Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ROSA REBELDE / Janet Paisley
A ROSA REBELDE / Janet Paisley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

    

Lady Macintosh, a coronel Anne Farquharson, abandonou a atividade pública para centrar-se em sua vida privada. Em 1763 foi escolhida em sua condição de mulher livre como sindica do grêmio do burgo de Invernes. Mudou-se para Leith, Edimburgo, depois da morte de seu marido, acontecida em 1770, e em 1787 foi enterrada no cemitério de St. Ninian, em Coburg Street, onde em 2001 puseram uma placa comemorativa para recordar sua contribuição durante a sublevação jacobita de 1745 e plantaram junto a ela uma roseira em honra à rosa branca da Escócia, a rosa jacobita.

Esta é uma novela de ficção e devo advertir que sobreviveram poucos retalhos da história de Anne. Localizei o primeiro no livro Stories of the clãs (Relatos dos clãs), de Rennie MacOwan, e averiguei algo mais no Damn' rebel bitches (Malditas putas rebeldes), de Maggie Craig, onde se narram muitas biografias conhecidas e de primeira mão e se ecoa de outros muitos relatos. A partir daquela direta referência, encontrada na segunda obra, se deduz que se trata de um personagem muito conhecido entre seus contemporâneos; ali a descrevem como uma mulher real com um aspecto similar ao de seus conterrâneos: bela e briguenta, fiel ao protótipo dos ancestrais escoceses. A História gerou o mito de que os homens fazem o mundo e as mulheres o padecem, uma ficção falsa claramente e um péssimo serviço para ambos os sexos, pois homens e mulheres a fazem juntos, já que ambos cooperam para levantar qualquer tipo de sociedade. As mulheres de 45 não foram vítimas a não ser participantes ativas na guerra civil que terminou com um genocídio, e a descrição dessa história exige sua simplificação. Condensei o lapso temporário da rosa da Escócia do princípio ao final. Meu relato da campanha recolhe os elementos principais da história misturados com outros menos relevantes, pois a novela se ecoa principalmente do bando jacobita, mas as ações de Anne e de outros também respondem a outros feitos correspondentes ao Governo inglês da União.

A necessidade de defender suas ideias junto à culpabilidade experimentada pelos britânicos como resultado da brutal pacificação complicou tudo em seguida e logo se reescreveram os fatos. Embora os anais da época e as histórias posteriores se contradizem entre si, o duque de Cumberland escreveu um relatório sobre a captura de Anne, a quem se referiu como uma das «quatro principais damas» escocesas: coroe-a Anne, a belle rebelle, a heroína, uma mulher formosa, a angélica lady Macintosh, mas também essa rebelde sanguinária, a mulher de têmpera viril, a traidora, a maldita puta rebelde...; ela foi tudo isso e, sobretudo, um dos personagens heróicos de 45.

Em 1747 se decretou uma anistia. Francis Farquharson de Monaltrie recebeu o perdão vinte anos depois, um indulto que a outros jamais chegou. A proibição do característico tartán escocês se levantou em 1782, embora permanecessem vigentes os decretos de abolição do direito dos chefes de clã a dispensar justiça e seu poder de chamada às armas. Os britânicos suprimiram o sistema de clãs e o substituíram pelo capitalismo. O status da mulher se viu reduzido ao mínimo e as Terras Altas ficaram despovoadas, pois seus habitantes se disseminaram por toda parte do mundo conhecido.

A Escócia votou por maioria entristecedora a proposta do Governo britânico para estabelecer um Parlamento escocês em 1997, cuja sessão inaugural se celebrou em julho de 1999, a primeira desde 1707. Talvez agora o país possa também recuperar sua história.

 

 

 

 

Ao longe se ouvia um bater de tambores e o apagado eco de uma morosa melodia de gaitas de fole. Era uma chamada, uma reclamação, pois um chefe estava a ponto de morrer. Em momentos como esse até os inimigos inflamados esqueciam as rixas, deixavam a espada de lado e partiam para ir à convocatória.

  Enquanto isso, indiferente ao longínquo sonsonete, uma coisa pastava entre rochas e urzes à luz mortiça do crepúsculo nos primeiros contrafortes dos Cairngorms. Soou um disparo; logo outro, apenas um segundo depois. O animal vacilou sobre as patas e caiu.

—Trobhad*, vem! — gritou em gaélico uma menina de doze ou treze anos com o rosto sujo, enquanto, alerta e feliz, saia em disparada do matagal de árvores próximas, e corria para a criatura ferida com um mosquete ainda fumegante na mão. Apesar do emaranhado da cabeleira, vestia um vestido, montanhês, sim, mas de veludo e encaixe.

— Anne, fuirich*, espera! — gritou uma voz masculina.

Um menino de maior idade, com chapéu de chefe e tonelete, emergiu depois da menina com a segunda arma na mão; o brilho de seu cabelo loiro avermelhado ainda era visível na crescente escuridão.

Correndo, fez caso omisso ao pedido e não vacilou enquanto deixava cair o mosquete e tirava uma faca do cinto; em seguida saltou por cima do animal ferido para evitar seus dentes, com o aço preparado. O veado se removeu e tentou levantar quando ela deu o salto, acertando à moça na tíbia. Anne caiu entre as urzes com um chiado. Dois passos atrás dela, o jovem soltou a arma de fogo e pegou sua própria faca antes de cair de joelhos junto ao veado, cuja cabeça torceu para trás para matá-lo a seguir. Anne se jogou contra o peito do animal a fim de ser a primeira em lhe cravar o aço no pescoço.

— Cacei-o eu — espetou ela com voz desafiante. O moço lhe lançou um olhar eloquente por cima da presa agonizante enquanto se elevava entre eles o terrestre fedor de sangue. — De acordo, MacGillivray — concedeu ela — O caçamos os dois. — Logo afundou os dedos no lento jorro que emanava da ferida e se desenhou uma linha sangrenta no centro da testa com o dedo do meio. — Mas a presa é minha.

Levantou-se de um salto, assim que esteve segura de ter afirmado seu direito. A dor subiu em espiral por todo o corpo, a fazendo soltar um grito antes que pudesse o conter. Ao ver que cambaleava, o jovem MacGillivray a segurou. Anne puxou a larga saia de veludo para olhar para baixo. O tornozelo direito tinha começado a inchar. Tentou outra vez apoiar nele seu peso, mordendo o lábio para não voltar a gritar de dor.

— A carregarei. — ofereceu MacGillivray.

— E o veado?

— Terá que esperar.

— Gu dearbh, fhéin, chan fhirich!* De maneira nenhuma! — Não queria perder a presa. Nas colinas ficavam poucos veados; encontrar esse tinha sido uma sorte. Os habitantes famintos não eram os únicos caçadores. — Muito antes que cheguemos em casa o terão comido os lobos.

— O colocarei em cima de uma árvore.

— Leva-o a Invercauld. Assim a gente que chega não encontrará a despensa vazia.

— Os convidados trarão comida, se é que podem, pois este foi um ano de escassez para todos.

— Mas assim ele poderá comer. — À menina lhe fez um nó na garganta. — E quando se alimentar recuperará as forças. — quebrou a voz. — Talvez então todos possam voltar para casa.

MacGillivray tinha dezenove anos; baixou os olhos e cravou nela. Poderia ter recordado que o chefe moribundo era incapaz de provar um bocado, que levava dias inteiros sem fazê-lo. Em troca, agarrou-a pela cintura para levantá-la e a colocar em seu ombro.

— O que faz? — protestou ela, lutando.

— A subirei a árvore — disse ele enquanto avançava dando grandes passos em direção a árvore.

Enquanto ela acomodava o traseiro na bifurcação da árvore onde MacGillivray a tinha subido, ele cevou e carregou o mosquete da menina e o entregou.

— Sigo pensando que deveríamos deixar o veado.

— Quer ir já, Alexander?

Ele pendurou o outro mosquete contra o peito antes de colocar cabeça do veado sobre os ombros. Não gostava nem um pingo da perspectiva de retornar sem ela. Por fim e depois de uns minutos, estas não eram suas terras nem pertenciam ao mesmo clã.

A menina o chamou quando já partia.

— MacGillivray. — O jovem se voltou, ainda disposto a baixar Anne e pôr em seu lugar o veado. — Vá por ali — indicou ela. — Segue o som dos tambores.

O moço deixou escapar o fôlego e virou para seguir o rumo indicado. A cada passo o corpo do animal se chocava contra suas costas, ainda gotejando sangue.

— E lhes diga que eu o abati — gritou ela, antes que desaparecesse da vista, e a deixasse sozinha.

Dois gatos monteses se cortejavam a gritos entre as rochas, cada um rodeando o outro, enquanto ressonava o ulular de um mocho durante a caça. O atoleiro de sangue deixado pelo veado resplandeceu na penumbra assim que a lua apareceu por cima das montanhas. No vale, lá longe, uivou um lobo. Anne se moveu na árvore. Se a manada se aproximasse, detectaria o aroma do sangue e seguiria o rastro. MacGillivray tinha pendurado primeiro o mosquete. Teria que deixar cair o veado para poder carregá-lo. Os lobos se lançariam sobre ele; estariam esfomeados, e embotada sua cautela natural. E só poderia disparar uma vez; mal teria tempo para recarregar e disparar de novo enquanto a fera levava o veado, mas depois só ficaria o punhal; se os lobos eram mais de dois, já se podia dar a presa por perdida. Depois de dar um olhar em volta da árvore, Anne pendurou seu mosquete em um ramo curto e extraiu a faca do cinturão.

A manada achou o sangue coagulado antes que a lua chegasse ao céu. Perceberam também um azedo aroma de seres humanos, o qual não ia detê-los, pois os três predadores tinham a pelagem pouco lustrosa e as costelas marcadas. A fome eliminava muitas reticências. Um farejou ao redor do atoleiro e outro levantou a cabeça para lançar um uivo enquanto o terceiro captou o rastro do que, para eles, era uma presa ferida. O terceiro saiu atrás dela a trote ligeiro. Não teriam visto Anne sem ter elevado a cabeça, pois a bifurcação da árvore onde a tinha deixado MacGillivray estava deserta, e a pouca distância, um ramo trincado mostrava a pálida madeira branca de um corte recente.

Anne seguia o rastro do jovem, marcado pelas reluzentes gotas de sangue do veado. Coxeava entre pedras e urzes com a respiração agitada, apoiando-se em umas improvisadas muletas: o ramo quebrado da árvore debaixo do braço esquerdo e a culatra do mosquete sob o direito. Tinha improvisado uma bandagem com uma parte de tecido arrancado da saia para o tornozelo inchado. Tinha percorrido dessa guisa parte do caminho a Invercauld, mas não o suficiente. A suas costas, sobre o rastro, uivou um lobo. Ela parou, virou-se pela metade, e aguçou o ouvido em uma tentativa de calcular a distância e a velocidade. Os brejos e os arbustos se recortavam contra sombras mais escuras, acentuadas pela lua alta. O peitilho de Anne brilhava sombriamente debaixo dessa luz.

Apoiada na culatra do mosquete tocou a mancha de sangue com uma mão. Ainda estava fresca. Normalmente os lobos não a teriam incomodado, pois pessoas lhes inspiravam temor, mas a inanição trocava tanto o homem como à besta. Por isso, ela se encontrava na colina em vez de estar em sua casa; também por isso tinha abandonado o amparo da árvore. Tinha seguido MacGillivray para defender sua presa sem pensar duas vezes, mas agora o mais provável era que ele tivesse chegado a Invercauld e inclusive possivelmente estivesse de volta em sua busca, e enquanto isso, os lobos seguiam o rastro de sangue e iriam encontrar Anne, que despedia o aroma da coisa rastreada.

Com o coração palpitante, Anne apertou com força a culatra do mosquete e girou para continuar, decidida a caminhar mais depressa. Em troca topou contra algo sólido. Sem fôlego, desorientada por essa presença súbita, demorou vários segundos em comprovar que aquilo contra o qual tinha chocado era um homem moreno, cuja larga juba negra chegava até os ombros. A menina olhou o desconhecido, que era velho, já que talvez tivesse trinta anos. O homem umedeceu um dedo nos lábios e se limitou a limpar a mão. Anne tratou de se esquivar, pois segurou sua cabeça com uma mão para lhe apagar da testa, com o polegar, o sanguinário troféu.

— Seadh, a-nis* — disse. — Vá, de modo que dei com um guerreiro.

Havia uma nota de alegria na voz do homem, e ela a percebeu sem nenhuma dúvida, apesar de que esse júbilo não se refletia em seu semblante. A entonação confirmava que o homem não era desse vale.

— É membro do clã MacDonald?

A pergunta pareceu divertir o homem ainda mais que a marca de sangue e se agachou para se aproximar de seu rosto.

— E o que aconteceria se o fosse...?

Anne aplicou toda a extensão e a força de seu braço a mover violentamente o mosquete, cujo canhão golpeou o desconhecido na tíbia. Ele lançou um bramido e se curvou instintivamente para frente; a força da batida desequilibrou a menina, que soltou o mosquete e se desequilibrou. Teria caído se não fosse pelo desconhecido, que a segurou pelos ombros e a afirmou novamente contra a muleta improvisada.

— Qualquer guerreiro saberia — a instruiu, já sem nota alguma de diversão na voz. — Se tiver uma perna ferida, ataca com o braço oposto.

Anne não necessitou que o dissesse duas vezes: imediatamente, moveu em um arco a muleta, que também foi estelar-se contra a tíbia do estranho. Este proferiu outro rugido e retrocedeu um passo, meio encolhido. A menina cambaleou, mas como dessa vez estava preparada, se compôs para conservar o equilíbrio e manter-se erguida. O desconhecido se recuperou com rapidez. As sobrancelhas escuras se franziram sobre os olhos coléricos. Arrebatou-lhe a muleta furioso, e a partiu em dois contra seu joelho, como se de isca se tratasse; logo a jogou longe, nos brejos. Depois recolheu do chão o mosquete de Anne e, em um movimento rápido, apontou-o para ela. Enquanto a menina sustentava seu olhar, desafiante, já oscilando para o desamparo, ele disparou.

Um grito de dor se elevou atrás da pequena, onde o primeiro dos lobos girou, a bala alcançado-o na pata, e se afastou coxeando, encolhido e gemendo. Os outros dois pararam e iniciaram também a retirada. Ela levantou a vista para o homem, boquiaberta, impressionada pela rapidez e pontaria. Sua admiração chegava muito tarde, porque o homem a olhava com fúria.

— E agora vou encarregar-me de você — anunciou.

 

Em Invercauld, as gaitas de fole e os tambores continuavam soando a ritmo lento e parecido e as tochas piscavam nas colinas como vaga-lumes. As fogueiras do acampamento flamejavam na escuridão em torno da casa do chefe, uma achaparrada construção de pedra, em cujas imediações o duelo antecipado saturava o ar, povoado de murmúrios. Uma rosa branca de junho florescia junto à porta da casa. A luz do astro noturno incidia nas pétalas perfumadas, que projetavam luzes fantasmagóricas sobre o claro da lua. O grupo de busca retornou das colinas com as mãos vazias. Jean Forbes os observou de pé no vão da porta. Estava fora de si, mais irritada que preocupada. A garotinha obstinada parecia perceber o estado de ânimo de sua mãe, pois tratava de esconder-se entre as dobras da sua saia. MacGillivray correu para elas.

— Desapareceu — disse com a respiração agitada. — Fomos correndo pelo atalho mais curto, mas ela já não se achava ali.

— Och! Onde está então?

MacGillivray abriu as mãos, desconcertado. A responsabilidade era dela... E muito grande, nesse momento.

— Alguns homens retornaram por outros caminhos. Ela fez uma muleta. Um rastreador encontrou sua pista, mas isso vai levar tempo.

Jean tinha muitos anos menos que seu agonizante marido, não em vão, era a quarta esposa de lorde Farquharson, e Anne não era filha dela. A menina era uma desobediente, e nessa noite não era precisamente um bom momento para distrair a atenção do clã por uma cria tola e caprichosa.

— Meu marido não resistirá muito tempo — espetou MacGillivray. — É preciso encontrá-la!

O jovem não tinha preparado uma réplica para o estalo de ira, por isso se apressou a improvisar uma, mas antes de poder expressar sua primeira palavra de desculpa, a suas costas soou um disparo de mosquete. Alarmados os hóspedes se voltaram em direção ao ruído e começaram a murmurar com deferência e respeito: «Macintosh» e «Aeneas». Aeneas Macintosh apareceu à luz da porta, com o mosquete fumegante na mão e Anne encarapitada sobre os ombros.

Os parentes da menina se amontoaram a seu redor com alívio. Lady Farquharson reparou primeiro na extraviada, mas lhe agradou muito mais ver quem a levava.

— Aeneas, bem-vindo, fáilte*!

— Meu tio envia suas desculpas, lady Farquharson — saudou o recém-chegado. — Não está bem, e não é capaz de atravessar a montanha em seu atual estado.

A mulher assentiu. Macintosh era o chefe eleito do clã Chatton, o clã do gato, federação a que pertenciam todos os presentes, e sua ausência desapropriava à morte de seu marido de parte de sua honra, mas a presença do jovem contribuiria com outros benefícios, razão pela qual Jean escondeu seu desencanto.

— É uma honra que nos tenha em seus pensamentos — disse — Ocupará seu lugar entre os outros chefes de Chatton?

Aeneas não era um deles, a não ser sobrinho de um chefe. Se devia apresentar seus respeitos a um digno guerreiro era por própria vontade, não só para transmitir a saudação de Macintosh, e teria preferido esperar fora em companhia de outros parentes, mas cedeu, aceitando a honra. Posto que Anne começasse a se retorcer, deixou-a escorregar de seus ombros para o chão. Lady Farquharson cravou um olhar desdenhoso na menina, suja e manchada de sangue.

— Seu pai a espera — lhe informou.

Logo girou sobre seus pés e desapareceu no interior da casa com a criatura agarrada às saias. Anne, furiosa, fulminou com o olhar MacGillivray, e contorceu os dedos, de modo que penduraram ao seu lado como garras.

— Não retornou!

— Não pudemos a achar.

A menina saltou contra ele para atacá-lo com os punhos e a ferocidade de seu ataque derrubou a ambos sobre uma roseira.

— Procuramos-lhe por toda parte — protestou ele, lutando por imobilizar suas mãos.

Anne se viu elevada pelos ares, com uma rosa branca enredada no cabelo solto. Aeneas a tinha levantado pela parte traseira do vestido.

— Assim se comporta enquanto agoniza seu chefe? — trovejou.

— Na cão sem*, não diga isso porque é mentira! — gritou-lhe a menina. — Está doente, mas isso é tudo!

— E você sai para caçar sem sua permissão, arrasta contigo MacGillivray e se machuca, para que todos os homens tenham que sair para a resgatar, uma menina tola. — Aeneas não a tinha soltado, mas até em meio de sua ira protegia a menina — Agora se comportará como deve antes de entrar, se não quiser que lhe dê aqui mesmo a surra que merece.

Anne estava ante sua própria porta, rodeada de sua própria tribo, assim não considerava possível que ele se atrevesse. Com todo o glacial sarcasmo da superioridade, cuspiu-lhe sua resposta:

— Não fará nada disso, senhor, pois não é meu pai e nem sequer um chefe.

Aeneas não replicou e fincou um joelho em terra ao mesmo tempo em que colocava Anne sobre a outra para aplicar uma sonora palmada no traseiro, o bastante forte para fazer machucar seu orgulho. A menina fulminou o homem assim que ficou em pé, ainda vacilante. Depois de comprovar que as testemunhas não iam dizer nada nem mover um dedo em sua defesa, a menina jogou a cabeça atrás e entrou coxeando na casa, com o tornozelo inchado.

Aeneas olhou para MacGillivray. O jovem chefe mantinha a vista cravada na terra. Um arranhão na bochecha, feito pelo espinho de uma rosa, deixava aparecer diminutas gotas de sangue.

— Acredito que deveria me encarregar de seu treinamento — insinuou Aeneas. O sotaque zombador de sua voz passou inadvertido. O moço levantou a cabeça, ansioso.

— Faria-o?

— Falarei com Macintosh a nossa volta — respondeu Aeneas. Seu tio era o tutor de MacGillivray. Sem dúvida estaria de acordo.

— Queria esperar — resmungou o moço, — mas ninguém sabia aonde tinha ido. Vim ontem... — Recuperou o orgulho... — em representação de minha gente.

— Era seu dever — conveio o maior.

O salão principal de Invercauld estava lotado. Refulgia graças às velas e à fogueira de turfa que ardia devagar. Todos os chefes do clã Chatton, homens e mulheres, reuniram-se ali com seus respectivos cônjuges e permaneciam à espera, de pé ou sentados. James Farquharson, um jovem de dezesseis anos, soluçava baixinho junto ao leito onde jazia seu pai. Ao entrar Anne e lady Farquharson, com a pequena Elizabeth ainda presa em suas saias, ele se separou da cama.

A menina, sem lhe dar atenção, passou mancando para aproximar-se do leito. Ao baixar a vista para seu pai desapareceu sua atitude rebelde; pela primeira vez nessa noite se transformou em uma filha assustada.

— Papai?

Os olhos de Farquharson se abriram em uma piscada. Virou a cabeça para ela e se levantou pela metade para pegar seus ombros.

— Cacei um veado para você — disse ela — Um veado! Agora poderá comer bem e melhorará.

Aeneas Macintosh permaneceu na soleira da porta junto a MacGillivray. Tinha suposto que a menina caçava por prazer, indiferente a iminente morte de seu pai.

— Nada de comida — repôs Farquharson.

O doente estava morrendo a vista de todos. Era como se todos, salvo sua filha mais velha, pudessem ver sobre ele a sombra da morte.

— Pois então farei que alguém mescle o sangue com cerveja. Isso o fortalecerá. — Girou para sua meio-irmã, ainda escondida atrás de sua mãe. — Elizabeth...

— Não. — O pai lhe apertou os ombros com mais força. — Não, Anne. Agora é você e James quem deverão ser fortes. Meu tempo acabou.

— Chan eil!* Nada disso. Chan eil idir!* Não deixarei que vá. — À menina quebrou a voz por uns segundos e olhou a seu redor, fulminando a quem rodeava o leito com olhos faiscantes por causa das lágrimas, antes de recuperar a fala e repreendê-los: — Por que ficam aí parados? Façam algo!

Ninguém se moveu nem disse nada, embora houvesse gestos nervosos. A madrasta apoiou uma mão no seu ombro, talvez por compaixão, mas Anne a sacudiu.

— Acaso sou a única interessada...?

— Isd, a ghràidh* — atalhou seu pai. — Fique quieta, menina. — Mas um vago sorriso lhe iluminou o rosto gasto. — Agora o chefe será seu irmão, se o clã assim o quiser, mas você, você sempre será minha pequena. — Elevou uma mão tremente para pegar a rosa branca que ela trazia no cabelo. — Minha jacobita. O príncipe virá, quando for bastante homem — a voz foi sumindo. — Virá em representação de seu pai.

O príncipe mencionado era um moço de dezessete anos que vivia no exílio. Seu avô tinha governado as três nações independentes da Escócia, Inglaterra e Irlanda, mas foi deposto em 1689. Em 1707, quando a Escócia se uniu a Inglaterra, o pai do príncipe se transformou no eixo da revolta contra essa União. Oito anos depois Farquharson se incorporou à rebelião de 1715, com a esperança de coroar Jacobo Estuardo e restaurar a independência escocesa. A sublevação fracassou e o rei Jacobo retornou a França. Agora as esperanças dos defensores da causa estavam depositadas em sua jovem filha.

— Lutaremos — prometeu sua filha. — Lutaremos pelo príncipe. Bem sabe que sim.

O peito do homem estremeceu em uma agonia.

— Lutem por sua liberdade — pediu antes de voltar a cair sobre o travesseiro.

— Assim será. Prometo-o. — Anne levantou a cabeça, procurando provas do consolo das palavras familiares; embora pela metade cegada pelas lágrimas, sua voz ressonou potencializa: — Prosperidade sem União!

E embora seu pai já não pudesse ouvir a afirmação, o povo recordaria que tinha morrido com uma rosa branca na mão, o símbolo daquela luta, enquanto todos os presentes o repetiam:

— Prosperidade sem União!

 

  O despontar da alvorada sobre os picos de neve levou o primeiro dia da primavera até as montanhas, em cujas verdes saias, perto de Braemar, pastavam um grupo de vacas negras. A luz ondulava como um líquido entre as geadas gargantas rochosas, onde o gelo começava a fundir-se e a gotejar. Um rebanho de ovelhas se separou do menino que pastoreava e umas quantas cabras. As cabanas se misturavam naquela paisagem, enquanto o aroma da turfa queimada se elevava em espiral do buraco central aberto nas cobertas. No pátio de Invercauld, um galo jovem se ergueu entre as galinhas que brincavam de correr em busca de comida e cantou anunciando a aurora, para afirmar sua virilidade.

Pouco tinha mudado desde a morte do velho chefe, sete anos atrás. Pouco e muito. Os lobos já não andavam pelo bosque, pois tinham organizado caçadas até conseguir sua erradicação a fim de conservar os veados e proteger as ovelhas nas colinas. O corte dos bosques tinha dado mais terra para lares e para semear, enquanto a madeira provia à casa de um estábulo e um curral. O barulho de cascos interrompeu o barulho do galo, anunciando o trote de um cavalo no pátio. O cavaleiro era mais alto e tinha perdido o aspecto fraco e desajeitado da juventude, mas sua juba avermelhada com fios de ouro seguia sendo inconfundível.

— Anne! — chamou o cavalheiro assim que esteve perto da casa. — Anne!

Uma jovem abandonou a busca de ovos entre as matas cobertas de geada que ladeavam o galinheiro. A grossa manta de tartán presa nos ombros cobria os movimentos ágeis e desenvolvidos de uma jovem sobre cujas costas pendia livremente uma larga trança com a qual tentava controlar a rebelde e sedosa juba castanha. Voltou-se com dois ovos na mão e um sorriso se estendeu por seu semblante quando viu que o cavaleiro era MacGillivray.

— Alexander! — Agitou a mão, enquanto ele se aproximava. — Supunha que o pasto ainda estaria bloqueado pela neve.

— Vim pelo caminho mais longo.

Quando desceu, rodeou-a com os braços e a beijou apesar de que ela seguia atenta à busca de ovos. Alexander e Anne eram amantes ocasionais desde a primavera anterior. Entre os clãs os impulsos se satisfaziam conforme iam surgindo e as cópulas casuais entre as urzes eram comum. Frequentemente as mulheres levavam um homem à cama só para passar o inverno.

Anne poderia ter-se casado, mas nenhum outro lhe resultava atraente e MacGillivray não estava em condições de desposá-la. Os chefes montanheses se casavam tarde, pois seus clãs deviam prover a eles e a seus filhos. A moça notou no ventre a pressão do seu desejo, seja por causa da excitação do viajante, seja porque a bolsa que levava sobre a saia estava carregada de aveia. Empurrou-lhe para trás, entre risadas.

— Quieto, homem, sguir dheth!* Está gelando e já tenho as mãos cheias

— Ai — grunhiu ele. — O inverno foi longo.

— E claro, você só procura isso — acusou ela, com um grande sorriso: — uma cama quente.

— Não. Sim, também isso, mas me enviaram. Devo levar todos a Moy.

— Em tal caso..., Macintosh morreu. —Anne ficou séria imediatamente. — Me pareceu ouvir o toque fúnebre ontem à noite, mas tão débil e remoto que acreditava ter sonhado.

— O gaiteiro de Shaw estava doente e não o repetiu, mas esta noite sim vai ouvi-lo, pois já se restabeleceu. E escuta isso. — Agora se mostrava mais entusiasmado. — Escolheram como novo chefe seu sobrinho Aeneas.

— A Aeneas Macintosh? —Anne ficou boquiaberta, sem dar crédito a seus ouvidos—Ficaram loucos?

— É um grande guerreiro!

— Estupendo para surrar meninos!

— Isso ocorreu há anos — riu MacGillivray. — Tenho que recordar que não convém ficar zangada. Sua memória é tão grande que um dia sem pão.

— E a sua, muito pequena que nem um passarinho. Não se estranha que ele não se casou, se desde que morreu seu pai passa o tempo correndo atrás dele como se fosse seu amante.

— Somos primos. — A acusação lhe fez avermelhar. — E me treina. Além disso, não podia casar-me até que se decidisse quem seria o herdeiro do chefe.

— Pois bem, agora pode. Espero que os dois sejam muito felizes.

Ela se dirigiu para a casa, feita como o vento. MacGillivray se deixava impressionar com facilidade. Sem dúvida, Aeneas lhe derrotava com a espada!

— Anne — chamou ele. — Deve ir.

Ela virou-se para o olhar.

—O chefe Macintosh não veio quando meu pai morreu. — Seu tom desafiante dissimulava uma profunda ferida.

MacGillivray cruzou os poucos passos que o separava dela, abrandado por sua vulnerabilidade, com o desejo de recompor as coisas.

— Não é só pelo enterro — lhe recordou com suavidade.

Sustentou seu olhar por um momento, enternecida por esse instante; logo o feitiço se dissipou.

— Já sei! — estalou. — Além disso, o clã Chatton escolherá um novo chefe. E bem encabeçará você a federação, Alexander? Acredito que não. Possivelmente meu irmão, ou MacBean, MacPherson, Davidson, Shaw, MacQueen? Não! Não será nenhum deles. Será Macintosh! E escuta, sabe o que te digo? Esse homem jamais será meu chefe! Não votarei. E tampouco irei! — Agarrou-lhe a mão. — Toma que você precisa tomar o café da manhã.

E caminhou de volta aos bosques depois de lhe plantar na palma os dois ovos recém recolhidos. MacGillivray fez uma careta ao ver que a gema e a clara jorravam entre os dedos.

— Esqueceu MacThomas! — Gritou para ela.

Anne saiu dentre as árvores e cruzou os campos abertos dando grandes passos em direção ao rio. Propunha-se seguir seu curso acima até a catarata e a funda lagoa salobre, onde a queda d’água levantava um fino véu vaporoso que flutuava até a altura do rosto, mas nesse dia não veria, pois as águas estavam congeladas. Ali tinha feito amor pela primeira vez com MacGillivray, no ano anterior, na manhã seguinte a seu décimo nono aniversário, depois da morte do último lobo.

A noite de seu aniversário caiu um aguaceiro, mas ela escapuliu antes do amanhecer. Nas cascatas, sob o sol da primavera, a erva úmida ainda despedia vapor. Via-se o arco íris suspenso na bruma, sobre a espuma branca da água. Entrou no lago, com a saia recolhida em torno das nádegas nuas, seguindo um salmão lento que nadava em círculos preguiçosos, lhe tocando a panturrilha. Deslizou a mão pela água e acariciou o corpo longo e pesado, suave, muito brandamente. Na ribeira se ouviu um sussurro, uma pegada nos calhaus. Ela soube quem era sem necessidade de se virar, por como a tinha olhado, lá na casa, e como a estaria olhando agora. Soube sem virar. Seus dedos deixaram de acariciar o peixe. O peixe se perdeu, deslizou ao redor de sua coxa e se foi. Ela se virou para reunir-se com ele, segura do que veria em seus olhos e do que faria a respeito.

Não ia às cascatas por esse motivo, não em seu estado de ânimo atual. Em troca, andou água abaixo, seguindo os estridentes balidos dos currais onde pariam algumas ovelhas no curral. Seu primo observava tudo, reclinado com indolência contra um poste. Se a maioria dos guerreiros era alto, Francis Farquharson de Monaltrie superava a todos. Essa juba tão clara resultava chamativa inclusive quando escasseava a luz. O povo lhe apelidou «Barão Bàn» por causa desse cabelo prateado. Tinha dez anos mais que James, o irmão de Anne, de quem era tutor, e era o administrador de Invercauld.

— Chega bastante tarde para não servir de nada — lhe espetou assim que ela se aproximou, dando um olhar por cima de seu ombro. Ele e James tinham trabalhado durante toda a noite. — Os pastores voltaram no raiar do dia.

— Eu posso atender uma ovelha de parto — bufou ela. — Tenho mãos pequenas, vê? — Mostrou-as as dele eram enormes, inúteis para qualquer nascimento difícil.

Francis pôs-se a rir, divertido por sua indignação.

— Mas é provável que te falte prática. Seria melhor ficar sem mais ovelhas que as necessárias para comer. Não vai necessitar tosquiar muito, agora que os ingleses nos fecharam os mercados da lã.

Atrás de Francis, uma ovelha de cria levava a placenta pendurando da garupa manchada. James lutava por extrair um cordeiro preso além das fêmeas prenhes e as crias. No ar frio se mesclavam o fedor do nascimento e o da morte. Faltava um par de meses para a tosquia. Normalmente depois de separar a quantidade de lã que o clã necessitava, o resto era embalado para enviá-lo a Moy. Ali toda a lã do clã Chatton era transportada a Aberdeen, para exportá-la aos Países Baixos. Era um comércio vital, que proporcionava recursos para as importações e financiava expedições diplomáticas destinadas a estreitar laços com a França, Espanha e Itália, países amigos da Escócia e inimigos da Inglaterra. Aquele ano as ovelhas iam conservar sua lã, já que o Parlamento da Grã-Bretanha tinha proibido a importação de lã escocesa a fim de proteger o comércio têxtil inglês.

— Ouça, o que a traz por aqui? — perguntou Francis. — Outra vez minha tia?

— Macintosh morreu. Alexander trouxe a notícia.

Assentiu com a cabeça. Uma brisa leve agitou o cabelo loiro em torno dos ombros. Seus olhos azuis a olhavam fixos.

— Nesse caso, quem te chateou é MacGillivray.

— Tem muita paciência — estalou a garota.

— Passarão anos antes que esteja em condições de cortejar, Anne.

— Não é isso. —agarrou-lhe a mão para apertar-lhe contra o peito, por cima do coração. — Quando queira me casar saberei aqui. — Sem lhe soltar a mão, arrastou-a para baixo, entre as dobras de suas saias, entre as coxas. — E não só aqui.

Sua paixão provocou mais diversão em seu primo.

— Possivelmente te conviria sabê-lo aqui — comentou ele lhe dando uns tapas com o dedinho da outra mão no lado da cabeça. — Em tal caso teria tido em conta Louden.

Ela afastou com uma palmada a mão que tinha entre as coxas.

— Como se eu pudesse me casar com um lacaio do governo!

— Nem que seja conde? — desafiou-a Francis.

— Nem que fosse um barão — replicou Anne.

O tinha proposto durante esse aniversário, o dia em que morreu o último lobo, mas só para rir de sua madrasta. Anne tinha ido para a janela e tinha apoiado o rosto sobre o vidro molhado para escutar o tamborilar da chuva que castigava os cristais e saltava nos paralelepípedos do pátio.

— Dizem que virá este ano — tinha comentado.

— Ou o próximo — soprou lady Farquharson, atrás dela. — Deveria estar pensando em seu próprio enlace. Até onde sei, nunca surgiu nada bom da política.

Esse aniversário, o dia em que morreu o último lobo, a chuva era como uma foice na escuridão; suas folhas de prata cortavam o atoleiro de luz amarela que projetava a janela.

O costume ditava que as mulheres se casassem jovens; se não, os meninos nasciam sem as devidas previsões. Os homens se casavam tarde, pois só estavam em liberdade de fundar uma família própria quando os irmãos menores já estivessem criados.

— Dezenove — grunhiu lady Farquharson. — Já deveria ter abandonado a casa.

Jean não se mostrou nada generosa ao propor candidatos adequados a sua enteada: um viúvo velho, outro divorciado por duas vezes e o conde. Lorde Louden, com seus quarenta anos, tinha a idade adequada, mas também era firme partidário da União.

— O título de condessa sentaria melhor a ti, tia — insinuou Francis, muito séria. — Com Anne seria um desperdício. — Agarrou as mãos de sua prima. — Deveria propor que se casasse comigo, como presente de aniversário.

— E como presente de aniversário — replicou ela — rechaçaria-te.

Nessa ocasião, o dia em que morreu o último lobo, seu primo só queria atormentar lady Farquharson com uma proposta melhor que a dela. Todos sabiam que com trinta e quatro anos ainda não estava preparado para o casamento.

James fracassou em sua tentativa de salvar o cordeiro, que saiu sem vida do ventre materno. O pastor prendeu à ovelha a um poste de lactação e foi escolher o melhor dos órfãos. O moço de joelhos, já havia desembainhado a adaga para esfolar o cadáver fumegante; ataria a ovelhinha, para induzir à ovelha sem filho a lhe dar de mamar. A cabeça da ovelha aumentaria o montão de cadáveres inchados e fedorentos. Francis estudou sua prima, com o peso do corpo apoiado no poste.

— Acredito que é à hora de te explicar o que acontece com homens e as mulheres — brincou.

Anne soprou. Os meninos das Terras Altas presenciavam frequentemente a cópula animal e também a humana. Por ser um povo granjeiro, aprendiam muito cedo todo o referido ao casal. E sua madrasta já havia dito tudo sobre o que era um bom enlace.

— O que sabe você de mulheres? — desafiou-lhe.

— Caminha um pouco — pediu ele.

Anne, com uma sacudida de cabeça, pavoneou-se um trecho frente a ele, com sua típica arrogância.

— Basta. — Francis suspirou. — Já sei o suficiente.

Nesse momento James se aproximou cansado e sujo de sangue, mas feliz por ter salvado à ovelha. Era esbelto e magro, muito parecido a Anne no cabelo castanho, a boca plena e os olhos grandes; quanto a temperamento, porém, eram pólos opostos.

— Chega bem a tempo — observou Anne. — Francis estava a ponto me explicar como se fazem os meninos.

James pertencia a uma família de mulheres loquazes, razão pela qual nunca falava só para cobrir um silêncio, mas sim media suas palavras com cautela. Deu uma olhada a seu primo.

— Pois a mim ainda não me contou isso.

Anne deu uma risada, Francis rompeu em gargalhadas e James sorriu agradado consigo mesmo. Quando cruzavam o prado, Anne repetiu a seu irmão a notícia da morte de Macintosh. Ele a aceitou com solenidade, sem surpreender-se de que Aeneas fosse o novo chefe.

— Mas não estamos obrigados a lhe escolher — apostilou Anne, e insistiu em que MacPherson era melhor candidato para dirigir a federação do clã Chatton. — Pelo menos poderia tentar influir sobre o Parlamento!

Cluny MacPherson era um orador persuasivo, sem dúvida, mas a União tinha feito que os chefes perdessem seu poder na câmara. Seus pedidos de que se fizesse um acordo federal eram rechaçados. A Escócia só lhe permitia ter dezesseis pares e, na Câmara dos Comuns, quarenta e cinco bancos contra os mais de quinhentos que ocupava a Inglaterra. O clã Chatton tinha deixado de interessar-se pelo Parlamento após.

— Superam-nos em número, Anne — explicou Francis. — Pouco importa o sentido do voto escocês. Só conta o voto inglês.

— Um só país não pode superar em número a outro — protestou ela. — Neste Reino Unido da Grã-Bretanha há só dois. O tamanho não deveria importar.

Francis deixou de caminhar e se esticou em toda sua estatura, bastante superior ao metro oitenta.

— Já verá que sim.

Anne cruzou os braços e lhe olhou com a cabeça inclinada.

— Só importa o tamanho de nossas ideias — corrigiu, assinalando os buliçosos currais das ovelhas. — Você vai deixá-las suar todo o verão, esbanjando a lã de uma temporada, só porque a Inglaterra diz que não podemos vendê-la.

— E o que faria você? As tosquiar e queimar a lã?

— Armazená-la.

— Apodreceria Anne — Observou James.

— Se a guardarmos bem não.

— Mesmo assim a atacariam as traças — refutou Francis.

Anne afundou as mãos frias no casaco da grossa manta de lã. Logo teria que guardar as roupas de inverno até que passasse o verão.

— Peighinn rìoghail* — repôs triunfal. — Poleo... Embalem a lã em sacos de linho dobradas com folhas de poleo entre as capas. Isso afugentará as traças.

Fez-se o silêncio, enquanto os dois homens permitiam que a ideia penetrasse em suas mentes.

—Levaríamos vantagem. — Francis olhou James com gesto pensativo. — Estaríamos preparados para vender na primeira oportunidade.

— E não perderíamos a lã de um ano — conveio seu primo.

— Que mulher tão inteligente! — elogiou Francis a Anne. — Promete que me esperará.

— Antes terá que me convencer de que o tamanho importa — replicou ela, muito sorridente.

Enquanto caminhavam de volta a casa, sopesaram as opções para o armazenamento da lã, pois iriam necessitar um lugar seco e fresco, talvez um celeiro entre as árvores. Depois de tudo, se deviam tecer sacos e preparar a lã, nem os tosquiadores do clã nem os tecelões nem os tecedores teriam que ficar sem nada. Anne voltou a lembrar-se dos lobos quando cruzavam o pátio da casa: o encontro de sua infância com um homem moreno durante a noite de lua; aquele único disparo feito na escuridão; seu pai moribundo. Os lobos eram caçadores de manada, mas em seus uivos, que após não se tornaram a ouvir, percebia-se a dor da solidão. Agora não sobrava nenhum.

— Acreditam que, na verdade, aquele era o último lobo? — inquiriu.

— O do ano passado? — Francis encolheu de ombros. — Quem sabe...? —Baixou a vista para ela. — O que importaria se tivesse ficado um? Não poderia viver sozinho.

O defunto chefe Macintosh tinha ordenado as batidas, pois tinha desaparecido um bebê e os aldeãos de Moy responsabilizavam um lobo.

O dia de seu aniversário, o dia em que morreu o último lobo, chegou a seu fim de modo quase inadvertido. Essa noite, enquanto a chuva castigava a casa, Anne se deteve frente ao longo espelho de seu quarto, nua à luz da vela. Sua pele parecia de mel, embora à luz do dia a visse branca como o leite. Sacudiu a cabeleira para que caísse contra suas costas até tocar as nádegas e levantou as mãos para abranger os seios; sentia neles o calor de seu próprio sangue. Baixou as palmas em uma carícia até a planície do ventre. Ter filhos permitia às mulheres criar o futuro, mas havia um custo. Havia tirado a vida de sua mãe.

Para os animais era simples: fertilidade, desejo e cópula vinham ao mesmo tempo, e também para as mulheres, embora o desejo pudesse surgir sem fertilidade; a tortura que ela tinha padecido nesses últimos dias era sinal seguro. Nesse momento teria que evitar aos homens, salvo dentro do casamento. Casar-se significava ter filhos. Talvez ela evitasse também isso, mas sua pele estava quente, febril; palpitava o coração, tinha o fôlego acelerado e o ventre ansioso de receber sementes. Apoiou-se no espelho frio, o cristal contra a face no peito; deslizou os dedos entre as coxas, naquela umidade, e o estremecimento que subiu pelo ventre lhe fez afogar uma exclamação.

— O que faz? — perguntou sua meio-irmã da cama, sonolenta.

— Nada. Continue dormindo.

Mas Elizabeth estava acordada, e tinham saído umas quantas mechas do gorro de dormir quando se levantou sobre os cotovelos.

— Sei muito bem o que faz — começou. — Eu também o faço a todas as horas, por isso me deito cedo. — Elizabeth tinha dezesseis anos e era muito irritante.

Anne colocou a camisa de dormir, colocou a cabeleira dentro de um gorro, apagou a vela e deslizou dentro da cama.

— Dorme — espetou, voltando-se abruptamente de costas, enquanto se cobria com as mantas até o queixo.

Nessa noite sonhou com lobos até despertar em uma cama vazia, onde tomou consciência do canto dos pássaros e a ausência de chuva. Foi à cozinha de camisola, com o cabelo revolto e solto em volta dos ombros. Ali estava MacGillivray, inesperadamente. Tinha ido para impedir que sua partida saísse de caçada, já que o rastreador de MacQueen tinha matado à fera no dia anterior, no aniversário de Anne, e sua cabeça já estava em Moy, em poder do velho chefe.

MacGillivray estava sozinho na cozinha, à exceção feita da cozinheira. Estava sentado à mesa, mas se preparava para comer e a olhava com os ombros tensos e o longo cabelo vermelho atado debaixo da nuca. Pela primeira vez, ela ficou consciente do fato de que era um homem. Mais tarde foi às cascatas, segura de que ele a seguiria. No lago, com a água fresca formando redemoinhos em volta das coxas, só podia pensar nesse calor que subia por ela, em como ele tinha sido cuidadoso um momento antes, com a mesma expressão que veria em seus olhos quando se virasse.

Estaria-lhe esperando no interior da casa naquele momento. Ao anoitecer, a gaita de fole de seu irmão repetiria o novo lamento emitido pela de Shaw e entrariam em duelo. Até então tinha que aplicar um pouco de contenção. Por isso se lembrava do lobo.

 

O dia seguinte à marcha do séquito dos Farquharson para assistir aos funerais amanheceu estupendo: luminoso e seco, com um suave vento do oeste que prometia calor. Anne fez honra a sua palavra e ficou em casa com Elizabeth até que ficou em ação, apressada pelo amanhecer. Depois de xavecar sua perplexa meio-irmã, abriu a marcha pelo passo das montanhas, rumo a Rothiemurchus e ao cair à noite pararam no lar de uma família aldeã. A lei de hospitalidade mandava que as portas se abrissem a qualquer viajante. Essa regra podia te salvar a vida em um território tão inóspito, onde o clima podia passar rapidamente de benigno a mortífero.

No dia seguinte, com os Cairngorms a suas costas, continuaram a viagem a pé pelos brejos, salpicados daquelas perenes cabanas de torrão, para o bosque escocês de monte baixo das bordas de Loch Moy. Elizabeth não tinha renunciado a suas choramingações de criatura apesar de ter dezessete anos e não deixava de queixar-se.

— Tha meu sgìth*. Poderíamos ter compartilhado os cavalos e ter ido com os outros.

— Mas não os acompanhamos — repôs Anne.

A meio-irmã se atrasou para lhe fazer caretas a suas costas.

— Para isso caminhamos tanto nessa direção? Para não ir com eles?

Anne se deteve com um suspiro. Apreciava a moça, mas frequentemente lamentava que Elizabeth não se parecesse mais ao pai que compartilhavam e menos a sua mãe.

— Esse homem é um uva seca, Elizabeth. Não penso lhe honrar com minha presença quando o adotarem como Macintosh, mas é possível que não o nomeiem chefe do clã Chatton. James e Francis votarão contra ele, como eu pedi, e também MacGillivray. Os MacPherson votarão por eles mesmos, como sempre. Talvez não resulte eleito, e em tal caso, quero o ver, desejo ver a cara dele quando isso acontecer. Anda, vamos. —Agarrou a mão de sua irmã. — Já falta pouco.

Em Moy Hall se reuniram milhares de integrantes do clã Chatton. Todos os clãs contavam com um chefe próprio eleito, pelo geral, dentre os componentes da família mais antiga, embora nenhuma sucessão fosse automática. Escolhiam à pessoa mais adequada para o posto, independente de seu sexo, e lhe retiravam sua confiança no caso de que resultasse não ser apta para o cargo.

As plumas das boinas permitiam distinguir os chefes entre a multidão. Estes se congregaram junto com seus cônjuges, filhos e filhas frente ao edifício de dois andares, em torno da entrada de Moy Hall, uma edificação imponente da perspectiva dos chefes tribais, muitos dos quais ainda viviam em cabanas de torrão, como seus parentes; entretanto, estava hipotecada até as vigas, pois os novos impostos decretados da União tinham empobrecido o clã. Os Macintosh tinham distribuído estrategicamente dezenas de membros de seu clã entre a multidão com o fim de incentivar o voto positivo a seu favor. Aeneas ia precisar fazer verdadeiros equilíbrios para obter que seu povo conservasse suas terras.

Lady Farquharson se achava ali ao lado de James, o irmão de Anne, pois conservava iguais direitos sobre as decisões do clã enquanto seu enteado permanecesse solteiro. Vários dos chefes viúvos ou solteiros ali congregados tinham considerado a possibilidade de aliar-se a ela, pois seguia em idade de ter filhos e era formosa, embora tivesse muito mau gênio. Entretanto, apesar de lhe agradar a companhia masculina, ela rechaçava todas as propostas matrimoniais. Os rumores era que estava de olho em Aeneas, mas não queria voltar a casar-se a não ser com um chefe. Esse detalhe era outro das pontas que podiam arrumar-se no transcorrer daquele dia.

A porta de Moy Hall se abriu para dar lugar a Anne Duff, lady Macintosh, no momento o membro mais rico da federação em sua condição de esposa do defunto, enterrado apenas no dia anterior. Sustentava na mão a boina de chefe, com as duas plumas de águia. A seu lado caminhava Aeneas, sem chapéu algum e mostrando-se incômodo por tanta cerimônia. MacGillivray ocupava seu lugar junto a ele, levando na mão a terceira pluma de águia, que identificaria um dos chefes reunidos como cabeça da federação. A viúva estendeu os braços.

— Fàilte oirbh*, sejam bem-vindos — saudou, dando a boas-vindas a todos. Logo levantou a voz para que chegasse a toda multidão. — É meu dever delegar as plumas de chefe. — Todos os Macintosh gritaram a plenos pulmões o nome de Aeneas. Os patos se assustaram a consequência de semelhante gritaria e empreenderam voo do lago; seu bater de asas soou como um aplauso. — Mas há uma terceira pluma que meu marido usava — continuou lady Macintosh. — Só as tribos do clã Chatton podem decidir quem a usará a partir de agora.

Muito atrás da multidão, à beira do lago, Elizabeth sussurrou a Anne:

— Isto é uma tolice!

As duas moças se encarapitaram no ramo de uma árvore, onde permaneciam de pé uma junto à outra, e agarradas de outra mais alta; o voo das aves as tinha salpicado de água.

— Se afastar um pouco mais para fora veremos melhor — sussurrou sua meio-irmã, empurrando a menor mais para o interior do lago, enquanto esticava o pescoço para ver o que acontecia na frente de Moy.

Lady Farquharson se posicionou na vanguarda da multidão e procurava com impaciência o olhar de Aeneas. Baixou os olhos ao captar o gesto de assentimento deste com um sorriso agradado que chegava aos cantos da boca. O primeiro marido se escolhia por sentido comum; o segundo podia ser por prazer. Ela sempre tinha apreciado a atitude, a astúcia e a habilidade de Aeneas, mas agora ia ter também o poder. E ela tinha influência sobre James para conseguir seu voto. A única pessoa capaz de lhe contradizer era Anne, e não estava ali.

Lady Macintosh olhou à multidão sem afastar-se do lado de Aeneas.

— Me digam quem vai ser o chefe que encabece o clã Chatton? —perguntou.

O ramo da árvore se curvou alarmantemente para baixo quando Anne se esticou para ver e ouvir.

— Vou cair! — gritou Elizabeth.

— Isd!*— espetou-lhe sua meio-irmã. — Fique quieta, quieta!

Os MacPherson elevaram o punho ao ar. Todas as vozes eram iguais segundo o antigo sistema da tanistría, mas cada clã tinha um único voto em questões de federação com independência de seu número. Todo membro tinha direito a dissentir. Nesse caso se efetuava uma recontagem para determinar por quem votava essa tribo.

— MacPherson! — expressaram ao uníssono.

Anne, em êxtase, descarregou um murro contra o ramo que tinha na sua frente, e sussurrou:

— Isso!

Então conseguiu distinguir com claridade Aeneas. Pela primeira vez lhe via em plena luz do dia. Tinha o cabelo negro, as sobrancelhas escuras e os olhos ainda mais escuros. Ao reparar em seu cabelo sedoso se lembrou de quando tinha treze anos e voltou para casa sentada escarranchada em cima daqueles ombros. O homem igualava o metro oitenta de MacGillivray, mas não tinha sua postura relaxada: Aeneas estava tenso, em pose, como uma tormenta a ponto de romper. Parecia sombrio e concentrado, como se a convocatória lhe incomodasse. Entre seu clã houve empurrões e murmúrios coléricos. «Melhor», pensou ela.

Os MacBean elevaram o punho e anunciaram sua decisão:

— Macintosh!

Anne observou Aeneas. Rodeava-o uma energia perigosa, mas também, estranhamente, uma autoridade amadurecida, inquieta na espera, desenvolvida em sua própria pele.

— Macintosh! — clamaram os MacThomas.

Seria por sua idade? Agora não lhe parecia tão velho como aos treze anos. Que idade podia ter? Trinta e seis, trinta e sete? Devia ter a idade de sua madrasta.

Os MacQueen falaram a seguir.

— Macintosh!

Lady MacQueen votou por MacPherson, anulando assim o voto de seu marido, mas ninguém esperava outra coisa dela, pois fazia já muito tempo que o uísque e a senilidade tinham acalmado os ardores de seu marido e era o irmão de Cluny quem a mantinha satisfeita.

Elizabeth olhou sua meio-irmã com cara de poucos amigos, pois esta parecia ter esquecido para que estavam ali, encarapitadas em uma árvore acima do lago.

Os gritos seguiam acontecendo-se por turnos. Então chegou a vez dos Shaw.

— Macintosh!

Anne estudou com suma concentração o homem a quem guardava ressentimento há tantos anos. Era digno de ser observado sem dúvida, uma imagem cada vez mais profunda, como a de um lago tranquilo quando nele se refletia um céu tormentoso. Um estremecimento inesperado lhe cruzou o ventre. Teria sido complacência e excitação de ter sido qualquer outro homem, mas a causa de espasmo não podia ser outra coisa que alarme sendo quem era.

— Macintosh!

O voto dos Davidson.

— Anne! — Elizabeth lhe deu uma cotovelada para avisar de que a seguir ia votar sua família.

— Oh, não — exclamou Anne. James faria o que ela tinha proposto. Onde estava Francis? — Vê nosso irmão?

Tentou recontar o ouvido. Quantos votos tinham reunido os Macintosh? Quatro? Cinco? Sua família ia passar por tola. Recordou essa expressão facial exasperante que a Aeneas lhe dava tão bem mostrar. Talvez adivinhasse que tinha influenciado no sentido do voto, se acaso se lembrava dela, claro. Seu meio-irmão e sua madrasta elevaram o punho com o resto dos Farquharson.

— Macintosh! — gritaram sem uma só voz de dissidência.

MacGillivray deu um passo adiante e ficou à frente de sua gente com o punho em alto. O, quanto menos, não lhe falharia.

— Macintosh! — trovejou enquanto seu clã fazia coro ao sobrenome.

Era coisa feita.

Elevou-se um grande grito de afirmação. MacGillivray deslizou a terceira pluma na boina dos Macintosh, junto às outras duas. Aeneas fincou um joelho em terra para que sua tia pudesse colocá-la em sua cabeça.

— Aeneas, Aeneas, Aeneas! — entoou seu clã, em pleno êxtase.

— Viu isso? — Anne, impressionada, voltou-se para Elizabeth, já quebrado o feitiço. — votaram por ele! — A árvore estremeceu. — James votou por ele, e também MacGillivray!

O ramo sobre a qual descansavam os pés das moças desceu de uma forma alarmante.

— Não se mova Anne! — gritou Elizabeth.

O aviso chegou muito tarde: a jovem perdeu o pé e caiu da árvore apesar da tentativa desesperada de Anne para segurá-la, afundando-se com um chapinho nas águas pouco profundas de Loch Moy.

Horrorizada Anne procurou com os olhos sua meio-irmã, que chapinhava na água. Só então se lembrou da convocatória e voltou os olhos para o edifício, ainda mais arrepiada. Aeneas estava de pé, e tanto ele como MacGillivray pareciam olhar a frente, mas a folhagem devia a esconder não? Os dois homens puseram-se a correr para o lago. A última coisa que Anne desejava era ser surpreendida ali, escondida em uma árvore como uma bastarda qualquer. Retrocedeu ao longo do trêmulo ramo e se escondeu atrás do tronco, prendendo o vestido contra o corpo para passar inadvertida.

MacGillivray e Aeneas chegaram juntos à beirada. Abaixo, com o vestido inflado sobre as águas, Elizabeth tentava levantar-se. O flamejante chefe a tinha visto só uma vez, quando ainda tinha dez anos, e não a reconheceu, mas MacGillivray a identificou no ato.

— Elizabeth? — inquiriu com desconcerto, posto que a tinha deixado em Invercauld, com  Anne, mas entrou dentro da água o necessário para ajudá-la a sair.

Outros tinham vindo atrás de Aeneas e não demoraram a unir-se os intrigados pela interrupção e temerosos de que fosse uma manobra de algum clã rival. Anne teve a certeza de que iam descobri-la em questão de minutos e não desejava ser pega como um ladrão fugitivo. Nessas circunstâncias unicamente cabia uma coisa: descer e lhes mostrar seu rosto. Desceu da árvore com suma cautela para não perder o equilíbrio e cair no lago e caiu agilmente sobre seus pés perto do estupefato Aeneas. A reação foi instantânea: três homens próximos tiraram das vagens várias polegadas de suas adagas. O recém eleito líder se limitou a olhá-la fixo para logo descartar o amparo oferecido com um simples gesto.

— Há, há, parece que temos um par de pintinhos — comentou.

Em seguida apareceu aquele meio sorriso tão irritante.

Anne ouviu em suas costas as indignas fervuras de Elizabeth e a exclamação espantada de MacGillivray: «As duas?». Manteve os olhos serenamente cravados em Aeneas com intenção de mostrar-se desenvolvida.

— Passávamos por aqui — repôs.

— Entraram muito no território dos Macintosh para apenas passar por aqui. — Aeneas fez um gesto de incredulidade que abrangeu o lago, a selva e os distantes Cairngorms e lhe escapou uma gargalhada que soou como um grito. Anne lhe lançou um olhar que teria torrado a qualquer outro destinatário e nesse instante viu nos olhos do novo chefe o primeiro brilho de identificação. Passou um longo segundo antes que ele pudesse tirar o nome de sua estupefata língua. — Há, senhorita Farquharson! Fàilte* — disse, fazendo saudação para logo colocar outra vez a boina.

Ria dela, sem dúvida. Ia necessitar o amparo daquelas adagas quando tivesse a absurda ocorrência de mencionar quanto tinha crescido desde o último encontro, mas não o fez. Lady Farquharson abriu lugar entre os hóspedes e chegou em seguida. Estava muito morta de calor, pelo qual sua mortificação era ainda maior.

— Elizabeth? Ai! — chiou. — Anne? Não esperava isto de vocês!

— Foi ideia de Anne — protestou sua filha.

Qualquer possível esperança de não ser traída por sua meio-irmã se evaporou como uma cusparada em uma pedra quente.

— Como pode arruinar um momento tão especial? — espetou-lhe Jean Farquharson antes de voltar-se para Aeneas para lhe tocar o braço em um gesto de contrição e pedir desculpas: — Tha meu uamhasach duilich*. O sinto muito, Aeneas.

Logo, chamou James com fúria.

Enquanto isso, MacGillivray se aproximou de Anne e perguntou:

— Você não queria vir... Por que veio?

— Para receber uma punhalada no coração — respondeu ela, fulminando Elizabeth com o olhar.

A multidão se dispersou uma vez passado o alvoroço e se encaminhou para a comida e a bebida. O irmão de Anne apareceu entre a multidão.

— James — ordenou lady Farquharson. — Prepara os cavalos e a carreta. Vamos.

O interpelado avaliou a surpreendente aparição de suas irmãs, mas decidiu que as perguntas podiam esperar.

— Francis foi a Invernes com nossa carreta para trazer linho — repôs, dando uma olhada em Anne.

— Pois, então, prepara os cavalos. Os outros podem ir caminhando ou esperar a sua volta.

James partiu a toda pressa para o estábulo.

— Não ficam? — perguntou Aeneas, que parecia ter recuperado de novo a fala. — Sua filha necessita de roupa seca.

— É muito amável dada às circunstâncias. — Lady Farquharson não estava disposta a permitir a prolongação de seu abafado. — Mas se secará no trajeto a casa.

— Ai, não, mãe! —gemeu Elizabeth.

— Pelo menos permita que lhes empreste outros cavalos — ofereceu Aeneas.

Ao recordar que agora ele podia permitir o empréstimo de alguns cavalos, a mulher deixou de um lado sua humilhação.

— Caray, Aeneas, que amável é — paquerou. — Em realidade, não é fácil inculcar responsabilidade aos jovens quando não conta com a força e a sabedoria de um marido.

Anne jogava faíscas e desejou ter o dom de ser capaz de vomitar em cima dela. Aquele era um momento magnífico. MacGillivray, sabedor de que ela não quereria ficar em dívida com Aeneas, falou-lhe ao ouvido.

— Posso te emprestar meu cavalo.

A moça levantou os olhos para ele, agradecida pelo oferecimento, mas o desejo de proteger sua dignidade prevaleceu sobre a necessidade de comodidades.

— Não, obrigado — respondeu; logo, em voz mais alta para que Aeneas se inteirasse bem, adicionou: — saí para dar uma caminhada e tenho intenções de continuá-la.

E depois de girar, dirigiu-se para as montanhas e para sua casa, com a cabeça bem alta.

— Não poderá cobrir nem a metade do caminho antes que escureça — protestou MacGillivray.

— Os outros a alcançarão logo — observou Aeneas, atento às costas reta de Anne, que se afastava com decisão.

Seu primo encolheu os ombros com resignação. Qualquer intenção de dissuadir a jovem estava condenado ao fracasso, embora o orgulho se desvaneceria quando estivesse longe da causa que o provocava. Não permitiria que sua família passasse longe, deixando-a na estrada.

O novo chefe lhe plantou uma mão fraternal no ombro.

— Bom momento para uma taça — sugeriu.

E se encaminharam para a casa, atrás da nervosa Elizabeth e sua queixosa mãe. Aeneas olhou MacGillivray com um enorme sorriso. Logo assinalou com a cabeça às duas mulheres que lhes precediam.

— A tua parece um pouco molhada — comentou.

 

— Prosperidade sem União! — vociferaram umas vozes jovens em Invercauld.

Dois grupos de meninos, com as espadas de madeira em alto, lançaram-se através do campo de treinamento, um contra o outro, até chocar em um estrondo de madeira contra as pontas. Uma garotinha se encolheu atrás de seu escudo enquanto se esforçava inutilmente em apunhalar pelos lados o garoto que esmurrava o couro com a força suficiente para lhe fazer mingau.

— Não, não — exclamou Anne, interrompendo. Agachada atrás da menina deslizou um braço em volta dela para encaixar as correias do escudo; logo agarrou pelo pulso o braço armado. — Faz assim, Catriona. — Aproximou o escudo no corpo da menina, para lhe proteger o torso e deixar exposto o braço armado; logo empurrou com o escudo para fora e investiu com a espada. — O vê? — Repetiu o movimento — Afasta a arma e logo investe.

A garota suspirou.

— Virá o príncipe algum dia, Anne?

—Claro que sim.

Ela estreitou à criatura para tranquilizá-la. A menina já duvidava com apenas nove anos. Ela escutava e repetia a história já fazia vinte anos. Às vezes, a jovem também se perguntava se não seria mais que isso: um conto de fadas para meninos, apagado após tanta repetição. Dava a impressão de que o dito príncipe fosse um personagem de ficção, não alguém de carne e osso. Acaso era preferível uma esperança falsa que a falta de esperanças? Certamente, para o adestramento de combate importava muito pouco. Todo mundo aprendia a combater assim que podia segurar uma arma e começava a praticar: uma vez por semana, depois das lições.

O governo tinha proibido levar armas em público, mas o prestígio e a segurança de um clã ainda dependiam do número de guerreiros que fosse capaz de levar ao campo de batalha, pois sempre havia inimigos. Um clã rival podia apurar o limite de suas terras e sentir apetites expansionistas a qualquer momento, optando por anexar Invercauld, ou uma parte desse território, para alimentar e acolher seu povo.

— Além disso — disse à menina — o povo que não defende seu lar merece perdê-lo.

Fez gestos ao moço para que se adiantasse e este moveu sua espada em arco. Anne guiou o escudo de Catriona para aparar o golpe. O menino se protegeu com o escudo.

— Bem — disse ela. — Agora o sustenta. — Enquanto movia o braço armado da pequena foi assinalando os pontos débeis do menino. — Se for rápida, poderia feri-lo aqui. — Apoiou a ponta do aço contra o braço direito, que estava exposto. — Se entregará se lhe fere no braço da espada. Basta obter o primeiro corte, mas a única maneira de fazê-lo é rodear o escudo. Pensa e se mova com rapidez. Anda, tenta-o. Levantem-se — e os meninos voltaram a enfrentar-se. Um movimento fugaz, no alto da montanha, concentrou a atenção da jovem. Sua imaginação devia estar conjurando intrusos: parecia haver uma fina linha de cavaleiros longínquos que vinham através do pasto, para eles.

— Alcancei-lhe, alcancei-lhe! — gritou Catriona, entusiasta.

Anne respondeu automaticamente, sem deixar de observar a ladeira:

— Bom trabalho!

Ali acima havia cavaleiros e caminhantes. Quem eram e a que vinham? Ela se voltou para os meninos. Com o tempo se transformariam em hábeis e formidáveis combatentes, mas por agora eram simples pajens. Deu umas palmadas para atrair suas atenções.

— Temos visita. Guardem tudo e corram para casa. Depressa, depressa.

Enquanto os meninos corriam para jogar as armas de prática em suas caixas de madeira e trotavam logo a suas diversas cabanas, Anne observou o pendente com os olhos entreabertos, tentando captar algum sinal de identificação.

O primeiro cavaleiro resplandecia apesar de achar-se ainda no atalho da montanha, a boa altura. Usava calças e jaqueta de veludo e levava todas as insígnias de comando, e pendia de seu lado uma espada, agora ilegal. Todos os membros do grupo eram highlanders e vinham por algum assunto sério. Atrás do chefe, um membro do clã trazia um cavalo branco pelas bridas. Significava isso o que aparentava? Anne inspecionou o resto da coluna. Seguiam três vacas negras, umas quantas cabras e ovelhas e um porco gordo, que um rapaz tocava com um pau. Outros membros do clã mantinham os animais na fila. Fechava a marcha outro cavaleiro, chefe também. Um chefe ruivo.

— Oh, minha mãe! — Anne virou para correr a sua casa. Já dentro passou a toda pressa junto a sua madrasta, atirando uma cadeira de lado em sua pressa por chegar à janela e seguir olhando a montanha.

— Mulher! O que acontece? — Lady Farquharson endireitou a cadeira tombada.

Anne girou para ela, mas nesse momento Elizabeth entrava correndo.

— Mãe, mãe! Oh, Anne, viu isso?

— Afinal viu o quê? — interpelou-a sua mãe.

A moça delirava quase de puro entusiasmo.

— Macintosh. É Macintosh. E traz... — Agitou as mãos, sem poder pronunciar aquelas palavras.

— Presentes — completou sua meio-irmã, já fria e prática. — Traz presentes.

Isso bastou para que Elizabeth recuperasse a fala.

— Presentes de bodas, mãe! Traz um cavalo nupcial, gado, ovelhas, oh, não sei que mais. James saiu a seu encontro. Deve lhe propor casamento, mãe!

Lady Farquharson se segurou ao respaldo da cadeira com tanta força que os nódulos ficaram brancos.

— Ou mo chreach*, Meu Deus. E olhem como está a casa! — Recolheu velozmente seu bordado para entregá-lo a sua filha. — Rápido greas ort*. Ai, meu cabelo. Tenho que me trocar. Ai, Senhor.

— Disse que ele tomaria esposa, agora que podia permitir-lhe — Elizabeth saltava com a tapeçaria apertada contra o peito.

Anne, serena, dirigiu-se para a porta traseira.

— Aonde vai? — perguntou sua madrasta.

— Procurar um lugar tranquilo onde não me vejam.

— O quê? — Elizabeth não dava crédito a seus ouvidos. — Vai embora agora que vai pedir a mãe em casamento?

—Não é minha mãe — repôs Anne antes de fugir.

Lady Farquharson ficou com os olhos fixos na porta fechada, mas logo recuperou a compostura.

— Há por Deus! Ai minha mãe, como estão seus cabelos!

Anne saiu do edifício e escolheu um atalho flanqueado por árvores do outro lado dos quais passou em direção oposta, rumo a sua casa, um cavalo, e várias pessoas. Entreviu-os fugazmente entre o matagal de troncos escuros e ramos baixos. Aeneas usava a típica boina azul de chefe com suas três plumas e a manta de tartan que caía pelas costas, enquanto sua juba negra cobria seus ombros. Sua gente levava um porco roliço e rosado. MacGillivray tinha um semblante estranhamente sombrio.

Enquanto isso, no interior de Invercauld se levou a cabo certos preparativos de urgência: lady Farquharson pôs apressadamente um vestido de seda e, entre um brilho de joias de prata, abotoava-se depressa e Elizabeth tinha colocado em cima da mesa uma bandeja com um decantador de cristal e copos de vinho; logo se colocou a um lado. A comida se reduzia a papa de aveia e coelho com frequência, mas ainda eram capazes de mostrarem-se quando era mister.

James entrou pela porta principal; estava a ponto de anunciar os visitantes, mas lady Farquharson, irritada, fez-lhe gestos de que se afastasse, pois impedia que Aeneas a visse com todos seus ornamentos. E ali estava o chefe; à esquerda, pendurado do cinturão, levava o baskethilt com cazoleta de prata; à direita, uma adaga de pomo negro prateado.

— Fàilte*, Macintosh. — Ela o abraçou. — Me alegra te ver, Aeneas.

Ele também parecia nervoso; respondeu apenas com uma leve inclinação de cabeça enquanto percorria a estadia com o olhar. MacGillivray, atrás dele, deteve-se no vão da porta. Ele também usava todas suas insígnias de chefe. Elizabeth se reacomodou junto ao decantador e lhe dedicou um sorriso. Desde que ele a tinha resgatado do loch, lá em Moy, imaginava muitas outras coisas entre eles. Que fosse o amante de Anne não tinha maior importância. Era óbvio que sua irmã não estava endoidecida por ele; nos últimos tempos se afastou de sua companhia mais de uma vez. E pelo que a Elizabeth concernia ter que lhe seduzir para afastar sua atenção de Anne o voltava ainda mais estimulante.

Posto que nenhum deles falasse a anfitriã se apressou a encher o vazio com seu bate-papo.

— Passaram várias semanas mais das que esperávamos. — Então mordeu a língua, incapaz de acreditar que tinha cometido semelhante deslize e tentou arrumá-lo ao acrescentar: — Para que viesse recolher seus cavalos, quero dizer.

— Tinha outras coisas na cabeça — repôs Aeneas, cujo aspecto estava resultando ser um pouco seco para tratar-se de um pretendente.

— Responsabilidades de novo chefe, claro — lhe desculpou ela. — Uma taça de vinho?

Elizabeth tomou o decantador, mas ele não pôde suportar mais aquela cerimônia.

— Lady Farquharson — disse — vim propor um matrimônio.

A dama afogou uma exclamação ante frase tão direta e se abanou com um lenço de renda.

Em um clarão entre as árvores, Anne, ajoelhada junto a uma lápide, limpava com os dedos o pó e o musgo da inscrição. As palavras gravadas na pedra diziam: «John Farquharson de Invercauld. Falecido em 1738». Debaixo se lia: «Sua bem amada esposa, Margaret Murray, faleceu de parto em 1725».

Seu progenitor lhe deu de presente um pônei de Shetland quando ela era muito pequena, pelo qual resultou ser muito grande para ela, embora mal avultasse a metade que o cavalo de seu pai, que lhe assegurou que poderia lhe acompanhar para percorrer o imóvel assim que soubesse montá-lo. E ela, de natureza impaciente, provou a sorte imediatamente. Fracassou repetidamente até que, enfurecida pela frustração, jogou-se no chão, esperneando e descarregando murros. Ele a elevou no ar com os braços esticados.

— Não pode lutar com sua própria sombra — a repreendeu. — Aprende a viver com ela.

Quando a menina deixou de debater-se, deixou-a cair na cadeira de montar. A partir de então sempre saíram juntos. Sua madrasta opinava que o pônei era um gasto inútil.

— Pequena que é, poderia levá-la contigo — se queixava.

— E o que aprenderia? — perguntava seu pai. — A fazer de passageira? Assim não a terá todo o dia enredada entre suas pernas.

Era bastante habitual que os meninos perdessem a um de seus pais biológicos, quando não aos dois, e que os criasse um padrasto ou madrasta; às vezes havia um segundo. Ela estava ressentida com essa suposta mãe, embora não tinha conhecido à própria. Os únicos braços que a estreitavam eram os de seu pai. Era seu amplo peito o que ela procurava como refúgio ou para descarregar os punhos. Ele era seu protetor e seu professor, quem a consolava, quem perdoava e sempre, sempre, sempre a amava. Ainda sentia o vazio de sua perda, mas o que necessitava agora era uma mãe: essa ternura, alguém que entendesse a necessidade de caminhar sem sombra.

Repassou a data de seu próprio nascimento, o último dia de sua mãe, com a gema dos dedos. Uma galinha cacarejou entre o arbusto de ervas que crescia junto à tumba e escapuliu imediatamente. Anne, ao separar as fibras, pôs ao descoberto um grande ovo pardo, ainda quente.

Anne escutou vozes por todo o imóvel. Chamavam-na. O novo casal requeria sua aprovação para iniciar as celebrações. Recolheu o ovo, enchendo a mão com sua tibieza, e se levantou resolvida. Era uma Farquharson, filha de sua mãe e de seu pai; desempenharia bem seu papel.

A pequena Catriona, a menina que ao fim tinha conseguido dominar a vergonha, vinha correndo pelo atalho para as tumbas.

— Anne, Anne, necessitam-lhe na casa. — mal podia conter o entusiasmo. — Diz o homem que poderíamos assar o porco.

— Assim... Já não me terá enredada entre suas pernas — repôs Anne, sorridente, passou junto à menina perplexa, rumo a casa.

Um Aeneas bastante nervoso se voltou assim que Anne transpôs a soleira da porta, onde se juntavam membros de ambos os clãs, os Macintosh e os Farquharson. As notícias, boca a boca, viajam depressa. Ela se deteve junto a MacGillivray para lhe dedicar seu sorriso mais luminoso; logo lhe pegou a mão e depositou o ovo, ainda morno, em sua palma aberta.

— Para que não corra perigo — disse.

A seguir, aproximou-se da madrasta e ao visitante com a felicitação na ponta da língua, já preparada. Lançou um olhar ao chão, onde os pedacinhos do decantador e as lascas de cristal jaziam em um atoleiro de vinho tinto, aos pés de Elizabeth, cuja pétrea expressão era inescrutável: não revelava nada. Muitos conhecidos a espiavam pela janela sem deixar de empurrar uns aos outros a fim de ganhar certo espaço e outro tão fazia a madrasta, rígida como um avental muito engomado; parecia de cera. Tragou saliva antes de falar.

— Aeneas... — deteve-se e recomeçou. — Aeneas deseja te dizer algo.

Elizabeth, atrás de Anne, lançou um chiado e afastou a bandeja com as taças. Anne se voltou para sua meio-irmã, que embalava a fonte entre os braços. Acaso esperava um estalo de ira por sua parte? Quanto menos se alegraria de ficar só com James em Invercauld. Dirigiu seu olhar cintilante para Aeneas, mas ele se limitou a sustentar-lhe sem pronunciar nenhuma só palavra.

— Suponho que quer dizê-lo em voz alta — lhe insistiu ela.

— Aceita se casar comigo?

A oferta ressonou como uma explosão, parecia um espirro que ele tinha conseguido reprimir durante um tempo.

Anne não esperava essas palavras, mas as tinha ouvido e não precisava pedir que o repetisse. Todos na estadia o tinham ouvido, tinham escutado o pedido de sua mão e aguardavam sua resposta. Essa era a causa da ruptura do decantador e a cara de pau de sua madrasta e Elizabeth. Previam sua resposta. Ninguém respirava. A gente dos clãs, à entrada, acabava de inteirar-se e passava a notícia a quem estava fora; o murmúrio rodeava a casa como um vento. Anne apoiou todo o peso nos pés, cada vez mais espantada. MacGillivray, que ainda tinha o ovo na mão, o pôs às costas para que estivesse mais a salvo. Elizabeth elevou um braço protetor frente às taças de vinho e fechou os olhos com força. Anne deixou escapar o fôlego.

— Sim — foi sua resposta. — Aceito.

MacGillivray fechou o punho, quebrando o ovo, e a sua meio-irmã falhou o pulso até o ponto de que as quatro taças caíram ao chão, rompendo-se por turnos com um tangido de sinos. A lady Farquharson falhou as costas; caiu como uma boneca de trapo na cadeira que tinha atrás de si.

Aeneas ficou sem saber o que fazer, mas ao final fez gesto de aproximar-se da noiva para beijá-la. Ao prever o estorvo da espada e a adaga, deteve-se em seguida para jogá-las para trás. Tomou à jovem, mas então se deu conta de que seguia com a boina posta. A tirou bruscamente, sem soltar à moça, e a jogou para a mesa, mas agora estava a ponto de beijar essa mulher, que não tinha deixado de lhe rondar a mente desde aquele dia, no lago; aquela mulher cujos olhos intensamente azuis eram agora tão escuros como uma inundação em que ele podia e queria afogar-se. E ela esperava. E ele soube que, se não se detinha agora, talvez não se detivesse jamais. E se deteve.

Anne renunciou a esperar. Apoiou as mãos nos lados de sua cabeça e a boca na sua. De fora se elevou um grito de júbilo.

Os numerosos membros de ambos os clãs congregados ao redor da casa ficaram a dar saltos e abraçar-se entre vivas. Outros, procedentes de mais longe, aproximavam-se do edifício às pressas. Uma mulher tirou de debaixo de seu vestido um bolso fechado com uma corda e o abriu para tirar a única moeda que continha, como se fosse o maior tesouro do mundo. Deu uma olhada a seu marido. O dinheiro era escasso nas Terras Altas, onde até os chefes pagavam em espécies. A mulher, orgulhosa, aproximou-se do vão da porta; havia um pequeno cofre de madeira junto à rosa branca, que já começava a florescer. Depois de levantar a tampa, jogou a moeda dentro.

No interior, onde só a exclamação escandalizada de lady Farquharson rompeu o silêncio, o beijo chegou a seu fim.

— Volta a me surpreender — repôs Aeneas. — Pensava que talvez te negasse.

— Eu mesma me surpreendo — confessou ela.

O noivo sentiu a urgência de mover-se e se voltou para MacGillivray e lhe apertou um ombro, em tanto lhe oferecia a mão direita. O ruivo tragou saliva com dificuldade. Além de Aeneas não havia, nessa estadia nem nas montanhas, uma só pessoa que não soubesse de sua decepção, mas aceitou a mão de seu mentor e a estreitou com calidez.

Aeneas, carrancudo, retirou a mão e a abriu para olhar a palma, engordurada pela gema do ovo e as finas partes de casca. Anne caiu na risada. Aeneas viu a cara horrorizada de MacGillivray e ele também se pôs a rir. Liberou-se a tensão que mantinha o jovem chefe como uma corda de harpa: MacGillivray riu com eles, os três unidos pela gargalhada. Ao redor todos os presentes riram, entre dentes ou de forma aberta. Todos, salvo lady Farquharson, que agora lamentava a perda de um bom ovo.

Fora, na soleira da porta, onde a rosa jacobita desdobraria logo suas brancas pétalas perfumadas, a pequena caixa de madeira ia se enchendo com as moedas que se jogavam dentro. Apareceram misteriosamente uísque e cerveja com que brindar pelo casal, a nova união de clãs e, como acontecia sempre que se iniciavam os brindes, pelo rei que estava ao outro lado do mar.

Ali, onde um cofre muito maior também se enchia de moedas na corte de Luis XV, rei da França, e muito perto dele, um jovem príncipe, alto e elegante, inclinava-se para as complicadas talhas da mesa, estudando mapas e cartas com seus comandantes navais.

 

  A vila de Raigbeg se achava na borda direita do rio Findhorn. O guarda de honra de Macintosh, integrada por seis guerreiros a pé, um a cavalo e o gaiteiro, esperava-a ao outro lado do vau. Ao vê-los, Anne reprimiu Pibroch, o pônei nupcial que Aeneas lhe tinha presenteado ao lhe propor matrimônio. Os homens de seu clã tinham trançado rosas brancas na cauda e nas bridas do animal. As mulheres tinham costurado outras em seu vestido de linho branco. Em sua cabeleira aninhavam pimpolhos ao meio abrir. Cada inspiração sua vinha carregada de seu perfume: era um aviso de sua herança jacobita e da memória de seu pai.

  Ao outro lado das montanhas, plantios e cabanas de Invercauld tinham ficado quase vazios. Todos quantos se achavam em condições de caminhar estavam decididos a presenciar suas bodas. Os lentos se puseram em marcha dias antes, a pé ou em carreta. Os guerreiros e quem podiam seguir o passo aos cavalos partiam atrás do grupo montado. Apesar de que não podiam permitir-lhe a gente organizou uma generosa hospedagem na ponte de Carr, onde se detiveram para passar a noite. Até a madrasta de Anne, que cavalgava junto à Elizabeth no grupo de retaguarda, acabou por abrandar-se. A ausência de sua enteada lhe deixaria uma casa mais fácil de dirigir. Ao parecer, todos os habitantes das Terras Altas queriam essas bodas. Todos, menos um.

  Como Anne vacilava ante o vau, seu primo, Francis de Monaltrie, deteve-se ao seu lado. Podia adivinhar a razão daquela vacilação. Lorde George Murray reprimiu seu cavalo ao outro lado; era o primo de sua falecida mãe, o guerreiro mais notável dos Murray, e estava ali tal como o costume o exigia: para assegurar-se de que a noiva fizesse sua vontade em vez de dobrar-se ante a vontade de outros. Na sociedade tribal, as mulheres obravam a seu desejo e seus homens cuidavam de que assim fosse.

— Não deseja cruzar, Anne? — inquiriu.

James refreou o avanço do cavalo que levava a caixa com o dote e se situou atrás de Monaltrie. Os representantes do noivo se achavam na outra borda do Findhorn. O sol arrancava contínuas cintilações à juba ruiva do único cavaleiro.

— É MacGillivray — disse ela.

Não havia tornado a lhe ver desde o pedido de mão, mas isso era de esperar: Alexander tinha o direito e o dever de estar à mão direita do chefe do clã Chatton. Entre seus deveres se incluía o de proteger à noiva de seu chefe. Mas Aeneas já devia estar informado. Estava-os provocando ou os punha a prova?

—Ainda pode escolher — lhe recordou George Murray.

Anne lhe sorriu. Ele a dobrava em idade; era sábio e sério, mas respaldaria sua decisão, por temperamental ou caprichosa que fosse.

— Já escolhi — respondeu ela. E açulou Pibroch para que cruzasse pelo vau as claras águas do Findhorn, até a borda oposta.

Uma vez trocadas às saudações, a escolta de Macintosh flanqueou o grupo da noiva. Era um amparo desnecessário: o clã cujas terras já pisavam sabia que não eram um grupo invasor. As cabanas estavam desertas; a gente estava já na grande casa. O gaiteiro ocupou seu lugar à vanguarda, bombeou seu instrumento e, com os sons de sua música, encabeçou a marcha. MacGillivray voltou à montaria para seguir atrás da gaita de fole. Anne, sem prestar atenção ao protocolo, cravou esporas para adiantar-se e cavalgar ao seu lado.

— Chegarei ao seu lado — afirmou. Ao fim, ele seguia sendo seu amigo e seu aliado, não?

MacGillivray lhe deu uma olhada, apenas o suficiente para que ela divisasse a dor em seus olhos, normalmente despreocupados.

— Ele não sabe? — Perguntou.

— Não me há dito isso. E o que vou lhe dizer eu, se tampouco o compreendo?

Anne não respondeu. Queria-lhe como a sua própria vida e sempre seria assim. O tamborilar dos cascos e o charloteo do séquito encheram o silêncio que se abriu entre eles. Por fim MacGillivray pôs em palavras o que tinha na mente:

— Você e eu estamos unidos...

— Vou a minhas bodas, Alexander.

— ... Desde aquele dia na cascata.

— Eu tinha dezenove anos — protestou ela.

Tudo tinha trocado de cima abaixo em um ano.

— Estava em um lugar muito profundo. Com as saias recolhidas até a cintura e a água até as coxas. Tentando enrolar a um peixe.

— Já o tinha. Bastava-me um movimento de pulso.

— Estava a par de minha presença e de meus olhares. Vi-te endireitar as costas e elevar a cabeça. Foi então quando soube que viria para mim.

Anne não pensava negar o desejo que a imobilizava.

— Esses minutos me pareceram horas. Senti o roce desse peixe que me rodeou a perna e escapou.

Agora ele voltava a olhá-la. Seus olhos azuis ardiam com certeza.

— Ainda me quer.

Sustentou-lhe o olhar com a mesma certeza.

— Sim, é certo. — Logo riu, deixando escapar a tensão. — E voltarei para ti, se Aeneas não me satisfizer.

MacGillivray, frustrado, fez um amplo gesto com o braço, para indicar suas próprias terras de Dunmaglas, invisíveis para o oeste.

— Teremos recolhido a colheita e o gado terá engordado para novembro. —O cereal balançava verde e alto, em torno deles. — Olhe como cresce o centeio.

— Com o imposto inglês sobre o malte, não lhe tiraremos ganho algum.

— Meu clã quererá que me case quando tivermos as despensas cheias. É coisa de ter uns quantos anos bons.

— Está decidido. — O tom da moça era firme, mas ele não podia deixar as coisas assim.

— Não te casa com Aeneas por sua fortuna nem por seu poder — deduziu. — Por que, então?

A própria Anne não se atrevia a responder a essa pergunta, pois o noivo era um desconhecido, um livro fechado; entretanto lhe desejava do momento em que lhe viu na escada de Moy, o dia de sua proclamação, e esses sentimentos a zangavam, pareciam-lhe escandalosos. Sua imagem a acossava; era uma presença que ela ansiava em cada momento consciente. Sim, e com segurança também em sonhos. Se uma noite de pulos com ele entre as mantas tivesse podido curá-la, o teria procurado, mas isto ia mais fundo que esse lugar entre as coxas, embora não pudesse compreendê-lo nem explicá-lo.

— Não se pode saber por que fazemos determinadas coisas — respondeu. — Unicamente sei que devo fazê-lo.

 

Havia centenas de montanheses vizinhos de Moy Hall. A rosa branca de junho florescia junto à porta principal e sob as janelas, plantada ali para que perfumasse a casa. Percebia-se um zumbido de atividade. Homens e mulheres dispunham viandas e bebidas em largas mesas: um porco assado, veado, aves de caça, coelhos, pescado, tortas de aveia, barris de cerveja. Os anfitriões se apressaram a acabar ao ouvir o gorjeio distante da gaita de fole.

Uma adolescente dispunha pescado e frios junto a transbordantes jarras de clarete no salão principal, aquecido por duas lareiras situadas em paredes opostas e presidido por uma ampla e majestosa escada. Aeneas observava com gesto sério os frenéticos preparativos de última hora das portas abertas do salão. Alisou-lhe o cenho ao ouvir a tênue música. Vestia um fino tonelete, tecido especialmente para esse dia pela melhor tecelã do clã; gostou muito da manta sobre o ombro com um broche de prata, e pendiam a seus lados uma espada e uma adaga com os pomos de prata. Junto a ele protestava Forbes de Culloden, o ancião lorde de apelações.

— Os custos do enterro estão sem pagar... Mil e quinhentos hóspedes, quando ainda não se saldou a hipoteca de seu clã por esta casa. E agora isto! As galinhas e a aveia não são moeda corrente, Aeneas. Só a lei impositiva...

— Comercializamos com o produto da terra — o interrompeu Aeneas. — Esses impostos são invenção de seu governo.

— E com palavras bonitas os poderia retirar — reconheceu Forbes — mas no Parlamento, não aqui nem neste dia.

A moça tinha entrado do salão para pôr uma bandeja na mesa, já lotada. Ao passar, Aeneas alargou uma mão para arrebatar uma ostra. A garota, igualmente rápida, deu-lhe uma palmada na mão. Aeneas assinalou ao outro lado da estadia, indicando que a requeria. Assim que ela se girou para olhar, ele meteu a ostra na boca e a tragou. Já deslizava a concha vazia na bandeja quando a moça descobriu o ardil e o fulminou com o olhar. Piscou-lhe o olho, com um enorme sorriso.

— Muito lenta Jessie — repôs enquanto tomava uma taça de vinho.

—Sua esposa te porá na linha bem logo — replicou ela, severa. Imediatamente, seu entusiasmo rompeu em um sorriso. — Já quase terminei.

E voltou a partir depressa.

— Uma esposa poderia arrumar muitas coisas — disse Forbes, ao ouvir cada vez mais perto a música da gaita de fole. — Dizem que esta traz um dote considerável. E não em cereal, a não ser em dinheiro.

Aeneas jogou a cabeça para trás com uma gargalhada.

— Ainda não gozei nem das bodas nem da cama, Forbes — disse — mas me atrevo a dizer que os bancos o incitariam a me apalpar os bolsos embora fosse cadáver.

—Isso seria, um cadáver, se eu informasse sobre essa arma. —O ancião assinalou com a cabeça a espada embainhada no lado do noivo. — Tal e como estão às coisas neste momento, essa arma se consideraria uma manifestação de rebelião.

Aeneas lhe sorriu abertamente. Na Europa, a Inglaterra estava em guerra com a França. No mês anterior o exército britânico tinha sofrido uma derrota. Agora se comentava que as forças francesas, encabeçadas pelo príncipe jacobita, não demorariam a invadir a Inglaterra. Vários dos clãs tinham jurado lhes dar apoio e fortalecer a Escócia. Forbes suspeitava que Macintosh pudesse ser um de esses.

— As terras de meu clã não são públicas — corrigiu, sem revelar nada. — E não quero me casar meio vestido. — Elevou sua taça de vinho. — Slàinte* — disse. E a apurou até o fim.

Lady Macintosh entrou apressadamente pelas portas acristaladas. Esse dia era o último em que podia ver Moy Hall como seu lar, mas ela também ansiava essas bodas.

— Aeneas — lhe insistiu inecesariamente. — chegaram!

— Arrumaremos nosso assunto depois de meu casamento — disse ele a Forbes, antes de sair atrás de sua tia.

 

— Sem promessas, não, nada disso — replicou o juiz. — Desta vez não.

Mas as promessas estavam à ordem do dia. Para que todos pudessem ver a cerimônia se erigiu uma plataforma baixa, decorada com urzes, rosas jacobitas e fitas brancas. Enquanto a família de Anne procurava lugar à frente do numeroso grupo dos Farquharson, ela esperava com seu primo mais à frente da multidão. Até que seu irmão cumprisse os vinte e cinco anos, Francis era o chefe de família e atuaria como testemunha. Subiram juntos à plataforma, onde Aeneas esperava de pé, com MacGillivray a sua direita, ante o ministro. Os três homens formaram uma linha imponente com suas mantas de tartán de diferentes cores, as trêmulas plumas de chefe e, aos lados, as armas proibidas de cintilante prata.

Entre eles, Anne, com seu amplo vestido de cetim e fio branco, parecia frágil e delicada como uma mariposa. O sol estava bem alto em seu cenit aquele meio-dia de primeiro de julho e não havia sombra alguma. A voz da noiva ressonava com claridade no silêncio evidente da multidão enquanto pronunciava os votos; o último a comprometia com o clã de seu marido.

— Aonde você vá, irei eu. Seu lar e seu povo serão meus.

Aeneas se mostrou igualmente seguro. Olhou-a aos olhos com firmeza e falou só para ela. Era como se não estivessem rodeados por uma multidão de highlanders, a não ser sozinhos.

— E onde você esteja ali estarei eu — disse, com voz firme e serena. — Minha espada e meu clã em tua defesa, pois agora só a morte poderá nos separar.

E logo, assim que os declarou marido e mulher, encerrou entre as mãos o rosto de sua noiva para beijá-la.

Um grito de júbilo surgiu dentre os representantes das tribos convidadas. O ar se povoou de boinas azuis jogadas no voo e de exclamações de alegria. Anne Farquharson, como esposa de seu chefe, era agora lady Macintosh, ao serviço do clã, e o clã ao dele, até a morte se fosse necessário. Ela era a candidata preferida. A tia de Aeneas, a dama viúva de Macintosh, foi à primeira em felicitar o novo casal.

— Ficará aqui conosco, verdade? — perguntou à jovem.

— É muito amável, a ghràidh* — replicou a viúva — mas anseio gozar da vida urbana em Invernes. Será menos trabalho e mais agradável. A Moy basta uma senhora. Você o fará bem.

Francis se adiantou, decidido a ser o seguinte; depois de empurrar para trás a espada e a adaga, inclinou-se para beijar Anne a fundo e a envolveu em um tremendo abraço.

— Escolheu bem — passou — e Aeneas, ainda melhor.

Como o resto das duas famílias clamava por lhes estreitar a mão, passou um momento antes que Anne pudesse desembaraçar-se e procurar MacGillivray. Mantinha-se atrás, separado dos parentes, na borda da plataforma; seu metro oitenta de estatura e seu chamativo cabelo vermelho o privavam da invisibilidade que parecia desejar. Apoiou-lhe uma mão no braço.

— Não te quero menos por isso — lhe disse. — E bem sabe que Aeneas te estima como um irmão.

Por um momento temeu que ele partisse, pois essa reação os distanciaria para sempre. Mas ele se manteve firme; a lealdade por Aeneas e o amor por ela lutavam com sua sensação de perda. Inspirou profundamente.

— CO-dhiù* — respondeu. — Ao menos já não terei que cruzar as montanhas para te ver.

Da expressão de Anne desapareceu a ansiedade. Um amplo sorriso lhe iluminou o rosto. Jogou os braços ao pescoço e, rindo, esticou-se para lhe beijar.

— Assim te demonstro quanto te aprecio — declarou.

Atrás deles, entre a gente que se amontoava para lhe felicitar, Aeneas viu sua mão direita levantar sua noiva e fazê-la girar gostosamente. Sua expressão era reservada e insondável.

 

As gaitas de fole ronronaram ao começar a tocar. Encheram-se as taças e deu início a festa. Aeneas levou Anne para iniciar a dança; seu contato despertou na jovem uma descarga de excitação sexual. Ele era forte e seguro de movimentos, mas de pés ligeiros, e teria preferido estar sacudindo o leito conjugal em vez de saltar ao compasso do reel. Ela o lia nos olhos, tão abertamente como ele podia lê-lo nos seus.

—De modo que pensa ficar — disse ele com um meio sorriso. — Não passava por acaso, depois de tudo.

Estava-a açulando por seu comentário junto ao lago, no dia em que Elizabeth tinha caído à água.

— Um autêntico cavalheiro não recorda a uma dama suas indiscrições — observou ela.

A mão de Aeneas, apoiada em suas costas, estreitou-a pela cintura, em tanto ele se inclinava para diante para lhe aproximar a boca ao ouvido, o quente fôlego contra seu pescoço.

— É que não tenho nem um pingo de cavalheiro, lady Macintosh — disse em voz baixa— como sem dúvida descobrirá antes que passe muito tempo.

Percorreu-a um estremecimento. Quanto ansiava lhe conhecer o corpo, tocar sua pele, sentir suas mãos sobre ela! E ao mesmo tempo, que medo tinha! Ele se tornou para trás para olhá-la aos olhos.

— Além disso — disse — foi seu temperamento desse dia o que me fez compreender que não poderia me casar a não ser contigo. Uma boa esposa tem que ter sua porção de fogo.

Nesse momento a dança trocou em sequência. Aeneas a fez girar ao redor, mas a reteve um momento a mais em vez de soltá-la quando devia; assim fez que chegasse tarde aos braços de seu companheiro seguinte, excitada e rindo. Forbes se fez cargo dela e, apesar de seus anos, começou a dar saltos ao ritmo da dança. O velho juiz não estava acostumado a visitar Invercauld com frequência apesar de ser o tio de sua madrasta.

— Casou com um homem prudente, lady Macintosh— disse enquanto davam mais e mais voltas — E foi boa ideia, a de trazer seus próprios recursos. Dará-lhe bom uso, sem dúvida, para liberar seu flamejante marido do cárcere.

Anne interrompeu a dança; a espera de deitar-se com seu marido se ia dissipando.

— Do cárcere?

Aeneas e MacGillivray apareceram junto a ela imediatamente. O primeiro agarrou Forbes pelo peitilho da camisa, em tanto a dança se interrompia e a música vacilava até calar.

— Assim prisão, né? — trovejou Aeneas nas barbas do ancião. — Qualquer que enviem por mim lhes será devolvido em uma gaveta!

Integrantes de ambos os clãs rodearam os dois homens e apareceram as primeiras facas; em suas mãos direitas, aqueles atravessados, que se classificavam como facas de trabalho, eram tão mortíferas como qualquer espada. O semblante do ancião se encheu de suor: tinha calculado mal a ocasião.

— A prisão não será necessária — chiou. Aeneas soltou o juiz. Depois de alisar as rugas da camisa, Forbes continuou: — Bastará com o dinheiro de sua esposa.

Todos os presentes deram um pulo e a notícia passou entre os convidados como uma onda percorria a superfície de um lago em calma. Os Farquharson se adiantaram até a primeira linha; não tinham se empobrecido só para beneficiar os Macintosh.

— De modo que se tratava disso — soltou MacGillivray enquanto fulminava Aeneas com o olhar.

Anne olhava seu marido com fixidez. O dote era o presente de seu clã, para garantir que ela estivesse bem provida durante sua vida conjugal. Seu marido não tinha nenhum direito sobre ele.

— Aeneas, o que ocorre aqui?

— Nada que não possa resolver — assegurou ele.

Nos arredores, os Farquharson começaram a alterar-se, proferiram ameaças e desembainharam outras facas.

— Naturalmente, há uma alternativa — disse Forbes, extraindo de sua jaqueta uma folha de papel. — Assina a cessão da terra ao banco.

E apresentou o documento a Aeneas.

— Nossa melhor terra de cultivo? — O noivo estava estupefato. — Sem ela, meu clã passará fome.

Forbes se encolheu de ombros.

— Lhes podemos arrendar isso.

— Então produzirá para vós — disse Anne — e o clã passará fome igualmente.

— De qualquer modo a corte a dará em concessão — observou o juiz. — Se não, sempre se pode pagar em dinheiro.

— Nous verrons — repôs Aeneas — Nisso francês está por ver. — E subiu de um salto à plataforma. — Temos uma dívida a pagar — anunciou a seu clã. — O banco quer nossa melhor terra. — A multidão emitiu um rugido de rechaço. — Nesse caso, pagariam com o dinheiro dos Farquharson?

— Não! — bramou novamente seu clã.

Ao redor deles, a aliviada família da noiva voltou a embainhar as armas.

— Mas podemos pagar — anunciou Aeneas — servindo na Guarda Negra.

Elevaram-se vozes de incredulidade. A Guarda Negra era um novo regimento criado para evitar nas Terras Altas uma nova sublevação jacobita. Forbes tinha movido influências no Parlamento para poder formá-lo. Agora o utilizava contra a França. Só aqueles clãs leais ao rei Jorge podiam pensar em incorporar-se a ela. Os presentes trocaram olhares de horror. Um corpulento camponês Macintosh deu um passo adiante.

— Pede-nos que combatamos por este governo?

Sua esposa lhe uniu, gritando:

— Não ajudaremos os ingleses a nos roubar e nos matar de fome!

— Nem a matar nossos aliados! — gritou outro.

De trás, um quarto elevou a voz.

— Que tipo de chefe pediria algo semelhante?

A atmosfera voltava a fazer-se perigosa.

— É verdade — concordou Aeneas. — A Guarda Negra combate pelos ingleses contra a França, mas em ausência deles se necessitam regimentos que atuem como polícia nas Terras Altas. E quem pode fazer melhor que nossos clãs jacobitas?

Uma velha mirrada se adiantou a trancos, armada de uma forquilha.

— Nós somos nossa própria polícia — espetou.

— Pois então organizemos um regimento — aduziu Aeneas — e que nos paguem por isso.

O clã não estava de tudo convencido. Não fazia ainda quarenta anos que o Parlamento escocês se deixou subornar para unir-se a Inglaterra. Essa união tinha levantado bolhas a um princípio e tinha resultado desigual. Os clãs eram os que mais padeciam, pois viam seu sistema de vida tribal erodido por leis e impostos novos; seus costumes, ameaçados pela invasora cultura inglesa. Trinta anos atrás se levantaram em armas, decididos a pôr novamente no trono Jacobo, seu próprio monarca, e obter a liberdade da Escócia. Essa sublevação fracassou, mas a esperança não ficou destruída. Agora, apesar dos rumores, parecia que seu novo chefe não compartilhava essa ilusão.

A irritação e a dissensão foram aumentando.

— Bem poderia ficar viúva antes de ter sido esposa — sussurrou Forbes a Anne.

Ela recolheu as saias para subir o degrau e erguer-se junto a Aeneas.

— Este governo castiga a cada instante — arengou à multidão. — Carrega impostos sobre nossas colheitas, nossos animais de carga e as quatro moedas obtidas obrigado o comércio. Carregam-nos impostos por fabricar nossa própria cerveja e nos impedem de tosquiar nossas ovelhas para engordar os ingleses traficantes de lã. Agora querem lhes tirar a terra, mas se lhes unem a Guarda, poderão pegar dinheiro deles para variar! Mas como, por fazer só o que já estão fazendo: manter a paz nas Terras Altas!

Os gritos se converteram em murmúrios, segundo a gente começava a apreciar a ironia daquela situação.

— Três comidas diárias pagas pelos ingleses! — gritou Aeneas.

A multidão pôs-se a rir.

— E um xelim por cabeça, pago por esse pirralho alemão que se diz rei! —acrescentou Anne.

Houve mais risadas. A anciã agitou sua forquilha.

— Eu irei! — exclamou.

— É só para homens jovens, Meg — explicou Aeneas. — Parvos como são, não querem mulheres.

— Sasannaich!* — A velha Meg cuspiu no pó.

A esposa do camponês que havia se oposto primeiro empurrou para diante seu filho mais velho.

— Nosso Calum irá — assegurou.

— E eu. — Outro moço deu um passo à frente.

— Eu vou.

— Eu também.

Elevaram-se gritos em toda parte.

Forbes ficou estupefato. Uma contribuição Macintosh a Guarda Negra era algo inesperado, mas aceitável; muito aceitável, dadas as perspectivas de rebelião. Não podia menos que declarar-se satisfeito. Aeneas dedicou um grande sorriso a Anne, elevou-a em seus braços, depois de abandonar a plataforma entre os entusiasmados rugidos de fôlego de ambos os clãs, a levou pelas portas abertas ao seu novo lar.

Os recém casados entraram por primeira vez em Moy Hall, mas apenas se precaveu da longitude do salão nem da amplitude da estadia quadrangular. Ia em braços de seu marido, cuja proximidade física enchia todos seus sentidos: o balanço de cada passo, seu peito duro contra as costelas, sua nuca no oco do braço, a sedosidade desse cabelo negro roçando os dedos, a pressão de seus braços nas costas e nas coxas, a ligeireza com que carregava seu peso.

— Deveria te mostrar a casa — observou ele, enquanto se dirigia para a ampla escada, sem intenções óbvias de deixá-la no chão.

As gaitas de fole retomaram a cadência do reel interrompido e se reatou a dança.

— Isso pode esperar. — Ela afundou o nariz na curva de seu pescoço para aspirar o aroma almiscarado de seu marido, e roçou com os lábios a suavidade daquela pele; com a ponta da língua provou seu leve sabor salgado.

— Mulher, para — grunhiu ele, reclinando um pouco a cabeça contra ela— que não passamos da escada.

E lhe beijou o rosto, a bochecha, os olhos, à testa, o cabelo: pequenos beijos aos que ela respondia. Entretanto, não vacilou o passo em nenhum momento. Havia uma porta no alto da escada; ele abriu com as costas de um tranco e seguiu seu avanço por um corredor com muitas portas. Aeneas cruzou a primeira e entrou com ela em um dormitório com janelas de madeira, muito iluminado pelo sol.

Depositou-a no chão depois tirou a boina. Antes que seus pés tocassem o chão, Anne já tinha posto sua boca sobre a dele e procurava o calor de seus lábios e sua língua, com os braços em volta de seu pescoço e os dedos enredados em seu comprido cabelo, muito consciente de suas mãos: uma, sob suas omoplatas; a outra, na parte baixa de suas costas, estreitando-a contra ele.

A troca de beijos foi tão ávida e feroz como quente o fôlego de ambos; os corpos se ativeram um ao outro e se apalparam por cima da roupa até que a necessidade de pele se tornou irresistível. Ela soltou seu cinturão, que caiu ao chão com um golpe surdo, com espada e tudo. Com a falta do cinturão, a grande manta tableada deveria cair ao chão; o tonelete permaneceu em seu lugar.

— Espera — pediu ele, com o peito elevado pelo ofego. Deu um passo atrás para tirar a espada e soltou o broche que segurava a manta.

Aturdido pelo desejo, Aeneas contemplou aqueles dedos que desabotoavam as fivelas; tonelete e manta caíram amontoados, até que ele ficou com a camisa; depois de uma pausa, quando estava a ponto de agarrá-la outra vez, pediu ela:

— Quero te ver sem essa camisa.

Em um só movimento o objeto passou por cima da cabeça e o deixou nu ante ela, rígido, musculoso, um corpo de perfeita beleza masculina, com a suavidade do músculo depravado, o pênis projetado, firme, preparado. Anne apoiou a palma da mão sobre seu peito. Seus olhos queriam fechar-se; seus membros, ceder, afrouxados pelo desejo que tornava mais fortes os dele; assim a natureza assegurava sua intenção, mas ela queria conhecer esse corpo que se uniria ao seu em matrimônio antes que a sensação anulasse a percepção; por isso caminhou em torno dele, muito perto, lhe percorrendo a pele com os dedos e a boca, percebendo seu aroma, em tanto lhe apertava um beijo entre os fortes ombros, ligeiramente, e viu como tremiam os músculos de suas costas, e viu o mesmo tremor nas nádegas.

Quando se encontrou de novo frente a ele, tocou com a gema dos dedos uma cicatriz no ombro esquerdo; era antiga, empalidecida com os anos, e tinha sido profunda.

— Antes de aprender a não baixar a guarda — explicou ele enquanto olhava as pupilas de Anne, que lhe olhava com seus olhos da cor da turfa. A expressão de seu marido levantou uma nova onda de desejo, ansiou sua boca, e também recebê-lo dentro dela, mas ao ver sua urgência crescente, Aeneas sacudiu a cabeça. — Ainda não — repôs. Apoiou-lhe as mãos nos ombros para girá-la de costas a ele e começou a desabotoar os ganchos que seguravam o vestido.

As pétalas brancas dos pimpolhos costurados ao tecido se pulverizaram pelo chão e voaram pelo quarto, enquanto o vestido deslizava para baixo. Quando ela saiu de dentro, ele o recolheu para jogá-lo em uma cadeira. Como o espartilho apertado sobre a anágua se atava por diante, ele a fez girar. Roçou-lhe os seios com os nódulos enquanto o desenredava. O fôlego de Anne surgiu em pequenos ofegos através dos lábios entreabertos.

A jovem esperava que Aeneas retirasse os finos suspensórios de seus ombros, para que a anágua caísse pelo centro, depois de lhe tirar o espartilho, mas lhe apoiou uma mão nas costas e deslizou a mão direita para baixo até alcançar a prega; logo a esticou para lhe acariciar a coxa, a curva do quadril e o ventre e a seguir, afundou os dedos no pêlo esponjoso e continuou a viagem para o calor úmido do sexo.

— Está pronta mim para — murmurou enquanto empurrava para dentro. E a Anne afrouxaram os joelhos. Apertou-se contra ele, agarrando seus ombros para afirmar-se, procurando com a outra mão o peso de sua ereção, mas ele deteve o contato e deu um passo atrás; seus olhos eram agora mais negros, a contraluz da janela. O som apagado da gaita de fole efetuou uma suave transição e passou do reel a um strathspey; os bailarinos lançaram uma exclamação de júbilo.

— Quero te ver sem camisa — disse ele, repetindo as palavras de Anne com uma voz surda em que não se percebia nenhum sorriso.

A moça notou um estremecimento em seu ventre. Deslizou os suspensórios para fora e moveu os ombros para que a seda escorregasse ao chão. Uma vez despida ante a nudez de Aeneas, seus braços se elevaram como por vontade própria e se abriram. Se ele não vinha nesse momento, a sensação acumulada nela estalaria em cólera.

— Solte o cabelo.

— Atrapalhará.

— A mim, não.

Agora começava a zangar-se. Trouxe para diante a larga trança e desatou a puxões a fita branca; enquanto caíam os últimos pimpolhos de rosa, passou os dedos através dos fios para soltá-los; deixou-os cair sobre os ombros, sacudindo a cabeça. O peso da cabeleira se moveu em arco e caiu em cascata pelas costas, sobre o peito, até tocar os quadris. Cravou em Aeneas um olhar flamejante, mas ele, detido nessa energia contida, contemplativa, não pareceu preocupar-se. Um momento depois, o calor de sua pele se unia a dela e a força de seus braços a sustentava elevava-a, para por ambos no leito conjugal. Seu corpo cobriu o dela.

Até ali não parecia ter pressa por entregar-se de maneira que não havia nada que negar; tampouco lhe teria negado nada. Ele sabia o que ela ignorava: que entre os dedos e na palma das mãos a pele era mais sensível ao tato que a dos seios; que as palavras murmuradas contra uma pele quente excitavam tanto como as carícias. Por isso, Anne se deixou ir, lhe acompanhando. Ele só impediu que as mãos ou a boca de sua mulher, ou sua própria urgência, pudessem dominá-lo muito cedo.

A cópula foi lenta e longa até que, por fim, ele a estreitou quando ela o pediu com a voz em seu pescoço, estremecendo na dissolução do prazer. Só então, moveu-se novamente dentro dela; os lentos meneios se converteram rapidamente em embates duros, profundos. Anne, agarrada a ele, sentiu-se consumir, não já por seu próprio prazer, mas sim pelo de Aeneas.

— Mo ghaoil*, meu amor — sussurrou quando ele grunhiu seu nome, estremecido, e sua semente emanava para ela, perdida entre maravilhas. Sentiu chegar às lágrimas, queria apenas abraçá-lo assim, vulnerável como estava, a guarda baixa, enquanto a quietude percorria todo seu peso.

— Está chorando? — perguntou ele, incorporando-se para olhá-la aos olhos.

— Não.

E era verdade, já não, pois lhe tremia o ventre, mas de risada.

Ele riu entre dentes e se deixou cair de costas. Ficaram estendidos juntos enquanto os bailarinos gritavam ao som da jiga das gaitas de fole. Anne apoiou a cabeça no peito de Aeneas, umedecido pelo suor, e percorreu com os dedos o contorno de seu abdômen seguindo a cadência de sua respiração. O aroma de sexo os envolvia em qualquer parte.

— Como é que sabe tudo isso? — perguntou ela.

Aeneas levantou a cabeça para olhá-la, com as sobrancelhas franzidas. Logo sorriu de orelha a orelha e jogou a cabeça atrás, contra o travesseiro, em uma gargalhada grave e funda sobre a que não daria explicações, por muito que lhe cravasse o punho nas costelas e ameaçasse com a faca outra vez, mas era muito cedo e tiveram que aguardar um momento.

Resistiram a reunir-se com seus convidados, ao menos até a manhã ou possivelmente até o dia seguinte, e foram deixando que a tarde derivasse para a noite. Comeram e beberam de uma bandeja que a jovem Jessie tinha deixado ante a porta. Foi ao cair à noite, quando as gaitas de fole e os celebrantes se calaram, que a enormidade do matrimônio golpeou Anne. Passaria a noite junto a ele e, ao dia seguinte, despertaria em seu leito.

— E despertaremos fazendo amor — sorriu ele, embora tivesse os olhos fechados, a beira do sono.

— Pela manhã?

— Não acredito que os ingleses o tenham proibido por lei, ainda.

— Pois então devem ter intenções de colocar um imposto por isso — assegurou ela.

E riram juntos outra vez.

 

Sobre a cidade de Londres pendia uma neblina cinza tão densa que o sol nascente mal conseguia transpassá-la. Em suas habitações de Kensington House, o duque de Cumberland jogou água fria ao rosto. Aos vinte e quatro anos tinha já o aspecto bulboso de um buldogue inglês. Ainda lhe ardia à derrota em Fontenoy, a retirada, o ignominioso retorno à pátria, deixando os franceses em posse de Flandes. Um servente, a suas costas, tinha a jaqueta vermelha preparada. O duque se secou, jogou a toalha junto à bacia de porcelana e deslizou os braços dentro das mangas que esperavam.

— Monopolize! Hawley! — Chamou.

Abriu-se a porta e entrou o general Hawley, uma aranha vetusta e mirrada, meticulosamente vestida de negro.

— Sua alteza — saudou com uma reverência. — Se encontra bem o rei?

— Meu pai está... — Cumberland vacilou. — Está preocupado. Onde está Monopolize?

— Ainda é cedo. — Henry Hawley encolheu os ombros.

No exército era coisa bem sabida que ao general Monopolize gostava da cama. Do corredor chegava um entrechocar metálico. A porta se abriu violentamente e ali apareceu Monopolize, homem corpulento e corado, com a jaqueta ao meio abotoar e a peruca torcida; trazia o uniforme escarlate salpicado de chuva.

— Ah, sinto muito. — Agitou as mãos em um gesto de desculpa. — Me havia...

— Atrasado — espetou Cumberland. Tremia a mandíbula. Recolheu um maço de papéis para sacudi-lo ante os dois generais. — A semana passada Lion travou combate com duas fragatas francesas. Elisabeth chegou a Brest nas últimas. Du Teillai escapou. Agora nossa inteligência informa que meu primo zarpou para a França.

— Não seria tão idiota para desembarcar — objetou Monopolize. — Com um só navio, não.

— Um..., até onde sabemos. — Cumberland se sentou pesadamente e começou a escrever. — Se mobilizarão em direção a Escócia. Você, general Hawley, unirá-se com o general Wade em Northumberland.

— Os jacobitas da Inglaterra não iniciarão nenhuma insurreição — replicou Hawley. — Se limitam a falar e falar. Umas quantas forcas nas Terras Altas bastarão para assegurar a paz.

— Ou uma só, para um aspirante a rei — corrigiu Cumberland. E entregou a Monopolize o papel que tinha estado escrevendo. — Toma esta carta de crédito, Johnny. Com isso deveria cobrir a lista de nomes. Encontre-lhe.

 

Choveu intensamente durante as duas primeiras semanas de julho. Um aguaceiro incessante e agudo como o fio de uma faca tamborilava nos telhados, alagava os campos e transbordava os arroios. Assim que cessaram as chuvas, apresentou-se de supetão um tempo tão caloroso e seco que teria sido inconcebível pensar em semelhantes trombas d’água a não ser pelos testemunhos existentes: os vaus alagados, os lagos cheios e os rios caudalosos. E os semeados. Anne e Aeneas, carrancudos, contemplavam a devastação do lombo de seus cavalos. O campo de cevada estava acabado.

— O trigo estará igual — comentou Aeneas enquanto desmontava para inspecionar a altura dos caules quebrados.

— Não podemos colher agora?

— Sim. — a olhou entortando os olhos contra o áspero sol. — Mas só para agora.

Isso significaria reter mais ganho durante o inverno, para que os cereais pudessem devolver seu valor alimentando às crias. Até a primavera não seria possível obter proveito algum.

— Ao menos já recolhemos a aveia.

— Haverá porridge em abundância — reconheceu ele voltando a montar

— De maneira que o que lamenta é a falta de cerveja e uisge beatha* — provocou ela, brincando. — Ou não poder contribuir à manutenção do príncipe alemão?

Ele apoiou um braço no pescoço de seu cavalo e a observou por um momento.

— Há outro motivo para lamentar que este seja um campo de cevada — disse lenta e seriamente, embora lhe brilhasse os olhos. — Não quererá estas espigas dentro de suas saias.

O súbito calor de prazer interior, embora já familiar para Anne, era sempre inesperado. Durante todo o mês de junho tinham tentado caminhar pelo imóvel, para que ela o conhecesse, mas apenas lhes era possível passar por um herbário entre as urzes ou atrás de um arvoredo. Posto que caminhar de mão era impossível para cobrir distâncias, para que ela pudesse conhecer Moy em toda sua extensão deviam atravessá-la a cavalo. A diferença de Aeneas, ela não pôde conter o sorriso.

— Duvido que seja um gozo sob o tonelete, tampouco — comentou.

— Né, sou homem. — Agora ele também sorria. — Posso suportar a ardência. — Riu entre dentes. — Ao menos por um momento.

Demoraram mais em colher e armazenar o grão. Aeneas enviou cinquenta famílias para que ajudassem a colher e armazenar em Dunmaglas, onde MacGillivray, que tinha mais centeio em campos expostos, teria sofrido perdas piores.

Acabado o trabalho, os moços que se ofereceram para integrar a Guarda Negra se reuniram em Moy Hall. Tinha-lhes retido para uma colheita perdida e agora, os ganhos de seu serviço militar faziam mais falta do que nunca. Formados em fila, os rostos frescos e ansiosos de aventura, eram, em sua maioria, os primogênitos das famílias mais pobres. Frequentemente, os habitantes da periferia de um imóvel eram exilados; outros clãs os tinham expulsado por alguma transgressão ou se foram voluntariamente por alguma disputa; atribuía-lhes o chão mais pobre e os pastos mais magros enquanto não tivessem provado seu valor ante o novo chefe.

Anne, especialmente vestida para inspecionar os voluntários, percorreu as filas com Aeneas. Uns poucos cujas mães tinham negado a permissão foram devolvidos ao lar. Segundo o costume habitual para receber ou se despedir de um homem, ela os beijou calidamente na boca, um a um, segundo Aeneas ia apresentando. Eram rapazes tenros que ainda estavam na idade doce: dezesseis ou dezessete anos, não muito menores que ela mesma. Essa seria a primeira vez que abandonavam sua casa.

— Calum MacCay — anunciou Aeneas.

Ela recordava de Calum; o dia de suas bodas tinha sido o primeiro ao que empurram para frente.

— Duncan Shaw.

Era o maior de dois irmãos; sua mãe tinha permitido que se apresentasse um só.

O seguinte era um menino desajeitado, de largo sorriso torcido.

— Desavergonhado — disse Aeneas — Não tem outro nome.

— Macintosh — esclareceu Desavergonhado com orgulho, interpretando mal o que havia dito seu chefe. — Estou com Robbie Uivador.

Por certo, os dois moços estavam muito juntos, com os dedos entrelaçados.

— Robbie Uivador? — estranhou Anne, sorridente.

— Não recorda o baile? — disse Aeneas ao ouvido. — Nem como cantava mais tarde, durante a noite?

Por fim, ela recordou uns berros mais dotados de energia que de afinação. Beijou ambos sonoramente.

— Alegra-me que vão juntos.

Havia cinquenta voluntários; o último era Lachlan Fraser, o filho do ferreiro. Anne pôs aquilo em julgamento: todo ferreiro era um bem importante, que não se podia ceder com ligeireza, menos ainda às forças do governo e quando podia haver uma sublevação iminente.

— Os franceses nunca saíram do porto, Anne — lhe recordou Aeneas. — Só dois navios escaparam do bloqueio e a Armada os obrigou a retornar.

— Mas poderiam tentá-lo outra vez, e se o príncipe desembarca na Inglaterra, é possível que enviem estes moços ali, pelo bando oposto.

— Não o permitirei.

Anne se voltou para Lachlan, que estava com a cabeça encurvada, inquieto. Como todos os moços presentes, ansiava ver-se bem armado e converter-se em guerreiro, pois para isso o tinham adestrado da infância.

— Vai com minha bênção — disse lhe dando um beijo — mas só por seis meses. Moy tem maior necessidade que a Guarda Negra de um aprendiz de ferreiro.

Aeneas fez então que montassem para conduzir os moços a Fort George, em Invernes. Anne ficou para fazer objetos para a ligadura de mãos do dia seguinte, mas os seguiu com a vista, intranquila. Tinha apoiado Aeneas no recrutamento, pois então lhe parecia correto, mas agora, ao vê-los partir com tanto orgulho, balançando os toneletes, era como se partissem para unir-se a um inimigo. O clã tinha rechaçado de forma instintiva a ideia de que seus filhos apoiassem uma guarnição inglesa. Talvez fosse algo que se teria devido ter em conta.

Moy Hall pertencia ao povo, como também a terra e seu chefe, a quem levavam os problemas de resolução impossível por seus próprios meios. Os dois primeiros eram simples: um desacordo por questão de limites e algumas cabeças de gado postas em pastos alheios. Aeneas resolveu com igual simplicidade. Sabia exatamente onde estavam as confinadas; a família ofendida receberia o dobro da terra invadida se produzia uma nova transgressão, e não aceitou a desculpa de que o gado se desviava por iniciativa própria ao campo vizinho.

— Te incumbe cuidar de que não o faça — insistiu ao dono. E lhe advertiu que, se isso voltava a acontecer, seu vizinho receberia também uma cabeça mais.

Logo atendeu à necessidade atribuindo maiores direitos às terras comuns de pasto.

Anne escutava com atenção. Necessitaria de tempo para conhecer Moy e sua gente o bastante bem para ditar sentenças com tanta claridade mental. Em Invercauld ela também conhecia cada pedra, cada árvore, cada nome. Precisou fazer um esforço tremendo para controlar uma onda de nostalgia.

A terceira queixa foi apresentada com grande fúria. Uma multidão entrou no salão, empurrando ante si a um aldeão machucado; uma anciã o cutucava com sua forquilha e todos falavam com mesmo tempo.

— Que fale um primeiro — ordenou Aeneas, e assinalou a um corpulento camponês com um movimento de cabeça. — Ewan...?

— Atacou a sua esposa com uma torr-sgian — disse o interpelado. — Como demonstração aí estão quão feridas ela tem nas costas.

— Não foi um acidente? — perguntou Aeneas.

— Não foram cortar turfa a estas horas — interrompeu Anne, impressionada por tanta brutalidade.

— Nem tampouco dentro — soprou a anciã, enquanto cutucava ao culpado com as pontas de sua forquilha.

— Basta já, Meg — disse Aeneas, carrancudo. — E ninguém pôde impedi-lo?

— Sim, assim que nos inteiramos. — Ewan se ergueu orgulhoso. — Mas o dano já estava feito.

Aeneas fez indagações para saber se a mulher podia restabelecer-se e logo escutou o relato do marido, segundo o qual tudo tinha sido um acidente; sua esposa linguaruda e ingrata o tinha feito enfurecer, mas jamais albergou intenção alguma de lhe machucar.

— E agora o lamento muito — concluiu de forma patética sem deixar de apertar a boina contra o peito.

— Tem que controlar esse mau gênio, Dùghall — observou Aeneas. — Veio a nós quando necessitava um lar, porque seu próprio chefe te expulsou. Foi por algo assim?

Meg falou ante o silêncio do acusado.

— Sua esposa diz que fugiram da cólera de sua própria família.

— E lhe acompanharia pela segunda vez? —perguntou o chefe.

— Diz que não — respondeu Ewan.

— Dizer e fazer são coisas diferentes. — Aeneas se levantou. — Atenderei isto fora.

Enquanto os camponeses empurravam o homem para o exterior, ele ordenou a Jessie que trouxesse uma tira de pano.

— Não tem por que presenciar isto — ofereceu quando viu que Anne se levantava para acompanhá-los.

— Quando você não esteja — insistiu ela — terei que atender eu mesma estas coisas.

— Em minha ausência — corrigiu ele enquanto colocava a espada — MacGillivray se ocuparia destes assuntos.

— Não o vimos nas bodas — lhe recordou ela, sem deixar de lhe seguir.

— Virá quando for necessário — assegurou ele e ficou de lado para lhe dar passagem. Uma vez fora chamou Will, o moço de quadra, para que trouxesse uma correia. Usou-a para ligar a mão direita de Dùghall, que agora choramingava ao poste de amarração junto à porta.

— Segure-o — ordenou a Ewan; não era necessário, pois o camponês mantinha o homem bem preso para lhe impedir a fuga. A seguir, disse a Dùghall:

— De agora em diante não te será tão fácil fazer mal nem conseguir outro lar.

Logo desembainhou a espada, elevou-a e a descarregou com força contra o pulso do homem. O golpe cerceou limpamente a mão amarrada.

O réu caiu para trás, contra Ewan, entre alaridos. O extremo talhado de seu braço emanava sangue. Enquanto Aeneas embainhava sua espada, Jessie se aproximou para enfaixar a ferida, e Will, para recuperar a correia e retirar a mão amputada.

— Se lhe levarem ao ferreiro — disse Aeneas aos habitantes — Donald lhe cauterizará a ferida. Depois cuidem de que abandone nossas terras.

— Agora será um proscrito — observou Anne, enquanto seu marido subia os degraus. A enormidade da ferida era maior que a simples deformidade. Nenhum chefe aceitaria esse homem, pois seu valor como guerreiro ou trabalhador eram nulos; sua falta de honradez, evidente. Enforcá-lo teria sido mais piedoso.

— Quando sua esposa se inteirar não estará tão disposta a lhe seguir — explicou ele.

Os homens já dançavam perto do caramanchão, na borda oposta do loch, onde se tinha disposto o festim para celebrar a união de mãos. Os highlanders não deixavam de dançar, em grupos ou sozinhos, ao som de sua própria música. As danças, rápidas ou lentas, eram complexas e requeriam habilidade; frequentemente, os bailarinos se arriscavam a ficar feridos, se o espetáculo incluía armas. Agora dançavam em exuberante celebração ao compasso das gaitas de fole. Imediatamente convocaram Aeneas para que se unisse, coisa que ele fez, ocupando seu lugar frente ao grupo.

Anne se reuniu com as mulheres para conversar e rir com elas, em tanto observavam os homens que, balançando toneletes e mantas, moviam os pés com a mesma rapidez com que tiravam luz as adagas.

A união de mãos era um antigo costume em desuso para muitos clãs, mas os Macintosh descendiam de antigos sacerdotes celtas e apreciavam aquelas tradições.

Os homens e mulheres que participavam se comprometiam a conviver como marido e mulher durante um ano e um dia. Nesse último dia, se ambos estavam de acordo, casavam-se. Se um deles decidia que não, o vínculo se dava por terminado.

Era um costume mais ignorado que aprovado por sua Igreja.

Quando não havia bodas, entregavam-se à família paterna os meninos concebidos ou nascidos durante a união de mãos assim que os desmamava, mas era a mulher quem decidia. Grávida ou lactante, depois era mais cobiçada por outros pretendentes, pois sua fertilidade estava comprovada.

Ao terminar a dança, entre uma salva de vivas, os casais se alinharam à borda do lago, debaixo das árvores. Uniram-se um após outro, tomando-se mutuamente das mãos. Aeneas usou fitas trançadas para ligá-las de forma folgada enquanto Anne, a seu lado, entregava corn-dollies a cada moça como amuleto de boa sorte.

Esse ano a cerimônia se celebrava com atraso; normalmente seria depois de recolher o feno, que tinha demorado por causa das chuvas e a necessidade imediata de salvar as colheitas ao retornar o sol.

Quando as dez ou doze uniões ficaram efetuadas, as mulheres cantaram uma antiga balada gaélica; suas vozes ressonaram por cima da água. Anne acompanhava o ritmo da melodia com o corpo e Aeneas, em pé atrás dela e com os braços em torno de sua cintura, balançava-se com ela.

Os casais partiram ao término da balada e se perderam entre as árvores em busca de lugares discretos previamente escolhidos, para desfrutar plenamente do sol e do verão. A maioria deles deveria conformar-se com a distração que pudessem achar em uma lotada cabana, onde toda a família compartilhava a única habitação, quando chegassem o frio e as chuvas.

Enquanto os seguia com o olhar, Anne recostou as costas sobre Aeneas, com a cabeça apoiada sob seu queixo. Tinha os braços cruzados sobre os dele e as palmas apoiadas no dorso de suas mãos, com os dedos entrelaçados. O rangido de pegadas entre as árvores se tornou distante. As vozes entusiastas foram se perdendo. Eles passaram um momento assim, desfrutando da tibieza do ar e a ligeira pressão mútua, escutando o zumbido dos insetos, o piar dos pássaros e o suave barulho da água. Aeneas moveu com suavidade o queixo, roçando o cabelo de sua mulher, que inclinou o rosto para lhe olhar.

— Poderíamos fazer o mesmo — insinuou ela.

 

Uma vela branca se agitou sob o sopro do vento, esticando as cordas e o pau, ao girar a botavara. A embarcação procedente de Moidart virou para o Loch nan Uamh, rumo a Borrowdale. A proa se elevou, seguindo o fluxo e deixando atrás da nave uma alargada esteira branca.

Havia caixas de munições empilhadas na coberta dessa embarcação, tripulada por sete homens. Na proa, inclinado para diante, descansava um príncipe alto e esbelto, de finas feições aristocráticas, profundos olhos pardos e pele clara. Vestia segundo a moda cortesã: calções e jaqueta de seda azul, meias brancas, uma fina série de encaixe ao pescoço. Animou-se ao ver diante da embarcação as montanhas verdes tocadas de púrpura.

— L'Écosse, Ou'Sullivan — anunciou. — voltei para o lar.

 

Anne despertou com um pulo, desorientada na luz da primeira hora, e percorreu com o olhar aquela estadia revestida de madeira. Ao recordar, esticou-se sensualmente na cama vazia; enquanto alisava com as pernas os lençóis amassados voltava a repassar mentalmente o ato de amor da noite anterior. O outro travesseiro, ao seu lado, ainda tinha a marca afundada deixada pela cabeça de seu marido. Atraiu-o para si para sepultar o rosto nele e respirar seu aroma. Se ele não voltava logo para o leito, teria que levantar-se e buscá-lo ou lhe agradar ela mesma. Perguntou-se o que faria se ele retornava nesse momento. Faria-se cargo ou quereria olhar? Um estrondo de metal contra metal penetrou no quarto. Era um entrechocar de espadas, e a julgar pelo ruído, os duelistas trocavam golpes com verdadeiro empenho.

Abandonou o leito imediatamente e se cobriu com uma bata antes de abrir a janela e aparecer pelo oco. O medo apanhou seu coração ao ver no pátio de armas Aeneas e MacGillivray fazendo cintilar os aços sob o quente sol de agosto. O combate era veloz, enérgico e perigoso. Aeneas rechaçou o jovem com um tranco, mas MacGillivray voltou a investir imediatamente.

— Espero que isto seja um simples exercício para abrir o apetite — clamou Anne de cima.

Os homens interromperam a troca de estocadas para elevar a vista.

— Antes bem, para dominá-lo — corrigiu Aeneas, deixando às claras o que teria preferido fazer.

MacGillivray investiu outra vez com a espada e ele deteve a folha por cima da cabeça. A causa do movimento, ambos ficaram cara a cara. Olharam-se aos olhos.

— Muito lento — lhe avisou Aeneas.

Este sustentava o punhal na mão esquerda, com a ponta apoiada sob as costelas de seu adversário. O jovem sorriu de orelha a orelha. Os dois puseram-se a rir. MacGillivray se retirou e embainhou a espada.

— Sempre o mesmo — se queixou.

— Te alegre de que estejam no mesmo bando — apontou Anne, cujo marido deslizou o punhal no cinturão e embainhou também a espada. Logo jogou um braço sobre os ombros de MacGillivray.

— Não se preocupe chefezinho — lhe disse com calidez. — Algum dia será.

— Sim — concordou o moço — quando for velho.

E voltaram a rir. Anne lhes sorriu. A vida já era o bastante dura sem que houvesse animosidade entre parentes.

— Não estava em sua casa de Dunmaglas? — perguntou a MacGillivray.

— Sim, mas ontem à noite os MacDonald assaltaram meu gado.

— Estávamos entrando em calor enquanto esperávamos que nos desse sua vênia para um ataque de represália — explicou Aeneas. — Baixa e come conosco.

O equilíbrio de luta de ambos a fez sentir-se rica na verdade enquanto terminava de vestir-se. MacGillivray era valente e audaz; Aeneas, sereno, rápido e de letal precisão. Juntos resultavam invencíveis. Daria-lhes sua permissão para essa incursão de castigo.

Arrebatou do leito conjugal o branco travesseiro e dançou com ele por toda a estadia.

 

O sangue emanava pela incisão recém feita no pescoço da vaca e caía a uma terrina de madeira. A velha Meg o sustentava em uma mão enquanto segurava com a outra, apoiada no lombo do animal, o punhal com que tinha efetuado o corte. A seu lado havia uma forca de lavrador, apoiada contra sua cabana. Um bebê rompeu a chorar atrás dela. Uma jovem mãe o levava bem seguro contra o peito e agasalhado em um xale de tartán. Aproximou-se da cabana vizinha com o sutiã frouxo.

— O que posso fazer? — tocou com uma mão o peito vazio. — Me retirou o leite.

— Traz um pouco de aveia, Cath — indicou Meg, sem abandonar a tarefa. — Te darei sangue para que o mescle com o cereal.

— O menino não poderá comer isso — objetou Cath.

— Não é para o menino, a não ser para ti. — Enquanto a jovem ia por um prato de aveia, aconselhou a voz em grito: — E bebe água, bebe muita água.

A anciã viu com a extremidade do olho como Anne subia a costa com uma pesada cesta coberta pendurada do braço apesar de vigiar com suma atenção a terrina, cada vez mais cheia com o sangue da vaca. A flamejante esposa do chefe caminhou pelo atalho que discorria por diante das cabanas a bom passo, mas antes que houvesse coberto a metade do mesmo, Cath retornou com o prato de aveia e Meg tampou a ferida do animal para logo verter com supremo cuidado o conteúdo da terrina no de sua vizinha enquanto esta removia o cereal. Um ruído de cascos perturbou o silêncio. As duas mulheres levantaram a vista para o lugar de procedência dos mesmos.

Um cavaleiro tinha aparecido por trás das cabanas e percorria o mesmo atalho que Anne, mas em direção inversa, para ela. Era obviamente estrangeiro, a julgar por sua roupa. Alguns metros mais atrás caminhava uma mulher, levando seu próprio cavalo pelo arreio.

Anne saudou com uma inclinação de cabeça o homem, que passou a seu lado sem sequer olhá-la; ao chegar junto à suarenta mulher se deteve e tirou um frasco da cesta.

— Uisge?* — ofereceu-lhe. Imediatamente caiu na conta de que a outra não lhe entenderia e provou sorte com o latim: — Aqua?

— Helen! —repreendeu-a o homem. Sua voz e seu idioma revelaram que era inglês. — Não beba essa porcaria!

— É só água — explicou Anne, utilizando o idioma do cavaleiro, agora que sabia qual era.

Voltou e se removeu na cadeira com o látego em alto. Anne depositou a cesta a seus pés, pronta para proteger-se. Frente às cabanas, a velha Meg deixou a terrina de sangue na erva e se apressou a jogar mão à forca. O homem descarregou o flagelo; não albergava intenção de açoitar Anne, mas sim de arrancar o frasco das mãos de sua companheira.

— Hei-te dito que não beba!

Anne apanhou o extremo da vara e o reteve no momento da descida a fim de evitar que golpeasse o objetivo. Nesse momento, Meg já corria pelo caminho em direção a lady Macintosh, seguida de perto por Cath, apesar de mover-se entorpecida pelo bebê. Anne fulminou com os olhos o homem montado.

— Não se açoita uma criada por beber água — o censurou.

— Que criada? — resmungou o homem, incrédulo. — É minha esposa!

Ela soltou o látego, horrorizada ante tal falta de vergonha. Meg chegou a seu lado. A inglesa devolveu o recipiente a Anne.

—Já está bem — disse. — Obrigado.

A idosa camponesa se aproximou do cavalo da mulher para lhe apalpar a pata traseira com mãos peritas. O homem se removia na cadeira, obviamente incomodado.

— Andando, Helen — insistiu. — Essas tribos do norte são selvagens.

Quando Cath se uniu ao grupo, Meg afastou a vista do animal que estava examinando.

— Tha e crùbach* — sentenciou em gaélico. — Está coxo.

Anne agarrou os arreios do homem.

— Entre nós, os selvagens, a esposa não vai a pé se o marido vai montado.

— Solta meu cavalo — ordenou o homem. — Estou ao serviço de sua majestade o rei Jorge.

— Ah, sim, de verdade?

Ela sorria, sem soltar os arreios.

O homem fez gesto de jogar mão a sua pistola, mas reagiu muito tarde e tinha a ponta da forca da velha Meg bem apontada ao centro das tripas antes de poder tocar a culatra da arma. Resultava divertido que queria impressionar a alguém com sua lealdade ao usurpador em um território tão setentrional.

— Tem algum nome, lacaio do rei Jorge? — perguntou Anne.

— James Ray — espetou ele. — Fariam bem em recordar esse nome.

Nem a cortesia nem o bom ânimo da moça se alteraram o mínimo pelas más maneiras do estrangeiro. Anne sentia uma grande curiosidade. Deviam ter viajado muito, pois os ingleses eram escassos nessa zona.

— E você, querida, como se chama? — perguntou à mulher.

— Senhora de James Ray — se intrometeu o homem. — Óbvio!

— Levam o mesmo nome? — Anne, com o cenho franzido, continuou dirigindo-se à mulher. — E a gente não lhes crê irmãos?

— Pois não. Que nome pode levar uma mulher casada que não seja o de seu marido?

— Pareceu-me ter ouvido que lhe chamava Helen.

— Em efeito —confirmou a inglesa — esse é meu nome, mas só me chamaria senhora Helen Ray depois de enviuvar.

— Esperemos, então, que isso aconteça logo — repôs Anne com um sorriso nos lábios, e traduziu a piada para Meg e Cath.

As três montanhesas riram baixo, mas, embora a forasteira se apressasse a dissimular seu sorriso, o marido se ofendeu.

Anne estudou o inglês. Não parecia ser muito consciente de sua situação, empenhado como estava em afirmar sua autoridade. Teria bastado que Meg apenas movesse seu fibroso pulso para que as duas pontas da forquilha lhe tirassem o ar das tripas.

— E vocês podem me denominar Anne Farquharson, lady Macintosh —lhe replicou — um nome que bem prefeririam esquecer.

— Lady! —bufou Ray. — O duvido muito.

— Conviria-lhe cuidar as maneiras enquanto esteja em nossas terras — informou ela ao estrangeiro. — E agora, se incomodaria desmontar?

A pergunta era uma amostra de cortesia respaldada por frios aços, razão pela qual Ray jogou pé a terra em questão de segundos; sua esposa se mostrou relutante a montar em seu lugar.

— Deveria obedecer a meu marido — disse, lhe dando um olhar nervoso.

— Mas mulher...! Por quê? — inquiriu Anne, assombrada.

— Porque é minha obrigação. Sem dúvida, você pronunciou os mesmos votos.

— Nenhuma esposa escocesa prometeria semelhante coisa. Nossos homens nos tomariam por idiotas. — Anne se voltou para as camponesas. — Obedecer ao marido...? — inquiriu.

Elas se encolheram de ombros, perplexas; a ideia era muito estranha para tê-la em conta. A seguir, Helen foi obrigada a montar no cavalo são a ponta de faca.

— Procura não esquecer quem é — lhe disse Anne; logo entregou a Ray os arreios do cavalo manco. — Agora a coisa começa a me parecer mais em seu lugar. Podem continuar a viagem, mas lhe advirto: os vigiará até que cheguem a Invernes. E que tenham bom dia.

Helen Ray açulou o cavalo de seu marido; sua expressão era de estranheza cuidadosamente controlada. Seu marido a seguiu, levando do cabresto a montaria. Anne, Meg e Cath lhes seguiram com a vista.

— Sasannaich!*— murmurou Cath, desgostada por esses intrusos.

— Pagãos! — soltou Meg, e cuspiu ao caminho.

Anne voltou a guardar o punhal no cinturão com grande satisfação. Visitava sozinha essas cabanas pela primeira vez e já ganhou a aprovação das mulheres. Recolheu a cesta.

— Aqui há um pouco de comida que não podemos aproveitar — anunciou enquanto se encaminhavam para as casas de torrão. — O clã é mais que generoso.

— Acaso os Farquharson não honram ao seu chefe? —espetou-lhe Meg.

A frágil camaradagem criada entre elas estava de repente em perigo.

Anne observou a besta amarrada, as cicatrizes do pescoço e a terrina com sangue afirmado contra um arbusto de erva. Essa gente era pobre, mas orgulhosos. Um clã demonstrava sua posição social pela maneira de prover a seu chefe. Devolver o recebido podia considerar-se como insulto.

— Honram-no, sim — disse, com cautela. — E eles também passariam privações por não faltar a essa honra.

Meg assentiu, satisfeita com o elogio.

— É que você não gosta do que há na cesta?

— Claro que sim. — Anne sorriu. — Nos provê tão bem que logo me acreditarão grávida, mas não está bem desperdiçar os bens. Tem que consumir esta carne antes que se estrague.

As duas camponesas refletiram menos atentas a suas próprias necessidades que às alheias.

— O velho Tom está doente. É o da última cabana — insinuou Cath.

— E tem um monte de netos — acrescentou Meg.

A suas costas se elevou um tamborilar de ferraduras. As três se giraram a toda pressa. Esperavam ver um inglês iracundo carregando contra elas pistola em mão, mas quem se aproximava pela colina era MacGillivray, trazendo atrás de si uma vaca negra que partia pesadamente, atada com uma corda.

— De modo que agora os MacGillivray tocam suas vacas por aqui — brincou Anne quando ele reprimiu a montaria. — Mal foi com o roubo de gado, Alexander, se só trouxer um animal.

— O resto já está acima, na casa — explicou ele. — Com esta cabeça de gado cobramos os interesses de MacDonald. — Deu a corda da vaca a Cath. — Envia isso a Aeneas. Necessita leite.

A jovem lhe iluminaram os olhos. Meg já estava percorrendo o animal com dedos experientes. MacGillivray ofereceu a Anne levá-la a Moy na garupa.

— Anda— insistiu Cath ao ver que ela vacilava. — Eu me encarregarei de que a comida vá aonde faça falta.

Anne lhe entregou a cesta e se agarrou ao braço que MacGillivray lhe dava para subi-la à garupa. O ruivo olhou à anciã, que seguia examinando a vaca.

— Só o leite, sim? — avisou-a.

Logo partiu a trote com os braços de Anne em volta de sua cintura. Meg desviou para sua companheira um olhar de malícia.

— Que não — exclamou a moça, rechaçando a insinuação. — Que isso se esfriou de tudo quando ela se casou com o Macintosh.

— Que se esfriou? — Meg cacarejou baixo, e bastante picara. — Pois me traga isso que o esquento!

 

Durante a comida de meio-dia, no salão de Moy Hall, Aeneas e MacGillivray entretiveram Anne com o relato da incursão.

— Ainda estavam celebrando o assalto a Alexander, bêbados de êxito — explicou Aeneas.

Inverter a situação tinha sido um prazer para ele. O abigeato era um meio de vida. As peludas bestas das Terras Altas eram originárias dessas colinas, mas o gado de pelo curto se roubava mais no sul da Escócia ou na Inglaterra; depois de engordá-lo nas pradarias, lhe voltava a vender aos sasannaich* das Terras Baixas, em encontros anuais. Era quase um acordo. Os preços que os sulistas pagavam pela gorda carne dos clãs refletiam o peso agregado, mas não o da besta original. Por onde, desembaraçar um vizinho de uma parte de seu gado não era exatamente um roubo; mesmo assim se considerava questão de honra recuperar o furtado.

— Os guardas roncavam entre as urzes — explicou MacGillivray. — Aeneas nos fez entrar por diante de seus narizes; logo tornamos a sair tocando o gado.

— Não contamos as cabeças a não ser quando já estávamos bem longe —assinalou lorde Macintosh. — E então este — prosseguiu, dando uma palmada ao ombro de MacGillivray — me diz que de Dunmaglas só se levaram dez.

— E quantas cabeças de gado trouxe? — perguntou Anne.

— O dobro. — Aeneas se pôs a rir. — Quando MacDonald contar seu gado começará a arranhar a cabeça; não entenderá por que seu gado parece tão escasso, justo quando acaba de aumentá-lo.

— Demorará toda uma semana em descobri-lo— gargalhou MacGillivray. — Assim que chegar a dez não pode seguir contando, pois fica sem dedos!

Aeneas jogou mais cerveja nos copos.

— Agora todos estamos melhor — disse. — O gado de MacDonald terá mais erva com que engordar. O teu aumentou e nós temos cinco bestas mais. Bom trabalho para uma só manhã. — Elevou seu copo. — À saúde de MacDonald. Há algo mais que poderíamos fazer para compensar as colheitas perdidas — refletiu Aeneas. — Vender parte da lã armazenada. — Fez uma pausa. — Sem que se saiba, claro.

Ao inteirar-se de que os Farquharson, seguindo os conselhos de Anne, tinham tosquiado todas suas ovelhas, eles tinham feito o mesmo.

— Levamo-la às escondidas aos navios? — inquiriu MacGillivray, captando a ideia. — Não precisará me pedir isso duas vezes.

— E agora a Guarda Negra pode olhar para outro lado — acrescentou Anne, seca.

Aeneas elevou seu copo para ela.

— É estupendo ter uma esposa com ideias tão impressionantes.

A porta da cozinha se abriu com estrépito e a jovem Jessie entrou a toda velocidade.

— Aeneas, temos problemas — anunciou.

Ele se levantou no momento, empurrando a cadeira para trás.

— O que acontece? Os MacDonald?

— Não, não — disse a jovenzinha. — É a viúva.

Will, o moço de quadra, cruzou a porta principal levando meio em velo à exausta mulher. Aeneas e MacGillivray correram para ajudá-lo. Depois de liberar o moço de sua carga, levaram a tia de Aeneas a uma cadeira.

— Fez galopar esse cavalo desde Invernes — se queixou Will.

Anne encheu um copo de cerveja e o aproximou dos lábios da viúva.

— Toma — insistiu. — Bebe.

A mulher bebeu o líquido a grandes goles.

— O que é o que te tem feito vir com tanta pressa? — perguntou Aeneas.

— O príncipe — ofegou a extenuada mulher.

— Mas se seus navios foram rechaçados! — exclamou seu sobrinho. — Lhe têm feito prisioneiro?

— Não. — A tia sacudiu a cabeça  . — veio. Está aqui.

— Aqui? — exclamou Anne. ia olhar em redor, mas se conteve . — Onde?

— Desembarcou no Borrowdale e agora se encaminha para o Glenfinnan.

— Está aqui? — MacGillivray franziu o sobrecenho, como se isso fora impossível.

A viúva assentiu com a cabeça.

— Sim. — Já tinha recuperado o fôlego e sua voz soava firme. — Por fim veio.

Fez-se um silêncio absoluto enquanto os estupefatos presentes assimilavam a magnitude da notícia.

— Agora poderemos nos liberar — gritou. E levantou em velo a Anne para fazê-la girar a seu redor . — E viver a nosso desejo!

Lhe apertou os braços assim que a teve solto.

— veio! — chiou. Logo se voltou para seu marido, cheia de entusiasmo. — veio, Aeneas. Na verdade está aqui! OH, Jessie — disse à garota, que o olhava tudo com olhos dilatados. — Querem trazer vinho e taças? Isto terá que celebrá-lo.

Enquanto a moça saía precipitadamente, Aeneas aproximou uma cadeira a de sua tia e tomou assento.

— Acompanha-lhe o exército francês?

Esta vez ela demorou mais em sacudir a cabeça.

— Diz-se que traz sete homens...

— Seachdnar!* — repetiu ele, horrorizado. — Sete homens!  —  E algumas arma e munições.

Aeneas se levantou, empurrando a cadeira para trás, com tanta fúria que caiu às pranchas do chão com estrondo.

— Os clãs não se elevarão por sete homens!

— Elevarão-se por ele — asseverou Anne.

— Muito me temo que sim — confirmou a viúva.

— Brindaremos-lhe um exército — afirmou MacGillivray, já impaciente por partir. — Seria melhor que nos déssemos pressa em convocar ao clã Chatton, Aeneas; se não, MacPherson poderia aproveitar a oportunidade para te roubar o mando. Não te perdoou o que lhe escolhessem chefe.

Aeneas se aproximou da janela para olhar para fora, de costas a eles. Anne sentiu que se desvanecia aquela tremenda quebra de onda de júbilo. Aproximou-se para lhe apoiar uma mão no ombro. Estava tenso.

— Aeneas?

Ele se voltou para olhá-la aos olhos, mas nos seus não havia calidez nem entusiasmo: só uma fria certeza. Resultaram-lhe estranhos.

— Não convocarei ao clã — anunciou.

— Não combateremos? — Anne não compreendeu. Não era possível que ele tivesse querido dizer isso. — Mas é preciso. Acordamos nos levantar em armas, que o faríamos quando ele viesse.

— Umas quantas palavras são fáceis de dizer.

— Como as que nos unem? — acusou ela.

— Não, claro que não!

— É nossa causa a que ele deve liderar.

— Sem a intervenção francesa, o governo a esmagará em seus inícios. Não arriscarei a nossa gente por sete homens. Esperaremos a ver a decisão dos outros clãs.

— Já esperamos bastante — lhe recordou MacGillivray. — Nosso povo morre de paciência!

— Ele veio sozinho — reiterou Aeneas. — E Inglaterra não renunciará a Escócia de qualquer jeito. Não te equivoque Alexander: se isto começar, não nos podemos permitir perder.

— Já começou — disse a viúva. — Lochiel enviou a cruz ardente desde o Achnacarry. Os Cameron já se puseram em marcha. Assim é como o soube.

— Vê-o? — Anne apoiou uma mão no braço de seu marido, para lhe suplicar. — Deveríamos nos unir todos.

— Com os Cameron? — objetou ele. — Isso sim que não. —Os dois clãs estavam inimizados fazia séculos. — Lochiel é um velho tolo e romântico.

Isso foi mais do que o vivo gênio de MacGillivray podia suportar.

— Mas é leal — replicou, enquanto recolhia bruscamente o sgian dhubh* de folha curta que tinha estado utilizando para comer. — O que te corre pelas veias não é sangue, homem, a não ser água! —E cravou profundamente a faca na mesa.

Aeneas tirou seu atravessado imediatamente.

— Arrumaremos isto fora — o desafiou.

Sua tia se levantou de um salto para interpor-se.

— Já está arrumado — repôs com energia. Embora talvez se referisse à tácita rivalidade pela Anne, e apelava à lealdade de MacGillivray para acalmá-lo. — Quando o clã Chatton escolheu ao Aeneas, não escolhemos só a um braço forte, mas também a um guerreiro de cabeça fria. Naquele  tempo queria um chefe assim, Alexander. Falhará na primeira prova de seu vínculo?

 O rei estava por cima do chefe, e MacGillivray podia antepor impunemente ao primeiro, mas esse príncipe era ainda algo difuso, e o rei Jacobo, um conceito vago e distante. Em troca, Aeneas era de carne e osso; estava ali, apoiando e defendendo aos seus e era ele quem tinha dirigido a incursão daquela mesma manhã para beneficiar aos MacGillivray.

— Desde que aprendi a caminhar, Aeneas — disse —, você foste à cabeça. Fá-lo agora também.

Seu chefe voltou a embainhar o punhal.

— É o que trato de fazer — disse. — Qualquer parvo pode combater, mas para ganhar requer inteligência. Falarei com os outros chefes.

O ruivo, que não teria baixado a cabeça ante nenhum outro homem, retirou a mão do pomo de sua adaga.

— Em tal caso, acompanharei-te.

— Nossos chefes se elevarão — profetizou Anne. — Faz muito tempo que esperam isto.

Seu marido a sujeitou com suavidade, pedindo paciência.

— Pedirei-lhes que esperem à chegada dos franceses — explicou. Logo saiu com o MacGillivray.

Anne os viu partir, entristecida e insegura. Voltou-se para a viúva.

— Mas o que passará se os franceses esperam a que nos mobilizemos?

— Umas quantas semanas mais não farão nenhum dano — lhe assegurou a tia.

Jessie entrou no comilão, pressurosa, trazendo vinho e taças. Seu entusiasmo vacilou ao ver que os homens já não estavam e que o humor geral tinha trocado.

— Já não vamos celebrar? — perguntou.

— Não importa. — A tia a liberou da bandeja. — Sempre há tempo para beber.

 

Um temor tinha começado a jogar raízes na fibra mais funda de Anne. Não desejava admitir esse receio nem ante si mesmo, mas se tinha casado com um desconhecido e agora descobria nele aspectos que não teria podido adivinhar. Aeneas não se parecia com o MacGillivray, um homem franco e fácil de interpretar; ela sempre previa o que ia fazer e inclusive às vezes sabia antes que ele mesmo o que ia dizer. Aeneas, em troca, era sinuoso e tinha curvas insuspeitadas. O que agora saía à superfície não contribuía com prazer junto com a surpresa. Ela não estava segura de suas alianças nem do que lhe era valioso; essa incerteza a punha em perigo.

Para não pensar muito nisso recorreu a uma frágil convicção: seu marido retornaria castigado, convencido, entusiasmado. Os outros chefes lhe fariam entrar em razão. Fez que Will preparasse as quatro cruzes que deveriam sair aos caminhos para convocar ao clã. Ordenou duplicar o guarda sobre o gado, se por acaso MacDonald tratava de aproveitar a ausência do Aeneas para recuperar suas bestas e se manteve ocupada com os assuntos do imóvel. Outorgou mais direitos de pasto a um casal anciã, que vivia no limite do Drumossie, e assim se inteirou de outras notícias: o príncipe tinha içado seu estandarte no Glenfinnan e tinha feito seu o compromisso paterno de devolver a independência a Escócia assim que rodeasse a coroa. Da região de Angus, Margaret Johnstone e seu flamejante marido, lorde Ogilvie, uniram-se ao Lochiel pela causa. Os chefes MacDonald tinham esquecido o roubo de gado e se puseram em marcha à frente dos seus.

Os territórios circundantes eram um ervedeiro de rumores. Um exército do governo partia para o norte para reforçar ao do Invernes. Dos esconderijos saíam armas que levavam anos sem ver a luz do dia; as afiava e as polia até as deixar resplandecentes. Vários chefes acenderam a cruz ardente e enviaram com ela a seus mensageiros para convocar ao clã às armas.

Outros muitos não o fizeram, como seu marido, mas mesmo assim ele não retornou ao lar. Anne entretinha à viúva, que tinha ficado para lhe fazer companhia. Quando se cansou de estar na casa ensinou ao Jessie a picar carne de lebre com cebola e nabo, a fim de preparar um caldo espesso e nutritivo.

Ao dia seguinte ficou em marcha com um frasco desse caldo, para visitar as cabanas do noroeste. Embora o mundo girasse a ponto para a rebelião em torno deles, Tom, aquele velho doente, precisaria alimentar-se bem.

No meio da amanhã coroou a colina da qual podia ver as cabanas. Cath mantinha pego ao peito ao bebê, agasalhado no xale de tartán, enquanto sujeitava a vaca do MacDonald para que a velha Meg, sentada em um tamborete junto a sua garupa, extraíra leite de suas tetas inchadas. Anne esperava ser bem-vinda, daí sua surpresa ao observar a reação das mulheres assim que a viram vir: Cath atou a corda ao poste de amarração e se afastou apressadamente entre as moradias e a anciã vigiou sua aproximação com a cabeça apoiada de flanco contra o pele negro da vaca; suas mãos trabalhavam ritmicamente das tetas. Sua expressão era velada, suspicaz.

— Trouxe caldo de carne para o ancião doente — anunciou Anne.

Cessou o vaio do leite contra o cubo de madeira. A velha Meg se tornou atrás no banquinho e secou as mãos nas toscas saias.

— Cath foi avisar de sua visita.

— adivinhastes que vinha?

Meg encolheu de ombros.

— Ninguém mais aceita a caridade aqui.

— Não é caridade — corrigiu Anne. — Cada um cuida dos outros.

— Pode ser.

— Como se encontra a mulher ferida com uma enxada para a turfa?

— Retornou à casa de sua família faz uma semana. — A anciã continuou ordenhando. — É a última daquele extremo — disse. — Já lhe estarão esperando.

Anne não saía de seu assombro ante semelhante mudança de atitude enquanto passava por diante das cabanas de torrão. Não se via ninguém mais. Muitos estariam nos campos, atendendo os semeados ou as bestas, compilando turfa ou lenha para as fogueiras de inverno; mesmo assim cabia esperar que houvesse mulheres e meninos ocupados em fiar lã, bater manteiga ou fazer queijo.

Ao final, acabou vendo com a extremidade do olho o movimento fugaz de um tornozelo e uma saia no espaço livre entre duas moradias. Quem quer que fosse estava evitando a Anne; ia em direção oposta e não queria ser vista. Enquanto Aeneas vacilava, sua gente não sabia a que ater-se. Todos desejavam elevar-se em armas, disso não cabia dúvida alguma, mas igual à sublevação necessitava a liderança do príncipe, aquela gente necessitava o de seu chefe. Talvez pensavam que Anne tinha influenciado em sua decisão de esperar. Obviamente ia demorar mais do previsto em conseguir ser aceita.

Quando chegou à última cabana, Cath estava saindo. Fez-lhe um gesto afirmativo para lhe indicar que podia entrar, mas não disse uma palavra. Anne agachou a cabeça para franquear aquele vão baixo, mais deprimida que ao sair de casa.

Desatou-se uma revoada de atividade assim que ela desapareceu da vista. Meg deixou de ordenhar, ficou em pé de um salto e fez gestos à pessoa invisível, oculta depois das cabanas, de onde saiu uma mulher abraçada a um moço. Meg interpôs o corpo para escondê-los no caso de saía Anne e os fez entrar em sua própria choça; depois de fechar bem a porta, quase sem ter feito pausa alguma em seus movimentos, voltou para a banqueta de ordenha e continuou com sua tarefa como se não tivesse ocorrido nada.

Dentro da penumbrosa cabana do ancião, Anne esquentava o caldo em uma panela, sobre o fogo de turfa. O velho tossia, recostado em seu leito de samambaias.

— Trouxe-te sopa de lebre, Tom — disse ela. Atrás do jergón, duas criaturas sujas, escondidas, olhavam-na com grandes olhos encantados. As duas eram meninas, embora nessa penumbra e dada sua curta idade não resultava fácil sabê-lo.

— É uma princesa — informou a maior à pequena.

Anne, sorridente, explicou-lhes quem era da maneira acostumada: com seu próprio nome, seguido de seu título e o de seu marido, tal como se tinha apresentado ao James Ray durante sua visita anterior.

— Não, só sou esposa de seu chefe — explicou, enquanto enchia uma terrina de sopa fumegante. — E talvez haja nesta panela caldo suficiente para três.

Ajoelhou-se e, depois de revolver o caldo com a colher de corno, provou a temperatura se por acaso estivesse muito quente; logo aproximou a colher aos lábios trêmulos do velho: tragou com gula, pois não tinha perdido o apetite. Nesse momento, a porta da cabana se abriu detrás dela e entrou um homem loiro e corpulento a quem reconheceu imediatamente. Era o camponês que se havia oposto o primeiro quando Aeneas pediu que enviassem a seus filhos ao Guarda Negro, o mesmo que tinha segurado o brutal Dùghall enquanto Aeneas lhe cortava a mão.

— Ewan MacCay, lady Macintosh — se apresentou. — Bem-vinda a minha casa. Como está meu pai?

— Vivo — respondeu Anne. Logo assinalou com a cabeça às meninas. — Se fizer que a maior suba à casa grande cada três dias, Jessie se encarregará de lhe enviar sempre caldo recém feito.

— Enviarei-a — assegurou Ewan. — Obrigado por sua amabilidade.

No exterior relinchou um cavalo e se levantaram gritos de alarme, vozes iradas e chiados de medo. O homem girou para a porta enquanto Anne deixava a terrina em mãos da maior das meninas.

— lhe dê isto a seu avô — pediu antes de seguir ao Ewan ao exterior.

A luz a cegou ao sair, mas recuperou a vista ao cabo de um momento, a tempo de ver um grupo do Guarda Negro ao redor da cabana do Meg. Dois soldados sujeitavam a um guri: o filho maior do Ewan, o voluntário, e lhe levavam a rastros para o poste onde Meg estava acostumado a amarrar a vaca para sangrá-la. Desataram e afugentaram a vaca leiteira enquanto seus companheiros continham ao Meg e à mãe do moço. Ambas lutavam e a mãe não deixava de pronunciar a gritos o nome de seu filho.

— Calum! Calum! Ewan agarraram Calum!

O interpelado corria como um possesso para salvar a seu filho, por isso tinha avantajado muito a Anne. O oficial ao mando fez girar a seus arreios; o nobre bruto lançou um relincho ante o cruel puxão do bocado.

— Detenham esse homem — vociferou.

A ordem dada em inglês soou com contundência e teve o efeito de uma foice: cortou de raiz os gritos em gaélico.

Ewan se precipitou para o círculo de soldados, mas lhe tombaram de uma coronhada de mosquete na cabeça. Anne correu através da brecha que ele tinha aberto e saltou por cima de seu corpo prostrado. Já junto ao apavorado moço, rodeou-o com os braços, apartando as mãos dos soldados que lhe seguravam.

— O que fazem? — gritou. — É só um moço. Deixem em paz!

Calum jogou os braços à cintura e cruzou as mãos com força, para que não fora fácil arrancar o dela. Era a esposa de seu chefe; estaria a salvo enquanto a tivesse ao seu lado. Ninguém se atreveria a lhe pôr a mão em cima.

— Fugimos — choramingou. — Nos foram obrigar a combater contra o príncipe.

— Não, nada disso. Cha dèan iad sem* — O tranquilizou ela, estreitando-o pelos ombros trêmulos, com o queixo apoiado em sua cabeça. — Só seu chefe pode te indicar o que fazer, e ele não te pedirá isso.

Os soldados lhes tinham rodeado, mas emprestavam mais atenção ao exterior do círculo e miravam aos aldeãos conforme foram saindo de suas moradias. O tenente montado guiou a seu cavalo até o interior do círculo. Era James Ray, o inglês ao que ela tinha frustrado algumas semanas atrás.

— Soltem ao desertor — ordenou a Arme.

Estreitou-lhe com mais força.

— É só um menino assustado — repôs. — E aqui não têm autoridade alguma.

Ray desmontou e, depois de extrair uma pistola da cadeira, partiu para ela.

— Será seu chefe quem julga sua desobediência — insistiu Anne.

Ray reagiu sem vacilar: apoiou a pistola contra a frente do moço e apertou o gatilho. A explosão resultou ensurdecedora. A cabeça do menino estalou por detrás; pela abertura saíram a fervuras sangre e substância cinza, empapando a cara, o pescoço e o ombro de Anne, que sustentou entre os braços o corpo do moço, ainda quente, mas já morto, um peso excessivo para que ela pudesse sustentá-lo. Os aldeãos lançaram um grito de horror. A mãe do moço proferiu um alarido e se desprendeu de quem a retinha para cruzar à carreira o prado, enlouquecida pela dor, onde jazia seu filho morto, pois a Anne lhe tinha escorrido entre os braços.

O oficial montou de novo e extraiu uma segunda pistola da cadeira. Aponto e disparou sem pestanejar. A bala alcançou à desesperada mulher em pleno peito, no momento em que chegava junto a seu filho; seu corpo caiu sobre o cadáver. Anne, paralisada pelo espanto, olhava ao Ray com a boca aberta; o sangue lhe cobria as bochechas, gotejava entre seus seios e manchava de vermelho o vestido.

— Teria seguido criando traidores — sentenciou Ray antes de voltar garupas; ato seguido chamou a seus homens. — Vamos, aqui já terminamos. Ficam outros por caçar antes que escureça;

E dito isso, partiu para trote. Os soldados correram atrás dele.

Avançaram então os dez ou doze camponeses que antes se mantiveram invisíveis para a Anne; uns proferiam gemidos a causa do horror e a impressão; outros iam com os olhos banhados em lágrimas. Desenredaram com doçura os corpos entrelaçados de mãe e filho para logo lhes pôr bem a roupa e as extremidades a fim de que estivessem apresentáveis. Um homem se encarregou de atender ao Ewan, que ao fim reagiu depois do golpe recebido na cabeça. Algumas vozes perguntaram a Anne se sentia bem, mas ela apenas se era capaz de ver ninguém. Foram vários quem foi a examiná-la se por acaso estava ferida e logo lhe tiraram da roupa os miolos pulverizados; ofereceram-lhe atenção e afeto, mas quase não os sentiu. Não era a primeira vez que via matar a alguém, mas nunca antes com tanta brutalidade, e jamais a uma mãe e a seu filho, as pessoas mais entesouradas e protegidas de qualquer clã. Não podia falar nem sentir nem mover-se.

A chegada de novos cavalos soou como o distante bater de tambores no ar. Um momento depois Aeneas estava frente a ela, lhe tocando o cabelo, a cara, os ombros, o peito.

— Está bem? Está ferida? Anne, por que não me fala? —Sua voz era como um eco ouvido através da água.

— Estou bem. —Anne ouviu sua própria resposta.

— Dista muito de estar bem — disse ele —, mas o sangue que te cobre não é tua, graças a Deus. —Já seguro de que ela estava viva, sua ira surgiu a gritos. — Gonadh*. Malditos sejam, o diabo os leve! — Logo começou a dar ordens. Ao MacGillivray —: Leva a minha esposa a casa. — Aos camponeses —: Ajudem a levantar-se. — Ao Ewan —: Vê devagar, ou se não, perderemos a ti também.

Anne se achava sobre um cavalo uns segundos depois. MacGillivray a situou diante dele e a envolveu com os braços por detrás para sujeitá-la antes de tomar as rédeas e dirigir-se ao trote em direção ao Moy Hall. A suas costas ainda ressonava a voz colérica do Aeneas que, furioso pelo dano causado a seu povo, indicava entre gritos e palavras tranquilizadoras o que fazer com os cadáveres.

A tia se fez cargo de Anne assim que chegaram ao Moy, ajudou-a a subir e a trocar-se, enquanto Jessie ia em busca de toalhas, uma terrina e uma bacia de água quente. Anne, em camisa, inclinou-se sobre a bacia. A água faiscava. Molhou-se a cara com ela. A água se tingiu de sangue. Uma e outra vez jogou o líquido contra a cara. A cor vermelha não fez a não ser tornar-se mais intenso.

Inundou-se na intensa calidez do banho, deixando cair para trás a cabeça a fim de umedecer o cabelo e limpá-la sangue, mas não conseguia sentir-se limpa. Ela tinha ajudado para que o moço servisse no Guarda Negro e logo não tinha sabido protegê-lo nas cabanas. Agora Aeneas ia ter que convocar ao clã para ir à guerra, mas ela... ela jamais voltaria a sentir-se limpa.

Aeneas desmontou frente ao acampamento do comandante do Fort George, aonde ia em companhia de doze moços engalanados com o uniforme do Guarda Negro. Todos estavam muito receosos depois de haver-se informado da execução do Calum. Talvez agora o chefe os estivesse entregando para que corressem a mesma sorte.

— Basta com que fiquem aqui — anunciou Aeneas. — Poderão fazê-lo esta vez?

Os moços assentiram, mas o medo era evidente.

— Sejam fortes — recomendou ele. — A minha volta lhes direi que preço deveremos pagar, mas lhes prometo isso: não serão suas vidas.

Aquilo era prometer muito, pois nos últimos tempos tinha chegado ao forte outro exército britânico, às ordens de um comandante inglês, o qual podia trocar as coisas. A guarnição regular era escocesa, incluído lorde Louden, sua comandante. O conde do Louden não era tolo: ele saberia respeitar o direito dos chefes a ditar justiça dentro de seu próprio clã.

No interior da praça fortificada, Forbes defendia sua posição como juiz supremo da Escócia; a paz era assunto dele e tinha persuadido a vários chefes para que se mantivessem neutros se produzia o conflito temido. Posto que não era dos que deixam acontecer a oportunidade de impor-se sobre outros, já tinha os papéis preparados de posse. O outro militar presente na estadia não era Louden, a não ser um general inglês desconhecido, corado e gordinho, alguém que gostava da comida e o vinho do porto. Além disso, era extremamente cortês: ficou de pé para saudar o Aeneas e lhe estreitar a mão.

— Sou o general Monopolize, chefe Macintosh — se apresentou. — John Monopolize. Temo-me que lorde Louden saiu. Possivelmente eu possa lhes ajudar.

Aeneas sentiu desejos de girar sobre seus pés nada mais ouvir o nome do inglês. O comandante de uma força enviada a sufocar aos jacobitas não teria reparo algum em ordenar pelotão de fuzilamento para os desertores do Guarda Negro, mas uma saída abrupta possivelmente lhes obrigasse a combater para escapar. E seus moços não podiam medir-se com guardas armados com mosquetes.

— Pois então não lhes incomodarei — disse com serenidade, como se não tivesse o menor problema . — Retornaremos quando lorde Louden esteja disponível.

— Nada disso, nada disso — protestou Monopolize. — Não duvido que você e eu podemos resolver este assunto. Economizaste-nos muitas dificuldades ao reunir a estes moços.

— São de meu clã — esclareceu Aeneas. — Sua deserção é minha desonra.

— Vá, é muito amável ao considerar o desse modo. Agora bem, o assunto é o que faremos a respeito.

— Duvido que isto resolva com mais disparos — interveio Forbes.

— Talvez não, talvez não — reconheceu Monopolize, conciliador, enquanto voltava a sentar-se. — Ninguém quer suscitar mais respaldos para o príncipe pretendente, mas a deserção é assunto sério. Gosta de tomar um porto?

Pergunta-a estava dirigida ao Aeneas, quem assentiu e tomou assento em frente. Desejava manter uma fachada de neutralidade e ganhar tempo. Decidiu a melhor estratégia para jogar suas cartas enquanto Monopolize lhe servia uma taça.

— Talvez o problema não está nos fatos, a não ser nas palavras —insinuou. — A pena de morte para os desertores me parece justa. Sobre isso não tenho nada que dizer.

— Alegra-me sabê-lo. — O general empurrou para ele um generoso copo de saboroso vinho.

— Mas estes moços não estavam no campo de batalha — prosseguiu Aeneas . — Não são covardes que tenham fugido sob o fogo.

— É verdade — assentiu Monopolize. — A ausência sem permissão é uma questão bem distinta, sim, muito diferente. É isso o que afirmam?

— E acaso não é certo? — perguntou Aeneas. — O país é um ervedeiro de rumores e os meninos estavam muito confusos. Não fizeram mais que voltar para casa para perguntar o que deviam fazer.

— No exército de sua majestade — precisou Monopolize — são nossos oficiais superiores quem o decide.

— Com seu perdão, senhor, estes são recrutas voluntários e montanheses das Terras Altas. Sua lealdade é acima de tudo para o clã. E ali o superior sou eu. Se eles emprestarem serviço no Guarda Negro é em troca do que devia pagar nosso clã. Tenho direito a rescindi-lo.

— Esses homens emprestam serviço em pago a suas dívidas — recordou Forbes, brandindo uns documentos. — Seu compromisso está a pagar de novo e sua garantia é insegura. — Trocou de enfoque. — Agora bem, talvez possamos resolver isto entre cavalheiros se lhes advierem a admitir que a cessão da terra é a melhor solução. Compreendem-no, sem dúvida. — Pôs os papéis no escritório de Monopolize, frente a Aeneas . — Basta uma simples assinatura para deixar resolvido este assunto tão espinhoso.

Aeneas jogou uma olhada aos papéis.

— Isto é o dobro da terra que pediam antes.

— Esta vez vale também por doze vistas.

— Não me ameace Forbes — advertiu Aeneas.

— Mas os cinquenta ficarão isentos de emprestar serviço — resmungou o juiz. — Não duvido que agora terão outras tarefas em que empregá-los.

O chefe lhe cravou um olhar glacial. Por instinto, sua mão descendeu até a espada.

— Estes são tempos muito perigosos para fazer insinuações.

Monopolize que lhes estava observando com atenção enquanto sorvia seu porto, deixou o copo e se inclinou para diante desde atrás do escritório.

— Seria melhor que nenhum de nós pronunciasse ameaça alguma, chefe Macintosh — insinuou. — Do contrário, eu poderia supor que não levam essa arma ao flanco ao serviço do rei, para perseguir os desertores, e apresentar uma acusação contra você.

— Não posso ceder essas terras — repôs Aeneas. — Salvaria agora doze vidas, mas perderia muitas mais no futuro. Meu clã não poderia sobreviver sem elas.

— Bom, em tal caso, ponham em cima desta mesa uma contra-oferta — ofereceu o general enquanto se apoiava contra o respaldo da cadeira.

— perdi a um moço — aduziu Aeneas em um intento de ganhar tempo. — E mataram também a sua mãe.

— Isso foi lamentável — conveio Monopolize.

— Muito lamentável — reconheceu Forbes.

Aeneas não duvidava de que o juiz falasse a sério. Graças aos highlanders ganhava dinheiro e cada morte representava uma perda financeira. Além disso, era escocês; apesar de sua desagradável postura a favor do governo, ao menos compreendia aos clãs e conhecia sua cultura.

— Peço-lhes desculpas — acrescentou Monopolize, — pelo fato de que um oficial se ultrapassasse ao ponto de disparar contra uma mulher indefesa, mas é tal como dizem: estes são tempos perigosos. Alegra-me que tenham a vista posta no futuro. Por isso me hão dito, outros chefes são menos circunspetos. Possivelmente ignoram que assinamos a paz com os franceses?

Aeneas não permitiu que a surpresa aflorasse em sua expressão. Enquanto assimilava a notícia sustentou o olhar a Monopolize, com aparente calma, e revisou sua primeira impressão do general. Esse homem podia parecer muito dado aos prazeres, mas estava versado na sacanagem da diplomacia. A advertência era clara: embora os franceses fomentassem a rebelião para acossar a Inglaterra, agora seria difícil que lhes enviassem apoio concreto. O exército britânico, liberado já de suas obrigações de ultramar, estava em condições de aplicar todo seu potencial contra as forças que foram acumulando os jacobitas.

— Sem dúvida, não terão esquecido o resultado da revolta de 1715, verdade? — insistiu-lhe o general.

A primeira sublevação se produziu quando Aeneas tinha sete anos e lhe havia flanco a vida a seu pai. O exército inglês necessitou de uma só batalha para esmagar aos jacobitas. Quando o rei Jacobo chegou da França, novamente sem o exército prometido, já tudo tinha terminado. Muitos dos chefes que lhe apoiaram perderam autoridade sobre as terras de seus clãs; vastas extensões foram cedidas a aqueles que se aliaram com o governo.

— Garanto que estes jovens permanecerão no Guarda, aconteça o que acontecer — ofereceu.

— Mesmo que denominemos a isto ausência sem permissão, uma deserção não pode ficar sem castigo visível — contra-atacou o general. — Necessitamos tropas dignas de confiança às ordens de líderes leais.

— Nesse caso elevarei seu número a uma companhia completa. Podem capitaneá-la a vontade.

Monopolize esboçou um sorriso e se inclinou para diante para esclarecer sua posição.

—Os comandantes ausentes só servem para turvar a lealdade — disse. — São tão incômodos como sentar-se em uma grade bicuda.

O britânico tinha estabelecido seu preço: doze vidas jovens em troca de que Macintosh se comprometesse com o governo. Ao igual a Forbes, suspeitava que Aeneas estava apostando em dois bandos e podia passar-se ao outro lado em qualquer momento. O juiz não lhe descobriu que o montanhês simpatizava com os jacobitas, mas viu a oportunidade de ganhar a partida e recolheu os papéis que tinha deixado no escritório.

— Há várias maneiras de esfolar um gato — atravessou o ancião ao tempo que lhe oferecia os documentos. O chefe escocês não deixou de advertir o duplo sentido de uma frase tão cuidadosamente escolhida para deixar ao general às escuras: o clã Chatton era o clã do gato.

— É verdade — concordou Aeneas. Forbes lhe estava oferecendo a oportunidade de seguir sentado nessa perto, em troca de um preço. Os chefes da federação Chatton lhe tinham jurado fidelidade sob pena de morte. Em sua condição de chefe podia oferecer garantias de que nenhum deles participaria da sublevação. Ou assinar. Se assinasse esses papéis, ficava livre de obrigações com respeito ao Guarda Negro, mas também perdia a possibilidade de prosperidade futura para seu clã. Optou pela única saída que ficava: atirar um farol. Baixar-se da perto e confiar em que Forbes não revelasse quanto mais poderiam ter obtido. — Esses moços daí fora seguirão no Guarda — disse a Monopolize.

— Não escutastes? — insistiu o juiz. — Isso não basta.

— Não. — Aeneas olhou serenamente a Monopolize. Logo se voltou para o Forbes. — Eu servirei com eles e com toda uma companhia. Serei seu capitão.

— Não oferecem muito, Macintosh — desdenhou Forbes. — Uma espada, cem jovens e seus princípios.

Aeneas se levantou de um salto, já desembainhando seu aço.

— Não uma espada qualquer, a não ser esta espada — replicou.

Antes que nenhum dos outros pudesse mover-se ou tomar fôlego para protestar, cortou limpamente pelo meio a vela do escritório; logo moveu a espada em arco junto ao perchero que sustentava o chapéu do general Monopolize e fatiou as patas dianteiras de uma pequena mesa de madeira. Enquanto o móvel caía para diante, a ponta de aço arrancou todas as asas de uma cajonera, em um só movimento para baixo, e completou sua tarefa cortando horizontalmente as folhas de papel que o juiz sustentava na mão.

— Alegra-me que deixassem em paz o perchero — observou Monopolize.

Sem girar-se a olhá-lo, Aeneas estirou o braço para tocar um dos cabides superiores com a ponta de um dedo. Pau e cabides se separaram ali onde a madeira tinha sido atravessada. Caiu o chapéu de Monopolize; ele o agarrou no ar e o depositou no escritório, enquanto confiar superior do perchero rodava estrondosamente por terra.

— Vá! Devo reconhecer que estou impressionado — repôs Monopolize. Recolheu as folhas cortadas em dois, que tinham revoado até seu escritório, e as rasgou. — Você, suas terras e esses jovens daí fora estão a salvo. Tem a autoridade, capitão. Confio em que a conservem.

E fez soar uma campainha que tinha em seu escritório.

— São homem a vigiar — trilou Forbes . — E não lhes tirarei a vista de cima.

Para o Aeneas já era suficiente. O clã Chatton ficava fora do compromisso. Cada um de seus chefes tomaria sua própria decisão. O juiz não revelaria quanto mais poderiam lhe haver feito ceder. Um soldado entrou detrás deles.

— Este será seu tenente, capitão Macintosh — lhe informou Monopolize. E enquanto Aeneas se voltava para o homem, que lhe era desconhecido, o britânico adicionou: — A partir de hoje, o capitão Macintosh se fará cargo de suas tropas, tenente Ray.

James Ray enterrou seus pés e fez a saudação militar.

 

— Taigh na galla ort!* — jurou Anne, levantando-se da mesa do almoço. — Não posso acreditar nisso!

Era mais tarde que de costume, já muito passado o meio-dia. Tinham esperado a Aeneas, com a mesa ricamente servida, com comida e vinho para o que seria o último almoço antes de iniciar a guerra.

— Que te uniste ao governo contra nós?

— Não estou contra ti — esclareceu ele. — Estamos juntos.

— Nisto, não. — Anne começou a andar pela habitação. — Não, nisto não.

— É uma mutreta, sem dúvida. — MacGillivray estava desconcertado.

— Não — respondeu Aeneas. — Os franceses não virão.

— Farão-o assim que nosso próprio exército saia ao campo de batalha — asseverou Anne, furiosa . — Quando virem nossa força, quando souberem que estamos unidos e que triunfaremos, então virão!

— Acredita que o general inglês diz a verdade? — perguntou a viúva, tratando de acalmar o ambiente.

Aeneas assentiu com a cabeça, mas sua resposta foi para a Anne.

— Que virá agora é o exército britânico. Acaba de lavar o sangue de nosso filho. Lavaria a de milhares?

Ela deixou de andar.

— Morreram dois dos nossos, Aeneas. Um moço e sua mãe. Acaso a morte dessa mulher não significa nada?

— Não é isso, é obvio. Só queria...

Interrompeu-lhe.

— Só queria usar a culpa contra mim. Tentei deter esse inglês. Não me deu atenção. Para ele eu não tinha nenhuma importância, como tampouco a mãe do Calum, que era mulher. Careço de toda autoridade segundo seus costumes.

— As leis inglesas são diferentes. Já aprenderá nossos costumes.

— Acredita nisso? Não será que nós estamos aprendendo as suas? Decidiu o que faremos sem consultar antes comigo!

E abandonou a habitação, furiosa, chamando a Jessie ao sair.

— Anne! — Aeneas ia a seguir, mas sua tia o segurou por um braço.

— Espera que se acalme — lhe insistiu. — Não conseguirá nada enquanto ela se sinta tão insegura. Deveria lhe haver consultado.

— Não havia tempo. Posso explicar-lhe, tudo.

— Tudo que lhe diga agora vai parecer outra ameaça. Dê-lhe tempo; voltará quando se tiver reposto.

MacGillivray tinha permanecido em seu assento, dando voltas na cabeça às insondáveis acione de seu chefe. Levantou-se o fim, empurrando ruidosamente a cadeira para trás, e encarou ao Aeneas.

— Me poderia explicar isso? — Pediu.

No piso de cima, Anne tirou a roupa e a deixou cair de qualquer maneira. Tinha o corpo rígido de fúria. A porta do roupeiro se abriu de par em par, com tanta violência que se estrelou contra a parede.

— Meu traje azul de montar — pediu ao Jessie com voz de mando.

Era um conjunto de veludo com cós de tartán; com ele se sentia a gosto, segura de seu aspecto e de sua força. Jessie o sustentou para que o pusesse. Penteou-se depressa, mas com atenção. Teria bom aspecto, muito bom aspecto. E ele o veria.

— Em algum lugar há uma boina que faz jogo — assegurou.

Enquanto Jessie a buscava nas gavetas, ela levantou a tampa da caixa que continha seu dote e extraiu um punhado de moedas. Guardou algumas na bolsa de veludo que teria atada à cintura. Outras foram a bolsa que guardaria em seus alforjes. Aeneas tinha optado por uma decisão. Agora ela tomaria a sua própria.

E outro tanto ocorria no piso de abaixo, onde MacGillivray tinha chegado à sua.

— Nisto não vou acompanhar — disse ao Aeneas.

— Não lhe peço — replicou seu chefe. — O compromisso é meu, não lhes incumbe nem a ti nem a outros chefes, mas mesmo assim te peço que não participe da sublevação. Apressando-se não ganhará nada.

— Durante alguns meses, Alexander — acrescentou a viúva, — até que a situação se esclareça.

— Minha gente necessitará um líder — observou o jovem, que ainda lutava com a idéia da prudência. — Não sairão a apresentar batalha se eu não o disser.

— Pois então bastará com que mantenha a boca fechada — apontou Aeneas.

— Se é que sou capaz de fechar o bico. — MacGillivray sorriu com melancolia. — Retornarei ao Dunmaglas. — E alargou a mão a seu chefe. — Mas a próxima vez que nos encontremos possivelmente sejamos inimigos.

Aeneas lhe estreitou a mão direita com firmeza.

—Ao menos nos separamos como amigos — lhe disse. E o abraçou.

Detrás deles se abriu a porta da sala de jantar Anne entrou pálida e absolutamente serena, com a mandíbula apertada em um gesto decidido. O azul de seu traje de montar acentuava o de seus olhos até convertê-lo em uma meia-noite do verão.

— Pode esperar, Alexander? — pediu.

Trazia na mão a boina azul. Sobre seu flanco direito pendia a bolsa de veludo, cheia de moedas. O punhal que aparecia em um lado era habitual para uma viagem, mas a espada com cazoleta de prata, não. Jessie vinha detrás, levando um par de pistolas chapeadas.

— Dava ao Will que as ponha na cadeira do Pibroch — lhe ordenou Anne.

Enquanto a moça saía da habitação, Aeneas recuperou o uso de sua língua.

— Vai sair?

Houve uma pausa; Anne quadrou os ombros e levantou a cabeça para olhá-lo diretamente aos olhos.

— Vou convocar ao clã para a guerra — declarou.

A resposta de seu marido foi rápida, muito rápida.

— Hei dito que não!

— Não sou uma esposa inglesa; não sou propriedade de ninguém nem devo receber ordens — lhe corrigiu ela. — Você fala por ti mesmo. Eu falarei por mim. — colocou a boina (posto que não houvesse rosas, tinha-a adornado com um distintivo de cinta branca) e girou para o MacGillivray — O que diz você, Alexander? Segue-me?

A cara do jovem demorou menos de um segundo em esboçar um grande sorriso.

— Sim, coroe-a — respondeu, lhe outorgando automaticamente a fila que teria tido Aeneas entre os clãs, em tempos de guerra. — E também nossos guerreiros. Até o fim do mundo, se assim o pedir.

— Bem poderia ser até o fim de suas vidas — lhe espetou Aeneas.

Anne voltou a girar bruscamente para ele.

— Nossa vida — disse. — E nossa decisão de como vivê-la ou perdê-la.

Dito isso, partiu para a porta e saiu seguida pelo MacGillivray.

Aeneas não deu um passo nem disse uma palavra. Sua tia o observava, mas ela também guardava silêncio. Frente à porta principal se ouviu o chacoloteo dos cascos, enquanto os outros montavam a cavalo; logo as monturas se afastaram em meio de um grande repico. Ao apagar o ruído, o silêncio cresceu até converter-se em um vazio insuportável.

— Tudo sairá bem — sussurrou a tia. — Não podemos perder se tivermos representantes em ambos os bandos.

Aeneas desencapou a espada e, com um enorme bramido, como o de um touro apanhado na armadilha do matadouro, fez voar pelos ares quanto descansava em cima da mesa: a comida, o vinho, a baixela e as taças, em um movimento amplo e selvagem. Todo aquilo se estrelou ruidosamente contra o chão ao estalar sua ira.

Anne e MacGillivray cavalgaram primeiro para levante, recrutando voluntários nessa parte da propriedade; logo viraram para o norte e o oeste. Solicitavam um homem adulto por cada família e o obtinham com facilidade. Quando era possível, as esposas e os meninos maiores se incorporavam à marcha. Para as tropas das Terras Altas, eles eram tão valiosos como os homens.

— Necessitarão um ferreiro — assegurou Donald Fraser enquanto pregava seu avental de couro.

— Também Moy, em nossa ausência — lhe recordou Anne. O imóvel devia continuar funcionando até que eles retornassem.

— Pois bem fácil o têm: que retirem a meu filho da Guarda Negro. —E Donald entrou para apagar o fogo da forja.

Na borda do ermo Durmossie, a anciã a que Anne tinha dado pastos adicionais esperava frente a sua cabana.

— Vai, se for preciso — disse a mulher a seu marido, lhe entregando a bonita espada recém afiada. — Eu não faria mais que te estorvar.

MacBean agarrou o aço. Tinha setenta anos, mas era fornido e conservava forte o braço.

— Escreverei-te — prometeu.

— Tenho que passar a vida indo ao Invernes se por acaso há tua carta?

— Pode perguntar ao menino do correio quando passar.

Anne se inclinou de seu cavalo.

— Não está obrigado a vir — lhe disse. — Faz falta aqui.

— Estou obrigado para comigo mesmo — replicou MacBean, muito erguido. — A morte deveria ser um assunto honorável.

— De qualquer maneira, aqui só me estorva — assegurou sua esposa. Logo trabalhou em excesso em sujeitar melhor o tartán do marido. — Cuida de manter abrigado esse peito, ouve-me?

— Não te inquiete, mulher — a interrompeu o ancião. — antes do que pensa estarei de volta para que siga me chateando.

Era de noite quando chegaram às cabanas do noroeste e a notícia os tinha precedido. Os camponeses estavam reunidos em torno da tumba recém cavada, onde depositariam os corpos envoltos de mãe e filho, que esperavam a um lado, na erva. Ewan se adiantou um passo para falar  primeiro; a culatra do mosquete lhe tinha deixado na frente uma cicatriz em forma de V, vermelha e enrugada baixo aquela luz mortiça do crepúsculo.

— Devo dar sepultura a minha esposa e a meu filho — anunciou a Anne. — Logo irei contigo.

Ela meneou a cabeça.

— Não lhe peço isso, Ewan. Seu pai e seus outros meninos lhe necessitam aqui.

— Cath cuidará deles. — A vizinha, ao seu lado, sustentava ao bebê contra seu flanco.

— Como se fossem minha própria família — assegurou a aludida.

A velha Meg deu um passo à frente e cuspiu no chão.

— Deveria ter posto ao sol as vísceras desse sasannach* a primeira vez que lhe vimos — se lamentou enquanto elevava sua forca. — Faz tempo que está em dívida. Brigarei.

As terras do Moy contribuíram à causa jacobita uma força de quase trezentos combatentes e cento e cinquenta mais, entre mulheres e meninos, para respaldá-los. A bolsa de Anne se aliviou detrás pagar com xelins às famílias que ficavam atrás. Agora se encaminhariam ao Dunmaglas para acrescentar aos MacGillivray, antes de percorrer a região para compilar combatentes entre as outras tribos Chatton. Anne reprimiu ao Pibroch na colina que confinava com o Drumossie, e contemplou o passo de suas tropas: uma larga fila de homens, mulheres e meninos, que só levavam um pouco de comida, armas e roupa de recâmbio. Muito mais abaixo se via Moy Hall, iluminada pelo sol poente e resplandecendo como o ouro, segundo as águas brilhante do próximo loch tomavam uma cor alaranjada.

MacGillivray deu um puxão às rédeas e reprimiu seus arreios junto à dela.

— Ele nos unirá quando vir com seus próprios olhos o desejo de seu povo.

— depois de me haver ignorado? — Era inconcebível que um marido decidisse algo assim sem consultar com sua esposa. Não obstante, era o que seu marido tinha feito. Ela voltou garupas. — Vamos. Convém chegar ao Dunmaglas antes que escureça de tudo.

Açulou ao animal e galopou até ficar à frente da marcha. Um sol cheio e vermelho coroava já o horizonte, tingindo de sangue o caminho.

Aeneas se preparou a partir do Moy Hall. Will, o moço de quadra, esperava com seu cavalo frente à porta principal. A viúva de seu tio o acompanhou até ali.

— Deve ir agora mesmo? É possível que Anne deixe às tropas no Dunmaglas, com o Alexander. Poderia voltar amanhã mesmo. Tem que falar com ela.

— Tentei-o em vão. Não me escuta. — Ele colocou o pé no estribo para içar-se à cadeira. — A estas alturas, Louden já estará de retorno no Fort George, e não há dúvida de que estará informado que meu clã se elevou em armas. Se não aparecer esta mesma noite, pensará que faltei a minha palavra antes de começar.

Agarrou as rédeas e deu as graças ao Will.

— Não estará entre amigos, Aeneas — lhe acautelou sua tia quando estava a ponto de partir. — Vigia sua cólera.

— Farei-o — prometeu ele.

Não esperava outra coisa que inimizade de seus inimigos, mas teria esperado um pouco de apoio de sua esposa. Agitou as rédeas e se afastou. Deu um rodeio junto ao lago para tomar a rota mais curta para cruzar Moy para o Invernes e o forte. Acompanhava-lhe na viagem um espaço vazio: MacGillivray era como um segundo eu, sempre ali quando a aventura lhe convocava, mais que um irmão. Não obstante, não sofria nenhum conflito de lealdades: tinha bastado que Anne o chamasse para que se fora com ela. Aeneas não sabia qual das duas traições lhe feria mais profundamente: se a de sua esposa ou a de MacGillivray Preferia não pensar em que ainda estava em florações. Passariam juntos duas semanas, possivelmente mais, para reunir aos voluntários e levá-los ao Glenfinnan.

A honra de Anne ficaria satisfeito uma vez que entregasse as tropas, pois nos exércitos das Terras Altas as mulheres casadas só partiam com seu marido. A falta do dela, ela não ficaria. Delegaria o mando ao MacGillivray para retornar ao Moy. Duas semanas. Dentro de duas semanas poderiam resolver a disputa. Tinha recuperado por completo o domínio de si mesmo quando entrou no pátio pavimentado do forte, onde ia precisar manter a cabeça limpa e o engenho fino.

Lorde Louden não se incomodou em dissimular seu alívio. A companhia Macintosh era seu refém para assegurar a volta de seu chefe. Não teria gostado de pedir um pelotão de fuzilamento no caso de que ele não se apresentasse.

— Alegra-me ver que estão conosco, Macintosh, mas suspeito que, ao lhes designar capitão, o general Monopolize acreditava haver-se assegurado também o concurso de sua tribo.

— Entreguei o que prometi — aduziu Aeneas.

— Mais do que acredita — reconheceu Louden. — MacDonald, da ilha do Skye, e MacLeod seguiram seu exemplo. Temos companhias dos dois clãs. — Nos clãs e entre as tropas próprias dos chefes partidários do governo de sua majestade eram muitos os homens que não os seguiam, mas teve o tato de não mencioná-lo. — Tome suas ordens — acrescentou, lhe entregando os documentos. — Lhes atenderão nas habitações para oficiais do bloco do sul. Seus homens estão de faina na praça.

Era quase de noite. Faziam instrução tão tarde? Que estranho.

— Estão castigados por algo?

— Pareceu-me oportuno mantê-los ocupados. — O homem abriu a porta. — Já podem relevá-los, capitão.

Monopolize entrava quando Aeneas saía, por isso ambos os homens se encontraram sob a soleira. O inglês se deteve para lhe deixar passar e lhe saudou com uma inclinação de cabeça, sendo correspondido do mesmo modo. O britânico deixou acontecer a falta da saudação militar. Ia aprendendo algo sobre os costumes montanheses.

— Todo um chefe, de pés a cabeça — comentou ao Louden enquanto seguia com a vista ao Aeneas, que se afastava a grandes passos: — galhardo, de bom ver e com más maneiras.

— Com maneiras diferentes — corrigiu Louden, — Não sei se for um valente ou um covarde, mas não quereria estar em seu leito conjugal. Nestes momentos, não.

— E antes sim? — inquiriu Monopolize.

— OH, sim. — Louden pôs-se a rir. — Anne Farquharson poderia excitar a qualquer entre seus lençóis. E fora delas também, a julgar pelos últimos comentários. Veio pela última taça do dia?

— Trago notícias — disse Monopolize. — Mas baixarão melhor com umas gotas de porto.

Louden lhe deu o vinho e fechou a porta atrás de si.

Uma companhia praticava com os mosquetes no pátio de manobras. Suas componentes identificaram à líder escocês assim que este apareceu depois da curva. Em todas aquelas caras se desenhou o alívio. Não lhes tinham entregado munições e bem sabiam a razão: para que não pudessem defender-se no caso de que lhes falhasse seu chefe, mas já estava ali e não havia nada que temer. Estavam a salvo. O tenente Ray deixou de ladrar ordens para saudar o Aeneas.

— Capitão — disse, entrechocando os talões.

— Tenente — respondeu Aeneas com um suspiro. — Não poderíamos prescindir das formalidades até que vista o uniforme?

— Perdoe capitão. — Ray voltou a saudar. — Dizem que vêm navios militares trazendo mais reforços. Acredita que entraremos logo em ação?

— Esperemos que não.

— Não o pergunto por que tenha medo, mas sim porque estou desejoso de entrar em ação — esclareceu o tenente, indignado.

— Pois em tal caso, é parvo de arremate — lhe reprovou Aeneas. — Morrerão muitos homens se começar uma guerra, Ray, e cada vítima será um conhecido meu, alguém a cujo lado combati ou que cacei. Alguém cujo ganho roubei e cuja mulher ou filha me levei a cama, mas não desejo a morte de nenhum deles. Por isso, esperemos, em troca, que baste com uma demonstração de força para que esta insurreição se dissolva sem necessidade de um só disparo. Matar é um dever, mas o prazer se deveria procurar unicamente na companhia das mulheres.

Uma salva de aplausos e fortes vivas surgiu de entre as filas da companhia, embora todos ficaram firmes de novo assim que Ray girou.

— Querem lhes dar a ordem de descansar? — sugeriu Aeneas com um sorriso.

— Sim, meu capitão — lhe espetou o britânico com outro saúdo sem chegar a ver que Aeneas punha cara de poucos amigos ante o uso da fila, pois já se tornou para a companhia ordenar: — Descanso!

O chefe se afastou para seu acampamento; agora que o ansioso inglês estava a suas costas podia permitir um grande sorriso. Sua habitação, quando a achou, pareceu-lhe adequada: um beliche, mesa, cadeiras e uma garrafa de uísque, cortesia do rei Jorge.

Os ingleses esperavam a chegada de navios de guerra, e eram os primeiros da revolta. Os chefes jacobitas se retirariam sem apresentar combate se os reforços eram numerosos. A vida ganhava com muita dificuldade nos clãs e não a esbanjava ali onde não houvesse ganhado. Aquilo podia terminar em uns quantos dias. Quando se estava servindo um segundo copo, alguém chamou a sua porta. Era Ray.

— Tudo em ordem, senhor — informou.

Aeneas elevou um dedo para lhe impedir de saudar.

— Bem — respondeu, e assinalou um copo vazio. — Uisge beatha?*

— Ah, uísque. Sim, obrigado. — Enquanto Aeneas servia uma medida generosa, acrescentou: — Lhes direi... Quando vinha para o Invernes me encontrei com uma louca acompanhada por uma tribo de selvagens que me obrigou a desmontar para que minha esposa utilizasse o cavalo. E falava irlandês.

Aeneas reconheceu o relato. Meg e Cath se alegrariam ao saber que se converteram em uma tribo. Depois de entregar o copo ao Ray se aproximou da janela. Uma grande lua cheia iluminava a noite.

— De maneira que uma louca, né? — murmurou.

 

Carlos Eduardo Estuardo se deteve frente a sua tenda, no acampamento do Glenfinnan. Tanto ele como seu primo, o duque do Cumberland, tinham vinte e quatro anos e ambos eram filhos de reis, mas ali cessava toda semelhança. Carlos parecia saído de um conto de fadas: elegante, alto e bonito, boa estrutura facial e corpo esbelto. Agora vestia um tonelete de tartán vermelho e uma jaqueta escarlate, peruca branca empoeirada e um faixa azul pendurado sobre o ombro. Antes que a Escócia unisse seu Parlamento ao da Inglaterra, quando o rei escocês ocupava os dois tronos e governava a Irlanda, seu avô foi deposto pelos ingleses, quem o substituiu por um holandês. Como essa estirpe se extinguiu sem herdeiro, seu pai esperava ser convocado, mas uma vez mais os ingleses escolheram a um estrangeiro, um alemão da casa do Hannover; agora reinava Jorge, seu filho. O príncipe Carlos tinha vindo a reconquistar o trono de seu pai.

— A victoire est certaine, Ou'Sullivan — lhe assegurou o tenente geral irlandês que lhe acompanhava. Os escoceses eram um milhão, dos quais mais da metade viviam nas Terras Altas. — Há nestas colinas seiscentas mil pessoas e ao menos cinquenta mil são combatentes treinados.

— Nem todos se elevarão, senhor — replicou lorde George Murray, — e as tropas de Monopolize desembarcam no Aberdeen. Assim que esses reforços se reúnam com ele no Invernes, ele quererá apresentar combate.

— Com uns poucos milhares de homens? — O príncipe se mostrava depreciativo. Tinha nascido e crescido na Itália; com suas comandantes escoceses falava em francês, idioma que eles também dominavam. — Cumberland deve acreditar que nos assustamos facilmente. Teremos deux armées, lorde George. Cinco, dez exércitos!

Uns gritos de júbilo procedentes do flanco oriental do acampamento interromperam a jactância do príncipe. Os três se voltaram para ali e viram a Anne Farquharson, lady Macintosh, cavalgando junto ao MacGillivray. Atrás deles partiam várias centenas de soldados, que lançaram vivas ao ver os clãs já reunidos; os que tinham pistolas dispararam ao ar.

— Vêem-no? — O príncipe sorriu a lorde George; este tinha contribuído aos Murray, o clã de sua mãe, à causa jacobita.

Enquanto as tropas do clã Chatton viravam em direção ao espaço livre, Anne e MacGillivray se adiantaram para o estandarte para apresentar-se. Lorde George estava ao seu lado quando ela desmontou.

  — Devem estar fatigada pela cavalgada — observou, — mas é um prazer lhes ver aqui. Não estava muito convencido de que esta empresa fora prudente e me decidi ao saber de sua ação. — Conduziu-a até onde estava o príncipe. — Minha prima, senhor, coroe-a Anne Farquharson, lady Macintosh.

— A belle rebelle — exclamou. — Se conta que inflamastes ao país. Agora compreendo por que.

— Não, senhor, vous êtes trop généreux — replicou ela. — Isso o têm feito você mesmo.

Apresentou ao MacGillivray como coronel em chefe de suas tropas, que as conduziria ao campo de batalha. Trouxeram vinho, em tanto os outros chefes se amontoavam em redor para felicitá-la: Lochiel, Keppoch, Glengary, Ranald, MacGregor, lorde Elcho e lorde Tullibardine, e também os Ogilvie. Anne elevou sua taça.

— Prosperidade sem União! — brindou. Era uma declaração que não tinha feito da morte de seu pai, mas nesse momento a desfrutou. A resposta ressonou por todo o acampamento e caiu como um eco ao repeti-la quem estava mais longe.

— Prosperidade sem União!

Ou'Sullivan chamou por gestos ao MacGillivray para conhecer o número das forças incorporadas à causa.

— Seiscentos guerreiros — informou Alexander — e duzentas pessoas de apoio, entre mulheres e meninos.

— Era necessário trazer para tantas mulheres?

— É ao reverso, senhor — lhe respondeu seu interlocutor. — São elas quem traz aos homens. As esposas e as mães os geram e os enterram se chegar o caso são elas quem decide quando combaterá o clã.

Margaret Johnstone, lady Ogilvie, levou a Anne para lhe apresentar alguns outros.

— Não esperava que fossem tantos — comentou lady Ogilvie enquanto olhava em redor quando cruzavam o acampamento. Em qualquer parte se viam grupos reunidos em volto das fogueiras; cozinhava-se, afiavam-se espadas e atravessados, limpavam-se e lustravam as pistolas.

— O que outra coisa podemos fazer? Nosso estilo de vida não demorará em desaparecer se não acabarmos com esta União. — Deslizou um braço baixo o de Anne. — O que pensam de nosso príncipe?

— Vá! É bonito..., com as roupas postas — brincou Anne. — Se for tão líder como encantador, já podemos nos considerar vitoriosos.

Margaret se deteve para apresentá-la a Margaret Ferguson, lady Broughton, uma mulher deslumbrante; usava um chapéu emplumado e um traje debruado de peles; a mesma elegância exibia seu marido, sir John Murray do Broughton, quem estava afiando a espada.

— Pode me chamar Greta — disse ela. — Eu me ocupo do recrutamento e as provisões.

— Sir John é o secretário do príncipe — explicou Margaret.

— Mas quando travarmos combate — se gabou Greta — irá com a cavalaria de lorde Elcho.

— Temos suficientes cavalos? — perguntou Anne.

— Ainda não. — Greta sorriu de orelha a orelha. — Mas resolveremos bem logo. Você pode colaborar.

— eu adoraria — repôs Anne, — mas minha intenção é voltar para casa.

— Foste muito valente — ponderou Margaret. — Eu não teria podido me separar do David. — Tinha vinte anos, como Anne, a mesma idade de seu jovem marido: um rico lorde que podia permitir o luxo de celebrar um casamento cedo. — Tive que lhe persuadir, sabe? — adicionou. — Os varões não sempre compreendem o que está em jogo: os homens terão direitos e poder se as atitudes inglesas acabarem por impor-se entre nós, e nós, nada. — Estreitou compreensivamente o braço de Anne. — Mas você convencerá ao Aeneas. Há inspirando a tantos... — Assinalou a uma mulher de calças, ocupada em dirigir a instalação dessa tendas é Jenny Cameron. Quando se inteirou do que estava fazendo, saiu a cavalo e recrutou a trezentos soldados para a causa. Ah, também foi por ti que Isabel obrigou ao Ardshiel a ficar em marcha. Chegará logo.

— Que lhe obrigou?

— Sim. — Margaret pôs-se a rir. — Disse que se ele ficava a dirigir a casa, ela sairia para ficar ao mando de sua gente. E lhe deu um avental!

As duas riram como meninas ao imaginar ao corpulento Ardshiel com avental de cozinha, dedicado a revisar as contas domésticas e a fiscalizar o assado do pão, mas aquilo não aliviou o humor de Anne. Ardshiel se tinha posto em marcha. Aeneas, em troca, passou-se ao outro bando. Teria sido mais suportável que ele não tivesse feito nada, que se tivesse limitado a esperar, como tinha anunciado em um princípio. Isto não o era.

Encaminhou-se sozinha para um extremo do acampamento, de cuja vitalidade e entusiasmo desejava escapar. Estava se elevando uma enorme lua enche transpassada por uma magra nuvem purpúrea. Guardava grande semelhança com a ferida de seu coração, que a partia em dois: ela em um lugar, Aeneas em outro. Seu marido se uniu ao inimigo. Era o pior mal que podia lhe causar.

MacGillivray a encontrou de tal guisa: sentada em uma pedra, ensimesmada na contemplação da lua enquanto se elevava no firmamento.

— Sua tenda já está pronta — anunciou, aproximando-se o por detrás. — Estão a ponto de servir o jantar — a apressou, e ao ver que não respondia, girou-a para deixá-la frente a ele. Na escuridão lhe viu os olhos luminosos, brilhantes de lágrimas sem derramar. — Venha... — Estreitou-a contra si, envolvendo-a no calor de seus braços.

— Não posso ficar tão só — soluçou Anne. — Agora, aqui, não. Ele deveria estar conosco. Deveria estar ao meu lado.

— Sei.

Alexander a estreitou com mais força enquanto em seu foro interno se avivava com inusitada ferocidade o fogo de seu aborrecimento contra Aeneas, o homem a quem queria como a um irmão. Passaram abraçados longo momento até que se foram secando as lágrimas de Anne e os corpos de ambos se acostumaram a essa intimidade e começaram a recordar como se ajustava cada um à forma e o calor do outro. Então foi como se após não tivesse passado o tempo, como se tudo seguisse igual.

— Não sou tão forte como pensava — admitiu ela, lhe olhando.

Agora o beijaria, pensou ele. E se o beijava permaneceriam juntos, quanto menos essa noite, balançando-se mutuamente até entrar nos velhos êxtases familiares. E isso não serviria absolutamente para amortecer o rasgo que ele sentiria quando ela partisse para a manhã seguinte; e partiria, sem dúvida, pois agora lhe desejava, não por ele mesmo, a não ser para encher o vazio da ausência do Aeneas. Pôs-lhe as manuseiem os ombros e deu um passo atrás.

— É mais forte do que pensa — a animou. — O convencerá. Aeneas não é nenhum lacaio do governo. É aqui onde quer estar.

— Disse-lhe isso ele?

— Virtualmente. Só entrou para proteger aos meninos do Guarda.

— Poderia havê-los gasto aqui.

— Está convencido de que vamos fracassar.

— E assim será, se estamos divididos. — Anne não se deixava abrandar. — Isso é o que vou dizer quando retornar ao Moy.

A hora de jantar, MacGillivray, sentado entre a Margaret e Greta, paquerou com elas sem pudor algum. Anne estava em frente, junto a lorde George, sua primo. Tinha a cabeça cheia de táticas desde que o príncipe lhe tinha designado comandante em chefe.

— Amanhã levantaremos acampamento — anunciou. — Esta zona não pode sustentar a um grupo tão grande por muito tempo mais.

— Vai travar combate com Monopolize? — perguntou Anne.

— Não, no momento parece mais prático evitá-lo e deixar que brinque de correr pelas Terras Altas. Tenho outros planos. — Olhou-a com seriedade, pormenorizado. — E você? Margaret diz que retornará ao Moy.

Ela fez um gesto afirmativo.

— Pela manhã. Já tenho feito o que devia.

— Mas lá necessitará amparo.

— Aeneas não permitirá que sofra dano algum em sua própria casa.

— Não o duvido; ao menos tentará evitá-lo, mas vais estar perigosamente perto dos barracos do Ruthven, onde se aquartelou o exército do governo. Algum oficial poderia procurar uma ascensão prendendo à rebelde lady Macintosh.

— Não, George! — Anne estava espantada. Seu matrimônio tinha resultado inseguro, e agora também estava em dúvida a segurança de seu lar?. — Mas devo ver o Aeneas.

— Que venha por si só, se quiser. Sem dúvida, sua ausência lhe pesará na consciência. Vêem conosco, embora só seja durante um tempo. Afastarei a Monopolize do Invernes. Então, se for preciso, poderá retornar a casa com impunidade.

— Resultará, vous verrez — insistiu Anne. — Ninguém sairá ferido.

— Parece-me um plano estupendo — a respaldou Greta, a seu lado.

— O mesmo digo — conveio Margaret. — Oxalá me tivesse ocorrido.

Achavam-se no apartamento oficial do palácio do Holyrood, ao pé da Royal Mele do Edimburgo, onde levavam uma semana acampados, com as portas da capital fechadas para eles. O príncipe tinha proibido que se tomassem as muralhas por assalto, pois não queria perder vistas nem inimizar aos súditos de seu pai que viviam detrás dessas portas. Cada dia eram mais os simpatizantes que, escalando os muros ou subornando a alguém, saíam para conhecê-lo e lhe jurar lealdade; logo retornavam sub-repticiamente, a tempo para o toque de silêncio das dez em ponto.

— Mais oui — disse o príncipe. — Se organizar um baile, a música distrairá aos guardas e nos proporcionará proteção.

— Boa idéia, senhor, sem dúvida — concordou Ou'Sullivan. — Muito boa.

— Sempre que meus homens sejam os primeiros em entrar — insistiu Lochiel.

— Ninguém lhes privaria desse direito — lhe assegurou lorde George. — Anne, te corresponderá persuadir ao MacGillivray.

As três mulheres colocaram mãos à obra: Margaret e Greta, com suas agulhas; Anne, com seu encanto.

— Com uma simples corda já estaria dentro — protestou MacGillivray.

— E toda a cidade em alerta — objetou Anne.

— Pois então me façam passar por advogado.

— Alguma vez viu a um advogado de um metro oitenta e com semelhantes coxas? — Anne sorriu. — Além disso, isto divertirá a todos e limará asperezas.

— Mas não as minhas, não — se irritou o jovem. — Serei o bobo de todos.

— Só dos teus. — Anne deixou escapar uma risada. — A gente do Edimburgo não se atreverá. — E não pôde resistir a tentação de acrescentar: — Seda verde. Com esse cabelo ficará estupenda.

— Mas nada de cachos de cabelo — insistiu MacGillivray. — Antes prefiro a sepultura.

Ela tinha triunfado.

— Uma touca muito bonita — prometeu. — E um leque.

Essa mesma noite, horas mais tarde, Duff observava os vizinhos das muralhas da cidade do barraco de guarda. Era um sapateiro fornido e rechonchudo de ânimos pouco belicoso: sentia-se mais a gosto em sua tarefa de remendón que de guarda na porta do Netherbow, com um mosquete na mão. A escuridão lhe impedia de ver mais à frente dos os primeiros edifícios. A música soava ao final da rua Canongate, no Holyroodhouse, onde os jacobitas tocavam a canção rebelde The auld Stuarts back again. Durante toda a noite tinham presenteado os ouvidos de Edimburgo com jigas, strathspeys e reels. A festa devia estar chegando a seu final a julgar pelo apagado dos lembre. Sobre ele se erguia a torre, cujo sino faria soar o toque de silêncio de um momento a outro.

Seu companheiro de guarda tinha baixado ao pé da muralha para fazer passar a um grupo de mulheres e embolsar os subornos pertinentes conforme o lembrado: o dobro da tarifa habitual para entrar e sair; a metade para os guardas e o resto para a cidade. Duff lhes cobrou quando saíram. Como precaução, aos homens os admitia estranha vez e revistava a consciência, mas nesse grupo não havia nenhum e seu companheiro terminou em um abrir e fechar de olhos. O sapateiro ouviu os passos de seu cupincha na escada do barraco de pedágio.

— Né — chamou uma voz desde fora das portas, — esqueceste-lhes de mim.

Duff abriu uma fresta de par em par e apareceu para ver uma mulher com os braços em jarras ante as portas. Parecia enriquecida a julgar por seu adorno: usava um chapéu emplumado e um casaco debruado de pele.

— Diga seu nome! — exigiu-lhe ele. Não sabia com certeza por que o perguntava. Uma mulher só não podia oferecer nenhum perigo, embora seu sobrenome terminasse sendo das Terras Altas ou tivesse um acento estranho.

— Atreve-te a perguntar meu nome? — A mulher estava indignada. — me Diga o teu!

— Duff — respondeu ele, com idêntica irritação. — Sou Duff, o sapateiro.

— Pois então sou sua esposa, idiota — chiou ela.

Ele não tinha esposa! Ela tentava enganá-lo. O guarda se felicitou por sua astúcia e experimentou uma sensação de triunfo ao ter desmascarado à impostora. Fez gesto de voltar-se para informar de seu êxito ao outro miliciano, que já tinha chegado ao alto da escada enquanto dizia em voz alta:

— Não tenho esposa.

A ponta de um atravessado lhe roçou o pescoço. No barraco não tinha entrado o outro sentinela, a não ser uma mulher vestida de seda verde; uma mulher muito alta, com touca e armada com uma adaga.

— Que pena — repôs com voz grave e pastosa. — Mas descuida — acrescentou a intrusa, cujo acento tinha a cadência das Terras Altas, — viverá para te casar com alguma se guardar silencio enquanto a deixamos passar.

Duff não corria perigo de emitir ruído algum, com a ponta lhe cravando a noz do Adão. Ao dá-la volta por completo, teve ocasião de ver seu companheiro imóvel no chão junto às portas. Uma terceira mulher de cabelo escuro estava abrindo o ferrolho da portinhola. Essa jovem esbelta formava parte do grupo que acabava de entrar; as outras tinham desaparecido pela rua Major do Rei.

Os homens do Lochiel emergiram de entre as sombras dos edifícios desertos do Canongate assim que a entrada ficou expedita e penetraram na urbe, passando a toda carreira junto à Greta. Os intrusos ganharam o interior em seguida; então, uns poucos substituíram a Anne na tarefa de destravar as grandes leva metálicas para carros; e logo, empurraram-nas até as abrir por completo, a fim de permitir a entrada do resto dos jacobitas, que se esparramaram pelas ruas com o ímpeto das águas de um rio transbordado.

Quando o sino da Netherbow fez ouvir o toque de silêncio, o resto correu às três portas restantes para substituir aos guardas ali apostados. A guarnição do castelo, no topo da colina, recolheu a ponte levadiça assim que se precaveu do ataque. Quando lorde George aproximou seu cavalo às portas, Edimburgo já estava em mãos jacobitas sem outra baixa que um guarda com dor de cabeça.

— Funcionou, George, sim — anunciou Anne, ao lhe ver chegar.

A jovem estava sentada junto às portas e compartilhava com a Greta uma jarra de cerveja. Na portinhola do barraco de guarda, MacGillivray compartilhava uma jarra similar com o desconcertado Duff; tirou-se a touca e seu cabelo vermelho era como ouro opaco sob o claro de lua.

— Eu gosto desse vestido — exclamou lorde George. — O verde te senta bem.

 

À manhã seguinte, Anne presenciou a entrada triunfal do príncipe na capital de Escócia. Tinha esperado com seu cortejo no Holyrood house à luz do dia para montar a cavalo e que a gente pudesse desfrutar de do espetáculo de lhe ver cruzar as ruas vestido por completo ao uso das Terras Altas, precedido por uma fila de gaiteiros e com o sino da Netherbow repicando para proclamar sua chegada. Anne esperava junto ao prefeito da cidade não menos exultante que o jovem Estuardo depois das tiras de Perth e Edimburgo durante sua viagem para o sul. As vias estavam lotadas de gente ávida de ver o príncipe Carlos.

Edimburgo se tinha empobrecido depois do traslado do Parlamento a Londres. Na atualidade era estranho ver em suas ruas aos aristocratas do país. A nova elite de mercados, advogados e eruditos da universidade se mostrava menos generosa com os pobres e gastava as moedas com menos prodigalidade. Mesmo assim, suas mulheres formavam a primeira fila de uma multidão de açougueiros, padeiros, toneleros e lojistas, vestidas com seus melhores ornamentos e agitando seus leques ao  príncipe, que saudava com uma inclinação de cabeça, primeiro à esquerda e logo à direita.

Quando chegou à Câmara da cidade se inclinou para dirigir-se para Ou'Sullivan, que montava junto a ele.

— Fixaste-lhes? — inquiriu. — Estas damas são todos sorrisos e covinhas no dia de hoje.

— Possivelmente possamos lhes tirar uns bons dinheiros se não vos molesta as agradar um pouco, senhor — repôs o tenente geral.

Depois de jogar pé a terra, Estuardo ofereceu a mão a Anne para que a beijasse.

— MA belle rebelle... Valem por dez homens. — Jogou um olhar ao prefeito Stewart. O homem estava apavorado, com a empoeirada peruca torcida sob o chapéu. — É muito amável ao me receber em sua bela cidade.

O interpelado não sabia se isso era uma amostra de cordialidade ou um sarcasmo e esteve tentado por um momento a abandonar toda precaução e esquecer quanto perigava seu pescoço. Tinha fechado as portas da cidade para deixar fora aos rebeldes, mas o certo era que a urbe não apreciava à União nem aos Whig11. Ele estava apanhado entre a espada e a parede. As forças destes se entrincheiraram no castelo e nas ruas mandavam as espadas jacobitas.

— Sedja bem-vindo, alteza, seriamente — respondeu sem deixar de lhe fazer vênias e reverências. — Lástima que a cidade tenha tão pouco para satisfazer a um exército tão nutrido como o seu.

—Mas foi — exclamou o príncipe. — Não somos vulgares saqueadores nem viemos com o propósito de roubar Edimburgo. Atenderemo-nos onde haja espaço e abonaremos o preço das provisões que necessitemos. E agora, mon ami, se me mostrarem o caminho, quero falar com sua câmara de vereadores.

Anne os seguiu com a vista. Andá-los majestosos e o encanto instintivo do príncipe resultavam alheios a aquele lugar, uma urbe lotada, suja e fedorento. Os edifícios da capital se levantavam por cima de ruelas estreitas e pátios escuros. De fato, a luz matinal unicamente era capaz de penetrar na posição atual da coroe, na larga rua Maior do Rei.

  Enquanto isso, MacGillivray tinha tirado o vestido de seda e se dispunha a organizar o aprovisionamento de seu regimento. Os homens do Lochiel estavam postados em volta do castelo, se por acaso a pequena força governamental, voluntariamente encerrada dentro, sentia-se de repente atacada por uma coragem temerária e efetuava uma saída para desatender aos insurgentes. Uma mão puxou sua saia.

— Senhora, senhora, sua senhoria — pediu uma menina com marcado acento sulino.

Anne se moveu ao sentir as sacudidas e olhou para baixo para descobrir que uma imunda menina de uns doze anos lhe tinha pegado uma dobra de tecido. Ia descalça, com o cabelo emaranhado e vestida de algodão. Depois de ter chamado a atenção de Anne, soltou-lhe a saia.

— Meu pai lutaria a seu lado se nos derem algum penique para comprar pão.

Coroe-a não estava familiarizada com o acento e a fala da pequena, pois nas Terras Altas, unicamente os ladrões de gado dominavam o escocês das Terras Baixas. Entendia o dialeto dórico do Aberdeenshire, mas estranha vez tinha ouvido sua forma sulina, salvo quando os mendigos da cidade se atentavam durante o inverno com os aldeãos pobres, porque havia o costume de oferecer hospitalidade a todo aquele que a necessitasse. Não compreendeu muito apesar de que aguçou o ouvido, e lhe pareceu duvidoso o pouco que decifrou. Se se guiava pela compleição e a saúde da pequena, o homem, se existia, dificilmente estaria em condições de sustentar uma arma e muito menos de brandir.

— Como te chama? — perguntou.

— Clementina... Por favor, senhora, nos dê algo, morremos de fome.

Isso sim tinha pinta de ser certo. Anne pinçou em sua bolsa até tirar dois peniques. Um montão de marotos foram rodear a assim que se dessem conta da esmola, mas aquela criatura tinha grande necessidade de uma comida decente e, já postos, tampouco lhe teria ido mal um banho. Entregou-lhe as moedas.

— Anda, toma, te faça um pouco de caldo onde molhar o pão.

A menina agarrou as moedas de sua mão e desapareceu a toda pressa, fundindo-se entre a multidão. Com essa tez pálida e acinzentada, bem podia passar por um dos muitos fantasmas que devia ter a capital.

Cinco mulheres cruzaram a rua e caminharam para ela. Anne sorriu. Nenhuma delas podia ser um fantasma, as via muito vibrantes e cheias de vida. Eram Greta, Margaret e outras três concidadãs mais de seu exército.

Dirigiram-se todas juntas para os estábulos da cidade, onde os dois moços de quadra ficaram boquiabertos ante tantas mulheres elegantes; o ferreiro, em troca, mostrou-se encantado pela possibilidade de ganhar dinheiro, até que soube no que consistia o negócio.

— Não posso lhes vender os cavalos — se desculpou. — Estão em meus estábulos, mas não são de minha propriedade.

— Alguns desses jumentos podem alugar-se e o resto pode vendê-los em nome de seus clientes — insistiu Greta. — Como reparta o dinheiro com eles é tua coisa.

O homem não mordeu o anzol e se negou em redondo. Aduziu em sua defesa que deveria fechar o negócio se ficava sem cavalos.

— É uma verdadeira pena, não lhes parece, senhoras? — Todas concordaram em que era, na verdade, uma lástima. Então Greta desencapou o aço. — O derramamento de sangue resulta ainda mais triste em um dia tão feliz.

O homem jogou mão a um ferro ao vermelho da forja, mas antes que tivesse ocasião de fazê-lo girar na palma, encontrou-se com a ponta da espada da Greta apoiada no peito. As outras mulheres mantinham a raia às moços de quadra com seus aços.

— É preciso fazê-lo? — perguntou Anne.

— O que? Matar ao ferreiro? — replicou Greta. — Só se for partidário do Jorgito o alemão e o governo dos Whig.

— Que não, que não — protestou o homem.

— Ou se atacar às forças do legítimo rei — acrescentou Margaret.

— Nada disso — repôs o homenzinho com aspecto conciliador ao tempo que apartava a mão do ferro ao vermelho. — Prosperidade sem União! — animou, e no caso de, adicionou: — Viva o rei Jacobo!

— Vá — exclamou Greta com um sorriso de mofa, — parece que lemos dado com um bom patriota, senhoras. O príncipe Carlos saberá de ti, amigo meu — lhe assegurou ao turbado ferreiro. — E agora, se você e seus moços selam aos animais...

As cinco damas desceram pelo Canongate ao cabo de uns minutos, levando detrás de si a outros vinte cavalos. Sir John Murray do Broughton, no Holyroodhouse, ficou encantado com as incorporações a sua cavalaria.

— Vinte e cinco corcéis novos — gorjeou. — É assombrosa, Greta.

Era um homem elegante por natureza, de modo que em vez de elevá-la em velo e agitá-la no ar, tirou-a das mãos para dançar uns quantos passos de jiga.

O entusiasmo daquele elegante homenzinho ante as façanhas de sua esposa a feria tanto que Anne se viu obrigada a desviar a vista. Ai, se Aeneas lhe tivesse demonstrado uma alegria similar... Retornaria junto a ele breve, pois já não havia motivo algum para atrasar-se entre as filas do exército jacobita. Depois de reembarcar suas tropas no Aberdeen para navegar para o Edimburgo, Monopolize tinha descoberto que lorde George lhe esquivava e se dirigia à Escócia meridional. Agora voltaria a estar a salvo no Moy: a salvo do exército de Monopolize, mas não das iras de seu marido. Subiu à habitação que ocupava no palácio. .Aquele não era seu lar e não se sentia a gosto por muito que lhe tivessem reservado uma estadia cômoda e bonita: o teto estava ornamentado com talhas, os móveis eram muito finas e luxuosas as cortinas das janelas das quais se divisava a Cadeira de Arturo, um trono proeminente coberto de erva, onde tinham optado por acampar ao ar livre muitos soldados, seguindo seu costume, e se aparecia e girava a cabeça, a vista abrangia todo o Canongate, cujas casas, antes grandiosas e agora meio em ruínas, também estavam ocupadas pelo exército, até chegar à porta do Netherbow, cujos portões metálicos estavam agora de par em par, custodiados por jacobitas.

Um cavaleiro descendeu da colina e cruzou as portas ao galope. Seu comportamento delatava um grande nervosismo, pois proclamava a gritos uma notícia assim que se cruzava com algum viandante, mas não conseguiu inteirar-se da mesma, embora sim se precaveu de que fazia trinca nos cidadãos, que procuravam a outros com a olhava e formavam carriolas para comentá-la. A novidade se ia divulgando. O cavaleiro era MacGillivray.

Alexander tinha desmontado para quando Anne teve baixado a ampla escada e saiu do palácio. Encontrou-o atando seus arreios. A gente corria ao redor como se um objetivo comum enchesse a todos de energia.

— Anne! —exclamou ele nada mais vê-la. — Monopolize chegou ao Dunbar e George anuncia que devemos partir logo para cercar combate com os ingleses.

— O que opina ele? Será nossa a vitória?

— É provável, mas ganhemos ou percamos, em algum momento terá que combater, e esse momento chegou. Ficará para nos despedir?

A jovem vacilou. Ganhar ou perder? Deveria voltar para casa com o rabo entre as pernas, como um cão espancado, se perdia, agora bem, se ganhavam...

— Não, não lhes despedirei — respondeu. — Irei com vós.

Mais que Perth ou Edimburgo, um triunfo no campo de batalha provaria a justiça de seus atos. Uma vitória demonstraria ao Aeneas quão equivocado estava.

Monopolize tinha escolhido a planície do Prestonpans como campo de batalha. O sol de setembro caía a chumbo sobre os mais de dois mil soldados alinhados detrás dos canhões. Ocupavam uma posição vantajosa: o mar lhes protegia a retaguarda e os inacessíveis brejos impediam que os soldados escoceses atacassem a pé pelo flanco esquerdo. A única possibilidade era atacar de frente ou pelo flanco direito, onde estava formada a artilharia.

— Olhe esses canhões, Alexander. — Anne, montada no Pibroch, estava junto ao MacGillivray sobre uma colina ao oeste, de onde se via todo o campo de batalha. — Não podemos nos medir com a artilharia.

— Passaremos antes que possam disparar mais de uma vez — assegurou ele.

A afirmação não passava de ser uma bravata, e ela sabia. Nenhum dos dois tinha presenciado nunca uma batalha, mas qualquer podia ver que ia se produzir uma devastação se a infantaria carregava de frente, já que cairiam por dúzias antes de chegar à altura das filas inimizades. MacGillivray ficaria em vanguarda quando chegasse o momento, atuando como o resto dos chefes montanheses, pois não exigia de seus homens nada que não estivesse disposto a fazer ele mesmo em pessoa. Lançaria-se à carga à frente dos seus, direto a um fogo infernal.

Não muito longe de ali, na mesma colina que eles, lorde George sopesava esse problema e se encetou em uma acalorada discussão com o príncipe, Ou'Sullivan, duque do Perth, e o conde do Kilmarnock, que se tinha unido recentemente a suas forças. As tropas jacobitas contavam agora com três mil homens e avantajavam em número ao corpo de exército inimigo situado ante eles, mas não estavam tão bem equipados e combater ali seria um suicídio.

— Vou dizer ao George que não combateremos — anunciou Anne, e fez gesto de tironear as rédeas do Pibroch. MacGillivray não tinha perdido de vista as filas inimizades em nenhum momento, e de repente a deteve e alargou um braço em direção à posição britânica.

— Não, Anne. Olhe!

Em um primeiro momento ela só foi capaz de distinguir as jaquetas vermelhas dos soldados ingleses; logo conseguiu identificar o tartán escuro que luziam os soldados situados no meio. Era o Guarda Negro, e a julgar pelo estandarte que ondulava sobre o centro de mando, o regimento de lorde Louden, proveniente do Invernes.

Uma mão de pedra lhe apertou o coração. Fariam-lhes combater contra seu próprio povo? Por diante das linhas, um movimento atraiu sua atenção. Um oficial e seu tenente caminhavam ao longo das lilás, detendo-se de vez em quando para falar com os homens. Embora o tartán escuro desse uniforme não lhe resultava familiar, teria reconhecido esse passo em qualquer parte. Era Aeneas.

Aeneas se deteve junto ao Lachlan Fraser, um moço de apenas dezessete anos. O infeliz parecia gelado e tremia dos pés à cabeça apesar de que não fazia frio, e lhe via paralisado apesar dos estremecimentos.

  — Domina os nervos, filho — lhe aconselhou com toda a amabilidade de que foi capaz. — Não podem congregar-se antes do obscurecer. Poderá dormir toda a noite. E quando vierem, entre você e eles estarão os canhões.

— Meu pai vem com eles — argumento o menino.

Aeneas lhe estreitou o ombro. Para isso não tinha resposta, pois não a havia.

— Não o dê por feito — repôs. — Esta posição é muito boa. É possível que deem meia volta e voltem para casa. Não há vergonha alguma nisso.

Era consciente de não enganar a ninguém, e muito menos a si mesmo. O exército jacobita tinha crescido durante a marcha para o sul. Talvez optassem por não apresentar batalha naquele terreno, mas algum dia não muito longínquo teria que fazê-lo. Se o encontro tinha lugar naquele cenário, o governo obteria a vitória que ele tinha vaticinado. Era algo passível. Os ingleses acabariam com a sublevação de um só golpe, rápido e firme, mas logo todos poderiam voltar para casa a lamber as feridas.

— Capitão Macintosh. — Ray fez a saudação militar a seu lado. É que esse homem não ia aprender jamais na vida? — Temos mais companhia. —Assinalou a elevação com um movimento de cabeça.

Aeneas percorreu as filas inimigas com o olhar. Já tinha distinto ao Carlos Eduardo Estuardo, com seus comandantes, e ao George Murray, a quem conhecia bem. Em outras circunstâncias, ele lhes teria acompanhado. E ainda podia fazê-lo se vinham os franceses, apesar do que acreditava o governo, pois lhe ocorria quão mesmo ao jovem Lachlan Fraser: estava esmigalhado pela metade.

— A mulher — assinalou Ray. — Não veem a mulher, senhor?

Sim, sim a via. Anne resultava inconfundível inclusive vista de longe. Montava o lombo do cavalo que lhe tinha dado antes das núpcias e se achava ao lado do MacGillivray. Invadiu-lhe um sentimento misturado de angústia e ira muito similar ao que tinha sentido ao vê-la partir, só que agora era de maior intensidade. Tinha passado um mês após. A muito rebelde não tinha voltado para casa depois de deixar suas tropas no Glenfinnan como era de prever nem tampouco quando o exército do governo partiu do Invernes. Não lhe bastava havendo-o envergonhado atuando com independência de seu marido: tinha contínuo sem ele, o qual era uma conduta sem precedentes. Seguia com um exército ao que seu marido se opunha. Seguia com o MacGillivray.

— Essa é a bruxa da qual lhes falei, capitão — explicou Ray. — Por duas vezes estive a ponto de lhe dar um tiro. Esta vez sim que farei!

Aeneas se girou, aferrou-lhe pela jaqueta e atirou para cima, lhe obrigando a ficar nas pontas dos pés até que os rostos de ambos ficaram à mesma altura.

— Muito ao contrário — lhe espetou. — Cuidará de que ela não sofra nenhum dano ou lhes verão comigo. Ela é minha, entendem? Minha!

Anne desmontou e começou a passear pela colina.

— O que faz aqui, MacGillivray? — saltou raivosa. — E com o homem que matou ao Calum e a sua mãe. Não é o que dizia. Não é como você dizia!

— Não sei, mas ele não usará as armas contra os seus.

— Pois está a ponto de fazê-lo! — espetou-lhe ela. — Está por ver se esses canhões nos massacram ou não. Acaso espera nos humilhar para que retrocedamos? Está tão decidido a sair-se com a sua que é capaz de matar a sua própria gente para obtê-lo?

Lorde George começou a distribuir as tropas pelo campo de batalha. O oficial ao mando atuava com soma prudência, apesar de saber que antes ou depois deveriam expor-se ao fogo da artilharia. O príncipe subiu à colina para falar com os chefes highlanders antes que também eles se lançassem à carga. Ela escutou a arenga.

— Me sigam, e com a ajuda de Deus, cavalheiros, hoje farei de vós um povo livre e feliz.

«Oxalá seja verdade», rogou Anne. «Ai, se fosse verdade». Como podia Aeneas fazer algo assim? Tão pouco lhe importavam ela e seu povo? Sentiu um puxão nas saias e olhou para baixo. Era uma menina imunda, a mendiga de Edimburgo a que tinha dado dois peniques.

— Clementina! — exclamou. — O que faz aqui?

— Meu papai veio a brigar, tal e como lhes prometi, mas me há dito que fique com o mulherio —lhe explicou ela.

— Tem-nas ali — replicou Anne sem ânimo nem tempo para distrações. Devia adotar uma decisão, e, além disso, devia fazê-lo em seguida, pois MacGillivray teria que baixar com suas tropas em questão de minutos.

— Não, já, se isso já souber, mas há dito uma dama que esse tipo daí, aquele — insistiu a pequena, assinalando com a mão a lorde George, — estava como louco por inteirar-se de se havia forma de cruzar o brejo.

— O brejo? — Anne voltou a observar o terreno. O pântano estava à esquerda das tropas governamentais. Havia chão firme suficiente entre o pântano e o exército para alinhar-se em formação e atacar, mas não tinham maneira de chegar até ali. A superfície lamacenta do brejo estava alagada por atoleiros de água estancada e era do mais traiçoeira. voltou-se de novo para a Clementina. — O que sabe você desse pântano?

— Vivíamos ao outro lado até que mamãe morreu e a papai lhe meteu na cabeça que estaríamos melhor em Edimburgo — explicou a pequena, — mas não foi assim, e a cão fraco tudo são pulgas. — Sacudiu a cabeça. — Não tínhamos trabalho na cidade e como não tínhamos dinheiro, tampouco podíamos pagar o pedágio para partir. Só foi possível quando vieram vós e abriram a porta.

MacGillivray foi ao galope e jogou pé a terra junto à jovem e a menina quando as trompetistas reclamaram a presença dos Macintosh.

— Devo ir, Anne — anunciou, deixando o cavalo a seu cuidado.

— Não, espera. — Ela se girou uma vez mais para a moça e se preparou para aguçar bem o ouvido, pois lhe resultava difícil compreender bem o dialeto da garota. — me diga o que sabe do pântano?

— Conheço o caminho para cruzá-lo — foi à resposta.

 

Os dois exércitos se acomodaram para dormir ao cair a noite, situados o um fronte ao outro, mas fora do alcance das peças de artilharia. Monopolize ficou satisfeito com os preparativos prévios à batalha e se retirou a passar a noite em um botequim próximo ao Musselburgh.

Aeneas não conciliava o sonho de pura inquietação. MacGillivray ocuparia a posição habitual de batalha própria do clã Chatton, no centro do campo, diante dele. Se lorde George enviava primeiro aos MacDonald para atacar o flanco esquerdo, os canhões disparariam em diagonal através do campo de batalha, justo para o clã que desencadeasse o ataque pelo centro. O mesmo aconteceria se eram os Cameron os que carregavam primeiro contra o flanco direito: os canhões girariam para eles, mas mesmo assim aniquilariam qualquer ataque para o centro do campo. A única maneira de abrir o centro era enviar simultaneamente ao Keppoch e ao Lochiel. Atuaria assim lorde George ou enviaria primeiro ao regimento Macintosh para que atraíra o fogo, apartando o de sua própria asa?

Ele tinha muito claro como teria atuado de ter estado no pele do MacGillivray, onde bem poderia ter estado se Anne se saiu com a sua: teria se negado a atacar. Mas MacGillivray era valente até a temeridade e se lançaria à carga, avançaria convencido de que, com rapidez e ferocidade, era capaz de cruzar o campo até as filas que estavam detrás dos canhões antes que suas baixas fossem tantas para detê-los.

— Que Deus te ajude Alexander — rezou Aeneas. — Que Deus te ajude.

Era uma esperança absurda. Se sua primo conseguia superar o fogo dos canhões, encontraria-se nas linhas do Aeneas, entre os aterrados filhos de seus próprios soldados, e teria que derrubá-los: tio contra sobrinho, irmão contra irmão, pai contra filho. E Aeneas teria que deter o MacGillivray se penetrava até sua posição.

Ao longo de sua vida tinha dormido sob as estrelas mais frequentemente que baixo teto: nos brejos, sobre rocha, subido a uma árvore, com bom tempo ou tempo cruel, mas nunca tinha dormido em leito mais duro e inóspito que esse. Bem envolto em seu jazigo, tratou de reprimir sua mente desbocada.

Era uma noite sem estrelas e o manto de bruma velava a paisagem. Além disso, apagaram as fogueiras para eliminar qualquer possibilidade de que os soldados governamentais pudessem ver esses seus deslocamentos realizados no mais absoluto silêncio, tal e como lhes tinham ordenado: todas as armas e até a última parte de metal devia ir bem junto ao corpo, uma precaução necessária, pois os rudes e fornidos highlanders levavam toda classe de armas brancas: os melhor armados tinham atravessados e espadas largas a ambos os lados e pistolas as gema no cinturão; alguns carregavam à costas uma tocha Lochaber ou um montante, dos que lutavam com as duas mãos; uns poucos levavam mosquetes e, como último recurso para a luta corpo a corpo, sob a camisa escondiam bem sujeito o curto e afiado sgian dhubh*. A maioria levava adagas à costas. Uma menina de apenas doze anos ia diante de todos para lhes mostrar o caminho.

Os nortistas partiram em fila indiana de um arbusto a outro com toda cautela, seguiram à pequena entre juncos e serpentearam todo o possível para rodear os atoleiros.

Dois artilheiros governamentais dormiam a perna solta debaixo de seu canhão no flanco esquerdo do exército britânico. Um deles abriu os olhos assim que sentiu os dedos de uma mão em torno da boca, mas reagiu tarde: um punhal lhe abriu o pescoço em canal quase ao mesmo tempo em que seu companheiro corria a mesma sorte. Os dois infiltrados do clã Cameron arrastaram os cadáveres até introduzi-los de novo entre as rodas para envolver-se em suas mantas escocesas e tornar-se a dormir. Enquanto isso, os casais de artilheiros de fila eram despachadas do mesmo modo e no meio do silêncio mais absoluto.

O resto dos jacobitas foram chegando a chão firme, um a um; formaram-se em fila e se tenderam a dormir em suas mantas, entre os restolhos do trigo recém segado. As últimas filas vinham armadas com o que tinham à mão: ganchos para cabeças de gado, estacas ou forquilhas, ou algo que tivessem podido encontrar. Seriam a última quebra de onda em chegar ao campo de batalha e talvez conseguissem armas melhores entre os cansados.

Transcorreram várias horas antes que o último homem tivesse chegado, são e salvo. Despertaram a Clementina quando todos estiveram em seus lugares, pois por então já dormia encolhida na margem do pântano, para que se reunisse com as mulheres ao outro lado da colina.

Um soldado saiu a tombos de sua manta em meio da bruma cinza do amanhecer. Avançou com passo vacilante entre dormidos soldados da infantaria inglesa e se dirigiu para o sul, até o extremo de sua fila. Esteve dando bocejos enquanto rebuscava entre suas roupas e aliviava a bexiga, mas ficou boquiaberto e petrificado quando viu toda uma fila de espectros apenas visíveis, amortalhados pelos véus da neblina, frente a ele, ao outro lado da planície. Avançavam agachados, pareciam a ponto de entrar em combate. Foi incapaz de entender o significado daquela fileira fantasmagórica, mas lhe pôs carne de galinha e salpicou de urina a um companheiro que dormia a seus pés; este despertou chiando uma maldição.

Aeneas se achava acordado entre os membros do Guarda Negro, em uma posição mais atrasada, por isso se levantou de um salto e aguçou a vista em direção ao lugar de procedência do grito. Os jacobitas imóveis se alinhavam em formação e permaneciam erguidos como fantasmas no ar leitoso e cambiante. Aguardavam a luz do dia. Girou para o oeste, onde os tinha visto a noite anterior, mas ali não se via nada mais que um cinza formado redemoinhos. Jogou outra olhada para o sul, onde seguiam em suas posições, apagados sob o manto fuliginoso, mas muito reais. Se mexeu para sacudir ao Ray até despertá-lo e lhe ordenou que preparasse a seus homens enquanto ele corria a despertar a lorde Louden. No flanco esquerdo os soldados já se estavam despertando e ficavam de pé, sem entender a temível aparição da esquerda. Ouviram-se mais gritos.

— Jacobitas!

— Às armas!

— Em nosso lado?

— Toquem o alarme!

— Alerta! De pé!

MacGillivray os ouvia e observava os movimentos através da bruma. Estava de pé frente ao clã Chatton, imóvel, inspirando profundamente, em tanto as tropas do governo despertavam entre os restos.

O príncipe e lorde George aguardavam acontecimentos no alto da colina a lombos de suas respectivas monturas. Não se via nada do acontecido na planície, pois o sol ainda não iluminava a cena, mas ouviam perfeitamente os gritos de alarme. Carlos Eduardo Estuardo sorriu a seu comandante em chefe.

— Estão tendo um despertar bastante duro, lorde George.

Atrasada com respeito ao grupo de mando, Anne permanecia imóvel na retaguarda a lombos do Pibroch, em companhia da Margaret e Greta, também montadas a cavalo. As três levavam espada ao flanco e pistolas nas cadeiras de montar. Ao outro lado estava Clementina; Anne a tinha subido ao cavalo de MacGillivray para lhe facilitar a visão da luta. Não cabia fazer menos pela pequena, depois de tudo. Entre elas, mudos de medo e carregados de espera, esperavam as mulheres e os meninos. Posto que as tribos os reverenciavam, não lhes arriscaria na batalha. Uns poucos tinham decidido enfrentar-se ao perigo. O resto ia ter muito trabalho ao término da batalha campal.

O sol coroou o horizonte e pôs fulgor em todos aqueles rostos. Abaixo, no campo de batalha, a névoa começava a desvanecer-se.

Aeneas sacudiu com rudeza ao Louden até lhe fazer sair da tenda.

— Rodearam-nos — lhe explicou o escocês, assinalando os flancos. — Onde está o general?

— Ficou-se passando a noite na estalagem.

— Pois então terão que assumir você o mando. Logo amanhecerá.

O interpelado se fez cargo da situação ao cabo de uns segundos.

— Que montem os dragões — ordenou ao jovem lorde Boyd, filho do conde do Kilmarnock; se voltou para o Aeneas e lhe deu outra instrução: — Façam girar os canhões e movam a sua companhia para cobrir esse flanco.

— Isso não é possível — objetou Aeneas, carrancudo.

— Tentem — ladrou Louden.

Aeneas correu a reunir-se com seus homens, sabendo que lhes acabava o tempo: a luz diurna ia em aumento e a bruma se reduziu já a finos farrapos que deixavam ao descoberto alguns setores do inimigo. Ao chegar junto aos seus, viu que Duncan Shaw não apartava a vista de seus próprios pés.

— A ver, filho, por que não pode olhar à frente? Quem está aí?

— Meu irmão, senhor. Está ali. Não briguei com ele desde que me fez sangrar o nariz, aos dez anos.

— Bom, hoje poderá fazer que sangre a ele para te vingar. — Aeneas se apressou a reunir-se com o James Ray. — Tenente, quer ordenar que se girem os canhões?

— Para lhes fazer disparar através de nós? — inquiriu Ray, sem dar crédito a seus ouvidos.

— Obedeçam! — espetou-lhe Aeneas.

Não era de sentir saudades que os ingleses dessem suas ordens a latidos. Com eles não servia de nada lhes pedir as coisas. Ray correu para o canhão mais próximo.

— Girem os canhões! — ordenou assim que esteve o bastante perto para fazer-se ouvir.

O tenente reatou a carreira ante a falta de resposta dos artilheiros em cachos em volto dos canhões.

No campo escocês, MacGillivray estudava as linhas inimizades quando a névoa lhe permitia ver algum setor. Enrijeceu-se em um momento dado e se voltou para o Donald Fraser, que formava parte de sua vanguarda.

— Não é seu esse filho daí em frente?

— Sim — respondeu Fraser, orgulhoso. — O major, o único varão.

Em frente, depois das filas de jaquetas vermelhas, o jovem soldado do Guarda Negro se deu a volta e agora estava justo diante deles.

— Pois então vê atrás, com o Ewan — ordenou MacGillivray.

— Meu lugar é a vanguarda — teimou Fraser.

— Enquanto esteja ao mando, não permitirei que pai e filho se matem mutuamente — insistiu o jovem. — Vá a retaguarda, agora mesmo.

Irritado por ter perdido seu lugar, o homem se afastou para retroceder entre as filas. Seu posto foi ocupado pelo seguinte highlander.

James Ray deteve sua carreira ao chegar à posição dos artilheiros, ergueu as costas e quadrou os ombros para adotar um ar bem marcial, autoritário, pois fervia de indignação. Como podiam fazê-los lentos e ignorar as ordens estando seu exército em uma situação tão apurada?

— É que ainda estão dormindo? — bramou. — Gire os canhões!

Então, os dois artilheiros encolhidos debaixo da peça mais próxima retiraram as mantas e se levantaram, deixando ver que já estavam armados. Os dois casais de artilheiros que lhes seguiam na fila fizeram outro tanto, e assim sucessivamente. O tenente gesticulou boquiaberto ao ver-se mirado por doze pistolas, deu meia volta e pôs-se a correr por onde tinha vindo como alma que leva o diabo.

Apesar de estar enfrascado em estabelecer a ordem entre as filas do Guarda Negro para logo as orientar para o sul, Aeneas teve tempo de precaver-se da captura de três de seus seis canhões. Os highlanders começaram a girar as peças de artilharia para apontar para as tropas inglesas. Ao vê-lo, um soldado se fez o sinal da cruz junto ao Aeneas; nesse momento, o tenente Ray passou a toda carreira, sem deter-se.

— Retirada — murmurou Aeneas. — Devemos tocar a retirada.

Enquanto seu sargento formava aos homens, ele correu em busca do Louden.

No topo do trono, Anne se reclinou sobre a cadeira de montar, esticando-se para ver melhor. Morria de vontade por saber o que ia fazer agora que se tornaram as voltas.

Os habitantes da zona e os edimburgueses começaram a chegar às ladeiras e outros observatórios em alto de onde tinham intenção de presenciar a batalha.

— A que esperamos? — quis saber Clementina.

— Ao amanhecer — respondeu a coroe-a. — À alvorada terá esclarecido o suficiente para poder reconhecer aos nossos.

Um movimento entre as filas inimizades atraiu sua atenção. Aeneas retrocedia à carreira; dava a impressão de perseguir a seu próprio tenente. Perguntou-se aonde iria seu marido e por que deixava a seus homens sem mando. O tenente não deixou de correr, mas Aeneas se deteve junto a um grupo de oficiais entre os quais se achava Louden e conferenciou com eles. Em um momento dado ficou a gesticular e indicar algo com o dedo. Anne seguiu a direção assinalada por seu marido sem apreciar nada de importância, salvo um menino a cargo de um tambor. Um tambor! Então o entendeu tudo e pôs ao Pibroch ao trote para aproximar-se de lorde George.

— Vão iniciar a retirada, George — lhe informou.

— Um minuto mais — pediu ele. — Que se vejam primeiro.

— Mais non — objetou o príncipe. — Não deveríamos lhes permitir que retrocedam?

— A próxima vez não gozaremos desta vantagem — a divertiu lorde George.

— Não vejo o general Monopolize — advertiu Carlos Estuardo enquanto observava a cena.

— Não está aqui — lhe respondeu Anne.

— Ps ici? Pois então a retirada poderia ser um estratagema. Talvez tenham previsto nos surpreender com outro exército pela retaguarda a fim de nos apanhar no meio.

— Com todo respeito, senhor — lhe assegurou o comandante: — não tem as tropas necessárias.

—  Pois então onde está?

Não longe de ali, no único botequim do Musselburgh, a hospedeira entrou na habitação de hóspedes. Entre os cobertores, unicamente se via aparecer um gorro de dormir com borla vermelha.

— Senhor...? — chamou-o, dúbia, a modo de prova. — Geral Monopolize...?

O vulto palpitante da cama não fez mais que roncar.

— General, senhor — insistiu a taberneira. — Pediram que despertasse cedo.

Ouviu-se um bufo; logo, uma exclamação afogada. Um só olho apareceu por entre as mantas.

— Que horas são?

— Está amanhecendo, senhor. Seus companheiros se foram faz meia hora.

Monopolize arrojou as mantas a um lado e se levantou de um salto. A mulher apartou os olhos ante a visão daquela breve camisa de dormir e saiu da habitação a toda pressa. Dirigiu-se ao piso de abaixo e depositou sobre a mesa o café da manhã do militar, que ao cabo de poucos minutos descendeu pelas escadas em meio de um grande estrépito. O britânico se abotoou mal o uniforme e nesse momento fracassava em seu intento de endireitar a peruca ao mesmo tempo em que ajustava ao cinto a espada.

— Têm que comer algo, senhor. — A mulher assinalou com um gesto o prato fumegante. — Não é coisa de morrer com o estômago vazio.

— Não há tempo, não há tempo.

Monopolize se encaminhou para a porta.

— Se é que sem vocês não poderão começar! — A porta se fechou com violência atrás dele. — Ou sim?

 

Desde sua posição na planície, MacGillivray não perdia de vista lorde George, situado no altozano. O sol tinha aparecido por cima do horizonte e a bruma se dissipou quase em sua totalidade. Alexander esperava com verdadeiras ânsias a ordem de atacar agora que havia suficiente visibilidade. Na elevação, lorde George elevou sua espada, sustentou-a em alto e logo a baixou bruscamente.

O escocês ruivo se ajustou a boina antes de jogar mão à costas, onde levava o claymore, e o brandiu por cima da cabeça.

— Claymore! — rugiu.

Todos os chefes bramaram o mesmo grito, desde o Lochiel, situado à esquerda, até o Keppoch, se localizado no flanco direito. Quem estava à vanguarda se encasquetaram as boinas e extraíram as pistolas. MacGillivray projetou sua espada para o fronte enquanto os outros chefes lançavam o grito de batalha e bramou o seu próprio:

— Loch Moy!

O clã Chatton se achava à expectativa detrás dele e todos fizeram coro a divisa a voz em grito. MacGillivray imprimiu um passo demolidor à carga dos highlanders. Os acanhados recrutas da vanguarda inglesa nunca tinham presenciado nada semelhante e lhes entrou o pânico, o qual lhes induziu a abrir fogo antes de tempo e todos os disparos se perderam antes de chegar à corrente de highlanders que lhes vinha em cima. MacGillivray se deteve abruptamente quando estiveram a distância de fogo; os seus lhe imitaram.

— Apontem — gritou. — Fogo!

As pistolas escocesas trovejaram com estrondo e pouco depois um bom número de soldados ingleses rodaram pelos chãos, alcançados pelo fogo. Os highlanders deixaram cair as armas, elevaram as tarjas que levavam às costas e jogaram mão aos aços, que saíram das vagens em um cegador cintilo metálico para terminar todos em alto.

— Loch Moy! — clamou MacGillivray outra vez.

Seus seguidores repetiram o grito e empreenderam de novo a carreira sobre o inimigo. Na vanguarda das tropas governamentais, muitos soldados de jaqueta vermelha ainda seguiam de pé em um estou acostumado a atapetado de mortos e feridos. Contemplaram com verdadeiro pavor a carga daquelas tribos selvagens. Nas filas jacobitas, a segunda linha se ajustou a boina. Jenny Cameron, que se tinha negado a que seus homens tivessem outro comandante à frente, desembainhou a espada.

— Claymore! — chiou. Os homens que a seguiam o repetiram, já extraindo as pistolas.

Ao longo da fila se ouvia o mesmo rugido.

— Claymore! — bramou Ewan MacCay pelo clã Chatton. Houve uma pausa; logo, o grito de batalha de cada um dos clãs.

— Loch Moy! — O grito de guerra dos Macintosh ressonou outra vez antes que o grupo empreendesse uma feroz carreira através do campo de batalha.

Dizimada-a primeira linha de jaquetas vermelhas esperou com as baionetas impregnadas à quebra de onda ensurdecedora de jacobitas. MacGillivray foi o primeiro em chegar, à cabeça de seus homens, e descarregou com força seu montante contra o soldado mais próximo. O pescoço do homem se abriu e a cabeça se inclinou a um lado, deixando à vista o branco osso; o soldado caiu em um bombeamento de sangue. MacGillivray já o tinha deixado atrás para atacar ao seguinte.

Anne sentiu uma arcada de náuseas ao contemplar a matança do altozano e desviou o olhar.

— Mais valerá olhar para outro lado — insinuou Clementina com o rosto de um cinza cinzento mais intenso que nunca.

Seu pai estava naquele campo de batalha.

— Eu devo olhar — explicou Anne, — posto que os trouxe. Você pode ir onde estão às mulheres Macintosh. Diga-lhes que te mandei ficar com elas.

A menina não se fez de rogar nem foi necessário repeti-lo pela segunda vez. Puxou das rédeas e esporeou ao cavalo de MacGillivray até levá-lo em direção oposta ao combate e franqueou o topo da elevação, para o sítio onde esperavam as mulheres. Anne concentrou toda sua atenção no cenário da luta.

Aeneas correu a reunir-se com seus homens assim que escutou o início do ataque. Enquanto isso, as filas inglesas situadas entre o Guarda Negro e a vanguarda assaltante dos montanheses vacilavam e cediam. Os Cameron abriram uma brecha bem funda entre as filas da infantaria a fim das ver-se com os dragões enquanto os MacDonald, posicionados mais perto do mar,se entravam nas tropas inimigas,massacrando-as.

MacGillivray e seus homens tinham atravessado a vanguarda e foram derrubando soldados a seu passo no meio do estrondo das baionetas, as tarjas, as espadas. Os homens das diminuídas filas dianteiras vacilavam entre lhes atacar desde atrás ou girar para enfrentar-se à segunda linha de highlanders, que já vinham à carga, e ao final, em vez de fazer uma ou outra coisa, puseram pés em empoeirada: puseram-se a correr através do combate, retrocedendo entre suas próprias forças para abandonar o campo de batalha.

Aeneas acudiu a toda pressa e desencapou a espada sem deixar de correr. Separou-se de um empurrão a um jovem soldado e derrubou de uma estocada ao montanhês que estava a ponto de travar-se em combate com ele. A pouca distância, os dois irmãos Shaw se emparelharam e se golpeavam as tarjas com verdadeira sanha.

Enquanto isso, na retaguarda, Louden, tratava em vão de desdobrar a cavalaria.

— Atrás! Atrás! — gritava à infantaria, desesperado por limpar o passo para as monturas.

Os soldados de casaca vermelha de vanguarda corriam pelo espaço livre em franco retirada enquanto os três canhões perdidos se alternavam na hora de abrir fogo contra as tropas governamentais. A cavalaria se desagregou; os dragões voltaram garupas para iniciar a retirada ao galope. Louden agarrou pelo uniforme ao moço do tambor e lhe ordenou:

— Toca a retirada. Já!

E segurou o menino pela casaca, se por acaso queria fugir em vez de cumprir sua ordem.

Enquanto o toque de retirada se estendia pelo campo de batalha, Aeneas derrubou de um golpe na cabeça a um atacante do clã MacGregor e partiu a grandes passos para os irmãos Shaw, que lutavam no chão, abandonadas as armas, e levantou o mais jovem de um puxão.

— Já parece! — chiou Duncan. — meu Rinn ao'chùis!*

Seu irmão, no chão, jorrava sangue pelo nariz.

— E agora tocará a ti — disse Aeneas. — te Largue!

Agarrou ao moço pelo pescoço da casaca e o empurrou para trás, a fim de que salvasse a vida na retirada, mas um montanhês apareceu de um nada e transpassou ao menino antes que ninguém pudesse evitá-lo, o aço se afundou no ventre do Duncan e lhe saiu pelas costas. Aeneas bramou de raiva e atacou espada em mão, lhe afundando o aço no pescoço ao highlander antes que este conseguisse liberar seu montante do corpo do Duncan. O irmão maior, frente a ele, seguia emanando sangue pelo nariz, com os olhos espantados fixos no morto.

— Duncan? —disse como se esperasse resposta.

Aeneas se ergueu com uma espada em cada mão. Furioso, bramando como se queria partir para moço em dois, levantou a arma recuperada e a descarregou junto a ele para cravá-la no chão.

— Leva a seu irmão a casa — ordenou.

Enquanto o menino lutava por tornar-se à costas o peso de seu irmão percorreu o campo de batalha com a vista e teve ocasião de verificar que o mais duro da briga tinha remetido em boa parte dos frontes. Os highlanders perseguiam as tropas em retirada. A certa distância MacGillivray, ainda no mais fragoroso do combate, baixou o aço contra um soldado do Guarda Negro e lhe cerceou o braço à altura do ombro; logo, sem deter-se, travou-se em combate com dois soldados com casaca vermelha. Aeneas apertou o punho do montante para assegurar bem o agarre e se dirigiu para seu primo.

Anne extraiu a pistola e açulou a montaria para abandonar seu observatório no alto da colina. Baixou a colina e se dirigiu à batalha serpenteando entre os espectadores. Margaret gritou para retê-la, mas ela não a ouviu ou não lhe emprestou atenção e seguiu ao galope.

A segunda quebra de onda tinha alcançado às filas do Guarda Negro, que se encontrava isolada, mas os escoceses tinham optado por passar de comprimento: desejavam matar ingleses, não compatriotas. Por isso, o Guarda Negro resistia com muita dificuldade. A terceira quebra de onda de highlanders desembainhou a espada e, lançando seu grito de batalha, partiu para a barafunda. Os membros do Guarda Negro optaram por unir-se à retirada uma vez roda suas linhas.

Ewan viu cair ao Lachlan Fraser, o filho do ferreiro, derrubado de uma só estocada pelas costas.

Coroe-a passou diante da fileira de canhões ao galope sem perder de vista ao soldado ferido detrás do MacGillivray. O inglês tinha recolhido uma tocha Lochaber da mão de um escocês morto e agora pugnava por levantar-se. A amazona aguilhoou ao Pibroch enquanto o soldado inglês ficava de pé. Anne reprimiu seu cavalo e apontou com a pistola ao britânico, que tinha levantado a tocha para cravá-la nas costas do MacGillivray. Ouviu-se um pistoletazo quando a tocha ia começar a curva descendente e um salpicão de sangue empapou as saias de Anne. O soldado caiu fulminado em meio de uma nuvem de pólvora enquanto a seguir lhe escapava de entre os dedos para acabar aterrissando, inócua, sobre a erva ensanguentada.

Um sopro de vento dispersou a baforada e justo detrás apareceu Aeneas, com a pistola fumegante na mão esquerda, apontada agora para a Anne. A dela, a lombos do Pibroch, tinha ficado apontando diretamente contra ele.

MacGillivray se girou velozmente para ouvir a detonação e se fez cargo da situação ao primeiro golpe de vista. Viu o inglês derrubado de um disparo, a Anne e ao Aeneas. O soldado com quem combatia aproveitou a trégua para dar-se à fuga. Anne e Aeneas se olharam fixamente enquanto a seu redor os membros do Guarda Negro se retiravam, perseguidos de perto pelos montanheses em meio de um estou acostumado a encharcado pelo sangue e semeado de membros amputados.

Marido e mulher não deixavam de olhar-se. Havia cadáveres em qualquer parte e os cavalos não cessavam de relinchar, assustados, enquanto o aroma adocicado da matança começava a saturar o ar. Anne não encontrou as palavras e logo já foi tarde.

Aeneas quebrou o feitiço: colocou a pistola no cinto e elevou a broadsword com a mão direita enquanto olhava a seu primo com uma pergunta nos olhos. MacGillivray baixou seu montante a modo de resposta. O chefe do clã lhes deu as costas e se afastou a toda pressa.

— Aeneas! — chamou-o Anne.

O interpelado seguiu correndo sem fazer gesto de deter-se.

Carlos Estuardo chegou ao galope pouco depois e passou perto deles, gritando sem cessar:

 — Cessez de tuer! Que afastamento a matança! Ceux-ci sont os sujets de mon père! São súditos de meu pai!

 Gritou a toa, pois os escoceses só entendiam o gaélico e não deixaram de perseguir o inimigo.

Anne embainhou a pistola na cadeira e voltou garupas para retornar ao altozano.

A terceira quebra de onda de montanheses chegou à linha de vanguarda e diminuiu o passo, dando tropeções para esquivar aos cansados. Alguns correram depois das tropas do governo, que se batiam em retirada.

Meg ia diante, forquilha em mão; desgostada como estava por não ter formado parte da vanguarda, queria as ver-se com alguém que ainda tivesse vontades de brigar. Os outros se detiveram: não ficava ninguém com quem combater. Os soldados ingleses que não podiam escapar deixaram cair as armas e elevaram as mãos em sinal de rendição.

A batalha tinha terminado aos quinze minutos de seu início.

As mulheres e os meninos passaram em turba pendente abaixo enquanto a coroe-a ascendia de novo a costa. Os menores foram recolher as pistolas e os mosquetes que os highlanders tinham deixado cair durante a carga enquanto os majores recolhiam quanta arma podiam achar entre os mortos e moribundos.

O encargo das mulheres consistia em atender aos feridos, os próprios e os do inimigo. Depois de uma primeira padre algo primária, levavam-nos aos médicos do Edimburgo, que esperavam ao outro lado da colina.

Aos mortos próprios os retirava para sepultá-los; aos inimigos lhes roubava.

Donald Fraser procurava a seu filho entre os cansados; detinha-se junto a cada corpo e lhe dava a volta para certificar-se de sua identidade. Eram irreconhecíveis em sua maioria: derrotado-los pela espada ou o punhal estavam acostumados a oferecer um aspecto irreconhecível, pois lhes faltava algum membro ou parte da cara; e também os cansados sob a cutilada, que em geral se fazia em círculo, cortava a cabeça ou abria o torso em dois; e um pouco parecido ocorria com a tocha Lochaber que fazia o mesmo contra o crânio, partindo osso e cérebro. A resulta de tudo isso, procurar a alguém na lama vermelha e viscosa era um trabalho horripilante.

Fraser ignorava aos ingleses para concentrar-se nos cadáveres vestidos de tartán escuro. Estava a ponto de dar-se por vencido quando girou um corpo com um profundo corte nas costas e descobriu um rosto muito conhecido, intacto.

  Caiu de joelhos junto a seu filho, afundando os joelhos naquela massa de terra abrandada pelo sangue e a carne que, até pouco antes, tinham sido homens e erva.

Seu amor de pai lhe tirou as forças. Nesse corpo esmigalhado estava o bebê que tinha engatinhado entre seus pés, na forja; o menino que se esforçava virilmente por operar o fole, o jovem empenhado em moldar a golpes uma ferradura com tanta precisão como seu pai. Com os olhos irritados pelas primeiras lágrimas, acariciou a cara pálida de seu filho. O braço do moço se contraiu. Ao momento a velha Meg se ergueu junto a eles, com a forquilha lista.

— Vigia esse sgian dhubh* — lhe advertiu, elevando a ferramenta para atacar.

— Não, Meg! — gritou Fraser. Ela se afastou entre resmungos.

O peito do menino se agitou e abriu os olhos.

—Está vivo — balbuciou Fraser. E olhou em redor para procurar a quem estivesse ali perto penteando o campo de batalha. — Ajuda! —gritou. — Ainda vive. Vive!

 

O resultado da batalha de Prestonpans foi evidente: tinham morrido trezentos soldados ingleses por só trinta jacobitas, que tinham setenta feridos, mas tinham feito mil e quinhentos prisioneiros; um terço deles, feridos gravemente. Foram poucos quão inimigos conseguiram escapar esse dia.

Anne e MacGillivray cavalgavam cotovelo com cotovelo pelo caminho de volta ao Edimburgo. Ambos foram manchados de sangue. O cavalo da coroe-a arrastava detrás de si um jergón onde tinham tendido ao filho do Fraser. Imediatamente atrás foram seu pai, Ewan, a velha Meg e MacBean. Clementina e o pai desta, reunidos depois da batalha, acompanhavam ao resto das tropas, que partiam em grupos pela estrada, desde o Prestonpans. Tinham deixado o príncipe gritando porque ninguém queria enterrar os ingleses.

— Pude ter matado a um homem — resmungou Anne, carrancuda.

— Talvez. — MacGillivray não sabia com certeza o que tinha acontecido entre eles e Aeneas, no campo de batalha. — Talvez salvou um ou dois.

Um cavaleiro corpulento de uniforme vermelho galopava para eles, inclinado para diante e com a cabeça encurvada, sujeitando com a mão o chapéu inclinado. Reconheceu imediatamente a aquela multidão coberta de sangue e ataduras, fatigado depois do combate. Diminuiu o passo e manteve erguida as costas. Levava a casaca mal abotoada, mas os galões e o porte evidenciavam sua fila. Ao cruzar-se com o MacGillivray, sempre majestoso, levantou pela metade a boina.

— Bom dia para um mergulho de cabeça, general — saudou monopolize, que partia apressadamente para o campo de batalha. Seu cavalo passou junto ao jergón.

— Não deveríamos lhe fazer prisioneiro? — perguntou Anne.

Seu companheiro se encolheu de ombros.

— Alguém deve informar aos ingleses da derrota — aduziu. E se deu a volta na cadeira. — Se apura o passo, general — disse, elevando a voz, — chegará a Berwick13 em uma hora.

Monopolize açulou a sua cavalgadura para afastar-se ao galope pela estrada, rumo à Inglaterra. Anne olhou ao MacGillivray com um grande sorriso, que lhe devolveu. Os dois romperam em risadas. Atrás deles os outros lhes imitaram.

Já parecia. Tinham ganhado.

O duque do Cumberland sustentou na mão o tosco esboço de uma amazona feia e corpulenta, de bíceps avultados e coxas monstruosas; torcia a boca até a deformidade ao gritar enquanto baixava um pendente a lombos de um cavalo branco para combater contra as intimidadas tropas inglesas. Arrojou o desenho a Monopolize.

— Derrotados por uma mulher ao mando de quatro patifes que vão com o bunda ao ar! —rabiou.

O general não disse nada. Não tinha visto nenhuma mulher como essa; em realidade, não tinha visto a batalha.

— Anne Farquharson — leu, — lady Macintosh.

A inépcia de Monopolize era muito do agrado do general Hawley, cuja solicitude de ser enviado a Escócia para reprimir a sublevação jacobina tinha sido denegada. sentia-se reivindicado pela inépcia do outro general. Inclinou-se a olhar o pasquim por cima do ombro de seu rival com um sorriso dissimulado.

— Não parece uma dama, a verdade seja sorte.

Cumberland deu uma palmada à caricatura.

— Isto — disse, furioso e com os olhos saltados. . . — isto circula por todo Londres. Somos o bobo da gente! Ouvem esse ruído, Johnny? São os franceses, que se truncam... que se truncam de risada!

— Isto é fictício — aventurou Monopolize. — Esta mulher não existe. — E deixou cair o desenho. Dava-lhe náuseas.

— É de esperar que não — manifestou Hawley.

Cumberland deu uma palmada contra a mesa.

— De modo que eram uns quantos caipiras escoceses, verdade? —rabiou. — Quero que se detenha meu primo. Que se detenha essa, essa... a essa!

— Se tiver que ser justo... — começou Monopolize.

O enxuto Hawley pôs-se a rir. Em sua mirrada estrutura a gargalhada soava como cristal quebrado.

—Justo...? Acaso pode sê-lo o primeiro comandante da história que retorna à pátria sem tropas para anunciar sua própria derrota?

— Os escoceses são lutadores vigorosos e valentes — prosseguiu ele, sem deixar-se intimidar— e o próximo comandante a quem se enfrentem sofrerá uma derrota similar.

— Eu não apostaria por isso — se burlou Hawley, cáustico.

— Eu sim. — Monopolize lançou um olhar ao outro lado da mesa. Da janela podiam ver-se os chapiteles de Londres e a navegação morosa das barcaças pelo Tamises, em cujas águas cintilava o quente sol de setembro. O mundo parecia um lugar aprazível para habitar, mas ele tinha visto os aterrorizados restos de seu exército; tinha escutado seus relatos. Sabia da devastação sofrida e era consciente das baixas inglesas em comparação com as deles. — De fato, estaria disposto a apostar dez mil libras a que será assim.

— Devem ter muito boa opinião desses selvagens seminus — observou Cumberland. A soma era enorme, comparável às coxas da bruxa daquela caricatura.

— Assim é — admitiu Monopolize. — E a tenho ainda melhor de seus comandantes.

— O que! — gritou Cumberland, com a papada estremecida.

— Lorde George conhece bem a capacidade de suas forças. —Monopolize se mantinha em seus treze. — Mas também conhece o terreno e como utilizá-lo em seu proveito.

— Aceito a aposta — disse o duque. — Lhes arrependerão dela. Hawley, atribuo-lhes ao Fort George; farão-lhes cargo do mando. — sentou-se para redigir a ordem. — Avançarão para combater contra o inimigo assim que seu exército tenha reunido todas as forças, entre as disponíveis no norte e estes reforços — lhe entregou o documento, — terão sete mil homens. Bastarão para nosso propósito?

Hawley lhe arrebatou codiciosamente o papel.

— Sim, sua alteza. —Girou para Monopolize. — A menos que lhes retratem, Johnny, eu também aceitarei sua aposta.

Monopolize refletiu a respeito durante uns segundos. Por um lado, odiava ao Hawley, que tinha mais de aranha maligna e venenosa que de homem. Por outra parte, jamais disporia de vinte mil libras e podia ficar arruinado se aceitava essa aposta.

— Ides trocar de canção? — inquiriu Cumberland com um sorriso.

Hawley, zombador, afundou as bochechas. Com esse gesto pretendia expressar superioridade, mas o que fez foi expor ainda mais a ruindade de sua alma.

— Absolutamente — repôs Monopolize. Em um exército tão numeroso haveria, como no seu, muitos recrutas acanhados. Jogou uma olhada ao desenho que tinha ante si. Quase desejava que essa mulher existisse e que Hawley se encontrasse com ela, mas reconhecia o que representava essa caricatura: o medo ao que lhes enfrentava. — Aceito, Henry. Permitam que lhes deseje a melhor das sortes.

Os sinos do Edimburgo repicaram a vitória durante vários dias, trocando a ordem e o tom de seus tangidos, a fim de não enlouquecer aos residentes. Os antiunionistas se manifestavam abertamente; os vacilantes abandonaram a dúvida e os hannoverianos mais recalcitrantes começavam a vacilar.

O príncipe fez ler outra vez ante as ansiosas multidões congregadas no Mercat Cross, no centro da cidade, o Manifesto do Glenfinnan, redigido por seu pai. «E agora, vemos uma nação renomada por seu valor e altamente estimada pelas maiores potencializa estrangeiras reduzida à condição de província sob a falsa e capciosa pretensão de uma união com um vizinho mais poderoso».

A seguir se detalhavam as consequências dessa pretendida união com a Inglaterra: a severo pobreza causada pelos elevados impostos, a humilhação de não poder levar armas por parte dos highlanders, e o estabelecimento de guarnições e governos militares, como em um país conquistado. Do mesmo modo, prometia o perdão para os inimigos, liberdade de culto, amparo das indústrias pesqueira e têxtil e a convocatória de um Parlamento livre «para que a nação recupere a honra, a liberdade e a independência que desfrutava em outro tempo».

O príncipe Carlos proclamou logo a seu pai, Jacobo VIII, como legítimo rei de Escócia e anunciou que se anulava a Lei de União. Escócia estava em mãos dos jacobitas, salvo as guarnições isoladas, apanhadas nos castelos do Edimburgo e Stirling, e nos três fortes das Terras Altas. A nação era livre.

Nas sujas ruelas da urbe se acendiam braseiros e se formavam carriolas de música em qualquer sítio onde houvesse espaço para dançar. As gaitas de fole e os tambores competiam com os violinos. Um granjeiro jacobita residente no Haddington tinha composto um rondó jocoso que tinha feito fortuna e agora se cantava em meio de um grande júbilo.

Né, Johnnie Monopolize! Ainda está dormido?

Ou é que ainda seguem ressonando seus roncos?

Quando despertar, estarei te esperando

Para ir a por carvão à mina bem cedo.

Cada um festejava a vitória a sua maneira. O filho do Donald Fraser se recuperava de suas feridas no hospital, e ele bebia a goles a cerveja de uma jarra que vertia em sua boca uma mulher da cidade. A pouca distância, o velho MacBean e Ewan MacCay dançavam a dança da espada ao compasso das gaitas de fole para deleite dos edimburgueses, mais habituados a entreter-se com azotainas da justiça inglesa que com prazeres pecaminosos. A velha Meg apoiou sua forquilha contra uma porta e sorriu lascivamente a um fornido comerciante do Edimburgo, lhe convidando a dançar. O homem em questão era Duff, o sapateiro, que tinha fracassado tão estrepitosamente em sua missão de custodiar a porta do Netherbow.

— Uf, não. Como me apertam os sapatos — declinou ele, saindo-se por peteneras.

Meg estirou o braço e apertou sua mão ossuda; pouco depois, Duff proferiu um chiado: tinha-lhe apanhado pelas Pelotas.

— Nì sinn dannsa, ao Shasannaich* — replicou ela, em tanto o arrastava pelos testículos para o redemoinho de gente. Duff captou a mensagem.

Anne e MacGillivray passaram por ali e se detiveram olhar. O entusiasmo de ter sobrevivido à batalha resultava contagioso. Greta se afastou de seu marido para inclinar-se perto de um aleijado e dançar em torno da tabela com rodas sobre a que se deslocava o mendigo.

No lado oposto do grupo, Jenny Cameron jogou um pulso ao Stewart. O preboste se defendeu bem até que Jenny apoiou a boca contra a sua e lhe entreabriu os lábios com a língua. O prefeito perdeu a concentração e ela aproveitou o momento para dar um empurrão e ganhar a mão. Interrompeu o beijo com um grande sorriso assim que a mão roçou o tonel. Os espectadores a aclamaram e vários homens se ofereceram como voluntários para outro pulso.

Duff chocou contra MacGillivray quando abandonava a dança a tropeções. Este lhe rodeou com um braço amistoso.

— Duff, velho amigo — lhe disse com um sorriso, — não escutou o príncipe? Os mortos também eram súditos de seu pai. Nada de celebrações, há dito.

A seguir empurrou ao sapateiro em fuga para Meg, que lhe esperava e lhe arrastou de novo ao baile com um repico de saltos.

Anne agarrou ao MacGillivray da mão.

— É hora de que nós também celebremos — disse.

E se uniram à dança. Sapateavam e giravam ao compasso, e davam voltas por volta de um e outro lado; logo, cada um girava em torno do outro sem deixar de olhar-se aos olhos. O resplendor do braseiro acendia fogos vermelhos no cabelo do MacGillivray; brilhavam-lhe as pupilas e tinha os lábios entreabertos em um lento sorriso. Anne, entrecortado o fôlego, sentia que lhe palpitava o coração. Alargou uma mão para agarrá-lo pelo cinturão e o atraiu para si, até apertar os peitos contra a dureza de seu torso, quadril contra quadril. Ele cruzou os braços a suas costas para estreitá-la ainda mais; giraram uma e outra vez de semelhante guisa.

Anne unicamente se precaveu de que tinham abandonado o baile quando se viu o amparo das sombras e com as costas contra a parede. Então elevou as mãos para afundar os dedos naquela vermelha cabeleira emaranhada e entreabriu os lábios para receber seu beijo. Agora o desejava, quanto o desejava.

Coroe-a-se-a apartou um par de passos para um lado a fim de procurar o refúgio de um beco fechado, mas sempre sem deixar de lhe beijar. Os dois jovens se buscavam com a língua, tocavam-se e se saboreavam o um ao outro, deixando-se tomar por um desejo desesperado.

Foi ela quem se afrouxou o peitilho do vestido, quem lhe apartou o tartán para um flanco e lhe subiu a camisa de linho, para poder esfregar os peitos nus contra sua pele. Foi ela quem tironeó do tonelete para cima, até a cintura, e rebuscou debaixo até lhe agarrar o membro ereto entre as mãos. E enquanto isso lhe elevava as saias, colocava-lhe a mão entre as coxas procurando a umidade, afundando os dedos, e a acariciava e sovava tal como o estava fazendo ela, até que os dois se perderam em um deslumbramento de sensação, meio enlouquecidos. Foi ela quem lhe rodeou o pescoço com um braço para ajudar, em tanto ele a impulsionava pelas nádegas para cima, até que os quadris ficaram à mesma altura.

E foi ela quem recordou como a tinha olhado Aeneas, por cima do cadáver do soldado inglês que acabava de matar, no campo de batalha do Prestonpans.

MacGillivray percebeu a mudança de atitude assim que se produziu.

— O que acontece? — perguntou ele, com voz mais grave e pastosa do habitual por causa da excitação, ao tempo que exalava um hálito quente sobre a orelha de Anne.

Apoiou-lhe as mãos nos bíceps e as deixou descansar ali. O foi soltando até que seus pés voltaram a tocar o chão, embora os corpos ainda seguiam apertados, pele contra pele, carne contra carne. Olhava-a com a cabeça inclinada e os olhos mais escuros que a sombra.

— Não cheguei a abrir fogo — lhe explicou Anne. — Foi Aeneas quem disparou, deve- a vida a ele, não a mim.

MacGillivray baixou a cabeça até apoiar a frente contra a dela.

— Mas foste fazer o — repôs.

— Ia fazer o, sim, mas não o tenho feito. Foi Aeneas.

Levantou o olhar ao teto negro e sem estrelas do beco. Logo elevou os braços para apoiar as Palmas contra a tosca pedra, uma a cada lado dela, e voltou a olhá-la.

— Nunca tenho feito o amor a uma mulher em uma rua de cidade — disse. — Pode que este não seja bom momento para começar.

E a empurrou contra a parede até endireitar os cotovelos, apartando o corpo do de Anne. O tonelete e as saias voltaram a cair entre os dois.

 

Acabava de findar o sol quando Aeneas chegou ao Fort George com os restos de sua maltratada companhia. Tinham-nas acontecido canutas depois de uma semana de marcha através de certos setores do país que lhes eram hostis. Muitas vezes, muitas, receberam cusparadas e invectivas; em mais de uma ocasião lhes arrojaram excrementos humanos ou animais quando não pretendiam lapidá-los a pedradas.

Tinham a quase todo mundo em contra: os simpatizantes dos jacobitas os maltratavam por ser tropas do governo e os partidários do governo os maltratavam por ter sido derrotados. Ocasionalmente houve amostras de bondade e desconhecidos que lhes davam comida, cerveja ou ataduras, os estranhos casos de piedade e socorro se produziam por igual entre os de ambos os bandos, mas pelo general não acharam amigos em nenhuma facção. Sofreram mofas e desprezos inclusive em Invernes, cujos aldeãos proferiram pelo bajinis as mais sinistras ameaças.

Ascenderam as últimas ruas levantadas em direção ao Fort George seguindo a reclamação das gaitas de fole, que os chamavam casa. Ressonou um rufo de tambores quando se abriram os portões, deixando ver um guarda de honra que lhes apresentou armas com o mosquete sobre o ombro. Duas filas de soldados escoceses, perfeitamente alinhados, ofereciam seus respeitos aos camaradas que retornavam da guerra.

Um coro de soluços e lamentos começou a soar detrás do Aeneas. .Os exaustos moços começavam a derrubar-se. Também a ele lhe encheram os olhos de lágrimas, mas as conteve. Não podia permitir aquilo. Girou em redondo e deu ordem de deter-se a esfarrapada companhia.

— Já não são uns pirralhos nem crianças sem mães, moços — espetou. — É guerreiros, homens valentes e me orgulha ser seu capitão. —partiu-se à cabeça de um centenar de adolescentes ansiosos, recém desmamados da família, tão tenros que até um gatinho poderia havê-los raspado a lenguetazos. Retornava à frente de trinta e nove soldados. Estavam machucados e talheres de vendagens, e muitos coxeavam. Seu grupo tinha crescido graças aos restos de outras unidades com as que se encontraram no caminho. Na partida havia inclusive um dragão inglês sem arreios ao que lhe faltava uma orelha. Todos vinham impressionados pelo que tinham visto, com os olhos afundados e cara de espanto. — Partiram daqui com um orgulho que não lhes tinham ganhado. Agora têm direito a ele. A ver, tirem peito, ergam essas costas e lhes ponha... Firmes!

Tentaram-no. Todos, menos os feridos aos que levavam médio em velo, ergueram-se bruscamente.

— Sim, chefe! —responderam a voz em grito.

— Venha, provemos outra vez — disse Aeneas, com mais amabilidade e um indício de sorriso. — Fiiiiiir... Mês!

— Sim, meu capitão! — As saudações foram enérgicas, quase ao uníssono.

— Assim está melhor — aprovou ele.

Sairiam a flutuação. Girou em redondo para partir à vanguarda de seus homens, por entre as duas filas do guarda de honra, frente aos tambores e os gaiteiros, e entrou no forte com sessenta e um homens menos. Mortos, feridos, capturados ou simplesmente fugitivos. Ao dia seguinte se sentaria com eles para interrogá-los a fundo. Desejava saber a quem tinham visto cair, com que lesões, quais dos feridos estavam ainda com vida quando abandonaram o campo. Essa noite bastava trazendo-os para casa.

Conduziu-os diretamente ao comilão e golpeou a portinhola com o punho para chamar os cozinheiros. O guichê se abriu ruidosamente; cheirava-se a algo bom. Um dos cozinheiros apareceu a cabeça.

— Janta-se dentro de uma hora, senhor.

— Janta-se agora — replicou Aeneas em voz baixa — Comeremos o que haja, esteja preparado ou não.

Aenas não tinha a menor ideia do aspecto que oferecia, parecia um louco com o sangue seco salpicada pelo tartán e os olhos apagados em um semblante morto. O cozinheiro lhe olhou um segundo e assentiu.

— Sim, senhor. Será apressado.

Deixou-os colocando o que tinha com as caçarolas para servir a sopa.

Sentiu um alívio imenso quando conseguiu chegar a seus aposentos, mas não conseguiu ficar a sós. Forbes estava esperando com o abajur aceso; os olhos do velho juiz pareciam mais enganadores do que de costume, baixo aquela luz macilenta.

— Não estava seguro de que retornassem, Macintosh. — admitiu — Posto que é assim, talvez isto lhe deixe bem. — E empurrou um copo de uísque para o outro lado da mesa.

— O que faz aqui, Forbes?   — notou que o anterior estava vazio.

— O que deseja?

O ancião se levantou. Seus olhos estavam decididamente aquosos.

—Tenho fé nesta União, Macintosh — disse, com a voz quebrada. — Embora não seja perfeita, é a única maneira de avançar.

—Terão que dizer-lhe aos jacobitas. — Aeneas se serve uma taça. — Nos derrotaram.

— E agora devem refletir. Mais à frente há todo um mundo que tem muito que oferecer. estão-se adicionando colônias. Quem sabe quanto possa obter a Grã-Bretanha. Mas Escócia, por si só? Inglaterra, por si só? França ou Espanha nos devorarão, simplesmente, e cuspirão as pipas.

— Assim veio falar de política.

— Juntos podemos obter mais que por separado.

Esvaziou o copo de um gole e deixou que o licor lhe enchesse a boca para saboreá-lo antes de tragá-lo. Essa velha raposa se equivocou de homem, qualquer que fosse sua intenção. O destino das nações não era o que lhe interessava, no momento. Sua esposa tinha lhe apontado uma pistola carregada, em defesa do MacGillivray.

— A idéia da União me um tanto estranha nestes momentos, Forbes — replicou. — Tha meu sgìth*, e amanhã terei que me sentar com minha companhia para elaborar uma lista de nossos mortos. Agora, se me desculpar... — E lhe abriu a porta.

— Peço-lhes desculpas. — O juiz recolheu seu chapéu. — Precisam dormir. — Tirou um saco do bolso enquanto ia para a porta.

— Lhe trouxe isto. — depois de entregá-lo ao chefe saiu da habitação, mas no vão da porta se voltou para ele, e adicionou: — O sinto, Aeneas.

Logo colocou o chapéu e se afastou na noite.

O esgotado capitão fechou a porta depois do ancião e se sentou à mesa, pouco disposto a especular, pois de nada servia. Aproximou o abajur para ver melhor e abriu o saco com o sgian dhubh* que levava debaixo da camisa. Extraiu os papéis com curiosidade e lhes jogou uma olhada. Teve que recomeçar depois de ter lido a metade da primeira página, pois não estava seguro de ter entendido bem. Os documentos eram a escritura e o título de propriedade do Moy Hall e —voltou à folha— todas as terras que abrangia atualmente. O clã ficava livre de obrigações; a dívida estava paga; a hipoteca, saldada. Aquilo era uma notícia digna de celebração, embora lhe chegava no pior momento: quando ele não tinha com quem compartilhá-lo.

No dia seguinte, talvez fosse possível tirar dali aos vivos e devolvê-los a suas famílias em vez de escrever às mães dos mortos. Falaria com os parentes se decidia partir. Possivelmente lhe resultasse possível ser o chefe outra vez.

Seria isso o que Forbes lamentava? Lamentaria lhe ver partir? Ou talvez, e isso lhe faria justiça, lamentava o preço pago no sangue daqueles jovens, uma perda fútil que se teria podido evitar? Ou acaso lamentava o que esses atos haviam feito a Aeneas: o respeito de seu povo, a fidelidade de sua esposa?

Voltou a dobrar cuidadosamente os documentos e os guardou de novo no saco. Logo o pregou dentro de seu sporran, apurou um par de goles de uísque e se deitou.

Reuniu o resto de sua tropa a primeira hora da manhã e esteve espremendo até a última lembrança dos moços com o propósito de repassar a batalha. Ele mesmo podia assegurar que Duncan Shaw tinha morrido; sem dúvida estaria sepultado no Prestonpans, embora ele tinha ordenado a seu irmão que levasse o cadáver a casa.

— Ao Lachlan Fraser deram o talho pelas costas — assegurou um dos sobreviventes. — Justo quando eu me voltava a ver se me seguia.

— Pareceu-te grave? — perguntou, desolado; o filho do ferreiro seria uma grande perda para todo o clã.

—Abriram-lhe do ombro ao quadril, chefe.

Não se acostumavam a lhe chamar capitão, mas Aeneas deixou acontecer o engano e prosseguiu com a lista de combatentes. MacThomas tinha recebido um disparo na cara. Robbie Uivador tinha perdido um braço e o menino Macintosh, esse ao que chamavam Desavergonhado tinha fugido do campo na direção equivocada; ao MacPherson tinham metido quatro dedos de aço na tripa.

O cômputo daqueles cujo destino recordavam com certeza subia a dezenove. Talvez alguns deles tivessem sido capturados com vida. Nada sabiam dos quarenta e dois ausentes. O chefe Macintosh decidiu redigir dois tipos de carta: uma sobre os feridos em ação, outra para os que davam por mortos. Quanto aos desaparecidos em ação de cuja sorte nada se sabia, bom, isso deveria esperar.

Essa mesma tarde pediu um cavalo para ir ao Moy. Enquanto cruzava o distrito rural do Drumossie, observou o território até onde lhe alcançava a vista: a terra coberta de urzes e bosques, as cabanas de torrão fumegando através da coberta, os arroios serpenteando entre as pedras, a espuma das cascatas rugientes, o lago faiscante sob o sol outonal.

Faria construir mais cabanas de pedra, limparia algum setor de samambaias e urzes e os faria cultivar pelos melhores agricultores do clã. Auto-suficiência: essa era a maneira de avançar. A dependência não beneficiava a ninguém. Estava fazendo planos para o futuro: um futuro do que Anne não formava parte.

Passou por diante da forja de pedra. Teria se detido a lhe oferecer suas condolências pela perda de seu filho se Donald estivesse ali, mas a forja estava apagada, e o ferreiro, ausente. O ferreiro estava no Edimburgo, se tinha sobrevivido à batalha, e Aeneas não podia ainda enfrentar-se ao Màiri e aos filhos menores; não sem a carta, sem algo ao que ela pudesse aferrar-se.

No Moy Hall, Will e Jessie saíram correndo a lhe saudar.

— Que alegria lhes ter em casa — disse Will.

— E de uma peça — acrescentou Jessie.

— É uma alegria estar aqui — conveio ele.

E isso era bem certo sempre e quando não emprestasse atenção ao que faltava: Anne, lhe chamando da janela do escritório ou correndo a seu encontro.

Para sua tia foi um alívio vê-lo e lhe saber ileso; os papéis do Forbes supuseram uma surpresa inesperada.

—Por todos os Santos do céu. Isto significa que é livre sobrinho. — Ele assentiu. A palavra em si era um dom, como o sol no céu, o vento que trazia a chuva das colinas ou a neve que cristalizava as montanhas. Dons amáveis e ásperos que tiravam o bom do mau, o crescimento da destruição, a paz da dor. — Então trouxe de volta os meninos?

— Não.

A essas alturas já tinha compreendido as razões do pesar que lhe tinha manifestado Forbes a noite anterior. Estar livre de dívidas não significava ser livre para escolher. O ancião juiz era um pacificador, mas sabia que Aeneas não podia beneficiar-se e logo sentar-se a esperar que tudo passasse. Tinha suposto que ele se uniria aos jacobitas. E se equivocava.

— Mas já não precisam seguir no Guarda Negro — assinalou sua tia, perplexa. — A dívida está saldada.

— Eles decidiram ficar. Comigo.

Forbes se equivocava também no referente à União. A decisão escocesa não era precisamente a melhor. O poder devia compartilhar-se por igual entre nação e nação, em vez de entregá-lo a maior população, à voz mais potente. Já fora ou não a propósito, Inglaterra invadia Escócia com seus costumes diferentes e isso tinha uma grave consequência: perdiam-se muitas coisas, esmagadas ou desprezadas. A gente se envergonhava. Isso devia trocar. De algum modo, algum dia e de maneira distinta, essa mudança se efetuaria, mas não de mão do Carlos Eduardo Estuardo. Aeneas lhe tinha ouvido gritar a Anne, no campo de batalha, que não disparasse. Tinha ordenado a gritos aos jacobitas que deixassem de matar a seus súditos. Utilizaria aos escoceses para apoderar-se da Inglaterra se lhe era possível. Dava igual o que prometesse, o príncipe Estuardo queria intacta a União. Unicamente desejava trocar a cara da moeda.

— Uma derrota não é o fim — prosseguiu. — Agora devemos pagar a dívida que temos conosco: conservar ao Moy para o clã. Não quero arriscar seu futuro.

— Se não te unir à rebelião, ao menos poderia adotar uma posição neutra.

— Isso daria a impressão de que estou de acordo com minha esposa.

— Nesse caso tampouco está de acordo comigo, Aeneas — replicou sua tia. — decidiste como homem, sem mulher que te brinde equilíbrio. Viu a Anne?

— Sim, mas não falamos. Ela se expressou com uma pistola carregada. Nossas diferenças são óbvias. Não temos nada que nos dizer.

— Assim perdem os dois.

— Tia... —Aeneas se ia zangando. — Ela escolheu ao MacGillivray.

— Por Deus, Aeneas! É uma moça com apetites sãos. O que importa isso? Voltará para lar. Aonde poderia ir, se não?

— Vai ter que pensar-lhe duas vezes se pretende me converter em outro MacQueen. Pode instalar-se no Dunmaglas.

— Poria-a de patinhas na rua? Não pode fazer isso. Agora é ela quem dirige ao clã. Serão eles os que decidam. Você não tem esse direito.

— Acredito que aprendi algo dos ingleses.

Foi sua última palavra. Depois de entregar os documentos a sua tia para que os guardasse em lugar seguro, ordenou ao Will que lhe trouxesse o cavalo e partiu.

Louden retornou à praça forte com suas forças ainda mais pateticamente reduzidas durante a ausência do chefe Macintosh. Ao entrar, encontrou-se com um trajín desmedido e um pulular surpreendente de uniformes ingleses. Aeneas se retirou a suas habitações para dedicar-se à penosa tarefa de redigir as cartas oficiais aos familiares imediatos. Quando teve assinado a última já tinha o abajur aceso; fora ardiam os braseiros. A luz lhe pisquem do sebo arrojava sombras estranhas. Agora anoitecia cedo, pois outubro estava ao chegar.

Alguém chamou a sua porta e a abriu de par em par antes de lhe dar tempo a responder. Uma silhueta escura aureolada pela fumaça azulada do exterior apareceu no vão da entrada. Um homem fraco, de levita negra e chapéu de três picos estendeu uns braços finos como alambra até aferrar as ombreiras, como se fora uma gigantesca aranha em sua rede. «A morte veio que visita», pensou Aeneas nada mais lhe ver. A aranha humana pôs os antebraços à costas e entrou em passo irado, seguido do Louden, tão real e tangível como de costume. Por conseguinte, aquilo não era um ser sobrenatural, a não ser um homem. Nesse momento olhava ao redor, sem falar, ignorando a presença de Aeneas, que seguia sentado à mesa.

— Interrompam quanto queiram — soltou o chefe Macintosh, deixando sua pluma.

— Perdão, Aeneas — se desculpou Louden. — Lhes apresento ao general Hawley.

— Não acredito que eu goste das maneiras escocesas, capitão Macintosh — manifestou Hawley. A fila foi pronunciado com ironia, com ânimo de denegrir.

— Não mais do que eu gosto da pontualidade inglesa — replicou Aeneas. — Perdemos ao menos quinhentos homens e capturaram mil e quinhentos prisioneiros.

— Não obstante, os jacobitas logo que sofreram algum arranhão — provocou o visitante.

— O general Hawley vai substituir ao general Monopolize — informou Louden.

— Nesse caso, general, deveriam estar a duzentos e cinquenta quilômetros mais ao sul — observou Aeneas. — Monopolize partiu para a Inglaterra.

— Esta mulher que acompanha aos rebeldes... —Hawley extraiu do interior de seu levita uma cópia da caricatura e a deslizou pela mesa para ele.

O desenho não disse nada ao Aeneas, mas o nome escrito debaixo o sobressaltou. Deduziu que esse era o motivo pelo qual o general inglês honrava suas habitações. Levantou a vista, dissimulando sua desagradável surpresa, e estudou ao Hawley.

— Nunca vi a esta mulher — declarou.

O visitante recolheu a caricatura com a ponta dos dedos, como se pudesse poluir, e a entregou ao Louden, com uma sobrancelha arqueada em interrogação.

— Anne Farquharson — leu seu acompanhante.

Hawley não lhe deixou terminar.

— É o brinquedo do pretendente?

Louden pigarreou visivelmente nervoso.

— Coronela Anne é tal como diz aqui...

— Coronela? —voltou a interromper o britânico. — Os rebeldes concedem alta fila a suas prostitutas.

O comandante escocês franziu o gesto para ouvir semelhante invectiva e Aeneas empurrou a cadeira para trás com ânimo de levantar-se e encarar-se com o general. Conteve-se e disse de modo cortante:

— Coronela Anne é lady Macintosh — disse seco — Minha esposa, general.

Hawley não pareceu surpreso. Pelo contrário, tinha o ar de quem está por mostrar a carta ganhadora.

— Esposa ou não — repôs um sorriso ladino—, sua lealdade ao governo não a salvará da forca.

— Aqui não enforcamos ao inimigo — advertiu Louden, horrorizado pela idéia.

— Nem sequer aos derrotados — acrescentou Aeneas—, se é que os derrotamos claro.

— Mas sim aos traidores — apontou Hawley. — Enforcamos aos traidores.

Isso foi muito para o Louden. O conde era militar e estava muito habituado à brutalidade e à morte, mas rechaçava a idéia de enforcar a um inimigo derrotado, e mais ainda se se tratava de uma mulher. Rodeou com um braço os ombros do Aeneas a fim de lhe conter.

— Venham — disse, para trocar de tema. — Jantaremos em minhas habitações.

Hawley se apoiou contra a mesa, com os tornozelos cruzados; assim aguardou até que Louden teve aberto a porta e Aeneas esteve fora.

— Suponho que as celebrações dos rebeldes serão mais libertinas — se burlou.

O chefe Macintosh se enrijeceu, possuído pela ira; no peito cresceu o fogo de uma intensa cólera. Agora tinha um objetivo sobre o qual descarregar todo o peso de sua raiva. Apertou o marco da porta com os dedos, disposto a lançar-se contra aquele homenzinho repulsivo. Fantasiou com a imagem de quebrá-lo contra seu joelho como um madeiro velho e lançar a um rincão as partes em meio de um satisfatório estalo.

Aeneas soltou cautelosamente o marco da porta e girou para o Hawley.

— Sem dúvida — disse, com aparente calma. — Têm motivos para que assim seja.

E saiu acompanhado pelo Louden, deixando ao Hawley em liberdade de percorrer seu acampamento e manusear seus poucos pertences, se lhe interessava fazê-lo.

Já fora, o comandante ajustou seu passo ao dele.

— Sinto-o — se desculpou. — Estão que trilam com a derrota.

— Devo avisar minha mulher — disse Aeneas.

Feito-se iluda de que já não lhe importasse. Obviamente não era assim, já que ao menos lhe importava sua vida.

— É assombroso como se perde o ouvido com a idade — replicou Louden. — Tem que ser, portanto cavalgar atrás do gaiteiro. —Aos quarenta anos ainda não podia considerar-se velho. — Se estão jogando a dois baralhos, Aeneas, com um pé em cada bando, não quero me inteirar, mas Hawley ordenou interceptar todas as cartas que entrem ou saiam para submetê-las a seu escrutínio. Não lhes arrisquem a lhes enfrentar ao pelotão de fuzilamento. — Estavam passando frente às celas. — Agora que lembrança... —deteve-se e fez que o guarda abrisse um dos calabouços. — No caminho de volta agarramos a este homem. Suponho que é um desertor. Não queria vir conosco, mas ao fim disse que vocês responderiam por ele.

O guarda arrastou até a luz de um braseiro à tenente Ray. Aeneas observou ao tremente oficial que lhe olhava com olhos de súplica. Tinha fugido em ato de serviço ao abandonar o campo de batalha antes que se tocasse a retirada.

— É meu tenente — disse ao Louden. E acrescentou consciente de que mentia—: Não desertou.

Ray, aliviado, adiantou-se um passo para ele e lhe fez a saudação militar.

— Obrigado, capitão. Não lhes arrependerão, senhor.

Aeneas não tinha terminado com o oficial. A noite antes da batalha Ray havia dito que se encontrou duas vezes com a Anne e por duas vezes esteve a ponto de lhe pegar um tiro. Foi então quando ele compreendeu que era quem tinha matado ao Calum MacCay nos braços de Anne, frente às cabanas. A noite prévia a uma batalha não era bom momento para atender algo assim. Agora apertou o punho. Melhor tarde que nunca. Podia fazê-lo agora.

— Isto vai pelo Calum — disse. Jogou o punho atrás e golpeou ao Ray em pleno rosto.

O oficial britânico caiu para trás em meio de um revoar de braços e acabou tendido de costas no chão. Aeneas se agachou para lhe agarrar de um braço e lhe ajudar a levantar-se; continuando, sacudiu-lhe a roupa.

— Está bem, tenente? —perguntou.

— Sim, senhor — resmungou o homem, embora gotejava sangue pelo nariz e a boca.

—Bem. —Aeneas voltou a jogar o punho atrás. — E isto vai pelo Seonag, sua mãe. —Golpeou-o diretamente no queixo com todas suas forças.

Esta vez Ray permaneceu no chão; o mundo se bamboleava muito como para que pudesse levantar-se. Louden o revisou; sobreviveria. Depois de ordenar ao guarda que o levasse a enfermaria, voltou-se para o Aeneas.

— Querem que o transfira a outra companhia?

— Não. — O capitão sacudiu a cabeça. Era melhor manter perto aos inimigos. — Acredito que a partir de agora poderemos nos entender.

 

A vida na cidade começou ao romper a alvorada, com a chegada do cavaleiro correio. Enquanto os cidadãos dormiam, os vagabundos tinham recolhido os refugos tirados da urbe a noite anterior antes das dez, quando soava o rufo do tambor. Médicos e advogados saíam agora a ruas mais limpa que as que tinham percorrido para retornar a casa, ao acabar a jornada anterior; foram tomar o café da manhã nos botequins subterrâneos ou a visitar seus clientes. Os comerciantes elevavam as persianas de suas tendas e tiravam os porcos que dormiam no interior das mesmas a fim de que procurassem seu penso no arroio.

Edimburgo se ia habituando aos highlanders com mais facilidade da prevista, pois durante a batalha, um destacamento dos Cameron tinha capturado a caravana de aprovisionamento do governo; isso enriqueceu os recursos jacobitas em quarenta mil libras. As tropas tinham recebido seu pagamento e a gastavam com prodigalidade. O comércio era florescente.

Anne estava encarregada de dispensar uma parte desses recursos. Desde fazia várias semanas passava seus dias em uma pequena estadia do Tolbooth, onde se fazia cargo dos prisioneiros capturados. A euforia dos primeiros momentos se esfumou ao desfilar ante ela as consequências da vitória. Na tosca mesa de madeira tinha uma pilha de papéis, um tinteiro com sua pluma e um pequeno cofre cheio de moedas. Os guardas foram trazendo os vencidos de um em um. A maioria estava sã, alguns ainda levavam vendagens sobre as feridas.

Coronel oferecia a todos uma eleição: podiam incorporar-se às forças do príncipe ou assinar um documento, pelo qual se comprometiam sob pena de morte a não elevar-se jamais em armas contra os jacobitas. Muitos de quão escoceses havia entre os detentos escolheram unir-se aos rebeldes. Aos liberados sob palavra lhes proporcionava algum dinheiro para a viagem de volta ao lar.

Algum resistia a assinar de vez em quando. Pelo general, eram soldados ingleses que temiam ser censurados por seu exército se o faziam. Em tal caso, metia-os em uma cela durante uns quantos dias para que o pensassem melhor; todos trocavam de idéia cedo ou tarde.

Sempre se achava presente o pagante, Robert Nairn, um jovem gentil e delicado de veintitantos anos com manifesta inclinação pelos homens, a fim de apontar o nome, a companhia, a opção escolhida e o dinheiro recebido. Era um dos favoritos do príncipe. Estava acostumado a fazer uma careta de horror ante cada evidência de ferida, mas à medida que crescia sua familiaridade com a Anne começou a lhe sussurrar comentários subidos de tom sobre os encantos dos que considerava atrativos. Posto que fosse mais amante que guerreiro, estranha vez levava armas. Ela se perguntava o que lhe trazia para essa guerra, como não fora a abundância de carne masculina.

Não demoraram muito tempo em chegar ao final dessa tarefa enorme: mil e quinhentos homens, descontados os ainda convalescentes. Margaret e Greta levavam a cabo o mesmo trabalho em outras habitações do pitoresco edifício. MacGillivray apareceu a cabeça pela porta e anunciou:

— Dois mais e teremos terminado.

Anne se reclinou para trás para estirar as costas intumescida.

— Hoje não houve nenhum ao que valesse a pena lhe tirar as calças — comentou Robert.

— Sguir dheth!* — Ela deu uns golpezinhos com o índice contra a mesa. — Ponham a mente no trabalho.

— OH, mas se não fazer outra coisa — repôs o jovem com um sorriso de afetação.

Ela se pôs-se a rir ante a saída do jovem. A seu sinal, fizeram passar a um soldado do Guarda Negro.

— Desavergonhado! —exclamou Anne.

— Eu? Não! —protestou Robert.

— Não, você não. Ele.

Tinha conhecido ao moço no Moy, enquanto inspecionava com o Aeneas aos voluntários que se uniriam ao Guarda Negro. Um sorriso beatífico se estendeu até cruzar por completo o semblante do jovem soldado.

— Lady Anne! —Estava surpreso e encantado — Já sabia eu que íamos ganhar. Anda, te chupe essa...

— Eu sim lhe chupava — respondeu isso Robert com um fio de voz.

—lhes comporte pelo menos até que tenhamos terminado —lhe repreendeu Anne, ao tempo que lhe dava uma cotovelada nas costelas.

Coroe-a-a explicou a Desavergonhado qual era a verdadeira situação e as opções que tinha: combater pelo príncipe ou ficar livre sob palavra.

— Tanto me dá combater por um ou por outro — manifestou ele—, sempre que Robbie possa vir comigo.

— Robbie Uivador — recordou Anne. Desde que tinham aprendido a caminhar, esses dois foram sempre juntos a todas as partes. — É o próximo? Então, mais valerá que entre.

— Ainda está no hospital — respondeu Desavergonhado. — perdeu o braço esquerdo. Não, o direito. Bom, um dos dois, sim.

— Pois então não poderá combater — observou ela, com suavidade.

— Sempre há dito que algum dia me venceria com um braço à costas —repôs a moço, e se voltou para o Robert Nairn.

Anne lhe fez assinar as duas cópias de um documento de liberdade sob palavra e lhe deram uma para ele, a fim de provar que não podia reincorporar-se à unidade. «Desavergonhado, do Macintosh», escreveu ele. Uma lei do antigo Parlamento exigia que todos os meninos recebessem alguma instrução e os chefes do clã Chatton a respaldavam. Aeneas cuidava de que fora assim. Aeneas, Aeneas, Aeneas. Preparou outro documento.

— Redigiremos um para o Robbie Uivador — ropôs a coronel. — Assim poderá levá-lo a casa.

— Robbie deve escrever seu nome ou pôr uma marca — assinalou o pagante, — mas já que só fica um prisioneiro, se Desavergonhado quer esperar fora, acompanharei-o ao hospital para completar o documento ali. — Sorriu ao soldado.

Acordado isso, Anne entregou sua cópia ao moço e lhe proporcionou dinheiro suficiente para costeá-los gastos de uma semana a pé; logo chamou o seguinte, o último, e esse pertencia à brigada dos torpes, como a maioria dos ingleses, já que não podia ser de outra maneira: os soldados de infantaria do governo careciam de toda instrução e o tipo se mostrava muito resistente a assinar nada na crença de que esse documento era sua própria condenação a morte. Robert Nairn reformulou a explicação de Anne com toda paciência.

De ali se ouviu o sino da catedral do St. Giles, convocando aos cidadãos a beber a taça de meio-dia nos botequins. O homem tinha tanto medo que não queria tomar a pluma. Anne voltou a lhe explicar tudo. Robert, já nervoso, acabou por alargar uma mão e desembainhar a espada de Anne.

— Assinatura de uma boa vez — lhe espetou — ou te corto a cabeça.

A jovem o olhou assombrada. O soldado recolheu a pluma e rabiscou uma marca em ambas as cópias; logo se encolheu, se por acaso mesmo assim lhe chegava o golpe. Robert se desculpou com um gesto e devolveu a espada a coroe-a para partir detrás guardar uma das cópias em seu caderno de anotação, junto com as outras. Anne depositou algumas moedas frente ao soldado e lhe sacudiu a boneca para que abrisse os olhos.

— Agarra o dinheiro e vai — disse ela.

Suspirou agora que a tarefa estava cumprida. Secou a tinta da pluma e baixou a tampa do tinteiro. Robbie Uivador tinha perdido um braço, maneta por toda vida. Sacudiu a cabeça. Se Aeneas lhes tivesse posto a combater pelo Carlos Estuardo... Fechou o cofre das moedas e o entregou ao MacGillivray para que o devolvesse ao tesouro enquanto ela assistia ao conselho de guerra convocado pelo príncipe a meio-dia. Baixaram juntos os degraus do Tolbooth. O velho MacBean, sentado ao pé da escada, lia uma carta de sua esposa.

— Se acerta sem ti? —inquiriu Anne.

— Se  acerta para me arreganhar, ainda —replicou ele. — Aí a tem: que não esqueça me esfregar o peito com graxa de ganso, para me proteger do frio, e que de noite beba o uísque quente com um pouco de açúcar, e... —Elevou a carta para consultá-la. — Ah, sim, e que não corra depois das mulheres jovens. —Faiscaram os velhos olhos. — A que idade deixa uma mulher de ser jovem? Poderia correr atrás dessas.

— Quando são maiores que sua esposa? —insinuou Anne.

— Nesse caso posso escolher entre as de setenta.

MacBean se levantou, rindo baixo. Tinha só cinco anos mais que sua esposa e se mantinha bastante vital, em que pese a que ela se preocupasse tanto por sua saúde. O prazer que lhe brindava essa carta era óbvio. Depois de guardá-la cuidadosamente em seu sporran, encaminhou-se para o botequim mais próximo.

— MacBean só quer a uma mulher — comentou MacGillivray, olhando-a. Os dois ignoraram a incômoda distância que mantinham agora entre ambos. — Leva quarenta anos com ela.

Em um mundo onde a morte se assegurava de que poucos matrimônios durassem mais de dez, era muito tempo para passar com um mesmo cônjuge: a maioria se casava várias vezes.

Um calafrio percorreu as costas de Anne. Via o Aeneas nesse horrível campo de batalha cada vez que fechava os olhos e não podia deixar de perguntar-se sobre a expressão de sua cara. Não era de amor nem de compreensão: nada que ela reconhecesse. Aborrecimento, desespero? Esperava lhe ver chegar cada dia; desiludia-se todas as noites. Ia ser muito difícil para ele aceitar que se equivocou, e baixar à realidade, ainda mais duro. Talvez fosse melhor lhe escrever.

— MacBean voltará logo para sua casa — respondeu ao MacGillivray. — Igual a todos nós.

A vitória tinha conquistado a muitos dos dúbios e todos os dias recebiam novos respaldos. Já tinham tropas suficientes para assegurar-se Escócia. Recentemente tinham chegado seiscentos homens, eram os MacPherson do Cluny, destinados a engrossar o contingente do clã Chatton. Poderiam ficar no sul enquanto ela voltava para o norte com sua gente, liberava ao Invernes de sua debilitada guarnição e ganhava em seu marido para o bando próprio.

Anne e MacGillivray caminharam em silencio pelo deserto Canongate. Tinham fechado até as tendas, pois os donos se achavam nas tascas. Por isso se escutaram com tanta nitidez as vozes iradas procedentes de um dos becos situado mais adiante. A seguir soaram os ruídos próprios de uma resistência. O dueto acudiu a tempo de ver como um membro da tropa da cidade apontava ao Robert Nairn com seu mosquete enquanto outro aferrava pelo cangote a Desavergonhado e o arrastava para os postes de flagelação, junto ao Mercat Cross. Um ministro da severa Igreja presbiteriana de Edimburgo exortava a voz em pescoço.

— Alto! —gritou ela. — O que fazem?

— Esses pecadores estavam cometendo um ato nefando. —O pastor se virou para ela e assinalou a Robert com raiva quando identificou como jacobitas a seus interlocutores. — Seu homem é seu assunto, lhe levem ante seu príncipe. — Mencionou ao Carlos Estuardo como quem cospe. Devia pertencer aos Whigs, embora agora pudesse aplicar uma política de certa cautela. — Agora bem, desse — insistiu, assinalando a Desavergonhado, que se debatia entre chiados e patadas enquanto um miliciano o sujeitava aos postes —, desse nos encarregamos nós, é claro.

— Anne — apelou Robert—, não temos feito mais que nos beijar.

— Cinquenta chicotadas, e se seguir consciente, outros cinquenta paus! —ordenou o sacerdote, jogando espuma pela boca.

Anne desencapou a espada e colocou a ponta do aço no pescoço do clérigo. MacGillivray estrelou a caixa das moedas contra a cabeça do mosqueteiro e desembainhou sua espada também enquanto o miliciano se desabava sobre o chão. Robert aproveitou a distração para apoderar do mosquete.

— A próxima vez, Anne, reparará na pistola? —perguntou MacGillivray.

— Sabia que você te encarregaria disso — foi a seca réplica.

O miliciano encarregado de atar ao poste a Desavergonhado se precaveu em seguida de que tinham trocado as voltas e elevou as mãos por sua conta.

— Me traz isso para o afresco — assegurou.

— E a você por que lhes interessa? —Anne açulou ao ministro. — Acaso lhes têm feito mal?

— É uma ofensa para a vista — replicou o clérigo.

— Pois então deveriam havê-la desviado — repôs ela. — O prazer alheio não é seu assunto. Não lhes beijaram a você.

MacGillivray cortou as ligaduras do prisioneiro.

— Arderão todos no inferno — disse o religioso, fora de si. — Ante Deus juro que o pecado receberá justo castigo.

— Ante Deus vais acabar se não controle essa língua — lhe refutou Anne, imitando o acento das Terras Baixas.

Anne estava agradada com seu acento. Umas quantas semanas mais na cidade e dominaria bem o dialeto das Terras Baixas. O clérigo guardou silêncio. A moça, enquanto falava, tinha-lhe cravado o pescoço com a espada.

— Volta para sua igreja — ordenou ela.

O pastor se escapuliu, provavelmente em busca de mais milicianos, mas ia ser um tanto difícil, pois estavam todos bebendo nos botequins até que passasse a hora do meio-dia.

Para resolver a situação antes que acontecesse maiores, Anne ordenou ao miliciano que se ocupasse de seu aturdido camarada e pediu ao MacGillivray que acompanhasse a Desavergonhado ao hospital onde estava Robbie Uivador, para tirá-los ambos da cidade.

— E  —ordenou ao Robert—, será melhor que venham comigo.

Depois de recolher o caderno de anotação e a caixa de moedas, lhe seguiu ao trote rua acima.

— Alegra-me que tenham vindo, Anne — disse. — Tapadh leat*. Obrigado por isso.

— lhes beijando! —resmungou ela. — Acabavam de lhes conhecer. No que estavam pensando?

— Não o adivinham?

— Enquanto estejamos aqui embaixo, Robert — aconselhou ela—, será melhor que levem espada.

Enquanto, nos salões da Prefeitura, jogaram-se as runas sobre um mapa estendido na mesa. Ou'Sullivan as estudava enquanto o príncipe, agradado, dava golpes contra a madeira.

— Oui. —Procurou com o olhar a seu comandante em chefe. — O vê, lorde George? A sorte nos acompanha.

Margaret Johnstone intercambiou um olhar com seu marido, não muito convencida por esse método para predizer o resultado da campanha. Anne e Robert entraram apressadamente e se detiveram seu lado.

— Agora que já estamos todos aqui... —disse o príncipe, com intenção. — soubemos que meu primo, o duque do Cumberland, oferece trinta mil libras por minha captura. —Fez uma pausa, sorridente. — Eu correspondi oferecendo uma soma idêntica pela detenção de meu primo.

Estalou uma gargalhada entre os comandantes ali reunidos. Ao terminar, o príncipe apresentou aos recém chegados que lhe flanqueavam: a condessa do Erroll, uma aliada poderosa, por ser condesa da Escócia, lady Nithsdale, suas irmãs e os lores Lovat e Balmerino.

Anne observou ao Lovat com sobressalto. Os Murray, a família de sua mãe, odiavam-no. antes de que ela nascesse, esse homem tinha tentado roubar o título do Lovat casando-se pela força com a Amelia Murray, a viúva, depois de ter fracassado em seu intento de achar e forçar a sua filha. Mais adiante fugiu da França para escapar da sentença de morte que lhe impôs a corte escocesa e na última sublevação tinha combatido a favor da Inglaterra; como recompensa, o rei Jorge perdoou a violação e lhe outorgou o título. Que fazia agora aqui? Carlos Estuardo teria devido lhe encarcerar e devolver o título a quem correspondia. Custou-lhe emprestar atenção ao que dizia o príncipe.

— Lady Naime e lady Esfrega também enviaram tropas. Mês Amis... —Fez uma pausa efectista. — reconquistamos Escócia.

— Os que rodeavam a mesa lançaram um grito vitorioso. O príncipe esboçou um sorriso de complacência e aguardou até que se fez o silêncio. — Já estamos preparados para invadir a Inglaterra — anunciou.

— Inglaterra? —Lorde George não esperava isso. — Deveríamos reforçar a fronteira.

— E a costa? —observou Ou'Sullivan. — A Armada Real não pode viajar por terra.

— Mas os highlanders sim — apontou Lochiel. — E não temos interesse na Inglaterra. —voltou-se para o príncipe. — Estão arremetendo contra a lua, filho. Nossos homens não cruzarão a fronteira.

— A menos que seja para roubar ganho — soprou lorde Kilmarnock.

Uma corrente se murmúrios se elevou entre os membros do conselho. Anne apartou sua atenção do desprezível Lovat para fixá-la no que ocorria. O príncipe desprezou a dissensão com um gesto.

— Cavalheiros — proclamou o príncipe, grandioso—, vim para reinstaurar a meu pai em seus três reinos.

— Pois tenho a impressão de que ingleses e irlandeses vão ter que lutar para lhe impor em seus tronos — replicou lorde George.

Ou'Sullivan informou que o rei Luis tinha enviado um mercenário irlandês para combater por eles e Carlos Estuardo lhes assegurou que os jacobitas da Inglaterra iriam em turba para servir sob seu estandarte assim que tivessem a oportunidade. Mostrou em alto um maço de papéis nos que se comprometeram por escrito.

— Sua política é assunto deles — observou Margaret.

O príncipe sorriu para lhes desarmar sem a menor amostra de chateio.

— Acaso não é assunto de todos ajudar a nosso rei?

Pressente-os o admitiram a contra gosto e inclusive houve alguns gritos de afirmação. Ou'Sullivan, ao perceber que os caluniadores vacilavam, exibiu uma carta coberta de selos.

— O rei Luis quer chegar a um acordo com vós — anunciou. — Isto nos assegura que o exército francês nos ajudará a conquistar Londres.

— Dei-lhes Escócia — acrescentou o príncipe. — Não me ajudarão a conquistar a Inglaterra?

Houve alguns gestos de assentimento entre os pressente, pois a solicitude era justa. Lorde Lovat se pronunciou a favor da proposta com o argumento de que a Inglaterra seria um vizinho pacífico com o rei Jacobo no trono. uns quantos lhe respaldaram. Anne ficou sentida saudades pelo giro dos acontecimentos.

— lutamos pela liberdade — protestou. — Pour être livres! Unicamente precisamos ter de novo um Parlamento próprio em nossa terra.

O príncipe se voltou para ela e lhe falou como quem repreende a um menino rebelde.

— E quanto tempo o conservarão, Anne? —perguntou—, com meu primo sempre chamando as portas?

 

«Não me aflige outro mal que a saudades», escreveu MacBean no seu assento na colina coberta por um tapete de erva, perto do rio Esk, com uma folha de papel contra o joelho para escrever a sua esposa. Os jacobitas foram e vinham a seu redor, pois as colinas do Dumfries e Galloway eram um ervedeiro de soldados: uns escreviam uma última carta ao lar, como o ancião, e outros esperavam em fila para utilizar tinta e pluma. Largas filas do exército eduardista se encaminhavam à fronteira com a Inglaterra, rumo ao Carlisle, a capital do condado da Cumbria, em meio de um ambiente palpitante, pois os tamborileros partiam nos flancos, marcando o tempo a intervalos, e os gaiteiros encabeçavam o regimento de cada clã.

Até os voluntários das Terras Baixas, que agora compunham um terço da força, vestiam o traje das Terras Altas por ordem do príncipe, para maior efeito. Também tinha ordenado que as mulheres e os meninos ficassem em Escócia, mas isso foi ignorado em grande medida. Seriam cinco mil os homens que cruzassem a fronteira; poucas esposas estariam dispostas a permitir ir sozinhos.

Anne andava em busca do Ewan MacCay com um maço de despachos oficiais na mão. Encontrou-o na erva, pois também ele se sentou a escrever.

— Verá-os pessoalmente, Ewan — disse ela. — Já há um cavalo preparado. Pinjente que você levaria o correio a casa.

Levantou de um salto, derrubando a tinta, enquanto o homem que lhe seguia na fila alargava a mão para agarrá-la.

— Vim me vingar dos ingleses pela morte de minha esposa e meu filho — manifestou.

— E já o tem feito, com grande honra — lhe garantiu Anne. — Necessitamos alguém de confiança para que leve este correio. —Mostrou em alto os despachos. — E em sua casa lhe necessitarão.

— O inverno lhes fará duro sem um homem em casa — reconheceu ele. Agarrou o maço, mas se limitou a olhá-lo com fixidez.

Anne lhe tocou o braço. Era um bom homem, que tinha sofrido muitas perdas e se aferrava ao dever para aguentar o duelo. Ela não queria que morresse na Inglaterra.

— Deixa que os mortos descansem — murmurou. — Seu pai e suas filhas lhe necessitam. — Fez uma pausa, pois não estava segura do que ele sentia. — Possivelmente tanto como Cath. —Ewan levantou a cabeça e a olhou aos olhos, sentido saudades. — Os bebês se parecem com o pai — explicou ela. — De não ser assim, como nos precaveríamos?

— Seonag e Calum eram toda minha vida — disse ele, lentamente. — Ach, mas Cath... —Fez uma pausa antes de recomeçar. — Me quer ela? O que crie?

— Vi como te olhava. Mais do que justifica um pulo nos brejos. —Anne sorriu. — Agora tem outro filho a criar. Levará o correio?

— Sim. —Desapareceu o rancor que lhe impulsionava desde aquele dia horroroso, frente às cabanas. — Tapadh leat*. Obrigado. Será um gosto voltar para casa.

— Os mensageiros lhe trarão as cartas dos homens. —Lhe entregou a própria. — E aqui tem esta, se por acaso a pode entregar a ele.

A folha, pregada e selada, estava dirigida ao Aeneas. Até agora, quando eram tantos os que apoiavam a causa, seu marido não vinha a unir-se a eles nem enviava uma só mensagem de respaldo.

— Eu me encarregarei de que a receba —sorriu Ewan, radiante— ou morrerei no intento.

Anne retornou aonde lhe esperava MacGillivray, com as rédeas do Pibroch e seu próprio cavalo na mão. Ela também ia partir rumo ao lar em busca de reforços. Requeriam-se mais homens para proteger Escócia agora que a metade do exército jacobita ia envolver se na invasão. No trajeto Anne se deteria no Invercauld. Os Farquharson de seu irmão ainda não se mobilizaram, pois até agora havia suficientes tropas do clã Chatton. Seria grato lhe voltar para ver e também a Elizabeth, sua irmã, e sempre podia alcançar um entendimento com sua madrasta. Apenas se atrevia a pensar no Aeneas ou no MacGillivray, encarregado de levar as tropas do clã ao sul.

O assinalou com a cabeça a um casal que passava da mão. A mulher levava uma forquilha. Eram a velha Meg e Duff, o sapateiro, agora vestido de tartán.

— Edimburgo e a cerveja terão que responder por muitas coisas — brincou o jovem.

— Não me sinto feliz, Alexander — confessou ela. — Acessei a este despropósito por respeitar à maioria. Assim a decisão foi unânime, mas isto não me entusiasma. Não funcionará.

— Se não ir, MacPherson reclamará a liderança do clã Chatton. E isso tampouco vai funcionar.

Cluny queria conquistar o favor do príncipe; só se tinha unido à sublevação quando teve a certeza de que Aeneas não o faria; além disso, insistia em conservar o mando de seu próprio clã.

— Não nos perdeu nada na Inglaterra nem esse país tem nada que nos interesse — exclamou Anne, frustrada. — Este ataque só servirá para chateá-los ainda mais.

— E assim talvez nos ponham em fuga para a pátria.

— Não brinque.

— Olhe, se suplicarem ao príncipe ser liberados, será porque este governo lhes agrada tão pouco como a nós. Não vamos nos impor, a não ser instigá-los.

— Ah, vale. Então não somos uns invasores, a não ser uns inspiradores, um modelo a seguir? —Ela colocou o pé no estribo do Pibroch. — Oxalá pudesse acreditá-lo.

— Acredita-o. —MacGillivray sorriu de brinca a orelha. — Mas traz reforços. —depois de ajudá-la a montar, posou-lhe as mãos nas coxas, já sério. — Verá o Aeneas.

— É preciso. —Não podia explicar a maneira em que seu marido a tinha cuidadoso ao tempo que, não obstante, salvava a vida ao MacGillivray. — Tenho escrito para lhe anunciar minha volta.

— Se te desejasse sorte nisto, seria um mentiroso.

— Não, por favor. —Ela se inclinou para diante e lhe pôs uma mão na bochecha. — Não o faça mais difícil do que já é.

Cobriu-lhe a mão com uma das suas para apertar-lhe contra a bochecha; logo a moveu até sua boca e depositou um beijo no centro da palma. A pele de Anne reagiu ao calor dos lábios e o fôlego do jovem soldado.

— Não podem ser tantas as vezes que te perca — disse, irônico.

Depois de lhe soltar a mão, montou de um salto.

Greta Fergusson passou diante deles a lombos de seu cavalo envolta em peles e plumas junto a sir John Murray, seu afetado maridinho.

— Deveria vir Anne — convocou. — As tendas de Londres serão a recompensa!

A resolução da jovem fraquejou e voltou a sentir em seu interior essa sensação de perda ao ver a intimidade desse casal e o apoio que se emprestavam mutuamente. Algo mais abaixo, Margaret e David Ogilvie, juntos como sempre, vadeavam o rio Esk à cabeça das tropas procedentes da região de Angus. Uma garotinha correu para ela e o tironeó das saias.

Era Clementina.

— Meu pai e eu vamos para o sul, Anne — disse. — vamos ver o rei!

— Mais ou menos — concordou Anne. Seus olhos se encontraram com os do MacGillivray. Olhava-a com uma espécie de desespero, como se não fossem encontrar se nunca mais. — Cuida de minha gente — lhe insistiu ela. — E te cuide você também.

Depois voltou garupas e conduziu ao Pibroch ao trote até chegar à altura dos trezentos escoceses em cuja companhia ia viajar de volta a casa. Havia algumas mulheres e uns quantos meninos, a maioria dos quais não deixava de chorar, mas havia o suficiente número de homens para atuar como guarda pessoal durante a viagem e proteger a do Guarda Negro do Louden, quando chegassem ao Moy. O nutrido grupo a seguiu sem voltar a vista atrás, pois não desejava levá-la imagem do Alexander seguindo-a com o olhar até perder a de vista. Continuaria avançando. Não tinha alternativa.

Essa noite, quando deu a ordem de acampar, havia ao menos sessenta quilômetros entre ela e MacGillivray; ele partia em direção oposta; ela estava trinta quilômetros mais perto do lar, e do Aeneas. Tinha escolhido o sítio com sensatez, onde houvesse bosques e um rio à mão. As noites de novembro eram fritem; à intempérie, as fogueiras eram uma necessidade.

Manteve-se ocupada a toda costa: ajudou a recolher lenha e trouxe água do arroio, mas nenhum desses lhe requereu muito tempo, de modo que ocupou a mente em verificar que aos meninos não faltasse nada e em falar com as mulheres; estas retornavam a casa obrigadas pelas circunstâncias: tinham a seu cargo filhos pequenos e anciões, e deviam atender ao gado antes da chegada do inverno. Sentadas em torno da luz, às vezes cantavam balidas gaélicas, mas em geral guardavam silêncio. Todas tinham deixado ao marido para viajar sozinhas por uma terra estrangeira, sabendo que talvez ele não retornasse, ela não podia as consolar com falsidades; seu medo era o mesmo; por isso se limitava a estreitar um braço ou apertar uma mão, e sobre tudo, a escutar e assentir sem logo que separar os lábios.

As únicas alegres eram as esposas dos escolhidos para formar parte de seu guarda pessoal, pois estavam seguras de que elas e seus maridos não foram morrer longe do lar, mas o tom vital das mesmas a consolava ainda menos.

Ao fim, o cansaço se apoderou dela e se deitou, envolta em um arasaid*, embora ainda não conseguiu conciliar o sonho. As colinas da fronteira, onduladas e turgentes como grandes peitos redondos, eram reconfortantes: pareciam pôr a terra mais perto do céu, a diferença das escarpadas montanhas próximas à aldeia do Braemar, que a cercavam e protegiam. Lá encima no céu, enorme, brilhava a lua olhando fixamente para baixo entre nítidas estrelas. Sentiu-se exposta ao olhar do grande olho branco.

Começou a refletir sobre o príncipe Estuardo, a quem a retomada de Escócia não lhe parecia um grande triunfo, e cujo objetivo estava ao sul, mas para os escoceses, Inglaterra não era o objetivo original.

Ao cabo de uns minutos, pensou em um de seus acompanhantes: lorde Lovat. Seu pai estava acostumado a dizer que ao homem lhe conhece pela companhia que frequenta. «Que seus amigos sejam sempre boa gente, filha», havia-lhe dito mais de uma vez, «mesmo que te encontre em situações muito difíceis».

Aeneas e MacGillivray tinham sido companheiros inseparáveis até que ela se interpôs. O céu negro se arqueava sobre ela, pleno de buracos. A lua olhava com ar zombador e dentro sentia um vazio doloroso. O que queria, a quem queria, aonde ia, o que estava fazendo e por que?

O acampamento já estava levantado quando despertou à manhã seguinte. O ar estava cheio de aroma de tortas de aveia que alguns já devoravam. Logo ficaram em marcha, pois lhes aguardava uma viagem de nove ou dez dias até chegar ao Braemar. Se tivesse viajado sozinha, como Ewan, teria demorado menos da metade.

Seguiu pensando e se agarrou a um prego ardente: Invercauld, a família, sua irmã. aferraria-se a isso.

A forma da terra lhe provocou uma quebra de onda de lembranças quando apareceram à vista as montanhas coroadas de neve: esse pico, este lago, essa colina, este rio, todos imutáveis com o transcurso de tempo, assim como os bosques chamejantes de vermelho e amarelo abraçando as ladeiras das montanhas. Saudou com a vista a esta árvore, essa colina, aquela rocha como se fossem velhos amigos, recuperando a intimidade fácil do conhecido. Pareceu-lhe que esses seres queridos se estiravam para envolvê-la. Açulou ao Pibroch para pô-lo ao galope. A metade da guarda a seguiria a seu próprio passo. A outra metade continuaria a marcha para levar às mulheres e aos meninos a seus diversos lares, antes de reunir-se no Moy, mas ela...

Ela estava ali onde tinha suas raízes. Entrou em galope no pátio do Invercauld e reprimiu ao Pibroch diante da casa, essa casa tranquilizadora e invariável onde tinha crescido.

A porta se abriu de par em par e Elizabeth correu para ela, gritando:

— Anne, Anne!

Anne desmontou para abraçar a sua irmã, estreitá-la, chorar, beijá-la, lhe acariciar o cabelo, e inspirá-la com o ar.

— Deixa que te olhe. É possível que tenha crescido? Tanto tempo passou?

Partiu-se fazia seis meses e lhe desejava muito que tinham sido anos.

Ali estava James, seu sereno irmão, que não sabia se era correto lhe estreitar a mão. Anne jogou os braços ao corpo e apertou a bochecha contra a sua. Não queria o morrer de calor com beijos. Ele expressava de outra maneira o gozo de vê-la; sempre tinha sido reservado, mas a abraçou com força e durante muito momento.

— Venha — grunhiu uma voz, do vão da porta—, vamos ficar nos à intempérie ou pensam entrar, para que possamos fechar a porta?

Era lady Farquharson.

Anne subiu depressa os degraus para abraçá-la.

— Ah — exclamou—, quanto me alegra verte.

— Vá, vá — observou a mulher—, vejo que suas maneiras não melhoraram muito. E o que é isso que tem posto?

O áspero comentário se referia ao arasaid* de Anne, a manta de tartán comum que as camponesas usavam sobre os ombros e rodeada à cintura. A moça rompeu em uma gargalhada. O arasaid* protegia contra o frio e servia de manta para dormir, ao igual aos toneletes dos homens.

— Quero-te — gritou. — Não troca nunca.

— Não, mas te conviria trocar — se queixou sua madrasta. — te Converter em alguém mais feminina e a tom com sua posição social.

Se estava agradada, o reservou, mas ordenou servir vinho temperado e preparar algo de comer assim que estiveram no interior da casa. Anne se deixou cair em uma cadeira, com as pernas estiradas para fora, e olhou em redor com um afeto que nunca havia sentido quando vivia ali. alegrava-se de estar em casa. Lady Farquharson lhe deu uma palmada no joelho.

— Sente-se como é devido — lhe espetou. — Qualquer tomaria por um marinheiro.

 — Alguma vez viu a um marinheiro, mãe? —perguntou Elizabeth, arqueando as sobrancelhas com ar inocente.

— Isd, não!* Não seja tola. Claro que sim. Não passei toda a vida aqui, sabe? Viajei.

As moças estalaram em grandes gargalhadas enquanto a senhora murmurava que não via onde estava a graça, o qual lhes fez rir ainda mais, apertando-os flancos e golpeando o chão com os pés. James trouxe o vinho, com as sérias facções iluminadas por um sorriso sereno.

O primo Francis jantou com eles e todos ficaram levantados até tarde, riscando planos. Depois do varapalo do Prestonpans, o governo tinha enviado mais tropas ao Fort George. Os Farquharson recrutariam dois batalhões, tanto do Invercauld como do Monaltrie, a fim de tomar Invernes assim que partissem as forças apostadas ali. Anne supunha que as transladariam ao sul muito em breve, quando a Inglaterra se dividisse por causa da rebelião.

— Mantêm aquartelados a vários milhares de soldados no Ruthven — observou Francis.

— E o que fazem? —perguntou ela.

— Descansar — respondeu James. — Planejam reconquistar Edimburgo, ou isso se diz.

— Acredito que esperavam que o príncipe seguisse ali — acrescentou Francis.

— E ali se teria ficado se tivesse um pouco de sentido comum — gorjeou lady Farquharson. A dama bordava sentada junto ao fogo, e de vez em quando efetuava algum comentário ocasional.

Anne se inquietou ao notar que ambas estavam tão de acordo.

— Talvez — admitiu—, se a única terra que podemos conservar é o chão que pisamos.

Desde que cruzassem a fronteira tinham perdido o controle da campanha. Agora o êxito dependia do apoio inglês.

— Podemos reter Escócia — julgou Francis—, mas o governo cairá se damos procuração de Londres. Sem ninguém que pague o exército que reuniram se desagregará.

— Então, tinha razão o príncipe e necessitamos a Inglaterra?

— É agora quando importa o tamanho... Dos dois países. —O primo lhe sorriu; escancarado em sua cadeira que ocupava, como sempre, a metade da habitação. — Os ingleses são sete milhões. Talvez queiram outro governo, mas não que seja escocês. Vamos necessitar a ajuda dos franceses se os britânicos não seguirem o pavilhão do rei Jacobo.

Aeneas também tinha insistido em que a única garantia era um exército francês. Uma vez em casa, o passado o tornava presente a cada passo. Nas colinas do Invercauld se conheceram: ela, uma criatura furiosa e desconfiada; ele, o guerreiro desconhecido cuja autoridade acalmou o selvagem terror do duelo. Tinha-lhe pedido em matrimônio ali, nessa habitação, acalmando outra vez seus temores, pondo em ordem o caos de suas emoções.

No campo de batalha, quando tinha todos os motivos para matar ao MacGillivray, tinha-lhe salvado a vida. Talvez sua visão chegava mais a fundo e mais adiante que a dela. afrouxou-se o nó de temor que sentia no ventre. O estava apenas a um dia de viagem.

Compartilhar a cama com a Elizabeth era como voltar a ser menina. Despiram-se depressa a causa do frio, entre brincadeiras e risadas. Era grato encolhido em camisola contra o calor de outro corpo. Assim que apagaram a vela sua irmã só quis falar de homens, não como guerreiros, mas sim como amantes.

—Voltou a farrear com o MacGillivray?

— Não.

— Venha, Anne! Faz meses que te foste. Como lhe as acertas?

— Estive ocupada.

— Há outro?

— Não.

— Oh, me conte. Com alguém terá que te deitar.

— Com ninguém, me acredite.

— Eu sim.

— De verdade? Com quem?

— Não te rirá de mim?

— Não, claro. Se houver um homem que monta minha irmãzinha, quero saber quem é.

— É o reverso. Eu mesma lhe tirei o cinturão, um dia, nos bosques, e sem a manta me pareceu interessante na verdade, de maneira que o estendi no chão e o montei.

— Como deve ser. —Anne riu como uma menina.

— Está te burlando.

— Não, palavra. Quem é?

— Rirá-te.

— Não.

— Dauvit.

— Dauvit, o adivinho? — Anne elevou a voz uma oitava a mais.

— Isd!* — sossegou-a Elizabeth. — Sim.

A maior começou a rir entre dentes. Ao fim, soltou uma gargalhada, retorceu-se na cama e se tombou para golpear o travesseiro com os punhos. A pequena não pôde menos que imitá-la.

— Dauvit — chiou Anne. — Dauvit, o adivinho.

— Prometeste não lhe burlar — lhe reprovou Elizabeth entre risadas. — Mãe não demorará em vir em um minuto.

— Não lhe resultaria divertido. —Anne bramava cada vez mais. — Ele não está a sua altura. — E escondeu a cara entre os travesseiros, entre risos.

— É bonito — protestou a garota.

— É verdade — riu sua irmã. — Também é lento.

— Quero-o só para praticar — se defendeu Elizabeth. — E eu gosto que seja lento. Faz tudo o que eu lhe digo. E é bastante hábil.

— É claro que sim. —Anne voltou a bramar. — E possivelmente não seja tão lento. —Mordeu o travesseiro para dominar-se. — Quase todas as mulheres do clã montaram nele, embora seja uma vez.

— De verdade?

Fez um gesto afirmativo.

— Essa sua maneira de estar-se de pé, te olhando... E o sensível que são suas mãos. Quase todas as mulheres querem lhe tirar a manta, sobre tudo para a primeira vez.

— Você também?

— Não lhe direi isso.

Colocou a cabeça sob o travesseiro, entre bufos de risada. Convulsionava-lhe o corpo. Ao fim voltou a soltar a gargalhada e a cama se estremeceu.

Elizabeth começava a rir também, apertando o ventre.

Uns fortes golpes sacudiram a porta do dormitório.

— O que? Já estão esbanjando as velas aí dentro? —acusou lady Farquharson com voz apagada.

As duas moças redobraram suas risadas.

 

«Não me aflige outro mal que a saudades», rezava a página cheia de ganchos de ferro, suspensa sob o nariz de um nervoso ajuda de campo, que a lia em voz alta.

—Parvo romântico — bufou Hawley.

O funcionário arrojou essa carta ao montão de despachos jacobitas, abertos e lidos, empilhados em cima da mesa junto à saca de correio. A sucessão das chicotadas era rítmica. O gato de nove caudas era feito de correias, mas a esse tinham agregado puas de arame nas pontas, por isso cada golpe arrancava um chiado de dor, seguido por um gemido grave.

— Mas esta... —Hawley recolheu uma carta que lhe interessava; tinha o selo quebrado e estava dirigida ao capitão Aeneas Macintosh, Fort George, Esta Invernes, em troca...

Ewan se achava  entre dois postes de madeira em uma lúgubre cela de pedra do cárcere do Invernes. Estava nu, inclinado para diante e com a cabeça pendurando entre os ombros.

O látego penetrava uma e outra vez nas costas ensanguentada. O corpo se estremecia em cada ocasião. de repente, os gritos e os grunhidos cessaram. Hawley se aproximou do prisioneiro enfraquecido com a carta de Anne pendurando da mão esquerda como se fosse um mofo pestilento.

O britânico não podia lê-la por si só e agora não estava o ajudante, pois tinha ido procurar se um alívio para a dor provocada pelo golpe. O general lhe havia dado um golpe com a culatra da arma quando seu ajudante terminou de lhe ler a carta, cujo contido era muito pouco útil. A missiva proporcionava escassos detalhes: só que ela retornaria logo e que desejava falar com ele.

Hawley deu ordem de cessar o castigo com um gesto e agarrou ao Ewan pelo cabelo para lhe levantar a cabeça e verificar que estava inconsciente. O carcereiro lhe arrojou uma taça de água à cara. O general aguardou. O correio tinha sido capturado por um destacamento do castelo do Stirling, mas os idiotas da guarnição lhe tinham retido durante vários dias para ler os despachos, preocupados com sua própria pele, antes de lhe enviar ao cativo sob custódia.

O oficial inglês se inclinou junto ao Ewan até lhe roçar a orelha com seus finos lábios de serpente assim que o torturado abriu os olhos turvados pela dor.

— Onde está a rameira jacobita?

Ewan moveu os lábios, mas não emitiu som algum, de modo que Hawley se inclinou um pouco mais perto.

— Repete isso, homem.

— Pòg mo thòn* — murmurou o prisioneiro, e a voz lhe perdeu entre um ataque de tosse.

— Em meu idioma!

— Vai... —ofegou Ewan.

— Sim — lhe respirou ele. — Vai, aonde vai?

—vai... Vá-se a merda.

Hawley lhe soltou o cabelo. O carcereiro elevou o látego, mas lhe deteve a mão.

— lhe esfregue as costas com um pouco de sal — disse. — Não convém matá-lo. Ainda não. Falará. É só questão de tempo.

Anne alargou o braço e ofereceu uma pequena caixa chapeada para lady Farquharson.

—Tenha um presente — disse. — As senhoras do Edimburgo usam isto em todo momento.

A mulher levantou a coberta e ficou olhando aquele pó pardo com manifesto receio.

— Ciod e?* O que é? Pólvora?

— Rapé. Agarra-se um pingo — Anne fez a demonstração— e a inspira pelo nariz.

— De verdade?

A madrasta não parecia convencida, antes bem, suspeitava que a moça havia devolvido o pó à caixa em vez de ficar o no nariz.

— Anda, prova — a insistiu ela.

Lady Farquharson agarrou um pingo e a pulverizou na depressão do polegar, como o tinha feito Anne. Logo inspirou.

— OH... —A jovem alargou a mão para fechar a caixa. — Se necessita lenço.

— Para que? —inquiriu a madrasta pouco antes de espirrar.

— Para isso.

Espirrou um par de vezes mais e começaram a chorar os olhos.

—E diz que fazem isto por prazer? —perguntou com incredulidade.

— Sim. Espera um minuto e entenderá o por que.

A cena se desenvolvia ante a porta do Invercauld, onde o cavalo selado de Anne aguardava pacientemente. Ela tinha feito que o resto do guarda se adiantasse, mas já levava muito atraso. Logo que raiava o dia, mas ia ter que seguir o caminho mais longo e rodear as montanhas, pois o Lairig Ghru15 era impraticável no inverno. Voltou-se para sua irmã.

— Devo partir.

— Deixa que vá contigo, embora só seja até o Moy — suplicou Elizabeth.

— Esta vez não. —Lhe deu um abraço. — Continua praticando com o Dauvit —lhe sussurrou ao ouvido, muito sorridente— e aprenderá muito.

Despediu-se do James e dedicou um sorriso a sua madrasta, que agora se cambaleava um pouco, sem deixar de espirrar. Logo montou sobre o Pibroch e se afastou.

—Vá Por Deus — repetia lady Farquharson, apertando-a frente. — Vá santo céu.

A seiscentos quilômetros dali, MacGillivray entrava com o Lochiel no Derby, a poucos dias de marcha de Londres, onde se tinha reunido o conselho de guerra. A marcha para o sul tinha estado livre de inconvenientes, graças à habilidade com que lorde Murray burlava às tropas do general George Wade.

Havia bons e poderosos motivos para o júbilo: os espiões informavam que Londres estava alvoroçada, os ingleses organizavam tropas incapazes de medir-se com highlanders armados e o rei Jorge tinha seus pertences a bordo de uma barcaça, preparado para escapar pelo Támesis. Havia motivos para a alegria, sim, mas os semblantes dos assistentes refletiam uma grande tensão. Viam-se runas pulverizadas sobre o mapa da mesa e o príncipe estava ao bordo do pranto.

— Já ouvistes esse homem — trovejou Balmerino. — Cumberland trouxe de retorno aos dez mil veteranos apostados no continente. Esses dez mil soldados curtidos avançam contra nós enquanto discutimos.

— O informante é um espião — objetou o príncipe—, um agente do governo. Seguro que minta.

—Alguém minta, isso é seguro — interveio em voz baixa Margaret Johnstone, lady Ogilvie; seu tom expressava aprovação. — Alguém minta. O que foi que apoio inglês que nos prometia?

MacGillivray aproveitou a ocasião para respaldá-la:

— No Preston só se uniu a nós um punhado, e no Manchester, duzentos.

O povo da Inglaterra tinha reagido de maneiras diversas: com medo, curiosidade ou aceitação, mas sem unir-se à marcha.

— Patético — conveio David Ogilvie.

— Que os ingleses liberem suas próprias batalhas — concluiu Lochiel, e descarregou um murro na mesa.

— Se é que desejam as liberar, e me dá a impressão de que talvez é só contra nós.

— Se acaso querem liberar alguma, como não seja contra nós — apostilou Kilmarnock.

Carlos Eduardo se deu uma palmada na frente.

— Mon Dieu, as boas gente da Inglaterra não lutariam contra seu legítimo príncipe.

— lhes desengane, tampouco vão lutar por você — assinalou Jenny Cameron.

— O exército francês está se congregando em Dunquerque. — foi ao estorvo Ou'Sullivan. — Já está preparado para embarcar.

— mostrem-me isso pediu George Murray.

— lhes mostre...? O que?

— As missivas dos franceses, claro.

— Né... pois... —O outro ficou talhado. — Vá não me ocorreu as trazer.

Lorde George se voltou para o secretário do príncipe, cujo nome se limitou a mencionar:

— Sir John...?

— Só temos as primeiras comunicações. —O arrumado cavalheiro se olhava os pés. — Estão pendentes de receber a confirmação.

MacGillivray se inclinou para diante.

—Me mostrem as promessas dos jacobitas ingleses — exigiu.

Sir John continuava com a vista encurvada. Greta Fergusson, sua esposa, rodeou-lhe o corpo com um braço. Uma pluma caiu de sua roupa ao chão.

— Não existem — disse.

George Murray cravou o olhar no Carlos Eduardo.

— Enganaste-nos.

Não era uma pergunta.

— De outra maneira não teriam vindo — declarou o príncipe—, mas agora podemos dar procuração de Londres. Fait accompli. Amanhã será nossa!

— Não há apoio inglês — bramou Balmerino. — E do rei Luis, só palavras vácuas.

— O exército francês vem para aqui — chiou o príncipe. — me Acreditem.

— Vos acreditamos quando falaram do apoio inglês — assinalou MacGillivray.

— Luis não me deixará na estacada. —Carlos, presa de pânico, assinalou a mesa com um gesto da mão. — As runas nunca mentem!

Lochiel as recolheu com um gesto de raiva e as triturou no punho.

— George, George. —O príncipe lhe agarrou pela jaqueta. — Bem sabem que podemos nos apropriar de Londres. Digam — J'ai promis mon père — gritou.

— Voltamos para Escócia — decidiu George Murray. — Ali esperaremos a chegada dos reforços franceses. Quem está a favor?

Todos levantaram a mão, salvo o príncipe Carlos e Ou'Sullivan. Lochiel soprou para pulverizar por todo o mapa o pó de sua palma. Os comandantes escoceses abandonaram o salão em grupo. O príncipe arrojou sua cadeira ao outro lado.

— J'ai promis mon père —gritou. — É tolos, tolos! Jamais voltarei a lhes consultar!

Cada passo do Pibroch entrava na rota pela que tinha transitado o cortejo nupcial quando ia de caminho a casar-se com o Aeneas. Naquele tempo a tinham percorrido a um trote tranquilo, efetuando uma parada durante a noite. A viagem tinha um ponto cometido e flutuava no ambiente um ar de celebração enquanto cruzavam a campina verde e viçosa. Agora ia ao meio galope, os cascos da montaria tamborilavam no caminho, chapinhavam nos vaus e golpeavam surdamente a terra descoberta, junto a bosques de árvores nuas. Coroe-a-a efetuou duas paradas para descansar, beber água e caminhar um pouco, a fim de aliviar as pernas tidas cãibras. Fazia frio, mas o inverno só se tornaria cru com a mudança de ano.

A luz vespertina de dezembro se apagava já quando chegou ao Moy. Sentiu-se afligida pelo medo e se alegrou de que a gaze da escuridão velasse até ocultar coisas cuja visão não teria suportado: a árvore à beira do lago onde se escondeu; o espaço onde tinham instalado a plataforma para as bodas; a janela do dormitório depois da qual tinha conhecido carnalmente a seu marido, a mesma pela que se apareceu, temerosa de que Aeneas e MacGillivray estivessem combatendo a morte.

Will, a moço de quadra, correu para fazer-se carrego do cavalo e ficou mudo de surpresa ao vê-la. Dentro da casa, a viúva Macintosh lia sua exemplar do Scots Magazine junto ao fogo com fingido escarro em um intento de mostrar-se impertérrita, embora devia ter ouvido a chegada do cavalo. Apartou a revista assim que viu entrar na Anne no salão.

— Anne! —exclamou com alívio. — Posto que se ouvia um só cavalo, pensei que seria Aeneas.

— E isso se preocupava?

— Sim, depois da chegada de suas tropas, mas a última vez que veio tivemos um forte intercâmbio de palavras e agora fica no forte. —Estreitou-lhe as mãos. — Todo isso pode esperar. Quanto me alegra verte. —E chamou à entusiasmada Jessie para lhe pedir cerveja.

— Não, cerveja não — repôs Anne. — Tenho algo melhor. —depois de pôr na mesa a cajita que trazia consigo, abriu a tampa. — Chá — anunciou.

—ouvi falar do mesmo — admitiu a viúva Macintosh, olhando com o sobrecenho franzido as escamas negras e secas que continha a lata. — Ciod e?* come-se?

— Ou talvez se use para amadurecer? —Jessie ficou um pouco na língua e o cuspiu imediatamente. — Não tem sabor.

— Prepara-se em infusão — explicou Anne. — As senhoras do Edimburgo tomam em vez de cerveja, durante quatro horas.

— Bebem isto durante quatro horas? —A viúva tinha ficado impressionada.

— Entre as quatro e as oito, enquanto fazem vida social em seus salões, antes do jantar. Seus clérigos pregam contra o chá para fazer que voltem para a cerveja, mas elas não fazem conta. Ocorreu-me que, se chateava a esses avinagrados da Igreja presbiteriana, devia ser uma boa bebida.

As três mulheres inspecionaram as folhas de chá. Anne só tinha uma vaga idéia de como prepará-lo e instruiu à moça o melhor possível. Ao seu devido tempo chegou a infusão em um bule fumegante, com três copos, um açucareiro e um jarro de nata.

—Fiz enviar um jogo de chá — informou Anne—, mas por agora bastará com isto.

Jessie não devia ter ficado muito convencida a julgar pela jarra de cerveja que tinha incluído na bandeja.

—Trouxe também isto... No caso de — se justificou.

O chá não teve muito êxito. O sabor era bastante agradável, embora muito suave, mas essas folhas negras, que flutuavam na bebida e se entupiam na boca, fizeram-nas desistir. Ao fim, voltaram para a cerveja.

— Agora que somos tão senhoras como as do Edimburgo — disse a tia, enquanto cuspia outra folhinha de chá—, deve nos contar todas suas aventuras.

Jessie trouxe pratos fumegantes de toucinho picado e batatas empanadas em farinha para que pudessem jantar junto ao fogo. Will, seguro de que se preparava uma boa história, foi dos estábulos para unir-se a elas. Uma vez que Anne e a tia do Aeneas estiveram instaladas nas poltronas, ele na lareira e Jessie na banqueta, começou a narração.

Ela lhes contou como tinha conhecido ao príncipe; posto que ali ninguém lhe tinha visto, lhe exigiram detalhes. Que roupa usava? De que cor tinha os olhos e o cabelo? Como era sua estatura? Era tão bonito como todos diziam? Similares pormenores lhe pediram da chegada ao Perth, a captura do Edimburgo, a batalha do Prestonpans e o cruzamento da fronteira. Foi um relato comprido, pois o périplo de lady Macintosh abrangia quase quatro meses de aventura; a história seria repetida e circularia pelo clã. Era perfeita para as frite e largas noites de inverno.

— E agora estão já em Londres? —perguntou Will, quando ela teve terminado. Brilhavam-lhe os olhos e tinha um lado da cara avermelhado pelo calor.

— Deveriam estar ali, sim — assentiu Anne. — Talvez esta mesma noite o príncipe se sente já no trono.

Embora essa notícia viajaria depressa, até transmitida por cavaleiros e monturas descansados demoraria uns quantos dias em chegar.

— Nos conte de novo aquilo de MacGillivray vestido de mulher. —Jessie ria como uma menina.

A anciã os despachou à cama, sou pretexto de que já era tarde para quem devia levantar-se com o sol, mas em vez de cobrir o fogo com turfa molhada para manter as brasas durante a noite, removeu-o com um atiçador, atiçou-o, adicionou outro lenho e serviu mais cerveja para ela e para a Anne.

— Há uma parte da história que passaste por cima — lhe recordou. — No campo de batalha, você e Aeneas.

— Como sabe? —Anne se tinha desconcertado, mas em seguida compreendeu. — Lhe contou isso ele, a que sim?

— Sim, mas quero escutar o de seus lábios.

A jovem lhe referiu o ocorrido: quando o soldado inglês se elevou detrás de MacGillivray com uma tocha na mão e Aeneas lhe salvou a vida graças a um oportuno disparo enquanto ela se ficou petrificada e incapaz de falar pela surpresa de lhe ver tão perto, tanto que teria podido desmontar de um salto para abraçá-lo, a não ser pela maneira em que ele a olhava; tão perto que teriam podido falar, até que ele se afastou sem dizer uma palavra.

— Por que tinha omitido essa parte?

— Não queria que eles soubessem que seu chefe me tem em tão baixa estima nem que salva ao MacGillivray, mas trata a sua esposa com tanto desprezo.

Encheram-lhe os olhos de lágrimas.

— OH, Anne, a ghràidh*. —A viúva Macintosh se levantou da poltrona para ajoelhar-se frente ao da moça. — foste tão forte... Não chore. Toma. —Entregou-lhe o lenço que tinha metido na cintura. —enxugue essas lágrimas dos olhos.

— Não suporto que me odeie tanto.

— Isso é porque lhe ama.

— Não. —Anne se soou o nariz. — Não sei se lhe amo.

— Desde não ser assim, por que te importa tanto sua opinião?

— Não sei o que pensa. Não me fala.

A viúva lhe agarrou as mãos e a olhou aos olhos com muita seriedade.

— Pensa que foi ao campo de batalha para lhe disparar.

— O que?

— Porque acreditava que ele mataria ao MacGillivray.

— Não!

— Sua pistola apontava para ele.

— Porque o soldado inglês caiu antes que eu pudesse disparar. Só então vi o Aeneas.

Tudo tinha acontecido em questão de segundos, mas a coroe-a-o repassou em sua mente: a fumaça ao dissipar-se, a repentina aparição de seu marido com o dedo no gatilho, e a expressão do Aeneas, a expressão de seu rosto.

 

 

Anne despertou desorientada na habitação revestida de madeira para ouvir os gorjeios dos pássaros, uma verdadeira mixórdia de sons: pios, estalos, gorjeios graves e um grasnido. Se desperou e arqueou contra o vulto situado a suas costas enquanto pelas janelas penetrava a torrentes o sol invernal. Não seria Aeneas esse vulto? Em tal caso, não era coisa de sua invenção que ele tinha vindo para casa durante a noite. Voltou-se na cama, mas não: era só o travesseiro, que tinha metido sob os cobertores enquanto dormia, para encher o espaço vazio. Nesse momento a memória lhe subministrou outro som: o de um feroz entrechocar de aços. Então se levantou para ver que nada era realidade e que no dormitório unicamente estava ela. Sozinha.

Jessie tinha acendido o fogo no piso de abaixo e servia o porridge quente no comilão.

— Tenho um par de arenques, defumados ou em sal, se quer — ofereceu, ao entrar Anne. — Os do clã já não trazem grande coisa. Como são tantos os ausentes e aqui só está a viúva...

A tia já estava sentada, jogando sal a seu café da manhã, com a mesa coberta de periódicos. O Caledonian Mercury era sua leitura habitual, mas ela cobria com o Edinburgh Courant os brancos deixados pelas três edições semanais. Agora que o gasto se justificava tinha acrescentado o Spectator e o London Evening Post, mais pertinentes, a pesar do atraso com que chegavam. Gostava de ler enquanto comia.

— Os periódicos ingleses parecem assombrar-se de que nosso exército se comporte na marcha para o sul — comentou.

— Bastará com o porridge — disse Anne a Jessie. — O pescado se conservará. —sentou-se à mesa. — Me Diga, a que se referem com isso de «comportar-se»?

— Suponho que esperavam violações e pilhagem — refletiu a anciã—, posto que somos bárbaros.

Mas não pôde manter a expressão séria e ambas puseram-se a rir.

— Sempre pagamos tudo — explicou Anne. — Procuramos amigos, não inimigos.

A viúva assinalou o hervidor que fumegava na lareira.

— Pensamos que quereria beber algo desse teu chá.

Anne fez um gesto negativo.

— Limitarei-me à cerveja, pelo menos até que chegue o serviço de chá.

— Fará muito feliz à Igreja do Edimburgo — comentou a viúva, seca.

— Duvido que me redima jamais ante eles — comentou Anne—, depois de resgatar a Desavergonhado desse pároco justiceiro tão desanimado.

A mulher a pôs a par das novidades do imóvel durante o almoço. Os Shaw tinham perdido a um filho; o major havia trazido o cadáver a casa, costurado dentro de sua manta por alguma alma caridosa das Terras Baixas. Arrastou durante duas semanas as cangalhas que tinha feito com ramos para transladar o cadáver. Eram vários os que tinham morrido, ou aos que se acreditava mortos; Anne conhecia uns quantos.

— Aeneas escreveu ao Màiri para lhe informar de que seu Lachlan tinha cansado.

— O filho do ferreiro? Segue vivo e está conosco! — esclareceu Anne. — Seu pai o resgatou do campo de batalha. A ferida foi só na carne e está muito orgulhoso da cicatriz. Atravessa-lhe todas as costas, de cima abaixo, mas está com vida e já sanou.

— Que maravilha! — viúva estava radiante. — Faremos que Will corra a casa do Màiri, assim que retorne do Invernes. Enviei-lhe para que me acenda os lares. Assim se tirará o frio. Não convém deixar a casa vazia durante o inverno.

Anne tinha mais boas notícias de parecida índole. A maioria dos jovens do clã Macintosh militantes no Guarda Negro e desaparecidos depois da batalha do Prestonpans integrava agora o exército jacobita, depois de ter sido tomados prisioneiros. Em total eram cinquenta; ela os tinha contado, embora não recordava os nomes de todos.

A viúva Macintosh sabia de alguns que tinham escrito desde o Edimburgo, mas não eram tantos. Anne franziu o sobrecenho: outros teriam devido enviar notícias ao lar antes de cruzar a fronteira; ela lhes tinha recomendado que o fizessem.

— Por certo, agora que lembrei, chegou são e salvo Desavergonhado? —inquiriu.

Tinham voltado para casa tanto ele como Robbie Uivador, este último sem permissão de liberdade sob palavra e com um braço amputado, justamente o direito, e ele era destro. A liberdade sob palavra estipulava que o assinante não voltaria a combater contra os jacobitas, sob pena de morte. Robert Nairn tinha intenções de liberar o documento para o Robbie no hospital do Edimburgo, mas isso ficou esquecido depois da briga com o furioso pároco no Mercat Cross. Posto que não podia provar as condições de sua liberação, era possível que o considerassem desertor. Desavergonhado optou por tachar seu próprio nome em seu documento, para substituí-lo pelo de seu amigo, e retornou ao forte.

— Não pode fazer isso — objetou Anne. — Figura em nossos registros.

— Intercederemos por ele se o agarrarem prisioneiro — disse a tia. — De estupidez ninguém morre.

O resto das novidades se relacionavam com as coisas ordinárias. A vaca do Meg parecia em condições de sobreviver ao inverno, agora que a velha não estava aí para sangrá-la. O velho Tom seguia mais ou menos igual, apesar de, ou graças a, o caldo que lhe dava com regularidade. O bebê do Cath já engatinhava.

— E ela continua com o Ewan?

— Ewan se foi contigo — lhe recordou a viúva.

— Sim, mas o enviei a casa da fronteira, com o correio.

— Och, vá, aí tem a resposta. Tem que estar repartindo as cartas pessoalmente. Sabia que o bebê do Cath é dele?

  Anne assentiu com a mente posta em repassar quantos dias tinham acontecido desde que falou com ele. Eram muitos, sem dúvida.

— Seonag também — divagava a tia. — Queria muito a esse bebê, certamente. Toda vida tem que ser apreciada, mas bem que espancou ao Ewan. As mulheres são animais estranhos. Pretendemos que aos homens não incomode nos compartilhar, mas que eles façam o mesmo é muito diferente. Suponho que nós estamos feitas assim e eles não, nunca. Logo que podem manter satisfeita a uma sozinha, se acaso!

—Demora muito — a interrompeu Anne. — Ewan deveria estar já em sua casa. transcorreu muito tempo.

A porta da cozinha se abriu de par em par e Will entrou como uma tromba. Jessie lhe seguia de perto.

— Vêm de volta! —chiou a moço. — Nosso exército vem de volta!

— Dè bha siud?* — A viúva girou bruscamente para ele.

— O que? —Anne se tinha levantado. — De Londres?

— Não foram a Londres. Detiveram-se em... Em... —Não conseguiu recordar o nome. — Bom, era um sítio a pouca distância. Lorde George disse ao príncipe que eles voltariam para a pátria.

Anne e a viúva Macintosh se olharam mutuamente, como se cada uma pudesse achar nos olhos da outra as respostas a todas as perguntas que lhes cruzavam pela mente.

— O general George terá seus motivos — conseguiu dizer a viúva.

— Isso não é tudo. —Will estava a ponto de estalar ante tanta novidade. — O exército do governo deixa os barracos do Ruthven! Para ir ao Edimburgo, conforme dizem todos.

— Vão desviar os — conjeturou Anne. — Para cercar combate com os nossos.

— Isso diria eu — concordou a tia. — OH, querida, isto eu não gosto de nada. Agora terão detrás ao exército do general Wade. E logo partirão contra este.

Anne sujeitou ao Will.

— Pode percorrer Moy a cavalo? Dava aos guardas que devemos nos pôr em marcha e que necessito a todos os guerreiros dispostos a combater. Congregaremo-nos no Invercauld.

— Irei. —O menino assentia freneticamente. — Irei assim que me soltem a manta.

Uma vez livre, saiu disparado pela porta, e fechou de uma portada. Então, quando já era tarde para lhe dar a indicação, Anne se lembrou.

— Ai! Fica Dunmaglas.

— Farei-o eu — se ofereceu Jessie. — E do primeiro lugar que visite enviarei mensageiros a outros clãs.

— Bem pensado. Boa garota.

E Jessie também desapareceu. Anne correu à cozinha, em busca do arasaid* que Jessie lhe tinha tirado a noite anterior; depois de tornar-lhe sobre os ombros o rodeou à cintura.

— Retorna ao Braemar? —adivinhou a viúva Macintosh.

— Não. O clã de meu irmão já se está congregando. Deve estar a par da mudança de planos. Vim para ver o Aeneas e agora tenho mais motivos que antes para fazê-lo; não irei me reunir com ele. Vou ao Invernes.

— Mas lhe estão procurando. Reconhecerão-lhe. Olhe. — A tia agarrou da mesa um dos periódicos londrinos para mostrar-lhe.

— Não; por esse desenho não me reconhecerão. —Anne observou a caricatura com atenção. Devia ser uma brincadeira. Jogou uma olhada ao desenho que a acompanhava. — Jenny Camerún? Põem-na como homem.

A viúva não se deixou convencer.

— Gente de por aqui sabe qual é a cara que corresponde a seu nome. É perigoso.

Anne colocou sobre a cabeça a dobra de tartán que lhe pendia às costas. O capuz lhe ocultava a cara com efetividade.

— A estas alturas a maioria das mulheres levarão a cabeça coberta para proteger do frio — disse. — Assim vestida, pareço uma camponesa.

— Mas como entrará no forte?

— Resolverei quando estiver ali.

E ela também desapareceu da casa.

— Jessie — chamou a senhora. Logo, estalando a língua ante seu próprio engano, retornou ao comilão para encher-se outro copo de cerveja. — Bem, querida casa — disse, elevando a bebida para um brinde—, parece que deverá te conformar outra vez comigo. Slàinte!*

E o bebeu de um gole.

Anne deixou ao Pibroch aos cuidados de uma mulher de confiança nos vizinhos do Invernes. Colocou ao cavalo na cozinha a fim de não suscitar comentários entre os vizinhos e depositou ali também o aço e o punhal. Sem eles se sentia nua, mas se levava-os se delataria.

— Tome cuidado — lhe pediu a mulher no momento de partir a pé. — Estão pendurando aos espiões na praça. O outro dia enforcaram Struan Davidson.

— O rotulista...?

Um dos despachos do Ewan estava destinado ao Davidson, que em seu momento tinha arrecadado recursos para as tropas jacobitas.

Anne colocou uma pistola bem dentro das dobras de seu arasaid*, no caso de. Só por isso podiam prendê-la, se viam a arma, mas ao menos não cairia sem brigar.

Entrou na cidade e andou até a praça. Ao outro lado da mesma, perto do patíbulo, ouviam-se murmúrios. O lugar era um hervidero de compradores que vadiavam em torno dos numerosos postos e de olheiros, dispostos a se despedir das tropas ou presenciar outra execução. Anne se alegrou, porque a multidão ocultaria bem sua presença.

Os casaca vermelha se congregavam atrás do patíbulo antes de unir-se aos soldados do Ruthven, convocados estrada abaixo. Os portões estavam abertos; no mastro ondulava o estandarte de lorde Louden, o do Guarda Negro, mas não por muito tempo.

Anne percorreu o lugar com a cabeça encurvada e se comportou como qualquer outra camponesa, vadiando entre os postos. Adquiriu um copo de cerveja com a intenção de apresentar-se nas portas do forte, fazendo-se passar por uma tendera com um presente para o Aeneas, não, melhor ainda, para o Louden, com o fim de lhe desejar a vitória. As arrumaria para entrar desse modo. Havia outras muitas mulheres que entravam e saíam a vontade: esposas, noivas, queridas, e as de pagamento. Ninguém ia reparar nela em meio de semelhante caos de pessoas, gaitas de fole ululantes, soldados à carreira e outros que se preparavam para formar.

Deu a volta e começou a cruzar a praça lotada com o passo decidido, como quem tem pressa em realizar um recado. Vamos, no patíbulo, sustentavam pelos sovacos a um pobre diabo meio morto, com a cabeça caída sobre o peito, para aproximá-lo do nó corrediço. Anne desviou resolutamente o olhar para o forte. E ficou paralisada. Nos paralelepípedos, ao pé da forca, um capitão com o uniforme do Guarda Negro se adiantou e se deteve, com a vista levantada para o prisioneiro. Era Aeneas.

O chefe Macintosh observou o semblante machucado e ensanguentado do homem, já com a soga ao pescoço. Logo ficou olhando fixamente. James Ray se deteve seu lado, seguido por sua esposa.

Aeneas percorreu o lugar com o olhar. Havia uma camponesa encapuzada, estranhamente familiar, entre a multidão espectador que continha o fôlego. ficou-se petrificada; parecia olhá-lo a ele, não ao enforcamento. A suas costas se abriu ruidosamente a armadilha do patíbulo. O condenado caiu, o nó corrediço lhe rodeou ao pescoço, lhe estrangulando, e as pernas espernearam com desespero.

Aeneas comprovou sua identidade e aferrou à tenente.

— Atirem  para baixo! —ordenou enquanto assinalava ao enforcado energicamente.

Ray saltou para diante, rodeou com os braços os membros convulsos do moribundo e deu um salto; ao descender flexionou as pernas, a fim de adicionar todo o peso de seu corpo ao do homem e obter seu objetivo: que o pescoço se partisse, como assim foi, logo as pernas se contraíram e cessou o esperneio.

O olhar de Anne seguiu a direção indicada por seu marido e ficou gelada quando levantou os olhos e viu o rosto do enforcado quando caiu para trás o capuz de tartán, deixando o semblante ao descoberto. Ao extremo da soga se balançava Ewan.

Se fixou na contemplação do rosto contundido e inane do formoso guerreiro. Aeneas tinha enforcado ao Ewan. A surpresa lhe impedia de compreender. Tinha enviado a casa para que lhe entregasse uma carta a seu marido antes de iniciar uma vida nova. Nessa missiva, lhe pedia um encontro para falar. E essa era a resposta de seu marido? Fazer algo assim ao Ewan, nada menos?

Um excremento geral vestido de negro se plantou ante  Aeneas como saído de nada, saltando e agitando-se como um inseto demente. Até a Anne chegaram os gritos de sua voz aguda e gritã.

— O que têm feito? Eu queria a esse homem com vida!

Enquanto ela olhava, uma mão a tocou no ombro; outra lhe apoiou nas costas e a fez girar.

— Agarrará algo fatal, querida — disse uma mulher, enquanto voltava a lhe levantar o capuz. Era Helen, a esposa do James Ray. — Não deveria ter saído com este tempo.

E lhe aconteceu um braço pela cintura para impulsioná-la para o outro lado da praça, longe do palco.

Junto ao cadafalso, Hawley gritava com Aeneas e ao Ray como se estivesse ao bordo da apoplexia.

— Farei-lhes pagar por isso! —Virou para gritar ao verdugo: — Baixem! Baixem!

O corpo de Ewan se estrelou contra o chão, de barriga para baixo.

— Não tinha terminado com ele — gritava o general. — Queria esquartejá-lo. Quando visse suas próprias tripas soltaria a língua.

Aeneas observou as costas destroçada do camponês morto. Estava aberta em profundos sulcos negros de sangue coagulado. O osso aparecia, exposto depois de uma inclemente tortura.

— Duvido-o — disse, sombrio. — Era um camponês escocês. Não teria nada que dizer.

— Tomam por tolo, Macintosh? —A saliva espumava nas comissuras da magra boca do Hawley. — Ele conhecia o paradeiro de sua esposa!

A menção dessa palavra lhe fez perguntar-se à tenente pela situação da sua e olhou a sua redor em busca da Helen até divisar no outro extremo da praça uma correria e o bato as asas do vestido de sua esposa. Pareceu-lhe ver duas mulheres que desapareciam entre os postos. E partiu atrás dela, abrindo acontecer com trancos por entre a multidão que rodeava o patíbulo.

— Me chateiem outra vez, Macintosh e serão o próximo em dançar no cadafalso! —bramou Hawley.

Aeneas inspirou profundamente, cheio de dor. Quão único tinha podido brindar ao Ewan era a paz. Agora, Anne devia saldar uma conta ainda maior: a incógnita de seu paradeiro tinha provocado a atormentada morte desse membro de seu clã.

Hawley era só uma enfermidade, um sintoma do que se feito a si mesmos, mas essa afeição doentia pela tortura e a forca era coisa dela. O capitão cravou um olhar depreciativo nos olhos furiosos de seu superior e replicou com uma calma glacial:

— Todo homem deveria dançar antes de morrer.

Helen estreitou apressadamente a cintura de seu acompanhante ao chegar ao outro lado da praça.

— Todas as esposas dos oficiais opinam que é maravilhosa. —E empurrou a Anne por volta de um beco. — Agora vá, vá logo — insistiu. A moça jogou um olhar de gratidão e, depois de lhe pôr nas mãos o jarro de cerveja, cruzou apressadamente  o portão — E se conserve viva —sussurrou Helen.

Inspirou uma profunda baforada, acomodou-se o vestido e, com a jarra em equilíbrio sobre o braço, saiu do beco. Seu marido apareceu frente a ela.

— Entraste por aqui com uma mulher — a acusou.

— Não, por certo. —Lhe mostrou a jarra. — Estava atarefado. Vim a comprar cerveja. E devo me deter... — com uma mulher a que acredito ter reconhecido — corrigiu ele, empurrando-a a um lado para olhar para dentro.

Helen, temerosa, espiou desde atrás. O beco estava deserto. Anne tinha desaparecido.

— Eu não vi a nenhuma mulher, querido. — Sorriu. — vim para aliviar a bexiga.

 

 

De pé na pradaria, MacGillivray contemplava o castelo do Stirling. Tinha-o visto antes, no transcurso de uma incursão para roubar ganho. Stirling era o passo natural entre as Terras Baixas e as Altas, e um castelo de primeira categoria, que parecia brotar naturalmente da alta escarpa rochosa onde se levantava. Rodeava-o uma planície fértil, o qual lhe concedia uma magnífica visibilidade sobre o território circundante. Da União, servia de sede a tropas inglesas ao igual ao castelo do Edimburgo e os três fortes das Terras Altas, como se os escoceses fossem um povo subjugado. As guarnições dessas fortalezas se aquartelaram detrás de suas defesas nos começos da sublevação e ali permaneciam, imóveis. O príncipe estava decidido a desatendar aquele reduto.

Do Perth tinha chegado uma companhia dos Écossais Royaux, enviados pelo rei Luis em apoio das forças jacobitas que ficavam em Escócia, enquanto o corpo principal invadia a Inglaterra. Haviam trazido com eles canhões de assalto e agora os estavam situando para iniciar o ataque contra o castelo. A guarnição ali entrincheirada efetuava algum que outro disparo ocasional, mas os jacobitas estavam muito longe do alcance de tiro.

— A estas horas já deveriam ter saído — comentou Donald Fraser, o ferreiro, junto ao cotovelo do MacGillivray.

Tinham iniciado o assédio depois de ocupar Glasgow, no caminho de volta à pátria da Inglaterra. Glasgow era uma cidade pequena em comparação com o Edimburgo. E também estranha.

Os glasgowianos se elevaram por duas vezes contra a União: em 1707 e de novo fazia vinte anos, mas não nesta ocasião. Seus navios mercantes já não sofriam a perseguição da Armada inglesa e comercializavam com o tabaco e o açúcar das colônias do Novo Mundo. Agora a cidade se enriquecia e era a única parte de Escócia, que se beneficiava daquele matrimônio bastardo entre as duas nações. Poucos de seus cidadãos se opunham ainda à União. O exército jacobita partiu assim que se reabasteceu. Agora estavam inundados no sítio do Stirling.

—T enho a impressão de que estão extraindo pedras e as esculpindo com forma de bala — comentou MacGillivray. — O castelo acabará por derrubar-se no buraco que cavaram se esperarmos o suficiente. — voltou-se para o Fraser com um sorriso irônico. — Então poderemos ir a casa.

Aquela manhã de janeiro a primeira hora seguiam gozando de um tempo úmido e relativamente temperado. MacGillivray não tinha notícias de Anne desde novembro, quando se separaram na fronteira. Imaginava que estaria instalada no Moy Hall para passar o inverno com o Aeneas, frente ao fogo de turfa, com vinho temperado à mão, reconciliando-se ambos com a vida conjugal. Aeneas era um homem muito afortunado. Sem dúvida a essas horas devia estar convencido.

— Anne teria achado uma maneira de entrar — disse ao ferreiro.

— Ou lhes teria feito sair com um par de piscadas. — Fraser sorriu de brinca a orelha.

O exercício era inútil. O príncipe desejava manter um pé na Inglaterra, e fruto dessa tozudez, uma força jacobita permanecia no Carlisle. O exército do Cumberland, menos numeroso do que lhes haviam dito, abandonou a perseguição para assediá-los. Carlisle tinha cansado duas semanas atrás.

O assédio do Stirling era outra perda de tempo, pensada só para ajustar contas. Sacudiu a cabeça. A fome e a sede não eram boas armas para guerreiros, já que os homens deviam atuar; se não, atrofiavam-se. Apenas a trinta e oito quilômetros dali, para o este, o exército do Hawley ocupava agora a cidade do Edimburgo. Cumberland lhes aproximava pela retaguarda.

Deveriam ter dado meia volta para lhe fazer frente ou voltar para as Terras Altas, como estava planejado, para montar uma nova ofensiva na primavera.

Em troca, Estuardo os retinha ali. Se não estava discutindo com o engenheiro francês sobre máquinas, encerrava-se em suas habitações, triste, para beber com Ou'Sullivan. Os Écossais Royaux também haviam trazido a informação de que o exército francês se reuniu no Dunquerque, efetivamente, tão somente para dispersar-se assim que os escoceses voltaram garupas em vez de apoderar-se de Londres.

Agora lorde George resistia a enfrentar-se com o príncipe para lhe requerer informação sobre o avanço. O exército jacobita era numeroso e crescia sem cessar, mas os das Terras Baixas se mostravam inquietos; entre os clãs afloravam velhas contas pendentes. Logo estariam combatendo entre si.

MacGillivray agarrou uma pedra para arrojá-la para a fortaleza. O projétil repicou entre os ramos nus de uma árvore.

— Se nosso príncipe quiser este castelo, que ele fique a esperá-lo — concluiu. — vou perguntar a nosso regimento se quer recolher as esteiras e voltar para casa.

— A única resposta será um sim — asseverou Fraser. — Todos querem reencontrar-se com a família antes que comece o mau tempo.

Puseram-se a andar para o acampamento, mas se detiveram o ver em norte um movimento de filas apertadas entre as árvores do bosque. Os dois homens se detiveram, tratando de ver quem ou o que vinha para eles.

— Não serão as forças do Hawley, que vêm desde o Edimburgo? —aventurou Fraser.

— Daí não pode ser. —MacGillivray negou com a cabeça. — Além disso, os exploradores nos tivessem advertido.

— Anne!

MacGillivray pôs-se a correr para ela. Os pampooties16 de sola branda voaram sobre a erva condensada e endurecida pelo inverno. Anne açulou a suas arreios antes que ele houvesse talher a metade do caminho e saiu a seu encontro a lombos do Pibroch. Convergiram em seguida. Ela reprimiu a cavalgadura e passou da cadeira de montar aos braços do Alexander. Beijou-o, lhe abraçando, murmurando seu nome.

— Tornaste para ficar? —perguntou ele, enquanto se tornava para trás para olhá-la aos olhos.

— Não há outro lugar onde queira estar.

Ele voltou a lhe beijar a boca, a cara, o pescoço, o cabelo; estreitou-a com força contra ele para sentir o calor de seu corpo através do tartán.

Quando os outros lhes alcançaram, subiu-a novamente à cadeira do Pibroch. Ela deu uma palmada nas ancas do animal, lhe convidando a montar na garupa. MacGillivray subiu de um salto e a rodeou com os braços, como se fora um cavaleiro inexperiente que precisasse sujeitar-se.

— Por que não nos avisou de sua chegada? —perguntou-lhe ao ouvido.

— George enviou um mensageiro. Não queria filtrações.

Entraram no acampamento entre o primo e o irmão de Anne, seguidos por setecentos Farquharson, Macintosh e outros membros do clã Chatton. George Murray lhes esperava.

— Muito oportuna, Anne — sorriu.

— Sua mensagem era muito precisa.

O recolheu a lapela de sua tenda para lhes fazer passar. Dentro esperavam os outros comandantes; até Ou'Sullivan adoecia em um rincão. Todos, menos o príncipe.

— Hawley partiu do Edimburgo com seu exército faz uns dias — informou lorde George. — acampou na localidade do Falkirk, a quinze quilômetros daqui, com a intenção de cercar combate aqui amanhã ou depois, mas eu tenho outros planos.

Unir-se ao lugar do príncipe tinha sido uma finta, ideada para fazer que Hawley saísse da capital para um território mais conveniente para os guerreiros escoceses. Lorde George queria limpar o caminho de volta. Até esse momento, o odiado general inglês tinha cansado em seu jogo sem dar-se conta. Escócia contava com sua própria rede de contra-espionagem.

Depois do relatório, MacGillivray acompanhou a Anne até onde a esperava Pibroch.

— Preferiria que não tivesse proposto isso — disse, enquanto fincava um joelho em terra para que ela pudesse usar sua coxa como degrau.

— Servirá — replicou a jovem. — Além disso, queria ver esse homem de perto.

Hawley ia ganhando em pulso a fama de desalmado. Tinha encarcerado ao prefeito e instalado patíbulos em diferentes pontos do Edimburgo apesar de que a cidade não lhe tinha devotado resistência alguma. Ordenou enforcar a vários edimburgueses como simples espetáculo.

Os soldados não foram atrás. Destroçaram todas as janelas que não estivessem iluminadas para celebrar sua entrada e saquearam as casas dos suspeitos de ter simpatias jacobitas em busca de provisões.

— Tome cuidado. O poderia te reconhecer.

— Acredita que sou uma amazona — riu Anne; logo, já com o semblante mais sério, adicionou—: Sei o que faço. É você quem deve te cuidar. Não morra agora, Alexander.

— Se te tiver comigo, sou invencível.

— Te cuide as costas, esta vez.

Agitou as bridas e se afastou. MacGillivray a seguiu com a vista. Bastava sobrevivendo. Como ela. E partiu a reunir-se com suas tropas, que já se estavam mobilizando.

 Quinze quilômetros de cavalgada para o este separavam o acampamento do Stirling do Falkirk, uma população mercantil situada a metade de caminho entre as cidades do Edimburgo e Glasgow, separadas entre si por quarenta quilômetros. Anne se ateve às instruções de lorde Kilmarnok e a rodeou pelo bordo do sul, encarapitado nos páramos. Desde sua posição em alto pôde ver as tendas do exército do Hawley, acampado em uma planície entre o terreno elevado e a urbe. Coroe-a-a andou procurando o arroio descrito pelo conde e seguiu seu curso colina abaixo entre os bosques até alcançar os limites do imóvel do Callendar, no lado oriental da cidade.

Deteve-se em uma clareira do bosque, onde atou ao Pibroch com a folga suficiente para que pudesse pastar e chegasse até a água para abreviar a seu desejo. Em seguida, baixou a pé pela boscosa ladeira e encontrou o atalho que conduzia à parte posterior do Callendar House, e mais concretamente à porta de sua cozinha.

As cozinhas estavam acostumadas ser entradas livres de perigo. Ninguém reparou nela, dado o contínuo trajín de gente. O cozinheiro em pessoa se limitou a lhe dar uma olhada e seguiu sentado, com os pés na lareira, mas a governanta era farinha de outro saco.

— No que podemos te servir? —inquiriu assim que lhe pôs os olhos em cima.

—Trago uma mensagem do conde — anunciou Anne em voz baixa. E cruzou um dedo ante os lábios para sossegar o chiado da mulher. — Poderia procurar alguma desculpa para trazer para sua ama?

A governanta abandonou a habitação. Anne manteve perto da porta como medida de precaução e manteve os dedos cruzados. A condessa foi para a cozinha ao cabo de muito poucos minutos e cruzou o chão de lajes a toda velocidade para tomá-la por um braço.

— Que novas traz de meu marido?

— Nenhuma de gravidade — a tranquilizou Anne imediatamente. — Lorde Kilmarnock está bem e lhes envia lembranças. Devo lhes pedir que preparem uma comida muito especial, generosa. E é preciso fazê-lo em seguida.

—Nosso costume é comer com frugalidade — repôs a condessa com estranheza, e logo torceu o gesto. — Querida, você é montanhesa, sabe que perigo corre ao vir aqui?

— Têm o general Hawley e a seus ajudantes de campo acampados aqui — disse a moça. — Conheço o perigo, sim. Por isso vim.

— Quem é?

— Anne Farquharson, lady Macintosh.

A condessa ficou boquiaberta. Sua nervosa governanta avermelhou imediatamente envergonhada de não ter reconhecido a posição social da intrusa; logo, ao cobrar consciência do nome, também ficou abobalhada. Até o cozinheiro, que escutava com muito pouco interesse, levantou-se de um salto, com o que o hervidor caiu ruidosamente dentro do lar.

— Então, então... É Anne! —exclamou a senhora da casa. — O perigo é maior ainda, pois acima se atendam o general e seus ajudantes de campo.

— Mas ele não me conhece — respondeu, arremedando o acento do sul do modo em que o tinha aprendido da pequena Clementina e os edimburgueses. Era um bom momento para pôr em prática esse conhecimento.

A senhora da casa sacudiu a cabeça.

— Esse acento não enganará a ninguém, senhora.

— Não a um escocês, mas sim a um inglês. —Esboçou um sorriso. — Todos soamos iguais para eles. —Logo ficou séria. — Eu gostaria de jogar uma olhada a sua hóspede; poderia servir ou ficar na cozinha. Mas se isso lhes põe em perigo, irei.

— Nada disso — repôs a condessa. — Se necessitam duas cabeças para preparar esta comida.

Um dos inconvenientes para o plano de Anne era a escassez da despensa. Os Kilmarnock apoiavam a rebelião pelo empobrecimento do imóvel. A governanta, a empregada de cozinha e a criada do piso de acima receberam ordens de sair em seguida aos terrenos e a procurar ingredientes na horta, o pombal, o lago e a granja doméstica. O mensageiro correu à cidade para implorar, pedir emprestado e, como último recurso, comprar o necessário.

Enquanto, o cozinheiro golpeava suas caçarolas e lançava instruções em qualquer parte. Anne se arregaçou para ajudar a esfolar, picar, podar, preencher e revolver. Colaborou até a condessa. Quando tudo ficou feito, refrescou-se a cara com água fria e aconselhou a Anne que fizesse o mesmo.

— Merecem-lhes uma comida em condições depois de todo este esforço — assegurou, e conduziu à moça a suas próprias habitações, pela escada de serviço, para que se preparasse.

Lady Anne Livingstone era condessa do Kilmarnock por matrimônio e condessa do Linlithgow e do Callendar por direito próprio. Sua tia, a condessa do Erroll, era chefa do clã Há e lorde contestável, o posto mais elevado da Escócia, oficial supremo do exército escocês, inferior só à coroa. Lady Livingstone era sua herdeira; ao igual a sua anciã e poderosa tia, que tinha contribuído com tropas à causa, era uma firme jacobita e tinha convencido a seu marido de incorporar-se aos rebeldes. Viu-se obrigada a aceitar, e não de boa vontade precisamente, a prudente decisão de seu filho maior: servir nas tropas do governo.

Na habitação deu a impressão de começar a divertir-se.

— Falem o menos possível quando baixarmos — aconselhou a Anne enquanto a penteava. — Lhe notará esse acento montanhês se der muito à língua.

Os ajudantes do general já rondavam o comilão, famintos, quando elas entraram. Hawley permanecia de costas a elas, ensimesmado na observação do retrato de Kilmarnock, pendurado na parede.

Anne o reconheceu imediatamente: era o mesmo general que se enfureceu com o Aeneas por ter enforcado ao Ewan. A reação do Hawley ante a morte do camponês não concordava com as anedotas que ela tinha escutado após, segundo as quais o homem tinha especial predileção pelo uso do cadafalso. Agora Aeneas, além de estar com o inimigo, era o inimigo mesmo: insensível, brutal, desumano. Obviamente, esses dois se mereciam o um ao outro.

— Seu marido milita com os rebeldes — observou Hawley, dirigindo-se à anfitriã, mas sem voltar-se.

— Em efeito, mas meu filho está entre suas filas.

Lorde Boyd se girou para saudar sua mãe e olhou a Anne com a surpresa reluzindo nos olhos.

— É lady Forbes — mentiu com resolução a condessa, apresentando-a com o nome de sua madrasta: — Jean Forbes. É nova na cidade, James, meu filho.

James Boyd fez uma reverência, apesar de que não se deixou enganar nem por um momento, mas não conseguia imaginar o que se trazia sua mãe entre mãos nem a verdadeira identidade da convidada, de modo que tomou assento sem dizer nada. O resto dos ajudantes era ingleses, pelo qual havia ainda menos probabilidades de que suspeitassem algo estranho.

O general Hawley logo que emprestou atenção à moça; só tinha olhos para a comida. A mesa estava carregada de fontes: sopas de aveia e frango com porros, truta parda com cebolinhas cozidas em manteiga, salmão com nata e molho de salsinha, um espesso guisado de veado, urogallo com gelatina de serba, nabos lustrados, beterrabas ao vapor, alcachofras curtidas, cebolas cheias com fígado de pato, omeletes de cevada, requeijões suaves, maçãs assadas com amêndoas silvestres, geléias e geléia de frutas, pão de gengibre, bolachas de sésamo e toda uma variedade de bolos doces.

— A minha fé, pois sim que comem bem os do Falkirk — comentou Hawley enquanto tomava assento.

— Certo — admitiu a senhora da casa—, embora poucas vezes com um exército às portas.

Anne baixou a cabeça para dissimular o sorriso com um fingido interesse pela sopa.

— lhes tranquilize — repôs o general—, logo partiremos para socorrer ao Stirling. Os rebeldes têm o castelo sitiado. Será seu ato final.

A comida prosseguiu sem incidentes. Anne falava pouco, e ganhava um olhar de soslaio cada vez que o fazia; logo se ruborizava. Nesses momentos, lhe dedicava um sorriso, que não fazia a não ser acentuar as cores das bochechas. Algum dia seria condessa da Escócia e herdaria três condados de sua mãe e um de seu pai. Anne perguntou se seu apoio ao governo era sincero ou se, mas bem pai e filho se puseram de acordo para apoiar cada um a um bando e desse modo apostar sobre seguro. Provavelmente não demoraria muito em sabê-lo.

Henry Hawley comia a duas bochechas apesar de sua fraqueza: rasgava a carne com os dentes, mastigava ruidosamente e bebia a cerveja a grandes goles. O malvado de seu espírito devia impedir que a graxa se assentasse sobre os ossos, disse-se Anne. Esse homem não conversava, além de uns quantos grunhidos, e ela não se atrevia a animar o ambiente. Isso ficava por conta da condessa e os ajudantes de campo.

Quando por fim se levantaram tinham acontecido duas horas à mesa; era mais que suficiente. Anne, com ar distraído, levou sua taça de vinho doce à janela para olhar fora. O céu se havia talher de escuras nuvens de chuva. O vento castigava o cristal. Logo começou a lhe cuspir grandes gotas, que se multiplicaram com rapidez.

— Esses soldados daí acima devem ser seus — aventurou Anne com acento das Terras Baixas.

— O que? —inquiriu Hawley.

— Não sabia que havia tantos com saia escocesa.

Anne havia dito muito, e sabia. Lorde Boyd se desculpou e partiu a toda pressa; já não importava, a menos que voltasse para denunciá-la.

— Meu exército está acampado na planície do Bantaskin — corrigiu Hawley, desdenhoso—, como deve ser. À artilharia não a põe a subir montanhas sem uma boa causa. —Jogou uma breve olhada pela janela. A chuva corria copiosa, impulsionada por Esses vento serão trabalhadores do imóvel.

—Gosta de uma taça de chá, general? —perguntou a condessa, solícita. — Se diz que em Londres gosta de muito.

— A mim não — assegurou ele. — Uma taça de brandy, se for possível.

Enquanto a condessa lhe cumpria o gosto, lorde Boyd entrou precipitadamente.

— General, será melhor que venham depressa — disse, jogando uma olhada a Anne. Era muito cavalheiro para traí-la e muito bom filho para revelar a participação de sua mãe nisso. — O exército jacobita está acima, no páramo.

Os outros ajudantes de campo correram ao exterior. Tanto alvoroço zangou Hawley.

— Viram aos mesmos trabalhadores que esta mulher. —Assinalava grosseiramente a Anne—, Os rebeldes não avançarão contra uma força superior. —E agarrou o brandy que lhe oferecia a condessa. — Seu filho deveria aprender a arte da guerra.

— Têm muito que lhe ensinar.

Um dos ajudantes voltou a entrar precipitadamente, com o uniforme molhado e a cara branca como o giz.

— General — informou—, os rebeldes estão na colina, na verdade, alinhados para o combate e por cima de nossas tropas. Não ouvem?

Anne abriu a janela de par em par. por cima do estrondo que montavam o vento e a chuva ressonava o ulular das gaitas de fole.

 

 

  Henry Hawley entrou em seu acampamento ao galope, flanqueado por seus ajudantes de campo e com um guardanapo atado ainda em torno do pescoço. Deu ordens de subir a artilharia ao páramo, mas a chuva tinha abrandado o chão ao pé das montanhas e as rodas dos grandes canhões ficaram cravadas no lodo. O general exigiu aos dragões e à infantaria que subissem o pendente e chegassem ao topo, onde os rebeldes, em posse dos sítios elevados, esperavam formados e agrupados.

Os soldados ingleses subiram trabalhosamente a costa, fazendo frente à tormenta, e formaram suas filas no flanco leste do inimigo, um terreno mais baixo. Os dois exércitos se enfrentaram sem artilharia: as poucas peças dos jacobitas estavam convocadas no sítio do Stirling e as do Hawley jaziam ao pé da rampa.

O desnível seguia favorecendo aos rebeldes, e também a chuva e o vento: bramavam a costas dos jacobitas e castigavam em plena cara aos soldados do governo.

Hawley arrebatou a luneta a um de seus ajudantes e inspecionou as filas inimizades: as tribos bárbaras, à vanguarda; lorde George comandava o flanco direito; à esquerda não havia comandante algum; muito à retaguarda, com os piquetes irlandeses e os Écossais Royaux como reserva, o jovem pretendente. Por nenhuma parte se viam rastros de uma jaqueta selvagem montada em um cavalo branco.

A essas alturas, o general já tinha recuperado a confiança em si mesmo, debilitada pelo inesperado avanço do inimigo. Suas forças superavam aos rebeldes em um milhar de tropas regulares, pouco mais ou menos, o qual lhe permitia aspirar a neutralizar a desvantagem do pendente.

Observou a formação de combate escolhida por lorde George. As primeiras filas de highlanders não poderiam resistir ante os cavalos.

Bastaria uma carga para dispersá-los. Fez que a cavalaria fora à vanguarda.

Lorde George ordenou esperar a pé firme assim que viu adiantar posições à cavalaria do inimigo. Não contava com tantos efetivos como tinha previsto, pois Carlos Estuardo tinha insistido em deixar dois mil no Stirling para manter o lugar e, além disso, Ou'Sullivan ainda não se apresentou para comandar a asa esquerda e esses chefes ficavam sem direção.

As filas inimizades começaram com fechadas descarrega de mosquete, cuja utilidade era relativamente pequena, dado que os insurretos se achavam fora de seu alcance; unicamente servia para evitar uma carga escocesa antes que a cavalaria estivesse bem posicionada.

— A pé firme! A pé firme! —gritou lorde George.

O vento da tempestade soprava e uivava com força, mas não impedia de escutar o estalo dos disparos faltados, pois a chuva tinha empapado as armas dos casacas vermelhas. A tormenta favorecia aos jacobitas, cujas pistolas ficavam protegidas da umidade pelos corpos.

A ordem de manter-se a pé firme se repetiu ao longo das filas. Os montanheses se mantiveram à espera, tensos por causa da frustração.

— Por que não carregamos de uma vez? —perguntou Fraser ao MacGillivray. Estavam preparados e ansiosos.

— O bom do George sabe o que faz.

MacGillivray, carrancudo e tenso, observava a formação da cavalaria. Os dragões tinham a vantagem de soltar facadas de acima. Uma estocada de montante, feita de abaixo para um adversário montado, tinha muita menos força. Além disso, estavam unindo as filas, sem deixar espaço para caminhar entre eles: não foram ter espaço para blandir uma espada se mantinham a formação tão fechada.

Lorde George desencapou a pistola. Os montanheses se encasquetaram as boinas e fizeram o mesmo.

— Adiante, em marcha! — gritou lorde George.

MacGillivray ficou totalmente desconcertado. Isso era diferente. O ardiloso militar desejava uma formação fechada, não uma carga selvagem. Um ataque do Highlanders aullantes, a toda carreira, poderia ter assustado aos animais e provocado uma disparada. Se tinha que arriscar-se a que o pisoteassem, preferia ter na mão um montante, não uma pistola, se por acaso pudesse degolar à besta e logo trespassar ao cavaleiro cansado, mas obedeceu a ordem e fixou a velocidade de marcha requerida, consciente da tensão nervosa de seus guerreiros, que seguiam a um passo. Toda a linha de vanguarda se lançou em massa contra a espectadora cavalaria. Os dragões cravaram esporas nos flancos das monturas ao ver descer pela ladeira aos clãs e subiram a seu encontro sempre em formação fechada. Em seguida aumentaram a velocidade e progrediram ao trote comprido.

Junto ao MacGillivray, MacBean sujeitou melhor a manta em volto da pança.

— Aqui vêm — murmurou.

Lorde George ordenou fazer um alto quando se cortaram as distâncias. Logo insistiu a apontar e disparar as pistolas. A descarga derrubou a quase a metade dos dragões. Alguns, feridos ou assustados, apartaram-se para afastar-se ao galope e os animais sem cavaleiro foram atrás deles. Os outros continuaram avançando, já ao galope.

— Atravessados! —gritou MacGillivray. Desembainhou seu e o mostrou em alto para que quem lhe seguia pudessem vê-lo, apesar da chuva torrencial. — Corpo a terra! —chiou, enquanto se jogava de flanco ao estou acostumado a alagado.

Dos MacDonald aos Murray, toda a primeira linha se deixou cair em posição fetal. O chão se estremecia com o trovejar dos cascos.

Quando os cavalos se viram frente a aquela fileira de obstáculos humanos, saltaram para evitá-los. MacGillivray girou sobre si e cravou o punhal no ventre do cavalo que tinha em cima; logo rodou para fora, em tanto o nobre bruto se cambaleava entre relinchos de dor.

Os homens do clã seguiram seu exemplo. O sangue começou a correr a jorros enquanto os animais bufavam e se desabavam. Os montanheses tratavam de evitar os cascos e não ficar sob os cavalos que se desabavam; se lhes era possível, levantavam-se para combater com os cavaleiros derrubados.

MacGillivray ficou de novo em pé, lançou-se sobre o dragão ao que tinha desmontado e lhe cortou o pescoço de um talho.

Não teve tempo de revolver-se: um peso lhe golpeou em plenas costas e lhe lançou violentamente ao chão, com a má sorte de que lhe caiu em cima um cavalo que não deixava de repartir coices. O impacto lhe tirou o ar dos pulmões. Boqueó sem conseguir colocar ar no corpo. Além disso, tinha um braço apanhado e não podia levantá-lo suficiente. Lutou com as pernas em um intento de flexionar os joelhos para fazer força e empurrar; suas costas se negou a arquear-se sob tamanho peso. Ardiam-lhe os pulmões.

A segunda fila jacobita entrou em ação. Os montanheses matavam a todo animal que seguisse em pé e despachavam sem piedade aos dragões. Os cavalos relinchavam e lançavam coices.

Donald Fraser correu para seu chefe e atirou dele com a ajuda do velho MacBean até tirar o de debaixo do cavalo moribunda. Já de joelhos, MacGillivray inspirou doces e profundas baforadas de ar. Enquanto ele se restabelecia, Fraser e MacBean montavam guarda, apesar de ser uma medida desnecessária: a carga de cavalaria estava acabada. Os dragões sobreviventes deram meia volta e fugiram a pé. Agora os jacobitas podiam utilizar as espadas. MacGillivray se levantou.

— Claymore!

O grito correu para cima. Houve um cintilar de aços e mais gritos de guerra a voz em pescoço. Os montanheses carregaram para diante.

Lorde George tinha albergado esperanças de ser capaz de manter a ordem durante a batalha, mas a falta de comandante no flanco esquerdo o fez impossível. Os MacDonald, os Cameron, os Macintosh e os Farquharson se lançaram a atravessar as filas da infantaria. Alguns perseguiam os dragões fugitivos além dos grupos de vizinhos que, refugiados sob as árvores, presenciavam a batalha.

O clã Chatton combatia no centro. Os duros highlanders apelavam às tarjas para deter as baionetas e se abriam passo entre a infantaria inglesa a estocada limpa. A pesar do caos do combate, mantinham-se tão juntos como o permitia o perigo de ferir-se mutuamente. Seguiram repartindo cutiladas a destro e sinistro, semeando o chão de cadáveres.

Duff, o sapateiro do Edimburgo, perguntava-se como tinha chegado a ficar no mais renhido da briga. Uma baioneta se moveu para ele, lhe buscando as vísceras, e a evitou tornando-se a um lado. Por detrás dele, uma forquilha atravessou ao indefeso jaqueta vermelha. Era Meg, que sorria com júbilo, ensinando as desdentadas gengivas.

As filas governamentais se romperam e em seguida estendeu o desânimo entre elas. Companhias inteiras fugiam do campo de batalha, perseguidas pelos jacobitas. Enquanto a asa direita seguia combatendo contra as companhias que se mantinham firmes, a desordem da asa esquerda era exatamente o que lorde George temia: ao não ter a Ou'Sullivan para contê-los, os clãs se separaram, um após o outro, para ir depois dos desertores.

— Detenham a perseguição! —ordenou lorde George.

Kilmarnock partiu para galope da retaguarda, em detrás dos Highlanders dispersos, a fim de transmitir a ordem.

— Deveríamos tocar a retirada, senhor — insistiu lorde Boyd pela segunda vez. retiraram-se da colina ao fugir os dragões. — Esses montanheses não cessarão de combater enquanto nós apresentemos batalha.

Henry Hawley se mostrava relutante a dar a ordem. Seguia a lombos de seu alazão negro, com a luneta abandonada no regaço e o gesto sombrio. Contemplou a fuga desordenada de suas forças. A batalha se saldou com uma derrota. Tinha durado vinte minutos.

Quanto desfrutaria Monopolize ao inteirar-se da derrota! A essas horas estaria rendo. Monopolize se faria rico quando cobrasse as apostas. E ele, Henry Hawley, ficaria na ruína e na desgraça. Seu único consolo era que nenhuma mulher tinha tido participação em sua derrota. Ao menos não poderiam provocá-lo com esse sarcasmo.

Sumido na mais profunda das misérias, conduziu a seus oficiais de volta ao acampamento para incendiar as tendas antes de fugir.

Enquanto isso, centenas de soldados seus se rendiam ante lorde George; em troca, ante ele só trouxeram para um prisioneiro. Estava desalinhado e sem chapéu; tinha cansado ao tropeçar seu cavalo, enquanto galopava para conter aos exuberantes jacobitas; o cabelo comprido lhe caía sobre a cara. Hawley reconheceu essa cara: era a do retrato do Callendar House. Era o conde do Kilmarnock.

— Confio que desfrutassem da hospitalidade de meu lar, general — disse.

O inglês lhe fulminou com o olhar. O nobre parecia divertido apesar de sua situação, como se estivesse informado de que essa larga comida tinha impedido que o exército jacobita fora descoberto a tempo.

— Sua esposa terá que dar algumas explicações — lhe espetou.

— A condessa é generosa — sorriu Kilmarnock—, sobre tudo com hóspedes como você e Anne Farquharson.

— Farquharson? —O general franziu o sobrecenho; o nome lhe soava, mas não era o que correspondia. — Forbes, há dito ela.

O conde negou com a cabeça.

— Sem dúvida, ouvistes mau. Era lady Macintosh,  Anne Farquharson.

Em seguida se elevou uma risada entre o corro de ajudantes; contiveram-na com a mesma celeridade ao observar o rubor que tingia as bochechas do general, que, em um ataque de ira, jogou mão à luneta e o estampou contra a cabeça do conde. O instrumento se fez pedacinhos e o conde acabou com uma maçã do rosto machucado e um corte na sobrancelha. Kilmarnock se cambaleou. O sangue lhe gotejou até o olho.

— Tragam o prisioneiro — ordenou o general, enquanto girava para a estrada ao Edimburgo.

Lorde Boyd se deslizou da montaria e, depois de tirar o chapéu, partiu para o cativo.

— Pai — saudou.

Depois de recolher para trás o cabelo ensanguentado do senhor, cobriu-lhe a cabeça com seu próprio chapéu.

MacGillivray se inundou até o peito nas águas do lago Callendar e se esfregou para limpá-la do sangue e tirar pedaços de carne alheia. O céu se limpou horas atrás, levando-a chuva, e o sol do inverno pendia desço no horizonte. A suas costas, na ribeira, tinha deixado a camisa, a manta e as armas. Para o oeste se via um resplendor de rosa e ouro. A água fria aliviava os cortes e os arranhões; uma baioneta lhe tinha cravado o antebraço e tinha as costelas machucadas pelo esmagamento sofrido debaixo do cavalo caído. Enquanto se molhava a cabeça, cantarolava:

— Acima e te largue, Hawley, acima e te largue.

Lorde George tinha cavalgado até a cidade para encontrar o príncipe em um lugar seguro. Ficavam pequenos grupos de tropas governamentais isoladas que seria preciso procurar e grupos de montanheses errantes que pôr de novo sob o mando, mas Falkirk já lhes pertencia.

A chuva tinha feito que Hawley fracassasse em seu intento de incendiar as tendas. Os canhões, os equipamentos e as carretas de aprovisionamento estavam já em poder dos rebeldes. MacGillivray tinha reunido a seus próprios guerreiros para lhes ordenar buscar casaco.

Agora estava sozinho, exuberante, com as veias ainda carregadas de adrenalina. Os versos que os das Terras Baixas tinham cantado, lá na colina, buliam-lhe no cérebro.

— A adaga do highlander no pescoço é a lei do highlander — cantou enquanto chapinhava ruidosamente, e voltou a inundar a cabeça. Na borda situada a suas costas, a ponta cintilante de um aço letal e ameaçador se projetou em cima da água de modo tal que a teve detrás dos ombros quando se incorporou. — Drummond, Perth e George lhes pisam nos talões, highlanders — continuou entoando ele, sem dar-se conta de que a ponta da arma se elevava até um lateral de seu pescoço.

— Se te tivesse ficado com as damas um par de horinhas mais...

O desconhecido lhe deu uns golpezinhos no ombro. Alexander voltou a cabeça e olhou para baixo para encontrar-se com o aço fazendo filigranas antes de encontrar-lhe no queixo. Anne brandia a folha da ribeira com o braço estendido. Não tinha alcance, é obvio, e bastava com que ele desse um passo atrás, mas ela tinha posto em claro sua intenção: uma tocha Lochaber, usada como lança, poderia havê-lo punhal.

— Assim te cuida as costas? —recriminou-lhe ela.

— Me estava lavando isso. —O sorriso lhe iluminou toda a cara. — Anda, vêem me dar uma mão.

— Disso, nada. Deve estar gelada.

— Onde estou, não. —Sorriu mais ainda. — Está endemoniadamente quente.

Anne sorriu, cravou a espada na borda, desatou-se o arasaid* que levava sobre seu vestido e o deixou cair ao chão. Logo o estendeu a seus pés.

— Trobhad!*—convidou ela. — Sal você.

O jovem deu dois passos para ela. O nível da água descendeu até seu umbigo. Ali se deteve.

— Alcança-me a manta?

— Não penso tocar isso — assegurou ela. — Estará coberta de sangue.

— Está limpa e seca — protestou ele. — tomei uma nova de entre os equipamentos.

— Também agarraste um ataque de acanhamento? —perguntou ela, lhe oferecendo a mão em vez da manta. — Trobhad!* Venha, saia.

MacGillivray lhe agarrou a mão com firmeza e lhe piscou os olhos um olho, mas logo deu um seco puxão enquanto com a outra mão a empurrou pela cintura, de maneira tal que ela passou voando a seu lado e se afundou ali onde a água era mais profunda. O jovem se voltou entre risadas.

— Que isso te sirva de lição — lhe replicou entre gargalhadas.

O vestido flutuou como um globo até a superfície; Alexander nadou até chegar ali e aferrou o tecido com o fim de ajudá-la a levantar-se, mas sua mão só achou tecido molhado. Procurou a firmeza dos membros entre as dobras empapadas, mas não havia ninguém dentro do vestido. Jogou ele, deixou-o cair, e se girou  para procurar a Anne. A suas costas brotaram umas quantas borbulhas antes de sentir uma dentada nas nádegas.  soltou uma gargalhada, mas nesse momento recebeu uma patada no dorso do joelho e perdeu o equilíbrio. Anne emergiu à superfície, nua, lhe buscando. MacGillivray se levantou um par de metros e cuspiu um jorro para ela.

— Sim está gelada! —riu a moça, arrojando água a tapas.

Ele voltou a inundar-se e ressurgiu atrás dela.

— Hei aqui umas costas que vale a pena cuidar — disse enquanto lhe deslizava os dedos pela coluna.

Anne se voltou; seus peitos molhados lhe roçaram o torso nu. O jogo tinha terminado. Olharam-se aos olhos fixamente. Deslizou-lhe os braços em volto do pescoço. Afundados na água até o peito, os corpos se estreitaram. As bocas se encontraram para beijar uma e outra vez.

Ele a elevou em seus braços sem interromper o beijo e a levou a ribeira, onde estendeu no arasaid* com ela apertada contra si; depois alargou uma mão para jogar sua manta em cima dos dois e rodou com ela duas vezes. Assim ficaram envoltos, juntos. Dentro do abrigado tartán se beijaram a pele gelada, a boca, a cara, o pescoço, até entrar em calor. As mãos e as línguas exploravam todas as partes que estavam ao alcance enquanto murmuravam e palavras de amor e de desejo.

O mundo desapareceu para não deixar outra coisa que um universo de sensações quando Anne se sentou escarranchado sobre ele e iniciou uma subida de quadris para guiá-lo enquanto lhe aferrava com força as nádegas.

Alexander tinha pronunciado seu nome mais de cem vezes, mas nunca em um grito como esse: na umidade quente da pele molhada, envoltos pela mesma manta, ligados com braços, pernas, corações, esperanças e vidas. Anne clamou quando, envolto no espasmo final, MacGillivray rodou em busca de liberação; foi por ele que Anne clamou, seu nome o que lhe brotou da boca.

— Alexander — gemeu. — Mo cridhe*, meu amor.

No Edimburgo jogaram ao vôo tudo os sinos para celebrar a vitória, embora ninguém tinha sabor de ciência certa quem era o vencedor. O primeiro cavaleiro, um dragão aterrorizado, pronunciou-se a favor dos jacobitas; o segundo se decantou pelo exército do governo; um terceiro disse que o resultado era indeciso; o quarto aclamou aos rebeldes.

Os edimburgueses tinham padecido a mão pesada do Hawley o Verdugo antes de que ele e seus rufiões partissem para apresentar batalha. Agora estavam resolvidos a fazer-se ver e ouvir como partidários do triunfador, pois já fora o príncipe ou o general, um dos dois acudiria triunfal a reclamar a capital, disso estavam seguros. O prefeito Stewart seguia prisioneiro em Tolbooth, onde Hawley lhe tinha encerrado, e não lhe poderia liberar até saber quem entrava na capital, por isso dirigia os assuntos da cidade da cela, cheio até os batentes de regidores alvoroçados.

— Se tiverem ganhado os jacobitas — apontou um—, eles soltarão e poderemos voltar a reunimos na câmara da cidade.

— E se tiverem triunfado os governamentais — atravessou outro—, faremos ter sabor do Hawley quanto nos agrada nos ver livres dos rebeldes, e talvez lhes deixe sair igualmente.

— O mais importante é que seus homens não nos rompam os cristais das janelas esta vez — interveio outro, mais prático.

— Não demoraremos em sabê-lo - os tranquilizou o prefeito. — Os vencedores virão a anunciá-lo pessoalmente.

— Se vier o príncipe, bom... Demonstramo-lhe bastante mais apóio que Glasgow — recordou outro regedor; esfregou-se as mãos, calculando já as lucros que obteria do favor real.

A porta da cela voou para trás e se estrelou ruidosamente contra o muro de pedra. O general Hawley, apesar de sua escassa estatura, ocupava todo o vão da porta.

— Quem mandou fazer soar os sinos? —bramou.

Houve doze caras largas. Doze corpulentos regedores se esforçaram por fundir-se com os muros. O preboste Stewart ficou de pé, trêmulo.

— Desejávamos celebrar sua vitória, senhor — balbuciou. Henry Hawley não tinha aspecto de herói conquistador. — Possivelmente nos tenhamos precipitado um pouco...

O general o aferrou pelo pescoço.

— Que lhes adiantastes? —rugiu.

— Se o ruído não for de seu agrado... —balbuciou Stewart, cujo rosto começava a ficar arroxeado—, o regedor Jamieson aqui presente... As... Fará... Calar.

O regedor Jamieson pôs pés em empoeirada e desapareceu, embora não estava claro se dava à fuga ou ia sossegar os sinos.

— Fora — disse. — Todos fora daqui. Vão.

Aos membros da câmara de vereadores do Edimburgo não fez falta que o repetissem duas vezes. Fugiram dos calabouços com toda a celeridade possível dado o espaço e a estreiteza da porta; uma vez fora do edifício.

— O que lhes parece o ocorrido? —inquiriu um.

— Ganhou ou não? —perguntou outro.

— E isso que mais dá? —resolveu o preboste. — Estamos livres e não nos retorceu o cangote.

Os sinos da cidade silenciaram seu repique uma atrás de outra. Hawley fez encerrar ao Kilmarnock nas masmorras do castelo, pôs em arresto domiciliário ao preboste para assegurar-se de que não escapasse da cidade e encheu o Tolbooth com seus próprios homens.

Submeteu a corte marcial a quantos desertores conseguiu identificar e aos suboficiais que não souberam conservar o mando no campo de batalha. Todos foram sentenciados à forca. Durante as duas semanas seguintes, os patíbulos que tinha ereto em sua visita anterior estiveram muito atarefados. Fez pendurar a sessenta antes que lhe interrompessem.

 

 

Guillermo Augusto, duque do Cumberland, planejava converter-se em um herói conquistador e entrou no Edimburgo com o porte do mesmo. Acompanhavam-lhe pífanos e tambores, cavalaria imaculada, jaquetas escarlates e galões de ouro. Os sinos da cidade se tornaram novamente a voar, com oportuno ardor. A gente se alinhou nas ruas para ver esse filho menor do rei Jorge. Em sussurros o comparava com o Carlos, mas o príncipe Estuardo era mais bonito.

O duque saudava a multidão com inclinações de cabeça, mas não tinha muito tempo para o povo da Escócia nem para seus queixosos habitantes. Seu pai lhe tinha ordenado que esmagasse aos escoceses.

— Se não sobreviver nenhum — tinha acrescentado Pelham, o chefe de governo—, não se terá perdido nada.

O duque ia ao norte para sufocar a rebelião. Seu principesco primo tinha cometido o primeiro engano no Derby, ao voltar às costas a Londres. O segundo foi retomar com mais brio o assédio ao Stirling depois da vitória obtida no Falkirk em vez de dispersar os restos do exército do Hawley, ocupar a capital e assegurar o controle de Escócia. Assim, pelo contrário, tinha-lhe deixado um lugar onde pôr o pé antes de atacar. Até esse momento invencível mando jacobita tinha seus pontos débeis. Os podia aproveitar, fomentar um terceiro engano.

— Falhaste-me, Hawley — afirmou, com contenção; reprimia sua cólera, sabedor de que Hawley era um dos favoritos do rei—, e circulam por aí rumores muito pouco agradáveis.

O general andava de um lado para outro pelo grande salão do palácio do Holyrood, onde se tinha instalado o alto mando do duque. Monopolize se tinha sentado a um lado, enriquecido em vinte mil libras, vingado, sereno; jogava com uma caricatura de Anne em papel dobrado. Era o único que se teria atrevido a repetir a fofoca ao duque.

— Essa mulher, essa condenada rebelde, não teve nada que ver com isto! —mentiu o general. — Nos veio de frente uma tormenta de mil demônios e não foi possível usar os canhões, entupidos na lama. Além disso, eles contavam com a vantagem do terreno.

— Querem dizer com isso que se ordeno pôr uma tormenta a minhas costas e movo o terreno conforme me convenha, será possível derrotar a esses bárbaros seminus? —burlou-se Cumberland.

Monopolize se inclinou para diante com ar benigno. Podia permitir o luxo de ser generoso.

— No pessoal, eu apostaria pela artilharia — disse—, embora um território adequado nunca sinta mau.

— Não se fale mais de apostas. —Essa derrota tinha aliviado também a bolsa do Guillermo Augusto. — Se requer que os derrotemos. Cometeram-se graves enganos de cálculo. Esses vândalos selvagens sabem brigar. São organizados, atrevidos, audazes.

— E indisciplinados — estalou o general.

— A julgar pelo modo em que contiveram sua carga de cavalaria, a verdade, não acredito — o corrigiu Cumberland. Dizia-se que Hawley era bastardo do rei. Se era verdade, o duque teria preferido a um meio-irmão mais brilhante. Quão único tinha a seu favor era sua crueldade, e isso valia quando a aplicava ao inimigo correto. — Desejo conhecer os pontos fortes e fracos dos jacobitas. Quero estar a par de quem manda, de quem se deixaria subornar e a quem temos que ignorar. Esta vez nos vamos tomar isso com calma. —Fez uma pausa e se tornou para trás para estudar aos dois generais. — portanto, e tendo em conta que há mais de uma maneira de esfolar a um gato, quero um plano.

No claro entre as árvores, Anne limpava a inscrição de lápide junto à que estava ajoelhada. Depois de tirar o gelo e o musgo com os dedos pôde ler: «John Farquharson do Invercauld. Falecido em 1738», dizia; e debaixo: «Sua bem amada esposa, Margaret Murray, faleceu de parto em 1725». Havia trazido um distintivo branco para pôr sobre a sepultura.

— Estamos ganhando — sussurrou. — Oxalá soubesse. Faço quanto posso.

Em sua última visita ao lar a tinham acossado as dúvidas sobre o Aeneas e a viabilidade da invasão da Inglaterra. Agora tinham desaparecido. Uma galinha escapou cacarejando do arbusto de ervas que crescia junto à lápide. Ao apartar as fibras geladas, Anne descobriu um grande ovo pardo, ainda quente. As galinhas, como a gente, eram pulseiras do hábito. Sorridente, recolheu o ovo e se levantou.

Viu entrar no MacGillivray a lombos de um cavalo enquanto cruzava o pátio. Ao divisá-la entre as árvores se aproximou e desmontou para envolvê-la com os braços.

— O passo é muito perigoso — assegurou. — Deveríamos ir dando um rodeio. E logo. Antes que comece a nevar.

— Iremos agora. —Lhe olhou com gesto pensativo. Nunca tinha visto o Alexander aflito por dúvidas. Alguma vez o tinha visto vacilar, como se a luz da razão clara lhe iluminasse sempre o caminho a escolher. — por que combate?

— Como podemos sobreviver, se não?

— Perguntava-me se for atrás de seus próprios sonhos e esperanças ou depois dos alheios.

— Crie que combato porque você me pediu isso?

— Porque crescemos com essa idéia. Se não tivesse sido assim, pensaríamos e atuaríamos igual?

— Sem dúvida. Nossos antepassados antepor a liberdade à vida, a Deus e ao rei. Os homens que nos venderam à União os desonraram, mas nossa é a vergonha se continuamos escravizados por decisão própria.

— Há quem não pensa assim.

— Refere ao Aeneas?

— Não. —Lhe pôs uma mão sobre a boca. — Não volte a pronunciar seu nome. Isso terminou.

Beijou-lhe a gema dos dedos e logo tomou a mão para apoiar-lhe no peito à altura do coração.

— Se referir a esses escoceses que ainda se opõem a nós, tem medo. Pode perder a vida, a terra, o negócio. —encolheu-se de ombros. — O que a Inglaterra dá, Inglaterra lhe pode tirar.

Ela jamais conseguiria entendê-lo. Não havia orgulho nem dignidade na subjugação. Sem o respeito pela gente mesmo, tanto a nação como seu povo eram pobres. E os pobres não tinham nada que perder, salvo a pobreza. Acaso não tinham fé em si mesmos?

— A Igreja presbiteriana os ameaça com a perda da alma imortal, se nos unem. —Anne sentiu pulsar o coração de MacGillivray contra sua palma e colocou a mão sob a manta, contra a camisa, para percebê-lo melhor. Quando estava assim de perto, tão perto do pulso de sua vida e seu vigor, a solidão desaparecia.

— Pois então merecem a imortalidade — observou ele. — A pagam bem cara: nada de cantar, dançar ou copular. —Estreitou-a com força. — Eu preferiria esta forma de vida, por breve que seja.

— Tenho um ovo na mão — lhe advertiu ela.

Esfregou-lhe o pescoço com o queixo.

— Vejamos se pode sustentá-lo sem que se rompa.

— De maneira que para isso combates — brincou Anne—: para cantar, dançar e fornicar.

— Para desafogar minhas urgências viris entre suas coxas. —MacGillivray lhe mordiscou o lóbulo da orelha. — Acaso o mundo não foi feito para isso? Ocorre-te uma causa melhor?

— Faz frio. Não brinque.

— Anne... —Ele se tornou para trás para olhá-la aos olhos. — Se não fizesse frio isto não seria nenhuma brincadeira, na verdade. Está me formando gelo sob o tonelete. E não é maneira de estar quando um se sente arrebatado pela paixão.

Ainda seguiam rendo quando cruzaram juntos a soleira do Invercauld. Lady Farquharson lhes fulminou com o olhar.

— Né, vós dois, não maturarão jamais?

— Já vai, já vai — prometeu Anne.

— O que não queremos é envelhecer. —MacGillivray, muito sorridente, ficou de costas ao fogo e se levantou o tonelete para esquentar o traseiro nu. Anne soltou uma risada.

— Não sei se fizer bem em permitir que Elizabeth lhes acompanhe — resmungou sua madrasta.

— Mas a última vez que estive aqui me rogou que lhe permitisse vir — objetou ela. — Onde está?

— Fora, na parte traseira, carregando na carreta todas suas posses.

— Bem. Temos que partir antes que essas nuvens descarreguem.

— Não sei — suspirou lady Farquharson. — Acaba de chegar e já vai outra vez.

— Só nos detivemos para recolher a Elizabeth.

— Francis e seu irmão... Retornarão logo a casa?

— Sim — lhe assegurou Anne—, com o resto de nossas tropas.

Tinham convencido ao príncipe Carlos da conveniência de abandonar o assédio do Stirling e viajar ao norte quando Cumberland entrou no Edimburgo. Anne tinha partido antes, uma semana depois da batalha, uma vez que todos os prisioneiros ficaram em liberdade sob palavra. Trazia consigo na metade de sua companhia em conceito de escolta, mas fez que se adiantassem em direção à vila de Auchterblair, no condado do Invernes. Ela e MacGillivray tinham planejado pernoitar ali com eles.

Não esperava ter problemas até chegar ao Moy, ao dia seguinte ou pouco depois, pois lorde Louden ainda dominava Invernes. Hawley não tinha levado consigo às companhias do Guarda Negro. Isso significava que os jacobitas, a sua volta, teriam que as ver-se com as forças do Louden e também com o Aeneas.

Lady Farquharson deixou de fazer distintivos de cinta branca para observar a Anne.

— Por acaso trouxeste algo de rapé?

— Não, sinto muito. — Anne mordeu o lábio para não rir. — Esta vez não cheguei até o Edimburgo.

— Minha está quase vazia.

A madrasta dissimulou a desilusão e retomou a costura.

— A próxima vez, prometo-lhe isso.

— É bastante efetivo para limpar a cabeça. —Jogou uma olhada ao MacGillivray; logo, de novo a Anne. — Deveria prová-lo — disse.

Choveu e nevou com vento forte enquanto dormiam e ao despertar tinham acumulado vários centímetros de neve. Da noite para o dia o mundo vestiu seu calado sudário de inverno. Cedo pela manhã, Anne e seu grupo partiram desde Auchterblair. Elizabeth, envolta em sua manta, pediu cavalgar para a garupa de MacGillivray em vez de ir na carreta. Como ele aceitasse com um gesto, montou atrás dele do estribo do carro, assinalando:

— Me protegerá do frio.

Seu lugar na carreta foi ocupado por uma mulher e um menino pequeno, que agora poderia sentar-se em seu regaço. Elizabeth se apertou à costas do MacGillivray, com os braços em volto de sua cintura e a cabeça contra suas costas. Agradava-a que esta vez tivesse vindo para casa com a Anne; agora poderia assegurar-se de chamar sua atenção. Nunca tinha chegado a superar o desejo que lhe tinha causado ao tirá-la do lago Moy. Era um dos chefes casadoiros mais interessantes e já ia sendo hora de que ela tivesse seu próprio lar. Sem dúvida, MacGillivray já devia estar procurando uma esposa.

O grupo ficou em marcha lançando baforadas brancas ao ar seco e limpo. A neve rangia sob os cascos dos cavalos e fazia chiar as rodas da carreta. Atrás deles ressonava o rangido do chão sob várias centenas de pés a ritmo de marcha. Detinham-se de vez em quando para limpar de neve os cascos dos cavalos e as rodas do veículo. Aproveitavam essas paradas para chutar o chão com força a fim de tirar das reveste a crosta de gelo. Logo retomavam o avanço. Era muito aborrecido. Elizabeth, encolhida contra MacGillivray, perguntou-se quanto tempo levaria sem fazer o amor. Não muito, provavelmente; era o tipo de homem que inflamava a chama do desejo das mulheres.

A moça pensou em Dauvit e em tudo o que tinha aprendido sobre como agradar a um homem e sentir prazer ela mesma. Anne tinha razão: o adivinho era bom professor. Por muitas mulheres sasannaich* que se deitaram com MacGillivray, ela estava segura de poder surpreendê-lo. Apertou a bochecha contra sua manta, entre suas omoplatas. Era forte e largo de costas. Percebia-se através do pano o movimento de seus músculos ao conduzir o cavalo. A cada passado o tenso abdômen se alterava sob suas mãos enluvadas.

MacGillivray e Anne cavalgavam lado a lado, discutindo assuntos de guerra, tropas e preparativos. Elizabeth pensava em coisas imensamente mais divertidas: o amor, peles mornas e lençóis revoltos e brancos como a paisagem nevada. Moveu os quadris para as apertar às nádegas do cavaleiro e sentiu que ficava tenso. Embora estivesse envolto na manta, tinha-a percebido. Ela rebolou o torso, o suficiente como para que ele soubesse que eram seus peitos os que se moviam contra suas costas. Não estavam longe do Moy. Começavam a cair uns flocos brancos e planos. O fôlego da moça se tornou mais rápido e mais quente. Subiu as mãos enluvadas até a cintura do cavaleiro. Possivelmente se se tirava as luvas poderia esquentá-las mãos sob sua manta.

— Parada de neve! —ordenou MacGillivray, detendo seu cavalo.

Elizabeth se surpreendeu, pois não parecia ter acontecido tanto tempo da última. Uns flocos de neve caíram sobre sua bochecha acalorada e se fundiram instantaneamente. O ruivo desmontou de um salto e desembainhou o punhal para limpar os cascos do cavalo de Anne com celeridade e eficiência.

Logo se voltou para o próprio, mas em vez de inclinar-se para agarrar a pata do animal, afundou a adaga na terra e alargou os braços para cima. Suas mãos sujeitaram a Elizabeth pela cintura. Com um impulso rápido a desceu do cavalo. Iria beijar? Sua cabeça se inclinou para diante; suas mãos lhe rodearam a cintura; flexionou os joelhos e, com outro impulso veloz, sentou-a na garupa de Anne.

— Sua Irma está em zelo —disse — te adiante, que já lhe alcançaremos.

Anne açulou ao Pibroch. Parecia estar tremendo. Elizabeth se apertou a ela para lhe aproximar a boca ao ouvido.

— O que acontece com este homem? E você, por que treme?

— OH, Elizabeth —resmungou Anne, entre risadas. — Não pode te comportar?

— Fala igual a mãe. Acaso agora a este gosta dos meninos? É isso?

— Isd, não!* Não te dá conta? Está comigo.

— O que significa isso? — Elizabeth foi para trás, espantada. — Na cão sem!* — E golpeou com um punho as costas de sua irmã. — Me disse que não foram amantes!

— Quando foi isso?

— A última vez que veio a casa. — A garota estava furiosa. — Lhe perguntei isso. Disse que não.

— Isso era antes — repôs Anne entre gargalhadas. — As coisas mudam.

— De maneira que ontem à noite esteve em sua cama, no Auchterblair?

— Sim.

Elizabeth se encurvou. Não era justo. Anne tinha marido.

— Pois espero que seja só por diversão — resmungou.

— Quem é agora a que fala como mãe?

Entraram no pátio nevado do Moy e desmontaram. Já estavam golpeando as botas contra a soleira quando Will caiu na conta de que lhe necessitava e acudiu correndo da cozinha, a tropeções por entre os montículos de neve.

— Não importa Will. —Anne interrompeu suas desculpas. — Quem está em casa?

— Só a viúva — respondeu o moço. — Igual à última vez.

MacGillivray e os outros vinham a poucos metros.

— Ainda está casada — vaiou Elizabeth a sua irmã, ao entrar. — Deve compreender que ele é presa legítima.

Anne sorriu de orelha a orelha, como se fora uma brincadeira.

— Acredito que perde o tempo — respondeu, — mas não te prevê por mim.

Elizabeth agarrou a sua irmã pelo manto e a deteve no vestíbulo.

— Diz-o a sério?

—Olhe —assegurou Anne, sorridente, — se Alexander te quisesse como poderia eu me interpor? Alegraria-me pelos dois. — tirou-se o manto para pendurá-lo. — Mas não acredito que ele queira. Isso é tudo.

A viúva Macintosh baixava a escada a passo normal; deteve-se ao vê-las e então descendeu mais depressa.

— Anne, a ghràidh!* — exclamou.

  Elizabeth também se tirou o manto. Um lento sorriso lhe estendia pela cara. De maneira que ele não estava proibido, né? Só terei que lhe convencer.

 

 

A viúva tinha a certeza de que Moy Hall estava a salvo por muito que as tropas do Louden perseguissem aos jacobitas reconhecidos, já que entre seus comandantes figurava o chefe Macintosh, cujas obrigações militares, por certo, mantinham ao Aeneas ocupado no Fort George.

Os guarda-costas de Anne retornaram a seus lares ou pediram acampamento a amigos ou parentes, nas cabanas próximas.

Reservaram os relatos para o cair da noite. Esta vez eram seis em volto do fogo e dois para narrar: Anne e MacGillivray. Tinha deixado de nevar no exterior e os lenhos chispavam na lareira, perto da qual tinham colocado uma mesa baixa, tenda de comestíveis de pratos de comida fumegante e copos transbordantes de cerveja.

Todos queriam saber da viagem ao Derby e da segunda batalha, mas terei que começar pelo princípio. Para isso MacGillivray estava justo ao outro lado da fronteira, quando tinham feito o primeiro intento de travar amizade com os ingleses. Ele tinha agasalhado ao Donald Fraser em casa de um ferreiro do Carlisle, caso que teriam muito em comum.

— Donald entra na casa, com o punhal na mão, se por acaso tropeçasse com alguma oposição, mas o ferreiro fugiu. Só ficam a esposa e a filha, já adulta; as duas, encurraladas em um canto, gritando a arrebentar. Ele tenta as tranquilizar, mas certamente, só fala gaélico.

— Que elas não entendem... —acrescentou Anne. — nenhuma palavra, claro. Então, para demonstrar que não tem más intenções, ele crava o punhal na mesa, onde não possa fazer mal a ninguém. Só consegue que as duas mulheres gritem ainda mais.

— E o que fez Donald, então? — Os olhos do Jessie brilhavam de ansiedade.

— O gesto mais amistoso que lhe ocorreu. — MacGillivray pôs-se a rir. — Posto que no Edimburgo lhe tinha servido, tinha que lhe servir outra vez. Ficou a dançar.

— A dançar? — soprou a viúva.

  — Seadh*. Começa a saltitar, levanta as mãos e dança à escocesa por toda a habitação.

— E serve? — perguntou Will, cheio de espera.

— Nem por indício. — MacGillivray riu entre dentes. — A mãe caiu de joelhos e ficou a rezar, implorando a Deus a voz em pescoço. A filha soluçava entre alaridos.

— E ele se deteve? —perguntou Elizabeth.

O ruivo sacudiu a cabeça, quase convulso por causa das gargalhadas.

— Não. Dançou ainda mais, sob a impressão de que ainda não conseguia comunicar-se com elas. E logo vai e agarra à moça da mão, tratando de que se unisse à dança. — Inspirou fundo para sossegar a risada. — Nós estávamos fora, distribuindo aos outros por diferentes lares. O ruído era espantoso. Tive que entrar e tirá-lo. E ele, sempre dançando.

Ao fim não pôde conter as gargalhadas até que lhe correram as lágrimas. Os outros, o mesmo: apertando o ventre e rugindo de risada até não poder mais.

— Deviam pensar — resmungou Anne— que era algum rito tribal. Com isso da adaga na mesa...

— E ele, dançando ao redor — chiou Elizabeth.

— Acreditaram que pensava as degolar! —riu Jessie.

— E comer-lhe como jantar! —bramou Will.

— OH, minha mãe. — A viúva se enxugou os olhos. — Necessito mais cerveja.

A noite foi transcorrendo entre um relato e outro, embora não todos foram tão divertidos. Houve também algumas insipidezes: a petulância e a falta de valor do príncipe desencantaram aos ouvintes, mas ao fim e ao cabo, tudo terminava bem, com uma vitória, por isso todos puderam brindar por Falkirk e pela causa.

— Ali não vi a Clementina. — Anne olhou ao MacGillivray com o sobrecenho franzido. — É a menina mendiga do Edimburgo. —Ele seguia sem compreender. — A que nos indicou o caminho através dos pântanos, no Prestonpans.

Então ele recordou.

— Não voltou conosco; ficou com seu pai no Carlisle. Ele tinha torcido um tornozelo e não podia partir de retorno a casa, mas acredito que, na verdade, estava encantado com a viúva que lhe hospedava.

— Pois então, Cumberland os terá capturado.

Anne se preocupou, e permaneceu calada, presa do remorso: a moça estava ali porque ela lhes tinha dado dinheiro.

— Não pode te culpar por um ato de bondade. — MacGillivray lhe estreitou uma mão. — Cumberland não encarcerará as mulheres nem aos meninos. Até é possível que liberem sob palavra à maioria dos homens.

— Acredita que ela estará já em sua casa, a salvo?

— Ou ainda no Carlisle, com uma mãe nova.

Anne teria querido lhe beijar pelo consolo que lhe brindava, mas se conteve. A viúva os estava observando e ela ainda não estava disposta para declarar que rechaçava ao Aeneas. Entre tanta gente, não. Soltou a mão a seu companheiro e elevou o copo de cerveja. Houve um momento de desconforto durante o qual ninguém falou.

— A perda do Kilmarnock será dolorosa — comentou ao fim a viúva.

— Está vivo e ileso — se apressou Anne a Tranquilizá-la. O levaram a castelo do Edimburgo, mas isso é tudo.

— A próxima vez que os derrotemos — acrescentou MacGillivray, enquanto enchia seu copo— recuperará a liberdade.

— A próxima vez? — perguntou a viúva Macintosh.

— Na primavera. Voltamos para casa para nos recuperar e descansar. Arriscam-no tudo a uma só jogada agora que é Cumberland quem manda. Se ganharmos, não ficará nada.

— Então, teremos a oportunidade de ver o príncipe? — perguntou Jessie.

— Convidei-lhe a comer aqui — respondeu Anne — quando retornar o resto do exército.

— Diz que cozinharei para o príncipe? — chiou Jessie.

— Com toda a ajuda que necessite, mas não o diga a ninguém ainda. Se as tropas que Louden tiver em Invernes se inteirassem, estariam advertidas.

Elizabeth, que estava reclinada em seu assento, contemplando a luz do fogo que resplandecia como ouro no cabelo de MacGillivray, inclinou-se para diante e empurrou seu copo para que o enchesse. Ele a olhou aos olhos enquanto o fazia.

— Não te está esquentando muito? — perguntou, com um grande sorriso.

Ela baixou as pestanas. Logo voltou a lhe olhar.

— Absolutamente. — Devolveu-lhe o sorriso. — Estou gosto muito.

— Nos conte outra vez o do sapateiro de Meg — pediu Will. — Gostei dessa parte em que ele se desculpou ante o jaqueta vermelha, quando Meg lhe cravou com a forquilha.

A viúva já estava sentada ante seu porridge e seus periódicos quando Anne baixou à manhã seguinte.

— Durante sua ausência chegou o jogo de chá. — Não apartou a vista de sua leitura. — Jessie ia te levar um bule, mas não estava em sua habitação.

— Não. — A jovem contemplou pela janela o mundo exterior, branco e limpo. A neve apagava todos os contornos. A paisagem era suave, sereno e pacífico. — Não me parece correto utilizar o dormitório principal. Não posso seguir casada com o Aeneas; já não.

A tia a observou.

— Não te precipite, a ghràidh*. É um passo muito grande. Deixa que o tempo te ajude a dá-lo.

Anne se sentou satisfeita por ter afastado o tema. A tia do Aeneas tinha idéias antiquadas; opinava que se uma mulher queria a outro homem, casada ou não, devia dar-se gosto. Os antigos costumes celtas não desaprovavam a amizade das coxas. Simplificava as coisas. Suas antepassadas se divorciavam com facilidade se o marido não era bom fornecedor, se lhes faltava ao respeito, se roncava, fofocava, era impotente ou as rechaçava. Agora os divórcios eram estranhos, e se tinham convertido em matéria dos tribunais, mas em seu caso não havia outra solução. Aeneas a tinha abandonado. Ela tinha procurado a outro. A decisão estava tomada.

Nesse momento entrou MacGillivray; saudou alegremente a todos e piscou os olhos a Jessie, que havia trazido porridge para a Anne. A viúva deu uma palmada às páginas do London Post, cheia de chateio.

— O que lhes parece isto! Põem a todos como papistas, dirigidos pela Igreja de Roma.

— O que? Só porque o príncipe é católico? — perguntou Anne. — garantiu a liberdade de religião, e nosso Parlamento será laico, como foi sempre.

A maioria do exército era protestante em ambas as nações. Muitos clãs preferiam a tendência episcopal à presbiteriana, o severo credo nacional imperante mais ao sul. A Igreja presbiteriana se opunha à sublevação; a católica, em troca, apoiava-o, e a Igreja episcopal de Escócia guardava silêncio. Os jacobitas provinham por igual das três.

Agora bem, a religião era um assunto crucial para a Inglaterra: posto que era o monarca quem encabeçava a Igreja episcopal anglicana, e seu rei não podia pertencer a um credo diferente.

— Os partidários do Hannover dirão algo para pôr às pessoas contra nós — acrescentou MacGillivray. — Até que comemos bebês. — E ameaçou Jessie com um gesto brusco. — Já sabe, você: terá que andar com cuidado — lhe advertiu.

— Jessie? —Anne, intrigada, voltou-se para a moça.

— Toda esta semana saiu a vomitar pelas manhãs — observou a viúva.

— É só à primeira hora — protestou a garota. — Pelo resto, estou bem.

— Mas grávida. —Anne estava encantada. — Homem! Não me tinha precavido, e olhe que perdeste a cintura. De quem é? — Fez uma pausa. — Will. Não me dirá que é do Will!

Jessie assentiu, sobressaltada por ser o centro de atenção.

— No inverno se passa menos frio se houver duas na cama — disse, jogando uma olhada ao MacGillivray.

— É verdade — sorriu ele. — Will é um tio com sorte.

— Pensam lhes casar? — perguntou Anne.

— Não — foi a imediata réplica. — Estou muito longe disso. Ele me importuna para que nos liguemos as mãos quando chegar o recolhimento do feno e eu lhe digo que talvez.

A ligadura de mãos comprometia aos amantes a conviver por um ano e um dia antes de decidir se queriam casar-se. Anne lamentava agora não ter escolhido essa alternativa. De ter obrado assim, poderia haver refugo a união em junho, e sem culpa para nenhum dos dois, enquanto que agora sua responsabilidade estava aí presente, embora pudesse escolher com quem jazer.

—Assim que o bebê se irá com a família do Will, quando o desmamar. Ou pensa conservá-lo?

— Ainda não sei. —Jessie parecia sobressaltada. — Irei a pelo resto do porridge.

E se escapuliu. MacGillivray tirou seu sgian dhubh* para cortar uma fatia ao peito do pato, enquanto esperava.

— Seria agradável ter um bebê na casa — comentou Anne.

— Aeneas não sabe — lhe recordou a viúva.

— Mas sem dúvida...

A jovem se interrompeu. Não podia falar pelo Aeneas, embora de qualquer maneira sua opinião importava pouco. Era bem possível que Moy tivesse outro chefe quando nascesse o bebê do Jessie.

A garota retornou com o porridge do MacGillivray.

— Will diz que está preparando seu cavalo — disse à viúva, — e porá em cestas quanto caiba. Ele mesmo lhes levará o resto em outro momento.

— Vai a sua casa com este tempo? — sentiu saudades Anne.

— A estrada não estará tão mal — assegurou MacGillivray. — Durante a noite não tornou a nevar.

— Mas haverá mais nevadas — acrescentou a tia. — E prefiro estar em meu próprio lar, agora que é possível. Possivelmente o príncipe se aloje em minha casa se conquista Invernes. Convém que o prepare tudo, no caso de.

— Will pode montar meu cavalo — ofereceu MacGillivray — e te acompanhar para que chegue sã e salva.

— É um homem bom, Alexander. — A viúva se levantou. — me despeço, pois.

Anne foi com ela até o vestíbulo para lhe ajudar a ficar o manto.

—Espero que não te parta por nós — a sondou, embora conhecia o motivo.

A senhora lhe deu uns tapinhas na bochecha.

—Já te informei as causas de minha partida, querida minha. Digo o que penso cada vez que me proponho isso. Alexander é um homem bom, sim, e não duvido que sua companhia também seja... Estimulante. Os prazeres são fugazes e poucos. Convém desfrutá-los. —atou-se o chapéu e partiu para a porta antes de acrescentar: — Acredito que ainda não acabaste de escolher. Aeneas também é um homem bom.

— Não, não o é. — A jovem sacudiu a cabeça. — Enforcou ao Ewan na praça. Eu vi quando o fez... o dia em que fui ver lhe.

— Ao Ewan? — A viúva piscou e ficou intrigada. — Não me chegou notícia alguma de que Aeneas tivesse estado envolto nisso. Não parece algo que ele pudesse fazer.

— Disse-lhe que eu não pensava lhe disparar, lá no Prestonpans?

— Não me movi que aqui e ele esteve atarefado ali, como ia fazer?

— Pois então não o diga, porque agora sim que lhe dispararia.

— Anne, se Aeneas ordenou a morte do Ewan, deveu ter bons motivos para fazê-lo. Quando o vir lhe perguntarei

A tia viúva beijou a Anne nas duas bochechas quando escutou o atraio dos dois cavalos que Will trazia da brida. Logo foi em marcha. «Bons motivos?». A jovem lhes viu afastar-se trabalhosamente nessa brancura interminável, quebrada só pelos ossos negros e nus das árvores, visíveis unicamente em parte.

Para rechaçar a sua esposa: esse era o motivo, para deixar de lado seu matrimônio. Tinha soltado sua ira contra Ewan e, ao fazê-lo, confirmava-se como inimigo de Anne. Agora custodiava Invernes com uma força escassa, enquanto um exército de cem mil jacobitas partia para ele. Nada ali era branco e negro, salvo a paisagem. A viúva lhe daria aviso; com tal fim partia tão subitamente. Anne lhe tinha dado a informação a propósito, para que Aeneas soubesse que tinha os dias contados.

Essa mesma tarde Will retornou do Invernes lutando contra a tempestade de neve. No ar se formavam redemoinhos os flocos de uma brancura similar a da terra, a do ar, a do céu, pois tudo estava embelezado de um níveo cegador. Seguia o caminho correto graças a sua familiaridade com as árvores e os bosquezinhos, dos quais conhecia todos os troncos, um por um, e a longitude dos ramos, cujas negras mãos de múltiplos dedos se cavavam para apanhar a neve que caía, e a confiança dos cavalos, incluído a montaria do MacGillivray, que avançaram sem uma só tropeção em um bordo invisível, nem um só escorregão para uma greta cheia de neve, sempre com chão firme sob os pés.

Will sabia como tratá-los: tinha dezessete anos e tinha nascido à vida nos estábulos; deixava que o animal partisse a rédea solta e, em tanto, falava-lhe com suavidade ou ronronava uma canção de ninar gaélica junto a suas orelhas inquietas.

O cavalo lhe respondia de vez em quando com um bufo, um relincho breve e suave ou um giro de focinho para o flanco. Will lhe entendia: queria deter-se sob as árvores, pois não gostava dessas rajadas de brancura cegadora nem as bolas de neve que lhe acumulavam nos cascos. Então, ele desmontava e afundava as pernas até o joelho nesse pó branco e frio para lhe limpar as patas; logo caminhava levando-o da rédea, respirando perto de seus beiçudos, e lhe falava da neve, dos homens, da guerra e o amor, do Jessie e dos bebês.

Às vezes, Will lhe respondia, sim, falava-lhe de levá-lo a casa, de seguir para que todos retornassem a casa.

O animal voltou a relinchar com suavidade enquanto percorriam os últimos metros para o estábulo do Moy. Uma vez no estábulo, empurrou-o com o focinho suave e úmido; tocou-o na bochecha, sob o queixo, no ombro. Will lhe tirou as ferramentas agrícolas e lhe deu uma fricção; depois de lhe pôr comida fresca, avançou rumo à cozinha como um arado através dos altos montes de neve que se acumulavam contra a casa.

Jessie o tinha visto chegar, embora agora permanecia acalorada, inclinada sobre um fogo, em cima do qual fervia uma panela de caldo.

— Olhe que demoraste — se queixou sem lhe olhar enquanto ele chutava para sacudir a neve dos pés.

— Sim, mas não veja como está nevando aí fora.

Ela se preocupava. Já era algo. Will se sentou para tomar a sopa em silêncio; escutava o crepitar do fogo e seguia com a vista a Jessie, que preparava a comida para a casa.

A neve cobriu por completo a terra e trouxe a paz, pois durante semanas inteiras não se moveu nada. Ao dia seguinte da volta do Will, Elizabeth viu pela janela de seu dormitório, em um extremo do pátio, um guerreiro montanhês feito de neve, com a boina azul encasquetada em uma cabeça gorda e redonda.

MacGillivray lhe estava dando o toque final e lhe punha um ramo a modo de espada. Anne, vestida de capa e capuz, corria para ele, rendo. Embora Elizabeth não chegou para ouvir o que dizia, as brancas baforadas do fôlego, a maneira em que sua irmã se movia, revelaram-lhe que era risada ou conversação.

MacGillivray descobriu à garota depois da janela e lhe fez gestos de que baixasse. Lhe observar a excitava e Anne não estaria sempre ali. E então ele seria dele, estaria-lhe em dívida e então não se limitaria a paquerar com ela. A espera lhe aumentou o desejo. Começou a ficar roupa mais abrigada para sair.

Fora, no ar seco, Anne inspecionava seu novo combatente.

— Me beije antes que venha sua irmã — pediu MacGillivray. Seu fôlego se condensou em gotinhas de água contra as bochechas avermelhadas da moça.

— Pode me beijar diante dela — esclareceu Anne.

— Mas então pensará que preferi a ti. E o que será de minha reputação viril?

— Farei algo por sua reputação. —Muito sorridente, recolheu um punhado de neve para tornar-lhe na cabeça. — Agora é um velho encanecido — riu.

— Pois então envelheceremos juntos — contra-atacou ele, rodando-a também.

Anne agarrou outro punhado, condensou-o um pouco no punho e lhe arrojou o resto. Ele o esquivou.

— Né, trobhad an-seo*, primeiro o beijo — disse, abrindo os braços, ao ver que ele compactava uma enorme bola de neve para lhe lançar.

Alexander saltou para ela através da neve; rodeou-lhe a cintura e pôs a boca contra a sua. Jogou os braços ao pescoço. Logo deixou cair a neve que conservava no punho por dentro da manta do MacGillivray, dentro da camisa. Isso foi o limite. Até retorcendo-se pelo gelo que lhe fundia contra as costas, ele a derrubou à neve.

— Pode me gozar aqui — ameaçou — e ficar congelada comigo para sempre.

— Crie que me assusta? — riu ela. — Pareço assustada? — E lhe colocou outro pouco de neve pelas costas.

Uma bola branca impactou na têmpora de MacGillivray e lhe escorregou pelo semblante. Viu a Elizabeth assim que se revolveu. Levantou-se de um salto para prover-se de mais neve. A garota já tinha o segundo projétil preparado, mas falhou. Ele não. A suave neve a golpeou no peito. Anne rodou e ficou de pé para unir-se ao combate: as duas moças contra o guerreiro. Estalaram chiados, risadas e gritos no ar calado e branco. Por fim voltaram para a casa, exaustos; MacGillivray, no meio, tinha-as agarradas pelos ombros.

— Obrigado pelo guerreiro de neve — disse Anne. E lhe deu um beijo rápido, em tanto esperneavam para limpar os sapatos. — Não correrão perigo enquanto ele esteja apostado ali.

— Milady — prometeu MacGillivray, — darei-lhe todo um exército para que lhe guarde.

Ao dia seguinte havia três montanheses de neve. Dois dias depois eram cinco. Finalmente, sete.

— O número místico — disse ele. — Não necessitará mais amparo que essa.

— Tapadh leith*, milord. — Anne esboçou um sorriso. — Obrigado.

— Eu te protegeria eternamente — disse ele, já sério.

Ela sabia perfeitamente que ele ia estar ali quando o necessitasse. A ferida de seu coração ficava profundamente sepultada quando ele estava perto. Alegrou-se de contar com ele e com a neve, pela paz e o descanso que contribuíam. A manhã teria devido ser sempre assim de bom e de justo. Sem dúvida, a neve que o cobria tudo era um presságio que, com a volta de suas tropas à pátria, voltava ao mundo jacobita.

 

 

O gelo formado depois dos muros de pedra começava a fundir-se, de modo que as gotas se deslizavam pelo paramento e era mais difícil as recolher com a língua. Por sorte, acumulavam-se em um dos blocos de pedra provido de um oco em forma de taça, diante do qual se encontrava uma fila de prisioneiros esfarrapados, famintos e se desesperados pela sede. Aquelas glaciais masmorras do castelo do Carlisle podiam albergar, possivelmente, a cinquenta cativos, mas nelas se amontoavam trezentas pessoas entre homens, mulheres e meninos.

 Clementina se apertou junto a seu pai em busca de calor enquanto avançavam com a fila para a única provisão disponível de água. A pequena podia ver a nevada entre as grades do buraco situado no alto do muro. Os flocos pareciam uma chuva negra recortados contra um céu de um cinza esbranquiçado. Por essa janela entrava de vez em quando um pouco de comida, que não passava de ser uma fogaça de pão introduzido às escondidas por algum compassivo vizinho do Carlisle, mas já era mais do que entrava pela grosa e tosca porta do presídio, pois os soldados ingleses encarregados de sua custódia tinham ordens de manter aos cativos a rações reduzidas. A fome não era nada novo para Clementina, mas no Edimburgo sempre havia formas engenhosas de conseguir sustento. Aqui não. Dentro destas grosas muralhas geladas, entre corpos amontoados, membros e bocas vazias, não.

Percebia os ossos de seu pai, marcados e angulosos até através da manta. O homem tremia e tossia, e a menina se estreitou mais contra ele. Avançaram um passo mais para o diminuto poço da parede.

— Anne virá em nossa ajuda — assegurou — com certeza que sim.

— É obvio menina — repôs seu pai entre tosses — claro que sim.

Uma mulher dava a luz entre gemidos e gritos num canto mais afastado. Os reclusos próximos à parturiente se separavam dela em um intento de lhe abrir espaço onde não  havia. Um trapo molhado passou de mão em mão até chegar à futura mãe e uma das que a atendiam o aproximou da boca para que pudesse chupar. Outra mulher começou a cantarolar baixo; logo cantou palavras em sua estranha língua gaélica.

 

Bheir me Ò, horo bhan ou;

Bheir me Ò, horo bhan i*.

 

Outros detentos lhe foram unindo, e depois, inclusive os recrutas ingleses. A canção se converteu em um hino, já que as palavras tinham sido traduzidas e memorizadas durante aquelas semanas de encarceramento.

 

Você é a música de meu coração,

harpa de minha alegria, ou cruit mo chridh'*.

Guíame sob a lua,

é minha força e minha luz.

 

Pese ao aguanieve negruzca que se via cair, aproximava-se o degelo e entre eles estava nascendo um bebê. Clementina e seu pai se aproximaram um pouco mais ao pequeno atoleiro de água acumulada no sulco da pedra.

 

Bheir me Ò, ou horo ho*.

Que triste estou sem ti!

 

Os relâmpagos fendiam o céu noturno, chamuscando a pança das nuvens e entre elas grunhiam, bramavam e estalavam os trovões. O aguaceiro castigava os paralelepípedos com tal força que as gotas de chuva ricocheteavam a grande altura e alagavam as bocas-de-lobo. Aeneas olhava pela janela de suas habitações no Fort George. Aquele tempo de cães tinha seguido imediatamente depois ao repentino degelo. Frente a ele, um cavalo jorrava miseravelmente, parado diante dos escritórios de lorde Louden. Tinha chegado fazia apenas uns momentos, mas Aeneas não apareceu na janela a tempo de ver o cavaleiro.

O exército jacobita acampava nos barracos do Ruthven enquanto que o do Cumberland partia rumo ao Aberdeen. A próxima batalha se livraria ali, no norte, assim que passasse o inverno. Até sem contar com o reforço do exército francês, todos apostavam pela vitória dos jacobitas, que não tinham sido derrotados em nenhum enfrentamento prévio. Ali, em sua terra natal, avantajavam em número a quantas tropas conseguisse reunir o governo. De fato, Cumberland só tinha conseguido recrutar a oito mil homens apesar de seus auxiliares holandeses e hesianos18; em troca, o príncipe Estuardo podia dispor de até quinze mil homens se reunia a todas as tropas disseminadas nas zonas sob seu controle.

Entretanto, apesar de tudo, não havia muitas esperanças para Escócia. Aeneas teria levado a seus homens ao Ruthven para incorporar-se às tropas insurgentes se tivesse acreditado que sua nação era capaz de enfrentar à liberdade com autêntica maturidade, mas depois da vitória, o príncipe não ia demorar para impor um reino unificado, e então quereria um trono e súditos, não povos livres com arbítrio para resolver seus próprios assuntos. Aeneas estendeu as mãos para aferrar o marco da janela e apoiou a frente sobre o cristal. Pode que se estivesse enganando. Possivelmente não estava ali para preservar Moy para seu clã. Talvez fosse só questão de orgulho e não era o bastante homem para admitir um equívoco. Pode ser que não fosse capaz de enfrentar a Anne, humilhado, e desdizer-se ante sua amada, ante a esposa que amava a outro homem.

Um raio de luz surgiu das habitações de lorde Louden quando se abriu a porta e se estendeu sobre os paralelepípedos empapados pelo aguaceiro, iluminando a intensa chuva. Uma jovem dama coberta com capa e capuz saiu com sigilo e montou depressa a lombos do cavalo. Perguntou-se se seria uma entrevista, mas com semelhante tempo? Havia algo vagamente familiar na silhueta e na maneira de mover-se da amazona; conhecia-a, mas não conseguia recordá-la. Aeneas levantou o cristal para jogar uma olhada fora e a chuva lhe castigou a cara. Louden estava de pé à entrada de seus escritórios. A mulher sacudiu as bridas, pronta para afastar-se ao galope.

— A recompensa é para você — gritou. — MacGillivray, para mim.

Sua voz se ouvia com muita dificuldade no meio do forte vento. Houve um relampejo e um estalar de trovões quando ela partiu a toda pressa, açulando a montaria. Seria Anne? Acaso já não conhecia sua própria esposa? Ou o que tinha ouvido era só sua imaginação? Aeneas fechou a janela.

A porta se abriu ruidosamente enquanto ele se secava a cara, deixando entrar uma rajada de chuva e, com ela, ao James Ray.

— Devemos nos mobilizar imediatamente — ofegou o tenente. — O pretendente está desprotegido e estamos a par de seu paradeiro.

Enquanto isso, Anne permanecia sentada frente ao espelho no dormitório principal do Moy Hall, onde se arrumava a cabeleira e endireitava o sutiã de seu vestido branco com movimentos apressados. Um relâmpago iluminou a habitação como uma resplandecente piscada, seguido do estalar do trovão; o retumbo posterior cobriu momentaneamente a música que se ouvia o fundo. Sua ausência tinha durado bastante e chamaria a atenção. ficou de pé, acomodou as dobras de suas amplas saias e, depois de alisar o corselete azul que lhe rodeava a cintura, virou para sair. A cama dobro deteve sua marcha; parecia, pois ninguém tinha dormido nela embora fosse seu leito matrimonial, a lembrança de uma perda súbita e dolorosa. A ocorrência lhe pareceu uma necessidade e a sacudiu de cima com a mesma facilidade com que lhe tinha transpassado de parte para parte. O passado era coisa acabada e MacGillivray já não a fazia sofrer.

Fechou a porta detrás de si e cruzou o vestíbulo para a grande sala de recepção que vibrava com o ruído, a música e o falatório dos convidados. MacGillivray a esperava junto à porta.

— Todo marcha bem — a informou. — Lhe vê quase animado.

— Hummm... — Anne passeou o olhar em redor para verificá-lo. Jessie e Will, embelezados para a ocasião, circulavam com bandejas para servir lanches e bebidas. Depois dos rigores da batalha e a dura marcha de volta, todo mundo desfrutava da oportunidade de relaxar-se prazenteiramente. No salão se ouvia um frufru de seda, cetim e encaixes. Robert Nairn paquerava com um músico. Margaret dançava com lorde George, e seu marido, com a Greta. Sir John conversava com Ou'Sullivan e o príncipe. Na verdade, sua alteza parecia mais contente, já que seu régio semblante tinha perdido a petulância. — Onde está Elizabeth? — perguntou.

— Foi para à cama depois de comer — respondeu MacGillivray. — Tem enxaqueca.

— Eu esperava que se encontrasse aqui em seu elemento, dançando e paquerando com todos estes jovens. Devo ir ver se estiver bem.

No momento em que girava ele a sujeitou por um braço para atraí-la para si.

— Primeiro dança comigo.

O príncipe agitou uma mão do outro lado do salão.

— Anne! — chamou-a.

— Muito tarde.

Ela olhou ao MacGillivray com as sobrancelhas arqueadas e logo se aproximou do grupo.

O highlander voltou a reclinar-se contra o zócalo, marcando o ritmo com o pé quando Jessie se dirigiu para a saída, com o branquíssimo avental tenso contra o ventre, cujo inchaço logo que era perceptível.

— Dança comigo, Jessie — convidou, com uma piscada.

— Não posso. — ruborizou-se ela. — Devo trazer mais comida. Diria-se que esta gente não comeu na vida.

MacGillivray lhe abriu a porta, com um gesto garboso que a fez rir.

Ao outro lado da habitação o príncipe era tudo cumpridos e reverências.

— São o único suportável de nossa retirada, MA chère Anne — dizia. — Se tivessem estado no Derby comigo, Londres nos teria aberto suas portas.

— É melhor ser campeão de Escócia que senhor na Torre — repôs Anne com um sorriso coquete.

  — Não, não se enquanto isso Cumberland recupera tudo o que tínhamos conquistado.

Corria perigo de ficar triste outra vez.

— Au contraire, isso é pura aparência. Agora não pode ganhar. —Anne tratou de amansá-lo. — Se antes triunfamos aqui, o povo inglês não terá tanto medo de que resultemos vitoriosos.

— Até é possível que se regozijem — refletiu ele.

— Sobre tudo se obtiverem a vitória sem ajuda dos franceses, porque seu antigo inimigo lhes teria causado alarme e teria levado a oferecer resistência. Deste modo, suas táticas serão elogiadas.

Anne estava cansada de dar adulação a aquele homem arrogante e mesquinho. Era possível que ele não se precavesse de sua falsidade? Mas em vez disso, inclinou a cabeça em apreciação de seus próprios talentos imaginários.

— Quando passar a tormenta — murmurou — trarei o exército do Ruthven para capturar Invernes.

A jovem elevou sua taça como se brindasse pela idéia.

— Isso sim que soa bem — lhe felicitou.

Talvez Aeneas passava sua última noite na cama do inimigo, porque ao dia seguinte se veria obrigado a render-se.

MacGillivray os observava da porta, impressionado. Até do outro lado do salão se notava que Anne dirigia ao príncipe com o mindinho. Para que se tomava a moléstia? Esse homem não era mais que uma carga: viam-se obrigados a lhe adular em vez de encontrar nele uma liderança firme. Seu encanto e sua atitude juvenil atraíam dinheiro e apoio, quando ele se lembrava de pô-los em jogo, mas todo líder necessita muito mais.

A seu lado se abriu a porta e entrou Elizabeth. MacGillivray se separou da parede.

— Não tinha subido a te deitar? — inquiriu ele, um tanto sentido saudades.

— Surpreende-me que te desse conta —replicou a moça. — Se é que não afasta os olhos de minha irmã!

— Pois agora tem minha atenção absoluta — replicou ele com um amplo sorriso. — Trocou de roupa. —pôs-se um vestido muito decotado, com um sutiã apertado, que lhe empurrava os peitos para cima e para fora. — Se meu coração não tivesse proprietária, Elizabeth, seria teu. — Imediatamente, com um gesto de preocupação, tocou-lhe a testa com o dorso da mão. — Parece febril e olhe seu cabelo... — Agarrou entre os dedos um dos cachos úmidos.

— É que saí a tomar ar — replicou ela, apartando o semblante.

MacGillivray jogou uma olhada à janela. A chuva castigava o cristal, iluminado por outro brilho.

— Com este tempo?

— Vá, Alexander! — Elizabeth olhou aos olhos. — Não irá me dizer agora que lhe assustam as tormentas?

Jessie entrou na carreira e esteve a ponto de derrubar à garota. A expressão de seu rosto expressava uma grande alarma.

— Anne — chamou. — Venha logo!

MacGillivray cruzou a porta e desapareceu. Anne se dirigiu depressa para ali, tranquilizando a seus convidados durante o percurso.

— Algum acidente na cozinha, sem dúvida. Sigam desfrutando, por favor. — Ao chegar à porta viu Elizabeth. — te Ocupe dos ter contentes — pediu ao passar.

MacGillivray já se achava no piso de abaixo. A anfitriã da festa correu a reunir-se com ele. Donald Fraser entrou no vestíbulo enquanto levava nas costas a uma pessoa empapada, com as facções ocultas sob um capuz. O ruivo lhe ajudou a instalar à exausta mulher em um assento. Anne lhe apartou o capuz molhado. Era a viúva Macintosh, ofegante e com o semblante gasto por causa da fadiga.

— Louden vem para aqui — balbuciou. — Sabe que o príncipe está na casa.

Anne girou para MacGillivray, emudecida por um instante. Logo se deu a volta por completo para subir a toda pressa a metade da escada.

— George! Margaret! — chamou voz em grito.

Os dois apareceram acima, acompanhados por lorde Ogilvie.

— Têm que levar a príncipe — chiou ante aquelas caras sobressaltadas. — Imediatamente!

Os três desapareceram outra vez dentro.

 — Jessie, desembaraça o salão. Todo mundo fora! —Anne voltou a girar para reunir-se com o MacGillivray.

Antes que Jessie pudesse mover-se, o príncipe saiu a grandes passados do salão, com Ou'Sullivan a seu lado.

— Mon Dieu! Te tire do meio, moça. — E afastou Jessie para baixar correndo, seguido dos outros. Os compassos de música se foram apagando até cessar de tudo.

— Leva-os rodeando o lago até a casinha de verão — urgiu Anne a seu companheiro. — Ali poderão refugiar-se.

— Não irei a nenhuma parte — assegurou ele. — É melhor que o capturem a ele antes que a ti!

— Necessitamo-lo — lhe espetou a moça. — Os corpos sem cabeça morrem logo. Você é o único que conhece o caminho. Tira os daqui através da cozinha. Vá, agora!

Os músicos baixaram com grande repico de instrumentos. MacGillivray fez passar aos alarmados hóspedes pelo comilão enquanto Anne se voltava para o Fraser.

— Busca os mosquetes, Donald. Traz tudo o que tenhamos. Jessie, lhe ajude. — Eles correram a obedecer. Anne se voltou para sua irmã, que permanecia sozinha na parte superior da escada. — Baixa minhas pistolas, Elizabeth.

— Não pode derrotar você sozinha a todo um exército.

— Te mova em vez de falar! — recriminou-lhe ela.

Will estava ao pé da escada, aturdido. Fraser e Jessie deixaram na mesa do vestíbulo braçadas de mosquetes, pistolas e bolsas de pólvora ou munições. Anne agarrou bruscamente uma arma para entregá-la à moço de quadra. Ele ficou olhando-a com estranheza, como se não soubesse para que servia.

— Sabe carregá-la, Will?

— Carregá-la?

— Observa ao Donald e faça o mesmo.

Anne começou a jogar pólvora pela boca do canhão. A viúva, entre tosses, inclinou-se para diante.

— Eu sei carregar — disse, e começou a fazê-lo.

— Fica alguém mais, Donald? — perguntou Anne.

— Meg e esse Duff estavam no estábulo. Já vêm, e chamei a meu Lachlan, que estava na forja.

Elizabeth baixou a escada trazendo as pistolas de sua irmã.

— Seis, que bem — comentou a jovem, enquanto se apoderava das pistolas para as carregar.

— Sete — corrigiu Jessie enquanto carregava um mosquete.

Anne vacilou, mas a garota lhe jogou um olhar que não permitia discussões.

— Sete é melhor — reconheceu ela.

— Deve estar louca — se afligiu Elizabeth. — Louden conta com dois mil homens.

— Sete é o número mágico. — Anne observou ao Will, que dava voltas entre as mãos a seu mosquete. — Sabe disparar, Will?

— Contra uma pessoa? — Ele levantou a vista, horrorizado. Sua arma apontou para Anne.

— Não queremos travar combate, a não ser ganhar tempo — explicou enquanto lhe apartava o canhão para cima. — Dispara ao ar.

Ao moço apertou o gatilho. O disparo estalou contra o teto.

— Agora não, idiota! —uivou sua noiva.

— lhe vigie, Jessie — ordenou Anne. E colocou o pescoço os sacos de pólvora e munições. — Bem, vamos. Os outros se reunirão conosco fora.

  Todos correram à porta da entrada, e assim que a abriram a tormenta se precipitou ao interior da casa.

— Você não. — A viúva sujeitou pela boneca a Elizabeth, que estava disposta a lhes seguir.

A garota baixou a vista para ela. Não conseguiu escapar. Aquela mulher tinha o punho de aço.

— Só ia fechar a porta quando tivessem saído — explicou. — Não acredito que retornem logo, verdade?

Já fora, os sete puseram-se a correr em direção ao caminho do Invernes, inclinados para combater melhor os embates do vento e a chuva. Anne ia olhando a seu redor enquanto o aguaceiro empapava o cabelo e o rosto. Ganhariam uns minutos vitais se obtinham que Louden se detivera ou vacilasse. Os relâmpagos iluminavam a cena. Os montões de turfa acumulados perto do caminho se elevavam na escuridão como grandes sombras retangulares.

— Os amontoamentos de turfa! — gritou ela. — Usem as pilhas de turfa!

Donald e seu filho correram para o montão mais próximo ao caminho. Anne ocupou o seguinte. Os outros se distribuíram, olhando em redor.

— lhes mantenha detrás — ordenou Anne. — Me ouve, Will?

— Sim — confirmou ele, encolhido perto do Jessie.

— Quando vierem por nós... — chiou a coroe-a. Fez uma pausa até que cessou o retumbar de um trovão — deixem cair as armas e saiam apitando daqui. Vocês conhecem o território; eles, não.

O tartán molhado lhes ajudaria a desaparecer rapidamente no cinza e o negro da noite. Ela apertou os dentes porque com seu vestido branco, embora estivesse empapado pela chuva, qualquer faísca de luz a faria refulgir como um farol. Para burlar-se dela, um raio enorme iluminou as nuvens, lhes concedendo uma aparência colérica.

No Moy Hall a viúva tinha recuperado o fôlego. Elizabeth viu que se tirava o manto empapado para pendurá-lo a secar.

— Com uma noite como esta, a sua idade, não deveria ter saído.

— Por que não? —A tia se girou para olhá-la. — Você saiu.

— Eu?

— Você foste o motivo de que me tenha visto obrigada a vir. Não há outro que conheça esse caminho como eu, e nenhum dos que poderia ter mandado teria a autoridade necessária para as ver-se contigo. — Baixou uma capa que pendurava do perchero e que estava úmida. — foste você quem informou ao Louden da presença do príncipe nesta casa — acusou, empurrando à moça.

— Não!

— Mostra ao menos um pouco de honra — lhe recriminou a viúva, com voz áspera e desdenhosa. — Aeneas te viu.

— Pois bem, sim! — gemeu Elizabeth. — E agora o arruinaste tudo.

— Denunciaste ao príncipe! Que classe de mulher é?

— Esse tipo não é mais que um presunçoso — tratou de explicar. — Esta guerra se acabará assim que o capturem e tudo voltará para a normalidade.

— E por isso trai a sua própria irmã.

— Já a vê, com o MacGillivray, quando deveria estar com o Aeneas!

— E acredita que por isso se merece que a enforquem?

Um trovão ressonou como um canhão, diretamente em cima da casa.

— Não, cha dèan iad sem!* — protestou a moça. — Não farão isso. Ninguém fará mal a Anne. Louden me assegurou que a trancariam até que tudo tivesse terminado. E depois a deixariam ir.

— De verdade, não vi uma moça mais parva na vida — replicou a viúva, mordaz. — Não lutamos contra pessoas honoráveis e suas intrigas bem podem levar à morte.

Elizabeth mordeu o lábio e lhe crispou o rosto. Aterrorizou-se ao ver que tudo resultava mau, que Anne pedia armas e saía correndo na noite.

 — Como eu ia imaginar que ela cometeria semelhante estupidez, me diga?

 

Anne aguçou o ouvido em seu enésimo intento de escutar algo através de outra descarga de trovões, mas o eco se prolongou e a chuva continuava açoitando-a. Não, ouviam-se gaitas de fole e o som de passos a ritmo de marcha. Só cabia a esperança de provocar incerteza. Talvez Louden detivera seu avanço, talvez inclusive desse ordem de que seus homens formassem ali para o combate.

— Esperem, esperem — se apressou a sussurrar aos seus.

Calcular o momento seria fundamental, já que deviam estar o bastante perto para ouvir, mas não tanto como para que estivessem seguros do que viam.

— Anne — vaiou Fraser, apostado detrás da pilha vizinha, — ouve isso?

Estrada acima não se divisava mais que a negrume. O ziguezague dos relâmpagos rasgou o véu da noite e mostrou uma zona de sombras mais claras na curva do caminho, a certa distância de sua posição.

— Agora! — ordenou a coroe-a.

Donald Fraser foi o primeiro em disparar. O brilho de seu mosquete rasgou o véu de escuridão.

— Loch Moy! — rugiu.

— Lochiel! Lochiel! — bramou seu filho Lachlan antes de abrir fogo.

Seguiram os disparos esporádicos dos outros e gritos de batalha.

Louden cavalgava atrás do gaiteiro. Desde sua posição em retaguarda viu as chamas dos mosquetes caminho abaixo e ouviu os gritos.

— Alto, MacCrimmon — mandou. Assim que as gaitas de fole sossegaram seu gemido, gritou por cima do ombro. — O que vê Aeneas?

O capitão aguçou a vista, tratando de ver algo em meio da intensa chuva, mas não distinguia nada, salvo uns quantos disparos dispersos na escuridão, embora se ouviam gritos e ordens. James Ray, junto a ele, também se esforçava por ver algo.

— São os jacobitas? — Perguntou.

Quem partia atrás deles captaram a palavra «jacobitas». Correu pelas filas tão depressa como prende o fogo na erva seca.

Entre os amontoamentos de turfa, os sete homens de Anne rugiam, disparavam suas armas e corriam de montículo em montículo para recarregar; logo lançavam outro uivo e disparavam novamente, e assim sucessivamente, a fim de dar a impressão de que eram mais.

— A mim os MacPherson! — Bramou Fraser e disparou para logo pôr-se a correr.

— Aqui, os Drummond! — Gritou Jessie, que disparou a sua vez e correu também, agachada, para o amontoamento seguinte.

— MacBean! Um MacBean! — Ladrou Will. E fechou os olhos com força antes de apertar o gatilho de seu mosquete.

— Creag Dhubh!* — chiou Anne. Era o grito de guerra do Cluny. Disparou uma pistola, correu ao montão de turfa vizinho, disparou a outra e voltou a carregar.

Duff disparou duas pilhas mais longe. Só então se lembrou de gritar.

— Adiante! — rugiu, enquanto saltava por cima da turfa para cair junto ao Meg.

Ela disparou o mosquete e correu a lhe substituir no lugar que ele tinha abandonado.

As tropas governamentais diminuíram o passo, levadas pelo temor de dirigir-se de cabeça a uma emboscada. A perspectiva de ter que combater na escuridão, sem poder distinguir ao camarada do inimigo, era temível. Um raio atravessou a noite que iluminou a terra diante deles. A negrume lhes impedia de distinguir nada com claridade, mas eles acreditaram ver o brilho de mosquetes e grupos de homens alinhados em torno do caminho. Detrás havia mais sombras, e deram por seguro que se tratava de filas e mais filas de montanheses formados para a batalha. O Guarda Negro se decompôs: os soldados de vanguarda giraram para retroceder e os de retaguarda empurravam para avançar.

— Sigam! Sigam! — ordenou Louden. O trovão retumbou em volto deles. — Toquem algo, gaiteiro!

A gaita de fole reviveu com um gemido.

— Mas é o exército jacobita, senhor! —gritou Ray em meio da chuva torrencial. — Nos superam em número. É uma armadilha!

Isso bastou para quem estava ao alcance de sua voz. Os homens giraram em redondo e puseram-se a correr por onde tinham vindo; ao passar advertiam da emboscada a quem vinha de trás.

Diante se ouviu um grito entre as sombras.

— Os MacLeod!

Aeneas franziu o sobrecenho. Soou um disparo. O gaiteiro lançou um grunhido e se cambaleou. Os tubos calaram com um chiado, o odre expirou. Aeneas açulou a seu cavalo para sustentar ao homem, que já se derrubava.

— Né, MacCrimmon.

Elevou ao gaiteiro ferido até seu cavalo; emanava sangue pelo pescoço e tinha um buraco ainda maior na cara posterior da garganta. Já tinha morrido. A culpa alagou ao Aeneas como a chuva que corria a torrentes pelo cabelo e a cara.

Dentro de Moy Hall o retumbar da tormenta se ia retirando. Elizabeth  passeava de um lado a outro. ouviu-se um chapinhar de pés que corriam para a casa.

— Se sabe rezar, menina —disse a viúva, sentada junto ao fogo, com um copo de cerveja —  faria bem fazer isso.

— Está rezando você?

— Eu me entendo com os deuses a minha maneira.

A porta de entrada se abriu de par em par, e por ela entraram Anne, Fraser, Lachlan, Jessie, Will, Meg e Duff, eufóricos e chorões, rindo e trocando abraços. A viúva se levantou de um salto.

— Estão bem, todos!

— Puseram pés em empoeirada! — anunciou Anne, assombrada, como se ainda não acabasse de entendê-lo.  - se foram!

— OH, Anne — exclamou Elizabeth. — Tinha tanto medo...

— Acreditaram que os amontoamentos de turfa eram tropas. — A velha Meg ria entre dentes.

— Pensavam que lhes tínhamos armado uma emboscada — explicou Donald Fraser.

A garota ficou boquiaberta. A viúva lhe jogou uma olhada, carrancuda mas agradada.

— Meu Rinn a'chùis!* — gritou Will. — O tenho feito! Disparávamos e corríamos lançando gritos de guerra. — E fez uma demonstração, ainda excitado: — Macintosh! Fraser! MacLeod!

— Os MacLeod estão com o governo — esclareceu Anne, amigavelmente.

Jessie se girou para seu noivo.

— Pois então foste você quem matou ao MacCrimmon.

— OH, não — gemeu a tia. — Tão bom gaiteiro como era! E jacobita, face ao que diga seu chefe.

— Quem gritou MacLeod foi o que lhe matou — insistiu Jessie. — O disparo me passou junto à orelha e quase me esfolou isso.

— Não é possível, Jessie — protestou Will. — Não poderia. Tinha os olhos fechados! —Tratou de abraçá-la para convencê-la, mas lhe separou de um tranco e lhe tirou o mosquete.

— Acredite, que é um perigo te deixar solto! — E partiu à cozinha, pisando em forte.

— Eu poderia combater — insistiu o menino. — É claro que sim que poderia.

— Está bem, Will — lhe tranquilizou Anne. — Foi um acidente. E todos atuaram muito bem, melhor do que cabia esperar. À cozinha, todos vós, e lhes tire essa roupa molhada. Jessie preparará uns ponches quentes.

Antes de sair, Fraser e Lachlan recolheram todos os mosquetes e os sacos de munições. Elizabeth agarrou a sua irmã por um braço.

  — Será melhor que você também te troque — disse. — Está empapada. Vem, eu te ajudarei.

  A viúva tinha voltado para seu assento junto ao fogo. E a sua cerveja.

— Antes que vá... — Fez uma pausa. — Ninguém mais resultou ferido?

Anne girou em redondo, instantaneamente zangada.

— O que pode me importar isso!

— Por favor, moça. Foi Aeneas quem me enviou para avisar.

Anne procurou apoio no braço de sua irmã.

— Por que salvar ao príncipe se não querer combater por ele?

— Acredito que salvar a ti.

A viúva jogou uma olhada a Elizabeth; a garota lhe sustentou o olhar com olhos assustados, lhe implorando em silêncio que não dissesse nada. Anne se pôs-se a rir sem alegria alguma.

— Para me salvar da forca, como ao Ewan.

A senhora, sacudindo a cabeça, deixou seu copo. Logo lhe cravou um olhar sério e firme.

— Não foi ele quem enforcou ao Ewan. Hawley já o tinha pendurado com intenções de baixá-lo  meio estrangular e esquartejá-lo enquanto ainda ficasse vida. Quão único Aeneas podia fazer por ele era pôr fim a seus sofrimentos. Isso foi o que viu.

A jovem piscou para tirar-se das pestanas as gotas de chuva e  limpou a que lhe pendia do nariz com o dorso da mão. Começava a desprender vapor devido ao calor do interior. Seu marido tinha famoso ao camponês que se debatia e Ray então, saltou para lhe quebrar o pescoço. Hawley gritou que o queria com vida, logo o que dizia a viúva era verdade.

— Não houve mais feridos — respondeu em voz baixa. Estar equivocada não era uma posição muito cômoda. — Lhe disse que eu não pensava lhe disparar?

A viúva assentiu.

—É difícil as ver-se com a verdade. —Seus olhos se desviaram para a menor das irmãs, que contemplava o fogo — Deve te trocar quanto antes. — foi para trás e se segurou sobre o respaldo da cadeira. — Olhe que atoleiros está deixando.

  No dia seguinte, as ruas do Invernes se encheram de multidões que lançavam gritos de vitória.  A odiada guarnição do exército tinha desaparecido da noite para o dia. O príncipe e seu cortejo entraram na cidade a cavalo, seguidos pela metade do exército jacobita. Só se falava da vitória do Moy, em que  Anne tinha posto em fuga às forças de lorde Louden, com um punhado de criados. Ela era a glória da cidade.

— A Heroïne me deu Invernes — disse o príncipe a Ou'Sullivan, radiante.

— Sem disparar um tiro nem perder um homem, por certo — conveio seu auxiliar.

Carlos Eduardo se retorceu na cadeira para fulminar com o olhar seu comandante e chefe.

 — Viram o que se pode obter com um pouco de fé, lorde George?

MacGillivray se aproximou do trote comprido e reprimiu seu cavalo para ajustar-se ao lento passo próprio do rodeio de celebração.

—O forte foi abandonado e a gente da cidade o está demolindo — informou. — Não há sinais do Louden, mas os desertores uniram a centenas.

O príncipe assentiu ao tempo que saudava majestosamente às entusiastas multidões.

— Enviem partidas de exploração — respondeu por ele lorde George. — Que a zona fique assegurada.

O príncipe passeou um olhar em redor e para manter a ilusão de sua liderança, acrescentou:

— E se acharem a algum de suas covardes comandantes, tragam-me isso. Esboçou um sorriso. — Seremos generosos na vitória.

Ao ver o Robert Nairn à entrada de uma casa grande, deteve ali seu cavalo.

A viúva tinha voltado para sua casa com a primeira luz do dia e agora estava com o Robert frente ao portal aberto. Adiantou-se para ele quando o príncipe teve desmontado.

— Meu lar é seu, senhor.

Ele alargou uma mão para que a beijasse e passou a seu lado para entrar.

Aeneas se agachou na borda, inclinou o corpo para a corrente e formou uma terrina com as mãos para recolher água e beber. Estava gelada e congelava os dedos esfolados. depois de entregar o cadáver de MacCrimmon ao coveiro tinha enviado uma mensagem a MacLeod, o chefe do gaiteiro; logo saiu em busca dos membros dispersos de seu destacamento, tantos como pudesse achar. Vinte e quatro deles se estenderam no riacho, desalinhados e exaustos, sem saber o que fazer. Levavam uma semana vivendo como foragidos, refugiando-se em celeiros e bosques para evitar as patrulhas jacobitas. Louden tinha fugido para reunir-se com o Cumberland, mas ao Aeneas não atraía a idéia de incorporar-se à avançada inglesa. jogou água fria na cara e sacudiu a cabeça para secar-se. Suas tropas estavam cansadas e famintas; o tempo seguia tormentoso e úmido. Tinha chegado o momento de dar-se por vencido, tragar o orgulho e levá-los a casa. O ruído de uma espada ao sair da vagem fez que se voltasse a olhar.

Um destacamento de jacobitas armados com pistolas e mosquetes carregados rodeava seu grupo. Tinham-nos mirados a todos e cada um deles. A um par de metros dele estava MacGillivray, com a espada na mão. Aeneas se levantou de um salto e jogou mão da sua.

— Eu em seu lugar não faria isso — lhe advertiu seu primo.

— Eu sim — respondeu Aeneas, enquanto desembainhava. Sem pausa alguma investiu contra MacGillivray, que bloqueou o golpe com seu escudo.

Umas quantas pistolas jacobitas giraram para ali.

— Não disparem — ordenou o ruivo.

Aeneas descarregou a arma com um rugido. Uma vez mais MacGillivray o parou.

— Não seja tolo, Aeneas — grunhiu. — Está cercado.

O capitão atacou. Seu primo voltou a deter o aço.

— por que não combate! — gritou Aeneas.

— Renderá-te? — MacGillivray deteve outra cutilada.

— Ante ti, não — bramou o outro. — Enquanto tenha fôlego, não.

— Pode te render ao MacBean — propôs o ruivo, enquanto dava um passo atrás para esquivar a seguinte estocada.

Umas quantas armas voltaram a apontar para o Aeneas, mas nenhuma disparou. Aquilo era um grave dilema de lealdades. Era seu chefe.

— Cubram ao Guarda! — ordenou MacGillivray.

As pistolas se desviaram para apontar aos cativos. Eles também eram do clã Chatton. O velho MacBean saudava com um assentimento de cabeça por aqui e outro por lá enquanto ia tirando as armas aos soldados.

Aeneas se lançou para diante e tentou enganar a seu adversário elevando a espada para lhe fazer mover o escudo e logo deu um golpe de reverso, mas o primeiro deteve com a espada o golpe dirigido a seu pescoço e lhe baixou o aço a pura força. Aeneas liberou a arma e lançou outro talho que MacGillivray conseguiu repelir com a tarja. As espadas voltaram a cruzar-se por cima das cabeças de tal sorte que os rostos ficaram muito perto. olharam-se aos olhos. Aeneas arqueou uma sobrancelha.

— Melhoraste.

— É a prática.

MacGillivray sorriu. A ponta de seu atravessado, que havia desenvainado com a esquerda ao tempo que chocavam as espadas, apertou-se ao corpo do Aeneas, justo debaixo das costelas. Um só impulso e tudo teria terminado.

— Terá que fazê-lo — disse Aeneas. — Enquanto eu viva ela jamais será tua.

O ruivo fez um gesto de dor e seu olhar vacilou. Inspirou profundamente; logo colocou novamente o punhal sob o cinturão e empurrou seu primo para o afastar de  si. Aeneas moveu a espada em cruz. MacGillivray lançou um grito. Tinha um corte no braço esquerdo e a ferida sangrava. Olhou fixamente a sua primo, imóvel, lhe fulminando com os olhos; logo embainhou a espada.

— Já tem o primeiro sangue — disse. — Se sua honra não ficou satisfeito, me mate.

Aeneas deixou escapar um rugido; logo elevou a espada até a altura do ombro e investiu diretamente para o pescoço de seu adversário, com toda a força de sua angústia. Deteve o aço justo antes de perfurar a pele; os músculos e a espada tremiam pelo esforço de não continuar.

— Acaso não te ensinei nada? — gritou.

— E acaso não funcionou? — MacGillivray encolheu os ombros com ironia. Sua rendição não tinha sido uma mutreta, mas não podia resistir a tentação de fazer uma brincadeira. Macintosh não riu.

— lhes diga que disparem contra meus homens — bramou.

Os do Guarda Negro, que observavam o combate, puseram cara de preocupação. Os guardas jacobitas franziram o sobrecenho, desconcertados. MacGillivray os olhou.

— Já ouvistes o chefe — disse. — Dispare.

— Não! — rugiu Aeneas. — Tinha que ameaçar e assim eu me renderia. —Cravou furiosamente a espada em terra, junto a seus pés. — Não se convida a um homem a que lhe mate quando lhe ver morto é o que mais deseja na vida.

— Compreendo — disse MacGillivray. E lhe descarregou um murro em plena cara.

Macintosh se cambaleou para trás e soltou o pomo da espada, que ainda sujeitava. Sua primo arrancou o aço da terra.

— É uma boa mutreta — comentou. — A recordarei.

 

— Pela terceira vez — se queixou Cumberland — somos o branco de brincadeiras orquestradas pela mão dessa mulher.

— É uma bruxa — desdenhou Henry Hawley.

— Sua alteza real... — Louden, circunspeto, ignorou ao Hawley. — Anne tem apenas vinte e um anos e conta com muito pouca experiência. Além disso, a essas horas estava em sua casa.

— Tramando feitiços, sem dúvida — soltou Hawley.

— É possível que ela enviasse a seu informante — insinuou Cumberland.

— Era sua irmã — admitiu Louden, — mas me pareceu bastante sincera.

— O bastante sincera como praga para nos jogar em uma armadilha! — gritou Hawley.

O duque tinha aquartelado suas tropas para passar o inverno em uma cinza cidade setentrional, Aberdeen, um intenso frio e inóspito. A localidade costeira lhes permitia evitar boa parte do gelo e a neve que isolavam as montanhas e os vales interiores, mas suportavam o castigo dos vendavais do nordeste, cujas frenéticas chicotadas agitavam o mar e açoitavam o porto e seus edifícios de granito.

O estado maior do duque tinha estabelecido sua residência em Guestrow, na casa de um antigo prefeito, a salvo da espuma e a garoa, mas não, ao parecer, das más notícias.

— Jovem ou não — disse Monopolize, sinceramente impressionado, — deve ser uma comandante a ter em conta para pôr em fuga a um exército de dois mil soldados com apenas um punhado de homens.

— Um punhado eram os que vimos — protestou Louden. — Provavelmente havia cem vezes mais.

— Mesmo assim. — Monopolize sorriu.

— Tolices — lhe espetou Hawley. — Se acreditarem o que dizem nossos próprios informantes, eram no máximo cinco. E não eram soldados, a não ser serventes!

— Nos clãs montanheses é igual — corrigiu Louden. — Até as mulheres e os meninos sabem combater.

Cumberland os fulminou com o olhar.

— Este país é inimigo nosso a tal extremo que até a informação obtida por nosso serviço de inteligência é inventada e deliberadamente contraditória, para que não saibamos com certeza como proceder, mas procederemos, cavalheiros. Algum dia ajustarei contas com essa maldita rebelde.

Fevereiro chegou a seu fim em meio de intensas tormentas: o vento arrancava árvores de coalho e desprendia pedras e cantos rodados das montanhas, e chovia a torrentes, até o ponto de encher os lagos e transbordar os arroios. No Moy não entravam nem saíam notícias, e enquanto não amainasse o temporal, tampouco albergavam esperanças de ir procurar provisões ao Invernes por culpa das estradas alagadas.

Mas ao final as inclemências do tempo passaram, e um dia a paisagem amanheceu gelado e espaçoso: o céu brilhava como um espelho. Anne levou a mesa do vestíbulo a caixa da dote e a abriu para contabilizar os restos. Estava meio vazia. A terra logo que podia sustentar à população normal durante o inverno, e agora havia tropas dispersas por tudo o imóvel, bocas adicionais que alimentar.

— O rei Luis enviou recursos — disse —, mas o navio foi capturado.

— Que interessante — comentou Elizabeth, com total indiferença. Estava sentada junto ao fogo, costurando distintivos brancos para as tropas. — por que não faz que cada um volte para sua casa e que lhe alimentem ali?

Jessie trouxe lenha para o fogo.

— Alguns já se foram — replicou Anne, — mas os das Terras Baixas não podem. — Olhou com ar carrancudo a Jessie, que estava amontoando lenha. — Jessie, Will pode encarregar-se disso.

— Prefiro que não se aproxime de nenhum lugar onde haja faíscas. — Jessie empurrou outra lenha para dentro. — Posso lhes trazer algo? Gosta de um pouco desse chá?

Elizabeth meneou a cabeça.

— Não, obrigado. Vá sentar te com os pés em alto —lhe aconselhou Anne.

A garota saiu. Elizabeth afastou a vista de sua costura.

— Está doente? A vê algo pálida. E estou segura de que faz um momento a ouvi vomitar.

— Está muito bem — sorriu Anne. — É só algo que lhe pegou Will.

— Pois me alegra que esteja bem — estalou sua irmã.

— Isso não é contagioso.

— Não refiro a isso. O da semana passada. O das tropas.

Anne se tinha molhado como nunca em sua vida, mas a horripilante aventura dessa noite tempestuosa tinha liberado Invernes. Todo mundo falava dela e a tratava como uma heroína. Entretanto, Anne se negava a falar disso. Durante essa noite tinham trocado muitas coisas que tinham sacudido suas certezas.

— Esquece-o, Elizabeth — repôs. — Tivemos sorte, todos. — Fechou a caixa do dote. — Posso fazer isto mais tarde. Necessita que te dê uma mão com isso.

— Não posso esquecê-lo. Fui muito tola.

— Não me diga que costuraste algo a sua saia — brincou.

MacGillivray abriu a porta principal; uma rajada de vento gelado aproveitou a fresta para penetrar antes que aquele a fechasse detrás de si. Anne nunca se alegrou tanto de lhe ver, e correu para ele para lhe rodear o pescoço com os braços.

— OH, quanto senti sua falta — disse enquanto lhe cobria de beijos a boca e as bochechas geladas. — Onde tinha se metido?

MacGillivray a segurou para beijá-la na boca, larga e desesperadamente, com força, mas ao responder, quando o beijo se tornava suave, Alexander o interrompeu. Estreitou-a contra ele, com a boca escondida entre o cabelo, murmurando seu nome, como se sua ausência tivesse durado uma eternidade.

— O que acontece? — perguntou Anne, mas não obteve resposta. — Ouça, está gelado. — saiu do abraço. — Vêem, te aproxime do fogo.

Ele fez um gesto de dor; sua mão direita foi ao braço que ela havia puxado.

— Está ferido.

— Não, estou bem — negou MacGillivray; logo se endireitou, como se algo nele se enclausurasse; não olhava a ela, a não ser mais à frente. — vim com uma ordem do príncipe.

— Uma ordem? Qual...?

Elizabeth tinha agachado a cabeça para a costura para não ser testemunha do abraço, mas esse tom, subitamente formal, atraiu toda sua atenção.

— A semana passada capturamos a um grupo da Guarda Negro. Todos escolheram unir-se a nós, salvo o oficial ao mando. Também rechaçou a liberdade sob palavra. Devo pô-lo sob sua custódia.

Mostrou-lhe um documento. Como Anne não o pegou, ele o deixou na mesa.

— Ciod e?* O que é isto, Alexander? —Ela sorria— está me fazendo uma brincadeira?

Então, ele a olhou com olhos desolados.

— O príncipe te considera a pessoa mais indicada para o ter a seu cargo. —Deu um passo atrás e ordenou por cima do ombro. — Tragam o prisioneiro!

— Que prisioneiro? — Elizabeth estirou o pescoço. MacBean abriu a porta e fez um gesto para que o homem entrasse.

Aeneas entrou pela porta. A visão causou uma impressão tão funda em Anne que durante um instante ficou sem fôlego. Incrédula, viu-o aproximar-se dela e deter-se junto ao MacGillivray. Era ele em carne e osso, maciço, com o mesmo passo ágil e musculoso, o cabelo negro como sempre, as sobrancelhas franzidas. Permanecia de pé olhando-a, firmes os olhos, com uma expressão muito estranho: fria como o gelo que tinha congelado o loch durante as nevadas, mas ardente também de ira. Não disse nada. Tocava-lhe falar com ela.

Anne perdeu a noção do tempo. A suas costas Elizabeth tinha afogado uma exclamação ao ver a identidade do cativo. Agora não fazia mais que observá-los, boquiaberta. Anne tinha as costas rígida. MacGillivray manteve o semblante inescrutável e a vista cravada na parede.

Como uma descarga de vanguarda, um milhar de idéias e sentimentos se dispararam através de Anne. Não tinha visto seu marido desde dia em que enforcaram ao Ewan: onze semanas nas que sua vida tinha dado um giro completo. Não lhe falava desde dia em que partiu para reunir ao clã: seis meses em que tinham acontecido tantas coisas sem ele. Agora o tinha ante ela, distante, frio mas zangado, rebelde; não queria estar ali. Era seu prisioneiro. Ela inclinou a cabeça a um lado, com um muito leve sorriso lhe curvando a boca. Quando todo o resto fracassava, sempre se podia recorrer as boas maneiras.

— A seu serviço, capitão — o saudou.

O breve relâmpago que passou pelos olhos do Aeneas foi uma recompensa, embora se extinguiu muito em breve, antes de que ele respondesse com uma seca inclinação.

— A seu serviço, coronel.

Passou um instante, o bastante comprido como para uma brusca inspiração. Então, de repente, MacGillivray se deu meia volta com a intenção evidente de dirigir-se para a porta.

— Fuirich*, Alexander! Espera! — pediu Anne.

O não se deteve e assim que ela se precaveu de que lhe faltavam dois passos para sair da casa, recolheu-se as saias, passou roçando ao Aeneas e correu detrás o MacGillivray. Empurrou as duas folhas da porta para lhe seguir.

Assim que ela esteve fora, Elizabeth correu para seu cunhado.

— Por favor, não diga a Anne de Louden. Não sabe que fui eu.

O interpelado lhe dedicou um olhar e um gesto de repulsão.

— Pois deveria sabê-lo, se não poder confiar nos mais íntimos...

— Foi uma estupidez. Atuei sem pensar. — Tinha que persuadi-lo. — Só queria ao MacGillivray e que capturassem a esse príncipe tolo. Você e eu estamos no mesmo bando.

— Acredita?

Quando Anne alcançou ao MacGillivray no pátio, ele já estava a lombos de seu cavalo.

— Aonde vai? — interpelou. —  Não pode partir assim.

— Agora não posso ficar. — Os olhos do Alexander brilhavam muito.

— Pois então irei contigo. — Esse tom desafiante teria devido impor-se, mas os dois sabiam que ele partiria e ela ficaria na casa.

— Se me necessitar, estarei em Invernes. — Subiu em seu cavalo.

— E o que faço com ele? — gemeu Anne.

 Seu amante sacudiu a cabeça, logo agitou as redeas e partiu, seguido por sua tropa de guerreiros. Anne teria querido trazer o de retorno a rastros; enfurecia-a que ele pudesse abandoná-la assim e que o tivesse feito diante do Aeneas. Os olhos lhe ardiam pela ardência das lágrimas. Viu-o afastar-se pela avenida e subir a costa, até que se converteu só em uma mancha escura e desapareceu da vista. O nó que tinha na garganta era duro, doía. De modo que a amava incondicionalmente, né? Mas mesmo assim partia.

A Aeneas bastava apresentar-se para que MacGillivray cedesse ante ele. O homem a quem ela recorria, o homem a quem se aferrava quando todo o resto resultava falso, que sempre estava a seu lado, afastava-se dela quando mais o necessitava. E a causa era Aeneas. Impotente, derrotado e prisioneiro, ainda podia lhe causar estrago.

Anne virou abruptamente e entrou precipitadamente na casa.

Elizabeth serviu vinho temperado; a via muito satisfeita de si mesmo. Aeneas, de pé junto ao fogo, com a taça na mão, tinha uma expressão cautelosa. Jessie, provavelmente advertida por Will da aparição de sua hóspede, havia trazido comida e estava por retirar-se outra vez para a cozinha, radiante. Ao passar junto à Anne disse, sinceramente:

— O chefe voltou para casa.

— O que passa aqui? — perguntou Anne a sua meio-irmã. — Não é um convidado, a não ser um prisioneiro!

— Atendo-o por pura hospitalidade — protestou Elizabeth.

— Pois não o faça — lhe espetou a maior. E fulminou a seu marido com o olhar. Agora parecia médio divertido; em sua boca jogava esse estranho sorriso que ela tinha quase esquecida. — Quero uma explicação. Enviou a sua tia com uma advertência. Por quê?

— Você molesta isso?

Também tinha esquecido o som de sua voz, essa cadência grave e sensual, tão similar a uma carícia.

— Se isso me deixar em dívida com um inimigo, sim.

— Duvido que reconheça uma dívida a um adversário — repôs ele, com os olhos brilhantes, duros e coléricos — se não lhe reconhecer nada a seu marido.

— Anne — interveio apressadamente Elizabeth, — ele tratava de ajudar.

— De ajudar-se a si mesmo — bufou sua irmã, — procurava o favor do príncipe antes de que fosse muito tarde.

Aeneas fez um gesto dolorido para ouvir isso; contraiu-lhe um músculo na mandíbula.

— Não há nada tão retorcido — corrigiu seco. — Quis proteger meu lar.

De modo que não era por salvá-la a ela. Como diabos tinha podido desejar que fora assim?

— Que agora será sua prisão. — Inspirou profundamente para acalmar a dor que sentia no peito. Se de algo devia cuidar-se era de sua própria debilidade — Ficara confinado em seu estudo; dormirá no quartinho. — Relegava-o ao quarto menor da casa. — Jessie levará suas refeições.

— Não pode fazer isso, Anne — aduziu sua irmã. — É seu marido.

— Não, é meu prisioneiro. E posso fazer o que me pareça.

— Esse acerto vai perfeitamente — conveio Aeneas, igualmente seco.

— Pois então te tire de minha vista —o ordenou ela, lhe voltando as costas.

Deixou a taça de vinho e abandonou a habitação.

Entre as irmãs se fez o silêncio até que ele teve desaparecido pela escada e a porta se fechou atrás dele.

— A que joga? —perguntou Elizabeth.

— Não o quero aqui.

— Mas a casa é dele. Seu lugar está aqui.

— A casa pertence ao clã, que está na minha parte — corrigiu Anne. — E seu lugar é o engano. É hora de que o entenda.

— E assim te amará, sem dúvida.

— Não quero seu amor, mas exijo seu respeito.

— Não o terá se lhe trata com desprezo. — Elizabeth, com um suspiro, encheu uma taça de vinho quente e a entregou a sua irmã. — Deveria te mostrar magnânima.

— Desonrou-me diante de todos e se uniu ao inimigo sem me pedir sequer conselho.

— Seria clemente se tratasse de outra pessoa. — sentou-se, reclinada para trás, e fez por parecer muito tranquila. — Deveria sabê-lo: se vontades e esfrega sua vitória nos narizes de seu oponente, não ganhaste.

— Só que isto não é um jogo. — Anne também tomou assento e se inclinou para diante, severo. — Estamos em guerra e sou a única mulher que não tem a seu marido ao lado. Ele me envergonha.

— Maior motivo para lhe tratar bem. Assim será ele quem se envergonhe. Além disso não pode lhe mostrar seu desdém se o encerrar e o separa da vista.

— E o que quer que faça com ele?

Elizabeth foi servir mais vinho, esforçando-se por dissimular o sorriso.

— Permitir que coma conosco? — propôs, como se tivesse tido que refletir.

— De maneira nenhuma! Não suporto lhe ver.

— Pensará que não te atreve.

— 'S coma leam*. Não me importa.

A garota estudou a situação. Aeneas era uma recompensa inesperada por sua traição ao príncipe. Sua mera presença na casa já tinha separado MacGillivray de Anne. Devia haver alguma outra maneira de obter que marido e mulher não pudessem ignorar-se por completo.

— Nessas habitações não terá espaço. O sótão é um armário. E no estudo logo que pode andar seis passos. — encolheu-se de ombros. — Poderia lhe permitir dar um passeio por fora cada dia.

— Para que escapamento?

— OH, venha, mulher. Não te vai pagar bem com mal se lhe fizer um favor, e agora tem guardas aí fora. — Efetuou outra pausa. — Te proponho algo: acompanharei-lhe eu. —Soltou uma risada animada. — O que te parece isso? Sua irmã acompanhará a seu marido como se ele fora um menino travesso.

— Se é que você detesta caminhar!

— Pois não me incomoda se for necessário para que não fique mau. Será melhor que costurar estes intermináveis distintivos.

Elizabeth começou a empregar-se a fundo com Aeneas assim que o teve fora da casa, longe de ouvidos alheios.

— Poderia ser mais amável com minha irmã — começou. Foram caminhando ao redor do lago, seco e diáfano o ar naqueles primeiros dias de março. As folhas caídas, cobertas de geada, rangiam sob os pés.

— Encomendaram-lhe me persuadir? — perguntou ele.

— Que suspicaz é, Aeneas. — Elizabeth sorriu. — Me aborreço por falta de companhia; isso é tudo. Se vós estivessem em melhores términos, talvez Anne permitiria que se sentasse conosco de noite.

— Estou muito a gosto no estudo. Duvido que de outra maneira possa dominar minha ira.

A garota se deteve para lhe pôr uma mão no braço, a modo de gesto pormenorizado.

— Compreendo-te, de verdade. Deve sentir que ela te falhou.

— Isso é a menor parte do que sinto.

Deu-lhe um tapinha no braço e reatou o passeio.

— Seria mais fácil — disse, como se soltasse — se não se quisessem tanto.

— Já vi quanto me quer Anne. Não têm em conta minhas opiniões nem pergunta por meus motivos. Faz a guerra contra meus desejos e converte minha virilidade em brincadeira pública. Dá por sentado que sou tolo e vingativo; logo utiliza isso como desculpa para voltar-se contra mim. Qualquer inimigo me quereria mais!

Elizabeth lhe deixou soltar essa argumentação. Ele não tinha negado seu amor pela Anne e convinha mais a seus propósitos que se liberasse de tudo a que esse aborrecimento. Desviou o olhar para as águas, onde nadava um pequeno grupo de gansos selvagens. Cada noite eram menos. Todos os que não tivessem sido caçados e comidos voltariam para a Islândia dentro de um mês. O inverno teria terminado. Reataria-se a guerra. Era preciso acelerar as coisas.

— Anne é muito orgulhosa — explicou. — Nunca soube pedir perdão, nem sequer de pequena. Uma vez me rompeu um dedo no campo de treinamento e alegou que era minha culpa.

— Lembrança do golpe que me deu nas ancas no dia da morte de seu pai, quando eu tratava de ajudá-la.

— Não lhe agradeceu isso?

— Nem pingo. Ao final tive que lhe dar um bom soco.

— E ela lhe agradeceu isso?

Aeneas riu pelo baixo. Riu sim.

— Zangou-se ainda mais. Suspeito que esperava que o clã se lançasse a defendê-la.

Elizabeth se apressou a esquivar o tema, antes que ele caísse na conta de que se transbordou a situação e voltasse para sua situação inicial de aborrecimento.

— Provavelmente queria que lhe fizessem migalhas até que servisse como comidas dos cães. — Sorriu. — Se brigas contra ela, Anne brigará contra ti, mas lhe atacarão os remorsos se te desculpar. Se te mostrar complacente, esforça-se por te fazer favores. Se a adular, em um abrir e fechar de olhos a terá comendo em sua mão.

— De verdade? — murmurou Aeneas, com um sorriso.

— De verdade — lhe assegurou a garota. Seu cunhado mordia a ceva melhor do que tinha esperado. — Se está indo a luz. Voltamos dentro?

 

Elizabeth sempre retornava de seu passeio com  Aeneas justo quando Anne se sentava no salão a atender sua correspondência.  Anne não efetuou o menor comentário apesar de que o fato não lhe passada inadvertido. A princípio os ignorava deliberadamente, tão quando seu marido entrava como quando ajudava a Elizabeth a tirar capa e as luvas, quando passava junto a ela sem dizer uma palavra, e para ouvir suas pegadas na escada, para retornar a suas habitações. Ela mantinha a cabeça encurvada e continuava respondendo as cartas da Margaret, Greta e George Murray. As notícias nem sempre eram boas. A Jenny Cameron  tinham capturado enquanto visitava seus feridos, depois do Falkirk, e foi transladada ao Edimburgo. Anne confiava que o preboste Stewart e seus outros amigos da cidade a mantiveram com o ânimo em alto até que eles pudessem obter sua liberação. Ela cuidava do imóvel, mantinha ao dia as contas da casa e deixava que sua irmã e Aeneas continuassem com seus passeios diários.

Durante o dia inspecionava as tropas atendidas na propriedade, distribuía os pagamentos ou visitava a Donald e a Lachlan na forja para lhes encarregar algum trabalho. Frequentemente se cruzava com a filha maior do Ewan, que vinha pelo caldo do velho Tom. Com o tempo, quando já não pôde seguir adiando-o, acompanhou-a às cabanas. Até então tinha evitado enfrentar-se a Cath, privada agora de um pai para seu bebê.

—Era um valente e morreu como tal — disse a jovem mãe.

Cath se tinha mudado com seu bebê à cabana de Ewan, para encarregar do ancião doente e das duas meninas. O interior estava esquentado, mas mais sombrio que nunca, já que a única luz provinha do fogo de turfa. O bebê tratava de ficar de pé e se aferrava ao que tivesse a mão para levantar-se até cair de novo, entre risadas. As meninas impediam que se aproximasse do fogo.

— Bem sei o que lhe fizeram — respondeu Cath. — Me contou isso Aeneas.

— Aeneas?

— Ele mesmo trouxe a notícia, com a manta e o punhal do Ewan. Engasgava-se ao me contar como o tinham torturado. Açoitaram-no com o gato de nove caudas até que os nós das pontas lhe arrancaram a carne e apareceu o osso, mas ele não lhes revelou nada.

Anne baixou a vista ao chão de terra. Ewan tinha morrido entre torturas para protegê-la.

— Sinto-o muito, Cath — lhe assegurou.

— Se morreu por te servir, fez-o com orgulho. — A moça levantou o bebê, que estava subindo a ela para alcançar o peito, e se baixou o vestido para amamentá-lo. — Você tratou de salvar ao Calum. Dizem que Ewan fez que os sasannaich* pagassem bem caro o dele e Seonag.

— É verdade, e Meg pretende lhe ajustar as contas pessoalmente a esse tenente inglês.

— Sei. — Cath sorriu à luz do fogo. — Mesmo que tenham vencido e convoquem à paz, ela não retrocederá até achá-lo. Tem a seu novo companheiro bem advertido. Olhe. —Estirou os pés. — Nos está fazendo sapatos a todos.

Anne retornou das cabanas com ar pensativo. O povo necessitava um futuro: sapatos nos pés, casas de pedra com janelas pelas quais pudesse passar a luz, um ofício de que manter-se e sustento suficiente. Não necessitavam impostos que os exaurissem nem leis que destruíram seu estilo de vida, seus costumes e tradições, o respaldo mútuo, a ocupação e o uso da terra, a igualdade de opiniões quanto a seus próprios assuntos, princípios arrebatados todos por uma nação que acreditava na propriedade da gente, a terra, os recursos e a riqueza.

A seu redor havia árvores, colinas, rios, lagos. Todo isso não podia ser propriedade de ninguém, como tampouco os peixes, os animais ou os pássaros que neles viviam, nem tampouco a chuva, o mar, o céu ou outra pessoa. Cada coisa era proprietária de si mesmo. Aeneas sabia, não podia ignorá-lo se era highlander. Sua gente o dava tudo em sua condição de chefe, não por ser quem era, um homem como qualquer outro, mas sim pelo que representava, o clã, a pessoa a quem encomendavam a preservação do que eram: um povo livre, que escolhia viver livremente e unido pelo bem de todos. Ele tinha chorado pelo Ewan, pela dor e a perda do Ewan, não por sua própria amargura. Talvez Elizabeth tinha razão ao lhe dizer que ela devia mostrar-se magnânima.

Essa tarde, quando sua irmã e Aeneas retornaram do passeio, Anne estava atarefada com a correspondência, mas lhe observou entrar, tirar a capa à garota e pendurá-la. Não tinha o aspecto de quem teme perder. Lhe via desembrulhar-se a suas largas em sua própria pele, ainda vital e perigoso, como se nada lhe inspirasse medo. Quando girou em sua direção para encaminhar-se à escada, ela baixou novamente a vista a seus papéis. Uma vez que o teve o bastante perto, a ponto de pôr o pé no primeiro degrau, disse-lhe:

— Quereria jantar conosco esta noite?

Tinha-lhe formulado a pergunta sem levantar a vista dos documentos, mas elevou os olhos ao não ouvir resposta alguma e o viu com o corpo voltado em parte para ela para lhe olhar melhor com esses olhos seus pardos como a turfa, mais escuros que o poço sob a cascata do Invercauld. O cabelo escuro lhe caía sobre a frente. Anne sentiu um nó no estômago e se apressou a baixar a vista de novo.

— Se não querer, não importa.

As cartas que tinha ante si se rabiscaram e perderam todo sentido.

— Não, sim que eu gostaria de — respondeu ele. — Tapadh leat*. Obrigado.

E continuou escada acima. Ela ficou olhando aquela escritura incompreensível, alerta a cada pegada. Elizabeth correu a plantar-se frente a ela, encantada.

—Vá! De onde saiu isso? Que sagaz de sua parte!

— Sagaz? —Afligia-a uma sensação de surpresa lhe paralisem. — Não sei no que estava pensando. Jamais poderei chegar ao final do jantar.

— Claro que sim. Terá-me aí. Já me conhece: sou capaz de falar por toda Escócia. Darei aviso a Jessie. Logo subiremos e te ajudarei a te preparar.

Elizabeth correu à cozinha com um grande sorriso nos lábios. Fazia quatro semanas que lhes tinham crédulo a custódia do Aeneas.

Vamos, no dormitório principal, Anne se sentou ante a penteadeira. Elizabeth lhe pintou de branco cremoso a cara e o decote; logo lhe esfregou os maçãs do rosto e os lábios com carmim. Ela tinha ocupado essa habitação depois da partida do MacGillivray; com isso se estabelecia como cabeça da casa em vez do Aeneas. Atrás delas, o leito conjugal parecia ocupar mais espaço que antes; os cobertores estavam um pouco enrugados.

— Não sei por que tomamos tantas moléstias — se queixou. Revolviam-lhe as vísceras. Sua irmã a penteou com pequenos cachos soltos junto às orelhas, contra as bochechas.

— Com pistolas e espadas não se cativam os corações e as mentes — explicou Elizabeth. — Deve voltar a lhe conquistar.

— Não quero seu coração, e se tivesse cabeça, já estaria ao meu lado.

— Ainda te deseja. Quer deitar-se contigo.

— De verdade? — Isso era grato. Significava que ainda tinha certo poder sobre ele.

— Observa-te de contínuo: quando entra, quando vai para a escada. É um peixe com a boca aberta, esperando a que lhe joguem o anzol, e você não te dá conta porque está empenhada em lhe ignorar.

— Acaso imagina que lhe desejo? — Lhe apertou o nó do estômago. Por que se sentia tão ameaçada?

Elizabeth, com um grande sorriso, deixou as tesouras de frisar.

— Não há homem que saiba jamais o que quer uma mulher. Só quando se encontra no leito dela ou de patinhas na rua. E até então crie o que mais lhe convenha, mas vejamos, o que vestido vais pôr te...? — Começou a revolver o guarda-roupa. — Nada branco, é obvio, não convém procurar um enfrentamento. Azul, o que te parece? — E lhe mostrou o objeto.

— Porei-me o branco — assegurou Anne. A cor jacobita lhe fortaleceria a coragem. A água de rosas de sua penteadeira se obteve destilando as pétalas das rosas brancas de junho. Ela se tornou um pouco nas mãos e o aplicou ao pescoço com palmadas.

— Possivelmente tenha razão. —E Elizabeth franziu os lábios. — A cor branca lhe recordará o dia das bodas. — Sorriu de orelha a orelha. — E a noite.

— Não é para isso! — protestou Anne.

— Ocasionará um efeito em ti e outro nele.

A garota sustentou o vestido para que sua irmã se metesse dentro. Enquanto ela o grampeava, Anne olhou o decote. Deixava os peitos expostos, quase nus.

— Não posso pôr isto — se queixou. — É quase como andar nua!

— Deixa de pensar como um soldado — replicou Elizabeth, enquanto girava em torno dela para olhar a de frente. — Não queria que ele compreendesse seu engano?

— Rodeaste-me isso muito. Tenho os mamilos quase ao ar.

— Um pouco de emoção, nada mais. — Sorriu. Logo lhe afastou a mão de uma palmada. — Sguir dheth!* Não lhe suba isso. Se quiser pensar como um guerreiro, imagina que isto é uma campanha para lhe obrigar ao arrependimento.

— Diz que ele não se arrepende de nada? — Anne franziu o sobrecenho.

— claro que sim — se apressou a tranquilizá-la sua irmã, — mas como é homem, ainda não sabe.

— Pois será melhor que se dê pressa em descobri-lo!

Anne saiu do dormitório a passo enérgico, arrastando detrás de si as amplas saias brancas, escada abaixo. Elizabeth corria detrás.

Aeneas estava no comilão, estudando uma garrafa de vinho já desarrolhada, como se lhe encontrasse muito interesse. Ao entrar, levantou a vista.

— Anne —disse — está incrível. —Sua vista percorreu a Anne de pés a cabeça. Logo esse sorriso familiar, meio zombadora, torceu-lhe os lábios. — Incrível — repetiu. — Me sinto honrado.

— E eu, faminta — manifestou ela.

Foi diretamente a ocupar seu assento, para não lhe deixar ver que se sentia adulada. Dissesse o que dissesse, ele também tinha feito um esforço por estar apresentável. O cabelo, negro e comprido, ainda brilhava de umidade contra a camisa. Luzia uma série de encaixe ao pescoço; embora não lhe permitia o uso de armas, a fivela de seu cinturão e o broche que lhe sujeitava a manta eram de prata.

Elizabeth, atenta a recordar a todos os bons maneiras, esperou que lhe afastasse a cadeira. Anne ignorou seu olhar insistente, mas havia outras coisas menos fáceis de passar por cima. Quando Aeneas lhe aproximou por detrás para lhe encher a taça de vinho, sua manta lhe roçou o ombro; ao inclinar-se junto chegou o calor de seu corpo. Houve uma breve vacilação antes que ele inclinasse a garrafa. Era seu acaso perfume o que lhe afetava? Ou sua proximidade?

Manteve a cabeça encurvada, segura de que ele também recordaria os tempos em que ela teria levantado a vista e ele se teria inclinado para beijá-la, sua boca sobre a dela, sua língua provocando-a; os tempos em que poderiam ter feito o amor ali mesmo, em vez de comer. obrigou-se a recordar que ele era seu prisioneiro, mas quando lhe teve sentado em frente, sorrindo através da mesa e com a taça levantada para um brinde, perguntou-se quem era prisioneiro de quem.

— Pelos rebeldes — disse Aeneas, embora se fosse uma brincadeira não acharia satisfação em sua resposta.

— Pela vitória — replicou ela, lhe devolvendo o sorriso. — Slàinte*.

Jessie se tinha superado como cozinheira. A comida principal se tomava a meio-dia, frequentemente compartilhada com visitantes e trabalhadores, enquanto que o jantar era um refrigério leve, mas essa noite, não. Ostras? O que tinha Jessie na cabeça? Devia ter enviado ao Will especialmente para procurar-lhe Uma pata de veado, ganso do lago, requeijão e cinco ou seis conservas doces com omeletes de aveia e bolacha açucarada.

A conversação resultava estranha, pois havia muitos temas a evitar: a guerra, o clã, a maneira em que Anne administrava o imóvel. A inimizade envolvia a vida inteira dos dois. Procuraram refúgio no clima, mas sem mencionar o que aconteceria quando melhorasse e falaram também da saúde do gado, ignorando quanto tinha minguado para alimentar às tropas. Comentaram o do bebê que esperavam Jessie e Will, mas não por que esse jovem casal estava em maus términos. Elizabeth enchia em seguida os silêncios incômodos, tagarelando a respeito da comida, a moda e a recente afeição de sua mãe pelo rapé.

Embora esses temas não podiam interessar muito ao Aeneas, ele se mostrava fascinado: formulava perguntas, fazia fala bem intencionados e cuidava de manter as taças sempre transbordantes de vinho. Cada vez que Anne olhava para ali, ele parecia estar observando-a; então ela afastava a vista, fingindo desinteresse, mas se ruborizava. Para o final da comida, quando Aeneas lhe aproximou uma vez mais para lhe encher a taça, ela sentiu um impulso  de girar a cabeça e esconder a cara contra seu torso para sentir o abdômen tenso contra a bochecha, e lhe apartar a manta e a camisa, e apertar a boca contra sua pele para perceber outra vez seu aroma e seu calor.

— Não, obrigado. — Elizabeth pôs a mão sobre sua taça. — Já bebi suficiente. — levantou-se. — Se me desculpam, irei à cama.

E desapareceu com um sussurro de saias. Um estalo e a porta se fechou atrás dela.

Agora só ficava Aeneas. Anne sentiu uma quebra de onda de medo. Logo que podia lhe olhar aos olhos, embora percebia sua atenção fixa nela. o melhor que podia fazer, o único, era largar-se antes de que acontecesse algo irrevogável que debilitasse sua situação.

— As ostras foram uma grata surpresa — comentou ele.

— O bloqueio naval da costa não afeta a calidez de nossa hospitalidade — replicou ela, aferrando-se à cortesia como se fora uma corda salva-vidas, a vista fixa no vinho de cor rubi da taça e no reflexo das velas que tinha ficado apanhado dentro. Ao sentir que ele se inclinava para diante, levantou a vista para seus olhos escuros e brilhantes.

— Pensei que me poria isso na boca com sua mão — disse ele com lentidão, hipnótico o olhar. — Logo me daria isso com sua boca, as guiando com a língua. E que seu sal nos enlouqueceria os lábios, nos fazendo desejar o sexo.

—Aeneas! — Na verdade havia dito o que ela acreditava ter ouvido?

Seu marido jogou a cadeira para trás e se levantou para aproximar-se.

— Pensaste que não repararia na flagrante manipulação de sua irmã? — Colocou-lhe os dedos pelo decote do vestido, entre os peitos, e atirou do tecido para obrigá-la a ficar de pé, de modo que também sua cadeira caiu para trás. — Se isso for tudo o que quer de seu marido, mulher, pode agarrá-lo. Aqui, agora. Para te desejar não necessito o vinho de nossas bodas, o perfume das rosas nem a comida de nosso primeiro ato de amor. — Tinha-a rodeado com seus braços e seu corpo a empurrava para trás, contra o bordo da mesa. — depois de todos estes meses minha fome de ti é muito mais que mero apetite.

Então baixou a boca para a dela, com ferocidade, tão desesperado como dizia estar. Ela lutou contra a ferocidade do beijo, mas segundo o impulso do Aeneas cedia ao desejo urgente, também cedeu o de Anne. Esse era o marido que ela conhecia e recordava, a boca que desejava, o corpo que ansiava sentir apertado ao dele, o homem que sentia falta. beijaram-se a cara, o pescoço, outra vez a boca, percorrendo-se com as mãos em toques e carícias, renovando a geografia de seu matrimônio, desesperado-se por confirmá-lo, chamando-se em murmúrios, expressando o desejo com palavras sem sentido, ao meio pronunciar. Quando a içou pelas nádegas até a mesa, ela se recolheu as saias por diante, cega de ansiedade pela consumação dessa força que nascia entre ambos, porque ele lhe entregasse, perdesse-se nela, no calor sensorial da paixão, por que voltasse a lhe pertencer.

Não foi assim, já que ele não afastou seu tonelete para o flanco. Em troca a manteve abraçada, tão estreitamente que ela logo que podia respirar, com a bochecha quente apertada contra a sua, duro e tenso o corpo, tão tenso que se estremecia de necessidade.

— Aeneas?

Só escutou um som de profundas inspirações contra seu ouvido. Cada uma delas impulsionava contra ela o peito de seu marido.

— Aeneas, o que acontece? — Beijou-lhe o lóbulo. — Te desejo tanto...

— Sei — disse ele com voz rouca, e seu fôlego lhe moveu o cabelo. Logo foi para trás sem soltá-la, com os quadris ainda apertados entre suas coxas. — Mas não quero satisfazer minha necessidade. — Seus olhos reluziam negros como uma noite sem lua. — Não com as sobras de outro homem.

Anne demorou um segundo breve em captar o que ele dizia. Plantou-lhe as mãos nos ombros para empurrá-lo para trás, longe dela, e elevou um braço para lhe cruzar a cara com uma sonora bofetada. Sua potência fez que a cabeça do chefe se torcesse para um lado e na palma ficou uma feroz ardência.

— Jessie! —uivou, enquanto descia da mesa com um salto. — Will, Donald!

O encarregado de montar guarda na casa essa noite era Donald Fraser; por isso foi o primeiro em entrar na estadia, com a pistola em uma mão e a espada na outra. Jessie e Will o seguiam de perto.

— Não vi a ninguém — disse o ferreiro, alarmado. — Onde estão?

— Quero que encerrem ao capitão Macintosh! — exigiu ela.  — Agora!

— Dè?*, ao chefe?

— Ao prisioneiro —corrigiu ela, seca. Não podia olhar ao Aeneas, pois pressentia que ele mostraria essa meio sorriso que a punha furiosa. Se a via, a humilhação lhe obrigaria a lhe pegar um tiro. — Levem a porão — ordenou. — Coloque na adega para que possa beber até arrebentar.

 

À manhã seguinte, quando Elizabeth baixou precipitadamente a escada, sua meio-irmã já estava no salão, vestida para sair, com a espada e o punhal aos flancos.

— O que é tudo isto? — perguntou a moça com um sorriso. — Acaso tiveste que brigar para lhe tirar isso de cima?

O comentário não pareceu lhe fazer muita graça a Anne

— Vou ao Invernes. dei instruções ao Jessie e ao guarda. As tuas são os fim dos passeios.

— Espera um momento. Parece que me perdi algo. — Elizabeth jogou uma olhada a seu redor. — Onde está Aeneas? — Logo pôs-se a rir. — Ainda dorme? Tão esgotado está?

— Muito cômico — repôs sua irmã. — Estava jogando conosco, Elizabeth. Com as dois. Está encerrado no porão, e ali vai ficar.

Anne jogou mão a sua capa com propósito evidente de partir.

— Não, espera — exclamou Elizabeth. — Irei contigo. — E correu escada acima para colocar roupa de viagem.

Enquanto a esperava, Anne fez que Will desencilhasse Pibroch e enganchasse um cavalo à carruagem, pois a viagem seria mais abrigada para sua irmã e cobria o caminho um manto de neve recente, fundida e lamacenta. Embora por fora a via muito proprietária de si, Anne fervia por dentro. A mulher podia rechaçar seu marido se era brutal, bêbado, sujo ou fastidioso, ou simplesmente porque não lhe desejava, mas isto era inaudito. Todo homem honrava a sua esposa; a isso se limitava tudo. Aeneas não podia trocar as coisas para as acomodar a seu mau humor.

Quando Elizabeth se reuniu com ela no carro, Anne já tinha recuperado a fúria que a tinha mantido acordada durante a metade da noite. Colocou detrás dos assentos a bolsa de distintivos para as tropas e partiu para passo veloz. Depois de cinco minutos de patinar no lodo, saltando em buracos e pedras, Elizabeth afrouxou a mandíbula. Os dentes lhe tocavam castanholas ao falar.

—Anne, seria possível ir um pouco mais devagar e que me dissesse o que aconteceu?

Sua irmã, mortificada, deixou de sacudir as rédeas e as recolheu. Estava exigindo muita velocidade ao cavalo e isso era perigoso; nas curvas não só se arriscava ela, mas também sua irmã.

E o contou.

— Mas não pode fazer isso! — exclamou Elizabeth depois de escutar sua explicação.

  As duas reviraram os miolos, mas nenhuma recordava um só caso em que se dissesse que um homem tinha rechaçado deliberadamente a sua esposa. A impotência era tão comum como popular o uisge beatha*; um levava a outra, com tanta segurança como o dia leva de noite, mas esse era o resultado inevitável da bebida e o envelhecimento. Normalmente, se os excessos etílicos deixavam ao marido incapaz de agradar a sua mulher, a esposa frustrada tomava um amante.

— É isso!  —chiou a moça. O cavalo, assustado, desbocou-se e esteve a ponto de tombar o carro, mas Anne conseguiu acalmá-lo.

— Que coisa é o que? — perguntou, uma vez que estiveram novamente a salvo sobre a rota.

— O disse que tinha convertido sua virilidade em uma brincadeira.

— Aeneas dista muito de ser impotente — bufou Anne. — Acredito que a estas alturas tenho muito claro o que há sob a manta de um homem.

  — Sim, mas lhe enfurece parecê-lo. Muitos pensarão que é incapaz de satisfazer a sua esposa.

  — E por isso me castiga?

— Você procurou um amante.

— Tenho direito a satisfazer minhas necessidades e Aeneas não estava comigo. — Anne sentiu que lhe arrepiava o cabelo da nuca. —  Recorda que ele me abandonou!

— Sei, sei — tratou de acalmá-la Elizabeth, — mas ele o vê de outra maneira.

— Acaso há outra maneira de vê-lo?

— Te controle por um momento, Anne. Seu marido pensa que o abandonou sem lhe dar oportunidade alguma de defender-se. Partiu-te à guerra, sem razão, e não retornou a ele.

Ela torceu o gesto, pois havia algo de verdade nisso. Várias vezes tinha querido voltar, mas não tinha resultado possível, por motivos que então tinham sentido, motivos que ele não podia conhecer.

—Já vê. — A garota reforçou o argumento. — Se você não estava em casa, ele não podia comportar-se como um bom marido.

O orgulho viril era terreno perigoso. Tinha-lhe arrebatado a liderança do clã e MacGillivray lhe tinha feito prisioneiro. Entre os dois tinham anulado sua dignidade. Aeneas tinha perdido a chefia do clã, sua primazia como guerreiro e sua reputação como amante sem motivo real. Sem dúvida, detestava que acreditassem incapaz.

— Não sente saudades que fora cruel — compreendeu. — Não fica alternativa que o despeito.

O entusiasmo tinha levantado uma gritaria constante nos arredores do Invernes, pois, a pesar do frio úmido e variável, o mês de março tinha resultado ser menos rigoroso do que auguravam, e além disso, todo mundo sabia que a próxima batalha, talvez a última, teria lugar em algum momento de abril. Havia uma socava aberta no sítio que antes ocupava o odiado Fort George: para completar o que começassem as gente da cidade, os jacobitas o tinham feito saltar pelos ares.

As duas irmãs encontraram ao MacGillivray distribuindo a seus homens em acampamentos ao redor da praça. Elizabeth desembarcou da carruagem para correr para ele.

— MacGillivray! — Assim que ele viu quem lhe chamava, conseguiu sua atenção e seus braços abertos. — sentíamos sua falta. — E ao ouvido — Eu sim, ao menos.

Tinha-lhe colocado os braços em torno do pescoço e o beijou na bochecha e na boca, mas assim que ele viu a Anne, que esperava mais atrás, os abraços e os beijos perderam qualquer sentido. Os dois permaneceram imóveis, olhando-se, enquanto Elizabeth desenredava os braços e dava um passo atrás.

— Pode levar essa nota à tia viúva? —perguntou Anne a sua irmã.

— É que quero ficar aqui.

— E eu quero conversar em privado com meu comandante e chefe.

—Temas militares? —insistiu a garota.

— Agarra o carro e vá.

Enquanto ela se afastava, rebolando exageradamente, Anne avaliou ao MacGillivray. Se tinha plantado em posição de firmes e agora não a olhava.

— Não pode me deixar de qualquer jeito, Alexander.

— Servirei-te até a morte, bem sabe, mas estou em dívida com o Aeneas.

— Não pode lhe dever minha pessoa. Eu sou minha própria proprietária.

— Minha vida. Devo-lhe a vida.

— Não compreendo. Agarrou-o prisioneiro.

Agora ele a olhou aos olhos, porque queria lhe fazer compreender.

— Poderia me haver matado se tivesse querido.

Olhou-lhe o braço. Aquele dia, ao lhe entregar ao Aeneas, fazia uma careta de dor por causa de uma ferida.

— Foi ele quem te feriu?

— Já cicatrizou, embora primeiro tratou de que eu lhe matasse.

— Reclamou-te a vida?

— Não reclamou nada; eu a ofereci, e ele não quis agarrá-la.

Anne estalou.

— E por isso humilha a ambos!

—Teria sido melhor morrer — admitiu MacGillivray, mas não pôde conter um sorriso.

Aeneas não teria podido matá-lo, como tampouco ele teria podido matar ao Aeneas, mas agora tinham ajustado contas entre os dois e Anne teria que resolver o resto.

— Deveria mantê-lo encerrado nesse porão até que se apodrecesse.

— Encerraste-o na adega? — MacGillivray sacudiu a cabeça, muito sorridente. — Que castigo mais horrível para qualquer homem!

Anne pôs-se a rir. Não havia maneira de seguir zangada com o ruivo. E ela sabia que para ele era um alívio, quanto menos, saber que Aeneas não compartilhava sua cama.

— A minha volta farei encadear — resolveu ela, novamente séria. — Não podemos estar na mesma habitação. Quando ganharmos a guerra talvez volte para minha casa, ao Invercauld.

A esperança elevou suas chamas no MacGillivray, como se ela tivesse soprado sobre umas brasas moribundas.

— Se te partir do Moy Hall, vêem ao Dunmaglas.

 Anne não podia prometer-lhe isso, pois na noite anterior tinha demonstrado que entre ela e Aeneas ainda existia uma paixão potente, o bastante forte para quebrá-los a ambos e seguiriam ligados até que acabasse o rancor.

— Isto não se acabou — respondeu. — Não poderei estar contigo enquanto não tenha passado. Outra vez, não.

Ao ver que a esperança se apagava nele queria arrancar  aquilo de dentro, só que não sabia o que era nem como lhe pôr fim. Sentia pelo MacGillivray um amor contente, sem mancha, sem nenhuma das correntes insondáveis que se formavam redemoinhos em torno de Aeneas. Ele não merecia a dor que lhe causava.

— Disse que, enquanto ele vivesse, jamais seria minha.

— Não quero fazer isto. —Anne lhe apoiou uma mão no peito. — Procura a outra a quem amar.

Cobriu-lhe a mão e enlaçou seus dedos com os dela.

—Não quero fazê-lo embora isso é impossível. Meu coração tem vontade própria, igual ao teu. Não podemos mais que lhes seguir até que decidam tocar outra canção.

Ela se esticou para lhe beijar.

 — Faz-me feliz, Alexander, deixemos isso claro, e tem razão: devemos deixar o futuro onde está, mas tenha a certeza de que meu mundo é mais luminoso quando você está nele.

— Pois então faria bem em me cuidar as costas — sorriu ele.

— Farei-o — prometeu Anne. — Esta aventura ainda não terminou.

Falaram de táticas. O príncipe tinha encomendado a defesa do Invernes ao regimento Macintosh. Os outros estavam apostados no Ruthven, ou mais longe, a fim de aprovisionar-se enquanto o resto ocupava outras partes do país. Seriam convocados quando Cumberland saísse do Aberdeen. Se o tempo permitia, em algumas semanas mais tudo teria terminado.

Anne franziu a sobrancelha; não estava muito de acordo com que o exército rebelde se achasse tão espalhado, se as condições impediam um retorno veloz.

— Teremos suficiente força?

Os MacPherson do Cluny ainda estavam no Atholl. Diminuídas as forças do clã Chatton, retidas no Invernes, formariam a vanguarda.

— Os regimentos do Perth e os situados no norte vão necessitar tempo, mas até então podemos evitar ao Cumberland. George não é tolo. Escolherá o melhor momento e o melhor lugar.

Tranquilizada ao ver que tudo estava em ordem, ela se despediu.

— Quando me necessitar, retornarei — lhe assegurou.

— Enviarei-te aviso quando chegar o momento.

Agora que seu vínculo com o MacGillivray estava resolvido, a confiança e o entusiasmo da cidade liberada lhe fizeram contagiosos. Enquanto caminhava pelas ruas rumo à casa da viúva, o povo a saudava agitando a mão, chamava-a, e se detinha conversar com ela. Seguiam tratando-a como a uma heroína e a facilidade com a que tinha dispersado às odiadas tropas do governo, no Moy, fazendo que fugissem do Invernes, aumentava suas expectativas de vitória. Anne tinha ido à cidade com o propósito de pedir ao príncipe que retirasse ao Aeneas de sua custódia, mas o tema perdeu importância uma vez esteve ali, longe da opressão da casa. Não foi uma desilusão inteirar-se de que o líder real tinha saído a inspecionar as tropas com Ou'Sullivan. Nem sequer o mau humor da Elizabeth, por ter sido afastada com um recado, como uma criada, pôde arruinar seu ânimo.

— E como está Aeneas? — perguntou a viúva Macintosh, depois de um afetuoso abraço.

— Bem e fora de perigo — foi a resposta.

— Me alegro. Minha casa está cheia de discussões entre o príncipe e lorde George; não desejaria a ninguém um pouco tão desagradável. Desfruto de do dia em que saem os dois. Agora vêem comer conosco.

Dispôs-se precipitadamente uma boa comida em honra de Anne; o comilão estava cheio de amigos antigos e novos. O preboste e os dignitários do Invernes a cobriram de elogios e convites para que se somasse à câmara de vereadores da cidade, ou para que se unisse a esta ou aquela irmandade. Os oficiais franceses dos Écossais Royaux paqueravam com ela, chamando-a magnifique e nôtre guerrière héroïque. Ali estavam Margaret Johnstone e David Ogilvie, com a Greta Fergusson e sir John, e Robert Nairn, seu companheiro das sessões de liberdade sob palavra, no Edimburgo.

— Quanta razão tinha, Anne — lhe disse, cheio de júbilo, ao saudá-la - se está melhor aqui, nas selvagens e generosas Terras Altas, que lá abaixo, entre esses sasannaich*.

— Me diga, Robert, quem é o afortunado? — riu Anne. E passeou o olhar pelo salão, tratando de adivinhar qual dos pressente teria os favores do jovem.

— Eu — lhe assegurou ele. — Este lugar ferve de guerreiros musculosos e um ou dois políticos que não estão mal de sobremesa.

— Alguma vez te apaixona?

— Cada cinco minutos. — Mas logo ficou sério e acrescentou: — Estou apaixonado, não sabe? Mas, no momento, ele prefere o toque irlandês.

Anne ficou confundida; logo caiu na conta de que no Stirling o príncipe, ébrio e petulante, só escutava a Ou'Sullivan, sem suportar outra companhia nem permitir outro conselho.

Robert voltou a lhe sorrir.

— Se não poder ter a quem amas, ama a quem tem. Não é isso o que fazemos os dois?

Anne refletiu a esse respeito durante a viagem de volta, enquanto o veículo estralava à luz incerta do crepúsculo sob um suave temporal de neve e chuva. Ela se achava sob os efeitos do vinho e os augúrios mais afetuosos de seus bons amigos e Elizabeth se encolhia junto a ela em busca de calor. Amava ao Aeneas? Se o amor se podia medir pelo grau de ira gerada quando o frustrava, sim lhe amava. Aquilo que os ligava parecia duro como o ferro, inevitável, soldado a base de fúria, mas acaso não devia o amor ser amável, tenro e contente, como o era com o MacGillivray, sem desafios nem confrontações? Aeneas não aceitava nem perdoava: exigia de sua união uma entrega absoluta, que Anne lhe entregasse em mente, corpo e alma e já podia ir-se ao demônio. Por duas vezes tinha tido a vida de MacGillivray na palma da mão: no Prestonpans, quando suspeitava que eram amantes, e ao ser capturado, quando já sabia que o eram; tinha-lhe respeitado a vida em ambas as ocasiões. A ela, em troca, não lhe tinha dado nada.

A carruagem saltou sobre outro buraco. Elizabeth, sonolenta, chocou-se contra ela. Anne contemplou a cara juvenil e bonita de sua irmã; queria-a e não duvidava que Elizabeth também lhe tinha carinho, mas não era quão mesmo compartilhavam Aeneas e MacGillivray.

Entre mulheres, a lealdade era uma companheira para os bons tempos, digna de confiança só enquanto não entrasse em conflito com outros desejos. O vínculo era mais estreito entre homens, mais nobre e generoso. Não se exigiam nada, não se criticavam e nunca se davam as costas. Até o Robert Nairn, que amava e desejava ao príncipe, podia lhe servir sem rancor, e lhe amar sem expectativa alguma.

Talvez ela teria podido dar esse amor incondicional a um menino, mas a um homem, não. Aeneas estava muito equivocado, porque não importava que lhe amasse. O que importava em realidade, era que ele amasse a ela.

 

— Não poderíamos torturar, ao menos?

— Cale-se!

Anne agachou mais a cabeça atrás do matagal, e afirmou a pontaria.

— Seria mais divertido que isto. — Elizabeth baixou sua voz até resultar quase inaudível.

Anne disparou seu mosquete. Elizabeth a imitou.

— Siuthad!* Vê! — Ordenou Anne ao setter negro e dourado que a acompanhava. O cão se lançou às águas escuras do lago para cobrar a presa. — derrubamos os dois — disse ela a sua irmã. — Tem boa pontaria.

— Homem! Adivinha quem me ensinou. —A garota se desenredou da maleza.

— Pensava que teria esquecido. por que não caça mais frequentemente?

— Porque eu não gosto de fazer coisas de homens. — Estava-se tirando folhas e ramos da roupa e o cabelo. — Prefiro fazer coisas de garota.

Anne pôs-se a rir ao tempo que recolhia o primeiro ganso da boca do cachorro perdigueiro.

— Pois sim — disse: — coisas de garota, como torturar prisioneiros? — Ofereceu-lhe a pesada ave pelo pescoço lasso e escorregadio.

Elizabeth a colheu com a cara franzida de asco.

— Coisas de garota, como não me manchar toda de sangue, baba, lodo e plumas empapadas. Por que não trouxemos Will ou Lachlan para que façam isto?

— Estão atarefados.

Anne recebeu do cão a segunda ave. O trio ficou em marcha para a casa.

— Ao menos a tortura seria uma mudança — disse Elizabeth. — Leva aí abaixo mais de uma semana. O pobre deve estar congelando-se.

— Já se desculpou?

— Ante quem? Ante os muros?

— Poderia dizer-lhe a Jessie — insistiu a irmã maior. — Ela vai três vezes ao dia a lhe levar comida. Estou segura de que conversam.

— Não teremos que depenar estas coisas, ou sim? — Elizabeth não recebeu resposta. — Venha, Anne! — Nada ainda. — Vale, Jessie está atarefada, mas no imóvel há muita gente mais.

—A festa é para eles. trata-se justamente de que não façam este trabalho.

—Tem que haver alguém que não vá combater — insistiu a garota, — alguém que não esteja convidado.

— Em efeito, há um. Está no porão.

— Acredito que irei fazer lhe companhia.

Continuaram caminhando; o cão ofegava junto a elas, com a língua pendurando fora e de vez em quando se detinha sacudir a água da pelagem e as salpicava.

— Espera um momento. — Elizabeth se deteve. — Não penso estripar isto. — Sua irmã não se deteve. — Não quero — insistiu. — Anne!

Quinze minutos mais tarde arrancou as vísceras do ganso com um ruído suave e líquido, e com a cara crispada por um gesto de repugnância antes de separar com cuidado a moela, o coração e o fígado, pois deviam guisá-los depois. Levou fora o resto daquela massa viscosa e sanguinolenta e a jogou ao cão, que aguardava com paciência junto à porta da cozinha. Essa era sua recompensa: uma mudança com respeito a sua habitual dieta de porridge; o animal o devorou tudo depressa e logo voltou para estábulo, onde vivia e dormia.

— Sua mãe se orgulharia de ti — ponderou Anne enquanto lavava o interior de seu ganso já estripado; logo lhe atou as patas para pendurá-lo do gancho da despensa.

— Deveria lhe escrever e lhe contar o muito que me estou divertindo — replicou Elizabeth, com uma careta. — Não tínhamos que depená-los também?

— Amanhã. Conviria deixá-los pendurados um tempo mais, mas a necessidade manda.

— Que grata perspectiva — gemeu a garota. — Mãos doloridas, dedos inflamados, plumas no nariz e pelas costas.

— Mais cheio para travesseiros. Se quiser te casar, deve pensar como uma esposa. Quem não esbanja não passa necessidade.

— Tento-o — replicou Elizabeth. — Não se tem que esbanjar um bom cheio, por não falar de certas necessidades ou de algum marido de recâmbio.

Anne suspirou. Não havia maneira de sossegar a essa irmã.

— Não posso fazer que me entregue.

— Sei. Não é justo. Nós temos os apetites e os homens, o meio de satisfazê-los. É que os deuses são perversos ou o que?

— Peraltas — apontou Anne. — A mulher quer fazer outra vez o amor. Os homens querem dormir. Se pudessem dar nós gostamos, morreriam de esgotamento em uma semana.

— Gu sealladh orm!* — exclamou Elizabeth. — Sabe de algum que durasse uma semana?

As duas puseram-se a rir. Anne encheu dois copos de cerveja.

— De qualquer maneira — prosseguiu com tom mais sério, — Aeneas tem o desejo, bastaria com que se submetesse a ele. Se não o faz é só por rancor. Assim é que seguirá no porão até que troque de humor.

— Um pouquinho de tortura poderia lhe ajudar — insistiu sua irmã.

O banquete ia ter lugar dentro de dois dias, mas antes suportaram duas jornadas de duro trabalho: fazer girar os cordeiros no espeto do assador; preencher os gansos de aveia e castanhas doces; apurar todo o conteúdo da despensa e o pomar; fazer provisão de uma generosa provisão de cerveja e de gaitas de fole. Era a festa de despedida para quem se tinha agasalhado entre eles e retornariam a suas próprias unidades ao dia seguinte, e para seus próprios guerreiros, que agora se reuniriam com o MacGillivray, depois de ter trabalhado cada um em sua casa.

Acudiram todos quantos estavam em condições de caminhar e inclusive alguns que podiam ser levados em volandas. Moy Hall se converteu esse dia em um hervidero de vida. Havia braseiros em volta do pátio cheios de turfa acesa. A ordem do dia era cantar, dançar, beber, comer e contar façanhas incríveis. Anne e Elizabeth colocaram aventais para servir. Jessie teria devido atuar como convidada, mas se negou em redondo e se armou com uma bandeja para ajudar. Will, face aos constantes desdéns de sua noiva, trinchou o cordeiro. Era um moço tranquilo, de pouco falar, e sua juvenil devoção comovia a Anne.

—lhe dê tempo — lhe disse quando lhe surpreendeu olhando ao Jessie como embevecido. — Ela necessitará a alguém em quem apoiar-se quando se aproximar o nascimento do bebê.

— O que precisará é um homem —se lamentou ele. — Não a mim.

A velha Meg tinha vindo com seu novo companheiro, o sapateiro sasannach*. Duff se adaptou bem à vida montanhesa e agora dançava melhor.

— Antes não sabia para que serviam os pés — confessou a Anne enquanto esta enchia o copo.

«E não só os pés», pensou ela, sorrindo para si ao ver o brio que ele tinha posto no passo de seu casal. Meg, agora cinquentona, tinha perdido a seu marido e a dois filhos varões na última sublevação, trinta anos atrás. Ewan tinha ocupado o lugar daqueles filhos. Meg tinha muito que cobrar-se. E era um gozo ver que também achava sentimentos mais quentes em seu coração.

Anne voltou a encher seu próprio copo de cerveja e foi conversar com o MacBean e sua esposa, cuja cabana estava acima, no Drumossie, perto do Culloden House, e ela queria saber se ainda necessitavam os pastos adicionais.

— Este inverno não — disse o ancião. — vendemos alguns animais ao exército.

— Vendi-as eu — o corrigiu sua mulher. — Eram muito trabalho para mim, enquanto ele pulava por aí, como se tivesse o sangue jovem.

— O sangue sempre é jovem — aduziu ele, piscando um olho a Anne. — O que se murcha é o músculo, se não lhe dá uso.

Sua esposa lhe deu uma cotovelada nas costelas.

— Anda, que te vi essa piscada. — Logo agarrou a Anne pelo braço. — Não te deixe enganar, que ultimamente é muito ruído e poucas nozes. — E se voltou novamente para o MacBean. — Se tiver ânimo para lutar e piscar o olho, suponho que terá ânimo para dançar.

Os dois se deram a volta para ir mover os pés entre os outros bailarinos. Batiam os tambores, ululavam as gaitas de fole, os pés golpeavam o chão. A fumaça dos braseiros se ondulava entre os corpos formados redemoinhos. Um moço maneta passou lançando gritos de júbilo, em tanto girava ao compasso do reel. Era Robbie Uivador. Anne se aproximou de falar com ele.

— Robbie! — exclamou, encantada de lhe ver tão bem. — Segue sendo muito bom bailarino.

— Com alguns passos, nem tanto — disse ele, corajoso, — mas posso fazê-los quase todos sem cair. Divertido é quando me esqueço e estico o braço que não tenho para agarrar algo ou para abrir uma porta; acabo chocando contra ela, pois não tenho com o que empurrar.

— Tornou a ver Desavergonhado?

— Não pode voltar. — A tristeza nublou a cara do moço, pelo resto alegre. — Me cedeu sua liberdade sob palavra, e agora está com lorde Louden e os ingleses.

Anne o fez girar para lhe dar um abraço.

— Não importa — lhe tranquilizou. — A sublevação pode terminar em pouco tempo e então ele voltará para casa.

— Mostrarei-lhe que já aprendi outra vez a escrever meu nome... Com a outra mão, claro. — O moço sorriu.

Anne lhe fez formar casal de baile com Cath e continuou servindo. Donald Fraser e Lachlan vieram em busca de Anne para resolver uma disputa.

— Esta vez meu moço quer vir comigo — começou o pai.

— Devo-lhes isso por me haver tirado do campo de batalha — explicou Lachlan.

— Foi seu pai quem te salvou no Prestonpans — lhe recordou Anne, — e não o fez como guerreiro, mas sim como pai. Não quero que vão dois membros de uma mesma família, sabe, e tampouco estou disposta a arriscar a meus dois ferreiros.

— Mas a ferida de minhas costas cicatrizou às mil maravilhas — insistiu o moço, teimoso—, e minha mãe diz que devo ir.

Anne refletiu. Màiri tinha direito a decidir se seus homens combateriam ou não.

— Pois bem, ficarão aqui até que nos convoquem as gaitas de fole e os tambores e voltarão depois da primeira batalha. Se fizer falta seguir combatendo, fará-o só um de vós. De acordo?

— De acordo. — O menino lhe estreitou a mão, como se lhe agradecesse um tesouro. — E esta vez serei eu quem cuida de meu pai.

— Não esquecerei isto. — Fraser também lhe estreitou a mão. — Será uma alegria formar com ele em vez de fazê-lo contra ele.

A festa se prolongou durante toda a tarde e durou até bem entrada a noite; então a celebração se converteu em despedida e começaram as canções. Dirigia-as a esposa do velho MacBean, que conservava uma voz muito clara apesar de seus anos. Terminaram com um emocionado coro do hino rebelde, The auld Stuarts back again, antes de acender tochas de trapo nos braseiros moribundos e iniciar a volta a casa.

Anne enviou ao Jessie à cama com estritas instruções de deixar a limpeza para a manhã seguinte, e logo ordenou ao Will que se encarregasse do primeiro turno de guarda antes de sentar-se a descansar junto ao fogo; passou-se o dia bebendo cerveja e estava ébria, mas a visão de uma garrafa de vinho aberta junto ao fogo do lar era uma grata imagem. Elizabeth tinha sido considerada ao lhe deixar uma e os copos, embora de sua irmã não havia sinais. Anne se serviu uma taça, colocou o atiçador entre as chamas e o retirou quando esteve ao vermelho; depois o afundou no vinho até que o líquido de cor rubi começou a vaiar. Então se sentou a bebê-lo, com os pés na banqueta. Tinha sido um bom dia, uma festa estupenda e uma boa despedida.

Tinha bebido a metade da segunda taça quando Elizabeth entrou do corredor com uns papéis na mão.

— OH — exclamou, sobressaltada, — pensava que ainda estaria te despedindo dos convidados.

— Foram-se todos. Gosta de um pouco de vinho?

— Eu me servirei. — A garota deixou os papéis na mesa e foi sentar se junto ao fogo.

— O que é todo isso? — perguntou Anne. — E onde estava? — Só então reparou no sítio por onde tinha entrado sua irmã. — estiveste no porão? Elizabeth! — Tratava de falar em tom sério, mas lhe custava dirigir a língua sem que as palavras lhe surgissem fanhosas. — estiveste torturando a meu marido?

—Tentei-o — a outra pôs cara de pedir perdão, — mas não se deixou.

 — Isso já sabíamos! — exclamou a irmã maior entre risadas, cambaleando-se um pouco.

— Em realidade lhe levei algo de comer. Como Jessie estava atarefada com os convidados...

— É muito amável, Elizabeth. Por isso te quero tanto. — inclinou-se para diante e tratou de falar mais pausadamente. — Como está?

— Bastante alegre. Recorda que está na adega. — Encheu sua própria taça e completou a de Anne. — Também tratei que lhe convencer de que assinasse um documento de liberdade sob palavra.

— Por que?

— Porque assim poderia subir e estar conosco. Já não seria prisioneiro.

— E o que há dito? — Anne se cambaleou, curiosa.

— Que não te daria essa satisfação.

Riu estrondosamente.

— Isso também sabíamos! — levantou-se e andou com passos inseguros. — Anda, lhe diga que suba a minha habitação.

— Para que? O que vais fazer?

— lhe aplicar uma dose dessa tortura que propunha. —Recolheu sua taça e a garrafa. — Lhe exigirei uma satisfação.

— Vai bater em duelo com ele? — inquiriu a garota, alarmada.

—Não, não, não. — Sua irmã sacudiu a cabeça. — Farei que me satisfaça.

— Já sabe que não pode.

— Direi-lhe que é sua obrigação. Está em jogo sua honra como marido e como homem. Direi-lhe que, se não me agradar, amanhã tomarei dois amantes e me tirarei isso do meio.

— Não me parece uma boa idéia.

Anne estava decidida e não a escutou.

— Tenho as pistolas junto à cama — disse. — Will pode sentar-se aqui embaixo. Dê-lhe a chave do porão depois de que suba Aeneas; assim poderá lhe encerrar outra vez se não me agradar.

E dito isto, subiu a escada com notável precaução, graças a qual a subiu sem derramar o vinho apesar de que tropeçou duas vezes.

Elizabeth a seguiu com a vista, acossada por sua consciência. Anne não teria tomado uma decisão semelhante se tivesse estado sóbria, e agora tudo podia sair terrivelmente mal. Possivelmente se ela se limitava a esperar ali, bebendo sua própria taça, sua irmã o esqueceria tudo e dormiria, mas bem pensado o assunto, acaso a bebida não concedia as licenças que negava o sentido comum? Essa podia ser a melhor oportunidade, possivelmente a única, de unir novamente aos dois, antes que se separassem de modo definitivo à conclusão da guerra.

Era uma oportunidade importante para que MacGillivray descobrisse que não precisava seguir esperando a uma mulher que jamais seria do todo dela. Entristeceria-se, certamente, mas ela se ocuparia de consolá-lo, com o qual seria uma pena um pouco mais doce. Bastou-lhe a perspectiva de consolar ao MacGillivray, Elizabeth bebeu um comprido gole de vinho, levantou-se, tirou a chave do bolso e, depois de acomodá-las saias, retornou ao porão.

 

  O quarto estava aquecido pelo fogo. Segurou um graveto na mão, cuja chama oscilava a consequência do tremor do pulso de Anne. Anne as compôs para acender as velas. Desabotoar o vestido e tirar o espartilho foi toda uma proeza, mas já estava em camisa, de pé junto ao penteadeira, quando se ouviu um toque na porta. Recolheu sua taça de vinho para beber um gole.

— Passa — disse com toda a calma possível.

Aeneas abriu a porta e entrou na habitação. Se lhe surpreendeu vê-la com tão pouca roupa, não o demonstrou. Tampouco parecia, por certo, tão alegre como Elizabeth tinha insinuado.

— Há-me dito sua irmã que desejava — disse.

— Em efeito. —Ela o olhou cara a cara, com a taça apertada na mão. — Fecha a porta.

Sentia a cabeça algo turva, mas estava mais que consciente da corporeidade de Aeneas, de sua virilidade tensa e musculosa. Era como se na habitação tivesse entrado uma presença animal; havia um aroma, uma forma, uma energia diferentes, que criavam certo comichão de medo. Como toda besta selvagem, ele podia fazer algo inesperado, perigoso, algo que ela não pudesse dirigir. Quem pensava que homem e mulher eram o mesmo tipo de besta estavam muito equivocados. Nenhuma mulher teria podido alarmá-la como aquele homem.

— E bem, o que desejava? — insistiu-a ele, uma vez fechada a porta.

Anne piscou para concentrar-se em obter que a língua modulasse as palavras. Esta vez não permitiria que ele estivesse a cargo e assim o diria.

— É meu marido e meu prisioneiro — esclareceu.

Ele inclinou a cabeça e um toque de diversão lhe iluminou os olhos. Com que se tinha precavido de que ela estava um pouco bêbada! Isso não trocava as coisas. Agradaria-a e sairia dessa habitação sem o sabor da impotência.

— Também é capitão — lhe recordou.

— Vais fazer valer sua fila superiora? — Nos olhos do Aeneas aumentava a diversão.

— Limito-me a assinalar que está obrigado a acatar minhas ordens em vários aspectos.

— É verdade.

— E se te peço algo, deve cumprir. — Saberia ele quão atrativo estava quando a olhava com tanta seriedade, o sensual que lhe via com o cabelo cansado contra a cara, o muito que lhe afrouxava as pernas?

— Não tem mais que pedir — replicou ele, cuja voz se agravou um tom.

—Pois então exijo que me dê prazer. — Preparado, já o havia dito. — Agora —acrescentou, para que ficasse mais claro.

Talvez houve nos olhos do Aeneas um movimento imperceptível, mas seu olhar não vacilou, nem ele tampouco: aproximou-se até deter-se frente a ela e lhe retirou a taça de vinho da mão para depositá-la em cima do penteadeira. Um estremecimento de medo percorreu a Anne, que entreabriu os lábios com a respiração acelerada. Que vulnerável se sentia de repente à brincadeira! Ele levantou as mãos até seus ombros e desatou as cintas que sujeitavam a camisa.

O objeto se deslizou ao longo de seu corpo com um muito leve roce até amontoar-se no chão ao redor de seus pés. Então, ele rompeu o contato visual para baixar a vista a seus peitos nus, ao ventre, às coxas. Pareceu transcorrer muito tempo antes que lhe sustentasse novamente o olhar. Enquanto o fazia se soltou o cinturão e a manta caiu por seu próprio peso, deixando-o frente a ela igualmente nu, salvo pela larga camisa de linho.

— O prazer, coronel — disse, — será meu.

Elevou-a em braços, com tanta soltura e suavidade como se fora uma mariposa, para levar a à cama. Quase antes que ela reparasse na fria seda da colcha que se esquentava sob sua pele, Aeneas se tinha tirado a camisa e estava escarranchado sobre ela, com os braços apoiados junto a seus ombros e sentiu de repente seu peso na cama, ela se encontrou aprisionada entre a força desses braços, com a pele enfraquecida pelo calor do sangue fluindo por suas veias. Os seios se pegaram ao peito de seu marido enquanto os lábios de ambos se encontravam e as línguas dos dois procuravam com cobiça na boca do outro.

Desapareceu o perigo do rechaço. Aquele era seu leito conjugal e a ele tinha retornado toda a intimidade de antigamente: familiar, erótica, segura. Com quanta desespero o desejava agora, arqueada contra sua força e sua dureza para lhe devolver os beijos, os murmúrios de amor e desejo! Procurou com as mãos os músculos tensos de seus braços, das costas, das nádegas, só para reconhecê-lo de novo. Beijou-o na boca, nos olhos, nas orelhas, na curva redonda do ombro; respirou seu aroma almiscarado, sepultou a cara na tibieza do pescoço.

A voz grave e escura do Aeneas lhe falava com ouvido de amor e desejo, da dor de querer, com seu fôlego quente contra a pele, e sua boca e suas mãos tocando-a e lhe acariciando a cara, os braços e os peitos. Quando ela procurou sua ereção e a acariciou, Aeneas se afastou para lhe brindar agradar em primeiro término, assim que ela se abandonou às sensações. Se houve uma parte de seu corpo que ele não acariciasse, que não cobrisse de beijos ou mordiscasse com ligeireza, ela não teria podido dizer qual era. Tratava-se de reaprender o aprendido, de redescobrir a tortura e o êxtase do amor. Resultava estranho estar-se tão passiva, permitir a adoração de um homem por sua mulher. Movia-se quando ele a movia, girava-se quando ele a girava, separou as coxas quando ele aplicou entre eles a mais leve pressão.

Aeneas deslizou os dedos dentro e a acariciou até deixá-la tão úmida que ela temeu alcançar o orgasmo de puro desejo, mas logo ele aproximou a cabeça entre suas coxas para saboreá-la com a língua, provocando-a com infinita suavidade. Atormentava-a sem esforço aparente e só se afastava para lhe beijar o ventre, para lamber e lhe acariciar as coxas, e tornava logo a acariciá-la com a língua, tão meigamente que ela, meio enlouquecida, perdeu o tino; uma maré de tensão sensorial estalou em seu corpo, sacudindo e alagando sua carne estremecida: clamou por ele, uma e outra vez, em tanto caía do bordo do mundo a esse lugar onde nada existe, salvo a sensação. Ele tinha trocado de posição para abraçá-la, com a cara apertada contra seu ventre e seus braços a estreitavam com força.

— Anne, a ghràidh* — o ouviu murmurar enquanto recuperava a respiração em fundos e lentos ofegos.

Com o fôlego voltou a consciência da pele, a carne e os membros, o anseia do desejo na vulva, a necessidade de estar cheia dele, agora mais que nunca, unida a ele, pronta para estar com ele como esposa e mulher. Ele se virou na cama para ficar ao seu lado e lhe deslizou uma palma quente pela pele estremecida, para suavizar os tremores de sua carne. Os olhos escuros refulgiam fundos e sérios à luz das velas.

— Agora que já está agradada — ronronou com voz suave e densa, — tenho algo que te pedir.

Como podia pensar que fora necessário pedir, se ela ardia pelo ter dentro, por sentir os embates de sua dura virilidade, por lhe possuir como marido e que ele lhe brindasse inteiramente, tal como ela se perdeu ante ele? Elevou a mão para apoiar-lhe na nuca e baixá-lo para ela.

— OH, meu amor — disse, apertando-se mais, com a boca contra seu ombro, — o que queira de mim. — E lhe deslizou a mão pelo peito, para baixo, contra o estremecimento que subia pelo abdômen de Aeneas, deixando que seus dedos encontrassem o pênis duro e torcido. Se ele queria render-se a seu contato, o sexo podia esperar. Excitar-lhe primeiro suporia um prazer mais profundo. — Faremos o amor como quer. — Roçou com os lábios aquela pele acalorada. — Faria algo por te agradar.

O se levantou da cama e ficou a camisa pela cabeça.

— Nesse caso — disse, energicamente e sem emoção alguma, — deixei em meu estudo algumas cartas que eu gostaria de reler.

Ela teve a certeza de ter ficado boquiaberta como uma néscia, pois o estava olhando com incredulidade. Logo se levantou de um salto, agarrou a colcha de seda para cobrir sua nudez e saiu em marcha para a porta, que abriu de par em par.

— Will! Will! — uivou para a planta baixa. Girou para seu marido, que a olhava com essa sorrisinho seu tão irritante — Como te atreve!

— Cumprirá com sua palavra, então? — inquiriu ele, arqueando uma sobrancelha.

Will entrou precipitadamente.

— Algum problema? — perguntou, ao ver que ali só estavam os dois.

— Certamente que sim! — espetou-lhe Anne. —Leve o capitão de novo ao porão. Imediatamente!

O moço a olhou com ar confundido. Anne, sem poder conter-se, lançou-se para as pistolas que guardava na gaveta de sua mesinha.

— Não, não te incomode — gritou. — O matarei aqui mesmo. — E girou em redondo com uma pistola na mão.

— Será melhor que se vá, chefe — lhe insistiu Will enquanto puxava Aeneas pela camisa. Ao sair ele se agachou para recolher sua manta.

Enquanto eles desapareciam pela porta, Anne manteve a pistola apontada com mão trêmula, consciente de que se disparava, bem podia ferir quem não devia. Correu de novo à porta.

— E traz o Donald! — gritou atrás deles. — Que se levante da cama e venha para ver-me ao momento.

Depois de fechar com uma portada, arrojou a pistola à cama, arrojou-se ela também e rompeu a chorar.

Elizabeth chegou antes que Donald, pois os gritos a tinham despertado, e envolveu a sua irmã entre os braços, tratando de consolá-la.

— Humilha-me —s e lamentou Anne, entre lágrimas de frustração. — Não faz mais que me denegrir.

 Só no porão, Aeneas se envolveu em sua manta e se sentou pesadamente no beliche onde dormia. Logo, com um gemido, escondeu a cabeça entre as mãos. Doíam-lhe os testículo, mas ainda pior era a dor de seu coração. Que demônios tinha feito? O frio lhe fez cruzar os braços contra o corpo e se balançou para acalmar a dor da virilha. Mu idiotato! Era um néscio por deixar que o orgulho lhe tivesse induzido a isso, quando era o último que seu corpo ou seus sentimentos desejavam fazer. Por duas vezes já, por duas vezes, viu-se impulsionado a causar dor em vez de recuperar o amor.

Levantou-se para passear. A não ser porque estava tão louco de amor por ela, a não ser porque a desejava tanto, teria sido muito fácil limitar-se a dormir com ela, e esquecer o resto, mas queria lhe fazer saber em carnes próprias qual era o sabor do rechaço, quando seu próprio marido te rasgasse o coração, o que se sentia quando sua união se convertia na moeda corrente da luxúria. Que estúpido era! Deu uma patada a estante dos vinhos e chiou entre o repico das garrafas, pois se tinha machucado a ponta do pé. Agora se passeava coxeando e fazendo caretas de dor. Muito imbecil!

A porta de cima se abriu. A luz e um par de pés desceram pela escada. Ele teve a esperança de que fora Anne; possivelmente tivesse tempo para lhe pedir perdão antes de que lhe disparasse. Assim não teria que viver ignorando que ele teria querido voltar atrás esses minutos para atuar de uma maneira muito diferente. Esperava que lhe disparasse à cabeça para lhe voar os miolos. Mas quem baixava era Donald, carregado de ferramentas e com um abajur.

—Tenho que te encadear — explicou. — Com uma cadeia o bastante larga como para que possa chegar a bacia, mas o bastante curta como para que não chegue ao vinho. — Deixou no chão o abajur e as ferramentas. — O sinto, chefe. Não foi minha idéia. Suponho que, com o tempo, ela entrará em razão.

— Tenho-o, tenho-o!

Cumberland soltou a faca e, depois de limpá-la queixo com um guardanapo, voltou-se para fulminar com o olhar a quem lhe interrompia. Quem entrava apressadamente através da abertura da tenda era o general Hawley.

— Se o que têm é algum cancro que lhes tenham contagiado as rameiras que nos seguem — bramou o duque, — deveriam pensá-lo melhor antes de interromper meu café da manhã por isso.

As tropas do duque tinham saído do Aberdeen e partiam para o Invernes.

— Não, não. — Hawley estava tão exaltado que não captou a insinuação. — Tenho o que estavam procurando. —Desenrolou contra a mesa o mapa que trazia e em sua ansiedade apartou a um lado o prato do Cumberland. — É aqui — disse, cravando um dedo contra o papel.

O duque estudou a cartografia com gesto carrancudo.

— É um brejo e a bastante altura.

— Sim! — Conveio o general, enquanto seguia dando golpezinhos com o dedo. — E está cercado por estas muretas aqui e também aqui. E, além disso, por este lado é, mais que úmido, pantanoso.

— Por ende, se nos instalarmos aqui... — Cumberland começava a ver a intenção de seu subordinado. — Me Digam, é o bastante firme para suportar o peso dos canhões? Precisamos poder usar a artilharia.

— É seco nesta zona daqui. — Hawley varreu a zona com a mão. Um mendigo maneta, nas cruéis ruas do Aberdeen, tinha-lhe proporcionado a informação; chamava-se Dùghall e jorrava ódio para o clã cujas terras bordeavam o lugar. — E o melhor é que está justo na soleira da bruxa. Essa coronel Anne — cuspiu — terá um observatório privilegiado.

— E isto o obtivestes apertando porcas? —Cumberland lhe olhava, seguro de ter ouvido o repico dos ossos naquela mirrada estrutura. O gozo desse homem era ainda mais detestável que seu rancor.

— Lubrificada com ouro — Se gabou Hawley, — a moeda do engano. — Não tinha pago muito ao mendigo do chivatazo, mas seu novo informante exigia um preço alto. Cravou o índice na zona pantanosa. — Não poderão cruzar isto para atacar. Vos arrumado minha vida.

O duque esticou o guardanapo do pescoço e a jogou na mesa.

— Acredito-lhes — disse. — Não atacarão, por certo. — Sua voz se elevou em um tom iracundo. — Nem George Murray cometeria a estupidez de dispor suas forças como se fossem patos com as asas depenadas para que nós possamos derrubá-los a prazer.

— Ah — Exclamou Hawley, balançando-se sobre os talões. Sua boca se estirou em um sorriso que era como um talho na cara ossuda. — Aí é onde isto fica melhor, cada vez melhor.

— Perdestes o julgamento, senhor? — George Murray cravou no príncipe um olhar fulminante. — Esta zona não serve para os guerreiros montanheses.

No dia anterior, seguros de que Cumberland não estaria longe, tinham abandonado Invernes para instalar-se no Culloden House, cujo proprietário, o velho juiz Forbes, tinha fugido do Invernes com lorde Louden.

— É plaina e limpa, e ambos os flancos ficarão protegidos por estes muros, aqui e aqui —explicou o príncipe, assinalando no mapa os cercos de pedra seca.

— Mas estará cheia de lodo no inverno e não haverá cabo para os pés. — MacGillivray franziu o sobrecenho.

— A tanta altura por cima do nível do mar? — dissentiu Ou'Sullivan.

— Poderíamos derrubar primeiro esses muros de pedra — sugeriu Lovat.

— Ou abri-los — conveio Balmerino.

— E expor nossos flancos? — questionou Ou'Sullivan.

— Estaremos melhor expostos que encaixotados — lhe espetou lorde George; logo se voltou para o príncipe. — Lhes aconselho que desprezem esse cenário como campo de batalha, senhor. Nossas forças do norte necessitam mais tempo para chegar até aqui. Cruzemos o Nairn — lhe propôs, — onde o território nos será mais propício, e se esperarmos um dia mais, as forças do Cluny terão tempo de chegar do sul para reunir-se conosco.

— Sempre aconselham atrasos, lorde George. — O príncipe lhe sorriu. — O último nos custou a cidade de Londres, assim nisto não confiaremos em você. Eu mesmo dirigirei a próxima batalha. Ou'Sullivan escolheu o terreno e eu estou de acordo.

Uma desagradável impressão sacudiu à câmara de vereadores de guerra.

— Graças a lorde George obtivemos a vitória no Prestonpans e no Falkirk — observou Margaret Johnstone.

— Mais oui. — O príncipe lhe dedicou um olhar intenso à dama. — O conselho das mulheres. Escute, lady Ogilvie, que isto adulará sua sensibilidade feminina. Meu primo celebra hoje sua onomástica, que se divirta enquanto possa. Amanhã receberá nosso tardio obséquio de aniversário. — Cravou o índice no mapa. — Combateremos aqui. — E percorreu ao grupo com a vista. — Se tiver que me encontrar sozinho, sem o apoio de minhas tropas, seja, mas amanhã fixaremos aqui nossas posições.

—E poremos fim a um assunto espinhoso — declarou George Murray.

 

Elizabeth se sentou sozinha à mesa para comer as sobras da festa. Pareciam não ter sabor. Aeneas tinha arruinado tudo, fora qual fora sua intenção. Ela tratou de que Jessie lhe desse a chave para baixar ao porão a lhe arreganhar, mas a moça não cedeu esta vez. Anne tinha proibido as visitas a seu marido antes de conciliar por fim o sonho, e também tinha ordenado lhe racionar a comida. Ainda dormia, exausta depois de um dia tão comprido como o de ontem, e com um final tão emocional e perturbador.

Na cozinha soavam vozes iradas. as do Will e Jessie; logo, outra voz masculina. abriu-se a porta e Jessie fez passar ao desconhecido. Era o moço maneta, que tinha passado quase tudo no dia anterior dançando.

— Duvido muito que Anne queira receber ao Robbie, verdade? — perguntou a moça.

— É preciso —insistiu ele. — MacGillivray há dito que era preciso. — Extraiu uma nota de debaixo de seu tartán. — Devo lhe fazer entrega disto.

— Eu me encarregarei, Jessie — repôs Elizabeth. — Vá preparar uma jarra de chá. Eu a levarei acima. — Uma vez que a moça teve saído e fechado a porta, ela olhou à moço. — Me Deixe ver essa nota.

— Devo entregá-la pessoalmente a coroe-a Anne — resistiu ele.

— Não se sente bem. Sou sua irmã. O chefe MacGillivray e eu estamos muito unidos. Se me a entregas, eu a levarei a sua habitação.

Robbie a entregou, mas sem mover-se dali.

— Estão-se congregando no ermo — informou. — Ali os vi.

—Tem que retornar? — MacGillivray podia esperar uma resposta.

— Não, senhorita, já não sirvo para o combate. Amanhã irei olhar quando vierem os ingleses. Ali deve estar Desavergonhado.

Amanhã? Isso significava que a situação era urgente.

— Encarregarei-me de que ela receba esta nota — lhe assegurou Elizabeth. — Anda, vá.

Assim que o jovem se foi, ela rasgou a nota para ler umas breves linhas. MacGillivray queria que Anne se reunisse com ele no Drumossie. O texto se atia a questões da guerra; sobre tudo, preocupava-lhe que o primo de Anne tivesse sido privado de mando. A moça não lhe encontrou o menor sentido ao conteúdo da mensagem, pois os Murray não eram parentes dela, à exceção feita da despedida final, todo um canto à devoção e ao amor. O que tinha Anne que os homens encontravam tão fácil de amar?

Quando Jessie trouxe o chá, Elizabeth se guardou a nota no bolso e subiu com a bandeja. Anne iria reunir se com o MacGillivray, tal como ele pedia, e era provável que ficasse com ele agora que estava em tão maus términos com o Aeneas. Isso acabaria com seu matrimônio e também com as esperanças que Elizabeth tinha de casar-se. Não havia nada que pudesse fazer para trocar as circunstâncias em seu favor e atrair a atenção do MacGillivray. Era muito tarde.

  Anne não dormia. Despertou-se, e detrás lavar-se e vestir-se, dedicou-se a preparar a bagagem.

— OH, chá — exclamou ao ver entrar em sua irmã. — É justamente o que necessito.

Elizabeth deixou a bandeja e encheu uma taça.

— O que faz?

— Parto-me — respondeu Anne. — Aqui já não fica nada. Se não for agora, voltarei-me rancorosa e vingativa.

— Aeneas o tem bem merecido — lhe assegurou a garota.

— Mas eu não. fui uma parva e tomei decisões de tola. O amor não é duro e inflexível, é generoso e cordial. Isso me ensinou isso Alexander.

— Vai se reunir com ele. — Não era uma pergunta.

A irmã maior assentiu.

— Amanhã enviarão minhas coisas ao Dunmaglas. Eu irei reunir-me com minhas tropas. —Deixou a taça para dar um abraço a Elizabeth. — Não perca a ilusão. Haverá alguém para ti, mas ele não foi nunca teu.

— Gosta o bastante. E isto não é justo, porque você não lhe ama.

— Claro que sim, e com um amor mais fácil que o que me inspira Aeneas. Alexander não me dá nada que não seja bom. Mais ainda: aceita de bom grau que eu lhe ame. — Agora Aeneas a tinha afastado e não se deixava querer. O homem que não queria amor, que não se permitia ser vulnerável, que controlava até a intimidade, era um homem que não sabia amar. Anne esfregou o braço de sua irmã. — As duas sofremos porque desejamos a um homem que não nos quer. É um leito muito duro para dormir nele durante muito tempo. —Passeou o olhar pela habitação. — Uf, quantas coisas... Não acabarei até a hora de me deitar.

Abriu a porta para chamar o Jessie. Elizabeth se aproximou da janela. Olhava para o páramo, mas a tanta distância não se via nada. A nota lhe queimava no bolso. por que não a tinha entregue? As coisas não foram trocar muito tanto se sua irmã partia esse mesmo dia como ao seguinte.

— Jessie — ordenou Anne, ao entrar a garota, — necessito que Will monte e vá ao Invernes. Deve retornar antes da noite, já que pela manhã terá que carregar uma carreta.

 Ao Jessie lhe enrugou a cara. Suas mãos retorceram o avental, já tenso contra o ventre inchado.

— Foi-se — repôs. — Se foi a combater.

— Mas Will não é um guerreiro!

— Sei. O hei dito. — A moça rompeu a chorar. — Me há dito que me ia demonstrar o homem que era.

— OH, querida. — Anne a encerrou em um abraço. — Não chore. Amanhã lhe buscarei e lhe enviarei isso de volta.

— De verdade? — Jessie se reanimou.

— Sim. Esse bebê teu não crescerá sem seu pai. Agora bebamos todas uma xícara de chá. Logo começaremos a preparar a bagagem.

— O que necessita de Invernes? — perguntou Elizabeth. Sentia o coração como um peso no peito, já que o páramo estava de caminho.

— Isso pode esperar — disse Anne, enquanto servia mais chá. — É necessário avisar à viúva de que voltará a ser a senhora desta casa, ao menos até que Aeneas encontre a uma mulher com a que possa viver, se é que alguma pode conviver com ele.

— Deixa-nos? —perguntou Jessie.

— Sim, e sem lágrimas, pois já me acabaram.

— Irei eu ao Invernes — Ofereceu Elizabeth. — Não me incomoda. Para falar a verdade, sair será um prazer.

— Cavalgaria até lá, ida e volta, antes da noite?

—Se com isso te ajudo, sim.

Anne a abraçou e a beijou na bochecha.

— É uma bênção — lhe assegurou, — mas não posso permitir que vá sozinha. Tem dezenove anos. — Sorriu. — E estamos em guerra.

— Não me passará nada — insistiu a garota. — Não há mais que seguir a estrada. Não posso me perder.

Assim ficou arrumado. Ela avisaria à viúva de que, a partir da manhã seguinte, Moy Hall ficaria sem ama. Jessie e Anne ficariam a preparar a bagagem. Pela manhã, quando a carreta estivesse carregada, Elizabeth a levaria até o Dunmaglas e logo continuaria até o Invercauld, seu lar. Enquanto isso, Anne retornaria ao exército. Tudo era muito singelo. Só que Elizabeth não tinha a menor intenção de ir ao Invernes. Ficava uma só noite, uma noite em que possivelmente pudesse persuadir ao MacGillivray de que seu futuro não estava junto à Anne, a não ser com ela. Era uma possibilidade remota, mas a única. Acudiria ao Drumossie para reunir-se com ele e, possivelmente, para trocar a vida dos dois.

Não foi difícil lhe encontrar, pois Alexander destacava entre os milhares de homens que estavam em movimento ou instalando-se pelo elevado de sua estatura e por essa labareda de cabelo avermelhado com fios dourados. Estava de pé perto de uma tenda de equipamento; iluminou-lhe o rosto ao vê-la vir, pois por um momento a confundiu com a Anne. Ao ver que não era ela pôs cara de preocupação.

— Ciod e?* Anne não vai vir? — perguntou, até antes que ela tivesse desmontado.

Elizabeth alargou os braços para que a ajudasse a baixar. Talvez tivesse chegado a hora de fazê-la parva. O primeiro pensamento de MacGillivray era sempre para sua irmã; nem sequer tinha a educação de saudá-la.

— Amanhã — respondeu a moça assim que esteve de pé ao seu lado, olhando sua expressão carrancuda. Teria devido preocupar-se com ela, que estava fora de casa, entre exércitos estrangeiros.

— Isso significa que está de acordo com isto?

— por que não?

— Pensava que talvez quisesse que nos retirássemos. — Olhou a seu redor sacudindo a cabeça. — Este não é bom lugar para apresentar batalha, e agora que tiraram o mando de lorde George... — Sua reflexão se apagou no silêncio.

— Mas ela espera que combata por esse príncipe idiota.

Ele se girou bruscamente e a olhou com paixão.

— Isso te há dito?

Elizabeth só tinha querido insinuar o pouco que Anne se preocupava com a vida do MacGillivray.

— Não diz que o príncipe seja idiota — corrigiu. — Essa é minha opinião.

— Mas acredita que devemos combater?

— É obvio. — Elizabeth lhe apoiou uma mão no peito. — Só para isso te quer verdade? Aeneas não quis fazê-lo. —Como podia sua irmã arriscar a um homem assim? Não devia ser um guerreiro, a não ser um amante. — Se me escutasse, eu te retiraria agora mesmo deste campo de batalha, para um lugar mais quente e melhor.

— Não insista com esse oferecimento ou acabará por me convencer — lhe advertiu ele, sorridente.

Elizabeth sentiu um tombo no estômago. Esse era o MacGillivray que ela queria: que ria, brincava e seduzia, que sabia olhá-la com tanto descaramento.

— Pois aceite me insinuou isso, lhe olhando com paquera.

Mas ele havia tornado a ficar sério.

— Se estamos lutando, é precisamente por um lugar melhor — disse. — Para ser um povo livre e viver a nosso desejo. — Apoiou-lhe as mãos nos ombros e agora sorria outra vez. — Para que as mulheres corajosas como você possam oferecer seu amor sem perigo aos homens como eu. — Agarrou-a pelo queixo e se inclinou para lhe dar um beijo leve na boca.

As palavras e os pensamentos fugiram da cabeça da moça. Desde não estar sempre Anne por meio, ele teria podido ser dele.

— Corre atrás de minhas duas irmãs, agora? — interrompeu uma voz, não muito alegre. Era James, seu irmão. Ela tinha esquecido que ele também estaria ali. Acompanhava-lhe o Barão Bàn, seu primo Francis.

— Só lhe dava as obrigado — explicou MacGillivray. — Veio a nos desejar sorte.

— Boa falta nos vai fazer — comentou Francis, enquanto saudava sua prima com outro beijo. — Lorde George tem proposto que ataquemos ao Cumberland em seu acampamento, ao obscurecer.

— Tinha entendido que George tinha perdido apoio — observou o ruivo.

— Diria-se que confia reconquistá-lo antes de manhã e o príncipe está de acordo. Agrada-lhe a idéia de obsequiar ao duque com uma derrota para celebrar seu aniversário. Ou'Sullivan não está muito agradado.

— Com isso me basta — disse MacGillivray. — Iremos à vanguarda. — E chamou o Donald Fraser para lhe ordenar que preparasse ao regimento.

— Deveria estar no Invercauld — insistiu James a Elizabeth. — Ali correria menos perigo.

— Irei a casa amanhã — respondeu ela, mas fez uma careta a suas costas, assim que ele se afastou com o Francis para preparar aos Farquharson para o ataque noturno.

— É um bom conselho — lhe advertiu Alexander. — Cumberland está apenas a dez milhas daqui. Se seu exército se debandar, não te convirá ver os soldados em fuga.

— De maneira que se preocupa por mim? —Elizabeth inclinou a cabeça com paquera e lhe deslizou uma mão pelo braço, lhe olhando aos olhos.

— É obvio que me preocupo.

Era tudo o que ela precisava saber. Deslizou-lhe os braços em volto do corpo, empurrando para trás as armas e o sporran para que não se interpor, e lhe apoiou a cara contra o peito.

— Pois então fica comigo. — Falava com suavidade, grave a voz, estirando-se para cima para lhe roçar o pescoço com os lábios. — Deixa que outros joguem à guerra. —Apertou os quadris contra ele e se moveu contra seu corpo. — Posso te amar melhor do que imagina.

— Não faria a não ser me aproveitar de ti.

— E que mal haveria nisso? — Sentia como se excitava sob o tonelete. — Os dois somos livres de fornicar com quem goste.

A moça baixou a mão para lhe levantar o bordo do tonelete. Desejava-a, sim.

— Vem, trobhad*. — A arrastou ao interior da tenda de equipamento e ordenou ao surpreso encarregado que se largasse.

Assim que estiveram intimamente protegidos pela lona, Elizabeth voltou a pegar-se ao MacGillivray e a levantar-se para beijá-lo na boca, enquanto com a outra mão lhe apartava o tonelete para poder tocá-lo. Segurou-lhe os braços brandamente, mas com firmeza, e a separou de si.

— Não pode aceitar um rechaço? — Perguntou.

— Mas se me deseja!

— Meu corpo é um instrumento do desejo e quer alívio — disse ele, — Mas se me põe uma corda ao pescoço, se me provocar medo ou desejo de fazer mal, obterá a mesma resposta.

— E para isso me trouxeste aqui? Para me dizer que não?

— Não queria te morrer de calor diante de todos — Explicou MacGillivray em voz baixa; logo esboçou um sorriso apenas perceptível. — Quereria pôr a seu irmão a brigar por me obrigar a fornicar contigo? — Lhe aproximou outra vez um passo e alargou uma mão para lhe acariciar o cabelo. — Amo a sua irmã, Elizabeth. Deve compreender o que isso significa.

Afastou-lhe a mão, com os olhos cheios de lágrimas de fúria.

— Pois bem, ela não te ama! — gritou-lhe. — Por isso não veio. Está muito ocupada em deitar-se com seu marido.

O fez um gesto de dor. Ao menos havia certa satisfação em saber que o tinha ferido, mas quando voltou a olhá-la, em seus olhos havia tal desolação que ela teria querido retirar o dito.

— Pois então tudo é como deve ser. — MacGillivray tragou saliva com dificuldade, como se tivesse um pouco entupido na garganta. — Lhe enviaram para que me console?

Ela baixou o olhar a erva lamacenta que lhe rodeava os pés. Sentia vergonha, uma vergonha ardorosa. Negou com a cabeça.

— Anne não sabe que vim.

Alexander deu um passo para a entrada e se deteve ali.

— Volta para seu lar, Elizabeth — repôs, com a voz rouca e quebrada. — E antes de tomar marido, bom... — pigarreou, — antes tem que aprender que os homens são algo mais que fornicadores sem alma.

A lapela da tenda caiu atrás dele como uma bofetada.

Anne ajustava já a correia de seu último baú quando ouviu que Elizabeth subia precipitadamente a escada; a moça entrou em sua própria habitação e fechou a porta. Ela se perguntou se devia ir ver a, mas decidiu que não. Seria mais bondoso lhe deixar acreditar que não tinha adivinhado, não obrigá-la a confessar o rechaço de MacGillivray Se tivesse ocorrido outra coisa, sua irmã teria entrado em saltos em seu quarto para lhe anunciar que acabava de deitar-se com o Alexander. Pobre Elizabeth, como se fora capaz de viajar até o Invernes para fazer um favor a ninguém que não fora ela mesma!

Anne se levantou para inspecionar a habitação. Além de suas roupas de montar, já preparadas para o dia seguinte, o resto já estava metido em gavetas. Não culpava a sua irmã porque ela também tinha sido assim: queria trocar o mundo em vez de adequar-se a ele. No piso de abaixo havia mais caixas. Levava-se tudo o que havia trazido consigo ao casar-se. Ao dia seguinte, quando Aeneas fora liberado, não ficaria nada dela.

Baixou a escada. Agora que Will não estava terei que desencilhar o cavalo da Elizabeth, escová-lo e lhe dar de comer. Fora estava obscurecendo e começava a cair uma úmida nevada de abril.

 

  Essa manhã, Anne despertou à luz cinzenta de uma intensa chuva. Tinha deixado as janelas abertas para que a luz da alvorada despertasse cedo, mas a penumbra significava que já era mais tarde que o que parecia. As cortinas de chuva gelada cruzavam diante da janela como finas e afiadas folhas de aço. Permaneceu deitada um momento com o olhar perdido naqueles dardos hipnóticos; as escamas de neve granulada corriam pelos cristais, acumulavam-se em montões brancos para desaparecer ao cabo de um tempo. Não havia sensação de triunfo algum no que ia fazer, porque só era resultado de uma sombria decisão. O clima era o adequado. O alívio viria quando tudo parecesse e resolvido. Haveria uma primavera atrás desse último estertor do inverno. E traria consigo a vida nova, como devia ser.

Na adega, Aeneas se revolvia, inquieto em sua cama, já que as sombras dos tonéis e as estantes eram companheiras enganosas. Donald Fraser lhe tinha segurado uma corrente no tornozelo direito e outra ao pulso esquerdo. Fazia um bom trabalho: os ferros eram sólidos e ia necessitar um ferreiro para tirar-lhe. Entretanto, embora fossem o bastante fortes para segurá-lo, o peso não chegava a lhe afligir, e os grilhões repicavam cada vez que ele se movia ou se levantava. Eram as cadeias que lhe tinha imposto sua esposa. Durante quanto tempo lhe manteriam assim? Acreditava ter acabado já com sua própria ira. Quando Jessie lhe trouxesse o café da manhã pediria falar com a Anne para desculpar-se e admitir seu engano. Ela o tinha derrotado, não porque lhe encadeasse, mas sim porque não tinha feito algo pior. Anne era fiel a si mesmo e ele a admirava por isso, embora fora o que mais lhe zangava.

No alto do porão, uma clarabóia à altura da terra deixava entrar uma luz débil e cinza. Ainda era cedo.

Mas a luz resultava enganosa e não era logo que parecia. Milhares de montanheses exaustos dormiam nos bosques espaçados e os toscos edifícios próximos a Culloden House. Descansavam debaixo de qualquer casaco que tivessem podido achar. Encolhiam-se nas tendas de equipamento, debaixo das carretas e dos poucos canhões leves. Os que não tinham com o que proteger-se da chuva se encolhiam juntos sob as mantas. MacGillivray tinha escolhido permanecer fora, perto de seus homens.

Posto que conhecessem o território, a noite anterior tinham encabeçado a marcha para o Nairn, até chegar a três quilômetros do acampamento onde dormia Cumberland. O incrível era que a vanguarda do exército não lhes tinha seguido o passo. O tinha tido que deter-se cada instante com lorde George para esperar a que o príncipe e Ou'Sullivan lhes unissem com a retaguarda. A causa do atraso se fez muito tarde para lançar o ataque antes do amanhecer. Viraram para partir novamente para trás. Só à alvorada tinham podido tender-se a dormir. Agora sentia passar passos precipitados. Um membro do clã Cameron lhe sacudiu para despertá-lo.

— Que já vêm! Que já vêm! — avisou o homem. Logo correu para o interior do Culloden House.

MacGillivray se levantou para despertar a seus homens. As gaitas de fole e os tambores começaram a tocar a chamada às armas. Eram as onze.

A esposa do MacBean amassava o pão em uma cabana situada nos confins do pântano. Seu marido rondava detrás, grampeando o aço embainhado. Já farta de suas manobras evasivas, girou em redondo para aterrá-lo pelo tartán e lhe plantou na boca um beijo quente e úmido.

— Anda, vete. Vê, se for necessário — grunhiu, enquanto voltava para sua massa para que não lhe visse o amor nos olhos aquosos. Velho tolo. — me Deixe amassar em paz.

A porta se abriu atrás dela, deixando entrar uma rajada de vento e chuva ao calor da casa.

— Terá que te dar de comer a sua volta.

A porta se fechou atrás dele.

Enquanto tomava o café da manhã, Anne apartou a vista de seu porridge, tratando de ouvir. Com esse tempo nada soava com claridade; a cortina de chuva ensurdecia tudo. Aguçou o ouvido; eram tambores e gaitas de fole, sem dúvida, que soavam um momento e desapareciam. Deviam estar congregando-se para abandonar Invernes. Sua decisão de partir tinha sido oportuna, já que MacGillivray não demoraria em mandar procurá-la.

Entrou Elizabeth, que vinha vestida, mas não de tudo acordada, a julgar por seu aspecto. Anne teria querido lhe falar do acontecido a noite anterior, de sua viagem ao Invernes, durante aquela tormentosa noite de fevereiro, mas era melhor deixar que ela mesma o confessasse.

— Gosta de voltar para casa? — perguntou em troca.

— Agora que você te parte, sim — respondeu Elizabeth, com lastima.

Anne serve o chá, mas sua irmã enrugou o nariz. Para acompanhar o porridge preferia a cerveja. Quando Jessie a trouxe, fumegante e espessa, disse que tinha conseguido a um velho camponês e a um moço para que levassem o carro até o Dunmaglas e escoltassem a Elizabeth até o Invercauld.

— Virão logo — disse. No tempo das Terras Altas, «logo» podia significar «dentro de várias horas».

— Ouviste as gaitas de fole e os tambores? — perguntou Anne. — Talvez me enganavam os ouvidos.

— Sim, começaram faz meia hora — confirmou Jessie. — Agora cessaram. Estão se congregando no ermo. Will foi ali.

Em tal caso, tinha razão: estavam-se congregando. Não combateriam no Drumossie, a menos que desejassem perder. George lhes faria cruzar o Nairn para esta borda, onde o estou acostumado a era seco, montanhoso e acidentado. Aguardava-se a que tivessem cruzado não teria que cavalgar tanto; seria meia hora de trote em vez do dobro, mas desejava ficar em marcha, queria estar com eles. Agora, seu lar era o exército e não aquela casa. Saiu para enganchar o cavalo à carreta e a trouxe até a porta. Quando Elizabeth teve tomado o café da manhã, começaram a baixar os baús e as caixas. A Jessie não permitiram elevar coisas pesadas; em troca lhe encomendou envolver comida para a viagem.

A visibilidade era escassa em Drumossie, pois a nevasca golpeava no rosto aos guerreiros. Levavam uma hora, possivelmente mais, alinhados em formação de batalha; estavam cansados e famintos e isso aumentava a sensação de frio. Entre as matas de ervas duras do páramo se acumulavam cascas de gelo branco.

— Mandaste a pela Anne? — perguntou Donald Fraser, à esquerda do MacGillivray.

— Sim — respondeu ele, sombrio. — Talvez Aeneas a retém lá.

— Só se está tratando de lhe tirar as cadeias — riu o ferreiro. — Duvido que ele possa sair dessa adega enquanto não tenhamos retornado Lachlan ou eu.

— Encadeou-lhe?

— É o último que fiz antes de vir. Anne o olhe agora com tão maus olhos que isso parece não ter acerto.

MacGillivray ficou desconcertado. O trato que Anne desse a seu marido era coisa dela. Não conseguia imaginar o que teria feito Aeneas para merecer que lhe carregassem de cadeias. Por sua cara passou um sorriso, porque provavelmente bastava lhe contradizendo, mas mesmo assim resultava estranho, já que não era a situação que lhe havia descrito Elizabeth. Pela primeira vez se perguntou o que teria passado com sua nota, porque Anne não a teria ignorado. Entretanto, Elizabeth soube aonde acudir, do qual podia deduzir-se que tinha chegado a seu destino.

— Acredito que sua irmã se ficou com minha nota — Comentou ao Fraser. — Duvido que Anne a tenha visto sequer.

Ela não era capaz de abandoná-los nem lhe deixaria na estacada.

Entreabriu os olhos para olhar ao outro lado do campo, através da nevasca. Lorde George e o regimento dos Atholl Highlanders se achavam dispostos na asa direita com o propósito de que o príncipe e Ou'Sullivan pudessem exercer o mando da retaguarda. George tinha permitido que a lealdade à causa se impor a seu bom critério. Combateriam, assim depois de tudo seria melhor que Anne não viesse. A vitória seria dura de conseguir, em caso de obtê-la, e era melhor que ela se inteirasse depois. O campo de batalha seria um espetáculo sangrento.

A pesar do mau tempo havia espectadores. A boa distância se reuniram multidões vindas do Invernes. Assentados em uma ravina, havia um grupo de guris que teriam devido estar na escola. As mulheres e os meninos dos guerreiros estavam bem detrás das filas, onde não sofressem dano; perto do príncipe, o grupo que formavam as esposas dos comandantes, com a Margaret e Greta à cabeça. Will Macintosh se interpôs entre o MacGillivray e Fraser.

— Posso ir com o Donald? — perguntou a moço de quadra. Parecia entender-se mal com as armas seguras a seu lado.

— Não, não pode — disse o ruivo. — O privilégio de partir em vanguarda terá que ganhar.    

Tinha ao MacBean à direita. Os homens amadurecidos e experimentados foram à cabeça, para inspirar valor e coragem aos jovens que lhes seguiam.

— Vá atrás — ordenou ao Will, — detrás do Lachlan, onde te há dito.

Enquanto o moço se retirava, ele percorreu as filas do clã Chatton, dos Macintosh aos Farquharson. Por ser sua comandante em chefe estava a cargo de ambos e devia consultar com seus capitães, o irmão e o primo de Anne, antes de que chegasse o inimigo. Enquanto falava com o James e Francis soaram os tambores. MacGillivray olhou para diante, entre a neve e a chuva; ao longe se via um primeiro brilho de casacas vermelhas.

Antes de abandonar o dormitório, Anne deu os últimos toques ao traje de montar, um objeto de veludo azul debruado de tartán, a mesma que se pôs para mobilizar ao clã, ao distanciar-se do Aeneas naquele primeiro momento, e lhe pareceu adequado voltar a usá-lo quando se afastasse dele por última vez. Prendeu um distintivo branco a sua boina azul, que já estava preparada. Não haveria volta atrás; esta vez não. Atrás dela ficava o leito matrimonial, com podas lençóis de linho e mantas novas. Não deixaria ali nem sequer seu aroma.

Aeneas recuperaria a casa de novo assim que ela se partiu. Poderia transladar outra vez sua própria roupa, que estava no porão. Jessie tinha as ferramentas do Donald. Poderiam somar esforços para lhe tirar as cadeias ou esperar a que retornasse o ferreiro.

O velho camponês e o moço já estavam ali, baixando as últimas coisas desde seu dormitório. Tudo o que havia para carregar estava já abaixo. Anne revisou a estadia, abrindo armários e gavetas, pois não queria deixar o menor rastro. No fundo do roupeiro só ficava a caixa com os documentos privados do Aeneas. Fila tinha esquecido os juramentos matrimoniais, tanto o seu como o dele. Pôs a caixa na penteadeira e a abriu. Acima de tudo havia uns papéis novos. Por curiosidade, desdobrou-os para lê-los.

Ao abri-la porta do porão, no alto da escada, Aeneas se levantou com um repico de cadeias. Os pés que baixavam eram os de Anne; suas saias brancas foram roçando os degraus. Agora poderia falar com ela, lhe pedir perdão e fazer as pazes.

— Anne — disse, assim que pôde lhe ver a cara. — Graças a Deus. Jessie me há dito que te partia. Temia que partisse sem me deixar falar.

— Não vim para te deixar falar — lhe espetou ela. Estava furiosa. — vim a te dizer o que penso de ti. — Na mão tinha uns papéis: o cancelamento da dívida, com as escrituras do Moy Hall e as terras do clã. Agitou-os com fúria. — Nos vendeu! Vendeu nossa causa, vendeu nosso clã e vendeu nosso matrimônio por isso! Por estes muros de pedra e um pouco de terra! Agora sei por que uniu ao Guarda Negro e por que defendia a este governo contra nós!

— Nem o pedi nem o esperava.

— Pois leva seu nome escrito! Estas escrituras lhe convertem em proprietário do Moy, coisa que nunca foste nem pode ser. As terras são do clã!

— Deixará-me falar alguma vez, mulher! — A ira que tinha acreditado não poder já sentir o percorria outra vez. — Leva meu nome porque assim é como trabalham eles. Bem que sabe! Estão lutando contra a propriedade.

— Porque eles a criaram para nos dominar!

— Sei. Forbes me ameaçava com a perda do Moy, mas redigiu isso depois da batalha do Prestonpans, quando acreditou que estávamos derrotados. Deu-me isso para me deixar em liberdade!

— O que? Obsequia-te com algo que não lhe pertence e que você não pode agarrar? —exclamou ela, mordaz. — E uma vez que o teve, retornou a seu clã, a sua esposa? Parece-me que não!

Aeneas a olhava com semblante carrancudo.

— Minha esposa estava em braços de outro.

— Não, então não. Só depois, quando acreditei que tinha enforcado ao Ewan. Só depois do Falkirk. — Lhe aproximou. — Mas agora irei reunir-me com ele. Pode te colocar isto no sporran. — Arrojou-lhe o documento aos pés. — Possivelmente ajude a levantá-la de agora em diante!

  Ouviu-se o estampido de um raio e um potente retumbar. Tanto Aeneas como Anne olharam para o buraco, ali acima. O trovão se converteu em uma descarga de canhões, longínqua, mas inconfundível. Elizabeth apareceu na parte superior da escada.

— Ouve Anne? — gritou. Baixou uns poucos degraus até que pôde ver sua irmã, com a expressão temerosa.

— É acima, no pântano — disse Aeneas, voltando-se para a Anne.

— Não pode ser. — Ela apartou a vista para a Elizabeth. — MacGillivray teria mandado para me buscar.

A garota, banhada em lágrimas, deixou-se cair em um degrau.

— Enviou-te uma mensagem, ontem pela manhã — exclamou. — Eu não queria fazer nenhum dano. Disse que você não quereria que combatessem ali.

Anne correu para ela. A detonação dos grandes canhões situados a mais de dez quilômetros era como o rumor dos trovões.

— Deixou-lhe pensar que eu não iria?

— Me tire daqui, Anne! —Aeneas atirou das cadeias. — Irei contigo!

— É muito tarde para isso! — gritou-lhe ela.

Logo puxou Elizabeth para levantá-la e a arrastou para fora do porão. A porta se fechou de repente e jogaram a chave longe.

 

Uma densa fumaça rodeava ao MacGillivray, de pé à frente de seus homens. As balas redondas dos canhões ingleses assobiavam por cima de suas cabeças e as amadurecidas dos morteiros Coehorn19 estalavam entre as filas jacobitas. Mais atrás se ouviam os relinchos dos cavalos e os gritos dos homens alcançados pelos projéteis.

— Fechem filas, fechem filas! — gritavam os capitães da retaguarda a suas tropas a fim de preencher os ocos deixados pelas baixas.

  Levavam dez minutos suportando aquele castigo, à espera que se ordenasse carregar. Lorde George tinha abandonado seu posto para ir solicitar ao príncipe permissão para atacar. MacGillivray aguardava sombrio; cada vez que uma bala passava a pouca altura e rasgava suas próprias filas, encolhia-se em um gesto de dor, mas não girava a ver quem tinha cansado. Bastava ouvindo o golpe surdo, o espantoso ruído da carne ao arrebentar, dos ossos quebrados. Quem quer que fosse já estava morto, porque não gritava.

— Fechem filas, fechem filas! — bramou Donald Fraser, a suas costas.

Anne esporeou ao Pibroch, galopou até deixar atrás Loch Moy e começou a subir pelas colinas, açulando ao cavalo mais do prudente. Até a esse passo, Drumossie estava a vinte minutos de distância. Por bem que conhecesse as costas e os arroios, devia cruzar colinas e pântanos e vadear o Nairn. Todo isso a atrasaria. O trovejar dos canhões e o estalar dos morteiros se tornavam mais fortes a cada passo. Chegaria a perceber os gritos de guerra por cima das descargas e o fogo dos mosquetes? Se MacGillivray já tinha arrojado a carga contra o inimigo, ela não poderia detê-los; só cabia a esperança de que soubessem que estava ali, de lhes fazer ver que não lhes tinha abandonado para ficar em casa, a salvo de todo perigo.

— Não ataquem — rogou. — Ainda não.

Uma vez mais açulou ao cavalo branco, lhe exigindo um esforço maior.

— Devemos derrubar esse muro da direita — gritou lorde George a Ou'Sullivan. — Nos estão flanqueando por detrás dele!

Ou'Sullivan manteve a vista à frente, sem lhe emprestar atenção. Lorde George girou bruscamente para o príncipe.

— Pour a pitié, querem dar a ordem de atacar ou temos que morrer ali fora? —insistiu-lhe.

Carlos Eduardo se removeu em seu cavalo com a indecisão no olhar.

— O inimigo deveria avançar primeiro — repôs.

— E se não avançar? — Lorde George sentiu um calafrio ao ver sua expressão. Esse homem não tinha a menor ideia de como exercer o mando, apesar de havê-lo assumido. — Os montanheses carregam — insistiu, repetindo o óbvio. — Nisso radica sua força.

Voltaram a trovejar as peças da artilharia inglesa. Uma bala de canhão caiu entre a cavalaria de lorde Elcho, perigosamente perto do príncipe. Ou'Sullivan se inclinou para lhe falar com ouvido.

— Deixem que os canhões façam o seu — disse. — Logo avançarão.

— Os nossos estão quase silenciosos — gritou lorde George. — Quão únicos fazem mal são os deles!

— Podemos esperar — lhe assegurou o príncipe. — Noblesse obrigue. — Mas procurou com o olhar a aprovação de Ou'Sullivan. Seu ajudante assentiu com a cabeça e assinalou que os mandos deviam retirar-se mais, depois das reservas francesas, para ficar fora do alcance de tiro. Já havia uma verdadeira matança entre as filas da retaguarda: membros, corpos, aroma de sangue e a morte.

Lorde George se sentiu vencido, voltou garupas e se dirigiu novamente para o fronte.

MacGillivray apertava os dentes em sua posição de vanguarda. Já tinham suportado aquilo por vinte minutos e a ordem não chegava. A artilharia do governo continuava amassando-os a prazer. Os projéteis passavam assobiando e abriam sulcos em suas forças. Os homens uivavam justo detrás dele.

— Juntem filas, fechem filas! — chiou novamente Fraser, a suas costas. A ordem foi repetida mais atrás e os vivos avançaram para ocupar o lugar dos que tinham cansado.

— Basta — murmurou MacGillivray. Já tinham suportado tudo o que podiam suportar. Encasquetou-se a boina, elevou as mãos por detrás da cabeça e desembainhou a espada que levava às costas.

— Claymore! — rugiu.

Pelas filas do clã Chatton se estenderam as vozes de alívio. Os combatentes se encasquetaram as boinas e extraíram as pistolas. MacGillivray baixou a arma para diante.

— Loch Moy! — uivou.

O grito de guerra foi repetido pelos homens que lhe seguiam. Lançaram-se à carga, correndo a campo travessa para as apertadas filas de jaquetas vermelhas.

Para ouvi-los chegar, os servidores das peças começaram a carregar os canhões com projéteis por metralha: bolsas de pregos e lascas de metal; além disso, baixaram o ângulo de tiro para cobrir o campo situado diante. Ao ver que MacGillivray se lançava à carga, Lochiel desembainhou também a espada e com um rugido, chamou os Cameron à batalha. Lorde George, que chegava ao posto de sua brigada Atholl, viu que o regimento Macintosh tinha tirado a decisão das mãos do príncipe e deu a ordem de atacar.

Para a metade do campo, a primeira descarga de metralha alcançou aos homens do MacGillivray, que se detinham para disparar as pistolas. Caíram uns quantos, mas efetuaram uma descarga antes de soltar as pistolas e se ouviu um grande estrépito de aço, ao desembainhasse espadas, tochas e atravessadas. A primeira fila da infantaria governamental disparou contra eles e fincou o joelho em terra para recarregar enquanto a segunda linha apontava.

— Loch Moy! — bramou novamente MacGillivray E continuou avançando.

Anne estava rodeando as colinas mais baixas com a cabeça pega ao pescoço do Pibroch para oferecer menos resistência ao vento quando percebeu uma mudança no som dos canhões. Desconhecia o motivo dessa alteração, e quis atribuí-lo a que os seus tinham conseguido sossegar as peças de maior calibre. Agora ouvia disparos de mosquete e rápidas descargas repetidas dos canhões agrupados. Chegaria muito tarde: a carga tinha começado. Seus homens estariam correndo contra a primeira linha, os homens do Macintosh que ela tinha recrutado para a causa, os Farquharson e Atholl que conhecia sempre e estimava tanto; homens de suas três famílias: a de sua mãe, a de seu pai e sua família política, que se lançavam ao ataque, cotovelo com cotovelo. Rezou a todas as forças conhecidas para que os conservassem a salvo, juntos e fortes. Perto já do rio Nairn, açulou a seu cavalo, agachada para ele para lhe urgir a necessidade em ir mais depressa com a voz em tanto os cascos tamborilavam sobre a pradaria.

MacGillivray corria através do ermo, marcando o passo, entre os assobios da metralha que passavam junto a sua cabeça. Diante havia um pântano, por isso ordenou desviar-se: seus guerreiros teriam que deter-se se metiam em semelhante refrega. Toda a primeira fila fez o mesmo: inclinar-se à direita para esquivá-lo, e perdeu impulso. Expostos ao fogo cruzado de seu lado caíram vários dos homens que seguiam aos dez ou doze líderes e se abriram brancos entre as filas lançadas à carga.

Detrás deles, os Cameron e os Atholl encontraram a rota para o inimigo estreitada pelos Macintosh que se desviavam e se viram obrigados a apertar-se ainda mais contra os muros da direita, detrás dos quais se achava o general Hawley, que ordenou derrubar as pedras e disparar contra o flanco dos Atholl. Francis do Monaltrie, na vanguarda jacobita, desembainhou sua espada para lançar ao ataque aos Farquharson; o clã paterno de Anne seguia ao de seu marido para as apertadas filas do governo. James, seu irmão, aguardava detrás dele para liderar a segunda linha. À esquerda, lorde Drumond insistiu aos MacDonald a unir-se à carga, mas eles se negaram, zangados pelo fato de que lorde George, ao avançar, tivesse-lhes usurpado seu lugar na asa direita do campo. Permaneceram em seu sítio, estóicos e severos, com as armas embainhadas ou ao ombro, mesmo que sobre eles caía uma chuva de granizo de metralha; uma terceira parte de suas forças já tinha cansado sem vida a seus pés.

MacGillivray entrou entre as filas inimizades, brandindo sua espada, e decapitou de um só golpe ao soldado mais próximo. A seu redor seus homens se chocaram com a vanguarda inglesa perto dele e tentaram abrir a estocadas e machadadas a brecha que debilitasse a muralha de canhões inimigos. Girou outra vez e fendeu por completo a cabeça de um jaqueta vermelha. Assim que o inimigo caiu, MacGillivray olhou a seu redor. Só dez, ou doze de seus homens tinham chegado até ali. As linhas inglesas se fechavam a suas costas, sem deixar de disparar contra os guerreiros que se aproximavam. A seu lado, MacBean e Donald Fraser detinham com as tarjas as estocadas das baionetas e repartiam cutiladas com as espadas. Atrás dele, o sapateiro Duff atravessou o pescoço de um soldado inglês, mas recebeu um baionete no ventre do homem que lhe seguia e caiu a terra.

Will tinha deslocado depressa para aproximar-se do Fraser o máximo possível. Deixou cair à faca quando se viu em ação, pois logo que sabia como utilizá-la, e brandia grosseiramente a espada; um homem caiu a terra e outro ficou com a cara partida, mas um oficial lhe viu, desembainhou a espada e cruzou com ela o braço do Will; logo, seu pescoço. No momento em que o moço caía, MacGillivray descarregou seu claymore e lançou um talho que lhe arrancou ao oficial a espada e a mão. Enquanto se defendia dos soldados de infantaria, arrastou ao Will para si e se plantou a seu lado; o resto de seus homens se agruparam junto ao chefe. Fraser, ao ver esse movimento de amparo, girou para cobrir as costas ao MacGillivray. Uma baioneta lhe cravou entre as costelas. Ainda se cambaleava quando uma espada lhe roçou a cara. Caiu. O pesado corpo de outro montanhês se derrubou sobre ele.

MacGillivray deixou cair o pesado claymore e desembainhou a espada, com o punhal detrás da tarja. depois de cravar a espada no pescoço do soldado mais próximo, lançou uma punhalada para trás para ferir outro a sua esquerda.

  Um soldado inglês investiu com a baioneta para seu flanco direito. Alexander notou como se afundava em sua carne e voltava a sair. Estremeceu-se. Com uma só estocada, MacBean amputou o braço de quem tinha ferido seu chefe. Nesse mesmo instante, um companheiro do cansado elevou o mosquete, mirou-lhe e disparou. A bala penetrou no peito do MacBean, quem se agitou bruscamente e caiu sangrando a jorros pelas costas.

MacGillivray estava de joelhos, totalmente cheio de sangue e de seu flanco emanava um fluido aquoso, respirando a grandes ofegos. Um tenente inglês lhe aproximou por detrás e lhe cravou a espada entre os ombros. Era James Ray. Enquanto MacGillivray caía de barriga para baixo, Ray apoiou um pé nas largas costas do montanhês e arrancou seu aço.

A oitocentos metros dali, na retaguarda dos jacobitas, Ou'Sullivan se aproximou para o cavalo do príncipe para lhe agarrar as bridas e lhe afastou do dizimado campo de batalha. Lorde Elcho se aproximou do trote comprido e seu cavalo trazia a garupa e as patas salpicadas de vermelho. Ele também, como lorde George, tinha rogado que se desse a ordem de atacar, vendo que os canhões massacravam brutalmente a sua cavalaria enquanto esperava, impotente.

— Ordenarão a retirada? — gritou ao príncipe.

Sua real comandante lhe olhou; as lágrimas lhe corriam pelas bochechas.

— Salve-se quem pode — respondeu. — Estamos derrotados. Nous sommes défaits.

— Covarde chorão e malcriado — bramou Elcho. — Anda, foge. Vá ao outro lado do mar. Teria sido melhor para Escócia que não viesse nunca!

E voltou bruscamente, em busca de alguém que ainda estivesse vivo e em condições de tocar a retirada. O grupo de mando se afastou, talher pela Brigada Irlandesa e os Écossais Royaux; Ou'Sullivan escoltava ao príncipe, que fugia do campo de batalha na unha de cavalo.

Anne açulou ao Pibroch para que entrasse nas águas do Nairn. O cavalo se espantou, mas lhe cravou os pess, pois a corrente era pouco profunda sobre os calhaus do fundo. Um par de passos mais à frente o cavalo tratou de virar, e puxou com força as rédeas para que não voltasse a cabeça. Já estavam tão perto que se ouviam os alaridos de homens e bestas, o rugir dos canhões e as repetidas descargas de mosquete.

—Anda, Pibroch — lhe insistiu ela, lhe afundando os pés nos flancos. — Siuthad, a-nìs!*O animal se adiantou quatro passos mais. Logo jogou a cabeça para trás, com um relincho, e se deteve.

A chuvarada de água e neve tinha passado, como se a nuvem nunca tivesse existido. Estava de bruços na terra molhada, com a vista fixa para frente, MacGillivray via passar os pés de quão soldados voltavam a formar filas, sem emprestar atenção a quão moribundos havia entre eles. Não sentia nada, salvo uma calma fria e glacial. Sua respiração vacilou e voltou outra vez. O sangue do peito escorria para um regato que passava junto a seu ombro. A um flanco, o pescoço talhado do Will ainda continuava gotejando. Algo mais adiante, MacBean lutava no chão, tratando de aproximar-se de MacGillivray para cobri-lo com seu corpo.

Estirou-se e seus dedos já estavam quase ali, mas a mão caiu no arroio, enquanto o sangue lhe corria pelo braço. MacGillivray, que olhava através da erva manchada e suja, viu como se ia tornando vermelha a estreita correnteza lamacenta.

Anne desmontou de um salto, sujeitando ao cavalo com força. Afundada na água até os tornozelos, puxou as rédeas para avançar. O cavalo não cedeu. Ela observou o fundo mais adiante, procurando algum setor de águas fundas, um poço que o animal pudesse perceber, embora para ela não fora visível, mas foi em vão, porque só havia calhaus e água ondulada, cada vez mais turva. Elevou a vista para a ribeira oposta. Alguns raios do morno sol de abril passavam através das árvores, até a neve granulosa acumulada nas matas de erva; o rio que as lambia se ia tingindo de vermelho. Baixou o olhar para as brancas patas do Pibroch, onde o vermelho subia no cavalo. Deu uma olhada a suas saias, que se arrastavam pela água, e viu que a mancha subia por elas: vermelho sobre o branco, o branco tornando-se vermelho. Ela e sua cavalgadura se encontravam em um rio de sangue.

Um ofego estremeceu o peito do MacGillivray. As fibras de erva verde diante de seus olhos, manchadas de carmesim, eram densas como um bosque. Via a Anne na colina, a lombos de seu cavalo branco, e a neve lhe caía sobre os ombros; em seus lábios tinha esse sorriso que tantos homens teriam querido até a costa da vida. Oxalá não estivesse triste, a não ser orgulhosa. O calafrio passou. Não havia colina nem neve, tão somente essa luz branca e o penetrante ruído da batalha.

— Vista à frente, soldado — disse uma voz. — Ignora-os, que já não podem nos fazer danifico.

Estava morrendo. Não haveria mais sofrimento e a paz se estenderia por seus ossos. Os antigos mitos diziam a verdade: a morte era a última amante com a que alguém se deitava. Ela se elevou como uma quebra de onda para lhe receber e encheu todo o vazio que a vida lhe tinha deixado, lhe acolhendo.

O vazio enchia os ouvidos de Anne, o rugir de um nada. Arrancou o olhar das águas ensanguentadas para observar os olhos enlouquecidos do Pibroch. As rédeas, enroscadas a suas mãos, queimavam-lhe a pele ao comandar o cavalo. O estrondo de canhões e pistolas tinha cessado. Caiu uma estranha paródia de silêncio, tenda de comestíveis de alaridos e chamadas que vinham muito mais à frente do riacho oposto, do pântano. Elevou os olhos para o som. Um dossel de fumaça amarela flutuava sobre as árvores da ribeira.

 Vamos, no ermo, Cumberland tinha ordenado alto ao fogo. Seus homens tinham feito um bom trabalho. Segundo o costume montanhês, ele tinha formado a vanguarda com seus veteranos flamencos, homens que não se acovardariam nem romperiam filas para fugir. Suas primeiras filas olhavam, através das nuvens de fumaça amarela, para as nuvens fantasmagoricamente douradas pelo sol, detrás dessa fumaça impenetrável. O lugar estava atapetado por corpos amontoados sobre outros; retorciam-se, gemiam e chiavam de dor. Aqueles soldados aguerridos nunca tinham visto açougue semelhante. Os highlanders tinham continuado carregando com ferocidade, uma quebra de onda atrás de outra, tinham persistido inclusive quando os corpos de seus próprios feridos lhes chegavam até os joelhos antes de ser abatidos a tiros. Eram poucos os que tinham podido chegar até suas filas e menos ainda os que entraram nelas, mas tinham resistido.

Cumberland cavalgou para ali, acompanhado pelo conde do Louden. Hawley veio a reunir-se com eles, ao trote entre os escombros dos muros que tinha ordenado derrubar para atacar os flancos do Atholl. Entre um grupo de montanheses cansados depois das linhas, um corpulento guerreiro, já entrado em anos, vomitava bílis e sangue.

— Despachem a esse homem — ordenou Cumberland a lorde Louden.

O escocês olhou a sua comandante.

— Podem dispor de meu cargo, senhor — lhe repreendeu, — mas não de minha honra.

Hawley desencapou a pistola, apontou e disparou. O montanhês deu uma sacudida e ficou imóvel.

— Limpem esta sujeira, Hawley — exigiu Cumberland. — Rematem aos feridos. Reúnam aos oficiais sobreviventes e em condições de caminhar. Não dêem quartel a outros.

 

O dossel de fumaça negra resultava estranho enquanto se recortava contra aquele céu azul tão limpo. Anne deixou de olhá-lo e voltou os olhos para o Pibroch. Sujeitou a brida com ambas as mãos e atirou, resolvida a chegar a seu destino; devia conseguir que essa besta teimosa cruzasse o rio.

— Vamos, Pibroch. Siuthad!*

Atrás dela uns pés escorregaram no barro e chapinharam na água. Uma mão a sujeitou pelo ombro e ela girou bruscamente. Era a velha Meg, com a forquilha na outra mão, alarmada e temerosa.

— Foge. — Tomou a Anne pelo braço e atirou dela. — Estão matando a todos.

A ribeira bulia agora de gente, mulheres e meninos que corriam em busca da salvação. Águas acima, um punhado de highlanders se aproximava precipitadamente entre as árvores. Fugiam do campo de batalha para salvar a vida.

— Vêem comigo — insistiu Meg, jogando ela para a borda oposta.

Pibroch lutava para virar e seus a cascos se moviam para trás, para o outro lado. Ela o sujeitou com força pelas rédeas

— Devo continuar!  —disse, debatendo-se contra o punho de ferro da velha.

— Não há nada que possa fazer.

Meg a agarrou pelo pulso e a arrastou com ela.

— Esse está vivo!

Desde muito acima soou uma voz gritã. Os cascos esmagaram a erva empapada. Um peso morto esmagava o peito do Donald Fraser. Abriu os olhos com uma piscada. O braço de alguém lhe ocultava a cara pela metade. No espaço onde se abria o céu, um general inglês, uma sombra montada em um cavalo negro, adiantou-se para apontar. Alguém vestido de tartán escuro se interpôs, e apareceu uma cara. Era Desavergonhado, quem lhe espiava de cima. Ao reconhecê-lo lhe iluminaram os olhos e lhe ofereceu um breve sorriso. Logo, o menino dos Macintosh elevou seu mosquete para trás e cravou a baioneta no corpo sem vida que jazia sobre o peito do Fraser.

— Agora está morto, senhor — anunciou por cima do ombro.

Pibroch tinha saído da água para trás e seus cascos procuravam cabo na erva. Anne, rebocada pelo cavalo e por Meg, viu-se longe do Nairn. Rodeavam-lhes as mulheres em disparada e as que passavam perto insistiam a Anne a correr, a ocultar-se, a fugir. Uma mulher saiu da água levando a rastros a um menino de sete ou oito anos. Os dois tropeçaram e caíram. A mãe agarrou ao menino pela manta e tratou de carregá-lo, mas a atrasava o peso da água absorvida pelo pano de lã. Anne subiu à cadeira, inclinou-se para a assustada mulher para agarrar ao menino e o sentou diante dela.

— Suba atrás — disse à mãe.

Depois de levá-los durante um par de quilômetros, deixou-os em uma cabana e retornou para recolher a outra mulher que levava a um pequeno. Às vezes era a criatura que rebocava a um mais, pois temia ficar e temia continuar sozinha. Mais adiante era uma mulher maior a que ia coxeando, com um tornozelo torcido e inchado, enquanto os outros desapareciam do outro lado das colinas. Cada vez que recolhia a alguém estavam mais longe do rio. Em seu último trajeto de volta, a distante ribeira estava lotada de tropas governamentais. Meg tinha desaparecido. As mulheres e os meninos, também. Não havia guerreiros à vista nas colinas ao redor.

Em uma cabana próxima ao Drumossie, a esposa do MacBean, com um trapo de cozinha limpo entre as mãos, extraiu do forno uma segunda fogaça e a pôs a esfriar na mesa, junto à primeira. O pão a mantinha atarefada. Os ruídos da batalha tinham terminado meia hora atrás.

Alguém se aproximava. A porta da cabana se abriu violentamente, deixando entrar o ar frio. James Ray irrompeu na palhoça com duas jaquetas vermelhas, e revisaram rapidamente a única habitação.

— Aqui não há ninguém — lhes assegurou ela.

O tenente levantou a espada e a moveu horizontalmente à altura do ombro. O sangue manchou o pão posto a esfriar. A anciã caiu dentro do lar.

— Agora não há ninguém — conveio o oficial.

E partiu a grandes passos.

Enquanto os soldados ingleses chapinhavam através do rio, Anne pôs a seu fatigado cavalo rumo ao Moy. Agora fazia calor, um sol surpreendente como o de um dia primaveril, branco e azul. Chamou-lhe a atenção o brilho intenso de um tartán sob uma árvore próxima. Aproximou-se. Era Lachlan, ferido, e tinha um corte na cara juvenil e outro na coxa, que sangrava muito, mas tinha conseguido chegar até ali antes de derrubar-se. Ela desmontou a seu lado.

— Pode te manter de pé?

O moço sacudiu a cabeça.

— Não. Segue adiante. Eu me arrumarei. — E fez uma careta. — Já sabe, tenho nove vidas. —Era um dito de quem pertencia ao clã do gato.

— Vêm perseguindo às pessoas —lhe informou Anne. Os soldados se aberto em leque, mas começavam a fechar-se e lhe achariam tão facilmente como ela. — Vêem, levarei-te a casa.

Com um braço do menino ao pescoço e a perna ferida a rastros, conseguiu pôr o de pé e montá-lo no Pibroch. Alguém disparou desde atrás. Lachlan caiu para diante, sobre o pescoço do cavalo.

Anne girou em redondo. O jaqueta vermelha que tinha disparado estava a várias centenas de metros, muito por diante do resto, e corria para eles. A jovem jogou mão à pistola da cadeira de montar, girou-se e abriu fogo. A cara do homem estalou com o balaço. Anne se içou atrás do menino, sujeitando-o pela manta, e açulou ao animal. Por cansado que estivesse, Pibroch se adiantou com um salto e cobriu ao galope uns oitocentos metros antes de reduzir a marcha a um trote. Seu passageiro estava sem vida, mas Anne não podia permitir que o cadáver caísse ao chão. Reteve-o  até chegar à forja, onde chamou o Màiri e deixou o corpo morto nos afligidos braços de sua mãe.

Enquanto se arrastava entre a erva do pântano, com a cabeça partida e sangrando, Robert Nairn ouviu seu lado um fôlego agitado. Olhou para ali, mas não havia ninguém. O ofego cessou. Ele continuou avançando, arrastando detrás de si o braço direito, quase amputado. Aquela respiração dificultosa voltou a aparecer, mas era a sua, que lhe agitava o peito. Sua frente golpeou contra algo que tinha a dureza da pedra. Com dolorosa lentidão, tombou-se de costas ao amparo do dique. Sua cabeça caiu para um lado, com os olhos fechados.

Anne se achava dolorida em corpo e alma. Pôs ao exausto cavalo ao passo até chegar ao Moy e deixou que ele mesmo procurasse o estábulo. Mais tarde lhe tiraria a cadeira e se ocuparia de escová-lo. A carreta carregada seguia ante a porta. Nada tinha trocado desde sua partida.

Elizabeth e Jessie deram um coice ao vê-la entrar e com a cara iluminada pelo alívio, correram para ela.

— Está ferida? — Sua irmã olhava as manchas de sangue da roupa.

Anne negou com a cabeça.

— Derrotaram-nos — disse.

— Will, viu ao Will? — perguntou Jessie.

Ela voltou a negar.

 — Não cheguei ao campo de batalha — explicou. — Lachlan morreu. Trouxe-lhe para casa. É o único de quem tenho notícias. — voltou-se para a Elizabeth. — Você deveria estar no Invercauld.

— Não podia partir sem saber o final. Agora poderemos ir juntas.

— Devo ficar. —Anne começou a tirar o vestido ensanguentado. — Nossos homens precisam saber onde me encontrar quando todo se acalme. Não quero que pensem que fugi.

Então lhe brotaram as lágrimas, duras, doloridas. Elizabeth a estreitou com força entre seus braços.

— Não chore. Por favor, não chore. — Esfregava-lhe as costas, balançava-a. — Como vamos suportá-lo se te põe a chorar?

Uma fila de tambores precedia ao Cumberland quando entrou no Invernes. Cavalgava junto a Monopolize, antigos os uniformes vermelhos, brilhantes os botões de latão. Os regimentos que lhe acompanhavam lançaram um grito de vitória, insistindo aos poucos transeuntes a fazer outro tanto.

— Agora, Johnny — disse,  — O que devemos fazer é não lhes dar respiro. Eliminaremos aos ratos enquanto ainda estejam em fuga. Até a última.

Lorde Boyd, que se tinha adiantado para explorar, cavalgou para eles.

— O melhor acampamento é a casa que ocupava o pretendente — disse.

— Se convinha a minha primo, também me convirá  — assentiu Cumberland.

Quando chegaram à casa, a viúva Macintosh estava de pé à porta, pronta para lhe dar a bem-vinda, mas lhe dirigiu um olhar de desprezo. Os homens das Terras Altas eram selvagens incultos, indignos de confiança, e suas mulheres, ainda piores.

— Joguem nessa mulher ao calabouço — ordenou.

Lavada e vestida com seu traje de montar limpo, quão único não tinha guardado na bagagem, Anne estava de pé junto ao fogo, com um copo de cerveja na mão. Seus pertences estavam de novo dentro, amontoados no piso superior; o homem e o menino tinham sido enviados a sua casa. A esperança subsistia. Daquele campo de batalha tinham escapado centenas de guerreiros; muitos, sem dúvida, em direções diferentes. O príncipe se travou em combate muito antes do devido, quando a metade de seu exército estava ainda em marcha. Reagrupariam-se. Uma derrota não significava perder a guerra.

— George os congregará — disse. Seu primo não se daria por vencido com tanta facilidade.

— Se tiver sobrevivido — acrescentou Elizabeth. — E não se reunirão aqui. Deveríamos ir a casa. A que está esperando?

Anne observou a sua irmã, que se passeava de um lado a outro. Bem teria devido saber por que.

— Ao MacGillivray — respondeu.

Não era uma expressão de esperança nem de espera, era, simplesmente, a verdade. Ela teria devido estar ao seu lado, mas não foi assim. Agora lhe esperaria, porque para ela era uma vigília necessária, como uma penitência. Ele viria a procurá-la ou enviaria notícias e até então Anne não seria livre de partir.

Elizabeth deixou de passear-se e colocou uma mão no bolso para tirar uma folha de papel. A alargou.

— Sua nota — disse, com a cara avermelhada de vergonha.

Os camponeses fugiam de seus lares. Os soldados de cavalaria abatiam a tiros ou lhes perseguiam até derrubá-los a facadas. A cabana da velha Meg estalou em chamas. Os portadores das tochas passaram a seguinte. Cath, com o bebê apertado desesperadamente contra o peito, saiu correndo da cabana do Ewan.

No interior, o velho Tom jazia em seu  leito de samambaias, tossindo; as duas meninas do Ewan, atemorizadas, esconderam-se atrás dele. A porta da moradia foi fechada de um puxão. De fora, um soldado cruzou uma vara de madeira no trinco e o marco. Outro aplicou uma tocha acesa à coberta de turfa. Cath, costa acima, aferrava-se aos urzes para subir. Duas jaquetas vermelhas correram atrás dela e o que estava mais perto elevou seu mosquete e lhe estrelou a culatra na nuca, deixando-a aturdida.

O homem lhe arrebatou aos choroso bebê; depois de dar-lhe a seu companheiro, voltou  Cath de barriga para cima, rasgou-lhe as saias e abriu suas pernas. O segundo soldado plantou o mosquete entre as pedras, com a baioneta apontada para cima; logo elevou por cima da cabeça ao bebê, que uivava e se debatia, e baixou o corpo com força. O pranto se cortou com um fraco gemido.

Jessie acudiu correndo da cozinha, Elizabeth deixou de passear e Anne afastou a vista da nota.

— Isd! * Ouvem os tiros?

As três emprestaram atenção. Ouvia-se vagamente o estalar e o eco de uns disparos esporádicos.

— Têm que ser grupos de soldados que combatem com alguns dos nossos — as tranquilizou Anne. — Nós faríamos o mesmo: agarrar tantos prisioneiros como nos fora possível.

Elizabeth, assustada, voltou-se para ela.

— Por que te colocaste nisto? — gemeu.

— Porque estava alimentando com caldo aguado a gente que necessitava carne. Desta União só podemos esperar pobreza. Não fazem mais que nos utilizar!

— E é melhor que nos matem?

— Elizabeth... — Anne lhe agarrou a mão; queria lhe fazer entender. — Os ingleses escravizam a suas mulheres. Elas não têm direitos nem nome nem poder. Seus corpos, seus filhos e seus lares são propriedade dos homens. Se não ganharmos, acabaremos como elas.

— Isso é uma tolice — replicou sua irmã. — Nenhum homem pode impedir que eu seja quem sou nem que faça o que queira.

A porta de entrada se abriu de par em par e as três se giraram para ali. Anne  guardou a nota de MacGillivray sob o peitilho do vestido. Donald Fraser entrava em tropicões, ensanguentado e esfarrapado, com uma manta enrugada.

— Traz água e toalhas, Jessie. —Anne foi à ajuda do ferreiro.

— Não há tempo — lhes avisou Fraser, enquanto as duas irmãs o instalavam em uma cadeira. — Estão no imóvel.

— Dè? * — perguntou Elizabeth. — Quem?

— Os sasannaich*.

— Ouvimos os disparos — disse Anne. — Foi a sua casa?

— Não. Vêm nos perseguindo e matam aos feridos. Desavergonhado me tirou dali. —Tossiu com um pouco de sangue. — vim a lhes advertir de que vêm para aqui. —Interrompeu-o outro ataque de tosse.

Jessie voltou precipitadamente com uma terrina de água chapinhando em seus braços. O ferreiro rechaçou a ajuda sacudindo a cabeça.

— Não posso ficar. Eles matarão a todas se me encontrarem aqui.

— Viu ao Will? —perguntou Jessie.

Fraser se levantou vacilante, e lhe alargou o tartán esfarrapado e martelado que lhe cobria o braço.

— Isto lhe caiu quando lhe cortaram o cinturão. — Sacudiu a cabeça. — Correu à vanguarda, a meu lado. Matou a cinco ou seis antes de... — Lhe quebrou a voz. — Will, que não sabia brigar.

Ia cair, mas Anne o sujeitou.

— Não pode voltar a sair — disse Elizabeth. — Lhe apanharão.

Aeneas, encadeado no porão, aguçava o ouvido. Estava seguro de ter ouvido disparos nas terras do Moy, perto das cabanas do noroeste. Alguém introduziu a chave na fechadura e com um repico de cadeias, levantou-se para observar a escada. Percebeu como girava na fechadura, abria-se a porta e a luz de um abajur caía sobre os degraus. Baixaram dois pares de pés, seguidos por outros.

—Anne! — O alívio que sentia se converteu rapidamente em preocupação ao ver o ferreiro ferido que ela ajudava a descender. — Donald!

Detrás vinha Elizabeth com um abajur e uma bacia.

— Temos que lhe esconder aqui — disse Anne e logo acrescentou em direção ao Fraser, quando chegaram ao último degrau: — Com cuidado.

E lhe guiou até o camastro do Aeneas.

— Se me tirar estas cadeias, poderei ajudar — insistiu seu marido, agarrando-a por um braço.

— Não há tempo. — Ela girou para sua irmã para agarrar as toalhas e a terrina de água e os deixou nos braços. — Toma.

Logo seguiu a Elizabeth, que já subia depressa a escada, mas para a metade se deteve para voltar-se para ele.

— Guardem silêncio, sem que importe o que ouçam; se não, encontrarão-lhe.

A porta do porão se fechou e a chave voltou a girar na fechadura.

Jessie não se moveu do sítio onde a deixassem. Soluçava, com a rasgada manta do Will sobre o ventre inchado. No exterior se ouviu um ruído de cascos. Anne lhe deslizou novamente a chave no bolso.

— Não diga a ninguém que a tem — recomendou. — A ninguém.

A porta de entrada se abriu de par em par. James Ray entrou dando grandes passos, flanqueado por duas jaquetas vermelhas; seguiam-lhe seis homens armados do Guarda Negro. Olhou a Anne de cima abaixo, com um sorriso.

— Coronela Anne — saudou, entrechocando os talões.

— Não lhes ensinaram a chamar antes de entrar, tenente? — perguntou ela.

— Prendam — ordenou Ray, assinalando-a com um cabaçada indiferente.

Dois soldados do Guarda Negro correram a colocar-se a seus flancos, enquanto os outros inspecionavam a casa. Anne os seguiu com um olhar colérico.

— Querem ordenar a seus homens que sejam respeitosos com minha casa? — disse ao Ray.

Um dos jaquetas vermelhas se adiantou para golpeá-la no peito com a culatra do mosquete. Anne fez um gesto de dor. A sua direita, o membro do Guarda Negro elevou sua pistola para apontá-la para o agressor.

— Não volte a tocar a esta senhora — ameaçou.

Olhou-lhe com atenção. Conhecia essa voz e essa cara.

— Desavergonhado!

— Esta vez ganhamos nós. — Ele sorriu de brinca a orelha. — Assim já posso voltar para casa.

— Pode, sim. —Não tinha sentido lhe explicar que nunca teria devido partir dali.

— Já está bem de cortesias — espetou Ray. — Atenção!

Tão Desavergonhado como o outro guarda se quadraram de um salto. Na porta se movia uma sombra: um homem fraco vestido de negro, seguido de outros duas jaquetas vermelhas, que cruzou a soleira. Era o general Hawley, que sacudia a espada na mão com ar indiferente.

— Vá, vá — se burlou. — O ninho de víboras.

— Minhas desculpas, general — disse Anne. — Deveria lhes haver convidado para jantar.

— Agora estamos longe do Falkirk... — Hawley aproximou a cara à sua, — e da senhorita Forbes. — Voltou aquele sorriso fino, mais alarmante que sua ira.

— Têm uma ordem oficial para entrar em minha casa? — Anne se esforçava por manter a voz serena e firme.

— O que divertido. — Com uma careta sardônica nos lábios fracos, ele extraiu um documento do interior de sua jaqueta. — Aqui tenho uma ordem de arresto contra você —disse, — assinada por sua alteza real o príncipe Guillermo, duque do Cumberland, nada menos. — Enquanto guardava novamente a ordem, observou atentamente a Elizabeth. — Você é Elizabeth Farquharson, verdade?

A jovem assentiu. Hawley estalou os dedos.

— Levem fora — ordenou aos dois guardas que lhe acompanhavam.

Os jaquetas vermelhas se adiantaram para sujeitar a Elizabeth.

— Ela não tem feito nada! — protestou Anne. — É para mim a quem procuram. Minha irmã é leal ao governo.

— Justamente o contrário — corrigiu Hawley. — Na noite de dezesseis de fevereiro saiu desta casa e cavalgou até o Invernes para estender uma armadilha que tinham preparado para as tropas de lorde Louden.

Elizabeth agarrou a sua irmã pelo braço.

— Não tinha intenção de te fazer danifico. Só queria ao MacGillivray.

— Sei, sei, tudo está bem.

— Vá! — lambeu-se Hawley, — uma briga de gatas pelo selvagem ruivo.

— Capturaste-lo? —perguntou Anne.

— Verão-o logo. —Ele deu a volta para os guardas da Elizabeth, sorridente. — Posto que quer um homem, entreguem aos homens.

Os dois soldados ingleses afastaram violentamente de Anne à aterrorizada moça.

— Não! — gritou ela, tratando de sujeitá-la outra vez. — Não lhes traiu a vós, a não ser a mim!

Hawley lhe apoiou a ponta da espada contra o pescoço para mantê-la imóvel, enquanto sua escolta levava a Elizabeth fora, entre resistências e súplicas. Desavergonhado e seu companheiro cruzaram seus mosquetes diante de Anne, já para contê-la, já como amparo. Hawley olhou primeiro a um montanhês e logo ao outro. Os dois tinham a vista fixa para diante. Os outros soldados do Guarda Negro baixavam ruidosamente a escada e foram saindo das outras habitações. O general baixou a espada e se voltou para o James Ray.

— Seu capitão Macintosh está prisioneiro em algum lugar desta casa — disse. — Busque e lhe devolvam a liberdade quando nos tivermos ido. — Voltou a observar atentamente a sua prisioneira. — Hão dito que vocês dançam muito bem, lady Macintosh.

— Farquharson — corrigiu ela. — Coronela Anne Farquharson, lady Macintosh.

— Pouco me importa o pseudônimo que utilizem, coronel burlou ele. — Lhes verei dançar no extremo de uma corda.

E se fez a um lado para que lhe precedesse.

No exterior se iniciou um lento bater de tambores: era o toque fúnebre, a marcha de quem foi à tumba. Anne inspirou fundo quadrou os ombros e atravessou o vão da porta.

 

Um brilhante sol vespertino pendia sobre o Loch Moy e sua frieza ainda perdurava. Quatro meninos com tambores flanqueavam a escada por ambos os lados, marcando o toque de defuntos. Pibroch, já selado, relinchou com suavidade ao aproximar-se de Anne. Ela se deteve, perto do estábulo onde se ouviam palavras arrudas, grunhidos e gritos. Quando quis  voltar naquela direção, uma mão lhe sujeitou o cabelo por detrás para  girar a cabeça.

— Quer olhar? — espetou-lhe Hawley à cara. — Por isso parou?

— Não, soltem, por favor.

— Monte no cavalo, se não quer que lhes obrigue a permanecer junto a sua irmã até que todos os homens presentes tenham acabado com ela.

Soltou-a. Com a cabeça encurvada, piscando para conter as lágrimas, Anne pôs o pé no estribo e se içou até a cadeira. Um casaca vermelha sujeitava as rédeas; outros dois, com as armas cruzadas contra o peito, montavam guarda a cada lado do animal.

Os quatro tambores formaram a ambos os lados, sem deixar de tocar esse lento ritmo. Desavergonhado e o outro soldado do Guarda Negro se alinharam atrás. Hawley ficou à cabeça, com uma satisfação intensa escrita na cara. Anne não olhou para o grupo que grunhia e lutava perto dos estábulos. Aos homens lhes tinha dado força para proteger às mulheres e aos meninos, não para isso. Para isso não.

Um pânico gelado crescia em seu interior até lhe impedir de falar, gritar ou chorar. Só era capaz de manter-se erguida na cadeira, com as costas rígida e os olhos fixos para diante. Existe uma nota de compaixão em todo estado de choque: a mente é capaz de levantar barreiras para bloquear aquilo que não pode suportar.

Enquanto o cavalo se afastava em meio de um rufo de tambores, James Ray permanecia de pé, contemplando a Jessie; a moça, meio caída contra a parede, estreitava nos braços uma manta escocesa rasgada e cheia de sangue. O inglês aguardou até que o toque de defuntos se apagou ao longe, até que o único audível foi a choramingação da mulher grávida e os chiados vitoriosos dos jaquetas vermelhas que seguiam fora. Seguiu aguardando até que se ouviu:

— Anne! — O grito apagado, repetido.

Ray, sorridente, cruzou o salão até chegar à porta. Moveu o trinco. Não abria. Voltou-se para  Jessie.

— Onde está a chave?

Não houve resposta. Ele observou o tartán que ela sujeitava contra o ventre inchado. Isso explicava a choramingação.

— Suponho que era o pai desse pirralho — disse, deslizando uma mão sob o pano destroçado, com os dedos estendidos sobre a barriga avultada. Havia algo absolutamente repulsivo nessa moça e seus olhos inchados, a cara coberta de mucos, os peitos estremecidos. Como uma cerda em zelo, isso era: animal e apenas humana.

Fechou a mão e a apertou antes de levar o braço para trás para descarregar um murro contra aquele abdômen com toda a força que pôde. Ela se dobrou em dois; a manta imunda caiu ao chão; seu chiado foi exatamente como o de um leitão.

— Onde está a chave? —repetiu.

Acaso não entendia o inglês? Talvez não. A maioria daqueles bárbaros não o falavam. Estirou a mão para seu bolso, mas então ela se incorporou, agitando os punhos, e lhe golpeou na cara. Ray lhe sujeitou os braços. Cuspiu-lhe ao rosto. O tenente voltou a golpeá-la no ventre, uma e outra vez, com major força, e quando ela caiu, chutou-a na barriga. Logo ficou de joelhos para lhe revisar os bolsos e a tombou com rudeza, enquanto ela vomitava. Sua mão se fechou sobre a chave e a extraiu. Devia ser essa.

Escarranchado sobre as pernas nuas, trêmulas, jogou uma olhada às coxas e puxou a saia para subi-la um pouco mais e descobrir as nádegas. Os montanheses passavam o tempo fazendo isso, por isso usavam essa roupa apenas decente, homens e mulheres. Segundo os rumores, em um dia de maio os brejos se enchiam de casais que gemiam e lutavam; esta, a olhos, já tinha tido a um homem em cima. E não levava anel na mão, por isso não era propriedade de ninguém.

Ray já estava a ponto de arrebentar as calças; nunca havia fornicado com uma mulher  grávida; se a esta ainda ficavam guelra, seria mais animado que a obediente submissão de sua esposa, e a ele lhe pagava para submeter aos nativos, porque terei que lhes ensinar quem mandava. Guardou a chave do porão no bolso. O capitão teria que esperar um momento mais.

Hawley não seguiu a estrada ao Invernes, mas sim conduziu a sua cativa pelos caminhos mais antigos, através do imóvel. Diante foram dois exploradores para mantê-los na rota que ele desejava seguir. Anne, que olhava fixamente para diante, com o bater de tambores lhe retumbando nos ouvidos, viu nuvens de fumaça escura no céu e também mais perto, através das árvores. Ao passar frente a duas cabanas incendiadas moderaram a marcha. Em uma delas viviam o velho camponês e o menino que, algo antes, tinham-na ajudado a carregar e descarregar seus pertences. Afastou os olhos do montão chamuscado que jazia no vão abrasado de uma porta. Encaminhavam-se para as cabanas do noroeste.

O general diminuiu o passo da procissão ao chegar à zona. O grupo serpenteou a passo lento entre os corpos destroçados e fuzilados. Henry Hawley queria assegurar-se de que ela visse tudo: Cath, violada e morta a tiros; seu bebê pendia atravessado em uma baioneta; a cabana do Ewan fumegava, já sem coberta; dentro estaria o velho Tom, ou o que dele subtraísse. As outras moradias ainda ardiam, incluída a de Meg. Teria estado ela em casa? A fumaça acre irritava as fossas nasais e percebia um aroma como o porco assado: o da carne humana chamuscada e queimada. Hawley não lhe dizia nada, embora a observava em tanto ela, intumescida, acusava um golpe atrás de outro. Anne fixou a vista no cabelo branco que se agitava entre as orelhas do Pibroch; sabia que estava agora no inferno, sem caminho de saída.

Assim continuaram seu avanço custa abaixo entre as colinas: com os tambores tocando a defuntos; passaram frente à árvore onde ela tinha recolhido ao Lachlan. Ante o Nairn, águas acima do vau por onde ela tinha tentado cruzar, perguntou-se se o cavalo voltaria a resistir, mas não foi assim, já que Pibroch seguiu à arreios do Hawley, guiado pelo inglês que sujeitava as rédeas. Primeiro lhes chegou o aroma, adocicado, metálico e sufocante; logo, o zumbido de milhões de moscas atarefadas no sangue que se coagulava e nas feridas abertas, em encher de ovos os olhos mortos e os intestinos ao descoberto. Se o que tinha passado antes era um bocado do inferno, isto era o banquete. Aqui e lá o campo se estremecia com o bato as asas dos corvos. De vez em quando um corpo trocava de posição, um membro se movia, elevava-se um gemido. Os soldados do governo examinavam aos dois mil mortos, e se escutava um golpe surdo, quando rematavam a um sobrevivente ferido. Um disparo ocasional espantava aos corvos.

Guiaram a Anne através do açougue do que deve ter sido a retaguarda jacobita. Ao bordo do ermo, vários meninos tinham cansado juntos, escancarados, mortos a tiros ali onde estavam. A pouca distância havia um moço de barriga para baixo com um buraco nas costas, faltava-lhe o braço direito. Os cascos do Pibroch chapinhavam no sangue. Não havia pausa. Se Anne fechava os olhos, a procissão se detinha esperar, deixando que a fetidez, os grasnidos e o zumbir a devolvessem à consciência. Como alívio a tantos membros rasgados, cadáveres desfeitos e olhos abertos, manteve a vista no céu até que a enjoou o vôo em círculo dos corvos. Então tratou de conservar o domínio de si mesmo. Este era seu castigo, devidamente aplicado. Os mortos mereciam sua respeitosa atenção. Para diante o chão se arrepiava em montículos triangulares, insondáveis até que, ao aproximar-se, viu que eram cadáveres amontoados sobre mais cadáveres; mais ainda, era a gente de seu clã. Posto que conhecia a disposição das forças, soube onde teria cansado cada um. Somente os MacDonald estavam desconjurado, à esquerda, mas os seus estavam onde cabia esperar.

Incapaz de apartar a cara, escrutinou os corpos dos Farquharson em busca de alguma sinal de seu irmão ou do Francis; não os viu, mas às vezes reconhecia alguma cara: Dauvit, o adivinho; o pai da pequena Catriona; um pastor que tinha visto por última vez quando atava um ataque sanguinolento sobre um cordeiro órfão. Os mortos eram difíceis de identificar pela ausência de vida, as facções rasgadas e cobertas de sangue seca. Torturava-a pensar que pudesse ver seu irmão James, seu semblante sereno, e não reconhecê-lo. Agora eram os Macintosh. Reconheceria ao MacGillivray na morte? Que profunda era a dor! Todos esses homens, que antes viviam e amavam, partiam e combatiam com tanta esperança, desaparecidos. Hawley, para assegurar-se de que os visse todos, serpenteava entre os montões de cadáveres. Entre os Murray de Atholl, ela não soube dizer se George jazia entre eles, nem seus outros tios e primos. Nem sequer lhe teria sido possível implorar que a tirassem dali.

Por fim os montículos ficaram atrás e os mortos disseminados foram raleando até que não ficou quase nenhum. Os que se viam aqui eram soldados do governo, jaquetas vermelhas aos que se estava recolhendo em uma carreta para lhes dar sepultura. Hawley deteve seu cavalo e girou na cadeira para observá-la quando passaram junto a certo grupo. Esses não eram jaquetas vermelhas. Ela não desejava olhar, não queria, mas o fez. Eram Macintosh mortos entre as filas inimizades; no bordo, Duff, o sapateiro. Algo mais para dentro estava MacBean, com um braço estendido para o Will, o pobre e querido Will, Y... OH, santo céu, mais à frente... Não podia olhar; girou a cabeça e viu que Hawley tinha a vista fixa em sua cara.

— Não implorarão misericórdia? — perguntou ele. — Nem pedirão perdão?

Ela tinha um nó na garganta. Doíam-lhe os olhos, irritados pelas lágrimas que se negavam a brotar. Não receberia a bênção da cegueira, embora só fora a das lágrimas?

  Tampouco podia continuar sem lhe ver. Girou o torso para contemplar o dourado cabelo avermelhado tendido no lodo e o sangue, esse corpo forte e bravo que ela tinha amado, estava agora quebrado como uma grande árvore derrubada pela tempestade. Se ao menos ele pudesse saber que ela tinha acudido, que tinha estado ali... Sem outra idéia que a de lhe fechar os olhos para protegê-los contra os corvos, de lhe acariciar a cara, removeu-se na cadeira. Hawley ladrou uma ordem. Os dois soldados que a flanqueavam lhe sujeitaram as pernas. Não lhe permitiriam desmontar. Não lhe concederia duelo nem alívio algum.

Afundou as unhas nas Palmas das mãos até fazer sangrar. O general se ergueu novamente nos arreios e reatou a marcha, apertando o passo.

Aeneas arrancou a última cadeia com o punhal do Fraser sem emprestar atenção alguma às feridas dos pulsos rasgados; logo se desfez do bracelete e correu escada acima. Justo quando chegou acima de tudo, a chave girou na fechadura e a porta se abriu. James Ray deu um salto atrás, surpreso.

— Capitão — saudou.

Aeneas lhe empurrou para trás para percorrer o salão com o olhar. Jessie jazia entre a parede e a escada. Um leve movimento lhe revelou que ainda vivia. Elevou a adaga para degolar ao Ray.

— A mim não, capitão — protestou o tenente, elevando as mãos. — Só lhes liberei.

— Onde está Anne? — bramou Aeneas.

— A levou Hawley.

Ray assinalou a porta.

O capitão passou o punhal à mão esquerda, usou a outra para arrancar de sua vagem a espada do oficial inglês e se lançou à carreira, seguido pelo Ray. Aeneas abriu violentamente a porta principal e desceu de um salto os degraus, olhando em redor. Um grupo de jaquetas vermelhas com voltas amarelas rondava os estábulos, atentos a algo que estava no chão. Passou um segundo antes que Aeneas identificasse o que estavam olhando e o fez para ouvir os gruídos, as risadas sardônicas, ao reconhecer os movimentos espasmódicos e ao ver as saias da mulher. Proferiu um grande uivo furioso, correu para eles e todas as cabeças giraram para ele, menos a de que estava ocupado na violação.

Eram dez contra um. Três se deram à fuga ao lhe ver; um, o sargento, desencapou uma pistola enquanto os outros se precipitaram para os mosquetes apoiados contra a parede. Aeneas lançou uma estocada ao sargento: o aço golpeou a pistola, que saiu voando, e lhe amputou o polegar. Os outros tentaram lhe mirar com os mosquetes, mas Aeneas já lhes tinha jogado em cima com a força do paroxismo. Brandiu a espada com velocidade e força sem comparação e dois dos homens se desabaram sobre o chão, um deles, quase degolado. O punhal relampejou para o lado oposto e abriu as tripas a um terceiro. O sargento ferido fugiu à carreira depois dos outros fugitivos, enquanto tentava estancar o sangue da mão.

Ficavam três.

O homem que estava em terra se levantou de um salto, com o órgão ainda ereto. Aeneas descarregou a espada de cima abaixo e lhe castrou antes de lhe transpassar o pescoço com o punhal.

O nono britânico abriu fogo e fez branco. A bala de mosquete atravessou o braço direito do Aeneas. Foi o último ato de luta do soldado antes de ficar sem ar, quando o escocês lhe cortou a traquéia.

O último homem investiu com a baioneta imersão, mas Aeneas conseguiu baixar a de um golpe. A ponta se cravou em sua manta e lhe alcançou a coxa. O soldado pôs-se a correr, de modo que o montanhês lhe lançou o punhal, que atravessou ao fugitivo entre as omoplatas. Logo baixou a vista à mulher tendida no chão.

Era Elizabeth.

— Ai, menina.

Agachou-se sobre o rosto acinzentado. A cabeça estava torcida para um flanco. Da boca saía um fio de sêmen. Tinha morrido sufocada. Baixou-lhe as saias para cobrir o corpo e se incorporou com um uivo terrível. Atrás dele um cavalo se afastou ao galope; montava-o James Ray. Aeneas correu por volta do sexto homem, arrancou-lhe a adaga das costas e o girou de um chute para lhe cortar o pescoço.

— Chefe! — Era pela metade um ofego e um chiado. Olhou de novo para a casa.

No vão da porta estava Jessie, dobrada sobre si e obstinada da ombreira. Ele meteu as armas sob o cinturão e retornou coxeando até o cadáver da Elizabeth. Com toda a suavidade possível, elevou-a para levá-la à casa. Ao aproximar-se de Jessie viu o sangue acumulado a seus pés e o que lhe corria pelas pernas.

Nos subúrbios do Invernes, Hawley voltou a diminuir o passo para compassá-lo ao ritmo dos tambores. O povo aparecia às janelas ou saía às ruas para ouvir o toque de defuntos. Assim que viam a Anne, exibida ante eles, o falatório se convertia em silêncio. Tinham apressado a sua heroína e os tambores proclamavam que ia para seu fim. Todos os pressente se esforçavam por observá-la até que a perdiam de vista. A uns quantos lhes ocorreu partir atrás dos soldados e outros os seguiram. Para ouvir que se multiplicava o ruído de pés, Hawley se voltou a olhar. Acaso esperavam um enforcamento a essas horas tardias? O sol estava baixo, assim foram levar se uma amarga decepção.

Cumberland utilizava como centro de mando uma habitação da planta baixa, na casa da viúva. Estava sentado à mesa, bebendo o bom vinho da adega. Seus cozinheiros, atarefados na cozinha, preparavam um jantar especial que ele esperava com ânsias, já que seria uma celebração. Lorde Boyd acabava de lhe entregar uma lista de prisioneiros de fila. Ainda faltavam uns quantos nomes, mas o trabalho dessa jornada resultava muito satisfatório.

— Veio o general Hawley — anunciou lorde Boyd.

Cumberland duvidava de que conseguisse habituar-se à expressão de alegria de seu general. Naquela cara ossuda, de bochechas afundadas, o deleite resultava muito desconcertante.

— Tenho a Anne Macintosh, a zorra rebelde — anunciou Hawley. — Pela rua nos seguiu uma multidão. Suspeito que querem ver um enforcamento.

Cumberland se aproximou da janela para olhar. Várias centenas de vizinhos calados se amontoavam frente à porta e mais à frente, chapéu em mão.

— Não acredito que queiram uma execução — comentou sombrio. E ordenou a lorde Boyd — Dispersem a essa multidão. Abram fogo, se for necessário. —Logo voltou para seu assento. Aquilo seria interessante. — Venha, Henry, traga sua prisioneira.

Não era absolutamente como ele esperava: uma jovenzinha extremamente bonita, que entrou com essa estranha dignidade da gente das Terras Altas. Até informado de que ela era vários anos menor que ele, tinha-a imaginado mais amadurecida, mais sólida que a moça etérea e graciosa que tinha ante ele. Ela se deteve frente ao escritório, a vista fixa adiante em vez de posar-se nele, pálida, mas serena, como se não sentisse nem temesse nada.

— Trouxe-a através do Moy e Culloden — esclareceu Hawley, — para lhe esfregar na cara a imundície que criou, mas duvido que entenda seus enganos.

— Fala nosso idioma?

— Falo inglês, sim — respondeu Anne, ao tempo que Hawley assentia. E o olhou pela primeira vez. Tinha os olhos limpos, azuis, mas vazios de toda emoção.

— Nesse caso, compreenderão que é prisioneira da coroa — disse Cumberland. — Lhes acusa de traição e de fomentar a rebelião, o qual se castiga com a morte. Têm algo que dizer?

Tinha escutado sem afastar a vista nem expressar reação alguma. Agora inspirou fundo, alto e se ergueu ainda mais.

— Transformou meu regimento em um lamentável bando de mutilados — respondeu. — Será uma honra e um privilégio me unir a eles.

 

Assim que se precaveu de que Jessie tinha arrebentado a bolsa e emanava o líquido de seu ventre, Aeneas levou a parturiente com o maior dos cuidados até a cozinha, onde o ambiente era temperado e havia fogo, água, cerveja, toalhas. Depois de deitá-la em uma cama, foi ao armário da roupa branca e trouxe mais travesseiros para lhe pôr detrás da cabeça. Teria querido sair em busca de uma mulher que tivesse tido filhos para que lhe ajudasse com isso, mas Jessie já se retorcia com os dores do parto; embora a noite pudesse ser muito longa estava muito inquieta para deixá-la sozinha.

O cadáver de Elizabeth jazia no salão e Donald Fraser seguia no porão, dormido, inconsciente ou morto; Aeneas lhe tinha lavado e enfaixado as feridas antes de liberar-se e teria que arrumar-se com esses cuidados de urgência até que a moça já não lhe necessitasse.

Fez quanto sabia e o que lhe pareceu adequado: lavar-lhe o rosto com água fria, lhe esfregar o ventre e as coxas com uma toalha umedecida em água quente. Por haver-se criado em uma cabana, tinha visto mais de um nascimento, embora nunca tivesse participado de nenhum, pois as mulheres estavam acostumadas manter aos homens adultos longe das parturientes. Sua prática tinha sido com éguas, vacas e ovelhas, e isto não podia ser tão diferente. Enquanto ela gemia e se contorcia, lhe esfregou as costas e lhe falou em tom tranquilizador, como o teria feito com qualquer animal assustado. Quando chegou o momento de empurrar tomou uma mão e passou um braço pelos ombros para lhe dar fôlego.

A filhinha do Will nasceu pouco antes do amanhecer. Sua forma diminuta cabia na enorme mão de Aeneas. Sustentou-a assim para que a mãe pudesse vê-la. O bebê movia os braços, estirava as pernas, girava a cabeça. Os dois a observaram, sobressaltados. Jessie, incorporada na cama da cozinha, acariciou-a brandamente com um só dedo. A boquinha se abriu e voltou a fechar-se, mas não pôde inspirar o fôlego da vida já que tinha nascido muito cedo; seus movimentos eram só restos de sua estadia no ventre. Quando cessaram, Jessie beijou aquela carinha morta. Aeneas depositou o cadáver no cubo disposto junto à cama.

—Já vê — disse à fatigada jovem—, criaste uma criatura perfeita, só que não estava pronta para entrar no mundo. —Aproximou-lhe a taça de cerveja aos lábios para que tragasse um sorvo. — Agora deve fazer um esforço mais.

— Não posso.

— Fará-o, porque vais viver. — Pô-lhe uma mão no ventre. — Te ajudarei quanto possa, mas tem que expulsar a placenta.

Ela tinha dezessete anos, era forte e valorosa, e a exigência da natureza lhe infundiu a coragem necessária. Quando chegou a dor, apertou os dentes e fez o que era necessário.

— Empurra com todas suas forças, Jessie — insistiu ele, enquanto pressionava com a mão depois do músculo do abdômen. — E terá acabado.

A placenta se deslizou para fora, com muita mais facilidade da que esperavam. Ela se deixou cair contra os travesseiros, exausta. Aeneas limpou tudo: jogou a massa no cubo, lavou a Jessie e lhe enxugou a cara. Depois de lhe dar outro sorvo de cerveja, deixou-a dormir. Quando acabou de enterrar o conteúdo do cubo junto ao lago já estava esgotado. Deixou-se cair no lugar do Will, junto ao fogo, e fechou os olhos.

Foi Donald Fraser quem o sacudiu para despertá-lo.

— Pensava que tinha morrido — disse, quando Aeneas se incorporou de um salto. — Tal como está...

— Jessie? —Aeneas jogou uma olhada à cama da cozinha.

— Dorme. — O ferreiro fez uma careta. A ferida do peito voltava a emanar através da camisa.

— te deite aqui — insistiu Aeneas enquanto se levantava para lhe deixar o lugar . — Esse corte é profundo e já sangraste muito. Irei em busca de Màiri.

Foi ao estábulo, sem prestar atenção alguma aos cadáveres dos jaquetas vermelhas, e selou um cavalo para baixar à forja. No dia anterior, ao perseguir os soldados, tinha vista fumaça para o norte, mas nos vizinhos da ferraria não se via nada anormal. As tropas não tinham passado além do Moy Hall. Queriam só a sua esposa.

Màiri o olhou com espanto ao lhe ver chegar assim, gasto e ensanguentado, mas se levantou em seguida. Tinha estado sentada junto à cama do Lachlan, já preparado para o enterro.

— Vieste a apresentar seus respeitos? —perguntou. — Ou me traz notícias do Donald?

Aeneas tirou a boina antes de aproximar-se da cama. Uma vez o moço tinha retornado de entre os mortos, mas esta vez tinha um tiro na cabeça. Aeneas voltou a cobri-lo e se voltou para a mulher. Era o pai de sua gente, sem que importasse a idade. Esse era seu papel e assim o sentia.

— Lamento sua perda. Foi um bom filho para vós, para seu chefe e para seu clã. — Logo voltou a colocar boina. — Donald não morreu; está no Moy. Poderá salvar a vida se lhe atende bem, por isso vim a te buscar.

Màiri apartou sua dor a um lado, já que seus temores se convertiam em esperança. Chamou a suas filhas e todos retornaram à casa grande, onde encontraram a Desavergonhado. Tinha visto, em um extremo do campo de batalha, um cadáver com pinta de ser o do Robbie Uivador; voltou para verificá-lo mais tarde, e era ele. Tinha continuado viagem depois de levar a seu amigo a casa.

— Não retornarei — repetiu. — depois do que têm feito com Robbie e as cabanas, não. Gonadh!* — resmungou. — São má gente.

Era na zona das cabanas onde Aeneas tinha vista fumaça.

—Não tem obrigação de voltar — disse ao moço. — Está a minhas ordens, e eu te necessito aqui.

Envolveram um pouco de comida e, depois de selar outro cavalo, partiram para as cabanas, onde se toparam com a mais viva imagem do desespero: sobreviviam seis dos trinta camponeses e seus filhos. Os menos lesados tinham começado a preparar os cadáveres para lhes dar cristã sepultura. Aeneas e Desavergonhado cavaram uma tumba larga, perto de onde tinham enterrado ao Seonag e ao Calum. Na cabana da velha Meg, completamente calcinada, não acharam sinais dela nem resto algum. Puseram os mortos a descansar: Cath, com seu bebê em cima do peito; o velho Tom, com sua neta.

A maior das meninas tinha sobrevivido ao incêndio, embora com dolorosas cicatrizes no rosto e no corpo. Atendia-a uma das duas habitantes e ficaria com elas. Quando os pais biológicos faltavam, os meninos do clã se criavam com quem pudesse fazer-se carrego, porque o filho de um era de todos.

Os casaca vermelhas levaram o gado, tinham assaltado o celeiro, destroçado as ferramentas e incendiado as moradias. Só ficava um cubo de ordenha para recolher a água. Não havia maneira de reparar as cabanas, embora podiam converter a menos afetada pelas chamas em um refúgio tosco mas aceitável. Os sobreviventes sãos retiraram a turfa ainda fumegante da coberta e trouxeram água para jogar sobre o resto. Todos dormiram fora essa noite e procederam a cobrir a cabana aproveitável ao dia seguinte. Quando ficou habitável e tiveram feito quanto estava em sua mão pelos feridos, Aeneas e Desavergonhado continuaram viagem até o Culloden em busca de sobreviventes.

O cenário da derrota se achava sob custódia, pois os soldados ingleses continuavam sua busca de feridos com o propósito de rematá-los. Um tênue aroma adocicado flutuava no ar agora que o vento se levou o fedor a sangue e ainda não se notava a pestilência da putrefação. Os cadáveres jaziam pulverizados por todo o pântano, cinzas, sem vida, estranhamente retorcidos, como objetos quebrados que alguém tivesse descartado.

— Por que não cruzaram o Nairn? —perguntou Aeneas.

Não esperava outra resposta que o gesto de incompreensão com que Desavergonhado se encolheu de ombros. Esse era o território de seu clã e a terra lhe era tão conhecida como seu próprio corpo. Drumossie era o pior cenário de combate possível para os highlanders. Se ele tivesse estado ali, os teria levado a outro lado do rio e os outros chefes teriam imitado seu exemplo aproveitando seu conhecimento do território. Aquilo era uma matança sem sentido que se teria evitado com facilidade de ter estado ele presente.

Não lhes permitiu caminhar entre os mortos. Um brusco oficial inglês e sua brigada os obrigaram a retirar-se a ponta de pistola. Durante a volta ao Moy passaram frente a duas cabanas incendiadas, onde outros camponeses do imóvel estavam retirando os cadáveres, assim desmontaram para dar uma mão. Quando chegaram a casa, Aeneas já não tinha forças nem consolo.

Antes de entrar tirou as roupas sujas, imundas, e se mergulhou no lago para lavá-la sangue, a morte, o pó e a fumaça. Os gansos selvagens se foram, embora os patos retornariam logo, mas não sua gente. Plantaram-se ante a opressão, sem que ele lhes tivesse acompanhado. Mergulhou-se sob a superfície e emergiu para esfregar o cabelo com energia, para logo voltar a inundar-se. Sentiu a dentada do roce de bala que tinha no ombro e lhe ardia o corte da coxa, mas seu corpo estava inteiro e sanaria. Eram seu coração, sua alma, os que estavam marcados para sempre.

A casa parecia quase normal com o Màiri e suas filhas na cozinha, se é que havia possibilidade de voltar para a normalidade. Os lares estavam acesos, a comida preparada, os doentes limpos e atendidos. Até o cadáver da Elizabeth estava lavado, vestido e amortalhado no salão. Ao dia seguinte, quando tivesse enterrado aos soldados de fora, levaria-a a seu lar, ao Invercauld, mas essa noite se sentia vazio, açoitado por imagens de brutalidade e matança. Caras mortas, corpos quebrados, seu clã dizimado, sua esposa na prisão. dentro dele se abria um vazio profundo e terrível. O que tinha feito?

O cárcere do Invernes estava lotada. Anne permanecia sentada em seu pequeno calabouço amuralhado olhando de forma ausente o chão coberto de palha. Quando chegou a noite se estendeu no duro banco, a olhar como passavam a lua e as estrelas pela janela gradeado, muito acima. Conservava a nota de MacGillivray debaixo de seu vestido, apertada contra o peito, mas não tinha derramado uma só lágrima e as celas eram um tumulto de sussurros.

Os ingleses tinham massacrado deliberadamente a um grupo de escolares presentes durante a batalha e também aos espectadores que tinham ido da cidade. As vozes perguntavam quem vivia ainda, quem tinha morrido, quem estava no cárcere, até que o sonho ou a dor as sossegavam.

Os carcereiros repartiram água em taças de metal pela manhã. Anne recebeu um cesto de pão enviado por uns amigos, explicou-lhe o guarda ao entregar-lhe, pois a única comida disponível na prisão era a procedente do exterior. Ela passou as fogaças por entre os barrotes, para as mãos que se estiravam a cada lado. O pão viajou de mão em mão e se foi reduzindo de cela em cela.

— São poucos os que sabem que estamos aqui — disse a mulher que ocupava o calabouço da direita.

— Margaret? —Anne reconheceu a voz. — É você?

— Sim — respondeu desconcertada, até que a identificou: — Anne!

Em seguida vieram todas as perguntas: o onde e o como da captura. Margaret tinha sido capturada no campo de batalha. Não tinha notícias do David, seu marido, lorde Ogilvie, e ignorava se seguia ou não com vida.

Os outros prisioneiros também se identificaram. A viúva lady Macintosh, ainda perplexa por sua detenção, achava-se quatro celas mais à frente, entre as senhoras Gordon e Kinloch. Na seguinte, entre os homens, o marido de lady Kinloch, os lores Lovat e Balmerino, e sir John Murray do Broughton. Ninguém conhecia o paradeiro de sua encantadora esposa, Greta Fergusson. Tampouco se mencionou ao James, o irmão de Anne, nem a seu primo Francis. De noite, até em sonhos, ao parecer, os nomes dos mortos lhe davam voltas e voltas na cabeça, como pedras no bolso.

Todos os dias chegava comida para ela: pão, carne, um jarro de cerveja, e ela o compartilhava tudo. Também chegavam notas, frequentemente de desconhecidos ou de gente a que ela logo que conhecia; trazia-as um guarda ou as passavam por entre os barrotes da janelinha até que caíam a seus pés como se fosse neve. Ofereciam-lhe solidariedade e esperança, palavras que ela sabia bem intencionadas, além de lhe dar notícias e dissipar o aborrecimento que estas causavam. O exército não permitia que ninguém se aproximasse do campo de batalha. Proibia-se que pais, esposas e filhos pudessem identificar a seus mortos. Não se entregava nenhum cadáver para lhe dar sepultura. Aos que fugiram feridos os perseguiu até encontrá-los e se eram oficiais os encarcerava; se não, os fuzilava. Quem lhes emprestasse acampamento ou ajuda recebiam um trato muito duro: depois de lhes roubar bens e animais, de saquear o lar, incendiava-se a casa com eles dentro. Mais adiante chegaram notícias do Moy: Elizabeth tinha morrido. depois disso Anne passou dias inteiros sentada, com a vista perdida, mas ainda não podia chorar.

Liberaram à viúva Macintosh ao cabo da segunda semana ao não encontrar provas incriminatórias contra ela. Acompanhou-a sua jovem sobrinha, lady Gordon, pois estava grávida e o nascimento era iminente. A viúva retornou ao dia seguinte para visitar a Anne, furiosa, pois a ocupação do Cumberland lhe impedia a entrada a sua própria casa.

— Tive que recorrer a amigos para que me facilitassem um leito onde dormir queixou. Logo lhe revelou as tribulações de outros. A liberação de lady Gordon tinha sido uma ceva para apanhar a seu marido, já que tinha soldados esperando na casa de sua mãe, onde nasceria o menino, embora a armadilha ainda não tinha funcionado. — portanto, não obraram por bondade — acrescentou com amargura.

  De entre os prisioneiros já se levaram ao Lovat, Balmerino, sir John Murray, lady Kinloch e seu marido. Segundo os guardas, tinham sido enviados a Inglaterra para ser ajuizados ante os tribunais.

Anne escutava sem demonstrar emoção, desolada como um ermo estéril. Nenhuma das duas esperava que os tribunais de justiça britânicos se mostrassem mais misericordiosos que o exército, que se tinha comportado de forma assassina depois de sua vitória. Os ingleses chamavam «Culloden» à batalha, pela casa que Forbes tinha nesse pântano.

— Não te dê por vencida — insistiu a viúva, estreitando os frios dedos de Anne. — Embora matem seu corpo, não deixe que seu espírito morra de dor. — E logo acrescentou em voz muito baixa para que os guardas não ouvissem. — Tenho notícias de lorde George.

— Vive? — Na pergunta havia alívio, mas nada de vigor.

— Sim — assentiu a tia. — Ele e os outros oficiais que escaparam reuniram ao exército no Ruthven; são três mil e há mais em caminho.

— Continuarão lutando, então. —Anne não entendia por que tinham cercado combate enquanto a metade do exército estava em outro lugar. Culloden se tinha convertido em uma adivinhação que a fatigava.

— Não — corrigiu a viúva, — o príncipe enviou uma carta lhes ordenando que se dispersassem. —«Salve-se quem pode», rezava a nota. — Estava zangada e rancorosa. — Aos quais apóia esse homem?

—S ó a si mesmo — disse Anne.

Na casa da viúva, Cumberland se recostou sobre o respaldo da cadeira para estudar a seu visitante. Era de noite, porque os informantes preferiam a escuridão.

— O general Hawley foi generoso com nossos recursos — disse— e nossas promessas.

— Eu cumpri. Obteve a vitória e a dispersão do resto.

— Mas seus compatriotas, antes de render-se, protegeram a retirada dos highlanders. Agora devo caçar a mais dos que esperava.

— Homem! Não se pode comprar a todo o rebanho. E devem recordar que os mercenários do rei Luis não são traidores, a não ser prisioneiros de guerra.

— Amanhã zarparão para a França — confirmou Cumberland. — Sua recompensa vai com eles. Suponho que confiam nos portadores.

— Confiaria-lhes minha vida.

— E agora esperam cruzar você também sem perigo, com seu amo?

— Era parte do preço.

Cumberland se levantou para passear pela habitação. Para fazer o que planejava, erradicar essa raça de bárbaros e pôr de joelhos a sua nação, era preciso manter a ameaça.

— O problema — disse — é que já há corações tenros que falam de misericórdia. Se ele se for, essas vozes crescerão. Não posso permitir que abandone esta terra enquanto meu trabalho não esteja completo.

— Se querem apanhá-lo fará um mártir, um prisioneiro em torno do qual a gente poderia congregar-se. França e Espanha não se estarão cruzadas de braços se acabarem com ele.

— Não me digam o que devo ou não devo fazer —l he espetou Cumberland. — Nem meu pai nem o Parlamento podem permitir o luxo de ter um príncipe na Torre, mas tampouco lhe pode deixar livre para que nos cause problemas ao outro lado do mar, onde esta rebelião pode ficar latente a fogo lento até que estale outra vez.

— Minha influência...

— Não durará eternamente — lhe interrompeu o duque. — Poderia não durar muito quando intervierem outros com adulações, sei, mas não, não pode partir até que eu diga que chegou o momento. Até que tenhamos talhado a cabeça a todos os nobres traidores, enforcado a todos os rebeldes, deportado seus partidários e empobrecido a quem proporcionou recursos. — Voltou a sentar-se para explicar o que aconteceria a seguir. O príncipe fugiria de um lugar a outro e com o pretexto de lhe perseguir, o exército iria detrás, eliminando aos simpatizantes. — Ainda ficam mais ratos que devemos fazer sair. —Quando as Terras Altas e as ilhas de Escócia estivessem finalmente submetidas, então e só então lhe permitiria retornar a França. — compreendestes?

Não houve resposta. Era óbvio que não lhe resultava atrativa a perspectiva de viver sem comodidades, entre bárbaros, por um tempo que podia ser largo. Cumberland se inclinou novamente para diante.

— Pode-se dispor uma execução discreta — sugeriu. — Nas colinas desoladas do norte, onde umas poucas tumbas anônimas jamais seriam descobertas. — apoiou-se no respaldo. — Compreendem agora?

O homem assentiu.

— Bem, terminamos. De tanto em tanto receberão instruções sobre a zona que nós gostaríamos de atender a próxima vez. — serve-se um copo de vinho.

Sua hóspede girou para a porta.

— Um momento — o interrompeu Cumberland. — Seu comportamento acordada em mim uma grande curiosidade. Duvido muito que o rei Luis desejasse o triunfo da Inglaterra.

— Tampouco que Escócia fora para os escoceses.

— Mas isso não lhe repugnaria.

— Poderíamos nos haver apropriado de Londres e da coroa britânica, mas os highlanders não nos quiseram dar isso. Assim que nós não quisemos lhes dar Escócia.

— De modo que foi por vingança. — O duque assentiu. Isso tinha sentido. — Agora poderão ver como a aplico.

A porta se fechou depois do visitante noturno. depois de alguns minutos retornou Hawley, que tinha acompanhado discretamente ao informante.

— Não parece agradado.

Cumberland sorriu.

— Pois deveria está-lo. Está a ponto de desfrutar da sorte dos irlandeses. Sempre um passo por diante.

 Começavam a chegar melhores notícias à prisão. Alguns tinham sobrevivido. MacPherson tinha escapado apesar de que o castelo do Cluny foi incendiado até os alicerces. Os Écossais Royaux, tratados como prisioneiros de guerra, tinham sido enviados a sua pátria. Com eles foram os Gansos Selvagens, mercenários irlandeses também enviados pelo rei Luis. Uns e outros haviam poupados aos montanheses quando se retiravam do campo de batalha, ação valente que tinha salvado muitas vidas escocesas. Era um alívio que a eles, ao menos, lhes tivesse perdoado.

Greta Fergusson, ao menos segundo a fofoca, estava a salvo, também grávida e escondida por amigos no Edimburgo, dizia-se. Seu marido, sir John Murray, foi conduzido a Londres, onde acessou a emprestar testemunho contra lorde Lovat; desse modo salvou a vida e saldou contas com o violador de uma das mulheres de seu clã. Desta sorte, Lovat ficou detento na torre, junto com lorde Balmerino e lorde Kilmarnock, a quem enviaram para Edimburgo.

Mas muitos escaparam ao estrangeiro. Sir William Gordon fugiu da armadilha feita para ele e fugiu sem ter visto seu primogênito.

Lochiel, lorde Elcho e o marido da Margaret Johnstone, lorde Ogilvie, tinham zarpado rumo à França. Segundo a Auld Alliance, quem era cidadãos de um destes países o eram também do outro. Ali estariam a salvo. Essa noite, algo mais tarde, Anne ouviu que Margaret chorava em sua cela, de alívio, posto que seu marido estava com vida, e de solidão, pois se enfrentava sem ele aos últimos dias de sua vida. Outras mulheres também soluçavam, assustadas ou doídas. A cela de Anne parecia assim mais opressiva. Enquanto escutava os prantos através das paredes, ansiava a liberação que lhe brindaria a morte.

A viúva, em sua visita seguinte, entrou depressa, como se não pudesse conter-se.

— Anne, Anne... — Agarrou-a pelos braços, luminosa a expressão. — Seu irmão e seu primo estão com vida!

Ela a olhou com fixidez. Depois de tantas semanas de acreditá-los mortos, aquelas palavras não tinham sentido.

— Que James e Francis estão livres?

— Não. — À tia lhe decompôs o rosto. — Os capturaram no campo de batalha, feridos, mas não de gravidade — lhe assegurou, — embora necessitem atenção. Por isso não estão no cárcere. Suas feridas estão quase curadas e logo os enviarão ao sul — concluiu, e lhe apagou a voz.

Com isso desapareceu a alegria que Anne começava a sentir. Que classe de dor era este? recuperar os de entre os mortos para perdê-los outra vez? Seu doce e gentil irmão. Seu primo, tão forte e seguro de si. Ambos teriam preferido sofrer uma morte rápida na batalha antes que a indignidade do julgamento e a ignomínia do fim reservado aos traidores. deixou-se cair no camastro, encurvada.

A viúva Macintosh suspirou. Aqueles eram dias brutais, pois as boas notícias só traziam mais dor em sua esteira.

— Tive a dois filhos de reis sob meu teto — disse, com a voz quebrada. — Espero não ver nenhum mais em toda minha vida.

Já que sua casa seguia ocupada pelo Cumberland, ela tinha decidido voltar para o Moy. Uma garota dos Macintosh aguardava fora da cela, com uma jarra e uma bacia. A viúva a fez passar.

— Diz Morag que virá todos os dias a encarregar-se do que precise — explicou. — Ela te penteará, trará-te roupa limpa e te ajudará a te lavar. É uma vergonha que tenham assim às pessoas. Aos animais os trata melhor. —Tentou novamente arrancar a Anne de seu pesar. — Estão vivos — insistiu. — Onde hoje há vida há esperança.

— Esperança do que? — perguntou a jovem.

Os julgamentos tinham começado.

Nas frias masmorras do castelo do Carlisle se processava aos prisioneiros em pequenos grupos. Primeiro acudiram os jacobitas ingleses, que jogavam a sortes cada dia: ia a julgamento quem tirava a palhinha mais curta. Os outros eram deportados às colônias, onde os vendia como escravos e lhes marcava como tais. Depois começaram com os escoceses.

— Meu pai não pode jogar a sortes — objetou Clementina. — Está mau!

O prisioneiro encarregado do sorteio alargou as palhas.

— Todos temos que fazê-lo — repôs.

Clementina foi primeira em extrair uma, logo, seu pai, e depois, os outros membros do grupo, homens e mulheres.

— Eu tenho a curta — gritou a menina.

—Tem-na quebrado — disse o pai.

Os outros estiveram de acordo em que ela tinha quebrado a sua a propósito. Seu pai mostrou a palha curta. Por alguma razão, sempre eram os homens os que foram a julgamento, nunca uma mulher ou uma criatura.

— Diga que lhe obrigaram a brigar — exclamou Clementina, agarrando-se a ele. —  diga que lhe forçaram. É o que dizem todos.

A maioria dos prisioneiros negavam haver elevado em armas contra o rei e o país. Alguns efetuavam alegações por escrito com a esperança de receber um castigo atenuado e pretextavam ter ido por ordem de sua esposa ou do chefe do clã. Essas desculpas não significavam nada para os juízes ingleses, educados em uma nação onde as mulheres careciam de poder e as obrigações do sistema de clãs eram um verdadeiro mistério. Muitos diziam algo para salvar-se: que se viram obrigados a combater sob pena de morte, por ameaças à família ou de que lhes incendiaria a casa.

Poucos se declaravam culpados. Aos culpados os enforcava pela metade, lhes baixava ainda vivos para castrá-los, lhes arrancavam os intestinos para queimá-los ante seus mesmos olhos. Também lhes extraía o coração, às vezes ainda palpitante quando o exibia ante a multidão. A cabeça ficava cravada junto às portas da cidade, como advertência do destino que esperava aos traidores. Nas cidades do norte da Inglaterra, onde teve lugar a maioria dos julgamentos, os patíbulos recentemente construídos se utilizavam todos os dias. Enforcavam aos condenados de três em três.

Estranha vez se declarava inocente a um prisioneiro, porque a clemência, quando se outorgava, consistia em que o condenado fora enforcado até a morte, sem castrá-lo nem esquartejá-lo.

Quando o pai da Clementina se despediu de sua filha, seu beijo foi o último. Ele foi ao patíbulo e ela à adega lotada de um navio; teria querido subir a coberta, sob a vela para ver, só para ver as costas que deixavam atrás. Foram a uma terra estrangeira da que jamais retornariam. Uma montanhesa das Terras Altas, cujo marido tinha sido enforcado, balançava-se ao ritmo do fluxo e cantava pelo baixo, para embalar-se:

Se estiver sozinha, meu pequeno coração branco, escura está a noite e o mar enfurecido, meus passos acham, à luz de seu amor, o caminho que me leva para ti.

 

Anne dormia com a nota de MacGillivray debaixo do travesseiro desde que Morag havia lhe trazido uma. Pela manhã, depois de lavar-se e colocar roupa limpa, colocava novamente a nota no sutiã do vestido, aninhada contra o peito. Levaria-a consigo à tumba. Quão único a mantinha corda era saber que sua vida acabaria logo.

As celas se esvaziavam e voltavam a encher-se. Centenas de prisioneiros foram enviados a Inglaterra para ser julgados; entre eles, o irmão e o primo de Anne. A outros lhes julgava e executava ali onde caíam prisioneiros. Os deportou as Índias Ocidentais a milhares, onde eram vendidos ao melhor posto para trabalhar sem salário até o fim de seus dias. Até quem recebeu condenações mais breves não obteriam jamais os meios para voltar para a pátria; a redução à condição de escravo era permanente.

Os irmãos da Margaret chegaram ao Invernes para cuidar dela. Anne recebia cada vez mais visitas, mas a situação não estava isenta de ironias. A jovem Morag trouxe uma bandeja para o chá da manhã, com taças de porcelana, muito incongruente nesse lugar tão sombrio.

— Terá que tomar o chá com seus visitantes — alegou. Ao parecer eram muitos os que desejavam vê-la.

Seu primeiro visitante para o chá foi James, lorde Boyd; o jovem estava abatido, mas ainda se ruborizava quando seus olhos se cruzavam com os dela.

— Me alegro de lhes ver — disse Anne. — Como está sua mãe?

— Afligida por meu pai — respondeu ele, enquanto tomava assento. Lorde Kilmarnock seria executado no Tower Hill, junto com Lovat e Balmerino.

— Não há clemência, pois?

— Só a de fazê-lo rápido. — Aos lordes escoceses jacobitas os decapitava; era uma morte mais piedosa que a forca aplicada a quem carecia de título nobiliário.

— Não posso me compadecer de Lovat — admitiu Anne. — Não serão muitos os que o façam. — Cinquenta anos antes tinha fugido da sentença de morte que lhe impunham as cortes escocesas por ter violado à viúva de seu irmão, filha do marquês do Atholl. — Deveram havê-lo executado faz muito tempo, mas sofro por seu pai, que é um homem amável e gentil.

Serviu o chá. Logo que recordava os tempos em que os temas de conversação eram a vida e o amor, os nascimentos e assuntos de agricultura.

— Na próxima semana partirei para estar presente — explicou lorde Boyd—, mas antes queria lhe ver.

— Há algo que eu possa fazer por você?

— Não, mas acredito que vocês gostariam de saber de seu amigo, Robert Nairn.

— Conhecem o Robert? — Anne recebeu um sobressalto. A ela voltavam em corrente lembranças daquelas semanas no Edimburgo, dias em que estavam tão cheios de vida. — Está bem?

— Encontra-se gravemente ferido. Encontrei-o dois dias depois da batalha e o trouxe.

  — Que bondade a sua. Por isso se comenta, outros o tivessem liquidado.

  — Então não sabia que poderiam enforcá-lo. — Lorde Boyd lutava com seu papel dentro de um bando tão brutal. — O atende alguém a quem também conhecem: uma mulher do Skye, chamada Nan MacKay.

— Sim que a conheço. Certa vez teve a meu cavalo em sua cozinha. Seu marido esteve a combater. Está a salvo?

— Da batalha não se soube dele, embora ela conserva a esperança. Hoje começaram a cavar grandes fossas no Culloden, para os enterros. Acredito que ela espera em vão.

Anne revolveu seu chá. MacGillivray iria a uma dessas grandes fossas, arrojado como uma cabeça de gado podre, junto com tantos outros, anônimo em uma tumba coletiva. Nada se fazia mais fácil com o correr dos dias.

— Mas Robert está aqui, no Invernes e ainda com vida?

— Por agora sim. — Lorde Boyd se inclinou para diante com seriedade. — Tem muitos amigos, lady Anne, e estão fazendo todo o possível.

As atividades desses amigos chateavam um pouco ao duque do Cumberland. As petições de liberação se amontoavam em seu escritório. Agora era Forbes do Culloden, lorde presidente da Corte Suprema, quem protestava porque a sede de sua família tivesse sido escolhida como nome para a batalha e se enfurecia pela usurpação da lei.

— A Ata da União estabelece que os escoceses deverão ser julgados por cortes escocesas, não na Inglaterra.

— Para que possam deixá-los soltos por aí? — espetou-lhe Cumberland.

— Ela é apenas uma jovenzinha — protestou o velho juiz.

— Uma jovenzinha perigosa. Joguem uma olhada a isto. — O duque pulverizou a pilha de escritos. — Estamos perseguindo os guerreiros. Teremos que perseguir também a todos os que escrevem?

O general Monopolize, que estava sentado junto a seu colega Hawley, deixou sua taça de porto.

— Só querem honrar a quem para eles é uma heroína — repôs sereno.

— Maldita seja essa honra! — bramou Hawley. Levantou-se para passear-se de um lado a outro. — Eu a honraria com um patíbulo de mogno e uma corda de seda!

— Primeiro terá que julgá-la — objetou Monopolize. — Se me tivesse derrotado, eu não estaria tão ansioso de que todo mundo soubesse.

Cumberland o observou. Era certo que a coronel Anne chamaria muito a atenção.

— Não nos fazemos nenhum favor ao nos enfurecer tanto com a gente — apontou Forbes. — Nossas tropas são brutais. Assassinam aos homens, violam as mulheres, massacram-nas a elas e a seus filhos. Arrancam aos velhos da cama e lhes incendeiam as casas.

— Para impedir que os rebeldes se reagrupem — explicou Cumberland.

— E para multiplicar o ódio? — perguntou o juiz. — No que nos convertemos?

— Sem mulheres e sem pirralhos não poderão multiplicar-se. São uma raça de selvagens cruéis e voltarão a levantar-se se não os aniquilar.

— Não é possível que esse seja seu objetivo. — O ancião juiz empalideceu.

— Falam como uma velha chata, Forbes.

— Prefiro-o a ser do o açougueiro de um povo. — Forbes estava trêmulo. — Escreverei ao rei e ao Parlamento sobre este assunto.

— Escrevam. — O duque agarrou um punhado das petições referidas a Anne para agitar-lhe na cara. — Não serão o único, mas não esperem solidariedade. Encarregou-me destruir a esses escoceses e assegurar que a causa jacobita não possa reviver jamais!

Poucos dias depois de receber a lorde Boyd, Anne se encontrou com uma visitante do mais inesperada: a esposa do tenente James Ray.

— Anne. — Helen lhe agarrou as duas mãos. — Querida minha, quanto o sinto. E pensar que meu marido tenha tido que ver com isto...

— Cumpria com seu dever — objetou ela.

— E o desfrutava. Disso estou segura. É horroroso. Me dá vontade de chorar. Dizem que lhes vão enforcar.

— Não se aflija. Estou conforme. Outros sofreram coisas muito piores.

— Conforme, você? — Helen ficou desconcertada. — Isso não se pode permitir. Foi uma inspiração, querida minha! Tenho escrito a todas mihas amigas e lhes mencionou até na corte.

— Não duvido que celebram nossa derrota e em especial a minha, ao fim e ao cabo somos o inimigo.

— O que vai, de inimigo nada. Não creia tudo o que lhes diz. Aos periódicos gosta de alvoroçar, isso é tudo. Depois de Culloden houve fogos de artifício e todo isso, é verdade, mas já não. Verão: depois de passar três dias vendo morrer com tanto sofrimento a esses moços fortes, a gente do Carlisle girou em redondo e se retirou.

— Não têm guelra para assistir ao que estão fazendo?

— Para essas atrocidades, não. — Helen se sentou no estreito beliche de Anne e estendeu suas saias. — O povo inglês é mais bondoso do que acreditam. Não todos somos como Cumberland o Açougueiro.

— Tome cuidado Helen. — Anne olhou em redor, se por acaso algum guarda pudesse ouvir.

— Não lhes preocupem — a tranquilizou seu visitante. — Estão no portão. E eu sei quando frear a língua. É algo que deveriam ter aprendido.

— Duvido-o. — Ela sorriu. Era seu primeiro sorriso em muitas semanas. — Já me sossegará.

— Talvez sim, talvez não. Não há necessidade. A União está a salvo. —Helen fez uma pausa, agradada. — Devo dizer que isso me alegra. Vocês, as escocesas, têm títulos próprios, posição social, propriedades, casas e terra. E podem lhes divorciar! Inglaterra tem muito que aprender de vocês. Eu aprendi desde que estou aqui. Mas... — Deu uns tapinhas à mão de Anne, com ar de conspiração. — Devo lhes ensinar a dirigir aos homens ingleses. Gostam que lhes siga a corrente. Isso lhes permite sentirem-se fortes e inteligentes, que as mulheres sejam dóceis e débeis. Uma vez que aprende, pode dirigi-los com o dedo mindinho. — voltou-se para o Morag, que entrava com a bandeja do chá. — Me alegra ver que sejam o bastante civilizados para lhes permitir ter uma criada.

Anne franziu o cenho, desconcertada.

— Morag não é uma criada — esclareceu. — É uma Macintosh, forma parte da família, do clã. — Seu visitante ainda parecia não compreender. — Ajuda porque assim o deseja. Nós não temos serventes nem escravos. O clã nos provê de tudo o que necessitamos.

— Que bem — ponderou Helen, — mas não precisam ajudar-se a si mesmos?

—Todos temos a obrigação de nos ajudar mutuamente. Ninguém passa fome nem carece de teto ou atenção, se a necessitar. Cada um faz sua parte.

— Compreendo — disse a mulher, embora obviamente não era verdade. — Como certo, nós também. Uma amiga minha visita seu primo Francis, que se encontra no cárcere do Southwark. Agarrou-lhe um grande afeto. Diz que é um homem galhardo e arrumado e acredito que está nascendo um romance.

— Mas se ele foi sentenciado à forca!

— Não lhe enforcarão se Elizabeth pode remediá-lo.

— Elizabeth? — Pelas costas de Anne tinha deslocado um calafrio para ouvir o nome de sua irmã.

— Elizabeth Eyre — confirmou Helen. — Sua família tem fortuna e ela é uma lutadora. Tem escrito a amante do rei para implorar pela vida de seu primo.

—A amante, não ao rei? — Anne estava surpreendida. Acaso as inglesas não careciam de poder?

— Não, não, não. —Seu visitante sorriu. — Não me está escutando. Se pedir algo a um homem lhe negará isso, embora só seja porque pode fazê-lo. Por isso damos um rodeio. Se a condessa do Suffolk decide que seu primo deve ser perdoado, o rei acabará pensando que foi idéia dele de princípio.

— Isso não é ser falsa?

— E o que importa se dá resultado? Olhem aonde lhes levou sua franqueza.

Essa mesma semana Helen assistiu ao jantar que oferecia Cumberland. Seu marido tinha sido resignado à planta maior do duque enquanto lorde Boyd estivesse ausente pelas execuções. Essa reunião seria a última antes que o jovem escocês partisse para Londres.

Só havia outro escocês presente: lorde Louden. Forbes tinha caído em desgraça e já não lhe convidava. O tema de conversação era o príncipe Estuardo e sua evasão das forças que lhe perseguiam. O exército tinha inspecionado Aberdeenshire e os Mearns, matando aos rebeldes, saqueando e assolando os condados sobre a marcha. Agora o serviço de inteligência dizia que o pretendente e seus companheiros fugiam para o norte, rumo às Hébridas.

— Sem dúvida quererão capturá-lo logo — comentou Helen.

— Não tenho nenhuma pressa. — Cumberland sorriu. — Sem sabê-lo, nos guia até certos partidários dos que nunca teríamos suspeitado.

— Outro dia tomei o chá com lady Macintosh — disse lorde Boyd. — Na verdade é uma mulher muito formosa. É uma pena que seja rebelde.

— Não por muito tempo mais — assegurou Hawley. — A semana que vem irá a julgamento.

— Que tomaram o chá? — O duque franziu o sobrecenho. — Está no cárcere, não na corte.

— Mas recebe muitas visitas — interveio Monopolize. — Formam fila fora, incluídos vários de nossos próprios oficiais.

— E suas esposas. — Helen se voltou para o duque com um sorriso coquete. — Milord Cumberland, queria lhes pedir autorização para assistir ao julgamento.

— Podem declarar contra ela?

— Pois não — reconheceu ela, com ar inocente—, mas quantas coisas teria para contar! Minhas amigas de Londres morrem por ter notícias dela.

— Sério? —Isso não agradou a Cumberland.

— Levou a guerra ao clã de seu marido e combateu contra ele. — Ela riu alegremente. — Depois lhe manteve prisioneiro em sua própria casa. É muito divertido.

O duque dirigiu um olhar fulminante ao James Ray. Este, a sua vez, observava a sua esposa com frieza.

— Seriam muitas menos rebeldes — pronunciou secamente — com uns maridos hannoverianos que as controlassem melhor.

— Conhecemos esse homem, seu marido? —perguntou Cumberland.

— É um de meus capitães, senhor — respondeu lorde Louden. — Valente e leal. No Prestonpans salvou aos poucos soldados nossos que escaparam e estava a meu lado no Moy, quando tentamos apanhar ao pretendente em sua própria casa e fomos burlados por sua esposa, coronel Anne. Depois disso foi capturado.

— O pretendente o pôs sob a custódia de sua mulher — acrescentou Ray. — Quando a prendemos, encontrei ao marido encadeado no porão.

— Têm que odiar-se, pois —refletiu Cumberland, — Não recordo que ele tenha apresentado nenhuma petição. Declarará contra ela?

— É pouco o que sabe dos atos de sua esposa, como não deu ouvidos — aduziu Louden. — Estavam separados. O general Hawley tem evidências mais condenatórias do papel que ela desempenhou na derrota do Falkirk.

— Confio em que as apresentem general — insistiu lorde Boyd ao Hawley. — Não se ofereceu ninguém mais, embora já faz seis semanas que a retemos. Pô-nos em ridículo, sobre tudo ao alto mando.

Cumberland franziu o sobrecenho. Ao Hawley não parecia lhe gostar dessa tarefa. Monopolize lhe encheu a taça de clarete.

— Valor, Henry — disse. — Sua reputação se restabelecerá, sem dúvida.

— Não há necessidade de testemunhas — esclareceu Helen. — Ela tem intenção de confessar; contará tudo, de principio a fim. OH, tenho tantos desejos de escutá-lo!

— Quer ir à forca? — sentiu saudades Cumberland. — Os outros traidores mintam com respeito a sua participação. Quem lhes escute pensará que não combatemos contra ninguém, muito menos contra esses selvagens sanguinários e assassinos que carregavam em meio de nosso fogo. Então não lhes via nada relutantes a morrer por uma causa que agora negam.

— A ela não parece lhe importar a morte, senhor — repôs lorde Boyd. — Está muito serena, como se tivesse achado a paz dentro de si mesmo.

O duque não tinha esquecido aquela cara pálida, mas bonita, aquela serena dignidade.

— Como Juana de Arco! — exclamou Helen. E olhou ao duque como se estivesse pasmada. — Imagine... Vai convertê-la na grande heroína escocesa quando morrer.

 

Era o primeiro dia de junho. O largo rio Ness faiscava sob o sol quente do verão. O vermelho campo do Culloden começava a verdear. Poderia ter retornado a paz, mas não havia nada disso. Nenhum pássaro cantava no sítio da matança. Nessas sete semanas as feridas cicatrizaram com lentidão, guardando aos feridos do julgamento e a sentença. Nas cidades e nos povos, o estalo dos patíbulos se reduziu, mas sem cessar de tudo. O príncipe foi açoitado para o norte e logo para trás por sua mesma rota. Rebocava em sua esteira a unidades do exército que assolavam as casas para violar e assassinar seus ocupantes. Conforme minguava o fluxo de guerreiros e os simpatizantes conhecidos se reduziam a uma destilação, as detenções se efetuavam por uma palavra ouvida o passar, por vestir de branco, por uma expressão de compaixão para algum condenado.

Cumberland recebeu uma carta de seu pai; em lhe elogiava por assegurar o território e os reinos unidos. «Mas não nos interessa criar mártires», dizia, «sobre tudo entre o belo sexo, cuja influência não deveria estender-se». Às mulheres rebeldes as deveria julgar na Escócia, embora fossem de alta fila, e logo as enviar ao sul para a execução da sentença, pois se considerava que seus atos eram muito escandalizadores para os ouvidos dos cidadãos ingleses. A carta do rei confirmou o curso de ação que o duque tinha decidido. Lorde Louden aguardava a ordem, mas Hawley não estava nada feliz.

— Hei aqui o documento que entregarão ao Aeneas, chefe dos Macintosh e do clã Chatton — disse Cumberland, enquanto inundava a pluma em tinta para rabiscar sua assinatura. — Assim a situação ficará limpamente investida.

— Mas não é um castigo justo! —queixou-se Hawley.

— Se a enforcassem, dariam-lhe glória e influência — replicou o duque. — É uma morte que ela parece procurar. Assim..., Separaremo-la de nossa história. — Secou a tinta e entregou o papel ao Louden. — Logo ficará esquecida e duvido que siga tão em paz.

Enquanto Louden saía para cumprir com a ordem, ele sorriu. Tinha uma solução adequada para o problema que era a coronel Anne Farquharson, lady Macintosh, e devia agradecer-lhe a seu primo, o pretendente. Feito-se justiça.

A folha da tocha cintilou brilhante sob o sol ao chegar ao ponto mais alto. A multidão reunida no Tower Hill inspirou audivelmente e conteve o fôlego. Lorde Kilmarnoch, de joelhos, sentiu a dura madeira do talho apertada contra o pescoço. A folha caiu.

O clérigo tinha ido à cela de Anne para lhe oferecer consolo em seus últimos dias.

— Ali onde vá, irei eu — lia. — E onde te aloje, ficarei. Seu povo será meu povo, e seu Deus, meu Deus. Ali onde morra, morrerei e serei sepultado.

Anne levantou o olhar a janelinha do calabouço. Essa manhã se iniciou o julgamento de Margaret e logo viriam a procurá-la. Sentia medo de morrer, mas não da morte. Desapareceriam toda a dor e o peso, porque na tumba não haveria mais tortura. O julgamento a aliviaria de culpa, porque ali o confessaria tudo e ficaria em paz. Esperava poder partir com calma para o patíbulo. Outros, aos que ela sabia valentes, não tinham podido renunciar à vida com facilidade. Do cárcere se ouviam seus gritos e suas resistências. Ela pensava no Ewan, no sofrimento do que se livrava. Queria permanecer intumescida ante a vida, não desonrar aos mortos com o desejo por parte de seu corpo de seguir vivendo. Não queria falhar no último instante.

Uma chave entrou na porta de sua cela e girou ruidosamente. A voz do sacerdote se apagou no silêncio. Devia ter chegado o momento. Ela fechou os olhos por um segundo, inspirou profundamente e se voltou. Lorde Louden apareceu no vão da porta.

— Trobhad*, devem me acompanhar — disse.

Anne ficou cegada pela luz ao sair da prisão. Que escuro e sujo era o interior, mas até com uma mão sobre os olhos reconheceu os cascos, as cernejas, as patas e o corpo do cavalo para o que a conduziam, lira Pibroch, suas arreios. Ajudaram-na a montar na cadeira, sobre a forma conhecida e o calor da besta. Nesse momento teria podido derrubar-se: que cruéis eram! Teria sido mais fácil caminhar até os tribunais, mas Louden e sua escolta não a conduziram para ali, mas sim continuaram cavalgando através da cidade. A gente se detinha olhar a seu passo e ficava fazendo comentários.

Partiam pela estrada que levava a porto de onde partiam os navios para o sul, levando ao Berwick ou a Londres a quem devia ser julgados na Inglaterra. Alguns haviam dito que se temia submetê-la a julgamento nas Terras Altas, se por acaso houvesse distúrbios públicos; outros, que até temiam lhe permitir falar. Deportado-los também partiam dali para as colônias e uma vida de escravos. Era essa a intenção, arrancar a de sua pátria, obrigá-la a viver longe e em silêncio?

Interrogou a quão soldados a flanqueavam sem obter resposta. Lorde Louden, que partia diante, não se voltou. No cruzamento de estradas, em vez de agarrar a da costa, viraram para o sul. De maneira que não haveria julgamento: só uma morte súbita. Como tinha ocorrido a tantos, levariam-na a algum lugar deserto para lhe pegar um tiro, mas ao menos seria rápido. «Pobres moços», pensou, jogando uma olhada à escolta; eram muito jovens, em sua maioria, como para que os obrigassem a fazer coisas tão se desesperadas.

Tratou de não pensar no que viria. Em troca, uma vez habituados seus olhos à luz, apreciou todos aqueles matizes de verde, o urze escuro, as árvores lustrosas, o canto dos pássaros. Sob suas coxas tinha o forte lombo do Pibroch e os músculos do cavalo se moviam contra suas pernas. No alto, o céu estava azul, listrado de finas nuvens brancas. ouvia-se cantar às cotovias que voavam fora da vista e um vento quente e leve lhe roçava a pele, lhe revolvendo o cabelo. Ali fora não havia condenação: só a terra, que fazia seu trabalho. Ardeu-lhe a crueldade de encontrar-se nela, porque abandonar esse mundo lhe faria difícil.

No Tower Hill, lorde Balmerino interrompeu ao verdugo quando este lhe pedia desculpas.

—Meu amigo, não têm por que me pedir perdão, porque o cumprimento do dever é algo elogiável.

Deu-lhe três guineas, tudo o que tinha; logo se tirou a jaqueta e o colete para depositá-los no ataúde que esperava.

— Há quem pensará que minha conduta é atrevida — disse, — mas lhes digo que surge da fé em Deus e de uma consciência limpa.

Ajoelhou-se, pôs a cabeça no talho e indicou ao verdugo que golpeasse.

A folha da tocha cintilou à luz do sol ao levantar-se para trás. Aeneas estava junto ao Donald Fraser e Desavergonhado no pendente que se elevava por cima do Loch Moy. O ferreiro tinha cicatrizado bem, mas ainda devia tomar cuidado para que a ferida não voltasse a abrir-se. Era Aeneas quem brandia a tocha. Desavergonhado cortava os ramos das árvores derrubadas, enquanto Fraser as empilhava. Estavam cortando madeira para refazer as cobertas das cabanas incendiadas. Quão camponeses tinham perdido suas moradias se mudariam assim que as reparações estivessem terminadas. Os edifícios de pedra lhes proporcionariam melhor amparo que as antigas cabanas de turfa. Uma vez mais, a folha da tocha se descarregou com uma cintilação e seu golpe surdo contra a madeira ressonou em todo o vale, do corte voaram lascas brancas. Aeneas arrancou a tocha e a brandiu outra vez.

— Olhe, chefe — anunciou Fraser.

Assinalava com a cabeça a estrada ao Invernes, ao outro lado do lago, porque de ali vinham soldados de infantaria e alguns cavaleiros.

Aeneas correu para a casa imediatamente e Fraser e Desavergonhado se lançaram atrás dele por entre as árvores. O chefe irrompeu no salão, sobressaltando à viúva Macintosh, que lia junto à janela.

— Que diabo ocorre ciod e?* — perguntou, em tanto ele corria a armar-se de espada, atravessado e pistola. Seus dois companheiros fizeram outro tanto.

— Vêm tropas — explicou ele, atendo-a espada.

Jessie, para ouvir o alvoroço, veio da cozinha e agarrou a tocha.

— Não houve já suficiente matança? — perguntou a viúva Macintosh, mas agarrou o atiçador do lar para ouvir que os cavalos entravam no pátio.

— Aqui não farão nada mais — replicou Aeneas. E girou para a porta, com a espada na mão direita, a pistola na esquerda, o punhal metido sob o cinturão, respaldado pelo ferreiro e o menino dos Macintosh, igualmente armados.

Alguém bateu na porta e entrou. Os três homens se distribuíram pelo amplo salão. Lorde Louden se introduziu na estadia a grandes pernadas.

— Aeneas — sorriu. — tenha um bom dia. — Então viu as pistolas e os aços apontados para ele. — Esperam dificuldades?

— Só se você traz — foi isso a resposta.

— Trago uma ordem para você e uma prisioneira. Você mesmo decidirá quanto de dificuldade representa. — E ordenou aos homens que esperavam fora—: Façam entrar.

Anne entrou com a escolta. Houve um silêncio de estupefação, quebrado primeiro pelo ruído do atiçador da viúva ao cair dentro do lar.

— Anne! — exclamou a mulher, correndo para ela.

Enquanto sua tia abraçava a sua mulher e os outros embainhavam as armas, Aeneas olhava petrificado a cena, sem poder acreditar que ela estivesse ali. A via pálida, mas bem. Como podia ter tão bom aspecto? Louden lhe alargou um documento.

 — Lady Macintosh tem que permanecer sob sua custódia até que entenda o engano de sua conduta e se reforme — parafraseou.

— Prisioneira minha? — disse Aeneas, enquanto embainhava a pistola e a espada para agarrar o papel e lê-lo.

— Sim, capitão. — Louden sorriu de orelha a orelha. — Esta vez o duque investiu a situação de uma maneira mais grata.

Depois de saudar a viúva Macintosh com uma inclinação de cabeça, saiu seguido por seus homens.

O chefe percorreu o documento com a vista; logo que podia entendê-lo. Anne devia permanecer como cativa dela até que exibisse uma conduta decorosa e modesta, adequada a uma esposa respeitosa de seu marido, da lei e a coroa. Não apoiaria causa alguma, salvo as que fossem aceitáveis para ele, e seu marido lhe encomendava cuidar de que ela negasse suas atividades ilegais prévias em todo momento, presente ou futuro. Levantou a vista para ela. Não se tinha movido nem respondia a calidez da viúva Macintosh, mas sim permanecia tensa e inabordável, com a vista encurvada, como ausente.

— Encontra-te bem? — perguntou a tia, preocupada.

— Estou bem, obrigado — respondeu Anne. Sua serena cortesia resultava arrepiante. Bem teria podido ser uma desconhecida em um lugar estranho.

Ao longo de sete semanas, do momento em que Desavergonhado lhe disse que a tinham levado ao Invernes, viva e ilesa, Aeneas não tinha podido pensar nela sem enfurecer-se por sua impotência. Agora a tinha ali. Sua tia tinha feito uma petição por sua liberação, como tantos outros, mas ele não podia fazê-lo sem pôr em maior perigo a sua gente acossada. Só seu posto dentro do exército inglês os protegia agora a todos, e esse posto lhe envergonhava. Não havia nada que pudesse lhe dizer.

—Quer levar  Anne a suas habitações? — pediu a Jessie.

Anne levantou a cabeça e o olhou aos olhos, alarmada.

—Não se preocupe, milady — esclareceu ela, seco. — Eu me retirarei a outro lugar.

Imediatamente ela baixou a vista, mas não antes que ele pudesse detectar seu alívio.

— Como gostam de — murmurou.

— Como gosto, diz? —estalou ele. — Nesta lamentável situação não há uma só coisa que eu goste!

Os outros afogaram uma exclamação. Anne fez uma careta de dor, mas manteve a cabeça encurvada.

— Eu não escolhi isto — disse.

Bufou. Nem sequer podia sentir-se agradecida, se isso a obrigava a suportar sua presença.

— Agora nenhum de nós pode escolher nada — lhe espetou. E se virou de costas, enquanto Jessie conduzia a Anne ao piso superior. Quando a porta de cima se fechou, a viúva se aproximou dele.

— Tenha piedade, Aeneas. Está viva.

— Apenas, posto que obviamente preferisse morrer antes que estar aqui.

— Isd, não!* É o golpe emocional. Ela se tinha preparado para que a enforcassem. Não pode ser mais amável?

Aeneas desabotoou a espada e a deixou cair.

— Tenho que seguir destruindo árvores — disse. Agarrou bruscamente a tocha que Jessie tinha apoiado contra a parede. — Há casas que construir.

E saiu. Fraser e Desavergonhado, depois de intercambiar um olhar, foram atrás dele.

A tocha se elevou com uma cintilação. Lorde Lovat atirou do pano que devia lhe rodear ao talho do verdugo. O povo amontoada no Tower Hill esperava, contendo o fôlego. Alguns diziam que teriam devido enforcar cinco vezes a esse velho, por seus crimes passados. Agora se encontrava com a fôrma de seu sapato.

A tocha relampejou ao descer.

Anne tinha adivinhado para onde se dirigiam em certo ponto do trajeto. Antes que pudesse imaginar-se executada em seu lar, lorde Louden se girou na cadeira.

— No Moy se alegrarão de lhes recuperar — disse.

Invadiu-a a debilidade, porque aquilo pintava muito mal. A esperança era algo amargo, não desejado, imerecido. Às portas do Moy Hall as rosas brancas, com seus casulos a ponto de arrebentar, pareciam mofar-se de sua volta. Em sua memória se elevou o eco repulsivo de uma resistência junto aos estábulos. Dentro estavam todos, como mudas acusações: Jessie sem sua criatura, Donald sem seu filho, Desavergonhado sem o Robbie, Aeneas com centenas de mortos entre seus clãs.

E agora, na planta alta, Jessie falava como se tivesse acontecido algo bom.

—Tenho desfeito a bagagem — disse. — Acreditávamos te haver perdido para sempre, mas eu tinha a esperança de que retornasse.

— Como podia desejar isso, Jessie? — Anne se sentou pesadamente na cama. — Olhe o que causei.

— Não foi você. — A garota se ajoelhou no chão, ante ela, para olhá-la seriamente aos olhos. — Todos fizemos o que queríamos fazer. Também meu bebê, digo-me sempre: ela preferiu ir-se com seu pai, onde estão os heróis, e não aqui, onde estamos agora. —Lhe encheram os olhos de lágrimas. — Até o Will...

Anne lhe apoiou os dedos contra a boca. Para ouvir o nome do moço via seu rosto frente a ela, tendido em meio do massacre. Invadiram-na visões de todos eles, destroçados e rasgados.

— Isd!*, cala — disse, tratando de dominar. — Os levo a todos dentro de mim, mas se os menciono, se choro por eles, sairão todos a me seguir, como antes.

— Mas não pode contê-los a todos. São muitos.

— Sim posso. É preciso.

Jessie se levantou e se sentou a seu lado, na cama, rodeando-a com um braço.

— Não podemos viver sem sofrer dano.

— Sinto-o tanto, Jessie...

— Cala você, agora — a imitou a moça, — se não querer que ponha-se a chorar outra vez. Conseguiu salvar a vida, assim deve fazer o que puder com ela.

Nesse momento entrou a viúva Macintosh, trazendo uma bandeja com vinho e taças.

— Precisa beber algo — disse. — E se você não quiser, eu sim.

— E um banho. — Jessie se levantou de um salto para ir preparar o. — Certamente no cárcere não têm banhos.

— Seria possível que me facilitassem papel, pluma e tinta? —pediu Anne.

Jessie e a viúva intercambiaram um olhar.

— Não vejo por que não — disse a tia.

— Subirei-lhe isso quando vier a te buscar para esse banho — prometeu a moça, alegremente.

Enquanto ela saía, a viúva serviu o vinho e pôs uma taça em mãos de Anne.

— O que é o que quer escrever? — perguntou.

A jovem ficou olhando aquele líquido vermelho. As janelas estavam bem abertas, e o perfume das rosas que se abriam abaixo enchia já a habitação ao calor do verão.

— O que puder — respondeu em um sussurro — a fim de impedir que outros lhes sigam.

 

— Não posso permitir que envie isto. — depois de pôr cuidadosamente as cartas na mesa, Aeneas levantou a vista para a Anne. — Não te permite falar nem escrever sobre as coisas que fez, nem sequer para obter que liberem a outro.

Fazia quase duas semanas que lhes tinha sido devolvida e ele ainda não podia acostumar-se a sua atitude. Permanecia de pé, com as mãos cruzadas frente a ela, a cabeça inclinada e a vista no chão, sem lhe olhar.

— Anne... — Tratou de falar com mais suavidade. — Alegar que seu irmão e suas primos só fizeram o que você lhes pedia não é boa desculpa, embora fora certo. Os ingleses não entendem a lei dos clãs.

— Mas o que posso escrever então?

Nem sequer suas palavras pareciam proceder dela. Pelo general, Anne se limitava a dizer o que faria e agora a via perdida.

— Implora misericórdia. Dava que estavam equivocados. Assinala o que significará sua perda para outros. Se puder colocar dúvidas sobre as testemunhas da coroa, faz-o. Culpa a um chefe só se esse chefe estiver morto ou a salvo no estrangeiro. E não deixe de explicar a obrigação do clã.

— Posso tentar, então? — Olhou-lhe fugazmente.

— Sim — assentiu ele. — Margaret Johnstone... — Fez uma pausa; agora era ele quem não podia olhá-la. — Lady Ogilvie foi sentenciada a morte. Poderia solicitar clemência.

Anne girou em redondo para sair da habitação. A viúva Macintosh, que lia junto à janela aberta, tinha escutado todo o diálogo.

— O que está passando? — perguntou-lhe ele.

— A que te refere?

— A sua maneira de falar, como se dentro dela não houvesse ninguém capaz de tomar uma decisão. Nem sequer a sentença de sua amiga lhe provoca reação alguma. Usa a aquiescencia como se fora um sudário.

— Está prisioneira.

— Venha, mulher! A Anne que conheço se haveria posto furiosa.

— Por que não o pergunta a ela? — Sua tia o olhava por cima da revista.

Porque não podia: essa era a resposta. A subordinação era uma atitude estranha, algo que os montanheses não praticavam. Pelo general, estavam acostumados a, mas bem ter problemas com o orgulho, embora ele os tinha com a culpa.

— É por mim, por isso tenho feito, por isso faço?

— Não tem feito outra coisa que ler sua correspondência.

— É minha obrigação. — Pôs as folhas na lareira e ateou fogo. — Nos fará enforcar a todos.

— O duque é um homem sagaz. Nós somos escoceses, mas você vive agora segundo as normas inglesas e tem dominada a sua mulher.

— O qual não altera o fato de que me enforcariam primeiro para apoderar-se do Moy e... — Não pôde resistir à tentação de adicionar: — e lhe deixariam sem adega que pudesse assaltar.

— De fato, deveria te reabastecer. — A viúva não moveu uma pestana. — Se deixo  que tudo venha a menos. Seu tio tem que estar revolvendo-se na tumba.

Poucos dias depois, durante o café da manhã, ele aprovou as cartas escritas pela Anne.

— Estão muito bem. — As pessoas por quem implorava eram seu irmão, sua primo, Margaret Johnstone e Jenny Cameron, mas também tinha escrito por aqueles a quem ficaria poucos defensores, pois seus chefes tinham morrido ou fugido ao estrangeiro, se não estavam na prisão. Aeneas se envergonhava mais com cada palavra. — Oxalá dê resultado.

Ela, ao outro lado da mesa, mantinha a cabeça encurvada e comia seu porridge em silêncio.

— Farei que Desavergonhado as leve a correio — acrescentou Aeneas.

— Posso fazê-lo eu? — perguntou Anne, ainda sem lhe olhar.

— O que? Ir ao Invernes?

— Por favor — suplicou ela. — Margaret se irá logo. Não posso vê-la por uma última vez? Poderia me acompanhar Jessie. — Jogou uma olhada à moça, que lhe servia o chá, mas imediatamente baixou o olhar à mesa. — Se ela quiser.

— Claro que sim — disse a garota. — Não saí desde... bom, há meses.

— Não aconteceram três meses, Jessie — corrigiu Aeneas. — Não quero que arrisque sua recuperação.

— Levo-a melhor agora que veio Morag para ocupar-se da limpeza — lhe assegurou ela.

— Não lhe acontecerá nada — interveio a viúva Macintosh. — Se pode cozinhar, bem pode viajar em uma carruagem. Deixa que Anne se despeça.

Assim ficou acordado. Desavergonhado enganchou os cavalos. Não tinha a destreza natural do Will, mas sim boa vontade. Na cozinha, onde não as ouvia, Anne ajudou ao Jessie a preparar um par de cestas com comida para os prisioneiros.

— Não tem por que fazer isto por mim, Jessie — disse. — Poderia ser perigoso.

— Faço-o por mim — esclareceu moça. — Tenho contas que saldar com os sasannaich*. Vida por vida; acredito que estará bem.

Aeneas exigiu que Desavergonhado fosse como chofer para protegê-las. A fim de poder levar armas impunemente, a moço colocou o uniforme do Guarda Negro. Seu chefe lhe entregou uma breve ordem escrita onde lhe encomendava escoltar às duas mulheres com o fim de lhe proteger se lhe davam o alto no caminho e o interrogavam. Não estava seguro de que fora prudente fazer essa viagem, mas tinha a esperança de que a Anne servisse. Preferia vê-la encolerizada com ele antes que ser objeto dessa patética submissão. Ao menos partiram com bom tempo; Jessie ia muito garbosa com sua touca branca e seu avental novo e Anne luzia seu vestido favorito. Só quando tiveram partido reconheceu seu temor de que não retornassem.

Nos subúrbios do Invernes fizeram a primeira parada ante a casa onde Anne tinha deixado ao Pibroch o dia em que presenciasse a morte do Ewan. Antes de lhes permitir a entrada, o guarda apostado na porta revisou o cesto de comida que Jessie levava. A mulher do Skye, Nan MacKay, tinha atendido a vários jacobitas feridos até que puderam enfrentar-se ao tribunal. Agora só ficava um paciente: Robert Nairn, o oficial pagante.

— Anne, a ghràidh*! — exclamou desde seu leito de doente, ao vê-la entrar. — Fàilte*. Inteirei-me de que lhe tinham liberado. Tem que gostar muito de Invernes para que retorne tão cedo.

— Eu gosto de sua gente — corrigiu Anne. — Como está?

— Sanando muito depressa tendo em conta que me espera a forca. — Sorriu com a cara torcida pela cicatriz lívida que lhe cruzava a bochecha. — Este braço me ficou quase inutilizado, embora seja um milagre que ainda o tenha e devo agradecer-lhe ao Nan, mas perdi minha beleza.

— Absolutamente — lhe assegurou ela. — Te vê... — fez uma pausa para analisá-lo. . . — interessante e pícaro.

— Deveria ver o resto de minha pessoa. — Robert sorriu de orelha a orelha. — Tenho o corpo mais interessante que se possa desejar, e nenhuma possibilidade de ser pícaro com ele.

— Assim que suas partes vitais ainda seguem intactas? — Anne sorria. Sentia-se muito a gosto com ele, sem culpas que pesassem sobre ela. Frente a Aeneas a acovardava a vergonha, uma vergonha profunda. — Quanto fica até que decidam que está em condições de viajar?

— Um mês, possivelmente mais. Nan diz que me manterá doente o maior tempo possível. Acredito que planeja uma febre, mas o que pouco eu gosto da cara que põe quando olhe essa sua faca para cortar filetes.

Conversaram até bem passado o meio-dia sobre quem estava ainda ali, quem se tinha ido e quem estava a ponto de partir. Robert se lembrou de Desavergonhado e expressou o desejo de lhe ver, mas possivelmente em outro momento. Apesar de suas bravatas, ainda padecia grandes dores, pois suas feridas internas eram graves. Anne o deixou com uma garrafa de uísque, um beijo e a promessa de voltar a lhe visitar. Ao sair, deteve-se na cozinha a falar com o Nan, que ordenou a seus dois meninos jogar em outra parte. Fora, Jessie conversava com o guarda.

A seguinte parada era a prisão. Uma vez mais o cesto do Jessie foi inspecionado. O guarda reconheceu a Anne; enquanto lhes abria o portão principal disse, brincando, que sua antiga habitação ainda estava disponível, se ela queria ocupá-la, mas não as seguiu. A cela da Margaret já estava aberta, pois havia outros visitantes: seus irmãos Tom e Susan. Todos estavam afligidos, pois dois dias depois foram transladar a Margaret ao sul para sua execução. A diferença de Anne, ela tinha atuado de acordo com seu marido e não havia perigo em executá-la, e posto que lorde Ogilvie tinha escapado, sua morte era uma maneira de castigá-los a ambos.

— Duvido que a perdoe — observou Tom Johnstone. — Estão decididos a convertê-la em um castigo exemplar.

— Posto que decidiram não fazê-lo comigo — completou Anne.

— Foi pelo Aeneas — se arriscou a dizer Tom, sobressaltado, — por sua lealdade à União.

— Não só por isso — acrescentou Susan. — Não gostavam que se escutasse sua declaração em um tribunal aberto. Já era bastante mau que te elevasse contra o rei, mas contra seu marido? Todos os homens da Inglaterra se sentiriam ameaçados.

— Pensar que eu te invejava por contar com o David! — confessou Anne a Margaret.

— Ao menos ele está livre — replicou ela. — No tribunal meu advogado o culpou a ele de minha participação, mas a verdade é que fui eu quem lhe convenceu de que combatêssemos. Agora perderei a cabeça por minha própria culpa.

— Mulher!, não a perca ainda, se se pode evitar — exclamou Anne. — Jessie?

Sua companheira, que esperava no rincão da cela, desatou-se o avental, desabotoou o vestido e o deixou cair. Mesmo assim ficou completamente vestida, pois debaixo levava um segundo avental, outro vestido e outra touca na cabeça. Anne explicou o que fariam a seguir.

— O que lhes parece? — perguntou ao confundido terceto, quando teve terminado.

— Eu não tenho nada que perder — disse Margaret, — mas o que passará com o resto de vós?

Seu irmão advertiu ao Jessie:

— Se lhe apanharem, açoitarão-lhe. Ou algo pior.

— Minhas costas é forte — replicou a moça.

— E nos imporão uma multa ou nos encarcerarão — acrescentou Susan, — mas não nos cortarão a cabeça. Adiante, pois.

Enquanto Margaret se trocava, Tom distribuiu a comida do cesto pelas outras celas. Anne e Jessie enrolaram o magro colchão do beliche e o cobriram com a manta. Na penumbra do calabouço, com o travesseiro bem disposto, quase podia passar por alguém que dormisse ali. Susan penteou a sua irmã ao estilo do Jessie e lhe pôs a touca. Logo lhe esfregaram a cara e as mãos com pó, para obscurecer sua tez pálida, que levava dez semanas sem ver a luz do dia. Anne tinha escolhido bem ao propor-lhe ao Jessie: as duas eram similares em estatura e em cor de cabelo. Quando retornou seu irmão todos estudaram o resultado.

— Pode passar — opinou ele, lentamente, — sempre que ninguém a olhe com atenção.

— Pois vamos averiguar o.

A moça se escondeu no canto da cela, para que não a visse da porta. Susan plantou sua cadeira frente à cama e se sentou a falar com o colchão, ao tempo que o ocultava à vista. Anne e Tom partiram para o portão principal enquanto Margaret os seguia de perto, com a cabeça encurvada. O guarda abriu a porta e a sustentou.

— Sua irmã não sai? — perguntou enquanto eles saíam.

— Quis ficar um momento mais — explicou Anne, temendo que ele ouvisse o palpitar de seu coração e os descobrisse. —  Eu tenho outras coisas que fazer.

—Todas mais gratas que dançar na forca — brincou o homem. E voltou a jogar a chave atrás deles.

Logo que tinha cuidadoso a quão servidora ia junto ao homem posto que ela tinha entrado com a Anne e saía com a Anne. Se tivesse cuidadoso dentro de seu cesto teria descoberto um fino vestido de senhora, mas não havia motivos para revisar o que a gente tirava da prisão.

Uma vez na rua, o terceto não perdeu tempo em felicitar-se por quão fácil tinha sido tudo. Com as mãos ainda trementes, Anne se despediu de sua amiga com um trêmulo beijo.

— Agora vete a França e te reúna com o David.

Tom ajudou a sua irmã a abordar sua carruagem e partiram para a costa, onde procurariam uma passagem segura. Anne continuou caminhando até onde a esperava Desavergonhado.

— Jessie encontrou a uma amiga e se ficou lhe visitando explicou — Lhe hei dito que a esperaríamos durante uma hora.

Embora o moço a ignorava, esperavam à mudança de guarda, que se produzia às seis em ponto. Criada-las foram e vinham sem chamar a atenção. Embora o novo guarda olhasse a Jessie, não suspeitaria que fora outra que ela mesma.

Desavergonhado se afastou para conversar com uns velhos conhecidos. A hora chegou e passou. O guarda já tinha trocado. Anne ficou dos nervos: por que demorava tanto? Por fim apareceram as duas mulheres e Jessie correu rua abaixo para a carruagem. A irmã da Margaret se aproximou também para dar a Anne um abraço de entusiasmo.

— Não pôde resultar melhor — disse em voz baixa, mas entusiasta. — continuei tagarelando como se ela ainda estivesse ali. Hei dito ao sair que não se sentia bem e que se dormiu. O guarda logo que olhou dentro da cela antes de jogar a chave. Pela manhã Margaret estará bem longe.

Susan se afastou caminhando para seu acampamento. Ao ver o Jessie com a Anne, Desavergonhado retornou para as levar a casa. As duas mulheres, sentadas atrás dele no carro, intercambiaram um grande sorriso de cumplicidade. O plano tinha funcionado perfeitamente. O coração de uma e outra começava a retomar o ritmo normal. Desde o Culloden, Anne nunca se havia sentido tão bem. Uma salva.

Lorde Louden apareceu no Moy de noite seguinte, quando estavam jantando.

— Desculpe a interrupção, Aeneas — se desculpou, — mas tenho ordens de registrar sua casa. — Enquanto os soldados que lhe acompanhavam revisavam todas as habitações, lhe explicou que Margaret Johnstone, lady Ogilvie, tinha escapado da prisão em algum momento da noite. — De uma cela fechada com chave, ao parecer.

— E que relação tem esse assunto com o Moy? — perguntou Aeneas, evitando deliberadamente olhar a sua esposa, embora notou que sua tia sim o fazia.

— Nenhuma, provavelmente. Anne a visitou ontem, mas depois houve outros visitantes e o guarda diz que estava ali quando ele jogou chave à porta, ou ao menos isso parecia. —Tinha ordens de inspecionar todos os lugares onde a fugitiva tivesse podido refugiar-se.

— Suspeita-se de mim? — inquiriu Aeneas, zangado.

— Absolutamente — lhe tranquilizou Louden, — mas como ela e Anne eram amigas. —voltou-se para a jovem, que estava sentada à mesa, com a cabeça inclinada. — Possivelmente lhes mencionou seu plano?

Anne levantou a vista e sacudiu a cabeça.

— Margaret não me comprometeria — disse. — Não fiquei durante muito momento, só falou de sua execução e logo nos despedimos. Não esperávamos voltar a nos ver.

— É o mesmo que há dito sua irmã. — O visitante parecia satisfeito. — Seu irmão desapareceu. Suspeito que subornou aos guardas. — Quando os homens voltaram de sua infrutífera busca, ele se desculpou de novo e partiu.

— Vai! Temos motivos para brindar — disse a viúva Macintosh, levantando sua taça vazia.

— Um momento — pediu Aeneas. — Acredito que Jessie vem aqui.

Abriu a porta da cozinha e Jessie entrou precipitadamente, procurando a Anne com o olhar. O alívio de sua expressão foi tão óbvio como fugaz, já que ela o reprimiu rapidamente e elevou a garrafa para encher a taça da senhora.

— Deixa disso, mulher — disse o chefe, — e espera aqui. — inclinou-se para sua esposa com uma calma glacial. — Não ficou muito — repetiu . — Entretanto, foi por esse motivo, assim deve ter acontecido após ficar várias horas com sua amiga.

Tinha contado cada minuto dessas horas, pois queria as ter a salvo em casa outra vez.

— Visitamos outros — murmurou Anne, sem olhá-lo.

— Não esteve muito tempo no cárcere — a defendeu Jessie. — Uma hora, possivelmente.

— Você também vai mentir Jessie? — espetou-lhe Aeneas.

A garota sacudiu a cabeça, angustiada.

— Isso não era mentira — repôs.

— E se te pedisse a história completa?

— Jessie não tem nenhuma culpa — protestou Anne.

Seu marido ficou de pé, empurrando para trás a cadeira, que caiu ao chão estrondosamente.

— Vá! — trovejou. — Vá, de modo que, depois de tudo, minha esposa se esconde detrás dessa aparência de submissão, né? E segue sem preocupar-se com quão vidas arrisca, verdade? Taigh na Galla ort!* E tinha que levar precisamente a Jessie? — Rodeou a mesa, furioso. — Will e a menina morreram e ela foi violada, e você, e você... — ergueu-se junto à Anne. — Você a envolve em suas conspirações!

— Fiz por própria vontade — insistiu Jessie, com os olhos cheios de lágrimas.

— Sinto — sussurrou Anne, com a vista fixa nas mãos, que mantinha cruzadas no regaço.

— Que o sente? — Isso não serve mais que para enfurecê-lo mais. — te Levante! De pé! —Assim que ela começou a levantar arrancou a cadeira  e a jogou para trás, ao outro lado da habitação.

— Aeneas! — Sua tia se levantou. — Te Serene.

— Estou sereno! — bramou ele, fulminando com os olhos a Anne, que seguia de pé, com as mãos apertadas aos flancos e a cabeça encurvada, a vista cravada no chão. — me Olhe!

Ela levantou a cabeça. Se tivesse sido um homem, ele a teria golpeado.

— Vá, pode me olhar de frente — trovejou Aeneas. — Tal como olhaste ao Louden... Para mentir! — Seu peito subia e descia em tanto ele tratava de dominar-se. — Tive uma esposa que era capaz de olhar a qualquer homem aos olhos e falar sem temor. Mas você? Você te esconde, finge, engana. Já não sei quem ou o que é.

Anne baixou novamente a vista. Sua falta de reação não fez a não ser enfurecê-lo mais. Desembainhou o punhal e, ante a exclamação afogada das outras, levantou o queixo de sua mulher com a ponta do aço.

— Demonstre isso, quando seus olhos voltaram a encontrar-se. — Me Mostre se me devolveram à esposa que eu conhecia. Tire o vestido.

—  Não, chefe, sguir dheth* — objetou Jessie. — Não.

— Fá-lo — ordenou Aeneas, sem afastar sua atenção de Anne. Sua voz soava agora perigosamente grave. — Vejamos até que ponto é obediente. tire-lhe isso   

Anne estirou as mãos para trás para desatar as cintas que lhe rodeavam a cintura. Logo começou a desabotoar a parte da frente, de cima abaixo. Fez uma pausa quando teve acabado e lhe olhou com expressão insondável.

— Basta, Aeneas — ordenou a viúva.

Ele a ignorou, observando com atenção a cara de sua esposa. Agora queria saber quando se deteria, quando revelaria o espírito que fingia acovardado desde sua volta à casa. Estimulado de forma perturbadora pela provocadora facilidade com que ela podia despir-se ante ele, também desejava estar sozinho com ela no piso alto, afastar o vestido, tocar a tibieza de sua pele e fazê-la sua outra vez, mas não ia quebrar a tensão do momento. Deslizou brandamente a ponta da adaga ao longo da abertura do vestido, até o umbigo.

— Continua — insistiu.

Ela parecia tão absorta no momento como Aeneas; seus olhos lhe sustentavam o olhar. Elevou a mão esquerda até o ombro direito e baixou o tirante. Enquanto o tecido se desprendia de sua pele e começava a cair, ela baixou o tirante do ombro esquerdo. A seda azul se foi deslizando para o chão. Uma parte de papel caiu de entre os peitos, onde estava escondido.

Anne lançou uma exclamação e tratou de agarrá-lo, mas ele foi mais rápido. Quando ela agarrou o vestido para evitar que caísse até seus pés, ele já tinha a nota na mão. Permaneceu de pé seminua, sujeitando contra o corpo o tecido enrugado com uma mão, e a outra estendida. Agora Aeneas reconheceu o que havia em seus olhos: uma muda súplica. Voltou a embainhar o punhal e desdobrou o papel para lê-lo.

 

Coronel:

Mo luaidh*, chegou o momento. Estamos em Drumossie, onde poderíamos entrar em combate  amanhã. Lorde George foi privado do comando. Necessito seu conselho antes  acabe o dia.

MacGillivray

 

Aeneas foi para trás. A letra e a assinatura lhe afetaram como se lhe tivessem golpeado em pleno coração.

— Por favor — implorou Anne ao tempo que alargava a mão. Entregou-lhe a nota.

— Te cubra — ordenou com voz rouca, áspera. — E saiam. Saiam todos!

Jessie correu para Anne para lhe ajudar a colocar o vestido e abandonar a habitação. A viúva Macintosh recolheu a taça e a garrafa de vinho antes das seguir e fechou a porta ao sair. Aeneas se derrubou na cadeira mais próxima e varreu a mesa com um braço, limpando o espaço frente a ele em meio de um repico de pratos quebrados. Logo apoiou a cabeça em cima dos braços cruzados e pôs-se a chorar, convulso o corpo a causa da dor contida durante tantas semanas. Dor pela tortura de seu povo, pelas mortes havidas no seio de seu clã e sua família, pelas perdas deles e as próprias, e pelo desaparecimento do MacGillivray, seu brilhante e bravo amigo, seu irmão, e pela dor de ter perdido à mulher que já não era sua esposa nem poderia sê-lo nunca mais, uma mulher apaixonada por um morto.

Ao dia seguinte, assim que soube que ela estava em pé, foi a sua habitação, a que antes tinham compartilhado e que ele já não podia ocupar, nem sequer em ausência de Anne. Encontrou-a sentada ante sua penteadeira, mas ao lhe ver entrar se levantou de um salto, como se lhe tivesse medo.

— Não faça isso, Anne. —Ele não podia suportar essa reação nem tampouco o abismo que se abria entre os dois. — Ontem à noite fui injusto contigo. —Ela se limitou a inclinar a cabeça. — Se pudesse te enviar a sua casa do Invercauld, faria-o, de verdade, mas deve ficar aqui enquanto não se levante a ordem de retenção.

— Sei — sussurrou ela.

— Acaso não o entende? Não há maneira de escapar. Oxalá Margaret salve a vida, mas em Angus confiscaram as terras dos Ogilvie, como também as dos Cameron, os MacGregor, os Monaltrie e os Dunmaglas. Há novos latifundiários ingleses que expulsam às pessoas. Invercauld sobrevive só porque Forbes apoiou a sua madrasta. Isabel... — Interrompeu-se. Isabel Haldane não era jovem e estava grávida pela quarta vez quando a violaram, desmantelaram e incendiaram sua casa ante seus olhos. Ela e seus filhos foram expulsos e teve que dar a luz só em um celeiro. Aeneas compreendeu que sua própria culpa, o desejo de proteger, induzia-lhe a ser muito duro. Quando voltou a falar, fez-o com pena. — Ardsheil se rebelou porque Isabel insistia. Agora ela e os Appin Stewart ficaram sem casa. Quer que aconteça o mesmo aqui?

— Sinto-o — respondeu ela em voz tão baixa que logo que resultou audível. — Não me detive refletir.

Ele ansiava agarrá-la entre seus braços, dar e receber perdão, mas não suportava a idéia de que lhe fugira outra vez com um gesto de pânico.

— A única maneira de ajudar é que colabore, Anne. te limite ao imóvel. Escreve suas cartas. Se salvas legalmente a um chefe, possivelmente salve a um clã.

Nem sequer ele acreditava nessas palavras. O governo britânico não ia apaziguar se e acabaria por descarregar o peso de sua ira também sobre os clãs leais. Uma vida aqui e lá, uma casa, uma parcela de terra, isso era quanto se podia salvar. Moy continuaria adiante, mas trocado. Ele podia manter a salvo a sua mulher, mas tinha falhado a sua gente. Ter demonstrado que tinha razão não era recompensa alguma.

 Qão único pôde fazer foi abandonar a habitação. Fora, caíam ao redor do Moy Hall as últimas pétalas da rosa branca de Escócia em uma branca chuva.

Aeneas passou quase todas as semanas do verão atarefado em transladar aos camponeses, agora convertidos em arrendatários, e em lhes atribuir as terras. As coisas pintavam bastante mal ao ter tantas baixas e foi necessário pagar a desconhecidos para substituir os ofícios que se perderam com os cansados durante a sublevação. Já não podiam sobreviver como um grande grupo familiar onde tudo girava em torno do intercâmbio de tarefas. Em adiante venderiam seus produtos, pagariam os arrendamentos e seriam auto-suficientes... se era possível sê-lo na situação de privação atual: o gado roubado, as ferramentas queimadas e as reservas de grão saqueadas; mas agora não importava o parentesco, a não ser o dinheiro. A sobrevivência não dependeria dos guerreiros, mas sim da riqueza. Os costumes antigos tinham desaparecido; jaziam mortas naquele pântano, com mais da metade de seus homens.

Anne não deixou de escrever suas missivas. Quando Desavergonhado levava a correspondência ao Invernes, ela enviava ao Morag com comida para os prisioneiros. Começaram a chegar respostas ao cabo de pouco tempo. Jenny Cameron foi posta em liberdade sem julgamento algum no Edimburgo, onde a tinha retido durante vários meses. Posto que não havia um marido ao que culpar, sua história se parecia muito a de Anne para tolerar que a expusera nos tribunais. As mulheres que pensavam por si só, que levavam armas e conduziam às tropas ao combate pela liberdade eram muito ameaçadoras para a estabilidade da Inglaterra, onde cada um sabia guardar seu lugar, e o delas não era a vanguarda. Seus amigos o tinham insinuado cautelosamente e deu resultado. A vida do Jenny, como a de Anne, foi perdoada em troca do silêncio, de que se apagasse seu papel na rebelião.

James, o irmão de Anne, escreveu para informar que lhe tinham comutado a sentença de morte e lhe tinham banido. Iria a França junto com os Kinloch, que tinham sofrido a mesma condenação, e confiava em que algum dia lhe perdoasse e lhe permitisse retornar. Francis, seu primo, também indultado, foi posto sob o cuidado da senhorita Elizabeth Eyre, com quem esperava casar-se breve, mas lhe proibiu retornar a Escócia. Anne trocou o tom de suas petições, já que de implorar clemência passou a procurar perdões.

Mas com cada carta havia menos tarefa pendente e os problemas cotidianos começaram a reclamar sua atenção em agosto, quando já quase tinha acabado aquele esplêndido verão. Primeiro levou ao Pibroch à forja. Fora, sob as árvores que filtravam o sol, Donald Fraser ensinava a sua filha maior como se ferrava um cavalo. Os velhos costumes não se deixavam morrer com facilidade.

— Sujeita com firmeza — lhe disse, enquanto a moça levantava o casco do Pibroch. — E escava. Não é questão de fazer cócegas ao animal, mas sim de arrancar a ferradura.

— Desembrulha-se bem — comentou Anne.

—Sim — confirmou o pai, orgulhoso. — Mais ainda: quer fazê-lo. Foi ela quem me pediu que lhe ensinasse.

— Antes isto que trabalhar na casa — acrescentou a moça.

— Não é dona-de-casa. — Fraser observou a sua filha enquanto tirava a última ferradura. — Tampouco aceitará tudo o que diga um marido. Não é como essas jovens do Edimburgo, que adotaram essas idéias tão estranhas das sasannaich* inglesas.

— Diz meu pai que os homens necessitam uma mulher que lhes discuta para manter o miolo acordado — acrescentou a menina até que quer discutir com ele, claro está.

— Meu miolo já está bem acordado. — Fraser sorriu.

— Fez um bom trabalho nas cabanas — ponderou Anne. — Ontem passei por ali. A filha do Ewan estava fora, lavando os cristais, embora suponha que algum dia se cansarão da novidade.

— Aeneas fez quase todo o trabalho. Eu me limitei a colocar os pregos.

A menção de seu marido lhe fez baixar a cabeça. Este a tolerava porque não ficava outro remédio e o tinha deixado bem claro.

— Sabe o que é o que mais lamento Donald? Não ter estado presente esse dia no campo de batalha, junto ao MacGillivray.

— Disso nada. Conservaste a vida e isso é o que ele teria querido.

— Levo uma vida insuportável — confessou ela. — O enviou para me buscar e eu não acudi. — Olhou ao ferreiro aos olhos. — Falhei a todos. Até ele morreu pensando isso de mim.

— Não sei por que o diz. —Fraser se arranhou a cabeça. — Sabia que sua irmã tinha interceptado a nota, que você não a tinha visto.

— Dè bha siud?* — Lhe afrouxaram as pernas. — Sabia?

— Sim, e bem contente estava de que não presenciasse o desastre em que nos encontrávamos.

— Não pensava que eu lhe tinha falhado, diz? — sentia-se enjoada.

— Como se pudesse lhe falhar! — Ao ver que empalidecia, Fraser a agarrou de um braço. — Como se fosse capaz disso!

Levou-a a um banco e chamou o Màiri para que trouxesse cerveja. Enquanto ela a bebia, o ferreiro lhe contou quanto pôde recordar: a visita da Elizabeth, a véspera da batalha; a inútil marcha de ida e volta ao Nairn, aquela noite de loucos, e a manhã da batalha.

— Como lorde George ficou ali, nós fizemos o mesmo — disse. — Era a vontade da maioria. Sabíamos que seria sangrento, mas se o príncipe tivesse ordenado carregar antes, teríamos podido chegar até os canhões. MacGillivray fez quanto pôde, mas não tínhamos nenhuma possibilidade, reduzidos como estávamos em número e com a metralha nos destroçando os flancos.

— Eu ia retirá-los do campo, mas era muito tarde. — A ela lhe encheram os olhos de lágrimas.

— Isd*, não te atormente. Não tem feito nada pelo que deva pedir perdão.

Fraser se levantou para verificar o trabalho de sua filha e deu a cada ferradura um golpe de compromisso, se por acaso a garota não o tivesse feito de tudo bem. Anne se enxugou as lágrimas. O duelo era um luxo que não podia permitir-se, pois sua culpa era maior. Tinha antepor a liberdade e a independência à vida quando os levou a guerra.

Voltou para o Moy a lombos do Pibroch e encomendou a Desavergonhado a cuidar do cavalo e lhe pôr a pastar com os outros. Aeneas e a viúva Macintosh já estavam jantando. Junto ao prato de Anne havia uma carta.

— Não vais abrir a? —açulou-a Aeneas. — Poderia ser outra notícia boa.

Ela sacudiu a cabeça. A escritura lhe era familiar e preferia esperar a estar sozinha.

— Eu também tenho boas notícias — anunciou à senhora. — O duque do Cumberland retornou a Londres e desocupou minha casa.

— É uma pena que não se levasse a suas tropas — comentou seu sobrinho.

— Suponho que ainda conviveremos um tempo com os ingleses, enquanto se pensem que há um príncipe escondido debaixo de cada pedra, mas ao menos agora posso lhes deixar esta casa livre.

  — O que diz? — Aeneas sorriu. — Havendo ainda vinho na adega?

  — Esta tarde farei outra visitinha — replicou a senhora em tom zombador, com um sorriso pícaro, — antes que revise sua adega.

Estava ansiosa por partir e ver no que estado tinha ficado a casa do Invernes. Ele ofereceu trocar seus planos para acompanhá-la, mas a viúva não quis nem ouvir falar do tema.

— Posso ir com Desavergonhado — insistiu.

Anne seguia pensando na missiva que tinha diante. A levou ao seu quarto assim que pôde escapar e a abriu junto à janela para lê-la à luz do sol. Era do Robert Nairn. O médico militar inglês lhe tinha declarado apto para a viagem.

Fará-me bem respirar um pouco de ar do mar. Ao parecer, vários dos liberados sob palavra no Edimburgo me recordam o bastante bem para emprestar testemunho contra mim. Isso ensinará a não flertar com o inimigo. Confio ser o último escocês ao que enforquem por isso!

Pelo resto, expressava-lhe seus bons desejos, agradecia sua ajuda, sua amizade e a boa comida que lhe tinha enviado durante sua convalescença. Além disso, pedia-lhe que não se atormentasse pensando que com tudo isso ela tinha contribuído a sua cura e, portanto, a que estivesse em condições de viajar para ser julgado; só lhe tinha feito mais gratos os dias de repouso em cama. Ao dia seguinte lhe embarcariam para levá-lo a cidade do Berwick, onde seria julgado. A carta concluía com as seguintes linhas:

 

Espero renovar minhas relações com certo severo pastor da Igreja episcopal. Sem dúvida, já tem um assento preparado e bento na primeira fila. Vive e ama muito, Anne, que não existe outra coisa.

Teu, infelizmente com boa saúde,

Robert

 

Ela deixou cair a mão e ficou olhando a janela aberta. Que sentido tinham todos esses meses de convalescença? Era o oficial pagante dos jacobitas. Apesar de sua piada, para lhe enforcar não foram necessitar o testemunho dos prisioneiros liberados sob palavra. Haveria suficientes evidencia escritas para lhe executar cem vezes. Mais à frente do lago, Aeneas se afastava a cavalo, entre as árvores e abaixo, no pátio, Desavergonhado enganchava os cavalos. A viúva Macintosh devia estar em sua habitação, preparando a bagagem.

Anne deixou a carta em cima da penteadeira, saiu ao corredor com o maior sigilo possível e se encaminhou às habitações que seu marido utilizava naqueles momentos.

O coração começava a palpitar com mais força em seu peito quando entrou na estadia. A cama do Aeneas parecia, mas ali flutuava algo de sua presença, uma leve desordem. Sobre a cômoda descansava uma garrafa de uísque, enche em suas três quartas partes, e um copo. O ambiente ouvia virilidade, tão próxima como se ele estivesse a suas costas. Resultava terrorífico. Até sentindo-se como uma delinquente, revisou os roupeiros. O jamais sentiria falta dos objetos que procurava. Assim que as teve na mão se deu a volta para sair dali. A garrafa de uísque atraiu outra vez sua atenção. Agarrou-a também e partiu.

Mais tarde, no piso de abaixo, Jessie jogou uma olhada ao cesto coberto.

— Para que lhe tinha levado isso acima?

— Para pôr dentro uma surpresa — respondeu ela, enquanto levantava parte do pano para encher o de comida. — Tem algum pote de potted hough?

— Nas cabanas não há nenhum doente — advertiu Jessie, enquanto agarrava um pote pequeno.

— Já sei, mas devo levar algo quando vou de visita.

Desavergonhado atravessou a cozinha atrás delas, carregado com a bagagem da viúva embora não ia vestido para ir à cidade.

— Não vai de chofer? — inquiriu Jessie.

— Não, o chefe me tinha pedido isso, mas a viúva trocou de idéia. Já sabe como é.

— OH, as mulheres — se solidarizou Anne.

No exterior, a senhora esperou ao sol a que Desavergonhado carregasse o baú depois do assento da carruagem.

— Deveria lhes acompanhar — grunhiu ele.

—Sempre conduzi sozinha, desde antes que você nascesse — lhe replicou ela. — E os soldados ingleses não incomodam às pessoas do Moy. Isd*, moço, me deixe em paz.

Anne esperava com o cesto coberto aos pés.

— Posso me despedir e te dar as obrigado? — Deu um abraço à viajante. — Tapadh leat*.

Feito isso, recolheu o cesto e partiu para as cabanas, enquanto a viúva Macintosh se despedia do Jessie e Morag.

Dez minutos depois, a um quilômetro e meio da casa, a mulher deteve o carro sob algumas árvores e ficou esperando. Anne não demorou a aparecer através do bosque. Colocou o cesto junto ao baú e subiu ao assento.

 

 — O melhor povo é o que mais recebe maus tratos — se queixou o guarda, ao ver o uísque dentro do cesto.

— Isso não é para ele — sorriu Anne, — a não ser para o Nan, pelo bom trabalho que tem feito ao curá-lo para que lhe enforcassem. Talvez compartilhe um gole contigo, se te agradar.

— lhe digam que o traga quando tiver escurecido — pediu o homem, — para que não vejam nada.

Dentro da casa, o menino menor do Nan pressentiu possíveis problemas e se escondeu sob a mesa. O major espiava depois das cortinas da cama. Nan estava afligida por perder a seu paciente. Robert, sentado ante a mesa, tentava convencer a de que ela tinha feito um bom trabalho e de que, se o governo ia desfazer o muito em breve, isso não era culpa dela, mas sim dele, mas quando Anne esvaziou o cesto jogou mão, não da comida, mas sim do uísque.

— Uisge beatha* — disse, — a água da vida.

— Oxalá o seja — murmurou Anne, — mas isso é para o Nan. A comida, para os meninos. E isto, para ti. — Retirou o pano que cobria o fundo da cama. Debaixo, pulcramente pregada, havia uma levita e um chapéu bastante esmagado. — Aeneas não os usa nunca — acrescentou, fazendo uma careta. — Talvez sejam de sua desencaminhada juventude, lá na França.

— Os franceses são mais elegantes — brincou Robert. — Acredito que me enforcariam só por isso.

— Não lhe pendurarão — assegurou Anne enquanto pinçava debaixo de suas saias com a mão. — Sairá daqui vestido com isso. — E se tirou uns calções, que trazia postos sob o vestido. —  Procurarão um guerreiro de tonelete.

— Encantador. — Robert sorriu de  orelha a orelha. — Alegra ver que ao menos fazem jogo.

— Tenho uma parte de linho branco muito rígido — recordou Nan. — Poderia te fazer um chapéu  para te fazer passar por clérigo.

O plano era singelo. Justo antes de que soasse o toque de silêncio das dez, assim que tivesse escurecido o suficiente, Nan distrairia ao guarda lhe convidando a beber uísque com ela; então, Robert se escapuliria pela porta. Ninguém repararia nele uma vez estivesse na rua. Anne lhe aguardaria com o carro nos subúrbios da cidade e viajariam durante a noite ao Portsoy, onde ele poderia embarcar-se rumo à França.

— Durante a noite? Mas notarão sua ausência.

— Só quando for muito tarde — lhe assegurou Anne. — E Aeneas não me denunciará.

— Hei aqui um casal apaixonado — suspirou Robert.

— Não exatamente — replicou ela, mordaz, — mas ele não me delatará. Agora tem muito que perder.

As horas de espera prometiam ser duras. Anne retornou a casa da viúva Macintosh, em cuja bagagem Anne tinha tirado do Moy suas pistolas e um arasaid*. Em seguida, ambas dedicaram o intervalo até a noite a limpar para apagar da casa todos os rastros da ocupação recente.

A garrafa de uísque tinha desaparecido da cômoda e Aeneas se precaveu imediatamente essa noite quando entrou em sua habitação, onde se vestia para jantar. Sua tia era incorrigível, mas ao menos poderia lhe haver deixado a taça com a que ele bebia antes de deitar-se. Abaixo o comilão estava deserto. Enquanto esperava a Anne abriu a correspondência do dia. A primeira carta era do Forbes e incluía uma cópia da Ata de Proscrição, recentemente promulgada pelo Parlamento. O velho juiz não a passava. «É Escócia quem deve decidir as leis para os escoceses», escrevia. «Isto é uma paródia da União».

A normativa endurecia a antiga Ata de Desarmamento, e era pior do previsto pelo Aeneas em um princípio. Enumerava e proibia todas as armas das Terras Altas: «claymore, tarja, adaga, facão ou atravessado, pistola, mosquete ou qualquer outra arma de guerra». Se decretava a destruição de todas as armas ao norte do rio Clyde. O homem ou a mulher que conservasse, levasse ou utilizasse qualquer delas seria encarcerado até o pagamento de uma onerosa multa. O trato para os insolventes era duro: os homens seriam enviados a América para combater nas filas do exército britânico e as mulheres cumpririam uma pena da prisão de seis meses. I a reincidência de um ou outro sexo seria castigada com a deportação às colônias, onde se fariam sete anos de servidão.

A ata proibia a seguir a roupa típica das Terras Altas, as gaitas de fole e o tartán, salvo dentro das forças armadas, e obrigava a todos os professores de escola a emprestar juramento de lealdade à coroa, sob penas idênticas. Era desolador. A cultura dos highlanders seria erradicada; sua linguagem, denegrido, e aos meninos lhes ensinariam mentiras.

Abateu-lhe a impotência. Os tinha ajudado a que acontecesse isto. Todos o tinham visto vir: uma dominação gradual que, da União, vinha devorando pouco a pouco a existência tribal. Anne combatia para impedi-lo enquanto ele se limitou a salvar o máximo possível. E tinha razão. Aeneas desejou que baixasse ao comilão. Se aquilo a zangava, ao menos poderiam falar com franqueza. Jogou uma olhada à segunda carta que estava escrita em fino papel timbrado e provinha da corte real inglesa. Ordenava-lhe apresentar-se com sua esposa em Londres, onde assistiriam a um baile de celebração pelo restabelecimento da paz.

— Taigh na Galla ort!* — amaldiçoou. — Primeiro nos destroem e logo querem que dancemos!

E a jogou no chão; depois chamou a Jessie e a mandou procurar a Anne para saber se pensava lhe acompanhar durante o jantar. A garota voltou ao cabo de poucos minutos.

— Não está acima.

— Saiu?

— Depois da comida, quando partiu a viúva. Ia às cabanas.

— Mas a viu retornar?

Jessie negou com a cabeça.

— Não lhe dei importância. Poderia ter entrado enquanto eu estava atarefada em algum lugar, mas não é possível que tenha estado fora todo este tempo. Já é quase de noite.

— lhe diga a Desavergonhado que me sele um cavalo fresco.

Correu escada acima para a habitação de Anne, com um nó no estômago. Na penteadeira estava a carta que ela tinha recebido esse mesmo dia. Entreabriu os olhos para lê-la naquela luz escassa vespertina e a frente foi povoando de rugas à medida que conhecia o conteúdo da missiva. Agora duvidava seriamente de que sua esposa tivesse sofrido algum percalço no caminho. Abriu violentamente a gaveta onde ela guardava suas pistolas e, como temia, estas tinham desaparecido. Aeneas voltou depressa para sua própria habitação para vestir-se com o uniforme do Guarda Negro; logo se ateu a espada, colocou uma pistola sob o cinturão e correu ao piso inferior atrás de seu cavalo.

Nan MacKay, à porta de sua casa, enchia outro copo para o guarda e preenchia o seu. plantou-se por diante dele para lhe obrigar a estar de costas à porta. Não tinha costume de paquerar e tampouco lhe resultava fácil, posto que ele era inglês e ela só falava gaélico, mas Robert lhe tinha ensinado uns conhecimentos básicos e ela se esmerava tanto como podia. Sorria, encolhia-se de ombros, olhava-o aos olhos, fazia pergunta e dava respostas que ele não podia entender, nem tampouco ela. De qualquer modo, o homem parecia desfrutar.

Robert transpôs a soleira de dissimulação enquanto o soldado festejava a gargalhadas sua própria piada. Nan se uniu às risadas, como se soubesse onde caía a graça, em tanto ele se escapulia rua abaixo e desaparecia muito em breve na escuridão. Ela serve mais uísque no jarro de lata do guarda para brindar com ele. Entreteve-lhe um pouco mais, mas voltou para interior da casa assim que soou o toque de silêncio.

Anne esperava ao fugitivo na carruagem aos subúrbios da cidade. Ateu-se um pouco mais o arasaid* para proteger do frio noturno, e assegurou melhor as pistolas entre as dobras do mesmo. Tinham ficado as dez, e já se passaram, por isso estar fora seria perigoso, mas nesse momento apareceu Robert e subiu a seu lado. Parecia de pés a cabeça, o clérigo que não era. O sorriso iluminou o rosto da coronel enquanto agitava as rédeas; o carro partiu para passo tranquilo. Custava conter-se para não galopar, mas isso teria chamado a atenção. Assim que estiveram longe das casas ela açulou ao cavalo até pô-lo ao trote rápido e se dirigiu ao oeste, rumo à costa.

— Obtivemo-lo! — exclamou Robert. — Em efeito — conveio ela com outro sorriso. — É uma heroína, coronel Anne. — Eu? Não! É Nan quem correu o maior perigo. — Não podem demonstrar que me ajudou, verdade?

— Não. Interrogarão-a, mas é muito pobre para te haver comprado a roupa ou pago o transporte. Enquanto mantenha a boca fechada terão que deixá-la ir.

— Minha família se encarregará de que nunca mais passe necessidades. — Seu semblante, deformado pela cicatriz, tornou-se sombrio à luz da lua. — Jamais esquecerei isto. Esperança, esperança de viver. — Lhe encheram os olhos de lágrimas. — Antes não sabia o que significava perder algo tão normal.

— Não chore — lhe disse Anne, reprimindo ao cavalo para poder lhe rodear com um braço. — Se me faz começar, já não pararei mais.

Interrompeu-lhes o ruído de uma cavalgadura que vinha atrás deles, ao galope. Anne agarrou as rédeas.

— Não acelere — vaiou Robert. — A pressa cheira a culpa. lhe deixe passar, quem quer que seja.

O cavaleiro não passou de comprimento, mas sim diminuiu o trote ao chegar junto a eles e alargou uma mão para agarrar o cabresto. Ao ver que detinha o cavalo do carro, Anne extraiu uma pistola de seu arasaid* e lhe apontou à costas. Nesse momento ele se girou. Era Aeneas.

— Plus ça change... — disse, arqueando uma sobrancelha. — Nada troca, salvo pelo fato de que esta vez não partirei. Terá que disparar.

Ela baixou a arma.

— Por favor, Aeneas — suplicou. — Lhe matarão se não lhe ajudo a escapar.

— É seu marido? — perguntou Robert.

— Em efeito — respondeu Aeneas por ela com voz dura—, e posto que a comprometeu, o que pode me importar que lhes matem?

— A honra de sua esposa não corre nenhum perigo comigo.

Ele levantou uma mão para silenciá-lo, alerta a um ruído que provinha de mais adiante.

— Mas sua vida sim — espetou.

Agora eles também o escutaram: eram passos de marcha na estrada e vinham para ela.

Aeneas passou da cadeira à carruagem e enganchou as rédeas de seu cavalo ao estribo.

— Coloque-se atrás do assento! — ordenou ao falso clérigo. — Depressa!

Robert se arrojou por cima do assento e se meteu debaixo. O chefe empurrou a Anne para que ocupasse seu lugar, tomou assento, encerrou-a entre seus braços e plantou a boca contra a dela.

Essa brusca intimidade sobressaltou a jovem: o calor corporal, os braços que a estreitavam, sua cara tão próxima, a pressão de seus lábios, seu fôlego contra a bochecha. Aeneas interrompeu o beijo para lhe aproximar a boca ao ouvido.

—Tira essa pistola da vista — murmurou — e tenta atuar como se isto você gostasse.

Ela escondeu a arma entre as dobras da manta e, quando a boca de seu marido voltou a procurar a sua, rodeou-lhe o pescoço com os braços. O calor de seus lábios se moveu contra sua pele, despertando um desejo familiar que cresceu até converter-se em um anseia se desesperada. O aproximou o corpo e se apertou contra ela, estreitando-a com o braço direito. Entre os dois, sua mão esquerda procurou a pistola que levava a cintura. Os pés que partiam (eram mais de dois homens) estavam já muito perto. Talvez passassem de comprimento.

— Alto! — Os pés se detiveram. — Né, vós!

Aeneas interrompeu o beijo. Seus olhos brilhavam na escuridão, fixos nos de Anne.

— Justo quando a vida se torna interessante — disse, com aquele meio sorriso quase esquecido. E se voltou a olhar sem soltá-la, com uma mão entre os dois, dissimulando a pistola, e a outra na cintura de Anne, à vista de quem falava.

Ela também se virou. O homem que os chamava era um sargento com o mosquete na mão e o acompanhavam três cabos ingleses, com a arma ao ombro. Um deles estava atrás do sargento, que se tinha detido junto ao cavalo, de cara ao Aeneas. Os outros dois esperavam perto da cabeça do animal de tiro. Eram do regimento do Wolfe: jaquetas vermelhas com lapelas amarelas, uma patrulha de vigilância de volta à cidade. Todos pareciam divertidos. Anne sentiu que a mão esquerda se esticava contra sua pistola. Não poderia desencapar e disparar antes que o sargento. Ela também deslizou as mãos entre as dobras de seu arasaid* para agarrar suas duas armas.

— Capitão, né? — comentou o sargento, ao reparar no uniforme do Aeneas. — Têm um nome e um grau, sem dúvida, e alguma ordem que cumprir para estar fora a estas horas.

Seus homens soltaram uma risada zombadora; obviamente pensavam que um encontro clandestino nessa estrada deserta era exatamente o que parecia: uma aventura adúltera.

— Não poderiam economizar rubores à senhora, sargento, e continuar seu caminho? —replicou Macintosh, enquanto soltava a Anne.

Desataram-se mais risadas dos três cabos. O sargento sorriu de orelha a orelha, como se compartilhasse a brincadeira, e moveu apenas o mosquete. Na mão direita não tinha polegar.

  — Nos ocuparemos da senhora — bufou enquanto a suas costas estalava uma gargalhada grosseira. — Você, vá e atenda o seu.

Anne disparou através do tartán. A bala fez um buraco redondo na frente do sargento. Aeneas extraiu a pistola, apontou e abriu fogo em um só movimento, derrubando ao cabo situado atrás do morto. Enquanto ele saltava a terra e desembainhava a espada, ela tirou a outra pistola e disparou contra o terceiro cabo. Seu marido rachou o pescoço do quarto com o aço. Os cadáveres se derrubaram na estrada.

Algo se agitou atrás do assento: Robert apareceu à cabeça para jogar uma olhada e ficou boquiaberto ao ver aqueles quatro corpos tendidos, a cada lado do cavalo de tiro. Logo deixou escapar um assobio grave.

— Menos mal que estamos todos no mesmo bando.

— Não é a primeira vez que me encontro com estes. —Aeneas embainhou sua espada e arrastou o cadáver do sargento, o do polegar amputado, para apartá-lo do cavalo. — Com este, quanto menos. Faz tempo que deveria havê-los matado.

— Devemos nos dar pressa — os insistiu Anne — se por acaso se ouviram os disparos.

— Estão em condições de montar? — perguntou Aeneas ao Robert.

Ele respondeu com um gesto afirmativo e desembarcou da carruagem.

— Agarrem meus arreios. — Macintosh lhe jogou as rédeas. — Devem cruzar o Nairn e ir ao Elgin, onde o ferreiro lhes facilitará dinheiro pelo cavalo e lhes levará a Lossiemouth para lhes embarcar em um pesqueiro.

— E vocês se sairão bem?

— Se podemos nos afastar sem ser vistos, sim, mas quando perceberem sua fuga e encontrarem estes homens ganharão uma boa reputação como guerreiro.

O fugitivo conduziu o cavalo até o lado de Anne e se inclinou para lhe dar um beijo.

— Se algum dia te cansar dele — lhe piscou os olhos um olho — envia-me    

— Te cuide, Robert — rogou ela enquanto Aeneas voltava a ocupar o assento contiguo. — Que Deus te acompanhe.

Por algum motivo inexplicável, os olhos lhe encheram de lágrimas.

O jovem oficial pagante voltou nas garupas e esporeou o cavalo para afastar-se depressa até perder-se na noite. Aeneas sacudiu as rédeas com uma seca ordem ao cavalo de tiro, e partiram. Anne ia cegada pelas lágrimas, por muito que as enxugasse. Na garganta lhe crescia um nó. Enquanto ela escondia a cara no pano abrigado do arasaid* e soluçava com o coração destroçado, o carro foi agarrando velocidade. Levava-os através da noite rumo ao Moy, ao lar seguro.

Ainda chorava, com profundos soluços torturantes que lhe sacudiam todo o corpo, quando se detiveram no pátio. Aeneas chamou gritos a Desavergonhado para que se ocupasse do cavalo e logo a tirou nos braços do assento para levá-la dentro, escada acima, a sua habitação, onde a deitou na cama. Ela escondeu o rosto entre o travesseiro enquanto o corpo lhe convulsionava por causa dos soluços. Jessie não demorou a entrar com uma bandeja provida de cerveja e vinho.

— Também preparei chá — informou. Assim que jogou uma olhada à cama viu o buraco aberto no arasaid*. — Está ferida? Dispararam-lhe?

— Não. —Aeneas meneou a cabeça. — Só sofre. Não te apure pelo chá.

— Sobram-lhe motivos — afirmou Jessie. — Chorar lhe fará bem.

E os deixou sozinhos.

Aeneas passou toda aquela noite estendido junto à Anne, abraçado a ela, lhe acariciando o cabelo, murmurando palavras de amor e consolo. Gradualmente os soluços se foram acalmando até cessar. Por fim, exausta, dormiu entre seus braços. Ele passou comprido momento com a bochecha apoiada em sua cabeça, inspirando o aroma do sonho de sua mulher. Não lhe tinha disparado, não pôde disparar mesmo que acreditou que ele punha em perigo seu resgate; pelo contrário, pediu-lhe ajuda. Não a tinha perdido. Ela era quem tinha disparado o primeiro tiro; assim lhe salvou a vida, mas ficou exposta, confiada em que ele a apoiaria. Confiava nele? Não, não a tinha perdido, ele era o que a tinha afastado. Passou horas assim, atormentado por sua própria culpa, até que ao fim dormiu.

Quando despertou, Anne já não estava.

 

Anne conduziu ao Pibroch a passo lento pelo cenário da batalha, luminosa graças ao brilhante sol matutino, onde a aprazível manhã impunha sua quietude. A natureza devolvia a vida a essa terra: a erva silvestre da montanha formava matos verdes entre as matas de urze purpúrea e até as sarjetas alargadas das fossas quase pareciam estar em harmonia com o ambiente.

A jovem caminhou junto a elas com lentidão; sabia que ele estava ali, embora não fora possível determinar o lugar exato, mas não procurava o paradeiro dos restos do morto, a não ser o lugar de seu último instante de vida. Não estava segura de poder achar o lugar correto até que viu a pedra. «Poço dos Mortos», rezava. «Aqui caiu o chefe dos MacGillivray».

A jovem se ajoelhou frente a ela, extraiu o punhal e afundou a folha no chão para abrir uma greta na terra; logo tirou do vestido a nota do Alexander e contemplou outra vez o texto. Ele estava presente nessas linhas, era seu selo pessoal, parte dele, o nome estava escrito de seu punho e letra. Passou longo momento ali sentada, com o papel entre as mãos. Por fim o levou aos lábios, voltou a pregá-lo e o meteu no pequeno sulco que tinha aberto.

— Para que saiba que vim — sussurrou.

Usou o punho do punhal para unir os borde do corte e jogou terra até fechar sobre o papel a terra ferida. Depois de limpar a folha na erva, voltou a meter-lhe debaixo do cinturão e se inclinou para diante para seguir com a gema dos dedos a inscrição da pedra.

— Slàn leat, mo luaidh* — se despediu. —  Adeus, meu amor.

Incorporou-se e tomou as rédeas do Pibroch, lista para partir, mas ao elevar os olhos viu como seu marido a observava perto dali. Estava de pé perto de um arreio a escassos metros dela. O chão esponjoso tinha impedido que ela ouvisse as pisadas de seus pés e as dos cascos do cavalo. Caminhou para ele e se deteve quando o teve ao alcance da mão. Então o olhou aos olhos.

— O detalhe da pedra foi precioso — afirmou sabedora de que era ele quem a tinha posto ali.

— Eu também lhe queria.

— Sei. —A noite anterior, por salvá-la, ele tinha arriscado sua própria vida por um desconhecido. Era o que tinha feito sempre: tratar de proteger a seus seres queridos. — O sinto muito. Dei-te um mundo cheio de perdas e grande dor.

Aeneas fechou os olhos por um momento, sem que ela soubesse se era por sofrimento ou alívio; logo lhe apoiou as mãos nos ombros.

— Não, Anne, 's meus' a tha duilich* — disse. — Sou eu quem deve estar arrependido e envergonhado. Isto não teria terminado aqui nem deste modo se tivéssemos atuado juntos. Meu lugar estava ao seu lado.

Deslizou-lhe os braços em volto da cintura, atraindo-o para si para apoiar a cabeça sobre seu peito, sobre o coração que pulsava com força. Tinha perdido as vontades de lutar e seu espírito estava esgotado. Fazia todo o possível, mas jamais seria suficiente. Não havia maneira de retornar ao que tinham perdido e não era capaz de imaginar o futuro.

— Isto acabou?

— Não. — Ele baixou a vista para olhá-la. — Só estaremos derrotados se nos damos por vencidos. Haverá outros caminhos.

Anne não soube com certeza a que interrogante respondia ele nem o que tinha perguntado ela. Estavam irremediavelmente unidos porque outros o tinham querido assim. Ela era sua prisioneira. Podiam, na verdade, escolher o um à outra quando não havia possibilidades de escolher outra coisa? Agarrados da mão levaram aos cavalos da brida até o bordo do ermo.

— Ontem à noite — comentou ela enquanto montavam, — conhecia muito bem a rota de escapamento.

— Tinha-a preparado para nós. Se tivessem decidido te enforcar ou te deportar, a estas horas estaríamos na França..., e Moy pertenceria a um inglês.

Teria renunciado a tudo, antepondo-a a si mesmo, ao clã e ao país. Não tinha estado sozinha durante aquelas largas semanas de cativeiro, pois ele tinha velado por ela: a comida no cárcere, as cuidados do Morag, a fuga preparada se por acaso tudo desse errado.

Até então tinha escolhido a ela, desde o começo e por cima de tudo que os dividia, tal como tinha jurado: sua espada e seu clã por defendê-la, pois só a morte os separaria. Não, não podia imaginar o futuro, mas Anne queria vivê-lo com esse homem.

— Vamos para casa — insistiu ela.

James Ray e sua esposa partiram do Invernes depois do café da manhã. Retornavam a sua casa agora que o tenente tinha terminado seu período de serviço. Dirigiram-se para o sul em um carro de cavalos repleto de pacotes.

—Podemos nos deter no Moy Hall no caminho? — perguntou Helen. — Seria grato nos despedir de seu capitão e sua esposa.

— Não. — Ray foi cortante. — quanto antes te devolva à civilização, melhor. Não estou nada de acordo com essas maneiras que te gasta desde que chegamos aqui.

— Poderíamos ter viajado de navio — observou ela, olhando para outro lado. Seu marido se enjoava no mar e não gostava que o recordassem. — OH, olhe. — Passaram junto a um grupo de cabanas de turfa em ruínas; só uma delas se mantinha inteira. Saía fumaça através da coberta do teto. — Não são as casas de turfa pelas que passamos  quando chegamos, quando conhecemos a coronel Anne? Eu gostaria de saber o que lhes passou.

— Cale-se! — ordenou ele.

Ray deteve o carro e ficou imóvel enquanto olhava em direção oposta. Ao outro lado da estrada se levantava com suavidade uma ladeira em meio da qual podia ver-se a silhueta de uma mulher curvada ordenhando a uma vaca. Algo lhe resultava tremendamente familiar. O tenente se apeou e começou a subir à costa, espada em mão.

A anciã seguiu inclinada junto ao animal, atirava ritmicamente de seus úberes e um leite pálido e cremoso que caia no cubo de madeira. Ela manteve a cabeça inclinada e apoiada no quarto traseiro do ruminante quando viu pela extremidade do olho que o homem, ao aproximar-se, tirava a pistola do cinto.

— Né, você! — vozeou quando esteve o bastante perto.

Ela não respondeu, mas olhou de soslaio uma manga de madeira estendido na erva alta, a seu lado. O inglês estava justo a suas costas.

—  Está surda? — gritou ele.

A velha ficou de pé em um salto com a forca na mão. Impulsionou-a enquanto se virava e trinchou ao oficial à altura das tripas. Fez força para lhe elevar em alto. A anciã mostrou uma boca desdentada quando um sorriso demente lhe curvou os lábios.

As pontas da forquilha afundadas no corpo lhe fizeram estremecer-se. O inglês sacudiu a cabeça e lhe dilataram os olhos enquanto a espada lhe escapava dos dedos. Um fio de sangue se deslizou pela comissura dos lábios quando abriu a boca, mas mesmo assim, o oficial tentou mirá-la com a arma.

— Danns, ao Shasannaich!* — rugiu Meg, enquanto retorcia a ferramenta uma e outra vez a fim de subir as pontas até a caixa torácica. — Dança inglesinho!

Ray emanava sangue pela boca aberta quando abriu fogo, mas a bala não fez branco, e ele seguiu ali erguido, empalado na forquilha, mas a vida ia.

Helen ficou de pé na carruagem para ouvir o disparo e olhou para o alto da costa. Seu marido ainda estava ali e parecia agitar-se e gesticular como um possesso diante da anciã. Voltou a sentar-se para esperar.

Colina acima, a velha deixou cair o cadáver do inglês e cravou sua forquilha na terra para limpá-la. Logo recolheu o cubo e se afastou a passo rápido.

Morria uma cultura: o tartán desapareceu do país quase da noite para o dia. Os tintureiros esvaziaram de cores intensas as tinas onde tingiam a fibra; os teares começaram a usar pardos e cinzas; além as boinas, cinturões e broches foram ocultos e se queimaram as gaitas de fole. Também se deixou de dançar e as canções antigas se foram perdendo. Os homens vestiram as roupas das Terras Baixas, tão pouco viris, soltando tacos por seu desconforto, e as mulheres converteram seus arsaides em mantas e acomodaram a língua a palavras novas. O gaélico se escondeu depois das portas fechadas, em tanto o inglês avançava a tropicões pelas ruas. As armas foram entregues para sua destruição e o exército britânico iniciou uma inspeção sistemática de todas as casas, em busca das armas que não tivessem sido entregues, um processo durante o qual voltaram a saquear, cometer tropelias e a comportar-se de forma brutal.

No Moy, Aeneas assumiu pessoalmente a tarefa de eliminar as armas. Não queria mais ataque contra os seus. Em tanto agosto se fundia com setembro, ele e Desavergonhado percorreram no carro as granjas e as cabanas; agradeciam a homens e mulheres a cooperação e tratavam de não reparar em sua vergonha.

— Espadas convertidas em arados — disse Donald, entristecido quando as levaram a forja para que as fundisse. — Tal e como diz a Bíblia.

Mas nenhum deles acreditava que da desonra pudesse surgir algo bom.

Anne iniciou a tarefa de ensinar aos adultos o idioma dos ingleses. Os meninos lhes ajudavam, posto que os professores de escola não permitiam que uma só palavra de sua língua materna brotasse de seus lábios, e os pequenos aprendiam depressa. Não era um trabalho do que se pudesse desfrutar, mas nessa primeira quinzena ela aprendeu mais tacos gaélicos dos que tinha ouvido antes em toda sua vida. Foi quase um alívio que o convite real interrompesse sua tarefa.

— Não é possível que deseje ir — comentou Aeneas, enquanto ela guardava as últimas coisas no baú posto sobre a cama.

  — Pois sim, quero — replicou ela, — desejo ver essa gente que nos diz como vestir, falar e viver, e quero que eles nos vejam. Além disso — lhe indicou por gestos que se sentasse na tampa do baú, para poder grampear as correias — não têm opção.

Aeneas colocou o tonelete do Guarda Negro. O único uso permitido para o tartán era o militar. Teria querido renunciar a sua nomeação, mas então não teria podido usar manta nem armas e isso teria sido como sair nu a um mundo violento. Ainda se encerrava na prisão às pessoas de vales e gargantas e agora se apresentaram motivos adicionais para o castigo.

— Sinto-me um traidor com esta roupa.

— Um de nós deve viajar armado — aduziu Anne enquanto esticava a correia em redor do baú. — Será mais seguro.

— Espera dificuldades?

— Absolutamente — repôs ela com um sorriso, e lhe plantou um beijo leve nos lábios antes de dar uma volta a seu redor e colocar-se em posição de poder ajustar a segunda correia.

— Sentiria-me muito mais feliz se não sorrisse ao dizer isso. Lá abaixo vais ter que te comportar.

— Minha conduta será perfeita — lhe assegurou enquanto fechava da fivela. — Devo impressionar a um duque.

A restrição contra ela não se levantaria enquanto Cumberland não estivesse de acordo.

— Sorriu outra vez. — Lhe rodeou a cintura com os braços.

— passei isso por alto? — perguntou Anne. — «Está proibido sorrir. Todo escocês ao que tire o chapéu sorrindo ao norte do Stirling será fuzilado imediatamente».

Aeneas a estendeu sobre o baú, bem sujeita.

— Necessita um motivo para sorrir — aduziu, enquanto subia seu vestido.

— Agora é você o que sorri sem motivo — riu ela.

— Mas se tiver bons motivos! — assegurou ele, beijando-a no pescoço. — E um padre, embora momentânea. — Acariciou-lhe a coxa. — E quando tiver terminado saberei por que sorri. — Roçou-lhe a boca com os lábios.

Abriu-se a porta do dormitório. Jessie, ao vê-los na cama, entrou dizendo:

— Não poderiam deixar isso para quando forem no carro?

— Homem, que boa idéia! — Aeneas piscou os olhos um olho a sua esposa e se levantou, não sem antes lhe baixar as saias. — Nos interrompeste só para propor isso?

— Não, mas devem pegar o navio, e me ocorreu que lhes interessaria esta notícia: prenderam a Nan MacKay faz três dias. Não lhe permitirão comer, dormir, nem sequer sentar-se, enquanto não diga quem colaborou na fuga do Robert Nairn.

— Três dias? — Anne ficou espantada. Tinha suposto que não suspeitariam de Nan, muito pobre para proporcionar os meios para a fuga. — por que não nos avisaram antes?

— A viúva Macintosh acaba de inteirar-se e enviou uma mensagem.

Aeneas abriu a janela de par em par e chamou desavergonhado para que ajudasse a baixar o baú. Sua mulher, depois de descer pelas escadas correndo, tomou precipitadamente seu manto.

— Não esqueça — recordou Aeneas a Jessie, em tanto foram por volta da porta— que deve falar inglês durante nossa ausência.

— Com quem? Comigo mesma? — Tirou- a língua a suas costas, mas a escondeu imediatamente, pois essa era a parte que poderia perder. Falava-se de línguas cortadas e cravadas às portas a maneira de advertência. — Gonadh!* — amaldiçoou.

Logo percorreu o vestíbulo vazio com um olhar culpado.

Na carruagem, caminho ao Invernes, Anne estava dos nervos.

— Tudo foi minha idéia. Não posso permitir que castiguem a Nan.

— Sua confissão não impedirá que o façam.

— Mas deixariam de interrogá-la.

— E lhe poriam novamente no patíbulo, comigo ao lado.

— Não — insistiu ela. — Te manterei fora disto.

— Não pode. — Aeneas aproveitou sua vantagem. — Até se te permitisse dizer que não participei, é minha prisioneira e sou responsável por tudo o que faça.

Anne ficou pasmada. A severidade da ordem ducal se adoçou no lar, onde tinha começado a lhe parecer só irritante, mas estava bem claro que Cumberland a tinha neutralizado por completo aos olhos do resto do mundo. O duque a tinha deixado indefesa; já não era uma companheira, a não ser uma carga, um ser inferior, sem capacidade para atuar com independência nem fazer-se responsável por seus atos, como um pirralho pequeno ou um cão travesso. Seria Aeneas quem padecesse e, através dele, sua afligida gente se dizia ou fazia algo desconjurado. Cada vez que começava a recuperar o ânimo e o desejo de lutar se via novamente esmagada. A restrição a afetava profundamente, porque não era livre e isso lhe resultava desolador.

— E o que podemos fazer?

—Não querem justiça, a não ser vítimas — asseverou Aeneas, afastando uma mão das rédeas para estreitar a dela. — Se chegasse a ser necessário, alguém do clã confessará. Condenarão-lhe só a prisão.

  — E se não?

— Passo a passo. Podemos tocar de ouvido, mas, por favor, não diga nada que não tenhamos acordado antes.

Na prisão permitiu entrar no quarto de interrogatórios só porque Aeneas era capitão do exército. «Cinco minutos», avisou o guarda. O estado de Nan MacKay era mau. Tinha as pernas inchadas, portanto permanecer de pé e estava negra onde a tinham golpeado para mantê-la acordada.

— Uisge* — suplicou entre os lábios rachados.

Anne lhe trouxe um pouco de água do cubo, contendo-se para não lhe advertir que não devia falar em gaélico, mas isso não tinha sentido porque Nan não sabia inglês, como a maioria das mulheres ilhoas e montanhesas. Se ainda conservava a língua era porque eles queriam que falasse.

— Vamos te tirar daqui — prometeu enquanto a prisioneira bebia a grandes goles do jarro de lata.

— Não direi nada — sussurrou Nan. — Façam o que façam.

— Não lhe abandonamos — lhe assegurou Aeneas. — Nem te ocorra pensá-lo. Poremo-lhe fim a isto.

Forbes se achava presente nos escritórios do conde do Louden. O juiz tinha envelhecido e estava desencantado da vitória. Tinha subornado a vários chefes e contribuído com dinheiro de suas próprias arcas para financiar a Guarda Negro, todo isso com o fim de apoiar ao governo, e agora não obtinha reparação alguma: os ingleses faziam caso omisso dos tribunais de justiça escoceses e o Parlamento aprovava uma legislação repressiva contra seus queridos highlanders. As tribos expulsas dos imóveis confiscados fugiam às grandes cidades e outros muitos partiam por vontade própria, incapazes de suportar as mudanças impostos. Cada dia zarpavam para a América navios lotados de highlanders privados de seus direitos.

— Logo só ficarão aqui as vacas e as ovelhas — se queixava.

O mais duro de tudo era que o nome de sua casa passaria à história como o lugar onde tinha tido lugar essa matança sanguinária, como o começo de uma pacificação mais sanguinária ainda e a ruína de um povo, não como sede de uma justiça digna. Culloden. Cumberland, divertido pelos protestos do Forbes, considerava-o do mais adequado.

A viúva Macintosh fazia uma petição de clemência ao juiz assim que se inteirou de que estavam torturando a Nan MacKay e agora ele arengava a lorde Louden. Quando entraram Anne e Aeneas, o acossado conde elevou as mãos.

—Suponho que viestes a confessar?

— Não, certamente — assegurou Aeneas.

— Eu sim — disse Anne.

— Quando Robert Nairn escapou, minha esposa estava comigo. — jogou um olhar fulminante.

— Me deixe terminar — protestou ela. — ia acrescentar: «...Se com isso lucro que deixem de atormentá-la».

— Venha, Aeneas — lhe insistiu Louden — não vai ficar de fora. — Era óbvio que o comandante estava sob pressão. — Sabe, suponho, que sua tia já confessou ter subministrado uísque, roupas e transporte para a fuga do rebelde.

— Fez isso?

— Ela e todos seus servidores domésticos — gritou Louden, — um após o outro. Agora mesmo terei que receber a confissão do Forbes e de seu pessoal, sem dúvida. Não querem lhes adicionar à causa?

— Né, não — recusou o chefe. Temos que embarcar.

— Pois, embarque. Acabo de enviar uma ordem a prisão para que parem imediatamente a tortura de Nan MacKay, mas a manteremos encarcerada até que tenha completo com sua sentença.

— Não vim confessar — grunhiu Forbes, — a não ser a protestar pelo trato dispensado a essa mulher. Também apelarei essa sentença. Oitocentas chicotadas equivalem a uma execução. Ela não é um militar e não têm direito a julgá-la nem a castigá-la.

— Oitocentos açoites? — Anne procurou apoio no braço do Aeneas.

— Falei com ela — disse ele — Não fez nada de mau.

— Todos dizem o mesmo — apontou Louden. — O guarda assegura que lhe distraiu. Reconheço que a sentença é excessiva, mas não posso anular o veredicto.

— O duque de Cumberland pode — insinuou Forbes.

— Pois então o pediremos a ele — resolveu Aeneas. — Quando se levará a cabo a sentença?

— Ao final do próximo mês — respondeu Louden. — Vão a Londres. Eu me encarregarei de que ela não sofra dano algum até sua volta.

Chegaram a esse acordo e todos compartilharam uma taça para temperar os ânimos. Forbes reatou sua crítica da legislação punitiva. Estava-se redigindo outra normativa, a Ata de Jurisdições Hereditárias, e quando ficasse pronta, os chefes de clã não teriam autoridade alguma sobre sua gente.

— Serão relegados ao papel de latifundiários — explicou ao Aeneas. — Nada mais. É o fim dos clãs.

— Não podem impedir que seja chefe, verdade? — observou Anne. — O clã te escolheu para o cargo e só ele lhe pode tirar isso.

Aenas negou com a cabeça. Aquela medida supunha um grave reverso, era talvez o golpe mais duro contra a cultura de seu povo. Anulava o vínculo existente entre os membros do clã e lhes privava o direito a escolher um líder.

— Do que servirá um chefe sem o poder de dirimir as disputas? O povo recorrerá à lei e ao Estado para solucionar seus problemas e, portanto, desaparecerão os motivos para ter e sustentar ao chefe.

Louden serviu outro pouco de uísque ao avantajado juiz e acompanhou até a saída o casal, pois devia embarcar em breve.

— Ficou sabendo que assassinaram a seu antigo tenente? — inquiriu quando chegaram à porta. — A semana passada enviamos seu cadáver ao sul, acompanhado por sua esposa. Aconteceu muito perto do Moy.

— Houve alguma escaramuça? — perguntou Aeneas, franzindo o sobrecenho com perplexidade.

— Não. — Louden parecia cansado. — Parecia obra de um vilão solitário. Como de costume, ninguém viu nada. O tenente deixou sua esposa na carruagem e se afastou da estrada para falar com uma anciã, e jamais retornou. Recebeu duas punhaladas. O cirurgião sustenta que foram feitas por uma baioneta. — Fez uma pausa. — Possivelmente seja assim, mas eu vi as feridas, e me parece estranho; eu juraria que foram as pontas de uma forquilha. Hei aqui, para que serviu proibir as armas, não lhes parece?

Fechou a porta depois de lhes desejar feliz viagem. Anne e Aeneas se olharam. Não se tinha visto a anciã desde o ataque às cabanas, pelo qual todos a tinham dado por morta.

— Meg — disseram ao uníssono.

 

Londres lhes resultou surpreendente. A urbe estava formada por uma sucessão de ruas apertadas e cheias de edifícios muito pegos entre si. O único alívio a essa estreiteza era o rio que discorria pela cidade, mas até esse curso de água parecia bulir de gente, palpitar de botes e barcaças, com suas muitas pontes constantemente cruzadas por carruagens e cadeiras de mão. Havia lugares elegantes rodeados de mansões grandiosas cujos portões estavam fechados.

Nas calçadas se amontoavam mendigos, mercadores e vendedores ambulantes. Os panfletistas políticos e os pregadores sem púlpito bramavam com fúria suas diferentes homilias em cada esquina. O aroma da fumaça da comida guiava pelas ruas e as padarias se mesclava com os vapores das fábricas têxteis e as processadoras de açúcar, o fedor de cervejarias e destilarias, a fetidez dos açougues e das águas pútridas que corriam abertamente pelas ruas, depois de transbordar dos poços cegos cavados debaixo de cada casa. A capital inglesa era, sem dúvida, mais grandiosa que Edimburgo, mas também mais miserável.

— Encontra-se bem? — perguntou Aeneas, aproximando-se da janela de onde Anne observava à multidão abaixo.

— São muito pequenos — comentou ela.

— Mas numerosos — replicou ele com ironia, olhando para baixo. — Como as formigas.

— Aos homens posso lhes olhar aos olhos sem levantar o queixo, e as mulheres apenas chegam ao nariz. — Ela elevou a vista para seu marido. — Deve te sentir como um gigante.

— Sinto-me desconjurado — sorriu ele, — mas não respondeste a minha pergunta. Estar tão pensativa, não se sente bem.

— Acredito que tenho medo.

— Do que?

— Pelo Nan. Tudo o que faço acaba mau. — Franziu as sobrancelhas sobre os olhos nublados. — Te receberá Cumberland?

— Enviei-lhe uma solicitude e será o anfitrião do baile de amanhã. Ali poderemos lhe falar.

— Você sim. — Anne voltou as costas à janela. — Diz Helen que eu só posso falar com meus superiores quando eles me dirijam a palavra.

Aeneas a obrigou a virar para ele.

— Ali não haverá nenhum — disse, — pois não existem. Não aceite isso. Em casa falas com os moços de quadra, os camponeses e os ferreiros, e também com príncipes, condes e duques, e é a mesma com todos, assim como eles são os mesmos contigo. Assim somos. Se te apresenta à oportunidade de falar com o Cumberland, não deixe de aproveitá-la.

Ela assentiu não muito convencida. Estavam na casa da Helen Ray. Apesar de sua perda recente, a inglesa tinha insistido em acolhê-los e ensinava a Anne as maneiras que devia exibir na corte. Aeneas era um caso perdido; negava-se a fazer reverências cortesãs. Só aceitaria a fazer a reverencia para saudar o Cumberland com uma breve inclinação, e tão somente porque a vida de Nan podia depender disso.

— Se o que querem são highlanders, terão seus highlanders — insistiu.

Helen retornou à habitação, obviamente entusiasmada.

— Têm visitas — anunciou.

Detrás dela, um homem alto e loiro, com roupa de rua, agachou a cabeça para cruzar o vão da porta e se deteve ali. A suas costas vinha uma mulher mais jovem, diminuta.

— Francis! — pronunciou Anne, em um sussurro incrédulo. E cruzou a habitação correndo para lançar-se aos braços de seu primo. — Francis!

— Anne, Anne. — Farquharson de Monaltrie a levantou para triturá-la em um abraço. — Quanto tempo! Temia que não voltássemos a nos ver.

Aeneas atravessou o quarto para unir-se à bem-vinda.

— Se deixar no chão a minha esposa — disse, — eu gostaria de te estreitar a mão.

Houve muitas palmadas nas costas, abraços e brincadeiras sobre o estranho traje londrino. Francis, o Barão Bàn, era um homem que tinha retornado da morte: sentenciado à forca, lhe comutou a pena pela proibição de voltar a pisar em Escócia.

— E se estiver com vida devo agradecê-lo a suas petições e também a minha flamejante esposa. — Apresentou-a: — A senhora Elizabeth Eyre, lady Monaltrie.

Aeneas ia estreitar a mão de Elizabeth, mas lhe fez uma reverência.

—Ah! — exclamou ele, agarrando-a pelos braços. Logo caiu na conta de que ela não tinha tropeçado, mas sim era um desses estranhos gestos que faziam as mulheres em momentos similares. Todos riram de uma vez.

— Peço que fiquem para comer conosco. — Helen estava radiante. — Necessitarão tempo para colocar tudo em dia.

A primeira preocupação de Anne foi pedir notícias de seu irmão, agora exilado na França.

— Viu James antes que embarcasse?

— Acompanhei-o até o navio — assentiu Francis. — Eu também teria ido viajar com ele se não fosse pela mediação da Elizabeth. Disse que te devia a vida. Não te escreveu para agradecer?

— Sim, é obvio, mas já sabe quão avaro é com as palavras. Estava bem?

— Coxeia um pouco, mas sua saúde é boa. O coração é questão à parte.

— Seguiremos pedindo o perdão para ele — Prometeu Aeneas, — para que possa voltar para casa, e você também.

— Francis não deixa de falar de suas amadas Terras Altas — comentou Elizabeth. — Suponho que a pobre Helen também sentirá isso, agora que perdeu seu lar.

— OH, não é o mesmo — respondeu ela. — Meu irmão me brindou um lar. Ao menos estarei em Londres e isso não pode comparar-se com o desterro.

— Não ficará nesta casa? — sentiu saudades Anne.

— Não posso — explicou Helen. — Meu pai me deu de presente a casa, mas passou a ser propriedade de meu marido quando me casei, naturalmente, e agora a herdará seu sobrinho. — Depois do tempo passado entre montanheses, sabia que isso os escandalizaria. — Não está tão mal — acrescentou. — Seus chefes também deixam a casa a um herdeiro.

— Mas nenhuma mulher perderia a sua, casada ou não — aduziu Aeneas. — E à viúva do chefe lhe brinda outra casa, junto com uma pensão vitalícia para que possa manter-se. Espero que seu sobrinho tenha intenções de se encarregar de você.

— Aqui as coisas se fazem de outra maneira — explicou ela. E acrescentou em tom alegre: — Mas é provável que volte a me casar. Sou bastante jovem e me conservo bonita.

Embora isso era certo, indubitavelmente, os três escoceses caíram em um silêncio sobressaltado. Criticar o estilo de vida de sua anfitriã era uma afronta à hospitalidade, mas um casamento que despojava às mulheres de suas posses era um roubo, sem dúvida alguma. Como solução contra a pobreza imposta, convertia às mulheres em prostitutas e aos homens em fanfarrões.

— Nos conte sobro de lady Broughton — insistiu Elizabeth a seu marido, trocando de tema com tato.

— Minha esposa deveria contar isso — repôs Francis, e riu entre dentes, — posto que o assunto lhe fascina. — Como ela agachasse a cabeça, novamente tímida, continuou: — Greta Fergusson se escondeu depois de Culloden no Edimburgo, onde contou com a ajuda de vários amigos. Foi ali onde deu a luz, mas o parto foi muito prematuro e o bebê morreu. Depois de falhar duas vezes em seus intentos de embarcar para a França do Leith, viajou para o sul e conseguiu passagem em diversos lugares e ao final foi parar em Londres.

— Mas ainda há uma ordem de captura contra ela — se preocupou Anne. — A capturaram?

— Não — respondeu Elizabeth, esquecendo seu acanhamento, — mas só porque Francis a dissuadiu de procurar a seu marido.

— John Murray a ajudaria, sem dúvida — objetou Aeneas. — demonstrou ser muito capaz.

Sir John tinha entregado provas ao rei, traindo ao desprezado lorde Lovat para salvar sua própria vida.

— Duvido — dissentiu Francis. — Agora que devolveram o título e os imóveis não voltaria às arriscar pela Greta. Depois de sua liberação travou relação com uma qualquer, uma cria ainda em idade escolar, a que apresenta como lady Broughton.

— Mas a verdadeira lady Broughton está a salvo — acabou sua esposa, triunfante. — Meu pai conhecia um capitão de navio que estava disposto a ajudar e embarcou de volta da França apenas no dia seguinte.

— Que apaixonte! — exclamou Helen. — Na verdade não entendo por que seguem dando caça às pessoas. Ao fim e ao cabo tudo terminou. Isso é o que celebraremos amanhã.

— Não era um convite que pudéssemos rechaçar — assinalou Aeneas.

— Não, posto que sua esposa é a convidada de honra — disse Elizabeth, mas imediatamente captou o olhar que cruzavam ele e Anne. — Não sabiam?

Ela sacudiu a cabeça. Esse aviso de que no dia seguinte deveria enfrentar-se ao escrutínio dos cortesãos ingleses não ajudou a acalmar seu nervosismo. E saber que a atenção se centraria nela o acentuou grandemente.

— Duvido que o duque de Cumberland tivesse alguma intenção de me honrar.

— Não pense nele — replicou Helen. — Se pavoneia como herói conquistador, mas a vitória foi um golpe de sorte. Nunca antes tinha ganhado uma batalha e seria uma surpresa para todos que ganhasse alguma outra.

—Se a Inglaterra estiver a salvo de invasões não é graças a seu exército —apostilou Francis, — a não ser à Armada. Duvido que sejam capazes de reter os territórios do Novo Mundo contra os franceses e os espanhóis.

— Reterão-os se os clãs se integram a esse exército — observou Aeneas. — E estas proibições estão ideadas para isso. É a única maneira de conservar nosso traje e nossas técnicas marciais. Este baile bem pode ser a cenoura para o burro.

— É muito suspicaz, Aeneas  — sorriu Helen. — É uma celebração da paz.

  — A que se convida ao inimigo?

  — Ao inimigo derrotado — particularizou Anne.

— Não se trata disso — esclareceu Elizabeth. — O povo pedia a gritos sua presença. Agora que se sentem a salvo, todo mundo quer conhecer a feroz jaqueta que tanto lhes atemorizava.

Anne baixou a vista à mesa. Aquela mulher tinha desaparecido muito tempo atrás, se isso era o que eles esperavam ver, fora o que fosse, ela não podia proporcioná-lo já.

— Acaso esperam fazer passar por valentia uma exibição de riqueza e poder, para nos manter acovardados? —perguntou Aeneas.

— Alguns, sim — respondeu Francis. — Outros consideram que é preciso expiar as purgações, mas a maioria sente curiosidade, nada mais. — Observou a Anne com ar pensativo. — Não tem que demonstrar nada. Investiram-lhe que é um encanto exótico, isso é tudo, o qual é de agradecer. — Sorriu de orelha a orelha. — Porque isso me permite voltar a vestir como Deus manda.

Seguiu uma velada larga e amena, com as inevitáveis penas moderadas por gozos mais imediatos. Pouco a pouco Anne se sumiu no silêncio. Cumberland, embora Helen lhe subtraísse importância, ainda a tinha sob seu domínio. E através dela, a Aeneas, seu lar e sua gente. O que importava não era a fofoca da multidão, a não ser o que ele respondesse na noite seguinte.

O palácio era um bulício de eufóricos nobres embelezados com perucas empoeiradas e damas sobre cujas saias de cetim bordado pendiam drapeados de seda muito fino e abundavam os leques e o encaixe francês. Até os ministros do governo luziam casacas novas, a jogo com os calções. Ali estava tudo o que fora alguém, obstinado ao tão cobiçada convite.

Anne e Aeneas esperavam em fila a que os apresentassem para poder descer a ampla escada curva até o salão de baile. Os poucos highlanders disponíveis em Londres constituíam os casais finais. Os Macintosh, por ser hóspedes de honra, seriam os últimos.

— Tudo sairá bem — disse Aeneas, ao ouvido de sua mulher.

— Tha meu an ddchas* — replicou ela. — Isso espero.

— Deveríamos falar em inglês.

Ela inclinou a cabeça, ferida.

— Eu sei quando tenho que cuidar da língua — murmurou.

Ele teria querido morder a sua também, porque as proibições linguísticas só se aplicavam ao norte do Stirling.

— Haverá muito disso. — Assinalava com a cabeça o traje de Anne. — Mas seu vestido fala por ti.

  Tinha acudido embelezada de branco, a cor dos rebeldes. Luzia um vestido de seda e fio, com um corselete azul à cintura. No cabelo escuro, penteado em cachos, usava uma perfeita rosa branca. A essas alturas do ano não podia ser a rosa jacobita, mas sim o mais parecido que ela pôde conseguir em Londres, em meados de setembro. Do pulso lhe penduravam um leque de encaixe branco e um carnê de baile.

— Dou-lhes o que esperam receber — disse. — Igual a você.

Ele vestia o traje completo de chefe: tonelete, boina emplumada, broche de prata e, com a devida permissão oficial, o claymore com punho de prata. Devia essa dispensa a sua fila militar e à lealdade demonstrada durante o conflito. Francis já tinha escoltado a Elizabeth ao salão de baile e ia igualmente esplendoroso, mas levava a vagem vazia, como corresponde a um inimigo vencido.

A sua prima lhe revolveu o estômago. Estavam ali como curiosidades de feira, já que eram selvagens montanheses rebeldes, nativos de um país que, por fortuna, já tinha sido pacificado. Embora Aeneas parecesse tão sereno e digno como ela tratava de mostrar-se, ele também estava nervoso. Passasse o que acontecesse, deviam obter que o duque indultasse a Nan.

Ali abaixo, uma multidão de cortesãos ingleses tagarelava e intercambiava cotoveladas, entre sussurros e olhares curiosos, tratando de vê-los entre os poucos que ainda aguardavam diante deles. Ante as amplas portas, o mordomo golpeou duas vezes o chão com sua fortificação.

— Sir John Murray de Broughton e lady Broughton.

Anne observou a pouco atrativa jovem que acompanhava ao antigo secretário do príncipe. A Greta teria encantado estar ali. Glamorosa sempre, com plumas flutuando em seu cabelo, teria descido com elegância aquela escada, a cabeça em alto, no braço de seu marido. Nem em sua mente nem em sua alma teriam penetrado a derrota ou a submissão. Iria bem na França. Aeneas agarrou o lápis do carnê de baile de Anne e rabiscou algo em seu convite.

— O que faz? — sussurrou ela.

—Já verá. — Lhe piscou um olho.

Tump, tump, soou a fortificação.

— O muito honorável lorde Boyd.

James jogou uma breve olhada a Anne e assentiu para lhe desejar boa sorte, ruborizado como sempre que se encontrava com ela. Logo, ele também começou a descer a ampla escada. em que pese a toda sua lealdade a esse governo, lhe tinham confiscado três dos quatro títulos que devia herdar e seu pai tinha sido executado. Anne se perguntou se agora avermelhava por acanhamento ou por vergonha. Anne entregou seu convite ao mordomo e se voltou para ela.

— Se esta tiver que ser a última vez — disse, — que o entendam bem.

Tump, tump, voltou a ressonar a bengala.

— O muito honrado capitão Aeneas Macintosh do Macintosh, chefe do clã Chatton, e ... —percebeu-se uma muito breve vacilação... — e, e a coronel Anne Farquharson, lady Macintosh.

— Aeneas! — protestou ela.

Sua fila e a forma escocesa de dizer seu nome podiam considerar-se provocadores.

— Tem que ser o que é — replicou ele, lhe pondo uma mão no braço.

Ante o anúncio tinham girado todas as cabeças presentes no salão. Um murmúrio, como o do mar que se lança contra a costa, correu pela habitação e se elevou a seu encontro.

— É essa.

— Aqui está.

— São eles.

— Que bonita.

— Tão esbelta.

— É essa menina? Não posso acreditar.

— Não tem nem pingo de selvagem.

— De maneira que essa é a angélica lady Macintosh.

Os comentários se multiplicavam, foram e vinham depois dos leques ou as mãos,  enquanto Aeneas guiava sua esposa pelo lance de escadas. detrás deles o fortificação voltou a soar, sem que ninguém lhe emprestasse atenção, para anunciar a alguns convidados atrasados. Todas as olhadas seguiam ao casal de escoceses, que descia e cruzava todo o salão para apresentar seus respeitos ao anfitrião, o duque de Cumberland. Anne cravou os dedos no braço de seu marido.

— Sinto-me como um fenômeno de feira — murmurou.

— Pois ali tem um. — Ele assinalava com a cabeça a um cortesão currutaco. Anne teve que conter a risada. — De fato — acrescentou Aeneas, inclinando-se para lhe falar com ouvido—, estamos rodeados. Escolhe o que queira. Já me entenderei com os que me deixe.

Ela desdobrou o leque para dissimular suas risadas.

— Ai, acredito que está esmagada — disse uma mulher, junto à qual passavam.

Um homem se plantou diante deles.

— Macintosh. —Saudou com a cabeça. — É certo que esta gentil mulher conduziu a esses selvagens à batalha?

— Sim — confirmou Aeneas, — e depois comeu aos mortos.

O homem, vexado, deu um passo atrás para reunir se com seus amigos, que clamavam por saber o que havia dito o montanhês.

  — Anne! — Uma mulher vestida de negro agitava a mão. Era Helen, que se abanava com entusiasmo. Tinham-na anunciado como «senhora Helen Ray», porque o respeito de seu nome indicava que era viúva.

Cumberland os viu aproximar-se através do salão com secreta complacência. voltou-se para o general Hawley, que estava atrás dele, ainda furioso por ter visto frustradas suas pretensões.

— Vê? Esta noite conhecerão uma mulher diferente. Tão dócil e aborrecida que amanhã passarão a falar de outras coisas e assim ela cairá no esquecimento.

Henrietta Howard, a condessa do Suffolk, lhe aproximou pelo outro lado.

— William, querido — disse, — deve me apresentar a sua pequena rebelde. Dizem que se deitou com mais homens que eu. Poderíamos comparar impressões.

A condessa inspirava no duque um desgosto só comparável ao que lhe produzia Hawley. Seus olhos protuberantes cintilaram com picardia. Ao parecer, essa velada lhe ofereceria muitas recompensas.

— Acredito que descobrirá minha querida Henrietta, que ela o faz por prazer. — Tremeu-lhe a papada.

— De verdade?

— Tenho entendido que assim são estas escocesas.

Lady Suffolk deixou de avaliar ao casal para observá-lo.

— Que esbanjamento de dinheiro — disse com frieza.

Ao chegar frente ao duque, Aeneas o saudou com uma seca inclinação de cabeça. Anne fez o que Helen lhe tinha ensinado e se inclinou em uma profunda e elegante reverencia.

— Macintosh — saudou Cumberland, — lady Macintosh. —Moveu uma mão para a mulher que tinha ao lado. —  Permitam que vos presente à condessa do Suffolk.

— Vá, Macintosh! — A mulher sorriu. — Representa bem seu papel, por certo. —Jogou uma olhada a Anne. — E sua esposa é... Extremamente encantadora.

— Obrigado — disse ele, com tanta desenvoltura como se sempre tivesse falado por sua esposa.

As unhas de Anne lhe cravaram no braço, mas ele dissimulou rapidamente a careta de dor com um sorriso. Ao menos, as instruções que Helen lhes tinha brindado lhes evitavam a surpresa. Nunca lhes teria ocorrido que o povo pudesse falar com o marido de sua mulher como se ela não estivesse presente, nem que Anne não devesse falar com menos que lhe dirigisse a palavra. A condessa era uma mulher poderosa, os olhos e ouvidos do rei. Tinha obtido esse poder da única maneira que as inglesas tinham a seu alcance: através de homens poderosos. Nesses dias era a amante de sua majestade, depois de haver-se esforçado para ascender.

— É aborrecido — comentou Cumberland, — mas me toca iniciar o baile. — voltou-se para Aeneas. — Como hóspede de honra, sem dúvida não lhes incomodará que dance com sua senhora.

— Absolutamente — replicou ele. Esta vez foi mais rápido para dissimular a careta. Se Anne continuava assim ficariam cicatrizes indeléveis nesse braço.

O duque escoltou Anne até o centro da pista. Quando esteve satisfeito com a posição, à distância do braço, ficou de cara a ela. Como a um sinal, a banda começou a tocar.

— Um começo muito adequado, em minha opinião — expressou ele, sorridente.

A melodia era seu hino de guerra escocês, Ye Jacobites by name, composto para cantar seus louvores e celebrar a derrota dos montanheses. Uma exclamação audível percorreu o salão. Aeneas se enrijeceu.

— Vá, vá — murmurou lady Suffolk. — Está bem empenhado em amassar.

Francis, de pé com a família de sua esposa, levou automaticamente a mão à vagem vazia. Anne, sem dúvida, retiraria-se da pista.

Ela não se retirou. O que fez foi manter os olhos cravados na cara de seu companheiro, branda a expressão, como se a melodia não tivesse significado algum para ela. Cumberland elevou uma mão, com uma pergunta nos olhos. Ela, sem vacilar, levantou a sua e a entregou ligeiramente. Enquanto o cantor entoava os versos, eles iniciaram juntos os passos de baile.

 

Vós, que lhes chamam jacobitas, escutem, escutem.

Vós, que lhes chamam jacobitas, agora escutem.

Vós, que lhes chamam jacobitas, em suas faltas reparem,

porque suas idéias denuncio e me ides escutar.

 

A multidão, atônita pela humilhação que se impunha à convidada montanhesa, demorou uns minutos em reagir.

— Devem lhe haver dado láudano — sussurrou Helen a seus amigos.

— Talvez deveríamos nos somar — sugeriu lady Suffolk ao Aeneas.

Quão último ele queria era dançar ao compasso do hino vitorioso do duque, mas se Anne podia fazê-lo, ele também. Ofereceu seu braço à dama e saíram à pista. Imediatamente outros bailarinos se formaram a seu redor; a maioria tentava aproximar-se do casal central, desesperado-se todos por escutar o diálogo entre eles.

— São tão boa bailarina como se comenta — a elogiou Cumberland, enquanto a fazia girar.

— Igual a você, senhor. — Com um sorriso, a jovem se afastou dele e voltou a aproximar-se.

— Seu marido tem feito um bom trabalho. Tenho que felicitá-lo.

— São muito amável. — Inclinou a cabeça.

Helen Ray dançava atrás deles com seu irmão.

— É horroroso que a atormente assim.

— Sem dúvida quer lhe fazer saber qual é seu lugar.

No salão pendia um ar de desencanto, como se todos se sentissem defraudados, embora ninguém teria podido dizer o que se esperava. Aquela jovem de maneiras educados, que cedia ante a superioridade do duque, não era material para o bom relato com que esperavam luzir-se ante os pobres ansiosos tachados da lista de convidados.

Anne fechou os ouvidos aos versos, que falavam do papado e pintavam ao príncipe Estuardo como o filho de um ladrão. Tinha uma só missão a cumprir. Aeneas havia dito que era preciso aproveitar qualquer oportunidade. Enquanto dava voltas com o Cumberland, sorriu com a paquera afetada que tinha visto com Helen quando falava com um homem.

— No cárcere do Invernes há uma mulher — disse em tom ligeiro. — Nan MacKay.

— A chusma não me interessa — replicou Cumberland.

— Está condenada a receber oitocentas chicotadas.

— Duvido-o. Poucos poderiam sobreviver a quinta.

A pouca distância, o lorde que tinha perguntado pelos antecedentes guerreiros de Anne se inclinou para o ouvido de sua companheira.

— Não parece uma jaqueta sanguinária.

Aeneas tinha renunciado ao intento de ouvir o que diziam Anne e o duque, assim em troca dedicou toda sua atenção a sua companheira de dança.

— Diz-se que sua esposa matou no Culloden a doze homens — comentou ela.

— Ela nem sequer participou. Estava em casa, comigo.

— Isso sonha do mais aborrecido.

— Podem-se dizer muitas coisas sobre a vida de minha mulher, mas não que seja aborrecida.

— E você, Macintosh — ronronou, e lhe acariciou a bochecha com o leque ao cruzar-se com ele, — é aborrecido viver com você?

— Terão que perguntar-lhe a minha esposa.

O cantor continuava debulhando a letra:

 

Como o duque Guillermo o mande, acudam, acudam.

Como o duque Guillermo o mande, acudam.

Como o duque Guillermo o mande,

de suas terras saiam,

porque tudo o que são é puro alarde.

 

  Anne se concentrava em seu objetivo, sem pensar em seu querido irmão nem em tantos outros expulsos da pátria. Ela e Cumberland deram um passo para diante e para trás; logo voltaram a rodear o um ao outro.

— Não posso, pois, lhes convencer de que intervenham? — reiterou ela a súplica de misericórdia.

— Não me peçam que revise minha opinião — lhe advertiu Cumberland. — Sem dúvida, Macintosh será perfeitamente capaz de ocupar-se de qualquer dificuldade.

— E eu estarei devidamente agradecida — sorriu ela, segura de que lhe quebraria a cara.

— Assim espero. — O duque a fez girar em volto dele. — A política é um assunto masculino que não deve lhes preocupar. A esposa é um adorno, lady Macintosh. lhes limite a dançar.

A dança estava chegando a seu fim. O cantor pronunciou as últimas palavras:

E por tudo isso lhe deviam pendurar.

Fazia muito tempo que Anne não ouvia a voz da anciã MacBean, mas nesse momento a recordou. «A morte deveria ser honorável», havia dito. Nan estava pronta para morrer, tal como Anne o tinha estado uma vez e possivelmente voltasse a estar. Uma pessoa não era nada sem honra nem dignidade.

Executou um último passo com o Cumberland. A música cessou. O duque lhe fez uma reverência e ela dobrou o joelho. Todo mundo aplaudiu. Cumberland lhe ofereceu o braço para acompanhá-la fora da pista.

Em vez de aceitá-lo, ela permaneceu imóvel, de cara a ele. Se atuasse como uma inglesa, a trataria como tal. Uma imagem lhe cruzou a memória: uma garotinha que se debatia no chão, brigando com sua sombra. Esta vez se alegrou de perder a batalha, de permitir que ganhasse a frustração. O aplauso se foi apagando. Ninguém se movia. Ninguém podia fazê-lo enquanto o duque não abandonasse a pista. Ele voltou a indicar que devia agarrar-se no seu braço. Anne não o fez. «Tem que ser o que é», havia dito Aeneas. E ela não podia ser outra pessoa. Elevou um pouco o queixo para olhar a Cumberland nos olhos.

— Senhor — disse com firmeza e uma voz tão nítida como um sino no silêncio, — eu dancei ao compasso de sua canção. Dançarão vocês agora ao compasso da minha?

 

Aeneas deu um pulo e levou a mão à espada sem pensar duas vezes. Lady Suffolk lhe apoiou uma mão no pulso e sacudiu a cabeça de forma imperceptível. Francis, que tinha a vagem vazia, tomou a posição do guarda mais próximo ao que podia lhe arrebatar a arma e aproximou sua esposa com um braço. O seu bem podia ser um matrimônio muito breve. Helen, como a maioria dos pressente, ficou tão boquiaberta como um pescado quando dá os últimos estertores. Ninguém se atrevia a respirar para não perder a réplica do duque.

Sua alteza vacilou, mas só durante um momento, embora um dos mais compridos que recordasse a corte; logo inclinou a cabeça para acessar cortesmente à petição. Anne se voltou para os músicos e lhes perguntou:

— Podem tocar The auld Stuarts back again?

Todos os convidados inspiraram quase ao uníssono quando se precaveram de que ela lhes tinha pedido que tocassem a canção estandarte dos rebeldes jacobitas. Várias damas se deprimiram e seus companheiros recolheram seus braços. Helen delirava de prazer e um lorde Boyd muito sorridente sacudiu a cabeça, enrubescido de admiração. Elizabeth levou uma mão à boca e ao compreender o que ocorria olhou ao Francis, com as primeiras lágrimas nos olhos. Sir John Murray, envergonhado por sua própria covardia, olhava ao chão, molesto.

O diretor da orquestra assentiu com a cabeça. Possivelmente muito em breve não tivesse cabeça com que assentir, mas agora não podia deixar de movê-la de cima abaixo.

— Sim, milady — respondeu, — claro que podemos.

— Toquem, pois — pediu ela com serenidade.

E se voltou de novo para o duque para lhe dedicar a mais profunda das reverências em tanto soava o primeiro acorde. Agarrou-lhe uma mão para levar-lhe à cintura e lhe ensinar os primeiros passos. Todos lhes somaram sem tardança. Essa peça era mais rápida e desenfreada; de vez em quando requeria que o casal se aproximasse muito para executar bem os passos. Até os que rodeavam a pista tiraram o chapéu tamborilando com os pés ao ritmo da música, agitando as pernas e aplaudindo. Lady Suffolk estreitou o pulso de Aeneas. Não se tinham movido, embora o povo  formava redemoinhos a seu redor.

— vem Macintosh, que não havia perigo — disse ela. — A etiqueta e as boas maneiras são tudo na corte. O duque não podia recusar.

Lhe dedicou um amplo sorriso. Sentia-se bem. Talvez lhe ordenassem matar a sua esposa quando voltassem para casa, se acaso retornavam, mas no momento estava cheio de orgulho, e a única maneira de celebrá-lo era dançar. Encerrou estreitamente à condessa entre seus braços.

— Meu deus — repôs ela, — me desfará o penteado.

—Porque assim seja — replicou ele, enquanto a fazia girar.

Apesar de ser um jovem corpulento e algo rígido, Cumberland se movia com ligeireza e aprendia depressa; o duque começou a conduzir a seu casal de baile assim que teve dominado os passos e movimentos. As danças escocesas eram fáceis de dançar, já que qualquer engano passava por uma simples inovação. Ao mediar a peça, o duque Guillermo já era um perito. Anne girou para trás em seus braços, apoiou a bochecha contra a sua e lhe falou no ouvido.

— Me diga, os homens ingleses...  Sempre temem a suas mulheres?

— Não sei de nenhum que as tema — respondeu ele.

Ela se inclinou para trás para lhe olhar seu rosto.

— Por que, senão, precisam dominá-las?

Dançaram para diante e para trás, aplaudiram e voltaram a abraçar-se.

— As mulheres são o sexo débil, lady Macintosh. Precisam ser guiadas.

— Oitocentas chicotadas, a metade das quais serão aplicados a um cadáver?

— É teimosa, tenho que reconhecê-lo.

Posto que necessitavam do fôlego para dançar, moveram-se em silêncio até que, com um floreio final, fez-se girar às damas entre um ondulo de saias, e a música chegou a seu fim. intercambiaram-se reverências e o duque lhe ofereceu seu braço de novo.

— Pela manhã, se seu marido for a ver-me — disse, enquanto ela aceitava o braço estendido—, lhe dará uma ordem escrita para trocar essa sentença por um breve período de encarceramento.

— Conduziu-a fora da pista; os dois estavam cansados. — Devo admiti-lo, embora seja a contra gosto, o valor do Macintosh ao casar-se com você,  admiro isso, mas esta travessura, coronela Anne, será a última. Entendemo-nos?

— Sim — sorriu Anne. — Sim, senhor, entendemo-nos.

A lua cheia pendia sobre o Loch nan Uamh, na costa ocidental de Escócia, iluminando um caminho através das águas. Uma pequena embarcação zarpou desde o Borrowdale. Na proa foram um príncipe e seus partidários. Dois navios piratas franceses esperavam em águas mais profundas, balançando-se apenas com o fluxo, hasteando as falsas cores dos navios de guerra britânicos. Vários chefes highlanders se encontravam já a bordo, pois não podiam retornar à pátria agora que lhes tinham confiscado o lar e as terras de seus clãs, e estavam sentenciados a morte. Com um rangido de madeira contra madeira, o pequeno bote se deteve seu lado. Uns pés subiram pela estreita escala. Depois estalaram as cadeias da âncora elevada e se desdobraram as velas, que se incharam ao receber o vento que os conduziria mar dentro. Com uma sacudida de cabeça, os navios se lançaram em direção às ondas. Os navios cabecearam enquanto se lançavam em direção às ondas, deixando detrás deles a costa, que se estendia como uma gravura sob o claro da lua, intensamente sombreada em matizes de cinza.

No cárcere do Invernes, Nan MacKay, estendida no camastro de sua cela, contemplava os finos raios de sol que, já avançado outubro, entrava vento pela alta janelinha. A tumefação das pernas tinha desaparecido e só ficavam manchas amareladas dos hematomas de antigamente. Cada dia chegava comida para ela, de maneira que não passava fome nem sede. Era uma mulher paciente, já que com a mesma paciência tinha aguardado a volta de seu marido, até muito depois de saber que jamais retornaria. Com paciência atendeu ao Robert Nairn e durante muitas semanas acreditou que sairia cadáver de sua casa, antes de cair na conta de que lhe tinha salvado só para destiná-lo à forca. Com paciência, agora, esperava a volta de Anne e Aeneas. O destino tem uma cara sombria e uma luminosa, e nunca se sabe qual será a que voltará para ti. Para conservar a têmpera, ela conjurava imagens do Skye; via-se retornando à ilha com seus filhos e subindo depressa do porto, com seus poucos pertences, para a casa onde tinha nascido, enquanto a chuva vaiava contra os calhaus brilhantes. E ao imaginá-lo, murmurava antigas palavras proibidas, doces versos cantarolados que podiam aproximar um sonho à realidade.

A fechadura do calabouço ressonou ao girar a chave. Ela se incorporou bruscamente enquanto se abria a porta, mas não eram Anne nem Aeneas, a não ser a viúva Macintosh, que tirou um pacote de sob a capa e o desembrulhou assim que o carcereiro se foi. Continha uma garrafa de líquido cintilante e dourado.

— Uisge beatha?* — Nan enrugou o cenho.

 — Uísque, Nan. — A senhora tirou a capa e agarrou o jarrinho da prisioneira para enchê-lo. — Temos que te ensinar a falar inglês.

— Vale a pena que me incomode? Os que trazem uísque são sempre portadores de más notícias.

Anne e Aeneas se atrasaram. Seu navio tinha que ter atracado no porto fazia já uma semana, por isso se não chegavam logo, o mais provável era que qualquer nova, fora qual fora, seria má.

— Não há notícias. —A viúva Macintosh lhe entregou o recipiente. — Não retornaram.

— Unicamente tenho essa jarra daí.

— Me basta com a garrafa. Podemos beber até que se acabou.

— Não acredito que haja tormentas no mar, porque estamos a um mês da colheita.

— Não, é provável que esse atraso seja devido à falta de vento.

— Se é que os sasannaich* lhes permitiram partir...

— A família do Robert Nairn pôs a alguém a cuidar de seus filhos. — A viúva evitou as implicações. — Prometeram que, quando tudo isto acabe, pagarão-lhes o transporte ao Skye e uma pensão... — Não quis dizer «de por vida», pois esta podia ser breve; tampouco podia dizer «até que estejam criados», pois isso implicava que não teriam mãe, — uma pensão, portanto tempo como é necessária. — Logo se instalou no camastro e tocou o jarrito de Nan com a garrafa. — Slàinte mhòr!* — brindou.

E apurou um gole comprido.

Lorde Louden examinava os planos estendidos sobre a mesa de seu escritório. O novo Fort George ia ocupar todo o promontório Ardersier, do qual se dominava todo o estuário de Moray. A nova fortificação estava destinada a substituir ao antigo forte do Invernes, desmantelado pelos cidadãos assim que entraram os jacobitas. Os habitantes da cidade o tinham derrubado com as mãos nuas como amostra de rechaço a que a União aquartelasse uma guarnição como se os escoceses fossem um povo conquistado. A magnificência da nova construção lhes recordaria durante séculos que era um povo vencido. Seria a fortificação de artilharia mais capitalista de Grã-Bretanha. E quanto a ele... Quanto ansiava comandá-la!

O guarda apostado fora bateu na porta e a abriu.

— O capitão Macintosh e lady Macintosh, senhor — anunciou.

— Façam passar, homem, façam passar.

Anne e Aeneas retornaram ao Moy muito avançada a tarde. Um bando de gansos em formação de ponta de flecha cruzou o céu tingido de crepúsculo e se dirigiu entre grasnidos para o lago. Eram os primeiros em chegar para passar o inverno. Tinham sido um molho de nervos por causa da impaciência durante toda a viagem, e isso que um vento favorável tinha inchado as velas ao norte do Berwick, mas não lhes tinha abandonado o medo a que voltasse a amainar. Podiam tranquilizar-se depois de ter entregado a ordem que anulava a sentença contra Nan. Detiveram-se ante a prisão para lhe anunciar que ficaria livre no prazo de um mês; depois jantaram em casa da viúva Macintosh, onde ficaram ao dia com as novidades que Louden já lhes tinha esboçado, e recolheram a carruagem.

Os gansos selvagens romperam a formação para adotar outra em forma de x antes de iniciar a descida à escassa luz de um descolorido céu purpúreo. Aeneas guiava tranquilamente ao cavalo de tiro pelas curvas do caminho, que lhe eram tão familiares e através de sombras igualmente conhecidas.

A volta ao lar teria devido ser contente. Anne se converteu na mulher mais solicitada de todo Londres depois do baile e também em branco de inveja e admiração, mas agora, enquanto as rodas do carro giravam sobre o pó do caminho, os bailarinos voltavam a formar redemoinhos na cabeça da coronel e rememorava todas aquelas reverências e graças, em vez da simples cortesia, e via de novo o desdobramento de paqueras e adulações por parte das mulheres a fim de manipular aos homens, porque sem eles não tinham poder. Até a mesma Helen, desesperada por recuperar sua posição social, fazia caretas aos pretendentes adequados. Esse podia ser o futuro de Escócia: sempre a parte acovardada e mísera de uma união desigual. Esses costumes e hábitos afetariam cada vez mais à sociedade escocesa e a alterariam até que o povo esquecessem quem eram e o que tinham sido.

Jamais lhe tinha passado pela imaginação que retornaria a casa com esses costumes. Sentia um nó no estômago e as chamas de seu aborrecimento não deixavam de crescer em meio de um grande chiado. Estava muito zangada consigo mesma por ter esquecido sua própria situação: Aeneas seguia tendo poder absoluto sobre ela, sendo como era seu prisioneira, igual a essas esposas inglesas submetidas a seus maridos.

Seu marido deteve o carro no pátio, desembarcou de um salto e rodeou o veículo para ajudá-la a descer.

— Posso descer por mim mesma — lhe espetou Anne.

— Né! — Ele deu um passo atrás, como se tivesse recebido uma espetada. — De onde saiu esse mau gênio?

— Não me trate como se fosse uma inútil. — Tocou terra a tropicões, lutando com suas saias.

— É tarde — insinuou Aeneas. — Anda, sobe, que eu levarei o vinho.

— Claro, leva-o você... Para me abrandar? É isso?

Seu marido a agarrou de um braço e a empurrou até pô-la contra o flanco da carruagem.

— Do que está falando?

— Uma vez disse que eu não era uma esposa inglesa para que me desse ordens como se eu fosse de sua propriedade, e te escute agora: «te comporte. Não diga nada. Fala em inglês. te mostre tal como é. Vá para a cama».

— Não é isso o que...

— Sem dúvida também quererá fazer amor comigo!

— Não, é obvio que não.

— Não sou o animal de companhia de nenhum homem! — falou. — Até a miserável Igreja calvinista diz que marido e mulher são iguais entre os lençóis, assim não venha a minha cama enquanto não o sejamos. Nego-me a ser a bota de cano longo de guerra! —Passou a seu lado quase lhe empurrando e entrou na casa como uma tromba.

Aeneas se deu a volta com uma mão em alto e a boca aberta para chamá-la, mas a porta se fechou com uma violenta portada. Ele deixou cair o braço e soltou um comprido suspiro. Torceu a boca e sacudiu a cabeça, embora logo, rindo entre dentes, dedicou-se a atender ao cavalo.

  No piso alto, Anne fechou de uma portada a porta de seu dormitório e logo aproximou uma pajuela à turfa que ardia na lareira e quando prendeu, acendeu as velas; depois de tirar a roupa e colocar uma bata, sentou-se ante a penteadeira para soltar o cabelo. Enquanto o escovava, sujeitando as mechas para desenredar as pontas, foi acalmando, mas a fúria se converteu em indignação.

Os dois tinham falado com o Cumberland. Ela tinha pedido a liberdade do Nan, mas Aeneas, em troca, nem sequer tinha pensado na de sua esposa. Que se precavesse por si só, mas enquanto isso podia dormir no estudo. A essas alturas ela já sabia estar sozinha. Sua nação podia ter perdido a vergonha e ir, boina em mão, a suplicar favores ante seu amo e senhor. Ela, jamais.

Seu marido apareceu à habitação.

— Anne, jamais serei igual a ti — disse Aeneas.

— Grande verdade — lhe espetou ela.

— Cometi um engano.

— Um grande engano — conveio.

— A resposta é sim.

— Sim a que?

— Sim, quero fazer amor  contigo. — Ele fechou a porta e se aproximou.

Anne se levantou involuntariamente. Nenhum papel faria que ela se deixasse dominar e se ele procurava briga, ia ter uma.

  — Mas como é minha esposa... — Esse enfurecidor meio sorriso lhe rondava a boca. — e minha prisioneira... — Soltou-lhe o laço que sujeitava a bata — e eu sou seu chefe...

Não era possível que lhe fizesse isto e menos ainda que ela o permitisse.

— Está fazendo valer sua fila sobre mim?

Os olhos do Aeneas refulgiram, refletindo a luz das velas.

— Conformarei-me com que me dê prazer — concluiu.

— Aeneas! — gemeu ela.

— Este jogo o inventaram vocês, milady. — Acariciou-lhe o pescoço com a borda de um pergaminho enrolado e lhe abriu com ele o peito da bata. — E se não me falhar a memória, servi-lhes bem quando tinha seus favores.

Ela o recordou então e ao lhe recordá-lo percorreu o corpo uma quebra de onda de desejo. Aeneas seguia ligeiramente a linha de seu peito com o cilindro de papel.

— O duque delegou a mim a anulação desta ordem durante minha audiência com ele.

— Por que não me havia dito?

— Queria fazê-lo aqui, em nosso lar, e para isso era o vinho: para celebrá-lo. — aproximou-se um pouco mais, até que seu corpo quase tocou o dela. — Pois bem — ofereceu, com o fulgor do fogo acentuando o escuro de seus olhos, agora sérios: — se esta noite me der suficiente prazer, pela manhã poderá queimar este dossiê.

Ela teria querido lhe pegar, ou melhor, ainda podia lhe arrebatar o documento e jogá-lo no fogo, mas isso não tinha importância para o Aeneas, porque lhe estava oferecendo, vulnerável. Podia negar-se, mofar-se dele, lhe denegrir ou lhe cobrir de insultos, cobrar vingança, mas não fez nada disso. Havia algo mais profundo que devia respeitar. Inclinou a cabeça,  e um sorriso lhe curvou os lábios.

— O prazer, marido, será meu.

  No exterior, a lua se elevou por cima do lago resplandecendo sobre as águas onde se posaram os gansos selvagens. As esbeltas sombras das coisas se moviam através do bosque, um gato montês caçava sozinho nas altas ladeiras e um mocho sobrevoava as árvores; seu bato as asas guardava certa semelhança com uma respiração compassada.

Entre as ruínas das cabanas do noroeste, uma fogueira de turfa refulgia no único lar subsistente onde a velha Meg se removia em sonhos, no colchão estendido junto ao fogo. Nas novas cabanas de pedra, com as cicatrizes da bochecha contra o travesseiro, a filha do Ewan sonhava com a colheita do dia seguinte.

Na cozinha, Jessie cobriu os ombros com a manta e se deitou a dormir no colchão de crinas, mais tranquila agora que o chefe e sua esposa estavam em casa, a salvo desses pagãos do sul. Pela manhã haveria muito que fazer.

Muito antes que chegasse a manhã, umas cinzas se desmoronaram na lareira do dormitório principal de Moy. A última chama se apagou no pergaminho, enquanto Anne e Aeneas, abraçados, conversavam em voz baixa, entre carícias, riscando planos. Ela sentia pulsar seu próprio coração contra o dele, firme como um tambor. Tinham perdido a muitos de seus seres queridos, mas não a todos. O estilo de vida que apreciavam estava desaparecendo, mas ficava o amor. A deliciosa ironia de que o duque tivesse dançado ao compasso da canção rebelde não constituía uma vitória, mas dava passo a uma esperança: a de que ainda ficasse uma faísca que servisse para acender, que tivesse capacidade para elevar as chamas do amanhã.

Uma nação não morre enquanto viva seu espírito. Ela tinha obtido algumas pequenas concessões e com elas se investeria a maré. A vida não se deteria, porque era possível rechaçar as leis e achar novas maneiras de viver. A liberdade era uma idéia, e por isso, destruí-la era impossível.

 

                                                                               Janet Paisley 

 

 

           Biblio"SEBO"

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades