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AS MENINAS EXEMPLARES / Condessa de Ségur
AS MENINAS EXEMPLARES / Condessa de Ségur

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AS MENINAS EXEMPLARES

 

                 Camila e Madalena

A Sr. a Fleurville tinha duas filhinhas muito boas e gentis, tão amigas, que nunca bulhavam. Vê-se muitas vezes irmãos e irmãs zangarem-se, arreliarem-se e virem fazer queixa aos pais quando já é impossível saber quem tem razão. Nunca tal sucedia com Camila e Madalena. faziam sempre o possível por se harmonizar.

No entanto, os gostos de ambas estavam longe de ser iguais. Camila, mais velha um ano que Madalena, era mais viva, mais turbulenta, preferindo brincadeiras em que tivesse que correr e saltar. O seu maior prazer era estar rodeada de muitas amigas, pois só assim podia fazer as suas brincadeiras predilectas. Madalena, ao contrário, preferia brincar com bonecas. Sem ela, a boneca de Camila teria passado muitos dias com o mesmo vestido e muitas noites numa cadeira!

Mas a diferença de gostos não as impedia de serem muito amigas. Madalena deixava de boa vontade o livro que lia, ou a boneca com que brincava, para correr e saltar, quando Camila a desafiava; e Camila, pelo seu lado, sacrificava o seu gosto de passear ou de caçar borboletas, se a irmã preferia outras brincadeiras mais sossegadas.

Viviam, pois, muito felizes, estas irmãzinhas, e a mãe adorava-as; de resto todos os que as conheciam gostavam delas e procuravam fazer-lhes as vontades.

 

                   Passeio e desastre

Um dia, Madalena penteava a sua boneca. Camila dava-lhe os pentes, ajeitava os vestidos e os sapatos, ao mesmo tempo que ia mudando o lugar das camas, das cadeiras, das cómodas e das mesas. Dizia ela que as "senhoras" bonecas iam mudar de casa.

MADALENA - Digo-te, Camila, que as bonecas estavam muito melhor na outra casa; tinham mais espaço para a mobília.

CAMILA - Sim, talvez, mas estavam já aborrecidas com a casa velha. Numa casa mais pequena estarão mais quentinhas.

MADALENA - Mas, não. Estão enganadas. Como ficam perto da porta, terão muito vento, e como as camas estão em frente da janela o calor não será muito.

CAMILA - Pois, sim; então deixemo-las estar aqui algum tempo. Depois lhes arranjaremos uma casa melhor. Não te zangas, não, Madalena?

MADALENA - Não, Camila, pois que assim o queres.

Camila, finda a mudança, propôs a Madalena, que acabara também de pentear e vestir as bonecas, chamarem a criada para um passeio. Madalena achou óptimo. Chamaram a Elisa.

"Elisa, vamos dar um passeio? "

"Com todo o gosto, minhas meninas. E para onde querem ir?"

CAMILA - Para ao pé da estrada, para ver passar os carros. Queres, Madalena?

MADALENA - Quero, sim; e se encontrarmos pobrezinhos havemos de lhes dar esmola. Eu cá levo dinheiro.

CAMILA - Lembras bem; eu também levo.

E lá foram, muito contentes; desataram a correr adiante da criada até à cancela que as separava da estrada; enquanto esperavam, a ver se passava algum carro, entretinham-se a apanhar flores, para fazer coroas às bonecas.

" Lá vem um carro " - exclamou Madalena.

"É verdade, e vem tão depressa! Não tarda aqui. " "Escuta, não ouves gritos? "

"Não, só oiço o barulho das rodas. "

Madalena não se enganara: mal Camila acabara de falar, ouviram-se gritos aflitivos, e um momento depois as meninas e a criada, paralisadas de terror, viram aparecer uma carruagem atrelada a três cavalos, que galopavam desenfreadamente, apesar dos esforços do cocheiro para os deter.

Os gritos eram de uma senhora e de uma menina que vinham dentro da carruagem.

A cem passos da cancela, o cocheiro foi cuspido do assento e as rodas do carro passaram-lhe por cima. Os cavalos, sentindo-se sem governo, ainda correram mais, direitos a um grande fosso que separava a estrada de um campo semeado. Ao chegar em frente da barreira onde estavam Camila, Madalena e a criada, as três, pálidas de terror, a carruagem precipitou- se no fosso; ouviu-se um grito lancinante, um grito de dor, e nada mais.

Decorreram instantes antes que a criada voltasse a si do susto e pensasse em socorrer a infeliz senhora e a pobre criança, provavelmente mortas na queda. Não se ouvia o mais pequeno gemido. Mas não seria preciso socorrer o pobre cocheiro esmagado pelas rodas do carro?

Por fim, resolveu abeirar- se da carruagem. Camila e Madalena seguiram-na, tremendo.

Um dos cavalos estava morto; outro tinha uma perna partida; e o terceiro, atordoado pela queda, arquejava, sem se mexer.

"Vou tentar abrir a portinhola", disse a criada; "mas as meninas não se aproximem. Se os cavalos se levantam, podem matá-las".

Elisa abriu a porta; dentro, a senhora e a criança, imóveis, estavam cobertas de sangue.

" Ah, meu Deus! a pobre senhora e a menina estão mortas ou gravemente feridas. "

Camila e Madalena choravam. Elisa, na esperança de que estivessem apenas desmaiadas, tentou soltar a pequenita dos braços da mãe, que a esmagava contra o peito. Depois de muitos esforços, conseguiu tirar a criança, pálida e ensanguentada. Para não a deixar na terra húmida, perguntou às duas irmãs se seriam capazes de levar a pobre pequena até a um banco que havia do outro lado da barreira.

"Somos, sim, Elisa", exclamou Camila. "Deixa-a ver, que nós podemos com ela. Pobre pequenita, está toda cheia de sangue; mas não está morta, com certeza. Não, não está. Dá-a cá, Elisa. Madalena ajuda-me! ".

"Não posso, Camila", respondeu Madalena, em voz trémula. "Todo esse sangue, a senhora morta, e naturalmente a pequenita também, tiram- me as forças. Não posso. senão chorar "

"Levo-a eu sozinha", disse Camila. "É preciso que eu tenha forças. Deus há-de ajudar-me. "

E dizendo isto, levantou a pequenita; e, apesar do peso excessivo para as suas forças, tentou subir o fosso com ela ao colo. Os pés escorregavam-lhe, e ia deixar cair o fardo, quando Madalena, vencendo o medo e a repugnância, correu a ajudar a irmã. Chegaram ao cimo do fosso e foram cair, extenuadas, no banco.

Camila estendeu a pequenita nos joelhos: Madalena trouxe água e Camila pôs-se a limpar com o lenço a cara da pequenita. Ao ver que ela não estava ferida soltou um grito de alegria.

"Madalena, Elisa, venham depressa! A pequenita não está ferida. Está viva! está viva! Respira, abre os olhos. "

" Mamã! mamã! Quero ver a mamã", gritou ela, ao abrir os olhos, cheia de susto.

"A tua mamã já vem, meu amor", disse Camila, beijando-a. "Não chores; deixa-te estar aqui comigo e com a minha irmã. "

"Não, não; quero ver a mamã. Os mauzões dos cavalos levaram a mamã. "

"Os mauzões dos cavalos caíram numa grande cova, não levaram a tua mamã, acredita. Lá vem a minha criada Elisa. Traz a tua mamã, que está a dormir. "

A criada, ajudada por dois homens que passavam na estrada, tinha conseguido tirar do carro a mãe da pequenita. A pobre senhora, que não dava sinal de vida, tinha um grande ferimento na cabeça. A cara e o pescoço estavam cheios de sangue. No entanto batia-lhe o coração; não estava morta.

A criada mandou um dos homens que a tinha ajudado avisar a Srá Fleurville. Era preciso mandar gente buscar a senhora e a criança, levantar o cocheiro e desatrelar os cavalos que continuavam a debater-se no fosso.

O homem partiu. Um quarto de hora depois chegava a própria Srá Fleurville, com criados e uma carruagem, em que puseram a ferida. Trataram de tirar o cocheiro e de arrancar o carro do fosso.

A pequenita, entretanto, sossegara completamente. Não estava ferida; desmaiara com o susto e com a queda.

Com receio de que ela se assustasse com o sangue que continuava a correr da ferida da mãe, Camila e Madalena pediram à Sr á Fleurville para a levarem com elas, a pé. A pequenita, já habituada às duas irmãs, com todos os cuidados para ela, julgando a mãe adormecida, acompanhou-as de bom grado.

Camila e Madalena iam andando e conversando com ela.

MADALENA - Como te chamas, meu amor?

MARGARIDA - Chamo-me Margarida.

CAMILA - E como se chama a tua mamã?

MARGARIDA - A minha mamã, chama-se mamã.

CAMILA - Mas o nome dela? A tua mamã há-de ter

um nome.

MARGARIDA - Pois é; chama-se mamã.

MADALENA (rindo) - Mas os criados não lhe chamam mamã.

MARGARIDA - Não, chamam-lhe senhora.

MADALENA - Mas, senhora quê?

MARGARIDA - Não lhe chamam senhora quê, chamam-lhe só senhora.

CAMILA - Deixa-a, Madalena; bem vês que ela é muito pequenina; não percebe. Dize-me, Margarida, onde ias quando os cavalos maus te fizeram cair no buraco?

MARGARIDA - Ia visitar minha tia. Mas eu não gosto da tia; é má, está sempre a ralhar. Gosto mais de estar com a mamã. e com vocês - acrescentou, beijando-as. - Como se chamam vocês?

CAMILA - Eu chamo-me Camila, e a minha irmã, Madalena.

MARGARIDA - Então serão minhas mamãzinhas. Mamã Camila e mamã Madalena.

Assim conversando, chegaram a casa. A Sr á Fleurville mandara a toda a pressa chamar um médico, e deitara a Sr á Rosbourg. O nome dela estava gravado num cofrezinho que vinha no carro, e nas malas amarradas atrás. Haviam ligado o ferimento, para estancar o sangue. A

senhora recuperava os sentidos, pouco a pouco. Meia hora depois perguntava pela filha, que se apressaram a levar-lhe.

Margarida entrou devagarinho, pois tinham-lhe dito que a mãe estava doente. Camila e Madalena entraram também.

"Pobre mãezinha", disse ela, quando entrou. "Dói-lhe a cabeça?"

"Dói, sim, minha filha, dói muito. "

"Eu queria ficar consigo, mamã. "

"Não, minha pequena; dá-me um beijo e vai com essas meninas, que me parecem muito boazinhas. "

"E são, mamã, muito boas. A Camila deu-me a boneca dela, uma boneca muito linda. A Madalena deu-me uma fatia de pão com doce. "

A Sr á Rosbourg sorria com o contentamento de Margarida, que se dispunha a palrar; mas a Sra Fleurville, ao ver a doente falar de mais, aconselhou Margarida a ir brincar com as suas mamãzinhas, enquanto a mamã crescida descansava.

Margarida beijou a mãe mais uma vez e saiu com Camila e Madalena.

 

                     Margarida

MADALENA - Mexe no que quiseres, Guida. Brinca com os nossos brinquedos.

MARGARIDA - Oh! que lindas bonecas! Olha esta do meu tamanho.! E mais duas ali! E aquela grande, deitadinha. Está doente como a mamã. Oh, e o cãozinho! Que lindo pêlo! Parece mesmo a sério! E um burrinho! Olha: colheres, garfos, facas - facas também! Um galheteiro! Que diligência engraçada!

E esta cómoda cheia de vestidos das bonecas, de camisas, de combinações. Tudo bem arranjado! Livros tão lindos! Ai, e que lindas estampas eles têm! Está cheia deles a estante.

Camila e Madalena riam ao ver Margarida correr de um brinquedo para o outro, pegar neste, para logo o deixar, sem saber por qual deles se decidir, pois não podia pegar em todos ao mesmo tempo. Acabou por ficar no meio da casa, a olhar para a direita e para a esquerda, aos saltos, a bater as mãos de alegria. Por fim, decidiu-se pela diligência puxada por quatro cavalos, e pediu às meninas que fossem com ela para o jardim.

Puseram-se todas três a correr pela relva, e pelas ruas do jardim; daí a pouco a diligência virou-se. Os passageiros caíram uns por cima dos outros; um vidro da porta partiu-se.

"Ai meu Deus, meu Deus! ", exclamou Margarida, soluçando. "Parti a tua diligência, Camila. Que pena! Juro que não tornarei "

CAMILA - Não chores mais, Guidazinha, não foi nada. Vamos abrir a porta e sentar os viajantes nos seus lugares. Depois peço à mamã para mandar pôr outro vidro.

MARGARIDA - E se os viajantes ficaram com dores de cabeça, como a mamã?

MADALENA - Não, não, têm a cabeça muito dura. Vês, aí estão eles outra vez nos seus lugares e de perfeita saúde.

MARGARIDA - Ainda bem! Estava com tanto medo de lhes ter dado um desgosto!

Margarida continuou a brincar com a diligência, mas com juízo. Era muito boazinha, e não queria dar desgostos às suas amigas.

Uma hora depois voltaram para jantar.

Em seguida deitaram Margarida, que estava muito cansada.

 

                   A proposta da Sr. a Fleurville

Enquanto as crianças brincavam, viera o médico ver a Sr á Rosbourg; achou que a ferida não era grave. Receitou umas pomadas e recomendou muito sossego.

Margarida vinha ver a mãe várias vezes ao dia; mas não se demorava no quarto, porque a sua vivacidade e desassossego, conquanto divertissem a Srá Rosbourg, fatigavam-na. A um sinal da Srá Fleurville, sempre à cabeceira da doente, as duas irmãs levavam-na.

A dedicação da Srá Fleurville enchia de reconhecimento e ternura a Sr á Rosbourg. Já convalescente, várias vezes manifestou o seu desgosto por ter de deixar quem a tratara com tanta amizade.

"E porque deixar-nos, minha amiga? Por que razão não havemos de viver juntas? A Margarida é tão feliz com Camila e Madalena! As pequenas ficariam desoladas se lhes roubassem Margarida. Pela minha parte sentir-me-ia radiante se me prometesse ficar connosco. "

  1. a ROSBOURG - Mas não serei importuna aos olhos de sua família?
  2. a FLEURVILLE - Por esse lado pode estar tranquila. Vivo no maior isolamento. Desde que meu marido morreu, vivo no campo. Pelo seu lado, visto nunca mais ter tido notícias do seu, desde o naufrágio do navio de que era comandante.

SR á ROSBOURG - Infelizmente é verdade. Já lá vão dois anos que se deu o naufrágio. Meu irmão, que é oficial de marinha, quase deu a volta ao mundo sem conseguir o menor vestígio do meu pobre marido nem das pessoas que o acompanhavam. Pois bem, visto que tão amavelmente insiste para que fiquemos juntas, assim seja.

SR á FLEURVILLE - Fica então decidido?

SR á ROSBOURG - Está bem, já que tanto quer, ficaremos juntas.

A Sr á Fleurville encaminhou-se para o quarto onde Camila e Madalena estudavam as suas lições, enquanto Margarida brincava com as bonecas, contando-lhes histórias em voz baixa, para não distrair as suas amigui nhas. Ia dar a grande notícia.

  1. a FLEURVILLE - Minhas queridas filhas, venho dar-vos uma boa nova; a Sr. a Rosbourg e Margarida não se vão embora, como nós receávamos.

CAMILA - Que diz, mamã? Ficarão sempre connosco?

  1. a FLEURVILLE - Sim, minha filha, sempre; prometeu-me a Sr.a Rosbourg.

" Oh que felicidade " - exclamaram as três meninas ao mesmo tempo.

Margarida correu a abraçar a Sr. a Fleurville que, depois de a beijar, disse a Camila e Madalena: minhas filhas, se querem continuar a fazer-me tão feliz como até hoje, é preciso serem cada vez mais trabalhadoras e obedientes. Margarida é mais nova do que vocês. Serão, portanto, as meninas que ficarão encarregadas de a educar, debaixo da nossa direcção. Para que ela seja boazinha e ajuizada é preciso darem-lhe bons conselhos e, sobretudo, bons exemplos.

CAMILA - Oh mamãzinha, fique descansada. Nós educaremos a Margarida tão bem como a mamã nos tem educado a nós. Eu ensinar-lhe-ei a ler e a escrever, e a Madalena a costurar, a ser arranjada, a ter tudo nos seus lugares. Não é, Madalena?

MADALENA - Pois com certeza. Demais, ela é tão obediente, que não vai custar nada.

"Terei sempre muito juízo", acudiu Margarida, que beijou Madalena e Camila. "Serei muito obediente. Farei tudo para não vos dar desgostos".

CAMILA - Então, Guidazinha, já que queres ter sempre muito juízo e ser obediente, faz o favor de ir passear uma hora, como te disse. Desde que começámos a estudar que para aqui estás fechada. Assim ficas pálida e acabas por adoecer.

MARGARIDA - Oh, Camila! Peço-te, deixa-me estar ao pé de ti. Sou tão tua amiga!

Camila ia ceder, mas Madalena, ao ver a fraqueza da irmã, compreendeu que, se cedessem uma vez, teriam de ceder sempre. Margarida acabaria por fazer só as suas vontades. Por isso lhe pegou na mão, abriu a porta e disse:

"Guidazinha, Camila já te disse duas vezes que fosses passear e tu pedes sempre para ficar mais um bocadinho. Camila fez-te a vontade, mas agora queremos que saias.

Para seres bonita, como nos prometeste há pouco, é preciso mostrares-te obediente. Vai, vai, voltarás daqui a uma hora. "

Margarida olhou para Camila com ar suplicante; mas Camila, receosa de fraquejar e vendo que a irmã tinha razão, não levantou os olhos. Margarida então saiu, lentamente, e foi para o jardim.

A Sr. a Fleurville, que ouvira sem dizer palavra esta pequena cena, aproximou-se de Madalena, beijou-a, e disse: "Muito bem, Madalena. E tu, Camila, tem coragem, faz como tua irmã".

 

                   Flores colhidas, novas flores

"Meu Deus! Meu Deus Estou tão aborrecida sozinha!", pensava Margarida, depois de um quarto de hora de passeio. "Porque havia a Madalena de me obrigar a sair? Camila não se importava que eu ficasse, bem vi. Quando estou só com a Camila, ela deixa-me fazer tudo quanto quero. Gosto tanto dela! Também gosto muito da Madalena mas. divirto-me mais com a Camila. Que hei-de fazer para me entreter? Ah! já sei. Vou varrer e limpar o jardim".

Correu para o jardinzinho de Camila e Madalena, limpou-o, varreu as folhas velhas, e pôs-se depois a ver as flores. De repente, lembrou-se de fazer um lindo ramo para Camila e Madalena.

"Ah! como elas vão ficar contentes ", disse de si para consigo. "Vou apanhar todas as flores e farei um lindo ramo! hão-de ficar com o quarto a cheirar muito bem. "

E Margarida, muito contente com a sua ideia, foi colhendo cravos, rosas, margaridas, dálias, reseda, tudo, enfim, quanto encontrou no jardim. Ia deitando as flores para o avental, calcadas em monte, e quase sem pés.

Quando já não havia flores, correu para casa, entrou precipitadamente no quarto onde as duas irmãs continuavam a trabalhar, e, acercando-se delas, radiante, disse:

"Toma, Camila, toma, Madalena, olhem o que vos trago! que bonito! " E, abrindo o avental, mostrou-Lhes as flores todas murchas e amachucadas. "Apanhei-as para vocês", continuou: "vamos pô-las no vosso quarto, para cheirar bem".

Camila e Madalena entreolharam-se, sorrindo. Acharam graça ao monte de flores murchas e ao ar triunfante de Margarida. Por fim, ao verem o rubor da cara de Margarida, desconcertada e aflita, romperam à gargalhada. A pobre pequena deixara cair as flores ao chão e ficara imóvel, de boca aberta, a ver rir Camila e Madalena.

Por fim, Camila conseguiu articular:

"Onde apanhaste estas lindas flores, Margarida? "

"No nosso jardim. "

"No nosso jardim! ", exclamaram as duas irmãs ao mesmo tempo, já sem vontade de rir. "Que dizes? Apanhaste tudo isto no nosso jardim? "

"Tudo: até os botões. "

Camila e Madalena fitaram-se consternadas. Margarida, sem querer, dava-lhes um grande desgosto. Tinham estado a guardar as flores para oferecerem um ramo à mãe, no seu aniversário, dois dias depois. Que pena! Mas não tiveram coragem de ralhar a Margarida, tão contente, julgando fazer-Lhes uma surpresa agradável. Margarida, admirada por não receber os agradecimentos e os beijos esperados, olhava atentamente as duas irmãs. Vendo, porém, que estavam tristes, compreendeu ter procedido mal, e pôs-se a chorar.

Madalena disse, por fim, qualquer coisa: "Guidazinha, quantas vezes te temos dito que não mexas em nada sem nos pedir licença? Apanhaste- nos as flores e deste-nos com isso um grande desgosto. Queríamos oferecer à mamã, que faz anos daqui a dois dias, um lindo ramo de flores semeadas e regadas por nós. E agora, por tua causa, nada temos para lhe dar. "

Margarida cada vez chorava mais.

"Nós não te ralhámos", disse Camila. "Sabemos bem que não fizeste isso por mal; mas vê o resultado de não fazeres caso do que nós dizemos. "

Margarida soluçava.

"Não chores mais, Guidazinha", disse Madalena, beijando-a. "Pois não vês que não estamos zangadas contigo? "

"Porque. são. muito boas. ", disse Margarida, afogada em lágrimas. "Mas. bem vejo que estão. tristes. E isso faz- me pena. Perdão, Camila. Madalena. Não. tornarei. Estejam descansadas. "

Camila e Madalena, comovidas com o choro de Margarida, beijavam-na e consolavam-na como podiam. Foi então que entrou a Sr. a Rosbourg. Estacou, pasmada

com os olhos vermelhos e a cara afogueada da filha. "Margarida! Que tens tu, minha filha? Foste má? "

"Não, minha senhora! ", respondeu Madalena; "estamos a consolá-la".

  1. a ROSBOURG - A consolá- la de quê?

MADALENA - De. de. Fez-se vermelha e calou-se.

"Minha senhora", continuou Camila, "estamos a consolá-la, a beijá-la, porque. porque. "

Corou e calou-se também.

A Sr. a Rosbourg cada vez estava mais admirada. SR á ROSBOURG - Margarida, diz-me tu porque choras. Por que razão te consolam as tuas amiguinhas?

"Oh, mamã! minha querida mamã ", exclamou Margarida, correndo a esconder-se-Lhe no colo. "Fui muito má; dei um grande desgosto às minhas amiguinhas. Mas foi sem querer. Apanhei-lhes todas as flores do jardim e agora não têm nada para dar à mãe no dia dos seus anos. E em vez de me ralharem, beijaram-me. Tenho tanta pena de ter feito o que fiz!"

"Andaste bem em confessar a tua tolice, minha filha; vou tratar de a remediar. Para que as tuas amigas não te queiram mal é preciso que sejam anjos. Sê indulgente e boa como elas, e darás grande alegria a tua mãe. "

A Sr. a Rosbourg beijou Camila, Madalena e Margarida com ternura, e saiu para mandar atrelar a sua carruagem.

Meia hora depois, o carro estava pronto. A Sr. a Rosbourg mandou partir para Mondins, a cidade que ficava a cinco quilómetros da quinta da Sr. a Fleurville.

Apeou-se na loja de um negociante de flores e escolheuo que na casa havia de melhor.

"Faça-me o favor de mandar estes vasos a casa da Sr. a Fleurville. Seria melhor que o senhor fosse também.

Eu indicarei onde quero as plantas. Como pretendo fazer uma surpresa às meninas, quero que tudo seja feito de noite. "

" Fique descansada, minha senhora: as suas ordens serão cumpridas. Mal anoiteça, carregarei as plantas numa carroça e pôr-me-ei ao seu dispor. "

A Sr. a Rosbourg subiu para a carruagem e voltou para a quinta. Deu ordem ao criado para, ao cair da noite, esperar o jardineiro e mandar dispor as plantas no jardim das meninas. Demorara-se tão pouco que nem a Sr. a Fleurville nem as pequenas tinham dado pela sua saída.

Mal a Sr. a Rosbourg partira, as três meninas tinham ido para o jardim.

"Talvez", pensava Camila, "tenham ficado algumas flores esquecidas que cheguem para um raminho. "

Qual! não restava uma. Margarida colhera-as todas. Camila e Madalena ficaram a olhar com tristeza para o seu jardim devastado. Margarida só tinha vontade de chorar.

"Acabou-se", disse, por fim, Madalena; "não tem remédio. Agora é tratar de arranjar outras plantas, que a seu tempo darão flores".

MARGARIDA - Hão-de aceitar o meu dinheiro para isso.

MADALENA - Obrigada, Margarida. É melhor guardares o teu dinheiro para os pobrezinhos.

MARGARIDA - Mas se o vosso dinheiro não chegar, aceitam o meu, não é verdade?

MADALENA - Pois sim, minha Guida; não pensemos mais nisso agora. Vamos tratar de preparar o jardim para as novas flores.

As três crianças puseram mãos à obra. Margarida encarregou-se de arrancar as hastes secas e de levá-las no carrinho para a mata perto. Camila e Madalena puseram-se a sachar a terra com entusiasmo; suavam em bica, todas três, quando a Sr. a Rosbourg chegou.

"Oh! que grandes trabalhadoras! ", exclamou. "Que bem sachado jardim! Aposto em como as flores vão nascer sem ninguém as dispor".

"Não tarda muito, minha senhora. Verá! " "Acredito. Deus recompensa sempre as boas meninas, como vocês. "

A tarefa estava pronta. Madalena e Margarida arrumaram a ferramenta e foram brincar pela quinta. Quando a sineta tocou para o jantar, voltaram para casa.

No dia seguinte, depois do almoço, as três meninas correram ao seu jardinzinho, dispostas a acabar a limpeza dos canteiros.

Camila ia na frente. De súbito, viu o jardim cheio de flores mil vezes mais belas e mais numerosas que as da véspera. Parou, estupefacta; não compreendia como fora aquilo.

Quando Madalena e Margarida chegaram, ficaram também mudas de espanto e de alegria perante flores tão frescas, tão variadas e tão bonitas.

Por fim, um grito geral testemunhou a alegria de todas. Precipitaram-se no jardim; cheiravam umas flores, afagavam outras, pasmavam diante de todas, loucas de alegria, mas sem compreenderem como todas aquelas plantas tinham nascido e florido numa noite.

"Foi Nosso Senhor", disse Camila.

Não, foi Nossa Senhora", acorreu Madalena.

"Foram os anjinhos! ", exclamou Margarida. Nesse instante chegavam as Senhoras Fleurville e Rosbourg.

"Aqui tendes o anjo que fez o milagre", disse a Sr. a Fleurville, que apontava a Sr. a Rosbourg. "A vossa doçura e a vossa bondade comoveram-na; foi comprar tudo isto à cidade enquanto vocês deitavam os bofes pela boca a repararem o mal causado por Margarida. "

Pode imaginar-se qual a alegria e o reconhecimento das meninas.

Margarida era talvez a mais contente, visto ter sido ela a causadora de tudo.

No dia seguinte, todas três ofereceram um ramo entretecido com as mais lindas flores, não só à Sr. a Fleurville, pelo seu aniversário, mas também à Sr. a Rosbourg, em testemunho de gratidão.

 

                   Um ano depois

Um dia, Margarida, Camila e Madalena brincavam junto de casa, à sombra de um grande pinheiro. Um cão preto, chamado Calino, propriedade do guarda, estava deitado ao pé delas.

Margarida tentava pôr ao pescoço do cão uma coroa de malmequeres que Camila fizera. Quando a coroa estava quase posta, o cão sacudia a cabeça, a coroa caía e Margarida ralhava.

"Grande mau, não queres estar quieto! Se tornas, bato-te. "

E apanhava a coroa.

"Abaixa a cabeça, Calino. "

Calino obedecia, com ar indiferente.

Margarida punha-lhe de novo a coroa; Calino sacudia a cabeça; e a coroa voltava a cair.

"Mau, teimoso, desobediente! ", ralhou Margarida, dando-lhe uma palmadinha na cabeça.

Neste momento, um cãozito amarelo que se tinha aproximado sem ruído, deu uma dentada em Calino; Margarida quis enxotá-lo, mas o cão atirou-se a ela e mordeu-lhe a mão. Depois despediu, com a cauda entre as pernas, a cabeça baixa e a língua pendente. Margarida deu um grito e, ao ver sangue na mão, começou a chorar.

Camila e Madalena, ao ouvirem o grito de Margarida, correram precipitadamente. Camila olhou para o cão, murmurou algumas palavras para Madalena e correu em procura da Sr. a Fleurville.

"Mamã", disse-Lhe, baixo; "Margarida foi mordida por um cão danado".

"Como sabes que o cão está danado? "

"Ia com a cauda entre as pernas, a cabeça baixa e a língua pendente. E mordeu o Calino e a Guida sem ladrar; Calino, em vez de se defender ou de lhe ladrar, deitou-se sem se mexer mais. "

"Tens razão, Camila! Que desgraça, meu Deus! Vamos lavar depressa as feridas com água fria, e depois tratá-las.

"Madalena levou-a para a cozinha, mamã. Mas que se há-de fazer."

A Sr. a Fleurville não respondeu e dirigiu-se à cozinha. Examinou a ferida de Margarida, e viu ser pouco profunda e quase já não sangrar.

"Depressa, Rosalina (era a cozinheira), uma bacia com água fria! Deixa ver a mão, Margarida. Mete-a na água. Deixa estar, assim, deixa. Mexe-a bem. Dá-me o remédio, Camila. Isso. Agora mergulha a tua mãozinha na água; vamos, Margarida. "

"Tenho medo que arda", disse Margarida, entre lágrimas.

"Não tenhas medo, não é nada. Mas mesmo que ardesse, era preciso, se não podias ficar muito doentinha. "

A Sr. a Fleurville obrigou Margarida a ter a mão em água com desinfectante durante dez minutos. O medo da pobre criança, que dificilmente sustinha as lágrimas, levou-a a beijá-la e a dizer:

"Não te assustes, Margarida. Isso não há-de ser nada.

Todos os dias, de manhã e à noite, tens de fazer o tratamento. Em oito dias estás curada. "

"Mamã", exclamou Camila, "é melhor não falar nisso à Sr. a Rosbourg, para a não afligir".

"Tens razão, minha filha", disse a Sr. Fleurville, beijando-a. "Contar-lho-emos daqui a um mês".

Camila e Madalena recomendaram muito a Margarida que não contasse à mãe o que se passara, para a não apoquentar. Margarida, que era obediente e nada linguareira, não disse palavra.

Um mês depois, quando o perigo estava de todo passado, Margarida disse um dia à mãe:

"Minha querida mãe, sabe que a sua filhinha esteve a morrer?"

"A morrer, meu amor! ", disse a mãe, rindo. "Não tens cara de quem estivesse doente".

"Olhe, mamã, veja a minha mão. Vê aquela pintinha vermelha "

"Vejo, sim, e então? É picada de um mosquito! "

"É a mordedura de um cão danado. "

A Sr. a Rosbourg deu um grito, empalideceu, e perguntou em voz trémula:

"Quem te disse que o cão estava danado? Porque não mo disseste imediatamente? "

"A Sr. a Fleurville recomendou-me que fizesse tudo quanto ela me ensinou, senão que adoecia. Proibiu-me de lhe falar nisto antes de um mês, para a mamã não se assustar. "

"E como te curaram, minha pobre filha? Queimaram-te com um ferro em brasa? "

"Não, mamã, nada disso; a Sr. Fleurville, Camila e Madalena lavaram-me logo a mão em muita água fria e deram-me remédio.

A Sr. a Rosbourg beijou Margarida com emoção e correu em busca da Sr. a Fleurville, para colher informações mais precisas.

A Sr. a Fleurville confirmou o que dissera Margarida, e tranquilizou a senhora Rosbourg.

"Margarida não corre o menor perigo, minha amiga! pode estar sossegada. Pode ter a certeza de que Margarida está salva. "

A Sr á Rosbourg beijou enternecida a Sr á Fleurville mostrando-se muito reconhecida pela ternura e cuidados de Camila e Madalena. A si própria jurou provar-lhes a sua gratidão, na primeira oportunidade.

 

                   Camila castigada

A uma légua da casa da Sr. a Fleurville morava uma menina de seis anos, chamada Sofia. Aos quatro anos perdera a mãe num naufrágio; o pai casara outra vez e

morrera pouco depois. Sofia ficou com a madrasta, a senhora Fichini; vieram habitar uma propriedade que tinha pertencido ao senhor Rean, pai de Sofia, o qual tomara, mais tarde, o nome de Fichini, que lhe havia legado, com uma fortuna considerável, um familiar falecido na América. A Sr. a Fichini e Sofia vinham algumas vezes a casa da Sr. a Fleurville. Vamos ver se Sofia era tão boa como Camila e Madalena.

Um dia em que as duas irmãs e Margarida iam passear, ouviu-se o rodar de um carro; em seguida, uma magnífica carruagem parava em frente do portão; a Sr. a Fichini e

Sofia apeavam-se dela.

"Bom dia, Sofia", disseram Camila e Madalena; "estimamos muito ver-te; bom dia, minha senhora".

"Bom dia, minhas meninas; venho ver a vossa mãe.

Não interrompam o passeio; Sofia vai com vocês. E tu", acrescentou, dirigindo-se a Sofia, com voz dura e ar severo, "tem juízo e vê como te portas, senão ajustarás contas com a vergasta. "

Sofia não se atreveu a responder; baixou os olhos. A Sr. a Fichini aproximou-se dela; os olhos cintilavam-lhe.

"Não tens boca para responder, malcriada? " "Sim, mamã", apressou-se Sofia a replicar. A Sr. a Fichini lançou-lhe um olhar colérico, voltou costas e entrou no salão.

Camila e Madalena tinham ficado estupefactas. Margarida escondera-se atrás de um caixote. Quando a Sr. Fichini desapareceu, Sofia levantou, lentamente, a cabeça e, aproximando-se de Camila e de Madalena, disse baixinho:

"Andem; não vamos para a sala. Está lá a minha madrasta. "

CAMILA - Porque ralhou ela contigo, Sofia? Que fizeste tu?

SOFIA - Não fiz nada. É sempre assim.

MADALENA - Vamos para o nosso jardim; lá estaremos muito sossegadas. Margarida, vem connosco.

SOFIA (descobrindo Margarida) - Quem é esta pequena? Ainda não a tinha visto.

CAMILA - É a nossa amiguinha; uma boa menina. Não a conheces, porque estava doente quando fomos a tua casa e não pôde ir connosco. Espero que gostes dela, Sofia. Chama-se Margarida.

Madalena contou a Sofia como tinham travado conhecimento com a Sr. a Rosbourg. Sofia deu um beijo em Margarida e todas quatro correram para o jardim.

SOFIA - Que lindas flores! São muito mais bonitas do que as minhas. Onde arranjaram estes lindos cravos, e estas belas rosas? Que bom cheiro que elas têm!

MADALENA - Foi a Sr. a Rosbourg quem nos deu tudo isto.

MARGARIDA - Tem cuidado, Sofia; estás a pisar um morangueiro.

SOFIA - Deixa. Quero cheirar as rosas.

MARGARIDA - Mas pisas os morangueiros de Camila.

Vê onde tens os pés.

SOFIA - Já te disse que me deixes; és tola!

E como Margarida procurasse proteger os morangueiros, agarrando-lhe uma perna, Sofia empurrou-a com tal força, que a pobre Margarida foi cair a três passos de distância. Quando Camila viu Margarida por terra, atirou-se a Sofia e deu-lhe uma bofetada. Sofia desatou a gritar. Margarida chorava; Madalena procurava apaziguá-las. Camila corava até às orelhas, envergonhada.

Nesse instante apareceram as Sr á Fleurville e Rosbourg e a madrasta de Sofia.

A Sr. a Fichini começou por dar uma bofetada a Sofia, que continuava a gritar.

SOFIA (gritando) - Com este, são dois! Com este são dois!

SRá FICHINI - Dois quê, idiota?

SOFIA - Dois bofetões.

VIÚVA FICHINI (dando-lhe outro) - Toma, para não ficares por mentirosa.

CAMILA - Ela não mentiu, minha senhora. Fui eu quem lhe deu o outro.

A Sr. a Fichini fitou Camila, com surpresa.

  1. a FLEURVILLE - Que dizes tu, Camila? Tu, tão boa, bateste na Sofia, visita em tua casa?

CAMILA (de olhos baixos) - Bati, mamã.

SR á FLEURVILLE (com serenidade) - E porque fizeste tu essa grosseria?

CAMILA (exaltada) - Porque. porque. (ergueu os olhos para Sofia que a olhava, suplicante). Porque a Sofia estava a pisar-me os morangueiros.

MARGARIDA (com veemência) - Não, não foi por isso, foi porque.

CAMILA (pondo-lhe a mão na boca) - Foi, foi; foi por causa dos morangos. Cala-te, peço-te, disse baixinho para Margarida.

MARGARIDA (baixo) - Não quero que te julguem má, quando foi para me defenderes que lhe bateste.

CAMILA - Peço-te, Guidazinha, cala-te até a Sr. a Fichini se ir embora.

Margarida beijou a mão de Camila, e calou-se. A Sr. a Fleurville compreendeu que alguma coisa acon tecera, para Camila, sempre tão meiga, assim se irritar, mas adivinhava que o não diziam por causa de Sofia, Era, contudo, preciso dar uma satisfação à Sr. a Fichini e castigar Camila pelo seu tão feio gesto. Disse, com ar descontente:

"Vá para o seu quarto, menina; jantará lá, e não terá sobremesa. "

Camila principiou a chorar; e antes de obedecer à mãe, aproximou-se de Sofia, que chorava também, e disse-lhe:

"Perdoa-me, Sofia; prometo não tornar. "

Sofia, que no fundo não era má, beijou Camila e disse-lhe baixinho:

"Obrigada, minha boa Camila, por não teres dito a verdade. A minha madrasta, se soubesse, punha-me a pão e água.

Camila apertou-lhe a mão e dirigiu-se, lacrimosa, para casa. Madalena e Margarida choravam a bom chorar. Margarida só pensava em desculpar Camila, contando o que se tinha passado; mas lembrava-se da promessa que lhe fizera.

"Aquela má Sofia", dizia para consigo mesma. "Por sua causa foi a pobre Camila castigada. Detesto-a!"

A Sr. a Fichini subiu para o carro com Sofia. Não tardou que se lhe ouvissem os gritos. Imaginaram logo que a madrasta lhe batia, e não se enganaram. Mal ela subira para o carro, pusera-se logo a ralhar e acabara por lhe puxar os cabelos.

Logo que as duas partiram, as meninas contaram à Sr. a Fleurville o que se tinha passado. "O que me dizem diminui muito a falta de Camila, minhas filhas; mas não a desculpa completamente. Não se devia ter exaltado daquela maneira. Dou-lhe licença para sair do quarto; mas não comerá sobremesa."

Margarida e Madalena correram em busca de Camila, a dizer-lhe que a mãe tinha diminuído o castigo: só não comeria a sobremesa. Camila suspirou e ficou triste.

A verdade é não haver bela sem senão; Camila, a boa Camila, a encantadora Camila, tinha um defeito: era gulosa. Gostava de boas coisas e especialmente de fruta. Ora ela sabia que justamente nesse dia haveria para a sobremesa pêssegos e uvas, magníficos, que o tio tinha mandado de Paris. Bem duro seria, pois, ver-se privada de saborear tão belas coisas com que contava regalar-se. Por isso continuava com os olhos rasos de água.

"Minha pobre Camila, estás triste por não teres sobremesa. "

CAMILA (chorando) - Faz pena ver-vos a todas comer fruta tão boa e eu sem poder prová-la.

MADALENA - Pois deixa estar, também não comerei fruta. Isso há-de consolar-te um pouco.

CAMILA - Não, Madalena, não consinto nisso. Peço-te que comas de tudo.

MADALENA - Não, não, Camila, está decidido. Era lá capaz de comer coisas tão boas, sabendo-te privada delas.

Camila caiu nos braços de Madalena. Beijaram-se mais de vinte vezes, cheias de ternura. Madalena pediu a Camila que não dissesse nada da sua resolução.

"Se a mamã soubesse, ou me fazia comer, ou então era capaz de imaginar que eu a queria obrigar a perdoar-te. "

Camila prometeu nada dizer durante o jantar. Mas resolveu contar depois a generosa lembrança da irmã, tanto mais digna de apreço quanto é certo que Madalena era também um pouco gulosa.

Chegou a hora do jantar. As três crianças estavam tristes. Aconteceu haver bolos de arroz, de que Madalena muito gostava.

  1. a FLEURVILLE - Dá-me o teu prato, Madalena, para te servir de bolos.

MADALENA - Obrigada, mamã, não tenho vontade. SR. a FLEURVILLE - Então não queres destes bolos de que tanto gostas!

MADALENA - Não tenho mais vontade, mamã. SR á FLEURVILLE - Mas há pouco pediste-me mais batatas que eu te não dei, por me lembrar de que tínhamos bolos de arroz, o teu prato predilecto.

MADALENA (embaraçada e vermelha) - Há pouco tinha vontade, mas agora já não tenho.

A Sr. a Fleurville fitou Madalena rubra e atrapalhada; depois fitou Camila, que também corara, receosa de que o capricho de Madalena lhe merecesse alguma repreensão.

A Sr. a Fleurville suspeitou que lhe ocultavam alguma coisa, e não insistiu.

Chegou a fruta: uma soberba bandeja de uvas e pêssegos. Os olhos de Camila encheram-se de lágrimas; pensava, com mágoa, que era por sua causa que a irmã se privava de coisas tão boas. Madalena suspirava, lançando à bandeja olhares cobiçosos.

"Queres começar pelos pêssegos ou pelas uvas, Madalena? "

"Obrigada, mamã, não quero fruta. "

"Come ao menos um cacho de uvas", insistiu com surpresa a Sr. a Fleurville. "Olha que são uma delícia. "

"Não, mamã", respondeu Madalena, que se sentia fraquejar, na presença de tão belos frutos. "Sinto-me cansada; queria deitar-me. "

"Não estarás doente, minha filha? " - inquiriu a mãe, inquieta.

"Não, mamã, estou boa; tenho sono apenas. " E Madalena levantou-se, despediu-se da Sr. a Rosbourg e da mãe, ia a beijar Camila, quando esta, com voz trémula, pediu para se levantar também. A Sr. a Fleurville, ao vê-la tão nervosa, consentiu. As duas irmãs saíram juntas.

Quando, cinco minutos depois, todas se levantaram da mesa, foram encontrar Camila e Madalena abraçadas, na sala. Depois desprenderam-se e Madalena subiu para o quarto.

Camila ficara no meio da sala; seguia com os olhos Madalena e repetia:

" Boa Madalena! Como eu gosto dela! "

"Dize-me, Camila", perguntou a Sr. a Fleurville, "que tem a tua irmã? Não comeu fruta, e vai deitar-se uma hora mais cedo do que o costume".

"Se soubesse como ela é boazinha, minha mãe, e como é minha amiga. Fez tudo isto por minha causa e foi deitar-se uma hora mais cedo, com medo de não poder resistir às uvas, tão boas, de que ela tanto gosta! "

"Vem daí, Camila; vamos dar- lhe um beijo! ", exclamou a Sr. a Fleurville.

Antes de saírem da sala, disse qualquer coisa ao ouvido da Sr. a Rosbourg, que logo se encaminhou para a sala de jantar.

A Sr. a Fleurville e Camila dirigiram-se ao quarto de Madalena, que acabava de se deitar. Os seus grandes olhos azuis estavam fitos no retrato de Camila, a quem sorria. A Sr. a Fleurville aproximou-se da cama e abraçou-a, com ternura, dizendo:

"Querida filha, a tua generosidade resgatou a falta da tua irmã. Estás perdoada; e agora quero que ambas comam a fruta, que mandei trazer para aqui. "

Nesse instante, entrava Elisa com uvas e pêssegos. A Sr. a Fleurville voltou para o pé da Sr. a Rosbourg. Camila contou a Elisa quão boa fora para ela Madalena. Ambas lhe deram da sua sobremesa; e, depois de terem conversado muito e de muito se terem beijado, rezaram. Camila despediu-se e em breve adormeceram, para sonharem a noite inteira com bolos, com ralhos, com carícias, com perdões e com uvas.

 

                       Os ouriços

Um dia Camila e Madalena liam no jardim, sentadas nas suas cadeirinhas, quando viram Margarida correr para elas.

"Camila, Madalena", gritava ela, "venham depressa ver uns ouriços que apanharam. São quatro, mãe e três filhinhos".

Camila e Madalena levantaram-se imediatamente e correram a ver os ouriços, que estavam dentro dum cesto.

CAMILA - Mas não se vêem senão bolas com picos; não têm cabeça nem patas.

MADALENA - É que estão encolhidos; têm a cabeça e as patas escondidas.

CAMILA - Vamos a ver isso; vou fazê-los sair do cesto.

MADALENA - Mas picas-te. Como lhes hás-de tu pegar?

CAMILA - Vais ver.

Camila pegou no cesto e virou-o! lá estavam os ouriços no chão. Daí a pouco um dos ouricitos mais pequeno estendeu-se, deitou primeiro a cabeça de fora e depois as patas. Os outros fizeram a mesma coisa, e começaram a andar, com grande alegria das meninas, que não se mexiam para não os assustarem. Por fim, a mãe começou também a estender-se e a esticar a cabeça. Quando viu as três meninas, ficou indecisa; depois, ao ver que ninguém se mexia, estendeu-se toda, despedindo um guincho, como a chamar os filhos, e tratou de se pôr ao fresco.

"Olha como eles fogem! ", gritou Margarida; "vão todos a correr para a mata".

Nesse instante chegava o guarda.

"Ai ai, que deixaram fugir os meus novelos! Não os deviam ter deixado fugir, meninas. Vou ver-me em palpos de aranha para os apanhar. "

E o guarda pôs-se a correr atrás dos ouriços, que andavam quase tanto como ele. Já tinham chegado à entrada da mata; a mãe chamava os filhos. Estavam quase ao pé de um velho carvalho oco, onde tentavam acolher-se. O guarda estava ainda a uns dois passos deles; era tempo ainda de se salvarem do perigo que os ameaçava. Nisto ouviu-se um tiro. A mãe caiu morta à entrada da velha árvore; os filhos, ao verem a mãe parada, estacaram também.

O guarda, que disparara sobre a mãe, precipitou-se sobre os ouricinhos, e atirou com eles para dentro da bolsa de caça.

Camila, Madalena e Margarida haviam-se aproximado.

"Porque mataste tu o animalzinho, Nicaise mau? "disse Camila, indignadíssima.

MADALENA - Que há-de ser agora dos filhinhos? Vão com certeza morrer de fome.

NICAISE - Esteja descansada, menina! Não hão-de morrer de fome, não: eu vou tratar de os matar.

MARGARIDA (juntando as mãos) - Oh, coitadinhos! Não os mates, não. Sou eu que te peço, Nicaise.

NICAISE - É preciso matá-los, menina. Os ouriços são maus: matam os coelhinhos e as perdizes novas. E são ainda muito pequenos. Não poderiam viver sem a mãe.

CAMILA - Anda, Madalena; vá, Margarida: vamos pedir à mamã para salvar estes desgraçados animaizinhos.

Correram as três à sala, onde estavam a trabalhar as Sr. s Fleurville e Rosbourg.

Mamã, mamã, minha senhora! Pobres ouriços! Então o mau Nicaise não os quer matar? Já matou a pobre mãe! É preciso salvá-los. Venham depressa!

SR á FLEURVILLE - Quem? Mas quê? Quem mataram? A quem é preciso salvar? Porque é mau o Nicaise?

MADALENA - É preciso irmos depressa. Foi o Nicaise. Não quer saber do que lhe dizemos. Coitadinhos!

SR á ROSBOURG - Assim não pode ser, minhas queridas filhas. Não há meio de compreendermos o que vocês querem. Vá, Madalena, diz lá o que há, visto que estás menos nervosa.

MADALENA - Foi o Nicaise que matou uma mãe-ouriço que tinha três filhinhos e agora quer matá-los também. Diz que eles são maus, que matam os coelhinhos.

CAMILA - Não pode ser. É mentira. Eles só comem bichos maus.

SR á FLEURVILLE - Porque há-de ele estar a mentir, Camila?

CAMILA - Porque quer matar os desgraçadinhos, mamã.

  1. a FLEURVILLE - O quê? Julga-lo assim tão mau? Julga-lo capaz de inventar mentiras dessas para matar animaizinhos inofensivos?

CAMILA - Sim, mamã, talvez tenha razão. É um disparate. Mas se a mamã pudesse salvar os ouricinhos..

São tão engraçados!

  1. a ROSBOURG (sorrindo) - Ouriços engraçados?

Isso é coisa rara! Mas vamos, querida amiga, vamos ver o que há. Talvez possamos salvar a vida desses pobres órfãos.

As senhoras e as três meninas saíram e dirigiram-se para a mata onde tinham ficado o guarda e os ouriços.            

Nem guarda, nem os ouriços, vivos ou mortos. Tudo desaparecera.

CAMILA - Oh, meu Deus! Pobres ouriços! Nicaise matou-os, com certeza.

SR á FLEURVILLE - Tratemos de saber isso! vamos a casa dele.

As três meninas puseram-se a correr. Precipitaram- se, impetuosamente, na casa do guarda.

MADALENA - Onde estão os ouriços? Onde os puseste, Nicaise?

O guarda jantava com a mulher. Levantou-se, lentamente, e respondeu com a mesma lentidão:

"Deitei-os à água, meninas; estão no poço da horta.

MARGARIDA - Que maldade! Que horror! Mamã,

mamã, Nicaise deitou os ouricinhos ao poço.

A Sr. a Fleurville e a Sr. a Rosbourg chegavam nesse

instante à porta.

SRá FLEURVILLE - Fez mal em não me ter esperado, Nicaise; as meninas queriam ficar com os ouriços.

NICAISE - Era impossível, minha senhora; não duravam dois dias. eram muito novinhos E depois são uma

raça tremenda, esses ouriços; é preciso dar cabo deles.

A Sr. a Fleurville voltou-se para as meninas, mudas e

consternadas.

"Que se há-de fazer, minhas filhas, senão esquecer os

ouriços? Nicaise supôs que fazia bem matando-os; e que

Lhes fariam vocês? Como os haviam de alimentar, e de

os tratar? "

As meninas deram razão à Sr. a Fleurville, mas estavam com muita pena dos ouriços. Sem dizer palavra,

voltaram para casa, tristes.

Iam recomeçar as lições, quando Sofia chegou, montada num burro, com a criada.

A Sr. a Fichini mandava dizer que viria jantar e que a

Sofia vinha adiante, para se desembaraçar dela.

SOFIA - Bom dia, minhas amigas; bom dia, Margarida! Então que é isso, Margarida: vais-te embora?

MARGARIDA - A menina fez com que a Camila fosse

castigada no outro dia; não gosto de si.

CAMILA - Ouve, Margarida, eu merecia ser castigada

por me ter exaltado: é muito feio ser-se agressiva.

MARGARIDA (beijando-a) - Foi por minha causa

que fizeste aquilo. És sempre tão boa! Nunca te zangas.

40

Sofia começava por corar de raiva, mas o movimento de ternura de Margarida deteve-a. Sentindo-se culpada, aproximou-se de Camila e disse-lhe, com lágrimas nos olhos:

"A Margarida tem razão, Camila; eu é que fui a culpada. Fui eu quem primeiro tratou mal a pobre Margarida, que defendia os teus morangueiros. Fui eu que te fiz zangar empurrando a Margarida e atirando-a ao chão. Abusei da minha força, foi o que foi. Fizeste muito bem em me bater; mereci-o. Mas tu, Margarida, perdoa-me; sê generosa como a Camila. Eu sei que sou má". E, rompendo em soluços, murmurou: "Sou tão infeliz! "

A estas palavras, Camila, Madalena e Margarida rodearam Sofia, beijando-a e abraçando-a.

"Coitada da Sofia", diziam elas. "Não chores; gostamos muito de ti. Vem ver-nos muitas vezes; trataremos de te distrair".

Sofia deixou de chorar e limpou os olhos. "Obrigada, mil vezes obrigada, minhas queridas amigas, tratarei de as imitar, de me tornar boa como vocês. Ah! se eu também tivesse mãe, seria melhor do que sou! Mas tenho tanto medo da minha madrasta! Nunca me diz o que devo fazer, e está-me sempre a bater. "

"Pobre Sofia! ", exclamou Margarida. "Tenho muita pena de me ter zangado contigo. "

"Não, tiveste razão, Margarida. Fui, na verdade, muito má no dia em que cá estive. "

Camila e Madalena disseram a Sofia que precisavam de acabar uns exercícios de aritmética e de geografia,

"Daqui a meia hora estará tudo pronto; iremos ter com vocês ao jardim. "

41

MARGARIDA - Queres brincar comigo, Sofia?       Eu

,           não tenho exercícios para fazer.

SOFIA - Pois sim; vamos brincar lá para fora.

MARGARIDA - Vou contar-te o que aconteceu a três

ouricitos e à mãe deles.

E foi andando e contando o que se passara de manhã.

SOFIA - Vamos vê-los, devem ser muito engraçados.

MARGARIDA - Mas não nos chegaremos muito à água; a mamã não quer.

SOFIA - Lá está um, lá está um! Não vês? Não está

morto, está a mexer. Chega-te para cá; vês?

MARGARIDA - Vejo, sim! Coitadinho, como           ele

mexe! Os outros estão mortos.

SOFIA - Se o fizéssemos ir ao fundo com um pau,

para ele morrer mais depressa? Sofre muito, coitadinho!

MARGARIDA - É verdade, coitado! Olha-o aqui tão

perto.

- Está ali um grande pau! dá-lhe uma pancada na cabeça, que ele vai ao fundo.

MARGARIDA - Não; não vou acabar de matar       o

pobre bichinho; e a mamã não quer que eu me aproxime

do poço.

SOFIA - Porquê?

MARGARIDA - Porque podia escorregar e cair à   água.

SOFIA - Que ideia! Não há perigo nenhum.

MARGARIDA - Está bem Mas não quero desobedecer à mamã.

SOFIA - Como a mim ninguém me proibiu coisa

nenhuma, vou empurrar o ouriço para o fundo.

42

E Sofia, aproximando-se cautelosamente da borda do poço, estendeu o braço e desfechou uma pancada no ouriço com o grande pau que empunhava. O pobre animal desapareceu por instantes, mas logo voltou à superfície a estrebuchar. Sofia correu aonde ele tinha surgido, e deu-lhe nova paulada. Para o atingir, foi-lhe necessário estender muito o braço: desfechou a pancada, o peso do corpo arrastou-a, deu um grito e caiu à água.

Margarida correu em socorro de Sofia; viu que uma das mãos dela se enclavinhava numas giestas: agarrou-a, puxou-a a si, conseguindo içar-lhe parte do corpo de dentro de água; depois deu-lhe a outra mão, na esperança de a sacar de todo da água.

Lutou, lutou, para suster o peso que a arrastava também para o poço; faltaram-lhe as forças; a pobre Margarida sentiu-se perdida.

Corajosa, não perdeu a cabeça, apesar do perigo; ocorreu-lhe ter ouvido dizer que para se voltar à superficie é preciso bater com os pés no fundo; mal o sentiu, bateu com toda a força com os pés; imediatamente veio à tona de água; agarrou-se a uma estaca ao alcance das mãos e assim conseguiu sair do poço.

Não vendo Sofia, correu toda encharcada, para casa, a gritar: "Socorro! Socorro! " Uns ceifeiros, que andavam perto, ao ouvirem gritos, acorreram.

" Salvem Sofia, salvem Sofia Caiu ao poço ", gritava Margarida.

"A menina Margarida caiu à água ", gritavam as mu lherzinhas. " Socorro "

"Sofia afoga-se, Sofia afoga-se", soluçava Margarida,

desolada. "Depressa, acudam-lhe! "

43

Uma delas, mais expedita, correu para o poço, viu o vestido branco de Sofia a boiar, e, com um pau armado de um gancho, que servia para carregar feno, puxou-a para a borda; estendendo o braço conseguiu agarrá-la, tirando-a, por fim, da água com bastante dificuldade.

Enquanto a boa mulher salvava a criança, Margarida, esquecida do perigo por que passara, só pensava em Sofia, chorando e suplicando que a deixassem, que a deixassem, que fossem ao poço.

Camila e Madalena, que acorreram, ao ouvir barulho, aumentavam ainda mais o tumulto, gritando e soluçando com Margarida.

A Sr. a Rosbourg e a Sr. a Fleurville, ouvindo aquela algazarra desusada, aproximaram-se precipitadamente; ao verem Margarida encharcada dos pés à cabeça, despediram um grito de pavor.

"Minha filha, minha filha! ", exclamou a Sr. a Rosbourg. "Que aconteceu? Porque está a gritar? ".

"Mamã, minha querida mamã, a Sofia afoga-se; a Sofia caiu ao poço. "

Ao ouvir isto, a Sr. a Fleurville correu para o poço, seguida pelo guarda e pelos criados. Não tardaram a encontrar a ceifeira com Sofia ao colo, também lavada em lágrimas.

A Sr. a Rosbourg, perante a angústia e o desespero de Margarida, correu a sossegá-la. Disse-lhe com firmeza:

"Sofia está salva, minha querida filha; acalma-te. " "Mas "quem a salvou? Não vi ninguém. "

"Correu muita gente para lá, quando te afastaste. " A maneira como a mãe Lhe falou, sossegou Margarida; deixou-se levar sem resistência.

Quando já estava bem enxuta e vestida, a mãe perguntou-lhe o que acontecera. Margarida então contou tudo, ocultando o que lhe parecia feio na teimosia de Sofia em matar o pobre ouriço, e em aproximar-se do poço, apesar do que lhe tinha dito.

"Vês, minha querida filha? ", disse a Sr. a Rosbourg, beijando-a. "Vês como eu tinha razão em te proibir que te aproximasses do poço? Procedeste como uma menina de muito juízo, corajosa e generosa. Vamos ver o que é feito de Sofia."

Sofia fora levada pela Sr. a Fleurville e por Elisa para o quarto de Camila e Madalena, que as acompanharam. Tinham-na despido, enxugado e friccionado, vestiram-lhe uma camisa de Camila, quando a porta se abriu, violentamente, para deixar passar a Sr. a Fichini.

Sofia fez-se cor de cereja; a aparição inesperada da furiosa Fichini deixou toda a gente estupefacta.

"Então que história foi esta, menina? Sujou e estragou o seu lindo vestido, caindo estupidamente à água! Espere que eu já a ensino a ser mais cuidadosa para o futuro. "

E, antes que a pudessem impedir, tirou do casaco uma chibata, e lançou-se sobre Sofia com toda a força, apesar dos gritos da pobre pequena, das lágrimas e súplicas de Camila e Madalena, e da indignação da Sr. a Fleurville e de Elisa.

Só deixou de bater, quando a chibata lhe ficou em bocados na mão; então atirou-os fora, e saiu do quarto. A Sr. a Fleurville fez-lhe ver quanto desaprovava um castigo tão injusto e tão bárbaro.

"Creia, minha querida senhora", respondeu a Sr. a Fichini, "é o único meio de educar as crianças; a chibata é o melhor dos mestres. Por mim, não conheço outro".

Se a Sr. a Fleurville apenas se deixasse levar pela indignação, teria posto fora de casa essa mulher tão má; mas Sofia inspirava-lhe uma grande piedade. Pensava que cortar relações com a madrasta seria privar a criança de consolação e apoio. Refreou-se, limitando-se a discutir com a Sr. a Fichini os inconvenientes de uma educação excessivamente severa. Mas todos os seus raciocínios esbarraram com a sua secura de coração e pouca inteligência; a Sr. a Fleurville viu-se obrigada a ter paciência e a suportar a sua desagradável companhia.

Quando a Sr. a Rosbourg e Margarida entraram no quarto de Camila e Madalena, ficaram surpreendidas por encontrá-las a chorar. Sofia, em camisa, gritava, correndo de um lado para o outro cheia de dores, o corpo retalhado pela vergasta, cujos pedaços jaziam no chão.

A Sr. a Rosbourg e Margarida ficaram imóveis de espanto.

"Camila, Madalena, porque choram? ", disse, por fim, Margarida, prestes a chorar também. "Que tem a pobre Sofia? Que vergões são aqueles que ela tem no corpo "

"Foi aquela peste da madrasta que a zurziu, Margarida".

"Pobre Sofia! Pobre Sofia! "

As três pequenas rodearam Sofia e conseguiram consolá-la, à força de carícias e de mimos. Elisa ia contando à Sr. a Rosbourg a crueldade da Sr. a Fichini, que do desastre de Sofia só lamentara ter-se estragado o vestido.

À indignação da Sr. a Rosbourg juntaram-se a da Sr. a Fleurville e a de Elisa; mas todas, por cortesia, se viram obrigadas a suportar a presença da Sr. a Fichini.

Camila, Madalena e Margarida só a muito custo conseguiram ser delicadas à mesa com a Sr. a Fichini. Sofia coitada, não se atrevia a falar nem a levantar sequer os olhos do prato. Depois do jantar as crianças foram brincar para o jardim. À partida, a Sr. a Fichini prometeu mandar muitas vezes Sofia para casa da Sr. a Fleurville, conforme lhe tinham pedido as senhoras.

"Já que estão dispostas a aturar esta peste", disse ela, deitando a Sofia um olhar de desprezo, "ficarei encantada por me ver livre dela quanto mais vezes melhor. É tão má, que me estraga todas as visitas a casa das pessoas amigas. Adeus, minha senhora. Sobe, pateta ", acrescentou, dando um safanão na cabeça de Sofia.

Quando a carruagem partiu, Camila e Madalena, ainda muito impressionadas, não quiseram brincar; foram para a sala, com a Sr. a Rosbourg e com a mãe, conversar sobre Sofia. Estavam dispostas a afastá-la da madrasta o mais possível. Margarida havia muito que dormia; Camila e Madalena acabaram por se deitar também, reflectindo na desgraça de Sofia e dando graças a Deus por lhes ter dado mães tão bondosas.

 

                   As pêras roubadas

Dias depois da aventura dos ouriços, jantavam em casa da Sr. a Fleurville alguns vizinhos, entre os quais a Sr.a Fichini e Sofia.

Camila e Madalena não eram pretensiosas; vestiam com simplicidade. Camila e Madalena, uma, de cabelos loiros e finos, outra, castanhos e acetinados, usavam risca ao meio e tranças apanhadas nas orelhas com um laço de fita. Os vestidos de algodão, e os sapatos, de cabedal, completavam-lhe o traje singelo. Margarida andava vestida da mesma maneira; mas usava os caracóis, negros, caídos no pescoço, muito branco e roliço.

No Verão todas três usavam vestidos sem mangas e decotados.

Estava nesse dia um calor asfixiante.

Momentos antes da hora do jantar, chegou a Sr. a Fichini com um vestido de uma elegância ridícula para o campo. De seda lilás, guarnecido de rendas e fitas de veludo, o corpo tão ridículo como a saia, e, com tanta roda, que foi preciso Sofia passar para o assento dianteiro da carruagem para deixar a madrasta só com o seu imponente vestido. Só a cabeça de Sofia se descobria, a custo, no meio do montão de folhos de seda, que quase a cobriam. A carruagem era descoberta; à sua chegada estavam todos na varanda. A Sr. a Fichini desceu, triunfante, gorda, vermelha e sarabulhenta. Brilhavam-lhe os olhos de satisfação; imaginava-se objecto da admiração geral, com o seu vestido extravagante, os braços nus e gordos, um pequeníssimo chapéu, cheio de plumas de todas as cores, encarrapitado nos cabelos ruivos, e um colar de diamantes ao pescoço. Viu com secreta satisfação os vestidos ataviados de todas as outras senhoras. As Sr Fleurville e Rosbourg vestiam de preto e os seus penteados era tudo o que havia de mais simples. As outras senhoras vestiam, umas, sedas ligeiras, outras étamines. Nenhuma tinha jóias espaventosas nem penteados exagerados. A Sr. a Fichini não se enganava ao pensar que a sua indumentária daria nas vistas, apenas se enganava no efeito que produziria: em vez de admiração, provocou compaixão e escárnio.

"Cá estou, minhas queridas senhoras", disse descendo do carro e mostrando os pés enormes calçados de cetim lilás, igual ao vestido; "cá estou com Sofia, como S. Roque e o seu cão".

Sofia, escondida, de princípio, pelo vestido da madrasta, apareceu, por seu turno, com um vestido bem diferente do dela: uma espécie de camisa de chita, atado à cinta por um cordão. A pobre criança tinha as mãos espalmadas no ventre.

"Cumprimente estas senhoras", disse-lhe a madrasta. "Com mais elegância! De que lhe serviram os professores de boas maneiras? E paguei-lhes eu uma fortuna por cada lição para te ensinarem a andar e a cumprimentar com elegância! Não sei o que me parece esta paspalha com as mãos na barriga "

"Bom dia, minha querida Sofia", disse a Sr. a Fleur ville; vai falar às tuas amigas. Que vestido maravilhoso, minha senhora! ", acrescentou, a fim de distrair da ment da a atenção da Sr.a Fichini. "Não merecemos tanto luxo!

" Oh, minha querida senhora, que modéstia! Merecem não só isto, mas muito mais. E, depois, no campo, não há remédio senão ir usando os vestidos velhos. "

E a Sr. a Fichini quis sentar-se numa cadeira junto da Sr. a Rosbourg; mas a grande roda das saias empurrou a cadeira e a elegante senhora estatelou-se no chão.

Uma gargalhada geral celebrou o trambolhão. As saias da pobre senhora abriram-se em balão, dentro do qual surgiram duas grandes pernaças; uma, majestosamente rígida, a outra móvel como um rodísio.

A Sr. a Fleurville, ao ver a madrasta de Sofia estatelada no chão, disfarçou, conforme pôde, a vontade de rir, e abeirou-se dela para a ajudar a levantar-se. Baldados esforços. Se não fossem os dois convidados, os Srs. Vordel e Paln, nunca mais a senhora se tinha levantado.

Por fim, lá a içaram. Estava púrpura e furiosa, não tanto pela queda como pelas gargalhadas. Lamentava-se de ter esfolado uma perna.

Sofia, prudentemente afastada, deixava que os outros se ocupassem da madrasta; quando tudo serenou, pediu, baixo, a Camila para saírem.

"Aonde queres ir? ", disse Camila. "Olha que vamos já jantar".

Sofia, sem responder, afastou um pouco as mãos e mostrou uma grande nódoa de café com leite no vestido.

SOFIA (muito baixo) - Queria lavar isto.

CAMILA (baixo) - Como é que fizeste isso? No carro? SOFIA (baixo) - Não foi no carro, foi de manhã, ao almoço; entornei a chávena por cima de mim.

CAMILA (baixo) - E porque não mudaste de vestido antes de vir?

SOFIA (baixo) - A minha madrasta não quer; desde que caí ao poço, mandou-me fazer vestidos como este, e só os posso mudar de três em três dias.

CAMILA (baixo) - Porque não disseste, ao menos, à criada para te lavar isso?

SOFIA (baixo) - A minha madrasta não deixa; e a criada tem medo dela.

Camila chamou baixinho Madalena e Margarida, e saíram todas quatro. Correram ao quarto, Madalena foi buscar água, Margarida sabão. Tanto lavaram, tanto esfregaram, que a nódoa desapareceu. O vestido ficou molhado, mas Sofia voltou a pôr as mãos na barriga, à espera que enxugasse. Quando voltaram à sala, ia principiar o jantar. A Sr. a Fichini coxeava um pouco; e como estava encantada com os cuidados que parecia inspirar a toda a gente, não reparou sequer que Sofia comia por quatro.

Depois do jantar, foram todos passear. No pomar, a Sr. a Fleurville mostrou-lhes umas pêras lindíssimas, muito grandes e muito saborosas. A pereira, muito nova, só tinha quatro pêras.

Todos admiraram o tamanho das pêras.

"Ficam todos convidados a provarem-nas, de hoje a oito dias. Então já devem estar maduras", acrescentou a Sr. a Fleurville.

As pequenas iam todas juntas: Camila, Madalena, Margarida e Sofia, a quem as pêras tentavam. Que bom apanhá-las e comê-las Mas como? "Se pudesse ficar para trás sozinha! ", pensava ela. "Mas como afastar Camila, Madalena e Margarida? Aborrecidas! Não a largavam um só instante "

Foi então que sentiu cair-lhe uma meia.

" Óptimo, cá está o pretexto "

Parou junto à pereira tentadora, e pôs-se a arranjar a meia: pelo canto do olho espreitava se as amigas continuavam a andar.

"Que estás tu a fazer? ", disse Camila, voltando-se. SOFIA - A arranjar as meias, que me estão a cair. CAMILA - Queres que te ajude?

SOFIA - Não, não, obrigada; eu cá me arranjo. CAMILA - Então espero por ti.

SOFIA (com impaciência) - Não, vai-te embora, que maçada!

Camila, surpreendida pela irritação de Sofia, aproximou-se de Madalena e Margarida.

Mal ela se afastou, Sofia estendeu o braço, arrancou uma das pêras e meteu-a ao bolso: quando ia, porém, a colher a segunda, Camila voltou-se e viu-a esconder o que quer que fosse dentro do vestido.

Camila, a ajuizada e obediente Camila, incapaz de cometer uma acção tão feia, não percebeu logo o que se passava.

CAMILA (rindo) - Que fazes tu aí, Sofia? Que escondeste tu no vestido? Estás tão corada.

SOFIA (furiosa) - Não foi nada, não escondi nada, menina; qual estou vermelha.

CAMILA (gracejando) - Não estás vermelha? Estás, sim; Madalena, Guida olhem para a Sofia: diz que não está vermelha!

SOFIA (chorando) - Não digas isso; queres fazer-me arreliar, para que ralhem comigo. Por isso pões-te para aí a gritar que estou vermelha. Não estou, não, não estou vermelha! tu é que és má!

CAMILA (cada vez mais admirada) - Sofia, minha querida Sofia, que tens tu? Eu não queria arreliar-te, e muito menos fazer com que te ralhassem. Se te magoei, perdoa-me.

E a boa Camila abeirou-se de Sofia, para beijá-la. Mas ao estreitá-la, sentiu qualquer coisa dura e grande que a afastava: baixou os olhos e viu o bolso de Sofia muito cheio. Não havia dúvida: eram as pêras. Olhou para a pereira e compreendeu tudo.

"Ah, Sofia, Sofia", exclamou, repreensiva. "Que coisa tão feia tu fizeste "

"Deixa-me, mexeriqueira", respondeu Sofia, de mau modo. "Eu não fiz nada; não tens o direito de ralhar comigo; deixa-me, e livra-te de me ires acusar. "

"Não costumo acusar ninguém, Sofia. Deixo-te, sim; não quero estar ao pé de ti, nem do teu bolso cheio de pêras roubadas. "

Sofia, ao ouvir isto, perdeu a cabeça; ergueu a mão, disposta a bater em Camila. Reflectiu, porém, que seria chamar a atenção e ser surpreendida com as pêras. Bai xou o braço, e, voltando as costas a Camila, desapareceu por uma porta do pomar. Escondida ao pé de umas ár vores, pôs-se a comer a fruta roubada.

Camila, imóvel, ficou-se a olhar para onde Sofia desaparecera. Não deu pelos convidados que voltavam nem pela surpresa com que a fitavam sua mãe, a Srá bourg e a Sr á Fichini.

"Olhe, querida amiga", disse a Sr. a Fichini, "duas das suas belas pêras desapareceram".

Camila estremeceu; olhou para a pereira, depois para as senhoras.

"Sabes o que é feito delas, Camila", perguntou a Sr á Fleurville.

Camila nunca mentia.

"Sei, sim, mamã. "

"Estás com cara de culpada. Não foste tu quem as tirou, pois não? "

" Oh, não mamã!"

"Mas então onde estão elas? Quem as apanhou? "

Camila não respondia.

SRá ROSBOURG - Responde, Camilinha; visto que sabes onde estão as pêras, deves dizê-lo.

CAMILA (hesitando) - Eu... eu... Eu não devo

dizer...

SR á FICHINI (rindo às gargalhadas) - Ah, ah, ah É como a Sofia, que rouba, come as frutas e depois nega.

Ah, ah, ah! Este anjinho não é melhor do que o meu demónio! Ah, ah, ah! Dê-lhe com umas correias, e verá como ela confessa, minha senhora.

CAMILA (com vivacidade) - Não minha senhora, eu não faço como a Sofia. Nem roubo nem nunca menti!

SR á FLEURVILLE - Mas, Camila, se sabes quem roubou as pêras, por que razão o não dizes?

Camila baixou os olhos, corou e disse, em voz consumida: "Não posso dizer".

" A Sr á Rosbourg tinha tal confiança em Camila, que não hesitou um instante em crê-la inocente. Adivinhava que Camila se calava por generosidade. Disse-o, baixo, à Srá Fleurville, que fitou, por momentos, Camila, e abanando a cabeça afastou-se com a Srá Rosbourg e a Sra Fichini. Esta última ria com ar de troça. A pobre

Camila, ao ver-se só, desatou a chorar.

Soluçava ainda, quando ouviu Madalena e as outras meninas chamarem-na.

"Camila! Camila! onde estás tu? Procuramos-te há tanto tempo "

Camila enxugou rapidamente as lágrimas, mas não pôde esconder a vermelhidão dos olhos e a cara afogueada.

"Camila, minha querida Camila, porque choras? ", perguntou Margarida, inquieta.

" Eu. eu não choro! estou apenas. estou. triste. E, não podendo reter as lágrimas, recomeçou a chorar. Madalena e Margarida abraçaram-na e cobriram-na de beijos, insistindo para que lhes dissesse o que acontecera.

Mal Camila pôde falar, contou que a acusavam de ter tirado as pêras que a mãe guardava com tantos cuidados. Sofia, que estivera impassível até então, corou, confusa e perguntou, por fim, com voz trémula de emoção: "Tu não disseste. que sabias. que tinhas visto. "

CAMILA - Não, não disse; não disse nada. MADALENA - Mas tu sabes quem tirou as pêras? CAMILA (muito baixo) - Sei.

MADALENA - E porque não o disseste? Camila ergueu os olhos para Sofia, e não respondeu. A perturbação de Sofia era cada vez maior; Madalena e Margarida estranharam o embaraço de Camila, e a atrapalhação de Sofia. Por fim, Sofia, arrependida e cheia de gratidão pela generosidade de Camila, deitou-se-lhe aos pés, soluçando: "Perdoa-me, oh! perdoa-me, boa Camila! Fui má, muito má, mas não me queiras mal ".

Margarida olhou para Sofia, com olhos inflamados de cólera; não lhe perdoava ter causado mais este desgosto a Camila.

"Má Sofia", exclamou ela. "Não vens cá senão para fazer mal; no outro dia fizeste com que castigassem Camila; hoje, faze-la chorar. Detesto-te, e desta vez para sempre; por tua causa imaginam todos que Camila é gulosa, ladra e mentirosa".

Sofia voltou para Margarida um rosto lavado em lágritmas e respondeu com doçura:

"Sim, Margarida, vejo que tenho mais alguma coisa a fazer além de pedir perdão a Camila; vou já dizer à minha madrasta e a toda a gente que fui eu quem roubou as pêras, que mereço um grande castigo e que tu, minha querida Camila, só mereces elogios e recompensas. "

"Espera, Sofia", exclamou Camila, agarrando-a por um braço; "e tu, Margarida, envergonha-te de seres tão severa: repara no seu arrependimento".

Margarida, depois de uma luta bem visível, aproximou-se de Sofia e beijou-a, com lágrimas nos olhos.

Sofia continuava a chorar, tentando soltar-se para correr a confessar o que tinha feito. Mas Camila sacudia-a, dizendo:

"Ouve, fizeste uma coisa feia, muito feia, mesmo,

mas como te arrependeste, diminuíste a tua falta. Confessa, se quiseres, à mamã e à Sr. a Rosbourg; mas para que hás-de dizê-lo a tua madrasta, que é tão severa, e te vai castigar brutalmente "

"Porquê? Para que ela te não julgue culpada. Vai-me bater, bem sei. Mas não o mereço eu? "

Neste momento, saiu da estufa a que as crianças estavam encostadas a Sr. a Rosbourg.

"Ouvi tudo, minhas filhas", disse ela: "cheguei à estufa no momento em que vieram ter com Camila. Serei eu quem se encarregará de toda esta questão. Direi à Sr. a Fleurville a verdade; mas à Sr. a Fichini apenas direi que Camila estava inocente e que já se descobriu o culpado, sem dizer quem. Minha Camilinha, procedeste generosamente, mereces todos os elogios. Tu, Sofia, começaste por ser muito feia, mas o teu arrependimento e o desejo de confessar a tua culpa atenuam o que fizeste. Margarida, foste muito severa para com Sofia. O teu amor por Camila fez-te cruel. E, agora, é tratar de esquecer, e acabar alegremente o dia. Tenho uma surpresa: vamos fazer uma lotaria e há prémios para todos".

Esta novidade dissipou todas as nuvens. A alegria voltou, de novo, a todos os rostos. Correram todas para a sala, onde as esperavam para começar.

A Sofia coube um trem completo de cozinha e uma papeleira; a Camila, uma linda caixa de tintas, e com gravuras para colorir, com tudo que era preciso para pin tar; a Madalena, quarenta volumes de lindas histórias e uma bonita caixa de costura. A Margarida, uma linda boneca de cera, e um enxoval completo dentro de uma cómoda muito engraçada.

 

                   A boneca molhada

Depois de ter muito brincado, muito conversado, e tomado sorvetes com bolos, Sofia foi-se embora com a madrasta. Camila, Madalena e Margarida foram deitar-se.

A Sr. a Fleurville encheu Camila de beijos. A Sr. a Rosbourg havia-lhe contado a história das pêras; ambas tinham explicado à Sr. a Fichini como Camila estava inocente, sem lhe darem azo a suspeitar de Sofia.

Margarida estava encantada com a sua linda boneca e com o enxoval.

Margarida tinha chamado Camila e Madalena, para que elas vissem as lindas coisas que a cómoda continha; durante uns dias não fizeram outra coisa senão vestir e despir, levantar e deitar as bonecas.

Uma tarde, a Sr á Fleurville chamou-as:

"Camila, Madalena, Margarida, ponham os chapéus; vamos dar um passeio. "

CAMILA - Vamos depressa com a mamã, Margarida, deixa a boneca, corre!

MARGARIDA - Não, levo a minha boneca comigo; quero tê-la sempre ao colo.

MADALENA - Se a deixares cair no chão, fica toda suja e esfrangalhada.

MARGARIDA - Mas não a deixo cair ao chão, levo-a no Colo.

CAMILA - Deixa-a lá, Madalena; deixa-a; ela verá depois que uma boneca não a deixa correr à vontade.

Margarida teimou em levar a boneca e todas três foram ao encontro da Sr. a Fleurville.

"Aonde vamos, mamã? " disse Camila.

"Ao moinho da floresta, minhas meninas. " Margarida fez uma careta; o moinho ficava no fundo de uma grande avenida e a boneca era pesada para os seus bracitos.

Chegada a meio do caminho, a Sr. a Fleurville, receosa de que as crianças estivessem cansadas, sentou-se ao pé de uma grande árvore, e disse-lhes que descansassem enquanto ela lia. Pegou num livro e começou a ler. Margarida sentou-se ao pé dela, mas Camila e Madalena, que não estavam cansadas, puseram-se a correr de um lado para o outro, a colher flores e morangos.

"Camila! Camila! ", exclamou Madalena. "Vem depressa; há aqui muitos morangueiros. "

Camila acorreu e chamou Margarida:

"Margarida, Margarida, vem também apanhar morangos: estão maduríssimos e são muito bons. "

Margarida foi logo juntar-se às amigas, que punham os morangos em grandes folhas de castanheiro. Pôs-se também a colhê-los, mas, atrapalhada com a boneca não podia apanhá-los e tê-los na mão ao mesmo tempo, de maneira que os esborrachava, à medida que os colhia.

"Que hei-de fazer, meu Deus, a esta maçadora boneca? ", disse consigo. "Nem me deixa correr nem apanhar morangos. Se eu a pusesse ao pé daquela árvore? Há um bocadinho de relva; fica ali muito bem. "

Sentou a boneca junto à árvore, pulou de alegria por se ver desembaraçada dela, e pôs-se a apanhar morangos com entusiasmo.

Daí a pouco a Sr. a Fleurville, vendo que o céu se cobria de grandes nuvens, guardou o livro e chamou as meninas.

"Depressa, minhas filhas, depressa, voltemos para casa. Vem aí uma grande tempestade: tratemos de chegar a casa antes que comece a chover. "

As três pequenas correram, carregadas de morangos, que ofereceram à Sr. a Fleurville.

SR á FLEURVILLE - Não há agora tempo para os saborear, minhas filhas. Levem-nos para casa. Vejam como o céu está escuro; já se ouvem os trovões.

MARGARIDA - Ai, tenho tanto medo!

SR á FLEURVILLE - De que tens medo?

MARGARIDA - Dos trovões. Tenho medo de que me caia alguma faísca em cima.

SR á FLEURVILLE - Em primeiro lugar, as faíscas caem, geralmente, nas árvores ou nas chaminés, por serem mais elevadas e por serem como que pontas para as nuvens mas ainda mesmo que te caíssem em cima não te fariam mal, pois tens um cabeção de seda e fitas de seda no chapéu.

MARGARIDA - Então a seda não deixa fazer mal? SR á FLEURVILLE - Não; a faísca nunca faz mal a pessoas que tenham sobre si alguma coisa de seda. O Verão passado, um amigo meu que vive em Paris, quando voltava para casa em certa noite de grande tempestade, caiu-lhe em cima uma faísca; fundiu-lhe o relógio, a corrente, os botões de punho e até as chaves que tinha no bolso, sem Lhe fazer mal nenhum. Nem sequer o atordoou. Sabes porquê? Por causa de uma cinta de seda que ele trazia.

MARGARIDA - Fico muito contente por saber isso. Nunca mais tenho medo da trovoada.

  1. FLEURVILLE - Olhem o vento que se está a levantar! Corramos! não tarda que caia um aguaceiro torrencial.

As três meninas desataram a correr.

A Sr. a Fleurville seguia-as a passo largo, mas de nada Lhes serviu: a tempestade andava mais depressa do que elas. Começaram a cair grossas gotas, cada vez mais cerradas. O vento soprava com violência. As meninas deitaram as saias pela cabeça, e corriam, rindo; achando graça às saias, feitas balões com o vento, e às grossas gotas, que lhes caíam em cima. Estavam convencidas de que iam apanhar toda a tempestade antes de chegarem a casa, mas entraram no vestíbulo precisamente quando a saraiva lhes começava a açoitar a carne e a encharcá-las.

"Depressa: vamos mudar de vestidos, de sapatos e de meias, minhas filhas", gritou a Sr. a Fleurville, ao subir para o quarto a fim de mudar também de roupa.

Foi impossível sair durante o resto da tarde; choveu torrencialmente; as meninas brincaram às escondidas dentro de casa; as Sr. a Fleurville e Rosbourg brincaram com elas até às oito horas. Margarida foi-se deitar; Camila e Madalena, cansadas da brincadeira, pegaram cada uma no seu livro e liam atentamente (Camila o Robinson Suiço, Madalena Os Contos de Grimm) quando apareceu Margarida em camisa de noite, a chorar e a gritar.

Camila e Madalena precipitaram-se, cheias de terror, para Margarida. As senhoras, que também se haviam posto de pé, subitamente, perguntaram a Margarida que significava aquilo.

Margarida não podia responder, sufocada pelas lágrimas. A Sr.a Rosbourg examinou-lhe braços, pernas e todo o corpo, e como não a visse ferida, mais se inquietou ainda, sem saber a que atribuir aquela aflição.

Por fim, Margarida pôde articular:

"A minha. boneca. a minha linda boneca. ficou na. floresta. ao pé. de uma. árvore. A minha rica. boneca. a minha boneca "

E Margarida redobrou no seu choro.

"A tua boneca nova, na mata? " exclamou a Sr. a Rosbourg. "Mas como? Mas como pode isso ser? "

"Levei-a quando fomos passear, e sentei-a ao pé de uma árvore, porque não me deixava apanhar os morangos. Quando nos pusemos a fugir por causa da chuva, tive tanto medo da trovoada, que me esqueci dela. "

"Talvez o castanheiro a tenha protegido da chuva. Mas para que a levaste tu? Tenho-te sempre dito que não deves levar as bonecas quando vais passear para longe. "

"Madalena e Camila disseram- me que a não levasse mas eu quis levá-la. "

"Vês, Margarida, como o Pai do Céu castiga as meninas teimosas? Fez com que te esquecesses da boneca. vai fazer-te estar em cuidado até amanhã sem saberes que lhe aconteceu, se estará molhada, estragada, ou espatifada pelos animais que vivem na floresta. Quem sabe mesmo se ta roubarão? "

"Oh minha mãe, peço-lhe, mande um criado procurar a minha querida boneca! Explicar-lhe-ei tão bem onde a deixei, que a encontrará logo. "

"Estás doida, filha! A chover desta maneira queres que vá um pobre criado procurar a boneca na floresta, onde não se vê um palmo adiante dos olhos, com risco de adoecer ou de ser atacado pelos lobos? Isso nem parece coisa do teu bom coração. "

"Mas a minha boneca, a minha pobre boneca, que vai ser dela? Meu Deus, meu Deus! Ficará toda suja e estragada "

"Minha querida filha, tenho muita pena do que te aconteceu, mas a culpa é só tua. Agora não tens remédio senão esperar por amanhã de manhã. Se o tempo permitir, iremos procurar a tua infeliz boneca. "

Margarida vergou a cabeça e foi para o seu quarto, toda em lágrimas, dizendo que não poderia dormir. Não queria deitar-se mas a criada obrigou-a; soluçou, soluçou e acabou por adormecer, para só acordar no dia seguinte

de manhã.

O tempo estava lindo; Margarida saltou da cama, lavou-se e vestiu-se para correr em busca da boneca.

Depois de lavada e penteada, tomou o pequeno almoço e correu ao encontro das amigas e da mãe, que, já prontas havia muito, esperavam por ela.

"Vamos", exclamaram elas; "depressa, querida mamã, estamos todas prontas".

"Vamos lá então procurar a árvore onde a boneca passou uma noite tão triste. "

Puseram-se todas a caminho; as mamãs quase corriam e as meninas corriam mais do que andavam; nenhuma falava e o coração batia-lhes mais, à medida que se aproximavam.

"Já vejo o castanheiro onde ela deve estar", exclamou Margarida.

Mais uns passos, e chegaram junto da árvore. Nem lá estava a boneca nem nada que indicasse ela lá ter estado.

Margarida fitava as amigas, consternada. Camila e Madalena pareciam desoladas.

"Tens a certeza de que a deixaste aqui? ", perguntou a Sr. a Rosbourg.

"Tenho, mamã, tenho. "

"Olha, aqui está a prova", disse Madalena, apanhando na relva um sapatinho de cetim azul.

Margarida pegou no sapato, examinou-o e desatou a chorar. Ninguém proferiu palavra; as mamãs retomaram o caminho de casa e as meninas seguiram-nas, cabisbaixas. Todas se perguntavam a si próprias:

"Mas que aconteceria à boneca? Porque não aparecerão vestígios dela? A chuva podia tê-la molhado e estragado, mas não a podia fazer desaparecer E os lobos não a levavam. "

Reflectindo assim, chegaram a casa, desconsoladas.

Margarida foi ao quarto, pegou em toda a roupa     

da boneca, dobrou-a cuidadosamente e meteu-a nas gavetas da cómoda, tal como a tinha encontrado. Depois fechou as gavetas e foi dar a chave a Camila.

"Toma, Camila", disse ela, "aqui tens a chave

da minha comodazinha; peço que a guardes na tua secretária.

Visto que a boneca se perdeu, quero guardar as suas coisas. Quando tiver dinheiro comprarei outra igual,     para

lhe poder vestir os vestidos e chapéus desta".      

Camila não respondeu; beijou Margarida, pegou     na chave e pô-la dentro de uma das gavetas da secretária,            murmurando " Pobre Margarida! "

Madalena, calada, sofria com a dor de Margarida, sem saber como consolá-la. De repente o rosto iluminou-se-lhe; levantou-se, correu à sua caixa de trabalho, tirou dela uma bolsa, e voltou, correndo, para junto de Margarida.

"Toma, minha querida Guida, tens aqui com que comprar outra boneca; juntei este dinheiro para comprar uns livros de que não preciso. Que contente eu estou por não os ter ainda comprado! Assim terás uma boneca exactamente igual à que perdeste. "

"Obrigada, minha boa, minha querida Madalena! ", disse Margarida, rubra de alegria. "Muito obrigada. Vou pedir à mamã que ma mande comprar. "

E correu ao quarto da Sr. a Rosbourg, que Lhe prometeu comprar a boneca logo que fossem a Paris.

 

                   Joaninha, a ladra

Madalena foi muito elogiada pelo seu generoso sacrifício. Haviam decorrido três dias desde que desaparecera a boneca. Margarida esperava, com impaciência, que alguém fosse a Paris, para lhe trazer a prometida boneca. Enquanto a dela não vinha, brincava com a de Madalena. Estava um dia muito quente. As três crianças brincavam no jardim à sombra de frondosas árvores. Madalena lia, Camila tecia uma coroa de flores para a a boneca, que Margarida penteava. A padeirita Susana, que levava dois pães para a cozinha, passou junto delas. Parando diante de Margarida, encarou atentamente com a boneca, e disse:

"É bem bonita a sua boneca, menina "

MARGARIDA - Nunca viste nenhuma tão bonita, pois não, Susana?

SUSANA - Ah, já vi,   sim, menina: vi uma ainda mais bonita, ontem.

MARGARIDA - Mais bonita do que esta? Onde, Susana?

SUSANA - Muito perto daqui. Tem um lindo vestido lilás. É da Joaninha.

MARGARIDA - Da Joaninha, da moleirita? E quem lhe deu uma boneca assim tão linda?

SUSANA - Ah, isso não sei, menina. O que lhe posso dizer é que a tem há três dias.

Camila, Madalena e Margarida entreolharam-se admiradas: começavam a suspeitar de que a linda boneca de Joaninha pudesse muito bem ser a de Margarida.

CAMILA - Essa boneca tem tamancos?

SUSANA (rindo) - Oh!           não, menina; tem um pé com um lindo sapatinho azul, e o outro descalço. E um chapéu de palha com uma pluma branca.

MARGARIDA (erguendo-se da cadeira) - É a minha boneca, a minha pobre boneca, que eu deixei há dias debaixo do castanheiro, no dia da trovoada.

SUSANA - Essa agora!         Joaninha disse-me que lha tinham dado, mas que não dissesse nada, para lha não cobiçarem.     

CAMILA (baixo a Margarida) - Deixa ir a Susana embora, e vamos contar à mamã o que ela disse.

Camila, Madalena e Margarida correram à sala onde a Sr. a Fleurville escrevia, enquanto a Sr. a Rosbourg tocava piano.

CAMILA e MADALENA (precipitando-se) - Minha senhora, minha senhora, deixe-me ir ao moinho. Joaninha tem a boneca de Margarida; é preciso tirar-lha.

SR á ROSBOURG - Mas que tolice, minhas filhas! Perderam a cabeça! Como é possível que a boneca de Margarida fosse parar às mãos de Joaninha?

MADALENA - Mas, minha senhora, Susana viu-a! Joaninha disse-lhe que não dissesse nada, e que lha tinham dado.

SR á FLEURVILLE - Ora, minha filha, é alguma boneca barata vestida de papel, que Susana acha muito bonita, porque nunca viu nenhuma melhor.

MARGARIDA - Não, minha senhora, é a minha boneca: tem um vestido de seda lilás, um sapatinho azul, e um chapéu de palha com uma pluma branca.

SRa ROSBOURG - Ouve, Margarida, vai buscar a Susana; vou interrogá- la, e se tiver razões para suspeitar que seja a tua a boneca de Joaninha, vamos ao moinho.

Margarida partiu como uma seta; minutos depois voltou com Susana, toda envergonhada por entrar numa sala tão linda, e estar na presença das senhoras.

SRá ROSBOURG - Não estejas envergonhada, Susana; quero que me contes o que sabes da linda boneca de Joaninha. É verdade que ela tem uma boneca muito bonita e muito bem vestida?

SUSANA - É, sim, minha senhora.

  1. a ROSBOURG - Como é o vestido?

SUSANA - De seda lilás, minha senhora.

SR á ROSBOURG - E o chapéu?

SUSANA - De palha, minha senhora; redondo, com uma pluma branca e enfeites de veludo preto.

SR á ROSBOURG - Ela disse- te quem lha tinha dado?

SUSANA - Isso não, minha senhora; não mo quis dizer porque lho proibiram.

SR á ROSBOURG - Há muito tempo que ela tem essa boneca?

SUSANA - Há três dias; disse-me que a tinha trazido da cidade, no dia da trovoada.

  1. a ROSBOURG - Obrigada, Susana; podes ir-te embora; toma estes rebuçados para te entreteres pelo caminho.

E deu-lhe um grande cartucho de rebuçados. Susana fez-se escarlate de alegria e desapareceu.

"Querida amiga", disse a Sr. a Fleurville à Sr. a Rousbourg, "não há dúvida de que a tal Joaninha tem a boneca de Margarida. Ponham os chapéus, meninas, para irmos ao moinho".

As meninas não se fizeram rogar; em menos de três minutos estavam prontas. Puseram-se a caminho; em vez da consternação e do silêncio de três dias antes, as crianças corriam e saltavam, falando todas ao mesmo tempo.

Em menos de meia hora chegaram ao moinho. Iam precipitar-se todas três pelo moinho dentro, quando a Sr á Rousbourg as deteve:

"Não digam palavra, minhas filhas, nem mostrem impaciência; estejam quietas ao pé de mim; só falem quando virem a boneca."

Contiveram-se a custo; brilharam-lhes os olhos, entreabriram a boca, como para falar, fizeram esforços para não desatarem a correr. As mamãs obrigaram-nas a passar para trás delas e assim entraram todas no moinho.

A moleira veio abrir-lhes a porta, muito cumprimentadora, e ofereceu- lhes cadeiras.

"Sentem-se, minhas senhoras. Aqui estão cadeirinhas baixas para as meninas. "

A Sr. a Fleurville, a Sr. a Rosbourg e as crianças sentaram-se; as meninas agitavam-se nas cadeiras; a Sr. a Rosbourg fez-lhes sinal para estarem quietas.

SR á FLEURVILLE - Então, Sr. a Leonarda, como vai       isso?

MOLEIRA - Muito obrigada, minha senhora; vamos imdo, com a graça de Deus.

SRa FLEURVILLE - A sua filha, a Joaninha, onde está?

MOLEIRA - Não sei, minha senhora; talvez lá para cima.

SR á FLEURVILLE - As meninas queriam vê-la; chame-a...          MOLEIRA (à porta) - Joaninha, Joaninha! (esperou um momento) Joaninha, anda cá! Onde te meteste tu? Não quer vir! Tem vergonha, naturalmente.

SR á FLEURVILLE - Mas vergonha de quê?          MOLEIRA - Quando vê as senhoras, fica a modos apatetada com a alegria.             SRa FLEURVILLE - Pois eu gostava de a ver. Se ela é boa rapariga e tem juízo, queria dar-lhe um lenço de seda e um avental para trazer aos domingos.

A Sr. a Leonarda, ao ouvir isto, ficou radiante. Chamou outra vez a filha, correu ao andar de cima, e por fim trouxe-a arrastada por um braço! Joaninha debatia-se, queria esconder-se.

MOLEIRA - Acabas com isso, endemoninhada, estafermo?

JOANINHA (gritando) - Deixe-me, quero ir embora, tenho medo.

MOLEIRA - De que tens medo? Que estas senhoras te comam?

Joaninha acalmou-se; a Sr. a Leonarda largou-lhe o braço; mas ela fugiu e foi esconder-se no quarto. A mãe estava fula, com receio de perder o lenço e o avental.

"Espera aí, velhaca", exclamou ela, "eu já te ensino, vais ver".

A Sr. a Fleurville susteve- a, dizendo-lhe: "Deixe-a comigo, conheço bem os cantos à casa, eu a encontrarei. "

A Sr. a Fleurville, seguida pela moleira, entrou no quarto. Joaninha tinha-se escondido atrás de uma cadeira. A Sr. a Fleurville, sem dizer palavra, puxou-a para fora e sentou-a numa cadeira, segura pelas mãos. Depois disse-lhe:

"Porque te escondes, Joaninha? Dantes corrias ao meu encontro quando vinha ao moinho. "

Joaninha, de cabeça baixa, não respondia. "Joaninha, onde encontraste a linda boneca que tens há dias "

JOANINHA (com vivacidade) - Susana é uma mentirosa; não viu boneca nenhuma. Eu não lhe disse são nada. tudo petas que ela inventa.

SR á FLEURVILLE - Como sabes tu que foi a Susana quem me disse?

JOANINHA - Ela só faz maldades; é uma trapaceirona.

SR á FLEURVILLE - Mas porque a acusas? Eu não falei nela.

JOANINHA - Não acredite na Susana, nem nas outras. Eu não disse a ninguém que me tinham dado a boneca. Não tenho boneca nenhuma; são tudo mentiras! SR á FLEURVILLE - Quanto mais falas, mais mentes. É o que tens é medo de que te tirem a boneca que encontraste na mata, no dia da trovoada.

JOANINHA - Não tenho medo, não! Não encontrei nada debaixo do castanheiro. Não sei da boneca da menina Margarida.

SRa FLEURVILLE - Como sabes que se trata da boneca da menina Margarida? Como sabes tu que ela estava debaixo do castanheiro?

Joaninha, vendo-se cada vez mais descoberta, pôs-se a gritar e a estrebuchar. A Sr. a Fleurville largou-a e começou a procurar a boneca. Abriu um armário, destapou uma arca, mas nada encontrou. Por fim, vendo que Joaninha se agarrava à cama, como a impedir que se aproximassem dela, baixou-se e viu a boneca debaixo do leito. Voltou-se para a moleira, e ordenou-lhe, com severidade, que tirasse a boneca dali. A Sr.a Leonarda obedeceu a tremer e entregou a boneca à Sr. a Fleurville.

"Sabia que a sua filha tinha a boneca? "

"Não, minha boa senhora", respondeu a Sr. a Leonarda. "Se soubesse já lha tinha levado porque sabia bem que essa boneca era da menina Margarida. Estivemos a vê-la a última vez que ela cá veio". Voltando-se para a

Joaninha: "Deixa estar, minha ladra, já vais ver como te    ensino. Não te há-de ficar mais vontade de roubar e mentir. Vi logo, mal abriste a boca, que estavas a mentir à senhora. Já vais ver como as correias trabalham; não perdes nada com a demora".

Joaninha chorava e suplicava, protestando que não tornaria. A Sr. a Leonarda, longe de se deixar comover, repelia- a, ora com um murro ora com um tabefe. A Sr. a Fleurville, com receio de que a correcção fosse demasiado severa, procurou acalmar a Sr. a Leonarda. Final mente conseguiu dela a promessa de que não bateria na filha; fechá-la-ia apenas no quarto por todo o resto do dia. As crianças estavam consternadas com o que viam. As mentiras de Joaninha, a sua confusão perante a boneca encontrada, a cólera e as ameaças da mãe afligiam- nas.

A Sr. a Fleurville entregou a boneca a Margarida, disse adeus à moleira, e saiu com a Sr. a Rosbourg e as três meninas. Iam todas em silêncio quando um grito as fez parar. Outros gritos se seguiram: era Joaninha a contas com as correias. Devia ter apanhado uma sova mestra pois já muito longe, ainda se lhe ouviam os gritos. O fim da história da boneca perdida deixou-as tristes para todo o dia.

 

                   De visita a Sofia

"Minhas cridas amigas, venhão jentar cumigo amanhã. A minha madrasta pede iço ha voça mameim. Jentemos as cincu oras para brinqar antes e ir paciar dispois. Apostu que esqrevi tulices; pessu que não cassoen de mim.

Voça amiga Sofia"

Camila recebeu esta carta dias depois da aventura da boneca. Não pôde deixar de rir de tanto disparate. Mas, como era muito boa, não a mostrou a Madalena nem a Margarida; foi ter com a mãe.

CAMILA - Mamã, Sofia convida-nos, em nome da madrasta, para irmos jantar com elas amanhã.

SR á FLEURVILLE - Jesus! Que aborrecimento! Pois tu tens vontade de aceitar, Camila?

CAMILA - Tenho, sim, mamã. Gosto de Sofia. É tão infeliz, coitadinha!

SR á FLEURVILLE - Isso só prova o teu bom coração. Olha que por causa de Sofia já foste castigada duas vezes e duas vezes ralharam contigo.

CAMILA - Oh mamã, mas ela ficou tão arrependida do que fez!

SRá FLEURVILLE (beijando Camila) - Bem, bem, minha boa Camilinha, manda-lhe dizer que sim: "iremos, com certeza".

Camila agradeceu muito à mãe e correu a prevenir Madalena e Margarida. Depois, pôs-se a escrever a Sofia.

"Minha querida Sofia:

A mamã e a Sr.a Rosbourg irão jantar amanhã com a tua madrasta; e nós iremos com elas. Estamos todas muito contentes e levaremos fatos próprios para podermos brincar à vontade. Adeus, minha querida Sofia: abraça-te

Camila Fleurvil le"

Todo o dia as meninas pensaram na visita do dia seguinte. Margarida queria levar um vestido de musselina branca; Madalena e Camila vestidos simples. A Sr. a Rosbourg pôs fim à disputa, aconselhando-as a levarem todas vestidos de algodão.

Margarida queria levar a sua boneca nova; Camila e Madalena aconselharam-na:

"Tem cuidado, Margarida: lembra-te do castanheiro e de Joaninha. "

MARGARIDA - "Mas amanhã não haverá tempestade, nem matas, nem Joaninha. "

MADALENA - Sim; mas podes esquecer-te dela em qualquer parte, deixá-la cair, partir-se.

MARGARIDA - Que maçada ter de deixar sempre a minha pobre boneca em casa! Coitadinha! deve aborrcer-se muito! Nunca sai! nunca vê ninguém!

Camila e Madalena desataram a rir; Margarida, depois de um momento de hesitação, riu também e concordou que era preferível deixar a boneca em casa.

No dia seguinte de manhã, as meninas trabalharam como de costume. As duas horas foram vestir-se e às duas e meia subiam para o carro descoberto. As Sras Rousbourg e Fleurville sentaram-se no assento principal; as meninas, no da frente. Estava um tempo magnífico, e vinte minutos depois chegavam. A gorda Sr. a Fichini esperava-as no portão; Sofia, atrás dela, não se atrevia a aparecer, com medo de algum bofetão.

"Bom dia, minhas queridas amigas", exclamou a Sr.a Fichini, "bom dia, minhas meninas. Como foram amáveis em vir tão cedo! Assim há tempo para as meninas brincarem e para as mamãs conversarem. Bravo! Mas tenho um favor a pedir-lhes, minhas senhoras. É por causa deste traste da Sofia. Gostaria que ficassem com ela por umas semanas, se quisessem ter o incómodo de o aceitar, está claro, enquanto eu vou sair em viagem".

A Sr. a Fleurville, surpreendida, nada respondeu; aguardava que a Sr. a Fichini se explicasse. Depois as senhoras entraram para a sala e as meninas ficaram no vestíbulo.

"Que disse a tua madrasta, Sofia? ", perguntou Margarida. "Onde vai ela? Porque te não leva? "

"Não sei", respondeu Sofia, suspirando; "sei apenas que há dois dias me bate constantemente e não se cansa de me dizer que me vai deixar sozinha. Parece que vai à Itália".

"E tu tens pena? ", perguntou Camila.

"Nenhuma, principalmente se ficar em vossa casa. Ai, que feliz eu seria com vocês! Nem me bateriam, nem me ralhariam injustamente, nem ficaria sozinha dias inteiros, aborrecida, sem saber que fazer. Às vezes fico para aí a chorar horas a fio sem que ninguém faça caso de mim. "

E a pobre Sofia, ao dizer isto, chorava; as três meninas puseram-se a acarinhá-la. Minutos depois, já todas brincavam no jardim às escondidas. Sofia ria e divertia-se como as outras.

"Meu Deus tenho tanta sede! " choramingou Sofia. " MADALENA - Então porque não vais beber água? SOFIA - A minha madrasta não deixa.

MARGARIDA - Hem? Então não podes sequer beber um copo de água?

SOFIA - Não. Não posso beber nada até ao jantar. MARGARIDA - Pobre Sofia, mas isso é horrível! "Sofia, Sofia! ", gritou, nesse momento, a voz furiosa da Srá Fichini. "Venha aqui imediatamente, menina!

Sofia, pálida e trémula, apressou-se a apresentar-se à madrasta. Camila, Madalena e Margarida, receosas por Sofia, ficaram na saleta, ouvido à escuta.

SR á FICHINI (furibunda) - Anda cá, minha ladra! com que então foste ao vinho, hem?

SOFIA (a tremer) - Que vinho, mamã? Não bebi vinho nenhum.

SR á FICHINI (empurrando-a brutalmente) - Que vinho? mentirosa? O da garrafa que estava no meu quarto.

SOFIA (chorando) - Juro- lhe, mamã, não bebi o seu vinho. Nem sequer entrei no quarto.

SR á FICHINI - Hem? não entraste? Não entraste pela janela? E de quem são as pegadas na areia, debaixo da janela?

SOFIA - Juro-lhe, mamã.

A Sr á Fichini não a deixou acabar; agarrou-a por uma orelha, arrastou-a até ao quarto ao lado, e, apesar dos protestos e das lágrimas da criança, bateu- lhe a mais não poder. Depois foi sentar-se, esfalfada e colériica, no sofá. A indignação sufocava as senhoras. Receavam que, se deixassem transparecer a sua revolta, ainda mais irritassem a Sr. Fichini, levando-a, inclusivamente, a renunciar à ideia de Lhes deixar Sofia durante a viagem. Por isso continuavam caladas: a Sr á Fichini abanava-se com um leque. Elas trabalhavam nos seus bordados.

SR á FICHINI - O que acaba de se passar, minhas senhoras, mais do que nunca me faz desejar separar- me de Sofia. Só receio que as senhoras não queiram receber em sua casa criança tão insuportável.

SR á FLEURVILLE - A maldade de Sofia não me mete medo. Estou certa de que obedecerá sem muito custo.

  1. a FICHINI - Consente então em ficar com ela? Previno-a de que a minha ausência será longa. Não estarei de volta antes de dois ou três meses.
  2. a FLEURVILLE (seriamente) - Não lhe dê isso cuidado, minha senhora; terei muito prazer em lhe prestar esse pequeno serviço.
  3. a FICHINI - Que bondade a sua, minha amiga! Como lhe agradeço! Posso então começar os meus preparativos de viagem?

SR á FLEURVILLE - Quando queira, minha senhora.

  1. a FICHINI - Poderei então partir dentro de três dias?
  2. a FLEURVILLE - Até amanhã, se quiser. SR á FICHINI - Que bom! Como é amável Vou então mandar-lhe Sofia depois de amanhã.
  3. a FLEURVILLE - Muito bem, conto com ela.
  4. a FICHINI - E não Lhe dêem mimos, castiguem-na sem piedade; já viram como é preciso lidar com ela.

Sofia, entretanto, fora juntar-se às amigas que,

cheias de medo, tinham ouvido tudo. Receavam que Sofia, atormentada pela sede, tivesse realmente bebido o vinho e negasse com receio de apanhar.

"Coitada da Sofia", disse Camila, afagando-a; "

tenho muita pena de ti. Mas porque não confessaste à tua madrasta que tinhas bebido o vinho por estares morta de sede? Com certeza que não te bateria tanto".

"Mas se eu não bebi o vinho ", respondeu Sofia, soluçando. "Acredita, não fui eu".

"Mas então de quem serão as pegadas na areia de que falou a tua madrasta? ", perguntou Madalena. "Não foste tu que saltaste pela janela? "

"Não, não fui eu! A ti não mentiria. Acredita que nem saltei pela janela nem toquei no vinho. "

Depois de algumas explicações que nada adiantaram para a descoberta do culpado, as meninas trataram de compor o vestuário da pobre Sofia. Depois foram visitar a jardineira.

 

                   Visita à jardineira

Sofia, triste e magoada pela sova que apanhara, deixou as amigas a admirar as flores e a fazer ramos, e foi para casa da jardineira.

SRá LUCÍLIA - Bom dia, minha menina! Vem a manquejar, e assim a modos estranha. Daria algum trambolhão, como a minha Palmira, que torceu um pé e não pode andar?

SOFIA - Não, Sr. a Lucília, não estou doente. SR á LUCÍLIA - Ah, Já sei, foi a sua mãe que fez das suas. Bateu-lhe à doida. Nem vê onde dá: é pela cabeça, pelos braços, por onde calha.

Sofia não respondeu: chorava.

SR.a LUCÍLIA - Deixe lá, menina, não chore; não se importe; faz pena, sabe? Conhecemos bem que a sua vida

não é de rosas. Digo muitas vezes à minha Palmira:

"Ah! se eu te castigasse como a senhora castiga a menina, não serias tão desobediente". Se a visse, há bocado, como ela me apareceu, cheia de nódoas e com as mãos e a cara todas sujas de areia! Olhe que deve ter dado um grande trambolhão! Jesus!

SOFIA - E onde caiu ela?

SR á LUCÍLIA - Não sei, menina. O demo da rapariga não há meio de se descoser. Aquilo foi lá pelo solar, pois aqui não há areia. E tem o vestido todo sujo de vinho, que é coisa que eu cá não tenho.

SOFIA (admirada) - Vinho! onde arranjou ela vinho?         

SR á LUCÍLIA - Não sei. Não me quer dizer.

SOFIA - Seria ela que foi tirar o vinho ao quarto da minha madrasta?      

  1. a LUCÍLIA - Capaz disso era ela; como vai

muitas vezes levar ervas para os banhos da sua mamã...            

Pode muito bem ser que bebesse a sua golada e não se atreva a dizê-lo. Ah! mas se eu soubesse a verdade, apanhava uma sova como as que a sua mamã costuma dar à menina.   

SOFIA - Pois minha madrasta bateu-me hoje por Julgar que lhe bebi o vinho; juro-lhe que não fui eu.  

A Sr á Lucília mudou de cor, com indignação:        

"Pobre menina! " exclamou. "Será possível que

a minha Palmira fizesse o disparate e a menina pagas favas por ela? Ah mas... ela há-de arrepender-se!

Palmira, anda cá que te quero falar. "          

PALMIRA (do quarto) - Não posso, minha mãe; dói-me muito o pé.

SR á LUCÍLIA - "Então vou eu aí, mais a menina Sofia. "

E as duas entraram no quarto de Palmira, que estava deitada, com o pé muito inchado.

SRa LUCÍLIA - Dize-me cá, meu diabo, onde puseste a perna nesse estado?

Palmira corou, sem dizer palavra.

SR á LUCÍLIA - Eu to digo! foste ao quarto da senhora levar-lhe as ervas para o banho; viste a garrafa, quiseste provar e entornaste o vinho pelo vestido. Depois fugiste pela janela e caíste. Ora aí está porque não queres dizer a verdade. Sabes bem a sorte que te espera. Foi ou não assim?

PALMIRA (chorando) - Foi sim, minha mãe. Foi assim mesmo. Mas Deus castigou-me; dói-me muito a perna e o braço.

SR á LUCÍLIA - E sabes que a menina apanhou uma sova? Por tua causa pagou ela! Está aqui toda magoada. Imaginas que passas sem te haver comigo? Espera por essa!

SOFIA (aflita) - Oh! Sr á Lucília, se é minha amiga, não faça isso. Veja como ela tem o pé. Maldito vinho! Já não foi pouco o que houve por causa dele. Não pense mais nisso, Sr á Lucília, e perdoe a Palmira, como eu lhe perdoo.

PALMIRA (erguendo as mãos) - Oh! menina, como é boa! Que pena tenho de que lhe tivessem batido por minha causa! Se eu adivinhasse, não teria tocado nesse maldito vinho. Perdoe-me, sim? Deus lhe pagará.

Sofia aproximou-se da cama de Palmira, pegou-lhe nas mãos e beijou-a. A Srá Lucília enxugou os olhos, dizendo: "Vês, Palmira, vês o que é ser má! Aqui está a menina Sofia toda arranhada, como se tivesse andado à bulha com os gatos, só por tua causa, e ainda por cima pede por ti. Olha que te livrou de boa; se não fosse ela, levavas um ensaio de que não te havias de esquecer tão depressa. Mas já que a menina pede, perdoo-te. Roga a Deus que te perdoe também. E agora vê lá se cais noutra".

Palmira chorava de arrependimento. Sofia sentia-se feliz por ter evitado a Palmira as dores que sofria. A Sr á Lucília ficou muito agradecida por não se ver obrigada a castigar a filha, de quem tanto gostava, e a quem nunca punia sem grande pesar. Entretanto tinham chegado Ca mila, Madalena e Margarida. A Sr á Lucília contou-Lhes o que sucedera e como Sofia fora generosa. As meninas beijaram-na e louvaram-na.

"Minha querida Sofia", perguntou-lhe Camila, "não te sentes muito contente por teres poupado a Palmira o castigo que ela merecia? "

"Sinto, sim, Camila; estou contentíssima, sei quanto custa ser castigada. "

Camila, Madalena e Margarida beijaram Sofia, despediram-se de Palmira e da Sr á Lucília e foram para casa, pois já tinha tocado a campainha para o jantar.

 

                   A partida

Sofia estava com medo de entrar na sala. Pediu às amigas que fossem à frente, para a madrasta não dar por ela. Mas por mais que se escondesse atrás delas não pôde escapar aos olhos da Sr. a Fichini, que exclamou:

"Que grande descarada! Ainda te atreves a entrar na sala? Julgas que deixarei sentar à mesa uma ladra e uma mentirosa como tu? "

"Minha senhora", respondeu corajosamente Madalena,      "Sofia está inocente. Já sabemos quem bebeu o vinho. Sofia disse a verdade quando jurou não ter sido ela".

"Ora, ora, minha linda! Isso foram histórias que ela imventou. Conheço-a bem; há-de jantar no quarto, para castigo. "

"A senhora é que é má", disse logo Margarida, encolerizada. "Sofia é muito boa. Foi a Palmira que bebeu o vinho e a Sofia pediu à mãe dela que a não castigasse. A senhora é que bateu na Sofia sem querer ouvir o que ela dizia. Gosto muito da Sofia e não gosto nada da senhora".

SRá FICHINI (com riso amarelo) - Bravo, minha linda menina, que bem educada é! E amável. Essa história da Palmira está muito bem arranjada.

CAMILA - Margarida diz a verdade, minha senhora: Palmira veio trazer ervas para o seu banho e bebeu o vinho que estava no quarto. Depois saltou pela janela e torceu um pé. Confessou tudo à mãe, que a queria castigar, e que só lhe perdoou por Sofia lhe ter pedido muito.

Como vê, a Sofia está inocente. É muito boa e nós gostamos muito dela.

  1. a ROSBOURG - Afinal, minha senhora, castigou Sofia injustamente; deve recompensá-la. Não é verdade que tem pressa de partir? Permita-me que a levemos esta tarde. Ficará assim livre para fazer os preparativos da viagem.

A Sr. a Fichini, vexada por se ter provado a inocência de Sofia diante de todos, não ousou recusar o pedido da Sr. a Rosbourg. Chamou a enteada e disse-lhe com enfado:

"Pode ir com estas senhoras, esta tarde, menina. Vá preparar as suas coisas. (Sofia não pôde dissimular um movimento de alegria. ) Vejo que está encantada por me deixar. Como não tem coração, nem sabe o que é ser reconhecida. Não conto com a sua amizade; fará bem em não contar com a minha. Dispenso-a de me escrever. Voltando-se para as senhoras: "Vamos jantar, minhas queridas amigas; à volta, convidá-las-ei, e a todos os nossos vizinhos, para lhes contar as minhas impressões de viagem, que devem ser bem interessantes".

Senhoras e meninas foram para a mesa. Sofia aproveitou a distracção da madrasta para ir comendo tudo; o excelente jantar e a certeza de ser levada na mesma tarde pela Sr. a Fleurville acabaram por desvanecer-lhe a triste recordação da cena da manhã. Depois do jantar, as meninas foram com Sofia ao quarto dos brinquedos. Como não havia nada que prestasse, limitaram-se a fazer um embrulho com uma feia boneca e com os trapos.

As SráS Fleurville e Rosbourg, que aguardavam, impacientes, o momento de partir, mandaram logo aparelhar a carruagem.

SR á FICHINI - Já, minhas queridas senhoras? São apenas oito horas!

SR á FLEURVILLE - Tenho muita pena, mas desejávamos entrar em casa antes de anoitecer.

SRá FICHINI - Porquê? A estrada é magnífica! E terão luar.

SR á ROSBOURG - Margarida é ainda muito pequena para noitadas. Receio que lhe faça mal.

SR á FICHINI - Ora, minhas senhoras! A última vez que passamos um serão juntas! A Margarida não ia adoecer por isso.

  1. a ROSBOURG - Temos muita pena, mas é nosso hábito não consentir que as crianças se deitem tarde.

Um dos criados veio anunciar a carruagem. As meninas puseram os chapéus; Sofia precipitou-se sobre o seu e correu para a porta, como receosa de que se esquecessem dela. A Sr. a Fichini despediu-se das senhoras e das meninas, depois chamou Sofia, secamente:

"Venha dizer-me adeus, menina. Ingrata sem coração, está satisfeita por se ir embora. Tenho a certeza de que estas meninas não se separavam das mães sem chorar. "

"Também a mamã não iria viajar sem mim" disse Margarida, com vivacidade. "Nem a Sr. a Fleurville sem Camila e Madalena. Nós gostamos muito das nossas mamãs porque elas são muito nossas amigas. Se fossem más, não gostávamos delas "

Sofia tremia de medo, Camila e Madalena sorriam e as senhoras mordiam os lábios para não rirem. A Sr. a Fichini estava rubra de cólera; os olhos brilhavam como se fossem

tições. Pouco faltou para dar um sopapo em Margarida.   

Conteve-se, e, chamando Sofia pela segunda vez, beijou-a na testa, secamente, dizendo:       

"Vejo que dizes bonitas coisas de mim às tuas amigas Toma cuidado! hei-de voltar um dia! Adeus! "

Sofia quis beijar-lhe a mão; a Sr. a Fichini deu-lhe com ela e afastou-se, raivosa. A pequena fugiu e entrou precipitadamente para a carruagem. As senhoras disseram um último adeus à Sr. a Fichini, e sentaram-se no banco do fundo, Camila ao pé do cocheiro, e as três meninas no banco da frente. Os cavalos partiram. Sofia começava a respirar quando se ouviu gritar: "Parem! Parem! " A pobre Sofia ia desmaiando, receosa de que a madrasta tivesse mudado de ideias e a mandasse buscar. O cocheiro    fez parar os cavalos; um criado apareceu à portinhola,    esfalfado, dizendo:    

"A senhora... manda dizer... à menina Sofia... que   se esqueceu das suas coisas... e que só as receberá amanhã de manhã, a não ser... que... prefira voltar para casa... e ficar lá esta noite. "      

Sofia tornou a si; cheia de alegria, estendeu a mão ao criado.      

"Obrigada, obrigada, António, tenho pena de que    te tivesses cansado tanto. Agradece a minha madrasta:   dize-lhe que não a quero incomodar, que prefiro passar sem as minhas coisas; espero-as amanhã em casa          da Sr.a Fleurville. Adeus!          

A Sr. a Fleurville, vendo a inquietação de Sofia, deu ordem para tocar os cavalos. Um quarto de hora depois, chegaram. A feliz Sofia saltou, leve como uma pena,         a agradecendo a Deus e à Sr. a Fleurville o belo tempo que ia passar junto das suas amigas. A Sr. a Fleurville entregou-a aos cuidados de uma criada e ficou decidido que ficaria essa noite no quarto de Margarida, onde dormiu de um sono até ao dia seguinte.

 

                   As groselhas

Havia quinze dias que Sofia estava com as amigas; sentia-se tão feliz que todos os seus defeitos pareciam adormecidos. De manhã, quando acordava, saltava fora da cama, lavava-se, vestia-se, rezava com as suas amigas; depois tomavam o pequeno almoço juntas; já não tinha necessidade de roubar pão para saciar o apetite; davam-lhe quanto queria. Nos primeiros dias não podia acreditar em tanta felicidade; comeu e bebeu quanto pôde. Ao fim de três dias, quando viu que podia comer sempre que tivesse apetite e que era inútil encher o estômago de manhã para o resto do dia, tornou-se mais razoável, contentando-se, como as suas amigas, com uma fatia de pão com manteiga e uma chávena de chá ou chocolate. Nos primeiros tempos, tanto ao almoço como ao jantar, comia rapidamente, com medo que a fizessem levantar da mesa antes de saciada. As duas amigas troçavam dela; a Sr á Fleurville prometeu-lhe que nunca a mandaria levantar antes de ela ter acabado, tranquilamente, de comer.

Sofia corou; e prometeu comer com menos glutonaria,

de futuro.

MADALENA - Minha pobre Sofia, estás sempre com ar de quem tem medo. Fazes à pressa e às escondidas as coisas mais inocentes.

SOFIA - Julgo sempre estar a ouvir a minha madrasta.

Esqueço-me, constantemente, de que estou com vocês, tão boas para mim, e de que sou feliz, muito feliz!

Dizendo isto, Sofia, com os olhos cheios de lágrimas, beijou a mão da Sr á Fleurville, que, por sua vez, a beijou com ternura.

SOFIA (comovida) - Como é boa, minha senhora!

Todos os dias peço a Deus que me deixe sempre consigo.         

SR á FLEURVILLE - Não é isso que deves pedir-lhe,        minha filha. É preciso pedir-lhe para te tornar tão ajuizada e tão obediente, tão boa, que a tua madrasta, ao voltar, se comova e tu possas viver feliz com ela.  

Sofia não respondeu; tinha cara de quem achava   o conselho da Sr á Fleurville muito difícil de seguir. Margarida parecia espantada, como se a Sr á Fleurville tivesse dito um absurdo. A Sr á Rosbourg percebeu.     

SR á ROSBOURG (sorrindo) - Que tens tu, Margarida? Porque olhas assim para a Sr á Fleurville?

MARGARIDA - É que... mamã... não gosto... parece-me mal... não sei dizer. Eu cá não peço a Deus que a má Sr á Fichini volte a bater na Sofia.           

  1. a ROSBOURG - Mas não foi isso que disse a Sr á Fleurville: ela disse que Sofia devia pedir ao Pai do Céu que a fizesse tão boa que a madrasta gostasse dela e a fizesse feliz.

MARGARIDA - Mas, mamã, a Sr. Fichini é tão má, que não pode fazer-se boa, e detesta tanto Sofia, que não a pode tornar feliz. Se vier, leva-a para a maltratar.

  1. a FLEURVILLE - Querida filha, Deus pode tudo quanto quer. Está na sua mão transformar o coração da Srá Fichini. Sofia deve obedecer a Deus, respeitar a madrasta e pedir-lhe que a faça boa para que ela possa gostar de Sofia.

MARGARIDA - Eu gostaria muito de que a Sr á Fichini se tornasse boa, mas ainda gostaria mais de que ela ficasse por lá e nos deixasse Sofia para sempre.

SR á FLEURVILLE - Isso quer dizer que tens bom coração. Mas, se reflectires, verás que a Sofia seria muito mais feliz se a madrasta gostasse dela. Não há nada como cada um viver em sua casa, com os seus.

SOFIA - Isso é verdade, Margarida: se a minha madrasta pudesse um dia gostar de mim como a tua mamã gosta de ti, eu seria tão feliz como tu e não viveria sempre em medos, como até aqui.

MARGARIDA (suspirando) - Vou ter muita pena quando a Sr á Fichini voltar.

SOFIA (baixo) - Também eu.

Levantaram-se da mesa; as senhoras ficaram na sala a trabalhar e as meninas foram para o jardim sachar. Camila e Madalena encarregaram Sofia e Margarida de procurarem pés de groselha e framboesas.

"Onde os haverá, Margarida? "

SOFIA - Já vi uns muito bonitos ao pé da mata. MARGARIDA - Acho que o melhor é pedi-los ao jardineiro.

SOFIA - Vamos, em todo o caso, ver estes em que falo. Se não os pudermos arrancar, pediremos então ao jardineiro que nos ajude.

Puseram-se a correr e em poucos minutos estavam junto dos arbustos que Sofia tinha visto. Grande foi a sua alegria quando os viram cobertos de frutos. Sofia atirou-se a eles, com sofreguidão. Margarida provou um e não quis mais.

"Come, anda, pateta", disse Sofia; "aproveita a ocasião".

MARGARIDA - Que ocasião? Tenho-os todos os dias à mesa e à merenda.

SOFIA (comendo glutonamente) - Assim são melhores, e comemos quantos queremos. Oh! Que bons eles são!

Margarida olhava-a, surpreendida; nunca tinha visto comer nem com tamanha voracidade, nem com tamanha rapidez; por fim, quando Sofia não pôde mais, deu um suspiro de satisfação e limpou a boca a umas folhas.

MARGARIDA - Porque é que limpas a boca às folhas?

SOFIA - Para não verem as nódoas das groselhas no lenço.

MARGARIDA - Que tem isso? Os lenços fizeram-se         para apanhar nódoas.          

SOFIA - Se soubessem que tinha comido groselhas,         ralhavam-me.           

MARGARIDA - Que ideia! não te diriam nada;        comemos sempre o que queremos.           

SOFIA (admirada) - Tudo quanto querem?

E não ficam doentes?

MARGARIDA - Nunca; nunca comemos de mais, porque sabemos que ser gulosa é muito mau.

Sofia, ciente de quanto tinha sido gulosa, não pôde deixar de corar. Para disfarçar, propôs-Lhe que arrancassem alguns pés de groselha, para levarem às outras. Iam pôr mãos à obra quando ouviram chamar: "Sofia! Margarida! onde estão vocês? "

SOFIA e MARGARIDA - Estamos aqui, aqui a arrancar os arbustos.

CAMILA - Que têm estado a fazer todo este tempo? Estamos fartas de esperar por vocês. Já lá vai a hora do recreio. Temos que ir estudar.

MADALENA - Mas em que se entretiveram? Só arrancaram um arbusto?

MARGARIDA (rindo) - É que Sofia atirou-se aos. SOFIA (interrompendo) - Cala-te, linguareira: vais fazer com que me ralhem.

MARGARIDA - Já te disse que ninguém te ralha. A minha mamã não é como a tua madrasta.

CAMILA - Mas, afinal, que aconteceu? Diz, Margarida. E tu, Sofia, deixa-a falar.

MARGARIDA - Olha, há uma hora que estamos aqui e, em lugar de arrancarmos os arbustos, a Sofia comia groselhas e eu olhava para ela. Não calculam como ela come depressa. Nunca vi comer em tão pouco tempo. Não imaginam como me diverti.

MADALENA - Para que comeste tanto, Sofia? És capaz de adoecer.

SOFIA (embaraçada) - Não, não fico doente; tinha muita fome.

CAMILA - Fome? Ainda agora nos levantámos da mesa!

SOFIA - Tinha fome, mas não era de carne, era de groselhas.

CAMILA - O quê? Fome de groselhas? Mas estás tão pálida! Parece-me que te estás a sentir agoniada.

SOFIA (um pouco amuada) - Engana-se, menina; não estou nada agoniada; tenho ainda muita fome e era capaz de comer um cesto cheio de groselhas.

MADALENA - Não te aconselho a que experimentes.

Mas vamos, minha querida Sofia, não te zangues e vem   conosco.       

Sofia, que não se sentia bem, seguiu as amigas em silêncio. Tomaram todas o caminho de casa. Durante todo o trajecto não disse palavra. Camila, Madalena e Margarida, imaginando que ela estava amuada, conversavam            entre si, sem se dirigirem a Sofia; assim chegaram ao quarto de estudo, onde as mamãs as esperavam paralhes darem lição.           

"Vêm muito tarde, minhas pequenas", disse

a Sr á Rosbourg.       

MARGARIDA - É que fomos até à mata, para apanhar groselhas; é um pouco longe, mamã.

SR á FLEURVILLE - Bem! Agora, minhas filhas,

vamos trabalhar. Peguem nos seus livros e cadernos.     

Camila, Madalena e Margarida sentaram-se logo.

Sofia aproximou-se lentamente, sem dizer palavra.           

A lentidão dos seus movimentos chamou a atenção da Srá Fleurville, que, olhando-a, exclamou:

"Como estás pálida, Sofia! Estarás doente? Que tens tu? "

Sofia corou ligeiramente; as três meninas olharam-na; Margarida exclamou " Foram as groselhas "

SR á FLEURVILLE - Quais groselhas? Que queres dizer, Margarida?

SOFIA (reanimando-se) - Não é nada, minha senhora; Margarida não sabe o que diz; não tenho nada; estou muito. bem. só. um pouco agoniada. mas não é nada.

Neste momento sentiu-se pior; o estômago não pôde suportar os frutos a mais.

A Sr Fleurville, descontente, sem dizer palavra, pegou na mão de Sofia e levou-a para o quarto. Despiram-na e deitaram-na, fazendo-a beber uma chávena de chá de tília, bem quente. Sofia estava tão envergonhada que nem falava.

A Sr á Fleurville perguntou-Lhe como se sentia. SOFIA - Melhor, minha senhora, muito obrigada; perdoe-me, peço-lhe. Se não fosse tão boa, batia-me.

SRa FLEURVILLE - Minha querida Sofia, foste gulosa e Deus encarregou-se de te castigar, dando-te essa indigestão, que te vai obrigar a estar na cama até ao jantar. Não vais assim connosco passear esta tarde e comer cerejas a casa da Sr á Vertel! Quanto a bater-te, podes estar sossegada; não é meu costume. Estou certa de que, mesmo sem te bater, não voltarás mais a encher o estômago como uma gulosa. Não te proíbo que comas fruta ou outras guloseimas; mas é preciso comer-se com conta e medida, para não se adoecer.

Sofia não respondeu, envergonhada como estava, pois sentia que a Sr á Fleurville tinha razão. A criada, que ficou ao pé dela, recomendou-lhe que estivesse quieta, mas nem assim pôde dormir.

Teve tempo de sobra para reflectir nos inconvenientes da lambarice e a si própria prometeu não voltar mais.

 

                   O quarto de penitência

Uma hora depois, Camila, Madalena e Margarida vieram saber de Sofia; vinham de chapéu na cabeça e prontas para sair.

SOFIA - Aonde vão?

CAMILA - Merendar a casa da Sr á Vertel. vamos lá apanhar cerejas.

MADALENA - Que pena não poderes vir, Sofia! Seria muito mais divertido, se viesses.

MARGARIDA - O ano passado divertimo-nos imenso. Subíamos às árvores, apanhávamos cestos de cerejas para fazer doces, e comíamos quantas queríamos. não tivemos nenhuma indigestão como te aconteceu esta manhã com as groselhas.

MADALENA - Não Lhe fales nas groselhas, Margarida; bem vês que a fazes zangar; está toda envergonhada.

SOFIA - Estou, sim, estou bem aborrecida por

ter sido tão gulosa. Para outra vez, comerei pouco, visto ter a certeza de poder comer sempre que queira. Sabem, não estou acostumada a comer coisas boas; quando as tenho à mão, como até me fazerem mal. Mas agora não tornarei; é muito desagradável ter indigestões, e depois é uma vergonha.

MARGARIDA - Isso é; a mamã diz sempre que quando temos uma indigestão somos como os porquinhos.

Esta comparação não foi agradável a Sofia, que se começava a zangar; Madalena disse, baixo, a Margarida que se calasse, o que ela fez. Beijaram Sofia e foram esperar as mamãs para o portão.

Minutos depois Sofia ouviu partir a carruagem. Para ali ficou aborrecida ainda. duas horas depois pôde levantar-se; as amigas não tardaram em voltar encantadas com o passeio. Haviam colhido e comido muitas cerejas; tinham-lhes dado mesmo um cesto delas.

No dia seguinte Camila disse a Sofia:

"Sabes o que vamos fazer esta tarde? Doce de cerejas.

A Sr á Vertel ensinou-nos como se fazia; tu vens ajudar-nos; a mamã diz que o doce é para nós, visto que as cerejas são nossas. "

"Bravo! ", disse Sofia. "Que rica merenda vamos fazer "

MADALENA - Havemos de dar dele à pobre Joana,          que está doente e tem seis filhos.

SOFIA - O quê? Isso é bom de mais para uma pobre!      

CAMILA - Porque é bom de mais para a Joana e não é para nós.

SOFIA - Ora! Acreditas que a Joana esteja habituada a doce? CAMILA - Pois precisamente por ela não estar habituada é que Lho havemos de dar.         

SOFIA - Porque não come ela pão e couves?

Não estou para fazer doce para uma pobre.           

MARGARIDA - E quem te pede que o faças, orgulhosa? Pensas que temos precisão da tua ajuda?   

Bem vês que foi por brincadeira que a Camila te propôs ajudar-nos?

SOFIA - Mas aí também há cerejas para mim;

também tenho direito a elas.

MARGARIDA - Tu não tens direito a coisa alguma não te deram nada. Mas, como eu não quero ser como tu, toma, toma!

Dizendo isto, Margarida agarrou num grande cacho de cerejas e atirou com ele a Sofia, que, já irritada, ficou furiosa; atirou-se a Margarida e deu-lhe um murro  num ombro. Camila e Madalena lançaram-se entre as duas, para as apartar. Madalena retinha a custo Sofia, enquanto que Camila, segurando Margarida, sossegou-a logo, desolada por ter reagido tão violentamente a Sofia; esta resistia a Madalena, querendo, a todo o transe, vingar-se por lhe terem atirado as cerejas.

"Deixa-me", gritava ela, "deixa-me; quero dar-lhe tantos murros quantas as cerejas que me atirou à cara; deixa-me, ou bato-te também".

Toda aquela algazarra chamou a atenção das Sras Rosbourg e Fleurville. No momento em que Sofia se desembaraçava de Camila e Madalena e a murro e pontapé se atirava a Margarida, imóvel como uma estátua, chegaram elas. A presença das duas senhoras imobilizou subitamente o braço erguido de Sofia. Ficou aterrorizada, à espera do castigo, rubra de cólera.

A Sr á Fleurville aproximou-se dela, em silêncio, pegou-lhe num braço, e levou-a para um quarto que Sofia nunca tinha visto, o chamado quarto de penitência. Aí, fê-la sentar diante de uma mesa, e, apresentando-lhe papel, uma caneta e um tinteiro, disse-lhe:

"Acabará o dia neste quarto, menina. Vai. " SOFIA - Não fui eu, minha senhora, foi a Margarida...

SR á FLEURVILLE (com severidade) - Cale-se.. Vai copiar dez vezes o Padre-Nosso. Quando tiver serenado, virei buscá-la para pedir perdão a Deus da sua cólera.

Jantará aqui, e irá deitar-se sem ver as suas amigas.

SOFIA (com arrebatamento) - Já lhe disse, minha senhora, que foi Margarida...

  1. a FLEURVILLE (enérgica) - Cale-se e escreva! A Sr á Fleurville fechou a porta à chave e foi pôr-se ao corrente do que acontecera. Encontrou Camila e Madalena sozinhas e muito consternadas. Contaram-lhe o que tinha acontecido. A Sr á Rosbourg estava muito zangada com Margarida, que, apesar de arrependida, fora condenada a jantar no quarto e não vir à sala, ao serão.
  2. a FLEURVILLE - Tenho muita pena, minhas filhas, mas a Sr á Rosbourg fez muito bem em castigar Margarida.

CAMILA - Mas, mamã. Margarida tinha razão em querer dar doce à Joana, coitada. Fica muito mal a Sofia ser orgulhosa e má.

  1. FLEURVILLE - Sim, é verdade, Camila; mas Margarida não se devia ter zangado. Não era assim, irritando-se, que a encaminharia para o bem. Pelo contrário, devia ter-lhe mostrado com doçura que deve socorrer os pobres e trabalhar para eles.

CAMILA - Mas, mamã, Sofia não queria ouvi-la. SR. a FLEURVILLE - Sofia é mal educada e não está habituada a ser caritativa. Mas tem bom coração; teria compreendido a lição que vocês lhe dessem com o vosso exemplo; ter-se-ia feito melhor, enquanto que assim ficou furiosa e ofende o Pai do Céu.

MADALENA - Oh mamã, deixe- me ir vê-la. Deve estar lavada em lágrimas. Deve estar arrependida.

  1. a FLEURVILLE - Não, Madalena, quero-a

sozinha até à noite. É cedo ainda para te escutar. Daqui a uma hora irei vê-la.

E a Sr á Fleurville, com Camila e Madalena, foram procurar a Sr á Rosbourg. As pequenas estavam tristes brincando com as bonecas, pensavam como se é feliz quando se tem juízo.

Durante esse tempo, Sofia, sozinha no quarto de penitência, chorava não de arrependimento, mas de raiva; examinou tudo, a ver se podia fugir. a janela era tão alta que, mesmo pondo uma cadeira sobre a mesa, não podia lá chegar. A porta, contra que se atirou com toda a força, era muito sólida para a poder arrombar. Procurou quebrar ou rasgar qualquer coisa: as paredes, nuas, eram pintadas de cinzento. Além de uma cadeira de palha e de uma mesa de pinho, nada mais havia. Um buraco na mesa, cheio de tinta, servia de tinteiro. Restavam a caneta, o papel e o livro de onde devia copiar o Padre-Nosso. Sofia agarrou na caneta, atirou-a ao chão e pisou-a; rasgou o papel em bocadinhos, depois pegou no livro e arrancou-lhe folha a folha, amarrotou-as e fê-las em pedaços.

Quis ainda quebrar a cadeira, mas, sem forças, caiu no chão, arquejante, coberta de suor. Quando não houve mais que quebrar ou rasgar, não teve remédio senão ficar quieta. Pouco a pouco, foi-se apazigúando. Quando pôde, reflectiu; e sentiu-se transida de susto ante o que fizera.

"Que dirá a Sr á Fleurville? ", pensava ela. "Que castigo me dará? Ora! Bate-me. Mas a madrasta bateu-me tanto, que já estou habituada. Não pensemos mais nisso; tratemos de dormir... "

Sofia fechava os olhos, mas não podia dormir. Estava nervosa. Qualquer ruído a fazia estremecer; julgava ver abrir a porta a todo o instante.

Uma hora depois, ouviu a chave dar volta na fechadura. Desta vez não se enganou: a porta abriu-se e a Srá Fleurville entrou. Sofia levantou-se, inquieta. A Sr á Fleurville fitou os papéis; depois, murmurou, calma:

"Apanhe tudo isso, menina. "

Sofia não se mexeu.

"Estou-lhe a dizer que apanhe esses papéis, menina! " repetiu a Sr á Fleurville.

Sofia continuou imóvel: a Sr. a Fleurville, sempre calma:

"Não quer? Faz mal; maior será o seu castigo. "

A Sr á Fleurville chamou: "Elisa, venha aqui um instante, faça favor".

Elisa entrou e ficou pasmada perante aquela desordem.

"Elisa, tenha paciência", disse-lhe a Srá Fleurville

"apanhe esses papéis. Isto é obra da menina Sofia. Vábuscar outro catecismo, papel e uma caneta".

Enquanto Elisa varria os papéis, a Sr á Fleurville sentara-se na cadeira e fitava Sofia, que tremia ante a sua  calma. Naquele momento daria tudo para não ter rasgado o livro e os papéis, nem ter estragado a caneta.

Quando Elisa voltou com o que a senhora Lhe pediu, a Sr á Fleurville levantou-se, chamou tranquilamente Sofia e fê-la sentar, e disse-lhe:

"Escreva dez vezes o Padre-Nosso, menina, como lhe tinha dito. Jantará sopa, pão e água; com o dinheiro que recebe todas as semanas para os brinquedos pagará o que estragou. De futuro, em vez de brincar com as suas            amigas, passará os dias aqui. Só poderá sair com Elisa, duas horas por dia, que ficará proibida de falar consigo. Passará a comer aqui. Só quando arrependida e quando tiver pedido perdão a Deus da sua dureza para com os pobres, da sua gulodice egoísta, da sua cólera contra Margarida, da maldade que a levou a rasgar e estragar tudo o que encontrou à mão, do seu espírito de revolta, só então sairá daqui. Esperava encontrá-la disposta a arrepender-se, a fazer as pazes com Deus e comigo; mas, em vista do seu procedimento, esperarei por amanhã. Adeus, menina. Reze a Deus, para que a não deixe morrer esta noite antes de se ter arrependido. "

A Sr á Fleurville dirigiu-se para a porta; já tinha dado a volta à chave, quando Sofia se precipitou, se lhe agarrou ao vestido, pondo-se de joelhos, lhe pegou nas mãos, que cobriu de beijos e de lágrimas. Entre soluços, murmurou a única palavra que podia pronunciar: "Perdão!

Perdão! "

A Sr á Fleurville esteve um momento imóvel, considerando Sofia, de joelhos; por fim, baixou-se e, erguendo-a nos braços, disse-lhe, com doçura:

"Minha filha, o arrependimento apaga todas as faltas. Foste culpada primeiro para com Deus, depois para comigo. A pena sincera que sentes merece, sem dúvida, perdão; mas não podes deixar de ser castigada: só irás ter com as tuas amigas amanhã à noite; farás o resto como te disse. "

SOFIA (com veemência) - Oh! minha senhora, querida senhora, nada me custará o castigo. Mereço-o bem! É tão boa para mim O seu perdão é que eu peço.           

Oh minha senhora, fui tão má, tão detestável!

Será capaz de me perdoar?

SR á FLEURVILLE (beijando-a) - Do fundo do coração, querida filha; acredita que não estou zangada contigo. Pede perdão a Deus, como acabas de me pedir a mim. Vou mandar-te o jantar. Depois é preciso que escrevas o que te mandei escrever. Vou mandar-te um livro para te entreteres o resto do dia.

A Srá Fleurville beijou de novo Sofia, que lhe enchia as mãos de beijos, sem poder separar-se dela. Saiu sem fechar a porta à chave. Esta prova de confiança comoveu Sofia. Ainda se sentiu mais triste por ter sido o má.

"Como", disse de si para consigo, "como pude eu enfurecer-me daquela forma? Como pude ser tão má para com amigas tão boas como as que aqui tenho, tão atrevida para uma pessoa meiga como a Sr. a Fleurville? Tão boa para mim! Mal me mostrei arrependida, voltou a ter a voz doce e o rosto indulgente; toda a severidade desapareceu como por encanto. Perdoar-me-á Deus tão facilmente? Oh, decerto! Ele é a bondade máxima e vê bem como eu estou arrependida "

Ditas estas palavras, pôs-se de joelhos e rogou a Deus, do fundo do coração, que lhe perdoasse as suas faltas e lhe desse força para, de futuro, não continuar. Mal tinha acabado, entrou Elisa, com um prato de sopa, um pedaço de pão e uma garrafa com água.

ELISA - Aqui tem, menina, o seu jantar. Se tiver apetite, mesmo assim o achará bom.

SOFIA - Ah, minha boa Elisa, nem isso eu merecia. É bom de mais para uma menina tão má como eu fui.

ELISA - Ah, já mudou de há pouco para cá; estimo isso deveras, menina. Se se tivesse visto a um espelho. Que cara! Credo! Parecia um diabinho!

SOFIA - Sim, parecia um diabinho e era-o, sim! Mas estou arrependida, podes crer. Espero nunca mais tornar.

Sofia sentou-se à mesa e comeu a sopa; estava com fome; depois comeu um pedaço de pão e bebeu dois copos de água. Elisa olhava-a com dó.

"Veja, menina", disse- lhe ela, "como é infeliz quem é mau. As nossas meninas são tão boazinhas que raras vezes são castigadas. Por isso andam sempre alegres e contentes".

SOFIA - É isso, Elisa, bem vejo. Mas sabes, quando eu fazia maldades e a minha madrasta me castigava, ainda me sentia pior. Detestava-a. Com a Sr á Fleurville, Ainda gosto mais dela. Só tenho desejos de não tornar a ser má.

ELISA - É que a sua madrasta castigava-a, muitas vezes, por capricho. A Srá Fleurville castiga-a para seu bem, por dever.

SOFIA - Deves ter razão, Elisa; é isso, é. Sofia acabara de comer; Elisa levou os pratos. Em seguida, pôs-se ao trabalho. Levou muito tempo, pois queria fazer tudo com letra bonita; quando acabou, O dia declinava. Sofia poisou o livro e ficou a reflectir nas tristezas do castigo. Uma hora depois Elisa veio buscá-la para se deitar. Margarida dormia num sono profundo; Sofia aproximou-se dela e beijou-a, docemente, como a pedir-lhe perdão do que lhe fizera. Depois rezou e deitou-se. Daí a pouco adormecia.

 

                 O dia seguinte

A manhã do dia seguinte foi triste. Margarida, envergonhada do que fizera na véspera, afligia-se por ter sido a causa do castigo de Sofia; Camila e Madalena sentiam-se infelizes com a tristeza de Margarida e a ausência de Sofia.

           Sofia passou o dia no quarto depenitência: só Elisa a viu quando lhe levou o pequeno almoço.

SOFIA - Como estão as minhas amigas, Elisa?

ELISA - Estão bem; mas tristes.

SOFIA - Falam de mim? Acham que fui muito má?

Ainda são minhas amigas?

ELISA - Falam, sim! Não fazem outra coisa! "Pobre

Sofia! ", dizem elas. "Que triste ela deve estar! Coitada da Sofia! Como deve estar aborrecida Que grandes lhe devem parecer os dias! "

SOFIA (enternecida) - São tão boazinhas! E a Margarida, ainda está zangada comigo?

ELISA - Qual zangada! Está mas é triste! Apoquenntada por ter sido má; diz que, se não fosse ela, a menina não se teria zangado. Que era ela quem devia estar de castigo no seu lugar, e que quando a menina daqui sair lhe há-de pedir perdão.

SOFIA - Pobre Guidazinha! Eu é que tive toda a culpa. Mas, olha lá, Elisa, elas sabem o que eu fiz aqui: que rasguei tudo e me recusei a obedecer a Sr á Fleurville?

ELISA- Sabem, sim, contei-lhes tudo. Mas sabem também que a menina se arrependeu e que fez tudo para se mostrar pronta a expiar as suas culpas. Esteja certa de que lhe não querem mal; gostam tanto de si como dantes.

Sofia agradeceu a Elisa e pôs-se a trabalhar.

A Sr á Fleurville veio trazer-lhe serviço, e explicou-lhe como devia fazer; trouxe-lhe também livros para se distrair; e vendo-a tão dócil, tão ajuizada e arrependida, prometeu-lhe que, antes de se deitar, viria buscá-la para rezar com as outras meninas. Sofia prometeu portar-se muito bem para ser digna disso. Agradeceu-lhe muito a sua bondade.

A Srá Fleurville beijou-a, dizendo-lhe que antes de sair viria verificar os trabalhos e trazer-lhe outros para a tarde.

Sofia trabalhou com tanto entusiasmo que não deu pelo tempo. Ficou admirada quando viu Elisa chegar com o almoço.

"O quê, já são horas de almoçar? "

ELISA - Até já passou a hora. Não tem vontade?

SOFIA - Tenho, sim. Mas julgava que era muito mais cedo. Que tenho para almoçar?

ELISA - Um ovo quente, uma torrada, uma costeleta, uma perna de frango, batatas fritas. Sobremesa é que não há. A Srá Fleurville diz que os castigados não comem sobremesa, e que a menina, agora tão ajuizada, deve compreendê-lo.

Sofia corou com o pequeno elogio que não esperava.

"Obrigada, Elisa", disse ela. "Agradece à Srá Fleurville a sua bondade em me ter julgado assim. É tão boa que não podemos deixar de ser boas também ao pé dela. Estou certa de que dentro de pouco tempo estarei tão boa como as minhas amigas. "

Elisa, comovida com aquela humildade, beijou Sofia, dizendo.

"Esteja descansada, menina; já começou a tornar-se boa. Vai ver; quando a sua madrasta voltar, não conhecerá a menina. "

A lembrança do regresso da madrasta entristeceu Sofia; procurou não pensar nisso. Almoçou. Elisa disse-lhe que ia levar a bandeja e voltaria para darem um passeio.

"Podemos passear uma hora. Depois a menina virá trabalhar até ao jantar. Em jantando, sairemos outra vez. "

O dia assim se foi passando, sem grande enfado. Camila, Madalena e Margarida esperavam Elisa de cada vez que ela saía do quarto de penitência para saberem de Sofia; queriam saber o que ela dizia, o que ela fazia.

CAMILA - Está muito triste?

MADALENA -. Muito aborrecida?

MARGARIDA - Está muito zangada comigo? Fala pouco?

Elisa tranquilizava-as, dizendo-Lhes que Sofia estava tão dócil e resignada com o castigo, que quando saísse dali viria completamente curada. Não havia de ser preciso voltar a castigá-la.

Ao serão, a Sr á Fleurville veio buscar Sofia, para a levar à sala onde a esperavam, ansiosas, Camila, Madalena e Margarida.

"Aqui têm Sofia, minhas filhas; mas não a Sofia de anteontem, colérica, mentirosa, gulosa e má; mas uma Sofia boa e ajuizada. Dantes tínhamos pena dela, agora é digna da nossa amizade. "

Sofia lançou-se, chorando, nos braços das amigas: chorava de alegria. Ela e Margarida pediram perdão uma à outra; já se tinham perdoado de todo o coração. Quando chegou a hora de rezar, a Sr. a Fleurville juntou, às orações habituais, uma em acção de graças por Deus ter trazido o arrependimento ao coração das culpadas e haver tirado o bem de um grande mal.

Após as orações, rezadas de todo o coração, as meninas beijaram-se com ternura e foram para a cama.

 

                   O pintarroxo

Um mês depois, Camila e Madalena estavam sentadas num banco do jardim a fazer cestinhos de junco, que Sofia e Margarida iam buscar a um fosso.

"Madalena, Madalena! ", gritou Sofia, a correr, "trago-te um passarinho muito bonito; dou-to, é para ti!

"Que pássaro é? ", disse Camila, atirando com os juncos e correndo ao encontro de Sofia.

SOFIA - É um pintarroxo: foi Margarida que o viu e eu que o apanhei. olha que engraçado!

CAMILA - É um encanto. Coitadinho! Deve estar cheio de medo E a mãe? Está desolada, sem dúvida!

MARGARIDA - Enganas-te. Foi ela que o deitou fora do ninho; ouvi barulho numa moita, olho, e vejo o pobre passarinho à bulha com a mãe que o queria expulsar do ninho. Às bicadas, deitou-o ao chão. Ele, coitadinho, caiu atordoado; eu não me atrevia a pegar-lhe. Foi

a Sofia quem o agarrou para ti, Madalena.

MADALENA - Oh muito obrigada, Sofia! Vamos

levá-lo para casa e dar-lhe de comer. Camila, olha que lindo que ele é! Que lindo papinho vermelho!

CAMILA - É muito bonito; vamos metê-lo num cesto enquanto lhe não arranjamos uma gaiola.

As quatro meninas deixaram os juncos e correram para casa a pedir um cesto.

ELISA - Aqui têm um cestinho, meus amores.

MARGARIDA - Mas é preciso arranjar-lhe uma caminha.

ELISA - Não, basta pôr um pouco de musgo e algodão por cima: terá assim um ninho muito quentinho.

MARGARIDA - Se Madalena o deitasse com ela, ainda ficaria mais quente.

MADALENA - Mas podia esborrachá-lo a dormir.

Não, não, é melhor fazer como diz a Elisa. Vais ver como fica bem.

SOFIA - Oh Madalena, deixa-me arranjá-lo! eu sei muito bem. A Palmira fazia mùitas vezes ninhos para os passarinhos roubados.

MADALENA - Pois sim; que vais fazer?

SOFIA - Não olhem para cá, vejam só quando estiver pronto. Elisa, precisava de algodão e de um trapo.

ELISA - Para que é o trapo? Vai fazer-lhe uma camisa?

As meninas riram.

"Não", respondeu Sofia; "não é para vestir. Já vais ver; dá-me só o que te peço".

Elisa deu-lhe o bocado de algodão e o trapo. Sofia pegou no pintarroxo, e foi para um canto com o pássaro, o algodão e o trapo; depois voltou-se radiante, exclamando:

" Pronto "

As meninas, que esperavam, impacientes, correram para Sofia. Procuraram o pássaro debalde.

MADALENA - Mas onde está o pintarroxo e o ninho?

SOFIA - Aí.

MADALENA - Mas onde?

SOFIA - No cesto.

MADALENA - Mas eu só vejo uma bola de algodão.

SOFIA - Pois é isso.

MADALENA - Mas o pássaro? Onde está ele?

SOFIA - Dentro do algodão, muito quentinho.         

Deram um grito; todas as mãos se deitaram, ao mesmo tempo, ao cesto para tirar o pobre passarinho, certamente já asfixiado. Elisa acorreu também, desenrolando rapidamente o algodão e o trapo e tirou o pintarroxo, que parecia morto; estava de olhos fechados, bico aberto e asas estendidas. Não bolia.

"Pobrezinho ", exclamaram ao mesmo tempo Elisa e as três meninas.

"Sofia, idiota! ", ajuntou Margarida.   

Sofia estava espantada, confusa.

"Eu não sabia... não imaginava... ", disse ela, balbuciando.

MARGARIDA - Mas para que te metes tu a fazer o que não sabes?

ELISA - Chut, menina Margarida, nada de discussões!      bem vê que a menina Sofia está com tanta pena do            passarinho como a menina. Trataremos de reanimar o desgraçadinho; talvez ainda não esteja morto.

MADALENA (tristemente) - Julgas que voltará a si?

ELISA - Vamos ver. Menina Sofia, vá-me buscar uma gota de vinho.

Sofia correu em busca do que pediram; entretanto.

Elisa entreabriu o bico do passarinho e soprou, devagar.

           Quando Sofia voltou com o vinho deitou-lhe uma gota pelo bico abaixo; o passarinho estremeceu ligeiramente as asas.

" Mexeu! mexeu! ", gritaram ao mesmo tempo as quatro meninas.

Com efeito, ao fim de algum tempo o pintarroxo voltava à vida; agitou-se, estendeu as asas, e ficou esperto como antes de ser enfardado.

MARGARIDA (com ar de troça) - Quem te ensinou a tratar dos pássaros?

SOFIA - A Palmira; fazia sempre assim.

MARGARIDA (da mesma maneira) - E criou muitos?

SOFIA - Não! morriam todos; não sabíamos porquê.

ELISA - Quê? Não compreende que eles, sem ar, asfixiam dentro do algodão e dos trapos?

SOFIA - Não sabia que os pássaros precisavam de respirar.

ELISA - Ah! Ah! Ah! Essa é boa! Todos os pássaros respiram e têm necessidade de ar, menina. Se o não têm, sufocam.

SOFIA (atrapalhada) - Não sabia.

ELISA - Vamos, deixem-me o passarinho; não se preocupem com ele. eu encarrego-me de o criar, menina Madalena.

Com efeito, Elisa ficou encarregada da educação do pintarroxo. Madalena ajudava-a a mudar a lã do ninho, a limpar a gaiola e a preparar-lhe papinhas, com ovo, pão e leite. O passarinho afeiçoara-se-lhe; Madalena tinha-lhe posto o nome de Mimi; vinha quando ela o chamava, e poisava-lhe muitas vezes nos braços, quando ela estudava as lições. Acabou por nunca a deixar; só entrava na gaiola, de porta sempre aberta, para dormir e comer; o mais do tempo voava pelos quartos. Quando a janela estava aberta, empoleirava-se nas árvores vizinhas; mas nunca ia para longe. Bastava Madalena chamar: " Mimi! Mimi " para ele vir imediatamente poisar-lhe na cabeça ou nos ombros, às bicadinhas, como se a quisesse beijar. Acordava, muitas vezes, Madalena, de madrugada, empoleirando-se-lhe nos ombros, estendendo o pescoço para ela e dando-lhe bicadinhas nas orelhas e nos lábios. "Vai-te embora, Mimi", dizia-lhe ela. "Deixa-me dormir". Mimi voltava para a gaiola, mas, instantes depois, quando a dona adormecia de novo, voltava a pousar-lhe em cima, assobiando-lhe aos ouvidos as suas cantigas mais harmoniosas. "Cala-te, Mimi", dizia-lhe ainda Madalena; "maças-me". Mimi calava-se, virava a cabeça de um lado para o outro, depois, para mudar de posição, dava um salto e empoleirava-se no nariz de Madalena.

Desperta outra vez pelas agudas unhitas Madalena dizia-lhe, com uma pancadita: "Deixa estar, meu diabrete, que amanhã fecho-te a gaiola". Mas não tinha emenda, e Madalena nunca o fechava.

"Que tens tu, Madalena? Pareces fatigada esta noite," disse um dia a Srá Fleurville a Madalena, um pouco sonolenta.

MADALENA - É verdade, mamã, tenho sono; fecham-se-me os olhos sem querer.

MARGARIDA - Aposto que é por causa do Mimi.

SR á FLEURVILLE - Como é que o Mimi podia fazer sono a Madalena? Falas muitas vezes sem reflectir, Margarida.

MARGARIDA - Perdão; já vai ver que reflecti até muito bem. Quando se tem sono é porque se tem vontade de dormir.

SR á ROSBOURG (rindo) - Oh, isso é uma grande verdade, e vejo que raciocinas pelo menos tão bem como o Mimi.

MARGARIDA - Esperem aí! depois podem fazer troça de mim à vontade. Continuo: quando se tem vontade de dormir é porque se tem necessidade de dormir. (Riram todos ainda com mais vontade; Margarida, sem se des concertar continuou o seu raciocinio). Quando se tem necessidade de dormir é porque não dormimos o suficiente; quando se não dormiu o suficiente foi porque alguém ou alguma coisa nos impediu de dormir. Esse alguém é o Mimi, que acorda Madalena todas as madrugadas, às bicadinhas, aos assobios nos ouvidos, ou a passear-lhe pela cara. Aqui está a razão por que a Madalena tem sono e porque o Mimi é culpado.

SR á FLEURVILLE - Bravo, Margarida! Está muito bem raciocinado. Mas como pode o Mimi fazer tantas maldades?

MARGARIDA - Madalena não lhe quer fechar a gaiola. Estraga-o com o mimo. É boa de mais para ele, e sofre-lhe as consequências.

  1. a FLEURVILLE - É o que acontece sempre, Margarida, quando há mimo de mais. Mas, sério, Madalena, é preciso que o Mimi perca esses maus hábitos. Andas pálida há dias. Acabarás por adoecer. Aconselho-te a fechares a porta da gaiola esta noite: abrir-lha-ás de manhã. Anda, vai deitar-te.

MADALENA - Vou, sim, mamã, vou-me deitar. Sinto-me realmente cansada. E fecharei o Mimi. Receio apenas que ele se ponha a gritar como um desesperado.

SR á FLEURVILLE - Pois deixa-o gritar! acabará por se acostumar.

Madalena beijou a mãe, as amigas e a Sr á Rosbourg, foi deitar-se. Fechou a porta da gaiola de Mimi, e adormeceu, imediatamente.

No dia seguinte, ao amanhecer, Mimi quis ir como de costume atormentar a sua dona; ao achar a porta fechada encheu-se de espanto e irritação. Tentou em vão abrir a gaiola com o bico. Como o não conseguiu, zangou-se, deu com a cabeça na porta e magoou-se. Então rompeu em guinchos furiosos, entremeados de bicadas no comedor, que projectavam o painço nas grades e na porta da gaiola. Em seguida saltou para o bebedor, e entornou água. Madalena acordou com todo este rebuliço denunciador da cólera de Mimi. Mas não tardou a adormecer outra vez. Só despertou quando a criada a veio chamar. Correu então a abrir a gaiola. Mimi atirou-se, desesperado, para fora da gaiola e, como se se quisesse vingar, deu duas bicadas no rosto de Madalena.

"Ah! mau! ", exclamou Madalena. "Estás zangado! Anda cá, Mimi! Vem cá, imediatamente. "

-           Mimi não obedeceu; empoleirado num ferro da gelosia, parecia amuado.

"Senhor Mimi, obedeça, venha já aqui. "

Mimi, em resposta, voltou-se e sujou a mão de Madalena.

"Porco! Imundo! Mau! Espera, eu já te ensino!

Elisa, por favor, vem-me agarrar o Mimi e pô-lo de castigo. "

Elisa, que assistia, rindo do mau humor de Mimi,

pegou numa vassoura e correu atrás dele até ele se refugiar, cansado, na gaiola. Madalena fechou-Lhe rapidamente a porta; Mimi, furioso, ficou prisioneiro.

Só ao fim de duas horas de castigo, Sofia, Camila e Margarida, a quem Madalena e Elisa contaram a maldade de Mimi, conseguiram o perdão dele; em procissão todas quatro lhe vieram abrir a porta da gaiola. Mimi não se mexeu sequer.

"Vamos, Mimi", disse Camila, "sê bom rapaz e deixa-te de amuos. Vem dar os bons-dias, como fazes todas as manhãs".

O senhor Mimi mantinha-se impassível.

"Meu Deus! Que mau ", exclamou Margarida.

SOFIA - Olha, está a fazer como eu, antigamente.

Zangou-se na prisão, como eu me zanguei. Tentou estragar tudo, como eu, que parti a caneta, esfrangalhei o papel.

ESpero que também se venha a arrepender como eu me arrependi. Mimi! Mimi! Vem pedir perdão.

           CAMILA - Não quer vir? Está bem, deixem-no; quando já não estiver amuado, viremos perdoar-lhe.

           Abriram as janelas. Quando Mimi viu as árvores e o céu, não pôde mais, voou para um dos pinheiros mais altos do jardim. As meninas saíram, deixando Mimi entregue à felicidade de ser livre e à amargura do arrependimento.

Quando voltaram, uma hora depois, Mimi saltava e voava de árvore para árvore. Madalena chamou-o: "Nini, meu Mimizinho, vem para casa, toma lá pão".    

"Cuic! ", respondeu Mimi, com ar de troça.

"Vamos, Mimi, obedeça, venha cá. "           

" Cuic ", voltou outra vez Mimi e voou em direcção à mata.

"Que mau e rancoroso ele é", disse Sofia. "Merece um grande castigo".

"Vai tê-lo", disse Madalena; "quando entrar, fecho-lhe a gaiola e estará assim até pedir perdão".

"Como queres tu que um passarinho peça perdão?" inquiriu Sofia.

"Quero que, quando eu meter a mão na gaiola,      

venha pousar nela, às bicadinhas, sem a fúria

rancorosa desta manhã. "    

"Tens razão, Madalena", disse Camila, "tens

razão; é preciso tratá-lo severamente; deste-lhe mimo a    mais".

E as meninas foram estudar. Depois, brincaram de            novo. Almoçaram, jantaram, sem que Mimi aparecesse.

Ao anoitecer, começaram a preocupar-se com a sua longa ausência; foram muitas vezes chamá-lo ao jardim e à mata, mas Mimi não aparecia nem respondia.        

MADALENA - Tenho medo que lhe tivesse acontecido alguma coisa.

MARGARIDA - Talvez se tenha perdido e não saiba o caminho.

CAMILA - Não, É impossível! Os pássaros nunca se perdem: vêem tão bem que nunca perdem a casa de vista.

SOFIA - Ele ainda estará amuado?

MADALENA - Se está amuado, é porque tem muito mau génio; e nesse caso estimarei muito que passe uma noite fora para ver a diferença que há entre uma boa gaiola quente, com alpista e água, e uma mata húmida, sem nada que se coma e que se beba.

SOFIA - Coitado do Mimi! Que pateta aquele!

À noite as meninas foram deitar-se sem que Mimi aparecesse; ao serão falaram muito dele e combinaram procurá-lo no dia seguinte.

"O que ele ganha com isto é não tornar a ir passear", disse Madalena.

No dia seguinte, mal as meninas se arranjaram para sair, a Sr á Rosbourg levou-as à procura de Mimi; correram            toda a mata chamando " Mimi! Mimi!" Voltavam tristes e inquietas quando Margarida, que ia à frente, deu um salto despedindo um grito.

"Que foi", perguntaram as três ao mesmo tempo.

"Olhem! Olhem ", exclamou Margarida, numa voz horrorizada, a apontar um monte de penas onde se via a bem conhecida cabecita do Mimi.

" Pobre Mimi! Desgraçado Mimi!", exclamaram as pequenas. "Coitadinho do Mimi, comido por um milhafre! "

A Sr á Rosbourg baixou-se para examinar melhor as penas e a cabeça. Não havia dúvida: eram os restos do Mimi, vítima do seu mau génio.

As meninas não disseram mais palavra; Madalena chorava. Pegaram nos restos do Mimi, para os enterrarem, e arranjaram um pequeno túmulo. Quando chegaram a casa, a Sr á Rosbourg deu-lhes feriado para fazerem o enterro do Mimi. Abriram uma covinha no jardim: depois os restos do Mimi, envoltos em fitas, cobertos de flores e postos numa caixa, foram enterrados nela. Cobriram a cova e a caixa de flores. Taparam-na com terra, e com a ajuda de um pedreiro fizeram um tumulozinho com uma laje, na qual, Camila, a que tinha lhor letra, escreveu:

"Aqui jaz Mimi, que, pela sua graça e gentileza, fez a felicidade de sua dona até o dia em que morreu, vitima do seu mau humor. Teve um fim trágico. devorou-o um milhafre. Aqui jazem os restos encontrados pela sua dona inconsolável.

Assim acabou Mimi, com três meses de idade.

 

                   A iluminação

Havia um ano que Sofia estava em casa da Srá Fleurville e ainda não tivera notícias da madrasta. Longe de se inquietar, tal silêncio dava-lhe calma e tranquilidade. estar esquecida pela madrasta parecia-lhe a melhor coisa do mundo. Era feliz no meio das suas amigas. Os sentimentos que a severidade excessiva da madrasta abafara e quase havia destruído nela, despertavam, de dia para dia, no convívio de crianças tão exemplares. A Srá Fleurville e a sua amiga, a Sr á Rosbourg, eram muito bondosas e meigas para as crianças, sem as estragarem com mimo. Sempre preocupadas com a felicidade e o bem-estar de suas filhas, nem por isso se esqueciam de procurar aperfeiçoá-las; tinham sabido torná-las boas e sempre prontas a esquecerem-se de si próprias para se ocuparem do bem-estar dos outros.

As filhas aproveitavam o exemplo das mães e com elas Sofia.

Um dia a Sr á Fleurville entrou no quarto de Sofia com uma carta na mão.

"Minha filha, aqui tens uma carta da tua madrasta... "

Sofia pôs-se em pé de um salto, corou, para depois se fazer muito pálida e cair numa cadeira, o rosto coberto com as mãos, retendo a custo as lágrimas.

A Sr á Fleurville, que emudecera com o gesto de Sofia, ante a sua agitação, disse-lhe:

"Minha querida Sofia, imaginas, naturalmente, que a tua madrasta vem aí para te levar. Sossega: ela escreve-me, dizendo que não voltará mais. Está em Nápoles, onde casou com o conde de Blagowski, e uma das condições do casamento foi que não viverias com ela. A tua madrasta pede-me, por isso, que te ponha interna num colégio qualquer (Sofia corou e olhou, suplicante, para a Sra Fleurville); a não ser, continuou ela, sorrindo, que prefira conservar junto de mim um traste tão incómodo). Que dizes, minha Sofia? Queres ir para um colégio ou preferes ficar connosco: ser minha filha e irmã das tuas amigas? "

" Oh minha querida, minha adorada senhora ", disse Sofia, lançando-se-lhe nos braços e beijando-a com ternura; "deixe-me estar junto de si, continue a ser minha amiga e permita-me que lhe queira como a uma mãe: Obedecer-lhe-ei e respeitá-la-ei como se realmente fosse sua filha. Farei tudo para me tornar digna da sua ternura e das minhas amigas".

A Sr á Fleurville, apertando-a ao coração disse:

"Está então combinado, minha querida pequena. Ficarás connosco: serás minha filha, como Camila, Madalena e Margarida. Eu sabia bem que nos preferias ao melhor e mais agradável colégio de Paris. " SOFIA - Agradeço-lhe muito, minha querida senhora, por tê-lo adivinhado logo. Só tenho medo de lhe ser pesada: não será uma grande despesa?

  1. a FLEURVILLE - Por esse lado, está descansada, querida filha. O teu pai deixou-te uma grande fortuna que é só tua. Só ela bastaria para uma despesa dez vezes maior do que a que tu fazes.

Depois de ter beijado mais uma vez a Sr á Fleurville, Sofia correu em busca das amigas, para lhes anunciar a boa nova. Houve alegria geral; puseram-se todas a dançar em roda, com tanta algazarra e tais gritos de alegria que Elisa veio, assustada, ver o que tinha acontecido.

ELISA - Mas o que é isso? Que aconteceu, meu Deus? O quê? Uma dança E gritos de alegria? bem! Para a outra vez não serei tão tola; podem gritar à vontade que não sairei do meu quarto! Mas onde se viram meninas a gritar e a saltar assim? Parecem bichinhos!

MARGARIDA (sempre a saltar) - Se tu soubesses, querida Elisa, que bom! Vem dançar connosco! Que bom! Que feliz eu sou!

ELISA - Mas, porquê? Por que razão hei-de dançar como uma endemoninhada? Explicam-me, fazem favor?

MARGARIDA - Sofia fica connosco! Sempre! Sempre! A Srá Fichini voltou a casar. Ah! Ah! Ah! Casou-se com o conde Blagowski e já não quer mais Sofia!.. Que bom! Que bom!

Os saltos e os gritos recomeçaram ainda com mais entusiasmo. Elisa juntara-se ao grupo, e tanto barulho fizeram que toda a gente da casa, pouco a pouco, acorreu a saber qual a causa de tanta alegria.

Todos ficaram contentes com a boa nova, pois todos estimavam Sofia e todos a lastimavam por ter uma ma drasta tão má.

Por fim, cansadas de dançar, foram-se deixando

cair nas cadeiras. Elisa imitou-as.

"Minhas meninas", disse ela, "não há festa sem luminárias. É preciso fazer uma iluminação hoje à noite em honra da menina Sofia".

CAMILA - E as lanternas? Não temos lanternas.

ELISA - Ah! arranjam-se.

MADALENA - Mas como? Com quê?

ELISA - Com cascas de nozes, cera e pavios. MARGARIDA - Bravo, Elisa! Que esperta és! Vem cá, que te quero dar um beijo.

E Margarida atirou-se a Elisa para a beijar; Madalena e Sofia imitaram-na, de sorte que Elisa sentiu-se agarrada, sufocada. Quis fugir: mas as quatro meninas dependuraram-se- lhe ao pescoço e só depois de muito querer, conseguiu escapar-se. Ouviram-na fechar a porta à chave. impossível entrar. tinha trancado solidamente a porta.

MARGARIDA - Elisa! Elisa! Abre, peço-te. CAMILA - Elisa, minha boa Elisa, queremos beijar-te mais de mil vezes!

MADALENA - Elisa, querida Elisa, abre; precisamos de dizer-te uma coisa.

SOFIA - Elisa, Elisa, mais uma voltinha e depois, pronto.

ELISA - Está bem, está bem; quebrem a cabeça enquanto eu vou quebrando outra coisa.

E, com efeito, as meninas começaram a ouvir um ruído seco, fora do vulgar, contínuo. Crac, crac, crac.

"Que estará ela a fazer? ", disse, baixo, Sofia. "Parece que está a assar castanhas. Não as ouves estoirar? "

MARGARIDA - Espera, espera, vou espreitar pelo buraco da fechadura... Não vejo nada. Está de pé... de costas... parece muito ocupada mas não vej o o que está a fazer.

CAMILA - Tenho uma ideia; vamo-nos embora devagarinho. Damos a volta por fora, e espreitamos pela janela, que não é muito alta. Assim não terá tempo de se esconder.

SOFIA - É uma boa ideia, mas não façam barulho; vamos em bicos de pés. Nem uma palavra.

Com efeito, devagarinho, saíram, deram a volta à casa em bicos de pés, esperaram debaixo da janela do quarto de Elisa. Conquanto a janela fosse no rés-do-chão, ainda era alta para elas. A um sinal de Camila, subiram ao caniçado que guarnecia as paredes, e as suas quatro cabecinhas surgiram no parapeito da janela. Elisa deu um grito e estendeu rapidamente o avental por sobre acómoda diante da qual trabalhava. Era tarde; as meninas tinham visto tudo.

"São nozes, são nozes ", gritaram elas; "Elisa está a partir nozes para a iluminação desta noite".

"Bem, já que descobriram, venham ajudar-me a preparar as lanterninhas. "

As meninas saltaram do caniçado, e já sem ser em bicos de pés, deram a volta à casa e precipitaram-se no quarto de Elisa, que abrira a porta.

Uma centena de cascas de nozes já estavam preparadas para serem cheias de cera. Cada uma arranjou o seu canivete, e deitaram-se à obra com tanto ardor que em menos de uma hora prepararam duzentas lanternas.

"Bom", disse Elisa; "agora vamos buscar uma lata de cera, uma caixa de lamparinas, uma caçarola com bico e um fogareiro".

Correram à cozinha pelos objeetos necessários à il minação. No quarto de Elisa, Camila pegou numa pouca de cera e deitou-a na caçarola; Madalena pôs carvão no fogareiro; Elisa acendeu o lume e abanou. Sofia e Margarida prepararam as cascas das nozes em cima da cómoda. Quando a cera estava derretida, Elisa encheu as cascas. depois as meninas, na cera ainda quente, enterraram pavio em cada uma.

A operação durou cerca de uma hora. Logo que a cera arrefeceu e se fez dura meteram as lanterninhas em dois cestos.

"Vamos", disse Elisa, "está tudo pronto. Só falta distribuir as lanterninhas pelas janelas, pelas chaminés pelas mesas. Depois de jantar, quando escurecer, vou acendê-las".

As SráS Fleurville e Rosbourg trabalhavam na sala quando Elisa e as meninas entraram com os cestos.

  1. a ROSBOURG - Que trazem aí, minhas filhas?

CAMILA - Lanterninhas, minha senhora, para festejarmos esta noite com uma iluminação o casamento da Srá Fichini e o rico presente que ela nos fez da Sofia.

SR á FLEURVILLE - Mas são muito bonitas as lanterninhas. Onde as arranjaram?

MADALENA - Fizemo-las nós, mamã; Elisa deu-nos a ideia e ajudou-nos a fazê-las.

As Sr á Fleurville e Rosbourg, que acharam a ideia excelente, ajudaram as meninas a colocar as lanterninhas.

A hora do jantar chegou; Elisa lavou e preparou as meninas. O jantar parecia-lhes não acabar. Estavam impacientes por ver o efeito da iluminação. Depois de jantar, ainda precisaram de aguardar que anoitecesse de todo.

Deram uma volta pela mata, à espera que escurecesse.

A certa altura Margarida anunciou ter visto uma estrela logo, já estaria bastante escuro para começar a iluminação. Entraram todas precipitadamente; as mamãs e as meninas começaram a acender as lanterninhas.

Quando todas estavam acesas, as meninas correram para o meio da sala a ver o efeito que faziam.

As fitas de luzes faziam um efeito lindo. As pequenas, encantadas, batiam palmas, davam saltos. As mamãs propuseram-lhes brincarem às escondidas, ideia aceite com gritos de alegria. Elisa, a Sr. a Fleurville e a Sr á Rosbourg também brincaram; escondiam-se nos quartos, corriam pelas escadas, fugiam pelos corredores, faziam batota, riam, todas se sentiam felizes.

Após duas horas de correrias e de gargalhadas, foi preciso pôr fim à festa. Antes de se deitarem, contudo, houve uma ceia para as meninas, de frutas, bolos e creme.

Elisa foi convidada a cear com elas. Como era muito modesta, começou por recusar, mas as meninas, que bem viram a sua vontade de aceitar, rodearam-na, arrastaram-na para a mesa e fizeram-na sentar. Tantos bolos e doces Lhe puseram no prato que Elisa teve de protestar que não podia mais. Então arranjaram-lhe um grande embrulho com doces e frutas e obrigaram-na a levar tudo para o quarto. Elisa, muito agradecida, foi preparar-lhes as camas.

Sofia, por seu turno, agradeceu muito às suas amigas e deitou-se cheia de reconhecimento e felicidade.

 

                   A pobrezinha

"Minhas queridas filhas", disse um dia a Sr á Fleurville "vamos dar um grande passeio. O tempo está óptimo, não há calor. Vamos até à mata, pelo caminho do moinho.

MARGARIDA - Desta vez não levo a minha boneca. SR á ROSBOURG - Acho que fazes muito bem. CAMILA (sorrindo) - A propósito do moinho, não sabe o que foi feito da Joaninha?

SR á FLEURVILLE - A mestra veio falar-me dela há dias. Está muito descontente. Não estuda, não quer dar atenção ao que ela diz; só sabe desencaminhar as outras pequenas. E, o pior, é que rouba tudo aquilo a que pode deitar a mão; os lenços das companheiras, as merendas, canetas, papel, tudo.

MADALENA - Como sabem que é Joaninha que faz essas coisas? Talvez sejam as pequenas que as perdem.

SR á FLEURVILLE - Já a apanharam por três vezes com a boca na botija. Agora a professora revista-a todas as tardes antes da saída.

MARGARIDA - E a mãe, que lhe bateu tanto o ano passado, quando foi da boneca, não a castiga agora?

SR á ROSBOURG - A mãe bateu-lhe, porque esse roubo fê-la perder os presentes que lhe davam. Mas, segundo dizem, educa-a muito mal. Dá-lhe péssimos exemplos.

SOFIA - A mãe também furta?

SRá FLEURVILLE - Também, embora mais às escondidas. Quando lhe levam o grão para moer, fica com parte dele. Vai de noite, com o marido, apanhar lenha às matas que me pertencem; rouba-me peixe dos viveiros para o vender no mercado. Joaninha vê tudo isto e faz como os pais. É uma grande desgraça. Deus castigá-los-á um dia. Então ninguém terá pena deles.

O passeio foi muito bom. Quando seguiam pelo caminho da mata, as meninas viram, de longe, Joaninha, que se escondeu no moinho, mal deu com os olhos nelas.

MARGARIDA - Olha, Sofia; vês a cabeça da Joaninha a espreitar ao postigo do celeiro?

SOFIA - Ah! fugiu! Olha, lá aparece do outro lado. CAMILA - Cuidado! A Joaninha está a atirar-nos pedras!

Com efeito, a endiabrada rapariga procurava acertar-lhes com pedras que lhes atirava com toda a força. A Srá Fleurville, muito zangada, pensou logo em mandar chamar o pai de Joaninha, para lhe fazer queixa da filha.

Prosseguiram no passeio: foram sentar-se à sombra de velhos carvalhos carregados de bolotas. Estavam as meninas entretidas a apanhá-las quando lhes pareceu ouvir chorar. detiveram-se a escutar. soluços e gemidos chegaram-lhes distintamente aos ouvidos.

"Vamos ver quem está a chorar? ", disse Camila.

E todas quatro se dirigiram para o sítio da mata de onde vinham os gemidos. Tinham dado poucos passos, quando viram uma rapariga de doze a treze anos, coberta de farrapos, sentada no chão. Tinha a cabeça entre ast mãos; os soluços sacudiam-na; e tão absorta estava na sua dor que não dera pela chegada das meninas.

"Pobre rapariga", disse Madalena, "como ela chora! A pequena levantou a cabeça e pareceu assustada por ver as quatro meninas que a rodeavam. Levantou-se como quem quer fugir.

CAMILA - Não fujas; não tenhas medo. Nós não te fazemos mal.

MADALENA - Porque choras tu, pobre pequena?

Aquelas vozes, tão meigas e compadecidas, comoveram a rapariga, que recomeçou a chorar ainda com mais força.

Margarida e Sofia, enternecidas, aproximaram-se e acariciaram-na, e, ajudadas por Camila e Madalena, conseguiram estancar-Lhe as lágrimas e obter dela algumas palavras.

RAPARIGA - Estamos aqui há um mês, meninas. Quando chegámos a minha mãe adoeceu; não pode trabalhar. Vendemos tudo que tínhamos, para comprar pão; agora já não temos mais que vender. Esperava que no moinho me comprassem este vestido, mesmo roto, mas não o quiseram. Puseram-me fora. Uma pequena até me deu uma pedrada.

MARGARIDA - Aposto que foi a Joaninha. RAPARIGA - Deve ter sido. A mãe tratou-a por esse nome quando lhe disse para estar quieta; mas ainda me acertou num braço. Até me fez sangue. Ainda se eu tivesse arranjado dinheiro para comprar pão para a minha mãe! Está tão fraca! Desde ontem que não come nada!

SOFIA - O quê? Mas então. tu também, pobre pequena, não deves ter tido que comer?

RAPARIGA - Oh, eu, menina, não estou doente: posso bem com a fome. Quando ia para o moinho apanhei umas bolotas e comi-as.

CAMILA - Bolotas! Coitadinha! Espera aí, pequena. Temos ali um cesto com pão e fruta. Vamos buscar-to.

"É verdade, é verdade", exclamaram as outras, "dar-lhe-emos a nossa merenda e vamos pedir à mamã que nos dê dinheiro para ela".

Correram para onde estavam as mamãs; chegaram, ofegantes, e, enquanto Camila e Madalena contavam o que se tinha passado, Sofia e Margarida corriam a levar o cesto da merenda à rapariga. As Srás Fleurville e Rosbourg acorreram também.

A pequena ainda não tinha tocado no pão nem nas frutas.

SR á FLEURVILLE - Come, minha filha; depois vais dizer-nos onde moras e quem és.

RAPARIGA - Muito obrigada, minha senhora; prefiro guardar o pão e a fruta para minha mãe; vou já levar-lhos.

  1. a ROSBOURG - Mas, tu, não comes?

RAPARIGA - Oh minha senhora, muito obrigada, mas não é preciso; não estou doente e sou forte.

E dizendo estas palavras, a pequena pálida e magra, que mal se sustinha de pé, tentou pegar no cesto, mas cambaleou com o peso. Agarrou-se, porém, a um ramo e, corando, repetiu em voz fraca: "Sou forte, meninas, não se preocupem comigo".

SR á ROSBOURG - Dá-me o cesto, minha pobre pequena; eu levo-o até tua casa. Onde moras tu?

RAPARIGA - Aqui perto, minha senhora, à entrada da mata.

  1. a FLEURVILLE - Como se chama a tua mãe?

RAPARIGA - Chamam-lhe a tia Fragata, mas o seu nome é Francisca Leconte.

SR á FLEURVILLE - Porque lhe chamam a tia Fragata?

RAPARIGA - É que o meu pai era marinheiro.

  1. a ROSBOURG (interessada) - Onde está teu pai?

Não vive com vocês?

RAPARIGA - Não, minha senhora, e é por isso que somos tão infelizes. Meu pai partiu há anos: dizem que o barco naufragou. Nunca mais ouvimos falar dele; a minha mãe, com o desgosto, acabou por adoecer. Temos vendido tudo quanto tínhamos. Estamos sem nada.

Que vai ser da minha pobre mãe? Que hei-de eu fazer?

E a pequena recomeçou a soluçar.

A Sr á Rosbourg estava muito comovida e perturbada com a história da pequena.

"Em que barco era teu pai marinheiro? ", perguntou em voz trémula. "Como se chamava o comandante?

RAPARIGA - Era o "Sibila". O comandante chamava-se Sr. Rosbourg.

A Sr á Rosbourg soltou um grito e agarrou o braço da pequena, assustada.

"O meu marido! o seu barco! ", repetia ela. "Pobre criança, também és órfã, como a minha Margarida! Tua mãe, coitada, chora como eu o marido perdido, mas quem sabe se ainda é vivo! Ah, não te preocupes com a tua mãe nem com o teu futuro; leva-me depressa onde ela está. quero vê-la, quero consolá-la!"

E estugava o passo, arrastando Lúcia (era este o nome da pequena) pela mão; a Sr á Fleurville e as meninas seguiram-nas, caladas. Lúcia não tinha compreendido muito bem as exclamações e promessas da Sr á Rosbourg, mas sentia que alguma coisa de bom ia acontecer. Caminhava o mais depressa que a sua debilidade lhe permitia. Não tardaram a chegar a um velho pardieiro.

Era uma cabana de lenhador, abandonada e quase a cair. O telhado estava cheio de buracos por todos os lados; não tinha janela; a porta era tão baixa que a Sr á Rosbourg teve que curvar-se para poder entrar. a escuridão não lhe permitiu distinguir no primeiro momento, ao fundo da cabana, uma mulher mal coberta com farrapos, estendida num monte de palha: era a cama da mãe e da filha. Não havia um móvel nem o mais pequeno utensílio na cabana. Pelas paredes nada havia; nem um trapo dependurado. A Sr á Rosbourg, à vista de tanta miséria, mal pôde conter as lágrimas; aproximou-se da desgraçada, pálida e esquelética, que esperava ansiosamente o regresso da filha e o pão que devia ter comprado com o dinheiro do miserável vestido. A Sr á Rosbourg compreendeu que, nesse momento, o que mais atormentava a mãe e a filha era a fome. Mandou aproximar Lúcia, abriu o cesto e repartiu entre elas o que nele havia: elas tudo devoraram com avidez. Esperava que elas acabassem de comer para explicar à desgraçada que era a mulher do comandante do "Sibila", e que a Lúcia lhe tinha contado a miséria em que viviam desde o desaparecimento do barco comandado pelo marido.

"O vosso futuro fica por minha conta, Francisca", disse ela. "Logo que chegue a casa, mandarei um carro para as levar à povoação. Tratarei de lhes arranjar uma casa e de as mandar tratar. Alegre-se, vai deixar esta miserável choça. "

A Sr á Rosbourg não lhes deu tempo de voltarem a si da surpresa em que estavam; partiu precipitadamente com a Sr á Fleurville e as meninas, que tinham ficado à porta da cabana. Ninguém falava; a Srá Rosbourg ia absorvida nas suas tristes recordações; as meninas e a Sr á Fleurville respeitavam a sua dor. Quando se aproximaram da povoação a Srá Rosbourg pediu à Sr á Fleur ville que fosse com ela ver uma casinha que havia para alugar, e que podia servir para a pobre mulher. A Sr á Fleurville acedeu de bom grado. A casa, embora pequena, era asseada, e estava arranjadinha de novo. Tinha três compartimentos, cave e sótão, além de um jardim e uma hortazinha com duas ou três árvores de fruto; as divisões eram claras e bastante grandes para servirem de cozinha, de sala de jantar e de quarto para a mãe e não falando no sótão.

"Querida amiga", disse a Sr á Rosbourg à Srá Fleurville, "enquanto vou falar com o proprietário desta casa, tenha a bondade de mandar um carro buscar a Francisca e uma carroça para trazer os móveis indispensáveis para esta noite. É preciso que ela durma já esta noite numa boa cama. Depois lhe comprarei o necessário para mobilar a casa convenientemente".

A Sr á Fleurville e as meninas partiram sem demora. As meninas, ajudadas por Elisa, encarregaram-se de jun tar tudo o que imaginaram indispensável para Francisca e Lúcia dormirem e fazerem a ceia. Mas, quando juntaram os objectos que julgavam absolutamente indispensáveis, verificaram serem tantos que nem a metade caberia numa carroça.

Mesas, cadeiras, poltronas, bancos, castiçais, vasos, caçarolas, cafeteiras, chávenas, copos, pratos, garrafas, vassouras, escovas, tapetes, dois pães de quilo, uma panela cheia de carne, uma bilha de leite, um quilo de manteiga, um cesto com ovos, dez garrafas com vinho, fruta, salsichões, presuntos, um nunca acabar de coisas. Elisa, ao ver o monte, riu, riu tanto, que Margarida e Sofia se zangaram, e Camila e Madalena se ruborizaram de irritação. "Porque te ris? ", disse Margarida com vivacidade; "não acho motivo para rir por ver juntar coisas para mandar a uma pobrezinha".

ELISA (rindo) - E a menina imagina que a sua mãe vai mandar esse monte de coisas?

SOFIA (zangada) - Mas tudo isto é muito útil. ELISA - Útil, para uma casa como a nossa; mas a pobre mulher que não tem sequer uma cama para dormir, que há-de ela fazer a tudo isto? Como havia ela de ter todos estes móveis limpos e em ordem? Quando chegasse a comer este pão estava rijo como pedra. não tardaria a apodrecer. E a manteiga, os ovos, a hortaliça? Estragava-se tudo, menina, tudo!

CAMILA - Mas tu também trouxeste colchões e almofadas e lençóis. Até cobertores.

ELISA - Decerto. Tudo isto é preciso para fazer as camas. Mas o resto? Vamos, deixem-me arranjar as coisas como eu entender. José, venha ajudar-me a carregar esta carroça. É tudo para a casa branca lá de baixo. Olhe, vai ali o Nicaise. chame-o para ajudar. Bem. tome estes colchões. Isso. Agora esta trouxa com os cobertores, os lençóis e as almofadas. Muito bem. Ponha ali este pão. E esta tigela com manteiga. Tome lá estes seis ovos. Bem. Leve mais esta panela com caldo. Uma garrafa de vinho. Agora. este pacote de velas e este castiçal. Olhe, ponha ali mais esta mesa, estas duas cadeiras, dois copos, dois pratos. E está tudo. Vão-se embora agora. Esperem lá pela senhora para descarregarem.

 

                   A instalação de Francisca e de Lúcia

CAMILA - Mamã, deixa-nos ir com a Elisa à casa branca para arranjar as coisas da mulherzinha? Gostaríamos de ver a cara dela ao entrar em casa.

  1. a FLEURVILLE - Pois sim, minhas filhas, vão acabar a vossa obra de caridade. Arranjem tudo pelo melhor. Comprem na povoação o que for preciso para a ceia. Eu fico para preparar as vossas lições para amanhã.

Tenho de escrever umas cartas. Vocês depois contam-me a alegria delas.

MADALENA - Mamã, podemos levar uma camisa nossa, uma saia, um vestido, meias e sapatos e um lenço para a Lúcia, que está toda nuinha?

SR á FLEURVILLE - Podes, minha querida Madalena; tiveste uma bela ideia. Leva também roupa branca para a mãe e o meu roupão velho, enquanto a Sr á Rosbourg lhe não compra que vestir.

MADALENA - Obrigada, mamã. Como é boa! A Srá Fleurville beijou ternamente Madalena, que correu a anunciar a feliz nova às amigas. Elisa fez embrulho de tudo e puseram-se alegremente a caminho.

Quando chegaram à casa, já lá estava a Sr. a Rosbourg, que assistiu ao descarregar da carroça. As meninas ajudaram Elisa a fazer a cama e a arrumar os objectos que tinham trazido.

ELISA - É preciso lenha para acender o lume. Vou fazer a sopa.

CAMILA - E sal?

MADALENA - E colheres para comerem? SOFIA - Também não têm facas para cortar o pão. MARGARIDA - Nem travessa, nem tigelas para a manteiga e para os ovos.

SR á ROSBOURG - Elisa, faça-me o favor de ir à povoação comprar o que for preciso, sim?

ELISA - Com todo o prazer, minha senhora. Meninas esperem aí, que não me demoro cinco minutos.

As meninas entretiveram-se a pôr a mesa, o que lhes levou muito tempo. Colocaram a mesa, no meio da cozinha, as duas cadeiras em frente uma da outra, os pratos, os copos e a garrafa de vinho sobre a mesa, bem como o pão. Elisa voltou a correr, com tudo que faltava.

"Também trago uma bilha para a água", acrescentou ela.

Acabava Elisa de acender o lume, de fazer sopa e estrelar os ovos, quando chegou o carro em que vinha a pobre Francisca, deitada, com a cabeça nos joelhos da filha. O carro parou em frente da porta; a Sr á Rosbourg e Elisa ajudaram-na a descer, tão fraca e pálida estava.

A pobre mulher não teve forças para agradecer à Srá Rosbourg; mas o seu olhar enternecido dizia todo o reconhecimento de que o seu coração estava cheio. Lúcia, de tão aflita com o estado da mãe, não pensava sequer em olhar para a casa. Mas, quando viu a mãe vestida de lavado e deitada numa boa cama, com lençóis e cobertores, pareceu radiante. ergueu a cabeça pendida. até ali os olhos frios no pálido rosto desprendiam-se dele; olhou em volta.

À dor e ao desassossego sucedeu a alegria. As faces coloriram-se-lhe. Lágrimas de contentamento lhe correram dos olhos. A emoção não a deixava falar.

Ajoelhou, e pegando nas mãos da Srá Rosbourg, levou-as aos lábios, soluçando:

"Levanta-te, minha filha", disse-lhe a Sr. Rosbourg, com bondade, ajudando-a a erguer-se. "Não é a mim que deves agradecer, mas a Deus, que permitiu que eu vos encontrasse para vos socorrer na vossa miséria. Acalma-te, para não afligires a tua mãe. Com descanso e boa alimentação ela depressa se porá boa. Olha: a Elisa vai dar-lhe de comer. Tu, que estás quase tão extenuada como a tua mãe, senta-te à mesa. Vais comer a refeiçãozinha que a Elisa te arranjou. "

As meninas levaram Lúcia para o outro quarto e serviram-lhe o jantar, enquanto Elisa e a Srá Rosbourg obrigavam Francisca a comer. Camila serviu-lhe a sopa, Madalena a carne, Sofia os ovos, e Margarida encheu -lhe o copo. Lúcia não se cansava de as contemplar, de as admirar, muito agradecida às suas benfeitoras.

Quando Lúcia acabou de comer, as quatro meninas pegaram nela para a vestir. Pouco faltou para a fazerem em pedaços, tanto era a sua pressa em a desembaraçarem dos trapos que trazia. Lúcia não se pôde conter; teve de gritar quando uma lhe puxou os cabelos para lhe tirar o lenço velho, a outra a picou com o alfinete que lhe pregara, a terceira a beliscou ao enfiar-lhe as mangas e a quarta a abafou a apertar-lhe a gola. Quando se viu tão bem vestida, correu a mostrar-se à mãe, que juntou as mãos, mirando-a. Por fim, em voz menos velada, balbuciou:

"Queridas meninas, minhas queridas senhoras,

Deus as abençoe e recompense a todas! Minha Lúcia! chega-te para aqui, quero ver-te bem, quero apalpar-te.

Ah! se teu pobre pai te pudesse ver assim!"

Tornou a deitar a cabeça na almofada e, escondendo o rosto nas mãos, principiou a chorar. A Sr. a Rosbourg pegou-lhe nas mãos, afectuosamente, a consolá-la:

"Tudo o que Deus nos manda é para nosso bem, Francisca. Veja! Se a moleira não tivesse posto Lúcia na rua, as meninas não a teriam ouvido chorar, não a teriam interrogado, e eu não saberia da vossa miséria.

E é assim em tudo. Deus dá-nos prazeres e consente que tenhamos desgostos: recebamo-los como vindos das suas mãos, certas de que é para nosso bem. "

As palavras da Sr á Rosbourg acalmaram Francisca. Enxugou as lágrimas e abandonou-se à felicidade de se ver numa casa, bem agasalhada, limpa, numa cama asseada, certa de não ter de recear, nem por ela nem por Lúcia, as angústias da fome e do frio e de todas as misérias de que a tinha salvo a Sr á Rosbourg.

"Amanhã", disse a Sr á Rosbourg, "irei a Laigle comprar móveis e roupas para a vossa casa. As meninas e eu viremos vê-las muitas vezes. Se precisarem de alguma coisa, digam. Mas aqui fica algum dinheiro para o que for preciso. Quando estiver curada, dar-lhe-ei trabalho. Agora, porém, não se apoquente com coisa nenhuma. Coma, durma e crie forças e peça comigo a Deus que nos restitua um dia os nossos maridos".

A Srá Rosbourg chamou as meninas, que disseram adeus a Lúcia e à mãe, prometendo voltar no dia seguinte. Quando chegaram à quinta, já a Sr. a Fleurville estava inquieta com a demora, e meio resolvida a ir procurá- las, pois a hora de jantar já passara havia muito.

As meninas contaram a alegria de Lúcia e da mãe e como elas estavam reconhecidas à bondade da Sr á Rosbourg. Falaram com volubilidade todo o serão, e quando se foram deitar encheram os ouvidos de Elisa da mesma coisa. De noite sonharam com Lúcia; no dia seguinte o seu primeiro pensamento foi para a casinha branca. Quando a Sr á Fleurville Lhes propôs irem ver a Lúcia, já a Sr á Rosbourg tinha saído havia muito para comprar a mobília. Acharam Francisca muito melhor, já levantada; Lúcia havia pedido a um vizinho prestável que lhe fizesse uma vassoura. Varrera não só os quartos como a frente da casa. As camas já estavam feitas, a lenha, que tinha ido comprar, estava em pilhas na cave. Com um dos seus velhos farrapos limpara a mesa, as cadeiras e a chaminé. Estava tudo muito asseado. Francisca e Lúcia passeavam, encantadas, pela sua nova casa, quando a Sr á Fleurville chegou com as meninas. Traziam provisões para o almoço. As meninas ofereceram-se para ajudar a preparar a refeição.

LÚCIA - Obrigada, minhas boas meninas, eu cá me arranjarei sozinha. Não quero que sujem as mãos tão branquinhas a acender o lume e a derreter a manteiga.

MARGARIDA - Mas tu sabes fazer ovos mexidos e sopa?

LÚCIA - Então não sei! Já fiz coisas bem mais difíceis quando tínhamos com quê. Enquanto a minha mãe trabalhava era eu que tratava da casa.

A Srá Fleurville e as meninas voltaram para casa por causa das lições, um pouco desprezadas na véspera. A Sr á Rosbourg voltou pelo meio-dia e pediu mais feriado para as meninas ajudarem a arrumar o mobiliário da casa branca. Elisa, como era muito jeitosa e amiga de fazer a vontade, também foi requisitada pela Srá Rosbourg e pelas meninas. Depois do almoço, voltaram a casa de Francisca; todo o caminho as meninas corriam e saltaram. Mãe e filha depararam-se-lhes loucas de alegria perante os seus tesouros. Móveis, louças, roupa branca, vestidos, nada fora esquecido. Foram a correr chamar o marceneiro para pregar prateleiras e escápulas. Penduraram e dependuraram mais de cem vezes as caçarolas e espelhos; quase todos os móveis deram volta à casa antes de encontrarem os seus lugares definitivos; cada uma dava a sua opinião; gritavam, puxavam, riam. Nunca aquela gente fora tão feliz; o seu coração transbordava de alegria; de tempos a tempos, punha-se de joelhos, e exclamava:     "Meu Deus, obrigada! Minhas senhoras, como lhes estou reconhecida! Minhas meninas, obrigada. Oh mil vezes obrigada! ". As meninas estavam muito satisfeitas com Francisca e Lúcia. A felicidade delas era-lhes uma excelente lição de caridade. Sofia prometia a si mesma ser sempre caridosa, e dar aos pobres todo o dinheiro que tinha para os seus brinquedos. O dia findou com um excelente jantar que a Sr á Fleurville mandou buscar para a casa branca. Comeram todos juntos na mesa nova, com a louça e roupa da mesa da Francisca. Elisa também tomou parte no banquete; Camila e Madalena sentaram-se entre elas e tiveram o cuidado de lhes fazer o prato durante o jantar. Serviram-lhes sopa, uma perna de carneiro assado, fricassé de galinha, salada e uma torta de pêssego. Lúcia lambia os dedos; as meninas rejubilavam, e com elas Francisca.

Depois de jantar, as Sr á Rosbourg e Fleurville voltaram à quinta; Elisa e as meninas, que muito tinham pedido para ajudar Lúcia a lavar e a limpar louça, ficaram.

Depois de tudo limpo e arranjado, Elisa e as crianças retiraram-se. Lúcia ajudou a mãe a deitar-se; em seguida, muito cansada das fadigas de um dia tão feliz, deitou-se também.

 

                   Sofia quer exercer a caridade

Sofia ficara muito impressionada com a ventura de Francisca e Lúcia. Não sabia o que era a felicidade de fazer bem. Nunca vira a madrasta nem as pessoas com quem vivera serem caridosas. Ninguém lhe dera o exemplo dessa virtude. Sabia que viria a ter uma fortuna considerável, e enquanto esperava poder empregá-la a socorrer os necessitados, desejava, ardentemente, encontrar outra Francisca e outra Lúcia a quem auxiliar. Um dia a tia Libânia, a jardineira, com quem gostava de conversar, e que era boa mulher, disse-lhe:           

"Ah! menina, há tantos pobrezinhos por esse mundo          fora! Olhe, conheço uma mulherzinha que vive para lá            da mata, que é uma desgraçada. A maior parte das vezes não tem sequer um bocado de pão para comer. "           

SOFIA - Onde mora ela? Como se chama?           

TIA LIBÂNIA - Vive numa casita à entrada da         povoação, quando se sai da mata; chamam-lhe a tia Teresa.

É uma pobre velhinha, pouco maior que uma criança         de oito anos, com umas mãos tão grandes como as de            um homem. Tem oitenta e dois anos, e ainda anda direita como eu. Trabalha o mais que pode. Mas já é muito velhinha, está com os pés para a cova. Tem uma cadeira que parece feita para uma criança; dorme num colchão em cima de mato. Só come pão e queijo, quando o tem.

SOFIA - Ah! gostava tanto de a ver! É muito longe?

TIA LIBÂNIA - Não, menina: uma meia hora de caminho, o máximo. É um passeio.

Sofia não disse mais nada, mas logo decidiu que havia de ir vê-la. Para que o mérito da sua acção fosse maior, resolveu ir sozinha sem dizer nada a ninguém, salvo a Margarida, com quem se entendia melhor. Receava que Camila ou Madalena, incapazes de darem um passo sem licença da mãe, a impedissem de se afastar da quinta sozinha. Esperou que Margarida estivesse só para lhe contar o que sabia da miséria da pobre mulher, e para propor irem vê-la e levar-lhe uma esmola.

MARGARIDA - Pois sim; vamos lá já, se a mamã der licença, e levamos a Camila e a Madalena conosco.

SOFIA - Isso não, Margarida; não devemos falar nisto a ninguém; será mais bonito e caridoso irmos sozinhas, sem ajuda. Daremos à tia Teresa todo o nosso dinheiro para bolos e brinquedos. Eu tenho algum dinheiro; e tu?

MARGARIDA - Também tenho. Bem sei que é suficiente, mas porque achas melhor, mais caridoso escondermos da mamã e da Sr á Fleurville, da Camila e da Madalena e irmos sozinhas a casa dessa pobrezinha?

SOFIA - Porque ouvi outro dia dizer à tua mamã que é preciso não nos envaidecermos com o bem que fazemos: nem a mão esquerda deve saber o que dá a direita.

MARGARIDA - Mas acho que devo dizer ao menos à mamã.

SOFIA - Não deves, não. Se dizes à tua mamã, todos querem vir connosco e dar dinheiro. E então nós? Ficaremos a olhar, como o outro dia, com a Lúcia e Francisca. Que bem lhe fizemos nós? Nenhum. Foi a tua mãe que falou e que lhe deu a esmola.

MARGARIDA - Mas, Sofia, parece-me que somos muito pequenas para irmos sozinhas à mata.

SOFIA - Muito pequenas! Tu tens seis anos e eu tenho oito. Achas então que não é idade para sairmos sem a mamã ou sem a criada? Ah! Ah! Eu com cinco anos já ia muito mais longe sozinha. Bem vejo que o que tens é medo; não te atreves a dar meia dúzia de passos sem a tua mamã. Tens medo de que os lobos te comam?

MARGARIDA (já zangada) - Enganas-te; não sou tão tola como tu imaginas. Bem sei que não há lobos. Para te provar que não tenho medo, vamos já.

SOFIA - Até que enfim! Vamos depressa! Daqui a meia hora já cá estaremos.

E puseram-se a caminho, sem preverem os perigos e sustos por que iam passar. Caminhavam depressa e caladas. Margarida não sentia a consciência muito tranquila, compreendendo que cometera uma falta, lamentava não ter resistido a Sofia. Sofia, por seu lado, também não estava sossegada: as objecções de Margarida vinham-lhe à memória. Receava tê-la arrastado e proceder mal. "Vão com certeza ralhar-nos", pensava ela. Contudo, andava, andava sempre, já admirada de ainda não terem chegado, pois havia quase uma hora que tinham partido.

"Tu sabes bem o caminho? ", perguntava Margarida, inquieta.

"Sei, sim, a jardineira explicou-me muito bem", respondeu Sofia, em voz firme, apesar do medo que a assustava.

" Estamos perto?"

"Faltam uns dez minutos, no máximo. "

Continuaram a andar em silêncio; a mata não tinha fim, nem casas, nem povoações; árvores, só árvores.

"Estou cansada", disse Margarida.

"Eu também", disse Sofia.

"Há tanto tempo a andar!", disse Margarida. Sofia não respondeu: a sua inquietação era muita para poder dissimular por mais tempo o seu terror.

"Se voltássemos para casa? ", disse Margarida.    "Pois sim, voltemos. "

"Que tens tu, Sofia? Parece que estás com vontade de chorar. "

"Perdemo-nos", disse Sofia, desatando a soluçar; "não sei o caminho, estamos perdidas".

"Perdidas! " repetiu Margarida, com terror. "Perdidas! Que vai ser de nós, meu Deus?"

"Enganei-me, certamente, no caminho", exclamou Sofia, chorando, "no sítio em que havia uma encruzilhada; não sei onde estamos".

Margarida, vendo-a desolada, procurou sossegá-la, tranquilizando-se a si própria.

"Sossega, Sofia; havemos de encontrar o caminho. Voltemos para trás e andemos depressa. Há muito tempo que saímos; a mamã e a Sr. a Fleurville já devem estar inquietas. Estou certa de que a Camila e a Madalena já andam à nossa procura. "

Sofia enxugou as lágrimas e seguiu o conselho de Margarida: voltaram para trás e andaram durante algum tempo; por fim acharam a encruzilhada. Pararam, atrapalhadas.

"Qual será o caminho? ", perguntou Margarida.       "Não sei, parecem-se todos uns com os outros.     "Vê se te lembras por qual viemos. "

Sofia olhava, procurava lembrar-se, mas nada.      "Creio", disse por fim, "que é este da relva".

"Há dois com relva; mas parece-me que não havia relva naquele por onde nós viemos. "

"Havia, sim, havia até muita. " "Tenho ideia de que havia pó. "

"Não, estás enganada, não olhaste para os pés. Vamos pelo caminho da esquerda e chegaremos em menos de meia hora. "

Margarida seguiu Sofia; ambas continuaram a caminhar em silêncio. Inquietas, calavam terríveis pensamentos. Ao cabo de uma hora, Margarida parou.

MARGARIDA - Não vejo o fim da mata: estou muito cansada.

SOFIA - E eu! Doem-me horrivelmente os pés. MARGARIDA - Sentemo-nos um instante. Não posso mais.

Sentaram-se à beira do caminho. Margarida deitou a cabeça no colo e pôs-se a chorar baixinho, na esperança de que Sofia a não ouvisse. Tinha medo de a afligir por ter sido a causa daquela situação.

Sofia, pensando no mal que fizera, ao arrastar Margarida a um passeio tão longo numa mata desconhecida, só lhe apetecia chorar também.

Assim estiveram muito tempo, sem falar. Por fim Margarida limpou os olhos e propôs a Sofia porem-se de novo a caminho. Sofia levantou-se a custo; custava-lhe andar. A fadiga era cada vez maior. O dia declinava. O medo juntava-se à inquietação; começavam a sentir fome e sede.

"Minha querida Margarida", disse, por fim, Sofia. "perdoa-me: fui eu que te persuadi a acompanhar-me; Foste muito generosa em não me censurares".

"Pobre Sofia", respondeu Margarida, "de que servia censurar-te? Eu bem vejo que sofres. Que vai ser de nós, se tivermos de passar a noite nesta terrível mata? "

"É impossível,           querida Margarida. Elas já devem estar em cuidado. Certamente que nos mandaram procurar. "

"Se ao menos encontrássemos água! Tenho tanta sede, que me arde a garganta. "

"Não ouves o barulho de um regato na mata? "

"Creio que sim; vamos ver. "

Entraram na mata, abrindo caminho através das silvas, que lhes arranhavam pernas e braços. Depois de terem caminhado uma centena de passos, ouviram distintamente o rumor da água. A esperança deu-lhes coragem;

chegaram à borda de um regato muito estreito, mas bastante profundo; no entanto, como ia muito cheio, foi-lhes fácil beber, de joelhos. Mataram a sede, lavaram a cara e os braços, que enxugaram aos bibes, e sentaram-se à borda do regato. Pusera-se o sol; escurecia; o terror das pobres pequenas crescia com a obscuridade. Já não podiam constranger-se mais: choravam desoladamente.

Tudo era silêncio, ninguém as chamava; não pensavam certamente em procurá-las tão longe.

"É preciso", disse Sofia, "voltar para o caminho que deixámos; talvez possamos encontrar alguém que nos leve a casa. E sempre está lá menos frio do que aqui ao pé da água".

"Vamos outra  vez picar-nos nos espinhos", disse Margarida.

"Mas não há outro remédio, para que possam dar connosco. Não podemos ficar aqui. "

Margarida levantou-se, suspirando, e seguiu Sofia, que, para lhe tornar o caminho menos penoso, ia na frente. Depois de muito andarem encontraram-se enfim no caminho. Anoitecera, completamente; já não viam onde punham os pés. Resolveram esperar até ao dia seguinte.

Havia cerca de uma hora que estavam sentadas junto a uma árvore, quando ouviram um sussurro na mata; dir-se-ia um animal a andar com precaução. Imóveis pelo terror as pobres pequenas mal ousavam respirar; o barulho aproximava-se; de repente, Margarida sentiu um bafo quente no pescoço. Deu um grito, Sofia soltou outro ainda mais forte; ouviram então ruído de ramos partidos e um grande animal a fugir mata dentro. Meio mortas de medo, abraçaram-se uma à outra e assim ficaram imóveis e sem fala, até que novo sussurro, este ainda mais assustador, veio dar-lhes coragem de se levantarem e desatarem a fugir: eram ramos partidos violentamente e um grunhido entremeado de um arfar ruidoso, a que respondiam grunhidos mais fracos. Todos estes ruídos vinham da mata na direcção do caminho. Sofia e Margarida; assustadas, despediram numa corrida até esbarrarem nas árvores cujos ramos chegavam ao chão. Cheias de pavor agarraram-se a eles e treparam de ramo em ramo, até uma altura onde ficassem ao abrigo de qualquer ataq e Puseram-se a agradecer a Deus ter-lhes deparado aquela árvore protectora. Efectivamente acabavam de escapar a um grande perigo: o animal que vinha direito a elas era um javali, seguido de sete a oito filhitos. Se tivessem ficado no caminho, tê-las-ia, certamente, despedaçado com as suas presas. Lá no alto da árvore batiam o queixo de medo, tão trémulas que mal se seguravam. Já o javali se afastara e tudo era, de novo, tranquilidade, quando o barulho de um carro veio reanimar as forças das pobres crianças. A esperança aumentava à medida que o carro se aproximava; por fim, ouviram distintamente o passo do cavalo; pouco depois ouviram assobiar o homem que conduzia a carroça. Aproximava-se, estavam salvas.

"Socorro! Socorro! ", gritaram elas, muitas vezes.

"Socorro! Salve-nos", gritaram ainda.

HOMEM (entre dentes) - Quem diabo pede socorro? Não vejo ninguém! está escuro como breu. Olá! quem chama?

SOFIA e MARGARIDA - Somos nós, somos nós; salve-nos, meu rico senhor, perdemo-nos na mata.

HOMEM - Olha! são vozes de crianças. Onde estão esses fedelhos? Quem são vocês?

SOFIA - Eu sou Sofia.

MARGARIDA - Eu sou Margarida; vivemos em casa da Sr á Fleurville.

HOMEM - Então são da quinta? Mas onde diabo estão vocês? Para as salvar é preciso encontrá-las.

SOFIA - Estamos na árvore; não podemos descer.

HOMEM (levantando a cabeça) - Ah! É verdade. Que susto devem ter apanhado! Esperem, não se mexam, já as vou buscar.

E o bom homem trepou, de ramo em ramo, tacteando cada um deles, para ver se lá estavam as crianças.

Por fim, agarrou Margarida.

HOMEM - Não se mexam as outras; vou pôr esta lá em baixo e já volto. Quantas estão no ninho?

MARGARIDA - Somos só duas.

HOMEM - Bom, não levará muito tempo. Espere o número dois, enquanto ponho o número um lá em baixo.

O bom homem desceu lentamente com Margarida ao colo; pô-la na carroça e subiu de novo em busca de So fia, que o esperava com ansiedade; pegou-lhe igualmente ao colo e veio sentá-la junto de Margarida. Depois subiu para a carroça e tocou o cavalo, que partiu a trote. Voltou-se então para as meninas:

HOMEM - Então, minhas pequerruchas, como diabo vieram aqui parar sozinhas?

SOFIA - Perdemo-nos na floresta quando íamos levar a esmola a uma pobre.

MARGARIDA (envergonhada) - Saímos sem dizer nada.

HOMEM - Ah! ah! então já se gazeteia? Muito bem! Mas quando se é pequeno não se deve sair do ninho sem companhia.

SOFIA - Ainda estamos muito longe?

HOMEM - Um bom pedaço! Duas boas léguas, pelo menos: numa hora pomo-nos lá. Vamos tocar o cavalo: devem estar em cuidado na quinta.

E o homem chicoteou o cavalo, e pôs-se a assobiar deixando as meninas a sós consigo mesmas. Três quartos de hora depois parava diante do portão da quinta; a porta abriu-se. Elisa, pálida e assustada, perguntou se sabia alguma coisa das meninas.

"Estão aqui", disse o homem. "Trago-as comigo: olhe que não estavam muito divertidas quando as encontrei na mata".

E o homem desceu Sofia e Margarida, que Elisa recebeu nos braços.

ELISA - Depressa, depressa, venham à sala; procuram-nas por toda a parte; foram homens a cavalo em todas as direcções; as senhoras estão desoladas; e as meninas Camila e Madalena num grande desassossego. Espere um minuto, senhor; as senhoras, decerto, lhe querem agradecer.

HOMEM - Ora! não há de quê. Preciso de voltar para casa; tenho ainda duas léguas para andar.

ELISA - Mas onde vive? Como se chama? HOMEM - Chamo-me Hurel, cortador; vivo em Aube. ELISA - Então iremos agradecer-lhe depois, senhor Hurel; adeus, visto não poder esperar.

Enquanto durou esta conversa, Margarida e Sofia tinham corrido à sala, abraçando-se a primeira à Sr á Rosbourg, enquanto a segunda se lhe lançava aos pés.

A surpresa e a alegria iam fulminando a Srá Rosbourg. Empalideceu e caiu numa poltrona sem forças para pronunciar uma palavra.

"Mamã, minha querida mamã", exclamou Margarida; fale-me, dê-me um beijo, diga que me perdoa".

"Pobre criança", respondeu a Sr á Rosbourg, em voz comovida, tomando-a nos braços e cobrindo-a de beijos: "Como foste capaz de me dar um tão grande desgosto? Julguei-te perdida, morta; procurámos-te até à noit Ainda por lá vos procuram com archotes, em todas as direcções. Onde estavas? Porque vens tão tarde? "

"Minha querida senhora", disse Sofia, que se colocara de joelhos aos pés da Sr. a Rosbourg, "eu é que devo pedir perdão, porque fui eu que levei Margarida a acompanhar-me. Queria ir a casa de uma pobre mulher que mora do outro lado da mata, sozinha com a Margarida, para não partilhar com mais ninguém a glória do acto de caridade. Margarida não queria ir. Fui eu que a levei. Ela seguiu-me contrariada. Mas fomos bem castigadas; eu, sobretudo, que tinha na consciência a culpa de ter arrastado Margarida comigo. Mas sofri muito. De futuro, nunca mais faremos nada sem pedir licença".

"Levanta-te, Sofia", replicou a Srá Rosbourg com doçura. "Perdoo- te, visto que te arrependes, mas, de hoje em diante, tratarei de fazer com que não aconteça uma coisa destas. E tu, Margarida, imaginava-te mais ajuizada, e mais obediente. Se eu soubesse, obrigava-te a andar acompanhada por uma criada, quando Camila e Madalena não pudessem andar contigo. É o que farei de futuro".

Camila e Madalena, que se haviam deitado havia cerca de uma hora (pois era já perto de meia-noite), mas que não tinham conseguido adormecer, tão inquietas estavam, correram em camisa de noite, soltando gritos de alegria. Beijaram vinte vezes as suas amigas perdidas.

CAMILA - Onde estiveram? Que vos aconteceu? MARGARIDA - Perdemo-nos na mata.

MADALENA - Que foram fazer à mata? Como tiveram coragem de ir para lá sozinhas?

SOFIA - Esperávamos ir a casa de uma pobre mulher chamada Teresa, para lhe darmos dinheiro.

CAMILA - Mas porque não nos disseram nada? Teríamos ido juntas.

Sofia e Margarida baixaram a cabeça, e não responderam. Antes de terem tempo para mais explicações, entrou Elisa, com duas grandes chávenas de caldo e torradas. Poisou-as diante de Sofia e Margarida.

ELISA - Comam, minhas pobres meninas; naturalmente, não jantaram.

MARGARIDA - Não, bebemos só água num regato que encontrámos na mata.

ELISA - Coitadinhas! Vá, comam o que trago. Depois bebam um cálice de vinho do Porto - e acrescentou, virando-se para a Sr á Rosbourg: - É preciso deitá-las. Devem estar mortas de fadiga.

  1. a FLEURVILLE - Elisa tem razão. Apareceram, eis o principal. Amanhã contam tudo. Esta noite contentemo-nos em dar graças a Deus por no-las ter restituído, pois podíamos muito bem ter ficado sem elas.

Sofia e Margarida tinham devorado o que Elisa trouxera; depois de beijarem ternamente todas as pessoas, foram deitar-se. Mal poisaram a cabeça no travesseiro, adormeceram tão profundamente que só acordaram no dia seguinte, às duas horas da tarde!

 

                   A narrativa

Camila e Madalena esperavam com impaciência no quarto da Sr. a Fleurville que as suas amigas acordassem. A Sr. a Rosbourg não deixava o quarto de Margarida. queria ter a sua primeira palavra, o seu primeiro sorriso.

"A mamã", declarou Camila, "dizia ontem que Margarida e Sofia podiam nunca mais ter voltado". Elas acabariam sempre por achar o caminho ou por encontrar alguém, visto que não estavam perdidas.

  1. a FLEURVILLE - Esqueces, minha pequena, que estavam numa mata de muitas léguas de extensão, sem nada que comer, e que deviam passar a noite num sitio povoado de animais ferozes.

MADALENA - Mas lá não há lobos!

  1. FLEURVILLE - Há, sim, há muitos até, e javalis. Todos os anos matam alguns. Reparaste como elas traziam os vestidos e as meias? Todos rotos e sujos! Aposto como elas vão contar coisas mais graves do que imaginas.

CAMILA - Quem dera que elas já estivessem acordadas!

SR á FLEURVILLE - Olha, aí vêm.

A Sr á Rosbourg entrou com Margarida pela mão.

SR á FLEURVILLE - Sofia ainda dorme?

  1. a ROSBOURG - Acordou agora mesmo. Está a vestir-se para almoçar. Já aqui vem ter.

CAMILA (beijando Margarida) - Querida Guidazinha, conta-nos o que te aconteceu e os perigos que correste.

Margarida contou tudo o que lhe acontecera: descreveu como não queria acompanhar Sofia; o medo, quando se viram perdidas; a sua desolação por se lembrar da inquietação em que deviam estar em casa; o horror que sentiu quando começou a anoitecer, a fome e a sede, o cansaço, a alegria quando encontraram água, o terror ao ouvirem estalar as folhas e o bafo quente no pescoço. Descreveu o animal muito grande a fugir; o susto, quando começaram a sentir partir os ramos e os grunhidos, como de um animal zangado; a agilidade com que correram e subiram de ramo em ramo até ao cimo da árvore; como lhes custou a equilibrarem-se lá em cima; a alegria, quando ouviram o carro aproximar-se, a voz a responder-lhes, e sentirem-se levadas até à carroça. Disse como Sofia se mostrara arrependida de se ter metido naquela aventura e sobretudo por tê-la arrastado consigo.

Camila e Madalena escutaram a narração num misto de terror e compaixão.

CAMILA - Que animais seriam esses que vos fizeram tanto medo? Não os chegaste a ver?

MARGARIDA - Não sei; estava com tanto medo que não via nada.

  1. a FLEURVILLE - Pelo que diz Margarida, o primeiro devia ser um lobo, e o segundo um javali com os filhos.

MARGARIDA - Que sorte o lobo não nos ter comido! Senti-lhe o bafo na nuca.

  1. a FLEURVILLE - Foram certamente os vossos gritos que o assustaram. Só por isso se salvaram. Quando não estão esfomeados, os lobos são poltrões e nesta época têm muita caça na mata.

MARGARIDA - O javali é que não nos teria devorado: não come carne, pois não?

  1. a FLEURVILLE - Não, mas com uma dentada despedaçar-vos-ia. Quando os javalis têm filhos tornam-se muito ferozes.

Sofia, que entrava, interrompeu a conversa. Todos a beijaram e a rodearam a fazer-lhe perguntas. Contou, com ardor, quanto estava arrependida por ter levado Margarida a acompanhá-la. Jurou nunca mais esquecer aquele dia, e disse que, quando fosse crescida, havia de mandar pintar um quadro com esta aventura. Depois completou a narrativa de Margarida com alguns factos que ela tinha esquecido.

"E agora digam-nos", acrescentou, "deram logo pela nossa falta? Que fizeram para nos encontrar? "

"Havia mais de uma hora que vocês tinham saído do quarto de estudo", disse a Sr á Rosbourg, "quando Camila me veio perguntar, com ar inquieto, se Margarida e Sofia estavam no meu quarto".

"- Não - respondi -, não as vi. Mas não estarão no jardim? "

"- Há meia hora que as procuramos com Elisa, sem as conseguirmos encontrar" - respondeu-me Camila.

"Fiquei inquieta; levantei-me, e procurei por toda a casa, no jardim, na horta. A Sr á Fleurville, que também estava inquieta, lembrou-se de que talvez tivessem ido a casa de Francisca. Aproveitámos a lembrança, e corremos todas lá: não vos tinham visto; andámos de porta em porta, perguntando a toda a gente se vos tinha visto. Veio-me à ideia a queda no poço de há anos. Voltámos correndo para casa, e apesar de ser pouco provável que tivessem ambas caído à água, sondámos o poço em todos os sentidos, com grandes varas. Nenhuma de nós se lembrou da mata. Por que razão se iriam expor a um perigo inútil? Não sabendo já onde vos procurar, fui de casa em casa pedir que me ajudassem. Uma quantidade de gente partiu em todas as direcções; mandámos criados a cavalo por toda a parte, a fim de as trazerem, se tivessem tido a fantasia de dar um passeio mais longo. Até ao momento em que chegaram, a minha angústia foi horrível. Deus porém permitiu que escapassem a todos os perigos e fossem salvas por esse homem, o cortador de Aube, o tal Hurel. Hoje já é muito tarde; mas amanhã iremos fazer-lhe uma visita de agradecimento. Mas iremos de carro. para não nos perdermos.

MARGARIDA - Onde é a casa dele? É muito longe daqui?

  1. a ROSBOURG - Duas léguas, pouco mais ou menos, e tem de se atravessar um bosque.

SOFIA - Nós também iremos, minha senhora?

SR á ROSBOURG - Decerto, Sofia; foi a ti e a Margarida que ele socorreu e salvou. É indispensável que venham.

SOFIA - Não tenho vontade nenhuma de o tornar a ver. Vai fazer troça de nós. Estava ontem com cara de quem acha ridícula a nossa excursão pela floresta.

  1. a FLEURVILLE - E tinha razão, minha filha; fizeram, na verdade, uma coisa muito ridícula. Se ele troçar de vocês, aceitem os seus gracejos com doçura e como expiação da falta que cometeram.

MARGARIDA - Ele não fará troça de nós; tinha ar de boa pessoa.

  1. a FLEURVILLE - Veremos isso amanhã; agora vamos às lições, para depois darmos um passeio.

 

                    Visita a Hurel

"Prepare os dois carros para as duas horas", disse Elisa ao cocheiro da Sr á Fleurville.

COCHEIRO - Então hoje sai toda a gente? ELISA - Sai. A senhora manda-lhe perguntar se sabe o caminho para Aube?

COCHEIRO - Aube? Ora espere. Não fica do outro lado de Laigle, na estrada de Santo Hilário?

ELISA - Talvez; mas informe-se bem antes de se pôr a caminho. As meninas perderam-se o outro dia, a pé. Não devem ter vontade de se perder agora de carruagem.

O cocheiro foi informar-se com o guarda. Quando estava tudo pronto, os cocheiros não hesitaram no caminho a seguir.

A região era encantadora, o vale de Laigle era afamado pelo seu aspecto risonho e verde. A aldeia de Aube ficava na estrada nacional. A casa de Hurel era quase à entrada da povoação. As senhoras pediram que Lha mostrassem e, apeando-se, encaminharam-se para lá. Toda a gente da aldeia veio às portas. Olhavam, com surpresa, as duas elegantes carruagens, e perguntavam quem seriam essas duas lindas senhoras e as encantadoras meninas que vinham visitar Hurel. O bom do homem também não cabía em si de surpresa; a mulher e a filha, boquiabertas, não podiam crer que tão belas visitas fossem para eles.

Hurel não reconheceu as meninas, pois mal as tinha lobrigado na escuridão. Já não pensava sequer na aventura da mata.

"Vossas excelências querem fazer alguma encomenda de carne? ", perguntou Hurel. "Tenho-a muito fresca, de carneiro, de vaca e de...

"Obrigada, Hurel", interrompeu, sorrindo, a Sr. Rosbourg; "não é por isso que viemos. Queremos pagar uma dívida".

HUREL - Uma dívida? Mas vossa excelência não me deve nada. Não me lembro de lhe ter vendido nem vaca nem carneiro, nem.

SRá ROSBOURG - Não, não foi vaca nem carneiro, mas estas duas meninas, que encontrou na mata.

HUREL (rindo) - Ah! Eram estas meninas que colhi na árvore? Coitadinhas! Estavam em tal estado que metiam dó. Eh, minhas lindas! Não têm vontade de voltar para a mata, pois não?

MARGARIDA - Não, não; se não fosse o Sr. Hurel, teríamos certamente morrido de cansaço, de fome e de sede. É por isso que a mamã, a Sr. a Fleurville e nós viemos agradecer- lhe.

E Margarida, dizendo isto, aproximou-se de Hurel, pôs-se nos bicos dos pés e beijou-o. O bom homem pegou nela ao colo e, dando-lhe um grande beijo em cada face, disse:

"Seria uma dor de alma deixar morrer uma menina tão linda. Com que então teve muito medo? "

MARGARIDA - Oh, um medo horrível. Ouvimos passos, estalidos, sopros.

HUREL (rindo) - Ah! Ah! Tudo isso é terrível para as meninas; nós já nem sequer Lhe damos atenção. Mas. sentem-se, minhas senhoras. Vitorina, traz cadeiras, e vinho do bom!

Vitorina era uma linda rapariga de dezoito anos, fresca, de grandes olhos negros. Trouxe cadeiras; sentaram-se todos; conversaram e beberam à saúde de Hurel e da sua fama. Meia hora passada, a Sr á Rosbourg perguntou as horas. Hurel olhou para o relógio de parede.

"Não devem andar longe as quatro horas! ", disse ele; "mas o relógio está desarranjado e não regula bem".

A Sr á Rosbourg pegou numa caixa que levava e deusa Hurel.

"Vejo, Hurel, que não tem relógio de algibeira; aqui está um que espero queira aceitar como recordação das meninas da mata."

"Muito obrigado, minha senhora: o caso não era para tanto. "

Abrira a caixa, e ficara mudo de surpresa e alegria, a olhar para um magnífico relógio, com uma grossa corrente, tudo de ouro.

HUREL (comovido) - Minha senhora, que belo presente! Eu nunca me atreverei a usar uma corrente tão bela, um relógio tão luxuoso.

  1. a ROSBOURG - Use, sim, como lembrança nossa. E nunca esqueça de que ficarei sua devedora eterna. O Hurel trouxe-me um tesouro, trazendo-me a minha filha. Eu dou-lhe uma simples jóia.

Voltando-se, em seguida, para a filha e para a mulher: "Queiram também aceitar estas pequenas lembranças". E cada uma delas recebeu uma caixa, que logo abriram. Ao verem uns belos brincos de ouro, um broche de ouro também, e de esmalte, coraram ambas de prazer. Todos agradeceram reconhecidamente à Srá Rosbourg. As senhoras e as meninas voltaram para os carros, rodeadas de muita gente, que invejava a felicidade da Hurel e abençoava a generosidade da Sr. a Rosbourg.

 

                     Um acontecimento trágico

Algum tempo decorrera depois da visita a Hurel. De onde em onde, quando as suas ocupações lho permitiam, ele aparecia pela quinta. Um dia, que o esperavam depois do almoço, Elisa propôs às meninas apanharem um cesto de avelãs para mandar à Vitorina Hurel. Todas aceitaram a lembrança com alegria. Cada uma com o seu cesto, correram para a alameda das aveleiras. Elisa apanhava e elas enchiam os cestos. Quiseram ver qual tinha mais.

"Sou eu. - Sou eu. - Não, sou eu. - Creio que sou eu", diziam as quatro.

MARGARIDA - Vejam se não é o meu cesto que tem mais. Olhem a diferença que faz dos outros!

CAMILA e MADALENA - É verdade!

SOFIA - Ora! Eu tenho tanto como tu!

MARGARIDA - Isso é que não. Eu tenho mais um terço do que tu!

SOFIA (zangada) - Deixa-te disso! Que tolice! Querem sempre fazer as coisas melhor do que ninguém.

MARGARIDA - Não é nada disso. É a verdade! E tu zangas-te porque és invejosa, nada mais.

SOFIA - Ah! Ah! Ah! Eu, invejosa das tuas avelãs bichosas?

MARGARIDA - Sim, sim! invejosa! Tomaras tu que eu te desse as avelãs bichosas.

SOFIA - Toma: aqui tens o caso que eu faço da tua bela colheita.

Dizendo isto, antes que Elisa tivesse tempo de o impedir, deu um safanão no cesto de Margarida e as avelãs caíram todas ao chão.

MARGARIDA (num grito) - As minhas avelãs. As minhas ricas avelãs!

Camila e Madalena olharam para Sofia com censura, e apressaram-se a ajudar Margarida a apanhar as avelãs caídas.

CAMILA - Toma, Guida. Para te consolares, aqui tens as minhas.

MADALENA - E as minhas também. Podes ficar com os três cestos.

Margarida, cujos olhos estavam cheios de lágrimas, enxugou-os, beijando com ternura as suas boas amiguinhas. Sofia estava envergonhada. Só pensava na maneira de reparar a sua falta.

"Toma lá também as minhas", disse ela oferecendo-lhe o seu cesto, sem ousar levantar os olhos para Margarida.

"Obrigada, menina. Já tenho muitas, não preciso das tuas. "

"Margarida", exclamou Madalena, "não estás a ser gentil. Não vês que a Sofia, oferecendo-te as suas avelãs, reconhece que procedeu mal? Não é bonito continuar zangada".

Margarida fitou Sofia de soslaio, sem saber que fazer. o ar triste de Sofia enterneceu-a um tanto, se bem que ainda não tivesse deixado de estar zangada.

Camila e Madalena olhavam ora para uma ora para outra.

CAMILA- Vamos, Sofia; vá, Margarida: abracem-se! Tu bem vês, Sofia, que a Margarida já não está zangada. E tu, Margarida, não vês que Sofia está arrependida pelo que fez?

SOFIA - Querida Camila, estou a ver que nunca deixarei de ser má. Nunca serei boa como vocês: vês como estou sempre a zangar-me e como ainda há pouco fui grosseira com a pobre Margarida?

MARGARIDA - Não penses mais nisso, minha querida Sofia; dá cá um beijo e fiquemos amigas como dantes.

Depois de Margarida e Sofia se haverem beijado e reconciliado, o que fizeram de muito boa vontade, Camila disse a Sofia:

"Minha querida Sofia, não desanimes: é difícil corrigirmo-nos dos nossos defeitos. Tu já estás muito melhor do que quando vieste para a nossa casa. De mês para mês, nota-se a diferença. "

SOFIA - Obrigada, Camila, por me estares a encorajar. Mas sempre que me comparo contigo e com Madalena, vejo que vocês são muito melhores do que eu.

MADALENA (beijando-a) - Cala-te, cala-te, Sofia! Isso é modéstia, não é, Margarida?

MARGARIDA - Não: Sofia tem razão. Tanto ela como eu estamos muito longe de valer tanto como vocês.

CAMILA - Ah! Ah! Ah! Que modéstia! Bravo, Guida. És mais humilde do que eu; por isso vales mais.

MARGARIDA (muito séria) - Camila, terias tu feito a tolice que nós fizemos o outro dia quando fomos à mata?

CAMILA (embaraçada) - Mas... Não sei...  

Talvez. Teria.

MARGARIDA (com vivacidade) - Não! Não! Não o terias feito. E terias tu brigado com a Sofia, como eu, no tristemente célebre dia das cerejas?           

CAMILA (embaraçada) - Mas isso foi o ano passado... Agora... Tu...      

MARGARIDA (com vivacidade) - O ano passado! O ano passado! Tanto faz. Não, não o terias feito. E há            bocado... terias entornado o meu cesto como a Sofia?       !

Terias ficado amuada como eu?.. Vês, que não respondes? És obrigada a concordar que tu e Madalena sois muito melhores do que nós.

CAMILA (embaraçada) - Somos mais velhas e, por conseguinte, mais ajuizadas; aí, está. Lembra-te de que me estou a preparar para fazer a primeira comunhão para o ano que vem.

SOFIA - E eu, meu Deus? Quando serei eu digna de a fazer?

CAMILA - Quando tiveres a minha idade, querida Sofia; não desanimes. De dia para dia vais-te tornando melhor.

SOFIA - Porque vivo com vocês.

MARGARIDA - Ouço um carro. deve ser a mamã e a Sr á Fleurville que voltam do passeio; vamos perguntar-lhes se não viram o Hurel. Elisa, Elisa, vamos para casa!

Elisa levantou-se e seguiu as meninas, que correram para casa. Chegaram justamente quando as mães desciam do carro.

MARGARIDA - Então, mamã, encontrou o Hurel? vem perto? Apanhámos um grande cesto de avelãs para mandar à Vitorina.

  1. a ROSBOURG - Não encontrámos, querida filha, mas não deve tardar; em geral vem cedo.

As mamãs entraram para tirar os chapéus; as pequenas continuaram à espera. Sofia e Margarida impacientavam-se; Camila e Madalena trabalhavam.

"Isto é de mais", disse Sofia, batendo o pé. "Há duas horas que estamos à espera, e ele não vem! É que não nos liga importância nenhuma! O que devíamos fazer era não lhe dar as avelãs".

MARGARIDA - Oh, Sofia! Coitado do Hurel! Realmente é aborrecido estarmos tanto tempo à espera, mas talvez não seja por culpa sua.

SOFIA - Então de quem há-de ser? Para que nos mandou dizer que vinha ao meio-dia e nos traria caranguejos? Já são duas horas. Um homem, como ele, não deve ter o atrevimento de fazer esperar meninas como nós.

MARGARIDA (com vivacidade) - Meninas como nós foram muito felizes por encontrar na mata um homem como ele, menina; és muito ingrata.

MADALENA - Margarida, Margarida, lá estás outra vez zangada! Não podes discutir com Sofia sem lhe dizeres coisas desagradáveis?

MARGARIDA - Mas porque está Sofia a ralhar com o pobre Hurel?

SOFIA (irritada) - Eu não ralhei, menina; estou aborrecida de esperar, e vou para o meu quarto estudar as lições. Prefiro trabalhar a perder o meu tempo à espera desse Hurel.

MARGARIDA - Vês, vês, como ela fala do bom Hurel? Se fosse a ele não lhe dava os caranguejos que nos prometeu, e.

Mas olhem, lá vem o seu cavalo.     

Com efeito, o cavalo lá estava ao portão, a escorrer água e com mostras de grande cansaço.            

CAMILA - Mas que é do Hurel? Porque virá o cavalo só?

MADALENA - Talvez se tenha apeado para abrir a            cancela e o cavalo continuasse a andar sozinho.

MARGARIDA - Olha como ele está cansado!

CAMILA - Talvez tenha andado muito.

SOFIA - Mas porque estará tão molhado?

MADALENA - Certamente atravessaram o rio.

As crianças esperaram instantes: não vendo aparecer

Hurel, chamaram Elisa.

"Elisa", disse Camila, "queres vir connosco ao encontro de Hurel? Está aqui o cavalo, mas vem sozinho".

Elisa desceu e examinou o cavalo.

"É extraordinário", disse ela, "que o cavalo tenha chegado sem o dono. E em que estado vem o pobre animal! Vamos, meninas, vamos ver se encontramos o Hurel... Queira Deus que não tenha acontecido alguma desgraça! "

Começaram a andar, precipitadamente, pelo caminho que o cavalo devia ter seguido. Quanto mais andavam

mais inquietas ficavam, receando uma queda, um acidente. Próximo da estrada, junto à margem do rio, viram um grande ajuntamento; Elisa, prevendo um desastre, fez parar as meninas.

"Deixem-se aqui estar. Vou saber o que aconteceu. eu já volto. "

As crianças ficaram na estrada, enquanto Elisa

se dirigia a um grupo que falava animadamente.

"Os senhores podem dizer-me o que aconteceu ao pé do rio? "

OPERÁRIO - Uma grande desgraça, menina! Acharam no rio o corpo de um cortador chamado Hurel.

ELISA - O Hurel! Coitado do Hurel! Estávamos à sua espera; vinha hoje à quinta. Mas está realmente morto? Não há esperanças de o salvar?

OPERÁRIO - Nenhumas, menina: o médico esteve quase duas horas a ver se o reanimava, mas em vão. Que se lhe há-de fazer? Como se há-de dar esta notícia à pobre mulher? É capaz de morrer também, a boa criatura!

ELISA - Meu Deus! Meu Deus! Que grande desgraça! Que conselho Lhes hei-de eu dar? Tenho de ir ter com as meninas, que vinham ao encontro dele, e que ficaram na estrada.

Elisa voltou, a correr, para junto das crianças que se conservavam onde ela as tinha deixado, apesar da impaciência em saber o que tinha acontecido a Hurel. A palidez e a tristeza de Elisa prepararam-nas para uma má nova. Todas ao mesmo tempo perguntaram o que havia.

"Porque está ali tanta gente, Elisa? Que aconteceu? " ELISA - Minhas queridas meninas, não é preciso ir mais longe. Aconteceu uma desgraça ao pobre homem, uma tremenda desgraça.

MARGARIDA (aflita) - O quê? Uma desgraça? Está ferido?

ELISA - Pior, menina Margarida: o pobre homem caiu ao rio, e. e.

CAMILA - Fala, Elisa; afogou-se?

ELISA - Justamente. Tiraram o corpo há duas horas.

SOFIA - E eu a recriminá-lo tão injustamente! O infeliz já estava morto!

MARGARIDA - Vês, Sofia, que não era por culpa dele? Pobre Hurel! Que desgraça!

As meninas choravam. Elisa contou-lhes o pouco que sabia, e aconselhou-as a voltarem para casa.

ELISA - Vamos dizer às senhoras o que aconteceu. Sempre terão maneira de suavizar o desgosto da mulher de Hurel. Nós nada podemos fazer pelo morto, ou pelos que ficam.

CAMILA - Podemos, sim, Elisa: podemos pedir a Deus pelo descanso da sua alma e rogar-lhe resignação para a mulher e para os filhos.

MARGARIDA - Minha boa Camila, tens sempre lindos pensamentos. Rezaremos todas por eles.

MADALENA - E pediremos à mamã que mande dizer missas por alma de Hurel.

Chegaram, chorando, à quinta. Quando entraram na sala, não podiam falar; as lágrimas corriam-lhes pelas faces. As Sr ás Rosbourg e Fleurville, admiradas e inquietas por vê-las tão desoladas, perguntavam-lhes, debalde, o que tinham. As mamãs ficaram tão tristes como as meninas, e, depois de terem combinado o que deviam fazer, puseram-se a caminho, para verificar, pelos seus próprios olhos, se nada haveria a tentar.

Voltaram pouco depois, e as meninas rodearam-nas, impacientes por saber se ainda restava alguma esperança.

CAMILA - Então, mamã? Há alguma esperança? SR. a FLEURVILLE - Nenhuma, minhas queridas filhas, nenhuma. Quando chegámos acabavam de pôr o corpo, já frio, de Hurel, numa carroça, para o levar a casa. Um dos seus cunhados e uma irmã da mulher de Hurel foram à frente para a prepararem a receber a terrível notícia. Amanhã será o enterro; depois de amanhã, a Sr á Rosbourg e eu iremos lá para ver o que poderemos fazer pela viúva.

SOFIA - Continuarão elas com o talho?

  1. a FLEURVILLE - Penso que não. Para ter um talho é preciso correr a região de ponta a ponta, à procura de vitelas, carneiros, bois. E uma mulher não pode matar esses animais. Não tem força nem coragem.

CAMILA - E o filho, o Teófilo, não poderia substituir o pai?

  1. FLEURVILLE - Não, está num talho, em Paris, e é ainda muito novo para dirigir um estabelecimento.

Durante o resto do dia, não se falou senão em Hurel e na sua família. A tristeza de todos era grande.

No dia seguinte, as senhoras foram, de carro, a

Aube, visitar a infeliz viúva. Demoraram-se muito tempo.

As meninas espreitavam, ansiosamente, à sua volta. Ao ruído da carruagem, correram ao portão.

MARGARIDA - Então, mamã, como achou a pobre mulher? Como está Vitorina?

  1. a ROSBOURG - Não está bem, minha filha; a pobre mulher caiu num desespero tal, que nada a pode acalmar. Chora dia e noite, chamando pelo marido. Vitorina também está desolada, e o Teófilo ainda não chegou.

Já lhe escreveram.

MADALENA - E elas têm com que viver?

SR á ROSBOURG - Muito pouco. Os que deviam dinheiro a Hurel não têm pressa de pagar, e aqueles a quem ele devia querem ser pagos imediatamente.

Ameaçam-nas com a venda da casita e de uma pequena terra que têm.

SOFIA - Creio que poderíamos ajudá-las, dando-lhes o dinheiro que temos para as nossas coisas.

CAMILA (baixo a Sofia) - Vês, Sofia, o ano passado não terias essa boa lembrança.

MADALENA - Sofia tem razão: é uma excelente ideia. A mamã dá licença, não é verdade?

SR á FLEURVILLE (beijando-as) - Decerto, minhas boas filhinhas; são muito boas e caridosas. Não tarda que Sofia seja tão boa como as suas amigas.

Encantadas com a ideia, as quatro meninas correram a pedir as suas carteiras a Elisa; cada uma deu o que tinha à Sr á Fleurville, que enviou à mulher do Hurel, e mais algum dinheiro da sua algibeira.

Todas as semanas lhe mandavam as suas economias.

Às vezes mandavam uma saia ou uma camisola, feita por suas mãos, ou então frutas e bolos de que se tinham privado, com alegria, para os oferecer à pobre mulher.

A Sr. a Rosbourg e a Sr á Fleurville acrescentavam a essas dádivas somas mais consideráveis. Graças a tais socorros, a viúva e a filha de Hurel nunca tiveram necessidades. Tempo depois, Vitorina casou com um bom rapaz, que tinha uma estalagem perto de Aube; a mãe, envelhecida pelos desgostos e pela doença, morreu pouco depois, agradecendo a Deus por querer reuni-la ao seu querido Hurel.

 

                   As bexigas

Um dia Camila queixou-se de dores de cabeça e no estômago. O seu rosto pálido inquietou a Sr á Fleurville, que a mandou deitar. A febre e as dores continuaram, assim como o incómodo do estômago. Mandaram chamar o médico que só veio à tarde. Camila estava mais calma. O médico elogiou Elisa pelos cuidados com que tratava a doentinha; e Camila pela sua resignação e docilidade; e disse à Sra Fleurville que não se inquietasse. No dia seguinte tinha o rosto e o corpo cheio de manchas vermelhas; para a tarde, cada mancha transformara-se numa borbulha; as dores de cabeça e os vómitos tinham passado. O médico diagnosticou que eram bexigas; afastaram imediatamente as outras crianças. Ficaram apenas Elisa e a Srá Fleurville junto dela. A Sr á Fleurville quis também afastar Elisa, com medo do contágio; mas Elisa recusou-se, obstinadamente.

ELISA - De forma nenhuma, minha senhora, não deixo a menina doente; mesmo que tivesse a certeza de que apanhava bexigas, não faltava ao meu dever.

CAMILA - Minha querida Elisa, eu bem sei como és minha amiga, mas eu também sou tua amiga e ficaria desolada se te visse doente por minha causa.

ELISA - Ora, ora, ora! Esteja caladinha, não se aflija, bico calado! Podem voltar-lhe as dores de cabeça.

Camila sorriu, agradecendo-lhe com um olhar: mal podia abrir os olhos; o rosto estava coberto de borbulhas. Dias depois, começaram a secar, e Camila pôde levantar-se. Mas ficara muito fraca.

Enquanto estava doente, Madalena, Margarida e Sofia perguntavam por ela constantemente; estavam proibidas de se aproximar do quarto de Camila, mas podiam ver Elisa e falar-lhe. Vinte vezes ao dia, quando a ouviam na cozinha ou na copa, corriam a informar-se de Camila. Mandavam-Lhe recortes, desenhos, cestinhos de junco, tudo que lhes parecia podê-la distrair e divertir.

Camila agradecia-lhes muito mas não podia retribuir- lhes, porque estava proibida de trabalhar, de ler e de desenhar, para não fatigar a vista.

Havia oito dias que se levantara, as crostas começavam a cair, quando uma manhã notou a palidez de Elisa.

CAMILA (inquieta) - Tu estás doente, Elisa; estás tão pálida como se fosses morrer. Ah! que mãos tão quentes! Estás com febre.

ELISA - Desde ontem que tenho horríveis dores de cabeça. Quase não dormi esta noite. É por isso que estou assim pálida: mas não há-de ser nada.

CAMILA - Vai já para a cama, peço-te, Elisa; quase te não podes ter em pé. Ias a cair.

Elisa deixou-se cair numa poltrona; Camila correu a chamar a Sr. a Fleurville, que veio imediatamente. Vendo o estado da pobre Elisa, mandou-lhe aquecer a cama e obrigou-a a deitar-se. Chamaram novamente o médico, que a encontrou muito febril e delirando. Declarou que deviam ser os primeiros sintomas das bexigas. Receitou vários remédios, que pouco alívio deram à doente. No dia seguinte começaram a aparecer as borbulhas. Desde que Elisa ficara de cama, Camila não a deixava; dava-lhe da beber, punha- lhe as cataplasmas, molhava-lhe a cara com água fria. Só o ser muito obediente permitiu que ela não passasse as noites a pé.

"Foi por me tratar que a Elisa adoeceu", dizia ela, "é justo que seja eu agora a tratá-la".

Elisa não dava por tão tocante ternura: desde a véspera que estava sem conhecimento. Não falava, nem abria os olhos. Só dias depois as borbulhas começaram a sair; então experimentou certo alívio. Abriu os olhos e começou a suportar a luz. Reconheceu Camila, que a olhava com ansiedade, e sorriu-lhe. Camila pegou-lhe na mão ardente e levou-a aos lábios.

"Não fales, minha pobre Elisa", disse-lhe, "não fales: a mamã e eu estamos ao pé de ti".

Elisa não podia ainda responder, mas ao passo que ia recuperando a razão via os cuidados de que era objecto por parte de Camila e da Sr. a Fleurville.

Durante muitos dias Elisa esteve ainda em perigo; por fim, o médico declarou-a salva. As borbulhas começaram a secar. Eram tão abundantes, que tinha o rosto e a cabeça cobertos.

Quando melhorou e começou a alimentar-se, Camila, que estava completamente boa; perguntou à mãe se podia ver a irmã e as amigas.

"Podes, sim, podes estar com elas, passear e brincar, mas não as deves ainda beijar, nem sequer tocar-lhes. "

Camila deu um pulo e saiu do quarto. Correu ao jardim, onde se ouviam as vozes de Madalena, Margarida e Sofia, que brincavam. Camila gritou:

"Madalena, Margarida, Sofia, venham cá, quero vê-las, quero falar- lhes. Venham depressa, mas não me toquem. "

Três gritos de alegria lhe responderam; empurrando-se umas às outras, a ver qual chegaria primeiro, todas correram para ela.

"Parem! ", gritou-lhes Camila, parando também; "a mamã proibiu-me de vos tocar. Podia ainda pegar-Lhes as bexigas".

MADALENA - Mas eu queria beijar-te, Camila! MARGARIDA - E eu também. Ora! Vou-te beijar, não me importo.

Dizendo isto, correu para Camila, que saltou rapidamente para trás.

"Imprudente! " exclamou ela. "Se tu soubesses o que é ter bexigas! "

SOFIA - Conta-nos: aborreceste-te muito? Sofreste muito? Tiveste medo?

CAMILA - Tive, sim; mas não enquanto estive muito doente. Doíam-me tanto o estômago e a cabeça que não podia pensar. Mas a Elisa, coitada, sofreu bem mais do que eu.

MADALENA - Como está ela hoje? Quando a poderemos ver?

CAMILA - Vai melhor; já comeu galinha ao almoço. Levanta-se hoje e creio que a poderão ver amanhã, à janela.

MADALENA - Que bom! E quando poderemos beijar-te, assim como à mamã?

CAMILA - A mamã não esteve doente como eu, poderão abraçá-la daqui a pouco. Foi mudar de vestido, pois o dela estava impregnado de micróbios do quarto de Elisa.

As meninas contaram-lhe o que tinham feito entretanto. Daí a pouco chegou a Sr á Fleurville com a Sr á Rosbourg; as meninas precipitaram-se para ela e beijaram-na muito. A Sr. a Rosbourg, por sua vez, beijava Camila.

Havia três semanas que a Sr. a Fleurville só via as crianças de longe ou à janela. Nessa manhã o médico declarara que já não havia perigo de contágio para as outras crianças, nem por ela nem por Camila. Elisa é que devia estar afastada até caírem as crostas todas.

No dia seguinte, havia entre as meninas grande agitação; Elisa devia aparecer à janela depois do almoço.

Uma hora antes, pareciam abelhas num cortiço; vinham, olhavam para o relógio, miravam a janela, preparavam assentos; por fim, sentaram-se as quatro em cadeiras, como num espectáculo, e esperaram, de olhos erguidos para a janela. De repente, a janela abriu-se e Elisa apareceu.

" Elisa, Elisa, minha pobre Elisa ", exclamaram Camila e Madalena, e as lágrimas impediram-nas de continuar ".

MARGARIDA - Bom dia, Elisa.

SOFIA - Bom dia, Elisa.

ELISA - Bom dia, minhas meninas; vejam como estou bonita, que linda máscara, não acham?

CAMILA - Oh! para mim hás-de ser sempre linda e boa, Elisa! Imaginas que me esqueço de que foi por me tratares que ficaste doente?

ELISA - Ora! A menina pagou-me bem! Foi tão boa para mim! Mil anos que eu viva não esquecerei a ternura com que me tratou e a bondade da Sr á Fleurville.

E a pobre Elisa, comovida, limpou os olhos, cheios de lágrimas; a sua comoção contagiou as meninas, que se puseram também a chorar. As Sr á Fleurville e Rosbourg vieram encontrá-las lavadas em lágrimas.

"O que é isto, que aconteceu? ", perguntaram elas, assustadas.

"Não é nada, mamã, é a Elisa que está à janela. " As senhoras ergueram os olhos. Ao verem Elisa a chorar, compreenderam o que se acabava de passar.

"Não se trata de lágrimas, hoje", disse a Srá Rosbourg. "Deixem Elisa ficar boa que arranjaremos uma festa para celebrar o dia do seu restabelecimento".

"Uma festa! uma festa", exclamaram as meninas; "Oh! obrigada, mamã, obrigada, minha senhora! Vai ser esplêndido! Uma festa para Elisa ".

Elisa, cansada, retirou-se para dentro. As meninas seguiram a Sr á Rosbourg entusiasmadas com o projecto da festa em honra de Elisa.

 

                   A festa

Ia um rebuliço em casa da Sr á Fleurville. Martelava-se na estufa pegada à sala; vieram muitas flores; fizeram-se empadas, bolos, pudins. As meninas vigiavam Elisa, não a deixando aproximar-se da estufa nem da cozinha.

Elisa adivinhava que lhe preparavam uma surpresa; mas fingia nada perceber, para dar mais alegria às meninas.

Por fim, quinta-feira, às três horas houve um movimento desusado por toda a casa. Elisa preparava-se para se vestir, quando viu chegar as meninas, de fatos de sair, sobraçando um grande cesto coberto por uma toalha.

CAMILA - Vimos vestir-te, Elisa; trazemos aqui tudo.

ELISA - Mas eu tenho tudo quanto é preciso, minhas meninas.

MARGARIDA - Mas ainda não viste o que te trazemos! olha, olha!

E dizendo isto, Madalena levantou a toalha que cobria o cesto. Elisa viu um lindo vestido de seda castanha, com gola e punhos de renda, e um casaco de veludo preto, com enfeites também pretos.

ELISA - Mas isso não é para mim! é bonito de mais! Nunca vestiria um trajo tão elegante. Ia parecer a Sr á Fichini.

MARGARIDA - Não, isso nunca! Nunca te poderias parecer com a gorducha da Sr á Fichini.

CAMILA - Já não há a Sr á Fichini; agora é a Sr á condessa de Blagowski.

MADALENA - Sr á Fichini ou condessa de Blagowski, que mal faz? Tratemos de vestir a Elisa.

E antes que ela as pudesse impedir, as quatro meninas tinham-lhe desatado o avental e desapertado o vestido. Em menos de um credo Elisa estava em combinação.

CAMILA - Abaixa-te, para te pôr a gola. MADALENA - Dá-me o braço, para te enfiar a manga.

MARGARIDA - Estende aquele, para te vestir a outra manga.

SOFIA - Olhem o casaco. Já aqui está.

Depois de vestida, as meninas levaram Elisa ao espelho da mamã. Elisa achava-se tão chique, que se não cansava de se mirar. Agradeceu, beijando muito as meninas, e com elas se dirigiu à sala a agradecer também às senhoras.

"Agora, minhas filhas", disse ela, dirigindo-se para o quarto, "vou tirar todas estas lindas coisas. Vou guardá-las, para um dia de festa".

CAMILA - Isso não, Elisa. Hoje ficas assim todo o dia.

ELISA - Mas porquê?

MADALENA - Já vais ver; vem connosco. E as quatro meninas levaram Elisa, agarrada, ao salão e à estufa, convertida em sala de espectáculo e já cheia de gente. Os proprietários vizinhos ocupavam a galeria, os criados e a gente da povoação estavam na plateia.

As meninas levaram Elisa, toda envergonhada, para uns lugares reservados ao centro da galeria; sentaram-se ao pé dela, o pano levantou-se e começou o espectáculo.

Na peça via-se uma criada negra, muito boa, que salvava os filhos dos patrões num massacre de negros na ilha de S. Domingos e que depois de mil peripécias conseguia embarcar com eles num navio para França. Entregava ao comandante uma caixa de jóias que conseguira salvar, onde havia uma soma considerável em jóias e ouro, declarando pertencer aos seus patrões.

Houve muitos aplausos que redobraram quando começaram a atirar flores a Elisa, que não sabia como agradecer tantas provas de estima.

Depois do espectáculo, passaram à sala de jantar, onde a mesa estava coberta de bolos, frutas, carnes frias, refrescos, etc. Todos tinham apetite; e comeu-se à larga; no pátio distribuía-se, à gente da povoação, café, pastéis, bolos e vinho.

Depois voltaram à estufa, transformada em sala de baile. As cadeiras e os bancos estavam encostados às paredes; tinham acendido todas as luzes. No momento em que as meninas entraram, a orquestra composta por quatro músicos, começou a tocar. Elisa e as meninas dançaram. Os outros convidados seguiram-lhes o exemplo, e meia hora depois tudo dançava animadamente. As meninas nunca se tinham divertido tanto; Elisa estava encantada e enternecida pela festa em sua honra. Dançaram até às onze horas da noite. Depois de terem ceado, os convidados partiram, uns a pé, outros de carro.

As meninas foram para o quarto com Elisa, depois de terem abraçado e agradecido muito às mamãs.

SOFIA - Meu Deus! Que calor! Até a camisa tenho molhada!

MARGARIDA - E eu Tenho o vestido pegado às costas.

MADALENA - Doem-me tanto os pés!

SOFIA - Já não podia mais. Na última valsa quase não podia mexer os pés!

MARGARIDA - Viste aquele homem baixito e muito gordo, com uma grande barriga que caiu no meio da sala?

CAMILA - Vi. Era admirável! Saltava e pulava,

como se a enorme barriga lhe não pertencesse!

SOFIA - E um alto e magrito, que saltava tanto que até bateu com a cabeça no lustre!

MADALENA - Ia-lhe pegando o fogo! Coitado, teria ardido como um fósforo!

SOFIA - Reparaste numa pequena muito pretensiosa, sempre a fazer boquinhas, com um vestido muito ridículo?

MADALENA - Não. Como estava ela vestida?

SOFIA - Com um vestido cinzento, com flores vermelhas.

MADALENA - Ah! Já sei de quem falas.      É uma pobre rapariga, muito tímida, que não tem nada de pretensiosa.

SOFIA - Essa agora! Se aquilo não é ser pretensiosa, não sei que se lhe chamará. E aquela com um vestido branco, todo amarrotado, e um lenço azul já desbotado, achas que também não era pretensiosa?

CAMILA - Vamos, não comeces a dizer mal de toda essa pobre gente; cada um veste-se como pode.

SOFIA (com azedume) - Meu Deus, que severa!

Não sabia que era proibido rir das pessoas ridículas!

CAMILA - Não. mas porque achas tu ridículas pessoas que o não são?

SOFIA - Se tu as achas elegantes, não é razão para que eu as ache também.

MADALENA - Sofia, Sofia, estás aqui estás zangada, se continuas nesse tom.

SOFIA - Não se trata de zangas. Digo apenas que a Camila se torna aborrecida com a sua perpétua bondade.

Nunca se ri de ninguém. Nunca vê as tolices e os disparates dos outros.

MARGARIDA (com vivacidade) - Que felicidade para ti!

SOFIA (secamente) - Que queres tu dizer com isso?

MARGARIDA - Quero dizer que se Camila visse as tolices dos outros e se risse delas, verias as tuas, e todos nos riríamos de ti.

SOFIA (colérica) - Não faço caso do que dizes. És uma pateta.

ELISA (entrando) - Que é isto? Que é isto? Ralha-se aqui?

SOFIA - É a Margarida que só diz tolices.

ELISA - Parece-me que quando entrei era a menina que as dizia.

SOFIA (embaraçada) - Quero dizer... Eu respondia... mas foi ela que começou.

MARGARIDA - É verdade, Elisa; eu disse-lhe que ela dizia tolices, e tinha razão, porque a Sofia chamou aborrecida à Camila.

ELISA - Minhas filhas, então é assim que querem acabar um dia tão feliz?

Sofia e Margarida coraram e baixaram os olhos; depois, olharam-se e disseram ao mesmo tempo:

" Perdão, Sofia "

" Perdão, Margarida. "

Abraçaram-se. Sofia pediu também perdão a Camila, boa de mais para se ter zangado. Acabaram de se despir e deitaram-se, depois de terem rezado com Elisa. Elisa agradeceu-lhes mais uma vez, ternamente, toda a afeição que lhe tinham e a bela festa que lhe haviam oferecido.

 

                   A burricada

MARGARIDA - Mamã, porque não damos um dia um passeio de burro? É tão divertido!

SR á ROSBOURG - Confesso que nunca me tinha lembrado disso.

SR á FLEURVILLE - Nem eu; mas estamos a tempo de reparar esse esquecimento; podemos arranjar dois burros na quinta; com os do moinho e os da fábrica de papel são seis.

CAMILA - E onde iremos nós com os seis burros? SOFIA - Podíamos ir ao moinho.

MARGARIDA - Não, a Joaninha é muito má; depois que me roubou a boneca não gosto de a ver; deita-me uns olhos que fazem medo.

MADALENA - Vamos à casa branca, ver a Lúcia.

SOFIA - Vamos lá quase todos os dias. E é tão perto!

  1. a FLEURVILLE - Tenho uma ideia, que me parece boa; aposto em que vão ficar todas contentes.

CAMILA - Que ideia é, mamã? Diga depressa. SR á FLEURVILLE - Arranja-se um sétimo burro. MARGARIDA - Mas que graça tem um burro sem ninguém em cima?

  1. a FLEURVILLE - Espera, não sejas impaciente! O sétimo burro levará o farnel, e então não adivinham?

MADALENA - O farnel para quê, mamã? SR. a FLEURVILLE - Para nós, para o comermos!

MARGARIDA - Mas não seria melhor comer à mesa do que em cima do burro?

Desataram todas a rir: a ideia de fazer do lombo do burro mesa pareceu-lhes cómica! Até a Margarida se riu.

"Não é nas costas do burro que comeremos", disse a Srá Fleurville; "o burro levará o nosso almoço até à mata do moinho; estenderemos aí uma toalha na relva e comeremos ao ar livre".

"Bravo, bravo. ", exclamaram as meninas, batendo palmas e dando saltos. "Que bela ideia! Vamos abraçar a mamã, para lhe agradecer tão bela lembrança. "

"Estou encantada com a minha descoberta", respondeu a Sr á Fleurville, desembaraçando-se dos braços das meninas, que a afagavam. Agora vou encomendar o almoço frio para amanhã e ver se podemos contar com os burros. "

As meninas correram ao quarto de Elisa a dar-lhe parte da projectada excursão e convidá-la a ir também.

ELISA (beijando-as) - Muito obrigada por terem pensado em mim, minhas queridas meninas, mas tenho muito que fazer para poder andar em divertimentos. A não ser que as mamãs tenham precisão de mim. Caso contrário, prefiro ficar em casa a acabar um trabalho.

MADALENA - Que trabalho? Não tens nada de pressa para fazer!

ELISA - Tenho que acabar os vossos vestidos de popeline azul e fazer golas, combinações, camisas, lenços.

MARGARIDA - Basta, basta, meu Deus! E és tu quem vai fazer todas as coisas?

ELISA - Quem havia de ser? A menina, talvez?

CAMILA - E então? Somos muito bem capazes de te ajudar.

ELISA (rindo) - Obrigada, minhas queridas meninas. Que belas costureiras! Em vez de me ajudarem, estragar-me-iam a obra. Nada, nada! Cada um no seu ofício. Divirtam-se, corram, saltem, comam a vossa merenda. O meu dever é ficar a trabalhar. E já estou muito velha para correr e saltar.

SOFIA - Mas no dia do baile fartaste-te de dançar. ELISA - Ah! Isso foi outra coisa. Era para entreter as pernas. Mas agora, com franqueza, minhas queridas meninas, não me obriguem a ir com vocês: iria contrariada. Uma criada é uma criada. Tenho as minhas obrigações, devo fazê-las.

O ar sério de Elisa pôs termo à insistência das crianças. Beijaram-na e partiram decididas a contar às suas mamãs a recusa de Elisa.

"Elisa", disse a Sr á Fleurville, "só mostra ter tacto, muito juízo e força de vontade, queridas filhas, em não vos querer acompanhar amanhã. É por isso, pela sua delicadeza, que ela é superior a todas as outras criadas. Na verdade, ela tem muito que fazer. Se perdesse em divertimentos o pouco tempo que lhe fica depois do seu serviço, seriam vocês as primeiras a sofrer com isso".

As meninas não insistiram mais, e puseram-se a pensar no passeio do dia seguinte.

"Meu Deus! que dia tão comprido! ", exclamou Sofia, depois de duas horas de bocejos e lamentações.

"Vamos jantar daqui a meia hora", respondeu Madalena.

SOFIA - Ainda todo o serão para passar. Quando chegará amanhã?

MARGARIDA (com ironia) - Quando o dia de hoje estiver acabado.

SOFIA (irritada) - Isso sei eu muito bem: que hoje não é amanhã e que amanhã não é hoje, e que. que...

MARGARIDA (rindo) - Que amanhã é amanhã e que se a minha avó não tivesse morrido ainda agora era viva.

SOFIA - Que disparate! Imaginas-te mais esperta do que os outros.

MARGARIDA (com vivacidade) - E afinal apenas o sou mais do que tu. Era isto que tu querias dizer?

SOFIA (zangada) - Não, menina, não era isso que eu queria dizer. Mas o que é certo é que me estás sempre a fazer dizer tolices...

MARGARIDA - Porque te deixo falar.

CAMILA (numa censura) - Margarida, então, Margarida!

MARGARIDA (beijando-a) - Querida Camila, perdoa-me: fiz mal. Mas Sofia é por vezes. tão. Não sei como dizer.

SOFIA (irritada) - Tão tola, diz, anda, não faças cerimónia.

MARGARIDA - Não, Sofia, não era tola que eu queria dizer, mas. um pouco. impaciente.

SOFIA - Mas que fiz eu?

MARGARIDA - Há duas horas que não fazes senão bocejar, mexer-te, ver as horas e repetir a todo o instante que o dia nunca mais acaba.

SOFIA - E depois? Que mal há nisso? Digo alto o que vocês pensam baixo.

MARGARIDA - Enganas-te; não pensamos em nada disso! Não é verdade, Camila? Não é verdade, Madalena?

CAMILA (um tanto embaraçada) - Nós somos mais velhas, sabemos melhor esperar.

MARGARIDA (impetuosamente) - E eu, que sou mais nova, não estou também à espera?

SOFIA (num cumprimento trocista) - Oh! Todas nós sabemos que és uma perfeição. Que és mais esperta do que ninguém.

MARGARIDA (retribuindo-Lhe o cumprimento) Nesse caso não me pareço contigo.

A Sr á Rosbourg, que ouvira toda a conversa na extremidade do salão, onde estava entretida a pintar, não se quis meter nela. Queria que as meninas se habituassem a reconhecer por si mesmas os seus próprios erros. Mas quando viu a irritação das duas amigas julgou necessário intervir.

  1. a ROSBOURG - Margarida, estás a ficar com o mau hábito de troçar dos outros e de dizeres palavras agressivas, que ferem e irritam. Porque a Sofia não se soube dominar como tu, disseste-lhe coisas que a feriram. Isso desgosta-me. Imaginava que a minha Guidazinha tinha melhor coração e era mais generosa.

MARGARIDA (correndo-lhe para os braços) - Minha querida e boa mamã, perdoe à sua Guidazinha, sim? Não esteja triste. Tem muita razão. Mas espero que não volte a ser preciso repreender-me para o futuro. (virando-se para Sofia) Perdoa-me Sofia. Podes ficar certa de que não repetirei. Mas se me tornar a escapar alguma palavra maldosa ou trocista, lembra-me que entristeço com isso a mamã: tal bastará.

Sofia, apaziguada pela repreensão que Margarida acabava de receber e pela sua submissão, beijou-a de boa vontade. Nesse momento, anunciaram o jantar. Todas comeram com apetite. O serão decorreu no meio da melhor alegria. Sofia, já sem impaciências, associou-se com entusiasmo aos projectos para o dia seguinte. A noite não se lhe afigurou longa, porque a dormiu de um sono até às oito horas quando a criada a veio acordar. Assim que se vestiu, correu à janela e viu com alegria sete burros selados e alinhados em frente da casa. Desceu, precipitadamente, e examinou-os, um por um.

"Este é muito pequeno", disse ela. "Aquele é muito feio, tem os pêlos eriçados. Este grande, cinzento, tem ar de preguiçoso. Este parece-me mau. Estes dois, pardos, são muito magros. O cinzento claro é o melhor e o mais bonito. Escolho-o para mim. Para que as outras não mo tirem, vou atar-lhe o meu chapéu à sela. Todas elas o vão querer, mas eu não lho dou".

Enquanto ela, pensando unicamente em si, escolhia o burro que se lhe afigurava melhor, Nicaise e o filho, que deviam acompanhar a burricada, carregavam no burro preto os cestos do farnel.

As Srás Fleurville e Rosbourg e as meninas estavam prontas. Às nove horas, almoçadas e arranjadas, dispuseram-se a partir.

SR á FLEURVILLE - Escolheram os vossos burros, minhas filhas? Comecemos pelas mais novas. Margarida, qual queres tu?

MARGARIDA - Tanto faz, minha senhora. Todos são bons. O que quiser.

  1. a FLEURVILLE - Nesse caso, Margarida, aconseLho-te um dos dois pequenos. O outro será para Sofia. São ambos muito bons.

SOFIA (com vivacidade) - Eu já escolhi um, minha senhora: é o cinzento claro; atei-lhe o meu chapéu à sela. SR.a FLEURVILLE - Isso é que foi pressa em escolher o que te pareceu melhor! Não és amável para com as tuas amigas, nem delicada com a Sr á Rosbourg e comigo. Mas já que o escolheste, ficarás com ele, talvez te arrependas.

Sofia, envergonhada, sentia- se merecedora da censura da Sr. a Fleurville. Teria dado tudo para se não ter mostrado egoísta, defeito de que ainda se não conseguira corrigir. Camila e Madalena montaram nos burros que lhes designaram; Margarida fitou Sofia com um sorriso trocista, reprimiu um dito malicioso, que Lhe ia a sair dos lábios, e saltou para o seu burro.

A burricada pôs-se em marcha: as senhoras à frente e as meninas atrás. Nicaise e o filho fechavam a marcha, com o burro do farnel.

Começaram a passo, mas, depois de algumas chicotadas, os burros meteram a trote, à excepção do burro de Sofia, que não quis abandonar o seu companheiro de farnel. Sofia ouvia as companheiras rir e viu-as afastarem-se a trote, enquanto o seu burro, apesar dos esforços de Nicaisse e do filho, se obstinava em ir a passo. Bem depressa os cinco burros desapareceram numa curva da estrada. Ela ficou só, a chorar de cólera e de pesar. Foi todo o caminho a passo; quando chegou ao sítio designado para o almoço, viu todos os burros atados às árvores. As suas amigas não estavam. Tinham querido esperar por ela, mas a Sr á Fleurville, que desejava dar-lhe uma lição, não consentiu: levou-as com a Sr á Rosbourg para a floresta. Deram um passeio encantador e colheram muitos morangos e avelãs. Carregadas de flores silvestres, quando voltaram ao ponto de reunião, os seus rostos, corados e alegres, contrastavam com a cara aborrecida e triste de Sofia, sentada ao pé de uma árvore, com os olhos inchados de chorar e toda envergonhada.

"O teu burro não queria andar, minha pobre Sofia? ", disse-lhe Camila, afectuosamente, beijando-a.

"Fui castigada pelo meu tolo egoísmo, minha boa Camila. Mas estou resolvida a castigar-me a mim própria: hei-de voltar no mesmo burro. "

"Oh! isso é que não; hás-de ir noutro. Aquele é muito preguiçoso", disse Madalena.

"Visto que fui eu que escolhi aquela rica prenda", disse Sofia alegremente, "hei-de levar a cruz ao calvário". E Sofia, satisfeita com a sua resolução, recuperou a alegria. Ela e as amigas tiraram o farnel dos cestos e estenderam as toalhas na relva para o almoço.

Quando as meninas voltaram com as mamãs, encontraram os burros selados. Ficaram surpreendidas ao verem o cinzento com os cestos do farnel. Nicaise explicou-lhes que o seu rapaz não queria que a menina Camila ficasse para trás.

"Mas este burro era o meu, não era de Camila".

"Desculpe menina; a menina Camila disse ao meu rapaz que queria ir nele à volta. Mas não tenha medo, menina, o burro preto não é mau, embora o pareça; o diabo nunca é tão feio como o pintam. Monte menina. "

Sofia não respondeu. Comparava-se a Camila; e via a sua inferioridade; pedia a Deus que a tornasse boa como as suas amiguinhas. Estas reflexões deviam aproveitar - lhe o futuro. Camila quis dar-lhe o seu burro, mas ela não aceitou. Saltou para o burro preto. Partiram a trote; depois a galope. A volta foi ainda mais alegre, pois Sofia não ficou para trás. Chegaram a casa à hora de jantar; as meninas, encantadas com o passeio, agradeceram muito às suas mamãs.

Entretanto a Sr á Fleurville recebera uma carta.

"Minhas filhas", disse ela, depois de a ler, "dou-lhes uma boa notícia: os vossos tios de Rugés e os tios de Traypi escreveram-nos a dizer que virão passar as férias connosco, assim como os vossos primos Leonel, João e Tiago. Devem chegar depois de amanhã".

"Que bom! ", exclamaram as meninas. "Que belas férias vamos passar! "

As férias e os primos chegaram poucos dias depois. A alegria das crianças durou dois meses, durante os quais se passaram tantos acontecimentos interessantes que seria impossível descrevê-los neste volume. Espero podê-los contar um dia.

 

                                                                                Condessa de Ségur  

 

                      

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