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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ÚLTIMA PRINCESA DA MANCHURIA / Lilian Lee
A ÚLTIMA PRINCESA DA MANCHURIA / Lilian Lee

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                                           Pequim. Fins de Outono.

Dez desconhecidos de físico avantajado abeiraram-se da porta principal do número 34 da rua Tung-ssu, no bairro de Pei Chih-tzu.

       Um silêncio de morte pairava sobre o local. A própria respiração dos homens era silenciosa.

       O vento de Outono soprava triste, insistente.

       Há muito que os vestígios do Verão se haviam dissipado. Desaparecera o clamor das cigarras. Também os invasores japoneses tinham desaparecido. Pareciam ter-se dissolvido como cinzas levadas pelo vento. Nada ficara - a não ser os fantasmas dos grilos da estação morta, cantando os seus lamentos sob os degraus.

       Na noite escura, a velha e grandiosa mansão parecia ainda maior e mais imponente. Fazia lembrar uma densa floresta, com os seus pilares e portas vermelhos e os beirais pintados de azul e verde. O passado derramava-se sobre a mansão como um pesado manto, apartando-a do mundo exterior. Aqueles que viviam dentro daquelas paredes estavam encerrados num isolamento asfixiante.

       Uma soleira alta suportava duas portas maciças, pintadas de vermelho e com aldrabas douradas. Um dos homens bateu à porta.

       Esperaram um ror de tempo. Por fim, lá apareceu alguém. A porta abriu-se apenas um nada, mas os homens forçaram a entrada sem o menor ruído, encostando o velho criado à parede. Dois deles cloroformizaram rapidamente dois ferozes cães de guarda. Ao fim de breves momentos, os "visitantes" tinham a situação perfeitamente controlada.

       O velho criado limitou-se a abrir a boca e a arregalar os olhos, sem se atrever a fazer um ruído que fosse. Num ápice, as pernas cederam, o corpo desmoronou-se, e o velho ficou de joelhos no chão.

       A casa tinha três entradas. A brigada de dez homens correu na direcção do jardim que havia nas traseiras. Ao ouvirem os passos rápidos de um fugitivo, dois dos homens lançaram-se na sua perseguição. Mal apontaram as pistolas, o fugitivo, um japonês, desistiu dos seus intentos e rendeu-se, baixando a cabeça desalentado.

       Um dos latagões perguntou com os olhos: Onde é que ela está?

       O velho criado conduziu-os silenciosamente até à porta das traseiras e apontou para um quarto à esquerda. Todos entenderam - a mulher que tinham vindo buscar estava naquele quarto.

       Os membros desta "Equipa de Operações Especiais" estavam perfeitamente conscientes dos perigos e dificuldades da sua missão. Tinham-se lançado ao trabalho no próprio instante em que haviam recebido ordens dos seus chefes. Tinham montado uma apurada vigilância e elaborado cuidadosamente os seus planos. Tinham ficado a conhecer tudo o que havia para saber sobre a sua presa; cada um deles conhecia-a agora tão bem como a palma da sua própria mão.

       Todos eles ansiavam por aquela missão. Seria por causa do mistério e da lenda que a impregnavam?

       Tinham chegado ao ponto decisivo. Mas... e se no derradeiro momento acontecesse algo absolutamente inesperado? E se falhassem, agora que estavam a um passo do objectivo final? Aqueles homens tinham confiança na sua preparação, nas suas capacidades. Contudo, pareciam afectados por um súbito acesso de incerteza.

       Pela mansão corria uma ventania que vinha das montanhas, prenúncio de chuva.

       Um dos homens abriu lentamente a porta do quarto. Lá dentro, a escuridão total.

       Trocaram olhares. Então, com a rapidez do relâmpago, quatro deles correram para os cantos do quarto. À luz ténue que vinha de fora, mal enxergavam, no centro do quarto, uma cama de latão invulgarmente grande. Um dossel de mosquiteiro derramava-se à volta da cama. O dossel estava coberto com uma gaze de seda vermelha e suspenso de ganchos dourados. Na cama, viam-se vagos contornos, penetrados de sombras.

       Seria ela?

       Aquilo era ela?

 

 

 

 

       Tinham ouvido tantas histórias acerca dela - as suas proezas tinham chocado a China e o Japão. Era tão bela e encantadora como um anjo, mas tão cruel e venenosa como uma bruxa. Os homens empunharam firmemente as suas armas e um suor frio percorreu-lhes a pele.

       O chefe da brigada avançou lentamente e arredou ligeiramente o mosquiteiro, enquanto, atrás dele, um dos outros premia o interruptor da luz.

       De súbito, uma coisa redonda e felpuda arremessou-se das sombras do dossel, guinchando desvairada.

       Era tanta a tensão que todos os homens recuaram sobressaltados. Ouviu-se o estampido de um tiro.

       Enquanto o som do tiro se esbatia, a peluda criatura arreganhou os dentes num esgar dilacerado e soltou um estranho guincho.

       Numa poça de sangue, jazia um macaquito. Convulsões violentas anunciavam a sua morte. Com os olhos meio abertos, com uns olhos quase humanos, fixava ferozmente os indesejados convidados.

       Para lá do mosquiteiro, houve um ligeiro estremecimento. Uma mulher gritou horrorizada:

       - Ah-fu!

       A mulher gritara como se estivesse a sonhar. Tudo fora muito rápido e ela não estava ainda completamente acordada. A luz penetrava-lhe nos olhos firmemente cerrados. Meio levantada, esfregou os olhos com a mão.

       - Mas quem são vocês? - perguntou. - O que é que estão a fazer aqui?

       Uma fenda abriu-se no dossel. Da estreita abertura jorrou um estranho odor. Era como que um bafo de peçonha ou o fedor de um animal sarando uma ferida. Não era um cheiro humano. Simultaneamente pútrido e em carne viva, era o cheiro do desespero.

       Todos os homens se encarniçaram para conter os vómitos. Recompondo-se do choque, aguardaram que a sua "anfitriã" fizesse a sua entrada em cena.

       A primeira coisa que lhes mostrou foi uma mão. Tinha uns dedos longos e magros e uns ossos nodosos. Pelo muito descuido, ganhara o tom amarelo-esverdeado das presas de uma ave. A fenda do dossel abriu-se um pouco mais e apareceu meia-cara.

       Aquele rosto pertencia a uma mulher na casa dos quarenta.

       Magra, ossuda, seca, com os ossos do rosto bem salientes e o cabelo curto e desleixado, a mulher tinha um ar esmaecido, desfigurado. Fazia-lhes lembrar uma flor murcha, mirrada. Ter-se-iam enganado?

       Era de espanto a expressão dos homens. Por um momento, a incerteza dominou-os por completo.

       Seria mesmo ela?

O chefe da "Equipa de Operações Especiais" arriscou, inseguro: - Você.

       - De quem é que andam à procura? - contrapôs ela.

       O chefe olhou de relance para um dos seus camaradas e os outros três recuaram lentamente. Aquele que o chefe escolhera avançou, apontou a sua arma à mulher e ordenou:

       - Vire-se e dispa-se!

       A mulher ergueu os olhos. Só então se apercebeu de que aquele "homem" era na realidade uma mulher. Levantando a cabeça, examinou-a

atentamente.

       Ela sabia por que lhe tinham dado aquela ordem. Podiam não lhe conhecer o rosto, mas havia no seu corpo um traço de que não poderia ver-se livre, que não poderia esconder. Os seus inimigos tinham-se revelado meticulosos - estavam perfeitamente preparados para a enfrentar. Até sabiam que ela tinha um minúsculo sinal vermelho no seio esquerdo!

       Imagine-se: tinham tido o desplante de mandar uma mulher disfarçada de homem! Francamente! O que é que eles queriam provar? Tinham-se dado ao trabalho de encenar aquele patético espectáculo por causa dela?

       Despir-se? Nunca!

       Ao longo da sua vida, de todas as vezes que se despira tivera sempre em mente um objectivo muito claro. Sempre tivera as suas razões. Possuíra outrora um corpo delicado, perfeito; os seios eram graciosos, sedutores, com aquele minúsculo sinal vermelho, que fazia lembrar uma lágrima da cor do sangue - tão misteriosamente fascinante. As línguas apaixonadas dos homens não o largavam, fazendo-lhe cócegas. Mas tudo isso era passado.

       Não, não estava disposta a despir-se unicamente para ser humilhada.

       Fosse como fosse, não havia fuga possível. Se queria tirar o melhor partido possível de uma situação desfavorável, não faria sentido agarrar-se ao passado. Cerrou os dentes, mas, no seu rosto cansado e derrotado, eram os olhos que mais diziam sobre ela. Deles parecia jorrar uma infinita dignidade.

- Não vale a pena discutirmos mais - disse ela. - Eu sou a Comandante

Chin Pi-hui, Yoshiko Kawashima!

       Pela orgulhosa cabeça, enfiaram-lhe um saco preto.

       Tudo o que viu foi escuridão.

Yoshiko Kawashima tivera em tempos muito poder nas suas mãos; agora, porém, esses dias de glória não passavam de recordações. Na sua juventude, fizera um figurão. Pavoneara-se altiva no uniforme grosseiro e nas botas de cabedal de oficial do exército. Usara vestidos de brocado e imponentes casacos de peles. Agora, porém, tudo isso era passado. Quando foi presa, vestia apenas uma camisa de noite azul, já muito gasta e debotada.

       Após a rendição japonesa, tinham-lhe confiscado tudo o que possuía. Não acreditava que os seus protectores tivessem sido derrotados. Só mudou de ideias em Setembro de 1945, quando ouviu o imperador japonês, Hirohito, proclamar a rendição. O imperador nunca havia falado ao seu povo. Tal como milhões de outras pessoas, escutara pela rádio, na onda curta, a desalentada declaração de Hirohito. Só então compreendeu que tinha os dias contados. Que o seu ocaso chegara.

       Desfez-se imediatamente de todos os seus papéis importantes, transformando-os em cinzas. Uma das poucas coisas que não sacrificou às chamas foi um guarda-jóias requintadamente trabalhado. O seu conteúdo tinha um valor incalculável. Dentro daquele guarda-jóias havia pérolas, diamantes, ágatas, jade, âmbar, outras pedras preciosas, todas elas magníficas. Tirou um dos colares e apreciou-o à luz de um candeeiro. Tinha a forma de uma fénix e fora cravejado de milhares de diamantes que cintilavam e dançavam ao sabor da luz. As asas pareciam tremular, como se a fénix estivesse prestes a levantar voo.

       Das chamas salvou ainda uma fotografia sua que, em tempos, adornara as primeiras páginas dos jornais. Nessa fotografia podia-se ver uma jovem com uma pele espantosamente branca e uns olhos penetrantes, embora

sedutores. Yoshiko Kawashima fora muito bela. Assinara e datara a fotografia, como era seu hábito. A caligrafia era pequena e precisa; cada caracter fora delicadamente desenhado. Essa caligrafia concisa e controlada pouco tinha a ver com a sua autora. Rezava a inscrição:

 

                               Yoshiko Kawashima, 1934.

  1. O vigésimo terceiro ano da nova República da China. A beleza e os poderes de Yoshiko Kawashima estavam então no seu auge, e o colar em forma de fénix que usava na fotografia constituía um complemento perfeito para o seu cheongsam, o vestido tradicional chinês. O Estado de Manchucuo acabara de ser fundado na Manchúria, a sua terra natal, e ela participara no esforço que levara à criação desse novo país.

       Agora, uma vez mais, aquela fotografia surgiria nas primeiras páginas dos jornais; desta feita, porém, o momento não era propriamente de glória.

       Num bairro velho de Pequim, um ardina cirandava com um carrinho a abarrotar de jornais.

       - Edição especial! Edição especial! Traz tudo sobre a traidora! - gritava o ardina a plenos pulmões. - A traidora vai a tribunal! Yoshiko Kawashima vai ser julgada amanhã!

       A primeira página do jornal proclamava que o Tribunal da Província de Hopei daria início ao julgamento de Yoshiko Kawashima no dia seguinte. Havia também uma lista das acusações de que era alvo. A sentença de pronúncia discriminava um total de oito acusações; todas elas, porém, podiam ser resumidas por uma única palavra: traição.

       O ardina era ainda um rapazito. Levadas pelos seus gritos estridentes e excitados, as notícias chegavam a todas as ruas e ruelas do bairro. Enquanto dava as suas voltas, topou com uma bandeira japonesa que fora atirada ao chão e desatou a espezinhá-la. Naqueles que assistiam à cena reacendeu-se de súbito a raiva contra o velho inimigo. Vários transeuntes chegaram mesmo a desviar-se do seu caminho para irem cuspir naquele símbolo agora derrubado. Dir-se-ia que o ódio ao antigo invasor era inextinguível.

       Um homem na casa dos quarenta, com um ar meio louco, avançava trôpego na direcção do ardina. 0 homem perdera uma perna e um olho e acabou por tropeçar em cheio no rapaz. Vendo o patético estado em que se encontrava o velho veterano, ninguém seria capaz de ficar irritado com ele.

       "A paz voltou! A vitória é nossa! Mandámos os japoneses para a terra deles!" O louco ria-se com bizarro deleite.

       As crianças tinham sido dispensadas da escola e toda a gente saiu à rua para assistir aos desfiles. As pessoas aglomeravam-se nos passeios, agitando bandeirinhas chinesas com um sol branco sobre um céu azul vivo. Bichas de rabear estralejavam por todo o lado; depois de estourarem, restavam bocados de papel que se espalhavam em grande quantidade pelo chão. Uma pilha desses restos de papel amontoava-se agora sobre um jornal que alguém deitara fora, soterrando o belo rosto de Yoshiko.

       Yoshiko fora abandonada pelos seus antigos protectores. Assemelhava-se agora aos artigos sem préstimo que os japoneses haviam deixado na fuga.

Quimonos, leques, guarda-jóias, belas sandálias de brocado, as rebuscadas perucas tão populares entre as jovens japonesas na viragem do século, era tudo o que restava da ocupação. De Tung Tan a Pei Hsin-chiao, as tendas dos vendedores abarrotavam de tais artigos. Os tendeiros vendiam-nos por tuta e meia, pois queriam ver-se livres deles o mais depressa possível. Assim se marcava o fim de uma era.

       Soldados chineses e americanos e polícias militares chineses, com os seus capacetes de aço, encontravam-se agora nos locais que os polícias militares japoneses, com o seu ar fanfarrão e provocador, haviam controlado. Após longos anos de sofrimento, chegara enfim o dia por que o povo chinês tanto ansiara. Os chineses haviam sido libertados de uma cruel ocupação. Podiam agora desfrutar de uma breve trégua; na realidade, porém, as suas provações estavam longe de ter acabado.

       Na calma relativa que se seguiu à derrota dos japoneses, o sensacional "Julgamento da traidora" trazia um ambiente de festa à capital chinesa. Passara já um ano sobre a detenção de Yoshiko e o povo de Pequim aguardava ansiosamente o julgamento, como se este fosse uma festa em tudo semelhante às celebrações do Ano Novo chinês. Simultaneamente, as pessoas tinham estado durante tanto tempo debaixo da bota japonesa que continuavam cheias de ódio e raiva. Os sentimentos anti-japoneses eram ainda muito fortes e, frequentemente, os antigos colaboradores eram selvaticamente alvejados com tijolos e pedras por irados cidadãos.

       Toda a gente falava de Yoshiko:

       - Dizem que é um pedaço de mulher!

       - Sem dúvida, mas não te esqueças de que matou muitos chineses!

       - Ora, coitada, não passa de uma mulher, além de ser uma migalha de gente...! Como é possível que tenha sido tão má e empedernida como se diz?

       -Vamos mas é buscar mais tijolos!

       - Abaixo os traidores e colaboracionistas!

       A fúria das pessoas, até então reprimida, transbordava de súbito. Contudo, segundos depois, todos gritavam já de alegria. A um passo dali, na esquina daquela rua, aparecera um grupo de homens dançando a dança do leão. Não havia dúvida, era como a parada do dia de Ano Novo!

       A guerra acabara, mas a vida em Pequim não tinha ainda serenado por completo. Não passava um dia sem que houvesse tumultos ou desordens. Os preços não paravam de subir. O dinheiro não valia nada. E quanto à moeda nacionalista acabada de cunhar, bom, ninguém no seu juízo perfeito acreditava nela! A única coisa que ainda tinha algum valor eram os dólares de prata.

       Toda a gente tinha de lutar arduamente para não soçobrar. E como se os problemas financeiros já não bastassem, continuavam a circular perturbantes rumores de que os Comunistas estavam prestes a marchar sobre Pequim. A cidade tinha os nervos em franja.

       Nestas condições, seria de espantar que o público procurasse uma diversão, uma festa? O espectáculo do julgamento de uma espia era o escape perfeito.

       Às duas da tarde do dia fixado, cerca de cinco mil espectadores aglomeravam-se no pátio das traseiras do edifício do tribunal, temporariamente transformado em galeria. Tinham-se empurrado e atropelado para entrar, na esperança de verem, nem que fosse por breves segundos, a estrela do espectáculo, a infame Yoshiko Kawashima. As autoridades mostravam-se incapazes de manter a ordem, e tudo o que havia no pátio acabou esmagado sob os pés da multidão, ao passo que várias janelas ficaram sem vidros.

       As autoridades tinham encenado aquele drama com a intenção de que servisse de aviso. Era preciso que as pessoas tirassem a moral daquela história. Era preciso que a ré funcionasse como um exemplo, um exemplo capaz de aterrorizar e subjugar o público. Contudo, o plano acabou por ter um efeito contrário ao pretendido, pois a multidão, de tão excitada que estava, escapou rapidamente a todo e qualquer controlo da polícia. No meio de muita agitação e alvoroço, foi anunciada a suspensão do julgamento. A sessão durara menos de meia hora.

       O alarido atingiu o auge quando a turba, ao ouvir tal anúncio, manifestou a sua decepção. Eles que tinham aguentado aquilo tudo só para darem uma olhadela à bela e famigerada Yoshiko Kawashima! E agora punham-nos na rua e fechavam-lhes a porta na cara! Alguns, de tão frustrados, ainda atiraram tijolos às portas do tribunal, antes se porem rapidamente em fuga.

       Por fim, a multidão dispersou e todos voltaram para casa. Todos, excepto a estrela do espectáculo. Foi escoltada até à sua nova "casa" - a Prisão Municipal Número Um.

       Três dias depois, o julgamento começou oficialmente.

       No primeiro dia, Yoshiko Kawashima apareceu no tribunal vestindo uma camisola branca e calças verdes ao estilo ocidental. Penteara o cabelo curto, mas continuava tão magra e ossuda como no dia em que fora detida. Passara um ano horrivelmente longo em prisão preventiva, com constantes mudanças do local de detenção. Agora, finalmente, sentava-se no banco dos réus.

       Com ar grave, o magistrado leu as acusações de que ela era alvo:

       - É acusada do crime de traição à China. Mais especificamente, é acusada de cumplicidade nos crimes que o Japão cometeu em solo chinês, de ter colaborado com o Japão e de ter traído os interesses do seu país natal, todos eles actos de traição dos mais abjectos. Se for considerada culpada do crime de traição, será condenada à morte ou a prisão perpétua, de acordo com as penas previstas pela legislação.

       Yoshiko escutou a declaração do magistrado com um ar displicente. Francamente, aquele homem não merecia a sua atenção. Esperou pelo fim da leitura das acusações. Então, sem mais nem menos, espetou a cabeça na direcção do magistrado e olhou-o bem nos olhos. O juiz ficou visivelmente espantado.

       - Meritíssimo - disse ela, descontraidamente -, dá-me licença que fume um cigarro?

       O juiz aquiesceu e um funcionário do tribunal estendeu-lhe um cigarro. Yoshiko colocou-o na boca e pôs-se a olhar para o juiz, à espera. Com alguma relutância, o magistrado deu-lhe lume.

       Com ar altivo, Yoshiko puxou uma longa fumaça. Exalou languidamente uma nuvem de pálido fumo, à espera de que o magistrado iniciasse o seu ataque.

       O juiz pegou num livro, ergueu-o. Impresso em grandes caracteres, o título era bem visível: Vénus de Uniforme. O nome do autor, Shofu Muramatsu, era japonês.

       - Conhece este romance? - perguntou o magistrado.

       - Sim - respondeu ela, imperturbável.

       -Também conhece o autor deste livro?

       - Bom, vi o nome dele nos jornais. É um romancista japonês muito conhecido, não é?

       O juiz fez um esforço para se controlar. Ela estava a brincar com ele.

       - Este romance contém informações - disse ele, com um ar tenso - que a senhora forneceu pessoalmente ao autor, informações relativas aos seus actos de traição e colaboração com os japoneses e aos planos que elaborou com eles para instaurar um Estado independente na Manchúria e na Mongólia.

       - Ora Meritíssimo... - disse ela, descansadamente. - Pois se o senhor acaba de caracterizar esse livro como um romance, como uma obra de ficção...! Nunca leu os romances clássicos chineses, como, por exemplo, jornada para Oeste ou O Lótus Dourado? Abundam nesses romances as mesmas cenas escandalosas e chocantes, os mesmos actos de sedução, as mesmas mulheres tentadoras que encontramos na pretensa "prova" que'acaba de apresentar. Imagino que não tencionará trazer a tribunal todos os criminosos ficcionais que aparecem nesses livros...

       A sala rompeu em sonoras gargalhadas.

       - O tribunal espera que a ré encare este julgamento com o respeito e a seriedade adequados - advertiu o juiz, furioso. - Lembre-se de que está a responder em tribunal!

       Yoshiko pôs imediatamente um ar sério.

       - Meritíssimo, eu respondo conforme as perguntas e as pessoas que as fazem. Esperava sinceramente que o tribunal tivesse designado um indivíduo mais credível e sério para me interrogar - disse ela, puxando com um ar superior mais uma fumaça.

Reprimindo a ira, o magistrado resolveu alterar o rumo do interrogatório.

       - Quanto ao secretário que foi detido na mesma altura que a senhora, na sua casa em Pei Chih-tzu, um tal Hachiro Ogata...

Yoshiko não o deixou concluir.

       - O senhor Ogata só é secretário de nome - retorquiu ela num ápice, decidida a defender Ogata. - O senhor Ogata é um bom homem, um servidor leal. Não sabe nada de nada e está inocente de todo e qualquer delito! Não tinham nada que o prender! Eu, e eu só, sou responsável pelas minhas acções. Não o metam nisto!

       - Muito bem. Não discutiremos o caso do sr. Ogata. Falemos de outras pessoas. Por exemplo, Namwa Kawashima, Mitsuru Kashirayama, Yosuke Matsuoka, Daisaku Komoto, Fumimaru Konoe, Hideki Tojo, Shigeru Honjo, Kenji Tohibara, Shunkichi Uno, Hanji Ito, Seishiro Itagaki.

       Yoshiko escutou calmamente enquanto o juiz recitava aquele rosário de nomes. Nomes de homens, todos eles. E todos eles homens japoneses. Passara metade da sua vida nas mãos daqueles homens japoneses; metade da sua vida, andara de dono em dono. E para quê? Para sofrer aquela humilhante derrota?

       Não!

       Quando voltou a falar, fê-lo sem pressa. Cada uma das suas palavras, pronunciou-a clara e espaçadamente.

       - Eu não traí a China. Não sou uma traidora chinesa.

       Olhou de relance para o magistrado para avaliar a sua reacção, antes de prosseguir no mesmo tom claro.

       -Eu sou japonesa! Não sou chinesa!

       A sala alvoroçou-se. Yoshiko nem sequer admitia que era chinesa! Que descaramento!

       Contudo, no cerne daquela afirmação tão incrível como chocante, talvez houvesse um grão de verdade. Teria ela de facto rejeitado a China? Não teria sido a China que a rejeitara primeiro?

       Ela só tinha sete anos quando a mandaram embora.

Tinha sete anos e lacinhos brancos no cabelo. A mãe, desesperada, tentava convencê-la a deixar que os criados lhe vestissem um quimono branco.

       - Eu sou chinesa! - gritava, lavada em lágrimas, Hsien-tzu Aisin-Gioro, debatendo-se para se libertar daquele estranho traje de outras terras. - Eu não sou japonesa!

       Não passava de uma criança, ignorante das coisas do mundo; nunca poderia ter imaginado o que o destino lhe reservava. A sua resistência resultava talvez de um entendimento instintivo do significado daquilo que lhe estava a acontecer. Apesar da pouca idade, possuía já uma vontade forte. E naquele momento, toda essa vontade se concentrava numa única coisa: não vestir o quimono de seda branco.

       A mãe, a quarta concubina do Príncipe Su da família real Ching, era a mais nova e a mais bela das muitas consortes do príncipe. O Príncipe Su idolatrava aquela mulher de vinte e nove anos, com uma cabeleira comprida e luxuriante. Não espantava que Hzien-tzu, o décimo quarto dos trinta e oito descendentes de Su, vinte e um meninos e dezassete meninas, fosse também um dos filhos favoritos do príncipe. Contudo, naquele momento específico, Hzien-tzu não se sentia particularmente favorecida. As lágrimas corriam-lhe pelas faces, enquanto gritava com a sua vozinha estridente de criança:

       - Eu não quero ir para o Japão!

       - Porta-te bem, Hsien-tzu, e não chores! - ordenou-lhe a mãe.

       A mãe de Hsien-tzu pegou-lhe na mão e conduziu-a ao gabinete do Príncipe Su. Mal entraram, levou-a até junto do príncipe, que estava sentado à sua secretária.

       A menina tinha um respeito absoluto pelo pai e também algum medo. Mesmo quando vestia roupas vulgares, Su tinha um ar principesco, com os seus modos formais e a sua expressão séria. Era um homem capaz de intimidar qualquer um e Hsien-tzu e os seus irmãos e irmãs faziam sempre o possível para não serem chamados à sua presença. Mas agora ali estava ela, Hsien-tzu, diante do Príncipe Su, diante do pai! Não estava habituada a uma tão grande proximidade; sentia-se muito constrangida.

       O príncipe e a sua família pertenciam à família imperial Ching, um facto que já não tinha a importância que assumira noutros tempos. A outrora poderosa dinastia Ching havia sido destruída e substituída pela República Chinesa no ano de 1911.

       O último imperador Ching, Pu-y4 tinha sido afastado do poder pelo General Yuan Shih-kai, e a família real fugira de Pequim, espalhando-se por outras regiões do país. Alguns destes nobres optaram então por uma vida retirada e pacífica. Outros, como o Príncipe Su, tinham decidido esperar pelo momento certo, aguardando uma oportunidade para restaurarem a dinastia Ching.

       O Príncipe Su nunca se deixara enganar pelo ambicioso general Yuan. Yuan não queria a democracia, ao contrário do que tantas vezes proclamava. O que ele queria era ser o imperador da China! Além disso, para o Príncipe Su, Yuan não era digno de confiança: Yuan era chinês. Tal como toda a família real Ching, o Príncipe Su não era etnicamente chinês, mas sim manchu, um descendente das tribos nómadas que, originalmente, erravam pelo canto nordeste do Império Chinês. Por princípio, o Príncipe Su não confiava nos chineses. Enquanto Yuan consolidava o seu poder, Su tentou a sua sorte com os japoneses, e com um japonês em particular: Naniwa Kawashima.

       Kawashima era um aventureiro japonês que chamara a atenção do príncipe pela primeira vez em 1900, durante a revolta dos Boxers. A Cidade Proibida tinha sido cercada por tropas estrangeiras e Kawashima apresentara-se às portas do palácio, onde, num chinês impecável, convencera os guardas a não resistirem. Lembrou-lhes que uma resistência obstinada redundaria fatalmente na estúpida destruição da altiva e esplêndida Cidade Proibida. O fogo da artilharia danificaria os seus magníficos salões; e o saque deixá-la-ia vazia de todos os seus tesouros. Com certeza que não era isso que queriam! Convencidos pelos seus incisivos argumentos, os guardas renderam-se.

       Depois deste incidente, o Príncipe Su e Kawashima tornaram-se amigos em pouco tempo. Passavam horas sentados à volta da lareira, rindo-se dos disparates da vida política. Descobriram que tinham muitas coisas em comum. Tinham gostos e temperamentos similares e partilhavam o mesmo sonho. Ambos acreditavam fervorosamente no futuro da dinastia Ching. Enquanto existisse uma China, concordavam, o grande Império Ching nunca pereceria!

       A dinastia esboroava-se, mas o Príncipe Su não desistia de tentar ressuscitá-la e de lhe devolver a glória de antanho. Ele era, aliás, o único membro da família imperial Ching que assim procedia. Decidiu transferir-se para Mukden, na Manchúria, onde se juntaria ao chefe militar local, Chang Tso-lin, que estava a organizar um exército para enfrentar as forças do general Yuan. Porém, dez dias depois de Su ter deixado a capital, o Imperador Pu-yi entregava formalmente todos os poderes políticos ao governo provisório nacionalista, o que equivalia à abdicação.

       O Príncipe Su não teve outra alternativa senão fugir para Port Arthur, na costa da Manchúria, onde se refugiou na concessão japonesa. Foi aí que começou a urdir um plano ainda mais grandioso. A sua décima quarta filha, a Princesa Hsien-tzu, era parte desse plano. Não, ela não era apenas parte do plano - ela era a chave de todo o plano!

       A residência do príncipe em Port Arthur era uma mansão imensa com paredes de tijolo, ao estilo russo, erguendo-se no cume de um monte, no meio de um denso bosque. Tinha m total de vinte e oito quartos. O gabinete do Príncipe Su ficava no segundo piso.

       - Vá, saúda o teu pai e despede-te dele - ordenou a mãe de Hsien-tzu.

       Timidamente, a menina ergueu o rosto manchado pelas lágrimas.

       O pai, o todo-poderoso chefe de um lar constituído por uma centena de pessoas, estava sentado diante dela, fitando-a com uma expressão grave. Ele era o décimo elemento da dinastia Ching a assumir o título hereditário de Príncipe Su. Se a dinastia Ching se tivesse mantido no poder, a sua família teria sido a cabeça dos oito clãs hereditários da nobreza manchu. O príncipe possuía simultaneamente um carácter forte e um ar de autoridade natural. Além disso, era um planeador clarividente e um chefe capaz. A sua exigência de ordem incidia mesmo sobre os mais vulgares rituais domésticos, como era o caso das refeições familiares. À hora da refeição, todos aguardavam obedientemente pelo som do gongo e só depois se reuniam na ampla sala de jantar da mansão.

       Hsien-tzu costumava observar o pai de algum recanto onde ele não desse por ela. Agora, porém, o pai estava tão perto, mesmo em frente dela... O Príncipe Su apreciavá cuidadosamente a sua filha.

       - Hum... Sim, a minha Hsien-tzu fica lindíssima de quimono, não esperava eu outra coisa...

       Por um momento, pareceu perder-se nos seus pensamentos.

       - A partir de hoje - prosseguiu - chamar-te-ei Tung-chen, a jóia do Oriente. Espero que, no Japão, te tornes uma presença muito estimada e apreciada.

       Sem fazer a menor ideia do que o pai queria dizer com aquilo, Hsien-tzu limitou-se a aquiescer.

       - Tung-chen - disse o Príncipe Su. - Sabes por que razão decidi mandar-te a ti? Porque, de todos os meus filhos e filhas, tu és de longe a mais prometedora. Conto contigo - contigo e com o senhor Kawashima!

       A luz cintilante de um candeeiro de tecto francês derramava-se sobre todos os objectos que havia no gabinete. Havia um sofá de veludo escarlate. Havia também estantes, cheias de exemplares de clássicos chineses, obras de consulta, manuscritos e documentos vários. Destes exalava-se um agradável odor a papel e tinta. Mas havia ainda outros tesouros. O pai tinha até uma grande e brilhante fotografia da famosa estrela da ópera de Pequim Mel Lan-fang, tirada durante um espectáculo. Contudo, o pai não lhe deu nenhuma das muitas maravilhas que havia naquele quarto; deu-lhe apenas uma estranha fotografia, já muito baça e cheia de manchas cinzentas.

       Era uma fotografia de Naniwa Kawashima. Aquele era o aventureiro japonês em que o príncipe depositara toda a sua confiança, o homem que elaborara um ambicioso plano para a criação de uma Manchúria e uma Mongólia independentes. Para tal, estudara aplicadamente a Manchúria e o seu conhecimento da região era enciclopédico. De facto, sabia mais acerca da Manchúria do que a maior parte dos chineses.

       O homem que estava na fotografia tinha uns olhos penetrantes, escurecidos por fartas sobrancelhas. Era um homem macilento, com um ar letrado. Estava todo aprumado no seu quimono, fitando algum ponto longínquo com um sorriso satisfeito.

       - Este será o teu pai de criação - disse o Príncipe Su à filha. - Preparar-te-á da melhor maneira possível para o papel que irás desempenhar numa grande empresa. Tu vais participar na restauração da dinastia Ching. Este homem guiar-te-á. Deves-lhe obediência.

       Kawashima fizera sacrifícios pessoais pela causa Ching. A sua devoção ultrapassara as fronteiras da amizade que o ligava ao Príncipe Su. Chegara mesmo ao ponto de deixar crescer o cabelo, a fim de poder usar uma trança manchu. Tornara-se também um ávido estudante da história e da geografia chinesas. Apesar de os seus planos de juventude, tendo em vista uma Manchúria e uma Mongólia independentes, terem sido esmagados, Kawashima nunca deixara morrer a esperança. Continuava a acreditar firmemente que o território da Manchúria era a chave para a futura sobrevivência do Japão.

       A Manchúria era um troféu magnífico. Essa terra esplêndida que ocupava o canto nordeste da China era rica em recursos naturais. Por outro lado, possuía uma localização estratégica.

       Embora fosse um ano mais velho do que o Príncipe Su, Kawashima, muito inteligentemente, dissera ao príncipe que ambos tinham nascido no mesmo ano. Refinando a adulação, decidiu tratar o príncipe com todo o respeito, como se este fosse mais velho do que ele. Depressa se tornaram amigos íntimos. A certa altura, tornaram-se mesmo irmãos de adopção, trocando horóscopos como parte do ritual. Foi nesse dia que Kawashima, envergando o traje de um funcionário Ching, posou para uma fotografia comemorativa com o Príncipe Su. Estavam sentados lado a lado, em frente de um caramanchão de glicínias japonesas.

       O Príncipe Su pegou numa carta e deu-a à filha, dizendo-lhe que deveria entregá-la a Kawashima. A mensagem era breve:

       Ofereço-te esta pequena jóia. Espero que cuides sempre dela com o maior desvelo.

       A carruagem de Hsien-tzu chegou e todos os habitantes da casa saíram à rua para se despedirem daquela "pequena jóia" de rosto doce e olhos chorosos.

       O jardim da residência do príncipe reluzia de flores tão brilhantes e multicoloridas como brocado de seda. Havia pessegueiros, damasqueiros, acácias, girassóis e oito espécies de cerejeiras, todas em flor. Corria a Primavera de 1913. Hsien-tzu, nos seus inocentes sete anos, partia para o Japão absolutamente só.

Quando Hsien-tzu, agora Tung-chen, desembarcou em Shimonoseki, o homem da fotografia, como prometido, estava à espera dela. As suas fartas sobrancelhas tocavam-se de tão franzidas; dir-se-ia que, na sua mente, só havia lugar para as mais sérias preocupações.

       A menina nunca tinha visto aquele homem. Não sentia nada por ele. Mas foi com ele, para a sua casa do bairro de Akabane, em Tóquio. Que poderia ela fazer? Afinal, aquele homem seria, a partir desse dia, o seu "pai".

       Também ele lhe deu um novo nome, um nome japonês: Yoshiko Kawashima. Yoshiko aprenderia a assinar o seu nome em japonês, a falar japonês, e a comer sopa de miso, como qualquer menina japonesa.

       Naniwa Kawashima tinha um ar sério e preocupado, porque a situação política chinesa estava a passar por rápidas mudanças. De facto, em janeiro de 1915, a situação viria a modificar-se tão drasticamente que Kawashima ver-se-ia forçado a alterar completamente os seus planos. Foi em janeiro desse ano, precisamente quando Kawashima promovia activamente a restauração da China, que o Japão confrontou a China com as chamadas "vinte e uma exigências". Se tivesse cedido a todas elas, a China ter-se-ia transformado, na prática, num protectorado japonês. O governo japonês adoptou uma atitude absolutamente inflexível; as exigências eram tão ultrajantes e absurdas que, para além de o povo chinês as ter rejeitado, houve mesmo um segmento da sociedade japonesa que as criticou. Apesar disso, o presidente chinês, Yuan Shih-kai, concordou com a maior parte das condições, com resultados desastrosos para a China. Desprezando o seu povo, Yuan envergou o traje do dragão de um imperador chinês e passeou-se pela cena política como um pavão, intitulando-se imperador. Porém, antes mesmo que o povo tivesse tempo para tomar fôlego, o "imperador" foi arrastado para fora de cena. O povo aguardava o próximo acto daquele espectáculo.

       O plano inicial de Naniwa Kawashima consistia em unir a Mongólia Interior e a Mongólia Exterior às três províncias da Manchúria: Mukden, Kirin e Heilungchiang. Aí instalaria o deposto imperador Ching, Pu-yi, como soberano. Esta empresa exigia dinheiro, estrategos capazes e tropas.

       Enquanto frequentou a escola primária, Yoshiko Kawashima não teve ninguém que lhe proporcionasse a orientação moral que normalmente é ministrada às crianças. Tudo o que aprendia para além das matérias escolares tinha por fim instigar nela um amor intenso pela Manchúria e um desejo imenso de voltar à "terra natal". Yoshiko ignorava por completo o objectivo subjacente à sua educação. Ainda que o descobrisse, provavelmente não teria sido capaz de entender.

       Kawashima não lhe permitia qualquer liberdade; de facto, Yoshiko só conseguia brincar com os seus colegas durante o recreio. Todos os rapazes usavam a cabeça rapada e pareciam soldados de brinquedo produzidos em série, alinhados nos seus uniformes de blusões de algodão e calças de sarja. Todas as meninas usavam casaquinhas de seda estampadas e saias-calças de cetim púrpura.

       Naquela escola, a educação física incluía treino militar, o qual, para os rapazes, incluía a luta com varas de bambu. O objectivo deste jogo era conquistar a China. Se os jogadores conseguissem "penetrar" na China, comeriam pêras frescas e doces, viveriam em belas casas e seriam servidos por criados chineses. E toda a gente sabia que os criados chineses eram os mais leais e obedientes de todo o universo.

       No recreio, as crianças gostavam de brincar aos aviões de combate. Certo dia, coube a Yoshiko ser o avião de combate. Voava pelos céus do recreio, bombardeando os colegas. Um a um, todos eles foram caindo. Houve porém um rapaz que se recusou a cair. Yoshiko carregou sobre ele, zunindo como um motor e imitando ruídos de deflagrações, e empurrou-o violentamente.

       Mal se viu no chão, o rapaz desatou a chorar.

       - Por que é que estás a chorar? - escarneceu Yoshiko. - Se houver uma guerra, serás o primeiro a morrer, meu grande medricas!

       - Eh, Yoshiko - chamou outro miúdo, com um ar matreiro. - Mas afinal de onde é que tu és?

- És da China? Do Japão? De onde é que tu és, Yoshiko? – secundou.

Yoshiko ficou sem fala. A verdade é que não sabia ao certo de onde era. Na sua cabeça só havia confusão e a confusão deixava-a perdida.

       Uma súbita inspiração permitiu-lhe uma resposta inteligente: "Sou do estômago da minha mãe! "

       Dito isto, deu meia-volta e desatou a correr. Correu, correu, correu; mas corria para onde? Por muito que corresse, por muito depressa que corresse, continuava num país estrangeiro. Aquela não era a sua terra, e nunca poderia ser. Tentou recordar o seu lar; porém, por muito que se esforçasse, nem do rosto da mãe se conseguia lembrar.

       Espontâneas, as lágrimas começaram a inundar-lhe os olhos. Contudo, Yoshiko não se sentia propriamente triste. Era mais um vazio, um vazio indistinto, desolado.

       Uma bola de borracha voou do distante recreio da escola e foi aterrar aos seus pés. Um rapazito veio a correr atrás da bola, mas Yoshiko arrebatou-a antes que o miúdo conseguisse recuperá-la. Usando de toda a sua força e maldade, atirou-a ainda para mais longe. Aquele era o lado cruel da sua personalidade, que agora só por momentos emergia; contudo, à medida que os anos foram passando, esse lado cruel passou a revelar-se de uma forma mais frequente e intensa.

       Yoshiko continuou a correr, queria ir para casa, para a casa do seu pai de criação, Kawashima, enquanto os colegas não paravam de gritar, troçando dela:

       -Yoshiko! Yoshiko! Yoshiko, a chinezinha!

       Yoshiko não queria voltar para a escola. A organização da vida escolar, orientada para o grupo, ia completamente contra a sua natureza. Mudou de escola vezes sem conta e passou por uma série de preceptores particulares, mas nada a satisfazia. Uma única coisa permaneceu constante: as lições diárias de Kawashima. A toda a hora, Kawashima procurava inculcar-lhe os ideais da restauração Ching e de uma Manchúria independente. E foi assim que, passo a passo, Yoshiko foi crescendo.

       A milhares de quilómetros dali, na China, a vida prosseguia. Em 1916, o Presidente Yuan Shih-kai morreu em circunstâncias algo misteriosas. Disseram alguns que morrera de doença antiga; segundo outros, fora uma hemorragia cerebral desencadeada por um choque; outros ainda espalharam que fora assassinado. De que morrera Yuan, era coisa de somenos importância para Kawashima e o Príncipe Su. Há já algum tempo que vinham organizando um exército, tendo em vista uma operação que derrubaria Yuan e restauraria a dinastia Ching. Com a morte de Yuan, viam-se de súbito sem um objectivo. Era como se alguém tivesse espetado um alfinete num balão demasiado cheio. O Príncipe Su não resistiu ao desalento e depressa caiu em depressão.

       No ano seguinte, deu-se uma nova tentativa falhada para restaurar a dinastia Ching. Desta feita, tudo começou no sul. Ao fim de apenas doze dias, a operação em causa sofreu uma estrondosa derrota; contudo, na sequência desta tentativa fracassada, a situação política chinesa ficou ainda mais confusa do que antes. Nada estava decidido, apesar de um regresso oficial ao calendário Ching.

       Kawashima e o Príncipe Su tinham outro aliado, um general mongol. Babujab, assim se chamava o general, lutou longa e duramente para alcançar os objectivos que uniam os três homens, mas o destino reservava-lhe o fracasso político e uma morte violenta. Ao fim de vários anos de escaramuças dispersas, o dinheiro e as armas do Príncipe Su e de Kawashima tinham-se esgotado. Haviam dissipado os seus recursos e nada tinham conseguido. Por muito desanimado que tivesse ficado com tantos reveses, a verdade é que Kawashima contava ainda com um trunfo.

       Yoshiko estava agora com quase quinze anos. Naquela noite, estava sentada à janela da sua nova casa, contemplando o céu estrelado. Tinham deixado Tóquio. Viviam agora perto das termas de Asama, em Shinshu.

       No céu, as estrelas cintilavam de muitas cores. Havia estrelas amarelas, azuis, prateadas, vermelhas. Eram como que lantejoulas coloridas incrustadas numa faixa negra de céu nocturno. Yoshiko deixou-se ficar à janela, um longo, longo tempo, contemplando as estrelas apenas.

       Lentamente, um sentimento de desolação foi-se insinuando no seu espírito. Começou a sentir-se inquieta, mas era fácil combater tais inquietações: bastava lembrar-se da sua missão. Foi isso que fez. O ânimo voltou imediatamente ao seu coração. A poderosa dinastia Ching ter-me-á sempre ao seu lado! A pátria precisa de mim e eu não a desiludirei!, disse para si mesma. Encorajada por estes pensamentos, sentiu renascer em si a paixão e a determinação. Kawashima consagrara muitos anos à formação daquela jovem, mas os resultados estavam à vista. Yoshiko era agora uma rapariga arguta e destemida; e, apesar de impulsiva, era uma jovem determinada e capaz de pensar pela sua própria cabeça.

       A meio do ano escolar, Yoshiko transferira-se para a Escola Secundária Feminina de Matsumoto. O seu aproveitamento e assiduidade eram, quando muito, medíocres. Só ia às aulas quando lhe apetecia. Quando se aborrecia, escapulia-se, pura e simplesmente. Ameaças ou lisonja, nada a convencia a alterar os seus hábitos.

       Certo dia, tinha ela acabado de abandonar sorrateiramente as aulas quando Kawashima apareceu na escola. Yoshiko resolvera passar o resto do dia em divertida cavaqueira com um funcionário da escola.

       - Yoshiko! - chamou o seu pai de criação.

       Mal viu a expressão grave dele, Yoshiko concluiu que havia algum problema. Kawashima abeirou-se dela, pôs o seu braço por cima dos ombros magros da jovem. Embora fosse pequena e magra, os seus músculos eram fortes e firmes.

       - Yoshiko - disse ele com um ar sério. - Tenho mais más notícias para ti. Tens de ser forte. Foi o teu pai. Faleceu no passado dia vinte e sete, em Port Arthur... Diabetes.

       De súbito, as palavras de Kawashima dominavam por completo a mente de Yoshiko. Apenas um mês antes, tinham recebido a notícia da morte de sua mãe. Dizia-se que a sua mãe estava grávida de mais um filho, o décimo primeiro. Querendo consagrar-se inteiramente ao Príncipe Su, decidira não ter o filho. Tomara o que pensara ser uma dose moderada de veneno para provocar o aborto; contudo, calculara mal a dosagem e, acidentalmente, provocara a sua própria morte.

       Agora, também o pai de Yoshiko desaparecera.

       Era como se todos os seus laços familiares tivessem sido rompidos. Estava completamente só, não tinha ninguém no mundo.

       - Não fiques triste, Yoshiko - exortou-a Kawashima. - Lembra-te de que temos de continuar a obra do teu pai. Temos de restaurar a dinastia Ching!

       Yoshiko nada disse. Acabava de sofrer um grande choque; a sua expressão, contudo, não denunciava a menor emoção. Com os olhos secos, cerrou os dentes, o rosto tão frio e impassível como jade.

       Essa compostura inabalável era o resultado da rigorosa educação que Kawashima lhe ministrara. Aquela rapariga poucas semelhanças tinha com a "pequena jóia" de uns anos antes, tão propensa a lágrimas e birras. Transformara-se numa jovem forte que nunca chorava. O pai adoptivo fitava-a solenemente.

- Estamos todos à espera que tu cresças - disse ele.

       De facto, a obra não estava ainda concluída. Os sonhos de grandeza do pai não se tinham ainda concretizado. Os ambiciosos planos de Kawashima não tinham vencido ainda os limites de uma qualquer conversa extravagante. Yoshiko seria o trunfo final, mas não estava ainda em condições de ser jogada. Ela era como que um botão que teria ainda de florescer, um puro-sangue que nunca tinha corrido.

       Ao contrário do que muitos poderiam prever, a verdade é que Yoshiko, ao longo da sua breve vida, nunca se esquecera de quem era e nunca esquecera a posição que ocupava na sua família. Crescera num mundo dilacerado por revoluções e agitação política, fora separada da sua família ainda muito nova para ser criada no Japão por um ambicioso estrangeiro. Os afectos que pudessem ligá-la à família haviam sido todos destruídos ao longo desses anos. Contudo, Yoshiko lembrava-se de quem era - a décima quarta filha do Príncipe Su e uma princesa manchu - e sabia o que o mundo esperava dela. Deslocou-se imediatamente a Pequim para assistir ao funeral do pai, como era seu dever.

O caixão do Príncipe Su foi conduzido de Port Arthur a Pequim por um longo cortejo de carregadores, recitadores dos sutras, acompanhantes e criados. Estes últimos levavam as réplicas em papel de dinheiro e outros artigos pessoais de que o espírito do falecido necessitaria no além. A procissão era tão longa que demorou um dia a percorrer a distância que separava os portões da residência do príncipe da estação de comboios de Port Arthur. Os rituais fúnebres rivalizaram em rigor e formalidade com os consagrados aos imperadores e a pompa da cerimónia teria sido adequada às exéquias de um imperador.

       Após o funeral do pai, Yoshiko voltou para a escola no Japão; contudo, o seu gosto pelos estudos diminuía a olhos vistos. Aproveitava todas as oportunidades para tirar férias. Ao fim de alguns dias de faltas, a directora da escola perdia a paciência e ameaçava expulsá-la. Mas Yoshiko não estava minimamente preocupada. Tinha-se apaixonado.

Era um amor ardente e feliz, esse amor juvenil de Yoshiko. Muitas vezes, vestia-se à marinheiro e dava longos passeios a cavalo com o namorado. Quase parecia um rapaz; a única nota dissonante era a cabeleira, que descia muito além dos ombros e dançava ao sabor do vento e do galope.

       Toru Yamaga, assim se chamava o namorado. Era segundo-tenente na Quinquagésima Companhia de Infantaria de Matsumoto e candidato a um posto na academia militar. Aventureiro, patriota e radical, Yamaga era também membro do obscuro grupo denominado Sociedade do Dragão Negro. Esta organização, constituída por militaristas e nacionalistas, estava ligada à espionagem militar japonesa e tinha por objectivo a instauração do domínio japonês no Extremo-Oriente. O primeiro passo era a conquista do nordeste da China - a Manchúria.

       Indivíduos de todo o género iam regularmente a casa de Naniwa Kawashima para participarem em reuniões e manterem acirradas e bombásticas discussões até altas horas da noite. Yamaga fora um desses homens, mas a sua atenção depressa se desviara dos assuntos internacionais para se concentrar na bela Yoshiko. Inexoravelmente atraídos um pelo outro, Yamaga e Yoshiko foram-se desinteressando cada vez mais da política.

       Yoshiko tinha agora dezassete anos e ganhara um encanto absolutamente singular - uma fascinante mescla de feminilidade e agressividade. Contudo, em muitos aspectos, continuava a ser uma criança.

       O jovem casal passeava frequentemente a cavalo. Yoshiko montava bem, mas Yamaga era muito melhor do que ela na arte da equitação. Com um movimento rápido e subtil, era capaz de, num ápice, lançar o seu cavalo à desfilada, deixando Yoshiko muito para trás. Depois, com um único puxão das rédeas, Yamaga conseguia que o seu cavalo parasse e se empinasse, de tal forma que homem e cavalo pareciam um só erguendo-se garbosamente nas alturas.

       Yamaga era um soldado e montava como um soldado, com a bravata peculiar dos militares. Exibia a sua arte numa sucessão de manobras extravagantes, capazes de deixar os cabelos em pé a qualquer um. Enquanto cavalgava, era frequente o seu corpo erguer-se da sela a grande altura, de tal modo que parecia voar pelos ares.

       Yoshiko não gostava que a vencessem, e, naquele dia, as acrobacias de Yamaga estavam a irritá-la ainda mais do que o costume. Claro que o adorava, mas odiava que ele fosse um cavaleiro muito mais hábil e talentoso do que ela. Decidida a apanhá-lo, deu a maior leveza possível ao seu corpo e ergueu-se da sela enquanto galopava. De súbito, porém, perdeu o equilíbrio e começou a deslizar.

       Yamaga apercebeu-se de que Yoshiko estava prestes a cair. Fez girar rapidamente o seu cavalo, correu na direcção da jovem e ergueu-a ligeiramente de modo a que ela pudesse equilibrar-se sobre a sela. Yoshiko agradeceu-lhe com um sorriso.

       Continuaram o seu passeio a cavalo, como dois bons camaradas, o resto da tarde. Só ao fim de algumas horas se aperceberam de quão exaustos estavam. Voltaram então para casa.

       Quando chegaram a casa de Yoshiko, aperceberam-se de que Kawashima tinha companhia. Naquele dia, como em tantos outros dias, a casa situada perto das termas de Asama fervilhava de distintos convidados. À porta, havia uma quantidade de botas e sapatos, que os convidados de Kawashima tinham descalçado antes de entrar. No cabide, viam-se muitos chapéus e sobretudos, e, no sítio reservado para os guarda-chuvas, havia várias bengalas.

       Quem estava na sala de reuniões de Kawashima e que assuntos estavam discutindo era algo que deixava Yoshiko completamente indiferente. Só tinha olhos e ouvidos para Yamaga - os outros, era como se não estivessem lá.

       Yamaga acompanhou a namorada até à entrada.

       - Vemo-nos amanhã - disse ele, incapaz de suportar a ideia de que tinham de se separar.

       Yoshiko olhou para ele com uma expressão grave.

       - Ainda não te dei autorização para te ires embora! - disse ela, como se fosse seu chefe. Num ápice, deixou-o e correu à cozinha. Concentrada no que se propunha fazer, nem se deu conta da confusão de vozes que vinha do gabinete de Kawashima.

       Num instante voltou para junto de Yamaga, trazendo uma caixa de papel, igual às das confeitarias. Abriu a caixa e Yamaga viu que continha bolos de arroz. Tinham recheio de pasta de azulo " doce.

       - Fui eu que os fiz - disse Yoshiko, tirando um dos bolos. Trincou um cantinho do bolo e ofereceu-lho.

       - O quê? Outra vez pasta de azulo? - resmungou ele.

       - Eu gosto!

       - É demasiado doce! Prefiro recheio de castanha.

       Yoshiko abanou a cabeça, mas nada disse. Depois, tirou da boca o bocado de bolo que estava a mastigar e meteu-o na boca dele; não tirou os olhos do namorado enquanto ele não o engoliu.

       - Não gosto de recheio de castanha - disse ela, num tom firme. - Mas da próxima vez, prometo-te que faço recheio de castanha só para ti, desde que comas todos os bolos desta caixa até amanhã.

       Yamaga olhou de relance para o conteúdo da caixa. Eram oito bolos! E não eram propriamente pequenos! Mas bastou-lhe olhar para Yoshiko para perceber que o melhor era obedecer-lhe. Com uma expressão afável, pegou na caixa.

       Yoshiko transbordava de satisfação. Era, desde a infância, uma pequena ditadora. Este traço autocrático era complementado por um talento notável para seduzir e dominar os outros com mimos e lisonja. Um dos seus maiores prazeres consistia em fazer gato-sapato daqueles que a amavam.

       - Da próxima vez - disse ela, com uma vozinha suave - prometo que faço recheio de castanha. E se não cumprir a minha promessa, recompensar-te-ei, fazendo recheio de castanha até ao fim da minha vida!

       Yoshiko olhou de soslaio para ele. Yamaga tinha quase mais dez anos do que ela, mas Yoshiko fazia tudo o que queria dele.

       - Quero provar-te que sou uma boa esposa.

       Yamaga riu-se e, num instante, pôs-se em sentido.

       - A menina é a boa esposa do Segundo-Tenente Yamaga da Quinquagésima Companhia de Infantaria de Matsumoto! Os meus respeitos, menina! disse ele, fazendo a continência.

       Yoshiko pareceu reflectir por um momento naquilo que o namorado acabara de dizer.

 

       ` Feijão pequeno e preto, muito apreciado no Japão (N. do T:).

 

       - Matsumoto é uma terra tão pequena... Oh, não interessa... Seja como for, não te esqueças - tens de comer os bolos todos! Amanhã serás submetido a um interrogatório! - Dito isto, deu meia-volta e encaminhou-se para a porta; mas virou-se para ele ao fim de dois ou três passos e, com uma expressão doce, advertiu-o:

       - Amanhã quero ver-te!

       Viu-o saltar para a sela e afastar-se e os seus olhos demoraram-se amorosamente naquela forma que a pouco e pouco se ia esbatendo. Ele era como o seu cavalo - orgulhoso e forte. Apesar da distância, ouviu-o ainda dar um grito vigoroso, incitando o cavalo a apressar-se.

       Um sorriso de satisfação iluminou todo o seu rosto. Quase podia olvidar todas as suas ambições de grandeza. Os outros que fossem a correr para a China! Podiam muito bem ir sem ela! Tudo o que queria no mundo era estar com o homem que amava, tudo o que queria era amá-lo e ser amada. Juntos podiam ir longe e voar a grandes alturas. No fim de contas, ela não era diferente das outras mulheres. Podia ser feliz amando um homem.

       - Yoshiko!

       Yoshiko não ouviu.

       - Yoshiko!

       A voz voltou a chamar, vinda do interior da casa, obrigando-a a regressar ao presente.

       O sorriso não se tinha ainda esbatido quando Yoshiko respondeu e se encaminhou para o gabinete de Kawashima. A porta de madeira deslizou e Yoshiko espreitou lá para dentro.

       Todos os olhos se fixaram nela, deixando-a assustada. Havia cerca de uma dúzia de homens no gabinete, todos eles idealistas arrojados e corajosos, impregnados do espírito de aventura. Intimidava-a ver-se diante de uma dúzia de homens que não tiravam os olhos dela. Sentia-se estranhamente deslocada: uma vez mais, via-se desamparada num mundo que era dos homens.

       Sentado ao lado de Naniwa Kawashima, estava um homem com um cabelo e uma barba de uma alvura inigualável e uma expressão falsamente amável. Chamava-se Mitsuru Kashirayama e era o chefe da Sociedade do Dragão Negro. Inspeccionou Yoshiko de alto a baixo. Com o seu ar de tranquila autoridade, conseguia impor-se aos outros sem ser agressivo.

       Mitsuru Kashirayama e Naniwa Kawashima estavam inteiramente de acordo quanto ao objectivo japonês de conquistar o continente asiático e aos motivos que o fundamentavam. Do seu ponto de vista, a raça chinesa fora completamente corrompida por cinco mil anos de uma civilização estagnada.

Toda a sociedade chinesa se desintegrara e os 400 milhões de chineses viviam tão sem ordem e sem rumo como grãos varridos pelo vento. Os chineses eram gente egoísta, egotista, de vistas curtas - tinham sido escravizados por uma nação moribunda.

       Chegara a hora de o Japão afirmar a sua superioridade natural. Possuindo uma força militar superior, o Japão não teria grande dificuldade em estabelecer a sua primeira cabeça-de-ponte nos territórios chineses da Manchúria e da Mongólia. Ocupado esse canto da China, os japoneses poderiam usá-lo como uma base, a partir da qual estenderiam a sua influência a toda a Ásia, até alcançarem o derradeiro objectivo: tornarem-se os senhores da Ásia. Era imperativo impedir que outras potências mundiais dilacerassem a China, bocado a bocado. Os japoneses desconfiavam especialmente da Rússia, que cobiçava a China como uma fera esfomeada.

       Quando Yoshiko entrou, eram precisamente estas questões - e o que fazer relativamente à Manchúria e à Mongólia, em particular - que Kawashima e os seus convidados estavam a discutir.

       - Aguardo ansiosamente o dia em que os céus da Manchúria serão o telhado sobre as nossas cabeças, em que a terra da Manchúria será a nossa cama, em que os nossos nomes ficarão gravados nos cinco mil anos da conturbada história da China! - declamava Kawashima.

       Com um aceno da cabeça, Yoshiko saudou a reunião. Até certo ponto, quase todos os ambiciosos jovens sentados naquele gabinete eram secretos admiradores de Yoshiko. De facto, era possível que cada um deles tivesse decidido consagrar a sua juventude a algo mais que à política e ao destino da nação. Talvez o seu activismo político se tivesse tornado mais do que uma capa para outro objectivo. No fim de contas, Yoshiko tinha apenas dezassete anos e era bela, altiva, e uma princesa manchu da mais pura linhagem. E, apesar de uma esmerada educação, havia nela uma ousadia e um desrespeito pelas convenções que a tornavam ainda mais atraente. Teria sido uma noiva sedutora mesmo sem as suas ligações políticas.

       Enquanto a maior parte dos homens que estavam no gabinete a fitavam com admiração, havia um par de olhos que a observavam com sentimentos mais intensos. Num quarto cheio de competidores, todos eles disputando um mesmo troféu chamado Yoshiko, seria possível que o mais forte dos concorrentes fosse precisamente aquele que menos falava? Seria natural o seu silêncio? Ou não passaria de uma artimanha?

       - Yoshiko - disse Kawashima -, reconheces este homem?

       Os olhos dela concentraram-se no rosto do jovem. Ele olhou-a também, bem nos olhos, sem pestanejar. Os olhos dele reluziam de vitalidade. O rapaz não dissera rigorosamente nada, o que não impedia que Yoshiko gostasse dele. Sentia que o conhecia desde sempre.

       - Não sabes quem é? É Ganjurjab, o segundo filho do general mongol Babujab.

       Claro! De súbito, fizera-se luz na sua mente. Aquele era o Príncipe Ganjurjab, o seu amigo de infância, seu companheiro de tantas brincadeiras. E não mudara nada! Estava igual ao miúdo que em tempos conhecera.

       Yoshiko e Ganjurjab haviam sido de facto companheiros inseparáveis, durante a infância. Os seus pais tinham partilhado grandes planos, ao passo que os filhos tinham partilhado uma inocente afeição um pelo outro. Depois, cada um fora para seu lado. Ela fora para o Japão e para um pai adoptivo, ele entrara para a Escola de Oficiais do Exército Japonês.

       Apesar de Ganjurjab se ter tornado um homem alto e bem-parecido, Yoshiko não conseguiu reprimir um risinho. Lembrara-se de uma fotografia que um dos adultos, certo dia, lhes tinha tirado. No momento em que o fotógrafo se preparava para tirar a fotografia, depois de ter ensaiado cuidadosamente a pose das crianças, Yoshiko, travessa como era, segredara qualquer coisa ao ouvido do amigo.

       - Vamos fazer de conta que estamos a brincar ao Papel, à Tesoura e à Pedra; tu fechas a mão e és a "pedra" e eu sou a "tesoura", está bem?

       Ganjurjab era um menino tímido e esquivo, pouco dado a travessuras. Por isso fingiu que não ouvira nada. Quando a fotografia foi revelada, o bem-comportado Ganjurjab tinha as mãos muito correctamente juntas sobre o colo, ao passo que Yoshiko fazia o gesto que representava a tesoura.

       Não, pelo que estava a ver, Ganjurjab não tinha mudado nada. Yoshiko julgou mesmo detectar um ligeiro rubor espalhando-se pelo rosto do jovem.

       - Lembras-te dele? - insistiu Kawashima. - Há muito que não se viam. Agora, dois velhos amigos voltam a encontrar-se. Ganjurjab concluiu há pouco o curso da academia militar.

       - Oh?

       Kawashima procurava entender a reacção de Yoshiko. Esta, por seu turno, tinha a estranha sensação de que havia qualquer coisa no ar, embora lhe fosse impossível descortinar o quê. Sim, que poderia ser? Uma suspeita insinuou-se no seu espírito. Aquela reunião tinha um ar demasiado artificial, como se tivesse sido orquestrada com excessivo cuidado. Contudo, depressa deitou para trás das costas tão estranhas e desconfortáveis sensações. As suas preocupações eram outras, e tinham um nome - Yamaga.

       O homem dos cabelos brancos, Kashirayama, ergueu indiferente o seu copo e sorveu um pouco de saké.

       O dia do encontro de Yoshiko com Ganjurjab, aquele 6 de Outubro de 1924, viria a constituir o ponto de viragem da vida de Yoshiko. Se a História houvesse passado por cima desse dia, se o curso da História houvesse evitado esse dia, é muito provável que tudo tivesse sido diferente e que a vida de Yoshiko nunca se tivesse transformado no sonho estonteante e terrível que a História registou. Mas, quem sabe, também é possível que o destino explique tudo o que depois se passou.

             Tudo começou de um modo muito simples. Yoshiko tinha acabado de tomar o seu banho da noite quando Kawashima a chamou ao seu gabinete.

             Era seu hábito chamá-la quando queria discutir com ela alguma ideia nova. Ela era sempre a primeira a conhecer os seus projectos. Talvez quisesse informá-la dos assuntos que ele e os seus camaradas tinham discutido na reunião. Depois, far-lhe-ia sem dúvida uma dissertação solene sobre a acção política e lembrar-lhe-ia que o activista verdadeiramente empenhado na sua causa teria de conhecer o inimigo tão bem como se conhecia a si mesmo, se por acaso quisesse alcançar a vitória.

             Depois de se ter secado, Yoshiko vestiu a sua túnica yukata e cingiu-a com a faixa.

             Quando chegou ao gabinete, Kawashima tinha acabado de acender o pequeno fogão, sobre o qual a água de uma chaleira fervia suavemente.

       Kawashima gostava de atirar cascas de toranja para o lume - as cascas produziam uma fragrância intensa e frutada que se espalhava por todo o quarto.

       Yoshiko ficou surpreendida por Kawashima não ter abordado imediatamente o assunto habitual: os problemas nacionais.

       - Yoshiko - perguntou ele, sem qualquer preâmbulo -, alguma vez pensaste na questão do casamento?

       Kawashima apanhara-a desprevenida.

       - Não, eu...

       - Segundo os usos do teu país, já devias ter pensado.

       -Do meu país? Que país...?

       - Ora, que país! A China, evidentemente.

       Yoshiko sentiu-se um tanto apreensiva.

       -Mas... mas eu sou japonesa.

       - Não! O que tu queres é casar com um japonês! - contrapôs rapidamente Kawashima.

       Por um momento, Yoshiko ficou sem fala. Estava em desvantagem perante aquele homem: faltavam-lhe os seus anos, a sua longa experiência de astucioso manipulador de pessoas. Não tinha armas para o enfrentar. Trémula, nervosa, contestou a insinuação.

       - Não, claro que não. Amor e casamento são assuntos completamente diferentes.

       Kawashima voltou à carga.

       - É Yamaga? - perguntou. - Yamaga não passa de um segundo-tenente, não sei se sabes.

       - Um segundo-tenente pode ser promovido num ápice a primeiro-tenente! - ripostou ela, recusando dar-se por vencida tão facilmente. - E Yamaga pode subir ainda mais, pode chegar a general e mesmo a comandante-chefe. Toda a gente tem de começar pelo princípio, toda a gente tem de começar por ser segundo-tenente!

       - Claro, claro que Yamaga pode subir. - Kawashima sorriu. - Se tudo correr bem e não houver nenhum obstáculo, é capaz de lá chegar daqui a quarenta anos.

       Kawashima tinha razão e Yoshiko sabia que tinha. Não lhe respondeu.

       - Tu és a décima quarta princesa de um grande clã imperial. Esperam-te acções grandiosas, e não a contemplação de fantasias infantis. Não deves esquecer-te nunca do legado de teu pai! Nunca te esqueças de que és uma princesa, a tua missão e o teu destino são a missão e o destino de um príncipe!

       - Qual é a minha missão?

       Kawashima estava à espera de que Yoshiko lhe fizesse precisamente aquela pergunta, a fim de que pudesse explicar-lhe quão importante ela era para os planos que ele e os seus camaradas haviam congeminado. Ela era a própria chave para o êxito desses planos.

Quando voltou a falar, a sua voz ganhara um tom imperioso.

       - A tua missão é casar com o príncipe mongol Ganjurjab. Esse casamento unirá as forças armadas da Manchúria e da Mongólia. Estes exércitos atravessarão o norte da China e conquistarão Pequim. Aí, encontrarás um reino independente e restaurarás a dinastia Ching. São tarefas muito importantes!

       Yoshiko estava estupefacta. Então a ideia era essa! Ganjurjab! Sim, agora tudo era claro.

       - Estás a falar de um "casamento político", não é isso? - disse ela, e baixou a cabeça, perdida nos seus pensamentos. Casar com Ganjurjab? Por certo não o desprezava. No entanto, também não podia dizer que gostasse especialmente dele. Se Yamaga obtinha oito numa escala de dez, então Ganjurjab não passava de cinco. Aceitável. Mas... casar com ele?

       Por um longo tempo, nada disse. Não estava minimamente preparada para aquilo. Que podia ela dizer? Sentia-se perplexa.

       Kawashima olhou para Yoshiko com ar inquiridor, tentando em vão perscrutar o coração da jovem. O que estaria ela a pensar?

       Analisou cuidadosamente o assunto, avaliando as vantagens e os inconvenientes; mas não conseguia chegar a uma decisão. De um lado, estava o dever, o dever para com o seu país. Do outro, aquilo que lhe ditava o coração. Se casasse com Ganjurjab e fosse com ele para a Mongólia, a sua vida nunca mais seria a mesma. Não seria possível voltar atrás. E ela era tão jovem, e estava apaixonada pela primeira vez. Que havia de fazer?

       Kawashima continuava a olhá-la fixamente.

       - Comparado com a política - disse ele, imperturbável -, o casamento é uma coisa trivial.

       Mas Yoshiko não 0 ouviu. Continuava a matutar no caso. Não se deu conta de que a gola da sua túnica deslizara, recuando um pouco, revelando uma estreita faixa de um pescoço tão alvo como neve, coberto por uma penugem quase invisível. No sítio onde as lapelas da yukata se sobrepunham, as suaves cavidades das clavículas viam-se agora quase por inteiro. O vale do seu colo assemelhava-se a um vaso vazio, convidando a que o enchessem. O seu gracioso e delicado corpo só agora começara a florescer. Continuava a ser muito magra, mas os encantos do seu corpo podiam ser facilmente imaginados.

       Enquanto observava aquela frágil e inexperiente jovem, Kawashima sentiu de súbito como que um choque percorrendo-lhe o corpo. Teve a sensação de que o seu coração parara por segundos. Kawashima tinha já cinquenta e nove anos. Yoshiko, apenas dezassete. Ele criara-a como a uma filha e não se poupara a esforços para incutir nela as suas próprias convicções políticas. Embora tivesse a percepção de que aquela Yoshiko era um produto seu, dava-se conta de que a jovem não apreciava - bem pelo contrário - que a controlassem como uma marioneta. Em breve, pela certa, aquela jovem fénix abriria as suas asas esplêndidas, impetuosas, e voaria para muito longe dele.

       Yoshiko continuava hesitante. Não queria precipitar-se. Talvez houvesse alguma coisa que pudesse dar ao seu namorado como recordação...

       Kawashima mirava-a como um lobo faminto. Podia tê-la devorado inteira, ali, naquele instante. De uma vez só!

       - A virgindade de uma mulher - disse Kawashima, com uma voz rouca -, também é uma coisa trivial.

       De início, Yoshiko não compreendeu o que ele dissera. Aquilo era impensável. Inimaginável!

       Lentamente, tudo se tornou claro, muito claro. O seu próprio pai de adopção! O homem que fora seu tutor, que orientara todos os aspectos da sua educação e formação. Um homem que sempre estivera acima de qualquer suspeita. E que, agora, de um momento para o outro, passava todos os limites imagináveis. Como era possível que descesse tão baixo? Nunca, por uma vez que fosse, imaginara que teria um dia de se proteger dele!

       Kawashima rasgou brutalmente a parte de cima da túnica. Enquanto Yoshiko lutava para se libertar, ele pôde ver, por um momento, a região mais secreta e oculta da jovem. Yoshiko rodopiou e tentou fugir, mas ele não a largou. Agarrou na parte de baixo da túnica da jovem e ergueu-a acima da cintura, enroscando-a num nó.

       Havia pálidos lilases nas calcinhas dela.

       O seu corpo meio nu era suave e misterioso.

       Yoshiko sentia uma mistura de choque e constrangimento e o seu rosto traía toda a sua confusão.

       - Não... - disse ela, e mais não disse. Não havia fuga possível.

       Kawashima agarrou-a com força pelos punhos e, numa questão de segundos, penetrava aquele corpo jovem.

       O rosto dela contorceu-se num esgar, mas isso apenas serviu para que ele a dilacerasse ainda mais. Todo o quarto parecia estar a arder. Chamas vivas dançavam à volta deles e ela sentia a fragrância intensa e límpida das cascas de toranja que ardiam no lume. Mas havia outro odor - uma mistura de cheiros, a peixe e a erva cortada. Era o cheiro da sua virgindade violada na tatami' que cobria o chão. Um fio de sangue maculava a palidez da esteira.

       A respiração de Kawashima era agora ruidosa, pesada. O seu corpo desferia incessante os golpes da posse; ao mesmo tempo, fazia a Yoshiko uma dissertação solene sobre a sagrada missão que lhes estava destinada, como que a dizer-lhe que ele é que estava certo, que a integridade, a honestidade, estavam, afinal, do lado dele.

       - Tu és de sangue nobre... eu sou um homem de acção... - arfava Kawashima. - A nobreza por si só... não chega para conquistar o mundo... mas um homem de coragem... sozinho... também não chega... segundo as leis da eugenia... se os nossos dois sangues se unirem... os nossos descendentes... serão, sem dúvida... heróis... heróis... entre os homens...

       Uma onda de náusea submergiu Yoshiko.

       Surgiam os primeiros sinais da manhã. A oriente, uma luz lilás começava a empalidecer. Era a mesma cor das calcinhas de Yoshiko, violentamente rasgadas na noite anterior. A friagem da noite ainda se fazia sentir, mas o novo dia alvorecera finalmente.

       Por vezes, quando a esperança é totalmente destruída, nem tristeza se consegue sentir. Ao enfrentar o espelho, os olhos de Yoshiko ardiam de uma estranha determinação. Com gestos decididos, precisos, moldou a sua cabeleira, apanhando-a bem ao alto, fixando-a com ganchos que imitavam as flores da Primavera - flores de ameixeira e cerejeira, glicínias. Vestiu o seu quimono de seda favorito. Tinha um padrão de montanhas e sol sobre um fundo rosa-pálido. Atou à cintura uma faixa obi, com um bordado de peónias.

       Vestiu-se com esmero e elegância. Nessa manhã, os seus afazeres limitavam-se a uma visita a um pequeno e modesto salão de cabeleireiro, longe do centro da cidade.

       Quando a bela desconhecida chegou ao pequeno salão, o cabeleireiro surgiu solícito à porta para lhe dar as boas vindas. Yoshiko não perdeu tempo: estendeu-lhe uma máquina fotográfica e pediu-lhe que lhe tirasse uma fotografia. Havia um exuberante canteiro de crisântemos defronte do salão. Os crisântemos estavam no apogeu do seu viço; o pano de fundo não poderia

 

Esteira japonesa (N. do T.).

 

ser mais agradável. Yoshiko olhou solenemente para a lente, com uma expressão simultaneamente cerimoniosa e firme. Nos seus lábios, nem sombra de um sorriso. Aguardou.

       - Menina! Só um sorrisozinho, está bem? - disse o cabeleireiro, usando de toda a sua simpatia para a tentar convencer.

       Yoshiko fez de conta que não ouviu e o homem premiu o botão, fazendo disparar o flash.

       Dentro do salão, Yoshiko sentou-se defronte do grande espelho e desprendeu a longa cabeleira negra, que lhe tombou sobre as costas como uma cascata.

       O cabeleireiro começou a cortar, um cacho de cada vez. E a tesoura só parou quando o pano branco que caía dos ombros da jovem ficou coberto de mechas e a sua cabeleira negra se derramou, em espessos cachos, pelo chão à volta da cadeira. Aquilo que outrora parecera ter uma vida própria mais não era agora do que lixo, e tudo acontecera num abrir e fechar de olhos. O anónimo cabeleireiro continuou a cortar, lentamente, cuidadosamente.

       - Que pena! - suspirou.

       O rosto de Yoshiko assemelhava-se a mármore, frio e quieto.

       - Ficar-lhe-ia muito agradecida - disse ela, com fria formalidade - se mo cortasse todo. Estou farta da "feminilidade".

       - Mas menina - disse o cabeleireiro, que não podia estar mais triste -, a partir de agora vai ter de usar uma peruca.

       Yoshiko não mais prestou atenção ao homem. Em vez disso, concentrou-se na mulher que estava à sua frente, no espelho. Viu a sua cabeleira ficar mais curta, cada vez mais curta, ainda mais curta. O cabeleireiro concluiu o seu trabalho, fazendo a risca ao lado, como se se tratasse do cabelo de um homem. A transformação era agora total. A rapariga que Yoshiko fora um dia antes estava agora morta. Transformara-se noutra pessoa.

       Levantou-se e saiu, deixando sozinho o perplexo cabeleireiro. Estaria mesmo a pensar em usar roupa de homem?, perguntou-se o homem, intrigado. Que estranha rapariga! Para que fizera ela aquilo? Sim, para quê? E que queria ela dizer com aquela história de estar "farta da "feminilidade"?

Com o entusiasmo e o ardor habituais, Yamaga dirigiu-se ao local onde tinham marcado encontro nessa tarde. Contudo, logo que a viu, parou, e não conseguiu dar nem mais um passo. Ficou de olhos postos nela, incrédulo, sem pestanejar. Aquela rapariga seria mesmo Yoshiko? Estava estupefacto.

       Naquela tarde de Outono, Yoshiko não trazia a sua roupa habitual, sempre tão cheia de cor. Vestia, pelo contrário, um quimono de homem, com as mangas direitas, um quimono de algodão azul e branco com um padrão geométrico. Nos pés, trazia um par de pesados e vulgares tamancos. O seu cabelo estava incrivelmente curto e tinha risca ao lado, como o cabelo dos homens.

       Yoshiko marcara aquele encontro para um local invulgar. De facto, tratava-se de um bambuzal. Era sua intenção romper com o namorado, sem apelo nem agravo. Calmamente, estendeu-lhe uma fotografia: seria uma recordação para o resto da vida. Era a fotografia que o cabeleireiro lhe tinha tirado naquela manhã.

       Sem entender nada de nada, Yamaga aceitou a fotografia.

       - Mas... o teu cabelo... - balbuciou.

       - Foi o cabeleireiro. Falhou-lhe a mão e o resultado é o que está à vista. Cortou demasiado.

       Uma história em que Yamaga não podia acreditar.

       - O que é que se passou, Yoshiko? - perguntou.

       - Não tenho nada a dizer.

       - Yoshiko - implorou ele, apertando-lhe as mãos. - Por favor, Yoshiko, diz-me a verdade! O que é que se passou contigo?

       - Pedi-te que viesses ter comigo por uma única razão. Não podemos voltar a ver-nos!

       - O quê? Não podemos voltar a ver-nos?

       Yamaga sentia-se completamente aturdido. Dois dias antes, tudo estava bem. Um dia antes, tudo estava bem. Mas ela mudara da noite para o dia transformara-se num homem! E agora... agora queria romper com ele?

       - Yoshiko, por muito que tu mudes, os meus sentimentos em relação a ti nunca mudarão. O meu amor por ti será sempre o mesmo. - E prosseguiu: - Mas isto é absolutamente inesperado... Não me disseste nada... Nem uma alusão fizeste... Mesmo na guerra, temos mais informações! Pelo menos, temos espiões...

       - Precisamente - retorquiu ela, imperturbável. - Estamos em guerra e eu sou uma combatente. E não há nada que eu não faça para defender a nossa causa, para alcançar o objectivo de uma Manchúria independente!

       - Mas tu és apenas uma mulher - disse Yamaga, compadecido dela.

       - As mulheres também podem realizar grandes feitos! - Nas palavras dela havia rebeldia, mas o seu rosto mantinha-se impassível. - É isto que eu quero fazer. E ninguém pode impedir-me!

       Yamaga sentia uma fúria súbita crescer dentro de si.

       - Uma vida familiar tranquila e feliz, é isso que qualquer mulher normal quer! O que é que te leva a pensar que és diferente de todas as outras? Que género de aventuras julgas tu que vais viver?

       Um sem-número de emoções contraditórias confundiam-se na mente de Yoshiko. Estaria a fazer o que devia? Não estaria por acaso a enganar-se a si mesma? Suportaria realmente romper com Yamaga? Desejaria mesmo fazê-lo? Seria a sua incerteza um sinal de fraqueza?

       Por fim, conseguiu recompor-se. Já não podia recuar. Teria de levar aquilo até ao fim.

       - Pois é, mas é assim mesmo que eu sou - disse ela, impassível. - É o meu destino. Não há nada a fazer. Agora vai-te embora!

       - Esperarei por ti o tempo que for preciso. Tu hás-de ser minha.

       Yoshiko desatou a rir, indiferente aos sentimentos dele.

       - Eu não tenho pais, não tenho entes queridos. Estou sozinha no mundo; e não tenciono pertencer a quem quer que seja! Ainda que tenha de morrer, será pela minha própria mão!

       Seria verdadeira, aquela inflexibilidade?, perguntou-se Yamaga. Não haveria espaço para um compromisso? A sua paixão transformou-se de súbito em fúria, uma fúria mais forte do que ele. O seu rosto ficou vermelho de raiva, os tendões do seu pescoço retesaram-se. Sem sequer pensar, pegou na sua pistola.

- Então morre! - gritou-lhe ele.

       Yoshiko tirou-lhe a pistola sem a menor hesitação. Como uma sonâmbula, apontou-a ao seio esquerdo e disparou. Nesses breves instantes, os olhos dela nunca largaram o rosto do homem que amava.

       Horrorizado, Yamaga viu o sangue jorrando da ferida e uma mancha de um vermelho muito vivo deslizando pelo quimono. A pouco e pouco, a mancha foi-se abrindo como um leque, como se fosse uma flor nas mãos de um prestidigitador.

       Yamaga agarrou-a pelos pulsos e puxou-a para ele, abraçando-a com toda a força que tinha.

       - Agora, já não te devo mais nada! - disse ela, com todo o vigor que lhe restava.

       De facto, sentia-se animada por uma estranha energia. Do seu corpo agitado, o sangue corria rápido para as mãos dele, e ela encarniçava-se para suportar a dor. Era uma dor que parecia rasgar-lhe todo o corpo, trespassando-lhe o coração. Um fio de sangue manchava-lhe agora o rosto, tal era a sanha com que mordia o lábio. Tremendo como uma folha ao vento, lutava para vencer a dor, lutava para ocultar a dor no mais fundo do seu ser. Toda a sua energia se concentrava numa única coisa: Tinha de se manter consciente! Não podia soçobrar!

       Na altura, Yoshiko não poderia aperceber-se inteiramente do significado daquele tiro. Talvez um dia, num longínquo futuro, todo o significado daquele acto se tornasse subitamente claro. Não, ela não lhe devia nada! Haveria sempre uma cicatriz vermelha, semelhante a um sinal minúsculo, no seu seio esquerdo. Nem mesmo Naniwa Kawashima, o homem que a violara e que imaginara ser seu dono e senhor, nem mesmo ele descobriria alguma vez esse segredo.

 

                                                Sede.

       Tinha tanta sede! Era como se, em toda a sua vida, nunca tivesse bebido uma gota de água. Todos os fluidos se haviam escoado do seu corpo, um corpo mirrado que ardia, ainda que ardesse de um vago e ténue fogo.

       Yoshiko estava exausta. Sonhava que caminhava por uma bizarra estrada. De súbito, a estrada tornava-se longa, muito longa; depois, no instante seguinte, começava a colear, a serpear. E nunca mais acabava, não tinha nunca fim. Em vão tentava encontrar alguém que lhe indicasse o caminho; mas não havia ninguém naquela estrada a não ser ela, até ao fim dos tempos. E continuava a caminhar, a caminhar, para todo o sempre.

Flutuava entre a consciência e a inconsciência, presa do combate entre a vida e a morte. Lutou duramente e, no fim de tudo, a vitória foi da vida.

       Yoshiko estava deitada na sua cama de hospital. O seu rosto tinha a cor da mais pálida cinza. Estava muito fraca, mas sobrevivera.

       Não fazia a menor ideia de quanto tempo tinha passado. Seria ainda Outono?

       A luz do dia ter-lhe-ia revelado uma orgia de cores outonais. As folhas dos plátanos, prestes a tingirem-se de vermelho, reluziam ainda de tons laranja e verde claro, como tangerinas e toranjas. No hospital, contudo, toda a cor se resumia a um inexpressivo e solitário branco, destituído de vida e de amor.

       Gradualmente, o dia foi ficando mais frio. O médico apareceu para a sua ronda diária.

       - O sr. Yamaga tem vindo vê-Ia muitas vezes - disse o médico -, mas você não estava acordada.

       - A partir de amanhã - disse ela com uma voz débil, mas com profunda determinação -, não quero mais visitas.

       Antes que o médico pudesse responder, Yoshiko acrescentou:

       - Vou ter de fazer outra operação.

       O médico manifestou alguma surpresa.

       - Outra operação? Mas se a sua operação foi um êxito...! Não precisa de mais operações...

       - A operação a que me refiro - replicou ela, imperturbável - é uma Laqueação das trompas. Quero ser esterilizada.

       - O quê? A menina não está a falar a sério, pois não? - retorquiu o médico, espantado.

- Estou, sim - disse ela, tão firme como antes. - Eu própria pagarei.

       - Impossível. Uma mulher só pode fazer essa operação a partir dos vinte anos. E além disso, eu simplesmente não posso...

       - Se se recusar - disse ela, interrompendo-o -, mato-me. Amanhã.

       Feito o ultimato ao médico, Yoshiko virou-lhe a cara e fechou os olhos. Queria expulsar as sombras que a atormentavam. Seria livre.

       Ainda que não fosse uma mulher alta e não parecesse ser fisicamente forte, o certo é que uma poderosa energia interior robustecera todas as fibras do seu corpo; e toda essa energia se concentrava agora num único objectivo: romper completamente com o passado, começar tudo de novo.

       Não conseguia lembrar-se de quando começara a fazê-lo, mas havia muito tempo que gostava de entoar para si mesma um pequeno poema:

Tenho um lar para onde não posso voltar, Estou cheia de lágrimas que não posso chorar. Se a lei do mundo é a injustiça, Quem quererá escutar a minha história?

       Não, não morreria. Tinha de continuar a viver. Quando se punha a reflectir sobre o que fora a sua vida até então e contemplava a possibilidade de ajustar velhas contas, concluía que não havia ninguém neste mundo que fosse verdadeiramente responsável pelo seu destino. Estranhamente, este pensamento deixava-a aterrada. Mas as suas dívidas já estavam saldadas. Agora, era livre para começar de novo.

Yoshlko Kawashima e Ganjurjab casaram em Port Arthur, Manchúria, em Novembro de 1927. A cerimónia realizou-se no opulento Hotel Daiwa, no interior da concessão japonesa. A união constituía uma grande vitória para o Estado-Maior do Exército japonês de Kwantung, que agora estava pronto para invadir a Manchúria.

       Naniwa Kawashima não assistiu à cerimónia. Cumprira a sua missão e já não havia lugar para ele naquela empresa. O quartel-general do exército era agora o responsável por toda a operação. Isso significaria uma maior eficiência. Involuntariamente, Kawashima dera um impulso decisivo à operação, num momento particularmente crítico. Contudo, Kawashima deixara de ser um elemento útil. Já não servia para nada. Os seus superiores hierárquicos consideraram que seria melhor que ele se retirasse da vida pública. Há já algum tempo que Kawashima estava à espera de tal decisão, ainda que fossem diferentes os sonhos que acalentava.

       A estratégia invasora do exército de Kwantung contemplava duas frentes: a militar e a civil. Na frente militar, o coronel Daisaku Komoto arquitectou uma conspiração para assassinar o marechal Chang Tso-lin, o poderoso chefe militar que controlava não só a Manchúria, como também duas outras províncias adjacentes. Os homens de Komoto fizeram explodir a carruagem privativa de Chang, quando este viajava de Pequim para Mukden, matando-o e eliminando assim mais um obstáculo à conquista da Manchúria pelos japoneses.

       Na frente civil, o exército de Kwantung contribuiu para a realização do casamento de Yoshiko com Ganjurjab, o qual criava uma poderosa aliança entre os povos da Manchúria e da Mongólia. Sem o apoio destes dois povos, o Japão escusaria de sonhar com a conquista do Nordeste.

       O casamento, como seria de esperar, causou sensação. Uma impressionante lista de VIPs assistiu à cerimónia. Estava lá o chefe do Estado-Maior do Exército de Kwantung, bem como uma série de oficiais e membros da Sociedade do Dragão Negro. Havia embaixadores estrangeiros, o novo chefe da casa do Príncipe Su, aventureiros chineses e mesmo velhos adeptos da dinastia Ching. Estes últimos continuavam a recusar-se a usar vestuário ocidental e, para aquela ocasião especial, tinham revolvido os seus poeirentos baús e retirado os antiquados trajes cerimoniais que agora usavam. Embora já tivesse passado mais de uma década desde a queda da dinastia Ching e da implantação da República, alguns desses velhos monárquicos tinham conseguido salvar as suas tranças das tesouras dos zelosos progressistas. No casamento, esses símbolos de lealdade à dinastia Ching eram bem visíveis sob os chapéus. Era preciso que o mundo inteiro os visse, que o mundo inteiro soubesse desse gesto de rebeldia.

       Estavam também presentes outros sobreviventes do antigo regime. Damas de nobre estirpe avançavam vacilantes nos seus minúsculos pés atados, todas elas apoiadas em vários criados. Com a sua pele suave, de um branco de porcelana, as sobrancelhas delicadamente arqueadas, os olhos como amêndoas, elas eram o epítome da nobreza e do refinamento. Porém, elegância e altivez era tudo o que aquelas aristocráticas damas possuíam quanto ao mais, eram absolutamente inúteis. Eram criaturas inválidas e estropiadas, já que um costume bárbaro e cruel lhes deformara os pés, os quais haviam sido transformados em pequenas bolas de carne e ossos partidos. Isso tornava-as completamente dependentes, incapazes de passar a soleira da porta sem ajuda, cambaleando perigosamente sempre que se aventuravam a sair à rua.

       Yoshiko sorriu para elas com frieza. Tinha dó daquelas mulheres. Não era uma delas, não era como elas em nada, em nada de nada. Ela era uma mulher capaz, determinada, independente. E embora fosse mulher, tinha de si mesma uma imagem simultaneamente masculina e feminina. Julgava possuir as melhores qualidades dos homens e das mulheres. Seria um homem entre mulheres.

       O vestido de casamento de Yoshiko era um cheongsam de cetim multicolorido, com colarinhos ao estilo mandarim e debruns com bordados de flores na bainha e nos punhos. Um longo e delicado véu da mais diáfana seda roçava o chão, ondulando ao sabor dos seus passos.

       Sob camadas de pesada maquilhagem, o seu rosto exibia uma rigidez absoluta. O pó-de-arroz, profusamente aplicado, não lhe permitia a menor expressão - aquela Yoshiko assemelhava-se a uma boneca feita de neve. Sobre o branco esmaecido do rosto, os lábios, pintados de carmim, pareciam ainda mais carnudos e brilhantes. Rebuscados brincos de pérolas e jade lavrado caíam-lhe pesadamente das orelhas, desmaiando desajeitadamente sobre os seus ombros. Em suma: Yoshiko estava igual a qualquer outra noiva, posando com um ar afectado e pudico para as fotografias do casamento. Ganjurjab estava a seu lado, todo empertigado, envergando uma longa túnica com um colarinho ao estilo mandarim, casaco de cetim e uma pequena touca redonda de cetim, própria da cerimónia.

       Durante uma pausa nas festividades, Ganjurjab abeirou-se de Yoshiko e segredou-lhe qualquer coisa.

       - Fiquei francamente surpreendido quando concordaste com a minha proposta - confidenciou ele, transbordando de felicidade.

       - Eu própria fiquei surpreendida - retorquiu ela, secamente.

       - Dar-te-ei tudo o que quiseres. Basta pedires. - Ganjurjab parecia não se ter dado conta do tom glacial com que a noiva lhe respondera.

       - Para dizer a verdade, não há nada que eu queira, a não ser a minha liberdade.

       - A tua liberdade?

       Yoshiko sentiu uma ponta de desprezo por aquele que era desde há pouco o seu marido.

       - O teu nobre pai jurou lealdade ao meu - explicou. - Quanto a mim, jurei lealdade ao imperador Ching e a ele apenas. Para cumprir o que jurei, terei de ter liberdade para agir por minha própria conta e risco, conforme muito bem entender. Caso contrário, nunca conseguiremos realizar a sagrada missão que nos propusemos.

       - Mas... mas tu agora és minha mulher...! - retorquiu ele, indignado. No entanto, Ganjurjab amava-a, amava-a muito mais do que ela o amava, e não era capaz de lhe recusar o que quer que fosse. - Está bem, o teu coração é que manda - acabou por dizer.

       Nesse preciso instante, um punhado de decrépitos adeptos da dinastia Ching aproximou-se dos recém-casados para lhes dar os parabéns. Aqueles homens tinham conseguido chegar a uma provecta idade - para nada. Servos sem préstimo de uma nação desaparecida, não tinham conhecido outra coisa senão amargas decepções, e, agora, aguardavam a morte, convictos de que desceriam à última morada sem terem visto os seus sonhos concretizados.

Yoshiko representava, para eles, um último raio de esperança: no preciso momento em que haviam desistido de tudo, a Manchúria fora abençoada com aquela flor de uma exuberante feminilidade. Os antecedentes familiares de Yoshiko eram impecáveis e, além do mais, era uma bela mulher. Aqueles velhos viam nela o futuro da Manchúria e depositavam nela todas as suas esperanças.

- Parabéns!

- Felicidades!

- Fazem um casal perfeito! Perfeito!

- O espírito da grande dinastia Ching continua vivo em ti, Princesa!

Yoshiko inclinou orgulhosamente a cabeça, agradecendo a homenagem.

       - Agora, e como sempre aconteceu ao longo da história, o povo espera por jovens heróis como vós para o salvar!

       - Todos confiamos no vosso êxito, todos confiamos que o grande dia está próximo!

       E o cortejo prosseguiu, infindável, e prosseguiram os louvores, as homenagens, a adulação. Só ao fim de um longo tempo cessou o desfile. Com ele, cessaram as palavras vazias, como que varridas por uma tempestade de areia nas estepes da Mongólia.

       Yoshiko tinha vinte anos quando casou com Ganjurjab. Ganjurjab tinha vinte e quatro anos e, como mandava a tradição mongol, levou a esposa para a residência da família dele após o casamento. Mudaram-se para as verdejantes planícies da Mongólia, varridas por ventos constantes, longe, muito longe, da confusão e da sofisticação das grandes cidades.

       De início, Yoshiko sentiu-se impressionada com a grandiosidade daquela paisagem. Deliciava-se com os seus longos passeios a cavalo por aquelas planícies que pareciam não ter fim. Contudo, não havia a menor possibilidade de fuga ao atraso e à rudeza de costumes que caracterizavam aquela remota região. Yoshiko estava habituada à constante actividade e variedade da vida urbana e depressa se cansou de ter diante dos seus olhos, todos os dias, a mesma vastidão de poeira amarela. A princesa era uma mulher cheia de vida e adorava a agitação e aquela terra deixava-a profundamente deprimida.

       O clã de Ganjurjab era muito vasto. Para além da sogra, Yoshiko tinha de enfrentar tias, cunhadas, tios, cunhados, sobrinhos e outros parentes. Para piorar as coisas, ela e Ganjurjab não se estavam a dar nada bem. Discutiam constantemente, mas Ganjurjab cedia sempre e deixava-a fazer tudo o que queria.

       Que fraco que ele era! Seria aquilo um homem? Deveria ser forte e firme, mas engolia sempre a sua fúria e fazia todo o género de concessões, unicamente para manter a paz. Amava-a profundamente; mas quanto mais a amava, mais atraía o desprezo dela.

       Mas por que é que ela provocava as discussões, o confronto constante, com ele? A resposta só podia ser uma: ela não fora moldada para ser uma esposa vulgar. Sem ninguém em quem confiar, Yoshiko ia acumulando frustrações e afastava-se cada vez mais do resto da família, a qual, mais tarde ou mais cedo, acabaria por ver nela não mais que uma aberração.

       E que dizer dos seus sonhos de uma Manchúria e de uma Mongólia independentes, das suas fantasias de um regresso da dinastia Ching, em todo o seu poder e glória? Que relação poderia haver entre aquele casamento e todos os seus delírios de grandeza?

       Subitamente, Yoshiko apercebeu-se do erro em que caíra. Casara com o homem errado. Além do que não fora feita para aquele género de vida. Ora, a própria ideia de casamento era, para ela, algo de profundamente ridículo! Havia no mundo imensos homens capazes de lhe darem aquilo de que precisava.

       Ganjurjab procurou agradar-lhe, mudando-se para Dairen, uma grande cidade na costa da Manchúria. Mas Yoshiko continuava infeliz - a vida com Ganjurjab tornara-se insuportável. Dava imensos passeios de carro com um sem número de namorados japoneses. Passava as noites a dançar com conquistadores de bar de hotel vestidos à ocidental, e chegava exausta a casa às primeiras horas da manhã, sob o olhar vigilante das bisbilhoteiras das redondezas. Certo dia, por um mero acaso, reparou num jornal à venda num quiosque. A manchete anunciava, em letras garrafais: A CARREIRA AMOROSA DE YOSI-IIKO. Só podia rir-se - tudo aquilo era tão divertido!

       Yoshiko e Ganjurjab eram marido e mulher apenas de nome. Apareciam juntos em público, participavam em banquetes e outras funções sociais, mas um abismo sem fundo separava os seus corações.

       Certa noite, Ganjurjab regressou a casa e a casa estava vazia. Acostumara-se à ausência da mulher, mas aquela noite era diferente, pois Yoshiko já não estava na China. Ia a caminho do Japão.

       No chão do seu apartamento da Avenida Sheng-te, Ganjurjab encontrou aquilo que ela lhe deixara: a aliança de casamento.

       Depois de três anos de casamento e de muitas experiências extra-matrimoniais, Yoshiko transformara-se numa mulher particularmente atraente. Pela segunda vez na sua vida, viajava sozinha para leste, rumo ao Japão. Mas desta vez era diferente. Desta vez, fora ela que tivera a ideia. Queria ver Naniwa Kawashima.

Quando Yoshiko lhe apareceu à porta, Kawashima ficou surpreendido, e não pouco; contudo,. depressa ocultou o seu espanto e comportou-se como se a presença dela não tivesse nada de invulgar.

       Vendera a sua casa de Akabane, onde homens ambiciosos se tinham reunido e conspirado, e vivia agora retirado numa cidade tranquila e remota. Talvez tivesse nascido na época errada, pois todos os seus grandes projectos tinham falhado. Agora estava retirado de tudo.

       - Há três anos que não tenho notícias tuas. Pensava que ainda estavas nas estepes da Mongólia - disse ele, brincando com ela e afagando distraidamente a gatinha que dormitava no seu colo.

       - Nunca mais volto para a Mongólia - retorquiu Yoshiko.

       - Vocês... divorciaram-se?

       Essa era de facto uma possibilidade inquietante. Apesar de se ter retirado da política, Kawashima continuava a sentir um interesse pessoal pela situação. Este novo desenvolvimento ameaçava arruinar o projecto em que tinham trabalhado durante tantos anos, antes mesmo que pudesse dar algum fruto.

       - Não, não. Não me divorciei. Vim-me embora, é tudo!

       Kawashima pareceu de início profundamente exausto e desanimado; inopinadamente, porém, sentiu irromper em si uma fúria imparável.

       - Tu és demasiado impulsiva! Demasiado indisciplinada! Achas que conseguirás realizar algo de importante para a Sociedade do Dragão Negro, quando nem sequer consegues controlar-te a ti mesma? Desde o atentado contra Chang Tso-lin, há cerca de dois anos, que estamos a um passo da criação de uma nação independente na Manchúria, uma nação para ti. E é agora, agora que estamos prestes a alcançar o nosso objectivo, que tu foges para aqui sem dar explicações a ninguém, arruinando assim todos os nossos esforços!

       Yoshiko rompeu num riso glacial. Ela não era marioneta de ninguém! Kawashima ainda pensava que podia controlá-la e isso deixava-a furiosa furiosa com ele por tentar mampulá-la agora, e furiosa com todo um passado em que se deixara manipular por ele.

       - Eu nunca deixo uma obra a meio - replicou ela num tom firme. - Nem sou daqueles que desistem mal se confrontam com uma pequena dificuldade. Eu voltei para ajustar contas contigo. Ganjurjab não tem talento, não tem potencial. Graças a ti, perdi três anos da minha vida com ele - três dos melhores anos da minha vida. Mas não quero discutir um assunto tão humilhante. O que passou, passou. Compreendi que, se quero realizar algo nesta vida, só há uma pessoa em quem posso confiar: eu própria!

       - Portanto, pensas que podes ser independente, não é? E de que recursos dispões tu? De que vais tu viver?

       - Do meu dinheiro!

       -Do teu dinheiro?

       Yoshiko examinou friamente aquele homem que obtivera lucros tão avultados graças à sua longa ligação com o pai dela. Não passava de um parasita movido pela ganância. Nunca fora outra coisa na vida. Porquê tanta infelicidade? Por que fora ela tão infeliz - por que caíra ela nas mãos daquele homem? Se ao menos tivesse havido outra pessoa, alguém que a tivesse estimado desde o princípio... Tudo poderia ter sido diferente.

       - Se bem me lembro - disse ela -, uma das propriedades que constavam da herança de meu pai era o Mercado Lu Tien, em Dairen. Tu foste nomeado para cobrar as rendas, para além de receberes uma comissão. Sei muito bem que se trata de uma soma considerável.

       - Hum... efectivamente. - Kawashima fechou sonolentamente um dos olhos, com um ar vagamente trocista. Afinal ela só queria aquilo...! Tão pouco...! Com todo o seu engenho, tratou de dissimular. Praticava há já tanto tempo a arte do embuste que, na sua expressão, não havia um único vestígio de falsidade.

       - Como muito bem sabes - disse ele, fitando meigamente a gatinha -, os rendimentos dessa propriedade foram canalizados para o financiamento do movimento. Receio bem que já tenham gasto a maior parte. Bom, e seja como for, se realmente pretendes obter dinheiro de alguém, não achas que deverias assumir uma atitude mais correcta?

       Yoshiko cerrou os punhos com toda a sua força. As veias ressaltavam-lhe nas têmporas, tal era a sua raiva. Os seus olhos faiscavam. Fazia um esforço tremendo para se manter calma.

       - É apenas uma questão de sabedoria, de maturidade - disse ele, erguendo lentamente os olhos para ela.

       Kawashima não acabara ainda de falar quando ela lhe virou costas e desandou dali para fora.

       Não iria a lado nenhum com Kawashima. Era evidente que não conseguiria nada dele. Mas havia outro homem que talvez pudesse ajudá-la.

       Nessa noite, Yoshiko resolveu fazer uma visita à Estalagem das Peónias. Não era o tipo de cliente que aquele estabelecimento, especializado em vinho e gueixas, costumava receber. De facto, Yoshiko pretendia tão-somente encontrar uma determinada pessoa.

       Uma criada conduziu Yoshiko a um dos quartos. Parou diante da porta de correr antes de bater suavemente. De dentro do quarto vinha o som de vozes, mas ninguém respondia. Antes que a rapariga pudesse virar-se para falar com a estranha visitante, Yoshiko abriu brutalmente a porta, rasgando a delicada cobertura de papel de arroz.

       Aquilo que viu deixou-a enojada. Era uma cena de uma depravação total. A primeira coisa em que reparou foi no corpo bêbado de Yamaga, todo esparramado no chão. Os seus belos traços clássicos pareciam diluídos, distorcidos. À luz suave do candeeiro do quarto, quase não o reconhecia.

       Tinha a cabeça pousada nas coxas de uma gueixa, cujo frágil quimono estava agora todo emaranhado à volta do seu corpo, ameaçando romper pelas costuras. O rosto e o pescoço da mulher estavam inteiramente cobertos de base branca, ao estilo das gueixas; a base chegava ao sítio onde deveria estar a gola do quimono. Contudo, o quimono tinha deslizado, revelando uma parte das costas. Na nuca, o suor diluíra parte da base, deixando apenas um triângulo sarapintado.

       A gueixa estava a dar-lhe vinho de arroz, boca a boca, como uma ave dando de comer a uma cria. Como o vinho estava a escaldar, a mulher sorvia um pouco de cada vez, esfriava o vinho na sua boca e só depois o passava, lenta e sensualmente, dos seus lábios para os lábios do cliente. Yamaga introduzira a mão no quimono da mulher e acariciava-lhe os seios enquanto

bebia. Riam-se os dois que nem tolos e Yoshiko não podia sentir-se mais chocada e revoltada.

       Um movimento ligeiro chamou a atenção de Yoshiko. Olhou para o fundo do quarto e viu um par de gueixas seminuas enlaçadas numa dança sedutora e fazendo arcos no ar com leques dourados.

       O quarto tresandava a luxúria e deboche, um odor selvagem, animal.

       Yamaga virou languidamente o olhar na direcção da intrusa e apercebeu-se com um sobressalto de que aquela mulher era Yoshiko! No estado de estupor em que se encontrava, ficou na dúvida se ela não seria uma invenção da sua imaginação toldada pelo vinho. Ergueu-se sobre um cotovelo, interpelou-a.

       - Yoshiko?

       Furiosa e enojada, Yoshiko virou-lhe costas e desapareceu num ápice. Yoshiko ouvira dizer que, depois de se terem separado, Yamaga caíra numa vida de bebida e mulheres, passando as suas noites e os seus dias nas casas de gueixas. Estava cheio de dívidas, chegando mesmo a desviar dinheiros públicos para pagar os seus vícios - pelo menos era o que constava. Fosse como fosse, boatos eram apenas boatos e Yoshiko agarrava-se a um último farrapo de esperança: a esperança de que os boatos não correspondessem à verdade. Mas quando o viu com os seus próprios olhos, quando viu quão baixo ele havia descido, as suas esperanças esfumaram-se num ápice.

       Deixou o quarto de Yamaga numa corrida, mas os seus perturbantes pensamentos abrandaram-lhe o passo mal saiu da estalagem. Sentia todo o peso da desilusão. Yamaga, outrora tão forte, estava agora tão bêbado que nem conseguia levantar-se. Tornara-se um homem fraco, demasiado fraco para ir no seu encalço e descobrir se ela seria real ou apenas um fantasma.

       Yoshiko permaneceu por um momento defronte da casa de gueixas, procurando disfarçar a sua raiva, até que chegou a uma decisão. Partiria - para não mais voltar.

       Nenhum dos homens a quem fora pedir ajuda poderia ser-lhe útil. Um deles não tinha poder, o outro não tinha dinheiro. Os chineses tinham um ditado que dizia: "Os grandes homens não perdem o poder de um dia para o outro e os homens vulgares não ficam falidos da noite para o dia." Era a lição de milhares de anos de fracassos. Não podia ser mais verdadeiro.

       Examinou friamente e minuciosamente a sua situação. No fim, concluiu que tudo o que lhe restava era ela própria. Não havia mais ninguém, não havia mais nada, em que pudesse confiar.

       Não, não estava disposta a deixar-se abater! Nunca! Tinha uma ideia. Havia outra saída.

       Certa tarde, não muito tempo depois do decepcionante encontro com Yamaga, Yoshiko entrou numa casa de chá e foi sentar-se imediatamente a uma mesa ocupada por um japonês de aspecto distinto. Tinha-o procurado por todo o lado e agora ali estava ele, diante dela. Para tão importante ocasião, vestira um cheongsam amarelo e penteara cuidadosamente o cabelo curto. Assumiu um ar polido e refinado enquanto erguia delicadamente a chávena e sorvia o chá.

       O homem sentado à sua frente era um famoso romancista japonês, Shofu Muramatsu.

       Yoshiko não se dera ao trabalho de marcar entrevista. Em vez disso, decidira abordá-lo directamente, surpreendendo-o na casa de chá que sabia que ele frequentava. Instalada na sua cadeira, deixou-se de preâmbulos e foi direita ao que lhe interessava.

       - Quero propor-lhe um negócio - disse ela, imperturbável. - Gostava de lhe vender uma história, uma história muito interessante e emocionante, que poderá usar como intriga num dos seus romances. Tudo o que peço em troca é o dinheiro para uma viagem de barco.

       Muramatsu ficou espantado com a audácia da jovem; mas não ficou menos intrigado.

       - A protagonista desta história - prosseguiu Yoshiko -, é a décima quarta princesa da casa do príncipe manchu Su, membro da família real Ching, a qual, até há pouco tempo, dominava toda a China. O nome da princesa é Yoshiko Kawashima.

       - Sim, sim, estou a ver - disse ele, acenando com a cabeça. De facto, há já algum tempo que conhecia aquele nome.

       Yoshiko prosseguiu, resumindo os principais momentos da história.

       - É uma figura muito romântica, uma lenda viva. O seu primeiro amor é um jovem e garboso oficial de Matsumoto, mas a sua ligação termina tragicamente. Pouco tempo depois, Yoshiko casa com um príncipe mongol, mas o casamento não dura muito tempo. Não estaria disposto a pagar bom dinheiro pelos pormenores de uma história tão interessante? Não acha que esta história vale uma maquia razoável...? Digamos... dois mil ienes?

       A resposta de Muramatsu quase não se ouviu; o escritor parecia reflectir em voz alta.

       - Sim... - disse ele, num tom contemplativo -, é uma história com potencialidades... "Vénus de Uniforme"... É um belo tema... Mesmo assim...

       - Qual é o problema? - perguntou ela.

       - Bom, para ser franco - retorquiu o romancista -, estou um pouco preocupado com a veracidade dos dados. Você pretende contar-me os pormenores íntimos da vida de outra pessoa. Como posso eu ter a certeza...

       - Não precisa de se preocupar quanto a isso! - interrompeu Yoshiko. - A história em questão é a história da minha vida.

       - Você é Yoshiko? - exclamou ele. - Mas você já é uma mulher famosa... Famosa...? Não se fala de outra coisa...!

       Mas Yoshiko não estava com disposição para ouvir encómios mais ou menos corteses.

       - Tudo o que preciso é de dois mil ienes - disse-lhe ela sem mais rodeios. Não poderia ter sido mais clara. Sabia o que queria e não gostava de perder tempo.

       Deste modo, Yoshiko conseguiu começar tudo de novo. Vénus de Uniforme causou sensação. O romance foi publicado inicialmente por uma revista, em folhetim; o livro seria editado mais tarde, transformando-se rapidamente num best-seller. Normalmente, os romancistas são mestres na arte do embelezamento e Muramatsu não era, seguramente, uma excepção a essa regra. Povoou a breve e romântica vida de Yoshiko de um sem-número de coloridas descrições, a fim de que as suas proezas se tornassem ainda mais vívidas e fascinantes.

       O romance foi um êxito retumbante, mas Yoshiko não chegou a gozar as delícias desse sucesso. De facto, por essa altura, já tinha deixado o Japão. A sua aposta estava feita. Jogou na passagem para a China.

       Depois de Yoshiko ter deixado o Japão, Yamaga recebeu um pesado sobrescrito por correio expresso. Mal abriu o sobrescrito, montes de notas começaram a cair - um total de mil ienes. Para além das notas, vinha também uma carta:

 

                   Sr. Yamaga:

Quando receber esta carta, estarei já na China. Vou para Xangai. Quero começar tudo de novo, quero tentar a minha sorte. É tempo de encarar seriamente alguma coisa e pretendo consagrar-me de alma e coração à defesa e promoção da causa manchu.

Envio-lhe metade de todo o dinheiro que possuo. Considere pagas as minhas dívidas para consigo. Espero bem que se recomponha. Lembre-se de que é um homem - e que um homem digno desse nome não deve desperdiçar o seu tempo com gueixas, deixando que o destino lhe escape por entre os dedos. Todos nós devemos lutar para cumprirmos os nossos destinos; no fim de tudo, só o céu poderá decidir quem vencerá e quem falhará!

 

       Yoshiko deixara o Japão sem se ter despedido de Naniwa Kawashima. Não tinha a menor intenção de voltar a vê-lo. De qualquer modo, tinha outras maneiras de lhe fazer saber o que pensava dele.

       Certa manhã, ao acordar, Kawashima encontrou a sua gatinha morta no alpendre da casa. Um bicho tão bonito...! A sua pele era de um branco imaculado, com uma única mancha negra na testa. Tão meiga, tão mansa, tão inocente - era como uma mulher. Kawashima sempre preferira as fêmeas - davam os melhores animais de estimação.

       A gatinha fora estrangulada com uma corda. Pouca força fora precisa para lhe quebrar o frágil pescoço.

A bela cidade de Xangai estava já à vista. Quando o navio entrou no porto, um sorriso algo malicioso desenhou-se nos lábios de Yoshiko. Kawashima não recuperaria tão cedo do choque - e nem fora preciso fazer correr sangue. Toda a raiva que sentia por ele fora expressa num único acto de vingança sem derramamento de sangue.

       O navio aproximava-se já do cais. Brumas matinais pairavam ainda sobre o rio Whampoa como um manto de fumo. Ah, o rio Whampoa! O Bund'! Estes nomes evocavam visões da lendária Xangai, a cidade favorita de aventureiros e de magnatas.

       Numerosas barcaças sulcavam as águas do Whampoa num vaivém, numa azáfama constantes, envolvidas num jogo muito sério, o jogo de ganhar dinheiro. Os vencedores deste jogo eram aqueles que compravam barato, vendiam caro e sabiam manipular os outros jogadores.

       O vapor apitou estridente e Yoshiko virou o rosto para a brisa da manhã, inalando profundamente. Agora era dona e senhora de si mesma e chegara a hora de fazer as suas próprias jogadas. Nesse instante, avistou a torre do relógio de Xangai. Era um bom augúrio, disse para si mesma.

       Pelos cais, à luz gris do alvorecer, era grande a balbúrdia. Magotes de gente entravam e saíam dos muitos cargueiros e vapores atracados. O porto de Xangai era um eixo da actividade internacional e pessoas de todo o mundo passavam por lá: chineses, japoneses, americanos, britânicos, russos e franceses. A cidade atraía também pessoas de todas as posições sociais e ocupações,

 

       `Termo anglo-chinês que designa os cais (marítimos) e as ruas que acompanham os canais de um rio. (N. do T.)

 

desde comerciantes a financeiros, passando por traficantes de droga, missionários e estudantes. Xangai estava aberta a qualquer pessoa que pretendesse tentar a sua sorte, já que as riquezas chegavam para todos. Corria o ano de 1931 e, enquanto Xangai parecia florescer, a China estava a um passo da catástrofe.

       No cais, viam-se missionários oferecendo folhetos com gravuras de um Jesus caucasiano pregado na cruz. AMA A DEUS!, rezavam as letras negras do título.

       Os transeuntes aceitavam os folhetos e mal tinham tido tempo para olhar para eles, quando os estudantes que estavam por perto lhes metiam nas mãos outros panfletos. Ao contrário dos folhetos dos missionários, os panfletos dos estudantes não tinham quaisquer gravuras e eram simples folhas mimeografadas, atravancadas de caracteres escritos à mão. Contudo, apesar de uma aparência desordenada e confusa, a mensagem era suficientemente clara: AMA A CHINA!

       Claro que muitas pessoas só amavam o dinheiro. No fim de contas, parecia que Deus acabava sempre por castigar o povo miúdo; além do que as nações abandonavam frequentemente os seus próprios povos. Mas o dinheiro era outra coisa: o dinheiro - e só ele - era incapaz de ingratidão. Quem tinha dinheiro, podia chamar um jinriquixá* para dar as voltas que quisesse, ou contratar um cule'* para lhe levar as pesadas malas. Em suma, o dinheiro produzia resultados concretos, palpáveis.

       Yoshiko era do Norte e, para ela, aquela cidade portuária meridional assemelhava-se, em muitos aspectos, a um país estrangeiro, cheio de estranhos sons e cenários. Contudo, Yoshiko estava já acostumada a viajar sozinha e não se sentiu minimamente desconcertada. A única coisa que a preocupava era arranjar um sítio para passar a noite. Apesar de ter passado vários dias e noites a bordo de um navio, sentia-se cheia de energia, e ergueu facilmente a sua mala, enquanto perscrutava o que se passava à sua volta.

       Um par de jinriquixás surgiram nesse instante, conduzidos por dois jovens que haviam aguardado nas proximidades a chegada do vapor. Os homens começaram a carregar baús enormes, cada um deles ornado com um

 

       ' Pequeno veículo de três rodas, aparentado à bicicleta, com um compartimento à frente ou atrás, onde se podem sentar dois passageiros (N. do T.).

 

       *" Forma aportuguesada, correspondente ao coolie inglês, ambos derivados do tâmul kuli; designa, na índia ou na China, um trabalhador sem quaisquer qualificações que vive de biscates mal pagos (carregar malas, por exemplo) (N. do T).

 

caracter enorme e brilhante, correspondente ao nome "Tuan". Yoshiko seguiu com curiosidade o trabalho dos jovens e um deles lançou-lhe um sorriso.

       Os baús pertenciam a uma companhia de ópera de Pequim e estavam cheios de figurinos e adereços. "Tuan" devia ser uma das estrelas da companhia e aqueles dois homens jovens e fortes seriam, muito provavelmente, actores estagiários. Foi o mais novo dos dois que chamou a atenção de Yoshiko. Só podia ser o mais novo, pensou, pois o outro é que dava as ordens.

       Esse rapaz movia-se com uma extrema agilidade, com a graciosidade perfeita e com a economia de movimentos de alguém que passara vários anos a praticar as acrobacias da ópera chinesa. Aquele era um trabalho perfeitamente servil e, no entanto, o espectáculo resultava absolutamente delicioso. E que belo rosto o dele...! Bastara o seu sorriso malicioso de rapaz para que Yoshiko ficasse logo a gostar dele. Quem poderia alguma vez zangar-se com um homem que sorria assim?

       O mais velho estava a falar com ele, ordenando-lhe que voltasse sem demora ao trabalho. O rapaz aquiesceu e pegou noutro baú.

       Yoshiko continuou a observá-lo. Era simultaneamente bonito e divertido. Era tão dado ao exagero que não se importava de dar espectáculo para uma audiência de uma só pessoa; quando se apercebeu de que Yoshiko continuava atenta, rompeu na mais convicta das palhaçadas. Depois de ter erguido um baú sobre os seus ombros, ensaiou o andar exageradamente gingado e pesado de um general da ópera de Pequim. Imitou uma pose marcial e avançou, pavoneando-se, até ao carrinho, tal e qual um actor representando para os seus devotados admiradores.

       - Eh! Cuidado! - gritou-lhe o mais velho. - Esses baús estão cheios de adereços valiosos! Presta atenção!

       - Sim, chefe! - retorquiu o rapaz, representando ainda de uma forma exagerada.

       Quanta vitalidade naquele corpo!, pensou Yoshiko. Umas sobrancelhas tão fartas, tão masculinas, um brilho tão intenso nos seus olhos! Há muito que não via um homem assim, tão puro e cheio de energia. Ele era como uma águia jovem, emergindo do seu ninho e esticando as asas antes de aprender a voar. Havia nele ainda esse ar de vulnerabilidade e devia andar pelos vinte e poucos anos.

       Mas Yoshiko foi acordada dos seus devaneios por um vagabundo que inopinadamente a abordou. O homem plantou-se à frente dela e fitou-a com um olhar feroz. Antes que Yoshiko tivesse tempo para reagir, já o vagabundo lhe tinha arrancado a malinha de mão e desatado a fugir, deixando-a tão assustada que nem gritou por socorro.

       O ladrão corria como o vento - e tão cego que foi chocar com o jovem actor, derrubando-o. O baú que o rapaz carregava desabou-lhe dos ombros e abriu-se ao cair no chão, espalhando figurinos por todo o lado. Vendo que ninguém se dispunha a ajudar uma pobre e indefesa mulher, atacada e roubada por um miserável vilão, o actor ergueu-se de um salto e correu para o jinriquixá, lançando-se em perseguição do bandido.

       Como um jinriquixá é muito mais rápido do que um homem a pé, o herói apanhou o ladrão num ápice. Seguiu-se uma luta terrível. Uns quantos riquixás* foram derrubados na confusão do combate, quando o ladrão tentou, em vão, fugir. Contudo, o vagabundo não poderia rivalizar com aquele jovem robusto. Ao fim de breves assaltos, o actor arrebatou a mala ao ladrão.

       Quando regressou para devolver a malinha de mão roubada, o jovem mostrou-se muito preocupado com a eventualidade de aquela dama tão delicada e requintada ter apanhado um susto de morte.

       - Já não há razão para ter medo, menina. Já passou - disse ele, procurando acalmá-la. - Por favor, veja se não lhe falta nada.

       Yoshiko abriu a malinha de mão e tirou um farto maço de ienes japoneses. Era tudo o que tinha.

       - Ah! A menina é japonesa? - O coração do rapaz encheu-se de tristeza. Ensaiou a única palavra japonesa que conhecia.

       - Sayonara! Sayonara!

       - Obrigada - disse Yoshiko em chinês e sorriu para ele enquanto fechava a malinha.

       O rapaz rejubilou quando a ouvir falar chinês. No seu rosto, brilhava um sorriso radiante, exultante.

       - Ah, que alívio! Afinal é chinesa! - suspirou.

       Pôs-se a coçar a cabeça, esforçando-se por encontrar maneira de prolongar a conversa. De que poderia ele falar?

       - Hum... A menina... - arriscou. - O que é que a traz a Xangai? Quer vencer na grande cidade?... Pois eu também! Bom, eu...

 

       " Ou rickshaw. Pequeno veículo de duas rodas, para um ou dois passageiros, normalmente puxado por um homem (N. do T.).

 

       - Ah-fu! - gritou-lhe o mais velho. Este achava que o colega se deixara empolgar demasiado pelo seu papel de "cavaleiro da armadura brilhante". A bela dama já tinha a malinha de volta e as coisas deviam ter ficado por aí. Mas para ali estava ele, todo excitado, entregando-se a uma doce pausa e deixando o trabalho para as calendas.

       - Ah-fu! Já apanhaste o ladrão, não apanhaste? Agora toca a trabalhar! Acho que, desta vez, foi a bela donzela que conquistou o cavaleiro!

       O jovem actor ficou visivelmente embaraçado. Mas não era aquela brincadeira à volta de cavaleiros e donzelas que o incomodava. Não, o que o incomodava era aquela ridícula alcunha, Ah-fu. Deixava-o furioso.

       - Ouviu o que ele me chamou? - disse ele, constrangido.

       - Ouvi.

       - Ah! Maldita alcunha! Ah-fu-...! Parece nome de abóbora! Mas eu tenho um... um nome artístico.

       Yoshiko sorriu de tão deliciosa candura. O rapaz não fazia a menor ideia de quem ela era. Tratava-a como teria tratado qualquer outra pessoa e não tinha qualquer ideia preconcebida acerca dela. Eram dois completos desconhecidos, nunca poderiam usar-se um ao outro. Uma relação tão simples e tão franca era, para ela, uma estranha novidade.

       - Obrigada, Ah-fu! - disse ela, acrescentando com ênfase: - Adeus!

       Impassível e formal, Yoshiko virou-lhe costas e afastou-se.

       O actor sentia-se dilacerado. Por um lado, sentia-se furioso e praguejava contra o colega mais velho, murmurando: "Cão maldito! Vais ver se não dou cabo de ti!" Mas sentia-se também profundamente decepcionado, enquanto via, impotente, a jovem a afastar-se.

       - Menina! - chamou ele.

       Yoshiko parou, virou-se.

       - Lembre-se do que diz o ditado - disse ele, como que a dar-lhe a sua bênção -, "Espera que as nuvens se despeçam e verás a lua a brilhar!"

       - Claro. Mas isso é apenas um ditado, não é?

       Yoshiko não mais se virou, e o jovem actor seguiu-a com os olhos até que ela desapareceu por entre a multidão.

       - Eh! Eh! Vamos ter mais umas noites sem sono a pensar nalguém muito especial?

       Ah-fu não prestou atenção ao colega, pois só se dava conta da sua própria tristeza. A bela desconhecida desaparecera sem deixar rasto. Teria vindo a Xangai à procura de parentes? Ou teria vindo à procura de trabalho? Nunca o saberia. Ah, ter êxito em Xangai não era tão fácil como se dizia...

       Xangai era uma cidade como não havia outra. Embora fosse uma cidade chinesa, pouco tinha em comum com as outras grandes cidades da China. Xangai era a mais moderna das cidades chinesas e também a mais perigosa, a mais perversa, a mais debochada. Xangai tinha tudo: opulentos hotéis e restaurantes, clubes nocturnos, salões de baile, teatros, grandes armazéns. Havia recintos para torneios de pelota basca, pistas para corridas, espeluncas com espectáculos de strip-tease, antros onde se consumia ópio, bordéis os mais vários. Havia bairros repletos de esplêndidas mansões, rodeadas por jardins luxuriantes. Contudo, por detrás desta fachada reluzente, havia as ruelas infectas dos bairros de barracas, onde não faltavam os cadáveres dos famintos. Aí, viviam homens e mulheres dispostos a vender tudo, rigorosamente tudo, em troca da mera sobrevivência: os seus corpos, o seu amor-próprio, a sua juventude, a sua energia, mesmo as suas almas. Não havia outra saída, se queriam sobreviver.

       As concessões estrangeiras de Xangai eram conhecidas em todo o mundo como um paraíso - mas só para os estrangeiros, não para os chineses. Cidadãos estrangeiros viviam aí, fora do alcance das leis chinesas, em terras "cedidas" por uma China humilhada após a Guerra do ópio. Na concessão britânica, havia um parque ao longo do rio Whampoa cujo portão exibia um letreiro particularmente claro: PROIBIDA A ENTRADA A CHINESES OU A CÃES.

       Apesar de tudo isto (ou talvez por causa de tudo isto), Xangai era um íman para os líderes revolucionários chineses. Mas a cidade atraía também homens influentes de outras nações, especialmente políticos e militares.

       Tudo era possível naquela cidade de vício e encanto e não faltavam oportunidades para uma jovem sedutora e ambiciosa como Yoshiko Kawashima. De facto, Yoshiko não teve de esperar muito tempo para explorar uma dessas oportunidades. O baile de gala anual da Sociedade de Produtos Mitsui tinha tudo o que era preciso para a sua primeira jogada.

       A música das valsas enchia o salão com as suas lânguidas cadências, tornando aquela atmosfera ainda mais extravagante. A lista de convidados daquele baile era um verdadeiro Quem é Quem da sociedade japonesa.

       A Sociedade de Produtos Mitsui era uma companhia subsidiária do Grupo de Investimentos Mitsui; a companhia-mãe criara-a tendo em vista a exploração de oportunidades económicas na China. Desde a sua instalação na China, cerca de duas décadas antes, os Produtos Mitsui ofereciam uma gala anual. Na lista de convidados, sobressaíam sempre militares de alta patente e altas personalidades civis, e os convidados daquele ano eram ainda mais ilustres que o costume. Quando estes homens diziam querer explorar a China, não estavam a pensar unicamente na balança comercial entre os dois países. As suas ambições em relação à China iam muito mais longe.

       Yoshiko escolheu esta ocasião para a sua primeira aparição pública e surgiu com um vestido deslumbrante. Todo o baile desatou a falar dela. Além do mais, Yoshiko era uma belíssima dançarina. O passo da valsa era um veículo perfeito para a sensualidade da princesa, que rodopiava graciosamente pelo salão com o resplandecente vestido ondeando à sua volta. Mudou de par inúmeras vezes, deslizando de homem em homem. Todos os olhos se fixavam nela e, ao fim de pouco tempo, formou-se um círculo de atraentes admiradores cujo único objectivo era observá-la. Lustres com uma imensidão de braços flamejavam sobre a sua cabeça e os cristais tremulavam como borlas e derramavam sobre ela uma luz bruxuleante.

       Mas Yoshiko não fora àquele baile unicamente para dançar. De facto, toda a sua actuação tinha um único alvo: um homem chamado Shunkichi Uno. Yoshiko investigara a situação desse homem e ficara a saber que Uno desempenhava o cargo de comandante do exército japonês que haveria de conquistar a China, a Força Expedicionária do norte da China, e que se encontrava então colocado no consulado japonês em Xangai. Contudo, o seu verdadeiro trabalho consistia em dirigir uma rede de espiões e foi por isso que ela o escolheu.

       Enquanto dançava, Yoshiko viu de relance Shunkichi Uno. Embora tivesse já cinquenta e alguns anos, parecia andar pelos quarenta e era ainda, sem sombra de dúvida, um homem pujante. De estatura elevada e com um ar algo intimidativo, parecia olhar de longínquas alturas para aqueles que o rodeavam. Além disso, havia qualquer coisa nos seus traços que sugeria uma propensão para o sadismo. O cabelo cortado muito rente e o fato ocidental, que não podia assentar-lhe melhor, davam a Shunkichi Uno uma aparência tão moderna quanto atraente. De quando em quando, inclinava a cabeça para trás e ria-se; era um riso sonoro e vigoroso, mas havia nele um tom gélido que, invariavelmente, fazia com que os seus companheiros parecessem ter acabado de levar uma bofetada.

       Com um ar descontraído, Yoshiko aproximou-se do local onde Uno se encontrava e fitou-o sem dizer nada. Uno fitou-a também, bem nos olhos, sem qualquer expressão no seu rosto. Ainda não tinham dançado juntos. Deram-se as mãos para dançar, cada um testando a força do outro. No preciso momento em que Uno se preparava para se apresentar, Yoshiko mudou de par.

Horas passadas, alguém anunciou através dos alto-falantes:

       - Senhoras e senhores, a Rainha da Valsa do baile de gala deste ano acaba de ser escolhida. E a encantadora eleita é... Yoshiko Kawashima!

       Ouviram-se entusiásticos aplausos, mas ninguém subiu ao pódio para receber o prémio. Yoshiko Kawashima já não estava lá.

       Com um ar ausente, Shunkichi Uno fazia girar o brandy cor-de-âmbar na sua taça. Ergueu os olhos e perscrutou os quatro cantos do salão, mas nem sinal dela. Passou o resto da noite num estado de constante agitação, perscrutando periodicamente o salão à procura dela. Impossível encontrá-la. Sentia-se como se tivesse perdido qualquer coisa, mas o seu comportamento exterior em nada se alterou; continuou a rir-se como dantes, fingindo-se deliciado com a companhia dos seus colegas.

       Um dia depois do baile, estava Uno no seu escritório, debruçado sobre uma pilha de documentos, quando alguém bateu à porta. Ergueu a cabeça.

       Era Yoshiko.

       Yoshiko chegara ao escritório dele sem se fazer anunciar. Quem pretendia uma entrevista com Shunkichi Uno, passava normalmente por uma série de canais; além disso, Uno estava habituado a que o avisassem com antecedência de uma eventual visita. Aquela jovem, porém, entrara no seu quartel-general sem a menor cerimónia e, com a mesma sem-cerimónia, entrou no escritório e sentou-se à secretária, defronte dele.

       Yoshiko passara por um transformação completa da noite para o dia. Na noite anterior, envergara um elegante vestido francês. Naquele dia, vestia um cheongsam chinês. Era um traje modesto, mas que lhe assentava que nem uma luva. De cheongsam, Yoshiko tinha a coqueteria controlada de uma rapariga chinesa.

       Desde a noite anterior, Uno fizera algumas pesquisas acerca daquela jovem.

       - Então, menina Yoshiko, como é que conseguiu desaparecer sem mais nem menos?

       - Eu só apareço em momentos importantes, não é? - retorquiu ela, e riu-se.

       Ele riu-se, também.

       - A sua visita, menina Yoshiko, é verdadeiramente inesperada, mas muito agradável! - disse ele, piscando-lhe o olho.

       - Provavelmente, vim numa altura menos conveniente... - retorquiu ela.

       Shunkichi Uno levantou-se e encaminhou-se para o seu bar.

       - Não é isso - disse ele, pegando numa garrafa de brandy. - Devia ter-me avisado de que vinha. Chá? Ou brandy?

       Sem esperar por uma resposta, encheu duas taças de brandy.

       Ela ergueu o queixo quase imperceptivelmente e disse, provocante:

       - Gostaria muito que o senhor fosse o meu protector, Sr. Uno!

       Yoshiko assumira uma atitude que não era nem servil nem arrogante, e, nos seus olhos, havia uma expressão jovial; contudo, não havia nada de espontâneo nessa expressão. Passava muitas horas diante do espelho, praticando todos os sorrisos possíveis. Ensaiado e aperfeiçoado cada sorriso, arquivava-o na memória até ao momento em que precisava dele. Nesse dia, escolheu aquele sorriso particular.

       - Por que deseja a minha protecção? Tem problemas com alguém? - perguntou ele.

       - Não, não é isso. É que estou farta e cansada dos patetas que não me largam nem um minuto e que só me fazem perder tempo. Como o senhor muito bem sabe, o tempo é um bem precioso. E o tempo de uma mulher é o mais precioso de todos.

       - As mulheres sempre tiveram, e terão, de enfrentar atenções masculinas indesejadas. Estou certo de que esta regra se aplica inteiramente a si, menina Yoshiko. - Shunkichi Uno já não sorria. - Mas a verdade é que você tem obtido lucros graças a essas atenções e tem tirado partido da sua elevada posição social para obter esses lucros, minha cara "Princesa".

       - Por favor, trate-me por Yoshiko. Quanto a mim, chamar-lhe-ei "Pai" disse ela com falsa sinceridade. Estava a usar o seu "capital" social naquele preciso momento, tal como o usava em todas as circunstâncias, ousadamente e sem qualquer restrição. "Pai" era uma forma de tratamento respeitosa, mas não havia nada de respeitoso na forma como ela proferira essa palavra.

       - Permite-me que recuse? - perguntou ele. - No fim de contas, qualquer relacionamento menos próprio entre pai e filha será sempre taxado de incesto.

       - Incesto?! - exclamou ela. - Como pode falar de tal coisa?

       Uno desatou a rir-se.

       - Poderemos sempre dançar juntos - disse ela, lançando-lhe um olhar mordaz, mas Uno continuava a rir-se.

       Shunkichi Uno era um indivíduo tão perigoso como astuto, e Yoshiko tinha plena consciência disso. Mas também era muito poderoso. Fora precisamente isso que a atraíra, pois contava usar o poder daquele homem para alcançar os seus próprios fins.

Um automóvel guiado por um motorista de uniforme seguia a boa velocidade pelos arredores de Xangai. Yoshiko e Uno vinham no banco de trás. A certa altura, o automóvel deixou a estrada principal e avançou pelo caminho de um bosque. De súbito, penetravam num outro mundo, num outro tempo. O ruído e o tumulto da cidade assemelhavam-se agora a um sonho longínquo. Árvores vicejantes faziam um arco sobre o caminho, numa profusão de folhas verdes. Flores resplandeciam de uma vida breve.

       Nas profundezas do bosque, o automóvel parou bruscamente e Yoshiko sentiu uma ponta de apreensão. Por um momento, não trocaram palavra.

       Foi Uno quem rompeu o silêncio.

       - Onde está a viver agora?

       - Comecei há pouco a procurar casa - respondeu ela, embora estivesse a pensar em quão estranha era aquela paragem, naquela zona do bosque, isolada de tudo.

       A respiração de Uno tornou-se mais rápida e Yoshiko percebeu o que se passava. Com que então era isso. No fim de contas, que homem se contentaria em partilhar apenas uma taça de brandy com ela? O motorista fingia não se dar conta do drama que se desenrolava no banco de trás. Parecia uma estátua, olhando fixamente em frente, evitando meter-se onde não era chamado. Enfim: um servo leal.

       Yoshiko começou a cantarolar baixinho. Era uma melodia perturbante, lasciva, mas que possuía também um tom vagamente alegre, rodopiante, como uma valsa.

       - Vamos dançar, Pai? - perguntou ela. Não o olhou nos olhos, mas lançou-lhe um olhar estranhamente intrigante ao virar-se para sair do carro.

Esticou a perna, revelando uma liga, e levantou-se lentamente, antes de se encaminhar na direcção das árvores, as ancas balouçando ao sabor de uma qualquer música interior.

       Virou-se para ver onde estava o seu par. Uno estava mesmo atrás dela. Yoshiko colocou suavemente as mãos sobre os ombros dele e ensaiou uns quantos passos, concentrando-se na dança.

       - Vamos só dançar - disse ela num tom firme.

       Yoshiko quase morria de susto quando o viu tirar uma pistola. Recuou num ápice e fitou-o desconfiada, incapaz de ler os seus pensamentos. Os olhos dele trespassavam-na como um fogo malévolo.

       Yoshiko recuou mais alguns passos, mas viu-se encostada ao tronco de uma árvore enorme. Uno colou-se a ela e espetou-lhe o cano da pistola no abdómen, enquanto, com a mão livre lhe rasgava o cós da saia, arrancando-lha violentamente.

       Yoshiko perdeu toda a noção de tempo e de lugar. Nada existia, a não ser as árvores salpicadas de sol tremulando por cima da sua cabeça. O sol brilhava pelas fendas entre as folhas que dançavam, tingindo os dois corpos de um padrão de luz e sombra. Yoshiko sentia-se exposta, como se céu e terra estivessem a vê-los.

       Uno lançara-lhe a cilada quando ela menos o esperava. Apanhada desprevenida, lutou ainda para se libertar, mas o cano da pistola afundava-se cada vez mais na sua carne. Gradualmente, cedeu a um sentimento de absoluto desamparo, e deixou que as suas pálpebras se cerrassem. Sentia-se um bocado de carne preso à áspera casca do tronco e a dor e a humilhação eram visíveis no seu rosto.

       A sua expressão submissa e angustiada fez com que Uno se sentisse ainda mais poderoso e potente. Ele era o rei dos animais, o soldado conquistador, o grande homem. Violou Yoshiko sem rodeios nem preliminares, como um animal. Todos os homens eram iguais, pensou ela. Esforçou-se por iludir a dor e mordeu com toda a força o lábio inferior, obrigando-se a calar mesmo o mais ténue gemido.

       Uno nada fez para se ocultar; estavam completamente expostos, ao ar livre. O sol brilhava nos seus corpos colados, meio curvados.

       Yoshiko já não sentia o cano frio e metálico da pistola, mas sabia que ele ainda lá estava. Sabia também que um único movimento em falso seria o seu fim, e o medo e a ameaça daquela arma invisível deixavam-na completamente paralisada.

       Uno esmagou o corpo dela contra o dele, rejubilando com o poder de que dispunha, como qualquer vulgar violador. Yoshiko deu-se conta de que era o desejo de dominar aquilo que o impelia. Se quisesse viver, teria de satisfazer esse desejo. Era preciso que ele pensasse que a tinha subjugado por completo. Deixou por isso que a sua expressão se tornasse ainda mais miserável, ainda mais angustiada. Deixá-lo-ia pensar que a tinha conquistado. Por muito que lhe doesse, dar-lhe-ia o que ele queria, seria a presa montando uma cilada ao predador.

       Na dor, sentia um prazer secreto, o prazer de o controlar sem que ele se desse conta. Um odor a erva no ar trouxe-lhe à memória a fatídica noite no gabinete de Kawashima. Mas desta feita era diferente - desta vez, era ela quem controlava.

       E então ele ejaculou, como um tiro disparado por um atirador furtivo, e ela deu consigo a gritar com ele, um grito desvairado e febril.

       As armas atroavam e os gritos ressoavam no campo de batalha. O Japão invadia a Manchúria.

       Às 22.20 do dia 18 de Setembro de 1931, o exército de Kwantung desencadeava um acto de provocação que se tornou conhecido como o Incidente do 18 de Setembro.

       Engenheiros japoneses dinamitaram uma secção do caminho de ferro a norte da cidade manchu de Shenyang, destruindo a via e causando danos graves num comboio. Dirigentes japoneses atribuíram a responsabilidade do incidente ao exército chinês e, sob esse pretexto, o exército de Kwantung atacou o quartel chinês de Peitaying. O comandante japonês deu então ordens para lançar o assalto e o exército japonês avançou sem qualquer pejo pelo território da Manchúria. A invasão começara oficialmente, mas as tropas chinesas estacionadas na Manchúria tinham recebido ordens de Chiang Kai-shek para não resistir e fugiram desordenadamente para a China.

       Depois do Incidente de 18 de Setembro, a invasão japonesa foi lançada em grande escala. No ano seguinte, toda a região da Manchúria caiu em poder do exército de Kwantung. Com a Manchúria seguramente controlada, o exército podia fazer com ela o que muito bem entendesse. A Manchúria era o trampolim para o domínio total da Ásia.

       Embora os japoneses controlassem firmemente a região, o certo é que ainda lhes faltava uma coisa - uma embalagem vistosa para alindar tudo aquilo, um disfarce para a sua brutal agressão. Foi por isso que mandaram o coronel Kenji Tohibara a Tientsin, a fim de se encontrar com o deposto imperador Ching, Pu-yi.

       O último imperador vivia como um vulgar cidadão num palacete a que chamara jardim da Tranquilidade, e onde contava ainda com um séquito de velhos fiéis à causa Ching, que providenciavam a satisfação de todas as suas necessidades e se recusavam a abandoná-lo. As suas esperanças de restauração cresciam e definhavam com as marés políticas; embora a dinastia Ching estivesse há muito tempo morta e enterrada, os amigos japoneses de Pu-yi garantiam-lhe constantemente que a restauração não era uma causa perdida. Insistiam com ele para que cuidasse da sua saúde, a fim de que estivesse preparado quando chegasse a hora de voltar ao trono.

       Embora os conselheiros de Pu-yi lhe trouxessem constantemente relatórios optimistas, o certo é que a China se encontrava no mais absoluto caos político, com contínuas lutas entre facções, numa confusa sucessão de periclitantes alianças. O amigo de hoje era o inimigo de amanhã. Não se podia confiar em ninguém. Com a nação cada vez mais fragmentada e instável, a própria ideia de uma "unificação" da China parecia uma fantasia absurda, mas Pu-y1 vivia em castelos de areia.

       Pu-yi era um homem incapaz de resistir a um prazer e por isso esbanjava rios de dinheiro. Todos os meses gastava elevadas somas em presentes para si mesmo e para a imperatriz. Comprava-lhe tudo, desde pianos, relógios e rádios até diamantes e automóveis, passando por roupa importada, sapatos de pele ou óculos. Pu-yi tinha também um fraco por adivinhos e médiuns. Gostava especialmente de consultar o I-ching. Diziam-lhe sempre o que ele estava à espera de ouvir, prometendo-lhe amplos poderes e riquezas imensas.

       Agora, finalmente, os seus desejos começavam a tornar-se realidade! Os japoneses tinham mandado um emissário - iam ajudá-lo.

       O coronel Tohibara era um homem na casa dos cinquenta, com uma pêra que lhe dava um ar cortês e agradável, apesar das pálpebras muito descaídas. Apresentou-se ao imperador. Depois das habituais formalidades, disse-lhe ao que vinha.

       - A Manchúria, a pátria de Sua Alteza, estava a passar por severas provações. Chang Hsueh-liang, o chefe militar manchu, não poderia ter governado pior. Deixou a região empobrecida e politicamente instável. Esta situação era uma ameaça aos interesses e aos bens dos meus concidadãos japoneses e, por isso, o meu país não teve outra alternativa senão enviar tropas para proteger os nossos cidadãos e bens. Claro que, a longo prazo, o exército de Kwantung está sinceramente empenhado em ajudar o povo da Manchúria a estabelecer a sua independência. Mas a nova nação manchu vai precisar de um chefe.

       Fez uma breve pausa antes de acrescentar: - Sua Alteza Imperial, o imperador do Japão, concedeu-nos todo o seu apoio. A confiança de Sua Alteza no exército de Kwantung é absoluta!

       - Se me devolverem a posição a que tenho direito, ou seja, o trono imperial, concordarei em ir para a Manchúria. Caso contrário, recusarei - insistiu Pu-yi.

       - Mas é evidente que tencionamos restaurar a monarquia...! - retorquiu Tohibara. Sorriu um pouco, mas a sua voz em nada se alterou. - Isso nem se discute.

       A atitude calma de Tohibara ocultava o facto de que os japoneses precisavam urgentemente de levar Pu-yi para a Manchúria. Tinham de o fazer o mais depressa possível e Tohibara estava simplesmente a aproveitar-se das ambições de Pu-yi para obter a sua cooperação. Logo que chegasse à Manchúria, Pu-yi seria imperador: um imperador-fantoche. Mas a ambição de Pu.-yi deixava-o cego. Nem sequer suspeitava das verdadeiras intenções dos japoneses.

       Numa escura noite de Novembro, um pequeno barco a motor aproximava-se de um dos cais da cidade de Yingkou, na Manchúria. O barco, o Hijiyama Maru, pertencia à Divisão de Transporte do Quartel-General japonês. A sua missão consistia em transportar Pu-yi de Tientsin para Yingkou nas mais rigorosas condições de segurança. De facto, ao longo de toda a viagem, a tripulação mantivera o imperador sob a mais estrita vigilância.

       No cais, a escuridão e o silêncio eram totais. No negrume da noite, enxergavam-se apenas umas quantas figuras indistintas, aguardando nervosamente a chegada do barco. Não havia mais nenhum sinal de vida, a não ser um cão ladrando lugubremente ao longe.

       Yoshiko e Shunkichi Uno estavam lado a lado, observando expectantes a pequena mancha negra que se abeirava do cais. Ladeavam-nos vários ajudantes-de-campo, polícias militares e o primeiro ajudante-de-campo de Uno, cujos lábios tensamente franzidos não chegavam para alterar a beleza dos seus traços. A confiar na sua aparência, não lhe escasseavam nem a determinação nem o engenho. Aquele órfão chinês, criado pelas tropas japonesas,

era já célebre pela sua perspicácia e sangue-frio. Chegara longe e assumia agora importantes funções na organização de Uno. O seu sobrenome era Lin e toda a gente lhe chamava Hsiao Lin, ou jovem Lin.

       Os olhos de Hsiao Lin não se afastaram um único momento do pequeno barco a motor enquanto este atracava.

       Yoshiko analisou por um instante o caso daquele homem. Um jovem chinês trabalhando para os inimigos jurados da China, os japoneses? Era um caso extremamente invulgar, ou mesmo anormal, concluiu Yoshiko.

       Os passageiros do barco começaram a desembarcar. Um político, Cheng Hsiao-hsu, e o seu filho vinham à frente, seguidos por vários elementos do séquito de Pu-yi, uns quantos oficiais japoneses e uma dúzia de soldados. Pu-yi, disfarçado com um capote e um boné do exército japonês, foi o último a aparecer. Parecia abatido, como se a viagem tivesse sido conturbada; mas agora acreditava que havia finalmente encontrado um porto seguro.

       O grupo que aguardava no cais avançou para saudar e render homenagem a Pu-yi.

       - Sua Alteza Imperial teve sem dúvida uma viagem cansativa - disse-lhe Uno após as saudações. - Esta noite, seguiremos para a estação termal do Monte Tang. Depois de alguns dias de descanso, partiremos para Port Arthur.

       Pu-yi examinava atentamente o pequeno grupo que se reunira diante dele. Seria possível que não tivesse aparecido mais ninguém para lhe desejar boas-vindas?, perguntou-se ele, algo desapontado. Usava ainda óculos escuros e, sempre que a sua expressão era de desânimo, todo o seu corpo parecia soçobrar de melancolia. Contudo, nesse preciso instante um raio de luz brilhou no meio dos presentes. Diante dos seus olhos, surgiu com efeito uma bela jovem. Yoshiko avançou e apresentou-se.

       - Desejo as maiores felicidades a Sua Alteza Imperial - disse ela, prostrando-se diante dele. - Sou Hsien-tzu, a décima quarta filha do Príncipe Su, ao serviço de Sua Majestade.

       Pu-yi ganhou um novo ânimo ao ver a sua concidadã. Ela era como ele para além de ser manchu, pertencia ao clã imperial Ching.

       - Hmm... creio que me lembro de ti. És minha prima, não és? - disse ele.

       Yoshiko sentiu um assomo de orgulho pelo facto de o imperador lhe dedicar uma atenção especial. No meio de uma pequena multidão de homens japoneses, era ela, Yoshiko, a eleita do imperador. Contudo, ocultou cuidadosamente o prazer que sentia, respondendo a Pu-yi num tom que não denunciava nenhum dos seus sentimentos.

       - Sua Alteza lisonjeia-me. Embora algumas pessoas me conheçam ainda como Hsien-tzu, tenho um nom de guerre, Yoshiko Kawashima - disse ela, e a ambição brilhava nos seus olhos.

       Membros da casa imperial aglomeravam-se atrás do imperador. O seu futuro e o futuro da dinastia Ching dependiam de Yoshiko e de um punhado de estrangeiros.

       - Sua Alteza pode ficar tranquila - disse-lhe Uno, num tom que não podia ser mais caloroso. - Estamos firmemente empenhados na grandiosa missão de fundar uma Manchúria independente.

       Enquanto era conduzido à carruagem que o aguardava, Pu-yi virou-se para Yoshiko.

       - Imaginei que tinha uma multidão à minha espera... - confidenciou ele, com um ar taciturno -, ... um mar de gente acenando bandeiras, gritando vivas, aplaudindo...

       - Quando chegar a hora, Sua Alteza terá tudo isso, com toda a certeza replicou Yoshiko, num tom firme e masculino.

       Enquanto Pu-yi subia para a carruagem, Yoshiko virou-se para o primeiro ajudante-de-campo de Uno.

       - Hsiao Lin! Protege bem Sua Majestade! - ordenou ela.

       - Com certeza, senhora! - respondeu ele, num tom, vigoroso.

       Pu-yi precisava de protecção - de facto, um dia apenas antes da sua partida de Tientsin, ocorrera uma tentativa de atentado contra a sua vida. Alguém enviara um cesto de fruta para a sua residência e uma apurada inspecção revelara a existência de explosivos no cesto. Pu-yi escapara por pouco, sentindo-se por isso particularmente ansioso por deixar Tientsin. Estranhamente, os explosivos haviam surgido num momento crucial. E ninguém sabia ao certo quem mandara o cesto armadilhado. Podia perfeitamente ter sido uma artimanha japonesa para assustar Pu-yi e apressar a sua fuga para a Manchúria.

       O grupo ficou a ver a carruagem de Pu-yi até que ela desapareceu de vista. Então, Uno foi ter com Yoshiko. Ficaram frente a frente, fitando-se por um momento, um par de circunspectos conspiradores. Naquele momento, ambos se punham a mesma questão: onde estava a imperatriz Wan-jung? Por que não viera ela para a Manchúria com o marido?

       Yoshiko estava de volta à terra da sua infância, Port Arthur. A mágoa de ter sido desterrada quando era ainda uma criança esbatera-se por completo da sua memória; contudo, lembrava-se ainda da sua infância naquela cidade. Ela e os seus trinta e tal irmãos e irmãs faziam tudo juntos - brincavam no jardim, apanhando pardais, colhendo tâmaras silvestres, ou aguardando ansiosamente que os damasqueiros florissem na Primavera. Também estudavam juntos, aprendendo chinês, japonês e caligrafia. Subitamente, porém, tudo mudara e ela fora condenada a viver uma nova vida. A sua infância terminara no fatídico dia em que embarcara para o Japão.

       Aos vinte anos, regressava a Port Arthur e tornava-se uma mulher casada. Quanta pompa, quanta ostentação, haviam rodeado aquele casamento! Como seria de esperar, o casamento pouco durara e Yoshiko era agora uma mulher divorciada. Assim são as vicissitudes do destino.

       Apesar de tudo o que ali acontecera, Yoshiko não via Port Arthur como a sua verdadeira terra, mas sim como uma terra de passagem.

       Desta feita, Yoshiko estava hospedada no Hotel Daiwa, o luxuoso estabelecimento japonês onde tinha casado. Pu-yi estava confinado ao último piso do hotel, acompanhado por um pequeno séquito. Até ao dia da sua coroação, Pu-yi teria de permanecer no último piso do hotel; na prática, o imperador estava sob prisão domiciliária. Embora fosse, na realidade, um preso dos japoneses, estes tratavam-no com o mais profundo respeito.

       Eram três da manhã e havia apenas dois clientes no elegante e amplo bar do hotel. Guardas vigiavam o espaçoso salão.

       Yoshiko e Shunkichi Uno ainda não se tinham ido deitar. Uno andava de um lado para o outro, lentamente, as mãos cruzadas atrás das costas. Yoshiko estava sentada num dos bancos do bar, absorta nos seus pensamentos. Estavam preocupados com o mesmo problema: a última imperatriz, Wan-jung.

       - Todas as peças precisam de um herói e de uma heroína - murmurou Uno para si mesmo.

       - Peças? Que queres dizer com isso? Até parece que a fundação da Manchúria não passa de uma récita de amadores! - replicou Yoshiko, indignada. Além disso, disse para si mesma, em todas as peças havia um pano que descia, e o pano nunca poderia descer sobre a dinastia Ching.

       Yoshiko e Uno já não se entendiam, embora continuassem a conspirar e a urdir planos em conjunto e mantivessem ocultas as suas inconfessáveis motivações.

       Uno voltou ao assunto da ausência da imperatriz.

       - Que te parece? - perguntou ele a Yoshiko. - Por que achas que a imperatriz não veio para a Manchúria com o imperador?

       - Pelo que pude perceber, ela não veio porque não quis - retorquiu Yoshiko.

       - Sim, mas a ideia terá sido dela ou do imperador?

       A questão tinha razão de ser, pois toda a gente sabia que o imperador e a imperatriz estavam, na prática, separados. Pu-yi vivia embriagado pelos sonhos de um regresso ao seu trono do dragão; no seu coração, só havia lugar para a restauração da dinastia Ching. Era uma paixão que dominava por completo a sua vida. Durante o tempo que permaneceu em Tientsin, Pu-yi recebeu uma infindável parada de convidados - militares, políticos, até mesmo estrangeiros. Alguns desses convidados eram personagens particularmente detestáveis, mas Pu-y1 a todos recebia com a maior cordialidade, desde que manifestassem vontade de apoiar a sua causa. Quando tinha dinheiro, pagava generosamente a esses "apoiantes". Quando não dispunha de dinheiro, dava-lhes objectos da colecção imperial. Tudo oferecia, desde pérolas e jóias a antiguidades, passando por pinturas e pergaminhos. Essas ofertas eram "provas do seu apreço".

       A imperatriz, a consorte imperial e o resto das concubinas de Pu-yi, passaram para um lugar absolutamente secundário, pouco mais valendo que móveis. O imperador Pu-yi negligenciava a tal ponto as suas relações maritais que as suas esposas se sentiam pouco mais que escravas. A consorte do imperador, Wen-hsiu, considerou a situação tão insuportável que pediu o divórcio. Mas a imperatriz Wan-jung não o deixava. Sendo membro de um dos mais poderosos clãs manchus, Wan-jung fora admitida na corte imperial com apenas dezassete anos e não lhe era fácil partir. Além disso, o título de imperatriz continuava a ter para ela um importante significado. Wan-jung permanecia firmemente agarrada a esse vago resquício do passado feudal chinês.

       Decidida a manter o seu privilégio custasse o que custasse, Wan-jung foi-se tornando cada vez mais intolerante e obsessiva, acabando por ceder a delírios supersticiosos que roçavam a loucura. Ciumenta, não tolerava a presença de outras mulheres. O imperador, por seu turno, não a suportava. Afundando-se cada vez mais na depressão, Wan-jung começou a fumar ópio e depressa o vício tomou conta dela. Ao mesmo tempo, começaram a circular boatos acerca dos seus costumes dissolutos. Aquela que fora em tempos imperatriz de uma imensa nação mais não era agora do que uma figura patética.

       - Bom, seja como for - disse Yoshiko -, o nosso grande plano dificilmente poderá concretizar-se sem Wan-jung. Um palco sem a heroína da peça é um palco vazio! - E riu-se, mas o seu riso era triste.

       Uno pareceu reflectir por um momento sobre a intrincada situação.

       - Se ao menos houvesse alguém... - disse ele, sem olhar para ela -, ... alguém que fosse suficientemente corajoso para se aventurar a ir secretamente a Tientsin e trazer de volta a imperatriz...

       - Esse alguém sou eu - interrompeu Yoshiko. - Sou a pessoa indicada para essa missão. Não tenho qualquer dúvida.

       - Seria uma operação muito perigosa. Porquê tu?

       - Porque há séculos que espero por uma oportunidade como essa!

       - Não. É demasiado perigoso. Não posso permitir que vás. Há dezenas de subalternos que eu poderia encarregar do cumprimento dessa missão comentou Uno, astuciosamente.

       - Eu só quero ajudar o meu "papá" - disse ela, com uma irresistível voz de rapariguinha. Depois, em inglês, disse: - Tentarei fazer o meu melhor! - E acrescentou em japonês: - Porei nessa missão todo o meu empenho!

       - Bom... Uma coisa é certa, minha querida: não só possuis uma verdadeira vocação para a espionagem, como também tens um talento notável para línguas. Não me enganei a teu respeito! - disse ele, pondo-a nas nuvens. Não havia dúvida, aquela era uma mulher sem medo, pensou ele.

       Uno virou-se para ela e olhou-a bem nos olhos.

       - Se alguma vez te perder, Yoshiko, serei como um samurai que perdeu a sua espada.

       - Alto lá! - disse ela, abanando-o. - Não achas que estás a exagerar nos elogios? Por favor, diz ao autor das tuas falas que se modere um pouco...!

       -Eu só quero fazer-te feliz.

       Yoshiko, que não se levantara do banco, estendeu os braços e abraçou-o pela cintura. Ergueu a cabeça apenas o suficiente para o olhar nos olhos e assim permaneceu por algum tempo, fitando-o com um ar provocante. Subitamente, estreitou-o com toda a força e enterrou a cabeça entre as pernas dele, mas as calças do uniforme militar impediam-na de avançar mais. Fechou os olhos e disse-lhe baixinho, com uma voz sedutora e indolente:

       - Pensava que esse era um dever da mulher, fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para tornar o seu homem feliz.

       Lá fora, a escuridão era total e o silêncio absoluto. Mas aquele bar de hotel, com a luz quente das suas lanternas, era uma ilha de calor e luz. Aquela escuridão informe cercava o bar por todos os lados, mas ele assemelhava-se a uma cama enorme e confortável.

Yoshiko desabotoou a cintura das calças de Uno. Depois, pegou no fecho da braguilha com os seus dentes perfeitos e brancos e, lentamente, fê-lo descer. Maliciosamente, mordiscou-o um nada, e ele reagiu ....

Aquela foi uma noite longa, muito longa.

       Vivendo em Port Arthur, Yoshiko teve a oportunidade de conhecer alguns dos seus irmãos e irmãs mais novos. Ainda não eram nascidos quando ela foi enviada para o Japão e tinham crescido na sua ausência.

       Por muito que fizesse, não conseguia conquistar o seu afecto. A realidade não podia ser mais triste: Yoshiko era para eles uma desconhecida.

Comportavam-se com ela com toda a cortesia, mas os irmãos e irmãs mais velhos tinham-nos avisado de que deviam evitar uma intimidade excessiva com Yoshiko. As suas leviandades atraíam demasiado as atenções do mundo e as suas extravagantes actividades políticas tinham o ferrete do escândalo. Os irmãos mais velhos consideravam-na uma mulher imoral e anormal e, da forma mais clara possível, puseram os outros de sobreaviso contra tão incómoda presença. No décimo aniversário da morte do pai, foi descerrada uma placa comemorativa no jardim da sua residência. Yoshiko não foi convidada para a cerimónia.

       Mas ela tinha a sua própria vida para viver. De casaco de peles, saia justa, sapatos de salto alto, e o rosto pesadamente maquilhado, punha-se a caminho e dava longos passeios a pé pelo centro da cidade. Uma figura tão espaventosa teria forçosamente de dar nas vistas e muitas eram as cabeças que se viravam.

Corriam rumores sobre as suas ligações com determinados homens japoneses e os irmãos mais velhos não perderam tempo: mandaram as irmãs mais novas estudar para o Japão. Queriam que as impressionáveis meninas estivessem o mais longe possível de Yoshiko.

       Profundamente magoada, Yoshiko resolveu consagrar-se por inteiro ao seu trabalho. Estava decidida a fugir à maldição que se abatera sobre os outros membros da família do Príncipe Su, forçados a viver como meros plebeus! Para mudar o mundo, eram precisos grandes homens e grandes mulheres. O destino nunca ajudava ninguém que não se ajudasse a si mesmo!

       O sangue dos seus irmãos e irmãs era o mesmo que corria nas suas veias: com alguns deles, partilhava até a mesma mãe...! E todos eram filhos do mesmo pai...! Ela era um membro daquela família e, no entanto, não sentiam nada por ela. Era como se ela não os merecesse... Sim, ela era uma estranha, alguém que viera de outro mundo, mas seria ela uma aberração e eles a normalidade? Não, de modo nenhum! A verdade é que, de todos os filhos do Príncipe Su, ela era a única que tinha potencialidades, a única que poderia vir a ser alguém!

       Sobre ela recaía a responsabilidade de fazer com que as coisas acontecessem e de obter resultados. Falhar seria trair a confiança que o pai depositara nela e reduzir a nada todos os seus esforços. Não podia permitir que isso acontecesse. Tinha uma grande oportunidade à sua frente. Não podia falhar.

Tientsin. O jardim da Tranquilidade. O palacete de Pu-yi situava-se na Alameda da Harmonia e Prosperidade, na concessão japonesa de Tientsin. Na parede junto à porta, uma placa anunciava: GOVERNO IMPERIAL CHING - RAMO DE TIENTSIN. De facto, quando Pu-yi chamara a este palacete "O jardim da Tranquilidade", estava a pensar em tudo excepto na tranquilidade de um pacífico retiro. Uma leitura mais exacta das suas intenções teria sido: manter-se alerta e aguardar o momento certo.

       Enquanto o imperador nele viveu, o palacete foi uma Cidade Proibida em miniatura. Os velhos servos do imperador insistiam em considerar o jardim da Tranquilidade uma "residência temporária", como se o imperador ali se encontrasse unicamente porque um qualquer assunto o afastara de Pequim por um breve período. "Súbditos" leais deslocavam-se ao jardim da Tranquilidade para prestar homenagem ao imperador e outros geriam os negócios daquele encolhido domínio, onde o velho calendário Ching continuava a ser seguido e onde o imperador e a imperatriz eram ainda tratados de acordo com as mais rigorosas normas da etiqueta da corte.

       Certo dia, depois da partida do imperador, um pequeno sedan avançou na direcção do imponente portão principal do jardim da Tranquilidade. O carro rodou em marcha lenta por um momento.

       Na estrada em frente do portão, via-se todo o género de pessoas, vendedores ambulantes, transeuntes, automobilistas, uma vulgar e inofensiva miscelânea de gente, pelo menos na aparência. Na realidade, algumas daquelas pessoas não eram propriamente aquilo que aparentavam ser; contudo, só um perito conseguiria ver para além das máscaras e separar os polícias à paisana dos genuínos vendedores ou vulgares transeuntes.

       Os guardas de aspecto ameaçador que estavam de sentinela do lado de dentro do portão viram sair do sedan uma mulher de aspecto aristocrático, envergando um manto preto forrado a pele e sapatos de salto alto. Sob o manto, vestia um cheongsam de um vermelho muito vivo, com um padrão de dragões bordado a fio de prata e de ouro.

       Acompanhava esta dama um elegante cavalheiro, vestindo um fato europeu da melhor lã inglesa - o género de artigo que só havia à venda nos melhores armazéns estrangeiros como o Harrods. Um par de botões de punho de diamantes e um alfinete de gravata a condizer completavam o requintado figurino.

       Aquele casal tão belo e elegante pretendia visitar os residentes do jardim da Tranquilidade. O homem seguiu a mulher até ao portão, onde o guarda os mirou de alto a baixo uma ou duas vezes, antes de os saudar com um sorriso. O perfume importado da mulher continuou a sentir-se do lado de fora do portão, muito depois de ela ter entrado na propriedade. Os dois visitantes também não eram o que aparentavam - de facto, a mulher era Yoshiko Kawashima e o seu "marido" era afinal o jovem Lin, o assistente que ela cuidadosamente escolhera.

       Hsiao Lin sentia-se extremamente honrado pelo facto de Yoshiko o ter escolhido para participar em tão importante missão e estava decidido a fazer um bom trabalho. Antes de partirem para Tientsin, Yoshiko ordenara a Hsiao Lin que saísse com ela, pois queria passar uma noite agradável e divertida antes da missão. "Quem só trabalha e nunca se diverte, perde a graça toda", provocou-o ela. Foram dançar e, no dia seguinte, corria já o boato de que o jovem Lin passara a noite com ela. Se foi verdade ou mentira, nunca se saberá.

       Esperaram algum tempo antes de serem admitidos no quarto da imperatriz Wan-jung.

       Yoshiko ficou chocada com o que viu. Deitada na cama, estava uma mulher de uma palidez doentia, de olhos encovados e dentes enegrecidos, fumando ópio. Todos os seus movimentos eram de uma lentidão extrema. Puxou uma longa fumaça, cerrou os olhos e soltou um suspiro de satisfação. Não passava de um destroço à deriva no aturdimento eufórico da droga. Quem era aquela mulher? Seria possível que aquela criatura fosse a imperatriz?

       A mulher ergueu indolentemente os olhos e observou a visitante. As pálpebras pesavam-lhe. Ela conhecia a razão daquela visita.

       - As maiores felicidades para Sua Majestade a imperatriz! - saudou Yoshiko, num tom que não podia ser mais formal. - Trouxemos-lhe um presente, o seu presente favorito - acrescentou.

       Yoshiko tirou do bolso uma caixinha de metal requintadamente trabalhada. Abriu um nada a tampa e o odor doce de um ópio de uma extrema pureza encheu o ar.

       - Lembrei-me de que esta qualidade era a sua preferida. Ouvi dizer que é difícil obtê-la, aqui em Tientsin.

       - Eu não tenho a menor intenção de deixar Tientsin - retorquiu friamente Wan-jung.

       - O imperador sente muito a sua falta. Está preocupado consigo - disse Yoshiko.

       - Ha! - atirou-lhe ela. - Se ao menos eu fosse como Wen-hsiu... Ela divorciou-se. E eu? Posso divorciar-me? Não! Eu sou a imperatriz e as imperatrizes não fazem coisas dessas...

       Wan-jung estava muito agitada e pestanejava descontroladamente. Contudo, de um momento para o outro, o seu estado de espírito mudou por completo e desatou a choramingar.

       - Isto está a dar cabo de mim, está a matar-me...! Nunca mais poderei voltar a ser a mesma, nunca mais poderei ser uma pessoa como as outras!

       Yoshiko aproveitou a oportunidade e sentou-se na beira da cama.

       - Sempre que a vejo, sinto-a tão infeliz... - disse ela, num tom solícito, aproximando-se mais de Wan-jung.

       - Não é que eu seja infeliz... - queixou-se Wan-jung. - O problema é que nunca me sinto em segurança... O meu marido é o imperador - e no entanto nada pode fazer para me proteger!

       Presa na emaranhada rede das suas próprias emoções, Wan-jung caía de súbito numa crise de histeria. Gastara já metade da sua vida e o resultado era aquele - uma mulher só, desamparada, abandonada. Sentia-se como se estivesse cercada de cortinas de fogo por todos os lados. Não havia salvação possível.

       - Estar viva ou estar morta para mim é igual! - gritou. - já não há nada que eu possa fazer! Por favor, deixem-me em paz, deixem-me viver em paz o que me resta desta miserável vida! - Como louca, rompeu num choro incontrolável. Os seus ombros tremiam violentamente e lágrimas de dor e desespero corriam-lhe violentas pelas faces. Antes que alguém se apercebesse do que estava a acontecer, Wan-jung derrubou a lamparina do ópio e, num ápice, a etérea gaze do dossel começou a arder.

       Sem a menor hesitação, Yoshiko pegou numa almofada e sufocou a pequena chama. Yoshiko era a imagem da própria calma; de facto, naquele momento, a única coisa em que pensava era que não podia desperdiçar aquela magnífica oportunidade.

       Espreitando pelo buraco que as chamas tinham feito no dossel, Yoshiko pôde ver melhor a imperatriz. A imperatriz...! Uma criatura patética, tremendo dos pés à cabeça, arquejando como um animalzinho assustado: seria aquilo uma imperatriz?

       Yoshiko examinou-a friamente. No rosto de Wan-jung lia-se a mais profunda das derrotas. Os seus olhos continuavam cheios de lágrimas.

       - Eu não tenho ninguém! Ninguém! - murmurou para si mesma. - Dêem-me veneno... por favor!

       Com todo o cuidado, Yoshiko abeirou-se dela e, lentamente, cobriu-a com o seu manto forrado a pele. A pele era espessa e macia e guardava ainda o calor do corpo de Yoshiko. Wan-jung era imperatriz só de nome - na realidade, não passava de uma mulher fraca e desamparada.

       Sou muito mais forte do que tu... muito mais forte...!, disse Yoshiko para si mesma.

       - Eu estou aqui. Não deixarei que nada de mal lhe aconteça - disse ela à imperatriz, como se consolasse uma criança. - Vá lá, porte-se bem... não chore, está bem? Eu vou levá-la para um sítio seguro, muito seguro, para Xangai. Vai ser muito agradável. Que lhe parece? Xangai é uma cidade maravilhosa. Não terá ninguém a espiá-la dia e noite. Em Xangai, todas as pessoas são bons amigos. Podemos confiar nelas.

Wan-jung descansou a cabeça no seio de Yoshiko.

       - Todos os dias quando acordo - murmurou ela, numa voz quase inaudível -, sinto-me como se tivesse cinquenta ou sessenta pessoas a vigiar todos os meus movimentos. Parecem demónios que vieram do inferno, sempre a espiar, sempre a espiar! À noite, quando tudo fica escuro, tenho tanto medo que o meu corpo enche-se de suores frios..! Por favor! Leve-me daqui!

       Wan-jung agarrou-se a Yoshiko como uma frágil trepadeira unindo-se à segurança de um sólido muro. Wan-jung não tinha outro muro.

       Por um momento, a imperatriz ficou quieta. Yoshiko esperou, pacientemente. Quando Wan-jung se mexeu, foi para tirar os seus brincos de jade; docemente, pô-los nas orelhas de Yoshiko. Disse-lhe que as orelhas dela ficavam muito bonitas com aqueles brincos, com aquele brilho cintilante do jade verde.

       Um imperceptível sorriso de desprezo desenhou-se nos cantos da boca de Yoshiko, mas a sua voz era quente, reconfortante.

       - Toque, toque à vontade... - disse-lhe Yoshiko.

       - Estão frias - disse Wan-jung, sorrindo.

       Yoshiko pegou firmemente na mão de Wan-jung e comprimiu-a com tanta força contra a sua orelha que o brinco de jade feriu a mão da pobre imperatriz. Sossegada, Wan-jung deixou que as suas pálpebras se cerrassem lenta e pesadamente. Estava prestes a cair num sono profundo. Sentia-se absolutamente segura. Todos os seus problemas tinham desaparecido e aquele era o sítio mais quente e protegido de todo o mundo.

       Yoshiko mirou-a um instante. Pobre coitada, tão ingénua, tão crédula...

       - Faça o que eu lhe digo e tudo correrá bem - disse-lhe Yoshiko. Aproximando-a mais de si, abraçou-a com força e beijou-a meigamente.

       Wan-jung sentiu uma vertigem estranhamente agradável apossar-se dela. Languidamente, fechou os olhos, e os seus braços caíram, vencidos pela lassidão.

       Os beijos de Yoshiko tornaram-se então mais vigorosos, mais urgentes ...

       Em poucas horas, a confiança de Wan-jung em Yoshiko era absoluta. Por isso, Yoshiko decidiu pôr em prática o seu plano no dia seguinte. De acordo com as suas instruções, Wan-jung foi ao quarto da sua convidada, onde viü que o tapete junto à cama estava sujo de vomitado. Hsiao Lin, o "marido" de Yoshiko, estava deitado na cama, fingindo a apatia de um inválido. Havia traços de sangue nos cantos da sua boca.

       - O meu marido e eu estamos muito gratos a Sua Majestade pelos seus amáveis cuidados - declamou Yoshiko, numa voz alta e clara, pois pretendia que os outros habitantes da casa a ouvissem. O Jardim da Tranquilidade era um verdadeiro antro de intrigas e pequenas conspirações. Nenhum daqueles criados era digno de confiança. Alguns deles seriam mesmo polícias à paisana. A peça de teatro que estava a representar teria de resultar convincente, e Yoshiko desempenhava na perfeição o papel de esposa angustiada, entrando e saindo constantemente do quarto das visitas, descrevendo ansiosamente à criada o estado de saúde do marido.

       - Temo que o meu marido tenha reagido mal ao clima da região. Julgo que isso contribuiu para o agravamento de uma doença de estômago que o incomoda há muito tempo. Não queria abusar de si, mas talvez pudesse chamar uma ambulância para o levar para o hospital.

       Yoshiko dirigiu-se à antecâmara para pôr um toque final na sua encenação e, enquanto isso, Hsiao Lin e Wan-jung trocaram rapidamente de roupa no quarto das visitas. Hsiao Lin esforçou-se o mais que pôde para manter uma decência profissional.

       - Por favor, Majestade, desculpe o pouco decoro... - murmurou ele, respeitosamente.

       Yoshiko deu uma última ordem à criada, antes de voltar ao quarto das visitas.

       - Vou ajudar o meu marido a vestir-se. Informe-me logo que a ambulância chegar!

       De seguida, vinha a parte mais crítica da peça de teatro que Yoshiko dirigia e representava para o intrometido séquito de Wan-jung. Os criados, obrigados pelo decoro a uma distância razoável, viram uma Yoshiko que não se casava de pedir desculpa, enquanto acompanhava a imperatriz ao quarto desta.

       - Queira aceitar, Majestade, as minhas mais humildes e profundas desculpas. Estou tão envergonhada...! Sua Majestade teve a amabilidade de nos conceder uma audiência e afinal só lhe viemos trazer problemas! Peço-lhe que nos perdoe tanta maçada!

       Yoshiko e a suposta imperatriz entraram no quarto e Yoshiko fechou a porta. Estavam fora de cena e Yoshiko virou-se para Hsiao Lin, pois aquela não era a imperatriz, mas Hsiao Lin disfarçado com as roupas dela. O jovem encaminhou-se para a cama e deitou-se.

       - Não precisa de se preocupar comigo, menina Yoshiko - disse ele. - Eu sei o que hei-de fazer. Logo que escureça, saio daqui.

       Yoshiko desempenhara muito bem o seu papel, mas o primeiro acto tinha acabado. Fitou Hsiao Lin com total desapego. O seu rosto estava tão frio e duro como a lua.

       E a pistola encontrava-se já na sua mão.

       Hsiao Lin ficou estupefacto e soergueu-se da cama, mas o choque não o deixou mexer-se mais. Um pavor paralisante apossara-se do seu corpo. Mesmo os seus pensamentos estavam paralisados. Antes que tivesse tempo para se interrogar sobre o que estava a acontecer, Yoshiko colocou uma almofada sobre o peito dele para abafar o som do tiro e disparou. Hsiao Lin teve morte instantânea.

       Yoshiko não tinha a menor intenção de deixar testemunhas. Aquela operação era só sua - o risco era dela, os créditos teriam de ser só para ela. Tudo faria para proteger a segurança daquela missão.

       Tratou de dar alguma arrumação ao quarto. O sangue jorrava pela almofada e espalhava uma mancha de um vermelho vivo pela alva almofada. Puxou a colcha e cobriu o corpo ainda quente de Hsiao Lin.

       - Que pena! Um rapaz tão bonito! - disse ela, em jeito de despedida.

       Yoshiko avançou pela antecâmara e o seu rosto transformou-se imediatamente numa máscara de preocupação. Num instante, correu para o piso de baixo.

       - A ambulância já chegou? - perguntou aos criados.

       Nesse preciso instante, uma ambulância parou defronte do portão principal da propriedade, e dois enfermeiros de bata branca correram na direcção do palacete com uma maca. Os enfermeiros foram rápidos. Num ápice, abandonaram o palacete e, com todo o cuidado, conduziram o doente à ambulância. A gola do sobretudo do doente, virada para cima, e o agasalho que lhe envolvia a cabeça, chegavam para lhe ocultar o rosto. Daquela forma inerte, vinha o ruído de uma respiração difícil. Yoshiko era a imagem perfeita da preocupação e da angústia, enquanto acompanhava o "marido doente" até à ambulância e subia para o seu lado, rodeando-o de atenções.

       Afastaram-se rapidamente do jardim da Tranquilidade, mas, mesmo com o palacete longe, não estavam ainda em total segurança. Embora se encontrassem no espaço relativamente seguro da concessão japonesa, não poderiam esquecer-se de que os espiões e os assassinos não eram uma raridade naquela região.

       A imperatriz Wan-jung estava tão assustada que nem se mexia. Entregara-se nas mãos de Yoshiko e agarrava-se à mão de Yoshiko como se a sua

vida dependesse disso.

       A ambulância, evidentemente, era mais um elemento do plano de Yoshiko. Enquanto o veículo avançava suavemente pela estrada, Yoshiko olhava pela janela, os olhos fixos na estrada. Quando chegavam a barricadas em certos cruzamentos, fazia sub-repticiamente um sinal e davam-lhes autorização para passar sem parar.

       Depois de terem saído da concessão japonesa, a expressão de Yoshiko tornou-se ainda mais dura.

       - Onde vamos ficar, em Xangai? - perguntou Wan-jung.

       - Nós vamos para a Manchúria - replicou Yoshiko, impassível.

       - Para a Manchúria?! - exclamou Wan-jung, atónita, desnorteada. - Vou continuar a receber ordens dos japoneses?

       Yoshiko não lhe respondeu.

       - Não vou! - berrou Wan-jung, desvairada. - Por que me enganou? Porque me obriga a ir para a Manchúria? O imperador não é um simples prisioneiro na Manchúria?

       - Você é a imperatriz. Tem de cumprir o seu dever!

       Wan-jung olhou para Yoshiko e apercebeu-se de que aquela mulher era a personificação da dureza e da determinação, o exacto oposto dela.

       - E que dever é esse? - perguntou Wan-jung, desconfiada. Soergueu-se, mas Yoshiko, usando de toda a sua firmeza, fê-la deitar-se de novo.

       - O imperador vai ser coroado em Changchun e você estará lá, ao lado dele. Esse é o seu lugar e só o deixará no dia em que morrer!

       Wan-jung debatia-se para se libertar. Saíra de uma cilada para cair noutra.

       - Não vou! - protestou. - Não confio em si! Você...

       Mas não chegou a concluir a frase. Yoshiko colocou um lenço embebido em clorofórmio sobre a boca dela e Wan-jung ficou imediatamente inconsciente.

       Yoshiko olhava em frente, os olhos fixos, o rosto vazio de emoções, enquanto a ambulância saía da cidade e se internava no campo. O seu destino era uma obscura aldeia.

       Entretanto, em Tientsin, a calma do jardim da Tranquilidade chegava ao fim. O corpo de Hsiao Lin foi descoberto e vários automóveis foram enviados em perseguição da misteriosa ambulância. Mas Yoshiko contava com isso e tinha-se preparado bem.

       A ambulância chegou à aldeia e parou junto a uma casa isolada. Yoshiko saiu, conseguindo, com alguma dificuldade, retirar da ambulância o corpo lasso e inconsciente de Wan-jung. Quando a imperatriz não conseguia aguentar-se de pé, Yoshiko arrastava-a.

       Aguardando nas traseiras da casa, no sopé de um pequeno monte, estava um cortejo fúnebre. Umas quantas pessoas rodeavam, num silêncio paciente, um caixão vazio. Mal viram Wan-jung, pegaram nela e colocaram-na no caixão, sem uma única palavra. Depois, a ambulância foi levada para uma vala e camuflada com galhos e ramos. Ao mesmo tempo, Yoshiko mudou rapidamente de roupa, transformando-se numa simples camponesa com o rosto manchado de lágrimas. A transformação não demorou mais de cinco minutos.

       Os homens a quem competia carregar o féretro puseram a tampa do caixão e ergueram-no sobre os seus ombros. Um homem idoso conduzia o desfile, espalhando pelo chão dinheiro destinado ao espírito. Trombetas e tambores tocavam um hino fúnebre e o resto do cortejo - filhos, amigos, familiares deu início à caminhada no meio de muito choro e lamentações.

       Enquanto a procissão serpenteava lentamente pelos caminhos, um par de automóveis surgiu em sentido contrário, buzinando furiosamente, passando a escassos centímetros daquele rústico cortejo. Não havia nada naqueles solenes camponeses que pudesse levantar a menor suspeita no espírito dos perseguidores.

       O grupo de Yoshiko regressou então a Tientsin. Daí, Wan-jung foi levada de barco para Port Arthur. A operação foi conduzida no mais total secretismo e o plano de Yoshiko foi executado sem o menor desvio. Yoshiko tinha alcançado inteiramente os seus objectivos.

Os japoneses eram uma força imparável: o seu poder crescia a toda a hora, a sua arrogância não conhecia limites. O imperador e a imperatriz estavam de novo juntos e os mais de um milhão de quilómetros quadrados de território e os trinta milhões de habitantes da Manchúria encontravam-se sob controlo japonês. Os japoneses estavam exactamente onde desejavam estar.

       Pu-yi começou a sentir-se inquieto - havia qualquer coisa que não batia certo. Ele, a imperatriz e o seu séquito eram mantidos num isolamento praticamente total. Os seus movimentos eram ditados pelos seus amos e senhores, os japoneses. Para o imperador Pu-yi, o mais perturbante de tudo fora um comentário feito por um oficial do Estado-Maior do Exército de Kwantung, Seishiro Itagaki, um homem atarracado que tinha um rosto pétreo e sombrio e usava a cabeça rapada.

       - A nova nação chamar-se-á Manchucuo - dissera-lhe Itagaki, com toda a sua calma. - A capital será em Changchun, que passará a chamar-se Hsinching, ou seja, "Nova Capital". Cinco raças, a raça manchu, a chinesa, a mongol, a japonesa e a coreana, vão partilhar esta nova nação. No entanto, como o povo japonês tem feito imensos sacrifícios por esta terra ao longo das últimas décadas, incluindo, em muitos casos, o sacrifício da própria vida, é perfeitamente natural que lhe seja dispensado um tratamento especial... E, em particular, que lhe sejam atribuídas posições legais e políticas diferentes das concedidas às outras raças...

       Pu-y1 considerava esta posição desconcertante, mas a questão que mais o perturbava era outra: Deixá-lo-iam voltar a ser imperador ou permitir-lhe-iam apenas ser o "governador" de Manchucuo? Sim, era verdade que muita gente havia sido massacrada na Manchúria e que o Japão há muito que planeava colonizar o território. Mas estas questões, tal como o número de soldados que o Japão enviaria, ou a quantidade de minério que o Japão iria extrair, ou a quantidade de petróleo, sal e cereais que os japoneses iriam levar da Manchúria, eram questões que deixavam Pu-yi indiferente. Havia uma única questão capaz de empolgá-lo, uma questão que consumia toda a sua energia: voltaria a ser imperador? A sua vida não faria sentido se não voltasse a ocupar o trono. Os seus velhos adeptos, muitos deles octogenários, reuniam-se à sua volta e, com os olhos marejados de lágrimas, diziam-lhe que era seu dever, um dever sagrado, ocupar o trono do imperador e que era dever deles, um dever não menos sagrado, tudo fazer para que tal acontecesse.

       As negociações arrastavam-se. Usando de todas as cautelas para não revelarem toda a extensão das suas ambições, os japoneses referiam-se àquela época como um "período de transição" e prometeram que Pu-yi voltaria ao trono no prazo de um ano. Passado esse prazo, concederam-lhe de facto o título de imperador, mas Pu-yi só era imperador de nome. No entanto, o título bastava para que Pu-yi ficasse satisfeito; de facto, em troca do título, o imperador renunciou de bom grado a todo o poder efectivo e de bom grado suportou a humilhação de ser não mais do que uma marioneta nas mãos dos japoneses. O exército de Kwantung concretizou os seus sonhos de esplendor imperial e Pu-yi não se atreveu sequer a criticar os líderes desse exército pelo massacre de inúmeros concidadãos seus. Pu-yi temia que pudesse ofendê-los.

       A perseverança de Pu-yi acabou por ser recompensada a 1 de Março de 1934, o dia em que, finalmente, voltou a ser imperador. Pu-yi e os japoneses discutiram até ao último momento um derradeiro ponto: o problema do traje de Pu-yi. O imperador insistia em usar o traje tradicional do imperador Ching, com dragões bordados, mas um comandante do exército de Kwantung informou-o que isso estava fora de questão: o Japão permitia que Pu-yi fosse o imperador de Manchucuo e não o imperador da dinastia Ching! Exigiam-lhe que vestisse o uniforme de comandante-chefe das forças armadas. Mas Pu-yi declinou o compromisso e recusou-se a ceder. Queria envergar o traje de imperador Ching e ouvir os seus leais súbditos gritar: "Viva o imperador! Viva o imperador!" O combate em torno do traje que Pu-yi deveria envergar parecia sem solução à vista.

       O dia da coroação de Pu-yi chegou finalmente. Impante de vaidade, o imperador subiu a uma elevada plataforma circular, que fora erigida nessa mesma manhã e que, supostamente, representaria o Templo do Céu em Pequim. Envergava o traje com os dragões bordados - vencera os japoneses!

À última hora, alguém fora a Pequim buscar o disputado traje à residência da consorte do seu falecido pai, Jung-hui. Dizia-se que aquele traje fora usado pelo anterior imperador da China, Kuang-hsu. A imperatriz estava também resplandecente, com um vestido de brocado e uma coroa decorada com treze fénix, o símbolo tradicional da imperatriz. Os velhos adeptos da causa Ching desenterraram também dos baús os seus velhos trajes cerimoniais da corte. Envergavam chapéus com contas de coral e penas de faisão e mantos com aplicações douradas representando grous ou faisões - insígnias do seu estatuto - e longos colares de contas cerimoniais. Muitos deles haviam perdido os seus antigos colares de pedras preciosas ou semipreciosas e, em vez deles, usavam colares de contas de ábaco.

       Uma banda atacou o hino nacional da Manchúria. O céu estava encoberto e um vento gelado fustigava a multidão reunida para a cerimónia. Mas não havia nada que abatesse o ânimo das altas personalidades manchus que seguiam com toda a atenção os antiquíssimos rituais cumpridos pelo imperador. Pu-yi acabara de se ajoelhar e de tocar o chão com a testa. Apertadas entre duas filas de sóis nascentes japoneses, estavam as oito bandeiras dos oito clãs da outrora poderosa dinastia Ching. Os porta-estandartes do imperador, erguendo bem alto flâmulas com dragões amarelos, tinham também ajoelhado e assim permaneceram durante toda a cerimónia. Pu-yi ficou tão comovido com tão solenes gestos que os seus olhos se encheram de lágrimas.

       Yoshiko também estava presente. Ela fora uma das várias pessoas que tinham tornado aquele evento possível, pensou a princesa, com ar altivo. O coração batia-lhe orgulhoso no peito e era com inexprimível excitação que via o imperador da poderosa dinastia Ching retomar o lugar a que tinha direito.

       Manchucuo nasceu finalmente!, pensou. Tivemos de esperar vinte anos, mas agora que tudo começou nada poderá deter-nos. Manchucuo é apenas o princípio - um dia, toda a China voltará a ser nossa e o Império Ching reinará de novo! E com o renascimento do império, virá a destruição de todos aqueles que contribuíram para o seu derrube. Eles hão-de pagar!

       Estes pensamentos perseguiam-na, enquanto assistia, cheia de orgulho, ao imponente e sagrado ritual. Todos os sacrifícios que fizera tinham valido a pena.

       Lembrou-se nesse instante de um poema que o pai, o Príncipe Su, escrevera, quando se vira obrigado a abandonar Pequim:

Voa o ganso selvagem para a sua terra natal E chora triste em busca do nordeste.

Olha para trás o ganso e vê o fogo da guerra, Enquanto o sol vermelho se despede das planícies da China.

       Yoshiko lembraria sempre aquele dia como o mais glorioso de toda a sua vida. Envergando um uniforme militar, com calças de montar, botas de cabedal e um boné do exército, Yoshiko não podia estar mais elegante. Uma espada requintadamente trabalhada caía-lhe da cintura, suspensa de cordões de ouro, e duas armas repousavam em coldres de cabedal - uma Mauser "tipo dois" novinha em folha e uma pistola automática Carter. As botas, reluzentes de tão bem engraxadas, faziam um estalido agudo a cada passada sua, enquanto avançava e subia para a tribuna, irradiando confiança. Shunkichi Uno, seu patrono, protector, amante e patrão, colocou-lhe no ombro uma medalha de honra com três estrelas e concedeu-lhe um novo título: Comandante Chin Pi-hui do Exército de Pacificação de Manchucuo.

       Eram cinco mil os militares sob o comando de Yoshiko e o seu posto de comandante-chefe dava-lhe o direito de usar um selo oficial com dois centímetros e meio de lado. Esse selo dava-lhe autoridade para decretar ordens. Muitos homens que se opunham aos manchus e aos japoneses submeter-se-iam de bom grado à autoridade daquela carismática princesa. Yoshiko, ou Comandante Chin, como agora a tratavam, era uma lenda - e ser uma lenda em idade tão jovem era algo que raiava o prodígio. Yoshiko deleitava-se com a fama que acabava de alcançar. Os japoneses, por seu turno, tinham todo o interesse em satisfazer as fantasias da Comandante Chin. Para tal, recorriam à adulação pura e simples. Embora Yoshiko pensasse que estava a usá-los para alcançar os seus próprios fins, a verdade era bem outra: eram eles que estavam a usá-la; mas Yoshiko estava demasiado embriagada com tudo para se aperceber disso.

       Os japoneses eram os donos e senhores de Manchucuo. E como não confiavam nas outras raças, trataram de dominar todos os aspectos da vida - a política, a economia, a ideologia, a cultura. Diziam querer promover aquilo a que chamavam a "coexistência e a prosperidade de todos", mas o que este slogan realmente significava era "sejam como nós". O japonês tornou-se disciplina obrigatória nas escolas básicas e secundárias e os documentos oficiais passaram a ser escritos em japonês, e não em manchu ou chinês. Os japoneses eram cidadãos de primeira classe e os planificadores urbanos depressa rebaptizaram as ruas da nova capital, dando-lhes os mesmos nomes das ruas das velhas capitais do Japão, Kyoto e Nara.

       A coroação foi uma cerimónia internacional, com convidados envergando todo o género de vestuário, desde o quimono ao fato ocidental, passando pelos trajes chineses. Estavam presentes os directores das grandes companhias que controlavam ou produziam todas as necessidades da vida caminhos de ferro, indústria pesada, minas de carvão, empresas de serviços públicos, telefones e telégrafo, minas de ouro, aviação, agricultura. Estavam presentes oficiais do exército, magnatas, artistas, escritores, músicos e jornalistas. Os flashes das máquinas fotográficas disparavam a todo o momento e, no meio deste estonteante rodopio de actividade, lá estava ela, Yoshiko. Exibia uma expressão orgulhosa e altiva, mas a sugestão de um sorriso fascinante desenhava-se nos seus lábios quando erguia ligeiramente o queixo ao cumprimentar os convidados.

       Algum tempo depois, um dos presentes passou um cartão anunciando a chegada de mais um convidado, o qual detinha um título particularmente bizarro: "Major do exército e director da secção para a China, Departamento de Informação, Divisão de Pacificação, Quartel-General da Força Expedicionária do Norte da China." Os olhos de Yoshiko fixaram-se imediatamente no nome do homem: Yamaga.

       Yamaga? Yoshiko ergueu os olhos, olhou à sua volta. Era inacreditável...! Era mesmo ele...! Tinha sido transferido para a Manchúria?

       Engordara um pouco desde a última vez que o vira. Devia estar já perto dos quarenta, pensou ela. A dignidade viera com a idade, e o jovem presunçoso e arrogante desaparecera, substituído por um homem que parecia a exacta imagem do intelectual antiquado. Tinha um porte ligeiramente excêntrico, mas elegante, e envergava um traje de erudito chinês, não lhe faltando sequer o chapéu de feltro. Uma bengala requintadamente entalhada completava o quadro. O seu mandarim, obviamente, era perfeito, visto que fora ela que lho ensinara.

       Um dilúvio de memórias submergiu Yoshiko, tingidas de um traço de tristeza. Ela já não era a rapariga de outros tempos - e ele também tinha mudado. Ninguém podia voltar atrás - isso era o que a vida tinha de mais triste. Sentia-se vacilar perante aquele redemoinho de emoções contraditórias, mas Yamaga parecia imperturbável.

       - Como tem passado, Comandante Chin? - disse-lhe ele, friamente.

       Odiando-o por ser capaz de agir como se nunca tivesse havido nada entre ambos, Yoshiko deu-lhe uma resposta ainda mais fria.

       - Obrigado por ter vindo. A sua presença é muito apreciada.

       Sem dúvida que Yamaga sabia tudo acerca dela, incluindo o nome do responsável pelo seu novo título de "Comandante Chin". Era por isso que escarnecia dela?

       Provar-te-ei que sou uma boa esposa!, dissera-lhe ela, um dia; agora, porém, aquelas palavras tinham apenas o sabor da troça. Num ápice, a vergonha transformou-se em raiva e Yoshiko abandonou a recepção pouco tempo depois, decidida a esquecer, para todo o sempre, aquele homem e a Yoshiko que ele pudesse recordar. Saltou para o dorso de um cavalo veloz e galopou pelos vastos campos à volta de Hsinching. Nas alturas da sela, montada no seu corpulento garanhão, ninguém conseguia tocar-lhe. Examinando o mundo do alto daquela sela, sentia-se superior a toda a gente. Não havia ninguém como ela!

       Seria cruel, seria perversa, não recuaria diante de nada para chegar a um lugar no topo... E depois? Por que não? Impossível voltar atrás, agora. Yoshiko apagava Yamaga, e todas as outras pessoas, da sua mente. Estava acima de todos eles.

Yoshiko estava de regresso a Xangai, uma cidade que adorava, a cidade onde começara a subir os degraus da fama. A situação em Manchucuo estava a evoluir de acordo com os projectos dos japoneses, mas o Japão continuava preocupado com uma eventual oposição da Liga das Nações. Por 'esse motivo, Uno mandou Yoshiko a Xangai, para mais uma importante missão era preciso precipitar os acontecimentos que, mais tarde, viriam a ser conhecidos como o Incidente de Xangai.

       Entre os cidadãos de Xangai, fervilhavam os sentimentos anti-japoneses e as organizações de resistência clandestinas proliferavam. Yoshiko subornou um trabalhador da fábrica de toalhas da Companhia Mitsutomo, para que lançasse um ataque contra os monges do templo budista japonês de Sanmyo.

Houve baixas. Depois, incitou um grupo de cerca de trinta monges japoneses a retaliarem, atacando a fábrica. Aquilo que começara como uma disputa entre um número reduzido de indivíduos transformou-se num movimento amplo e violento, até que, no fim, a fábrica ficou reduzida a cinzas, cerca de mil trabalhadores foram mortos ou feridos e um suposto viveiro de sentimentos anti-japoneses sofreu um rude golpe. As atenções internacionais viravam-se para Xangai e para as confrontações entre chineses e japoneses e ninguém reparava que o Japão continuava a consolidar o seu território no Nordeste. Entretanto, os japoneses lançavam uma invasão militar do Sul. Yoshiko achava-se muito perspicaz, imune aos perigos daqueles tempos conturbados, enfim, uma espia perfeita.

       Em Xangai, Yoshiko despira o uniforme militar e voltara a ser a graciosa dançarina que encantava a cidade. Saía todas as noites, abandonando-se aos prazeres da vida nocturna de Xangai. Corria-lhe nas veias um sangue jovem, inquieto - parecia que não conseguia parar de dançar. Porém, ao longo desses dias e noites, com os seus bailes e festas infindáveis, de bebida em bebida, de parceiro em parceiro, Yoshiko trabalhava duramente, arrancando valiosas informações aos mesmos homens cuja companhia parecia deixá-la positivamente deliciada.

       Ficou desse modo a saber muitas coisas. Sabia que o Décimo Nono Exército estava a combater isolado. Que Chiang Kai-shek estava prestes a retirar-se. Sabia quem era firme na resistência ao Japão; sabia quem estava pronto a vender a sua lealdade; sabia quem fazia contra-espionagem. Os bancos controlados pelo Kuomintang estavam à beira do colapso. A China queria um cessar-fogo. Estes rumores, e muitos outros, eram transmitidos por Yoshiko aos seus patrões. Os japoneses precisavam apenas de mandar aquela jovem fazer os lances que mais lhes interessavam: o investimento depressa ficava pago e os lucros eram avultadíssimos.

       Yoshiko perguntava-se por vezes se não seria mais do que um moço de recados dos japoneses, servindo, como servia, os seus interesses; mas convencia-se de que os interesses dela e os interesses do Japão eram idênticos. Não devia justificações a ninguém!

       Dominando tanto a língua chinesa como a japonesa, movia-se livremente entre esses dois mundos; e mudava de aparência com a mesma facilidade, passando de vestidos europeus a quimonos, de quimonos a cheongsams, de cheongsams a vestidos de noite cujas bainhas beijavam o chão. Por vezes, Yoshiko era uma mulher; outras vezes, era um homem. Era esta característica da sua personalidade que mais atraía os oficiais japoneses. Esses veteranos de muitos e longos anos de guerra contavam, entre as suas conquistas, tanto homens como mulheres. Yoshiko fazia-lhes lembrar os actores Kabuki, que, no palco, retratam personagens femininas - o secreto ideal de todos os homens japoneses. De uma forma extremamente subtil, aquela mulher excitava-os.

       Os homens que não a conheciam tinham ficado fascinados com as extravagantes histórias de "Vénus de Uniforme". Ansiavam vê-Ia - nem que fosse por breves instantes. Devido à intensidade deste desejo, aqueles que chegavam à fala com ela eram presas fáceis dos seus encantos. Grupos de homens corriam para ela, rodeavam-na, interpelavam-na. O círculo de contactos de Yoshiko Kawashima não parava de crescer. Podia aparecer entre os espectadores dos campeonatos anuais de sumo no Estádio Nacional de Tóquio; ou, envergando um elegante e dispendioso quimono rosa-claro, de braço dado com um general. Podia ser vista num salão de chá do segundo piso do Edifício Shiseido, no bairro de Ginza, de mãos dadas com um milionário. Mas também podia ser vista atravessando Xangai num vistoso sedan, envergando um fato castanho de homem e um sobretudo; na cabeça, como qualquer galã experiente, usava uma boina ligeiramente inclinada para o lado.

       Na sua luxuosa mansão, um círculo de atléticos jovens cumulava-a das mais servis atenções. Diziam ser seus guarda-costas; na verdade, porém, os serviços que prestavam eram mais íntimos. Yoshiko deixara de se preocupar com o que os outros pensavam e fazia o que muito bem lhe apetecia. Não se levantava antes da uma ou das duas da tarde. Depois, deixava-se ficar longas horas no seu quarto, vestindo apenas um pijama de seda, ora preguiçando ora conduzindo todo o tipo de assuntos.

       Certo dia, um jovem bem-parecido e elegantemente vestido apareceu na mansão. Era uma honra ter uma audiência pessoal com Yoshiko.

       - O trabalho está feito - disse ela, entregando-lhe uma fotografia. - Este provocador já não nos serve para nada.

       - Com certeza, minha senhora - disse ele, recuando na direcção da porta e fazendo uma sucessão de vénias.

       - Venha ter comigo ao teatro daqui a alguns dias.

       - Eu tratarei de tudo, Comandante Chin!

       - Óptimo. A propósito, o meu chefe, o Sr. Uno, está fora. Não quer vir dançar comigo amanhã à noite?

       - Com certeza, minha senhora!

       Depois de ter abandonado o quarto, o jovem foi ter com a secretária pessoal de Yoshiko, Chizuko, uma jovem japonesa que, com cuidado e dedicação, zelava por todos os aspectos da vida de Yoshiko. Estava habituada ao comportamento desregrado da patroa e já nada a surpreendia. Chizuko tinha um relatório a apresentar a Yoshiko.

       - Menina Yoshiko, concluí o relatório que me pediu sobre as actividades do Sr. Yamaga, desde que chegou a Xangai.

       Yoshiko ergueu os olhos.

       - Primeiro, ponha-me a Sonata ao Luar de Beethoven.

       As notas da sonata flutuaram ligeiras, inundando o quarto, e Yoshiko espreguiçou-se longamente. Sentia-se como se estivesse penetrando num mundo de sonho, um mundo onde o luar cintilava através da melodia e se espalhava etéreo pelo seu corpo, cobrindo-a de argênteos raios.

       Que andara ele a fazer nos últimos dias? Para onde fora? Quem vira? Seria... feliz? Ou, pelo contrário, sentir-se-ia triste, abatido?

       Excitava-a poder espiar a vida do seu antigo amante. A sua voz, contudo, não denunciava minimamente essa extrema excitação.

       - Muito bem. Pode começar - ordenou Yoshiko.

       Chizuko começou:

       Yamaga passou por uma depressão após um amor infeliz, mas, mais tarde, foi para Pequim e participou no trabalho de propaganda cultural, usando para tal um nome chinês, Wang Chia-heng. Em 1930, casou com Kiyoko, filha única de um jornalista, em Pequim, e, três anos depois, Kiyoko deu à luz uma menina, Hiroko. Com a fundação de Manchucuo, Yamaga foi transferido para o Nordeste, onde foi encarregado da propaganda, tendo publicado um jornal, organizado uma companhia de teatro e produzido outros acontecimentos artísticos. Era um homem com algum poder e influência, possuindo mansões em Hsinching, Pequim, Xangai e Tientsin. Mais recentemente, esteve muito ocupado com a construção e organização de um estúdio de cinema em Manchucuo. O objectivo deste estúdio era o aprofundamento da propaganda pró-japonesa na região. Ainda no âmbito desta última missão, Yamaga procedeu à selecção de jovens "com qualidades" para se tornarem estrelas de cinema. Mas Yamaga só era chefe de nome. O verdadeiro poder estava nas mãos do tenente Masahiko Amakasu.

       O trabalho de Yamaga proporcionou-lhe contactos com uma extravagante multidão de gente do cinema e de boémios. Dava-se com gente dissoluta, levava uma vida luxuosa, tinha fama de conquistador. Inúmeras candidatas a estrelas de cinema, sequiosas de fama e dinheiro, disputavam as suas atenções, tratando-o afectuosamente por "Papá Wang".

       Jovenzinhas que queriam ser estrelas de cinema. Negócios. Poder. "Amizade Internacional".

       Chizuko continuou a ler o relatório, mas Yoshiko mais não ouvia do que um longo rosário de nomes de mulheres, nomes que giravam e rodopiavam e serpenteavam na sua cabeça - Li Li-hua, Chen Yun-shang, Chou Man-hua, Chen Yen-yen - como distingui-los? Pareciam todos iguais... De todas essas mulheres, com quais dormira Yamaga?

       Yamaga seguira à risca os seus conselhos. No fim de contas, tinha-se recomposto. Completamente. Havia uma Yoshiko que queria que ele descesse, que queria que ele caísse, espiritual e fisicamente, por causa dela. Mas Yamaga tinha-se erguido de novo... e com que sucesso! Dominada por um profundo ciúme, Yoshiko cerrou os dentes.

       - Chega, chega - disse ela a Chizuko, docemente.

       O disco continuou a tocar, teimosamente girando em volta do seu eixo, inundando o quarto de um romantismo doentiamente sentimental que a deixava ainda mais exasperada. Mas... mas ela também tinha casos com outros homens, não tinha?

       No arrebatamento de muitas noites de amor, os seus amantes ouviam-na pedir, "Não, aí não. Aí ninguém toca. Ninguém." Yoshiko guardava ciosamente o seu seio esquerdo e o segredo que se escondia por detrás daquela marca.

       Então, os homens enlaçavam-na com força; e ela parecia tão delicada e vulnerável.

       - É por o coração ser do lado esquerdo? - perguntou-lhe um deles, certo dia.

       - É a cicatriz da tua antiga ferida? - perguntou-lhe outro.

       Cada um deles tinha a sua teoria, e todos queriam confirmá-la ou desmenti-la, mas ela repelia as suas mãos curiosas, dizendo-lhes, imperiosa: - Não, isso não!

       Se usassem um pouco mais de força, conseguiriam dominá-la e ver o que ela escondia: um minúsculo sinal vermelho no seio esquerdo. Aquele nada de vermelho tremeluzia tentador à luz bruxuleante do candeeiro e o facto de ser proibido excitava-os ainda mais. Possuíam-na extasiados, embriagados, desvairados, usando as mãos, as línguas e mesmo os dentes para tentar excitar aquela marca da sua beleza.

       Mas os encantos de Yoshiko eram mais do que superficiais e uma noite passada com ela era algo que nenhum homem podia esquecer. Mesmo assim, aquela porção minúscula da sua pele, guardava-a para si mesma. Ou guardá-la-ia para Yamaga?

       Mas ele já não gostava dela... nem um bocadinho!

       Naquele dia, toda a gente a achou pálida, abatida. Não é nada, respondeu ela, foi só uma noite mal dormida.

       Certa noite, poucos dias depois, Yamaga saiu com uma bela actriz de Xangai. Conduziu-a até sua casa, abraçaram-se, beijaram-se apaixonadamente na escuridão do jardim da mansão. Apesar do apertado abraço, Yamaga conseguiu abrir a porta e acender a luz com a mão que tinha livre. Ficaram chocados, paralisados, com o que viram. Um furacão parecia ter passado por aquela casa - estava tudo despedaçado, rasgado, reduzido a cacos.

Pelo chão, viam-se bocados de fotografias rasgadas - na sua maior parte, fotografias de Yamaga com diversas aspirantes a estrelas de cinema - no meio de cartas de amor dirigidas ao "Papá Wang", de máquinas fotográficas esmagadas, de vasos partidos, de estilhaços de vidros. Peças de roupa destruídas juncavam o chão - casacos, calças, quimonos, e mesmo camisolas interiores e calções, tudo feito em farrapos. Nada fora poupado. Não havia, em toda a casa, uma única coisa que tivesse ficado inteira.

       Yamaga e a sua companheira estavam boquiabertos, mas aguardava-os um choque ainda maior. No meio daquela devastação, sentada num sofá como se este lhe pertencesse, estava Yoshiko Kawashima. Com os pés em cima de uma mesa e os braços dependurados nas costas do sofá, fitava o casal com um desprezo absoluto. Pelo arrogante franzimento dos seus lábios, via-se que estava à espera deles há já muito tempo.

Com grande delicadeza e tacto, Yamaga acompanhou a actriz até à porta. "Será melhor ires já para casa. Eu telefono-te amanhã de manhã!"

       A jovem, visivelmente assustada, não tinha o menor desejo de ficar. Foi-se embora sem olhar para trás.

       Livre da companhia daquela noite, Yamaga fechou a porta e virou-se para Yoshiko. Por algum tempo, nenhum deles falou. Limitavam-se a olhar um para o outro, inexpressivamente. Não havia nada em Yoshiko que prenunciasse um pedido de desculpas.

       - Fartas-te de gozar, não é? - disse ela, num tom gélido. - Tanto no trabalho como na diversão, há sempre uma quantidade de mulheres encantadoras, doidas por se atirarem a ti. Algumas delas, aposto, atiram-se mesmo!

       - Normalmente é trabalho, e não diversão - replicou Yamaga.

       - Andas a dar lições de representação a essas futuras estrelas? Imagino que as tens ajudado sobretudo nas cenas de amor...

       Com grande esforço, Yamaga refreava a sua fúria. "Não tens nada a ver com isso!"

       - Só gostas de raparigas chinesas... - disse ela, provocante.

       Yamaga não respondeu.

       - Por que é que não gostas das raparigas japonesas?

       Yamaga permaneceu calado. Havia uma tensão extrema no ar. Durante aqueles breves momentos de silêncio, os pensamentos de ambos fizeram uma longa viagem. Ambos estavam confusos, muito confusos. Por que é que ele não gostava de raparigas japonesas?

       Yoshiko sorriu, trocista.

superior.

       Yamaga escutava, apenas. Sentia-se dilacerado. Estava a ficar velho e não subira tão alto, nem tão depressa, como esperara. Desperdiçara a sua juventude por causa de uma carreira, e afinal para quê? Chegara à meia-idade e não encontrara ainda nem o êxito profissional nem o verdadeiro amor. Era apenas uma roda na engrenagem.

       Riu-se, ironicamente.

       - Imaginas-te um deus, Comandante Chin!

       Fazendo um gesto na direcção da porta, como que sugerindo que a acompanharia à saída, Yamaga acrescentou:

       - É tarde. Por favor, vai-te embora.

       Não eram essas as palavras que Yoshiko queria ouvir. Ignorou o pedido dele. Em vez de sair, atirou-se a ele, agarrou-se a ele com toda a sua força, resistiu quando ele, com um ar enfadado, tentou afastá-la. Não, não permitiria que ele vencesse. Ela conseguia sempre o que queria - bastava um pequeno esforço. Como o vórtice de um redemoinho, atraía o objecto do seu desejo usando de todo o seu querer, até que esse objecto repousava, submisso, na palma da sua mão. Nenhum homem conseguia escapar-lhe a partir do momento em que se decidia a conquistá-lo, e esse facto dava-lhe uma imensa satisfação. O êxito fazia-a florescer - acrescentava-lhe beleza.

       Não, não deixaria que ele lhe escapasse. Num instante, o rosto dela mudou. Se havia uma pessoa no mundo que o compreendia, essa pessoa só podia ser ela. Então, com mãos delicadas, apaixonadas, acariciou aquele rosto em que o tempo havia já deixado as suas marcas.

       - Essas mulheres todas que tu conheceste... haverá alguma que se compare a mim... ? - ronronou. - Hum? Diz-me se há...

       Lentamente, a nostalgia foi ganhando terreno no coração de Yamaga. Yoshiko estreitou-o nos seus braços, ofereceu-lhe os seus lábios vermelhos, tapou-lhe a boca com os seus lábios para que ele não falasse. Yamaga já não conseguia resistir. Em tempos, acreditara que ela seria sua. Que ela lhe faria bolos de arroz com recheio de tâmaras todos os dias, por toda a vida. Mas isso fora já há tanto, tanto tempo...

       A mão de Yamaga deslizou das costas dela para os seios e Yoshiko sentiu um choque percorrer-lhe todo o corpo. Com os corpos colados como se fossem um só, não se moveram por um longo tempo. Quando, por fim, Yamaga começou a mexer-se, ela enroscou-se nele como se fosse uma serpente, aguçando-lhe o apetite, mostrando-lhe quão feliz ele era por estar com ela.

- Talvez seja por eu ser uma rapariga chinesa - disse ela.

Não, nenhuma das muitas mulheres que ele possuíra se podia comparar a ela...

       Yoshiko não se apressou, oferecendo-lhe um prazer que superava os seus sonhos mais arrebatados, deixando-o louco de felicidade. Voraz, a boca dela saciou a fome que tinha dele. Os homens tinham-na ensinado a fazer isso e ela não podia ter aprendido melhor. Experiente e confiante na sua habilidade para dar e receber prazer, achava que o destino a trouxera de volta ao seu primeiro amor. Mas agora sentia por ele um vago desprezo.

       Subitamente, inopinadamente, Yoshiko virou-se para ele e mordeu-lhe a boca com toda a força que tinha. Yamaga deu um grito de dor. O sangue jorrava já dos lábios e da língua.

       Yamaga fixou-a com um ar inexpressivo, enquanto limpava o sangue doce e pegajoso com as costas da mão. Era surpreendentemente doloroso. Os seus olhos não largavam Yoshiko, aquele desconcertante demónio.

       Ela inclinou para trás a cabeça e desatou a rir. Depois, afastou-o com um ar enfadado, tal como ele a afastara minutos antes. Embora não estivesse ferida, havia um veio de sangue no seu rosto. Era o sangue dele, junto à sua boca, mais parecendo uma mancha de baton. Yoshiko estirou-se no sofá e riu-se maliciosamente.

       - Pois é, Yamaga, eu não sou a menina bem comportada e obediente de ninguém... - disse ela, com um sorriso perverso. - É possível que as coisas tenham acabado entre nós, mas tu foste o meu primeiro amor e por isso terei sempre direitos sobre ti. Não posso ficar impassível enquanto tu fazes o que muito bem te apetece. Não penses que te deixo fazer tudo o que tu queres! E não penses que me escapas! Não me subestimes! - acrescentou, com uma expressão ameaçadora.

       Ergueu-se, avançou para a parte da sala que o luar iluminava e vestiu-se lentamente, uma peça de cada vez, sempre a olhar para ele. Era como se estivesse a construir um muro, tijolo a tijolo, um muro que a separava dele. Yamaga sentia-se completamente desconcertado. Momentos antes apenas, mergulhara num êxtase indescritível - agora, num ápice, tudo se desmoronara.

       Logo que acabou de se vestir, Yoshiko deu meia-volta e abandonou a casa num ápice. Yamaga viu-a afastar-se e sair, sem dizer palavra. Nos seus lábios feridos, formara-se uma gota enorme, inchada de sangue. Estava sozinho com os seus pensamentos. Encontrado-se na China para cumprir uma missão de importância nacional, Yamaga considerava-se um homem audaciosamente ambicioso. Ele era uma peça central nos esforços destinados a assegurar que o recém-criado Estado de Manchucuo fosse inundado de influências culturais "puras" e inabalavelmente leais ao Japão. Além disso, recaía sobre os seus ombros a importante tarefa de criar os estúdios de cinema da Manchúria. Como chefe deste empreendimento, era constantemente assediado por mulheres atraentes, tão vaidosas e nervosas como os mais belos e coloridos pássaros. Ele usava-as e elas usavam-no - e que mal é que isso tinha...? A verdade, porém, é que provocara a ira daquela mulher.

       E aquela mulher, aquela Yoshiko, era muito capaz de lhe pregar umas boas partidas. Partidas terríveis. De facto, ela era capaz de tudo. Yamaga sentou-se, exausto, o coração oprimido pelas preocupações, e assim ficou, sozinho com os seus pensamentos, até ao nascer do dia.

       Yoshiko armou-se de toda a sua força para apagar da memória qualquer resquício do homem que fora o seu primeiro amor. Continuou a fazer a mesma vida, dormindo todo o dia, saindo à noite para se divertir. Normalmente, só conseguia adormecer de manhã, e então dormia o sono dos mortos, como se fosse uma pedra desaparecendo nas profundezas do escuro mar, sob um céu negro e sem luar. Só no mundo dos seus sonhos conseguia reencontrar a inocência perdida - entre pássaros que cantavam e flores de doces fragrâncias, sem qualquer outra criatura humana por perto. Nos seus sonhos, de facto, nunca havia ninguém a não ser ela - e o mundo era luminoso e claro, como se uma água pura tivesse acabado de lavá-lo. Era um sítio sem família nem país; uma terra sem amor nem ódio, livre de lutas e guerras. Era um regresso à inocência da infância.

       Os momentos mais difíceis dos seus dias eram esses instantes passados na fronteira entre o sono e a vigília, quando os sonhos tardavam em esfumar-se, perseguindo-a, atormentando-a, prendendo-a nos seus elos. A cabeça doía-lhe tanto que parecia rebentar. Subitamente, porém, numa explosão de energia, Yoshiko convocava toda a sua força e vontade para abrir os olhos. O sol já se punha; um novo dia começava. Lentamente, como um fantasma, desviava as cortinas do dossel e deslizava para fora da cama, pronta para mais uma noite de excessos.

       A sua agenda estava sempre muito preenchida. Primeiro, tomaria o "pequeno-almoço", antes de reunir o seu grupo habitual para mais uma noite na cidade. Jogavam mah-jong, poker, outros jogos de que se lembrassem. Quando se fartavam de jogos, saíam para beber, visitavam clubes nocturnos ou assistiam a óperas ou concertos. Xangai era uma cidade que nunca dormia, com clubes nocturnos, salões de baile e courts de ténis que nunca fechavam.

       Yoshiko não encontrava nenhum sinal de decadência na vida que levava. Se a vida era curta, por que não haveria de gozá-la?

       Certa noite, sentada diante do toucador e penteando o cabelo antes de mais uma excursão pela cidade, pôs-se a avaliar o seu aspecto. O cabelo curto estava bem - não propriamente perfeito, mas pelo menos era sedoso e brilhante. No rosto, era visível uma palidez ligeiramente doentia, mas isso era fácil de corrigir com um pouco de pó-de-arroz, um traço nas sobrancelhas, uma pincelada de baton. Vestiu um dos seus trajes preferidos: uma túnica preta de cetim, idêntica à que usavam os eruditos chineses, casaco à mandarim e colete acolchoado, e uma boina de cetim preto. Quem a visse, confundi-la-ia facilmente com um homem de sociedade informalmente elegante.

       Nessa noite concreta, Yoshiko resolveu passar pela ópera, arrastando atrás de si um séquito de uma dúzia de sequazes.

       - Por aqui, se faz favor, Comandante Chin, por aqui - disse-lhe, bajulador, o proprietário do teatro, enquanto a saudava com a subserviência de um criado. Obsequiosamente, ele e um arrumador conduziram a Comandante Chin ao seu lugar.

       Acompanharam-na até um camarote no centro do balcão. O povo de Xangai sabia tudo acerca daquela mulher. Alguns desprezavam-na, outros odiavam-na, outros ainda nutriam por ela uma simples curiosidade, mas nenhum deles se atrevia a dizer o que pensava. Yoshiko era uma mulher muito poderosa. Onde quer que fosse, as pessoas levantavam-se e faziam a vénia, escondendo bem escondidos os seus verdadeiros sentimentos.

       Yoshiko instalou-se comodamente e, com um ar de absoluta satisfação, examinou o teatro. O palco era limitado por paredes laqueadas a vermelho e dourado e cortinas de veludo carmim enquadravam um actor que, desempenhando um papel feminino, cantava a ária "Ergue a taça de jade". O jovem actor, que, com um ar pudico, recusava vezes sem conta a taça de jade, tinha um aspecto especialmente gracioso, em consequência de uma generosa aplicação de cremes, tintas e pós.

       Yoshiko prosseguiu a sua inspecção, abanando-se com um leque negro e dourado, enquanto a sua outra mão pousava na coxa do atraente jovem que se encontrava a seu lado. Acariciava-lhe e beliscava-lhe alternadamente a perna, consoante o carácter mais ou menos suave, mais ou menos vibrante, da música. Aqueles que os rodeavam fingiam não dar por nada. E por que não? No fim de contas, não era a vida apenas uma imensa farsa?

       - Bravo! - gritava já o público, aclamando o actor que conseguia desenhar um retrato feminino tão convincente.

       Nesse instante, um rapaz entregou a Yoshiko um toalhete fumegaste, perfumado com água de rosas, e ela limpou as mãos. Reconheceu facilmente o rapaz: dias antes, mandara-o vigiar Yamaga. Era um rapaz bem-parecido e atlético, mas o fato barato que usava dava-lhe um ar falso.

       Yoshiko pegou no toalhete quente e bem cheiroso e, com um ar perfeitamente normal, leu a nota que o toalhete ocultava:

Não podemos confiar no "Intelectual".

       "Intelectual" era o nome de código de um dos agentes sobre os quais recaíam suspeitas de passarem informações para o outro lado. Havia três suspeitos e, para se desenvencilhar do culpado, Yoshiko deu a cada um deles um lote diferente de informações falsas. Depois, esperou para ver qual o lote que passara para os revolucionários. O processo não podia ser mais simples.

       A política era um jogo cruel, implacável, uma competição verdadeiramente feroz. Não havia espaço para a dissidência. Quem permitia a dissidência, tinha o seu fim assegurado.

       Entretanto, o proprietário do teatro apareceu com uma bandeja com chá e bolachas. Yoshiko acabou de limpar as mãos e devolveu o toalhete usado ao rapaz. Dentro do toalhete, seguia a nota.

       - Por favor, beba uma chávena de chá... - disse o proprietário do teatro. - É chá da melhor qualidade... Primavera de Jade. - O homem sorria para ela com ar bajulador. Yoshiko resmungou um vago assentimento, aguardando que ele lhe servisse o chá. O homem passou-lhe a pequena chávena de porcelana e, ao mesmo tempo, sem que ninguém desse por isso, passou-lhe o rolo de notas que escondia na sua mão. O proprietário do teatro precisava da protecção dela.

       Com uma descontracção estudada, Yoshiko pegou nos binóculos com que um dos seus acompanhantes seguia o espectáculo. Lentamente, os seus olhos deslizaram do palco para a audiência. O seu olhar acabou por se concentrar num único homem. Ajustou os binóculos até que o rosto do homem encheu todo o seu campo de visão.

       O homem usava um disfarce, mas Yoshiko reconheceu-o imediatamente: era o "Intelectual". Voltou a concentrar-se no palco, enquanto o rapaz que trabalhava para ela levava uma chávena de chá ao agente duplo. O "Intelectual" sorveu uma única vez o seu chá e caiu imediatamente para o lado, sem um único ruído. O rapaz e alguns elementos do -público- que estavam por perto pegaram no corpo e levaram-no dali para fora.

       Yoshiko virou-se e disse, para ninguém em particular: - Vamos embora. Estou farta.

       Mas dera apenas alguns passos quando, no palco, se passou qualquer coisa que chamou a sua atenção. Parou. Ouviu-se um rápido rufar de tambores e o público desatou a aplaudir desvairadamente. Yoshiko virou-se para ver qual o motivo de tamanha algazarra. Pois não admirava: havia um macaco no palco! Depressa percebeu que o macaco era muito simplesmente um actor, mas um actor tão perfeito que, por momentos, conseguira enganá-la. Era uma verdadeira proeza...! O actor parecia ser meio deus, meio demónio enfim, um génio. Enquanto saltava ligeiro no seu fato de macaco, que incluía uma camisa, umas calças e até um chapéu, o seu rosto, em que faiscavam uns olhos magníficos, imitava na perfeição o focinho de um macaco. Brandindo um bastão dourado, desferia rápidos golpes, após o que, com toda a calma, se passeava pelo palco. Depois, fazia rodopiar o bastão com tal velocidade que a sua mão parecia empunhar não mais que uma mancha indistinta, uma mancha que se erguia sobre ele e que o rodeava como um arco-íris. Aquele actor era, sem sombra de dúvida, um mestre nas artes marciais. Por outro lado, as suas capacidades acrobáticas eram também notáveis. O público estava absolutamente submetido. Yoshiko também estava fascinada.

       - Ele está a representar O Rei Macaco Lança a Confusão no Céu - disse o proprietário do teatro, com uma vozinha untuosa.

       Yoshiko focou os binóculos no actor, concentrando-se primeiro no seu corpo e depois no rosto. Os seus traços estavam diluídos sob uma espessa camada de maquilhagem. No entanto... havia qualquer coisa naquele rosto... Parecia-lhe que já tinha visto aquela cara... Mas onde?

       O macaco continuava a malhar na assembleia de anjos e, de cada vez que desferia os seus golpes certeiros, ria-se jubilosamente - tal e qual como um macaco feliz e excitado, esperto e rápido.

       - Como é que ele se chama? - perguntou de imediato Yoshiko.

       - Yun Kai "Nuvens que se Despedem" - respondeu prontamente o proprietário do teatro. - É o mais famoso de todos os Reis Macacos de Xangai. A casa vem abaixo sempre que ele aparece!

       Yoshiko olhou por um momento para o palco, como que a estudar toda a cena, após o que se dirigiu ao proprietário, como se falasse para um proxeneta:

       - Ah sim? - disse ela com uma voz rouca. - Nada mal, nada mal!

       Terminado o espectáculo, a multidão foi abandonando lentamente o teatro. Nos anúncios da entrada, o nome Yun Kai cintilava em letras enormes. Havia também uma grande fotografia emoldurada do actor, tão grande como um cartaz. Yoshiko vira aquele rosto apenas uma vez, e por breves momentos, mas era um rosto que não podia esquecer. Não havia dúvida: ele alcançara o êxito!

       No dia em que o conhecera, Yun Kuan, ou Ah-fu, como então lhe chamavam, era como uma águia pequena que pela primeira vez abandonava o ninho. Poucos anos tinham sido precisos para transformar aquele rapaz de olhos esbugalhados numa grande vedeta. Um fio de luzes brilhantes orlava a moldura da fotografia, fazendo ressaltar os traços fortes do actor. Yoshiko lembrou-se do que ele lhe dissera, naquele dia no cais: "Espera que as nuvens se despeçam e verás a lua a brilhar! "

       Ah-fu parecia ainda mais belo e vigoroso do que antes.

       Ah-fu...? Bom, não propriamente... Agora, ele era Yun Kai!

       Com um plano já meio arquitectado na sua mente, Yoshiko lançou um último olhar rápido para a fotografia de Yun Kai, antes de entrar para um pequeno sedan Ford que se afastou no meio de uma nuvem de pó.

0 sol ainda não se tinha posto - era aquela hora na fronteira entre o dia e a noite, quando o crepúsculo, ainda ténue, se anuncia em vagas sombras e as luzes coloridas da cidade não começaram ainda a piscar. No exterior da mansão de Yoshiko, dois guarda-costas superficialmente corteses levavam pelo braço, com alguma violência, um convidado especial.

       - Mas eu não preciso da vossa ajuda! - protestava o convidado com um ar infeliz.

       Fosse lá como fosse, o certo é que o homem mantinha intacta a sua dignidade. Além disso, apesar de o terem arrastado desde a porta até à sala de estar, conseguiu manter a imagem daquele Rei Macaco que, no palco, dava passadas largas e decididas. Ele não queria estar ali, mas o proprietário do teatro explicara-lhe a importância de cultivar amizades com os ricos e poderosos e a verdade é que não tinha outra alternativa. O nome da sua anfitriã era conhecido de todos: aquela mulher era uma tristemente célebre colaboradora. Só de pensar nela ficava nauseado - ah, pois claro... um comandante...! Naquela casa, ele era um convidado à força.

       Yoshiko acabava de molhar os lábios num vinho particularmente caro, quando ergueu os olhos e viu que Yun Kai tinha chegado. Olhou-o fixamente e Yun Kai olhou-a do mesmo modo, examinando-a cuidadosamente. Estupefacto, deu-se conta de que a conhecia. Incrédulo, deixou-se ficar onde estava, como que entorpecido. Dir-se-ia que acabara de levar um murro demolidor.

       Seria mesmo ela? A dona da malinha de mão que ele arrebatara ao gatuno, a rapariga que ele salvara no cais, aquela jovem delicada mas altiva que viera sozinha para Xangai para ganhar a vida? Pelos vistos, pensou Yun

Kai, não se limitara a ganhar a vida. Tornara-se famosa, rica, poderosa, e odiada por milhões de chineses. Yun Kai não conseguia encontrar a rapariga do cais na mulher em que ela se tornara. Não era fácil recompor-se do choque. Era como se estivesse a meio de uma actuação e aparecesse de repente no palco uma personagem de uma ópera completamente diferente. Tudo parava.

       A "anfitriã" fez sinal aos guarda-costas para que se retirassem. A ordem foi imediatamente obedecida.

       - Sente-se... - disse ela, oferecendo-lhe o mais encantador dos sorrisos. - É tão bom voltar a vê-lo...! - Calou-se por um momento. - Está... surpreendido?

       - Também não admira...! Nunca me passou pela cabeça que a pessoa que me "convidou" pudesse ser um verdadeiro manda-chuva!

       - Deveras?

       Yun Kai não fez o menor esforço para tentar apaziguá-la.

       - Não há nenhum chinês que se preze que não tenha ouvido falar do braço-direito do exército de Kwantung, a Comandante Chin! - Yun Kai sublinhou a palavra "comandante", dando-lhe um tom irónico.

       Ela riu-se com um ar bem-disposto. - Trate-me por Yoshiko, por favor disse.

       - Acho que não consigo.

       - Nunca me esqueci de si. Quem havia de dizer... Poucos anos passaram e você é já uma vedeta da ópera...

       Yun Kai sentia-se furioso e desapontado - não queria acreditar que a mulher que estava à sua frente fosse a mesma que, anos antes, encontrara no cais. Queria que ela fosse outra pessoa, uma pessoa diferente, mas, quanto mais o desejava, pior se sentia. Lutava contra um turbilhão de sentimentos contraditórios e isso era tudo o que podia fazer para se refrear.

       - O mesmo se pode dizer de si... - retorquiu ele, sarcástico. - Foi com muita dificuldade que a reconheci.

       Ela deu-se conta do sarcasmo.

       - Bom... mas afinal por que é que me mandou vir?

       Cuidadosamente, graciosamente, Yoshiko colocou o copo de vinho diante dele e inclinou a cabeça.

       - Por favor, beba... pelos bons velhos tempos! Ah, se você pudesse ver-se a si mesmo... está cá com um ar...! Ou, quem sabe, talvez esteja apenas a desempenhar na perfeição o papel do moralista virtuoso!

Yun Kai pegou no copo e colocou-o numa mesinha afastada.

- De qualquer modo, obrigado!

Depois, armou-se de toda a sua coragem e comentou:

- Tenho medo de que o seu vinho saiba a sangue.

       - Francamente, Sr. Yun, que falta de educação... - disse ela, num tom ligeiro. Yoshiko dispunha de todo o tempo do mundo.

       Yun Kai não tinha outra alternativa senão pegar no copo. Inclinando para trás a cabeça, bebeu todo o vinho de um só gole e levantou-se muito direito. Estava pronto para partir - para que havia de ficar mais um segundo que fosse naquela casa?

       - Tenho de ir, Comandante Chin. Caso contrário, não chego a tempo para o espectáculo.

       - E isso é assim tão importante?

       - Claro que é importante! - atirou-lhe Yun Kai. - Um actor é como um bombeiro, não pode desaparecer de um momento para o outro, só porque não lhe apetece trabalhar; não seria justo para o público. O actor tem a responsabilidade de fazer felizes as pessoas que vão vê-lo ao teatro.

       - Pois bem, a mim é que você não está a fazer feliz, bem pelo contrário queixou-se ela.

       Yoshiko Kawashima não estava à espera de que Yun Kai fosse um adversário tão obstinado e arrogante. Seria possível que ele não entendesse que lhe devia obediência? Até então, Yoshiko sempre conseguira exercer um claro domínio sobre os homens. Seria aquele actor realmente imune aos seus encantos? Inclinou-se um pouco para a frente e o decote amplo da sua blusa abriu-se impudicamente; na pressa com que se cobriu, acabou, momentaneamente, por revelar ainda mais.

       Yun Kai afastou o olhar.

       - Assim também não vai lá! - atirou-lhe.

       Estaria ele realmente determinado a não ter nada com ela?, perguntou-se Yoshiko. Abeirou-se mais dele e apertou-lhe ligeiramente a mão, procurando puxá-lo para ela.

       - Eu não sou uma rapariga japonesa... Sou uma rapariga chinesa...! disse ela, com um sorriso tonto.

       - Onde é que quer chegar, Comandante Chin? - retorquiu Yun Kai.

       Yoshiko conseguira deixá-lo constrangido. O seu rosto começava a corar. Tão dissimulada como uma víbora, Yoshiko lambeu os lábios pintados de carmim e semicerrou os olhos. Depois, inopinadamente, desatou a rir-se.

       - Ah...! Não me diga que não sabe...! As raparigas chinesas são muito melhores do que as japonesas, no que toca às artes do amor...

       Uma sensação nova e estranha tomava conta dele. Aquilo era uma cilada e, se caísse nela, não sairia vivo. Yoshiko abeirou-se ainda mais dele e Yun Kai perdeu o equilíbrio e caiu no sofá, mas levantou-se num ápice e afastou-a bruscamente.

       - Comandante Chin... - disse ele, hesitante.

       - Diga, diga! O que quer que tenha a dizer, diga...! - Yoshiko olhou-o de soslaio, com uma expressão insinuante. - Eu sou toda ouvidos... para as palavras que vêm do coração.

       Aquilo mais não era do que um dos seus muitos truques de sedutora e Yun Kai sentia-se humilhado ao ver aquele rosto pérfido desfazendo-se em sorrisos para ele. Finalmente, explodiu de raiva.

       - As palavras do coração nem sempre são agradáveis de ouvir. Eu não sou o seu gigolo, Comandante Chin. E mesmo que você fosse minha e estivesse inteiramente à minha mercê, creio, muito sinceramente, que não estaria com disposição para si!

       Yun Kai encaminhou-se para a porta. Quando lá chegou, virou-se para ela e curvou-se cerimoniosamente.

       - Queira desculpar, menina, mas tenho de ir andando.

       Dito isto, virou-lhe costas e foi-se embora.

       Yoshiko deixou-se cair no sofá. Não havia dúvida, pensou, integridade era coisa que não faltava àquele homem! Decidira não ter nada com ela - e ponto final! E o modo como olhava para ela... com aqueles olhos cheios de censura... acharia por acaso que era melhor do que ela? Teria gostado de lhe perguntar uma coisa: "Você conhece o segredo do meu corpo?" Mas Yun Kai não lhe dera essa oportunidade. Em vez disso, obrigara-a a fazer figura de parva, rejeitada por um palhaço de terceira categoria. De súbito, o rosto de Yoshiko iluminou-se. Um sorriso manhoso espalhou-se pelo seu rosto. Levantou-se languidamente, dirigiu-se calmamente para o telefone, pegou no auscultador, começou a marcar um número.

       Yun Kai dirigiu-se com passo rápido para o teatro, concentrado já no trabalho que o esperava. Ele era o garboso Rei Macaco, aquele que semeava a confusão nas paragens celestiais! Na ópera, o Imperador de Jade, senhor de todo o céu, atribuía-lhe o impressivo título de "Grande Sábio Que Unifica o Céu", em reconhecimento das suas extraordinárias capacidades. O Imperador de Jade esperava também utilizar os grandes poderes do Rei Macaco para disciplinar os outros membros da corte celestial. Mas o Macaco era incontrolável - para além de roubar os celestiais pêssegos do Imperador e o exilir da imortalidade, exigia a sua liberdade e derrotava os poderosos exércitos e generais do céu, designadamente os Dezoito Lohan, os Monstros Furibundos, o gigantesco General Espírito e as temíveis Mulheres ArhatY. Um a um, a todos derrotava o Rei Macaco, com o seu fantástico jogo de pés e os seus truques ardilosos.

       E eu sou como ele...!, pensou Yun Kai. Transbordante de confiança, foi a cantarolar até ao teatro. Quando lá chegou, dirigiu-se imediatamente aos bastidores. Mas aguardava-o uma surpresa terrível: quando afastou a cortina e penetrou naquele mundo privado onde os actores deixam de ser gente comum e se transformam em seres sobrenaturais, Yun Kai entrou em pânico.

       Os bastidores estavam completamente vazios. Não restava um único adereço e, quanto aos figurinos, nem sinal. Um deserto - de coisas e de gente.

       Yun Kai estava furibundo. Sentia um formigueiro na cabeça - claro, claro que era ela que estava por detrás daquilo! Só podia ser ela! Desvairado, não parava de morder o lábio inferior. Tinha o rosto da cor da cal e os tendões do pescoço inchados. Quando deixou o teatro, Yun Kai era como um vulcão prestes a explodir.

       Pela segunda vez nessa noite, Yun Kai viu-se diante de Yoshiko Kawashima, disposto a dar-lhe guerra. Os seus braços mantinham-se colados ao corpo, os punhos cerravam-se com violência. Não podia deixar que a fúria que sentia o vencesse.

       - Ah, com que então está de volta... - disse Yoshiko, com um risinho displicente. - Esta noite, Mestre Yun, serei eu o seu público... Espero sinceramente que me proporcione um bom espectáculo... Um actor tem de agradar ao seu público...!

       Na verdade, tudo o que ele precisava de fazer para lhe agradar era permanecer ali e exibir a sua bela figura - o resto era apenas um remate, um

 

       ` O termo sânscrito arbat pode designar uma pessoa ou um deus (neste caso, trata-se de um deus) que possui méritos particulares (ou ainda um seguidor de Buda que atingiu a libertação). Lohan é o seu equivalente em chinês. (N. do T).

 

pormenor, um nada de sal. Até mesmo o Rei Macaco tinha um antagonista à altura - na história, era o Buda, mas na vida real, era Yoshiko. Impossível fugir-lhe.

Os olhos de Yun Kai faiscavam.

       - Não sei se sabe, mas nós, os actores, também temos dignidade! - replicou ele, inflexível. - Julga que lhe basta fazer um sinal para que eu lhe obedeça e desate para aí a dançar? Pois olhe, hoje não me apetece trabalhar! Será melhor que me devolva as minhas coisas e que me deixe seguir o meu caminho - a menos que queira passar a noite a ouvir os nomes que eu tenho para lhe chamar!

       A expressão de Yoshiko ganhou uma súbita dureza. Encarou-o com um vago sorriso de desprezo.

       - Oiça-me com atenção - disse ela.

       - Quem manda alui sou eu e quando eu digo, KSalte!", você só tem de perguntar, "A que altura?" Está a perceber? Você só tem um palco para se pavonear se eu lhe der esse palco e o único palco onde vai dançar esta noite é aqui!

- Devolva-me já as minhas coisas! - replicou ele, rispidamente.

Com um sorriso de gelo, Yoshiko fez um sinal para um dos seus

- Tragam tudo para aqui!

       Momentos depois, os homens de Yoshiko reapareciam na sala, carregando um verdadeiro arsenal cénico: instrumentos, figurinos, cenários, armaduras, espadas. Atrás desta montanha de adereços, vinha uma infinidade de pessoas: violinistas, alaudistas, percussionistas, actores secundários, moços de recados - toda a companhia lá estava.

       - Pode ir-se embora depois do espectáculo - disse Yoshiko, calmamente.

       - Não! - replicou ele, furioso. - Você não me intimida, ouviu?

       Yoshiko lançou-lhe um sorriso coquete.

       - Mestre Yun, se vai continuar a portar-se assim - disse ela, com um ar brincalhão -, terei de recorrer à violência...

       Sem perceber onde queria ela chegar, Yun Kai armou-se de toda a sua coragem, imaginando que iam espancá-lo. Não tinha medo de ninguém! Não cederia! Nesse instante, porém, chegaram-lhe aos ouvidos angustiantes gritos de dor. O som vinha da sala ao lado. O rosto de Yun Kai expressava agora toda a sua impotência. Estavam a agredir à coronhada um dos velhos alaudistas da companhia. Yun Kai pôs um ar impassível, mas, na realidade, sentia-se profundamente angustiado. A cada coronhada que os homens de Yoshiko desferiam no corpo do velho, o seu corpo estremecia involuntariamente.

       Yoshiko fez um sinal e outro membro da companhia foi arrastado para a sala ao lado. Desta feita, os golpes eram ainda mais violentos, mas nenhum dos homens pedia clemência - eles tinham o seu orgulho.

       - Parem! - gritou de súbito Yun Kai.

       Viu o rosto presunçoso de Yoshiko diante de si, sorrindo com ar trocista. De facto, Yoshiko estava exultante. Tinha vencido! Que idiota que ele era!, pensou. Não queria beber o vinho da amizade, preferia o veneno da animosidade. Torcia o nariz à cenoura; expunha-se ao cajado. Era um indivíduo obstinado. Pois que fosse. Mas tinha de compreender que não tinha outra alternativa senão cumprir as suas ordens.

       O velho tocador de alaúde que os homens de Yoshiko tinham agredido estava a afinar o seu instrumento. Era o único som que se ouvia. O espectáculo daquela noite seria humilhante.

       Yun Kai brandiu o bastão dourado que quase fazia parte dele, agarrando-o com toda a sua força. Iria ele realmente actuar só para agradar àquela bruxa? Um a um, todos os outros membros da companhia avançaram na direcção dele e manifestaram-lhe a sua simpatia e encorajamento, antes de se escapulirem para os seus postos.

       Yun Kai fez então a sua entrada em cena. Os tambores rufaram como de costume. Desta feita, porém, havia no seu som uma raiva dificilmente contida. Na ópera, o poderoso Rei Macaco era invencível; na vida real, porém, não conseguia sequer escapar aos golpes de uma mulher insignificante - na realidade, o Rei Macaco não passava de uma marioneta nas mãos daquela mulher, mas só assim poderia salvar os seus camaradas.

       Yoshiko reclinou-se no sofá, numa atitude de absoluta descontracção, apreciando os suaves arcos das acrobacias do actor. Embora parecesse estar a gostar, Yoshiko não se sentia inteiramente satisfeita. Sempre que ele executava um movimento excepcional, ela aplaudia e gritava, "Bravo! Bravo!"

       Yun Kai não ousava permitir que a sua ira transbordasse. Sentia-se profundamente humilhado, mas a sua verticalidade mantinha-se intacta. Além disso, nunca trairia a sua arte - tinha de lhe dar tudo o que tinha, fossem quais fossem as circunstâncias.

       Representou apenas uma breve cena, mas para ela chegava. Yoshiko pegou num grande maço de notas e atirou-o para um baú.

       - Trabalha para mim e eu pago-te o dobro do que aí está.

       Yun Kai estava encharcado em suor. Limpou-se com uma toalha sem olhar para ela.

       - Não queremos o seu dinheiro! - silvou ele entre os dentes cerrados.

       - Ora...! - retorquiu Yoshiko, rindo-se. - Vá lá, aceite...! Tem de aceitar! Não quero que o povo me acuse a mim, a Comandante Chin, de abusar do meu poder para ter espectáculos de graça. Seria um acto francamente censurável!

       Yoshiko estava profundamente irritada, porque, de facto, tinha usado o seu poder e influência. Roubara alguns minutos àquele actor, impusera-lhe uma obediência superficial, mas, tudo somado, não conseguira conquistar o seu coração - no fundo, era uma falsa vitória. Perdera tanto tempo, tivera tanto trabalho e afinal para quê? Mais não conseguira do que uma exibição relutante, arrancada a ferros. Era ultrajante! Não podia permitir que ele escapasse impune.

       No fundo do seu coração, talvez Yoshiko não fosse tão vingativa, mas Yun Kai tinha-a levado a extremos. Quando deu por isso, já era demasiado tarde.

       Yoshiko deu meia-volta e deixou a sala. E logo ouviu um ruído, sonoro e inequívoco, o ruído de vidro a partir-se. Yun Kai, num paroxismo de raiva, esmurrara violentamente o espelho.

       Havia estilhaços por todo o lado e a mão de Yun Kai estava cheia de sangue e crivada de vidros. Todos os membros da companhia se juntaram à sua volta, murmurando-lhe palavras de consolo.

       - Nós limpamos isto, não te preocupes.

       - Mestre Yuan, deixa-me pôr qualquer coisa na mão para estancar o sangue. Por que é que te castigaste desta maneira? Tu não tens culpa de nada...

       - Tu foste obrigado a actuar, não tiveste culpa.

       - Nós sabemos que fizeste isto por nós...

       - Em que é que o mundo se tornou? Como é possível que nós, os chineses, tenhamos deixado que um bando de estrangeiros e os seus lacaios se tenham transformado nos senhores da China? Como é possível que tenhamos chegado a este ponto?

       Yoshiko ainda ouviu parte do que Yun Kai estava a dizer, mas as vozes foram-se esbatendo à medida que ela se afastava, de cabeça bem erguida, para onde não as pudesse ouvir.

       Yun Kai rangia ainda os dentes de raiva.

       - Não me esquecerei nunca do que se passou esta noite, Comandante Chin! Seja qual for o preço que tenha de pagar, hei-de vingar-me!

       Yoshiko, porém, já estava longe. Pouco tempo depois deste episódio, abandonava Xangai e ia para Jehol, no nordeste.

A província de Jehol ficava entre a província de Mukden, em Manchucuo, e a província de Hopei, na China. A riqueza proporcionada pela sua principal exportação - o ópio - tornava-a uma possessão desejada. Não admirava que, com o território de Manchucuo perfeitamente controlado, o olhar cobiçoso do Japão se fixasse agora na província de jehol.

       Em julho de 1932, um oficial do exército de Kwantung desapareceu quando passava férias numa estância de Jehol. Aproveitando este episódio, o exército japonês espalhou o boato de que o oficial em questão fora raptado pela resistência chinesa e, sob o pretexto de o libertar, invadiu jehol.

       A invasão revelou-se imparável - desde Yingkou e das montanhas de Shanhai até Jehol e Chengte. Ao fim de pouco tempo, o Japão divulgava uma declaração unilateral, segundo a qual Jehol se encontrava agora "sob a jurisdição de Manchucuo". Tal declaração caiu que nem uma bomba. O Japão bombardeava a China em todas as frentes.

       Inúmeras pessoas perderam a vida enquanto Jehol cedia às investidas inimigas. Yoshiko era a Comandante Chin Pi-hui, a heroína da sua própria história de encantar patrocinada pelo exército de Kwantung, contribuindo para a conquista de Jehol com os seus cinco mil soldados do Exército de Pacificação e mais de cem mil ienes japoneses. Embora a província de Jehol estivesse nas mãos dos japoneses, a verdade é que a situação só viria a estabilizar ao fim de alguns anos. O comando japonês não tinha ilusões - não havia um único chinês vivo que desejasse genuinamente a amizade e um relacionamento pacífico com o inimigo que invadira a sua terra. A "amizade entre o Japão e a Manchúria" não passava de um slogan concebido para esconder a verdade a ambas as partes.

       Enquanto as províncias da China caíam, uma a uma, nas mãos dos japoneses, a vaga de sentimentos anti-japoneses não parava de crescer. Alguns dos mais ardentes adversários da ocupação japonesa eram chineses jovens e robustos e os japoneses descobriram uma forma horrivelmente engenhosa de os combater - injectavam-nos à força com morfina. Uma vez viciados, podiam ser ignorados - eram inofensivos. Jovens orgulhosos e saudáveis eram transformados em vagabundos apáticos. Não restava ninguém para combater.

       Yoshiko Kawashima não se preocupava minimamente com o facto de os melhores homens da China estarem mortos ou a caminho da morte. Estava demasiado ocupada a brincar aos soldados com o seu Exército de Pacificação, que não passava de um bando da pior escumalha. Não era, sob nenhum aspecto, um exército regular - aqueles homens haviam sido recrutados sem a menor atenção às suas qualificações. O fantasioso título de comandante-chefe atribuído a Yoshiko Kawashima não passava disso mesmo - uma fantasia.

       Yoshiko percorreu por várias vezes a província de Jehol quando esta não se encontrava ainda inteiramente pacificada. A sua missão consistia em tentar convencer os insurrectos a render-se, embora, pelo meio, fizesse muitos discursos aos soldados, satisfazendo assim as suas inclinações teatrais. Do que mais gostava na vida militar era de subir a uma tribuna e declamar uma infinidade de frases bombásticas para os seus soldados. Estes escutavam-na enfeitiçados, num silêncio enlevado e respeitoso.

       - Jehol pertence de facto à Manchúria! - exclamou ela apaixonadamente, num desses discursos. - Deve por isso unir-se à pátria, Manchucuo! Enquanto estou aqui a discursar, os nossos soldados combatem na frente. E por que estão eles na frente? Por gostarem da guerra? Por terem fome de conquistas? Não! Eles estão na frente, prontos para combater, e, se preciso for, prontos para morrer, por causa do povo de Manchucuo e dos seus irmãos chineses, oprimidos pelos tiranos! Esse pobre povo tem sido maltratado e ultrajado por dirigentes indignos, mas nós daremos ao povo chinês o sentimento de que pertence a uma pátria, dar-lhe-emos um lar, um paraíso na terra! Nada no mundo dará mais felicidade ao vosso comandante do que ver o povo chinês feliz e próspero!

       Os soldados desataram a aplaudir. Yoshiko prosseguiu:

       - Vocês são os meus soldados, e os meus soldados, eu trago-os sempre no coração! Eu sei que o respeito é mútuo! Deposito em todos vocês, os meus guerreiros!, grandes esperanças, e tenho fé...

       Um tiro calou-a imediatamente. Havia um atirador furtivo entre os soldados.

       Uma voz gritou: - Traidor!

       Yoshiko estava seriamente ferida; a bala atravessara o ombro esquerdo. A sua indignação tornava a dor ainda mais violenta - o tiro fora disparado por um dos seus queridos soldados. Esse duplo choque era demasiado forte para ela.

       Com grande esforço, conseguiu permanecer de pé e não perder a consciência.

       - Prendam-no! - berrou.

       Os seus lacaios mergulharam na multidão, procurando o homem que tentara assassiná-la. Quem poderia ter sido? Todos os homens presentes eram automaticamente suspeitos - e todos foram detidos para interrogatório.

       Os soldados de Yoshiko constituíam, de facto, uma assembleia particularmente heterogénea. Havia entre eles gente de toda a espécie - pequenos marginais, espiões, bandidos, especuladores, revolucionários. Qualquer um deles podia ter disparado.

       Yoshiko lutava com todas as suas forças, mas, incapaz de suportar a dor por mais tempo, desmaiou. Uma mancha de um vermelho brilhante espalhava-se pelo seu uniforme.

       O paraíso na terra...!

       Como podia ela prometer o paraíso na terra quando nem sequer conseguia controlar uns insignificantes cinco mil homens?

       Yoshiko jazia na cama, febril de dor e de raiva. Há trinta horas que suportava aquela agonia. Logo que passava o efeito das drogas, a dor parecia ainda mais violenta. Um fogo parecia consumir-lhe o lado esquerdo do corpo e estava constantemente encharcada em suor. Era como se estivesse presa com arame farpado e as farpas se cravassem na sua carne de cada vez que respirava, rasgando-a até aos ossos.

       Vendo que a dor era insuportável, o médico deu-lhe mais uma injecção de morfina.

       Muito mais tarde, Yoshiko abriu um olho exausto para a vaga silhueta de um homem. Era o ajudante-de-campo de Shunkichi Uno. Bom, pensou Yoshiko, afinal Uno sempre se preocupava com ela.

       Tentou soerguer-se, mas as suas pernas pareciam gelatina. Teve a sensação de que, ao mover-se, as suas articulações, despidas de carne, roçavam umas nas outras. Só podia ser um produto da sua imaginação, pensou.

       - Comandante Chin! - saudou o militar.

       Yoshiko sentiu uma vaga mas reconfortante consciência de uma presença masculina.

       - O Sr. Uno mandou-me ver como tem passado.

       Yoshiko conseguiu esboçar um sorriso enquanto procurava recuperar

- Ora... o caso não é assim tão sério... - disse ela.

       O ajudante-de-campo de Shunkichi Uno tirou do bolso uma caixinha forrada com veludo, abriu-a e mostrou-lhe o conteúdo: um colar invulgarmente belo. Tinha a forma de uma fénix e nele haviam sido incrustados cerca de mil diamantes de todas as formas e tamanhos. A fénix parecia abrir as asas para voar. Era uma peça requintadíssima, de um valor inestimável.

       Yoshiko afagou o colar com uma expressão de profundo prazer e comoção. Afinal sempre havia um prémio para o seu sofrimento...!

       O militar continuou a falar, transmitindo mecanicamente a mensagem do seu superior.

       - O Sr. Uno faz votos para que consiga descansar, a fim de que possa recuperar inteiramente do ferimento. Não deve preocupar-se com o seu trabalho, outros poderão encarregar-se dele. Neste momento, o mais importante para si é descansar. Por favor, não se preocupe. As suas funções estão em boas mãos e pode ter a certeza de que tudo correrá pelo melhor na sua ausência.

       O homem falava num tom muito cortês, como se estivesse unicamente preocupado com o bem-estar dela. Mas era demasiado cortês. Demasiado. Enquanto escutava, a expressão de Yoshiko alterou-se gradualmente, de uma forma extremamente subtil. O sorriso nunca abandonou o seu rosto, pois Yoshiko era especialista em ocultar os seus sentimentos. No entanto, o seu rosto ganhou uma palidez extrema. As implicações da mensagem de Uno não podiam ser mais claras. Aquilo era o prelúdio de um afastamento total dos centros de poder. Shunkichi Uno achava que ela era um fardo demasiado pesado - era isso, não era? Decidira que ela já não era útil, não é verdade? Depois de os ter ajudado a fundar Manchucuo, fazendo propaganda, subornando este e aquele, pressionando os políticos, espiando, submetendo a populaça, era assim que mostravam a sua gratidão? Não estavam dispostos a perdoar-lhe sequer o mínimo deslize? Para eles, teria sido muito mais conveniente que a bala a tivesse matado. Mas ela estava viva.

       Ela era uma aristocrata, uma princesa, um membro da família imperial Ching, alguém que combatia corajosamente pela sua causa comum. A fundação de Manchucuo era fruto do seu trabalho; e agora que Manchucuo estava ganha, iam votá-la ao ostracismo? Os seus sonhos de grandeza... iam aniquilá-los?

       Não podia acreditar que a vida fosse tão cruel; porém, mesmo que fosse, não se deixaria intimidar. Lutaria até à morte. Tinham-na usado e agora queriam deitá-la fora como se fosse lixo? Não, não o permitiria!

       O seu rosto sorridente transbordava ainda de excitação.

       - Por favor, "agradeça" ao Papá por mim!

       O assistente de Uno retirou-se.

       Yoshiko apreciou a fénix-um objecto apenas, frio como gelo. Não mais que um monte de terra e rochas, pensou. As coisas - incluindo os diamantes -

só tinham o valor que as pessoas lhe davam. E ela ainda valia alguma coisa, pensou, revoltada.

       As sombras da noite foram-se adensando lentamente, destronando a brancura imaculada do quarto de hospital. Havia algo de solitário e vazio, e um pouco melancólico, naquela imensidão de branco; contudo, ao ver que as sombras consumiam inexoravelmente a brancura das paredes, Yoshiko rompeu num choro incontrolável. Não, não era justo! E tudo por culpa daquele atirador furtivo! Ah, o ódio que lhe tinha!

       A vida era um jogo cruel. Pois que fosse. Jogaria o jogo da vida. E venceria.

       Quando a árvore cai, os macacos fogem - diz um velho ditado. E se se cortar a cabeça, o resto do corpo morre com ela. Yoshiko queria ir ao fundo da conspiração de que fora vítima - queria o cabecilha.

       A sua ferida não estava ainda curada. Precisava de injecções diárias de morfina para suportar a dor, mas a sua sede de vingança dava-lhe forças. Todos os dias se deslocava à húmida prisão subterrânea para interrogar, com os olhos faiscando de ódio, com os maxilares cerrados, as novas levas de suspeitos. A maior parte daqueles homens servia sob as suas ordens no Exército de Pacificação. Um a um, todos foram chamados e interrogados. De quando em quando, chegavam-lhe aos ouvidos horrendos gritos e gemidos de agonia, em tudo iguais aos berros dos danados sofrendo os tormentos do inferno. Todos os prisioneiros eram culpados até que a sua inocência fosse provada, mas aqueles que os carcereiros mais odiavam, aqueles que preferiam a morte à sujeição, eram os membros da resistência anti-japonesa. Os seus captores tinham concebido muitos e diversos processos para combater a sua obstinação.

       Usavam sovelas e agulhas para transformar os prisioneiros em pouco mais do que animais num matadouro. Se a vítima lhes lançava um olhar de ódio, ou se os amaldiçoava, arrancavam-lhe os olhos, e o sangue que jorrava das órbitas vazias transformava-se numa máscara que cobria todo o rosto. Mas o sangue das vítimas era, para os algozes japoneses, não mais que um motivo de riso. Por vezes, pegavam em ferros em brasa e mergulhavam-nos por um instante em baldes cheios de água - os ferros faziam um tão sonoro assobio e levantavam tão grandes nuvens de fumo que as vítimas gelavam de terror. Depois, os torturadores marcavam com os ferros os peitos das vítimas; a carne cozida exalava um odor fétido. Aos prisioneiros mais difíceis, penduravam-nos das paredes pelos polegares e aí os deixavam até morrerem.

       Podiam também misturar uma grande quantidade de pimenta num jarro de água e despejar a solução assim obtida pela boca e pelo nariz do prisioneiro. O efeito da pimenta era tão violento que o rosto da vítima ficava desmesuradamente vermelho e inchado e o sangue ressumava da boca e dos ouvidos. Havia um outro tipo de tortura que agradava particularmente aos seviciadores: despejavam água pela garganta da vítima até que a pele da barriga ficava tão esticada como a pele de um tambor e o estômago inchava como um balão enorme; e quando já não conseguiam despejar mais água, calcavam com os pés a barriga da vítima e a água jorrava de todos os orifícios - o prisioneiro tinha morte instantânea.

       Havia outras torturas que nem mesmo o mais duro dos prisioneiros conseguiria suportar. A alguns deles, os algozes deitavam-nos de costas, com o torso firmemente amarrado a um banco, e os pés a outro; sempre que o prisioneiro se recusava a responder, colocavam-lhe um tijolo em cima dos joelhos. E continuavam a pôr tijolos até que as articulações dos joelhos vergavam sob o peso e estalavam com um ruído horrendo.

       Também açoitavam os prisioneiros com relhos, penduravam-nos dos tornozelos, torturavam-nos no cavalete, sangravam-nos, injectavam-nos com ar, enfiavam finas tiras de bambu sob as suas unhas, apontavam para os seus olhos luzes ofuscantes, ou retalhavam-nos lentamente, uma parte do corpo de cada vez, até que a morte vinha acabar com o sofrimento daqueles homens indefesos. Esse era o preço da resistência.

       A rotina diária dos algozes do Exército de Kwantung decorria há já algum tempo quando Yoshiko chegou certo dia à prisão, ansiosa por interrogar uma vez mais o homem que supostamente tentara matá-la, sequiosa de uma vingança brutal.

       Era um homem jovem, na casa dos vinte, com fartas sobrancelhas e uns olhos grandes e uns lábios grossos que lhe davam uma expressão algo idiota. Um exame mais atento revelaria que a tortura era a razão por que os seus lábios estavam tão grossos. Estava coberto de sangue, mas recusava-se a falar. Então, dois guardas agarraram-no e abriram-lhe a boca. Um terceiro guarda pegou numa lima e começou a limar os dentes do prisioneiro. Cada movimento da lima provocava um choque em todo o seu crânio e todo o seu corpo estremecia.

       Yoshiko entrou e bastou-lhe ver aquele homem para ficar cega de raiva. Agarrou-o brutalmente com uma mão, mas tal movimento foi demasiado rápido e violento para a sua ferida, que ainda não estava curada. Sentiu uma dor aguda e suores frios encharcaram-lhe o corpo.

       - Quem é que te mandou fazer aquilo? - perguntou ela, rispidamente.

       O prisioneiro não respondeu e tentou virar a cabeça, mas ela não lhe ia permitir isso.

       - Fala! Quantos homens há na tua organização?

       Os dentes do homem pendiam das gengivas, nadando num mar de sangue. Continuava a recusar-se a olhar para ela. Yoshiko abanou-o furiosamente.

       - Quem manda aqui sou eu, ouviste? Por isso não penses que não vou descobrir quem eles são! - berrou histericamente. - Todos os soldados do Exército de Pacificação serão interrogados, os cinco mil soldados, um a um!, até eu descobrir os outros! Se te recusares a falar, serás responsável pelo sangue de muitos inocentes! Amanhã...

       A berraria histérica da Comandante Chin foi interrompida por um enorme escarro ensanguentado. A mistura fétida e viscosa de sangue, saliva e bocados de dentes, atingiu-a em cheio na cara. Os traços daquele homem estavam irreconhecíveis, mas ele continuava a ser humano, e sabia que a morte estava próxima. Por isso, armando-se de coragem, atirou-lhe:

       - Prefiro morrer a falar! O povo da China odeia-a! Traidora! Puta! O homem quase não conseguia falar, mas ela ouvia claramente todas as suas palavras, toda aquela torrente de insultos. - Morrerás como um cão!

       Tremendo de fúria, as veias das têmporas latejando ao sabor da sua respiração arquejante, Yoshiko pegou num atiçador em brasa e, sem qualquer hesitação, enfiou-o na boca do homem e fê-lo girar freneticamente de um lado para o outro. O prisioneiro teve morte imediata.

       A violência do esforço fez com que a ferida de Yoshiko voltasse a abrir. Sangue começava a espalhar-se pela sua camisa. Como um animal ferido, a dor enlouquecia-a. Aquele homem ofendera-a, e se o deixasse escapar impune, perderia todo o seu poder e dignidade e mais não seria que uma criatura vazia, uma carapaça sem nada dentro.

       - Vais pagar-mas todas, maldito! - gritou ela enquanto sacava da sua arma. Desatou a disparar desvairadamente em todas as direcções, e as balas assobiavam pela prisão, estourando e crepitando como um fogo devastador. Inúmeros prisioneiros caíam mortos, atingidos por aquele fogo desenfreado.

       A arma estava agora vazia, mas Yoshiko continuava cheia de raiva.

       Há cerca de um mês que não dormia em condições. Com os nervos em franja, estava constantemente alerta para eventuais conspirações. À noite, deitada na cama e mais acordada do que nunca, os seus olhos fixavam o tecto. Ao mínimo ruído, sentava-se na cama e disparava contra a parede. Havia buracos de balas por todo o lado.

       Por fim, deixou a província de Jehol e regressou ao Japão para recuperar, embora tal regresso fosse para ela praticamente o mesmo que estar em prisão domiciliária.

       Entretanto, o exército japonês apertava a corda com que pretendia estrangular a China. A partir da sua base na Manchúria, atravessou o norte da China, ocupando uma cidade de cada vez e estabelecendo áreas de quarentena racial onde a população submetida podia ser vigiada e controlada. A resistência contra o Japão era como uma doença contagiosa - a sua propagação tinha de ser detida.

       Por todo o lado havia milícias, polícia militar, espiões e traidores. Prendiam e assassinavam a seu bel-prazer. Durante este reinado do terror, muitas pessoas famosas foram raptadas; quanto ao cidadão comum, era simplesmente reduzido ao silêncio. O governo nacionalista não era capaz de se opor ao inimigo japonês e, em consequência disso, muitos homens eram presos e torturados até à morte. Mulheres eram violadas nas cidades e nos campos, muitas vezes por bandos inteiros. Mais tarde, encontravam-nas com as roupas esfarrapadas, os seios amputados, as barrigas abertas e as vaginas cheias de papel de jornal ou rasgadas por paus ou varas de bambu.

       Jovens patriotas, muitos deles estudantes, marchavam sob uma chuva impiedosa, levando o seu protesto às ruas e avenidas da China.

       -Abaixo o militarismo japonês!

       - Fora com os invasores!

       - Abaixo o Japão! Abaixo Manchucuo!

       -Boicote aos artigos japoneses!

       -Morte aos espiões e traidores!

       - Lutemos contra a política de não-resistência!

       - União do povo da China!

       - Liberdade para os nossos concidadãos! Liberdade para a China!

       - Dívidas de sangue têm de ser pagas com sangue!

       Os manifestantes eram como um mar poderoso, encapelado e revolto. Eram a alma indomável da nação chinesa. Nenhuma chuva, por muito torrencial que fosse, conseguiria extinguir o fogo que ardia nos corações daquela gente.

       Unidos em espírito, suportavam a vergonha da ocupação e da opressão. Muitos idealistas temerários perderam os seus empregos e deixaram lar e família para participarem na resistência. Enquanto não tivessem um país, não poderiam realmente dizer que tivessem um lar. E que era uma vida, comparada com o destino de uma nação inteira? Aqueles homens e mulheres estavam prontos a sacrificar as suas vidas sem qualquer hesitação.

       No meio da multidão de manifestantes, com a cara orgulhosamente limpa de maquilhagem, estava Yun Kai. No palco, Yun Kai era o centro de todas as atenções, dominando tudo à sua volta; nas ruas, arrastado por aquela corrente poderosa, ele era apenas um dos muitos patriotas leais com que a China contava. Mas Yun Kai não lamentava a mudança.

       Certa noite, num canto recôndito da tenda da companhia de ópera, uma dúzia de vagas silhuetas concentravam-se a coberto da escuridão. Alguém riscara raivosamente um enorme X sobre um retrato oficial de Yoshiko Kawashima e Shunkichi Uno.

       A um canto via-se um mapa. Era a planta de um restaurante chamado Tung-hsing Lou.

Ao fim de três anos no Japão, Yoshiko regressou à China. Desta feita, a cidade de Tientsin seria a base para as suas operações. Situada não muito longe de Pequim, Tientsin era um importante centro militar e diplomático. Era também uma cidade muito próspera e, na concessão japonesa, na Estrada Matsushima, havia um imponente e esplêndido edifício que albergava um elegante restaurante chinês: o Tung-hsing Lou.

       Shunkichi Uno providenciara para que Yoshiko pudesse dispor daquele local. No entanto, era também ali que se reuniam os diversos soldados - regulares, irregulares, guarda-costas, algozes - de um Exército de Pacificação praticamente defunto. Esse pseudo-exército estava na prática desmantelado, mas Yoshiko agarrava-se obstinadamente ao título de "comandante-chefe" um título agora inteiramente vazio, mas que era tudo o que lhe restava. Os seus subordinados não podiam ir para casa porque os sentimentos anti-japoneses eram agora mais virulentos do que nunca; daí que procurassem refúgio e umas quantas tigelas de arroz no "quartel-general" de Yoshiko. Não tinham outro sítio para onde ir.

       Naquele dia, reinava uma atmosfera festiva no restaurante - em absoluto contraste com o resto da China, onde o sangue corria pelas ruas. Metade do país estava já nas mãos do inimigo e o Japão preparava-se para desferir o golpe fatal.

       Entretanto, Pu-yi abandonou temporariamente a glória fictícia da sua corte de Manchucuo e deslocou-se ao Japão, partindo de Dairen num navio japonês. Em Tóquio, fez uma visita de cortesia ao imperador Hirohito e juntos passaram revista às tropas e participaram em cerimónias religiosas no templo de Meiji. Inchado de um falso orgulho, o "imperador" Pu-yi, logo que regressou a Hsinching, promulgou um decreto denominado "Édito do Imperador Regressado ao Seu Obediente Povo", cujo único objectivo era adular os japoneses. Todos os habitantes de Manchucuo - velhos e novos, ricos e pobres - eram convocados para comícios a realizar em todo o género de locais públicos: escolas, quartéis, edifícios governamentais. Nessas reuniões, todos teriam de memorizar o texto do decreto em sinal de boa-vontade e respeito para com o Japão.

       Por todo o nordeste, Pu-yi erigiu templos xintoístas, nos quais colocou relíquias como as que trouxera do Japão - uma espada, um espelho de bronze, um gancho de jade. Os serviços religiosos só poderiam decorrer nas horas convencionadas para tal; além disso, quando uma pessoa passava diante de um desses templos, teria de se curvar pelo menos noventa vezes.

       O édito só aparentemente era do imperador - o verdadeiro autor deste decreto era um oficial do Estado-Maior do Exército de Kwantung, Yasunori Yoshioka, oficialmente um conselheiro imperial, mas, na realidade, o titeriteiro que comandava a marioneta Pu-yi.

       - O Japão é como o pai de Sua Majestade - dizia Yoshioka certa noite a Pu-yi. Falava-lhe com uma voz lenta e um sorriso falso colado ao rosto. - E o Exército de Kwantung é o representante do Japão em Manchucuo. Por isso, o comandante do Exército de Kwantung é também o pai de Sua Majestade, não é verdade?

       As tropas japonesas avançavam por Manchucuo e pelo norte da China a caminho dos seus objectivos finais: Pequim, Xangai e Nanquim. O estatuto do imperador-fantoche de Manchucuo era cada vez mais limitado. A certa altura, de facto, Pu-yi passou a ser uma mera "criança" na arena política. Foram-lhe mesmo confiscadas as armas pessoais.

       O irmão mais novo de Pu-yi Pu-chieh, submeteu-se às ordens dos militares e casou com Hiro Saga, a filha de um nobre japonês, Masaru Saga, em Tóquio. Os japoneses promulgaram então um decreto baseado nas leis da sucessão imperial:

       Se o imperador morrer, suceder-lhe-á o seu filho. Se morrer sem filhos, suceder-lhe-á o neto. Se não houver filhos ou netos vivos, suceder-lhe-á o seu irmão mais novo. Contudo, se o seu irmão mais novo não lhe sobreviver, suceder-lhe-á o filho do irmão mais novo.

       O Exército de Kwantung queria um imperador com sangue japonês, mas caso Pu-yi tivesse um filho, este seria enviado para o Japão a fim de ser criado e treinado por militares. Estes factos eram ocultados a Pu-yi. Os rostos sorridentes dos conselheiros imperiais japoneses escondiam-lhe toda a verdade sobre as intenções do Japão.

       Tung hsing-Lou era efectivamente um restaurante magnífico e, como um rosto exibindo um sorriso dúplice, não deixou de dar as boas-vindas à comandante-fantoche Chin Pi-hui. Ninguém podia acusar o Exército de Kwantung de tratar mal a comandante.

       O esplêndido restaurante parecia uma festa de flores: por todo o lado se viam grinaldas, ramalhetes, cestos transbordando de flores. Na porta de entrada, uma enorme faixa vermelha anunciava FECHADO PARA O BANQUETE DE ANIVERSARIO DO PROPRIETÁRIO. Para além do salão principal, havia quartos privados no primeiro piso e esplanadas no jardim. Naquele dia, o salão principal estava preparado para receber uma grande festa de aniversário.

       Yoshiko apareceu para pôr um toque final nos preparativos. Continuava a gostar de se vestir com roupas de homem. Trazia um traje cinzento de seda e linho, bordado com nuvens e com o caracter correspondente a "Longa Vida". Por cima, vestia uma túnica. O leque de marfim completava um retrato a preto e branco, realçado pelo negro intenso dos seus olhos e sobrancelhas e pelo carmim do baton. A maquilhagem era abertamente teatral, traindo até algum mau gosto; mas mesmo com uma maquilhagem exagerada, Yoshiko sentia que faltava qualquer coisa - algo de indefinível.

       Antes que chegasse o primeiro dos convidados, a secretária de Yoshiko, Chizuko, recebeu uma intrigante encomenda. Retirou o conteúdo da caixa. Um pano envolvia uma coisa pesada. Tirou o pano e constatou que se tratava de uma placa de prata, muito brilhante, com a seguinte inscrição: FELIZ ANIVERSÁRIO, YOSHIKO KAWASHIMA, É O DESEJO DO COMANDANTE SHUNKICHI UNO, DA FORÇA EXPEDICIONÁRIA DO NORTE DA CHINA.

- Menina Yoshiko - chamou Chizuko -, acaba de chegar a placa de...

- Gravaram-na como eu mandei?

- Sim, menina. A inscrição diz que é um presente do Sr. Uno.

       - Óptimo. Põe-na no centro do salão principal, para que toda a gente a possa ver!

       Chizuko aquiesceu discretamente.

       - Quando o Sr. Uno chegar - lembrou-lhe Yoshiko -, informa-me imediatamente.

- Com certeza, menina Yoshiko.

       Yoshiko apreciou aquele "presente de aniversário" que ela própria encomendara dissimuladamente, sentindo-se particularmente satisfeita por ter tido tal ideia. Aquela placa de prata sublinhava, aos olhos de todos, a sua longa e íntima relação com um homem muito importante. Era um símbolo silencioso de poder e influência, uma prova de que ela, Yoshiko Kawashima, Comandante Chin Pi-hui, ainda tinha valor aos olhos de Shunkichi Uno. E quem é que tinha tempo para investigar o segredo da placa de prata?

       Yoshiko examinou atentamente a placa, ergueu a cabeça para apreciar melhor, recuou um pouco para ver o efeito, e desviou-a uma coisa de nada. Tinha de estar no sítio certo, tinha de impressionar. Semicerrou os olhos, sentindo a excitação de uma criança que está a tramar alguma maldade. Porém, ao mesmo tempo, sentia-se magoada. Mas quem poderia adivinhar o que ela realmente sentia? Quem poderia dizer quem ela era realmente? Parecia um homem de vinte anos, mas, de facto, era uma mulher que já tinha passado os trinta. E embora aquela fosse a sua festa de aniversário, a verdade é que não queria contar os anos. Quantos anos felizes lhe restavam? Teriam já passado, os melhores anos da sua vida? Voltariam alguma vez aqueles dias de activismo patriótico? Tinha de enfrentar a verdade - estava a ficar cada vez mais velha. Felizmente, a sua fascinante beleza ainda não a abandonara, embora pudesse aperceber-se de que começava a fugir-lhe.

       As pessoas começavam a saudá-la:

       - Comandante Chin!

       - Menina Yoshiko!

       -Jóia do Oriente!

       - Princesa Hsien-tzu!

       - Décima Quarta Princesa!

       Um a um, os convidados iam chegando, diferentes convidados tratando-a por diferentes nomes. Estavam presentes o chefe do Departamento de Informação da junta de Governo do norte da China, o ministro da administração interna de Manchucuo, e um secretário do Ministério do Comércio e Indústria japonês. Havia também conselheiros das embaixadas japonesa e manchu, jornalistas, actores e actrizes japoneses, estrelas dos palcos chineses, administradores de bancos, directores de teatros, e oficiais do Exército Imperial japonês. Os homens tinham vestido os seus melhores trajes, as mulheres não podiam estar mais formais e elegantes. Os seus presentes haviam custado muito dinheiro - alguns deles eram mesmo apenas dinheiro, largas somas de dinheiro. Pelo menos superficialmente, todos prestavam homenagem a Yoshiko.

       No preciso momento em que se preparava para saudar mais um convidado, o velho Wang, um dos seus tradutores oficiais abeirou-se dela e apresentou-lhe um homem de meia-idade cujos olhos revelavam uma profunda tristeza.

       - Comandante Chin - disse o velho Wang, humildemente. - Apresento-lhe o Sr. Chu. Ele ficaria extremamente grato se lhe concedesse um momento.

       - Foi Chu que disse? - retorquiu ela, de sobrolho franzido. - É por causa daquele caso do homem da loja de sedas, não é? Bom, creio que neste momento não tenho tempo para isso. Noutra altura...

       - Por favor Comandante Chin - interrompeu Chu. - Ajude-nos, por favor. O meu irmão está preso, provavelmente estão a torturá-lo neste preciso momento. O meu irmão já não é nenhum jovem. Não resistirá por muito tempo.

       - O homem confessou alguma coisa? - perguntou Yoshiko ao velho Wang.

       - Tentaram arrancar-lhe uma confissão, mas ele não lhes disse nada de útil.

       Apesar de ser um homem orgulhoso, Chu não conseguiu reter as lágrimas.

       - Eles estão enganados, Comandante Chin. As acusações são falsas! Por favor, Comandante, faça qualquer coisa pelo meu irmão!

       - Se o seu irmão for um guerrilheiro anti-japonês, nada poderei fazer retorquiu ela, impaciente.

       - Por favor, menina, não troce de nós. Nós somos uma velha família de Pequim e nunca fizemos outra coisa senão vender sedas. O meu irmão tem mais de cinquenta anos. O coitado não tem forças para ser soldado! Não passamos de vulgares cidadãos.

       Desde que o irmão de Chu fora preso, a família não se poupara a esforços para obter a sua libertação. Finalmente, através do velho Wang, tinham tido acesso a Yoshiko. Estavam tão desesperados que agarrariam toda e qualquer oportunidade, tal como náufragos agarrando-se a meras lascas de madeira para não se afogarem. A Comandante Chin, pensavam eles, era a sua salvação, era como que uma jangada gigantesca. A realidade, contudo, era bem diferente: Yoshiko tinha muito menos poder e influência do que se pensava. Chu tivera de "entrar pela porta de trás", como dizem os chineses, ou seja, tivera de usar os seus conhecimentos para se aproximar de Yoshiko - e ao longo desse processo, tivera de oferecer muitas e valiosas prendas e de subornar muita gente. Caso contrário, não teria pisado sequer a soleira da porta; ainda que, neste caso, "pisar a soleira da porta" fosse talvez uma expressão errada - de facto, Chu estava a pisar uma armadilha, mais do que a pisar a soleira de uma porta libertadora.

       - Hoje é o meu aniversário! - replicou Yoshiko, visivelmente irritada. - Tinha de me vir incomodar precisamente neste dia?

       - Por favor - rogou Chu, o rosto lavado em lágrimas. - Por favor, fale com os seus amigos do Exército Imperial. Nós podemos pagar vinte mil yuan'`. Por favor, Comandante Chin, ajude-nos!

       - Essa soma pode não chegar; mesmo assim, verei o que posso fazer. Mas não posso prometer nada.

       - Mas, Comandante, vinte mil é muito dinheiro...

       O velho Wang afastou-o de Yoshiko e explicou-lhe o que tinha de fazer: muito provavelmente, Chu teria de arranjar sessenta mil yuan para que o caso fosse definitivamente encerrado. Era uma maquia astronómica, mas era também um caso de vida ou de morte. O pobre Chu sentia-se dilacerado por ter de estar a regatear preços enquanto a vida do irmão estava por um fio.

       Yoshiko deixou-os a discutir o caso e encaminhou-se para o salão principal. Sabia que acabariam por chegar a acordo quanto ao preço - a "coisa" ficaria pelos trinta mil ou quarenta mil. Depois, poderia usar da sua influência para exercer alguma pressão sobre a polícia militar. Bastar-lhe-ia telefonar para um oficial subordinado facilmente intimidável - não havia necessidade de incomodar os chefes - e o prisioneiro seria libertado. Onde quer que houvesse chineses, haveria sempre "uma porta de trás", reflectiu Yoshiko.

       Os flashes das máquinas fotográficas não paravam de disparar. Yoshiko avançou por entre a multidão de admiradores como uma borboleta esvoaçando de arbusto em arbusto, circulando no meio dos seus distintos convidados, parando apenas o tempo suficiente para posar para as fotografias.

       Todos os convidados exibiam uma cortesia extrema; contudo, muitos eram os que escarneciam daquela mulher mal ela virava costas.

       Um oficial e um embaixador falavam do caso:

       - Chamam-lhe comandante, mas, tanto quanto sei, é tudo mentira!

       - Não admira... Uma mulher nunca conseguiria fazer algo de importante... !

 

       " Moeda chinesa criada em 1914 e abolida em 1949 (N. do T.).

 

       - Bom, apesar de tudo, ela conseguiu obter algumas informações surpreendentemente precisas e detalhadas. Sabia que o governo nacionalista de Chiang Kai-shek está disposto a assinar um cessar-fogo com o Japão, em troca da sua manutenção no poder? Os Nacionalistas estão mais preocupados com os Comunistas do que com os japoneses!

       - Receiam que os Comunistas se aproveitem do papel que desempenham na resistência para expandirem o seu domínio.

       - Enquanto os chineses se entregam a lutas intestinas, o Exército Imperial avançará com a maior das facilidades!

       - E a fonte de todas essas notícias foi aquele torrãozinho de açúcar?

       - Mas é que foi mesmo...! Não há dúvida: nós, os homens, somos todos iguais! - O homem riu-se. - No fundo, não passamos de uns devassos!

       - Mas diga-me uma coisa... Tem estado com ela?

       - Xiu...

       Nesse preciso momento, Yoshiko abeirou-se deles.

       - Sr. Sasaki - disse ela ao oficial, num tom de censura. - Que está o senhor a fazer na minha festa de aniversário com esse horrível farrapo espreitando do seu bolso? Será por acaso um amuleto para lhe dar sorte?

       O oficial pôs um ar solene.

       - Muitas mulheres trabalharam longa e duramente para fazer este lenço. No Japão, é costume darem-se estes lenços aos soldados quando vão para a guerra, com o desejo de que combatam bem e regressem vitoriosos. Nunca visto o meu uniforme sem o meter no bolso. Não conhecia este costume, menina Yoshiko?

       - Eu também sou um soldado, Sr. Sasaki! Onde está o meu lencinho? Sorriu com um ar coquete e acrescentou: - Nós, as mulheres, depositamos todas as nossas esperanças nos homens. Não sei se somos extremamente inteligentes ou extremamente estúpidas!

       Yoshiko manteve o tom irónico da conversa, mas, enquanto falava, os seus olhos não paravam de esquadrinhar o salão, numa busca constante: o rosto que procurava não estava ali. Seria possível que Shunkichi Uno - o homem a quem chamava ainda "Papá", numa patética tentativa para continuar a gozar das suas boas graças - não se dignasse sequer oferecer-lhe a minúscula migalha da sua presença numa festa de anos?

       O banquete estava a começar, com uma primeira série de aperitivos sortidos que já se encontravam nas mesas redondas que enchiam o salão. Criados enchiam de brandy da melhor qualidade os copos de cristal que em princípio se destinariam ao vinho. Do seu lugar na mesa principal, Yoshiko dirigiu-se aos convidados:

       - Sirvam-se, por favor! Mas deixem algum espaço para os outros pratos...! Vamos proporcionar-lhes uma festa maravilhosa. Sabem, as pessoas dizem que o melhor prato de Tientsin são os pastéis de carne de Kou-pu-li, mas a verdade é que nunca os provei. De facto, a cozinha da China é extraordinária. É o caso, por exemplo, do cozido da Mongólia...

       Olhou furtivamente para o relógio. Quando ergueu os olhos, viu o assistente de Uno encaminhando-se para ela.

       - Menina Yoshiko - disse ele formalmente. - O Sr. Uno teve assuntos a tratar e pediu-me que lhe transmitisse as suas desculpas. Em nome dele, apresento-lhe os seus melhores votos de feliz aniversário.

       O quê? Aquele homem outra vez? Não era possível!, pensou Yoshiko. Uma vez mais, Uno mandava um lacaio no seu lugar. Seria possível que ela já não valesse nada de nada? Pois se ele nem sequer aparecia naquele dia que era tão importante para ela!

       Enquanto os criados se atarefavam para arranjar um lugar para o assistente de Uno, um clarão de raiva perpassou pelo rosto de Yoshiko. Dominou-se, porém, e continuou a sorrir.

       - Pois é, o Papá tem andado muito ocupado ultimamente... Só espero que, para o ano, não falte ao prometido!

       Os pratos principais começavam a ser servidos por vagas sucessivas de criados de uniforme. Havia iguarias de todo o tipo - caça, galinha, marisco, tudo da melhor qualidade. As mesas do banquete depressa ficaram submersas por tantos pratos - de tal modo que quase não se viam as toalhas. Enquanto os convidados se concentravam nas iguarias, Yoshiko pôde libertar-se um pouco do constrangimento que sentia. O salão estava cheio de convidados, mas Yoshiko não enxergava um único amigo. Estava cercada de bajuladores por todos os lados - tão simples como isso. A política era um negócio traiçoeiro.

       Vivia num mundo de fantasia, pois enfrentava todas as crises iludindo-se um pouco mais - era a única maneira de sobreviver. A verdade destruí-la-ia, mas estava a ficar cansada de mentir a si mesma. Dez longos anos a viver assim, na fantasia e na mentira - dez anos que tinham passado num abrir e fechar de olhos...! Não podia desistir agora! Tinha de voltar à arena e defender o seu título. Mas estava exausta.

       A persistente dor causada pelo velho ferimento regressava agora, ameaçando destruir a alegria da festa. Um estranho esgar apoderou-se lentamente do seu rosto, enquanto, indiferente a tudo, estendeu o braço para uma gaveta do aparador que estava atrás dela e retirou uma seringa e um frasquinho com um pó branco. Com um olho nos convidados, ergueu com destreza a bainha da sua longa túnica branca, arregaçou uma das pernas das calças e injectou a agulha na barriga da perna, sem o menor vestígio de embaraço.

       Fez-se silêncio no salão - os convidados fitavam-na, paralisados, sem fala. Yoshiko fechou os olhos e soltou um longo suspiro de alívio. Quando abriu os olhos, verificou que os convidados continuavam embasbacados a olhar para ela. Arrumou a seringa e a agulha. Depois, virou-se para os convidados e, com a cabeça ligeiramente inclinada, explicou-lhes:

       - Por vezes, o meu velho ferimento incomoda-me e preciso de uma injecção. Depois da injecção, não posso beber água, mas o vinho não me faz mal! Brindemos! Quero ver toda a gente a beber!

       No preciso momento em que Yoshiko ergueu o seu copo de brandy para fazer o brinde, o fogo das armas explodiu furiosamente. O copo dela ficou em estilhaços e salpicos cor-de-âmbar do brandy mancharam o punho branco da sua manga.

       Inopinadamente, o banquete era alvo de um ataque de membros da resistência que se tinham infiltrado na festa, disfarçados de criados e convidados. As balas voavam por todo o lado e um fumo acre enchia o salão.

       A crise devolveu a Yoshiko a sobriedade e a lucidez - era como se tivesse levado com um balde de gelo na cara. Sem qualquer hesitação, refugiou-se debaixo da mesa. Os guerrilheiros trataram de alvejar primeiro o assistente de Uno, um dos oficiais japoneses que estavam na sua lista de homens a abater; mas os seus principais alvos eram Shunkichi Uno e Yoshiko Kawashima. O que ninguém sabia era que Uno descobrira a conspiração e decidira ficar em casa.

       Ao avançarem em busca de Yoshiko, os guerrilheiros tiveram de se confrontar com as balas dela. Continuava a ser uma temível atiradora, mesmo quando disparava de um local pouco vantajoso, como era o caso, pois encontrava-se debaixo da mesa. Não podia estar mais furiosa - de um momento para o outro, a sua esplêndida festa transformara-se num campo de batalha. Pratos e tigelas manchados de sangue espalhavam-se por todo o lado, homens e mulheres que, momentos antes, bebiam e riam, jaziam agora mortos ou feridos.

       Yoshiko conseguiu atingir dois dos invasores, um dos quais na coxa. Ao cair desamparado no chão, o chapéu do homem deslizou, revelando um rosto... um rosto que ela conhecia bem. Yun Kai!

       Depois daquela noite na mansão de Yoshiko em Xangai, Yun Kai desaparecera. Deixara de cantar ópera - na sua mente, era como se a ópera tivesse ficado maculada, infectada. Abandonara uma carreira brilhante, e tudo por causa da sua obstinação. Devido à atitude de Yun Kai, Yoshiko acabara por dedicar um ódio muito particular às pessoas do teatro, e muitos foram os grandes actores que sofreram por isso. Estrelas como Ma Lien-liang, Cheng Yen-chiu, Hsin Yen-chiu e Pai Yu-shuang, foram alvo de chantagem e humilhadas. Mesmo assim, Yoshiko continuava a convidar para as suas festas todos os actores que desempenhavam o papel de Rei Macaco, mas Yun Kai nunca aparecia. Uma estrela domina o palco, mas, na vida real, o poder de Yoshiko era mais forte. Nunca lhe ocorria que também ela poderia acabar como uma personagem de uma peça que não escrevera. O homem que deixara nela uma marca indelével, o homem que ela mais desejava mas que não conseguia seduzir, juntara-se a um bando de criminosos para a assassinar!

       Quando se apercebeu de que aquele homem era Yun Kai, Yoshiko sentiu-se dilacerada, sem saber se havia de acabar com ele, pura e simplesmente. Bastava dar-lhe mais um tiro. A sua raiva dizia-lhe que puxasse o gatilho, mas havia algo, uma qualquer fraqueza interior, que a fazia hesitar. Por isso não conseguiu disparar. Ao ver aquele jovem corajoso e empenhado, não se pôde impedir de sentir algo que raiava a admiração. Era ainda tão jovem, tão inexperiente - pouco vivera ainda, mas estava disposto a morrer por aquilo em que acreditava. Depois dos seus êxitos no palco durante breves anos, virara costas a tudo para se tornar um combatente proscrito.

       Yoshiko e a polícia militar restauraram rapidamente a ordem. Embora seriamente ferido, o assistente de Uno conseguiu reunir uma equipa e foi para o exterior montar a guarda ao edifício. Uno escolhera cuidadosamente aquele homem, mas não tinha a menor intenção de deixar que Yoshiko descobrisse a sua traição.

       Alguns dos guerrilheiros tinham morrido. Os sobreviventes, cerca de vinte, foram presos. Yoshiko deixou-se ficar no meio dos destroços, assistindo à detenção de Yun Kai. Os polícias levaram-no por fim. A sua perna sangrava profusamente e ele era incapaz de andar. Os polícias tiveram de carregar com ele. No chão, deixou um rasto de sangue tão profuso que parecia ter sido pintado por um pincel gigantesco.

       Muito depois de todos terem abandonado o restaurante, Yoshiko continuava de olhos fixos naquele rasto de um vermelho brilhante que ia até à entrada principal do restaurante Tung-hsing Lou. Mesmo que ele fosse o cabecilha..., disse para si mesma. Tomada de um súbito impulso, levantou-se de um salto e correu para a rua.

       Já a noite ia avançada quando Yoshiko apareceu junto ao portão da Prisão Militar de Tientsin. O oficial de serviço saudou-a respeitosamente afinal, sempre continuava a ter algum peso, algum poder... O título de Comandante ainda era dela, e ela sabia como usá-lo.

       Pouco tempo depois, apareceram dois guardas arrastando Yun Kai, meio atordoado por várias horas de tortura. Yoshiko fez um sinal para os guardas e eles retiraram-se imediatamente, mas o oficial de serviço hesitou, visivelmente embaraçado.

       - Menina Yoshiko... - arriscou ele.

       - Quando uma coisa destas acontece no meu aniversário, na minha festa de aniversário - interrompeu ela, com um ar severo -, acho que devo ser eu a tomar conta do caso pessoalmente. É óbvio que sou eu o primeiro responsável pela condução satisfatória deste caso. Eu própria comunicarei o andamento do processo ao Sr. Shunkichi Uno.

       E deixou a prisão com um ar teatral, levando atrás de si o "seu" prisioneiro.

Yun Kai não sabia onde estava. Com grande esforço, conseguiu abrir os olhos apenas um nada e a escuridão em que mergulhara começou, muito lentamente, a esbater-se. Todo o seu corpo tremia enquanto recuperava a consciência, pois havia perdido muito sangue. Mesmo o mais ligeiro dos movimentos era horrivelmente doloroso e todas as suas veias pareciam estar cheias de chumbo. As pernas eram o que mais lhe pesava. Procurou movê-las. Gemeu de dor, um gemido quase inaudível.

       Olhou à sua volta, para aquele estranho e desconhecido cenário. Onde estava? A sua cabeça descansava numa almofada muito macia. A cama era alta, não era apenas um colchão no chão. Era um quarto de mulher, sumptuoso. Pairava no ar um perfume doce, agradável, e xilogravuras japonesas, representando gueixas, ornavam as paredes; as gueixas pareciam sorrir para ele e para mais três pessoas que estavam no quarto.

       A atmosfera ganhou mesmo um tom voluptuoso quando um músico cego, que estava a um canto, começou a tocar uma melodia indolente e sensual no seu samisen''. Sozinho no seu mundo de trevas, o músico parecia estar longe, muito longe, das outras pessoas que estavam no quarto, tanto mais que não fazia a menor ideia de quem se tratava. Depressa se embrenhou na melodia que fluía dos seus dedos.

       Yoshiko estava sentada ao pé da cama. Vestia uma camisa de dormir cor-de-pérola. Aquele branco um nada sujo era também a cor da ostra, esse misterioso animal que procura transformar à sua imagem - suavíssima na forma, muito clara na cor - os grãos de areia que se incrustam na sua carne. Graças a

 

Instrumento japonês semelhante a um banjo, dispondo de três cordas (N. do T.).

 

uma luta constante e determinada, a ostra acaba sempre por triunfar, envolvendo os irregulares grãos de areia com fluidos do seu próprio corpo, até que as areias se transformam em objectos perfeitamente redondos e luminosos e quase que brancos.

       O médico arrumou os seus instrumentos e abandonou o quarto, mas Yoshiko permaneceu sentada junto à cama, um copo de vinho na mão, os olhos fixos em Yun Kai. Passado um longo momento, sorveu um nada do vinho, mas logo os seus olhos voltaram a concentrar-se no homem que jazia na sua cama. Yoshiko aguardava, pacientemente. Ele era a sua testemunha, pensou. A presença de Yun Kai naquele quarto era uma prova clara da bondade de Yoshiko Kawashima. De facto, Yoshiko não olhara a riscos para o levar para sua casa.

       O samisen transmitia uma indescritível sensação de paz, enquanto Yoshiko saboreava serenamente as queixas de Yun Kai. O efeito da anestesia estava a passar e os gemidos de dor tornavam-se mais fortes. Yoshiko pegou na seringa, preparou a solução de morfina, abeirou-se da cama e, com uma suavidade extrema, ergueu a coxa que ela própria alvejara. Era uma coxa firme, musculada - ele tinha o corpo de um combatente. Capaz de golpes rápidos e violentos, o corpo de Yun Kai estava, naquele momento, tão lasso, tão abandonado, como o de um bebé dormindo no seu berço. Com gestos lentos e suaves, Yoshiko levantou a túnica, arregaçou a perna das calças e limpou a mancha de sangue. Com dedos experientes, premiu e sondou até encontrar a veia, uma serpente azul-escura prenhe de vida. Depois, penetrou a pele com a ponta da agulha e lentamente, muito lentamente, injectou a morfina no sangue dele. Ao sentir a injecção, Yun Kai retraiu-se um pouco. Porém, a pouco e pouco, todo o seu corpo se foi acalmando, levado por uma onda quente de pura felicidade, uma onda que o submergia como se fosse um sonho radiante de que nunca quereria acordar. Logo que esvaziou a seringa, Yoshiko massajou ternamente o furo quase invisível que a agulha fizera na pele. Yun Kai já não sentia nenhuma dor. Sentia apenas uma grande calma.

       Yun Kai suspirou um nada e os seus lábios esboçaram um sorriso. Estava tão indefeso como um bebé e, naquele estado de semiconsciência, faltavam-lhe as forças para admitir uma decepção - apercebia-se apenas de que a mulher que estava sentada diante dele era muito bonita. Livre de preocupações e inibições, não sentindo medo nem animosidade, esqueceu-se de quem era. Dominava-o uma sensação que se assemelhava a uma suave carícia da brisa primaveril, ou ao primeiro e hesitante sinal de degelo depois de ter caído muita neve. Era apenas a droga que o fazia sentir-se assim? Ou seria mais qualquer coisa? Enfeitiçado pela magia da beleza de Yoshiko, Yun Kai sentiu-se regressar ao seu primeiro encontro no cais.

       Estendeu o braço e Yoshiko agarrou-lhe na mão e colocou-a sobre o seu seio esquerdo. Apenas uma fina camada de seda separava a mão dele daquele tesouro cuidadosamente guardado.

       Naqueles breves momentos, Yoshiko teve a sensação de que o mundo havia sido completamente purificado - purificado para aquele novo começo. Um puro sentimento maternal cresceu dentro dela enquanto Yun Kai caía num sono profundo. Sentia-se como uma mãe recebendo de braços abertos um filho pródigo, sangue do seu sangue, carne da sua carne. Os traços duros do seu rosto suavizaram-se - era capaz de matar fosse quem fosse, mas a ele, a ele nunca conseguiria fazer-lhe mal nenhum. Mesmo que passasse o resto da vida na mais total solidão, teria sempre aquela noite - disse ela para si mesma, enquanto o fitava e lhe acariciava ternamente o belo rosto.

       - Ah-fu - sussurrou ela, meigamente.

       O velho mestre do samisen cantava com a sua voz trémula. A canção contava uma antiga história japonesa:

 

Desde que o mundo é mundo,

Sempre as coisas vivas estiveram em guerra.

As flores da Primavera convertem-se em pó,

Tal como os brancos ossos acabam em cinza.

Mas o rio continua a correr, sempre, sempre,

Enquanto folhas vermelhas rodopiam ao sabor do vento ....

 

       Aquela melodia, branda e reconfortante, transportava-a para muito longe dali. Subitamente, porém, o toque brutal do telefone fê-la acordar do seu sonho. Algo confusa de início, ouviu a pessoa no outro lado da linha falando com ela numa língua estrangeira - japonês. Era um dos lacaios de Uno. Yoshiko regressava ao mundo real.

       O Grou Feliz era o restaurante mais caro de Tientsin. Situado na concessão japonesa, era também o único que servia fugu*. À porta, um par de

 

       Trata-se de um de vários peixes que apresentam a capacidade de inchar. Por outro lado, o fugu contém um princípio tóxico semelhante ao curare. No Japão, é por vezes comido com intuitos suicidas. (N. do T. ).

 

lanternas grandes e redondas, imitando o peixe, anunciava esse facto. O fugu era uma iguaria japonesa que tinha de ser preparada com extremo cuidado por um cozinheiro experiente - um peixe que não fosse convenientemente limpo poderia ser fatal. O proprietário do Grou Azul tinha vinte e cinco anos de experiência na preparação do fugu e fora para a China com a ideia de abrir um negócio virado para a clientela japonesa. A época do fugu estava no auge. Alguns peixes especialmente grandes e gordos tinham acabado de chegar ao restaurante. Naquela noite, todo o espaço do restaurante fora reservado para uma festa privada. O anfitrião: Shunkichi Uno. Yoshiko fazia parte da lista dos convidados.

       O facto de ter sido convidada deixou Yoshiko positivamente surpreendida. Por que se dera ele ao trabalho de a contactar? Que queria ele dela? Seria por causa de Yun Kai? De uma coisa estava certa: teria de ter o máximo cuidado.

       Um dos pratos era obviamente fugu. O peixe era assado nas brasas até ficar meio-cozido. Depois, era escaldado com saké a ferver. Comido morno, tinha um sabor invulgar, ligeiramente parecido com o do peixe fumado. De uma coisa não havia dúvida: aquele sabor tão especial podia não agradar à primeira.

       Yoshiko ergueu o copo.

       - À tua, Papá!

       Uno beliscou-a na face. - Estás magrinha.

       - Se me visses mais vezes - disse ela, com um ar irritado -, não te darias conta de mudanças tão insignificantes.

       Uno pegou num bocado de peixe com os seus pauzinhos e levou-o à boca, olhando fixamente para ela enquanto mastigava.

       - Ouvi dizer que levaste um homem da resistência para a tua casa - disse ele inesperadamente.

       - Esse homem participou no ataque ao Tung-hsing Lou - retorquiu ela rapidamente. - Tive de interrogá-lo pessoalmente.

       Yoshiko encheu duas tacinhas de saké, primeiro para ele, depois para ela.

       - Onde é que ele está?

       Uno sabia perfeitamente onde se encontrava Yun Kai, mas a sua voz suave nada denunciava.

       - Quando é que começaste a preocupar-te com os meus métodos de investigação? - perguntou Yoshiko, rindo-se.

       - É óbvio que confio inteiramente em ti, Yoshiko - retorquiu Uno.

       Receando trair-se, Yoshiko afastou-se um pouco para servir mais saké.

- Bebe mais um pouco - ofereceu.

       - Acho que não vou beber mais. Preciso de manter a cabeça a funcionar. A bebida, quando é de mais, afecta a minha capacidade de raciocínio. E olha que tu também não devias beber demasiado...

       - Não te preocupes comigo! - atirou-lhe ela. - Eu conheço muito bem as diferenças entre o que são negócios e o que é pessoal!

       Um momento depois, virou-se para ele e disse-lhe, com um ar meio tímido: - Há imenso tempo que não bebia uma taça de saké contigo... Ainda sou a espada do samurai?

       Uno desatou a rir, mas não tocou no seu saké.

       -Ah, Yoshiko, as figuras que tu fazes...!

       O dono do restaurante trouxe nesse instante uma bandeja de porcelana com um belo vidrado multicolorido. Na bandeja, fora disposto um círculo de fugu finamente cortado, imitando um crisântemo em flor. Yoshiko provou. O peixe tinha um sabor particularmente delicado. Aproveitou para mudar de assunto.

       -Está muito bom... É tão fresco...!

       - No Japão, há um ditado que diz: As pessoas que comem fugu são idiotas; e as pessoas que não comem fugu também são idiotas - disse ele.

       Uno citara o ditado aparentemente sem qualquer segunda intenção. No entanto, Yoshiko sabia onde ele queria chegar. Mas o que é que ele sabia realmente?

       Uno prosseguiu.

       - O fugu é também um veneno que actua muito rapidamente e que é frequentemente fatal. As pessoas que comem fugu são estúpidas porque arriscam a morte a cada trincadela. Por outro lado, as pessoas que têm medo de experimentar também são estúpidas, porque perdem uma das melhores iguarias do mundo. Gostas de fugu, Yoshiko?

       - Gosto. Muito - retorquiu ela, calmamente. - Não sei se sabes, mas não é a primeira vez que como fugu. Aliás, se uma pessoa comer muito fugu, poderá criar resistências ao veneno e tornar-se imune a uma série de outros venenos. Quanto mais uma pessoa comer, mais tempo viverá!

       Uno desatou a rir, mas o seu riso parou tão abruptamente como começara. Examinava agora o rosto dela, na esperança de encontrar uma falha qualquer naquela máscara. Contudo, as suas rápidas mudanças de humor tinham posto Yoshiko de sobreaviso. Algo constrangida, Yoshiko deitou alguns legumes e queijo de soja no caldo pálido e quente do cozido que os dois partilhavam. Havia uma pressa exagerada nos seus movimentos. Tudo dançava agora naquela sopa que fervia em cachão. A chama estava muito forte.

- Está pronto - disse ela.

       Tirou alguns filetes de peixe cozido e colocou-os cuidadosamente no prato dele.

       - Há quem diga que as mulheres são como os gatos, ambos se sentem atraídos pelo cheiro do peixe - disse ele. - Os chineses dizem que quando um gato abocanha um peixe, é completamente impossível retirar-lho da boca.

       - Sabes muitas coisas sobre os chineses, não sabes, Papá?

       Yoshiko julgou detectar uma nota de ciúme na voz dele. Mas talvez não fosse ciúme. Talvez fosse apenas o seu desejo de que ele sentisse ciúme. Por vezes, tinha saudades do tempo em que fora propriedade pessoal daquele homem. Porém, Yoshiko compreendia-o demasiado bem. Só o desejo masculino de domínio poderia explicar aquele tom possessivo na voz dele. Apesar de pouco pensar nela agora, os rumores que corriam sobre os seus outros amantes não deixavam de o espicaçar - essas notícias eram como que uma espinha de peixe espetada na sua garganta, uma espinha que não saía nem descia. Tão pequena, uma coisa de nada, e, no entanto, tão irritante... e perigosa, também... Se fosse pelo caminho errado, poderia paralisá-lo.

       - Os ditados chineses são fascinantes - disse ele. - Mas esse é o problema dos chineses; mesmo depois de mortos, continuam a falar, a insultar-se uns aos outros... Enfim, um país de terceira...! Imagino que odeias a China, Yoshiko. Ou não?

       Ela fitou-o com desdém.

       - Pensava que estávamos a falar de gatos.

       - Hm? Sim, sim, é verdade. Eu disse que as mulheres eram como gatos. Gatos chineses.

       - Mas as gatas chinesas são as mais selvagens! - disse ela, pondo um ar feroz, com os caninos bem à vista e as garras espetadas. - Preferem comer os seus gatinhos a deixar que alguém lhes toque!

       - Deveras? Devem ter muita coragem, as gatas chinesas - disse ele, fingindo-se surpreendido; mas também havia uma subtil ameaça na sua voz, como se, uma vez mais, estivesse a testá-la.

       Ao ouvir aquele comentário, Yoshiko rompeu num riso incontrolável. Todo o seu corpo se agitava de pura hilaridade.

       - Papá... ! Achas que sou como as gatas chinesas? - perguntou ela, com um risinho. - Achas mesmo? - repetiu, e bebeu o seu saké de um só gole.

       Para que vivia ela? Qual o grande anseio da sua vida? Uma nação? E que nação? Como alguém que, num combate decisivo, fica no meio dos antagonistas, Yoshiko estava condenada a acabar de mãos vazias. Contudo, cair nas boas graças de uma das partes também não levava a lado nenhum. Por vezes, odiava de facto a China. A bandeira de Manchucuo, com as suas listras multicoloridas, pretendia simbolizar a harmonia entre as cinco raças que constituíam a nação - as raças chinesa, manchu, mongol, muçulmana e tibetana. Mas que era uma bandeira senão um bocado de pano - tão mole e moldável como qualquer outro pano? Pois se até para se erguer precisava de um mastro...! Ah, o Império Ching...! Que farsa...! O pretenso império não passava de uma colónia japonesa, igual a todas as outras colónias japonesas. Yoshiko fantasiava que, um dia, morreria no campo de batalha e iria para o céu, de onde poderia dominar tanto o Japão como Manchucuo. A realidade, porém, era muito mais sombria - ela mais não era do que um animal em cativeiro, um gato enjaulado.

       - Seria melhor se voltasses para casa e tratasses desse teu caso - disse-lhe por fim Uno, e a sua expressão não podia ser mais clara.

       Yoshiko enfrentou Yun Kai com sentimentos contraditórios, pois sabia que não poderia detê-lo por mais tempo.

       A breve convalescença deixara-o mais magro, mais ossudo; a testa e os ossos malares ressaltavam nas faces encovadas. Embora alguns dias de tratamento orientado por um bom médico tivessem chegado para lhe curar as feridas, o certo é que o seu rosto, sob uma barba escassa e muito negra, permanecia muito pálido. Era tão grave a sua expressão, e tão abatido o seu ar, que parecia que Yun Kai carregava sobre os seus jovens ombros todo o sofrimento de uma nação.

       Noutras circunstâncias, Yun Kai poderia ter seguido a sua carreira de actor; e, quando chegasse à meia idade, o famoso intérprete do Rei Macaco poderia abrir o seu próprio estúdio e dar aulas a jovens, transmitindo os segredos da sua arte a outra geração. A realidade, contudo, era bem diferente: bastava que Yoshiko tivesse alvejado um pouco mais acima e o antigo actor não seria agora mais do que um cadáver.

       - Quero ir-me embora - disse-lhe ele.

       Yoshiko sentou-se, profundamente irritada.

       - Alguém te deu autorização? - atirou-lhe.

       Yun Kai ficou perplexo. A velha expressão de dureza regressava agora ao rosto dela - ou seria apenas uma máscara que ela punha para dissimular os seus verdadeiros sentimentos?

       - Senta-te! - ordenou ela, com um ar teatral. - A tua organização encontra-se num estado lastimável; os japoneses prenderam inúmeros trabalhadores e estudantes universitários. No momento em que saíres por aquela porta, estarás a assinar a tua sentença de morte.

       - O que é que te leva a pensar que eu quereria esconder-me aqui? - perguntou Yun Kai. - Só um cobarde faria isso!

       Yoshiko olhou para ele com um sorriso escarninho. Decidida a mudar de método, assumiu o tom de voz que costumava usar nos interrogatórios.

       - Senta-te! - repetiu. - Não me apetece estar a falar contigo de pescoço espetado!

       Yun Kai deixou-se cair pesadamente numa cadeira.

       - Não tenho nada a dizer. Nunca trairei os meus concidadãos!

       - Para ser franca, tinha pensado dizer-te que era melhor desmantelares o teu pequeno grupo. Tu e os teus amigos estão a usar ovos para partir pedregulhos; vocês sobrestimam as vossas capacidades. - Por um momento, Yoshiko pareceu meditar no que ele lhe havia dito. - Além do mais, eu também sou tua concidadã, ou não?

       Em jeito de demonstração, encaminhou-se para o pequeno altar onde guardava as tábuas ancestrais e onde prestava homenagem aos seus ilustres antepassados. Fora ela própria que escrevera o seu nome de família, "Aisin-Gioro". Apontou para o altar, esperando que ele compreendesse.

       - Nunca, por um momento que fosse, me esqueci de que sou membro da família imperial Ching e de que sou chinesa! Nascemos da mesma raiz, tu e eu. Deveríamos estar juntos e não em campos opostos.

       O antigo actor tinha uma perspectiva completamente diversa.

       - Tu és uma assassina de chineses! - ripostou ele, furioso.

       Yoshiko baixou a cabeça, pensativa. Não suportaria por muito mais tempo aquele comportamento absolutamente intratável. Aqueles chineses recusavam-se a compreendê-la e por isso os odiava.

       - Em tempo de guerra, não se pode evitar que algum sangue corra - disse ela, num tom amargo. - Porém, a longo prazo, que importância é que isso tem? Pensa, pensa um pouco: o que é que a China tem? Dinheiro? Não! Armas modernas? Não! A única coisa que a China tem é gente a rodos! São tantos os chineses que nem sequer conseguem contá-los! E a maior parte não tem ambições nem capacidades. Na China, a vida é uma coisa barata. Que importância têm umas quantas mortes, sobretudo quando sabemos que essas mortes servirão para termos centenas, ou mesmo milhares, de anos de paz e tranquilidade? Se o resultado é esse, vale a pena que morram uns quantos. Essa é uma das lições da história.

       - Imaginas-te muito inteligente, não é? - disse ele, com ar de desprezo. - Se fosses tão inteligente como pensas, já terias percebido que os japoneses estão pura e simplesmente a usar-te para alcançarem os seus próprios objectivos.

       - Aqueles que acreditam nas aparências são muito capazes de achar isso replicou ela, com um ar trocista. - Mas espera pelo fim do jogo e então verás quem é que está a usar quem!

       Yun Kai era apenas um rapaz que passara toda a sua vida no mundo encantado do teatro - não seria de esperar que compreendesse as complexidades da política. Era um rapaz forte, mas simples - sabia apenas que os chineses andavam demasiado ocupados a matar-se uns aos outros para se darem conta de que um exército estrangeiro estava a ocupar a sua terra, e isso enchia-o de tristeza.

       - Há um velho ditado que diz: "Um ministro leal não pode servir dois amos." Eu nunca andei na escola, mas as peças em que participei ensinaram-me muito. Sei o que é a lealdade, a integridade e o respeito pelos mais velhos. A lealdade e a integridade dão coragem a um homem e são a marca inconfundível do verdadeiro patriotismo.

       - Sim senhor... um belo discurso...! Não há dúvida que és um bom estudante. Mas aquilo que dizes só me vem dar razão - os chineses, no seu íntimo, não passam de escravos, apesar de todas as suas conversas sobre "lealdade". Em milhares de anos, os chineses não mudaram rigorosamente nada sempre precisaram e continuam a precisar de ter um imperador para lhes dizer o que devem ou não devem fazer. Nos nossos dias, Nacionalistas e Comunistas querem ser esse imperador. Mas não tenhas ilusões... Comunistas e Nacionalistas são tudo o mesmo... Os seus dirigentes querem uma única coisa - querem ser imperadores, querem ser os salvadores, os iluminados que acabam com todos os males do mundo!

       - Não é isso que dizem os estudantes que eu conheço - retorquiu Yun Kai.

       - Estudantes? Que estudantes? - Yoshiko lançou-lhe um olhar rápido. - Os estudantes de que falas foram todos executados!

       Yun Kai sentiu-se como se tivesse levado um soco violento no estômago, mas ergueu-se de um salto.

       - Executados? - O seu rosto pálido encheu-se subitamente de cor. Aqueles jovens eram os seus camaradas de armas. Unidos pelo ódio ao inimigo comum, tinham marchado lado a lado, de mão na mão. Yun Kai teria sacrificado a sua vida sem qualquer hesitação, mas eles... era preciso que vivessem! Lágrimas incontroláveis deslizavam-lhe pelas faces.

       - Tu és o único que ainda está vivo - disse Yoshiko, tão fria como gelo.

       Livrara-o das garras da morte, mas ele não sentia por ela a menor gratidão.

       - Para quê matar estudantes universitários? Para quê? - soluçou ele, destroçado. - Aqueles rapazes tinham instrução, valiam muito mais do que alguém como eu. Se isso pudesse devolver-lhes a vida, faria com que me matasses imediatamente!

       Calou-se por um momento.

       - Juro que te hei-de combater até à morte! - atirou-lhe por fim.

       Yoshiko sentiu que tudo se desmoronava. Porém, a decepção depressa deu lugar a uma ira imparável. Todos os seus esforços para salvar aquele homem tinham sido em vão...!

       - Quando vejo um homem corajoso, não tenho dificuldade em reconhecê-lo - disse ela, incapaz de dissimular a sua raiva. - A coragem é uma virtude que aprecio muitíssimo, e foi precisamente por isso que te libertei. E apesar disso continuas a ser meu inimigo? Quem pensas tu que és, Yun Kai?

       O guerrilheiro encarou-a cheio de orgulho. Não havia na sua voz o menor traço de gratidão.

       - Terei portanto de concluir que te devo a minha vida. Pois podes tirar-ma! A minha vida está nas tuas mãos! - Yun Kai olhou-a nos olhos e disse-lhe com uma voz lenta e clara, como se estivesse a fazer um voto: - Enquanto o meu coração bater, serei teu inimigo!

       Depois, baixou a cabeça, deu meia-volta e encaminhou-se para a porta.

       - Alto! - gritou ela. Yoshiko pegara na pistola e apontava-a a Yun Kai.

       Yun Kai parou e virou-se. Os seus olhos fixaram-se na arma. Ela já o tinha alvejado uma vez - e ele sabia que Yoshiko não era avara no uso das balas. Hesitou por um momento, até que recuperou toda a sua coragem. Lançou um último olhar àquela mulher, virou-se e encaminhou-se para a porta, coxeando ainda um pouco da perna que fora ferida. Caminhava com a cabeça bem erguida; a arma apontava para o meio das suas costas. Um passo, dois passos, três passos. Não tinha medo de morrer.

       Ouviu-se um tiro.

       Yun Kai parou e cerrou os olhos. Parecia petrificado. Quando abriu de novo os olhos, deu-se conta de que a bala lhe tinha passado rente à orelha, chamuscando-lhe uma mecha de cabelo.

       Yoshiko podia tê-lo matado se quisesse, mas deixava-o partir.

       Yun Kai falou sem se virar para ela, num tom polido mas firme:

       - Obrigado, Comandante Chin!

       E avançou para a rua. Yun Kai ia-se embora - desta feita para sempre.

       Yoshiko não conseguia entender a sua súbita fraqueza. Fora a calma dele diante da morte que a abalara? Yun Kai agira como se lhe fosse indiferente viver ou morrer... Sim, talvez tivesse sido o respeito que lhe imobilizara a mão. Ocorreu-lhe que nunca conhecera criatura tão pura e tão simples como ele. Contudo... talvez houvesse algo mais naquele jovem... algo que estava para lá das aparências... No fim de contas, bastava-lhe comparar-se com ele: Yun Kai concretizara os seus objectivos, ao passo que ela... ela não tinha nada.

       Sentia-se vexada. Qual era o rumo da sua vida? O castelo de cartas que, durante anos, tentara erigir, tinha-se desmoronado com a maior facilidade. De repente, sentia-se velha, muito velha. Os olhos que outrora haviam cintilado de vitalidade pareciam ter perdido todo o fulgor, poisa violência da vida que levava não deixara de fazer estragos. Estava exausta. Depois de ter desperdiçado os melhores anos da sua vida, Hsien-tzu Aisin-Gioro mais não era do que um soldado ferido, com o corpo demasiado estropiado mesmo para uma última missão.

       Perdera Yun Kai...! Yun Kai saíra para sempre da sua vida...!

       Lentamente, afundou-se no chão. De repente, porém, como que possessa, desatou a disparar desvairadamente para as paredes do quarto, fazendo explodir os vidros, fazendo retinir os lustres de cristal. Até que uma das balas acertou no último candeeiro e a escuridão invadiu por completo o quarto. O chão estava juncado de destroços, os estilhaços de uma vida que se desfizera para todo o sempre. Diante dos seus olhos, surgiu uma visão aterradora do futuro: os homens fortes do militarismo japonês pegavam nas suas vassouras e varriam tudo, atirando com os estilhaços da sua alma para o monte de lixo da história.

       A invasão da China pelo Japão era agora oficial e o Exército de Kwantung já não precisava de mascarar as suas intenções - Yoshiko deixara de ser um trunfo. Já não precisavam dela para nada.

Manchucuo era apenas um degrau, um meio para alcançar um fim.

       Às vinte e três horas do dia 7 de Julho de 1937, a unidade do exército japonês instalada em Fengtai, uma cidade dos subúrbios de Pequim, deu início a exercícios nocturnos perto da ponte de Marco Polo. Alegando que um soldado desaparecera durante as manobras, os oficiais que comandavam aquela unidade pediram que os deixassem entrar numa cidade próxima, Wanping, a fim de procurarem o pretenso desaparecido e, sob esse pretexto, bombardearam a cidade. Os reforços não tardaram e, pouco tempo depois, Pequim estava já cercada de três lados; perante esta ofensiva maciça, o governo nacionalista da cidade, incapaz de obter os necessários apoios do general Chiang Kai-shek, viu-se obrigado a retirar. Pequim caía nas mãos dos japoneses e, com ela, caía também Tientsin.

       Aviões japoneses começaram a bombardear Xangai, indiscriminadamente e sem tréguas. Bombas caíram no Bund e no florescente centro comercial de Xangai, até que uma área de vários quilómetros quadrados ficou reduzida a destroços. Não houve telha que não ficasse feita em cacos e as ruas estavam juncadas de cadáveres.

       Depois da queda de Xangai, o exército japonês avançou na direcção de Nanquim, onde lançou uma sangrenta carnificina que durou seis semanas. Ninguém foi poupado, nessa orgia de morte, violações, saque e destruição. Só em Nanquim, houve mais de trezentos mil mortos e feridos. O governo nacionalista abandonou a cidade, e os japoneses, confiantes no seu poder, anunciaram que, em três meses, toda a China seria devastada e submetida.

       A partir de Nanquim, o exército japonês seguiu para sul, pondo em prática uma política que se intitulava: queimar tudo, matar tudo, roubar tudo. Toda a China mergulhava no mais profundo terror e desespero. Os chineses não eram melhores do que cães, e se um cidadão chinês não se curvasse com a necessária deferência diante dos soldados imperiais japoneses, o seu destino seria certamente a morte.

       Yoshiko já não estava no centro das operações, mas fazia tudo o que estava ao seu alcance para manter uma aparência de poder e influência; extorquia dinheiro a lojistas indefesos, vendia uma ou outra informação aos militares japoneses e não se poupava a esforços para atrair os favores da Sra. Hideki Tojo, a mulher do primeiro-ministro japonês. Mas Yoshiko limitava-se a adiar um fim anunciado.

       Entretanto, Wang Ching-wei, uma alta personalidade nacionalista, abandonou o baluarte nacionalista de Chungquim e refugiou-se em Hong Kong,

controlada pelos britânicos, onde proclamou o cessar-fogo. Em 1940, Wuang Ching-wei formou um novo "governo nacionalista" em Nanquim, e os governos rivais de Chungquim e Nanquim envolveram-se em violentas lutas. Em breve, também os Comunistas participariam na contenda.

       Com os dirigentes chineses enredados em conflitos internos, as condições de vida dos quatrocentos milhões de habitantes - a maior parte dos quais não pretendia outra coisa da vida senão a barriga cheia e um telhado - iam de mal a pior. Muitas pessoas transformaram-se em refugiados profissionais. Alguns conseguiram escapar; a maior parte não.

       Certo dia, o Quartel-General do Exército de Kwantung recebeu a seguinte mensagem:

       Relatório do vosso subordinado Shunkichi Uno acerca do estatuto de

Yoshiko Kawashima. O Exército de Pacificação, que se encontrava sob o seu comando, foi desmantelado. Apesar de ter sido extremamente efi-

ciente numa determinada época e de ter contribuído para muitas vitórias das forças do nosso nobre imperador, Yoshiko Kawashima perdeu já toda a sua utilidade. Pior ainda: tornou-se um verdadeiro perigo, visto que, recentemente, agiu por sua própria e exclusiva iniciativa para libertar um guerrilheiro anti-japonês, e fê-lo por razões exclusivamente pessoais. Deixou de merecer a nossa confiança e por isso pedimos a vossa autorização para emitir instruções ultra-secretas tendo em vista a sua liquidação.

       Os superiores hierárquicos de Shunkichi Uno acederam ao seu pedido e depressa transmitiram as devidas instruções a um operacional qualificado e experiente. Até então, esse homem estivera envolvido em trabalho de propaganda, conduzindo muita da vida cultural do novo Estado de Manchucuo e criando no território manchu as infra-estruturas necessárias para a produção de filmes. Na sua qualidade de chefe dos estúdios de cinema, conhecera uma obscura rapariga japonesa, de seu nome Yoshiko Yamaguchi e, com alguns retoques apressados, transformara-a numa actriz chinesa chamada Li Hsiang-lan - ou seja, a Orquídea Fragrante. Promovera-a agressivamente, conseguindo que ela fosse a estrela de uma série de filmes, para grande benefício da harmonia inter-racial e da amizade entre o Japão e a Manchúria. Mas se era famoso pelos seus filmes, o seu verdadeiro trabalho tinha a ver com a espionagem militar. Chamava-se Yamaga.

       Yamaga ficou positivamente desconcertado quando o Quartel-General lhe transmitiu as instruções relativas àquela operação. De facto, os seus superiores deixavam-no numa posição particularmente difícil. Por que motivo o tinham escolhido?

A tarde a meio - o relógio indicava as três e vinte - e Yoshiko ainda dormia. No seu rosto havia ainda traços da maquilhagem da noite anterior, manchas de pó-de-arroz, sombras para os olhos já meio desmaiadas, o baton esborratado. Fora directamente para a cama sem se preocupar em limpar a cara, como um palhaço exausto.

       Dormira um sono agitado, sonhara estranhos sonhos. O seu rosto ora se crispava ora recuperava a calma. Até que, como que tocada por um fantasma, Yoshiko despertou num sobressalto.

       A sombra de um homem derramava-se aos pés da cama. Estava de costas para a luz e, por isso, Yoshiko não conseguia enxergar o seu rosto. Subitamente, reconheceu-o e ficou estupefacta - era Yamaga, o seu primeiro amor. Mas... aquela ligação... aquela ligação já tinha terminado há muito tempo, não tinha?, perguntou-se. Que fazia Yamaga no quarto dela?

       Yamaga não encontrava forças para executar a missão que lhe fora confiada. Yoshiko permaneceu silenciosa na cama, exausta e desfigurada. As fugazes ilusões de juventude e beleza estavam já enterradas; um miserável monte de carne e ossos era tudo o que restava. Perdera vitalidade e beleza, irremediavelmente - nos seus olhos, já não se via o brilho de outros tempos, a sua cabeleira perdera volume e densidade. Tossiu por duas vezes, numa rápida sucessão, enquanto tentava soerguer-se.

       - Ouve lá - sussurrou, caindo de novo na cama. - Que estás tu a fazer aqui?

       Yamaga não respondeu. Acabara de ver a seringa da morfina na mesa de cabeceira.   

Já passou muito tempo...! - insistiu Yoshiko. - Não me digas que andavas a dar um passeio pelas redondezas e que te apeteceu fazer-me uma visita...! Quem é que te mandou?

       Tinha os nervos em franja, mas tentou controlar-se.

       Yamaga foi até à janela e abriu as cortinas. Uma seta de luz, repleta de grãos de poeira, atingiu em cheio a cama. Yoshiko desatou a piscar os olhos, incomodada por aquela luz tão forte.

       - Vim apenas ver como estavas. Escusas de desconfiar de mim.

       Yoshiko rompeu num riso estridente.

       - Quando se faz o que eu faço, aprende-se a ter cuidado. Se não fosse desconfiada, não estaria viva. Por que havias tu de ser uma excepção?

       Yoshiko sabia que género de homem ele era; Yamaga também não tinha ilusões acerca dela. Só o destino poderia decidir o desfecho daquele jogo. Anos antes, quando tudo começara, quando eram jovens e estavam apaixonados, seria impossível enganarem-se um ao outro. Agora, mais pareciam dois escorpiões preparando-se para o combate.

       - Recompõe-te, Yoshiko! Não foi esse o conselho que me deste em tempos?

       Ela já se tinha esquecido completamente daquela carta, daquelas palavras, dos mil ienes. A sua vida transformara-se numa jornada sem fim. Só o destino pode decidir, dissera-lhe ela então. Recompõe-te!

       - Levanta-te - disse ele bruscamente. - Levanta-te e veste uma coisa bonita. Vamos apanhar um bocado de ar, está bem?

       Yoshiko olhou-o fixamente durante algum tempo, antes de se levantar. Encaminhou-se depois para a casa-de-banho a fim de se lavar. Propositadamente, deixou a porta da casa-de-banho aberta: era uma maneira de lhe mostrar que confiava nele. Enquanto lavava a cara, pôs-se a pensar nas razões que teriam levado Yamaga a visitá-la. A água que saía da torneira era barrenta não estava certa se seria ferrugem ou algum cano partido, mas a água estava cheia de minúsculas partículas. A água na China nunca era límpida.

       Do outro lado da porta, Yamaga sentia-se profundamente hesitante. Sabia por que razão ela deixara a porta aberta e isso dificultava ainda mais a sua missão.

       Yoshiko falou-lhe da casa de banho.

       - Se vieste cá tratar de algum assunto particular - insinuou -, espero que eu não seja um empecilho! Mesmo assim, quero que saibas que é um privilégio estar com o meu primeiro amor...

       Yoshiko saiu da casa de banho, secando o cabelo com uma toalha. Olhou-o de relance no espelho e sorriu.

       - Yoshiko - disse ele. - Gostava que te vestisses como antigamente... e que mê deixasses olhar para ti só por um bocado...

       Ela virou-se para ele.

       - Quem costuma gostar de recordações são aqueles que já não esperam viver muito - disse ela, com um ar divertido. - Eu ainda tenho muitos anos à minha frente e muitas coisas para fazer.

       - Por exemplo?

       - Assim, de improviso, não te posso dizer... Êxito? Amor? Uma família? Amigos? Poder? Dinheiro? justiça? Tudo ilusões... Nada disso é importante, de facto.

       - E a paz? - perguntou Yamaga, ternamente.

       - Se queres saber a minha opinião, acho que é a maior de todas as imposturas! Vá lá, deixemo-nos de conversas e vamos dar um passeio, está bem?

       Yamaga começava a pôr em causa a missão que lhe fora confiada.

       Nervosamente, Yoshiko abriu o guarda-vestidos, apreciou alguns vestidos e decidiu-se por um dos seus cheongsams. O risco era grande, sem dúvida, pensou. já tinha tentado tudo, mas não conseguia descortinar o que se passava na mente de Yamaga.

       - Sabias - disse ela, docemente -, que quando uma mulher tem êxito, é porque há um homem atrás a ampará-la? As mulheres só são más porque os homens as adoram cegamente. Por vezes, penso que nós, as mulheres, só poderíamos viver em paz num mundo sem homens. - Aquelas eram palavras ditadas pelo coração; de facto, Yoshiko estava a falar mais para si mesma do que para ele.

       Por fim, deu-lhe o braço e anunciou que estava pronta.

       - Vamos - disse ela.

       Cuidava muito da sua aparência, ocultando os seus traços gastos e cansados sob uma cortina de cremes e pó; mas era tudo uma ilusão. Sob essa superfície encantadora, apenas restavam destroços. Mesmo assim, apesar de falsa, a beleza dela fascinava-o.

       Um riquixá levou-os até à entrada de um templo taoísta. Subiram, um a um, os degraus do templo. Yoshiko continuava a dar-lhe amistosamente o braço, não revelando medo nem desconfiança.

       Erguendo os olhos, Yamaga leu a placa sobre o dintel: SEIS HARMONIAS. Sentiu um odor forte a incenso e disse para si mesmo que, mesmo em tempos tão conturbados como aqueles, havia oásis de calma em que nada mudava. Ao lado da porta do templo, havia uma outra placa, suspensa da parede, onde se podia ler este dístico:

Espalha a palavra - as almas que andam nas trevas seguirão o caminho que conduz à luz.

Mostra o Caminho - a humanidade abrirá as portas do mundo para o reino dos céus.

       Algumas pessoas ainda acreditavam que tudo era pré-ordenado e que tínhamos todos de nos render ao nosso destino.

       O salão do templo estava cheio de pequenos altares evocando os mortos. Nesses altares, haviam sido inscritos os nomes daqueles que tinham partido: Senhora Wang, Mestre Li, e todos os outros antepassados dos fiéis. A TUA VOZ E O TEU ROSTO CONTINUAM CONNOSCO, dizia uma placa, sob a qual havia oferendas de gladíolos, rosas, crisântemos amarelos, fruta, bolos e outros doces.

       O odor do incenso de sândalo vagueava pelo ar.

       - É curioso... - disse Yoshiko, suspirando gravemente. - Enquanto vivemos, não valemos nada. Só depois de mortos nos tornamos preciosos.

       - Queima um pauzinho de incenso - disse ele, apressado.

       - E tu?

       Ele abanou a cabeça.

       - Eu não sou crente.

       Yoshiko acendeu o pauzinho de incenso e virou-lhe as costas, murmurando: - Mas eu sou.

       A mão de Yamaga procurou involuntariamente o revólver que trazia à cintura. Tinha ordens a cumprir.

       A um canto do templo, um médium lia a sina daqueles que o consultavam, escrevendo caracteres numa areia muito fina espalhada em cima de um tabuleiro. Quando o espírito invocado se apossava dele, começava a escrever; o seu pincel parecia voar enquanto desenhava os caracteres, um atrás do outro, numa estonteante sucessão. Cada caracter tinha um diagrama místico que só ele entendia; o resultado, lia-o em voz alta para que o seu assistente tomasse nota com caneta e tinta. Uma mulher pedira uma receita e o médium recitava agora uma longa lista de ervas chinesas:

       - Procurámos um remédio para as cataratas do olho esquerdo. Eis a receitá4 cento e quarenta gramas de shu-ti, oitenta e cinco gramas de chuan-lien, oitenta e cinco gramas de niu-chi, oitenta e cinco gramas de huai-shan, catorze gramas de ju-hsiang...

       Quando terminou, a mulher ajoelhou-se respeitosamente e tocou o chão com a testa em sinal de profunda gratidão. Depois, foi-se embora, com a receita na mão.

       - Tens alguma coisa que te preocupe? - perguntou Yoshiko, espicaçando o homem que fora encarregado de matá-la. - Pede-lhe que leia a tua sina.

       - Não há nada de especial que queira saber.

       - Bom, então pergunta-lhe como vai ser o teu futuro em geral - persistiu ela. Olhou de relance para ele, tentando adivinhar o que lhe ia no coração.

       - Está bem - disse ele, virando-se para o médium. - Gostava de saber se conseguirei ou não realizar a minha missão. O meu apelido é Wang.

       O pincel do adivinho começou a mover-se. Enquanto escrevia, o homem entoou:

       - O Sr. Wang gostaria de saber se conseguirá ou não realizar a sua missão. O Sr. Wang nasceu em 1894, no ano do Cavalo, e possui uma aparência nobre.

       A resposta não tardou:

       - Dentro de dez anos, morrerá miseravelmente por causa de uma mulher. Morrerá pelas suas próprias mãos e o seu corpo jazerá num sítio ermo e será devorado por cães selvagens. Porém, se conseguir evitar este desastre, a sua sorte mudará, e conhecerá incalculáveis riquezas.

       Quando ouviu isto, Yamaga cobriu-se de suores frios. Era como se alguém lhe tivesse despejado um balde de água gelada pela cabeça. Não sabia se acreditava ou não naquilo que ouvira. Aqueles espíritos chineses possuiriam realmente o poder e a sabedoria necessários para o guiar? Qual o significado daquilo? Morreria dali a dez anos por causa de uma mulher? Estavam num beco sem saída. Um deles teria de morrer e a escolha era dele.

       Ele já tinha passado os quarenta, era um homem vivido, experiente. Deveria acreditar naquilo? Não se apercebeu de que Yoshiko se abeirara dele, testemunhando em silêncio o seu tumulto interior. Na sua cabeça, só havia lugar para uma questão: deveria acreditar?

       Yamaga virou-se para a enfrentar e, inconscientemente, recuou um passo para a ver com mais clareza. Aceitaria o que o destino lhe reservava. Talvez os espíritos fossem capazes de ler o que lhe ia na alma e tivessem muito simplesmente ditado a decisão que ele já havia tomado. No seu íntimo, numa região profunda do seu ser, Yamaga sabia que não conseguiria matá-la.

       - Yoshiko - disse ele, mas não precisava de dizer nada; ambos sabiam. - Vou tratar de tudo para que regresses ao Japão!

       Ia permitir que ela escapasse? Uma sombra de suspeita perpassou no rosto de Yoshiko. Seria mesmo verdade?

       No solitário cais de um porto dos arredores de Tientsin, viam-se apenas duas pessoas: Yoshiko Kawashima e aquele que fora o primeiro amor da sua vida. Enquanto Yamaga a ajudava a levar as bagagens, Yoshiko olhava constantemente à sua volta, sem se atrever a acreditar que ele a deixaria partir. A experiência do passado ensinara-a a não confiar em ninguém e muito menos naqueles que estavam mais próximos dela: o mais gentil dos seres humanos revelava-se muitas vezes o mais sanguinário dos assassinos. E ela tinha razões para pensar assim. Estaria a um passo de receber o justo castigo por todas as suas traições?

       A cada movimento dele, a sua desconfiança crescia e os seus olhos brilhantes sondavam a escuridão. Estaria ele tentando sossegá-la para que ela abrandasse a sua vigilância? Assim, seria fácil desferir o golpe fatal... Iria matá-la ali, naquele sítio desolado e lúgubre? Ou iria cumprir o prometido? Seria isso possível naquele mundo em que ambos viviam?

       Yamaga levou a mão ao bolso e o coração de Yoshiko desatou a bater desenfreadamente, animado pelo mais puro terror. A sua vida estava presa por um fio. Sabia muito bem que, em tempos idos, insultara e maltratara o único homem que, agora, podia salvá-la. Já não podia fingir que estava apaixonada por ele - e no entanto, em tempos, ele pertencera-lhe. Mas isso fora já há tanto, tanto tempo... Quando estavam apaixonados... Lembrar-se-ia ele desses tempos...?

       Yamaga tirou um maço de notas do bolso - ienes japoneses - e, com grande cuidado, pôs o dinheiro na malinha de mão dela. Yoshiko ergueu os olhos para ele, envergonhada das suas suspeitas e subitamente cheia de um profundo ódio a si mesma. Que poderia ela dizer àquele homem?

       - Às vezes, aqueles adivinhos dos templos adivinham mesmo. Tens a certeza de que não te vais arrepender?

       Ele riu-se e abanou a cabeça.

- Eu não acredito nessas coisas...! Este é o teu barco. Cuida bem de ti!

       Yoshiko desceu para um barco que a conduziu ao navio-correio que a levaria ao Japão. Yamaga tratara da sua fuga no mais absoluto segredo. Não era umi cruzeiro de luxo, mas representava uma nova oportunidade, uma oportunidade para começar tudo de novo. Por uns tempos, Yoshiko teria de permanecer escondida.

       Vendo-o despedir-se dela, Yoshiko disse para si mesma que, muito provavelmente, nunca mais voltaria a vê-lo, àquele homem que sabia ser magnânimo, ao ponto de a salvar no preciso momento em que ela pensava ter chegado ao fim. Sentia uma imensa gratidão. Ele era tão íntegro que nem sequer a abraçara antes da partida.

       Yoshiko embarcou finalmente no navio-correio. Agora, separava-os o Mar da China. Por um irónico capricho do destino, a mulher chinesa fugia para o Japão, ao passo que o homem) aponês permanecia em solo chinês.

       Yamaga virou-se resolutamente e partiu sem olhar para trás, ocultando na perfeição os seus sentimentos.

       Yoshiko permaneceu imóvel, os olhos cheios de lágrimas. Quão efémeras são as nossas vidas, pensou. A juventude e a beleza dissipam-se como a delicada fragrância das flores da Primavera; tudo o que é bom e belo parece condenado a murchar.

       Ao longo de toda a viagem, perseguiu-a uma melodia, tão vaga, tão indistinta, que não poderia dizer se havia um rádio algures no navio ou se era apenas uma partida da sua memória. Perseguia-a como um fantasma errante, não conseguia libertar-se dela. Quem cantava aquela canção? Li Hsiang-lan? Hamako Watanabe? Era uma canção impossível de esquecer, impregnada de uma sensibilidade apaixonada:

 

Noites da China, oh noites da China,

As luzes do porto na noite violeta...

Dez anos, pensou. Dez gloriosos anos.

Sonho com a Primavera, sonho contigo:

O sol brilha alto no céu,

As rosas têm pétalas de fogo,

Quando nos encontramos à beira-rio.

Mas eu acordo e tu já lá não estás.

Oh, sonho primaveril, sonho de amor...

 

       Aqueles anos eram como um sonho de que despertara de mãos vazias. Tudo falhara. Sacrificara tudo nesses dez anos. Dera tudo o que tinha - e ficara seca, ressequida, uma flor murcha. Sentia-se como um sol agonizante, afundando-se no poente sobre um imenso deserto, brilhando um último instante antes de mergulhar para sempre no abismo. Mesmo assim, acreditava que tinha a sua nação, embora, na verdade, não houvesse no mundo um único sítio de que pudesse dizer: "Este é o meu lar." Não tinha sequer um sítio onde descansar a cabeça exausta.

Findava o mês de Março em Tóquio, voltava a Primavera. Exuberantes nuvens de flores de cerejeira espalhavam-se, como um gigantesco dossel rosado, por sobre os parques e colinas da cidade. O céu, habitualmente agitado pelos estrondos dos aviões bombardeiros, estava absolutamente calmo naquele dia e não havia uma única nuvem a perturbar-lhe o azul. Mais parecia uma fina peça de seda, decorada com camadas sobrepostas de pétalas de um rosa pálido e impregnada da fragrância, delicadamente doce, mas vagamente melancólica, do pó-de-arroz.

       Yoshiko envergava um quimono de homem e não se podia dizer que tivesse cuidado da sua aparência. A faixa azul, desleixadamente atada, deslizara já da cintura para as ancas. Estava deitada sobre a relva, rodeada de árvores baixas, um joelho erguido, o resto do corpo rendido a uma profunda lassidão. Ao pé dela, espalhadas pelo chão, viam-se várias garrafas vazias de saké, tão ebriamente desmaiadas como a mulher que as bebera e que, agora, semicerrava os olhos para o céu límpido e perfumado. As massas de pétalas assemelhavam-se a um quadro pintado com os dedos por um pintor que, num acesso de loucura, tivesse esborratado toda a tela.

       É no sul que as cerejeiras primeiro florescem. Depois, lentamente, as flores de cerejeira viajam para norte, ao longo de toda a nação insular. Um mês demora a estação das cerejeiras. Todos os anos é o mesmo - a profusão de flores deixa-nos ofuscados, deslumbrados, mas é breve, muito breve, o deslumbramento. Num abrir e fechar de olhos, o assombroso quadro dá lugar à mais árida desolação.

       Yoshiko bebera demasiado saké e sentia-se prestes a rebentar, de tão inchada que estava - precisava urgentemente de urinar. Não havia ninguém por perto, pensou, não precisava de impressionar ninguém com a sua beleza, elegância ou requinte. Não era ela, afinal, igual a qualquer outra pessoa? Fosse como fosse, concluiu, tentar impressionar os outros era um desperdício de tempo perfeitamente estúpido. Levantou-se então e trepou pelo tronco de uma cerejeira até chegar aos seus frágeis ramos. Agachou-se para urinar. Estaria alguém a ver? Pois que estivesse. Tanto lhe fazia. Estava-se positivamente marimbando para eventuais observadores, ainda que, naquela tarde, não se visse vivalma no parque. Ergueu o quimono e começou a urinar. À medida que o fio de urina ia molhando a relva, um cheiro acre, desagradável, erguia-se no ar.

       Um macaquito afastou-se com um salto ágil da relva mal cheirosa; não foi para muito longe, contudo. já livre do cheiro, virou-se para a dona e, com um ar malicioso, desatou a piscar os olhos minúsculos mas cheios de vida. Pouco faltava a Yoshiko para estar completamente bêbada. Desceu desajeitadamente da árvore, mirando o macaco com um sorriso arreganhado. Caiu desconjuntada sobre um tufo de relva, as pernas escarranchadas, os braços moles, incapaz de se levantar.

       O macaco correu agilmente para ao pé da dona. Yoshiko domara-o de tal modo que, agora, o animal quase lhe parecia humano.

       - Ah-fu... - murmurou. - Tu és o único amigo que me resta... !

       Ah-fu coçou o focinho com um ar cómico e abriu tanto os olhos que estes mais pareciam pequenos pires. Tinha um focinho muito expressivo, mas nunca sorria. Nem mesmo quando estava louco de alegria. Nunca no seu focinho se vira sequer a covinha de um sorriso. Só as pessoas podem sorrir, ainda que só muito raramente o façam.

       Yoshiko sorria para si mesma naquele preciso momento; uma chuva de flores de cerejeira, arrancadas pela brisa primaveril, caía sobre ela, cobrindo-lhe o peito de um mar de lágrimas carmim. As flores estavam já a morrer, despedindo-se das suas breves e melancólicas vidas.

       Enquanto o sol declinava lentamente no horizonte, um homem subiu vagarosamente até ao local onde Yoshiko se encontrava. Era Naniwa Kawashima. Caminhava apoiado na sua bengala e, àquela luz crepuscular, a sua magra silhueta mais se assemelhava a um esqueleto. Estava velho, muito velho.

       Yoshiko abriu os olhos e viu a sombra dele estirando-se sobre a relva. Não queria vê-lo. E no entanto, todos os outros homens que conhecera tinham-na deixado, ao passo que ele... ele continuava ali! A vida era estranha, de facto. O único homem que continuava ao seu lado era precisamente aquele que Yoshiko mais odiava, aquele que ela tentara, com todas as suas forças, extirpar da memória, ao ponto de fazer sangrar toda a sua alma.

       Naniwa Kawashima estava tão velho e decrépito que parecia inconcebível que, muitos anos antes, tivesse sido um activista e pensador vigoroso e enérgico, uma figura central do Movimento para a Independência Manchu-Mongol, um homem de grandes ambições, um operacional astucioso e hábil. Nem mesmo ele, outrora duro como aço, conseguira resistir à voracidade do tempo. Estava condenado a murchar e a definhar como as frágeis flores de cerejeira. A qualquer momento podia ser esmagado, impiedosamente espezinhado até se confundir com a lama, sem que ninguém desse por isso, sem que ninguém vertesse por ele uma lágrima.

       Yoshiko reconheceu que, nesse particular, não havia a menor diferença entre os dois - mas depressa sufocou essa ideia. Recusava-se a acreditar, mas a verdade estava ali, diante dos seus olhos. Cerrou os olhos com toda a força: não queria ver nada, não queria pensar nada. Kawashima virou-se para o sol que se despedia e Yoshiko julgou ouvir-lhe um queixume, ténue e triste, levado pelo vento:

       - Os seres humanos são tão frágeis como cristal. Basta um toque, um toque de nada, e desfazemo-nos em pedacinhos, irreparavelmente...

       Yoshiko ergueu-se da massa de pétalas esmagadas e encaminhou-se, cambaleante, na direcção da casa. Ah-fu saltou-lhe para o ombro. Precisava tanto dela como ela precisava dele. Ah-fu, para ela, era como família, o seu mais íntimo e querido companheiro. já não confiava nas pessoas - só confiava nele. Quando lhe contava o que lhe ia na alma, Ah-fu escutava-a sempre com toda a atenção, sem perder palavra. Ah-fu era o guardião da sua alma, uma alma que ela lhe revelara pedacinho a pedacinho, até que todos os pedacinhos se tinham juntado e formado a imagem de uma mulher de grande coragem e nobreza, capaz de grandes feitos, mas que nascera na época errada. Essa era a história que ela lhe contava, e ele parecia acreditar. Amava-o profundamente, sem medo, sabendo que ele nunca a rejeitaria. Aquele cheiro animal, forte, pungente, enchia-lhe os pulmões sempre que ela inspirava.

       Às flores de cerejeira sucederam as glicínias, arautos do Verão. As glicínias, por sua vez, deram lugar às folhas vermelhas do Outono, pintando de fogo as montanhas durante semanas a fio, mais belas do que quaisquer flores. O macaco de Yoshiko adoeceu de um mal ligeiro e ela levou-o para a montanha, onde o deixou andar à vontade, para que ele procurasse as ervas medicinais de que precisava para se curar.

       Chegou o Inverno e uma neve fina polvilhou a terra como o mais alvo pó-de-arroz. Yoshiko estava reclinada num tanque das termas, completamente nua; a água fumegante cobria-lhe todo o corpo até aos seios. Flocos de neve caíam como que de uma peneira, em espirais infindáveis, e logo eram aniquilados pela água escaldante.

       Yoshiko baixou a cabeça e observou o seu corpo frágil. Notavam-se bem os ossos, embora não tivesse emagrecido ao ponto de os ossos se espetarem sob a pele. Permanecia pálida e sem mácula a sua pele. Mas não as mãos. As mãos de uma mulher nunca mentem - muito menos à própria. Veias azuis serpeavam nas costas das mãos dela, como uma tintura anil, desmaiada, aplicada num pano branco. Corria naquelas veias o sangue de tanta gente que, agora, parecia estranho que apenas restasse um azul e branco descorado.

       Tinha trinta e seis anos. Metade da sua vida ficara já para trás, mas não chegara ainda ao fim. Quanto tempo tinha?, perguntou-se.

       Os seus seios, ainda delicados e perfeitamente moldados, flutuavam meio-submersos na água, e o minúsculo sinal vermelho dançava como que suspenso de um fio invisível. Era ainda a mesma lágrima cor-de-sangue que ditara a perdição de tantos homens. Também ela estaria perdida? Teriam acabado de vez as grandes missões? Viveria assim o resto dos seus dias?

       Na superfície da água, viu de relance o seu rosto cansado, destroçado. Mesmo uma flor tinha de florescer vibrante até ao fim, antes de poder ganhar o direito a retirar-se graciosamente. Após o seu regresso a Tóquio, que fizera ela senão esconder-se no seu quarto dia e noite, desperdiçando o seu tempo sem qualquer objectivo? Na Primavera, subia à montanha para admirar as flores, e, no Inverno, apanhava o comboio para as termas. Era uma vida sem rumo nem alento. Os dias que lhe restavam, como seriam? Uma longa e lenta morte? Seria a Princesa Hsien-tzu, a décima quarta filha do Príncipe Su, não mais do que uma mulher vulgar, igual a todas as outras mulheres, no vasto oceano da humanidade?

       Nunca! Yoshiko ergueu-se de súbito, nua da cabeça aos pés, e saiu a correr, molhando tudo à sua passagem. Na estalagem, Ah-fu, o macaco, observou-a sem entender nada, enquanto ela fazia um telefonema, ainda completamente nua e demasiado cheia de uma energia febril para se dar ao trabalho de vestir fosse o que fosse.

       A pessoa para quem estava a telefonar era Katsuko Tojo, a mulher do primeiro-ministro japonês, Hideki Tojo. A dada altura, Katsuko Tojo e Yoshiko tinham mantido um relacionamento bastante chegado – Yoshiko cortejava avidamente a amizade de Katsuko e as duas mulheres tinham-se tornado muito íntimas.

       Se Yoshiko queria abandonar o seu retiro, precisava de alguém que a apoiasse. Corria o ano de 1943 e a Guerra do Pacífico estava no auge, com as relações entre os Estados-Unidos e o Japão atravessando a maior crise de todos os tempos. O povo japonês provava agora o amargo fruto de uma guerra desencadeada contra o Japão, ao passo que o povo chinês, ao fim de tantos anos de sofrimento, lutava pela sobrevivência numa terra dilacerada pela guerra. Yoshiko podia chamar "pátria" a qualquer um dos dois países. Desejava, do fundo do coração, que a guerra acabasse e sonhava com o dia em que Japão e China poderiam finalmente unir-se. Ah, quem lhe dera ter asas para poder voar até à China numa missão de paz e falar com o general Chiang Kai-shek...! Yoshiko acreditava sinceramente que, se lhe dessem uma oportunidade, conseguiria convencer o general.

       Esperou que a telefonista estabelecesse a ligação. Por fim, Katsuko respondeu.

       - Senhora Tojo? - disse ela, cheia de esperança. - Fala Yoshiko - lembra-se de mim?

       Do outro lado, o silêncio.

       - Yoshiko! - insistiu ela, o coração numa correria. - Eu sei que já passou muito tempo desde a última vez que nos vimos... Sim, isso mesmo. Sim... Gostaria muito de voltar à China. As conversações de paz sino-japonesas não podem avançar sem um intermediário e como eu conheço bem o governo nacionalista, estou certa de que - Oh, não, não, eu nunca disse que me tinha retirado...

       Embora a mulher no outro lado da linha não manifestasse por ela o menor interesse, Yoshiko sentia-se como se cavalgasse uma onda de autoconfiança e nem sequer reparava na indiferença da Senhora Tojo. Mergulhou de cabeça, numa tentativa final, desesperada, para se vender a si mesma.

       - Por favor, dê-me uma última oportunidade! Diga ao Sr. Tojo e mande-me...

       Do outro lado, apenas um zunido. A Senhora Tojo tinha desligado.

       - Está? Senhora Tojo?

       Já ninguém estava interessado em Yoshiko. Ninguém.

       Mesmo que Tojo estivesse interessado em usar Yoshiko (e não estava), por certo não estaria interessado na sua proposta. O grande general Hideki Tojo não tinha a menor intenção de participar em conversações de paz, fossem elas de que tipo fossem. A missão do Japão consistia em estabelecer a Esfera de Co-prosperidade do Grande Extremo Oriente, submetendo ao seu            Enquanto caminhava, imersa nos seus pensamentos, uma voz brutal fê

domínio a China, Hong Kong, Singapura, a Malásia, a Tailândia e todas as -Ia parar.

outras           .

nações da Ásia. A partir daí, o domínio japonês estender-se-ia a todo o     - Eh! Tu aí! - gritou um homem. - Curva-te quando vires um soldado do Exército Imperial!

0s senhores sabem por acaso quem eu sou?

       As palavras ecoaram na sala apinhada do tribunal, cansadas mas firmes. Mais arrogante do que nunca, Yoshiko parecia olhar de cima para todos os presentes. Aquela gente era indigna da sua atenção. Claro que, naquele preciso momento, a multidão pagava-lhe na mesma moeda: Yoshiko era uma espia, uma criminosa finalmente capturada; aos olhos daquela gente, não passava de uma criatura desprezível. Vivera uma vida cheia, aquela mulher, dividida entre duas nações, entre duas lealdades. Haveria nisso verdadeiramente algum crime?

O sorriso dela era como gelo.

       - As pessoas a quem estive ligada eram, todas elas, altas personalidades. Será que também estão a ser interrogadas por um bando de nulidades como os senhores? Francamente, não sei se hei-de rir, se hei-de chorar...! Todos os membros do vosso governo, incluindo o Generalíssimo Chiang Kai-shek, estão muito, muito abaixo de mim!

       O magistrado mexeu-se desconfortavelmente na sua cadeira - de facto, havia alguma verdade naquilo que ela dissera.

       Yoshiko ergueu bem alto o queixo, como que a desafiar juízes e público. Estaria decidida a desafiá-los, a enfrentá-los? Ela era uma princesa e esperava que a tratassem como tal. Perante as poderosas forças da história, a princesa não era nada, mas essa realidade não afectava minimamente Yoshiko.

       O magistrado estava a tentar estabelecer uma cronologia da vida de Yoshiko Kawashima. Pegou numa pilha de fotografias e, uma a uma, colocou-as diante dela. Depois de ler os nomes das pessoas que estavam nas fotografias, perguntava-lhe:

       - E agora, já se lembra destas pessoas?

       Yoshiko pôde ver os rostos de quase todos os homens que conhecera. Estavam lá muitos deles. O juiz continuou a recitar os nomes, mas ela interrompeu-o abruptamente:

       - Meritíssimo, não faz o menor sentido obrigar-me a ver de novo as fotografias - disse ela num tom sarcástico. - Eu não conheço nenhuma destas pessoas!

       De seguida, o juiz pegou numa pilha enorme de documentos.

       - Estes depoimentos dizem respeito ao modo como a senhora desempenhou o cargo de comandante-chefe do Exército de Pacificação. Dez prisioneiros testemunharam ter servido sob as suas ordens. Além disso, temos provas escritas de que a senhora comandou vários milhares de soldados, de que assassinou brutalmente membros da resistência, de que instigou vários motins sangrentos e de que, directa ou indirectamente, causou a morte de um número incontável de concidadãos seus.

       Tomada de súbita inspiração, Yoshiko perguntou-lhe:

       - E quando é que isso se terá passado?

       - Tudo começou no vigésimo ano da República, ou seja, em 1931, e prosseguiu por mais dez anos.

       Yoshiko rompeu numa gargalhada estridente, como se tivesse acabado de ouvir uma piada especialmente ridícula.

       - Ha! - exclamou ela, de súbito. - Essa é muito boa, Excelência! Eu nasci no Japão no quinto ano do reinado Taisho, ou seja, no ano de 1916, para vocês, chineses. O senhor conhece com certeza as regras da aritmética... Em 1931, eu tinha quinze anos, não passava de uma criança! Como é possível que eu tenha comandado milhares de soldados com apenas quinze anos? Como é possível que uma rapariga de quinze anos tenha feito todas essas barbaridades de que me acusam?

       - Por que razão falsifica deliberadamente a sua idade? - perguntou-lhe o juiz com um ar severo. - Será mais uma tentativa para encobrir os seus crimes ?

       Corria o ano de 1946 e qualquer um poderia dizer que Yoshiko era uma mulher com cerca de quarenta anos, abatida e magra, o rosto marcado por rugas que nunca nada poderia apagar. Mesmo que estivesse a dizer a verdade, ninguém acreditaria nela. Só a si mesma conseguia enganar - todos se apercebiam da sua infantil artimanha. Estava sentada no banco dos réus e as provas da sua culpa acumulavam-se à sua frente. Isso deixava-a desesperada. A longa caminhada estava a chegar ao fim. Tudo se desmoronava rapidamente, mas Yoshiko continuava a recusar-se a desistir, agarrando-se à mais ténue réstia de esperança com a pouca força que lhe restava. Ainda que tudo jogasse contra ela, não deixaria escapar a menor hipótese de sobrevivência.

Impassível, recusava-se a aceitar a derrota.

- Os senhores passaram um ano inteiro a interrogar-me e eu nunca cedi.

De facto, nunca lhes poderia dizer o que queriam ouvir. E sabem porquê? Porque estão enganados quanto à minha idade desde o princípio!

- Onde estão as suas provas? Tem alguma prova?

Yoshiko pensou por um momento antes de responder.

- É evidente que tenho. Escrevam ao meu pai, Naniwa Kawashima, que se encontra no Japão, e peçam-lhe a minha certidão de nascimento. Mas façam-no depressa! O meu pai poderá confirmar o facto de que eu tinha apenas dez anos em 1926, o ano em que, segundo os senhores, eu estava a invadir a China... Ele poderá também dizer-lhes que sou japonesa, e não chinesa. Têm-me tratado de uma forma injusta e desleal, obrigando-me a lutar pela minha sobrevivência. Mas tudo ficará em ordem se entrarem em contacto com o meu pai e se ele se lembrar de que somos pai e filha.

Yoshiko olhou o juiz bem nos olhos, enquanto os pormenores do seu plano se definiam na sua mente.

       - Verá, Excelência, logo que os documentos cheguem a este tribunal, todos se darão conta do erro tremendo que estão a cometer e eu poderei voltar para casa.

Se aquilo não funcionasse, estaria perdida. Podia ser que o tempo estivesse do seu lado, pensou. Era tudo o que podia fazer - tentar ludibriá-los com a idade. Se albergasse ainda no seu coração um resto de compaixão, Kawashima mentiria para a salvar e confirmaria que ela era japonesa - então... então nem mesmo o mais poderoso de todos os tribunais poderia condená-la e ela recuperaria a liberdade.

       Yoshiko estava muito calma quando os guardas a escoltaram até à sua cela na Prisão Municipal Número Um de Pequim.

       Muitos anos antes, as paredes da cela tinham sido brancas. Porém, com o passar dos anos, tinham-se enchido de sujidade, de fuligem, de velhas manchas de sangue. Cada cela tinha cerca de quatro metros de altura, com uma janela quadrada com grades que dava para o pátio central. A cama era uma tábua; a um canto, havia um balde que servia de bacio. A luz era muito escassa, tão sombria como os uniformes cinzentos das prisioneiras.

       Algumas celas chegavam a ter três dúzias de presas, mas Yoshiko era uma prisioneira muito problemática e, por isso, tinha uma cela só para si. A anterior ocupante, uma mulher que matara a rival que lhe disputava o amante, morrera naquela cela.

       Havia um pequeno buraco a um canto das celas, por onde passava a comida para as presas. A comida da prisão consistia de sopa aguada e pão de milho duro, mas Yoshiko tudo devorava sofregamente.

       - Quando penso nos sofrimentos por que estará a passar Sua Majestade na Rússia, neste preciso momento - disse ela para si. mesma -, como posso lamentar a minha sorte?

       Agachou-se e trincou um canto do pão. O pão estava duro e frio e, a cada trincadela, caía uma chuva de migalhas. Quando estava na flor da vida e no auge do seu poder, nunca teria acreditado que, um dia, estaria agachada num sítio daqueles, comendo coisas que até mesmo um cão rejeitaria. Pelas grades da janela, não conseguia ver o céu. Um dia, pensou, um dia voltarei a ver o céu, e este sítio barulhento e fedorento mais não será do que uma recordação amarga!

       Era de facto um sítio barulhento. A prisão albergava criminosas de todo o tipo: traidoras, assassinas, traficantes de droga, viciadas em ópio, ladras, profanadoras de túmulos. Algumas destas mulheres eram belas, outras eram feias, mas todas eram farinha do mesmo saco: eram a escória da sociedade. Encerradas nas suas celas o dia inteiro, faziam uma algazarra estridente, lastimando-se e gritando desde o alvorecer até ao crepúsculo, cantando, dançando, chorando. Era um sítio imundo e o fedor era horrendo e as presas não tinham nada para se lavarem, quanto mais uma muda de roupa.

       Mesmo assim, Yoshiko Kawashima pensava que era diferente das outras. As outras eram criminosas comuns, insignificantes, mulheres que nunca tinham visto o mundo. Nenhuma delas vivera realmente, pelo menos do modo como ela vivera - não passavam de um bando de ratazanas de esgoto, fugindo precipitadamente para o abrigo das sombras mal se viam em perigo, maquinando na escuridão os seus miseráveis planos. Enfim, gente indigna da sua atenção, escumalha que discutia por tudo e por nada, causando por vezes tumultos que duravam todo o dia. Uma coisa tão insignificante como pó para lavar os dentes era o suficiente para provocar uma rixa. Mesmo na prisão, Yoshiko mantinha intacta a sua dignidade, e estava constantemente a pedir às outras que se calassem.

       - Para quê tanta balbúrdia, meu Deus? Que mesquinhas, que tacanhas que vocês são...!

       E jurou a si mesma que se um dia conseguisse sair dali, nunca mais voltaria. Preferiria morrer.

       Um rádio tocava um canção de amor. Todas as presas se calaram.

       - Quando voltará o meu amor? - chorava a cantora, como o melancólico fantasma de uma mulher abandonada. Yoshiko fechou sonolentamente os olhos, escutando a canção, uma droga que acalmou as presas, até que, a pouco e pouco, um silêncio pesado caiu sobre a prisão. Para esta "Vénus de Uniforme", havia apenas dois caminhos possíveis - morrer na obscuridade, ou continuar a viver na obscuridade.

       - Menina Yoshiko!

       Alguém chamava por ela. Abriu os olhos e viu que era o seu advogado. O seu coração encheu-se de alegria.

       - Senhor Li!

       O advogado trazia uma pasta de documentos - a prenda que ela aguardava há tanto, tanto tempo, chegara finalmente! Incapaz de se conter, respirou fundo antes de abrir a pasta. Deu uma vista de olhos rápida aos documentos. Os seus olhos galgavam as linhas. Porém, mal chegou ao fim, voltou ao princípio e leu com mais vagar:

       - Yoshiko Kawashima é o nome falso de uma mulher chinesa conhecida como Chin Pi-hui. Yoshiko Kawashima é, na realidade, a décima quarta filha de Shan-chi, o Príncipe Su. Eu não tive filhos e adoptei Yoshiko quando ela tinha seis anos, obedecendo a ordens da sua família. Isto ocorreu a 25 de Outubro de 1913.

       No rosto de Yoshiko lia-se uma profunda decepção. Contudo, continuou a ler.

       - Desde a sua infância, a maior parte do povo japonês tomou-a por uma cidadã japonesa.

       Não podia acreditar no que os seus olhos viam. Leu de novo aquilo, agarrando no papel com toda a força, enquanto suores frios lhe percorriam o corpo. Seria possível? Seria possível que aquilo fosse a prova de identidade que tão ansiosamente aguardara, dia e noite, dia após dia? Ele nem sequer mudara a data de nascimento para 1916, nem sequer tentara explicar que ela era realmente japonesa. Era ultrajante! Aquilo era exactamente o contrário do que ela pretendia! .

       Ergueu os olhos para o advogado. No seu olhar só havia pânico e perplexidade. .

       - Ele não fez o que eu lhe pedi - disse ela, aturdida. - Eu não queria que ele dissesse a verdade, queria que ele mentisse, para salvar a minha vida!

O advogado compreendia, mas nada podia fazer para a ajudar.

       - No passado, o Sr. Kawashima esteve ligado à Sociedade do Dragão Negro e, ainda hoje, continua sob vigilância. Bastaria um pequeno deslize para que as Nações Unidas o levassem a tribunal por crimes de guerra. O sr. Kawashima não se atreveria a cometer perjúrio e muito menos por escrito! Receio que o testemunho dele tenha servido apenas para piorar a sua situação, menina Yoshiko.

       - Mas ele já passou os oitenta... - disse ela, desanimada.

       - Se houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer, pode estar certa de que a faria, menina Yoshiko.

       Enquanto se afundava no chão, desalentada, o seu rosto ganhou uma palidez extrema. Naniwa Kawashima era a sua última esperança - uma última esperança que se desmoronava. Era como se tivesse caído num abismo de gelo. Agarrou na carta com mãos retesadas, geladas. Havia alguma saída agora? Não queria morrer! Aquele fora o primeiro homem da sua vida, pensou, chorando de incredulidade.

       - É curioso... - disse ela, com uma voz rouca. - Este homem passou toda a sua vida a contar mentiras; o que é que o terá levado a dizer a verdade, precisamente agora? Não compreendo...

       Yoshiko parecia ter perdido todas as suas forças. Os seus braços caíram sem vida, colados ao corpo, enquanto os papéis lhe escapavam por entre os dedos, tal e qual como a pouca vida que lhe restava.

       Às onze horas e quinze minutos da manhã de 22 de Outubro de 1947, o juiz leu a sentença de Yoshiko:

       - A ré, Chin Pi-hui, também conhecida sob o nome japonês de Yoshiko Kawashima, tendo sido declarada culpada dos crimes de traição e espionagem, deverá ser privada dos direitos civis, bem como de todos os bens pessoais pelo resto da sua vida. O tribunal condena ainda a ré à pena de morte.

       A voz do juiz soara monocórdica e fria, e Yoshiko escutara com ar apático, distante. A multidão rompeu em gritos de alegria, enquanto Yoshiko, silenciosa, era conduzida à prisão. Os gritos continuaram enquanto a sua frágil figura se esfumava na obscuridade dos corredores. Os blocos de celas pareciam intermináveis - ela sabia que não havia a menor possibilidade de fuga. As palmas e os gritos soavam agora mais esbatidos. Por fim, cessaram abruptamente logo que as portas da prisão se fecharam.

       De súbito, deu consigo imersa em antigas memórias, memórias da cidade de Pequim na Primavera... Era uma época em que folhas de um verde pálido adornavam os muros da cidade e em que um cortejo de flores - lilases, forsítias, flores de damasqueiro, de cerejeira, de pessegueiro - estreitava a velha capital num fragrante amplexo, enquanto os pilares e os degraus de mármore carmim da Cidade Proibida eram banhados pela luz dourada do pôr do sol. Quão bela era Pequim, a qualquer hora do dia, em qualquer estação do ano...! Yoshiko perguntou-se se viveria ainda o tempo suficiente para voltar a ver a Primavera. E o Ano Novo, chegaria a ver o Ano Novo? Era inimaginável, mas talvez não voltasse a ver mais nenhuma Primavera. Como uma borboleta que houvesse perdido as asas, Yoshiko perdera não só a capacidade de voar mas também a beleza.

       Encerrada entre as paredes da prisão, definhava a olhos vistos. Os seus olhos pareciam imersos em fundas covas, caíra-lhe um dos dentes da frente. A falta de sol deu-lhe à pele uma palidez doentia. Com o passar dos dias, foi ficando tão emaciada que o seu corpo parecia perdido no imenso uniforme cinzento. O destino cravava o seu punhal, tão persistente e intenso como alterosas ondas devastando o cais. A devastação avançava. E Yoshiko estava tão esgotada que já nada lhe importava.

       Certo dia, viu algo que, por breves momentos, a arrancou à apatia em que caíra. Pensou ter visto um prisioneiro parecido com Shunkichi Uno a ser conduzido para a prisão. Seria mesmo ele, aquele criminoso que caminhava vagarosamente, de cabeça curvada? Afinal, talvez houvesse alguma justiça neste mundo...!

       Ergueu a tigela de caldo de massa e comeu aquela mistela ruidosamente, sofregamente, até à última gota. Quando a tigela ficou vazia, soltou um arroto brutal. Agora que tinha a barriga cheia, tratou de satisfazer outra necessidade premente. Injectou-se com morfina. Depois da injecção, deixou que a sua cabeça se inclinasse indolentemente para trás e suspirou de satisfação, mergulhando numa bruma quente e tranquila. Encostada à parede, aquela mulher mais parecia um monte de imundos farrapos. Tinha desistido; e no entanto, ao desistir, parecia ter encontrado algum consolo.

       As outras presas tinham ficado cheias de pena ao saberem da condenação à morte e muitas delas choraram por Yoshiko; apesar de possuírem uma natureza violenta, aquelas mulheres não eram desprovidas de humanidade. Sim,

 

é certo que muitas delas tinham matado os seus maridos ou cometido crimes ainda mais hediondos, mas não é menos verdade que partilhavam algo em comum com Yoshiko - a princesa, tal como elas, estava na prisão unicamente por causa dos homens! Yoshiko teria sido a primeira a admiti-lo; quem passasse pela sua cela ao longo do dia, talvez a ouvisse num murmúrio de que ela própria era a única destinatária. "Odeio os homens!", esse era o seu queixume.

Quando via as outras chorando por ela, fingia não entender porquê.

Precisava de um selo. Tirou da sua bolsa um maço de notas e deu-o ao...

- Vinte e cinco mil yuan? - perguntou. - Não, trinta mil.

       Não tinha alternativa: pagou. O papel também era caro - aliás, na prisão tudo era caro. Debruçou-se sobre a sua carta, escrevendo com caracteres minúsculos, muito apertados, procurando aproveitar ao máximo aquele bocado de papel. Estava a escrever para um homem - um homem a quem finalmente perdoava.

Para o meu venerado pai, assim começava a carta. Um feliz Ano Novo!

       Ainda lhe chamava "Pai". Conhecera o seu verdadeiro pai apenas até à idade de sete anos e tinha dele recordações muitíssimo vagas. Fora o pai adoptivo que a criara e que, de facto, alterara por completo a sua vida. Mas talvez o mal não estivesse só de um lado - não alterara ela também as vidas de muitos homens?

       Fosse como fosse, para quê cansar-se a pensar nisso? Estava a chegar ao fim da linha. Continuou a escrever:

       Já não me resta muito tempo. Sinto-me como as flores murchas e as folhas mortas que o vento do Outono deixa pelos caminhos - pelo menos, posso dizer que, em tempos, conheci a glória da Primavera. Sim, eu tive os meus dias de glória, e quando uma pessoa pode dizer que fez algo de útil na vida, não há que lamentar nada.

       Em muitos aspectos, a prisão é uma espécie de paraíso, um lugar seguro onde ninguém tem de trabalhar e onde toda a gente tem comida assegurada. De facto, não é assim tão má a vida na prisão...!

       No entanto, tenho algumas queixas a fazer. Ouvi dizer que alguns jornais sugeriram que me vão transformar numa espécie de atracção de feira, com venda de bilhetes e tudo, sendo o produto da bilheteira destinado a obras de caridade. Especuladores adaptaram a minha história a espectáculos musicais, sem se darem sequer ao trabalho de pedir a minha autorização. É uma falta de respeito inacreditável!

       Claro que há algo de nobre numa morte iminente. Tornamo-nos magnânimos, e coisas insignificantes como estas deixam de nos perturbar. Já nada nos importa. Sei que vou morrer e não há nada que possa fazer. Por isso, posso perfeitamente dizer ao mundo que já não tenho mais nenhum segredo a revelar - e muito menos acerca de outras pessoas. Agora, já nada me pode salvar. Por isso, posso perfeitamente assumir as culpas pelos crimes que outros cometeram e salvá-los de todas as angústias. Por que haveria eu de agravar os sofrimentos do mundo?

       Ninguém me visita, ninguém me traz prendas. As pessoas que conhecia aqui na prisão, todas me viraram as costas; mas que importância é que isso tem agora? Seja como for, as grandes amizades são sempre demasiado perigosas.

       Quando a vida se torna verdadeiramente terrível, não há nada que uma pessoa possa fazer, a não ser tentar cuidar de si mesma e aprender a rir.

       É Ano Novo. Apetecia-me tanto um bolo com recheio de azulei!

       Sonho muitas vezes com o meu macaquito... Lembro-me dele sentado no parapeito da janela, a cabeça toda espetada, a ver os comboios passar. Ficava tão bonito...! Tinha por ele amor, um amor verdadeiro... Não, ninguém saberá nunca o quanto o amava. Daria tudo para que ele não tivesse morrido. Quando eu morrer, não quero ser enterrada ao lado de outras pessoas, quero ser enterrada ao lado do meu querido Ah-fu.

 

       Nunca imaginei que pudesse partir antes de ti.

       Tem cuidado contigo!

                     Yoshiko

 

       Ainda havia algum espaço em branco no papel. Encheu-o com uma caricatura de Ah-fu. Meteu a carta num sobrescrito e escreveu o nome do destinatário: Sr. Naniwa Kawashima.

       Yoshiko estava agora acima do amor ou do ódio e tudo lhe era indiferente.

       Mais tarde, o mesmo guarda voltou à sua cela.

       - Está aqui um senhor do Conselho de Auditorias do Estado que quer falar consigo!

       Mal capaz de despertar, Yoshiko protestou com ar apático: - Eles já me tiraram tudo! Já foi tudo inventariado!

       Ergueu-se com dificuldade, limpou os olhos com as costas das mãos e rompeu numa tosse contínua, cavernosa. Já lhe tinham tirado tudo o que havia para tirar - a riqueza, o futuro, tudo. Que queriam dela agora? Relutante em olhar para o visitante, ouviu-o dirigir-se a ela no jargão oficial:

       - Os nossos auditores encontraram um colar entre os muitos bens que foram confiscados. O colar em questão tem a forma de uma fénix e cerca de um milhar de diamantes incrustados, de formas e tamanhos variados. Não tínhamos a certeza se o colar era ou não seu. Precisamos da sua confirmação.

       Ela conhecia aquela voz... Mas estava tão diferente agora - tão fria, tão desprovida de emoção... Ergueu num repente a cabeça e os seus nervos vacilantes, como se um choque lhes tivesse dado força, concentraram-se no visitante. Yoshiko ficou sem fala. Aquela inesperada visita, aquele funcionário do Estado tão elegante no seu fato, era Yun Kai!

Nos anos entretanto transcorridos, nunca lhe passara. pela cabeça que pudesse voltar a ver Yun Kai, e muito menos em circunstâncias tão constrangedoras.

- Eu estou na sala das visitas - disse ele, sem o menor traço de emoção.

       Deixou-a completamente aturdida. Yoshiko sentia-se tão inferior, tão velha e feia. Há muito que perdera o último vestígio de auto-estima - como podia encará-lo? As suas mãos agitavam-se impotentes enquanto andava de um lado para o outro da cela. Que ia fazer?

       Passou com um pente pelo cabelo, apressadamente, mas o cabelo estava tão duro e retesado da muita sujidade acumulada, que acabou por aplicar-lhe um pouco de óleo de amendoim. Não havia espelhos na prisão, mas Yoshiko improvisara um, com um bocado de vidro partido e um resto de papel preto. Deu uma volta às suas coisas e tirou uma coisa de nada de pó dentífrico, que usava como substituto para o pó-de-arroz; aplicou-o no rosto até ter a certeza de que a sua pele estava branca. Encontrou um bocado de papel vermelho numa velha lata de rebuçados e esfregou-o nos lábios à falta de baton, espalhando a cor com a saliva. Deu uma olhadela para o espelho improvisado. Não, não estava satisfeita, mas que mais podia ela fazer?

Por fim, decidiu que estava pronta para ir à sala de visitas. Respirou fundo, longamente, procurando acalmar-se.

       O guarda conduziu-a, muito direita e determinada, à presença de Yun Kai. Decidira pôr um ar confiante, para que ele não se apercebesse de quão velha e destruída ela estava, mas o esforço só a fazia sentir-se pior.

       Yun Kai parecia constrangido. Esforçando-se por se manter direita, Yoshiko sentou-se diante dele. Foi ela a primeira a falar. A sua voz soou rouca e cansada. Até ela ficou surpreendida com o cansaço da sua voz.

       - Importava-se de me dizer qual a razão desta visita?

       Yun Kai pegou no colar e, com um gesto significativo, colocou-o na mesa que os separava. Embora cintilasse e dançasse, impelida por um fogo interior, a fénix ainda não conseguia voar.

       - Esperávamos que conseguisse identificar este objecto e que nos dissesse se é ou não seu. Depois de verificarmos a sua origem, poderemos registá-lo como um artigo confiscado e dispor dele como melhor entendermos.

       Yoshiko esboçou um risinho triste.

       - Se o colar já foi confiscado, não posso dizer que me pertence, pois não?

       Cruzou os braços sobre o peito, numa tentativa de ocultar o seu desconforto e o coração que batia desenfreadamente. Yun Kai inclinou-se para ela e Yoshiko fitou-o incrédula. Qual era a ideia dele? Um tumulto de suspeitas agitava-se na sua mente.

       - Está absolutamente certa disso? - disse ele, aproximando-se um pouco mais dela. Depois, lançou um olhar rápido e nervoso à sua volta e segredou-lhe ao ouvido:

       - Quando estiveres diante do pelotão de fuzilamento, as balas serão de pólvora seca, mas nenhum dos presentes saberá. Quando ouvires os tiros, finges que foste atingida e deixas-te cair no chão. Eu estarei lá, a vigiar tudo. Devo-te a minha vida. Vim pagar essa dívida.

       Pagar uma dívida? Por um momento, Yoshiko não entendeu a que se referia Yun Kai. Depois, porém, lembrou-se. Anos antes, apontara-lhe uma arma, alvejara-o mesmo - podia tê-lo matado, mas a bala roçara-lhe o cabelo. Deixara-o viver. E agora, ali estava ele, diante dela, o único obstáculo que se interpunha entre ela e uma morte certa. A experiência ensinara-lhe a importância de manter a cabeça fria quando a parada era alta. Tinha de manter o segredo muito bem guardado.

       Ouviu-o até ao fim; quando chegaram a um entendimento silencioso, o rosto dela permaneceu imóvel - porém, quando o fixou com um olhar breve e penetrante, os seus olhos disseram tudo. Depois, olhou para o colar.

       - Claro que cooperarei com o governo, mas... - hesitou, perscrutando o rosto de Yun Kai e olhando de relance para o guarda que estava à saída da sala. - Vocês confiscaram-me todos os meus bens - declamou ela bem alto, como se estivesse a fazer uma declaração pública. - Podiam satisfazer-me um último desejo... Gostaria de um quimono, um quimono de seda branca - em troca de todos os meus bens terrenos. Acha que seria possível?

       Os olhos dela encheram-se de lágrimas inquietas. Não havia mais nada que pudesse dizer. O coração martelava-lhe no peito, o estômago era um nó pegado.

       Yun Kai apertou-lhe a mão com força, com tanta força que os nós dos seus dedos ficaram brancos, e ela sentiu dor, uma dor que penetrava fundo no seu coração. Nenhum deles falou - aquele breve contacto chegava para exprimir mil palavras e mil sentimentos. Num momento, as suas mãos teriam de separar-se.

       Uma sensação amarga e doce inundou Yoshiko. Teve de reprimir as lágrimas. Não podia permitir-se o menor sinal de fraqueza.

       Acenando com um ar superior, Yun Kai juntou as suas coisas, lançando-lhe por fim um último olhar. Os lábios dela tremiam e, apesar de não produzirem nenhum som, Yun Kai pôde ler claramente o que eles diziam:

       - Ah-fu!

       Yoshiko baixou a cabeça e foi-se embora. Desta vez, queria ser a primeira a partir. Nunca mais permitiria que um homem lhe virasse as costas.

       Estaria ele a falar a sério?, pensou. Decidiu não se consumir com dúvidas. Sofrera já muitas decepções, mas queria tanto acreditar naquela derradeira réstia de esperança! Apesar disso, enfrentava o futuro com fria lucidez. já tinha passado os quarenta e os melhores anos da sua vida estavam acabados. Os seus dias de poder e influência eram agora meras recordações. À sua espera, tinha apenas um lento declínio e a humilhação pública. Fora uma combatente, uma comandante... Ah, pensou, teria sido heróico, morrer no campo de batalha...! Além do mais, todos os seus antigos cúmplices estavam na mesma situação que ela. Eram uma multidão politicamente ambiciosa de oficiais, espiões e criminosos de guerra japoneses. Todos eles eram culpados de alguma coisa e, com as forças das Nações Unidas no seu encalço, depressa seriam apanhados e condenados pelo seu passado. Por que haveria ela de ser diferente dessa gente?

       Perguntava-se por vezes se o seu julgamento não teria sido apenas um espectáculo montado num teatro, se o desfecho não estaria já escrito quando a acção começou, se a sua condenação à morte não teria sido uma inevitabilidade. Perdera essa partida. O aparecimento em cena de Yun Kai seria a última partida de um jogo de azar em que as paradas não poderiam ser mais altas. Aguardava impacientemente que os jogadores mostrassem claramente o seu jogo. Queria que tudo aquilo acabasse rapidamente - a espera era dilacerante.

       Estava ainda escuro. O dia 25 de Março de 1948 anunciava-se apenas. Chegara a hora de Yoshiko, mas nenhum vestígio de medo obscurecia a sua expressão e, na sua fronte, não se via nenhum vinco de inquietação. Desviando por um momento os olhos do quimono branco de seda que se preparava para vestir, deu com o guarda, que a fitava com uma expressão reprovadora.

       - Eu não quero morrer com esta roupa miserável da prisão... - começou ela a explicar.

       Mas o guarda limitou-se a abanar a cabeça. Ela não protestou - sabia que não podia esperar nenhum favor especial daquele homem; por isso, o melhor era obedecer-lhe. Suspirando de pena, atirou para um canto o suave e etéreo quimono.

       Um quimono de seda branco. Tinha apenas sete anos quando vestira o seu primeiro quimono. Era uma recordação amarga e doce. Chorara e protestara, usando de toda a sua força para se libertar dele - mas o quimono era como um colete de forças. Protestara e lutara, mas não conseguira ver-se livre daquele traje. Acabaria por gostar dele. Naquele dia, tinham feito dela outra pessoa.

       - Eu sou chinesa! - gritara ela. Na verdade, não queria ser japonesa. E afinal eram os chineses que a condenavam à morte... Não tinha mais de sete anos.

       - Pois que assim seja, já que não me permitem usá-lo... Francamente, tanto me faz... É uma grande honra, morrer diante do pelotão de fuzilamento, é um privilégio, é... é como ser convidada para um banquete! Estarei apenas um pouco mal vestida, é tudo.

       Yoshiko virou-se de novo para o guarda.

       - Posso escrever o meu testamento?

       O guarda observou-a em silêncio, enquanto ela juntava apressadamente as suas últimas notas.

       - Isto nem chega para comprar um bocado de papel - disse ela, num tom soluçado, sabendo que o grosso maço de notas que estava a oferecer ao guarda não valia praticamente nada. Mesmo assim, o guarda estendeu-lhe um bocado de papel em branco.

       Com a caneta erguida sobre a folha em branco, Yoshiko hesitou por um momento, imersa nos seus pensamentos.

       "Tinha apenas uma recordação vaga, enevoada, do poema que pretendia escrever. Tinha de se apressar. Já era demasiado tarde. Já não tinha tempo. E então, de súbito, lembrou-se.

Tenho um lar para onde não posso voltar, Estou cheia de lágrimas que não posso chorar. Se a lei do mundo é a injustiça, Quem quererá escutar a minha história?

       Cuidadosamente, reverentemente, Yoshiko dobrou o papel em quatro, para que lhe coubesse na palma da mão.

       - Estou certa de que a situação da China melhorará muito sem mim! disse ela amargamente. - Eu nunca desejei outra coisa que não fosse o melhor para a China. É pena eu não poder viver para ver essas melhorias!

       O guarda olhou para o relógio e Yoshiko percebeu que estava na hora. Mesmo que pudesse, não faria sentido adiar aquilo. Por muito que amasse a vida, sabia que não podia agarrar-se a ela para sempre. Enquanto estes pensaméritos desfilavam na sua mente, um enigmático sorriso, que só ela compreendia, formou-se nos seus lábios - era tempo de aquele que dava as cartas mostrar o seu jogo.

       Altiva e impávida, abandonou a cela. Havia no ar uma friagem que fazia tremer os prisioneiros. Um arrepio percorreu o corpo de Yoshiko; a sua aparência, porém, era de uma serenidade absoluta. Com o seu porte majestoso, parecia mais uma imperatriz passando revista às suas tropas do que uma condenada a um passo da morte.

       Quando os guardas a deixaram, deu-se conta de uma canção que alguém trauteava. Sentiu um calafrio na espinha ao ouvir aquela canção triste, aquele choro.

As mais belas flores raramente florescem, Os mais belos dias dão lugar às nuvens, A tristeza invade os sorrisos mais radiosos E as lágrimas maculam a pele mais alva. Separamo-nos esta noite: Voltaremos a ver-nos? Vem, vamos beber este copo E outro, e mais outro. Vamos rir enquanto pudermos! Quem sabe o que o amanhã nos traz?

Yoshiko cantou também, como se estivesse sonhando:

Separamo-nos esta noite: Voltaremos a ver-nos?

       Ternura e desespero encheram-lhe o coração. Oh, China, pensou, um dia compreenderás, um dia sentirás aquilo que eu sinto. Com toda a força, apertou o poema na sua mão fechada.

       Num canto escuro da prisão, um quimono de seda branca jazia, abandonado, num monte.

       O povo de Pequim dormia ainda um sono tranquilo quando, à luz pálida do alvorecer, Yoshiko foi conduzida ao terreiro das execuções. Permaneceu virada para o muro, enquanto o carrasco lia a sentença:

       - Yoshiko Kawashima, Princesa Hsien-tzu, de seu nome de nascimento, décima quarta filha do príncipe manchu Su, também conhecida como jóia do Oriente e Chin Pi-hui, de quarenta e dois anos, foi condenada pelo crime de traição. Todos os recursos foram rejeitados e por isso foi condenada à morte, devendo a sentença ser executada esta manhã, aos vinte e cinco do mês de Março de 1948.

       Ordenaram-lhe que ajoelhasse.

       Ouviu-se um sonoro estalido quando o carrasco destravou a arma. Yoshiko moveu-se quase imperceptivelmente, o bocado de papel bem apertado na mão fechada.

       Uma súbita e lúcida visão' varou-lhe o corpo como se fora um choque eléctrico: naquele exacto instante, encontrava-se no estreito precipício que separa a vida da morte. E tinha medo. Nenhum homem ou mulher, por muito corajoso que fosse, por muito empenhado numa causa que estivesse, poderia deixar de sentir esse choque, essa apreensão, diante do cano da arma do carrasco.

Um tiro ressoou.

Junto aos portões da prisão, um alarido de reprovação ergueu-se no ar, produzido pela multidão de repórteres que aí se juntara para cobrir a história. Acabavam de descobrir que haviam sido ludibriados. Tinham-nos impedido de assistir à execução. Segundo os primeiros rumores, a execução deveria ter ocorrido no dia anterior, na Prisão Municipal Número Dois; à última hora, o local e a data haviam sido alterados.

       Manhã cedo, a imprensa de Pequim deslocara-se em peso à Prisão Municipal Número Um. Havia até uma equipa de filmagens dos Estúdios Centrais de Cinema, esperançada em obter imagens para um documentário sobre a vida de Yoshiko Kawashima. Os homens dos estúdios não podiam estar mais consternados: faltava-lhes a cena derradeira, a mais dramática das cenas. Por que raio é que tinham arranjado tudo tão à pressa?, era a pergunta que andava de boca em boca.

       A algazarra era grande, mas os soldados de guarda aos portões da prisão mostravam-se inflexíveis, respondendo a todas as súplicas da imprensa com uma única e severa directiva: os portões da prisão não deveriam ser abertos em nenhuma circunstância, sem a autorização explícita do chefe dos guardas. Aliás, os guardas nem sequer estavam autorizados a responder a perguntas. Os repórteres avançavam, colavam-se aos portões, espetavam os seus cartões nas caras dos guardas, barafustavam. Mas era o mesmo que barafustarem para uma parede.

       Foi enquanto procuravam convencer as autoridades da prisão a deixarem-nos entrar, que uma detonação abafada chegou aos ouvidos dos Jornalistas. De início, não estavam muito certos do que poderia ter sido – seria possível que a execução tivesse decorrido no mais absoluto segredo? Que poderia ter acontecido?

       Foi então que o dia nasceu. Os primeiros raios de sol chegavam à terra e o povo de Pequim dava início a mais um dia, igual a todos os outros dias. Contudo, para aquela que fora executada, o dia seria diferente - para ela, não haveria mais auroras, mais amanhãs.

       Entretanto, um guarda escoltava um monge japonês até ao portão oeste da prisão, perto do qual um corpo jazia num vulgar caixão branco. Era o corpo de uma mulher e tinha o rosto coberto por um velho capacho de palha, o qual fora preso com dois tijolos partidos, não fosse o vento levá-lo. O cadáver tinha o uniforme cinzento da prisão. Nos pés, sapatos de pano azuis. O monge, Mestre Furukawa, avançou para identificar o corpo.

       Yoshiko nunca privara com Mestre Furukawa, embora ele fosse um monge budista proeminente e muito considerado, antigo superior de um mosteiro e actual presidente da Federação Budista do Norte da China. Muitos dos seus setenta e oito anos haviam sido gastos em deambulações pelo mundo e na disseminação da fé. Acompanhara o caso de Yoshiko com um interesse invulgar. Sabia, além de tudo o mais, que os amigos, familiares e conhecidos da princesa mostravam a maior relutância em identificar o corpo em público, não fosse a desonra dos seus crimes contaminá-los. Como ninguém se apresentara para reconhecer o corpo, Mestre Furukawa decidira seguir à risca os ensinamentos do seu Budismo Mahayana. Lembrando-se do preceito que diz que se deve condenar o crime, mas não o criminoso, o monge pedira autorização ao tribunal para verificar a identidade da mulher executada.

       O monge japonês aproximou-se do caixão e levantou o capacho que ocultava o rosto. O projéctil penetrara na nuca e saíra pelo lado esquerdo do rosto. O tiro fora disparado de muito perto, transformando o rosto numa massa irreconhecível de sangue e ossos, com uma mancha arroxeada à volta do sítio por onde a bala entrara.

       Mestre Furukawa murmurou um sutra, enquanto limpava algum do sangue com um paninho de algodão; mesmo assim, era absolutamente impossível dizer que aspecto tivera aquele rosto em vida. Uma chusma de repórteres apareceu numa correria enquanto o monge envolvia o corpo numa manta branca. Desataram a tirar fotografias, gritando excitados, empurrando-se e acotovelando-se para obterem a melhor perspectiva. No fim de contas, aquele era o cadáver de uma lenda.

       Todos falavam ao mesmo tempo.

- Deram-lhe um tiro?

- Por que é que só nos deixaram tirar uma fotografia do cadáver?

- Tanto trabalho, tanta pesquisa, para isto?

- Como é que soubeste? Quem é que te disse?

- É mesmo Yoshiko Kawashima?

- Sei lá! A cara está uma desgraça... Não se distingue o nariz da boca!

       - Não achas que há algo de estranho no modo como conduziram isto tudo? Não nos deixaram assistir à execução...

       - Pensava que ela usava o cabelo curto... O cadáver tem cá uma cabeleira... !

       - Se calhar não é Yoshiko.

       No meio deste tumulto, Mestre Furukawa continuou calmamente a envolver o corpo, primeiro com uma manta lavada, depois com uma coberta multicolorida - um desfecho adequado para uma vida cheia de cor. Mestre Furukawa continuou a entoar os seus sutras fúnebres, sem se preocupar com o sangue que lhe manchara a roupa, enquanto que dois jovens acólitos ajudavam a levar o corpo para o estrado de uma camioneta, que os aguardava a pouca distância da furibunda chusma de repórteres. Os jornalistas continuaram plantados no mesmo sítio muito tempo depois de a camioneta ter partido para o crematório. As discussões a que se entregavam eram intermináveis. Entretanto, na redacção de um dos jornais da capital, haviam recebido uma chamada urgente pedindo um inquérito, mas o cadáver há muito que fora levado.

       Quando a camioneta chegou ao crematório, os monges e os empregados do crematório levaram o cadáver para uma sala. Fizeram-no sem reverência, sem qualquer cerimónia - para eles, aquilo não passava de um trabalho. Todos os dias viam a morte. Nunca se perguntavam de quem era o cadáver. No que lhes dizia respeito, um cadáver era um cadáver, incapaz de sentir, incapaz de respirar - simplesmente morto. Ricos ou pobres, grandes ou pequenos, bons ou maus, belos ou feios - ali, todos eram iguais. Todos seriam cinzas no espaço de um momento.

       Enquanto os empregados levavam o cadáver, um dos braços deslizou e um bocado de papel flutuou por um segundo até cair no chão. Mas ninguém deu por isso. Ninguém soube nunca.

       Os monges recitaram uma última oração, o fogo estava pegado, os homens retiraram-se. Algumas horas depois, as violentas chamas haviam transformado todo o corpo em cinza. A cremação estava terminada à uma e meia da tarde. Mestre Furukawa e os seus ajudantes trataram então de dividir as cinzas. Metade iria para um relicário do sr. Kawashima; a outra metade seria devidamente inumada no cemitério do crematório.

       Enquanto enterravam a caixinha com as cinzas, os monges deram a Yoshiko um nome budista - Irmã Aisin do Musgo Azul e da Maravilhosa Fragrância. Ela não era esposa de ninguém, não havia um único membro da sua família que a reconhecesse, e o seu pai adoptivo vivia noutro país - daí que os monges tenham optado por "Irmã". Juntou-se uma multidão para assistir à cerimónia, mas não apareceu ninguém para chorar a morta. Choraram-na apenas os monges e, sob um vento gelado, um punhado de desconhecidos queimou oferendas de incenso em honra da defunta. Assim deixava o mundo a Irmã Aisin do Musgo Azul e da Maravilhosa Fragrância. Nascida em 1907. Falecida em 1948. Uma vida.

 

                                 EPÍLOGO

A mulher que telefonara para o jornal a pedir um inquérito, ameaçava não desistir e, ao fim de pouco tempo, a Procuradoria Geral recebia uma queixa. A morta não era Yoshiko Kawashima, mas a irmã da autora da queixa, Liu Feng-ling! O caso foi espalhado aos quatro ventos e a opinião pública, indignada, depressa se fez ouvir nos tribunais. Segundo a queixosa, uma tal Liu Feng-chen, a "verdade" era esta:

A irmã de Liu Feng-chen, Liu Feng-ling, era extremamente parecida com Yoshiko Kawashima e fora, como ela, condenada à morte. Além do mais, Feng-ling encontrava-se gravemente doente. Quando alguém da prisão apareceu em casa dos familiares de Feng-ling e lhes ofereceu dez lingotes de ouro, para que autorizassem a execução de Feng-ling no lugar de outra condenada, a família - e, em particular, a mãe e o marido aceitou. Contudo, consumada a execução, receberam apenas quatro lingotes; quando foram exigir o resto do pagamento, os indivíduos com quem tinham feito o negócio correram com eles. Por fim, a mãe resolveu ir pedir explicações - e, desde então, nunca mais foi vista!

       Foi grande o alarido público provocado por este caso. Os jornais publicavam quase todos os dias as histórias mais sensacionais, e as autoridades acabaram por ordenar um inquérito oficial. A controvérsia prolongou-se por vários meses, sempre com a mesma virulência. Todos se faziam a mesma pergunta: Yoshiko Kawashima estará viva? A investigação avançou, acompanhada por cabeçalhos de todo o tamanho em todos os diários. Mas a queixosa, para além de não ter deixado a sua morada completa, não nomeara as partes que acusava de terem participado no negócio. O inquérito estagnou. Entretanto, o velho monge, Mestre Furukawa, testemunhou em tribunal que o cadáver era efectivamente de Yoshiko e não de qualquer outra mulher. Mas a questão não estava ainda arrumada, bem pelo contrário.

       Algum tempo passado, Mestre Furukawa regressou ao Japão. Levava uma urna debaixo do braço quando chegou a casa de Kawashima, junto a um lago nas montanhas de Honshu. O monge, que tinha setenta e oito anos, foi recebido por um ancião que andava neste mundo há oitenta e cinco. Os dois frágeis anciãos saíram juntos passado pouco tempo, a fim de enterrarem as cinzas de Yoshiko. Na cova, ao lado da urna, colocaram vários objectos que ela usara em vida: uma velha coberta de veludo, um saco de água quente, um quimono branco.

       - Mesmo que não sejam as cinzas de Yoshiko - sugeriu Kawashima -, não acha que seria melhor dizermos uma oração? É que, no fim de contas, as cinzas podem ser dela...

       Até hoje, o mistério em torno da morte de Yoshiko Kawashima permanece insolúvel.

       Nove meses depois de ter recebido as cinzas de Yoshiko, Naniwa Kawashima, como acontecia todos os dias, ao entardecer, recebeu a visita da enfermeira que velava pelo seu estado de saúde. A primeira tarefa desta consistia em medir a temperatura do doente. Acabara a enfermeira de inserir o termómetro debaixo da axila, quando reparou que o ancião deixara subitamente de respirar. Naniwa Kawashima não mais voltaria a ver o céu cheio de flocos de neve. O exuberante espírito de camaradagem da sua juventude não passava agora de um eco longínquo. Não esperara sequer que a noite caísse.

       A sua lápide, onde se pode ler o nome budista que lhe foi atribuído, Grande Eremita de Sokutsufugai, Mosteiro de Shosoin, ergue-se numa fiada silenciosa ao lado das de sua mulher, Fukuko, e de sua filha adoptiva, Yoshiko, no lote da família Kawashima.

       Durante esse ano, em Pequim, foram executados inúmeros criminosos de guerra. Atiravam os condenados para os estrados das camionetas, com as mãos atadas atrás das costas, e assim eram passeados por toda a cidade, a caminho do local onde seriam executados. Nos costados das camionetas, caracteres enormes anunciavam os seus crimes: homicídios e mutilações, abuso de poder, extorsão e outras atrocidades. As multidões de espectadores que ocupavam os passeios inflamavam-se facilmente com tais exibições e desatavam a atirar tijolos aos prisioneiros, ao mesmo tempo que gritavam: - Morte aos demónios do Oriente! - Olho por olho, dente por dente! - A morte é pouco para eles!

Muitos dos condenados chegavam já sem vida ao local fixado para a sua execução. Alguns, porém, conseguiam agarrar-se a um último fio de vida. Aguardavam desesperadamente a morte, punidos até ao último momento por um sofrimento atroz. Entre esses condenados, encontrava-se Shunkichi Uno. A sua morte foi ainda mais miserável que a de Yoshiko.

O povo chinês nunca esqueceria as cruéis lições da história.

       Desiludido com a corrupção e a ineficácia do governo nacionalista, Yun Kai abandonou Pequim e seguiu para Yen'an, onde se juntou aos Comunistas. Aí, deixou de ser tanto Yun Kai como Ah-fu, e o que fez com o resto da sua vida permanece um mistério.

       Pu-yi, o "imperador" de Manchucuo, foi detido em 1946 pelo Exército Vermelho soviético, no aeroporto de Shenyang, quando se preparava para fugir. Conduziram-no ao Tribunal Militar Internacional de Tóquio, onde foi julgado. Mais tarde, enquanto cumpria a sua sentença num campo de reeducação no nordeste da China, escreveu um relato da sua vida.

       Yamaga, que se negara a cumprir ordens ultra-secretas para matar Yoshiko, foi detido no momento em que se apresentou no seu Quartel-General. Após o interrogatório, mandaram-no para a prisão, onde cumpriu uma pena não muito longa. Permaneceu numa quase total clandestinidade até ao fim da guerra, receando vir a ser acusado de crimes de guerra e enviado para a China a fim de ser julgado. O homem de aspecto nobre que, outrora, se passeara elegantemente num traje de erudito chinês, com chapéu de feltro e bengala, e falando um mandarim sem mácula, não passava agora de mais um japonês vencido e arruinado, com uma multidão de credores no seu encalço.

       Em janeiro de 1950, o jornal Morning Sun Weekly dava um relevo muito especial a uma estranha história:

Um cão selvagem foi visto a devorar uma cabeça humana, no meio do esterco de uma pocilga! Várias partes do crânio tinham ainda vestígios de cabelo, mas do rosto e do pescoço só restavam os ossos. Este caso provocou um verdadeiro reboliço na pequena vila de Hsishan, no distrito de Shanli, cujos habitantes lançaram rapidamente uma busca para localizarem as outras partes do corpo. Por fim, num pinhal, foi descoberto um cadáver sem cabeça, atado ao tronco de uma árvore com uma corda de cânhamo. Junto ao corpo, encontrava-se um saco preto que continha alguns comprimidos para dormir, uns quantos papéis e seis cartas...

       Era Yamaga, morto aos cinquenta e três anos. Não acreditara nas palavras do adivinho:

       "Nascido em 1894... o senhor Wang possui uma aparência nobre... Dentro de dez anos, morrerá miseravelmente por causa de uma mulher. Morrerá pelas suas próprias mãos e o seu corpo jazerá num sítio ermo e será devorado por cães selvagens.0 médium explicara-lhe:

       se conseguir evitar este desastre, a sua sorte mudará, e conhecerá incalculáveis riquezas.

       Eram misteriosas as voltas do destino, inexoráveis. Tudo o que o médium previra acontecera. Mas era forçoso que as coisas se tivessem passado assim, exactamente assim? Era forçoso que ele tivesse de morrer - única e exclusivamente por causa de uma mulher? E a ela, que lhe sucedera realmente? Teria morrido? Viveria ainda?

       O tempo é como um rio, fluindo sempre, sempre, deixando-nos a nós para trás, algures no cais. E quando partimos, tudo o que resta de nós são sombras dançando no vento. Os nossos êxitos e fracassos, as nossas vitórias e derrotas, verdades e mentiras, amores e ódios - no fim, são tudo o mesmo.

Os três mil anos de história da China são um longo relato de morte e destrui-

ção - ano após ano, século após século, as flores converteram-se em pó, ossos

brancos acabaram em cinza. Mas o rio continua a correr e as folhas vermelhas do Outono dançam ao sabor do vento e por um momento rodopiam, antes de se confundirem com a lama dos caminhos.

       Os anos passaram. Houve uma guerra civil na China, a que se seguiram novas lutas intestinas. Os chineses atacavam-se impiedosamente uns aos outros, pelos pecados do passado - os reais e os imaginados. O sangue não parou nunca de correr.

       O Japão perdeu a guerra e passou pela humilhação de ter de reconstruir uma nação a partir do nada; no fim de tudo, porém, o Japão tornou-se um país rico e poderoso, invejado por todo o mundo.

 

                                       POSFÁCIO

Ginza é a zona mais viva e movimentada de Tóquio. Floresta de arranha-céus, centro comercial e financeiro, Ginza alberga também uma imensidão de lojas famosas: Mitsukoshi, Matsuzaka-ya, Seibu e Tokyu, para referir apenas algumas.

       Aos domingos, algumas das ruas desta zona habitualmente fervilhante de vida são vedadas ao trânsito automóvel. Esta área transforma-se, então, num verdadeiro "paraíso pedestre". A atmosfera é francamente festiva. As ruas ficam apinhadas de consumidores endinheirados e muito animados, todos eles dando os seus passeios e divertindo-se, comendo, bebendo, fazendo compras, ou, muito simplesmente, apreciando os outros.

       Uma vez por outra, no meio deste ambiente festivo, damos com a figura fugidia de uma velha. Veste um quimono branco e traz um macaquito empoleirado no ombro. Tem um aspecto digno, ainda que um tanto miserável. Vêmo-la num relance, mas eis que, num ápice, a perdemos de vista, engolida por aquele mar de transeuntes que gozam os prazeres de um fim-de-semana. Que é feito dela? Desapareceu. Sem deixar rasto.

Quem será aquela mulher? A pergunta, muito provavelmente, ficará a pairar no nosso espírito. Para dizer a verdade, mal a vimos... Quem sabe... tal

vez seja apenas um produto da nossa imaginação, um fantasma de um longínquo passado.

 

                                                                                Lilian Lee

 

 

                      

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