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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS DUAS FACES DE UMA MULHER / Corin Tellado
AS DUAS FACES DE UMA MULHER / Corin Tellado

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AS DUAS FACES DE UMA MULHER

 

— Estou tão cansada, Ann!

— Cansada, Fanny? De que, querida?

— De quê? Ora! De ser o que sou... Gostaria de transformar-me numa mocinha qualquer; em Alice, em Katty, em Maud... Meu dinheiro sufoca-me, meu nome pesa e o colégio me prende. Se você fizesse alguma coisa para tirar-me daqui, Ann! Não posso suportar esta prisão por mais tempo, sabe? Há dez intermináveis anos vejo apenas os muros acinzentados do colégio; os inexpressivos rostos das Irmãs que, mesmo quando são boas para mim, não podem proporcionar-me o que almejo: a liberdade, a vida que vocês levam, as amizades mundanas ...

— Em que ficamos, afinal? Se seu ilustre nome e o dinheiro lhe pesam, para que deseja amizades?

— Talvez não me tenha explicado bem... — passou a mão pelo rosto e cerrou as pálpebras. — Estou desesperada — acrescentou, baixinho, angustiosamente. — Completei dezessete anos, já sou uma mulher... Tenho desejos, compreende? Desejo de alguma coisa, diferente do que tenho no colégio. Pode ser que depois me canse do que tanto ambiciono. Mas enquanto isso...

— Em seu lugar, eu escreveria a seu tutor.

Fanny Walleston alçou vivamente a bela cabeça. Os olhos úmidos abriram-se desmesurada mente.

— Que eu escreva a meu tutor? Que poderei dizer-lhe que ele não saiba?! — ajuntou, encolhendo os ombros. — Michael Glay pouco se importa comigo e minha existência.

— Mas é seu tutor. Administra seu capital.

— É verdade, Ann! — pulou Fanny, em tom vivo. — Administra meu capital. Talvez viva como um rei à custa do dinheiro dos Walleston, sem se preocupar em absoluto com ela. Um dia qualquer, quando eu completar a maioridade, virá buscar-me e me casará com um personagem qualquer, sem levar em conta minhas aspirações sentimentais. Administrará meu capital e continuará desfrutando meus milhões...

Aspirou com força e depois apertou os lábios com aquele voluntarioso ar que lhe era característico. Em seguida, cravou os olhos nos confins do horizonte, através da janela aberta, e acrescentou baixinho:

— Na verdade, quando fiz oito anos e já morava com as Irmãs, não pensei que o mundo fosse assim. Pensei de boa fé, que tudo se resumia a estudar, beijar a cruz que pendia do cinturão da Irmã, desejar-lhes boa noite e dormir até o dia seguinte, quando tudo tornaria a repetir-se, exatamente igual...

— Quando foi que percebeu que estava enganada?

— Ora! Quando fiz doze anos e vi como suas mães vinham aqui para levá-las. Não sei como é o mundo, querida Ann, além do que vocês mesmas me contam. Imagino-o maravilhoso, é verdade, mas, com exatidão, nada sei.

Conversavam no aposento que ambas partilhavam. Eram três da tarde, e vários automóveis saíam do parque, enquanto outros chegavam. Era o fim do período letivo, e as colegiais regressavam aos lares até o fim do verão. Três meses de vida alegre e cômoda!

Três meses de felicidade no calor do lar! E ela continuaria ali até que seu tutor tivesse a feliz idéia de lembrar-se de sua existência!...

— A superiora devia escrever a seu tutor — observou Ann, olhando a amiga.

Ela tornou a erguer a cabeça. Um meio sorriso apenas perceptível entreabriu seus lábios vermelhos.

— Querida Ann: quando fiz dezessete anos, a superiora escreveu a Michael Glay... Quer saber qual foi à resposta? “Peço-lhe que continue hospedando minha pupila em seu colégio. Sou obrigado a realizar uma longa viagem e provavelmente não voltarei em menos de três anos”.

— Isso é cruel!

— Não foi o que a Madre pensou, querida — replicou Fanny, com indiferença, encolhendo os ombros senhoriais. — Michael Glay é um homem muito inteligente e teria argumentos de sobra para convencer a superiora. Além disso, juntamente com a carta, chegou um cheque no valor de dez mil dólares “para renovar uma imagem na capela”... Michael Glay é muito generoso.

— Com seu dinheiro.

— Não sei ao certo, Ann. Talvez seja rico.

— Você sabe que não.

— Ora! Sei apenas o que seu irmão disse uma vez. Falou-me que era jovem, morando com uma prima mais velha e sua filha. Acho mesmo que até mencionou o nome dessa prima.

— Sim. Chama-se Beatrice Brow.

— Quem lhe disse?

— Meu irmão Ferdinand.

Fanny levantou-se. Era alta, muito esbelta, de quadris arredondados e cintura estreita. Possuía uma distinção inata, talvez herdada dos duques de Walleston.

O rosto, de um ovalado perfeito, era emoldurado por uma cabeleira negra e abundante, completamente lisa, presa no alto da cabeça com um laço negro. Os olhos úmidos, vivos, de olhar profundo e ardente; a boca sumarenta, de lábios vermelhos e sensuais. Os dentes muito brancos e o sorriso indiferente tornavam-na muito mais interessante. Era na verdade uma jovem encantadora, de grande personalidade, feminina acima de tudo.

Encostou-se à janela e, de repente, levantou o busto, respirando com ânsia.

— Ann — exclamou excitada. — Preciso sair daqui. Preciso passar fora o verão. Isto se torna insuportável. Se ficar no colégio este verão, creio que morrerei. Diga Ann: não poderia ajudar-me? Michael Glay está longe, talvez na Escócia... A Madre Superiora é generosa e talvez... Talvez...

Voltou para junto de Ann e segurou-a com ânsia, fitando-a nos olhos, suplicante.

— Ainda temos uma semana pela frente, Ann, uma vez que você só irá quando vierem buscá-la e seus pais ainda não voltaram da viagem à Espanha.

Os olhos de Ann iluminaram-se.

Tentarei Fanny — prometeu, suavemente. — Mas que pretende você?

Não quero ser a Duquesa de Walleston, Ann. Se puder sair este verão...

Uma semana depois, o carro dos pais de Ann Woods deixava o colégio com as duas jovens.

Fanny Walleston já não parecia à mesma. Seus trajes de colegial tinham desaparecido e no lugar deles usava um maravilhoso modelo de tarde, com um chapeuzinho muito feminino enfeitando-lhe a cabeça.

Estava feliz. Após dez anos, deixava o cárcere que um dia chegara a achar maravilhoso. Ia conhecer o mundo que suas amigas conheciam e do qual só tivera notícia por suas opiniões. Ia ser como as outras moças. Ia conhecer homens, saber o que seria uma grande festa da sociedade. Seria livre durante três meses...

— Nunca me aborrecerei — exclamou, vendo-se junto a Ann, no interior de sua luxuosa casa. — Preciso ver Ferdinand esta mesma tarde!

E viu-o. Ferdinand era um rapaz louro, sardento, bastante feio, mas extremamente agradável. Teria aproximadamente uns vinte e oito anos, era mundano e conhecia toda a alta sociedade americana...

— Onde está Michael Glay, Ferdinand? — perguntou, secamente.

— Na cidade, querida impulsiva. Pode se saber o que deseja com ele? Precisará continuar ignorada, com outro nome, uma vez que, de outro modo, meus pais serão responsabilizados por sua saída do colégio.

— Quanto a isso não se preocupe. Diga-me: que idade tem meu tutor, aproximadamente?

— Idade? — e Ferdinand Woods franziu as sobrancelhas, parecendo fazer-se a mesma pergunta. — Na verdade, não sei. Imagino que ande pelos trinta e oito...

— Tanto assim?

— Quando seu pai morreu, você ainda não havia nascido, querida. Sua mãe faleceu quando você veio ao mundo. Michael era amigo de seu pai. Um jovem amigo, talvez, Mas mesmo assim seria o de maior confiança que encontrou, posto que a entregasse em mãos de seu secretário.

Virou os olhos para Fanny e continuou:

— Ninguém poderia imaginar que seu pai a deixaria tutelada pelo secretário. Foi um desatino. Sim, querida, mas não há mais remédio.

— Que vida leva Michael Glay? Quem são realmente as duas mulheres que vivem em minha casa?

— Lady Frankau é sua prima, mãe de Beatrice. Lady Frankau é uma dama arruinada e, em seus tempos de esplendor, Michael foi socorrido por seu esposo. Agora, devolve o favor. Ignoro é se a jovem Beatrice deseja unir mais estreitamente o parentesco — acrescentou, com malícia. — Contudo, é possível que essa jovem esteja apaixonada por seu tutor.

— Sua vida particular?

Ferdinand soltou um assobio nada discreto. Depois deu uma sonora gargalhada e seu rosto simpático virou-se para a jovem e, linda duquezinha.

— Demônios, querida! Você está parecendo um jornalista um bocado inteligente. Que inferno quer saber?

— A verdade. Você é um homem de sociedade, freqüentará os mesmos lugares e até talvez tenham amizades comuns...

— Hum!... Pode ser, pode ser, mas a vida particular de Michael Glay não nos pertence. Se perguntar por aí quem é Ferdinand Woods, dirá talvez que é um boêmio empedernido, um conquistador, um mulherengo... E nada mais longe da verdade. Não, não posso esclarecer nada a respeito da vida particular de seu tutor.

Esclarecer?... Claro que poderia e muito; mas quem era ele para inquietar aquela jovenzinha, quase uma menina? Não. Ele jamais poderia dizer-lhe que Michael Glay era um cínico renomado no tocante às mulheres, nem poderia dizer que gostava de todas e que de todas fazia uma só... Nada disso poderia dizer-lhe porque era um cavalheiro e certamente tal assunto era forte demais para serem ouvidas por aquelas duas jovenzinhas.

Levantou-se, sacudiu a cinza do cigarro e depois esmagou o toco no cinzeiro. Em seguida, sorriu.

— Até logo, queridas. Tenho um encontro as seis, e preciso deixá-las.

Não o retiveram. Para quê? Nada mais lhes diria. Vendo se sós, Fanny levantou vagarosamente a bela cabeça de cabelos negros.

— Ann — disse. — Tomei uma resolução.

Ann ficou assustada. As resoluções de sua amiga sempre tinham sido um tanto temerárias. Olhou-a fixamente e aproximou-se dela.

— Que vai fazer Fanny? Não se arrependerá?

— Nunca me arrependo do que faço. Vou adquirir outra personalidade...

— Como disse?

— Que a partir deste momento, deixarei de ser a herdeira dos Walleston!

— Não podemos consentir nisso de modo algum!

— Seus pais nunca saberão de nada, Ann — exclamou a outra, com voz firme. — Nem mesmo Ferdinand ficará a par. Você é uma boa amiga, a única que tenho e vai ajudar-me. Quero saber como é Michael Glay, o que faz quais as suas relações, enfim, tudo que diga respeito a esse homem. Mais cedo ou mais tarde serei obrigada a viver a seu lado, no mesmo lar, dividindo a mesma mesa...

— Sei disso, mas...

— Você vai me ajudar, Ann! — exclamou Fanny, com absoluta segurança. — Amanhã participaremos a seus pais que resolvi voltar para o colégio.

— Não farei isso!

Fanny aproximou-se de sua amiga. Segurou-a pelos ombros e murmurou em voz intensa:

— Preciso disso para minha felicidade, Ann. Você sempre me quis como se fosse sua irmã...

 

Saiu do gabinete alisando o bigode. Sacudiu as lapelas do paletó e depois parou para acender um cigarro.

Era um homem alto e arrogante, cabelos negros como azeviche, penteados com simplicidade para trás, fronte ampla e olhos penetrantes, pardos e audazes, faiscando no rosto como duas lâmpadas fosforescentes. Teria uns trinta e cinco anos, talvez menos.

Guardou o isqueiro de ouro e começou a caminhar pelo longo corredor atapetado.

Avistou-a ao atravessar o salão. A encantadora figurinha feminina colocava flores num jarrão.

— Bela moça! — exclamou Michael Glay, em voz alta. — Quem é? Que faz aqui? — perguntou, entrando no salão.

— Minha função é atender ao telefone — replicou a mocinha, em acento firme.

— Para atender...? — soltou uma boa gargalhada. Depois, calou-se e, sem parar de sorrir ironicamente, interrogou: — E quem a admitiu?

— Lady Frankau.

— Hum...

Deu a volta, dirigindo-se diretamente para a sala de refeições.

— Bom dia, queridas — saudou, sentando-se em seu lugar costumeiro, frente ao aromático desjejum. — Hoje me levantei tarde.

Uma das damas, a mais jovem, levantou a cabeça vivamente. Era interessante, mas os duros traços de seu rosto não tinham o menor encanto feminino. Era muito esbelta, muito elegante. Tinha uma cintura de vespa e um busto erguido e bem desenhado, mas os olhos não se harmonizavam com seu corpo airoso. O olhar negro era duro e frio, quase áspero.

Vendo Michael, seu rosto adoçou-se.

— Deitou-se muito tarde — observou, com voz melíflua.

— É verdade.

Ante o seco comentário, Beatrice baixou novamente a cabeça, enquanto o velado sorriso de despeito aflorava a seus lábios grossos. Era evidente que a pouca amabilidade de Michael Glay a deixava profundamente ofendida. Mas o homem não parecia muito disposto a seguir o jogo de suas pupilas escuras.

— É a primeira vez que vejo em minha casa uma senhorita apenas para atender ao telefone — disse, de repente, parecendo seguir o curso de seus pensamentos. Levantou a cabeça, bruscamente, e seus olhos, profundamente cinzentos e penetrantes, cravaram-se nos olhos da dama. — Para que fez isto, Lady Frankau?

— Não imaginava que você se aborrecesse.

— Não compreendo.

— Quero dizer que pensei que isso não pudesse ofendê-lo. A existência dessa pobre jovem entre nós deve-se ao fato de ter sido recomendada por uma amiga.

— Hum...

— Precisaremos despedi-la?

— Por quê? O que você faz prima está bem feito.

Achatou o resto do cigarro no cinzeiro de bronze e levantou-se. Era um homem cortante, frio no que dizia respeito ao correr de sua vida dentro do lar. Elas o conheciam bem e, portanto, sabiam que a existência daquela jovem em casa o desagradava. Não era preciso expressá-lo em voz alta, mas notava-se facilmente no tom de suas respostas secas.

Contudo, tanto as damas como ele sabiam que a jovem ficaria no palácio.

Ficando sós, Beatrice dobrou cuidadosamente o guardanapo e manifestou em tom estranho:

— Nunca pensei que viver de esmola me trouxesse tantas humilhações.

— Não diga isso, filha.

— Você é muito ingênua, mamãe. Esse — referia-se ao primo — é um ingrato. Julga-se dono do mundo, superior a todos os homens. Gostaria que a jovem Duquesa de Walleston viesse aqui e o despojasse de toda auréola de que se rodeia. Quem é na realidade? Um joão-ninguém. Recorda-se de quando o recolheu morto de fome e miséria?... Então, Lord Frankau era uma personalidade, tinha dinheiro e prestígio. O fato de abrigar em sua casa um jovem desamparado que levava o mesmo sobrenome de sua mulher, não significava nenhuma contrariedade, mas sim uma satisfação.

— Você não é nobre, Bea.

— Por que falo a verdade? Por que o odeio? Por que pretendo sair desta humilhação?

— Mas se ele não a humilha!

— Por Deus, mamãe, não seja tão ingênua! Não nos humilhá com palavras, mas sim com seus olhos, seus gestos de supremacia, seus... — levantou-se bruscamente, pegou um cigarro, acendeu-o, com gestos nervosos, e logo depois o esmagou raivosamente sobre seu pé pequenino. — Ah, quanto não daria para sair desta casa, casar-me com um homem importante como o foi papai, atirar-lhe ao rosto minha felicidade!

— Você gosta dele.

Voltou-se furiosa, os olhos negros despedindo faíscas.

— E daí? Sim, é verdade, eu o amo e odeio ao mesmo tempo. Gostaria de ser sua mulher para torná-lo infeliz.

— Bea! Você me assusta querida! Está falando coisas próprias de uma mulher perversa.

A jovem Matty afastou-se rapidamente em direção ao salão, onde há meia hora arranjava as braçadas de flores.

Apertou o coração com as mãos e respirou forte.

— E o serei, mãe — ouviu a jovem Beatrice ainda dizer. — Daria a própria vida para fazer de Michael Glay o mais humilhado dos maridos.

Os olhos úmidos, imensamente abertos, encheram-se de lágrimas. Que dizia aquela insensata? E era aquele o ambiente onde se veria obrigada a permanecer durante algum tempo?

Todas as manhãs; encontrava com ele no corredor. Olhava-a. As pupilas masculinas enchiam-lhe de um medo indescritível. Mas por quê? Não fora àquela casa para saber muitas coisas?

E na realidade que sabia? Que descobrira? Nada, em absoluto. Mas que poderia averiguar uma mocinha de dezessete anos, sem experiência, sem conhecimentos do mundo, sem nenhum apoio espiritual? Era uma infeliz, uma sedutora inexperiente, uma linda garota sem mundo. Em resumo, uma flor que ainda não desabrochara...

Nunca lidara com homens, exceto Ferdinand Woods, mas este jamais lhe falara como tal e sim como irmão. Logo, os olhos pardos de Michael Glay deixavam-na intranqüila de uma forma espantosa.

— Como se chama? — perguntou-lhe, naquela manhã, parando de andar.

— Matty.

— É um nome bonito, mas você também o é.

Não deveria dizê-lo nesse tom de voz quase imperceptível, pensou a jovem, assustada. Claro que Ann o desaprovaria.

Alguns dias depois, Michael Glay penetrou no salão onde ela permanecia sentada em frente ao telefone.

— Por que trabalha? — perguntou, bruscamente, sentando-se ante ela. — Você é uma jovem muito atraente. De que cor são seus olhos?

— Castanhos.

“Sou uma estúpida, pensou. Outra de minhas amigas, uma qualquer, responderia com uma ironia.”

Ficou desconcertada. Não tinha jeito para descobertas daquela natureza. Por outro lado, o homem tornava-se inescrutável. Era tão enigmático! Tão estranho!... Quantos anos; teria aquele homem quando seu pai morrera? Dezoito? Então era um rapazola e Matty perguntou-se como é que seu pai pudera entregar sua tutela a um rapaz tão novo.

— Gosto de seus olhos. E se são castanhos, como diz...

— São.

O homem distendeu os lábios num sorriso apenas perceptível. Depois, estendeu a mão e colocou-a sobre a dela, cujos dedinhos rosados tremeram convulsivamente.

— Tem medo de mim?

— Não, não.

— Você é uma garota ingênua, mas deliciosa. Gostaria de ser seu amigo.

— Amigo? Sou tão pouca coisa!

— Pouca coisa? Você é...

Levou a mãozinha aos lábios e beijou-a, suavemente.

— Encantadora...

E afastou-se, devagar.

Ficou desconcertada e magoada. Ia acabar gostando daquele homem. Era o que adivinhava, pressentia! Revoltar-se? Impossível. Faltava-lhe tudo que deveria ter de sobra.

O homem a vencia com sua voz persuasiva, com seus olhos poderosos, com os lábios que ainda ardiam em sua pele.

Ficou muito assustada e chorou com a cabeça entre as mãos.

— Que há Matty?

Ergueu a cabeça, com vivacidade. À sua frente avistou a elegante figura de Beatrice.

— Não estava chorando — falou num fio de voz.

— Bem, querida. Diga-me, o senhor esteve aqui?

— Não o vi.

Mentiu pela primeira vez. Assustada, perguntou-se por que o fizera se sempre odiara a mentira. Imaginou, então, que precisava mentir, já que a jovem dama sempre a tratara com bem pouca amabilidade.

Não se atreveu a levantar a cabeça. Naquele momento o telefone tocou. Pegou o receptor.

— Sim?

Beatrice continuava à sua frente, perscrutando-a com seus olhos intensamente negros.

— Pequena e, deliciosa Matty — disse a persuasiva voz de Michael Glay no outro extremo do fio. — Preciso de você em meu escritório. Passe imediatamente por aqui.

— Está bem — respondeu num fio de voz.

Levantou-se.

— Quem era?

— O Sr. Glay.

Desejaria morrer, mas não pôde. Tinha um nó na garganta, asfixiando-a desesperadamente.

Beatrice deu meia volta, não sem antes presenteá-la com um olhar mordaz, parecendo dizer: “Será mais outra vítima de seus caprichos”.

 

— Sabe francês?

— Um pouco.

— Traduza esta carta.

Michael estava no gabinete, sentado por trás da grande mesa e ela de pé, a seu lado.

“Meu pai teria sentado ali muitas vezes — pensou a jovem, com angústia. — Se este homem soubesse se conhecesse minha verdadeira identidade... Em que estima terá Michael Glay a filha do Duque de Walleston?” Segurou a carta entre os dedos. Um estranho tremor a invadiu. Aquela carta... Santo Deus! Por que escreveria a Madre Superiora? Que dizia aquela carta?

— Permita-me lê-la primeiro apenas para mim — disse, com a voz sumida. — Não tenho grandes conhecimentos de francês e gostaria de repassá-la.

— Sente-se, querida.

Tratava com uma familiaridade que a deixava contrariada e satisfeita ao mesmo tempo. Mas, por quê? Por que, se aquele homem quase poderia ser seu pai?

Cravou os olhos nas linhas tão suas conhecidas e estremeceu.

“Preciso fazer um esforço e ler o que não existe”, pensou.

“Prezado senhor Glay:

“Escrevo-lhe esta para esclarecer-lhe as normas estabelecidas em nosso colégio, as quais obrigam sua pupila, a Duquesa de Walleston, a reintegrar-se em seu lar aos dezoito anos e, uma vez que atingirá essa idade durante este verão, rogo-lhe que, em princípios do inverno, tenha a gentileza de passar pela França, a fim de encarregar-se de sua ilustre pupila. Saúda-o em Cristo Nosso Senhor,

A Madre Superiora

Os olhos de Matty elevaram-se, fixando o rosto amorenado, cujos traços absolutamente não se contraíram. Um irônico sorriso florescia nos lábios másculos, mas não emitiu o menor comentário. Apanhou a carta das mãos da jovem e guardou-a, indiferente, numa gaveta da mesa. Em seguida, acendeu o cachimbo e tornou a fitá-la.

— Você é uma jovem muito inteligente, amiga Matty. Pergunto-me por que motivo se encontrar a serviço de Lady Frankau, quando poderia trabalhar em algo mais digno e lucrativo.

— As circunstâncias...

O homem levantou-se e avançou rapidamente para ela. Dominou-a com sua estatura alta e o inusitado brilho dos olhos enigmáticos.

— Que circunstâncias foram essas?

— A vida.

— Não lhe sorriu?

— Nunca.

As mãos masculinas ocultaram as de Matty, apertando-a apaixonadamente. Depois, fitou-a nos olhos, observando que seu rostinho delicado cobria-se de rubor. Gostou ainda mais. Nunca conhecera uma moça como aquela. Na verdade, Michael Glay jamais tivera noiva ou lidara com mulheres decentes. Em sua opinião, mulheres eram mulheres e gostava de todas igualmente — sem estimar nenhuma — e todas representavam para si apenas um agradável e fugaz momento de felicidade.

Sabia, pois podia ver claramente, que aquela mocinha era ingênua... Dezessete anos!

Que experiência poderia ter adquirido aquela jovenzinha com tal idade? Nenhuma e, sem embargo, não lhe tinha pena nem lamentava que se tivesse apaixonado por ele. Um desalmado? Talvez, mas a verdade é que Michael Glay não era precisamente um homem perverso. Nunca em sua vida de aventureiro encontrara algo que realmente o interessasse; uma vez que as mulheres representavam apenas um papel secundário, julgava nada ter a reprovar-se.

Contudo, aquilo era outra coisa. A garota era novíssima, não tinha nenhuma experiência da vida e era lógico que acreditasse em suas promessas de amor, caso viesse a pronunciá-las. Esta foi à única passagem amorosa que inquietara profundamente Michael Glay, mas ninguém soube disso nem ninguém saberia que gostara daquela jovem ao extremo de jurar a si próprio não zombar dela... Mas zombava. O desejo era muito mais forte que seus propósitos de emendar-se.

Silenciosamente, beijou as mãozinhas rosadas e depois contemplou as lentes, por trás das quais os olhos femininos brilhavam umedecidos pelo pranto.

— Não chore — exclamou ele, baixinho. — Será feliz á meu lado.

Feliz? Por que dizia aquilo? Será que admitia redondamente o amor que ela pudesse sentir por ele? Com absoluto domínio, como se fosse algo que lhe pertencesse por direito próprio, puxou-a para si, beijando-a nos lábios, apertadamente.

O primeiro beijo! Santo Deus, que sensação mais estranha Matty sentiu! Julgou que o mundo terminava ali, que não existisse felicidade maior, que a vida se resumia neles dois, que o resto deixava de contar para sempre!

— Você é muito bonita.

A voz deixou-a comovida. De novo, suas mãos ficaram escondidas nas dele.

Segurava-a como o faria com um maço de cigarros, como algo seu, que mais ninguém tivesse o direito de tirar-lhe.

Os dias sucederam-se, vertiginosamente.

Ela silenciava. Michael Glay não saía de casa. Antes, jamais parava ali para nada, além de comer ou dormir. Mas agora estava sempre no palácio. E foi conquistando-a sutilmente, astuciosamente... A princípio pensou sentir remorsos na consciência, depois... Ora! A mocinha não passava de uma mulher, mais outra entre centenas iguais.

E Matty viu-se prisioneira no estreito círculo estendido pelo homem. Apaixonou-se por ele com o arrebatamento irrefletido da juventude inexperiente. Julgou que não houvesse ventura maior que seu amor por aquele homem, a quem imaginava melhor que todos os outros. Quando ela lhe contasse a verdade!... Viu-se saindo do palácio pelo braço de Ferdinand Woods, para voltar depois ao lado de Michael Glay, seu marido. Que ilusão!

Bruscamente recordou a carta que lera para Michael dias antes... Tornara a mentir, posto que nada lhe, dissera sobre o que lera.

Na carta, a superiora explicava que sua pupila se encontrava em férias, juntamente com a família Woods. Se desejasse visitá-la, poderia fazê-lo na residência de verão dos Woods. Ela desculpava-se, acreditara um dever de consciência permitir naquela saída, uma vez que a garota já era uma jovenzinha e precisava de um pouco mais de expansão.

Que terrível dilema antes de inventar o que não fora escrito naquele papel! Contudo, Michael Glay parecia alheio à existência da jovem Duquesa de Walleston e ela, certamente, sentiu-se satisfeita.

Mas a verdade é que o tutor não se esquecera da carta em absoluto. A prova disso era o fato de que, duas semanas após recebê-la, tinha lugar à seguinte conversa no salão de refeições:

— Prima, no princípio do inverno, chegará ao fim à educação de minha pupila, a Duquesa de Walleston.

— Com isso quer dizer...

— Não falei com você, Bea. Dirijo-me à sua mãe.

Sempre aquele indiferente desprezo que magoava profundamente sua sensibilidade de mulher.

— Resolvi que ela se instale no palácio, como é de direito. Certamente nossa vida sofrerá alguma mudança, pois minha pupila terá seus gostos e seus desejos serão respeitados acima de tudo.

Levantou-se, dando a conversa por encerrada.

— Precisaremos ir embora — disse Beatrice, quando ficaram sozinhas.

— Partir? Para quê? Tenho o pressentimento de que a Duquesinha de Walleston é uma jovem encantadora e cheia de bondade.

— Não quero esmolas de outra mulher!

— Sua atitude é inadequada, minha querida. Por outro lado, Michael é um homem jovem e não poderá viver com sua pupila sem alguém de respeito, eu, nesse caso que conviva com ambos no palácio.

— É generosa demais, minha mãe — replicou a moça, despeitada.

E afastou-se.

Nessa mesma tarde; Michael Glay encontrava-se num café do centro, ao lado de seu melhor amigo, Henry Brown.

— Disseram-me que você tem um novo amor — observou Henry.

— Refere-se à Matty?

— Exato. Você mesmo me falou dela. Depois...

— Quem acrescentou o resto?

— Ontem, no bosque, encontrei-me com Beatrice. Falou-me de você. Afinal, apaixonou-se de verdade?

— Não.

— Não está agindo como cavalheiro, Glay.

— E quando o fui? — interrogou o outro, com cinismo, elevando os olhos vivamente. — Não me interessa as mulheres, Brown. Não podem interessar-me, uma vez que jamais encontrei resistência em nenhuma. Pode conceber isso, que um homem de minha idade venha a apaixonar-se por uma jovenzinha?! É apenas um manjar novo. Qualquer dia irá embora e me esquecerei dela.

— Não é muito nobre.

— Talvez.

Houve um silêncio. Brown sorvia um copo de bebida aos golinhos, enquanto Michael fumava um havana, completamente indiferente.

De repente, Brown perguntou:

— Já resolveu algo a respeito de sua pupila?

Coisa estranha, os olhos de Michael Glay, ordinariamente frios e zombeteiros, iluminou-se com uma expressão dulcíssima. Era evidente que a recordação da filha de seu amigo representava para Glay o que de mais sagrado havia no mundo.

— No começo do inverno virá viver comigo.

Brown endireitou-se na cadeira. Admitia Glay como seu melhor amigo, mas nem por isso deixava de reprovar suas façanhas sentimentais. Assim, resolveu saber até que ponto Glay respeitava sua jovem pupila.

— Diga-me, Glay, que tipo de vida será a sua quando a Duquesinha de Walleston retornar ao lar? Nunca a viu? Vai respeitá-la também?

Uma dura contração crispou o rosto de Michael. Seus olhos brilharam terríveis, enquanto apertava os lábios com desespero.

Inclinou-se para o amigo e esclareceu, com acento rude, intenso, extraordinário em se tratando dele:

— A duquesa de Walleston é para mim o mais sagrado do mundo. Jurei ante o cadáver de seu pai que jamais minha jovem pupila sofreria a menor contrariedade. Jurei torná-la feliz na medida de minhas forças e prometi á mim mesmo ser um pai para ela. Talvez você não acredite, mas se existe algo bom em meu coração é para a duquesa de Walleston. Chegaria a matar aquele que a fizesse sofrer. Esmagaria com minhas próprias mãos e ainda o pisotearia para ressaltar a amizade que sinto pela filha do homem que me amparou quando estava desesperado, prestes a pôr um fim em minha asquerosa vida. Fanny Walleston será minha própria filha. E para minha maior tranqüilidade, no momento em que ela transpuser as portas de seu palácio, minha vida de aventureiro chegará ao fim. Juro-o pela memória de seus pais mortos!

Brown ficou profundamente impressionado ante o arrebatamento emocional daquele homem que sempre desdenhara todas as mulheres.

Continuaram dissertando sobre o mesmo tema durante toda a manhã.

Quando se separaram, Brown estava convencido de que seu amigo Michael se transformaria numa verdadeira fera ante aquele que tentasse humilhar Fanny Walleston.

— Que ironia!

 

Ali estava fitando-a apaixonadamente. Matty, a jovem que atendia ao telefone, agora colhia uma braçada de flores para os vasos do gabinete de Michael Glay.

“Quando instalar-me definitivamente em meu palácio — pensou — casarei com ele e serei feliz. Amo-o com loucura e sou feliz quando o vejo. Gosto de seus olhos de expressão dura e do firme traço de sua boca de homem.”

— Pensando em quê?

Virou-se. Ele estava ali, quando Matty penetrou no gabinete.

— Em você...

— Como? Não seja ridícula, por Deus. Quando estamos sozinhos os dois, somos apenas uma só pessoa.

Uma só pessoa? Ele também a amava!

— Venha para junto de mim.

Apertou-a contra o coração. Matty deixou-se abraçar e o beijo surgiu. Depois outro e mais outro... Ficou inerte, presa ao feitiço daqueles braços. Entregou-lhe a boca sem pensar em nada. Ele estava ali e a queria.

De repente, quis dizer-lhe a verdade... Mas não o fez. Uma voz interior aconselhou-a a esperar a reação final daquele homem enigmático.

— Fale-me de seu amor por mim.

E ela falou. A alma feminina ficou a descoberto. Contou-lhe como o amava, até e desde quando.

O encanto ficou desfeito para o homem amante do desconhecido. Aquela jovenzinha não passava disto: uma jovenzinha. A mulher deixara de existir. Sentiu-se desiludido e adivinhou que aquela passagem de sua vida deixaria de ter boas recordações. Não havia mistério, logo o interesse deixara de existir.

Contudo, durante toda aquela semana assediou-a continuamente e na tarde daquele domingo aconteceu o que tinha de acontecer.

Estavam os dois no salão. Lady Frankau e a filha tinham saído e os criados conversavam na rouparia.

Eles dois permaneceram muito juntos no salão, em frente a um jarrão cheio de flores.

— Diga-me, Michael, qual a sua flor preferida?

— Você.

De súbito interrogou, suavemente:

— Quando pretende casar-se comigo?

Feita com brusquidão, a pergunta pegou o homem de surpresa. Primeiro, fitou-a com incredulidade, depois sorriu e, finalmente, soltou uma gargalhada.

Ela ficou pensativa.

— Mas, Matty!

— Perguntei se pretende casar-se comigo.

— Não, nunca pensei nisso.

— Por quê?

— Os homens como eu nunca se casam.

— Mas você me ama.

— Claro; garota. Não diga tolices agora. Amo-a e...

Tentou enlaçá-la, mas o corpo da jovem empinou-se, desafiador. Despertava nela o indómito orgulho dos Walleston. Se ele soubesse!

— Não se aproxime Glay. Não sou como as outras mulheres. Disse que me amava. E eu o amo de todo o coração. Nunca soube o que era amor até o dia em que o conheci. Precisa casar-se comigo, ouviu? Tem o dever de cumprir sua palavra!

Michael sentiu-se um pouco inquieto. Aquela jovem era na verdade bastante enérgica e seus gestos denotavam uma majestade que ele nunca pressentira. Refez-se e resolveu levar o assunto na brincadeira.

— Não me fale de coisas impossíveis, Matty. Posso sair daqui, levá-la em minha companhia ao redor do mundo, navegaremos juntos em meu iate, mas, quanto a casar-me, impossível, criatura! Somos diferentes. Sua esfera social...

— Que há com minha esfera social? De onde veio você? Quem o coroou?

Pretendia acrescentar muito mais. Sim, muitas coisas, todas aquelas que esmagariam a moral do homem que se julgava invulnerável, que pensava ter direito a humilhar as mulheres. Mas calou-se a tempo, compreendendo que sua vingança não podia realizar-se daquela maneira estúpida.

Ao mesmo tempo sentiu tal desespero, que seus olhos se encheram de lágrimas.

— Nunca pensei — acrescentou, soluçando — que fosse tão desumano. Não sou dessas mulheres que se podem cobrir de jóias. Os vestidos, jóias, viagens a volta do mundo, não me interessam. Procuro um coração nobre e julguei encontrá-lo em você! Como fui idiota!

— Matty, ouça!

— Cale-se! Nunca mais fale comigo. Algum dia, eu não sei quando, tenho a certeza de que reconhecerá à pobre Matty. Então renegará sua própria existência e, fique certo, voltarei para pisoteá-lo. Ouviu? Eu o pisotearei! Juro!

Dirigiu-se para a porta. O rosto de Michael não perdera a serenidade. Evidentemente os juramentos daquela jovenzinha causavam-lhe um imponente regozijo. Tudo aquilo era encenação para impressioná-lo. Idiota! Como se ele não conhecesse tão bem as mulheres!

Sem dúvida reconhecia a grande inteligência da jovem, mas fora disso nada mais.

— Tome. Se é que vai embora. Não quero que parta sem levar uma recordação de nosso amor. Este dinheiro servirá para a viagem, se é que pretende mesmo ir-se.

Uma víbora que a picasse não surtiria maior efeito.

Avançou para ele, apanhou as notas estendidas, amarrotou-as com mãos trêmulas e arrojou a bola de papel ao seu rosto com expressão feroz.

— Canalha! Julga-se que um sentimento tão puro possa ser pago com dinheiro, Fanny Walleston se encarregará de provar-lhe como está enganado.

Saiu como um relâmpago. Pela primeira vez na vida, o corpo do homem estremeceu dos pés à cabeça.

Fanny Walleston? Será que aquela jovem conhecia sua pupila? Procurou alcançá-la, mas era tarde, pois um táxi arrancava velozmente, quando ele finalmente assomou sua lívida figura à porta.

Que pretendera dizer aquela moça? Fanny Walleston!

Durante aquele dia, o nome de sua pupila não lhe saiu da cabeça. Repetiu-o constantemente... Lutava e se esforçava desesperadamente, perguntando-se o que pretendera insinuar aquela jovenzinha. E não foi apenas naquele dia, mas em todos os que se seguiram, até que, uma tarde, resolveu ir à França para conhecer a Duquesinha de Walleston.

Nunca soube por que sentira aquele repentino desejo. Compreendeu apenas que deveria ir e foi.

— Visita para você, Fanny — disse uma companheira, entrando no quarto da duquesinha.

Ela ergueu a cabeça, vivamente. Seus cabelos, agora inteiramente negros, seus olhos livres dos óculos. Sua silhueta elegante tornava a ser a da aristocrática senhorita de insuperável distinção.

— Visita? Será Ann?

— Não. Ann escreveu duas ou três vezes perguntando por você, mas naturalmente tais cartas não passaram pelas mãos da diretora. Isto é, escreveu, mas nunca veio ao colégio. Afinal de contas, ninguém vem de Nova Iorque à França por mero capricho.

Fanny levantou-se.

— Desde que regressara, nunca mais tornou a sorrir. Que aconteceu a você pelo mundo, Fanny?

— Tenho-lhe ódio — esclareceu, em tom firme.

Saiu do quarto, percorreu os longos corredores e internou-se no salão de visitas.

Nem um só músculo de seu rosto se contraiu ante a esbelta e máscula figura que estava à sua frente.

— Bom dia — cumprimentou, com indiferença.

Michael Glay deu meia volta e ficou muito quieto, contemplando o belo rosto daquela jovem, envergando o uniforme, denotando uma distinção muito semelhante à de seu amigo morto.

— Meu nome é Michael Glay — disse, lentamente, avançando para ela com as mãos estendidas.

— Encantada em conhecê-lo, padrinho — replicou a jovem, afavelmente, apertando as mãos dele.

Que esforço, Senhor! Que vontade de esbofeteá-lo, de dizer-lhe todo o meu ódio, como jamais odiara alguém!

Mas Fanny Walleston era uma mulher inteligente, e soube dissimular perfeitamente a desagradável impressão recebida.

— Falei com a superiora e ficamos de acordo para que regresse a Nova Iorque.

Fanny sorriu, sutilmente.

— Lamento muito, Michael, mas resolvi completar os dezoito anos no colégio e só o acompanharei em princípios do inverno.

A entrevista durou poucos minutos. Fanny nunca soube a impressão sentida por aquele homem ao enfrentar a colegial. Por seu lado, sentiu-se mais aborrecida que antes.

Odiou-o de todo coração e resolveu amadurecer seu plano de vingança. Ele seria aniquilado!

Quando Ann retornou ao colégio, no começo do inverno, quis saber tudo que acontecera à amiga, mas esta teve bastante cuidado em não lhe contar a verdade.

Em tão pouco tempo adquirira uma inacreditável experiência, extraída da própria dor experimentada.

— Você parece uma mulher madura — disse Ann, mais com pena que burla. — Que houve?

— Estive em casa de Michael Glay.

— O tempo todo?

— Voltei para o colégio há mês e meio — fez uma rápida transição e acrescentou: — Estranho apenas que você me tenha escrito para o colégio, uma vez que sabia perfeitamente onde eu me encontrava.

— Prometeu telefonar-me. Acrescentou que me visitaria sem que minha família percebesse e, como não cumpriu com sua palavra, resolvi saber onde se encontrava. Escrevi pra o colégio, mas ninguém respondeu. Fiquei atordoada, sem saber o que pensar ou dizer. Ferdinand tambem esteve um bocado inquieto.

— Mas por quê?

— Por que a conhece e temia que cometesse alguma tolice. Por outro lado, depois de sua partida, soube coisas terríveis a respeito de seu tutor. Nunca respeitou as mulheres.

Fanny sorriu, sutilmente. Depois, encolheu os ombros com indiferença, e resolvesse despistar Ann. Seu intento era que ela não viesse a sofrer pela existência que pretendia levar doravante. Queria Ann como uma irmã e receava que tanto ela como sua família não a deixassem retornar ao seu lar. E ela precisava disso... Sim, para sua própria tranqüilidade, era necessário. Uma tranqüilidade estranha, é verdade, mas ainda assim ela precisava viver ao lado desse homem, a fim de fazê-lo sofrer tanto como ela padecia agora.

— Nada notei de estranho em sua vida — disse Fanny com indiferença. — Achei Beatrice Frankau mais cruel que o próprio Michael Glay. — Fez uma pausa e continuou. — Ele veio aqui.

— Ele veio... ?

— Sim. Queria levar-me consigo, mas declarei que tinha a intenção de completar os dezoito anos no colégio. Acrescentei que depois o acompanharia com muito gosto.

— Sua serenidade me deixa um pouco assustada, Fanny — exclamou Ann, pesarosa. — Antigamente era mais sincera e... Como dizer? Mais otimista...

— Imaginação sua, querida.

— E conseguiu descobrir, Fanny, o grau de estima que Michael Glay nutre pela pupila? Imagino que era isso o que desejava saber, não? Caso contrário, não precisaria ir para sua casa, representando um papel que não lhe pertence...

— Meu querido padrinho — aqui uma ironia ao vivo, quase dura — jamais sequer mencionou Fanny Walleston. Ignoro se na realidade lhe dedica alguma estima, mas que, como diz você, jamais respeitou as mulheres, imagino que para ele Fanny represente apenas mais uma entre tantas.

— E pretende ir para sua casa?

— Não nos confundamos querida Ann. Não vou para sua casa, vou para a minha.

— De qualquer modo, Fanny, eu poderia falar com meu pai e ele, por sua vez, fazer um protesto em regra. Dada sua vida imoral, perderia a tutela sobre você.

Fanny moveu a cabeça repetida vezes, negando com energia.

— Preciso ir para minha casa, Ann. Agradeço muito seus excelentes propósitos, mas nada há a fazer a esse respeito. Não se esqueça de que sou uma Walleston acima de tudo e uma Walleston jamais se acovardou ante nada ou ninguém. Estou avisada e isso já me servirá de muito. Não vou para uma casa estranha, mas para minha própria casa, compreende? Minha casa!

 

Michael Glay estava ali, sentado em frente à mesa do gabinete, com os cotovelos apoiados sobre ela e o rosto entre as palmas abertas. Tinha uma carta ante os olhos. Uma carta de Fanny Walleston.

Os olhos pardos tornaram a pousar sobre as letras apertadas. Um suor frio banhava-lhe a fronte, enquanto suas mãos crispavam-se, desesperadas.

“Querido padrinho:

“Completei dezoito anos a alguns dias. Desejo regressar à minha casa e para isso é necessário colocá-lo a par de certas coisas. Primeiro desejo viver em minha casa — aquelas palavras estavam sublinhadas — completamente tranqüila, sem complicações de nenhuma espécie, sem intromissões... Sei que tem seus parentes, Lady Frankau e sua filha Beatrice em minha casa e, como deve compreender, isto não é muito agradável para mim, pelo contrário. Assim, caso essas senhoras não tenham recursos suficientes para viver, peço-lhe que lhes conceda uma pensão, a fim de que morem longe de mim. Posso amparar uma Walleston, mas nunca uma Frankau, que me é inteiramente desconhecida. Por outro lado, espero que os criados sejam os mesmos que serviram a meus pais, os Duques de Walleston... — aquelas palavras distilavam um orgulho indómito, assustando aquele homem que jamais se comovera com coisa alguma. — Caso falte algum, procure-o e readmita-o no lar de meus antepassados. Sempre respeitamos as tradições e desejo, exijo! que continuem sendo respeitadas.

“Por hora nada mais tenho á comunicar-lhes, exceto que não será necessário vir buscar-me, uma vez que viajarei para Nova Iorque em companhia de duas Irmãs. Não se esqueça de que desejo ser recebida com todas as honras, como receberia a própria duquesa de Walleston, já falecida.

Saudações,

“Fanny Walleston”

Os dedos longos, morenos, de unhas polidas, crisparam-se sobre a carta. Uma viva chispa de raiva apareceu nos olhos pardos.

O orgulho dos Walleston! Sim, estava ali naquela carta! Na jovem que lhe recordava a própria duquesa já falecida, da qual recebera algumas humilhações. Nem por isso a teria estimado menos, mas sua dignidade de homem viu-se rebaixada em inúmeras ocasiões e aquilo nunca poderia esquecer.

Foram humilhações sutis e talvez nem a própria duquesa tivesse percebido o fato. Ele era um simples subordinado e apesar de contar com toda a estima do duque, também dele recebera alguma reprimenda moral. Não obstante, a única mulher digna desse nome na opinião de Michael Glay era a filha de seu amigo, o duque. E mesmo quando reconhecia e exibia seu orgulho racial, continuava a estimá-la como se fosse sua própria filha.

Levantou-se. Pegou a carta e guardou-a no bolso. A ironia do destino viera proporcionar-lhe uma bela lição. Recebia ordens de uma mulher, quase uma menina, e não podia revoltar-se. Não podia! Quase sem dar por isso, recordou as palavras já diluídas pela distância: “Mas, se julga que um sentimento tão puro possa ser pago com dinheiro, logo Fanny Walleston se encarregará de provar-lhe como se engana”. Por quê? Por que agora evocava Matty?

Apertou as têmporas com as mãos e tornou a ver na imaginação o rostinho ideal daquela garota de cabelos avermelhados, olhos através de lentes esfumaçadas, suas longas mãos de unhas nacaradas, um corpo de deusa mitológica. Por quê? Por que a recordava, se em seu coração não ficara a menor lembrança, nada que lhe falasse daquela mulher? Fora mais uma entre outras, sim. Contudo, aquela não era como as outras, uma vez que lhe atirou ao rosto seu próprio dinheiro.

Não desejou continuar pensando. Ficaria louco e precisava fazer muita coisa antes da volta da aristocrática herdeira.

Saiu do gabinete e dirigiu-se para o salão onde sabia que encontraria suas primas.

Realmente. Beatrice achava-se recostada ao janelão e ao lado da lareira, afundada numa poltrona, avistou Lady Frankau.

— Bom dia, primas — cumprimentou, avançando e sentando-se em frente à prima.

— Bom dia, Michael.

Ele hesitou alguns segundos, mas depois ergueu a cabeça e disse, parecendo possuído por indescritível desinteresse:

— Ontem à noite recebi carta de minha pupila.

A volta de Beatrice, que até então pareceu ignorar o homem, foi bastante brusca.

Interrogou com os olhos, mas Michael não se dignou olhá-la.

— Dentro de uma semana estará instalada em sua casa — continuou calmamente. — Como é natural, vocês permanecem em minha casa, isto é, dela, por minha vontade, mas ignoro se a Duquesa de Walleston pensará da mesma maneira.

— Iremos embora, Michael — respondeu a dama, em voz velada. — Não quero que você sofra por nossa causa. Afinal de contas, já fez muito por mim. Pagou com juros, o bem que meu marido lhe fez outrora.

— Não é isso, prima. Convidando-a para cá, não tive intenção de pagar o bem feito por seu marido em outro tempo. Existem coisas que não se podem pagar e esta é uma delas. Por minha vontade, estaria feliz, tendo-a a meu lado. — Nem sequer olhou para Beatrice, vermelha de raiva e humilhação. — Mas por ora não sou dono de mim. Acima de todos nós está a Duquesa de Walleston e, apesar de poder fazer valer minha autoridade, uma vez que ela não atingiu a maioridade, nem penso nisso, pois jurei ante o cadáver de seu pai fazê-la feliz e proporcionar-lhe uma existência tranqüila, mesmo à custa de minha própria felicidade. Assim, resolvi que se transfiram para seu castelo na Escócia. Eu lhes darei uma esplêndida pensão e viverão tranqüilas enquanto... — agora fitou Beatrice e sorriu um tanto zombeteiro, de modo tão sutil que a dama a seu lado nem chegou a percebê-lo — sua filha não consiga casar-se com algum potentado.

Levantou-se, dando por finda a conversa. Sua arrogância frente à Beatrice era evidente, pois não a estimava em absoluto, justamente pelo orgulho ridículo, incompreendido, que aquela moça guardava no fundo do coração.

— Eu não irei! — gritou ela, fora de si. — Jamais viverei de esmolas!

— Beatrice! — reprovou a dama.

— Não lhe dê importância, prima. Sua filha precisa de uma lição. Não pretendo dar-lhe, mas não faltará quem o faça.

Tentou protestar, mas foi inútil, porque dois dias depois ambas as damas viajavam para a Escócia. Fanny Walleston nunca soube disso.

 

Os criados, sete ao todo, alinhavam-se na escadaria. Estavam todos rigorosamente uniformizados, sérios, circunspectos, esperando a chegada da Duquesa de Walleston.

Alguns daqueles empregados haviam conhecido os pais da jovem, outros eram novos no palácio, mas nem por isso deixavam de compreender o que significava a chegada da última duquesa a seu lar.

Vestindo um traje cinzento de corte impecável Michael Glay estava de pé no último degrau da escadaria, com os cabelos corretamente penteados, elegante e altivo.

Quando o automóvel apareceu na grande alameda do parque, desceu devagar, majestosamente, e quando Fanny desceu gentil, bonita, atraente e arrogante, todos, a começar por Michael Glay, inclinaram a cabeça numa discreta reverência.

Com o aspecto de grande dama que sabe perfeitamente o terreno onde pisa, Fanny apertou a mão estendida de seu tutor, olhou-o com indiferença e subiu em direção a seus queridos amigos.

Foi beijando os rostos dos emocionados criados um por um com simplicidade, como se fossem criaturas iguais a ela. Alguns choravam, outros continham as lágrimas com esforço, controlando-se para que elas não lhes viessem aos olhos. Carinhosa, gentilmente, apertou o corpo da mais velha e murmurou suavemente:

— Você criou mamãe, não é verdade?

A anciã assentiu, em silêncio. Tinha o rosto completamente apergaminhado. Era muito velha, tendo talvez uns oitenta anos ou mais, a julgar pelas rugas que lhe sulcavam as faces.

— Moro ali — disse, afinal estendendo o braço e assinalando uma casinha encravada no recanto mais afastado do parque.

Fanny virou-se e cravou os olhos em Michael. Aquela foi à primeira chicotada. Na opinião do tutor, ela poderia aguardar uma oportunidade em que estivessem; sozinhos para dizer aquilo. Pretenderia humilhá-lo? Talvez, posto que todos os criados; ouviram perfeitamente o que pronunciou:

— Quem lhe indicou aquele lugar, querida ama? Minha mãe nunca o consentiria. Voltará para o palácio, para junto de mim.

Bateu carinhosamente no ombro da velha e entrou no palácio, seguida por Michael Glay.

O salão em que entrara estava cheio de flores.

“Eu as colocava nesses vasos quando era Matty”, pensou, ironicamente.

Olhou para Glay.

— Pode estar certo, Michael, de que não fiquei nada satisfeita com o que aconteceu à ama. Ela sempre foi considerada como um membro da família Walleston. Lamento que seja obrigado a refazê-lo rapidamente.

— É o que farei em seguida.

— Agora mesmo.

Glay apertou os lábios. Aquela soberba o desconcertava a ponto de sentir-se diminuído e insignificante no mesmo ambiente em que reinara como dono absoluto durante dezoito anos.

— Suas primas já partiram? — perguntou.

— No mesmo dia em que recebi sua carta.

— Perfeitamente. E onde estão?

— Ignoro.

— Concedeu-lhes a pensão que mencionei em minha carta?

— Fiz-lo como ordenou. Depositarei no Banco todos os meses.

— Procure minha camareira e diga-lhe para acompanhar-me a meu quarto.

Ah! Se Brown pudesse ver seu amigo transformado em cordeirinho ante a soberba da Duquesa de Walleston!

Momentos depois Fanny tirava a máscara, na intimidade de seu quarto.

Que inaudito esforço significava para ela representar uma personalidade que não estava de acordo com seu caráter! Quanta dor ante aquele homem ao qual amava apesar de tudo e a quem odiava ao mesmo tempo!

Mas precisava seguir em frente. Sim, em frente, sem desfalecimentos. Se ele tentasse revoltar-se algum dia, lhe diria o que ninguém jamais tivera coragem de dizer. Tinha que humilhá-lo, pisar sua dignidade de homem e fazê-lo ver que sua vida de triunfador chegara ao fim. Se quisesse ir embora, que fosse! Ela deixaria de sofrer, recobraria a tranqüilidade de espírito e talvez algum dia viesse a querer outro homem de novo. Como era difícil tudo aquilo!

Claro está que ele jamais a deixaria só, mesmo que o humilhasse. Michael não possuía nenhum capital e, por outro lado, sabia que ele devia muitos favores a seu pai e jamais a deixaria de modo algum.

Atirou-se sobre o leito e, com as mãos por trás da nuca, fixou os olhos no teto.

Começava uma nova vida. Como decorreria? Que aconteceria entre ela e Michael?

Não aconteceu nada de anormal. Michael atendia matematicamente a seus assuntos como sempre. Depois, saía, voltando à hora das refeições — sempre as faziam juntos, no enorme salão — palestravam sobre coisas sem importância e mais tarde, lá pelas cinco, Fanny saía em seu automóvel vermelho e só regressava ao anoitecer.

Numa dessas tardes, Michael encontrava-se no café da Grande Avenida com seu amigo Brown, quando um carro vermelho parou a cem metros de onde estavam. Daquele minúsculo veículo desceu um homem ruivo, sardento, muito alto e de porte elegante. Este homem — Ferdinand Woods — estendeu a mão e a encantadora silhueta de Fanny Walleston desceu do carro.

A fronte de Michael contraiu-se, enquanto os dedos de seu amigo tamborilavam ritmicamente sobre a madeira da mesa.

— Que diz a isto, amigo Glay? Não pretende negar que Ferdinand Woods é um belo exemplar masculino, digno amigo seu.

— Nunca fomos amigos — replicou Glay em voz enrouquecida. — É um...

— Não o insulte, Glay, pois se insulta a si próprio. O que você sente é a prova de que qualquer outro pai de família o teria esmagado de bom grado quando você enredou-lhe a filha. Certamente Fanny Walleston não encontrará amizades recomendáveis na terra do dólar.

— Você está me deixando...

— Por favor, não se exalte. Já sei que o deixo nervoso, mas lembre-se de que já o fez o mesmo a outros, antes.

Riu fortemente, em tom divertido. Apreciava Glay de modo sincero, mas estava satisfeito vendo-o sofrer. Também ele fizera inúmeras mulheres sofrerem.

— Vou buscá-la. Estou em meu direito. Sou eu tutor e...

— Ora, ora — exclamou Brown, divertido. — Não faça tolices nem procure convencer-se quanto aos direitos que tem ou pode ter sobre essa jovenzinha. Não existem ascendentes sobre mulheres dessa classe, Glay. Essa moça é uma Walleston da cabeça aos pés e você sabe perfeitamente que caso se aproxime tentando afastá-la de Woods, lhe responderá francamente que vá brincar de papai em outro canto.

Sem responder, lívido de cólera, Glay levantou-se e avançou resolutamente para a mesa onde sua pupila estava em companhia do ruivo.

— Olá, querida — cumprimentou muito amável, obrigando Fanny a levantar a cabeça com vivacidade. Seus olhos incrivelmente brilhantes cravaram-se interrogativos em seu tutor. E, coisa estranha, pela primeira vez desde que a conhecia, Glay sentiu a impressão de que aquela não era a primeira vez que via esses olhos castanhos. Mas onde fora? Matty? Passou a mão pela fronte perlada de suor frio. Além do que, sentia-se sufocar, tinha um nó na garganta, impedindo-o de pronunciar a menor palavra. Os cabelos de Matty eram vermelhos, seu rosto, sua boca, seu porte... Diferente! Era uma loucura o que estava pensando. O cabelo de Fanny era negro como azeviche, disso não restava à menor dúvida. O outro, o de Matty... Era diferente, inteiramente diferente.

— Vinha convidá-la...

— Convidar-me? — soltou uma alegre gargalhada, divertida e cruel. O homem sentiu-se desarmado. Que humilhação! — Mas, querido, já estou com um amigo. Vou apresentá-los. Ferdinand Woods, meu tutor, Michael Glay.

Cumprimentaram-se. Ferdinand, indiferente. O outro, humilhado. Apertou os punhos. Ia dizer alguma coisa, insistir... Mas não pôde. Os olhos castanhos desafiavam-no friamente. Mas por quê?

Retirou-se. Despediu-se de seu amigo Brown, pisou a calçada com força e afastou-se em seu passo ágil e elástico. Contudo, era evidente que sua insegurança espiritual era cada vez maior. Nunca, em toda a sua vida, se sentira tão humilhado, tão diminuído. Aquela garota! E precisava aturar tudo, tudo! E, coisa estranha, em momento algum pensou em revoltar-se ante o irremediável.

Evidentemente, Michael Glay estava pagando seus próprios pecados. Nunca imaginou que um homem pudesse sofrer de tal maneira, apenas pelo fato de avistar uma mulher com Ferdinand Woods, uma continuação dele próprio. Era terrível e, contudo, não tinha argumentos a expor ante sua pupila, sob pena de confessar suas próprias culpas e fazer-lhe ver que um homem como Ferdinand Woods não era companhia adequada para uma mulher como ela.

Nessa noite, Fanny demorou a chegar em casa.

Michael andava de um lado para outro da varanda com o cachimbo preso nos lábios e o olhar cravado no parque, investigando por onde apareceria o carro vermelho. De repente os faróis iluminados rasgaram a escuridão.

Interrompeu suas caminhadas e quando a figura de Fanny apareceu na varanda, soltou um profundo suspiro de alívio.

— Olá, Michael — saudou-a, despreocupadamente.

Que trabalho insano, aparentar uma indiferença que não existia!

A jovem deixou-se cair numa poltrona de vime.

— Olá — respondeu ele com voz estranha.

A luz de uma lâmpada caía em cheio sobre a cabeça da moça, espargindo reflexos azulados pelas madeixas de azeviche. Um brilho esquisito iluminava as pupilas daquela maravilhosa mulher. Por um momento, apenas um momento, o homem fitou-a de modo diferente do que vinha usando até então. Não viu nela a sua pupila, a mocinha de dezoito anos, mas sim uma esplêndida mulher, sedutora, a mulher enfim, joguete de seus caprichos. Foi apenas por um momento, uma fração de segundo, pois ergueu os olhos, cravou-os no firmamento escuro e, ao tornar a fitá-la, viu somente Fanny. Tornou a suspirar. Por um minuto, o homem perverso despertara nele, mas Fanny, a menina filha do homem que o amparara em sua maior desventura, significava para si o mais sagrado do mundo, o mais são o mais espiritual.

Aproximou-se dela. Deixou-se cair sobre o solo a seus pés e elevou a cabeça para olhá-la através da escuridão.

Houve um silêncio. A mão de Fanny, quase sem que ela desse por isso, pousou no ombro másculo. Foi um gesto espontâneo, cheio de encantadora graça. Não retirou a mão, mas tornou a pressão mais forte e murmurou em voz baixa, inclinando a cabeça para ele:

— Por que sofre padrinho?

O homem, apanhado desprevenido, profundamente emocionado com a confiança que ela lhe dispensava, ergueu os olhos novamente para fitá-la.

— Não sofro Fanny. Juro.

— Não seja mentiroso, Glay. Por que sofre? Estará apaixonado por alguma mulher? Pretende casar-se?

— Casar-me? Como posso pensar nisso, tendo-a junto a mim? Jurei consagrar minha vida à sua felicidade, Fanny. Foi o que prometi a seu pai antes de morrer.

— Mas eu me casarei um dia — acrescentou ela, gravemente. Não pensava fazê-lo com mais ninguém além dele e jamais julgara que lhe pudesse guardar tão pouco rancor após aquilo. É que o amava realmente, como se ama apenas uma vez na vida. — Ficará só, envelhecerá, não terá filhos e a solidão torna-se insuportável para um homem quando atinge certa idade.

— Cale-se, não fale disso.

— Magoei-o?

— Inquieta-me.

Remexeu-se, intranqüilo. O inefável acento daquela mocinha começava a subjugá-lo ao extremo. Não desejava reconhecer até que ponto, porque receava a si mesmo. Era terrível atingir os trinta e cinco anos e... Não podia confessá-lo. Tinha vergonha.

A mão de Fanny escorregou até a dele. Também aquele gesto era natural, com uma comovente simplicidade.

Enquanto uma de suas mãos apertava docemente a de Fanny, a outra passou uma ou duas vezes pelo cabelo que o suor chegara a umedecer.

— Diga-me, Glay, nunca esteve apaixonado?

Por que a lembrança de Matty acudiu à mente do homem? Por quê? Por que viu suas mãozinhas em seu pescoço, seus olhos castanhos, sua pele fina, seu coração inocente?

Sem perceber, quase inconsciente, como se falasse para si mesmo, murmurou em voz enrouquecida:

— Apenas uma vez julguei estar. Mas não era verdade.

— Como se chamava?

— Matty?

O coração da jovem saltou dentro do peito e a mãozinha oculta entre os dedos dele tremeu imperceptivelmente.

— Conheceu alguma mocinha com esse nome, Fanny? — perguntou de repente, ansiosamente. — Tinha cabelos avermelhados, olhos parecidos com os seus. Era fina e distinta e eu... — fez uma pausa, cerrando as mandíbulas — eu brinquei com seu coração...

Fanny retirou a mão e deitou a cabeça para trás, deixando que os reflexos despedidos pela pequenina lâmpada iluminassem sutilmente as suaves feições de seu rosto sedutor.

Como era bonita! Que personalidade! Que elegância! Com uma mulher semelhante, ele se teria casado, seria feliz. Mas não a tinha encontrado em suas andanças pela vida e preferia o celibato a unir seu destino a uma mulher em quem não atingira o fundo do coração. O coração que agora se manifestava nos maravilhosos olhos da duquesa de Walleston.

— Conheci uma jovem com esse nome — murmurou Fanny de repente, em voz monótona. — Tinha cabelos avermelhados, usava óculos e tinha os olhos castanhos.

— Onde está ela? — perguntou o homem, levantando-se e cravando os olhos ansiosamente nos dela.

— Partira para a Suíça. Era uma jovem que eu estimava bastante. Seus pais morreram num terrível acidente, não tinha fortuna alguma e creio vagamente que resolveu trabalhar. Mais tarde, isto há uns três meses, encontrei-a em casa de uma amiga. Fazíamos uma excursão, acompanhadas pelas Irmãs. Não pude conversar direito com ela.

— Teria algo para dizer-lhe — murmurou Glay, denunciando uma indiferença que na verdade não existia.

— Sim. Julgo que nos falou a respeito de se ter apaixonado por um homem. Ao que parecia, era o dono da casa onde trabalhara. Um canalha, a julgar pelo que nos explicou Matty. Segundo deduzi, ele pretendeu zombar de seu amor. Foi algo terrível para Matty, uma jovem espiritual, pura e até muito ingênua.

— Não mencionou o nome desse homem?

Fanny levantou-se. Bocejou com indiferença, sacudiu a saia do vestido e ergueu os olhos para o firmamento.

— Não, não. E muito menos o perguntamos. Existem tantos homens ordinários em Nova Iorque! Mas que há com você? Ficou pálido! Interessa-se tanto por essa moça? Corra para ela e diga-lhe isso, apesar de não crer que a encontre. Por outro lado, minha amiguinha Matty apaixonou-se por esse canalha. Oh, mas é muito tarde, querido! Será que não comemos hoje?

Começou a andar para o interior. Pálido, com a fronte franzida e os lábios apertados, Glay seguiu-a a curta distância.

 

Estava enrodilhada num canto do sofá. Um rádio em cima de uma pequenina mesinha deixava ouvir uma música adocicada e sonolenta.

Fanny vestia uma saia escocesa, blusa branca esportiva e um casaco amarelo. Não colocara nenhum grampo no cabelo e, por causa disso, as mechas caíam-lhe a um lado do rosto. Sua figurinha graciosa tornava-se encantadoramente feminina, tão atraente, que transformaria qualquer pessoa, menos a Michael, o qual se esforçava, com êxito, em vê-la apenas como uma mocinha caprichosa, mas nunca como uma perfeita mulher.

— Que faz? — perguntou Glay, aparecendo na soleira.

— Sente-se a meu lado, Michael. Estou ouvindo esta música que nos entra pelos ouvidos de modo incrível. Não gosta dela? Deixa-me fascinada.

O homem não se sentou a seu lado, mas sim em frente, procurando uma poltrona.

Apenas uma luz estava acesa no salãozinho da duquesa e caía-lhe justamente sobre o rosto, iluminando suas feições com maior precisão.

“É muito bonita” pensou Glay, sem o menor subterfúgio.

— Gosto da música — admitiu com naturalidade.

— E sabe dançar?

— Que coisa está dizendo! Claro que sei dançar...

— Gostaria de receber algumas lições de dança.

— Encontrarei um professor.

— Um professor? Ufa! Não, por Deus! Você mesmo não podia fazê-lo?

— Eu?

Um leve estremecimento sacudiu o corpo do homem. Ensinar-lhe, ele? Justamente ele?

Mordeu a ponta do cigarro que fumava, soltou uma baforada de fumaça e seu rosto tornou-se difuso, por trás das espirais azuladas.

— Se você não quiser ensinar-me — acrescentou ela, indiferentemente — pedirei a meu amigo Ferdinand que o faça.

— Ferdinand Woods não é companhia adequada para você, Fanny. Não gosto desse tipo de homens. Você é uma garota inocente e Ferdinand um viciado. Talvez nem mesmo saiba apreciar sua ingenuidade — fez uma pausa que Fanny propositadamente evitou interromper, perguntando-se o que pretenderia seu tutor fazer. — Há vários dias desejava falar-lhe a esse respeito, querida. Quando á vi acompanhada assiduamente por Ferdinand Woods, recebi uma enorme desilusão.

— Desilusão?

Os olhinhos faceiros bailaram no rosto encantador. Parecia disposta a brincar com o tutor e, no entanto, apesar de ser este o seu intento, sofria desesperadamente porque não conseguia definir e muito menos julgar o que pensava ele, o que sentia o que desejava dela.

— Sim, desilusão. Quando seu pai morreu, Fanny, eu era um jovenzinho, na verdade, mas apesar disso ele estava certo de que eu saberia representar o papel de um homem de responsabilidade. Havia muito que os negócios de seu pai não mais tinham segredos para mim. Não havia outro Walleston em todo o mundo. Seu pai fora um solteirão impertinente e, ao casar-se com sua mãe, não restava mais nenhum Walleston além dele. Logo, não havia alternativa: ou deixá-la entregue a mãos estranhas, ou fazer-me jurar, eu, o mais chegado a ele espiritualmente, que jamais a abandonaria.

— Onde pretende parar, Michael?

— Achou estranho que eu pronunciasse a palavra desilusão e quero demonstrar-lhe o motivo pela qual usei essa palavra e não outra para expressar-me.

Esmagou o cigarro no cinzeiro e acrescentou pensativo:

— Antes de morrer, seu pai deixou-me um ordenado por herança e tenho vivido dele. A princípio, encerrei-me em seu castelo da Escócia, enquanto você era cuidada por uma ama de leite. Quando teve idade suficiente para ser internada em um colégio, eu mesmo a levei. Minha vida tomou outra direção. Deixei de ser o rapazinho e transformei-me num homem. Poderia ter-me casado, houve mulheres que me prenderam o suficiente, para que pensasse em unir sua vida à minha num lar delicioso. E quando isto acontecia, quero dizer, quando chegava a gostar um pouco mais de alguma mulher, procurava afastar-me dela, sabendo que nunca poderia me casar. Tinha um dever a cumprir e casado teria outros encargos.

Que coisa mais estranha! Com que então, Michael Glay aparecia como um novo homem aos olhos de Fanny? Não era o mesmo, não. Suas frases sinceras demonstravam à jovem que aquele homem tinha duas personalidades. Uma conhecida por todos e outra escondida para ela. Qual seria a verdadeira? Qual a sincera? A de agora, por acaso?

Os dentinhos de Fanny, muito brancos, simétricos e brilhantes, mordiam os lábios vermelhos. Não perdia palavra do que dizia Michael. Jamais alguma coisa a interessara tanto como a confissão desse homem.

— Sei que me guarda rancor por nunca tê-la ido buscar durante dez anos. Não podia Fanny. Você precisava do colégio. Devia ser uma verdadeira Walleston e, á meu lado não adquiria grandes conhecimentos. Por outro lado, que podia fazer um homem por uma menina? Enquanto permanecia no colégio, eu velava por você. Fazia-me para você, renunciava à felicidade, consagrava minha vida à sua. — Sorriu levemente e acrescentou pesaroso: — Talvez você não acredite e de certa forma, tem motivos para tanto. Não sou dotado de perfeições, reconheço, mas caso contrário, se nunca tivesse zombado de tantas mulheres e de mim próprio, hoje estaria casado, pois em meu íntimo foi o que sempre desejei: ser pai de família, ter uma mulher carinhosa e um lar meu, bem meu. Se o tivesse, se satisfizesse meus anseios, hoje não poderia estar á seu lado. Viveria comigo, é possível, mas haveria outras amizades de permeio, talvez separando nossas vidas e eu, Fanny, prometi a seu pai ser para você o anjo da guarda, o guia, o conselheiro, o camarada e amigo. Era preciso ter apenas uma preocupação e para tanto, em meio à minha aparente sociabilidade, não passo de um pobre homem. Renunciei ao amor, a tudo! Você é a primeira a penetrar em meu outro “eu”, e se escolhi a palavra desilusão é porque, se depois de oferecer-lhe toda minha vida, minha felicidade e tranqüilidade espiritual, você casar-se com um homem como Ferdinand Woods, que compensação terá tido minha renúncia? Não, Fanny, não pode ser Ferdinand, nem nenhum outro como ele. Deve unir sua vida a um homem que saiba estimá-la, que a adore que não leve um coração envenenado por outras paixões fáceis.

— Assusta-me, querido.

Não, não era verdade. Não estava assustada, mas somente impressionada.

— Vai prometer-me nunca mais sair com Woods — acrescentou, ele, em voz profunda e emocionada.

— Mas por quê? Ferdinand é o melhor amigo do mundo em minha opinião. É como você, Glay. A prova disso é que nunca me falou de amor. Estudei com sua irmã e ele me estima como se eu fosse a própria Ann. Foi por ele que soube que suas primas moravam aqui. Em minha casa...

Um pouco pálido Glay levantou-se. Era evidente seu descontentamento. Não sabia o que se passava, mas o fato é que se sentia desequilibrado, deslocado.

Acendeu outro cigarro e deixou o salãozinho.

Não desejou admiti-lo. Era coisa de loucos, insensatos.

Amá-la? Mas não pensara sempre, a vida inteira, que seu coração estava encouraçado sob a máscara de indiferença?

Contudo, depois de desdenhar tantos corações femininos encontrados à sua passagem, apaixonara-se por ela... Justamente ela!

Não quis admiti-lo. Esforçou-se e lutou, conseguindo afastar-se de tudo quanto dizia respeito à Fanny. Seu amor a manchava, Fanny precisava de um homem de corpo sadio e espírito puro, não de um ente desprezível como ele, que sempre vivera atropeladamente, sem freios, absorvendo todos os prazeres, decentes ou não que encontrava pela vida.

No fundo, nós podemos dizer que Michael Glay, com todo o seu ar de mundano, com todos os amores em seu livro de haver e com todo o seu passado de homem do mundo, não passava de um inocente. Um inocente!

Ela apareceu no jardim. Como a achou bonita e frágil! Usava um vestidinho azul sem mangas, decotado profundamente nas costas, deixando aparecer á carne tensa e amorenada. O cabelo negro estava atado à nuca com um laço. Não calçava meias, levando nos pés simples sandálias brancas sem salto.

Avançou para ele correndo. Parecia uma menina. Que insensato, pretender apoderar-se daquele corpo esplêndido e jovem, de seu coração puro e ingênuo!

Tal amor seria aprovado pelo Duque de Walleston?

“Ninguém saberia respeitá-la como você. Ninguém saberia amá-la sinceramente como você o faria. Ninguém a adoraria como você.”

Que ilusão!

— Bom dia, padrinho — gritou ela, pendurando-se á seu pescoço e beijando-o nas faces, como beijaria seu pai ou um irmão.

O homem estremeceu sentindo o calor de seus lábios na pele. Seus músculos ficaram rígidos, tensos. Ninguém soube jamais o imenso esforço que ele fez para dominar-se.

Era a primeira vez que ela tinha aquele arrebato de expansão. Notava-se que estava feliz e isso era evidente em seu carinho para com ele.

— Vou dar uma volta em meu carro. Não sei aonde irei, mas fique certo de que não me tomará a ver com Ferdinand.

A promessa era sincera, mesmo sabendo que em algum momento de sua vida jurara vingar o dano causado por aquele homem. Sabendo como era na realidade, amava-o ainda mais, muito mais, chegando a ponto de prometer-se não fazê-lo sofrer.

 

Soube-o logo depois.

Era tão fácil ler nos olhos pardos! Palavras? Promessas? Nada disso. Viu-lhe nos olhos, nos gestos, em todo ele que se consagrara a ela inteiramente.

Deixara de odiá-lo. Não era uma grande observadora, mas não precisava ter grandes conhecimentos de psicologia para perceber que Glay a amava. Como amara a tantas outras mulheres? A interrogação deixava-a profundamente inquieta. E, com o propósito de internar-se no coração masculino, resolveu representar um novo papel.

Já não o odiava; lamentava-o apenas, com uma compaixão sublime, de infinita doçura.

Quando uma mulher ama, principalmente em se tratando de uma jovenzinha de dezoito anos, as pequenas infidelidades são facilmente esquecidas. Por outro lado, após saber o motivo pelo qual continuava solteiro e que, além disso, desejaria ter seu próprio lar e filhos, esqueceu-se dos pequenos aborrecimentos. Contudo, precisava saber se o amor que Michael lhe dedicava em silêncio era igual ao que sentira por Matty. Como fazer para averiguar o fato?

Imaginava que Glay deveria reagir de alguma forma e, de acordo com essa reação, assim agiria ela. Mas não imaginara o fato de que Michael Glay amava pela primeira vez sinceramente e não teria nem mesmo coragem para reagir, já que a potência de seu próprio amor o privava da força que antes possuíra de sobra, frente àquelas mulheres que nunca amara.

— Desejo ser apresentada à sociedade, Michael — disse ela, nessa manhã, enquanto ambos tomavam um pouco de sol no terraço.

Glay estava de pé, frente à balaustrada com um cigarro entre os lábios, fitando a distância sem ver. Ela se balançava preguiçosamente, estendida numa rede.

Ao ouvi-la, Glay virou-se. Seus olhos intensamente pardos pareciam repletos de serenidade.

Fanny perguntou-se que enorme dose de força de vontade ele acumulava no peito.

— Organizarei uma festa quando você quiser. Desejaria que fosse aqui mesmo, em sua casa?

— Naturalmente.

— Escolha o dia, querida.

— No princípio da próxima semana. Por essa data, muitas de minhas amigas estarão aqui e preferiria tê-las junto a mim.

Nada mais falaram a respeito, Glay saiu e ela fez o mesmo, algumas horas depois.

Encontrou Ferdinand.

— Está se vendendo muito caro agora...

— Não sabia que meu tutor proibiu-me de sair com você?

Woods deixou escapar uma alegre gargalhada.

— O maroto pensa que todos são iguais a ele — murmurou em tom desdenhoso.

Aquele desdém magoou Fanny até o íntimo, mas não fez o menor comentário.

— Diga-me uma coisa, Fanny, quais os motivos alegados por seu querido protetor?

— Não é um homem sadio.

— Sadio? Nunca tive tanta saúde.

— Não me referia a isso. Sua moral...

— Ah, minha moral! Sabe que fico espantado com a previsão de seu querido tutor? Vejo-me obrigado a perguntar-lhe quando é que estive com a moral envenenada.

Fitou-a, dentro dos olhos e tornou a sorrir.

— Fanny — disse pensativamente, — se você não fosse uma jovem tão bonita e eu um homem tão incrivelmente feio, eu a cortejaria.

— Acredita que chegaria a conquistar-me?

— Talvez.

— Você é um amigo formidável, Woods. Reservarei seis danças para você no dia de minha apresentação à sociedade.

— Prometido?

— Minha palavra é uma só.

— É uma Walleston.

Levantou a mão e o carro vermelho afastou-se lentamente.

Não muito longe dali, um homem observava todos os movimentos dos dois. Quando o carro perdeu-se na larga rua, misturado aos milhares de veículos circulantes, Glay adiantou-se, como que por acaso, e colocou-se por trás de Ferdinand.

— Desde quando a ama? — perguntou a queima-roupa.

A volta de Ferdinand foi mais que rápida: brusca.

Fitou seu interlocutor, distendendo os lábios numa careta apenas perceptível.

— Estamos em igualdade de condições, Glay. Você tem a vantagem de ter melhor aparência que eu. Mas mulheres como Fanny Walleston não procuram a beleza física e sim a alma. Apesar de você julgar o contrário, tenho o espírito mais puro que o seu. Pelo menos não tornei nenhuma mulher infeliz. Gostei apenas das mulheres que gostavam de mim e jamais me aproximei das inocentes.

— É muito inteligente, mas todos nós cometemos erros em nossa vida e já cometi o último.

— Isso significa que se regenerou, hem? Todo o bom e mau que existe em você deu a ela, não?

— Exato.

— E julga que sairá vitorioso?

Michael conservava o cachimbo branco entre os dentes e seu desencanto era visível.

Na profundidade de seus olhos havia algo que deixou Woods desconcertado. Falava entre dentes, com voz monótona.

— Não o pretendo — disse sincero. — Chegou o momento de pagar pelos meus erros e a renúncia deve chegar ao perdão.

— Dela?

— Por que dela? Que sabe ela? Por acaso julga que uma criatura como Fanny pode penetrar com tanta facilidade no coração de um homem como eu? Refiro-me ao perdão divino.

— Muito místico! Mas eu, Glay, não creio em tais palavras. Sempre deu provas de ser um homem inteligente e persuasivo... Mas a mim, que sou raposa velha como você, não convence.

— Nem pretendo. Quero apenas que saiba que em hipótese alguma darei meu consentimento para que se case com ela.

Woods soltou uma nova gargalhada. Na verdade seu riso soou um pouco falso.

Naturalmente a herança do ducado de Walleston não lhe era de todo indiferente e, Glay bom observador, conseguiu captá-lo.

— Infelizmente não terá motivos para negar-se. Nem eu nem você seremos os maridos de Fanny, meu caro. Sua pupila precisa de um homem menos sábio que nós, menos boêmio, mais são de espírito — sorriu, parecendo zombar de si mesmo. — Mas esteja certo de que se ela me quisesse, não precisaria de seu consentimento. Quando desejo uma mulher e ela me corresponde, jamais olho para trás. Tudo o mais me é indiferente, exceto eu e ela.

Quando chegou em casa nessa noite, Fanny estava sentada no vestíbulo com um livro entre as mãos.

— Olá.

— Olá, Michael.

O homem acendeu o cachimbo e fumou vigorosamente, evitando olhar para ela.

Aproximou-se de uma flor e cheirou-a.

Fanny soltou uma gargalhada divertida.

— Ei, menino, não me vá dizer que se tornou romântico. Apenas os apaixonados o são e você, certamente, não deve estar pensando na ruiva Matty.

Michael virou-se de modo brusco. Era evidente seu mau humor. Conservava o cachimbo entre os dentes e Fanny notou que suas faces tremiam.

— Não fale dela.

— Deixou de amá-la?

— Aquilo pertence a um passado que já não existe nem pode existir.

Fanny levantou-se. Uma viva curiosidade transparecia em suas maravilhosas pupilas. Aproximou-se bastante de Glay, roçando-o com o corpo e seus cabelos negros atingiram o pescoço do homem.

— Será que ama alguma outra?

Glay ergueu o corpo, fitando-a profundamente.

— Não lhe permito intromissões, Fanny. Além do que — acrescentou, friamente — não tente faceirices comigo. Sou homem duro e quando quero, quero, mas quando não quero, não existe força humana que me faça querer — assinalou de tal modo, que ela sentiu-se ofendida.

Afastou-se prudentemente. Primeiro fitou-o com burla e depois disse intensamente, com frieza cortante:

— Julgou por acaso que eu pretendia tornar-me faceira para com você? Que prazer pode ter isso, com um homem velho como você? Não passa de um convencido, Michael Glay. E se julga que todas nós somos ingênuas como Matty...

— Basta! — gritou fora de si.

Fanny nunca o vira em tal atitude e desconfiou que Glay não ficasse aborrecido precisamente por suas palavras e sim por algo que escondia no mais recôndito de seu coração.

— Cale-se e nunca mais pronuncie o nome dessa jovem!

Então, o nome de Matty era um pesadelo para ele!

Amava Fanny, mas em suas noites de insônia era o rosto de Matty que aparecia para atormentá-lo, com seus olhos castanhos queimando-o a tal ponto que por mais de uma vez pulara do leito e assomara à janela, procurando aspirar um pouco de ar puro da noite, a fim de aliviar-se de semelhante obsessão.

Passou a mão pela fronte e suspirou, desanimado. Fanny teve pena dele. Pela primeira vez sentiu-o desarmado e mais que nunca o acreditou um nobre homem, vítima de seus próprios devaneios.

— Desculpe-me — pediu num fio de voz, adiantando-se e segurando a mão dele, cujos dedos apertou suavemente. — Não pretendia magoá-lo.

Ele retirou a mão e procurou adquirir uma serenidade que estava muito longe de sentir.

Afinal era um homem e ela uma esplêndida mulher. Era preciso remediar tais coisas.

Escreveria á Lady Frankau, pedindo-lhe para vir. Os dois sozinhos, assim, não podiam continuar, porque qualquer dia ele cometeria uma tolice.

Bateu com o cachimbo na mão e começou a enchê-lo novamente. Em seguida olhou com indiferença para Fanny, e declarou:

— Não se preocupe. Vamos comer alguma coisa.

Durante o resto da noite não tornou a vê-lo. Tinha ido para seu gabinete, onde escreveu uma longa carta.

 

A apresentação da Duquesa de Walleston à sociedade teve lugar na noite do Ano Novo.

Jamais festa alguma foi tão comentada nem tão brilhante.

Fanny exibia um maravilhoso vestido, o qual modelava sabiamente as formas de seu corpo escultural, velando discretamente o início do busto, apesar de despir as costas cor de marfim, acentuando a brevidade de sua cintura e a firmeza perfeita e juvenil de seus quadris.

Quanto mais a olhava, mais Michael compreendia que jamais teria a ventura de possuir aquele corpo esplêndido e aquela alma branca e espiritual de menina.

Quando o último convidado transpôs a porta do salão e o criado a fechou, todos passaram ao salão contíguo, onde seria servida uma ceia fria.

Durante aquela ceia, Michael Glay andou de um lado para outro, mas sempre sem parar de contemplar sua pupila, palestrando agora amigavelmente com um elegante rapaz de cabelos louros e porte elegantíssimo.

— Quem é esse rapaz? — perguntou a Brown.

Seu amigo contemplou-o entre sério e divertido.

— Está doendo?

— Não diga tolices. Gosto de escolher as amizades de Fanny...

— Sempre fomos amigos — murmurou o outro pensativamente. — Mesmo querendo, jamais nos conseguiríamos enganar mutuamente. Desde quando está realmente apaixonado?

Glay apertou os lábios. Evidentemente encontrava-se de muito mau humor nessa noite. Sentia raiva de tudo e de todos. Um surdo furor estremecia seu coração sempre que sentia os olhos dos homens pousados nas costas despidas de Fanny.

— O amor dos trinta e cinco anos — observou Brown filosoficamente — é o mais temível de todos! O dos vinte anos não passa de ilusão dos sentidos; o dos vinte e cinco é algo um pouco mais sério, mas sem muita importância; o dos trinta e cinco... Monopoliza tudo, absorve tudo, destrói tudo. Agora chegou ao ocaso de sua vida sem amar e sente realmente, lamenta haver destroçado o coração de muitas mulheres. Está bem precisando de um castigo desta classe, Glay...

Sem responder, o outro deu meia volta furioso com aquele que penetrara em seu verdadeiro “eu” e afastou-se furiosamente em direção a Fanny.

A ceia terminara e Fanny iniciou o baile dançando com o elegante rapaz de cabelos louros.

Era um homem realmente muito interessante. Teria uns trinta e três anos, talvez mais, a julgar pela séria profundidade de seus olhos verdes. Quem era? Quando conhecera sua pupila?

Todos dançavam. Uma orquestra formada por negros executava melodias modernas, aloucadas...

Ela também era uma deliciosa louca. Viu-a soltar-se de seu par, dançar com outro e voltar novamente para os mesmos braços.

O coração de Glay estava despedaçado. Jamais julgara que pudesse sofrer tanto e, contudo, sofria como um condenado.

Fanny caminhou até ele, fitando-o sorridente. A seu lado vinha o homem de cabelos louros.

— Não dança padrinho?

Por que a palavra “padrinho” pareceu a Glay repleta de ironia, quando em outras ocasiões sempre gostara de ouvi-la dos lábios da jovem? Padrinho! Era isso... Um estúpido padrinho que renunciara à felicidade por ela... Por ela, que talvez não o merecesse!

— Não, não danço — resmungou entre dentes.

— Está aborrecido, querido...

— Estou admirando como os outros se divertem.

Fanny segurou a mão de seu acompanhante e falou:

— Quero apresentar-lhe Lord Westerby. É meu tutor.

Glay apertou-lhe a mão, friamente, imaginando onde e quando já ouvira aquele título.

As apresentações de Fanny sempre eram feitas pela metade. Glay achava que sua pupila deveria explicar-lhe onde e quando conhecera aquele homem.

Examinou o rosto de Lord Westerby e de novo sentiu a sensação de que seu rosto não lhe era estranho.

Durante muitas horas vagueou como um sonâmbulo de um lado para outro. Onde já o tinha visto? Quando? Como?

Observou tudo daquele recanto. A seu lado havia um grupo de importantes personalidades com suas esposas. Ouviu distraidamente a conversa que tinha lugar entre eles.

Havia mais de três horas que Fanny dançava com Lord Westerby sem parar.

Afastou-se apenas para dançar duas vezes com Ferdinand Woods, mas logo o elegante cavalheiro retornou para o lado da jovem e desde então não mais se separaram.

Viu-os sair para o jardim, voltar e dançar de novo, muito entusiasmados. Não conseguia afastar da mente a idéia de que não era a primeira vez que via aquele homem.

Ele esforçava-se para recordar onde e quando, mas era inteiramente impossível consegui-lo.

De repente aguçou a atenção. Talvez aqueles senhores que conversavam junto a ele pudessem dar-lhe uma resposta.

— É muito bonita. Além disso, formam um par maravilhoso.

— Contudo, ouvi dizer que esse rapaz sofrera uma enorme desilusão e talvez nunca mais se case.

— Ignorava esse detalhe — comentou um dos senhores.

Glay fumou mais depressa. Uma desilusão amorosa? Quem teria sido sua noiva?

Julgou também recordar algo... Mas que era isso? Talvez se ligasse ao título de Westerby, pois na verdade devia ser antiquíssimo e por causa disso todos o conhecessem.

Podia ser isso. Contudo, tinha uma vaga idéia de que sabia de algo mais.

Continuou ouvindo:

— Sim, Joe. O rapaz sofreu muito. Soube que amava uma jovem de classe humilde e roubaram-na dele.

— A família?

— Não. Outro homem, com certeza, mais afortunado.

Outro homem? Quem teria sido?

Os convidados afastaram-se em direção ao salão de fumar e Glay afundou-se numa poltrona. Outro homem! Procurou forçar a memória, esperando recordar o que talvez acontecera há muito tempo. Não pôde. Sabia existir algo. Algo relacionado com aquele Lord Westerby, mas sua memória falhava.

Jamais homem algum sofrera tanto em tão pouco tempo como ele naqueles momentos.

Avistou-os quando entravam no improvisado bar e levantou-se.

Foi até eles e recostou-se ao lado de Fanny.

— Divertindo-se, querida?

Fanny contemplou-o sorridente. Seus olhos brilhavam e o rosto afogueado era maravilhoso, talvez devido à felicidade que sentia naquelas horas.

— Estou passando a mais deliciosa noite de minha vida — exclamou ela, com sinceridade.

Por cima do ombro de sua pupila, Glay cravou os olhos no rosto de Lord Westerby.

Seria ilusão? Juraria que as pupilas daquele homem o perfuravam com ódio. Mas por quê? Que lhe fizera?

Confuso com tantos pensamentos desconexos; pediu para dançar aquele “fox” com Fanny, agora tocado pela orquestra.

Fanny dirigiu-se para o salão, não sem antes avisar á Lord Westerby que em seguida voltaria para seu lado.

Emocionado como nunca, Glay apertou o frágil corpo de sua pupila entre os braços.

— Apaixonou-se por ele? — perguntou inclinando-se para ela, que era muito mais baixinha.

Fanny elevou os olhos e sorriu. Apaixonara-se por ele quando estava inteiramente absorvida por seu tutor? Não, nunca poderia amar outro homem além de Michael Glay, mas Robert era um homem encantador e a atraía sem saber por quê.

— Talvez — replicou feliz por estar muito apertada entre os braços daquele homem que deveria amar como a um pai, mas que adorava apenas como homem.

— É um rapaz encantador.

— Tenho a impressão de já tê-lo visto antes.

— Pois nada me disse.

— Hum... — ficou pensativo. — E não lhe falou sobre um desengano amoroso? — perguntou após uma pequena hesitação.

— Não. Homens sempre têm desilusões sentimentais na vida.

— Mas existem desilusões que nunca são esquecidas.

— Sei disso — replicou, lembrando-se de seu papel como Matty.

— Não vai dizer que fala por experiência própria.

— Poderia falar.

— Sim?

— Exatamente. Acha impossível?

— Incrível; inconcebível que uma jovem que hoje é apresentada pela primeira vez à sociedade possa ter tal experiência.

Fanny riu feliz para afugentar a vaga sensação de rancor que lastimava seu coração naquele momento.

— Robert falou-lhe que é uma moça muito bonita?

— Sim.

— Então foi sincero.

— Acha que isso é sinceridade? E você, a quantas mulheres já declarou que eram bonitas?

— A muitas, claro.

— Então querido, procure outros motivos para tachar um homem de sincero.

E como a música cessasse, regressou para o lado de Robert, à sua espera no bar.

Uma hora depois, o último convidado deixava a casa.

Refestelada numa poltrona, Fanny fumava um cigarro, bebendo um refresco entre uma tragada e outra. De pé à sua frente, fitando-a profundamente nos olhos, estava Glay.

Achava-se sério e até circunspecto. Era evidente que desejava dizer algo importante.

— Tenho a impressão de que Robert não a fará feliz.

Fanny ergueu a cabeça vivamente e contemplou seu interlocutor com olhar interrogante.

— Por quê? É um homem encantador.

Era sincera, Gostava de Robert o suficiente para afirmar com precisão que a seu lado nenhuma mulher poderia ser infeliz. Se ela nunca tivesse representado o papel de Matty, certamente estaria agora apaixonada por Robert com sinceridade.

Admito que seja encantador — disse Glay friamente. — O que não entendo é sobre os encantos relativos aos homens, assim, não posso confirmar suas palavras. Mas posso dizer com precisão que não gosto desse homem para você.

Fanny levantou-se e caminhou para ele. Colocou-se muito perto e cravou os olhos profundamente nos dele.

— Que motivos alega para afirmar isto? — perguntou fria.

Evidentemente, não gostava do fato de Glay encontrar defeitos em todos os homens que a acompanhavam. Certa que ele a amasse e, uma vez que isso era verdade, que amargasse seu fracasso intimamente; mas daí a encontrar defeitos em homens que talvez não os tivessem, havia muita distância.

Sabia que Glay a amava, mas não acreditava muito na sinceridade daquele amor, uma vez que Michael Glay amara inúmeras mulheres antes dela. Era um homem que zombara do amor e por isso mesmo adotava uma atitude cética em relação ao sentimento professado por outros homens, principalmente quando a escolhida para isso era ela.

No fundo, a moça sentiu um pouco de repugnância pelo tutor. Espantou-se de que semelhante coisa se passasse em seu coração, pois onde existe amor, nunca há lugar para a repugnância. Deixara de amá-lo?

Tornou a ocupar a poltrona e soltou a fumaça do cigarro com lentidão.

— Não tenho nenhum motivo concreto — replicou, após uma pequena vacilação. — Contudo, não acho que ele sirva para você.

— Mas por quê? Que homem então deseja para mim? — perguntou já irritada. E acrescentou com voz calculada e fria: — Acaso pretende escolher para mim um homem à sua semelhança? O mais provável é que jamais ame um homem que seja do seu gosto. Por outro lado, quem vai casar-se sou eu e tenho direito, ouça bem, tenho direito a escolher livremente o homem que deseje desde que ele corresponda a meu sentimento.

— Nunca permitirei que se case contra minha vontade.

Fanny levantou-se novamente, mas agora com violência. A Walleston despertava outra vez nela.

— Quem pensa que é? Pode ter grandes conhecimentos sobre as mulheres, uma vez que foi o paladino do sexo feminino desde o dia em que meu pai lhe concedeu uma pensão, um ordenado. — Riu em tom falso e mordaz e continuou, exaltando-se momentaneamente: — Então, dedicou-se a viver do prazer. Mas quanto aos homens, ignora tudo. Tirou-me Ferdinand, porque era como você e agora pretende separar-me de Robert... Qual será o pretexto agora, Michael Glay?

— Meu dever de tutor.

— Ainda não explicou o motivo pelo qual meu pai deixou-me em seu poder. No outro dia aludiu a algumas quantas tolices, talvez tentando impressionar-me, mas não o conseguiu. Não se dedicou a mim, uma vez que me encerrou num colégio onde permaneci mergulhada e atormentada, sem preocupar-se com minha felicidade. É humano que não se quisesse encarregar de uma criança, mas tinha uma prima idosa e esta prima possuía uma filha... Mas você... Ah! Precisava viver sua vida, e escarnecer das mulheres, conquistá-las e em seguida desdenhá-las sem dó nem piedade, sem um átomo de compaixão. E agora pretende ser um grande moralista!

À medida que falava, exaltava-se cada vez mais e mais, havendo um momento em que se viu obrigada a dizer tudo quanto ocultara até então no fundo do peito, durante meses e meses. Desconhecia-se, estranhando que não sentisse piedade por aquele homem e, à medida que falava, sentia uma extraordinária felicidade, enquanto o coração parecia esvaziar-se.

Cada palavra pronunciada era uma punhalada envolta em sangue para o homem que, trêmulo e pálido, continuava a ouvi-la sem querer mover os lábios apertados.

— Fez bem em calar-se — continuou Fanny fora de si, trêmula de raiva. Pois, apesar de contar algo referente a seus devaneios sentimentais, ocultou a parte mais importante.

— Basta! Deve-me obediência e respeito!

— Respeito? — perguntou ela, zombeteira. — E você, respeitou-me? É meu tutor e deveria ser zeloso em relação à sua honra. Sei disso, porque não faltou quem me falasse a respeito; nem mesmo respeitou as criadas, as criadas de sua casa. Sei também que despedaçou as ilusões de uma mocinha ingênua que jamais conhecera dos homens algo mais além do que vislumbrara através de outras mulheres. Que fez a Matty? Diga! Que fez dela? Respeitou seu amor quando ela o confessou em voz insegura? Diga? Que fez dela e de tantas outras?

O rosto de Glay estava lívido. Um espantoso furor reluzia, em suas pupilas, mas em meio àquele ódio havia um medo indescritível. Tinha a impressão de que a sombra de Matty aparecia novamente em sua vida, turvando seu caminho, sua felicidade.

— Quem lhe disse isso? — gritou, colhendo o pulso da jovem e retorcendo-o com toda a força. — Diga quem lhe disse isso? Onde conheceu Matty? E quem era essa Matty?

— Solte-me! — pediu Fanny, levantando o busto com indómito orgulho. — Solte-me! Sua proximidade causa-me asco. Foi um canalha e pagará suas culpas, queira ou não! Pobre de mim! — acrescentou, intensamente, apertando os dentes. — Cheguei a julgar que todos o caluniavam que me tinham enganado... Quer saber quem era Matty? Quer mesmo saber? Pois bem! Matty era eu!

Não caiu em toda a sua altura porque afinal de contas era um homem forte e sentia-se vexado ante a soberba jovem que agora se erguia à sua frente. Mas era visível que se sentia mais humilhado do que nunca e que todo o seu castelo de cartas viera abaixo estrepitosamente.

— Sim, era eu! — gritou Fanny, aspirando com força o ar que parecia faltar-lhe. — Era eu, que estava em casa de Ann passando as férias e desejei saber se era verdade o que se comentava á seu respeito. Como foi canalha para com uma pobre mocinha desamparada! Como o sinto mesquinho agora e como minhas amigas o acham desprezível!

O homem ainda não dissera uma palavra. Recordava...

“Matarei quem tentar zombar de Fanny Walleston. Eu lhe arrancarei o coração e pisotearei como a um animal.” E fora ele próprio quem fizera tal canalhice! Por que o Destino o cegara dessa forma? Por que tripudiava dele sem a menor compaixão?

Levantou a mão, passou-a algumas vezes pela fronte. Enormes gotas de suor perolavam-lhe a testa. Nunca se sentira tão insignificante, tão diminuído ao lado de uma mulher. Jamais homem algum sentira tanto remorso de seus passados prazeres como ele nesse momento. Jamais, jamais chegara a pensar que o fato de ter procurado uma momentânea felicidade nos braços das mulheres pudesse pesar tanto.

— Nunca houve uma criatura que o amasse como eu o amei naqueles dias — disse Fanny com intensidade, friamente, desesperadamente. — Jamais alguém o amou como eu e jamais uma mulher o desprezou tanto quanto eu o desprezei depois.

— Cale-se, por favor! — balbuciou Glay em voz monótona e impessoal. — Magoa-me de tal forma, com tanta intensidade como jamais imaginei.

— Padecerá muito, Glay. Deve pagar, por todos os seus pecados. Sei que agora me ama. Li em seus olhos, em seus gestos, em todo você. Mas chegou muito tarde esse amor. Se tivesse amado Matty, hoje estaria casado com ela, mas desprezou-a e uma Walleston nunca perdoa as humilhações.

Colheu a beira da saia e dirigiu-se para a porta. Ele não teve forças para falar nem para dizer-lhe que estivera louco, nem mesmo para desmentir o amor que ela adivinhara.

Ficou como uma estátua no meio do salão, os olhos fixos na noite e as mãos abandonadas ao longo do corpo.

Minutos depois saiu ao jardim, sentou-se num banco e ocultou a cabeça entre as mãos.

Da janela de seu quarto, Fanny contemplou a silhueta máscula por muito tempo.

Quando ele se levantou para sair e abandonou o jardim, a figurinha imóvel ainda continuava no mesmo lugar.

 

— Glay!

O homem levantou a cabeça lentamente.

Fanny estremeceu. Seria aquele o mesmo homem arrogante, o qual recebera os convidados na noite anterior? Uma ruga profunda sulcava-lhe a fronte e as comissuras de sua bem traçada boca formavam um traço que atravessava a metade do rosto. Os olhos pardos estavam injetados de sangue e sua expressão estava muito longe de ser otimista.

Havia uma luz opaca naquelas pupilas, sobressaindo em meio ao rosto coberto de mortal palidez.

Não o lamentou, mas sentiu uma indescritível atração por ele, uma atração talvez devida à própria compaixão que se esforçava por não reconhecer. Sentiu-o desarmado, vencido e perguntou-se se aquela experiência serviria para esmagar todo o seu orgulho de homem de sociedade.

— Fui um imbecil, Fanny — disse baixinho, com voz monótona. — Nunca imaginei que pudesse pagar minhas culpas de modo tão desapiedado.

Seria sincero? Parecia, pelo menos. Mas Fanny estava habituada a não acreditar nele, pois fora desumano demais para com ela e tantas outras mulheres.

Endireitando o busto, iniciou o caminho para a rua.

Não a reteve. Que poderia dizer-lhe? Ora! Deixara bem claro na noite anterior tudo que pensava a seu respeito.

Quando Fanny voltou, o banco estava vazio.

Perguntou por Glay e responderam-lhe que estava em seu gabinete. Foi para lá. Sem bater, empurrou a porta, entrou e adiantou-se para a mesa, por trás da qual estava Glay, imóvel.

— Resolvi mudar-me para meu castelo da Escócia — declarou a jovem com naturalidade, como se nada houvesse acontecido na noite anterior. — Já fiz os convites. Quero levar vários amigos comigo. Como terminou os estudos, Ann Woods também irá, bem como seu irmão, Ferdinand. Convide também seu amigo Brown e eu convidarei Robert.

Era uma ordem? Certamente que sim, mas nada mais pegaria Glay de surpresa.

Estava vencido e derrubado, derrotado com suas próprias armas. Agora não passava de um instrumento em mãos daquela mulherzinha e não podia revoltar-se, uma vez que, além de não ter coragem para tanto, faltava-lhe a moral, pisoteada por ela.

— Assim que você quiser, será tudo providenciado — respondeu em voz opaca.

— Pode ordenar que sua prima e a filha saiam imediatamente de lá.

Foi então que o homem levantou a cabeça vivamente. Quem dissera isso a ela? Será que aquela jovem era vidente?

— Não precisa olhar-me dessa maneira. Nunca fui nenhuma estúpida ou ignorante. Sei que você as colocou lá assim que deixaram esta casa. Considero Beatrice perversa demais para hospedá-la em meu lar. Apesar de sua mãe ser uma excelente pessoa, é mãe de Beatrice e isso basta.

— Você é dura, Fanny — exclamou ele, pensativamente.

— Dura? Nunca o fui, mas aprendi o que me ensinaram, ao receber minha experiência própria pela primeira vez. Também foram duros comigo, não importa quem, a vida, você, ela... Sei lá mais!

Fez meia volta. Glay levantou-se e alcançou-a. Suas mãos trêmulas pousaram nos ombros da jovem, mas ela não se voltou. Glay inclinou um pouco a cabeça para falar e seu hálito de fogo queimou o ouvido de Fanny.

— Quando descobriu que eu a amava? — perguntou em voz intensa.

— Ao regressar de minha viagem.

— E zombou do meu amor, não?

— Como você o fez comigo antes...

As mãos de Glay pressionaram mais. Fanny continuou imóvel.

— Foi à única mulher que não desprezei. Se continuasse a meu lado, teria pedido para casar-se comigo.

— Que está dizendo!...

— Juro...

Sem soltar-se, Fanny fez uma volta completa. As pedras maravilhosas de seus olhos claros afundaram-se nos dele.

— Jamais acreditarei Glay — murmurou com ar pensativo. — Mesmo que o quisesse, me esforçasse, mesmo que jurasse de joelhos a sua sinceridade. Aquela foi à primeira experiência que o mundo me deu e sempre a recordarei, sempre, sempre...

— Mas eu e você...

— Eu e você? Eu e você, Glay, caminharemos doravante por trilhas diferentes. Você se casará com outra mulher ou continuará solteiro. Eu... Ora! Assim que complete minha maioridade, viverei minha própria vida como quiser, mas independente de tudo e de todos.

— Contudo, declarou que me amava.

Fanny soltou-se. Recuou alguns passos e caminhou para a porta. Já na soleira, virou-se com um olhar vago.

— Amei-o como Matty. . . Então, não acreditava no que minhas amigas diziam a seu respeito. Amava-o inocentemente, mas com intensidade, a ponto de dar a vida pela sua... Depois... Ah! É fácil esquecer quando não há uma base sólida que firme o amor. Mais tarde, quando fui obrigada a acreditar nas amigas, pude esquecê-lo. Era preciso esquecer.

Abriu a porta e afastou-se.

Era sincera? Seria possível que um coração dos Walleston esquecesse com tamanha facilidade quando sempre tinham dado provas de firmeza em suas apreciações, constância em seus amores, solidez e segurança em sua honra?

Enquanto a viagem para a Escócia era organizada, Fanny saía assiduamente com Lord Westerby. Um dia, mais outro, sem interrupção. Chegava em casa, comia, aprontava-se e freqüentava os salões de festa justamente com Lord Westerby.

Por sua beleza, sua graça e elegância, logo Fanny Walleston tornou-se o centro de todas as festas e divertimentos. Parecia um pouco absorvida pela vida de sociedade. Era como se quisesse esquecer algo terrível que a inquietava e entristecia por intermédio das diversões. Todos os dias, junto àquele homem um pouco enigmático que a convidava a sair de noite, sozinhos os dois por lugares solitários.

Sendo uma jovem bastante inteligente, Fanny logo percebeu a inclinação que o jovem sentia em levá-la àqueles lugares que poderiam comprometê-la.

Que fim tinha em mente? Qual a sua intenção? Era o que se perguntava às vezes, sem conseguir uma resposta. Sabendo ou acreditando que seu nome ilustre era suficiente para livrá-la de qualquer maledicência, nossa amiga deixava-se conduzir brandamente pela torrente da vida, pouco se importando com as críticas que pouco a pouco levantava sua existência despreocupada junto àquele homem, cuja reputação não era das melhores.

Naturalmente, era de esperar que os comentários nada abonadores para ela um dia chegassem aos ouvidos de Glay, o qual decidira firmemente deixá-la viver sua vida sem tornar a dizer-lhe se estava certa ou errada. Que saísse, entrasse, sofresse qualquer desilusão. A própria vida se encarregaria de ensinar-lhe a ser discreta, moderada, julgar o bom e o mau...

Mas dessa vez as coisas foram longe demais.

Quer Fanny gostasse ou não, ele pretendia falar-lhe; haveria de dizer-lhe algumas coisas e se depois se rebelasse com seu habitual orgulho, agiria de outro modo.

Seis dias antes da viagem para a Escócia, Brown visitou-o em casa. Agora Glay pouco saía, exceto para dar algum passeio sozinho, acompanhado unicamente por seus pensamentos. Aparecia sempre pensativo e absorto, parecendo subjugado por alguma idéia fixa que o fizesse desdenhar seus antigos amigos.

As mulheres! Nunca sentira tanto desprezo por elas.

— Como Maomé não vai à montanha, a montanha irá a Maomé — disse Brown, penetrando no gabinete do amigo. — Que demônios há com você, homem? Abandonou-nos de vez?

— Sente-se, Brown. Veio dizer-me que finalmente resolveu acompanhar-nos à Escócia?

— Realmente. Irei com vocês, mas o motivo de minha visita não é bem este.

— Hum... Vá dizendo, então.

— Chegaram a meus ouvidos alguns comentários a respeito de sua pupila. Parece que Lord Westerby, apesar de seu título importante, não é amizade muito recomendável.

— E daí?

— Pois sua pupila — acrescentou Brown, com indiferença — ou está louca ou a ponto de ter um acesso de loucura. Segundo dizem, sua pupila vem jogando a dinheiro em lugares não muito decentes, quando sai à noite, e isso você deve saber bem melhor que eu... — Glay nada respondeu, — freqüentando determinado cabaré. Os comentários ainda não chegaram até você por estar muito chegado a ela e, naturalmente, Fanny julga-se resguardada da maledicência graças a seu nome importante. Mas, como não passa de uma criança, ignora que a reputação é adquirida facilmente, mas quando se perde, é muito difícil reconquistá-la.

Glay continuou imóvel, parecendo que nada lhe importava que tudo era indiferente.

— Glay, falou-me uma vez que saltaria por cima do cadáver do homem que tentasse zombar de sua pupila. Claro que, quando um cavalheiro ama uma mulher sinceramente, não a leva a esses lugares. O respeito é a base fundamental do amor e o nosso cavalheirinho não respeita Fanny.

— Disse-lhe isso realmente um dia, Brown. Mas quis a casualidade que o primeiro homem que tentou roubar a inocência de Fanny Walleston fosse justamente eu.

— Quê?...

Brown ficara de pé, horrorizado. Contemplou seu amigo com asco e declarou em tom rude:

— Você sempre foi um canalha, mas nunca pensei que sua degeneração chegasse a esse extremo.

Glay também ficou de pé. Puxou a cadeira, caminhou para o amigo e passou a mão trêmula em seu ombro.

— Fanny também usou o nome de Matty, Brown.

O rosto de Brown sofreu uma série de transformações; passou a língua pelos lábios ressequidos e exclamou em voz sufocada:

— Quando soube disso?

— No dia em que foi apresentada à sociedade. Falamos sobre o assunto que o trouxe aqui e ela, num momento de exaltação, soltou a verdade. Já lhe tinha dito que não gostava de Lord Westerby para seu marido ela enfureceu-se e disse-me muitas coisas cortantes. Desde então, jurei a mim mesmo deixá-la em liberdade para fazer o que quiser.

Brown tornou a sentar-se e passou a mão pela testa.

— Michael: o que está fazendo não é direito. Tem um dever a cumprir e essa jovenzinha está desequilibrada. Chame-a á ordem ou então segure esse estúpido pelo pescoço e converse com ele de homem para homem. Vim vê-lo porque Fanny neste momento está jogando um monte de dólares em companhia de Lord Westerby.

Uma rajada de calor rasgou os olhos de Michael Glay. Segurou o amigo por um braço e disse, em entonação indefinível:

— Quando penso que já fui como Lord Westerby! Que poderei dizer a esse homem? Que acha de sua resposta? Além disso, o título que leva evoca algo para mim, tem-o aqui dentro — e indicou a fronte banhada de suor. — Parece que o nome desse Robert me persegue como se tivesse representado um importantíssimo papel na vida desse homem. Tenho medo, Brown. Pela primeira vez conheci o verdadeiro amor e compreendo perfeitamente o que já sofreram por minha causa. Fui derrotado por minhas próprias armas e não posso queixar-me, já que ninguém ouviria meus lamentos.

— Vamos nós dois Glay. Sempre fui um grande amigo seu, apesar de nunca compreendê-lo tão bem como agora.

 

Os rostos apareciam difusos, envoltos nas espessas espirais de fumaça. Ouvia-se apenas a voz monótona do “croupier” retirando as posições infelizes e as fichas, assobiando de um lado para outro. O tapete verde estava rodeado de rostos ávidos.

Percebia-se algum suspiro e em seguida uma surda blasfêmia.

Glay parou na porta e uma golfada de calor asfixiante estremeceu seu corpo. Tinha os olhos brilhando desafiadoramente. Olhou para todos os lados e logo a avistou, sentada ante a mesa com um monte de fichas ao lado. Sentiu uma dor indescritível.

Adiantou-se, resoluto. Lord Westerby divisou-o incontinente. Brown caminhava atrás de Glay um pouco trêmulo e pálido, maldizendo o infame que levava uma mocinha inocente para semelhante antro.

— Fanny — disse Glay, tocando-a no ombro.

Ela ergueu a cabeça com vivacidade.

Foi alegria o que seus olhos expressaram? O coração de Glay saltou dentro do peito.

— Que houve Michael?

— Vamos embora daqui, querida. Este lugar não é próprio para você.

— Onde está Robert?

Robert colocou a mão em seu ombro. Foi um gesto íntimo, como se aquela mulher lhe pertencesse. Fanny levantou-se, justamente quando os olhares dos dois homens se encontraram, parecendo dois punhais.

— Peço-lhe que nos acompanhe por um momento — disse Glay, em tom firme.

Amparou Fanny por um braço e saíram do salão de jogos. Subiram ao carro em silêncio. Lord Westerby parecia muito tranqüilo e seguro de si mesmo. Fanny perguntou, de repente:

— Que houve Glay, para que nos viesse buscar?

— Logo saberá.

Tornou a ser o homem forte, seguro de si. Sabia ter muita vantagem sobre Lord Westerby e julgava sinceramente que Fanny logo perceberia a deslealdade daquele homem, assim que pronunciasse as primeiras palavras, denunciando as críticas que em todas as reuniões socais eram feitas às suas costas.

O carro parou em frente ao palácio dos Walleston e todos desceram. Lord Westerby conservava seu cigarro nos lábios e não parecia receoso; pelo contrário, aparentava uma atitude desafiadora e arrogante. Apenas seus olhos verdes reluziam profundos e enigmáticos.

No interior do gabinete, Glay respirou forte. Contemplou-os detidamente, primeiro seu amigo Brown que continuava pálido, passando para Fanny que o fitava interrogativamente, sem perder a inocência. Em seguida Robert.

— O senhor é um cavalheiro, não? — perguntou, friamente, dirigindo-se a Robert.

— Sempre me senti orgulhoso de mim mesmo.

— Perfeitamente. E acha que um homem honrado deve levar uma jovem inocente a uma casa de jogo?

— Que pretende Glay? — perguntou Fanny descontente.

— Você, Fanny — replicou Glay com extraordinária energia, cativando à jovem, — aqui não passa de simples espectadora. Quem me vai responder é este senhor e depois falarei com você, pois também tenho algo a dizer-lhe.

Robert tirou o cigarro da boca, amassou-o no cinzeiro e respondeu em voz calculada, fria, cortante, gelando o sangue nas veias de todos os presentes, principalmente Glay, o qual naquele momento foi obrigado a ouvir mais uma passagem terrível em sua vida de boêmio:

— Imagino que também o senhor se considere um cavalheiro, não? Pois muito bem. Vou contar-lhe uma história... — Sem parar de sorrir com indiferença, acrescentou, evitando que alguém o interrompesse: — Era uma vez, como nos contos de fadas, um homem muito elegante, o qual tinha muito orgulho de seu aristocrático nome. Esse homem, o homem de meu conto de fadas, um dia apaixonou-se profundamente por uma jovem de humilde condição. Era um belo amor — continuou agora menos irônico, numa voz transbordante de nostalgia. — Ela era uma mulher simples, sem grandes aspirações e quando o homem de meu conto de fadas declarou-lhe seu amor, considerou-se a mais venturosa mulher sobre a terra. Ah! Mas eis que a família do homem opunha-se terrivelmente a tal união e então apareceram as desavenças entre o casal de minha história. Na vida da jovem surgiu outro homem... Ela era modista, vivia de seu trabalho e julgava-se relativamente feliz antes de conhecer seu noivo. Quando firmaram relações entre si apenas, pois a família dele era contrária, a jovem sentiu-se imensamente venturosa. Contudo, o noivo, por motivos alheios à sua vontade e tentando persuadir melhor os pais, não podia encontrá-la todos os dias. E foi então que apareceu o segundo homem na vida da jovem de minha história.

Fez uma pausa, fitando Glay, fixamente, e sorriu com ódio.

— O noivo jamais amara mulher alguma além daquela, sabendo que cedo ou tarde se casaria com ela, fosse como fosse e custasse o que custasse. Contudo, o segundo homem foi minando o coração da jovem. Ingenuamente, ela acreditou mais nas promessas do segundo que nas do primeiro e aconteceu o que era de se prever. O segundo homem deixou-a de tal modo comprometida, que ela, em desespero, abandonou o noivo e partiu para a Escócia com Michael Glay...

Todos os rostos estavam tensos. O do próprio Glay estava banhado de um suor frio, os olhos semicerrados e a boca tão comprimida que parecia prestes a romper-se.

Muito pálida, quase lívida, Fanny contemplava ora um, ora outro. Na verdade, não sabia o que se passava em seu coração. Percebia apenas que as canalhices de Glay voltavam à tona, e nela, sua maldade vingativa, a qual, afinal de contas, era inocente e alheia a tudo, sendo sacrificada sem o merecer. Odiou Robert e sentiu uma fúria mortal contra Glay.

A voz monótona de Lord Westerby acrescentou:

— Algum tempo depois, Michael Glay voltou, mas não ela, a qual foi para a França e casou-se com um homem que não soube atingir seu coração. Como pode o senhor perguntar se sou um cavalheiro, uma vez que não tem sentimento de honra? Lamento por ela — disse, indicando Fanny. — Tentei fazer-lhe o que o senhor fez comigo, mas não pude porque eu, sim, sou um cavalheiro. O senhor... O senhor é um canalha! Infame!

Deu meia volta, parou em frente à Fanny e fitou-a longamente.

— Desculpe-me, Fanny. Estava tão ferido que tentei vingar em você o dano que esse homem me causara.

— Saia! — gritou ela com o braço estendido para a porta. — Vá embora! Nunca mais quero vê-lo. Nem a você, nem a ele nem a ninguém!

Desmoronou sobre uma poltrona e desatou em fortes e convulsivos soluços.

Glay estava tão pálido, tão descomposto, que Brown ofereceu-lhe uma cadeira para sentar-se.

Ocultou o rosto nas mãos e gemeu desesperadamente:

— Sempre, sempre o passado! Jamais poderei ser um homem normal, porque o passado ressurge e me atira contra a própria vida.

Abandonou o aposento.

Fanny e Brown ficaram sozinhos.

— Fanny!

— Não diga nada, Brown. Sou uma infeliz. Devia ter morrido no dia em que minha mãe se foi, em vez dela. Que faço aqui? Sou ridicularizada pelos homens. Sempre o serei por todos que se aproximarem de mim, porque nunca saberei seus projetos e, contudo, eles... Por que devo pagar pelo que ele fez? Que tenho eu a ver com esse homem? Será meu pai por acaso, meu tio, meu primo? É um estranho. Intrometeu-se em nossa vida como pôde...

— Cale-se, Fanny — pediu Brown, pousando a mão no ombro da jovem. — Ele foi um louco, na verdade, mas suas loucuras lhe vêm sendo muito caras. Foi um homem inconsciente, idiota, e se fosse mais inteligente, agiria de outra maneira. Hoje se tornou diferente, Fanny, eu asseguro sinceramente, eu que sempre fui seu amigo.

— De qualquer modo, me separarei dele, Brown. Irei para a Escócia com os amigos e o obrigarei a deixar-me com eles. Não posso perdoar estas coisas, sabe? — gritou, levantando a cabeça. — Eu o amava, Brown. Amei-o quando era Matty e hoje ainda o amo como outrora. Mais eu o desprezarei, compreende? Sim, porque nunca poderei acreditar em suas palavras. Pensei pobre de mim, que poderia vir a gostar de Lord Westerby, mas em vão. Quanto às minhas idas com ele a lugares pouco recomendáveis, a culpa toda não foi de Robert. Glay já não me chamava à atenção como antes, parecia pouco se importar quanto a minhas saídas com Robert. Assim desejei que ele abandonasse sua impassividade e abandonou. Mas à custa de quê?

— Não pense nisso. Vá à Escócia, como pretende, e esqueça-se de tudo. Glay é um bom homem. Foi um louco, é certo, mas sua loucura terminou e, se continua a amá-lo, como adivinho — acrescentou Brown suavemente — não pretenda esquecê-lo cometendo desatinos. Felizmente, tudo foi endireitado a tempo, mas não sei o que poderá acontecer se continuar por esse caminho.

Como Fanny nada respondesse, acariciou a cabeça inclinada com suavidade e sussurrou carinhoso:

— Michael foi vítima de seus próprios pecados. Quando estava perto de você chegar e conversamos a seu respeito, ele jurou que ninguém jamais conseguiria zombar de você. Contudo, o Destino irônico e contraditório dispôs para que fosse justamente você a vítima de seu desdém. O fato de que você encarnasse a própria Matty... Foi para ele espantoso. Posso jurar-lhe, Fanny e não sou homem que jure em vão, nunca olhando para outra mulher além da minha que seu tutor mudou por completo. O segundo golpe que hoje recebeu foi assestado no próprio coração e em momento bem propício. Vá até a Escócia, tal como pretende, mas não tente separar-se de seu tutor, porque não pode e não deve.

— Por que não devo? — perguntou elevando a cabeça, agora um pouco mais calma.

— Porque Michael Glay tem um dever a cumprir ao seu lado e nunca deverá afastá-lo de sua vida, uma vez que seu próprio pai o colocou em sua casa. Ouça Fanny, e nunca se esqueça do que lhe vou dizer: seu pai era um homem muito inteligente. Deu provas disso em inúmeras ocasiões e possuía uma dose de psicologia tão grande que ninguém jamais se atreveu a duvidar disso. Quando a deixou em poder de Michael, sabia perfeitamente como era seu tutor. Nessa época, seu pai encontrava-se na plenitude da vida e conhecia uma infinidade de homens: personalidades da nobreza, da política e das finanças e, no entanto, achou mais conveniente deixá-la em poder de Michael Glay. Admito que nosso comum amigo Michael fosse um libertino. Todos os homens o são, cedo ou tarde, antes ou depois de casados. Talvez Michael se tenha portado de modo infame, mas nunca o foi. Seu coração não sofreu a menor alteração. Vivia sua vida como eu vivo a minha. Tinha apenas um dever que era você e você estava longe, precisava desforrar-se para quando você chegasse. E eu sei que tão logo você ocupou o lugar que lhe pertencia ao lado dele, deixou as loucuras para trás. Foi um homem de honra, um perfeito cavalheiro. O que fez antes? Todos fazem o que podemos. Quanto à noiva de Lord Westerby, desiluda-se, pois jamais gostou de Robert. Quando ama de verdade, uma mulher nunca segue as palavras de outro homem. Não foi honrada. As responsabilidades de Glay? Ah! Não se esqueça de que era um homem, o qual tem direito e deve viver como melhor o deseje, para sua própria satisfação. É a mulher que se deve resguardar. E quando ama, ainda com maior motivo. A mulher que ama não é seduzida pelo dinheiro, nem viagens ou jóias deslumbrantes. Se amar sinceramente e é decente, nobre e honrada, tem o suficiente com a jóia personificada pelo coração do homem que a ama. Nem você seguiria outro homem por capricho, nem Ann ou minha mulher e qualquer outra que tenha um pouco de pureza dentro do corpo. A que nasce com maus instintos, sempre os deixa à mostra em alguma oportunidade, seja antes ou depois de casada. No caso de Robert, foi melhor que isso chegasse antes que depois. De certa forma, Robert deveria ser grato á seu tutor.

Calou-se. Fanny estava sentada e contemplava Brown, entre maravilhada e irônica.

Quando o homem parou de falar, Fanny soltou um suspiro e observou:

— Como você estima Glay!

— Quase fomos criados juntos. A mãe de Glay foi nossa lavadeira. Não julgue que seu tutor nasceu num palácio ou que seguiu alguma carreira universitária. Foi um homem rude que soube impor-se e granjeou a simpatia de todos os que conheceram. Torno a dizer que suas loucuras eram necessárias. E pode avaliar o valor de qualquer coisa, porque sabe o quanto custa e o que é.

— Não o entendi muito bem — exclamou Fanny com fina ironia — mas isso pouco importa. Pude observar que, em sua opinião, Michael Glay é um conjunto de perfeições.

— Ninguém está isento de defeitos. Todos nós pecamos alguma vez.

Deu um tapinha na face afogueada da jovem, pegou seu chapéu e dirigiu-se para a porta.

— Até outro dia, Fanny. Precisa vir conversar um dia com minha esposa. Tenho dois filhos encantadores.

Fanny levantou-se rapidamente e foi até ele.

— Por que Michael não se casou? Você é feliz, ele poderia ser também.

— O coração de Michael Glay estava reservado para você, Fanny. Foi à vida quem o decidiu e Deus Nosso Senhor ordenou para tranqüilidade de todos.

Fanny ainda ria quando Brown atravessou o parque. Conseguira seu objetivo, se é que tinha a intenção de fazê-la esquecer tão desagradável incidente.

Ela percorreu o gabinete e parou ante as gavetas da mesa. Abriu uma.

A seus olhos apareceu um belo poema. Quem o teria escrito? Michael, por acaso? Era um hino à mulher amada. E era ela, já que adivinhava ali os traços de seu rosto, seu corpo esbelto, seus encantos femininos...

Guardou-o carinhosamente num bolso e saiu do gabinete, fechando a porta, em seguida.

 

Aqueles dias foram terríveis para Fanny.

Michael Glay passava a maior parte do tempo fora de casa. Ainda mais: na hora das refeições telefonava e dava qualquer desculpa fútil para que a senhorita não o esperasse.

Não tornou a ver Lord Westerby. Soube que viajara para Nova Iorque e isso a alegrou. Aquilo já não existia. Fora fruto de sua obsessão espiritual e preferia saber distante o causador do incidente a encontrá-lo continuamente em festas e reuniões.

Sim, porque Fanny Walleston continuava levando sua vida normal, aparentemente como se nada tivesse acontecido. De suas lutas espirituais tinha conhecimento apenas Ann, a qual sempre foi muito discreta, amando Fanny como se fosse sua irmã. Era evidente que as críticas continuavam, mas menos fortes que a princípio. Um dia, finalmente, os de sua roda, tendo novamente Fanny no meio de seus iguais, observando como era cortejada pelos rapazes e notando apenas sua aparente felicidade, deixaram de criticar e ligar sua existência à de Lord Westerby.

Nessa tarde Fanny saiu a pé. Era uma tarde agradável e, ainda bem que um pouco fria, preferiu assim para refrescar a cabeça que lhe ardia terrivelmente.

Sem perceber, caminhou ao acaso. Vagueou por mais de duas horas, ao fim das quais levantou- a cabeça e sorriu.

Será que saíra de casa com intenção de visitar a família Brown? Claro que não, mas uma vez que estava em frente á casa deles, subiria para uma visita.

Uma criada uniformizada abriu-lhe a porta.

— Os Senhores Brown estão?

— Da parte de quem?

Não precisou responder, pois a esbelta silhueta do próprio Brown apontou no corredor.

— Mas, minha querida, quanta satisfação! Entre, Fanny, por favor. Chegou num ótimo momento. É o aniversário de minha mulher e organizamos uma festinha, algo puramente familiar, sabe? Entre, querida.

Gostaria mais que a família estivesse sozinha, mas uma vez que chegara em um momento inoportuno, não restava alternativa senão entrar, pois poderia ser considerada uma descortesia de sua parte. Assim, seguida por Brown, entrou num salão enfeitado. O ambiente não tão seleto como nos lugares que costumava freqüentar, mas alegrou-se ao ver a camaradagem existente à sua volta e sentiu profundamente a simpatia oferecida por todos ali reunidos.

Não conhecia ninguém, exceto... Michael Glay, afundado em uma poltrona, com um menino pulando em seus joelhos. Seria filho de Brown? Talvez.

Não a tinha visto ainda. Quando Brown pronunciou seu nome, Glay ergueu a cabeça vivamente. Estava mais pálido que de costume e seus olhos não brilhavam com a mesma intensidade de outros tempos. Era evidente o seu sofrimento e Fanny sentiu algo muito doce envolvê-la ao enviar-lhe um longo olhar que ele sustentou valentemente.

Após cumprimentar a esposa de Brown, adiantou-se para seu tutor e naturalmente sentou-se a seu lado.

Não ô via há muitos dias, porque vê-lo por um minuto apenas ao entrar em casa e enfiar-se no gabinete onde permanecia por horas e horas, era o mesmo que nada. Agora o tinha à sua frente e a jovem desfrutava o momento intensamente, imaginando que nada houvera que era Matty e que Glay continuava sendo seu homem, seu homem apaixonado...

— Pelo que vejo, gosta de crianças — disse, brincando distraidamente com os cabelos do menino.

— Sou seu padrinho.

— Ah, sim? Também é meu padrinho.

Haveria ironia naquelas frases veladas?

Observou os pares ali reunidos, num total de seis.

Simples, humildes e felizes... Também ela desejara aquela felicidade sem complicações...

Assistiu-os dançar ao som da vitrola e teve inveja. Por quê? Ela era uma mulher maravilhosa, com muito dinheiro, muitos elogios, caprichos... Tinha tudo o que apetecia e, contudo...

— Estranho que hoje não tenha ido buscar Ann. Este não é um lugar muito elegante para você.

Olhou-o. Foi um olhar agudo, penetrante, que o homem sustentou novamente com coragem.

— Sei amoldar-me a tudo.

— Sim. É uma moça muito adaptável.

— Se não fosse, não moraria a seu lado.

Falou com raiva. O menino descera dos joelhos dele e correra para a cozinha. Glay acendeu um cigarro e fumou ansiosamente.

— Quando pretende partir para a Escócia?

— Não pretendo ir nunca.

— Mas por quê? Os convites estão feitos.

— Não foram enviados.

— Quem lhe disse isso? — perguntou intrigado.

Fanny aproximou-se dele, fitando-o de bem perto.

Como estava bonita com aquele vestido claro sob o casaquinho de meia-estação!

Como era fresco seu rosto e que brilhantes os olhos castanhos!

— Encontrei-os em sua secretária no gabinete — riu lentamente, acrescentando divertida: — Também vi um poema... Pensei que tinha queimado a alma em amores enganosos, mas vejo que ainda lhe resta um pouco.

— De alma?

— Sim, de alma.

— Tenho-a intacta, Fanny — replicou Glay intensamente. — Nunca a misturei em meus casos sentimentais.

Ela se afastou um pouquinho, respirando com força.

— Pode dar-me um cigarro? — pediu, de repente.

— Não. Não gosto que você fume.

— Mas quem é você para impedi-lo?

— Eu?

Inclinou-se para ela e sorriu de uma forma muito esquisita. Fanny baixou a cabeça, ruborizada até a raiz dos cabelos.

— Quer dançar, Fanny? — perguntou Glay, após uma pequena hesitação.

Não se negou. Tirou o abrigo e levantou-se. Apertou-a entre os braços. Foi um abraço apertado, quase violento.

Dançaram em silêncio. Emocionada, contra a vontade, começou a pensar nele, apesar de se ter prometido o contrário... Era tão forte, tão absorvente, tão homem aquele Glay apaixonado que brincava de amar as mulheres!

— A mãe de Beatrice chega amanhã — disse ele, de repente, aproximando a boca ao ouvido da jovem, quase a roçá-lo. — Não fique alterada. Não me pergunte. Gosto de tê-la assim, bem pertinho de mim. Minha prima vem porque sou homem, você é mulher e não quero morar a seu lado.

— Vai deixar-me? Ficou louco!

— É preciso. Amanhã começo a trabalhar no escritório de Brown. É necessário Fanny. Você já é uma mulher e, apesar de continuar como seu tutor, precisamos viver separados... Eu a amo, mas você nunca acreditará em meu amor... Aconteceram muitas coisas e eu...

— Onde vai morar? — perguntou ela, cortante, sem parar de olhá-lo fixamente.

— Por enquanto, com Brown. Depois... Quem pode prever o futuro?

— Vai cometer uma loucura.

— Existem loucuras razoáveis e esta é uma delas. Loucura maior era meu amor por você e...

— Por que é loucura?

— Porque é. Porque você nunca será minha e também porque não mais pretendo chegar a você.

Sentaram-se de novo.

Uma garotinha de cabelos vermelhos aproximou-se de Fanny. A jovem tomou-a nos braços, afagando-a.

— Não gostaria de ter uma, igual?

— Não gosto de crianças ruivas — replicou Fanny com ironia. — Prefiro as morenas como eu.

— Você é muito engraçada.

Fanny nada respondeu. Elevou seus olhos para aqueles outros dois maravilhosos, cheios de paixão e perguntou baixinho:

— E conseguirá?

— O quê?

— Viver longe de mim.

— Fanny! Fanny!... — murmurou ele, desanimado. — Está brincando comigo e...

— Primeiro você brincou com outras mulheres.

— Deixe isso, por favor.

— Magoa, não?

Sem esperar resposta, levantou-se. Consultou seu relógio de pulso.

— Vou indo. São nove da noite.

— Vou acompanhá-la até em casa.

— Não fica lá?

— A partir de hoje, moro aqui, com Brown, sua esposa e filhos. Depois instalarei um apartamento, longe de todos.

— O homem das cavernas!

Despediu-se de todos e saiu, seguida por Glay.

Estavam dentro do elevador, quando uma sacudidela atirou Fanny nos braços de Glay. Foi apenas um momento, mas o contato foi suficiente para que os braços fortes aprisionassem o corpo delicado da moça.

— Não posso soltá-la, sabe? Desde hoje fico com você, Fanny — sussurrou, encostando seus lábios aos dela.

Fanny ficou imóvel. Já uma vez ele a tinha beijado quando encarnara o papel de Matty, mas nunca com tamanha impetuosidade, aquela doçura mescla de renúncia e felicidade. Séculos? Minutos apenas? Nunca chegou, a saber, pois só voltou a si quando o porteiro abriu a porta do elevador. Apenas deixou-se beijar e beijou talvez, pois estremecera inteiramente sob a pressão daqueles lábios poderosos que a tomavam para si sem pedir permissão, apenas porque a queriam e desejavam.

Envergonhada ao ver o porteiro, deslizou rapidamente, enquanto ele a seguia.

— Quer que chame um táxi!

— Você é...!

— Não agüentava mais, Fanny. Juro que não podia. Precisava disso, sabe? Nunca desejei tanto em minha vida como...

— Como a mim.

— Acertou Fanny.

Segurou-a pelo braço, escondeu os dedinhos finos entre os seus e começaram a andar pelas ruas solitárias.

— Perdoa-me?

— Quantas coisas não já lhe, perdoei?

— Ainda precisa perdoar-me tanto!

— Não fale agora. Quero caminhar em silêncio.

Estavam muito juntos. Um pouco trêmulos, os dedos de Glay brincavam com os dela.

Deixava-o. Que podia fazer?

— E pretende deixar-me? — perguntou ela quando pararam em frente ao jardim de sua casa, após encostar-se a uma árvore.

— É preciso.

— Por quê?

— Tem que ser Fanny. Não hoje, precisamente, mas amanhã, depois, um dia qualquer; começariam a murmurar e então...

— Casaríamos.

— Casar-se comigo? Ser minha, exclusivamente minha, Fanny? Sabe o que está dizendo?

— Por que não? À força, se fosse obrigada...

— Assim nada quero.

— Orgulhoso Glay?

Prendeu-a pela cintura e apertou-a contra o peito.

— Você é cruel, Fanny. Brinquei com muitas mulheres, é verdade, mas você... Mas não pretendo brincar com você.

— Então por que faz isto?

— Isto? Mas é delicioso!

Não resistiu mais. Ela o desafiava, portanto, que sofresse as conseqüências. Beijou-a apertadamente, com desespero.

— Vou acabar louco — exclamou em voz sufocada, sem soltá-la. — Se soubesse como sofro...

— Sofrer, você? Se não tem coração!

— E que é isto então?

— Apenas um capricho. Logo passará.

Arrancou-se de seus braços e correu para o vestíbulo.

Ele ficou lá, muito tempo, em pé.

Depois começou a andar lentamente, com a fronte franzida e os lábios apertados.

Encontrou-há alguns dias mais tarde numa loja. Sua prima e Fanny estavam à porta. A primeira, sentada no carro e a segunda com alguns embrulhos nos braços, caminhando em direção ao veículo.

— Que coincidência! — exclamou, aproximando-se.

Fanny ruborizou-se até a raiz dos cabelos. Recordaria por acaso seus beijos?

— Estamos fazendo compras.

— Como está Beatrice?

— Casou-se, Glay. É feliz. A seu modo, mas feliz.

— Quantos milhões têm seu esposo, prima?

— Muitos.

— Então acertou: é muito feliz...

A dama sorriu tristemente.

Fanny não tomara parte na conversa. Colocava lentamente os pacotes no carro. Em seguida sentou-se ao volante e levantou a mão.

— Não tenho nada a fazer, Fanny. Permite que as acompanhe?

— Bem — replicou ela, sem olhá-lo.

Algumas horas mais tarde estavam sentados num banco do jardim. Fanny tinha um livro nas mãos e Glay a contemplava em silêncio.

— Este livro significa que minha companhia está sobrando.

— Pode interpretá-lo como quiser.

— Não pretendo interpretar de modo algum, Fanny. Não sabe nem o que lhe digo... Não pareço seu tutor nem você minha pupila.

— Considera-se velho demais?

— Ou porque me ache demasiado jovem.

Fanny sorriu. Seu riso era forte, forte demais para ser sincero.

— Tem um riso de criança — disse ele, baixinho, inclinando-se até roçá-la com a fronte. — Outro dia achei-a mais mulher. — Em seguida, sem transição, continuou: — Estou feliz, Fanny. Trabalho todas as manhãs e tenho as tardes livres para cuidar de seus assuntos. Às vezes julgo ser outro homem, que nasci novamente. Até meu coração, que nunca sofreu por coisa alguma, agora sente por tudo, tudo ô deixa sobressaltado — riu suavemente e pegou uma das mãos de Fanny, a qual nada fez para retirá-la. — Parece que o mundo é meu, que nasci há vinte anos...

— E tudo isso por quê? — perguntou ela, divertida.

— Talvez porque adivinhe que chegarei a conquistá-la.

Levantou a mãozinha delicada, apertando-a contra os lábios. Sem deixar de fitá-la intensamente, beijou um por um os dedinhos rosados.

— Deixe-me, por favor. Você é...

— Ousado?

— Pretencioso.

E ficou de pé. Sem deixar de olhá-lo, declarou:

— É muito tarde, Glay. Vou retirar-me.

E assim passaram os dias, cada vez sentindo-se mais atraída por ele. Subjugava-a aquele olhar suave, acompanhado por suas palavras persuasivas. Além disso havia algo, algo que não conseguia definir, no íntimo daquele homem. Alma? Coração? Não sabia, reconhecia apenas que alguma coisa misteriosa emanava de seus olhos e a cegava.

Dançaram juntos num salão de chá. Passearam de carro, ele ao volante, ela com a cabeça apoiada no ombro forte. Beijou-a na boca ali, os dois sozinhos na penumbra da porta da casa de Brown... Apertou-a entre os braços apaixonadamente e disse loucuras a seu ouvido... Tinha-a conquistado na verdade, sutilmente, silenciosamente, sem imposições de ordem alguma.

Mas uma tarde foi visitar Ann e esta lhe disse que vira seu tutor acompanhando uma bela mulher.

Foi uma punhalada recebida em cheio no coração esperançado, posto que estava a ponto de esquecer todas as paixões fáceis de Glay. Agora novamente surgia outra mulher na vida dele!

Nunca se tinham confessado um ao outro, mas sabiam a forma como se amavam.

Justamente por amá-la, Glay saíra de sua própria casa. Caso contrário, nunca a teria deixado sozinha no palácio, em companhia de sua prima. Ela amava Glay a tal ponto que aquela atitude assumiu uma enormidade indescritível a seus olhos e, contudo, agora Ann dizia que o vira com outra mulher, quando apenas ela deveria existir na vida dele.

— Está enganada, Ann.

— Enganada? Não o creio, Fanny. Estou certa de que era um homem como Michael Glay.

Ainda desconhecia o que havia entre eles. Fanny nunca o dissera, imaginando ser tolice, mas não havia jeito.

Saiu da casa de Ann desanimada e triste.

Esquecer Glay... Esquecer? Pobre coitada! Como se pudesse arrancar aquele amor do coração! Tinha raízes tão fundas!...

Contudo, sentiu-se tão desiludida que jurou a si mesma afastar-se dele.

Ela que acreditava na fidelidade de Glay como em si mesma! E de repente aquilo foi o mesmo que atirar-lhe um jarro de água fria.

Quando encontrou Glay na manhã seguinte, um domingo em que os dois assistiram à missa na mesma igreja, ele estendeu a mão para que ela molhasse os dedos em água benta... Não o olhou. Com a intimidade produzida pelo amor, ia pegar-lhe o braço como sempre fazia.

— Solte-me!

— Que há?

— Preciso falar-lhe — replicou ela, indiferentemente. — Vamos tomar um aperitivo. Aqui mesmo — indicou um edifício ali perto.

— Glay — começou Fanny calculadamente. — Precisamos deixar de nos ver.

— Deixar de nos ver? Por quê?

— Estou a fazê-lo acalentar esperanças e é ridículo, compreende? Pois mais tarde você...

— Que tolices está dizendo? Acha que vou dar importância? Se minha vida de boêmio serviu para algo, foi para conhecer profunda e sabiamente o coração das mulheres. Você me ama e é inútil tentar negá-lo, porque de nada servirá. Amou-me desde o primeiro instante, ama-me hoje e amará enquanto viver, porque é uma Walleston e eles sempre provaram ser de espírito firme e reto.

— Não sei para quê, Clay.

O homem inclinou-se para frente por cima da mesa. Seus olhos cravaram-se na face impenetrável da jovem, talvez tentando descobrir naqueles olhos castanhos o motivo que a levara a dizer aquelas palavras absurdas. Mas nada conseguiu, uma vez que as pupilas femininas estavam serenas, imperscrutáveis, envoltas numa densa frieza.

— Você é incompreensível — exclamou Glay endireitando-se e fitando-a com severidade. — Brincou com meu coração como se em vez disso ele fosse uma bola. Não entendo sua intenção, Fanny, mas fique certa de que se arrependerá da decisão tomada. Também eu sou um homem firme e, apesar de não ter nascido em berço de ouro e não ter grandes professores na infância, pois me fiz por mim próprio, tenho meu orgulho que nunca foi pisoteado por nenhuma mulher. Não pense que vou implorar a você. Tenho trinta e cinco anos; você a meu lado é uma criança, mas justamente por isso teria sua felicidade assegurada. Entendemo-nos profundamente, antes de você abrir a boca já sei o que vai dizer, não ignoro o que pensa e, se neste momento é impossível para mim descobrir o que existe sob suas ridículas palavras, algum dia conseguirei decifrá-las e saber o motivo pelo qual me repele e, então... Quem sabe! Talvez já seja tarde demais.

— Não há motivos — replicou ela com decisão, aparentando uma calma muito longe de sentir, uma vez que Ann a deixara praticamente desequilibrada com o que dissera. — Apenas meu amor por você deixou de existir.

— Você é volúvel, então. Flertou comigo, apenas...

— Isso, não, pode estar certo.

Glay soltou uma gargalhada bronca, terrível.

Levantou-se decididamente, fitando-a de cima a baixo.

— Neste momento, Fanny, eu não a vejo como é. Minha ascendência de tutor sobre você desapareceu, pois a meus olhos aparece como outra mulher qualquer. Talvez não acredite — acrescentou, fingindo uma indiferença que não sentia — mas a verdade é que em seu leito de morte, seu pai pronunciou estas palavras para mim: “Se soubesse que minha filha Fanny algum dia se apaixonasse por você e a tornasse sua esposa, morreria tranqüilo sem nenhum remorso ou preocupação”. Talvez eu tenha desprezado as mulheres devido a essa passagem de minha vida, ocultando meus verdadeiros anseios sob a capa da falsidade que tão infeliz me tornou ao lado de outras mulheres. De todas essas que conheci, e que de certa forma foram infelizes por minha causa, encontrei muitas às quais poderia amar entranhadamente, mas afastei-me delas deliberadamente, sabendo que se continuasse a seu lado, meu coração ficaria preso nas sedutoras redes de seus braços de mulher. Reservava-me para você? Nunca me disse isso em voz alta e muito menos pensei. Era com certeza uma decisão profunda, cravada no fundo de meu coração... — Encolheu os ombros e acrescentou, sem por isso parar de sorrir com indiferença, a qual magoava profundamente o coração da jovem. — Tanto faz Fanny. Você pode casar-se com outro. Eu farei o mesmo com alguma mulher que me compreenda e me ame sinceramente. A vida do homem é complexa demais e compreendi, se bem que tarde demais, que devo casar-me para ser feliz, deixando meu coração alcançar outro coração feminino.

Levantou a mão. Fez menção de afastar-se, mas voltou de novo para seu lado e declarou com acento profundo e neutro:

— Adeus, Fanny. É provável que não nos tornemos a ver possivelmente nunca mais nos encontraremos. Continuarei cuidando de seus negócios, mas os de seu coração deixaram de interessar-me.

Afastou-se resolutamente. Sua imponente figura avançava pela calçada, erguida, orgulhosa, majestática e esbelta. Como era atraente, e como Fanny julgou-se infeliz!

Entretanto, não fez o menor gesto para detê-lo. Tinha um maravilhoso dom da palavra, mas Ann o avistara com outra mulher e isso Fanny nunca poderia perdoar.

Jamais!

 

Estava com Ferdinand num salão de chá.

Todos dançavam alegremente na pista reluzente. Sentaram-se a uma mesa, eles dois.

Ferdinand observava-a atentamente, imaginando o que haveria no íntimo daquela bela moça para que seus olhos estivessem empanados por uma sombra de profunda melancolia.

— Você está apaixonada — disse ele, de repente.

Fanny levantou a cabeça. Com o movimento, suas pupilas encontraram-se violentamente com a arrogante silhueta de seu tutor. Estava sozinho, em pé, na soleira da porta, com um olhar interrogante e um pouco divertido, parecendo dizer: “Escolheu um belo par!”

Apertou os lábios e virou-se para Ferdinand, o qual seguira a direção de seus olhos.

Sorriu.

— Não precisa dizer-me quem é o centro de seu amor, porque acho que sei.

— Sabe? Que sabe você se não existe amor nenhum?

— Dizem que amor e dinheiro não podem ficar escondidos. É um ditado espanhol, com profundo acento de verdade.

— Você também se tornou vidente?

— Salta aos olhos, querida Fanny. Desde quando ama Michael Glay?

O corpo da jovem estremeceu a contragosto, enquanto suas pupilas faiscavam levemente. A boca, a bem desenhada boca que beijara apenas Glay, apertava-se fortemente em ira mal contida.

— Desde sempre — disse, com força, sufocada. — Desde que tenho o uso da razão, porque amei nele o mistério em que se envolvia, amei até seus próprios casos sentimentais e depois também ele, assim que o vi. Acho que o adivinhei quando era pequena e minhas companheiras saíam com a família, enquanto eu permanecia encerrada no colégio. — Apertou os lábios novamente, sacudiu a cabeça e declarou com decisão: — Hei de esquecê-lo. Nunca serei sua esposa. — Tomou a olhar para a porta. Ele desapareceu.

— Quando alguém ama como você amou — disse Ferdinand, profundamente, — não é possível esquecer mesmo que se queira minha querida. Seu amor por Glay é muito antigo e não há força humana que o possa sufocar. Se não se casar com ele, tal como diz, será uma criatura infeliz, navegando à deriva por um mar desconhecido e cruel. Ouça o que lhe digo, eu que sou homem e tenho muito mais experiência. Veja — acrescentou, após pequena pausa: — quando eu mal tinha vinte anos e conhecia apenas o lado bom da vida, apaixonei-me profunda e ardorosamente por uma linda jovem. Ainda não terminara meu curso e desejava casar-me com ela, mas minha família foi inteiramente contrária às minhas aspirações. Contudo, dizem que tantas vezes o cântaro vai à fonte que um dia se quebra e, assim, também minha família quebrou minha decisão de contrair matrimônio. Dolorido, magoado, inteiramente desesperado, continuei estudando isto é, fingindo que estudava, porque nunca cheguei a completar nenhuma carreira. Conheci outras mulheres às quais não cheguei a amar, mas apenas admirar. Amei-as com os sentidos, gozando uma felicidade passageira a seu lado, desprezei algumas... Ora! Que intenções me moviam? Esquecer meu primeiro amor? Pode ser, mas isso nunca foi possível. Tornei-me autoritário, mau, acho que até meu coração deixou de sentir com exatidão. Não tornei a lamentar ninguém, porque ninguém tinha pena de mim. Um dia, algum tempo depois disso, soube que ela se tinha casado... Daquele momento em diante, rolei montanha abaixo, até espatifar-me. Ninguém conseguiu deter-me ainda e continuo amando a mesma mulher que hoje tem filhos, um lar feliz... Quase enlouqueço, à idéia de que tornou feliz outro homem mais resoluto que eu. Quem pensaria isso de Ferdinand Woods? Ninguém, não é mesmo? Pois aqui estou, minha cara. Zombo de mim mesmo aparentemente, mas no fundo sou um desiludido, um cético. Se eu, que sou homem, não consegui esquecer e de um modo geral somos mais propensos a isso como o poderá você, que é mulher? Desiluda-se, Fanny. Você jamais esquecerá. Nunca...

Julgou que Glay a esperaria em algum lugar, mas tal não se deu.

Desanimada, chegou ao palácio e sentou-se numa poltrona. Lady Frankau bordava estendida num sofá ao lado do rádio.

— Que há com você, querida? Acho-a muito pálida.

Já estimava a dama. Era boa e carinhosa, tratando-a como se fora sua própria filha.

— Está aborrecida, Fanny?

— Tenho a cabeça um pouco dolorida — declarou entre dentes, mentindo com segurança.

Não queria confidenciar-lhe suas lutas morais. Para quê? Sofreria e isso era desnecessário, uma vez que ela já sofria bastante.

— Michael Glay está no gabinete, ultimando alguns assuntos importantes.

Os olhos castanhos iluminaram-se.

— No gabinete?

— Sim, chegou há pouco.

Esses mesmos assuntos eram resolvidos por ele em casa de Brown. Era a primeira vez que aparecia no gabinete, desde que deixara sua casa.

Quase sem perceber, levantou-se e saiu do salãozinho. Abriu a porta do gabinete, entrou e fechou de novo.

— Boa noite — cumprimentou, com incrível naturalidade.

Ao ouvi-la, Glay, que escrevia distraidamente, levantou a cabeça e contemplou-a através das pálpebras semicerradas.

— Olá, Fanny. Fui obrigado a vir porque houve algo que me esqueci de preparar antes.

— Não precisa desculpar-se.

— Desculpar-me? — ele sorriu irônico. — Jamais pensei nisso, querida.

Despeitada, Fanny avançou um pouco mais, sentando-se sobre a mesa e balançando as pernas no ar. Vestia um conjunto de lã vermelha, estava de saltos altos e, contra seus hábitos, suspendera o cabelo em coque, o que lhe dava um ar de mulher mais velha.

— Tomou-se muito trabalhador.

— Sempre o fui.

— Hum... E quando pretende casar-se, querido?

Perguntou com tamanha ironia que Glay, indiferente, soltou uma divertida gargalhada.

— Você é uma garota muito original — disse, sem parar de sorrir. — Por acaso deseja saber quando me caso para fazer o mesmo?

— Com você?

Glay largou a caneta e ficou olhando-a.

— Que pretende Fanny? Sempre foi uma menina inteligente, mas acredito que deixou de sê-lo. Não pretendo casar-me com você. Afinal de contas, sou um homem velho demais para uma garota tão... Caprichosa.

— Descreva-me seu ideal — pediu ela, sem alterar-se.

Michael Glay levantou-se e cruzou os braços sem parar de examiná-la de modo insistente. Seu nervosismo era visível, mas sabia dissimulá-lo muito bem, conseguindo que ela não o percebesse.

— Meu ideal, Fanny — murmurou serenamente — pode ser descrito em poucas palavras. Deve ser muito feminina, um pouco vaidosa, coquete, pois sem isso não há conquista... Jovem, bonita e principalmente com os olhos maravilhosos pelos quais eu possa ler seu coração. E quer saber como á amarei? Louca e apaixonadamente para dar-lhe todo o bem que trago em mim, para torná-la infinitamente feliz. Para fazê-la esquecer seus amargores. Para adorá-la em silêncio quando ela o preferir e para enlouquecê-la quando adivinhar que é isso que deseja.

Respirou forte e baixou os braços.

Fanny tinha os olhos brilhantes e fitava-o ansiosamente. Assim que ele terminou, também ela soltou um profundo suspiro.

— Precisará ser feita sob medida — disse mordaz.

Ao mesmo tempo olhou-o de tal modo... Glay sentiu algo estranho que lhe fazia o sangue ferver. Mandou tudo para o inferno e segurou-a pelos ombros meio fora de si, sacudindo-a desesperadamente, sussurrando com voz sufocada, enlouquecida:

Você resolveu desconcertar-me, mas nunca o conseguirá. Agora suas armas ficarão destroçadas contra minha couraça. Entretanto, para que nunca se esqueça como reage um homem quando uma mulher o desafia, vai saber...

Não terminou. Apertou-a nos braços, beijando-a na boca selvagemmente, até deixá-la inerte e desarmada.

— Assim, compreendeu bem? Assim é que faço com todas as meninas estúpidas. Agora vá chorar ao lado de Lady Frankau. Conte a ela que abusei de sua inocência e que... Que...

Passou a mão pela testa, banhada por grossas gotas de suor. Apertou os lábios, fitou-a profundamente e com passo altaneiro deixou o gabinete, fechando a porta às suas costas com um golpe seco.

Mal a porta se tinha fechado, Fanny acariciou seus lábios docemente e murmurou baixinho, intensamente, em voz repleta de paixão:

— Que bruto delicioso!

Durante toda aquela semana não tornou a vê-lo.

Certa noite assistiu a uma festa com Lady Frankau. Recebera os convites pela tarde e, apesar de á princípio ter resolvido não comparecer, pensou melhor e convenceu a dama de tal forma, que ela não se pôde negar.

Quando subiu ao carro rebrilhante, longo, de linhas elegantes, estava francamente maravilhosa. Usava um modelo de noite, negro como seu cabelo, sem costas, fechado no decote, seguro por um broche de brilhantes. No pescoço colocara um fio de finíssimas pérolas. Os cabelos estavam soltos como uma cascata, brilhantes e sedosos. Calçava sapatos de saltos altíssimos, cobrindo-se com uma longa capa branca. Jamais mulher alguma esteve tão deslumbrante e... Provocativa. Teria se vestido assim, sabendo que ele estava lá? Não pôde definir os motivos que a levaram a tal decisão, mas a verdade é que estava tão bela tão excitante e atraente, que chegando ao salão todos os olhos que a encontravam brilhavam de admiração. Com a figura majestosa que a caracterizava, beijou a face de Lady Manning, anfitrioa da festa e, em seguida, adiantou-se por entre os convivas, caminhando na direção em que ele estava...

Sim, Michael Glay estava recostado a um canto do salão em companhia de outra mulher, também muito bela, mas longe demais da distinção da duquesinha de Walleston.

— Olá, padrinho — cumprimentou a jovem, ironicamente.

Aparentando frieza, mas destroçado por dentro, Glay sentia vontade de matá-la... Tão sedutora estava. Levou sua mãozinha aos lábios e beijou-a quase sem roçá-la. À custa de quantos esforços largou aquela mão quase sem tocá-la? Apenas ele o soube.

A dama que o acompanhava afastou-se com outro homem e ficaram sozinhos.

— Não gostaria de ir até o jardim, padrinho?

— Não me chame de padrinho porque sou capaz...

— De matar-me?

— E não me olhe desse modo porque sou homem de pouca paciência — exclamou, em voz sufocada — e cometerei alguma tolice.

— Acha que um beijo é tolice?

— Fanny!

Fanny encolheu os ombros. Resolvera tirá-lo daquela impassividade e estava a ponto de consegui-lo, mas desconhecia que Michael Glay possuía enorme dose de força de vontade.

Segurou-a por um braço e impeliu-a para o jardim sem grande delicadeza.

A noite era cálida e agradável. Alguns pares dançavam no terraço, outros passeavam.

Ela preferiu o último, dirigindo-se diretamente para um maciço de flores, seguida por ele. Encostou-se a uma árvore e fitou-o interrogativamente.

— Fanny — disse ele em voz sonora — está muito bonita esta noite. Não sei sua intenção, nem me interessa. Reconheço sua beleza e distinção, claro, mas censuro profundamente esse modelo decotado e a “pose” de mulher fatal que toma. E, quando um homem ama uma mulher, não é preciso que ela se enfeite desta maneira. O homem sente-se despeitado e furioso porque outros olhos contemplam o que apenas a ele pertence. Julga-se que com isso pode deslumbrar-me ou deixar-me louco, está muito enganada. Se outrora há amei um pouco, hoje a amo menos.

— Não me interessa seu amor — exclamou ela indignada.

— Pode ser, mas não estou muito certo disso. Você não tencionava vir a esta festa, pois perguntei á Lady Frankau e ela respondeu-me que não a ouvira falar a respeito. Contudo, esta aqui... Por quê? Apenas para exibir-se? Não é muito consolador para você, minha cara. Que use esse traje para cear em casa, junto a seu marido, apenas os dois, sim. Mas para assistir a uma festa noturna, acho-o inadequado. Por outro lado...

— Dispenso sua opinião — gritou ela, cada vez mais desesperada, pois sua idéia não surtira o efeito desejado.

— Por outro lado — continuou Glay, implacável — você é jovem demais para exibir semelhante vestido. Ainda não completou vinte anos e seu penteado não é próprio para a idade. Se desejar minha opinião, aí a tem. Censuro seu traje, seu penteado e sua pose estudada. O homem quer para esposa algo um pouco mais humilde, mais simples, mais seu... Entende?

— Que posso entender? Julga por acaso que me vesti assim para você? Quero divertir-me e você mesmo presenciará minha diversão.

Desencostou-se da árvore e começou a andar.

Ele a segurou por um braço.

— Veja bem o que vai fazer Fanny — pediu sufocadamente. — Pode arrepender-se amanhã, quando não haverá mais remédio.

Sem responder, Fanny continuou andando.

Nunca se sentira tão humilhada e enfurecida. Apertava os punhos e sentia uma raiva terrível no coração.

Ele não a seguiu.

A noite prosseguiu alegremente. Fanny dançou feliz — em aparência — com todos os homens. Seu aspecto era o mesmo de uma transbordante alegria. Divertia-se? Pelo menos parecia. Namorou descaradamente todos que lhe diziam um galanteio, falou pelos cotovelos, fumou, bebeu... Uma jovem moderna, sem nenhum juízo!

Contudo, apesar de sua aparente felicidade, seus olhos fitavam ansiosamente o lugar onde Glay poderia estar. Seu coração se retorcia de raiva. Seu tutor dançava calmamente, sem perder seu formidável domínio de si, com as damas mais belas e elegantes. Não a olhou nem uma só vez, parecendo que nem dava por sua existência.

Se até aquele momento o amara pouco, a partir de então o amou com loucura, desesperadamente, admirando sua figura altiva, sua férrea vontade, seu absoluto domínio.

Viu-o engrandecido ao infinito e sentiu que todo o seu triunfo de nada valia.

Quando a festa terminou e os convidados começaram a sair, Glay afastou-se em companhia de outra mulher sem dirigir-lhe a palavra.

Fanny subiu a seu carro e prorrompeu em fortes e convulsivos soluços.

Nos dias que se seguiram encontrou Glay uma vez ou outra nos lugares freqüentados por ambos. Ele a cumprimentava com a cabeça, friamente, e continuava seu caminho, sempre só, demonstrando uma indiferença que a enlouquecia e desesperava.

Nessa tarde resolveu visitar os Brown. Pretenderia, por acaso, encontrar-se com ele?

 

O próprio Glay abriu a porta.

— Olá.

— Olá, Fanny — replicou ele, indiferente. — Se veio visitar meus amigos, eles não estão em casa.

Dizia isso para que ela se fosse embora? Como sempre fora espírito de contradição, resolveu entrar no apartamento.

Sem responder, passou ante ele e foi até a salinha.

Encontrou várias revistas sobre uma mesinha. Primeiro folheou-as sem interesse algum. Depois...

Quem era aquela mulher que, vestida de amazona, acariciava um esbelto potro?

— É uma revista da sociedade — disse ele, inescrutável. — Contemplava a esbelteza do animal. Você está bem, claro, mas como pretendo vender vários cavalos que permanecem na cavalariça...

— Hum...

Havia um mundo de zombaria naquela frase pronunciada entre dentes. Olhou de novo sua própria fotografia que parecia sorrir deliciosamente do papel. Teria comprado a revista apenas para contemplar os cavalos ou pelo contrário, para melhor admirá-la?

— Essa caçada foi há muitos dias — observou Fanny com suficiência, afastando a revista para um lado. — Já a tenho comigo desde a semana passada.

— Pois Brown comprou-a para mim hoje pela manhã.

Os olhos de Fanny contemplaram-no, examinadores.

Dizia a verdade? A quem examinava? A ela ou ao cavalo?

Deixou-se cair no sofá e Glay sentou-se a seu lado.

— Seus amigos demoram muito a chegar?

— Um ou dois meses...

— Levantou-se muito irônico esta manhã.

— Não. Sou sempre a mesma coisa — assinalou a frase, parecendo dizer: “Em troca, você é a mulher mais volúvel do mundo”. — Partiram por uns dias, a fim de assistir ao casamento de uma irmã de Brown.

— Hum.

Mas continuou sentada.

Glay permanecia em silêncio, fumando um cigarro tranqüilamente. Como era possível que aquele homem ficasse indiferente ao seu lado se a amava, apesar de esforçar-se por aparentar o contrário?

— Era muito bonita aquela mulher — declarou ela, após uma pequena hesitação.

— Que mulher?

— A que estava em sua companhia no dia da festa em casa dos Manning.

— Realmente, era muito bonita.

— Sua noiva?

— Talvez.

— Já não é muito jovem.

— Não preciso de mulher jovem demais para esposa. Pelo menos terá um pouco de juízo.

— Quer dizer que eu não o tenho?

Os olhos de Glay pareceram sorrir.

— Você? Mas quem é que está falando de você agora?

— Disse...

— Naturalmente não vou querer uma criança por esposa.

— Já sou uma mulher.

Os olhos de Glay tornaram a sorrir, mas desta vez de modo mais acentuado.

— Quem o duvida? Você é um caso a parte. Ela é uma mulher sedutora e você é minha pupila.

— Quando me beijou também pensou nisso?

— Por favor, Fanny, não tome essa atitude agressiva, que não assenta ao seu temperamento. Quando a beijei... Ora! Talvez tenha sido porque você me provocou.

— Pretende então...

— Pretender? Deus me livre! Afirmo!

— Nunca o provoquei — gritou exaltada, batendo no solo com o pé e apertando os punhos raivosamente, ante a serenidade daquele homem que a deixava fora de si.

Gostaria de vê-lo furioso, exaltado, mas, pelo contrário, a atitude serena de Glay continuava inalterável, mesmo ouvindo suas palavras desafiadoras.

— Que ia dizendo, Fanny?

— Você é odioso e eu... Eu...

— Por favor, querida.

— Não me chame de querida. Você nunca quis a ninguém. É um monstro e eu... Eu...

Levantou-se e correu para a porta. Julgou talvez que ele a retivesse? Não. Glay continuou onde estava.

Não fora em vão que estudara todas as reações de sua pupila. Sabia que ela fora redondamente vencida e que voltaria, voltaria em seguida.

Entretanto, enquanto Michael Glay permanecia contemplando distraidamente, Fanny, no meio da escada, cobrira a cabeça entre os braços e soluçava desesperada, em enorme agonia.

De repente, sentiu a necessidade de retornar ao apartamento. Precisava voltar. Não podia continuar nem mais um dia nessa incerteza que a consumia. Amava-o, amava-o desesperadamente, com loucura e se não fosse feliz á seu lado, a vida deixaria de importar-lhe em absoluto. Orgulho? Para que isso se o amava, se morreria se ele não fosse dela? Esperar que Glay novamente lhe falasse de amor? Espera inútil, posto que a enorme força de vontade daquele homem era tão forte como o próprio mundo e como o mundo, venceria sem ser vencido.

Subiu os degraus de dois em dois, abriu a porta de novo e recostou as costas na madeira, completamente desfalecida.

Olhou para Glay através das lágrimas. Continuava a fumar tranqüilamente e seus traços apareciam difusos, envoltos nas espirais azuladas.

— Não posso mais — murmurou ela, em desalento. — Se pretendeu vencer-me, já o conseguiu.

Sem pressa, novamente exibindo sua força de vontade, Glay ficou em pé e caminhou vagarosamente para ela. Seu corpo tremia apaixonadamente e, contudo, nem um só músculo de seu rosto amorenado se movera.

Segurou o rostinho molhado entre as mãos e levantou-o para o seu.

— Sim, foi vencida, Fanny — murmurou baixinho, docemente. — Foi uma grande garotinha mimada, mas uma garotinha que me amou, apesar de á contragosto.

Impetuosa, ela apertou-se contra ele e pediu sufocada:

— Diga tudo, Glay. Nunca a amou, não é verdade? Seu coração sempre foi meu desde o dia em Matty colocava flores nos jarrões do salão e você a beijou na boca, despertando todos os sonhos daquela jovenzinha ingênua.

— Como é criança! — murmurou Glay, emocionado, apertando-a carinhosamente contra seu corpo, beijando-a na boca com ânsia. — Não amei nenhuma outra mulher. Nunca, Fanny. Apenas você, acima de tudo. Mas naquela noite...

Fanny levantou os braços e passou-os à volta do pescoço do homem amado. Foi um gesto cheio de encanto e carinho que cativou o homem, fazendo-o perder o domínio de si mesmo pela primeira vez.

Abraçou-a tanto, apertou-a contra o coração com tanta intensidade e paixão, que chegou a machucá-la.

— Diga que gostou de mim naquela noite como nunca — suplicou faceira com acento delicioso.

— Não fale Fanny. Não me faça... Não sou dono de mim, sabe? Esperei toda a vida por este momento e agora...

— É meu, Glay, só meu...

O homem esmagou sua boca contra a dela e depois murmurou, lentamente, com voz enrouquecida:

— Quero que vista aquele vestido outra vez, agora para mim, apenas.

Lady Frankau já se fora com a filha Beatrice, agora morando na França, casada e mãe de um filho.

No castelo da Escócia, nessa noite, havia luz no salão. Havia uma jovem dama vestindo um traje negro, decotado nas costas, preso por um broche de brilhantes, sentada à enorme mesa de recepções. Em torno de seu esbelto pescoço fino um fio de pérolas. Os cabelos negros, soltos em cascata, brilhantes... A seu lado, um cavalheiro envergando traje a rigor, contemplando-a com olhos de apaixonado.

Os criados uniformizados iam e vinham e quando o par de recém-casados passou ao salãozinho contíguo, voltaram à cozinha.

A dama acendeu um abajur, cujos reflexos iluminavam apenas sua face resplandecente. A seu lado, o homem pousou-lhe a mão nas costas.

— Deslumbrante. Mas para a vida rotineira, prefiro-a simples, humilde, graciosa...

— Assim?

E a muito faceira jovem virou-se inteiramente, apertando-se ao corpo do marido com gestos graciosos, oferecendo-lhe a doçura de seus lábios.

— Assim, sim. Assim!

Tinham-se casado naquele dia na capela do castelo. Não houve convidados nem recepção. Para quê? Apenas os dois, com seu amor, no interior daquele castelo misterioso, cheio de lendas antigas.

— Quero dançar, Glay.

Enlaçou-a pela cintura. Beijou-a no pescoço e dançaram. De repente Glay perdeu o controle e o baile transformou-se numa cena amorosa...

A tênue faísca de luz, que se refletia brincalhona no assoalho encerado, pestanejou nervosa, um pouco ruborizada.

— Você é delicioso — murmurou a voz feminina em tom sufocado...

Um ano depois, a porta do gabinete do palácio de Nova Iorque abriu-se lentamente.

Uma silhueta feminina adiantou-se para a mesa por trás da qual Michael Glay estava sentado.

— Adoro-o — disse ela, rodeando-lhe o pescoço com os braços.

Ele virou-se rapidamente. Pôs-se de pé e apertou-a num abraço.

— Vou ter um filho, Glay, um filho seu e meu!

— Um filho!

— Um novo Lord Walleston.

— Não me importa que seja um Lord Walleston, Fanny. Basta que seja seu filho e se chame Michael Glay.

— Michael Glay! — repetiu ela, sonhadoramente.

— Sim, o Glay que lhe faz feliz. Sentiu, alguma vez, arrependimento por haver me dado seu carinho?

— Arrependimento?

Impetuosamente apertou-se contra ele. E como sempre, quando á tinha próxima, o domínio do homem desapareceu.

— Um filho seu — murmurou depois, com intensidade, acariciando-lhe o negro cabelo daquela cabeça que repousava em seu peito — um filho do nosso grande amor.

 

                                                                                Corin Tellado  

 

                      

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