o que lhe aprouvesse.

 

A Prioresa, olhando, ora para um, ora para o outro, falou à rapariga.

 

- Fui informada por Boris - disse numa voz baça e dura - do que aqui teve lugar na noite passada. Não lho perdoo a ele. É uma acção horrível seduzir uma donzela. Mas sei que ele foi a isso instigado, e sei também que um arrependimento sincero atenua o cri-me. Mas a menina, Athena, uma jovem do seu sangue e da sua educação''' o que foi fazer? A menina, que tinha obrigação de conhecer a sua própria natureza, nunca deveria ter vindo aqui.

 

- Não, não, senhora minha tia - disse Athena, olhando frontalmente a velha - vim aqui porque a senhora me convidou, e me disse que era meu dever aqui vir. Agora parto, e se não lhe agrada ter de pensar em mim, não pense.

 

- Ah, não - disse a Prioresa - não pode fazer uma coisa dessas. É terrível para mim o que aconteceu muros adentro de Closterseven. Conhece-me muito mal, se imagina que eu não vou exigir uma reparação. Mostraria eu tão pouca amizade pelo seu pai, que é um nobre? Até que esta falta seja expiada a menina não sairá daqui.

 

Athena pareceu primeiro ignorar a sentença, e nada retorquiu. Depois perguntou:

 

- E como vai ser reparada?

 

- Podemos dar graças - disse a Prioresa - por Boris, culpado como é, não ter esquecido ainda qual é o seu dever. Ele casará consigo imediatamente.

 

Com estas palavras dardejou ao sobrinho um olhar rápido e brilhante, que o assustou como se ela o tocasse ainda uma vez.

 

- Pois sim, mas eu é que não caso com ele - disse Athena.

 

A Prioresa tinha já uma cor toda rubra nas faces.

 

- Como assim? - perguntou em voz aguda. - Recusou então um pedido honrado, que o seu próprio pai aprovava, para depois aceitar, no meio da noite, o mesmo amor que tinha rejeitado?

 

- Não me parece - disse Athena - que importe muito se uma coisa acontece de dia ou de noite.

 

- E se tiver um filho? - gritou a Prioresa.

 

- O quê?! - disse Athena.

 

A Prioresa reprimiu a sua intensa paixão com uma fantástica força de ânimo.

 

- Lastimo-a tanto quanto a condeno - disse. - E se tiver um filho, infeliz?

 

O mundo de Athena desmoronava-se evidentemente, como a posição cercada pelo fogo das baterias inimigas, mas mesmo assim ela permaneceu erecta.

 

- O quê? - perguntou. - Hei-de ter um filho por causa daquilo?

 

A velha fitou-a duramente.

 

- Athena - disse, momentos depois, com a primeira migalha de suavidade que durante a conversa mostrava para com a rapariga - a última coisa que eu quero no mundo é destruir a pouca inocência que lhe resta. Mas é mais do que provável que tenha um filho.

 

- Se eu tiver um filho - disse Athena, abraçando-se aos céus já que a terra tremia sob os seus pés - meu pai lhe ensinará astronomia.

 

Boris encostou o cotovelo à mesa e escondeu o rosto na mão. Com seiscentos diabos, não podia impedir-se de rir. Esta donzela quieta e pálida como a Morte não se dava por vencida. Grande parte da sua palidez e da sua imobilidade podia ficar a dever-se ao vinho e ao combate da noite anterior, e só Deus saberia se eles alguma vez a teriam em seu poder. Ela tinha dentro de si o íman, o maelstrom, o condão de atrair tudo o que viesse ter ao seu círculo de consciência e de uni-lo a si mesma. Era uma capacidade, pensou Boris, que muito provavelmente fora característica dos mártires, e que talvez tivesse irritado o inquisidor-mor, o próprio imperador Nero até, levando-o à beira da loucura. Eles se apossaram das tor turas, das fogueiras, dos leões, e lhes deram assim uma grande beleza e harmonia; mas o torturador deixaram-no alheio a eles. Por mais esforços que fizesse para os possuir, nenhuma relação tinham com ele, com que o privaram, de facto, de uma existência. Eram como o covil do leão, onde se diz que vão ter todos os trilhos e donde não parte nenhum; ou como o rio que em si envolve o sangue e a imundície, e continua o seu caminho. Aqui, no momento em que os dois conquistadores, o jovem e a velha, a julgavam encurralada pela situação, a ra pariga preparava-se para montar e partir de Closterseven, como o Sansão que erguera nos ombros as portas de Gaza, os dois postes, ferrolhos e tudo, e os levou ao alto do monte que está defronte de Hébron. E se ela desse realmente por ele, iria a filha do gigante, pensou Boris, carregá-lo na palma da sua mão até Hopballehus e fazer dele o cavalariço dos seus unicórnios? Ainda um verso de Eurípedes lhe ocorreu, e ele sentiu que devia ser o vinho da noite anterior e toda a agitação à sua volta que assim o faziam misturar agora os clássicos com as Escrituras e com as lendas da sua província, pois de ordinário não fazia tal coisa:

 

Ó Palas, salvadora da minha casa,

fui despojado da Pátria e tu ma deste

de novo por morada.

Dir-se-á na Hélade: Olhai,

este homem é ainda um Argi vo

e habita de novo as terras de seu pai.

 

- E então a honra da sua casa? - perguntou a Prioresa com uma calma fatal. - Quem pensa, Athena, que na linhagem de Hop ballehus deu antes de si à luz um bastardo?

 

A estas palavras o sangue subiu à face de Athena até fulgir mais rubro que o fulgurante cabelo. Avançou um passo em direcção à velha senhora.

 

- O meu filho - exclamou em voz baixa, mas onde ecoava profundo o rugido da leoa, ela que era da cabeça aos pés a filha ofendida de uma grande raça - o meu filho seria um bastardo?

 

- A menina é ignorante, Athena - disse a velha. - A menos que Boris case consigo, que outra coisa pode ser o seu filho senão um bastardo?

 

Corajosa como era a Prioresa, apesar de tudo, sabia que a rapariga, se quisesse, podia esmagá-la com os dedos. Manteve o vivo olhar fixo em Boris, que não se sentia chamado a in terferir na discussão das duas mulheres sobre o seu filho.

 

Athena não se moveu. Por momentos quedou-se perfeitamente imóvel.

 

- Agora - disse por fim - vou voltar para Hopballehus, falar com meu pai e pedir-lhe conselho sobre tudo isto.

 

- Não - repetiu a Prioresa - isso não pode ser. Se a menina disser a seu pai o que fez, dar-lhe-á um grande desgosto. Eu não vou consentir numa coisa dessas. E quem sabe, se a menina partir agora, se Boris ainda estará pronto a casar consigo quando se encontrarem de novo? Não, Athena, a menina tem de casar com Boris, e não deve contar nunca a seu pai o que aqui se passou. Tem de prometer-me estas duas coisas. Depois pode ir-se.

 

- Muito bem - disse Athena. - Nunca direi nada ao papá. Quanto a Boris, prometo-lhe que me casarei com ele. Mas, senhora minha tia, quando estivermos casados, e assim que eu puder fazê-lo, mato-o. Quase o matei ontem à noite, ele próprio é testemunha. Prometo-lhe estas três coisas. E agora vou-me.

 

Depois das palavras de Athena sucedeu uma longa pausa. As três pessoas reunidas na sala tinham de sobra pensamentos sem que falassem, para as ocupar.

 

Neste silêncio ouviu-se bater forte e nitidamente no vidro de uma das janelas. Boris compreendeu que já tinha ouvido antes este som, no decurso da conversa, sem que lhe tivesse prestado atenção. Agora o som repetiu-se três ou quatro vezes.

 

Ganhou completa consciência dele ao ver o extraordinário efeito que o som produziu em sua tia. Ela, tal como ele, tinha-se absorvido tanto na discussão que não o escutara. Agora o som atraía-lhe a atenção, e um terror mortal a assaltou. Lançou um rápido olhar à janela e ficou branca de cal. Os braços e as pernas agitaram-se em movimentos espasmódicos, os olhos dardejaram pelas paredes, como um rato que está preso e não pode sair. Boris voltou-se para a janela e achou o que a assustava. Não supusera que alguma coisa a pudesse assustar assim. Sobre o parapeito, ainda do lado de fora, o macaco, agachado a quatro, premia o focinho contra o vidro.

 

Boris ergueu-se para lhe abrir a janela.

 

- Não! Não! - guinchou a velha num paroxismo de horror. O animal continuou a bater. Tinha obviamente qualquer coisa na mão, com que batia na vidraça. A Prioresa ergueu-se da ca deira. Oscilou ao levantar-se mas, uma vez de pé, pareceu desperta, pronta a correr. No momento seguinte, porém, o vidro da janela espatifou-se e caiu ao chão, e o macaco saltou para a sala.

 

Imediatamente, sem um olhar, como se fugisse às labaredas de um fogo que a ameaçava, a Prioresa, apanhando à frente o vestido de seda com ambas as mãos, cor-reu, atirou-se em direcção à porta. Achando-a fechada, não se consentiu o tempo de abri-la. Com uma surpreendente e fantástica agilidade, ela trepou veloz, muito direita, pelo caixilho e no momento seguinte sentava-se, comprimida, sobre as esculturas da cornija, tremendo numa paixão de horror, e rilhando os dentes ao grupo postado no chão. Mas o macaco seguiu-a. Tão depressa como ela o tinha feito, o animal insinuou-se pela ombreira da porta acima, e estendia a mão para a agarrar quando ela, destra, se esgueirou pela ombreira oposta. Ainda segurando o vestido com ambas as mãos, e dobrando o corpo ao meio, arremessou-se pela parede adiante. Mas ainda assim o macaco a seguiu, e ele era mais rápido que ela. Saltou-lhe em cima, apoderou-se da touca de renda, e tirou-lha com tal safanão que a rasgou. O rosto que ela volveu aos dois jovens estava já transformando-se, era murcho e enrugado, e de uma cor castanha escura. Por uns momentos a luta foi feroz e alucinante. Boris esboçou um movimento para se lançar de permeio, a salvar a tia. Mas já no momento seguinte, no centro da sala de damasco vermelho, sob os olhares do velho general empoado e da mulher, na plena luz do dia, uma mudança, uma metamorfose se estava completando.

 

A velha com quem os dois estiveram conversando estava, em convulsões, desgrenhada, deitada ao chão; estava esmagada e diferente. Onde estivera uma mulher acocorava-se agora, ganindo, um macaco completamente vencido, procurando achar refúgio num canto da sala. E donde estivera o macaco em saltos, ergueu-se, um pouco arquejante devido ao esforço, o rosto ainda de um rosa vivo, a verdadeira Prioresa de Closterseven.

 

O macaco arrastou-se para as sombras ao fundo da sala, e por algum tempo continuou a choramingar e a contorcer-se. Depois, esquecendo os pesares, saltou, ágil e gracioso, para um pe destal que suportava a cabeça em mármore do filósofo Immanuel Kant, e dali se ficou a observar, de olhos cintilantes, o procedimento das três pessoas que se encontravam na sala.

 

A Prioresa tirou o lencinho e levou-o aos olhos, durante alguns minutos não achou o que dizer, mas conduzia-se com a dignidade e a amabilidade que os jovens sempre lhe conheceram.

 

Estes tinham seguido o curso dos acontecimentos, tão paralisados pela surpresa que não puderam falar, mover-se ou até olharem-se. Agora, como ao terrível tornado que reinara naquela sala se sucedesse a calmaria, acharam-se próximos um do outro. Voltaram-se e fitaram-se.

 

Desta vez os olhos lucíferos de Athena, nas fundas e negras órbitas, não conseguiram apossar-se de Boris. Ela tomava consciência dele como alguém exterior a si mesma; a memória da luta entre os dois se denunciava no seu olhar claro e límpido. Mas, neste olhar, ela decretava uma outra lei, uma ordem que não podia ser in-fringida: de agora em diante, entre, de uma parte ela e ele, que haviam presenciado juntos os acontecimentos daqueles últimos minutos, e de outra parte o resto do mundo, que ali não estivera com eles, uma barreira intransponível se erguia para sempre.

 

A Prioresa baixou o lenço a revelar o rosto, e num movimento grácil e suave tomou assento na grande poltrona. Olhou para o jovem e para a rapariga.

 

- Discite iustitiam - disse ela - et non temere divos.

 

                                                                                Karen Blixen  

 

                      

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