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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ANTES DO BAILE VERDE / Lygia Fagundes Telles
ANTES DO BAILE VERDE / Lygia Fagundes Telles

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ANTES DO BAILE VERDE

 

                   Os Objetos

Finalmente pousou o olhar no globo de vidro e estendeu a mão.

— Tão transparente. Parece uma bolha de sabão, mas sem aquele colorido de bolha refletindo a janela, tinha sem­pre uma janela nas bolhas que eu soprava. O melhor canu­do era o de mamoeiro. Você também não brincava com bo­lhas? Hein, Lorena?

Ela esticou entre os dedos um longo fio de linha verme­lha preso à agulha. Deu um nó na extremidade da linha e, com a ponta da agulha, espetou uma conta da caixinha ani­nhada no regaço. Enfiava um colar.

— Que foi?

Como não viesse a resposta, levantou a cabeça. Ele abria a boca, tentando cravar os dentes na bola de vidro. Mas os dentes resvalavam, produzindo o som fragmentado de pe­quenas castanholas.

— Cuidado, querido, você vai quebrar os dentes! Ele rolou o globo até a face e sorriu.

— Aí eu compraria uma ponte de dentes verdes como o mar com seus peixinhos ou azuis como o céu com suas es­trelas, não tinha uma história assim? Que é que era verde como o mar com seus peixinhos?

— O vestido que a princesa mandou fazer para a festa. Lentamente ele girou o globo entre os dedos, examinan­do a base pintalgada de cristais vermelhos e verdes.

— Como um campo de flores. Para que serve isto, Lorena?

— É um peso de papel, amor.

— Mas se não está pesando em nenhum papel — es­tranhou ele, lançando um olhar à mesa. Pousou o globo e inclinou-se para a imagem de um anjo dourado, deitado de costas, os braços abertos. — E este anjinho? O que significa este anjinho?

Com a ponta da agulha ela tentava desobstruir o furo da conta de coral. Franziu as sobrancelhas.

— É um anjo, ora.

— Eu sei. Mas para que serve? — insistiu. E apressando-se antes de ser interrompido: — Veja, Lorena, aqui na mesa este anjinho vale tanto quanto o peso de papel sem papel ou aquele cinzeiro sem cinza, quer dizer, não tem sentido nenhum. Quando olhamos para as coisas, quando tocamos nelas é que começam a viver como nós, muito mais impor­tantes do que nós, porque continuam. O cinzeiro recebe a cinza e fica cinzeiro, o vidro pisa o papel e se impõe, esse colar que você está enfiando... É um colar ou um terço?

— Um colar.

— Podia ser um terço?

— Podia.

— Então é você que decide. Este anjinho não é nada, mas se toco nele vira anjo mesmo, com funções de anjo. — Segurou-o com força pelas asas. — Quais são as funções de um anjo?

Ela deixou cair na caixa a conta obstruída e escolheu ou­tra. Experimentou o furo com a ponta da agulha.

— Sempre ouvi dizer que anjo é o mensageiro de Deus.

— Tenho então uma mensagem para Deus — disse ele e encostou os lábios na face da imagem. Soprou três vezes, cerrou os olhos e moveu os lábios murmurejantes. Tateou-lhe as feições como um cego. — Pronto, agora sim, agora é um anjo vivo.

— E o que foi que você disse a ele?

— Que você não me ama mais.

Ela ficou imóvel, olhando. Inclinou-se para a caixinha de contas.

— Adianta dizer que não é verdade?

— Não, não adianta. — Colocou o anjo na mesa. E aper­tou os olhos molhados de lágrimas, de costas para ela e in­clinado para o abajur. — Veja, Lorena, veja... Os objetos só têm sentido quando têm sentido, fora disso... Eles precisam ser olhados, manuseados. Como nós. Se ninguém me ama, viro uma coisa ainda mais triste do que essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra, vazio, vazio. É o peso de papel sem papel, o cinzeiro sem cinza, o anjo sem anjo, fico aquela adaga ali fora do peito. Para que serve uma adaga fora do peito? — perguntou e tomou a adaga entre as mãos. Voltou-se, subitamente animado. — É árabe, hein, Lorena? Uma meia-lua de prata tão aguda... Fui eu que descobri esta adaga, lembra? Estava na vitrina, quase escondida debaixo de uma bandeja, lembra?

Ela tomou entre as pontas dos dedos o fio de coral e ba­lançou-o num movimento de rede.

— Ah, não fale isso! Se você soubesse como gostei daque­la bandeja, acho que nunca mais vou gostar de uma coisa assim... Se pudesse, tomava já um avião, voltava lá no anti­quário do grego barbudo e saía com ela debaixo do braço. As alças eram cobrinhas se enroscando em folhas e cipós, umas cobrinhas com orelhas, fiquei apaixonada pelas cobrinhas.

— Mas por que você não comprou?

— Era caríssima, amor. Nossos dólares estavam no fim, o pouco que restou só deu para essas bugigangas.

— Fale baixo, Lorena, fale baixo! — suplicou ele num tom que a fez levantar a cabeça num sobressalto. Tranquilizou-se quando o viu sacudindo as mãos, afetando pânico. — Cha­mar a adaga e o anjo de bugigangas, que é isso! O anjo vai correndo contar para Deus.

— Não é um anjo intrigante — advertiu, encarando-o. — E antes que me esqueça, você diz que se ninguém nos ama, viramos coisa fora de uso, sem nenhuma significação, cer­to? Pois saiba o senhor que muito mais importante do que sermos amados é amar, ouviu bem? É o que nos distingue desse peso de papel que você vai fazer o favor de deixar em cima da mesa antes que quebre, sim?

— O vidro já está ficando quente — disse e fechou o glo­bo nas mãos. Levou-o ao ouvido, inclinou a cabeça e falou brandamente como se ouvisse o que foi dizendo: — Quando eu era criança, gostava de comer pasta de dente.

— Que marca?

— Qualquer marca. Tinha uma com sabor de hortelã, era ardido demais e eu chorava de sofrimento e gozo. Minha ir­mãzinha que tinha dois anos comia terra.

Ela riu.

— Que família!

Ele riu também, mas logo ficou sério. Sentou-se diante dela, juntou as pernas e colocou o globo nos joelhos. Cer­cou-o com as mãos em concha, num gesto de proteção. In­clinou-se, bafejando sobre o globo.

— Lorena, Lorena, é uma bola mágica!

Voltada para a luz, ela enfiava uma agulha. Umedeceu a ponta da linha, ergueu a agulha na altura dos olhos es­trábicos na concentração e fez a primeira tentativa. Falhou. Mordiscou de novo a linha e com um gesto incisivo foi apro­ximando a linha da agulha. A ponta endurecida do fio varou a agulha sem obstáculo.

— A cópula.

— Que foi? — perguntou ela, relaxando os músculos. Vol­tou-se satisfeita para a caixa de contas. — Que foi, amor?

Ele cobriu o globo com as mãos. Bafejou sobre elas.

— É uma bola de cristal, Lorena — murmurou com voz pesada. Suspirou gravemente. — Por enquanto só vejo as­sim uma fumaça, tudo tão embaçado...

— Insista, Miguel. Não está clareando?

— Mais ou menos... espera, a fumaça está sumindo, ago­ra está tão mais claro, puxa, que nítido! O futuro, Lorena, estou vendo o futuro! Vejo você numa sala... é esta sala! Você está de vermelho, conversando com um homem.

— Que homem?

— Espera, ele ainda está um pouco longe... Agora vejo, é seu pai. Ele está aflito e você procura acalmá-lo.

— Por que está aflito?

— Porque ele quer que você me interne e você está resis­tindo, mas tão sem convicção. Você está cansada, Lorena querida, você está quase chorando e diz que estou melhor, que estou melhor...

Ela endureceu a fisionomia. Limpou a unha com a ponta da agulha.

— E daí?

— Daí seu pai disse que não melhorei coisa nenhuma, que não há esperança — repetiu ele inclinando-se, as mãos nos olhos em posição de binóculo postado no globo. — Es­pera, está entrando alguém de modo tão esquisito... eu, sou eu! Estou entrando de cabeça para baixo, andando com as mãos, plantei uma bananeira e não consegui voltar.

Ela enrolou o fio de contas no pescoço, segurando fir­me a agulha para as contas não escaparem. Riu, alisando as contas.

— Plantar bananeira justo nessa hora, amor? Por que você não ficou comportadinho? Hum?... E o que foi que meu pai fez?

— Baixou a cabeça para não me ver mais. Você então me olhou, Lorena. E não achou nenhuma graça em mim. Antes você achava.

Vagarosamente ela foi recolhendo o fio. Deslizou as pon­tas dos dedos pelas contas maiores, alinhando-as.

— Fico sempre com medo que você desabe e quebre o vaso, os copos. E depois, cai tudo dos seus bolsos, uma desordem.

Ele recolocou o peso na mesa. Encostou a cabeça na pol­trona e ficou olhando para o teto.

— Tinha um lustre na vitrina do antiquário, lembra? Um lustre divertido, cheio de pingentes de todas as cores, uns cristaizinhos balançando com o vento, blim-blim... Estava ao lado da gravura.

— Que gravura?

— Aquela já carunchada, tinha um nome pomposo, Os Funerais do Amor, em italiano fica bonito, mas não sei mais como é em italiano. Era um cortejo de bailarinos descalços carregando guirlandas de flores, como se estivessem indo para uma festa. Mas não era uma festa, estavam todos tris­tes, os amantes separados e chorosos atrás do amor morto, um menininho encaracolado e nu, estendido numa rede. Ou num coche?... Tinha flores espalhadas pela estrada, o cortejo ia indo por uma estrada. Um fauno menino conso­lava a amante tão pálida, tão dolorida...

Ela concentrou-se.

— Esse quadro estava na vitrina?

— Perto do lustre que fazia blim-blim.

— Não sei, mas assim como você descreveu é triste de­mais. Juro que não gostaria de ter um quadro desses em casa.

— Mais triste ainda era o anão.

— Tinha um anão na gravura?

— Não, ele não estava na gravura, estava perto.

— Mas... era um anão de jardim?

— Não, era um anão de verdade.

— Tinha um anão na loja?

— Tinha. Estava morto, um anão morto, de smoking, o caixão estava na vitrina. Luvas brancas e sapatinhos de fivela. Tudo nele era brilhante, novo, só as rosas estavam ve­lhas. Não deviam ter posto rosas assim velhas.

— Eram rosas brancas? — perguntou ela guardando o fio de contas na caixa. Baixou a tampa com um baque metálico. — Eram rosas brancas?

— Brancas.

— As rosas brancas murcham mais depressa. E fazia calor. Ele inclinou a cabeça para o peito e assim ficou, imóvel, os

olhos cerrados, as pálpebras crispadas. O cigarro apagou-se entre seus dedos.

— Lorena...

— Hum?

— Vamos tomar um chá. Um chá com biscoitos, quero biscoitos.

Ela levantou-se. Fechou o livro que estava lendo.

Ótimo, faço o chá. Só que o biscoito acabou, posso arru­mar umas torradas, bastante manteiga, bastante sal. Hum?

— Eu vou comprar os biscoitos — disse ele, tomando-lhe a cabeça entre as mãos. — Minha linda Lorena. Biscoitos para a linda Lorena.

Ela desvencilhou-se rápida.

— Vou pôr água para ferver. Pega o dinheiro, está na mi­nha bolsa.

— No armário?

— Não, em cima da cama, uma bolsa verde.

Ele foi ao quarto, abriu a bolsa e ficou olhando para o inte­rior dela. Tirou o lenço manchado de ruge. Aspirou-lhe o per­fume. Deixou cair o lenço na bolsa, colocou-a com cuidado no mesmo lugar e voltou para a sala. Pela porta entreaberta da cozinha pôde ouvir o jorro da torneira. Saiu pisando leve. No elevador, evitou o espelho. Ficou olhando para os botões, percorrendo com o dedo um por um até chegar ao botão pre­to com a letra T, invisível de tão gasta. O elevador já descia e ele continuava com o dedo no botão, sem apertá-lo, mas percorrendo-o num movimento circular, acariciante. Quan­do ela gritou, só seus olhos se desviaram na direção da voz vindo lá de cima e tombando já meio apagada no poço.

— Miguel, onde está a adaga?! Está me ouvindo, Mi­guel? A adaga!

Ele abriu a porta do elevador.

— Está comigo.

O porteiro ouviu e foi-se afastando de costas. Teve um gesto de exagerada cordialidade.

— Uma bela noite! Vai passear um pouco?

Ele parou, olhou o homem. Apressou o passo na direção da rua.

 

                   Verde Lagarto Amarelo

Ele entrou com seu passo macio, sem ruído, não chegava a ser felino: apenas um andar discreto. Polido.

— Rodolfo! Onde está você?... Dormindo? — perguntou quando me viu levantar da poltrona e vestir a camisa. Bai­xou o tom de voz. — Está sozinho?

Ele sabe muito bem que estou sozinho, ele sabe que sem­pre estou sozinho.

— Estava lendo.

— Dostoiévski?

Fechei o livro e não pude deixar de sorrir. Nada lhe es­capava.

— Queria lembrar uma certa passagem... Só que está quente demais, acho que este é o dia mais quente desde que começou o verão.

Ele deixou a pasta na cadeira e abriu o pacote de uvas roxas.

— Estavam tão maduras, olha só que beleza — disse ti­rando um cacho e balançando-o no ar como um pêndulo. — Prova! Uma delícia.

Com um gesto casual, atirei meu paletó em cima da mesa, cobrindo o rascunho de um conto que começara naquela manhã.

— Já é tempo de uvas? — perguntei colhendo um bago. Era enjoativo de tão doce mas se eu rompesse a polpa

cerrada e densa sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da língua pude sentir a semente apontando sob a polpa. Va­rei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto.

— Trouxe também uma coisa... Mostro depois. Encarei-o. Quando ele sorria ficava menino outra vez.

Seus olhos tinham o mesmo brilho úmido das uvas.

— Que coisa?

— Mas se eu já disse que é surpresa! Mostro depois. Não insisti. Conhecia de sobra aquela antiga expressão com que vinha me anunciar que tinha algo escondido no bolso ou debaixo do travesseiro. Acabava sempre por me oferecer seu tesouro: a maçã, o cigarro, a revistinha porno­gráfica, o pacote de suspiros, mas antes ficava algum tempo me rondando com aquele ar de secreto deslumbramento.

— Vou fazer um café — anunciei.

— Só se for para você, tomei há pouco na esquina.

Era mentira. O bar da esquina era imundo e para ele o café fazia parte de um ritual nobre, limpo. Dizia isso para me poupar, estava sempre querendo me poupar.

— Na esquina?

— Quando comprei as uvas...

Meu irmão. O cabelo louro, a pele bronzeada de sol, as mãos de estátua. E aquela cor nas pupilas.

— Mamãe achava que seus olhos eram cor de violeta.

— Cor de violeta?

— Foi o que ela disse à tia Débora, meu filho Eduardo tem os olhos cor de violeta.

Ele tirou o paletó. Afrouxou a gravata.

— Como é que são olhos cor de violeta?

— Cor de violeta — eu respondi abrindo o fogareiro. Ele riu apalpando os bolsos do paletó até encontrar

o cigarro.

— Meu Deus, tinha um canteiro de violetas no jardim de casa... Não eram violetas, Rodolfo?

— Eram violetas.

— E uma parreira, lembra? Nunca conseguimos um ca­cho maduro daquela parreira — disse amarfanhando com um gesto afetuoso o papel das uvas. — Até hoje não sei se eram doces. Eram doces?

— Também não sei, você não esperava amadurecer.

Vagarosamente ele tirou as abotoaduras e foi dobran­do a manga da camisa com aquela arte toda especial que tinha de dobrá-la sem fazer rugas, na exata medida do punho. Os braços musculosos de nadador. Os pelos dourados. Fiquei a olhar as abotoaduras que tinham sido do meu pai.

— A Ofélia quer que você almoce domingo com a gen­te. Ela releu seu romance e ficou no maior entusiasmo, gostou ainda mais do que da primeira vez, você precisa ver com que interesse analisou as personagens, discutiu os detalhes...

— Domingo já tenho um compromisso — eu disse en­chendo a chaleira de água.

— E sábado? Não me diga que sábado você também não pode.

Aproximei-me da janela. O sopro do vento era ardente como se a casa estivesse no meio de um braseiro. Respirei de boca aberta agora que ele não me via, agora que eu po­dia amarfanhar a cara como ele amarfanhara o papel. Es­freguei nela o lenço, até quando, até quando?!... E me tra­zia a infância, será que ele não vê que para mim foi só so­frimento? Por que não me deixa em paz, por quê? Por que tem que vir aqui e ficar me espetando, não quero lembrar nada, não quero saber de nada! Fecho os olhos. Está ama­nhecendo e o sol está longe, tem brisa na campina, cascata, orvalho gelado deslizando na corola, chuva fina no meu ca­belo, a montanha e o vento, todos os ventos soprando. Os ventos! Vazio. Imobilidade e vazio. Se eu ficar assim imóvel, respirando leve, sem ódio, sem amor, se eu ficar assim um instante, sem pensamento, sem corpo...

— E sábado? Ela quer fazer aquela torta de nozes que você adora.

— Cortei o açúcar, Eduardo.

— Mas saia um pouco do regime, você emagreceu, não emagreceu?

— Ao contrário, engordei. Não está vendo? Estou enorme.

— Não é possível! Assim de costas você me pareceu tão mais magro, palavra que eu já ia perguntar quantos quilos você perdeu.

Agora a camisa se colava ao meu corpo. Limpei as mãos viscosas no peitoril da janela e abri os olhos que ardiam, o sal do suor é mais violento do que o sal das lágrimas. "Esse menino transpira tanto, meus céus! Acaba de vestir roupa limpa e já começa a transpirar, nem parece que tomou ba­nho. Tão desagradável!..." Minha mãe não usava a palavra suor que era forte demais para seu vocabulário, ela gosta­va das belas palavras. Das belas imagens. Delicadamente falava em transpiração com aquela elegância em vestir as palavras como nos vestia. Com a diferença que Eduardo se conservava limpo como se estivesse numa redoma, as mãos sem poeira, a pele fresca. Podia rolar na terra e não se cons­purcava, nada chegava a sujá-lo realmente porque mesmo através da sujeira podia se ver que estava intacto. Eu não. Com a maior facilidade me corrompia lustroso e gordo, o suor a escorrer pelo pescoço, pelos sovacos, pelo meio das pernas. Não queria suar, não queria mas o suor medonho não parava de escorrer manchando a camisa de amare­lo com uma borda esverdinhada, suor de bicho venenoso, traiçoeiro, malsão. Enxugava depressa a testa, o pescoço, tentava num último esforço salvar ao menos a camisa. Mas a camisa já era uma pele enrugada aderindo à minha com meu cheiro, com a minha cor. Era menino ainda mas houve um dia em que quis morrer para não transpirar mais.

— Na noite passada sonhei com nossa antiga casa — dis­se ele aproximando-se do fogareiro. Destapou a chaleira, espiou dentro. — Não me lembro bem mas parece que a casa estava abandonada, foi um sonho estranho...

— Também sonhei com a casa mas já faz tempo — eu disse.

Ele aproximou-se. Esquivei-me em direção ao armário. Tirei as xícaras.

— Mamãe apareceu no seu sonho? — perguntou ele.

— Apareceu. O pai tocava piano e mamãe... Rodopiávamos vertiginosos numa valsa e eu era magro, tão magro que meus pés mal roçavam o chão, senti mesmo que levantavam voo e eu ria enlaçando-a em volta do lustre quando de repente o suor começou a escorrer, escorrer.

— Ela estava viva?

Seu vestido branco se empapava do meu suor amarelo-verde mas ela continuava dançando, desligada, remota.

— Estava viva, Rodolfo?

— Não, era uma valsa póstuma — eu disse colocando na frente dele a xícara perfeita. Reservei para mim a que estava rachada. — Está reconhecendo essa xícara?

Ele tomou-a pela asa. Examinou-a. Sua fisionomia se ilu­minou com a graça de um vitral varado pelo sol.

— Ah!... as xicrinhas japonesas. Sobraram muitas ain­da?

O aparelho de chá, o faqueiro, os cristais e os tapetes ti­nham ficado com ele. Também os lençóis bordados, obriguei-o a aceitar tudo. Ele recusava, chegou a se exaltar, "Não quero, não é justo, não quero! Ou você fica com a me­tade ou então não aceito nada! Amanhã você pode se casar também...". Nunca, respondi. Moro só, gosto de tudo sem nenhum enfeite, quanto mais simples melhor. Ele parecia não ouvir uma só palavra enquanto ia amontoando os obje­tos em duas porções, "Olha, isto você leva que estava no seu quarto...". Tive que recorrer à violência. Se você teimar em me deixar essas coisas, assim que você virar as costas jogo tudo na rua! Cheguei a agarrar uma jarra, No meio da rua! Ele empalideceu, os lábios trêmulos. "Você jamais faria isso, Rodolfo. Cale-se, por favor, que você não sabe o que está di­zendo." Passei as mãos na cara ardente. E a voz da minha mãe vindo das cinzas: "Rodolfo, por que você há de entris­tecer seu irmão? Não vê que ele está sofrendo? Por que você faz assim?!". Abracei-o. Ouça, Eduardo, sou um tipo mesmo esquisito, você está farto de saber que sou meio louco. Não quero, não sei explicar mas não quero, está me entendendo? Leve tudo à Ofélia, presente meu. Não posso dar a vocês um presente de casamento? Para não dizer que não fico com nada, olha... está aqui, pronto, fico com essas xícaras!

— Finas como casca de ovo — disse ele batendo com a unha na porcelana. — Ficavam na prateleira do armário ro­sado, lembra? Esse armário está na nossa saleta.

Despejei água fervente na caneca. O pó de café foi se diluindo resistente, difícil. Minha mãe. Depois, Ofélia. Por que não haveria de ficar também com os lençóis?

— E Ofélia? Para quando o filho?

Ele apanhou a pilha de jornais velhos que estavam no chão, ajeitou-a cuidadosamente e esboçou um gesto de pro­cura, devia estar sentindo falta de um lugar certo para se­rem guardados os jornais já lidos. Teve uma expressão de resignado bom humor, mas então a desordem do aparta­mento comportava um móvel assim supérfluo? Enfiou a pi­lha na prateleira da estante e voltou-se para mim. Ficou me seguindo com o olhar enquanto eu procurava no armário debaixo da pia a lata onde devia estar o açúcar. Uma barata fugiu atarantada, escondendo-se debaixo de uma tampa de panela e logo uma outra maior se despencou não sei de onde e tentou também o mesmo esconderijo. Mas a fresta era es­treita e ela mal conseguiu esconder a cabeça, ah, o mesmo humano desespero na procura de um abrigo. Abri a lata de açúcar e esperei que ele dissesse que havia um novo siste­ma de acabar com as baratas, era facílimo, bastava chamar pelo telefone e já aparecia o homem de farda caqui e bomba em punho e num segundo pulverizava tudo. Tinha em casa o número do telefone, nem baratas nem formigas.

— No próximo mês, parece. Está tão lépida que nem acredito que esteja nas vésperas — disse ele me contornando pelas costas. Não perdia um só dos meus movimentos. — E adivinha agora quem vai ser o padrinho.

— Que padrinho?

— Do meu filho, ora!

— Não tenho a menor ideia.

— Você.

Minha mão tremia como se ao invés de açúcar eu esti­vesse mergulhando a colher em arsênico. Senti-me infinitamente mais gordo. Mais vil. Tive vontade de vomitar.

— Não faz sentido, Eduardo. Não acredito em Deus, não acredito em nada.

— E daí? — perguntou ele, servindo-se de mais açúcar ainda. Atraiu-me quase num abraço. — Fique tranquilo, eu acredito por nós dois.

Tomei de um só trago o café amargo. Uma gota de suor pingou no pires. Passei a mão pelo queixo. Não pudera ser pai, seria padrinho. Não era um ser amável? Um casal ama-bilíssimo. A pretexto de aquecer o café, fiquei de costas e então esfreguei furtivamente o pano de prato na cara.

— Era essa a surpresa? — perguntei e ele me olhou com inocência. Repeti a pergunta: — A surpresa! Quando che­gou você disse que...

— Ah! não, não! Não é isso não — exclamou e riu aper­tando os olhos que riam também com uma ponta de malícia. — A surpresa é outra. Se der certo, Rodolfo, se der cer­to!... Enfim, você é quem vai decidir. Ponho nas suas mãos.

Era exatamente a expressão da minha mãe quando vi­nha me preparar para uma boa notícia. Rondava, rondava e ficava me observando reticente, saboreando o segredo até o momento em que não resistia mais e contava. A condição era invariável: "Mas você vai me prometer que não vai co­mer nenhum doce durante uma semana, só uma semana!".

E se ele fosse morar longe? Podia tão bem se mudar de ci­dade, viajar. Mas não. Precisava ficar por perto, sempre em redor, me olhando. Desde pequeno, no berço já me olhava assim. Não precisaria me odiar, eu nem pediria tanto, bas­tava me ignorar, se ao menos me ignorasse. Era bonito, inte­ligente, amado, conseguiu sempre fazer tudo muito melhor do que eu, muito melhor do que os outros, em suas mãos as menores coisas adquiriam outra importância, como que se renovavam. E então? Natural que esquecesse o irmão obe­so, malvestido, malcheiroso. Escritor, sim, mas nem aquele tipo de escritor de sucesso, convidado para festas, dando entrevistas na televisão: um escritor de cabeça baixa e cala­do, abrindo com as mãos em garra seu caminho. Se ao me­nos ele... mas não, claro que não, desde menino eu já estava condenado ao seu fraterno amor. Às vezes me escondia no porão, corria para o quintal, subia na figueira, ficava imóvel, um lagarto no vão do muro, pronto, agora não vai me achar. Mas ele abria portas, vasculhava armários, abria a folhagem e ficava rindo por entre lágrimas. Engatinhava ainda quando saía à minha procura, farejando meu rastro. "Rodolfo, não faça seu irmãozinho chorar, não quero que ele fique triste!" Para que ele não ficasse triste, só eu soube que ela ia morrer. "Você já é grande, você deve saber a verdade", disse meu pai olhando reto nos meus olhos. "É que sua mãe não tem nem..." Não completou a frase. Voltou-se para a parede e ali ficou de braços cruzados, os ombros curvos. "Só eu e você sabemos. Ela desconfia mas de jeito nenhum quer que seu irmãozinho saiba, está entendendo?" Eu entendia. Na sua última festa de aniversário ficamos reunidos em redor da cama. "Laura é como o rei daquela história", disse meu pai, dando-lhe de be­ber um gole de vinho. "Só que ao invés de transformar tudo em ouro, quando toca nas coisas, transforma tudo em bele­za." Com os olhos cozidos de tanto chorar, ajoelhei-me e fin­gindo arrumar-lhe o travesseiro, pousei a cabeça ao alcance da sua mão, ah, se me tocasse com um pouco de amor. Mas ela só via o broche, um caco de vidro que Eduardo achou no quintal e enrolou em fiozinhos de arame formando um casu­lo, "Mamãezinha querida, eu que fiz para você!". Ela beijou o broche. E o arame ficou sendo prata e o caco de garrafa fi­cou sendo esmeralda. Foi o broche que lhe fechou a gola do vestido. Quando me despedi, apertei sua mão gelada contra minha boca, e eu, mamãe, e eu?...

— Esqueci de oferecer biscoitos, olha aí, você gosta — eu disse tirando a lata do armário.

— É sua empregada quem faz?

— Minha empregada só vem uma vez por semana, com­prei na rua — acrescentei e lancei-lhe um olhar. Que surpresa era essa agora? O que é que eu devia decidir? Eu devia decidir, ele disse. Mas o quê?... Interpelei-o: — Que é que você está escondendo, Eduardo? Não vai me dizer?

Ele pareceu não ter ouvido uma só palavra. Quebrou a cinza do cigarro, soprou o pouco que lhe caiu na calça e inclinou-se para os biscoitos.

— Ah!... rosquinhas. Ofélia aprendeu a fazer sequilhos no caderno de receitas da mamãe mas estão longe de ser como aqueles.

Ele comia sequilhos quando entrei no quarto. Ao lado, a caneca de chocolate fumegante. Eu tinha tomado chá. Chá. Dei uma volta em redor dele. O Júlio já está na esquina espe­rando, avisei. Veio me dizer que tem que ser agora. Ele então se levantou, calçou a sandália, tirou o relógio de pulso e a correntinha do pescoço. Dirigiu-se para a porta com uma fir­meza que me espantou. Vi-o ensanguentado, a roupa em ti­ras. Você é menor, Eduardo, você vai apanhar feito cachorro! Ele abriu os braços. "E daí? Quer que a turma me chame de covarde?" Sentei-me na cadeira onde ele estivera e ali fiquei encolhido, tomando o chocolate e comendo sequilhos. Tinha a boca cheia quando ouvi a voz da minha mãe chamando: "Rodolfo, Rodolfo!". Agora ela o carregava em prantos, ten­tando arrancar-lhe o canivete enterrado no peito até o cabo.

— Procurei seu romance em duas livrarias e não encon­trei, queria dar a uns amigos. Está esgotado, Rodolfo? O vendedor disse que vende demais.

— Exagero. Talvez se esgote mas não já.

A boca cheia de sequilhos e o suor escorrendo por todos os poros, escorrendo. A voz da minha mãe insistiu enérgica: "Rodolfo, você está me ouvindo? Onde está o Eduardo?!". Entrei no quarto dela. Estava deitada, bordando. Assim que me viu, sua fisionomia se confrangeu. Deixou o bordado e ficou balançando a cabeça. "Mas, filho, comendo de novo?! Quer engordar mais ainda? Hum?..." Suspirou, dolorido. "Onde está seu irmão?" Encolhi os ombros, Não sei, não sou pajem dele. Ela ficou me olhando. "Essa é maneira de me responder, Rodolfo? Hein?!..." Desci a escada comendo o resto dos sequilhos que escondi nos bolsos. O silêncio me seguiu descendo a escada degrau por degrau, colado ao chão, viscoso, pesado. Parei de mastigar. E de repente me precipitei pela rua afora, eu o queria vivo, o canivete não! Encontrei-o sentado na sarjeta, a camisa rasgada, um ar­ranhão fundo na testa. Sorriu palidamente. Ofegava. Júlio tinha acabado de fugir. Cravei o olhar no seu peito. Mas ele não usou o canivete? perguntei. Apoiando-se na árvore, levantou-se com dificuldade, tinha torcido o pé. "Que ca­nivete?..." Baixando a cabeça que latejava, inclinei-me até o chão. Você não pode andar, eu disse apoiando as mãos nos joelhos. Vamos, monta em mim. Ele obedeceu. Estranhei, era tão magro, não era? Mas pesava como chumbo. O sol batia em cheio em nós enquanto o vento levantava as tiras da sua camisa rasgada. Vi nossa sombra no muro, as tiras se abrindo como asas. Enlaçou-me mais fortemente, encostou o queixo no meu ombro e teve um breve soluço, "Que bom que você veio me buscar...".

— Seu novo romance? — perguntou ele na maior excita­ção. Encontrara o rascunho em cima da mesa. — Posso ler, Rodolfo? Posso?

Tirei-lhe as folhas das mãos e fechei-as na gaveta. Era o que me restara, escrever. Será possível que ele também?...

— Não, não é possível, Eduardo — eu disse, tentando abrandar a voz. — Está tudo muito no início, trabalho mal no calor — acrescentei meio distraidamente.

Olhei para sua pasta na cadeira e adivinhei a surpresa. Senti meu coração se fechar como uma concha. A dor era quase física. Olhei para ele. Você escreveu um romance. É isso? Os originais estão na pasta... É isso?

Ele então abriu a pasta.

 

                   Apenas um Saxofone

Anoiteceu e faz frio. "Merde! voilà l'hiver" é o verso que se­gundo Xenofonte cabe dizer agora. Aprendi com ele que pa­lavrão em boca de mulher é como lesma em corola de rosa. Sou mulher, logo, só posso dizer palavrão em língua estran­geira, se possível, fazendo parte de um poema. Então as pessoas em redor poderão ver como sou autêntica e ao mes­mo tempo erudita. Uma puta erudita, tão erudita que se quisesse podia dizer as piores bandalheiras em grego anti­go, o Xenofonte sabe grego antigo. E a lesma ficaria irreco­nhecível como convém a uma lesma numa corola de qua­renta e quatro anos. Quarenta e quatro anos e cinco meses, meu Jesus. Foi rápido, não? Rápido. Mais seis anos e terei meio século, tenho pensado muito nisso e sinto o próprio frio secular que vem do assoalho e se infiltra no tapete. Meu tapete é persa, todos meus tapetes são persas mas não sei o que fazem esses bastardos que não impedem que o frio se instale na sala. Fazia menos frio no nosso quarto, com as paredes forradas de estopa e o tapetinho de juta no chão, ele mesmo forrou as paredes e pregou retratos de antepassados e gravuras da Virgem de Fra Angélico, tinha paixão por Fra Angélico.

Onde agora? Onde? Podia mandar acender a lareira mas despedi o copeiro, a arrumadeira, o cozinheiro — despedi um por um, me deu um desespero e mandei a corja toda em­bora, rua, rua! Fiquei só. Há lenha em algum lugar da casa mas não é só riscar o fósforo e tocar na lenha como se vê no cinema, o japonês ficava horas aí mexendo, soprando até o fogo acender. E eu mal tenho forças para acender o cigar­ro. Estou aqui sentada faz não sei quanto tempo. Desliguei o telefone, me enrolei na manta, trouxe a garrafa de uísque e estou aqui bebendo bem devagarinho para não ficar de por­re, hoje não, hoje quero ficar lúcida, vendo uma coisa, vendo outra. E tem coisa à beça para ver tanto por dentro como por fora, ainda mais por fora, uma porrada de coisas que com­prei no mundo inteiro, coisas que nem sabia que tinha e que só vejo agora, justo agora que está escuro. É que fomos escu­recendo juntas, a sala e eu. Uma sala de uma burrice atroz, afetada, pretensiosa. E sobretudo rica, exorbitando de rique­za, abri um saco de ouro para o decorador se esbaldar nele. E se esbaldou mesmo, o viado. Chamava-se Renê e chegava logo cedinho com suas telas, veludos, musselinas, brocados, "Trouxe hoje para o sofá um pano que veio do Afeganistão, completamente divino! Di-vino!". Nem o pano era do Afe­ganistão nem ele era tão viado assim, tudo mistificação, cálculo. Surpreendi-o certa vez sozinho, fumando perto da janela, a expressão fatigada de um ator que já está farto de representar. Assustou-se quando me viu, como se o tivesse apanhado em flagrante roubando um talher de prata. Então retomou o gênero borbulhante e saiu se rebolando todo para me mostrar o oratório, um oratório falsamente antigo, tudo feito há três dias mas com furinhos na madeira imitando ca­runcho de três séculos. "Este anjo só pode ser do Aleijadinho, veja as bochechas! E os olhos de cantos caídos, um nadinha estrábicos..." Eu concordava no mesmo tom histérico, em­bora soubesse perfeitamente que o Aleijadinho teria que ter mais de dez braços para conseguir fazer tanto anjo assim, a casa de Madô também tem milhares deles, todos autênticos, "Um nadinha estrábicos", repetiu ela com a voz em falsete de Renê. Bossa colonial de grande luxo. E eu sabendo que estava sendo enganada e não me importando, ao contrário, sentin­do um agudo prazer em comer gato por lebre. Li ontem que já estão comendo ratos em Saigon e li ainda que já não há mais borboletas por lá, nunca mais haverá a menor borbo­leta... Desatei então a chorar feito louca, não sei se por cau­sa das borboletas ou dos ratos. Acho que nunca bebi tanto como ultimamente e quando bebo assim fico sentimental, choro à toa. "Você precisa se cuidar", Renê disse na noite em que ficamos de fogo, só agora penso nisso que ele me disse, por que devo me cuidar, por quê? Contratei-o para fazer em seguida a decoração da casa de campo, "Tenho os móveis ideais para essa sua casa", ele avisou e eu comprei os mó­veis ideais, comprei tudo, compraria até a peruca de Maria Antonieta com todos os seus labirintos feitos pelas traças e mais a poeira pela qual não me cobraria nada, simples con­tribuição do tempo, é claro. É claro.

Onde agora? Às vezes eu fechava os olhos e os sons eram como voz humana me chamando, me envolvendo, Luisiana, Luisiana! Que sons eram aqueles? Como podiam parecer voz de gente e serem ao mesmo tempo tão mais poderosos, tão puros? E singelos como ondas se renovando no mar, aparente­mente iguais, só aparentemente. "Este é o meu instrumento", disse ele deslizando a mão pelo saxofone. Com a outra mão em concha, cobriu meu peito: "e esta é a minha música".

Onde, onde? Olho meu retrato em cima da lareira. "Na la­reira tem que ficar seu retrato", determinou Renê num tom autoritário, às vezes ele era autoritário. Apresentou-me seu namorado, pintor, pelo menos me fazia crer que era seu na­morado porque agora já não sei mais nada. E o efebo de cara­cóis na testa me pintou toda de branco, uma Dama das Camé­lias voltando do campo, o vestido comprido, o pescoço com­prido, tudo assim esgalgado e iluminado como se eu tivesse o próprio anjo tocheiro da escada aceso dentro de mim. Tudo já escureceu na sala menos o vestido do retrato, lá está ele, diáfano como a mortalha de um ectoplasma pairando sua­víssimo no ar. Um ectoplasma muito mais jovem do que eu, sem dúvida o puxa-saco do efebo era suficientemente esper­to para imaginar como eu devia ser aos vinte anos. "Você no retrato parece um pouco diferente", concedeu ele, "mas o caso é que não estou pintando só seu rosto", acrescentou muito sutil. Queria dizer com isso que estava pintando mi­nha alma. Concordei na hora, fiquei até comovida quando me vi de cabeleira elétrica e olhos vidrados. "Meu nome é Luisiana", me diz agora o ectoplasma. "Há muitos anos man­dei embora o meu amado e desde então morri."

Onde?... Tenho um iate, tenho um casaco de vison pra­teado, tenho uma coroa de diamantes, tenho um rubi que já esteve incrustado no umbigo de um xá famosíssimo, até há pouco eu sabia o nome desse xá. Tenho um velho que me dá dinheiro, tenho um jovem que me dá gozo e ainda por cima tenho um sábio que me dá aulas sobre doutrinas filo­sóficas com um interesse tão platônico que logo na segunda aula já se deitou comigo. Vinha tão humilde, tão miserável com seu terno de luto empoeirado e botinas de viúvo que fechei os olhos e me deitei, Vem, Xenofonte, vem. "Não sou Xenofonte, não me chame de Xenofonte", ele me implorou e seu hálito tinha o cheiro recente de pastilhas Valda, era Xenofonte, nunca houve ninguém tão Xenofonte quanto ele. Como nunca houve uma Luisiana tão Luisiana como eu, ninguém sabe desse nome, ninguém, nem o cáften do meu pai que nem esperou eu nascer para ver como eu era, nem a coitadinha da minha mãe que não viveu nem para me registrar. Nasci naquela noite na praia e naquela noite recebi um nome que durou enquanto durou o amor. Outra madrugada, quando enchi a cara e fui falar com meu advo­gado para não pôr no meu túmulo outro nome senão esse, ele deu aquela risadinha execrável, "Luisiana? Mas por que Luisiana? De onde você tirou esse nome?". Controlou-se para não me chacoalhar por tê-lo acordado àquela hora, vestiu-se e muito polidamente me trouxe para casa, "Como quei­ra, minha querida, você manda!". E deu sua risadinha, En­fim, uma puta bêbada mas rica tem o direito de botar no túmulo o nome que bem entender, foi o que provavelmente pensou. Mas já não me importo com o que pensa, ele e mais a cambada toda que me cerca, opinião alheia é este tapete, este lustre, aquele retrato. Opinião alheia é esta casa com os santos varados por mil cargas.

Mas antes eu me importava e como. Por causa dessa opi­nião tenho hoje um piano de cauda, tenho um gato siamês com uma argola na orelha, tenho uma chácara com piscina e nos banheiros, papel higiênico com florinhas douradas que o velho trouxe de Nova York junto com o estojo plástico que toca uma musiquinha enquanto a gente vai desenrolan­do o papel, "Oh! My Last Rose ofSummer!...". Quando me deu os rolos, deu também os potes de caviar, "É preciso dourar a pílula", disse rindo com sua grossura habitual, é um grosso sem remédio, se não cuspisse dólar eu já o teria mandado para aquela parte com seus tacos de golfe e cuecas perfuma­das com lavanda. Tenho sapato com fivela de diamante e um aquário com uma floresta de coral no fundo, quando o velho me deu a pérola, achou originalíssimo escondê-la no fundo do aquário e me mandar procurar: "Está ficando quente, mais quente. Não, agora esfriou!...". E eu me fazia menini­nha e ria quando minha vontade mesmo era dizer-lhe que enfiasse a pérola no rabo e me deixasse em paz, Me deixa em paz! ele, o jovem ardente com todos os seus ardores, Xe­nofonte com seu hálito de hortelã — enxotar todos como fiz com a criadagem, todos uns sacanas que mijam no meu leite e se torcem de rir quando fico para cair de bêbada.

Onde, meu Deus? Onde agora? Tenho também um dia­mante do tamanho de um ovo de pomba. Trocaria o diamante, o sapato de fivela, o iate — trocaria tudo, anéis e dedos, para poder ouvir um pouco que fosse a música do saxofone. Nem seria preciso vê-lo, juro que nem pediria tanto, eu me contentaria em saber que ele está vivo, vivo em algum lugar, tocando seu saxofone.

Quero deixar bem claro que a única coisa que existe para mim é a juventude, tudo o mais é besteira, lantejou­las, vidrilho. Posso fazer duas mil plásticas e não resolve, no fundo é a mesma bosta, só existe a juventude. Ele era a minha juventude mas naquele tempo eu não sabia, na hora a gente nunca sabe nem pode mesmo saber, fica tudo natu­ral como o dia que sucede à noite, como o sol, a lua, eu era jovem e não pensava nisso como não pensava em respirar. Alguém por acaso fica atento ao ato de respirar? Fica, sim, mas quando a respiração se esculhamba. Então dá aquela tristeza, puxa, eu respirava tão bem...

Ele era a minha juventude, ele e seu saxofone que luzia como ouro. Seus sapatos eram sujos, a camisa despencada, a cabeleira um ninho, mas o saxofone estava sempre me­ticulosamente limpo. Tinha também mania com os dentes que eram de uma brancura que nunca vi igual, quando ele ria eu parava de rir só para ficar olhando. Trazia a escova de dentes no bolso e mais a fralda para limpar o saxofone, achou num táxi uma caixa com uma dúzia de fraldas John­son e desde então passou a usá-las para todos os fins: era o lenço, a toalha de rosto, o guardanapo, a toalha de mesa e o pano de limpar o saxofone. Foi também a bandeira de paz que usou na nossa briga mais séria, quando quis que tivés­semos um filho. Tinha paixão por tanta coisa...

A primeira vez que nos amamos foi na praia. O céu pal­pitava de estrelas e fazia calor. Então fomos rolando e rindo até às primeiras ondas que ferviam na areia e ali ficamos nus e abraçados na água morna como a de uma bacia. Preo­cupou-se quando lhe disse que não fora sequer batizada. Colheu a água com as mãos em concha e despejou na mi­nha cabeça: "Eu te batizo, Luisiana, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Amém". Pensei que ele estivesse brincando mas nunca o vi tão grave. "Agora você se chama Luisiana", disse me beijando a face. Perguntei-lhe se acreditava em Deus. "Tenho paixão por Deus", sussurrou deitan-do-se de costas, as mãos entrelaçadas debaixo da nuca, o olhar perdido no céu: "O que mais me deixa perplexo é um céu assim como este". Quando nos levantamos correu até a duna onde estavam nossas roupas, tirou a fralda que cobria o saxofone e trouxe-a delicadamente nas pontas dos dedos para me enxugar com ela. Aí pegou o saxofone, sentou-se encaracolado e nu como um fauno menino e começou a improvisar bem baixinho, formando com o fervilhar das ondas uma melodia terna. Quente. Os sons cresciam tremi­dos como bolhas de sabão, olha esta que grande! olha esta agora mais redonda... ah, estourou! Se você me ama você é capaz de ficar assim nu naquela duna e tocar, tocar o mais alto que puder até que venha a polícia? eu perguntei. Ele me olhou sem pestanejar e foi correndo em direção à duna e eu corria atrás e gritava e ria, ria porque ele já tinha começado a tocar a plenos pulmões.

Minha companheira do curso de dança casou-se com o baterista de um conjunto que tocava numa boate, hou­ve festa. Foi lá que o conheci. Em meio da maior algazarra do mundo a mãe da noiva se trancou no quarto chorando, "Veja em que meio minha filha foi cair! Só vagabundos, só cafajestes!...". Deitei-a na cama e fui buscar um copo de água com açúcar mas na minha ausência os convidados descobriram o quarto e quando voltei os casais já tinham transbordado até ali, atracando-se em almofadas pelo chão. Pulei gente e sentei-me na cama. A mulher chorava, chorava até que aos poucos o choro foi esmorecendo e de repente parou. Eu também tinha parado de falar e ficamos as duas muito quietas, ouvindo a música de um moço que eu ainda não tinha visto. Ele estava sentado na penumbra, tocando saxofone. A melodia era mansa mas ao mesmo tempo tão eloquente que fiquei imersa num sortilégio. Nunca tinha ouvido nada parecido, nunca ninguém tinha tocado um instrumento assim. Tudo o que tinha querido dizer à mu­lher e não conseguira, ele dizia agora com o saxofone: que ela não chorasse mais, tudo estava bem, tudo estava certo quando existia o amor. Tinha Deus, ela não acreditava em Deus? perguntava o saxofone. E tinha a infância, aqueles sons brilhantes falavam agora da infância, olha aí a infân­cia!... A mulher parou de chorar e agora era eu que chorava. Em redor, os casais ouviam num silêncio fervoroso e suas carícias foram ficando mais profundas, mais verdadeiras porque a melodia também falava do sexo vivo e casto como um fruto que amadurece ao vento e ao sol.

Onde? Onde?... Levou-me para o seu apartamento, ocu­pava um minúsculo apartamento no décimo andar de um prédio velhíssimo, toda a sua fortuna era aquele quarto com um banheiro mínimo. E o saxofone. Contou-me que rece­bera o apartamento como herança de uma tia cartomante. Depois, num outro dia disse que o ganhara numa aposta e quando outro dia ainda começou a contar uma terceira his­tória, interpelei-o e ele começou a rir, "É preciso variar as histórias, Luisiana, o divertido é improvisar que para isso temos imaginação! É triste quando um caso fica a vida in­teira igual...". E improvisava o tempo todo e sua música era sempre ágil, rica, tão cheia de invenções que chegava a me afligir, Você vai compondo e vai perdendo tudo, você tem que tomar nota, tem que escrever o que compõe! Ele sorria. "Sou um autodidata, Luisiana, não sei ler nem escrever mú­sica e nem é preciso para ser um sax-tenor, sabe o que é um sax-tenor? É o que eu sou." Tocava num conjunto que tinha contrato com uma boate e sua única ambição era ter um dia um conjunto próprio. E ter um toca-discos de boa qualida­de para ouvir Ravel e Debussy.

Nossa vida foi tão maravilhosamente livre! E tão cheia de amor, como nos amamos e rimos e choramos de amor naquele décimo andar, cercados por gravuras de Fra An­gélico e retratos dos antepassados dele. "Não são meus pa­rentes, achei tudo isso no baú de um porão", confessou-me certa vez. Apontei para o mais antigo dos retratos, tão anti­go que da mulher só restava a cabeleira escura. E as sobrancelhas.

Esta você também achou no baú? perguntei. Ele riu e até hoje fiquei sem saber se era verdade ou não. Se você me ama mesmo, eu disse, suba então naquela mesa e grite com todas as forças, Vocês são todos uns cornudos, vocês são todos uns cornudos! e depois desça da mesa e saia mas sem correr. Ele me deu o saxofone para segurar enquanto eu fugia rindo, Não, não, eu estava brincando, isso não! Já na esquina ouvi seus gritos em pleno bar, "Cornudos, to­dos cornudos!". Alcançou-me em meio da gente estupefata, "Luisiana, Luisiana, não me negue, Luisiana!". Outra noite — saímos de um teatro — não resisti e perguntei-lhe se era capaz de cantar ali no saguão um trecho de ópera, Vamos, se você me ama mesmo, cante agora aqui na escada um tre­cho do Rigoletto.

Se você me ama mesmo, me leva agora a um restaurante, me compre já aqueles brincos, me compre imediatamente um vestido novo! Ele agora tocava em mais lugares porque eu estava ficando exigente, se você me ama mesmo, mes­mo, mesmo... Saía às sete da noite com o saxofone debaixo do braço e só voltava de manhãzinha. Então limpava meti­culosamente o bocal do instrumento, lustrava o metal com a fralda e ficava dedilhando distraidamente, sem nenhum cansaço, sem nenhum desgaste, "Luisiana, você é a minha música e eu não posso viver sem música", dizia abocanhan­do o bocal do saxofone com o mesmo fervor com que abo­canhava meu peito. Comecei a ficar irritadiça, inquieta, era como se tivesse medo de assumir a responsabilidade de tamanho amor. Queria vê-lo mais independente, mais ambicioso. Você não tem ambição? Não usa mais artista sem ambição, que futuro você pode ter assim? Era sempre o saxofone quem me respondia e a argumentação era tão definitiva que me envergonhava e me sentia miserável por estar exigindo mais. Contudo, exigia. Pensei em abando­ná-lo mas não tive forças, não tive, preferi que nosso amor apodrecesse, que ficasse tão insuportável que quando ele fosse embora saísse cheio de nojo, sem olhar para trás.

Onde agora? Onde? Tenho uma casa de campo, tenho um diamante do tamanho de um ovo de pomba... Eu pinta­va os olhos diante do espelho, tinha um compromisso, vivia cheia de compromissos, ia a uma boate com um banqueiro. Enrodilhado na cama, ele tocava em surdina. Meus olhos foram ficando cheios de lágrimas. Enxuguei-os na fralda do saxofone e fiquei olhando para minha boca. Os lábios esta­vam mais finos assim crispados. Desviei o olhar do espelho. Se você me ama mesmo, eu disse, se você me ama mesmo então saia e se mate imediatamente.

 

                   Helga

Ela era uma só. Não havia outra e se quisesse compará-la com alguma coisa, seria com os tenros cogumelos dos bos­ques ou com as manhãs de bicicleta nas estradas impecá­veis ou com as primeiras cerejas da primavera. Era uma, una, única, apesar de ter uma só perna, aliás bela como ela toda. Mas é cedo para falar não sobre sua beleza — que deve ser lembrada sem enfado quantas vezes forem necessárias — mas cedo para falar sobre a perna que vai exigir explica­ção. A perna envolve viagem, guerra, a perna vai tão além... Sem esclarecimento tudo será apenas crueldade.

É bom dizer logo quem eu sou: Paulo Silva, brasileiro. Mas fui alemão. Filho de alemã de Santa Catarina e desse Silva brasileiro que não cheguei a conhecer. Mãe alemã nascida no Vale do Itajaí, neta de proprietários em Vila Corinto desde 1890, pude ver isso nos papéis. Mas alemã malvista porque se casou com o Silva, Paulo também, o que me faria Paulo Silva Filho. Mas nada disso vigorou, na escola eu já era Paul sem o o, Paul Karsten. E o destino amável de um Paul Karsten, ginasiano de Blumenau em 1935, eram férias, cursos de aperfei­çoamento, amizades e amores na Alemanha. De Hitler, é bom lembrar. E não havia nada melhor, a começar pela viagem no Monte Pascoal, classe única com escalas na Bahia, em Madei­ra, Lisboa, e depois Hamburgo até os verões intermináveis nas Casas da Juventude, com excursões, piqueniques, bicicle­tas, cerejas e sexo em meio do cansaço feliz e da dose exata de melancolia. Jugendhaus, era esse o nome dessas casas e pensar nelas me faz pensar em fonte e musgo. As viagens seguintes, três ao todo, foram marcadas pelas aulas cheias de simplicidade e exaltação. E a nossa, a minha particular importância por ser alemão e alemão estrangeiro. Esportes. Treinos. O aço das metralhadoras sem carga encostado no peito banhado de suor. As bandeiras apoiadas no ombro no desfile diante de Hitler e Mussolini no estádio de Berlim, os alemães da América do Sul marchando logo atrás dos países sudetos e antes mesmo dos alemães da América do Norte. Amizade e amor foi lá que conheci, próximos e concretos. E o ódio também abstrato e longínquo, aos judeus, aos comu­nistas e a outras coisas mais que já esqueci. Tudo aconteceu porque a terceira viagem foi no verão de 1939. Não vou contar minha guerra, Polônia, França, Grécia, Rússia...

A beleza de Helga e a sua perna. Confesso que durante muito tempo não sei em qual pensei mais, se na que tinha ou se na que perdera. Mas é cedo. Por enquanto é preciso di­zer como foi possível acontecer o que aconteceu. O meu hi-tlerismo era jovem, leal, risonho e franco e a guerra não en­trava na jogada. Nela fiz mais ou menos tudo o que os outros fizeram e até menos do que vi ser feito em matéria de luta ou crime. De resto, eu e meus camaradas de armas éramos pa­recidos, menos numa coisa: nunca consegui estabelecer um vínculo entre essa guerra e as férias na Jugendhaus em meio dos piqueniques nas florestas e excursões pelas estradas marginadas de verdor. As aulas tão nítidas eram para isso? A palavra unerbittlich significava mesmo implacável e era para valer? Só mais tarde, depois da guerra, descobri dentro de mim que aprendera a lição.

Curioso é que hoje já não consigo lembrar qual a perna que Helga perdera, se a direita ou a esquerda. E dizer que durante anos não houve dia nem hora que Helga não apa­recesse no meu pensamento. Acha meu analista que os es­quecimentos parciais são frequentemente formas sutis de autopunição. Não sei se isso é verdade mas sei que agora que resolvi evocá-la não posso impedir que a todo instante ela cruze estas linhas antes do momento exato em que devia comparecer. Quero confessar que não liguei muito quando soube que o Brasil entrara na guerra contra a Alemanha mas devo dizer também que achei bom não ter combatido contra soldados brasileiros. O que me faz pensar que nun­ca deixou de existir em mim alguma coisa do filho daquele Silva que sempre imaginei moreno pálido, a cara comprida e os olhos tristes.

Assim que acabou a guerra, vendi meu capacete e meu punhal com a cruz suástica a um funcionário brasileiro que até hoje não sei o que estava fazendo em Düsseldorf. Fomos para uma cantina onde me pagou uma cerveja e dele ouvi então coisas alarmantes: que a minha situação jurídica era nada mais, nada menos, do que a de um traidor, quer dizer, uns quinze anos de cadeia, por aí. Era só voltar e a conde­nação viria na certa. Recebi a notícia na hora errada porque naquela altura meu desejo maior era esquecer a guerra, en­cerrar as férias na Alemanha e tranquilamente voltar para Vila Corinto, casar por lá, cuidar do plantio, da criação e ajudar minha mãe que devia estar velha. Helga ainda não aparecera na minha vida e o hitlerismo e a guerra ainda não tinham me marcado para sempre. Ainda não.

Há um pormenor que me ocorre com tamanha insistên­cia que fico às vezes pensando, pensando e não descubro por que me lembro tanto das unhas do seu pé pintadas com esmalte rosa. Não sei qual perna lhe restara mas revejo seu pé, só o pé com as unhas pintadas, não pintava as unhas das mãos, limpas, polidas mas sem esmalte. Pintava as do pé, economizando assim o esmalte que naquele tempo era raro como todo o resto, comida, roupa. Unhas de um tom de rosa delicado, ela gostava das cores tímidas.

Não poder voltar para o Brasil decidiu minha sorte de continuar Paul Karsten o tempo necessário para enriquecer e nunca mais ter paz. Não por ter enriquecido, como vere­mos, estou chegando lá. O caso é que não fui prisioneiro de guerra nem propriamente desertor. Num momento de con­fusão a guerra se afastou de onde me encontrava, não vol­tou mais e depois acabou. Já contei que vendi meu capacete e meu punhal. Arranjei em seguida outros punhais e capa­cetes que vendia para jovens recrutas americanos que che­garam demasiado tarde e doidos por levarem qualquer su-venir desse tipo. O pequeno comércio de troféus ampliou-se para cigarros, chocolate, leite em pó e outras latarias, mas tudo muito reduzido. Basta dizer que na intendência ameri­cana meu sócio mais qualificado era apenas sargento, o que mostra bem a modéstia do negócio.

Naquela improvisação de vida ao deus-dará, o tempo perdeu a medida e hoje não sou mesmo capaz de lembrar quando exatamente conheci Helga. Só sei que sua beleza me surgiu inicialmente da cintura para cima atrás do bal­cão da farmácia, se assim podemos chamar àquele casebre de madeira enegrecida, toscamente erguido no meio das ruínas do sudeste industrial de Düsseldorf. Sua beleza, foi sua beleza o que de início me impressionou. E depois, seu recato, sua doçura naquele mundo de fim do mundo. Pas­sando pela farmácia, não houve vez que não a visse ereta e séria, vendendo aspirina e as tais latinhas de pomada fa­bricada pelo pai, o velho Wolf, um verdadeiro caco aos qua­renta anos, andando quilômetros em busca de mercadoria: vidrinhos de iodo e alguns metros de gaze.

Foi o velho quem primeiro me falou da penicilina e do quanto um negócio desses poderia render. Até então eu ven­dia para Helga algumas latas de leite em pó e de veneno para rato. Também me lembro muito de um outro pormenor: a lata de leite tinha uma risonha vaquinha no rótulo e a outra tinha um rato negro, morto, dependurado pelo rabo por um longo fio. Quero ser verdadeiro quando digo que não me im­portei ao ver meu lucro diminuído devido à perda de tempo em vender-lhe as ninharias que podia comprar. O prazer de vê-la era tão grande que me sentia compensado quando ou­via sua voz calma, harmoniosa como os seus gestos que por sinal eram raros. Não procurava, então, a mulher. Durante meses a caça à comida utilizava quase toda a imaginação e energia de que sou capaz, qualquer preocupação com mulher se dissipava nessa caça. Foi só numa segunda fase que rela­cionei a beleza de Helga com o desejo. Já sabia então da sua perna, ela mesma me contou quando recusou-se a me acom­panhar a um local de danças, improvisado nos escombros do museu. Fiz o convite quando fui cedo à farmácia, soubera das danças e não vi melhor oportunidade para sair com ela. Estava como sempre detrás do balcão mas assim que lhe falei em dançarmos teve um movimento de fuga enquanto uma nuvem preta pareceu baixar sobre seu rosto tão limpo. Mas logo espantou a nuvem e sorriu quase natural quando con­fessou que não podia dançar as valsas que lá tocavam, tinha uma perna só. Aquela noite pensei muito na mutilação de Helga, mutilação antiga, pois ela perdera a perna e o resto da família, menos o pai, no primeiro bombardeio de Hamburgo. Na mesma ocasião o velho Wolf perdera também a farmácia, a primeira, pois a segunda e a terceira foram destruídas em Düsseldorf. Ainda era rico depois da tragédia de Hamburgo e a prova disso é que montou em seguida mais essas duas farmácias. Outra prova de que tivera dinheiro foi a magnífi­ca perna ortopédica que comprou para a filha, daquelas que durante a guerra eram reservadas para heróis excepcionais, membros graúdos do Partido Nacional-Socialista ou oficiais superiores. Fora desse tipo de gente só os muito ricos podiam comprar uma perna igual. Não pude então deixar de sentir um certo espanto quando vi Helga sair andando detrás do balcão, mancando um pouco, é certo, mas discretamente, com uma lentidão que combinava com seu feitio. Imaginara-a ­plantada numa perna só, apoiada em muletas ou numa bengala, dando saltos penosos... E cheguei a dizer-lhe que num vestido de noite ninguém notaria a perna artificial. Ela então baixou os grandes olhos claros.

No dia seguinte era domingo e Helga concordou em sair comigo. Eu podia emprestar o jipe do sargento americano mas a tarde estava tão agradável que ela preferiu que fôsse­mos mesmo a pé. À noite — era uma noite estrelada — jan­tamos, ela, o pai e eu, uma lata de rosbife e outra de milho que desviara do meu comércio. Senti-me generoso, bom. Foi aí que o velho Wolf me falou da penicilina. Na cara devas­tada do farmacêutico vi como seus olhos azuis, iguais aos da filha, coruscavam de entusiasmo ao imaginar o negócio. Ele tinha o cálculo fácil e claramente demonstrou que três meses de tráfico de penicilina eram o suficiente para juntar uma pequena fortuna. Havia apenas dois problemas a en­frentar: o primeiro era o risco, mas não tão grande assim, na pior das hipóteses um par de anos na cadeia, se tanto. A segunda dificuldade, a maior, era a mesma de qualquer ne­gócio: o capital inicial. E para tudo, uma condição indispen­sável, a rapidez. Esses grandes negócios só funcionariam durante uns seis meses, no máximo. Depois, a eficiência combinada de americanos, russos e dos próprios alemães iria pôr tudo nos eixos e qualquer empreendimento se tor­naria rotineiro, lento. Com os ingleses, nem pensar. A coisa do lado de cá tinha que ser feita mesmo com os americanos e sem demora. O velho se ramificava em considerações mas minha atenção se concentrava em Helga, a doce Helga que eu já beijara naquela tarde. Foi então meio distraidamente que ouvi o que ele disse? Pois sim. Naquela noite e no dia seguinte não pensei noutra coisa. Pedi pormenores e ele me falou num certo major-médico, chegamos até a procurar o homem mas ele fora transferido para Hamburgo. E o capi­tal? Via o velho diariamente e ficávamos falando, falando... E o capital? Foram dias de tanta inquietação, a tal ponto fiquei seduzido pela ideia que meu pequeno comércio começou a declinar. Via o velho e via Helga, com ela também falava demais e de repente falei em casamento.

Como é difícil reconstituir os acontecimentos! Lembrar o ano em que tudo aconteceu já exige esforço. Distribuir os fatos pelos meses não consigo. Mas ordenar os sentimentos é para mim totalmente impossível. Revivo o tempo da contem­plação de sua beleza e depois os instantes de fundo desejo. E lembro muito do casamento. Quanto ao amor por Helga, afirma o analista que não passa de um recurso autopuniti-vo que resolvi imaginar. O fato é que me casei e na própria madrugada de núpcias fugi para Hamburgo levando a perna ortopédica que em seguida vendi. De posse do capital inicial, não foi difícil encontrar o tal major e no tempo previsto pelo velho Wolf, seis meses mais ou menos, fiz fortuna.

Daí por diante não foi mais possível dizer que as férias nazistas na Alemanha foram episódios fortuitos na vida de um jovem de Vila Corinto. Paul Karsten cometeu seu crime de guerra, pessoal e por conta própria, mas fora do lugar e com a pessoa errada. O ato de raça de senhor alemão apren­dido nas aulas floridas dos cursos de 1936 foi praticado em plena paz por um pobre rapaz brasileiro contra uma pobre moça alemã. Engano ainda pensar que o fim de Paul Karsten foi uma solução. Alguns anos mais tarde, Paulo Silva Filho voltou para o Brasil anistiado e rico, mas voltou um homem de pouca fé e imaginação amortecida. A única maneira que encontrou de expiar o crime do jovem Paul foi tornar-se um cidadão exemplar. Hoje, o analista explica que simplesmen­te procuro e encontro, na insipidez da virtude, a punição de Paul Karsten e de seus camaradas.

 

                   O Moço do Saxofone

Eu era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta com um cara que fazia contrabando. Até hoje não entendo direito por que fui parar na pensão da tal madame, uma polaca que quando moça fazia a vida e depois que ficou velha inventou de abrir aquele frege-mosca. Foi o que me contou o James, um tipo que engolia giletes e que foi meu companheiro de mesa nos dias em que trancei por lá. Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saía palitando os dentes, coisa que nunca suportei na minha frente. Teve até uma vez uma dona que mandei andar só porque no nosso primeiro encontro, depois de comer um sanduíche, enfiou o palitão entre os dentes e ficou de boca arreganhada de tal jei­to que eu podia ver até o que o palito ia cavoucando. Bom, mas eu dizia que no tal frege-mosca eu era volante. A comi­da, uma bela porcaria e como se não bastasse ter que engolir aquelas lavagens, tinha ainda os malditos anões se enros­cando nas pernas da gente. E tinha a música do saxofone.

Não que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir tudo quanto é charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou dando conta do recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem, não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o diabo, acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava.

— O que é isso? — eu perguntei ao tipo das giletes. Era o meu primeiro dia de pensão e ainda não sabia de nada. Apontei para o teto que parecia de papelão, tão forte chega­va a música até nossa mesa. — Quem é que está tocando?

— É o moço do saxofone.

Mastiguei mais devagar. Já tinha ouvido antes saxofo­ne, mas aquele da pensão eu não podia mesmo reconhecer nem aqui nem na China.

— E o quarto dele fica aqui em cima?

James meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a cabe­ça e abriu mais a boca que fumegava como um vulcão com a batata quente lá no fundo. Soprou um bocado de tempo a fumaça antes de responder.

— Aqui em cima.

Bom camarada esse James. Trabalhava numa feira de diversões, mas como já estivesse ficando velho, queria ver se firmava num negócio de bilhetes. Esperei que ele desse cabo da batata enquanto ia enchendo meu garfo.

— É uma música desgraçada de triste — fui dizendo.

— A mulher engana ele até com o periquito — respon­deu James, passando o miolo de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. — O pobre fica o dia inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a ca­bra se deita com tudo quanto é cristão que aparece.

— Deitou com você?

— É meio magricela para o meu gosto, mas é bonita. E novinha. Então entrei com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com mulher, torcem logo o nariz quan­do ficam sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de se cortar...

Tive vontade de rir também, mas justo nesse instante o saxofone começou a tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com uma mão tapan­do, os sons esprimidos saindo por entre os dedos. Então me lembrei da moça que recolhi uma noite no meu caminhão. Saiu para ter o filho na vila, mas não aguentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito bicho. Arrumei ela na car-roceria e corri como louco para chegar o quanto antes, apa­vorado com a ideia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a mãe. No fim, para não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona, mas juro que seria melhor que abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar os gritos já estava me endoidando. Pomba, não desejo ao inimigo aquele quarto de hora.

— Parece gente pedindo socorro — eu disse enchendo meu copo de cerveja. — Será que ele não tem uma música mais alegre?

James encolheu o ombro.

— Chifre dói.

Nesse primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moço do saxofone tocava num bar, voltava só de madrugada. Dormia em quarto separado da mulher.

— Mas por quê? — perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui de me meter na vida de nin­guém, mas era melhor ouvir o trololó do James do que o sa­xofone.

— Uma mulher como ela tem que ter seu quarto — expli­cou James, tirando um palito do paliteiro. — E depois, vai ver que ela reclama do saxofone.

— E os outros não reclamam?

— A gente já se acostumou.

Perguntei onde era o reservado e levantei-me antes que James começasse a escarafunchar os dentões que lhe res­tavam. Quando subi a escada de caracol, dei com um anão que vinha descendo. Um anão, pensei. Assim que saí do re­servado, dei com ele no corredor, mas agora estava com uma roupa diferente. Mudou de roupa, pensei meio espantado porque tinha sido rápido demais. E já descia a escada quan­do ele passou de novo na minha frente, mas já com outra roupa. Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é esse que muda de roupa de dois em dois minutos? Entendi depois, não era um só, mas uma trempe deles, milhares de anões louros e de cabelo repartidinho do lado.

— Pode me dizer de onde vem tanto anão? — perguntei à madame e ela riu.

— Todos artistas, minha pensão é quase só de artistas...

Fiquei vendo com que cuidado o copeiro começou a em­pilhar almofadas nas cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, anão e saxofone. Anão me enche e já tinha resolvido pagar e sumir quando ela apareceu. Veio por de­trás, palavra que havia espaço para passar um batalhão, mas ela deu um jeito de esbarrar em mim.

— Licença?

Não precisei perguntar para saber que aquela era a mu­lher do moço do saxofone. Nessa altura o saxofone já tinha parado. Fiquei olhando. Era magra, sim, mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem bolado. O vestido vermelho não podia ser mais curto. Abancou-se sozinha numa mesa e de olhos baixos começou a descascar o pão com a ponta da unha vermelha. De repente riu e apareceu uma covinha no queixo. Pomba, tive vontade de ir lá, agarrar ela pelo queixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto.

— A que horas é a janta? — perguntei para a madame, enquanto pagava.

— Vai das sete às nove. Meus pensionistas fixos costu­mam comer às oito — avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar acostumado para a dona de verme­lho. O senhor gostou da comida?

Voltei às oito em ponto. O tal James já mastigava seu bife. Na sala havia ainda um velhote de barbicha, que era profes­sor parece que de mágica e o anão de roupa xadrez. Mas ela não tinha chegado. Animei-me um pouco quando veio um prato de pastéis, tenho loucura por pastéis. James começou a falar então de uma briga no parque de diversões, mas eu estava de olho na porta. Vi quando ela entrou conversando baixinho com um cara de bigode ruivo. Subiram a escada como dois gatos pisando macio. Não demorou nada e o raio do saxofone desandou a tocar.

— Sim senhor — eu disse e James pensou que estivesse falando na tal briga.

— O pior é que fiquei de porre, mal pude me defender! Mordi um pastel que tinha dentro mais fumaça do que outra coisa. Examinei os outros pastéis para descobrir se havia algum com mais recheio.

— Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele não vem comer nunca?

James demorou para entender do que eu estava falando. Fez uma careta. Decerto preferia o assunto do parque.

— Come no quarto, vai ver que tem vergonha da gente — resmungou ele, tirando um palito. — Fico com pena, mas às vezes me dá raiva, corno besta. Um outro já tinha acabado com a vida dela!

Agora a música alcançava um agudo tão agudo que me doeu o ouvido. De novo pensei na moça ganindo de dor na carroceria, pedindo ajuda não sei mais para quem.

— Não topo isso, pomba.

— Isso o quê?

Cruzei o talher. A música no máximo, os dois no máxi­mo trancados no quarto e eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive ganas de atirar no teto o prato de goiabada com queijo e me mandar para longe de toda aque­la chateação.

— O café é fresco? — perguntei ao mulatinho que já limpava o oleado da mesa com um pano encardido como a cara dele.

— Feito agora.

Pela cara vi que era mentira.

— Não é preciso, tomo na esquina.

A música parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto para a porta porque tive o pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo com o arzinho de gata de telhado, o cabelo solto nas costas e o vestidinho amarelo mais curto ainda do que o vermelho. O tipo de bigode passou em seguida, abo­toando o paletó. Cumprimentou a madame, fez ar de quem tinha muito o que fazer e foi para a rua.

— Sim senhor!

— Sim senhor o quê? — perguntou James.

— Quando ela entra no quarto com um tipo, ele come­ça a tocar, mas assim que ela aparece, ele para. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já começa.

James pediu outra cerveja. Olhou para o teto.

— Mulher é o diabo...

Levantei-me e quando passei junto da mesa dela atrasei o passo. Então ela deixou cair o guardanapo. Quando me abaixei, agradeceu, de olhos baixos.

— Ora, não precisava se incomodar...

Risquei o fósforo para acender-lhe o cigarro. Senti forte seu perfume.

— Amanhã? — perguntei, oferecendo-lhe os fósforos. — Às sete, está bem?

— É a porta que fica do lado da escada, à direita de quem sobe.

Saí em seguida, fingindo não ver a carinha safada de um dos anões que estava ali por perto e zarpei no meu caminhão antes que a madame viesse me perguntar se eu estava gos­tando da comida. No dia seguinte cheguei às sete em ponto, chovia potes e eu tinha que viajar a noite inteira. O mulati­nho já amontoava nas cadeiras as almofadas para os anões. Subi a escada sem fazer barulho, me preparando para ex­plicar que ia ao reservado, se por acaso aparecesse alguém. Mas ninguém apareceu. Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei parado no meio do quarto: ali estava um moço segu­rando o saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando sem dizer uma palavra. Não parecia nem espantado nem nada, só me olhava.

— Desculpe, me enganei de quarto — eu disse com uma voz que até hoje não sei onde fui buscar.

O moço apertou o saxofone contra o peito cavado.

— É na porta adiante — disse ele baixinho, indicando com a cabeça.

Procurei os cigarros só para fazer alguma coisa. Que si­tuação, pomba. Se pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estúpida. Ofereci-lhe cigarro.

— Está servido?

— Obrigado, não posso fumar.

Fui recuando de costas. E de repente não aguentei. Se ele tivesse feito qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava, mas aquela bruta calma me fez perder as tra-montanas.

— E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer que você não faz nada?

— Eu toco saxofone.

Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão branca. Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botões, de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar, esperando que eu saísse para começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do instrumento, antes de começar com os malditos uivos.

Bati a porta. Então a porta do lado se abriu bem de mansinho, cheguei a ver a mão dela segurando a maçane­ta para que o vento não abrisse demais. Fiquei ainda um instante parado, sem saber mesmo o que fazer, juro que não tomei logo a decisão, ela esperando e eu parado fei­to besta, então, Cristo-Rei? E então? Foi quando começou bem devagarinho a música do saxofone. Fiquei broxa na hora, pomba. Desci a escada aos pulos. Na rua, tropecei num dos anões metido num impermeável, desviei de outro que já vinha vindo atrás e me enfurnei no caminhão. Es­curidão e chuva. Quando dei a partida, o saxofone já subia num agudo que não chegava nunca ao fim. Minha vontade de fugir era tamanha que o caminhão saiu meio desem­bestado, num arranco.

 

O rancho azul e branco desfilava com seus passistas ves­tidos à Luís xv e sua porta-estandarte de peruca prateada em forma de pirâmide, os cachos desabados na testa, a cauda do vestido de cetim arrastando-se enxovalhada pelo asfalto. O negro do bumbo fez uma profunda reve­rência diante das duas mulheres debruçadas na janela e prosseguiu com seu chapéu de três bicos, fazendo rodar a capa encharcada de suor.

— Ele gostou de você — disse a jovem voltando-se para a mulher que ainda aplaudia. — O cumprimento foi na sua direção, viu que chique?

A preta deu uma risadinha.

— Meu homem é mil vezes mais bonito, pelo menos na minha opinião. E já deve estar chegando, ficou de me pegar às dez na esquina. Se me atraso, ele começa a encher a ca­veira e pronto, não sai mais nada.

A jovem tomou-a pelo braço e arrastou-a até a mesa de cabeceira. O quarto estava revolvido como se um ladrão ti­vesse passado por ali e despejado caixas e gavetas.

— Estou atrasadíssima, Lu! Essa fantasia é fogo... Tenha paciência, mas você vai me ajudar um pouquinho.

— Mas você ainda não acabou?

Sentando-se na cama, a jovem abriu sobre os joelhos o saiote verde. Usava biquíni e meias rendadas também verdes.

— Acabei o quê! Falta pregar tudo isso ainda, olha aí... Fui inventar um raio de pierrete dificílima!

A preta aproximou-se, alisando com as mãos o quimono de seda brilhante. Espetado na carapinha trazia um crisânte­mo de papel crepom vermelho. Sentou-se ao lado da moça.

— O Raimundo já deve estar chegando, ele fica uma onça se me atraso. A gente vai ver os ranchos, hoje quero ver todos.

— Tem tempo, sossega — atalhou a jovem. Afastou os ca­belos que lhe caíam nos olhos. Levantou o abajur que tom­bou na mesinha. — Não sei como fui me atrasar desse jeito.

— Mas não posso perder o desfile, viu, Tatisa? Tudo, me­nos perder o desfile!

— E quem está dizendo que você vai perder?

A mulher enfiou o dedo no pote de cola e baixou-o de leve nas lantejoulas do pires. Em seguida, levou o dedo até o saiote e ali deixou as lantejoulas formando uma constelação desordenada. Colheu uma lantejoula que escapara e delica­damente tocou com ela na cola. Depositou-a no saiote, fixan-do-a com pequenos movimentos circulares.

— Mas se tiver que pregar as lantejoulas em todo o saiote...

— Já começou a queixação? Achei que dava tempo e agora não posso largar a coisa pela metade, vê se entende! Você aju­dando vai num instante, já me pintei, olha aí, que tal minha cara? Você nem disse nada, sua bruxa! Hein?... Que tal?

— Ficou bonito, Tatisa. Com o cabelo assim verde você está parecendo uma alcachofra, tão gozado. Não gosto é des­se verde na unha, fica esquisito.

Num movimento brusco, a jovem levantou a cabeça para respirar melhor. Passou o dorso da mão na face afogueada.

— Mas as unhas é que dão a nota, sua tonta. É um baile verde, as fantasias têm que ser verdes, tudo verde. Mas não precisa ficar me olhando, vamos, não pare, pode falar, mas vá trabalhando. Falta mais da metade, Lu!

— Estou sem óculos, não enxergo direito sem os óculos.

— Não faz mal — disse a jovem limpando no lençol o ex­cesso de cola que lhe escorreu pelo dedo. — Vá grudando de qualquer jeito que lá dentro ninguém vai reparar, vai ter gente à beça. O que está me endoidando é este calor, não aguento mais, tenho a impressão de que estou me derreten­do, você não sente? Calor bárbaro!

A mulher tentou prender o crisântemo que resvalara para o pescoço. Franziu a testa e baixou o tom de voz.

— Estive lá.

— E daí?

— Ele está morrendo.

Um carro passou na rua, buzinando freneticamente. Al­guns meninos puseram-se a cantar aos gritos, o compasso marcado pelas batidas numa panela: A coroa do rei não é de ouro nem de prata...

— Parece que estou num forno — gemeu a jovem dila­tando as narinas porejadas de suor. — Se soubesse, teria in­ventado uma fantasia mais leve.

— Mais leve do que isso? Você está quase nua, Tatisa. Eu ia com a minha havaiana, mas só porque aparece um peda­ço da coxa o Raimundo implica. Imagine você então...

Com a ponta da unha, Tatisa colheu uma lantejoula que se enredara na renda da meia. Deixou-a cair na pequena constelação que ia armando na barra do saiote e ficou ras­pando pensativamente um pingo ressequido de cola que lhe caíra no joelho. Vagava o olhar pelos objetos, sem fixar-se em nenhum. Falou num tom sombrio:

— Você acha, Lu?

— Acha o quê?

— Que ele está morrendo?

— Ah, está sim. Conheço bem isso, já vi um monte de gente morrer, agora já sei como é. Ele não passa desta noite.

— Mas você já se enganou uma vez, lembra? Disse que ele ia morrer, que estava nas últimas... E no dia seguinte ele já pedia leite, radiante.

— Radiante? — espantou-se a empregada. Fechou num muxoxo os lábios pintados de vermelho-violeta. — E depois, eu não disse não senhora que ele ia morrer, eu disse que ele estava ruim, foi o que eu disse. Mas hoje é diferente, Tatisa. Espiei da porta, nem precisei entrar para ver que ele está morrendo.

— Mas quando fui lá ele estava dormindo tão calmo, Lu.

— Aquilo não é sono. É outra coisa.

Afastando bruscamente o saiote aberto nos joelhos, a jo­vem levantou-se. Foi até a mesa, pegou a garrafa de uísque e procurou um copo em meio da desordem dos frascos e cai­xas. Achou-o debaixo da esponja de arminho. Soprou o fun­do cheio de pó de arroz e bebeu em largos goles, apertando os maxilares. Respirou de boca aberta. Dirigiu-se à preta.

— Quer?

— Tomei muita cerveja, se misturo dá ânsia. A jovem despejou mais uísque no copo.

— Minha pintura não está derretendo? Veja se o verde dos olhos não borrou... Nunca transpirei tanto, sinto o san­gue ferver.

— Você está bebendo demais. E nessa correria... Tam­bém não sei por que essa invenção de saiote bordado, as lantejoulas vão se desgrudar todas no aperto. E o pior é que não posso caprichar, com o pensamento no Raimundo lá na esquina...

— Você é chata, não, Lu? Mil vezes fica repetindo a mes­ma coisa, taque-taque-taque-taque! Esse cara não pode es­perar um pouco?

A mulher não respondeu. Ouvia com expressão deliciada a música de um bloco que passava já longínquo. Cantarolou em falsete: Acabou chorando... acabou chorando...

— No outro carnaval entrei num bloco de sujos e me diverti à grande. Meu sapato até desmanchou de tanto que dancei.

— E eu na cama, podre de gripe, lembra? Neste quero me esbaldar.

— E seu pai?

Lentamente a jovem foi limpando no lenço as pontas dos dedos esbranquiçados de cola. Tomou um gole de uísque. Voltou a afundar o dedo no pote.

— Você quer que eu fique aqui chorando, não é isso que você quer? Quer que eu cubra a cabeça com cinza e fique de joelhos rezando, não é isso que você está querendo? — Fi­cou olhando para a ponta do dedo coberto de lantejoulas. Foi deixando no saiote o dedal cintilante. — Que é que eu posso fazer? Não sou Deus, sou? Então? Se ele está pior, que culpa tenho eu?

— Não estou dizendo que você é culpada, Tatisa. Não te­nho nada com isso, ele é seu pai, não meu. Faça o que bem entender.

— Mas você começa a dizer que ele está morrendo!

— Pois está mesmo.

— Está nada! Também espiei, ele está dormindo, nin­guém morre dormindo daquele jeito.

— Então não está.

A jovem foi até a janela e ofereceu a face ao céu roxo. Na calçada, um bando de meninos brincava com bisnagas de plástico em formato de banana, esguichando água um na cara do outro. Interromperam a brincadeira para vaiar um homem que passou vestido de mulher, pisando para fora nos sapatos de saltos altíssimos. "Minha lindura, vem co­migo, minha lindura!", gritou o moleque maior, correndo atrás do homem. Ela assistia à cena com indiferença. Puxou com força as meias presas aos elásticos do biquíni.

— Estou transpirando feito um cavalo. Juro que se não tivesse me pintado, me metia agora num chuveiro, besteira a gente se pintar antes.

— E eu não aguento mais de sede — resmungou a em­pregada arregaçando as mangas do quimono. — Ai! uma cerveja bem geladinha. Gosto mesmo é de cerveja, mas o Raimundo prefere cachaça. No ano passado ele ficou de porre os três dias, fui sozinha no desfile. Tinha um carro que foi o mais bonito de todos, representava um mar. Você precisava ver aquele monte de sereias enroladas em pérolas. Tinha pescador, tinha pirata, tinha polvo, tinha tudo! Bem lá em cima, dentro de uma concha abrindo e fechando, a rainha do mar coberta de jóias...

— Você já se enganou uma vez — atalhou a jovem. — Ele não pode estar morrendo, não pode. Também estive lá an­tes de você, ele estava dormindo tão sossegado. E hoje cedo até me reconheceu, ficou me olhando, me olhando e depois sorriu. Você está bem papai?, perguntei e ele não respondeu mas vi que entendeu perfeitamente o que eu disse.

— Ele se fez de forte, coitado.

— De forte, como?

— Sabe que você tem o seu baile, não quer atrapalhar.

— Ih, como é difícil conversar com gente ignorante — ex­plodiu a jovem, atirando no chão as roupas amontoadas na cama. Revistou os bolsos de uma calça comprida. — Você pegou meu cigarro?

— Tenho minha marca, não preciso dos seus.

— Escuta, Luzinha, escuta — começou ela, ajeitando a flor na carapinha da mulher. — Eu não estou inventando, tenho certeza de que ainda hoje cedo ele me reconheceu. Acho que nessa hora sentiu alguma dor porque uma lágri­ma foi escorrendo daquele lado paralisado. Nunca vi ele chorar daquele lado, nunca. Chorou só daquele lado, uma lágrima tão escura...

— Ele estava se despedindo.

— Lá vem você de novo, merda! Pare de bancar o corvo, até parece que você quer que seja hoje. Por que tem que re­petir isso, por quê?

— Você mesmo pergunta e não quer que eu responda. Não vou mentir, Tatisa.

A jovem espiou debaixo da cama. Puxou um pé de sa­pato. Agachou-se mais, roçando os cabelos verdes no chão.

Levantou-se, olhou em redor. E foi-se ajoelhando devagari­nho diante da preta. Apanhou o pote de cola.

_E se você desse um pulo lá só para ver?

_Mas você quer ou não que eu acabe isto? — a mulher ge­meu exasperada, abrindo e fechando os dedos ressequidos de cola. — O Raimundo tem ódio de esperar, hoje ainda apanho!

A jovem levantou-se. Fungou, andando rápido num andar de bicho na jaula. Chutou o sapato que encontrou no caminho.

_Aquele médico miserável. Tudo culpa daquela bicha.

Eu bem disse que não podia ficar com ele aqui em casa, eu disse que não sei tratar de doente, não tenho jeito, não posso! Se você fosse boazinha, você me ajudava, mas você não pas­sa de uma egoísta, uma chata que não quer saber de nada. Sua egoísta!

— Mas, Tatisa, ele não é meu pai, não tenho nada com isso, até que ajudo muito sim senhora, como não? Todos esses meses quem é que tem aguentado o tranco? Não me queixo porque ele é muito bom, coitado. Mas tenha a santa paciência, hoje não! Já estou fazendo demais aqui plantada quando devia estar na rua.

Com um gesto fatigado, a jovem abriu a porta do armário. Olhou-se no espelho. Beliscou a cintura.

— Engordei, Lu.

— Você, gorda? Mas você é só osso, menina. Seu namora­do não tem onde pegar. Ou tem?

Ela ensaiou com os quadris um movimento lascivo. Riu. Os olhos animaram-se:

— Lu, Lu, pelo amor de Deus, acabe logo que à meia-noite ele vem me buscar. Mandou fazer um pierrô verde.

— Também já me fantasiei de pierrô. Mas faz tempo.

— Vem num Tufão, viu que chique?

— Que é isso?

— É um carro muito bacana, vermelho. Mas não fique aí me olhando, depressa, Lu, você não vê que... — Passou ansio­samente a mão no pescoço. — Lu, Lu, por que ele não ficou no hospital?! Estava tão bem no hospital...

— Hospital de graça é assim mesmo, Tatisa. Eles não podem ficar a vida inteira com um doente que não resolve, tem doente esperando até na calçada.

— Há meses que venho pensando nesse baile. Ele viveu sessenta e seis anos. Não podia viver mais um dia?

A preta sacudiu o saiote e examinou-o a uma certa distância. Abriu-o de novo no colo e inclinou-se para o pires de lantejoulas.

— Falta só um pedaço.

— Um dia mais...

— Vem me ajudar, Tatisa, nós duas pregando vai num instante.

Agora ambas trabalhavam num ritmo acelerado, as mãos indo e vindo do pote de cola ao pires e do pires ao saiote, curvo como uma asa verde pesada de lantejoulas.

— Hoje o Raimundo me mata — recomeçou a mulher, grudando as lantejoulas meio ao acaso. Passou o dorso da mão na testa molhada. Ficou com a mão parada no ar. — Você não ouviu?

A jovem demorou para responder.

— O quê?

— Parece que ouvi um gemido. Ela baixou o olhar.

— Foi na rua.

Inclinaram as cabeças irmanadas sob a luz amarela do abajur.

— Escuta, Lu, se você pudesse ficar hoje, só hoje — co­meçou ela num tom manso. Apressou-se: — Eu te daria meu vestido branco, aquele meu branco, sabe qual é? E também os sapatos, estão novos ainda, você sabe que eles estão novos. Você pode sair amanhã, você pode sair todos os dias, mas pelo amor de Deus, Lu, fica hoje!

A empregada sorriu, triunfante.

— Custou, Tatisa, custou. Desde o começo eu já esta­va esperando. Ah, mas hoje nem que me matasse eu fica­va, hoje não. — O crisântemo caiu enquanto ela sacudia a cabeça. Prendeu-o com um grampo que abriu entre os dentes. — Perder esse desfile? Nunca! Já fiz muito — acres­centou sacudindo o saiote. — Pronto, pode vestir. Está um serviço porco mas ninguém vai reparar.

— Eu podia te dar o casaco azul — murmurou a jovem, limpando os dedos no lençol.

— Nem que fosse para ficar com meu pai eu ficava, ouviu isso, Tatisa? Nem com meu pai, hoje não.

Levantando-se de um salto, a moça foi até a garrafa e be­beu de olhos fechados mais alguns goles. Vestiu o saiote.

— Brrrr! Esse uísque é uma bomba — resmungou, apro­ximando-se do espelho. — Anda, venha aqui me abotoar, não precisa ficar aí com essa cara. Sua chata.

A mulher tateou os dedos por entre o tule.

— Não acho os colchetes.

A jovem ficou diante do espelho, as pernas abertas, a ca­beça levantada. Olhou para a mulher através do espelho:

— Morrendo coisa nenhuma, Lu. Você estava sem os óculos quando entrou no quarto, não estava? Então não viu direito, ele estava dormindo.

— Pode ser que me enganasse mesmo.

— Claro que se enganou! Ele estava dormindo.

A mulher franziu a testa, enxugando na manga do qui-mono o suor do queixo. Repetiu como um eco:

— Estava dormindo, sim.

— Depressa, Lu, faz uma hora que está com esses col­chetes!

— Pronto — disse a outra, baixinho, enquanto recuava até a porta. — Não precisa mais de mim, não é?

— Espera! — ordenou a moça perfumando-se rapida­mente. Retocou os lábios, atirou o pincel ao lado do vidro destapado. — Já estou pronta, vamos descer juntas.

— Tenho que ir, Tatisa!

— Espera, já disse que estou pronta — repetiu, baixando a voz. — Só vou pegar a bolsa...

— Você vai deixar a luz acesa?

— Melhor, não? A casa fica mais alegre assim.

No topo da escada ficaram mais juntas. Olharam na mesma direção: a porta estava fechada. Imóveis como se tivessem sido petrificadas na fuga, as duas mulheres ficaram ouvindo o relógio da sala. Foi a preta quem primeiro se mo­veu. A voz era um sopro:

— Quer ir dar uma espiada, Tatisa?

— Vá você, Lu...

Trocaram um rápido olhar. Bagas de suor escorriam pe­las têmporas verdes da jovem, um suor turvo como o sumo de uma casca de limão. O som prolongado de uma buzina foi-se fragmentando lá fora. Subiu poderoso o som do reló­gio. Brandamente a empregada desprendeu-se da mão da jovem. Foi descendo a escada na ponta dos pés. Abriu a por­ta da rua.

— Lu! Lu! — a jovem chamou num sobressalto. Conti­nha-se para não gritar. — Espera aí, já vou indo!

E apoiando-se ao corrimão, colada a ele, desceu pre­cipitadamente. Quando bateu a porta atrás de si, rolaram pela escada algumas lantejoulas verdes na mesma direção, como se quisessem alcançá-la.

 

                   A Caçada

A loja de antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacris­tia com seus panos embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, o homem tocou numa pilha de quadros. Uma mariposa levantou voo e foi chocar-se contra uma imagem de mãos decepadas.

— Bonita imagem — disse.

A velha tirou um grampo do coque e limpou a unha do polegar. Tornou a enfiar o grampo no cabelo.

— É um São Francisco.

Ele então se voltou lentamente para a tapeçaria que to­mava toda a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também.

— Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso. Pena que esteja nesse estado.

O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não che­gou a tocá-la.

— Parece que hoje está mais nítida...

— Nítida? — repetiu a velha, pondo os óculos. Deslizou a mão pela superfície puída. — Nítida como?

— As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela?

A velha encarou-o. E baixou o olhar para a imagem de mãos decepadas. O homem estava tão pálido e perplexo quanto a imagem.

— Não passei nada. Por que o senhor pergunta?

— Notei uma diferença.

— Não, não passei nada, essa tapeçaria não aguenta a mais leve escova, o senhor não vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido — acrescentou tirando novamente o grampo da cabeça. Rodou-o entre os dedos com ar pensa­tivo. Teve um muxoxo: — Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro. Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar um comprador, mas ele insistiu tanto. Preguei aí na parede e aí ficou. Mas já faz anos isso. E o tal moço nunca mais me apareceu.

— Extraordinário...

A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria ou ao caso que acabara de lhe contar. Encolheu os ombros. Voltou a limpar as unhas com o grampo.

— Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que não vale mesmo a pena. Na hora que se despregar é capaz de cair em pedaços.

O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria assistido a essa mes­ma cena. E onde?...

Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo caçador espreitava por en­tre as árvores do bosque, mas era apenas uma vaga silhueta cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Podero­so, absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos, à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta.

O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tape­çaria que tinha a cor esverdeada de um céu de tempestade.

Envenenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se manchas de um negro-violáceo que pareciam escorrer da folhagem, deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se no chão como um líquido maligno. A touceira na qual a caça estava escondida também tinha as mesmas manchas, que tanto podiam fazer parte do desenho como ser simples efei­to do tempo devorando o pano.

— Parece que hoje tudo está mais próximo — disse o ho­mem em voz baixa. — É como se... Mas não está diferente?

A velha firmou mais o olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los.

— Não vejo diferença nenhuma.

— Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta...

— Que seta? O senhor está vendo alguma seta?

— Aquele pontinho ali no arco... A velha suspirou:

— Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a pare­de já está aparecendo, essas traças dão cabo de tudo — la­mentou disfarçando um bocejo. Afastou-se sem ruído com suas chinelas de lã. Esboçou um gesto distraído. — Fique aí à vontade, vou fazer um chá.

O homem deixou cair o cigarro. Amassou-o devagarinho na sola do sapato. Apertou os maxilares numa contração do­lorosa. Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu — co­nhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, essa madrugada! Quando? Percorrera aquela mesma vereda, aspirara aquele mesmo vapor que baixava denso do céu verde... Ou subia do chão? O caçador de barba encaracolada parecia sorrir perver­samente embuçado. Teria sido esse caçador? Ou o compa­nheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por entre as árvores? Uma personagem de tapeçaria. Mas qual? Fixou a touceira onde a caça estava escondida. Só folhas, só silên­cio e folhas empastadas na sombra. Mas detrás das folhas, através das manchas pressentia o vulto arquejante da caça. Compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir fugindo. Tão próxima a mor­te! O mais leve movimento que fizesse, e a seta... A velha não a distinguira, ninguém poderia percebê-la, reduzida como estava a um pontinho carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão no arco.

Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, im­pregnada dos mesmos coágulos traiçoeiros da folhagem. Cerrou os olhos. E se tivesse sido o pintor que fez o qua­dro? Quase todas as antigas tapeçarias eram reproduções de quadros, pois não eram? Pintara o quadro original e por isso podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena nas suas minúcias: o contorno das árvores, o céu sombrio, o caçador de barba esgrouvinhada, só músculos e nervos apontando para a touceira. "Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro?"

Apertou o lenço contra a boca. A náusea. Ah, se pudesse explicar toda essa familiaridade medonha, se pudesse ao menos... E se fosse um simples espectador casual, desses que olham e passam? Não era uma hipótese? Podia ainda ter visto o quadro no original, a caçada não passava de uma ficção. "Antes do aproveitamento da tapeçaria...", murmu­rou, enxugando os vãos dos dedos no lenço.

Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos ca­belos, não, não ficara do lado de fora, mas lá dentro, encravado no cenário! E por que tudo parecia mais nítido do que na véspera, por que as cores estavam mais fortes apesar da penumbra? Por que o fascínio que se desprendia da paisa­gem vinha agora assim vigoroso, rejuvenescido?...

Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bol­sos. Parou meio ofegante na esquina. Sentiu o corpo moído, as pálpebras pesadas. E se fosse dormir? Mas sabia que não poderia dormir, desde já sentia a insónia a segui-lo na mes­ma marcação da sua sombra. Levantou a gola do paletó. Era real esse frio? Ou a lembrança do frio da tapeçaria? "Que loucura!... E não estou louco", concluiu num sorriso desam­parado. Seria uma solução fácil. "Mas não estou louco."

Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antigui­dades, o nariz achatado na vitrina, tentando vislumbrar a tapeçaria lá no fundo.

Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na cama e ficou de olhos escancarados, fundidos na escuridão. A voz tremida da velha parecia vir de dentro dos travesseiros, uma voz sem corpo, metida em chinelas de lã: "Que seta? Não estou vendo nenhuma seta...". Misturando-se à voz, veio vindo o murmurejo das traças em meio de risadinhas. O algodão abafava as risadas que se entrelaçaram numa rede esverdinhada, compacta, apertando-se num tecido com manchas que escorreram até o limite da tarja. Viu-se enredado nos fios e quis fugir, mas a tarja o aprisionou nos seus braços. No fundo, lá no fundo do fosso podia distin­guir as serpentes enleadas num nó verde-negro. Apalpou o queixo. "Sou o caçador?" Mas em vez da barba encontrou a viscosidade do sangue.

Acordou com o próprio grito que se estendeu dentro da madrugada. Enxugou o rosto molhado de suor. Ah, aquele calor e aquele frio! Enrolou-se nos lençóis. E se fosse o ar­tesão que trabalhou na tapeçaria? Podia revê-la, tão nítida, tão próxima que se estendesse a mão, despertaria a folha­gem. Fechou os punhos. Haveria de destruí-la, não era ver­dade que além daquele trapo detestável havia alguma coisa mais, tudo não passava de um retângulo de pano sustenta­do pela poeira. Bastava soprá-la, soprá-la!

Encontrou a velha na porta da loja. Sorriu irônica:

— Hoje o senhor madrugou.

— A senhora deve estar estranhando, mas...

— Já não estranho mais nada, moço. Pode entrar, pode entrar, o senhor conhece o caminho.

"Conheço o caminho", repetiu, seguindo lívido por en­tre os móveis. Parou. Dilatou as narinas. E aquele cheiro de folhagem e terra, de onde vinha aquele cheiro? E por que a loja foi ficando embaçada, lá longe? Imensa, real, só a ta­peçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão, pelo teto, engolindo tudo com suas manchas esverdinhadas. Quis re­troceder, agarrou-se a um armário, cambaleou resistindo ainda e estendeu os braços até a coluna. Seus dedos afun­daram por entre galhos e resvalaram pelo tronco de uma árvore, não era uma coluna, era uma árvore! Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés pesados de lama, os cabelos em­pastados de orvalho. Em redor, tudo parado. Estático. No silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro, nem o farfalhar de uma folha. Inclinou-se arquejante. Era o caça­dor? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia ape­nas que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado. Ou sendo caçado?... Comprimiu as palmas das mãos contra a cara esbraseada, enxugou no punho da camisa o suor que lhe escorria pelo pescoço. Vertia sangue o lábio gretado.

Abriu a boca. E lembrou-se. Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu o assobio da seta varando a folhagem, a dor!

"Não...", gemeu de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à ta­peçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando o coração.

 

                   A Chave

Agora era tarde para dizer que não ia, agora era tarde. Deixara que as coisas se adiantassem muito, se adiantassem demais. E então? Então teria que trocar a paz do pijama pelo colari­nho apertado, o calor das cobertas pela noite gelada, como nos últimos tempos as noites andavam geladas! País tropi­cal... Tropical, onde? "Foi-se o tempo", resmungou em meio de um bocejo. Devia haver no inferno o círculo social, apa­rentemente o mais suportável de todos, mas só na aparência. Homens e mulheres com roupa de festa, andando de um lado para outro, falando, andando, falando, exaustos e sem poder descansar numa cadeira, bêbados de sono e sem poder dor­mir, os olhos abertos, a boca aberta, sorrindo, sorrindo, sor­rindo... O círculo dos superficiais, dos tolos engravatados, embotinados, condenados a ouvir e a dizer besteiras por toda a eternidade. "Amém", sussurrou distraidamente. Cerrou os olhos. Cerrou a boca. Mas por que essa festa? "Estou exausto, compreende? Exausto!", quis gritar, enquanto batia com os punhos fechados na almofada da poltrona. Voltou para a mu­lher o olhar suplicante, "Então não compreende? Exausto...".

— Tom! Que tal se você já começasse a se vestir? Claro que não compreendia nada, a cretina. Festa, festa,

festa! O dia inteiro e a noite inteira era só festa, era vestir e desvestir para se vestir em seguida, "Depressa que esta­mos atrasados!". Atrasados... Ter que se barbear, escolher a gravata, encolher a barriga, obrigando-a a se refugiar no primeiro espaço vago, aquela pobre, aquela miserável barriga que não tinha nunca o direito de ficar à vontade, nem isso! E armar a expressão cordial e ficar sorrindo até às cinco da manhã, os olhos escancarados, aqueles olhos mortos de sono!... Mas por quê? Cadelas. Não passavam todas de umas grandes cadelas inventando jantar após jantar para se exibirem.

— Feito putas.

— Que foi que você disse, Tom? — perguntou a mulher entrando no quarto. Vestia apenas uma ligeira combinação de seda preta, mais renda do que seda. — Deu agora para falar sozinho?

Teve um sorriso. Mas assim que a mulher desviou o olhar, sua fisionomia ficou novamente pesada. Recostou a cabeça na poltrona, relaxou os músculos. E bocejou, dis­tendendo as pernas. Se pudesse dormir ao menos aquela noite, enfiar-se na cama com uma botija, uma delícia de botija, criando assim aquela atmosfera terna entre seu cor­po e as cobertas... Ô! a melhor coisa do mundo era mesmo dormir, afundar como uma âncora na escuridão, afundar até ser a própria escuridão, mais nada. Antes, o copo de leite quente, bastante açúcar.

— Li numa revista que as mulheres que não dormem no mínimo dez horas por noite acabam com celulite antes dos trinta anos.

Ela escovava os cabelos. Deteve a escova no ar, abriu a cortina espessa da cabeleira e espiou. Tirou um fio de cabe­lo da escova. Deixou-o cair.

— Celulite?

— Foi o que eu li.

_Bobagem! Depois, isso não me atinge, tenho a carne

duríssima, olha aí — acrescentou ela, estendendo a perna nua até a poltrona. — Pegue para ver... Tem mulheres que a carne é mole que nem manteiga, mas a minha parece ma­deira, olha aí!

Ele tocou com as pontas dos dedos na longa perna bron­zeada. Concordou, afetando espanto. E voltou para a janela o olhar enevoado. A quantidade de homens que daria tudo só para ver aquelas pernas. As famosas pernas. Besteira, onda. Baixou o olhar para os próprios pés. Com aquelas meias, pareciam pés de um rapaz, ela gostava das cores for­tes. Francisca preferia cores modestas, mas Mago era jovem e os jovens gostam das cores, principalmente os jovens que vivem em companhia de velhos. E que desejam disfarçar esses velhos sob artifícios ingênuos como meias de cores berrantes, camisas esportivas, gravatas alegres, alegria, meus velhinhos, alegria! Dia virá em que ela vai querer que eu pinte o cabelo.

— Mas por que esse jantar agora?

— Ora, por quê! Acho que a Renata quer exibir o nariz novo, ela está de nariz novo, você já viu?

— Já. Ficou pavorosa.

— Você acha mesmo? — espantou-se Magô. Teve um ri­sinho. — O médico cortou demais, foi isso.

— Não sei por que tanto jantar sem motivo nenhum.

— Mas precisa haver motivo especial para um jantar? — perguntou ela inclinando-se. Recomeçou a escovar vigoro­samente os cabelos. — E depois, estamos disponíveis, não estamos?

Disponíveis. E como se exprimia bem, a sonsa. Contu­do, há alguns anos, que enternecedor vê-la roendo as unhas quando se intimidava. Ou morder o lábio quando não sabia o que dizer. E nunca sabia o que dizer. "Vai desabrochar nas minhas mãos", pensou emocionado até às lágrimas. Desa­brochara, sem dúvida. Lançou-lhe um olhar. "Mas não pre­cisava ter desabrochado tanto assim."

Com um gesto lento, abotoou a gola do pijama. Levan­tou os ombros.

— Como esfriou.

Ela atirou a cabeleira para trás. Passou creme nas per­nas, nos pés. Em seguida, devagar, voluptuosamente esfregou as solas dos pés no tapete.

— Sabe que não sinto frio? Já estamos no inverno?

— Em pleno.

— Pois não sinto frio nenhum.

— Acredito — murmurou ele seguindo-a com o olhar.

Descalça, seminua e radiosa como se estivesse debai­xo do sol. Tanta energia, meu Deus. Havia nela energia em excesso, ai! a exuberância dos animais jovens, cabelos demais, dentes demais, gestos demais, tudo em excesso. Eram agressivos até quando respiravam. Podia quebrar uma perna. Mas não quebrava, naquela idade os ossos de­viam ser de aço. Bocejou.

Ela agora passava creme no rosto, podia ver-lhe os de­dos untados indo e vindo em movimentos circulares. Não precisava dormir? Não, não precisava e quando dormia, acordava impaciente, aflita por recuperar o tempo desper­diçado no sono. A perna quebrada seria uma solução...

— Tom querido, você está cochilando! Quer um drin­que para animar?

Ele escondeu as mãos nos bolsos do pijama. Abriu com esforço os olhos que lacrimejavam. "Não quero beber, que­ro dormir!", teve vontade de gritar. Sorriu com doçura.

— Não, Mago, hoje não quero beber nada.

— Se você tomasse um drinque, aposto que se anima­ria!

— Mas estou animadíssimo...

Ela despejou água-de-colônia nas mãos. Abanou-as em seguida para secá-las. "Sabe que estou olhando e fica então a se exibir", pensou. "Uma exibicionista. Se soubesse a data da morte, doaria depressa o esqueleto à Faculdade de Medicina, para continuar..."

— Lasquei duas unhas — lamentou ela inclinando-se para calçar as meias. — E não me lembro onde foi.

Fechou os olhos. As unhas de Francisca eram curtas, unhas de mãos eficientes, com uma discreta camada de esmalte incolor. Unhas e mãos de velha, incrível como as mãos envelheceram antes. Depois foram os cabelos. Podia ter reagido. Não reagiu. Parecia mesmo satisfeita em se entregar, pronto, agora vou ficar velha. E ficou. Gostava de jogar paciência, as mãos muito brancas deslizando pelo baralho. A vitrola ligada, discos próprios dos programas da saudade. "Mas, Francisca, que horror, esse samba é anti­quíssimo, você tem que ouvir coisas novas!" Ela sacudia a cabeça, "Não quero, deixa eu com as minhas músicas, essas outras me atordoam demais!" Tardes de Lindoia. Os jardins, os copinhos, "Esta fonte é excelente para reumatismo..."

— Tom, que tal?

Abriu os olhos num estremecimento.

— O quê?!

— Minha peruca! — exclamou Mago contornando com as mãos os cabelos. A franja comprida ameaçava entrar-lhe pelos olhos bistrados. — Você gosta?

— Mas por que peruca? Você tem tanto cabelo, menina.

— Ora, está na moda. E posso variar de penteado, fica fácil.

Molemente ele estendeu o braço até a mesa de cabeceira. Apanhou a caixa de cigarros. Estava vazia. Fechou-a. Me­lhor, assim fumaria menos. "Na sua idade", começara o mé­dico na última consulta.

Na sua idade. Inútil esquecer essa idade porque as pes­soas em redor não esqueciam, há dez anos o pai de Mago já viera com isso embora não tivesse coragem de completar a frase. "Na sua idade..." Ela também estava na sala, fingindo ler uma daquelas infames revistinhas de amor. "Que é que tem na minha idade?", provocara-o. O homem entrelaçou no ventre as mãos nodosas. As unhas eram pretas. "O caso é que minha filha tem só dezoito anos e o senhor tem qua­renta e nove, a diferença é muito grande", ponderara, co­çando a cabeça com os dedos em garra, exatamente como um macaco se coçaria. "Hoje não soma tanto. Mas daqui a dez anos como vai ser?" Ele então apanhou a capa. O cha­péu. Abriu a porta e teve aquele gesto dramático: "Daqui a dez anos o problema de ser corno ou não será um problema exclusivamente meu!".

— Será que o Fernando vai também?

— O Freddy? Não tenho a menor ideia. Por quê? E já tinha apelido, o pilantra. Freddy.

— Por que Freddy? Por que isso?

— Mas todo mundo só chama ele de Freddy!

Todo mundo era ela. Gostava de pôr apelidos, vinha logo com aquelas intimidades.

— Não entendo como um tipo desses faz sucesso com as mulheres. Analfabeto, gigolô...

— Gigolô?

— É o que corre por aí.

— Ah, Tom, não posso acreditar!

— Se não é, tem cara. Um pilantra de marca fazendo blu-blu-blu naquele violãozinho.

Pensativamente ela calçou os sapatos.

— Tem uma voz linda.

— Voz linda, onde? Uma voz de mosquito, a gente precisa ficar do lado para poder ouvir alguma coisa. Afeminado...

Afeminado ou efeminado? Bocejou. Enfim, uma besta quadrada. E aquelas idiotas babando de maravilhamento. Tinha juventude, mais nada. Crispou os lábios. Tinha juventude. "Ju-ven-tu-de...", murmurou voltando o olhar mortiço em direção ao espelho. Ela adorava espelhos, de­zenas de espelhos por toda a casa. Aquele ali então era o pior, aquele que apanhava o corpo inteiro, sem deixar es­capar nada. Com ele aprendera que envelhecer é ficar fora de foco: os traços vão ficando imprecisos e o contorno do rosto acaba por se decompor como um pedaço de pão a se dissolver na água.

— Mas, Tom, você não vai mesmo se vestir? Quase nove horas!

— Fico pronto num instante, enquanto você se pinta dá tempo de sobra.

— E a barba? Não vai fazer?

— Mas é preciso? — gemeu passando a mão no queixo. — Já fiz a barba hoje, minha pele está ficando escalavrada de tanta gilete.

— Então vá com essa cara de misericórdia mesmo! Já disse, Tom, já disse que você fica abatidíssimo com a barba crescida. Parece um velho.

— Eu sou velho.

— Ah, lindinho, não fale assim, vamos, levanta, vai fazer sua barbinha — pediu ela acariciando-lhe a cabeça.

— Não.

— Nunca vi tamanha má vontade, francamente!

— Fazer o quê nesse jantar, me responda depressa.

— Comer, ora...

— Mas se não posso comer nada, tenho o regime. O que preciso é de dormir, dormir!

— Pois durma!

Encarou-a. Era o que ela queria.

— Ainda vou ficar pronto antes de você — ameaçou, apoiando as mãos na poltrona.

Chegou a se levantar. E deixou-se cair novamente. Fe­chou os olhos. Bocejou. Contaria até cinco e então se levantaria como um raio. Até dez... Esfregou os olhos.

— Meu Deus.

— Está com alguma dor, Tom? Lançou-lhe um olhar demorado.

— Você está linda.

— Eu, linda?!

Sorria ainda. Elas negavam sempre, fazia parte do jogo. Francisca era o oposto e contudo tivera aquela mesma ex­pressão a última vez em que lhe dissera isso, "Francisqui-nha, você está linda". Ela então inclinara a cabeça para o ombro num muxoxo: "Ah, Tomás, eu? Linda?...". Não deixou que ela prosseguisse negando: "Linda, sim, quando você se enfeita um pouco fica uma beleza, você precisa ser mais vai­dosa, querida. Veja as outras mulheres em seu redor!". Ela voltara a colocar os óculos. "Mas na minha idade, Tomás..."

Aquela obsessão de idade. Por que falava tanto em idade? Chegava a ser irritante às vezes. "Também tenho cinquenta anos, como você, não tenho? Por acaso vou agora cobrir a cabeça e esperar a morte?" Ela colocara o disco na vitrola. "Tomás, você já viu como a noite está bonita? Por que não vai dar uma volta?" Ele foi. Na volta, encontrara Magô. Teve a sensação de nascer de novo quando ela o chamou de Tom. Sentira-se um outro homem. Outro homem. Que anúncio usava essa frase? "Fiquei um outro homem." O anúncio es­tava num bonde, devia ser de um xarope. Fazia tanto tem­po. Saudade de andar de bonde, ir lendo os anúncios, os avi­sos tão cordiais, tão prudentes: "Espere até o bonde parar!". Tempo da prudência, tempo da consideração. Era bom des­lizar pelas ruas desertas, cochilar naquele balanço para a direita, para a esquerda, como num berço...

— Então, Tom, resolva logo, a Renata fica uma fúria quando a gente se atrasa.

— Eu quero que essa Renata vá pro fundo do inferno.

— Tom!

— Ela com toda a sua corja de convidados.

— Ih, como você anda desagradável — exclamou a jo­vem fechando o zíper do vestido. — Você não faz ideia como anda desagradável ultimamente.

"Ando com sono", ele quis dizer. Levantou friorento a gola do pijama até as orelhas. Abriu a boca para bocejar, as mãos em concha diante da boca, aquecendo-as com o bafo. Dormiria uma noite inteira e a outra noite inteira e a outra ainda... Noites e noites dormindo até morrer de dormir. Na vitrola, a musiquinha sem neurose. E Francisca ao lado, entretida na sua paciência, ah, como amava aquele doce som das cartas que murmurejavam sobre a mesa enquanto também ela murmurava coisas que não exigiam resposta. Queria um valete, vinha uma dama: "Não era de você que eu estava precisando", ralhava. Os móveis antiquados. Os vestidos antiquados. A beleza antiquada. "Mas, Francisqui-nha, você precisa usar uns vestidos mais atuais, precisa se pintar!" Deu-lhe um vidro de perfume. Deu-lhe um batom que viu anunciado numa revista, uma nova tonalidade que fazia até as estátuas despertarem, estava escrito, com essa cor até as estátuas acordam! Deu-lhe um colar de contas ver­melhas, dezenas de voltas vermelhas, "Somos jovens ainda, minha querida! Vamos reagir?". Olhara-o com uma expres­são reticente. Seria ironia? Não, talvez nem isso, era generosa demais para ser irônica. Olhara-o quase como uma mãe olha para o filho antes de lhe entregar a chave da porta.

— Tom, você acha que esta luva combina?... Tom, estou falando, responda!

— Combina, meu bem, combina.

— Quem sabe a verde?

— Essa está ótima.

Quase como uma mãe olhando para o filho. Então ele baixou a cabeça e saiu. Na rua, sentira-se um adolescente apertando a chave no bolso. "Sou livre!", quisera gritar às pessoas que passavam, aos carros que passavam, ao vento que passava. "Livre, livre!"

Ah, se pudesse voltar sem nenhuma palavra, sem nenhu­ma explicação. Ela também não diria nada: era como se ele tivesse ido comprar cigarros. "Tudo bem, Francisquinha?", perguntaria ao vê-la franzir de leve as sobrancelhas. Ela se inclinaria para o baralho: "Está me faltando uma carta...".

A voz de Magô pareceu-lhe anônima. Irreal. Ouviu a pró­pria voz pastosa mas tranquila.

— Vá você, querida. Divirta-se.

Ela ainda insistiu. Teria mesmo insistido? Os saltos do sapato ecoaram no silêncio como pancadas algodoadas, fugindo rápidas. Estendeu a mão até a cama e puxou a co­berta. Cobriu-se. Tudo escuro, tudo quieto. O perfume foi-se suavizando e ficou o perfume de um jardim de estátuas, es­tátuas alvíssimas que dormiam sem pupilas, nenhuma cor conseguiria fazer com que abrissem as pálpebras. Estendeu molemente as pernas. As pernas de Mago ressurgiram na escuridão: dançava nua, esfregando os pés no tapete en­quanto a música do violão foi subindo pelas suas pernas, como meias. Agitou-se e quis fechar a porta na cara do ho­mem de unhas pretas, "O problema é meu!". A música de­composta já chegava até as coxas das pernas de colunas, "Cuidado, Mago! O Fernando não!...".

Dançarina e músico pousaram como poeira na antiga mesa. Abriu-se num leque o baralho murmurejante. E reis com pés de lã foram saindo, arrastando seus mantos de ar­minho. Enrolou-se num dos mantos e ficou sorrindo para Francisca. Ela parecia luminosa no seu vestido de opalina rosada, mordiscando de leve a ponta de uma carta. "Pos­so?", perguntou-lhe, deitando a cabeça no seu colo.

Devolveu-lhe a chave.

 

                   Meia-Noite em Ponto em Xangai

A longa bata de brocado azul caiu-lhe aos pés. Avançou nua em direção ao espelho de moldura de laca vermelha. Girou sobre os calcanhares para se ver de perfil. Levantou o busto. Encolheu o estômago. Olhando ainda para o espelho, como se convidasse a própria imagem a acompanhá-la, mergu­lhou na banheira. Cerrou os olhos, as mãos flutuando à altura do ventre. Um leve rubor coloriu-lhe o rosto. Ficou assim imóvel durante algum tempo.

— Wang! — chamou, sentando-se na banheira. — Wang!

O chinês entrou na sala de banho. Cruzou as mãos e incli­nou um pouco o corpo para a frente. Tinha os olhos baixos:

— Madame?...

— Os sais.

O homem aproximou-se do toucador de laca vermelha. Um ligeiro vapor d'água embaçava o espelho e os frascos de perfume, dispostos sobre a toalha de renda dourada. Havia dois boiões de sais: um amarelo, o outro rosado.

— Magnólia, madame?

— Magnólia.

O chinês destapou o boião amarelo. Colheu os sais com uma concha. Em seguida, delicadamente, foi deixando que caíssem na água.

— Suficiente, madame?

Entreabriu os olhos. Aspirou o perfume de magnólia. Os sais cintilavam como areia dourada sobre seu corpo.

— E Ming?

— Está dormindo no sofá — disse o chinês apanhando a bata. Estendeu-a cuidadosamente na cadeira. Curvou-se:

— Mais alguma coisa, madame?

— Vá buscar o Ming.

O chinês era alto e magro. Poderia ter trinta anos, po­deria ter cinquenta. Usava alparcatas pretas e uma túnica preta, abotoada até o pescoço. Pisava mansamente, como falava. Os gestos redondos.

— Meu queridinho, será que você não cansa de dormir? — murmurou a mulher, acariciando o focinho do pequinês cor de mel. E para o criado: — Trouxe o uísque?

— E também o gelo — acrescentou ele, o olhar inexpres­sivo na direção da mulher que se ensaboava. — Chegou uma cesta de flores, madame.

— Mais flores? Ponha com as outras no corredor... Não, espera, pode pôr perto da janela. Quando você sair, leve para fora. E acenda as luzes da sala, Mister Stevenson deve estar chegando.

— Então é ele que está batendo.

— Estão batendo? Não ouvi nada.

O chinês deixou a porta entreaberta e dirigiu-se para a sala no seu passo tranquilo. Pela fresta ela viu passar o ho­mem de smokinge cachimbo.

— Stevenson? Sente-se aí, meu caro. Já estou saindo do banho, um momento!

— Não se apresse, vim apenas cumprimentá-la mais uma vez, não podia dormir sem dizer-lhe que foi extraordinário! Nunca ouvi coisa igual na minha vida!

— Verdade? — Mergulhou voluptuosamente até às ore­lhas. — Para ser sincera, não gostei muito da minha interpre­tação, a Du bistdieRuh podia ter sido melhor, não podia?

— Mas, madame, foi esse o seu ponto máximo! Ficou de pé dentro da banheira. Sacudiu-se friorenta.

— Wang! Ligeiro, minha toalha! E feche a porta. Enxugou-se rapidamente e apanhou o frasco de água-de-colônia. Perfumou-se, pródiga.

— Já vou indo, Stevenson!

O homem serviu-se de uísque.

— Jamais a China ouviu cantora igual — exclamou, le­vantando o copo: — Bebo à saúde da maior soprano dramá­tica do mundo!

Ela sorria ainda, polvilhando o corpo de talco. Vestiu a bata, amarrou o cinto e voltou-se lânguida para o espelho. Abotoou os lábios como se fosse beijar a própria imagem. Calçou as chinelas bordadas.

— Você é tão generoso, Stevenson.

— Não ouvi, madame...

— Eu disse que você é generoso demais!

— Generoso, por quê? Foi mesmo um sucesso, mada­me. E os convites que temos recebido? Laffont, dono de quase todos os cassinos e estádios de corridas de cães, um dos tipos mais ricos da China, quer que madame cante na recepção que vai dar na quinta-feira. Quer presenteá-la com jóias...

A mulher tirou os grampos da cabeça. A basta cabeleira loura caiu-lhe até os ombros. Escovou-a de leve e atirou-a para as costas. Abriu a porta.

— Quero uma cama de jade.

Ele beijou-lhe a mão numa profunda reverência.

— Madame terá um palácio de jade.

— Ah, Stevenson, Stevenson... Não estou tão certa assim, meu caro. Lotte Lehman me deixa longe.

O homem franziu as sobrancelhas eriçadas. Tremiam-lhe as bochechas luzidias, cheias de veiazinhas roxas:

— Jamais a Lehman cantou como madame cantou esta noite. Pena o público, essa chinesada... Queria que hoje estivéssemos em Londres.

Ela bebia lentamente, sorrindo para a própria imagem re­fletida no espelho que ocupava quase toda a parede da sala.

— A Du bist die Ruh ela canta melhor do que eu. Inclinando-se gravemente para a mulher, Stevenson to­mou um ar imponente.

— Se a perfeição dura no tempo um só minuto, como que­ria Shakespeare, madame atingiu o seu minuto esta noite.

Recostando a cabeça no espaldar da poltrona, a mulher teve um risinho, "Ah, meu caro...". O cachorro arranhou-lhe a barra do brocado. Latiu, estridente.

— Wang! — chamou ela. — Dê um banho no Ming. Mas com água bem quente, que a noite está meio fria. — Voltan-do-se para o homem disfarçou um bocejo: — Mas então, Stevenson? Você dizia...

— Madame deve estar cansada, a glória cansa — sen­tenciou, olhando o relógio de pulso. —Acabo este uísque e já saio.

— Que horas são?

Meia-noite em ponto em Xangai.

— E em Londres? — perguntou ela, fazendo girar a pe­dra de gelo no uísque. Teve um olhar sonhador para o céu negro, sem estrelas: — Na próxima vez quero cantar toda de preto, só com meu adereço de turquesas. Tem que ser um vestido espetacular, a cauda barrada de plumas... E o leque de plumas, adoro plumas.

Stevenson olhou pela porta entreaberta da sala de ba­nho, onde o chinês lavava o cachorro debaixo da torneira.

— Pois eu desejaria apenas usar a roupa desse escravo aí dentro, desejaria mesmo ser esse escravo para de vez em quando levar a toalha à madame.

— Não queira ser isso, meu caro... Esse chinês não existe. Pode me ver nua, pode me ver de qualquer jeito, tanto faz, para mim ele não existe. Não sei explicar, mas não o consi­dero realmente como gente. É como esta poltrona, este copo, esta almofada... Ou melhor, é como um bicho. Não me dis­po diante do meu pequinês? É bom assim, fico tão à vonta­de. Acho que vou encaixotá-lo com a minha bagagem, meus criados andam impossíveis.

— Mas é um homem, madame. Um pária miserável, mas homem.

_Homem, homem... É um chinês, Stevenson.

— Não tem cara de quem toma ópio. Mas deve tomar, to­dos são viciados, o que é a nossa sorte. Madame já imaginou essa multidão acordada? Não estaríamos aqui agora...

— E o seu criado de quarto?

— Um parvo total. Deve ser o pior do hotel.

— Esse é razoável. E não cheira a peixe, como os outros — murmurou ela voltando o olhar para o lustre.

Pela primeira vez reparou nas pequeninas borboletas de porcelana azul, pousadas nas papoulas de porcelana e cristal desabrochadas em lâmpadas. Deslizou o olhar pelo biombo com pássaros e flores de madrepérola. Sorriu, melíflua:

— Pondo-se de lado o povo, tudo aqui é tão gracioso, tão amável. Eu não gostaria que isso mudasse, Stevenson.

— Não mudará, madame.

O cachorro escapou das mãos do criado e entrou corren­do na sala. Sacudiu-se todo.

— Ming, você está me espirrando água — queixou-se a mu­lher, afastando-o. — Wang! depressa, a toalha que o pobrezi­nho está tremendo de frio... Por que deixou ele escapar?

O homem examinou o chinês mais atentamente.

— Ele entendeu o que nós dissemos? Tem cara de quem não entendeu nada.

— Entendeu tudo.

— Tudo?

— Lógico. Mas isso também não tem a menor importância.

— Meu criado só entende monossílabos. Já me queixei, vai ser posto na rua. Num hotel desta categoria um camareiro não saber inglês. Absurdo.

Ajoelhado no tapete, o chinês enxugava o cachorro que gania em meio aos calafrios.

— Chega, Wang. Deixe ele agora em cima da almofada. O homem desviou do chinês o olhar. Bebeu o último

gole de uísque.

— Vou indo, madame. Almoçamos juntos amanhã? Acompanhou-o até a porta.

— Se acordar até a hora do almoço... Então oferecerei ao meu querido empresário um vinho de arroz. E uma sopa de barbatanas de tubarão.

— Dizem que aquilo é barbatana, mas desconfio que é cobra — murmurou ele, beijando a mão da mulher. — Essa gente é muito cavilosa, nunca se sabe.

Tomando-o pelo braço:

— Stevenson, você disse que a perfeição dura um minuto...

— Shakespeare, madame, Shakespeare.

— Tenho medo de ter alcançado já o meu minuto. Ele aprumou-se. Apertou-lhe as mãos.

— Segundo meus cálculos, o minuto de madame dura­rá ainda algumas centenas de concertos. Boa noite, rainha.

Ela teve um sorriso meio incerto. Fechou a porta e diri­giu-se à sala. A voz ficou de novo fria.

— Pode apagar as luzes todas, deixe só o abajur pe­queno aceso. E leve as flores para o corredor — ordenou entrando na sala de banho. Passou creme em redor dos olhos. — Avise na portaria que não estou para ninguém na parte da manhã. Para ninguém, ouviu?

— Está bem, madame. Boa noite.

Não respondeu. Quando voltou à sala, encontrou-a na penumbra, iluminada apenas pela fraca luz do abajur. Apanhou uma amêndoa, trincou-a, aproximando-se da janela. As flores da cesta brilhavam no escuro como se fossem feitas de material fosforescente.

— Wang, você ainda está aí? Por que não levou as flores? Não teve resposta. Apertou o cinto da bata e estendeu-se molemente na poltrona diante da janela. O cachorro lam­beu-lhe os pés. Ela puxou uma almofada.

Deite-se aí, Ming — murmurou, inclinando-se. E vol­tou-se para o fundo da sala: — Wang?...

Eram raros e indistintos os ruídos que vinham lá de fora. Concentrou-se, mas dessa vez não olhou para trás.

— Wang? É você, Wang? Pegue as flores e vá-se embora, já disse.

Destacando-se dentre os sons menores, o trepidar de um riquixá subindo penosamente a rua. A mulher apoiou-se nos braços da poltrona, pronta para se levantar. Continuou sentada, olhando para a frente. Empertigou-se:

— Wang, eu sei que você está aí atrás, ouviu bem? Deixe de se esconder, vá-se embora! É uma ordem, Wang!

Na trégua de silêncio sua voz soou artificial, como se viesse do bojo do gramofone ao lado do biombo. O pequinês esticou o pescoço. Olhava fixadamente um ponto além da poltrona onde estava a mulher. Rosnou baixinho.

— Quieto, Ming! Quieto.

O cão baixou as orelhas, tremendo. Enfiou o focinho en­tre as patas, mas os olhos, esbugalhados, continuavam fixos no mesmo ponto. Ganiu doloridamente. Ela afundou aos poucos na cadeira. Não despregava o olhar do cachorro.

— Wang, deixe de ser idiota e saia imediatamente, está me ouvindo? Vamos! Saia!

O silêncio era agora tão compacto que os ruídos da rua já não conseguiam penetrá-lo. O cachorro rosnou mais uma vez, lambendo a pata.

A mulher foi-se encolhendo, agarrada aos braços da pol­trona. Cravou o olhar esgazeado no retângulo negro do céu. Encolheu-se mais ainda, cruzando os braços. Limpou as mãos pegajosas no brocado da bata. Susteve a respiração.

 

                   A Janela

A mulher estendeu-lhe a mão e sorriu. O homem pareceu não ter notado o gesto. Ficou imóvel no meio do quarto, os braços caídos ao longo do corpo, o olhar fixo na janela.

— Havia ali uma roseira.

Lentamente ela amarrou na cintura o cinto do penhoar de seda japonesa. Examinou mais atenta o homem alto e magro, um pouco arcado, de cabelos grisalhos com refle­xos de prata.

— Que roseira?

— Uma roseira — disse ele num tom velado, vagando o olhar pelo quarto. — Certa vez, deu mais de cem rosas. Umas rosas enormes, vermelhas...

— Como é que o senhor sabe?

— Meu filho morreu neste quarto.

Ela sentou-se na beirada da cama. O riso foi-se desfazen­do nos lábios grossos, mal pintados.

— Seu filho?!

— Este era o quarto dele — disse o homem voltando para a mulher o olhar fatigado. Tinha olhos palidamente azuis e falava baixinho, como se receasse ser ouvido. Um olho era bem maior do que o outro. — Exatamente onde está sua cama ficava a cama dele.

Ela descruzou as pernas e lançou um olhar constran­gido para a cama coberta de almofadas coloridas. Sorriu sem vontade.

— Imagine... Isso faz muito tempo?

— Não sei.

Encarou-o. Estendeu-lhe o maço de cigarro.

— Está servido?

— Não fumo.

— No que faz bem. Diz que fumo dá aquela doença que nem gosto de falar. Queria ver se deixava mas quando dei­xo engordo que nem louca — lamentou fazendo um mu­xoxo. — A gola do penhoar abriu-se no peito. Ela fechou a gola frouxamente, de maneira que voltasse a se abrir de novo. O senhor... você não quer se sentar? — convidou, indicando a pequena cadeira vermelha ao lado da mesa de toalete. — Fique à vontade, meu bem.

Ele sentou-se, encolhendo as longas pernas para não to­car nas da mulher. Entrelaçou as mãos. Vestia-se corretamente, mas a roupa parecia larga demais para seu corpo.

— Eu precisava rever essa janela.

— Só a janela?

O homem fixou na mulher o olhar desesperado.

— Meu filho morreu aqui.

— Deve ter sido horrível — disse ela depois de um breve silêncio. Soprou, nostálgica, a brasa do cigarro. Encarou o homem. E tentou uma risadinha: — Sorte a minha de ter es­colhido este quarto, só assim podia te conhecer... Sabe que você é o meu tipo? Vem, senta aqui comigo!

— Era ele quem cuidava da roseira.

No cômodo ao lado alguém ligou um toca-discos. A mú­sica arrastou-se na surdina, era um samba-canção. Pigarreando forçadamente, a mulher teve um meneio de ombros. A gola do penhoar abriu-se até os bicos dos seios. Cruzou as pernas deixando cair no chão a sandália dourada. Descobriu os joelhos roliços.

— Mas então? Você trabalha por perto? Me dê sua mão, deixa eu adivinhar o que você faz... Sei ler mão, uma vez dis­se pra um cara, você vai ganhar na loteria! E não é que ele ganhou mesmo? Me dá sua mão e eu já digo o que você faz, dá aqui, amor...

_Não trabalho — murmurou ele percorrendo com o

olhar o teto do quarto. Deteve-se na janela. — Não é estra­nho? Assim sem a roseira ela parece menor.

Esticando o braço nu, a mulher esmagou no cinzeiro a brasa do cigarro. Enfiou as mãos nos cabelos encaracolados, puxando-os para trás. Examinou o homem, intrigada.

— Quando me mudei não tinha nenhuma roseira.

— Morreu exatamente um mês depois dele.

— Pois quando cheguei aqui nem o canteiro tinha. Isso já faz três anos. Sou de Rio Preto, já contei?

O homem tirou do bolso uma pequena caixa de injeção e fi­cou a rodá-la entre os dedos. Repuxou a boca numa contração.

— Na véspera de morrer ele ainda me pediu que eu abris­se a janela, queria sentir o perfume... Enquanto pôde, debru­çou-se nela. Depois, quando perdeu as forças, ficava olhando da cama. Um galho da roseira insistia em entrar pelo quarto adentro. Era um galho tão áspero, tão violento, eu o afastava, mas ele vinha novamente cheio de espinhos e folhas... Nunca tive coragem de cortá-lo.

A mulher foi afundando na cama até recostar-se no ân­gulo do espaldar com a parede. Puxou uma almofada e nela apoiou o cotovelo. Apertou os olhos. E ficou mordiscando a unha do polegar. Falava agora em voz baixa, no mesmo tom abafado do visitante.

— Que é que você tem aí dentro? Injeção?

— Nada — sussurrou ele, abrindo a caixa. Ergueu a face Perplexa: — Está vazia.

Uma porta bateu com estrondo. A mulher teve um estre­mecimento.

— Sempre me assusto quando uma porta bate — descul­pou-se. — Fico nervosa à toa...

— Queria que me perdoasse — pediu ele num tom mais baixo ainda. — Mas é que eu precisava ver essa janela.

— Fique à vontade, imagine... O que é de gosto, regalo da vida!

— Era muito importante para mim voltar aqui.

— Já entendi, essas coisas eu entendo, pode deixar... Você é estrangeiro?

— Meu pai era dinamarquês.

— Dinamarquês — repetiu a mulher inexpressivamen­te. Inclinou-se para apanhar o cigarro. — Logo que você entrou, achei que devia ser estrangeiro. Posso saber seu nome?

Ele baixou a cabeça. As veias da fronte dilataram-se, tor­tuosas. Assim, de cabeça baixa, parecia um velho.

—As casas deviam ter mais janelas.

Passos ressoaram pesadamente no cômodo vizinho. A música foi interrompida, fazendo a agulha riscar o disco. A mulher encolheu as pernas. Cobriu com uma almofada os pés nus. Fechou no pescoço a gola do penhoar.

— A Brigite é apaixonada por esse disco, repete ele umas cem vezes por dia. Agora está mudando de lado. Quer que eu vá pedir pra parar?

— Não se incomode — ele sussurrou estendendo a mão espalmada na direção da mulher. Recolheu depressa a mão quando a viu estremecer. —Assustei-a?

— Que nada! É que sou mesmo assim, ando nervosa, acho que é o calor, está hoje um calor, não está? Mas posso pedir pra ela diminuir, vou num minuto...

— É aqui que está o botão para diminuir o som — disse ele apontando para o ouvido. — Todos os botões estão em nós mesmos.

Recomeçou a música acompanhada por uma voz de mu­lher, cantarolando meio distraída.

— O senhor sabe as horas? Marquei hora na Mirtes.

_Não tenho relógio. Mas por que me chamou de senhor?

— ele quis saber examinando-a com uma expressão afetuosa.

_Nos reuníamos junto da lareira. Foi na casa desse avô que eu vi a neve pela primeira vez. Cobria tudo, não se podia nem abrir a vidraça. Então ficávamos na sala, brincando perto da lareira. Tinha um corcundinha de roupa amarela e chapéu de guizos. Os dentes eram de ouro. Eu rolava com ele no tapete, fazendo-lhe cócegas só para ver seus dentes...

— Também tenho um dente de ouro — começou ela em meio de um risinho. — Só que é lá no fundo. Às vezes dói, o bandido.

— Começa hoje a primavera. Você teria rosas lindíssi­mas.

A mulher ficou de joelhos na cama. Estava pálida. Os lá­bios trêmulos. Falava agora como ele, delicadamente.

— Olha, espere um pouco que vou buscar um refresco pra nós, tá? A Nanei fez uma delícia de refresco, uvaia com bastante açúcar, bem geladinho.

Ele descruzou as mãos e ficou a olhar para os dedos lon­gos, abertos num espanto. A voz rouca saiu entrecortada.

— Não seria preciso mais do que uma pequena janela. Poderia então respirar. E quem sabe o galho de roseira...

Ainda de joelhos, sem ruído, a mulher foi deslizando para o chão. Abriu a porta.

— Fique bonzinho, volto num instante, tá? Escurecia. A sombra arroxeada do crepúsculo dava uma

coloração de vinho velho à coberta vermelha da cama. O vento soprou mais forte, fazendo farfalhar o saiote de papel de seda da bonequinha vestida de bailarina, dependura­da no espelho por um fio. No toca-discos, a agulha riscava obstinadamente o disco que chegara ao fim. O homem não se moveu na cadeira vermelha, tão integrado na penumbra quanto os objetos em redor.

— Demorei muito? — perguntou a mulher entrando sor­rateira. — É que fui buscar laranjas, o refresco tinha acaba­do, fiz outro, está na geladeira — acrescentou atropelada­mente.

Mantinha-se junto da porta, a mão torcendo o trin­co. — Vou acender a luz, está escuro demais, credo!

— Não, por favor, está tão bom assim — pediu ele com doçura. Falava num tom quase inaudível: — E nesta hora que começa o perfume, a gente sente melhor no escuro.

— Perfume de quê?

— De rosas.

Ela encostou a cabeça na porta, os olhos muito abertos, a respiração curta. Vinha agora do corredor um ruído arrasta­do de passos. Vozes de homens e mulheres cruzaram-se pre­cipitadas. Abriu-se a porta. Um enfermeiro entrou a pas­sos largos, seguido por outro enfermeiro. Três mulheres de ar assombrado ficaram espiando do lado de fora. Alguém acendeu a luz.

O homem levantou-se e tapou os olhos com a mão. Aos poucos foi levantando a cabeça, os olhos ainda apertados. Pôde então encarar o enfermeiro que desdobrava uma cami­sa de força. Estendeu tranquilamente as mãos. Tinha na fisio­nomia uma expressão de profunda tristeza.

— É preciso?

O enfermeiro teve um sorriso contrafeito. Encolheu os ombros enquanto dobrava a camisa. E aproximou-se com brandura.

— Então vamos.

Ele teve um último olhar para a janela. Depois voltou-se para a mulher, descalça e encolhida num canto. Falou tão baixo que só ela pôde ouvi-lo.

— Porquê?...

O segundo enfermeiro tomou-lhe o braço e em silêncio o cortejo foi saindo para a rua.

Como se obedecessem a um secreto sinal, as três mu­lheres precipitaram-se para dentro do quarto, rodeando a companheira que continuava colada à parede, fechando no peito a gola do penhoar.

— Que horror! — exclamou a mulher de lenço amarelo amarrado na cabeça. — Como é que você não morreu de susto? Fechada com um louco aqui dentro? Só de pensar fico toda arrepiada, olha aí!

_Mas até que ele tinha uma cara bem simpática — dis­se a loura de brincos. — Era meio parecido com aquele artista de cinema, aquele meio velho, como é mesmo o nome dele? James...

— Ah! não quero nem saber, Deus que me livre de topar com um louco — interrompeu-a a mulher de lenço. — E como é que você descobriu que ele tinha fugido? Puxa vida, que você dava até para trabalhar na polícia! Isso prova que a gente devia ter um revólver no quarto. Metralhadora, mi­nha filha.

— Coitado, fiquei com tanta pena... E nem fez nada, não foi? — perguntou a loura, voltando-se para a amiga. — Po­dia ter abusado, não abusou. Palavra que fiquei com pena, ele lembrava muito aquele artista, nós vimos a fita juntas, o nome começava com James...

Repentinamente a mulher pareceu despertar no canto onde se encurralara. Abarcou as três mulheres num olhar enfurecido. Empurrou-as para fora do quarto:

— E chega, ouviram? Chega! Vão-se embora, me deixem em paz!

— Mas que bruta! A gente estava só querendo...

— Chega! — gritou ela, fechando os punhos. — Saiam todas, vamos, você aí também, fora! Fora!

Bateu a porta com estrondo. Por um momento prossegui­ram ainda as vozes das mulheres falando exaltadas, ao mes­mo tempo. Em seguida, num tropel, desandaram para a rua.

Viu-se no espelho, desgrenhada e descalça. Desviou depressa o olhar da própria imagem. Apagou a luz. E sentando-se na cadeira onde o homem estivera sentado, ficou olhando a janela.

 

                   Um Chá Bem Forte e Três Xícaras

A borboleta pousou primeiramente na haste de uma folha de roseira que vergou de leve. Em seguida, voou até a rosa e fincou as patas dianteiras na borda das pétalas. Juntou as asas que se colaram palpitantes. Desenrolou a tromba. E in­clinando o corpo para a frente, num movimento de seta, afundou a tromba no âmago da flor.

Maria Camila chegou a estender a mão para prendê-la pelas asas. Não completou o gesto. Entrelaçou novamente as mãos no regaço e ficou olhando. Era uma borboleta ama­rela, com um fino friso negro debruando-lhe as asas.

— Deve ser uma borboleta jovem — disse Maria Camila.

— Jovem? — repetiu a mulher debruçada na janela que dava para o jardim.

— Veja, as asas ainda estão intactas. E está sugando com tamanha força... Haverá tanto suco assim?

— Essa rosa abriu ontem cedo, a senhora lembra? E já está murchando — disse a mulher prendendo com um alfinete a alça do avental.

Maria Camila voltou-se para a janela. Estava sentada numa cadeira de vime, entre os dois canteiros do jardim. No céu azul-claro, as nuvens iam tomando uma coloração rosada. Havia uma poeira de ouro em suspensão no ar.

— Você ainda não pregou essa alça, Matilde?

— Não sei onde o botão foi parar.

— Pegue outro na minha caixa. Mas agora não! — pediu ela ao ver que a empregada já se dispunha a voltar para o interior da casa. Baixou o olhar até a roseira. —A gente vai clareando à medida que envelhece mas as rosas vermelhas vão escurecendo, veja, ela está quase preta.

— E essa borboleta ainda...

— Deixa — atalhou Maria Camila. Uniu as mãos espal­madas no mesmo movimento com que a borboleta unira as asas. Suas mãos tremiam. — Há de ver que a rosa está feliz por ter sido escolhida.

— Mas desse jeito ela vai morrer mais depressa.

— É melhor deixar.

A empregada passou lentamente a ponta do avental no peitoril da janela. Acompanhou com o olhar uma andorinha que cruzou o jardim num voo raso e desapareceu atrás do muro da casa vizinha. Suspirou.

— Acho que essa borboleta já esteve ontem por aqui, a senhora não viu?

Maria Camila concordou com um leve movimento de cabeça. Examinou com espanto as próprias mãos cheias de sardas.

— É a mesma.

— Acostumou — disse a mulher num tom indiferente. Fixou o olhar vadio nos ombros estreitos da patroa. — A se­nhora não quer que traga o chá?

— Estou esperando a menina.

— Mas a que horas ela ficou de aparecer?

— Às cinco — disse Maria Camila apertando os olhos. Inclinou-se para o relógio-pulseira. E escondeu no regaço as mãos fechadas. — Às cinco em ponto.

Foi emergindo do silêncio da tarde o zunido poderoso de uma abelha. O riso de uma criança explodiu tão próximo que pareceu brotar de dentro do canteiro.

_Essa menina... — E a empregada fez uma pausa para ajustar melhor o pente nos cabelos grisalhos: — Eu conheço?

— Não, não conhece.

— Quantos anos ela tem?

— Uns dezoito.

— Mas então não é menina!

Maria Camila fixou no céu o olhar perplexo. Voltou a examinar o relógio-pulseira. E cruzou os braços tentando dominar o tremor das mãos.

— Desde ontem ela já rondava por aqui. Cismou com essa rosa, tinha que ser essa rosa.

— Trabalhei na casa de um padre que tinha um canteiro só de roseiras brancas. Como duravam aquelas rosas!

Por um breve instante Maria Camila fixou-se de novo na borboleta. Teve uma expressão de repugnância.

— Chega a ser obsceno...

— Mas é sabido que as vermelhas têm mais perfume — prosseguiu a empregada apoiando-se nos cotovelos.

Duas crianças atravessaram a rua aos gritos. A borboleta recolheu precipitadamente a tromba e fugiu num voo ata­rantado. Uma pétala desprendeu-se da corola e foi pousar na relva. Outra pétala desprendeu-se em seguida e desenhando um giro breve, caiu num tufo de violetas. Maria Camila es­tendeu as mãos até a corola da flor. Não chegou a tocá-la. Re­colheu as mãos e ficou olhando para as veias intumescidas com a mesma expressão com que olhara para a rosa.

— Ela é conhecida do doutor?

— Quem, Matilde?

— Essa moça que vem tomar chá...

— Trabalham juntos — disse Maria Camila passando nervosamente a ponta do dedo sobre a rede de veias. — Ela está fazendo um estágio no laboratório.

— Estágio?

— Sim, estágio.

A mulher ficou pensativa. Pôs-se a coçar o braço.

— E a senhora conhece ela?

— Já vi de longe.

— É bonita?

— Não sei, Matilde, não sei.

— Estágio — repetiu a empregada. — Então é essa que às vezes telefona pra ele.

Alguém iniciou na vizinhança um exercício de piano. O exercício era elementar e tocado sem vontade.

— Deve ser — sussurrou Maria Camila apanhando a pé­tala que caíra na relva. Levou-a aos lábios que estavam lívi­dos. — Deve ser.

— Hoje cedo ela telefonou, não perguntei quem era por­que o doutor não quer mais que a gente pergunte. Mas reco­nheci a voz, só podia ser ela.

— São muito amigos. Os velhos, os mais velhos gostam da companhia dos jovens — acrescentou a mulher dilacerando a pétala entre os dedos. Fez um gesto brusco. — Esse menino era melhor no violino, não era?

A empregada fungou, impaciente.

— Nem no violino! A gente ficava com dor de cabeça quando ele começava com aquela atormentação. Diz que a mãe cismou que ele tem que tocar alguma coisa...

— Quem foi que disse?

— A Anita, que trabalha lá. Diz que a mãe fica o dia in­teiro atrás dele, dando castigo se ele não estuda. São estrangeiros.

Maria Camila olhou furtivamente o relógio. Abriu e fe­chou as mãos num movimento exasperado. Manteve-as fechadas.

— Ele tocava melhor violino.

A mulher fez uma careta. E ficou seguindo com o olhar gelado uma adolescente que passava na calçada. Franziu a cara como se enfrentasse o sol.

— Como é que ela se chama? Essa do chá...

O menino interrompeu o exercício. O zunido da abelha voltou mais nítido, fechando o círculo em redor de um úni­co ponto. Maria Camila respirou com esforço.

— Acho que estou gripada.

— Gripada? — E a mulher apoiou o queixo nas mãos. — A senhora está com os olhos inchados. Quer que eu vá bus­car uma aspirina?

— Não, não é preciso — disse Maria Camila movendo a cabeça num ritmo fatigado. Encarou a empregada: — Não vai mesmo pregar esse botão? Não vai?

— Mas se não sei dele...

— Pegue um na minha caixa, já disse.

A mulher empertigou-se com solenidade. Passou ainda a ponta do avental na janela, a fisionomia concentrada. Che­gou a abrir a boca. E enveredou para o interior da casa.

Maria Camila relaxou a posição tensa. Olhou o relógio, sacudiu a cabeça e fechou com força os olhos cheios de lágrimas. "Que é que eu faço agora?", murmurou inclinando-se para a rosa. "Eu gostaria que você me dissesse o que é que eu devo fazer!..." Apoiou a nuca no espaldar da cadeira. "Augusto, Augusto, me diga depressa o que é que eu faço! Me diga!..."

A janela abriu-se. A empregada estendeu o braço num gesto digno. A voz saiu sombria.

— Não achei botão igual. Posso pregar este amarelo? Maria Camila tirou do bolso do casaco o estojo de pó.

Examinou-se ao espelho. Consertou as sobrancelhas. Ume-deceu com a ponta da língua os lábios ressequidos e fechou o estojo. Ficou com ele apertado entre as mãos. Voltou-se para a janela.

— Pregue esse mesmo.

A mulher vacilava, rodando o botão entre os dedos.

— É o mais parecido que achei.

— Está bem, está bem — repetiu a outra reabrindo o estojo. Passou a esponja em torno dos olhos. Examinou as mãos. — Veja, Matilde, minhas mãos estão ficando da cor da tarde, tudo nesta hora vai ficando rosado...

— O céu parece brasa, que bonito!

— A gente vai ficando rosada também — disse atirando a cabeça para trás. Expôs a face à luz incendiada do crepúsculo. E riu de repente: — Acho a vida tão maravilhosa!

— Maravilhosa?

O menino parou de tocar. Maria Camila ficou alerta, os olhos brilhantes, as narinas acesas. Olhou para o relógio. Falou com energia.

— Assim que a moça chegar, sirva o chá aqui mesmo, faça um chá bem forte. E traga três xícaras.

— Mas se é só a senhora e ela...

— O doutor pode aparecer de surpresa, é quase certo que ele apareça — acrescentou a mulher limpando do vestido os pedaços da pétala dilacerada que ficara por entre as pregas da saia. Levantou-se. Respirava ofegante. — Quero os guardanapos novos, não vá esquecer, hein? Os novos.

Passos ressoaram na calçada. Quando ficaram mais próximos, a empregada pôs-se na ponta dos pés, tentando ver além do muro da casa vizinha:

— Deve ser ela... É ela! — sussurrou excitadamente. — Éela!

Maria Camila levantou a cabeça. E caminhou decidida em direção ao portão.

 

                   O Jardim Selvagem

— Daniela é assim como um jardim selvagem — disse o tio Ed olhando para o teto. — Como um jardim selvagem...

Tia Pombinha concordou fazendo uma cara muito es­perta. E foi correndo buscar o maldito licor de cacau feito em casa. Passei a mão na tampa da caixa de marrom-glacê que ele trouxera. Era a segunda ou terceira vez que a pre­senteava com uma caixa igual, eu já sabia que aquele nome era como o papel dourado embrulhando simples casta­nhas açucaradas. Mas, e um jardim selvagem? O que era um jardim selvagem?

Foi o que lhe perguntei. Ele me olhou com um ar de gi­gante da montanha falando com a formiguinha.

— Jardim selvagem é um jardim selvagem, menina.

— Ah, bom — eu disse.

E aproveitei a entrada de tia Pombinha para fugir da sala. A tal caixa estava mesmo fechada, tão cedo não seria aberta. E o licor de cacau era tão ruim que eu já tinha visto uma visita guardá-lo na boca para depois cuspir. Na bacia, fingindo lavar as mãos.

Mais tarde, quando eu já enfiava a camisola para dormir, tia Pombinha entrou no meu quarto. Sentou-se na cama. A caixa de doces já devia estar enfurnada em alguma gaveta. Sovina, sovina.

— O Ed casado, imagine! Até parece mentira, o meu que­rido Ed casado há mais de uma semana. Mas por que não me avisou, Cristo-Rei! Como é que ele se casa assim, sem participar... Que loucura!

— Decerto não quis dar festa.

— Mas não seria preciso festa, eu só gostaria de saber — choramingou, fazendo bico. — Ainda na noite passada ele me apareceu no sonho...

— Apareceu? — perguntei metendo-me na cama.

Os sonhos de tia Pombinha eram todos horríveis, estava para chegar o dia em que viria anunciar que sonhara com alguma coisa que prestasse.

— Não me lembro bem como foi, ele logo sumiu no meio de outras pessoas. Mas o que me deixou nervosa foi ter so­nhado com dentes nessa mesma noite. Você sabe, não é nada bom sonhar com dentes.

— Tratar deles é pior ainda.

Sorriu sem vontade. Ficou toda sentimental quando re­solveu me cobrir até o pescoço.

— Você agora me lembrou o Ed menino. Fui a mãezinha dele quando a nossa mãe morreu. E agora se casa assim de repente, sem convidar a família, como se tivesse vergonha da gente... Mas não é mesmo esquisito? E essa moça, Cristo-Rei? Ninguém sabe quem ela é...

— Tio Ed deve saber, ora.

Acho que ela se impressionou com minha resposta por­que sossegou um pouco. Mas logo desatou a falar de novo com aquela fala aflita de quem vai pegar o trem, falava as­sim quando chegava a hora de viajar.

— Ele parece feliz, sem dúvida, mas ao mesmo tempo me olhou de um jeito... Era como se quisesse me dizer qualquer coisa e não tivesse coragem, senti isso com tanta força que meu coração até doeu, quis perguntar, O que foi, Ed! pode me dizer o que foi? Mas ele só me olhava e não disse nada. Tive a impressão de que estava com medo.

— Com medo do quê?

— Não sei, não sei, mas foi como se eu estivesse vendo Ed menino outra vez. Tinha pavor do escuro, só queria dor­mir de luz acesa. Papai proibiu essa história de luz e não me deixou mais ir lá fazer companhia, achava que eu pode­ria estragá-lo com muito mimo. Mas uma noite não resisti e entrei escondida no quarto. Estava acordado, sentado na cama. Quer que eu fique aqui até você dormir?, perguntei. Pode ir embora, ele disse, já não me importo mais de ficar no escuro. Então dei-lhe um beijo, como fiz hoje. Ele me abraçou e me olhou do mesmo jeito que me olhou agora, querendo confessar que estava com medo. Mas sem cora­gem de confessar.

Disfarcei um bocejo. E afastei as cobertas porque já es­tava transpirando. Quando minha tia anunciava uma história importante, na certa vinha alguma bobagem sem im­portância nenhuma. De resto, tia Pombinha tinha a mania de ver mistério em tudo, até no nosso limoeiro que dava às vezes uns limões adocicados. Não passava um dia sem falar nos tais pressentimentos.

— Mas por que ele tinha de ter medo?

Ela franziu a testa. Seus olhinhos redondos ficaram mais redondos ainda.

— Aí é que está... Quem é que pode saber? Ed sempre foi muito discreto, não é de se abrir com a gente, ele esconde. Que moça será essa?!

Lembrei-me então do que ele dissera, Daniela é como um jardim selvagem. Quis perguntar o que era um jardim selvagem. Mas tia Pombinha devia entender tanto quanto eu desses jardins.

— Ela é bonita, tia?

— Ed disse que é lindíssima. Mas não é tão jovem assim, parece que tem a idade dele, quase quarenta anos...

— E não é bom? Isso de ser meio velha.

Balançou a cabeça com ar de quem podia dizer ainda um montão de coisas sobre essa questão de idade. Mas preferia não dizer.

— Hoje de manhã, quando você estava na escola, a cozinheira deles passou por aqui, é amiga da Conceição. Contou que ela se veste nos melhores costureiros, só usa perfume francês, toca piano... Quando estiveram na chácara, nesse último fim de semana, ela tomou banho nua debaixo da cascata.

— Nua?

— Nuinha. Vão morar na chácara, ele mandou reformar tudo, diz que a casa ficou uma casa de cinema. E é isso que me preocupa, Ducha. Que fortuna não estarão gastando nessas loucuras? Cristo-Rei, que fortuna! Onde é que ele foi encontrar essa moça?

— Mas ele não é rico?

— Aí é que está... Ed não é tão rico quanto se pensa. Dei de ombros. Nunca tinha pensado antes no assunto.

Bocejei sem cerimônia. Tia Pombinha estava era com ciú­me, havia muito dessas confusões nas famílias, eu mesma já tinha lido um caso parecido numa revista. Sabia até o nome do complexo, era um complexo de irmão com irmã. Afundei a cabeça no travesseiro. Se queria tanto conver­sar, por que não se lembrou de trazer os doces? Para comer tudo escondido, não é?

— Deixa, tia. Você não tem nada com isso.

Ela abriu nos joelhos as mãos ossudas, de unhas ondu­ladas, cortadas rente. Passei a língua na palma das minhas mãos para umedecê-las. Sempre que olhava para as mãos dela, assim secas como se tivessem lidado com giz, preci­sava molhar as minhas.

— Diz que anda sempre com uma luva na mão direita, não tira nunca a luva dessa mão, nem dentro de casa.

Sentei-me na cama. Esse pedaço me interessava.

— Usa uma luva?

_Na mão direita. Diz que tem dúzias de luvas, cada

qual de uma cor, combinando com o vestido. E não tira nem dentro de casa?

Já amanhece com ela. Diz que teve um acidente com essa mão, deve ter ficado algum defeito... _Mas por que não quer que vejam?

— Eu é que sei? Como Ed nem tocou nisso, fiquei sem jeito de perguntar, essas coisas não se perguntam. Casado, imagine... Deve dar um marido exemplar, desde criança foi muito bonzinho, você precisava ver que pérola de menino! Uma verdadeira pérola...

Tia Pombinha ficou falando algum tempo ainda sobre a bondade do irmão, mas eu só pensava naquela nova tia que tomava banho pelada debaixo da cascata. E que não tirava a luva da mão direita.

Na manhã de sábado, quando cheguei para o almoço, soube que ela passara em casa. Chutei minha pasta. As coisas que valiam a pena aconteciam sempre quando eu estava na escola. Tia Pombinha gaguejava, o pescoço fino cheio de manchas avermelhadas. Ficava assim que nem peru quan­do tinha uma emoção forte.

— Ah, você não imagina como é encantadora! Nunca vi uma beleza igual, que encanto de moça! Tão natural, tão simples e ao mesmo tempo tão elegante, tão bem cuidada... Foi tão carinhosa comigo!

Fiquei olhando para as pernas finas de tia Pombinha com as meias murchas cor de cenoura. Bom, então tudo tinha mudado.

— Quer dizer que a senhora gostou dela?

— Muito, fiquei mesmo cativada! E trouxe presentes, ve­nha ver — disse puxando-me pelo braço. — Três cortes de seda finíssima para mim e para você uma boneca france­sa... Loura, loura!

— Tenho ódio de boneca.

— Ducha! Você vai gostar dessa, é a coisa mais linda que já se viu, olha aí, não é linda?

Fiquei olhando a boneca dentro da caixa. Usava luvinhas de renda.

— Ela estava de luva?

— Estava. Uma luva verde, combinando com os sapa­tos. No começo a gente estranha a luva só naquela mão. Mas não é mesmo de se estranhar? Podia fazer uma plásti­ca... Enfim, deve ter motivos. Um amor de moça!

A conversa no mês seguinte com a cozinheira de tio Ed me fez esquecer até os zeros sucessivos que tive em matemática. A cozinheira viera indagar se Conceição sabia de um bom emprego, desde a véspera estava desempregada. Tia Pombinha tinha ido ao mercado, pudemos falar à von­tade enquanto Conceição fazia o almoço.

— Seu tio é muito bom, coitado. Gosto demais dele — começou ela enquanto beliscava um bolinho que Concei­ção tirara da frigideira. — Mas não combino com dona Daniela. Fazer aquilo com o pobre do cachorro, não me conformo!

— Que cachorro?

— O Kleber, lá da chácara. Um cachorro tão engraça­dinho, coitado. Só porque ficou doente e ela achou que ele estava sofrendo... Tem cabimento fazer isso com um cachorro?

— Mas o que foi que ela fez?

— Deu um tiro nele.

— Um tiro?

— Bem na cabeça. Encostou o revólver na orelha e pum! matou assim como se fosse uma brincadeira... Não era para ninguém ver, nem o seu tio, que estava na cida­de. Mas eu vi com estes olhos que a terra há de comer, ela pegou o revólver com aquela mão enluvada e atirou no po­brezinho, morreu ali mesmo, sem um gemido... Perguntei depois, Mas por que a senhora fez isso? O bicho é de Deus, não se faz com um bicho de Deus uma coisa dessas! Ela então respondeu que o Kleber estava sofrendo muito, que a morte para ele era um descanso.

_Disse isso?

A mulher deu uma dentada no bolinho. Ficou soprando um pouco porque estava quente como o diabo, eu mesma não conseguia dar cabo do meu.

— Disse que a vida tinha que ser... Ah! não lembro. Mas fa­lou em música, que tudo tinha que ser como uma música, foi isso. A doença sem remédio era o desafino, o melhor era aca­bar com o instrumento pra não tocar mais desafinado. Até que foi muito educada comigo, viu que eu estava nervosa e quis me explicar tudo direitinho. Mas podia ficar me explicando até gastar todo o cuspe que eu nunca ia entender. O que enten­di muito bem foi que o Kleber estava morto. O pobre.

— Mas ela gostava dele?

— Acho que sim, estavam sempre juntos. Quando ele ainda estava bom, ia tão alegrinho tomar banho com ela na cascata... Só faltava falar, aquele cachorro.

— Ela perguntou por que você ia embora?

— Não. Não perguntou nada. Nunca me tratou mal, justiça seja feita, sempre foi muito delicada com todos os emprega­dos. Mas não sei, eu me aborreci por demais... isso de matar o Kleber! E montar em pelo como monta, feito índio, e tomar banho sem roupa... Uma noite a mesa do jantar virou inteira. 0 doutor disse que foi ele que esbarrou no pé da mesa, pra não cair, agarrou a toalha e veio tudo pro chão. Mas ninguém me tira da cabeça que quem virou a mesa foi ela.

— Por quê? Por que fez isso?

— Quando fica brava... A gente tem vontade até de entrar num buraco. O olho dela, o azul, muda de cor.

— Não tira a luva, nunca?

— Capaz!... Acho que nem o doutor viu aquela mão. Já amanhece de luvinha. Até na cascata usa uma luva de borracha.

Conceição veio interromper a conversa para mostrar à amiga uma bolsa que tinha comprado. Ficaram as duas cochichando sobre homens. Quando tia Pombinha chegou, a mulher já estava se despedindo, o que foi uma sorte.

Não falei com ninguém sobre essa história. Mas levei o maior susto do mundo quando dois meses depois tia Daniela telefonou da chácara para avisar que tio Ed estava muito doente. Tia Pombinha começou a tremer. O pescoço ficou uma mancha só.

— Deve ser a úlcera que voltou... Meu querido Ed! Cris-to-Rei, será que é mesmo grave? Ducha, depressa, vai buscar o calmante, quinze gotas num copo de água açucara­da... Cristo-Rei! A úlcera...

Contei cinquenta. E carreguei no açúcar para disfar­çar o gosto. Antes de levar o copo, despejei ainda mais umas gotas.

Assim que acordou, à hora do jantar, desandou nos te­lefonemas avisando à velharia da irmandade que o "meni­no estava doente".

— E tia Daniela? — perguntei quando ela parou de cho­ramingar.

— Tem sido dedicadíssima, não sai de perto dele um só minuto. Falei também com o médico, disse que nunca encontrou criatura tão eficiente, tem sido uma enfermeira e tanto. É o que me deixa mais descansada. Meu querido menino...

Quando Conceição veio me anunciar que ele tinha se matado com um tiro, assustei-me à beça. Mas aquele primeiro susto que levara quando me disseram que ele estava doente fora um susto maior ainda. Eu chegava da escola quando Conceição veio correndo ao meu encontro.

— Seu tio Ed se matou hoje de manhã! Se matou com um tiro!

Larguei a pasta.

— Um tiro no ouvido?

— Lá sei se foi no ouvido, não me contaram mais nada, dona Pombinha parecia louca, mal podia falar. Já seguiu com as irmãs para a chácara, foi um tamanho berreiro! Todas berravam ao mesmo tempo, um horror!

Dessa vez achei muito bom que eu estivesse na escola quando chegou a notícia. Conceição enxugou duas lágri­mas na barra do avental enquanto fritava batatas. Peguei uma batata que caíra da frigideira e afundei-a no sal. Estava quase crua.

— Mas por que ele fez isso, Conceição?

— Ninguém sabe. Não deixou carta, nada, ninguém sabe! Vai ver que foi por causa da doença, não é mesmo? Você também não acha que foi por causa da doença?

— Acho — concordei, enquanto esperava que caísse ou­tra batata da frigideira.

Pensava agora em tia Daniela metida num vestido preto. E de luva também preta, como não podia deixar de ser.

 

                   Natal na Barca

Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E me sentia bem naquela solidão. Na embarcação descon­fortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mu­lher com uma criança e eu.

O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertan­do nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mu­lher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já de­víamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combina­va mesmo com a barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco ne­gro que a embarcação ia fazendo no rio.

Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.

A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resva­lou para o rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.

Tão gelada estranhei, enxugando a mão.

Mas de manhã é quente.

Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente bri­lhantes. Vi que suas roupas puídas tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.

De manhã esse rio é quente insistiu ela me enca­rando.

Quente?

Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa, pensei que a roupa fosse sair esver­deada. É a primeira vez que vem por estas bandas?

Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:

Mas a senhora mora aqui por perto?

Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje...

A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balan­ço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era tranquilo.

— Seu filho?

É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia consultar um médico hoje mes­mo. Ainda ontem ele estava bem, mas de repente piorou. Uma febre, só febre... Levantou a cabeça com energia.

O queixo agudo era altivo, mas o olhar tinha a expressão doce. Só sei que Deus não vai me abandonar.

É o caçula?

É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos.

Atirei o cigarro na direção do rio, mas o toco bateu na grade e voltou rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.

E esse? Que idade tem?

Vai completar um ano. E noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: Era um menino tão bonzinho, tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... Só a última má­gica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou.

Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lem­branças, sem piedade. Mas os laços os tais laços humanos já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aque­le instante. Mas agora não tinha forças para rompê-los.

Seu marido está à sua espera?

Meu marido me abandonou.

Sentei-me novamente e tive vontade de rir. Era incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta, mas agora não podia mais parar.

Há muito tempo?

Faz uns seis meses. Imagine que nós vivíamos tão bem, mas tão bem! Quando ele encontrou por acaso com essa antiga namorada, falou comigo sobre ela, fez até uma brincadeira, a Duca enfeiou, de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito... E não falou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda me acenou, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me acenou através da tela de arame da porta, me lem­bro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela de arame no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.

Fixei-me nas nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter participado deles realmente. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido e ainda via pairar uma sombra sobre o segundo fi lho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Intocável. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos e aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma obscura irritação me fez sorrir.

— A senhora é conformada.

— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.

— Deus — repeti vagamente.

— A senhora não acredita em Deus?

— Acredito — murmurei.

E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela confiança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas...

Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro di­reito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão:

— Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casa­co e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele... Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, só se mostrasse um instante,­ ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e, não sei como, dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer di­zer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tal sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.

Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em se­guida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale nova­mente e voltei o olhar para o chão. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o con­tra o peito. Mas ele estava morto.

Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim.

— Estamos chegando — anunciou.

Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, era terrível demais, não queria ver. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sa­cudir o velho que dormia.

— Chegamos! Ei! chegamos!... Aproximei-me evitando encará-la.

— Acho melhor nos despedirmos aqui — disse atropela-damente, estendendo a mão.

Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um mo­vimento como se fosse pegar a sacola. Ajudei-a, mas em vez de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudes­se impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.

— Acordou, o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.

— Acordou?!

Ela teve um sorriso.

— Veja...

Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfre­gando a mãozinha na face de novo corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.

— Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço.

Encarei-a. Sob o manto preto, de pontas cruzadas e ati­radas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa. E acompanhei-a com o olhar até que ela desapa­receu na noite.

Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim rei­niciando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.

 

                   A Ceia

O restaurante era modesto e pouco frequentado, com mesi­nhas ao ar livre, espalhadas debaixo das árvores. Em cada mesinha, um abajur feito de garrafa projetando sobre a toa­lha de xadrez vermelho e branco um pálido círculo de luz. A mulher parou no meio do jardim.

— Que noite!

Ele lhe bateu brandamente no braço.

— Vamos, Alice. Que mesa você prefere? Ela arqueou as sobrancelhas.

— Com pressa?

— Ora, que ideia...

Sentaram-se numa mesa próxima ao muro e que parecia a menos favorecida pela iluminação. Ela tirou o estojo da bolsa e retocou rapidamente os lábios. Em seguida, com gesto tran­quilo mas firme, estendeu a mão até o abajur e apagou-o.

— As estrelas ficam maiores no escuro.

Ele ergueu o olhar para a copa da árvore que abria sobre a mesa um teto de folhagem.

— Daqui não vejo nenhuma estrela.

— Mas ficam maiores.

Abrindo o cardápio, ele lançou um olhar ansioso para os lados. Fechou-o com um suspiro.

— Também não enxergo os nomes dos pratos. Paciên­cia, acho que quero um bife. Você me acompanha?

Ela apoiou os cotovelos na mesa e ficou olhando para o homem. Seu rosto fanado e branco era uma máscara delicada emergindo da gola negra do casaco. O homem se agitou na cadeira. Tentou se fazer ver por um garçom que passou a uma certa distância. Desistiu. Num gesto fatiga­do, esfregou os olhos com as pontas dos dedos.

— Meu bem, você ainda não mandou fazer esses óculos! Faz meses que quebrou o outro e até agora...

— A verdade é que não me fazem muita falta.

— Mas a vida inteira você usou óculos. Ele encolheu os ombros.

— Pois é, acho que agora não preciso mais.

— Nem de mim.

— Ora, Alice...

Ela tomou-lhe a mão.

— Eduardo, eu precisava te ver, precisava demais, enten­de? A última vez foi tão horrível, me arrependi tanto! Queria fazer hoje uma despedida mais digna, queria que você...

— Não pense mais nisso, Alice, que bobagem, você es­tava nervosa — interrompeu-a voltando-se para chamar o garçom.

Estendeu a mão. O gesto foi discreto, mas no rápido abrir e fechar dos dedos havia um certo desespero.

— Acho que jamais seremos atendidos.

— Você está com pressa.

— Não, absolutamente. Absolutamente.

Uma folha seca pousou suave na mesa. Ele esmigalhou-a entre os dedos, com uma lentidão premeditada.

— Você gosta do meu perfume, Eduardo? É novo.

— Já tinha notado... Bom, não? Lembra um pouco tan­gerina.

Inclinando-se para trás, ela riu sem vontade, "Que ideia!."- E ficou séria, a boca entreaberta, os olhos aper­tados.

— Eu precisava te ver, Eduardo.

Ele ofereceu-lhe cigarro. Apalpou os bolsos.

_Acho que esqueci o fósforo. Trouxe também o isquei­ro, mas sumiu tudo... — Revistou a capa em cima da cadei­ra. — Ah, está aqui! — exclamou subitamente animado, como se o encontro do isqueiro fosse uma solução não só para o cigarro, mas também para a mulher na expectativa.

_Imagine que ganhei este isqueiro numa aposta, foi de um marinheiro...

— Eduardo, você vai me ver de vez em quando, não vai? Responda, Eduardo, ao menos de vez em quando! Hein, Eduardo?

— Estávamos num bar, eu e o Frederico — recomeçou ele brandamente. Mas era violenta a fricção do seu polegar contra a rosca do isqueiro, na tentativa veemente de acen­dê-lo. — Então um desconhecido sentou-se na nossa mesa e até hoje não sei como veio aquela ideia da aposta.

A chama rompeu azulada e alta. A mulher recuou baten­do as pálpebras. E se manteve afastada, o cigarro preso en­tre os lábios repentinamente ressequidos, como se a chama lhes tivesse absorvido toda a umidade.

— Como é forte!... — queixou-se recuando mais à me­dida que ele avançava o isqueiro. Apagou a chama com um sopro e tragou, soprando a fumaça para o chão. Tremia a mão que segurava o cigarro. — Detesto isqueiros, você sabe disso.

— Mas este tem uma chama tão bonita. Pude ver que seu penteado também é novo.

— Cortei o cabelo. Remoça, não?

— Não sei se remoça, Alice, só sei que te vai bem.

Ela umedeceu os lábios. Seus olhos se agrandaram no­vamente.

— Mas, querido, não é preciso ficar com essa cara, pro­meto que desta vez não vou quebrar nenhum copo, não precisa ficar aflito... — Os olhos reduziram-se outra vez a dois riscos pretos. — Foi horrível, não, Eduardo? Foi horrí­vel, hein? Sabendo quanto você detesta essas cenas, ima­gine, quebrar o copo na mão, aquela coisa assim dramáti­ca do vinho ir escorrendo misturado com o sangue... Que papel miserável.

— Não, não, que ideia! —Apoiou os braços na mesa e es­condeu o rosto com as mãos. — Você tinha bebido demais, Alice.

— Ela soube?

— Quem? — E o homem encarou a companheira. —Ah... Não, imagine se eu havia de...

— Você contou, Eduardo, você contou. Está claro que você contou até com detalhes. E a raposinha foi fazendo mais perguntas ainda...

— Por que você a chama de raposinha?

— Porque ela tem cara de raposinha, não tem? Tão gracio­sa. E já sabe tudo a meu respeito, não? Até a minha idade.

— Por favor, Alice, não continue, você só está dizendo absurdos! Pensa então que ficamos os dois falando de você, ela pedindo dados e eu fornecendo, como se... Que juízo você faz de mim, Alice? Eu te amei.

Aproximou-se um garçom. Colocou na mesa a cesta de pão, dois copos, e ficou limpando com o guardanapo uma garrafa de vinho que trouxe debaixo do braço.

— Acho que a cozinha já está fechada, cavalheiro. Que­riam jantar?

— Muito tarde mesmo — disse o homem olhando o reló­gio. Tirou uma nota do bolso, passou-a para o garçom. —Ao menos dois bifes, seria possível?

— E vinho — pediu ela, procurando ler o rótulo da gar­rafa que o moço limpava. — Esse aí é bom?

O companheiro encarou-a. Franziu as sobrancelhas.

— Quer beber?

— Não posso?

Examinou a garrafa, com ar distraído.

_Claro que pode. É, esse está bom.

_Eu falo lá na cozinha, acho que não tem problema — disse o garçom abrindo a garrafa. Serviu-os com ges­tos melífluos e em seguida afastou-se, a enrolar na mão o guardanapo.

Ela empertigou-se na cadeira. Pôs-se a beber em peque­ninos goles. E de repente abriu o sorriso numa risadinha.

— Mas não! não fique com essa cara apavorada. Juro que hoje não vou me embriagar, hoje não. Queria que ficasse tranquilo...

— Mas eu estou tranquilo.

De uma mesa distante, a única ocupada ainda, vinha o ruído de vozes de homens. Uma gargalhada rebentou sonora em meio do vozerio exaltado. E a palavra cabrito saltou dentre as outras que se arrastavam pastosas. Num rádio da vizinhança ligado ao volume máximo havia uma canção que contava a história de uma violeteira venden­do violetas na porta de um teatro. A voz da cantora era um pouco fanhosa.

— Santo Deus, como essa música é velha — disse ele. A fisionomia se descontraiu. — Acho que era menino quando ouvi isso pela primeira vez.

Inclinando-se para o companheiro, ela beijou-lhe a palma da mão. Apertou-a com força contra a própria face.

— Meu amor, meu amor, você agora sorriu e tudo ficou como antes. Como é possível, Eduardo?! Como é possível... — Sacudiu a cabeça. — Eduardo, ouça, estou de acordo, é claro, mas se ao menos você prometesse que vai me ver de vez em quando, ao menos de vez em quan­do, compreende? Como um amigo, um simples amigo, eu não peço mais nada!

Ele tirou a mão que ela apertava e alisou os cabelos num gesto contido. Enfiou as mãos nos bolsos.

— Alice, querida Alice, procure entender... Você sabe perfeitamente que não posso ir te visitar, que é ridículo ­ ficarmos os dois falando sobre livros, jogando uma partida de xadrez, você sabe que isso não funcionaria, pelo menos por enquanto. Você seria a primeira a não se conformar, uma situação falsa, insustentável. Temos que nos separar assim mesmo, sem maiores explicações, não adiantam mais explicações, não adiantam mais estes encontros que só te fazem sofrer... —Apertou os lábios secos. Bebeu um gole de vinho. — O que importa é não haver nem ódios nem ressentimentos, é podermos nos olhar frente a frente, o que passou, passou. Disco na prateleira...

— Disco na prateleira. Essa expressão é boa, ainda não conhecia.

— Alice, não comece com as ironias, por favor! Ainda ontem a Lili...

— Lili?

Ele baixou a cabeça. E fixou o olhar na toalha da mesa, como se quisesse decorar-lhe o contorno dos quadrados. Arrastou a cesta de pão para cobrir uma antiga mancha de vinho.

— É o apelido de Olívia. Eu queria dizer que ainda on­tem ela perguntou por você com tamanha simpatia.

— Ah! que generoso, que nobre! Tão fino da parte dela, não me esquecerei disso, perguntou por mim. Quando nos encontrarmos, atravesso a quadra, como nas partidas de tênis e vou cumprimentá-la, tudo assim muito limpo, mui­to esportivo. Esportivo.

— Não se torture mais, Alice, ouça! — começou ele com energia. Vagou o olhar aflito pela mesa, como se nela buscasse as palavras. — Você devia mesmo saber que mais dia, menos dia, tínhamos que nos separar, nossa situação era falsa.

Ela entreabriu os lábios num duro arremedo de sorriso.

— Bonitas palavras essas, situação falsa. Por que situa­ção falsa? Por quê? Durante mais de quinze anos não foi falsa. Por que ficou falsa de repente?

Ele fechou as mãos e bateu com os punhos na mesa, golpeando-a compassadamente. Afastou a cesta de pão e fi­cou olhando a mancha na toalha.

_Só sei que não tenho culpa, Alice. Já disse mil vezes

que não pretendia romper, mas aconteceu, aconteceu. Não tenho culpa.

Ela despejou mais vinho no copo. Bebeu de olhos fecha­dos. E ficou com a borda do copo comprimindo o lábio.

— Mas ao menos, Eduardo... ao menos você podia ter es­perado um pouco para me substituir, não podia? Não vê que foi depressa demais? Será que você não vê que foi depressa demais? Não vê que ainda não estou preparada? Hein, Eduar­do?... Aceito tudo, já disse, mas venha ao menos de vez em quando para me dizer um bom-dia, não peço mais nada... É preciso que vá me acostumando com a ideia de te perder, entendeu agora? Venha me ver mesmo que seja para falar nela, ficaremos falando nela, é preciso que me acostume com a ideia, não pode ser assim tão brusco, não pode!

— Não está sendo brusco, Alice. Temos conversado mais de uma vez, já disse que não precisamos nos despedir como inimigos.

Ela entrelaçou as mãos sob o queixo. Sacudiu a cabeça.

— Mas não se trata disso, Eduardo. Será que você não entende mais o que eu digo? Eduardo, Eduardo, eu queria que você entendesse... — Lágrimas pesadas caíram-lhe dos olhos quase sem tocar-lhe as faces. — Eduardo, você preci­sa ter paciência, não é justo, não é justo!

— Fale mais baixo, Alice, você está quase gritando — disse ele. Tirou do maço um cigarro, mas ficou com o cigarro esquecido entre os dedos. Abrandou a voz. — Eu entendo, sim, mas não se exalte, estamos conversando, não estamos? Vamos, tome um gole de vinho. Isso, assim...

Ela apanhou o guardanapo e enxugou trêmula o rosto. Abriu o estojo de pó e ainda com a ponta do guardanapo ten­tou limpar duas orlas escuras em torno dos olhos úmidos.

— Fui chorar e não podia chorar, borrei toda a pintura, estou uma palhaça.

— Não se preocupe, Alice. Fez bem de chorar, chore to­das as vezes que tiver vontade.

Empoando-se frenética, escondeu o rosto detrás do es­tojo. Arregalou os olhos como que para obrigar que as últimas lágrimas — já boiando na fronteira dos cílios — vol­tassem novamente para dentro. Atirou a cabeça para trás.

— Pronto, pronto, passou! Estou ótima, olhe aí, veja se não estou ótima.

Ele lançou-lhe um rápido olhar. Apanhou o isqueiro para acender o cigarro e arrependeu-se em meio do gesto.

— Acenda seu cigarro, Eduardo.

— O isqueiro, você não gosta...

— Ora, não exagere, acenda o meu também.

Foi de olhos baixos que ele lhe acendeu o cigarro.

— Como esta toalha está suja.

— É que a luz desse isqueiro mostra tudo — disse ela num tom sombrio. — Mas vamos conversar sobre coisas alegres, estamos por demais sinistros, que é isso?! Vamos falar sobre seu casamento, por exemplo, esse é um assunto alegre. Quero saber os detalhes, querido, estou curiosíssi­ma para saber os detalhes. Afinal, meu amado amigo de tantos anos se casa e estou por fora, não sei de nada.

— Não há nada que contar, Alice. Vai ser uma cerimô­nia muito simples.

— Lua de mel onde?

— Ainda não sei, isso a gente vai ver depois.

A mulher apertou os olhos. E pôs-se a amassar entre os dedos um pedaço de miolo de pão.

— Quem diria, hein? Nossa última ceia. Não falta nem o pão nem o vinho. Depois, você me beijará na face esquerda.

— Ah, Alice... — E ele riu frouxamente, sem alegria. — Não tome agora esse ar assim bíblico, ora, a última ceia. Não vamos começar com símbolos, quero dizer, não va­mos ficar aqui numa cena patética de separação. Tudo foi perfeito enquanto durou. Agora, com naturalidade...

— Com naturalidade. Durou quinze anos, não foi, Eduardo?

Ele agitou-se olhando em redor. Esboçou um gesto na direção de um garçom que prosseguiu perambulando por entre árvores e mesas. Ergueu-se. O movimento brusco fez tombar a cadeira.

— Desconfio que esse banquete não virá tão cedo. Que tal se andássemos um pouco?

Deram alguns passos contornando as mesas vazias. No meio do jardim decadente, uma fonte extinta. O peixe de pedra tinha a boca aberta, mas há muito a água seca­ra, deixando na boca escancarada o rastro negro da sua passagem. Por entre as pedras, tufos de samambaia en­redados no mato rasteiro. Ele sentou-se na pedra maior. Desviou o olhar da mulher, que continuou de pé, as mãos metidas nos bolsos do casaco. Olhou para o céu.

— Agora, sim, pode-se ver as estrelas. Tão vivas, pare­cem palpitar.

Ela baixou a cabeça na direção do homem e cruzou os braços. Rodava ainda entre o polegar e o indicador a bolo­ta de miolo de pão.

— Você agora repara nas estrelas. Em meio da surpresa, ele riu.

— Você mesma me mandou olhar para elas... — Ficou sério. E aos poucos foi relaxando os músculos, fatigado e absorto.

Na distância, o rádio tocava uma música de jazz. A voz suada do negro chamava por Judy. E ficava repetindo, já rouca, Judy, Judyl

— Só elas não dizem nada. Nem elas nem o peixe — acrescentou ele, tragando e soprando a fumaça no peixe de pedra. — Oh, boca da fonte, boca generosa, dizendo ines-gotavelmente a mesma água pura...

— Continue, Eduardo.

— Não sei mais, só sei esse pedaço.

— Há quanto tempo não te ouvia citar versos.

— Secou a fonte, secaram as flores, imagino como devia ter flores nesse jardim e como essa casa devia estar sempre cheia de gente, uma família imensa, crianças, velhos, cachorros. Desapareceram todos. Ficou a casa.

Acabou-se, não, Eduardo? Acabou-se. Nem água, nem flores, nem gente. Acabou tudo.

Ele encarou a mulher que rodava a bolinha de miolo de pão num ritmo mais acelerado.

— Não acabou, Alice, transformou-se apenas, passou de um estado para outro, o que é menos trágico. As coisas não acabam.

— Não?

Com certa surpresa, como se a estranhasse, ele conti­nuou olhando aquela silhueta curva, amassando a bolota que ia adquirindo uma consistência de borracha. Baixou o olhar para as pernas dela. Sua fisionomia se confrangeu. Aproximou-se, enlaçou-a num gesto triste.

— É difícil explicar, Alice, mas esses anos todos que vi­vemos juntos, toda essa experiência não vai desaparecer assim como se... Não saímos de mãos vazias, ao contrário, saímos ricos, mais ricos do que antes.

— Riquíssimos.

Num quase afago, ele deixou pender o braço que lhe con­tornava os ombros.

— Tem jogado?

— Não. O tabuleiro lá está com todas as peças como dei xamos na última partida, lembra?

—Alice, Alice!... — cantarolou, abrindo os braços no mes­mo tom do negro do jazz. O riso foi breve. — Você me deixou ganhar, meu bem, eu não podia ter ficado com a torre.

Ela atirou-se contra ele, abraçando-o, "Eduardo, eu te amo!". Beijou-lhe as mãos, a boca, afundou a cara por en tre a camisa, procurando chegar-lhe ao peito, enfiou a mão pela abertura, esfregou a cara no corpo do homem, sentin do-lhe o cheiro, apalpando-o, a ponta da língua vibrando de encontro à pele.

— Eu te amo.

_Alice — murmurou ele. Estava impassível. Fechou os punhos. —Alice, não dê escândalo, não continue... Ela rebentou em soluços, escondendo a cara.

— Você me amava, Eduardo, eu sei que você me amava! Ele adiantou-se alguns passos, limpando a boca no len­ço. Esperou um instante e voltou-se.

— Vem, Alice, por sorte ninguém viu, agora tenha juízo, por favor. Vamos sentar, fica calma, senta aí.

Ela afastou os cabelos empastados na testa. Esfregou o guardanapo nos olhos.

— Quer o lenço?

— Não, já está em ordem, não se preocupe, estou bem. Ele fez girar o isqueiro sobre a mesa, como um pião. Lançou um olhar em redor.

— O homenzinho esqueceu mesmo de nós. O que é uma boa coisa, desconfio que os tais bifes...

— Ela fuma?

— O quê?

— Perguntei se ela fuma.

Ele arrefeceu o movimento do isqueiro.

— Fuma.

— E gosta desse seu isqueiro?

— Não sei, Alice, não tenho a menor ideia.

— Tão jovem, não, Eduardo?

— Alice, você prometeu.

— E naturalmente vai vestida de noiva, ah, sim, a vir­genzinha. Já dormiu com todos os namorados, mas isso não choca mais ninguém, imagine. Tem o médico amigo que costura num instante, tem a pílula, morro de inveja dessa geração. Como as coisas ficaram fáceis!

Cale-se, Alice.

— Como você já é uns bons anos mais velho, ela man­dou costurar, questão de princípio. E vai chorar na hora, fingindo a dor que está sentindo mesmo porque às vezes atai costura...

Cale-se!

A noite agora estava quieta, sem música, sem vozes. Ele apanhou um cigarro. A chama do isqueiro subiu de um jato.

Eduardo, apague isso... pediu ela se contraindo, a ca­beça afundada na gola do casaco. Não vou fumar, apague.

Sem nenhuma pressa, ele aproximou a chama do próprio rosto. Soprou-a.

Mas então o desconhecido sentou na nossa mesacomeçou ele baixinho. Disse que era marinheiro.

Eduardo, eu queria que você fosse embora.

Vou te levar, Alice. Vamos sair juntos, estou só espe­rando aquele alegre que se esqueceu dos bifes...

Você não entendeu, eu queria ficar só, vou indo daqui a pouco mas queria que você saísse na frente, queria que você saísse já.

Mas, Alice, como vou te deixar assim?

Estou pedindo, Eduardo, me ajude, por favor, me aju­de. Não, não se preocupe comigo, já estou calma, queria apenas ficar um instante sozinha, compreendeu? Eu preci­so, Eduardo...

Mas você vai conseguir táxi?

Justamente queria andar um pouco, vai me fazer bem andar sussurrou ela, entrelaçando as mãos. Me ajude.

O homem ergueu-se. Apanhou a capa.

Você não precisa mesmo de nada?

Não, estou ótima, pode ir. Pode ir.

Ele se afastou a passos largos. Antes de enveredar pelo corredor, parou e apalpou os bolsos. Hesitou. Prosseguiu mais rápido, sem olhar para trás.

A madama deseja ainda alguma coisa? Vamos fechar avisou o garçom acendendo o abajur. Fiquei lá dentro, teve um problema na cozinha.

Ela levantou a face de máscara pisada.

Ah, sim, já vou. Quanto é?

O cavalheiro já pagou o vinho. Disse que eu arrumasse um táxi para a senhora.

Não é preciso, quero andar um pouco. Então ele se inclinou:

_A madama está se sentindo mal?

Ela abriu os dedos. Rolou na mesa uma bolinha compac­ta e escura.

_Estou bem, é que tivemos uma discussão.

O garçom recolheu o pão e o vinho. Suspirou.

_Também discuto às vezes com a minha velha, mas

depois fico chateado à beça. Mãe sempre tem razãomurmurou ajudando-a a levantar-se. Não quer mesmo um táxi?

Não, não... Apertou de leve o ombro do moço. O senhor é muito bom.

Quando ela já tinha dado alguns passos, ele a alcançou.

A senhora esqueceu isto.

Ah, o isqueiro disse ela. Guardou-o na bolsa.

 

                   Venha Ver o Pôr do Sol

Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avan­çava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infan­til era a única nota viva na quietude da tarde.

Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de estudante.

— Minha querida Raquel.

Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.

— Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encon­tro num lugar destes. Que ideia, Ricardo, que ideia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima.

Ele riu entre malicioso e ingênuo.

— Jamais? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância. Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete léguas, lembra?

— Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? — perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Ti­rou um cigarro. — Hein?!

— Ah, Raquel... — ele tomou-a pelo braço. — Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado. Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então? Fiz mal?

— Podia ter escolhido um outro lugar, não? — Abranda­ra a voz. — E o que é isso aí? Um cemitério?

Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.

— Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, de­sertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo — acrescentou apontan­do as crianças na sua ciranda.

Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do com­panheiro.

— Ricardo e suas ideias. E agora? Qual é o programa? Brandamente ele a tomou pela cintura.

— Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.

Ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.

— Ver o pôr do sol? Ah, meu Deus... Fabuloso, fabuloso! Me implora um último encontro, me atormenta dias segui­dos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério.

Ele riu também, afetando encabulamento como um me­nino pilhado em falta.

— Raquel, minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura.

— E você acha que eu iria?

_Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fide­líssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada... — disse ele, aproximando-se mais.

Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sé­rio. E aos poucos inúmeras rugazinhas foram-se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento.

— Você fez bem em vir.

— Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?

— Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.

— Mas eu pago.

— Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.

Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.

— Foi um risco enorme, Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das suas fabulosas ideias vai me consertar a vida.

— Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se «arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completa­mente abandonado — prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. — Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.

— É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brinca­deiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.

— Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa? Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que boba­gem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.

O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últi­mos vestígios da morte. Foram andando pela longa alame­da banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mos­trava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.

— É imenso, hein? E tão miserável, nunca vi um cemité­rio mais miserável, que deprimente — exclamou ela, atiran­do a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. — Vamos embora, Ricardo, chega.

—Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimen­te por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está no crepús­culo, nesse meio-tom, nessa ambiguidade. Estou-lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.

— Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemi­tério pobre.

Delicadamente ele beijou-lhe a mão.

— Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.

— E, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.

— Ele é tão rico assim?

— Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro.

Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pe­quenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.

Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?

Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.

— Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tanta... Mas apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele. Quando penso, não entendo como aguen­tei tanto, imagine, um ano!

_É que você tinha lido A Dama das Camélias, ficou as­sim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora?

— Nenhum — respondeu ela franzindo os lábios. Dete-ve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: — À mi­nha querida esposa, eternas saudades — leu em voz baixa. — Pois sim. Durou pouco essa eternidade.

Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.

— Mas é esse abandono na morte que faz o encanto dis­to. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja — disse apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda — o musgo já cobriu o nome da pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta, a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.

Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.

— Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim. — Deu-lhe um rápi­do beijo na face. — Chega, Ricardo, quero ir embora.

— Mais alguns passos...

— Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilô­metros! — Olhou para trás. — Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.

— A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio — lamentou ele, impelindo-a para frente. — Dobrando esta alameda, fica 0 jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com mi­nha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha ví­nhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.

— Sua prima também?

— Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblí­quos, como os seus.

— Vocês se amaram?

— Ela me amou. Foi a única criatura que... — Fez um gesto. — Enfim, não tem importância.

Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o.

— Eu gostei de você, Ricardo.

— E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença? Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela es­tremeceu.

— Esfriou, não? Vamos embora.

— Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.

Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a bai­xo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbota­da opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra descendo em caracol para a catacumba.

Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.

— Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você este­ve aqui?

Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu, melancólico.

_Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flo­res nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? Mas já disse que o que mais amo neste cemitério é precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.

Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semiobscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que for­mavam um estreito retângulo cinzento.

— E lá embaixo?

— Pois lá estão as gavetas. E nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó — murmurou ele.

Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la.

— A cômoda de pedra. Não é grandiosa? Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para

ver melhor.

— Todas essas gavetas estão cheias?

— Cheias?... Só as que têm um retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe — prosseguiu ele tocando com os dedos num meda­lhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.

Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.

— Vamos, Ricardo, vamos.

— Você está com medo.

— Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embo­ra, estou com frio.

Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o me­dalhão frouxamente iluminado.

— A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato, duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se exibir, estou bonita? Estou bonita? — falava agora consigo mesmo, doce e gravemente. — Não é que fosse bonita, mas os olhos... Ve­nha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.

Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.

— Que frio faz aqui. E que escuro, não estou enxergando! Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.

— Pegue, dá para ver muito bem... — Afastou-se para o lado. — Repare nos olhos.

— Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça... — Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição fei­ta na pedra. Leu em voz alta, lentamente: — Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil e oitocentos e falecida... — Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel. — Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...

Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinho­la fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.

Isto nunca foi o jazigo de sua família, seu mentiroso! Brincadeira mais cretina! — exclamou ela, subindo rapida­mente a escada. — Não tem graça nenhuma, ouviu?

Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.

— Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediata­mente! — ordenou, torcendo o trinco. — Detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!

— Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo.

Ela sacudia a portinhola.

— Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! — Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as gra­des. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. — Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...

Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.

— Boa noite, Raquel.

— Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... — gritou ela, es­tendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo. — Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos! — exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em se­guida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imo­bilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balan­çava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num es­pasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando. — Não, não...

Voltado ainda para ela, ele chegou até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.

— Boa noite, meu anjo.

Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.

— Não...

Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:

— não!

Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano es­cutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.

 

                   Eu Era Mudo e Só

Sentou na minha frente e pôs-se a ler um livro à luz do aba­jur. Já está preparada para dormir: o macio roupão azul so­bre a camisola, a chinela de rosinhas azuis, o frouxo laçaro-te de fita prendendo os cabelos alourados, a pele tão limpa, tão brilhante, cheirando a sabonete provavelmente azul, tudo tão vago, tão imaterial. Celestial.

— Você parece um postal. O mais belo postal da cole­ção Azul e Rosa. Quando eu era menino, adorava colecio­nar postais.

Ela sorriu e eu sorrio também ao vê-la consertar quase imperceptivelmente a posição das mãos. Agora o livro parece flutuar entre seus dedos tipo Gioconda. Acendo um cigarro. Tia Vicentina dizia sempre que eu era muito esqui­sito. "Ou esse seu filho é meio louco, mana, ou então..." Não tinha coragem de completar a frase, só ficava me olhando, sinceramente preocupada com meu destino. Penso ago­ra como ela ficaria espantada se me visse aqui nesta sala que mais parece a página de uma dessas revistas da arte de decorar, bem-vestido, bem barbeado e bem casado, solidamente casado com uma mulher divina-maravilhosa, quando borda, o trabalho parece sair das mãos de uma frei­ra e quando cozinha!... Verlaine em sua boca é aquela pro­núncia, a voz impostada, uma voz rara. E se tem filho então, tia Vicentina? A criança nasce uma dessas coisas, entende? Tudo tão harmonioso, tão perfeito. "Que gênero de poesia a senhora prefere?", perguntou o repórter à poetisa peituda e a poetisa peituda revirou os olhos, "O senhor sabe, existe a poesia realista e a poesia sublime. Eu prefiro a sublime!". Pois aí está, tia Vicentina.

— Sublime.

— Você falou, meu bem? — perguntou Fernanda sem desviar o olhar do livro.

— Acho que gostaria de sair um pouco.

— Para ir aonde?

"Tomar um chope", eu estive a ponto de dizer. Mas a per­gunta de Fernanda já tinha rasgado pelo meio minha vonta­de. A primeira pergunta de uma série tão sutil que quando eu chegasse até à rua já não teria vontade de tomar chope, não teria vontade de fazer mais nada. Tudo estaria estraga­do e o melhor ainda seria voltar.

Levanto-me sentindo seu olhar duplo pousar em mim, olhar duplo é uma qualidade raríssima, pode ler e ver o que estou fazendo. Tem a expressão mansa, desligada. Contudo, o olhar é mais preciso do que a máquina japonesa que com­prou numa viagem: "Veja", disse, mostrando a fotografia, "até a sombra da asa da borboleta a objetiva pegou". Esse olhar na minha nuca. Não consegue captar minha expres­são porque estou de costas.

— E se não vê a sombra das minhas asas é porque elas foram cortadas.

— Que foi que você resmungou, meu bem?

— Nada, nada. É um verso que me ocorreu, um verso so­bre asas.

Ela contraiu as sobrancelhas.

— Engraçado, você não costuma pensar em voz alta.

Ela sabe o que costumo e o que não costumo. Sabe tudo porque é exemplar e a esposa exemplar deve adivinhar. Mordisco o lábio devagarinho, bem devagarinho até a dor ficar quase insuportável. Adivinhar meu pensamento. Sem dúvida ela chegaria um dia a esse estado de perfeição. E nessa altura eu estaria tão desfibrado, tão vil que haveria de chorar lágrimas de enternecimento quando a visse colocar na minha mão o copo d'água que pensei em ir buscar.

Abro a janela e sinto na cara o ar gelado da noite. A lua, não, a lua já tinha sido quase tocada, talvez nesse instan­te mesmo em que a olhava algum abelhudo já rondava por lá. Solidão era solidão de estrela. "Sei que a solidão é dura às vezes de aguentar", disse Jacó no dia que soube do meu casamento. "Mas se é difícil carregar a solidão, mais difícil ainda é carregar uma companhia. A companhia resiste, a companhia tem uma saúde de ferro! Tudo pode acabar em redor e a companhia continua firme, pronta a virar qualquer coisa para não ir embora, mãe, irmã, enfermeira, amigo... Escolher para mulher aquela que seria nosso amigo se fosse homem, esse negócio então é o pior de todos. Abominável. Estremeço só em pensar nesse gênero de mulher que ado­ra fazer noitada com o marido. Querem beber e não sabem beber, logo ficam vulgares, desbocadas..." Enveredamos proseando por uma rua de bairro, Jacó e eu. As casas eram antigas e havia no ar um misterioso perfume de jardim. Eu ria das coisas que Jacó ia dizendo, mas meu coração esta­va inquieto. Quando passamos por um bar, ele me tomou pelo braço: "Vamos beber enquanto ainda podemos beber juntos". Quase cheguei a me irritar, "Você não conhece a Fernanda. Ela é tão sensível, tão generosa, jamais pensará sequer em interferir na minha vida. E nem eu admitiria". Ele ficou olhando para o copo de uísque. "Mas está claro que ela não vai interferir, meu querubim. O processo será outro, conheço bem essas moças compreensivas, ora se!..." O ambiente estava aconchegante, o uísque era bom, estava gostando tanto de rever Jacó com sua boina e o sobretudo antiquíssimo. Recém-casado com a mulher que amava. E então? Por que não estava feliz? "Das duas, uma", prosse­guiu Jacó enchendo a boca de amendoins. "Ou a mulher fica aquele tipo de amigona e etecetera e tal ou fica de fora. Se fica de fora, com a famosa sabedoria da serpente mistu­rada à inocência da pomba, dentro de um tempo mínimo conseguirá indispor a gente de tal modo com os amigos que quando menos se espera estaremos distantes deles as vinte mil léguas submarinas. No outro caso, se ficar a tal que seria nosso amigo se fosse homem, acabará gostando tanto dos nossos amigos, mas tanto que logo escolherá o melhor para se deitar. Quer dizer, ou vai nos trair ou cha­tear. Ou as duas coisas."

— Esses cigarros devem estar velhos — disse Fernanda. Volto-me devagar. Ela abre as páginas do livro com uma

pequena espátula de marfim.

— Que cigarros?

— Esses da caixa, meu bem. Não foi por isso que você não fumou?

Abro o jornal. Mas que me importa o jornal? Queria ou­tra coisa e olho em redor e não sei o que poderia ser.

— Fernanda, você se lembra do Jacó?

— Lembro, como não? Era simpático o Jacó.

— Era... Você fala como se ele tivesse morrido. Ela sorriu entre complacente e irônica.

— Mas é como se tivesse morrido mesmo. Sumiu com­pletamente, não?

— Completamente — respondo.

E escondo a cara atrás do jornal porque nesse instante exato eu gostaria que ela estivesse morta. Irremediavelmente morta e eu chorando como louco, chorando deses­perado porque a verdade é que a amava, mas era verdade também que fora uma solução livrar-me dela assim. Uma morta pranteadíssima. Mas bem morta. E todos com uma pena enorme de mim e eu também esfrangalhado de dor porque jamais encontraria uma criatura tão extraordinária, que me amasse tanto como ela me amou. Sofrimento total. Mas quando viesse a noite e eu abrisse a porta e não a en­contrasse me esperando para o jantar, quando me visse só no escuro nesta sala, então daria aquele grito que dei quan­do era menino e subi na montanha.

— Hoje você está cansado, não está?

Ergo o olhar até Fernanda. A mãe de minha filha. Minha companheira há doze anos, pronta para ir buscar aspirina se a dor é na cabeça, pronta para chamar o médico se a dor é no apêndice. Sou um monstro.

— Cansado propriamente não. Sem ânimo.

— Já reparei que ultimamente você anda esfregando muito os olhos, acho que devia ir ao oculista.

Não podia mais esfregar os olhos. Era bom esconder os polegares dentro da mão e ficar esfregando os olhos com os nós dos dedos, mas se continuasse fazendo isso teria que ir ao oculista para explicar. Os menores movimentos tinham que ter uma explicação, nenhum gesto gratuito, inútil. Abri a televisão e a moça de peruca loura me avisou que eu per­deria os dentes se não comprasse o dentifrício... Desliguei depressa. Beba, coma, leia, vista — ah! Ah.

— Eu era mudo e só na rocha de granito.

Fernanda teve um risinho cascateante, é especialista nesse tipo de riso.

— Meu bem, quando eu era menina ouvi uma declama-dora recitar isso numa festa em casa de uma tia velhinha, foi tão divertido. Ela gostava de recitar isso e aquela outra coisa ridícula, se a cólera que espumai

Tão fina, não? Tão exigente. Poesia mesmo, só a de T. S. Eliot. Música, só a de Bach, "Pronuncia-se Barh", ensinou afetadamente ainda ontem para Gisela. Só lê literatura francesa, "Ih, o Robbe-Grillet, a Sarraute"... Como se tivesse há pouco tomado um café com eles na esquina.

— Ridículo por quê, Fernanda? São poesias ótimas.

— Ora, querido, não faça polêmica — murmurou ela incli­nando a cabeça para o ombro. Levantou a espátula:

— Tinha me esquecido, imagine que Gisela teve distinção em inglês. Vai ganhar uma medalha.

Gisela, minha filha. Já sabia sorrir como a mãe sorria, de modo a acentuar a covinha da face esquerda. E já tinha a mesma mentalidade, uma pequenina burguesa preocupa­da com a aparência, "Papaizinho querido, não vá mais me buscar de jipe!". A querida tolinha sendo preparada como a mãe fora preparada, o que vale é o mundo das aparências. As aparências. Virtuosas, sem dúvida, de moral suficiente­mente rija para não pensar sequer em trair o marido, e o inferno? De constituição suficientemente resistente para sobreviver a ele, pois a esposa exemplar deve morrer depois para poupar-lhe os dissabores.

Era o círculo eterno sem começo nem fim. Um dia Gise­la diria à mãe qual era o escolhido. Fernanda o convidaria para jantar conosco, exatamente como a mãe dela fizera co­migo. O arzinho de falsa distraída em pleno funcionamento na inaparente teia das perguntas, "Diz que prolonga a vida a gente amar o trabalho que faz. Você ama o seu?...". A per­plexidade do moço diante de certas considerações tão ingê­nuas, a mesma perplexidade que um dia senti. Depois, com o passar do tempo, a metamorfose na maquinazinha social azeitada pelo hábito de rir sem vontade, de chorar sem von­tade, de falar sem vontade, de fazer amor sem vontade... O homem adaptável, ideal. Quanto mais for se apoltronan-do, mais há de convir aos outros, tão cômodo, tão portátil. Comunicação total, mimetismo: entra numa sala azul fica azul, numa vermelha, vermelho. Um dia se olha no espe­lho, de que cor eu sou? Tarde demais para sair porta afora. E desejando, covarde e miseravelmente desejando que ela se volte de repente para confessar, "Tenho um amante". Ou então que, em vez de enfiar a espátula no livro, enterre-a até o cabo no coração.

— Cris passou ontem lá na loja — disse ela. — Telefonou, você não estava. Parecia preocupado, não concordou com sua compra de tratores.

— E o que aquele filho de uma cadela entende de trator?

— Manuel!

— Desculpe, Fernanda, escapou. Mas é que nunca ele en­tendeu de tratores, fica falando sem entender do assunto.

E eu? Eu entendo? Penso no senador. Quanto tempo levei para entender aquele seu sorriso, quanto tempo. Estávamos os dois frente a frente, meu futuro sogro e eu. Ele brinca­va com a corrente do relógio e me olhava disfarçadamente, também tinha esse tipo de olhar duplo. "Se minha filha de­cidiu, então já está decidido. Apenas o senhor ainda não me disse o que gostaria de fazer." Procurei encará-lo. O que eu gostaria de fazer? Voltei-me para Fernanda que se sentara ao piano e cantarolava baixinho uma balada inglesa, uma balada muito antiga que contava a história de uma princesa que morreu de amor e foi enterrada num vale, "and now she lays in the valley"... O senador brincava ainda com a corren­te: "Sei que o senhor é jornalista, mas está visto que depois do casamento vai ter que se ocupar com outra coisa, Fer­nanda vai querer ter o mesmo nível de vida que tem agora. Desde que deixei a política, vou de vento em popa no meu negócio. Queria convidá-lo para ser meu sócio. Que tal?". Fiquei olhando para sua corrente de ouro. "Mas, senador, acontece que não entendo nada de máquinas agrícolas!" Ele levantou-se para se servir de conhaque. E teve aquele sorriso especialíssimo, cujo sentido não consegui alcançar. "Entre para a firma, meu jovem, entre para a firma e vai en­tender rápido." Aceitei o conhaque. "O senhor me desculpe a franqueza, senador, mas o caso é que detesto máquinas..." Ele agora examinava a garrafa que tinha um rótulo pom­poso, mas com o olhar sobressalente me observava. "Não importa, jovem. Vai entender e vai até gostar, questão de tempo." Baixei a cabeça, confundido. Questão de tempo? Tive então uma vontade absurda de me levantar e ir embo­ra, sumir para sempre, sumir. Largar ali na sala o senador com suas máquinas, Fernanda com suas baladas, adeus, minha noiva, adeus! Tão forte a vontade de fugir que cheguei a agarrar os braços da poltrona para me levantar de um salto. A música, o conhaque, o pai e a filha, tudo, tudo era da melhor qualidade, impossível mesmo encontrar lá fora uma cena igual, uma gente igual. Mas gente para ser vista e admirada do lado de fora, através da vidraça. Acho que cheguei mesmo a me levantar. Dei uma volta em torno da mesa, olhei para o senador, para Fernanda, para o gato siamês enrodilhado na almofada. Fiquei. Fui relaxando os músculos, sentei-me de novo, bebi mais um pouco e fiquei. Fernanda cantava e a balada me pareceu desesperadamente triste com sua princesa enterrada num vale solitário, onde cresciam flores silvestres. Alguma coisa também parecia ter morrido em mim, "and now she lays in the valley where the wild flowers nod"...

— Quer ouvir música? — Fernanda perguntou, baixando o livro. — Gisela trouxe discos novos.

Já estou há algumas horas sem fazer nada, alheado. E a esposa exemplar não deve deixar o homem com a mente as­sim em disponibilidade.

— Agora não, depois.

Abro uma revista. Ela então inclinou a cabeça sob o halo redondo do abajur e recomeçou a ler. Que quadro! Se tives­se um grande cão sentado aos pés dela, um são-bernardo, por exemplo, a cena então ficaria perfeita. Mas mesmo sem o cachorrão peludo o quadro está tão bem-composto que não resisto de olhos abertos. Guardo o postal no bolso. Fer­nanda ficou impressa num postal, pronto, posso sair de cabeça descoberta e sem direção, ninguém me perguntou para onde vou nem a que horas devo voltar e se não quero levar um pulôver — ah! maravilha, maravilha. Não preci­sou ter amantes, não precisou morrer, não precisou acon­tecer nada de desagradável, de chocante, de repente tudo se imobilizou e virou uma superfície colorida e brilhante, para sempre um postal, um belíssimo postal que superou todos os que já vi em matéria de perfeição. Posso levá-lo comigo, mas como postal não faz perguntas não preciso dizer por que vou indo delirante rumo ao cais. Já vislumbro o navio em meio da cerração e a água mansa batendo no casco e o cheiro de mar. O cheiro de mar. O apito subindo pesadamente com a âncora, depressa, depressa que a esca­da ainda me espera! Subo levíssimo. Vai para Sumatra? Vai para Hong-Kong? O navio avança e um claro mar de estrelas vai-se abrindo em minha frente. Senta-se ao meu lado um companheiro de viagem. Não o distingo bem no escuro e isso nos faz mais livres ainda, dois passageiros sem baga­gem e sem feições. Tiro o postal do bolso: "Esta era minha mulher. Esta era minha casa". O homem aproxima a brasa do cigarro da mancha azul e rosada que é Fernanda. "Ela morreu?", pergunta ele. "Não, não morreu. Uma noite ela vi­rou este cartão. Tinha ainda uma menininha, um cachorro, um piano, tinha muitas coisas mais. Viraram este cartão." O homem não faz comentários. Guardo o postal no bolso. Posso também rasgá-lo em pedacinhos e atirá-lo no mar, não importa, é só um cartão e eu sou apenas um vagabundo debaixo das estrelas. Oh, prisioneiros dos cartões-postais de todo o mundo, venham ouvir comigo a música do vento! Nada é tão livre como o vento no mar!

— Será que você pode fechar a janela? — pede Fernanda. — Esfriou, já começou o inverno.

Abro os olhos. Eu também estou dentro do postal. Devo estar envelhecendo para começar a soma das compensações. Mas a alegria simples de sair em silêncio para visitar um amigo. De amar ou deixar de amar sem nenhum medo, nunca mais o medo de empobrecer, de me perder, já estou perdido! Poderei tomar um trem ou cortar os pulsos sem nenhuma explicação?

Através do vidro as estrelas me parecem incrivelmente distantes. Fecho a cortina.

 

                   As Pérolas

Demoradamente ele a examinava pelo espelho. "Está mais magra, pensou. Mas está mais bonita." Quando a visse, Roberto também pensaria o mesmo, "Está mais bonita assim".

Que iria acontecer? Tomás desviou o olhar para o chão. Pressentia a cena e com que nitidez: com naturalidade Ro­berto a levaria para a varanda e ambos se debruçariam no gradil. De dentro da casa iluminada, os sons do piano. E ali fora, no terraço deserto, os dois muito juntos se deixariam ficar olhando a noite. Conversariam? Claro que sim, mas só nos primeiros momentos. Logo atingiriam aquele estado em que as palavras são demais. Quietos e tensos, mas cala­dos na sombra. Por quanto tempo? Impossível dizer, mas o certo é que ficariam sozinhos uma parte da festa, apoiados no gradil dentro da noite escura. Só os dois, lado a lado, em silêncio. O braço dele roçando no braço dela. O piano.

— Tomás, você está se sentindo bem? Que é, Tomás?

Ele estremeceu. Agora era Lavínia que o examinava pelo espelho.

— Eu? Não, não se preocupe — disse ele, passando a mão pelo rosto. — Preciso fazer a barba...

— Tomás, você não me respondeu — insistiu ela. — Você está bem?

— Claro que estou bem.

A ociosidade, a miserável ociosidade daqueles interroga­tórios. "Você está bem?" O sorriso postiço. "Estou bem." A insistência era necessária. "Bem mesmo?" Oh, Deus. "Bem mesmo." A pergunta exasperante: "Você quer alguma coi­sa?". A resposta invariável: "Não quero nada."

"Não quero nada, isto é, quero viver. Apenas viver, mi­nha querida, viver..." Com um movimento brando, ele ajeitou a cabeça no espaldar da poltrona. Parecia simples, não? Apenas viver. Esfregou a face na almofada de croché. Rela­xou os músculos. Uma ligeira vertigem turvou-lhe a visão. Fechou os olhos quando as tábuas do teto se comprimiram num balanço de onda. Esboçou um gesto impreciso em di­reção à mulher.

Sinto-me tão bem.

— Pensei que você estivesse com alguma dor.

— Dor? Não. Eu estava mas era pensando.

Lavínia penteava os cabelos. Inclinara-se mais sobre a mesinha, de modo a poder ver melhor o marido que continuava estirado na sua poltrona, colocada um pouco atrás e à direita da banqueta na qual ela estava sentada.

— Pensando em coisas tristes?

— Não, até que não... — respondeu ele.

Seria triste pensar, por exemplo, que enquanto ele ia apodrecer na terra ela caminharia ao sol de mãos dadas com outro?

Era verdadeiramente espantosa a nitidez com que ima­ginava a cena: o piano inesgotável, o ar morno da noite de outubro, tinha ainda que ser outubro com aquele perfume indefinível da primavera. A folhagem parada. E os dois, om­bro a ombro, palpitantes e controlados, olhos fixos na es­curidão. "Lavínia e Roberto já foram embora?", perguntaria alguém num sussurro. A resposta sussurrante, pesada de reticências: "Estão lá fora na varanda".

Cruzando os braços com um gesto brusco, ele esfregou o pijama nas axilas molhadas. Disfarçou o gesto e ali ficou alisando as axilas, como se sentisse uma vaga coceira. Cer­rou os dentes. Por que nenhum convidado entrava naquele terraço? Por que não se rompiam, com estrépito, as cordas do piano? Ao menos — ao menos! — por que não desabava uma tempestade?

— A noite está firme?

— Firmíssima. Até lua tem. Ele riu:

— Imagine, até isso.

Lavínia apoiou o queixo nas mãos entrelaçadas. Lançou-lhe um olhar inquieto.

— Tomás, que mistério é esse?

— Não tem mistério nenhum, meu amor. Ao contrário, tudo me parece tão simples. Mas vamos, não se importe co­migo, estou brincando com minhas ideias, aquela brinca­deira de ideias conexas, você sabe... — Teve uma expressão sonolenta. — Mas você não vai se atrasar? Me parece que a reunião é às nove. Não é às nove?

— Ai! essa reunião. Estou com tanta vontade de ir como de me enforcar naquela porta. Vai ser uma chatice, Tomás, as reuniões lá sempre são chatíssimas, tudo igual, os san­duíches de galinha, o uísque ruim, o ponche doce demais...

— E Chopin, o Bóris não falha nunca. De Chopin você gosta.

— Ah, Tomás, não começa. Queria tanto ficar aqui com você.

Era verdade, ela preferia ficar, ela ainda o amava. Um amor meio esgarçado, sem alegria. Mas ainda amor. Roberto não passava de uma nebulosa imprecisa e que só seus olhos assinalaram a distância. No entanto, dentro de algumas horas, na aparente candura de uma varanda... Os acontecimentos se precipitando com uma rapidez de loucu­ra,

força de pedra que dormiu milênios e de repente estoura na avalancha. E estava em suas mãos impedir. Crispou-as dentro do bolso do roupão.

— Quero que você se distraia, Lavínia, sempre será mais divertido do que ficar aqui fechada. E depois, é possível que desta vez não seja assim tão igual, Roberto deve estar lá.

— Roberto?

— Roberto, sim.

Ela teve um gesto brusco.

— Mas Roberto está viajando. Já voltou?

— Já, já voltou.

— Como é que você sabe?

— Ele telefonou outro dia, tinha me esquecido de dizer. Telefonou, queria nos visitar. Ficou de aparecer uma noite dessas.

— Imagine... — murmurou ela, voltando-se de novo para o espelho. Com um fino pincel, pôs-se a delinear os olhos. Falou devagar, sem mover qualquer músculo da face. — Já faz mais de um ano que ele sumiu.

— É, faz mais de um ano.

Paciente Roberto. Pacientíssimo Roberto.

— E não se casou por lá?

Ele tentou vê-la através do espelho, mas agora ela baixa­ra a cabeça. Mergulhava a ponta do pincel no vidro. Repetiu a pergunta:

— Ele não se casou por lá? Hein?... Não se casou, Tomás?

— Não, não se casou.

— Vai acabar solteirão.

Tomás teve um sorriso lento. Respirou penosamente, de boca aberta. E voltou o rosto para o outro lado. "Meu Deus." Apertou os olhos que foram se reduzindo, concentrados no vaso de gerânios no peitoril da janela. "Eles sabem que nem chegarei a ver este botão desabrochar." Estendeu a mão ávi­da em direção à planta, colheu furtivamente alguns botões. Esmigalhou-os entre os dedos. Relaxou o corpo. E cerrou os olhos, a fisionomia em paz. Falou num tom suave.

— Você vai chegar atrasada.

— Melhor, ficarei menos tempo.

— Vai me dizer depois se gostou ou não. Mas tem que dizer mesmo.

— Digo, sim.

Depois ela não lhe diria mais nada. Seria o primeiro se­gredo entre os dois, a primeira névoa baixando densa, mais densa, separando-os como um muro embora caminhassem lado a lado. Viu-a perdida em meio da cerração, o rosto in­distinto, a forma irreal. Encolheu-se no fundo da poltrona, uma mão escondida na outra, caramujo gelado rolando na areia, solidão, solidão. "Lavínia, não me abandone já, deixe ao menos eu partir primeiro!" A boca salgada de lágrimas. "Ao menos eu partir primeiro..." Retesou o tronco, levantou a cabeça. Era cruel. "Não podem fazer isso comigo, eu ainda estou vivo, ouviram bem? Vivo!"

— Ratos.

— Que ratos?

— Ratos, querida, ratos — disse e sorriu da própria voz aflautada. — Já viu um rato bem de perto? Tinha muito rato numa pensão onde morei. De dia ficavam enrustidos, mas de noite se punham insolentes, entravam nos armários, roíam o assoalho, roque-roque... Eu batia no chão para eles pararem e nas primeiras vezes eles pararam mesmo, mas depois foram se acostumando com minhas batidas e no fim eu podia atirar até uma bomba que continuavam roque-roque-roque-roque... Mas aí eu também já estava acostumado. Uma noite um deles andou pela minha cara. As patinhas são frias.

— Que coisa horrível, Tomás!

— Há piores.

A varanda. Lá dentro, o piano, sons melosos escorren­do num Chopin de bairro, as notas se acavalando no desfibramento de quem pede perdão, "Estou tão destreinado, esqueci tudo!". O incentivo ainda mais torpe, "Ora, está bom, continue!". Mas nem de rastros os sons penetravam realmente no silêncio da varanda, silêncio conivente iso­lando os dois numa aura espessa, de se cortar com faca. Então Roberto perguntaria naquele tom interessado, tão fraterno: "E o Tomás?". O descarado. A espera da resposta inevitável, o crápula. A espera da confissão que nem a si mesma ela tivera coragem de fazer: "Está cada vez pior". Ele pousaria de leve a mão no seu ombro, como a lhe dizer: "Eu estou ao seu lado, conte comigo". Mas não lhe diria isso, não lhe diria nada, ah, Roberto era oportuno demais para dizer qualquer coisa, ele apenas pousaria a mão no ombro dela e com esse gesto estaria dizendo tudo, "Eu te amo, Lavínia, eu te amo".

— Vou molhar os cabelos, estão secos como palha — queixou-se ela. E voltou-se para o homem: — Tomás, que tal um copo de leite?

Leite. Ela lhe oferecia leite. Contraiu os maxilares.

— Não quero nada.

Diante do espelho, ela deslizou os dedos pelo corpo, arre­panhando o vestido nos quadris. Parecia desatenta, fatigada.

— Está largo demais, quem sabe é melhor ir com o verde?

— Mas você fica melhor de preto — disse ele passando a ponta da língua pelos lábios gretados.

Roberto gostaria de vê-la assim, magra e de preto, exata­mente como naquele jantar. Ela nem se lembrava mais, pelo menos ainda não se lembrava, mas ele revia como se tivesse sido na véspera aquela noite havia quase dez anos.

Dois dias antes do casamento. Lavínia estava assim mes­mo, toda vestida de preto. Como única joia, trazia seu colar de pérolas, precisamente aquele que estava ali, na caixa de cristal. Roberto fora o primeiro a chegar. Estava eufórico: "Que elegância, Lavínia! Como lhe vai bem o preto, nunca te vi tão linda. Se eu fosse você, faria o vestido de noiva preto. E estas pérolas? Presente do noivo?". Sim, parecia satisfei­tíssimo, mas no fundo do seu sorriso, sob a frivolidade dos galanteios, lá no fundo, só ele, Tomás, adivinhava qualquer coisa de sombrio. Não, não era ciúme nem propriamente mágoa, mas qualquer coisa assim com o sabor sarcástico de uma advertência, "Fique com ela, fique com ela por en­quanto. Depois veremos". Depois era agora.

A varanda, floreios de Chopin se diluindo no silêncio, vago perfume de folhagem, vago luar, tudo vago. Nítidos, só os dois, tão nítidos. Tão exatos. A conversa fragmenta­da, mariposa sem alvo deixando aqui e ali o pólen de prata das asas, "E aquele jantar, hein, Lavínia?". Ah, aquele jan­tar. "Foi há mais de dez anos, não foi?" Ela demoraria para responder. "No final, você lembra?, recitei Geraldy. Eu es­tava meio bêbado, mas disse o poema inteiro, não encon­trei nada melhor para te saudar, lembra?" Ela ficaria séria. E, um tanto perturbada, levaria a mão ao colar de pérolas, gesto tão seu quando não sabia o que dizer: tomava entre os dedos a conta maior do fio e ficava a rodá-la devagar. Sim, como não? Lembrava-se perfeitamente, só que o ver­so adquiria agora um novo sentido, não, não era mais o cumprimento galante para arreliar o noivo. Era a confis­são profunda, grave: "Se eu te amasse, se tu me amasses, como nós nos amaríamos!".

— Podia usar o cinto — murmurou ela, voltando a apa­nhar o vestido nas costas. Dirigiu-se ao banheiro. — Paciên­cia, ninguém vai reparar muito em mim.

"Só Roberto", ele quis dizer. Esfregou vagarosamente as mãos. Examinou as unhas. "Têm que estar muito limpas", lembrou entrelaçando os dedos. Levou as mãos ao peito e vagou o olhar pela mesa: a esponja, o perfume, a escova, os grampos, o colar de pérolas... Através do vidro da caixa, ele via o colar. Ali estavam as pérolas que tinham atraído a atenção de Roberto, rosadas e falsas, mas singularmente brilhantes. Voltando ao quarto, ela poria o colar, distraída, inconsciente ainda de tudo quanto a esperava. No entanto, se lhe pedisse, "Lavínia, não vá", se lhe dissesse isto uma única vez, "não vá, fica comigo!".

Vergou o tronco até tocar o queixo nos joelhos, o suor escorrendo ativo pela testa, pelo pescoço, a boca retorcida.

"Meu Deus!". O quarto rodopiava e numa das voltas sen­tiu-se arremessado pelo espaço, uma pedra subindo aguda até o limite do grito. E a queda desamparada no infinito, "Lavínia, Lavínia!...". Fechou os olhos e tombou no fundo da poltrona, tão gelado e tão exausto que só pôde desejar que Lavínia não entrasse naquele instante, não queria que ela o encontrasse assim, a boca ainda escancarada na con­vulsão da náusea. Puxou o xale até o pescoço. Agora era o cansaço atroz que o fazia sentir-se uma coisa miserável, sem forças sequer para abrir os olhos, "Meu Deus". Passou a mão na testa, mas a mão também estava úmida. "Meu Deus meu Deus meu Deus", ficou repetindo meio distrai­damente. Esfregou as mãos no tecido esponjoso da pol­trona, acelerando o movimento. Ninguém podia ajudá-lo, ninguém. Pensou na mãe, na mulherzinha raquítica e es-molambada que nada tivera na vida, nada a não ser aque­les olhos poderosos, desvendadores. Dela herdara o dom de pressentir. "Eu já sabia", ela costumava dizer quando vinham lhe dar as notícias. "Eu já sabia", ficava repetindo obstinadamente, apertando os olhos de cigana. "Mas, se você sabia, por que então não fez alguma coisa para impedir?!", gritava o marido a sacudi-la como um trapo. Ela ficava menorzinha nas mãos do homem, mas cresciam as­sustadores os olhos de ver na distância. "Fazer o quê? Que é que eu podia fazer senão esperar?"

"Senão esperar", murmurou ele, voltando o olhar para o fio de pérolas enrodilhado na caixa. Ficou ouvindo a água escorrendo na torneira.

— Você vai chegar atrasada!

O jorro foi interceptado pelo dique do pente.

— Não tem importância, amor.

Num movimento ondulante, ele se pôs na beirada da poltrona, o tronco inclinado, o olhar fixo.

— Está se esmerando, não?

— Nada disso, é que não acerto com o penteado.

— Seus grampos ficaram aqui. Você não quer os grampos? ­ — disse ele. E num salto aproximou-se da mesa, apa­nhou o colar de pérolas, meteu-o no bolso e voltou à poltrona.   Não vai precisar de grampos?

— Não, já acabei, até que ficou melhor do que eu esperava. Ele respirou de boca aberta, arquejante. Sorriu quando a viu entrar.

— Ficou lindo. Gosto tanto quando você prende o cabelo.

— Não vejo é o meu colar — murmurou ela abrindo a cai­xa de cristal. Franziu as sobrancelhas. — Parece que ainda agora estava por aqui.

— O de pérolas? Parece que vi também. Mas não está den­tro da caixa?

— Não, não está. Que coisa mais misteriosa! Eu tinha qua­se certeza...

Agora ela revolvia as gavetas. Abriu caixas, apalpou os bolsos das roupas.

— Não se preocupe com isso, meu bem, você deve ter es­quecido em algum lugar. Já é tarde, procuraremos amanhã — disse ele, baixando os olhos. Brincou com o pingente da cortina. — Prometi te dar um colar verdadeiro, lembra, Laví­nia? E nunca pude cumprir a promessa.

Ela remexia as gavetas da cômoda. Tirou a tampa de uma caixinha prateada, despejou-a e ficou olhando para o fundo de veludo da caixa vazia.

— Eu tinha ideia que... — Voltou até a mesa, abriu pensa­tiva o frasco de perfume, umedeceu os dedos. Tapou o fras­co e levou a mão ao pescoço. — Mas não é mesmo incrível?

— Decerto você guardou noutro lugar e esqueceu.

— Não, não, ele estava por aqui, tenho quase a certeza de que há pouco... — Sorriu voltando-se para o espelho. Inter­rogou o espelho. — Ou foi mesmo noutro lugar? Ah! lá sei — suspirou apanhando a carteira. Escovou com cuidado a seda já puída. — Que pena, o colar faz falta quando ponho este vestido, nenhum outro serve, só ele.

— Faz falta, sim — murmurou Tomás, segurando com fir­meza o colar no fundo do bolso. E riu. — Que loucura.

— Hum? Que foi que você disse?

Tudo ia acontecer como ele previra, tudo ia se desenro­lar com a naturalidade do inevitável, mas alguma coisa ele conseguira modificar, alguma coisa ele subtraíra da cena e agora estava ali na sua mão: um acessório, um mesquinho acessório mas indispensável para completar o quadro. Ti­nha a varanda, tinha Chopin, tinha o luar, mas faltavam as pérolas. Levantou a cabeça.

— Como pode ser, Tomás? Posso jurar que vi por aqui mesmo.

— Vamos, meu bem, não pense mais nisso. Umas pobres pérolas. Ainda te darei pérolas verdadeiras, nem que tenha que ir buscá-las no fundo do mar!

Ela afagou-lhe os cabelos. Ajeitou o xale para cobrir-lhe os pés e animou-se também.

— Pérolas da nossa ilha, Tomás?

— Da nossa ilha. Um colar compridíssimo, milhares e milhares de voltas.

Baixando os olhos brilhantes de lágrimas, ela inclinou-se para beijá-lo.

— Não demoro.

Quando a viu desaparecer, ele tirou o colar do bolso. Apertou-o fortemente, tentando triturá-lo, mas ao ver que as pérolas resistiam, escapando-lhe por entre os dedos, sacudiu-as com violência na gruta da mão. O entrechocar das contas produzia um som semelhante a uma risada. Sacudiu-as mais e riu, era como se tivesse prendido um duendezinho que agora se divertia em soltar risadinhas rosadas e falsas. Ficou sacudindo as pérolas, levando-as junto do ouvido. "Peguei-o, peguei-o", murmurou sopran­do malicioso pelo vão das mãos em concha. Ergueu-se e ficou sério, os olhos escancarados, voltado para o ruído do portão de ferro se fechando.

— Lavínia! Lavínia! — ele gritou correndo até a janela. Abriu-a. — Lavínia, espere!

Ela parou no meio da calçada e ergueu a cabeça, assusta­da.

Retrocedeu. Ele teve um olhar tranquilo para a mulher banhada de luar.

— Que foi, Tomás? Que foi?

— Achei seu colar de pérolas. Tome — disse, estendendo o braço.

Deixou que o fio lhe escorresse por entre os dedos.

 

                   O Menino

Sentou-se num tamborete, fincou os cotovelos nos joelhos, apoiou o queixo nas mãos e ficou olhando para a mãe. Agora ela escovava os cabelos muito louros e curtos, puxando-os para trás. E os anéis se estendiam molemente para em segui­da voltarem à posição anterior, formando uma coroa de cara­cóis sobre a testa. Deixou a escova, apanhou um frasco de perfume, molhou as pontas dos dedos, passou-os nos lóbulos das orelhas, no vértice do decote e em seguida umedeceu um lencinho de rendas. Através do espelho, olhou para o meni­no. Ele sorriu também, era linda, linda, linda! Em todo o bairro não havia uma moça linda assim.

— Quantos anos você tem, mamãe?

— Ah, que pergunta! Acho que trinta ou trinta e um, por aí, meu amor, por aí. Quer se perfumar também?

— Homem não bota perfume.

— Homem, homem! — Ela inclinou-se para beijá-lo. — Você é um nenenzinho, ouviu bem? É o meu nenenzinho.

O menino afundou a cabeça no colo perfumado. Quan­do não havia ninguém olhando, achava maravilhoso ser afagado como uma criancinha. Mas era preciso mesmo que não houvesse ninguém por perto.

— Agora vamos que a sessão começa às oito — avisou ela, retocando apressadamente os lábios.

O menino deu um grito, montou no corrimão da escada e foi esperá-la embaixo. Da porta, ouviu-a dizer à emprega­da que avisasse ao doutor que tinham ido ao cinema.

Na rua, ele andava pisando forte, o queixo erguido, os olhos acesos. Tão bom sair de mãos dadas com a mãe. Melhor ainda quando o pai não ia junto porque assim ficava sendo o cavalheiro dela. Quando crescesse haveria de se casar com uma moça igual. Anita não servia que Anita era sardenta. Nem Maria Inês com aqueles dentes saltados. Ti­nha que ser igualzinha à mãe.

— Você acha a Maria Inês bonita, mamãe?

— É bonitinha, sim.

— Ah! tem dentão de elefante.

E o menino chutou um pedregulho. Não, tinha que ser assim como a mãe, igualzinha à mãe. E com aquele perfume.

— Como é o nome do seu perfume?

— Vent Vert. Por quê, filho? Você acha bom?

— Que é que quer dizer isso?

— Vento Verde.

Vento verde, vento verde. Era bonito, mas existia vento verde? Vento não tinha cor, só cheiro. Riu.

— Posso te contar uma anedota, mãe? Posso?

— Se for anedota limpa, pode.

— Não é limpa não.

— Então não quero saber.

— Mas por quê, pô!?

— Eu já disse que não quero que você diga "pô".

Ele chutou uma caixa de fósforos. Pisou-a em seguida.

— Olha, mãe, a casa do Júlio...

Júlio conversava com alguns colegas no portão. O menino fez questão de cumprimentá-los em voz alta para que todos se voltassem e ficassem assim mudos, olhando. Vejam, esta é minha mãe! — teve vontade de gritar-lhes. Nenhum de vocês tem uma mãe linda assim! E lembrou deliciado que a mãe de Júlio era grandalhona e sem graça, sempre de chinelo e con­sertando meia. Júlio devia estar agora roxo de inveja.

— Ele é bom aluno? Esse Júlio.

— Que nem eu.

— Então não é.

O menino deu uma risadinha.

— Que fita a gente vai ver?

— Não sei, meu bem.

— Você não viu no jornal? Se for fita de amor, não quero! Você não viu no jornal, hein, mamãe?

Ela não respondeu. Andava agora tão rapidamente que às vezes o menino precisava andar aos pulos para acompanhá-la. Quando chegaram à porta do cinema, ele arfava. Mas tinha no rosto uma vermelhidão feliz.

A sala de espera estava vazia. Ela comprou os ingressos e em seguida, como se tivesse perdido toda a pressa, ficou tranquilamente encostada a uma coluna, lendo o progra­ma. O menino deu-lhe um puxão na saia.

— Mãe, mas o que é que você está fazendo?! A sessão já começou, já entrou todo mundo, pô!

Ela inclinou-se para ele. Falou num tom muito suave, mas os lábios se apertavam comprimindo as palavras e os olhos tinham aquela expressão que o menino conhecia muito bem, nunca se exaltava, nunca elevava a voz. Mas ele sabia que quando ela falava assim, nem súplicas nem lágri­mas conseguiam fazê-la voltar atrás.

— Sei que já começou mas não vamos entrar agora, ou­viu? Não vamos entrar agora, espera.

O menino enfiou as mãos nos bolsos e enterrou o queixo no peito. Lançou à mãe um olhar sombrio. Por que é que não entravam logo? Tinham corrido feito dois loucos e ago­ra aquela calma, espera. Esperar o quê, pô?!...

— É que a gente já está atrasado, mãe.

— Vá ali no balcão comprar chocolate — ordenou ela en-tregando-lhe uma nota nervosamente amarfanhada.

Ele atravessou a sala num andar arrastado, chutando as pontas de cigarro pela frente. Ora, chocolate. Quem é que quer chocolate? E se o enredo fosse de crime, quem é que ia entender chegando assim começado? Sem nenhum entusias­mo, pediu um tablete de chocolate. Vacilou um instante e pe­diu em seguida um tubo de drágeas de limão e um pacote de caramelos de leite, pronto, também gastava à beça. Recebeu o troco de cara fechada. Ouviu então os passos apressados da mãe que lhe estendeu a mão com impaciência:

— Vamos, meu bem, vamos entrar.

Num salto, o menino pôs-se ao lado dela. Apertou-lhe a mão freneticamente.

— Depressa que a fita já começou, não está ouvindo a música?

Na escuridão, ficaram um instante parados, envolvidos por um grupo de pessoas, algumas entrando, outras saindo. Foi quando ela resolveu.

— Venha vindo atrás de mim.

Os olhos do menino devassavam a penumbra. Apontou para duas poltronas vazias.

— Lá, mãezinha, lá tem duas, vamos lá!

Ela olhava para um lado, para outro e não se decidia.

— Mãe, aqui tem mais duas, está vendo? Aqui não está bom? — insistiu ele, puxando-a pelo braço. E olhava aflito para a tela e olhava de novo para as poltronas vazias que apareciam aqui e ali como coágulos de sombra. — Lá tem mais duas, está vendo?

Ela adiantou-se até as primeiras filas e voltou em segui­da até o meio do corredor. Vacilou ainda um momento. E decidiu-se. Impeliu-o suave, mas resolutamente.

— Entre aí.

— Licença? Licença?... — ele foi pedindo. Sentou-se na primeira poltrona desocupada que encontrou, ao lado de uma outra desocupada também. — Aqui, não é, mãe?

— Não, meu bem, ali adiante — murmurou ela, fazen­do-o levantar-se. Indicou os três lugares vagos quase no fim da fileira. — Lá é melhor.

Ele resmungou, pediu "licença, licença?", e deixou-se cair pesadamente no primeiro dos três lugares. Ela sentou-se em seguida.

— Ih, é fita de amor, pô!

— Quieto, sim?

O menino pôs-se na beirada da poltrona. Esticou o pes­coço, olhou para a direita, para a esquerda, remexeu-se.

— Essa bruta cabeçona aí na frente!

— Quieto, já disse.

— Mas é que não estou enxergando direito, mãe! Troca comigo que não estou enxergando!

Ela apertou-lhe o braço. Esse gesto ele conhecia bem e significava apenas: não insista!

— Mas, mãe...

Inclinando-se até ele, ela falou-lhe baixinho, naquele tom perigoso, meio entre os dentes e que era usado quan­do estava no auge, um tom tão macio que quem a ouvisse julgaria que ela lhe fazia um elogio. Mas só ele sabia o que havia debaixo daquela maciez.

— Não quero que mude de lugar, está me escutando? Não quero. E não insista mais.

Contendo-se para não dar um forte pontapé na poltrona da frente, ele enrolou o pulôver como uma bola e sentou-se em cima. Gemeu. Mas por que aquilo tudo? Por que a mãe lhe falava daquele jeito, por quê? Não fizera nada de mal, só queria mudar de lugar, só isso... Não, desta vez ela não es­tava sendo nem um pouquinho camarada. Voltou-se então para lembrar-lhe que estava chegando muita gente, se não mudasse de lugar imediatamente, depois não poderia mais porque aquele era o último lugar vago que restava, "Olha aí, mamãe, acho que aquele homem vem pra cá!". Veio. Veio e sentou-se na poltrona vazia ao lado dela.

O menino gemeu, "Ai! meu Deus...". Pronto. Agora é que não restava mesmo nenhuma esperança. E aqueles dois en­joados lá na fita numa conversa comprida que não acabava mais, ela vestida de enfermeira, ele de soldado, mas por que o tipo não ia pra guerra, pô!... E a cabeçona da mulher na sua frente indo e vindo para a esquerda, para a direita, os cabelos armados a flutuarem na tela como teias monstruo­sas de uma aranha. Um punhado de fios formava um frou­xo topete que chegava até o queixo da artista. O menino deu uma gargalhada.

— Mãe, daqui eu vejo a mocinha de cavanhaque.

— Não faça assim, filho, a fita é triste... Olha, presta aten­ção, agora ele vai ter que fugir com outro nome... O padre vai arrumar o passaporte.

— Mas por que ele não vai pra guerra duma vez?

— Porque ele é contra a guerra, filho, ele não quer matar ninguém — sussurrou-lhe a mãe num tom meigo.

Devia estar sorrindo e ele sorriu também, ah! que bom, a mãe não estava mais nervosa, não estava mais nervosa. As coisas começavam a melhorar e para maior alegria, a mulher da poltrona da frente levantou-se e saiu. Diante dos seus olhos apareceu o retângulo inteiro da tela.

— Agora sim! — disse baixinho, desembrulhando o ta­blete de chocolate.

Meteu-o inteiro na boca e tirou os caramelos do bolso para oferecê-los à mãe. Então viu: a mão pequena e bran­ca, muito branca, deslizou pelo braço da poltrona e pousou devagarinho nos joelhos do homem que acabara de chegar.

O menino continuou olhando, imóvel. Pasmado. Por que a mãe fazia aquilo?! Por que a mãe fazia aquilo?!... Ficou olhando sem nenhum pensamento, sem nenhum gesto. Foi então que as mãos grandes e morenas do homem tomaram avidamente a mão pequena e branca. Apertaram-na com tanta força que pareciam querer esmagá-la.

O menino estremeceu. Sentiu o coração bater descom­passado, bater como só batera naquele dia na fazenda quan­do teve de correr como louco, perseguido de perto por um touro. O susto ressecou-lhe a boca. O chocolate foi-se trans­formando numa massa viscosa e amarga. Engoliu-o com esforço, como se fosse uma bola de papel. Redondos e está­ticos, os olhos cravaram-se na tela. Moviam-se as imagens sem sentido num sonho fragmentado. Os letreiros dança­vam e se fundiam pesadamente, como chumbo derretido. Mas o menino continuava imóvel, olhando obstinadamente. Um bar em Tóquio, brigas, a fuga do moço de capa persegui­do pela sereia da polícia, mais brigas numa esquina, tiros. A mão pequena e branca a deslizar no escuro como um bi­cho. Torturas e gritos nos corredores paralelos da prisão, os homens agarrando as portas de grade, mais conspirações. Mais homens. A mão pequena e branca. A fuga, os faróis na noite, os gritos, mais tiros, tiros. O carro derrapando sem freios. Tiros. Espantosamente nítido em meio do fervilhar de sons e falas — e ele não queria, não queria ouvir! — o ci­ciar delicado dos dois num diálogo entre os dentes.

Antes de terminar a sessão — mas isso não acaba mais, não acaba? —, ele sentiu, mais do que sentiu, adivinhou a mão pequena e branca desprender-se das mãos morenas. E do mesmo modo manso como avançara, recuar deslizando pela poltrona e voltar a se unir à mão que ficara descansan­do no regaço. Ali ficaram entrelaçadas e quietas como esti­veram antes.

— Está gostando, meu bem? — perguntou ela inclinan-do-se para o menino.

Ele fez que sim com a cabeça, os olhos duramente fixos na cena final. Abriu a boca quando o moço também abriu a sua para beijar a enfermeira. Apertou os olhos enquanto durou o beijo. Então o homem levantou-se embuçado na mesma escuridão em que chegara. O menino retesou-se, os maxilares contraídos, trêmulo. Fechou os punhos. "Eu pulo no pescoço dele, eu esgano ele!"

O olhar desvairado estava agora nas espáduas largas in­terceptando a tela como um muro negro. Por um brevíssimo instante ficaram paradas em sua frente. Próximas, tão próximas. Sentiu a perna musculosa do homem roçar no seu joelho, esgueirando-se rápida. Aquele contato foi como ponta de um alfinete num balão de ar. O menino foi-se des­contraindo. Encolheu-se murcho no fundo da poltrona e pendeu a cabeça para o peito.

Quando as luzes se acenderam, teve um olhar para a poltrona vazia. Olhou para a mãe. Ela sorria com aquela mesma expressão que tivera diante do espelho, enquanto se perfumava. Estava corada, brilhante.

— Vamos, filhote?

Estremeceu quando a mão dela pousou no seu ombro. Sentiu-lhe o perfume. E voltou depressa a cabeça para o ou­tro lado, a cara pálida, a boca apertada como se fosse cuspir. Engoliu penosamente. De assalto, a mão dela agarrou a sua. Sentiu-a quente, macia. Endureceu as pontas dos dedos, re­tesado, queria cravar as unhas naquela carne.

— Ah, não quer mais andar de mãos dadas comigo?

Ele inclinara-se, demorando mais do que o necessário para dobrar a barra da calça rancheira.

— É que não sou mais criança.

— Ah, o nenenzinho cresceu? Cresceu? — Ela riu baixi­nho. Beijou-lhe o rosto. — Não anda mais de mão dada?

O menino limpou nos dedos a umidade dos beijos no queixo, na orelha. Limpou as marcas com a mesma expressão com que limpava as mãos nos fundilhos da calça quan­do cortava as minhocas para o anzol.

Na caminhada de volta, ela falou sem parar, comentan do excitada o enredo do filme. Explicando. Ele respondia com monossílabos.

— Mas que é que você tem, filho? Ficou mudo...

— Está me doendo o dente.

— Outra vez? Quer dizer que fugiu do dentista? Você ti­nha hora ontem, não tinha?

— Ele botou uma massa. Está doendo — murmurou incli-nando-se para apanhar uma folha seca. Triturou-a no fundo do bolso. E respirou abrindo a boca. — Como dói, pô.

— Assim que chegarmos você toma uma aspirina. Mas não diga, por favor, essa palavrinha que detesto.

— Não digo mais.

Diante da casa de Júlio, instintivamente ele retardou o passo. Teve um olhar para a janela acesa. Vislumbrou uma sombra disforme passar através da cortina.

— Dona Margarida.

— Hum?

— A mãe do Júlio.

Quando entraram na sala, o pai estava sentado na cadei­ra de balanço, lendo o jornal. Como todas as noites, como todas as noites. O menino estacou na porta. A certeza de que alguma coisa terrível ia acontecer paralisou-o atônito, obumbrado. O olhar em pânico procurou as mãos do pai.

— Então, meu amor, lendo o seu jornalzinho? — pergun­tou ela, beijando o homem na face. — Mas a luz não está muito fraca?

— A lâmpada maior queimou, liguei essa por enquanto — disse ele, tomando a mão da mulher. Beijou-a demorada­mente. — Tudo bem?

— Tudo bem.

O menino mordeu o lábio até sentir gosto de sangue na boca. Como nas outras noites, igual. Igual.

— Então, filho? Gostou da fita? — perguntou o pai do­brando o jornal. Estendeu a mão ao menino e com a outra começou a acariciar o braço nu da mulher. — Pela sua cara, desconfio que não.

— Gostei, sim.

—Ah, confessa, filhote, você detestou, não foi? — contestou ela. — Nem eu entendi direito, uma complicação dos diabos, espionagem, guerra, máfia... Você não podia ter entendido.

— Entendi. Entendi tudo — ele quis gritar e a voz saiu num sopro tão débil que só ele ouviu.

— E ainda com dor de dente! — acrescentou ela despren-dendo-se do homem e subindo a escada. — Ah, já ia esque­cendo a aspirina.

O menino voltou para a escada os olhos cheios de lá­grimas.

— Que é isso? — estranhou o pai. — Parece até que você viu assombração. Que foi?

O menino encarou-o demoradamente. Aquele era o pai. O pai. Os cabelos grisalhos. Os óculos pesados. O rosto feio e bom.

— Pai... — murmurou, aproximando-se. E repetiu num fio de voz: — Pai...

— Mas, meu filho, que aconteceu? Vamos, diga!

— Nada. Nada.

Fechou os olhos para prender as lágrimas. Envolveu o pai num apertado abraço.

 

                                                                                Lygia Fagundes Telles  

 

                      

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