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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


INCÊNDIOS EM HIGHGATE RISE / Anne Perry
INCÊNDIOS EM HIGHGATE RISE / Anne Perry

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

Outro desafio para o inspetor Pitt e outra manifestação de seu peculiar engenho.

Na Londres vitoriana, aquele rutilante mundo de elegância para uns poucos, hipocrisia desses mesmos poucos e formal cortesia até para ir à privada, cometiam-se crimes como em qualquer outra grande cidade. Clemency Shaw, a esposa de um prominete doutor, morreu em um incêndio. Mas o inspetor Pitt tem dúvidas sobre a origem do mesmo, e, junto a sua ardilosa esposa Charlotte, deverá percorrer uma intrincada e sinistra rede de pistas e personagens que vão das mais baixas classes da sociedade vitoriana até os mais seletos centros de poder.

 

 

 

 

O inspetor Pitt contemplava as fumegantes ruínas da casa, sem reparar na persistente chuva que o empapava. Tinha uma mecha grudada à testa e a água penetrava-lhe entre a gola levantada do casaco e o cachecol de lã. Frias gotas de chuva lhe escorregavam costas abaixo, enquanto que ainda lhe era possível perceber o calor que desprendiam os aglomerados tijolos enegrecidos. A água gotejava das abóbadas corroídas e, ao contato com os rescaldos, erguia-se em nuvens de fumaça produzindo um som sibilante.

Apesar dos escassos restos que ficavam, deu-se conta de que tinha sido um edifício encantador, elegante e bem construído: um lar onde tinham vivido pessoas. Agora mal ficava nada mais que as habitações da criadagem.

A seu lado, o agente James Murdo se balançava trocando alternativamente a perna de apoio. Pertencia à delegacia de polícia local do Highgate e lhe tinha doído que seus superiores tivessem chamado a um homem de Londres, por muito que se tratasse de alguém da reputação do Pitt. Nem sequer lhes tinham dado a oportunidade de arrumar-se por eles mesmos. Não havia motivo para pedir ajuda tão cedo, sem ter tido ocasião de conhecer os pormenores do caso. Mas sua opinião tinha sido ignorada, de modo que aí se tinha o Pitt: desalinhado, vestido de uma forma que contrastava infelizmente com suas elegantes botas. Os bolsos lhe avultavam pelas inimagináveis quinquilharias que continham, levava as luvas desemparelhadas e o rosto sujo de fuligem e sulcado pela tristeza.

— Calculo que ela deve ter começado à meia-noite, senhor - disse Murdo, para demonstrar que se bastava por si só para ser eficiente e que já tinha feito tudo o que cabia esperar. — Uma dama de certa idade, a senhorita Dalton, que vive um pouco mais abaixo, no St. Alban’s Road, viu o incêndio ao despertar a uma e um quarto. As chamas ardiam já com fúria e enviou a sua criada para que avisasse ao coronel Anstruther, que vive na porta do lado, para que desse a voz de alarme, pois possui um desses artefatos telefônicos. A brigada de bombeiros chegou ao cabo de uns vinte minutos, mas não puderam fazer já grande coisa. Mas então toda a casa estava em chamas. Foram procurar a água nos reservatórios do Highgate Ponds - indicou com o braço -, justo ao outro lado desses terrenos.

Pitt assentia, enquanto compunha uma imagem da cena: o medo, os bombeiros forçados a retroceder ante o calor abrasador, os cavalos espantados, as cubetas de mão em mão, e a inutilidade de todo aquele esforço. Tudo tinha ficado coberto pela fumaça e por um resplendor vermelho e cegador, enquanto as línguas de fogo subiam para o céu e as vigas arrebentavam com um fragor estrepitoso, em meio de um revôo de faíscas que se erguiam na escuridão. No ar permanecia ainda suspenso o acre aroma do incêndio, que fazia chorar os olhos e ressecava a garganta.

Pitt sacudiu uma pequena bolinha de fuligem da face, o que foi um engano pois lhe sujou o rosto.

— E o cadáver? - perguntou.

A animosidade do Murdo se esfumou na hora ao recordar aos bombeiros com o rosto lívido, levando a maca. Sobre esta só tinha podido ver uns restos quase monstruosos, tão carbonizados que com muita dificuldade podiam reconhecer-se como humanos. Tremeu a voz de Murdo ao responder.

— Acreditam que se trata da senhora Shaw, senhor, a esposa do médico local e proprietário da casa. É também o legista da polícia, por isso chamamos a um médico geral do Hampstead, mas não pôde nos dizer grande coisa. Tampouco acredito que alguém pudesse. O doutor Shaw está agora em casa de um vizinho, o senhor Amos Lindsay. -Assinalou com um gesto da cabeça para o alto do Highgate Rise, em direção ao West Hill. — É aquela casa dali.

— Sofre algum dano? - perguntou Pitt, sem deixar de olhar as ruínas.

— Não, senhor. Tinha ido a uma chamada noturna, para assistir a uma parturiente. Ocupou-lhe a maior parte da noite. Não ouviu nada do acontecimento até que voltava de caminho para casa.

— E os criados? - O inspetor deu por fim a volta e olhou ao Murdo. — Parece que essa parte da casa foi a menos afetada.

— Sim, senhor. Os criados se salvaram todos, embora o mordomo tenha sofrido queimaduras graves e o levaram ao hospital. Está na clínica St. Cestos, para o sul, justo atrás do cemitério. A cozinheira sofre uma comoção e a levou um familiar que vive em Seven Sisters Road. A criada não pára de chorar e de dizer que nunca devia ter partido do Dorset. Quer voltar para lá. A criada da limpeza dorme fora e vem todo dia.

— Estava o pessoal ao completo e todos saíram ilesos salvo o mordomo? - insistiu Pitt.

— Assim é, senhor. O incêndio começou no corpo principal da casa. A ala ocupada pela criadagaem foi a última em ser alcançada e os bombeiros puderam tirá-los todos.        -Estava tiritando, apesar da madeira e os escombros que se consumiam lentamente ante eles.

A suave chuva de setembro amainava e dava passagem a um diluído sol de meio-dia

que aparecia por cima das árvores dos campos do Bishop’s Wood. Soprava um vento ligeiro procedente do sul, da grande cidade de Londres, onde os jardins de Kensington brilhavam transbordantes de chamativas flores e as babás passeavam acima e abaixo suas cargas com seus uniformes engomados e os músicos ambulantes entoavam inspiradas melodias. As carruagens percorriam velozes o Malí, onde as raparigas vestidas à última moda se saudavam umas a outras para mostrar seus novos chapéus e as senhoritas mais atrevidas e de não tão irrepreensível reputação subiam a cavalo pelo Rotten Row com suas roupas imaculadas e suas quedas de olhos ao cruzar-se com os cavalheiros.

A rainha, vestida de negro, de luto ainda pela morte do príncipe Alberto acontecida fazia vinte e sete anos, encerrou-se no Windsor. E nas ruelas do Whitechapel tinha surgido um louco que estripava mulheres, que mutilava o rosto e cujos corpos, empapados em sangue, deixava grotescamente abandonados no pavimento. A imprensa popular não demoraria para lhe chamar Jack, o Estripador.

Murdo encurvou os ombros e endireitou um pouco o casaco.

— A senhora Shaw é a única vítima neste crime, inspetor. Pelo que sabemos, o fogo se iniciou no mínimo em quatro pontos diferentes de uma vez. Pegou de forma imediata, como se tivessem orvalhado as cortinas com óleo diesel. – Os músculos de seu jovem rosto se distederam. — Todo mundo pode salpicar o óleo diesel de um lampião na cortina de forma acidental, mas não em quatro habitações diferentes. E todas se incendiaram ao mesmo tempo, sem que ninguém saiba dar uma explicação. Tem que tratar-se de um fato deliberado.

Pitt não dizia nada. Por isso estava ali, porque tinha havido um assassinato. Isso era o que o tinha levado até aquele jardim destroçado, junto a aquele jovem agente, impetuoso e ressentido, que tinha o rosto negro de fuligem e os olhos dilatados por causa da emoção e da piedade que lhe tinha inspirado aquilo.

— A questão é a seguinte - disse Murdo com calma: — era a pobre senhora Shaw a quem queriam matar, ou era ao doutor?

— Há muitas coisas por averiguar - respondeu Pitt com tom seco. — Começaremos pelo chefe de bombeiros.

— Sua declaração está depositada na delegacia de polícia, senhor. A uma meia milha subindo a rua. - Murdo falava com certa tensão, ao recordar de novo seus colegas.

Pitt seguiu-o e ambos caminharam em silêncio. Umas pálidas folhas de árvore revoavam sobre o pavimento. Passou uma calesa rangente. As casas ofereciam um aspecto de solidez. Ali viviam pessoas respeitáveis e com dinheiro, situadas em uma posição de considerável bem-estar. Suas moradias estavam para a parte oeste da estrada que conduzia ao centro do Highgate, com seus clubes, escritórios de advogados, lojas, obras hidráulicas, Pond Square e o imponente e elegante cemitério que se estendia para o sudeste. Passadas as casas e a ambos os lados da estrada havia campos, verdes e silenciosos campos.

Na delegacia de polícia Pitt encontrou uma recepção mais que correta, mas, pelos rostos cansados dos agentes e o modo em que afastavam o olhar, deu-se conta de que, assim como Murdo, sentiam-se doídos pelo fato de haver-se visto na necessidade de chamá-lo. As forças policiais da área de Londres estavam curtas de pessoal, até o ponto de que se cancelaram todas as permissões para enviar ao distrito do Whitechapel o maior número de homens possível, com o fim de empregá-los nos horrendos crimes que comocionavam Londres e eram capa na imprensa de toda a Europa.

O informe do chefe de bombeiros esperava-o desdobrado em cima da escrivaninha do superintendente, que lhe tinha cedido seu escritório. Era um homem de cabelo cinza, com uma forma de falar pausada e tão educado que, mais que dissimular, acentuava seu ressentimento. Levava um uniforme limpo, mas seu rosto estava desajustado pela fadiga e nas mãos lhe tinham saído umas ampolas que ainda não tinha tido tempo de cuidar.

Pitt lhe agradeceu, sem muito ênfase para não pôr mais em evidência o súbito invertimento de papéis, e pegou o informe pericial. Estava escrito com bela caligrafia. Os fatos eram simples, apenas uma elaboração do que Murdo já lhe tinha contado. O fogo se iniciara de forma simultânea em quatro pontos diferentes: nas cortinas do estúdio, da biblioteca, da sala de jantar e da sala de estar, e tinha tomado corpo com grande rapidez, como se tivessem empapado o tecido com óleo diesel.

Como a maioria de moradias, a casa estava iluminada com luz de gás, assim assim que o fogo tinha alcançado as torneiras, estas tinham explodido. Qualquer hipotético ocupante teria tido muito poucas probabilidades de escapar, a não ser que tivesse despertado nos primeiros momentos e tivesse saído através dos aposentos de serviço.

Tal como tinham acontecido as coisas, a senhora Clemency Shaw tinha perecido asfixiada com toda probabilidade pela fumaça antes de ser consumida pelas chamas.

O doutor Stephen Shaw estava fora, tinha ido a uma chamada urgente a uma milha

de distância da casa. Os criados não se inteiraram de nada até que despertaram pelo som dos sinos dos bombeiros, que colocaram escadas sob as janelas para ajudá-los a sair.

Eram quase três da tarde e tinha deixado de chover, quando Pitt e Murdo bateram na porta do vizinho que ocupava a moradia contigüa à direita da casa sinistrada. Abriu-lhes o proprietário em pessoa, um homem de baixa estatura e traços distintos, com o cabelo prateado penteado para trás e ondulado em forma de leonina cabeleira. Sua expressão era de extrema gravidade. Um cenho de ansiedade se formava entre as sobrancelhas, e nas linhas que rodeavam sua agradável e precisa boca não havia o menor vestígio de humor.

— Boa tarde - disse de forma apressada. — São vocês da polícia, naturalmente.

— O uniforme do Murdo fazia a observação desnecessária, embora o homem olhasse Pitt de soslaio. Ninguém conserva na memória os rostos dos policiais, como tampouco os dos condutores de ônibus, ou dos lixeiros, mas aquela ausência de uniforme lhe era inexplicável. Afastou-se a um lado para deixá-los entrar. — Entrem. Quererão saber se vi algo, claro. Não posso entender como pôde acontecer. Uma mulher tão cuidadosa. É espantoso. O gás, suponho. Quantas vezes penso que nunca deveríamos ter deixado de utilizar as velas. Além de serem muito mais agradáveis.

Conduziu-os através de um vestíbulo bastante lugubre até uma grande sala de estar que com o passar dos anos tinha sido utilizada como estúdio.      

Pitt deu uma olhada com interesse. Era uma estadia muito pessoal e dizia muito do indivíduo. Havia quatro grandes prateleiras de livros muito desordenados, cujos volumes estavam dispostos de acordo com critérios de conveniência, não ornamentais. Não atendiam a uma ordem visual, mas ao que meramente impunha o uso mais freqüente. Havia fólios empilhados ao lado de volumes encadernados em couro, livros grandes junto a pequenos. Sobre a lareira tinha pendurado um romântico quadro de moldura dourada que representava a sir Galahad ajoelhado em posição de sagrada vigília, e em frente havia outro de lady Shallott com flores no cabelo e arrastada pela corrente do rio. Em cima de uma mesita redonda de madeira junto à poltrona de couro havia uma fina estatueta de um cruzado a cavalo, e sobre a escrivaninha se viam espalhadas várias cartas abertas. Em cima de um dos braços do sofá havia três jornais empilhados em precário equilíbrio, e alguns recortes nas cadeiras.

— Quinton Pascoe - disse o anfitrião a modo de superficial apresentação. — Mas vocês já sabem, claro. Aqui. - precipitou-se sobre os recortes de jornal e os meteu em uma gaveta aberta da escrivaninha. — Sentem-se, cavalheiros. É espantoso... espantoso. A senhora Shaw era uma grande mulher. É uma terrível perda. Uma tragédia.

Pitt se sentou com cautela no sofá e ignorou o rangido de um jornal sob a almofada. Murdo ficou de pé.

— Inspetor Pitt... e o agente Murdo - apresentou a ambos. — A que horas foi dormir ontem à noite, senhor Pascoe?

Pascoe arqueou as sobrancelhas, mas se deu conta da intenção da pergunta.

— Oh... compreendo. Um pouco antes de meia-noite. Temo-me que não vi nem ouvi nada até que me despertaram os sinos dos bombeiros. Depois sim, claro, ouvi o fragor do incêndio. Que espanto! - Sacudiu a cabeça, olhando Pitt com ar de pena. — Receio que tenho um sono bastante profundo. Sinto-me horrivelmente culpado. Meu Deus. — Aspirou profundamente, ao mesmo tempo que se voltava para a janela, depois da qual se distinguia um exuberante jardim, no qual era ainda visível a cor amarelada da primeira floração outonal. — Se me tivesse retirado um pouco mais tarde, teria visto possivelmente o primeiro resplendor das chamas e teria podido dar a voz de alarme. - Elevou o rosto, tenso ao fazer-se o mais vivida a imagem. — Quanto o lamento. Embora agora já de pouco serve lamentar-se, não é assim?

— Por acaso olhou para a rua durante a última meia hora antes de ir dormir? - insistiu Pitt.

— Não vi o fogo, inspetor - respondeu Pascoe com um leve matiz de rudeza. — E lhe asseguro que não compreendo o propósito de suas insistentes perguntas. Sinto muito a morte da pobre senhora Shaw. Era uma grande mulher. Mas já não há nada que possamos fazer, mais que... - Voltou a aspirar e franziu os lábios. — Mais que aquilo no que possamos ajudar ao pobre senhor Shaw... suponho.

Murdo se sentiu um pouco desconfortável e olhou fugazmente ao Pitt.

O assunto logo ia ser do domínio público, por isso Pitt não via no que podia beneficiar manter o segredo. Inclinou-se e o jornal sob a almofada rangeu de novo.

— O incêndio não foi um acidente, senhor Pascoe. É evidente que a explosão do gás agravou seus efeitos, mas não pode ter sido o detonante. Iniciou-se em vários pontos de uma vez. Em várias janelas, conforme parece.

— Janelas? Mas o que diz! As janelas não ardem, homem! Me diga, quem é você?

— O inspetor Thomas Pitt, da delegacia de polícia do Bow Street, senhor.

— Bow Street? - Pascoe arqueou suas brancas sobrancelhas. — Mas Bow Street está em Londres, a várias milhas daqui. O que tem de mau nossa polícia local?

— Nada - disse Pitt, com um esforço para não perder a calma. Não eram necessários comentários como aquele em presença do Murdo. — Mas o superintendente considera que se trata de um assunto muito grave e quer que se esclareça o antes possível. O chefe de bombeiros nos disse que o incêndio se iniciou nas janelas, já que conforme parece as cortinas foram as primeiras que arderam. As cortinas grosas prendem com facilidade, sobre tudo se alguém as empapou com azeite de queimar ou com óleo diesel.

— Oh, Meu Deus! - O rosto do Pascoe mudou. — Está dizendo que alguém o fez de propósito... com a intenção de matar...? Não! - Sacudiu cabeça. — Isso é absurdo! É uma completa estupidez! Quem ia querer matar ao Clemency Shaw. Deviam ir pelo doutor Shaw. E onde estava ele, por certo? Por que não estava na casa? Poderia entender se... -Guardou silêncio e ficou olhando o chão, pesaroso.

— Viu a alguém, senhor Pascoe? - repetiu Pitt, com o olhar posto na figura encurvada do homem. — Alguma pessoa que passasse, um coche, uma carruagem, uma luz, algo...

— Pois... - suspirou. — Saí ao jardim para tomar o ar antes de subir à cama. Tinha estado trabalhando em um artigo que me causava algumas dificuldades. – Pigarreou e hesitou uns instantes, mas de repente se deixou levar pela emoção e as palavras saíram sozinhas. — Um artigo a modo de refutação de uma afirmação ridícula do Dalgetty a respeito do Ricardo Coração de Leão. - Sua voz soou acariciadora ao pronunciar aquele novelesco nome. — Não conhecem o John Dalgetty, claro... por que teriam que conhecê-lo? É um completo irresponsável, uma pessoa sem o menor controle de si mesmo nem o menor sentido da decência. - Fez uma careta de repulsão ante aquela idéia. — Sabem?, nós, críticos de livros, temos um compromisso que assumir. - Cravou os olhos em Pitt.      — Formamos opinião. É importante o que vendemos ao público, assim como o que elogiamos ou condenamos. Mas Dalgetty estaria disposto a permitir que se ludibriassem ou ignorassem todos os valores do cavalheirismo e da honra. E isso em nome de uma licenciosidade a que ele chama liberdade. - Agitava-se e sacudia as mãos com os pulsos flácidos, para sublinhar a lassidão das doutrinas que descrevia. — Deu seu apoio a essa horrenda monografia de Amos Lindsay sobre essa nova filosofia política de que se fala agora. Fabianos, chamam-se a si mesmos, mas o que ele escreve equivale à anarquia... ao mais puro caos. O sangue correrá pelas ruas se essas teorias ganharem um número suficiente de adeptos. - O esforço para dominar-se fazia apertar as mandíbulas. — Deverão ver ingleses brigando contra ingleses em nosso chão pátrio. Mas é que Lindsay afirma umas coisas como se pensasse que há algum tipo de justiça natural no que diz: arrebatar a propriedade privada das pessoas para compartilhá-la com as demais, à margem de seus méritos ou sua honestidade... inclusive de sua capacidade para apreciá-la ou conservá-la. - Olhava Pitt com paixão. — Só tem que pensar na destruição que suporia. E nas perdas irreparáveis. E na monstruosa injustiça. Tudo aquilo pelo que trabalhamos e que tanto mimamos... - A emoção fazia constranger a garganta, por isso tinha elevado o tom. — Tudo que herdamos através de gerações, toda a beleza, os tesouros do passado... E esse louco do Shaw, como não, que também está com eles.

Tinha as mãos crispadas e o corpo rígido, até que recordou que Pitt era um policial e que provavelmente não possuía nada... e recordou também o motivo que o tinha levado ali. Afrouxou os ombros. — Sinto muito. Não deveria criticar a um homem que está de luto. Estou envergonhado.

— Tinha saído para tomar o ar... - insistiu-lhe Pitt.

— Ah, sim. Notava-me os olhos cansados e queria me refrescar um pouco, recuperar o equilíbrio, o sentido da proporção nas coisas. Estive passeando pelo jardim. - Esboçou um sorriso bondoso. — Fazia uma noite muito agradável, com lua. Somente havia alguns filamentos de nuvens e vinha um ligeiro vento do sul. Não lhe digo que ouvi cantar um rouxinol? Foi maravilhoso. Até tive vontade de chorar. Delicioso. Fui à cama com uma grande paz interior. - Entrecerrou os olhos. — Que espantoso. Muito perto daqui se desenvolvia um drama cruel. Uma mulher lutava por sua vida contra forças que a superavam, e eu completamente ignorante disso.

Pitt contemplava os efeitos da imaginação e a culpa refletidos no rosto do homem.

— Senhor Pascoe, é possível que embora tivesse estado acordado toda a noite, não tivesse visto nem ouvido nada. O fogo pega muito depressa quando é intencional. E é possível que a senhora Shaw morresse enquanto estava adormecida, asfixiada pela fumaça, sem chegar a despertar sequer.      

— Você acha? - Pascoe arqueou as sobrancelhas. — De verdade? Espero que assim fosse. Pobre criatura. Era uma grande mulher, sabe? Muito para o Shaw. Ele é um tipo insensível, não tem nenhuma classe de ideais elevados. Não é que não seja um bom médico e um cavalheiro -se apressou a acrescentar, — mas carece de sensibilidade para apreciar o delicioso. Utiliza sua engenhosidade e seu progresismo para mofar dos valores das pessoas. Oh, Meu Deus... não deveria falar assim de alguém que sofre uma desgraça, mas a verdade sairá à luz. Lamento não poder ajudá-los.

— Podemos interrogar a seu pessoal de serviço, senhor Pascoe? - perguntou Pitt por mero formalismo. Tinha a firme intenção de interrogá-los dissesse o que dissesse Pascoe.

— Certamente, não faltava mais. Mas, por favor, trate de não alarmá-los. É tão difícil achar cozinheiras com boa disposição, sobre tudo em uma casa de solteiro como a minha. Se houver algo que gostam de é dar jantares e festas e esse tipo de coisas... E eu tenho muito poucas ocasiões para isso, só de vez em quando, com alguns colegas literários.

Pitt ficou em pé.

— Obrigado.

Mas nem a cozinheira nem o criado tinham visto nada, enquanto que a criada da cozinha e a da casa tinham doze e quatorze anos respectivamente, e estavam tão aterrorizadas que eram incapazes de fazer outra coisa que retorcer os aventais entre as mãos e dizer que nem sequer estavam acordadas. E considerando que seus afazeres obrigavam-nas a levantar-se às cinco da manhã, Pitt não teve dificuldade em acreditar nelas.

A seguir visitaram a seguinte casa em direção sul. Naquela parte do Highgate Rise, os campos caíam em declive até um caminho que Murdo disse que se chamava Bromwich Walk e que partia da paróquia do St. Anne’s Church para o sul, paralelo ao Highgate Rise, até o próprio município do Highgate.

— Um lugar muito acessível, senhor - concluiu Murdo com tom sombrio. — A essas horas da noite, nem que tivessem vindo cem pessoas a rastros por aí abaixo com os bolsos cheios de fósforos, ninguém as teria visto. - Estava começando a pensar que toda aquela excursão não era mais que uma perda de tempo, o que se refletia em seu semblante.

Pitt sorriu com indiferença.

— Não lhe parece que teriam se chocado uns com outros, agente?

Murdo não compreendeu a brincadeira. Ele só tinha tratado de pôr um exemplo. Tão pouco inteligente era aquele inspetor vindo do Bow Street? Observou com maior vagar aquele rosto bem doméstico, com seu largo nariz, os dentes frontais ligeiramente tortos e o cabelo despenteado. Mas em seguida apreciou o brilho de seus olhos e o gesto de humor de sua boca e mudou de opinião.

— Digo-o pela escuridão - se explicou Pitt. — Pode ser que houvesse a suficiente lua para que a contemplasse Pascoe, mas estava nublado e não havia luzes nas casas; a meia-noite as cortinas estão corridas e os lampiões apagados.

— Oh - Murdo compreendeu enfim por onde ia Pitt. — Quem quer que fosse, tinha que vir provido de uma lanterna, e a aquelas horas da noite até o brilho de um fósforo se teria visto de longe, se por acaso tivesse havido alguém olhando.

— Exato. - Pitt deu de ombros. — Tampouco vá ajudar nos muito que alguém visse uma luz, a não ser que se fixasse além, no lugar de que procedia. Provemos com o Alfred Lutterworth e os membros de sua casa.

Era uma edificação magnífica, em cuja construção não se reparara em gastos.

Tinha o dobro do tamanho das demais casas da zona, e ocupava o final daquele lance de rua. Pitt seguiu seu costume de bater na porta principal. Negava-se a ir pela entrada de serviço, que era o que se esperava de um policial e demais inferiores de sua espécie. Ao cabo de uns momentos abriu a porta uma criada muito elegante, com um vestido cinza e uma touca e avental engomados com borda de renda. Sua expressão a traiu e refletiu que sabia que Pitt deveria ter ido pela porta da cozinha.

— Fornecedores pela porta detrás -disse com uma ligeira elevação do queixo.

— Vim ver o senhor Lutterworth, não ao mordomo - respondeu Pitt com aspereza. Imagino que recebe às visitas na parte dianteira.

— Não recebe policiais. Replicava como uma pentelha.

— Hoje o fará. - Pitt deu um passo para o interior, com o que a moça se viu obrigada ou a retroceder ou a ficar com o nariz junto ao peito dele. Murdo estava tão horrorizado como admirado. — Estou certo de que desejará ajudar a descobrir quem assassinou à senhora Shaw a passada noite. - Pitt tirou o chapéu.

A criada ficou quase tão branca como seu avental. Sorte teve Pitt de que não desmaiasse. Sua cintura era tão fina que tinha que levar o espartilho tão apertado que teria bastado para afogar a um espírito com menos caráter que o seu.

— Oh, senhor! - Fez um esforço por sobrepor-se. — Eu achava que tinha sido um acidente.

— Receio que não. - Pitt tratou de arrumar o melhor que pôde seu bem torpe começo. A estas alturas não podia permitir que seu orgulho fora pisoteado por uma criada. — Por acaso não olharia pela janela à meia-noite? Não veria talvez uma luz movendo-se, ou ouviria algo incomum?

— Não, não vi nada... - Hesitou. — Mas Alice, a criada, estava acima e esta manhã me disse que viu um fantasma na rua. Claro que é um pouco tonta.Talvez sonhou.

— Falarei com a Alice - respondeu Pitt com um sorriso. — Pode ser importante. Obrigado.

Muito lentamente, lhe devolveu o sorriso.

— Se quer esperar na saleta, direi-ao senhor Lutterworth que está aqui... senhor.

A estadia a que lhes conduziu tinha um encanto nada habitual. Seu proprietário não só tinha dinheiro, mas também muito melhor gosto do que talvez ele mesmo soubesse. Pitt mal teve tempo de dar uma olhada às aquarelas que pendiam das paredes. Eram valiosas, sem dúvida. A venda de qualquer delas teria podido alimentar a uma família inteira durante uma década. Mas além disso eram belas de verdade, e estavam colocadas no lugar preciso, de onde atraíam o olhar sem saltar à vista.

Alfred Lutterworth se aproximava dos sessenta anos. Um anel de suaves cabelos brancos rodeava sua reluzente cabeça, e sua tez viçosa aparecia bastante ruborizada. Era de alta estatura e compleição robusta, e mostrava a segurança de presença do homem que se fez a si mesmo. Seu rosto tinha traços muito marcados, o que em um cavalheiro poderia considerar-se distintivo de beleza. Mas em sua expressão havia algo que denotava certa agressividade e ao mesmo tempo insegurança, e que traía sua secreta convicção de não pertencer a aquela classe, apesar de toda sua riqueza.

— A criada diz que está aqui pela morte da senhora Shaw nesse incêndio - disse Lutterworth com um marcado acento do Lancashire. — É certo que se trata de um assassinato? Essas moças não fazem mais que ler as histórias de crimes que encontram nas prateleiras sob as escadas, assim logo têm mais imaginação que a dos novelistas de baixo estofo.

— Sim, senhor, temo que é verdade - respondeu Pitt. Apresentou-se a ambos, ao Murdo e a ele mesmo, e explicou os motivos do interrogatório.

— Mau assunto - disse Lutterworth com severidade. — Era uma boa mulher. Muito melhor que a maioria das que há por aqui. À exceção do Maude Dalgetty. Essa tampouco dá de nada, absolutamente. Correta com todo mundo. — Sacudiu a cabeça. — Mas eu não vi nada. Estive esperando em cima até que ouvi voltar Flora, e isso foi às doze menos vinte. Logo apaguei a luz e dormi profundamente, até que me despertaram os sinos dos bombeiros. Até esse momento, podia ter passado um batalhão desfilando pela rua, que não teria ouvido nada.

— Flora é a senhorita Lutterworth? - perguntou Pitt, embora já soubesse pela informação da polícia do Highgate.

— Sim, é minha filha. Foi com uns amigos escutar uma conferência com diapositivas que davam no St. Alban’s Road. É justo aí embaixo, detrás da igreja.

Murdo aguçou a atenção.

— Voltou andando para casa, senhor? - perguntou Pitt.

— Está só a uns passos. - Os profundos e bem bondosos olhos do Lutterworth, quem adivinhava uma recriminação, olharam ao Pitt com rudeza. — É uma moça saudável.

— Eu gostaria de lhe perguntar se viu algo. - O inspetor falava sem alterar a voz.     — As mulheres são muito observadoras.

— Quererá dizer intrometidas - concordou Lutterworth com tristeza. — É sim.

Minha última esposa, que em paz descanse, era capaz de observar coisas das pessoas que eu nunca teria visto. E tinha razão nove vezes de cada dez. – A lembrança se fez tão nítida em sua memória que por um momento apagou de sua presença aos policiais que tinha diante e o aroma ainda acre a água mesclada com tijolos e madeira queimada que, apesar das janelas fechadas, flutuava no ambiente. De sua expressão sonhadora não se desprendia outra coisa que doçura. Em seguida voltou ao presente. — Sim, claro... se assim o desejar. - Puxou o pomo da campainha que pendia da parede. Era de porcelana.

Ao cabo de um instante a criada apareceu na porta.

— Diga à senhorita Floresce que quero que venha, Polly. É para falar com a polícia.

— Sim, senhor. - E partiu com rapidez.

— É um pouco presunçosa - resmungou Lutterworth. — Tem opiniões próprias. Mas é bastante bonita, que é como tem que ser uma criada. Suponho que não a pode culpar.

Flora acudiu ao movimento em grande parte pela curiosidade de seus criados, já que se apresentou obedientemente, apesar de que o queixo levantado e a forma de evitar cruzar-se com o olhar de seu pai, somado a um rubor nas faces semelhante ao dele, davam a entender que fazia muito pouco que tinham tido uma acalorada discussão em torno de algum assunto que ainda continuava pendente de resolução.

Era uma jovem de bom aspecto, alta e esbelta, com os olhos grandes e abundante cabelo escuro. Os ângulos das faces e, o que resultava surpreendente, seus dentes tortos frontais a afastavam dos cânones tradicionais da beleza. Seu rosto desprendia força de caráter, e ao Pitt não surpreendeu que brigara com seu pai. Não lhe custava imaginar uma centena de temas sobre os que ela teria com certeza uma opinião extrema que se daria de pontapés com a dele: tudo, desde quais seriam as páginas de um jornal que lhe estaria permitido ler até o preço de um chapéu, ou a hora a que voltava para casa e com quem.

— Boa tarde, senhorita Lutterworth - saudou Pitt com cortesia. — Sem dúvida estará à corrente da tragédia da passada noite. Se me permitir, queria lhe perguntar se viu a alguém ao voltar para casa depois da conferência, fosse um estranho ou alguém conhecido.

— Alguém conhecido? - Era claro que tinha estranhado a idéia .

— Se assim fosse, nós gostaríamos de falar com essa pessoa se por acaso teria visto ou ouvido algo. - Isso era verdade, ao menos em parte. Não havia razão para que a jovem se sentisse como se fosse acusar alguém.

— Ah. - Seu rosto se distendeu. — Vi passar o carruagem do doutor Shaw justo quando saíamos de casa dos Howard.

— Como sabe que era sua carruagem?

— Não há ninguém mais por aqui que tenha uma igual. - Em sua voz não havia acento do Lancashire. Pelo visto seu pai lhe tinha pago aulas de dicção para que falasse como a senhorita que queria fazer dela. Apesar da irritação, agora que a atenção de sua filha estava em outro lugar, seus olhos a olhavam com grande afeto. — Além disso -prosseguiu ela, — vi seu rosto com toda clareza iluminado pelas lanternas da carruagem.

— Viu alguém mais?

— Que seguisse nosso caminho? Bom, atrás de nós vinha o senhor Lindsay... Eu ia andando em companhia do senhor Arroway e as senhoritas Barking. Eles seguiram rua acima até o Grove, no centro do Highgate. O senhor e a senhora Dalgetty iam justo diante de nós. Não recordo a ninguém mais. Sinto muito.

Pitt insistiu para que falasse um pouco mais a respeito do evento e desse os nomes de todos os assistentes, embora não lhe pareceu que pudesse ser de utilidade. O evento tinha concluído muito cedo para o incendiário. Com toda probabilidade, ele ou ela teriam esperado até que a função tivesse acabado de todo antes de aventurar-se a sair. Devia contar que tinha várias horas no mínimo.

Pitt lhe agradeceu e pediu permissão para falar com a criada e com o resto do pessoal. Ele e Murdo foram conduzidos à sala de estar da governanta, onde escutou a história daquela menina de doze anos, quem contou que tinha visto um fantasma com os olhos amarelos incandescentes flutuando entre os matagais do jardim do imóvel contigüo. Não sabia a que hora tinha sido. No meio da noite. Tinha ouvido soar o relógio do vestíbulo muitas vezes e não havia ninguém mais levantado. Os lampiões de gás do patamar estavam ao mínimo e não se atreveu chamar ninguém pois estava aterrorizada. Tinha retornado à cama e se tampou até a cabeça. Isso era tudo o que sabia, jurou.

Pitt lhe agradeceu com delicadeza - era só uns anos maior que sua própria filha Jemima - e lhe disse que lhe tinha sido de grande ajuda. Ela se ruborizou e balbuciou uma cortesia, e depois de um leve tropeção se retirou. Era a primeira vez em sua vida que um adulto a escutava a sério.

— Pensa que pode tratar-se de nosso assassino, inspetor? - perguntou Murdo enquanto saíam de novo à rua. — Refiro ao fantasma que viu a menina.

— Uma luz movendo-se no jardim do Shaw? É provável. Teremos que interrogar todas as pessoas que viu Flora Lutterworth ao sair da conferência. Pode ser que alguma delas visse alguém.

— Uma senhorita muito observadora e inteligente, acredito - disse Murdo, antes de ficar vermelho como tomate. — Quero dizer que se explicou com grande clareza. Sem... sem dramatismos.

— Sem o menor dramatismo - concordou Pitt com um esforço de sorriso. — Uma jovem de caráter. Talvez haveria dito algo mais se seu pai não tivesse estado presente. Imagino que não vêem tudo da mesma ótica.

Murdo abriu a boca para replicar, mas se deu conta de que não sabia muito bem o que queria dizer, assim engoliu em seco e não disse nada.

O sorriso do Pitt se alargou e acelerou seu desajeitado passo sobre o pavimento em direção à casa de Amos Lindsay, onde se tinha coberto o viúvo doutor Shaw, quem não só tinha perdido a sua esposa, mas além disso ficou sem lar.

A casa era bem menor que a dos Lutterworth. Ao entrar, não puderam menos que reparar que pertencia além disso a um personagem extremamente excêntrico. Seu proprietário era ao que parecia uma espécie de explorador e antropólogo. As paredes estavam recobertas de estatuetas das mais variadas origens . Abarrotavam as mesas e as estantes, e muitas estavam inclusive amontoadas no chão. De acordo com os limitados conhecimentos do Pitt, eram africanas ou da Ásia central. Não viu nada do Egito, de Extremo Oriente ou da América, nada que tivesse tampouco a sutil mas familiar serenidade do classicismo herança da cultura européia ocidental. Em todos aqueles objetos havia algo alheio, uma rudeza Bárbara que estava brigada com o interiorismo vitoriano de classe média, tão convencional.

Foram conduzidos por um criado que falava com um acento que Pitt foi incapaz de localizar e cuja pele, não mais escura que a de muitos ingleses, tinha uma textura incomum. Seu cabelo parecia pintado com tinta da China sobre a cabeça. Suas maneiras eram impecáveis.

Amos Lindsay tinha um aspecto eminentemente inglês. Era baixo e robusto e tinha o cabelo branco, e era um homem muito diferente do Pascoe. Se Pascoe era em essência um idealista que não queria outra coisa que retornar a um passado medieval de cavalheiros andantes, Lindsay era um homem de uma curiosidade insaciável e de uma total irreverência pelo estabelecido, tal como mostrava o mobiliário de sua casa. Sua mente viajava a outros lugares, para os mistérios do selvagem e do desconhecido. Sua pele estava sulcada por profundas rugas, resultado tanto de sua própria natureza como da severidade do sol tropical. Tinha uns olhos pequenos e perspicazes, os olhos de um realista, não os de um sonhador. Todo seu aspecto indicava aceitação do humor e dos absurdos da vida.

Naquele momento oferecia um aspecto grave. Recebeu ao Pitt e ao Murdo em seu estúdio, pois não dispunha de uma sala para as visitas.

— Boa tarde - saudou com cortesia. — O doutor Shaw está na saleta de descanso. Espero que não queiram submetê-lo a um interrogatório idiota que qualquer um pode responder.

— Não, senhor - tranqüilizou-o Pitt. — Possivelmente por isso poderia o senhor mesmo responder antes.

— Certamente. Embora não me ocorre sobre o que podemos informá-los. Entretanto, e como vieram, devem supor contra toda verossimilhança que há algum elemento de criminalidade neste assunto. - Olhava para Pitt de forma insistente. — Fui dormir às nove. Levanto-me cedo. Não vi nem ouvi nada, nem tampouco o pessoal da casa. Já o perguntei, pois como é natural o fragor do incêndio alarmou-os e angustiou-os. Não tenho a menor ideia de quem poderia provocar uma coisa assim de forma deliberada, nem que razão poderia ter para fazê-lo. Claro que a mente humana é capaz de quase qualquer tipo de extravio.

— Conhecia bem aos Shaw?

Lindsay não se alterou.

— Conheço-o bem. É um dos poucos homens de por aqui com os que me é fácil conversar. Tem a mente aberta e não está enquistado na tradição como a maioria. Um homem de uma inteligência e um engenho consideráveis. Não são qualidades comuns... nem sempre bem apreciadas.

— E a senhora Shaw?

— A ela não conhecia tão bem. É lógico, claro, a gente não pode falar com uma mulher igual a com um homem. Mas era uma grande mulher. Judiciosa, compassiva, modesta sem afetação, não dava uma imagem falsa de si mesma. Possuía as melhores qualidades em uma mulher.

— Como era fisicamente?

— Como? - A pergunta tinha surpreendido Lindsay. Seu rosto adotou uma careta que era uma cômica mescla de humor e indecisão. — É questão de gostos, suponho. Era morena, de traços regulares, com muitas... - ruborizou-se enquanto para um vago gesto com as mãos. Pitt imaginou que haveriam descrito a curva dos quadris, se não tivesse retido Lindsay um sentimento de decoro. — Tinha olhos grandes, inteligentes e serenos. Soa como se estivesse descrevendo um cavalo, sinto muito. Era uma mulher formosa, em minha opinião. E caminhava com elegância. Sem dúvida falarão com as irmãs Worlingham, suas tias. Clemency se parecia um pouco a Celeste. Com Angeline nada.

— Obrigado. Talvez possamos ver o doutor Shaw agora...

— Certamente. - E sem acrescentar mais conduziu-os de novo ao vestíbulo, e depois de uma breve chamada, abriu a porta da saleta de descanso.

Pitt fez caso omisso das chamativas curiosidades que havia nas paredes e dirigiu o olhar ao homem que estava de pé junto à lareira e cujo rosto aparecia isento de emoção, mas cujo corpo estava ainda em tensão, disposto a reagir ao menor estímulo do exterior. Voltou-se ao ouvir o trinco da porta, mas em seus olhos não se observava interesse algum, a não ser o mero cumprimento de um dever. Tinha a pele branca pela comoção sofrida e grandes olheiras ao redor das pálpebras. Suas feições eram duras, e nem as espantosas circunstâncias em que se achava tinham podido apagar a viveza e inteligência do rosto, nem o cáustico individualismo de que tinham falado ao Pitt.

— Boa tarde, doutor Shaw - saudou com tom formal. — Sou o inspetor Pitt, do Bow Street, e este é o agente Murdo, da delegacia de polícia local. Lamento ter que lhe fazer algumas inoportunas perguntas...

— É claro. - Shaw cortou as justificações. Como havia dito Murdo, era legista da polícia e compreendia a situação. — Pergunte o que tenha que perguntar. Mas antes me diga o que sabe. Tem certeza de que foi um incêndio provocado?

— Sim, senhor. É impossível que o fogo se iniciasse de forma simultânea e fortuita em quatro pontos diferentes, todos eles acessíveis do exterior, e sem que houvesse nenhuma causa doméstica que o produzisse, como uma faísca da lareira, ou uma vela tombada em um dormitório ou nas escadas.      

— Onde se iniciou? -Shaw mostrava agora uma grande curiosidade. Incapaz de permanecer onde estava, começou a mover-se de um lado para outro, primeiro até uma mesa, depois para outra, onde ficou a tocar e ordenar os objetos com gesto mecânico e compulsivo.

Pitt permaneceu junto ao sofá.

— O chefe dos bombeiros diz que começou nas cortinas. Nos quatro aposentos.

O rosto do Shaw refletia um ceticismo enfeitado, até em semelhantes circunstâncias, com um vestígio de ironia e percepção crítica que deviam ser características naquele homem.

— Como pode sabê-lo? Não ficaram muitos restos... - Engoliu em seco — em pé.

— Todos os incêndios seguem uma pauta similar - afirmou Pitt com gravidade. — É necessário comprovar o que foi consumido por completo e o que está muito prejudicado mas ficou parcialmente em pé. A partir de onde haja mais escombros e vidros pode saber-se até certo ponto onde se desenvolveu o incêndio com mais intensidade nos primeiros momentos.

Shaw se agitava com impaciência.

— Sim, sim, claro. Que pergunta tão estúpida. Desculpe. - Passou uma forte e bem cuidada mão pela fronte e afastou o liso e loiro cabelo que lhe estorvava. — Que deseja de mim?

— A que hora foram solicitados seus serviços, senhor, e por quem? – Confiava vagamente na presença do Murdo junto à porta, bloco de papel e lápis em riste.

— Não olhei o relógio - respondeu Shaw. — Por volta das onze e quinze. A senhora Wolcott ficou em trabalho de parto... seu marido foi avisar da casa de uns vizinhos que têm telefone.

— Onde vivem?

— Longe, no Kentish Town. - Tinha uma voz excelente e uma dicção clara, com um timbre muito claro. — Peguei a carruagem para me deslocar até ali. Estive toda a noite, até que nasceu o menino. Voltava para casa por volta das cinco da manhã quando me parou a polícia e me contou o acontecido... e que Clemency tinha morrido.

Pitt tinha visto muita gente nas horas imediatas à morte de um ser querido. Muitas vezes se viu na obrigação de dar a notícia. Era algo que nunca tinha deixado de perturbá-lo.

— Que ironia - continuou Shaw, sem olhar a ninguém. — Minha mulher tinha ficado com o Maude Dalgetty para sair e passar a noite com uns amigos no Kensington. O encontro se cancelou no último momento. E a senhora Wolcott não saía das contas até dentro de uma semana. Era eu quem tinha que estar em casa, e Clemency fora. - Não acrescentou a conclusão óbvia, que ficou planejando sobre a estadia silenciosa.

Lindsay permanecia de pé, sombrio e imóvel. Murdo olhou ao Pitt. Seus pensamentos se refletiram por um instante em seu rosto. Pitt os conhecia de antemão.

— Quem sabia que a senhora Shaw tinha mudado de planos, senhor? - perguntou.

Shaw olhou nos olhos.

— Ninguém salvo Maude Dalgetty e eu. E John Dalgetty, suponho. Não sei a quem mais puderam dizer. Mas não sabiam nada da senhora Wolcott. Ninguém sabia nada.

Lindsay estava de pé junto a ele. Pô-lhe a mão no ombro em um gesto que queria

ser tranqüilizador.

— Tem uma carruagem muito identificável, Stephen. O autor do desastre pôde tê-lo

visto partir e deve ter suposto que a casa estava vazia.

— E então por que a queimou? - disse Shaw com severidade.

Lindsay apertou-lhe o ombro.

— Sabe Deus! Por que põe fogo um pirómaniaco? Por ódio aos que possuem mais que ele? Por um sentimento de poder que nasce de contemplar as chamas? Não sei.

Pitt preferiu não perguntar se a casa estava assegurada, nem por quanto. Seria mais fácil e mais exato averiguá-lo através das companhias de seguros. E menos ofensivo.

Soou uma batida na porta e voltou a aparecer o criado.

— Sim? - exclamou Lindsay com irritação.

— O pároco e sua esposa vieram para expressar sua condolência ao doutor Shaw, senhor. Devo lhes pedir que esperem?

Lindsay se voltou para o Pitt, não em busca de sua permissão, claro, mas para ver se tinha finalizado seu penoso interrogatório e podia retirar-se já.

Pitt hesitou um instante, não de todo seguro de que não houvesse nada mais que pudesse perguntar ao Shaw, nem de se devia, por um mínimo sentido de humanidade, permitir que recebesse o correspondente consolo religioso e deixar suas perguntas para depois. Talvez até lhe seria mais fácil conhecer o Shaw observando-o em sua relação com aqueles que o conheciam e que tinham conhecido a sua esposa.

— Inspetor? - insistiu-lhe Lindsay.

— Certamente - concedeu Pitt, embora pela expressão desafiante e próxima ao alarme que viu no rosto do Shaw duvidou que fosse de verdade o consolo religioso do pároco o que desejava naquele momento.

Lindsay assentiu com a cabeça e o criado se retirou, para retornar ao cabo de um momento acompanhado de um homem aprazível e muito sério vestido de clérigo.

Tinha aspecto de ter sido um jovem atlético, mas agora, bem entrado nos quarenta, não parecia preocupar-se muito por seu estado físico. Parecia muito tímido para oferecer uma boa imagem, mas não havia rastro de malícia ou arrogância em suas regulares feições nem em sua boca, que delatavam certa indecisão. Seu esforço de parecer calmo escondia um profundo nervosismo, e era claro que naquelas circunstâncias estava longe de achar-se em seu elemento.

Acompanhava-o uma mulher de rosto franco e inteligente, de sobrancelhas espessas e nariz muito grande para ser atraente, mas com uma boca que expressava bondade. Em contraste com seu marido, irradiava uma intensa energia, dirigida por inteiro para o Shaw. Mal reparou em Lindsay ou em Pitt, a quem não incluiu na apresentação de seus respeitos. Murdo lhe era invisível.

— Ah... né... - O pastor se sentiu desconcertado ao ver a polícia ainda ali. Preparou o que ia dizer, mas agora não encaixava com as circunstâncias e não tinha nada mais em reserva. — Né... reverendo Héctor Clitheridge -apresentou-se de forma lamentável. — E minha esposa, Eulalia. - Assinalou à mulher que tinha a seu lado com um gesto da mão.

Depois se voltou para Shaw e sua expressão mudou. Parecia lutar por vencer uma grande dificuldade. Alternava entre o desagrado e a inquietação.

— Meu querido Shaw, como lhe expressar quanto lamento esta tragédia. É horrível. A morte nos assalta em meio da vida. Quão frágil é a existência humana neste vale de lágrimas. A desgraça nos chega de repente. Como poderemos consolá-lo?

— Não com tantos tópicos, maldição! -exclamou Shaw, abruptamente.

— Sim, bom... Estou certo de que... - Vermelho como tomate, Clitheridge não sabia o que dizer.

— As pessoas repetem sempre as mesmas coisas porque são verdade, doutor Shaw - interveio a senhora Clitheridge com um sorriso ofegante e os olhos cravados no rosto do Shaw. — De que outro modo poderíamos lhe expressar o que sentimos por você e nosso desejo de lhe oferecer consolo?

— Sim, isso... - acrescentou Clitheridge de forma desnecessária. — Eu me ocuparei de tudo... né... de tudo o que você considere necessário para... Embora ainda é muito cedo, claro... - Sua voz se foi apagando, enquanto olhava ao chão.

— Obrigado - respondeu Shaw. — O farei saber.

— É claro, é claro. - Clitheridge se sentiu visivelmente aliviado.

— Enquanto isso, querido doutor... - a senhora Clitheridge deu um passo à frente. Brilhavam-lhe os olhos e ia com as costas muito erguida sob sua flanela negra, como se estivesse aproximando-se de um lugar emocionante e perigoso. — Enquanto isso, oferecemos-lhe nossas condolências. E, por favor, saiba que pode contar conosco para algo, para qualquer tarefa que talvez prefira não realizar você mesmo. Disponha de mim.

Shaw a olhou fixamente. Por seu rosto passou fugazmente o esboço de um sorriso.

— Obrigado, Eulalia. Sei que sua amabilidade é sincera.

Ela se ruborizou mais do que estava, mas não acrescentou nada mais.

Tê-la chamado por seu nome de batismo era uma familiaridade, sobre tudo diante de alguém de classe social inferior como a polícia. Ao ver o modo em que Shaw tinha arqueado as sobrancelhas, Pitt pensou que mesmo assim o tinha feito de forma deliberada, produto de um automatismo instintivo por afastar qualquer forma de pretensão.

Por um momento Pitt viu a cena sob uma luz diferente. Seis pessoas em uma sala , vinculadas pela morte violenta de uma mulher que lhes era chegada, que tratavam de achar consolo para elas mesmas e para cada uma das demais, e que observavam todas as sutilezas das relações sociais, encobrindo a simplicidade das emoções reais com palavras e rituais. Mas os velhos hábitos e reações também estavam presentes: a dependência de Clitheridge pelas entrevistas das previsíveis Escrituras, o intervencionismo da Eulalia em seu favor.

Algo nela tinha despertado a uma vida mais intensa por ação da personalidade de Shaw. Era algo que lhe era grato e perturbador a mesmo tempo. O dever tinha vencido. Talvez o dever vencesse sempre.

O tenso corpo do Shaw e seus inquietos movimentos não permitiam penetrar no temperamento intelectual e distante que desprendia. A dor sob a superfície o suportaria ele só... a menos que Lindsay encontrasse alguma expressão que pudesse estender uma ponte sobre o abismo.

Pitt se retirou do centro da sala e ficou de pé junto às cortinas estampadas, em atitude vigilante. Lançou um olhar a Murdo para assegurar-se de que fazia o mesmo.

— Vai ficar aqui, com o senhor Lindsay? - perguntou Eulalia solícita. — Se o desejar, na paróquia seria bem-vindo. E poderia ficar todo o tempo que considerasse necessário até que... bom... até que compre outra casa.

— Ainda não, querida, ainda não - disse Clitheridge em um nítido sussurro. — Primeiro temos que organizar o... né... aspecto espiritual...

— Tolices! - respondeu-lhe ela. — O pobre tem que dormir em algum lugar. A pessoa não pode agüentar suas emoções sem ter dado emprego a sua pessoa.

— É ao reverso, Lally! - Começava a zangar-se. — Me deixe por favor que...

— Obrigado - interrompeu Shaw, afastando-se da mesita onde tinha estado brincando com uma estatueta. — Vou ficar com Amos. Mas lhes estou muito agradecido por sua gentileza, e você, Eulalia, expressou-se com total correção, como sempre. As penas se sofrem muito melhor com um pouco de comodidade material. Não contribui nenhuma vantagem o ter que preocupar-se com onde dormir ou o que comer.

Clitheridge se incomodou, mas não pôs reparos. A oposição era muito forte para ele. Salvou-lhe de ter que escutar mais argumentos em contra o reaparecimento do criado para anunciar mais visitas.

— O senhor e a senhora Hatch, senhor. - Não houve pergunta sobre se deviam ou não ser recebidos. Pitt sentiu curiosidade.

— É claro - assentiu Lindsay.

O casal que entrou ao cabo de uns instantes vestia com sobriedade, quase com severidade. Ela estava totalmente de negro, enquanto que ele levava uma gola de pontas, gravata negra e um traje abotoado até a gola de um indefinido tom escuro. Seu pálido semblante denotava extrema gravidade e os lábios tensos e os olhos brilhantes expressavam emoção contida. Aquele rosto chamou a atenção de Pitt pelo fato de que refletia a mesma intensa paixão que o do Shaw, mas também pela diferença em seus traços inatos: se Shaw era impetuoso e espontâneo, o rosto do homem que acabava de entrar era reservado e reflexivo; se Shaw se mostrava cheio de vitalidade e azeda ironia, aquele homem era austero e melancólico. Entretanto, ambos pareciam dotados de uma alma profunda e capazes de emoções impetuosas.

A senhora Hatch, que entrou em frente, ignorou a todo mundo e foi para o Shaw, coisa que deu a impressão de ser o que este esperava. Abraçou-a e a segurou entre seus braços.

— Minha querida Prudence.

— Oh, Stephen, que desgraça. - A mulher aceitou o abraço do Shaw sem vacilação. — Como pode ter acontecido uma coisa assim? Eu achava que Clemency estava em Londres com os Bosinney. Graças a Deus que você não estava ali!

Shaw não disse nada. Por uma vez não sabia o que replicar.

Produziu-se um incômodo silêncio, como se outros, que não compartilhavam a profundidade daquelas emoções, houvessem-se sentido perturbados e tivessem preferido não ser testemunhas delas.

— A irmã da senhora Shaw - sussurrou Murdo inclinando-se para o Pitt. — Ambas as damas eram filhas do finado Theophilus Worlingham.

Pitt nunca tinha ouvido falar de nenhum Theophilus Worlingham, mas a julgar pela reverência que denotava a voz do Murdo devia tratar-se de uma pessoa de certa reputação.

Josiah Hatch pigarreou para pôr fim aquela cena. Além de precisar guardar as formas, percebeu as imprecisas figuras do Pitt e Murdo em um extremo da sala. Presenças intrusas que não formavam parte do que estava acontecendo.

— Devemos procurar consolo na fé - começou. Olhou de esguelha ao Clitheridge. — Estou seguro de que o pastor lhes terá reconfortado já com palavras de ânimo. - Soou um pouco forçado, como se não estivesse seguro do que acabava de afirmar. — É este um momento no que devemos apelar à força de nosso ser interior e recordar que Deus está conosco, também neste vale de sombras, e que tem que fazer-se sua vontade.

Aquele manifesto era tão banal como indiscutível, e dolorosamente sincero.

Como se tivesse apreciado uma mensagem de honestidade naquele homem, Shaw afastou com cortesia ao Prudence e se dirigiu a ele.

— Obrigado, Josiah. É um alívio para mim saber que existe para sustentar Prudence.

— É claro - concordou Hatch. — É dever sagrado de um homem cuidar das mulheres quando chega o momento da dor e da aflição. Elas são mais fracas por natureza, e mais sensíveis para estas coisas. A doçura e a pureza de suas mentes é o que as faz tão perfeitamente aptas para o papel de mães e para o cuidado dos pequenos, coisas pelas quais devemos dar graças a Deus. Lembro quantas vezes me falou neste sentido o querido bispo Worlingham quando eu era jovem.

Não olhava a nenhum dos pressentes, mas a um longínquo lugar de sua memória.

— Nunca deixarei de estar agradecido pelo tempo de minha juventude que passei com ele. - Uma pontada de dor cruzou seu rosto. — A negativa de meu pai a que eu ingressasse na Igreja a compensou a tutela que sobre mim dispensou aquele grande homem, quem me encaminhou pelo caminho do espírito e o cristianismo verdadeiro. Olhou a sua mulher. — Seu avô, querida, foi o mais parecido a um santo que pode haver neste pobre mundo. Sua falta nos é muito triste... muito triste na verdade. Ele teria sabido como confrontar uma perda como esta, e também nos dirigir a cada um de nós as palavras precisas para nos explicar a sabedoria divina e nos fazer sentir em paz com a desgraça.

— Sim, sim - disse Clitheridge de forma inoportuna.

Hatch olhou a Lindsay.

— Um adiantado a seu tempo, senhor, para seu infortúnio. O bispo Augustus Worlingham foi uma personalidade notável, um cavalheiro cristão, benfeitor de multidão de homens e mulheres, tanto material como espiritualmente. Sua influência foi incalculável.    - inclinou-se para frente, com o rosto severo. — É impossível saber quantas pessoas seguem agora o caminho reto graças a seu passo pela terra. Eu conheço dezenas delas.    - Olhava ao Lindsay. — Se as senhoritas Wycombe se dedicaram, as três, a cuidar doentes, foi por inspiração sua, e por ele tomou os hábitos o senhor Bartford e fundou uma missão na África. Seria também impossível calibrar toda a felicidade doméstica resultante de seus conselhos a respeito de qual é o lugar e quais os deveres de uma mulher no lar. E a bênção de sua vida se estendeu a uma zona muito mais ampla que a do Highgate...

Lindsay lhe observava perplexo, mas não o interrompeu. Talvez fosse incapaz de achar uma resposta adequada.

Shaw apertava os dentes e olhava ao teto.

A senhora Hatch se mordia o lábio e olhava com nervosismo ao Shaw.

Hatch lançou um novo ataque, com afã renovado.

— Sem dúvida terá ouvido falar do vitral que lhe estamos dedicando na igreja do St. Anne. Está já desenhado e só necessitamos um pouco mais de dinheiro. Aparece representado o próprio bispo como o profeta Jeremías, em atitude de ensinar à gente do Antigo Testamento, com anjos nos ombros.

Shaw apertou as mandíbulas. Parecia conter-se com dificuldade.

— Sim, sim... ouvi-o - disse Lindsay como por sair do passo. Sua confusão era evidente. Lançou um fugaz olhar ao Shaw, que se agitava como se mal pudesse conter a energia reprimida em seu interior. — Estou certo de que será um vitral de grande beleza, admirada por todos.

— Essa não é a questão - respondeu Hatch cortante. — Não se trata de beleza, meu prezado senhor. Estamos falando da edificação das almas. Da salvação da vida a partir do pecado e da ignorância, de recordar aos fiéis qual é a viagem que estamos realizando e para que fim converge. - Sacudiu a cabeça para abstrair do firme bem-estar material que lhe rodeava. — O bispo Worlingham foi um homem reto, com um grande conhecimento da ordem que ocupam as coisas no mundo e do lugar que ocupamos nós nos intuitos de Deus. Se permitirmos que se perca sua influência será a nossa conta e risco. Esse vitral será um monumento a sua pessoa, para o qual as pessoas elevarão seus olhos todo domingo, e através do qual a sagrada luz divina se derramará sobre todos.

— Mas homem, por todos os Santos, a luz se derramará de qualquer janela que ponham na parede, seja como for - saltou Shaw. — E se quiser luz, com certeza terá mais se sair para tomar afresco no cemitério da igreja.

— Falava em sentido figurado - replicou Hatch, surpreso e com os olhos cheios de fúria. — Tudo tem que ver de um ponto de vista tão prosaico? Deixe ao menos que neste momento de dor sua alma se eleve ao eterno. - Entreabria os olhos em atitude feroz, com os lábios pálidos e voz trêmula. — Pelo amor de Deus, bastante é a desgraça.

A passageira disputa amainou e a dor substituiu à ira. Shaw permaneceu imóvel, tranqüilo pela primeira vez desde que chegara Pitt.

— Sim... eu... - Não conseguia dar com uma expressão de desculpa. — Sim, é verdade. Veio a polícia. Foi um incêndio provocado.

— Como? - Hatch ficou horrorizado. Ficou lívido e lhe fraquejaram um pouco as pernas.

Lindsay foi para ele se por acaso caísse. Prudence retrocedeu levantando os braços, até que pareceu assimilar de repente o significado das palavras do Shaw e seu rosto mudou também.

— Provocado! - exclamou a mulher. — Quer dizer que alguém pôs o fogo de forma intencional?

— Com efeito.

— Mas então foi um... - engoliu saliva, tentando manter a compostura — um assassinato.

— Sim. - Shaw lhe pôs a mão no ombro. — Sinto muito, querida. Mas por isso está aqui a polícia.

Ambos, ela e Hatch, voltaram sua atenção pela primeira vez para o Pitt, com uma mescla de intranqüilidade e desagrado. Hatch ergueu os ombros e, com certa dificuldade, dirigiu-se ao Pitt, ignorando ao Murdo.

— Senhor, não há nada que possamos lhe dizer nós. Se for verdade que foi um fato deliberado, procure entre os vagabundos. Enquanto isso, permita que suportemos nossa pena em privado, em nome da humanidade.      

Era tarde e Pitt estava cansado e faminto. Já tinha tido suficiente mostra de dor e desconforto por esse dia. Não tinha mais pergunta que fazer. Tinha visto já as provas periciais e as escassas conclusões que ofereciam. Não tinha sido um ato cometido por nenhum vagabundo. Tinha sido cuidadosamente planejado com intenção de destruir. Ou de matar. A pergunta era: quem? Em qualquer caso, era muito provável que a resposta estivesse nos corações das pessoas que conheciam o Stephen e Clemency Shaw. Talvez no de alguém a quem já tinha visto ou cujo nome tinha ouvido mencionar.

— Sim, senhor - concordou com alivio. — Obrigado pela atenção dispensada. - Dirigiu esta última fórmula ao Shaw e Lindsay. — Manterei-os informados.

— Como? - Shaw franziu o sobrecenho. — Oh sim, claro... boa noite... né... inspetor.

Pitt e Murdo se retiraram. Ao cabo de uns minutos subiam pela silenciosa rua à luz da lanterna do Murdo, este de retorno à delegacia de polícia do Highgate, e Pitt em busca de uma caleça que conduzisse a casa.

— O que acha você? Foram pela senhora Shaw ou pelo doutor? – perguntou Murdo depois de ter percorrido algumas centenas de metros e enquanto o ar da noite lhes roçava o rosto com uma carícia gelada.

— Pode ser por qualquer dos dois. Mas se era pela senhora Shaw, pelo que sabemos parece que só o senhor Dalgetty e sua esposa, além do bom doutor, sabiam que estava em casa.

— Suponho que pode haver muita gente que tenha motivos para matar a um doutor - disse Murdo pensativo. — Os médicos se inteiram de muitos segredos das pessoas.

— Com efeito - concordou Pitt com um estremecimento de frio e apertando um pouco o passo. — E no caso de ser assim, pode ser que o doutor saiba quem foi... E que o assassino tente de novo.

 

Charlotte tinha engomado a metade da roupa branca e tinha o braço cansado. Tinha remendado também três capas de travesseiro e arrumado o melhor vestidito da Jemima. Acabava de deixar o trabalho na cesta da costura e de afastar esta a um lugar não visível para quem entrasse e dedicasse à sala uma olhada tão superficial como o que, no melhor dos casos, costumava lançar Pitt ao chegar a casa.

Eram já quase nove e fazia tempo que prestava atenção ao menor ruído, à espera de ouvir a porta de entrada. Ao final tinha decidido distrair a mente e se sentou no chão a ler Jane Eyre, com total despreocupação pelo decoro de sua postura. Quando Pitt chegou por fim, ela não se deu conta até que ele já tinha pendurado o casaco e a observava da soleira da porta.

— Oh, Thomas! - Deixou o livro e ficou em pé liberando do vôo da saia com dificuldade. — Thomas, onde esteve? Tem um aroma terrível.

— Houve um incêndio - respondeu enquanto lhe dava um ligeiro beijo sem abraçá-la para não lhe manchar o vestido de imundície e fuligem.

Além do cansaço, Charlotte distinguiu em sua voz a vivencia da tragédia.

— Um incêndio? - perguntou lhe sustentando o olhar. — Morreu alguém?

— Uma mulher.

Levantou o rosto.

— Assassinato?

— Sim.

Ela vacilou um momento ao ver sua roupa enrugada e imunda, ainda úmida pela garoa da tarde, e sobre tudo ante a expressão de seus olhos.

— Quer comer algo, ou se lavar, ou me contar?

Ele sorriu. Aquela candura lhe era divertida, em especial depois de ter assistido às afetadas maneiras dos Clitheridge e dos Hatch.

— Quero uma taça de chá, tirar as botas e depois um pouco de água quente.

Ela compreendeu que não queria falar e foi para a cozinha, descalça, sem fazer ruído ao pisar no linóleo do corredor e nas esfregadas pranchas de madeira do chão.

A cozinha econômica estava quente, como sempre, assim só teve que voltar a colocar a chaleira em cima da prancha. Depois cortou uma fatia de pão e passou manteiga e geléia nela.

Pitt a tinha seguido.

— Onde foi?

— No Highgate.

Charlotte teve que rodeá-lo para chegar às xícaras.

— Highgate? Essa não é sua zona.

— Não, mas como estavam certos de que foi um incêndio provocado, a delegacia de polícia local nos mandou chamar. Era a casa de um médico. Ele estava fora atendendo a uma chamada urgente, uma mulher que entrou em parto antes do previsto, mas sua mulher estava em casa. No último momento tinha anulado um encontro na cidade. Morreu carbonizada.

A água da chaleira estava fervendo. Charlotte esquentou o bule, acrescentou o chá e o deixou repousar. Pitt se sentou agradecido e ela ocupou uma cadeira diante dele.

— Era jovem? - perguntou.

— Uns quarenta.

— Como se chamava?

— Clemency Shaw.

— E não pode ter sido um acidente? Há multidão de causas fortuitas que podem provocar um incêndio: uma vela que cai, uma faísca que salta de uma lareira, um charuto mau apagado. - Serviu o chá e lhe aproximou uma xícara.

— E que objeto de uma vez e por separado nas cortinas de quatro aposentos diferentes do andar térreo, a meia-noite? - Levantou a xícara e tomou um gole, mas queimou a língua. Apressou-se a comer um pedaço de pão com geléia.

— Oh. - Charlotte imaginou a si mesma despertando no meio da noite por causa do calor e o fragor das chamas. E o horrível que deve ser pensar que alguém provocou aquilo deliberadamente, com a intenção de que morra abrasada. A idéia era tão espantosa que lhe pareceu sentir um ligeiro enjôo.

Pitt estava muito cansado para percebê-lo.

— Ainda não sabemos se queriam matar à senhora Shaw ou a seu marido. - Pegou a taça de chá e a provou de novo.

Charlotte compreendeu que ele já tinha pensado em tudo que ela imaginava agora. Em sua mente deviam haver-se formado as mesmas imagens, mas mais vividas. Ele tinha visto os escombros calcinados e a fumaça que fazia arder os olhos e a garganta.

— Por esta noite já não pode fazer nada mais, Thomas. Ela deixou de sofrer, e você não pode acabar com a dor do mundo - disse com doçura. — Sempre há alguém sofrendo em algum lugar e nós não podemos carregar com sua pena. – Ficou de pé. — Não serve de nada. - Acariciou-lhe a mão. — Vou esquentar água para que possa se lavar. Depois vá para a cama. Já chegará um novo dia com sua cota de problemas.

Pitt partiu tão logo tomou o café da manhã e Charlotte se entregou à rotina das tarefas domésticas. Mandou aos meninos, Jemima e Daniel, a suas respectivas aulas na escola situada na mesma rua, e Gracie, a criada, começou a tirar o pó e a varrer. O trabalho mais pesado, como esfregar o chão, sacudir os tapetes ou levar o carvão para a cozinha, fazia-o a senhora Hoare, que ia três dias na semana.

Charlotte seguiu com a prancha, e quando acabou ficou a preparar salgados e o pão do dia. Estava nisso quando ouviu uma imperiosa chamada na porta. Gracie foi abrir. Voltou ao cabo de uns segundos sem fôlego, com seu pequeno rosto radiante de emoção.

— Oh, senhora, é lady Ashworth, quero dizer a senhora Radley, que voltou de sua lua de mel... Está estupenda e... muito feliz...

Com efeito, Emily vinha uns passos atrás dela, carregada com bonitos pacotes envolvidos com papel e laços e balançando uma grande saia de ruidoso tafetá verde. Levava o cabelo cacheado com aqueles finos cachos loiros que Charlotte lhe invejava desde que eram meninas, e o rosa da pele lhe resplandecia pelo sol e a sorte.

Deixou tudo em cima da mesa da cozinha e abraçou Charlotte com tanta força que quase a faz perder o equilíbrio.

— Oh, quanto senti sua falta - disse com efusividade. — É maravilhoso estar de novo em casa. Tenho tantas coisas para lhe contar que não teria podido suportar não achá-la em casa. Fazia séculos que não recebia tua carta... Claro que não recebemos carta de ninguém desde que saímos de Roma. São tão aborrecidas as travessias por mar, a não ser que haja algum escândalo ou alguma história entre os passageiros. E não aconteceu nada disso. Charlotte, como faz a gente para passar a vida jogando bezique e bacará e contando-se tolices, notando-se em quem leva o vestido mais novo ou o penteado mais elegante? Quase me tornam louca. - Sentou-se em uma cadeira.

Gracie tinha ficado cravada no lugar observando a cena com olhos arregalados, enquanto lhe disparava a imaginação e se figurava transatlânticos cheios de aristocratas jogando cartas e vestidos com roupas maravilhosas.

— Gracie! - Emily pegou o pacote menor e o deu. — Trouxe-lhe um xale de Nápoles.

A garota ficou aflita. Olhou ao Emily como se esta acabasse de materializar-se ante ela por arte de magia. A emoção impedia-a de falar. Suas pequenas mãos seguravam o pacote com tanta força que, se não fosse um objeto de tecido, teria podido romper-se.

— Abre-o! - disse Emily.

Gracie recuperou a fala.

— É para mim, senhora? Para mim?

— Claro que é para você. Para que o ponha sobre os ombros quando for a missa ou quando sair a passeio, e se alguém lhe diz que é bonito conte que lhe trouxe de Nápoles uma amiga.

— Oh... - Gracie desfez o pacote com dedos trêmulos e quando a peça de seda azul, dourada e magenta caiu em um movimento ondulante, deixou escapar um suspiro extasiado. De repente recordou suas obrigações e saiu disparada para o corredor em busca da vassoura, sem soltar seu tesouro.

Charlotte sorriu com uma satisfação que provavelmente não seria superada por nenhum dos outros presentes do Emily, incluídos os da Jemima e Daniel.

— Foi muita consideração de sua parte - disse com calma.

— Bobagens. - Emily se desentendeu, um pouco sobressaltada ela mesma.

Tinha herdado de seu primeiro marido uma fortuna respeitável e o xale lhe havia custado uma ninharia. Espalhou sobre a mesa outros pacotes e procurou o de Charlotte. — Este é para você. Por favor, abre-o. O resto são para o Thomas e os meninos. E agora conta-me o tudo. O que tem feito desde a última carta que me escreveu? Participou de alguma aventura? Conheceu a alguém interessante? Algum escândalo? Está trabalhando em algum caso?

Sem escutar as perguntas de sua irmã, Charlotte abriu o pacote com um largo sorriso, separando as dobras do papel, muito bonito para rasgá-lo.

Guardaria-o para usá-lo no Natal. Dentro havia três tiras de flores de seda feitas à mão, tão viva e magníficas que ficou boquiaberta. Com aquelas flores, o chapéu mais comum pareceria o de uma duquesa, e postas nas dobras de uma saia, um simples vestido de tafetá ficaria convertido em um vestido de baile. Um dos ramalhetes tinha flores rosas em tonalidade pastel, outro era de vivos vermelhos e o terceiro se compunha de uma gama de girrassóis de cor fogo.

— Oh, Emily. É fantástica. - Sua mente passava revista a todas as coisas que poderia fazer com aquelas flores, além do mero prazer de contemplá-las, o qual já constituía um deleite em si mesmo caso de não poder desfrutar de nenhuma outra utilidade. — Oh, mil obrigadas! São lindas.

Emily estava exultante de satisfação.

— Da próxima vez trarei as obras de arte de Florença. Mas por agora trouxe para o Thomas uma dúzia de lenços de seda. Com suas iniciais bordadas.

— Adorará - afirmou Charlotte. — Mas me conte coisas da viagem. Quer dizer, tudo o que não seja absolutamente privado. - Não tinha pretendido perguntar à Emily se era feliz, nem pensava fazê-lo. Casar-se com o Jack Radley tinha sido uma decisão audaz e muito pessoal. Ele era um homem sem dinheiro nem futuro. Depois do primeiro matrimônio com George Ashworth, que possuía ambas as coisas, título de nobreza à parte, era uma mudança social radical. Tinha amado ao George e havia sentido profundamente sua morte. Mas Jack, cuja reputação era duvidosa, tinha demonstrado que seu encanto não era nem remotamente tão superficial como tinha parecido a princípio. Tinha sido um amigo fiel, dotado de valor, tanto como de imaginação e senso de humor, e estava preparado para comprometer-se nas causas que considerasse justas.

— Ponha água a ferver - pediu Emily. — Fez bolos? -farejou. — Cheira maravilhosamente.

Charlotte o fez e logo se sentou para escutar.

Emily tinha escrito com regularidade, à exceção das últimas semanas, passadas no mar, durante a longa travessia de Nápoles a Londres que se estendeu ao longo da parte final do verão. O navio se deteve em numerosos portos, mas ela não tinha enviado carta alguma, pois pensou que talvez o correio não chegaria antes que ela mesma. Espraiava-se agora na descrição da Sardenha, as ilhas Baleares, África do Norte, Gibraltar, Portugal, o norte da Espanha e a costa atlântica da França.

Para Charlotte eram lugares mágicos que se achavam a uma distância incomensurável do Bloomsbury e das ruas cheias de Londres, das tarefas domésticas, das crianças, das notícias relacionadas com seu trabalho que Pitt trazia diariamente. Ela nunca veria aqueles lugares, e uma parte de seu ser o lamentava. Teria gostado de ver a luz resplandecente das paredes pintadas de cores, como aspirar o ar carregado de especiarias, perfume de frutas e pó, sentir o calor meridional e escutar os acentos díspares das línguas estrangeiras. Tudo aquilo poderia encher sua imaginação e enriquecer sua memória durante anos. Mas de qualquer forma, agora podia o ter em quintaessencia através do relato de Emily, e sem os enjôos de uma viagem por mar, nem o cansaço e os desconfortos das longas excursões em carruagem, nem as deficientes condições sanitárias, nem a ampla variedade de insetos que Emily sentia prazer em lhe descrever em seus mais repulsivos detalhes.

Através do relato de sua irmã, a imagem que se perfilava de Jack ia se fazendo mais vivida e agradável e menos romântica, e Charlotte sentiu que grande parte da ansiedade que a tinha inquietado desaparecia.

— Agora que estão em casa, vão ficar na cidade? - perguntou observando o rosto de Emily, colorido pelo vento e sol mas com sinais de cansaço ao redor dos olhos. — Ou pensam partir ao campo? - Emily tinha herdado uma grande casa com zonas ajardinadas, que administrava em nome do filho tido que seu matrimônio com lorde Ashworth.

— Oh, não - respondeu Emily. — Ao menos... - Fez uma careta de desgosto. — Não sei. Ainda temos que nos acostumar que não estamos em uma viagem planejada em que cada dia tínhamos algo novo que ver ou fazer e cada noite um acontecimento para assistir. Agora começa a vida real. - Olhou-se as mãos, pequenas, fortes e sem rugas, que tinha apoiadas sobre a mesa. — Me assusta um pouco a idéia de que de repente não saibamos o que nos dizer o um ao outro... ou não saibamos o que fazer para encher o dia. Vai ser muito diferente. Já não haverá mais crise. - Aspirou pelo nariz com bastante elegância e olhou ao Charlotte nos olhos. — Antes de nos casarmos sempre tinha havido algum acontecimento terrível que nos impulsionava a reagir... Primeiro a morte do George e depois os crimes de Hanover Close. - Arqueou suas loiras sobrancelhas em uma careta de esperança. — Suponho que Thomas não terá nenhum caso no qual possamos colaborar nós...

Charlotte pôs-se a rir, até sabendo que Emily falava a sério e que todos os casos em que ambas tinham desempenhado um papel tinham estado marcados pela tragédia e perigo, embora não tivessem estado isentos de uma estimulante sensação de aventura.

— Produziu-se um caso terrível enquanto estavam fora.

— Não me havia dito isso! - exclamou Emily. — Que tipo de caso? — Por que não o mencionou em suas cartas?

— Porque não queria preocupá-la enquanto desfrutavam de sua lua de mel. Queria que tudo fosse perfeito enquanto admiravam as maravilhas de Paris e Itália, sem necessidade de que perdesse o tempo pensando em gente com a garganta degolada em meio da névoa londrina - respondeu Charlotte com sinceridade. — Mas agora lhe contarei isso com muito gosto se quiser.

— Pois claro que quero! Mas primeiro me ponha um pouco mais de chá.

— Podemos comer algo - sugeriu Charlotte. — Tenho frios e carne temperada... Gosta?

— Sim, está bem... mas me explique enquanto o prepara - lhe pediu Emily, mas não se ofereceu para ajudá-la.

As duas tinham sido educadas com as miras postas em um matrimônio com algum cavalheiro da mesma posição social que lhes facilitasse casa e serviço doméstico para as tarefas do lar e a cozinha. Charlotte se tinha casado muito abaixo de suas possibilidades, com um policial, e tinha tido que aprender a fazer as coisas por ela mesma. O primeiro matrimônio do Emily tinha sido igualmente desnivelado, mas por cima de sua posição, pois se tinha casado com um aristocrata de grande fortuna, e durante anos não tinha pisado sequer uma cozinha, à exceção da de Charlotte. E embora soubesse muito bem dar sua aprovação ou desaprovação a um menu, fosse para um fazendeiro rural, fosse para a própria rainha da Inglaterra, não tinha a menor ideia, nem desejos de tê-la, de como prepará-lo.

— Foi ver tia avó Vespasia? - perguntou Charlotte enquanto trinchava a carne.

Vespasia era em realidade a tia do George, por isso não era família direta delas, mas ambas tinham chegado a querê-la e admirá-la mais que a qualquer membro de sua própria família. Tinha sido uma das mulheres mais belas de sua geração. Agora que tinha perto de oitenta anos e uma posição econômica e social asseguradas, podia permitir-se não fazer caso da opinião pública para comportar-se como mais gostasse e para somar-se à causa que sua consciência lhe ditasse ou que fosse mais de acordo a suas simpatias. Vestia-se com uma elegância deliciosa, e era capaz de seduzir ao primeiro-ministro ou ao varredor... ou de petrificá-los a vinte passos de distância com um gélido olhar.

— Não - respondeu Emily. — Tinha intenção de ir esta tarde. Explicou a tia Vespasia sobre esse caso?

Charlotte sorriu com suficiência.

— Oh, sim. Até se implicou nele. Emprestou-me sua carruagem e seu lacaio para o enfrentamento final... - Deixou a frase em suspense expressamente.

Emily enrugou a fronte.

Charlotte voltou a encher a chaleira de água e se voltou para a despensa em busca dos temperos. Até esteve a ponto de ficar a cantarolar, mas se conteve ao pensar que ela não cantava muito bem... e Emily sim.

Emily tamborilou com os dedos sobre a mesa recém esfregada.

— Um membro do Parlamento apareceu amarrado a um poste na ponte do Westminster... - começou Charlotte, a princípio com deleite, depois com um tom mais receoso, até concluir com horror e compaixão. Ao acabar o relato, tinham terminado também de comer e já era mais de meio-dia.

— Podiam tê-la matado! - Repreendeu-a Emily, embora houvesse lágrimas em seus olhos. — Nunca mais volte a cometer uma loucura semelhante! Suponho que algo que eu possa lhe dizer já lhe haverá dito Thomas. Confio em que te repreendesse como é devido por ter posto sua vida em perigo.

— Não foi necessário. Fui perfeitamente consciente. Já está pronta para ir ver tia Vespasia?

— Certamente. Mas você não. Terá que tirar esse vestido tão simples e pôr algo mais elegante.

Charlotte recordou por um instante as tarefas domésticas, mas acabou por cair na tentação.

— Bom, se quiser que vá... Troco-me em um instante. Gracie! - E saiu em busca da criada para lhe pedir que preparasse o chá às crianças quando voltassem e limpasse a verdura para o jantar.

Lady Vespasia Cumming-Gould vivia em uma casa espaçosa e muito elegante.

Abriu a porta uma criada de uniforme engomado, touca e avental com rendas. Reconheceu a Charlotte e Emily imediatamente e as fez entrar, sem dar lugar às habituais evasivas e demoras estabelecidas. A dama não pôs em dúvida se deviam ser recebidas. Vespasia não só se sentia orgulhosa das duas, mas também estava terrivelmente aborrecida do bate-papo da vida social e das intermináveis insignificâncias da etiqueta.

Vespasia estava sentada em sua saleta de descanso privada, someramente mobiliada segundo os modelos estéticos ao uso: nada de maciças mesas de carvalho, nem de sofás regiamente forrados, nem de cós nas cortinas. O lugar era uma reminiscência de uma época mais antiga, a do nascimento da própria Vespasia durante o império de Napoleão Bonaparte. Anterior portanto à batalha do Waterloo, quando dominavam as linhas simples da época do rei Jorge e a austeridade de uma longa e se desesperada luta pela sobrevivência. Seu tio tinha morrido em Trafalgar, na armada do Nelson. Agora o Duque de Ferro estava morto e Wellington não era mais que um nome nos livros de história, e inclusive aqueles que tinham combatido na Crimea quarenta anos mais tarde eram já velhos.

Vespasia estava sentada muito erguida em uma cadeira Chippendale de espaldar duro. Usava um vestido cinza que lhe chegava até o pescoço, adornado com rendas francesas, e quatro colares de pérolas que lhe pendiam quase até a cintura. Não se incomodou em fingir indiferença. Sorriu com verdadeiro deleite.

— Emily, querida. Tem um aspecto estupendo. Estou encantada de que tenha vindo. Me conte tudo o que tenha gostado. O fastidioso pode omiti-lo, com certeza são as mesmas coisas que quando eu estive, assim é desnecessário que tenhamos que sofrê-las de novo. Charlotte, você terá que escutar tudo pela segunda vez e fazer as perguntas pertinentes. Venham, sentem-se.

Dirigiram-se para ela, beijaram-na uma após a outra e ocuparam os assentos que lhes indicou.

— Agatha - ordenou à criada-, nos traga chá. E sanduiches de pepino, por favor. E que a cozinheira prepare uns pães-doces recém feitos com geléia de framboesa e creme.

— Sim, milady - assentiu Agatha.

— Até dentro de uma hora e meia - acrescentou Vespasia. — Temos muitas coisas que escutar.

Não era objeto de discussão se iam ficar tanto tempo, nem se devia admitir-se a qualquer outro eventual visitante. Lady Vespasia não estava em casa para ninguém mais.

— Pode começar - disse Vespasia, com os olhos brilhantes de expectativa.

Ao cabo de quase duas horas, a mesinha do chá estava vazia e a Emily não lhe ocorria já que mais contar.

— E o que pensam fazer agora? - interessou-se Vespasia.

Emily olhou o tapete.

— Não sei. Suponho que poderia me dedicar às obras de caridade. Ou dirigir o comitê local para a atenção de mulheres desencaminhadas! - exclamou com um risinho.

— Duvido - respondeu Charlotte. — Deixou de ser lady Ashworth. Teria que se conformar sendo um membro ordinário.

Emily lhe fez uma careta.

— Não tenho a menor intenção de ingressar, nem de uma maneira nem da outra. Não pelas mulheres desencaminhadas, mas sim pelas mulheres membros do comitê. Não as suporto. Procuro algo mais apropriado para mim, quero fazer algo melhor que me dedicar a pontificar sobre a vida de outros. Charlotte, não me respondeu nada concreto quando lhe perguntei pelo trabalho do Thomas.

— É verdade. - Vespasia olhou também para Charlotte com expectativa. — Do que se ocupa agora? Confio em que não esteja no Whitechapel. A imprensa está sendo muito crítica com a polícia. O ano passado tudo eram loas e louvores, e toda a culpa a levaram as multidões durante os distúrbios do Trafalgar Square. Agora mudaram as voltas e até pedem gritando a demissão de sir Charles Warren.

Emily estremeceu.

— Suponho que estão assustados... Acredito que eu também o estaria se vivesse nessa parte da cidade. Criticam a todo mundo... inclusive à rainha. As pessoas dizem que não aparece o suficiente, e que o príncipe do Gales é ligeiro de cascos e gasta muito dinheiro. E que o duque do Clarence, é claro, comporta-se como um asno... Mas se seu pai vive tanto como a rainha, o pobre Clarence irá em cadeira de rodas antes de chegar a sentar-se no trono.

— Não me parece uma desculpa satisfatória. -Os lábios da Vespasia esboçaram um leve sorriso e se dirigiu de novo para o Charlotte. — Não nos disse se Thomas está trabalhando nesse assunto do Whitechapel.

— Não; está no Highgate. Mas sei muito pouco sobre o caso. De fato mal acaba de começar...

— Não poderia haver melhor lugar para que nos ponha à corrente - disse Emily com entusiasmo renovado. — Do que se trata?

Charlotte olhou aqueles dois rostos espectadores e desejou possuir mais informação.

— Trata-se de um incêndio - respondeu com tom sombrio. — Ardeu uma casa e uma mulher morreu. Seu marido estava fora atendendo uma urgência; é médico. A ala do serviço foi a última em ser alcançada pelas chamas e os criados tiveram tempo de ser resgatados.

— Isso é tudo? - Emily parecia frustrada.

— Já disse que o caso está em seus começos. Thomas chegou a casa cheirando à fumaça e com a roupa cheia de cinza. Parecia exausto e muito triste. A mulher tinha previsto sair aquela noite, mas anulou o encontro no último momento.

— Ou seja que era o marido quem devia estar em casa – concluiu Vespasia. — Presumo que foi um incêndio provocado, do contrário não teriam chamado ao Thomas. Era o marido o objetivo? Ou foi ele quem provocou o fogo...?

— Sim, parece que ele era o objetivo - concordou Charlotte. — Nem com a melhor vontade do mundo sou capaz de ver uma forma para... – sorriu — nos misturar.

— Quem era ela? - perguntou Emily. — Sabe algo?

— Nada de nada. Salvo que a gente fala bem dela. Mas isso é habitual quando se trata de pessoas falecidas. É o que se espera, é quase uma obrigação.

— Grande tolice - disse Vespasia quase aborrecida. — E não nos revela nada, nem ao Thomas nem a nós, a respeito dessa mulher... Só que seus amigos são gente convencional. Como se chamava?

— Clemency Shaw.

— Clemency Shaw? - repetiu Vespasia, como se tivesse reconhecido o nome. — Me soa familiar. Se se tratar da pessoa que acredito é... era uma boa mulher. Sua morte é uma tragédia. A menos que alguém prossiga seu trabalho, haverá muita gente que sofrerá.

— Thomas não mencionou nenhum trabalho. - Charlotte mostrou interesse. — Talvez não sabe. De que trabalho se trata?

Emily se inclinou em sua cadeira, na expectativa.

— Pode ser que não se trate da mesma pessoa - advertiu Vespasia.

— Mas e se o for?

— Nesse caso, tinha empreendido uma árdua luta em favor da mudança de certas leis referentes à propriedade da moradia nos bairros pobres - respondeu Vespasia com seriedade. Seu rosto expressava algo que sabia por experiência própria: a prática impossibilidade de lutar contra certos interesses criados. — Há muitos imóveis, com espantosos problemas de aglomeração e falta de condições higiênicas, que são propriedade de pessoas de grande riqueza e boa posição. Se a questão se desse a conhecer, poderia obrigar-se os a proporcionar certas condições mínimas.

— E quem se ocupa disso? - Emily, tão prática como sempre.

— Não posso dizê-lo com exatidão - respondeu Vespasia. — Mas se está decidida a ir mais longe, deveríamos visitar o Somerset Carlisle. Ele nos poderia dizer isso. - Ainda não tinha concluído a frase quando já se pôs em pé para partir.

Charlotte lançou a Emily um olhar de regozijo e as duas se levantaram também.

— Excelente idéia - concordou Charlotte.

Emily vacilou um instante.

— Não é uma hora um pouco inoportuna para visitas, tia Vespasia?

— Inoportuna de tudo - concordou Vespasia. — Por isso é perfeita para nós. Será muito difícil que nos encontremos com outras visitas. - E sem dar pé a nada mais fez soar a campainha para pedir à criada que preparassem a carruagem de Emily.

Charlotte teve um momento de dúvida. Não ia vestida de forma adequada para visitar um membro do Parlamento. Para aquela classe de formalidades, costumava pedir emprestado a Emily algum vestido longo, ou inclusive a tia Vespasia, e o arrumava convenientemente aplicando algum ou outro alfinete em diversos pontos estratégicos. Mas tinha conhecido ao Somerset Carlisle fazia vários anos, e sempre que o tinha tratado tinha sido em relação com alguma causa nobre e exaltada, quando a gente é jovem e não se para a pensar nas sutilezas sociais. Em qualquer caso, nem Emily nem Vespasia pareciam dispostas a aceitar a menor insinuação de protesto, assim se não se apressasse em segui-las com certeza a deixariam atrás. E antes de perder essa visita se apresentaria com próprio avental de cozinha!

Somerset Carlisle estava trabalhando em seu estúdio, com alguns documentos.

Seu criado teria negado a entrada a qualquer que não tivesse sido Vespasia. Entretanto, o criado tinha em grande estima qualquer fato melodramático e sabia das cruzadas levadas a cabo por seu senhor em favor de uma ou outra causa, assim como da freqüente vinculação nas mesmas de lady Vespasia Cumming-Gould.

De fato, era uma eficaz aliada pela qual sentia grande consideração. Conduziu pois às três damas até a porta do estúdio e anunciou sua presença.

Somerset Carlisle não era jovem, nem tampouco podia dizer-se que fosse um homem de meia idade. Possivelmente nunca o seria. Parecia uma dessas pessoas que passam diretamente de uma idade indefinida a uma velhice inquieta e ativa.

Estava cheio de nervosa energia. Suas grossas sobrancelhas e seu fino e versátil rosto não pareciam descansar nunca.

Seu estúdio era fiel reflexo de seu caráter. Estava abarrotado de livros dos mais variados temas, o qual se devia tanto à natureza de seu trabalho como a seus vastos interesses pessoais. Os poucos espaços livres na parede estavam ocupados por pinturas e curiosidades de grande beleza, e certamente de bastante valor. As profundas janelas estilo Jorge IV difundiam uma profusa luz e se era inverno, ou quando trabalhava de noite, podiam acender os lampiões de gás que pendiam das paredes e do teto. Diante do fogo, estirado em cima da melhor cadeira, havia um gato dormindo com beatífica despreocupação. Sobre a escrivaninha se empilhavam os papéis em uma ordem inescrutável.

Somerset Carlisle deixou a pena e se levantou para saudá-las com agrado. Ao rodear a escrivaninha arrastou uma pilha de cartas que se precipitaram ao chão, mas não lhes fez o menor caso. O gato nem se alterou.

Agarrou a imaculada mão enluvada que lhe ofereceu Vespasia.

— Lady Cumming-Gould. Encantado de vê-la. - Olhou-a com uma faísca de humor. — Sem dúvida há alguma injustiça premente contra a que lutar, do contrário nunca teria vindo sem avisar. Lady Ashworth, senhora Pitt. Por favor, sentem-se. Eu... - Procurou algum lugar cômodo que lhes oferecer, mas não o achou.

Agarrou o gato com suavidade e o depositou na cadeira que tinha ocupado ele, debaixo da escrivaninha. O felino se estirou voluptuosamente e se reacomodou.

Vespasia ocupou a cadeira em que tinha estado o gato e Charlotte e Emily se sentaram nas cadeiras de frente. Carlisle permaneceu de pé. Nenhuma delas se tomou o trabalho de corrigi-lo e lhe dizer que agora Emily era a senhora Jack Radley. Haveria tempo para isso.

Vespasia foi direto ao assunto.

— Uma mulher morreu em um incêndio não fortuito. Chamava-se Clemency Shaw... -Guardou silêncio ao ver a confusão do Carlisle para ouvir aquele nome. — Conhecia-a?

— Sim... Quer dizer, por sua reputação - respondeu em voz baixa. — Só a tinha visto algumas vezes. Era uma mulher discreta, que ainda não estava segura da melhor forma de conseguir os objetivos que se propunha e que não estava acostumada a enfrentar as complexidades do direito civil. Mas se entregava a sua causa com intensa dedicação e com uma honradez admirável. Acredito que se preocupava com as reformas que desejava mais que por sua própria dignidade ou pela opinião de amigos e conhecidos. De verdade lamento sua morte. Sabe como aconteceu? - A pergunta ia dirigida à Charlotte. Conhecia o Pitt desde fazia muitos anos, de fato desde que ele mesmo se vira envolvido em um estranho caso de assassinato.

— Em um incêndio provocado. Ela estava em casa porque tinha anulado de improviso um encontro na cidade, e seu marido estava fora atendendo uma urgência médica. Se não fosse assim teria morrido ele, não ela.

— Então sua morte foi acidental. - A afirmação era quase uma pergunta.

— Alguém pode ter estado vigiando e saber quem estava na casa. – Charlotte não queria abandonar a questão tão cedo. —Quais eram essas reformas que pretendia? Quem podia desejar que fracassasse?

Carlisle sorriu com amargura.

— Os que investiram em bens imóveis em bairros pobres e obtêm rendas exorbitantes por alugar habitações a famílias inteiras, ou a dois e até a três de uma vez.      -Fez uma careta de desgosto. — Ou por destinar esses edifícios a fábricas insalubres, ou a botequins de má fama, ou a bordéis, ou inclusive a fumaderos de ópio. Negócios todos muito lucrativos. Surpreenderia-se se soubesse algumas das pessoas que fazem sua fortuna desse modo.

— Que ameaça supunha a senhora Shaw para essas pessoas? – perguntou Vespasia. — O que se propunha fazer em concreto? Ou talvez devesse dizer quais eram as ações mínimamente realistas que pensava empreender...

— Queria modificar a legislação de modo que fosse fácil seguir a pista dos proprietários, já que agora se ocultam detrás de companhias e advogados e atuam virtualmente no anonimato.

— E não seria melhor promulgar leis que regulassem o arrendamento e a higiene? - raciocinou Emily.

Carlisle riu.

— Se se limitasse a ocupação dos imóveis, quão único conseguiríamos seria jogar mais gente à rua. E como se controla isso?

— Oh...

— Por outra parte, nunca conseguiríamos que aprovassem uma lei sobre higiene. -Endureceu a voz. — Os que estão no poder tendem a pensar que os pobres têm o que merecem, e que se melhorasse as condições sanitárias, ao cabo de um mês voltariam para o estado anterior. Para quem vive no luxo, o mais fácil é não alterar sua tranqüilidade de consciência. Mas embora mesmo assim estivéssemos dispostos a fazer algo, necessitaríamos milhões de libras...

— Mas se cada um dos proprietários, por sua conta... - aduziu Emily. — Devem ser milionários...

— O Parlamento nunca aprovaria uma lei nesse sentido. - Sorriu, mas havia raiva em seus olhos e tinha as mãos crispadas. — Não esqueça quem votam neles.

Emily calou de novo. Só havia dois partidos políticos com opções de formar governo e nenhum deles estaria disposto a apoiar abertamente uma lei como aquela. As mulheres não tinham direito a voto, e os pobres estavam muito mal organizados e pior instruídos. As conseqüências eram mais que óbvias.

Carlisle soltou um breve grunhido que soou quase como uma risada.

— Por isso a senhora Shaw tentava eliminar as travas legais, para que pudessem dar-se a conhecer os nomes dos proprietários desse tipo de imóveis. Se os nomes saíssem à luz pública, a pressão social poderia conseguir mais que as próprias leis.

— Mas a pressão social não nasce da mesma gente que pode votar? - perguntou Charlotte, mas ao dizê-lo-se deu conta de que não era assim. As mulheres não votavam, mas, por muito sutilmente que fosse, de uma forma ou outra exerciam seu poder sobre a sociedade. Os homens podiam fazer algo se atuassem com a suficiente discrição, podiam dar rédea solta inclusive a certas afeições que não se atreveriam a confessar nem a seus próximos mais íntimos. Mas tão publicamente como na paz de seus lares, sempre deplorariam tal tipo de comportamentos, considerados atentatorios contra as bases de uma sociedade civilizada.

Carlisle viu no rosto de Charlotte que não precisava dar mais explicações.

— Que perspicaz por parte da senhora Shaw - comentou Vespasia. — Suponho que granjearia algum ou outro inimigo.

— Encontrou alguns... receio. Mas não acredito que tivesse conseguido algum êxito suscetível de gerar uma inquietação real.

— Teria conseguido, se tivesse vivido? - perguntou Charlotte. Lamentava a morte de Clemency Shaw não só pela comiseração imparcial que acordada toda desgraça, mas também porque já não teria a oportunidade de conhecê-la. Quanto mais ouvia falar dela, mais tinha a impressão de que gostaria muito daquela mulher.

Carlisle refletiu uns segundos antes de responder. Não vinha ao caso fazer vãos cumpriementos. Conhecia o suficiente o mundo da política e o enorme poder dos interesses econômicos, e tinha visto de perto já várias mortes violentas, para não descartar a possibilidade de que teriam assassinado à Clemency Shaw para evitar que continuasse com sua cruzada, por muito pouco provável que fosse que pudesse influir na promulgação de uma lei ou na opinião pública.

Charlotte, Emily e Vespasia esperavam em silêncio.

— Sim - disse por fim. — Era uma mulher notável. Encontrava com paixão no que fazia, e às vezes essa honestidade pessoal consegue convencer às pessoas ali onde a lógica falha. Não havia hipocrisia nela, não... - Franziu ligeiramente as sobrancelhas, como se procurasse as palavras precisas para transmitir a impressão que lhe tinha causado uma mulher a que só tinha visto duas vezes em sua vida mas que o tinha marcado de uma forma indelével. — Não dava a sensação de que fosse uma mulher que procurasse uma causa pela que lutar, ou que queria dedicar-se às obras de caridade para ocupar o tempo. Não se tratava de nada que desejasse para si mesma. Punha a alma na tarefa de aliviar a situação daqueles que vivem em casas imundas e amontoadas.

Viu a careta da Vespasia, um gesto mais de piedade que de desagrado.

— Odiava aos senhores da miséria com um desprezo que lhe fazia sentir culpado por ter um teto sob o que viver. - Torceu a expressão em um sorriso que deu mais encanto a seu turvo rosto. — Lamento muito sua morte. - Olhou a Charlotte. — Suponho que Thomas está no caso e que por isso você ouviu falar dele.

— Sim.

— E pensam misturar-se? - A observação ia dirigida às três.

Vespasia deu um leve pulo, mas não podia dizer que estivesse em desacordo.

— Podia ter procurado uma expressão mais afortunada - disse com uma ligeira sublevação de ombros.

— Sim, pensamos intervir no caso - disse Emily. A diferença do Clemency Shaw, ela estava procurando algo que fazer.— Ainda não sei como.

— Muito bem. Se posso lhes ser de alguma ajuda, por favor venham a mim. Sentia uma grande admiração por Clemency Shaw. Eu gostaria de ver seu assassino apodrecendo no Coldbath Fields ou em outro lugar similar.

— Pendurarão-no - disse Vespasia com aspereza. Sabia que Carlisle não era partidário da forca, já que era uma solução irreversível que não admitia volta atrás em caso de engano. Tampouco convencia-a, mas era uma mulher realista por natureza.

Ele a olhou sem alterar-se, mas não fez comentário algum. Já tinham discutido o tema com antecedência e conheciam suas respectivas opiniões. Tinham em comum um grande amontoado de vivencias: um bom número de tragédias presenciadas, alguns enganos e a experiência da dor. O crime era resultado muitas vezes de uma ação isolada, responsabilidade de uma só pessoa.

— Isso não é uma razão para ficar sem fazer nada. - Charlotte ficou de pé. — Quando souber algo o direi.

— Seja prudente - advertiu Carlisle, ao mesmo tempo que a precedia para a porta, que segurou enquanto saíam: primeiro Vespasia, com a cabeça erguida, depois Emily junto a ela e por último Charlotte. Agarrou-a pelo braço ao passar. — Vai incomodar pessoas muito poderosas que têm grandes interesses em jogo. Se já mataram a Clemency, não pensarão duas vezes com você.

— Serei prudente - disse com convicção, embora não tinha a menor ideia do que podia fazer que fosse de utilidade. — Só me proponho a obter informação.

Ele a olhou com incredulidade, pois a conhecia de anteriores casos, mas afrouxou o apertão no braço de Charlotte e as acompanhou através da porta de entrada até a ensolarada rua, onde esperava a carruagem de Emily.

Assim que se puseram os cavalos em movimento, Emily disse:

— Descobrirei tudo o que possa a respeito da senhora Shaw e sua luta em favor de leis que revelassem a identidade dos proprietários desses imóveis. Estou certa de ter conhecidos que saberão algo.

— É uma mulher recém casada - a acautelou Vespasia. — É possível que seu marido tenha outras expectativas para suas primeiras semanas no lar depois da lua de mel.

— Ah... - Emily suspirou, mas foi só uma dúvida momentânea no torvelinho de seus pensamentos. — Sim... bom, será melhor que não utilize minha casa. Já arrumarei isso. Charlotte, já sei que tem que ser discreta, mas inteira-se pelo Thomas de tudo o que possa. Temos que reunir todos os dados possíveis.

Não se entretiveram em casa da Vespasia, mas se despediram dela e esperaram que descesse e subisse a escadaria da porta principal, que lhe abriu a criada. Imersa ainda em seus pensamentos, entrou na casa. Tinha lutado contra muitas injustiças sociais durante os largos anos de seu viuvez. Gostava do combate e estava preparada para assumir os riscos necessários. Já não lhe preocupava muito a opinião de outros se considerava que sua luta era por uma causa justa. Nada podia lhe causar dano já em realidade, a não ser o desaparecimento de um amigo, ou sua desaprovação.

Mas agora era Emily quem ocupava seus pensamentos. Era muito mais vulnerável que ela, não só aos sentimentos de seu novo marido, quem podia desejar um comportamento mais decoroso por sua parte, mas também às veleidades da sociedade, desejosa sempre de novidades, de algo pelo que surpreender-se e do que mexericar, mas que rechaçava algo que ameaçasse a estabilidade das confortáveis vidas de seus membros.

Charlotte se despediu de Emily depois de um breve abraço e ouviu como a carruagem se afastava rangendo enquanto entrava em sua casa. Cheirava a limpo e a calor caseiro. Os sons da rua chegavam tão amortecidos que reinava virtualmente o silêncio. Ficou quieta um momento. Ouviu Gracie cantarolando na cozinha. Sentiu uma agradável sensação de segurança e gratidão. Todo aquilo era seu. Não tinha que compartilhá-lo com ninguém salvo com sua própria família. Ninguém ia subir-lhe o aluguel, nem a ameaçá-la com o desalojamento. Tinham água quente na cozinha, a qual não faltava o combustível, e havia lareiras na sala de estar e nos aposentos. Os coletores levavam as águas residuais e desfrutava de um bonito jardim com grama e flores.

A vida diária era muito simples em um lugar como aquele, onde a pessoa podia esquecer-se das inumeráveis pessoas que não tinham um lugar quente e livre de imundícies e cheiros no qual pusessem sentir-se seguros, e o bastante íntimo para sentir-se dignos.

Clemency Shawdevia ter sido uma mulher extraordinária para haver-se preocupado tanto por aqueles que têm que viver em casas comunais e em bairros míseros. Em realidade, já era notável que soubesse de sua existência. A maioria das mulheres de boa família só sabiam o que lhes contavam outros, ou quando muito o que liam naquelas páginas dos jornais ou semanários considerados convenientes. A própria Charlotte não tinha a menor ideia de tudo aquilo até que Pitt lhe mostrou o mundo marginal que se estendia mais à frente do que ela conhecia. E a princípio o tinha odiado por isso.

Depois tinha sentido raiva. Havia uma ironia terrível no fato de que Clemency Shaw tivesse morrido no incêndio de sua casa. Fosse quem fosse o responsável, Charlotte se propunha descobri-lo, e também expor à luz pública seus sórdidos e móveis maus.

Se a vida de Clemency Shaw não tinha conseguido atrair a atenção pública para quem se aproveita dos bairros pobres, Charlotte ia fazer quanto estivesse em sua mão para que sua morte o conseguisse.

Em Emily se aninhava um propósito similar, mas lhe moviam razões diferentes e abordava o assunto de uma óptica distinta. Entrou no vestíbulo de sua espaçosa e elegante casa envolta em um revôo de saias e anáguas. Pendurou o chapéu, arrumou o penteado para que lhe desse um encanto mais informal, com os cachos caindo pelo pescoço e faces, e compôs uma expressão de ternura com um toque de pena.

Seu marido estava em casa, o que deduziu ao ver o criado que lhe tinha aberto a porta. Se Jack tivesse estado fora, Arthur estaria com ele.

Abriu as portas do salãozinho e fez uma entrada melodramática.

Ele estava sentado junto ao fogo, com uma bandeja para o chá em cima da mesinha baixa e os pés sobre uma banqueta. Os bollinhos já tinham acabado e no prato só ficava um pedaço de manteiga.

Sorriu com afeto ao ouvi-la e se levantou cortês. Mas ao ver a expressão de seu rosto, seu prazer se mudou em inquietação.

— Emily... algo anda mau? Aconteceu- algo a Charlotte? Está doente? É Thomas...?

— Não... não. - Lançou-se aos braços que lhe oferecia e apoiou a cabeça em seu ombro, em parte para que não lhe visse os olhos. Não estava de todo segura de até onde poderia enganar com êxito ao Jack. Ele se parecia muito com ela. Também era uma pessoa que tinha sobrevivido a seu próprio encanto e atrativo, por isso era consciente dos truques que encerrava tal condição e sabia dirigir-se frente a eles. E se estava insegura era também porque ainda estava muito apaixonada por ele, o que não deixava de ser prazenteiro. Mas agora tinha que lhe dar uma explicação antes que se alarmasse de verdade. — Não, Charlotte está perfeitamente bem. Mas Thomas está trabalhando em um caso que o preocupa... e acredito que me passa o mesmo. Mataram a uma mulher em um incêndio provocado... Era uma mulher muito boa e corajosa que lutava para trazer a luz uma injustiça social. Tia avó Vespasia está também muito afetada. - Agora já podia deixar a um lado os subterfúgios e olhá-lo nos olhos. — Jack, acredito que deveríamos colaborar...

Acariciou-lhe o cabelo com suavidade, beijou-a e, com as sobrancelhas arqueadas e o esboço de um sorriso, olhou-a nos olhos.

— Ah, sim? E no que nós poderíamos ajudar?

— Ela mudou rapidamente de tática. Pela via melodramática não ia conseguir nada. Devolveu-lhe o sorriso.

— Não tenho certeza... - mordeu o lábio. — O que opina você?

— De que injustiça se trata? - perguntou com prevenção. Conhecia Emily melhor do que ela achava.

— De proprietários de imóveis situados nos bairros mais pobres, que cobram aluguéis exorbitantes por moradias ruinosas e amontoadas... Clemency Shaw queria que tivessem que dar a cara ante a opinião pública impedindo que pudessem defender-se no anonimato como agora, pois se escondem atrás de coletores de rendas, de advogados, etc.

Ele guardou silêncio tanto tempo que ela começou a perguntar-se se a tinha ouvido.

— Jack?

— Sim - disse ele por fim. — Sim, está bem... mas o faremos juntos. Não pode atuar sozinha, Emily. É possível que haja gente muito poderosa que se sinta ameaçada... há milhões de libras em jogo... Surpreenderia-lhe saber quantas fortunas investiu no St. Giles e Devil’s Acre... e a miséria que habita esses lugares.

Ela esboçou um leve sorriso. Aquele pensamento era inquietante. Passaram por sua mente os rostos de algumas pessoas que tinha conhecido durante seu matrimônio com o George. Então tinha aceitoas sem mais, em nenhum momento tinha pensado de que forma obtinham seus ganhos. Havia pessoas que, simplesmente, tinham dinheiro, era um estado de coisas que tinha existido sempre. Mas agora não era tão inocente, o que não era uma constatação agradável.

Jack a segurava ainda entre seus braços. Passou-lhe com doçura um dedo pela fronte para lhe afastar uma mecha.

— De verdade está disposta a seguir adiante?

Estava surpreendida pela clareza com que ele tinha lido seus pensamentos, e nas pontadas de culpa e temor que estes lhe tinham suscitado.

— Certamente. - Permaneceu imóvel. Era em extremo prazenteiro sentir-se em seus braços. — Já não há possibilidade de voltar atrás. O que diria a tia avó Vespasia, ou à Charlotte? E ainda mais importante, o que poderia me dizer a mim mesma?

Ele sorriu mais abertamente e a beijou, com doçura ao princípio e logo com paixão.

Quando voltasse a pensar naquele assunto, havia algo que solucionar, algo importante e concreto. Mas por agora havia outras coisas melhores de que ocupar-se.

 

Como Pitt não pertencia à delegacia de polícia do Highgate, mas a Bow Street, tinha que informar do fato a seu superior hierárquico, um homem a quem respeitava tanto por sua professionalidade como por sua naturalidade e simplicidade. E é que Drummond era cavalheiro por nascimento, o que significava que tinha suficientes meios econômicos para não ter que preocupar-se com ganhar a vida, nem se sentia na necessidade de ter que justificar a posição que ocupava.

Saudou o Pitt com satisfação e com uma expressão de interesse em seu enxuto rosto.

— E então? - perguntou, de pé atrás de sua escrivaninha.

Tempo atrás, Drummond tinha dado ao Pitt uma promoção considerável. Este a tinha rejeitado porque, embora o dinheiro lhe tivesse vindo às mil maravilhas, não teria suportado permanecer atrás de uma escrivaninha dando ordens, enquanto outros levavam a cabo a investigação. Queria ver as pessoas, observar os rostos, ouvir as inflexões de voz, os gestos e movimentos do corpo. As pessoas eram o que lhe proporcionava o maior prazer e a maior dor, e o que constituía a realidade de seu trabalho. Limitar-se a dar instruções e transportar informe de outros lhe teria privado da oportunidade de exercitar suas verdadeiras aptidões. Rechaçar aquela promoção tinha sido tanto decisão sua como de Charlotte, que conhecia-o o suficiente para compreender o que era o que constituía sua felicidade. Tinha sido por parte dela um desses atos de generosidade tácita que faziam mais fundo o sentimento de compartilhar a vida juntos e que lhe faziam pensar que a sua mulher ainda era movida pelo amor na hora de afiançar seus compromissos mútuos.

Drummond esperava uma resposta.

— Provocado - respondeu Pitt. — Analisei as provas materiais, ou o que fica delas, e não parece haver dúvida. O cadáver ficou em umas condições que não pode nos dizer muito, mas, pelos restos da casa, os bombeiros dizem que o fogo se iniciou em quatro pontos diferentes. Quem quer que o fizesse, estava decidido a levar a cabo seu propósito.

Drummond franziu a fronte em um gesto de contrariedade.

— Diz que é uma mulher...?

— Trata-se da senhora da casa, Clemency Shaw.

E lhe explicou o que tinham averiguado através das pesquisas realizadas na vizinhança, assim como aquilo do que lhe tinha informado a polícia do Highgate, incluído o resultado da investigação habitual levada a cabo entre a pequena aglomeração de olheiros congregados no pátio traseiro da casa depois dos primeiros instantes de alarme e comoção. Não podia ter havido, entre todas aquelas pessoas que mostravam sua solidariedade e desejos de colaborar, alguma que sentisse uma emoção ambígua ante a apoteose das chamas e o enorme poder destrutivo do fogo?

Os pirómaniacos não permanecem no lugar dos fatos. Mas sim o fazem muitas vezes em seu lugar pessoas ofuscadas por algo muito próximo à loucura.

Drummond se reacomodou em seu assento atrás da escrivaninha e indicou ao Pitt que se sentasse na cômoda poltrona de couro do outro lado da mesma. Era uma agradável estadia, bem iluminada e arejada graças a uma ampla janela. As paredes estavam cobertas de estantes com livros, salvo a zona junto à lareira. A escrivaninha, de carvalho gentil, era tão elegante como funcional.

— O objetivo era o marido? - Drummond foi direto ao ponto. — O que sabe dele?

Pitt se recostou no espaldar e cruzou as pernas.

— É médico, um homem inteligente e que sabe expressar-se. Parece franco e aberto, embora ainda não comprovei sua reputação profissional.

— A você como lhe pareceu pessoalmente? - Drummond olhou-o inclinando um pouco a cabeça.

Pitt sorriu.

— Foi-me simpático, mas conheci pessoas que me causaram boa impressão e que tinham cometido assassinatos, fosse por achar-se em situações desesperadas ou por sentir-se ameaçados ou humilhados. Que fácil seria se pudéssemos decidir a respeito de como são as pessoas pela primeira impressão que nos causam. Pelo contrário, eu ao menos me vejo constantemente obrigado a ir mudando de opinião segundo a situação e violentar meus sentimentos, pois à medida que vou descobrindo novos dados ou explicações, a simpatia e a antipatia para uma mesma pessoa se repartem em proporções muito variáveis. É um trabalho muito duro. - Sorriu abertamente.

Drummond suspirou e olhou ao teto com fingida exasperação.

— Estou-lhe pedindo uma simples opinião, Pitt!

— Nesse caso, diria que o doutor é um excelente candidato a ser a vítima de um assassinato. Poderia pensar em dezenas de motivos pelos quais alguém queria silenciar a um médico, e a este em particular.

— Refere-se a um segredo profissional? - Drummond arqueou as sobrancelhas.       — Mas aos médicos sempre lhes tem feito confidências. Ou é pensa em algo descoberto inadvertidamente e não sujeito portanto a nenhum tipo de código ético?

— Por exemplo...?

— Há muitas possibilidades. - Pitt deu de ombros e disse ao acaso: — Uma enfermidade contagiosa da qual estivesse obrigado a informar às autoridades: peste, febre amarela...

— Absurdo. Febre amarela no Highgate? E se assim tivesse sido, teria notificado imediatamente. Possivelmente uma enfermidade venérea, como a sífilis, mas é improvável. E uma enfermidade mental? Alguns homens estariam dispostos a matar para evitar que uma coisa assim fosse do domínio público, ou inclusive para ocultá-lo a sua família mais próxima, ou até a sua futura família, caso de mediar um matrimônio vantajoso. Indague nessa direção, Pitt.

— Farei-o.

Drummond estava se interessando pelo assunto. Se reclinou no assento, descansou os cotovelos nos braços e juntou a ponta dos dedos.

— Pode ser que se inteirasse do nascimento de um bebê ilegítimo, ou de um aborto. Talvez o praticasse ele, inclusive!

— Por que esperar até agora, nesse caso? - raciocinou Pitt. — E se acabava de praticá-lo, devia ter sido entre os pacientes que visitou no último dia. Mas em qualquer caso, por que iriam matá-lo por isso? Se era ilegal, era mais improvável que falasse ou informasse o médico que a própria mulher. Ele tinha mais que perder.

— Sim, mas e o marido da mulher, ou o pai?

Pitt sacudiu a cabeça.

— Improvável. Se o marido ou o pai não estavam à corrente da situação de antemão, então eles seriam as pessoas à quem ela trataria de ocultarcom maior desespero. Mas se mesmo assim um deles se inteirasse de algum modo, ou ela o houvesse dito, então a pior forma de tratar o problema com discrição seria assassinar ao doutor e obrigar à polícia a colocar o nariz em seus assuntos.

— Vamos, Pitt - disse Drummond com certa rudeza. — Você sabe que as pessoas quando são presa da violência das emoções não raciocinam com tanta fineza. Se o fizessem não se cometeriam nem a metade dos crimes fruto de uma ação impulsiva; provavelmente nem as três quartas partes. Uma ira invencível, ou o medo, ou simplesmente a ofuscação e o desejo de arremeter contra alguém e procurar culpados da própria dor e do sofrimento... Todo isso não se pensa: sente-se.

— De acordo - concedeu Pitt, sabedor de que seu superior tinha razão. — Mas continuo pensando que há outros motivos mais verossímeis. Shaw é homem de convicções apaixonadas. Acredito-lhe muito capaz de agir de acordo com elas e deixar que o diabo carregue com as conseqüências...

— Foi-lhe realmente muito simpático - respondeu Drummond com um sorriso irônico, recordando talvez alguma ferida inconfessada do passado.

Não obteve resposta. Em seu lugar, Pitt expressou em voz alta o curso de seus pensamentos.

— Pode ser que soubesse que se cometeu algum delito. Uma morte, possivelmente a de um doente terminal que sofria muito...

— Um assassinato por compaixão? - interrompeu-lhe Drummond. — É possível. Embora também me ocorre que poderia tratar-se de alguém que tivesse por ele muito poucas simpatias e as idéias muito claras, alguém a quem talvez ajudasse a cometer um assassinato por razões menos altruístas: imagine que o autor principal do crime se houvesse posto nervoso por medo de que seu cúmplice cometesse um deslize, ou o que parece mais acorde com a descrição do Shaw como um homem apaixonado e de caráter, que lhe chantageasse. Isso poderia constituir um excelente motivo para um assassinato.

Pitt gostaria de descartar aquela idéia, mas era lógica e negá-lo seria ridículo.

Drummond observava-o com expectativa.

— Talvez - concordou Pitt, ao mesmo tempo que via como os lábios do Drummond se

curvavam formando um leve sorriso. — Embora em minha opinião é mais verossímil pensar que obtivera a informação como resultado simplesmente do exercício de sua profissão.

— E o que me diz de um motivo pessoal? - perguntou Drummond. — Acredita que pudesse haver outra mulher? Ou outro homem apaixonado por sua esposa? Não diz que era ele quem tinha que estar em casa?

— Sim. - Pela mente do Pitt cruzaram turvas possibilidades. Entre as mais sinistras, o dinheiro da família Worlingham. Ou o encantador rosto de Flora Lutterworth, cujo pai não gostava de suas freqüentes visitas em privado ao doutor Shaw.

— Precisará reunir informação. - Drummond se levantou da escrivaninha e se aproximou da janela com as mãos nos bolsos. Voltou-se para o Pitt. — Os possíveis motivos são numerosos, tanto os que poderiam explicar o assassinato da mulher, que é o que aconteceu, como os do marido, que talvez foi o que tentaram. Pode ser que em frente um trabalho longo e penoso. Sabe Deus o que outras iniqüidades e dramas descobrirá, ou o que farão para ocultá-los. Isso é o que mais detesto do trabalho de investigação: a quantidade de vidas que ficam desfeitas a nossa passagem.

— Afundou as mãos nos bolsos até o fundo. — Por onde começará?

— Pela delegacia de polícia do Highgate - respondeu Pitt enquanto se levantava também. — Shaw é o legista local...

— Não o tinha mencionado.

Pitt sorriu.

— Isso torna um pouco mais verossímil a opção de que não fosse cúmplice, não é assim?

— Concedido. Mas não se faça ilusões. E depois?

— Irei ao hospital local para conhecer a opinião de seus colegas a respeito dele.

— Não tirará grande coisa. - Drummond encolheu de ombros. — Se cobrem uns aos outros invariavelmente. Dão por certo que qualquer deles pode cometer um engano e fecham filas sem fissuras.

— Talvez possa ler algo entre linhas. - Pitt sabia a que se referia Drummond, mas sempre podia ser interessante perceber o tom com que se pronunciava uma frase, ou uma falsa ponderação, ou uma excessiva amabilidade que delatava a existência de intenções ou emoções ocultas, ou de conflitos, julgamentos ou velhos desejos reprimidos. — Depois irei ver seu pessoal de serviço. Poderiam ter provas diretas, embora isso seria muito para esperar. Mas também pode ser que tenham visto ou ouvido algo que revelasse uma mentira, uma incoerência, um ato encoberto, ou que tenham percebido a presença de alguém deslocado. - Ao dizê-lo pensou em todas as fraquezas alheias que tinha descoberto no passado, nas futilidades e insignificantes rixas que tinham tido pouco ou nada que ver com o crime, mas que tinham sido motivo da ruptura de velhas relações, assim como do nascimento de outras novas, ou que simplesmente tinham machucado, confundido ou feito mudar às pessoas. Recordava ocasiões em que tinha aborrecido o mero intrusismo que implica toda investigação. Mas a alternativa era pior.

— Me mantenha à corrente, Pitt. - Drummond observava-o, adivinhando talvez seus pensamentos. — Quero estar informado.

— Sim, senhor, assim o farei.

Drummond sorriu ante aquele formalismo desabitual e se despediu do Pitt com um assentimento da cabeça.

O inspetor abandonou o escritório, desceu as escadas até a andar térreo e saiu ao Bow Street, onde montou em uma calesa rumo ao Highgate. Acomodou-se no fundo do assento e estirou as pernas tudo o que pôde. Deixar-se levar sobre rodas sem pensar no custo da viagem - já que pagava a polícia - era uma sensação muito prazenteira.

A carruagem levou-o através do labirinto de ruas cada vez mais longe do rio. Cruzou High Holbom para Grei’s Inn Road e seguiu para o norte através do Bloomsbury e Kentish Town, até o Highgate.

Uma vez na delegacia de polícia, encotrou Murdo que o esperava com impaciência, pois tinha inspecionado os informes policiais dos últimos dois anos e separado aqueles em que Shaw tinha desempenhado um papel relevante. Permanecia de pé no meio de uma estadia sem tapete e mobiliada unicamente com uma mesa de madeira e três cadeiras. Levava o cabelo revolto e o uniforme desabotoado no pescoço. Era bastante ciumento de seu trabalho para desempenhá-lo com eficiência, e a verdade era que o caso motivava-o no mais fundo, mas tinha presente que quando tudo tivesse concluído Pitt voltaria para o Bow Street. Ele ficaria no Highgate, onde reataria o trabalho cotidiano em companhia de seus companheiros na delegacia de polícia, tão sensíveis naqueles momentos à presença entre eles de um elemento estranho, e tão ofendidos pelo fato de que tivesse sido considerado necessário.

— Aí os tem, senhor - disse assim que Pitt transpôs a porta. — A relação que há entre todos estes antecedentes e nosso caso pode resumir-se em nada. Tampouco há nada significativo nos casos em que teve que intervir depois de uma alteração da ordem pública. - Apontou com o dedo — um destes montões são. Gente que acaba com o nariz sangrando ou uma costela fraturada, uma carruagem que lesa um pé a uma pessoa e logo esta se enceta em uma briga com o cocheiro... Não me parece que alguém pudesse ter motivos para lhe matar por isso, salvo um louco.

— Tampouco me parece - concordou Pitt. — E não acredito que tenhamos que nos ver com um louco. O incêndio esteve muito bem perpetrado. Iniciou-se nas cortinas de quatro aposentos que permaneciam fechados habitualmente depois que o senhor e a senhora iam para a cama, por isso se tivesse passado um criado comprovando as portas ou uma criada tivesse ido procurar uma xícara de chá para alguém, não teriam visto nada nos corredores nem nos patamares. E como os aposentos em que pegou fogo estavam afastados das dependências do serviço, nenhum criado que ficou levantado até tarde teria visto as janelas. Não, Murdo. Parece-me que o homem do óleo diesel e dos fósforos está bastante cordato.

Murdo estremeceu.

— É algo terrível, senhor Pitt. A pessoa que o fez devia estar dominada por emoções incontroláveis.

— E duvido que possamos encontrá-la nesta pilha de informes. - Pitt pôs a mão sobre o montão maior que lhe tinha selecionado Murdo. — A menos que se tratasse de alguma morte sobre a que Shaw soubesse algo estranho. Por certo, fez já averiguações em torno do falecimento do Theophilus Worlingham?

— Oh, sim, senhor - disse Murdo com afã. Era claro que se tratava de uma tarefa que tinha realizado com consciência e da qual estava desejoso de dar contas.

Pitt arqueou as sobrancelhas na expectativa.

Murdo se aplicou a sua narração e Pitt se sentou atrás da escrivaninha com as pernas cruzadas.

— Foi uma morte muito repentina - começou Murdo, sempre de pé e inclinando um pouco os ombros. — Tinha sido sempre um homem de uma grande energia física e uma saúde excelente, o que poderíamos chamar um "cristão robusto", acredito... - ruborizou-se um pouco ao dar-se conta de sua própria audácia por ter utilizado um termo como aquele para referir-se a um superior, e porque era uma expressão que só tinha ouvido um par de vezes. — Se vê que seu vigor era motivo de especial orgulho para ele - acrescentou a modo de explicação, pois de repente temeu que talvez Pitt não tivesse ouvido nunca aquela expressão.

Pitt assentiu e dissimulou um sorriso.

Murdo se tranqüilizou.

— Quando caiu doente todos tomaram por um resfriado. Ninguém lhe deu importância, e pelo visto o próprio senhor Worlingham só lhe irritava o fato de não ser mais forte que o comum dos mortais. O doutor Shaw foi visitá-lo e lhe prescreveu que inalasse preparados aromáticos para reduzir a congestão, assim como uma dieta leve, coisa que não gostou nada. Também lhe ordenou que guardasse cama... e que deixasse os charutos, o que também o contrariou. Não lhe disse nada de aplicar-se cataplasmas de mostarda... - Murdo deu um pulo surpreso de si mesmo. — Bom, isso era o que minha mãe nos punha . O caso é que não melhorou, e que não obstante Shaw não voltou a visitá-lo. Três dias mais tarde, sua filha Clemency, que agora morreu assassinada, foi vê-lo e achou-o morto em seu estúdio, que está no andar térreo da casa, com as portas janelas abertas. O corpo estava deitado no chão, em cima do tapete, e segundo o agente de polícia que atendeu o aviso, tinha uma expressão de horror.

— Por que chamaram à polícia? - Ao fim e ao cabo só parecia uma tragédia familiar como tantas outras. A morte de uma pessoa não podia considerar uma raridade.

Murdo não precisou olhar suas notas.

— Oh... pois pela expressão de horror do rosto, pelas portas-janelas abertas, e porque na casa havia bastante dinheiro, incluídas vinte libras em vale do tesouro que retinha na mão. Não puderam nem lhe alongar os dedos! - concluiu Murdo triunfante e com o rosto encarnado, em espera da reação do Pitt.

— Que coisa tão extraordinária - concedeu este com generosidade. — E foi Clemency Shaw quem o encontrou?

— Sim, senhor!

— Achou alguém ele em falta de dinheiro?

— Não, senhor, e isso é o mais curioso. O senhor Worlingham tinha tirado do banco sete mil quatrocentas e trinta e oito libras. - O rosto do Murdo empalideceu ante a idéia de semelhante fortuna. Teria bastado para comprar uma casa e viver comodamente durante muitos anos, se é que alguma vez tinha que voltar a ganhar um só penny. — O dinheiro estava intacto! Estava em bônus do Tesouro na gaveta da escrivaninha, que nem sequer estava fechada. É difícil achar uma explicação, senhor.

— Sim, é - disse Pitt com ênfase. — Só cabe pensar que tivesse intenção de realizar uma compra importante em metálico, ou saldar uma dívida enorme, e que não queria fazê-lo através de um meio mais habitual, como uma letra de mudança. Mas o porquê... não tenho a menor idéia.

— Você acha que sua filha sabia, senhor...? Quero dizer a senhora Shaw.

— É provável. Mas Theophilus faz pelo menos dois anos que morreu, não?

O sentimento de triunfo do Murdo se desvaneceu.

— Sim, senhor. Dois anos e três meses.

— E que causa figura no certificado de falecimento?

— Um ataque de apoplexia.

— Quem o assinou?

— Shaw não. - Murdo moveu a cabeça. — Ele foi quem acudiu, como é natural, já que Theophilus era seu sogro e foi sua mulher quem o achou. Mas precisamente por isso chamou a outro médico para que confirmasse seu juízo e assinasse o certificado.

— Que cauteloso - ironizou Pitt. — Acredito que deixou no testamento uma grande soma de dinheiro. A quantidade retirada do banco era só uma pequena parte de toda sua fortuna. Isso é outra coisa que deveria averiguar, o grau e disposição precisos da fortuna do Worlingham.

— Sim senhor, farei-o imediatamente.

Pitt levantou a mão.

— O que me diz de outros casos em que interveio Shaw? Sabe algo de algum?

— Por experiência direta, só de três, senhor. E em nenhum deles houve nada fora do normal. Um foi o caso do velho senhor Freemantle, que ficou um pouco bêbado no jantar de gala de Natal oficiado pelo prefeito e teve uma disputa com o senhor Tiplady, a quem empurrou pelas escadas do Rede Lion. -Tratou de manter uma expressão respeitosa, sem consegui-lo.

— Ah... - Pitt deixou escapar um suspiro de satisfação. — E Shaw foi avisado para que atendesse suas feridas...

— Sim, senhor. O senhor Freemantle caiu também por seu próprio impulso e teve que ser atendido em sua casa. Eu acredito que se tratasse de uma pessoa menos importante teria passado a noite no quartel. O senhor Tiplady tinha alguns machucados e uma ferida na cabeça que sangrava muito. Deu-nos um bom susto. Estava mais branco que um fantasma. Mas ao menos serviu para lhe tirar o porre! Passou-lhe antes que se tivessem jogado um balde de água por cima! - Os lábios se curvaram em um sorriso de satisfação. Mas em seguida lembrou-se e adotou um ar mais sombrio. — No dia seguinte se apresentou aqui com um humor de cães. Entrou gritando e queixando e jogando a culpa ao doutor Shaw da dor de cabeça que tinha. Dizia que não lhe tinham curado como era devido, mas eu acredito que em realidade estava furioso porque todos o tinham visto fazendo o ridículo nas escadas da prefeitura. O doutor Shaw lhe disse que a próxima vez misturasse sua bebida com mais água.

Pitt deu por resolvido o assunto. Um homem não mata a um médico porque este lhe tenha falado com franqueza de seus excessos e das conseqüências abafadiças dos mesmos.

— E os outros casos?

— Um é o do senhor Parkinson, quer dizer Obadiah Parkinson, que foi assaltado uma noite no Swan’s Lane. Fica junto ao cemitério - acrescentou se por acaso Pitt não sabia.  — Golpearam-no com dureza e o agente que o achou chamou o doutor Shaw, mas não há nada especial. O doutor se limitou a lhe fazer um reconhecimento, disse que tinha uma leve comoção cerebral e acompanhou-o a casa em sua própria carruagem. O senhor Parkinson ficou muito agradecido.

Pitt deixou a um lado os dois expedientes e pegou o terceiro.

— A morte do menino dos Armitage - disse Murdo. — Esse sim foi um caso muito triste. Um cavalo de tiro se assustou e se descontrolou. O jovem Albert morreu no ato. Muito triste de verdade. Era um bom menino, e não teria mais de quatorze anos.

Pitt agradeceu ao Murdo e lhe mandou que continuasse sua investigação em torno do dinheiro do Worlingham. Depois ficou a ler o resto de expedientes que tinha em cima da escrivaninha. Eram todos casos similares, alguns trágicos, outros com algum elemento cômico, onde a vaidade fica abandonada pelas debilidades da carne. Talvez atrás de alguns dos informe que davam fé de machucados e ossos quebrados podiam rastrear-se sinais de violência doméstica. Até era possível que algumas autópsias que opinavam uma pneumonia ou uma falha cardíaca ocultassem alguma causa mais turva, conseqüência de um ato violento. Mas não havia nada que o indicasse. Se Shaw tinha visto algo estranho, não tinha deixado prova disso. Em total havia sete mortes, e nem sequer depois de ler aqueles informes duas ou três vezes pôde Pitt descobrir algo suspeito.

Deixou-os por fim e, depois de informar de suas intenções ao sargento de guarda, saiu ao frio ar da tarde e caminhou com passo enérgico até a clínica do St. Cestos. Depois de uma breve olhada ao outro lado da rua ao hospital infantil, subiu pelas escadas da entrada principal. Estava já dentro quando alisou a jaqueta, limpou as botas esfregando contra a parte posterior da perna das calças das e passou de um bolso a outro uma corda, um pedaço de cera, várias moedas, uns pedaços de papel e o lenço de seda do Emily para equilibrar um pouco volumes dos flancos. Seus dedos demoraram no contato da deliciosa textura do lenço um segundo mais do que o necessário. Depois ajustou a gravata e arrumou o cabelo, que ficou ainda mais desordenado. Então se dirigiu ao escritório do diretor e bateu na porta.

Abriu-a um homem jovem loiro de rosto alongado.

— Sim? - disse.

Pitt tirou um cartão de visita, uma extravagância que lhe proporcionava sempre certo prazer.

— Inspetor Thomas Pitt, delegacia de polícia do Bow Street - leu o jovem com inquietação. — Louvado seja Deus, o que vem procurar aqui? Tudo está em ordem, asseguro, em perfeita ordem. - Não tinha a menor intenção de deixá-lo entrar. Permaneceram ambos de pé na soleira.

— Não me cabe nenhuma dúvida - lhe tranqüilizou Pitt. — Vim para fazer algumas perguntas confidenciais a respeito de um doutor que trabalhava aqui...

— Todos os médicos que trabalham aqui são pessoas excelentes. - O protesto foi instantâneo. — Se se cometeu algum engano...

— Nenhum que eu saiba - interrompeu-o Pitt. Drummond tinha razão: ia ser muito difícil tirar outra coisa que não fosse uma receosa defesa mútua. — Sofreu um sério atentado contra sua vida. - Isso era certo, basicamente, embora não no sentido que parecia implicar. — Sua colaboração poderia nos servir de ajuda para descobrir o responsável.

— Um atentado contra sua vida? Oh, meu Deus, que monstruosidade. Ninguém dos que trabalhamos aqui poderia imaginar algo semelhante. Nos dedicamos a salvar vidas. - O jovem puxou nervoso a gravata, que aparentemente estava a ponto de estrangulá-lo.

— Às vezes também sofrem fracassos - indicou Pitt.

— Bom... claro. Não podemos fazer milagres. Mas lhe asseguro que...

— Já - cortou-o Pitt. — Posso falar com o diretor?

O homem se mostrou ofendido.

— Se não há mais remédio! Mas lhe asseguro que não temos notícia de um atentado como o que você diz, do contrário teríamos avisado à polícia. O diretor é um homem muito ocupado... muito ocupado.

— Estou impressionado. De qualquer modo, se o culpado consegue levar a cabo sua ameaça e matar ao doutor em questão, então seu diretor estará ainda mais ocupado, pois haverá um médico menos para fazer o trabalho... - Deixou que seu argumento se apagasse pouco a pouco enquanto o homem passava do rubor da irritação ao branco do pânico.

De qualquer forma, o apressado diretor, um homem de aspecto muito triste com longos bigodes e cabelo em franco retrocesso, não pôde dizer ao Pitt nada novo. Era mais agradável do que esperava Pitt. Não demonstrava consciência alguma de sua própria importância, mas só da magnitude da tarefa a que enfrentava em sua luta com enfermidades contra as que não havia cura, entre elas a ignorância que se impunha aos pequenos avanços da alfabetização, a falta de condições higiênicas, inevitável ali onde escasseia a água limpa e vive um excessivo número de pessoas, sem instalações sanitárias adequadas e muitas vezes sem uma saída de rede de esgoto. Nesses lugares onde os ratos pululam a seu desejo não são incomuns os transbordamentos dos canais de drenagem. Se o consorte da rainha, vivendo em seu próprio palácio, podia morrer de um tifo contraído por causa do deficiente sistema de rede de esgoto, que batalhas não ficariam ainda por liberar nas casas das pessoas comuns, ou nas dos pobres, e não digamos já nas dos míseros bairros dos mais desprovidos, chamadas casas da miséria.

Conduziu Pitt a seu pequeno e desordenado escritório. A janela era muito pequena e dois lampiões de gás produziam um débil som sibilante. Convidou Pitt a sentar-se.

— Sinto muito - disse pesando. — Shaw é um muito bom médico, dotado de um talento inato. Eu vi-o ficar sentado à cabeceira de um homem doente todo um dia e toda a noite. E vi-o chorar ao perder uma mãe com seu filho. - Um sorriso se desenhou em seu chupado rosto. — E vi-o dar uma boa reprimenda a um velho presunçoso por fazê-lo perder tempo. - Suspirou. — E mais ainda, a um homem que podia dar a seus filhos leite e fruta e não o fazia. Os pobres meninos mendigos padeciam de raquitismo. Nunca tinha visto um homem tão furioso como Shaw naquele dia. - Fez uma profunda inspiração e se reclinou na cadeira. Olhou ao Pitt com olhos penetrantes. — Eu gosto da pessoa e lamento em grau supremo sobre sua esposa.

Suponho que por isso está aqui, porque pensa que o fogo ia destinado a ele...

— Parece provável - respondeu Pitt. — Mantinha com seus colegas diferença de opinião importante, que você saiba?

— Ah! - O diretor soltou uma risada estentórea. — Ah! Se é capaz de perguntar isso é que não conhece o Shaw. Certamente que sim. Com todo mundo: colegas, enfermeiras, pessoal administrativo... comigo. - Seus olhos se animavam com um regozijo sombrio. — E sei no que consistiam... imagino que qualquer que tenha o ouvidos sabe. O doutor Shaw não conhece o significado da palavra discrição, ao menos no que respeita a seu caráter.    - Adotou uma postura mais erguida, ao mesmo tempo que olhava para Pitt de forma mais expressiva. — Não refiro a questões médicas, claro. Pelo que respeita às confidências próprias da profissão, fecha-se como uma ostra. Nunca revelou um segredo nem sequer quando teve que contrastar sua opinião com outro médico. Duvido que nunca tenha dedicado um só minuto aos falatórios. Mas tem um gênio de mil demônios ante a injustiça ou a mentira. - Encolheu seus ossudos ombros. — Nem sempre tem razão... mas quando se dá conta de que se enganou costuma retificar, embora não o faça imediatamente.

— Acorda simpatias?

O diretor sorriu.

— Não ofenderei a você com uma mentira piedosa. Quem gosta dele, gosta muito. Eu me conto entre estes. Mas há certas pessoas à quem ofendeu com uma franqueza excessiva ou uma brutalidade desnecessária que pôde dificultar, interferir ou debilitar sua posição. -Seu enxuto e afável rosto mostrou uma tolerância ganha baseada em anos de combates e derrotas. — Há muitas pessoas que não gostam que lhes demonstrem que estão equivocadas e que há uma maneira melhor de fazer as coisas, sobre tudo diante de outras pessoas. E quanto mais tempo e com mais empenho se aferram a isso, quanto mais em ridículo ficam quando por fim se vêem obrigadas a ceder e reconhecer seu engano.      -Seu sorriso se alargou. — E Shaw não é precisamente uma pessoa com tato na hora de dirigir as discussões. Sua inteligência é muitas vezes mais rápida que sua capacidade para perceber os sentimentos de outros. mais de uma vez vi-o rir a custa de alguém, e compreendi a julgar pela expressão do ofendido que um dia o pagaria caro. Poucos homens gostam de ser objeto de brincadeira. Antes preferem que lhes ataquem de frente a que riam deles na cara.

— Recorda alguma pessoa especialmente ofendida?

— Não tanto para que pusessem fogo a sua casa - replicou o diretor arqueando as sobrancelhas e olhando-o com ingenuidade.

Não havia por que andar-se com rodeios com aquele homem, assim Pitt não o fez.

— Os nomes dos mais ofendidos? - perguntou. — Embora só seja para eliminá-los desde o começo. A casa está destruída e a senhora Shaw morta. Alguém provocou o incêndio.

Do rosto do diretor desapareceu todo vislumbre de humor. Em seu lugar surgiu uma expressão sombria.

— Fennady não o engole - respondeu, ao mesmo tempo que se reclinava para trás e iniciava a recontagem do que obviamente era um catálogo. Mas em sua voz se apreciava um matiz mais compreensivo que recriminatório. — Discutiam por qualquer causa: da situação da monarquia ao estado das canalizações públicas, e todos os assuntos que possa haver entre um e outro. E depois há Nimmons, um homem idoso com idéias antiquadas que não tem a menor intenção de mudar. Shaw lhe mostrou algumas técnicas profissionais melhores, mas por desgraça o fez diante do paciente, que não pensou duas vezes e trocou um médico pelo outro, junto com sua extensa família.

— Pouco tato - concordou Pitt.

— É o menos que se pode dizer - suspirou o diretor. — Mas salvou a vida do homem. E também há Henshaw, um jovem com a cabeça cheia de idéias novas, que Shaw tampouco gosta. Diz que ainda estão por provar e que são muito arriscadas. Às vezes é mais teimoso que um exército de mulas. Tirou o Henshaw do sério, mas não acredito que lhe guarde um rancor profundo por isso. É tudo o que posso lhe dizer.

— Falta de tato, falta de discrição com seus colegas... E o que me diz de seus pacientes? Tratou-os alguma vez de forma incorreta?

— Shaw? É condenadamente explícito, mas suponho que tem que sê-lo. Não, que eu saiba. Mas é um homem com encanto e vigor. Não é impossível que alguma mulher imaginasse mais do que havia.

Interrompeu-lhe uma impetuosa batida à porta.

— Adiante - disse enquanto dirigia ao Pitt um fugaz olhar de desculpa.

O mesmo jovem loiro que tão pouco tinha gostado da presença do Pitt apareceu com idêntica expressão de desagrado.

— Está aí o senhor Marchant, senhor. - Ignorou ao Pitt de forma ostentosa. — Da prefeitura - acrescentou por mais gestos.

— Diga que me reunirei com ele em uns minutos - respondeu o diretor.

— Vem da prefeitura - repetiu o jovem. — É importante... senhor.

— Isto também - disse o diretor sem alterar-se. — A vida de um homem pende de um fio. - E sorriu com desgosto ao dar-se conta do duplo significado. — E quanto mais tempo fique aí, Spooner, mais demorarei para concluir esta entrevista e em ir ver o Marchant! Vá de uma vez lhe transmitir a mensagem!

Spooner se retirou melancólico, dando uma batida de porta tão forte como o permitiu seu atrevimento.

O diretor se voltou para o Pitt.

— Shaw... - recordou-lhe o inspetor.

— Não é impossível que alguma paciente se apaixonasse por ele – retomou o diretor. — Acontece às vezes. Entre um médico e uma paciente se estabelece uma relação singular. Tão pessoal, e ao mesmo tempo tão profissional e distante. Não seria a primeira vez que vai das mãos a um médico, ou que é interpretada mal por um marido, ou por um pai. - Apertou os lábios. — Não é nenhum segredo que para Alfred Lutterworth parece que sua filha tem ao Shaw em uma estima muito alta, e insiste em arrumá-lo ele só. Não falará com ninguém a respeito do que possa haver entre eles, nem da possível enfermidade dela. É uma jovem formosa em que tem grandes esperança depositadas. O velho Lutterworth fez sua fortuna com o algodão. Não sei se haverá alguém mais que tenha posto seus olhos nela. Não vivo no Highgate.

— Obrigado, senhor - disse Pitt com sinceridade. — Me concedeu uma grande parte de seu tempo e me serviu de ajuda para eliminar ao menos algumas possibilidades.

— Não invejo seu trabalho. Eu pensava que o meu era duro, mas acredito que o seu o é mais. Que tenha um bom dia.

Quando Pitt saiu do hospital, a tarde de outono estava escura e os lampiões de gás acesos. Era já princípios de outubro, e algumas folhas rangeram sob seus pés enquanto caminhava em direção ao cruzamento onde podia pegar uma carruagem de aluguel. O ar, limpo e frio, prometia geadas em uma ou duas semanas. As estrelas brilhavam com brilhos longínquos em um céu frio. Ao Highgate não chegava a névoa do rio, nem a fumaça das fábricas nem das amontoadas casas encostadas. Podia cheirar o vento procedente dos campos e ouvir o latido de um cão na distância. Um dia levaria Charlotte e as crianças para passar uma semana no campo. Fazia tempo que ela não saía do Bloomsbury. Gostaria. ficou a pensar como ir fazendo pequenas economias, como ir afastando pequenas quantidades de dinheiro para o projeto, e na expressão de sua mulher quando pudesse dizer-lhe. De momento não lhe diria nada, até que fosse seguro.

Enquanto andava ia tão perdido em seus pensamentos que a primeira carruagem que passou continuou a subida da colina antes de que ele chegasse a dar-se conta.

Na manhã seguinte voltou para o Highgate para ver se Murdo tinha descoberto algo interessante, mas este já tinha saído para seguir com suas pesquisas e lhe tinha deixado umas breves nota com efeito. Pitt agradeceu ao sargento de guarda, que seguia sem lhe perdoar sua intromissão em um assunto local que ele considerava que podia resolver com os meios da delegacia de polícia. Pitt se dirigiu de novo ao hospital para falar com o mordomo de Shaw.

O homem estava recostado na cama com rosto com olheiras, fruto da comoção pela desgraça. Estava sem barbear e levava o braço esquerdo coberto de bandagens. Tinha no rosto vários arranhões em carne viva e uma crosta começava a formar-se. O doutor não precisou dizer a Pitt que aquele homem tinha sofrido queimaduras graves.

Apesar de junto à cama do ferido haver aroma de sangue, ácido fénico, suor e clorofórmio, ao Pitt sobreveio o penetrante fedor a fumaça e cinza úmida, como se fizesse apenas uns minutos que acabasse de voltar da casa em ruínas, por isso imaginou estar vendo os restos calcinados do corpo de Clemency Shaw sobre uma maca do necrotério, apenas reconhecíveis como humanos. A raiva que sentiu se traduziu em um nó no estômago e o peito que lhe dificultou a fala e a respiração.

— O senhor Burdin?

O mordomo abriu os olhos e o olhou sem interesse.

— Senhor Burdin, sou o inspetor Pitt, da Polícia Metropolitana. Estou no Highgate para averiguar quem acendeu o fogo que destruiu a casa do doutor Shaw... – Não mencionou ao Clemency. Não sabia se o haviam dito. Poderia lhe causar uma comoção cruel e desnecessária. Devia informá-lo com delicadeza, e devia fazê-lo alguém que pudesse permanecer junto a ele e possivelmente consolá-lo se a notícia lhe afligisse.

— Não sei - disse Burdin com voz rouca, com os pulmões ainda abrasados pela fumaça. — Não vi nada nem ouvi nada até que Jenny ficou a gritar. Jenny é a criada. Seu dormitório é o mais próximo ao corpo principal da casa.

— Já imaginamos que não viu você como se iniciou o fogo. - Pitt tratava de mostrar-se tranqüilizador. — E contamos com que não saiba nada concreto. Mas possivelmente haja algo que, pensando um pouco, possa ter importância... se o somarmos a outros dados. Posso lhe fazer algumas perguntas? - A solicitude de licença não era mais que uma mera cortesia, pois aquele homem estava sob os efeitos da dor e de uma forte comoção.

— Não faltava mais nada. - A voz do Burdin se extinguiu em um grunhido. — Mas já estive pensando. Dei voltas e mais voltas na cabeça. - Franziu o rosto ao redobrar o esforço. — Mas não recordo nada especial... nada de nada. Tudo estava como sempre...  - Começou a tossir, enquanto a áspera roupa lhe roçava a carne viva.

Pitt ficou um momento sem saber o que fazer. Sentiu pânico ao ver como lhe avermelhava o rosto enquanto fazia esforços em busca de ar e as lágrimas lhe rodavam pelas faces. Olhou ao redor em busca de ajuda mas não havia ninguém. Então viu uma jarra de água sobre a mesita do canto e encheu um copo apressadamente. Passou-o braço ao Burdin pelos ombros para lhe ajudar a endireitar-se e lhe levou o copo aos lábios. Ao primeiro gole se engasgou e cuspiu a água em cima, mas por fim conseguiu engolir um pouco e refrescar a garganta ressecada. Uma vez aliviado a dor, recostou-se extenuado. Seria cruel e inoportuno fazê-lo falar outra vez. Mas devia fazer as perguntas.

— Não fale - lhe disse Pitt. — Volte para cima a palma da mão para dizer que sim, e para baixo para dizer que não.

Burdin esboçou um leve sorriso e voltou a palma para cima.

— Muito bem. Recebeu o doutor alguma chamada aquele dia, além de seus compromissos profissionais?

Palma para cima.

— Assuntos de negócios?

— Palma para baixo.

— Assuntos pessoais?

— Palma de lado.

— Familiares?

— Palma para cima.

— Das irmãs Worlingham?

— Palma para baixo, com resolução.

— Do senhor ou a senhora Hatch?

— Palma para cima.

— Da senhora Hatch?

— Palma para baixo.

— Do senhor Hatch? Houve alguma briga, uma discussão em voz alta, palavras desagradáveis? - Embora a Pitt não ocorria nada que pudesse converter uma diferença de opinião em um assassinato.

Burdin encolheu ligeiramente os ombros e pôs a palma em posição vertical.

— Não mais do habitual - sugeriu Pitt.

Burdin sorriu, mas voltou a dar de ombros. Não sabia.

— Chamou alguém mais?

Palma para cima.

— Uma pessoa da vizinhança?

Palma para cima, e a ergueu um pouco.

— Um vizinho muito próximo? O senhor Lindsay?

O rosto do Burdin se relaxou em um sorriso e deixou a palma para cima.

— Alguém mais que você saiba?

Palma para baixo.

Pensou em lhe perguntar se tinha recebido alguma carta fora do habitual ou que pudesse revestir algum interesse, mas que tipo de carta podia ser? Como podia reconhecer-se sem abrir-se?

— Naquele dia o doutor Shaw lhe pareceu nervoso ou preocupado por algo?

A palma permaneceu para baixo, imóvel em cima da colcha, embora indecisa.

Pitt lançou uma conjetura, apoiando-se no que tinha observado sobre o temperamento do Shaw.

— Zangado? Estava zangado por algo?

Palma para cima.

— Obrigado, senhor Burdin. Se recordar alguma outra coisa, um comentário, uma carta, alguma disposição fora do ordinário, por favor anote-o e peça ao pessoal do hospital que me avisem. Virei imediatamente. Espero que se recupere muito em breve.

Burdin sorriu e fechou os olhos. O esforço, por pequeno que tivesse sido, tinha esgotado-o.

Pitt partiu. Ele também estava zangado por toda aquela dor física que via e pela impotência de não poder fazer nada. Parecia-lhe além disso que não tinha averiguado nada de útil. Desejava muito provável que Shaw e Hatch discutissem com assiduidade, embora só fora pela grande diferencia de sua forma de ser. Era quase certo que qualquer tema devia considerar inclusive pontos de vista opostos.

O estado da cozinheira do Shaw era menos preocupante, por isso tinha abandonado o hospital e tinha pegado uma carruagem de cavalos para o breve trajeto, até o Seven Sisters Road, onde estava a casa de seus parentes cuja direção tinha dado Murdo ao Pitt. Era uma casa pequena, limpa e muito humilde, tal e como esperava. Deixaram-no entrar com muitos reparos e só depois de um bom tempo de discussão.

Encontrou à cozinheira sentada na cama do melhor quarto, envolta em uma manta, mais por decoro ante a visita de um estranho que para acautelar um possível resfriado. Tinha queimaduras em um braço e tinha perdido parte do cabelo, o que lhe dava um aspecto de ave mau depenada que, se tratasse de uma situação menos trágica, teria sido muito cômica. Tanto é assim ao Pitt custou manter uma perfeita compostura.

— Senhora Babbage? -começou Pitt. Às cozinheiras era reservado o cortês tratamento de "senhora", estivessem ou não casadas.

Olhou-o alarmada e levou a mão à boca para sufocar um grito.

— Não pretendo lhe fazer nenhum dano, senhora Babbage...

— Quem é você? O que quer? Eu não o conheço. - Ergueu a cabeça, como se sua só presença fora uma ameaça ou supusera algum tipo de perigo físico.

Pitt se apressou a procurar assento em uma pequena cadeira de dormitório que tinha detrás e tratou de parecer o mais inofensivo possível. Era evidente que a mulher continuava em um forte estado de chocque, pelo menos emocional, pois não parecia ter sofrido danos físicos graves.

— Sou o inspetor Pitt - se apresentou, evitando utilizar o termo "polícia". Sabia quanto aborreciam os criados respeitáveis qualquer tipo de associação com o mundo do crime, embora fosse tão mímino como a presença de um policial. — É meu dever fazer tudo o que esteja em minha mão para descobrir como se produziu o incêndio.

— Em minha cozinha com certeza não! - exclamou com tal exaltação que assustou a sua sobrinha, quem não pôde reprimir um gemido. — Não vá acusar-me a mim ou a Doris! Sei muito bem como se dirige uma cozinha econômica. Nunca me caiu nem um pedaço de carvão, nem quis jamais queimar uma casa.

— Isso já sabemos, senhora Babbage - disse Pitt com doçura. — O fogo não se iniciou na cozinha.

Ela pareceu acalmar-se um pouco, embora seus olhos continuassem olhando-o com receio, ao mesmo tempo que retorcia entre os dedos a ponta de um lenço com tal afinco que tinha a carne avermelhada. Dava-lhe medo confiar-se a ele, receosa de cair em alguma armadilha.

— Puseram-no de forma intencional, nas cortinas de quatro aposentos diferentes do andar térreo.

— Ninguém faria uma coisa assim - disse em um sussurro, apertando o lenço com mais força ao redor dos dedos. — Por que veio ver-me?

— Se por acaso notou algo estranho aquele dia, ou viu algum desconhecido rondando pelos arredores...

Pitt não achava que tivesse sido um mendigo ou um vagabundo. Tinham-no perpetrado com muita minuciosidade, o que fazia pensar em um sentimento intenso, fosse o ódio, a cobiça ou o medo. O pensamento voltou para sua mente com renovada força: o que era isso que sabia Stephen Shaw? E sobre quem?

— Eu não vi nada. - A mulher rompeu a chorar. Levava-se uma e outra vez o lenço nos olhos, enquanto insistia em sua defesa. — Eu só me ocupo de meu trabalho. Não faço perguntas nem escuto detrás das portas. E não sou tão presunçosa para pensar coisas do senhor ou da senhora...

— É claro! - exclamou Pitt imediatamente. — Isso é muito elogiável. Suponho que há cozinheiras que o fazem.

— É claro que sim.

— Seriamente? Que coisas, por exemplo? - Esforçava-se por parecer surpreso. — Se você fosse dessa classe de cozinheiras, que tipo de perguntas poderia fazer-se?

Ela se endireitou com dignidade e lhe olhou por cima de sua mão, envolta no lenço empapado em lágrimas.

— Bom, se eu fosse dessas, que não o sou, poderia me haver perguntado por que deixamos partir a uma das criadas, quando não tinha acontecido nada com ela; ou por que já não comíamos salmão como antes, nem nos chegava à cozinha uma boa pata de porco... Ou podia haver perguntado ao Burdin por que fazia seis meses que não entrava em casa uma caixa de vinho decente.

— Mas, naturalmente, você nunca fez essas perguntas - disse Pitt com tom de sensatez, ao mesmo tempo que reprimia um sorriso. — O doutor Shaw é muito afortunado de ter em seu lar uma cozinheira tão discreta.

— Oh, não sei se serei capaz de voltar a cozinhar para ele! - Pôs-se a soluçar de novo. — Jenny apresentou sua renúncia e assim que tenham chegado a um acordo volta para o Somerset, de onde é ela. Doris não é mais que uma menina... não terá mais de treze anos. E o pobre senhor Burdin está tão mal que quem sabe se voltará a ser alguma vez o mesmo de antes. Não, eu quero ir a uma casa respeitável, tenho que cuidar de meus nervos.

Não tinha sentido discutir com ela. Além disso, no momento Shaw não tinha necessidade de criados: não havia casa em que pudessem viver nem servir. Por outra parte, a mente do Pitt estava ocupada no interessante fato de que os Shaw pareciam ter reduzido grandemente seu modo de vida nos últimos tempos, até o ponto de que a cozinheira o tinha percebido.

Levantou-se, desejou-lhe um logo restabelecimento, agradeceu a sua sobrinha e partiu.

A seguir foi ver Jenny e Doris, que não tinham sofrido mais que algumas queimaduras superficiais. Estavam, isso sim, aflitas de um forte susto e da comoção, assim como de uma considerável aflição, mas não corriam o perigo de uma recaída, como no caso de Burdin.

Encontrou-as na paróquia, aos cuidados do Lally Clitheridge, a quem não precisou explicar o motivo da visita.

Mas apesar de submetê-las a um detido interrogatório não puderam lhe dizer nada de utilidade. Não tinham visto nenhum estranho pelos arredores, e na casa tudo tinha funcionado como sempre. O dia tinha transcorrido com toda normalidade até que se viram obrigadas a levantar-se: Jenny pelo aroma de fumaça, que percebeu enquanto estava deitada pensando em algum assunto cuja lembrança a fez corar e que preferiu não referir; e Doris depois de despertar pelos gritos do Jenny.

Agradeceu-lhes e saiu à rua, onde já escurecia. Caminhou com passo enérgico em direção sul, para o Woodsome Road, onde estava a casa da mulher que acudia diariamente para fazer os trabalhos mais pesados. A senhora Colter vivia em uma casa pequena, com as janelas limpas e o degrau de entrada esfregado de forma tão imaculada que procurou não pisá-lo por respeito.

Abriu a porta uma mulherona de maneiras simplesa com grandes faces e um amplo busto. Levava um avental tensamente amarrado ao redor da cintura com o bolso repleto de pequenos utensílios. O cabelo, recolhido em um apressado laço detrás da nuca, caía-lhe em forma de cauda pelas costas.

— Quem é você? - disse surpreendida, embora sem má vontade. — Não o conheço.

— A senhora Colter? - Pitt tirou seu bem gasto chapéu, que tinha a aba um pouco dobrada já para cima.

— Eu mesma. Quem é você?

— Thomas Pitt, da Polícia Metropolitana...

— Oh... - Arqueou as sobrancelhas. — Vem por causa da casa do pobre doutor Shaw, suponho. Que desgraça tão terrível. A senhora Shaw era uma mulher muito boa. Sinto-o muito, de verdade. Entre. Parece-me que tem frio... e fome, talvez? Pitt limpou as botas no tapete felpudo antes de pisar no polido chão de linóleo. Por um instante esteve a ponto de se inclinar e tirar as botas, como teria feito em sua própria casa, mas lhe assaltou o aroma de um saboroso guisado, com o delicado aroma das cebolas e a doce fragrância dos nabos e cenouras frescas.

— Sim - disse. — Está certo.

— Bom, não sei se poderei lhe ajudar. - Voltou-se para o interior da casa e ele a seguiu.

Permanecer sentado em um aposento em meio daquele aroma e não comer ia ser muito duro. A generosa figura da mulher o conduziu até uma pequena e asseada cozinha. Uma enorme panela bulia a fogo lento na parte traseira da cozinha econômica e enchia o ar de vapor e calor.

— Mas o tentarei - acrescentou.

— Obrigado. - Pitt se sentou em uma cadeira, com a esperança de que a mulher estivesse falando do guisado, não de informação.

— Dizem que foi provocado - disse, enquanto retirava a coberta da panela e removia o conteúdo com uma colher de madeira. — Mas se me perguntar como pode alguém ficar a fazer uma coisa assim, asseguro-lhe que não sei.

— Disse "como", senhora Colter, e não "por que" - observou Pitt ao mesmo tempo que fazia uma profunda inalação e soltava o ar com um suspiro. — Lhe ocorre algum motivo?

— Pus pouca carne - disse dúbia. — Não havia mais que um pouco de filé de cordeiro.

— Não tem idéia de por que, senhora Colter?

— Pois porque não tenho dinheiro para mais, por que vai ser - disse lhe olhando como se fosse um pouco idiota, mas sem perder a amabilidade.

— Refiro a por que ia alguém pôr fogo à casa do doutor e a senhora Shaw.

— Quer uma razão? -Sustentou a colher no ar.

— Sim, por favor.

— Há um montão de razões. - Ficou a esfregar uma pilha de pratos em uma grande terrina. — Vingança, por exemplo. Há quem diz que podia ter atendido ao senhor Theophilus Worlingham melhor do que fez. Embora eu sempre achei que o senhor Theophilus ia ter um ataque algum dia e ia morrer. Como assim foi.

Mas isso não quer dizer que todo mundo pense o mesmo. - Pôs-lhe uma tigela diante e lhe deu uma colher para que comesse. Era a base de batatas, cebola, cenouras e um pouco de nabo, com alguns restos de carne dispersados, mas estava quente e muito saboroso.

— Muito obrigado - disse ele aceitando a comida.

— Não acredito que aquilo tivesse nada que ver com o de agora. - Descartou a idéia. O senhor Lutterworth está que estrila com o doutor Shaw. É por sua filha, a senhorita Florense, que vai vê-lo continuamente e sempre fora de horas de visita. Mas à senhora Shaw não a via inquieta, assim suponho que não devia haver nada do que alguém teria podido pensar. Ao menos nada importante. Para mim que o doutor Shaw e sua esposa eram um casal um pouco independente. Pareciam dar-se bem, como bons amigos, embora talvez nem tudo fosse tão bonito.

— É muito observadora, senhora Colter.

— Mais sal?

— Não, obrigado, assim está perfeito.

— Oh, não é verdade. - Sacudiu a cabeça.

— Sim, o é. Não falta nem sobra nada.

— Não se precisa ser um lince para dar-se conta de quando duas pessoas estão cansadas uma da outra, embora se respeitem, mas isso não quer dizer que se afeiçoaram de outra.

— E o doutor e a senhora Shaw se afeiçoaram de outra?

— Não que eu saiba. Mas a senhora Shaw ia à cidade um dia sim e outro também. Lhe parecia bem e não lhe interessava nem lhe preocupava com quem ia nem a quem via. Nem tampouco a ela parecia lhe incomodar que a mulher do pároco fosse a sua casa sem necessidade cada vez que o doutor Shaw lhe sorria.

Desta vez Pitt não pôde evitar um amplo sorriso e inclinou a cabeça para o prato para ocultá-lo no possível.

— Sério? - disse depois de engolir outra colherada. — Você acredita que o doutor Shaw se dava conta disso?

— Mas o que diz. O que vai. Esse homem é mais cego que um morcego para apreciar esse tipo de sentimentos em outros. Mas a senhora Shaw sim se dava conta e eu acredito que sentia um pouco de lástima por ela. O reverendo é mais um pobre infeliz. É um bom homem. Mas não é homem comparado com o doutor. O que lhe vamos fazer       - suspirou, — assim são as coisas, não lhe parece? -Viu a tigela vazia e lhe disse: — Quer mais?

Pitt pensou na família que ela teria por alimentar e afastou o pires.

— Não, obrigado, senhora Colter. Suficiente para enganar a necessidade. Um guisado muito saboroso.

Ela se ruborizou um pouco. Não estava acostumada a receber elogios e se sentiu agradada e perturbada ao mesmo tempo.

— Não é nada fora do comum. - Voltou-se para remover o conteúdo da panela.

— Não o será para você, em todo caso. - Levantou-se da mesa e empurrou a cadeira para voltar a deixá-la em seu lugar, algo que não se preocupou de fazer em sua própria casa. — Estou-lhe muito agradecido. Ocorre-lhe alguma outra coisa que pudesse estar relacionada com o incêndio?

Ela deu de ombros.

— Sempre há o dinheiro dos Worlingham, suponho. Mas não vejo como poderia encaixar. Não parece que ao doutor lhe preocupem tanto essas coisas, e além disso não tiveram filhos, pobrezinhos.

— Obrigado, senhora Colter. Foi-me que grande ajuda.

— Não sei por que. Qualquer tonto poderia lhe dizer o mesmo que eu, mas se lhe servir, dou-me por satisfeita. Espero que apanhe a quem o fez. – Sorveu ruidosamente pelo nariz e se voltou para remover a panela uma vez mais. — Era uma mulher estupenda e me dá muita pena que tenha morrido... e além de uma forma tão horrível.

— Apanharei-o, senhora Colter - disse de um modo impulsivo.

Mas quando se viu de novo no caminho, no meio do rude ar da noite, desejou ter sido mais reservado. Não tinha a mais remota idéia de quem podia haver-se aproximado da casa, ter quebrado os vidros das janelas, vertido óleo diesel nas cortinas e desatado o fatal incêndio.

Pela manhã voltou para o Highgate ao levantar-se e esteve dando voltas ao caso durante todo o longo trajeto. Tinha contado a Charlotte os progressos realizados (negativos) porque ela o tinha perguntado. Tomou um interesse pelo caso muito maior do que ele teria esperado, já que de momento não tinha comprometido um grande drama humano do tipo que costumava despertar suas emoções. Não lhe tinha devotado maior explicação, salvo que lhe dava muita pena a morte daquela mulher. Era uma forma espantosa de morrer.

Ele a tinha tranqüilizado lhe dizendo que com toda probabilidade Clemency Shaw tinha sucumbido à fumaça muito antes de ser alcançada pelas chamas. Inclusive era possível que não tivesse chegado a despertar.

Isso a tinha reconfortado, e como já lhe havia dito que os progressos eram mínimos, não tinha insistido mais. Em lugar disso, tinha concentrado a atenção nos afazeres diários e se pôs a dar um monte de instruções a Gracie, que a tinha escutado, com as sobrancelhas arqueadas e expressão fascinada.

Pitt mandou deter a carruagem diante da moradia de Amos Lindsay, pagou ao cocheiro e se dirigiu à porta principal. Abriu-a o mesmo criado moreno da primeira vez e Pitt perguntou pelo doutor Shaw.

— O doutor Shaw saiu para ver um doente... senhor.

— Está o senhor Lindsay em casa?

— Se tiver a amabilidade de entrar, irei perguntar lhe se pode recebê-lo. – O criado se fez a um lado. — A quem devo anunciar?

Era verdade que não o recordava, ou o fazia para tratá-lo com superioridade?

— Inspetor Thomas Pitt, da Polícia Metropolitana - respondeu Pitt com certa acrimonia.

— É claro. - O criado fez uma inclinação tão vaga que só foi perceptível pelo ligeiro movimento de sua reluzente cabeça. — Terá a bondade de esperar aqui? Volto sem tardança.

Pitt teve tempo de contemplar de novo o saguão com toda sua exótica mixórdia de lembranças e objetos artísticos. Não havia pinturas, nada relacionado com a cultura européia. As figuras eram todas de madeira ou de marfim e estavam esculpidas seguindo formas insólitas que pareciam fora de contexto na tradicional concepção da estadia, através de cujas quadradas janelas adornadas se filtrava a tênue luz de uma manhã de outubro. As lanças deveriam estar em mãos de pele escura, e as máscaras em movimento, em lugar de estar cravadas em uma tão inglesa madeira de carvalho. Pitt pensou em quão inimaginavelmente diferente devia ser a vida que tinha levado Amos Lindsay em países tão estranhos à mentalidade do Highgate. O que teria visto e o que teria feito? A quem teria conhecido? Teria vivido experiências que o fizeram abraçar os pontos de vista políticos que tanto aborrecia Pascoe?

Suas elucubrações se viram interrompidas pelo reaparecimento do criado, que lhe dedicou um olhar desaprovador.

— O senhor Lindsay o receberá em seu estúdio, se quiser me seguir. - Desta vez omitiu o "senhor".

No estúdio, Amos Lindsay estava de pé, de costas a um vivo fogo. Não parecia aborrecido de voltar a ver o Pitt.

— Entre - disse ignorando ao criado, que se retirou sem fazer ruído. — O que posso fazer por você? Shaw saiu. Não sei por quanto tempo, não conheço o alcance da enfermidade do paciente. De que mais posso informá-lo? Eu gostaria de saber algo. Tudo isto é muito triste.

Pitt pensou no vestíbulo e as relíquias que continha.

— Você deve ter tido experiência direta com a violência em algum momento de sua vida. — Era mais uma observação que uma pergunta. Lembrava-se da Zenobia Gunne, a amiga da tia avó Vespasia, que também tinha percorrido a África e navegado por rios inexplorados e vivido em povoados recônditos cujos habitantes nunca tinha visto nenhum europeu.

Lindsay olhava-o com perplexidade.

— Sim, com efeito - concordou. — Mas nunca se converteu em algo corriqueiro para mim, nem cheguei a me insensibilizar ante uma morte violenta. Quando a gente vive em outro país, senhor Pitt, não importa quão estranho possa parecer tudo a princípio, o caso é que depois de um curto período suas gente se convertem em compatriotas, e suas penas e suas risadas afetam-no humanamente. Tudo que nos diferencia no mundo não é mais que uma sombra, se o compararmos com o que nos assemelha. E para lhe dizer a verdade, me senti mais próximo a um homem negro dançando sob a lua, sem outra vestimenta que suas pinturas, ou a uma mulher oriental consolando a seu filho assustado, pelo que o estive nunca respeito ao Josiah Hatch quando pontifica sobre o lugar das mulheres no mundo e de que é vontade de Deus que dêem a luz com dor. - Fez uma careta que a notável volubilidade de seus traços converteu em um gesto grotesco. — E de que um médico cristão não deve interferir seus intuitos, já que é o castigo da Eva e todo o resto! Está bem, está bem, já sei que aqui ele está em maioria. - Olhou ao Pitt com uns olhos azuis como o céu, embora semiocultos pelas pálpebras, como se ainda se visse obrigado a entreabri-los para proteger-se do sol tropical.

Pitt sorriu. Pareceu-lhe muito provável que ele tivesse pensado o mesmo, caso tivesse estado alguma vez fora da Inglaterra.

— Não conheceu uma mulher chamada Zenobia Gunne em alguma de suas viagens por...? - Não precisou concluir a frase ao ver a surpresa do Lindsay.

— Nobby Gunne! Pois claro que a conheço! Conheci-a em um povoado ashanti em... em sessenta e nove. Uma mulher formidável! Mas como é que a conhece? – O júbilo se esfumou de seu rosto e se mudou em alarme. — Santo Deus! Não lhe terá acontecido algo...?

— Não, não! Conheci-a por um familiar de minha cunhada. Faz só uns meses desfrutava de uma saúde excelente, e de um humor similar.

— Graças a Deus! - Lindsay lhe indicou que se sentasse-. E me diga, o que podemos fazer com o Stephen Shaw, pobre homem? Está em uma situação muito triste. - Atiçou o fogo com vigor e se sentou na outra cadeira. — Estava muito unido a Clemency, compreende? Não é que houvesse entre eles uma grande paixão. Se a houve, tinha passado fazia tempo. Mas gostava, gostava dela muito. E não há muitos homens que possam dizer que gostam de sua esposa. Era uma mulher de estranha inteligência, sabe? - Arqueou as sobrancelhas e seus pequenos olhos vivazes escrutinaram ao Pitt.

Pitt pensou em Charlotte. O rosto de sua mulher ocupou toda sua mente e se sentiu afligido ao dar-se conta do muito que gostava. A amizade era em seu caso tão valiosa como o amor. Talvez fora um prezado dom, algo que tinha nascido do tempo e da continuidade das coisas compartilhadas, das pequenas brincadeiras cúmplices, da ajuda mútua prestada nos momentos de angústia ou tristeza, da compreensão das debilidades e da força do outro e da atenção prestada a ambas.

Mas no caso do Stephen Shaw, se a paixão se extinguiu e ele era um homem apaixonado, não se teria aceso então em outro lugar? Mas então, a amizade, por muito profunda que fosse, teria podido sobreviver a um sentimento tão tumultuoso? Queria acreditar que sim. Por instinto, tinha gostado de Shaw.

Mas à outra mulher em questão, quem quer que fosse, não teria gostado de submeter-se a uma restrição assim. Mas bem a teriam atormentado o ciúmes. E o fato de que ao Shaw ainda atraíra sua mulher e a admirasse podia ter feito estalar um estado emocional tão frágil... com resultado de assassinato.

Lindsay olhava-o fixamente, na espera de uma resposta mais concreta que a meditativa expressão de seu rosto.

— Com efeito - disse Pitt enquanto erguia a vista de novo. — Em sua situação atual, seria natural que lhe fosse muito duro ter que pensar em quem podia sentir por ele uma inimizade tão forte ou quem podia ter tanto que ganhar com sua morte ou com a de sua esposa. Mas como você o conhece bem, talvez possa me facilitar alguma sugestão, por desagradável que seja. Assim ao menos poderíamos excluir algumas pessoas... — Deixou a frase no ar, com a esperança de que não fosse necessário ser mais explícito.

Lindsay era bastante inteligente para não necessitar mais insinuações. Seus olhos passeavam pelos objetos do estúdio. Talvez pensava em terras longínquas, em gente diferentes com paixões similares, menos polidas e dissimuladas pelas máscaras da civilização.

— Não há dúvida de que Stephen granjeou alguns inimigos - disse com calma. — Isso é algo que costuma acontecer às pessoas que tem firmes convicções, e mais se sabem as defender com tanta eloqüência como é seu caso. Temo que tem muito pouca paciência com os néscios e menos ainda com os hipócritas... exemplos dos quais nossa sociedade proporciona um grande número.

— Sacudiu a cabeça. Um pedaço de carvão se desprendeu no meio do fogo com uma corrente de faíscas. — Às vezes, quanto mais sofisticados nos acreditam mais idiotas nos tornamos, e quanto mais gente ociosa há sem outra coisa em que ocupar-se que ditar normas de conduta para outros, mais hipocrisia se gera em torno de quem as segue e quem não.

Pitt imaginou uma sociedade selvagem vivendo a pleno sol nas vastas planícies que tinha visto em algumas pinturas, com suas cabanas de palha, os tambores soando e um mormaço. Uma cultura que não tinha mudado desde que existia a memória histórica. O que tinha feito Lindsay em um lugar assim, como tinha vivido? Casara-se com uma mulher africana? Tinha-a amado? O que havia lhe trazido de retorno ao Highgate, ao suburbio londrino no coração do Império, com suas luvas brancas, carruagens, cartões de visita gravadas, lampiões de gás, criadas com aventais engomados, pequenas e anciãs damas, retratos de bispos, vidraças de cores... e crimes?

— A quem pode ter ofendido em particular? - Olhou para Lindsay.

Lindsay mostrou de repente seu semblante mais risonho.

— Santo céu, meu amigo... a qualquer um. Celeste e Angeline pensam que não se ocupou do Theophilus com a devida atenção, e que se o tivesse feito esse velho louco continuaria vivo...

— Você também acha?

Lindsay arqueou as sobrancelhas.

— Sabe Deus. Duvido-o. O que pode se fazer ante um ataque de apoplexia? Não podia ficar a seu lado as vinte e quatro horas do dia.

— Quem mais?

— Alfred Lutterworth acredita que Flora está apaixonada por ele... coisa que bem poderia ser. Entra e sai de casa muito freqüentemente, e se vê com o Stephen em privado fora das horas de visita. Ela talvez imagina que outros não sabem, mas é com certeza que sim. Lutterworth acredita que a está seduzindo por dinheiro, e ele tem muito.

O leve sorriso que apareceu em seu rosto fez pensar ao Pitt que a idéia de que Shaw tivesse matado a sua esposa porque esta se interpunha em um matrimônio vantajoso não lhe tinha passado pela cabeça. Seu rosto de homem amadurecido, tão marcado por umas rugas que refletiam cada um dos registros de sua expressividade, mostrava agora comiseração e a sombra de um sentimento de desprezo sem crueldade, embora desprovido também de qualquer classe de temor.

— E é claro Lally Clitheridge está horrorizada de suas opiniões – continuou Lindsay, sorrindo mais abertamente. — E fascinada por seu vitalismo. É dez vezes mais homem do que seu pobre Héctor possa ser ou chegar a ser alguma vez. Prudence Hatch está afeiçoada dele mas ao mesmo tempo lhe inspira temor, por alguma razão que não descobri. Josiah não o engole por um montão de razões inerentes a seu temperamento tanto como ao do Stephen. Quinton Pascoe, que vende tão belos e românticos livros, e os analisa, e o mima de forma tão sincera, opina que Stephen é um iconoclasta irresponsável porque dá seu apoio ao John Dalgetty e seus vanguardistas pontos de vista em literatura, ou ao menos apóia a liberdade com que os expressa, sem se importar com quem possa ofender.

— Ofendem a alguém? - perguntou Pitt por curiosidade pessoal, além de pela importância que pudesse ter para o caso. Sem dúvida não havia desacordo literário tão poderoso que pudesse levar a assassinato. Podia dar lugar a inimizades, ao desprezo inclusive, mas só um louco podia matar por uma questão de gostos literários.

— Em grau supremo. - Lindsay percebeu o ceticismo do Pitt e seus olhos refletiram um vislumbre de ironia. — Tem que compreender ao Pascoe e ao Dalgetty. Os ideais, a expressão do pensamento e a arte da criação e a comunicação são sua vida. Para ambos. - Deu de ombros. — Mas só posso lhe dizer quem podia ter sentimentos de ódio passageiros a respeito de Stephen, não quem penso que tivesse podido chegar ao extremo de incendiar sua casa com intenção de matá-lo. Se conhecesse alguém a quem julgasse capaz de tal coisa, teria ido a delegacia de polícia eu mesmo.

Pitt concordou nisso com uma careta. Estava a ponto de reatar o interrogatório quando reapareceu o criado para anunciar ao senhor Dalgetty. Lindsay olhou ao Pitt com expressão divertida e assentiu.

Ao cabo de um momento entrou John Dalgetty, que obviamente achava que Lindsay estava só.Lançou-se imediatamente a um entusiasmado discurso. Era moreno, de meia estatura, com uma fronte alta e quase vertical, olhos formosos e uma grauda mata de cabelo que começava a minguar um pouco. Ia vestido de forma muito informal, com uma gravata negra muito solta que pela manhã, ao colocá-la devia ter formado um arco perfeito, mas que agora era um mero embrulho de tecido. A jaqueta, muito longa, caía-lhe solta e produzia um efeito geral de desalinho.

— Brilhante! - Abriu os braços. — Justo o que Highgate necessita... o que todo Londres necessita! Supõe que uma sacudida contra alguma dessas anquilosadas ideia, faz pensar às pessoas. Isso é o que importa, não é assim? Liberar-se da rigidez, da ortodoxia que mumifica as faculdades da criatividade. - Franziu o sobrecenho e se inclinou para frente em sua veemência. — O homem possui o poder da mente, mas terá que libertá-la dos grilhões do medo. Horroriza-lhes o novo, estremecem-se ante a perspectiva de cometer um engano. O que importam uns poucos enganos? – Elevou os ombros. — E se ao final descobrimos e damos nome a uma nova verdade? Covardes... nisso nos estamos convertendo a marchas forçadas. Uma nação de covardes intelectuais. Muito pacatos para empreender uma aventura para as regiões desconhecidas do pensamento e do conhecimento. - Apontou com o braço uma lança ashanti pendurada em uma parede. — O que teria sido de nosso Império se a todos nossos navegantes e exploradores lhes tivesse dado tanto medo quão novo. Não se atreveram a circunavegar a Terra, nem a entrar nos escuros continentes da África e da Índia? - Assinalou com a mão o chão. — Aqui, na Inglaterra! Aqui teríamos ficado sem nos mover! E o mundo - moveu a mão com teatralidade — pertenceria aos franceses, ou aos espanhóis, ou Deus sabe a quem. Mas agora estamos deixando todas as aventuras do pensamento aos alemães, e a todos outros, só porque nos dá medo pisar em algum ou outro pé delicado. Viu ao Pascoe? Está lançando espuma por causa de sua monografia sobre os enganos da propriedade privada dos meios de produção! Quando é do mais brilhante! Cheia de idéias e conceitos novos a respeito da comunidade de bens e da partilha eqüitativa da riqueza. Analisarei-a toda extensamente que... Oh! - Percebeu de repente a presença de Pitt e seu rosto, depois do assombro inicial, encheu-se de curiosidade. — Peço que me desculpe, senhor, não sabia que o senhor Lindsay estivesse acompanhado. John Dalgetty. - Fez uma leve inclinação. — Vendedor de livros estranhos e crítico literário. E, espero, difusor de idéias.

— Thomas Pitt. Inspetor de polícia e, espero, descobridor da verdade, ou ao menos de uma parte dela... Nunca chegamos a saber tudo, mas às vezes basta saber aquilo que sirva à justiça.

— Deus me livre. – Dalgetty proferiu uma gargalhada em que havia tanto de nervosismo como de senso de humor. — Um policial com um sentido da linguagem extraordinária. Pretende divertir-se a minha custa, senhor?

— Absolutamente. A verdade completa de um crime, de suas causas e efeitos, está muito longe de nosso alcance. Mas, se atuarmos com diligência e a sorte nos acompanhar, podemos descobrir quem o cometeu, e ao menos uma porção do motivo.

— Oh... ah... sim, claro. Que desgraça. - Dalgetty franziu suas negras sobrancelhas e sacudiu a cabeça ligeiramente. — Uma grande mulher. Eu não a conhecia muito, sempre parecia estar muito ocupada com seus assuntos, obras de caridade e todas essas coisas. Mas tinha uma reputação excelente. - Dedicou a Pitt um olhar meio desafiante.— Nunca ouvi ninguém falar mal dela. Era uma grande amiga de minha mulher, sempre estavam conversando juntas. Uma trágica perda. Desejaria poder lhe ajudar, mas não sei nada, não sei nada absolutamente.

Pitt estava disposto a acreditar nele, mas lhe fez algumas perguntas se por acaso podia descobrir algum dado mais em meio de seu entusiasmo e suas opiniões valorativas. Não foi assim e, ao cabo de quinze minutos depois de haver partido Dalgetty, em meio de novos louvores à monografia, chegou o próprio Stephen Shaw, envolvido em um torvelinho de energia, abrindo as portas de repente. Mas Pitt observou as sombras sob os olhos e o rictus tenso ao redor da boca.

— Boa tarde, doutor Shaw - saudou com calma. — Lamento esta nova intromissão, mas tenho algumas perguntas a fazer-lhe.

— É claro. Embora já lhe disse tudo o que sei.

— Alguém acendeu sua casa deliberadamente, doutor Shaw - lhe recordou Pitt.

Shaw fez um gesto de desagrado.

— Sei. Se tivesse a mais remota idéia de quem o fez, não acredita que já houvesse dito?

— O que pode me dizer de seus pacientes? atendeu a alguém com motivo de alguma enfermidade que tivesse desejado ocultar...?

— Pelo amor de Deus, o que está dizendo? - Shaw o olhou fixamente com olhos arregalados. — Se tivesse tratado a alguém de alguma enfermidade contagiosa teria informado disso, gostasse ou não ao paciente! E em caso de enfermidade mental, o teria internado em um centro!

— E em caso de sífilis?

Shaw ficou imóvel, com os braços no ar.

— Touché - disse com parcimônia. — É contagiosa e ao mesmo tempo acaba causando demência. Provavelmente teria guardado silêncio. Certamente não o teria tornado público. — Uma sombra de ironia cruzou por seu rosto. — Não se contagia com um apertão de mãos, nem por compartilhar uma taça de vinho, e a demência que conduz não é ocultavel, nem tampouco provoca um furor homicida.

— Tratou algum caso?

— Se assim fosse, não romperia agora a confidencialidade devida a um paciente. - Shaw lhe devolveu um olhar desafiante e ao mesmo tempo inocente. — Nem tampouco falaria com você a respeito de qualquer outra confidência médica, fosse da natureza que fosse.

— Então vamos necessitar um tempo considerável em descobrir quem matou a sua mulher, doutor Shaw. - Pitt o olhava de forma inexpressiva. — Mas eu não vou deixar de tentá-lo, por muitas coisas que tenha que remover para achar a verdade. Além do fato de que se trata de meu trabalho... quanto mais ouço falar dela, mais convencido estou de que é merecedora do esforço.

Shaw empalideceu e lhe retesaram os músculos do pescoço. Apertou os lábios como se tivesse sofrido uma repentina dor, mas guardou silêncio.

Pitt sabia que lhe estava fazendo mal, coisa que detestava, mas render-se agora pioraria as coisas de cara ao futuro.

— E se como parece provável não era sua esposa o objetivo, a não ser você, então é muito possível que o assassino, ou a assassina, tente-o de novo. Dou por com certeza já tinha pensado nisso.

O rosto do Shaw estava branco como o papel.

— Pensei-o, senhor Pitt - disse com calma. — Mas não posso romper meu código deontológico tão facilmente... até tendo alguma certeza. Não acredito que vá salvar-me por trair a meus pacientes... Em qualquer caso não é algo que esteja em venda. O que queira saber terá que averiguá-lo por outros meios.

Pitt não se surpreendeu. Era o que esperava de um homem como Shaw, e apesar da frustração, teria se sentido decepcionado se tivesse obtido mais dele.

Observou o rosto do Lindsay, rosado pelo reflexo da luz do fogo, e viu nele um profundo afeto junto com certa satisfação maliciosa. Ele também se sentiria defraudado se Shaw se mostrasse mais disposto a falar.

— Nesse caso será melhor que continue por meus próprios meios - aceitou Pitt, erguendo-se um pouco. — Bom dia, senhor Lindsay, e obrigado por sua acessibilidade. Bom dia, doutor Shaw.

— Bom dia, senhor - respondeu Lindsay com uma cortesia incomum.

Shaw permaneceu em silencio junto às prateleiras de livros.

O criado o acompanhou até a rua, onde brilhava um tênue e dourado sol outonal e o vento levantava as folhas secas do caminho. Demorou mais de meia hora para achar uma carruagem que o levasse de retorno à cidade.

 

Charlotte não é que gostasse do ônibus público, mas alugar uma carruagem de cavalos desde o Bloomsbury até casa de sua mãe no Cater Street era uma extravagância injustificada. E se tivesse contado com algum dinheiro extra para gastar, havia coisas muito melhores em que fazê-lo. Pela cabeça lhe rondava um vestido novo no qual brilhar as flores de seda de Emily. Certamente, tampouco era que com o dinheiro de um trajeto em carruagem pudesse comprar alguma manga disso que tinha em mente, mas podia ser um começo. E com Emily de novo em casa, podia surgir a ocasião de usar tal tipo de vestido.

Enquanto a oportunidade chegava, subiu ao ônibus, deu a nota ao condutor e se apertou entre uma mulherona que resfolegava como um fole e um homenzinho baixinho cujo melancólico e ensimesmado olhar se perdia na distância e parecia anunciar que passaria irremediavelmente de parada, a não ser que viajasse até o final da linha.

— Desculpem. - Charlotte procurou lugar com decisão e ambos se viram obrigados a lhe dar um lugar no banco, a mulherona com um rangido de espartilho e frufrú de tafetá, e o homenzinho em silêncio.

Desceu ao cabo de pouco e percorreu a pé em meio de um suave vento de tormenta os duzentos metros de rua até a casa em que tinha nascido e crescido, e onde sete anos atrás tinha conhecido Pitt e escandalizado aos vizinhos casando-se com ele. Sua mãe, que desde que ela tinha dezessete anos tinha estado lhe buscando marido infrutuosamente, tinha aceito a união de forma mais condescendente do que Charlotte tinha imaginado possível. E não isenta talvez de certo alívio? Pois embora Caroline Ellison fosse tão tradicional, ambiciosa para suas filhas e sensível à opinião de seus iguais como a que mais, também era verdade que amava a suas filhas, e ao final se deu conta de que a felicidade destas podia achar-se nos destinos que ela jamais teria considerado sequer passíveis.

E ainda agora que era capaz de sentir um afeto considerável por Thomas Pitt, continuava preferindo não explicar a todos seus conhecidos a que se dedicava seu genro. Sua sogra, por outro lado, nunca tinha deixado de considerar a união um desastre social, nem deixava passar a ocasião de dizê-lo.

Charlotte subiu as escadas e tocou à campainha. Mal teve tempo de dar um passo atrás quando a porta se abriu e Maddock, o mordomo, fez ela entrar.

— Boa tarde, senhorita Charlotte. Que agradável vê-la por aqui. A senhora Ellison ficará encantada. Encontra-se na saleta de estar e por agora não tem mais visitas. Posso levar seu casaco?

— Boa tarde, Maddock. Sim, por favor. Estão todos bem?

— Muito bem, obrigado - respondeu de forma maquinal. Não era questão de responder que a cozinheira tinha reumatismo nos joelhos, ou que a criada tinha pego um resfriado e a ajudante de cozinha torcera o tornozelo descendo à carvoeira. Aqueles problemas do serviço não eram assunto para uma dama, e ele nunca tinha chegado a compreender que Charlotte já não era uma "dama" no sentido em que o era enquanto tinha vivido naquela casa.

Na ampla saleta de descanso familiar, Caroline estava sentada perdendo o tempo com uma peça de bordado, com a mente ausente do trabalho, enquanto a avó a contemplava com irritação e tratava de pensar em alguma observação aguda para lhe fazer. Quando ela era uma menina, os trabalhos de bordado se faziam com meticuloso cuidado. Se uma mulher tinha a desgraça de ser viúva, sem um marido a quem agradar, essa era uma pena que devia agüentar com dignidade e um pouco de graça, mas nem por isso deixava de fazer as coisas com a atenção devida.

— Se continuar assim picará um dedo e manchará o tecido de sangue - disse no instante em que se abria a porta e era anunciada Charlotte. — E então não servirá para nada.

— Tampouco vai servir de muito em qualquer caso - replicou Caroline. Só então se deu conta de que havia alguém mais. — Charlotte! - Deixou cair ao chão o trabalho inteiro, agulhas, tecido, suporte e fios, e ficou de pé encantada. — Querida, alegra-me vê-la. Tem um aspecto estupendo. Como estão as crianças?

— Com uma saúde excelente, mamãe. - Charlotte abraçou a sua mãe. — E você?     - voltou-se para sua avó. — Avozinha? Como está? - Era consciente do catálogo de queixa que viria a seguir, mas o varapalo seria menor se se adiantava a perguntá-lo que se não o fizesse.

— Sofro muito - respondeu a anciã olhando ao Charlotte de cima abaixo com olhos escrutinadores. Aspirou ruidosamente. Era uma mulher pequena e robusta com um nariz bicudo que em sua juventude tinha sido considerado aristocrático, ao menos por aquelas pessoas com melhor disposição por ela. — Estou coxa, e surda, mas se viesse a nos visitar mais freqüentemente não teria necessidade de perguntar para saber.

— Já sei, avozinha - respondeu Charlotte, decidida a ser agradável; — perguntei só para que soubesse que me importa.

— Claro, claro - resmungou a anciã. — Bom, sente-se e nos conte algo interessante. Eu também estou aborrecida. Embora o estou desde que seu avô morreu... inclusive desde antes. O estar aborrecidas é atributo das mulheres de bom berço. Sua mãe também se aborrece, embora não aprendesse a resignar-se como eu. Não soube desenvolver o talento necessário. Faz uns trabalhos péssimos. Eu já não vejo o suficiente para fazer bordado, mas quando o fazia ficava perfeito.

— Tomará um pouco de chá. - Caroline sorriu. Aquelas conversas formavam parte de sua vida há vinte anos e as aceitava de bom grado. A verdade era que raramente se aborrecia. Depois de enviuvar, e uma vez superado o primeiro momento de aflição, tinha encontrado novas e mais interessantes ocupações. Tinha descoberto que era livre para ler os jornais inteiramente pela primeira vez em sua vida. Tinha aprendido um pouco sobre política e assuntos de atualidade, sobre os temas sociais objeto de debate, e inclusive se unira a coletividades que falavam de todo tipo de coisas. Aquela tarde não sabia muito bem o que fazer porque tinha decidido passar o tempo em casa com a dama anciã, e até a chegada de Charlotte não tinham recebido nenhuma visita.

— Sim, por favor - aceitou Charlotte, ao mesmo tempo que se acomodava em sua cadeira favorita.

Caroline chamou à criada e lhe ordenou que trouxesse chá, sanduiches, salgadinhos e pães-doces com geléia. Logo se dispôs a escutar as novas que pudesse trazer Charlotte e a lhe falar a respeito de certo grupo filosófico que freqüentava desde há pouco.

A criada trouxe o chá e o serviu.

— Terá visto o Emily, sem dúvida. - A avó pronunciou a frase como uma sentença, ao mesmo tempo que fazia um altivo gesto de desaprovação. — Em meus tempos uma viúva não se tornava a casar quando o corpo de seu pobre marido ainda se esfriava na tumba. Considerava-se uma amostra de pressa indecorosa. Indecorosa em grau supremo. E não é que o tenha feito para melhorar. Que moça tão estúpida. Isso ainda teria podido entender. Mas Jack Radley! Alguém pode me dizer quem são esses Radley?

Charlotte passou por cima o assunto. Confiava em que Jack Radley se encarregaria de adular à velha dama e que esta se derreteria como a manteiga em uma torrada quente. Não valia a pena, simplesmente, discutir disso naquele momento. E é claro, algo que Emily houvesse lhe trazido da Europa a teria criticado, mas ao mesmo tempo se teria sentido encantada com isso, e teria demonstrado sem a menor confusão.

Consciente da capacidade de autodomínio do Charlotte, a velha dama virou o pescoço e olhou a sua neta por cima de seus óculos.

— E você? A que te dedica estes dias, senhorita? Continua se intrometendo nos assuntos de seu marido? Se houver algo que seja uma vulgaridade indesculpável é a curiosidade a respeito das tragédias domésticas de outros. Já lhe disse em seu tempo que daí não pode sair nada bom. - Voltou a aspirar ruidosamente com despeito e se reclinou em seu assento. — Detetive, ah! Por Deus!

— Não estou envolvida no atual caso do Thomas, avozinha. - Charlotte pegou outro sanduiche de pepino e o comeu com fruição. Estavam realmente deliciosos: finos como folhas, e suaves e rangentes.

— Muito bonito - disse a anciã com satisfação. — Come muito. Isso não é próprio de uma dama. Perdeu todas as formas refinadas que sempre teve. E a culpa é sua, Caroline! Nunca devia permitir que isto acontecesse. Se tivesse sido minha filha, nunca teria permitido que se casasse abaixo de sua posição!

Fazia muito que Caroline tinha deixado de defender-se de observações como aquela. Além disso, não tinha vontade de brigar, por muito que a provocassem. Na realidade, dava-lhe certa satisfação olhar aos brilhantes olhinhos de sua sogra, devolver-lhe um doce sorriso e ver sua irritação.

— Por desgraça não tenho seus dotes - disse com amabilidade. — À Emily soube dirigir melhor, mas Charlotte pôde comigo.

A velha dama estava derrotada.

— Ah! - disse a falta de melhor resposta.

Charlotte dissimulou seu sorriso e tomou outro gole de chá.

— De modo que deixou de se intrometer? - A velha dama não retrocedeu. — Emily se sentirá decepcionada!

Charlotte bebeu outro gole de chá.

— Só deve ter casos de ladrões e trombadinhas, imagino - insistiu a avozinha. — O que? Degradaram-no?

Charlotte não teve outro remédio que não intervir.

— Não. Agora tem um caso de incêndio e assassinato. Uma mulher muito respeitável morreu em um incêndio provocado no Highgate. De fato, era neta de um bispo - acrescentou com um desagradável acento triunfal.

A velha dama a olhou com receio.

— Que bispo? Parece-me muito estranho.

— O bispo Worlingham - replicou Charlotte.

— Worlingham? Augustus Worlingham? - A velha dama arqueou as sobrancelhas com interesse. Inclinou-se em sua cadeira e golpeou o chão com sua negra bengala.       — Responde, menina! Augustus Worlingham?

— Suponho que sim. - Charlotte não recordava que Pitt tivesse mencionado o nome de batismo do bispo. — Não acredito que haja dois.

— Não seja impertinente! - Mas a velha dama estava muito entusiasmada para ir além de uma crítica superficial. — Eu conhecia suas filhas, Celeste e Angeline. Assim ainda vivem no Highgate. Bom, por que não? É uma boa zona. Deveria ir transmitir-lhes minhas condolências.

— Não pode fazê-lo! - Caroline se sobressaltou. — Nunca tinha falado delas... Deve fazer anos que não vai vê-las!

— Acaso esse é motivo para não ir consolá-las em sua desgraça? - inquiriu a velha dama com as sobrancelhas arqueadas, em demanda de sensatez em uma casa de insensatos. — Penso ir esta mesma tarde. Ainda é cedo. Podem me acompanhar, se quiserem. - Fez gesto de ficar em pé. — Desde que estejam dispostas a não demonstrar uma curiosidade vulgar. - E afastou com um empurrão a mesinha do chá, antes de sair da saleta sem incomodar-se em olhar atrás para ver a reação provocada por suas observações.

Charlotte olhou a sua mãe, sem decidir-se a dar seu parecer. A idéia de conhecer pessoas tão próximas à Clemency Shaw a seduzia.

Caroline suspirou. Sua expressão de incredulidade deu passagem a um leve interesse.

— Ah... -Inspirou e exalou pouco a pouco. — Acredito que não devemos deixar que vá sozinha, não acha? Não sei o que poderia lhes dizer. - Mordeu o lábio para dissimular um sorriso.

— Tem razão - concordou Charlotte enquanto se levantava e pegava sua bolsa de malha, disposta à marcha.

O longo trajeto até Highgate correu em quase completo silêncio. Charlotte fez uma tentativa para pedir à velha dama que as informasse a respeito de sua relação com as irmãs Worlingham, e sobre qualquer outra consideração em relação a sua situação atual, mas a resposta foi escassa e em um tom que a dissuadiu de continuar perguntando.

— Não eram nem melhor nem pior que a maioria - disse a velha dama, como se a pergunta tivesse sido supérflua. — Nunca ouvi de nenhum escândalo a suas custas... o que significa que ou eram virtuosas, ou não tiveram a ocasião de cometer uma falta. No fim de contas eram as filhas de um bispo.

— Não perguntava por escândalos. - Charlotte se irritou. — Só queria saber que tipo de pessoas são.

— São pessoas aflitas. Por isso vou vê-las. Parece-me que não vem mais que por mera curiosidade, que é um aspecto do caráter do pior gosto. Espero que não me ponha em evidência quando estivermos ali.

Charlotte apertou os lábios ante um comentário tão vergonhoso. Sabia muito bem que a velha dama não visitava os Worlingham desde fazia trinta anos, e que com certeza tampouco o teria feito agora se a morte do Clemency não tivesse estado rodeada de tão estranhas circunstâncias. Por uma vez não lhe ocorreu uma réplica aguda e permaneceu em silêncio o resto do caminho.

A casa dos Worlingham no Fitzroy Park, Highgate, era imponente do exterior. Dava um aspecto de grande solidez, com as portas e janelas artesonadas, e de grande amplitude, suficiente para alojar a uma família numerosa e o correspondente pessoal de serviço.

O interior, como comprovaram depois de serem admitidas por uma criada de rigidez marmórea, era ainda mais opulento, embora parte do mobiliário fosse austero.

Charlotte, provida detrás de sua mãe e sua avó, teve a oportunidade de observar o entorno com atenção. O vestíbulo era de uma amplitude incomum, com revestimentos de madeira de carvalho, e uma série de retratos de personagens de diversas épocas, embora debaixo dos mesmos não figurasse nenhuma placa com seus nomes. Charlotte teve a fugaz suspeita de que talvez não fossem antepassados dos Worlingham, mas sim possivelmente estavam ali para impressionar ao visitante. No lugar de honra, no principal ponto de luz, estava colocado o retrato maior, que representava a um cavalheiro de certa idade vestido com um traje comum. Seu amplo rosto era rosado e o cabelo prateado deixava descoberto uma ampla fronte inclinada e se frisava sobre as orelhas, o que formava uma auréola quase luminosa ao redor de sua cabeça. Debaixo das espssas sobrancelhas apareciam uns olhos azuis e o queixo era largo. Mas seu traço mais característico era o bondoso e confiante sorriso de seus lábios. Debaixo daquele retrato sim figurava uma placa: "Bispo Augustus T. Worlingham."

Entraram em uma saleta e a criada foi perguntar se poderiam ser recebidas e a avó se sentou com tensão em uma cadeira, enquanto observava tudo com olho crítico. As pinturas da saleta eram lúgubres paisagens e quadros de bordado emoldurados com legendas tais como: "Vaidade de vaidades, tudo é vaidade", em ponto de cruz; "Uma mulher boa é mais valiosa que o rubi", emoldurado em madeira; e "Deus o vê tudo", com fio sobre fundo acetinado.

Caroline fez uma careta.

Charlotte imaginou às duas irmãs em pequenas, sentadas em silêncio um sábado à tarde, costurando aquelas frases com todo esmero, aplicadas a uma tarefa que aborreciam e perguntando-se quanto faltava para a hora do chá, em que papai lhes leria as Escrituras. Responderiam a suas perguntas com a devida submissão e, depois de rezar as orações, poderiam ir para à cama.

A anciã clareou a garganta e olhou com desagrado um receptáculo de cristal cheio de pássaros dissecados e pousados em ramos.

As toalhas sobre a cabeceira dos espaldares eram bordadas com fio marrom, todo isso um pouco apergaminado.

A criada voltou para anunciar que as senhoritas Worlingham estariam encantadas de recebê-las, de modo que a seguiram de volta através do vestíbulo, até uma cavernosa sala de estar com cinco lustres no teto, dos quais só dois estavam acesos. Sobre o chão de madeira havia vários tapetes orientais de diferentes forma e desenhos. Uma parte delas estava desgastada pela passagem da porta ao sofá e cadeiras, assim como uma zona justo diante do fogo, como se alguém tivesse tido o costume de permanecer ali longos momentos de pé. Com uma estranha mescla de irritação e pesar veio à memória do Charlotte a imagem de seu pai de pé diante do fogo no inverno, o que constituía seu costume para esquentar-se, sem ter presente o fato de que com isso privava do calor a outros. O finado bispo Worlingham tinha, não havia dúvida, o mesmo costume. E suas filhas com certeza não tinham erguido seus protestos, como tampouco devia havê-lo feito sua mulher. Aquela imagem lhe trouxe uma vívida lembrança de sua juventude em companhia de seus pais e irmãs, com toda a ingenuidade e a segurança próprias de uma época que parecia garanti-las. Olhou para Caroline, mas esta observava por sua vez a avozinha enquanto abordava a mais velha das senhoritas Worlingham.

— Minha querida senhorita Worlingham, quanto o senti ao me inteirar de sua desgraça. Vim lhe expressar em pessoa meu pesar, não me conformava escrever-lhe uma simples nota. Devem estar muito penalizadas.

Celeste Worlingham, uma mulher que se aproximava dos sessenta anos, de traços muito marcados, olhos castanhos escuros e um rosto que em sua juventude devia ser mais diferente que bonito, parecia um pouco confundida. Os sinais das emoções vividas eram evidentes na tensão das linhas junto à boca e na rigidez do porte do pescoço, embora continuasse mantendo uma admirável compostura que a impediria de exteriorizar manifestações de dor inapropriadas, ao menos em público. E àquela visita considerava uma aparição em público. Era claro que não recordava a menor relação com seus visitantes, mas uma vida guiada sempre pelos boas maneiras sabia deixar esses detalhes em um segundo plano.

— É muito amável de sua parte, senhora Ellison. Angeline e eu estamos muito aflitas, como é natural, mas como boas cristãs aprendemos a agüentar uma perda assim com fortaleza e fé.

— Naturalmente - concordou a anciã. — Queria lhe apresentar a minha nora, a senhora Caroline Ellison, e a minha neta, a senhora Pitt.

Trocaram as cortesias de rigor e a velha dama fixou os olhos em Celeste, para passar em seguida ao Angeline, uma mulher mais jovem e com o cabelo mais loiro, de suaves traços e expressão normal. A anciã se balançou sobre seus pés e plantou sonoramente a bengala no tapete apoiando-se nela.

— Por favor sente-se, senhora Ellison - disse Angeline imediatamente. — Posso lhe oferecer algum refrigério? Uma infusão, talvez?

— Muito amável - aceitou a avó com presteza, enquanto dava em Caroline um puxão da saia para que se visse obrigada a sentar-se também no amplo sofá vermelho que tinha atrás. — Tão atentas como sempre - acrescentou a anciã.

Angeline fez tilintar a campainha de mão com energia. Em seguida apareceu a criada. Pediu uma infusão, mas mudou de idéia e lhe disse que trouxesse chá para todas.

A avó se reclinou em seu assento, deixou a bengala entre sua volumosa saia e a de Caroline e, quase com incompreensível atraso, mudou seu rosto de satisfação por uma expressão mais conveniente de consternação.

— Imagino que seu querido irmão será um grande apoio para vocês, assim como vocês para ele, claro - disse com tom afetado. — Deve estar desconsolado. É em momentos assim que os membros de uma família devem dar-se seu apoio mútuo.

— Isso é exatamente o que costumava dizer nosso pai, o bispo - concordou Angeline inclinando-se um pouco para frente, o que fez que se marcasse uma longa ruga à altura de seu generoso busto. — Era um homem excepcional. A família é a força da nação, costumava dizer. E uma mulher obediente e virtuosa é o coração da família. E isso era nossa querida Clemency.

— O pobre Theophilus morreu - disse Celeste com um matiz de aspereza. — Me surpreende que não se inteirasse. Saiu no Time.

Por um instante a avó ficou confundida. Não teria servido de nada dizer que não lia as paginas necrológicas, ninguém a acreditaria. Os nascimentos, falecimentos, enlace matrimoniais e o calendário da temporada era quão único liam as damas. O resto era, em sua maior parte, sensacionalista, suspeito e, em qualquer caso, inconveniente.

— Sinto-o - murmurou Caroline a seu pesar. — Quando aconteceu?

— Faz dois anos - respondeu Celeste com um ligeiro estremecimento. — Foi algo repentino, uma autêntica comoção.

Caroline olhou a sua sogra.

— Deve ter sido quando esteve doente e não queríamos afligi-la. Suponho que quando se recuperou esquecemos que não lhe havíamos dito isso.

A avó não fez menção de sentir-se agradecida pelo resgate. Charlotte não pôde menos que sentir admiração por sua mãe. Ela teria deixado à velha dama na estacada.

— Essa é a explicação óbvia - concordou a anciã, ao mesmo tempo que olhava fixamente a Celeste, desafiando-a a não acreditá-la.

Um brilho de respeito, junto com um pouco de ironia, cruzou pelo inteligente rosto de Celeste.

— Não há dúvida.

— Foi algo de verdade repentino. - Angeline não se deu conta de nada. — Receio que nos sentimos inclinadas a culpar ao pobre Stephen.... quer dizer, ao doutor Shaw. É nosso sobrinho por afinidade, sabem? A verdade é que eu não fiz mais que repetir que não tinha dispensado ao Theophilus os cuidados necessários. Agora me sinto envergonhada. O pobre está passando uma desgraça, e em circunstâncias terríveis.

— Um incêndio. - A avó meneou a cabeça. — Como pode ter acontecido uma coisa semelhante? Alguma criada negligente? Sempre digo que as criadas já não são como antes... São descuidadas, impertinentes, e não põem atenção nos detalhes. É algo terrível. Não sei onde vamos parar. Suponho que não teriam esse invento novo, a luz elétrica, não é? Não me inspira nenhuma confiança. Não é bom brincar com as forças da natureza.

— Oh, claro que não - se apressou a dizer Angeline. — Usavam luz de gás, como nós. - Olhou o lustre. Depois adotou um ar melancólico e um tanto confuso. — Embora outro dia vi um anúncio de um espartilho elétrico e me perguntei que tal devia ser. - Olhou ao Charlotte esperançada.

Charlotte não tinha a menor ideia. Tinha estado pensando no Theophilus e sua repentina morte.

— Sinto muito, senhorita Worlingham, não o vi. Soa muito desconfortável...

— E não digamos perigoso - replicou a velha dama. Não só desaprovava a eletricidade, mas também desaprovava ainda mais que a interrompessem no que ela considerava sua conversa — além de absurdo - acrescentou. — Em nosso tempo nos bastava a firme coluna de uma cama e os robustos braços de uma criada, e isso que tínhamos uma cintura que um homem podia rodear com uma só mão... ao menos como possibilidade teórica. - Voltou-se de novo para Celeste. — Foi um favor do céu que seu marido não morresse também - disse com um semblante hierático no que não permitiu que aparecesse o menor tremor nem o mais pequeno rubor. — Como aconteceu?

Caroline fechou os olhos e a anciã o deu-lhe uma subrepticia batida para evitar que interviesse.

Charlotte deixou escapar um suspiro.

Celeste parecia pega de improviso.

— Tinha saído por uma urgência - respondeu Angeline com total candura. — Uma mulher a quem se adiantou o parto. É um bom homem, em muitos aspectos, apesar de... -Emudeceu tão bruscamente como tinha começado a falar, enquanto um ligeiro rubor lhe tingia as faces. — Oh, meu Deus, rogo que me desculpem. Não se deve falar mal de outros, nosso pai sempre nos dizia isso. Foi um homem maravilhoso! - Suspirou e sorriu, enquanto seu olhar se perdia na bruma de seus pensamentos. — Foi um privilégio ter vivido na mesma casa com ele e havê-lo servido, ter podido cuidar dele, e velar por que tivesse toda a atenção que um homem deve ter.

Charlotte contemplou aquela rechonchuda e branca figura com seu benévolo rosto, apenas um impreciso reflexo do de sua irmã, embora mais suave e certamente mais vulnerável. Deve ter tido pretendentes em jovem. Com certeza teria preferido aceitar algum deles antes que passar a vida atendendo às necessidades de seu pai. Se lhe tivessem dado a oportunidade. Havia pais que conservavam a suas filhas em casa como criadas permanentes, sem outra retribuição que a imprescindível para sua manutenção, e sem possibilidade de apresentar a demissão ante a carência de outros meios de subsistência. Sempre solícitas, sempre obedientes, sempre carinhosas, mas ao mesmo tempo sempre acumulando ódio em seu interior, como é próprio de todo prisioneiro. Até que era muito tarde para partir, mesmo que a morte do opressor lhes abrisse por fim as portas.

Era Angeline Worlingham uma daquelas mulheres? De fato, não o seriam as duas?

— Como o irmão de vocês. - Não havia quem detivesse a velha dama, com seus olhinhos redondos e brilhantes. Endireitou-se em seu assento. — Outro homem excelente. Uma tragédia que morresse tão jovem. Qual foi a causa?

— Mamãe! - Caroline estava horrorizada. — De verdade, parece-me que deveríamos... Oh! - Notou o seco golpe da bengala da velha dama.

— Deu-lhe soluço? - perguntou-lhe esta com doçura. — Toma um pouco mais de chá. - Voltou-se para Celeste. — Nos falava sobre o falecimento do pobre Theophilus. Que desgraça tão irreparável!

— Não sabemos qual foi a causa - disse Celeste com um calafrio. — Ao que parece, algum tipo de ataque apopléctico, mas não rtemos certeza.

— Foi a pobre Clemency a que o achou - acrescentou Angeline; — Essa foi outra das causas pelas quais eu responsabilizei ao Stephen. Às vezes é muito liberal com suas idéias. Espera muito das mulheres.

— Todos os homens esperam muito das mulheres - sentenciou a avó.

Angeline corou e olhou para o chão. Também Celeste parecia desconfortável.

Caroline voltou a ir em ajuda de sua mãe.

— Foi uma expressão mau escolhida - desculpou-a. — Certamente o que você queria dizer é que não era lógico esperar que Clemency soubesse o que tinha que fazer ao descobrir a morte de seu pai e tendo em conta que foi tão inesperada.

— Oh... isso. - Angeline se respondeu com um suspiro de alívio. — Estava há uns dias doente, mas nenhum de nós o considerou nada sério. Stephen não lhe prestou muita atenção. Claro que - franziu as sobrancelhas e desceu o tom até fazê-lo confidencial        — não tinham uma relação tão estreita como podia haver-se esperado, apesar de ser sogro e genro. Theophilus desaprovava certas idéias do Stephen.

— Todos as desaprovamos - respondeu Celeste com aspereza. — Mas eram idéias sobre temas sociais e teológicos, não sobre medicina. Stephen é um médico muito competente. Todo mundo o diz.

— A verdade é que tem muitos pacientes - acrescentou Angeline com ardor, enquanto seus gordinhos dedos brincavam com um rosário. — A jovem senhorita Lutterworth não iria a nenhum outro médico.

— Pois não me parece que Floresce Lutterworth vá a melhor - disse Celeste com ar sombrio. — Vai consultar-lhe a menor indisposição. Eu particularmente acredito que, seja qual for essa enfermidade que padece, não teria tantos mal-estares se Stephen tivesse uma verruga na ponta do nariz ou entortasse um olho.

— Ninguém sabe o que tem - sussurrou Angeline. — Me parece mais sã que uma mula. Claro que são uma família de nouveaux riches - acrescentou a modo de explicação, dirigindo-se à Caroline e à Charlotte. — Em realidade são de classe trabalhadora, por muito dinheiro que tenham. Alfred Lutterworth fez sua fortuna com as fábricas de algodão que pôs no Lancashire. Veio aqui quando as vendeu. Tenta dar-se as de cavalheiro, mas todo mundo sabe, claro.

Charlotte se sentiu irritada de forma algo ilógica, pois ao fim e ao cabo tinha crescido naquele mundo e devia haver uma época em que ela mesma pensasse de forma similar.

— Todo mundo sabe o que? - inquiriu.

— O que vai ser, porque é um comerciante enriquecido - disse Angeline surpreendida. — É evidente, querida. Educou a sua filha para que fale como uma senhorita, mas a língua não é tudo, não?

— Certamente que não - concordou Charlotte. — Há muitas mulheres que falam como senhoritas e que são qualquer outra coisa menos isso.

Angeline não captou dupla intenção alguma e se reclinou em seu assento com ar satisfeito, com um gesto de compor a saia.

— Mais chá? - perguntou ao mesmo tempo que levantava o bule de prata.

Interrompeu-as a entrada da criada, quem voltava para anunciar a visita do pároco e a senhora Clitheridge.

Celeste olhou à anciã e compreendeu que esta não tinha a menor intenção de partir.

— Por favor, faça-os entrar - pediu Celeste arqueando uma de suas espessas sobrancelhas. Não se incomodou em olhar a Angeline: estava claro que não compartilhavam o mesmo senso de humor, tinham sensibilidades muito diferentes. — E traga mais chá.

Héctor Clitheridge era corpulento e algo fofo. Seu rosto permitia supor que tinha sido bonito em sua juventude, mas agora estava quebrado por uma ansiedade e um nervosismo constantes que lhe tinham deixado profundas marcas nas faces e tinham despojado seus olhos de toda afabilidade e franqueza. Adiantou-se para expressar uma vez mais suas condolências, mas ficou parado ao achar-se com três mulheres à quem não conhecia.

Sua mulher, por outra parte, era muito natural. Certamente em sua juventude não tinha tido maiores encantos que a frescura de seu rosto e um esplêndido cabelo. Mas levava as costas sempre erguidas, e tinha expressão serena e maneiras afáveis.

Falava em um tom não usualmente baixo e agradável.

— Minha querida Celeste... Angeline. Sei que já lhes expressamos nossas condolências e devotado nossos serviços, mas o vigário considerava que devia vir uma vez mais, embora só fosse para que saibam que contam conosco de verdade. Às vezes a gente diz estas coisas por mero costume. Há pessoas que buscam a quem tem sofrido uma desgraça, coisa muito pouco cristã.

— Exatamente - concordou seu marido com alívio. — Se houver algo que possamos fazer por vocês... - Olhava alternativamente a uma e outra, como esperando uma sugestão por parte de alguma delas.

Celeste os apresentou às visitas e todos trocaram saudações.

— Que amável por sua parte - disse Clitheridge sorrindo à anciã. Suas mãos tratavam de arrumar com estupidez sua gravata mau atada, mas não fazia senão deixá-la pior.      — Não há dúvida de que é um gesto de sincera amizade, o vir em tempo de dor. Faz muito que conhece as senhoritas Worlingham? Não recordo havê-la visto antes aqui.

— Quarenta anos - respondeu a velha dama com presteza.

— Santo céu, que maravilha. Devem se ter um carinho extraordinário.

— Sim, e fazia trinta que não a víamos. - Celeste tinha acabado por perder a paciência. Por sua expressão se notava que a anciã a divertia, mas que os movimentos de mãos e o superficial bate-papo do vigário a irritavam seriamente. — Foi muito amável de sua parte vir justamente agora que sofremos tão triste perda.

Charlotte apreciou o sarcasmo e em seu duro e inteligente rosto pôde ver que não a tinham convencido nenhum dos motivos nem desculpas que lhe tinham dado.

A anciã aspirou pelo nariz afetando indignação.

— Já lhe disse que não li sobre a morte do pobre Theophilus. Se o tivesse feito pode estar certa que teria vindo então. É o menos que alguém pode fazer.

— E com ocasião da morte de papai também, não me cabe dúvida – disse Celeste com um leve sorriso. — Salvo que não o lesse tampouco...

— Oh, Celeste, não seja ridícula. - Angeline abria uns olhos dilatados. — Todo mundo se inteirou do falecimento de papai. Era um bispo, caramba, e dos mais distintos. Respeitava-o todo mundo!

Caroline fez um esforço para salvar à avó.

— Acredito que possivelmente quando alguém falece com a missão cumprida não produz o mesmo tipo de dor que quando se quebra a vida de uma pessoa jovem.

A anciã virou o corpo e a olhou, e Caroline se ruborizou levemente.

O vigário se balançava de uma perna a outra. Abriu a boca para dizer algo, mas percebeu que se tratava de uma disputa familiar e se retraiu imediatamente.

Charlotte interveio por fim.

— Eu vim porque tinha ouvido falar do magnífico trabalho realizado pela senhora Shaw em prol de melhorar a qualidade da moradia dos pobres - disse. — Alguns amigos meus a tinham na mais alta estima e consideram que se trata de uma sensível perda para toda a comunidade. Era uma mulher extraordinária.

Produziu-se um silêncio absoluto. O vigário pigarreou com nervosismo. Angeline soltou um pequeno gemido, que se apressou a sufocar levando o lenço à boca. A avozinha voltou-se em seu assento com um frufrú de tafetá e olhou a Charlotte.

— Perdão, como diz? - exclamou Celeste com voz rouca.

Charlotte notou como lhe subia o sangue às faces e teve a vaga sensação de perder pé. Era claro que o trabalho de Clemency era totalmente desconhecido para sua família, assim como para o vigário. Mas já não podia dar marcha ré. A única coisa que podia fazer era seguir adiante e esperar que tudo resultasse bem.

— Digo que era uma mulher extraordinária - repetiu com um sorriso forçado. — Seus esforços por melhorar as condições de vida dos pobres suscitavam uma grande admiração.

— Receio que suas hipóteses estão apoiadas em algum equívoco, senhora... né... Pitt - respondeu Celeste uma vez recuperado o aprumo. — Clemency não estava comprometida com nenhuma causa dessa natureza. Cumpria com seus deveres correntes, como qualquer boa cristã. Repartia a sopa aos pobres da vizinhança e lhes preparava conservas e esse tipo de coisas, quão mesmo fazemos todas. Ninguém destaca-se mais nesse aspecto que Angeline. Sempre está ocupada com algum afazer desse gênero. De fato, eu formo parte de vários comitês de ajuda às jovens que se vêem em... né... circunstâncias difíceis e perderam a reputação. Deve confundir Clemency com alguma outra pessoa...

— Certamente - acrescentou Angeline.

— Pois parece um trabalho muito virtuoso - provou a senhora Clitheridge. — E valente.

— E totalmente inapropriado, querida. -O vigário sacudiu a cabeça. — Estou certo de que Clemency não se dedicou nunca a uma coisa assim.

— E eu também. - Celeste, com suas espessas sobrancelhas ligeiramente arqueadas, fechou a questão com um frio olhar ao Charlotte. — Em qualquer caso, foi uma atenção de sua parte vir nos ver. Estou certa de que seu engano tem uma nobre explicação.

— Muito nobre - afirmou Charlotte. — Quem me informou foram a filha de um duque e um membro do Parlamento.

Celeste ficou desconcertada.

— Seriamente? Está muito bem relacionada...

— Obrigado. - Charlotte fez uma inclinação da cabeça como se aceitasse um elogio.

— Deve haver outra dama com o mesmo nome - sugeriu o vigário com tato.— Embora pareça um pouco inverossímil, que outra explicação pode haver?

— Assim é, querido. - Sua mulher lhe tocou o braço para dar sua aprovação — Parece claro. Está claro que isso é o que aconteceu.

— Em resumo, tudo isto parece bastante secundário. - A avó reivindicou seu papel principal na conversa. — Minha relação com a família, desde nossa juventude, é com vocês duas. Eu gostaria de apresentar meus respeitos no funeral, por isso agradeceria que me informassem quando vai ser.

— Oh, certamente - respondeu o vigário sem dar tempo a que o fizesse nenhuma das irmãs. — É muito amável por sua parte. Sim... celebrará-se no St. Anne, na próxima quinta-feira às duas da tarde.

— Obrigada. - A avó se tornou de repente muito amável.

Voltou a abrir-se a porta e a criada anunciou ao senhor e a senhora Hatch. A seguir entrou uma mulher de estatura similar a do Angeline e com uma semelhança considerável. O nariz era um pouco mais pronunciado e os olhos não tinham perdido seu brilho, nem o cabelo tampouco. Apreciava-se que pertencia a uma geração mais jovem, embora houvesse algo em seu porte que as assemelhava. Levava além disso o mesmo luto rigoroso.

Seu marido, que a seguia a um passo, era de meia estatura e mostrava expressão grave. Charlotte recordou-se dos retratos de jovem do Gladstone, o grande primeiro-ministro liberal. Havia a mesma firme determinação em seu fixo olhar, a mesma expressão de retidão e confiança em suas próprias convicções. Suas costeletas não eram tão frondosas nem seu nariz de tão grandes proporções, mas a impressão de semelhança era notória.

— Minha querida Prudence. - Celeste saudou a senhora Hatch com os braços abertos.

— Tia Celeste. - Prudence foi para ela e ambas se beijaram ligeiramente. Depois se voltou para sua tia Angeline, a quem beijou abraçando-a mais estreitamente e consolando-a uns segundos.

Josiah se mostrou mais formal, mas expressou suas condolências com sinceridade. De fato parecia muito aflito: estava pálido e tinha as comissuras dos lábios afundadas.

— Tudo o que está acontecendo é muito triste - disse sem olhar a ninguém em particular. — Não se vê outra coisa que corrupção e decadência por toda parte. Os jovens estão desorientados, já não sabem o que nem a quem admirar, as mulheres estão mais desprotegidas que nunca... - Sua voz expressava abatimento. — Não há mais que ver os inqualificáveis fatos do Whitechapel. Que brutalidade... que temível bestialidade. Uma verdadeira amostra do caos dos tempos atuais, tempos de anarquia: a rainha encerrada no Osbome sem preocupar-se de seus súditos, o príncipe de Gales esbanjando tempo e dinheiro no jogo e na vida dissipada, e não digamos nada do duque de Clarence. - Continuava sem olhar a ninguém e parecia ter a mente absorta em sua visão interior. Permanecia imóvel, mas desprendia uma grande força, uma sensação de poder latente-. — Não fazem mais que propagar as idéias mais ásperas e descabeladas e somos testemunhas de uma tragédia atrás de outra. O declive começou com a morte de nosso querido bispo. Que terrível perda. - Por um momento uma sombra de angústia cruzou por seu rosto, como se tivesse vislumbrado o final de uma era dourada e tudo o que tivesse que vir depois não pudesse ser outra coisa que trevas e desolação. Suas mãos, grandes, ossudas e poderosas, estavam duras. — E não há ninguém de uma estatura moral similar à sua que tenha tomado a substituição como portador da luz divina.

— Theophilus... - tentou dizer Angeline, mas guardou silêncio ante o desprezo com que o homem a olhou.

— Também foi um homem bom - disse Prudence.

— É claro que foi - concordou seu marido. — Mas não chegou à altura de seu pai, nem de longe. Não era mais que um pigmeu, em comparação. - Seu rosto denotava uma estranha mescla de dor e menosprezo, que se foi convertendo em uma apaixonada expressão, quase visionária. — O bispo foi um santo! Tinha uma sabedoria que não pode comparar-se a de nenhum de nós. Compreendia qual devia ser a ordem das coisas, tinha o dom de ver nos intuitos divinos e como devíamos viver. - Sorriu. — Quantas vezes lhe ouvi dar seus conselhos a homens e mulheres. Sempre tinha uma palavra sábia para elevar a pessoa moral e espiritualmente.

Angeline emitiu um leve suspiro e estendeu a mão em busca de seu lenço de cambraia com rendas.

— Homens, sede retos - reatou ele. — Sede honestos em todos seus atos, dirijam suas famílias, instruam a suas mulheres e a seus filhos nos ensinos de Deus. Mulheres, sede obedientes e virtuosas, sede diligentes em seus afazeres e estes serão sua coroa no céu.

Charlotte se revolveu desconfortável em seu assento. A força das emoções daquele homem era tão evidente que ela não podia ignorá-la, mas o sentimento que a impulsionava era o de lhe rebater.

— Amem a seus filhos e lhes ensinem com o exemplo - prosseguiu Hatch, sem prestar atenção à Charlotte, nem a nenhum dos outros. — Sede castas... E sobre tudo, sede devotas e fiéis a sua família. Nisso radica sua felicidade e a do mundo.

— Amém - disse Angeline com um doce sorriso e a vista para o alto, como se esperasse perceber a presença de seu pai nas alturas. — Obrigada, Josiah, uma vez mais nos recordou uma das razões e os propósitos da vida. Não sei o que faríamos sem você. Não queria ter em pouca consideração ao Theophilus, mas mais de uma vez pensei que você é o verdadeiro herdeiro espiritual de papai.

O rubor adornou as faces de Hatch e por um momento pareceram aparecer lágrimas a seus olhos.

— Obrigado, querida Angeline. Nenhum homem poderia desejar melhor elogio. Juro que estou fazendo tudo o que está em minha mão para merecê-lo.

Sorriu-lhe alvoroçada.

— E o vitral? - disse Celeste com calma e com o rosto também sorridente, ao mesmo tempo que seus olhos refletiam certo prazer. — Como vai o assunto?

— Muito bem - respondeu ele depois de aspirar ruidosamente pelo nariz e sacudir a cabeça. — Bem de verdade. É muito gratificante ver como todo mundo no Highgate, e em muitos outros lugares, deseja que lhe recorde e estão colaborando desinteresadamente. dão-se conta de que estamos vivendo uma época turbulenta, caracterizada pelas dúvidas e pelas incautas filosofias que se apresentam como portadoras de uma maior liberdade. Se não mostrarmos com toda clareza qual é o caminho correto, o caminho de Deus, muitas almas perecerão, e arrastarão com elas outras almas inocentes.

— Quanta razão tem, Josiah - apontou Celeste.

— É claro que sim - assentiu Angeline. — Ah se a tem.

— E esse vitral constituirá um influxo poderoso. - Ninguém ia deter lhe seu discurso, nem sequer com beneplácitos. — As pessoas o contemplarão e recordarão que grande homem foi o bispo Worlingham, e venerarão seus ensinamentos. Isso será um dos lucros de minha vida: perpetuar seu nome e suas boas obras.

— Todos estamos em dívida com você - disse Angeline com efusão. — A obra de papai não morrerá enquanto você viver.

— Estamos-lhe de verdade muito agradecidas - concordou Celeste. — Estou certa de que Theophilus teria dito o mesmo.

— Que perda tão terrível - disse Clitheridge desconsolado, com as faces subidas de tom.

Sua mulher lhe pôs a mão no braço e o apertou com firmeza inesperada.

No rosto do Josiah Hatch se refletiu uma expressão de confusão. Apertou os lábios e piscou várias vezes. Parecia sentir uma mescla de inveja e desaprovação repentinas.

— Eu... eu... teria esperado que Theophilus tivesse empreendido ele mesmo um projeto como este - disse arqueando as sobrancelhas. — Às vezes tenho a tentação de pensar, e realmente não posso evitá-lo, que Theophilus nunca se deu conta de quão extraordinário foi seu pai. Possivelmente estava muito perto dele para apreciar até que ponto seus pensamentos e ideais estavam acima dos de outros, e até onde chegava sua profunda sensibilidade.

Não parecia que ninguém tivesse nada que acrescentar a aquilo, por isso seguiram uns segundos de incômodo silêncio.

— Bem! - pigarreou o vigário. — Se me desculparem, nós devemos ir visitar a senhora Hardy. Que acontecimento tão triste, que difícil é saber o que dizer para que sirva de consolo. Bom dia, senhoras - inclinou-se em direção às visitantes. — Bom dia, Josiah. Vamos, Eulalia. -E agarrando a sua mulher pelo braço saiu de forma um tanto apressada ao corredor. Pouco depois ouviram fechar a porta principal.

— Que homem tão amável... que amável - disse Angeline quase como se estivesse pronunciando um conjuro. — E Lally também, claro. É um apoio para ele... e para todos.

Charlotte pensou que sem ela o vigário teria sido incapaz de fazer-se compreender, mas se absteve de dizê-lo.

— Prega uns sermões muito bons - disse Celeste. — É muito instruído, sabem? Não se transparece na conversa, mas possivelmente seja melhor assim. Não há por que afligir às pessoas com mais doutrina do que podem entender: nem consola nem ensina.

— Nada mais certo - reconheceu Prudence. — De fato, devo admitir que às vezes não sei do que está falando. Mas Josiah me assegura que tudo o que diz é muito sensato. Não é, querido?

— Assim é - respondeu ele, assentindo levemente com a cabeça, embora sem entusiasmo. — Sempre está disposto a esclarecer o que disseram os doutores em teologia, cujas obras cita com freqüência. E o faz sempre com precisão, pois tomei a liberdade de comprová-lo. - Lançou um breve olhar às três visitantes. — Tenho uma boa biblioteca, sabem? E me preocupei por ir atualizando-a com quantas publicações sirvam para iluminar e abrir a mente.

— Muito louvável. - A avó se sentia frustrada por aquele longo e forçoso silêncio.      — Imagino que Theophilus herdaria a biblioteca do bispo.

— Não - a corrigiu Celeste. — Herdei-a eu.

— Celeste transcrevia a papai todos seus sermões e notas - explicou Angeline. — E a Theophilus é claro não interessavam os livros. - Lançou um nervoso olhar ao Prudence. — Gostava mais dos quadros. Tinha muitíssimos quadros e muito bons, sabem? A maioria paisagens. Montões de vacas, rios, árvores e tudo isso. Muitoplácido.

— Que encantador - disse Caroline, sem outro objetivo que acrescentar algo à conversa. — E são óleos ou aquarelas?

— Aquarelas, acredito. Tinha um gosto excelente, pelo que me disseram. Sua coleção é muito valiosa.

Charlotte sentiu curiosidade por saber se Clemency a teria herdado, ou talvez Prudence. Mas sua família já se pusera bastante em evidencia por aquele dia. E além disso não achava que o móvel do assassinato do Clemency, que todos tinham tido a delicadeza de não mencionar, fora o dinheiro. Era mais provável que tivesse que ver com as perigosas e radicais reforma às quais com tanta paixão se entregou... e ao que parece com tanto segredo. por que não o teria contado nem sequer a suas tias ou a sua irmã? Era algo do que alguém pode sentir-se orgulhoso, e muito mais com um histórico de serviço a outros como o de seu pai.

Suas reflexões se viram truncadas pela chegada da criada para anunciar ao doutor Stephen Shaw.

Era um homem de estatura não superior à média e de constituição forte, embora não gordo. Mas o que destacava por cima de todo o resto era a vitalidade de seu rosto, que fazia com que as demais pessoas da sala parecessem compor uma gama de marrons e cinzas. Nem sequer a tragédia sofrida, que tinha deixado nele seu rastro em forma de sombras em torno dos olhos, tinha-o esvaziado de sua energia interior.

— Boa tarde, tia Celeste, tia Angeline. - Sua voz ressou com personalidade.— Josiah, Prudence. - Lhe deu um ligeiro beijo na face, mas no rosto do Hatch se refletiu um vislumbre de irritação. Havia um muito leve matiz de brincadeira nos olhos do Shaw quando este se voltou para a anciã, Caroline e Charlotte.

— A senhora Ellison - explicou Celeste para apresentar à avó.— Era uma amiga nossa há uns quarenta anos. Veio para nos dar suas condolências.

— Seriamente? - Um leve sorriso. — Pelo bispo, pelo Theophilus ou por Clemency?

— Stephen... Não deveria falar com tanta ligeireza destas coisas - lhe reprovou Celeste. — É muito inapropriado. Conseguirá que as pessoas formem uma idéia equivocada.

Sem esperar que o convidassem a fazê-lo, tomou assento na cadeira maior.

— Minha querida tia, não há nada no mundo que eu possa fazer para evitar que as pessoas formem idéias equivocadas, se for isso o que querem. - Voltou-se para a avó.      — Muita consideração por sua parte. Deve ter muitas coisas que contar... para nos pôr em dia depois de tanto tempo.

À avó não escapou nem a dupla intenção nem a ironia daquelas palavras, mas recusou dar-se por inteirada e omitiu qualquer tipo de desculpa.

— Minha nora, a senhora Caroline Ellison - disse com frieza. — E minha neta, a senhora Pitt.

— Encantado. - Shaw fez uma cortês inclinação em direção ao Caroline. Depois , ao olhar ao Charlotte, seu semblante refletiu um marcado interesse, como se tivesse visto em seu rosto algo que lhe chamasse a atenção.

— Encantado, senhora Pitt. Não acredito que você seja também uma antiga amizade das irmãs Worlingham.

Hatch abriu a boca para intervir, mas a pronta resposta de Charlotte o impediu.

— Não, a amizade data de hoje mesmo. Claro está que a ampla reputação do bispo fazia dele um homem admirado em todas partes.

— Escolhe você as palavras muito adequadamente, senhora Pitt. Equivoco-me se pensar que tampouco o conhecia você pessoalmente?

— Pois claro que não - saltou Hatch. — Nos deixou faz já dez anos... para nossa desgraça.

— O que temos que esperar é que não fosse para a sua. - Shaw sorriu à Charlotte dando as costas a seu cunhado.

— Como se atreve! - Hatch estava furioso. Tinha as faces vermelhas de ira. Permanecia ainda de pé e olhava fixamente ao Shaw. — Todos estamos mais que fartos de ouvir seus irreverentes e sarcásticos comentários. Acredita que essas tortuosas apostilas do que a você agrada chamar senso de humor lhe dão direito a dizer o que lhe dê vontade... mas está equivocado. Suas brincadeiras vão muito longe. Sua atitude anima às pessoas a tomar-se a brincadeira aquelas coisas que mais deveriam valorizar, e a pôr seu engenho a prova com elas. O fato de que seja incapaz de apreciar as virtudes do bispo Worlingham diz muito mais a respeito de sua própria infantilidade que da magnitude de sua pessoa!

— Acredito que está sendo muito severo, Josiah - disse sua mulher conciliadora.        —Stephen não pretendia insinuar nada com o que há dito.

— Pois claro que o pretendia. - Não ia ser tão fácil aplacar ao Hatch. — Sempre está fazendo comentários zombadores que pensa que são divertidos. - Elevou o tom e olhou a Celeste. — Não se incomodou em fazer nenhuma contribuição para o vitral. E para cúmulo deu seu apoio ao artigo revolucionário desse miserável do Lindsay que põe em questão os fundamentos mesmos de uma sociedade decente.

— Isso não é assim - disse Shaw. — A única coisa que faz é expressar certas idéias reformistas que advogam por uma distribuição mais eqüitativa da riqueza.

— Mais eqüitativa que o que? - interpelou Hatch. — Que nosso sistema atual? Isso equivale a derrocar o governo... De fato, à revolução, como disse.

— Equivoca-se. - Shaw estava visivelmente aborrecido e se remexeu em sua cadeira para olhar ao Hatch. — Eles acreditam em uma mudança gradual, conseguida através da legislação, para um sistema estatal de propriedade dos meios de produção de tipo coletivista, com sistemas de controle dos trabalhadores, emprego para todos, apropriação da mais-valia...

— Não entendo do que está falando, Stephen - disse Angeline.

— Nem eu - concordou Celeste. — Está falando talvez do George Bernard Shaw e desses espantosos Webb?

— Pelo que está falando é de anarquia e da total transformação e a perda irreparável de tudo o que conhece! - replicou Hatch encolerizado.

Aquilo não se limitava ao reatamento de uma velha disputa familiar. Havia em jogo profundas questões morais. E ao voltar a vista para o Shaw, Charlotte acreditou ver também nos olhos deste uma firme paixão sob sua epidérmica frivolidade. Sua personalidade estava impregnada de um senso de humor irônico que transparecia nos traços de seu rosto, mas aquilo só era o ornato exterior de um espírito apaixonado.

— Nestes tempos atuais a gente pode falar com total impunidade - disse a avó com fatalismo. — Quando eu era jovem, aos indivíduos como Bernard Shaw e o senhor Web os teriam metido no cárcere antes de que tivessem podido manifestar semelhantes ideias. Hoje, em troca, todo mundo fala deles. E essa senhora Webb, é claro, é uma despejada da boa sociedade.

— Acalme-se - lhe pediu Caroline. — Não piore as coisas.

— As coisas já estão bastante mal - respondeu a velha dama com um teatral sussurro.

— Ai, senhor. - Angeline retorcia as mãos com nervosismo enquanto olhava a seus sobrinhos por afinidade.

Charlotte tentou endireitar um pouco a situação.

— Senhor Hatch, e não lhe parece que quando as pessoas lerem as idéias que propõem esses panfletos, submeterão-as a sua consideração e, se forem de verdade malvadas ou absurdas, desprezarão-as sem mais? Ao fim e ao cabo, não é melhor que saibam a que enfrentam e assim possam dar-se conta do repulsivas e perigosas que podem ser essas idéias, que se só conhecessem-nas pelo que lhes contam outros? A verdade só pode sair beneficiada da comparação.

Hatch ficou boquiaberto. O raciocínio do Charlotte era irrefutável, mas não podia reconhecê-lo se não quisesse ficar sem argumentos frente a Shaw.

O silêncio se prolongou uns segundos. Pela rua passou uma carruagem rangente que subia Highgate Hill. Do piso de cima chegou a voz de uma jovem criada cantarolando uma canção, que calou imediatamente, presumivelmente depois de receber alguma reprimenda por sua leviandade.

— É muito jovem, senhora Pitt - disse Hatch por fim. — Receio que não se deu conta de quão débeis são algumas pessoas, da facilidade com que a cobiça, a ignorância e a inveja podem levá-las a adotar valores que para quem tenho tido a sorte de ser educados na moral são manifestamente falsos. Por desgraça – lançou um intenso e severo olhar ao Shaw, — cada vez há mais pessoas que confundem a liberdade com o licencioso e que se conduzem de uma forma completamente irresponsável. Há por aqui uma pessoa desta índole, chama-se John Dalgetty e tem uma loja de objetos vários em que vende livros e panfletos, alguns dos quais servem aos mais baixos instintos, enquanto que outros só são úteis para excitar às mentes mais inconstantes a que reflitam assuntos que estão muito acima de suas possibilidades, questões de filosofia disgregadoras tanto dos indivíduos como da sociedade.

— Josiah gostaria de pôr a cada pessoa um censor que lhe dissesse que débito e que não deve ler. - Shaw se voltou para o Charlotte com as sobrancelhas arqueadas. — Ninguém teria podido expressar uma idéia nova, nem questionar uma velha, desde que Noé se posou no monte Ararat. Não teria havido inventores nem pensadores. Não haveria provocações nem sonhos, nem nada que servisse para ampliar as fronteiras do pensamento. Ninguém poderia fazer nada que não tivesse sido feito antes. E certamente não existiria o Império britânico.

— Tolices - disse Charlotte com inconveniente franqueza, e empalideceu ante sua ousadia. A tia Vespasia podia expressar-se com aquela candura, mas ela não tinha nem o status social nem a beleza para isso. Em qualquer caso, já era tarde para retirar. — Quero dizer que é impossível fazer com que as pessoas não tenham pensamentos radicais, nem impedir que os expressem...

Shaw soltou uma risada que, até em meio de todos aqueles braçadeiras de luto e rostos lúgubres, soou jubilosa.

— Como vou discutir com você? - Não lhe era fácil controlar seu regozijo. A estadia parecia iluminada por sua presença. — Você mesma é o melhor argumento daquilo que defende. É evidente que nem sequer a presença do Josiah é capaz de impedir que você diga exatamente o que pensa.

— Lamento-o - disse, sem saber se devia sentir-se molesta, envergonhada, ou se começava a rir com ele. A avó estava ofendida, provavelmente porque Charlotte era o centro de atenção; Caroline estava mortificada; e Angeline, Celeste e Prudence estavam atônitas. Josiah Hatch se debatia entre emoções tão intensas que não se atrevia expressá-las em voz alta. — Foi uma descortesia indesculpável por minha parte - acrescentou.      — Sejam quais forem minhas opiniões, ninguém me tinha pedido isso, e de modo algum tinha que tê-las expresso com tanta exaltação.

— Não tinha que tê-las expresso de maneira nenhuma - irrompeu a avó, erguida em sua cadeira e olhando-a com severidade. — Sempre disse que seu matrimônio não ia trazer lhe nada bom... E o céu é testemunha de que já foi bastante rebelde sem necessidade de ninguém mais. Agora é um autêntico desastre. Nunca devia trazê-la.

Charlotte gostaria de lhe responder que era ela quem não deveria ter vindo, mas aquele não era o momento, e talvez nenhum outro.

Shaw foi em ajuda do Charlotte.

— Por minha parte estou encantado de que haja a trazido, senhora Ellison. Estou farto da educada mas insubstancial conversa da gente que quer te expressar sua compreensão mas que não faz mais que repetir uma e outra vez as mesmas coisas, pelo simples fato de que não tem nada mais que dizer. - Sorriu. — As palavras não podem nada em seu caso, nem servem para estender sequer uma ponte entre quem sofre e quem não. É um alívio poder falar com uma pessoa diferente.

De repente a lembrança do Somerset Carlisle e da tristeza de seu rosto surgiu de forma tão nítida na mente do Charlotte como se tivesse estado presente na sala.

— Poderia falar com você em privado, doutor Shaw?

— O que lhes parece! - murmurou Prudence assombrada.

— Bem... - Angeline movia as mãos como se quisesse afastar algo.

— Charlotte - disse Caroline com tom admonitório.

Nos lábios do Shaw se desenhou o mesmo sorriso divertido de sempre.

— Certamente. Podemos ir à biblioteca. - Olhou a Celeste. — Deixando a porta aberta - acrescentou enquanto observava o cenho franzido dela.

— Celeste esteve a ponto de emitir um protesto, mas se absteve: uma explicação em torno do que não tivesse pensado nem pretendido implicar teria sido pior que não dizer nada. Olhou ao Shaw com intensa irritação.

Ele segurou a porta para que passasse Charlotte e depois, com o queixo bem alto, seguiu-a. Como ela não tinha a menor ideia de onde dirigir-se, deixou que a conduzisse até a biblioteca, que era tão impressionante e ostentosa como o vestíbulo, com prateleiras de livros com as capas em couro marrom, bordô e verde escuro, todas elas rematadas com letras de ouro. Na parede livre de frente havia inscrições piedosas emolduradas em mogno e um grande retrato de um alto dignatario eclesiástico sobre a cornija da lareira, esculpida em mármore e com quatro pilares de quartzo suportando-a. Grande parte do tapete verde escuro estava ocupado por quatro maciças poltronas de couro que davam a toda a estadia uma sensação claustrofóbica. Uma grande estatua de bronze que representava um leão ornava a única mesa. As cortinas, semelhantes às da saleta, tinham largos cós e estavam recolhidas por grosas fitas orladas que chegavam ao chão.

— Não é uma estadia onde a gente possa sentir-se à vontade, não é? - Shaw a olhou nos olhos. — Claro que nunca deve ter sido essa a intenção. – Seus lábios se curvaram em um sorriso. — Se sente impressionada?

— Deveria? - devolveu-lhe o sorriso.

— Oh, sem dúvida. Mas você o está?

— Sinto-me impressionada pela quantidade de dinheiro que devia possuir. - Disse-o com franqueza, sem reparar nisso. Shaw era um homem cuja sinceridade exigia reciprocidade. — Todos estes livros forrados em couro. O conteúdo de cada prateleira tem que valer pelo menos cem libras. E o de toda a sala poderia manter uma família de classe média ao menos durante dois anos: comida, gás, indumentária nova para cada estação, carvão para esquentar toda a casa, rosbife aos domingos e ganso no Natal, com criada e tudo.

— Sem dúvida assim é, mas o bom bispo não o via desde esse ponto de vista. Se os livros forem a fonte do conhecimento, a exposição dos mesmos é o símbolo desse conhecimento. - Fez um leve gesto com os ombros em sinal de desagrado e se dirigiu até a cornija da lareira. Ao voltar endireitou a estatueta de bronze situada sobre a mesa.

— Não se levavam muito bem - disse Charlotte com um leve sorriso.

De novo ele a olhava sem alterar-se. Em qualquer outro homem teria lhe parecido um olhar descarado, mas aquela atitude estava de tal forma em consonância com sua natureza que só a mais presunsoça das mulheres teria podido interpretar em tal sentido.

— Estava em desacordo com ele em quase tudo. - Fez um gesto com as mãos.

— Claro que não é o que você me perguntava. Não queria enganá-la, devo me desculpar. Não, não nos levávamos bem. Há crenças que são fundamentais e que consolidam tudo o que um homem é.

— Ou uma mulher - precisou ela.

Esboçou um súbito sorriso que iluminou seu rosto. — É claro. Uma vez mais devo me desculpar. Costuma-se se pressupor que as mulheres nem sequer pensam. Surpreende-me sua observação. Deve você de freqüentar estadias muito mais insólitas. Você tem algo que ver com o inspetor Pitt que leva a investigação do incêndio?

Charlotte percebeu que Shaw não havia dito "a morte de Clemency", nem lhe passou por cima sua ligeira careta de dor junto com certa vacilação. Devia dissimular o sofrimento, mas a segunda impressão mostrava uma faceta de sua personalidade que ainda gostava mais.

— Sim, é... meu marido. - Era a primeira vez que o admitia ao envolver-se em um caso. As anteriores vezes se defendeu no anonimato para jogar com vantagem. Além disso, às mulheres dos policiais não eram recebidas em sociedade, tal como acontecia, por exemplo, com as mulheres dos comerciantes. O comércio era considerado algo vulgar, nunca se falava de assuntos de compraventa. De fato, nos círculos mais seletos não se aludia jamais à necessidade de ganhar dinheiro para viver. Presumia- se sem mais que o dinheiro provinha das terras ou dos investimentos. O trabalho era algo honrado e bom para a alma, mas quanto mais folga se tivesse, mais alto status possuía.

Ficou em silêncio uns instantes, o que nele era incomum.

— É por isso que veio, para obter mais informação sobre nós? E trouxe também a sua mãe e sua avó!

A única resposta era a verdade. Qualquer outra alternativa, por muito que tivesse tentado revestir a de sinceridade, teria se mostrado falsa e teria degradado a ambos.

— Acredito que o que impulsionou a vir a avó foi a curiosidade. Suponho que mamãe a acompanhou para que não fosse tão... embaraçosa. - Olhava-o de pé do outro lado da mesa sobre a que se erguia o leão rampante de bronze. — E eu vim porque ouvi dizer pela lady Vespasia Cumming-Gould e por Somerset Carlisle que a senhora Shaw foi uma pessoa extraordinária que dedicou muito tempo a lutar contra o poder dos proprietários de casas suburbanas e que queria mudar a legislação para que seus nomes fossem acessíveis ao conhecimento público.

Apenas um metro afastava a um do outro. Charlotte era consciente da atenção exclusiva que lhe dispensava.

— O senhor Carlisle disse que se entregava a sua causa com uma sincera paixão e generosidade total - continuou. — Que não a movia o desejo de notoriedade pessoal ou de achar um entretenimento em que ocupar-se, mas sim o fazia simplesmente porque era um problema que a preocupava. Pareceu-me que a morte de uma mulher assim não devia ficar sem resolver, assim como tampouco deviam ficar impunes as pessoas que pudessem tê-la matado com o fim de evitar o escândalo que teria podido suscitar-se por ter trazido a luz pública a miserável forma em que acumulam sua riqueza. Mas suas tias me disseram que ela nunca esteve envolvida em nenhum assunto desse tipo, assim parece um equívoco.

— Não, não se trata de nenhum equívoco - disse com voz serena, aproximando-se do fogo. — Optou por não contar a ninguém o que estava fazendo. Tinha seus motivos.

— Mas você sabia...

— Sim, claro. Ela confiava em mim. Fazia muito tempo que éramos... - hesitou em busca da palavra adequada — amigos.

Charlotte se perguntou por que teria utilizado aquela palavra. Significava que tinham sido mais que simples amigos? Ou menos? Ou ambas as coisas?

Voltou-se e a olhou, sem incomodar-se em dissimular a dor que sentia nem a natureza da mesma. Charlotte pensou então que ele tinha querido dizer "amigos" e nada mais.

— Era uma mulher extraordinária. - Usou as mesmas palavras que Charlotte.— Eu a admirava. Possuía uma valentia fora do comum. Não lhe dava medo a verdade, era capaz de olhar de frente coisas que teriam esmagado à maioria das pessoas. - Tomou ar e exalou pouco a pouco. — Deixou um vazio enorme, um espaço de bondade que já não ocupa ninguém.

Charlotte desejou tocá-lo, pôr sua mão sobre ele e lhe transmitir assim sua compreensão pelo meio mais simples e imediato. Mas tal gesto teria sido muito atrevido, poderia ter se interpretado como uma intrusão em sua intimidade, tratando-se de um homem e uma mulher que se conheceram fazia uns momentos.Só que podia fazer era permanecer onde estava e repetir as mesmas palavras que teria utilizado qualquer um.

— Sinto muito, de verdade sinto muito.

Ele passeou pela estadia outra vez. Não se incomodou em lhe agradecer, entre eles sobravam aquelas trivialidades.

— Eu gostaria que pudessem descobrir algo. - De forma maquinal, ficou a desfazer uma má dobra que faziam as cortinas e logo se voltou uma vez mais para ela. — Se posso ajudar em algo, diga-me isso e o farei.

— Direi-o.

Um afetuoso sorriso se desenhou em seus lábios.

— Obrigado. E agora voltemos a ver se Josiah e as tias estão já totalmente escandalizadas... a menos, claro, que queira me perguntar algo mais.

— Não, não, nada mais. Só desejava saber se minhas hipóteses eram errôneas, ou se havia duas pessoas com um nome tão incomum.

— Então podemos abandonar a sedução da biblioteca do bispo - olhou ao redor com um sorriso lúgubre — e voltar para os domínios da saleta de estar. Se quiser que lhe diga a verdade, senhora Pitt, deveríamos ter mantido esta conversa na estufa. É magnífica, com emparrados de ferro batido, palmeiras, samambaias e vasos de flores. E assim lhe teríamos dado maior motivo de escândalo.

Ela sorriu.

— Desfruta escandalizando, não é?

Sua expressão era uma curiosa mescla de impaciência e compaixão.

— Sou médico, senhora Pitt, e vejo cada dia uma grande quantidade de sofrimento real. Irrita-me a dor desnecessária imposta pela hipocrisia e as imaginações ociosas que não têm nada melhor que fazer que especular com o que não devem e criar dor onde não deveria havê-lo. Sim, detesto as pretensões idiotas e tento acabar com elas sempre que posso.

— Mas o que conhecem suas tias de sua vida?

— Nada - admitiu sorrindo com tristeza. — Elas se criaram aqui. Nenhuma delas abandonou nunca esta casa salvo para fazer visitas sociais ou assistir a funções recomendáveis e reuniões de caridade nas quais nunca estão diante as pessoas destinatárias de seus esforços. O velho bispo as reteve aqui depois da morte de sua mulher: a Celeste para que lhe escrevesse as cartas, para que lhe lesse, para que lhe buscasse obras de referência para seus sermões e discursos e para que lhe fizesse companhia quando tinha vontade de falar com alguém. Também sabe tocar piano, e o faz de forma estridente quando está zangada por algo, e bastante mal com certeza, mas ele não podia dizer-lhe. O bispo gostava da música como idéia, mas era indiferente a sua prática.

Apesar de estar junto à porta, sua energia interior era tal que com muita dificuldade podia contê-la.

— Angeline tomou sob seu cargo todas as necessidades domésticas de seu pai. Ela era quem levava a casa, e se dedicava a ler novelas românticas quando ninguém a via. Nunca contrataram uma governanta. Ele considerava algo próprio de uma mulher o realizar-se tendo a casa sempre a ponto para o homem, fazendo dela um remanso de paz e segurança. - Moveu as mãos, cortante. — Mantê-lo livre de todos os males e a sujeira do mundo, com sua vulgaridade e suas ambições: isso é o que Angeline fez toda sua vida. Suponho que apenas a pode culpar por não saber fazer nada mais. E ainda sou muito duro. Nem sua ignorância nem a vacuidade que demonstra às vezes são culpa dela.

— Deve ter tido pretendentes... - disse Charlotte.

Shaw soltou as cortinas de forma mecânica e se ergueu para olhá-la.

— Certamente. Mas seu pai os despedia com caixas destemperadas e se assegurava de que a chamada do dever afogasse todo o resto.

Charlotte fez uma composição em que via um mundo feito de desencanto e minúcias domésticas, de paixões reprimidas e confusas sufocadas para sempre por meio de palavras piedosas e da pressão da ignorância, do medo e da culpa. O dever sempre vencia ao final. Algo que as irmãs Worlingham fizessem para ter a mente ocupada e justificar os áridos anos de suas vidas era para lhes ter lástima, não para acrescentar mais razão a sua culpa.

— Acredito que eu tampouco teria tido em grande estima ao bispo – disse Charlotte com um sorriso tenso. — Embora suponha que é como muitos outros. Sem dúvida não são as únicas irmãs que empregaram assim suas vidas, com seu pai ou sua mãe. Conheci algumas.

— E eu.

Talvez a conversa teria prosseguido se não tivesse aparecido Caroline e a avó na porta da saleta e ter visto o outro lado do vestíbulo.

— Ah, que bom - disse Caroline. — Já está preparada para partir. Precisamente estávamos nos despedindo das senhoritas Worlingham. O senhor e a senhora Hatch se foram já. - Olhou para Shaw. — Queríamos lhe expressar também a você nossas condolências, doutor Shaw, e lhe pedir que nos desculpasse pela inoportunidade de nos haver apresentado em uma reunião familiar. Foi muito amável. Vamos, Charlotte.

— Boa tarde, doutor Shaw. - Charlotte estendeu a mão e ele a segurou até que ela sentiu o calor da dele através da luva.

— Obrigado por ter vindo, senhora Pitt. Espero que voltemos a nos ver. Que tenha um bom dia.

— Talvez devesse ir dizer adeus a... - Charlotte olhou para a porta da saleta.

— Nada disso! - prorrompeu a anciã. — Já dissemos tudo o que era preciso. É hora de ir. - E saiu com marcialidade pela porta principal, que um criado segurava aberta.

— E então? - inquiriu a velha dama uma vez que estiveram na carruagem.

— Perdão? - Charlotte fingiu incompreensão.

— O que perguntou ao Shaw? E o que lhe respondeu ele, garotinha? Não se faça de idiota comigo. Pode ser que seja um pouco obstinada e que não lhe sobre precisamente sutileza, mas tampouco lhe falta entendimento. O que lhe disse esse homem?

— Que Clemency era exatamente a pessoa que eu achava. Mas que sempre preferiu que seu trabalho em favor dos pobres fosse um assunto privado, à margem inclusive da família. Também me disse que se sentirá muito agradecido se me inteiro de algo a respeito de quem a matou.

— Ah, sim? - disse a anciã em tom dúbio. — Pois tomou um tempo bastante longo para dizer tão poucas coisas. Não estranharia que o tivesse feito ele mesmo. Há muito dinheiro em jogo nessa família, sabia? E a parte do Theophilus, o único filho varão, tinha passado a suas filhas em partes iguais. Shaw é o único beneficiário da herança de Clemency. - Arrumou a saia com cuidado. — E de acordo com Celeste, nem sequer isso lhe basta. Tem o olho posto nessa jovenzinha, Floresce Lutterworth, que não se comporta tão bem como devia, sempre atrás dele para vê-lo em privado sabe Deus quantas vezes ao mês. Seu pai está furioso. Tem grandes ambições para ela, e certamente espera algo mais que um médico viúvo que a dobra em idade e que não conta com um patrimônio próprio. Caroline, por favor, vá um pouco mais à esquerda, que não me deixa lugar. Obrigada. - Acomodou-se por fim. — Não terá que ser muito esperto para dar-se conta de que estão brigados por esse motivo. E eu diria que a senhora Clitheridge falou com ela em plano maternal. Isso faz parte dos deveres do vigário, o cuidar do bem-estar moral de seu rebanho.

— O que a faz pensar isso? - perguntou Caroline com cenho franzido.

— Pelo amor de Deus, use o entendimento! - A anciã a olhou com olhos ferozes.    — Já ouviu como diziam que Lally Clitheridge e Flora Lutterworth tinham tido uma pequena e desagradável briga, depois da qual mal se dirigiam a palavra. Com certeza o motivo era ele... qualquer um poderia deduzir sem necessidade de ser um detetive. - Olhou a Charlotte com um brilho. — Não... Seu amigo doutor tinha todas as razões do mundo para haver-se desfeito de sua esposa... e não há dúvida de que assim o fez. Recorda minhas palavras.

 

Charlotte estava horrorizada ante a idéia de que a avozinha assistisse ao funeral de Clemency Shaw, mas por muito que lhe desse voltas, não lhe ocorria como impedi-la. Na seguinte vez que foi visitá-las experimnetou sugerir que, nas trágicas circunstâncias em que se achava a família, talvez o melhor era deixar que levassem o assunto na mais completa intimidade. A velha dama despachou a idéia sem mais.

— Não diga disparates, menina. - Olhou Charlotte baixando os olhos, o que era toda uma façanha, tendo em conta que era mais baixa que Charlotte, mesmo que estivessem ambas sentadas. A conversa tinha lugar na saleta de estar, junto à lareira. — Às vezes me desespera sua falta de inteligência - acrescentou para acabar de consegui-lo. — Há ocasiões em que parece que não tenha nem pingo. Todo mundo vai estar ali. De verdade acredita que a gente vai desperdiçar uma ocasião assim para fofocar de um desastre doméstico e fazer todo tipo de especulações desagradáveis? É o momento adequado para que seus amigos ponham uma cara bem longa e demonstrem a todo mundo que estão com você e lhe apóiam na desgraça, e que o consideram inocente do ocorrido... de todo o ocorrido.

Era um argumento tão ridículo que Charlotte não se incomodou em replicar. Não teria servido nada, a não ser para transtornar o humor da avó, sempre disposto a azedar-se.

Emily não foi, para seu pesar. E por muito que tivesse gostado de assistir, devia reconhecer que se o fizesse era por mera curiosidade, o que lhe parecia pouco decoroso. Quanto mais pensava em Clemency Shaw, mais decidida estava a fazer tudo o que pudesse para que sua obra tivesse continuidade e que isso fosse o melhor tributo que pudesse lhe render. E não ia danificar o por ceder a um capricho desnecessário.

O que fez foi emprestar à Charlotte um vestido negro. Era da temporada anterior, claro, mas nem por isso menos precioso. Era de veludo negro e estava adornado com um desenho de folhas e samambaias bordadas nas lapelas da jaqueta e com o passar da prega da saia. Nas costas figurava costurado o nome do fabricante, Maison Worth, o mais na moda da Europa.

Bendita Emily!

E também lhe deixou que levasse sua carruagem, para que Charlotte não se visse na alternativa de alugar uma ou de ir em ônibus ao Cater Street para reunir-se com Caroline e a avó.

Acabava de contar ao Pitt as últimas e escassas informações que tinha e as amplas embora gerais impressões que lhe tinha suscitado sua última visita.

Pitt estava sentado na poltrona junto à lareira da sala de estar, com os pés estirados sobre a grade e olhando através dos olhos semicerrados as chamas da lareira.

— Vou ao funeral - concluiu, em um tom que, apesar de ser uma asseveração, deixava a ele possibilidade para manifestar um eventual desacordo, embora não porque pensasse de verdade que pudesse existir, mas sim por mera questão de diplomacia conjugal.

Ele levantou a vista e a olhou com uns olhos que a ela, à luz do fogo, pareceram-lhe brilhantes. Aquela expressão de tolerância apontava inclusive para uma curiosidade cúmplice.

— Em alguns aspectos, estarei em melhor posição que a sua para poder observar - continuou Charlotte. — Na realidade, para a maior parte dos assistentes só serei uma mais no funeral. Suporão que estou ali para chorar a defunta, coisa que, quanto mais sei de Clemency Shaw, mais certa é. Recorda que quem lhe conhece pensarão na polícia e recordarão que foi um assassinato, e que estão ante um fato que supera com muito o meramente desagradável, pois é uma verdadeira tragédia.

— Não precisa me convencer de nada - disse Pitt com um sorriso, e Charlotte se deu conta de que ria dela.

Se reclinou no assento e estirou o pé até tocar o dele com a ponta dos dedos.

— Obrigada.

— Tome cuidado. Recorda-o: não é um funeral qualquer. Trata-se de um assassinato.

— Terei-o em conta. Emily me deixa sua carruagem.

Ele sorriu.

— Não esperava menos.

Charlotte não foi nem a primeira a chegar. Ao apear com a ajuda do criado de Emily, viu Josiah e Prudence Hatch diante dela, enquanto cruzavam a grade e se dirigiam para a entrada da reitoria. Os dois iam vestidos de negro, como cabia esperar, Josiah com o chapéu na mão enquanto o frio vento lhe encrespava o cabelo. Caminhavam um junto a outro, olhando à frente e com as costas muito erguidas. Apesar de vê-los de costas, Charlotte diria que tinham tido alguma disputa e que cada um se isolou com sua própria ira.

Diante deles, Charlotte viu passar pela porta Alfred Lutterworth, só. Ou Flora não assistia, ou vinha acompanhada por outra pessoa. Para Charlotte o fato pareceu incomum. Já trataria de averiguar a causa, com toda a discrição possível.

Na porta a recebeu um padre jovem, com um pouco menos de trinta anos, magro, com traços bem comuns, mas com um interesse e uma preocupação no rosto que Charlotte tomou-lhe afeto imediatamente.

— Bom dia, senhora. - Falava de forma pausada, mas sem o sonsonete reverencial que ela considerava mais uma fachada que uma expressão de sinceridade. — Onde deseja sentar-se? Vem sozinha ou espera a alguém mais?

Charlotte esteve a ponto de dizer que ia sozinha, mas resistiu à tentação.

— Espero a minha mãe e minha avó...

Ele se dispôs a acompanhá-la.

— Então talvez parecerá bem esse banco daí à direita? Conhecia intimamente à senhora Shaw? - A inocência de suas maneiras e sua expressão aflita impediam de tomar a mal aquela pergunta.

— Não - respondeu ela. — Conhecia-a só de ouvir, mas tudo o que dizem dela não faz senão acrescentar minha admiração. - Viu seu olhar de assombro e se apressou a dar uma explicação, que surpreendeu por pormenorizada. — Meu marido é o encarregado da investigação do incêndio. O caso foi interessando e me inteirei por um membro do Parlamento que a senhora Shaw realizava um grande trabalho contra a exploração dos pobres. Era muito modesta com respeito a seu trabalho, mas demonstrava uma grande piedade e uma enorme valentia. Vim para render meus respeitos... - Calou ao ver a confusão no rosto do sacerdote. Parecia mais preso da aflição que qualquer das tias de Clemency, ou que sua irmã, na tarde que Charlotte as tinha visitado, dois dias antes.

Ele dominou com dificuldade seus sentimentos, embora não se desculpou por isso, o que fez que ainda gostasse mais. Por que tinha um que desculpar-se por entristecer-se em um funeral? Acompanhou-a em silencio até o banco, olhou-a nos olhos de uma forma significativa e se voltou para a entrada, com a cabeça alta.

Chegou bem a tempo de receber ao Somerset Carlisle, que parecia um pouco cansado e abatido, e a Vespasia, quem ia toda de negro com penas de águia no chapéu, inclinadas em um ângulo perfeito. O vestido que levava era de seda e renda, com um corte que ponderava tanto sua altura como a elegância de seu porte. Era assimétrico, tal como exigia a última moda. Levava um bengala de marfim com cabo de prata, mas sem apoiar-se nela. Falou brevemente com o padre, a quem explicou quem era mas não os motivos pelos que assistia, e logo se afastou dele com grande dignidade, tirou uns óculos e ficou a observar a nave da igreja. Demorou uns segundos em ver o Charlotte. Agarrou ao Somerset Carlisle pelo braço e lhe ordenou que a acompanhasse ao banco do Charlotte, o que impediu que Caroline e a avó se sentassem junto a ela quando chegaram ao cabo de um momento.

Charlotte não tentou dar maior explicação. Limitou-se a sorrir com doçura e depois inclinou a cabeça em uma atitude de prece, com o fim de dissimular seu sorriso.

Ao cabo de uns minutos voltou a levantar os olhos e viu justo em frente dela a branca cabeça de Amos Lindsay, e Stephen Shaw sentado junto a ele. Charlotte mal podia imaginar o torvelinho de emoções que deviam atacá-lo ao ver a agitada figura de Héctor Clitheridge batendo as asas como um pássaro ferido. Sua mulher estava sentada na primeira fila, com um bonito vestido negro, tratando de tranqüilizá-lo, alternando sorrisos com olhares convenientemente sérios. No órgão soava uma música lenta, fosse porque o organista o considerasse o tempo adequado a um funeral, fosse porque não encontrava as notas com a suficiente solvência. O resultado dava certa sensação de insegurança e falta de ritmo.

Os bancos foram enchendo-se. Quinton Pascoe percorreu o corredor até achar um assento o mais afastado possível do John Dalgetty e sua mulher. Entre o bosque de vários chapéus negros e adornos mais variados, Charlotte não pôde ver nenhum que lhe parecesse o de Celeste ou Angeline Worlingham.

O órgão mudou de forma abrupta e começou o serviço religioso. Clitheridge estava muito nervoso. Sua voz se afogava em falsetes uma e outra vez. Perdeu-se duas vezes em passagens com as quais sem dúvida estava familiarizado e titubeou em seu afã por repeti-los bem, com o que só conseguiu fazer mais patente seu engano. Charlotte, que sofria ao vê-lo, ouviu tia Vespasia suspirar com exasperação. Somerset Carlisle se cobriu o rosto com as mãos, mas Charlotte não soube se estaria pensando em Clemency ou no vigário.

Charlotte se deu conta de que ela também perdia a atenção. Era provavelmente o melhor que podia fazer. Clitheridge era insuportável e o padre jovem estava tão aflito por uma sincera piedade que lhe era muito doloroso olhá-lo. Optou por deixar vagar a vista pela decoração de pedra e as placas com os nomes das personalidades há longo tempo falecidas, até que afinal, recordando súbitamente a conversa em casa dos Worlingham, reparou no famoso vitral onde se apreciava já quase completa a figura do finado bispo representado como Jeremias, rodeado de outros patriarcas e rematado por um anjo. Reconheceu o bispo com facilidade. O rosto não estava bem definido, mas os espessos cachos de cabelo branco que pareciam formar uma auréola no vidro eram exatamente como os do retrato que tinha visto no vestíbulo da casa familiar. Era uma comemoração certamente formosa que devia ter custado uma soma considerável. Não era de estranhar que Josiah Hatch se sentisse tão orgulhoso.

Por fim concluiu a parte formal da cerimônia e ouviu pronunciar, com alívio, o amém final. Os ongregados ficaram em pé para acompanhar o féretro ao pequeno cemitério da igreja, onde se agruparam em metade do rude vento do oeste enquanto se dava sepultura ao corpo.

Charlotte teve um estremecimento e se aproximou um pouco mais à tia Vespasia até ficar a uns centímetros atrás dela. Deste modo se protegia de umas rajadas de vento que, se não estivesse o céu tão espaçoso, com certeza teriam trazido neve. Ficou contemplando a tumba aberta, à beira da qual estava Clitheridge, com a batina ao vento lhe açoitando os tornozelos. Seu rosto refletia sobressalto e temor. A alguns metros estava Alfred Lutterworth, bem plantado sobre suas robustas pernas sem reparar no frio, com um semblante sombrio e reflexivo. Continuando, a uns passos de distância, Stephen Shaw aparecia imbuído de uma impenetrável combinação de ira e dor da qual resultava uma emoção tão profunda que ninguém teria ousado violar. Amos Lindsay permanecia junto a ele em silêncio.

Josiah Hatch se encarregava de dirigir os portadores do féretro. Era coroinha e estava acostumado a essas responsabilidades. Sua expressão era severa, mas cumpria com seu encargo de forma meticulosa, sem omitir nenhuma palavra nem um movimento cerimonioso. Ele fazia tudo com uma exatidão que honrava à falecida e preservava a importância da litania e a tradição da Igreja.

Clitheridge estava visivelmente aliviado de que houvesse alguém mais que se encarregasse da cerimônia, embora fosse de uma maneira um pouco pomposa. Só o padre jovem parecia desconforme. Seus angulosos traços e sua longa boca refletiam certa impaciência que não faziam senão aumentar sua aparente dor.

Charlotte tinha acertado em pleno. Havia umas cinqüenta pessoas, a maioria homens, entre as quais, definitivamente, não se contavam Angeline nem Celeste Worlingham. Nem Flora Lutterworth.

— Por que não terão vindo as Worlingham? - sussurrou a tia Vespasia quando esta se voltou por fim, à beira do congelamento, e se encaminhou para as carruagens para realizar o breve trajeto até o lugar onde devia celebrar o banquete fúnebre. Não tinha recebido um convite expresso, mas tinha toda a intenção de ir. Passaram junto a Pitt, de pé junto à grade de entrada, tão discreto como se tivesse sido invisível. Podia ter passado por um dos portadores do féretro ou por um empregado da funerária, a não ser por levar as luvas desemparelhadas, um dos bolsos do casaco se avultando de forma visível e usando botas marrons.

Charlotte lhe dedicou um fugaz sorriso ao passar e lhe devolveu um olhar afetuoso, e depois continuou para a carruagem.

— Eu diria que para o bispo não lhe pareceria aconselhável – respondeu Vespasia. — Há muita gente que pensa assim. É uma completa estupidez, claro. As mulheres são tão fortes como os homens na hora de enfrentar uma tragédia e com as fraquezas de nossa carne corruptivel. Em realidade, em muitos casos são mais fortes. Tem que ser assim, do contrário nenhuma de nós teríamos tido mais de um filho nem se ocuparia jamais dos doentes!

— Mas se o bispo está morto - indicou Charlotte. — E há dez anos.

— Querida, pelo que respeita a suas filhas, o bispo nunca morrerá. Viveram sob seu teto durante mais de quarenta anos e obedeceram a todas e cada uma das normas de conduta que ele estabelecia para elas. E tenho certeza de que tinha opiniões muito precisas a respeito de tudo. É de acreditar que não irão romper agora com o costume, muito menos em um momento de aflição, quando mais se necessita agarrar-se ao que lhe é mais familiar.

— Oh... - Charlotte não tinha pensado nisso, mas agora foram a sua mente lembranças de outras famílias em que se considerava que um funeral era uma prova muito dura para uma sensibilidade delicada. Os desmaios e desvanecimentos podiam ser uma perturbação para a solenidade devida aos mortos. — E também por isso Flora Lutterworth tampouco está aqui? - Isso lhe parecia mais duvidoso, embora não impossível. Alfred Lutterworth cuidava muito do protocolo, e todos esses escrúpulos podiam ser considerados próprios de pessoas de boa condição.

— Suponho que sim - respondeu Vespasia com um leve sorriso.

Tinham chegado às carruagens. Caroline e a avó foram atrás delas. Charlotte olhou por cima do ombro e viu Caroline falando com o Josiah Hatch com expressão concentrada, enquanto que a avó a olhava a ela com olhos que lançavam fogo.

— Quer esperá-las? - perguntou-lhe Vespasia arqueando suas prateadas sobrancelhas.

— Certamente que não! - Charlotte moveu o braço com um gesto imperioso e o cocheiro de Emily pôs em movimento os cavalos. — Já levam sua própria bagagem. - Dizer aquilo lhe proporcionou um regozijo infantil. — Seguirei-a. Suponho que as irmãs Worlingham assistirão a um evento como o banquete fúnebre.

— Com certeza que sim. - Vespasia sorria sem dissimulação. — Esse é justamente o evento social. Isto não foi mais que o preâmbulo necessário.

E aceitou a mão que lhe oferecia seu criado e se apoiou no degrau para subir à carruagem, depois de haver dado uma moeda de meio penny a um varredor de rua, um menino que não teria mais de dez ou onze anos. O pequeno lhe agradeceu e se foi com sua vassoura para outro montoncito de esterco de cavalo. A portinhola se fechou atrás dela e ao cabo de um momento a carruagem partiu.

Charlotte fez o mesmo.

Ambas desceram diante da imponente e já familiar casa dos Worlingham, cujas persianas estavam baixadas e as braçadeiras de luto negras ondeavam na porta. Na estrada tinham espalhado uma grande quantidade de palha para amortecer o estrépito dos cavalos, algo muito pouco respeitoso com os mortos, por isso quando o cocheiro levou a carruagem ao ponto de espera, as rodas deslizaram sem ruído.

Dentro tudo estava preparado até o último detalhe. A ampla sala de refeições estava enfeitada com tal quantidade de braçadeiras de luto negras que parecia que por ali tinha passado uma enorme aranha a qual chamuscara o tecido. Em cima da mesa, em um vaso de porcelana, havia um grande ramo de lírios brancos cujo custo teria bastado para alimentar durante uma semana a uma família inteira. A mesa estava disposta com magnificência: carnes ao forno, sanduiches, frutas e confeitaria, garrafas de vinho, com a conveniente quantidade de pó da adega e as devidas etiquetas para satisfazer ao mais exigente provador. Alguns dos Portos eram muito antigos. O bispo devia tê-los esquecido na adega em seus bons anos.

Celeste e Angeline estavam sentadas uma junto a outra, vestidas ambas com bombasina negra. O vestido de Celeste estava cravado com contas azeviche e pela parte de frente lhe caía uma franja de veludo presa às anquinhas.

Puxava-lhe um pouco à altura do peito. O vestido de Angeline estava coberto sobre os ombros com uma grosa mantilha de renda negra, segura com um alfinete azeviche de diminutas pérolas que constituía um broche de luto muito tradicional. O desenho da renda se repetia à altura do ventre e por debaixo das anquinhas de bombasina. Só os mais exigentes podiam perceber que a disposição das dobras seguia a moda do ano anterior. À altura do peito ficava ainda mais apertada. Charlotte supôs que era o mesmo traje que teriam usado no funeral do Theophilus, e talvez também no do bispo. Um modista despachado poderia ter feito um bom negócio, embora, observando-as bem, às irmãs Worlingham, como a tanta gente de dinheiro, pareciam gostar da economia.

Celeste saudou-as com solenidade, igual a uma duquesa recebendo a suas visitas, com as costas erguidas, a cabeça ligeiramente inclinada e repetindo os nomes de cada pessoa como se tivessem uma importância capital. Angeline segurava um lenço de renda com o qual esfregava a face de vez em quando, e se limitava a repetir as últimas duas palavras de todas as frases que dizia sua irmã.

— Boa tarde, senhora Pitt. - Celeste moveu a mão como consideração a uma amizade bem longínqua e de classe não identificável.

— Senhora Pitt - repetiu Angeline com um hesitante sorriso.

— Uma grande atenção de sua parte o dever de expressar suas condolências.

— Uma grande atenção. - Desta vez Angeline escolheu as primeiras palavras da frase.

— Lady Vespasia Cumming-Gould. - Celeste ficou perplexa. — O que... que generosidade de sua parte ter vindo. Estou certa de que nosso finado pai se teria sentido muito emocionado.

— Muito emocionado - acrescentou Angeline com ardor.

— Não teria havido motivo - respondeu Vespasia com um frio sorriso e olhar inalterável. — Vim exclusivamente para honrar Clemency Shaw. Foi uma mulher excepcional, que se destacou por sua valentia e sua grande consciência pelo o próximo... uma combinação nada habitual. Sinto-me muito aflita por sua perda.

Celeste tinha ficado sem fala. Não sabia nada de Clemency que justificasse tão extraordinários louvores.

— Oh! - Angeline emitiu uma pequena exclamação e apertou o lenço, que levou a face para enxugar uma lágrima que tinha começado a cair por sua ruborizada face. — Pobre Clemency - sussurrou.

Vespasia não quis entreter-se em mais trivialidades que só teriam sido penosas e se dirigiu para a sala de jantar. Somerset Carlisle, que entrou a seguir, estava tão habituado a expressar-se com meias palavras de deliciosa cortesia, que não teve problema em murmurar algo amável mas carente de sentido, e seguiu às duas mulheres.

Na sala de jantar havia umas trinta pessoas. Charlotte reconheceu algumas de sua breve visita anterior a casa dos Worlingham. De outras, como tinha feito na igreja, deduziu sua identidade a partir das descrições do Pitt.

Ficou olhando a mesa, fingindo estar absorta em admirada contemplação, quando entraram Caroline e a avó. Esta, carrancuda, brandia o bengala enquanto caminhava com considerável perigo para todo aquele que se interpusesse. Não é que desejasse particularmente ter Charlotte com ela, mas estava furiosa por entrar na fila. Era uma falta de respeito que lhe deviam.

Era uma estadia espaçosa e mobiliada com bom gosto. As janelas eram grandes, com cortinados ornamentados. Havia uma lareira de mármore escuro, uma despensa de carvalho, uma mesa de servir e um aparador com um serviço de chá Crown Derby - de tons vermelhos, azuis e dourados - disposto para ser admirado.

A mesa principal era de uma elegância deliciosa. Os cristais tinham um brasão gravado em uma lateral de cada taça; o faqueiro de prata, polida de tal modo que refletia todas e cada uma das luzes do lustre do teto, levava também gravado como monograma um ornamental W gótico; e o jogo de mesa tinha bordados em branco ambos os motivos, brasão e monograma. As bandejas do serviço de porcelana eram azuis debruadas de ouro do Minton; Charlotte reconheceu o modelo pelos pequenos ensinamentos que estava acostumado a lhe dispensar sua mãe, nos passados dias em que o papel que desempenhava requeria de tais conhecimentos para ser considerada uma mulher de boa condição.

— Nunca se dignaram tirar todo este serviço quando ela vivia - disse Shaw quase ao ouvido. — Claro que, Deus nos livre, nunca tivemos a toda vizinhança sentada à mesa.

— Muitas vezes fazer algo que requer um esforço especial nos ajuda a agüentar a dor - respondeu Charlotte. — Embora incorramos talvez em um pequeno excesso. Nem todos temos os mesmos recursos para superar as desgraças.

— Que forma de pensar tão caridosa - disse ele com uma careta. — Se não a conhecesse, e não a tivesse ouvido expressar-se com tão entristecedora franqueza, poderia chegar a me ser suspeita de hipocrisia.

— Em tal caso incorreria em injustiça comigo - respondeu ela. — Minha forma de pensar corresponde com ao que disse. Se tivesse desejado ser crítica, teria podido escolher entre vários tipos de comentários, entre os que não se encontra o fiz feito.

— Oh! - Arqueou suas loiras sobrancelhas. — E qual teria escolhido? - Seus olhos se iluminaram divertidos. — Caso desejasse ser crítica, claro está.

— Se desejar sê-lo, e ainda continua interessado, o farei saber - replicou ela.

Então, recordando que ele era a pessoa mais aflita por todas as pressentes e que não queria lhe parecer descortês, nem sequer em uma conversa tão trivial, aproximou-se e lhe sussurrou: — O vestido de Celeste fica um pouco apertado, tinham que ter soltado um pouco na cava. O cavalheiro que tomei pelo senhor Dalgetty necessita um corte de cabelo, e a senhora Hatch leva as luvas desemparelhadas, razão provável pela qual tirou uma e a leva na mão.

Respondeu-lhe com um largo sorriso.

— Que agudos dotes de observação! Adquiriu-os por estar casada com um policial ou são naturais?

— Acredito que vão com a condição de mulher. Quando estava solteira tinha tão poucas coisas que fazer que o observar às pessoas ocupava uma parte muito importante do dia. É mais divertido que bordar ou pintar más aquarelas.

— Eu pensava que as mulheres passavam o tempo fofocando e fazendo obras de caridade - respondeu ele em voz baixa com uma ironia nos olhos que não mascarava sua dor, mas sim contrastava com o mesmo até o ponto de fazê-lo parecer um homem cheio de vida e intensamente vulnerável.

— E assim é. Mas para isso deve-se ter algo do que fofocar, se se tratar de divertir-se um pouco. E fazer obras de caridade é terrível, porque se fazem com uma atitude tão condescendente que servem mais para justificar-se a si mesmo que para beneficiar a alguém mais. Teria que estar muito desesperada para que ante a visita de uma dama da sociedade com uma jarrinha de mel nas mãos não tivesse vontade de pô-la pelo chapéu... coisa que é claro não me atreveria a fazer jamais.

— Estava exagerando, mas o sorriso dele a recompensou com acréscimo.

Antes que ele pudesse responder, a atenção de ambos se dirigiu para Celeste, que, apenas a uns passos deles, seguia representando seu papel de grande duquesa. Alfred Lutterworth permanecia diante dela com Floresce a seu lado. Celeste parecia lhes haver negado a saudação. Tinha olhado-os nos olhos e lhes tinha feito um gesto de que passassem rápido, como se fossem criados com quem não tinha que falar. As faces do Lutterworth se ruborizaram e por um momento Floresce pareceu que ia pôr-se a chorar.

— Maldita mulher! - resmungou Shaw, para acrescentar a seguir um qualificativo procedente do mundo animal muito pouco amável para o animal em questão. Sem desculpar-se ante o Charlotte, dirigiu-se para o lugar da cena.

— Boa tarde, Lutterworth - disse em voz alta. — Me alegro de vê-lo e aprecio sua visita. Boa tarde, senhorita Lutterworth. Obrigado por ter vindo... em circunstâncias que não são as melhores, salvo quando existe verdadeira amizade.

Flora sorriu insegura, mas percebeu a franqueza com que a olhava Shaw e recuperou a compostura.

— Não poderíamos deixar de vir, doutor Shaw. Sentimo-lo muito por você.

Shaw fez um gesto para Charlotte.

— Conhecem a senhora Pitt? - Apresentou-os e trocaram os formalismos de rigor. A tensão desapareceu, mas Celeste, que, assim como todos os presentes naquela metade da estadia, não tinha podido deixar de ouvir as saudações, apertou os lábios e fez cara contraída. Shaw não lhe fez caso e prosseguiu em voz alta uma conversa trivial em que recrutou Charlotte como aliada, quisesse-o ela ou não.

Ao cabo de dez minutos tanto o grupo como a conversa tinham mudado.

Caroline e a avó se uniram a eles e Charlotte escutava a uma mulher extraordinariamente bela, de uns quarenta e tantos anos, de magníficos olhos escuros, que levava seu brilhante cabelo recolhido em um alto penteado à última moda e um chapéu negro que dois anos atrás seria uma autêntica ousadia.

Seu rosto estava começando a perder o viço da juventude, mas seguia conservando a suficiente beleza para que várias pessoas a olhassem mais de uma vez, embora se tratasse de uma classe de beleza mais próprio de climas mais quentes que de que sofriam os ingleses... sobre tudo os ingleses criados nos refinados jardins do Highgate. Tinha sido apresentada como Maude Dalgetty e, quanto mais a ouvia falar, mais gostava Charlotte. Parecia uma mulher muito em paz consigo mesma para guardar qualquer tipo de malícia pelos outros e em seus comentários não se apreciava a menor pua de crueldade ou frivolidade.

Charlotte se surpreendeu ao ver que Josiah Hatch se unia a eles e lhe pareceu, pela adoçada expressão de seu severo semblante, que a tinha em certa estima.

Olhou ao Charlotte com escasso interesse, mas mesmo assim não lhe pareceu um olhar isento de crítica. Era evidente que suspeitava que sua presença ali ou obedecia à mera curiosidade, o que considerava intolerável, ou a sua amizade com o Shaw, o que se sentia inclinado a desaprovar. Em qualquer caso, quando se voltou para Maude Dalgetty a tensão de seu corpo se suavizou.

— Senhora Dalgetty, quanto me agrada que tenha podido vir. -Tratou de achar algo mais que acrescentar, talvez algum comentário mais pessoal, mas não conseguiu .

— Como não, senhor Hatch. - Lhe sorriu e Hatch se distendeu ainda mais até o ponto de esboçar um leve sorriso. — Eu queria muito a Clemency. Era uma das mulheres melhores que conheci.

Hatch empalideceu de novo.

— Certamente - disse de passagem, antes de esclarecer a voz com um sonoro pigarro. — Havia muitas coisas pelas quais elogiá-la... era uma mulher virtuosa, jamais desonesta nem negligente com seus deveres, e sempre tomava tudo com bom aspecto. É uma grande tragédia que sua vida tenha sido... - Seu rosto adotou de novo um aspecto severo e lançou um olhar por cima da mesa em direção à loira cabeça do Shaw, a quem se via inclinar-se um pouco para uma robusta mulher que levava um chapéu diminuto. — Que sua vida tenha sido malograda em tantos sentidos. Ainda restava muito caminho... - Deixou o comentário inconcluso, com a ambigüidade de se se referia à longevidade do Shaw ou a de Clemency.

Maude Dalgetty optou por sua própria interpretação.

— Sim o é - concordou com um gesto. — Pobre doutor Shaw. Deve ser terrível para ele, mas não me ocorre que mais podemos fazer para ajudá-lo. Alguém se sente mal vendo a dor e sendo incapaz de oferecer algum consolo.

— Sua compaixão a honra. Mas não se entristeça muito por ele. Não o merece. - Seu corpo recuperou sua rigidez habitual. Os ombros, sob o casaco, pareciam querer romper as costuras. — Há certos traços de sua personalidade que seria inapropriado mencionar diante de si, minha querida senhora, mas lhe asseguro que falo com conhecimento de causa. -Tremeu-lhe um pouco a voz, embora não ficasse claro se por cansaço ou por emoção. — Fala da forma mais ridícula e ofensiva de tudo aquilo que merece uma maior veneração em nossa sociedade. Asseguro-lhe que seria capaz de propagar as maiores calunia sobre os melhores de nós, e para mencionar a alguém, seu marido. Deveria acautelá-lo. - Dirigiu ao Maude um olhar significativo. — Como você bem sabe, estou em desacordo com todos os princípios de seu marido, pelo que respeita a suas publicações. Mas estou com ele na defesa do bom nome de uma dama...

Maude Dalgetty arqueou surpreendida suas finas sobrancelhas.

— O bom nome de uma dama! Valha-me Deus, o doutor Shaw esteve falando mal de alguém? Surpreende-me você.

— Isso é porque não o conhece. - Hatch ia avivando-se. — E porque sua mente é muito bondosa para imaginar maldade nas pessoas a menos que a demonstrem diante de seus olhos. -Tinha as faces coradas . — Mas eu soube pô-lo no lugar que lhe corresponde, e seu marido se somou a minhas palavras, e com a maior eloqüência, embora acredito que com o que eu lhe havia dito já tinha sido suficiente.

— John? - A surpresa lhe fez elevar o tom. — Que coisa tão estranha. Quase me faz pensar que era de mim de quem o doutor Shaw falava mau.

Hatch se ruborizou ainda mais e lhe acelerou a respiração. Tinha os punhos apertados.

Charlotte, que ouvia a conversa, tinha certeza de que a mulher a qual Hatch dizia que Shaw tinha difamado era Maude Dalgetty. Desejou poder saber o que ele havia dito dela, e por que.

Hatch se deslocou um pouco e deu as costas ao Charlotte. Como não queria chamar a atenção com um interesse desmedido, esta aceitou a exclusão e se aproximou do Lally Clitheridge e Celeste. Mas antes que tivesse chegado até elas, as duas mulheres se separaram e Lally abordou a Floresce Lutterworth, com discrição mas sem rodeios.

— É muito atencioso de sua parte que tenha vindo, minha querida Flora. - Seu tom era ao mesmo tempo afetuoso e condescendente, como uma duquesa que falasse com sua futura nora. — Tem um bom coração adorável... uma virtude encantadora em uma jovem, desde que não a leve até a indiscrição.

Flora abriu a boca para replicar, mas não achou palavras para expressar seus sentimentos.

— E é modesta, também - prosseguiu Lally. — Como me alegra ver que não discute comigo, querida. A indiscrição pode ser a ruína de uma jovem. Mas estou certa de que seu pai já lhe haverá dito isso.

Flora se ruborizou. A Charlotte pareceu claro que ainda continuavam brigados.

— Tem que lhe fazer caso, sabe? - Lally também se deu conta e pegou o braço de Flora, para lhe fazer uma confidência. — Ele só quer o melhor para si. É muito jovem e inexperiente em sociedade e não conhece ainda como se julgam as pessoas umas às outras. Por uma simples imprudência que cometesse, todo mundo a consideraria algo que menos uma moça virtuosa... o que arruinaria todas as excelentes expectativas que pode lhe proporcionar o futuro. - Assentiu com a cabeça levemente. — Espero que me tenha entendido, querida.

Flora continuava com o olhar fixo nela.

— Não... acredito que não a entendi – disse. Seu rosto denotava tensão.

— Então terei que lhe explicar. O doutor Shaw é um homem de grande encanto pessoal, mas às vezes é muito franco em suas opiniões e imprudente na hora de respeitar os julgamentos de outros. Isso são coisas aceitáveis em um homem, sobre tudo em um homem que se dedica a uma profissão liberal...

— Eu o acho muito agradável. - Flora defendia-o com ardor. — Dele não recebi outra coisa que amabilidade. Se você não compartilha suas opiniões, isso é assunto seu, senhora Clitheridge. Deveria dizer a ele. Rogo-lhe que não me envolva nisso.

— Não me entendeu. - Lally estava agora aborrecida. — O que me preocupa é sua reputação, querida... que está em franca necessidade de emenda.

— Então com quem deveria discutir é com aqueles que falam mal de mim. Eu não fiz nada que tenha dado motivos para isso.

— Claro que não! Isso já sei. Não se trata do que tenha feito ou deixado de fazer, mas sim de sua indiscrição na hora de salvar as aparências. Só a acautelo em qualidade de esposa de seu vigário. Para ele é um tema difícil de falar com uma senhorita, mas o certo é que está preocupado por seu bem-estar.

— Então lhe agradeça de minha parte. - Flora a olhou com olhos faiscantes e as faces ruborizadas. — E lhe diga que nem meu corpo nem minha alma estão em perigo. E você pode considerar-se que cumpriu com seu dever. - E com um seco sorriso inclinou a cabeça e se afastou, deixando ao Lally no meio da estadia com uma expressão de ira.

Charlotte se apressou a afastar-se, não fosse o caso que Lally se desse conta de que tinha estado escutando. Ao voltar-se achou-se com Vespasia, que estava esperando que pudesse lhe prestar atenção, com as sobrancelhas arqueadas em um gesto de curiosidade e um sorriso irônico.

— Escutando? - sussurrou-lhe.

— Sim - reconheceu Charlotte. — Muito interessante. Floresce Lutterworth e a mulher do vigário discutindo a propósito do doutor Shaw.

— Seriamente? Qual das duas está a favor e qual contra?

— Oh, as duas estão a favor... muito a favor. Quase me dá de pensar que aí é onde está o problema.

O sorriso da Vespasia se alargou, embora não estivesse isento de lástima.

— Que interessante, na verdade... e que completamente inapropriado. Pobre senhora Clitheridge, parece muito acima do vigário. Não me surpreende que tenha dirigido a vista a outra parte, embora sua virtude a proíba ir mais à frente. - Agarrou Charlotte pelo braço e a afastou de duas mulheres que havia a seu lado. — Acha que há algo mais? Não me parece provável que a esposa do vigário tenha aceso fogo à casa por culpa de um amor não correspondido pelo doutor... embora tampouco é impossível, claro.

— Também poderia ter sido Flora Lutterworth, disposta a isso - opinou Charlotte.— E talvez não seja por causa de um amor não correspondido. Flora herdará muito dinheiro quando morrer seu pai.

— E você crie que o dinheiro dos Worlingham pode ser insuficiente para o doutor Shaw e que lançou o olho também ao dos Lutterworth?

Charlotte recordou sua conversa com o Stephen Shaw, na energia que desprendia aquele homem, em sua facilidade para a ironia, na funda impressão de honestidade pessoal que o tinha inspirado. Era uma idéia difícil de aceitar. E não queria pensar que Clemency Shaw tivesse esbanjado sua vida casada com um homem assim. E sem dúvida o teria sabido.

— Não - disse. — Eu acredito que o incêndio está relacionado com o trabalho de Clemency contra os proprietários de moradias pobres. Mas Thomas pensa que o motivo se concentra aqui no Highgate e que a vítima perseguida era em realidade o doutor Shaw. Assim vou observar tudo para depois contar-lhe tanto se encontro algum sentido como se não.

— Muito próprio de si. - Desta vez Vespasia nem sequer tratou de dissimular seu regozijo. — Talvez foi o próprio Shaw o que matou a sua esposa... Suponho que Thomas terá pensado nisso, embora você não o tenha feito.

— Por que não haveria eu de havê-lo pensado? - replicou Charlotte com vivacidade.

— Porque também você gosta desse homem, querida, e acredito que sentimento é mais que correspondido. Boa tarde, doutor Shaw.

O médico havia voltado e estava diante delas, cortês com a Vespasia, mas com a atenção posta em Charlotte, que se notou as faces ruborizadas.

— Lady Cumming-Gould. - Fez uma educada inclinação. — Agradeço-lhe que tenha vindo. Estou certo de que Clemency se sentiria muito agradecida. - Franziu o sobrecenho, como se ao pronunciar aquele nome houvesse tocado uma fibra sensível. — É uma das poucas pessoas pressentes que não veio movida pela curiosidade, pelo afã de ser vista em sociedade, ou pelo simples desejo de não perder a melhor comida servida pelos Worlingham desde a morte do Theophilus.

Amos Lindsay apareceu de repente junto ao Shaw.

— De verdade, Stephen, às vezes faz muito pouca justiça a si mesmo quando expressas essas idéias. A grande maioria dos que estão aqui vieram por motivos mais louváveis. - Suas palavras não foram tanto dirigidas ao Shaw quanto a desculpá-lo ante a Vespasia e Charlotte.

— Não obstante poderíamos comer algo - propôs Shaw de forma não muito afortunada. — Senhora Pitt, posso lhe oferecer um pouco de faisão em gelatina? Tem um aspecto bem repulsivo, mas me asseguraram que está delicioso.

— Não, obrigada - recusou Charlotte. — Não gosto.

— Rogo que me desculpe - disse ele com um sorriso, e a ela passou o aborrecimento imediatamente. Compadecia-lhe por sua dor, fosse qual fosse a natureza de seu amor por Clemency. Era um momento de aflição para ele no qual provavelmente teria preferido estar só que ter que apresentar-se ante uma multidão de pessoas de emoções diversas, da condolência familiar, como era o caso de Prudence, à mera obrigação social como no Alfred Lutterworth, ou até a curiosidade mais vulgar, tal como se refletia nos rostos de vários assistentes cujos nomes Charlotte desconhecia. E até era possível que algum daqueles rostos fosse o do assassino de Clemency.

— Não há de que - disse ela lhe devolvendo o sorriso. — Tem motivo de sobra para nos considerar intrusos, e aborrecidos além disso. Somos nós quem deveriamos nos desculpar.

Shaw alargou a mão para tocá-la, em uma tentativa de procurar uma comunicação mais direta que as palavras. Mas no último momento se absteve, embora ela se sentisse quase como se o tivesse feito, tão clara era a intenção em seus olhos. Era um gesto tanto de gratidão como de solidariedade. Por um instante ele não tinha estado só.

— É muito amável, senhora Pitt – disse. — Lady Cumming-Gould, posso lhe oferecer algo, ou tampouco tem fome?

Vespasia lhe deu sua taça.

— Poderia me trazer outra taça de vinho - respondeu com gentileza. — Imagino que está na adega desde os tempos do bispo. É excelente.

— Com muito prazer. - Pegou a taça e se afastou.

Ao cabo de uns segundos ocuparam seu lugar Celeste e Angeline, quem seguia presidindo a reunião como se fossem uma duquesa e sua dama de honra. Prudence Hatch fechava a marcha, com o rosto muito pálido e os olhos avermelhados. Charlotte recordou com uma aguda pontada de compaixão que Clemency era sua irmã. Se fosse Emily quem tivesse perecido em um incêndio, não teria sido capaz de estar ali guardando nenhum tipo de compostura. De fato o mais provável é que ficaria em casa sem poder deixar de chorar, pois a idéia de ter que mostrar-se educada ante um montão de conhecidos e não tão conhecidos lhe teria sido insuportável. Sorriu ao Prudence com toda a amabilidade que era capaz de transmitir, mas achou unicamente um olhar perdido e confuso. Podia ser que a comoção atuasse como anestesia de uma parte da dor? A realidade iria aparecendo nos posteriores dias de solidão, ao despertar pela manhã e recordar.

Celeste em troca estava muito ocupada desempenhando seu papel de filha do bispo e dispondo o banquete fúnebre para que tudo saísse como era preciso. A conversa deveria ser elevada e conveniente para a ocasião. Maude Dalgetty tinha mencionado certa novela romântica bastante vulgar, por isso tinha que pô-la em seu lugar.

— Não me importa se os criados lêem esse tipo de novelas, sempre que cumprirem com seu trabalho de forma satisfatória, claro está. Mas a verdade é que esses livros não têm nenhum mérito.

Pelo rosto de Prudence, que estava atrás dela, cruzou uma curiosa combinação de expressões: alarme, sobressalto e ao final uma espécie de escura satisfação.

— E uma dama de certa categoria não precisa lê-las - continuou Celeste. — São corriqueiras e só despertam as emoções mais superficiais.

— Acredito que é muito crítica, Celeste - replicou Angeline. — Nem todas as novelas românticas são tão superficiais como diz. Recentemente eu mesma... quero dizer que me contaram uma novela titulada O segredo de lady Pamela, que parece muito emocionante e escrita com grande sensibilidade.

— Que você o que? - Celeste arqueou as sobrancelhas com menosprezo.

— Algumas dessas novelas refletem o que sentem muitas pessoas... – começou Angeline, mas se deteve ante o gélido olhar de sua irmã.

— Tenho certeza de que não conheço nenhuma mulher que sinta nada pelo estilo. - Celeste não estava disposta a deixar a questão. — Essas fantasias são uma falsidade absoluta. - Voltou-se para Maude, que parecia alheia ao encarnado rosto e os olhos dilatados de Prudence. — Senhora Dalgetty, estou certa de que com sua bagagem literária e os gostos de seu marido, opinará você como eu, não é assim? Garotas como Flora Lutterworth, por exemplo... Claro que sua posição no Highgate é muito recente, vem de família de comerciantes, pobre moça... Ela não tem culpa, é claro, mas ninguém pode mudá-lo.

Maude Dalgetty cruzou o olhar de Celeste com candura.

— A verdade é que isso me faz recordar minha juventude, senhorita Worlingham. E por certo que eu adorei O segredo de lady Pamela. Eu também a considero uma novela muito bem escrita, despretensiosa e de uma sensibilidade considerável.

Prudence avermelhou e baixou a vista ao tapete.

— Santo céu - replicou Celeste com voz cortante. — Deus nos livre.

Shaw havia tornado com a taça de vinho da Vespasia, quem a colheu com um gesto de assentimento. Olhou às mulheres uma por uma e percebeu o rubor do Prudence.

— Encontra-se bem, Prudence? - perguntou com mais solicitude que tato.

— Ah! - Deu um nervoso pulo, olhou alarmada seu preocupado semblante e ficou ainda mais vermelha.

— Está bem? - repetiu ele. — Quer descansar, deitar-se um pouco talvez?

— Não, não. Estou perfeitamente... Oh... - Sorveu com força pelo nariz. — Oh, meu Deus...

Amos Lindsay se aproximou por detrás, olhou ao Shaw e a pegou pelo cotovelo.

— Venha, querida - disse com amabilidade. — Talvez assentará bem um pouco de ar fresco. Me permita ajudá-la.

E sem lhe dar tempo a replicar, afastou-a da reunião e a acompanhou fora da estadia a algum lugar da casa mais privado.

— Pobre mulher - disse Angeline com doçura. — Ela e Clemency se tinham muito carinho.

— Todos sentíamos muito carinho por ela - replicou Celeste, e por um momento pareceu perder-se também em algum lugar remoto, talvez de sua memória, e seu rosto refletiu dor e tristeza.

Charlotte se perguntou até que ponto suas atitudes de governanta e suas maneiras de agressiva condescendência não seriam senão sua maneira de superar não só a perda de uma sobrinha, mas também a falta de um afeto que não tinha encontrado ao longo dos anos. Certamente tinha amado a seu pai, em vida deste; tinha admirado-o, havia-se sentido agradecida com ele pela ampla provisão de casa, vestidos, criados, posição social. Mas possivelmente também o tinha odiado pelo alto custo de sua dívida com ele.

— Quero dizer toda a família - acrescentou Celeste, olhando ao Shaw com súbito desagrado. — Há laços de sangue que ninguém mais pode entender... sobre tudo em uma família com uma herança como a nossa. - Shaw franziu o sobrecenho mas não lhe fez caso. — Nunca esqueci de agradecer por todas as bênções que nos foram concedidas, nem deixei de me dar conta da responsabilidade que comportam. Nosso querido pai, o avô de Clemency, foi um dos grandes homens deste mundo. Acredito que, além dos que somos de seu sangue, só Josiah sabe apreciar de verdade quão extraordinário foi.

— Tem toda a razão - disse Shaw com brusquidão. — Eu certamente não soube, nem sei... Mas acredito que foi um homem dogmático, despótico, sentencioso e acima de tudo um velho hipócrita e egoísta...

— Como se atreve! - Celeste se avivou, presa de uma grande agitação. As contas azeviche do busto cintilavam à luz dos lustres. — Se não se desculpar imediatamente, terei que pedir-lhe que abandone esta casa.

— Oh, Stephen, por favor. - Angeline se balançava nervosa. — Foi muito longe, sabe? Isso foi imperdoável. Papai foi um verdadeiro santo.

Charlotte se debatia por achar algo que dizer, algo que pudesse amenizar essa situação penosa. Pensava que bem podia ser que Shaw tivesse razão, mas ela não era ninguém para dizê-lo naquele lugar, e menos nesse momento. Por muito que pensasse, não havia maneira de lhe ocorrer algo, até que tia Vespasia foi ao resgate.

— Os Santos são pessoas com as quais nem sempre é fácil conviver - disse no meio do tenso silêncio. — Sobretudo para quem está obrigados a agüentá-los todos os dias. Não é que queira dizer com isso que o finado bispo Worlingham fosse necessariamente um santo - acrescentou enquanto o rosto do Shaw se escurecia.

Suspendeu no ar o gesto da mão com elegância e congelou seu semblante o suficiente para afogar o protesto que aparecia nos lábios do médico. — Mas não há dúvida de que era um homem de opiniões firmes, e essa classe de pessoas sempre levanta controvérsias, graças a Deus. Quem desejaria uma nação de cordeiros que balissem ao uníssono sua conformidade com tudo o que lhes dissesse?

Shaw se aplacou e tanto Celeste como Angeline pareceram ver-se restituídas em sua honra. Charlotte procurou algum tema inofensivo e elogiou a Celeste a disposição dos lírios sobre a mesa, em lugar de admitir que mais recordavam às flores que ficam em cima de um ataúde.

— Lindas -repetiu com voz fátua. — Onde consegue umas flores tão perfeitas?

— Oh, cultivamo-las nós - interveio Angeline, aliviada. — Temos uma estufa, sabe? Requerem muitos cuidados... - Explicou a todos o modo exato em que as plantavam, fertilizavam-nas e cuidavam-nas.

Todos a escutaram com gratidão, pela pausa que supunha depois dos desagradáveis momentos passados.

Quando Angeline ficou por fim sem nada mais que acrescentar, murmuraram algo com educação e se afastaram, com o pretexto de ter visto algum conhecido.

Charlotte se viu de novo em companhia do Maude Dalgetty e, quando esta foi ver se Prudence se recompôs, ficou com o John Dalgetty, que lhe falou sobre o último artigo que tinha resenhado e que versava sobre o tema da liberdade de expressão.

— É um dos princípios sagrados do homem civilizado, senhora Pitt – disse inclinando-se para ela com expressão concentrada. — O que é uma tragédia é que haja tantas pessoas bem-intencionadas mas ignorantes e pusilânimes que nos têm atados com as cadeias de idéias periclitadas. Como Quimon Pascoe, por exemplo. - Fez um ligeiro gesto com a cabeça em direção ao Pascoe. — Um bom homem, a sua maneira, mas aterrorizado por qualquer pensamento novo. - Agitou o braço. — Coisa que careceria de importância se se limitasse a aplicar-lhe a si mesmo, mas o mau é que pretende aprisionar nossas mentes no que ele considera melhor para nós - acrescentou, indignado ante a mera idéia.

Charlotte sentiu uma viva simpatia por ele. Podia recordar sua indignação quando seu pai lhe proibiu ler o jornal, como o tinha feito com todas suas filhas. Havia se sentido como se todo o interesse e as emoções do mundo tivessem passado ao largo junto a ela e a tivessem excluído. Tinha subornado o mordomo para que lhe passasse as páginas de política nas costas de seus pais, e devorava-as: lia cada palavra e imaginava as pessoas e os acontecimentos narrados com minucioso detalhe. Privá-la daquilo teria sido como fechar todas as janelas da casa e correr as cortinas.

— Estou totalmente de acordo com você - disse com entusiasmo. — O pensamento não deve aprisionar-se nem ninguém deve dizer a outros que não devem acreditar no que escolheram.

— Quanta razão tem, senhora Pitt! Por desgraça, nem todo mundo é capaz de ver as coisas como você. Pascoe, e quem é como ele, erigem-se a si mesmos em árbitros do que a gente deve e não deve saber. Ele pessoalmente não é um homem desagradável, ao contrario, você mesma com certeza o acharia encantador, mas sua arrogância é infinita.

Pascoe deve ter ouvido mencionar seu nome, por quanto abriu passagem entre dois homens que discutiam de finanças e encarou o Dalgetty, com ira nos olhos.

— Não se trata de arrogância, Dalgetty. - Sua voz era baixa mas acesa. — Se trata de sentido da responsabilidade. O editar tudo que deve parar às mãos de alguem, sem reparar no que diga nem a quem possa prejudicar, não é liberdade, mas um abuso da arte da publicação. Em nada se diferencia de um louco que fica na esquina a vociferar tudo o que lhe passa pela cabeça, seja verdade ou seja mentira...

— E quem pode julgar o que é verdade e o que é mentira? - respondeu Dalgetty.         —Você? É você o juiz último daquilo no que deve acreditar o mundo? Quem é você para julgar o que podemos esperar e a que podemos aspirar? Como se atreve? - Seus olhos refulgiam ante o que lhe parecia uma monstruosidade: — um simples ser humano pondo limites aos sonhos de toda a humanidade.

Pascoe estava igualmente colérico, preso da agitação pela raiva que sentia ante a obcessão do Dalgetty e sua falta de vontade para compreender sua forma de pensar.

— Está completamente equivocado! - exclamou. — Não se trata de pôr limites às aspirações ou os sonhos, como sabe muito bem. Trata-se de não criar pesadelos. - Agitou os braços de forma tão impetuosa que golpeou o chapéu de penas de uma mulher que estava ao lado, incidente que passou inadvertido para ele. — O que não tem nenhum direito a fazer é acabar com os sonhos de outros zombando deles. Sim, é você o arrogante, não eu.

— Cale-se, pigmeu! - replicou Dalgetty. — Inútil! Não faz mais que dizer coisas estúpidas que são o fiel reflexo de seu confuso cérebro. É impossível forjar uma idéia nova senão à custa das velhas.

— E o que passa se essa nova tua idéia é abominável e perigosa? – perguntou Pascoe, sacudindo a mão no ar. — E não contribui nada à felicidade ou ao conhecimento humano? Né? Janota. Como intelectual é um menino de peito, e um vândalo espiritual e moral. É...

A aquelas alturas suas acaloradas vozes tinham atraído a atenção de todo o mundo. As outras conversas tinham cessado e Héctor Clitheridge abria passagem para eles preso da agitação, com a batina ondulando e movendo os braços no ar. Seu rosto expressava confusão e aborrecimento.

— Senhor Pascoe! Por favor! - implorou. — Cavalheiros! - Voltou-se para o Dalgetty-. Por favor, pensem no pobre senhor Shaw...

Isso era a última coisa que devia ter dito. Aquele nome atuou no Pascoe como se tivessem mostrado um pano vermelho a um touro bravo.

— E tão a ponto que o menciona! - disse triunfante. — Um exemplo perfeito! Um homem exposto A...

— Exato! - Dalgetty moveu as mãos com frenesi. — Um homem honesto que detesta a idolatria. Sobre tudo o culto ao medíocre, ao indigno, ao carente de valor...

— Quem diz carente de valor? - Pascoe ergueu a voz até um triunfal falsete. — Erige a si mesmo como arbitro do que deve preservar-se e o que deve destruir-se?

Dalgetty perdeu por completo o controle.

— Você não é mais que um incompetente! - gritou com as faces avermelhadas.         — Uma mula teimosa! Você...

— Senhor Dalgetty! - suplicava Clitheridge em vão. — Senhor...

Eulalia foi ao resgate, com uma expressão de firme desaprovação. Por um instante, recordou à Charlotte uma babá implacável. Ao Dalgetty só dedicou um fugaz olhar.

— Senhor Pascoe - disse com voz decidida e perfeitamente controlada, — seu comportamento é vergonhoso. Estamos em um banquete fúnebre, esqueceu-o? Não me parece que seja uma pessoa privada do sentido da correção, nem que seja incapaz de dar-se conta da dor que pode causar a pessoas inocentes, bastante maltratadas já pelas circunstâncias.

A atitude do Pascoe se transformou. Ficou cabisbaixo e envergonhado. Mas Lally não tinha intenção de lhe economizar nenhum soco moral.

— Imagine como deve sentir-se a pobre Prudence. Não basta a tragédia que sofre?

— Oh quanto o lamento. - Pascoe estava escandalizado por sua própria conduta. Era evidente que seu arrependimento era sincero. — Me atormenta pensar que fui tão irrefletido. Como poderia me desculpar?

— Não pode. - Eulalia se mostrava inflexível. — Mas deveria tentá-lo ao menos.         - Voltou-se para Dalgetty, cujo olhar refletia temor. — Quanto a você, certamente, não esperava que tivesse a menor sensibilidade pelos sentimentos de outros. A liberdade é seu deus, e às vezes penso que estaria disposto a sacrificar em seus altares a quem quer que considerasse preciso.

— Isso é injusto. - Parecia sinceramente penalizado. — Totalmente injusto. Meu desejo é libertar, não ferir... Eu só quero fazer o bem.

— De verdade? - Arqueou as sobrancelhas. — Nesse caso fracassou de forma estrepitosa. Deveria reconsiderar suas convicções... e a conduta mais de acordo com elas. É um néscio. - Depois de ter pronunciado a mais formidável invectiva de toda sua vida e de ficar vermelha como o tomate, estava tão bonita como em sua juventude. Também estava bastante alarmada por tudo que tinha ousado dizer: apenas se começava a tomar consciência do fato de que acabava de salvar a todos de uma situação em extremo embaraçosa. ruborizou-se mais ao ver todas os olhares concentrados nela e se apressou a retirar-se. Por uma vez se revelava ridículo o pretender que se limitara a ajudar seu marido, que tinha ficado com as mãos imóveis no ar e a boca aberta, embora intensamente aliviado, embora também alarmado e um pouco ressentido.

— Bravo, Lally - disse Shaw. — É você extraordinária. Deu a todos um castigo em regra. - Fez uma ligeira reverência, com um gesto singularmente cortês, e se retirou junto à Charlotte.

Eulalia voltou a ruborizar-se de forma visível, desta vez com evidente regozijo, embora de uma forma tão intensa e incomum que era um apuro vê-la.

— Vamos, vamos... - protestou Clitheridge. Ninguém escutou o que ia dizer a seguir, se é que ele mesmo sabia, já que Shaw o interrompeu.

— Nos fez sentir como se houvéssemos voltado todos ao jardim de infância. Talvez é onde deveríamos estar. - Olhou ao Dalgetty e Pascoe com mais ironia que irritação. Se lhes guardava algum rancor pelo fato de que o funeral de Clemency se viu interrompido por uma cena como aquela, não havia rastro disso em sua expressão. Charlotte chegou a pensar que talvez até tinha suposto certo alívio para ele, pois o tinha distraído da dolorosa realidade. Mas agora parecia não dar-se conta de que podia prolongar a tensão e piorar as coisas.

— Acredito que faz muito que todos o abandonamos - disse com viveza e agarrando Shaw pelo braço. — Não lhe parece, doutor Shaw? Às vezes é divertido brigar com os companheiros, mas este é um lugar inapropriado para isso. Devemos ser o bastante adultos para pensar em outros, e em nós mesmos. Estou certa de que estará de acordo comigo. -Não estava certa absolutamente, mas não pensava lhe dar a oportunidade de dizê-lo. — Em uma ocasião me falou da magnífica estufa das senhoritas Worlingham e agora vi os lírios que adornam a mesa. Possivelmente teria a bondade de me mostrar isso agora.

— Estarei encantado - disse com entusiasmo. — Não me ocorreria nada melhor neste momento.

Pegou-lhe a mão e a conduziu ao outro extremo da estadia. Charlotte só se voltou uma vez e foi ver o olhar de fúria e desgosto de Lally Clitheridge, tão intenso que sua lembrança a acompanhou o resto do dia, até ao retornar a sua casa do Bloomsbury e contar ao Pitt os acontecimentos do dia e a impressão que lhe tinham deixado.

 

Pitt despertou no meio da noite para ouvir os imperiosos e insistentes golpes que, através da confusa espessura do sono, conseguiu compreender que procediam da porta da rua. Deslizou para fora da cama, ao mesmo tempo que notava como Charlotte despertava também sobressaltada.

— A porta - balbuciou enquanto procurava a roupa.

Quem quer que golpeasse a porta com tal sanha e insistência requeria sua presença. Vestiu as calças e as meias, recordou que as botas as tinha frente à estufa da cozinha. Desceu as escadas de forma ruidosa e apressada, acendeu o abajur de gás do vestíbulo e abriu a porta principal.

O frio do úmido ar da noite fez ele estremecer, mas isso não era nada comparado com a lividez do rosto de Murdo, que segurava uma lanterna que projetava sua luz amarela sobre os paralelepípedos do pavimento e a neblina que o rodeava. Junto ao meio-fio distinguiu a escura silhueta de uma caleça, cujo cavalo fumegava e cujo cocheiro estava embutido em seu casaco.

Antes que tivesse tempo de perguntar algo, Murdo disse com voz trêmula:

— Há outro incêndio! - Esqueceu o "senhor". — Se trata da casa de Amos Lindsay.

— É grave? - perguntou Pitt, embora intuisse a resposta.

— Pavoroso. - Murdo tinha dificuldade para conservar a compostura. — Nunca tinha visto nada parecido... nota-se o calor a cem metros de distância e ardem os olhos ao olhá-lo. Meu deus, como pode alguém fazer uma coisa assim?

— Entre - disse Pitt com urgência. O ar da noite era frio.

Murdo vacilou.

— Tenho as botas na cozinha. - Pitt se voltou e deixou que fizesse o que quisesse. Ouviu fechar a porta e Murdo caminhar torpemente nas pontas dos pés atrás dele.

Uma vez na cozinha, acendeu a luz e se sentou na cadeira. Agarrou as botas e as atou bem apertadas. Murdo se aproximou da estufa. Seus olhos passearam pela limpa madeira dos móveis e a porcelana reluzente no aparador, e em seguida percebeu o aroma da roupa secando na corda enganchada do teto. As feições de seu jovem rosto tinham perdido parte de seu desespero.

Charlotte apareceu na porta vestida com a camisola de dormir. Aproximou-se sem que seus pés nus fizessem ruído sobre o linóleo.

Pitt lhe sorriu com uma careta.

— O que aconteceu? - perguntou olhando ao Murdo e depois a seu marido.

— Um incêndio.

— Onde?

— Em casa de Amos Lindsay. Volta para a cama. Vai ficar com frio.

Charlotte empalideceu. O cabelo lhe caía sobre os ombros, com reflexos dourados onde lhe batia a luz de gás.

— Quem estava na casa? - perguntou ao Murdo.

— Não sei, senhora. Não estamos certos. Estavam tentando tirar os criados, mas o calor era terrível, chamuscava o cabelo de... - interrompeu-se ao dar-se conta de que estava falando com uma mulher e que provavelmente não devia dizer aquelas coisas.

— Do que? - perguntou ela.

Ele se sentiu aflito por sua estupidez. Olhou com expressão de culpa a Pitt, que já estava preparado para partir.

— As sobrancelhas, senhora - respondeu Murdo.

Ela se deu conta de que estava muito comocionado para dizer mentiras piedosas. Pitt lhe deu um rápido beijo na face e a pegou pelos ombros.

— Volta para a cama. Ficar levantada para pegar um resfriado não será de ajuda.

— Poderá me dizer ao menos se... - Então se deu conta do que lhe estava pedindo. Enviar a alguém com uma mensagem só para dissipar seus temores, ou para confirmá-los, teria sido uma ridícula distração em um momento em que havia coisas mais urgentes que fazer, e talvez pessoas feridas ou aflitas que socorrer. — Sinto muito.

Ele sorriu e depois se voltou e partiu com o Murdo.

— O que tem Shaw? - perguntou enquanto ambos subiam a caleça e esta ficava em movimento. Era evidente que era desnecessário dizer ao cocheiro aonde iam. Ao cabo de uns instantes, o cavalo tinha passado de um trote moderado a um galope ligeiro, e seus cascos tamborilavam nos paralelepípedos enquanto a caleça se bamboleava, o que os fazia ir de um lado a outro e inclusive entrechocar com certa violência.

— Não sei, senhor, foi impossível sabê-lo. O lugar é um inferno. Não o vimos... Não é bom sinal.

— E Lindsay?

— Tampouco.

— Santo Deus, que barbaridade! - exclamou Pitt entre dentes, enquanto a caleça se inclinava ao dobrar uma esquina. As rodas ficaram uns instantes suspensas no ar e aterrissaram com rudeza nos paralelepípedos com uma sacudida que o fez tremer.

O trajeto até Highgate foi longo e pesado e nenhum dos dois voltou a falar. Não havia nada que dizer, ambos estavam absortos imaginando o forno para o qual se dirigiam a toda velocidade e recordando o carbonizado corpo de Clemency Shaw que fazia tão pouco tempo tinha sido o triste resultado de um desastre similar.

O resplendor do incêndio se fez visível tão logo dobraram na última esquina do Kentish Town Road em direção ao Highgate Road. No Highgate Rise o cavalo se deteve e o cocheiro desceu de um salto e abriu a portinhola.

— Até aqui posso levá-los!

Pitt apeou e recebeu o impacto do calor. Viu-se envolvido na confusão que rodeava o incêndio: um fragor difuso, um ar cheio de fumaça e fuligem, um aroma acre e abrasivo. O céu aparecia vermelho em sua gama mais incandescente. No ar se ouviam estalos que lançavam rastilhos de faíscas a dezenas de metros de altura, para cair logo em forma de lânguidas cinzas.A rua estava congestionada pelos veículos de bombeiros. Os cavalos empinavam e relinchavam, enquanto os escombros caíam a seu redor. Os homens tratavam de tranqüilizá-los em meio da confusão. Tinham levado mangueiras até os reservatórios do Highgate Ponds e se viam filas de homens com baldes que passavam de mão em mão, embora o único que faziam era tratar de proteger as casas mais próximas a de Lindsay, que já nada podia salvar. Quando Pitt e Murdo ainda estavam na metade do meio-fio, uma seção do piso superior veio abaixo, as vigas partiram e caíram em rápida sucessão, e uma enorme labareda se ergueu a mais de quinze metros. A onda de calor que produziu fez eles retrocederem mais longe ainda, a refugiar-se atrás das cercas da rua.

Um dos cavalos de uma carruagem de bombeiros lançou um lastimoso relincho quando o extremo de um madeiro lhe caiu sobre o lombo. Ao cabo de uns segundos o aroma de pelagem chamuscada encheu o ar limitado. O animal saltou, soltando-se das mãos do bombeiro que o segurava. Um companheiro deste pegou um balde de água e o lançou pelo lombo.

Pitt se jogou sobre o cavalo e o pegou pelas rédeas, jogou seu próprio peso contra o corpo do animal e este se deteve com um estremecimento. Murdo, que se tinha criado em uma granja, tirou a jaqueta, empapou-a em outro balde de água e a estendeu sobre o lombo do animal.

O chefe de bombeiros se dirigia para Pitt, com o rosto convertido em uma máscara pelas manchas de fuligem. Só os olhos, avermelhados e desesperados, afloravam através da fuligem. Tinha as sobrancelhas queimadas e lhe tinham inflamado algumas contusões. Levava o uniforme sujo e chamuscado, quase irreconhecível por causa da água, do calor e dos escombros.

— Temos a todos os criados! - gritou, o que lhe provocou uma convulsa tosse.

Fez-lhes gestos de que o seguissem até onde o calor e o fedor ficavam suavizados pelo frescor da noite, e o estrépito das paredes ao derrubar-se e da madeira ao estalar eram menos ensurdecedores. Estava com olheiras e pesaroso, não só pela pena, mas também por seu próprio fracasso. — Mas não pudemos tirar os dois cavalheiros.

Era desnecessário acrescentar que não havia esperança. Ninguém podia sair vivo daquele inferno.

Era o que Pitt esperava, mas ouvi-lo dizer a alguém que levava anos sentindo diariamente a mesma esperança e lutando contra a mesma fatalidade lhe produziu uma dolorosa sensação. Só naquele momento percebia a atração que Shaw tinha exercido sobre ele, até no caso talvez de que fosse o assassino de Clemency. Talvez este último só o tinha aceito seu cérebro, enquanto sua intuição sempre se negara a admitir. Quanto a Amos Lindsay, nunca havia sentido a menor suspeita por ele, só certo interesse, e até um broto de afeto ao saber que tinha conhecido Nobby Gunne. Agora só ficava uma intensa dor por tanta destruição. A ira viria mais tarde, quando a ferida fosse menos abominável.

Voltou-se para Murdo e viu o infortúnio e a desolação refletidos em seu mudado rosto. Era muito jovem e inexperiente para encarar o assassinato e a repentina e violenta perda que conduzia. Pitt o pegou pelo braço.

— Vamos - disse. — Não pudemos evitar este incêndio, mas temos que apanhar a esse homem antes que volte a agir . A esse homem ou essa mulher, porque ainda não sabemos.

Murdo seguia perplexo.

— Que mulher poderia fazer isto? - Apontou com a mão para trás, mas não se voltou.

— As mulheres são tão suscetíveis às paixões e o ódio como os homens. E à violência, se contarem com os meios necessários.

— Oh, não, senhor... - começou Murdo de forma instintiva, disposto a replicar a partir de suas próprias lembranças pessoais. As mulheres podiam ter uma língua viperina, isso sim, e o ouvido sempre disposto a qualquer intriga; às vezes eram ambiciosas, sem dúvida, e frias; e rabujentas, mandonas e criticonas, e volúveis, e até um pouco difamadoras. Mas não eram capazes de atos de uma natureza tão detestável...

Voltou para o presente e sua atenção se concentrou em Pitt, que lhe falava.

— Alguns dos assassinatos mais sórdidos aos que precisei enfrentar foram cometidos por mulheres, Murdo. E a algumas delas cheguei compreender bastante bem, quando soube os motivos que as tinham induzido a eles, e me fizeram sentir pena. Sabemos tão pouco deste caso... Não conhecemos as verdadeiras paixões que subjazem...

— Sabemos que os Worlingham possuem muito dinheiro, como também o velho Lutterworth. - Murdo se esforçava por fazer inventário. — Sabemos... sabemos que Pascoe e Dalgetty se odeiam, embora daí a que tenha algo que ver com a morte da senhora Shaw... - A voz se foi apagando, enquanto procurava algo mais relevante. — Sabemos que Lindsay escrevia ensaios em favor da Fabián Society, embora isto tampouco tem nada que ver com a senhora Shaw. Mas o doutor os aplaudia.

— É difícil pensar que isso possa inspirar paixões capazes de acender uma pira funerária como esta - disse Pitt com amargura. — Não, Murdo. Não sabemos quase nada. Mas o averiguaremos. - Voltou-se para o chefe de bombeiros, que dava instruções a seus homens com o fim de proteger as casas das imediações.

— Poderia supor-se que foi provocado da mesma forma? - gritou Pitt.

O chefe de bombeiros o olhou com semblante desolado.

— Poderia. Propagou-se muito depressa. Recebemos o aviso de duas pessoas. Uma delas o tinha visto da rua, pela parte principal, a que dá à cidade. A outra o viu da parte que dá ao Holly Village, por detrás. Portanto já temos dois pontos de início, mas pela rapidez como se propagou muito eu diria que havia mais.

— Mas antes disse que puderam tirar os criados. Como? Por que não conseguiram tirar o Lindsay e Shaw? É que só tinha fogo no corpo principal da casa?

— Assim parece. Embora quando chegamos já se propagara a quase todas as dependências. Um de nossos homens sofreu queimaduras graves e outro fraturou uma perna ao tentar tirar os criados.

— E onde estão agora os criados?

— Não sei. Havia um tipo com camisola de dormir e batina que ia de um lado a outro tratando de ajudar. Com boa intenção, suponho, mas só estorvava. Havia uma mulher com ele, bastante mais sensata. Outro casal ficou um pouco apartados, olhando, pálidos como fantasmas. A mulher chorava, mas ao menos levavam mantas... E agora se me permitir , responderei a suas perguntas amanhã...

Puderam salvar o cavalo? - Pitt não soube por que tinha perguntado aquilo, como se fosse por alguma longínqua lembrança de juventude relacionada com animais aterrorizados em algum incêndio conservado em sua memória.

— O cavalo? - O chefe de bombeiros enrugou a fronte-. Que cavalo?

— O cavalo do doutor... que puxava sua carruagem.

— Charlie! - chamou o chefe de bombeiros a um homem com o uniforme imundo e empapado de água que coxeava a uns metros de onde estavam. — Charlie!

— Senhor? - Charlie se deteve e se voltou para eles. Tinha as sobrancelhas queimadas e os olhos avermelhados e exaustos.

— Você que esteve na parte detrás, salvastes o cavalo?

— Não havia nenhum cavalo, senhor. Olhei no estábulo expressamente. Não posso suportar ver morrer abrasado um bom animal.

— Tinha que havê-lo - insistiu Pitt. — O doutor Shaw tinha uma carruagem particular

para as chamadas urgentes...

— Tampouco havia alguma carruagem, senhor. Quando cheguei o estábulo ainda estava em pé. Não havia carruagem nem cavalo. Ou o guardavam em outro lugar, ou estavam fora.

Fora? Seria possível que Shaw não estivesse na casa, que uma vez mais tivesse escapado ao fogo? E que em toda aquela pira espantosa só tivesse morrido Amos Lindsay?

Quem podia saber naquele momento? A quem podia perguntar? Olhou ao redor em meio da vermelha noite, em que se ouviam ainda o stallido das faíscas e o fragor das chamas. No extremo da confusão de veículos, cavalos, baldes de água, escadas e homens esgotados e maltratados pôde ver as duas negras figuras do Josiah e Prudence Hatch, envoltas em uma mesma isolada e íntima desolação. A figura do Clitheridge, batina ao vento, caminhava a grandes passos de um lado para outro, com o braço estendido e uma redoma na mão. Lally estava agasalhando com uma manta a uma mocinha, uma criada da cozinha, presa de tão violentas convulsões que Pitt podia apreciá-las através da fumaça e do tumulto. O criado de Lindsay com o cabelo reluzente permanecia de pé, só, estupefato, como se tivesse estado adormecido em posição vertical.

Pitt se dirigiu para aquele extremo, quando ouviu o repicar de uns cascos de cavalo e olhou rua acima, para o centro do Highgate. Não podia ser outro veículo de bombeiros, já não tinha nenhum objetivo, e além disso não tinha ouvido o som dos sinos próprio dessas carruagens.

Era uma carruagem leve, puxada por um cavalo quase ao galope e cujas duas rodas voavam temerárias sobre os paralelepípedos. Pitt soube muito antes de vê-lo que se tratava do Shaw e sentiu um intenso alívio, ao que seguiram novos pensamentos sinistros. Se Shaw estava vivo, voltava a ser possível que ele tivesse provocado os dois incêndios, o primeiro para matar a Clemency e este para acabar com o Lindsay. Por que Lindsay? Possivelmente nos poucos dias que tinha permanecido em casa do Lindsay, Shaw se tinha traído ao pronunciar uma palavra, uma expressão imprudente, ou inclusive ao guardar silêncio em um momento em que devia ter falado. Era um pensamento infame, mas não podia descartá-lo.

— Pitt! - Shaw quase cai do estribo da carruagem ao descer, e nem sequer se ocupou de atar as rédeas, por isso o cavalo ficou solto. Agarrou ao Pitt pelo braço, com tal impulso que quase o fez perder o equilíbrio. — Pitt! Pelo amor de Deus, o que aconteceu? Onde está Amos? E o pessoal? - Tinha o rosto abatido pelo horror.

Pitt o segurou para tratar de acalmá-lo.

— Os criados estão bem, mas receio muito que ao Lindsay não puderam salvar. Sinto muito.

— Não! Oh, não! - prorrompeu Shaw em um grito esmigalhado, antes de jogar-se para as chamas tropeçando com quantos achava a sua passagem e afastando-os.

Depois de uns segundos de estupefação, Pitt correu atrás dele. Em sua corrida saltou por cima de uma mangueira e empurrou a um bombeiro. Alcançou ao Shaw tão perto do edifício que o calor era insuportável e o fragor das chamas parecia engoli-los. Derrubou-o sem contemplações.

— Não pode fazer nada! - gritou Pitt por cima do estrondo. Só conseguirá é morrer você também!

Shaw tossiu e se debateu para levantar-se.

— Amos está aí dentro! - uivou. — Tenho que tirá-lo... - E de repente ficou olhando as chamas como absorto. Parecia haver-se dado conta por fim de que seu esforço era inútil, e quando Pitt puxou-o para pô-lo em pé, não opôs resistência.

— Volte, ou se queimará você também - lhe disse Pitt.

— Como? - Shaw seguia com o olhar fixo na violência das chamas. Estavam tão perto que a pele lhe ardia e a incandescência do fogo os obrigava a fechar os olhos, embora ele só parecesse vagamente consciente disso.

— Volte! - gritou Pitt quando caiu uma viga em meio de uma explosão de faíscas. Agarrou Shaw pelos braços e puxou-o como se fosse um animal assustado. Por um momento temeu que Shaw fosse desabar-se, mas no final fez caso dele, embora cambaleando.

Pitt tentou procurar uma palavra de consolo, mas o que podia dizer? Amos Lindsay, o único homem que parecia ter entendido ao Shaw, o amigo que tinha ido além das palavras para chegar à mente e suas intenções, estava morto. Era a segunda terrível perda do Shaw em menos de duas semanas. Algo que Pitt dissesse seria vã e ofensivo e só demonstraria incapacidade para compreender a dor autêntica. Devia guardar silêncio, mas isso lhe provocava uma sensação de impotência e inutilidade.

Clitheridge se aproximava com indecisão para eles, com uma expressão de devoção e terror no olhar. Era evidente que não tinha idéia do que dizer ou fazer, salvo que estava decidido a não retroceder ante seu dever. No último momento o salvaram as circunstâncias. O cavalo de carruagem do Shaw empinou ao cair junto a ele uns escombros em chamas, que o fizeram retroceder nervoso.

Aquilo ao menos era algo que Clitheridge podia entender. Deixou ao Shaw, por quem não podia fazer nada e cuja pena o horrorizava e sobressaltava, e se aproximou do cavalo, ao qual pegou pelas rédeas.

— Sou! Calma... Calma... Bem, bonita. Agüenta! - E por uma vez, milagrosamente, teve êxito. O animal ficou quieto, estremecendo e dando pulos. — Calma - repetiu aliviado. Em seguida o levou pela rua, longe do fragor e o calor das chamas e longe também do Shaw.

— Os criados... - Shaw falou por fim. Voltou-se e cambaleou um pouco. — O que aconteceu com os criados? Onde estão? Estão feridos?

— Não de gravidade. Ficarão bem.

Clitheridge continuava ocupado com a égua e a carruagem, mas Oliphant, o padre, com o rosto resplandecente pelo fulgor das chamas, aproximava-se para eles com sua desajeitada figura vestida em um casaco folgado. Deteve-se diante dos dois homens e falou com voz serena.

— Doutor Shaw, hospedo-me em casa da senhora Turner, rua acima, no West Hill. Tem algumas habitações disponíveis e seria bem-vindo se quiser alojar-se ali. Aqui não há nada a fazer e eu acredito que poderia tomar uma xícara de chá bem carregada, lavar-se com água quente e dormir um pouco. Isso ajudaria-o a confrontar a jornada de amanhã.

Shaw abriu a boca para recusar, mas se deu conta de que Oliphant não se contentara dizendo-lhe umas fáceis palavras de consolo. Tinha-lhe ofericido ajuda prática e lhe tinha recordado que, à parte a dor e a comoção, o dia seguinte estaria carregado de deveres e coisas que fazer.

— Eu... - Fez um esforço por descer aos aspectos práticos. — Não tenho nada... Perdi tudo... outra vez...

— Entendo - concordou Oliphant. — Tenho uma camisola de dormir que posso lhe emprestar com muito prazer, e navalha de barbear, sabão, roupa limpa... Tudo o que tenho é seu.

Shaw tratou de aferrar-se ao momento, como se algo pudesse ainda recuperar- se, como se ficasse um horror por manifestar-se que só se materializaria se fosse.

Era como se aceitá-lo-o convertesse em verdadeiro. Pitt conhecia aquele sentimento irracional mas tão forte que mantinha uma pessoa na cena da tragédia, pois abandoná-la era reconhecê-la e permitir que fosse real.

— Os criados - repetiu Shaw. — E os criados? Onde vão dormir? Tenho que... -voltou-se, frenético por achar algo em que ajudar, mas não viu nada.

Oliphant disse:

— Mary e a senhora Wiggins irão a casa do senhor e a senhora Hatch, enquanto que Jones ficará com o senhor Clitheridge.

Shaw o olhou fixamente. Passaram dois bombeiros que arrastavam um companheiro exausto.

— Pela manhã começaremos a procurar outras casas onde possam ficar. - Oliphant estendeu a mão. — Há muita gente que necessita de essoas boas e bem preparadas. Não se preocupe por isso. Estão assustados, mas não feridos. Precisam dormir e a segurança de que não se verão na rua.

Shaw o olhava desconfiado.

— Vamos - insistiu Oliphant. — Aqui não pode fazer nada...

— Mas não posso ir de qualquer jeito! - protestou Shaw. — Meu amigo está nesse... -Contemplou com impotência as chamas, que agora redobravam sua intensidade ao afundar a última estrutura interior de madeira, junto com a que veio abaixo o resto de tabiques. Procurava palavras que pudessem expressar o tumulto de emoções que sentia, mas não as encontrou. Havia lágrimas em seu rosto sujo de fuligem. Apertava as mãos com força e se agitava, como se ainda tivesse desejo de agir com arrebatamento mas não soubesse em que direção nem de que modo.

— Sim, pode partir - insistiu Oliphant. — Aí já não fica ninguém, mas em troca amanhã haverá gente que necessitará de você... Gente doente e assustada que confia que você estará com eles e utilizará seu conhecimento para ajudá-los.

Shaw o olhava sem pestanejar, enquanto o horror de seu rosto se ia tornando pouco a pouco em confusão. Até que ao final, sem dizer nada, seguiu-o obediente com os ombros caídos e arrastando os pés, dolorido e fatigado.

Pitt o viu ir-se e sentiu uma atroz mescla de emoções: piedade pela aflição do Shaw e a dor paralisante que sentia, raiva ante aquela espantosa injustiça e uma espécie de ira por não saber a quem culpar por tudo aquilo, nem a quem proteger, nem a quem acossar até ver castigado. Era como uma opressão no peito que procurava romper-se por algum lado em forma de uma ação simples e definitiva, que entretanto não existia.

O edifício estalou em faíscas uma vez mais quando veio abaixo outra parede.

Os bombeiros gritavam uns aos outros.

Por fim, deixou-os e retrocedeu pelo caminho em busca do Murdo para começar a desoladora tarefa de interrogar aos vizinhos com o fim de averiguar se algum deles tinha visto ou ouvido algo antes do incêndio: alguém que tivesse rondado a casa do Lindsay, uma luz, um movimento...

Murdo estava desconcertado pela confusão de seus próprios sentimentos com respeito ao encargo de acompanhar ao Pitt a casa dos Lutterworth. Uma vez afastado do calor das chamas, notou ardência no rosto. Os olhos lhe picavam e choravam por causa da fumaça, e na mão estava se formando uma bolha grande e dolorosa no ponto onde lhe tinha alcançado um cisco aceso. Mas o corpo o sentia transido. Embrulhado no casaco que lhe tinha conseguido Oliphant, tremia e se encolhia de frio.

Pensou na escura e enorme casa dos Lutterworth, no esplendor de seus interiores, nos tapetes, quadros, cortinas de veludo recolhidas com fitas e desdobradas pelo chão como caudas de vestidos de gala. Só tinha visto um luxo semelhante na outra casa, a dos Worlingham, mas esta era muito mais velha e alguns objetos estavam gastos pelo uso. A casa dos Lutterworth era nova.

Mas muito mais viva em sua mente, até o ponto de lhe fazer apertar as mãos antes de perceber a bolha, estava a lembrança de Flora Lutterworth com seus grandes olhos escuros, tão diretos, o orgulhoso porte de sua cabeça, com o queixo alto. Fixou-se de forma especial em suas mãos. Sempre se fixava nas mãos das pessoas, e as daquela moça eram as mais bonitas que jamais tinha visto: esbeltas, de dedos finos e unhas perfeitas. Não eram carnudas e torpes como as de tantas senhoritas distintas... Como as das senhoritas Worlingham, por exemplo.

Quanto mais pensava em Flora, mais ligeiros se moviam seus pés sobre o pavimento e mais lhe encolhia o estômago ante a perspectiva de que Pitt batesse na porta principal, coisa que faria até conseguir perturbar o descanso da casa inteira e até fazer que acudisse o criado, furioso e transbordante de desprezo, e assim poder pisar com pés sujos e molhados o tapete limpo do saguão, até que o próprio Lutterworth se levantasse e descesse para vê-los. Então Pitt lhe faria um montão de perguntas impertinentes que no final não teriam nenhuma utilidade e que em qualquer caso poderiam ter esperado o dia seguinte.

Estavam já no patamar da entrada quando se decidiu por fim a falar.

— E não seria melhor esperar até manhã? - disse sem fôlego.

Continuava tratando ao Pitt com receio. Às vezes sentia admiração por ele, mas outras se deixava levar por antigas lealdades, provincianas e profundamente enraizadas, e compreendia o ressentimento de seus colegas e sua sensação de ter sido menosprezados e ignorados. Mas a maioria das vezes se entregava cegamente a suas ânsias de solucionar o caso e não pensava em nada mais que em ajudar e contribuir à investigação. Estava começando a valorizar a paciência do Pitt e seus dotes de observação das pessoas. Algumas de suas conclusões tinham escapado ao Murdo. Não tinha tido a menor noção de como se inteirara Pitt das disputas entre o Pascoe e Dalgetty... até que o inspetor lhe tinha contado como a senhora Pitt tinha assistido ao jantar do funeral e tinha irradiado a ele todas suas impressões.

Naquele momento Pitt tinha deixado de desagradar a Murdo. Era impossível sentir antipatia por um homem tão sincero na hora de explicar suas deduções. Teria lhe sido fácil dar-se ares de superioridade. Murdo conhecia uns quantos que o teriam feito.

A resposta do Pitt era desnecessária, por dois motivos: porque Murdo sabia perfeitamente qual ia ser e porque a porta principal se abriu ao bater.

Alfred Lutterworth em pessoa apareceu no vestíbulo, vestido apressadamente. Só o pescoço sem gravata e o casaco e as calças mal juntadas delatavam que estava levantado já antes. Possivelmente tinha sido um de dos muitos que tinham formado a multidão formando redemoinhos ao redor do incêndio: ansiosos, curiosos, preocupados, alguns para oferecer ajuda e outros para ver o trabalho dos bombeiros até seu desgraçado desenlace.

— A casa do Lindsay - disse, mais como afirmação que como pergunta. — Pobre diabo. Era um bom homem. E Shaw? Caçaram-lhe esta vez?

— Você acha que foi por causa de Shaw, senhor? - Pitt deu um passo para o interior da casa e Murdo seguiu-o nervoso.

Lutterworth fechou a porta atrás deles.

— Acredita que sou tolo? Por quem senão ele? Primeiro sua casa, logo a do Lindsay. Não fiquem aí. Entrem, embora não tenho nada que lhes dizer. — O sotaque do norte marcava-o pela emoção. — Se tivesse visto alguém, não teria necessitado vir ver-me. Eu teria ido buscá-lo.

Pitt e Murdo seguiram-no. A sala de estar estava fria, o fogo apagado, mas Flora permanecia junto à lareira. Também estava vestida com ruoupa de rua. Usava um vestido cinza de inverno e tinha o semblante pálido e o cabelo recolhido com um lenço de seda.

Murdo se sentiu muito desconfortável, não sabia o que fazer com os pés nem onde colocar as mãos.

— Boa noite, inspetor. - Olhou ao Pitt com cortesia e depois a Murdo quem desejou muito receber um sorriso. — Boa noite, agente Murdo.

Deu-lhe um tombo o coração. Lembrava-se de seu nome. Tinha-lhe sorrido, não é verdade?

— Boa noite, senhorita Lutterworth. - Sua voz, rouca, acabou em um agudo.

— Podemos ajudá-los, inspetor? - Ela se voltou para o Pitt de novo. — Alguém necessita... proteção? - Seus olhos lhe rogavam que respondesse à pergunta que ela não tinha formulado.

Murdo tomou ar para responder, mas Pitt se adiantou.

— Seu pai pensa que o incêndio foi provocado de maneira intencional, com o propósito de matar ao doutor Shaw. - Pitt tratou de observar sua reação.

A jovem pareceu sufocar-se e Murdo, se houvesse se atrevido, de boa vontade teria se precipitado para segurá-la se por acaso desmaiava. Naquele instante odiou Pitt por sua brutalidade, e ao Lutterworth por não ter protegido a sua filha quando era seu dever.

Ela mordeu o lábio para que deixasse de lhe tremer e os olhos lhe umedeceram. Voltou-se de costas para dissimulá-lo.

— Não chore por ele, filha - disse Lutterworth. — Não lhe fazia nenhum bem, nem a sua pobre mulher tampouco. Era um homem ambicioso que não tinha escrúpulos. Guarde as lágrimas para o pobre Amos Lindsay. Ele sim era um bom homem, a sua maneira. um pouco brusco, mas há coisas piores. Não lhe tome assim. - Voltou-se para o Pitt. — Deveria medir melhor suas palavras e escolher melhor o momento. É bastante torpe!

Murdo morria de indecisão. Devia oferecer à garota seu lenço? Pela manhã era um lenço limpo, mas agora devia desprender um forte aroma de fumaça. Além disso, não pareceria a ela um gesto impertinente, um excesso de familiaridade?

Tremiam os ombros da jovem e soluçava silenciosamente. Oferecia uma imagem tão vulnerável como a de uma menina.

Murdo não pôde suportá-lo. Tirou-se o lenço do bolso, atirando ao chão um molho de chaves e um lápis, e avançou para dá-lo. Tinha deixado de lhe importar o que pensasse Pitt, ou que estratégia detetivesca estivesse utilizando. E sentiu ódio também por Shaw - o que era uma emoção nova para ele - pelo fato de que Flora chorasse por ele com tal compunção.

— Não morreu, senhorita - disse torpemente. — Tinha saído a atender uma chamada e agora está muito alterado, mas nem sequer está machucado. O senhor Oliphant, o padre, o levou para que se hospede com ele esta noite. Por favor, não chore desse modo...

Lutterworth contemplava a cena com ar sombrio.

— Você disse que tinha morrido. - Voltou-se para Pitt.

— Não, senhor Lutterworth. Você o deu como subentendido. Lamento ter que lhe confirmar que o senhor Lindsay morreu. Mas o doutor Shaw está são e salvo.

— Escapou outra vez? - Lutterworth olhou a Floresce com cenho e a boca tensa. — Com certeza esse cafajeste acendeu ele mesmo a mecha.

Flora deu um pulo, com o rosto sulcado pelas lágrimas e o lenço do Murdo espremido entre os dedos. Seus olhos, arregaldos, olhavam a seu pai com fúria.

— Como pode dizer algo tão terrível! Não tem direito a pensar nisso sequer! É um insensato!

— Oh, claro, e você sabe muito sobre a sensatez, não é, menina? – replicou Lutterworth. Tinha a voz alterada pela emoção. — É muito sensato entrar e sair a todas as horas às escondidas para ir vê-lo, pensando que eu não me inteiro. Pelo amor de Deus, mas se sabe disso meio Highgate! E as pessoas falam disso à hora do chá, como se fosse uma vulgar fulana...

Murdo soltou uma exclamação sufocada, como se a palavra lhe tivesse golpeado no estômago. Teria encaixado melhor uma surra de um ladrão ou de um bêbado antes que ouvir aquele termo referido-se a Flora. Se houvesse dito outro homem, teria derrubado-o com um murro. Mas não podia fazer nada.

— E o pior é que não seria capaz de chamá-los de mentirosos! - Lutterworth se consumia de impotência. Qualquer um, salvo Murdo, teria sentido pena dele. — Santo Deus, se sua mãe vivesse não deixaria de chorar só de vê-la. É a primeira vez desde que morreu que não lamento que não esteja aqui comigo, a primeira vez...

Flora o olhou e se ergueu ainda mais. Tomou ar para defender-se, com as faces encarnadas e os olhos faiscantes. Mas de repente seu semblante adquiriu uma expressão de desolação e guardou silêncio.

— Não diz nada? - bradou ele. — Não tem uma desculpa sequer? Não... Que homem tão estupendo. Se eu o conhecesse como você, verdade?

— É injusto comigo, papai - disse ela muito rígida. — E também com você. Sinto que pense tão mal de mim, mas pode acreditar o que quiser.

— Não se faça de presunçosa nem de dura comigo, mocinha. - O rosto do Lutterworth se debatia entre a ira e a dor. Se ela o tivesse observado com maior vagar, teria podido apreciar o orgulho que sentia ele ao olhá-la, e as esperanças frustradas. Mas as palavras que utilizava não eram as mais afortunadas. — Sou seu pai, não um idiota que vai atrás de ti. Não é tão velha para que não possa mandá-la a seu quarto, se for preciso. E penso aceitar ao primeiro que venha pedir sua mão, embora não lhe agrade. Ouve-me, menina?

Ela tremia.

— Tenho certeza de que todo mundo nesta casa está ouvindo-o, papai, incluída a criada que dorme no apartamento de cobertura... - Lutterworth corou de ira. — Mas se alguém me fizer a honra de me cortejar - continuou antes de que ele pudesse replicar,     — asseguro-lhe que pedirei sua aprovação. Mas se quiser, casarei-me com ele você goste ou não. - Voltou-se para o Murdo e agradeceu por lhe ter informado que o doutor Shaw estava são e salvo. Depois, sem soltar o lenço, saiu da sala, e todos ouviram seus passos ao cruzar o vestíbulo e subir pela escada.

Lutterworth estava muito aflito e confuso para lhes pedir desculpas ou procurar uma desculpa por aquela cena.

— Não posso lhes dizer nada que não saibam por vocês mesmos - disse com brusquidão. — Ao ouvir o alarme saí à rua a ver o que acontecia, assim como a metade da vizinhança, mas antes disso não vi nem ouvi nada. Agora vou para a cama, assim será melhor que sigam com seus assuntos. Boa noite.

— Boa noite, senhor - responderam os policiais, antes de dirigir-se à porta.

Não foi aquela a única disputa que presenciaram ao longo da noite.

Pascoe estava muito aflito para recebê-los e seu criado não quis incomodá- algo. Assim se dirigiram em silêncio, e com poucas esperanças de averiguar algo útil, a casa dos Hatch para interrogar à criada do Lindsay, a quem acharam envolta em várias mantas e presa de tão violentas convulsões que era incapaz de sustentar uma xícara. Não pôde lhes dizer nada salvo que despertara ao ouvir as campainhas dos bombeiros e que se havia sentido tão aterrorizada que não tinha sabido o que fazer. Um bombeiro tinha subido até a janela e a tinha tirado do quarto, levado pelo telhado da casa e feito descer uma escada até o jardim, onde a tinham orvalhado com uma mangueira, de forma acidental, é claro.

Ao chegar a aquele ponto os dentes tocavam castanholas e Pitt teve que aceitar que era difícil que aquela moça soubesse algo de utilidade, e que em qualquer caso estava longe de ser capaz de dizê-lo. Nem sequer a possibilidade de obter algum indício sobre quem tinha queimado duas casas até os alicerces, com seus ocupantes dentro, esporeou-o a insistir.

Uma vez que a levaram para cama, Pitt se voltou para o Josiah Hatch, que estava com olheiras e com o olhar ausente a ponto de ensimesmar-se. Talvez o ver-se obrigado a responder a perguntas sobre fatos concretos não supusesse a tortura que pudesse parecer a princípio. Isso o tiraria do sobressalto ante tanta destruição e, a julgar pelo tique dos olhos e da boca, do medo à maldade que de forma tão evidente rodeava-os.

— A que hora foi dormir esta noite, senhor Hatch?

— Né? - Hatch voltou para presente com dificuldade. — Oh... tarde... Não olhei o relógio. Estive refletindo a respeito de algo que li.

— Ouvi-o subir as escadas por volta das duas menos quarto - interveio Prudence com tato, olhando a seu marido e depois ao Pitt.

Aquele voltou para ela um rosto inexpressivo.

— Despertei-a? Sinto muito, era o último que pretendia.

— Oh, não, querido! Estava acordada porque tinha tido que me levantar por uma das crianças. Elizabeth teve um pesadelo. Ainda não havia voltado a dormir, nada mais.

— Está bem agora?

O rosto de Prudence se distendeu em um imperceptível sorriso.

— Claro que sim. Só foi um mau sonho. Às crianças acontece bastante freqüentemente. Só precisava era que a tranqüilizassem um pouco.

— E não podia havê-lo feito um dos meninos maiores sem ter que se levantar?

— Hatch franziu o sobrecenho, como se considerasse um assunto muito importante. — Nan tem quinze anos! Dentro de poucos anos poderia ser mãe ela mesma.

— Há um abismo entre ter quinze anos e ter vinte, Josiah. Eu me lembro de quando tinha quinze anos. - O imperceptível sorriso voltou ao seu rosto, doce e triste. — Não sabia nada e achava saber tudo. Havia aspectos da vida, mundos inteiros de experiência, dos quais não tinha a mais remota noção.

Pitt se perguntou quais seriam em concreto aquelas experiências cuja ignorância reconhecia Prudence. Talvez se referisse ao matrimônio, à responsabilidade uma vez esfriada a paixão, à obediência, e possivelmente ao fato de ter filhos... Podia tratar- se de coisas mundanas, sem relação com o lar, de tragédias que possivelmente lhe houvesse tocado presenciar e inclusive participar.

     Hatch não parecia saber a que se referia. Enrugou a fronte em um gesto de incompreensão e se voltou de novo para o Pitt.

— Não vi nada relevante. - Respondeu à pergunta antes de que a formulassem.

— Estava em meu estúdio lendo um texto de são Agostinho. - Distenderam-se os músculos do queixo e lhe embargou algum tipo de devaneio. — As palavras dos homens que procuraram a Deus em outras épocas constituem um valioso guia para nós... e um grande consolo. No mundo sempre existiu a maldade, e existirá enquanto a fraca alma do homem continue estando tão assediada pelas tentações. – Voltou o olhar a Pitt. — Mas receio que não posso lhe servir de ajuda. Minha mente e meus sentidos estavam absortos na contemplação e no estudo.

— Que terrível - disse Prudence a ninguém em particular — que estivesse acordado em seu estúdio lendo sobre o conflito entre o bem o mal. - Estremeceu e se rodeou com os braços. — E que a só umas centenas de metros daqui houvesse alguém provocando um incêndio que ia matar ao pobre senhor Lindsay... e que só por um golpe de sorte não matou também ao pobre Stephen.

— No Highgate há forças do mal muito poderosas. - Ficou de novo com o olhar fixo, como se pudesse ver o desenho das mesmas no espaço entre o vaso de barro com os crisântemos dourados e o modelo bordado pendurado na parede com as palavras do salmo 23. — A iniqüidade se assenhorou e foi convidada a morar entre nós - acrescentou.

— Você sabe quem a convidou, senhor Hatch? - Era sem dúvida uma pergunta fútil, mas Pitt se sentiu impulsionado a fazê-la. Murdo, atrás dele, silencioso até o momento, começou a balançar-se desconfortável.

Hatch olhou surpreso ao redor.

— Deus lhe perdoe e lhe dê a paz, mas Lindsay o tinha feito. Difundiu turvas idéias a respeito da revolução e da anarquia, tratou de subverter a ordem do mundo. Vaticinou o advento de não sei que nova sociedade na qual ficaria suprimida a propriedade privada e na qual os homens não serão recompensados por seus méritos e esforços, mas lhes darão uma igual retribuição. Isso acabaria com a segurança na gente mesmo, na diligência, na industriosidade e no sentido da responsabilidade. Em uma palavra, com todas as virtudes que engrandeceram o Império e fez de nossa nação a inveja de todo o círculo cristão. - Fez uma careta de ira e ao mesmo tempo de dor-. E John Dalgetty publicou tais idéias, para desonra sua, mas não é mais que um pobre louco arrojado a uma perseguição perpétua do que ele considera justiça e de uma espécie de liberdade de espírito que se converteu no mais importante para ele, até o ponto de lhe consumir o são juizo. E em seu frenesi enganou a muitos.

Guardou silêncio um momento e olhou ao Pitt.

— O pobre Pascoe fez o impossível para dissuadi-lo, e depois tentou freá-lo através da opinião pública e inclusive da lei. Mas ele não é mais que um grão de areia contra a maré de curiosidade e desobediência que domina à humanidade, assim como a paixão pelo novo... Sempre em busca de novidade. - Notava-se o corpo duro pela tensão.          — Novidades ao preço que seja! Novas ciências, uma nova ordem social, uma arte nova... somos insaciáveis. No mesmo minuto em que encontramos uma coisa, já estamos desejando deixá-la a um lado e procurar outra nova. Rendemos culto à liberdade como se fosse um bem infinito. Mas ninguém pode escapar à moralidade... O grande engano desta concepção é pensar que alguém é livre das conseqüências dos próprios atos. - Agitou mão. — Isso é o que esconde todo esse louco desejo pelo novo e pela irresponsabilidade. Desde o começo dos tempos são uma espécie que ânsia o conhecimento proibido, disposta sempre a comer o fruto do pecado e da morte. Deus ordenou a nossos primeiros pais que se abstivessem, mas não o fizeram. O que pode fazer o pobre Quinton Pascoe? - Seu rosto se distendeu em uma dolorosa expressão de derrota. — E Stephen, em sua arrogância, deu seu apoio a Dalgetty e zombou de Pascoe e seus esforços por nos proteger das cruas expressões de idéias que, no melhor dos casos, não podem fazer outra coisa que ferir ou assustar às pessoas... e no pior dos casos, depravá-las. Zombar da verdade, de todas as aspirações passadas do homem pelo bem mais alto, é uma das mais temíveis armas do Maligno. E, Deus nos livre, Stephen se mostrou sempre mais que disposto a servir-se dela.

— Josiah, acredito que está sendo muito duro - lhe reprovou Prudence. — Sei que às vezes Stephen fala de forma pouco sensata, mas não há crueldade em suas palavras...

Voltou-se para ela com gesto severo.

— Conhece muito mal a esse homem, querida. Só vê seu lado mais favorável. Isso a honra, e eu não pretendo que seja de outro modo, mas deve escutar um conselho: ouvi-odizer coisas que eu jamais repetirei diante de si, coisas tão cruéis como degradantes. Sente um grande desprezo por algumas das virtudes que você mais admira.

— Oh, Josiah, tem certeza? Possivelmente interpretou-o mal. Às vezes sente prazer em um senso de humor bastante desafortunado, mas...

— Nada disso! - exclamou categórico. — Sou perfeitamente capaz de discernir quando tenta ser divertido e quando pensa de verdade o que diz, por muita frivolidade com a qual a encubra. A essência da brincadeira, Prudence, é fazer com que as boas pessoas riam do que, de outro modo, teriam tomado a sério e teriam amado: fazer que a pureza moral, o trabalho, a esperança e a fé em outros lhes pareçam coisas ridículas, coisas dignas de ser tomadas em brincadeira e das quais alguém pode rir.

Prudence abriu a boca para refutar a seu marido, mas deve ter lhe vindo à mente alguma outra circunstância, algum fato até aquele momento secundário que a fez ruborizar-se e baixar a vista. Pitt sentiu sua confusão com tanta intensidade como se lhe houvesse tocado, mas não tinha a menor idéia de sua causa. A mulher desejava defender a Shaw, mas por que? Por afeto? Por mera compaixão por acreditar seu sofrimento sincero? Ou por algum outro motivo? E o que a tinha refreado?

— Lamento que não possamos ajudá-los - disse Hatch, e sua voz não podia dissimular o esgotamento nem seus olhos a comoção vivida. Estava a ponto de desmoronar. Eram quase quatro da manhã.

Pitt se rendeu.

— Obrigado por sua atenção e amabilidade. Não o entreteremos mais. Boa noite, senhor. Senhora Hatch.

Fora fazia uma noite escura e o vento assobiava no negrume e levantava brilhos incandescentes das ruínas da casa de Amos Lindsay. A rua ainda estava cheia de veículos antiincêndios e os bombeiros passeavam os cavalos acima e abaixo para que não ficassem com frio.

— Volte para casa - disse Pitt a Murdo; seus rastros ficavam marcados no gelo do pavimento. Vá dormir um pouco. Veremo-nos as dez na delegacia de polícia.

— Sim, senhor. Pensa que pôde fazê-lo o próprio Shaw, senhor? Para encobrir o assassinato de sua mulher?

Pitt olhou o semblante chamuscado e desolado do Murdo. Sabia o que estava pensando.

— Por Floresce Lutterworth? É possível. É uma jovem muito bonita e algum dia terá muito dinheiro. Mas duvido que Flora tenha algo a ver com os incêndios. Agora vá para casa dormir... e trate essa mão. Se essa bolha lhe arrebentar, sabe Deus que infecção pode pegar. Boa noite, Murdo.

— Boa noite, senhor. - Murdo foi a toda pressa pela estrada, em direção ao Highgate.

Pitt demorou quase meia hora para achar uma carruagem de aluguel. E no final conseguiu só porque um notívago se negou a pagar o trajeto e o cocheiro estava fora da carruagem gritando com ele. Resmungou e exigiu que Pitt lhe abonasse um plus, mas como Bloomsbury ia mais ou menos no caminho, sopesou cansaço frente a benefício e acabou por ceder a este último.

Charlotte desceu pressurosa pelas escadas quase sem dar tempo a que Pitt fechasse a porta, com uma mantilha sobre os ombros e sem sapatilhas. Ficou olhando, a espera de uma resposta.    

— Amos Lindsay morreu - disse ele enquanto tirava as botas e movia os congelados dedos dentro das meias, que deveria pôr a secar na cozinha. — Shaw não estava, outra vez lhe tinham chamado para uma urgência. Voltou um pouco depois que chegamos nós. Os criados estão bem.

Ela permaneceu vacilante enquanto assimilava a notícia. Depois acabou de descer os últimos degraus e lhe rodeou o pescoço com os braços, apoiando a cabeça em seu ombro. Não havia necessidade de falar naquele momento. Só podia pensar no alívio que sentia, e no frio que tinha Pitt, e o sujo e cansado que estava. Queria consolá-lo e aliviá-lo do horror, fazer que se esquentasse novamente, que dormisse.

— A cama está quente - disse por fim.

— Estou cheio de fuligem e cheiro a fumaça - disse ele lhe acariciando o cabelo.

— Lavarei os lençóis - argüiu ela sem mover-se.

— Terá que deixá-los muito tempo de molho.

— Já sei. A que hora tem que voltar?

— Às dez.

— Então não fique aqui tremendo de frio. - Afastou-se e o pegou pela mão.

Ele a seguiu em silêncio ao piso de cima. Assim que se despojou da roupa caiu com uma sensação de gratidão nos cálidos lençóis e aproximou-se de Charlotte a seu lado. Ao cabo de uns minutos dormiu.

Pitt dormiu até tarde e quando despertou Charlotte já se levantara. Vestiu-se a toda pressa e desceu em busca de água quente para barbear-se em cinco minutos e compartilhar a mesa do café da manhã com seus filhos. Aquele era um estranho prazer, já que quase sempre ele se fora quando eles tomavam o café da manhã.

— Bom dia, Jemima - disse com afetado formalismo. — Bom dia, Daniel.

— Bom dia, papai - responderam eles enquanto ele se sentava.

Daniel tinha um rosto doce, com traços ainda pouco definidos. Seus dentes estavam bem alinhados e formados. Tinha os escuros cachos do Pitt, diferente de Jemima, dois anos mais velha, que tinha a mesma cor castanho avermelhado de sua mãe, embora tinha que prender o cabelo com trapos toda a noite se quisesse levá-lo encaracolado.

— Coma os cereais - lhe ordenou Jemima enquanto ela levava uma colherada à boca. Gostava de meter-se nas coisas de seu irmão, mandar nele, mas ao mesmo tempo era superprotetora com ele. E raramente deixava de falar. — Ficará com frio no colégio se não comer!

Pitt dissimulou um sorriso, perguntando-se de onde teria tirado aquela idéia.

Daniel obedeceu. Em seus quatro anos de vida tinha aprendido que, no fim, obedecer era mais fácil que discutir. Além disso, seu caráter não era briguento nem intransigente, salvo em assuntos de importância, como quando lhe tinham posto mais pudim, ou que o carro de bombeiros de brinquedo era seu e não dela, e que como ele era o menino poderia sair a passear fora. E o aro também era dele, e o pau para fazê-lo rodar...

Ela estava de acordo com a maior parte dessas coisas, salvo respeito a sair fora de casa: ela era maior, e mais alta, assim era lógico que fosse ela que tivesse permissão.

— Está trabalhando em um caso muito importante, papai? - perguntou Jemima com os olhos muito abertos. Sentia-se muito orgulhosa de seu pai. Tudo o que ele fazia era importante.

Sorriu-lhe. Às vezes se parecia muito com Charlotte em sua idade: a mesma boquinha de linhas suaves, o mesmo queixo obstinado e os mesmos olhos inquisitivos.

— Sim. No Highgate.

— Morreu alguém? - perguntou ela. Não sabia muito bem o que significava que alguém tivesse "morrido", mas tinha ouvido aquela palavra muitas vezes e ela, Charlotte e Daniel tinham enterrado alguns passarinhos mortos no jardim. Mas não podia recordar tudo o que sua mãe lhe tinha contado, salvo que era algo normal e que tinha que ver com o céu.

Pitt olhou para Charlotte por cima da cabecinha da Jemima. Sua mulher assentiu.

— Sim.

— E vai resolvê-lo?

— Isso espero.

— Eu também quero ser detetive quando for maior - disse tomando outra colherada de cereais. — E também resolverei casos.

— E eu também - vatravessou Daniel.

Charlotte pôs ao Pitt outro prato de leite com cereais e continuaram em animada conversa até que ele teve que partir. Deu um beijo aos meninos e Charlotte, e calçou as botas, que sua esposa tinha trazido pela manhã para que lhe esquentassem, e partiu por fim.

Fazia uma dessas rudes manhãs de outono em que o ar frio provoca comichão no nariz, mas o céu é azul e o rangido da geada sob os pés produz um som nítido e prazeroso.

Em primeiro lugar se dirigiu ao Bow Street para informar ao Micah Drummond a respeito dos últimos acontecimentos.

— Outro incêndio? - Drummond franziu a fronte, de pé junto à janela de seu escritório, enquanto olhava a sucessão de telhados até o rio. O sol matinal desprendia brilhos cinzas e prateados. A bruma estava relegada à mesma superfície da água. — E Shaw tornou a escapar com vida? - Voltou-se e olhou a Pitt. — Isso dá o que pensar.

— Ele estava muito afetado. - A lembrança da noite anterior lhe produziu um agudo sentimento de piedade.

— Suponho que a polícia do Highgate estará procurando entre todos os piromaníaco conhecidos da zona, seus métodos, sua conduta habitual, etcétera... indagaram entre os curiosos, se por acaso se tratasse de um maníaco que desfruta vendo incêndios?

— Meticulosamente - disse Pitt com tristeza.

— Mas você pensa que se trata de um crime premeditado... - Drummond o observou.

— Assim acredito.

— Tenho que apressá-lo um pouco para que resolva quanto antes. - Drummond tinha voltado para sua escrivaninha e seus longos dedos brincavam com o corta-papel de punho de cobre. — Necessitamos de você aqui. Detiveram meia dúzia de tipos em relação com esse assunto de Whitechapel. Suponho que terá lido os jornais?

— Vi a carta do senhor Lusk - disse Pitt com ar grave. — Com o rim humano incluído, e supostamente enviada "do inferno". Dá vontade de pensar que é certo. Alguém que seja capaz de assassinar e mutilar pessoas de forma tão reiterada deve viver no inferno, e levá-lo com ele.

— Lamentações à parte - disse Drummond muito sério, — as pessoas estão começando a dar sinais de pânico. Whitechapel está deserto assim que escurece, as pessoas pedem a demissão do delegado, os jornais entregam-se cada vez mais ao sensacionalismo. Uma mulher morreu de um enfarte com a última edição nas mãos.-Drummond suspirou com expressão de infortúnio e os olhos cravados nos do Pitt.

— Sabe de uma coisa? Nos music halls não se fazem piadas alusivas ao tema. Normalmente as pessoas fazem brincadeira com aquilo que mais lhes assusta, é uma forma de espantar os medos. Mas este caso é muito atroz.

— De verdade? - Curiosamente, aquela circunstância foi para Pitt mais reveladora que todos os pôsteres e a imprensa sensacionalista. Era um indício da profundidade do medo entre a gente comum. Esboçou um sorriso inclinado. — Não acredito que ultimamente tenham tido muito tempo para ir aos music halls.

Drummond aceitou a graça.

— Faça tudo o que possa com esse assunto do Highgate, Pitt, e me mantenha informado.

— Sim, senhor.

Desta vez em lugar de parar uma caleça, Pitt caminhou a passo ligeiro até a estação do Embankment e pegou um trem. Desceu na estação do Highgate Road e separou os poucos penny de diferença para o aniversário de Charlotte. Por algo se começa. Subiu Highgate Rise até a delegacia de polícia.

Foi recebido com uma saudação que deixava ver uma tácita prevenção.

— Bom dia, senhor. - Os rostos mostravam gravidade e ressentimento, mas também certa satisfação.

— Bom dia - respondeu. — Descobriram algo?

— Sim, senhor. Demos com um piromaníaco que já fez o mesmo antes. Não matou a ninguém, mas isso em minha opinião foi mais produto da sorte que de outra coisa. O método era similar: azeite combustível. Atuava no Kentish Town, a um passo daqui. Suponho que terá decidido vir mais ao norte.

Pitt, perplexo, tratou de dissimular sua expressão de incredulidade.

— Prenderam-no?

— Ainda não, mas o faremos. Sabemos como se chama e onde vive. Só é questão de tempo. — O agente sorriu e olhou ao Pitt nos olhos. — Não parece que necessitássemos que nos enviassem um oficial de alta graduação do Bow Street para que nos ajudasse. Resolvemo-lo nós sozinhos: não há como o trabalho policial feito por pessoal que conheça sua zona. Talvez seria melhor que partisse para dar uma mão no Whitechapel... Pelo que parece esse Jack Estripador tem a toda a cidade sob o terror.

— Poderiam fazer fotografias dos olhos das mulheres mortas - acrescentou outro agente de forma pouco serviçal. — Dizem que quando se vê uma pessoa antes de morrer isso fica gravado no fundo dos olhos. Se é que pode conseguir-se ver. Claro que não estamos falando de cadáveres dignos de consideração... pobres mulheres.

— Nem tampouco encontramos aqui ainda um assassino digno de consideração - acrescentou Pitt, que recordou a conveniência de não perder as formas. Ainda deveria trabalhar algum tempo com aqueles homens. — Suponho que já teriam investigado ao proprietário do outro imóvel que queimou esse piromaníaco? Poderia ser um caso de fraude para cobrar o seguro.

O oficial se ruborizou e mentiu:

— Sim, senhor, hoje estamos investigando isso.

— Contava com isso. - Pitt lhe sustentou o olhar sem pestanejar. — Às vezes os piromaníacos atuam movidos por razões de outra índole que a de ver as chamas e experimentar a sensação de poder que lhes produz. Enquanto isso continuarei considerando outras possibilidades. Onde está Murdo?

— Na sala de serviço, senhor.

— Obrigado.

Pitt achou ao Murdo esperando-o justo ao outro lado da porta da sala de serviço. Tinha aspecto cansado. A mão machucada, envolta em uma bandagem, pendia rígida ao longo do corpo. Ainda parecia hesitar entre conceder suas simpatias ao Pitt ou permanecer ressentido. Não tinha esquecido a forma como tinha tratado a Floresce Lutterworth, nem sua própria incapacidade para evitá-lo.

Todas estas emoções se refletiam em seu rosto, o que fez recordar ao Pitt quão jovem era.

— Há algo novo, além desse piromaníaco? - perguntou.

— Não, senhor. Só que o chefe de bombeiros diz que tudo foi igual a com o outro... embora imagine que já supunha isso.

— Óleo diesel?

— Sim, senhor, com toda probabilidade. Iniciou-se ao menos em três pontos diferentes.

— Bom, vamos ver se Pascoe está em condições de falar esta manhã.

— Sim, senhor.

Quinton Pascoe estava sentado junto a um crepitante fogo em sua saleta de estar, mas continuava oferecendo um aspecto transido, possivelmente pelo cansaço. Tinha círculos escuros sob os olhos. Parecia envelhecido com respeito à última vez que o tinha visto Pitt, e, apesar de seu corpo robusto, também menos robusto.

— Entre, inspetor. Agente - disse sem levantar-se. — Sinto não lhes ter podido receber ontem à noite, mas tampouco teria podido lhes dizer algo. Tomei um pouco de láudano... Sentia-me muito afetado pela aparência que estão tomando os acontecimentos e queria descansar bem. - Olhou com expectativa para Pitt, procurando sua compreensão. — Quanta maldade desatada - disse meneando a cabeça. — Me sinto cada vez mais perdido. Tudo isto me traz à mente o final da távola redonda do rei Artur, quando os cavalheiros se foram um a um em busca do Graal e a honra e o companheirismo começaram a rachar-se. A lealdade acabou por romper-se. Com o fim da cavalaria morreu certo tipo de nobreza e valor: o idealismo que acredita na virtude verdadeira e está disposto a lutar até a morte por preservá-la, e que conta com o privilégio da batalha como única recompensa.

Murdo tinha ficado estupefato.

Pitt recordou a Morte d’Arthur e os Idylls of the King, e pensou que talvez vislumbrasse um retalho do que Pascoe queria dizer.

— Estava pesaroso pela morte da senhora Shaw, ou possivelmente por outras preocupações? Referiu-se você à maldade em um sentido muito geral...

— Esse fato foi algo atroz. - O rosto do Pascoe parecia mudado, como se estivesse em um estado de confusão e os acontecimentos lhe ultrapassassem. — Mas há também outras coisas. - Moveu ligeiramente a cabeça. — Sei que sempre volto para John Dalgetty, mas é que essa sua atitude de ridicularizar os velhos valores com vistas à construção de uma nova... - Olhou ao Pitt. — Não condeno todas as idéias novas, é claro. Mas muitas coisas que ele defende são destrutivas.

Pitt não disse nada, sabedor de que não havia resposta possível.

Pascoe arqueou as sobrancelhas.

— Põe em questão todos e cada um dos fundamentos que demoramos séculos em construir. Semeia a dúvida sobre a origem mesmo do homem e de Deus. Faz eles acreditarem que os jovens são invulneráveis à maldade dos falsos ideais, do cinismo mais corrosivo e da irresponsabilidade... despojando-os ao mesmo tempo da armadura da fé. Querem derrubar e mudar as coisas sem pensar antes. Acreditam que podem o ter tudo sem trabalhar por isso. - Mordeu o lábio e franziu as sobrancelhas. — O que podemos fazer, senhor Pitt? Estive acordado de noite dando voltas e agora sei menos que quando comecei.

Ficou em pé e caminhou para a janela. Depois se voltou e retornou ao ponto de partida.

— Fui vê-lo, é claro, supliquei-lhe que retivesse algumas das publicações que vende, que não elogiasse algumas das obras que resenha, em especial as que fazem referência a essa filosofia política da Fabián Society. Mas foi em vão. – Agitou as mãos. Só é capaz de dizer é que a informação é sagrada e que os homens têm direito a ouvir e julgar por si mesmos. E de forma similar, que todo mundo é livre para expressar as idéias que lhe agradem, sejam verdadeiras ou falsas, boas ou más, criativas ou destrutivas. Nada do que eu lhe diga pode dissuadi-lo. E Shaw, claro, não faz senão animá-lo com sua facilidade para ridicularizar tudo, sobre tudo quando é às custas de outros.

Murdo não estava acostumado a ouvir falar das idéias com aquela paixão. Balançava-se incomodado de uma perna a outra.

— O problema - prosseguiu Pascoe com ardor — é que a gente nem sempre sabe quando brinca. Tomemos este terrível assunto do Lindsay. Estou comocionado por sua morte, não tinha nada contra ele em sentido pessoal, me compreenda, mas acredito que cometeu um engano muito grave ao escrever aquela monografia. Há gente muito tola, sabe? - procurou os olhos do Pitt, — que acredita nessas absurdas idéias a respeito de uma ordem política nova que promete fazer justiça arrebatando a propriedade privada e dando a todos o mesmo, sem importar o inteligentes ou eficientes que sejam. Suponho que não terá lido a esse irlandês miserável, esse George Bernard Shaw, não é? Escreve para dividir às pessoas, como se tratasse de excitar a rivalidade e favorecer a insatisfação das pessoas. Fala por um lado de gente que não tem o que comer, e pelo outro de gente que tem muita comida. Isso sim, é um apaixonado da liberdade de expressão. - Soltou uma risada aguda. — Como não ia ser isso, se o que quer é poder dizer o que tenha vontade? E Lindsay o fazia com as resenhas de suas obras.

Calou de repente.

— Sinto muito. Não sei nada que possa lhes servir de ajuda, nem tampouco quero falar mal de ninguém com este tipo de questões em jogo, muito menos dos mortos. Dormi até que despertaram as campainhas dos bombeiros e a casa do pobre Lindsay era uma fogueira.

Pitt e Murdo partiram. Imersos cada um em seus pensamentos, saíram ao gélido vento da rua. Durante o caminho até a infrutífera visita aos Clitheridge não se disseram nada. O criado do Lindsay não pôde lhes dizer nada a respeito de como se originou o fogo, só que despertou quando o aroma de fumaça penetrou na ala de serviço, na parte traseira da casa, e que já então o corpo principal da moradia ardia de forma violenta, por isso seus esforços por resgatar a seu senhor foram inúteis. Ao abrir a porta de comunicação se achou com uma parede de chamas.

Apesar de sua posição encolhida na poltrona dos Clitheridge, seu rosto era mudo testemunho de seus ciumentos esforços. Tinha a pele avermelhada e cheia de bolhas, e as mãos, das que não se podia valer, enfaixadas com gaze.

— Esta manhã cedo veio o doutor Shaw para lhe pôr bálsamo e enfaixar disse Lally com admiração nos olhos. — Não sei de onde tira a força, depois desta nova tragédia. Além do horror do fato mesmo, estava muito unido a Amos Lindsay, sabe? Acredito que é o homem mais forte que conheço.

Enquanto ela falava, Pitt percebeu uma fugaz expressão de derrota no rosto do Clitheridge e imaginou um mundo de frustração, de carências insignificantes e de temor ante as toscas emoções de outros, o que deveria ser o que tocara em sorte ao vigário nesta vida. Não era um homem em quem a paixão emergisse com facilidade. Mas habitavam nele emoções de combustão lenta e sentimentos confusos e reprimidos, e um excesso de reflexão e insegurança. Naquele momento sentiu uma entristecedora compaixão por ele. E ao ver o rosto ofegante e autocrítico do Lally, sentiu o mesmo com respeito a ela. Era evidente que se sentia atraída pelo Shaw apesar de si mesma, o que tratava de explicar em termos aceitáveis nos quais expressava a admiração por suas virtudes. Este último contribuía com um conhecimento muito mais profundo e marcava uma considerável diferença.

Partiram sem haver-se informado de nada que parecesse de utilidade, salvo do endereço de Oliphant, onde souberam que Shaw tinha saído para atender uma chamada.

No Rede Lion comeram um bife picante e pudim de rins com toucinho rangente, acompanhado de verdura, e depois uma boa parte de bolo de frutas com um copo de cidra.

Murdo se recostou na cadeira, farto, mas Pitt se levantou da mesa.

— As senhoritas Worlingham. Por certo, sabe-se quem deu o aviso aos bombeiros? Até agora nenhuma das pessoas com as que falamos parecem havê-lo visto até que os veículos tinham chegado já, à exceção do criado do Lindsay, que estava muito ocupado tratando de resgatá-lo.

— Sim se sabe, senhor. Um indivíduo do Holly Village tinha saído de casa, estava no Holloway. - Ruborizou-se ligeiramente enquanto procurava a palavra adequada.— Tinha ido a um... encontro. Viu o resplendor e lhe veio à cabeça o primeiro incêndio, assim que se deu conta do que era e chamou os bombeiros. — Seguiu a contra gosto ao Pitt outra vez ao frio vento. — Senhor, que espera que possam lhe dizer as senhoritas Worlingham?

— Não sei. Algo relacionado com o Shaw e Clemency, talvez, ou com a morte do Theophilus.

— Acredita que Theophilus foi assassinado? - Murdo impostou a voz e titubeou em seu enérgico passo ao ocorrer-se aquela idéia. — Acredita que pôde matá-lo Shaw para que sua mulher herdasse antes? E que depois matou a sua esposa? Isso é espantoso. Mas e Lindsay? Por que mataria ao Lindsay então? Que benefício ia obter disso? Não pode havê-lo feito sem mais, sem motivo algum. - A mera idéia lhe causou um estremecimento.

— Duvido-o - respondeu Pitt, apertando o passo para esquentar e agasalhando o cachecol ao redor do pescoço. Fazia um frio que pressagiava neve. — Mas terá que ter em conta que esteve em casa do Lindsay vários dias. E Lindsay não era nenhum idiota. Se Shaw tivesse cometido algum engano, se se tivesse delatado a si mesmo por culpa de uma palavra de mais ou um silêncio suspeito, Lindsay o teria percebido e teria compreendido seu significado. Talvez não haveria dito nada no momento, mas Shaw, consciente de sua culpa e temeroso de ser descoberto, poderia ter se assustado ao observar o menor detalhe e ter atuado imediatamente para proteger-se.

Murdo deu de ombros e esticou o rosto à medida que sua mente assimilava o horror daquela idéia. Tinha um lastimoso aspecto de congelado, apesar das cores que lhe tinham subido ao rosto.

— Acredita que foi assim, senhor?

— Não sei, mas é possível. Não podemos passar isso por alto.

— É uma brutalidade.

— Queimar pessoas é uma brutalidade. - Pitt apertou os dentes contra o vento que os açoitava. — Não estamos procurando uma pessoa moderada nem afetada... seja homem ou mulher.

Murdo afastou a vista. Negava-se a olhar ao Pitt nos olhos ou inclusive pensar no que lhe dizia sempre que aludia à possibilidade de que o autor daqueles crimes fosse uma mulher.

— Tem que haver outros motivos - insistiu com teima. — Shaw é médico. Deve ter tratado todo tipo de enfermidades, ou ter visto mortes que outras pessoas queriam ocultar... ou se não a morte, sim o modo em que se produziu. E se tivesse sido outro o assassino do Theophilus Worlingham?

— Quem?

— A senhora Shaw. Para receber a herança.

— Para depois incendiar sua própria casa e morrer abrasada? E Lindsay?

Murdo custou morder a língua para não dar uma resposta irada. Pitt era seu superior e não se atrevia a ser abertamente rude, mas precisava desafogar o desgosto que o embargava. Cada vez que Pitt mencionava o tema do motivo, o rosto de Flora lhe aparecia na cabeça, vermelho de ira, encantador, cheio de paixão em defesa de Shaw.

A voz do Pitt abriu passagem entre seus pensamentos.

— Mas tem razão. Há uma extensa zona de motivos que ainda não começamos a desentupir. Deus sabe que escuros ou terríveis segredos se ocultam. Temos que fazer que Shaw nos diga isso.

Tinham chegado quase à residência dos Worlingham e não voltaram a falar até que estiveram na saleta de visitas junto ao fogo. Angeline estava sentada muito rígida na grande poltrona e Celeste permanecia de pé atrás dela.

— Asseguro-lhe que não sei o que lhe dizer, senhor Pitt - disse Celeste com calma.

Parecia ter envelhecido desde a última vez que a tinha visto. Percebiam-se sinais de tensão ao redor dos olhos e da boca e trazia o cabelo recolhido na nuca com um estilo mais severo e menos favorecedor. Mas ressaltava a força de seu rosto.

Angeline, por sua parte, estava pálida e com o rosto um pouco inchado. As linhas de seu queixo, mais suaves, estavam um pouco caídas e mostravam sua indeterminação. Nas comissuras de seus olhos se viam sinais de ter chorado e parecia bastante trêmula para pôr-se a chorar de novo.

— Estávamos dormindo - acrescentou Angeline. — É horrível! O que nos está acontecendo? Quem pode estar fazendo algo assim?

— Possivelmente se pudéssemos saber por que, saberíamos também quem. - Pitt as levava para o tema que ele desejava.

— Por que? - piscou Angeline. — Não sabemos por que!

— Talvez saibam, senhorita Worlingham, mas não são conscientes. Há dinheiro no meio, questões de herança...

— Nosso dinheiro? - Celeste pronunciou a palavra sem perceber.

— O dinheiro de seu irmão Theophilus, para ser exato - corrigiu-a Pitt. — Mas bom, sim, o dinheiro de vocês os Worlingham. Sei que pode lhes parecer uma intromissão, mas é preciso que saibamos alguns detalhes. Poderia nos dizer tudo o que recorde a respeito da morte de seu irmão, senhorita Worlingham? - Passeou o olhar de uma a outra para assegurar-se de que compreendessem que a pergunta incluíndo ambas.

— Foi de repente. - Os traços de Celeste se endureceram e sua boca formou uma linha fina e severa. — Receio que estou de acordo com Angeline: Stephen não o atendeu do modo que teríamos desejado. Theophilus gozava de uma saúde excelente.

— Se você o tivesse conhecido - interveio Angeline, — teria se surpreendido tanto como nós. Era como um... - Tratou de formar uma imagem mental de seu irmão. — Era tão vigoroso. - Sorriu com lágrimas nos olhos. — Tinha tanta vitalidade. Sempre sabia o que tinha de fazer. Tinha decisão, sabe você? Era um líder natural, como papai. Acreditava na saúde mental e nos benefícios do exercício físico para o corpo... no caso dos homens, claro, não no das mulheres. Theophilus tinha sempre a resposta certa para tudo e sabia no que cada qual devia acreditar. Não chegou à altura de papai, claro, mas mesmo assim não recordo que se equivocasse jamais em um assunto de importância. - Aspirou ruidosamente e pegou um recorte de tecido a modo de lenço. — Sempre tivemos dúvidas sobre a forma em que morreu, agora se pode dizer também. Não foi algo natural, certamente.

— Qual foi a causa de sua morte, senhorita Worlingham?

— Stephen disse que foi um ataque de apoplexia - respondeu Celeste com frieza.    — Mas só temos sua palavra, claro.

— Quem o achou? - insistiu Pitt, embora já soubesse.

— Clemency. - Celeste arqueou as sobrancelhas. — Acha possível que Stephen o matasse e que ao dar-se conta de que Clemency sabia, matasse-a a ela também? E depois ao pobre senhor Lindsay? Santo céu. - Estremeceu. — Quanta maldade, que monstruosidade. Não voltará a entrar nunca mais nesta casa... Não voltará a pôr os pés nem no degrau da entrada!

— Claro que não, querida. -Angeline aspirou. — O senhor Pitt o prenderá e o meterão no cárcere.

— Pendurarão-no - a corrigiu Celeste com ar inflexível.

— Oh, querida. - Angeline estava horrorizada. — É espantoso... graças a Deus papai não vive para vê-lo. Que um membro de nossa família acabe na forca... - pôs- se a soluçar, com o corpo encolhido pelo medo e tristeza.

— Stephen Shaw não pertence a esta família! - replicou Celeste. — Não é um Worlingham nem o será jamais. Para desgraça sua, foi Clemency a que se casou com ele e a que se converteu em uma Shaw... Ele não é dos nossos.

— De qualquer forma, segue sendo espantoso. Nunca havíamos sentido a vergonha tão perto, nem sequer por matrimônio - protestou Angeline. — O nome do Worlingham tinha sido sempre sinônimo de honra e dignidade. Imagine o que teria sentido papai se tivesse visto seu nome manchado pela menor desonra. Nunca fez nada que merecesse reprovação. E agora seu filho foi assassinado, e sua neta, cujo marido será pendurado na forca... teria morrido de vergonha.

Pitt a deixava continuar, pois sentia curiosidade por comprovar com quanta facilidade e até que ponto aceitavam ambas a culpa do Shaw. Agora devia lhes fazer compreender que só se tratava de uma entre muitas possibilidades.

— Não é necessário que se aflija antes de tempo, senhorita Worlingham. É muito possível que a morte de seu irmão se devesse a um ataque de apoplexia, tal como disse o doutor Shaw. Ainda não temos nenhuma prova de que este seja culpado de nada. Pode ser que este assunto não tenha nada que ver com um problema de dinheiro. É muito possível que Shaw se desse conta de que tinha atendido um caso clínico relacionado com algum crime, ou que tinha tratado de alguma enfermidade a um paciente disposto a matar para mantê-la em segredo.

Angeline levantou a vista com um gesto brusco.

— Refere-se a alguma enfermidade mental? Alguém que está louco e que Stephen sabe? Então por que não o diz? Deveria estar encerrado no Bedlam, com outros lunáticos. Não deveria permitir que andasse solto...

Pitt abriu a boca para lhe explicar que a pessoa em questão só achava que Shaw sabia. Mas então reparou na expressão de histeria de seu rosto, e no tenso olhar de Celeste, e decidiu que seria uma perda de tempo.

— Só se trata de uma possibilidade - disse. — Outra é que se produzisse uma morte não natural e que o doutor Shaw soubesse ou o suspeitasse. Há muitos outros motivos, talvez algum que nem sequer nos ocorreu.

— Assusta-me você - disse Angeline em voz baixa e trêmula. — Estou muito confusa. matou Stephen a alguém ou não?

— Ninguém sabe - respondeu Celeste. — É trabalho da polícia averiguá-lo.

Pitt lhes fez algumas pergunta mais relacionadas direta ou indiretamente com o Shaw ou com o Theophilus, mas não contribuíram com nenhuma informação suplementar.

Ao sair à rua, tinha clareado e o vento era ainda mais frio. Pitt e Murdo caminharam em silêncio até a casa de hóspedes em que se alojava Oliphant.

Encontraram por fim ao Shaw sentado junto ao fogo do salão principal, escrevendo notas em uma escrivaninha de persiana redonda. Parecia cansado, tinha os olhos rodeados de círculos escuros e a pele pálida, com um aspecto que recordava a textura do papel. Havia tristeza na forma em que deixava cair os ombros, e a energia nervosa que o caracterizava se transformou em tensão, refletida na agitação das mãos.

— Não tem objeto que pergunte a quem atendi, nem de que doença - disse com brusquidão tão logo viu o Pitt. — Por muito que eu pudesse conhecer a existência de uma enfermidade que pudesse impulsionar a alguém a me matar, isso não poderia ser motivo para que alguém quisesse causar dano ao pobre Amos. Claro que, nesse suposto, teria morrido porque eu estava em sua casa. - Quebrou-lhe a voz. — Primeiro Clemency... e agora Amos. Sim, suponho que têm razão. Se de verdade soubesse quem é faria algo a respeito... Talvez não o diria a vocês, mas algo faria.

Pitt se sentou na cadeira mais próxima a ele sem que a tivesse oferecido; Murdo permaneceu com discrição junto à porta.

— Pense, doutor Shaw - disse enquanto o observava e se odiava a si mesmo pela necessidade de ter que lhe recordar seu papel na tragédia. — Por favor, pense em algo do que você e Amos Lindsay falassem enquanto esteve acolhido em sua casa. É possível que tivesse conhecimento de algum fato que, se compreendido sua significação, lhe teria revelado quem provocou o primeiro incêndio.

Shaw levantou a vista com uma faísca de interesse pela primeira vez desde que os policiais tinham entrado na estadia.

— E você pensa que Amos Lindsay sim o compreendeu... e que o assassino sabia?

— É possível - respondeu Pitt com cautela. — Conhecia-o bem, não é assim? Era o tipo de homem que teria sido capaz de agir por sua conta, para conseguir provas possivelmente?

De repente os olhos do Shaw transbordaram de lágrimas e se voltou de costas, antes de dizer com voz emocionada:

— Sim... era. E Deus é testemunha de que não tenho a menor ideia de quem viu nem onde foi durante o tempo que eu estive ali. Estava tão exposto a minha dor e minha ira que não vi nada nem perguntei nada.

— Por favor, pense bem nisso, doutor Shaw. - Pitt ficou em pé, movido mais pela piedade e o desejo de não intrometer-se em sua aflição, que pelo tipo de curiosidade impessoal que lhe ditava sua profissão-. E se recordar algo, diga-me... a ninguém mais.

— Assim o farei. - Shaw parecia de novo imerso em seus próprios pensamentos, como se Pitt e Murdo se tivessem partido já.

Uma vez no exterior, sob o pálido sol da tarde, colorido já com os reflexos moribundos da luz outonal, Murdo olhou ao Pitt com os olhos entrecerrados pelo frio.

— Acredita que isso é o que aconteceu, senhor: que o senhor Lindsay averiguou quem era o criminoso e se aventurou em busca de provas?

— Sabe Deus. Fosse o que fosse o que viu, já não contamos com isso.

Murdo meneou a cabeça e, com as mãos metidas nos bolsos, percorreram juntos o caminho de volta para a delegacia de polícia do Highgate.

 

A morte de Lindsay no segundo incêndio tinha afligido profundamente Charlotte.

A notícia de que Shaw tinha escapado tinha sido um lenitivo sobre o temor do primeiro momento, mas debaixo daquela capa de consolo se abria passado um sentimento doloroso pela morte de um homem pelo qual tinha experimentado simpatia no escasso tempo em que o tinha conhecido. Não lhe tinha passado por cima a boa mão com que sabia tratar a difícil personalidade do Shaw. Possivelmente ele tinha sido a única pessoa que tinha compreendido a dor de seu amigo pela perda de Clemency, aumentado pela atormentadora consciência de que era muito possível que ela tivesse morrido em seu lugar, e que alguma inimizade que ele granjeara, que tinha incitado ou induzido de algum modo, era a causador daquela desgraça.

E agora Amos Lindsay também partira para sempre, queimado até ficar irreconhecível.

Como devia sentir-se Shaw aquela manhã? Pesaroso? Confuso? Culpado pelo fato de que de novo outra pessoa tivesse sofrido uma morte a ele destinada? Assustado de que talvez aquele não fosse ainda o fim? Haveria mais incêndios, mais mortes antes de que lhe chegasse o turno? Acharia suspeito a todo aquele a quem olhasse? Seguiria procurando em suas lembranças para tratar de adivinhar que segredo por ele conhecido era tão funesto que houvesse alguém disposto a matar para mantê-lo oculto? Ou talvez sabia já, mas a ética profissional o obrigava a guardar a qualquer preço?

Enquanto todas aquelas perguntas se amontoavam em sua mente, Charlotte sentia a necessidade de empreender alguma ação. Desfez as camas e puxou lençóis e capas de travesseiros escada abaixo, junto com as camisolas de dormir de toda a família e as toalhas. Depois desceu pelas escadas, recolheu toda a roupa nos braços e levou-ao quarto de lavar, junto à cozinha, onde encheu duas tinas de água, jogou sabão em uma delas, passou a roupa pelo escorredor e começou a esfregar.

Enquanto lavava um de seus vestidos mais velhos, com as mangas arregaçadas e um avental ao redor da cintura, deixou que sua mente voltasse outra vez ao problema.

Apesar de todos os possíveis motivos para matar ao Shaw, incluídos o dinheiro, o amor, o ódio e a vingança (se é que de verdade alguém achava-o culpado de negligência médica, fosse Theophilus Worlingham ou qualquer outro), seus pensamentos sempre voltavam para o Clemency e sua luta contra os especuladores imobiliários.

Estava com os braços cheios de espuma até os cotovelos, o avental empapado e o cabelo despenteado, quando soou a campainha da porta. O menino do peixe, pensou. Já irá Gracie.

Ao cabo de um momento, Gracie voltava correndo pelo corredor. Apareceu à porta da cozinha, sem fôlego, com os olhos arregalados pela surpresa, o respeito e o espanto.

— Lady Vespasia Cumming-Gould! - gritou. — Está aqui mesmo, atrás de mim, senhora! Não pude retê-la na sala de estar, senhora, não quis!

E com efeito, Vespasia vinha pisando os calcanhares de Gracie, elegante e muito rígida em seu vestido azul escuro com bordados prateados nas lapelas e uma bengala com punho de prata. Por aquela época raramente ia sem ela. Seus olhos passearam pela cozinha, pela mesa recém esfregada, a cozinha econômica, as filas de porcelana branca e azul da despensa, a louça envernizada em marrom e creme, as tinas do quarto de lavar roupa , e finalmente se detiveram no Charlotte, com seu aspecto de mulher da limpeza.

Charlotte ficou de pedra. Gracie fazia uns segundos que estava paralisada, desde que Vespasia tinha passado junto a ela.

Vespasia observou com curiosidade o escorredor de paus.

— Que demônios é este trambolho? - perguntou com as sobrancelhas arqueadas.    — Com certeza pertenceu no passado à Inquisição Espanhola.

— Um escorredor para a roupa - respondeu Charlotte, tornando o cabelo para trás.   — Se mete a roupa através dos paus e sai escorrida de sabão e água.

— É um alívio sabê-lo. - Vespasia se sentou à mesa, enquanto arrumava as dobras da saia de forma maquinal. Voltou a olhar o escorredor. — Muito recomendável. Bem, o que pensa fazer com respeito a esse segundo incêndio do Highgate? Porque suponho que fará algo... Seja qual for a causa que o tenha motivado, não altera o fato de que Clemency Shaw está morta, e confirma a explicação de que foi assassinada por engano em lugar de seu marido.

Charlotte secou as mãos e foi à mesa, deixando para melhor ocasião os lençóis que seguiam de molho na terrina.

— Eu não estou tão segura de que assim fosse. Quer de uma taça chá?    

— Obrigada. O que a faz pensar outra coisa? Por que foram matar agora ao pobre Amos Lindsay, se não em um intento de desfazer-se do Shaw com mais êxito que na primeira vez?

Charlotte olhou ao Gracie, quem por fim foi procurar o bule.

— Talvez temessem que Shaw acabaria por adivinhar quem eram – sugeriu enquanto se sentava frente a Vespasia. — Devia dispor de toda a informação, se sabia como encaixá-la a e ver o conjunto. Depois de tudo, ele sabia o que fazia Clemency. Pode ser que ela deixasse documentação escrita e que ele a visse. É possível inclusive que essa fosse a razão pela qual escolhessem o fogo, para destruir não só à Clemency mas também todas as provas que ela tivesse reunido.

Vespasia se sentou um pouco mais erguida.

— Vá, não tinha pensado nisso. Será uma tolice, pois para ela, pobre moça, não há nenhuma diferença, mas preferiria que não tivesse morrido por suas atividades. Mas se Shaw souber quem o fez, por que não o diz? É provável que não o tenha descoberto ainda, e certamente é seguro que não tem provas. Não pensará que possa ter alguma conivência com os culpados?

— Não...

Atrás de Charlotte, Gracie, bastante nervosa, esquentava o bule e ia contando colheradas de chá. Nunca antes tinha preparado nada para alguém tão importante como a tia avó Vespasia. Queria fazê-lo com toda exatidão e correção, por muito que não soubesse o que era o exato e o correto. E não perdia detalhe de quanto se dizia. Os casos do Pitt, assim como às ocasionais intervenções do Charlotte, horrorizavam-na tanto como a orgulhavam.

— Suponho que Thomas já teria considerado qualquer possibilidade que nós possamos pensar - continuou Vespasia. — De modo que seria infrutífero seguir por esse caminho...

Gracie serviu o chá. A xícara estralou e derramou parte de seu conteúdo ao elevá-la com suas trêmulas mãos e fazer uma meia reverência a Vespasia.

— Obrigada - Vespasia a acolheu com gentileza. Não estava acostumada a agradecer aos criados, mas estava claro que a situação não era habitual. Aquela menina estava impressionada e nervosa.

Gracie, ruborizada, retirou-se para fazer o trabalho de lavar no ponto em que o tinha deixado Charlotte. Vespasia secou o pires com o guardanapo que lhe estendeu Charlotte.

Esta tomou uma súbita decisão.

— Quero averiguar tudo o que possa sobre o trabalho do Clemency, com que pessoas tratava, que passos deu desde o começo para que sua atividade chegasse a ser tão preocupante-se. Em algum ponto do percurso terei que me cruzar com o piromaníaco, quem quer que seja.

Vespasia tomou um gole de chá.

— E como pensa conseguir sobreviver para compartilhar seus achados conosco?

— Não fazendo a menor menção das reformas - replicou Charlotte, cujo plano estava em uma fase certamente embrionária. — Começarei pela paróquia local... - Sua mente retornou à época de juventude, quando com suas irmãs tinha seguido obediente o caminho de Caroline e se dedicaram às obras de caridade: visitar doentes e anciões, repartir sopa e conservas, oferecer boas palavras. Era algo que fazia parte da vida de uma dama. Com toda probabilidade Clemency fazia o mesmo, até que tinha aberto os olhos a uma dor mais profunda e não tinha afastado a vista com complacência ou resignação, mas havia replanejado toda sua vida e tinha começado a luta.

Vespasia a observava com perspicácia.

— Imagina que será suficiente protegendo-se?

— Se o culpado pensa matar a todas as mulheres que se dediquem a visitar os pobres da paróquia, necessitará um fogo maior que o grande incêndio de Londres - respondeu Charlotte com decisão. — Além disso - acrescentou com maior prática - permanecerei afastada da classe de pessoas que detêm a propriedade dessas moradias. Simplesmente quero começar por onde Clemency começou. Muito antes de poder descobrir algo por cujo segredo alguém fosse capaz de matar, procuraria a ajuda de outras pessoas, de você e do Emily... e do Thomas, claro. – E então reparou em que talvez estivesse sendo presunçosa. Vespasia não tinha manifestado nenhum desejo de envolver-se em um assunto assim. Charlotte a olhava ansiosa.

Vespasia bebeu um gole de chá. Por cima da borda da xícara , seus olhos apareciam brilhantes.

— Emily e eu temos nossos próprios planos - disse enquanto deixava a xícara no pires e olhava ao Gracie, que espremia com acanhamento a roupa molhada sobre a tábua de lavar. — Se te parece mais aconselhável não ir sozinha, deixa as crianças com sua mãe uns dias e leve a criada com você.

Gracie se deteve em metade de um movimento, com as costas encurvada e as mãos no ar, depois de soltar a roupa na pia. Deixou escapar um suspiro de pura excitação. Ia fazer-se de detetive... em companhia da senhora! Aquilo prometia ser a maior aventura de sua vida!

Charlotte não dava crédito a seus ouvidos.

— Gracie?

— E por que não? - respondeu Vespasia. — Pareceria muito natural. Poderia lhe deixar minha carruagem e ao Percival para conduzi-la. Não vale a pena tentar se não for nas melhores condições possíveis. É um assunto pelo qual sinto um interesse pessoal. Minha admiração por Clemency Shaw é considerável. De modo que me manterá informada do que vá descobrindo, se é que há algo do que informar. É claro, também terá que dizer ao Thomas. Não tenho a menor intenção de permitir que todo este assunto fique resolvido dando todo mundo, é claro, que a vítima perseguida era Stephen Shaw e se despache a morte de Clemency como um trágico engano. Oh! - Seu semblante adquiriu de repente uma expressão sombria ao compreender. — Acha que essa seja a causa de que Lindsay tenha sido assassinado? Para que todos acreditemos que a morte de Clemency foi um engano? Que fria premeditação!

— Averiguarei-o - disse Charlotte com um ligeiro estremecimento. — Assim que Percival chegar com a carruagem, levarei as crianças a casa de mamãe e começaremos.

— Reúne tudo o que vão precisar - ordenou Vespasia. — E eu levarei a minha volta. Não tenho nada que fazer até esta noite, quando se levantar a sessão do Parlamento.

Charlotte ficou em pé.

— Refere-se ao Somerset Carlisle?

— Exatamente. Se tivermos que lutar contra os especuladores imobiliários, precisamos saber o estado atual da legislação e até onde podemos levar razoavelmente nossas pretensões de êxito. Podemos supor que Clemency devia fazer o mesmo, em grande parte, e que descobrisse algum ponto débil. Precisamos saber qual é.

Gracie esfregava com tanta força que a tabela estralava na terrina.

— Deixa isso agora, menina! - ordenou Vespasia. — Não me deixa quase nem pensar! Passa essa roupa já por esse trambolho e estende-a. Estou certa de que está mais que limpa. Pelo amor de Deus, mas se só são lençóis! Quando tiver acabado, vá arrumar-se e pôr o casaco, e um chapéu. Sua senhora necessita que a acompanhe ao Highgate.

— Sim, senhora! - Gracie recolheu o montão de roupa molhada, ficando nas pontas dos pés para que escorresse, colocou-a logo em uma terrina de água limpa, tirou o plugue e começou a passá-la entre os paus do escorredor, com o rosto franzido com ferocidade pela emoção.

Vespasia parecia não haver-se dado conta de que acabava de dar uma série de instruções à criada de outra pessoa. Quanto lhe dissera lhe parecia de bom senso, assim não viu nenhuma necessidade de justificar.

— Vá lá em cima ao quarto onde guardam as coisas dos meninos e pegue todo o necessário - disse a Charlotte quase no mesmo tom. — Para vários dias. Não quererá se angustiar pensando neles enquanto esteja investigando o mistério.

Charlotte obedeceu com um sorriso mal esboçado. Não se sentia zangada por receber ordens. O que lhe havia dito Vespasia era o que deveria fazer de todos os modos, e a familiaridade com que o tinha mandado era mais que nada uma amostra de afeto, e o acordo tácito de que ambas estavam envolvidas no mesmo assunto e desejavam levá-lo a bom termo.

Acima achou a Jemima fazendo caligrafia com grande solenidade. Tinha superado já a etapa em que desenhava as letras com todo cuidado e agora as escrevia mais segura de estar formando palavras e de seu significado. Quanto a somar e subtrair, não estava tão orgulhosa.

Daniel estava em pleno esforço de aprendizagem e Jemima lhe oferecia sua ajuda com afetada superioridade, explicando-lhe o que devia fazer exatamente e por que. Ele recebia os conselhos com paciência e de bom aspecto e tentava imitar a caligrafia arredondada de sua irmã, ao mesmo tempo que dissimulava depois de um gesto de concentração tanto sua ignorância como sua admiração. Pode chegar a ser muito difícil ter quatro anos e contar com uma irmã dois anos mais velha.

— Ficarão uns dias com a avozinha - informou Charlotte com um amplo sorriso. — Passarão muito bem. Podem levar os cadernos, mas não é preciso que trabalhem mais de uma ou duas horas de manhã. Já explicarei eu por que não vão ao colégio. Se comportarem-se bem, a avozinha levará-os a dar um passeio pelo zoológico na carruagem de cavalos.

Obteve sua cooperação imediata.

— Levará-os tia avó Vespasia, assim que preparemos suas coisas. É uma dama muito importante; têm que fazer tudo o que ela lhes disser.

— Quem é essa tia avó? - perguntou Daniel, com o rosto franzido tratando de recordar. — Eu só me lembro de tia Emily.

— É a tia de tia Emily - simplificou Charlotte, para evitar nomear ao George, a quem Jemima ao menos era capaz de recordar. Ainda não entendia o que era a morte, salvo em relação com pequenos animais, mas compreendia o que era não ver mais a alguém.

Daniel pareceu satisfeito com a resposta e Charlotte meteu em uma bolsa tudo que pudessem necessitar. Uma vez fechada, assegurou-se de que os pequenos estavam limpos, que iam bem agasalhados em seus casacos, que levavam as luvas bem seguras aos punhos das mangas, os sapatos abotoados, o cabelo penteado e o cachecol atado. Depois os desceu onde esperava Vespasia, sentada ainda na cadeira da cozinha.

Os meninos a saudaram com formalidade. Daniel, mais vergonhoso, ficou-se um passo por trás da Jemima. Mas quando viram que a dama tirava seus óculos para observá-los, ficaram tão fascinados que esqueceram seu acanhamento. Charlotte dissipou qualquer dúvida ao vê-los subir à carruagem, com a ajuda do criado, e partir.

Gracie estava tão nervosa que mal podia sustentar o pente enquanto arrumava o cabelo. Seus dedos escorregaram e fez um nó com os cordões do gorro, que provavelmente deveria cortar para tirá-lo Mas o que importava? Ia com sua senhora a fazer-se de detetives! Tinha uma idéia muito pouco precisa daquilo, mas não lhe cabia dúvida de que era algo maravilhosamente interessante e importante. Poderia conhecer segredos e fazer descobrimentos relacionados com assuntos de tal magnitude que havia pessoas dispostas a assassinar por eles. E era possível que até fosse perigoso.

É claro, ela ficaria sempre um par de passos atrás e falaria só quando o pedissem. Mas observaria e escutaria todo o tempo, e não perderia detalhe de tudo que se dissesse ou fizesse, nem sequer da cara que pusesse todo mundo. Talvez percebesse algo de vital importância que todos passassem por cima.

Tinham passado um par de horas quando Charlotte e Gracie desciam da carruagem de reserva. Percival ajudou-as a apear-se, para maior prazer de Gracie. Nunca tinha viajado em uma carruagem de verdade, e muito menos a tinha ajudado a descer outro criado. Percorreram o caminho para a igreja de St. Anne, com a esperança de achar ali a alguém que pudesse orientá-las em assuntos de assistência paroquial, para confrontar a partir daí a indagação sobre o interesse de Clemency Shaw no problema da moradia dos pobres.

Charlotte tinha dedicado longo tempo a refletir sobre o assunto. Não queria mostrar suas intenções, por isso tinha sido preciso arranjar uma história acreditável. Tinha estado debatendo-se sem êxito até que Gracie, mordendo o lábio e pedindo desculpas por sua ousadia, tinha sugerido a idéia de perguntar por uma parente necessitada de recorrer ao auxílio da paróquia depois de ter enviuvado e pela que estavam angustiadas pois não tinham notícias.

Para Charlotte pareceu tão pouco verossímil que até no Héctor Clitheridge teria levantado suspeitas, mas então Gracie lhe disse que sua tia Bertha se viu fazia pouco em circunstâncias similares e que ela não tinha notícias desde há duas semanas. Charlotte compreendeu então quais eram suas intenções.

— A verdade é que minha tia Bertha não vive no Highgate, claro - disse Gracie.       — Vive no Clerkenwell... mas isso eles não sabem.

Depois de dirigir-se à paróquia e não achar a ninguém, transladaram-se à própria igreja de St. Anne, onde acharam ao Lally Clitheridge arrumando as flores na sacristia. Voltou-se ao ouvir o ruído da porta ao abrir-se, com uma expressão de boas-vindas no rosto. Então reconheceu Charlotte e lhe gelou o sorriso. Ficou imóvel com um ramo de margaridas na mão.

— Boa tarde, senhora Pitt. Procura a alguém?

— Esperava que pudesse me ajudar, se tivesse a amabilidade – respondeu Charlotte, com um afeto forçado que não encaixava com a expressão desconfiada de Lally.

— Seriamente? - Lally olhou ao Gracie, que tinha entrado atrás dela, com um ligeiro a arqueamento de sobrancelhas. — A senhorita vem com você?

— É Gracie, minha criada. - Charlotte se deu conta de que soava um pouco pomposo, mas não havia outra resposta razoável.

— Santo céu! - Lally arqueou as sobrancelhas. — Não se encontra bem?

— Encontro-me muito bem, obrigado. - Estava-se convertendo em uma árdua tarefa manter um tom amistoso. Sentiu vontade de lhe dizer que não tinha por que lhe dar conta do que fazia, mas isso teria dado cabo de seus propósitos. Necessitava ao menos uma aliada, se não podia ser uma amiga. — Viemos por Gracie - manteve o tom educado com esforço. — Acaba de inteirar-se de que seu tio morreu e que deixou a sua tia em uma situação muito difícil, com toda probabilidade ao amparo da paróquia. Talvez você tivesse a amabilidade de me dizer que damas da vizinhança se dedicam com mais afinco às obras de caridade e pudessem me dar razão dela.

Lally se debatia entre a antipatia que sentia por Charlotte e a compaixão que lhe inspirava Gracie, quem a olhava com certa beligerância, embora Lally parecia entender que era por causa de sua confusão.

— Não conhece seu endereço? - Olhou Gracie, como se Charlotte não tivesse estado presente. Era uma pergunta muito comprometodora.

A mente do Gracie pensou com celeridade.

— Conhecia onde viviam, senhora. Mas receio que como o pobre tio Albert se foi tão de repente, e não tinha quase nada que lhe deixar, ficaram na rua. Não tinham onde ir, salvo a paróquia.

A expressão do Lally se suavizou.

— Não se deu sepultura a nenhum Albert nesta paróquia, menina. Pelo menos em mais de um ano. E me acredite que tomo nota de todos os funerais que há. É meu dever de cristã, e meu desejo. Tem certeza de que está aqui no Highgate?

Gracie não olhava ao Charlotte, mas tinha consciência aguda de sua presença apenas a um metro dela.

— Oh, sim senhora - replicou muito séria. — Tenho certeza de que isso foi o que disseram. Talvez se pudesse nos dizer os nomes das outras damas que ajudam aos necessitados, poderíamos lhes perguntar se elas sabem. – Sorriu com expressão suplicante, fazendo um esforço por recordar o propósito que a tinha levado até ali. Era, depois de tudo, a maior amostra de lealdade que podia oferecer.

Aquilo devia ser além disso uma das exigências do trabalho detetivesco: inteirar-se de quais fatos as pessoas eram avessa a confessar.

Lally se deu por vencida, até a seu pesar. Ignorando todo tempo a Charlotte, dirigiu sua resposta à Gracie.

— Certamente. A senhora Hatch talvez poderia te ajudar, ou a senhora Dalgetty, ou a senhora Simpson, a senhora Braithwaite ou a senhorita Crombie. Quer seus endereços?

— Oh, sim senhora, se tivesse a bondade.

— Certamente. - Lally rebuscou em sua bolsa um pedaço de papel, mas não achou com o que escrever.

Charlotte tirou um lápis e o entregou. Ela o pegou em silêncio, escreveu e logo deu o papel ao Gracie, quem o pegou sem olhar a Charlotte. Agradeceu à Lally e fez uma ligeira reverência.

— É muito amável de sua parte, senhora.

— Absolutamente - disse Lally. Então sua expressão se tornou de novo sombria e olhou a Charlotte. — Bom dia, senhora Pitt. Espero que tenha êxito. - Devolveu-lhe o lápis. — E agora, se me desculpam, tenho que acabar de arrumar vários vasos de flores e fazer algumas visitas. - Dito o que lhes deu as costas e ficou a inserir com fúria margaridas na parte situada para efeito na boca do vaso, dispondo-as em variados ângulos.

Charlotte e Gracie saíram, com a vista baixa até que estiveram fora. Naquele momento Gracie estendeu o papel à Charlotte com um sorriso triunfal.

Charlotte o leu.

— Fez como uma autêntica perita, Gracie - lhe disse. — Não teria podido arrumar isso sem você!

Gracie se ruborizou de prazer.

— O que diz, senhora? Sou incapaz de ler essa letra.

Charlotte olhou aquela curvada e pouco elegante caligrafia.

— É exatamente o que queríamos - respondeu. — Os nomes e endereços de algumas mulheres que podem saber por onde começou Clemency seu trabalho. Começaremos agora mesmo pelo Maude Dalgetty. Gostei bastante de seu estilo no funeral. Acredito que é uma mulher sensível de espírito generoso. Era amiga de Clemency, assim espero que esteja disposta a nos ajudar.

E assim foi. Maude Dalgetty era uma mulher sensível e a encontraram em boa disposição de ajudar. Recebeu-as em uma saleta ensolarada cheia de vasos de barro com rosas tardias. A estadia era elegante e proporcionada e estava mobiliada com distinção, embora muitos móveis tivessem aspecto de usados. Havia fendas e pequenas amolgaduras em algumas orla dos abajures e as fitas das cortinas estavam um pouco desgastadas. No lustre do teto faltavam algumas lágrimas de cristal. Mas o calor da habitação era indisputável. Os livros eram usados, havia um aberto em uma mesinha próxima à parede. Havia também um cesto de costura com trabalhos de cerzido e bordado visíveis meio terminados. A pintura que havia sobre a cornija da lareira, realizada faria uns dez ou doze anos, era um retrato da própria Maude, sentada em um jardim em um dia do verão, com a luz banhando-a. Era inegável que tinha sido uma beleza, que conservava em sua maior parte e inclusive um pouco mais proporcional.

Junto ao fogo dormiam feitos um novelo dois gatos entrelaçados.

— No que poderia ajudá-las? - disse Maude assim que entraram. Não prestava menos atenção a Gracie que a Charlotte. — Gostaria de uma xícara de chá?

Era muito cedo para aceitar aquele convite, mas Charlotte apreciou a sinceridade com que tinha sido oferecida e como tinha sede e não tinha comido nada, e imaginou que Gracie estava na mesma situação, aceitou.

Maude deu as instruções correspondentes à criada e voltou a lhes perguntar no que podia ajudá-las.

Charlotte hesitou. Sentada naquela acolhedora habitação e observando o inteligente rosto de Maude, não sabia se não seria melhor arriscar-se a dizer a verdade em lugar de uma mentira, por plausível que fosse. Mas então pensou na morte de Clemency, e na do Lindsay que em tão breve espaço de tempo a tinha seguido, e trocou de idéia. Em qualquer lugar que estivesse a medula do crime, seus tentáculos eram muito provável que chegassem até ali. Uma palavra imprudente, embora fosse dita por uma pessoa inocente, podia desencadear mais violência. Uma das conseqüências mais tristes de um assassinato era a perda da confiança. A gente acabava por ver a traição por toda parte e por suspeitar a mentira em qualquer resposta. Em qualquer palavra dita com irritação ou descuido se intuía a cobiça ou o ódio, e em qualquer comentário receoso, uma inveja dissimulada.

— Uma tia de Gracie que vive nesta localidade enviuvou - explicou. — Teme que se ache em uma situação de precariedade, talvez até o extremo de ver-se na rua.

O rosto do Maude mostrou preocupação, mas não interrompeu ao Charlotte.

— Se tivesse recorrido ao auxílio paroquial, talvez você saberia o que foi dela - Charlotte tratou de infundir em sua voz a peremptoriedade que teria tido no caso de ser verdade. Viu a compaixão refletida nos olhos de Maude e se odiou a si mesma por sua hipocrisia. Apressou-se a prosseguir para ocultá-la. — E se você não, possivelmente saiba alguma outra pessoa. Soube que a defunta senhora Shaw se preocupava muito por este tipo de casos. - O rubor subiu às faces. Aquele era o gênero de mentira que mais desprezava.

Maude apertou os lábios e pestanejou para controlar a evidente dor que tomou seu semblante.

— É claro que se preocupava - disse com amabilidade. — Mas se tivesse levado algum tipo de anotação a respeito das pessoas que ajudava, teria ficado destruída ao arder a casa - voltou-se para o Gracie, por quanto era de sua tia de quem se estava falando.    — A única outra pessoa que talvez saiba algo é Matthew Oliphant, o padre. Ela confiava muito nele, que lhe dava conselho, e possivelmente ajuda. Ela falava muito pouco de seu trabalho, mas sei que com o tempo se foi dedicando a ele com mais entrega. A maior parte de sua atividade não a levava a cabo na paróquia, sabem? Não posso lhes assegurar que tivesse tido conhecimento de qualquer caso da localidade. Talvez pudesse lhes ajudar melhor a senhora Hatch, ou talvez a senhora Wetherell.

A criada retornou com o chá e uns sanduiches deliciosos, feitos a base de pão muito fino e de tomate talhado em trocitos. Durante uns minutos Charlotte se esqueceu do objetivo de sua visita e se entregou a desfrutar o lanche. Gracie, que além de não prová-lo jamais tinha visto sequer nada tão fino, estava absolutamente maravilhada.

Era a primeira hora da tarde e se estava nublando quando Percival deteve a carruagem junto à casa de hóspedes onde vivia Matthew Oliphant. Ajudou a descer Charlotte e depois Gracie, e viu-as afastarem-se-se pelo caminho até bater na porta da casa antes de voltar para assento do carruagem e preparar-se para a espera.

Uma criada lhes informou que o senhor Oliphant estava na sala de estar e que as receberia sem dúvida, por quanto parecia receber a todo mundo.

Dirigiram-se pois à sala de estar, uma estadia impessoal mobiliada com extremo conservadorismo, em que se viam poltronas com toalhinhas, um retrato da rainha sobre a lareira e outro do Gladstone na parede oposta, vários bordados com textos religiosos, três pássaros dissecados entre cristais, vários pomos de flores secas, uma doninha dissecada em uma jaula e dois aspidistras. À Charlotte tudo aquilo fez pensar no tipo de coisas que ficam em um lugar quando todo mundo levou o que gostava. Era incapaz de imaginar que pessoa tivesse podido escolher voluntariamente aqueles objetos. Matthew Oliphant com certeza que não, com sua expressão irônica e imaginativa, que nesse momento se levantava da cadeira para saudá-las depois de deixar a Bíblia aberta sobre a mesa. Nem tampouco Stephen Shaw, ocupado escrevendo na escrivaninha de persiana junto à janela. Também ele se levantou ao ver Charlotte, com um gesto de surpresa e satisfação.

— Senhora Pitt, que agradável vê-la. - Foi para ela com a mão estendida. Olhou fugazmente a Gracie, quem permanecia apartada a certa distância, atacada de acanhamento agora que tinham passado a tratar com cavalheiros.

— Boa tarde, doutor Shaw - respondeu Charlotte, e se apressou a dissimular sua contrariedade. Como ia interrogar ao padre diante de Shaw? Ia ter que mudar todo seu plano de ação. Esta é Gracie, minha criada... - Não lhe ocorreu que explicação dar a sua presença, assim não deu nenhuma. — Boa tarde, senhor Oliphant.

— Boa tarde, senhora Pitt. Talvez... talvez deseje estar a sós com o doutor. Nesse caso posso lhes pedir que me desculpem. Meu quarto não está frio, posso continuar a leitura ali.

A julgar pela temperatura do corredor, Charlotte adivinhou que aquilo não era mais que uma ficção.

— Nada disso, senhor Oliphant. Fique por favor. Esta é sua casa e não me perdoaria tê-lo afastado do fogo.

— O que posso fazer por si, senhora Pitt? - perguntou Shaw franzindo o sobrecenho. — Espero que esteja tão bem como seu aspecto sugere. E o mesmo desejo a sua criada.

— Estamos as duas bem, obrigado. Nossa visita não tem nada que ver com sua profissão, doutor Shaw. - Não tinha sentido continuar com a história do tio de Gracie. Ele perceberia imediatamente e zombaria de ambas, não só pela mentira em si, mas também pelo torpemente urdida. — Não vim por mim. - Olhou-o nos olhos e se sentiu desconcertada pela penetrante inteligência que denotavam, e pela forma direta de sustentar seu olhar. Fez uma profunda inspiração e se lançou. — Me decidi a prosseguir o trabalho a que estava entregue sua falecida esposa em relação às moradias da gente pobre e suas condições de habitabilidade. Eu gostaria de saber por onde começou ela para poder começar do mesmo lugar.

Durante um minuto houve o mais completo silêncio. Matthew Oliphant permanecia junto ao fogo com a Bíblia na mão, com os dedos brancos pela tensão, o semblante pálido, e depois corado. Gracie ficou petrificada. A expressão do Shaw mudou do assombro à incredulidade, e a suspeita.

— Por que? - disse com receio. — Se sentir você a paixão de trabalhar em favor dos pobres ou os desprovidos, por que não o faz com os de sua vizinhança? – Sua voz roçava o sarcasmo. — Com certeza que os haverá. Londres é um formigueiro de pobres. Vive você em uma zona tão seleta que tem que vir ao Highgate para achar gente necessitada?

Charlotte foi incapaz de achar resposta.

— Não é preciso que seja tão rude, doutor Shaw. - Sem dar-se conta imitou o tom de tia Vespasia. Por um momento pensou com espanto que devia soar ridícula. Então olhou ao doutor Shaw e viu o súbito rubor de vergonha que afluía a suas faces.

— Peço-lhe desculpas, senhora Pitt. Tem você razão. Por favor, deve me perdoar. -Não mencionou sequer seu estado de luto nem a perda de seu amigo. Como desculpa, teria sido fácil e abaixo de sua altura.

Sorriu-lhe com todo o afeto e simpatia que sentia por ele. Além do muito que gostava.

— Assunto esquecido. - Desprezou o episódio com seu particular encanto. — Pode me ajudar? Agradeceria muito. Eu gostaria de participar também na cruzada que levava a cabo sua esposa, e conseguir o apoio de outras pessoas se pudesse. Seria uma tolice não aproveitar tudo o que ela conseguiu. Granjeou-se uma grande admiração por seu trabalho.

Devagar e em silêncio, Matthew Oliphant voltou a sentar-se, abriu a Bíblia e a deixou de cabeça para baixo.

— Seriamente? - Shaw franziu o sobrecenho com gesto concentrado. — Não vejo o benefício que pudesse tirar. Trabalhava sozinha, pelo que sei. O que é seguro é que não o fazia com as damas da paróquia, nem com o vigário. -Suspirou. — Claro que o velho Clitheridge, pobre, não sei se seria capaz de romper com suas próprias forças nenhuma folha de papel! - Olhou-a com gravidade, mas com uma espécie de admiração risonha nos olhos que a desconcertou um pouco.

Pela mente do Charlotte cruzaram um par ou três de pensamentos absurdos, que se apressou a desdenhar com rubor nas faces.

— De todo modo eu gostaria de tentá-lo - insistiu ela.

— Senhora Pitt - disse ele com amabilidade, — não posso lhe dizer quase nada, só que Clemency se preocupava muito por certas reformas legais. De fato me parece que lhe preocupava mais que qualquer outra coisa neste mundo. – Empalideceu ligeiramente.     — Mas se, como suspeito, o que você deseja é descobrir quem acendeu minha casa, não conseguirá nada por esse caminho. Era eu o objetivo daquele incêndio, o mesmo que causou a morte do pobre Amos.

Charlotte sentia ao mesmo tempo uma profunda pena por ele e uma frustração repentina. Tinham-na descoberto na primeira.

— Seriamente? - arqueou as sobrancelhas. — Que arrogante de sua parte! Pressupõe você que era a única pessoa importante em ambos os casos e que só você é capaz de suscitar a suficiente paixão ou medo para que alguém possa desejar sua morte?

Tinha ido muito longe, o que provocou uma explosão de gênio.

— Clemency era uma das melhores mulheres deste mundo. Se a tivesse conhecido, não necessitaria que eu o dissesse. - Tinha os ombros tensos e encolhidos. — Não fez nada em toda sua vida para levantar o tipo de loucura doentia requerida para queimar casas e pôr em perigo as vidas de seus ocupantes. Pelo amor de Deus, se é que quer misturar-se, ao menos seja eficiente!

— Isso tento! Mas você está empenhado em me pôr obstáculos. Quase estou tentada de pensar que não quer que resolva o caso. Não quer ajudar. Não quer contar nada à polícia. Encerra-se em suas confidências como se fossem segredos de Estado. O que se imagina que vamos fazer com elas, se não apanhar a um assassino?

Shaw deu um pulo e ficou rígido.

— Não conheço segredo algum que possa servir para apanhar alguém, salvo a algum ou outro pobre diabo que preferiria manter suas enfermidades ocultas antes que as difundisse por toda a vizinhança para que qualquer intrometido fique a falar e fazer especulações. Santo Deus, não acredita que quero que apanhem ao assassino, quem quer que seja? Matou a minha mulher e a meu melhor amigo... e pode ser que eu seja o próximo.

— Não o acredite tanto - respondeu ela, pois de repente se evaporou sua raiva e se sentia culpada por ter sido tão implacável. Agora não sabia como sair da situação que ela mesma tinha criado. — A menos que você saiba quem é, como ao parecer sabia o pobre senhor Lindsay, é provável que sua vida não corra o menor perigo.

De repente Shaw pegou um cinzeiro e o jogou em um canto da estadia, onde se fez em pedacinhos. Depois saiu batendo a porta.

Gracie continuava ainda imóvel com os olhos arregalados.

Oliphant levantou a vista da Bíblia e se deu conta por fim de que estava de cabeça para baixo. Apressou-se a fechá-la e ficou em pé.

— Senhora Pitt - disse com suavidade. — Eu sei por onde começou a senhora Shaw, e também alguns dos lugares aos quais a levou seu trabalho. Se o desejar, acompanharei-a.

Charlotte olhou seu rosto de traços marcados e agradáveis e a dor cometida que desprendia, e se sentiu envergonhada por sua estrepitosa intromissão.

— Obrigada, senhor Oliphant, estaria-lhe muito agradecida.

 

Percival os levou. Estava um bom trecho mais à frente do termo do Highgate, para o Upper Holloway. Detiveram-se em um beco estreito e desembarcaram da carruagem, que deixaram uma vez mais à espera. Charlotte olhou ao redor. As casas estavam encostadas e, a julgar por sua largura, contavam com um aposento no piso de cima e outro no andar térreo, embora possivelmente havia mais na parte de trás, fora da vista. As portas estavam todas fechadas, com os degraus de pedra branca bem esfregados. Não tinha uma aparência muito mais pobre que a rua em que ela e Pitt viveram em recém casados.

— Venha. - Oliphant avançou e quase imediatamente virou por uma ruela que Charlotte não tinha percebido.

Perceberam uma atmosfera úmida e insalubre, ao mesmo tempo que uma rajada de ar gélido lhes soprou no rosto levando o fétido aroma das conduções e as águas residuais.

Charlotte tossiu e pegou um lenço, enquanto Gracie levava a mão ao rosto, mas não hesitaram em segui-lo até que achou e cruzou um pequeno e úmido pátio, do outro lado do qual advertiu-as que saltassem por cima das bocas-de-lobo abertas. No extremo do pátio bateu em uma porta descascada e esperou.

Ao cabo de uns minutos abriu uma garota de uns quinze anos com uma tez cinza macilenta e o cabelo reluzente de sujeira. Tinha os olhos avermelhados e falou com um tom desafiante no que se apreciava um matiz de temor.

— Né? Quem são vocês?  

— Está a senhora Bradley em casa? - perguntou Oliphant com calma ao mesmo tempo que abria um pouco o casaco para deixar ver seu colarinho de clérigo.

O rosto da moça se distendeu.

— Sim, mamãe está na cama. Ficou doente outra vez. Ontem veio o médico e lhe deu alguns remédios, mas não lhe fez nada.

— Posso entrar para vê-la? - perguntou Oliphant.

— Sim, suponho. Mas não desperte se estiver dormindo.

— Não o farei - lhe prometeu, e deixou a porta aberta para que entrassem Charlotte e Gracie.

Dentro da pequena habitação fazia frio. O papel da parede gotejava umidade e estava manchado de mofo, e o ar tinha um aroma azedo. Não havia grifos nem conduções, e uma tina em um canto coberto com uma tampa improvisada servia às necessidades da natureza. Umas desconjuntadas escadas levavam a piso de cima através de uma abertura no teto. Oliphant passou o primeiro e acautelou ao Charlotte e Gracie de que esperassem para subir por turnos, se por acaso as escadas não resistissem ao peso das duas juntas.

Charlotte emergiu me um quarto com duas caminhas de madeira, ambas cobertas de mantas. Em uma jazia uma mulher que a primeira vista aparentava a idade da mãe de Charlotte. Tinha o rosto esquálido, a pele murcha e apergaminada e os olhos tão afundados que as maçãs do rosto davam a este o aspecto de caveira.

Ao aproximar-se, Charlotte viu que o cabelo abundante e a pele do pescoço que sobressaía da camisola remendada eram os de uma mulher que não teria mais de trinta anos. Em sua magra mão segurava um lenço manchado de sangue. Os três permaneceram um minuto em silencio com o olhar fixo na mulher adormecida, dominados por um sentimento de piedade impotente e silenciosa.

Quando estiveram de novo no piso de baixo, Charlotte se voltou para o Oliphant e a menina.

— Temos que fazer algo! Quem é o proprietário deste... deste estábulo ruinoso? Se não serve nem para guardar cavalos, como é que vivem mulheres nele? Terei que denunciá-lo. Quem cobra o aluguel?

A moça estava branca como o papel.

— Não o faça, por favor, senhorita! Por favor o rogo, não nos faça isso. Minha mamãe morrerá se a jogar à rua... e Alice, Becky e eu teremos que ir ao asilo. Por favor, não o faça. Não fizemos nada de mau, de verdade que não. Pagamos o aluguel, juro.

— Não quero expulsá-las. - Charlotte estava horrorizada. — Quero obrigar ao proprietário a arrumar este lugar para que possam viver pessoas.

A moça a olhou com incredulidade.

— O que quer dizer? Se armarmos confusão nos expulsarão. Há muita gente que desejaria viver aqui... e teríamos que procurar outro lugar que poderia ser pior. Por favor, senhorita, não o faça!

— Pior? - disse Charlotte. — Mas tem que acondicionar isto, tem que pô-lo em condições para poder viver. Deveriam ter água, ao menos, e canalizações de deságüe. Não é de estranhar que sua mãe esteja doente...

— Recuperará-se, deixe-a dormir um pouco, já verá. Estamos muito bem, senhorita. Nos deixe tranqüilas.

— Mas se...

— Isso aconteceu com Bessie Jones. Queixou-se e agora está vivendo no St. Giles, e não tem mais que um canto de quarto para ela. Nos deixe, por favor, senhorita.

Seu medo era tão evidente que Charlotte não pôde fazer outra coisa que lhe prometer que não diria nada e jurá-lo diante do Matthew Oliphant. Partiu tremendo e com uma crescente sensação de náusea no estômago. E com um intenso sentimento de ira.

— Amanhã a acompanharei ao St. Giles - disse Oliphant uma vez que estiveram na rua principal. — Se é que quer ir.

— Quero ir. - Charlotte não vacilou. Se o tivesse feito talvez teria perdido sua determinação.

— Tinha vindo já com Clemency? - perguntou com voz mais calma enquanto tratava de imaginar o itinerário que estava repetindo e pensava no desassossego de Clemency ao ver cenas como aquela. — Suponho que se comoveria muito.

Ele se voltou para ela, com o rosto inesperadamente iluminado por uma lembrança que apesar de toda sua sordidez guardava alguma beleza para ele, que de tal modo brilhava em sua mente e o animava que por um momento pareceu esquecer do frio e da imundície da rua.

— Sim... viemos aqui - respondeu com doçura. — E também fomos ao St. Giles, e dali para o este, a Mele End e Whitechapel... - Acariciava as palavras como se tivesse estado falando das ruínas do Isfahán, ou da rota dourada da Samarkanda.

Charlotte hesitou um breve instante antes de lançar a seguinte pergunta, sem saber o que de repente a tornou evidente.

— E saberia me dizer qual foi o último lugar que visitou?

— Se soubesse, senhora Pitt, me teria devotado a acompanhá-la -disse ele com gravidade e um pingo de rubor nas faces. — Só sei a direção que tomou, já que não estive com ela quando achou Bessie Jones. Só sei que a achou, pois me disse isso depois. Tomara Deus tivesse querido que eu tivesse estado. - Lutava por dominar sua angústia, coisa que quase conseguiu. — Talvez teria conseguido salvá-la. - Quebrou-lhe a voz, que acabou rouca e quase inaudível.

Charlotte não podia discutir, embora talvez então Clemency e suas ações tinham assustado já a aqueles senhores e proprietários, cuja cobiça tinha acabado por destruí-la.

Oliphant se voltou, em um esforço por dominar-se.

— Mas se deseja ir, eu tentarei levá-la... até la onde você sinta perigo. Se dermos com o lugar preciso, então... - Guardou silêncio. A conclusão não era necessária.

— Você não tem medo? - perguntou Charlotte, não por desafiá-lo mas sim porque estava certa de que não o tinha. Havia sentimentos que o atormentavam até o ponto de sentir-se nu, mas o medo não se contava entre eles: sentia ira, piedade, indignação, desamparo, mas não medo.

Voltou-se de novo para ela, com um rosto por um momento quase formoso pelo reflexo de sua humanidade.

— Você deseja continuar o trabalho de Clemency, senhora Pitt... e me parece que talvez algo mais que isso: quer saber quem a matou e desvelá-lo à luz pública. Pois eu também.

Ela não respondeu, não era necessário. Vislumbrou ligeiramente o muito que aquele homem se afeiçoara à Clemency. Jamais o diria, ela era uma mulher casada, mais velha que ele e de um estrato social superior. Era impossível algo que não fosse mera amizade. Mas isso não tinha alterado seus sentimentos, nem minguado sua dor pela perda.

Charlotte lhe sorriu com educação, como se não percebesse nada, e lhe agradeceu por sua ajuda. Ela e Gracie lhe estavam muito agradecidas.

E claro, explicou ao Pitt o que estava fazendo, e com que objetivo. Podia tê-lo evitado se Vespasia não levasse as crianças à casa de Caroline, mas tinha que explicar a ausência dos pequenos e não estava de humor para enganos.

O que não lhe disse foi como era o lugar ao que ia, por quanto nada do que ela tinha conhecido até então teria podido lhe dizer onde ia levá-la sua missão durante os dois dias seguintes.

Ela, Oliphant e Gracie foram conduzidas pelo Percival de rua em rua, cada vez mais estreitas, escuras e sujas, depois da pista do ocaso da desafortunada Bessie Jones. Gracie foi de inestimável ajuda, por quanto já tinha visto antes aqueles lugares e compreendia o desespero que fazia com que homens e mulheres aceitassem aquele tipo de vida antes que perder seu frágil abrigo, por pobre que fosse, e ver-se na rua, onde acabariam amontoados nos portais, tremendo de frio e expostos às inclemências do tempo e atos de violência.

Por fim, na tarde do terceiro dia, acharam a Bessie Jones, do mesmo modo que Clemency Shaw fizera antes deles. O encontro teve lugar no coração de Mele End, perto do Whitechapel Road. Parecia haver uma incomum quantidade de policiais pela zona.

Bessie estava encolhida num canto de um aposento de não mais de três por cinco metros, ocupada por três famílias, uma em cada canto. Havia em total umas dezesseis pessoas, incluídos dois bebês de peito que choravam sem cessar. Aproximada contra uma das paredes havia uma larga estufa que mal desprendia calor. Havia algumas tinas para fazer as necessidades, mas não havia coletor algum onde esvaziá-las, nem aas tinas nem nenhum outro tipo de lixo, salvo um ralo tapado no pátio cujo fedor enchia o ar e poluía as roupas, o cabelo e a pele. Não havia água corrente. Para lavar, cozinhar ou beber, tinha que trazer-se a água em um balde de uma bomba situada a trezentos metros rua acima.

Não havia mais mobiliário que uma desconjuntada cadeira de madeira. As pessoas dormiam sob os pedaços de farrapos ou de mantas que podiam reunir para esquentar-se. Homens, mulheres e crianças não tinham outra coisa que pôr entre seus corpos e as pranchas do chão mais que farrapos e estopa, e os despojos da indústria têxtil que não serviam nem para fabricar trapos para a limpeza.

Acima do pranto dos meninos e da sonora respiração de um ancião que dormia sob a janela quebrada cuja moldura não era mais que uma peça solta de linóleo, ouviam-se os chiados e as correrias dos ratos. Do piso de baixo chegavam os estridentes sons de uma taverna e os gritos que proferiam os bêbados quando brigavam, blasfemavam ou entoavam retalhos de canções vulgares. Duas mulheres jaziam inconscientes na sarjeta enquanto um marinheiro fazia suas necessidades junto a uma parede.

Por debaixo do nível da rua, em porões mau iluminados, cem mulheres e garotas se sentavam cotovelo com cotovelo no interior de uma fábrica de exploração para costurar camisas em troca de uns pennies ao dia. Mesmo assim, aquilo era melhor que a fábrica de fósforos com seu fósforo tóxico.

Em cima da fábrica, um bordel se preparava para o comércio noturno. A vinte metros de distância se viam filas de homens sentados em bancos, com as mentes à deriva por efeito dos doces sonhos do ópio.

Bessie Jones estava esgotada, exausta por uma luta estéril, embora contente ao menos de estar protegida da chuva e de ter uma estufa junto à que aninhar-se de noite e duas fatias de pão para comer.

Charlotte esvaziou sua bolsa mas se deu conta de que era uma ação torpe e fútil; o dinheiro lhe queimava na mão.

Até esse momento tinha seguido o mesmo caminho empreendido por Clemency Shaw e havia sentido tudo o que esta deveia sentir, mas não tinha encontrado pista alguma que apontasse para quem podia havê-la matado, embora o motivo lhe parecia muito claro. Se se fazia pública a identidade dos proprietários de lugares como aquele, haveria alguns que se estariam sem cuidado, aqueles que não tivessem uma reputação ou uma posição social que perder. Mas com certeza haveria outros que obtinham seu dinheiro de um sofrimento tão fundo como aquele e que estariam dispostos a fazer o que fosse para mantê-lo em segredo e chamá-lo por qualquer outro nome. Dizer que alguém possuía propriedades fazia pensar em fazendas nos condados da campina, ou em terras de lavoura, ou em ricas terras produtoras de pastos, vacas e madeira... mas nunca na miséria, no crime e na enfermidade que Charlotte e Gracie tinham visto naqueles poucos dias.

Ao chegar a casa se despojou de toda a roupa, camisa interior e anáguas incluídas, pô-la de molho para lavar e disse ao Gracie que fizesse o mesmo. Era incapaz de imaginar um sabão que pudesse eliminar o aroma de imundície – que permaneceria sempre embora só fosse na lembrança -, mas ao menos o mero ato de fervê-la e esfregá-la ajudaria.

— O que pensa fazer agora, senhora? - perguntou Gracie com os olhos muito abertos e a voz rouca. Também ela nunca tinha visto tanta imundície.

— Vamos averiguar quem são os proprietários desses abomináveis lugares -respondeu Charlotte com cenho franzido.

— E que um deles foi quem matou à senhorita Clemency - acrescentou Gracie tirando a roupa e abrigando-se com um velho vestido de Charlotte. A cintura lhe vinha pelos quadris e a saia se arrastava pelo chão. Tinha tal aspecto de menina que à Charlotte a assaltou um sentimento de culpa por havê-la envolvido em tão espantosa aventura.

— Assim acredito.Tem medo?

— Sim, senhora. - O pequeno e magro rosto de Gracie se escureceu. — Mas não penso abandonar agora. Quero ajudá-la, e ninguém me poderá impedir. E tampouco deixarei que vá sozinha a esses lugares.

Charlotte lhe deu um forte abraço, que a pegou tão por surpresa que se ruborizou intensamente.

— Não poderia ir sem você - disse Charlotte com franqueza.

Enquanto Charlotte e Gracie seguiam os passos do Clemency Shaw, Jack Radley foi visitar um de seus amigos de pior reputação de seus tempos de jogador, de quando ainda não conhecia Emily, para lhe persuadir do interessante e proveitoso ato que podia resultar dar uma volta por alguns dos piores bairros de casas de aluguel de Londres. Antón lhe manifestou em um primeiro momento suas dúvidas sobre o interesse de tal atividade, mas quando Jack lhe prometeu seu corta-cigarros de prata, compreendeu o proveitoso do assunto, por isso aceitou a acompanhá-lo.

Jack proibiu à Emily que fosse com eles. Pela primeira vez desde o começo de sua relação não admitiu nenhum gênero de réplica.

— Não deve vir - disse com um sorriso encantador mas olhar firme.

— Mas... - começou a protestar lhe devolvendo o sorriso e esperando que se abrandasse para tratar de contra-atacar. Para sua surpresa, não achou nenhuma fissura. — Mas... - repetiu.

— Não deve vir, Emily. - Não havia a menor piscada em seus olhos nem o mais ligeiro rictus em sua boca. — Se obtivérmos algum resultado e você estiver no meio, seria muito perigoso. Recorda a razão pela que fazemos isto, e não comece a discutir. Seria uma perda de tempo, porque diga o que diga não virá. – Inalou fundo.

— Está bem - aceitou Emily com toda a boa vontade de que foi capaz. — Se isso deseja.

— É mais que um desejo, querida - disse com um primeiro vislumbre de sorriso. — É uma ordem.

Quando ele e Anton partiram, deixando-a no alto dos degraus da entrada, sentiu-se completamente traída. Depois, quando pensou com mais calma, deu-se conta de que Jack o tinha feito para protegê-la tanto dos desconfortos da visita como da tristeza que lhe teria causado todo aquilo que teria visto de forma inevitável. Sentiu-se agradada então ante a preocupação mostrada por seu marido. Embora fosse verdade que não gostava que lhe negassem algo ou a contrariassem, tampouco gostava de saber-se por cima dos desejos de seu marido. Fazer sempre o que dá vontade pode chegar a ser muito pouco gratificante.

Com toda uma tarde ociosa por diante e a mente convertida em um formigueiro de perguntas, ordenou que lhe preparassem a carruagem de reserva . Depois de uma cuidadosa escolha, colocou um vestido novo do salão Worth de Paris, de um azul escuro que lhe ressaltava a cor do cabelo e com profusos bordados na parte dianteira e pregas, e saiu para visitar certa dama cuja riqueza e interesses familiares eram maiores que seus escrúpulos. Isto sabia por amigos da alta sociedade a quem conhecera no passado, em lugares onde a nobreza de berço e o dinheiro se tinham mais em conta que os afetos pessoais ou qualquer forma de respeito.

Emily desembarcou da carruagem e subiu os degraus do domicílio de Park Lane. Ao abrir a porta, apresentou seu cartão de visita e agüentou firme enquanto a lia uma ligeiramente desconcertada criada. Era um dos cartões anteriores a seu recente matrimônio e em que ainda se lia: "Viscondessa do Ashworth", coisa bastante mais impressionante que "Sra. Jack Radley".

O normal era que uma dama deixasse seu cartão de modo que a senhora da casa lhe devolvesse o seu com o fim de fixar um encontro no futuro, mas era evidente que Emily não tinha intenção de partir. A criada se via na obrigação de escolher entre lhe pedir que se fosse ou convidá-la a entrar. O título que figurava no cartão de apresentação não lhe deixou lugar à dúvida.

— Entre por favor, milady. Irei ver se lady Priscilla pode recebê-la.

Emily aceitou com cortesia e, com a cabeça no alto, atravessou o grande vestíbulo abarrotado de retratos familiares e no qual havia inclusive uma armadura sobre um pequeno pedestal de madeira. Acomodou-se na saleta das visitas, diante do fogo, até que voltou a criada e a acompanhou acima, ao toucador do primeiro piso, a sala de entrevistas especialmente desenhada para as damas.

Era uma estadia decorada com aprimoramento ao estilo oriental, que tão popular se fizera nos últimos tempos. Estava repleta de objetos chineses de todo tipo: caixas laqueadas, um biombo de seda bordada, pinturas paisagísticas nas quais apareciam montanhas flutuantes entre brumas e saltos de água e umas figuras diminutas como pontinhos negros que viajavam por caminhos intermináveis. Havia um aparador com prateleiras de vidro que continha pelo menos vinte figuras de jade e marfim e dois leques esculpidos em marfim que parecia branco renda que se convertera em pedra.

Lady Priscilla teria uns cinqüenta anos. Era magra e trazia o cabelo de uma cor negra tão escura que só seus mais fiéis amigas podiam acreditar que era natural.

Vestia um vestido de tons magenta e rosa, também com rendas, mas distribuídas de forma perfeitamente simétrica. Compreendeu seu engano tão logo viu Emily.      

— Lady Ashworth! - exclamou com uma surpresa de cortesia. — Que encantador de sua parte vir ver-me... e que inesperado.

Emily sabia muito bem que aquela queria dizer "que falta de educação vir sem avisar como é devido", mas tinha ido com um propósito prático que não tinha intenção de pôr em perigo com impulsivas palavras.

— Desejava encontrá-la só - respondeu Emily com uma ligeira inclinação da cabeça. — Preciso pedir certo conselho confidencial, e me ocorreu que ninguém em Londres poderia dar-me o melhor que você.

— Que amável! Como me adula! - exclamou lady Priscilla com uma expressão em que a vaidade não superava a curiosidade. — O que pode ser que eu saiba e que você não saiba tão bem como eu? - sorriu. — Um pequeno escândalo, talvez... Mas nesse caso com certeza não teria vindo expressamente por isso a estas horas do dia.

— Não me desagrada a idéia. - Emily se sentou na cadeira que lhe indicavam.         — Mas não estou aqui por isso. O que procuro é conselho, em certos assuntos nos que tenho agora a liberdade de ser proprietária de mim mesma... - Deixou-o no ar, enquanto via como o incisivo rosto da Priscilla adquiria uma expressão de supremo interesse.

— Proprietária de você mesma? Claro, inteirei-me do falecimento de lorde Ashworth... - Compôs uma expressão de apropriada solicitude. — Querida, que desgraça. Quanto o lamento.

— Bom, agora já passou o tempo. - Emily descartou a questão de um tapa. — Me tornei a casar, sabe?

— Mas seu cartão de apresentação...

— Oh... Dei-lhe um dos velhos? Mas como sou descuidada. Tenho que me desculpar. Cada vez estou mais curta de vista.

Priscilla teve na ponta da língua dizer "um par de óculos não lhe viriam mau", mas não quis ser muito ofensiva se por acaso perdesse a oportunidade de inteirar do motivo da consulta do Emily. Como poderia logo contá-lo se não?

— Não tem importância - murmurou.

Emily sorriu algo confusa.

— É muito generosa.

— No que posso ajudá-la? - ofereceu-se Priscilla com toda intenção.

— Bem... - Emily se reclinou em seu assento. Aquilo poderia ser muito mais divertido, mas não devia perder de vista a razão que a tinha levado ali. A morte de Clemency Shaw era um assunto bastante sério para aplacar qualquer expansão de frivolidade. — Tenho certa soma de dinheiro a minha disposição e eu gostaria de investi-lo de maneira benéfica, se for possível em algo ao mesmo tempo seguro e razoavelmente discreto.

— Oh... - Priscilla exalou devagar, mostrando que compreendia a situação com um ligeiro gesto. — Gostaria que lhe reportasse algum benefício ao que não tivesse acesso sua família...? E está casada em segundas núpcias?

— Sim. - Emily pensou no Jack e lhe pediu desculpas em silêncio. — Daí a necessidade da mais absoluta... discrição.

— Secretismo total - a tranqüilizou Priscilla com os olhos brilhantes. — Eu posso aconselhá-la muito bem. Veio na verdade à pessoa adequada.

— Sabia - disse Emily com voz triunfante, porque estava a ponto de descobrir aquilo que procurava exatamente. — Sabia que era você a pessoa mais indicada. O que poderia fazer com meu dinheiro? Trata-se de uma soma bastante substancial, compreende?

— Propriedades imobiliárias - replicou Priscilla sem titubear.

Emily adotou uma expressão de decepção.

— Propriedades imobiliárias? Mas então qualquer um poderia averiguar o que possuo com exatidão e os benefícios que me traz... que é precisamente o que quero evitar!

— Oh, querida... não seja ingênua! - Priscilla moveu as mãos descartando a idéia.   — Não refiro a residências domésticas no Primrose Hill. Estou falando de dois ou três blocos de imóveis velhos em Mele End ou no Wapping, ou no St. Giles.

— Wapping? - disse Emily com estudada incredulidade. — Que valor ia tirar de casas como as que há nesses lugares?

— Poderia tirar uma verdadeira fortuna. Ponha-as em mãos de um bom gestor de negócios, que se preocuparia de arrendar as de forma benéfica e que cobraria o aluguel todas as semanas ou todos os meses, e veria dobrado seu desembolso em um abrir e fechar de olhos.

Emily franziu o sobrecenho.

— De verdade? Como ia conseguir alugar lugares como esses para que dêem um benefício tão alto? Nesses bairros só vive gente muito pobre, não? Não poderiam pagar um aluguel tão alto como o que eu gostaria de pedir.

— Oh, é claro que sim, que poderiam - lhe assegurou Priscilla. — Se os houver em número suficiente, o negócio será o mais rentável. Prometo.

— Em número suficiente?

— Pois claro. Se você não fizer perguntas a respeito do que faça a gente que ali se instale, nem do benefício que podem eles tirar por sua vez, o que pode fazer é alugar cada um dos cômodos do imóvel a uma dúzia de pessoas, que os sublocará e assim sucessivamente. Sempre encontram alguém que pague mais, me acredite.

— Não tenho certeza de que eu goste que alguém possa me relacionar com lugares como esses - objetou Emily. — Não é algo um pouco...?

— Ah! Quem poderia relacioná-la? Essa é a razão pela que tem que atuar através de um gestor financeiro, e de um representante legal, e de seus empregados, e de um coletor de aluguéis, etcétera. Ninguém saberá nunca que é você a proprietária, salvo seu próprio homem de negócios, que certamente nunca o dirá a ninguém. Esse é precisamente seu trabalho.

— Está segura? - Emily a olhava com os olhos muito abertos. — Há mais gente que faz isto?

— É claro. Dezenas de pessoas.

— Quem, por exemplo?

— Querida, não seja tão indiscreta. Conseguirá fazer-se muito impopular se for por aí fazendo esse tipo de perguntas. São pessoas que estão protegidas, assim como você estará. Prometo, ninguém saberá.

— O único problema é que... - Emily deu de ombros com exagero e abriu uns olhos inocentes. — A verdade... a gente não o entenderia. Não há nada ilegal em tudo isto, suponho?

— Pois claro que não. Além de que ninguém tem o menor desejo de infringir a lei - Priscilla sorriu, — há pessoas muito respeitáveis com posições que conservar... Assim seria também uma tolice. - Desdobrou suas elegantes mãos com as palmas para cima, razão pela qual seus anéis ficaram por um momento ocultos à vista. — Além disso, não há nenhuma necessidade de preocupar-se. Não há nenhuma lei que proíba fazer o que lhe sugiro. E me acredite, querida, os benefícios são muito substanciosos.

— Corre-se algum tipo de risco? - perguntou Emily. — Quero dizer que não haverá gente por aí exigindo reformas e coisas desse tipo, não? Se fosse assim a gente poderia acabar perdendo tudo... ou ficando exposta à ignomínia pública...

— Nada disso - disse Priscilla sorrindo. — Não sei de que reformadores terá ouvido falar, mas não têm a mais remota possibilidade de conseguir levar a prática nenhuma mudança real... ao menos nas zonas das quais eu lhe falo. Construirão-se casas novas em muitos lugares, em cidades industriais, mas isso não afetará às propriedades de que estamos tratando. Bairros de pobres os haverá sempre, querida, e também pessoas que não tenham nenhum outro lugar onde viver.

Emily sentiu um repentino acesso de repulsão. Olhou ao chão para dissimular sua reação e rebuscou um lenço na bolsa de malha. Logo se soou com força, e com menos delicadeza do que cabe esperar em uma dama. Então compôs um semblante bastante natural para enfrentar de novo os olhos de Priscilla e fazer passar por ansiedade sua expressão de aversão.

— Sim, acredito que era justamente nos bairros pobres onde estavam atuando os reformadores.

O desprezo no rosto da Priscilla era mais que manifesto.

— Seus temores são infundados, Emily. - O uso de seu nome de batismo acrescentava um matiz de condescendência às palavras da Priscilla. — Há pessoas muito poderosas envolvidas. Não só não teria muito sentido tratar de arruiná-las, mas além disso seria extremamente perigoso. Nada poderá lhe causar mais que, no máximo, uma pequena inconveniência, o prometo, que solucionará sem necessidade de que você chegue sequer a inteirar-se, não digamos já a intervir pessoalmente.

Emily se recostou na cadeira e esboçou um sorriso forçado, embora lhe pareceu que se limitava a mostrar os dentes. Sustentou o olhar da Priscilla sem pestanejar, apesar de que a embargava um aborrecimento infinito.

— Disse-me exatamente o que queria saber. E estou certa de que é você totalmente confiável e que conhece aquilo perfeição com o que trata. Não duvide que voltaremos a nos ver em relação com este assunto, ou ao menos voltará a ouvir falar de mim. Muito obrigada por me dedicar parte de seu tempo.

Priscilla sorriu enquanto Emily ficava de pé.

— Sempre me faz feliz o poder assessorar a uma amiga. Quando tiver posto em ordem suas coisas e deseje investir, volte e a porei em contato com a pessoa que melhor poderá ajudá-la, e com absoluta discrição.

Não se fez menção alguma do dinheiro, mas Emily sabia muito bem que estava subentendido, e também estava segura de que a própria Priscilla contava receber uma percentagem por seus serviços.

— É claro. - Emily fez uma ligeira inclinação com a cabeça. — Foi muito generosa. Não o esquecerei.

Saiu da casa ao frio ar da rua, e até o esterco do pavimento lhe pareceu que suavizava o ambiente, por comparação ao lugar de onde partia.

— Me leve para casa - disse ao cocheiro enquanto este a ajudava a subir à carruagem.

Quando Jack retornou cansado, com o rosto macilento, ela estava esperando-o.

Ambos se sentiam anti-sociais, e com uma ira similar.

Deteve-se no vestíbulo, onde ela tinha ido para recebê-lo. Ao ouvir seus passos sobre os ladrilhos negros e brancos a ela ainda acelerava o coração, e o som de sua voz ao pedir ao criado que lhe pegasse o casaco a fez sorrir. Ela o olhou procurando seus escuros olhos cinzas nos que destacavam umas frisadas pestanas que a tinham maravilhado - e que lhe tinha invejado - a primeira vez que o tinha visto. Tinha lhe parecido um homem muito consciente de seu próprio encanto. Agora que o conhecia melhor, continuava achando-o igualmente atraente, mas conhecia além disso ao homem que havia debaixo daquela aparência e gostava muito. Era um amigo excelente e ela sabia o valor dessa qualidade.

— Foi muito horrível? - Não perdeu o tempo com perguntas tolas como "como está?". Isso podia vê-lo em seu rosto: estava exausto e moralmente ferido e guardava um rancor similar ao seu. Sentia-se igualmente impotente para mudar ou castigar aos culpados ou para socorrer às vítimas.

— Mais do que poderia expressar com palavras - replicou. — Terei sorte se puder me desprender do aroma da roupa ou do gosto da garganta. Não acredito que nunca possa apagar por completo a imagem de tanta miséria. Vejo os rostos dessas pobre gente cada vez que fecho os olhos, como se estivessem pintados no interior de minhas pálpebras.        - Passeou o olhar através do enorme vestíbulo de chão ladrilhado, paredes revestidas de carvalho, bela escadaria que subia a um patamar com corrimão, quadros, vasos cheios de flores de até quase um metro e altura, grandes móveis esculpidos de madeira reluzente e o chapeleiro com cinco bengalas de punho de prata.

Emily sabia no que estava pensando. Por sua mente tinham passado aquelas mesmas idéias mais de uma vez. Mas aquela era a casa do George, a herança dos Ashworth, e pertencia portanto a seu filho Edward. Só lhe pertencia em fideicomiso até que seu filho alcançasse a maioridade. Jack também sabia, mas apesar de tudo ambos experimentavam certo sentimento de culpa por desfrutar de um luxo de uma forma tão fácil como se tivesse sido seu, coisa que na prática era.

— Venha sentar-se na saleta - disse com doçura. — Albert pode preparar-lhe um banho. Me conte o que viu.

Pegou-a pelo braço e a acompanhou, enquanto com voz pausada e grave lhe descrevia o lugar ao qual Anton o tinha levado. Não empregou muitas palavras, não queria nem afligir a ela, nem reviver o horror e a piedade sem esperança que tinha experimentado durante a visita, nem queria voltar a sentir a mesma amargura. Explicou-lhe que havia visto imóveis lotados de ratos e piolhos cujas paredes exsudavam umidade e manchas emboloradas, com os ralos e as conduções sem tampar e cheios de lixos. Havia muitos cômodos que estavam ocupados por quinze ou vinte pessoas, de todas as idades e de ambos os sexos, sem nenhum tipo de intimidade nem higiene, sem água nem coletores. Alguns dos telhados e janelas estavam tão maltratados que entrava a água da chuva, mas toda semana passavam pontualmente a arrecadar o aluguel. Algumas pessoas desesperadas sublocavam os únicos e escassos metros quadrados de que dispunham, com o fim de poder cumprir seus próprios pagamentos.

Absteve-se de descrever as condições das fábricas de exploração dos trabalhadores, onde mulheres e crianças trabalhavam em porões à luz de gás ou das velas e sem ventilação, dezoito horas ao dia, costurando camisas, luvas ou vestidos para pessoas que viviam em outro mundo.

Não entrou em detalhes a respeito dos bordéis e tavernas de má reputação, nem das estreitas e fétidas habitações onde os homens achavam o esquecimento que lhes proporcionava o ópio. Limitou-se a constatar sua existência.

Quando ele havia dito o que precisava dizer e tinha compartilhado a carga do que tinha visto, para sentir a compreensão de Emily, que lhe mostrou sua angústia pelas mesmas coisas, sua mesma consciência da humilhação e a impotência, Albert tinha entrado duas vezes para dizer que a água do banho estava esfriando, assim ao final entrou uma terceira vez para lhe informar que tinha um banho fresco preparado.

     De noite, estavam na cama a ponto de dormir, quando lhe contou por fim o que tinha feito, onde tinha estado e as coisas de que se inteirara.

Vespasia expôs suas perguntas ao Somerset Carlisle uma vez concluídos os trâmites parlamentares do dia. Eram mais de onze de uma noite fria e brumosa quando a dama estava por fim de volta em casa. Sentia-se cansada, mas muito preocupada para conciliar o sono. Alguns de seus pensamentos se centravam nos problemas dos que tinha tratado com ele, mas boa parte de sua ansiedade era por causa de Charlotte. Não deixava de sentir-se um pouco culpada, ao menos pela sugestão de ter oferecido Percival e a carruagem e a prontidão com que ela levou as crianças a casa de Caroline Ellison, o que tinha permitido a Charlotte embarcar-se em uma aventura que podia ser perigosa. Naquele momento só tinha pensado em Clemency Shaw e na terrível injustiça de sua morte. Por uma vez tinha permitido que a ira triunfasse sobre o bom senso e tinha enviado à mulher, pela qual mais afeto sentia, a uma situação de grave risco. Era verdade: sentia por Charlotte um carinho superior a ninguém mais, agora que sua própria filha tinha morrido. E mais ainda: gostava. Desfrutava de sua companhia, de seu senso de humor, de seu valor. Não só tinha cometido uma imprudência, mas também uma irresponsabilidade; nem sequer tinha consultado ao Thomas, quem era o que mais direito tinha a saber.

Mas não fazia parte de sua forma de ser o perder o tempo com coisas que não podia resolver. Teria que agüentar e aceitar sua parte de culpa, se havia. Não tinha sentido ficar a escrever ao Thomas ou ir falar com ele. Diria Charlotte, ou não, como quisesse. E a impediria ele continuar ou não, segundo o que fosse capaz. A intervenção da Vespasia não serviria já para emendar o engano.

Mas lhe custou dormir.

Na noite seguinte se encontraram para jantar em casa de Vespasia, com o fim de comparar seus progressos nas averiguações, mas sobre tudo para escutar a exposição do Somerset Carlisle a respeito da situação da lei contra a que deviam lutar e, a ser possível, mudar.

Emily e Jack chegaram logo. Emily ia vestida com menos sofisticação do que recordava Vespasia desde que abandonara o luto pelo George. Jack tinha aspecto cansado. Em seu sempre belo rosto se viam marcados sulcos que aumentavam a seriedade de uns olhos isentos de ironia. Mostrava-se cortês por costume, mas até os cumprimentos habituais faltavam em seus lábios.

Charlotte se atrasava, por isso Vespasia começou a ficar nervosa, enquanto sua mente ia e vinha da conversa corriqueira que intercambiavam naquele momento ao assunto de que tratariam durante a noite.

Somerset Carlisle entrou com gesto sério. Olhou a Vespasia, depois à Emily e Jack, e evitou perguntar onde estava Charlotte.

Mas Charlotte chegou por fim, na carruagem conduzida pelo Percival. Estava sem fôlego, cansada, com o cabelo bastante pior penteado do que o habitual. Vespasia sentiu tanto alívio ao vê-la que a única coisa que foi capaz de fazer foi criticá-la por chegar tarde. Não se atrevia a mostrar suas emoções, teria sido muito inconveniente.

Dirigiram-se à sala de jantar e este foi servido.

Cada qual informou do que tinha visto ou feito, de forma superficial e passando por cima descrições desnecessárias. Os fatos já eram bastante terríveis. Não mencionaram o cansaço, as indisposições ante o que tinham visto ou o perigo que poderiam ter corrido. O que tinham presenciado estava muito acima de qualquer intento de autocompaixão ou louvor.

Quando o último dos reunidos concluiu, todos se voltaram para o Somerset Carlisle.

Pálido e pesaroso, explicou-lhes como era a lei com respeito a aquele assunto. Confirmou-lhes o que todos já sabiam: que era quase impossível descobrir quem eram os proprietários se estes queriam permanecer no anonimato, e que a lei não estabelecia limitações que socorressem ou protegessem ao inquilino. Não existiam requisitos básicos de condições de habitabilidade com respeito à água, à rede de esgoto, ao abrigo ou qualquer outro tipo de instalação suplementar. Não tinha medidas compensatórias com respeito ao pagamento do aluguel ou a liberdade de desalojamento.

— Então temos que mudar a lei - disse Vespasia quando Carlisle concluiu. Continuaremos do ponto em que os assassinos impediram Clemency .

— Pode ser perigoso - advertiu Somerset Carlisle. — Vamos incomodar a pessoas poderosas. O pouco que soube até agora indica que há membros de grandes famílias que obtêm ao menos parte de seus ganhos por esta via. Alguns deles são industriais com enormes fortunas reaplicadas. O assunto alcança também de uma forma direta ou indireta a outros homens com não menos ambições e desejo de riqueza, homens que podem sentir-se tentados a vender favores... membros do Parlamento, juizes do tribunal. Será uma luta muito dura, e nenhuma vitória será fácil.

— É uma lástima - disse Vespasia sem consultar sequer a outros com um fugaz olhar. — Mas tudo isso é irrelevante.

— Necessitamos mais gente assentada no poder. - Carlisle olhou ao Jack.— Mais homens no Parlamento dispostos a arriscar um cômodo banco em troca de lutar contra os interesses criados.

Jack não respondeu, mas falou pouco o resto da noite, e o trajeto de volta a casa o fez imerso em profundos pensamentos.

 

Pitt e Murdo estiveram trabalhando desde a manhã cedo até bem entrada a noite seguindo a pista de toda insignifcante prova material, até que não ficou nada por perguntar.

Os policiais do Highgate continuavam procurando o piromaníaco a quem se empenhavam em considerar culpado. Mas até o momento não tinham dado com seu paradeiro, embora pressentiam que cada dia de pesquisas os aproximava mais a ele.

Produziram-se mais incêndios provocados de um modo similar: uma casa vazia no Kentish Town, um estábulo no Hampstead, uma residência campestre ao norte, no Crouch End. Interrogaram em todos os postos de fornecimento de azeite carburante em um raio de distância do Highgate de cinco quilômetros, mas não acharam mais demandas de fornecimento que as habituais para as necessidades domésticas normais. Perguntaram a todos os médicos em funções se tinham tratado a alguma pessoa de queimaduras que não tivesse sabido ou querido explicar de forma convincente. Consultaram a polícia e os serviços de bombeiros dos distritos circundantes sobre o nome, o paradeiro atual, o histórico e os métodos de todo aquele que tivesse provocado um incêndio intencional nos últimos dez anos, mas não lhes proporcionou nenhum dado de utilidade.

Pitt e Murdo indagaram também sobre o valor, o montante do seguro e a propriedade de todas as casas queimadas, mas não acharam nenhum dado que pudesse relacioná-las. Tinham investigado também em torno das disposições testamentárias de Clemency Shaw e Amos Lindsay. Clemency legava tudo que possuísse até sua morte a seu marido, Stephen Robert Shaw, com a única exceção de uns poucos objetos pessoais que deixava a alguns amigos; e Amos Lindsay deixava suas obras de arte, seus livros e suas lembranças de viagem também ao Stephen Shaw, enquanto que a casa, para surpresa geral, deixava-a a Matthew Oliphant, inesperado e inexplicável obséquio que Pitt julgou por inteiro acertado. Não era senão uma prova mais do pouco convencional que tinha sido aquele homem.

Sabia que Charlotte estava no assunto, mas como viajava na carruagem da Vespasia, sob o cuidado de seu criado, considerava resolvido o perigo. Além disso, tampouco achava que fosse tirar muito daquela atividade, pois lhe havia dito que se propunha re-seguir as últimas visitas conhecidas de Clemency Shaw, e Pitt, desde a morte de Lindsay, estava seguro de que Clemency tinha morrido por acaso e que a vítima que se perseguia era Stephen Shaw.

Assim na manhã seguinte a do jantar em casa da Vespasia, em que conheceram o alcance e natureza da lei, Charlotte se vestiu com roupas dignas mas comuns. Não foi difícil, por quanto não era de outro modo a maior parte de seu guarda-roupa. Depois esperou a chegada de Emily e Jack.

Chegaram logo, para sua surpresa. Se tinha que ser sincera, não teria acreditado que Emily fosse capaz de levantar-se a uma hora tão matutina para fazê-lo possível. Mas o caso é que Emily estava na porta antes das nove, com seu elegante aspecto habitual, e Jack um passo por detrás dela, vestido sem excessos, com uns discretos tons marrons.

— Isso não servirá - disse Charlotte ao vê-la.

— Sei perfeitamente. - Emily entrou, deu-lhe um ligeiro beijo na face e foi para a cozinha. — Ainda não estou de todo acordada. Espero pelo amor de Deus que Gracie tenha posto água para fazer chá. Terei que pegar um pouco emprestado. Tudo o que tenho parece que custou, no mínimo, o que custou de verdade... que era o que se pretendia, claro. Tem algum vestido marrom? Fico mal com marrom.

— Não, não tenho - disse Charlotte. — Mas tenho dois de tom escuro, granada, que lhe assentarão igualmente mau.

Emily se pôs-se a rir. Seu rosto se aliviou e se desvaneceu algo de seu cansaço.

— Obrigada, querida. Que encanto por sua parte. Assentam-lhe bem aos dois, ou há algum menor que possa ficar melhor?

— Não. - Charlotte captou a brincadeira e, com as sobrancelhas arqueadas, esforçou-se por responder sem rir. Irão perfeitos de cintura, mas um pouco grandes de peito!

— Mentirosa! - replicou Emily. — Me farão uma bolsa na cintura, e pisarei na saia ao caminhar. Qualquer dos dois me servirá maravilhosamente. Irei trocar-me enquanto você põe o chá. Vem Gracie também? Não acredito que seja uma aventura muito divertida para ela.

— Senhora, por favor - disse Gracie com tom premente. Tinha provado a emoção da caça, de formar parte da partida, e se sentia o bastante encorajada para lutar por sua causa. — Posso ajudar. Eu entendo a essas pessoas.

— Claro que sim - disse Charlotte. — Se você quiser. Mas não deve se separar de nós em nenhum momento. Se não nos fizer conta, não nos responsabilizamos do que possa lhe acontecer.

— Oh, farei o que disser, senhora - prometeu com sua séria carita como se estivesse prestando juramento. — E observarei e escutarei. Às vezes me dou conta de quando a gente diz uma mentira.

Meia hora mais tarde se instalavam os quatro na carruagem de reserva de Emily, dispostos a percorrer o trajeto até Mele End para rastrear aos proprietários de casas de aluguel cuja pista tinha seguido Charlotte em seu intento de reconstruir os passos de Clemency Shaw. O primeiro foi tentar descobrir ao coletor de aluguéis, com o fim de que lhes dissesse para quem realizava aquela vil tarefa.

Tinha tomado nota do endereço exato. Mesmo assim, levou-lhes certo tempo encontrá-lo de novo. As ruas eram estreitas e requeria saber driblar a a quem não tinha mais trabalho que suas carroças de flores, suas bancas de roupa velha, seus postos ambulantes, suas carruagems de verdura, e aos grupos de gente que vendia ou mendigava. A maioria dos caminhos de passagem tinham similar aspecto: um pavimento bastante amplo para permitir a passagem de uma só pessoa, com a parte central pavimentada, muitas vezes com as sarjetas de deságüe ao ar livre e pelas quais desciam os refugos noturnos; as casas escoradas inclinadas ameaçadoras sobre o meio-fio, algumas tão juntas em sua parte superior que mal deixavam passar a luz do sol. Podia-se imaginar às pessoas dos pisos altos dando-a mão por cima da divisória, se se inclinavam o suficiente e se sentiam com humor.

A madeira estava aparada e em alguns lugares podre, onde não caiam. O gesso estava manchado pelas antigas goteiras e a umidade exudava das pedras. Aqui e lá se viam pedaços de estuque que foram antigas insígnias. Havia gente de pé nos portais, formas escuras que se amontoavam, rostos que emergiam fugazmente para ver passar alguém.

Emily tocou a mão de Jack. A matizada e insondável desesperança daquele lugar a assustava. Nunca tinha sido testemunha de tanta carência de tudo. E eram muitos. Um menino brincava de correr junto a eles pedindo esmola. Não seria maior que seu próprio filho, quem naquele momento estaria sentado em casa, no quarto de estudar, lutando para aprender as tabelas de multiplicar e tratando de achar algo de comer que não fosse o preceptivo pudim de arroz que tanto odiava. E esperando que chegasse a tarde, quando poderia brincar.

Jack procurou uma moeda nos bolsos e a lançou ao menino, quem se jogou sem pensar quase debaixo das rodas da carruagem, e por um angustiante momento Emily pensou que o esmagaria. Mas reapareceu ao cabo de um instante, radiante de júbilo e apertando em sua suja mãozinha a moeda, que mordeu em seguida para comprovar a qualidade do metal.

Em questão de segundos, uma dúzia de marotos se congregaram gritando ao redor da carruagem, esticando as mãos e brigando para ser o primeiro. Apareceram então homens maiores. Ouviram-se assobios, gritos, ameaças, e ao cabo de um instante a multidão se encapelou de tal forma que os cavalos mal podiam passar e o cocheiro tinha medo de fustigá-los, não fossem esmagar a aquela multidão vociferante, revolta e impetuosa.

— Oh, meu Deus! - Jack ficou lívido ao perceber o que tinha provocado.

Emily estava verdadeiramente assustada, encolhida no assento, junto a ele.

Parecia como se estivessem rodeados por uma multidão ensurdecedora que esticava os braços para eles e tentava deter a carruagem com rostos deformados pela fome e ódio.

Gracie se embrulhava em seu xale com os olhos muito abertos, imóvel.

Charlotte não sabia o que tentava fazer Jack para paliar a situação, mas esvaziou as poucas moedas que levava para as somar às suas.

Ele as pegou sem vacilar e, depois de abrir a janela pela força, lançou-as pordetrás do cocheiro, tão longe como pôde.

A multidão se jogou sobre o lugar em que tinham caído as moedas. O cocheiro fustigou aos cavalos, que se viram por fim livres e se lançaram ao trote rua abaixo, enquanto as rodas estralavam sobre a úmida superfície.

Jack caiu para trás no assento, ainda lívido, mas com um leve sorriso nos lábios.

Emily se voltou para olhá-lo, com os olhos brilhantes e a cor recuperada. Agora, além de piedade e medo, sentia uma viva e renovada admiração.

Charlotte experimentava também um sentimento de grato respeito que era novo nela.

Quando chegaram ao imóvel em questão, decidiu-se que entrassem Charlotte e Gracie, pois os ocupantes já as tinham visto. Se iriam mais pessoas podia parecer uma demonstração de força e produzir o efeito contrario ao desejado.

— O senhor Thickett? - Um reduzido grupo de mulheres se olharam umas às outras. — Não sabemos de onde vem. Vem uma vez por semana e leva o dinheiro sem mais.

— É sua esta casa? - perguntou Charlotte.

— Como diabos quer que saibamos? - disse uma desdentada mulher. — E a você o que importa, né? Acaso é assunto seu? Quem é você, que gosta de fazer tantas perguntas?

— Pagamos o aluguel e não procuramos problemas - acrescentou outra cruzando uns gordos braços sobre um busto ainda mais volumoso. Havia um vago tom de ameaça em sua voz, remarcada pela maneira em que se balançava ligeiramente e olhava com ferocidade nos olhos de Charlotte. Era uma mulher com muito pouco que perder, e sabia.

— Procuramos um lugar para alugar - disse Gracie de repente. — Nos expulsaram que onde vivíamos e temos que achar algo rápido. Não podemos esperar ao dia de pagamento, temos que encontrá-lo já.

— Ah... por que não o disseram antes? - A mulher olhou Charlotte com uma mescla de lástima e exasperação. — Orgulhosa, né? Estúpida, mas bem. Vieram tempos difíceis e caíram, não é assim? Vivia na crista da onda, muito alto para o que podia, e agora desceu à crua realidade. Isso acontece com muita gente. Bom, Thickett não vem hoje, mas lhes direi onde podem encontrá-lo...

— São maus tempos - disse Gracie com tom choroso.

— Ah sim? Bom, seus maus tempos não são como os meus. - A pálida boca da mulher se retorceu em um sorriso burlesco. — Não vou pedir lhes dinheiro. Suponho que não o têm, claro, do contrário não teriam vindo aqui... Mas ficarei com seu chapéu. - Olhou para Charlotte, depois observou o tamanho de suas mãos e se fixou então no xale de lã marrom de Gracie. — E com seu xale. E lhes direi onde têm que ir.

— Pode ficar com o chapéu. - Charlotte o tirou enquanto o dizia. — E lhe daremos o xale se acharmos Thickett onde nos disser. Se não... - Hesitou apertando os lábios, mas olhou o rosto de desilusão da mulher e compreendeu a futilidade de sua ameaça. — Se não, fica sem o xale - concluiu.

— Ah, sim? - A voz da mulher gotejava anos de experiência. — Quando tiverem visto o Thickett, vão vir aqui só para me dar a mim o xale, não? Por quem me tomam, né? Ou me dão o xale agora, ou não há Thickett.

— Ancore-se com cuidado - disse Gracie com desdém. — Pode estar contente com o xale. Mas se não houver Thickett, não há chapéu. Pode parecer uma senhora educada, mas é de pior espécie se se zanga... e agora está muito zangada. E você que problema tem? É tola ou o que? Agarre já o chapéu e nos diga onde está Thickett. - Esticava seu pequeno rosto com expressão dura. Colocou-se em uma aventura e estava disposta a arriscar tudo por triunfar.

A mulher percebeu a diferença de condição entre ambas, reconheceu o peculiar acento de Gracie e se deu conta de que estava tratando com alguém mais próximo a seu mundo. Abandonou seus ares fanfarrões e encolheu seus largos ombros. Tinha tentado, e a ninguém se pode culpar por isso.

— Encontrarão Thickett no Sceptre Street, na casa grande que faz esquina com o Usk Street. Vão pela parte detrás e perguntem pelo Tom Thickett. Digam que é para lhe levar um aluguel. Deixarão-nas entrar , e se lhe disserem que querem falar de dinheiro, escutará você. - Arrebatou o chapéu ao Charlotte e o acariciou com admiração, com gesto de concentração. — Se estão passando uma má época, empenhem uns quantos como este e terão o que comer para vários dias. Má época. Não têm nem idéia do que é passar uma má época.

Ninguém quis discutir. As duas sabiam muito bem que tinham fingido sua pobreza para a ocasião e que era uma mentira só desculpável por sua brevidade e uma forma de vislumbrar o que a realidade podia ser.

De volta na carruagem, dirigiram-se devagar para o Sceptre Street, tal como lhes havia dito a mulher. A rua era mais espaçosa, as casas de ambos os lados tinham uma fachada mais longa e não se abatiam sobre o meio-fio, mas as sarjetas de deságüe continuavam ao ar livre e levavam os dejectos deixando um aroma forte e rançoso. Charlotte se perguntava se seria capaz de eliminar aquele fedor do interior da saia. O mais provável era que Emily atirasse a sua. À Gracie teria que recompensar de alguma forma. Observou seu pequeno corpo, tão erguido como o de tia Vespasia, a sua maneira, mas uma cabeça mais baixa. Seu rosto, com uma textura ainda infantil, estava mais vivo de emoção do que jamais o tinha visto.

Desceram na esquina e percorreram o caminho de entrada, mais largo que nas ruas que acabavam de deixar, e bateram na porta. Abriu-lhes uma criada muito desarrumada, a que pediram ver o senhor Thickett, deixando claro que se tratava de um assunto de dinheiro, e de certa urgência, ao mesmo tempo que Gracie deixava escapar um teatral soluço. Fez elas passarem e conduziu-as até uma fria sala que parecia destinada a armazenar móveis e, em ocasiões como a presente, a entrevistas como aquela. Havia várias arcas e cadeiras velhas amontoadas umas sobre outras de forma bastante temerária, e também uma mesa a qual faltava uma perna e um pau com cortinas que pareciam haver-se estado apodrecendo na umidade. A estadia inteira desprendia um cheiro bolorento. Emily esboçou uma careta de desagrado assim que entraram.

Não havia lugar para sentar-se e recordou de repente com um ligeiro sobressalto que tinham ido ali implorar, pedir um favor àquele homem, de uma posição em que não podiam fazer outra coisa que rebaixar-se a uma atitude comedida até a humilhação. Só a lembrança da morte de Clemency Shaw, o corpo calcinado em sua imaginação, dava-lhe forças para fazê-lo.

— Não nos dirá quem é o proprietário - sussurrou com rapidez. — Considerará que tem a frigideira pelo cabo, pois viemos lhe pedir que nos ceda meio cômodo.

— Tem razão, milady - respondeu Gracie também em um sussurro, incapaz de esquecer o devido tratamento inclusive naquelas circunstâncias. — Se for um coletor de aluguéis, podemos esperar que seja um valentão... sempre o são, e não precisamente generosos. Nunca fazem nada por ninguém, só o imprescindível.

Por um momento ficaram todos confusos. A primeira história já não servia. Então Jack sorriu ao ouvir uns pesados passos que se aproximavam pelo corredor e a porta se abriu para dar passagem a um homem grandalhão, com um peito de armário, de rosto muito anguloso onde se sobressaía um nariz proeminente e uns olhinhos redondos e espertos. Tinha os polegares nas laterais de um colete que tinha sido bege, mas que estava agora manchado e descolorido pelos anos de uso descuidado.

— E então? - Observou-os com mansa curiosidade. Só tinha uma vara para medir às pessoas: se não podiam ou se podiam pagar o aluguel, fosse por seus próprios meios ou pelos que pudessem ganhar, embora para obtê-los tivessem que roubar ou sublocar suas habitações. Às mulheres considerava também de outro ponto de vista, além do dinheiro que pudessem possuir ou a força de trabalho que fossem capazes de produzir: fixava-se também em se tinham a beleza ou a juventude suficientes para ganhar o sustento fazendo a rua. As três lhe pareceram o suficientemente bonitas, mas só Gracie parecia ter o contato com a realidade necessária. As outras duas, coisa que se via as claras em sua expressão, teriam que viver no mundo uma boa temporada antes de ser capazes de acomodar-se aos gostos de um cliente pagante. Contudo, a simpatia compensa muitas carências, de fato quase todas, salvo a idade.

Por outra parte, Jack tinha um aspecto de dandi, apesar da roupa que levava. Por muito velha que fosse, não ocultava a destreza da mão que tinha feito o nó da gravata, nem o elegante corte dos ombros, nem a queda das lapelas. Não, aquele era um homem que gostava das coisas boas. Se estava passando por uma má época, não faria um bom trabalhador dele: suas mãos finas e bem cuidadas o testemunhavam. Mas além disso tinha um olhar perspicaz, e algo nele delatava um temperamento fácil para o trato com outros, certo encanto. Poderia ser um bom estelionatário, alguém capaz de viver de suas artes. E não seria o primeiro cavalheiro em converter-se nisso...

— Assim querem uma habitação? - disse. — Eu diria que poderia lhes achar uma. Se podem pagá-la, talvez uma para vocês sós. O que lhes parece cinco xelins à semana?

Os lábios do Jack esboçaram uma careta de desagrado e pegou Emily pelo braço.

— Em realidade não entendeu nosso propósito - disse de forma direta, olhando ao Thickett com olhos duros. — Represento ao Smurfitt, Taylor e Mordue, advogados. Meu nome é John Consterdine. - Viu como o rosto do Thickett se distendia em uma mescla de irritação e receio. — Há um pleito cuja vista deve celebrar-se breve e que está relacionado com certa propriedade em que se deram atos de negligência que conduziram responsabilidades pelas consideráveis perdas produzidas. Posto que você é quem arrecada os aluguéis dessa propriedade, presumimos que é sua, e que é portanto responsável por...

— Não, não é minha! - Thickett entrecerrou os olhos e esticou o corpo em um ato reflexo de autodefesa. — Eu arrecado o aluguel, isso é tudo. Só sou um coletor. É um trabalho honrado, não tenho nada que ver com vocês. Não posso ajudá-lo.

— Não sou eu quem necessita ajuda, senhor Thickett - disse Jack com aprumo. — É você quem, se a propriedade for sua, deverá ingressar na prisão por dívidas não pagas...

— Ah, não. Eu não possuo nada mais que esta casa, com a que não tive nenhum problema durante anos. Além disso - virou o rosto enquanto reconsiderava a situação, uma vez passado o primeiro sinal de alarme e recuperado seu inato senso comum, — se for você advogado, quem são elas? Suas estagiárias? - Apontou com seu generoso indicador ao Emily, Charlotte e Gracie.

Jack respondeu com diáfana sinceridade.

— Elas são minha esposa, minha cunhada e sua criada. Trouxe-as comigo porque sabia que era pouco provável que você quereria me receber se viesse só e tinha alguma suspeita certa de quem era eu e por que vinha. E os fatos me deram a razão. Tomou-nos você por uma família em desgraça que precisava alugar habitação. A lei exige que lhe os entregue papéis... - Fez gesto de procurar em seu bolso interior.

— Não, não pode ser - disse Thickett. — Eu não possuo nenhum imóvel. Como lhe disse, só arrecado o aluguel...

— E o joga no bolso - concluiu Jack. — Bom, pois nesse caso disporá você de um bom capital para pagar as custas...

— A única coisa que tenho é o salário que me pagam por meu trabalho. O resto, salvo minha comissão, entrego-o tudo.

— Ah, sim? - Jack arqueou as sobrancelhas. — A quem?

— Ao agente, claro. Ao agente que leva os negócios de quem quer que seja o proprietário dos imóveis do Lisbon Street.

— De verdade? E quem é? - A incredulidade continuava presente em seus olhos.

— Não sei. De onde demônios vem você? Acredita que a gente que tem propriedades como estas lhes põe o nome na porta? É tolo, ou o que?

— O agente - Jack voltou atrás com habilidade. — Está claro que o proprietário não tem entendimentos com tipos como você, se você não tiver que prestar contas a ele... Quem é o agente? Não irei entregar estes papéis a alguém.

— O senhor Buffery, Fred Buffery. Encontrará-o no Nicholas Street, atrás da fábrica de cerveja, ali é onde leva os negócios. Vá dar esses papéis a ele. Eu não tenho nada que ver com isso. Eu só cobro o aluguel. Não é mais que um trabalho... igual ao seu.

Jack não se incomodou em discutir. Já tinham o que queriam e não gostava de seguir ali. Sem cortesia alguma, abriu a porta e saíram. Encontraram a carruagem a algumas casa de distância e se dirigiram a seguinte direção. Ali lhes informaram que o senhor Buffery estava comendo no pub das imediações, o Goat and Compasses, assim pensaram que era o momento idôneo para fazer o mesmo. Emily estava fascinada. Nunca tinha estado em um estabelecimento como aquele. Charlotte sim, mas em bairros mais decentes.

Dentro se ouvia alvoroço de risadas e vozes que falavam com excitação, conversas freqüentemente vulgares, e também o ruído de copos e pratos entrechocando. Cheirava a cerveja, suor, vinagre e verdura fervida.

Jack hesitou. Não era um lugar adequado para damas. Em seu rosto se refletiu aquele pensamento de forma tão evidente como se o tivesse expresso com palavras.

— Bobagens - disse Emily atrás dele. — Temos muita fome. Vai negar-se a nos dar de comer?

— Sim... neste lugar, sim - respondeu com firmeza. — Encontraremos algo melhor, embora seja um posto ambulante. Podemos ir ver o senhor Buffery quando voltar a seu escritório.

— Eu fico aqui - replicou Emily. — Quero ver... Tudo isto faz parte do que estamos fazendo.

— Não, não é assim. - Agarrou-a pelo braço. — Precisamos ver o Buffery para que nos diga para quem trabalha, mas não tem por que ser neste lugar. Não penso discutir isto, Emily. Vem fora comigo.

— Mas Jack...

Antes que a discussão fosse mais longe, Gracie deslizou entre eles, dirigiu- se ao garçom que atendia a mesa mais próxima e lhe puxou a manga até que o obrigou a voltar-se para ver quem estava lhe fazendo perder o equilíbrio.

— Por favor, senhor -lhe suplicou. — Está aqui o senhor Buffery? Não ouço sua voz no tumulto, e não vejo muito bem. É meu tio e tenho que lhe dar um recado.

— Diga-me isso, pequena, e eu o transmitirei - disse o garçom.

— Oh, não posso fazer isso, senhor, vai a vida nisso. Meu papai ficaria furioso e me faria algo mau.

— De acordo. Está ali, naquele lugar. Mas não o incomode, entendido? Eu não gosto que se incomode a meus clientes. Dá-lhe o recado e vai, compreende?

— Sim, senhor. Obrigado, senhor. - E se deixou acompanhar até o outro extremo, onde havia um homem com o rosto encarnado e o cabelo avermelhado sentado atrás de uma pequena mesa e com um prato diante servido com generosidade onde havia uma suculenta empanada com rangentes partes de carne temperada e uma fatia de queijo curado. Ao alcance da mão havia duas jarras de cerveja.

— Tio Fred? - começou Gracie ante a presença do garçom, com a fervente esperança de que ao menos Charlotte, se não todos outros, estivessem atrás dela.

Buffery a olhou com irritação.

— Eu não sou seu tio. Vá incomodar a outro. Não me interessa. Se quisesse uma mulher, já buscaria eu, uma que fosse bastante mais descarada que você... E não dou esmola.

— Caramba! - exclamou o garçom, zangado. — Disse que era seu tio.

— E o é - disse Gracie desesperada. — Meu papai me há dito que lhe dissesse que minha avozinha ficou muito mal e que necessitamosde dinheiro para ajudá-la. É pelo frio.

— Isso é verdade? - perguntou o garçom ao Buffery. — Não quer saber nada de sua própria mãe?

Mas então, Charlotte, Emily e Jack estavam atrás de Gracie. Sentiu uma onda de alívio. Pôs-se a soluçar de forma frenética, metade assustada, metade decidida a representar o papel até o final.

— Todas essas casas são tuas, tio Fred, a maioria no Lisbon Street. Poderia achar para a avozinha um lugar acolhedor onde pudesse estar mais quente. Está mal de verdade. Mamãe cuidará dela, se nos achar um lugar melhor. As paredes jorram de umidade e faz um frio espantoso.

— Eu não sou seu tio Fred - grunhiu Buffery. — Nunca a tinha visto em minha vida. Saia daqui. Tenha... toma! - Atirou-lhe uma moeda de seis pennies. — E agora saia daqui.

Gracie não fez caso da moeda e rompeu em lágrimas com bastante facilidade.

— Com isso não podemos pagar mais de uma noite. O que vamos fazer? Todas as casas do Lisbon Street são suas. Por que não pode colocar papai e mamãe em uma delas para que possamos estar em um lugar seco? Trabalharei, de verdade que procurarei um trabalho honrado. Pagaremos-lhe.

— As casas não são minhas, tontinha! - Buffery se sentia incômodo ao ver que outros comensais se voltavam para presenciar o espetáculo. — Acredita que estaria aqui comendo bolo frio e bebendo cerveja se todos esses aluguéis fossem meus? Eu só administro o negócio. E agora saia e me deixe em paz, inseto. Não a tinha visto nunca, nem tenho nenhuma mãe doente.

Gracie se viu livre de continuar com seus teatrais esforços mercê à intervenção de Jack, quem se fez passar de novo por advogado, sem relação nenhuma com Gracie, e ofereceu seus serviços para expulsar à menina como era devido. Buffery aceitou encantado, consciente de que todos seus sócios e vizinhos o olhavam sem a menor dissimulação. Seu sobressalto proporcionava um melhor espetáculo que o de muitos músicos e porta-vozes ambulantes que cantavam suas baladas e proclamavam as últimas notícias ou escândalos da semana. Aquilo tinham diante de seus olhos, e a vítima em apuros era alguém conhecido por todos.

Uma vez que Buffery se identificou, Jack disse ao Gracie que partisse, coisa que fez com presteza e gratidão e depois de ter pego os seis pennies. Jack procedeu então a ameaçar ao agente com pleitos por colaboração com a fraude, e Buffery ficou a jurar até não poder mais que ele não era o proprietário dos imóveis do Lisbon Street e que estava disposto a provar ante o advogado quem passava a lhe recolher cada mês todo o dinheiro dos aluguéis, uma vez subtraído a miserável percentagem por seus serviços.

Depois de uma rápida comida, encontraram-se a primeira hora da tarde nos escritórios do Bethnal Green Road de Fulson e filho, Penrose e Fulsom, uma pequena sala no alto de umas estreitas escadas a que Jack insistiu em ir só. Voltou ao cabo de uma meia hora, durante a que esperaram em meio de um intenso frio. Emily, Charlotte e Gracie se abrigaram com mantas de viagem. Gracie não deixava de recordar sua triunfal atuação no pub, e o subseqüente prêmio recebido.

Estiveram até tarde tratando de averiguar o paradeiro da agência imobiliária cujo nome tinha obtido Jack, graças a uma mescla de mentiras e ardis do pequeno senhor Penrose, mas ao final se viram obrigados a voltar para casa sem êxito.

Charlotte tinha a intenção de contar ao Pitt os acontecimentos do dia, mas ao vê-lo chegar a casa com o esgotamento marcado nas feições, e nos olhos uma expressão entre ansiosa e confusa, deixou a um lado suas novidades e lhe perguntou pelas dele.

Pitt se sentou à mesa da cozinha e pegou a xícara de chá que lhe tinha preparado de forma automática, mas em lugar de beber se limitou a agarrá-la com as duas mãos para esquentar-se. Só então começou a falar.

— Fomos ver os advogados do Shaw para ler o testamento do Clemency. O imóvel a deixa a seu marido, tal como nos haviam dito. Lega tudo salvo alguns objetos pessoais que os deixa a amigos. O mais interessante é sua Bíblia, que a deixa ao Matthew Oliphant, o padre.

Charlotte não via nada estranho nisso. Não é tão estranho que alguém lhe deixe sua Bíblia a seu sacerdote, sobre tudo se se trata de um religioso tão sincero e considerado como Oliphant. Era possível, quase com toda segurança, que Clemency não teria nunca a menor idéia dos sentimentos dele por ela, por quanto tinham permanecido sempre guardados em um desesperado segredo. Recordou o anguloso e vulnerável rosto do Oliphant, de forma tão nítida como se acabasse de vê-lo.

Por que estava Pitt tão preocupado? Parecia um testamento bastante comum.

Olhou-o, na expectativa.

— A Bíblia ficou destruída no incêndio, claro. - Inclinou-se para frente, com os cotovelos sobre a mesa e o rosto franzido pela concentração. — Mas o advogado a viu... Era um volume extraordinário, encadernado em couro, estampado em ouro e com um fecho com passador que lhe pareceu que podia ser de bronze, embora não estivesse certo. - Brilhavam-lhe os olhos ante a lembrança. — E no interior, todas as letras iniciais dos capítulos estavam iluminadas com cores e folhas douradas com as mais deliciosas e diminutas pinturas. -Esboçou um lento sorriso. — Como se a gente pudesse ver através de um ferrolho uma visão fugaz do céu ou o inferno. Ela a tinha mostrado só uma vez, assim que ele sabia de que objeto se tratava sem possibilidade de engano. Tinha pertencido a seu avô. - Seu rosto se escureceu com desagrado. — Não ao Worlingham, mas ao outro ramo da família. – Então voltou para o presente e à sensação de aborrecimento e destruição. Ficou lívido e sua expressão mudou. — Devia ser uma maravilha, e muito valiosa. Mas, é claro, perdeu-se com todo o resto.

Pitt olhava a sua mulher, confuso e um pouco angustiado. — Mas por que razão a deixaria ao Oliphant? Nem sequer é o vigário, só é um padre mais da paróquia. O mais provável é que não fique no Highgate de forma definitiva. Se lhe concedessem uma renda eclesiástica, seria para residir em outra parte... talvez inclusive em outro condado.

Ao Charlotte lhe ocorreu a resposta de forma imediata e sem esforço.

— Era-lhe tão óbvia como seria a qualquer mulher que tivesse amado alguma vez sem atrever-se a manifestar seu afeto, tal como acontecera a ela uma vez fazia muitos anos, antes de conhecer o Pitt. Naquela ocasião se havia engraçado por Dominic Corde, o marido de sua irmã mais velha, quando Sarah ainda vivia e residiam todos no Cater Street. É claro, aquele sentimento se extinguiu como a falsa ilusão que era ao contato com a realidade, e seu agonizante amor impossível tinha desembocado em uma simples e aberta amizade. Mas pensou que no caso de Clemency Shaw, aquele afeto nunca tinha deixado de ser algo dolorosamente real. A personalidade de Matthew Oliphant não era um ideal fictício que ela tivesse sonhado, como Charlotte fazia com Dominic. Não era um homem bonito e engenhoso que aparecesse a cada passo em sua vida. Tinha pelo menos quinze anos menos que ela e não era mais que um padre impetuoso que mal contava com meios suficientes para subsistir. E para os olhos mais exigentes, era um pouco vulgar e não estava especialmente dotado de talento.

Mas em seu interior ardia uma paixão. Confrontados com à desgraça alheia, Clitheridge nunca sabia o que fazer, não tinha graça, decompunha-se e não sabia passar da mera superficialidade. A compaixão do Oliphant, pelo contrário, vencia qualquer dificuldade, pois sentia a dor como se fosse própria e só a piedade inspirava sua língua.

A resposta era óbvia. Clemency o tinha amado nem mais nem menos que o que ele a tinha amado a ela, e a ambos era igualmente impossível exteriorizar seus sentimentos, nem sequer da forma mais insignificante. Só ao morrer havia ela podido dar um pequeno sinal lhe deixando algo de infinito valor para ela mas que não parecesse muito especial para que não pudesse a prejudicar em sua reputação. Uma Bíblia não era um quadro, ou um adorno, ou qualquer outro objeto que tivesse podido delatar uma emoção inadequada. Uma Bíblia para um padre, nada mais. Só quem a tivesse visto podiam talvez imaginar algo, e possivelmente essas pessoas fossem o advogado... e Stephen Shaw.

Pitt a olhava fixamente do outro lado da mesa.

— Charlotte?

Ela levantou a vista para ele com um ligeiro sorriso e um súbito nó na garganta.

— Sabe uma coisa? Ele também amava a ela - disse, e engoliu em seco. — Me dei conta quando me ajudou a seguir a pista do Bessie Jones e dessas horríveis casas. Conhecia o itinerário.

Pitt deixou a xícara sobre a mesa e lhe pegou as mãos com gentileza. Sustentou-as entre as suas e lhe acariciou os dedos um por um. Não havia necessidade de acrescentar nada, e ele certamente não o desejava.

Não foi senão na manhã seguinte, justo antes de ir-se, quando lhe disse aquilo que tanto lhe preocupava. Estava atando as botas frente à porta principal enquanto lhe segurava o casaco.

— Os advogados já resolveram a questão monetária. Foi muito simples. Não havia dinheiro... apenas um par de centenas de libras.

— Como? - Acreditou ter entendido mau.

Pitt se endireitou e lhe ajudou a colocar o casaco.

— Não deixou dinheiro - repetiu. — Todo o dinheiro que tinha herdado dos Worlingham esfumou-se, salvo duzentas e quatorze libras com quinze xelins.

— Pois eu achava que havia um montão de dinheiro... Não era rico Theophilus?

— Imensamente rico. E todo seu dinheiro foi a suas duas filhas, Prudence Hatch e Clemency Shaw. Mas Clemency não deixou nada.

Um atroz pensamento cruzou sua mente.

— Gastou-o Shaw?

— Não. O advogado é terminante. A própria Clemency entregou grandes somas a toda classe de pessoas, tanto a pessoas como a sociedades.

— Com que fim? - perguntou Charlotte, embora uma idéia apontava já em sua mente, que supunha estava presente também na dele. — Para a reforma das moradias?

— Sim... Ao menos a maior parte do que conhece o advogado, embora haja uma grande parte para a qual não pôde seguir o rastro... dinheiro que foi a parar em pessoas desconhecidas.

— Vai tentar dar com elas?

— É claro. Embora não acredito que tenha que ver com o incêndio. Continuo pensando que ia destinado ao Shaw, apesar de não ter nenhum indício disso.

— E Amos Lindsay?

Encolheu os ombros.

— Suponho que o mataram porque sabia, ou intuía, quem era o responsável. Talvez por algo que disse Shaw, sem que ele mesmo soubesse o significado que tinha. E há outra possibilidade, se quiser mais terrível mas mais verossímil: que quem tentou matar ao Shaw não retroceda e que o segundo incêndio não fosse mais que uma nova tentativa fracassada. - Pegou o cachecol do varal e o passou ao redor do pescoço. — E, é claro, não é impossível que Shaw provocasse ambos os incêndios: o primeiro para matar Clemency e o segundo para matar ao Lindsay por haver-se delatado a si mesmo, ou por temor a que o fizesse.

— Isso é uma infâmia! - respondeu ela com ardor. — Depois que Lindsay tivesse sido seu melhor amigo? E por que? Por que teria querido Shaw matar Clemency? Você mesmo acaba de dizer que não havia dinheiro que herdar.

Odiava ter que dizê-lo, e de fato o fez com um gesto de repulsão.

— Precisamente por isso. Como o dinheiro se evaporara e necessitava mais, e Flora Lutterworth é jovem, muito bonita e a única herdeira da maior fortuna do Highgate... E ela está muito afeiçoada a ele... até o ponto de ser a fofoca local.

— Oh - exclamou Charlotte, incapaz de achar nada que refutar. Embora se negasse a acreditar a menos que houvesse provas irrevogáveis.

Deu-lhe um carinhoso beijo e partiu. Ela voltou para o piso de cima para vestir-se para a visita diária em companhia de Emily, Jack e Gracie.

Levou-lhes toda a manhã dar com a agência imobiliária, e logo tiveram que utilizar uma série de ardis para lhes surrupiar os nomes dos advogados, uma assinatura da mais alta reputação de Londres, que se encarregava dos assuntos da companhia que possuía as propriedades do Lisbon Street, e de outras várias.

Às duas estavam sentadas nos acolhedores e confortáveis escritórios dos senhores Warburg, Warburg, Boddy e Boddy, enquanto esperavam a volta do senhor Boddy pai de uma extensa comida com um cliente. Havia jovens estagiários em atitude grave sentados em cadeiras com as costas curvada e escrevendo com perfeita caligrafia em documentos de vitela dos que penduravam selos escarlate. Também havia meninos para fazer recados que iam e vinham com passo silencioso, discretos e obedientes, enquanto um homem cheio de rugas com um pescoço duro de asas os vigiava sem mover-se da cadeira atrás do mostrador.

Gracie, que nunca tinha estado em um escritório, sentia-se fascinada e seguia com os olhos o menor movimento.

Por fim retornou o senhor Boddy, um homem de cabelo prateado, feições suaves e voz e maneiras perfeitamente flexiveis. Fez caso omisso das mulheres e se dirigiu a Jack. Não parecia ter avançado com os tempos e reconhecido que as mulheres gozavam já de capacidade jurídica. Para ele seguiam sendo apêndices da propriedade de um homem: existiam para seu possível prazer, para sua inequívoca responsabilidade, mas não para que as informasse ou consultasse.

Charlotte se sentiu ofendida e Emily deu um passo à frente, mas a mão de Jack a reteve e ela, em altares da estratégia, obedeceu. Nos dois últimos dias tinha renovado seu respeito por ele por sua capacidade para ler no caráter das pessoas e obter informação.

Mas Boddy era de uma natureza muito diferente a daqueles com quem se encontrara até esse momento. Era suave de trato, mostrava-se muito seguro de estar a salvo de qualquer ameaça de pleito e seu cometido e lisonjeiro rosto não se alterou enquanto expunha com condescendência que sim, que levava diversos assuntos relacionados com as propriedades e as rendas de vários clientes, mas que não podia facilitar seus nomes nem nenhum outro tipo de detalhe particular. Sim, com toda certeza a senhora Shaw o tinha visitado com perguntas similares, às quais ele se mostrara igualmente incapaz de responder. Estava profundamente penalisado por seu trágico fim - seus olhos permaneceram frios e inexpressivos -, e lhes oferecia suas sinceras condolências, mas os fatos seguiam sendo os mesmos.

Estava-se levando a cabo uma investigação criminosa, explicou Jack. Atuava por conta de outras pessoas, cujos nomes tampouco podia facilitar. Preferiria possivelmente o senhor Boddy que fosse a polícia que se apresentasse em seus escritórios para lhe fazer aquelas mesmas perguntas?

Mas Boddy não se arredou. Era Jack consciente de que as pessoas proprietárias de tais bens imóveis se contavam entre as mais poderosas de Londres e tinham amigos a quem podiam acudir, caso de necessidade, para que protegessem seus interesses? Algumas dessas pessoas ocupavam posições muito elevadas e estavam em situação de conceder (ou negar) favores que podiam ter uma influência considerável em tornar mais fácil a vida de uma pessoa ou lhe abrir o futuro de sua profissão, ou as portas das finanças, ou da vida em sociedade.

Jack arqueou as sobrancelhas e perguntou com uma ligeira expressão de surpresa se o senhor Boddy estava lhe dizendo que a posse das propriedades em questão situava a essas pessoas em uma posição tão incômoda que estivessem dispostas a causar menos cabo na reputação ou os interesses de todo aquele que pretendesse realizar indagações.

— Pode fazer as conjeturas que quiser, senhor Radley - respondeu Boddy com um sorriso tenso. — Não respondo de sua situação, limitei-me a descarregar minhas responsabilidades em você. E agora, outros clientes me esperam. Bom dia.

Viram-se pois obrigados a partir sem mais butim que o nome da companhia, que já tinham obtido da agência. Nem nomes nem gente influente: o assunto nem sequer se tratara de forma explícita, mais que através de uma ameaça velada.

— Odioso personagem - respondeu tia Vespasia quando contaram. — Mas que outra coisa podíamos esperar? Se fosse dizendo nomes ao primeiro que entrasse em seu escritório, a boa hora teria durado tanto tempo como advogado da classe de pessoas que possuem essas propriedades.

Tinha ordenado já que trouxessem o chá, enquanto seus visitantes estavam sentados junto ao fogo na saleta de estar, recompondo-se do frio tanto como da decepção sofrida, ao menos de momento, se é que não fosse definitiva, por quanto pareciam ter chegado a um ponto morto. Inclusive à Gracie foi permitido, por uma vez, sentar-se com eles a tomar o chá, embora não interviesse na conversa. Em lugar disso passou o tempo olhando com olhos arregalados os quadros das paredes, os delicados móveis com a suave superfície acetinada e, quando se atrevia, à própria Vespasia, sentada muito rígida, com seu cabelo prateado recolhido de forma imaculada no alto da cabeça, brincos formados por réstias de grandes pérolas, rendas de cor crua no pescoço e, em forma de comprimentos franzidos, sobre suas finas e estiradas mãos, reluzentes de diamantes. Gracie jamais tinha visto ninguém vestido com tal esplendor, e estar sentada em sua casa tomando chá com ela era a coisa mais memorável que jamais tivera feito.

— Mas reconheceu que tinha visto Clemency - indicou Charlotte. — Não fez o menor esforço para ocultá-lo. Era tão duro como o bronze, mas o dobro de flexível. O mais provável é que contasse aos proprietários que ela esteve ali e o que pretendia. Teria me encantado poder lhe dar um bom murro no nariz.

O que não seria nada prático - disse Emily mordendo o lábio. — Mas a mim também, embora melhor com a ponta de um guarda-chuva. Como podemos averiguar a quem pertence essa companhia? Com certeza tem que haver uma maneira.

— Talvez Thomas pudesse inteirar-se - sugeriu Vespasia com um ligeiro arquear de sobrancelhas. — Não estou familiarizada com os assuntos de negócios. Em momentos como este é quando lamento minha falta de conhecimento de alguns aspectos da sociedade. Charlotte?

— Não sei se poderá. - Recordou a conversa da noite anterior. — O que acontece é que ele não acredita que possamos obter nada. Continua convencido de que o objetivo era o doutor Shaw e não Clemency.

— Poderia muito bem ser assim - concedeu Vespasia. — Mas isso não muda o fato de que Clemency estivesse imersa em uma luta em que nós acreditamos, com paixão. E que como ela morreu, agora não há ninguém que a prossiga, que saibamos. É um abuso intolerável, tanto pela desgraça das vítimas como pela imensa mentira que encerra. Não há nada que me irrite tanto como a hipocrisia. Eu adoraria arrancar as máscaras a esses rostos dissimulados.

— Compreendo-a - disse Jack imediatamente. — Até agora não sabia que havia tanta ira em meu interior, mas a verdade é que no momento presente me é difícil pensar em outra coisa.

Um ligeiro sorriso se desenhou nos lábios da Vespasia, que olhou Jack com olhos aprovadores. Ele pareceu não dar-se conta, mas em Emily provocou um sentimento de afeto que a fez compreender quanto lhe importava a boa opinião da Vespasia com respeito a seu marido.

Charlotte pensou na linha de investigação escolhida pelo Pitt: a busca entre os pacientes do Shaw de algo tão abominável que tinha produzido já dois assassinatos e podia ocasionar outros, até que o próprio Shaw morresse. Mas seguia intuindo que o objetivo daquele primeiro incêndio era Clemency e que o segundo o tinham provocado só para encobrir a verdade. O autor material do crime podia ser qualquer piromaníaco a salário, mas o instigador do assassinato tinha que ser algum dos proprietários daqueles decrépitos, amontoados e espantosos imóveis do Lisbon Street, temeroso do escárnio público ao qual Clemency poderia expô-lo ao concluir suas investigações.

— Nós não podemos averiguar quem é o proprietário de uma companhia. - Depositou a xícara na mesa e olhou a Vespasia. — Mas com certeza o senhor Carlisle pode... talvez conheça alguém que saiba. Se for necessário podemos pagar a alguém para que o averigue.

— Falarei com ele - concordou Vespasia. — Acredito que saberá apreciar que o assunto é de certa urgência. Talvez persuadimos de que deixe estacionadas outras tarefas e se dedique a esta.

E assim o fez Carlisle, com efeito, e na noite seguinte informou a todos, reunidos uma vez mais na saleta da Vespasia. Tinha expressão de surpresa quando entrou acompanhado pelo criado. Em seus olhos se refletia seu habitual senso de humor irônico, mas seu rosto mostrava uns traços suaves, como se a surpresa tivesse apagado as profundas linhas ao redor de sua boca.

Pronunciou as breves saudações de cortesia e aceitou o assento que lhe oferecia Vespasia. Todos ficaram olhando-o, conscientes de que era portador de notícias, de cuja natureza não podiam fazer senão meras conjeturas.

Os olhos cinzas prateados de Vespasia o desafiavam a que falasse sem circunlóquios. Não havia lugar para palavras melindrosas.

— Pode começar.

— A companhia proprietária dos imóveis pertence por sua vez a outra companhia. - Contou a história sem adornos supérfluos, com os detalhes precisos para compreender o sentido da mesma, enquanto olhava aos pressentes de um a outro, incluída Gracie, de modo que se sentisse igualmente partícipe. — Fui ver algumas pessoas que me deviam favores, ou que desejam me ter em boa predisposição em um futuro, e consegui me inteirar dos nomes dos possuidores de valores da segunda companhia. Só um deles continua vivo. De fato, é o único que fica vivo há vários anos. Já em 1873, quando a companhia se formou a partir dos restos de outra companhia similar, que por sua vez procedia de outra anterior; já em 1873, como dizia, os outros titulares de valores estavam ou ausentes do país de maneira indefinida, ou eram de uma idade avançada e seu estado de saúde tão precário que os incapacitava para mostrar um interesse ativo.

Vespasia o observava com seu olhar penetrante e imutável, mas ele prosseguiu com o mesmo ar.

— Consegui visitar essa pessoa que continua ativa e que é a que assina todos os documentos. É uma dama de idade avançada, solteira e pelo mesmo proprietária absoluta de seu patrimônio, embora só atua como mediadora e detém as participações nominalmente, mas raramente intervém diretamente. Seus ganhos lhe bastam para viver com comodidade, mas não de forma luxuosa. Ao entrar em sua casa, resultou-me evidente que o grosso de seu capital, que deve subir a vários milhares de libras ao ano, desvia-se a outro lugar.

Jack se moveu em sua cadeira e Emily aspirou com expectativa.

— Disse-lhe quem era eu. - Carlisle se ruborizou ligeiramente. — Ficou muito impressionada. O governo, como expressão do instrumento de Sua Majestade para dirigir ao povo, e a Igreja são as duas forças imutáveis do bem no mundo desta dama.

Charlotte deu um salto na imaginação.

— Não nos estará dizendo que a pessoa a que representa é um membro do Parlamento, não é verdade?

Vespasia se ergueu com rigidez.

Emily se inclinou para frente.

Jack conteve a respiração, enquanto Charlotte espremia as mãos no regaço.

Carlisle esboçou um amplo sorriso, mostrando uma dentadura impecável.

—Não, mas quase. Trata-se, ou se tratava, de um dos mais distintos membros da igreja... o bispo Augustus Worlingham.

Emily soltou um gemido e Vespasia deixou escapar um gritinho de assombro.

— O que? - exclamou Charlotte desconfiada. E então aflorou de seu interior um humor absurdo e negro como os chamuscados restos da casa do Shaw e pôs-se a rir de forma incontrolável. Mal era capaz de assimilar o horror que devia ter sentido Clemency ao chegar até aquela fronteira. Porque era certo que tinha chegado até ali. Como se não? Por força tinha que ter encontrado a aquela velha e inocente dama um pouco tresnoitada que arrecadava aluguéis de moradias miseráveis, fruto da maldade e da avareza, e os tinha feito chegar debaixo da mão às arcas de sua própria família para fazer da casa do bispo um lugar rico e acolhedor, para pagar os assados e o vinho que ela e sua irmã tinham comido e bebido, para vestir sedas e jóias e para receber os cuidados dos criados.

Não era de estranhar que Clemency tivesse dedicado toda sua herança (centenas e centenas de libras) a corrigir os enganos de seu avô.

E Theophilus? Tinha sabido? E Angeline e Celeste? Sabiam elas de onde procedia o dinheiro da família e mesmo assim eram capazes de continuar pedindo doações aos habitantes do Highgate para a construção de um vitral em memória de seu bispo?

Imaginava a reação do Shaw ao inteirar-se. Porque algum dia tinha que sabê-lo.

Quando se provasse quem tinha sido o assassino de Clemency tudo seria do domínio público... Charlotte se conteve. Mas se o proprietário era o bispo Worlingham, que estava há dez anos morto, e Theophilus estava morto também, os ganhos foram parar então à Clemency... e à Prudence, Angeline e Celeste. Acaso eram capazes de matar a sua irmã e sobrinha para proteger o dinheiro da família? Não, Clemency ainda não teria revelado a verdade. Ou sim?

E se fosse assim? Teriam tido alguma forte disputa durante a qual ela lhes teria jogado no rosto justamente qual era o preço de seu bem-estar e lhes haveria dito que estava disposta a lutar até que se promulgasse uma lei pela qual saíssem à luz nomes como os do bispo para que sofressem a desonra pública e o rechaço que seus atos mereciam?

Não parecia concebível que Celeste ao menos fosse capaz de matar para evitar algo assim. passara toda a vida cuidando do bispo. Privara-se de marido e filhos com o fim de permanecer a seu lado e obedecer todas suas ordens, transcrever cartas e sermões, procurar referências nos livros, tocar o piano para seu deleite, ler-lhe em voz alta quando seus olhos estavam cansados. Sempre tinha sido sua solícita criada não remunerada. Tinha sacrificado sua inteira vontade, submetido todas suas decisões às dele. Tinha que procurar uma justificação a todo isso: ele merecia um presente assim, do contrário sua vida se convertia em algo ridículo, uma vida esbanjada sem motivo.

Talvez Pitt tivesse razão e os motivos tinha que buscar perto do lar. Possivelmente fatos e móveis tinham estado no Highgate todo o tempo.      

Todos a olhavam. Procuravam em seus olhos o rastro de seus vertiginosos pensamentos, enquanto sua expressão passava da ira à comiseração e a triste convicção.

— O bispo Augustus Worlingham - repetiu Somerset Carlisle, deixando que cada sílaba caísse com todo o peso de seu significado. — Todo Lisbon Street pertencia, através de um tortuoso caminho mantido no mais absoluto segredo, ao bom bispo. E quando ele morreu, as propriedades foram herdadas por Theophilus, Celeste e Angeline. Suponho que se foi tão generoso com suas filhas seria porque tinham dedicado suas vidas a ser suas servidoras. Além disso, não tinham nenhum outro meio de subsistência, e não cabia esperar que contraíssem matrimônio à idade que tinham alcançado. Revisei seu testamento, por certo. Duas terceiras partes foram para o Theophilus, e o outro terço, além da casa, de enorme valor é claro, para as duas irmãs. Mais que suficiente para que pudessem levar uma vida cômoda o resto de seus dias.

— Então Theophilus devia possuir uma fortuna - disse Emily, surpreendida.

— Herdou uma fortuna, sim - confirmou Carlisle. — Mas levou uma vida muito dispendiosa, pelo que ouvi. Gostava da boa mesa, tinha uma das melhores adegas de Londres e colecionava quadros, alguns dos quais doou a museus locais e outras instituições. Em qualquer caso, ao morrer deixou uma bonita soma a cada uma de suas duas filhas.

— Assim Clemency tinha muito dinheiro - disse Vespasia quase para si mesma. — Até que começou a desprender-se dele. Sabemos quando começou a fazê-lo? - Olhou para Jack e depois para Carlisle.

— O advogado não disse quando foi ver-lhe Clemency - respondeu Jack, e apertou os lábios ao recordar sua frustração e o dúctil e arrogante rosto do advogado.

— Sua luta em favor da transparência nas propriedades imobiliárias começou faz uns seis meses - disse Carlisle sombrio. — E a primeira grande doação de caridade para a proteção dos pobres se produziu mais ou menos pelas mesmas datas. Atreveria-me a aventurar a hipótese de que então descobriu que seu avô era o proprietário atrás de quem andava.

— Pobre Clemency. - Charlotte recordou o triste rastro de mulheres e meninos doentes e de homens consumidos que ela tinha seguido a partir da lista de pacientes de Shaw, através de casas e blocos de vizinhos cada vez em piores condições até que por fim tinha encontrado Bessie Jones encolhida em um canto de um super saturado e imundo cômodo. Clemency tinha seguido o mesmo caminho, tinha visto os mesmos rostos de infortúnio, tinha sido testemunha como ela da enfermidade e da resignação. E depois tinha começado um caminho inverso de ascensão para os proprietários, assim como eles depois.

— Não devemos deixar que a luta morra com ela - disse Jack endireitando-se em seu assento. — É certo que Worlingham está morto, mas há muitos outros, talvez centenas. Ela sabia, e teria dado sua vida por desmascará-los... - deteve-se. — De fato eu continuo pensando que morreu por isso. Advertiram-nos expressamente que havia gente poderosa que podia nos deixar em paz, se fôssemos discretos e nos retirassemos, ou atrás de nós se persistíamos. É claro que Worlingham não a matou, mas algum dos outros proprietários pôde fazê-lo. Têm muito que perder... E não acredito que Clemency fizesse muito caso das ameaças. Era uma mulher muito apaixonada que sentia um enorme repúdio pela a herança que tinha recebido. Só a morte podia detê- la.

— O que podemos fazer? - Emily olhou a Vespasia e ao Carlisle.

À gravidade do rosto do Carlisle se somava o gesto de concentração de suas sobrancelhas franzidas.

— Não tenho certeza. As forças inimigas são muito grandes. Há interesses criados, e muito dinheiro no meio. É possível que haja muitas famílias poderosas que não conheçam em ciência certa a origem exata de todos seus ganhos. E com certeza não terão muito interesse em incomodar a seus amigos.

— Necessitamos uma voz no Parlamento - disse Vespasia com decisão. — Sei que contamos com uma. - Olhou ao Carlisle. — Mas necessitamos mais. Necessitamos a alguém que dirija este assunto em particular. Jack, você não está fazendo nada neste momento mais que se divertir. Sua lua de mel já acabou. É hora de que faça algo de proveito.

Jack ficou olhando-a pasmado. Os olhos cinzas da dama o olhavam impávidos, enquanto os seus, azul cinzento, com suas longas pestanas e sobrancelhas arqueadas lhe devolviam um olhar desconfiado. E então, de forma paulatina, o assombro foi dando passagem à concreção de uma idéia. Colheu com certa crispação os braços da cadeira. Nem ele afastava os olhos dos dela, nem esta desviava o olhar.

Nenhum dos presentes se moveu nem emitiu o mais débil som. Emily não podia senão conter a respiração.

— Sim - disse Jack por fim. — Que idéia tão excelente. Por onde começo?

 

Charlotte tinha ido contando ao Pitt o mais importante em torno de sua busca de proprietários das casas do Lisbon Street, assim quando fez o assombroso descobrimento de que estas não só eram dos Worlingham mas também Clemency se inteirara poucos meses antes de morrer, decidiu contar-lhe tudo assim que chegou a casa. Ao ver seu casaco no varal, correu para a cozinha sem tirar sequer o chapéu.

— Thomas! O proprietário do Lisbon Street era o próprio bispo Worlingham! E agora a família se beneficia das rendas. Clemency também o descobriu!

— Como diz? - Girou em seu assento e ficou olhando-a com perplexidade.    

— O bispo Worlingham era o proprietário do Lisbon Street - repetiu. — Todas essas moradias sem condições e essas tavernas de má fama eram seus! Agora pertencem ao resto da família... e isso foi o que Clemency descobriu. Por isso se sentia tão mal. - Sentou-se em uma cadeira frente a ele. — Provavelmente por isso dedicou tantos esforços a reparar o fato. Pensa em como devia sentir-se. – Fechou os olhos e apoiou a cabeça entre as mãos, com os cotovelos sobre a mesa. — Oh!

— Pobre Clemency. Uma mulher na verdade notável. Eu gostaria de havê-la conhecido.

— Eu também - concordou Charlotte. — Por que costumamos sabercomo são as pessoas quando já é muito tarde?

Era uma pergunta a que não esperava resposta. Ambos sabiam que não teriam tido ocasião de saber da existência de Clemency Shaw se não tivesse morrido assassinada, coisa que não precisavam dizer-se.

Passou meia hora até que recordou lhe dizer que Jack considerava seriamente a possibilidade de apresentar-se ao Parlamento.

— De verdade? - Ele levantou a voz, surpreso, e a olhou para certificar-se de que não lhe estava fazendo uma brincadeira.

— Oh, sim... me parece uma idéia excelente. Tem que fazer algo se não quiser que seu matrimônio morra de aborrecimento. - Sorriu com intenção. — E não podemos estar sempre nos entremetendo em seus casos.

Ele deixou escapar um bufo e se absteve de nenhum comentário. Na realidade lhe reconfortavam as intromissões ocasionais de sua mulher, graças às quais podia compartilhar experiências e emoções: momentos de horror, de alegria, piedade, ira, medo às vezes, toda a gama de emoções que suscitam os fatos terríveis e que tomam sentido graças ao maior laço que existe, a vivência compartilhada.      

Em conseqüência, quando no dia seguinte se achou com o Murdo na delegacia de polícia do Highgate, tinha várias coisas que lhe dizer, a maioria das quais não fizeram senão acrescentar a ansiedade que Murdo sentia com respeito a Floresce Lutterworth. Pensou em suas escassas, breves e mas bem incômodas conversas, nos densos silêncios, na estupidez que havia sentido enquanto permanecia de pé naquela magnífica casa, com suas lustrosas botas que chamavam a atenção como duas enormes partes de brilhante carvão. E com os grandes botões de seu uniforme que o delatavam sem remissão como polícia: um intruso cuja presença só podia ser inoportuna. O rosto dela lhe aparecia mentalmente uma e outra vez. Olhava-o com olhos muito abertos, com aquela pele delicada e aquela maravilhosa cor de suas faces, e uma expressão orgulhosa e valente. Era uma das mulheres mais formosas que jamais tinha visto. Mas possuía algo mais que beleza: alma e gentileza. Tinha tanta vitalidade. Era como se ela pudesse cheirar aromas e flores que ele só podia imaginar, como se fosse capaz de ver além dos horizontes cotidianos que ele conhecia, um mundo mais luminoso e importante. Como se pudesse ouvir melodias das quais ele só conhecia o ritmo.

Mas se algo sabia era que ela tinha medo. Ele desejava protegê-la e angustiava-o não poder fazê-lo. Não entendia o que a ameaçava, tão somente que estava relacionado com a morte de Clemency Shaw, e agora também com a do Lindsay.

Entretanto, certa parte de si mesmo - a que não queria escutar - lhe dizia que o papel da moça naquele caso podia não ser de todo inocente. Não desejava pensar que estivesse envolta pessoalmente, nem chegava a culpar a de nada em concreto, mas tinha ouvido os rumores e sobre tudo tinha visto seus olhos e a forma em que se ruborizara ao guardar silêncio. Sabia que entre Flora e Stephen Shaw havia alguma relação especial, tão certo quanto seu pai estava furioso por isso, embora para ela era tão valiosa que estava disposta a confrontar sua ira e a desafiá-lo.

Murdo estava confuso. Nunca havia sentido um ciúmes tão desordenado, pois estava certo de uma vez de que ela não tinha feito nada do que devesse envergonhar-se, e ao mesmo tempo não podia ignorar que o coração da jovem talvez albergava uma emoção profunda por Shaw.

O medo de que tudo não fosse tão limpo era grande, talvez tanto que ocultava um pensamento ainda mais repulsivo: a possibilidade de que Alfred Lutterworth fosse o responsável pelos atentados contra Shaw. Havia dois possíveis raciocínios que podiam havê-lo movido a isso, ambos acreditáveis e igualmente devastadores.

A que Murdo se negava sequer a pensar era que Shaw tivesse desonrado Flora, ou que conhecesse algum segredo vergonhoso em sua vida, talvez um filho ilegítimo, ou pior ainda, um aborto. Lutterworth poderia ter tratado de matá-lo ao inteirar-se, para sossegá-lo. Dificilmente poderia esperar conseguir um bom matrimônio para sua filha se chegasse a saber de algo assim. De fato, não cabia esperar matrimônio algum. Envelheceria sozinha, rica, marginalizada, objeto de falatórios e de uma piedade ou um desprezo eternos.

Ante aquela possibilidade, Murdo sentia vontade de matar Shaw. Ao pensar nisso, apertava os punhos com tanta força que as unhas, apesar de usá-las curtas, lhe fincavam nas palmas. Tinha que apagar de sua mente aquele pensamento. Era uma traição o fato mesmo de havê-lo deixado entrar... embora só tivesse sido por um instante. Desprezava-se por haver lhe ocorrido sequer. Era Shaw quem estava importunando-a. Era uma moça e adorável. Ele a desejava e ela era muito inocente para dar-se conta de quão desprezível era aquele homem. Isso era muito mais verossímil. E havia além disso o dinheiro do pai, claro. Shaw tinha gasto todo o dinheiro de sua mulher, do qual havia provas evidentes. O inspetor Pitt tinha descoberto que o dinheiro do Clemency Shaw tinha desaparecido. Sim, isso... tudo encaixava. Shaw andava atrás do dinheiro de Flora! E Alfred Lutterworth tinha muito dinheiro.

Este era também um pensamento bastante infame. Murdo era agente de polícia e tudo parecia indicar que seguiria sendo-o durante bastante tempo. Tinha só vinte e quatro anos. Ganhava o suficiente para viver com certa decência, ou algo que lhe assemelhava: comia três vezes ao dia, vivia em uma habitação agradável e tinha roupa limpa, mas estava tão longe do esplendor da casa do Alfred Lutterworth como esta o estava do castelo real do Windsor. E Lutterworth podia pôr seus olhos em uma das princesas tanto como Murdo podia pôr os sua em Flora.

Por desespero se obrigou a considerar a possibilidade descoberta pela esposa do inspetor Pitt a respeito de que algumas das piores casa dos bairros pobres tinham pertencido ao velho bispo Worlingham. Isso ao Murdo não tinha impressionado tanto.

Sabia que algumas pessoas respeitáveis na aparência podiam guardar segredos repugnantes, sobre tudo se havia dinheiro no meio. Mas o que ao Pitt tinha passado por cima era que se a pobre senhora Shaw tinha descoberto quem era o proprietário daquelas casas em particular, igualmente podia ter descoberto quem eram os proprietários de outras tantas. Pitt tinha falado de membros do Parlamento, de famílias com títulos de nobreza, até de juizes do tribunal. Mas não tinha pensado em industriais retirados desejosos de entrar e formar parte do grande mundo e necessitados de ganhos estáveis, que não tivessem muitos escrúpulos em saber onde investiam seu dinheiro?

Alfred Lutterworth podia haver-se sentido em tanto perigo por causa das atividades de Clemency Shaw como os Worlingham, se não mais. Clemency podia ter desejado proteger aos seus, como aparentemente tinha feito. Mas por que ia proteger ao Lutterworth? Este tinha todos os motivos para matá-la... e também ao Lindsay, se é que este o tinha adivinhado.

Quer dizer, desde que Lutterworth fosse também proprietário de casas de bairros pobres. Como averiguá-lo? Não podiam investigar quem era o proprietário de todos os pedaços de cimento podre e de todas as vigas meio afundadas de Londres, nem de todos os becos sem luz, nem de todas as ruas com os coletores a céu aberto e os escombros amontoados nas esquinas, nem de todos os pisos amontoados de carentes assustados. Ele sabia porque o tinha tentado. Ruborizou-se ao recordá-lo. Tinha sido uma traição de sua parte o ter permitido que aquele pensamento tivesse tomado corpo em sua mente e se pôs a fazer perguntas a respeito das finanças do Lutterworth, da origem de seus ganhos e se estes podiam ter algo que ver com o aluguel de casas. Mas não era tão fácil como tinha imaginado. O dinheiro procedia de companhias, mas o que faziam essas companhias? Não tinha tido tempo de investigar, nem tinha atuado amparado por instruções oficiais que tivessem podido conferir a suas perguntas a força da lei. Não tinha podido resolver nada. ficou com suas incertezas e com um entristecedor sentimento de culpa. Não era capaz de imaginar nada que pudesse eliminar o suplício do medo e os perturbadores pensamentos que aninhavam em sua mente.

Via o rosto de Flora tingido de sentimentalismo e percebia com intensidade toda a dor e a vergonha que devia experimentar ela, até o ponto de que se sentiu aliviado ao ouvir os passos do Pitt e receber as instruções de seu encargo matutino. Continuava havendo nele certo ressentimento pelo fato de que lhes tivessem enviado a alguém de fora. Acaso pensavam que o pessoal do Highgate era incompetente? Mas também sentia um imenso agradecimento de que a responsabilidade não fosse deles.

Aquele caso era na verdade difícil e sua resolução parecia tão longínqua como quando estavam ante os restos fumegantes da casa do Shaw, muito antes de que incendiassem também a do Lindsay.

— Sim, senhor? - disse de forma maquinal enquanto Pitt entrava no salão onde ele estava. — Aonde, senhor?

— A casa do senhor Alfred Lutterworth.

Pitt vinha do escritório do superintendente local, a quem tinha ido ver como amostra de cortesia e se por acaso tinha acontecido algo que Murdo não soubesse (coisa de fato improvável), algum cabo solto que valesse a pena investigar. Mas o superintendente o tinha atendido com seu habitual gesto de desagrado e o tinha informado com certa satisfação da existência de outro incêndio, no Kentish Town, provocado possivelmente pelo mesmo piromaníaco. Notificou-lhe também o informe negativo da companhia de seguros e a alta improbabilidade de que tanto Shaw como Lindsay estivessem envolvidos nos incêndios com propósitos fraudulentos.

— Bem, a verdade é que em nenhum momento tinha imaginado que Lindsay se queimou a si mesmo para poder reclamar o seguro - lhe tinha respondido Pitt.

— Claro que não, senhor - havia dito o superintendente com frieza. — Tampouco nós acreditávamos tal coisa. Mas seguimos pensando que os incêndios foram provocados pelo piromaníaco do Kentish Town... senhor.

— Seriamente? - respondeu Pitt com tom evasivo. — É curioso que só houvesse duas casas ocupadas.

— Bom, ele não sabia que a do Shaw estava, não? - havia dito o superintendente com irritação. — Shaw estava fora e todos pensavam que a senhora Shaw também estava. Cancelou a entrevista no último minuto.

— Os únicos que achavam que a senhora Shaw estava fora eram as pessoas que a conheciam - havia dito Pitt, satisfeito de sua dedução.

O superintendente o tinha olhado e voltado para o trabalho que tinha sobre a escrivaninha, deixando que Pitt partisse em silêncio.

Agora já podia ir observar e escutar às pessoas em busca de provas, que era no que consistia a verdadeira arte policial. Fazia dias que já não esperava que as coisas lhe dissessem algo interessante. Ao Murdo deu um tombo o coração, mas não tinha nenhuma outra tarefa que pudesse lhe servir de desculpa. Seguiu ao Pitt e juntos percorreram o caminho molhado e semeado de folhas caidas em direção à casa do Lutterworth.

A criada os conduziu a saleta de estar, onde ardia um vivo fogo e havia um jarro com crisântemos dourados sobre o aparador Tudor. Nenhum dos dois tomou assento, embora passasse quase um quarto de hora até que apareceu Lutterworth, seguido por Flora, que levava um vestido azul escuro e tinha um aspecto pálido mas sereno. Olhou ao Murdo de forma fugaz e afastou os olhos com um tênue rubor de vergonha nas faces.

Murdo permaneceu em um penoso e amargo silêncio. Ansiava fazer algo por ajudá-la. Teria desejado golpear a alguém, ao Shaw, ao Lutterworth, por ter permitido que aquilo acontecesse e não havê-la protegido; e ao Pitt, por haver-se cegado em cumprir com seu dever sem pensar no caos que podia causar.

Por um instante odiou ao inspetor por permanecer alheio aos sentimentos, como se fosse insensível à dor. Mas então o olhou de esguelha e se deu conta de seu engano. O rosto do Pitt estava tenso. Lhe desenhavam sombras debaixo dos olhos e as finas linhas de seu rosto levavam marcas de sofrimento e de sua incapacidade para sair ileso.

Murdo suspirou e guardou silêncio.

Lutterworth os observava do outro extremo do tapete turco. Todos permaneciam de pé.

— Bem, do que se trata agora? Não sei nada que não lhes haja dito já. Não tenho a menor ideia de por que mataram ao pobre Lindsay, a não ser que o fizesse Shaw, se é que o velho adivinhou algo e tinha que silenciá-lo. Ou que não fosse esse estúpido do Pascoe porque pensou que Lindsay era um anarquista. Olhem este cavalo. - Apontou uma estilizada figura que descansava sobre a cornija da lareira. — Comprei-o com meus primeiros rendimentos anuais, quando o tear começou a ir bem. Consegui uma boa remessa de roupa e a vendemos no Cabo. Fizemos um bom dinheiro. Comprei esse cavalinho para recordar aqueles primeiros dias, quando Ellen, a mãe de Flora... - respirou fundo e exalou pouco a pouco para dar-se tempo a recuperar a compostura -, quando Ellen e eu começamos a nos cortejar. Não tínhamos carruagem. Costumávamos a sair a passear a cavalo, como esse daí, ela ia diante e eu atrás, e rodeando-a com os braços. Aqueles eram bons tempos. Cada vez que vejo este cavalo me lembro daquela época... como se ainda pudesse ver a luz do sol através das árvores sobre a terra seca e aspirar o aroma do feno, e ver as flores brancas nas sebes, e olhar o cabelo de minha Ellen, mais reluzente que o tronco de um castanheiro, e ouvir sua risada... - ficou imóvel, imerso nas lembranças. Ninguém queria ser o primeiro em perturbá-lo com a vulgaridade e a imediatez do presente. Finalmente foi Pitt quem rompeu o encanto, com palavras que Murdo não teria adivinhado.

— Que tipo de lembranças acredita que deviam vir à memória do senhor Lindsay ao contemplar seus objetos africanos, senhor Lutterworth?

— Não sei. - Lutterworth esboçou um sorriso melancólico. — Sua mulher, talvez. Isso é o que recordam a maioria dos homens.

— Sua mulher? - Pitt ficou perplexo. — Não sabia que Lindsay estivesse casado.

— Não... bom, não tinha por que sabê-lo. - Lutterworth lamentou um pouco sua imprudência. — Não o dizia a todo mundo. Morreu faz vinte anos, ou mais. Penso que por isso retornou. Não é que ele o dissesse, já me entende.

— Tinha filhos?

— Vários, acredito.

— Onde estão? Não se apresentaram. O testamento do Lindsay não os mencionava.

— Não teriam vindo. Estão na África.

— Isso não lhes impede de herdar sua parte.

— Herdar o que... Uma casa no Highgate e uns poucos livros e lembranças da África? - Lutterworth sorria com uma vaga satisfação interior.

— Por que não? Lindsay tinha muitíssimos livros, alguns de antropologia podiam lhes ter sido de grande valor.

— Não para eles. - Lutterworth esboçou um sorriso amargo.    

— Por que não? E além disso existe a casa.

— Do que ia servir a um negro que vive na selva. - Lutterworth olhou ao Pitt com aspereza ao mesmo tempo que lhe satisfez a surpresa que viu em seu rosto. — Sim, a mulher do Lindsay era africana, muito bonita, mas negra como seu chapéu. Uma vez vi um retrato seu. Ele me mostrou. Eu lhe falava de minha Ellen e ele me mostrou o retrato. Nunca tinha visto um rosto mais doce em minha vida. Teria sido incapaz de pronunciar seu nome, mesmo que ele o pronunciasse devagar, mas me disse que significava uma espécie de pássaro de rio.

— Sabia alguém mais?

— Nem idéia. Pode ser que o dissesse ao Shaw. Suponho que ainda não o prendeu, não é verdade?

— Papai! - recriminou-lhe Flora a seu pesar.

— Não quero ouvir nenhuma palavra, jovenzinha - respondeu Lutterworth com firmeza. — Já se fez bastante dano. Seu nome está na boca de todos. Todo mundo sabe como corria atrás dele como uma criada seduzida.

Flora corou enquanto procurava palavras para defender-se.

Murdo estava agonizante de impotência. Se Lutterworth o tivesse olhado nesse momento, teria percebido a fúria que desprendiam seus olhos, mas estava ocupado com o que considerava comportamento irresponsável de sua filha.

— O que quer de mim? - replicou ao Pitt. — Suponho que não será ouvir falar da esposa morta de Amos Lindsay... pobre criatura.

— Não. Na realidade vim para lhe perguntar a respeito de suas propriedades na cidade.

— Como? - Pegou-o despreparado. — Mas, em nome do céu, do que está falando? Que propriedades são essas?

— Bens imóveis, para ser exato. - Pitt o observava, mas nem sequer Murdo foi capaz de apreciar a mais mínima piscada de medo ou de compreensão no rosto do Lutterworth, e isso porque o agente tomou por aquele caso um interesse muito especial.

— Sou proprietário desta casa, do telhado aos alicerces, e do chão sobre o que se assenta. - Lutterworth adotou uma postura mais rígida e se encolheu de ombros. — E possuo também um par de fileiras de casas com terraço nos subúrbios do Manchester. Construí-as para meus trabalhadores. Isso fiz, sim senhor. E boas casas que são, sólidas como a terra que pisam. Não têm goteiras quando chove, as lareiras aquecem magnificamente e há uma privada no jardim traseiro de cada casa, com seu grifo de água. Com isso digo tudo.

— E essas são todas as propriedades que possui, senhor Lutterworth? – A voz do Pitt soava mais calma, um ponto aliviada inclusive. — Poderia prová-lo?

— Poderia se fosse necessário. - Lutterworth o olhava com curiosidade, com as mãos metidas nos bolsos. — Mas por que teria que fazê-lo?

— Porque a causa da morte da senhora Shaw, e do senhor Lindsay também, pode estar relacionada com a propriedade imobiliária de Londres - respondeu Pitt, e dirigiu um fugaz olhar a Flora.

— Que estupidez! Se quiser que lhe diga minha opinião, Shaw matou a sua mulher para ter as mãos livres para aproximar-se de minha Flora, e depois matou ao Lindsay porque este se inteiraria de seus propósitos. Talvez disse algo que o delatou, alguma fanfarronada, o que sei eu, iria muito longe sem dar-se conta. Que me crucifiquem se não quer casar-se com Flora... por meu dinheiro ou pelo que seja. Mas eu não a deixarei, e ele não será capaz de esperá-la até que eu me tenha ido, já me assegurarei eu.

— Papai! - Flora não pensava continuar calada, nem por discrição, nem por dever filial nem pela vergonha que fazia ruborizar-se. — Está dizendo coisas tão terríveis como falsas.

— Não penso admitir nenhuma discussão. - Olhou-a com as faces também encarnadas. — Vai dizer me que não esteve vendo-o, que não esteve entrando e saindo de sua casa quando achava que não a via ninguém?

Flora estava à beira das lágrimas, enquanto que Murdo estava em tensão como a ponto de intervir. Mas Pitt lhe lançou um olhar fulminante. Murdo estava tão desesperado que lhe doíam os músculos pelo esforço de conter-se, embora não soubesse nem o que dizer nem o que fazer. Tudo lhe parecia predeterminado por um fatalismo inexorável, como uma pedra que tivesse começado a rodar costa abaixo.

— Não houve nada ilícito. - Escolheu com cuidado suas palavras, enquanto procurava ignorar Pitt e Murdo, os dois intrusos que permaneciam calados como uma parte mais do mobiliário, e concentrar toda sua atenção em seu pai. — Se tratava de questões... privadas, nada mais.

O rosto do Lutterworth estava congestionado pela dor e fúria. Ela era a única pessoa que ficava no mundo, e agora se traiu a si mesma, o que lhe causava uma dor insuportável.

— Privadas? Quererá dizer secretas! - gritou dando um murro no espaldar de uma cadeira. — As mulheres decentes não penetram pela porta detrás das casas para ver os homens em segredo. Estava presente a senhora Shaw? Não me minta, mocinha. Estava ela na sala... todo o tempo?

A voz de Flora foi um sussurro quase inaudível:

— Não.

— Claro que não! - exclamou com uma mescla de angústia pela comprovação e ao mesmo tempo com uma espécie de triunfo irrisório pelo fato de que ao menos não lhe mentia. — Isso sei. Já sei que ela estava fora, porque meio Highgate sabe. Mas lhe digo bem claro, filha: não me importa o que diga todo Highgate, ou a sociedade londrina se for o caso, podem chamá-la o que sejam capazes de soltar por suas bocas. Não deixarei que se case com o Shaw... é minha última palavra.

— Eu não quero me casar com ele! - As lágrimas escorregavam por suas faces. Levou a mão à boca e mordeu o dedo, como se a dor pudesse aliviar sua angústia. — É meu médico!

— Também o meu. - Lutterworth não compreendeu o giro da discussão. — E nem por isso me arrasto atrás dele pelas portas traseiras. Vou vê-lo sem me ocultar, como um homem honesto.

— Você não tem os mesmos problemas que eu. - O pranto afogou sua voz. — Me disse que podia ir ver o sempre que me doesse... e ele...

— Que te doesse? - Lutterworth ficou paralisado. Toda sua ira se evaporou e ficou lívido. — Que te doesse o que? O que é o que te ocorre? - Deu um passo para ela como se tivesse medo de que fosse desabar-. Floresce? Flora, o que tem? Procuraremos os melhores médicos de toda a Inglaterra. por que não me havia dito isso, pequena?

Ela o rechaçou.

— Não se trata de nenhuma enfermidade. Só é... Por favor, me deixe! Não me envergonhe. Tenho que contar meus problemas mais íntimos diante de dois policiais?

Lutterworth se tinha esquecido do Pitt e Murdo. Voltou-se disposto a lhes jogar no rosto sua estupidez, mas recordou que era ele quem tinha pedido explicações a sua filha, não eles.

— Não tenho propriedades em Londres, senhor Pitt. E se quiser que o prove, asseguro-lhe que posso fazê-lo. - Adotou uma expressão de dureza e se plantou sobre ambas as pernas. — Minhas finanças estão ao seu dispor sempre que você quiser vê-las. Minha filha não tem nada que lhe dizer a respeito de sua relação com seu médico. É um assunto perfeitamente explicável, mas é privado, e deve conceder-se o privilégio de seguir sendo-o. Não atenta para nada contra a decência. – Olhou Pitt nos olhos, desafiante.       — Tenho certeza de que você não gostaria que os problemas médicos de sua mulher fossem objeto de conversa entre homens. Não sei nada mais no que pudesse lhe ajudar. Bom dia. - Deu um passo e fez soar a campainha para que a criada os acompanhasse à porta.

Pitt ordenou ao Murdo que fosse interrogar de novo aos que tinham sido criados de Shaw.

O mordomo seguia uma lenta recuperação mas já falava com maior lucidez. Agora podia recordar alguns detalhes nos quais lhe tinha sido impossível pensar por causa da dor e da comoção. E era possível que o criado do Lindsay se mostrasse mais comunicativo em uma segunda ou terceira tentativa. Pitt queria conhecer tudo o que soubesse aquele homem do Lindsay durante os dois últimos dias anteriores ao incêndio. Tinha que haver algo, uma palavra, uma ação, que o tivesse precipitado. Se reunisse peças soltas, era possível que todas juntas apontassem a uma resposta.

Por sua parte, Pitt voltou a visitar a pensão, onde pensava esperar Shaw todo o tempo necessário e lhe fazer todas as perguntas pertinentes até obter respostas. E para isso estava disposto a empregar todo o tempo que fora necessário e a ser tão brutal que fosse preciso.

A proprietária da casa estava acostumando-se a que se apresentasse gente perguntando pelo doutor Shaw, e que alguns deles queriam esperá-lo no salão até sua volta. Tratou ao Pitt com simpatia. Tinha esquecido quem era e tomou por um dos pacientes do doutor, sempre necessitados de uma palavra amável e de uma xícara de chá quente.

Aceitou ambas as coisas com um ligeiro remorso de consciência. Esteve esquentando-se junto ao fogo até que chegou Shaw, que fez uma entrada impetuosa. Depositou a maleta sobre a cadeira junto à escrivaninha, apoiou a bengala contra a parede, por ter esquecido pendurá-la no saguão, deixou o chapéu sobre a escrivaninha e deu o casaco à proprietária da casa, que estava esperando-o com efeito e recolheu o resto de seus trajes: cachecol, luvas, chapéu e bengala. Levou tudo com presteza, como se se tivesse tratado de um cliente.

Parecia ter desenvolvido por ele bastante afeição, apesar dos poucos dias que estava em sua casa.

Shaw olhou ao Pitt com certa surpresa e um pouco de receio, embora sem desagrado.

— Bom dia, Pitt, do que se trata desta vez? Descobriu algo novo? - ficou de pé, quase no centro da sala , com as mãos nos bolsos. Dava a impressão de estar a ponto de empreender uma ação para a que se requeria um intenso esforço. — E então? Fale já, homem. Que notícias traz?

Pitt desejou ter algo que lhe contar, para tranqüilidade do Shaw, mas também porque se sentia mal por não ter ainda a menor ideia de quem tinha provocado os incêndios nem por que, e por não saber ainda a ciência certa se a vítima perseguida tinha sido Shaw ou Clemency. Tinha começado por estar seguro de que era Shaw. Mas agora, talvez a causa do firme convencimento de Charlotte de que a causa eram as atividades de Clemency contra os senhores da miséria, suas próprias certezas fraquejavam. Mas não tinha sentido mentir. Era algo pouco honesto e nenhum dos dois o merecia.

— Receio que ainda não sei nada mais. -O rosto do Shaw se retesou e se apagou algo do entusiasmo de seus olhos. — Sinto muito - acrescentou com pesar. — As provas periciais não dizem nada, salvo que o incêndio se iniciou em quatro pontos em sua casa, e em três na do senhor Lindsay, e que utilizaram alguma tipo de azeite combustível, provavelmente o que se utiliza para os lampiões, que derramaram nas cortinas das salas do andar térreo, onde pegaria com rapidez. Das cortinas passou às janelas e logo aos móveis.

Shaw franziu o sobrecenho.

— Como entraram? Teríamos ouvido o ruído dos vidros quebrados. Eu certamente não deixei abertas as janelas do andar térreo.

— Não é muito difícil cortar o vidro. Pode fazer-se de forma bastante silenciosa se grudar um papel em cima com um pouco de cola. No jargão dos criminosos o chamam verniz de estrelas. Costumam utilizá-lo para passar a mão e abrir o fecho, não para verter azeite e jogar um fósforo aceso.

— Acredita que foi um vulgar ladrão que se converteu em assassino? – Shaw arqueou as sobrancelhas desconfiado. — Mas por que, pelo amor de Deus? Não tem sentido! - Havia decepção em seu rosto, dirigida sobre tudo para o Pitt por não ter sido capaz de averiguar nada.

Pitt se sentiu ferido em seu amor próprio. Embora Shaw pudesse ser o assassino, coisa que detestava pensar, ele continuava respeitando-o como pessoa e em retribuição esperava uma boa opinião.

— Não acredito que fosse um ladrão comum - se apressou a dizer. — A única coisa que digo é que cortar o vidro de uma janela sem fazer ruído é um método muito comum. Por desgraça, em meio de toda a massa de restos de vidros quebrados, tijolos, escombros e vigas de madeira foi impossível determinar se utilizaram ou não tal método. Tudo ficou pisoteado pelos bombeiros ou feito em pedaços pela demolição das paredes. Tampouco isso nos diria grande coisa sobre o criminoso, salvo que era um indivíduo bem preparado, tanto por suas habilidades como pelos materiais de que se servia... coisa que é óbvia de todo modo.

— Bem... - Shaw o olhava do outro extremo da estadia. — Se não sabe nada novo, para que veio? Não o terá feito só para me dizer isso, não é?

Pitt fez um esforço por conservar a calma, enquanto tratava de ordenar seus pensamentos.

— Deve haver algo que precipitasse o incêndio da casa de Amos Lindsay - começou com os olhos cravados nos do Shaw, ao mesmo tempo que tomava assento em uma das cômodas cadeiras, com o que dava entender que tinha a intenção de que o bate-papo fosse longo e minucioso. — Você esteve com ele nos dias que precederam. Se passou algo, você deve tê-lo advertido. Algo que pudesse agora recordar, se o tentasse.

O ceticismo se esfumou do rosto do Shaw e em seu lugar apareceu uma expressão reflexiva que logo se converteu em profunda concentração. Sentou-se na cadeira de frente e cruzou as pernas, olhando ao Pitt com os olhos entrecerrados.

— Acredita que queriam matar ao Lindsay e não a mim? - Uma fugaz emoção cruzou por seu rosto, entre a esperança de ver-se livre de parte da culpa, e a sombra de uma violência e forças escuras insuspeitadas até esse momento.

— Não sei. - Pitt torceu a boca em uma careta que pretendeu ser um sorriso irônico. — Há várias possibilidades. - Decidiu correr o risco de ser sincero. Mesmo assim pensou se podia obter benefícios do engano, mas Shaw não era pessoa confiante nem bastante inocente para cair nele. — É provável que o primeiro incêndio estivesse dirigido contra a senhora Shaw, e o segundo por causa de que você ou Lindsay teriam descoberto quem tinha perpetrado o primeiro ou temiam que o descobrissem...

— Eu certamente não! Se tivesse descoberto o teria dito. Pelo amor de Deus, o que pretende...? Oh! - afundou-se no assento. — Claro, compreendo-o... você tem que suspeitar de mim. Seria uma negligência se não o fizesse. - Disse-o como se ele mesmo não pudesse acreditar, como se estivesse repetindo uma brincadeira de mau gosto. — Mas por que ia querer matar ao pobre Amos? Era quase o melhor amigo que tinha. - De repente sua voz desfaleceu e afastou a vista para ocultar a emoção que lhe embargava.

     Se estava atuando, o fazia de forma soberba. Mas Pitt tinha conhecido o caso de outros homens que tinham matado a seres queridos com o fim de salvar sua própria vida. Não foi capaz de economizar ao Shaw a única resposta lógica.

— Porque durante o tempo em que esteve vivendo em sua casa pôde você dizer ou fazer algo que o delatasse ante seu amigo. E ao dar-se conta de que ele sabia tudo, você teve que matá-lo, pois não podia confiar em que guardasse silêncio... ou ao menos não para sempre, e ia a forca nisso.

Shaw abriu a boca para protestar, mas empalideceu ao dar-se conta da terrível lógica daquela dedução. Não podia rechaçá-la sem mais como absurda, por isso as palavras o abandonaram antes de pronunciá-las.

— Outra possibilidade - continuou Pitt — é que você dissesse algo que lhe levasse a saber, ou a deduzir, quem era o culpado, e que não o mencionasse a você. A pessoa em questão se inteirou de que Lindsay sabia (talvez fez indagações, ou chegaram a encontrar-se frente a frente), e o matou para proteger-se.

— Mas o que diz, pelo amor de Deus? - Shaw se endireitou no assento. — Se eu houvesse dito algo que tivesse arrojado alguma luz no assunto, ele me teria feito ver isso no mesmo instante, e logo teríamos informado a você.

— O teriam feito? Embora tivesse concernido a algum de seus pacientes? Ou a alguém a quem você considerasse um amigo íntimo... ou inclusive a um familiar? - Não precisava acrescentar que Shaw estava relacionado em maior ou menor grau com todos os Worlingham.

Shaw trocou de postura na cadeira, apoiando suas fortes e belas mãos nos braços da mesma. Ambos guardaram silêncio, embora continuassem olhando-se nos olhos. As conversas mantidas recentemente pareciam estar presentes entre eles como entidades vivas: a insistência do Pitt em que Shaw revelasse algum dado profissional que pudesse apontar para algum motivo, a firme e inquebrável negativa do Shaw.

Shaw falou por fim de forma pausada, com uma voz suave e cuidadosamente controlada.

— Acredita que teria dito a Amos algo que não disse a você?

— Duvido que dissesse a ele algo que considerasse uma confidência - respondeu Pitt com franqueza. — Mas sim, pode ter falado com ele de muito mais coisas que comigo. Você era hóspede de sua casa, e eram amigos. - Viu de novo a angústia cruzar pelo rosto do Shaw e lhe custou imaginar que não era real. Mas as emoções são muito complexas, e às vezes o instinto de sobrevivência pode com as mais profundas. — Na conversa comum é fácil deixar cair uma palavra no transcurso da jornada, ou uma expressão de triunfo pelo restabelecimento de um paciente, ou por sua recaída, e comentar em outro momento onde esteve... Há muitas coisas díspares que somadas podiam lhe haver feito vislumbrar algo. Talvez não fosse nada definitivo, a não ser uma pista que se propôs seguir... e ao fazê-lo pôs de sobreaviso o assassino.

Shaw estremeceu.

— Acredito que estimava a Amos Lindsay como a qualquer outro homem vivo – disse. — Se soubesse quem o queimou em sua própria casa, entregaria-o à lei para que o castigassem devidamente. - Afastou os olhos para ocultar a ternura que aparecia em seu rosto. — Era um homem bom. Sensato, paciente, honesto, não só com outros mas também consigo mesmo, coisa muito incomum, e generoso em seus julgamentos e intenções. Nunca o ouvi emitir um julgamento desconsiderado ou mal-intencionado por outro homem. E não havia nele um ápice de hipocrisia. - Olhou de novo ao Pitt, de forma direta e premente. — Odiava a mentira e não tinha medo de chamar as coisas por seu nome. Meu Deus, quanto vou sentir sua falta. Era o único homem deste lugar com o que podia falar durante horas sobre qualquer assunto, fossem novas idéias em medicina, velhas idéias em arte, teoria política, ordem e mudança social. - Esboçou um súbito sorriso, uma luminosa expressão de alegria tão frágil como a luz do sol. — Sobre um bom vinho ou um bom queijo, ou sobre uma mulher formosa, sobre ópera ou sobre um bom cavalo... Podia falar também com ele de outras religiões, ou dos costumes de outros povos, sem ter medo de dizer exatamente o que pensava.

Se reclinou na cadeira e juntou os dedos de ambas as mãos.

— Isso não posso fazer com nenhuma outra pessoa por aqui. Clitheridge é um idiota de arremate incapaz de expressar uma idéia própria sobre nada. - Bufou. — Aterroriza-o ofender. Josiah tem algo que dizer sobre tudo, em especial se se tratar de falar do velho bispo Worlingham. Ele também quis tomar os hábitos, sabia? - Olhou ao Pitt com expressão zombadora, para ver que efeito produzia nele aquela idéia e se tirava as mesmas implicações. — Estudou com o velho bastardo, tomava tudo o que ele dizia como se fosse a escritura sagrada, adotou por inteiro sua filosofia, como um traje de confecção. Também terá que reconhecer que lhe ajustava ao milímetro. - Fez uma careta. — Mas era o único filho varão, e seu pai tinha um negócio florescente do qual lhe pediu que se fizesse encarregado ao cair doente. Pobre Josiah. A mãe e as irmãs dependiam dele, não teve escolha.

Suspirou sem deixar de olhar ao Pitt.

— Mas nunca perdeu a paixão pelos assuntos de Igreja. Quando morrer nos aparecerá com mitra e batina, ou com hábito de dominicano. Para ele, todo raciocínio é uma heresia. E depois há Pascoe, grande fóssil. Mas em troca suas idéias estão envoltas no romantismo da Idade Média, ou para ser mais exatos na época do rei Artur, de Lancelot, da Chanson de Roland e de toda essa épica tão bela mas tão irreal. Quanto ao Dalgetty, é um homem cheio de idéias, mas sua luta em favor da liberdade de pensamento é tão furiosa que parece uma cruzada, e me dá vontade de adotar uma posição contrária embora só seja por espírito crítico. Maude tem mais senso comum. Conhece-a? Uma mulher fantástica. - Esboçou um amplo sorriso como se tivesse encontrado por fim algo que o agradasse de verdade, algo bom sem mais. — Em sua juventude foi modelo de artistas, sabia? Tinha um corpo magnífico, embora nunca o exibia com paquera. Mas todo isso se foi ao conhecer o Dalgetty e converter-se em uma mulher respeitável... coisa que sempre foi. Contudo, nunca perdeu sua facilidade para relativizar as coisas nem seu senso de humor, nem voltou as costas a suas antigas amizades. Ainda continua indo ao Mele End de vez em quando para lhes levar presentes.

Pitt ficou atônito, não só pelo fato em si, mas também porque Shaw soubesse e agora o dissesse a ele.

Shaw observava-o e parecia rir por dentro ante a surpresa que lhe tinha provocado.

— Sabe disso Dalgetty? - perguntou Pitt ao cabo de uns segundos.

— Oh, sem dúvida. E não lhe importa absolutamente, dito seja em sua honra. Como é natural, tampouco o divulga, mais que nada por ela, quem não pretende outra coisa que ser a mulher respeitável que aparenta. Se a sociedade do Highgate soubesse, crucificaria-a. Eles perderiam. Vale mais que todos juntos. E por divertido que pareça, Josiah, apesar de sua estreiteza de miras, sabe. E a admira por isso como a um santo de estuque. Deve haver alguma parte boa em seu entendimento, depois de tudo.

— E como se inteirou você de que tinha sido modelo? - perguntou Pitt, enquanto sua mente procurava explicações e tratava de encaixar aquela nova peça do quebra-cabeças sem que nada do resto perdesse seu sentido, coisa que não obteve. Era concebível que Dalgetty tivesse tentado matar ao Shaw para manter aquilo em segredo? Não parecia um homem que se preocupasse muito por sua posição social, bastante a comprometia já com seus artigos de tom liberal. Mas embora esta atitude estivesse de moda em determinados círculos literários, não era o mesmo posar nua para ser retratada por homens jovens. Era possível que amasse tanto a sua mulher que estivesse disposto a matar para preservar a respeitabilidade de que desfrutava?

— De forma acidental. - Shaw o olhava com olhos divertidos. — Assisti a um artista que estava passando por um mau momento e que me quis pagar com um quadro de Maude. Não o aceitei, mas teria gostado de tê-lo feito. Além do gracioso da situação, era muito bom. Mas se levasse isso a casa podia vê-lo alguém. Santo céu, era uma autêntica beleza. Ainda o é, para ser sincero.

— Sabe Dalgetty que você sabe?

— Não tenho nem idéia. Maude sim, o disse eu.

— E se sentiu alarmada?

— A princípio um pouco perturbada, mas em seguida soube tomá-lo pelo lado cômico, pois se deu conta de que eu não o diria a ninguém.

— Disse-me - indicou Pitt.

— Você não pertence à sociedade do Highgate. - Shaw seguia sendo brusco como sempre, mas não havia crueldade em sua expressão. A sociedade do Highgate não era algo que ele admirasse, assim não considerava uma falta de privilégio o estar excluído dela. — E não me parece um homem que vá arruinar a reputação de uma mulher por simples malevolência... ou por bater a língua.

Pitt sorriu.

— Obrigado, doutor - disse com ironia não dissimulada. — E agora eu gostaria que concentrasse sua atenção nos poucos dias que passou em casa do senhor Lindsay, sobre tudo nas últimas vinte e quatro horas antes do incêndio. Recorda alguma conversa mantida com ele sobre o primeiro incêndio, ou a respeito da senhora Shaw, ou sobre qualquer pessoa que pudesse ter uma remota razão para matá-la a ela ou a você?

Shaw adotou um semblante sombrio e o brilho da ironia se esfumou de seus olhos.

— Isso inclui quase a todo mundo, pois não tenho a menor ideia de quem pudesse me odiar até o ponto de ver-me carbonizado. Claro que tive disputas com pessoas, quem não? Mas ninguém em seu são julgamento guarda rancor a alguém por uma diferença de opinião.

— Não falo de idéias gerais, doutor. - Pitt desejava que se concentrasse. A resposta podia estar em sua memória. Havia algo que tinha desencadeado na mente de um assassino a necessidade de proteger-se de uma forma tão violenta que o tinha levado a arriscar-se a matar de novo. — Pense nos pacientes a quem visitou naqueles dias. Talvez fizesse constar algo em suas notas, se é que não pode recordá-lo. Quantas vezes entrou e saiu, quando comeu. Do que falaram na mesa. Pense!

Shaw se reclinou na cadeira, com o olhar em um ponto fixo, em um esforço de concentração. Pitt não quis interrompê-lo nem insistir.

— Lembro que Clitheridge veio na quinta-feira - disse Shaw por fim. — A última hora da tarde, quando estávamos a ponto de jantar. Eu tinha estado fora visitando um paciente. Tinha muita dor. Sabia que lhe passaria ao cabo de um momento, mas teria gostado de fazer algo mais para aliviá-lo. Voltei para casa muito cansado e a última coisa que gostava era escutar as pérolas do vigário. Temo que fui um pouco brusco com ele. Tem boa intenção, mas nunca chega a nada. Dá voltas e mais voltas às coisas sem dizer nunca o que quer. Às vezes me pergunto se em realidade tem algo que dizer, ou se não pensa nada mais que as imbecilidades que repete nas homilias. - Fungou. — Pobre Lally.

Pitt deixou que levasse todo tempo para continuar.

— Amos se comportou com ele com educação. - Shaw se tomou só um momento.   — Acredito que me repreendeu por meus enganos e omissões continuados, sobre tudo nas últimas semanas. - De novo se refletiu em seu rosto uma profunda dor e Pitt, sentado tão perto dele, sentiu-se como um intruso. Shaw inalou profundamente. — Clitheridge partiu tão logo estimou completo seu dever. Não recordo que falássemos de nada em particular. Não estava escutando em realidade. Mas me lembro que no dia seguinte, no dia anterior ao incêndio, vieram Pascoe e Dalgetty, porque Amos me comentou isso durante o jantar. Tinham ido falar daquela maldita monografia, claro. Dalgetty queria que escrevesse outra, mais longa, sobre a nova ordem social, e que toda ela girasse em torno do mensagem essencial de que a liberdade para explorar a mente é a coisa mais sagrada que existe, e que o conhecimento pelo conhecimento é o mais santo que há e um direito divino de todo homem. - Voltou a inclinar-se enquanto escrutinava o rosto do Pitt para ver sua reação. Pareceu não ver outra coisa que interesse, assim continuou mais calmo. — Pascoe é claro lhe disse que era um irresponsável, que o que fazia era debilitar a malha social da cristandade e alimentar com idéias perigosas a pessoas que nem sabiam apreciar tais idéias nem saberiam o que fazer com elas. Parecia acreditar que Amos estava semeando sementes de revolução e anarquia, no que havia algo de verdade. Acredito que Dalgetty se sentia atraído pela Fabián Society e suas idéias a respeito da propriedade coletiva dos meios de produção e sobre a remuneração mais ou menos eqüitativa de todos os trabalhos - soltou uma sonora risada, — com a exceção das mentes privilegiadas, é claro, quer dizer filósofos e artistas.

Pitt se viu obrigado a sorrir por sua vez.

— Ao Lindsay interessavam também essas idéias?

— Interessar, sim. Que estivesse de acordo, duvido-o. Mas aprovava suas convicções a respeito da expropriação do capital que perpetúa as extremas diferenças entre as classes enriquecidas e os trabalhadores.

— Brigou com o Pascoe? - Parecia um motivo muito remoto, mas não podia passá-lo por alto.

— Sim... mas acredito que houve mais ruído que nozes. Pascoe é um cavalheiro andante por natureza. Sempre anda procurando causas contra as que bater-se... moinhos de vento mais que nada. Se não tivesse sido com o pobre Amos, teria sido com outro.

A vaga aparência de motivo acabou por dissipar de tudo.

— Houve outras visitas que você saiba?

— Somente Oliphant, o padre. Veio para ver-me. Aparentou que se tratava de uma visita obrigatória para saber se estava bem, e acredito que sua preocupação era sincera. É um bom tipo. Acredito que quanto mais o vejo mais gosto dele. A verdade é que nunca me tinha fixado muito nele antes, mas a maioria dos paroquianos falam bem dele.

— Pelo que disse, lhe pareceu que o motivo de sua visita era outro que o que fez ver.

— Bom, sim... Fez-me algumas pergunta sobre o Clemency e seu trabalho social com respeito às casas da miséria. Queria saber se ela me havia dito algo a respeito de seus lucros. Claro que obtinha coisas. Nem sempre, nem todo dia, mas sim de vez em quando. Em realidade podia fazer pouco. São pessoas muito poderosas as que possuem a maior parte das ruas mais miseráveis e mais rentáveis. Financeiros, industriais, membros da alta sociedade, antigas famílias...

— Falou-lhe de alguma pessoa em concreto que você pudesse haver repetido ao Oliphant, e este ao Lindsay? - Pitt caçou ao vôo a possibilidade, por remota que fosse, e o rosto de Charlotte apareceu em sua mente. Olhava-o com um brilho nos olhos e o queixo alto, decidida como estava a seguir os passos do Clemency.

Shaw esboçou um triste sorriso.

— Pois não me lembro, sinto muito. Não prestei muita atenção. Tentei me mostrar educado porque ele tomava com seriedade e preocupação, mas pensei que perdia o tempo... o seu e o meu. - Franziu as sobrancelhas. — De verdade pensa que Clemency chegou a supor uma ameaça para alguém? Não tinha a menor oportunidade de conseguir que se promulgasse uma lei pela que pudesse revelar o nome dos proprietários das casas da miséria. O mais que podia ter conseguido é que algum industrial ofendido a demandasse por difamação...

— Coisa que você não teria gostado - indicou Pitt. — Poderia lhe haver custado tudo o que possui, incluída sua reputação, e provavelmente seu estilo de vida.

Shaw soltou uma risada amarga.

— Touché, inspetor. Isso tem pinta de um motivo perfeito para mim... Mas se pensar que ela teria podido fazer uma coisa assim, me deixando a mim exposto a um risco como esse, é que não conhecia Clem. Não era nenhuma idiota, compreendia muito bem o que significava o dinheiro e a reputação. - Brilhavam-lhe os olhos com uma ironia triste próxima às lágrimas. — Muito melhor do que ninguém pode ser capaz de entender. Nunca compreenderá você como sinto falta dela... E por que teria que explicar-lhe? Faz muito que deixei de estar apaixonado por ela, mas acredito que a queria muito mais que a ninguém que tenha conhecido jamais, incluído Amos. Ela e Maude eram boas amigas. Sabia tudo a respeito de sua antiga atividade como modelo, e lhe importava um nada. - Ficou de pé lentamente, como se lhe doesse todo o corpo. — Sinto muito, Pitt. Não tenho idéia de quem matou ao Clem, nem a Amos. Mas se a tivesse o diria imediatamente; No meio da noite, se assim se atravessasse. Agora será melhor que vá pinçar em outra parte. Tenho que comer algo e depois tenho que fazer algumas visitas mais. Os doentes não esperam.

Na manhã seguinte, Pitt se sobressaltou por uns imperiosos golpes à porta de sua casa, tão peremptórios que deixou cair a torrada com geléia e se levantou da cadeira da cozinha para percorrer veloz o corredor em apenas seis passadas. Como um pesadelo, formou-se imediatamente em sua mente o horror do fogo e lhe assaltou a amarga premonição de que esta vez devia tratar-se da hospedaria e que a aquelas horas o amável padre que sempre achava as palavras adequadas para compadecer da dor alheia devia estar reduzido a cinzas. A angústia foi quase insuportável.

Abriu a porta e viu o Murdo no degrau da entrada, molhado e desolado à luz do amanhecer que despontava. O lampião de gás situado atrás dele e um pouco à esquerda emoldurava como um leve halo na bruma.

— Sinto incomodá-lo, senhor, mas pensei que devia dizer-lhe só se por acaso tem algo que ver com o caso... senhor - disse com estupidez.

Aquelas palavras, sem mais explicação, pareciam ter sentido para ele.

— Do que está falando? - perguntou-lhe Pitt, com um vislumbre de esperança de que não se tratasse desta vez de nenhum incêndio.

— Do enfrentamento, senhor. - Murdo se balançava de uma perna a outra. Era evidente que desejava não estar ali. O que lhe tinha parecido a princípio uma boa idéia, agora lhe parecia mal. — O senhor Pascoe e o senhor Dalgetty. Este disse ontem à noite ao sargento de guarda da delegacia de polícia, mas eu me inteirei faz apenas meia hora. Vê-se que não tomaram muito a sério...

— De que enfrentamento fala? - Pitt pegou o casaco do varal junto à porta. — Se brigaram ontem à noite, não podiam ter esperado que acabassem de tomar o café da manhã? - Franziu o sobrecenho. — O que passou com esse enfrentamento? Teve feridos? - Achou a idéia absurda e até um pouco divertida. — Tão grave foi? Sempre se estão brigando... parece formar parte de seu modo de vida. É como se lhes desse uma espécie de justificação.

— Não, senhor. - Murdo parecia cada vez mais desamparado. — Planejam enfrentar-se esta manhã... à alvorada, senhor.

— Não seja ridículo! Quem em seu são juizo quereria levantar-se da cama antes do amanhecer só para brigar com alguém? Alguém o fez objeto de uma brincadeira pesada -voltou-se para pendurar o casaco.

— Não, senhor. Brigar já brigaram ontem. Hoje planejaram enfrentar-se em duelo à saída do sol... nos campos que há entre o Highgate Road e o cemitério. Um duelo a espada.

Pitt se aferrou durante um instante de desespero à idéia da brincadeira pesada, mas ao observar o rosto do Murdo teve que aceitar que não o era, e não pôde conservar a calma.

—Por todos os diabos! - exclamou furioso. — Temos duas casas reduzidas a escombros, os corpos calcinados de duas pessoas boas e valorosas, há outras pessoas que sofrem e que estão aterrorizadas por isso, e agora dois malditos idiotas querem bater-se em duelo por culpa de um estúpido pedaço de papel. — Voltou a pegar o casaco e empurrou ao Murdo para o meio-fio enquanto fechava a porta de repente. A carruagem de aluguel na qual tinha vindo Murdo estava a uns metros. — Vamos! - Pitt abriu a portinhola de um puxão e subiu. — Ao Highgate Road! Vou ensinar a esse par de galos de briga o que é uma briga de verdade! Prenderei-os por alterar a ordem pública!

Murdo se acomodou junto a ele e balançou quando a carruagem ficou em movimento; pegou a porta bem a tempo de evitar que se abrisse pelo ímpeto.

— Espero que não lhes tenha dado tempo de fazer-se dano - disse sem convicção.

— Pior para eles. - A Pitt não davam nenhuma pena. — Seria bem merecido se se transpassassem um ao outro como espetinhos! - E viajou o resto do trajeto resmungando em silêncio, sem que Murdo se atrevesse a aventurar mais comentários.

A carruagem se deteve por fim de forma brusca e Pitt abriu a porta com fúria e saltou fora, deixando que Murdo pagasse a corrida. Dirigiu-se a bom passo pelo caminho que levava ao campo ermo, Highgate Road à esquerda e a parede do magnífico cemitério à direita. A trezentos metros diante dele, separadas a distâncias irregulares sobre a erva, viu na distância as achatadas silhuetas de cinco pessoas.

Distinguiu a robusta figura do Quimón Pascoe, com os pés um pouco separados. Tinha uma capa jogada sobre um ombro e o sol do amanhecer, frio e claro como a água de manancial, reverberava sobre sua branca cabeleira. diante dele, o orvalho se acumulava nas inclinadas folhas de erva e lhes conferia uma estranha tonalidade turquesa ao refratá-la luz nelas.

A não mais de seis ou sete metros de distância, John Dalgetty, com sua cabeça morena e de costas ao sol, permanecia imóvel com um braço para trás e no outro brandindo um longo objeto como se estivesse a ponto de lançar uma carga. Pitt pensou a princípio que se tratava de uma bengala. A cena inteira era ridícula. Pôs-se a correr para eles com toda a velocidade que lhe davam suas longas pernas.

De pé em um segundo plano estavam dois cavalheiros com jaqueta negra, um pouco separados um do outro. Presumivelmente atuavam como padrinhos. Outro homem, que se tinha despojado do casaco (sem motivo aparente, por quanto era uma manhã bastante fria), permanecia em mangas de camisa e gritou algo ao Pascoe e logo ao Dalgetty. Pitt ouviu sua voz, mas não distinguiu as palavras.

Com um amplo gesto do braço Pascoe deixou cair a capa no chão, sem preocupar-se de que estivesse molhado. Seu padrinho se apressou a recolhê-la e sustentá-la diante dele, a modo de escudo.

Dalgetty, que não levava capa, deixou-se o casaco posto. Hasteou de novo a bengala, ou o que fosse, e ao grito de "Liberdade!" jogou-se à corrida.

— Honra! - gritou por sua vez Pascoe, e brandiou também um objeto longo e se jogou.

O encontro produziu um sonoro choque e Dalgetty escorregou na erva molhada.

Pascoe se revolveu com prontidão e por muito pouco não lhe trespassou o peito.

O que conseguiu foi lhe fazer um longo rasgão na jaqueta e, em conseqüência, enredá-lo ainda mais. Pitt podia ver agora que o que empunhava Dalgetty era uma bengala com lança, com o que deu em Pascoe um mau golpe em um ombro.

— Detenham-se! - vociferou Pitt. Corria para eles, mas ainda estava a uns cem metros dos duelistas e ninguém lhe prestou atenção. — Detenham-se imediatamente!

Pascoe ficou uns segundos imóvel, não pelo Pitt mas sim pelo golpe, que devia lhe arder. Logo retrocedeu um passo e gritou:

— Em nome da cavalaria! - E deu um golpe lateral com seu velha e romana espada, possível relíquia mau cuidada da batalha do Waterloo ou de alguma outra pelo estilo.

Dalgetty, com uma bengala com lança moderna, bicuda como uma agulha, parou o golpe com tal fúria que o mal conservado metal se partiu pela metade e saltou pelos ares desenhando um arco até ir lhe dar na face, com tão má fortuna que o sangue lhe salpicou até o peitilho do casaco.

— Velho louco! - replicou-lhe, entre perplexo e furioso. — Beato fossilizado! Ninguém pode resistir ao avanço do progresso! Uma mente medieval como a tua nunca poderá deter nenhuma só das boas idéias que trouxeram os novos tempos! Acredita que pode aprisionar a imaginação do homem com suas idéias fossilizadas! Que estupidez tão ridícula! - Lançou a espada quebrada para frente com tanta fúria que o sibilante som que produziu pôde ouvi-lo Pitt, por cima inclusive do ofego de sua própria respiração e o ruído surdo de seus passos. Não deu em Pascoe por centímetros.

Pitt tirou o casaco e o jogou contra Dalgetty.

— Detenha-se! - bramou enquanto o pegava pelo braço e ambos rodavam pelo chão. Sua espada quebrada brilhou no ar antes de cair a terra, a dez metros de distância. Pitt se levantou e fez caso omisso de Dalgetty, aproximando-se disposto a um desarmado, aturdido e perplexo Pascoe.

Já então Murdo tinha pago ao cocheiro e corria para eles atrevessando o campo. Ficou sem fala ante o espetáculo, incapaz de saber o que fazer.

Pitt olhou para Pascoe.

— Que demônios estão fazendo? - perguntou gritando. — Já morreram duas pessoas, sabe Deus obra de quem, nem por que motivo... E agora vocês dois tentam matar-se por culpa de uma estúpida monografia que ninguém vai ler! Vou deter aos os dois por assalto a mão armada!

Pascoe estava visivelmente ultrajado. O sangue lhe supurava através da gravata e se estendia pelo ombro da camisa. Seu rosto denotava às claras que lhe doía.

— Duvido que possa fazer isso! - replicou em voz alta e aguda. — Se trata de uma diferença de opinião entre cavalheiros! - Fez um brusco gesto com a mão. — Dalgetty é um profanador de valores, um homem sem critério nem discrição. Dedica- se a propagar as idéias mais vulgares e destrutivas e aquilo que ele considera a causa da liberdade, mas que não é outra coisa que licenciosidade, indisciplina e o triunfo das posturas mais espantosas e perigosas. - Movia os braços, com risco para Murdo, que enquanto isso se aproximou. — Mas não penso apresentar nenhuma queixa contra ele. Tinha toda minha permissão para me atacar, assim não pode prendê-lo - concluiu com ar triunfal e olhando ao Pitt com um peculiar brilho em seus olhos.

Dalgetty ficou penosamente em pé, apoiando-se no Pitt e com a face ensanguentada.

— Eu tampouco apresentarei queixa alguma contra o senhor Pascoe – disse agarrando um lenço. — É um incauto e um velho louco ignorante que quão único quer é proscrever qualquer idéia que não tenha suas raízes na Idade Média. Eliminaria toda liberdade nas idéias, todo vôo da imaginação, qualquer descobrimento novo. Ainda quereria que acreditássemos que a terra é plana e que o sol gira a seu redor. Mas não penso acusá-lo de me haver atacado... atacamo-nos mutuamente. Não é você mais que um intrometido em assuntos que não são de sua incumbência. É você quem nos deve uma desculpa, senhor!

Pitt se tinha ficado lívido. Mas sabia que sem uma denúncia não tinha possibilidade de levar adiante prenda alguma.

— Justamente o contrário - disse com súbito desprezo. — São vocês os que me devem gratidão por ter evitado que se ferissem de gravidade, de forma fatal possivelmente. Se forem capazes de recuperar por um momento o juizo, pensem no ato irreparável que estiveram a ponto de cometer contra as causas que tanto defendem... para não falar de suas próprias vidas.

A possibilidade, em que resultava claro que nenhum deles tinha pensado, sufocou o seguinte arranque antes que se produzisse. Quando um dos padrinhos se aproximou nervoso, Pitt lhe fez um gesto com a mão para detê-lo e lhe recriminar sua temeridade.

Mas antes de que pudesse reatar sua repreensão, o outro padrinho gritou apontando em direção ao Highgate, de onde avançavam para eles cinco figuras. Em primeiro lugar se distinguia claramente apesar da distância ao vigoroso Stephen Shaw, com o braço oscilante, uma maleta negra na mão e as abas do casaco ao vento. Atrás dele avançava a grandes passadas a desajeitada figura do Héctor Clitheridge, e correndo atrás dele, agitando os braços e chiando, sua mulher Eulalia.

Algo mais afastado lhes seguia uma figura com cachecol e chapéu que Pitt supôs ser Josiah Hatch, embora estivesse muito longe para distinguir os traços. E a mulher que ia atrás dele, quase correndo, devia ser Prudence.

— Graças a Deus - exclamou um dos padrinhos. — O doutor...

— E por que não o chamou antes de que começasse o duelo, burrico incompetente? - gritou-lhe Pitt. — Se queria atuar de padrinho em um duelo, devia tê-lo feito como é devido, ao menos!

O homem se sentiu ofendido pela injustiça que se fazia, embora compreendesse com pavor que Pitt tinha razão.

— Porque meu defendido me proibiu isso - se justificou com atitude digna.

— Com certeza que assim foi - concordou Pitt olhando ao Dalgetty, que agora deixava que o sangue brotasse livre e tinha o rosto muito pálido; e depois olhou ao Pascoe, que segurava o braço sem forças e se pôs a tremer pelo frio e a comoção.          — Sabiam muito bem que ele teria impedido esta estupidez!

Enquanto falava, Shaw chegou à cena e ficou olhando aos dois homens feridos, e depois a Pitt.

— Consumou-se algum crime? - perguntou com brusquidão. — Algum destes enganadores - agitou os braços, deixando cair a maleta chão — necessita um testemunho legal?

— Não a menos que queiram denunciar-se mutuamente - disse Pitt com desgosto. Nem sequer podia acusá-los por alteração da ordem, por quanto estavam fora da demarcação vicinal, no meio de um campo baldio. O resto dos habitantes do Highgate deviam estar tomando o café da manhã tranqüilamente em suas casas, servindo o chá, lendo os jornais da manhã, por completo alheios a aquela pendência.

Shaw olhou aos dois opositores e decidiu que era Dalgetty o mais necessitado de atenção, pois parecia quase em estado de choque, enquanto que Pascoe só tinha uma forte dor, de modo que pôs mãos à obra. Não tinha feito mais que abrir a maleta quando chegou Clitheridge, preso de uma total confusão.

— Mas o que aconteceu? Há alguém ferido?

— Pois claro que há alguém ferido, idiota! - exclamou Shaw. — Ajude-o a levantar-se. - Apontou ao Dalgetty, que estava coberto de sangue e começava a fraquejar como se fosse desmaiar.

     Clitheridge obedeceu com um gesto de alívio, feliz de ter por fim uma tarefa concreta que fazer ele só. Agarrou ao Dalgetty, que se apoiou nele penosamente.

— O que aconteceu? - Clitheridge fez um último esforço por compreender, por quanto era seu dever espiritual. — Foi um acidente?

Lally tinha chegado até eles e compreendeu a situação imediatamente.

— Oh, mas que estupidez é esta - disse exasperada. — Nunca pensei que pudessem ser tão infantis... Fizeram mal de verdade o um ao outro. Acaso isto prova qual dos dois tem razão? A única coisa que prova é que ambos os são mais teimosos que uma mula. Coisa que todo Highgate sabia já. - Voltou-se para o Shaw, com um ligeiro rubor nas faces. — No que poderia ajudar, doutor? - Josiah Hatch também tinha chegado até eles, então, mas não lhe fez caso. — Necessita trapos? - Olhou na maleta do médico, mas reparou na extensão das manchas de sangue, que se faziam maiores a cada minuto. — E água, ou brandy?

— Não, ninguém vai perder a consciência - disse o médico de forma cortante olhando ao Dalgetty. — Pelo amor de Deus, deixe-o no chão! - ordenou ao Clitheridge, que estava carregando com o Dalgetty quase a peso. — Lally, por favor, traga mais trapos. Será melhor que lhes faça um torniquete antes de removê-los. Álcool para desinfetar as feridas já tenho.

Prudence Hatch chegou sem fôlego e ofegante.

— Isto é horroroso! Que demônio os possuiu? Como se não tivéssemos já muitas coisas que lamentar.

— Um homem que acredita em seus princípios se vê obrigado às vezes a brigar por eles - disse Josiah com severidade. — O preço da virtude é a eterna vigilância.

— O da liberdade - o corrigiu sua esposa.

— Como? - respondeu ele franzindo o sobrecenho.

— O preço da liberdade é a eterna vigilância. Disse "da virtude". - Sem que ninguém o tivesse pedido, tinha tirado um pedaço de tecido da maleta do Shaw, para desdobrá-lo e empapá-lo em álcool. — Sente-se! - ordenou ao Pascoe.

Assim que ele obedeceu, ela afastou a amarrotada roupa e depois limpou o sangue até que pôde ver o irregular rasgão na carne. Então lhe aplicou a parte de tecido e apertou com firmeza.

Ele franziu o sobrecenho e soltou um grito, mas ninguém lhe fez o menor caso.

— A liberdade e a virtude não são coisas iguais - argumentou Hatch com ardor. Tinha o rosto concentrado e os olhos lhe brilhavam. Era evidente que para ele aquela questão era muito mais importante que os efêmeros arranhões do duelo. — Para defender isso é precisamente pelo que o senhor Pascoe pôs sua vida em jogo!

— Bobagens! - replicou Shaw. — A virtude não corria nenhum perigo... E ficando a brincar com espadas no meio do campo não ia defender grande coisa.

— Não há forma legal de proteger-se contra as perniciosas opiniões e as perigosas idéias que esse homem propaga! - gritou Pascoe por cima das instruções que ia dando Prudence.

Lally se dirigia já para o caminho principal, em busca do que lhe tinham pedido. Sua erguida figura, com os ombros jogados para trás, achava-se à distância.

— Deveria havê-la. -Hatch sacudiu a cabeça. — Isso forma parte da enfermidade moderna, o admirar algo contanto que seja novo, à margem de seu mérito. – Elevou um pouco o tom e suas mãos gesticularam. — Damos capacidade a qualquer pensamento novo, apressamo-nos a publicar por escrito qualquer idéia subversiva que zombe do passado, dos valores que forjaram nossos antepassados e sobre os quais nós construímos nossa nação e transportamos a fé de Jesus Cristo a outras terras e outros povos. -Encolheu os ombros pela intensidade das emoções. — O senhor Pascoe é um dos poucos homens que restam com a coragem necessária e a correta visão das coisas para entregar-se a lutar, por fútil que pareça, contra a maré da arrogância intelectual, e contra o afã indiscriminado de novidades sem ter em conta seu valornem as conseqüências de sua aceitação.

— Não é momento para sermões, Josiah. - Shaw estava ocupado com a face do Dalgetty e nem sequer levantou a vista para olhá-lo. Murdo o ajudava com notável eficiência. — E menos para as tolices que está dizendo. A metade dessas idéias periclitadas que defende não são mais que hipocrisias fossilizadas das que se servem os canalhas para atuar com impunidade. Faz muito que com umas poucas perguntas bem feitas, essas ásperas pretensões ficaram em evidência pelo que são.

Hatch estava tão pálido que teria podido passar por um dos feridos. Olhava as costas do Shaw com um ódio tão intenso que parecia assombroso que este não o percebesse.

— Você, Shaw, seria capaz de ver toda a beleza e a virtude manchada e exposta aos mais baixos instintos e entregá-la à cobiça dos ignorantes, e em troca não seria capaz de proteger ao inocente das mofas e as ímpias inovações daqueles que não têm valores que defender, só uma excitação insaciável de suas mentes. É você uma pessoa destrutiva, Stephen, um homem cujos olhos só vêem o superficial e cujas mãos só gostam de tocar aquilo que não tem verdadeiro valor.

     Os dedos do Shaw ficaram imóveis, com um pedaço de algodão tingido de vermelho. Dalgetty continuava preso de convulsões. Maude Dalgetty tinha aparecido de algum lugar.

Shaw olhou ao Hatch. Havia uma ameaça em cada uma das linhas de seu rosto. A energia acumulada nos músculos de seu corpo parecia a ponto de explodir com violência.

— Proporcionaria-me um grande prazer - disse quase entre dentes - que nos encontrássemos você e eu aqui amanhã, ao amanhecer, e nos batêssemos até deixá-lo sem sentido. Mas eu não defendo minhas opiniões desse modo. Não serve para provar nada. Demonstrarei-lhe quão estúpido é desentupindo os véus da resunção, da mentira e do engano...

Pitt percebeu que Prudence estava petrificada e com o rosto lívido, com os olhos cravados nos lábios do Shaw como se este estivesse a ponto de pronunciar o nome de alguma enfermidade mortal cujo diagnóstico fizesse tempo que esperava.

Maude Dalgetty, pelo contrário, só parecia um pouco impaciente. Nela não se apreciava o menor medo. E John Dalgetty, meio estendido no chão, só parecia consciente de sua própria dor e da complicação que procurara. Olhava a sua mulher com ansiedade, mas era evidente que o que lhe preocupava era sua ira, não sua integridade, e muito menos que Shaw pudesse, em um arranque de cólera, arruinar sua boa reputação portanto tempo protegida.

Pitt tinha visto tudo o que necessitava. Dalgetty não tinha medo do Shaw, enquanto que Prudence estava aterrorizada.

— Os sepulcros caiados... - disse Shaw com rancor, enquanto duas manchas de rubor afloravam às faces. — Os...

— Este não é o momento - interrompeu Pitt, interpondo-se entre ambos. — Já se derramou sangue mais que suficiente... e já se causou bastante dano. Doutor, acabe de tratar os feridos. Senhor Hatch, possivelmente teria a bondade de chegar até a rua e conseguir algum meio de transporte para que o senhor Pascoe e o senhor Dalgetty possam voltar para suas respectivas casas. Se quiser continuar a discussão a respeito dos méritos e da necessidade da instituição da censura, faça-o em um momento mais apropriado... e com maneiras mais civilizadas.

Por um momento pensou que nenhum dos dois ia fazer lhe caso. Continuavam olhando-se com a mesma violência de sentimentos que Pascoe e Dalgetty. Mas então Shaw começou a relaxar-se e, como se de repente Hatch tivesse deixado de ter importância, deu-lhe as costas e se inclinou de novo para a ferida do Dalgetty.

Hatch, com o rosto cinza como a cinza e os olhos acesos, virou sobre seus calcanhares, arrancando uma parte de erva, e se dirigiu cruzando o terreno baldio para o caminho principal.

Maude Dalgetty, em lugar de aproximar-se de seu marido, com quem era claro que tinha perdido a paciência, foi para o Prudence Hatch e lhe rodeou a cintura com o braço.

 

— Suponho que deveríamos ter imaginado uma coisa assim... se tivéssemos tomado a questão a sério - disse Vespasia quando Charlotte lhe contou o episódio do duelo. — Poderia esperar-se um pouco mais de sensatez por parte de pessoas como eles. Mas se tivessem um mínimo sentido da medida, já não teriam incorrido nesses extremismos que defendem. Há homens que perdem o sentido da realidade com uma facilidade pasmosa.

— Thomas me disse que os dois ficaram feridos - prosseguiu Charlotte. — Que desagradável. Eu sabia que discrepavam em torno do tema da liberdade de expressão. Alguém a considerava irrenunciavel, e o outro defendia algum tipo de censura no terreno das idéias em altares do interesse público. Mas nunca pensei que podiam chegar ao enfrentamento físico. Thomas estava muito zangado, pois lhe pareceu um comportamento muito teatral, à luz da tragédia real que nos rodeia.

Vespasia estava sentada muito erguida, como se não fosse consciente do aprimoramento da habitação em que estavam, nem do suave movimento das douradas folhas de faia que se viam através da janela e que criavam um ambiente de claro-escuro.

— A derrota, o desengano, o amor não correspondido, são coisas que podem fazer que nos comportemos de maneiras que nos pareceriam absurdas, querida... Sobre tudo a solidão, talvez, que não é nenhum bálsamo para a pena, embora haja pessoas capazes de rir por fora e chorar por dentro. Às vezes penso que a risada é a salvação do homem, enquanto que outras me parece que é o que o condena a uma condição inferior a dos animais. As bestas selvagens pode ser que se matem umas a outras e que desconheçam a piedade ante os doentes ou aflitos , mas jamais zombam. A blasfêmia é uma qualidade exclusivamente humana.

Charlotte vacilou. Vespasia tinha levado as coisas muito mais longe do que ela tinha pretendido. Talvez tivesse dramatizado o episódio em excesso.

— Tudo começou por uma discussão em torno do direito e a necessidade da censura - começou a explicar-se. — E se suscitou por essa maldita monografia de Amos Lindsay, que já não é mais que uma briga bizantina, desde o momento em que o pobre homem morreu.

Vespasia se aproximou da janela.

— Eu tinha entendido que a questão era se as pessoas têm direito a rir das crenças que outras consideram sagradas, já seja porque lhes parecem nocivas ou absurdas... ou irrelevantes, sem mais.

— Toda pessoa está em seu direito de questionar-se tais crenças – disse Charlotte com irritação. — Deve fazê-lo, inclusive, do contrário não seria possível o progresso nas idéias, nem as reformas. Poderiam chegar a acostumar-s e às ideologias mais insensatas, e se não pudermos confrontá-las como poderíamos saber se são boas ou más? Como podemos pôr a prova nossas idéias se não ser pensando... e falando?

— Não poderíamos. Mas há muitas formas de fazê-lo. E temos que aceitar a responsabilidade do que destruímos, tanto como do que criamos. Mas me diga uma coisa, o que é isso que Thomas lhe disse sobre Prudence Hatch estar como absorta pelo medo? Imaginava que Shaw ia revelar algum segredo espantoso?

— Isso pensa Thomas... Mas ainda não conseguiu que Shaw lhe conte nenhum segredo por cujo silêncio alguém pudesse estar disposto a matar.

Vespasia se voltou.

— Você falou com o Shaw... Parece-lhe um insensato?

Charlotte refletiu, enquanto visualizava aquele rosto de vivos e limpos olhos e o poder e a vitalidade que gotejavam.

— É um homem muito inteligente.

— Teria jurado isso. Mas não é o mesmo. Há muitas pessoas que possuem uma grande inteligência mas muito escassa sabedoria. Não me respondeu.

Charlotte esboçou um sorriso.

— Não, tia Vespasia, não estou certa de poder dizê-lo. Parece-me que não sei.

— Então será melhor que o averigue. - A anciã arqueou as sobrancelhas com suavidade, sem deixar de fixar seus olhos nela.

Charlotte se levantou com cautela e com um sentimento que pouco a pouco se definia como uma crescente sensação de medo. Desta vez não podia defender-se em uma falsa inocência, como tinha feito com freqüência nas anteriores ocasiões em que tinha intervindo nos casos do Pitt. Tampouco podia utilizar algum superficial disfarce como tinha feito também às vezes, com a pretensão de ser uma dama sem importância vinda do campo, para conseguir assim uma posição de observadora.

Shaw sabia perfeitamente quem era e conhecia a natureza exata de seu interesse. Tentar enganá-lo seria ridículo e degradante para ambos. Tinha que apresentar-se ante ele, se é que se decidisse a fazê-lo, tal como era, sem esconder seus motivos. E tinha que fazer as perguntas sem dissimulações nem reservas. Mas como podia levar a cabo tais propósitos sem ser intrometida ou impertinente, ou odiosamente insensível?

Estava decidida a dar uma desculpa, ou a dizer sem mais o que lhe passava pela cabeça. Mas então viu os estreitos ombros da Vespasia erguidos como os de um general a ponto de dar a ordem de batalha, e seus olhos firmes como os da enfermeira-chefe de uma sala de recém-nascidos. A insubordinação nem sequer era contemplada. Vespasia tinha compreendido de sobra todas suas objeções possíveis, e não estava disposta a aceitar nenhuma delas.

— “Inglaterra espera que cada um de seus homens cumpra com seu dever" - recordou Charlotte com uma ameaça de sorriso.

Um brilho de humor apareceu nos olhos da Vespasia.

— Assim é que eu gosto - aceitou inexorável. — Pode levar minha carruagem.

— Obrigada, tia Vespasia.

Charlotte chegou à casa de hóspedes em que Shaw se alojava temporariamente no preciso momento em que a caseira estava servindo a comida. Era uma falta de educação sem paliativos por parte de Charlotte, mas era mais prático. Era provavelmente o único momento do dia em que podia encontrá-lo na casa e sem que estivesse a ponto de preparar sua maleta para sair ou de ler as notas e mensagens que lhe tinham deixado.

Ao entrar acompanhada pela caseira, ele se surpreendeu ao vê-la, mas com uma expressão que denotava mais agrado que irritação. Se lhe incomodava que o interrompessem durante a comida, dissimulou-o com mestria.

— Senhora Pitt, que surpresa tão agradável. - Deixou o guardanapo em cima da mesa e se levantou para saudá-la, pegando-lhe as mãos com cordialidade.

— Peço-lhe desculpas por me apresentar a uma hora tão inoportuna. - Ainda não tinha começado e já estava sobressaltada. — Por favor, não queria lhe estragar a refeição. - Era uma observação fútil, pois já o tinha feito com sua mera presença. Por muito que dissesse, ele não ia deixá-la esperando no salão enquanto ele comia na sala de jantar. E embora assim o fizesse, dificilmente teria uma comida tranqüila em semelhante tessitura. Sentiu como lhe ruborizava a rosto pela precipitação com que tinha irrompido. Como ia formular lhe agora todas as perguntas íntimas que queria lhe fazer? Não sabia se conseguiria averiguar se ele era um insensato, segundo o termo utilizado pela Vespasia, mas ela certamente o era.

— Comeu já? - perguntou-lhe ele sem lhe soltar a mão.

Ela aproveitou a oportunidade que lhe oferecia.

— Não... Não sei como me passou o tempo esta manhã e é muito mais tarde que pensava. - Era uma mentira, mas muito oportuna.

— Nesse caso direi à senhora Turner que lhe sirva algo, se não se importa me acompanhar. - Assinalou a mesa disposta para um só comensal. Se havia outros hóspedes, aparentemente preferiam comer em outro lugar.

— Não desejaria incomodar à senhora Turner. - Era só o que podia dizer com franqueza. Ela também cozinhava, e sabia muito bem que qualquer mulher com um mínimo sentido da economia não preparava mais comida do que sabia que ia necessitar. — Não podia contar comigo. Mas tomarei com agrado uma xícara de chá, e talvez umas fatias de pão com manteiga... se tiver a bondade. Tomei o café da manhã tarde e não quero uma refeição copiosa. — Tampouco isso era certo, porém o mais conveniente. Tinha comido uma considerável quantidade de sanduiches de tomate em casa da tia Vespasia.

Ele abriu os braços com gesto expressivo e foi procurar a campainha, que fez soar com vigor.

— Estupendo - concordou com um sorriso, pois sabia igual a ela que ambos tinham chegado a um compromisso de educação e sinceridade. — Senhora Turner!

— Sim, doutor Shaw? - disse ela enquanto abria a porta.

— Ah! Senhora Turner, poderia trazer um bule com chá para a senhora Pitt... e também fatias de pão com manteiga? Não quer almoçar, mas lhe viria muito bem um refrigério.

A senhora Turner sacudiu a cabeça algo dúbia, embora com bom aspecto, e depois de olhar um instante ao Charlotte se apressou a fazer o que lhe pediam.

— Sente-se - ofereceu Shaw, lhe aproximando uma cadeira.

— Por favor, não me espere - disse Charlotte. Sabia que ele trabalhava sem descanso e não desejava que por sua culpa comesse frio o cordeiro cozido, as batatas, a verdura e o molho de alcaparras.

Ele voltou para seu assento e reatou a refeição com bastante apetite.

— O que posso fazer por você, senhora Pitt?

Ela não queria ficar em ridículo dando amostras de seu afeto, mas tinha que dizer algo logo. Ele a observava, à espera. Sua expressão era franca e amistosa. Ao dar-se conta, ela se sentiu ainda pior. A sua mente acudiram lembranças de outros homens a quem tinha admirado, e algo mais que isso, acompanhados de um sentimento de culpa que achava esquecido. Assim sem pensar duas vezes disse a verdade.

— Estive seguindo os passos da senhora Shaw - começou com voz pausada.         — Comecei pelo conselho paroquial, onde não me disseram quase nada.

— Não é de estranhar. Ela começou através de meus pacientes. Havia uma paciente em particular, que não respondia ao tratamento que lhe dava, pelo que Clemency se preocupou muito. Foi visitá-la e comprovou que a causa principal de seu mal-estar eram as condições de sua moradia: a umidade, o frio, a falta de água limpa e meios de higiene. Compreendeu que nunca se recuperaria enquanto vivesse ali. Isso podia haver-lhe dito eu, mas não o fiz porque sabia que não se podia fazer nada para melhorar suas condições de vida. Clem sofria muito pela desgraça de outros. Era uma mulher extraordinária.

— Sim, sei. Eu visitei essas mesmas casas... e tenho feito as mesmas perguntas que ela fez. Agora sei por que os inquilinos não se queixam ao caseiro... e o que acontece com quem o faz.

A senhora Turner bateu na porta e entrou com uma bandeja. Deixou-a sobre a mesa, e logo se retirou.

Charlotte se serviu de uma xícara de chá e Shaw comeu um pouco mais.

— Aos que se queixam expulsam e têm que buscar alojamento em lugares ainda mais sujos e frios - prosseguiu Charlotte. — Segui quão pendente supõe ir de uma casa miserável a outra mais miserável ainda, e vi o que suponho é o escalão mais baixo: dormir nos portais ou nas sarjetas. Ia dizer que não sei como essa gente pode sobreviver, mas não podem, claro. Os fracos morrem.

Shaw não dizia nada, mas sua expressão revelava que entendia melhor que ela mesma e que sentia a mesma impotência, que compreendia a ira que devia provocar aquela situação: o desejo de arremeter contra quem fosse, sobre tudo contra quem vivia em casas confortáveis e preferiam olhar para outro lado... Shaw sentia a mesma comiseração que a acossava a ela ao fechar os olhos e evocar aqueles rostos vazios, insensibilizados pela fome, sujeira e esgotamento.

— Segui seus passos até chegar a uma rua onde as casas estavam amontoadas de gente, velhos e jovens, homens e mulheres, meninos e até bebês, todos juntos sem a menor intimidade nem as mínimas condições higiênicas, dez ou quinze pessoas em um só cômodo. - Mordeu uma parte de pão com manteiga só porque haviam trazido-o, pois a lembrança daquela miséria lhe tinha tirado o apetite. — Ao fundo do corredor e subindo as escadas havia um bordel. Duas portas mais abaixo, uma taverna imunda junto à qual havia mulheres bêbadas atiradas nas escadas e sarjetas. No porão havia uma fábrica onde as mulheres trabalhavam dezoito horas diárias sem respirar o ar fresco nem ver a luz do sol... - deteve-se, e se deu conta uma vez mais que ele também conhecia aqueles lugares. Se não aquele em particular, sim uma dúzia de lugares similares.

— Descobri o difícil que é averiguar quem som os proprietários desses imóveis - continuou. — Se escondem detrás dos coletores dos aluguéis, das companhias, dos agentes, dos escritórios de advogados, que por sua vez defendem em outras companhias. Ao final da cadeia há pessoas poderosas. Fui advertida de que podia me granjear inimigos, pessoas que podiam me fazer a vida muito desagradável se continuasse insistindo em incomodá-los.

Ele esboçou um sorriso lúgubre, mas continuava sem interrompê-la. Ela sabia que acreditava. Talvez Clemency tinha compartilhado com ele os mesmos achados e os mesmos sentimentos.

— A ela também a ameaçaram? Você sabe até onde chegou em seu propósito de conhecer os nomes das pessoas que podiam ter temido ver-se expostas à luz pública?

Ele tinha deixado de comer e tinha a vista fixa no prato, com o semblante sério. Sentia uma dolorosa mescla de emoções desencontradas.

— Você acredita que era à Clem a quem queriam matar no incêndio de nossa casa, não é verdade?

— Sim - admitiu Charlotte, e viu como ficava mais rígido. Olhou-a com olhos escrutinadores, perplexos. — Embora não esteja certa - concluiu. — Quem ia querer matar a você? E não me dê uma resposta evasiva. Isto é muito sério para brincar de adivinhações. Já morreram Clemency e Amos Lindsay. Está seguro de que não haverá mais mortes? E a senhora Turner? E o senhor Oliphant?

Shaw fez um gesto de dor como se lhe houvesse dado um golpe. Em seus olhos brilhava um sentimento turvo e em seus lábios se desenhava uma tensão não dissimulada.

— Acredita que não o pensei? Repassei cada um dos casos que tratei nos últimos cinco anos. Não há nenhum só que dê pé a suspeitar do menor crime.

Já não havia volta atrás, embora sem dúvida Thomas lhe tivesse feito as mesmas perguntas.

— Tem certeza de que todas e cada uma das mortes que atendeu foi por causas naturais? Não poderia ter oculto alguma delas um assassinato?

Esboçou um sorriso quase desconfiado.

— E você sugere que a pessoa que o cometeu poderia temer que eu soubesse ou chegasse a suspeitá-lo, e por isso está tratando de me assassinar, para que não fale... -Não era que aceitasse a idéia, simplesmente considerava a possibilidade que se expunha, e achava difícil de encaixá-la em seu trabalho médico, na experiência comum das mortes normais, sempre vividas como libertação ou como tragédia.

— Parece-lhe impossível? - insistiu ela. — Nenhuma das mortes que você conheceu podia ter beneficiado a ninguém?

Shaw não dizia nada. Charlotte compreendeu que mergulhou em lembranças que lhe eram penosas, pois cada um deles tinha seu próprio rosto. Cada paciente morto supunha uma derrota para ele, em maior ou menor medida, em maior ou menor grau de inevitabilidade.

Assaltou-o uma nova idéia.

— Poderia haver-se tratado de um simulacro de acidente. Depois os culpados teriam tido medo de que você o descobrisse ou suspeitasse que o tinham feito de forma intencional.

— Tem você uma idéia muito melodramática da morte, senhora Pitt. Em geral é algo muito mais simples: uma febre que não remete e que esgota o corpo até consumi-lo; uma tosse seca e persistente que acaba em hemorragia e provoca uma debilidade cada vez maior até que ao doente não ficam forças. Às vezes a vítima é uma criança, ou um jovem, às vezes uma mulher extenuada pelo trabalho e partos sucessivos, ou um homem que trabalhou em tais condições de frio e umidade que seus pulmões não puderam resistir. Outras vezes se trata de um homem obeso com apoplexia, ou um bebê que nasceu sem a suficiente fortaleza para sobreviver. Com freqüência, a morte, no final, é algo muito pacífico.

O rosto do médico expressava dor, não pelos mortos, mas sim pela confusão, a ira e a aflição dos que ficavam, por sua impotência para ajudá-los, para amenizar a solidão em que lhes deixava aquele repentino e horrendo vazio depois de que a alma de um ser querido abandonava o corpo e se extinguia todo eco de vida. Como os rescaldos frios quando o fogo da lareira apagou.

— Mas nem sempre - disse a seu pesar, pois começava a aborrecer ter que insistir na questão. — Há pessoas que lutam até o final, e familiares que não o aceitam. Alguma vez alguém acreditou que não se prodigalizou você o suficiente? Não por malevolência, mas sim por simples negligência ou ignorância. – Concluiu com um sorriso tão leve que ele não podia achar que o pensasse a sério.

Shaw franziu o sobrecenho e a olhou com serena diversão.

— Há pessoas que costumam cair presas da ira se a morte for inesperada. Encolerizam-se porque o destino lhes privou de um ser querido e têm que culpar alguém, mas o sentimento passa. E, para lhe ser justo, ninguém me disse nunca que eu podia ter feito mais do que fiz.

— Ninguém? - Olhou-o com atenção, mas seus olhos não trataram de evitá-la, nem apareceu em suas faces o menor rubor. — Nem sequer as senhoritas Worlingham, pelo motivo da morte do Theophilus?

— Oh... - Deixou escapar um suspiro. — Mas isso é por sua forma de ser. São dessas pessoas que custa aceitar que alguém tão... tão robusto e tão convencido de suas opiniões como Theophilus possa morrer. Era um homem que sempre impunha sua presença. Se havia um tema de discussão, Theophilus expressava seu ponto de vista com todas as palavras que fossem necessárias e com o absoluto convencimento de que estava certo.

— E por descontado Angeline e Celeste estavam de acordo com ele...

Shaw soltou uma risada estentórea.

— Por descontado. A menos que não estivesse em sintonia com seu pai. As opiniões do finado bispo prevaleciam sobre as de qualquer outra pessoa.

— E estavam em desacordo com ele freqüentemente?

— Muito poucas vezes. E só sobre coisas insignificantes, como gostos e passatempos, livros ou quadros, ou sobre roupa (se usar algo marrom ou cinza), ou sobre o que vinho devia servir, ou se comer cordeiro ou porco, ou peixe ou caça; sobre que porcelana era de melhor gosto... Nada importante. Estavam em perfeito acordo a respeito dos deveres morais, da virtude das mulheres e o lugar que ocupam, daforma que deve reger-se a sociedade e em quem deve fazê-lo.

— Não acredito que Theophilus tivesse gostado muito de mim - disse Charlotte impulsivamente, antes de recordar que tinha sido o sogro do Shaw. A descrição que acabava de lhe fazer se parecia muito a de seu tio Eustace March, cuja lembrança a embargou de emoções contraditórias, embora tintas todas elas por certo desagrado.

Dedicou-lhe um largo sorriso e por um momento ficou relegado todo pensamento em torno da morte e em altares do prazer que sentia em sua companhia.

— Teria lhe aborrecido. Assim como eu.

Algo em seu interior quis rir ante a ocorrência e ver nela unicamente seu lado frívolo e divertido. Mas não podia esquecer a virulência no rosto de Celeste quando esta se referiu à morte de seu irmão, e o modo em que Angeline se ecoou com idêntica sinceridade.

— Do que morreu? Por que foi uma morte tão repentina?

— Sofreu um ataque cerebral - respondeu olhando-a com candura. — Padecia de dores de cabeça ocasionais muito fortes, de aquecimento do sangue, de vertigens e tinha tido já duas crises leves de apoplexia. E gota, claro, de vez em quando. Uma semana antes de morrer teve um espasmo que o deixou temporalmente cego. Só durou um dia, mas o atemorizou muito. Eu acredito que ele o considerou um presságio de morte...

— E teve razão. - Mordeu o lábio, tratando de escolher as palavras sem que fossem acusadoras. — Você soube no momento que passou?

— Pensei na possibilidade. Mas não achei que pudesse produzir-se tão logo. Por que?

— Teria podido prevenir, se estivesse seguro?

— Não. Um médico não pode prevenir um ataque cerebral. Claro que nem todos os ataques resultam fatais. Muitas vezes o paciente perde o uso da metade do corpo, da fala ou da vista, mas segue vivendo muitos anos. Há pessoas que sofrem vários ataques antes do fatal. Há outras que ficam paralíticas e sem fala durante anos mas, segundo todos os indícios, não perdem a consciência e se dão conta de quanto acontece a seu redor.

— Que espantoso. É como morrer sem obter a paz. - Estremeceu. — Podia ter acontecido isso ao Theophilus?

— Sim. Mas sucumbiu ao primeiro ataque, o que possivelmente não seja uma desgraça.

— Disse isso mesmo a Angeline e Celeste?

Arqueou as sobrancelhas ligeiramente surpreso, talvez de sua própria omissão.

— Não, não o fiz. - Fez uma careta. — Suponho que agora já é um pouco tarde. Pensariam que o digo como desculpa.

— Sim. Elas o culpam em parte, embora não sei até que ponto.

— Pelo amor de Deus! - exclamou, com expressão de assombro. — Não estará imaginando a Angeline e Celeste arrastando-se na escuridão e incendiando minha casa porque pensam que podia ter salvado ao Theophilus? Isso é completamente ridículo!

— Pois alguém o fez.

A hilaridade se desvaneceu e deixou passagem à dor.

— Sei... mas não por causa do Theophilus.

— Está totalmente seguro? Não caberia a possibilidade de que sua morte tivesse sido um assassinato, e que alguém temesse que você o descobrisse e a partir daí adivinhasse quem o tinha cometido? Depois de tudo, morreu em circunstâncias nada normais.

Olhou-a com incredulidade, com os olhos arregalados e a boca aberta. Mas pouco a pouco a idéia foi parecendo menos absurda e recordou as confusas circunstâncias do acontecimento. Voltou a pegar a faca e o garfo e ficou a comer de forma maquinal enquanto refletia.

— Não - disse ao fim. — Se foi um assassinato, coisa que não acredito, então foi um crime perfeito. Nunca suspeitei de nada e continuo sem suspeitar. Além disso, quem ia querer matá-lo? Era insuportável, mas há muitas pessoas que o são. E nem Prudence nem Clemency pretendiam seu dinheiro.

— Tem certeza?

Levantou a mão. Deixou de comer e lhe sorriu com um encanto inesperado.

— Completamente. Clemency estava desfazendo-se de seu dinheiro com toda a rapidez que podia. E Prudence obtém de seus livros tudo o que necessita.

— Livros? - Charlotte ficou desconcertada. — Que livros?

— Bom, pois... O segredo de lady Pamela, por lhe dizer um - disse com um sorriso. — Escreve novelas... Oh, com pseudônimo, claro. Mas tem muito êxito. Ao Josiah daria um ataque de apoplexia se soubesse. E a Celeste também... embora por razões muito diferentes.

— De verdade acha? - Charlotte estava encantada. Não podia acreditar.

— Certamente. Era Clemency a que lhe levava o negócio. Assim conseguiam deixar ao Josiah à margem. Suponho que eu podia sabê-lo.

— Graças a Deus. - Tentou rir ante o absurdo da situação, mas havia muita tensão em ambos. — Está bem. - Fez um esforço por ficar séria. — Se não foi por causa do Theophilus, fosse por motivos pessoais ou por seu dinheiro, por que, então?

— Não sei. Espremi-me o cérebro, dei voltas e mais voltas a tudo o que pudesse provocar que alguém me odiasse ou me temesse até tal ponto que lhe fizesse dar o terrível passo de cometer um assassinato. Até a risco de... - deteve-se e a seu rosto voltou um vislumbre de sua habitual ironia. — Bom, não parece que o criminoso corresse muitos riscos. A polícia não parece ter muitas pistas a respeito de quem o fez, não muitas mais do que tinha a primeira noite.

Charlotte saiu em defesa do Pitt instintivamente, embora se arrependeu imediatamente.

— Quererá dizer que a você não o disseram. Isso não quer dizer que não saibam nada... - Shaw jogou a cabeça para trás, com os olhos muito abertos. — Tampouco me disseram - se apressou a acrescentar.

Mas ele tinha captado a diferença.

— Claro, claro. Precipitei-me. Parecem tão inocentes, mas com certeza não me contam isso. Devo ser um de seus principais suspeitos... coisa que embora seja absurda para mim, para eles tem que ser muito razoável.

Charlotte não tinha nada mais que lhe dizer nem lhe perguntar, mas continuava sem poder responder à pergunta de tia Vespasia. Era um louco, no sentido em que ela o dizia, um homem cegado por alguma ofuscação emocional que qualquer mulher teria sido capaz de ver?

— Obrigada por me haver dedicado tanto tempo, doutor Shaw. - Levantou-se.         — Compreendo que minhas perguntas podem lhe parecer impertinentes. - Sorriu a modo de desculpa. — Se as tenho feito é só porque segui o caminho que percorreu Clemency. Respeito-a tanto que desejaria que descobrissem seu assassino, e que alguém continuasse seu trabalho. Meu cunhado está considerando a possibilidade de apresentar-se ao Parlamento. Ele e minha irmã se sentiram tão afetados pelo que descobriram que não descansarão em advogar em favor da promulgação da lei que tanto ansiava Clemency.

Ele se levantou também, por cortesia.

— Perde você o tempo, senhora Pitt - disse com calma.

Não o havia dito com tom de crítica, mas sim de lamento, como se antes já tivesse repetido essas mesmas palavras e pelas mesmas razões... e tampouco lhe tivessem acreditado. Era como se Clemency estivesse na estadia com eles, um fantasma bondoso a quem ambos queriam. Não havia sentimento algum de intromissão, só uma presença amável que não sentia ressentimento por seus momentos de amizade, nem sequer pelo calor do contato de sua mão no braço de Charlotte, nem por sua proximidade a ela ao lhe dizer adeus, nem pelo súbito e doce brilho de seus olhos enquanto a contemplava afastar-se, descer os degraus da porta principal e subir à carruagem ajudada pelo criado da Vespasia. Permaneceu na soleira depois que a carruagem dobrou na esquina, até que fechou por fim a porta e retornou à sala de jantar.

 

Charlotte pediu ao cocheiro que a levasse a casa dos Worlingham. Parecia muito pouco provável que Celeste ou Angeline tivessem tentado matar ao Shaw, fosse qual fosse o grau de negligência que lhe atribuíam na morte do Theophilus, e por muito que Clemency - e portanto Shaw -, tivesse herdado uma fortuna como conseqüência da mesma. Contudo, este era um motivo que não podia descartar-se. E quanto mais pensava nisso, mais lhe parecia que era a única alternativa lógica, se é que finalmente o culpado não era algum proprietário temeroso de ver seu nome exposto à luz pública. Tinha algum fundamento real? O que outros nomie podia ter descoberto Clemency, além do de seu próprio avô?

No transcurso da investigação, por força tinham que ter saído outros, antes ou depois do do Worlingham. Somerset Carlisle tinha mencionado famílias aristocráticas, banqueiros, juizes, diplomátas, homens com presença na vida social que não teriam podido justificar ante a opinião pública a turva origem de seus ganhos. E aquele advogado se mostrara tão seguro de que seus clientes estariam dispostos a utilizar algum tipo de violência para proteger seu anonimato, que não lhe tinha importado servir-se de ameaças.

Mas quem se afastara tanto dos leitos do poder social ou financeiro para cometer assassinato? Havia algum modo de averiguá-lo? Ocorreu-lhe que podia procurar o piromaníaco no mundinho criminoso e obrigá-lo a confessar quem o tinha contratado. Talvez fosse uma tarefa impossível, ao menos sem uma boa dose de fortuna.

Chegariam a descobri-lo alguma vez? Tinha sido Clemency tão temerária para enfrentar a ele cara a cara? Certamente não. Com que propósito o teria feito? O que era certo é que não tinha trazido à luz o nome dos Worlingham. Nunca teria chegado a erigir o magnífico vitral em sua honra, com a bênção do arcebispo dos York, se tivesse pesado a menor suspeita de escândalo sobre seu nome.

E Theophilus? Tinha chegado a saber? Clemency não podia haver-lhe dito, pois ele tinha morrido, antes inclusive dela se envolver de pleno na questão. Tinha chegado a perguntar ele alguma vez de onde procedia o dinheiro da família, ou se tinha limitado a aceitar sem mais sua pródiga abundância e a deixar as coisas como estavam com um sorriso?

E Angeline e Celeste?

A carruagem estava a ponto de deter-se ante a magnífica entrada. Ao cabo de uns segundos, o criado lhe abriria a portinhola e ela apearia e subiria os degraus. Tinha que pensar uma desculpa para sua visita. Era cedo. Não era provável que tivessem companhia. Ela não podia considerar uma amizade da família, pois não era mais que a neta de uma antiga conhecida, além de encarnar um desafortunado aviso de assassinatos e policiais.

A porta principal se abriu e a criada a olhou com uma educada e fria curiosidade.

Charlotte não tinha sequer um cartão de apresentação!

Dedicou-lhe seu sorriso mais encantador.

— Boa tarde. Estou prosseguindo o trabalho que levava a cabo a defunta senhora Shaw e eu gostaria de lhes dizer às senhoritas Worlingham quanto a admirava. Recebem esta tarde?

A criada estava muito bem instruída para se despedir de alguém que pudesse apresentar um mínimo interesse nas monótonas vidas de suas duas senhoras. As senhoritas Worlingham apenas saíam para ir à igreja. Tudo o que viam do mundo era aquilo que aparecia através de sua porta.

Como não entregara cartão de visita, a criada deixou a bandejita de prata sobre a mesa do vestíbulo e se afastou para que Charlotte entrasse.

— Se tiver a bondade de esperar, senhora, irei perguntar. A quem devo anunciar?

— Senhora Pitt. As senhoritas Worlingham conheciam minha avó, a senhora Ellison. Todas nós somos admiradoras da família. - Aquilo era exagerar um pouco; a única que Charlotte podia admirar era Clemency, mas não era de mais incluí-los a todos.

Foi conduzida ao saguão, onde apreciou uma vez mais o maravilhoso chão de mosaico e o proeminente retrato do bispo, com seu rosado rosto inspirador de confiança e radiante de uma satisfação quase luminosa.

Outros retratos ficavam inundados na escura comunidade dos coroinhas. Era uma lástima que não houvesse um retrato do Theophilus. Teria gostado de ver seu rosto para emitir algum julgamento sobre ele, para comprovar se a boca, os olhos ou algum outro traço permitia estabelecer algum vínculo com o bispo e suas filhas. Imaginava muito diferente ao Shaw: dois homens incapazes de entender o um ao outro por suas próprias naturezas.

A criada voltou e disse ao Charlotte que a receberiam.

Angeline e Celeste estavam no salãozinho, em uma postura muito parecida com a que tinham quando as visitara em companhia de Caroline e da avó. Traziam vestidos de tarde negros, similares aos de então, de boa qualidade, algo estreitos de cava, adornados com contas de vidro e, o de Angeline, também com penas negras, muito discretas. Celeste usava brincos azeviche e um colar muito longo que lhe pendia por cima de seu formoso busto e emitia brilhos de luz ao mover-se com a respiração.

— Boa tarde, senhora Pitt - disse com formalidade. — É muito amável de sua parte vir nos dizer o muito que admirava a pobre Clemency. Mas acredito que já o tinha mencionado quando esteve aqui antes. E devo lhe recordar que mencionou também algumas idéias equivocadas com respeito à tarefa de Clemency em favor dos pobres.

— Estou certa de que se tratava de um engano, querida - interveio Angeline. — A senhora Pitt não desejaria nos causar mais pena ou inquietação. - Sorriu para Charlotte. — Não é verdade?

— Nada do que fui sabendo a respeito da senhora Shaw poderia lhes causar outra coisa que um profundo sentimento de orgulho - respondeu Charlotte.

— Que soube? - Angeline ficou desconcertada, mas essa foi a única emoção que Charlotte pôde identificar em seus traços flexíveis.

— Oh, sim - respondeu, enquanto aceitava o assento que mal insinuaram lhe oferecer e se sentava entre os avultadas almofadas cheias de borlas e rendas. Não tinha a menor intenção de partir até não haver dito tudo o que pensava e observado em detalhe as reações que pudesse provocar. Aquela casa tinha sido comprada e mobiliada graças à agonia alheia. O velho bispo sabia. Também soube Theophilus? E sabiam aquelas duas irmãs de olhar inocente? Possivelmente Clemency, desesperada, tinha acudido ali ao inteirar da origem de sua própria herança e tinha confrontado-as com a verdade? E se tinha sido assim, o que tinham feito elas?

Talvez a arma que tinham escolhido não tinha sido outra que o fogo: no segredo da noite, e enquanto elas permaneciam a salvo em suas acolhedoras camas. Era horrível pensar nisso, na sensação de estar rodeado por rostos familiares que podem mudar sua habitual expressão de doçura por outra de ódio e desprezo. Era possível que aquelas velhas damas que tinham consumido sua juventude e sua maturidade em mimar a seu pai, tivessem matado para proteger a reputação deste, e com ela seu próprio bem-estar no seio de uma comunidade à frente da qual tinha estado a família durante mais de meio século? Não parecia inconcebível.

— Ouvi falar tão bem dela a outras pessoas - insistiu Charlotte com uma voz que às duas mulheres soava artificiosa e um pouco exagerada. Tinha cometido uma tolice ao ir ali sozinha? Não... que estupidez. Era pleno dia, e o cocheiro e criado de tia Vespasia esperavam fora.

Mas sabiam elas?

Sim, claro que sabiam. Não poderiam conceber que tivesse ido até ali andando.

Mas podia ter ido de ônibus. Era um meio que utilizava com freqüência.

— Que pessoas são essas? - perguntou Celeste com as sobrancelhas arqueadas.    — Não posso acreditar que Clemency fosse conhecida fora da paróquia.

— Oh, claro que era. - Charlotte tragou para desfazer o nó da garganta e fez um esforço para que sua voz soasse normal. Tremiam-lhe as mãos, assim optou por fechá-las e juntar os punhos. — O senhor Somerset Carlisle se referiu a ela nos mais elogiosos termos. É um destacado membro do Parlamento, já sabem. E lady Vespasia Cumming-Gould também. O certo é que falei com ela esta mesma manhã e lhe disse que viria vê-las esta tarde, assim me emprestou sua carruagem. Está decidida a que a memória da senhora Shaw não caia no esquecimento nem se perca seu trabalho. - O duro rosto de Celeste sombreou. — E há outras pessoas, certamente. Mas era uma mulher tão discreta e modesta que talvez a vocês não contava quase nada do que fazia...

— Nunca nos contava nada - respondeu Celeste. — E eu acredito, senhora Pitt, que não havia nada que contar. Clemency fazia entre os pobres as mesmas obras de caridade que todas as mulheres de nossa família têm feito sempre. - Levantou o queixo e adotou um tom mais condescendente. — Fomos criadas em um lar muito cristão, como você deve saber. De meninas nos ensinaram a ter compaixão pelos menos favorecidos, sem entrar em avaliações a respeito de sua indigência. Nosso pai nos dizia que não julgássemos, só que servíssemos.

Charlotte custava refrear a língua. Ansiava lhes dizer o que pensava sobre o modo em que o bispo entendia a caridade.

— A modéstia é uma das virtudes mais elevadas - disse em voz alta, apertando os dentes. — Pelo visto não lhes mencionou nada sobre o trabalho que realizava em favor da reforma das leis que afetam à propriedade das chamadas casas da miséria.

Não viu nada em seus rostos que delatasse um conhecimento prévio.

— Casas da miséria? - Angeline parecia desconcertada.

— A respeito da propriedade dessas casas - explicou Charlotte, cuja voz soou apagada e muito forçada. — Segundo as leis atuais, é quase impossível conhecer o verdadeiro proprietário.

— E por que ia querer sabê-lo alguém? - perguntou Angeline. Parece estranho e desnecessário.

— Porque essa gente vive em condições sub-humanas - disse Charlotte em um murmúrio, e com a amabilidade que exigiam duas mulheres idosas que não sabiam nada do mundo que se estendia além de sua casa, da igreja e de umas poucas pessoas da paróquia. Seria uma grosseria culpá-las de uma ignorância já irremediável. O modelo completo de suas vidas, que tinha sido estabelecido por outros, nunca tinha sido questionado nem perturbado.

— É claro que sabemos que os pobres sofrem - disse Angeline franzindo a testa.       — Mas isso ocorreu sempre, e certamente é inevitável. Esse é o propósito da caridade, aliviar o sofrimento na medida do possível.

— Mas grande parte desse sofrimento poderia evitar-se se não houvesse outras pessoas que exercitam sua cobiça à custa dos pobres. - Charlotte tratava de achar palavras que pudessem compreender para explicar a devastadora pobreza de que tinha sido testemunha. Observou uma total incompreensão refletida em seus rostos. — As pessoas que nascem na pobreza são mais propensas à enfermidade, o que as incapacita para trabalhar, por isso se convertem em mais pobres ainda. Vêem-se expulsas das casas dignas e têm que procurar o que for. - Estava simplificando de forma drástica, mas uma longa explicação de circunstâncias que elas jamais tinham imaginado só teria servido para confundi-las. — Os proprietários conhecem sua situação de extrema necessidade e lhes oferecem habitações carentes de luz, ventilação, água corrente e instalações sanitárias...

— E por que as aceitam? - perguntou Angeline com os olhos muito abertos. — Acaso não querem as coisas que nós gostamos?

— Querem o melhor que está a seu alcance - simplificou Charlotte. — Mas isso muitas vezes não é mais que um lugar onde poder cobrir-se e dormir, e onde, se tiverem sorte, compartilhar um fogão para cozinhar.

— Não parece tão mau - respondeu Celeste. — Se isso for tudo o que podem permitir-se...

Charlotte aludiu à única coisa que podia comover às filhas do bispo:

— Homens, mulheres e meninos juntos em um mesmo cômodo? – Olhou fixamente ao duro e inteligente rosto de Celeste. — Sem mais latrina que uma tina em um canto para uso comum? E sem um espaço íntimo onde trocar-se, lavar-se ou dormir?

Charlotte viu em seus rostos todo o horror que tinha desejado suscitar.

— Oh, céu santo! Não o dirá a sério? - Angeline estava impressionada. — Mas isso não é próprio de pessoas civilizadas... e muito menos cristãs!

— É claro que não. Mas não têm alternativa, salvo a rua, que ainda é pior.

Celeste parecia transtornada. Podia imaginar condições como aquelas e sentir ao menos um ápice de horror, mas ainda não era capaz de compreender opropósito de dar a conhecer os proprietários de tais lugares.

— Os proprietários não podem criar espaço onde não o há. Nem resolver os problemas da pobreza. Por que deseja você saber quem são?

— Porque obtêm grandes benefícios da situação. Se se fizessem públicos seus nomes, poderiam ver-se obrigados, embora só fora por vergonha, a ocupar-se da manutenção dos imóveis em lugar de deixar que mofam as paredes e se apodreçam as vigas.

Aquilo ultrapassava a experiência de Celeste e Angeline. Passaram toda a vida naquela encantadora casa com todas as comodidades que o dinheiro e a posição social podem proporcionar. Nunca tinham visto nem cheirado a podridão, não tinham a menor ideia do que podia ser uma sarjeta por onde desciam as águas residuais ou um coletor ao ar livre.

Charlotte inspirou para tratar de descrever com palavras, mas o impediu a volta da criada, que anunciou a chegada do Prudence Hatch e a senhora Clitheridge.

Entraram juntas, Prudence com um semblante algo tenso e incapaz de sentar-se ou permanecer de pé tranqüila. Lally Clitheridge saudou com simpatia a Celeste e foi todos sorrisos com o Angeline, mas quando se voltou para o Charlotte, que se tinha posto de pé e a que reconheceu antes de que lhe advertissem de sua presença, adotou uma atitude distante e educada. Saudou-a com olhos duros e voz quebradiça.

— Boa tarde, senhora Pitt. Que surpresa vê-la por aqui tão logo de novo. Não sabia que era amiga pessoal da família.

Celeste convidou-as para que se sentassem e todas o fizeram compondo as saias.

— Veio para nos expressar sua admiração por Clemency - disse Angeline com uma ligeira tosse nervosa. — Parece que Clemency se preocupou de verdade por investigar às pessoas que tira benefício da miséria dos pobres. Nós não tínhamos nem idéia. Era muito modesta sobre este ponto.

— Ah, sim? - Lally arqueou as sobrancelhas e olhou ao Charlotte com incredulidade. — Não sabia que conhecesse também a Clemency... e menos até o extremo de saber mais dela que sua própria família.

Charlotte se sentiu ofendida pelo tom mais que pelas palavras. Lally Clitheridge a observava com o ar de quem olhe a uma rival que a despojou que um privilégio merecido.

— Não a conhecia, senhora Clitheridge. Mas conheço pessoas que a conheceram. Ignoro a razão pela qual ela preferiu compartilhar suas inquietações com eles antes que com seus familiares e vizinhos... embora seja possível que fosse porque essas pessoas sentiam as mesmas inquietações e compreendiam e respeitavam seus sentimentos.

— Valha-me Deus. - Lally ergueu o tom, assombrada e ofendida. — Sua intromissão não conhece limites. Agora nos sugere que ela não confiava em sua própria família e que em seu lugar escolheu a esses amigos seus, cujos nomes teve bom cuidado de não mencionar, por certo.

— Por favor, Lally - disse Prudence com suavidade, enquanto espremia as mãos no regaço. — Está alterando-se sem necessidade. Deixou que Floresce Lutterworth pusesse-a muito nervosa. - Olhou ao Charlotte. — Acabamos de ter um encontro bastante desagradável, e receio que todos dissemos coisas um pouco imprudentes. A conduta dessa jovem é muito desavergonhada no que concerne ao Stephen. Está obcecada com ele e parece incapaz de conter-se... inclusive agora.

— Oh, céus... outra vez. - Angeline suspirou e sacudiu a cabeça. — Mas todas sabemos de onde vem, pobrezinha, o que se podia esperar? E além disso se criou virtualmente sem mãe. Atreveria-me a dizer que não há ninguém que a instrua em seu comportamento. Seu pai é um comerciante, e procede do norte. É difícil esperar que tenha a menor idéia.

— Não há dinheiro no mundo que possa dissimular a falta de berço – concordou Celeste. — Mas a gente segue tentando-o.

— Exato - disse Charlotte com tom cortante. — A gente de bom berço pode mentir, fraudar, roubar ou vender a suas filhas em troca de dinheiro, mas a gente que só tem dinheiro nunca poderá adquirir nobreza, façam o que façam.

Produziu-se um silêncio como o que segue a um trovão que deixa a atmosfera carregada de tormenta.

Charlotte olhou os rostos um a um. Embora não tivesse provas, estava certa de que Celeste e Angeline não tinham nem a mais remota idéia da origem do dinheiro de sua família. Tampouco achava que o dinheiro em questão fosse o fundamento do medo do Prudence. Agora mesmo parecia horrorizada, mas não por preocupação por si mesma. Tinha as mãos imóveis, caídas no regaço. Olhava ao Charlotte com total incompreensão, mais por sua brusquidão que porque lhe infundisse temor.

Lally Clitheridge se ficou petrificada.

— Eu achava que Stephen Shaw era a pessoa mais brusca que tinha conhecido em minha vida - disse com voz trêmula. — Mas você o deixa pequeno. Você está acima de toda norma.

Só havia uma resposta possível:

— Obrigada. Da próxima vez que o veja lhe transmitirei essas mesmas palavras. Estou certa de que se sentirá reconfortado.

Lally distendeu o rosto, como se tivesse recebido uma bofetada. De forma súbita e até ridícula, Charlotte compreendeu o motivo de sua animosidade por ela: estava ciumenta. Por muito que considerasse o Shaw um incontinente verbal e um homem de idéias perigosas e pouco recomendáveis, o certo era que se sentia fascinada por ele, por causa talvez de sua vida cinza e trabalhadora com o vigário. Via no Shaw uma promessa de emoções e perigos, e uma vitalidade e confiança em si mesmo que devia ser como um elixir no deserto de sua existência. Agora, toda aquela farsa não só fazia que Charlotte se sentisse zangada, mas também lhe inspirava pena, pela futilidade e inutilidade de todo o valor que tinha esbanjado Lally em sua cruzada por fazer do Clitheridge algo que não era, por insistir em que cumprisse com um dever que o ultrapassava, por animá-lo sem desmaio, por lhe dar seu apoio, por estar aconselhando-o sempre sobre o que tinha que dizer. E pelos sonhos que tinha despertado nela um homem muito mais vivo, pelo vigor que a horrorizava tanto como a enfeitiçava, e pelo ódio que sentia por Charlotte pelo fato de que Shaw se sentisse atraído por ela, de um modo tão simples e desesperançado como Lally era atraída por ele. Era tudo tão pueril.

Mas já não podia retratar-se. Isso teria piorado as coisas, pois todos teriam visto que tinha compreendido a situação. A única saída era partir, de modo que ficou em pé.

— Obrigada, senhorita Worlingham, por me haver permitido expressar minha admiração pelo trabalho do Clemency e lhe assegurar que, apesar de todos os perigos e ameaças que possam surgir, penso continuar com esse esforço por minha conta. Não desaparecerá com ela. Senhorita Angeline. - Retirou a mão, apertou a bolsa de malha que tinha agarrado com a outra e se voltou com intenção de partir.

— O que quer dizer, senhora Pitt? - Prudence se levantou e foi para ela. — Está insinuando que acredita que alguém matou Clemency que... alguém que se opunha a esse trabalho que segundo você ela levava a cabo?

— Parece muito verossímil, senhora Hatch.

— Que solene tolice! - interveio Celeste com brusquidão. — Acaso sugere que Amos Lindsay estava também comprometido?

— Não que eu saiba... - começou Charlotte, mas foi interrompida.

— Pois claro que não - concordou Celeste, que ficou também em pé. Tinha amarrotado sua a saia, mas não se deu conta. — Não me cabe dúvida de que ao senhor Lindsay o mataram por suas radicais ideias políticas, por essa ignóbil Fabián Society e todos esses horríveis panfletos que escrevem e defendem. - Olhava Charlotte nos olhos. — Se relacionou com pessoas que apóiam todo tipo de idéias violentas: socialismo, anarquia, revolução. Vivemos uns tempos cheios de tramas sinistras. Há crimes muito mais abomináveis que os incêndios do Highgate, por espantosos que sejam. Eu não leio os jornais, claro, mas não por isso deixo de me dar conta do que está passando... As pessoas falam disso, até aqui. No Whitechapel anda um louco solto que esquarteja mulheres e as desfigura de um modo pavoroso, e a polícia parece incapaz tanto de detê-lo como de impedir que repita seus crimes. –Tinha ido empalidecendo enquanto falava. Todas haviam sentido o horror estender-se pela sala, como o frio através de uma porta aberta.

— Estou certa de que tem razão Celeste. - Angeline parecia retirar-se a seu mundo interior, como se quisesse proteger-se das escuras e terríveis forças que acabavam de atemorizá-las. — O mundo está mudando. As pessoas pensam de forma diferente e aceitam idéias perigosas. Às vezes me parece como se tudo que temos estivesse ameaçado. - Sacudiu a cabeça e puxou o xale para proteger-se melhor. — E a julgar por sua forma de falar, parece-me que Stephen admira de verdade essas idéias a respeito de derrocar a velha ordem e estabelecer o que promulgam esses fabianos.

— Oh, tenho certeza de que não é assim - a contradisse Lally com firmeza, com as faces ruborizadas e os olhos brilhantes. — Sei muito bem que era amigo do senhor Lindsay, mas nunca esteve de acordo com suas idéias. Eram muito revolucionárias. O senhor Lindsay lia os ensaios e panfletos dessa horrível senhora Bezant que contribuiu para revoltar às trabalhadoras da fábrica de fósforos. Recordam? Foi em abril... ou em maio. Quero dizer que se as pessoas se negarem a trabalhar, aonde vamos parar?

Charlotte sentiu o impulso de expor suas próprias idéias políticas em favor da senhora Bezant e explicar a questão das jovens trabalhadoras, de seus padecimentos físicos, da necrose dos ossos faciais por causa da inalação continuada de fósforo. Mas nem era o momento nem estava ante as pessoas adequadas. Voltou- se para Lally.

— Então você acredita que as duas mortes foram por motivos políticos, senhora Clitheridge? Que a pobre senhora Shaw a mataram por sua atividade em favor das reformas legais? Penso que pode estar certa. A verdade é que eu também acredito.

Lally se viu em um apuro, ao ter que estar de acordo com o Charlotte, mas já não podia desdizer-se.

— Eu não diria nesses termos - respondeu com ar ofendido. — Mas suponho que sim, que assim acredito. Depois de tudo é o que tem mais sentido, vistas as circunstâncias. Que outra razão poderia haver?

— Bom, poderia haver motivos passionais mais pessoais - indicou Prudence enquanto olhava Charlotte cenho franzido. — Possivelmente deve-se pensar no senhor Lutterworth, por causa da relação do doutor Shaw com Flora... Desde que, claro, fora Stephen a pessoa a que queriam matar no incêndio, não a pobre Clemency.

— Mas então, por que tinha que matar também ao senhor Lindsay? – Angeline sacudiu a cabeça. — O senhor Lindsay nunca fez mal a sua filha.

— Pois porque saberia algo, claro. - Prudence esticou o rosto, impaciente. — Não terá que fazer um grande esforço de imaginação.

Permaneciam de pé junto à porta, enquanto o sol da tarde enviava seus raios oblíquos entre as cortinas e persianas e formava um estampado de luzes e sombras atrás delas. À luz daqueles raios enviesados as braçadeiras de luto negros pareciam ligeiramente poeirentas.

— É surpreendente que a polícia ainda não haja resolvido - acrescentou Lally dirigindo-se à Charlotte. — Claro que não se trata de pessoas especialmente dotadas, do contrário se dedicariam a outras ocupações. Quer dizer, se tivessem a inteligência suficiente para ser capazes de fazer outra coisa melhor... não é assim?

Charlotte podia encaixar certa dose de ultraje para sua própria pessoa sem perder a calma, mas que insultassem ao Pitt era diferente. Uma vez mais se deixou levar pelo gênio.

— Há muito poucas pessoas que estejam dispostas a dedicar seu tempo, e muitas vezes a arriscar sua vida, escavando nas faltas e desditas alheias para descobrir a violência que se aninha nelas - disse com acrimônia. — Há muitas pessoas que são a viva imagem da retidão em sua vida pública e pretendem encarnar todas as virtudes cívicas, mas sua vida privada é sórdida, ruim e cheia de mentiras. - Olhou-as uma a uma, satisfeita de comprovar o alarme em seus rostos, e inclusive o medo no caso do Prudence. Ao vê-lo, se conteve imediatamente e se sentiu envergonhada. Não era a Prudence a quem tinha querido atacar.

Mas uma vez mais era impossível retirar as palavras já saídas, por isso a única saída era retirar-se ela mesma. Desculpou-se, despediu-se e, com a cabeça bem alta, partiu movendo com elegância as saias ao caminhar. Ao cabo de uns segundos se achava de novo na carruagem de tia Vespasia a caminho da hospedaria onde se alojava Stephen Shaw. Agora tinha novas perguntas que lhe formular. Talvez todo aquele assunto tivesse mais que ver do que tinha pensado com as idéias políticas radicais, não só com os senhores da miséria do Clemency mas também com as crenças socialistas do Lindsay. Nunca tinha perguntado ao Shaw se Lindsay estava à corrente do trabalho de Clemency, nem se tal atividade a tinha levado a alistar-se na recente Fabián Society. A verdade era que não lhe tinha ocorrido. A senhora Turner a recebeu sem surpreender-se. Disse-lhe que o doutor tinha saído para realizar uma visita, mas que voltaria logo, assim Charlotte podia esperá-lo no salão. Trouxe-lhe um bule cheio em uma laqueada bandeja japonesa.

Charlotte se serviu de uma xícara de chá e se sentou. Era possível de verdade que Shaw soubesse algo por cujo ocultação alguém fora capaz de matar? Pitt lhe tinha contado muito poucas coisas a respeito de outros pacientes que tinha investigado. Shaw parecia tão seguro de que todas as mortes às quais tinha atendido se produziram por causas naturais... Claro que, se estava em conivência com alguém, isso mesmo era o que diria. Era possível que tivesse ajudado a alguém a cometer um assassinato, fosse lhe proporcionando os meios necessários, ou ocultando o fato uma vez consumado? Era capaz de algo assim?

Recordou seu rosto facilmente alterável, a força e a convicção que emanava. Sim, no caso de considerar justo, não duvidava de que era capaz. Se havia um homem com a coragem suficiente para defender suas convicções, esse era Stephen Shaw.

Mas tinha chegado a considerar justo um ato daquela natureza? Pensava que podia sê-lo? Não, certamente não. Nem sequer uma pessoa violenta ou demente? Ou alguém com uma enfermidade dolorosa e incurável?

Ela não sabia se entre seus pacientes havia alguém assim. Pitt já devia ter pensado naquela possibilidade... ou não?

Não tinha chegado a nenhuma conclusão quando ao cabo de meia hora irrompeu Shaw, jogando a maleta a um canto e deixando a jaqueta descuidadamente sobre o espaldar de uma cadeira. Ficou perplexo ao vê-la outra vez ali, embora com uma expressão de prazer que não dava lugar ao protesto ou a indiferença.

— Senhora Pitt! Que vento favorável volta a trazê-la por aqui tão cedo? Descobriu algo? - Havia ironia em seus olhos, e certa inquietação também, mas nada podia dissimular sua satisfação por voltar a vê-la.

— Acabo de visitar as senhoritas Worlingham - respondeu ela, e percebeu que ele compreendia muito bem o que aquilo significava. — Não fui especialmente bem-vinda -comentou em resposta à pergunta implícita em seu olhar. — A verdade é que a senhora Clitheridge, que estava também de visita, dispensa-me uma forte antipatia. Mas como resultado da conversa que mantivemos, me ocorreram algumas coisas nas quais não tinha pensado.

— Seriamente? E que coisas são essas? Vejo que a senhora Turner lhe ofereceu chá. Deseja algo mais? Eu estou mais seco que um dos deusinhos de madeira do pobre Amos. - Pegou o bule e o mediu. — Ah... perfeito. - Esvaziou a xícara de Charlotte no recipiente para os sedimentos, enxaguou-a com água quente da jarra e se serviu de um pouco de chá para ele. — O que disseram Celeste e Angeline que tenha suscitado esses progressos? Tenho que admitir que me intriga.

— Bom, como sempre, tudo tem que ver com o dinheiro. Os Worlingham possuem uma grande fortuna, que Clemency e Prudence tiveram que herdar ao morrer Theophilus.

Ele a olhou com inocência, talvez com certa ironia amarga, embora sem o menor rancor por ela por sua insinuação.

— E pensa você que eu tenha podido matar ao Clem para lhe jogar a mão a esse dinheiro? Posso lhe assegurar que não fica nem um penny. Ela o deu tudo. - Começou a passear inquieto pela sala, trocou uma almofada de lugar e alinhou um livro da estante para que não sobressaísse. — Quando se fizer público seu testamento verá que nos últimos meses teve que recorrer a mim até para comprar roupa. Garanto, senhora Pitt: não vou herdar nada dos Worlingham salvo um par de faturas da costureira e a conta de uma chapelaria.

— Diz que deu tudo? - Charlotte simulou surpresa. Pitt já lhe havia dito que Clemency se fesfizera de todo seu dinheiro.

— Tudo. Em sua maior parte o doou a sociedades que trabalham em favor dos bairros mais humildes, ou para a ajuda aos carentes, ou para a melhora da moradia e das condições sanitárias e, claro, também para a luta pelas mudanças na legislação que permitam dar a conhecer os proprietários da miséria. Desprendeu-se de trinta mil libras em menos de um ano. Deu-o, simplesmente, até que não restou mais. - O rosto lhe brilhava com uma espécie de orgulho selvagem.

Charlotte formulou a seguinte pergunta sem parar para sopesá-la.

— Disse-lhe por que o fazia? Refiro a se lhe disse de onde procedia o dinheiro dos Worlingham.

Ele fez uma careta e a olhou com uns olhos que denotavam amarga ironia.

— De onde o obteve o velho bastardo, quer dizer? Oh, sim... Quando descobriu, sentiu-se afundada. - Deteve-se de costas à lareira. — Recordo muito bem a noite que voltou para casa depois de inteirar-se. Estava tão pálida que parecia meio morta, mas estava pela ira e pela vergonha. - Olhou a Charlotte. — Passou toda a noite passeando de um lado a outro da habitação. Não deixou de falar deles nem um segundo. Nada do que eu lhe dizia podia apagar seu sentimento de culpa. Estava muito alterada. Acredito que passou em claro ao menos a metade da noite... - mordeu o lábio e baixou os olhos. — Me envergonha reconhecer que eu não tinha adormecido na noite anterior e que estava tão cansado que dormi. Mas ao despertar pela manhã me dava conta de que Clemency tinha estado chorando. Só fui capaz de dizer foi que, tomasse a decisão que tomasse, eu a respaldaria. Demorou dois dias em decidir que não contaria a Celeste e Angeline. - Agitou-se de novo e golpeou com o pé o amparo de metal que rodeava a lareira.

— Teria servido para algo bom? Elas não tinham responsabilidade alguma. Tinham dedicado suas vidas a cuidar e mimar a aquele velho canalha. Não poderiam suportar pensar que tudo tinha sido uma farsa, que toda a bondade sob a qual tinham acreditado viver não era mais que uma latrina caiada...

— Mas o disse a Prudence - respondeu Charlotte com voz pausada, enquanto recordava o medo e a culpa que tinha visto nos olhos de Prudence.

Shaw franziu o sobrecenho e seu semblante nublou, quando ela tinha esperado ver uma expressão de alívio.

— Não, não o disse à Prudence, absolutamente. O que teria podido fazer ela, mais que sentir-se aflita também pela vergonha?

— Entretanto assim é como se sente - disse Charlotte com doçura. Sentia compaixão ao pensar em quão atormentada devia sentir-se Prudence, com um marido que admirava ao bispo quase como a um herói, até a adoração. Que peso tão terrível ter que viver com ele e não poder deixá-lo entrever sequer com a mínima alusão. Prudence tinha que ser uma mulher muito forte e com um grande sentido da fidelidade para guardar um segredo como aquele. — Deve ser insuportável para ela - acrescentou.

— Prudence não sabe! - insistiu Shaw. — Clem nunca chegou a dizer-lhe precisamente porque teria sido, como você diz, insuportável. O velho Josiah acredita que o bispo era o mais parecido com um um santo... Deus o livre. O maldito vitral foi idéia sua...

— Prudence sabe - lhe contradisse Charlotte, inclinando-se para frente. — Vi isso em seus olhos quando olhava ao Angeline e Celeste. Aterroriza-lhe que possa sair à luz pública, além de sentir-se envergonhada até o desespero.

Estavam sentados um a cada lado da mesa e se olhavam fixamente, cada qual convencido de que tinha razão, até que o rosto do Shaw mostrou uma inequívoca expressão de que por fim tinha compreendido.

— Prudence não sabe nada do dinheiro dos Worlingham - disse. — Não é disso de que tem medo a muito estúpida.

— De que então? - Não tinha gostado que utilizasse esse termo refirindo-se a Prudence, mas não era o momento para jogar-lhe na cara. — Do que tem medo?

— Do Josiah, e do desprezo e a indignação de sua própria família...

— Por que? Do que se trata?

— Prudence tem seis filhos. - Sorriu com tristeza e lástima. — Teve partos muito difíceis. Durante o primeiro lhe começaram as dores um dia antes de dar a luz ao menino. O segundo levava o mesmo caminho, assim lhe propus anestesiá-la... e ela aceitou.

— Anestesia... - de repente ela começou a compreender o que aterrorizava à Prudence. Recordou os comentários do Josiah Hatch em torno das mulheres e o transe do parto, entendido como vontade de Deus. Como muitos homens, seu marido devia considerar que mitigar os dores do parto com anestesia era fugir a responsabilidade de uma boa cristã. A maioria dos médicos nem sequer oferecia aquela possibilidade. E Shaw tinha permitido que Prudence escolhesse, sem sequer perguntar nem dizer a seu marido... E agora ela vivia em um terror mortal ante a eventualidade de que ele rompesse seu silêncio e a delatasse a seu marido.

— Compreendo - suspirou. — Que trágico... e absurdo. - Ela recordava suas dores de parto de uma forma muito imprecisa. A natureza é misericordiosa ao abandonar as lembranças em um pequeno habitáculo da mente. Além disso, seus partos não tinham sido especialmente difíceis, comparados com outros. — Pobre Prudence. Você nunca diria a ele, não é? - Mas se deu conta de que a pergunta era desnecessária, e se sentiu agradecida ao ver que ele não se zangava.

Shaw sorriu sem responder.

Ela mudou de assunto.

— Pareceria-lhe deslocado que eu assistisse ao funeral de Amos Lindsay? Agradava-me, embora mal o conhecesse.

As feições de Shaw se relaxaram de novo e por um momento ficou descoberta toda a magnitude de sua dor.

— Eu gostaria muito que assistisse. Penso fazer o elogio. Não será uma situação agradável... Clitheridge se comportará como um estúpido, como sempre que não há nada concreto que fazer. Lally provavelmente arrumará a ofensa. Oliphant será tão bom quanto lhe deixem e Josiah será o mesmo asno cego e presunçoso de sempre. Não me agradará estar ali. É certo que brigarei com o Josiah, é algo superior a minhas forças. Quanto mais fique a adular ao condenado bispo, mais me encolerizarei e mais ganha sentirei de subir ao pulpito e proclamar aos quatro ventos que não era outra coisa que um obsceno pecador... E não um pecador qualquer, vítima dos decentes pecados da paixão e dos instintos, mas um pecador frio, entregue à cobiça e a ambição desmesurada.

Charlotte lhe tocou o braço de forma espontânea.

— Mas não o fará.

Ele sorriu contra sua vontade e permaneceu imóvel para que ela não se movesse.

— Tratarei de me comportar como o amigo modelo que está de luto... embora eu não goste. Josiah e eu brigamos muitas vezes... mas continua sendo uma tentação. Vive em um mundo mistificado, e eu não posso suportar suas patranhas! Eu penso de outra maneira, Charlotte. Odeio a mentira. A mentira nos priva do que é bom de verdade, pois tampa com tantas máscaras e desculpas que todo o belo, digno e limpo fica distorcido e desvalorizado. - Tremia-lhe a voz pela intensidade de seus sentimentos. — Detesto aos hipócritas! E a Igreja não pára de engendrá-los como tumores que corrompem a virtude autêntica... como a do Matthew Oliphant.

Charlotte se sentia um pouco perturbada, tão intensa era a emoção do homem. Podia sentir sua vitalidade ao contato de sua mão como se enchesse toda a sala.

Ela optou por retirar-se.

— Então o verei amanhã no funeral - lhe disse. — Ambos nos comportaremos como é devido, por muito difícil que nos resulte. Eu não brigarei com a senhora Clitheridge, embora esteja desejando-o, e você não dirá ao Josiah o que pensa do bispo. Vamos chorar a um bom amigo cuja vida ficou truncada antes do tempo.

E sem olhá-lo uma vez mais, caminhou muito erguida e com distinção para a porta do salão e saiu.

 

Murdo levou dois dias de angústias e indecisões, debatendo-se entre a esperança e o mais negro desespero, achar uma desculpa para ir ver Floresce Lutterworth. E lhe custou pelo menos meia hora lavar-se, barbear-se e vestir-se com um uniforme, engomado até o perfeccionismo e com os botões brilhantes. Em realidade odiava aqueles botões, por quanto delatavam sua classe com uma evidência esmagadora, mas, posto que não podia evitá-los, melhor era levá-los reluzentes.

Tinha pensado em apresentar-se ante ela e lhe expressar com franqueza a admiração que lhe inspirava, mas se tinha ruborizado só de imaginar como riria ela de sua presunção. E sobre tudo podia incomodar-se porque, de todos os ofícios mais miseráveis, um policial - e sem graduação - se atrevesse a pensar em uma coisa assim, e ao mesmo tempo a expressá-la em voz alta. Tinha passado muito tempo acordado na cama morto de vergonha.

Não, a única forma era procurar alguma desculpa profissional e depois , no transcurso da conversa, insinuar que ela contava com sua mais profunda admiração. E logo retirar-se com a maior dignidade possível.

De modo que às nove e meia batia na porta dos Lutterworth. Quando lhe abriu a criada, perguntou pela senhorita Floresce Lutterworth. Explicou que queria pedir sua colaboração em certo assunto oficial.

Tropeçou com o degrau da entrada e ficou convencido de que a criada devia estar rindo-se de sua estupidez. Sentiu-se zangado consigo mesmo e ao mesmo tempo envergonhado, e imediatamente desejou não ter ido. Estava condenado ao fracasso. Ia ficar em ridículo e quão único ia conseguir dela ia ser seu desdém.

— Se esperar na saleta, irei ver se a senhorita Lutterworth pode recebê-lo - disse a criada, alisando o branco avental engomado sobre os quadris. Pensou que parecia um homem muito agradável e que tinha olhos bonitos e olhar franco. Quando tivesse acabado com a senhorita Floresce, já se ocuparia de ser ela quem lhe mostraria a saída. E não a importaria que lhe pedisse para acompanhá-lo a dar uma volta pelo parque no dia de sua meia jornada livre.

— Obrigado. - Ficou de pé sobre o tapete, dando voltas ao capacete entre as mãos enquanto esperava. Em um momento de pânico pensou em fugir dali, mas tinha os pés cravados no chão, assim enquanto em espírito voava em direção à delegacia de polícia, seu corpo permaneceu imóvel, dominado pela indecisão, na elegante saleta dos Lutterworth.

Flora entrou por fim, ruborizada e irremediavelmente formosa, com os olhos brilhantes. Usava um vestido rosa de tonalidade escura, o mais elegante e favorecedor que ele jamais tinha visto. O coração lhe palpitava com tanta força que pensou que ela o perceberia. Tinha a boca seca.

— Bom dia, agente Murdo - disse com doçura.

— Bu... bom dia, senhorita - grasnou. Devia considerá-lo um completo idiota. Respirou fundo e deixou escapar o ar sem dizer nada.

— O que posso fazer por você, agente? - sentou-se em uma cadeira com um movimento ondulatorio da saia. Olhava ao Murdo esperando.

— Ah... - Não pôde lhe sustentar o olhar. — Né... senhorita, é...? - Cravou os olhos no tapete e pronunciou de supetão o que trazia preparado. — Senhorita, é possível que algum jovem cavalheiro que a admire a você tenha podido interpretar mal suas visitas ao doutor Shaw e se haja sentido muito ciumento... senhorita? - Não se atrevia a levantar os olhos para ela. Deu-se conta de que o ardil, que tão acreditável lhe tinha parecido na solidão de seu quarto, não servia mais que para pô-lo em evidência. Era muito pueril.

— Não acredito, agente Murdo - respondeu ela depois de breve reflexão. — Não conheço, na verdade, nenhum jovem cavalheiro que tenha para mim sentimentos tão intensos para lhe provocar tais... ciúmes. Não me parece verossímil.

— Oh, eu acredito que sim, senhorita... - disse ele impulsivamente. — Se houvesse algum cavalheiro que a tivesse freqüentado, em sociedade quero dizer, e se tivessem visto várias vezes, bem poderia haver-se visto entregue a... a tais... paixões... - Um intenso rubor subiu às faces, embora fosse incapaz de afastar seus olhos dela.

— De verdade acredita assim? - Flora desceu o olhar com decoro. Isso significaria que estaria apaixonado por mim, agente... em um grau muito elevado. Você acha que é isso o que acontece?

Murdo se lançou. Nem em seus mais loucos sonhos tinha imaginado uma oportunidade melhor.

— Não sei se foi isso, senhorita, mas não me custaria nada acreditar. Se não aconteceu já, acontecerá... Estou certo de que há muitos cavalheiros que dariam tudo o que possuem por ter a oportunidade de ganhar seu afeto. Quero dizer que... né... - Ela o olhava com um sorriso metade interessada metade divertida. Murdo era consciente de que se delatara e sentiu o impulso de fugir a toda corrida. Mas seguia notando-os pés cravados ao chão.

Ela o olhou com um sorriso mais aberto.

— Que encantador de sua parte, agente. Diz isso como se de verdade pensasse que sou uma mulher bonita e atraente. Sem dúvida é o mais bonito que me disseram até onde lembro.

Murdo não tinha idéia de como continuar. Limitou-se a lhe devolver o sorriso, feliz e ridículo a mesmo tempo.

— Não me ocorre ninguém em quem tem podido suscitar emoções tão fortes para causar algum dano ao doutor Shaw - continuou, sentando-se muito erguida na cadeira.     — Estou certa de não ter dado motivo para que ninguém sentisse. Embora o assunto é muito sério, é claro, e me dou conta disso. Prometo-lhe que pensarei com calma e lhe direi algo.

— Posso voltar dentro de uns dias para que você me possa dizer isso - Yo...

Flora esboçou um débil sorriso.

— Se não se importar, agente, preferiria falar disso em um lugar onde papai não possa nos ouvir. Tem tendência a interpretar mal o que digo... por interesse por mim, claro está. Possivelmente teria a bondade de dar um pequeno passeio comigo pelo Bromwich Walk. Ainda faz bom tempo, assim não seria desagradável. Se quiser que nos encontremos na esquina da paróquia, depois de amanhã, poderíamos subir caminhando para o Highgate e até poderíamos tomar uma limonada.

— Eu... - A voz mal o obedecia. Notava-se o coração na garganta. — Me parece que isso seria o mais... - pretendia dizer "maravilhoso", mas isso era ir muito longe — o mais satisfatório, senhorita. - Desejou apagar aquele sorriso idiota de seu rosto, mas não o conseguiu.

— Muito bem, pois - disse enquanto se levantava e passava tão perto dele que pôde cheirar seu perfume e ouvir o suave roçar de sua saia. — Bom dia, agente Murdo.

Este engoliu em seco.

— Bu... bom dia, senhorita Lutterworth.

— Modelo de artistas? - Micah Drummond abriu os olhos com regozijo irônico.           — Assim Maude Dalgetty é aquela Maude!

Agora era Pitt o surpreso.

— Já sabia quem era?

— Sem dúvida. - Drummond estava de pé junto à janela de sua escrivaninha. A luz outonal que entrava em fervuras formava um caprichoso e brilhante mosaico no tapete.     — Era uma das mulheres mais belas... de determinado canon de beleza, claro. - Esboçou um sorriso mais amplo. — Talvez se saia um pouco de sua geração, Pitt. Mas me acredite, qualquer jovem cavalheiro que assistisse às temporadas musicais e comprasse os postais artísticos de moda conhecia o rosto, e outros atributos, de Maude Racine. Era algo mais que uma simples mulher bonita. Desprendia certa generosidade, uma emoção. Estou encantado de saber que se casou com alguém que a quer e que fundou com ela um lar respeitável. Suponho que isso queria ela, uma vez acabada a diversão e chegada a hora de abandonar a festa.

Pitt sorriu. Também tinha gostado de Maude Dalgetty, que tinha sido além disso amiga de Clemency Shaw.

— E a descartou? - inquiriu Drummond. — Não é que esteja imaginando a uma Maude tão ciumenta de sua reputação que estivesse disposta a matar para preservá-la. Nos tempos de que lhe falava não era uma mulher hipócrita. Está tão seguro com respeito a seu marido, John Dalgetty? Não me venha com evasivas, Pitt!

Pitt se apoiou contra a cornija da lareira e olhou ao Drummond de frente.

— Por completo - disse sem pestanejar. — Dalgetty é um apaixonado da liberdade de expressão. Daí veio esse estúpido numerito do duelo. Nada de censuras. Tudo tem que ser público e transparente. Todo mundo pode dizer e escrever o que lhe agrade, e expressar as idéias mais novidadeiras e atrevidas que lhe ocorram. As pessoas que lhe importam não iriam cortar sua relação com ele porque sua mulher se dedicasse à arte e posasse para pintores algo ligeira de roupa.

— Mas a ela pode ser que importe. Não disse que trabalha na paróquia, que vai à igreja e que está integrada em uma respetabilíssima comunidade?

— Sim, isso disse. - Pitt meteu as mãos nos bolsos. Um dos lenços de seda de Emily aparecia, bem dobrado, pelo bolso do peito. Drummond tinha observado, coisa que lhe proporcionou uma satisfação que o compensava da fria e madrugadora viagem no ônibus público que tinha pego para somar uns peniques mais às economias para o aniversário de Charlotte. — Mas a única pessoa que sabia, pelo menos até onde sei, era Shaw... e Clemency, suponho. Clemency era sua amiga, e Shaw não o diria a ninguém. - Assaltou-lhe uma lembrança súbita.— A não ser em um arranque de ira, já que Josiah Hatch acredita que Maude é a mulher mais excelente que conheceu. - Arqueou as sobrancelhas. — E Hatch é um indivíduo rígido em extremo, que defende todas essas idéias do velho bispo em torno da pureza e virtude das mulheres, e a seus deveres como guardiãs da santidade do lar entendido como uma ilha à margem das mesquinhas realidades do mundo exterior. Não me é difícil imaginar Shaw desenganando-o em sua apreciação a respeito de Maude, só por lhe servir um gole amargo impossível de suportar. Embora na verdade, continuo acreditando que não a trairia por uma simples rixa.

— Sinto-me inclinado a pensar como você. - Drummond apertou os lábios. — Não há motivo para suspeitar do Pascoe, ao menos que nós saibamos. Já descartou a Prudence Hatch, por quanto Shaw jamais descobriria seus segredos profissionais. - Ao Drummond brilhavam os olhos. — Por favor, saúde a Charlotte de minha parte. - Se reclinou na cadeira e apoiou os pés na escrivaninha. — O reverendo é um toco, em sua opinião, mas não há motivo de questão com o Shaw, que você saiba, salvo que a sua mulher nubla um pouco a virilidade deste... Mas não parece suficiente para levar a um clérigo ao incêndio e o assassinato múltiplos. Não lhe parece possível que a senhora Clitheridge se afeiçoasse do Shaw até tal ponto que, ao ver-se rechaçada, tentasse matá-lo por despeito? -Observava ao Pitt enquanto falava.

— De acordo, de acordo: não. E suponho que tampouco teria matado à senhora Shaw por ciúmes. Não... suponho que não. O que me diz do Lutterworth, no assunto de sua filha?

— Poderia ser - concedeu Pitt com tom dúbio. Visualizou de novo o rosto amplo e poderoso de Lutterworth, assim como sua expressão de raiva ao mencionar o nome de Shaw, e o de Flora. Queria profundamente a sua filha, e suas emoções eram bastante intensas e seu caráter bastante forte e decidido para levar a cabo um ato semelhante se o considerasse justificado. — Sim, acredito possível. Ao menos foi quando aconteceu, já que agora sabe, acredito, que a relação de Flora com o doutor só era a de médico e paciente.

— Então a que se deve que entrasse e saísse sempre às escondidas em lugar de fazer à consulta habitual?

— Por causa da natureza de sua doença. É algo pessoal que afeta a sua sensibilidade e não quer que ninguém mais saiba. Não é difícil de entender.

Drummond, que também tinha mulher e filhas, não necessitou mais comentário.

— Quem fica, pois?

— Hatch... Mas ele e Shaw levam anos brigando por uma coisa ou outra. E não se mata a outra pessoa de repente por uma diferença de caráter ou de opinião. Também há as irmãs Worlingham, se é que de verdade o consideram responsável pela morte do Theophilus...

— E acreditam assim? - Drummond o disse sem convencimento . — E em qualquer caso, tanto lhes importa? Me resulta mais verossímil que tivessem querido matá-lo pelo assunto da fortuna dos Worlingham. Isso já me soa mais acreditável.

— Shaw sustenta que Clemency não o disse - respondeu Pitt, embora também lhe parecia mais verossímil. — Embora também poderia ser que ele não soubesse que ela o tinha contado. Poderia havê-lo feito a noite antes de morrer. Preciso averiguar o que foi o que precipitou o primeiro assassinato. Algo aconteceu aquele dia, ou no dia anterior, que fez que alguém se assustasse ou encolerizasse mais do que podia suportar. Algo mudou a situação de uma maneira tão drástica que o que até então tinha sido difícil (ou talvez nem isso), de repente se converteu em algo tão ameaçador ou injusto que levou a uma ou várias pessoas a cometer um assassinato.

— O que aconteceu aquele dia? - Drummond lhe escrutinava.

— Não sei - admitiu Pitt. — Me concentrei no Shaw e ele não me disse nada. Certamente, sempre é possível que fosse ele quem matasse Clemency, em cujo caso teria aceso o fogo antes de partir à urgência médica, e que depois matasse a Amos Lindsay por haver-se delatado ante ele com alguma palavra de mais, ou por omissão, e Lindsay se deu conta do que tinha feito. Eram amigos, mas não acredito que Lindsay tivesse guardado silêncio se tivesse sabido com certeza que Shaw era o culpado. - Era uma possibilidade particularmente repugnante, mas em honra à verdade se via obrigado a admiti-la.

Drummond percebeu o reparo que lhe inspirava.

— Não seria a primeira vez que você toma simpatia a um assassino, Pitt... Tampouco o seria em meu caso, pelo resto. A vida seria mais fácil se sempre nos agradassem os heróis e nos desagradassem os vilãos. Pessoalmente me conformaria com não sentir a mesma compaixão pelo vilão que pela vítima, como me passa a metade das vezes.

— Eu nem sempre sou capaz de estabelecer a diferença. - Pitt sorriu com tristeza. — Conheci assassinos que me pareceram possuir a mesma qualidade de vítimas que outros implicados no caso. Sem ir mais longe seria o que me passaria desta vez se os culpados fossem Angeline e Celeste. O velho bispo dominava suas vidas desde a infância. Dispôs com toda exatidão como tinham que ser como mulheres, e fez virtualmente impossível que pudessem ser de outro modo. Imagino que deve ter ido despachando a todo possível pretendente e que fez de Celeste sua companheira intelectual, enquanto que a Angeline reservava o papel de dona-de-casa e anfitriã quando fosse necessário. Quando morreu, já eram muito velhas para casar-se, além de haver-se convertido em pessoas totalmente dependentes da forma de pensar, da posição social e do dinheiro de seu pai. Se Clemency, em um ato de ultraje, tinha ameaçado destruir aquilo sobre o que se sustentou suas vidas e tinha exposto-as não só à vergonha pública, mas também à negação de todo aquilo no que tinham acreditado e justificava seu passado, não é difícil entender por que era possível que tivessem conspirado para matá-la. A seus olhos, Clemency não só teria sido uma ameaça mortal, mas também uma traidora à família. Podiam ter considerado sua infidelidade como um pecado merecedor da morte.

— Podiam, sim - concordou Drummond. — A possibilidade restante seria a de algum senhor da miséria que se houvesse sentido ameaçado pelo trabalho de Clemency. Suponho que terá indagado o que outros proprietários tinha investigado ela. O que me diz do Lutterworth? Você disse que era um homem socialmente ambicioso, em particular em suas expectativas sobre Flora, a que quer casar com alguém de boa posição depois de ter renegado suas origens mercantis. Certamente, a especulação imobiliária em bairros pobres não contribuiria a tais fins. - Fez uma azeda careta. — Embora tampouco esteja de todo certo de que fosse desbaratá-los. Há muitos aristocratas que precisaram fazer seu dinheiro por caminhos mais que questionáveis.

— Sem dúvida. Mas sempre de um modo discreto. Podem fazer a vista grossa com o vício, e até aceitar a vulgaridade, com reparos, isso sim, e sempre que houver dinheiro no meio; mas a indiscrição não a consentiriam jamais.

— Está-se tornando muito cínico, Pitt. - Drummond sorriu.

Pitt deu de ombros.

— A única coisa que pude averiguar a respeito do Lutterworth é que fez sua fortuna no norte e que vendeu virtualmente todos seus interesses. Em Londres não chegou sequer aos ter, até onde sei.

— O que opina das implicações políticas do caso? - Drummond não se dava por vencido.— O assassinato de Clemency não poderia estar relacionado com o Dalgetty e seus contatos com a Fabián Society? E o mesmo no caso do Lindsay...

— Não achei conexão alguma. Mas Clemency sem dúvida conhecia o Lindsay, e ambos se apreciavam. Como ambos estão mortos, é impossível saber quais eram suas conversas a respeito, a menos que Shaw saiba e consigamos que nos conte. E dado que as duas casas foram reduzidas a escombros, não há papéis que procurar.

— Poderia ir falar com outros membros da sociedade...

— Farei-o se surgir a ocasião. Mas hoje quero ir ao funeral do Lindsay. Talvez possa averiguar o que fez Clemency no último ou nos dois últimos dias antes de morrer, com quem falou, o que ocorreu para que alguém se sentisse tão colérico ou atemorizado para decidir matá-la.

— Notifique-me isso logo, sim? Quero sabê-lo.

— Sim, senhor. E agora vou, ou chegarei tarde. Odeio os funerais. Sobre tudo quando olho os rostos dos assistentes e penso que talvez um deles matou... a ele e a ela.

Charlotte também estava preparando-se para ir ao funeral, mas acabava de receber em mão uma nota de Emily que dizia que não só assistiriam ela e Jack, e que por comodidade passariam a recolher ao Charlotte com sua carruagem às dez, mas também ia Vespasia. A nota não incluía explicação alguma. E agora, às nove e cinco, não havia já tempo para pôr poréns ao que tinham disposto nem procurar outras alternativas.

"Graças a Deus que ao menos mamãe e a avó ficam em sua casa", pensou. Charlotte dobrou a nota e a deixou no cesto de costura, onde Pitt não pudesse encontrá-la, por mera questão de hábito. Por certo no final se inteiraria de que iriam todos, mas não podia pretender fazer acreditar no Pitt que o motivo era a dor moral que sentia, por muito que tivesse simpatizado com o Lindsay. Iriam por mera curiosidade, e porque achavam que ainda podiam descobrir algo significativo a respeito da morte do Lindsay e Clemency, coisa que era possível que Pitt desaprovasse.

Ou talvez Emily soubesse já algo? Ela e Jack haviam dito que sondariam nos ambientes políticos, e Jack tinha mantido já alguns contatos com o Partido Liberal com vistas a apresentar-se como membro ao Parlamento quando houvesse uma cadeira vacante e lhe aceitassem como candidato. E se tinha falado a sério ao manifestar seu desejo de continuar com a obra do Clemency, talvez se tivesse entrevistado já com os fabianos e outros grupos de marcada tendência socialista. É claro, não se tratava de que tivessem opção de ver eleito seu membro à Câmara dos Comuns, mas as idéias eram necessárias, fosse para formular argumentos a favor ou contra.

Charlotte se aplicava de forma maquinal ao acerto do penteado e a arrumar seu aspecto. Não se deu conta do esforço que realizava até que levava meia hora e ainda não estava inteiramente satisfeita. Ruborizou-se ante sua própria vaidade e afastou os pensamentos que a levavam para o Stephen Shaw.

— Gracie!

Gracie apareceu procedente do patamar da escada, com um espanador na mão e o rosto radiante.

— Sim, senhora?

— Você gostaria de me acompanhar ao funeral do senhor Lindsay?

— Oh, sim senhora! Quando é, senhora?

— Dentro de um quarto de hora... ou pelo menos esse é o tempo que temos antes de ir. A senhora Radley passará para nos apanhar em sua carruagem.

O rosto de Gracie se escureceu e teve que engolir em seco.

— Não acabei o trabalho, senhora. Ainda me faltam as escadas e o quarto da senhorita Jemima. O pó se acumula igual embora ela não esteja. E não tenho o que me pôr. O vestido negro está sem engomar...

— Mas o que tem vestido é escuro. - Charlotte olhou o vestido cinza comum de Gracie. Era bastante anódino para assistir a um funeral. Não havia mais que falar, no dia que pudesse lhe compraria um azul brilhante bem bonito. — E se esqueça do trabalho. Não escapará, amanhã poderá fazê-lo.

— Tem certeza, senhora? - Não haviam dito jamais à Gracie que se esquecesse de limpar o pó. Os olhos lhe cintilaram só de pensar que podia deixá-lo enquanto ia outra vez a fazer-se de detetive.

— Sim, tenho certeza. Venha, vá pentear -se e pôr o casaco. Não podemos chegar tarde.

— Oh, sim senhora. Estou pronta em um minuto, senhora. - E sem dar tempo a que Charlotte dissesse nada mais, foi sapateando escada acima até seu quarto do apartamento de cobertura.

Emily chegou pontual. Irrompeu com um elegante vestido negro, adornado com contas azeviche, não de todo apropriado para um funeral, pois embora a gola de renda era tão alta que lhe chegava quase até as orelhas, o tecido do vestido era tão fino que o fazia mais próprio para uma noite festiva que para um funeral. Apesar do véu, o chapéu era muito atrevido. E o ruge das faces lhe favorecia muito; muito. Não precisava fazer nenhum esforço para acreditar-se que Emily era uma mulher recém casada.

Charlotte se sentia tão feliz por ela que não foi capaz de desaprová-la, apesar que teria sido o mais sensato e pertinente.

Jack vinha um par de passos atrás, vestido de forma tão impecável como sempre, com a folga suplementar com a que contava possivelmente na hora de enfrentar à fatura do alfaiate. Em sua pessoa se apreciava uma maior confiança, que já não estava fundamentada no encanto pessoal e na necessidade de gostar, a não ser em uma felicidade interior que não requeria a aprovação de outros. Charlotte pensou a princípio que isso era reflexo de sua relação com Emily. Mas ao ouvi-lo falar compreendeu que era algo mais profundo: uma resolução interna, algo que irradiava para o exterior.

Saudou Charlotte com um ligeiro beijo na face.

— Falei com o partido no Parlamento e acredito que me aceitarão como candidato! -disse com um amplo sorriso. — Me apresentarei tão logo haja uma escolha parcial idônea.

— Felicidades - disse Charlotte transbordante. — Faremos tudo o que pudermos para ajudá-lo. - Olhou a Emily e viu em seu rosto uma intensa satisfação, assim como um brilho de orgulho. — Tudo. Até ter a boca fechada, se fosse o último recurso. Mas agora temos que ir ao funeral de Amos Lindsay. Penso que faz parte de nossa causa. Não sei por que, mas acredito que sua morte guarda estreita relação com a de Clemency.

— Certamente - concordou Emily. — Não teria lógica de outro modo. Tem que lhes haver matado a mesma pessoa. Eu continuo acreditando que se trata de motivos políticos. As atividades de Clemency levantavam ampolas. Quanto mais sei do que fazia ou planejava, mais me dou conta da quantidade de pessoas que podiam ver-se salpicadas com o assunto do dinheiro sujo. Está certa de que as irmãs Worlingham não sabiam o que ela fazia?

— Não, não de todo - reconheceu Charlotte. — Acredito que não. Mas Celeste é melhor atriz que Angeline, a quem me custa considerar culpada de algo. É tão transparente e tão cândida. Às vezes parece incapaz de mover-se neste mundo. Não me é possível pensar que possua a suficiente solvência prática e sangue-frio para planejar e levar a cabo um incêndio.

— Mas Celeste sim seria capaz - disse Emily. — Ao fim e ao cabo, elas têm mais a perder que ninguém.

— Se excetuarmos ao Shaw - indicou Jack. — Clemency estava repartindo o dinheiro dos Worlingham a marchas forçadas. Conforme parece se desfeito já de sua parte da herança no momento de sua morte... mas só sabemos que Shaw sabia pela palavra deste. Talvez achava que a soma era até então insignificante e a matou pensando que ainda ficava muito dinheiro, com a amarga surpresa de que não era assim.

Charlotte se voltou para ele. A idéia, desagradável em grau supremo, não lhe tinha ocorrido, mas não podia descartá-la por impossível. Ninguém mais conhecia as atividades de Clemency. Só contavam com a palavra do Shaw a respeito de que este conhecesse todos seus passos. Mas era verdade? Possivelmente só se inteirara um dia ou dois antes da morte do Clemency e tinha sido este descobrimento o que lhe tinha revelado de repente que podia perder sua acomodada posição econômica e social se ela fizesse públicas suas investigações. A verdade é que era um bom motivo para o assassinato.

Charlotte não disse nada. Só sentiu um estremecimento que a encheu de náusea.

— Sinto muito - disse Jack com amabilidade. — Mas é uma possibilidade a ter em conta.

Charlotte engoliu em seco. Em seu foro interno sabia da confiança que lhe inspirava a intensa e sincera expressão do Jack. Ela mesma estava surpreendida de sua própria inquietação.

— Gracie vem conosco. - Voltou-se para a porta, como se urgisse partir. Me pareceu que o merecia.

— Claro que sim - concordou Emily. — Eu gostaria de acreditar que vamos descobrir algo, mas o único que podemos esperar razoavelmente é uma intuição de nosso instinto. Embora também podemos arrumar para introduzir alguma pergunta inquisitiva no banquete fúnebre. Está convidada?

— Isso acredito. - Charlotte recordava o convite de Shaw, seu desejo de ter junto a ele a uma pessoa que compartilhasse seu gosto pela sinceridade. Apartou aquele pensamento. — Vamos, ou chegaremos tarde!

O funeral constituiu uma cerimônia esplêndida e algo pomposa que reuniu a mais de duzentas pessoas na pequena igreja onde se desenvolveu o formal e solene serviço oficiado pelo Clitheridge. A música de órgão soou irrepreensível e derramou seus ricos e vibrantes acordes sobre os solenes assistentes, aos quais proporcionou o consolo de uma passageira união enquanto cantavam. O sol esparramava seus raios através das janelas em uma esplendorosa corrente de cores que caía como jóias rutilantes sobre o lajeamento e por entre as rígidas costas e cabeças cobertas com toda a gama de texturas do negro.

No momento de partir, Charlotte percebeu a presença no fundo da nave de um homem de aparência incomum, com o queixo elevado em um gesto que parecia denotar um agudo interesse no teto da igreja. Não é que seus traços chamassem a atenção por nada em particular, mas a inteligência e a ironia de sua expressão eram, certamente, irreverentes. Tinha cabelo cor mogno, e embora estivesse sentado se apreciava que era um homem de físico minguado. Charlotte hesitou ao passar junto a ele, dominada pela curiosidade.

— Incomodei-a, senhora? - perguntou voltando-se para ela de forma inesperada. Falava com um marcado acento irlandês.

Charlotte se refez com esforço e replicou com aprumo:

— Absolutamente, cavalheiro. Qualquer homem que contemple o céu como você o fazia merece que não o importunem...

— Não contemplava o céu, senhora - disse indignado. — Era o teto o que atraía minha atenção. - Então se deu conta de que ela já o tinha percebido e que o havia dito para chateá-lo. Seu rosto se distendeu em um encantador sorriso. — George Bernard Shaw, senhora. Era amigo de Amos Lindsay. Você também?

— Sim - exagerou. — E lamento muito que nos tenha deixado.

— Certamente - havia-se posto sério de novo. — É uma perda triste e estúpida.

Era impossível alongar a conversa por causa da gente que queria sair da igreja, por isso Charlotte assentiu com educação e se desculpou, deixando-o que prosseguisse em sua contemplação.

A metade dos assistentes seguiram o féretro até o frio e luminoso cemitério da igreja, onde a terra úmida estava escavada e o chão semeado de folhas caídas, que iam do bronze ao verde grama.

Tia Vespasia, com um vestido de cor lavanda muito escuro (negou-se a vestir-se de negro), colocou-se junto ao Charlotte, com o queixo levantado, os ombros erguidos e a bengala de punho de prata firmemente agarrada. Detestava ter que utilizá-la, mas não tinha mais remedio que apoiar-se nela enquanto Clitheridge debulhava com voz monótona sua enxurrada de tópicos a respeito da inevitabilidade da morte e da fragilidade humana.

— Que néscio - murmurou a dama entre dentes. — Alguém pode me explicar por que os padres acreditam que a Deus não se pode falar em uma linguagem simples, mas sim necessita que todo lhe explique de três formas diferentes no mínimo? Eu imagino a Deus como a última pessoa a que poderíamos impressionar com longas peroratas ou enganar com desculpas rebuscadas. Céu santo, mas se é Ele quem nos criou. Não necessita que ninguém lhe conte que somos frágeis, estúpidos, admiráveis, ruins e valorosos. - Cravou a bengala no chão com raiva. — E o que é certo é que não gosta dessas pomposidades. Acaba de uma vez, homem! Enterra já ao pobre servo e deixa que nos vamos elogiar lhe a nosso gosto!

Charlotte fechou os olhos e esboçou uma careta de desgosto se por acaso alguém a tinha ouvido. Vespasia só murmurava, mas sua voz era penetrante e de uma pronúncia imaculada. Ao ouvir que alguém dizia em voz baixa "Aqui, aqui", voltou-se e se achou com os olhos do Stephen Shaw, que, brilhantes pela pena, contradiziam o sorriso em seus lábios.

Voltou-se para a tumba e viu o gélido olhar de ciúmes do Lally Clitheridge, que lhe inspirou mais pena que irritação. Se fosse ela quem estivesse casada com o Héctor Clitheridge, estava certa de que teria momentos de sonhos loucos e proibidos, e que odiaria a qualquer que devesse romper o encanto, por ridículo ou frágil que fosse.

Clitheridge prosseguia seu tedioso discurso, como se não pudesse resignar-se a que passasse aquele momento, como se adiando o instante de sua volta ao pó pudesse alongar de algum modo a vida de Amos Lindsay.

Oliphant estava inquieto, não parava de trocar o pé de apoio, consciente da tristeza e da indignidade do momento.

No outro extremo da tumba estava Alfred Lutterworth. Ia desprovido de chapéu e o vento lhe encrespava sua branca coroa de cabelo. Junto a ele, agarrada em seu braço, Flora aparecia jovem e atraente. O frio lhe tinha feito aflorar as cores às faces, mas a ansiedade parecia haver-se evaporado de sua expressão.

Charlotte viu inclusive como Lutterworth lhe pegava a mão e a apertava com suavidade.

Por cima do ombro a sua esquerda, em um canto do cemitério, viu o agente Murdo, mais rígido que um sentinela, com os botões reluzentes ao sol. Supunha-se que estava ali para observar a todo mundo, mas Charlotte viu que seu olhar não se afastava de Flora. Se por ele fosse, esta podia ter sido a única pessoa presente na cerimônia.

Viu o Pitt um só instante. Não era mais que uma sombra junto à sacristia, com os extremos de um cachecol ao vento. Voltou-se para ela e sorriu. Possivelmente tinha suposto que ela assistiria. Por uns segundos a multidão deixou de existir e não houve ninguém mais no cemitério. Foi como se ele tivesse podido tocá-la. Então Pitt se encaminhou para a sebe de ciprestes para procurar um lugar entre as sombras. Ela sabia que dali o observaria tudo: gestos, expressões, que olhos olhavam a quem, quem falava, quem evitava falar com alguém. Perguntou-se se algo do que ela tinha averiguado e lhe tinha contado serviria a ele de alguma utilidade.

Maude Dalgetty se achava perto da cabeceira da tumba. Estava um pouco mais cheiinha que em seus dias de apogeu e as linhas do rosto marcavam-na, mas continuava tendo uma expressão digna, generosa e modelada pelo senso de humor. Ainda era uma beleza, talvez o seria sempre. Quando estava relaxada, como era o caso, não havia nada amargo em seus traços, nada que fizesse pensar em remorsos.

A seu lado, John Dalgetty permanecia muito rígido e evitava dedicar o mais ligeiro olhar para o Quinton Pascoe, que estava em idêntica atitude, cumprindo seu último dever para com um homem a quem tinha apreciado mas com quem brigara com ferocidade. Era a atitude de um soldado ante a tumba de um inimigo caído. A do Dalgetty era também a postura de um soldado, mas que expressava seu luto por um companheiro de batalhas. Nenhuma só vez durante o serviço religioso se dirigiram um olhar para reconhecer a presença do outro.

Josiah Hatch se despojou do chapéu, como o resto dos homens, e parecia transido como se o vento lhe impregnasse até os ossos. Prudence não estava com ele, nem tampouco as irmãs Worlingham. Continuavam professando a crença de que as damas não devem assistir aos funerais.

Clitheridge achou por fim a forma de concluir suas palavras e os coveiros começaram a jogar pás de terra na cova.

— Graças a Deus - disse Shaw à costas de Charlotte. — Irá ao banquete fúnebre, não é assim?

— Certamente - respondeu ela.

Vespasia se voltou pouco a pouco e olhou ao Shaw com frio interesse.

Ele fez uma reverência.

— Bom dia, lady Cumming-Gould. É uma gentileza de sua parte o ter vindo, sobre tudo com a estação tão avançada e com este ar tão rude. Tenho certeza de que Amos o teria apreciado.

Vespasia piscou levemente com um imperceptível gesto de diversão.

— Acha assim?

Ele compreendeu e recorreu imediatamente a sua franqueza de sempre.

— Veio por Clemency. - Já sabia, mas o viu corroborado pela expressão da dama.   — Não é a comiseração o que a trouxe aqui, e tem toda a razão, aos mortos não afetam nossas emoções. É por raiva. Continua empenhada em descobrir quem a matou e por que.

— Muito perspicaz de sua parte - concordou Vespasia. — Sim, estou.

O rosto de Shaw se tornou sombrio e sua frágil ironia se fundiu como a neve ao sol.

— Eu também.

— Então será melhor que vamos ao banquete fúnebre. - Levantou a mão ligeiramente e lhe ofereceu o braço. — Obrigada - disse. E, com o chapéu lhe roçando o magnífico arco dos ombros, caminhou com dignidade para a carruagem que a esperava.

Assim como por ocasião do funeral de Clemency, a reunião teve lugar em casa dos Worlingham, por diversos motivos. Em primeiro lugar, era impossível celebrá-la em casa do Lindsay, pois esta não era outra coisa que uma massa de vigas que formavam tortuosos ângulos entre meio dos montões de escombros calcinados. Por sua parte, a de seu estimado amigo Shaw não estava em melhores condições. Dificilmente teria podido oferecer-se a celebrá-la na casa de hóspedes da senhora Turner: não era bastante grande e estava ocupada por pessoas que podiam sentir-se incomodadas por um acontecimento como aquele.

A escolha se reduzia à alternativa entre a casa dos Worlingham e a vicaría. Assim que tomaram consciência, Celeste e Angeline se ofereceram a ceder sua casa e serviço para tudo o que fosse preciso. Era uma questão de dever. Não tinham tido um especial apreço por Amos Lindsay, e muito menos por sua forma de pensar, mas eram as filhas do bispo e estavam à frente da sociedade cristã do Highgate. A posição deve relegar os sentimentos pessoais, em especial para com os mortos.

Dispuseram tudo sem exagero, não fosse o caso que alguém pudesse interpretar mal que tinham dado seu beneplácito a Amos Lindsay.

Receberam a todos na porta de duplo batente de acesso à sala de jantar, em cuja mesa de mogno havia diversas empanadas e frios. O centro de mesa estava formado por lírios cuja intensa e lânguida fragrância deu ao Charlotte uma impressão de sonolência e desmaio. As persianas estavam baixadas até a metade, já que, ao menos por aquele dia, a casa estava de luto. Dos quadros e inscrições das paredes, assim como dos postes das escadas e dos batente das portas, pendiam as oportunas braçadeiras de luto negras.

Os aspectos mais formais do banquete se dispuseram com minuciosidade. Teria sido impossível proporcionar assento a todo mundo, mas além disso, como Shaw tinha convidado às pessoas que tinha desejado muito (incluído Pitt, para indignação das irmãs Worlingham e o reverendo), os criados não podiam saber de antemão o número total de assistentes.

De modo que a comida estava disposta na mesa e o mordomo e as criadas, que esperavam com discrição junto à porta, eram os encarregados de servi-la aos comensais, que permaneciam de pé e podiam falar entre si para penalizar -se, cochichar e expressar seus imprecisos louvores do morto até que chegasse o momento de pronunciar os parlamentos preparados, primeiro o do vigário e depois o de Shaw, como amigo mais íntimo do finado. Os assistentes puderam também degustar algumas das melhores garrafas de Porto, ou algum vinho mais suave no caso das damas. Com a carne se serviu vinho tinto.

— Não sei como vamos poder nos inteirar de algo - disse Emily com uma careta de decepção. — Todo mundo está representando seu papel. Clitheridge se mostra incompetente e arrasado, enquanto sua mulher trata de compensar suas carências e não tira olho de você e do doutor Shaw. Se as olhadas fizessem mal, agora mesmo teria o cabelo arrancado a mechas e o vestido feito em migalhas.

— Pode culpá-la? - respondeu-lhe Charlotte em um sussurro. — O reverendo não é precisamente um homem que altere o pulso, não acha?

— Não seja vulgar. Mas não, não o é. Antes fico com o doutor, a menos que seja o assassino de sua mulher, claro.

Charlotte não achou resposta satisfatória, pois sabia que, por muito que lhe doesse, podia ser verdade. Assim se deu meia volta e lhe cravou o cotovelo nas costelas como sem querer.

— Uf! - encaixou Emily a indireta.

Floresce Lutterworth ia agarrada ao braço de seu pai, com o véu do chapéu replegado para poder comer. Tinha as faces ruborizadas e em sua preciosa boca se desenhava um leve e coquete sorriso. Charlotte sentiu curiosidade por saber o que o tinha motivado.

Do extremo oposto da estadia, Pitt se fixou também naquele sorriso e teve a acertada intuição de que guardava alguma relação com o Murdo. Pareceu-lhe provável que Murdo não encontrasse grandes dificuldades em cortejar à senhorita Lutterworth. De fato, a aquelas alturas devia ter descoberto já que isso era possível apesar do que pensasse de si mesmo e que era muito mais fácil do que supunha.

Pitt ia mais elegante do habitual nele: gola muito bonita e gravata bem reta, ao menos até esse momento, e nos bolsos só levava um lenço limpo (o de seda de Emily só era de adorno), um lápis pequeno e um pedaço de papel se por acaso quisesse anotar algo. Coisa que estava de mais, já que nunca o fazia, mas o considerava algo que um policial eficiente devia levar.

Deu-se conta de que Shaw o tinha convidado com a intenção de incomodar Angeline e Celeste. Era uma forma de deixar claro que embora o ato social estivesse celebrando-se em casa dos Worlingham, aquele era o banquete fúnebre em honra de Amos Lindsay e que ele, Shaw, era o anfitrião e podia convidar a quem lhe parecesse. Com tal fim se colocou de pé na cabeceira da mesa, em postura bem erguida, e se comportou como se os criados que ofereciam as empanadas de carne e o borgonha fossem os seus próprios. Foi dando as boas-vindas aos convidados, com especial ênfase no Pitt. Não olhou nenhuma só vez para os severos semblantes de Angeline e Celeste, que usavam vestidos de bombazina negros com contas azeviche e permaneciam por detrás dele e um pouco escoradas a um lado. Sorriam com reserva a aquelas pessoas cuja presença passavam, como Josiah e Prudence Hatch, Quinton Pascoe ou tia Vespasia; dirigiam um educado assentimento da cabeça a quem tolerava, como os Lutterworth e Emily e Jack; e ignoravam por completo a aqueles cuja presença consideravam uma afronta deliberada, como Pitt e Charlotte, embora como tinham chegado por separado e não tinham falado entre si, as irmãs não os relacionaram imediatamente.

Pitt pegou sua deliciosa empanada de carne, um pouco de lebre guisada e pão negro com manteiga e frios temperados, assim como uma taça de borgonha, e, um pouco apurado pela dificuldade de mover-se com todos aqueles manjares, começou a passear pela sala enquanto escutava conversas ao acaso e observava aos assistentes, tanto a aqueles que falavam como, de um modo especial, a quem estava só e não eram conscientes de ser observados.

Qual tinha sido o curso exato dos acontecimentos durante o dia ou dois que precederam à morte de Clemency Shaw? Desde há algum tempo, depois de descobrir a origem do dinheiro dos Worlingham, dedicou-se a repartir sua própria herança até quase esgotá-la, com o fim de amenizar a triste situação das vítimas da miséria, fosse através da ajuda direta, ou de forma indireta lutando contra uma legislação que permitia aos proprietários obter benefícios abusivos de uma forma tão discreta que sua reputação não podia ver-se salpicada pelo escândalo.

Quando o tinha contado ela ao Shaw? Ou o tinha descoberto ele por sua própria conta, possivelmente ao ver esgotada a fortuna, e isso tinha sido causa de uma azeda disputa? Não teria atuado ele com mais cautela, fazendo ver que estava de acordo e logo...? Não. Se ele tinha dissimulado seu descontentamento, tinha que ser porque tinha suposto que ficava uma quantidade substancial de dinheiro... a suficiente para que valesse a pena matar por ela.

Olhou por cima das cabeças de duas mulheres que falavam entre si, em direção à a cabeceira da mesa, onde Shaw, que continuava sorrindo e assentindo com a cabeça a todo mundo, estava agora falando com o Maude Dalgetty. Parecia muito tenso. Os músculos dos ombros marcavam sob o tecido de sua jaqueta negra, como se estivesse a ponto de entrar em ação e ficar a dar murros no ar, ou a sair correndo de um lado a outro, ou a fazer qualquer outra coisa para dar rédea solta à fúria acumulada em seu interior. Pitt custava acreditar que aquele homem tivesse podido conter tão bem seu temperamento que Clemency, quem devia conhecer cada um dos matizes de seu semblante, de seu tom de voz e seus gestos, não tivesse compreendido o poder de sua raiva e com isso um indício ao menos do perigo que ela corria.

O que sentiu ela quando Josiah Hatch anunciou que iriam colocar um vitral na igreja em honra do velho bispo, com o aspecto de um dos primeiros santos cristãos? Que ironia tão intolerável. Como tinha sido capaz de dominar-se e guardar silêncio? Porque isso era o que tinha feito. O anúncio tinha tido caráter público, e se ela tivesse dado o menor indício de conhecer algum segredo inconfessável, em sua qualidade de famílias a teriam escutado, embora pudessem não acreditar nela por completo.

Era concebível uma conspiração, que todo mundo tivesse guardado silêncio?

Olhou os sombrios rostos espalhados pela estadia. Todos mantinham uma conveniente seriedade para a ocasião: Clitheridge, apressado e nervoso; Lally, saindo ao passo das intervenções de seu marido e pendente do Shaw; Pascoe e Dalgetty, evitando-se calculadamente, com os volumes que lhes formavam as bandagens sob seus trajes de luto resultado de sua briga, sem esquecer a face suturada do Dalgetty. Matthew Oliphant falava com calma, uma palavra de consolo aqui, um gesto afetuoso lá; o rosto do Josiah Hatch estava branco, salvo ali onde tinha recebido a gélida carícia do vento; Prudence estava mais relaxada, seus medos pareciam dissipados; Angeline e Celeste estavam discretamente zangadas; os Lutterworth eram tratados com condescendência, como sempre que estavam em sociedade. Não, não era possível que aquela gente tão díspar tivesse podido unir-se em uma conspiração. Havia vários que não tinham o menor interesse em proteger a reputação dos Worlingham. Dalgetty teria se sentido bem encantado de poder difundir uma história tão irônica: em último termo, como exemplo da liberdade de expressão lutando contra a ordem estabelecida e embora só fosse por enfurecer ao Pascoe.

E Amos Lindsay, se tanto simpatizava com as idéias socialistas dos fabianos, com certeza teria rido e não teria guardado precisamente em segredo. Não cabia dúvida de que ninguém havia dito nada quando se fez o anúncio do vitral. E os planos para levá-lo a cabo tinham seguido seu curso: reuniu-se dinheiro, adquiriu-se o vidro, contratou-se aos artistas e vidraceiros, e se tinha convidado ao arcebispo dos York para a dedicatória oficial, cerimônia a que assistiria Highgate em pleno e a metade norte da diocese de Londres.

Pitt bebeu um gole de vinho. Era muito bom. O velho bispo devia ter legado uma adega excelente, como todo o resto. Aos dez anos de sua morte, e com o Theophilus também desaparecido, ainda ficava qualidade suficiente a que recorrer para resolver um assunto que não era mais que um dever para Celeste e Angeline.

O vitral do bispo Worlingham devia estar custando uma soma considerável, e de acordo com a família, o propósito era em parte demonstrar a grande avaliação que a comunidade do Highgate tinha professado ao bispo. Por isso devia ajudar-se com dinheiro público da paróquia, além disso de qualquer pessoa que desejasse contribuir de forma pessoal.

Quem tinha organizado tudo? Celeste? Angeline? Não. Tinha sido Josiah Hatch. Tinha que ser um homem, claro. Não podiam deixar um assunto como aquele em mãos de umas mulheres idosas. E seria mais apropriado além disso se não se encarregasse alguém que fosse um familiar direto. Isso deixava aos dois netos por afinidade: Hatch e Shaw. Hatch era um homem de igreja e professava pelo bispo uma reverência que excedia a de suas próprias filhas. Era o verdadeiro herdeiro espiritual do bispo.

Além disso, só a idéia do Stephen Shaw colaborando em um projeto como aquele era ridícula. Tinha mostrado pelo bispo uma clara antipatia, já em vida daquele. Mas agora que sabia qual era a verdadeira fonte de sua riqueza, ele, que toda dia tinha que assistir às vítimas dessa cobiça, desprezava-o com ardor.

Pitt se perguntou o que diria Shaw ao Hatch quando este pediu uma contribuição. Devia ter sido um momento memorável: Hatch com a palma da mão estendida em solicitude de dinheiro para um vitral comemorativo no que se representava ao bispo com figura de santo; e Shaw recém informado de que a fortuna do bispo procedia da miséria de centenas de pessoas e da exploração e da morte de muitas delas. E sua mulher que tinha doado até o último penny de sua herança para reparar ao menos uma pequena parte daquela iniqüidade.

Teria sido capaz Shaw de manter a calma e a boca fechada?

Pitt voltou a olhar entre aquela multidão o apaixonado e dinâmico rosto de uma sinceridade sem misericórdia. Com certeza que sim?

Shaw dava golpes na mesa com uma mão, enquanto com a outra levantava uma taça.

Pouco a pouco o bulício das conversas foi apagando-se e todos se voltaram para ele.

— Damas e cavalheiros - disse com voz nítida e vibrante. — Estamos hoje aqui reunidos, graças ao amável convite das senhoritas Celeste e Angeline Worlingham, para honrar ao amigo que nos deixou, Amos Lindsay. Parece-me oportuno, pois, pronunciar algumas palavras em sua lembrança.

Alguém trocou com desconforto o pé de apoio, ouviu-se o rangido de um rígido espartilho, o ligeiro frufrú do tafetá, o estalo de uns sapatos, uma exalação.

— O reverendo falou dele na igreja - continuou Shaw, erguendo um pouco a voz. — Elogiou suas virtudes, ou possivelmente seria mais exato dizer que elogiou uma lista de virtudes que é costume atribuir aos que acabam de morrer e que ninguém discute, pois não haverá ninguém que diga: "Não, não, nem pensar, fulano não era assim." - Elevou um pouco mais a taça. Mas eu sim o digo! Quero brindar por sua lembrança autêntica, não por uma réplica em gesso bonito e desumanizado, privada de todas suas debilidades e portanto também de todas suas virtudes.

— Por favor... - Clitheridge, pálido, hesitava entre dar um passo à frente e interromper o discurso ou a não tão atrevida opção de protestar e esperar que prevalecesse o bom gosto do Shaw. — Eu acredito... não lhe parece...

— Não, não me parece nada. Odeio esses melindres piedosos de que era um pilar da comunidade, um homem temeroso de Deus e uma pessoa querida por todos. Não fica sinceridade na alma? Como podem dizer que todos queriam a Amos Lindsay? Quanta afetação!

Desta vez se ouviu um claro gemido e Clitheridge se voltou desesperado, como se acreditasse que podia produzir um milagre salvador.

— Quinton Pascoe lhe tinha medo e estava horrorizado pelo que escrevia. Teria censurado-o se tivesse podido.

Produziu-se um ligeiro murmúrio ao mesmo tempo que todos se voltavam para o Pascoe, que avermelhou como o tomate. Mas antes de que pudesse protestar, Shaw continuou.

— E Celeste e Angeline aborreciam tudo aquilo que ele defendia. Estavam convencidas, e seguem estando-o, de que suas idéias fabianas não são cristãs e de que se a sociedade permitir que se propaguem serão a causa do final de todo o civilizado e benéfico para a humanidade, ou em qualquer caso para a classe a que pertencemos, que é a única que lhes importa porque é a única que conhecem. É a única que seu santo pai permitiu que conhecessem.

— Está bêbado! - proferiu Celeste em um furioso sussurro.

— Ao contrário, estou muito sóbrio - respondeu Shaw, olhando a taça que segurava na mão. — Nem o melhor borgonha do Theophilus pôde me afetar. O menos que devo ao pobre Amos é ter o espírito temperado ao falar dele, embora Deus sabe que teria suficientes motivos para me embebedar. Nas últimas semanas vi como arrebatavam a minha mulher, minha casa e meu melhor amigo. E nem sequer a polícia, que atua com a maior diligência, parece ter a mais ligeira idéia sobre o culpado.

— Isto é muito indecoroso - disse Prudence quedamente, embora a ouviram várias pessoas.

— Queria você nos falar do senhor Lindsay - lhe recordou Oliphant.

Shaw mudou a expressão. Baixou a taça e a deixou em cima da mesa.

— Sim, tem razão. Não é o momento nem a ocasião de falar do que perdi. Estamos aqui para recordar a Amos... para recordá-lo com a veracidade do homem vital que era. Faríamos a ele um fraco serviço se o pintássemos em cores pastel e omitíssemos seus defeitos, e portanto suas vitórias.

— Não devemos falar mal dos mortos, Stephen - lhe reprovou Angeline depois de limpar a garganta. — É uma atitude muito pouco cristã e completamente desnecessária. Estou certa de que todos apreciávamos ao senhor Lindsay e que só pensávamos dele o melhor.

— Não, não é verdade - lhe contradisse. Sabiam que estava casado com uma mulher africana? Negra como o ás de lanças e formosa como uma noite do verão. E tinha filhos, embora estejam todos na África.

— Por favor, Stephen... isto é uma irresponsabilidade! - Celeste se adiantou e o pegou pelo cotovelo. — Ele já não está entre nós para defender-se...

Shaw moveu a cabeça com brusquidão.

— Maldita seja, não precisa defender-se de nada! Casar-se com uma africana não é nenhum pecado! Cometeu pecados, sim, e muitos... - Abriu os braços de forma expressiva. — De jovem era violento, bebia muito, aproveitava-se dos menos inteligentes que ele, sobre tudo se eram ricos, e tomou a mulheres que certamente não eram a sua. - Estirou o pescoço com angústia e desceu o tom. — Mas também foi um homem compassivo depois de conhecer a dor: nunca foi um mentiroso, nem um fanático. - Lançou um olhar a todos os reunidos. — Nunca difundiu intrigas de ninguém, e era capaz de levar um segredo à tumba. Não era pretensioso e conhecia um hipócrita assim que o via. Detestava a falsidade.

— Eu acredito que... de verdade... - começou Clitheridge, sacudindo as mãos como se quisesse afastar de Shaw a atenção dos presentes. — De verdade... eu...

— Você pode pontificar o que quiser sobre qualquer outro. - A voz de Shaw soava outra vez com força. — Mas Amos era meu amigo e penso falar dele tal como era. Estou farto de ouvir tópicos e mentiras, põe-me doente! Nem sequer foi capaz de falar de Clem com um pouco de honestidade. Limitou-se a articular um montão de frases vazias e piedosas e não disse nada do que de verdade gostava. Fez que parecesse uma pobre mulher calada, total e ignorante que consumia sua vida na obediência e em inúteis obras de caridade com os pobres da paróquia. Fez que parecesse uma mulher sem traços particulares, uma covarde de espírito, uma pessoa sem inteligência. E ela não era assim! -Estava tão furioso e tão esmigalhado pela dor, que lhe tinha encarnado a rosto, brilhavam-lhe os olhos e lhe tremia o corpo. Nem sequer Celeste se atrevia a interrompê-lo. — Isso não tinha nada que ver com Clem. Tinha mais coragem que todos vocês juntos... e mais honestidade!

Pitt observou aos presentes. Havia algum que delatasse medo ante o que pudesse dizer Shaw a seguir? No rosto do Angeline havia ansiedade, e no de Celeste desagrado, mas não apreciava o temor que deviam haver sentido se tivessem sido conhecedoras do descobrimento de Clemency. Tampouco na expressão do Prudence via nada, nem no perfil do Josiah, salvo um desprezo hierático.

— Só Deus sabe como podia ser uma Worlingham - prosseguiu Shaw com o punho fechado e o corpo inclinado como se fosse jogar-se. — Theophilus não era mais que um velho hipócrita ambicioso e arrogante... e um covarde até o final.

— Como se atreve! - Celeste perdeu toda a compostura. — Theophilus foi um homem excelente que viveu na honestidade e na caridade. Você sim é um ambicioso e um covarde! Se o tivesse atendido como devia, como médico e como genro, ainda estaria vivo!

— Sim, é verdade - acrescentou Angeline, a quem tremia o queixo. — Era um homem nobre que sempre cumpriu com seu dever.

— Morreu arrastando-se pelo chão com punhados de notas a seu redor, dezenas de milhares de libras! - explodiu Shaw. — Se alguém o matou, deve ter sido o mesmo que o chantageava!

Produziu-se um silêncio de horror e assombro. Por uns segundos todos contiveram a respiração. Então se ouviu o grito de Angeline e o abafado soluço de Prudence.

— Céu santo! - exclamou Lally ao fim.

— Que demônios está dizendo? - perguntou Lutterworth. Isso é um ultraje! Theophilus Worlingham era um homem relevante na comunidade. No que se apóia para dizer algo assim? Não foi você quem o achou, equivoco-me? Quem diz que havia todo esse dinheiro a seu redor? Talvez pensava fazer uma aquisição importante.

O rosto do Shaw lançava brasas. Disse em tom de mofa:

— Com sete mil quatrocentas e oitenta e três libras em dinheiro?

— Talvez guardasse o dinheiro em sua casa - sugeriu Oliphant sem alterar-se. — Há pessoas que o fazem. Talvez estivesse contando-o quando lhe sobreveio o ataque. Porque morreu de um ataque, verdade?

— Sim - corroborou Shaw. — Mas o dinheiro estava espalhado por todo o aposento e segurava cinco bônus do tesouro na mão, que tinha estendida para frente como se tivesse querido dar a alguém. Tudo indicava que não estava só.

— Isso é uma mentira monstruosa! - gritou Celeste. — É uma perversidade, e você sabe! Estava completamente só, o pobre. Foi Clemency quem o achou, e chamou-o.

— Clem o achou e me chamou, é verdade. Mas Theophilus estava estendido em seu estúdio com as portas de vidro que davam ao jardim abertas... Quem pode assegurar que ela foi a primeira pessoa a chegar? O corpo estava quase frio quando o achou.

— Pelo amor de Deus! - saltou Josiah Hatch. — Está falando de seu próprio sogro... e do irmão das senhoritas Worlingham! Não fica um ápice de decência?

— Decência! - Shaw se voltou para ele. — Não é nenhuma falta de decência falar da morte. Estava estendido no chão, com o rosto arroxeado, os olhos arregalados, o corpo frio e quinhentas libras em bônus do tesouro seguros com tanta força que não pudemos tirá-lo para amortalhá-lo. O que é uma indecência é de onde procedia esse maldito dinheiro!

Todo mundo se remexeu com desconforto, temerosos de olhar-se entre si mas sem poder evitá-lo. Os olhares se buscavam e se afastavam ao encontrar-se. Alguém tossiu.

— Antes disse chantagem? - perguntou alguém. — Não ao Theophilus!

A uma mulher escapou um risinho nervoso e levou a mão à boca para sufocá-lo.

Produziu-se um agudo murmúrio sibilante, interrompido de repente.

— Héctor? - ouviu-se a voz de Lally.

Clitheridge, ruborizado até as orelhas, tinha um aspecto de profunda desdita. Uma força exterior parecia impulsioná-lo para a cabeceira da mesa onde estavam Shaw e Celeste, esta um pouco atrás e à direita, lívida e com o corpo preso de agitação.

— Caramba! - Clitheridge limpou a garganta. — Bem... eu... bom... - Olhou ao redor em busca de ajuda, mas não a achou. Olhou a Lally em um último intento, com o rosto escarlate e suplicante, mas teve que render-se ao fim. — Eu... Bem... Receio que fui o único... bom, o único com quem esteve Theophilus antes de morrer... ao menos em suas últimas horas... né... - Limpou uma vez mais a garganta com fúria. — Bem! Enviou-me uma nota em que me pedia que fosse vê-lo... – Olhou implorante a Lally, mas a resolução desta era implacável. Aspirou fundo e prosseguiu em meio de um temível sentimento de desdita. — Li a nota e fui em seguida a sua casa... parecia que se tratava de algo muito urgente. Eu... então... encontrei-o em um estado de grande... agitação. Nunca tinha visto ninguém assim. - Fechou os olhos e sua voz se aguçou ao rememorar o horror vivido. — Estava fora de si. Balbuciava ao falar, e se afogava, e não deixava de mover os braços. Havia montões de bônus do tesouro em cima de sua escrivaninha. Estava frenético. Tinha um aspecto tão lamentável que lhe supliquei que me deixasse ir procurar ao doutor, mas não quis nem ouvir falar disso. Embora não tenha certeza que chegasse a compreender minhas palavras. Seguia insistindo em que tinha um pecado que confessar. - Os olhos do Clitheridge se moviam em todas direções, mas evitava olhar às irmãs Worlingham. Gotas de suor perolavam a testa e retorcia as mãos nervosamente. Ficou a me jogar o dinheiro e a me pedir que ficasse... para a igreja, para os pobres... para o que eu quisesse. E queria que escutasse sua confissão... - Sua voz se desvaneceu, incapaz de achar as palavras ante a angústia da lembrança.

— Mentiras! - proferiu Celeste. — Não é mais que uma fileira de mentiras! Theophilus nunca fez nada de que envergonhar-se. Devia estar lhe sobrevindo o ataque e você interpretou mal tudo. Em nome do céu, por que não foi avisar ao doutor, pedaço de estúpido?

Clitheridge limpou a garganta de novo.

— Não lhe sobrevinha nenhum ataque - disse indignado. — Jogava-se sobre mim, tratava de me agarrar e me obrigar a que agarrasse o dinheiro, tudo o que havia ali! Milhares de libras! E queria que eu escutasse sua confissão. Eu estava... estava aflito. Não tinha visto nada tão... tão espantoso em toda minha vida.

— E o que fez então, em nome de Deus? - perguntou Lutterworth.

— Eu... pois... - Clitheridge engoliu em seco. — Saí correndo! Fugi daquela horrível sala, saí pelas portas de vidro... cruzei o jardim e voltei para o vicariato.

— E contou a Lally, que se apressou a encobri-lo, como sempre – concluiu Shaw.     — Deixando que Theophilus tivesse um ataque e morresse segurando o dinheiro na mão. Uma atitude muito cristã! - Uma vez mais a honestidade apaziguou o desprezo. — Tampouco teria podido fazer muito por salvá-lo...

Clitheridge se sentiu oprimido pela culpa e confusão. Só Lally percebeu isso e lhe deu uns tapinhas distraídamente, como teria feito com um menino.

— Mas e todo esse dinheiro...? - perguntou Prudence. Estava confusa e assustada. — Para que era? Não tem nenhum sentido. Ele não guardava o dinheiro em casa. E onde foi parar?

— Devolvi-o ao banco, que foi de onde o tirou - respondeu Shaw.

Angeline estava à beira das lágrimas.

— Mas para que o queria? Por que ia tirar o pobre Theophilus todo seu dinheiro do banco? De verdade tinha intenção de doá-lo todo à igreja? Que nobre por sua parte! Que próprio dele! - Engoliu em seco. E que próprio de papai, também! Stephen... deveria ter feito o que ele desejava. Fez mal depositando-o outra vez no banco. Claro que compreendo seus motivos. Queria que Prudence e Clemency pudessem herdá-lo todo, não só a casa e os investimentos... mas mesmo assim fez mau.

— Deus todo-poderoso! - exclamou Shaw. — Que mulher tão idiota! Theophilus queria dá-lo à igreja para comprar sua salvação! Era um dinheiro sujo! Provinha das casas da miséria... Cada penny procedia dos pobres, dos donos de bordéis, dos benefícios dos tugúrios de pior fama, dos proprietários de fábricas de exploração e dos traficantes de ópio, que o vendem em dormitórios amontoados onde os viciados se deitam em fila e fumam até esquecer-se de si mesmos. Desde aí procedia o dinheiro dos Worlingham. O velho bispo o obteve penny a penny do Lisbon Street e sabe Deus de que outros lugares como esse... E com ele construiu este grande palácio, para ele e para sua família.

Angeline levou os punhos à boca, enquanto as lágrimas escorregavam por seu rosto. Celeste não a olhou sequer. A comoção e o desmoronamento de seu mundo acabava de separá-las. Celeste permanecia com a expressão dura e o olhar ausente, enquanto em seu interior cobrava corpo um ódio imenso e uma ira insuportável.

— Theophilus sabia - continuou Shaw inclemente. — E no final, quando pensou que ia morrer, sentiu-se aterrorizado e tratou de devolvê-lo... mas chegou tarde. Eu não sabia então... nem sequer sabia que esse néscio do Clitheridge tinha estado ali, nem tampouco para que era o dinheiro. Limitei-me a levá-lo a banco porque era do Theophilus e porque não ia deixá-lo esparramado pelo chão. Só soube de onde procedia quando Clemency o descobriu e me disse. Ela o doou tudo pela vergonha que sentiu, e se por acaso podia reparar em algo o dano cometido.

— Isso é mentira! Satanás fala por sua boca! - Josiah Hatch se jogou com o rosto sufocado e as mãos como garras dispostas a estrangular ao Shaw e sossegá-lo para sempre. — Blasfemo! Merece morrer... Não sei por que Deus não o fulmina, como não seja porque se serve de nós, suas pobres criaturas, para cumprir com seus intuitos.

Tinha já ao Shaw no chão sob a fúria de seu ataque e seu desespero, quando Pitt abriu passagem entre a multidão, que permanecia imóvel e horrorizada. Apartou-os a um lado sem contemplações, homens e mulheres por igual, até que pôde apanhar ao Hatch pelos ombros e puxá-lo com força. Mas Hatch estava imbuído da fortaleza dos devotos, até dos mártires se fosse preciso.

Pitt lhe ordenava que se detivesse, embora sabia muito bem que não podia ouvi-lo.

— É um demônio! - resmungava Hatch com os dentes apertados. — Um blasfemo! Se deixar que viva acabará por manchar tudo o que tem e limpo e puro neste mundo. Vomitará suas sujas idéias sobre tudo o que se fez de bom. Semeará a semente da dúvida ali onde havia fé. Difundirá suas obscenas mentiras sobre o bispo e conseguirá que as pessoas zombem de um santo ao que antes adoravam. - Falava entre soluços, com as mãos atendendo o pescoço do Shaw, o cabelo caído sobre as sobrancelhas e o rosto aceso. — É preferível que um homem morra a que um povo inteiro se resseque no ceticismo. Deve ser expulso, homem corrupto e destruidor. Deve ser arrojado ao mar com uma pedra atada ao pescoço. Melhor que não tivesse nascido, criatura do inferno!

Pitt o golpeou com todas suas forças na cabeça e, depois de uns segundos de convulsão durante os quais se debateu com os braços no ar e abriu a boca sem emitir som algum, Josiah Hatch se derrubou no chão, onde ficou imóvel, com os olhos fechados e as mãos crispadas como garras.

Jack Radley se abriu passo entre a gente e foi em ajuda do Pitt. Inclinou-se sobre o Hatch e o segurou.

Celeste sofreu um desmaio e Oliphant a depositou com cuidado no chão.

Angeline chorava como uma menina, só e extraviada, em completo desamparo.

Prudence estava petrificada, como se a vida a tivesse abandonado.

— Chamem o agente Murdo! - ordenou Pitt. Ninguém se moveu.

Pitt deu um pulo com a intenção de repetir a ordem, mas viu como Emily se dirigia para a entrada principal, onde Murdo estava de vigilância.

Por fim a vida voltou para os assistentes. Roçar de tafetá, crepitar de espartilhos, um geral suspiro de alívio; as mulheres se aproximaram aos homens.

Shaw ficou em pé, com o semblante pálido e os olhos sombrios. Todos se voltaram para outro lado, salvo Charlotte, que se aproximou dele. Shaw estava tremendo. Nem sequer se incomodou em alisar a roupa. Tinha o cabelo revolto, a gravata feita uma confusão e a gola torcida. A jaqueta tinha sujado de pó e uma manga se tinha rasgado pela cava. Tinha o rosto cheio de arranhões e hematomas.

— Foi Josiah! - exclamou rotundamente. — Ele matou Clem e Amos, mas queria matar a mim.

— Sim - concordou Charlotte com voz serena. — Quis matá-lo nas duas vezes. As mortes do Lindsay e do Clemency foram acidentais, porque você não estava em casa. Embora talvez não lhe importasse que morrera também Amos, já que não tinha nenhum motivo para supor que estivesse ausente, como no caso de Clemency.

— Mas por que? - Shaw parecia doído, como um menino ao que batem sem motivo. — Costumávamos brigar, mas não ia a sério...

Charlotte achava penoso continuar falando. Sabia o doloroso que era para Shaw, mas não tinha alternativa.

— Ele entendia que você zombava dele...

— Pelo amor de Deus, Charlotte, ele o buscava! Era um hipócrita, os valores que defendia eram absurdos. Ao velho Worlingham tinha veneração, quando não era mais que um homem ambicioso e cruel, e sobre tudo corrupto, que fingia atitudes de santarrão... Não só roubava às pessoas de forma indiscriminada, mas também desapropriava do pouco que tinham aos mais indigentes. Josiah passou a vida elogiando e pregando mentiras.

— Umas mentiras que ele tinha em alta estima.

— Mentiras, Charlotte! Não eram mais que mentiras!

— Sei. - Sustentou-lhe o olhar e viu em seus olhos a tristeza, a incompreensão e a terrível profundidade de sua inquietação. Era um amargo trago o que ia fazer lhe passar, mas era a única forma de ajudá-lo. — Todos precisamos ter nossos próprios heróis, e nossos sonhos, sejam reais ou falsos. E se a pessoa estiver disposta a destruir os sonhos de alguém, se se der o caso de que tinha edificado toda sua vida sobre eles, antes deve substitui-lo por algo. Antes, doutor Shaw. – Ele franziu o sobrecenho ante a solenidade com que lhe falava. — Não depois. Porque então já é muito tarde. Ser um iconoclasta, destruir os ídolos falsos ou que alguém considera falsos, é muito divertido, proporciona a um um maravilhoso sentimento de superioridade moral. Mas terá que pagar um preço muito alto por dizer a verdade. Você é livre de dizer o que lhe pareça, e provavelmente assim é como deve ser, se é que tem que haver algum tipo de progresso nas idéias, mas então também é responsável pelo que aconteça por causa de seus ditos.

— Charlotte...

— Mas você diz as coisas sem pensar, nem preocupar-se, e uma vez ditas dá meia volta e se vai. Você pensava que era suficiente dizer a verdade. Mas não o é. Josiah, ao menos, não podia viver com ela... e possivelmente você deveria ter pensado nisso. Você o conhecia bem... era seu cunhado desde há vinte anos.

— Mas... - Não pôde dissimular sua terrível dor. Importava-lhe muito o que ela pensasse dele e podia ver a crítica refletida em seu rosto. Procurava sua aprovação e sua compreensão: um amor à verdade tão puro como o seu. Mas só pôde ver o que havia: a aceitação de que o poder tem aparelhada a responsabilidade.

— Você tinha a possibilidade de dar-se conta - disse ela, retrocedendo um passo.     — Tinha as palavras, a visão de conjunto, e o convencimento de que era mais forte que ele. Mas apesar de tudo você destruiu seus ídolos, sem pensar no que seria dele sem eles.

Ele abriu a boca para protestar, mas só proferiu um desinteressado grito que era o indício de que começava a compreender uma verdade muito mais amarga. Charlotte se voltou devagar e olhou ao Josiah, que estava recuperando o sentido e era ajudado a levantar-se pelo Pitt e Jack Radley. No vestíbulo, Emily trazia o agente Murdo.

Shaw era incapaz de olhar a Angeline e Celeste, mas estendeu as mãos para Prudence.

— Sinto muito - balbuciou. — De verdade sinto muito.

Prudence permaneceu imóvel uns segundos, incapaz de decidir-se. Então estendeu lentamente as mãos para ele e Shaw as pegou e as reteve entre as suas.

Charlotte se voltou e abriu passagem entre os assistentes em busca da Vespasia.

A anciã exalou um suspiro e pegou ao Charlotte pelo braço.

— Um jogo muito perigoso, a destruição dos sonhos, que loucura - murmurou.           — Como não podemos vê-los, muitas vezes acreditam que não têm poder destrutivo... quando em realidade nossas vidas estão construídas sobre eles. Pobre Hatch, que iludido, que falsos eram seus ídolos. Mas apesar de tudo não podemos derrubá-los impunemente. Shaw tem muito do que prestar contas.

— Ele sabe - disse Charlotte com calma, alcançada ela também pelo remorso. — Eu o disse.

Vespasia apertou a mão de Charlotte. Não havia necessidade de palavras. 

 

                                                                                                    Anne Perry

 

 

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