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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS COLINAS DA IRA / Leon Uris
AS COLINAS DA IRA / Leon Uris

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AS COLINAS DA IRA

 

Há cinco dias apenas, o Kifissia Hotel estivera quase deserto. No momento fervilhava de soldados britânicos. No vestíbulo, uma multidão em uniforme cáqui emitia um rumor surdo e contínuo, feito da variedade de idiomas de um exército internacional. As fardas eram todas da mesma lã monótona, mas as ombreiras diziam que ali se encontravam reunidos australianos, ingleses, neozelandeses, árabes, cipriotas e palestinos. Do bar, que ficava à direita do vestíbulo, emergia um contínuo tilintar de copos, pontuado a intervalos pelos ruídos da caixa registradora.

A um canto, junto à janela, via-se um civil solitário escarrapachado numa imensa poltrona, alheio à agitação e ao barulho que o rodeava. Tinha os pés apoiados no peitoril da janela, o chapéu puxado sobre os olhos e um cachimbo apagado, de bocal invertido, preso entre os dentes. Vestia um terno de tweed bem talhado, mas amarrotado, o que se adaptava ao ambiente, e a gravata de lã pesada fora afrouxada do pescoço. Não estava nem desperto, nem adormecido, nem alerta, nem desligado — era a própria imagem do tédio.

Caso alguém circulasse em ambientes literários, ou fosse apenas um ávido leitor de romances de menor importância, seria capaz de reconhecê-lo à primeira vista. Michael Morrison, americano, era um desses escritores indispensáveis à lista de todo editor. Possuía um público pequeno mas fiel, que se ampliava, ligeiramente, a cada nova obra. O dinheiro que obtivera com a publicação de quatro livros fora acrescido por colaborações periódicas a revistas e Morrison alcançara a confortável faixa dos quinze mil dólares anuais. Não fora sempre assim, claro. Sua ascensão era a história típica do escritor que luta durante vários anos para ser aceito e sofre amargas decepções e todas as frustrações e temores que infestam a profissão considerada tão atraente.

O coro de cantores que rodeava o bar fez Morrison estre­mecer. Bocejando, jogou o chapéu para trás e lançou um olhar ao relógio. Faltava algum tempo para a hora marcada. Tirando os pés do peitoril levantou-se, espreguiçou-se e acendeu o ca­chimbo, ignorando a multidão de soldados. Mesmo aos trinta e cinco anos revelava vestígios de uma carreira de atleta, pois seu metro e oitenta de altura sustentava com evidente facilidade os noventa quilos de peso. Embora o rosto conservasse um ar de terna criança, revelava também traços inconfundíveis de dureza e ceticismo. Em conjunto, Michael Morrison apresentava notá­vel semelhança com a concepção de um escritor, segundo o público.

Atravessando a multidão, chegou à calçada, onde ficou vários minutos à procura de um táxi. Decidiu então caminhar alguns quarteirões até um ponto em que havia mais possibilidade de encontrá-lo, meio irritado com as alterações de última hora que o haviam forçado a instalar-se num hotel de bairro. Todos os do centro estavam ocupados pelos britânicos.

Enquanto caminhava, seus olhos toldaram-se de tristeza. A viagem à Grécia transformara em chamas as cinzas de amarga lembrança. Quantas vezes ele e a mulher haviam planejado aquela viagem! Falaram nela durante anos. Seria a lua-de-mel que não haviam tido. O tio de Ellie, um importador grego, deixara-lhe um legado de cerca de nove mil dólares, mas ano após ano alguma coisa surgia para impedir a viagem. E naquele tempo o grande temor era acabarem gastando o dinheiro em tão necessários mantimentos, e não na finalidade a que se propunham.

Quando Michael finalmente conseguiu reunir uma quantia aceitável, os planos de viagem principiaram a concretizar-se. Foi então que se deu o acidente de carro, num dia em que a Golden Gate estava imersa em nevoeiro. Ellie morrera instantaneamente.

Morrison levou mais de um ano para recuperar-se. Os pri­meiros meses foram passados em meio ao remorso, ao total desânimo, à solidão e ao medo de dormir por causa dos pesa­delos que sobreviriam. Seguiu-se um período de autocomiseração e bebida.   E depois a lenta recuperação, com a ajuda dos pais e de bons amigos, mas sobretudo graças ao amor pelos filhos, um menino e uma menina.

Teria deixado o dinheiro na Grécia durante muitos anos, pois sentia repulsa à idéia de visitar o país sem Ellie. Mas, em abril de 1941 sobreveio a avalanche. A invasão começou pelo norte. O banco aconselhou-o a reclamar o legado o mais de­pressa possível, pois a situação européia tornava-se cada vez mais incerta. Resolveu então fazer uma rápida viagem a Atenas. No momento, o que mais desejava era regressar a São Francisco. Impossível uma lua-de-mel sem mulher.

— Petraki, 17 — disse ao motorista, quando se puseram em marcha para o centro de Atenas. Todo mundo na cidade tinha um parente na América e o motorista não era exceção. No seu caso tratava-se de um irmão em Qeveland. Depois que Morrison afirmou jamais ter estado em Cleveland, mas que cer­tamente procuraria o irmão caso lá fosse, a conversa desviou-se para acontecimentos mais urgentes.

No momento, tudo girava em torno da capacidade da nova Força Expedicionária Britânica para deter o avanço alemão nas províncias do norte. No inverno anterior, o pequeno exército grego havia expulsado os italianos do país e o motorista raciocinava que, se os gregos podiam derrotar os italianos, os ingle­ses podiam deter os alemães. Além do mais, acrescentava, em breve a América entraria na guerra.

Morrison não estava muito certo disso. Primeiro, havia um grande oceano a atravessar e segundo, na primavera de 1941, a maioria dos americanos não via motivos para envolver-se na­quela história. Mike Morrison, é claro, não sentia a menor sim­patia por Hitler. Mas guerra era o tipo de coisa que os euro­peus vinham fazendo havia séculos. A América simplesmente nada tinha a ver com isso. Perguntou a si mesmo se os britânicos seriam capazes de deter o avanço dos alemães. Estes pos­suíam os direitos autorais sobre um tipo de luta chamado brítz-krieg, que arrasava qualquer resistência. Além do mais, sentia à sua volta um riso nervoso que parecia sugerir que desta vez os britânicos entrariam numa fria.

O motorista desviou a atenção da política e da guerra, vol-tando-se para a direção do veículo que atravessava a área con­gestionada das ruas Kifissia e Alexandra. O tráfego engarrafado, unido à idéia do exército alemão ao norte, tornou-o ainda mais zangado.

As lojas estavam apinhadas e, como em qualquer cidade cosmopolita, as pessoas caminhavam com aquele ar de quem anda sempre com pressa. Mas, sob a aparência de normalidade, sentia-se a tensão, a dúvida e o medo. Viam-se uniformes britânicos por toda parte. Os rapazes gregos haviam desaparecido. Encontravam-se no norte ou na fronteira com a Albânia. Era óbvio que as encantadoras mulheres gregas estavam recebendo seus “salvadores” britânicos, segundo a melhor das tradições. Nada era demasiado para o “Johnny” que viera lutar contra o “'Jerry”, a fim de expulsá-lo do país.

Quando o táxi dobrou para o sul ouviram o lamento dis­tante das sereias anunciando um ataque aéreo. Os Stukas bom­bardeariam o porto de Pireu, onde as forças expedicionárias es­tavam desembarcando. Os acampamentos britânicos situados nas imediações de Atenas sofriam também pesados bombardeios. Morrison julgava que os alemães recebiam informações de dentro da própria cidade e que os ingleses precisavam colo­car no ar alguns aviões se pretendessem pelo menos manter as aparências.

O táxi parou diante de uma imensa casa de pedra amarela. Petraki, 17. Morrison pagou ao motorista, agradeceu-lhe pela conversa interessante e atravessou a rua.

A pesada aldrava de cobre despertou ecos na velha man­são de Fotis Stergiou. Daí a instantes, um mordomo também velho, Tassos, conduziu-o pela residência do advogado. Batendo de leve na porta, introduziu-o no gabinete do Sr. Stergiou.

O velho, sentado numa grande escrivaninha, ergueu a cabeça e sorriu, formando rugas, ao reconhecê-lo. Era uma pes­soa de aparência singular: mechas de cabelos grisalhos dividiam-lhe a cabeça. Tinha os ombros enrolados num grande cachecol e seus óculos, de armação quadrada, equilibravam-se precaria­mente na ponta do nariz.

— Ah, o meu amigo americano. Chegou bem na hora, como de   costume   —   foi   como   saudou   Michael,   convidando-o   a sentar-se.

— Café, por favor, Tassos — ordenou em voz aguda.   E remexendo nas pilhas de papéis sobre a escrivaninha descobriu a pasta, abriu-a e folheou-a. Mike novamente surpreendeu-se reparando no magnífico anel de pérola negra que o advogado usava no enrugado dedo mínimo. — Bem — disse finalmente — parece que tudo está em ordem.

— Quanto tempo demora ainda? — perguntou Michael.

— Sempre   com pressa,   vocês   americanos.   Tem-se a im­pressão de que não gostam do nosso país.

— O tempo não é dos melhores para uma visita tranqüila e eu tenho um compromisso a primeiro de maio.

— Ah,   sim.   Vai   para   Hollywood,   escrever   um   filme. Importante?

— A única coisa que importa é o dinheiro.

— Dinheiro... O problema é que todo mundo tem pressa de tirar seu dinheiro do país, hoje em dia. Não os censuro. O banco prometeu mandar para aqui os últimos documentos, que deve assinar. Quando pretende embarcar?

—   Tenho passagem para Londres, amanhã pela manhã.

Tassos entrou silenciosamente no gabinete.

— Café. Ótimo. Vamos tomá-lo no solário, Tassos.

Os dois beberam o café e trocaram os respectivos tabacos. Morrison orgulhava-se de sua mistura, um tipo especial feito na Grundel's Pipe Shop, no distrito da Missão, em São Francisco. Mas o advogado achou-a demasiado fraca. Morrison desistiu de­licadamente após fumar meio cachimbo da mistura de Stergiou.

Entretanto, o advogado ia ministrando um rápido curso de arte bizantina baseado nas peças que adornavam sua casa. Con­forme Mike supusera, o anel de pérola negra era um tesouro da família e não saíra daquele dedo mínimo nos últimos quarenta anos.

— A morte de sua mulher deve ter sido um grande choque. O tio   gostava   muito   dela e falava   com freqüência   de   suas visitas aos Estados Unidos.

— Sim... sim, foi um grande choque.

— E as crianças, que idade têm agora?

Um sorriso franziu os lábios do pai orgulhoso, que no mesmo instante procurou a carteira e exibiu fotografias. Stergiou ajustou os óculos e meneou a cabeça:

— Que lindas crianças! Compreendo sua pressa em voltar a São Francisco. Suponho que estejam com pessoas de confiança.

— Sim, meus pais. Moramos juntos em Larkspur, pouco adiante da Golden Gate. Passaram a morar conosco depois da morte de Ellie.

O velho esvaziou no cinzeiro o cachimbo, refletiu um instante e depois perguntou:

— Sr.   Morrison,   posso   pedir-lhe   um   favor   de   caráter pessoal?

— Se estiver em minhas mãos...

— Tenho um documento de grande importância para um cliente meu. Com a situação tão confusa hoje em dia, hesito em usar o correio. Poderia entregá-lo, pessoalmente, em Londres?

— Certamente. Terei o maior prazer.

Mergulhando a mão no bolso interno da jaqueta de fumar, o velho extraiu um pequeno envelope branco. Não era um gran­de documento, pensou Morrison. Stergiou conservou-o nas mãos por um momento e depois o entregou a Mike. Trazia um en­dereço de Londres e o destinatário era Sir Thomas Whitley.

— Em geral não faria um pedido desses — desculpou-se o advogado — mas tratava-se de algo de grande importância para o meu cliente. E neste caos de hoje...

Mike sorriu, brincalhão:

— Algo suspeito, por acaso?

— Vocês,   escritores, são sempre desconfiados. Não, nada suspeito, mas um tanto fora do comum, se é que me entende. Consideraria um grande favor se tomasse precauções extras. O documento é de grande valor.

Morrison estava a ponto de fazer uma ou duas perguntas, mas decidiu calar-se. Enfiando o envelope no bolso do casaco, falou:

— Eu o defenderei com a minha própria vida.

— Faça isso, por favor — disse Stergiou, e ambos riram.

Entrando no solário, Tassos ligou o telefone numa tomada próxima ao patrão. O advogado falou rapidamente e depois des­ligou com um suspiro.

— Sinto muito,   Sr. Morrison. Estão literalmente assober­bados no banco. Somente daqui a várias horas conseguirão man­dar os documentos.

—   Espero que não haja complicações. Tenho que tomar o avião pela manhã.

— Garanto-lhe que ficarei insistindo. O banco está traba­lhando vinte e quatro horas por dia. Todo mundo quer tirar seu dinheiro da Grécia, hoje em dia. Poderia voltar... digamos, às oito horas? Isso nos dará uma boa margem de tempo.

— Certamente.

— Peço desculpas pelo inconveniente.

Stergiou conduziu Morrison pelo longo corredor ladeado de estátuas e os dois despediram-se. No instante em que a porta se fechou, Stergiou voltou rapidamente ao seu gabinete. Um homem vigoroso, com imenso bigode e impermeável inglês, estava sentado à escrivaninha. O advogado cumprimentou-o com um aceno e encheu novamente o cachimbo.

— Entregou-o? — perguntou o homem.

Stergiou pôs-se a andar nervosamente de um lado para outro, diante da escrivaninha.

— Sim, entreguei, Major Wilken.

— Ótimo.

— Não gosto dessa história — disse Stergiou.

O Major Howe-Wiiken, do Serviço Secreto Britânico, levantou-se e aproximou-se da janela, mãos às costas.

Soutar e eu estivemos sob vigilância desde que chegamos à Grécia. Aposto minha última libra. Se minhas suposições esti­verem corretas, Konrad Heilser se encontra neste mesmo ins­tante escondido em Atenas, dirigindo as operações.   Se for mes­mo ele, Sr. Stergiou, nossas vidas estão por um fio.

— Então, por que não entregou a lista aos canais militares?

— Lamento informar que a situação no quartel-general é de total confusão. Não creio que os militares conseguissem ti­rar do país nem o rei.

— Em outras palavras, Major Wilken, estamos fervendo em nosso próprio óleo.

— Precisamente.   Os alemães têm um modo diabólico de reunir amigos diante de seus exércitos.

Stergiou resmungou algo, dando um soco na mesa. Apro­ximando-se, Wilken procurou acalmá-lo:

— Vamos, não temos certeza absoluta de estarmos sendo vigiados. Trata-se apenas de uma precaução extra. Soutar está agora vendo se arranja um avião para esta noite. Se tudo correr bem, estaremos em Londres amanhã.

— E se nem tudo correr bem?

— Então, nosso amigo americano, Sr. Morrison, entregará a lista para nós.   Apenas uma precaução, entende? Felizmente ele está acima de qualquer suspeita.

— Não gosto de brincar com aquela lista, major.   Se os alemães suspeitarem, por um só instante, ele não terá a menor chance... E sabemos as conseqüências, se os nomes caírem em suas mãos.

— Meu caro amigo Stergiou — suspirou o major — jogar é um dos riscos ocupacionais de minha profissão.

 

Havia duas contas a ajustar, dois ferimentos não cicatrizados. Konrad Heilser inclinou-se para trás, na poltrona quebrada, fechou os olhos e pôs-se a cantarolar no ritmo acelerado da fuga de Bach, que a vitrola antiga tocava. Num gesto maquinal alisou com o dedo o bigode fino.

Howe-Wilken e seu companheiro escocês, Soutar, por duas vezes o tinham enganado. Oito meses atrás encontrara-os pela primeira vez na Noruega. Após a invasão alemã do país, os dois agentes britânicos haviam chegado e fugido de submarino, deixando organizada uma rede de espionagem. Meia dúzia de vezes os surpreendera na Noruega e outras tantas lhe haviam escapado. Só um maldito acaso de última hora impedira Konrad Heilser de bloquear-lhes a saída do país.

A seguir, encontrara-os em fins do verão anterior, em Paris. E novamente a dupla Howe-Wilken e Soutar deixara-o num beco sem saída, enquanto escapava tranqüilamente.

O alemão praguejou baixinho à idéia de ter sido transferido de Paris para aquele local miserável. Mas desta vez o tolo não seria ele. Desta vez não escapariam.

Fora uma sorte que Zervos, funcionário do governo, des­cobrisse o plano de Stergiou e entrasse em contato com os alemães.

Heilser introduzira-se na Grécia antes da invasão alemã, e, com a ajuda de Zervos, pusera o bando de ratos a funcionar. Traidores, oportunistas, covardes, todos ansiosos para se passarem para os alemães quando chegasse o momento. Heilser e seus amigos gregos haviam feito um bom trabalho. Os ingleses estavam confusos, sem saber em quem confiar. Heilser e os colaboradores haviam aumentado a confusão. A confusão que precede a derrota. Breve haveria uma fuga em massa, gerada pelo pânico.

O disco terminou. Konrad Heilser levantou-se, desligou a vitrola e acendeu um cigarro, o último do maço. Aproximando-se do espelho acima da cômoda mergulhou em auto-admiração, en­quanto passava uma escova pelos cabelos negros e abundantes, já bem penteados.

Não era estranho que se sentisse realizado. Não deixara pedra sobre pedra. Graças à sua extrema meticulosidade conhecia passo a passo todos os planos dos britânicos. E daquele esconderijo num sótão tecera uma rede para cercá-los.

Fora uma sorte que seus dois velhos amigos Howe-Wilken e Soutar figurassem na lista de Stergiou. Simplificava tudo. Um prazer inesperado.

Heilser virou o disco, consultou o relógio, caminhou até à janela de guilhotina e afastou a cortina esfarrapada. Lá embaixo, via-se uma ruela suja, calçada de pedras. Nem valia a pena conquistar a Grécia. Raça suja e decadente, vivendo há dois mil anos de glórias passadas. Novamente sentiu-se furioso por ter saído de Paris. Se aqueles idiotas italianos, comedores de espaguete, não tivessem sido expulsos da Grécia e fugido para a Albânia, ele ainda estaria na França.

Mas até a Grécia tinha as suas compensações. Tão logo as tropas alemãs libertassem Atenas haveria um apartamento re­servado para ele no Grande Bretagne. Canaris, sim, e até von Ribbentrop saberiam do esplêndido trabalho de Heilser. E com a entrega da lista Stergiou viria uma promoção. Talvez a recom­pensa fosse a chefia de todo o Serviço Secreto na Grécia. Ha­veria ainda, naturalmente, as mulheres gregas. Esta última idéia o fez estremecer de impaciência e excitação.

Lá embaixo, na ruela, Heilser avistou a silhueta do gordo e nojento grego, Zervos, procurando caminho entre as pedras cobertas de limo. Afastando moleques esfarrapados, ele entrou na casa.

Heilser ouviu-lhe os passos cada vez mais lentos, enquanto subia penosamente até o sótão, no quinto andar. A respiração ofegante de Zervos era audível através da porta frágil. O grego bateu.

Mal entrou, atirou-se na poltrona, lutando para recuperar o fôlego, enxugando o rosto coberto de suor. Heilser aproxi­mou-se, indagando em tom autoritário:

— Então?

— Os três estão cercados. Howe-Wilken saiu de carro na direção da casa de Stergiou.

— E o escocês? Soutar?

— Está arranjando um avião para partir do aeroporto de Tatoi à meia-noite.

Heilser fechou os olhos e levou o indicador à testa. Pre­cisava ocultar ao porco grego a ansiedade que o dominava. Não podia revelar fraqueza diante de um inferior.

— Os nomes?

— Howe-Wilken vai pegar a lista agora, sem dúvida. Ster­giou não entrou em contato com mais ninguém. Tassos nos assegurou.

—- Bem... bem. — A agitação intensificou-se, o golpe estava próximo. — E a situação militar?

— As últimas informações indicam que os britânicos não formarão uma frente diante de Atenas.

— Então daremos o golpe! exclamou, pondo-se a caminhar rapidamente de um lado para outro. Liquide Wilken e Soutar.   Quero Stergiou vivo. — E voltando-se para Zervos:

— Esperei oito longos meses por este momento... Vigie aque­les dois, são muito espertos. Um só engano e mandarei cortar o seu pescoço.

Zervos sabia muito bem que não se tratava de palavras vazias. Acenando com a cabeça, fez um esforço para levantar-se, continuando a enxugar o rosto.

— Uma coisa me preocupa... Um americano visitou Ster­giou três vezes esta semana.

Heilser corou e franzindo o cenho aprofundou as rugas bem marcadas nos cantos dos olhos:

— Um americano...   Que americano?

— Fizemos a investigação de rotina — respondeu Zervos. — O homem é escritor, um pequeno escritor sem importância. Chama-se Michael Morrison. Seu visto está em ordem. Veio à Grécia para resolver o caso de um legado. O banco o confirma. Hás uns nove mil dólares em seu nome. Aparentemente Stergiou está encarregado das necessárias transações legais para a trans­ferência do dinheiro.

O pulsar no peito de Heilser abrandou:

— Você anda meio nervoso, hein, Zervos?

— Talvez sim... talvez não. Não temos motivos para sus­peitar do homem.

Heilser aproximou-se da janela e olhou para a rua. O nevoeiro começava a formar-se.

— Continue.

— Não há mais nada a dizer. Vai tomar um avião para Londres amanhã. Está hospedado num hotel de Kifissia.

— Sim... sim — murmurou Heilser consigo mesmo. — Seria bem de Wilken e Soutar passar a lista adiante. Um neutro aci­ma de qualquer suspeita... O avião em Tatoi é um disfarce...

O disco terminou.

Heilser desligou a vitrola, pegou o disco e pôs-se a brincar com ele. Em seguida recolocou-o cuidadosamente sobre a cô­moda e ficou imóvel. O cigarro que fumava queimou-se até que sentiu-lhe o calor nos dedos. Abrindo-os, observou a guimba cair no chão e com o calcanhar reduziu-a a pó.

 

Morrison estava completamente alheio ao homem louro, alto e magro, usando farda da Nova Zelândia, que se pôs a segui-lo no instante em que deixou a casa do advogado. Não percebeu também a meia dúzia de olhos focalizados no prédio, de pontos de observação próximos. Atravessando o elegante bair­ro de Kolanaki, dirigiu-se à Praça da Concórdia, erguendo a gola do sobretudo para proteger-se do nevoeiro.

A Praça da Concórdia apresentava o movimento costumeiro do meio da tarde — gente que saía ou se dirigia ao metrô, ou instalava-se nos inúmeros cafés, a fim de discutir os acontecimen­tos. Os quiosques de flores eram uma explosão de cor que aju­dava a compensar o dia sombrio.

Parando para orientar-se, caiu imediatamente nas garras de um engraxate de calçada, raça que tem a faculdade de farejar um americano a quilômetros de distância. O homem alto e louro, de farda neozelandesa, prosseguiu a vigilância de uma mesa de café das proximidades.

A tensão subterrânea tornava-se cada vez mais evidente, pensou Morrison. Embora ouvisse idioma estrangeiro, conseguia deduzir, por trechos de conversação, que os britânicos preten­diam retirar-se de Atenas. As pessoas caminhavam como que em transe, a fisionomia traindo um misto de medo, confusão e descrença.

Uma onda de inquietação acometeu-o. Contou as longas horas que ainda o separavam do vôo para Londres. O engraxate deu o retoque final com um par de escovas imensas e inclinou-se para trás, a fim de admirar sua obra. Sapatos americanos sem­pre ficavam bem engraxados. E recebeu uma bela gorjeta. Durante algum tempo Mike ficou imóvel, olhando em todas as di­reções, estudando a melhor maneira de passar a tarde. O Mu­seu Nacional estava fechado. Seus tesouros haviam sido reco­lhidos. Olhando para os confins da Rua Atena avistou a Acrópole. Não, não voltaria ali. Era uma tolice não querer visitar a cidade, mas suas poucas excursões o haviam deixado depri­mido. Ellie não estava a seu lado. Jamais veria tudo aquilo. Por um instante considerou a idéia do Bar Americano, mas imaginou uma tarde passada a ouvir a monótona conversa de algum bombeiro em férias. Sentia fome, mas repeliu a idéia de tentar mais um restaurante estranho. Na véspera descobrira um em Cavouri, a vinte quilômetros de Atenas, dando para uma pitoresca baía, mas sentia ainda na boca o gosto do óleo de oliva.

Pôs-se a caminhar, mãos nos bolsos, pela Rua Aeolus, onde o aglomerado de barracas de comestíveis nas calçadas emitia um cheiro enjoativo. Compradores e donos das barracas discutiam, mas pareciam desanimados naquele dia. Tinham a mente vol­tada para o amanhã. Admirou vitrines, lembrando-se das mil vezes em que havia feito o mesmo com Ellie, nos tempos em que isso constituía o único passatempo a seu alcance. Comprou dois pares de chinelinhos típicos, com pompons vermelho-brilhante para Jay e Lynn e prosseguiu na caminhada.

No cruzamento seguinte encontrou tropas britânicas vindas do campo de Kokinia e seus olhos surpreenderam um cartaz que seria capaz de ler em qualquer língua.

O salão estava quase vazio e o estoque nas últimas. A escolha limitava-se a dois tipos de krasi. Colocou-se na extremidade do bar e, após o primeiro gole, sentiu-se grato porque sua longa permanência como escritor sem público não lhe propor­cionara a oportunidade de cultivar o gosto por bebidas finas. O homem alto e louro, em uniforme neozelandês, entrou e sen­tou-se junto à porta.

Meia garrafa mais tarde, grande parte da tensão havia evaporado. À medida que o bar se enchia de soldados fez uma honrosa retirada para uma das mesas, levando a garrafa, e ficou observando enquanto bebia.

Os soldados da Força Expedicionária Britânica estavam à beira do colapso moral. Morrison ouviu queixas amargas rela­tiva aos bombardeios dos acampamentos e à falta de unidades de combate na força.   Os coloniais, na gíria dos soldados, tinham uma ou duas palavras a dizer sobre o apoio que estavam recebendo.

A cerca de três quartos da garrafa de krasi, os ruídos do ambiente diminuíram. Afastando a lembrança dos filhos, de quem sentia saudade, passou a adivinhar o que conteria o envelope e em que negócio escuso o Sr. Stergiou estaria envolvido. Do­minando a tentação de abri-lo para uma rápida olhada, preferiu tecer meia dúzia de diferentes histórias acerca do seu conteúdo. Mas logo desistiu da tentativa de escrever uma novela de mistério.

— Permite que eu me sente?

Mike levantou a cabeça e olhou direto para a fisionomia do homem alto e louro, com uniforme neozelandês. Relanceando para o bar, rodeado por fila tríplice, acenou afirmativamente.

— Bastante cheio, por aqui... Meu nome é Mosley, Jack Mosley.   Primeira Artilharia da Nova Zelândia. — E o cabo principiou a abrir sua garrafa.

— Melhor   terminarmos   primeiro   esta   —   sugeriu   Mike, servindo-o.

Mosley tirou um cachimbo do bolso. Fumantes de cachimbo têm um elo em comum.

— Experimente um pouco da minha mistura — disse Mike, passando-lhe a bolsa de fumo.   Mosley carregou o cachimbo, acendeu-o, tragou e aprovou.

— É americano, não é?

Mike hesitou. A resposta em geral conduzia a uma discussão.

— Sim, sou americano.

— Ótimo. Gosto de americanos. Que diabo está fazendo na Grécia, numa época dessas?

Mike principiou a falar livremente tão logo iniciaram a garrafa de krasi de Mosley. À medida que esvaziavam uma gar­rafa e uma nova surgia, foi contando toda a sua vida, e inclusive exibindo as fotos de Jay e Lynn. Mosley retribuiu o cumprimento mostrando também fotografias de seus três filhos. Mike passou a achar o companheiro de bebida simpático e inteligente e quando o vinho principiou de fato a produzir efeito suas palavras transformaram-se em inesgotável catadupa.

O salão estava cheio de fumaça e cheirava a uma forte mistura turca e aos sóbrios tabacos ingleses. Cantores improvisavam coros, esquecendo por um instante seus problemas. Prostitutas entraram em cena e alguns começaram a sair aos pares.

— Qual é a sua profissão, Morrison?

Era a pergunta temida. Quando alguém encontra um escritor surge logo um ar de expectativa, como se houvesse esbarrado com Hemingway ou Faulkner. E em seguida vem o embaraço ao descobrir que jamais ouviu falar no camarada.

Morrison... claro, desculpe disse Mosley. Gostei muito de Regressa o Caçador, Esplêndido livro.

— Verdade? Bem, tome outro copo de vinho, amigo.

— Diga, Morrison: sua visão da vida é assim tão amarga como o livro indica?

Mike estava acostumado a ouvir isso. Comprando uma obra, o leitor automaticamente obtém licença para criticar. Não que ele se importasse muito. Eram os que pediam emprestado e depois criticavam que o deixavam irritado. Contudo, surpreendeu-se ao verificar que os comentários de Mosley eram extre­mamente agudos e objetivos. O vinho era bom, o barulho ensur­decedor e ele pediu nova garrafa.

Mike falou sem parar, da literatura à guerra, de São Fran­cisco à Grécia, e daí à música. Na verdade, sobre pouca coisa deixou de falar. Os assuntos começaram a emendar-se uns aos outros e depois a embaralhar-se. Mike se vingou dos quatro dias de pesado silêncio que passara na Grécia. Estava bastante entusiasmado e tonto para reparar que seu companheiro quase não bebia.

Então, como em geral acontece nesse tipo de conversa, pas­saram às mulheres e ao sexo.

— Mosley, tenho a impressão de já conhecê-lo o bastante para fazer uma pergunta muito séria...   O caso é o seguinte: você é um desses camaradas totalmente fiéis à sua mulher?

— Só de vez em quando — respondeu Mosley.

— Bem, esta ocasião não é favorável. Vou dizer-lhe o que devemos fazer agora... Ir até a Praça da Constituição, a um daqueles estabelecimentos elegantes,   e arranjar uma dupla de garotas...

— Ótima idéia.

— Não existe mais gente como você, Mosley... Não, se­nhor ... Você é o máximo...

Mike levantou-se com esforço e imediatamente tornou a cair na cadeira, emitindo um longo assobio.

— Acho que estou meio alto... — e assobiou de novo — Alto mesmo.

Com a ajuda de Mosley conseguiu chegar à vertical na segunda tentativa.   O homem de farda neozelandesa atravessou com ele a multidão e os dois chegaram à calçada, onde o ar da noite quase baqueou Mike completamente.

— Ei, espere aí, espere aí...   Olhe meu relógio... Que é que ele diz?

— Oito e meia.

— Diabo...   esqueci...   Tenho um   encontro   marcado... Olhe, vou lhe dizer uma coisa... Vá até o Kifff... o Kifff... o diabo do Kifffissssia Hotel e espere no meu quarto... Tenho um encontro... O hotel fica junto à montanha, para aquele lado... Assim que eu voltar, você e eu vamos nos divertir, entende?

Mosley colocou Morrison num táxi e acenou com a mão quando o americano pôs a cabeça pela janela, gritando:

Kiffisssia...   naquela direção...   Não se encontra mais gente como você...

Quando o táxi virou na esquina, um carro fez uma curva em U, parando junto à calçada, onde se encontrava Mosley. Este abriu a porta e entrou.

— Vamos segui-lo? — perguntou o motorista.

— Não, quero falar com Zervos.

— E o americano?

Mosley sorriu e coçou as costas.

— Esqueça esse tolo.   Se ele for agente britânico eu sou Winston Churchill.

 

Mike encontrava-se diante da mansão de pedra amarela, Petraki, 17.

A rua estava escura e deserta. Oscilando, fez uma tentativa inútil para acender o cachimbo. Resmungando consigo mesmo, atravessou a rua, conseguindo chegar ao meio-fio oposto. Trôpego, subiu os degraus e estendeu a mão para a grande aldrava de cobre, que atingiu a placa, escancarando a porta.

Apoiando-se no batente, procurou equilibrar-se, à espera de Tassos. Tornou a bater na aldrava, esperou, esperou. Nin­guém apareceu.

— Os dois velhos são meio surdos, com certeza...

Empurrando a porta, mergulhou no vestíbulo às escuras. Apalpando os bolsos descobriu fósforos, acendeu um e olhou ao redor. A chama queimou-lhe os dedos e ele deixou-o cair com um palavrão. Acendendo outro, encontrou o interruptor.

O vestíbulo iluminou-se. Era comprido, sombrio, ladeado de estátuas de mármore.

— Stergiou! Acorde! — Sua voz ressoou sinistramente pela casa.

Tropeçando, adiantou-se pelo vestíbulo e tornou a cha­mar. O local parecia estranho e ele se sentia completamente embriagado.

— Stergiou! Apareça, apareça, esteja onde estiver!

Tropeçou numa estátua, que oscilou no pedestal. Mike ro­deou-a com os braços, para impedi-la de cair, inclinou-se e pediu desculpas.

— Stergiou!

Deteve-se diante da porta do gabinete do velho.

— Provavelmente adormeceu na escrivaninha... provavel­mente ... provavelmente está...

Inclinando-se para a porta, mergulhou no gabinete. com um gemido, o batente fechou-se nas suas costas. Às apalpadelas procurou o interruptor, esbarrou numa cadeira e tombou no chão junto com ela. Incapaz de levantar-se, preso de completa tonteira, deixou-se ficar no assoalho.

Em seguida, conseguiu ficar de joelhos e pôs-se a engati­nhar. A viagem terminou quando bateu com a cabeça na escri­vaninha. Apoiando-se no tampo do móvel, levantou-se com um gemido e, às apalpadelas, procurou a lâmpada da escrivaninha.

A luz revelou o gabinete em tons amarelados e sombras profundas. Apoiando-se no móvel, sacudiu a cabeça para livrar-se da tonteira alcoólica. Seu olhar penetrou nas sombras e per­correu a peça. Estava em completa desordem!

Um ruído.

Estendeu a mão para apagar a luz, mas imobilizou-se.

No chão, os óculos de Stergiou, estilhaçados, e à sua volta o tapete empapado de sangue.

— Morrison — murmurou uma voz, vinda do escuro.

O sangue fugiu dos lábios de Mike, sacudido por uma onda de medo. Sentiu a garganta seca, os músculos tensos.

— Morrison — repetiu-se o murmúrio.

A custo Mike descerrou os lábios e conseguiu articular; voz incerta:

— Quem está aí?

— Aqui...   junto à porta — disse a voz.

— Quem é você? Onde está Stergiou?

— Stergiou está morto.

A respiração de Morrison transformou-se em arquejos de pavor. Sacudiu novamente a cabeça. Era um pesadelo! Um pesadelo como os que costumava ter quando Ellie morrera. Vol­tou lentamente a cabeça, esforçando-se por enxergar... Sim, havia alguém ali... À luz amarelada viu um rosto de homem olhando fixo para ele.

— Não... não... não... não... Deixe-me em paz... dei­xe-me em paz...   Vou... vou sair daqui... —- E inclinou-se para a porta, cego de pavor.

— Morrison! Espere! Há uma arma apontada para você!

A ordem imobilizou-o.

Tinha os olhos arregalados de terror, o rosto molhado de suor. Olhou para o homem. Estava sentado numa cadeira. Fios de sangue escorriam-lhe dos cantos da boca e empapavam seu grande bigode.

— Que quer de mim? — gemeu Mike. — Que fiz eu?

— O envelope... o envelope... precisa entregá-lo... Um avião... sai do aeroporto de Tatoi... meia-noite... leve mi­nhas credenciais...

Mike apalpou os bolsos, encontrando o envelope.

— Tome esta maldita coisa... tome... Sou cidadão ameri­cano ... Não tem o direito de envolver-me nesta história... — O homem gemeu, rolou os olhos e o selo da morte estampou-se em seu rosto. O murmúrio tornou-se ainda mais tênue. — Não tem escolha, Morrison. Eles o pegarão... estão seguindo você... Não tente ir à Embaixada Americana... Está cercada... Eles... eles têm amigos... em toda parte... Você não tem escolha, Morrison.

A mão que empunhava a pistola caiu molemente e a arma estatelou-se no chão. Mike agarrou o homem pela lapela.

— Quem são eles? Quem são eles?

A cabeça rolou para trás, os lábios abriram-se num esgar, mas não articularam palavra. Inclinando-se, Mike apanhou a pistola e colocou no bolso as credenciais.

O homem gemeu. Pestanejando por causa do suor que lhe invadira os olhos, Mike recuou em direção à porta e saiu para o vestíbulo.

 

Correndo, percorreu o vestíbulo, transpôs o limiar, mas deteve-se bruscamente, olhando desesperado em todas as direções.

A Rua Petraki continuava silenciosa como um necrotério. O chuvisco recobrira a calçada com uma camada brilhante, onde se refletiam as luzes.

Tão rápido quanto lhe permitiam as pernas trêmulas, ca­minhou em direção à Avenida Vissilissis Sofias. Aquela via de­veria estar cheia de gente, precisava chegar rápido até lá. O silêncio da noite era quebrado apenas pelo ruído de seus passos.

Deteve-se repentinamente.

Da retaguarda veio o ruído de um motor sendo ligado... depois acelerando lentamente, e o chiar de pneus no chão mo­lhado. Morrison mergulhou na escuridão, comprimindo-se con­tra um muro. Um carro negro, de faróis acesos, aproximava-se. Cerrou os dentes para abafar o ruído da respiração. Passou-se um instante. O carro parou na esquina, depois entrou na Rua Ravine e o som do motor foi desaparecendo.

Mike pôs-se a correr a toda velocidade pela rua escorre­gadia, tropeçou no meio-fio, levantou-se e tornou a correr, com a impressão de que o coração ia saltar-lhe do peito. Avistou a avenida pouco adiante e parou, aterrorizado.

— Oh, meu Deus! Não!

A Avenida Vassilissis Sofias estava completamente deserta. Em toda a sua extensão não se avistava um só carro, nem um sinal de vida. As casas estavam às escuras. Não havia luz algu­ma, exceto a dos postos de iluminação.

— Quero acordar! Quero acordar! — gritou consigo mesmo, continuando a correr pela rua deserta...   Dois quarteirões... três...   quatro...   até que começou a ver tudo confuso.

Parou. Encontrava-se diante do quadrado de mármore bran­co do Museu Bizantino, incapaz de dar mais um passo. Um agudo assobio soou-lhe nos ouvidos.

Lá adiante — uma luz! Morrison continuou aos tropeções pela avenida, naquela direção. Espreitando pela janela do bar, viu que o salão estava deserto, à exceção do barman.

Arquejando, apoiou-se no balcão. O homem fitou-o de olhos arregalados.   Mike conseguiu murmurar:

— Inglês. Fala englezos?

O barman pôs-se a falar em grego.

Englezos... telefone... ring... ring...

Mergulhou a mão no bolso, tirou uma nota e colocou-a no balcão. Rodeando-o, chegou ao telefone. O barman olhou para o dinheiro, alerta e confuso.

— Telefonista...   telefonista...   alô...   Está me compreen­dendo? ... Englezos? Graças a Deus... Embaixada Americana... Não, não... Embaixada Americana... isso mesmo, isso mesmo. Depressa, por favor...

Mike fechou os olhos, murmurando baixinho enquanto ouvia uma chamada, depois duas, três quatro.

— Respondam, maldição, respondam! — Oito — nove — dez — onze...

Colocando o fone no gancho, apoiou-se no balcão, tentando raciocinar. Um soluço escapou-lhe dos lábios e lágrimas rola­ram-lhe pelo rosto...

— Telefonista — disse baixinho. — Telefonista... Englezos. A telefonista não compreendeu, mas ele continuou agarrado ao aparelho.

— Telefonista...   — murmurou. — Englezos, sim,   engle­zos...   Quero   Associated   Press...   Associated Press.   Notícias americanas. Sim, isso mesmo...

Ring... ring.    

— A. P., Watson falando.

— Senhor... senhor... sou americano... estou em apuros.

— Então, é melhor telefonar para a embaixada.

— Não, espere! Não desligue. Eles não respondem       Pre­cisa me ajudar.

— Fale.

— Estão me perseguindo...   querem me matar.

— Quem? Que brincadeira é essa?

— Não, não... Estou dizendo que querem me matar

— Ora, Fred, pare de disfarçar a voz... estamos ocupados agora.

— Pelo amor de Deus! Escute!

— Ei, está falando sério?

— Sim, sim...   sério.

— Você parece estar embriagado.

— Estou   embriagado...   não posso   fazer   nada...   Estão atrás de mim... Precisa me ajudar.

— Quem está atrás de você?

— Não sei.

Desligaram.   Mike bateu uma dúzia de vezes no gancho.

— Alo...   alô...   alô...

Imobilizou-se por detrás do bar quando viu o automóvel negro passar lentamente diante do estabelecimento.

Mais tarde, na rua, apertou a cabeça com as mãos, rezando para clarear as idéias, rezando por um sinal de vida humana.

No quarteirão seguinte chegou ao Parque Nacional. As árvo­res, arbustos e alamedas escuras proporcionaram-lhe abrigo du­rante algum tempo. Dos ramos pingavam gotas de umidade ao sopro da aragem. Qualquer ruído o sobressaltava. Tinha o cére­bro em tumulto.

Caminhou a esmo, em círculos, afastando-se dos caminhos, conservando-se junto das altas cercas de trepadeiras. Uma gran­de construção esboçou-se à sua frente. O edifício do Parlamento, pensou... A Praça da Constituição estava perto.

— Deve haver alguém... deve haver alguém...

A Avenida Amália abriu-se diante dele, mostrando a pra­ça logo adiante. A praça estava vazia, a rua, deserta. Ajoelhou-se junto à cerca por alguns instantes. Um táxi parou diante do Túmulo do Soldado Desconhecido.

Morrison avançou correndo, abriu a porta e atirou-se no banco traseiro.

— Para onde foram todos?

— Os ingleses estão se retirando de Atenas. Todo mundo fica em casa... Para onde quer ir?

— Ir? Leve-me...   leve-me...   Siga para a frente.

Era horrivelmente estranho. Tudo era horrivelmente estra­nho. Se conseguisse raciocinar com clareza... se pudesse pen­sar... Sua mão apalpou algo no bolso. Olhou para a creden­cial: Major Theodore Howe-Wilken: Serviço de Espionagem. O pequeno envelope branco estava na sua mão...

— Leve-me... leve-me ao Aeroporto de Tatoi.

 

O táxi corria pelas ruas molhadas, dando súbitas freadas e fazendo curvas em duas rodas, com total descaso pela vida humana.

As ondas de medo lentamente foram se acalmando em Mor­rison, porém os acontecimentos das últimas horas permaneciam tão confusos como os edifícios pelos quais passava a toda velo­cidade. Não conseguia ainda raciocinar claramente. Sabia que não podia fechar os olhos, senão desmaiaria. Agarrava-se a uma idéia enquanto lutava contra as paredes da inconsciência que queriam desabar sobre ele. Precisava entrar naquele avião em Tatoi e distanciar-se o mais possível de Atenas e da Grécia. So­mente o instinto de autodefesa conseguia conter os efeitos de três garrafas de krasi e do rápido desencadear de acontecimentos.

Às dez e quarenta e cinco, o táxi parou, com um ranger de freios, diante do arame farpado que rodeava o aeroporto.

— Apague esses faróis — ordenou uma sentinela.

Mike saiu às tontas do carro, pagou ao motorista e cami­nhou incerto até a sentinela.

— Há um avião a minha espera... Major... Major Howe-Wilken.

O guarda estudou a figura oscilante com bastante apreen­são. Morrison tinha, na verdade, péssima aparência

— Posso ver o seu passe?

— Pass...   Claro, claro.

O soldado tomou o cartão, entrou na guarita da guarda e iluminou-o com uma lanterna de bolso. Voltando a Mike   fez uma rígida continência britânica. O escritor soltou um suspiro de alívio.

Entrando novamente na guarita o guarda falou ao telefone.

— Soldado Edmonds, estação três. O Major Howe-Wilken chegou. Sim, senhor. Muito bem, senhor. E desligou.

Parte do nevoeiro se desfizera. Algumas estrelas espiavam lá do alto e uma lua em quarto crescente brincava de esconder com as nuvens esparsas. Mike olhou pela janela. No outro lado do campo distinguiua silhueta escura de um grande transporte.

Encontrando o cachimbo, apalpou os bolsos em busca de fósforos.

— Sinto muito, senhor, mas terei que pedir-lhe para não fumar. Regulamento do blackout, o senhor sabe.

— Desculpe.

Havia muita agitação no exterior. O ar vibrava com o ruído de motores. Mike aproximou-se da porta e observou a estrada. Um grande comboio de caminhões cheios de soldados deteve-se nas proximidades.

— Que confusão é esta?

— Tropas   do Campo   de Kokinia,   senhor.   Pararam aqui para pegar o destacamento que ficou no aeroporto. Uma vergo­nha, major, isso de sairmos de Atenas. Daríamos uma surra nos alemães se nos deixassem. Desculpe, Major Wilken, mas per­guntaram pelo senhor.

Mike deu meia-volta, afastando-se da porta.

— Um camarada com uniforme neozelandês — um cabo — não deixou o nome. Estava com um senhor gordo, grego, creio. Perguntou se já havia passado por aqui.

Mike tornou a sentir a fria garra do medo.

— E   um   outro   camarada   passou   há   instantes.   Senhor Soutar.

— Soutar?

— Sim, senhor. Pequenino e magro, com óculos de tarta­ruga. Escocês, sem dúvida alguma.

Mike apertou com força a pistola que trazia no bolso e olhou, através da escuridão, em direção ao transporte. Já po­diam ser ouvidos os primeiros ruídos do motor começando a esquentar.

Vou entrar nele... vou entrar nele... vou entrar nele...

— Por que diabo esse carro não aparece?

— Sinto muito, major, mas já deve estar chegando.

O soldado Edmonds, intrigado, observava a respeitosa dis­tância o andar nervoso e oscilante de Mike e ouviu quando sua respiração transformou-se numa série de grunhidos...   O major tinha os olhos embaciados. Gente estranha, esses cama­radas da Espionagem, pensou o soldado.

Um automóvel passou correndo pela pista leste do campo e parou a uns cem metros quando um coro de sirenes antiaéreas ergueu-se por todo o aeródromo.

Ouviu-se o som distante de motores que se aproximavam, invisíveis, lá do alto.

Os   ocupantes do carro dispersaram-se na pista.

Os motores transformaram-se num trovejar cada vez mais forte.

O pipocar das baterias antiaéreas rasgou o ar e nuvens de fumaça branca explodiram no céu, após um xadrez de luzes finas como um lápis.

Os motores cessaram de repente.

E pela primeira vez Mike Morrison ouviu aquele grito me­donho — o grito dos Stukas.

Às sirenes e assobios de terra os Stukas respondiam com sua sinfonia cacofônica.

Homens fugiram do comboio parado na estrada, por entre ordens desesperadas e inúteis.

O grito dos aviões tornou-se cada vez mais agudo quando os aparelhos mergulharam quais abutres sobre a presa.

A terra estremeceu por entre relâmpagos de cegar e ex­plosões de estourar os tímpanos.

Mike atirou-se ao chão, cobrindo os ouvidos. O grito no­vamente percorreu o campo. Suas mãos tentavam penetrar no assoalho de madeira. A guarita estremeceu e Mike viu a sentinela   ser atirada contra a parede   e   depois rolar pelo   chão inconsciente.

Arrastando-se até a porta, abriu-a. O aeródromo estava co­berto de chamas que pareciam subir até o firmamento. À sua luz avistou o avião que se encontrava na pista leste incendiar-se completamente.

Um plano desesperado ocorreu-lhe. Engatinhou até onde se encontrava o corpo da sentinela. Novamente o grito! Uma explosão atirou-o contra a parede. Não me pegarão! Não me pegarão!

E arrancou o uniforme do guarda sob o trovejar cada vez mais ensurdecedor.

Apalpou os bolsos de sua roupa. Envelope — carteira — cachimbos — passaporte — a credencial — a pistola. . .

E transpôs, oscilante, o limiar.

— Morrison!   Morrison!   — gritou uma voz,   atravessando aquele inferno. — Morrison! Morrison! Morrison! — A sombra tomou a forma de um homem.

Mike tropeçou, arrastou-se e saltou em direção à fila de caminhões que se encontravam na estrada.

De repente, tudo ficou silencioso.

Os aviões desapareceram e a atmosfera pareceu imobi­lizar-se.

As luzes do campo piscaram e apagaram-se de todo, dei­xando apenas o brilho das chamas.

Mike ajoelhou-se ao lado de um caminhão, agarrando o estômago, enquanto rolavam no chão.

— Oh, Jesus...   estou doente... estou doente...

O mundo rodopiava e não queria parar. A Embaixada Americana — eles vão pegar você — ruas vazias e molhadas — ora, Fred, estamos ocupados — não é hora para brincadeiras — eles vão pegar você — eles vão pegar você — sangue escor­ria do canto da boca, empapando o bigode — os óculos esti­lhaçados — o vestíbulo comprido, com estátuas de mármore branco — Hotel Kifissia, naquela direção...

Depois tudo cessou.

— Malditos hunos!

— Ei,   Tom.   Venha   cá. Acho   que   este   camarada   está ferido.

— Pelo cheiro, garanto que andou bebendo vinho grego em excesso.

— Vamos, rapazes, subam. Entrem nos caminhões.

— Ajude aqui, sargento. Ele desmaiou.

O corpo de Mike foi içado para um veículo e a porta traseira fechou-se.

O comboio recomeçou sua ruidosa marcha.

 

Morrison olhou pela janela. Do outro lado do vidro, rostos olhavam para ele — centenas de rostos com olhos espantados, máscaras de terror. Rostos de gregos.

A janela começou a mover-se e as fisionomias tornaram-se difusas.

Mike retesou-se no seu lugar e depois deslizou para trás. Sua cabeça pulsava dolorosamente. Tinha um sabor pastoso, de­sagradável, na boca, o estômago enjoado. Gemeu e esfregou a testa.

À sua frente havia um homem deitado. Estava fardado, tinha o rosto envolto em ataduras e gemia.

Mike levantou-se e espreguiçou-se. Encontrava-se num compartimento de trem. Olhando corredor abaixo, viu que outros compartimentos estavam também cheios de soldados feridos.

Deixando-se novamente cair no seu lugar, apoiou a cabeça nas mãos. Só então começou a recordar. Uma voz na escuri­dão, dizendo: “Você não tem escolha, Morrison...”

Examinou aflito os bolsos e descobriu o cartão que dizia: Major Theodore Howe-Wilken: Serviço Secreto... E olhou para o pequeno envelope branco.

O trem atravessava uma plantação de oliveiras. O soldado à sua frente tornou a gemer, contorcendo-se de dor.

Mike ponderou, confuso, durante algum tempo. Fragmentos de lembranças vieram-lhe à mente, permitindo-lhe encaixar al­gumas peças do quebra-cabeça. Vários acontecimentos pareciam-lhe obscuros; outros nem sequer conseguia recordar. Olhou no­vamente ao redor. O trem — a farda — o envelope — a cre­dencial. Não era um pesadelo. Tudo realmente acontecera

Encontrando o consolo do cachimbo procurou raciocinar a respeito da situação. Stergiou, o advogado, estava, evidente­mente, envolvido em algo importante. Esse “algo” era o conteú­do do envelope branco. Um inimigo queria o envelope... O Serviço Secreto Britânico tinha algo a ver com a história, de modo que, raciocinou Mike, o inimigo eram os alemães.

Estremeceu ao recordar as terríveis horas que passara, e praguejou baixinho.

Mike Morrison não queria saber mais do que já sabia. Uma coisa era certa: daria o fora o mais rápido possível.

O terror da véspera transformou-se em raiva. Que audácia de Stergiou!

Esfregou novamente as têmporas e o martelar da cabeça diminuiu. Acabou rindo sozinho: “A coisa mais absurda. Ninguém me acreditará quando eu contar no Clube da Imprensa — a coisa mais absurda.”

O trem parou.

Lá fora ouvia-se o ruído de picaretas.

A porta do compartimento abriu-se e um homem ostentando a braçadeira de enfermeiro da Cruz Vermelha entrou.

Após examinar o soldado ferido que estava no banco fron­teiro   a Mike, abriu a maleta e aplicou-lhe uma injeção de morfina.

— Calma, rapaz, o médico estará aqui num instante. — E voltando-se para Mike: — Vejo que já se levantou. Como se sente?

— Meio abalado.

— Nós o examinamos quando o puseram no trem, ontem à noite, mas não descobrimos nenhum ferimento. Já que está se sentindo melhor, regresse à sua unidade. Deve estar em al­guma parte deste trem.

— Que está acontecendo lá fora?

— Chegamos a Corinto e estamos recebendo outro destaca­mento de soldados.

— Por que estão cavando?

— Sapadores. Vão destruir as pontes depois que passar o último trem. Estamos nos retirando para o sul da Grécia, para o Peloponeso.

Mike sentiu um aperto no coração. Precisava agir rápido.

— É melhor você voltar à sua unidade.

— Quem está comandando o comboio? — perguntou Mike secamente.

— Coronel Potter. Por quê?

Mike exibiu rapidamente o cartão de Howe-Wilken ao enfermeiro, dizendo:

— Descubra o coronel e diga-lhe que preciso falar imediata­mente com ele.                                              

— Sim, senhor — respondeu o enfermeiro, saindo.

— Soldado!

— Sim, major.

— Não fale com ninguém, exceto com o Coronel Potter.

— Sim, senhor.

E saiu.

Agora tudo seria muito simples, pensou Mike. Explicaria toda a história ao coronel. Tinha seus documentos e passaporte para confirmá-la. Afinal, o caso pertencia aos britânicos. Ar­ranjariam uma escolta para levá-lo de volta a Atenas, ou con­seguiriam um avião.

Passaram-se alguns instantes. Mike observava pela janela os novos soldados que entravam no trem. Pobres-diabos, pensou. Ele, pelo menos, sairia muito breve da Grécia.

A última unidade subiu finalmente para o trem. Um homem atraiu-lhe a atenção. Sem saber por que, Mike viu-se olhando fixamente para um indivíduo baixinho, com óculos de tartaruga, talvez por parecer tão deslocado na companhia de soldados. Não teria muito mais que metro e meio de altura e usava farda dema­siado grande para ele. Outra peculiaridade: não transportava o habitual equipamento de soldado. Tinha apenas uma enorme pistola no cinto. Não parecia absolutamente pertencer ao exér­cito. A curiosidade de Mike cedeu lugar à inquietação.

Ouvira algo em relação àquele homem... alguma coisa... que seria? Sim... sim. Estava na guarita do aeródromo. A sentinela mencionara algo acerca de um homem que perguntara por ele. Um homenzinho de óculos de tartaruga. Dissera tam­bém o nome, porém Mike não conseguia recordá-lo. O homenzinho entrou no trem.

Mike procurou raciocinar. Estava ainda muito assustado, era apenas isso. Não, não estava assustado. O gabinete de Ster­giou ... a voz falando na escuridão... O homem de grandes bi­godes. Howe-Wilken murmurara: “Têm amigos em toda par­te... Eles o pegarão, Morrison.”

Com um solavanco, o trem pôs-se em movimento A porta abriu-se. Mike voltou a cabeça com um sobressal­to. Era o enfermeiro.

— Major Howe-Wilken.

— Sim.

— O Coronel Potter falará com o senhor. Encontra-se no quarto vagão, terceiro compartimento.

Mike tropeçou no corredor quando o trem fez uma curva. Agarrando-se ao corrimão, atravessou o vagão, ultrapassando os compartimentos de feridos. Só tinha uma idéia: sair daquele trem, sair daquele trem!

Chegando ao final do vagão tentou abrir a porta. Estava enguiçada. Fazendo força novamente conseguiu abri-la. Uma lufada de vento recebeu-o ao sair à plataforma. Agarrando-se ao corrimão, preparou-se para saltar. O chão desaparecia sob seus pés com assustadora velocidade. Não, seria suicídio.

Olhou ao redor. Talvez, com um pouco de sorte, conse­guisse chegar ao Coronel Potter.

Passando à outra plataforma espreitou pelo vidro da por­ta.   Aquele vagão não tinha compartimento e estava atulhado de soldados. Uma sorte.

Abrindo a porta, olhou cautelosamente à volta. À medida que se adiantava lentamente, passando por cima dos rifles e mo­chilas que bloqueavam o caminho, observava rosto por rosto.

Fim do vagão.

Atravessou a plataforma, passando ao seguinte. Palestinos. A custo transpôs o corredor, chegando ao carro adjacente.

O Coronel Potter encontrava-se no seguinte. Mike aproxi­mava-se cada vez mais da libertação.

Súbito, imobilizou-se. Apoiado à porta, bloqueando o ca­minho, havia um homem. Seus olhos azuis e glaciais estavam fixos em Mike. Era alto e louro, e usava farda da Nova Ze­lândia. O homem do bar, que dizia chamar-se Jack Mosley.

Mike procurou a pistola. Havia desaparecido!

Os dois se defrontaram. Mosley deixou cair o cigarro e adiantou-se para Mike.

Este deu meia-volta, pôs-se a correr pelo vagão, atravessou a plataforma e o carro de palestinos.

E depois o seguinte — e mais o outro.

Chegando à porta enguiçada do seu vagão, apoiou contra ela o ombro e finalmente conseguiu abri-la.

A meio caminho interrompeu a fuga. A porta do seu com­partimento estava aberta e pelo reflexo no vidro distinguiu o homenzinho de óculos de tartaruga.

— Você disse que ele estava aqui!

— Sim, senhor — Mike ouviu o enfermeiro responder.

— Para onde foi?

— Procurar o Coronel Potter. Três vagões à frente.

— Preciso alcançá-lo antes.

Mike mergulhou num compartimento onde havia dois sol­dados deitados. O homenzinho de óculos passou veloz por ele.

Voltando ao corredor, Morrison pôs-se a correr em sentido contrário. “Eles o pegarão, Morrison. Eles o pegarão...   eles o pegarão...”

Chegou à plataforma traseira — o final do trem. Uma con­fusão de olivais, fitas de aço surgindo sob as rodas e desapa­recendo no horizonte.

Mike olhou pelo vidro. O neozelandês entrava no vagão pela outra porta. E empunhava uma pistola. Caminhava lenta­mente, examinando compartimento por compartimento. Voltan­do os olhos para a plataforma traseira, ergueu a pistola e pôs-se a correr naquela direção.

 

Michael Morrison equilibrou-se no último degrau. O solo voava a seus pés.

Voltando à plataforma, agachou-se junto à porta, pronto a saltar sobre Mosley no momento em que ele a abrisse.

O trem parou de repente, com um ranger agudo, e Mike perdeu o equilíbrio.

Aquele ruído vinha do céu. Já o conhecia. Stukas!

Pontinhos negros descreveram círculos lá no alto e, à medida que desciam, começaram a assumir forma.

Mike saltou da plataforma e rolou pelo leito da estrada. Homens   começaram a atirar-se do trem, da plataforma, das janelas...

Lá no céu, os motores cessaram de repente. Passou-se um segundo...   dois...   três...

O grito, aquele medonho grito, enquanto as bombas caíam. Mike cobriu a cabeça... O solo rugia e abria-se sob o impacto do bombardeio.

Os primeiros projéteis caíram longe do trem. Todo mundo se levantou e correu loucamente pelo campo, em direção a um bosque de oliveiras. Atirando-se ao chão, enfiavam as unhas na terra, quando os Stukas voltaram para o segundo ataque.

Por sobre o ombro, Mike viu o terceiro carro desintegrar-se. A fileira de vagões lançou como uma serpente. A máquina saltou dos trilhos   e rolou pelo leito da estrada,   tossindo e assobiando.

Mike deixou-se cair na extremidade do olival. Soldados rodearam-no de todos os lados, atirando-se ao chão e ficando imóveis.

Afastando-se do trem destruído, os Stukas começaram a li­quidar os soldados que corriam pelo campo como formigas assustadas. Abateram-nos como uma ceifadeira e depois passaram pelo olival, pouco acima da copa das árvores, as asas cuspindo fogo. Os troncos estremeciam e as balas ricocheteavam. Um soldado gritou, depois ficou imóvel.

— Lá vêm eles de novo!

— Malditos!

Voavam tão baixo que Mike pôde distinguir o rosto de um dos pilotos. Um soldado junto dele ajoelhou-se e disparou seu rifle, num desafio. Depois, erguendo o punho cerrado, berrou uma praga. Um oficial correu para ele e arrancou-lhe o rifle das mãos.

— Maldito idiota!   Quer que eles   saibam onde estamos? — gritou.

—Eles   sabem   onde   estamos!   Que   espécie   de guerra é esta...?

A discussão terminou quando uma chuva de disparos levan­tou terra à volta dos dois.

Onda após onda cobriu o olival, sem piedade nem trégua. Dez minutos, vinte minutos, trinta... Projéteis luminosos, mo­tores de ensurdecer...

Então, esgotadas as bombas, as metralhadoras sem mu­nição, os Stukas deram por encerrada a brincadeira e desa­pareceram.

O bosque ficou mortalmente silencioso. Os homens estavam demasiados atordoados para se mover. Mike sentou-se, apoiando a cabeça nos joelhos. “Santa Mãe de Deus”, murmurou, quando o último motor sumiu na distância.

Em breve, teve início uma lenta movimentação. Soldados caminhavam às tontas, falando em murmúrios trêmulos. Cinco minutos depois, o bosque transformou-se numa babel de homens correndo e gritando.

Alguém bateu no ombro de Michael.

Um jovem capitão australiano inclinava-se sobre ele.

— Você aí, venha cá! — E apontou para uma unidade de homens que se formava no exterior do bosque.

Mike levantou-se, incerto.

— Coronel Potter... onde está?

— O coronel foi abatido — disse o capitão.

— Quero falar ao seu substituto. — E mergulhou a mão no bolso, em busca da credencial. Havia desaparecido. Olhou à volta. Alguns soldados fitavam-no espantados. O local estava em completa confusão. Seria inútil...

— Desculpe, senhor — disse Mike ao capitão, reunindo-se aos homens que se encontravam no limiar do bosque.

Outros oficiais formavam grupos de cem homens, sem se preocupar com as unidades a que pertencessem. O capitão aus­traliano colocou-se diante do grupo de Mike.

— Muito bem, rapazes, prestem atenção. Com esses Stukas voando por aí, precisamos ficar em pequenas unidades. Acabou a carona de trem...

Alguns risos.

— Vamos avançar a pé e permanecer juntos.

— Capitão, para onde vamos?

— Segredo militar — mentiu o capitão. Ele também gos­taria de saber.

— Se os Stukas voltarem, senhor, podemos responder ao fogo?

Era uma pergunta ridícula. Havia apenas doze Enfields no grupo de cem homens. Várias outras perguntas ridículas a res­peito de água e mantimentos foram feitas. Aparentemente o ca­pitão dispunha de poucas respostas.

Atravessaram os trilhos, em direção às colinas, marchando a passo acelerado, em busca de refúgio antes que os Stukas voltassem.

Quanto a Michael Morrison, turista americano... Estava inevitavelmente envolvido com aquele grupo de homens em fuga desesperada. Inútil procurar quem estivesse no comando. Apa­rentemente não havia ninguém. Para onde ir? Que fazer? Para onde correr? Onde ocultar-se?

No decorrer da tarde, Mike principiou a sentir-se exausto da caminhada. Lembrava-se de que só se sentira assim uma vez na vida. Naquelas primeiras semanas após a morte de Ellie, aparentava viver, mas todo o seu íntimo estava morto, a mente enevoada pelo medo e a impotência.

A coluna mergulhava gradativamente nas colinas. Os solda­dos já não conseguiam falar. Estavam demasiado cansados até para reagir. O terreno tornava-se cada vez mais acidentado. Quando o sol se ocultou nas colinas distantes e a temperatura começou a cair, o capitão achou que seria seguro fazer uma parada.

Os homens espalharam-se por entre os rochedos e as moi­tas, depois de beber num riacho, apesar dos avisos dos oficiais.

A noite caiu sobre o Peloponeso.

Os soldados mergulharam num sono de exaustão.

Michael Morrison, porém, não ousou entregar-se a esse luxo. Olhos injetados de sangue, manteve-se de vigília durante as horas de escuridão. Uma vigília pelo homenzinho de óculos de tartaruga e o homem alto e louro, que se chamava Jack Mosley. Ouem eram eles? Quem mais estaria a sua procura? Precisava olhar todo mundo com desconfiança — todo mundo!

Mike cochilou, mas a cada murmúrio de árvore, a cada mo­vimento de um soldado adormecido despertava completamente. Punha-se então a murmurar trechos de poemas, diálogos dos seus livros, qualquer coisa que o mantivesse acordado...

Madrugada.

No segundo dia, o grupo vagueou a esmo, aprofundando-se cada vez mais nas colinas, em direção às montanhas.

Os Stukas apareceram e os descobriram. O bombardeio recomeçou. Sete vezes no mesmo dia o grupo foi surpreendido e teve que se atirar no chão... E a cada vez erguia-se e oscila­va para a frente, como um lutador embriagado.

Prosseguia a pavorosa destruição da Grécia. Cada aldeia abandonada pela Força Expedicionária Britânica era arrasada.

Não havia trégua. Os abutres rodopiavam por cima deles, cobrindo-lhes todos os passos. Finalmente o jovem capitão aus­traliano deu ordem para se imobilizarem durante o dia. Avan­çariam de noite.

Mike manteve sua dolorosa vigília até o amanhecer. Pode­riam estar à espreita, por detrás de qualquer rochedo, qualquer árvore, à espera para atacá-lo.

Aos tropeços avançou durante a noite escura. Cada vez que caía, um soldado anônimo ajudava-o a levantar-se com uma pa­lavra de ânimo. Nas horas que precederam à madrugada, dois homens o arrastaram pela estrada tortuosa.

O terceiro dia encontrou-os escondidos num bosque de li­moeiros, próximo a uma aldeia, onde soariam as horas do dia.

Um maravilhoso torpor envolveu Mike. Via e ouvia, mas os ruídos pareciam chegar-lhe de imensa distância. Seu sentido do tato estava entorpecido. Caminhava sem cair, mas não tinha sensação de mover-se. Falava, mas as palavras eram inaudíveiív aos próprios ouvidos.

Enquanto a unidade dormia, exausta da marcha noturna, Mike conservava-se sentado,   apoiado   a   uma   árvore,   olhos arregalados.

Inclinando a cabeça, olhou as fileiras de limoeiros, colina abaixo. O sol filtrava-se pela copa das árvores, criando estra­nhas sombras que estremeciam sob a brisa suave.

Um súbito faiscar na orla do bosque, a uns trezentos me­tros de distância, atraiu-lhe a atenção. Pestanejou. Era o refle­xo de um certo tipo de vidro... Em seguida, avistou a silhueta de um homem. Novamente o brilho. Óculos. O homem avançava lentamente entre duas fileiras de árvores, meio na sombra, meio entre os reflexos dançantes do sol... Um homem baixinho — muito baixo mesmo — caminhava em direção ao grupo de soldados adormecidos.

 

— Aonde diabo pensa que vai? — perguntou o capitão australiano.

— Água — murmurou Mike. — Preciso de água. Aldeia...

O capitão estava para ordenar que voltasse, mas observou Morrison. O camarada estava em péssimas condições... pior que o restante dos homens. Não levava rações ou cantil. Talvez fosse melhor deixá-lo obter algum alimento e água, lavar-se. Caso contrário entraria em colapso e atrasaria todo o grupo.

— Está bem, mas volte dentro de uma hora.

Mike pôs-se a descer a trilha.

— Soldado!

— Sim, senhor!

— Quando voltar, melhor dormir um pouco.

— Dormir...   dormir...   Não posso dormir...   Não posso dormir... Eles não me deixam...

O capitão australiano fitou-o intrigado, enquanto ele des­cia a passos vacilantes o caminho da aldeia. Camarada esquisito.

Mike chegou a uma suja praça, rodeada por uma dezena de casas de alvenaria. No mesmo instante foi rodeado por uns cinqüenta camponeses, mulheres e crianças, na maioria, falando todos ao mesmo tempo, querendo apertar-lhe a mão e dando-lhe tapinhas cordiais nas costas.

Alguns o beijaram. As mulheres choravam.

Por que estão chorando? Não sabem que os ingleses foram derrotados? Não sabem que seus salvadores nada podem fazer por eles? Por que choram por mim? Quem são estas pessoas estranhas?

Tomou uma cabaça de um camponês e a secura da gar­ganta desfez-se ao doce sabor da água que escorreu pelo queixo e pingou na jaqueta. Despejando-a sobre a cabeça, riu histerica-mente, sentindo-se reviver.

Uma mulher colocou-lhe um pedaço de pão nas mãos e outra deu-lhe um queijo. Comeu avidamente e bebeu mais um pouco da água.

Entregaram-lhe uma cabaça de pele de cabrito. Amarrando o cordão a tiracolo, encheu os bolsos de pão e queijo e agra­deceu a todos, com apertos de mão e com beijos.

O avião surgiu tão repentinamente que ninguém o ouviu chegar. Despencou-se do céu e rugiu pela praça, metralhadoras em fogo.

Uma meninazinha de uns quatro anos morreu agarrada a uma boneca de trapos. Tinha cabelos negros e encaracolados e segurava a boneca com toda a força, junto ao peito.

— Lynn... — Mike murmurou o nome da filha. — Lynn... Os camponeses começaram a retirar-se da praça. Incapaz de enfrentá-los, Mike fez meia-volta, passou correndo pelas ca-banas pintadas de branco e mergulhou no atalho.

— Ei, você! Estou à sua procura.

Mike voltou-se bruscamente.

Um sargento palestino adiantava-se pelo caminho em sua direção.

— O capitão mandou chamá-lo. Vamos continuar a marcha.

— O avião... matou uma meninazinha...

— Eu disse que vamos partir.

— Partir. Mas...   mas   ainda   é   dia...   os   aviões   nos encontrarão...

— Novas ordens pelo rádio. Depressa.

— O homem — murmurou Mike. — Não deixe o homem me pegar!

— Que homem?

— O homenzinho... o homenzinho de óculos com aro de tartaruga...

— Não há homem algum — garantiu o sargento.

— Há sim, eu vi. Eu o vi subindo o bosque...

O sargento franziu o cenho.

— Está   se   sentindo   bem,   velho?   Vamos,   deixe-me aju­dá-lo ...

Mike deixou-se cair contra o sargento. O palestino segurou-o e ajudou-o a regressar ao bosque de limoeiros, onde os soldados, resmungando, reuniam o equipamento.

O sargento olhou para o capitão australiano, deu de ombros e o oficial meneou a cabeça como quem entende.

— Que sorte a nossa.

— Ficarei de olho nele, capitão — ofereceu-se o sargento.

— Eu o vi subindo o bosque... — murmurou Mike.

— Calma, velho, calma.

E recomeçaram a marcha.

O sargento palestino ficou junto de Mike, de quem não tirou os olhos. À medida que o terreno se tornava mais íngre­me e acidentado, Morrison sentia-se animado a prosseguir. Quando suas forças esgotaram-se completamente, foi arrastado O capitão australiano conduziu sua tropa exausta em direção a um acidentado passo entre as montanhas, que se­guiam para a costa, e o dia infindável arrastou-se até mais uma noite infindável.

— Eles o pegarão... eles o pegarão... eles o pegarão...

A madrugada do quarto dia encontrou-os oscilantes, descendo para a costa. Dirigiam-se a uma praia não muito dis­tante da cidade de Nauplion. O grupo fez uma parada num bosque que antecedia a praia. Outro grupo de cem homens já se encontrava ali e os boatos entrecruzaram-se.

Do esconderijo avistavam a cidade que ficava além do tre­cho da praia. O que restava da cidade. Fora antigamente a capital de uma república. Uma fortaleza antiga e pitoresca avan­çava golfo adentro. Era conhecida então como a Gibraltar de Argolis. Mas isso fora em outros tempos e outras guerras. No momento, a fortaleza era um inútil amontoado de rochedos para combater os abutres que desciam do céu. Nauplion fora total­mente arrasada.

Os Stukas estavam de novo em ação, gritando incessante­mente. Mike Morrison atingira um grau de cansaço que ultrapassava a própria exaustão. Os dias seguidos sem dormir pendiam sobre ele como a lâmina de uma guilhotina. Arrastando-se, afastou-se dos soldados, até encontrar uma espessa moita, onde mergulhou, impossibilitado de mais um só movimento. Suas pálpebras caíram pesadamente. Incapaz de reagir, mergulhou num profundo sono.

 

Um raio de luz incidiu-lhe contra as pupilas. Pestanejando, abriu os olhos e apoiou-se nos cotovelos. Afastando um arbusto, viu que o sol se punha. Dormira quase o dia inteiro.

Bocejou e espreguiçou-se. Sentia todo o corpo dolorido, mas em sufocantes nuvens de poeira, sobre as quais incidia o sol do torpor, tomou consciência do desgaste físico que sofrera nos últimos dias. Tirando os sapatos descobriu que seus pés eram um amontoado de bolhas.

Desatando a cabaça presa ao ombro, bebeu um grande gole e salpicou o rosto com um pouco d'água. Em seguida comeu parte do pão e do queijo e tornou a calçar-se cuidadosamente.

O bosque estava estranhamente silencioso. Não havia ninguém à vista. Levantou-se, incerto.

Um ruído distante de aclamações colocou-o imediatamente em estado de alerta.

Caminhando por entre as árvores naquela direção, sentiu que o rumor tornava-se cada vez mais intenso. Deteve-se na orla do bosque e olhou. Espalhados pela praia viu centenas de homens. Pertenciam a unidades que haviam descido da montanha durante todo aquele dia, calculou.

O sol mergulhava rápido nas águas da baía.

A certa distância da costa, um navio enviava uma mensagem.

Mike surpreendeu trechos de conversa entre os homens.

— Navio da Prince Line... oito mil toneladas...

— O Slamat...

— Evacuaremos assim que escurecer.

— Eu sabia que o diabo da Marinha acabaria aparecendo...

Michael Morrison fechou os olhos e suspirou. “Graças a Deus... graças a Deus...”

Voltando ao bosque, descobriu outro esconderijo e aguar­dou. Melhor não se arriscar. Havia milhares de homens pelos arredores.   Mosley e o homenzinho estariam com certeza entre eles.

O sol lançou seus últimos raios no horizonte.

Mike sabia que precisava ser cauteloso, mas no momento sentia-se bastante otimista. Entraria a bordo de um jeito ou de outro, Mosley e o homenzinho estariam vigiando em terra, mas ele os enganaria. Nadaria parte do caminho e depois subiria num barco. Era ótimo nadador... Na escuridão, os dois jamais o surpreenderiam da praia. A bordo, procuraria o comandante e em breve tudo estaria terminado.

Pensando no encontro com os filhos, quase chorou em ante­cipação. E sonhou com outras coisas também. Barba e xampu na Barbearia Kastrup. Um filé-mignon duplo no Amilio. E pensou também no Top of the Mark.   Talvez não fizesse mais que ficar sentado lá no alto, durante umas três ou quatro se­manas, contemplando as colinas de São Francisco.

As roupas e outros pertences que deixara no Kiffissia Hotel não tinham importância — o seguro cobriria a perda. Mas os cachimbos... detestava perdê-los. Bem, não importava. Encontraria bons Barlings e Petersens em Londres.

Escurecera completamente.

Mike arrastou-se até o mar, conservando-se a uns cem metros de distância de onde os soldados estavam organizados em formações.   Alguns barcos já haviam começado o transporte.

Tirando a roupa, esvaziou de tabaco a bolsa, que era impermeável, e examinou seus pertences. O passaporte — dinheiro —   o   envelope branco.   Colocou tudo   na bolsa   de fumo e fechou-a Cuidadosamente. Estava pronto para nadar até o barco.

Passou-se uma hora.

A onda de otimismo que percorrera a praia transformou-se em inquietação. Uma hora depois as conversas passaram a um débil murmúrio, entremeado de cochichos desconfiados.

Uma luz cortou a escuridão...

O rumor de vozes tornou-se mais alto, avançando pela praia como um enxame de vespas.

— O navio encalhou num banco de areia.

Instantes depois as vozes calaram-se e os olhos de milhares de homens fixaram-se no mar. O silêncio só era quebrado por um apelo ocasional...

— Desencalhe, maldição! Desencalhe! — suspirou Mike.

No decorrer da noite, o fio de esperança tornou-se cada vez mais tênue. Era óbvio, até para os mais obstinados, que o navio não desencalharia do banco de areia a tempo de mil homens embarcarem.

Morrison recuou novamente para o bosque e atirou ao chão a bolsa, praguejando: “Filho da puta!” E tornou a vestir o uniforme britânico...

Não havia tempo para mergulhar em autocomiseração. Ti­nha muito que enfrentar, pensou. Bem, sem dúvida alguma a Força Expedicionária Britânica estava em péssima situação — e esta situação se agravava com o passar dos minutos.

Precisava agir. Não podia fugir indefinidamente de Mosley e do homenzinho. Mais um dia — mais uma hora? Eles o agarrariam. Furioso, pensou nos filhos. Não queria que Jay e Lynn ficassem órfãos, eternamente intrigados com o misterioso e inexplicável desaparecimento do pai.

Breve o dia começaria a despontar. Raciocinou febrilmente: talvez houvessem desistido de procurar por ele. Ainda havia tempo para chegar a Atenas. O exército grego e a retaguarda britânica defendiam ainda o norte da cidade. Se pudesse sair dali ficaria livre de Mosley e do homenzinho, iria para Nauplion, despiria o uniforme e dali em dois ou três dias chegaria a Atenas.   O povo era amigo e o ajudaria pelo caminho.

Uma risca de luz no horizonte anunciou um novo dia.

— Vamos, rapazes, voltem ao bosque.

Os soldados começaram lentamente a regressar ao abrigo das árvores, desanimados demais até para falar.

Mike afastou-se deles, esgueirando-se de um lado para outro, a fim de manter-se a coberto. Só se deteve um instante para observar o nascer do sol. O navio continuava encalhado, fora de alcance, inútil como uma tartaruga de costas. A tripulação remava freneticamente em direção à praia. A luz do dia viera acompanhada do ruído de motores no céu.

Minutos depois, o Slamat explodiu sob o bombardeio dos Stukas.

Morrison viu o capitão australiano e o sargento palestino caminhando em sua direção e escondeu-se atrás de uma árvore enquanto passavam.

— Ouviu a última notícia, sargento?

— Que notícia, capitão?

— Os alemães entraram em Atenas.

 

O peso da notícia desabou subitamente sobre Michael Mor­rison, que mergulhou em autocomiseração. Não tinha nada a ver com aquela guerra, protestou silenciosamente. Por que estaria envolvido numa história que não era da sua conta?

Os alemães se reagrupariam em Atenas, e dentro de um ou dois dias estariam descendo o Peloponeso. E então a ameaça não viria unicamente do ar.

Um comboio de trinta caminhões parou na estrada, a cerca de meio quilômetro do trecho arborizado. Toda a organização aparentemente desintegrara-se — os soldados saíram correndo do bosque e assaltaram os caminhões, sem que os oficiais precisassem apressá-los.

Mike precisava tomar uma rápida decisão. Era muito simples: ir ou ficar. Ficar? Que aconteceria então? Caminharia di­reto para as fileiras alemãs. Jamais chegaria a Atenas. Se che­gasse, que adiantaria? A Embaixada Americana estaria sob severo controle. O mesmo se daria com as estações de estradas de ferro e as rodovias... Cada americano que se encontrasse em Atenas estaria sob vigilância...

Mike observou os soldados subindo nos caminhões, que partiram, um a um.

Não havia escolha, exceto reunir-se a eles, assumir o risco cada vez maior de ser encontrado por Mosley e o homenzinho. Agarrar-se à esperança mais e mais tênue de que os britânicos escapassem.

Correu pelo bosque até a margem da estrada. Os caminhões passavam correndo. Quando o último surgiu, ele fez um aceno com as mãos e o veículo diminuiu a marcha o bastante para que pudesse correr até a retaguarda. Meia dúzia de mãos estenderam-se para içá-lo.

Mike olhou rapidamente à volta. Mosley e o homenzinho não estavam no caminhão. Daí a instantes mergulharam numa nuvem de poeira. Sentiu-se seguro naquele momento.

Próximo a um cruzamento, pouco antes de Nauplion, o comboio reuniu-se a outro maior — centenas de caminhões atulhados de homens da Força Expedicionária em fuga. Pertenciam a divisões britânicas, australianas e neozelandesas, que haviam lutado ao norte de Atenas e no passo das Termópilas. Cercadas quando os gregos não retiraram da Albânia a maior parte de seus exércitos, foram forçadas a recuar para o sul de Atenas, lutando obstinadamente e com bravura contra o inimigo muitas vezes superior no ar e em terra. Corriam boatos de que haviam recuado para poupar a Grécia de ser ainda mais arrasada.

As divisões corriam para o sul, deixando a retaguarda em Corinto, na esperança de impedir a entrada dos alemães no Peloponeso, enquanto o grosso das forças escapava.

Nas dezenas de pequeninas enseadas e portos do sul da Grécia, navios da Marinha Real e da marinha mercante britânica e grega organizavam a evacuação desesperadas dos 50 mil soldados encurralados. Bombardeados pelos aviões e sofrendo pressão de terra, trabalhavam para salvar aqueles homens, reti­rando-os do país condenado. A evacuação era feita à noite, po­rém vários navios sofreram a sorte do Slamat. Outros escapa­ram com sua preciosa carga para Creta, Líbia e África do Norte.

Mil boatos percorriam o comboio. O rei da Grécia fugira de avião... O Primeiro-Ministro grego suicidara-se... Os in­gleses haviam conseguido uma vitória naval sobre os italianos... A maior parte do exército grego estava presa na Albânia...

Depois, notícias animadoras: a maioria da Força Expedicionária Britânica estava sendo evacuada. Havia esperança!

O longo comboio crescia a cada cruzamento e breve saiu da perigosa estrada principal, embrenhando-se por um caminho das montanhas.

Os caminhões estremeciam, rodopiavam e derrapavam na estrada quase intransitável. Alternadamente pendiam sobre profundos abismos, subiam aclives pronunciados e depois os desciam a pequena velocidade. Todo o comboio estava mergulhado em sufocantes nuvens de poeira, sobre as quais incidia o sol do meio-dia.

Na avalanche de acontecimentos que se tornariam algumas das horas mais sombrias da História, um homem solitário, Michael Morrison, escritor americano, viu-se sacolejado num ca­minhão   carregado   de   sofrimento   humano.   Sem   identidade, fugindo. . .

Por que fugia? Ignorava. Havia uma razão para tudo, dizia muitas vezes a si mesmo. Houvera uma razão para a morte de sua mulher. Com o seu desaparecimento ele alcançara maturi­dade e estatura como escritor. Qual a força oculta que o atirara naquele inferno de chamas? Talvez algum dia viesse a saber.

Mas por que eu? pensou. Esta guerra não é minha.

Seria menos dele que daqueles soldados agarrados ao cami­nhão? Aquele que fora fazendeiro na Nova Zelândia com cer­teza perguntava a si mesmo por que se encontrava ali, no sul da Grécia.

Seria menos sua guerra que a do jovem inglês que se incli­nava sobre a borda, vomitando? Ou do grande árabe ao seu lado?

Seria menos sua que da meninazinha que jazia na praça da aldeia, agarrada à sua boneca de trapos?

Ponderando assim, deixou de sentir pena de si mesmo.

A escuridão envolveu a montanha.

Os soldados haviam sido chocalhados nos caminhões a pon­to de não mais sentirem dor ou exaustão.

A fila de veículos subia a montanha em direção ao mar, um rio infindável de faróis rodopiando, erguendo-se, baixando. Lembrava peregrinos carregando velas acesas, a caminho da Terra Santa.

Gritos de arrepiar cortavam a noite quando um caminhão não conseguia fazer uma curva fechada e mergulhava no abismo com sua carga humana.

Diversos veículos enguiçaram. Os homens eram obrigados a atirá-los pela ribanceira. Rolando, explodiam em chamas. E os soldados subiam no carro seguinte já superlotado, agarrando-se a qualquer ponto onde conseguissem um apoio.

E a macabra procissão avançava...

Alvorada!

Uma centena de caminhões jazia em escombros nas ravinas abaixo do comboio.

A Dunquerque Rodoviária desceu a montanha e parou pró­ximo à cidade de Kalamai, no golfo de Messínia. Era o fim da linha. Não havia mais para onde escapar.

Michael Morrison tornou a ver os rostos do povo grego. E mergulhou em reflexões. Kalamai, cidade aberta, indefesa, era um monte de escombros.

Os soldados espalharam-se pelos bosques de limoeiros, nas proximidades de Kalamai, enquanto centenas de aviões bombar­deavam cada metro quadrado de uma área já em destroços.

Mike atirou-se ao chão. Hora após hora, os Stukas rugiram e gritaram sem tréguas. Vendo o mundo incendiar à sua volta, uma profunda ira acometeu-o. Agora conhecia o inimigo.

Meio-dia. O bombardeio continuava.

Um cabo com divisas inglesas arrastou-se até onde Mike se encontrava e sacudiu-lhe o ombro.

— Venha, venha. Precisamos de homens. Há um caminhão de provisões enguiçado em Kalamai.

Mike acompanhou o cabo. Médicos e enfermeiros traba­lhavam febrilmente, tentando socorrer o número cada vez maior de feridos. O cabo chamou mais uma dezena de homens.

— Alguma notícia a respeito da evacuação?

— Ouvi dizer que só conseguirão trazer navios aqui ama­nhã à noite.

— E os hunos?

— Nossa retaguarda ainda resiste em Corinto. Chegando à orla do bosque, encontraram o caminhão à espera.   Saltaram a bordo e o veículo seguiu a toda velocidade em direção a Kalamai.

O caminhão entrou na praça e três Stukas imediatamente o avistaram. O grupo dispersou-se, rápido, quando os aviões mergulharam. Num segundo o veículo estava em chamas.

Mike atravessou correndo a praça. de Súbito, o chão fugiu-lhe sob os pés. Tropeçara num cavalo morto. Ficou caído vários segundos, olhando fascinado para os olhos do animal, que pa­reciam dizer em zombaria: “Eu também não tenho nada a ver com esta guerra.” Recuando, correu para a fileira de casas. Quando uma série de bombas caiu sobre a praça, atirou-se pelos degraus que levavam a um porão.

Agachados contra a parede estavam um velho e três mulheres. Uma delas segurava uma criança que gritava. Tentando acalmá-la, colocou o bico do seio na boca do bebê, mas este, a cada nova explosão, gritava mais alto. O velho benzia-se e rezava baixinho. Uma das mulheres começou a chorar histericamente. Mike desviou o olhar da cena.

Só três horas depois os aviões cessaram o ataque. Mike saiu aos tropeções do porão para a luz do crepúsculo. As cinzas de Kalamai fumegavam. O cavalo morto de olhos zombeteiros continuava na praça.

Mike caminhou aos tropeções pela estrada que saía da cidadezinha. Um caminhão de passagem deteve-se para recolhê-lo e dirigiu-se a um bosque que ficava a cerca de um quilômetro do mar. Ali, o que restava da Força Expedicionária Britânica aguardava a evacuação.

A noite trouxe consigo chuva torrencial.

Michael Morrison estava demasiado cansado para comer o resto do pão e do queijo, ou pensar, ou preocupar-se. Adormeceu na lama.

 

O sol matutino despertou Mike com seu calor. Rolou na lama, que já havia em parte secado, presa às suas roupas, e desembaraçou dela os olhos, a boca e os cabelos, sentando-se.

Os soldados haviam acordado e lentamente dispersavam-se em direção às colinas, que ofereciam melhor proteção.

Mike acompanhou-os, sob as incitações de um oficial. Num pequeno aclive pediu emprestada uma pá, cavou uma trincheira e sentou-se no seu interior.

Daquela elevação avistava um imenso trecho da baía. Logo abaixo aninhava-se Kalamai, junto ao mar, rodeada de fileiras certinhas de olivais e vinhedos e, mais além, as encostas rochosas da cadeia de montanhas do Peloponeso.

Como tudo parecia tranqüilo, visto da colina! Até os aviões que sobrevoavam Kalamai pareciam pequenas moscas inócuas. O pão estava intragável, mas o queijo continuava em bom estado.   Comeu-o, bebendo o que lhe restava da água.

Por qualquer estranha razão, a lembrança do cavalo morto e da meninazinha agarrada à boneca de trapos não o abandonava. Um arrepio percorreu-o, com a absurda sensação de que se encontrava nos Picos Gêmeos, olhando a baía de São Francisco...

Um soldado próximo generosamente ofereceu-lhe uma guimba de cigarro. Mike agradeceu e pôs-se a fumar.

— Ouvi dizer que os alemães atravessaram o canal em Corinto.

Isto significava que o XII Exército já se encontrava no sul da Grécia. A menos que a retaguarda britânica fizesse um milagre teriam que sair dali naquela noite.

Mike deitou-se na trincheira, olhando para o céu azul, pensando no cavalo morto de Kalamai, meditando sobre toda a fantástica aventura. Quase inconscientemente levou a mão ao bolso interior da túnica, tirou o envelope branco e colocou-o diante dos olhos.

Cenho franzido, estudou-o. Na caligrafia elegante de Fotis Sergiou, o endereço dizia: Sir Thomas Whitley — 12 Beauchamp Place, Londres, S. W. 3 — Tenha a bondade de entregar pessoalmente.

Mike brincou com o envelope durante um momento, mordendo os lábios ao sentir-se dominado por um impulso.

Abrindo o lacre, mergulhou nervosamente os dedos no envelope. Continha apenas uma folha de papel dobrado. Sentando-se, abriu-a.

Escrita com a caligrafia de Stergiou havia uma lista de nomes e cidades. O reverso estava em branco.

Estudou a fileira de nomes. Evidentemente não eram gregos — caso fossem, tratava-se de um tipo de código. Sentiu-se um tanto desapontado. Àquela altura esperava nada menos que uma fórmula secreta...

A lista dizia:

 

       Jon Petersen, Johannesburg, S.A.

       Lorrie Daniels, Sydney

       Elmer Jackson, Montreal

       Sarah Moonstone, Montreal

       Adam Piper, Montreal

       David Main, Christchurch, N.Z.

 

E assim prosseguia a lista: nomes de pessoas e cidades.

Mike ardia de curiosidade. Quem seriam essas pessoas, e qual o significado da lista? Cada nova suposição tornava-o ainda mais curioso. Bem, uma coisa era certa, fossem quem fossem, - eram de extrema importância, tanto para os ingleses como para os alemães.

Quem desejava apoderar-se daquela lista não dava o menor valor à vida humana. Se os nomes fossem encontrados com ele, estaria liquidado. Mas, se não fossem? Teria uma chance de escapar, mesmo que a evacuação não se realizasse. E se decorasse os nomes? Seria muito simples... levaria uns poucos instantes...

Havia uma outra razão no subconsciente de Morrison, razão que não queria admitir nem para si mesmo. As experiências dos últimos dias haviam contribuído para destruir suas idéias de neutralidade.

Não, para o inferno com aquilo, pensou. Guardarei a lista o mais possível e a destruirei se a situação piorar. Decorando os nomes eu me comprometerei.

Mas, se a lista fosse destruída, os ingleses jamais a receberiam.

Mike deitou-se novamente, mas os nomes não o deixavam em paz, rolando de um canto a outro de sua memória — Jon Petersen — Lorrie Daniels — Elmer Jackson...

Suspirando, perguntou a si mesmo se estaria ficando louco. Memorizou a lista, rasgou o papel em pedacinhos e atirou-os ao vento.

O dia transcorreu sem incidentes e quando descambava para o crepúsculo Mike compreendeu que os Stukas abandonariam a região. Olhando para a vasta extensão do mar, avistou no horizonte os primeiros pontinhos negros.

Navios aproximavam-se da baía de Messínia!

Saindo de suas trincheiras, os soldados puseram-se a olhar. Desta vez não houve cantos nem vivas. Somente orações.

Mas as orações não foram atendidas, pois uma frenética mensagem começou a descer de boca em boca a colina.

— Pára-quedistas   alemães   saltaram   nas   imediações   de Kalamai!

Os oficiais levantaram-se, gritando:

— Todos os que tenham rifle, para a frente! Os outros desçam à praia!

— Vamos, rapazes! Os que estão armados! Mexam-se!

— Vamos dar uma surra naqueles hunos!

As colinas estavam em fúria!

A princípio em grupos de dois ou três, depois às dúzias e às centenas, desceram em direção a Kalamai com a morte no coração. Homens enlouquecidos, furiosos, erguiam os rifles com baionetas, pistolas, metralhadoras Bren. Alguns levavam simples cacetes...

Sob amarga, impiedosa ofensiva, os alemães foram expulsos de Kalamai.

O inimigo reagrupou-se e obrigou os britânicos a recuarem e a retaguarda Anzac, com suas forças muito mais numerosas. A retaguarda recuou lentamente para a cidade, disputando cada metro de terreno. A noite caiu sobre a batalha encarniçada.

Destróieres e transportes penetraram no golfo de Messinia e ficaram aguardando, para arrancar os homens ao inimigo.

Mike Morrison desceu a colina, desesperadamente resolvido entrar a bordo de um navio e sair da Grécia. Quando chegou à praia, desaparecera toda a aparência de disciplina. Os homens desarmados estavam loucos para fugir. Mike encontrou-se na orla da multidão ululante, onde cada homem tinha apenas uma idéia.

Precisava chegar ao mar. Precisava estar próximo quando os barcos chegassem. À retaguarda ouvia o rumor da batalha que se aproximava...

Inclinando os ombros, mergulhou naquela massa humana histérica, afogando-se no caos, fazendo apelo às últimas reservas de força. Agitando os braços, empurrando, acotovelando, gritan­do, atirava homens para a direita e a esquerda. Uma vaga de gente que se empurrava forçou-o a cair de joelhos. Lutando para levantar-se, tropeçou em corpos de homens meio mortos, pisoteados. E pôs-se a dar socos, pontapés, cotoveladas... Um emaranhado de braços e pernas atirou-o à areia, sob o peso de vinte homens. Mordendo e arranhando, libertou-se e percorreu os últimos metros, mergulhando no mar... Levantou-se com água até os joelhos, lutando para respirar. Tinha o uniforme em farrapos, rosto ensangüentado, mãos inchadas.

De repente imobilizou-se.

Um coronel inglês entrou na água, colocando-se diante dele. A postura era altiva, mas não conseguiu dominar o tremor da voz, quando disse:

— Somos prisioneiros de guerra.

Rompera-se o fio de esperança!

 

       Conserve acesa a lareira

       Embora no coração haja dor

       Mesmo distantes, os rapazes

       Sonham com o lar...”

 

Parte em conseqüência do choque, parte para erguer o ânimo, os homens puseram-se a cantar e as estrofes correram a praia.

Três palavras eram marteladas na mente de milhares de soldados abismados, nas imediações de Kalamai: prisioneiro de guerra — prisioneiro de guerra — prisioneiro de guerra...

 

       “Há um contorno prateado

       Brilhando nas nuvens escuras...”

 

O brilho de fogueiras pontilhava a praia. Michael Morrison estremeceu ao sentar-se junto a uma delas. Nunca sentira tanto medo em toda a sua vida. Imaginava um negro cacete descendo sobre sua cabeça, homens dando-lhe pontapés nas costelas, atirando água sobre seu corpo inconsciente, a fim de revivê-lo para maiores torturas. Queria crer que era corajoso — mas a verdade é que sentia medo.

Brincou com a idéia de trocar a vida pela lista de nomes misteriosa. Tentou justificar-se mentalmente, mas não conseguiu. Sabia que jamais teria um minuto de descanso pelo resto da existência caso se acovardasse diante deles. Roendo as unhas, procurou conter a náusea que sentia. Afastou-se da fogueira. Queria ficar sozinho com alguns preciosos pensamentos, antes que chegasse a alvorada.

Durante a longa noite ficou sentado em isolamento, revivendo maravilhosas lembranças. Viu-se com Ellie no campus da Califórnia... Avançando pela linha de Stanford, lutando por cada centímetro de terreno... Segurava nos braços uma criança... Abria uma carta que dizia: “Temos o prazer de aceitar seu romance...” Sim, havia muita coisa boa para recordar.

A primeira luz cinzenta do dia atravessou a escuridão. Uma tranqüilidade estranha e maravilhosa apoderou-se dele. Não mais sentia medo.

Na orla do bosque, um homem alto e louro, de uniforme neozelandês, fitou Mike tranqüilamente.

O sol começou a erguer-se no golfo de Messínia.

O homem alto e louro saiu de detrás dum agrupamento de árvores   e   colocou-se   às   costas   de   Mike.   Este   sentiu-lhe   a presença.

Voltando-se, deu com os frios olhos azuis de Jack Mosley. Não se surpreendeu, nem se assustou. Aceitou calmamente.

— Vamos, Morrison, levante-se, nada de gritos, vá para o bosque.

Mike levantou-se e precedeu-o no caminho, até que se viram isolados, à distância da praia. Mosley empunhou uma pistola, apontou-a para Mike, que se apoiou a uma árvore. Seu rosto escaveirado abriu-se num sorriso.

— Touché — disse Mosley, com uma continência zombeteira. — Sua cena de embriaguez foi convincente, confesso. Lançou-nos fora da pista durante algum tempo. — Acendeu um cigarro.   Novamente touché na alegre perseguição.

Mike conservou-se em silêncio, olhos estreitados pelo ódio, esperando que Mosley se distraísse um segundo que fosse.

— Você deve estar interessado em saber que atravessei as linhas ontem à noite, após a rendição, e tagarelei com o nosso amigo comum, Konrad Heilser, pelo telefone, em Atenas. Ficou encantado ao saber que você ainda não havia saído deste agradável país.

Se quer me matar, mate logo — disse Mike tranqüila­mente.

— Matá-lo? Claro que não. Herr Heilser tem uma encantadora recepção à sua espera em Atenas. Creio que você possui uma informação que lhe interessa. Espero que o carro que nos levará a Atenas não se atrase... — suspirou Mosley. — Assim que essa história de enviar seus amigos a um campo de concentração esteja terminada, nós partiremos.

— Que pretendem fazer comigo?

— Fazer? Depende de você, meu velho. Sabe, discordei de Konrad por causa de seus desagradáveis métodos de extrair informações, mas direi algo em seu favor:   ele obtém excelentes resultados.   Por falar nisso, Morrison, quer me dar o nome daquele excelente tabaco que fumei com você? Preciso mandar buscar um pouco nos Estados Unidos...

Seu nazista, filho da puta — murmurou Mike.

— Você   é mau perdedor,   Morrison — replicou Mosley, dando de ombros. — Sabe como são as coisas neste negócio...

— Nazista filho da puta.

— Melhor reservar   as   expressões   de carinho para Herr Heilser — disse Mosley, sorrindo.

Soou um disparo de pistola.

Uma estranha expressão cobriu o rosto de Mosley. A arma oscilou no seu dedo, a mão abriu-se e a pistola caiu no chão. Seu corpo estremeceu, deu um passo em direção a Mike, mais outro... Os joelhos dobraram-se e ele caiu ao chão, rolando aos pés de Morrison. Agitou os pés, estremecendo. Em seguida ficou imóvel. A boca abriu-se e uma expressão de surpresa sur­giu-lhe nos olhos.

 

Retesaram-se todos os músculos de Morrison. Inclinando-se sobre o corpo de Jack Mosley, fitou-o de olhos arregalados.

Um homem saiu de detrás de uma árvore a poucos metros de distância. Era baixinho, usava óculos de aro de tartaruga e empunhava uma pistola fumegante.

Inclinando-se rápido, revistou os bolsos de. Mosley e, em se­guida, rolou o corpo, ocultando-o sob uma moita. Tomando a pistola do morto, entregou-a a Mike.

— Esconda debaixo do cinto — recomendou.

Mike continuava olhando para o morto.

O homenzinho sacudiu-o e finalmente puxou-o pelo braço.

— Vamos, rapaz — disse. — Precisamos sair daqui.

Atordoado ainda, Mike foi, em, parte, arrastado pelo bosque. Fazendo uma volta, os dois reuniram-se aos soldados que se encontravam na praia e amontoavam os rifles que mais tarde seriam confiscados.

Deixando-se cair na areia, Mike meneou a cabeça.

— Estamos com sorte — falou o homenzinho. — Ninguém ouviu o disparo.

Mike olhou para ele, de pé ao seu lado. A essa altura dos acontecimentos não confiaria nem na própria mãe. Sentando-se junto dele, o homenzinho começou a falar baixo. Mike conser­vou-se obstinadamente calado.

— Meu nome é Soutar. O Major Howe-Wilken, que sua alma descanse em paz, era meu companheiro.

Mike fez um esforço para comprender o que Soutar estava dizendo, mas uma estranha idéia martelava-lhe a cabeça. Fugira daquele homem, convicto de que ele trabalhava para Jack Mosley. Era possível que os dois houvessem improvisado aquela cena de morte no bosque para enganá-lo. Não, não podia ser. Vira o sangue jorrando da boca de Mosley.

— Morrison, não estamos em hora de atitudes tímidas. Te­mos que fazer muitos planos.

Mike continuou em silêncio.

— Está vendo aquela estrada? Dentro de alguns minutos as tropas alemãs descerão por ali. Já organizaram um campo para prisioneiros em Corinto.

“Está bem, se quiser continue calado. Boca fechada. Konrad Heilser o descobrirá dentro de dois dias. Você verá se é capaz de ficar calado diante dele. Ouça, Morrison, os alemães queimaram mais de uma centena de aldeias. Vêm matando “civis” como se fossem moscas. E vão ser muito brutais quando descobrirem que aprisionaram uma brigada de judeus da Palestina.

O homem que se chamava Soutar acendeu um cigarro.

— Não seja tolo. Eu o teria matado junto com Jack Mos­ley se achasse, por um só instante, que você não me convinha. Ouvi o que disse a Mosley.

Talvez a pistola esteja descarregada, pensou Mike. Mas parecia inútil resistir. Sabia seu nome, quem ele era. De qualquer modo estaria perdido, caso Soutar fosse um agente alemão.

Coração pulsando forte, descerrou os lábios, ainda incerto.

— Está bem, sou Morrison, cidadão americano. E já estou farto de toda esta complicação. Fui envolvido sem saber e agora quero dar o fora.

— Isso constitui um ligeiro problema — disse Soutar, com um sorriso irônico. — Melhor encarar a situação: está mergulhado nesta história até o pescoço.

— Por quê? — replicou Mike, exaltado. — Por quê?

— Queira ou não.   Às vezes, Morrison, não podemos evitar certos acontecimentos em nossa vida.

Mike pôs-se a cavar a areia, sentindo mais confiança em Soutar. O homenzinho tinha razão, ele o sabia. Chega o dia em que somos forçados a dizer a nós mesmos: As coisas são assim, precisamos nos sair da melhor maneira possível”. Precisava acei­tar o fato de que Ellie estava morta, que jamais tornaria a vê-la. Há coisas contra as quais não se pode lutar com a simples força de vontade.

Está bem — murmurou. — Estou comprometido.

E enquanto   esperavam pelos   alemães,   o pequeno Soutar contou sua história, com acentuado sotaque escocês.

Quando o exército alemão invadiu a Grécia e a Iugoslávia Soutar e o Major Howe-Wilken foram enviados a Atenas para obter a lista Stergiou. Desde o momento em que desembarcaram perceberam que o inimigo estava a par de seus planos. Isto foi mais tarde confirmado quando Soutar descobriu que Zervos, em­pregado do governo, suspeitara e vendera a informação aos alemães.

Soutar e Howe-Wilken evitaram então entrar em contato com Stergiou. Em vez disso, fizeram planos para passar a lista a Morrison. Em seguida, agira de modo a afastar de Mike qualquer suspeita.

Howe-Wilken dirigiu-se à casa de Stergiou e Soutar saiu em busca de um avião que os tirasse de Atenas. Soutar, sabendo que estava sendo seguido, passou a maior parte do dia conduzindo seus perseguidores de um lado para outro de Atenas, livrando-se finalmente deles para encontrar-se com Howe-Wilken. Como este não aparecesse, dirigira-se à casa de Stergiou. Tarde demais para conseguir uma escolta militar, uma vez que as forças britânicas já estavam se retirando de Atenas.

Soutar chegou a Petraki, 17 alguns minutos depois que Mike daí havia fugido, mergulhado em uma espécie de coma alcoólica. Howe-Wilken vivera o bastante para revelar o fato de que Morrison continuava com a lista e a esperança de que alcançasse o aeroporto de Tatoi.

O resto Mike sabia. Soutar perdera contato no aeródromo,. durante o bombardeio — encontrara Mike no trem — perdera-o e continuara a buscá-lo na retirada da Força Expedicionária Britânica.

— Claro que eu estava numa situação de desvantagem — disse Soutar. — Nunca o vira, nem sabia exatamente qual a sua aparência. Mas o seu bom amigo Mosley resolveu o problema para mim.

— Quem é Mosley, exatamente?

— Bem, ele tem meia dúzia de nomes. Na verdade é um agente alemão treinado em Oxford. Trabalhava em ligação com Heilser.

— Esse Heilser...   suponho que seja o chefão...

— Ah,   Konrad...   Encontrei-o   duas   vezes   anteriormente. Primeiro na Noruega, depois na França.   Ótimo agente. Brutal, persistente. Ele nos perseguirá mesmo que seja preciso afastar do lugar cada árvore e cada rochedo da Grécia. Não vai ser nenhum piquenique, Morrison.

— Continue.

— Não há muito mais que dizer. Quando vi Mosley no trem compreendi que estava à sua procura.   Em vez de segui-lo, fiquei de olho em Mosley, na esperança de que me conduzisse a você.   Foi o que fez.

Mike sorriu.

— Não posso deixar de achar graça pensando no quanto tentei fugir de você...

— Muito bom para um principiante, Morrison, muito bom. Mas tem ainda muito a aprender. A lista... você a conservou?

— Aprendo rápido. Decorei-a e rasguei-a. — Fez uma pausa. A lista Stergiou, que significa?

— Bem, é melhor que fique sabendo. Fotis Stergiou, que Deus lhe dê o descanso eterno, era um dos advogados mais conhecidos da Grécia. Quando os italianos invadiram o país no inverno passado, Stergiou entrou em contato com diversos oficiais do governo grego, fazendo-lhes uma proposta: eles se tornariam colaboracionistas se a ocupação estivesse iminente. Dezessete concordaram. Que se saiba, estão agora trabalhando para os alemães.   Encontraram-se todos em posições de destaque. Há dois ou três ministros de gabinete entre eles. Na verdade trabalham para nós, à espera que entremos em contato com eles.

Soutar esmagou o cigarro e olhou para o horizonte.

— Nenhum elemento da lista de Stergiou sabe quem é o seguinte. Cada qual trabalha separadamente.

— Por quê?

— Caso os alemães descubram um, não serão capazes de liquidar todo o grupo. Os outros continuarão a agir.

— E você diz que os alemães souberam da lista por intermédio de um traidor grego?

— Sim. Chama-se Zervos. E, pelo que soube, é tão escorregadio quanto Heilser.

Mike permaneceu calado por algum tempo.   Assistira ao avanço das forças alemãs. Parecia uma ação por demais fútil.

— Esses homens, esses dezessete homens, que esperam fazer contra o que acabamos de presenciar?

— Fazer? Você é ingênuo, Morrison. Muitas guerras foram vencidas ou perdidas em nosso setor.   Entre outras coisas, eles terão acesso a documentos secretos, conhecerão todos os planos alemães para este teatro de luta, saberão de todos os submarinos que operam com base nos portos gregos, estarão a par de cada soldado e armamento que possuem. Fazer? Eu direi o que farão. Esta guerra vai se modificar um dia, anote o que digo. E quando isso acontecer, a Resistência na Grécia e em todos os países ocupados algemará vinte e cinco divisões alemãs impedindo-as de lutar nas frentes.

Mike assobiou.

— Suponho   que seja mais importante que uma fórmula secreta.

— O quê?

— Nada. Estava pensando em voz alta.

— Quando chegar o ajuste de contas, estes dezessete homens serão vingados. Não morrerão como traidores. Você é a única pessoa que sabe quem são eles.

De repente, agarrando a mão de Mike, ordenou:

— Quieto.

Um solitário soldado alemão aproximava-se cautelosamente pela estrada que levava à praia e deteve-se diante de milhares de inimigos. Os britânicos fitaram com curiosidade o primeiro adversário que viam pela frente.

— Os nomes — murmurou Soutar. — Diga-me os nomes.

Mike sorriu.

— De maneira alguma.

— Não há tempo para isso, maldição!

— Imagino que assim farão maiores esforços para manter-me vivo e retirar-me da Grécia, Sr. Soutar.

— Você aprende mesmo depressa — suspirou o outro. — Discutiremos isso mais tarde.

O soldado alemão gritou uma ordem em tom meio apavorado. Os homens amargos e humilhados da ex-Força Expedicionária puseram-se em fila, resmungando.

A atitude confiante de Soutar não tranqüilizou muito a Morrison. Os dois — o americano alto e o escocês baixinho — colocaram-se também em fila.

— Que faremos agora? — perguntou Mike.

— Se tivermos sorte não seremos revistados até chegarmos a Corinto. Desfaça-se do passaporte e de qualquer papel de iden­tidade na primeira oportunidade.

— Que acontecerá quando chegarmos a Corinto?

— Não iremos a Corinto, meu velho. Saltaremos do trem.

Mike recordou o solo assobiando sob seus pés na viagem de trem que fizera dias atrás, e a idéia não lhe agradou.

A fileira começou a movimentar-se em direção a Kalamai. Soldados alemães, armados de baionetas caladas, colocaram-se de ambos os lados dos britânicos.

— Fique junto de mim — murmurou Soutar. — Se nos separarem,   entre em contato com o Dr. Harry Thackery, na Sociedade Americana de Arqueologia, em Atenas.

— Dr. Thackery — Sociedade Americana de Arqueologia — repetiu Mike.

As fileiras chegaram às cercanias de Kalamai. A população, verdadeiros mortos-vivos, acorreu às ruas, chorando, enquanto os mortos-vivos da Força Expedicionária Britânica as atravessavam abatidos. O cavalo morto continuava na praça.

Fizeram alto na quase arruinada estação da estrada de ferro. Oficiais alemães começaram a contar os soldados, separando-os em grupos de oitenta. Eficientes, já haviam reparado os trilhos, onde se encontrava, à espera, uma longa fileira de vagões de gado.

Soutar, pressentindo a tensão de Mike, falou-lhe em voz baixa, deu-lhe uma ligeira cotovelada nas costelas e piscou através dos óculos de aros de tartaruga.

Multidões de gregos reuniram-se junto à estação, lamentando-se em voz alta. Os guardas, formando uma cerrada fileira, separaram-nos dos prisioneiros.

Uma meninazinha, aos empurrões, atravessou a fila de guardas, caminhando em direção ao grupo onde se encontravam Mike e Soutar. Levava nas mãos uma bisnaga de pão. Um guarda ordenou-lhe secamente que recuasse. Os ingleses gritaram à menina que voltasse, mas ela continuou a avançar, o pão estendido para os soldados famintos. Outra ordem para parar... Ela continuou. O guarda baixou o rifle.

Soutar agarrou o braço de Mike, a fim de controlá-lo.

— Volte a cabeça. Não olhe.

Mike estremeceu quando o disparo repercutiu na estação. Soldados britânicos, enfurecidos, avançaram para o guarda. Baio­netas e cassetetes obrigaram-nos a voltar à fileira. O pão rolou pelo solo, parando aos pés de Mike. Soutar apanhou, dizendo:

— O mínimo que podemos fazer é comê-lo.

 

A porta de um vagão de gado foi escancarada.

— Rápido — sussurrou Soutar. — Seja o primeiro a entrar. Há uma pequena abertura no alto.

Quase atirando Mike no vagão, colocou-se nos seus calca­nhares. Num segundo, uma vaga de gente atirou-se por cima deles.

A porta fechou-se com estrondo e os homens viram-se encerrados em semi-escuridão. Em seguida, ouviram o ruído do pesado ferrolho e os guardas subindo para ocupar postos de vigia.

Mike e Soutar ficaram presos a um ângulo pelo acúmulo de gente.

— Mantenha a posição a todo custo murmurou Soutar.

O trem começou a movimentar-se com um solavanco, atirando-os a um amontoado de braços e pernas.

O sul da Grécia é quente. Especialmente no interior de um vagão de gado. No ar flutuava o mau cheiro dos animais, em breve misturado ao fedor de suor. Uma onda de vômitos teve início. Era impossível mover mais que o pé ou a mão. Pareciam sardinhas enlatadas... Todos estavam de pé. Sentar-se significava morrer pisoteado. O suor escorria pelos corpos. Tinham a boca ressequida por falta de líquido, o estômago roncando de fome.

Após uma hora de viagem, os homens começaram a desmaiar. Mas continuavam de pé, embora inconscientes. Não havia lugar para cair. Todo mundo começou a despir-se, literalmente arrancando as roupas do corpo escorregadio, cheirando a ranço. O odor de urina e fezes aumentava a agonia geral.

Na hora que se seguiu, Mike desmaiou meia dúzia de vezes, enquanto Soutar esfregava-lhe as têmporas e a nuca. Quando ficava inconsciente de todo, Soutar o esbofeteava, forçando-o a recuperar a consciência. A essa altura, quase metade dos homens estava desmaiada e os outros gemiam, em agonia.

O suor escorria nos olhos de Mike, cegando-o. Cada solavanco do trem provocava dores que o atravessavam todo, enquanto uma avalanche de gente desabava sobre ele.

No final da tarde, Soutar começou a fraquejar. Mike surpreendeu-se com a resistência do pequeno escocês e sustentou-o pelo pescoço. Soutar arquejava, sufocado.

O calor abrasador continuou no princípio da noite.

Soutar e Morrison alternavam-se na tarefa de conservarem-se vivos.   Dois homens já haviam morrido naquele carro.

Noite...

Embora ligeiro, foi um abençoado alívio quando principiou a refrescar. O mau cheiro há muito ultrapassara os limites do suportável.   Mike e Soutar vomitaram tudo o que tinham no estômago.

Os homens começaram a tombar uns por cima dos outros. Os mais fracos embaixo, próximos da morte, incapazes de se mover.

A escuridão era agora completa. Àquela altura, Mike seria capaz de saltar até de um foguete a caminho da lua.

— Vamos agora — arquejou Soutar.

— E se eles...   se eles pararem o trem? — murmurou Mike, em yoz quebrada.

Não se arriscarão por um ou dois homens.   Se pararem terão que enfrentar uma rebelião em massa e sabem muito bem disso.

Mike levantou Soutar até os ombros. O escocês arrebentou a tela com a coronha da pistola e rasgou-a.

— Vá você primeiro e depois volte para me procurar. Deixe o trem passar e só se mova dois ou três minutos depois.

Mike fez que sim.

— Ajudem-nos, rapazes, vamos tentar fugir.

Várias mãos voltaram-se para Mike, levantando-o. Ele agarrou à trave do alto e forçou as pernas a passarem pela pequena abertura. Suas mãos escorregaram pela trave e os soldados o empurraram pela abertura.

O ar fresco da noite pareceu-lhe um tônico. Sentiu logo a cabeça clarear. Agarrando-se ao lado exterior do vagão, esperou que o trem diminuísse a velocidade na curva. Mas suas mãos escorregaram e, perdendo o apoio, foi atirado no espaço.

O solo subiu, atingindo-o com terrível impacto. Saltou uma vez e rolou diversas. Depois ficou imóvel por algum tempo. Reunindo as forças, afastou-se do leito de estrada e ficou deitado no chão, sem se mover, enquanto o trem passava.

Levantando a cabeça, olhou na direção dos trilhos. Soou um disparo de rifle. Imobilizou-se então, até cessar o ruído das rodas e ouvir apenas o pulsar do coração e os arquejos da própria respiração.

Rastejando, voltou aos trilhos. Que coisa maravilhosa, pensou. Não sentia dor alguma. Tudo era maravilhoso. Tinha a cabeça leve como se houvesse bebido meia dúzia de martínis. Desceu a estrada caminhando nas nuvens. Sentia-se bem, muito bem.

Pôs-se a seguir as fitas de aço. Estava escuro, exceto quando a lua, em quarto crescente, surgia por entre as nuvens.

— Soutar — chamou baixinho. — Soutar!

Ouviu um gemido vindo do mato alto, junto ao leito da estrada,   e arrastou-se naquela direção.

Soutar estava caído de bruços. Mike ajoelhou-se ao seu lado e virou o corpo. Estava morto.

Examinou-lhe os bolsos. Vazios. Pegando a pistola, colocou-a no cinto, e arrastou o corpo em direção a um bosque. As pernas de Soutar sangravam.

No bosque, Mike cavou uma sepultura rasa, arrastou mais uma vez o corpo e cobriu-o de terra e ramos de árvore.

“Atenas ... Atenas ... vá para Atenas ... Dr. Harry Thackery...”

Mike tentou ficar de pé, mas caiu contra uma árvore. O bosque começou a rodopiar a sua volta e ele oscilou, tentando equilibrar-se. Preciso chegar a um rio — clarear a cabeça — parar a tonteira...

Tropeçando, atravessou o bosque e chegou à praia. À distância avistou as luzes de uma aldeia. Gente... gregos amigos ...   eles me esconderão...   preciso chegar à aldeia.

As luzes começaram a rodopiar loucamente.

Ferido — ferido ao saltar...

Apoiado nas mãos e nos joelhos arrastou-se na direção das luzes, deixando na areia uma trilha de sangue. Apalpou o rosto, estava todo ferido.

Chegando à primeira cabana, fez um esforço para levantar-se, mas caiu contra a porta, pondo-se a bater com força sobre-humana.

— Ajudem-me! — gritou. — Pelo amor de Deus, aju­dem-me!

A porta abriu-se.

Mike Morrison caiu para dentro, inconsciente.

 

O telefone tocou. Konrad Heilser, resmungando, rolou na cama à procura da lâmpada da mesinha. Descobrindo o telefone, colocou-o ao ouvido e deixou-se novamente cair nos travesseiros.

— Zervos — Adisse uma voz. — Desculpe-me perturbá-lo, Herr Oberst. — Cheguei agora mesmo a Atenas.

— Onde   está   você?   —   murmurou   Heilser,   ainda   meio adormecido.

— Quartel-general.

— Venha   imediatamente   ao   meu   hotel!   —   e   desligou, brusco.

A mulher nua junto a Heilser encolheu-se e gemeu. Afas­tando as cobertas, ele saltou da cama.   A jovem abriu os olhos.

— Aonde vai, querido?

— Negócios. Durma.

Ela apoiou-se na cabeceira da cama e estendeu a mão para a caixa de bombons que estava na mesinha. Esticando o lábio inferior, fingiu-se desapontada porque ele ia sair. Tolinha hipócrita, pensou Heilser, dirigindo-se ao armário e apanhando um roupão. A jovem espreguiçou-se, contorcendo sensualmente o corpo nu, a fim de atrair-lhe a atenção, mas esqueceu de deixar de mastigar o chocolate.

Linda de se olhar, a cadelazinha, mas estava-se tornando monótona. Completamente desprovida de imaginação, não dispunha de novos truques para prendê-lo. Seria despedida na sema­na seguinte e substituída por outra, alguém que estivesse mais ao seu nível intelectual. Que não fosse tão obviamente ávida pelas recompensas que ele oferecia. Encaminhou-se para o banheiro e a mulher aninhou-se debaixo dos lençóis.

— Venha me beijar, querido — pediu.

— Vá dormir.

O alemão salpicou água no rosto para afastar o sono, aplicou um pouco de loção ao cabelo e fitou-se durante longo tempo no espelho. Desaparecera o habitual olhar de auto-admiração. Zervos, o porco grego, viria trazendo más notícias. Disto Heilser estava certo.

Zervos fracassara completamente na missão. Em primeiro lugar, permitira que o velho advogado Stergiou se suicidasse, levando para o túmulo o segredo da lista. Depois, Soutar havia escapado. Terceiro, o americano, Morrison, atrapalhara todos os planos.

Maldito americano! Nada pior a enfrentar, numa missão como aquela, que um amador desesperado. Agora encaixavam-se todas as peças do quebra-cabeça. O americano fora usado por Howe-Wilken e Soutar. O gabinete de Heilser já fora bombar­deado com uma dúzia de indagações sobre o paradeiro de Morrison.

Heilser dissera, com toda a sinceridade, à Embaixada Americana que gostaria muito de saber onde se encontrava Morri­son e que estava dia e noite à sua procura. Não mencionou, porém, o que faria quando o encontrasse. A embaixada chegou ao cúmulo de oferecer-lhe duas fotos do americano, uma tirada da capa de um livro, outra de um passaporte. Infelizmente, com aquelas fotografias, seria impossível identificar a própria mãe.

O agente bem treinado adota certas medidas, assume certos riscos. Coloca a missão acima da própria vida. Mas não o amador desesperado. Este assume atitudes não ortodoxas e desenvolve recursos de animal selvagem para conservar a vida.

Heilser reconstituiu a cadeia de acontecimentos. Primeiro, o telefonema que Mosley dera de Kalamai, informando que Mor­rison não fugira da Grécia e fora localizado na Força Expedicionária Britânica. Após a chamada, Heilser e Zervos voaram para Corinto, a fim de aguardar Morrison. Este não aparecera. Em seguida, o corpo de Mosley fora encontrado numa praia de Kalamai e Heilser compreendeu que o amador desesperado ganhara a partida.

Em seguida, o corpo de Soutar fora descoberto próximo à estrada de ferro, nas cercanias de Nauplion. Heilser interrogara todos os prisioneiros e guardas que haviam viajado no trem.

Trabalhando sessenta horas sem dormir, conseguira descobrir que Morrison estivera no trem com Soutar e que os dois haviam tentado fugir, com minutos de intervalo. Soutar fracassara, Mor­rison conseguira.

E ali terminava a pista.

Um estranho, inexplicável desaparecimento. Zervos fora en­viado a Nauplion com um grupo de homens, a fim de interrogar todo mundo que se encontrasse ali e nas aldeias vizinhas.

Heilser atirou longe a escova de cabelos, num gesto de raiva. Sabia qual o preço do fracasso em descobrir a lista Stergiou. E sabia o quanto custava localizar um amador desesperado.

Zervos estava na sala, chapéu na mão. Seu olhar invejoso percorreu a luxuosa suíte e deteve-se no bar.

Adiantando a cabeça em direção à porta entreaberta que dava para o quarto, vislumbrou um movimento entre os lençóis brancos.

“Breve chegará a minha vez”, pensou. “As recompensas desses alemães idiotas são pequenas. Mas a gente pode conse­guir suas próprias compensações”. Ele, Zervos, jogara do lado vencedor, agarrando uma extraordinária oportunidade. A ocupação alemã era um fato. E ninguém precisava ser eternamente empregado do governo. Vender informações era a coisa mais acertada. Breve teria uma suíte como aquela. A coleção de arte que retirara da casa de Stergiou era apenas um começo da for­tuna. Outras coisas viriam ao seu encontro, agora que era um cidadão respeitado.

Pensou em alguns gregos ricaços. Ele, Zervos, tinha às suas costas toda a força da polícia alemã. Dentro de pouco tempo estaria fazendo visitas amigáveis a esses compatriotas afortunados.

Diria, muito cortesmente, é claro, que eram suspeitos aos olhos da Gestapo. Ele, Zervos, poderia tornar-se seu amigo e benfeitor, protegê-los. Infelizmente, tal proteção custaria uma boa soma de dinheiro.

Não faltava muito tempo — uma suíte, uma garota no quarto para agradar-lhe... Talvez se tornasse proprietário de um hotel inteiro. Seria rico e poderoso. Nada mal. Nada mal para um simples empregado do governo.

O sonho de Zervos desvaneceu-se quando Heilser entrou, fechando a porta do quarto. Por um instante trocaram olhares de mútuo ódio, medo e desconfiança. O alemão abriu a conversa com o habitual e áspero: “E então?”, que nunca deixava de causar um arrepio ao grego.

Zervos deu de ombros e deixou cair as mãos, num gesto de impotência.

— Desapareceu no ar. Viramos Nauplion pelo avesso.

— Ridículo! — replicou Heilser, áspero. Acendendo um cigarro, dirigiu-se ao bar e só ofereceu a Zervos uma bebida, porque não queria que demorasse.

O grego examinava embaraçado os rótulos estrangeiros. Um dia conheceria e apreciaria aquelas bebidas. Avistando uma garrafa que lhe era familiar, contendo retsina, serviu-se de meio copo e depois enxugou a boca na manga.

— É o que lhe digo, Herr Oberst, o homem desapareceu.

— Cale-se. Não há nada de misterioso na história. Colocando na mesa seu uísque com água, Heilser pôs-se a andar de um lado para outro. Em seguida sentou-se à escrivaninha e abriu um mapa do sul da Grécia, traçando um círculo em torno de Nauplion e seus arredores.

— Alguém dentro deste círculo conhece a resposta — disse, batendo com o lápis na mesa.

— Mas interrogamos milhares de pessoas...

— Então interrogue mais dez mil! — replicou Heilser, apa­gando o cigarro. — Sabe que espécie de homem temos pela fren­te? Um rato encurralado. Nada mais perigoso e engenhoso que um homem que luta pela própria vida. — E começou a raciocinar em voz alta, como se falasse consigo mesmo: — Das duas, uma: ou nós o descobrimos, ou ele nos cairá nas mãos. Mais cedo ou mais tarde tentará vir a Atenas e entrar em contato com alguém aqui. Não será na embaixada. Será alguém que Soutar indicou. Quem? Alguém entre a dúzia de simpatizantes dos britânicos, que já temos sob vigilância. — Heilser acendeu outro cigarro e bebericou o uísque. — Mas não podemos esperar que ele chegue aqui. Temos que procurá-lo, lentamente, silenciosa­mente.   Não podemos assustá-lo, mandando-o para as colinas. Ele saltou de um trem a toda velocidade. A menos que seja acrobata de circo, deve estar ferido e não pode ir longe ou depressa. Digo que ainda se encontra em Nauplion.

— Se acha que sim, Herr Heilser...

— Concordamos neste ponto, pelo menos. — Olhando para Zervos, soltou um suspiro de repulsa. — É óbvio que preciso seguir imediatamente para Nauplion, a fim de dirigir a busca. — Levantando-se, dirigiu-se ao quarto. — Encontraremos o nos­so Morrison, Zervos. Nós o encontraremos, nem que seja preciso retirar cada pedra deste seu sujo país.

— Sim, senhor.

— Espere lá fora. Descerei dentro de uma hora.

 

Quando abriu os olhos, tudo à volta pareceu-lhe de um branco ofuscante. As paredes caiadas refletiam uma parcela de luz dourada. Erguendo a mão para proteger a vista, fechou os olhos e depois tornou a abri-los lentamente.

Uma sombria imagem de Cristo, sob a qual ardia uma vela, fitava-o do alto. Fixou-a durante algum tempo e em se­guida deixou o olhar vaguear pela meia dúzia de ícones que rodeavam a imagem.

Relanceando a vista pelas paredes, deu com fotos de homens de barba hirsuta e mulheres morenas, de grandes olhos negros.

Espalhados pela sala viam-se cadeiras e mesas rústicas e, ao centro, um grande tear.

A claridade tornava a cena confusa. Seus olhos começaram a lacrimejar. Sentia-se entorpecido. No instante em que a mente foi invadida por lembranças sentou-se bruscamente. Mas gemeu, invadido pela tonteira, e deixou-se cair na cama, uma cama de dois metros de largura, construída sobre um forno.

Ouviu um ruído na outra extremidade da peça e sentiu a presença de alguém.

Uma bonita moça, de cerca de vinte anos, aproximou-se. Tinha a pele bronzeada de sol, imensos olhos negros e seios abundantes. Seus cabelos negros caíam, macios, sobre os ombros morenos. A blusa decotada, toda bordada, revelou a separação entre os seios quando ela se inclinou para ele. Vestia uma saia multicor, presa por um largo cinto que chegava à orla do bolero curto.

— Ajude-me... Preciso ir a Atenas...

— Calispera — murmurou a jovem, que saiu correndo da sala, como um animalzinho assustado.

Mike tentou sentar-se, mas o menor movimento resultava em dores por todo o corpo. Com o canto dos olhos viu suas roupas numa cadeira próxima à cama. Esticando o braço, examinou os bolsos até encontrar a pistola, que colocou debaixo do travesseiro.

Daí a instantes, a jovem voltou com dois homens. Um deles era um gigante e vestia uma pesada capa negra. Era quase impossível distinguir-lhe as feições por causa da barba abundante. Usava o cabelo preso numa longa trança que lhe caía pelas costas e trazia um chapéu alto e triangular.

O outro era baixo e forte, cabeça calva, à exceção de uma coroa de cabelos ralos. Em compensação tinha um bigode imenso e coberto de brilhantina. Usava saia pregueada e meias brancas e compridas, presas nos joelhos por ligas negras. A camisa era branca e o boné pequenino terminava num pompom. Calçava sapatos pontudos, enfeitados também de pompons vermelho-brilhante.

O homem de saia pregueada sorriu para Mike e começou a tagarelar num estranho dialeto grego. Voltando-se de repente, deu uma série de ordens a uma mulher mais velha que timida­mente se encontrava à porta.

Daí a instantes a sala estava cheia de homens, que olha­vam Mike com grande curiosidade. Em seguida surgiram diversas mulheres, carregando pratos cheios de comida: galinha, arroz, azeitonas, vinho e um imenso pão.

Aproximando uma cadeira da cama, o homem de saia pregueada serviu-se de um copo de vinho, fazendo sinal a Mike que comesse.

Mike tentou sentar-se, olhando à volta, intrigado, um tanto desconfiado e principalmente curioso. A jovem correu para a cabeceira e ajustou os travesseiros às suas costas.

Completo silêncio caiu sobre a sala enquanto Mike exami­nava os pratos que lhe eram apresentados. Todos inclinaram-se para a frente. O estômago de Mike roncava de fome, porém só conseguiu comer alguns bocados, sentindo-se logo mais que satisfeito. Meneando a cabeça, afastou os pratos. Um lamento ecoou na sala. O homem de saia pregueada insistiu vigorosa­mente para que ele comesse mais e Mike tentou explicar por gestos que não era possível.

Abruptamente, o homem ordenou então que todos saíssem, exceto a jovem.

Voltando-se para Mike, anunciou com grande satisfação, em inglês hesitante:

— Sou Christos Yalouris e esta é a minha sobrinha de Dernica, chamada Eleftheria.   Minha sobrinha Eleftheria cuida de minha mãe idosa em Dernica, mas eu, Christos, mandei pessoal­mente chamá-la para cuidar de você. Como se chama?

Erguendo a mão, Mike apalpou as ataduras que lhe envolviam a cabeça e com os dedos percorreu um grande arranhão que ia da testa ao queixo:

— Atenas... Preciso ir a Atenas...

Christos meneou lentamente a cabeça.

— Esteve muito doente.

— Sinto...   sinto muito. Meu nome é Jay...   Jay Lindem — disse Mike. — Onde... onde estou?

— Em Paleachora.

— Paleachora?

— Sim. Duzentos quilômetros ao norte de Atenas.

— Ao norte? Mas... mas...   eu estava ao sul da Grécia. Não compreendo.

— Foi encontrado nas cercanias de Nauplion.

— Mas Nauplion fica no sul da Grécia.

Christos ofereceu vinho a Mike, que recusou.

— Muitos de vocês, soldados englezos, saltaram do trem de prisioneiros — disse Christos. — O povo sabia que dentro de um dia os alemães revistariam toda a região. A maioria dos soldados dirigiu-se às colinas.

— Continue, por favor.

— Felizmente, um membro de minha tripulação estava de visita a uma casa de Nauplion quando você apareceu. Estava inconsciente   e incapaz   de prosseguir.   Colocou-o   no   barco   e trouxe-o para aqui.

— Barco? Então você é pescador.

— Eu, Christos, sou o único proprietário do moinho de Paleachora — anunciou, com grande orgulho. — Conservo o barco para... negociar, e outras finalidades. — E piscou ma­licioso, dando a entender que seus negócios não eram em geral aceitos pela lei.

Recusando com gesto os agradecimentos de Mike, replicou:

— Meu dever... Como se sente? O doutor voltará dentro de quatro ou cinco dias. Você descansará.

— Mas... preciso ir a Atenas.

— Falaremos nisso mais tarde. Venha, Eleftheria. Deixemos dormir o nosso amigo.

 

Os dias seguintes foram agradáveis e repousantes. A boa alimentação ajudou Mike a recuperar o apetite normal. As dores e pontadas diminuíram um pouco.

Mike sentiu-se grato pela sorte que o conduzira a Palea­chora. Konrad Heilser não estaria com certeza procurando por ele no norte da Grécia. A princípio preocupou-se com o fato de ser descoberto, mas acabou sabendo que muitos soldados britânicos estavam escondidos nas colinas, recebidos de braços abertos pelos camponeses. Na verdade consideravam uma honra abrigar um refugiado. Dois outros ingleses já se encontravam escondidos em Paleachora e outros que haviam fugido a caminho do campo de Salônica passavam diariamente por ali.

A lista de Stergiou atormentava-o constantemente, assim como a confusão e as lembranças das últimas semanas. O nome do Dr. Harry Thackery não lhe deixava a mente um só ins­tante. Mas era impossível fazer planos até poder levantar-se. Examinou seu equipamento: duas pistolas, um rolo de dracmas e um precioso amigo na pessoa do pequenino Christos. O fato de se fazer passar por Jay Linden, soldado neozelandês, não encontrou objeções.

Eleftheria estava sempre pelas proximidades durante o dia, tecendo ou trabalhando na cozinha contígua. Era terrivelmente tímida, demasiada tímida para conversar. Mas bastava que Mike erguesse uma sobrancelha e saía voando para satisfazer seus menores caprichos. Era tão submissa que ele esperava que um dia se atirasse na cama, suplicando, “Bata-me, senhor!” Elefthe­ria era agradável de se ver quando se instalava no tear, ou se ocupava das tarefas domésticas. Mike estava demasiado doente e em dívida para com Christos, demasiado preocupado com a lista de Stergiou para alimentar idéias acerca da jovem. Contudo, Eleftheria possuía todas as qualidades naturais capazes de perturbar um homem.

Durante o dia, Mike quase não via ninguém, exceto a jovem e a apagada mulher de Christos, Melpo. Não sabia sequer se ela falava.

O padre da aldeia, Paul, surgia de vez em quando para alguns minutos de conversa, e às vezes um morador do sexo mas­culino punha a cabeça na porta e sem cerimônias perguntava:

— Como se sente?

A maioria das mulheres pertencia ao tipo de Eleftheria. Bem proporcionadas, quase sempre encantadoras, mas horrivelmente tímidas. De vez em quando Mike avistava uma espreitan­do pela janela, mas a qualquer tentativa de conversa saíam correndo estrada abaixo,   rindo baixinho.

Mike esperava com ansiedade pela noite, quando Christos regressava do moinho e de suas numerosas atividades. Uma mesa era colocada junto à cama de Mike e os dois jantavam à luz das velas e conversavam horas infindáveis... a respeito de Christos. Outros homens surgiam e ficavam algum tempo, bebericando krasi. As frases de Christos eram sempre apaixo­nadas, pontuadas por tapas na calva, gestos de mãos e braços, enquanto seu bigode estremecia em staccato. Christos era o benfeitor da humanidade. O curandeiro local, o chefão da aldeia, o grande planejador de todas as coisas. Sendo “englezos” e possuidor de grande compreensão, Mike ouvia as confidências de inúmeros planos e esquemas de Christos. Este tinha sempre uma dúzia de projetos em andamento. Com a guerra, seu barco trazia um lucro cada vez maior pelo transporte de cargas, e seu proprietário já planejava adquirir uma loja em Atenas, em troca de trigo, que certamente viria a faltar.

Quando o crepúsculo se transformava em noite e o vinho libertava a língua, a conversa girava sempre em torno das escapadas de Christos pelos bordéis das grandes cidades. E então, antes que ele conseguisse terminar a história, um a um os homens contavam suas aventuras nos bordéis. Mike ficou sabendo que a prostituta ocupava lugar de grande respeito na cultura grega. A esposa, depois do casamento arranjado pelas duas famílias, em geral retirava-se ao segundo plano. Sua única finalidade na vida era dedicar-se ao lar e à família. Era coisa aceita que um homem procurasse um bordel sempre que quisesse. A prostituta inteligente muitas vezes encontrava marido que lhe desse conforto e respeitabilidade.

Bem tarde, quando as velas estavam quase no fim, Christos expunha suas opiniões referentes ao que considerava uma guerra de verdade. Trajando sua funstanella, andava de um lado para outro, zombando do invasor alemão.   Os búlgaros, os turcos e os italianos eram os verdadeiros inimigos, conforme provaram séculos de guerra.

E a narrativa épica de Christos exagerava-se a cada versão. . .

Todos os homens de seu antigo pelotão estavam mortos, exceto ele próprio e mais dois camaradas. Uma horda inimiga atacou uma colina que eles estavam decididos a defender. Ele e os companheiros abriram caminho por entre uma muralha de búlgaros atacantes, até que ele, Christos, viu-se sozinho, com duzentos inimigos amontoados aos seus pés. No final da narrativa, sua calva estava vermelha e marcada de veias salientes. Arquejando e suando, erguia uma vassoura e com ela atravessava as entranhas do último búlgaro.

É assim que se luta na guerra! Homem a homem!

 

Em Nauplion, Konrad Heilser contemplou a baía de Argolis da varanda de sua suíte. Tinha os olhos injetados de sangue e os cabelos, em geral bem penteados, completamente emaranhados. Os cinzeiros da suíte transbordavam de cigarros fumados a meio. Tinha a gravata afrouxada e as mangas da camisa arregaçadas.

Fizera minuciosa busca em Nauplion, incapaz de descobrir uma única pista que conduzisse ao estranho desaparecimento de Michael Morrison. Em desespero, Zervos fora encarregado de uma missão baseada num boato segundo o qual um marinheiro ouvira uma conversa referente a um corpo colocado a bordo, um dia após aquele em que Morrison saltara do trem. O pescador encontrava-se no momento entre as miríades de ilhas do Egeu.

Era uma palha, mas Heilser estava desesperado. Zervos foi despachado para descobrir o pescador.

O telefone tocou. Entrando na sala, Heilser arrancou-o do gancho.

— Chamada para o senhor, Herr Heilser.

— Alô, Herr Heilser?

— Falando.

— Zervos.

— Onde está?

— Na ilha de Kea.

— Localizou o homem?

— Sim, está sob custódia. Mas não quer falar.

— Sabe do paradeiro do americano?

— Sabe alguma coisa, isto é certo.

— Traga-o a Atenas imediatamente. Eu parto já. Ele falará quando estiver nas minhas mãos.

— Muito bem. Tenho um barco à minha espera. Estaremos em Atenas amanhã à noite.

 

No final da semana surgiu um médico de Dadi, que desfez as ataduras, examinou os ferimentos de Mike e declarou-o um rapaz de muita sorte.

Mike estava ansioso para desentorpecer as pernas um ou dois dias e depois insistir com Christos para transportá-lo a Atenas. Com a ajuda de Eleftheria, caminhava trôpego pela cabana, vestindo roupas ásperas de camponês. Melpo ofereceu-lhe uma bengala pesada. Apoiado nela e com um braço passado pela cintura de Eleftheria, saiu para o ar livre, atravessou a horta e transpôs o portão. Embora profundamente cônscio da proximidade da jovem, esforçou-se por afastar idéias perturbadoras.

Na praça principal foi rodeado por toda a aldeia. Primeiro chegaram as crianças, que correram a chamar os pais. Mães e filhas saíam das casas, homens abandonavam os arados e os campos. A praça ficou cheia de gente excitada.

E Michael Morrison, o cético, o que zombava dos sentimentos, comoveu-se profundamente. Apertando com mais força o ombro de Eleftheria, sorriu, e ela não fez o menor esforço para ocultar seu orgulho de enfermeira.

Passaram-se dois dias. Mike sentia que as forças lhe voltavam e prolongou os passeios com Eleftheria, que começava a perder um pouco da timidez.

A aldeia de Paleachora jazia tranqüila no declive de uma colina, com vista para o Mar Egeu, pontilhado de ilhas. Parecia com qualquer outra aldeia da província: uma rua estreita e tortuosa, ou duas, atravessando um aglomerado de casas caiadas de branco com telhados de palha.

A igreja do Profeta Elias ficava um tanto isolada, no alto de uma pequena elevação, onde rebanhos de cabras e cordeiros pastavam sob o olhar vigilante de jovens pastoras

Pinheirais cobriam as colinas e toda a paisagem era um calmo traçado de vinhedos, campos de milho e olivais.

O silêncio era, a intervalos, rompido pelo som de um rude arado trabalhando a terra, o grito de uma criança deitada à sombra de uma árvore enquanto a mãe trabalhava num campo próximo, o gemido do moinho, ou o balido das ovelhas.

A aldeia de Paleachora ficava situada na extremidade norte da província de Larissa, na infindável costa leste da Grécia.

Mike e Eleftheria, caminhando de mãos dadas, passavam diante da igreja do Profeta Elias e dirigiam-se ao rio que atravessava uma clareira do bosque de pinheiros. Na paz e serenidade daquele cenário pastoril, Mike achava dificuldade em concentrar-se nas lições de grego. E Eleftheria, jogando a cabeça para trás, riu de seus esforços para pronunciar o S ou o Z com a necessária suavidade. Mas só ria quando estavam a sós, longe dos olhares curiosos dos aldeões. E Mike supreendia-se acariciando o rosto moreno, ou, ao passar o braço pela cintura da jovem, notando que seu rosto infantil adquiria um ar sonolento e muito feminino. Às vezes ficavam em silêncio durante muito tempo. E Mike xingava a si mesmo por impressionar-se com a beleza da jovem e deixar que a mente se afastasse de sua missão. Após a terceira visita à floresta compreendeu que precisava tomar uma decisão.

Mal tivera oportunidade para dizer um “olá” aos outros dois refugiados britânicos da Paleachora e evitava cuidadosa­mente os que, de passagem se escondiam na igreja. Mas viu-se envolvido por diversas vezes em conversa com um australiano que se chamava Bluey e estava escondido na cabana de uma família a poucos passos da de Christos. Destacava-se por um único detalhe: uma constante pressão de gás no estômago. Quase todas as suas sentenças eram pontuadas por arrotos. Bluey, além de repetir a história de sua fuga de Corinto, revelou algo de interesse para Mike. Aparentemente diversas famílias gregas de Atenas forneciam barcos para os soldados britânicos fugirem para o norte da África. Mike registrou a informação como um trunfo no caso de algo sair errado quando tentasse entrar em contato com o Dr. Harry Thackery.

A maior parte do tempo, contudo, Bluey passava falando mal dos ingleses. . .

— Deixar-nos perdidos neste maldito lugar! Onde diabo está a maldita Marinha Real, é o que pergunto, Jay. Um sangrento Dunquerque depois do outro... Não que eu tenha alguma coisa contra o povo grego, Jay. São tão bons como quaisquer outros, e as garotas. . . Mas digo que se não fosse por nós, os Anzacs e o resto das tropas da Commonwealth, os malditos “hunos” estariam em Londres, essa é que é a verdade... E eles nos largam aqui! Quem vai lutar por eles agora, pergunto?

Como neozelandês e irmão “Anzac”, Mike era obrigado a concordar.

— Você perdeu todo o inferno de Corinto, Jay...   Teve sorte. Enterrávamos os mortos diariamente em fossos de lama. Lugar horrível aquele. Todo mundo era tarado. Os alemães são uma raça que não presta mesmo. Vou contar o que aconteceu: quando tentei escapar pela primeira vez, quem você acha que me denunciou? Um maldito médico inglês...   Mesmo naquele inferno   de Corinto   há gente que   ainda   consegue piorar   as coisas. . .

Nada mais vil que um inglês, concordou Mike.

— Vou partir para Atenas e descobrir uma família que me pague a passagem para o norte da África.

Quando Mike indagou de que modo pretendia chegar a Atenas, Bluey foi meio vago. Todos os trens estavam carregados de inspetores, era preciso um passe para viajar, mesmo que fosse um pequeno trajeto naquele país, que fervilhava de fugitivos.

— Sabe de uma coisa, Jay? Você fala como aqueles ianques que eu vi no cinema.

Isso era porque ele trabalhava numa companhia de transportes marítimos durante quatorze anos, explicou Mike. Terra simpática, a América.

 

Dez dias passaram-se após a chegada de Mike a Paleachora. Estudando a situação, compreendeu que estaria encurralado, a menos que Christos o ajudasse a ir para Atenas. Aguardou pacientemente que o grego dissesse que pretendia sair de barco, mas o assunto não foi mencionado. Na décima primeira noite, Mike decidiu tomar a iniciativa.

Após o jantar, Christos afastou Melpo e Eleftheria da sala e os dois instalaram-se diante de várias garrafas de krasi e um pouco de tabaco malcheiroso.

— Christos, meu caro amigo, quando pretende viajar nova­mente no seu barco?

— Assim que descubra uma carga conveniente.   Há muita coisa em movimento hoje em dia. Eu espero.

Christos, vou falar francamente: preciso ir a Atenas.

— Não gosta daqui?

— Gosto muito.

— Então, por que quer partir? Você é um tolo. Será apanhado sem falta.

Você sabe porquê, Christos. Estou pondo em perigo toda a aldeia. Queimaram uma ontem por ter abrigado um fugitivo. Além disso, como soldado, é meu dever procurar fugir.

— A colheita será ótima este ano, Jay.   Tenho uma excelente proposta em negociação. Conseguirei assim adquirir alguma propriedade em Atenas.

Mike rangeu os dentes, bebeu um gole de krasi e fumou seu cachimbo.

— Bem, agora que me recuperei, é melhor mandar Eleftheria de volta a Dernica. Sua mãe idosa deve precisar dela.

— Minha mãe idosa está em casa de um irmão e se sente muito bem.

— O que quero dizer, Christos, é que agora não preciso mais de enfermeira.

Christos coçou a careca, serviu-se de vinho e fitou Mike como se ele fosse doido.

— Você não gosta da moça? Fez alguma coisa errada?

— Gosto muito dela.

— Então, por que a mandarei de volta a Dernica?

— Bem, o fato é que... talvez eu goste demais. A situação é um tanto delicada. Veja se compreende. Você é homem, sabe o que poderia acontecer. Gosto muito de você, Christos e não gostaria de magoar ninguém.

— Jay, você fala como um tolo.

— Bem, o que eu estou tentando dizer é que poderia haver complicações se ela ficasse.

— Complicações. Mas você disse que gosta dela.

— Sim, mas...

— Ela quer ficar. Você gosta dela — está decidido: ela fica! — E acrescentou, como quem se lembrasse depois:   — Além disso, minha pobre mulher, Melpo, está sobrecarregada de trabalho.

Era a primeira vez que reconhecia a simples existência de Melpo.

Os dois se fitaram por algum tempo como obstinados galos de briga. Mike estava perturbado com a atitude astuciosa de Christos.

— Por que não vai assistir as danças, Jay? Eleftheria quer ensinar a você o syrthos, para que possa tomar parte... Gosta de dançar?

Mike, afastando violentamente a cadeira, saiu da sala, acompanhado pelo sorriso infantil de Christos.

Naquela noite, Mike despertou coberto de suor frio, coração disparado. Afastando as cobertas, dirigiu-se à janela. Finalmente conseguiu acalmar-se, afastando a idéia do pesadelo, e ficou a olhar a aldeia adormecida. No quarto ao lado ouvia Christos e Melpo ressonando ritmadamente. Pela janela avistava o celeiro onde dormia Eleftheria. Imaginou-a deitada num colchão e em pensamento traçou todas as linhas do seu corpo macio.

Furioso, voltou as costas à janela. Deixara-se embalar naquele paraíso de tolos e estava zangado por saber, lá bem no fundo, que não queria sair de Paleachora. Sim, a aldeia transformara-se num irresistível atrativo.

Mas no pesadelo, dezessete nomes haviam passado pela sua mente com o ruído de uma locomotiva. E as rodas repetiam: Dr. Harry Thackery Dr. Harry Theackery Dr. Harry Thackery. Súbito, o trem chegou à baía de São Francisco, envolta em nevoeiro, e ele ouviu as vozes de seus filhos, Jay e Linn, gritando aflitos da água: “Papai — papai — papai...”

Mike Morrison estava prisioneiro no paraíso e sentia-se zangado. Christos ainda não completara a jogada, porém Mike pres­sentia o que estava para acontecer. Sem sua ajuda nada podia fazer, a menos que se arriscasse a caminhar os duzentos quilômetros que o separavam de Atenas. Em terra estranha, sem do­cumentos, sem passe, sem amigos, os riscos seriam arrasadores. Demasiados para a lista Stergiou. Por outro lado, não podia insistir com Christos, irritando-o.

O sonho de Mike tivera outra parte, um coro distante murmurando: Eles o encontrarão eles o encontrarão eles o encontrarão.” Sentiu-se apavorado. Sabia muito bem que cada dia em Paleachora o aproximava de Heilser. O alemão não estaria dormindo e mais cedo ou mais tarde a pista o condu­ziria à aldeia.

Ponderando cuidadosamente o assunto, decidiu conceder mais alguns dias a Christos para então desistir das idéias da­quela noite. Em seguida, insistiria, mesmo que tivesse que ir a pé para Atenas.

Olhou novamente pela janela, em direção ao celeiro onde Eleftheria dormia. Depois subiu à cama imensa, montada sobre o forno e, cobrindo-se, ficou deitado de costas, olhos abertos na escuridão, ouvindo o ressonar de Melpo e Christos. Não conseguiu dormir.Konrad Heilser bebericou seu scotch com água e acendeu novo cigarro. Zervos, o grego, estava sentado ao seu lado, amarrotado e sonolento. O alemão fitou o altivo pescador chamado Maxos, de pé do outro lado da larga mesa envernizada.

Maxos retribuiu o olhar de Heilser. Seus músculos eram visíveis através da apertada camisa de malha azul-marinho. Os braços fortes pareciam quase negros pela exposição aos ventos e ao sol escaldante. Tinha a fisionomia rígida e angular. Seus cabelos caíam em cachos negros e da orelha direita pendia um pequeno brinco de ouro.

Maxos estava zangado porque fora arrancado de seu barco por Zervos, quando se encontrava na ilha de Kea. Não podia pescar, nem beber krasi. Para ele tanto fazia que o Sr. Heilser encontrasse ou não quem estava procurando. Pais Maxos era meio peixe e, fora do seu barco, peixe fora d'água.

— Vamos — falou Heilser — conte a história mais uma vez.

— Já contei cinqüenta vezes — resmungou Maxos.

— Quero ouvi-la novamente.

Maxos suspirou.

— Depois posso voltar ao meu barco?

Talvez.

Maxos tornou a resmungar.

— Eu estava num bar do porto, em Nauplion, bebendo sozinho. Acabava de voltar de uma ótima pescaria. Cada qual deve cuidar de si.

Heilser ignorou a indireta. O que lhe interessava era que Maxos se encontrasse no bar na mesma noite em que Morrison havia saltado do trem em Nauplion.

— Havia um homem bebendo na mesa ao lado. Ele tam­bém não se intrometia com ninguém.

— Você disse que não o conhecia.

— Eu o vi há uns quatro meses no mesmo bar. Fazia par­te da tripulação de um barco que vinha de Larissa. Estava vestido como um camponês daquela região e também falava como eles.

— Nunca havia conversado com ele?

— Já disse que não. Já disse mais de cem vezes que não.. Quantas vezes quer que eu repita isso?

— Continue sua história.

— Conforme disse, já vi o barco uma vez, antes. Há quatro meses.

Que sabe sobre o barco?

— Só que transportava cereais e tabaco e várias outras coisas, provavelmente roubadas. Não negocio com gente assim.

— Como sabe tanta coisa a respeito do barco?

— Da gente do cais. Há sempre mexericos por ali. As pessoas têm a mania de se imiscuir na vida alheia.

— Esta é a segunda viagem que o barco faz a Nauplion. Tem a certeza de que é o mesmo barco?

— Tenho   certeza.   Nunca   esqueço   um rosto.   O   mesmo tripulante.

— E tem certeza de que vem da província de Larissa?

— Conheço muito bem um camponês da província central.

— Você estava bebendo, sem falar com ninguém. Que aconteceu então?

Outro homem entrou no bar e contou ao que estava ao meu lado que precisava voltar a bordo. Os dois discutiram. O que estava bebendo não queria voltar porque ia a um bordel. Então o outro mandou que ele falasse mais baixo. Tinham um passageiro a bordo e precisavam sair imediatamente de Nauplion. Foi só.   Os dois saíram e eu continuei sozinho. No dia seguinte, parti novamente no meu barco até que ele — apontando para Zervos — veio me procurar em Kea e começou a fazer uma porção de perguntas,

Heilser comprimiu um botão e dois soldados alemães en­traram na sala. Com um sinal de cabeça mandou que retirassem o pescador da sala.

— Posso ir para o meu barco?

Heilser não respondeu.

— Prepare-me uma bebida — ordenou a Zervos.

— Que achou?

— É a solução, se é que existe uma solução. Em Nauplion pegamos dez fugitivos britânicos quando procurávamos Morri­son. Se Morrison estivesse em Nauplion teria sido também aprisionado. Deve ter fugido por mar. Dos que escaparam nesta área foi o único que desapareceu.   O pescador estaria enganado com respeito a Larissa?

— Um grego conhece outro. Não se enganou.

— Evidentemente   Morrison   está   ferido. Ficará   escondido durante algum tempo no interior do país. Não tentou entrar em contato com ninguém que estivesse em Atenas ou Salônica.

— Poderia encontrar-se em trinta aldeias — disse Zervos. — Conseguiremos revistá-las todas ao mesmo tempo?

— Está louco? Há mais de cem fugitivos naquela região. Não, revistaremos as aldeias uma por uma. Não levará muito tempo. Traga aqui, amanhã, trinta gregos. E também uma dúzia de turistas italianos. Tomarei medidas para que as tropas sejam afastadas da área litorânea. Não quero que ele se assuste e fuja para as colinas.

Zervos colocou a bebida diante do superior, perguntando:

— Quer que eu apresente à Embaixada Americana uma queixa relativa à Sociedade de Arqueologia?

— Não. Se esse Dr. Thackery está ajudando aos fugitivos britânicos, deixe que continue. Precisamos colocá-lo sob vigilância vinte e quatro horas por dia. Tenho um palpite. Não os sigo com freqüência.   Thackery entrou na história um tanto tarde, assim como o próprio Morrison. Aposto como é ele o contato.

 

Mike gostava de passear pelos vinhedos, colhendo dos ramos as suculentas uvas moscatel. E de sentar-se à sombra de um pinheiro, observando os velhos e os meninos descendo a estrada com carregamentos de lenha, conforme faziam há séculos. Era agradável sentir o cheiro agudo dos imensos sacos de queijo de leite de cabra, ficar no alto de uma colina e observar o milho inclinando a cabeça dourada. Era uma delícia ver as jovens descalças, de seios opulentos, caminhando muito eretas e bonitas, vindas da fonte, equilibrando nos ombros nus pesados cântaros.

Acima de tudo gostava do crepúsculo, quando o sol se escondia por detrás do pinheiral. As pastoras, cajado na mão, desciam pela trilha estreita, rodeadas pelos rebanhos. A tem­peratura refrescava e uma canção subia aos lábios de todos. A melodia atravessava as colinas, era repetida por outro cantor, depois outro, até que Paleachora inteira ecoava, numa harmonia de vozes, uma velha canção.

A aldeia transformara-se num refúgio para Michael Mor­rison. Embora combatesse constantemente a voz que insistia em que ele permanecesse mais um pouco, ansiava por aquela satisfa­ção que jamais sentira.

Os homens reuniam-se no café para conversar sobre grandes e pequenas coisas, enquanto as mulheres preparavam a refeição da noite. Mais tarde sentavam-se ao redor das mesas rústicas, diziam as orações da noite e comiam o abençoado pão, galinha e uvas como sobremesa...

Depois que as mulheres terminavam suas tarefas, acendia-se uma fogueira na praça e todos dançavam à sua luz. Primeiro, um suave sirton, gentil como o povo grego.   Depois, quando as chamas tornavam-se mais altas e o vinho subia à cabeça, passavam aos gritos violentos do calamatiano. A dança tornava-se cada vez mais animada e os homens rodopiavam até a exaus­tão, incitados pelos gritos dos espectadores. Havia um brilho especial nos olhos dos velhos, que recordavam os tempos em que conseguiam saltar e rodopiar. Acabavam entrando na roda para reviver a juventude perdida.

Uma noite, Mike sentiu-se particularmente animado e, entrando na roda com Eleftheria, dançou com ela até ficar exausto, sob os aplausos do pessoal da aldeia. Terminou a dança com um salto, disparando no ar as pistolas, e depois deixou-se cair nos braços de Eleftheria.

Mike tinha a impressão de que a própria alma da Grécia dançava à luz da fogueira.

Em seguida, despediam-se as mulheres e os homens reuniam-se no café, ou na casa de um deles, para conversar pela noite adentro. E Christos tornava a contar suas aventuras nos bordéis e sua corajosa luta contra os búlgaros.

A cada dia Mike aprendia alguma coisa sobre aquela terra estranha e maravilhosa, onde se originara o ideal que se tornava a eterna luta do homem — o ideal de liberdade. Desde os primeiros tempos a Grécia fora um país atormentado pela natureza — fome, inundações, terremotos — e pelo homem — conquistas, guerras, lutas civis. Sangue embebia seu solo. Mas o grego era de aço. Sua última “peste” — a conquista alemã — passaria como as outras.

Era como se a Grécia estivesse sendo provada através dos tempos por ter concebido o ideal de liberdade. Os breves tempos de paz e abundância eram simples interlúdios na perene prova de fogo. Mas quem quer que visse um homem dançando o calamatiano saberia com certeza, como Mike Morrison sabia, que a Grécia voltaria a ser livre.

A presença dos fugitivos em Paleachora tornou-se um segredo público. Os suprimentos de cereais diminuíam nos grandes centros e cada trem que chegasse de Dadi, o terminal mais próximo, trazia gente da cidade em busca de alimentos, carregan­do objetos, às vezes de grande valor, para trocar por trigo e outros cereais.

Christos e os outros camponeses foram rápidos em apro­veitar-se da trágica situação. O trigo subiu a preços fabulosos.

Quando a inflação tornou o dinheiro quase sem valor, a barganha passou a ser o método de comerciar. Christos, proprietário de um moinho, viu-se numa situação extraordinária. Em troca do trigo e outros produtos alimentícios, adquiriu meia dúzia de propriedades em Atenas.

Mike censurava-o amargamente por isso, mas Christos achava estar fazendo um favor à gente da cidade por conservá-los com vida, acrescentando que eles sempre haviam considerado os camponeses cidadãos de segunda classe, enganando-os há muitos anos.

Quando a presença de fugitivos em Paleachora tornou-se conhecida, moças da cidade grande”, vindas de Dadi, procuraram a aldeia para se divertirem com os britânicos, a quem admiravam imensamente. Estas não eram nem um pouco tímidas. Tendo abandonado a velha tradição de inferioridade feminina, gabavam-se de exibir sua igualdade diante dos camponeses. Estes, chocados, preveniam os ingleses que elas eram todas pros­titutas com doenças venéreas, ou espiãs alemãs, ou ambos. Mike parecia inclinado a concordar com a última explicação e manteve-se afastado de todas as estranhas.

Poucas semanas após o colapso britânico na Grécia, centenas de fugitivos percorriam o país e eram recebidos pelo povo de braços abertos. Até nas cidades o povo partilhava com eles o último pedaço de pão.

A situação tornou-se problemática para os alemães. Mesmos indefesos, os britânicos davam esperanças ao povo com sua simples presença. Severas medidas de contenção foram bai­xadas, espiões espalhados, suborno oferecido, armadilhas esta­belecidas, ameaças feitas. Os alemães começaram a utilizar-se de traidores britânicos como isca. E então veio a notícia de que qualquer aldeia que abrigasse um fugitivo seria completamente arrasada. Mas os ingleses continuavam a fugir e a ser abrigados.

Para Mike, tudo se resumia numa coisa: Aquele paraíso era uma ilusão. Mais cedo ou mais tarde, uma criança falaria a um dos “turistas” italianos ou a uma das moças da cidade gran­de.   Precisava convencer Christos a agir imediatamente.

Embora as opiniões em Paleachora fossem arrasadoramente pró-britânicas e mais ainda pró-americanas, os efeitos da ocupa­ção fizeram-se logo sentir. Taxas, uma parte das colheitas e depois seus próprios lares foram ameaçados. Os mais fracos ba­quearam sob a pressão e começaram a achar que seria melhor que os fugitivos se pusessem a caminho. Pois mesmo com a nova taxa, o preço do trigo estava alcançando níveis jamais conhecidos anteriormente.

A maioria apoiava a resistência e considerava um dever sagrado abrigar os refugiados. Outros juravam queimar suas co­lheitas antes de entregar aos alemães um só grão de cereal.

Mas Paleachora estava cada vez mais tensa. Mike deixou de sentir-se bem no café. As discussões prolongavam-se noite adentro. E um dia as suspeitas e os cochichos substituíram o canto e as danças. Uma aldeia vizinha fora completamente arra­sada. Suspeitava-se de várias famílias que haviam se tornado colaboracionistas.

— Nós o encontramos — disse a voz de Zervos ao telefone.

Konrad Heilser sentou-se ereto na cama.

— Onde está você?

— Dadi.

— Tem certeza?

— Plena certeza — replicou Zervos.

— Alguém de sua gente o viu?

— Não, mas temos aqui um camponês que nos passa in­formações.   Contou de um fugitivo inglês que fala como um americano.   A descrição de Morrison é perfeita. Coincide até com o fato de que Morrison chegou de barco e feriu-se ao saltar de um trem de prisioneiros.

Heilser sentiu o coração disparar enquanto jogava longe as cobertas e dizia à nova amante que tornasse a dormir. Desabotoando o pijama, falou ao telefone:

— Onde está ele?

— Numa aldeia chamada Paleachora, no extremo norte da província.   Resolvi consultá-lo antes de seguir para prendê-lo com uma escolta.

— Não,   espere um instante.   Uma   simples   escolta talvez não baste.

— Não compreendo — disse Zervos.

— Recebi um relatório segundo o qual camponeses estão organizando resistência armada. Melhor estar prevenido.

— Que devo fazer então?

— Quantos homens serão necessários para isolar a aldeia?

— Duzentos ou trezentos.

— Não faça coisa alguma. Seguirei para Dadi agora mes­mo. Organizaremos um raid que atingirá a aldeia amanhã, du­rante a noite.

 

A calva de Christos e seu bigode lustroso brilhavam à luz da vela. Levando a mão ao coração, disse:

— Jay, gosto de você como de um filho. Não deve partir.

— Tenha juízo, Christos. Mais um dia, mais dois, e os ale­mães atearão fogo a Paleachora, arrasando-a completamente.

Christos cuspiu no chão, praguejando contra os alemães e depois benzendo-se.

— Mesmo que você vá embora nós não voltaremos as cos­tas aos englezos... Não! Não permitirei que você parta!

Apesar de seus negócios escusos, Christos era grego até ao âmago.

— Tenho   algum dinheiro — cinco   milhões   de   dracmas. Tome-o — disse Mike.

— Você me insulta. Julga que Christos se importa com o seu dinheiro? Você, Jay, é meu amigo.

— Está bem. Então irei sozinho.

O grego resmungou em voz baixa:

— Cinco milhões de dracmas, cinco milhões de dracmas. Pensa que Christos só quer dinheiro? Mesmo que eu possuísse toda a quantia capaz de ser transportada no meu barco não po­deria comprar com ela uma saca de milho. Eu lhe daria meu barco, mas não serve para travessias marítimas. Além disso, em uma hora seria encontrado por uma patrulha...   E você não conhece as passagens pelos campos minados... Além do mais...

— Não pedi que me leve à África. Só quero seguir para Atenas. Imediatamente.

Christos brincou por um momento com seu copo de krasi e em seguida acendeu o imenso cachimbo. Olhando tranqüila­mente para Mike, falou sem os habituais circunlóquios.

— Minha sobrinha Eleftheria é uma jovem sadia, não acha?

Mike sorriu interiormente. Christos finalmente decidira revelar as cartas. E concordou que Eleftheria era saudável como um cavalo.

— Sabe, Jay, é costume em nosso país que o noivo visite o pai levando uma aliança e os dois fazem então um contrato. Falo agora como guardião de Eleftheria. Possuo um terreno em Dernica, com muito, muito boa terra, onde mora minha mãe idosa. E reservei um bom dote para Eleftheria. Você fala grego muito bem para quem está aqui há tão pouco tempo. Se voltasse como marido dela... Mike meneou a cabeça.

— Sou casado e tenho dois filhos.

Christos levantou-se e cruzou as mãos às costas. Caminhan­do de um lado para outro parecia um boneco, vestido naquela justanella. Súbito, deteve-se suspirando.

Jay, meu bom amigo, quero dizer-lhe uma coisa. No instante em que o coloquei no meu bote em Nauplion, disse a mim mesmo: isto é que é um homem.   Este homem é alguém. Sou rico, agora, mesmo que você não concorde com o que eu faço. Mas todo homem deseja uma coisa: um filho. Melpo não me deu um filho. Jay, gostaria muito...

Mike levantou-se, saiu da cabana, atravessou a horta de Melpo e saiu para a estrada. Viu Christos no limiar, com sua saia rodada, vindo a sua procura. Paleachora estava adormecida. Dormia um sono inquieto, agitado, abalado pelos problemas da guerra.

Mike encaminhou-se para a colina, passando pela igreja do profeta Elias, e sentou-se sob um cipreste, contemplando a região banhada em luar.

Há homens que seguem um arco-íris. Mike, porém, penetrara direto nele. Ali se encontrava o refúgio, bem longe da realidade, com que tantos sonhavam.

Mas, pensando nas colinas de São Francisco, sentiu-se cheio de amor por elas. A lembrança do nevoeiro rolando preguiçoso, ou atirando-se zangada, pela Golden Gate, as árvores de Muir Woods projetando-se para o céu, as ondas quebrando-se contra os rochedos de Land's End, tudo isso ele amava. Mas seu amor fora sempre melancólico, mórbido, transformando-se em amargor nas páginas que escrevia.

A Grécia abrira uma porta interior ao amor de um povo, amor que jamais experimentara.

Por diversas razões Mike gostaria de voltar a Christos e dizer: “Sim, ficarei. Irei para Dernica com Eleftheria, lavrarei a terra, dançarei o syrtos, beberei ouzo no café e aprenderei a cantar ao regresso do campo”.

E pôs-se a rir de si mesmo, meio envergonhado por sentir-se fascinado por um enredo tão mau.

Christos estava sentado à mesa quando Mike entrou. Instalando-se ao seu lado, serviu-se de um copo de vinho. Melpo ressonava no quarto ao lado.

— Não a amo — disse Mike.

— Ora! Que é que você está dizendo? Quem precisa de amor? Ela terá seus filhos, tecerá para você, esfregará seus pés. Para que serve o amor? Vocês, englezos, são todos loucos! Querem que suas mulheres sejam como aquelas prostitutas de Dadi?

Mike meneou a cabeça. Christos sabia que seria inútil tentar novos argumentos. Com um olhar de mágoa e tristeza, bateu na mesa com o copo de vinho, suspirou e voltou-se para sair.

— Está bem, está bem. Partiremos para Atenas amanhã, ao nascer do sol.

 

— Jay! Acorde!

Mike rolou na cama e apoiou-se num cotovelo. Christos, de camisolão e touca, vela na mão, inclinava-se sobre ele. A vela tremia e seu rosto estava tão pálido como a cor dos seus bigodes.

— Que houve? — murmurou Mike, não de todo desperto.

— Recebemos um aviso da aldeia próxima. Há soldados alemães por toda a região e dirigem-se a Paleachora.

Mike atirou longe as cobertas.

— Vá para a igreja, depressa! — falou Christos.

Vestindo-se às carreiras, Mike verificou as pistolas, trans­pôs de um salto a porta e, conservando-se à sombra das cabanas, dirigiu-se à colina. Percorrendo o caminho de terra, entrou na igreja do Profeta Elias.

Bluey já se encontrava ali com três outros fugitivos. Vesti­dos a meio, estavam agachados junto às janelas, tremendo ao ar frio da noite. Bluey agarrava com força um longo rifle.

Os cinco reuniram-se, assustados com os ruídos da própria respiração e com os arrotos de Bluey.

A noite estava ameaçadoramente silenciosa.

— Acho   que   é   melhor   fugirmos   agora   —   murmurou Bluey.

— Fique quieto — ordenou Mike. — Talvez estejam justamente à nossa espera.

Entreolharam-se interrogativamente.

— Façam o que quiserem — falou Mike. — Vou ficar onde estou.

Sentando-se de costas apoiadas na parede, esfregou os olhos. A igreja vazia tinha uma estranha atmosfera à luz trêmula das velas que ardiam no altar situado na outra extremidade.

Bluey agarrou Mike pelos ombros, apontando a janela. O coração de Morrison bateu mais forte ao ouvir ordens guturais soarem na aldeia. A escuridão era profunda, não se via coisa alguma. Só se ouvia os ruídos...

Vozes gregas, umas sonolentas, outras zangadas, outras amedrontadas. Novas ordens em alemão.

— Devem estar reunindo toda a aldeia — murmurou Bluey, tentando conter os arrotos nervosos.

Som de motores, caminhões entrando na aldeia. Um disparo de rifle! Vozes gregas iradas! Mais disparos. Um lamento de mulher. Mike seria capaz de jurar que se tratava de Melpo.

Silêncio...

Motores de caminhão — um a um — afastando-se da al­deia, perdendo-se na distância. Caladas as vozes gregas. Só se ouviam os alemães.

Um som infinitesimal chegou aos ouvidos dos cinco homens. A própria pistola de Mike saiu do cinto, enquanto ele se esforçava por perscrutar a escuridão.

Uma sombra — uma silhueta lá fora... Mike apontou e Bluey assentiu, baixando também o rifle.

A sombra moveu-se pela trilha acima, em direção à igreja. O rosto de Bluey estava coberto de suor.

Passos lentos, trôpegos. A sombra tornou-se cada vez maior, passou pela janela, cobriu as paredes da igreja. Mike ergueu a pistola.

A sombra desapareceu. Os cinco homens encolheram-se contra a parede, armas voltadas para a porta. Esta abriu-se.

— Eleftheria!

Ela parou um instante, arquejando, vestida às pressas numa simples saia e blusa. Mike viu-lhe o rosto alterado pelo terror, à luz das velas. Estava incapaz de falar.

— Christos — murmurou ele. E   arrancando o rifle das mãos de Bluey correu para a porta. Os outros quatro atiraram-se sobre ele e rolaram pelo chão, lutando.

— Maldito idiota! Você nos denunciará a todos!

Os dedos de Mike afrouxaram em torno da arma. Rangendo os dentes, bateu com o punho cerrado na parede, depois arrastou-se até um banco e deixou-se cair nele.

Um sopro de vento penetrou na igreja, fazendo dançar lou­camente as chamas das velas e projetando estranhas sombras nas paredes.

Mike fitou Eleftheria. Seus olhos pareciam os de uma louca. Deslizando pela parede, aproximou-se da porta. De um salto, Mike agarrou-a pelo braço. Gritando histericamente, Eleftheria mordeu-lhe a mão.

Botas alemães subiam a trilha!

Mike sacudiu-a. Ela abriu a boca para gritar e lutou para libertar-se. Erguendo o punho, atingiu-a no rosto e ela caiu desmaiada nos seus braços.

Vamos nos dispersar e dar o fora daqui! — ordenou Mike.

Atirando a moça sobre o ombro, atravessou a igreja em direção a uma pequena janela junto do altar. Fazendo passar primeiro o corpo de Eleftheria, rastejou logo após.

Disparos de rifle atingiram a porta da igreja!

Tomando a jovem nos braços, Mike subiu com dificuldade a trilha que levava ao bosque... Trezentos metros... Mergulhando na primeira linha de árvores caiu de joelhos e deitou Eleftheria no chão. Esfregando os braços entorpecidos, lutou para recuperar o fôlego.

Uma voz cortou o silêncio.

— Malditos hunos! Nunca pegarão Bluey vivo!

Ouviu-se uma fuzilaria e a voz calou-se.

Eleftheria estremeceu no chão. Seus imensos olhos abriram-se desmesuradamente. Mike colocou-lhe a mão sobre a boca e ela estremeceu com violência. Pondo-a de pé, arrastou-a pela floresta, para longe das botas que se aproximavam.

Depressa, cada vez mais depressa. Os arbustos rasgavam-lhes as roupas e a pele. Depressa, cada vez mais depressa, para longe das lanternas de bolso, dos cães ladrando, das ordens...

Os ruídos tornaram-se cada vez mais distantes. Mike agar­rou-se a uma árvore, tonto, coberto de suor. Eleftheria deixou-se cair no chão soluçando. Rolando na terra, contorcendo-se de angústia, mãos puxando os cabelos, balbuciava como uma doida.

— Levante-se,   tolinha — arquejou   Mike.   — Levante-se. Precisamos sair daqui. Levante! Levante!

Ela respondeu com um grito histérico. Mike novamente colocou-a de pé e esbofeteou-a seguidamente, até que ela caiu contra ele, fraca, murmurando incoerências.

Tomando-a nos braços, oscilante, recomeçou a subir as colinas.

Quando não mais conseguiu carregá-la, arrastou-lhe o corpo sem resistência durante uma hora, duas, três...

Depois caiu também, exausto demais para mover-se. Caiu ao lado dela, que soluçava baixinho. As nuvens abriram-se e uma torrente de chuva açoitou seus corpos torturados.

De madrugada, Eleftheria e Mike saíram de rastros de sob os arbustos e caminharam até o alto de uma colina. Lá embaixo viam-se as cinzas fumegantes do que fora a aldeia de Paleachora.

 

Eleftheria sentou-se numa pedra, exausta demais para falar, lágrimas esgotadas. Mike não conhecia, nem jamais saberia dizer qualquer palavra que a consolasse. Do celeiro ela vira Chris-íos ser fuzilado na praça da aldeia, resistindo aos alemães, e Melpo assassinada a baioneta quando se ajoelhava junto ao marido.

Na confusão, conseguira fugir do celeiro junto com alguns outros aldeões. A fuga de Mike só se tornara possível porque o grosso das tropas alemãs estava concentrado no cerco dos camponeses, enquanto os homens restantes dispersavam-se na perseguição dos cinco fugitivos. E em sua curta estada em Paleachora, Mike decorara a disposição do terreno e os locais em que a floresta era mais espessa.

Os dois vaguearam pelas colinas o dia inteiro, afastando-se cada vez mais das cinzas de Paleachora. Lá do alto podiam avistar as patrulhas alemães em atividade, descrevendo um círculo cada vez mais amplo, até que, ao crepúsculo, desistiram, desanimados.

A noite encontrou Mike e Eleftheria ainda entorpecidos pelo choque, molhados, estômagos protestando de fome.

Mike achou que seria seguro acender uma pequena fogueira. O calor das chamas reanimou-os. Juntando braçadas de agulhas de pinheiro, colocou-as junto à fogueira e depois ajoelhou-se ao lado de Eleftheria.

— É melhor que você durma um pouco. Amanhã cedo partirá para Dernica.

Ela fitou-o com os olhos negros sem brilho, contornados de vermelho.

— E você?

— Não se preocupe comigo. Já causei desgraças demais.

— Não se culpe. Os alemães não estão na Grécia por sua causa.

Grande consolo, pensou Mike. Maldito consolo. Soutar não brincara. Heilser revolveria cada árvore e cada rochedo. Lutou para afastar a sensação de inevitável destino, mas não conse­guiu. Que chance teria contra aquelas forças? Quantas vezes mais conseguiria escapar?

Passando o braço pela cintura da jovem, levou-a para a cama de agulhas de pinheiro. Eleftheria deitou-se, estendendo o corpo cansado. Sua blusa estava quase completamente rasgada pelos galhos dos arbustos e Mike viu-lhe os seios morenos, de mamilos rosados e pontudos.

Ela tinha os olhos pregados aos dele. Erguendo lentamente as mãos, afastou a blusa, desnudando-se para ele, silenciosa e imóvel, exceto pela respiração alterada. Fitou Mike, que sentia a circulação acelerada.

Os seios ondulavam e os olhos fixavam-no langorosamente.

Voltando-se bruscamente, Mike falou:

— Vou pegar mais agulhas para cobri-la. Faz muito frio. Empilhando várias braçadas sobre a jovem, atiçou o fogo, pensou alguns instantes e depois armou sua cama ao lado oposto da fogueira.

O sol desapareceu daí a instantes.

Mike rolou para junto do fogo e procurou afastar a idéia da jovem que se encontrava do outro lado. Escureceu. Ela se agitava de um lado para outro, inquieta.

Pareceu-lhe absurdo desejá-la naquelas circunstâncias. Tal­vez fosse justamente o sentimento de completa derrota o que o impelia a aproveitar de um instante de gozo. Não sou nenhum herói, pensou consigo mesmo. Que diabo está acontecendo comigo?

Sabia a resposta. Eleftheria não era o tipo de moça com quem se pode brincar. Não, acabaria de coração partido e ele com remorsos. Voltando as costas ao fogo, fechou os olhos, mas não teria dormido se não estivesse tão completamente exausto.

Seu sono foi inquieto, porém. Novamente percorreu a lista de nomes, os malditos nomes, os dezessete nomes, e viu Stergiou, Soutar e Christos, vestindo sua funsíanella, camisa branca empapada de sangue, Melpo inclinada sobre ele, chorando. E chamas, chamas dançando bem alto, lambendo sinistramente as cabanas brancas, soldados alemães dançando ao redor, dançan­do o calamatiano, e o fogo ardendo cada vez mais alto.

Mike abriu os olhos e soltou um suspiro de alívio.

A floresta estava escura e silenciosa.

Fazia um frio intenso; a fogueira transformara-se num mon­te de cinzas. Sentando-se, esfregou as pernas e saiu de rastos, à procura de gravetos.

— Jay — chamou Eleftheria, voz assustada.

— Estou aqui. Durma.

Ajoelhando-se ao seu lado, atirou mais gravetos na fogueira. Num instante a madeira começou a arder.

— Estou com frio — disse ela.

— Ficará mais quente agora mesmo.

Mergulhando no seu cobertor de agulha de pinheiro, dei­tou-se de costas.

— Jay?

— O que você quer?

— Estou apavorada.

Após uma hesitação, Mike falou:

— Está bem, venha para cá.

Seu coração pulsou mais forte quando a ouviu mover-se e esgueirar-se timidamente para junto dele. Esfregando-lhe os ombros e os braços, murmurou:

— Pobrezinha, você está gelada.

Ela ronronava como uma gata quando o calor principiou a voltar-lhe ao corpo. Comprimiu-se contra ele, enquanto a mão de Mike penetrava-lhe na blusa e roçava a pele acetinada das costas. Cabeça apoiada no peito dele, braços enlaçando-lhe o corpo, murmurou:

— S'agapo.

— Durma, meu bem.

— S'agapo — repetiu, fechando os olhos.

 

Um raio cálido de sol atravessou a folhagem e penetrou na clareira. Mike abriu os olhos. A fogueira apagara-se. Afastando-se de Eleftheria levantou-se, espreguiçou-se e esfregou o estômago vazio. O sol era agradável e sua disposição tendia mais para o otimismo.

A jovem rolou no chão, estremecendo. Mike surpreendeu-se olhando fixamente para a blusa rasgada. Depois voltou as costas, procurando mais gravetos, enquanto Eleftheria abria os olhos e olhava ao redor, apoiada no cotovelo.

Com um movimento de cabeça, jogou para trás os longos cabelos negros e, rodeando os joelhos com os braços, apoiou o rosto neles. Fitando Mike, sorriu, enquanto ele tornava a acender o fogo. Toda ela tinha uma aparência de juventude, frescor, beleza e entusiasmo de súbito, Mike beijou-a nos lábios, sentindo-lhe o corpo arqueado contra o dele. Caíram ao chão, agarrados um ao outro. A mão dele buscou-lhe o seio, rasgando a blusa, e ele sentiu a deliciosa dor de seus dentes penetrando-lhe o ombro, das unhas arranhando-lhe as costas.

Eleftheria era uma pequena selvagem. Mike mergulhou os dedos nos seus cabelos, inclinando-lhe a cabeça para trás. Os olhos negros faiscaram de paixão e o corpo pulsou com a fúria de uma pantera. Os dois rolavam no chão, lutando violentamente, os lábios procurando-se com crescente violência.

Com imenso esforço, Mike afastou-a e levantou-se. Eleftheria continuou agarrada à sua cintura. Segurando-a pelos cabelos, empurrou-a para trás. Ela deixou-se cair, arranhando-se na terra, arquejando de paixão.

Mike lutou para recuperar o fôlego, olhando meio sur­preendido, meio zangado para a jovem seminua. Despindo a camisa, jogou-a para ela.

— Vista isto!

— Por favor, querido...

— Já temos complicações demais! Vista isso!

A ordem áspera assustou-a. Num instante voltou à sua natural timidez e obedeceu.

Durante uma hora nenhum dos dois falou, mas o silêncio dizia tudo que precisavam dizer.

— Melhor ir para a sua aldeia — disse ele, finalmente.

— E você para onde irá?

— Atenas. Chegarei lá, seja como for respondeu, sem convencer nem a ele próprio.

— Nunca   chegará   sozinho   a   Atenas,   você   sabe.   Precisa vir a Dernica comigo.

— E ver outra aldeia incendiada.

— A culpa não é sua, não é sua...

— Qual a diferença?

— Eu não o deixarei — disse ela, baixinho.

Mike sabia que não poderia vaguear indefinidamente pelas colinas. Sabia que não devia ir para Dernica. Sabia que não poderia chegar a Atenas, nem separar-se da jovem. E também que em lugar algum da Grécia estaria seguro por muito tempo diante do implacável Konrad Heilser.

— Tenho uma prima distante, Despo, que vive em Kaloghriani — disse Eleftheria.   — Fica muitos quilômetros colinas adentro. Lá você estará em segurança.

— Não. Preciso ir para Atenas.

— A aldeia é tão distante que os alemães nem sabem que ela existe. De lá eu o ajudarei a ir para Atenas. Venha. Chegaremos amanhã ao anoitecer, se não pararmos de andar.

 

A noite caiu sobre os exaustos viajantes, que tinham a impressão de haver chegado ao fim do mundo.

Encontravam-se a quinhentos metros acima do nível do mar e, olhando para baixo, avistaram cinqüenta cabanas caiadas de branco, aninhadas entre colinas rochosas, áridas, corroídas pela erosão — Kaloghriani. Avistavam também trechos da planície onde se encontrava o aeródromo de Dadi e o pico do monte Kallidromon. A aldeia de Kaloghriani e a terra que a rodeava eram tão pobres quanto isoladas.

Eleftheria bateu à porta de uma cabana, que se abriu revelando um homem gigantesco. Uma barba negra e espessa dava-lhe a aparência do famoso retrato do irado John Brown.

— Kalosorisate! — gritou, ao reconhecer Eleftheria, convidando-os a entrar pela estreita porta da sala humilde. — Despo! gritou, chamando a mulher. É Eleftheria... Traga o krasi... Depressa, mulher!

Uma mulher feia e idosa surgiu da cozinha e abraçou Elef­theria. Mike, sem camisa, ficou imóvel, meio inconsciente, en­quanto os três se cumprimentavam. Finalmente a jovem voltou-se para ele.

— Este é Jay Linden, da Nova Zelândia. Precisa de um lugar para se esconder.

— Englezos? — perguntou o gigante.

— Sim.

Apresentado a Mike como Barba-Leonidas, o homem apertou-lhe a mão com tanta violência que o americano julgou ter destrancado o braço. Entregando-lhe uma camisa imensa, o gigante perguntou se estavam com fome.

Num instante viram-se sentados em banquinhos sem encosto, enquanto Barba-Leonidas mergulhava seu pão numa cuia de lentilhas, fazendo gesto para que seus dois esfomeados hóspedes o imitassem.

Após a refeição, o grego ouviu atentamente enquanto Eleftheria contava a história de Paleacnora, rompendo seu silêncio irado somente com uma ou outra exclamação. Despo, sua mulher, conservou-se afastada da mesa, diante de um tear, e não tomou parte na conversa.

Quando Eleftheria terminou,   Barba-Leonidas anunciou:

— Meu único filho, Yani, tombou lutando contra os ita­lianos na Albânia. Pode dormir na cama dele o tempo que quiser.

Algo na simplicidade franca daquele homem comoveu profundamente Mike. Ali estava um “homem de verdade”, como os pescadores, os operários, os barmen e os estivadores que enchiam as páginas dos livros de Mike. E um elo estabeleceu-se imediatamente entre os dois.

Dispensando amenidades sociais, Barba-Leonidas falou:

Vocês estão muito cansados. Vão dormir e conversaremos mais tarde.

Em seguida, ordenou a Despo que encontrasse lugar numa outra cabana para Eleftheria dormir. Havia apenas duas camas e, como de costume, Mike tinha prioridade sobre uma simples mulher.

— A cama servirá para nós dois — protestou Eleftheria.

Um silêncio de pasmo caiu sobre a sala. Barba-Leonidas lançou um olhar interrogativo a Mike, que respondeu com uma expressão atoleimada. Houve uma troca de olhares entre Mike e Eleftheria. Mike deu de ombros e o gigante pôs-se a murmurar consigo mesmo, sopesando a decisão.

— Não seria correto — declarou, e Mike suspirou de alívio.   Não gostaria nem um pouco de enfrentar nova luta de consciência.

Notara que Barba-Leonidas mostrava-se aborrecido com as menores atenções que ele prestasse à jovem, como um toque de mãos ou um leve sorriso. A raça dos montanheses era certa­mente mais severa em relação ao status social da mulher que os homens da aldeia de Paleachora.

Mike acompanhou Eleftheria até a porta, onde Despo a aguardava, e disse:

— Conversaremos amanhã cedo. Temos planos a fazer.

O sono tranqüilo e a cama macia fizeram maravilhas para o corpo cansado de Mike, que se sentou, esfomeado, à mesa, junto de Barba-Leonidas, para a refeição matinal, enquanto esperavam Eleftheria. Tinha a cabeça cheia de planos para chegar a Atenas. O gigante permanecia em silêncio, sorvendo ruidosa­mente o café escaldante. Como a refeição chegasse ao fim, Mike principiou a ficar alarmado.

— Onde está Eleftheria? — perguntou.

— Voltou a Dernica.

— Por que voltou a Dernica? Foi você quem a mandou?

— Ela voltou. Que diferença faz o motivo? Ela voltou.

— Para mim faz muita diferença!

— Termine seu café, senão esfria.

— Mas...

— Não se altere. Prometeu voltar no sábado.

Antes que pudesse continuar a discussão, Barba-Leonidas saiu para o campo. Mike voltou-se então para Despo, quieta como se fosse muda de nascença.

Resmungando zangado, perguntou a si mesmo de quem teria sido a idéia. Eleftheria quereria prendê-lo naquela aldeia dis­tante, ou o gigante a teria mandado embora por qualquer razão? Não lhe agradava a situação, mas não tinha outra escolha, exceto esperar pelo sábado. E terminou o café.

Barba-Leonidas ficou abismado quando, ao erguer a cabeça do seu trabalho no campo, viu Mike à sua frente.

— Posso ajudar?

— Ora! — rugiu o gigante em sua voz normal. — Vá colher uvas com minha mulher. Tenho que limpar rochedos e não gostaria que meu amigo englezos sujasse suas mãos macias.

Mike aceitou o desafio e pôs-se a trabalhar a seu lado. Um sorriso de orelha a orelha surgiu no rosto largo de Leonidas.

Sim, Kaloghriani era o fim do mundo. Ficava tão distante da civilização como a própria lua. Mike pôs-se a trabalhar ao lado do seu anfitrião, achando difícil manter o mesmo ritmo que ele, embora fosse trinta anos mais moço. Suaram juntos nos campos durante o dia e à noite embebedaram-se lado a lado. Em três dias, o elo que os unia assumiu um caráter definitivo.

Barba-Leonidas achava muito engraçado caçoar de Mike chamando-o de frágil amigo englezos. Mike nada tinha de frágil e quando jovem fora considerado ótimo jogador de futebol na universidade. Os dois armavam ataques de surpresa um ao outro e lutavam para ver quem baixava o braço do outro. Mike conseguia resistir algum tempo, até que Leonidas se cansasse de brincar. Erguia-o então acima da cabeça com uma só mão, atirava-o na moita mais próxima e ambos desatavam às gargalhadas. Mike pensou muitas vezes que o time da universidade deveria ter em seus quadros sete homens como Leonidas.

Embora trabalhasse e bebesse muito, Mike nunca se sentira tão bem. Era maravilhosa a mera sensação de viver, naqueles primeiros dias em Kaloghriani.

Despo, velha e enrugada, vestindo roupas negras tecidas em casa, um único dente suspenso da gengiva superior, não ficava ociosa um só instante. Suas mãos enrugadas estavam em perpétuo movimento — ou junto ao marido nos campos, ou no infindável trabalho doméstico; tratando da horta, das galinhas, apanhando lenha, fiando e tecendo. Horas antes que o sol nascesse já estava em atividade e não parava até muito de­pois que ele desaparecesse no horizonte.

Diariamente, após trabalharem a terra dura, árida, os dois homens dirigiram-se ao café. Ali não se cantava. Os homens fatigados reuniam-se para beber ouzo até a hora da refeição de pão e lentilhas que os aguardava em casa. Em Ka­loghriani não havia nenhum dos pequenos luxos que encontrara em Paleachora.

No entanto, foi ali que Mike encontrou mais generosidade. Embora afastada, a aldeia não ficava bastante remota para homens esfomeados. De vez em quando, algum citadino surgia desesperado em busca de alimento. Nenhum deixava a aldeia sem levar um pouco de trigo, vendido a preço justo, ou simplesmente dado. No sábado, Leonidas e os outros homens da aldeia caçavam coelhos para alimentar a quem se aventurasse até ali. Entre eles não se encontrava a mesquinhez que estava enriquecendo outros camponeses. A filosofia era simples. Havendo dois grãos de trigo, um deles seria partilhado.

E Michael Morrison aprendeu a lenda do local, lenda tão antiga como as próprias colinas. Encontrava-se na “Aldeia dos Ladrões...”

Durante séculos, os aldeões vinham tentando extrair sustento da terra árida até que um rapaz de Kaloghriani aprendeu que era muito mais fácil sobreviver assaltando as aldeias próximas. Durante anos os homens aperfeiçoaram métodos únicos e ousados de assalto. A vista de um homem de Kaloghriani era indesejável em toda a província. O roubo tornou-se uma arte que fazia parte da cultura da aldeia. Não havia um adulto que não houvesse estado na prisão.

O ancião local, Petros, com noventa e nove anos, passara quarenta por detrás das grades. Barba-Leonidas confessava meio envergonhado que na mocidade estivera prisioneiro uns cinco anos — antes de dominar a arte. O crime não era roubar e sim ser pego. Mas, uma vez que tal acontecesse, o homem adquiria na comunidade status relativo ao número de anos que tivesse passado na prisão. E chegar à prisão de Averof, em Atenas, era o máximo. Até o padre Gregorios, a única pessoa alfa­betizada de Kaloghriani, falava muito vagamente sobre os dez anos que passara no Canadá.

Aquela fantástica raça de montanheses deveria descender com certeza dos antigos deuses gregos, pois Barba-Leonidas era pequeno no meio deles. Muitos tinham mais de dois metros de altura e viviam até os oitenta ou noventa anos sem qualquer sinal de doença grave.

Mike via-os atirar num coelho em movimento a quatrocentos metros de distância. Embora conseguisse trabalhar junto a Barba-Leonidas, cometeu o triste engano de tentar andar mais depressa que ele na véspera do sábado. Os homens de Kaloghria­ni eram capazes de caminhar o dia inteiro sem diminuir o passo, tão rápidos colina acima como colina abaixo, sem sequer alterar a respiração.

As mulheres trabalhavam do nascer do sol ao anoitecer e eram tão resistentes quanto os homens, porém muito cedo perdiam a beleza. Quando nascia uma criança, minutos após a mãe abandonar o trabalho do campo, não havia festas nem alegrias. Pois todas as coisas em Kaloghriani — a vida, a morte, casamento e desastres — faziam parte de um dia de trabalho segun­do a vontade de Deus. Era muito difícil sobreviver para que se desperdiçasse tempo com danças, cantos ou lágrimas.

Assim, ao final do quinto dia de estada, Barba-Leonidas anunciou muito tranqüilamente que Mike era seu filho.

— Meu outro filho morreu (não tinha muita importância, pois a vida continuava), e Deus mandou-me outro.

E Mike não podia dissuadi-lo de lógica tão simples.

— Ora!   Se os Aliados estão ganhando a guerra, porque recuam? Responda a isso! Por que recuam? Vocês, englezos, são tolos, tolos!

— Não esqueça que a maior parte do mundo livre ainda não está em guerra.

— Ora!   Quem ganha avança. Quem perde recua.   Se os Aliados estão recuando é porque estão perdendo!

— Veja se isto penetra sua dura cabeça, Leonidas: quanto mais o chefe dos alemães estender suas fronteiras mais difícil será transportar suprimentos e mais fracas serão as forças. Pense na marcha de Napoleão até Moscou, em 1812.

— Ora, ora, ora! Você fala como uma mulher. Se, ao invés de lutar para defender Kaloghriani, eu abandoná-la para correr a Dadi serei derrotado, sim ou não? Sim ou não?

— Pelo amor de Deus, Leonidas, dê-me outro copo.

Chegou o sábado. Mike levantou cedo e aguardou ansioso a chegada de Eleftheria. No meio da manhã sua ansiedade transformou-se em desconfiança. Barba-Leonidas parecia estranha­mente silencioso. Durante toda a semana Mike notara que ele parecia aborrecer-se sempre que ele mencionava a jovem. À tar­de compreendeu muito bem que de duas coisas uma havia acontecido. Eleftheria ou Barba-Leonidas queriam que ele continuasse em Kaloghriani.

Mike exigiu então que lhe explicassem o que estava acontecendo. Barba-Leonidas, incapaz de mentir, recusou-se a responder. Escolhendo um rifle, saiu da cabana, anunciando que ia caçar coelhos.

Mike voltou-se para Despo. A velha ergueu a cabeça do tear e sorriu, submissa.

— Eleftheria. Onde está? — Despo meneou a cabeça. — Onde está, maldição! — E inclinando-se sobre a velha, insistiu: — Maldição, diga-me onde está!

— Ela esteve aqui — respondeu Despo. — Esteve aqui no meio da semana. Você estava no campo. Barba-Leonidas man­dou-a embora.

— Por quê?

— Porque você é filho dele e nunca mais sairá daqui.

 

Mike caminhou furioso pela cabana durante uns quinze minutos. Despo continuou em silêncio, mas suas mãos voavam nervosas pelo tear. Barba-Leonidas o aprisionara. Não tinha meios de ir a Dernica, não sabia sequer qual a direção a seguir. E compreendeu também que jamais obteria a informação de qual­quer dos habitantes de Kaloghriani. Aquela tentativa de pater­nidade do gigante tornara-se um verdadeiro problema. Só lhe restava um caminho: procurar Leonidas e forçá-lo a confessar.

Saiu furioso da cabana, à procura dos caçadores. Mas, ten­do estes quinze minutos de vantagem, seria quase impossível encontrá-los.   Caminhavam   tão depressa   quanto   ele   corria.

Ainda assim, saiu da aldeia na direção que o grupo havia seguido. Durante mais de meia hora procurou inutilmente. Ultrapassando os campos mais distantes penetrou nas terras cobertas de mato rasteiro. Quando o terreno principiou a tornar-se íngreme, na base do monte Kallindromon deteve-se, com­preendendo que seria forçado a esperar pelo final da caçada.

O dia estava quente e ensolarado e Mike não se sentia com vontade de passá-lo na cabana, junto da deprimente Despo. No decorrer da semana contemplara várias vezes a montanha, ima­ginando o esplêndido panorama que se descortinaria do seu pico. E começou a escalada.

Com passo vivo tomou por uma trilha bem batida que percorria uma das encostas, parando a intervalos para beber a água fresca de uma fonte, recuperar o fôlego e orientar-se.

Subiu até tarde, quando o terreno principiou a ficar mais íngreme. Dirigindo-se a uma encosta descoberta, próximo ao cimo, atravessou um campo rochoso, avistando o ponto mais alto a poucas centenas de metros de uma parede a pique.

Sentiu então algo estranho. Sempre tivera medo das alturas, mas no momento não sentia o menor temor. Era como se todas as suas fobias houvessem desaparecido em Paleachora e Kaloghriani. Vibrando de excitação, galgou a parede em direção ao pico.

Um maravilhoso panorama estendeu-se aos seus pés quando chegou ao cimo da montanha, vibrante como um conquistador. A leste via-se o azul do mar Egeu pontilhado de ilhas; a oeste o ondular das colinas. Eletrizado pelo que via, ficou imóvel por algum tempo, mergulhado em maravilhosa sensação. Uma nuvem passou a seus pés e desapareceu, qual fantasmas, na dobra da montanha, para reaparecer do outro lado.

De pé, Mike contemplava e meditava. Que estranha força o arrebatara até ali? Quem desejava que ele visse tudo aquilo? Por que a ânsia que sentira a vida toda deixara de ser uma ânsia?

E pensou nos filhos. A princípio sentia-se torturado quando sua imagem começou a atenuar-se, a distanciar-se, perder a forma, tornar-se estranha. Sabia que continuava a amar aos filhos acima de tudo, mas sabia também que se adaptara a sua perda.

Via agora dezessete homens em elegantes escrivaninhas, ou diante de arquivos, comparecendo a coquetéis, parlamentando com oficiais alemães. Os ingleses deviam estar ansiosos para obter aqueles dezessete nomes. Ele teria fracassado? Ou teria agido bem? Talvez houvesse sido cauteloso demais, desperdiçan­do várias semanas. Ignorava-o. Mas precisava abandonar as colinas. Convencer Leonidas não seria fácil. Ainda na véspera, ele induzira a aldeia a queimar uma ordem alemã para racionamento do trigo.

O único plano definido que conseguira formular consistia em mandar Eleftheria a Atenas para entrar em contato com o Dr. Harry Thackery. E mesmo isso era bastante arriscado. A jovem não era das mais inteligentes e, se houvesse qualquer com­plicação, não saberia desembaraçar-se.

E terei o direito de usá-la como um instrumento, arriscar-lhe a vida? perguntava a si mesmo. Muita gente já morreu por causa da lista Sergiou. A vida humana tornava-se sem impor­tância na luta para descobrir os nomes. Por outro lado, Eleftheria insistiria em ir a Atenas se soubesse do que se tratava. Permanecia o fato de que a vida de ambos tornava-se insignificante na entrega dos dezessete nomes.

Lançando um último olhar ao panorama, principiou a descer a encosta.

Era noite quando chegou à cabana. Barba-Leonidas estava pálido quando Mike entrou. Ao vê-lo, sua fisionomia revelou o alívio que desmentia a anterior despreocupação.

Englezos estúpido! Eu já ia sair para procurá-lo. No futuro, não vagueie sem mim pelas colinas.

E sentou-se à mesa para a refeição da noite. Mike permaneceu de pé.

Amanhã você irá a Dernica buscar Eleftheria.

— Sente-se, coma e não fale tanto.

Agarrando-o pela camisa, Mike ergueu da cadeira aqueles cento e vinte quilos de peso.

— Se você não for a Dernica, eu irei.

Barba-Leonidas   olhou para Despo, dando   de ombros.

— Louco. Ele enlouqueceu.

Despo esgueirou-se para a porta, prestes a correr para fora.

— Sente-se e coma, já disse. Se precisa tanto assim de mulher, eu lhe arranjarei uma depois do jantar. Uma dúzia, à sua escolha. Pode até usar minha cama.

Leonidas tornou a sentar-se, mergulhou o pão nas lentilhas e levou a cuia à boca.

— Está bem. Neste caso vou eu, agora mesmo.

Erguendo lentamente a cabeça, Leonidas fitou Mike com expressão de profunda mágoa.

— Que é que há com você, Jay?

— Creia, meu amigo, que eu o estimo muito, porém preciso ir a Atenas.

Leonidas brincava com o pão. Abandonando-o, coçou a barba.

Você... você quer partir? Quer mesmo ir embora?

Preciso ir.

Por que fala assim, como um louco? — disse o gigante quase gritando. — Por que precisa ir embora?

— Sou soldado. É o meu dever.

— Ora! Que espécie de soldado é você? Que pretende fazer? Não é capaz de atirar num coelho que esteja a cinqüenta metros do meu melhor rifle, englezos.

— Uma aldeia foi incendiada por minha causa.

— Pois então queimarão esta estrebaria. Eu e minha velha viveremos no mato. Já fizemos isso muitas vezes. Às vezes penso que era muito mais feliz assim, do que tentando cultivar trigo nestes rochedos. Não, melhor é você ficar para sempre conosco.

Mike aproximou-se lentamente da mesinha que ficava junto à sua cama e apanhou tudo o que lhe pertencia — dois cachimbos, duas pistolas e o rolo de dracmas. Separando um milhão de dracmas para si, colocou o resto na mesa, diante de Leonidas, e voltou-se para a porta.

Levantando-se, Leonidas   bloqueou-lhe   o   caminho.

— Sente-se! — rugiu.

— Despo está no meu caminho, Leonidas. Não me obrigue a agredi-lo.

Sente-se, senão eu o mato.

Correndo à lareira, agarrou um imenso atiçador de fogo, postou-se diante da porta, murmurando enfurecido. Mike tirou lentamente a pistola do cinto e apontou-a.

A aldeia inteira acorrera. Uma delegação bateu à porta, pedindo que os dois parassem com aquilo.

Fitaram-se por algum tempo e finalmente foi Leonidas quem se voltou, atirando ao chão o atiçador.

— Igual ao meu próprio filho — murmurou. — Até onde irá, Jay? Viu algum grego louro sair destas colinas?

Mike não respondeu.

Despo, que raro manifestava qualquer emoção, tornou a entrar, chorando abertamente.

— Saia daqui! — ordenou Leonidas.

Finalmente voltou-se para Mike e pela primeira vez o americano surpreendeu nele traços de velhice e fadiga. O gigante tinha os ombros curvados e soltou um suspiro sobre a barba

— Sente-se e coma, Jay.   Irei a Dernica assim que esteja livre.

—- Quando?

— Está bem. Irei amanhã.

 

Eleftheria sentia-se muito embaraçada com seu vestido de cidade e pintura no rosto, ao ver-se na fila de inspeção da Terminal de Larissis, em Atenas. Estava rodeada de gente exausta, regressando de uma incursão no campo em busca de alimento.

Seus dedos brincavam nervosos com o fecho da bolsa nova, enquanto a fila avançava em direção às mesas onde inspetores alemães, italianos e gregos examinavam passes de viagem, sacolas, e volumes transportados pelos viajantes.

Finalmente chegou a sua vez. O inspetor era um alemão em trajes civis. Eleftheria colocou o passe diante dele, que ergueu a cabeça para fitá-la. A jovem constituía uma agradável alteração naquela fila e seu olhar foi mais de concuspiscência que de curiosidade. Eleftheria evitou encará-lo.

Sua finalidade! indagou, áspero.

Visitar parentes — respondeu, com voz quase inaudível. Com um gesto para a bolsa de Eleftheria, despejou todo o seu conteúdo sobre a mesa. Entre outras coisas, um grande rolo de dracmas.

— É muito dinheiro.

Ela não respondeu.

— Sua ocupação?

Sou esposa de um fazendeiro.

Parece que hoje em dia todos os fazendeiros vêm a Atenas trazendo fortunas.

Ela fez um esforço para conter a inquietação que a dominava.

— Abra sua mala — exigiu o inspetor.

Examinando-a, verificou que continha principalmente roupas de baixo e outros pertences usados pelas moças da cidade. Comprara tudo em Dadi, conforme Jay havia sugerido.

— Pode fechar.

Entregando-lhe o passe, olhou cansado a longa fileira de viajantes que ainda passariam pela sua mesa, acendeu um cigarro e sorriu para a moça.

— E onde ficará em Atenas?

Não respondeu imediatamente.

— Com minha tia.

— Gostaria de visitar a cidade comigo?

— Meu marido está à minha espera na casa de minha tia.

— Passe adiante! O próximo!

Eleftheria atravessou a movimentada estação, lendo os cartazes indicativos. Tudo lhe parecia estranho, emocionante e as­sustador. Só estivera na capital uma vez, e há vários anos. A ansiedade recobriu-a com uma solenidade que afastava os olhares ardorosos dos soldados alemães e italianos.

Saindo da estação, olhou ao redor. Havia uma longa fileira de táxis à espera. Tomou um deles.

Enquanto o táxi se punha em movimento, Eleftheria afetava indiferença a todas as coisas surpreendentes que estavam acontecendo com ela. A cidade grande, a quantidade de edifícios, o carro em que viajava. Só entrara três vezes num automóvel em toda a sua vida, embora viajasse com freqüência no caminhão de tio Christos.

Leve-me   à   Sociedade   Americana   de   Arqueologia   — falou.

O carro afastou-se do congestionamento das proximidades do terminal e rumou para o leste da cidade, pela ampla Leophoros Alexandrou. Eleftheria procurou tranqüilizar-se recordando as instruções que Jay lhe havia dado. Precisava executar com perfeição sua tarefa.

Fazendo uma curva para a direita, o carro penetrou numa rua arborizada que percorria a zona norte da cidade, o ele­gante bairro de Kolonaki. Passando lentamente diante do hospital americano, das antigas escolas inglesas e de um grupo de outras instituições, deteve-se diante de um prédio de dois andares, com fachada revestida de tijolos vermelhos e aparência despretensiosa.

O motorista parecera irritado com o silêncio de Eleftheria durante o percurso, mas sorriu muito satisfeito diante da generosa gorjeta. Todo mundo sabia que os americanos é que davam gorjetas exageradas.

O carro afastou-se e Eleftheria mordeu o lábio, indecisa. Encontrava-se diante de um portão de ferro trancado. Seu coração batia com força. Reparou finalmente numa pequena entrada lateral aberta, que conduzia ao prédio por uma curta ala­meda. Caminhando naquela direção sentia-se como quem andasse sobre carvões em brasa.

Empurrando a imensa porta encontrou-se num vestíbulo cheio de estátuas, quadros e fragmentos estranhos de mármore. Nas paredes havia documentos emoldurados que ela não seria capaz de decifrar. A peça era ampla arejada, mas sombria e solene, o que aumentou seu embaraço.

Uma mulher de meia-idade, evidentemente grega, encontrava-se diante de um pequeno balcão, com fones nos ouvidos. Mais adiante havia uma escrivaninha coberta de papéis. Eleftheria aproximou-se cautelosamente. A mulher levantou a cabeça e indagou:

— Que deseja?

— Eu... quero falar ao Dr. Harry Thackery — mur­murou.

— Seu nome, por favor?

— Meu nome é Eleftheria.

— Eleftheria de quê?

— Eleftheria Yalouris.

— Tem alguma entrevista marcada com o Dr. Thackery? — perguntou a mulher, olhando interrogativamente para a jovem camponesa.

— Não. Ele não me conhece.

— Um momento, por favor. — Levantando-se, a mulher desapareceu por uma porta dupla que conduzia a um longo corredor.   Eleftheria achou estranho que uma mulher pudesse ficar sentada naquela sala, fumando. Mas tantas coisas estranhas estavam acontecendo...

A recepcionista voltou.

— Sinto muito. O Dr. Thackery não pode recebê-la.

Eleftheria brincou com a bolsa e agitou nervosamente os pés, pensando: “Por que esta mulher está olhando assim para mim?” E procurou lembrar-se do que Jay dissera.

— Quando posso vê-lo então? — Era isso que devia dizer.

— Lamento, mas ele está muito ocupado, preparando uma expedição para fazer escavações.

Lembrou-se que, em criança, vira alguns estrangeiros cavando nas proximidades de Dernica. Antes da guerra havia sempre estrangeiros escavando por toda a província. Tratava-se de coisa muito comentada.

— Mas...   mas   vim   de   tão   longe,   de   Dadi.   É   muito importante.

Ouviu-se um zumbido na estranha caixa que ficava sobre a mesa. A mulher o interrompeu, introduzindo uma ponta de metal, ligada a um fio, num pequeno orifício. A porta abriu-se e dois homens que não eram gregos entraram na sala e sentaram-se, folheando revistas.

A recepcionista ergueu a cabeça e viu Eleftheria ainda dian­te da mesa.

— Para que exatamente deseja falar com o Dr. Thackery?

— É assunto pessoal e de muita importância — e eu vim de muito longe.

A mulher deu de ombros e novamente desapareceu na porta.   Quando voltou disse:

— Siga-me, por favor. — E caminhando rápido, percorreu um longo vestíbulo atapetado, para o qual abriam diversas portas com pequenas placas de metal. Voltou-se bruscamente para abrir uma delas e fez um gesto para Eleftheria entrar, fechando a porta atrás da jovem.

A sala estava em penumbra, pois as pesadas cortinas estavam cerradas. Era uma solene peça vitoriana, com paredes recobertas de lambris. A única luz provinha de uma pequena lâmpada de mesa. Havia um homem sentado à escrivaninha. Tinha a fisionomia emaciada, rosto magro, de ossos salientes, cabelos ralos.   Erguendo a cabeça, fitou a moça com frieza.

— Deseja ver-me? — perguntou com voz inexpressiva.

— Dr. Harry Thackery?

— Exato.

Ela mordeu as unhas antes de repetir com exatidão as palavras de Jay.

Há um amigo meu — começou, tremendo — hospedado na casa do meu primo.   Ele quer vir a Atenas. Disse que um amigo mútuo o mandara procurá-lo.

Sente-se, menina.

Eleftheria sentou-se rigidamente numa cadeira de mogno diante da escrivaninha. Dali podia ver melhor aquele homem impassível.

— Onde está esse seu amigo?

— Em Kaloghriani.

— Kaloghriani?

— Sim. Uma aldeia muito afastada. Fica na província de Larissa.

O homem entreabriu os lábios finos.

— Fale-me sobre esse seu amigo.

— É um soldado britânico. Da Nova Zelândia.

A fisionomia de Thackery permaneceu imperturbável.

— Dirigiu-se à pessoa errada, menina. Se seu amigo é um soldado britânico, só ilegalmente poderia vir a Atenas. A América não está em guerra com a Alemanha e eu sou americano.

— Mas o meu amigo disse...

— Sinto muito. Nada posso fazer. Aconselho-a a sair de Atenas. Poderá envolver-se em complicações.

Eleftheria levantou-se intrigada e pôs-se a caminhar para a porta. De repente voltou-se, olhos marejados.

— Mas... o amigo dos dois... um escocês...

Silêncio.

Eleftheria estremeceu sob o olhar penetrante daquele es­tranho homem que permanecia mergulhado a meio na escuridão por detrás da escrivaninha.

— Por que seu amigo quer vir a Atenas?

Sentindo a boca estranhamente seca, falou:

— Ele me disse que tem dezessete excelentes razões para vir até aqui.

Thackery   levantou-se.

— Espere. Voltarei já.

Não era alto nem baixo, mas a magreza criava impressão de altura. Eleftheria sentia-se tonta e confusa, desejando ver-se no trem de volta à sua aldeia, sem ter que entrar em contato com gente estranha. Lamentava ter consentido em vir a Atenas.

O Dr. Harry Thackery atravessou o vestíbulo em direção a outro gabinete. Um homem chamado Thanassis ali se encontrava. Tirando os fones dos ouvidos, levantou-se tão logo viu Thackery.

— Você a ouviu — falou o sábio. — Que acha?

— É Morrison, não há dúvida — respondeu Thanassis.

— Graças a Deus ainda está vivo. Eu já tinha perdido as esperanças.

— Precisamos desesperadamente dessa informação. Que tal a moça?

— Nossos companheiros de viagem estão lá fora? — perguntou Thackery referindo-se à Gestapo,   que mantinha constante vigilância sobre seus movimentos.

Como sempre.

É melhor chamar um carro. Precisamos tirar a moça daqui. Não podemos nos arriscar a que a raptem. Mande al­guém dizer a Lisa que nos encontre na casa de Papa-Panos. Vou mandá-la imediatamente para lá.

 

Lisa Kyriakides ouvia atentamente, enquanto o Doutor Harry Thackery dava instruções.

Considerava a missão demasiado estranha, demasiado envol­ta em mistério e detalhes não mencionados. Pela primeira vez o Dr. Thackery calava diante dela tais detalhes. Mas Lisa sabia, no breve espaço de tempo em que existia a Resistência, que obediência absoluta era uma necessidade. Não fez perguntas, mas a história não lhe agradou.

Viajar para a distante Larissa, a fim de trazer um solitário refugiado britânico, era um tanto excessivo. Se ele fosse um oficial de alta patente, algum elemento da Resistência... Mas talvez nem existisse refugiado.

— Partirá para Dadi hoje à noite — continuou Thackery. — Ali uma jovem chamada Eleftheria Yalouris a encontrará e viajará com você até uma aldeia chamada Kaloghriani, apresen-tando-a a um homem que conhecerá pelo nome de Vassili. Você se identificará como Helena. E não o interrogará.

Lisa meneou afirmativamente a cabeça, estudando a fisionomia impassível.

— Nossa gente de Dadi arranjará o passe de viagem, do­cumentos e modificará sua aparência. Alguém entregará dinheiro no trem em que ele viajar. Você não deve poupar coisa alguma para garantir sua segurança. Está bem claro?

Sim — murmurou Lisa.

— Tão logo chegue a Atenas leve-o à casa de Lazarus e entre em contato comigo imediatamente.

— Muito bem.

— Alguma pergunta?

— Creio que compreendi tudo.

Lisa repetiu as instruções e verificou seus documentos e dinheiro.

Papa-Panos, o padre, entrou na sala, dizendo:

— Venham, meus filhos. É hora da refeição.

— Vou sair imediatamente após — disse o Dr. Thackery. — Não quero que meus dois amigos alemães fiquem lá fora na chuva por muito tempo.

Saindo do quarto dirigiram-se à cozinha. Antes de entrar, o Dr. Thackery voltou-se de repente para encarar a mulher.

— Lisa, você parece preocupada hoje. Aconteceu alguma coisa?

— Se aconteceu alguma coisa? Não... não, claro que não.

— Mais um detalhe, Lisa. Caso alguma coisa saia errado, se a captura for iminente, você deve matá-lo. Não pode cair vivo nas mãos dos alemães.

Enquanto entravam na cozinha, Lisa debatia mentalmente um plano. Um plano para salvar seus filhos, mas que a transformaria em traidora do seu povo.

 

Konrad Heilser gemeu, sentando-se com dificuldade no sofá. Sentia a cabeça latejar, tinha os olhos pisados, vermelhos. A passos trôpegos dirigiu-se à imensa escrivaninha de tampo de mármore e deixou-se cair na cadeira giratória. Uma foto de sua gorducha mulher alemã, rodeada de três filhos igualmente gorduchos, estava sobre a mesa. Atirando-a numa gaveta, apanhou um envelope com pó contra dor de cabeça.

Que festa! Mas valeria a agonia daquele momento? Misturando pó com água bebeu, fazendo uma careta. Pó grego para dor de cabeça! Incapazes de fazer qualquer coisa que preste.

Zervos, aquele “porco”, organizara uma orgia de quatro dias para festejar a compra do novo apartamento. Possuía agora uma cobertura de dez peças, construída e decorada em estilo ultra-moderno, horrivelmente misturado com peças de arte. antiga, junto a outras surrealistas. Parecia o museu de um louco.

Todo o Alto Comando comparecera. Zervos tornara-se, de uma hora para outra, muito popular, graças aos presentes, às pancadinhas nas costas, às lisonjas e aos favores. Seu jogo extorcionista contra as famílias gregas abastadas granjeara-lhe uma fortuna instantânea.

Ah, mas que prostitutas! Zervos entendia de prostitutas, isso Heilser era obrigado a confessar. Um nojento empregado público. Mas estava se tornando muito importante. Importante demais. E caíra nos favores de todos com a promessa de outras festas fabulosas. Todo mundo procurava Zervos agora aquele idiota obeso.

Ele o colocaria no seu lugar, mostraria ao grego quem era Heilser. Zervos prometera-lhe dez milhões de dracmas mensais, para poder continuar com seu joguinho extorcionista. Ele exigi­ria o dobro.

Mais Heilser sabia que Zervos tornara-se poderoso demais. Sabia também que era demasiado valioso para ser liquidado. Estava a par de tudo. Além disso, haveria dez milhões de drac­mas garantidos. Decidiu que Zervos ficaria, mas sob controle. Quanto a isso não havia dúvidas.

Konrad Heilser remexeu nos papéis espalhados pela escrivaninha. Fugitivos em toda parte. Os malditos britânicos vagueavam pelo país de ponta a ponta. Agora havia notícias de que um movimento subterrâneo de resistência tornava-se cada vez mais ativo.

Mas isso não era o principal. O mais importante era que os gregos que trabalhavam no Comando Alemão transmitiam informações. Quem seriam?

Onde estaria o americano, naquele momento? A cada dia que continuasse livre seria maior a ameaça. Se os nomes caís­sem nas mãos dos britânicos seria o diabo. Sua tarefa se transformaria num verdadeiro pesadelo. Seria impossível deter um movimento de Resistência que estivesse a par de todos os planos alemães. Que havia com toda aquela gente? Por que resistiam? Ainda na véspera assinara ordem para serem destruídas duas aldeias no distrito de Aetolo-Acarnania por terem abrigado fugitivos e desafiarem as taxas do trigo. E continuavam a resistir.

Quando o americano fosse preso, e conhecida a lista Stergiou, a Resistência levaria dois anos para se organizar.

Heilser continuava a achar que Morrison entraria em contato com alguém em Atenas. O alemão conhecia todos os contatos lógicos e permitiria que operassem com toda a liberdade. Seria muito simples cercá-los depois e atirá-los em Averof, mas só o faria depois de encontrar o americano.

Bateram à porta. Zervos entrou.

Heilser olhou-o com nojo. Parecia um verdadeiro idiota. O terno e o colete feitos sob medida tinham uma cor absurda e o homem estava mais gordo que nunca. Brilhantes no alfinete de gravata, brilhantes nas abotoaduras, quatro anéis de brilhantes.

Breve teria também os dentes incrustados de diamante. Zervos aproximou-se da escrivaninha de Heilser sem um traço sequer do antigo medo.

— Temos um encontro marcado com Lisa Kyriakides, dentro de uma hora, Konrad — disse, nadando no plano de igualdade recentemente atingido e que lhe permitia chamar o alemão pelo primeiro nome.

Heilser sentiu mais repulsa ainda, lembrando a si mesmo que muito breve conversaria com o grego sobre aquela atitude arrogante.

Zervos sabia que o alemão tinha um interesse pessoal em Lisa e falou, com um suspiro zombeteiro:

— Bem, Konrad, creio que chegou a hora de liquidá-la.

— Ainda dirijo este departamento, Sr.   Zervos. Enquanto houver uma chance de uma dessas pessoas nos conduzir a Morrison não poderemos liquidá-las.

— Mas, no caso de Lisa — prosseguiu Zervos — sabemos que ela não nos dará informações. Você sabe muito bem disso. É uma tolice deixá-la em liberdade. O mínimo que poderíamos fazer é colocá-la sob vigilância.

— Idiota!   Se a colocarmos sob vigilância,   a Resistência saberá dentro de cinco minutos. Não, Zervos, ela nos obedecerá enquanto seus filhos estiverem em nosso poder.

Zervos continuou a irritar o alemão já zangado:

— Por que simplesmente não fazemos as crianças desaparecerem? Isso a obrigaria a raciocinar. Tenho a certeza de que cooperaria plenamente se um dos filhos desaparecesse.

Heilser sabia que era o mais sensato, mas o plano destruiria também qualquer chance de Lisa transformar-se em sua amante. E ele vivia constantemente atormentado por sua visão.

Zervos sorriu, oferecendo-lhe um cigarro.

— Você não está sendo razoável, Konrad. Já lhe ofereci cinqüenta milhões de dracmas para...   bem, partilhar do meu apartamento. Ela é uma mulher muito, muito difícil.

— Cale-se!

 

Lisa Kyriakides atravessou a Praça da Constituição, dirigindo-se às lojas que se encontravam na Rua Hermes. Todos os homens — gregos, alemães e italianos — voltavam a cabeça para vê-la passar. Ela olhava para a frente, sem ignorar ou aceitar os olhares que a seguiam. Pois Lisa fora dotada de tal beleza que sua imagem ficava gravada na lembrança, mesmo quando vista apenas de passagem, em meio à multidão.

As linhas do seu rosto eram de absoluta perfeição, emolduradas por cabelos louros, o que era raro numa grega. Sua pele possuía tonalidade mais clara que a da maioria de suas compatriotas. Adiantava-se pela rua Hermes com a graça e a altivez de uma fidalga.

Lisa era magra, quase em excesso, mas isso acrescentava mais um encanto à sua altiva beleza. Seus olhos refletiam tristeza profunda. As mãos, tão perfeitas que pareciam irreais, eram expressivas até no caminhar.

Lisa parou diante da vitrine de Anton's Dress Shop. Anton, o proprietário, um pseudo-francês, garantia à sua clientela a última moda de Paris.

Um oficial alemão aproximou-se hesitante, desejoso de apresentar-se. Lisa afastou-o com um olhar glacial que o fez descer às pressas a rua.

Inspirando profundamente, comprimiu os lábios para conter as lágrimas e abriu a porta da loja, penetrando na sala atapetada.

Anton, vestindo casaca, veio ao seu encontro, inclinando-se profundamente ao reconhecê-la. Acompanhando-o, Lisa passou pelo luxuoso salão de desfiles, onde música suave servia de fundo à exibição de um modelo a uma cliente, percorreu um longo corredor, para o qual abriam as salas de prova e de costura, e entrou no gabinete do costureiro.

Tenha a bondade de sentar-se disse Anton, com sua voz de timbre agudo. Virão agora mesmo.

Com nova inclinação retirou-se.

Lisa deixou-se cair no sofá de couro e mergulhou o rosto nas mãos. Lágrimas deslizaram pelo seu rosto altivo. Com esforço controlou-se e aproximou-se do bar, em busca de um brandy.

Olhou sem ver a parede colorida.

Que objetivo lhe restava na vida?

 

Tudo começara no dia seguinte ao da invasão alemã em Atenas. Manolis Kyriakides, seu marido e pai de seus dois filhos, revelara-se então exatamente como era.

O pai de Lisa, proprietário de uma pequena fábrica, recusara-se a negociar com os alemães e destruíra várias patentes desejadas pelo inimigo.

Era exatamente o que Manolis esperava desde que se casara com Lisa. Em uma semana estava controlando a fábrica, como recompensa da colaboração com os alemães. Graças à sua denúncia, o pai de Lisa fora mandado para a prisão de Averof. O velho resistiu apenas umas poucas semanas, recusando-se até ao fim a divulgar as patentes.

Uma semana após a morte do pai, Lisa soube por uma amiga do que se passara. A princípio Manolis negou sua participação, mas Lisa sabia da verdade. Há muito conhecia seus planos ambiciosos.

Levando as crianças, deixara a casa, escondendo-se num apartamento em Atenas. Em seguida, fora uma das primeiras a ingressar no movimento de Resistência grego.

Uma semana depois era descoberta pela Gestapo.

Manolis, grande amigo dos alemães, recuperou os filhos. E tão grande era a influência de Kyriakides, o colaboracionista, que a vida de Lisa fora poupada. Ele próprio levara o caso a Herr Heilser. Sim, Manolis era um homem correto. Nem todos os maridos agiriam assim em relação à mulher que os abandonara.

Mas houvera um motivo por detrás da intercessão em favor de Lisa, assim como houvera uma razão oculta em todos os passos que dera em toda a sua vida. Sabia o que aconteceria quando Heilser a visse. Ele se apaixonaria, como acontecia com todos os homens.   Manolis sabia que continuaria nas graças de Heilser desde o instante em que o alemão visse sua mulher.

Mas Lisa repelira friamente a idéia de tornar-se amante de Heilser. O alemão, ainda assim, conservara-lhe a vida. Mudaria de idéia, mais cedo ou mais tarde, e Konrad Heilser era paciente e persistente. Lisa valia a espera.

Sua captura fora tão rápida que a própria Resistência não a percebera. Ignoravam que ela era obrigada a passar informa­ções para Zervos e Heilser. Fora o grego o autor do plano para manter as crianças como reféns.

Lisa sentia-se desnorteada. Tinha a impressão de viver um medonho pesadelo. A princípio pensou em suicidar-se. Mas a vida de seus filhos ficaria ainda mais ameaçada. Manolis cairia em complicações, mais cedo ou mais tarde, e era demasiado fraco para erguer um dedo para salvá-los. Ela estaria condenando os filhos à morte!

Mas Lisa não poderia continuar a fazer jogo duplo. A evitar as perguntas de Heilser e de Zervos. A mentir. Até então não fora seguida, mas quanto tempo isso duraria? Quanto tempo, até que Konrad Heilser liquidasse seus filhos?

E se seus amigos soubessem do duplo papel que estava representando e ela morresse nas suas mãos como traidora?

Havia uma saída... A indicada por Manolis. Tornar-se amante de Konrad Heilser. Lisa estremeceu à lembrança da fisionomia ávida do alemão.

Um Mercedes Benz negro parou diante da loja. Heilser e Zervos saltaram, rodeados por seus guarda-costas.

Anton inclinou-se profundamente. Zervos reagiu favoravel­mente ao tratamento. Afinal, Anton não tinha tantos clientes ao seu nível.

— Ela chegou? — perguntou Heilser.

— Sim, senhor...   sim, senhor.

Passando diante do proprietário que repetia as inclinações, desceram o corredor e entraram no gabinete.

Lisa, de pé, parecia uma estátua de mármore. O coração de Heilser deixou de bater uma vez diante daquela visão.

— E então? — indagou, áspero.

— Nada tenho a comunicar. Ninguém entrou em contato comigo.

— Vamos, Lisa. Você contou a mesma história da última vez.

— Deixe de mentir, Lisa — disse Heilser.

— Já contei, na última vez, que cada pessoa que entra em contato comigo traz um nome falso. Nunca sei onde ou como me procurarão e para que finalidade. Desde que me libertaram ainda não entraram em contato comigo — mentiu. — Talvez saiba que estive sob custódia.

— Pare de mentir!

— Quer que eu traga numa bandeja a cabeça de seus filhos, na próxima visita? — trovejou Zervos.

A reação a estas palavras não foi a que esperava. Lisa não demonstrou o menor sinal de medo.   Com voz firme respondeu:

— Pretendo   cumprir   minha   parte   do   contrato   enquanto vocês cumprirem a sua.

Os dois ficaram mudos diante da coragem e tranqüilidade de Lisa.

— Espere lá fora — ordenou Heilser a Zervos.

O alemão andou de um lado para outro, depois sentou-se à escrivaninha de Anton e enviou a Lisa seu mais encantador sorriso.   A grega conservou-se glacial.

— Minha querida, está tornando as coisas muito desagradáveis para si mesma, e sem razão. Gostaria sinceramente de crer na sua história. Não a mandei seguir. Eu disse que não fazia isso, não disse?

Ela não respondeu.

— Lisa, querida, sabe que eu estou procurando ajudá-la, protegê-la.

— Não pedi coisa alguma.   Fiz um trato. Entrarei em contato enquanto me permitirem ver meus filhos.

Heilser suspirou, fingindo simpatia.

— Espero que continuem com saúde.

E levantou-se bruscamente. Sentia-se excitado à idéia de tê-la na cama ao seu lado. Rodeando a escrivaninha, colocou-se diante dela. Lisa sentiu um arrepio de repulsa quando suas mãos tocaram-lhe os ombros, os cabelos, o rosto.

Queixo trêmulo, Heilser fez um esforço para falar:

— Lisa, farei qualquer coisa...  qualquer coisa...

E agarrando-a beijou-a violentamente no pescoço. Lisa permaneceu absolutamente frígida.

Afastando-se, ele fitou-a, súplice. A resposta foi um olhar de ódio e nojo.

Erguendo a mão, Heilser esbofeteou-a. Lisa nem sequer pestanejou. Voltando-se bruscamente, ele saiu da sala batendo a porta.

Lisa fechou os olhos, agarrando-se à borda da escrivaninha para não cair. Tonta, aproximou-se da janela e viu o carro negro afastando-se. Sabia que desta vez teria que tomar uma decisão.

de súbito ocorreu-lhe uma idéia, uma escapatória. Sua missão o homem que deveria trazer a Atenas. Devia ter muita importância para os alemães. Talvez, sem que a Resistência sou­besse, ela conseguisse escapar. Negociar com os alemães. Se fosse muito importante, poderia entregá-lo em troca dos filhos. Depois viajaria para outra parte da Grécia. A Resistência nunca saberia...

 

Eleftheria mergulhou o rosto nas mãos e chorou.

— Nunca mais tornarei a vê-lo.

Mike ajoelhou-se junto à cadeira e disse baixinho: — Você cuidou de mim quando eu estava doente, arriscou a vida por minha causa... Que posso dizer? Que posso contar a você?

Rodeando-lhe o pescoço com os braços, a moça atraiu a cabeça dele para seu peito.

— Leve-me com você! Leve-me com você!

Desembaraçando-se de seus braços, Mike levantou-se e voltou-lhe as costas.

Por favor, não torne as coisas ainda mais difícil para mim... por favor.

— Você não me ama.

— Não faria a menor diferença se eu a amasse ou não. Não faria diferença alguma.

— Você não me ama.

Voltando-se lentamente, ele a encarou, meneando a cabeça num gesto negativo.

Houve um longo silêncio.

A moça aproximou-se da grande lareira, costas rígidas, cabeça erguida.

— Voltarei para Dernica.   Há um rapaz que quer casar comigo.   Sempre quis casar comigo desde que éramos... — A voz   faltou-lhe e   as lágrimas   começaram a   escorrer-lhe pelo rosto.

Mike colocou-se por trás dela, apertando-lhe os ombros. Depois saiu rapidamente da sala.

Enquanto colocava um grande pedaço de queijo no pacote que   preparava   para Mike,   Barba-Leonidas   resmungava   entre dentes que não confiava nas mulheres em geral e nas da cidade em particular.

Sentada no   seu tear, a velha Despo choramingava.

Saia e chore lá fora, velha! gritou o marido. — Dois louros num trem cheio de gregos — resmungou, atando as pontas do guardanapo. Mesmo os italianos não são estúpidos assim.

Lisa continuava sentada, imóvel. A jovem descalça que a observava da porta estava evidentemente apaixonada. “É provável que tenham tido um caso”, pensou. Os olhos de Eleftheria, brilhantes de ciúme, não se desviavam dela.

—Precisamos   partir   se   quisermos   chegar   a   Dadi   ao anoitecer.

Mike fez que sim.

Tomando uma de suas pistolas, colocou-a na pesada mão de Barba-Leonidas, como presente. Era a mesma que fora mar­cada para matá-lo nas imediações de Kalamai. Ainda uma vez tentou oferecer-lhe dinheiro, mas o gigante recusou com altivez.

Por um momento, os dois ficaram olhando embaraçados um para o outro e lágrimas brotaram dos olhos de Leonidas, que abraçou Mike vigorosamente, murmurando:

— Deus o acompanhe.

Voltando-se, saiu da cabana.

Mike colocou o saco às costas e fez um sinal para Lisa. Os dois subiram na carroça puxada por burros e daí a instantes desciam o caminho de Kaloghriani.

Voltando a cabeça para olhar as colinas, Mike viu o gigantesco Barba-Leonidas recortado contra o céu e Eieftheria ao seu lado. E sorriu tristemente.

— Desculpe o drama, mas são meus amigos — disse.

— Compreendo — respondeu Lisa,   em inglês perfeito.

O carro dobrou uma curva e em breve Kaloghriani desa­parecia completamente de vista.

Lisa olhou de soslaio para o homem que conhecia apenas como Vassili. Era completamente diferente do que imaginara. Alto, magro, muito atraente, rosto profundamente bronzeado, barba curta e bem-cuidada. Seus olhos azul pálido eram penetrantes e interrogadores.

Aqueles olhos a assustavam. Mike observava-a cuidadosa­mente quando ela entrara na cabana, mas não com o olhar dos outros homens. Parecia curioso, tentando penetrar-lhe os pensamentos. Sentindo-se embaraçada, evitou-o. Quem seria ele? Adivinharia?

Lisa consultou o relógio. Chegariam a Dadi ao anoitecer, mais tarde do que previra. Havia muita coisa a fazer.

Era agradável encontrar-se nas colinas, longe de Atenas. A capital transformara-se na cidade da tristeza. Ali os pássaros cantavam como se ignorassem que sua terra havia sido conquistada.   As florestas continuavam majestosas e altivas.

Mike estava silencioso.

Sentia que uma porta se fechara às suas costas e que talvez nunca mais pudesse abri-la. Pressentia que jamais encontraria homens como Barba-Leonidas, Christos e os camponeses de Paleachora e Kaloghriani, e surpreendia-se ao ver quanto o magoava a perda de Eleftheria.

Durante toda a sua vida Mike aceitara a mediocridade nas pessoas que o cercavam. Aceitara-a plenamente, quando a prolongada luta para escrever seu primeiro livro terminara com a amarga decepção da reduzida venda.

Aceitara a mediocridade quando seu estilo tornara-se amargo, as páginas cheias de gente medíocre. Tornara-se uma luta conservar-se diante da máquina de escrever, odiando a si mesmo por ver suas frases gotejando veneno.

A morte de Ellie aparentemente colocara na sua vida um selo de mediocridade.

Mas agora que descia das colinas sentiu-se novamente do­minado pelo impulso de escrever, falar sobre aquela gente bela, maravilhosa, que ele ignorava que existisse. Gente que enfrentava a tragédia sem derrotismo, com esperança. Gente de vida despojada e cordial. Encontrara a verdadeira nobreza humana naqueles montanheses e queria revê-la através da única maneira que conhecia — diante da máquina de escrever.

Ao anoitecer, o carro entrou na cidade de Dadi.

Mike e Lisa foram arrancados de seus devaneios.

Para Mike, era como se estivesse penetrando numa nova era. Viu-se intrigado diante dos telhados vermelhos, à vista de um automóvel e de uma calçada, para não falar nas mulheres em trajes modernos.

O cocheiro foi despedido e os dois dirigiram-se à praça principal, onde Lisa conduziu Mike a uma padaria, cujo proprietário era um homem identificado como Baziadis.

Um quarto nos fundos revelou-se um arsenal. Continha tudo. Desde pistolas até bombas de fabricação caseira e metralhadoras. Outro homem, Rigas, fotógrafo, trancou-se ali com eles e pôs-se a trabalhar.

Para começar, Mike recebeu roupas de cidade, já usadas. Rigas fotografou-o e depois entregou-lhe documentos de viagem e um cartão com o nome “Vassili Papadopoulos”. Em seguida apareceu com passagens de trem, dinheiro, e passou a dar ins­truções a Lisa.

Baziadis, o dono da panificação, apareceu depois de terminadas suas tarefas e os quatro sentaram-se para fazer uma refeição silenciosa.

Às duas da manhã o caminho foi declarado livre e Rigas e Baziadis partiram.

Lisa e Mike deitaram-se em enxergas colocadas em cantos opostos da sala, onde uma lâmpada descoberta ficou acesa a noite inteira.

Mike verificou que era impossível dormir. Sentia a cabeça fervilhante de perguntas relativas à viagem.

A mulher que ele conhecia como Helena estava também de olhos abertos. Era linda, pensou Mike. Mas havia algo terrivel­mente estranho em sua fisionomia, algo indefinível, mas que não lhe agradava.

— Tem um cigarro? Não quero abrir o pacote de tabaco para cachimbo.

Sentando-se, ela procurou a bolsa. Quando Mike acendeu o cigarro, seus olhos se encontraram e os dois fitaram-se duran­te longo tempo.

Depois Lisa voltou a cabeça e tornou a deitar, dizendo:

— É melhor dormirmos um pouco.

 

Manhã.

Tanto Lisa como Mike exibiam sinais de vigília. Levantando-se, lavaram-se com água fria e fizeram uma rápida refeição de queijo e leite.

Mike passara a noite inteira com a pistola na mão e a cabeça cheia de temores e desconfiança. A manhã encontrara-o tenso e irritado, estremecendo ao menor ruído.

Cerca das sete horas, Baziadas abriu a panificação e os dois saíram por uma porta dos fundos, mantendo silêncio durante o rápido percurso até a praça e a estação da estrada de ferro.

Quando Mike viu o trem se aproximando, sentiu de novo todas as suas apreensões. À medida que ia parando assumia a forma de um caixão. Novamente apalpou a pistola presa no cinto, mas desta vez não se sentiu tranqüilizado.

Lisa segurava-lhe o braço e os dois caminharam pela plataforma até que as rodas do trem pararam completamente. Viajantes correram de um lado para outro, aos gritos do chefe da estação.

No momento em que se aproximava de um vagão, Mike deteve-se bruscamente.

Vira o condutor trocar um olhar com Lisa e um ligeiro sinal de cabeça.

Imobilizado, foi preciso que Lisa o empurrasse para entrarem no carro.

Percorreu o corredor com um rápido olhar. Era um carro de segunda, com bancos de madeira, cheio de gente da cidade, reunidas num coro de lamentações. Examinou o vagão à procura de sinais de hostilidade, ou de um rosto estranho. Ninguém os olhou uma segunda vez quando se sentaram lado a lado.

Instalando-se junto à janela, Mike tentou abri-la, o que conseguiu com facilidade.

Seu coração pulsou acelerado quando o trem saiu da estação de Dadi.

Lisa evitava conversar, e até olhar para Mike, mas sentia que ele estava tenso. Tinha as mãos molhadas de suor quando o forçava a entrar no vagão. Esperava que tudo corresse bem. O nervosismo dele poderia comprometer todo o plano.

Olhou para a paisagem que fugia. Tão logo o trem ganhava velocidade já começava a diminuir para parar em outra aldeia. Depois outra e mais outra. O vagão ficou superlotado. Os passageiros começaram a sentar-se nos corredores, sobre as malas. Parada — partida — parada — partida — parada — partida.

Mike conseguiu finalmente relaxar um pouco. Tirando o cachimbo do bolso, acendeu-o. O cheiro do tabaco agradou a Lisa. Seu pai fumava cachimbo com aquele mesmo fumo de aroma áspero, que a transportava até lembranças de dias mais felizes...

Os ponteiros do relógio aproximaram-se do meio-dia. Mike estava mais tranqüilo, porém continuava alerta. O coro de la­mentações que os rodeava não diminuíra um só instante.

Princípio de tarde.

Lisa começou a ficar inquieta. Sua energia começava a esgotar-se. Mike pensou que ela não parecia muito resistente, e devia estar exausta com aquela viagem a Kaloghriani.

— Parece cansada — observou. — Por que não deita no banco e cochila um pouco?

— Não. — Ela replicou, numa automática rejeição da proposta masculina.

— Vamos, fará bem a você.

Lisa sorriu de leve. Era a primeira vez que Mike via seu sorriso, e pareceu-lhe maravilhoso. Consultando rapidamente o relógio, ela encolheu as pernas e apoiou a cabeça no colo de Mike. A princípio ficou tensa, cônscia dele, mas depois relaxou e começou a cochilar. Daí a instante o cansaço a fez adormecer.

Mike fitou-a. Talvez estivesse enganado. Nas circunstâncias era natural que desconfiasse. Ela era com certeza uma bela mulher, embora parecesse uma criança adormecida, ali no seu colo. Um súbito arrepio percorreu-lhe o corpo e sentiu um irresistível impulso para tocar-lhe os cabelos... Naquele momento desejou que o trem jamais chegasse a Atenas.

Em seguida, esticou as pernas e sacudiu o cachimbo. Daí a instantes seus olhos fecharam-se e o ritmo das rodas embalou-o num sono de exaustão. Erguendo os olhos, Lisa sentiu-se mais à vontade ao perceber que ele adormecera.

Três homens estavam de pé diante deles.

Despertando, Mike fitou-os assustado, sentindo uma contração nervosa no canto do olho.

Um dos homens era o condutor, o mesmo que trocara um sinal com Lisa na estação.

Ao seu lado, no corredor cheio de gente, havia dois homens armados, trajando uniforme dos carabinieri italianos. Mike sentiu Lisa estremecer e compreendeu que ela estava acordada, mas fingindo dormir.

— Identificação! — exigiu um dos italianos.

Mike começou a remexer os bolsos com as mãos trêmulas.

Lisa levantou-se rápido.

Introduzindo a mão no bolso de Mike, tirou o passe de viagem. Em seguida espreguiçou-se, bocejou e ajeitou os cabelos despenteados.

— Vassili, você perde sempre as coisas. Bem que eu disse para me deixar guardar o passe — disse, batendo-lhe no braço e beijando-o de leve. Entregando o passe ao italiano, falou: — Ser casada com um professor universitário é uma complicação! Está sempre com a cabeça nas nuvens!

E sorriu, com o tipo de sorriso que a mulher usa para conquistar um homem. O italiano não se deixou comover.

— Vassili — disse Lisa — entregue ao cavalheiro as nossas passagens. Não os deixe esperar.

Os carabinieri, com seus cômicos chapéus de Napoleão, examinaram o cartão de Mike, olhando do rosto para a fotografia.   Em seguida trocaram cochichos. Lisa e o condutor grego entreolharam-se.

A mão de Mike deslizou para a pistola presa ao cinto, mas com um esforço voltou a cabeça, olhando para fora. O trem diminuía a marcha.

Você! De pé! Abra o volume!

Mike levantou-se devagar.

— Vamos, depressa — ordenou o condutor. — O trem está cheio. Assim levaremos a noite inteira. Depressa, para podermos voltar às nossas cartas.

O italiano leu o reverso do cartão, olhou para Mike, de­volveu-lhe o passe e passou ao banco seguinte.

O trem tornou a acelerar.

Mike levou algum tempo para acalmar-se. Sentia-se tolo, aborrecido consigo mesmo. Evidentemente a mulher e o condutor sabiam o que estavam fazendo. Mas permaneceu rígido até que os inspetores saíram do carro.

— Dê-me um cigarro — pediu.

Ela entregou-lhe um maço que se chamava Número 1.

— Quero sua pistola — murmurou ela rispidamente.

— Nada disso.

— Pare de falar em inglês, seu tolo. Estão olhando para nós. Outro gesto estúpido como esse e acabaremos na prisão de Averof. Dê-me a pistola. Jamais sairemos do trem com ela.

Mike cerrou os dentes e contorceu-se como um garotinho ao passar-lhe a pistola, relutante. Sentia-se nu sem a arma. Lisa colocou-a na bolsa rapidamente e desceu o corredor.

Daí a instantes voltava ao seu lugar.

— Que fez com a arma?

— Está no leito da estrada, entre Amphissa e Levadeia.

— Está furiosa comigo, não está?

Ela não respondeu. Estava mesmo.

— Acha que ainda teremos que passar por coisa seme­lhante?

— Só chegaremos amanhã cedo.

— Bem, melhor dormir um pouco.

— Pode dormir, se quiser. Ficarei acordada — respondeu ela, evidentemente referindo-se a seu princípio de pânico.

De repente, Lisa encolheu-se nos seus braços e beijou-o no rosto. Mike compreendeu imediatamente que a afeição era em benefício dos dois italianos que tornavam a percorrer o vagão.

O resto da viagem transcorreu em absoluto silêncio.

Às quatro da manhã o trem parou no terminal de Larissa, em Atenas.

 

A viagem de trem terminou num subúrbio de Atenas chamado Chalandri, a cerca de seis quilômetros do centro da cidade. Tratava-se de uma zona dedicada à horticultura.

Lisa conduziu Mike em direção a uma casa de madeira, e, em seguida, tomando outro caminho, afastou-se da construção, atravessando uma plantação de limoeiros. Uma casinhola iso­lada surgiu no centro do agrupamento de árvores.

Abrindo a porta, entrou em primeiro lugar e acendeu um lampião de querosene. O local cheirava a mofo. Embora fosse quase meio-dia, a casinhola, que abrigava uma bomba, estava escura. A única abertura era de trinta por trinta, fechada por arame, quase no teto. A bomba há muito estava fora de uso. Viam-se duas enxergas, uma mesa e uma cadeira no assoalho sujo. Sobre a mesa, um lampião e uma lata de combustível. Uma dúzia de livros, empilhados numa das camas, chamou a atenção de Mike.

Quando o trem chegara a Atenas, vários dos passageiros haviam tentado escapar à inspeção saindo pelas janelas. A maioria foi imediatamente apanhada. Mike e Lisa haviam passado quatro horas enervantes à espera da passagem pelas escrivani­nhas da fiscalização, que afinal ocorrera sem incidentes.

— Chegamos, finalmente — disse Mike, jogando a sacola na mesa.

Lisa colocou-se diante dele, distante como uma estátua.

— Lazarus, o dono desta fazenda, é um dos nossos ele­mentos de confiança. Recebeu instruções para manter-se afastado daqui, não entrar em contato com você. Terá que denunciá-lo, caso se intrometa.

— Sim, senhora.

— Uma refeição será colocada diariamente à porta, após o anoitecer. Há uma privada do lado de fora da construção. Só poderá usá-la à noite. Não sairá daqui em circunstância alguma.

— Mais alguma coisa?

— Não precisa ser irônico. Você foi trazido para aqui com grandes despesas e riscos.

— Mas   você   não   foi   precisamente   o   mais   cordial   dos comitês de recepção.

Mike sentou-se numa das camas, que gemeu sob seu peso, e relanceou para os títulos dos livros: Shakespeare, Shaw, Wilde, Goldsmith e um enxame de dramaturgos e poetas ingleses de menor importância. Tratava-se de uma coleção católica. Outro grupo de pequenos volumes registravam na lombada Aristóteles, Sócrates e Platão.

— Parece que terei bastante tempo para leitura útil. Não haverá por acaso algum western americano? Sou estritamente pelo gênero leve quando se trata de leitura...

As tentativas de gracejo não encontraram eco.

— Vire-se de costas — ordenou ela.

Mike ouviu o roçar de roupa de seda e conteve a natural inclinação para espreitar.

— Pode virar-se agora.

Lisa tinha numa das mãos a sua pistola, e na outra o rolo de dracmas. Colocando-os na mesa, falou:

— No futuro, procure pensar antes de sacar uma arma.

Mike sentiu-se completamente humilhado.

— Quando poderei ver o Dr. Thackery?

— Assim que ele estiver pronto para vê-lo.

Mike levantou-se quando Lisa se aproximava da porta.

— Senhorita. . .

Ela voltou-se.

— Ouça, Helena, ou Sra. Papadopoulos, ou seja qual for o seu nome, sei que isso foi uma missão rotineira no seu caso, mas quero agradecer-lhe.

— Não é preciso.

— Creio que sim. Quando alguém faz uma gentileza deve aceitar agradecimentos. Posso lhe dizer que sou grato por me ter salvo a vida, não posso?

Lisa sorriu e sua voz perdera um pouco da frieza ao responder:

— Fomos grosseiros um com o outro.   Creio que é natural nas circunstâncias.                                                                    

— Sabe de uma coisa? Você não me enganou nem por um instante.

— Que quer dizer? — perguntou ela, meio assustada.

— Não é absolutamente fria como quer parecer. Suponho que não nos tornemos a ver, de modo que novamente agradeço.

— Creio que ainda não se viu livre de mim. Deram-me o encargo de vir aqui diariamente.

— Ótimo... Então, até amanhã...

— Meu nome é Lisa.

— Até a vista, Lisa.

— Adeus, Vassili.

 

O grande Mercedes Benz negro entrou na Rua Hermes, tomando a direção da Anton's Dress Shop.

— Acha mesmo que está agindo bem, Konrad? — pergun­tou Zervos.

— Creio que sim. Lisa deve saber que seu prazo esgotou-se. Desta vez ela ouvirá.

— Não   gosto   disso.   Pode   contar   a   história   toda   à Resistência.

— Você tem idéia melhor?

Zervos deu de ombros. Heilser e o grego, interrogando os habitantes de Paleachora, souberam que Morrison tentava ir para Atenas com a ajuda de um homem chamado Christos, que morrera durante um ataque. Embora Morrison fugisse para as colinas, ambos estavam convictos de que ele tentava ou já conseguira contato em Atenas. Tudo indicava que esse contato fizesse parte de um grupo que rodeava Papa-Panos, o Dr. Thackery e um antigo professor de grego, chamado Thanassis.

Anton introduziu-os no gabinete onde Lisa aguardava.

— Boa tarde, Lisa — disse Heilser, com voz cordial. — Parece abatida. Esteve doente?

— Minha saúde não é da sua conta.

— Pelo contrário. Preocupo-me muito. Viu seus filhos?

— Sim.

Heilser andou por algum tempo de um lado para outro, depois apoiou-se na borda da escrivaninha, brincando com o cortador de papéis de Anton.

— Diga-me,   Lisa,   conhece   um   americano   chamado   Dr. Harry Thackery?

— Não. . . Por quê?

— Pensei que talvez conhecesse.

— Ele trabalha com a Resistência. Deverá conhecê-lo, mais cedo ou mais tarde, se é que já não conhece — disse Zervos.

Aquele estranho questionário pegou-a desprevenida.

— Que sabe de um padre chamado Papa-Panos?

— Eu o conheço.

— Que sabe dele?

— Apenas o que todo mundo sabe em Atenas.

Ou os dois estão me sondando, ou têm algum plano, pen­sou Lisa.

— Ouça, Lisa, a finalidade disto é levá-la a compreender que não estamos totalmente ignorantes do que se passa.

— Tenho a certeza de que não — replicou Lisa.

— Sabemos também que tem mentido. Mas estou disposto a não levar em conta. O que quero saber é se está disposta a começar a cooperar.

— Fiz um trato.

— Um momento — interrompeu Zervos. — Você parece um disco quebrado. Nossa paciência esgotou-se. Compreende o que quero dizer, sem precisar entrar em detalhes?

— Compreendo — murmurou ela.

— Vou fazer uma proposta, Lisa. Em troca de uma infor­mação devolverei seus filhos e arranjarei uma passagem de na­vio para que possam seguir para o Egito.

Lisa procurou conter a excitação.

Konrad Heilser abriu a carteira e entregou-lhe uma foto. Era uma das reproduções da capa do livro de Michael Morrison, Regressa o Caçador. Lisa estudou-o atentamente.

— Este homem já está em Atenas, ou estará muito breve. Dou-lhe três semanas para entregá-lo. Se não o conseguir...

Ela devolveu a foto.

— É só isso?

— Só isso.

— Saia primeiro — disse Zervos. — Quero comprar alguns vestidos.

Lisa saiu lentamente do gabinete, seguida pelos olhares de Heilser e Zervos. A porta fechou-se.

— Ela os conhece — disse Heilser.

— É difícil dizer,   quando   se   trata   daquela mulher.   Sabe esconder muito bem as emoções.

— Mas   não   conseguiu   ocultar   aquele   louvável   traço   de amor materno...

— Por falar nisso, Konrad... Pretende mesmo deixá-la seguir para o Egito com os filhos?

— Claro que não.

— Vamos para meu apartamento. Quero lhe mostrar minha última aquisição, que o fará esquecer até mesmo Lisa.

 

Grande parte da habitual calma de Lisa havia desaparecido. Na tranqüilidade do seu apartamento pusera-se a andar, nervosa, de um lado para outro. Meia dúzia de vezes tomara uma decisão para abandoná-la em seguida. Cada vez que decidia enga­nar Heilser até o fim, a foto de seus dois filhos, no rebordo da lareira, desafiava-a. Como pareciam pequeninos e indefesos...

Aquele homem, Vassili, falava como um americano, mais que como um inglês. Era muito importante, tanto para a Gestapo como para a Resistência. Heilser não teria feito aquela proposta, a menos que estivesse desesperado. No último encontro não fizera a menor tentativa para persuadi-la a tornar-se sua amante. O homem, fosse quem fosse, devia ter muita importância.

Mas poderia trair sua própria gente? Que seria a sua vida depois? O Dr. Thackery, Papa-Panos e Thanassis estavam igual­mente ansiosos para que o homem fugisse da Grécia. Sim, seus filhos precisavam viver, mas quantos outros morreriam se ela cometesse uma traição?

Três semanas para decidir...   três semanas...

A foto sobre a lareira representava um menino de dois anos e outro de quatro. O primeiro ostentava um grande sorriso e o outro agarrava com força um ursinho de pelúcia. Acendendo um cigarro, Lisa deixou-se cair numa cadeira.

 

Mike não tinha escolha, a não ser acostumar-se à casa da bomba, em Chalandri. Parecia evidente que a fuga para longe da Grécia não era fácil de ser arranjada.

Procurava ler, mas não conseguia concentrar-se. Dormia aos cochilos, esperando a escuridão, que lhe permitiria sair um pouco da cabana para respirar.

Ao meio-dia já estava banhado em suor. À medida que o sol se adiantava no céu, o interior da casa tornava-se cada vez mais insuportável. Mike deixava-se ficar imóvel, deitado, quase inconsciente, tal o calor.

Mas tornava-se alerta ao menor ruído, desde o murmúrio da folhagem até o roçar de passos ao anoitecer. Nesses momentos invariavelmente empunhava a pistola. Os passos aproximavam-se e paravam diante da porta. Um prato de comida e uma garrafa de vinho eram depositados e a pessoa imediatamente se afastava.

Mike não conseguia comer muito, mas o vinho mergulhava-o num abençoado estado de semi-inconsciência por algumas horas.

Durante a noite andava pela cabana como um animal enjaulado. Os dias pareciam infinitos.

Um ruído no exterior levou-o a suspirar de alívio — os leves passos de Lisa. Era humano, nas circunstâncias, que aguardasse com crescente ansiedade suas visitas noturnas. E era natural também que passasse muito tempo pensando nela, depois que saía. Tinha a certeza de que sempre se lembraria dela, mesmo que se tivessem encontrado em circunstâncias ideais. Seu rosto refletia uma profunda tristeza que acrescentava uma aura de mistério à sua beleza.

As visitas eram cordiais. Dia a dia Lisa mostrava-se mais empenhada em conquistar-lhe a total confiança.

— Como foi o dia de hoje, Vassili?

— Ótimo.   Adoro   isto   aqui.   Quer me   ouvir   recitar   Júlio César da frente para trás, ou a República de Platão de trás para a frente?

— Isto talvez o anime um pouco.

Abrindo um pacote, retirou um aparelho de barbear, algumas lâminas e dois livros: O Lobo do Mar e Martin Éden. Mike não teve coragem de dizer que já havia lido ambos os livros meia dúzia de vezes.

— Espere! Há mais. Uma surpresa. Veja o que eu trouxe, Vassili: tabaco.

— Tabaco... — Mas até seu cachimbo deixara de ter bom gosto. — Lisa, quanto tempo terei ainda que ficar aqui?

— O Dr. Thackery tem muita dificuldade em movimentar-se atualmente, mas creio que não ficará muito mais tempo aqui, Vassili.

Passaram-se cinco dias.

Lisa começou a chegar mais cedo e a ficar até a hora de recolher. E cada dia ele a aguardava com maior ansiedade, principiando a achar que grande parte do dever e da rotina das visitas estavam desaparecendo e que ela se sentia bem a seu lado.

Preparavam um bule de chá, ou partilhavam uma garrafa de vinho, conversavam tranqüilamente sobre livros e música. Ele descobriu que ela era inteligente e muito culta e por seu intermédio ficou sabendo cada vez mais a respeito da tragédia que se abatera sobre a Grécia.

O moral estava rapidamente degenerando em todo o país. A maioria dos gregos sentia profundo ódio pelos invasores, mas havia os que — estes existiam sempre — achavam melhor colaborar com o inimigo.

Uma série de terríveis golpes sucederam-se rapidamente. A região que rodeava Atenas nunca fora auto-suficiente no setor de alimentação. No momento fora despojada até a última espiga de trigo pelos alemães. As taxas sobre as colheitas vigoravam nas aldeias e nos campos, que eram queimados sempre que houvesse sinal de resistência.

Os gregos reagiam como podiam, mas viam o povo massacrado à razão de cinqüenta para cada alemão. Resistência organizada praticamente não existia ainda.

Mike compreendia agora o quanto dependia dos dezessete homens da lista Stergiou, que trabalhavam nos círculos mais fechados do Comando Nazista.

O racionamento descera quase ao nível da fome. O mercado negro começara a surgir. A lei da selva assumia o comando. As escolas estavam fechadas por falta de freqüência e grupos de crianças vagueavam à solta pelo país.

Para a Grécia, aquilo era apenas o começo.

 

Era estranho o relacionamento entre Mike e Lisa. Mike tinha tanto a dizer, mas precisava manter-se em guarda. Gostaria de falar sobre os filhos, seus escritos e São Francisco. De certo modo. Lisa parecia adaptar-se à idéia de São Francisco.

Talvez fosse justamente aquela estranheza que os atraísse um para o outro. Súbito, na noite do sétimo dia, ela perguntou se ele tivera um caso com Eleftheria. Lisa parecia aborrecida consigo mesma, retraindo-se à sua anterior frieza.

No oitavo dia não apareceu.

Nono dia.

Lisa tomou o telefone e discou para a Gestapo.

Estava profundamente pálida e gotas de suor cobriam-lhe a testa. Mandou chamar Zervos.

— Sabe quem está falando? — perguntou.

— Sim — respondeu Zervos.

— Hoje à noite, às dez horas, descerei a Rua Aeolou, dian­te do Banco Nacional. Levarei alguém comigo.

— Muito bem.

Lisa desligou, dentes cerrados para conter o tremor incontrolável do rosto.

A porta da cabana abriu-se.

Mike sorriu quando Lisa entrou. Sentia-se tão feliz ao vê-la que estava pronto a esquecer a véspera, em que não aparecera.

— Trago boas notícias, Vassili.   Vamos a Atenas hoje à noite. Entramos em contato com alguém que conseguirá sua fuga.

 

Os dois saíram da casa de bomba.

Mike, caminhando junto a Lisa em direção ao ponto do bonde, sentia-se agitado por emoções contraditórias. Em primeiro lugar, alívio por sair daquele recinto confinado. Depois, exci-tação à idéia de sair da Grécia e um pouco de tristeza pela convicção de que jamais tornaria a ver Lisa. Mas, acima de tudo, havia o medo que o atormentara antes, da viagem de trem de Dadi a Atenas.

Observara Lisa agindo com frieza e competência. Vira-a cordial e simpática. Mas nunca a vira hesitante. E no momento ela estava traindo demasiado nervosismo para que ele se sentisse tranqüilo.

O bonde dirigiu-se à parte noroeste da cidade, descrevendo uma ampla curva ao passar pelo terreno do Ceramicus.

Saltando na Rua Outubro, seguiram a pé na direção da Praça da Concórdia.

Eram oito e trinta.

Lisa apoiou-se no seu braço e naquele instante muitas de suas dúvidas desapareceram. Enquanto caminhavam tranqüila­mente, ele foi ficando cada vez mais cônscio de sua proximidade.

E sentiu-se dominado por uma sensação que não conhecia há muitos, muitos anos e que julgara jamais tornar a experimentar. A memória projetou-se a dezoito anos atrás. Não passava então de um rapaz levando a namorada a passeio, sem qual­quer destino em especial. Apenas matando tempo.

Um passeio pelo parque da Golden Gaíe, onde uma ban­da tocava num coreto. Ou no Memorial Stadium, em Berkeley, envolto num sopro frio de novembro, antes do início do grande jogo entre Cal e Stanford.

Ou talvez fosse um passeio a pé, num fim de semana, pelas colinas de Marin que dominavam a Golden Gate, ou então uma volta preguiçosa entre banhistas deitados ao sol, em Playland

Havia sempre uma moça ao seu lado e ele se sentia muito bem. Sentia-se igualmente bem com Lisa e perguntou a si mesmo por que voltara a ter aquela sensação após tantos anos, num país estranho.

Atenas estava deprimente. As lojas, antes cheias de mercadorias, estavam vazias. O povo parecia emaciado, caminhando apático pelas ruas.

Nazistas sinistros e carabinieri ridículos substituíam a despreocupada Força Expedicionária Britânica, vestida de caqui. Moças condenadas à prostituição caminhavam pelas sombras.

Quando as ruas tornaram-se mais movimentadas, nas proximidades da Praça da Concórdia, Lisa parou de repente e entrou numa rua lateral mais tranqüila.

Pareciam andar a esmo. Lisa consultou o relógio. Passava das nove.

A rua estava deserta.

Ouviam o ruído de seus passos quando atravessavam o Kolonaki, passando pela igreja de Agioi Thodoroi.

Mais um quarteirão e se encontravam num cruzamento da Rua Aeolou. Ali pararam.

Mike calculou que haviam ultrapassado a Praça da Concórdia, encontrando-se pouco além. Percorrendo com a vista a Rua Aeolou, avistou a distância o Edifício dos Telégrafos, de que se utilizara tantas vezes depois de chegar a Atenas. Mais acima ficava o Banco Nacional.

— E daqui, para onde vamos? — perguntou.

Lisa afastou-se dele, murmurando:

— Subimos a Rua Aeobu.

Mike acendeu o cachimbo e a claridade do fósforo iluminou o rosto de Lisa. Seus olhos a traíram.

— Espere — falou. — Ainda há tempo. Quero lhe mostrar uma coisa.

E atravessaram a Rua Aeolou, seguindo na direção oposta.

— É tão raro ver a lua cheia por aqui — disse Lisa. — Ninguém pode sair da Grécia sem ver a Acrópole ao luar.

Mike contemplou em silêncio, cheio de admiração, a cidade que ficava lá embaixo. O luar cobria de prata a colina, as luzes de Atenas e o mar, estendendo-se a oeste.

Olhando para o sul, sentiu a estranheza daquela claridade incidindo sobre o mármore amarelo do Partenon.

Perguntara a si mesmo, um dia, que força o arrastara à Grécia. Repetira a pergunta em meio ao tumulto e à confusão, de um exército em retirada. Sabia, mesmo no caos, que encontraria, em algum lugar, a razão. A pergunta ficara, em grande parte, respondida. Mas naquele instante surgira outra resposta e outro significado. A própria alma de sua pátria nascera naquela colina.

Voltando-se, fitou Lisa. E mergulhando nos seus olhos tristes compreendeu que ela fazia parte integrante da tragédia grega,

— Não há nenhum contato e nenhum barco , não é mesmo Lisa? — perguntou baixinho.

Comprimindo contra o dele seu corpo frágil, abraçou-o, mergulhando a cabeça no seu peito, trêmula, chorando.

— Abrace-me, Vassili, abrace-me, abrace-me! — gemeu, a voz vibrante de angústia e desespero.

— O que houve? Diga!

— Abrace-me com força... por favor!

Os braços de Mike a envolveram e ela continuou a soluçar, agarrada a ele. Depois, voltando-se, caminhou alguns passos e deixou-se cair sobre uma pedra. Seus olhos estavam tão sem vida como a cidade lá embaixo. Num sussurro, falou:

— Venha, Vassili. Eu o levarei de volta a Chalandri.

Lisa parecia exausta, percorrendo em silêncio o caminho de volta à fazenda de Lazarus. Toda a energia a abandonara, como se nada lhe restasse para combater o que a torturava.

Mike tinha a cabeça fervilhante de perguntas. Deveria fugir novamente para as colinas? Tentar conseguir, ele próprio, um barco para fugir? Parecia-lhe inútil. Fosse o que fosse, só ela poderia resolver e ele decidiu esperar.

Entraram na casa de bomba e ela deixou-se cair numa enxerga, pálida e apática.

— Perdão — murmurou.

— Beba um pouco de vinho.

— Obrigada.

O vinho restituiu-lhe um pouco de cor ao rosto. Levantou-se para sair e Mike consultou o relógio.

— Passou a hora de recolher — observou.

Ela não respondeu.

— Vamos, deite-se. . . Eu a cobrirei com meu casaco. Faz frio durante a noite.

Ela despiu o impermeável e Mike viu-lhe os dedos delicados desprendendo os grampos da boina. E lembrou-se de que costumava gostar de ver Ellie despir-se. Lisa sentou-se na beira da cama e tirou os sapatos. Houve uma pausa embaraçosa.

— Parece...   parece que estamos sempre em enxergas — murmurou ele. — Vamos, deite-se... Eu a cobrirei.

Tirando o pesado cobertor de sua cama, cobriu-a, enquanto ela se encolhia toda.

Ajoelhando-se, fitou-a.

— Gostaria de poder ajudá-la, Lisa.

Tomando-lhe a mão, Lisa levou-a aos lábios.

— Você é um amor.

Mike acariciou-lhe os cabelos dourados e com a ponta dos dedos roçou-lhe o rosto. Lisa fechou os olhos. Parecia uma criança. Ele beijou-lhe a testa e ela sorriu.

Aproximando-se do lampião, Mike baixou a chama, mergulhando a cabana em escuridão.

Deitou-se também, olhos abertos nas sombras. Ouvindo a respiração de Lisa, recordou suas sensações quando caminhava ao seu lado, quando a abraçara. . .

— Vassili, está dormindo? — perguntou ela, baixinho.

— Não.

Ele a ouviu aproximar-se na escuridão. A cama estremeceu. Estava ao seu lado. Seus dedos roçaram-lhe os cabelos.

— Não deixarei que nada lhe aconteça.

Puxando-a para junto dele, procurou os lábios. — Lisa... Lisa...

Ela procurou afastá-lo.

— Não,   querido,  não...   Não   fique zangado...   por favor... não se zangue.

Está bem, está bem... É melhor você dormir um pouco.

 

Passaram-se dois dias sem Lisa aparecer. Mike ficou desesperado.

Lançava a culpa naquela prisão, na beleza dela, na situação misteriosa e romântica. A razão dizia-lhe que estava sendo um tolo. Lisa era uma desconhecida que ele jamais tornaria a ver. Lisa talvez fosse justamente o inimigo.

Inútil racionalizar. Apaixonara-se por ela, simplesmente.

Sabia que nada havia de novo em um homem apaixonar-se por alguém como ela. Talvez simpatizasse com ele e não quisesse ferir-lhe os sentimentos.

Depois começou a ponderar outras coisas... Com quantos homens teria dormido? Como seria amá-la?

Como era estranho que aquilo houvesse acontecido! Mike sabia que quando Ellie morrera aquele amor morrera com ela. Jamais sentiria as emoções de um novo romance... Não podia haver amor como o de Ellie.

Caminhando de um lado para outro, no chão de terra bati­da da cabana de Chalandri, Mike perguntava a si mesmo se estaria destruindo a lembrança de Ellie. Mas poderia abafar aquele sentimento por Lisa?

E pensou em seu primeiro romance — a história de um grande amor. Seu editor, cético como a maioria dos editores, argumentava que “o grande amor” era algo que só existia em ficção. Na realidade, um homem podia conhecer mil amores, em diferentes ocasiões, e cada um deles ser verdadeiro à sua maneira. E acrescentava que somente em ficção alguém quereria viver para sempre com uma lembrança. Mike compreendia agora que ele tinha razão.

Era inexplicável o contraste nos amores e nos tempos. Ellie era alta, alegre, telúrica. Andava descalça, de slacks bem usados e sentia-se extremamente feliz com uma raquete de tênis nas mãos, passeando de bicicleta numa trilha de bosque, ou lutando de brincadeira com Mike na praia.

Lisa era frágil, triste, altiva, envolta em mistério.

Lisa sabia, disso Mike estava certo. Só faltava ele declarar-se. Mas não o faria nunca. Classificaria o acontecido como mais um entre os muitos que lhe estavam sucedendo e a esqueceria, mais cedo ou mais tarde.

No terceiro dia, cerca das doze horas, ouviu seus passos aproximando-se pelo caminho. Nunca viera àquela hora do dia.

A porta abriu-se e ela entrou. Pareceu-lhe ainda mais bela do que a imaginava. Fitando-o direto nos olhos, falou sem entonações:

— Hoje à noite irá sozinho a Atenas, às nove horas. Sente-se numa mesa da calçada do Café Andreas, na Praça da Constituição. Um homem chamado Nico irá procurá-lo. Estará de terno   preto   e usará um   anel   Mason.   Nico   o conduzirá ao Dr. Thackery.

Voltando-se, abriu a porta.

— Lisa, tornarei a vê-la?

— Não — ela respondeu, afastando-se da cabana.

 

Oito horas.

Mike colocou a pistola no cinto, deu uma última olhadela na cabana e saiu.

Um bonde meio vazio levou-o a Atenas.

Oito e trinta.

Sentia câimbras no estômago. No cruzamento de Leophoros Alexandrou e Leophoros Kifissias passou para outro bonde, este cheio de gente. Havia muitos soldados alemães entre os passageiros. Encostando-se à janela, olhou para fora. O veículo passou pelos portões de ferro da Embaixada Americana. Dois marines de uniforme azul guardavam a entrada. Mike sentiu um aperto na garganta à vista da bandeira. O bonde passou rápido, deixando para trás a embaixada.

O grande relógio que dominava a praça marcava dez minutos para as nove. Mike atravessou a rua ao ouvir botas alemãs, diálogos guturais e ao ver italianos espalhafatosos ocuparem a calçada.

Voltando-se,   olhou   direto   nos   olhos   frios   de   um   oficial alemão.   Inclinando-se,   apanhou   o   chapéu   do   oficial,   fez   um meio cumprimento   e pediu   desculpas por tê-lo   empurrado na multidão.

— Suíno grego!

— Epharisto! — disse Mike, inclinando-se novamente e afastando-se.

 

Café Andreas.

As mesas da calçada estavam quase cheias. Alemães e suas garotas, na maioria. Música chegou aos ouvidos de Mike. Numa mesa próxima, três americanos conversavam.

Quase não se viam gregos. Mike sentiu-se conspícuo e como que despido ao instalar-se numa mesa próxima à esquina Um garçom fitou-o com tristeza. Os gregos não eram bem recebidos, pensou Mike. Pediu uma garrafa de krasi e sentou-se rígido, temendo olhar para os lados. Bebendo um grande gole do vinho, procurou relaxar.

Nove horas.

Uma prostituta passou pela mesa, olhando-o, mas continuou seu caminho em busca de melhores perspectivas. Mike serviu-se de outro copo de krasi e bebeu rapidamente

Nove e cinco.

Nove e dez.

Sentia-se cada vez mais nervoso. Mais um copo de vinho. A bebida começou a produzir efeito. Olhou para o grande relógio. Daria mais cinco minutos a Nico para manifestar-se, depois iria embora.

— Posso sentar?

Um homem imensamente gordo já se instalava na cadeira diante de Mike. Usava um chapéu panamá ridiculamente colocado no alto da cabeça. Seu rosto imenso lembrava um mastim inglês. Numa das mãos equilibrava um prato de azeitonas negras e na outra, uma bebida. Atirou uma azeitona na boca minúscula, que não passava de uma fresta entre camadas de gordura. Os olhos eram também simples frestas e aparentemente só ficavam abertos graças ao maior esforço, acima de duas profundas bolsas. Vestia um terno branco todo amarrotado.

— Estou esperando uma pessoa — disse Mike, em grego.

— Nico não poderá vir. Foi... detido.

O homem falava com pronúncia americana. Acendendo um cigarro que se perdeu naquele rosto imenso, pôs-se a fumar lentamente, fitando Mike. Este levantou-se.

— Eu não sairia agora, se fosse você. Um grito meu e nem sequer atravessaria a calçada.

Mike bebeu um copo de krasi em dois goles. O homem estalou as juntas e falou, com voz asmática:

— É fugitivo inglês, não é?

Mike permaneceu calado.

— Sem dúvida anda à procura de um barco rápido que vá para o Egito. Talvez eu possa ajudá-lo.

— Sou cidadão grego. Não sei o que está dizendo.

— Meu velho, fui correspondente durante doze anos. Conheço bem os gregos.

— Está bem. Sou inglês.

— Agora sim.

Erguendo um dedo, o homem chamou o garçom e pediu outra garrafa de krasi.   Mike olhou à volta, em busca de uma escapatória. Não havia. O local estava cheio de alemães.

— Bem, pelo que soube, você quer sair deste agradável país — continuou o homem.

— Qual é seu jogo? — replicou Mike bruscamente.

— Jogo? Meu velho, chamo-me Julius Chesney, correspondente estrangeiro do New York Star Bulletin. Já leu minhas reportagens? São muito informativas. E reproduzidas no Times de Londres.      

— Sou neozelandês.

— Ótimo. Gosto dos neozelandeses, gente corajosa. Colocando outra azeitona na boca, mergulhou dois dedos para localizar o caroço. O krasi chegou.

— Digamos que se trata de uma vocação. Tenho prazer em ajudar aos rapazes.

— Estou ouvindo. Não tenho escolha.

— Suponhamos que eu lhe diga que estou em contato com o capitão de um barco extraordinariamente rápido, que conhe­ce a faixa minada, os horários das patrulhas e o caminho para o norte da África.

— Suponhamos que sim.

— Quanto daria por isso?

— Não tenho a menor idéia.

— Vale, digamos... três milhões para arredondar a quantia.

— Não tenho tanto dinheiro.

— Não importa. Acontece que eu também conheço uma encantadora família grega que teria prazer em pagar-lhe a passagem.

— Ouça, Chesney. Já ouvi falar na sua rede. Você indica a família grega, recolhe o dinheiro da passagem e o barco não aparece. Em seguida você recebe outra bela quantia por me entregar à Gestapo.

— Meu caro rapaz — protestou Chesney, erguendo a mão. Pelo que vejo teve contato com gente bastante desagradável.

— A mim você não parece melhor que os outros.

Contorcendo   o   rosto   gordo   no   que   parecia um   sorriso, replicou:

— Você me agrada... Como se chama?

— Smith. Joe Smith.

— Ora, vamos.

— Linden. Jay Linden.

A conversa foi interrompida pela passagem de um alemão com sua garota, à procura de mesa vazia. Os dois afastaram-se e Mike, inclinando-se, falou:

— Ouça, Sr. Chesney: não me inspira a mínima confiança Agora seja camarada e deixe-me ir embora.

— Fique quieto, Linden, fique quieto — murmurou Ches­ney. Tomando lentamente a bebida, tamborilava na mesa com os dedos gorduchos. Mike cerrava os dentes, procurando dominar a inquietação. — Vou colocar as cartas na mesa. Se eu apresentar uma proposta mais... clara, você gostaria de...

— Está bem, fale.

— Veio aqui para entrar em contato com Nico. Nem ele, nem a Resistência podem fazer coisa alguma por você.   Heilser e seu amigo grego, Zervos, conhecem todos os seus movimentos. Já ouviu falar em Herr Heilser, não?

— Já ouvi o nome.

Mike tinha que admitir que Chesney era bem-informado.

— De homem para homem, sem complicações. Meu hobby é colecionar dracmas. Gosto de dracmas. E você representa muitas para mim.

Por que não abre um bordel?

Chesney sorriu.

— Para repetir um velho clichê:   o excesso de amadores está arruinando o negócio, hoje em dia. Fugitivos são mais rendosos... Estou ficando velho e meu coração não é dos melhores.   Digamos que estou fazendo um pé-de-meia.

— Traficando com peles inglesas.

— Fugitivos estão em moda agora, meu velho. Há setores em que me consideram um mártir.

— Como saberei se você vai ou não me trair?

— Não   saberá,   exceto   olhando   para   minha   fisionomia honesta.

Mike foi forçado a sorrir. Chesney o interessava. Evidentemente sabia agir com habilidade, era bem-informado e havia cinqüenta por cento de chances de ser correto. Não seria mau entrar num entendimento.

— Que propõe?

— Ótimo. Vejo que é um homem ajuizado, Linden. Encontre-me no Café Picadilly, Praça da Concórdia, na próxima quinta-feira ao meio dia. O Sr. Choleva, seu benfeitor, terá prazer em conhecê-lo. Já financiou quatro fugas. Acrescento que os quatro se encontram em segurança no Egito.

— Sabe o que acontecerá se me trair?

— Não, diga.

— Eu o matarei.

Chesney suspirou.

— Isto é muito desagradável e inteiramente fora de propósito   meu velho. Está vendo aqueles dois cavalheiros atravessando a rua? — Mike olhou por cima do ombro de Chesney. Dois civis com roupas de corte alemão estavam encostados a prédio, fingindo conversar um com o outro. — Aqueles dois camaradas são da Gestapo. Andam aqui pela praça, esperando que um de vocês, britânicos, apareça. Tenho a impressão de que já o notaram. Agora, Sr. Linden, se seu cérebro é tão rápido quanto sua boca, não terá dificuldade em livrar-se deles. São muito estúpidos. Nós nos veremos na quinta-feira, no Café Picadilly.

O coração de Mike deixou de bater uma vez quando Julius Chesney levantou-se e saiu.

 

Mike tornou mais meio copo de krasi. Os dois homens da Gestapo observaram-no do outro lado da rua. Levantando-se de pernas trêmulas resolveu atravessar a praça. Os dois puseram-se a segui-lo à distância. Mike apressou o passo, lutando contra a vontade de desandar a correr.

Virou uma esquina e passou uma fila de lojas. A meio do quarteirão parou, estudando uma vitrina onde se via o letreiro Anton's Dress Shop, e acendeu um cigarro.

Os dois agentes da Gestapo dobraram apressadamente a esquina e detiveram-se, bruscos, ao avistar Mike.

Este olhou rapidamente à volta. Um bonde parava na esquina. Mike atravessou rapidamente a rua. O veículo passou o cruzamento, ganhou velocidade e aproximou-se do meio do quarteirão, onde ele se encontrava. Estava cada vez mais próximo. . .

Saltando da calçada para o bonde, sentiu o braço quase arrancado pelas articulações. Caiu na plataforma traseira, enquanto o veículo passava a toda velocidade diante de seus perseguidores.

Olhando rua abaixo, viu um automóvel parar junto aos homens da Gestapo. Um deles apontou para o veículo e o carro começou a segui-lo à distância de um quarteirão.

O bonde tornou a diminuir a marcha. Mike saltou e mergulhou de um salto numa rua escura.

Onde estava? Onde estava? Onde estava?

Sentia-se enfraquecido de terror. No meio do quarteirão chegou a uma ruela. Naquele instante ouviu o carro dobrando a esquina.

Mergulhando no beco profundamente escuro percorreu-o até o fim. Uma parede de três metros de altura fechava a outra extremidade. Deu um salto, mas suas mãos não alcançaram a parte superior. Do outro lado vinha o ladrar de cães.

Mike espreitou desesperadamente a escuridão. Fundos de de   ambos   os   lados.   Luzes   fracas   escoavam-se   pelas venezianas descidas.   Um   cheiro   de podridão   e lixo   chegou-lhe às narinas...   Um rato passou correndo pelo calçamento escorregadio.

Encostando-se a parede sacou da pistola.

Na outra extremidade da alameda, as portas do carro bateram.   Em seguida ouviu passos e ordens cochichadas.

Mike esgueirou-se pelo muro, ultrapassando várias casas. Um raio de luz cortou o beco. Mergulhando num obstáculo, agachou-se por detrás dele. Na saída da passagem outro carro parou ruidosamente.

— Há alguém aí? — perguntou uma voz por detrás de Mike.

Voltou-se bruscamente. Abrira-se a porta dos fundos de uma das casas.

— Englezos... — murmurou. — Englezos... ajude-me. . .

— Entre, depressa — disse uma voz.

A porta fechou-se às suas costas. Mike apoiou-se ao batente, tonto, arquejante. Diante dele havia uma mulher vestida apenas com um roupão.

— Siga-me — falou.

Entraram num comprido corredor, e ela abriu uma porta. Mike atirou-se no quarto.

— Fique aqui — disse ela. — Voltarei logo.

Ele deixou-se cair numa cadeira, mergulhando o rosto nas mãos. — Jesus... Jesus Cristo...

Erguendo a cabeça olhou lentamente ao redor. O quarto estava iluminado apenas por uma lâmpada azul colocada no lado de uma cama forrada de cetim. Mais adiante via-se uma poltrona espalhafatosa. Numa parede, o costumeiro ícone e imagem de Cristo. Em nítido contraste, na outra havia diversas reproduções de quadros gregos, representando jovens em diversos estágios de repouso. Ao lado da cama havia uma alcova, oculta em parte por uma pesada cortina. Mike avistou além uma pia e um pequeno lavatório.

Ao som de vozes e gargalhadas retesou-se. No vestíbulo um alemão e uma mulher grega.

Por diversas vezes, portas abriram-se e fecharam-se nas proximidades.

Depois, silêncio.

Ouviu-se uma leve batida e a mulher de quimono entrou rapidamente trancando a porta.

— A Gestapo está na rua. Rodearam todo o quarteirão.

Mike levantou-se, enxugando o suor do rosto.

— Pode guardar a pistola. Aqui está em segurança.

Encaminhando-se   para   a   poltrona   estendeu-se   nela.   Era jovem, teria pouco mais de vinte anos e não desprovida de beleza.   Sorrindo para Mike falou:

— Meu nome é Ketty.   Seja um anjo e massageie minhas costas.

Aproximou-se e ela desceu o quimono nos ombros, descobrindo a meio o busto. Mike colocou-se, embaraçado, às suas costas.

— Não seja tímido — disse Ketty, ronronando como uma gata enquanto Mike lhe massageava o pescoço e os ombros.

— Maravilhoso. Gostaríamos tanto que os ingleses voltassem. São uns cavalheiros. Esses alemães são uns grosseirões. E os italianos! Cada qual pensa que é o maior amante do mundo. Estou trabalhando” desde o meio-dia... Discutem até pelo pouco que pagam. Não tem muita importância. A dracma está perdendo valor diariamente.

Tornando a vestir o roupão, Ketty ajeitou o cabelo.

— Não se assuste, mas metade do Comando Alemão está nesta casa.

— Você é um amor, Ketty. Jamais esquecerei o que fez.

— É agradável falar novamente com um englezos. Foi tão bom enquanto estiveram aqui, embora por tão pouco tempo. Tenho uma filhinha, sabe?

— É bom isso?

— Sim. É uma criança encantadora. Vive num convento. É muito caro, mas trata-se de uma menina extraordinária, cheia de talento. Tenho tanto orgulho dela! Espero poder conservá-la onde está. Mas com o dinheiro escasso hoje em dia, não sei.

Mike separou um milhão de dracmas do seu rolo.

— Oh, não! — protestou Ketty. — Não me referia a isso. De você não receberia dinheiro.

— Para a sua filha.

— Não, não. Você precisará.   É necessário dinheiro para fretar um barco para a África.

— Não   discuta —   disse ele,   colocando   as   dracmas   na mesinha.

— Você é muito simpático. Como se chama?

— Jay.

— É uma das coisas que eu gosto nos ingleses. Têm nomes tão simples.

A conversa foi interrompida por um alemão discutindo com uma moça diante da porta.

— Cães... sempre discutindo. Há vinho na mesinha. Beba um copo.

— Já bebi demais.

Aproximando-se, Ketty sorriu.

— Você é muito atraente, Jay.   Gostaria de ir para a cama comigo?

— Não estou com disposição no momento, meu bem. . .

— Compreendo.

Uma batida na porta. Ketty entreabriu-a e discutiu com a mulher que se encontrava do outro lado. Voltando-se para Mike falou:

— Soldados e Gestapo lá fora. Vão fazer uma busca. Entre na alcova e puxe a cortina. Não mova um só músculo.

Mike obedeceu.

Daí a instantes ouviu a porta abrir-se e Ketty saudar al­guém com voz carinhosa. O homem riu e Ketty deu uma risada alegre, enquanto ele se adiantava pelo quarto. O homem falava alemão. Mike ouviu o ruído de um beijo.

O alemão gemeu ao arrancar as botas.

A cama rangeu a alguns passos do local onde Mike se encontrava, grudado à parede. Gemidos amorosos, beijos, a cama rangendo mais depressa...

Ouviu-se uma batida na porta e uma voz rugiu:

— Gestapo!

Mike ouviu o alemão vestir-se às pressas murmurando palavrões. A porta abriu-se.

— Que diabo significa isto?

— Major,   desculpe,   mais   um   fugitivo   inglês   encontra-se nesta área.

— Não está aqui, maldição!

A porta fechou-se ruidosamente.

 

Passaram-se horas. Duas da manhã.

Ketty entrou novamente no quarto e deixou-se cair na cama, exausta, murmurando.

— Esses bandidos nunca vão para casa... Há três bêbados na sala... Alguns gostam de bater nas garotas...

Levantando-se, puxou a cortina da alcova e jogou água fria no rosto.

Definindo a situação, Mike começou a planejar o próximo passo. Evidentemente não podia confiar em Lisa. Fervia de raiva à idéia de que o havia enganado.

Nas proximidades de Chalandri o terreno era acidentado e havia uma floresta. Ficaria escondido ali. Faltavam três dias para quinta-feira, quando compareceria ao encontro com Julius Chesney, no Café Picadilly.

Pensou consigo mesmo que era um tolo por voltar a Chalandri, mas estremeceu ao compreender que tentaria ver Lisa mais uma vez.

— Partirei assim que o dia clarear — disse Mike.

Ketty enxugava o rosto com uma toalha.

— Tem onde ficar?

— Sim, em Chalandri.

— Melhor que eu o leve até lá, antes de amanhecer.

— E o toque de recolher?

Ketty sorriu, sarcástica.

— Há certas coisas sobre as quais os alemães não impõe o toque de recolher. Tenho permissão para me locomover. Pode ficar aqui, se quiser.

— Está fora de cogitação.

— Eu lhe darei meu telefone. Nunca se sabe quando pode ser preciso.

 

Quatro da manhã.

A noite estava estrelada. Mike contornou a plantação de limoeiros da fazenda de Lazarus. O terreno tornava-se íngreme na extremidade do campo e terminava num fosso.

Seria perigoso continuar na escuridão. Um cão vadio poderia alterar tudo, quando se tratava de atravessar um campo estranho. A floresta ficava a vários quilômetros, a uma boa hora de caminhada.

Mike desceu ao fosso, resolvido a passar a noite ali. Da­quela elevação avistava toda a fazenda, a casa e os contornos do abrigo da bomba.

Estava ainda abalado com os acontecimentos da noite, mas tão exausto que cochilou. Fazia muito frio na vala.

 

Rolando o corpo, Mike soprou nas mãos, flexionou os dedos e massageou as pernas entorpecidas. Uma luz cinzenta surgiu no céu e um galo cantou numa fazenda vizinha. Saindo da vala, olhou ao redor. Via agora o sombrio contorno das colinas e da floresta distante. Arriscaria agora.

Olhando para a fazenda, ouviu um estranho som vindo dos limoeiros, viu uma silhueta esgueirar-se por entre as árvores e depois uma luz na casa de bomba.

Mike ficou imóvel dez, quinze minutos...

Uma expressão de ódio cobriu-lhe o rosto. Levando a mão à pistola desceu lentamente em direção à casa de bomba.

Com o pé escancarou a porta.

— Vassili! Graças a Deus!

— Não agradeça a Deus, cadela!

Lisa atirou-se a ele, soluçando. Afastou-a e ela deixou-se cair na cama soluçando. Mike fechou a porta.

— Tolo. Seu tolo! soluçou. Nico foi agarrado pela Gestapo.   Está na prisão de Averof...   O Dr. Thackery está escondido...

Calou-se e, levantando-se, aproximou-se de Mike. Ele apontou-lhe a pistola. Erguendo a mão, Lisa o esbofeteou. Mike devolveu-lhe a bofetada.

Fitaram-se, cheios de ódio.

— A   Gestapo   talvez já   saiba   a respeito   deste local — disse ela. — Temos outro esconderijo para você.

Mike permaneceu impassível, fixando-a com seus olhos azuis.

Passando por ele, Lisa aproximou-se da porta.

Voltando-se bruscamente, Mike agarrou-lhe o braço e puxou-a para si.

Que pretende fazer agora? — perguntou,   sacudindo-a violentamente.

— Vassili! Vassili! Fiquei quase louca!

— Oh, Lisa... Lisa...

— Não, querido. . .   Não, não podemos, não podemos... Não é seguro aqui... A Gestapo pode vir...

Tomando-a nos braços, ele a carregou para a cama. — Para o inferno com a Gestapo...

 

Ajoelhando-se junto à cama, Mike desenhou as linhas de seu corpo macio. Ela sorriu e beijou-o.

Lisa sentia-se em paz pela primeira vez desde que o conhecera. Quanto a Mike, sentiu que ela realizara todos os seus sonhos e respondera a todas as perguntas sem resposta.

Mas era Mike e não Lisa quem sentia remorsos. Sabia que se condenara a outros períodos de terrível solidão. Apaixonara-se desesperadamente, inapelavelmente. Tudo era tão irreal, tão absurdo. . .

— Vassili, é uma vergonha — murmurou ela. — Seria muito embaraçoso se a Gestapo nos visitasse.

— Sim, é melhor sairmos daqui.

Ajudou-a a levantar-se e seus corpos se uniram.

— Está arrependida?

— Claro que não, Vassili. Eu o amo.

Mike e Lisa entraram numa mansão de tijolos vermelhos, situada na Satovriandou, 125, Atenas. O local estava vazio, sem mobília, e parecia assombrado. Subiram três andares de uma escada circular, com corrimão de mogno. A casa estava cheia de ecos.

No primeiro andar percorreram um corredor poeirento, chegando a uma porta que Lisa abriu. A passagem conduzia a outro lance de escadas, cujos degraus estalavam sob seu peso.

Entraram num sótão parcamente mobiliado.

— Preciso ir agora.

Beijaram-se estreitamente abraçados e ela murmurou:

— Voltarei assim que puder.

 

Terminara seu último cigarro. Ficou deitado na cama, junto à janela inclinada do sótão, que dava para as colinas de Atenas. Escurecia e breve as luzes se acenderiam.

Algo lembrava-lhe São Francisco.

O sótão estava silencioso, fazendo-o recordar o dia em que olhara para as colinas de Kalamai. Atenas fora derrotada e sofria, mas no momento parecia tranqüila, como que prestes a cair num sono pacífico.

Fechou os olhos, esperando Lisa. Pensou naquela manhã, na casa de bomba e sentiu-se tenso de desejo...

Noite.

Um eco repercutiu pela casa vazia. Abrindo os olhos viu a aura de luzes da cidade e ouviu os passos de Lisa subindo a escada circular. Sentiu a pulsação acelerar-se quando se aproximaram. A porta abriu-se e ele sentiu-lhe a presença no quarto às escuras.

— Vassili? — chamou sua voz, meio assustada.

— Aqui, junto à janela.

Uma claridade azulada penetrou na peça. Sua sombra precedeu-a. Parando junto à cama, deu-lhe as mãos.

Ele a observou quando erguia os braços e tirava o vestido, sentindo a respiração acelerada quando a viu, silenciosa e nua, ao seu lado.

Lisa inclinou-se para ele tocando-lhe o corpo de leve, lábios roçando os dele. Erguendo os braços, atraiu-a, saboreou a sensação maravilhosa do seu corpo contra o dele. Uniram-se suavemente, silenciosamente...

Mike estudou-lhe o corpo quando ela se aninhou junto dele, suspiro sonolento, satisfeito. Erguendo a mão, desligou a luz sobre a cama e os dois ficaram abraçados, contemplando a cidade.

— Voltarei para buscá-la, um dia.

Lisa meneou lentamente a cabeça.

— Eu o amo, Vassili. Sejamos gratos por estas poucas e não pensemos em coisas que só acontecerão daqui a um século.      

— É tão fantástico o que nos sucedeu.

— Não é fantástico. Creio que o amei no mesmo instante em que o vi na cabana de Kaloghriani. Juguei que não era mais capaz de me sentir assim com relação a ninguém.

— Engraçado. Eu também pensava o mesmo.

Lisa sentou-se bruscamente, de costas para ele.

— Um submarino britânico virá buscá-lo amanhã à noite.

Silêncio mortal.

Os primeiros sinais do dia surgiam nas colinas de Atenas. Tomando-lhe o braço, ele a deitou ao seu lado.

— Não se vista ainda.

— Está bem, querido.

— Gostaria de poder dizer a você tudo...

— Psiu... Você parece um garotinho quando tenta falar...

Sentados diante da janela do sótão, jantaram ao amanhecer. Carne e vinho. Mike encheu o cachimbo com o restinho de tabaco que possuía.

Sabe, Vassili, os alemães poderiam amaciar um pouco o traseiro de suas vacas.

— Não há desculpas para a má cozinheira.

Um leve nevoeiro formou-se diante da janela, encobrindo as colinas.

— Ótimo dia para quê, meu querido?

Nada.

Estava a ponto de dizer “ótimo para escrever”. Por qualquer motivo, sempre escrevia melhor quando fazia mau tempo. Manias de escritor, pensou.

Ela tirou os pratos da mesa e os dois ficaram sentados diante de xícaras de café ersatz. Ele fitava as saliências suaves reveladas pelo vestido desabotoado.

Estava cego de amor. Lisa era um sonho encantado e ele caíra no seu feitiço.

— Lisa, fale-me a seu respeito. . .

— Não é agradável...

— Por favor.

Toda a tristeza pareceu dominá-la novamente. Desviando o olhar, voltou-se para a janela coberta de névoa e deixou a mente mergulhar no passado sombrio...

Fora uma infância feliz. Sua mãe era uma inglesa muito bela, o pai um homenzinho gentil, proprietário de uma próspera indústria. Lisa e a irmã completaram os estudos universitários. Incentivada pelo amor do pai à música, estudara nos conservatórios de Roma e Paris. A irmã diplomara-se em literatura.

Uma família unida... Uma carreira de concertista... Quase tudo o que se poderia desejar na vida. Súbito, um romance tolo embriagador, fulminante, com um jovem engenheiro ambicioso, terminara em casamento. Lisa só compreendera a extensão da­quela ambição após a ocupação nazista. Ele apoderara-se do dinheiro da família, da fábrica e dos dois filhos.

Sua mãe não vivera, felizmente, para ver o acontecido. Lisa não julgava que o pai, tão gentil, fosse um homem corajoso, porém demonstrara sê-lo antes de morrer na prisão de Averof.

— E sua irmã?

— Vive com um oficial alemão.

Mike sentia que a história de Lisa não se limitava a isso, mas não fez perguntas.

Ela abotoou o vestido, pôs o casaco e a boina diante do espelho manchado e disse:

— Há muita coisa a fazer. Voltarei o mais cedo possível.

Da porta voltou-se.

— Creio que foi uma tolice nos apaixonarmos.

Mike caminhava de um lado para outro como um louco. Precisaria de toda a sua coragem para separar-se dela. Estava obcecado de amor.

Talvez a Resistência permitisse que ela deixasse a Grécia também. . .

Talvez entregasse a lista Stergiou e permanecesse no país. . .

Podia fugir com ela para as colinas e esconder-se. . .

O dia transformou-se num inferno. Até que ponto chegaria para conservá-la?

As muralhas da dúvida estreitavam-se cada vez mais.

Se ao menos pudesse aceitar, como ela, as poucas horas de felicidade.

Para Mike, a única realidade era o inexorável tique-taque dos relógios e a idéia de que breve tudo estaria acabado.

Sabia que teria que pagar por aquele amor e tranqüilizou-se. Não havia outra saída. Encontraria coragem para deixá-la.

Lisa estava pálida de preocupação.

— Alguma coisa saiu errada, Vassili. O submarino não virá.

Os dois abraçaram-se com força.

— Meu Deus! Que faremos? — gritou ela.

Mike sentia-se exausto, mas sem sono. Estava perigosamente a pique de estourar. A presença de Lisa minava-lhe a resistência. Puxando o cobertor sobre os dois, olhou a janela pontilhada de chuva.

Sabia o que precisava fazer. Mais um dia, dois, três, de prolongado adeus... impossível. Iria ao encontro de Julius Chesney no dia seguinte.

 

Quinta-feira.

Mike esperava que Lisa já houvesse saído. Seria mais fácil.

O relógio dizia onze e dez.

Vestindo o casaco, enfiou a pistola no cinto.

— Vou sair.

— Está louco?

Mike aproximou-se da porta.   Ela barrou-lhe a passagem.

— Vassili! Que há com você?

— Disse que vou sair.

— Está louco? A Gestapo o prenderá dentro de uma hora.

— Não posso mais suportar isto, Lisa...

— Querido, nossa gente está trabalhando dia e noite! Mais alguns dias...

— Não vê o que aconteceu? Quer que eu me desgrace? Quer que eu implore de joelhos?

Ela caiu contra ele, os dedos nervosos agarrando-lhe e soltando os braços.

A culpa é minha por querer você. Irei embora, se é o que deseja.

— Será igualmente terrível.

Voltando-se, Mike saiu bruscamente.

— Vassili!

Ele parou por um instante à porta, olhando para cima.

Lisa estava no alto da escada circular, dedos puxando freneticamente o vestido.

— Vassili! Não! Não!

A porta fechou-se.

 

Praça da Concórdia.

Mike encontrava-se na calçada, em frente ao Café Picadilly. Havia pouco movimento e ele perguntou a si mesmo se estaria cometendo um erro, mas aparentemente Lisa levava-o sempre a fazer tolices.   E começou a afastar-se.

— Jay Linden, pontual! Vejo que se livrou de seus dois companheiros de viagem.

Julius Chesney, com sua cara de mastim, encontrava-se diante dele. Outro homem, parecendo marinheiro, acompanhava-o.

Bem, não fiquemos aqui de pé na calçada, meu velho. Creio que seria conveniente um trago.   É meio-dia. Venha, não trouxe comigo o exército alemão. Meu amigo chama-se Antonis e é capitão do Arkadia.

Entrando no café, os três instalaram-se no reservado dos fundos e pediram krasi. Mike observou Antonis, que parecia desligado de tudo, fumando o seu cachimbo.

Chesney, falando em sussurros, contou a Mike que o Arkadia era um barco pequeno e rápido, com três tripulantes. Os despachos de bordo diriam Creta, mas o verdadeiro destino seria Cairo. Antonis, disso Mike estava certo, conhecia bem a rota, por ter feito duas outras viagens com refugiados britânicos. O benfeitor de Mike, o grego que financiaria a passagem, deveria reunir-se a eles daí a instantes.

— Quando partimos? — perguntou Mike.

— Tão logo consigamos outro refugiado para completar carga.

— Obtive algum dinheiro depois do nosso último encontro. Se Antonis e eu pudermos dirigir o barco, pagarei a passagem.

O enrugado marinheiro acenou afirmativamente. Na sua opinião, Mike e ele conseguiriam tripular o barco.

— Quatro milhões de dracmas — propôs Chesney, rápido.

— Não está exagerando?

— Você parece ansioso por partir.

— Eu lhe darei três milhões se partimos esta noite.

Chesney coçou o queixo.

Deixe-me ver o dinheiro.

Mike colocou na mesa o volume e pela primeira vez Julius Chesney manifestou alguma emoção. Suas papadas estremeceram e ele moveu rapidamente a mão sobre a mesa. Mike agarrou-lhe o pulso.

— Metade   agora —   a outra metade   quando   estivermos partindo.

Chesney olhou para o dinheiro, suspirou, afastou a mão e observou Mike atentamente, enquanto ele contava um milhão e meio de dracmas. Em seguida tornou a contar o dinheiro, olhos lacrimejantes.

Um homem baixinho, de cabelos grisalhos, entrou no café, olhando ao redor.

— Ah, lá vêm mais três milhões de dracmas — disse Ches­ney. — Aqui, Sr. Cholevas! — chamou.

Um cavalheiro bem-vestido entrou no reservado, cumprimentando a todos com a cabeça.

— Jay, este é o seu benfeitor,   o amigo dos ingleses, o Sr. Apóstolos Cholevas.

Cholevas meneou a cabeça em silêncio. Mike sentiu-se curioso em relação ao grego, perguntando a si mesmo porque ele agiria daquela maneira.

— De que me serve o dinheiro, quando os alemães dominam o meu país?

Tomou meio copo de vinho com o grupo, entregou o dinheiro a Chesney, desejou a Mike uma boa viagem e perguntou se ele escreveria depois da guerra. Partiu com um último pedido: que os ingleses soubessem o que estava acontecendo na Grécia.

Julius Chesney estalou as juntas dos dedos, comeu um biscoito e, tirando do bolso alguns papéis, colocou-os na mesa.

Arkadia: Destino — Creta.

— Tem carteira de identidade, Linden?

Mike exibiu-a junto com   os   documentos que traziam o nome de Vassili Papadopoulos.

— Ótimo, ótimo. Isto me poupa despesas — disse Chesney, escrevendo o nome nos documentos do navio. — Agora creio que está tudo em ordem. O combustível estará a bordo antes do anoitecer, senhores. Antonis, eu lhe entregarei mais tarde os despachos e o horário das patrulhas.

— E a fiscalização de bordo? — perguntou Mike.

— Duvida da minha habilidade, meu velho? Quando eu acabar de untar todas as mãos, sobrará tão pouco! Há tanta gente com olhos no pote e os preços andam tão absurdos hoje em dia! Bem, Linden, faça boa viagem e não deixe de ler a minha coluna quando chegar a Londres.

Levantando-se com dificuldade, bateu no bolso cheio de dracmas e estendeu a mão.

— Cuidado, Michael Morrison — falou. -— Seria extrema­mente lamentável que a lista de Stergiou caísse nas mãos dos alemães.

Abismado, Mike ficou imóvel enquanto Julius Chesney saía do café.

 

Sentada na extremidade da mesa, Lisa enfrentou os quatro pares de olhos que a fixavam sombriamente. A vela colocada no centro lançava sombras trêmulas nas paredes despidas da sala.

Aqueles três homens a conheciam desde menina. Somente um estranho, o impassível Dr. Harry Thackery.

— Não consegui detê-lo — chorou.

Papa-Panos, o sacerdote, barba grisalha... O imenso Michalis, rosto de lua cheia, coordenador dos sindicatos, permanente expressão de leão zangado... Thanassis, tranqüilo e intelec­tual, professor universitário...

Fez-se silêncio quando Lisa meneou a cabeça, segurando a borda da mesa.

O punho de Michalis desceu sobre o móvel, fazendo estremecer a vela.

— Por que não o seguiu? — trovejou.

Lisa não respondeu.

— Lisa, tinha ordem para matá-lo, caso algo assim acontecesse falou o Dr. Thackery. Sabe quais serão as conseqüências se ele cair nas mãos dos alemães?

Lisa sentia a boca seca. Fechando os olhos, umedeceu os lábios rachados, antes de murmurar:

— Eu não sabia quem ele era.

— Pergunto novamente:   por que não o seguiu, Lisa? — repetiu Michalis.

— E então, Lisa? — acrescentou o Dr. Thackery.

Ela suspirou, baixando a cabeça.

— Eu não estava vestida.

— Despida!

— Pelo amor de Deus, Michalis, não grite — interpôs Thanassis, com sua voz tranqüila. — Como sempre, é possível ouvi-lo em Salônica.

— Não nego que o amo! — replicou Lisa.

Papa-Panos   ouvira em   silêncio,   alisando a barba.   Finalmente interveio com voz que transmitia autoridade:

— Thanassis, Michalis, Dr. Thackery, pergunto a mim mesmo se não estaremos todos enganados em relação a esse Morrison. Não seria mais sensato esquecê-lo?

— Está louco, padre?

— Não levante a voz diante de mim, Michalis. Você não está falando numa assembléia do sindicato. Suponhamos que Morrison consiga fugir...   Suponhamos que entregue os nomes aos ingleses... Já pensaram no que aconteceria? Seríamos obrigados a agir de acordo com informações recebidas deles. E não podemos esperar, senhores, que os alemães fiquem sentados à espera. As represálias serão três vezes piores, podem estar certos. Centenas de inocentes serão massacrados.

— Ora — rosnou Michalis, inclinando-se sobre a mesa e agitando o dedo quase nas barbas de Papa-Panos. — Os alemães nos estão servindo leite e mel agora? Ainda ontem os açougueiros nazistas massacraram cem “civis” em Creta. Se o povo não tiver armas revidará com pedras e cacetes. Como será melhor morrer, empunhando um ancinho ou uma pistola?

— Uma coisa é ajudar os fugitivos ingleses ou dar-lhes de comer. Outra é organizar um levante das massas — replicou Papa-Panos. — Quando os britânicos principiarem a contrabandear armas, estas serão usadas. E quem de nós julga que podemos derrotar o exército alemão?

Por mais que eu o ame e respeite, padre — interveio Thanassis — concordo com Michalis. A resistência passiva tem se revelado inútil. As cidades e as colinas estão iradas e nosso povo lutará.

— Concorda com eles, Dr. Thackery?

O homem de rosto magro permaneceu em silêncio durante algum tempo. Finalmente respondeu:

— Não   escolho partido.   Isso não me compete.   Sabemos que os ingleses estabelecerão uma missão aqui, tão logo recebam a lista Stergiou. Isto significa que precisamos organizar-nos e agir com respeito à informação que temos sobre carregamentos de armas, horários de transportes, movimentos de tropas, sub­marinos ... Significa que os ingleses enviarão armas para nos ajudarem a cumprir nossa missão. Sabemos também que os alemães destruirão aldeias e cidades e matarão civis por cada ato que realizarmos contra eles. Qual será nosso lucro? Se nos tornarmos fortes, se conseguirmos exercer bastante pressão, os alemães serão forçados a manter suas tropas aqui, em lugar de liberá-las para lutar em outras frentes. Nenhum de nós poderá impedir os   gregos   de   revidar.   Papa-Panos,   as   colinas   estão iradas.

O padre suspirou. Sabia que aqueles homens falavam a verdade. A Grécia estava destinada a um massacre, que tornaria sem importância todas as antigas tragédias. Meneando lentamente a cabeça falou:

— Muito bem, não pouparemos esforços para descobrir o americano e tirá-lo do país.

Os quatro voltaram-se então para Lisa. Pálida até aos lábios, levantou-se e falou, vagarosa:

— Antes que tomem uma decisão,   há algo que preciso dizer.

Com palavras lentas e firmes contou sua história, a partir do dia em que a Gestapo a prendera e conduzira a Konrad Heilser. Os quatro ficaram profundamente chocados. Em se­guida, contou as semanas de terror que vivera e terminou no momento em que Morrison saíra do sótão de Satavriandou, 125.

Não pediu clemência. Os homens estavam mergulhados num silêncio cheio de horror. Altiva, Lisa encaminhou-se para a porta, dizendo:

— Esperarei na sala ao lado.

Tinha a impressão de que sua vida chegara ao fim. Mas que importava agora? Perdera os filhos e perdera Mike. Pelo menos se redimira. . .

Através das paredes finas ouviu Michalis batendo com o punho na mesa.    

— Lisa Kyriakides traiu o povo grego!

Thanassis meneou a cabeça, incrédulo. Sua aparência de intelectual não combinava com o fato de ser um dos homens mais ousados do movimento.

— Lisa. . . Não posso crer... não posso crer. Conheço-a desde os dezesseis anos. Foi minha aluna na universidade. Eu a trouxe para esta organização. . .

— Eu também a conheço e a toda a família há muitos anos — disse Michalis. — Mas não podemos permitir que o sentimentalismo nos domine. — Falava como alguém que sempre vivera sob férrea disciplina. Não sentia qualquer simpatia quem deixava de cumprir seu dever. Lidara durante muito tempo com gente que agia com duplicidade.

— Parece que não temos escolha — disse Thanassis. — Mas não serei eu a puxar o gatilho.

Thackery nada disse. O assunto não lhe competia.

— Se fosse traidora teria nos contado sua história? — interveio Papa-Panos.

— Não se deixe envolver por ardis femininos, padre. Lisa é uma mulher marcada. Ela nos procurou esperando que fôssemos mais clementes que os alemães. Se pretendermos conservar a disciplina desta organização não temos escolha.

— Mas executando-a colocamo-nos ao mesmo nível que os nazistas. . .

— Que propõe, então? Talvez forçá-la a mostrar-se arre­pendida?

Quieto! Basta por hoje de suas recriminações, Michalis. Lisa é tão traidora quanto eu. Já não chega de matança? Lembre-se de que ela é filha de Ioannis Rodites, mártir do povo grego.   Sua memória é tão curta que já esqueceu quem foi o primeiro   homem em Atenas a reconhecer seu sindicato   sem derramamento de sangue?

— Não desonre o nome de Ioannis Rodites — replicou Michalis. — Mas que acha da irmã, Maria Rodites, que vive com um oficial alemão? E do marido, Manolis Kyriakides, no­jento colaboracionista? — E Michalis cuspiu no chão.

— Não terá sofrido demais esta mulher? Deve compreender, Michalis, que se quisesse ser traidora já se teria tornado amante de Korand Heilser, com Atenas a seus pés. Parece esquecer que só agiu assim para proteger a vida dos filhos.

— Também tenho um filho — replicou Michalis. — Falo como alguém que ama a esse filho mais que à própria vida. Preferiria matá-lo a ver seu pai transformado em colaboracionista.

— Sim, Michalis, é possível que prefira ver seu filho morto — replicou Papa-Panos. — Mas diga-me:   sua mulher faria o mesmo?

 

O Arkadia não era nem rápido, nem bonito. Era uma barcaça disforme e ao vê-lo Mike perguntou a si mesmo se seria capaz de navegar.

— Desça — falou Antonis, no que constituiu seu momento de maior loquacidade.

Na cabina havia quatro beliches, um fogão. Deitado, Mike avistava no alto da escada Antonis junto à amurada, fumando seu cachimbo e olhando alternadamente da água para o céu.

Embora ansioso, principiou a sentir uma certa segurança. Até então Julius Chesney havia cumprido a palavra. Uma idéia o consolava. Fosse como fosse, Chesney conhecia a sua identidade e sabia da lista Stergiou. Talvez exagerasse no amor ao dinheiro, pois sua captura pelos alemães granjearia dez vezes o preço da passagem. Mike sentia também uma instintiva confiança no silencioso capitão, Antonis. E começou a tranqüilizar-se.

Após uma hora imóvel na murada, Antonis enfiou a cabeça na cabina, o cachimbo, tão combalido quanto sua pele marcada pelas intempéries, firme entre os dentes.

— Vou buscar os manifestos.

Tudo correra bem, pensou Mike. Bem demais, até. Nas docas do Pireu, os guardas nem sequer haviam erguido as sobrancelhas quando Mike passara com Antonis. O americano atribuíra-o à competência de Julius Chesney.

Contudo, subestimara seu amor pelas dracmas. Dentro de meia hora, Antonis regressava ao barco, acompanhado de dois homens e uma moça.

Na cabina, um dos homens, um australiano gigantesco chamado Ben Masterton, apresentou-se.   O outro era um pálido rapaz de cerca de vinte anos, um palestino chamado Yichiel. Ao seu lado uma jovem apavorada, sua mulher, Elpis, que dizia pretender reunir-se ao exército grego livre no Egito.

Mike pretendia protestar a Antonis sobre o dinheiro extra da passagem. Fora enganado. Mas resolveu nada fazer. Estava satisfeito por ter alguém além de Antonis para conversar durante a viagem. E os outros três serviriam como boa cobertura — quanto mais gente melhor — dando à viagem o ar de uma fuga rotineira.

A polícia grega inspecionou, como sempre, carimbou os papéis de liberação e o Arkadia afastou-se ruidosamente do cais. Chesney aparentemente untara bem todas as palmas. Mike começou a sentir-se inquieto com a facilidade da operação. Não deveria ser assim tão fácil, pensou.

O ar marinho estava cortante.

O jovem Yichiel e sua mulher desceram para a cabina e, aninhando-se num só beliche, puseram-se a conversar baixinho

Mike sentiu inveja deles. Como os invejava!

As colinas de Atenas foram se distanciando. Num ponto da cidade havia um sótão... Na noite anterior, ele e Lisa... E mergulhou num estado de torpor.

Tão logo o Arkadia deixou o porto, Antonis desligou o motor e lançou a âncora.

Que diabo aconteceu? perguntou Ben Masterton.

— Ficaremos   aqui   até   amanhecer.   Ordens   dos   alemães. Submarinos britânicos.   Se continuarmos, um barco da patrulha nos deterá.

— Isso não me agrada.

— Não me venha ensinar as minhas obrigações — disse Antonis, encerrando a discussão.

Esperaram horas, ali ancorados. Mike não tirava os olhos das colinas de Atenas, arrasado de saudade.

Caiu a noite.

Yichiel e Elpis dormiam nos braços um do outro, na cabina. Antonis, apoiado na amurada, olhava para o mar e o céu.

Ben Masterton sentou-se no convés junto de Mike, costas apoiadas na amurada, e pôs-se a cantar baixinho.

Julgando-se cantor de óperas, interpretou uma série de velhas músicas para repertório de barítono, com gestos teatrais fora de moda: a mão esquerda alisava a barba e a direita descrevia amplos gestos.

Mike gostou de Masterton.   O australiano contara-lhe de suas tentativas anteriores para fugir, quando estivera tão bêbado que pretendera liquidar o exército alemão inteiro.

— Escute, Linden — murmurou, aproximando-se.

— Que é?

— Não tenho o costume de beber com neozelandeses, mas você me agrada. — E tirou uma garrafa do bolso do casaco.

— Brandy — foi o que o médico me receitou.

— Psiu, não fale tão alto, senão teremos que dividi-lo por cinco e não há suficiente nem para dois.

Mike tomou um grande gole, tentando amenizar a dor que sentia. Ben, arrancando-lhe a garrafa da mão, bebeu à altura de Mike.

O nível do líquido desceu rapidamente.

Ben coçou a cabeça, olhando a garrafa vazia, e atirou-a por sobre a amurada, dizendo:

— Maldito kiwi.   Eu devia ter tido o bom senso de não beber com um maldito kiwi. . .

— Ora, cale a boca se não quiser tomar um banho, Mas­terton...

— Gosto de você, Linden. — Os fortes braços de Master­ton rodearam os ombros de Mike. — Vou dizer uma coisa: gosto tanto de você que permitirei que cante um dueto comigo... Veja até que ponto me agrada. Pena que não estivesse ao meu lado quando liquidei quatorze espaguetes...   quatorze, ouviu? Nunca me diverti tanto... Que cantaremos, velho?

— Não me sinto com disposição para cantar, Ben... Não quero cantar. Há uma mulher em Atenas... maldita mulher, num maldito apartamento, e eu quero essa mulher. . .  

— Ora, velho, não chore... não chore...

— Não posso me conter... maldita mulher...

— Vamos cantar London Dairy Air...   a menos que você conheça uma versão de uma boa canção inglesa...

— Isso é canção para tenor, seu ignorante.

— Linden! Canto qualquer coisa, inclusive soprano.

Gemidos baixinhos vinham da cabina. Ben pôs-se a gatinhar naquela direção, porém Mike agarrou-o pelo cinto e arrastou-o para trás.

Deixe-os em paz, bandido...

Diabo, Linden, é a última vez que bebo com um kiwi... a ultima vez.

Rodeando o pescoço um do outro uniram suas vozes em dúbia harmonia.

Antonis continuava imóvel na amurada da proa.

Os ruídos na cabina cessaram.

O Arkadia ondulava suavemente.

De repente, Antonis tirou o pé da grade inferior e retesou-se, à escuta. Mike deu uma cotovelada em Ben e ambos olharam fixo, tanto quanto possível no seu estado alcoolizado.

O som distante de um motor chegou-lhes aos ouvidos.

Levantando-se com dificuldade, os dois reuniram-se a Antonis.

— Ponha esta banheira em movimento — disse Masterton.

— Quieto — ordenou Antonis. — Talvez se afastem.

Mike sentiu as entranhas estremecerem. Passou-se um minuto e aparentemente o motor se afastou. Súbito tornou-se cada vez mais forte.

— Vamos dar o fora daqui, já disse! — rugiu Masterton, rosto coberto de suor.

A lancha se aproximava. Já se avistava seu contorno, cerca de quatrocentas jardas a estibordo.

Yichiel e Elpis subiram para o convés, olhos esbugalhados de terror. A garota escondeu o rosto no peito do rapaz.

Soou uma sirene.

Um feixe de luz cortou o mar e pousou no Arkadia aprisionando aos cinco. 0 motor rugia cada vez mais próximo.

— Arkadia! — trovejou uma voz na escuridão. — Aguarde para ser abordado!

 

Um semicírculo de soldados alemães, com baionetas caladas, aguardava-os no cais quando a lancha da patrulha se aproximou. Mike estava atoleimado de terror. A náusea sacudiu-o ao saltar no cais e ele fechou os olhos, tonto. A vigorosa mão de Ben segurou-o pelo ombro. Um caminhão fechado aproximou-se e os cinco foram atirados nele. Um comboio de carros blindados escoltava o caminhão. Sirenes abriam caminho e os veículos percorreram rapidamente o caminho que ia do porto a Atenas.

Tolo — tolo — tolo — tolo! Que loucura negociar com Julius Chesney! Que loucura apaixonar-se!

Elpis soluçava nos braços de seu pálido Yichiel, mas Anto­nis não demonstrava a menor ansiedade. Fumava tranqüilamente o seu cachimbo, olhando pela janela gradeada da traseira do veículo.

Ben pôs-se a murmurar consigo mesmo.

— Embebedei-me ontem à noite... Devo ter falado de­mais ...

A caravana atingiu as imediações de Atenas.

— Para onde nos levarão? — susurrou Mike,   com   voz rouca.

— Prisão   de Averof — respondeu Ben.   — Controle-se, velho, são todos uns covardes. . .

Os cinco prisioneiros foram conduzidos a uma sala de as­soalho e paredes de pedra. Ao seu redor havia duas dúzias de nazistas armados com pistolas e cassetetes, trajados de caqui.

À mesa estava o Coronel Oberg, comandante da prisão de Averof. Tinha a fisionomia clássica do prussiano, inclusive o monóculo. Oberg estava irritado porque os fugitivos do Arkadia sido entregues em hora tão absurda, interrompendo o divertimento com sua amante. Esta, sentada na beira da escrivaninha, bocejava.

Fitando-os glacialmente um a um, deteve-se em Ben Masterton.

— Você novamente, Masterton?

— Não consigo afastar-me de casa, coronel.

— Silêncio! Nada de gracejos! — gritou Oberg. E voltando-se para o escrivão, sentado a uma mesinha próxima. — Acuse Masterton de espionagem e sabotagem.

— Lá vamos nós de novo. . .

— Prendam-no.

Quatro vigorosos nazistas rodearam Masterton e o retiraram da sala. Antes de sair gritou ainda:

— Eu o verei mais tarde, velho... Lembre-se, vocês são todos covardes...

A pesada porta fechou-se. A sala tornou-se silenciosa.

Batendo com o rebenque na palma da mão, Oberg embalava-se na cadeira giratória.

Ouvi dizer que há um judeu aqui. Dê um passo à fren­te, judeu.

Nenhum dos quatro se moveu.

— Um passo a frente, judeu, já disse!

Yichiel, largando Elpis, aproximou-se. Oberg continuou a embalar-se.

— Como se chama, judeu?

— Sou soldado britânico.

O balanço cessou. Oberg levantou-se lentamente e rodeou a mesa, colocando-se diante de Yichiel. O palestino retribuiu o frio olhar do prussiano, que ergueu o rebenque, agitando-o diante do nariz do rapaz.

— Seu nome, judeu.

— Sou soldado britânico!

Oberg ergueu o braço e chicoteou-o. Um fio de sangue escorreu-lhe pela face.

O palestino cuspiu no rosto de Oberg.

Num instante, meia dúzia de camisas pardas subjugaram-no com seus cassetetes, atirando-o ao chão de pedra. Protegendo a cabeça com os braços, Yichiel rolou, enquanto o cobriam de pontapés.

Os gritos de Elpis chegaram-lhe aos ouvidos. Ajoelhando-se junto ao marido, ela segurou-lhe a cabeça.

— Levem-no — ordenou Oberg.

Os camisas pardas afastaram Elpis, que gritava, e se debatia. Levantando-se com dificuldade, Yichiel caminhou para a porta.

— Você é uma fera — disse o coronel para Elpis. — Levem-na para meus aposentos. Veremos se sabe fazer amor com a mesma violência.

Yichel atravessou correndo a sala, mas um cassetete desceu sobre sua cabeça e ele tombou inconsciente.    

Ambos foram retirados, Elpis ainda se debatendo e arranhando três guardas.

— Ela deve ser deliciosa, deliciosa.

A amante fitou-o aborrecida.

O prussiano voltou à cadeira e ao balanço. Apontando com o rebenque para Antonis, falou:

— Não me diga que você também é soldado britânico.

Adiantando-se, Antonis respondeu que era capitão do Arkadia.

— Registre-o como espião e sabotador.

Mike viu-se só no centro da sala.

O coronel inclinou-se para o escrivão, perguntando:

— De que é acusado esse camarada?

— Documentos falsos, porte de arma, um milhão de dracmas. Não tem ficha aqui.

— Como se chama?

— Jay Linden.

— Gostaríamos   de mais informações a seu respeito,   Sr. Linden.

— Jay Linden, cabo, número 359195, Nova Zelândia.

— Continue.

— Como prisioneiro de guerra é só o que sou obrigado a dizer.

O rosto de Oberg entreabriu-se num sorriso.

— Muito   bem recitado, cabo Linden.

Mike olhou ao redor. Os brutais camisas pardas só aguardavam um sinal. Cerrando os dentes, engoliu em seco.

Oberg fitava-o pelo monóculo, embalando-se e batendo com o rebenque na palma da mão.

— Está certo de que não tem mais nada a dizer, cabo Lmden?

Mike não respondeu.

— Não estará escondendo informação,   cabo Linden?

Mike só ouvia o tique-taque do grande relógio ecoando na sala de pedra.

Relanceando para os mostrador e em seguida à porta por onde Elpis fora arrastada, Oberg falou:

— Acusado de espionagem e sabotagem. — Levantou-se e os camisas pardas ficaram em posição de sentido. Com um gesto para o escrivão acrescentou: — Transmita à Gestapo, amanhã cedo, a informação relativa ao Arkadia. E voltando-se para Mike: Tenho certeza de que a Gestapo o forçará a falar. . . Pode ir para casa — disse à amante. — Não precisarei de você esta noite.

A mulher bocejou.

 

Mike foi atirado a uma cela escura, onde rastejou às cegas chamando:

— Ben... Ben.

— Aqui, velho.

Mike tropeçou em gente adormecida na escuridão. O mau cheiro era terrível. Acabou descobrindo a imensa silhueta de Ben, ajoelhado junto ao corpo inconsciente de Yichiel.

— Deram-lhe uma tremenda surra — falou.

Yichiel gemeu e agitou-se.

— Levaram minha mulher... Oberg...

— O filho da mãe! Quando estiver satisfeito a entregará aos seus guardas...

Mike sentou-se no chão de pedra fria e fez algo que não fazia desde a infância. Michael Morrison chorou abertamente, sem a menor vergonha.

Ben bateu-lhe nas costas, consolando-o:

— Tudo correrá bem, velho. Não nos deixarão aqui muito tempo.   Dentro de uma semana seremos processados e enviados a uma prisão de prisioneiros de guerra. Lá é muito melhor. . .

Controlando-se, Mike enxugou os olhos com a manga do casaco.

— Eles   nos   entregarão   à   Gestapo,   e   nos   interrogarão, acusando-nos de tudo, inclusive de ter iniciado a guerra. Mas é tudo tapeação. Enfrente-os, exija seus direitos como soldado britânico e eles o mandarão para o campo de concentração.

— Quem. . . quem faz o interrogatório na Gestapo?

— Oh, é um camarada nojento, chamado Heilser. Mas não se preocupe, Jay. Eles só sabem tapear.

 

       “Na escuridão   que me envolve,

       No abismo sem fim,

       Agradeço aos deuses,

       Por minha alma indomável!”

 

— Quieto, schweinhund! Quieto, ou eu o matarei...

Ben calou-se, ignorando o guarda enfurecido, um sádico austríaco chamado Hans, que continuou a esbravejar do lado de fora da cela.

— Linda canção, não é, Jay? Sabe de uma coisa, velho? Este pessoal daqui não é muito hospitaleiro...

Ben conseguia acalmar Mike. Seu exemplo de coragem e desafio face aos guardas brutais era um verdadeiro tônico. Par­te dos temores de Mike desaparecera após dois dias em Averof. Sabia agora que o inferno não podia ser pior, pois conhecia o verdadeiro esgoto da humanidade.

A cela não poderia conter mais que quarenta pessoas. En­cerrava noventa “sabotadores gregos”. Não havia beliches, nem aquecimento, nem privadas, nem água. Só pedra e grades. Os outros sabotadores iam de um menino de dez anos, que roubara um maço de cigarros, a um homem de oitenta, que roubara uma bisnaga de pão. Diversos prisioneiros encontravam-se em estado de idiotice, balbuciando incoerências, e havia uma dúzia de casos óbvios de tuberculose. . . Piolhos e percevejos campeavam por toda parte. Ratazanas corriam a cela.

À noite, a pedra tornava-se gelada e o único calor emanava dos corpos amontoados. A refeição diária reduzia-se a uma sopa rala, sem feijão. Ben afirmou a Mike que ele aprenderia a adorar a comida e ensinou-lhe a roubar cascas de batatas e restos da cozinha durante as visitas à privada. Veterano de Averof, encontrou imediatamente um guarda que passaria bilhetes para o exterior e contrabandearia comida. Dinheiro falava em Averof. Os prisioneiros que tinham conhecimentos conseguiam sobreviver.

Todas as manhãs os mortos eram retirados da cela.

Por uma das duas pequenas janelas Mike avistava o pátio central. Vinte e quatro horas por dia havia sessões de horríveis torturas. Ao amanhecer, um esquadrão de fuzilamento eliminava um grupo de sabotadores homens que ficavam tremendo contra as paredes de pedra cinzenta. Pela madrugada o guarda Hans selecionava alguns “sabotadores” da cela de Mike para a execução. Alinhando todos os prisioneiros no corredor provocava-os, percorrendo a fileira de um lado para outro, um sorriso de louco no rosto.

Na quarta manhã, Elpis foi arrastada ao paredão do pátio. Embora fracos, seus gritos chegaram aos ouvidos do marido. A jovem estava irreconhecível. Amarraram-na a um poste e quando o pelotão de fuzilamento se alinhou, Hans, no corredor diante da cela, gritava desafios a Yichiel, gabando-se de que ele fora um dos cinqüenta que a violentaram na noite anterior.

Ben e Mike mantiveram-se de vigília para impedir que o desesperado palestino se suicidasse.

Passaram-se quatro dias. Michael Morrison deixara de ter medo. Uma ira fervia no seu íntimo, impedindo-o de ficar quieto. Mas cada dia aproximava-o mais do momento em que deveria enfrentar Konrad Heilser. Sua mente trabalhava desesperada, a fim de evitar um encontro. Talvez pudesse fingir-se doente. . . ou fugir a caminho da Gestapo... ou brigar com Hans, para ser atirado à solitária. . .

Mil idéias cruzavam-lhe a mente. Todas, exceto uma, pareciam-lhe inúteis.

Sua ligeira esperança era o contato de Ben com o mundo exterior — um guarda grego chamado Axiotis. Era um dos poucos que continuara na prisão de Averof após a invasão alemã. O antigo carcereiro ganhava muito dinheiro contrabandean­do recados e trazendo pão, vinho e tabaco. Hans tinha consciência disso, mas permitia tudo, contanto que ganhasse uma percentagem.

Ben conhecia uma dúzia de mulheres que forneciam a ele, a Mike e a Yichiel alimento e tabaco. Mike mantinha-se de sobreaviso, temendo que Axiotis os traísse, mas o velho carcereiro não falhava uma só vez quando Ben o encarregava de uma missão.

Mas com quem faria contato? Não sabia onde encontrar Lisa. Além do mais havia a remota possibilidade de que ela estivesse envolvida na sua captura. Procurava afastar a idéia da mente, porém ela persistia.

Entrar em contato com Chesney? Não. Mike tinha a certeza de que Chesney armara um jogo para tranquilizá-lo e planejara a captura com toda habilidade para afastar de si mesmo qualquer suspeita. Afinal, Antonis não se mostrara nem um pou­co preocupado. Agira quase como se esperasse ser capturado pelo barco da patrulha. E onde estaria agora? Todos os novos prisioneiros passavam pela cela de Hans e ele não vira Antonis. O mais provável era que estivesse preparando outro grupo de soldados britânicos para captura.

Ben insistia em assumir a culpa, certo de que em seu estado de embriaguês, na véspera da partida, falara a alguém. Mike, porém, discordava.

Contato com o Dr. Thackery? Impossível. Lisa dissera que ele fora forçado a esconder-se. Além disso, a Sociedade Americana de Arqueologia devia estar sob vigilância da Gestapo, com certeza.

Restava um fio, débil como os restantes, mas seria preciso tentar.

Cada dia mais o aproximava de Konrad Heilser. Ben aguar­dava-o ansiosamente, pois significava a transferência para um campo de prisioneiros de guerra, fora de Averof.

No quinto dia Yichiel foi retirado da cela.

Passou-se o sexto dia.

— “Você já cruzou o mar da Irlanda?”

Ben Masterton continuava a entoar baladas irlandesas.

— Silêncio!

— “Quando, ao anoitecer...  

Schweinhund!

Você observa o sol se pondo sobre Claddock...”

Fique quieto, senão eu o mato!

— O problema de Hans é não ter sensibilidade artística, Jay. . . “E observa as jovens descalças brincando...”

Hans parou subitamente de gritar, mas a voz de Ben con­tinuou a entoar:

“Se houver uma vida depois desta, Sei com certeza que haverá...”

No final do corredor, o coronel Oberg e seu staff adiantavam-se, muito rígidos, inspecionando as gaiolas da miséria, a amante entediada ao seu lado. Ben correu para as grades.  

Ei, wienerschnitzel!

Oberg voltou-se bruscamente.

— Ei, por que não faz um gesto simpático e nos manda para o outro lado do pátio, para junto dos prisioneiros de guerra?

— Ah, os sabotadores britânicos.

— Vamos, wienerschnitzel! Mais dois dias e estaremos tão loucos como seus guardas.

— Suponho, Herr Masterton, que já esteja farto de criminosos gregos?

— Estou farto de vê-los salvando o mundo do comunismo. Não me agrada a hospitalidade aqui.

Por qualquer estranha razão, o Coronel Oberg parecia sentir afeição por Ben Masterton. Um sorriso brincou-lhe nos lábios prussianos.

— E já que está aqui, gostaria de saber o que aconteceu ao nosso companheiro.

— O judeu?

— O soldado britânico.

— É lamentável,   Ben...   muito   lamentável.   Adoeceu... seriamente.

— Acredito que sim.

Oberg fitou-o zangado, depois suspirou aborrecido. E voltando-se para o escrivão disse:

— Transfira o Sr. Masterton e seu amigo para a Gestapo, a fim de serem depois enviados aos prisioneiros de guerra.

— Obrigado, amigo

— Masterton, faça-me um favor: da próxima vez que fugir, não seja recapturado.

 

— Mas, Jay, não precisa pagar a Axiotis cem mil dracmas só para levar um bilhetinho.

— Deixe de se intrometer, Ben. Preciso enviar isto hoje à noite.

Ben deu de ombros.

— Mas cem mil dracmas. . .

Axiotis acenou afirmativamente. Um sorriso surgiu no seu rosto enrugado ao guardar o dinheiro. Haviam dito que uma resposta significaria mais cem mil. O bilhete era endereçado a Lazarus, fazendeiro de Chalandri, acompanhado de instruções para ser entregue imediatamente a Lisa.

Dizia:

“Helena — estou em Averof. Amanhã serei conduzido à Gestapo para interrogatório.   Vassili.”

 

Era sombria a expressão de Heilser ao amassar o bilhete. Estava em sérios apuros. Von Ribbentrop escolhera o pior momento para visitar a Grécia. Fugitivos britânicos vagueavam por todo o país e a resistência ampliava-se dia a dia. O número de documentos que já haviam sido roubados aos alemães só seria conhecido quando Morrison fugisse e entrasse em contato com os ingleses. Konrad Heilser encontrava-se sobre um barril de pólvora e o estopim estava aceso.

Tomou um sedativo e massageou as têmporas latejantes. Sua velha segurança fora destruída. Se ao menos descobrisse Morrison e se apoderasse da relação Stergiou lançaria em pânico toda a Resistência. Deixando-se cair na cadeira diante da scrivaninha de tampo de mármore, preparou outro sedativo.

Zervos entrou sem bater, sorrindo para o abatido cúmplice. Estivesse quem estivesse na chefia da Gestapo, o grego manteria sua posição segura.

— Konrad, está na hora do nosso encontro com Lisa.

Heilser remexeu nos papéis sobre a mesa.

— Vá você. O Coronel Oberg telefonou hoje da prisão de Averof. Vai mandar dois fugitivos ingleses para interrogatório.

— Alguém importante?

— Só aquele infernal Ben Masterton. Gostaria que conseguisse fugir de verdade.

— E o outro?

Heilser consultou o relatório preliminar.

— Neozelandês chamado Linden — Jay Linden. Primeira vez. Não temos ficha dele.

Zervos sorriu, irônico, dirigindo-se à porta:

— Darei lembranças suas a Lisa.

— Espere. Diga a Lisa que esteja na minha suíte do Hotel Grande Bretagne hoje às oito horas.

— Não vai adiantar nada...

— Faça o que eu digo!

— Está bem, Konrad.

Heilser dirigiu-se ao sofá e deitou-se, massageando as têmporas. Que dor de cabeça! Como doía a sua cabeça!

 

— Masterton! Linden! Venham!

Vários guardas rodearam os dois homens ao saírem da cela. Mike e Ben tinham os punhos algemados às costas.

A procissão desceu o longo corredor, onde as botas dos soldados ressoavam soturnamente.

Após uma série de portas trancadas chegaram ao pátio da prisão.

Dois carros negros estavam à espera.

— Você, Linden, entre no primeiro.

Mike sentou-se entre dois elementos da Gestapo em trajes civis. Um soldado armado instalou-se no banco da frente, junto ao motorista.

As portas fecharam-se e o carro atravessou lentamente o pátio. Abriram-se os portões imensos da Prisão de Averof. Os veículos saíram de sirenes ligadas, dirigindo-se ao centro de Atenas, ao quartel-general da Polícia Alemã.

Próximo à Praça da Concórdia foram obrigados a diminuir a marcha.

Mike foi atirado para fora do banco quando o motorista freou violentamente. Um caminhão surgira no cruzamento de Patission e Cholkokondili, parando bem em frente ao. automóvel.

O motorista calcou a buzina.

Tudo se passou em segundos.

Duas dúzias de gregos armados saltaram do caminhão e rodearam os dois carros. Motoristas e guardas foram arrastados para fora, desarmados e obrigados a deitar de braços na calçada.

— Morrison! Por aqui!

Michalis, metralhadora em punho, puxou Mike para fora do veículo e rua acima. Havia um carro à espera na esquina e o grego empurrou-o para o interior.

Correndo para a multidão que se movimentava na Praça da Concórdia, Masterton gritou:

— Nós nos veremos em Berlim, velho!

Olhando pela janela traseira, Mike viu os carros alemães sendo voltados de rodas para o ar e os gregos armados saltando para o caminhão, que tomou direção oposta a deles.

— Depressa, maldição, depressa! — rugiu Michalis para o motorista, com voz que se poderia ouvir até Salônica.

 

O telefone tocou.

Heilser levantou-se, tonto em conseqüência dos sedativos. Meneando a cabeça ergueu o fone.

— Alô!

— Konrad, fala Zervos. Estou na Anton's Dress Shop.

— Que houve?

— Lisa não compareceu ao encontro.

— O quê?

— É o que digo: Lisa não apareceu hoje.

— Por quê?

— Como é que eu poderia saber?

— Volte aqui! Imediatamente!

— Está bem...

Heilser não compreendia o significado daquilo. Dirigindo-se à pia, mergulhou a cabeça na água fria e sentiu-se um pouco melhor. Enxugando o rosto, acendeu um cigarro e se pôs a meditar.

Bateram à porta e um ordenança em camisa parda entrou.

— Manolis Kyriakides deseja vê-lo, senhor.

Heilser franziu o cenho. O marido de Lisa? Diabo! Talvez soubesse...

— Mande entrar.

— Sim, senhor.

Manolis Kyriakides foi introduzido. Há tempos talvez fosse um belo homem, mas no momento tinha os olhos inquietos, apa­vorados. Talvez no passado fosse alto e teso, mas agora estava inclinado como um covarde. Gotas de suor escorriam-lhe pelo nariz e o queixo, enquanto se colocava diante de Heilser, chapéu na mão.

E então?

— Herr... Herr...

— Que houve? Onde está sua mulher?

— As crianças... foram seqüestradas!

Levantando-se de um salto, Heilser agarrou Manolis pela lapela do casaco e sacudiu-o com uma violência que o suor pingou-lhe do rosto. Forçando-o a recuar, atirou-o a uma cadeira.

Manolis tremia todo.

— Fale!

— Água, por favor...

— Fale!

Manolis gemeu baixinho, lábios secos entreabertos.

__— Foi ontem à noite... Lisa os fez entrar... Uma dúzia de homens... Atiraram nos guardas, levaram as crianças. — Fechando os olhos, Manolis chorou.

— Ontem à noite! — berrou Heilser. — Por que não fomos imediatamente informados?

— Eles... eles disseram que me matariam se eu o procurasse antes...

Heilser esbofeteou-o seguidamente e o grego caiu no chão, soluçando, histérico.

— Guardas! Guardas! Levem-no a Averof.

Sentado diante da escrivaninha, Heilser batia com o punho cerrado no tampo de mármore. Colaboracionistas! Por que precisamos de colaboracionistas para vencer a guerra? Por que somos obrigados a cultivá-los, lisonjeá-los, suborná-los? Homens como Zervos e Manolis Kyriakides...

Por que não temos gente como Ioannis Rodites e Stergiou do nosso lado? Por que não elementos como o misterioso padre Papa-Panos, o feroz Michalis e o ousado Thanassis?

— Por que estou rodeado pela “escória” da humanidade?

A porta abriu-se e Zervos entrou, dizendo:

— Prepare-se, Konrad. Morrison estava na prisão de Ave­rof. Fugiu.

 

A adega sob o restaurante de Gyní, na Praça Armodiou, estava completamente às escuras. Mike e Lisa aninhavam-se a um canto. Acariciando-lhe os cabelos, ele a atraiu para si mais ainda.

— Estarão aqui logo, logo — disse ela.

— Tudo correrá bem, querida — murmurou ele. — Tudo correrá bem.

Mike recapitulou os acontecimentos do dia: a caminho para o quartel-general da Gestapo, Michalis organizara uma ousada emboscada em pleno centro de Atenas. Em questão de minutos transferira-o para três carros diferentes, o último dos quais o conduzira àquele abrigo temporário.

Lisa contou-lhe tudo. Papa-Panos convencera Michalis, Thanassis e o Dr. Thackery a conservar-lhe, a vida, esperando que Morrison entrasse em contato com ela, vendo-se em apuros. Sua teoria mostrara-se correta. Axiotis, o velho carcereiro de Averof, entregara o bilhete a Lazarus em Chalandri. Dentro de uma hora o papel se encontrava nas mãos de Lisa.

Lisa dera então o seu golpe. Antes de entregar a informação a Thanassis e Michalis, exigira a liberdade dos filhos. Em uma hora organizara-se o assalto à casa de Manolis e as crianças encontravam-se no momento escondidas na casa de bomba, em Chalandri.

Mike fitou as três fisionomias zangadas, na adega de Gyni. Estavam furiosos porque ele permitira que as emoções tornassem ainda mais complicada aquela grave situação. E o censuraram asperamente por forçá-los à emboscada em pleno dia, exigindo que ele entregasse a lista Stergiou e insistindo em que já cometera demasiados erros.

Mike recusou-se, a menos que Lisa e seus filhos tivessem permissão para sair da Grécia com ele.

Michalis, Thanassis e o Dr. Thackery encontravam-se dian­te de um dilema: executar a ambos e perder a lista Stergiou, ou tirar os quatro do país. Tarefa impossível...

O alçapão abriu-se e uma faixa de luz atravessou a escuridão da adega.

Mike distinguiu a silhueta imensa de Michalis e a outra, alta e esguia, do Dr. Thackery caminhando por entre os barris de vinho.

E apertou a mão de Lisa.

A lanterna elétrica os descobriu. Os dois homens inclinaram-se para eles.

— Muito bem, Morrison — falou Thackery. — Um submarino britânico os recolherá dentro de quarenta e oito horas.

— As crianças? — perguntou Lisa.

— Estão em segurança. Quando saírem de Atenas se reunirão a vocês disse Michalis.

— Se saírmos de Atenas acrescentou Thackery. Heilser fechou hermeticamente a cidade. Ninguém atravessa o bloqueio. Vocês têm cinqüenta por cento de chances, Morrison.   E têm também quarenta e oito horas para reconsiderar a entrega da lista. Esconderemos você e Lisa nas colinas. . .

— De modo algum, Dr. Thackery.

— Está bem, tentaremos o submarino. Espero que consigamos tirá-los de Atenas.

— Um momento — disse Mike. — Esperem um momento. Tenho uma idéia que talvez...

 

Julius Chesney tamborilava lentamente na mesa, olhando, cético, para Thanassis.

— É muito, muito   arriscado...

— É arriscado para mim também — disse Thanassis.

— Pensarei no caso — falou Chesney.

— Sim ou não. Terão que partir dentro de quarenta e oito horas.

Você dificulta as coisas, meu caro. Se não fosse pelo dinheiro...

— Foi exatamente por isso que lhe apresentei a proposta. Ouvi falar no seu amor pelas dracmas.

As papadas de Julius Chesney estremeceram enquanto ele emitia seu risinho desagradável.

— Combinado.

— Metade do que receber dos alemães me pertence — disse Thanassis.

— De acordo — falou Chesney, meneando afirmativamente.

— Aqui vai a informação até o momento. Morrison e Lisa Kyriakides encontram-se agora em Atenas. Ignoro onde, uma vez que não me encontrei com Michalis depois da emboscada. Um submarino britânico virá buscá-lo   dentro de quarenta e oito horas.

Chesney fez que sim. Thanassis prosseguiu:

— Eu lhe darei a rota que seguirão ao sair de Atenas e o ponto de contato com o submarino, tão logo esteja a par.

— Como é que pretendem tirá-los de Atenas?

— Este é o problema, Sr. Chesney. Só saberei depois de falar ao Dr. Thackery ou a Michalis.

Chesney lembrou-se do dinheiro e tornou a rir, estendendo a mão gorda sobre a mesa. Thanasis fitou-o desconfiado por um instante e depois apertou-a.

— Lembre-se: metade do dinheiro é meu — disse, levantando-se.

— Diga-me, professor Thanassis, por que está agindo assim?

— Porque os dois não têm chance de escapar.

— Não o acompanharei — chiou Chesney, escarrapachado na cadeira. — Coração fraco, meu velho.

Chesney fitou Thanassis de olhos contraídos enquanto o solene professor saía da sala.

Erguendo-se com dificuldade, dirigiu-se ao telefone, procurou um número e discou-o utilizando-se de um lápis, pois seus dedos não entravam nos orifícios.

— Alô!

— Konrad?

— Sim.

— Fala Chesney, Julius Chesney.

— Que houve?

— Você   e Zervos   poderiam   vir imediatamente   a minha casa?

— A esta hora da manhã, Julius?

— Trata-se de um amigo mútuo. Um camarada americano, creio...

— Irei imediatamente.

— E Konrad, meu caro, traga seu talão de cheques.

Chesney estudou a fisionomia abatida de Konrad Heilser. Em geral o alemão era a imagem da tranqüilidade, mas no momento parecia tenso, emaciado, irritado. Zervos, coberto de brilhantes, estava ao seu lado.

— Bebida?

— Uísque duplo — disse Heilser.

Zervos quis o mesmo.

Chesney arrastou-se até o bar.

— Bem, Konrad, o que tenho a dizer é de grande interesse para você...

— Vá direto ao assunto. Se sabe algo sobre Morrison, quanto quer pela informação?

Você está se adiantando, Konrad. Muito bem. Estou para receber a informação completa do seu paradeiro.   Quero cinqüenta milhões de dracmas, nenhum a menos.

— Cinqüenta milhões? Está louco?

— Não me tente, meu caro. Sou capaz de pedir também a Acrópole.

— Cinqüenta milhões! Está fora de cogitação.

— Neste caso, senhores, permitam dizer que já passou a minha hora de dormir. Creio que conhecem o caminho da saída?

Heilser estava furioso. Novamente via-se às voltas com a escória da humanidade. Cinqüenta milhões liquidariam a fortuna pessoal que tanto lutara para reunir na Grécia. Raciocinou rapidamente. Forçaria Zervos a entregar-lhe a metade da quantia. E não permitiria que Chesney saísse vivo da Grécia. Olhou para o grego, que deu de ombros.

— Ele   é   um   camarada   duro,   Konrad.   Mas   não   temos escolha.

— Muito bem — murmurou Heilser. — Onde está ele?

Chesney ergueu a mão gorducha.

— Ah, mais devagar, mais devagar. Telegrafem o envio da quantia para meu banco na Argentina. Tão logo eu receba confirmação do depósito...

— Cão!

Chesney riu, estalando as juntas dos dedos e estendendo a mão para um prato de azeitonas.

— Acrescento que precisa agir rápido, meu caro. Um submarino britânico virá buscá-lo dentro de quarenta e oito horas. E, como gratificação extra, Konrad, eu lhe entregarei também Lisa Kyriakides e seus filhos, sem despesas extraordinárias.

O alemão pegou o chapéu com gesto brusco, dizendo:

— Receberá confirmação do depósito amanhã ao meio-dia.

Iam sair, mas Zervos parecia intrigado com alguma coisa.

— Por que quer o dinheiro na Argentina?

— Não confio em você, Sr. Zervos. Confio em Herr Hailser, mas não em você.   E estou francamente convicto, como correspondente esclarecido, que a Alemanha perderá esta guerra

E jogou uma azeitona na boca.

 

Papa-Panos segurava uma vela trêmula, enquanto Lisa, Mike, o Dr. Thackery e Michalis formavam um círculo fechado. Thanassis estava a alguns passos, apoiado num barril de vinho.

— Acertem todos os relógios. São agora exatamente doze horas — disse o Dr. Thackery.

Na meia escuridão foi com esforço que enxergaram os mostradores.

— Hoje anoitecerá às sete e dez — prosseguiu o Dr. Tha­ckery. Às sete e trinta começamos a sair de Atenas. Às oito e quinze devemos estar em Chalandri para pegar seus filhos, Lisa.

Ela fez que sim.

— De Chalandri partimos para a costa. Viajaremos por estradas secundárias, o que não será muito rápido. — Desdobran­do um mapa colocou-o no assoalho de cimento. Todos ajoelharam-se à volta. Abandonando o barril de vinho, Thanassis inclinou-se sobre o ombro de Lisa. O lápis do Dr. Thackery traçou uma linha. — Neste ponto do golfo teremos que ir a pé. Encontrarão um homem que os conduzirá à caverna do encontro. Chama-se Meletis. Chegarão ao golfo após uma hora de caminhada. Não podem passar de dez e trinta.

Traçando um X no mapa continuou:

— Este   é o ponto do   encontro. Uma caverna abrigada, completamente isolada. Haverá uma sentinela na colina, com uma lanterna. Minutos antes da meia-noite piscará três vezes para o submarino. O sinal se repetirá de cinco em cinco minutos, até que o submarino emerja e corresponda à sinalização. Barcos de borracha virão à praia para levá-los à bordo. Tudo esclarecido?

Todos acenaram afirmativamente.

— Aonde vai, Thanassis? — perguntou Michalis.

— Preciso sair um pouco — respondeu o outro.

— Tudo resolvido?

— Quanto a mim, tudo resolvido — replicou Thanassis. E acendendo   sua lanterna percorreu   a   adega,   subiu   a   escada e desapareceu pelo alçapão.

— Ele é meio estranho às vezes — observou Thackery. — Estará ficando nervoso?

— Todos estamos nervosos — replicou Mike.

O Dr. Thackery dobrou o mapa e levantou-se, Papa-Panos soprou a vela, mergulhando o local em escuridão. Lisa apoiou-se em Mike, fechando os olhos.

— Calma, querida, breve tudo estará resolvido...

— Não me agrada o seu método de sair de Atenas — disse Michalis.

— É o único, Michalis — disse o Dr. Thackery. — Temos que agir assim. Alguém procurar a Gestapo é uma simples questão de tempo.

 

Thanassis perdera muito de sua tranqüilidade de intelectual.

— Você disse que eu receberia vinte milhões de dracmas!

— Meu caro, vinte milhões foi o que consegui de Heilser — replicou Julius Chesney, dramatizando a situação. — Concordamos em partilhar meio a meio. Esta é a sua parcela: dez milhões.

Thanassis contou o dinheiro. Não poderia voltar atrás e, embora soubesse estar sendo enganado, não tinha opção. Era um jogo desonesto. Colocando o dinheiro no bolso falou:

— Está bem. Receberá todos os detalhes.

Chesney acenou afirmativamente.

— Eu o encontrarei na caverna à meia-noite.

 

— Ah, Konrad e Zervos! Pontuais.

— A informação — exigiu Heilser. — Conseguiu-a?

— Sim, consegui. E agradeço pela rápida transferência dos cinqüenta milhões à minha conta. Bebida, senhores?

Heilser já se encontrava no bar servindo-se de uísque com mãos trêmulas. Esvaziou meio copo de um só gole e parte da bebida escorreu-lhe pelo queixo.

Julius Chesney desdobrou um mapa da província de Attica-Boeotia e colocou-o sobre o bar.

— Morrison e Lisa partirão de Atenas hoje, às sete e trinta.

— Onde estão?

— Parece que trocam de esconderijo de hora em hora, de modo que ninguém sabe ao certo.

Heilser tomou outro grande gole de uísque. Julius Chesney prosseguiu:

— Parece também que eles planejaram meia dúzia de alternativas para sair de Atenas, de modo que não posso ser específico quanto a isso.

— Continue...

— O que sei é o seguinte: um submarino virá buscá-los neste local. Partiremos de Atenas às sete e trinta.   Às oito e quinze recolherão os filhos de Lisa no esconderijo das imediações da cidade. Dali partirão de carro para Maratona. — O lápis de Chesney traçou uma linha passando pela cidade de Nea Makri, seguindo mais ao norte, além de Soros, e detendo-se numa região coberta de florestas, na zona costeira. — Há uma caverna neste local. Devem chegar aqui cinco para a meia-noite, vindos do sul.

Heilser estudou o mapa durante algum tempo, depois voltou-se para Zervos:

Conhece esta região?

— Sim, é perfeita. Bem escolhida para um submarino, inteiramente isolada, com diversas grutas, mar tranqüilo, boa co­bertura com a floresta aos fundos, sem cidades ou grupos mili­tares em quilômetros ao redor.

— À meia-noite uma sentinela se encontrará na colina sobre a gruta prosseguiu Chesney. E fará sinal para o subma­rino emergir.

Heilser levantou-se e começou a andar de um lado para outro na sala.

— Precisamos triplicar a guarda em Atenas. Deslocarei um batalhão pela rota da fuga. Uma companhia cobrirá o ponto de encontro.

— Um momento, meu caro, um momento — interpôs Ches­ney- — Pagou cinqüenta milhões de dracmas pela informação. Eu ficaria muito embaraçado se não chegasse a encontrar o Sr. Morrison.

— Que quer dizer?

— Para começar, está subestimando a oposição. Eles têm homens observando todas as saídas de Atenas. E também um elemento que partirá à frente para verificar se o caminho está livre. Ao primeiro sinal de complicações, ou usarão outro ca­minho, ou voltarão ao esconderijo. No minuto em que cobrir de soldados a região, eles desistirão de tudo.

— Isso me parece razoável, Konrad — observou Zervos.

— Não podemos, nem por um instante, despertar as suspeitas deles com um alarme geral. Sabe tão bem quanto eu que Morrison poderia esconder-se em Atenas durante quinze anos sem ser encontrado. Além disso, se for obrigado a ocultar-se novamente, a lista Stergiou poderá ser passada aos britânicos por intermédio de centenas de pessoas. Até agora Morrison recusou-se a entregá-la.

O alemão estava aborrecido consigo mesmo. Sim, não havia dúvida de que complicaria tudo se tentasse utilizar cinco mil homens.

Um súbito movimento de tropas com certeza mandaria o fugitivo de volta ao esconderijo e Chesney tinha razão ao dizer que havia pouca esperança de encontrá-lo em Atenas.

— Muito bem. Que sugere?

— Sugiro que saia imediatamente de Atenas, indo para o norte de Maratona. Assim chegaria pelo sul, evitando o caminho que será percorrido por eles, com seus vigias, chegando ao posto de encontro ao anoitecer com, digamos, vinte ou trinta homens bem armados. Lá, aguardaria a chegada deles.

Heilser tornou a estudar o mapa, meditando. Depois trocou um olhar com Zervos que acenou afirmativamente.

— Combinado. Sairemos de Atenas imediatamente. Zervos, mande suspender o bloqueio da cidade e escolha trinta dos nossos melhores homens. Nós nos encontraremos dentro de uma hora, seguindo para Maratona, e esperaremos até a noite. Em seguida entraremos na gruta.

— Agora falou com bom senso — observou Chesney.

— Mais uma coisa — acrescentou Heilser.

— Que é?

— Irá conosco, Sr. Chesney.

— Com prazer, meu caro, com prazer. Não perderia isto por nada deste mundo.

 

Seis horas.

Lisa ficou terrivelmente abalada com a notícia.

— Sabia que ele não prestava, mas era seu marido — murmurou. Acho que poderia tê-lo ajudado, não sei como. Estava doente, doente de ambição.

— Não se culpe, querida.

— Manolis, morto, fuzilado pelos alemães em Averof. Isto nunca terminará, Michael? Nunca?

O tempo corria inexoravelmente.

 

Seis e quarenta e cinco.

— Começa a escurecer — disse Papa-Panos. — Estarão aqui dentro de minutos.

— Panagia, Panagia — murmurou Lisa, os olhos fechados. — Panagia... Mãe de Deus...

Os minutos escoavam-se.

 

Sete horas.

Mike, nervos tensos, procurava acalmar-se fumando cachimbo.   Examinou a pistola e Lisa fez o mesmo com a sua.

O alçapão abriu-se e o Dr. Thackery desceu a escada. A lanterna descobriu-os na escuridão.

— Tudo pronto — falou.

— Onde está Thanassis?

— Seguiu na frente.

— O caminho está livre?

— Quase livre demais... quase demais...

— Papa-Panos, quer rezar por mim? — pediu Lisa.

— Sim, minha filha.

 

Sete e quinze.

Os quatro estavam em completo silêncio. Acima ouvia-se o ruído de pessoas no assoalho quando teve início a refeição da noite no restaurante de Gyni. Ali só se ouvia a respiração do grupo.

 

Sete e vinte e cinco.

O alçapão abriu-se.                                                   

Michalis desceu a escada e disse:

— O carro está esperando.

Mike inspirou profundamente e apertou a mão de Lisa.

— Deus os acompanhe — murmurou Papa-Panos.

— Vamos — disse Michalis.

— Um momento — falou Thackery, entregando a Lisa e a Mike pequeninas cápsulas. — Se algo sair errado engulam isto.

— Que é isto?

— Cianureto.

 

Maratona estava tranqüila ao luar. Via-se uma gruta de solo arenoso e uma parede íngreme logo acima. Uma trilha rochosa conduzia à praia. Na orla do rochedo havia mato alto, arbustos e para além a floresta cobrindo a colina.

Eram onze horas.

Julius Chesney e Zervos, os dois gordos, haviam sofrido no acidentado percurso pela floresta.

Um oficial apresentou-se a Heilser para receber instruções.

— Espalhe seus homens pela orla da floresta, nas proximidades da gruta murmurou Heilser. — Não quero que façam o menor movimento até receberem ordem minha.

O capitão acenou afirmativamente e esgueirou-se para fora, dispersando, com ordens cochichadas, os homens por detrás de rochas, pelo mato e entre os arbustos, formando um círculo ao redor e acima da gruta. Os soldados estavam de armas engatilhadas.

Heilser, Zervos e Chesney subiram uma colina para obter melhor visão da área.

— Os homens colocaram-se muito bem — murmurou Ches­ney, — Tenho a certeza de que passaram despercebidos. — E apontando para o lado sul da gruta: — Deviam vir por ali. Melhor descansarmos um pouco. Temos uma hora de espera.

 

O carro parou na estrada de terra e um homem correu para ele.

— Onde estão? — perguntou ao motorista.

— Os meninos estão no chão, cobertos. O homem e a mulher estão na mala respondeu Ketty, a prostituta.

O homem abriu a mala e ajudou Mike e Lisa a saírem. Ambos estavam completamente tontos. Ketty descobriu os meninos, que correram para a mãe.

Sou Meletis — disse o homem. — Vou levá-los para o ponto de encontro.

Mike e Lisa apertaram-lhe as mãos.

— Vocês estão bem?

— Estaremos num instante, assim que respirarmos um pouco de ar puro. — Voltando-se para Ketty, Mike falou: — Seremos eternamente gratos a você.

Tudo pelos englezos — respondeu Ketty. — Estou satisfeita por ter pedido ajuda a mim.

— Venham — chamou Meletis. — Temos uma hora de caminhada e não há tempo para despedidas. Houve alguma com­plicação pelo caminho?

— Só nos detiveram uma vez — replicou Ketty. — Mas eu apresentei meu passe assinado pelo próprio Herr Heilser.

— Adeus, Ketty.

— Adeus, meu soldado englezos.

— Voltaremos à Grécia um dia, com um exército que não será derrotado. — Beijando-a no rosto correu para alcançar Me­letis, Lisa e os meninos.

E juntos subiram a costa.

 

Cinco minutos para a meia-noite.

O capitão alemão fez sinal aos seus homens e voltou a Heil­ser. Tudo em ordem. Todos os olhares voltavam-se para o lado sul da gruta. Só se ouvia o ruído suave, das ondas na praia e o roçar das folhas ao redor, na floresta.

— Onde estão?

— A qualquer momento. . .

Passou um minuto... dois... três...

Chesney acotovelou Heilser, apontando para o alto da coli­na que ficava por detrás deles. Uma luz piscou, voltada para o mar. Acendeu e apagou três vezes. O coração de Heilser bateu mais forte.

— É o sinal — disse Chesney, franzindo os olhos para enxergar o ponteiro dos segundos. — Quando se repetir, tudo estará pronto.

Ouviu-se um rumor na floresta.

— Estão chegando — murmurou Chesney.

Continuou olhando para o relógio por mais cinco minutos e depois tornou a relancear para a colina. A luz riscou mais três vezes.

Julius Chesney gemeu ao levantar-se, esticando os músculos.

— Konrad, o jogo está perdido — disse.

Heilser fitou-o, demasiado aturdido para falar.

— Perdão, meu caro. Existe um submarino, mas esqueci de mencionar que se encontra do outro lado da Grécia, a cem quilômetros daqui. Se meus cálculos estão corretos, Lisa e Morrison estão entrando a bordo neste mesmo instante.

— Prendam-no! — gritou Heilser. — Prendam-no!

— Nada disso, meu caro. Aquele sinal da colina tinha a finalidade de fazer avançar duzentos homens pela floresta. Guer­rilheiros, creio que se chamam. O segundo sinal indicava que seus homens estão cercados.

O oficial surgiu correndo.

— Ordene aos seus homens que baixem as armas, capitão. Inútil resistir. Não pretendo morrer como um mártir grego e a uma palavra minha ou de nosso amigo, o professor Thanassis, os guerrilheiros iniciarão uma verdadeira fuzilaria.

Heilser levantou-se e olhou à volta. Dispersos por toda a colina, por entre a vegetação, por detrás das árvores, viam-se rifles dos guerrilheiros. Olhou para a gruta vazia, pálido até aos lábios. . .

— Renda-se — disse ao oficial, com voz rouca.   E voltando-se para Chesney: — Jamais conseguirá o que pretende.

— Não sei, não. Quando encontrarem seu corpo — se o encontrarem — estarei bebendo gim com tônica no Clube da Imprensa, em Londres. A meu pedido, Konrad, você conservou em segredo toda a operação. Ninguém sabe que você está aqui.

Zervos levantou-se com dificuldade, olhos saltando das órbitas, murmurando:

Julius... Julius, sou rico. Cinqüenta... cem milhões de dracmas... duzentos milhões... por favor, por favor!

E caiu de joelhos, beijando as mãos de Julius. Ouviu-se um tiro.

Zervos comprimiu o estômago e rolou no chão morto. Kon­rad Heilser entregou a pistola a Chesney.

— Colaboracionistas — rosnou Heilser. — Tenho nojo de quem vende seu país. Eu o subestimei, Julius. Deveria ter sabi­do que, por mais demoníaco que fosse, não se tornaria traidor.

Deixando a pistola cair ao chão, Chesney falou:

— Armas me deixam extremamente nervoso.

— Eu lhe pouparei as atitudes dramáticas de Zervos. Mor­rerei tranqüilamente.

— Bem, digamos que não fui impelido por razões patrió­ticas. Mas felizmente minha consciência tem um fim, compreen­de, meu caro?

Thanassis aproximou-se naquele instante.

— Os alemães estão cercados. Recolhemos as armas. Vamos liquidar a questão.

— Vão me executar agora?

— Infelizmente sim, meu caro. Não temos escolha.

Konrad Heilser caminhou lentamente para um grande ro­chedo, acendeu um cigarro e esperou. Chesney fez sinal a Tha­nassis que aguardasse um instante e aproximou-se do alemão. Heilser estava calmo agora — voltara a ser o antigo Heilser. Perdera o jogo, tornara-se inútil.

— Diga-me, Julius, como o conseguiu?

— Plano engenhoso, confesso. Ouça:   a Resistência estava com um sério problema: transportar Lisa e Morrison em segre­do para fora de Atenas. Thanassis procurou-me trazendo a idéia de utilizar-me como isca para atraí-lo ao ponto errado da costa e, ao mesmo tempo, levantar o bloqueio de Atenas. Você ajudou muito à Resistência, é o que preciso dizer, Konrad.

— E também financiei a viagem. . .

Chesney inclinou-se mais um pouco.

— Seja camarada e não diga a Thanassis quanto recebi. Fiquei com um pouco mais do que seria a minha parte, mas creio que ele vai utilizar seu dinheiro adquirindo armas para a Resistência.

— Precisamos ir — chamou Thanassis.

— Sabe, Konrad, mesmo que houvesse encontrado Morrison e descoberto os nomes da lista, duvido seriamente que isso fizesse diferença. O mundo está cheio de amadores desajeitados como   Michael   Morrison   e   Lisa   Kyriakides,   que   cedem   à tentação, entregam-se aos sentimentos, fazem pactos com a cons­ciência, mas acabam na trilha certa. Temo que haja demasiados Mikes e Lisas no mundo para os bandidos como você e eu.

— Acabemos com isso — disse Heilser em voz baixa, apagando o cigarro. — Estou pronto.

 

Madrugada.

O submarino emergiu.

Lisa estava no tombadilho, junto aos dois filhos. Michael Morrison, escritor norte-americano, amador no campo da intriga internacional, encontrava-se logo atrás, acariciando-lhe de leve o ombro quando a costa da África surgiu no horizonte, diante deles.

 

                                                                                Leon Uris  

 

                      

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