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OS PRIMEIROS CASOS DE POIROT 2 / Agatha Christie
OS PRIMEIROS CASOS DE POIROT 2 / Agatha Christie

 

 

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OS PRIMEIROS CASOS DE POIROT

 

A Caixa de Chocolates

      A noite era de tempestade. O vento uivava lá fora e fortes rajadas de chuva sacudiam as vidraças.

      Poirot e eu estávamos sentados em frente a lareira, aquecendo-nos às chamas reconfortantes. Do meu lado, sobre a mesa que nos separava, fumegava uma caneca de toddy preparado com carinho. Junto a Poirot uma xícara de chocolate espesso e perfumado, que eu não beberia nem por cem libras.

      Poirot bebeu um gole daquela beberagem em sua xícara rosa de porcelana e deu um suspiro de satisfação.

      — Que belle vie! — murmurou.

      — É um mundo bem satisfatório — concordei. — Aqui estou eu, com um bom emprego, e aí está você, famoso...

      — Ora, mon ami! — protestou Poirot.

      — É verdade, e bem o merece. Quando recordo a sua longa série de êxitos, fico abismado. Creio que nunca conheceu o fracasso!

      — Que idéia, meu caro!

      — Falando sério, já fracassou alguma vez?

      — Inúmeras vezes, meu amigo. O que quer? La bonne chance não pode estar sempre a nosso lado. Já fui chamado quando era tarde demais. Várias vezes outra pessoa, com os mesmos propósitos, passou a minha frente, e em duas ocasiões fiquei doente quando já vislumbrava a solução do caso. É preciso aceitar os fracassos juntamente com. os êxitos, meu amigo.

      — Não me referia bem a esses casos — disse eu. — Queria saber se já meteu os pés pelas mãos alguma vez, e fez alguma trapalhada, por culpa exclusiva sua.

      — Ah, compreendo. Quer saber se já fiz papel de bobo. não é? Já, meu amigo, uma vez — e um sorriso espalhou-se lentamente pelo seu rosto. — Já fiz papel de bobo. — Empertigando-se subitamente em sua cadeira, acrescentou: — Olhe, não está escrevendo um relato de meus pequenos sucessos? Pois terá mais uma história para a sua coleção, a história de um fracasso!

      Ele inclinou-se e colocou mais uma acha no fogo. Limpou meticulosamente as mãos numa flanela pendurada ao lado da lareira, recostou-se, e iniciou sua história:

      — O que vou lhe contar aconteceu há muitos anos na Bélgica. Foi na época da luta entre a Igreja e o Estado na França. M. Paul Déroulard era um famoso deputado francês. Falava-se que seria designado para um Ministério. Ele formava entre a facção anticatólica mais encarniçada, e certamente teria que enfrentar violenta oposição, uma vez nomeado ministro. Em muitos aspectos era um homem estranho. Embora não bebesse, nem fumasse, não era tão escrupuloso em outros setores. Você entende, Hastings, c’était des femmes, toujours des femmes!

      Casara-se alguns anos antes com uma jovem de Bruxelas que lhe trouxera um dote substancial. Indubitavelmente o dinheiro lhe foi útil em sua carreira, pois sua família não era rica, embora pudesse usar o título de barão, se lhe aprouvesse. O casamento não produziu filhos, e sua esposa morreu dois anos depois, em conseqüência de uma queda. Entre as propriedades que ela lhe deixou, constava uma casa na Avenue Louise, em Bruxelas.

      Foi nesta casa que Paul Déroulard faleceu subitamente, no mesmo dia em que o ministro que deveria substituir demitiu-se. Todos os jornais publicaram longas reportagens sobre sua carreira, e sua morte ocorrida à noite, após o jantar, foi atribuída a um colapso cardíaco.

      Naquele tempo, como você sabe, mon ami, eu era detetive da polícia belga. A morte de M. Paul Déroulard não me comoveu. Sou católico, como sabe, e sua morte pareceu-me um afortunado incidente.

      Três dias depois, mal entrara em férias, recebi uma visita em meu apartamento: uma senhora, com um espesso véu, mas evidentemente muito jovem. Percebi logo de saída que era uma jeune filie tout à fait comme il faut.

      — É. Monsieur Hercule Poirot? — ela perguntou numa voz doce e baixa.

      Fiz-lhe uma mesura.

      — O detetive?

      Inclinei-me novamente.

      — Sente-se por favor, mademoiselle.

      Ela aceitou uma cadeira e levantou o véu. Seu rosto era encantador, embora desfeito pelas lágrimas e revelando uma profunda angústia.

      — Monsieur — disse ela —, sei que entrou de férias, e talvez esteja livre para encarregar-se, não oficialmente, de um caso. Compreenda, não desejo chamar a polícia.

      Sacudi a cabeça numa negativa.

      — Receio que não possa aceder a seu pedido. Mesmo em férias, pertenço à polícia.

      Ela inclinou-se para mim:

      — Ecoutez, monsieur. Só lhe peço para investigar, fica a seu critério comunicar à polícia os resultados dessa investigação. E se o que penso é verdade, precisaremos das engrenagens da lei.

      Esta declaração colocava o assunto sob um outro prisma, e coloquei-me prontamente a seu serviço. Um pouco de cor voltou às suas faces.

      — Obrigado, monsieur. Vou lhe pedir para investigar a morte de M. Paul Déroulard.

      — Comment? — exclamei surpreso.

      — Monsieur, não tenho provas, nada além do meu instinto feminino, mas estou convencida de que M. Déroulard não morreu de morte natural!

      — Mas certamente os médicos...

      — Os médicos podem se enganar. Ele era tão vigoroso, tão forte... Ah, Monsieur Poirot, imploro-lhe que me ajude!

      A pobre criança estava transtornada, prestes a se ajoelhar a meus pés. Eu a tranqüilizei no que estava a meu alcance;

      — Eu a ajudarei, mademoiselle. Tenho quase certeza de que seus receios são infundados, mas investigarei o caso. Em primeiro lugar, quero que me descreva os moradores da casa.

      — Além das empregadas, Jeanette, Félice e Denise, a cozinheira que está lá há muitos anos, temos o velho criado François. Há a mãe de Monsieur Déroulard que morava com ele, e eu. Meu nome é Virgine Mesnard. Sou uma prima pobre da falecida Madame Déroulard, a esposa de M. Paul, e vivo com a família há mais de três anos. Os moradores são esses, mas havia dois hóspedes na ocasião.

      — Quem eram eles?

      — M. de Saint Alard, um vizinho de M. Déroulard na França, e um amigo inglês, Mr. John Wilson.

      — Ainda permanecem lá?

      — Mr. Wilson, sim, mas M. de Saint Alard viajou ontem.

      — E qual é o seu plano, Mademoisele Mesnard?

      — Se o senhor me conceder uma meia hora, arranjarei um pretexto para explicar sua presença. Talvez possa apresentá-lo como um jornalista vindo de Paris, que trouxe uma carta de apresentação de M. de Saint Alard. Madame Déroulard tem uma saúde muito precária e não prestará atenção a detalhes.

      Sob esta ardilosa desculpa fui recebido pela mãe do deputado morto, uma imponente, e aristocrática figura, embora de saúde obviamente frágil, e após breve troca de palavras, fiquei em liberdade para começar as investigações.

      Meu amigo, tem alguma idéia das dificuldades da minha tarefa? (perguntou-me Poirot). Tratava-se de uma morte ocorrida há três dias. Se tivesse havido um crime, uma única possibilidade era admissível: veneno! E o corpo estava fora de alcance, e não havia possibilidade de examinar ou analisar qualquer veículo em que o veneno pudesse ter sido administrado. Não havia pistas, falsas ou genuínas. Tratava-se de um envenenamento, ou de uma morte natural? Cumpria a mim, Hercule Poirot, decidir, sem nada em que me pudesse basear.

      Inicialmente interroguei os empregados, e com sua ajuda reconstituí o serão. Dediquei uma atenção especial à comida e à maneira como fora servida. O próprio M. Déroulard servira a sopa de uma sopeira. O segundo prato foi de costeletas, seguido de galinha. Finalmente uma compota de frutas, tudo colocado na mesa e servido pelo próprio dono da casa. Um grande bule de café completara a refeição. Portanto fui obrigado a excluir o jantar, mon ami. Não havia possibilidade de envenenar uma pessoa sem envenenar a todos!

      Após o jantar, Madame Déroulard se retirara para seus aposentos acompanhada por Mademoiselle Virginie. Os três homens haviam passado ao escritório de M. Déroulard, onde conversavam animadamente há algum tempo, quando de repente, sem nenhum aviso, o deputado tombara pesadamente ao solo. M. de Saint Alard correra para pedir a François que chamasse imediatamente o médico, acreditando tratar-se de uma apoplexia. Mas quando este chegou, o paciente já havia falecido.

      Mr. John Wilson, a quem fui apresentado por Mademoiselle Virginie, era um típico e corpulento inglês de meia-idade. Seu relato, num francês muito britânico, foi basicamente o mesmo:

      — Déroulard ficou com a cara muito vermelha, e caiu.

      Foi tudo que pude obter. Em seguida, dirigi-me à cena da tragédia e pedi que me deixassem só, Até ali nada encontrara que corroborasse a teoria de Mademoiselle Mesnard. Estava quase certo de que fora uma fantasia sua. Era evidente que nutrira uma paixão romântica pelo morto, e este fato não lhe permitia encarar o caso normalmente. Apesar disso, dei uma busca meticulosa no escritório, pois era possível que uma seringa hipodérmica houvesse sido inserida de tal modo na poltrona do morto, que lhe injetasse uma dose fatal de veneno ao sentar-se. A minúscula picada nem seria notada, provavelmente. Mas não descobri nenhum indício que desse força a essa teoria. Deixei-me cair numa cadeira, desalentado.

      — Ah, vou desistir! — disse eu em voz alta. — Não há indícios, tudo está perfeitamente normal.

      Mal pronunciara essas palavras quando meu olhar foi atraído por uma grande caixa de chocolates sobre uma mesinha. Meu coração deu um pulo. Talvez não fosse uma pista, mas finalmente encontrara algo fora da normalidade. Levantei a tampa. O conteúdo não fora tocado, nem um só chocolate estava faltando, mas esse fato tornava o detalhe que me chamara a atenção ainda mais estranho. Pois, Hastings, embora a caixa propriamente dita fosse rosa, a tampa era azul. É freqüente encontrarmos uma fita azul numa caixa rosa, e vice-versa, mas a base de uma cor e a tampa de outra, não, decididamente não, ça ne se voit jamais!

      Ainda não percebia aonde aquela descoberta poderia me levar, mas de qualquer forma resolvi investigar, por se tratar de um detalhe estranho. Chamei François pela campainha, e perguntei-lhe se seu falecido patrão fora um apreciador de bombons. Um leve sorriso melancólico pairou em seus lábios.

      — Era doido por eles, monsieur. Fazia questão de ter sempre uma caixa de chocolates em casa. Ele não bebia nenhuma espécie de bebida alcoólica, sabe.

      — Mas esta caixa nem chegou a ser tocada — disse eu levantando a tampa para mostrar-lhe o conteúdo.

      — Esta é a caixa nova comprada no dia de sua morte, pois a outra estava quase vazia.

      — Então esvaziaram-na nesse dia...

      — É verdade, monsieur. Encontrei-a vazia na manhã seguinte, e a joguei fora.

      — M. Déroulard costumava comer bombons o dia inteiro?

      — Geralmente só depois do jantar, monsieur.

      Uma luz acendeu-se em meu espírito.

      — François, posso confiar em sua discrição?

      — Se houver necessidade, senhor.

      — Bon! Vou confiar em si. Sou da polícia. Sabe onde está essa outra caixa.

      — Sem dúvida, senhor. Deve estar na lata de lixo.

      Ele saiu e voltou dentro de poucos minutos com um objeto empoeirado. Era a duplicada da outra caixa, só que com as cores trocadas, a base desta era azul e a tampa rosa. Agradeci a François, recomendei-lhe mais uma vez que fosse discreto e, sem mais, deixei a casa da Avenue Louise. Procurei em seguida o médico que atendera M. Déroulard. Dialogar com ele foi uma tarefa delicada. Entrincheirou-se por trás de um jargão técnico, mas suspeitei de que não se encontrava tão tranqüilo quanto desejaria.

      — Casos curiosos acontecem — ele comentou depois que consegui desarmá-lo um pouco. — Uma explosão de raiva, uma emoção violenta, depois de um lauto jantar, c’est entendu, e o sangue sobe à cabeça e pronto, dá-se o desastre!

      — Mas M. Déroulard não teve nenhuma emoção violenta.

      — Não? Pois segundo me disseram estava no meio de uma acirrada discussão com M. de Saint Alard.

      — A respeito de quê?

      — C’est évident! — o médico encolheu os ombros. — M. de Saint Alard é um católico fanático e a amizade dos dois estava muito abalada por essa divergência entre o Estado e a Igreja. Eles discutiam todos os dias. Para M. de Saint Alard, Déroulard estava se transformando num verdadeiro Anticristo.

      Era uma informação inesperada, e deu-me o que pensar.

      — Só mais uma pergunta, doutor: seria possível introduzir uma dose fatal de veneno num chocolate?

      — Creio que sim — disse o médico lentamente. — Poder-se-ia usar ácido prússico se não houvesse evaporação, ou talvez encher o bombom com minúsculos glóbulos de uma substância qualquer venenosa, o que não me parece muito plausível. Ou ainda um bombom cheio de morfina ou estriquinina — e ele fez uma careta — uma só mordida seria suficiente, M. Poirot!

      — Obrigado, M. le docteur.

      Retirei-me. Em seguida corri às farmácias, especialmente as da vizinhança da Avenue Louise. É prático pertencer à polícia; consegui as informações que desejava sem muita dificuldade. Uma única solução venenosa fora preparada para aquele endereço: tratava-se de um colírio de sulfato de atropina para Madame Déroulard. Atropina é um veneno poderoso e por um instante me senti exultante, mas os sintomas de envenenamento por atropina são bastante semelhantes aos de uma intoxicação alimentar, o que não ocorrera no caso em questão. Além disso a receita era antiga, Madame Déroulard sofria há muitos anos de catarata em ambos os olhos.

      Ia saindo, desanimado, quando o farmacêutico me chamou:

      — Un moment. M. Poirot, lembrei-me de uma coisa. A moça que trouxe a receita disse que precisava ir à farmácia dos ingleses. Tente por lá.

      Foi o que fiz, e consegui a informação usando minhas prerrogativas oficiais. Na véspera da morte de M. Déroulard, haviam aviado uma receita para Mr. John Wilson, coisa simples, uns minúsculos comprimidos de trinitrina. O farmacêutico foi buscá-los, e meu coração começou a bater mais depressa, pois os pequenos comprimidos eram de chocolate.

      — Essa substância é venenosa? — perguntei.

      — Não, monsieur.

      — Que efeitos produz?

      — Abaixa a pressão sangüínea. É indicada para alguns males do coração, angina pectoris, por exemplo. Alivia a tensão arterial. Em arterioesclerose...

      Eu o interrompi:

      — Ma foi! Esse palavrório está complicado demais. Acaso a trinitrina faz o sangue subir ao rosto?

      — Certamente.

      — E se eu engolisse dez ou vinte desses comprimidos, o que aconteceria?

      — Não o aconselharia a tentar — foi seu comentário seco.

      — E apesar disso, ainda diz que não é venenosa?

      — Há muitas substâncias não venenosas capazes de matar um homem — ele respondeu no mesmo tom.

      Deixei exultante a farmácia. Afinal, os acontecimentos se precipitavam. Sabia agora que John Wilson tivera em seu poder os meios de cometer o crime, mas, e o motivo? Ele viera à Bélgica a negócios, e tinha pedido a M. Déroulard, que conhecia superficialmente, para hospedá-lo. Aparentemente, a morte deste em nada o beneficiava. Além disso, informações da Inglaterra confirmaram que sofria há anos de uma dolorosa doença do coração chamada angina. Tinha pois uma razão legítima para ter os comprimidos de trinitrina em seu poder. Mas de qualquer forma, eu estava convencido de que alguém, depois de abrir primeiro a outra caixa por engano, pegara um dos últimos bombons, retirara o recheio, e o atulhara de minúsculos comprimidos de trinitrina, uns vinte a trinta, possivelmente. Mas quem?

      Havia dois hóspedes na casa. John Wilson possuíra a arma do crime, e Saint Alard, o motivo. Lembre-se, ele era um fanático, e não há fanatismo pior que o religioso. Será que de alguma forma ele poderia ter-se apoderado da trinitrina?

      Outra idéia me ocorreu. Ah, não ria das minhas pequenas idéias! Por que Wilson teria tido necessidade de comprar mais trinitrina? Certamente ele deveria ter viajado com um suprimento adequado. Voltei à casa da Avenue Louise. Wilson não estava, mas falei com a criada encarregada da arrumação de seu quarto, Félicie. Perguntei-lhe se acaso o vidro de remédio de Mr. Wilson não se extraviara há algum tempo? A moça confirmou minhas suspeitas imediatamente. Era verdade, e ela, Félicie, levara a culpa. O cavalheiro inglês havia evidentemente pensado que ela o quebrara, embora não o tivesse dito. E ela nem ao menos o tocara, sem dúvida fora Jeanette, que sempre metia o nariz onde não era chamada.

      Tranqüilizei-a e me retirei. Agora sabia tudo que era necessário saber. Só me faltavam as provas, e estas não seriara fáceis de obter. Eu podia ter certeza de que Saint Alard pegara o vidro de trinitrina do lavatório de John Wilson, mas precisava de provas para convencer outras pessoas, e não tinha nenhuma.

      Não me afligi. Eu sabia, isto era o importante. Lembra-se de nossas atribulações no caso Styles, Hastings? Naquela época também, eu sabia, mas não fora fácil achar o último elo da cadeia que incriminaria o assassino. Pedi para falar com Mademoiselle Mesnard, Ela veio imediatamente. Pedi-lhe o endereço de M. de Saint Alard. Seu rosto assumiu uma expressão preocupada.

      — Para que, monsieur?

      — É necessário, mademoiselle.

      Com um tom de dúvida e preocupação, ela disse:

      — Ele nada lhe poderá informar, não pensa nas coisas desse mundo. Mal vê o que se passa em torno de si.

      — É possível, mademoiselle. Mas ele era um velho amigo de M. Déroulard. Talvez possa me contar fatos do passado, velhas rixas, velhos casos de amor.

      A moça corou e mordeu os lábios.

      — Como queira, mas agora estou certa de que me enganei. Foi muita bondade sua aceder ao meu pedido, mas eu estava nervosa, quase transtornada, naquela altura. Agora vejo que não há mistério algum. Desista, eu lhe peço, monsieur.

      Olhei-a atentamente.

      — Mademoiselle — disse-lhe —, algumas vezes um cão tem dificuldade em descobrir o rastro de uma caça, mas depois que a fareja, nada desse mundo fará que a abandone! Isto se for um bom cão, e eu, Hercule Poirot, sou um esplêndido cão de caça, mademoiselle.

      Sem mais uma palavra ela retirou-se, e poucos minutos depois regressou com uma folha de papel onde escrevera um endereço. Saí. François estava a minha espera do lado de fora. Olhou-me com ansiedade.

      — Alguma novidade, monsieur?

      — Ainda não, meu amigo.

      — Ah! Pauvre Monsieur Déroulard — e ele suspirou. — Eu também pensava como ele. Não gosto de padres, mas nunca diria isso lá dentro. As mulheres da casa são muito religiosas, o que talvez seja bom. Madame est très pieuse, et Mademoiselle Virginie aussi,

       Mademoiselle Virginie? Seria ela “très pieuse”? Tive minhas dúvidas, lembrando-me do seu rosto transtornado daquela primeira entrevista. Tendo obtido o endereço de M. de Saint Alard, não perdi tempo. Hospedei-me nos arredores de sua casa de campo em Ardennes, mas alguns dias se passaram antes que arranjasse um pretexto para ali penetrar. Afinal consegui, e adivinhe como, meu amigo! Como bombeiro. Não gastei muitos minutos para provocar um pequeno vazamento de gás em seu quarto. Retirei-me para buscar ferramentas, e só voltei quando calculei que o campo estaria livre. Nem mesmo sabia o que procurava. Não me parecia crível que conservasse a prova incriminatória, não correria tamanho risco.

      Mas quando descobri que o pequeno armário sobre a pia estava fechado a chave, não pude resistir à tentação de examinar o seu interior. Forcei a fechadura, de um tipo muito simples, e deparei com prateleiras repletas de velhos medicamentos. Examinei-os um a um, com a mão trêmula. Um grito me escapou subitamente. Adivinhe o que tinha na mão, meu amigo: um vidra com um rótulo de uma farmácia inglesa onde lia-se: “Comprimidos de Trinitrina. Dose: um comprimido, quando necessário. Mr. John Wilson.”

      Contive meu entusiasmo, fechei o armarinho, coloquei o vidro no meu bolso e continuei a consertar o vazamento. É fundamental agir com método, Hastings. Só então deixei a casa e tomei o primeiro trem para o meu país. Cheguei a Bruxelas tarde da noite. Escrevia um relatório para o préfet, de manhã, quando recebi um bilhete da velha Madame Déroulard, pedindo que fosse à casa da Avenue Louise sem demora.

      François abriu-me a porta.

      — A baronesa está a sua espera.

      Encontrei-a sentada numa ampla cadeira de braços, em seus aposentos. Não vi sinal de Mademoiselle Virginie.

      — M. Poirot — disse a velha senhora —, soube há pouco que o senhor é funcionário da polícia, e não um jornalista.

      — É verdade, madame.

      — Veio investigar as circunstâncias em que meu filho faleceu?

      — É verdade, madame — repeti.

      — Gostaria de ser informada sobre os progressos da investigação.

      Hesitei.

      — Como descobriu, madame?

      — Por alguém que já não pertence mais a este mundo.

      Suas palavras e seu ar sombrio provocaram-me um estremecimento. Não soube o que dizer.

      — Monsieur, conte-me detalhadamente o que descobriu.

      — Madame, a investigação chegou ao fim.

      — E a morte de meu filho?

      — Ele foi envenenado.

      — Sabe por quem?

      — Sei, madame.

      — Quem foi?

      — M. de Saint Alard.

      A velha senhora sacudiu a cabeça numa negativa.

      — O senhor está errado. M. de Saint Alard é incapaz de cometer um crime.

      — Tenho provas.

      — Peço-lhe mais uma vez me conte tudo.

      Desta vez, obedeci, descrevendo cada passo da investigação, até a descoberta da verdade. Ela ouvia com atenção. No final, balançou a cabeça:

      — Suas deduções estão todas corretas, menos uma. Não foi M. de Saint Alard quem matou meu filho. Fui eu, sua mãe.

      Encarei-a, sem poder desviar os olhos. Ela continuou a balançar a cabeça muito suavemente.

      — Ainda bem que mandei chamá-lo, dou graças à Providência Divina. Virginie contou-me o que fizera, antes de partir para o convento. Ouça, M. Poirot! Meu filho era um homem mau. Perseguia a Igreja, vivia em pecado mortal, e arrastava consigo outras almas. Mas não é só. Uma manhã, quando saía deste quarto, vi minha nora lendo uma carta em pé, junto às escadas. Vi quando meu filho esgueirou-se por trás dela e deu-lhe um forte empurrão. Ela caiu e partiu o crânio nos degraus de mármore. Já estava morta quando a foram socorrer. Meu filho era um assassino, e somente eu, sua mãe, sabia.

      Ela fechou os olhos por um momento.

      — O senhor não pode perceber minha agonia, meu desespero, monsieur. O que deveria eu fazer? Denunciá-lo à polícia? Não consegui me obrigar a isto. Era meu dever, mas minha carne é fraca. Além disso, quem acreditaria? Minha visão vem diminuindo há algum tempo, diriam que me enganara. Guardei silêncio, mas minha consciência não me deixou em paz, pois silenciando estava sendo cúmplice de seu crime. Meu filho herdou o dinheiro da mulher, e sua carreira teve um grande impulso. Iria ser nomeado ministro, sua perseguição à Igreja recrudesceria. E havia Virginie. A pobre criança, bela, piedosa, estava fascinada por ele. Meu filho tinha um estranho e terrível poder sobre as mulheres. Vi o que iria acontecer, não tinha forças para impedir, e ele não tinha nenhuma intenção de casar-se com ela. E Virginie estava prestes a entregar-se totalmente.

      Vi meu caminho claramente. Ele era meu filho, eu dera-lhe a vida e era responsável por ele. Paul matara o corpo de uma mulher e agora iria destruir a alma de outra! Fui ao quarto de Mr. Wilson e peguei o vidro de comprimidos. Uma vez ele dissera rindo que o seu conteúdo era suficiente para matar um homem! Fui ao escritório e abri a caixa de bombons que sempre havia sobre a mesa. Por engano abri a nova que estava ao lado. Na outra só havia um bombom, o que simplificava as coisas. Só meu filho e Virginie gostavam de chocolate, e eu a manteria a meu lado naquela noite. Tudo decorreu como eu havia planejado ...

      Ela calou-se, fechou os olhos por alguns instantes e os tornou a abrir:

      — M. Poirot, estou em suas mãos. Dizem que tenho poucos dias de vida. Estou pronta a responder por meus atos diante de meu Criador. Devo responder por eles, aqui também?

      Hesitei.

      — Mas e o vidro vazio, madame? — perguntei para ganhar tempo. — Como foi parar entre os objetos de M. de Saint Alard?

      — Quando ele veio se despedir de mim, coloquei o vidro em seu bolso, sem que o visse. Não sabia como me livrar dele, monsieur. Estou tão fraca que não posso me locomover sem auxílio, e se alguém o encontrasse em meu quarto, vazio, poderia ter suspeitas. Entenda, monsieur — ela ergueu a cabeça com grande dignidade —, nunca tive a intenção de desviar as suspeitas para M. de Saint Alard, nunca pensei nisso. Julguei que o seu criado de quarto acharia o vidro vazio e o jogaria fora, sem fazer perguntas.

      — Compreendo, madame — e curvei minha cabeça diante dela.

      — E qual a sua decisão, monsieur?

      Sua voz era firme, inabalável, e mantinha a cabeça erguida.

      Levantei-me.

      — Madame, tenho a honra de desejar-lhe um bom dia. Minhas investigações terminaram, fracassei. O caso está encerrado.

      Poirot ficou em silêncio por um momento e então disse pausadamente:

      — Ela morreu dali a uma semana. Mademoiselle Virginie completou seu noviciado e fez votos perpétuos. E esta é a história, meu amigo. Devo admitir que não tive um belo papel nela.

      — Mas não vejo por que a considera um fracasso — protestei. — O que mais poderia fazer em tais circunstâncias?

      — Ah, sacré, mon ami — exclamou Poirot subitamente exaltado. — Mas você não percebe? Banquei o idiota completo! Minhas células cinzentas não funcionaram, o tempo todo, a pista que levaria à verdade estava bem em frente a meus olhos!

      — Que pista?

      — A caixa de chocolates! Não percebe? Ninguém com uma visão perfeita cometeria tal erro. E eu sabia que Madame Déroulard sofria de cataratas pelas gotas de atropina. Era a única pessoa da casa que enxergava tão mal que seria capaz de trocar as tampas. Foi a caixa de chocolates que me despertou as suspeitas, mas apesar disso, até o final fui incapaz de perceber seu significado real!

      E minha psicologia também falhou. Se M. de Saint Alard fosse o criminoso jamais guardaria o vidro incriminador. Achá-lo foi prova de sua inocência. No todo foi um caso deplorável, e meu papel não foi melhor. Uma velha senhora comete um crime de forma tão simples e inteligente que engana completamente a. mim, Hercule Poirot. Sapristi! Não adianta remoer o fato, é melhor esquecê-lo ... ou talvez não! Tenha isto sempre em mente, e se alguma vez achar que estou ficando convencido... Não é muito provável, mas pode acontecer.

      Reprimi um sorriso.

      — Eh bien, meu amigo, então você me dirá: “caixa de chocolates”. Estamos combinados?

      — Certamente.

      — Afinal — disse Poirot com um ar pensativo —, valeu a experiência. E eu, que sou o cérebro mais poderoso da Europa no momento, pude me mostrar generoso.

      — Caixa de chocolates — murmurei baixinho.

      — Pardon, mon ami?

      Olhei para a expressão inocente de Poirot, e meu coração confrangeu-se. Passara maus pedaços em suas mãos, mas embora eu não possuísse o cérebro mais poderoso da Europa, podia ser generoso.

      — Não foi nada — menti, e sorrindo acendi meu cachimbo.

 

Os Planos do Submarino

      Um mensageiro especial trouxera-nos um bilhete. Os olhos de Poirot brilharam de entusiasmo e interesse enquanto o lia. Despediu o homem com algumas poucas palavras e virou-se para mim:

      — Arrume a mala bem depressa, meu amigo. Vamos a Sharples.

      À menção da famosa casa de campo de Lorde Alloway tive um sobressalto. Recentemente nomeado Ministro da Defesa, Lorde Alloway era um membro importante do Gabinete. Ele se destacara na Câmara dos Comuns, ainda como Sir Ralph Curtis, chefe de uma grande firma de engenharia, e agora mencionava-se insistentemente o seu nome como o do homem do momento, e seria provavelmente indicado para formar um ministério se os boatos sobre o estado de saúde de Mr. David MacAdam fossem verdadeiros.

      Um grande Rolls-Royce nos esperava embaixo, e enquanto cortávamos a escuridão, enchi Poirot de perguntas.

      — Que diabos eles querem de nós a esta hora da noite? — O meu relógio acusava onze e dez.

      Poirot sacudiu a cabeça.

      — Algo muito urgente, sem dúvida.

      — Lembro-me de que há alguns anos, o então Ralph Curtis foi envolvido em um escândalo, uma trapaça com títulos, se não me engano. Terminou sendo completamente inocentado. Será que algo semelhante tornou a ocorrer?

      — Não justificaria esse chamado no meio da noite, não acha, meu amigo?

      Fui forçado a concordar, e o resto da viagem decorreu em silêncio. Quando saímos de Londres a poderosa máquina aumentou de velocidade e chegamos a Sharples pouco antes da uma hora. Um imponente mordomo nos conduziu imediatamente a um pequeno gabinete onde Lorde Alloway nos esperava. O homem alto e esbelto que irradiava força e vitalidade levantou-se para nos receber.

      — M. Poirot, estou encantado em vê-lo. É a segunda vez que o governo recorre a seus serviços. Lembro-me muito bem do que fez por nós durante a guerra, quando o Primeiro-Ministro foi raptado daquela forma inacreditável. Suas deduções magistrais — e devo acrescentar, sua discrição — salvaram a situação.

      Um lampejo passou pelos olhos de Poirot.

      — Posso deduzir que este é outro caso a exigir... discrição, milorde?

      — Total e absoluta, M. Poirot. Ah, deixe-me apresentá-lo: Almirante Sir Harry Weardale, Primeiro Lorde do Almirantado ... M. Poirot. E o Capitão...

      — Hastings — completei.

      — Tenho ouvido falar com freqüência no senhor, M. Poirot — disse Sir Harry apertando-lhe a mão. — Estamos diante de um enigma inexplicável, e se puder resolvê-lo ficar-lhe-emos extremamente gratos.

      Era um oficial de marinha do tipo antigo, de uma franqueza rude, e simpatizei imediatamente com ele.

      Poirot ficou à espera de suas revelações, e Alloway tomou a dianteira:

      — O senhor compreende, certamente, que este é um assunto confidencial, M. Poirot. Sofremos há pouco uma séria perda. Os planos do novo submarino Z foram roubados.

      — Quando se deu o fato?

      — Esta noite, há menos de três horas. Talvez o senhor avalie quão desastroso isto é. É fundamental que o fato não passe ao domínio público. Mas far-lhe-ei um resumo dos acontecimentos. Neste fim de semana, o almirante, sua esposa, seu filho, e Mrs. Conrad, uma senhora bem conhecida da sociedade londrina, são meus hóspedes. As senhoras retiraram-se cedo, por volta das dez horas, logo seguidas por Mr. Leonard Weardale. Sir Harry está aqui em parte para deliberarmos sobre a construção desse novo tipo de submarino, e assim pedi a Mr. Fitzroy, meu secretário, que retirasse os planos daquele cofre ali, para que os pudéssemos examinar Juntamente com outros documentos relativos ao assunto.

      — Enquanto ele se desincumbia dessa tarefa — prosseguiu Lorde Alloway —, o Almirante e eu fomos dar uma volta pelo terraço, saboreando nossos cachimbos e apreciando a noite agradável de junho. Afinal resolvemos iniciar nosso trabalho e íamos voltando quando tive a impressão de ver um vulto sair por esta porta envidraçada, atravessar o terraço e desaparecer. Não dei muita atenção ao fato, entretanto. Sabia que Fitzroy estava aqui e não me passou pela cabeça que pudesse haver algo errado. Foi esse o meu erro. Bem, entramos no gabinete pela porta envidraçada do terraço e no mesmo instante vimos Fitzroy entrar pela porta do vestíbulo.

      — Já aprontou todos os papéis que lhe pedi, Fitzroy? — perguntei.

      — Já, Lorde Alloway. Estão sobre a escrivaninha — e desejando-nos uma boa noite, dirigiu-se para a porta.

      — Espere um minuto — disse eu indo até a escrivaninha. — Posso precisar de mais alguma coisa.

      Examinei rapidamente os papéis que ali estavam.

      — Você se esqueceu do mais importante, Fitzroy — disse eu. — Onde estão os planos do submarino?

      — Os planos estão bem em cima, Lorde Alloway.

      — Não, não estão — disse eu examinando mais uma vez os papéis.

      — Mas eu os coloquei aí não faz um minuto!

      — Bem, eles não estão aqui agora.

      Fitzroy aproximou-se com uma expressão de espanto no rosto, sem acreditar. Conferimos os papéis que estavam sobre a escrivaninha, revistamos o cofre e finalmente tivemos que admitir o fato: os planos haviam desaparecido no breve intervalo de três minutos em que Fitzroy se ausentara do aposento.

      — Por que ele saiu do gabinete? — interveio Poirot.

      — Foi a primeira pergunta que lhe fiz! — exclamou Sir Harry. — Justamente quando acabara de arrumar os papéis sobre a escrivaninha ouviu um grito de mulher. Precipitou-se para o vestíbulo e viu nas escadas a criadinha francesa de Mrs. Conrad, muito pálida e com um ar assustado. A moça disse que vira um fantasma, um vulto alto, vestido de branco, que se movia sem ruído. Fitzroy riu, achando graça em seus receios, e advertiu-a, de forma cortês, para que não bancasse a tola. Voltava ao gabinete quando entramos pela porta envidraçada.

      — O caso parece claro — disse Poirot pensativo. — Minha dúvida é se a criada é cúmplice. Teria gritado seguindo uma combinação prévia com um assecla, ou acaso alguém estaria somente esperando uma oportunidade propícia? O vulto que o senhor vislumbrou era de um homem ou de uma mulher?

      — Não posso precisar, M. Poirot. Foi só uma sombra.

      O Almirante pigarreou de uma forma tão estranha que atraiu a atenção.

      — O Almirante parece ter algo a dizer — sugeriu Poirot com um leve sorriso. — Viu a sombra, Sir Harry?

      — Não, não vi — retrucou o outro —, e Alloway também não. Deve ter visto algum ramo de árvore agitado pelo vento, e quando descobrimos o roubo mais tarde, essa imagem transformou-se em sua mente no vulto de um ladrão, mas foi só o produto de sua imaginação.

      — Muitos me julgam totalmente desprovido de tal atributo — disse Lorde Alloway com bom humor.

      — Bobagem, todos nós possuímos imaginação, e facilmente nos convencemos de ter visto mais que a realidade. Tenho uma longa experiência no mar e confio em meus olhos. Estava olhando diretamente em frente no terraço, e teria visto essa sombra se houvesse algo para ver.

      O Almirante estava inflamado e parecia categórico sobre o assunto. Poirot levantou-se com um ar decidido e dirigiu-se para a porta envidraçada do terraço.

      — Com sua permissão, precisamos esclarecer logo este ponto, se for possível.

      Nós o seguimos. Ele tirou uma lanterna elétrica do bolso e começou a examinar a grama ao longo do terraço. Afinal desligou a lanterna e ergueu-se.

      — Sir Harry tem razão. O senhor equivocou-se, Lorde Alloway — disse ele com gentileza. — Choveu forte no começo da noite. Se alguém houvesse passado por aqui deixaria pegadas, e não há marcas de espécie alguma.

      Lorde Alloway assumiu uma expressão de perplexidade enquanto o Almirante se mostrava visivelmente satisfeito:

      — Sabia que não estava errado. Tenho plena confiança em minha visão.

      Era tão semelhante ao protótipo do velho e honesto lobo do mar que não pude deixar de sorrir.

      — E isto nos leva aos ocupantes da casa — disse Poirot pausadamente. — Vamos entrar. Milorde, será que alguém poderia ter entrado pelo vestíbulo enquanto Fitzroy falava com a criada nas escadas?

      Lorde Alloway sacudiu a cabeça numa negativa.

      — Absolutamente impossível. Teriam que passar por ele para chegar ao gabinete.

      — E o senhor tem plena confiança em seu secretário?

      Lorde Alloway corou.

      — Absoluta, M. Poirot. Respondo por ele, com toda a tranqüilidade. Não é possível que esteja envolvido nesse assunto.

      — Nada parece ser possível — comentou Poirot secamente. — Talvez os planos tenham criado asas e voado, comme ça! — e Poirot, lembrando um cômico querubim, encheu as bochechas e assoprou.

      — É mesmo inacreditável — concordou Lorde Alloway impaciente. — Mas peço-lhe que nem sonhe em desconfiar de Fitzroy. E se ele quisesse roubar os planos seria facílimo, em sua posição, tirar uma cópia deles em vez de arriscar-se assim.

      — Milorde, a sua dedução é bien juste — disse Poirot com aprovação. — Vejo que tem uma mente ordenada e metódica. L’Angleterre deve orgulhar-se de tê-lo como filho.

      Lorde Alloway ficou sem jeito ante esse inesperado elogio. Poirot voltou ao assunto.

      — O aposento para o qual os senhores se retiraram após o jantar...

      — A sala de estar?

      — Também possui uma porta para o terraço por onde saíram, não é? Acaso não seria possível alguém sair da sala de estar, passar pelo terraço e entrar no gabinete enquanto Fitzroy estava entretido nas escadas?

      — Mas nós o teríamos visto — protestou o Almirante.

      — Não se estivessem de costas, andando para a extremidade do terraço.

      — Fitzroy só se ausentou do gabinete uns poucos minutos, o tempo justo para que fôssemos ao fim do terraço e voltássemos.

      — Não importa, é uma possibilidade. Na verdade é a única que posso vislumbrar no momento.

      — Mas não ficou ninguém na sala de estar quando saímos.

      — Alguém pode ter entrado mais tarde.

      — Está querendo dizer que quando Fitzroy ouviu o grito da criada e saiu, alguém que estava escondido na sala de estar passou rapidamente pelo terraço, apoderou-se dos planos e voltou a sala de estar? — perguntou Lorde Alloway.

      — A mente metódica revela-se novamente — disse Poirot com uma mesura. — O senhor descreveu a ação de forma perfeita.

      — Talvez tenha sido um dos criados.

      — Ou talvez um hóspede. Foi a criada de Mrs. Conrad quem gritou. Que informações pode me fornecer acerca dessa senhora?

      Lorde Alloway refletiu um minuto.

      — É uma senhora bastante conhecida na alta sociedade. Costuma oferecer grandes recepções, e é recebida em toda parte. Mas pouco se sabe acerca de suas verdadeiras origens e de seu passado. Ela freqüenta muito os meios diplomáticos, e o Serviço Secreto está interessado em descobrir o porquê.

      — Compreendo — disse Poirot. — E ela foi convidada para passar aqui o fim de semana...

      — Para que pudéssemos observá-la de perto.

      — Parfaitement! E é possível que ela tenha conseguido inverter a jogada com muita habilidade.

      Lorde Alloway ficou com um ar desconcertado e Poirot prosseguiu:

      — Milorde, acaso fizeram, em presença dela, alguma referência aos assuntos que iriam debater?

      — Fizemos — admitiu Lorde Alloway. — Sir Harry disse: “E agora ao trabalho! Vamos ao nosso submarino!”, ou coisa semelhante. Os outros já se haviam retirado, mas ela voltara para apanhar um livro.

      — Compreendo — disse Poirot pensativo. — Milorde, já é muito tarde, mas o assunto é importante. Se fosse possível gostaria de interrogar os hóspedes agora.

      — Certamente — disse Lorde Alloway. — O ponto delicado é que não queremos que a notícia se espalhe. Lady Juliet Weardale e o jovem Leonard são de confiança, mas já Mrs. Conrad, se acaso não for culpada, é um caso diferente. Talvez o senhor possa se limitar a declarar que um papel importante se extraviou, sem especificar a sua natureza, nem entrar em detalhes sobre as circunstâncias de seu desaparecimento.

      — É exatamente o que lhe ia propor — disse Poirot sorrindo. — Na verdade julgo uma medida recomendável para todos os três, pois até as mais devotadas esposas...

      — Estou de acordo — disse Sir Harry. — Todas as mulheres falam demais, pobrezinhas. Mas eu preferiria que Juliet jogasse menos bridge e falasse um pouco mais. Mas hoje em dia parece que as mulheres só estão satisfeitas se estão jogando ou dançando! Vou lá em cima chamar Juliet e Leonard, Alloway.

      — Obrigado. Eu me encarregarei de chamar a criada francesa. Poirot vai querer vê-la, e ela poderá acordar a patroa. Vou tratar disso agora. Enquanto isso mandarei Fitzroy aqui.     

     

      Mr. Fitzroy era um jovem magro e pálido, de pince-nez e uma expressão severa. Seu testemunho foi praticamente igual ao de Lorde Alloway, palavra por palavra.

      — Qual é a sua teoria, Mr. Fitzroy?

      Mr. Fitzroy encolheu os ombros.

      — Não há dúvida de que alguém enfronhado no assunto estava à espreita lá fora. Ele podia ver o que estava acontecendo pela porta envidraçada, e aproveitou-se da minha saída. É uma pena que Lorde Alloway não tenha corrido em sua perseguição quando o viu.

      Poirot não o desiludiu. Limitou-se a perguntar:

      — Acredita na história da criada francesa a respeito de ter visto um fantasma?

      — É muito pouco provável, não acha M. Poirot?

      — Mas acredita que ela estava sendo sincera?

      — Bem, não posso dizer. Ela parecia bem agitada. Estava com as mãos no rosto.

      — Haha! — fez Poirot como se houvesse feito uma descoberta. — E ela é sem dúvida uma bonita moça, não?

      — Não reparei — disse Mr. Fitzroy muito sério.

      — Por acaso viu a patroa dela?

      — Para falar a verdade, vi. Ela estava em cima na galeria e chamava pela criada: — “Leonie!” Então me viu e naturalmente retirou-se.

      — Em cima... — repetiu Poirot com a testa franzida.

      — Compreendo que os fatos me colocam numa posição desagradável, ou melhor, colocariam se Lorde Alloway não houvesse visto o intruso. De qualquer forma gostaria de que revistassem o meu quarto e a minha pessoa.

      — É realmente seu desejo?

      — Certamente.

      Não sei qual teria sido a resposta de Poirot se naquele momento Lorde Alloway não houvesse reaparecido para nos informar que as duas senhoras e Mr. Leonard Weardale estavam na sala de estar.

      As duas mulheres trajavam atraentes négligées. Mrs. Conrad era uma bela mulher de uns trinta e cinco anos, com cabelos dourados e uma ligeira tendência para o embonpoint. Lady Juliet Weardale devia ter uns quarenta, era alta e morena, muito magra, ainda bela, com mãos e pés delicados e um ar tenso e irritado. Seu filho era um jovem de aspecto efeminado, um contraste gritante ao pai rude e jovial.

      Poirot proferiu o pequeno discurso que combináramos previamente, mostrando-se ansioso para saber se alguém vira ou ouvira qualquer coisa que pudesse auxiliar-nos. Virou-se para Mrs. Conrad e pediu-lhe que fizesse uma descrição de todos os seus movimentos naquela noite.

      — Deixe-me pensar... Subi e toquei a campainha para chamar minha criada. Como ela não apareceu, saí para o corredor e a chamei, pois ouvi sua voz nas escadas. Logo depois que ela escovou meus cabelos a despedi, ela estava bastante nervosa. Li um pouco e me deitei.

      — E a senhora, Lady Juliet?

      — Subi e fui direto para a cama. Estava muito cansada.

      — Esqueceu-se do livro, querida? — perguntou Mrs. Conrad com um sorriso maldoso.

      — Que livro? — disse Lady Juliet corando.

      — Não se lembra de que estava subindo as escadas quando Leonie desceu? Não me disse que fora buscar um livro na sala de estar?

      — Ah, sim, foi mesmo. Já havia me esquecido — e Lady Juliet torceu as mãos num gesto de nervosismo.

      — Ouviu a criada de Mrs. Conrad gritar. Milady?

      — Não. não ouvi.

      — É curioso, pois a senhora devia estar na saia a essa altura.

      — Não ouvi nada — repetiu Lady Juliet numa voz mais firme.

      Poirot virou-se para o jovem Leonard:

      — E Monsieur?

      — Nada feito. Subi direto e me deitei.

      Poirot passou a mão pelo queixo:

      — Pelo jeito não obterei nada aqui. Mesdames, messieurs, lamento muitíssimo ter interrompido o seu sono por tão pouco. Peço-lhes que aceitem minhas desculpas.

      Sempre desculpando-se ele os levou até a porta e voltou com a criada francesa, uma bonita moça com um ar atrevido. Alloway e Weardale haviam acompanhado as senhoras.

      — Mademoiselle, agora diga-me a verdade, nada de histórias fantásticas. Por que gritou na escadaria?

      — Ah, monsieur, vi um vulto comprido, todo de branco...

      Poirot a interrompeu, sacudindo energicamente o indicador:

      — Não lhe disse que não queria saber de histórias fantásticas? Deixe-me adivinhar... Ele a beijou, não foi? Estou falando de Mr. Leonard Weardale.

      — Eh bien, monsieur, que mal há nisso?

      — Acho até muito natural — disse Poirot galantemente. — Até eu e o próprio Hastings ficaríamos tentados... Mas conte-me o que aconteceu.

      — Ele veio por trás e me agarrou. Levei um susto e gritei, mas se soubesse que era ele não teria gritado. Então apareceu M. le secrétaire, e M. Leonard subiu as escadas correndo. E o que eu poderia dizer a um rapaz como aquele, tellement comme il faut? Ma foi, inventei um fantasma!

      — E está tudo explicado — exclamou Poirot com um sorriso. — Então a senhorita subiu para o quarto de sua patroa, não foi? Por falar nisso, qual é o quarto dela?

      — No final do corredor, monsieur. Daquele lado de lá.

      — Bem em cima do gabinete, então. Bien, mademoiselle, não a deterei mais. E da prochaine fois, não grite.

      Levou a moça até a porta e voltou sorrindo.

      — É um caso interessante, não, Hastings? Começo a ter umas pequenas idéias... Et vous?

      — O que Leonard Weardale estava fazendo nas escadas? Não simpatizo com aquele jovem, Poirot. Creio que é um depravado.

      — Tenho a mesma impressão, mon ami.

      — Já Fitzroy parece ser um camarada honesto.

      — Como Lorde Alloway faz questão de afirmar.

      — Mas apesar disso há qualquer coisa nele...

      — Que parece boa demais para ser verdade? Também tive essa sensação. Por outro lado, nossa cara Mrs. Conrad é obviamente um elemento perigoso.

      — E o quarto dela fica bem em cima do gabinete — disse eu para Poirot.

      Ele sacudiu a cabeça numa negativa com um leve sorriso:

      — Não, mon ami, não consigo imaginar aquela elegantíssima senhora descendo pela chaminé ou escalando paredes.

      A essas palavras a porta se abriu e, para minha surpresa, Lady Juliet entrou com um ar furtivo.

      — M. Poirot — ela estava um tanto ofegante —, posso falar-lhe a sós?

      — Milady, confio plenamente no Capitão Hastings. Pode ignorar a sua presença. Sente-se, por favor.

      Ela sentou-se, sempre olhando fixamente para Poirot:

      — O que tenho a dizer é bastante difícil. O senhor está encarregado desse caso... Se os papéis fossem devolvidos, isso encerraria o assunto? Quero saber se os aceitariam, sem fazer perguntas.

      Poirot encarou-a.

      — Deixe-me tentar entendê-la bem, madame. Esses planos me serão entregues e devo devolvê-los a Lorde Alloway com a condição de que não faça perguntas a respeito de como os obtive. É isso?

      Ela inclinou a cabeça.

      — É isso mesmo. Mas preciso ter certeza de que o fato não se tornará público.

      — Creio que Lorde Alloway não fará nenhuma questão de publicidade — disse Poirot muito sério.

      — Aceita, então? — sua voz traía grande ansiedade.

      — Um momentinho, milady. Depende. Daqui a quanto tempo poderá me entregar esses papéis?

      — Quase de imediato.

      Poirot consultou o relógio.

      — Exatamente a que horas?

      — Digamos... daqui a dez minutos — ela sussurrou.

      — Aceito, milady.

      Ela saiu quase correndo. Soltei um assobio.

      — O que deduz disso, Hastings?

      — Bridge — respondi sucintamente.

      — Ah, então não se esqueceu das palavras imprudentes do Almirante. Que boa memória! Eu o felicito, Hastings.

      Não dissemos mais nada pois Lorde Alloway entrou, lançando um olhar indagador a Poirot.

      — Teve alguma idéia nova, M. Poirot? Receio que não tenha obtido informações muito esclarecedoras.

      — Ao contrário, milorde. Auxiliaram-me o suficiente. Minha permanência aqui não será mais necessária, e com sua permissão voltarei imediatamente a Londres.

      Lorde Alloway o olhou espantado.

      — Mas... mas o que descobriu? Sabe com quem estão os planos?

      — Sim, milorde, eu sei. Diga-me, se os papéis lhe forem devolvidos anonimamente, desistiria da investigação?

      Lorde Alloway o encarou.

      — Devolvidos contra o pagamento de uma quantia em dinheiro?

      — Não, milorde. Devolvidos incondicionalmente.

      — Naturalmente. O que importa é recuperarmos os planos — Lorde Alloway falou pausadamente. Ainda tinha um ar de perplexidade.

      — Então eu o aconselharia a concordar. Só o senhor, o Almirante e seu secretário têm conhecimento do roubo, e só os três precisam saber que foram restituídos. Pode contar com o meu apoio irrestrito. Deixe a responsabilidade cair sobre os meus ombros. Pediu que eu recuperasse os papéis, e assim o fiz. Pode dizer que é tudo que o senhor sabe. — Poirot levantou-se e estendeu-lhe a mão: — Milorde, estou feliz por tê-lo conhecido. Tenho confiança no senhor, e em sua dedicação a Inglaterra. O senhor guiará os destinos do país com mãos fortes e firmes.

      — M. Poirot, juro-lhe que empregarei todos os meus esforços para esse fim. Pode ser um defeito, ou uma virtude, mas tenho fé em mim mesmo!

      — Como todo grande homem. Eu também! — disse Poirot com imponência.

      Em poucos minutos o carro estava à nossa disposição. Lorde Alloway despediu-se de nós na entrada da casa com grande cordialidade.

      — Ele é um grande homem, Hastings — disse Poirot quando deixávamos a propriedade. — Tem inteligência, iniciativa, energia. É o homem forte que a Inglaterra necessita para guiá-la nessa fase difícil de reconstrução.

      — Estou pronto a concordar com tudo isso, Poirot, mas e Lady Juliet? Ela irá entregar os planos diretamente a Alloway? O que irá pensar quando descobrir que partimos sem uma única palavra de explicação?

      — Hastings, vou lhe propor uma pergunta: Por que ela não me entregou os planos naquele momento?

      — Ela não os tinha.

      — Exato. E quanto tempo gastaria para ir buscá-los em seu quarto ou em qualquer ponto da casa? Não precisa responder, eu mesmo lhe direi: provavelmente uns dois minutos e meio! Mas ela pediu dez. Por quê? É evidente que pensava obtê-los de alguma outra pessoa, e precisará argumentar até convencer esse alguém para que os entregue. Ora, quem poderá ser essa pessoa? Não Mrs. Conrad, de forma alguma, mas um membro de sua própria família, seu filho ou seu marido. Qual dos dois é mais provável? Leonard Weardale disse que foi direto para a cama, o que sabemos ser falso. Suponhamos que a mãe tenha ido a seu quarto e não o tenha encontrado. Suponhamos que tenha descido imensamente receosa, pois sabe que o filho não é nenhum anjinho. Ela não o encontra, mas o ouve declarar que não saiu de seu quarto. Ela conclui que ele é o ladrão, e vem me procurar. Mas, mon ami, sabemos de um fato que Lady Juliet ignora. Sabemos que seu filho não poderia ter entrado no gabinete pois estava nas escadas, roubando beijos da criadinha bonita. Leonard Weardale tem um álibi, embora sua mãe não saiba.

      — Bem, então quem roubou os planos? Parece que eliminamos todo mundo. Lady Juliet, o filho, Mrs. Conrad, a criada...

      — Exatamente. Use suas células cinzentas, meu amigo. A solução está bem na sua frente.

      Sacudi a cabeça desnorteado.

      — Mas a solução é óbvia! Se ao menos você perseverasse... Escute, Fitzroy sai do gabinete e deixa os papéis sobre a mesa. Poucos minutos depois Lorde Alloway entra no aposento, vai até a escrivaninha e os papéis desapareceram. Só há duas hipóteses: primeiro, Fitzroy não deixou os papéis sobre a mesa, e os embolsou. Isto não é razoável, pois como Alloway nos mostrou, ele poderia ter tirado uma cópia se quisesse. Segundo: os papéis ainda estão sobre a escrivaninha quando Lorde Alloway se aproxima. Neste caso eles foram parar em seu bolso.

      — Lorde Alloway, um ladrão? — disse eu estupefato. — Mas por quê, por quê?

      — Você mesmo não me falou sobre um escândalo em seu passado? Ele foi inocentado, mas suponhamos que tivesse culpa. Nem uma sombra de suspeita deve pairar sobre a vida de um político inglês. Se o fato viesse à tona e pudessem provar sua culpa... adeus à sua carreira política. Vamos supor pois que ele estava sofrendo uma chantagem, e o preço fosse os planos do submarino.

      — Mas então ele é um traidor abjeto! — exclamei.

      — Não, ele não é nada disso. É um homem inteligente, e hábil. Suponha que ele tenha copiado aqueles planos fazendo algumas ligeiras alterações que os tornem inexeqüíveis (pois é um engenheiro capaz). Ele entrega os planos falsificados ao agente inimigo (Mrs. Conrad, provavelmente), e encena o roubo para que acreditem que são legítimos. Faz o possível para afastar as suspeitas dos ocupantes da casa, fingindo ter visto um vulto atravessar o terraço. Mas não contava com a. atitude obstinada do Almirante, e fica ansioso para que não suspeitemos de Fitzroy.

      — Tudo isso não passa de deduções, Poirot — protestei.

      — Mais que dedução, é psicologia, mon ami. Um homem capaz de entregar os planos verdadeiros ao inimigo não teria escrúpulos em deixar que as suspeitas caíssem sobre outros. E por que estava tão preocupado que Mrs. Conrad não tomasse conhecimento das circunstâncias em que o roubo se efetuara? Porque lhe entregara os planos mais cedo, e não queria que ela soubesse da hora do roubo.

      — Ainda tenho as minhas dúvidas.

      — Pois eu não. Meu diálogo com Lorde Alloway foi de um grande homem para outro. O futuro lhe dirá!

     

      Uma coisa é certa. No dia em que Lorde Alloway tornou-se Primeiro-Ministro, recebemos um cheque e uma fotografia autografada, onde se lia: Ao meu discreto amigo Hercule Poirot, Alloway.

      Soube que o novo submarino Z é motivo de grande regozijo nos círculos navais. Dizem que revolucionará as táticas de guerra naval. Ouvi dizer também que certa potência estrangeira tentou construir um submarino semelhante, mas a empreitada redundou num completo fracasso. Mas ainda creio que Poirot estava só arriscando um palpite. Qualquer dia desses ele vai se dar mal!

 

O Apartamento do Terceiro Andar

      — Que diabo! — exclamou Pat, e com a testa franzida revirou impaciente o conteúdo de sua frágil carteira de seda. Dois jovens e outra moça a observavam ansiosos. Os quatro estavam em frente à. porta fechada do apartamento de Patrícia Garnett.

      — Não adianta — disse Pat. — Não está aqui. E agora, o que vamos fazer?

      — De que vale a vida sem uma chave? — murmurou Jimmy Faulkener. Era um rapaz baixo de ombros largos com olhos azuis bem-humorados.

      Pat virou-se para ele, zangada.

      — Não brinque, Jimmy. Isto é sério.

      — Procure mais uma vez, Pat — disse Donovan Bailey. — Deve estar aí mesmo — sua voz era pausada e agradável e combinava com seu vulto esbelto e moreno.

      — Se é que você a trouxe — disse a outra moça, Mildred Hope.

      — Trouxe, sim — disse Pat. — Creio que a dei a um de vocês dois — e ela virou-se acusadoramente para os rapazes. — Disse a Donovan que a apanhasse.

      Mas ela não conseguiria assim tão facilmente um bode expiatório. Donovan protestou com o apoio de Jimmy.

      — Eu vi quando você a colocou na bolsa — disse ele.

      — Bem, então um de vocês dois a perdeu quando apanhou minha bolsa. Eu a deixei cair umas duas vezes.

      — Duas vezes, nada! — disse Donovan. — Umas cinco, pelo menos, além de a ter esquecido em todos os lugares por onde andamos.

      — Não sei como não perde tudo o que tem — disse Jimmy.

      — A questão agora é: como vamos entrar? — disse Mildred, uma garota sensata, que não se perdia em rodeios, mas muito menos atraente que a impulsiva e trapalhona Pat.

      Os quatro olharam a porta, desnorteados.

      — Que tal chamar o porteiro? — sugeriu Jimmy. — Ele não tem uma chave mestra?

      Pat sacudiu a cabeça. Só existiam duas chaves. Uma estava pendurada lá na cozinha e a outra deveria estar em sua malfadada bolsa.

      — Se ao menos o apartamento fosse térreo — lamentou-se Pat. — Poderíamos forçar uma janela ou coisa assim. Donovan, que acha da idéia de bancar o alpinista e escalar essas paredes?

      Donovan achou a idéia péssima.

      — Não está querendo muito, Pat? Um quarto andar é uma altura respeitável — disse Jimmy.

      — E a escada de incêndio? — lembrou Donovan.

      — Não temos escada de incêndio.

      — Deviam ter — disse Jimmy. — Um prédio de cinco andares devia ter uma escada de incêndio.

      — Também acho — disse Pat. — Mas isso não nos ajuda em nada. Como é que vou entrar em casa?

      — Vocês não têm um ascensor de carga, por onde sobem as mercadorias?

      — Temos, sim, mas é muito pequeno, praticamente só uma cesta de metal. Ah, espere aí! E o ascensor de carvão?

      — Ora, é uma boa idéia — disse Donovan.

      Mildred deu seu palpite desanimador:

      — A porta de acesso deve estar trancada pelo lado de dentro, na cozinha de Pat.

      — Pois eu não creio — disse Donovan.

      — Pat nunca fecha nada a chave — concordou Jimmy.

      — A porta não deve estar fechada — disse Pat. — Recolhi a lata de lixo esta manhã e tenho certeza de que não a tranquei, e não cheguei mais perto dela.

      — Bem — disse Donovan —, essa sua omissão vai nos ser muito útil esta noite, mas de qualquer forma, moça sem juízo, deixe-me alertá-la que esses hábitos displicentes a deixam à mercê dos ladrões.

      Pat não fez caso dessa advertência.

      — Venham — e com esse convite ela começou a descer correndo as escadas. Pat os conduziu a um corredor escuro atulhado de carrinhos de bebê. Finalmente chegaram à área interna onde ela lhes mostrou o ascensor, ocupado no momento por uma lata de lixo. Donovan a retirou e, franzindo . o nariz, subiu na plataforma com cautela.

      — Essa geringonça é um bocado barulhenta — ele comentou. — Mas é o jeito. Devo me aventurar sozinho ou alguém está disposto a me acompanhar?

      — Vou com você — disse Jimmy se colocando ao lado de Donovan. — Espero que o elevador agüente o nosso peso — ele acrescentou com um ar de dúvida.

      — Vocês não devem pesar mais do que uma tonelada de carvão — disse Pat que nunca fora boa em matemática.

      — Nós logo descobriremos — disse Donovan jovialmente, puxando a corda.

      Com um rangido estridente o ascensor começou a subir.

      — Que barulho horrível! — comentou Jimmy. — O que pensará o pessoal dos outros andares?

      — Que somos fantasmas ou ladrões — disse Donovan. — Não é sopa puxar essa corda. O porteiro desse edifício tem um trabalho mais pesado do que eu calculava! Ei, Jimmy, amigo velho, está contando os andares?

      — Oh, Deus! Esqueci.

      — Ainda bem que eu não conheci. Este é o terceiro. O próximo é o nosso.

      — E agora preparemo-nos para descobrir que Pat afinal trancou a porta — resmungou Jimmy.

      Mas seus receios eram infundados. A porta abriu-se facilmente e Donovan e Jimmy pularam para dentro da cozinha escura de Pat.

      — Devíamos ter trazido uma lanterna para essa empreitada perigosa — disse Donovan. — Se conheço bem Pat o chão deve estar cheio de louça suja, e vamos tropeçar nos cacos até conseguir chegar ao interruptor. Não se mexa, Jimmy, até que eu acenda a luz.

      O rapaz tateou na escuridão soltando um furioso “Porcaria!” quando se chocou contra a quina da mesa da cozinha. Afinal alcançou o interruptor, mas no momento seguinte outro “Porcaria” ressoou na penumbra.

      — O que há? — perguntou Jimmy.

      — A luz não acende, deve estar queimada. Espere aí, vou acender a da sala.

      A porta da sala era a primeira do corredor. Jimmy ouviu os passos de Donovan se afastando e dali a pouco novos impropérios o alcançaram.

      — O que há?

      — Não sei. A casa parece enfeitiçada, nada está no mesmo lugar. Está cheia de mesas e cadeiras por todos os lados. Oh, diabo! há mais uma aqui.

      Mas felizmente nesse momento Jimmy achou o interruptor e o apertou. No instante seguinte os dois jovens se olhavam horrorizados. Aquela não era a sala de Pat. Estavam no apartamento errado.

      Para começar, o aposento estava dez vezes mais entulhado que o de Pat, o que explicava o atordoamento de Donovan ao chocar-se com tantos móveis. No centro da sala havia uma mesa redonda coberta por uma toalha de repes, e uma grande samambaia na janela. Era a espécie de sala que devia pertencer a uma pessoa muito formal, a quem seria difícil explicar o engano. Havia uma pilha de cartas sobre a mesa.

      — Mrs. Ernestine Grant — murmurou Donovan apanhando a de cima e lendo o sobrescrito. — Oh diabo! Será que ela nos ouviu?

      — É um milagre que ainda não tenha aparecido — disse Jimmy —, com os seus impropérios e essa barulhada toda! Vamos, pelo amor de Deus, vamos sair daqui depressa!

      Eles apagaram a luz precipitadamente e recuaram nas pontas dos pés até o ascensor. Jimmy soltou um suspiro de alívio quando se viram no interior do poço sem mais incidentes.

      — Essa Mrs. Ernestine Grant tem um sono profundo — comentou ele com aprovação. — Uma ótima qualidade para uma mulher.

      — Agora entendo por que nos enganamos de andar. Esqueci-me de que saímos do porão — disse Donovan puxando a corda. O ascensor subiu. — Desta vez estamos no andar certo.

      — Faço votos que sim — disse Jimmy enquanto saltavam. _ Meus nervos não agüentarão mais choques.

      Mas não houve novos sustos. O primeiro clique do interruptor revelou a cozinha de Pat. Mais uns instantes e eles abriram a porta para deixar entrar as duas moças.

      — Vocês demoraram — resmungou Pat. — Mildred e eu estávamos esperando aqui há cem anos.

      — Tivemos uma aventura — disse Donovan. — Podíamos ter ido parar na polícia como perigosos malfeitores.

      Estavam na sala de estar e Pat largara o seu abrigo sobre a poltrona, ouvindo com interesse crescente o relato das aventuras por Donovan.

      — Ainda bem que ela não os surpreendeu — ela comentou. — Recebi um bilhete dela esta manhã. Ela quer falar comigo, tem uma reclamação a fazer. Calculo que seja sobre o meu piano. Gente que não gosta de pianos na vizinhança não devia alugar apartamentos! Ei, Donovan, você cortou sua mão, está cheia de sangue! Vá lavá-la na pia.

      Donovan olhou surpreso para suas mãos e deixou a sala obedientemente. Dali a instantes chamou Jimmy.

      — Oi — respondeu o outro —, o que aconteceu? O corte é profundo?

      — Eu não me cortei.

      Havia algo estranho no seu tom de voz e Jimmy o olhou surpreso. Donovan estendeu as mãos recém-lavadas e Jimmy viu que a pele estava ilesa.

      — É estranho! — disse franzindo o cenho. — De onde veio todo aquele sangue? — e de repente chegou à mesma conclusão que o raciocínio mais rápido do amigo já alcançara. — Meu Deus, deve ter vindo daquele apartamento! — e calou-se refletindo sobre as possíveis explicações. — Tem certeza de que era... sangue? Não era tinta, por acaso?

      Donovan sacudiu a cabeça numa negativa.

      — Era sangue mesmo — disse com um estremecimento.

      Os dois homens se encararam. O mesmo pensamento lhes ocorrera. Foi Jimmy quem finalmente o expressou:

      — Acha que devíamos voltar lá e dar uma olhada? — disse sem muita convicção. — Para ter certeza de que está tudo bem?

      — E as garotas?

      — Não diremos nada a elas. Pat foi arranjar um avental para nos preparar uma omelete. Quando nos procurarem já estaremos de volta.

      — Está certo, vamos — disse Donovan. — Só para desencargo de consciência, não acredito que haja nada de errado — mas não havia firmeza em suas palavras.

      Pegaram o ascensor e desceram ao andar de baixo, atravessando a cozinha sem dificuldades até alcançar o interruptor da sala.

      — Deve ter sido aqui que sujei a mão — disse Donovan. — Na cozinha não toquei em nada.

      Os dois correram um olhar atento pela sala. Tudo parecia normal, nada sugeria violência ou tragédia. Súbito Jimmy estremeceu violentamente e agarrou o braço do companheiro.

      — Olhe!

      Donovan obedeceu a sua voz imperiosa e também soltou uma exclamação. Um pé de mulher calçado num sapato alto de cromo por baixo dos pesados reposteiros.

      Jimmy adiantou-se e com um repelão puxou as cortinas. O corpo inerte e sem vida de uma mulher ocupava o nicho da janela em meio a uma poça escura de sangue coagulado. Ele curvou-se instintivamente para erguê-la quando Donovan o deteve:

      — Não faça isso. Não toque em nada até que a polícia chegue.

      — Tem razão, vamos chamar a polícia. Que coisa pavorosa, Donovan! Quem será ela? Mrs. Ernestine Grant?

      — Tem todo o jeito. Se há mais alguém por aqui é gente muito silenciosa.

      — Que faremos agora? Vamos chamar um guarda na rua ou será melhor telefonar do apartamento de Pat?

      — Acho melhor telefonar. Vamos sair mesmo pela porta da frente. Não podemos levar a noite inteira subindo e descendo por aquele ascensor fedorento.

      Jimmy concordou. Mas quando já iam saindo ele hesitou:

      — Olhe aqui, não acha que um de nós devia ficar de olho no cadáver até que a polícia chegue?

      — É, você tem razão. Fique aí que vou lá em cima telefonar.

      Donovan subiu correndo as escadas e tocou a campainha. Pat, muito atraente de avental e faces coradas, veio abrir a porta. Arregalou os olhos, surpreendida:

      — Você? Mas como? O que aconteceu?

      Ele segurou as mãos dela.

      — Está tudo bem, Pat. Nós fizemos uma descoberta desagradável no andar de baixo. Há uma mulher morta.

      — Oh! — ela prendeu a respiração. — Que coisa horrível! Ela teve um colapso ou coisa assim?

      — Não. Parece... bem, ela foi assassinada.

      — Donovan!

      — É, é horrível!

      Ele ainda segurava as mãos dela. A moça não as retirara, e apertava as dele com força. Querida Pat, como ele a amava! E ela, gostaria dele? Às vezes achava que sim, às vezes tinha receio de que Jimmy Faulkener... A imagem de Jimmy esperando pacientemente embaixo fê-lo sentir-se culpado.

      — Pat, querida, precisamos telefonar à polícia.

      — Monsieur tem razão — disse uma voz atrás dele. — E talvez eu possa auxiliá-los enquanto ela não chegar.

      A moça e o rapaz olharam para trás. Um vulto descia as escadas que levavam ao pavimento superior. Dali a um segundo puderam ver um homem baixinho, com um imponente bigode e uma cabeça em feitio de ovo. Trajava um robe de chambre exótico e chinelos bordados. Fez uma mesura amável para Patrícia.

      — Mademoiselle, sou o inquilino do andar de cima — disse ele. — Gosto de andares altos, a vista sobre Londres é belíssima. Aluguei o apartamento sob o pseudônimo de Mr. O’Connor, mas não sou irlandês. Meu nome verdadeiro é outro. É por isso que me atrevo a oferecer-lhe meus serviços. Permita-me — e apresentou o seu cartão a Pat. Ela leu em voz alta:

      — M. Hercule Poirot. Oh! — ela prendeu a respiração. — O famoso M. Poirot? O grande detetive? E quer nos ajudar?

      — Esta é a minha intenção, mademoiselle. Quase lhe ofereci meus serviços há uma meia hora atrás.

      O rosto de Pat revelou sua perplexidade.

      — Eu os ouvi discutindo o problema de como entrar no apartamento, e tenho grande habilidade para forçar fechaduras. Poderia, com toda a certeza, ter aberto a porta para a senhorita, mas hesitei em sugerir tal medida. Poderia ter despertado suas suspeitas.

      Pat riu.

      — Vamos, monsieur — exortou Poirot a Donovan —, telefone para a polícia. Vou descer ao andar de baixo.

      Pat o acompanhou e explicou a Jimmy a presença do detetive. Poirot ouviu com atenção enquanto o rapaz relatava as aventuras da noite.

      — O senhor disse que a porta do ascensor não estava trancada? E não conseguiram acender a luz da cozinha? — e Poirot atravessou o corredor e apertou o interruptor. — Tiens! Voilà ce qui est curieux! — disse ele quando a luz se acendeu. — Está funcionando muito bem agora. Será que... — nesse instante ele levou um dedo aos lábios pedindo silêncio, e escutou. Um som ritmado quebrava a quietude da noite, o ruído inconfundível de alguém que roncava. — Ah! La chambre de domestique.

      O detetive atravessou pé ante pé a cozinha até uma pequena área. Abriu uma porta e acendeu a luz. O cubículo era aquilo que as companhias construtoras designam otimisticamente como quarto de empregada, e mal acomodava uma cama onde uma garota de bochechas rosadas ressonava placidamente com a boca aberta.

      Poirot apagou a luz e bateu em retirada.

      — Ela não acordou — disse ele. — Vamos deixá-la dormir até que a polícia chegue.

      Voltaram à sala. Donovan acabara de entrar.

      — A polícia virá imediatamente — ele estava ofegante. — Ninguém deve tocar em nada.

      Poirot fez um gesto de aquiescência.

      — Não tocaremos — disse ele. — Vamos só olhar.

      Mildred acompanhara Donovan e agora todos os quatro jovens em pé no portal o observavam com interesse.

      — Não posso entender uma coisa, senhor — disse Donovan. — Como fui sujar a mão de sangue se não cheguei perto daquela janela?

      — Meu jovem amigo, a resposta está bem na sua frente. De que cor é a toalha da mesa? É vermelha, não é? Com toda a certeza o senhor apoiou-se na mesa.

      — É verdade! Foi assim que... — ele calou-se.

      Poirot balançou a cabeça numa afirmativa. Estava curvado sobre a mesa e indicou com um gesto uma nódoa escura na toalha.

      — O crime foi cometido aqui — declarou num tom solene. — Depois levaram o corpo para a janela.

      Correu os olhos pela sala. Não se moveu, não tocou em nada. e no entanto os quatro espectadores tinham a impressão de que todos os objetos lhe revelavam seus segredos ocultos. Finalmente Hercule Poirot balançou a cabeça como se estivesse satisfeito.

      — Não há dúvida — disse ele.

      — Não há dúvida de quê? — perguntou Donovan curioso.

      — Não há dúvida de que há móveis demais, você estava certo.

      Donovan sorriu.

      — É, andei por aí aos esbarrões — confessou. — Tudo estava em lugar diferente, fiquei um bocado confuso.

      — Nem tudo — disse Poirot.

      Donovan o olhou perplexo.

      — Estava me referindo aos detalhes idênticos dos apartamentos de um mesmo edifício: as portas, as janelas, a lareira, por exemplo, estão dispostos da mesma forma.

      — Onde pretende chegar? — perguntou Mildred olhando para Poirot com um ligeiro ar de desaprovação.

      — Devemos nos expressar com clareza e precisão. É uma mania que eu tenho, mademoiselle.

      Ouviram passos nas escadas e em segundos três homens apareceram no portal: um inspetor da polícia, um guarda e o médico legista. O inspetor reconheceu Poirot e o cumprimentou quase com deferência, antes de virar-se para o grupo:

      — Vou querer ouvir os depoimentos de todos vocês, mas em primeiro lugar...

      Poirot o interrompeu:

      — Permita-me uma sugestão. Nós cinco subiremos para o apartamento de cima pois a mademoiselle vai nos preparar uma omelete, e eu tenho paixão por omeletes. E quando M. le Inspecteur terminar o seu trabalho aqui, poderá subir e interrogar-nos com mais calma.

      A sugestão foi aceita. Nas escadas Pat disse:

      — M. Poirot, o senhor é um amor. Vou lhe preparar uma linda omelete, especialidade minha.

      — Ótimo, mademoiselle. Sabe, uma vez estive apaixonado por uma linda moça inglesa parecida com a senhorita, mas infelizmente ela não sabia cozinhar. Talvez tenha sido melhor assim... — havia um leve tom de tristeza na voz de Poirot e Jimmy Faulkener o olhou com curiosidade.

      Mas no apartamento ele esforçou-se ao máximo para ser um conviva alegre e divertido. A deprimente tragédia do andar inferior quase foi esquecida. Da deliciosa omelete só restava a lembrança quando os passos do inspetor ressoaram nas escadas. Ele entrou em companhia do médico.

      — Bem, M. Poirot, o caso me parece bastante óbvio, bem fora de sua especialidade, embora talvez não seja fácil apanharmos o culpado. Agora gostaria que me contassem como encontraram o corpo.

      Donovan e Jimmy deram as explicações necessárias. O inspetor voltou-se para Pat e a repreendeu:

      — Não deve se esquecer nunca mais de trancar a porta do ascensor, miss. É muito perigoso.

      — Não me esquecerei — disse Pat com um estremecimento. — Alguém pode entrar e me matar como aquela pobre mulher.

      — Mas o criminoso não entrou por lá — disse o inspetor.

      — Pode nos contar o que descobriu? — pediu Poirot.

      — Não sei se devo, mas como se trata do senhor, M. Poirot...

      — Précisement — disse Poirot —, e esses jovens são discretos.

      — Os jornais irão publicar tudo daqui a pouco, de qualquer forma — disse o inspetor. — Bem, a morta é mesmo Mrs. Grant, o porteiro a identificou. Tinha uns trinta e cinco anos. Estava sentada na mesa quando foi atingida por uma bala de pistola de pequeno calibre, provavelmente por alguém que estava sentado em sua frente. Ela caiu sobre a mesa, daí a nódoa de sangue.

      — Mas por que ninguém ouviu o tiro? — perguntou Mildred.

      — A pistola tinha um silenciador. Por falar nisso, ouviram o berro que a criada soltou quando soube que a patroa estava morta? Não? Bem, isso lhes mostra que ninguém deve ter ouvido nada.

      — A empregada não tem nada para contar? — perguntou Poirot.

      — Foi sua noite de folga. Ela tem sua própria chave. Voltou às dez horas, tudo estava em silêncio e ela julgou que a patroa já se deitara.

      — Ela não foi à sala de estar?

      — Foi. Deixou a correspondência entregue pelo carteiro da noite sobre a mesa, mas não notou nada de anormal, pois o assassino escondera o corpo atrás da cortina.

      — Não acha o fato curioso? Por que teria feito isso? — A entonação da voz de Poirot fez com que o inspetor virasse a cabeça:

      — Não queria que descobrissem o corpo até que pudesse escapar.

      — É uma hipótese, mas continue o seu relato.

      — A criada saiu às cinco horas. O doutor aqui diz que a mulher está morta há umas quatro ou cinco horas, não é isso mesmo, doutor?

      O médico, homem de poucas palavras, contentou-se em balançar a cabeça afirmativamente.

      — Faltam quinze minutos para a meia-noite, agora. Podemos determinar a hora do crime com bastante precisão; achamos isto no bolso da morta — e o inspetor mostrou-lhes uma folha amassada de papel. — Não tenha receio de pegá-la, não tem impressões digitais.

      Poirot alisou o papel e leu a curta mensagem escrita em letras de imprensa:

 

      ESTAREI AÍ ESTA NOITE ÀS 7 E MEIA.             J. F.

 

      — O assassino não devia ter-se esquecido de um documento tão comprometedor — comentou Poirot devolvendo-o ao inspetor.

      — Bem, ele não desconfiava que estava no bolso dela, provavelmente calculou que ela o rasgara. Mas teve o cuidado de limpar meticulosamente a pistola com um lenço de seda. Encontramos a arma sob o cadáver e não tinha nenhuma impressão digital.

      — Como sabe que o lenço era de seda? — perguntou Poirot.

      — Porque nós o encontramos — disse o inspetor com uma expressão de triunfo. — Deve tê-lo deixado cair quando fechava as cortinas.

      Ele nos mostrou um grande lenço branco de seda de boa qualidade. Em letras bem nítidas e legíveis lia-se a um canto: John Fraser.

      — John Fraser — disse o inspetor —, o nosso J. F. do bilhete. Já sabemos o nome do assassino, e quando descobrirmos os parentes da morta saberemos onde procurá-lo.

      — Não tenho tanta certeza de que o pegarão assim tão facilmente — disse Poirot. — Esse John Fraser é uma personalidade estranha, cuidadoso e descuidado ao mesmo tempo, marca seus lenços e limpa as impressões digitais, mas esquece-se do bilhete e deixa cair o lenço incriminador...

      — Devia estar nervoso — disse o inspetor.

      — É possível — retrucou Poirot. — Ninguém o viu entrar no edifício?

      — Há sempre muito movimento, o número de apartamentos é grande. Por acaso algum de vocês — disse o inspetor dirigindo-se ao grupo — não viu alguém suspeito deixando o prédio.?

      Pat sacudiu a cabeça.

      — Nós saímos antes, por volta das sete.

      O policial despediu-se e Poirot o acompanhou até a porta:

      — Com a sua permissão, gostaria de examinar o apartamento da morta.

      — Ora, certamente, M. Poirot. Meus chefes o têm em alto conceito. Vou lhe deixar uma das chaves que tenho. O apartamento deve estar vazio, a empregada foi para a casa de uns parentes, pois teve receio de passar a noite lá.

      — Obrigado — disse Poirot, e voltou para o apartamento de Pat com ar pensativo.

      — Não está satisfeito, M. Poirot? — perguntou Jimmy.

      — Não, não estou satisfeito.

      Donovan o olhou com curiosidade.

      — O que o preocupa?

      Poirot não respondeu. Ficou em silêncio alguns momentos com o cenho franzido e finalmente ergueu os ombros num gesto de impaciência.

      — Vou me retirar, mademoiselle. Deve estar bem cansada depois de cozinhar para tantas pessoas, não é?

      Pat riu.

      — Foi só o omelete, não jantaram aqui. Fomos comer num pequeno restaurante em Soho com Donovan e Jimmy.

      — E certamente depois ao teatro, não?

      — Acertou. Fomos ver Os Olhos Castanhos de Caroline.

      — Não deviam ser mais bonitos que os olhos azuis de mademoiselle — disse Poirot num galanteio, e desejou mais uma vez uma boa noite a Pat e a Mildred. Esta, atendendo a insistentes apelos de Pat. passaria ali a noite, pois a amiga confessara francamente que não conseguiria dormir sozinha, de pavor.

      Os dois jovens acompanharam Poirot. Quando a porta se fechou Poirot antecipou-se às suas despedidas:

      — Meus caros jovens, estava sendo sincero quando disse que não estava satisfeito. Vou descer e fazer minha investigaçãozinha particular. Gostariam de me acompanhar?

      A proposta foi recebida com entusiasmo. Desceram as escadas e após abrir a porta com a chave recebida do inspetor Poirot não se dirigiu para a sala de estar, como seus companheiros esperavam. Em vez disso foi direto à pequena área junto da cozinha, abriu uma grande lata de lixo metálica e começou a revolver o seu conteúdo com a energia de um terrier. Jimmy e Donovan o observavam espantados.

      — Voilà! — exclamou, subitamente e com uma expressão triunfante ergueu-se tendo na mão um vidro arrolhado. — Achei o que procurava — e levou cautelosamente o vidro ao nariz. — Ora, que pena, estou resfriado!

      Donovan adiantou-se, pegou o vidro e o cheirou, mas como não percebesse nenhum odor, retirou a rolha e levou novamente o recipiente ao nariz antes que Poirot pudesse impedi-lo. Instantaneamente perdeu os sentidos, mas o detetive, precipitando-se em seu auxílio, conseguiu suavizar sua queda.

      — Imbecile! Que idéia! Ele não reparou como segurei o vidro com cautela? Monsieur... Faulkener, quer me fazer o favor de apanhar um pouco de brandy? Vi uma garrafa na sala de estar.

      Jimmy saiu apressado, mas quando voltou Donovan já estava sentado protestando que estava bem. Poirot fez-lhe uma pequena preleção sobre a necessidade de cautela ao cheirar uma substância desconhecida.

      — Acho que vou para casa — disse Donovan levantando-se ainda trôpego, — Isto é, se não precisam mais de mim. Estou um pouco tonto ainda.

      — É uma boa idéia — concordou Poirot. — M. Faulkener, espere por mim um instante, voltarei logo.

      Depois de acompanhar Donovan até a porta, Poirot dirigiu-se à sala de estar, onde Jimmy o esperava com uma expressão de perplexidade:

      — O que vamos fazer agora, M. Poirot?

      — Nada mais. O caso está encerrado.

      — Como?

      — Agora já sei de tudo.

      Jimmy olhou para ele.

      — Por causa daquele vidro?

      — Exatamente, por causa daquele vidro.

      Jimmy sacudiu a cabeça.

      — Não consigo entender nada. Só percebo que por alguma razão o senhor não está satisfeito com as provas contra John Frazer, seja lá quem for esse cavalheiro.

      — Seja lá quem for — repetiu Poirot com uma expressão pensativa. — Para mim será uma grande surpresa se ele existir.

      — Não estou entendendo.

      — Esse cavalheiro não passa de um nome, uma marca fictícia num lenço.

      — Mas, e o bilhete?

      — Não reparou que estava escrito em letras de imprensa? Um trecho datilografado ou em caligrafia corrente são identificáveis, mas um John Fraser de carne e osso não se importaria com isso, não após assinar o bilhete. Não, aquela mensagem é uma pista falsa, colocada propositalmente no bolso da morta para que a encontrássemos. Não existe ninguém chamado John Fraser.

      Jimmy o encarou perplexo.

      — Com esta dedução voltei ao primeiro detalhe que me atraiu a atenção. Você me ouviu comentar que existem detalhes idênticos em apartamentos superpostos. Dei-lhes três exemplos, e poderia ter acrescentado um quarto: os interruptores de luz, meu amigo.

      Jimmy o olhava ainda sem compreender. Poirot prosseguiu:

      — Seu amigo Donovan não passou perto da janela, sujou a mão de sangue na toalha da mesa, e eu perguntei a mim mesmo: por que ele estaria andando pela sala escura? Não se esqueça de que o interruptor fica junto à porta. Por que ele não o acendeu logo? Era o mais natural! Segundo ele, a luz da cozinha estava queimada, mas quando apertei o interruptor ela funcionou perfeitamente. Acuso ele não estaria evitando que você percebesse que haviam se enganado de apartamento? Não teria então um pretexto para vir a esta sala.

      — A que ponto está querendo chegar, M. Poirot?

      — A este — disse o homenzinho mostrando-lhe uma chave Yale.

      — É a chave deste apartamento?

      — Não, mon ami, é a chave do apartamento de cima, a chave de Mademoiselle Patrícia, que M. Donovan surrupiou de sua bolsa em algum momento desta noite.

      — Mas por quê? Qual a razão?

      — Parbleu! Para que pudesse realizar seu intento: entrar nesse apartamento de uma forma inteiramente inocente. Tivera a precaução de destrancar a porta do ascensor.

      — Onde achou essa chave?

      Poirot sorriu.

      — Acabei de encontrá-la onde deduzi que estaria: no bolso de M. Donovan. Entenda, aquele vidro não estava na lixeira, foi um ardil, e M. Donovan caiu como um patinho na armadilha. Consegui meu intento: ele aspirou o conteúdo, clorido de etila, um anestésico muito poderoso e instantâneo. Ficou inconsciente alguns segundos, o suficiente para que eu tirasse de seu bolso os dois objetos que procurava. Esta chave é um deles.

      Ele fez uma pausa e prosseguiu:

      — Não me pareceu plausível a explicação do inspetor para o fato do corpo estar escondido atrás da cortina. Somente para ganhar tempo? Um outro pensamento me ocorreu: o correio! O carteiro da noite passa mais ou menos às nove e meia, e digamos que o assassino, não tendo encontrado o que procurava, tenha deduzido que este algo possa ser entregue pelo correio noturno. Ele precisava voltar e resolve esconder o corpo para impedir que a criada o descubra e chame a polícia. Sem suspeitar de nada, esta deixa a correspondência sobre a mesa, como sempre.

      — Uma carta?

      — Exatamente, eis o outro objeto que retirei do bolso de M. Donovan quando estava inconsciente — e Poirot mostrou-lhe um envelope endereçado a “Mrs. Ernestine Grant”. — Mas antes de vermos seu conteúdo, quero lhe fazer uma pergunta: o senhor está apaixonado por Mademoiselle Patrícia?

      — Sou louco por ela, mas não creio que tenha chance.

      — Pensou que ela gostasse de M. Donovan? É possível que ela tenha começado a se apaixonar por ele, mas foi só um prelúdio, meu amigo. Cabe-lhe fazê-la esquecer, dar-lhe o seu apoio nessa hora difícil.

      — Hora difícil? — estranhou Jimmy.

      — Exatamente, meu amigo. Faremos o possível para conservar o nome dela longe deste caso, mas não conseguiremos abafar totalmente a ligação. Sabe, ela foi o motivo do crime.

      Poirot rasgou o envelope e um documento caiu ao chão. Anexa vinha uma carta de uma firma de advogados:

 

      “Cara senhora,

      A certidão anexa é perfeitamente legal. O fato do casamento ter sido realizado num país estrangeiro não o invalida.

                                                  A seu dispor...”

 

      Poirot apanhou a outra folha. Era uma certidão de casamento de Donovan Bailey e Ernestine Grant, com data de oito anos atrás.

      — Meu Deus! — exclamou Jimmy. — Patty recebeu hoje uma carta dessa mulher dizendo que precisava falar-lhe, mas ela nunca imaginou que o assunto fosse importante!

      Poirot balançou a cabeça num gesto de compreensão.

      — Mas M. Donovan sabia do que se tratava, e veio ao apartamento da mulher pouco antes de subir à casa de Pat. Aliás foi uma estranha ironia do destino que conduziu esta mulher para o mesmo prédio de sua rival. Ele matou a esposa a sangue-frio e subiu para passar uma alegre noitada com sua nova paixão. Antes de ser assassinada a esposa deve ter-lhe dito que mandara a certidão a seus advogados e esperava uma resposta ainda hoje. Com toda a certeza ele havia tentado convencê-la de que o casamento não era válido.

      — E ele esteve tão bem-humorado a noite toda! — Jimmy estremeceu. — M. Poirot, será que não o deixou escapar?

      — Para ele não há escapatória possível — disse Poirot com gravidade,. — Não tenha receio.

      — É Pat quem me preocupa. Acredita que ela o amava?

      — Mon ami, cabe a você fazê-la esquecer. Não acredito que a tarefa seja difícil...

 

O Duplo Delito

      Ao visitar meu amigo Poirot, encontrei-o sobrecarregado de trabalho. Tal era sua fama, que toda grã-fina que desse por falta de uma pulseira, ou perdesse seu gatinho de estimação, recorria imediatamente aos serviços do grande Hercule Poirot. Meu amigo era uma estranha mistura de parcimônia flamenga e fervor artístico, e aceitava muitos casos pouco interessantes quando o primeiro instinto predominava. Mas quando o problema o interessava, envolvia-se embora o caso não compensasse financeiramente. O resultado é que trabalhava demais. Ele mesmo admitiu o fato, e não tive dificuldades de convencê-lo a me acompanhar numa semana de férias a Ebermouth, o conhecido balneário da costa sul da Inglaterra.

      Quatro dias agradabilíssimos haviam decorrido quando Poirot me procurou com uma carta nas mãos:

      — Lembra-se de meu amigo Joseph Aarons, o empresário teatral?

      Aquiesci após uns momentos de reflexão. Os amigos de Poirot são em grande número e variados, incluindo garis e duques.

      — Eh bien, Hastings, Joseph Aarons está em Charlock Bay. Sua saúde não está boa, e alguma coisa o preocupa. Ele é um amigo fiel, e me auxiliou muito no passado. O bom Joseph me pede para ir vê-lo, e creio que atenderei o seu chamado.

      — E tem toda razão — disse eu. — Ouvi dizer que Charlock Bay é um lugar lindo.

      — Então poderemos unir o útil ao agradável — disse Poirot. — Pode se informar sobre o horário dos trens?

      — É provável que tenhamos algumas baldeações pelo caminho — disse eu com uma careta. — Sabe como são esses trens do interior. Às vezes leva-se um dia inteiro para ir do sul até o norte de Devon.

      Entretanto descobri que a viagem só incluía uma baldeação em Exeter, em trens confortáveis. Voltava apressado para transmitir essa informação a Poirot quando vi anunciado na vitrina da Agência de Transportes Rápidos uma excursão de um dia a Charlock Bay. “Amanhã” — dizia o cartaz — “Saída às 8:30. O trajeto inclui algumas das mais belas paisagens de Devon”. Pedi detalhes e voltei ao hotel cheio de entusiasmo. Infelizmente Poirot não compartilhou da minha animação.

      — Meu amigo, onde arranjou essa súbita paixão pelas jardineiras?2 Os trens são muito mais seguros, sem pneus passíveis de um estouro, nem vento excessivo, e o risco de acidentes é muito menor. Poderemos fechar as janelas e evitar correntes de ar.

      Insinuei delicadamente que as delícias do ar fresco constituíam para mim um dos atrativos das jardineiras.

      — E se chover? O clima inglês é muito instável.

      — A jardineira tem capota. Além disso, se chover muito, a excursão será cancelada.

      — Ah! — fez Poirot. — Então vamos torcer para que chova.

      — Se você faz tantas objeções...

      — Não, não, mon ami. Estou vendo que a perspectiva o entusiasma, e felizmente trouxe meu sobretudo e dois cachecóis — e ele suspirou. — Ao menos teremos tempo suficiente em Charlock Bay?

      — Bem, precisaremos passar a noite lá. Daremos a volta por Dartmoor, almoçaremos em Monkhampton e por volta das quatro chegaremos a Charlock Bay. A jardineira inicia a viagem de volta às cinco e chega aqui às dez da noite.

      — Imagine só! E ainda há gente que faz uma viagem dessas por prazer! Naturalmente teremos um desconto, já que não voltaremos na jardineira.

      — Não acho muito provável, não.

      — Mas você deve fazer questão do desconto!

      — Vamos, Poirot, não seja tão parcimonioso. Você está praticamente nadando em dinheiro.

      — Meu amigo, é uma questão de princípio. Ainda que fosse milionário só pagaria o preço justo e razoável.

      Entretanto, como eu previra, desta vez Poirot perdeu. O cavalheiro do guichê da Agência de Transportes Rápidos,, embora calmo e amável, manteve-se inflexível. Segundo seu ponto de vista deveríamos fazer a excursão completa. Chegou até mesmo a insinuar que deveríamos pagar uma taxa extra pelo privilégio de saltar em Charlock Bay. Derrotado, Poirot pagou a quantia exigida e saímos.

      — Os ingleses não têm noção de dinheiro — ele resmungou. — Reparou naquele jovem que pretende saltar em Monkhampton e no entanto pagou a passagem inteira?

      — Não. Para falar a verdade...

      — Você estava observando aquela bela mocinha que reservou o banco número cinco, junto aos nossos. Vi muito bem, meu amigo, e foi por causa dela que você protestou dizendo que os lugares quatro e cinco eram melhores, quando eu quis reservar o quatorze e o quinze, bem no centro e protegidos.

      — Ora, Poirot... — disse eu corando.

      — Os cabelos castanhos avermelhados são o seu fraco, não?

      — De qualquer maneira valia mais a pena olhar para ela do que para o tal rapaz.

      — Depende do ponto de vista. A mim, o jovem interessou.

      Uma entonação estranha na voz de Poirot atraiu minha atenção.

      — Por quê? De que maneira?

      — Ah, não se exalte, ele me interessou porque estava deixando crescer o bigode e o resultado era desanimador — Poirot acariciou com orgulho sua imponente bigodeira. — Cultivar um bigode é uma arte. Tenho simpatia por todos que a praticam.

      Era sempre difícil saber quando Poirot falava sério, ou quando estava simplesmente se divertindo à custa dos outros. Achei mais prudente cortar o assunto.

      O dia seguinte amanheceu limpo e ensolarado, uma belíssima manhã. Poirot, entretanto, não ia se arriscar. Usava um colete de lã, um sobretudo, uma capa impermeável, e dois cachecóis, além de trajar o seu terno mais grosso. Antes de sairmos engoliu dois comprimidos antigripais e enfiou mais alguns no bolso.

      Levamos conosco duas pequenas valises. A bela mocinha que víramos na véspera também levava uma. assim como o jovem que despertara a simpatia de Poirot. Mais ninguém trazia bagagem. O motorista guardou as quatro valises no compartimento próprio e ocupamos nossos lugares.

      Poirot, com malícia, deixou-me o banco da ponta, “já que eu tinha mania de ar fresco”, e sentou-se junto à nossa bela companheira. Dali a pouco, entretanto, a pretexto de que o ocupante do banco seis era tagarela e atrevido, ofereceu-se, em voz baixa, para trocar de lugar com a mocinha. Ela concordou, agradecida, e entabulamos uma conversa agradável e animada.

      Ela era bem jovem, com menos de vinte anos, e ingênua como uma criança. Logo confiou-nos o objetivo de sua viagem. Ia a Charlock Bay a serviço de sua tia, proprietária de uma loja de antigüidades em Ebermouth. Esta senhora ficara numa situação precária com a morte do pai e empregara o seu pequeno capital e o punhado de belos objetos que ornamentavam sua casa para abrir a loja. Obtivera grande sucesso e firmara sua reputação no ramo. A moça, Mary Durrant, estava morando com a tia para iniciar-se no negócio, e estava muito entusiasmada com o trabalho, achando-o muitas vezes superior à alternativa de tornar-se uma governanta ou dama de companhia.

      Poirot ouviu-a com interesse e demonstrou sua aprovação:

      — Estou certo de que mademoiselle terá sucesso em sua profissão — disse ele com galanteria. — Mas permita-me um conselho: não seja demasiado confiante. O mundo está cheio de pilantras e vigaristas. Pode encontrá-los até mesmo aqui nessa jardineira. Deve estar sempre alerta, e suspeitar de todos!

      Ela o encarou com uma expressão de pasmo, e ele sacudiu a cabeça, com um ar solene.

      — É, não tenha dúvidas, não. Até eu posso ser um malfeitor da pior espécie — e seus olhos brilharam divertidos ante o rosto surpreso da moça.

      Paramos em Monkhampton para almoçar. Após umas palavras com o garçom, Poirot nos arranjou uma mesa para três junto à janela. Fora, num grande pátio, umas vinte jardineiras estavam estacionadas, procedentes de todo o país. O restaurante do hotel estava repleto e o barulho era considerável.

      — Essa atmosfera de férias atordoa um pouco, não? — disse eu com uma careta.

      Mary Durrant concordou.

      — Os verões em Ebermouth não são mais como antigamente. As calçadas estão sempre apinhadas de gente. Minha tia costuma dizer que era muito diferente.

      — Mas o turismo é bom para o comércio local, mademoiselle.

      — Para nós não faz diferença. Só vendemos objetos raros e valiosos, nada de quinquilharia barata. Minha tia tem fregueses em todo o país. Quando querem uma mesa ou uma cadeira de um determinado período, escrevem para ela, e mais cedo ou mais tarde ela arranja o que procuram. Foi o que aconteceu há pouco tempo.

      Mostramo-nos interessados e ela explicou. Um certo cavalheiro americano, Mr. J. Baker Wood, era connaisseur e colecionador de miniaturas. Um jogo muito valioso de miniaturas havia sido posto à venda recentemente e fora adquirido por Miss Elizabeth Penn, a tia de Mary. Ela escrevera a Mr. Wood, descrevendo a mercadoria e ele respondera imediatamente que estava disposto a comprá-la se correspondesse à descrição. Pediu que as miniaturas fossem levadas a Charlock Bay, onde estava hospedado. E ali seguia a nossa amiga como representante da firma.

      — Elas são lindas, sem dúvida alguma — disse a moça — mas não posso imaginar como exista alguém disposto a pagar quinhentas libras por elas. É muito dinheiro. Foram pintadas por Cosway.... será que o nome é esse mesmo? Ainda me confundo toda nesses detalhes.

      Poirot sorriu.

      — Mademoiselle ainda não tem muita experiência, não é?

      — Não tive nenhum preparo especial para esse ramo — disse ela aborrecida. — Nunca me ensinaram nada sobre coisas antigas, tenho muito que aprender — disse ela num suspiro. De repente arregalou os olhos. Seu lugar era em frente à janela, e estivera olhando para o pátio. Com uma exclamação levantou-se e saiu, quase correndo. Voltou em poucos minutos, ofegante, e desculpou-se:

      — Sinto muito ter saído correndo daquele jeito, mas pensei ter visto um homem tirando minha mala da jardineira. Corri atrás dele, mas a mala era dele mesmo. Era quase igual a minha e fiquei com cara de boba. Parecia que eu o estava acusando de ladrão — e ela riu-se à lembrança.

      Poirot entretanto não riu.

      — Como era esse homem, mademoiselle? Descreva-o para mim.

      — Vestia um terno marrom, um rapaz magricela com um bigode bem ralo.

      — Haha! — fez Poirot. — É o nosso amigo, Hastings. Conhece esse homem, já o viu antes?

      — Não, nunca. Por quê?

      — Nada. É curioso, é só.

      Ele calou-se e não tomou mais parte na conversa até que uma frase de Mary Durrant atraiu sua atenção.

      — O que disse, mademoiselle?

      — Na viagem de volta precisarei tomar cuidado com os malfeitores, pois Mr. Wood sempre paga em dinheiro sonante. E com quinhentas libras em meu poder serei uma bela isca para ladrões.

      Ela tornou a rir, mas Poirot não a acompanhou. Em vez disso perguntou-lhe onde iria hospedar-se em Charlock Bay.

      — No Anchor Hotel. É pequeno e não é dispendioso, mas é bem razoável.

      — Ora, no mesmo hotel em que vamos ficar! — Poirot piscou para mim.

      — Vão demorar-se muito em Charlock Bay? — perguntou Mary.

      — Só uma noite. Tenho um trabalho a realizar. Não adivinha qual é a minha profissão, mademoiselle?

      Vi que Mary pesava várias hipóteses e as rejeitava, provavelmente por cautela. Afinal arriscou o palpite de que Poirot era um mágico. Ele ficou encantado.

      — Ah, que bela idéia! Então mademoiselle pensa que tiro coelhos de uma cartola? Não, não, eu sou o oposto de um mágico. Um mágico faz desaparecer objetos, e eu os faço aparecer! — ele inclinou-se diante dela e disse num tom melodramático para dar mais impacto à sua revelação: — É segredo, mademoiselle, mas vou lhe contar: sou um detetive!

      Ele recostou-se na cadeira satisfeito com o resultado obtido. Mary Durrant o olhava estupefacta. Mas a conversa foi interrompida pelo ronco das buzinas anunciando que o nosso veículo estava pronto para retomar o caminho.

      Poirot e eu saímos juntos comentando o encanto de nossa companheira de viagem.

      — Ela é mesmo encantadora — disse ele. — Mas avoada.

      — Avoada?

      — Não se exalte, Hastings. Uma moça pode ser linda, com belos cabelos avermelhados, e ainda assim ser avoada. É o cúmulo da insensatez confiar em dois estranhos, como ela fez.

      — Bem, ela viu que éramos pessoas honestas.

      — Isso é uma tolice, meu amigo. Qualquer bom vigarista tem uma aparência perfeitamente respeitável. Aquela mocinha disse que precisaria ter cuidado quando tivesse as quinhentas libras em seu poder. Mas ela já as tem, nesse momento.

      — Em miniaturas.

      — Exatamente, em miniaturas, mon ami. E não há muita diferença.

      — Mas ninguém sabe disso além de nós.

      — Nós, o garçom, o pessoal da mesa ao lado, e com certeza muita gente em Ebermouth. Mademoiselle Durrant é encantadora, mas se eu fosse Miss Elizabeth Penn primeiro lhe daria lições de bom senso — ele calou-se e acrescentou mudando de tom: — Meu amigo, seria a coisa mais fácil da mundo roubar uma valise desta jardineira enquanto estávamos almoçando.

      — Ora, vamos, Poirot, alguém veria, com toda a certeza.

      — Veria o quê? Uma pessoa retirando a sua bagagem. O ladrão poderia agir abertamente e ninguém suspeitaria.

      — Poirot, você está insinuando que... Mas a valise que o rapaz de terno marrom levou era dele mesmo.

      Poirot franziu a testa.

      — É, parece. De qualquer forma é curioso que ele não tenha retirado a bagagem logo. que chegamos. Não sei se você notou que ele não almoçou aqui, Hastings.

      — Se Miss Durrant não estivesse em frente da janela nem o teria visto — disse eu lentamente.

      — E não teria importância, pois a mala era dele — disse Poirot. — Portanto vamos esquecer este assunto, meu amigo.

      Apesar dessas palavras, quando a viagem recomeçou, ele aproveitou a oportunidade para fazer a Miss Durrant mais uma pequena preleção sobre os perigos da indiscrição. Ela ouviu com complacência, com um leve sorriso.

      Chegamos a Charlock Bay às quatro horas e tivemos a sorte de conseguir quartos no Anchor Hotel, uma encantadora e antiquada hospedaria numa das ruas secundárias.

      Poirot abrira a mala e passava uma pomada nos bigodes preparando-se para uma visita a Joseph Aarons, quando ouvimos batidas insistentes em nossa porta. — Entre — gritei, e para meu mais completo espanto, a porta abriu-se e lá estava Mary Durrant com o rosto muito pálido e os olhos cheios de lágrimas.

      — Peço-lhes desculpas, mas aconteceu uma coisa horrível. As miniaturas desapareceram! Elas estavam nesse estojo de crocodilo dentro da minha mala, vejam! — e ela estendeu-o a Poirot. A fechadura fora forçada, os sinais eram evidentes. — Elas sumiram, foram roubadas. O que farei agora?

      — Não se preocupe — disse eu. — Meu amigo é Hercule Poirot. A senhorita deve ter ouvido falar nele. Se for possível recuperar as suas miniaturas, ele o fará.

      — Monsieur Poirot! O grande Monsieur Poirot!

      Poirot era vaidoso, e a óbvia admiração na voz da moça deve ter-lhe sido agradável.

      — Sim, minha filha, sou eu mesmo. Deixe o seu problema em minhas mãos, farei todo o possível. Mas receio que seja tarde demais. Diga-me, a fechadura da mala também foi forçada?

      Ela sacudiu a cabeça numa negativa.

      — Deixe-me vê-la.

      Fomos ao quarto dela e Poirot examinou a mala com cuidado. Não havia sinais de arrombamento.

      — As fechaduras dessas malas são todas muito semelhantes, não haveria grande dificuldade em abri-la com outra chave. Eh bien, precisamos telefonar à polícia e entrar em contato com Mr. Baker Wood o mais cedo possível. Tratarei disso pessoalmente.

      Saímos e perguntei-lhe o que insinuara com aquele “tarde demais”.

      — Mon cher, apesar de eu ser o oposto de um mágico e fazer reaparecer objetos perdidos, talvez alguém tenha se antecipado a mim. Ainda não compreendeu? Compreenderá dentro de um minuto.

      Ele dirigiu-se a uma cabina telefônica, de onde saiu, depois de alguns minutos de conversa, com uma expressão taciturna.

      — O que receava, aconteceu. Uma senhora procurou Mr. Wood há meia hora dizendo-se enviada por Miss Elizabeth Penn. Ele ficou encantado com as miniaturas e pagou imediatamente o preço pedido.

      — Há meia hora? Foi antes de chegarmos aqui! E o que faremos agora?

      — Meu bom Hastings, sempre o homem prático! Vamos informar a polícia e ter uma entrevista com Mr. J. Baker Wood. Faremos por Miss Durrant o que estiver em nosso alcance.

      A infeliz Mary estava terrivelmente preocupada com receio de que a tia a culpasse pelo acontecido.

      — O que ela fará, muito provavelmente, com toda razão, — comentou Poirot quando saímos para o Hotel Beiramar onde Mr. Wood estava hospedado. — Que idéia a dela, ir almoçar e deixar quinhentas libras em objetos valiosos dentro da jardineira! Mas há detalhes desse caso que são curiosos, meu amigo. Por que forçaram a fechadura daquele estojo?

      — Para tirar as miniaturas, ora.

      — Parece-me uma tolice. Imagine o ladrão remexendo naquela mala, a pretexto de retirar sua bagagem. Não era muito mais simples transferir o estojo para a sua valise e safar-se, do que perder tempo forçando fechaduras?

      — Ele queria certificar-se de que as miniaturas estavam ali.

      Poirot não pareceu convencido, mas naquele instante fomos admitidos aos aposentos de Mr. Wood e não houve tempo para mais discussões.

      Senti uma antipatia instantânea por Mr. Baker. Era um homem grandalhão, de aspecto vulgar, com roupas espalhafatosas e um grande solitário no dedo. Mostrou-se agressivo e loquaz.

      Não, não suspeitara de nada. E por que haveria de suspeitar? A mulher trouxera as miniaturas e eram belos exemplares. Não, não tomara nota dos números das notas. E quem era Poirot para lhe fazer tantas perguntas?

      — Só lhe pedirei mais uma informação, monsieur. Descreva-me essa mulher, por favor. Acaso era jovem e bonita?

      — Não senhor, de forma alguma. Era uma mulher de meia-idade, alta, de cabelos grisalhos, pele manchada e buço. marcado. Estava longe de ser uma sereia sedutora.

      — Poirot! — exclamei quando saímos. — Ouvi-o mencionar o bigode?

      — Minha audição felizmente é normal, Hastings.

      — E que homem desagradável!

      — É, suas maneiras estão longe de ser modelares.

      — Bem, deve ser fácil agarrar o ladrão — comentei. — Nós poderemos identificá-lo. Acredita que ele tenha um álibi?

      — Espero que sim, sinceramente — respondeu Poirot, para minha surpresa.

      — O seu problema é que gosta de complicar as coisas.

      — Tem razão, mon ami. Eu não gosto... como dizer? Eu não gosto da caçada sem emoções.

      A profecia de Poirot realizou-se. Nosso companheiro de viagem de terno marrom chamava-se Mr. Norton Kane. Fora direto ao George Hotel em Monkhampton e lá passara toda a tarde. A única prova contra ele era o fato de Miss Durrant tê-lo visto mexer no depósito de bagagens.

      — O que é um ato inocente, em si — disse Poirot com um ar pensativo.

      Após esse comentário ele ficou em silêncio o recusou-se a discutir mais o assunto dizendo, quando o pressionei, que estava pensando em bigodes em geral, e que eu deveria seguir o seu exemplo.

      Descobri porém que ele pedira informações a Joseph Aarons, com quem jantara, sobre Mr. Baker Wood. Como estavam ambos hospedados no mesmo hotel, havia a possibilidade de colher alguns dados. Mas Poirot guardou para si o que conseguira descobrir.

      Mary Durrant, depois de interrogada pela polícia, voltara a Ebermouth pelo primeiro trem da manhã. Almoçamos com Joseph Aarons, e à tarde Poirot declarou ter resolvido satisfatoriamente o problema de seu velho amigo, e estar livre para retornar a Ebermouth.

      — Mas desta vez, vamos de trem.

      — Está com receio de deparar com algum ladrão de carteiras, ou alguma outra donzela em perigo?

      — Isso pode acontecer tanto numa jardineira quanto num trem. Não, tenho pressa em chegar a Ebermouth e resolver o nosso caso.

      — Nosso caso?

      — Exatamente, meu amigo. Mademoiselle Durrant procurou minha ajuda. Só porque a polícia assumiu as rédeas da investigação, não quer dizer que eu vá lavar minhas mãos. Ninguém dirá que Hercule Poirot abandonou um estranho em dificuldades! — disse ele com um ar majestoso.

      — Penso que o seu interesse é ainda anterior a todos esses acontecimentos — eu arrisquei. — Começou na agência de viagens quando viu aquele rapaz, embora não saiba o que despertou a sua atenção.

      — Pois devia saber, Hastings. Mas vou guardar esse pequeno segredo, por enquanto.

      Antes de partirmos, trocamos algumas palavras com o inspetor da polícia encarregado do caso. Ele havia interrogado Mr. Norton Kane, e revelou confidencialmente a Poirot que a reação do jovem não o impressionara de modo favorável. O rapaz ficara nervoso, negara a acusação, mas fizera declarações contraditórias.

      — Mas ainda não sei como deu o golpe — confessou o inspetor. — Talvez tenha entregue as miniaturas a um cúmplice que seguiu imediatamente de carro para Charlock Bay. Mas por enquanto são só teorias. Precisamos encontrar esse cúmplice para poder acusá-lo.

      Poirot balançou a cabeça pensativo.

      — Concorda com a teoria do inspetor? — perguntei a Poirot no trem.

      — Não, meu amigo. Foi um golpe ainda mais inteligente.

      — Não vai me contar o que sabe?

      — Ainda não. Você conhece minhas fraquezas. Gosto de manter meus segredos até o final.

      — E o final está próximo?

      — Muito próximo.

      Chegamos a Ebermouth um pouco depois das seis, e Poirot dirigiu-se imediatamente à loja de antiguidades de Miss Elizabeth Penn. A porta estava fechada, mas Poirot tocou a campainha e dali a pouco a própria Mary veio abrir a porta. Pareceu surpresa e encantada ao ver-nos.

      — Por favor, entrem. Minha tia está lá dentro.

      Ela nos levou a uma sala nos fundos. Uma velha senhora de cabelos brancos, pele rosada e olhos azuis, parecendo ela própria uma delicada miniatura antiga, recebeu-nos. Usava em volta dos ombros uma mantilha de renda finíssima.

      — É o grande Monsieur Poirot? — disse ela numa voz suave e agradável. — Mal posso acreditar. O senhor está realmente disposto a nos auxiliar?

      Poirot olhou-a por um momento e fez-lhe uma mesura.

      — Mademoiselle Penn, é uma visão encantadora. Mas alguma vez considerou a hipótese de deixar crescer o bigode?

      Miss Penn prendeu a respiração e recuou.

      — A senhora não estava em sua loja ontem, não é?

      — Estive aqui de manhã, mas à tarde senti uma forte dor de cabeça e fui para casa.

      — Para casa, não, mademoiselle. Pensou que uma mudança de ares faria bem a sua enxaqueca, não foi? O ar de Charlock Bay é muito revigorante, não é? — Poirot me pegou pelo braço e andou em direção à porta. Antes de sairmos, ele voltou-se para ela:

      — Compreenda, eu sei de tudo. A sua encenação deve ter um fim — havia uma ameaça em sua voz.

      Miss Penn, muito pálida, balançou a cabeça numa aquiescência muda. Poirot virou-se para a moça:

      — Mademoiselle — ele disse com gentileza —, é jovem e encantadora. Mas se continuar a envolver-se em tais aventuras, sua juventude acabará indo fenecer atrás das grades de uma prisão. E eu, Hercule Poirot, digo-lhe que será uma pena!

      Ele abriu a porta e saiu, e eu o segui, atordoado.

      — Desde o começo eu estava intrigado, mon ami. Aquela moça interessou-se subitamente por nosso companheiro Mr. Kane quando ele reservou passagem até Monkhampton. Por que motivo? Ele não era do tipo que atrai a atenção de uma mulher. Quando tomamos a jardineira tive a intuição de que algo anormal iria se passar. Quem viu o jovem remexer na bagagem? Só a nossa amiga, e lembre-se de que ela escolheu o lugar de frente para a janela, uma escolha pouco feminina. Depois ela nos procura com aquela história de roubo, e nada justificava terem forçado a fechadura do estojo, como eu disse naquela altura.

      — E qual é o resultado disso tudo? — prosseguiu Poirot. — Mr. Baker Wood pagou um bom dinheiro por mercadoria roubada, que será devolvida a Miss Penn. Ela tornará a vendê-la, e. ganhará mil libras, em vez de quinhentas. Fiz algumas perguntas discretas e descobri que seus negócios vão mal, está à beira da falência. E então disse a mim mesmo: a tia e a sobrinha são cúmplices dessa falcatrua.

      — E nunca suspeitou de Norton Kane?

      — Mon ami! Com um bigode daqueles? Um criminoso usa o rosto escanhoado, ou então um bigode de verdade que possa ser removido. Mas aqueles fiozinhos tímidos? . . Que oportunidade para uma senhora idosa de pele clara! Basta ela enfiar uns sapatos pesados, acrescentar umas manchas a sua pele e uns cabelinhos esparsos ao lábio superior e qual o resultado? Uma mulher com um jeito masculino, na opinião de Mr. Wood. E nós julgaríamos logo tratar-se de um homem disfarçado em mulher!

      — Ela foi mesmo a Charlock Bay ontem?

      — Com toda a certeza. O trem, como você me informou, sai daqui as onze e chega a Charlock Bay às duas horas. E o trem de retorno é ainda mais rápido: sai de lá às quatro e cinco e chega aqui às seis e quinze. Não, as miniaturas nunca estiveram naquele estojo. Ele foi forçado antes da viagem. Mary só precisava encontrar dois bobos que se deixassem envolver por seus encantos e estivessem dispostos a se transformar em defensores da beleza desvalida ... Mas acontece que um dos bobos não era bobo, e sim, Hercule Poirot.

      Não gostei da indireta e retruquei:

      — E você me tapeou deliberadamente com aquela conversa de ajudar estranhos em dificuldades!

      — Eu nunca o enganei, Hastings. Só permiti que você se enganasse a si próprio. Referia-me a Mr. Baker Wood, um hóspede estrangeiro nessas plagas — e seu rosto assumiu uma expressão indignada: — Ah, quando penso naquela exploração, naquele abuso de cobrar por uma passagem de ida a Charlock Bay o mesmo preço de ida e volta, sinto meu sangue ferver! Mr. Baker Wood não é um homem agradável, nem simpático, mas é um visitante numa terra alheia. E nós precisamos nos unir, Hastings. É preciso proteger os visitantes!

 

O Mistério de Market Basing

      — Não há nada como o campo, não é verdade? — perguntou o inspetor Japp inspirando sofregamente pelo nariz e soltando o ar pela boca, na forma recomendada pelos entendidos.

      Poirot e eu concordamos plenamente. Partira do inspetor da Scotland Yard a idéia de passarmos o fim de semana em Market Basing, uma cidadezinha do interior. Nas horas de folga Japp era um ardoroso botânico e discorria sobre flores minúsculas com estranhos nomes em latim (pronunciados de forma ainda mais estranha), com mais entusiasmo do que dedicava a seus casos.

      — A grande vantagem está em não conhecermos ninguém aqui, nem ninguém nos conhecer — declarou Japp.

      A verdade não era bem essa, pois o representante local da polícia já servira em um lugarejo a vinte e cinco quilômetros dali, onde estivera em contato com o nosso inspetor devido a um envenenamento por arsênico. Entretanto mostrara-se tão encantado ao rever o grande homem que Japp sentia-se eufórico naquela manhã de domingo. O sol brilhava e as jardineiras da janela da sala de refeições da hospedaria estavam cheias de margaridas em flor. Os ovos com bacon estavam excelentes, e o café, embora não da mesma qualidade, era passável e bem quente.

      — Isto é que é vida! — disse Japp. — Quando me aposentar vou comprar um sitiozinho no campo, bem longe do crime.

      — Le crime, il est partout — retrucou Poirot, servindo-se de uma fatia de pão de centeio e franzindo o cenho a um pardal que pousara no peitoril da janela.

      — É, ninguém sabe o mal que se esconde no coração dos homens — disse eu, achando o momento apropriado para uma citação.

      — Hum — fez Japp recostando-se pachorrento —. acho que vou pedir mais um ovo e umas fatias de bacon. Que acha da idéia, capitão?

      — Eu o acompanho — respondi com entusiasmo. — E você, Poirot?

      O homenzinho sacudiu a cabeça.

      — Não se deve encher o estômago a ponto de impedir o funcionamento do cérebro.

      — Eu vou me arriscar — disse Japp rindo. — Meu estômago é grande. Por falar nisso, está engordando um pouco, M. Poirot. Ei, miss, mais dois pratos de ovos com bacon.

      Nesse momento, entretanto, um vulto imponente bloqueou a entrada. Era o guarda Pollard.

      — Espero que não se aborreçam com esta interrupção, senhores, mas gostaria de que o inspetor me desse uma mãozinha.

      — Estou de folga, não quero nada com o trabalho — foi logo dizendo Japp. — Mas o que aconteceu?

      — O inquilino da mansão dos Leigh suicidou-se com um tiro na cabeça.

      — Bem, isso acontece — disse Japp prosaicamente. — Deve ter sido por causa de dinheiro, ou talvez de uma mulher. Sinto não poder ajudá-lo, Pollard.

      — O problema é que, na opinião do Dr. Giles, ele não poderia ter-se matado.

      Japp pousou a xícara no pires.

      — Não poderia ter-se matado? O que quer dizer com isso?

      — É o que o Dr. Giles diz — repetiu o guarda. — Segundo ele é completamente impossível, e não vê como pode ter sido, pois a porta estava fechada a chave e a janela bem trancada. E ele insiste em afirmar que o homem não poderia ter-se suicidado.

      Essa curiosa declaração resolveu o assunto. Desfizemos o pedido tentador de mais ovos e bacon e em poucos minutos andávamos a toda pressa em direção da mansão dos Leigh, enquanto Japp ia fazendo perguntas ao policial.

      O morto chamava-se Walter Protheroe, um homem solitário de meia-idade que chegara a Market Basing há oito anos e alugara a velha mansão dos Leigh, um casarão arruinado. Utilizava uma das alas da casa, servido por uma governanta vinda em sua companhia. Miss Clegg. uma mulher educada e bem conceituada na comunidade. Há poucos dias Mr. Protheroe recebera dois hóspedes, um casal de Londres, Mr. e Mrs. Parker.

      Nesta manhã, não obtendo resposta ao chamar o patrão e encontrando a porta trancada a chave, Miss Clegg se alarmara e telefonara ao médico e ao policial. Foram necessários seus esforços conjugados para arrombar a pesada porta de carvalho.

      Encontraram Mr. Protheroe caído ao chão com uma bala na cabeça e a pistola em sua mão direita. Parecia um caso óbvio de suicídio.

      Entretanto, depois de examinar o corpo, o Dr. Giles sentira-se intrigado e confiara suas dúvidas ao guarda Pollard, que pensara instantaneamente em Japp, e deixando o médico no local, correra à hospedaria.

      Quando o policial acabou de relatar os fatos, chegamos à mansão arruinada, no centro de um grande jardim abandonado e invadido pelas ervas daninhas. A porta da frente estava aberta, e atravessando um vestíbulo chegamos a uma pequena sala onde se reuniam quatro pessoas: um homem com uma indumentária espalhafatosa pelo qual senti uma antipatia instantânea, uma mulher também vulgar embora atraente, outra mulher num sóbrio vestido preto, provavelmente a governanta, e um homem alto num paletó de tweed, com um rosto inteligente e capaz, que estava obviamente em comando da situação.

      — Dr. Giles — disse o policial —, o Inspetor Japp da Scotland Yard e seus amigos.

      O médico cumprimentou-nos e nos apresentou a Mr. e Mrs. Parker. Subimos com ele ao segundo andar, enquanto Pollard, obedecendo a um sinal de Japp, permaneceu de guarda embaixo. Atravessamos um corredor e chegamos ao quarto do morto, A porta arrombada continuava no chão.

      Entramos. O cadáver ainda permanecia no assoalho. Mr. Protheroe fora um homem de meia-idade com o cabelo das têmporas já grisalho e barba. Japp ajoelhou-se junto ao corpo.

      — Por que não o deixaram como estava? — ele resmungou.

      O médico encolheu os ombros.

      — Julgamos que ele houvesse se suicidado.

      — Hum... — fez Japp. — A bala penetrou por trás da orelha esquerda.

      — Exatamente — disse o médico. — É impossível que ele tenha disparado a arma. Não conseguiria torcer a mão direita para colocar a arma em tal ângulo. É uma impossibilidade física.

      — Mas o senhor encontrou a arma em sua mão, não foi? E onde está ela?

      O médico indicou a mesa.

      — Mas os seus dedos não estavam fechados em torno da coronha. A mão estava aberta.

      — Então a arma foi colocada ali mais tarde, é claro — disse Japp examinando-a. — Só um cartucho foi disparado. Vamos procurar impressões digitais mas provavelmente só encontraremos as suas, Dr. Giles. Há quanto tempo ele está morto?

      — Morreu durante a noite. Não posso precisar a hora como alguns desses fabulosos legistas das histórias de mistério, mas acredito que esteja morto há umas doze horas, mais ou menos.

      Até então Poirot permanecera silencioso a meu lado, observando o trabalho de Japp. Umas duas vezes dera uma leve fungadela, como se o cheiro do ambiente o intrigasse. Eu o imitei, mas não consegui perceber nada de anormal, o ar estava fresco e isento de odores. Mesmo assim Poirot continuou a fungar como se seu olfato mais aguçado percebesse algo que me escapava.

      Quando Japp se afastou, Poirot ajoelhou-se junto ao cadáver. Não se interessou pelo ferimento e pensei por um instante que estivesse examinando os dedos da mão direita, mas logo vi que seu interesse se dirigia a um lenço enfiado na manga do casaco. Afinal Poirot levantou-se, mas seus olhos continuaram presos ao lenço como se estivesse intrigado.

      Japp o chamou para ajudar a erguer a porta. Aproveitando a oportunidade abaixei-me, e tirando o lenço da manga do cadáver, examinei-o com cuidado. Era um lenço simples de cambraia branca, sem nenhuma mancha ou marca de qualquer espécie. Tornei a colocar o. lenço no lugar, sacudindo a cabeça e admitindo minha perplexidade.

      Meus companheiros haviam levantado a porta, e procuravam a chave, sem resultados.

      — Isso fecha a questão — disse Japp. — A janela esta trancada por dentro. O assassino deve ler saído pela porta, e levado a chave. Certamente julgou que todos pensariam que Protheroe havia trancado a porta e se suicidado, e nem notariam a ausência da chave. Não concorda, M. Poirot?

      — Concordo, mas teria sido mais simples e mais convincente empurrar a chave de volta por baixo da porta. Assim pensariam que ela caíra da fechadura quando a porta fora arrombada.

      — É verdade, mas nem todos têm as suas idéias brilhantes. O senhor teria sido o terror da lei se houvesse se dedicado ao crime, M. Poirot. Algum outro detalhe lhe chamou a atenção?

      Poirot, com um ar indeciso, correu o olhar pelo quarto e comentou com pouca convicção:

      — Este cavalheiro fumava muito, não?

      — É, deve ter fumado uns vinte cigarros na noite passada — disse Japp, examinando o interior da lareira e transferindo logo após sua atenção para o cinzeiro. — São todos da mesma marca, e fumados pela mesma pessoa. Não nos levarão a nada, M. Poirot.

      — Não insinuei tal coisa — murmurou meu amigo.

      — Ei, o que é isso? — disse Japp indicando um pequeno objeto que brilhava no chão junto ao morto. — É uma abotoadura quebrada! A quem pertencerá? Dr. Giles, ficaria agradecido se descesse e chamasse a governanta.

      — Que faremos com os Parker? Ele está ansioso para partir, tem negócios a resolver em Londres.

      — Imagino, mas terão que passar sem eles. Do modo como os acontecimentos se encaminham, ele terá problemas urgentes a resolver aqui também. Diga à governanta para subir e não deixe os Parker escaparem. Algum dos ocupantes da casa entrou nesse quarto de manhã?

      O médico refletiu por uns instantes.

      — Não. Ficaram no corredor enquanto Pollard e eu entramos.

      — Tem certeza?

      — Absoluta.

      O médico desceu.

      — Sujeito capaz, esse — disse Japp com aprovação. Bem, gostaria de saber quem atirou nesse camarada. Pelo jeito foi um dos três ocupantes da casa. A governanta não deve ter sido, ela teve oito anos para matá-lo, se o quisesse fazer. E quem serão esses Parker? Têm um aspecto pouco respeitável.

      Miss Clegg entrou no quarto nesse momento. Era uma mulher magra, com cabelos grisalhos reunidos num penteado severo, e parecia calma e controlada, com um ar de eficiência que inspirava respeito. Em resposta às perguntas de Japp, explicou que estava na casa há quatorze anos. Mr. Protheroe fora um patrão generoso e delicado. Só conhecera o casal Parker três dias atrás quando haviam chegado inesperadamente. Na sua opinião, o patrão não os convidara e não parecera satisfeito ao vê-los. A abotoadura que Japp lhe mostrara não pertencera a ele, tinha absoluta certeza. Quanto à pistola, o patrão possuíra uma semelhante. Ela só a vira uma vez já há muito tempo, e não podia afirmar que fosse a mesma. Não ouvirá nenhum tiro durante o noite, o que não era de admirar, pois a casa era muito grande e o seu quarto e os aposentos do casal Parker ficavam na outra extremidade. Não sabia a que horas Mr. Protheroe fora para o quarto, ele ainda estava acordado quando ela se recolhera, às nove e trinta. Não era hábito dele deitar-se cedo. Costumava ficar acordado até de madrugada, lendo e fumando. Era um fumante inveterado.

      A essa altura, Poirot fez-lhe uma pergunta:

      — Seu patrão costumava dormir com as janelas abertas • ou fechadas?

      Miss Clegg refletiu um momento.

      — Ficavam habitualmente abertas, pelo menos a parte de cima.

      — Mas estão fechadas agora. Tem alguma explicação para o fato?

      — Não, a menos que ele tenha sentido alguma corrente de ar.

      Japp fez-lhe mais algumas perguntas e deu-lhe permissão para se retirar. Em seguida interrogou o casal Parker, um de cada vez. Mrs. Parker estava nervosa, e derramou algumas lágrimas, enquanto o marido mostrou-se loquaz e agressivo. Negou que a abotoadura fosse sua, mas como a esposa já a houvesse reconhecido, essa negativa só piorou sua situação. Como ele também negara ter estado no quarto de Protheroe. Japp julgou ter provas suficientes para pedir sua prisão.

      Deixando Pollard de guarda, Japp dirigiu-se ao centro para telefonar à sede da Scotland Yard, enquanto Poirot e eu dirigimo-nos à hospedaria.

      — Você está tão quieto! — disse eu. — O caso não o interessa?

      — Au contraire, interessa-me muitíssimo. Mas ainda estou no escuro.

      — O motivo do crime me escapa, mas tenho certeza de que esse Parker é um mau elemento — disse eu. — As provas circunstanciais contra ele são fortes, só falta o motivo.

      — Não notou nada de anormal, nenhum detalhe em que Japp não tenha reparado?

      Olhei para ele, curioso.

      — O que está escondendo, Poirot?

      — O que havia dentro da manga do morto?

      — Ah, o lenço!

      — Exatamente, o lenço.

      — Os marinheiros é que costumam andar com o lenço dentro da manga do casaco.

      — Uma observação atilada, Hastings, mas não foi a que me ocorreu.

      — Há mais algum detalhe que o esteja intrigando?

      — Há, sim. Fico pensando no cheiro daqueles cigarros.

      — Mas não senti cheiro algum! — exclamei surpreso.

      — Nem eu, cher ami.

      Olhei para Poirot sem saber se ele estava brincando. Mas sua expressão era perfeitamente séria e franzia a testa.      

     

      O inquérito judicial realizou-se dois dias depois. Nesse ínterim novas provas haviam surgido. Um vagabundo confessou ter pulado o muro da mansão para dormir no velho barraco de ferramentas do jardim, como já era seu hábito, e declarou ter ouvido uma discussão acirrada por volta de meia-noite no quarto do morto, entre dois homens. Um deles exigia uma quantia em dinheiro, e o outro recusava-se, revoltado. Escondido atrás de um arbusto, ele vira bem os dois vultos através da janela. Um ele conheceu bem, fora o dono da casa, Mr. Protheroe, e o segundo ele identificou categoricamente como sendo Mr. Parker.

      Ficou claro que os Parker tinham vindo a Market Basing para fazer chantagem com Protheroe. Descobriu-se que o verdadeiro nome do morto era Wendover, um ex-tenente da marinha envolvido na explosão do cruzador Merrythought em 1910. Provavelmente Parker, ciente da culpa de Wendover, havia descoberto seu paradeiro e exigido dinheiro para manter-se calado. O outro recusara-se a pagar, e durante a discussão apanhara seu revólver, e Parker tentando tomar-lhe a arma, devia tê-lo morto e posteriormente tentado dar ao crime a aparência de suicídio.

      Parker foi preso para aguardar julgamento. Na saída do inquérito, Poirot balançou a cabeça:

      — Deve ter sido assim — ele murmurou para si mesmo. — É, deve ter sido assim. Preciso agir com rapidez.

      Dirigiu-se à agência do correio e mandou um bilhete por mensageiro especial. Não vi a quem estava endereçado. Voltamos à hospedaria onde passáramos um fim de semana tão agradável, mas Poirot estava inquieto, andando de um lado para outro e olhando pela janela.

      — Estou esperando uma pessoa — ele explicou. — Será que me enganei? Não, aí vem ela.

      Para meu espanto, dali a um minuto Miss Clegg entrou, menos calma do que a vira pela última vez, e ofegando, como se tivesse corrido. Vi medo no olhar que dirigiu a Poirot.

      — Sente-se, mademoiselle — disse ele com brandura. — Eu estava certo, não?

      Por resposta ela estourou em lágrimas.

      — Por que fez aquilo? — perguntou Poirot. — Por quê?

      — Eu o amava tanto — ela soluçou. — Fui para a sua casa menina ainda. Ah, tenha pena de mim.

      — Farei o que puder. Mas entenda que não posso permitir que um homem inocente seja enforcado, mesmo se tratando de um velhaco.

      Ela ergueu a cabeça e disse baixo:

      — Talvez eu também não pudesse, afinal. Faça o que tem que ser feito — e levantando-se saiu quase correndo.

      — Ela o matou? — perguntei perplexo.

      Poirot sorriu e sacudiu a cabeça numa negativa.

      — Ele se suicidou. Lembra-se de que usava o lenço na manga direita? Esse detalhe mostrou-me que era canhoto. Com medo da desonra ele se matou depois da discussão com Parker. Quando Miss Clegg veio chamá-lo de manhã, encontrou-o morto, e encheu-se de uma fúria insana, pois o conhecia desde criança, como acabou de nos dizer. Os Parker o haviam impelido ao suicídio, e eram assassinos a seus olhos. Subitamente ela viu uma oportunidade de fazê-los pagar pela morte que haviam causado. Só ela sabia que seu patrão era canhoto. Mudou o revólver para a mão direita, fechou a janela, deixou no chão a abotoadura que apanhara no andar de baixo, e saiu, fechando a porta e tirando a chave.

      — Poirot, você é magnífico! — exclamei num arroubo de entusiasmo. — Deduziu tudo isso de um lenço!

      — E da ausência de fumaça de cigarro. Se a janela tivesse sido fechada à noite, com todos aqueles tocos de cigarro, o quarto deveria estar impregnado do cheiro enjoativo de cigarros apagados. Mas ao contrário, o ar estava fresco, donde deduzi que as janelas só deviam ter sido fechadas há pouco tempo, e isso me forneceu uma linha de raciocínio interessante. O assassino não teria nenhum motivo para fechar a janela. Seria vantajoso para ele deixá-la aberta, para que restasse a possibilidade dela ter servido como meio de fuga, caso a hipótese de suicídio não fosse aceita. O depoimento do vagabundo confirmou minhas suspeitas. Ele não teria ouvido a conversa se a janela estivesse fechada.

      — Esplêndido! — disse eu entusiasmado. — E agora, que tal um chá?

      — Você é mesmo inglês — disse Poirot com um suspiro. — Acredita que seja possível conseguir um cálice de licor por aqui?

 

A Casa de Marimbondos

      John Harrison, de pé no terraço de sua casa, olhava o jardim. Homem alto, de rosto magro e macilento, tinha geralmente uma expressão taciturna, mas quando seus traços severos suavizavam-se num sorriso, como agora, era muito atraente.

      Gostava imensamente de seu jardim, tão belo nesse anoitecer cálido de agosto: As rosas trepadeiras ainda floresciam e as ervilhas de cheiro perfumavam o ar.

      Um rangido familiar fê-lo virar subitamente a cabeça. Quem abrira o portão do jardim? Uma figura janota aproximou-se pela aléia, e o rosto de John Harrison assumiu uma expressão de completa surpresa.

      — Mas é maravilhoso! — exclamou. — Monsieur Poirot!

      Era realmente o grande Hercule Poirot, famoso no mundo inteiro por suas façanhas como detetive.

      — Eu mesmo! Lembra-se de ter-me convidado para aparecer, se acaso viesse a esta parte do mundo? Tomei suas palavras ao pé da letra, e aqui estou.

      — E me dá imenso prazer — disse Harrison cordialmente. — Sente-se. Quer beber alguma coisa? — e num gesto hospitaleiro indicou-lhe a bandeja de bebidas na mesa da varanda.

      — Obrigado — disse Poirot sentando-se numa cadeira de vime. — Tem por acaso um licor? Não? Não faz mal. Só um copo de soda pura, sem uísque, por favor — e quando o companheiro lhe estendeu o copo acrescentou aborrecido: — Ah, meus pobres bigodes perderam a forma. É esse calor!

      — E o que o traz a esse recanto tão sossegado? — perguntou Harrison sentando-se a seu lado. — Prazer?

      — Não, mon ami, trabalho.

      — Trabalho? Neste lugar retirado?

      Poirot, com a fisionomia grave, balançou a cabeça numa aquiescência.

      — Sim, meu amigo, nem todos os crimes são cometidos no meio das multidões, sabia?

      O outro riu.

      — Meu comentário foi mesmo imbecil. Mas qual o crime que está investigando por aqui, se não sou indiscreto.

      — Não, não é — respondeu Poirot. — Na verdade fico satisfeito com a sua pergunta.

      Harrison o olhou com curiosidade sentindo nas maneiras do amigo uma nuança diferente. O detetive o encarava, e seu olhar era tão estranho que ficou desnorteado. Afinal, disse:

      — Mas não ouvi falar em nenhum crime.

      — Não, você não pode ter ouvido mesmo — disse Poirot.

      — Quem foi assassinado?

      — Até agora, ninguém.

      — O quê?

      — Foi por isso que não soube de nada. Estou investigando um crime que ainda não foi cometido — disse o detetive.

      — Mas isso não faz sentido.

      — Ao contrário, é muito melhor investigar um crime antes de ser cometido do que depois. Talvez seja possível até impedi-lo.

      Harrison o encarou.

      — Não está falando sério, M. Poirot.

      — Estou, sim, e muito sério.

      — Acredita mesmo que alguém está planejando um crime? Que absurdo!

      Hercule Poirot ignorou a exclamação.

      — A menos que nós possamos impedi-lo. É, mon ami, é isso mesmo.

      — Nós?

      — Preciso de sua cooperação.

      Poirot lançou-lhe um olhar penetrante e mais uma vez Harrison sentiu-se preso de uma indefinível inquietação.

      — Vim até aqui porque... bem... gosto do senhor, Monsieur Harrison — e num tom completamente diferente, acrescentou: — Já reparou naquela casa de marimbondos? Devia destruí-la.

      À súbita mudança de assunto Harrison franziu a testa. Seguiu a indicação de Poirot e disse, numa voz que revelava a sua perplexidade:

      — Para falar a verdade, é o que ia fazer, ou melhor, o que o jovem Langton vai fazer. Lembra-se de Claude Langton? Estava naquele jantar em que o conheci. Virá aqui daqui a pouco para acabar com os marimbondos. Considera-se um especialista na matéria.

      — Ah! — fez Poirot. — E que método vai usar?

      — Gasolina. Vai aplicá-la com a sua seringa de jardim. É de um tamanho mais adequado do que a minha.

      — Não há outro método com cianeto de potássio? — perguntou Poirot.

      Surpreso, Harrison respondeu:

      — Há, sim, mas cianeto de potássio é uma substância venenosa, é um perigo tê-la em casa.

      Poirot balançou a cabeça concordando.

      — Sim, é um veneno mortal — esperou um minuto e repetiu: — um veneno mortal.

      — Muito útil se alguém quiser se livrar da sogra, não? — disse Harrison dando uma risada.

      Mas Hercule Poirot permaneceu sério.

      — Tem certeza de que é com gasolina que Monsieur Langton pretende destruir aquela casa de marimbondos?

      — Tenho, sim. Por quê?

      — Tenho minhas dúvidas. Estive na farmácia de Barchester esta tarde e precisei assinar o registro de substâncias venenosas, devido a uma das compras que fiz. A assinatura anterior era de Claude Langton. Ele adquiriu cianeto de potássio.

      Harrison olhou para Poirot.

      — É esquisito. Langton disse-me outro dia que nem sonharia em usar isso. Em sua opinião a venda não devia sequer ser permitida.

      Fitando as roseiras Poirot perguntou numa voz pausada:

      — Gosta de Langton?

      O outro teve um sobressalto. A pergunta o pegara desprevenido.

      — Eu... bem... naturalmente. Gosto dele, sim.

      — Tinha minhas dúvidas sobre o assunto — disse Poirot calmamente, e como o companheiro ficou em silêncio, acrescentou: — E será que ele gosta de você?

      — Onde pretende chegar, Monsieur Poirot? Não consigo descobrir o que tem em mente.

      — Vou ser franco. Está noivo, Monsieur Harrison. Conheço bem Miss Molly Deane. É uma linda moça, encantadora. Mas antes de ser sua noiva esteve comprometida com Claude Langton. Ela o deixou por sua causa.

      Harrison aquiesceu balançando a cabeça.

      — Não sei quais foram os motivos que a levaram a isso, mas ela deve ter tido suas razões. E digo-lhe uma coisa: é provável que Langton não tenha esquecido, nem perdoado.

      -— Está enganado, M. Poirot. Juro que está enganado. Langton tem espírito esportivo, enfrentou os fatos como um homem. Tem sido surpreendentemente decente, tentando ser amigo o máximo possível.

      — E não acha isso estranho? Usou o termo “surpreendentemente” mas não parece surpreendido.

      — O que quer dizer com isso, M. Poirot?

      — Quero dizer que um homem pode dissimular seu ódio até chegar o momento propício — e havia uma nuança nova na voz de Poirot.

      — Ódio? — Harrison sacudiu a cabeça e riu.

      — Os ingleses são uns tolos — disse Poirot. — Julgam que podem tapear qualquer um, sem serem tapeados. Nunca pensam mal de seus camaradas. São todos uns caras decentes, de espírito esportivo! E por serem corajosos, mas tolos, algumas vezes morrem sem necessidade.

      — Você está tentando me prevenir... — disse Harrison baixo. — Agora estou começando a compreender. Está me prevenindo contra Claude Langton. Veio até aqui para me dar aviso...

      Poirot balançou a cabeça numa aquiescência muda. Harrison levantou-se de sopetão:

      — Mas o senhor está maluco, M. Poirot! Isto aqui é a Inglaterra, coisas como essas não acontecem por aqui. Pretendentes desprezados não andam por aí apunhalando nem envenenando ninguém. Está enganado a respeito de Laugton, ele é incapaz de matar uma mosca.

      — Não estou preocupado com as moscas — retrucou Poirot com suavidade. — E embora diga que Laugton é incapaz de matar uma delas, ele está se preparando no momento para chacinar algumas centenas de marimbondos.

      Harrison não respondeu logo. O detetivezinho levantou-se, andou até o amigo e colocou a mão em seu ombro. Estava tão agitado, que praticamente sacudiu o homem alto ao dizer:

      — Acorde, meu amigo, antes que seja tarde. Olhe só, não está vendo junto àquela árvore na ribanceira o enxame de marimbondos retornando tranqüilamente ao lar, no fim do dia? Daqui a uma hora serão destruídos, e nem sabem. Não têm quem os avise. Não conhecem nenhum Hercule Poirot. Monsieur Harrison, estou aqui profissionalmente. Lido com assassinatos, antes e depois de terem sido cometidos. A que horas chega Mr. Langton para derrubar a casa de marimbondos?

      — Langton nunca...

      — A que horas?

      — Às nove. Mas está enganado. Langton nunca...

      — Esses ingleses! — exclamou Poirot furioso. Pegou o chapéu e a bengala e dirigiu-se para o jardim, mas antes virou a cabeça e disse: — Não vou mais discutir com você. Já estou perdendo a paciência. Mas voltarei às nove horas, entendeu?

      Harrison abriu a boca para falar, mas Poirot o interrompeu:

      — Sei o que vai dizer: Langton nunca... etc. e tal. Nunca mesmo! De qualquer maneira voltarei às nove horas. Vai ser divertido apreciar a destruição da casa de marimbondos, outro esporte essencialmente inglês!

      Sem esperar resposta, ele atravessou o jardim rapidamente e saiu. Ao chegar à estrada, diminuiu o passo, e seu rosto perdeu a animação assumindo uma expressão grave e preocupada. Tirou o relógio do bolso. Marcava oito horas e dez minutos.

      — Falta quase uma hora ainda — ele murmurou. — Talvez eu devesse ter esperado.

      Parou, quase a ponto de voltar. Um vago pressentimento o assaltara. Entretanto controlou-se, e com passo decidido dirigiu-se à vila. Mas ainda estava inquieto e umas duas vezes sacudiu a cabeça como alguém não de todo satisfeito.

      Faltavam alguns minutos para as nove quando ele retornou ao jardim. Era uma noite clara, parada, nenhuma aragem leve sacudia a folhagem. A quietude era mesmo um tanto sinistra, como a calmaria que precede a tempestade.

      Poirot apressou os passos, sentindo-se subitamente inseguro e alarmado, sem saber o que temia. Naquele instante, Claude Langton abriu o portão do jardim. Ao ver Poirot teve um sobressalto.

      — Oh... Boa-noite.

      — Boa-noite, Monsieur Langton. Chegou cedo.

      Langton o encarou.

      — Não sei do que está falando.

      — Já tirou a casa de marimbondos?

      — Para falar a verdade, não.

      — Então não matou os marimbondos? — perguntou Poirot. — O que esteve fazendo, então?

      — Só bati um papo com o velho Harrison. Preciso ir agora, M. Poirot. Não sabia que vinha a estas bandas.

      — Estou aqui a trabalho, sabe.

      — Ah! Bem, o senhor encontrará Harrison no terraço. Sinto não poder ficar — disse e saiu apressado.

      Poirot seguiu com o olhar o jovem nervoso. Era um bonito rapaz, mas faltava energia à sua boca.

      — Então encontrarei Harrison no terraço... — murmurou Poirot. — Tenho minhas dúvidas — e apressando o passo atravessou o jardim rapidamente.

      Harrison estava sentado ao lado da mesa, numa completa imobilidade, e não virou a cabeça quando Poirot se aproximou.

      — Mon ami, você está bem? — perguntou ansioso o detetive.

      Após um silêncio prolongado, Harrison respondeu numa voz estranha, longínqua:

      — O que disse?

      — Você está bem?

      — Se estou bem? Estou bem, sim. E por que não haveria de estar?

      — Então não lhe fez mal? Ótimo!

      — Fez mal? O quê?

      — O bicarbonato de sódio.

      Harrison levantou-se de repente.

      — Bicarbonato de sódio? De que está falando?

      — Lamento muito — desculpou-se Poirot —, mas era necessário. Coloquei o bicarbonato em seu bolso.

      — Colocou bicarbonato em meu bolso? Para que, com todos os diabos?

      Harrison olhava fixamente para ele. Poirot respondeu num tom calmo e impessoal, como se dirigisse a uma criança:

      — Sabe, na minha profissão, no trato com os criminosos, aprendi muitas coisas úteis e interessantes. Ajudei certa vez um batedor de carteiras, para variar ele estava inocente do que o acusavam, e grato, ele pagou-me da única forma a seu alcance: ensinou-me uns truques do seu ofício. Assim hoje posso tirar um objeto de um bolso sem que seu dono o perceba: coloco a mão em seu ombro, distraio sua atenção, e pronto. Foi desta maneira que retirei algo do bolso do seu paletó e deixei o bicarbonato em seu lugar.

      — Sabe — prosseguiu Poirot como se expusesse uma longínqua teoria —, se alguém pretende colocar veneno num copo, com um gesto rápido, sem que o percebam, deve tê-lo ao alcance da mão, no bolso direito do paletó — e demonstrando sua tese, retirou do bolso alguns fragmentos de um cristal leitoso. — É extremamente perigoso carregar esta substância solta, assim — acrescentou.

      Com toda a calma, sem se apressar, retirou do outro bolso um vidro de boca larga, destampou-o, colocou os cristais em seu interior, e o encheu com. a água que estava sobre a mesa. Tornou a tampá-lo cuidadosamente e o agitou até que os cristais se dissolvessem. Harrison o observava fascinado.

      Quando a solução estava pronta, Poirot se dirigiu à árvore ao lado do terraço, destampou o vidro, virou a cabeça para o lado e derramou a solução dentro da casa dos marimbondos. Recuou alguns passos e ficou observando o resultado. Alguns insetos que entravam, estremeceram ligeiramente e ficaram inertes, enquanto outros saíam do ninho para cair logo adiante. Poirot olhou o espetáculo por alguns instantes, balançou a cabeça e voltou à varanda.

      — É uma morte rápida, muito rápida mesmo — disse ele.

      Harrison recobrou a voz:

      — O que você sabe?

      Poirot o encarou.

      — Disse-lhe que vi a assinatura de Claude Langton naquele registro, mas não lhe disse que o encontrei logo depois. Contou-me ter comprado cianeto de potássio a seu pedido, para acabar com uns marimbondos. Achei o fato estranho, meu amigo, pois me lembrei daquele jantar em que você defendeu os méritos da gasolina, considerando perigoso e desnecessário o uso de cianeto para esse fim.

      — Prossiga.

      — Eu havia visto Claude Langton na companhia de Molly Deane, quando se julgavam a salvo de olhares indiscretos. Não sei os motivos da briga que a jogaram em seus braços, mas percebi que estavam sendo superados e Miss Deane voltaria ao antigo amor.

      — Prossiga.

      — Eu sabia de mais um detalhe: estava em Harley Street outro dia e o vi saindo do consultório de um médico conhecido. Sei qual é sua especialidade, e li a confirmação em seu rosto. Só vi essa expressão duas vezes em minha vida, mas é inconfundível. Seu rosto era o de um condenado à morte, não é verdade?

      — Tem razão, ele me deu dois meses de vida.

      — Você não me viu, meu amigo, pois tinha coisas mais sérias a pensar. Li outro sentimento em seu rosto, o mesmo sentimento de que lhe falei essa tarde. Vi ódio, meu amigo. Você não tentava dissimulá-lo porque pensava que ninguém o estava observando.

      — Prossiga — disse Harrison.

      — Não tenho muito mais a dizer. Vindo aqui, vi acidentalmente o nome de Langton no registro de venenos, falei com ele e vim lhe procurar. Preparei toda a sorte de armadilhas para você. Negou ter pedido a Langton para comprar cianeto, ou melhor, mostrou-se surpreso ante o fato. A princípio minha presença o incomodou, mas logo concluiu que poderia me usar. Encorajou as minhas suspeitas, e disse-me para voltar às. nove, quando acreditou que tudo estaria acabado, pois Langton viria às oito e meia.

      — Se você não tivesse aparecido... Por que veio?

      Poirot levantou-se.

      — Assassinato é o meu trabalho.

      — Assassinato? Refere-se a suicídio, não?

      — Não — a voz de Poirot era seca e cortante —, falo de assassinato. Sua morte seria rápida e fácil, mas Langton morreria de uma forma atroz. Ele compra o veneno, vem visitá-lo e estão a sós quando você morre subitamente. Descobrem cianeto em seu copo e Claude Langton é enforcado. Foi esse o seu plano.

      Harrison deixou escapar um gemido.

      — Por que veio?... Por que veio?

      — Há outra razão além da que já expus: gosto de você. Ouça, mon ami, vai morrer e perder a moça que ama. Mas você não é um assassino. Agora, diga-me, está satisfeito ou pesaroso por eu ter vindo?

      Houve um momento de silêncio. Harrison ergueu o rosto. Havia nele uma nova dignidade, a expressão de um homem que conquistara seus demônios interiores. Estendeu a mão a Poirot.

      — Graças a Deus você veio! — ele exclamou. — Graças a Deus!

 

A Dama em Apuros

      Há algum tempo Poirot demonstrava uma insatisfação e um desassossego crescentes. Ultimamente não aparecera nenhum caso interessante, nada em que o meu amigo pudesse exercitar sua mente aguçada e seus consideráveis poderes de dedução. Nesta manhã ele jogou o jornal ao chão com um impaciente “Tchach!”, sua exclamação favorita, igualzinha a um espirro de um gato.

      — Eles têm medo de mim, Hastings! Os criminosos da Inglaterra têm medo de mim! Quando o gato está presente os camundongos não aparecem para roubar queijo.

      — A maioria deles nem sabe de sua existência — retruquei rindo.

      Poirot me olhou com um ar de reprovação. Em sua imaginação o mundo inteiro só pensava e falava em Hercule Poirot. Era certo que fizera nome em Londres, mas não acreditava que sua existência provocasse o terror no mundo do crime.

      — E aquele roubo de jóias à luz do dia, em Bond Street, na semana passada? — perguntei.

      — Um golpe bem dado — disse ele com aprovação. — Mas pas de finesse, seulmente de l’audace! Um homem com uma pesada bengala estilhaça a vitrina de uma joalheria, e apanha um lote de pedras preciosas. É agarrado por um grupo de cidadãos respeitáveis e preso em flagrante com as jóias em seu poder. Na delegacia descobrem que as jóias são falsas, ele passou as verdadeiras a um cúmplice, um dos tais “cidadãos respeitáveis”. É preso, mas quando for solto terá uma bela fortunazinha a sua espera. É, nada mal planejado, mas eu faria melhor. Hastings, algumas vezes lamento que meus padrões éticos sejam tão rigorosos. Seria divertido trabalhar contra a lei, para variar.

      — Ora, Poirot, anime-se. Sabe que é o maior dentro da sua especialidade.

      — Mas o que existe no momento dentro da minha especialidade?

      Peguei o jornal.

      — Um inglês é misteriosamente assassinado na Holanda ...

      — Sempre dizem isso, até descobrirem que comeu peixe enlatado, e a morte é perfeitamente explicável.

      — Bem, se prefere resmungar ...

      — Tiens! — disse Poirot junto à janela. — Lá embaixo na calçada está uma dama misteriosa envolta em espessos véus, igualzinho aos romances. Ela subiu nossos degraus, e está tocando a campainha. Talvez seja uma possibilidade interessante. Quando é jovem e atraente, uma mulher só esconde o rosto por motivos muito sérios.

      Um minuto mais tarde, a nossa visitante entrou. Como dissera Poirot seu rosto estava encoberto por um véu espesso. Foi impossível distinguir seus traços até que ergueu o véu negro de renda espanhola. A intuição de Poirot fora acertada: era belíssima, com cabelos louros e olhos azuis-claros. Pelo vestido sóbrio mas dispendioso deduzi que pertencia a uma classe social elevada.

      — Monsieur Poirot — disse a moça numa voz doce e musical —, estou em apuros. Não sei se poderá me ajudar, mas ouvi contar tais maravilhas de sua habilidade, que em último recurso, venho lhe pedir o impossível.

      — O impossível sempre me atrai — disse Poirot. — Prossiga, por favor, mademoiselle.

      Nossa linda visitante hesitou.

      — Seja absolutamente franca — acrescentou Poirot. — Não esconda nenhum detalhe.

      — Confiarei no senhor — exclamou a moça. — Já ouviu falar em Lady Millicent Castle Vaughan?

      O meu interesse cresceu. Poucos dias atrás fora anunciado o noivado de Lady Millicent com o jovem Duque de Southshire. Ela era a quinta filha de um nobre irlandês arruinado e o Duque de Southshire um dos melhores partidos da Inglaterra.

      — Eu sou Lady Millicent — continuou a moça. — Talvez tenham lido a notícia de meu noivado. Eu devia estar felicíssima, mas estou numa situação horrível. Escrevi uma caria quando tinha dezesseis anos. sinto até vergonha de lhe contar... E agora esse sujeito vil, de mau caráter, Lavington, ele...

      — A carta foi para esse Mr. Lavington?

      — Não! Para ele, não! Escrevi a um rapaz a quem era muito afeiçoada. Ele morreu na guerra.

      — Compreendo — disse Poirot com brandura.

      — Foi uma tolice, uma indiscrição minha, mas nada além disso, acredite, M. Poirot. Mas há frases nessa carta que podem ser interpretadas de outra maneira...

      — Eu entendo, e agora Mr. Lavington está de posse dessa carta?

      — Está e a menos que lhe dê uma quantia exorbitante em dinheiro, que não tenho possibilidades de obter, ameaça entregá-la ao duque.

      — Que baixeza, sujeito nojento! — exclamei. — Desculpe-me, Lady Millicent.

      — Não seria mais prudente confessar tudo a seu futuro marido?

      — Não ouso, M. Poirot. O duque tem um temperamento apaixonado, é desconfiado e ciumento, e acreditará no pior. Seria o mesmo que desmanchar nosso noivado.

      — Que situação! — exclamou Poirot com uma careta expressiva. — E o que deseja de mim, Lady Millicent?

      — Eu poderia pedir a Mr. Lavington para o procurar, dizendo-lhe que o senhor tem plenos poderes para resolver o caso. Talvez possa reduzir suas exigências.

      — Quanto ele quer?

      — Vinte mil libras. Eu não conseguiria nem mil.

      — Talvez milady pudesse conseguir um empréstimo, devido ao seu próximo casamento, mas certamente não obteria nem a metade dessa quantia. Além disso essa chantagem é repugnante. Eh bien, Hercule Poirot derrotará os seus inimigos! Que esse Mr, Lavington me procure! Julga que ele trará a carta?

      A moça sacudiu a cabeça.

      — Não, ele é muito cauteloso.

      — Tem certeza de que ele a tem?

      — Mostrou-me a carta quando fui a sua casa.

      — Esteve na casa dele? Foi uma imprudência, milady.

      — Acha? Estava tão desesperada! Julguei que as minhas súplicas o comovessem.

      — Oh, là, là! Sujeitos como Lavington não se comovem com súplicas. Ao contrário, deve ter ficado satisfeito ao certificar-se da importância que atribui ao documento. Onde mora esse distinto cavalheiro?

      — Em Wimbledon, sua propriedade chama-se Buona Vista. Estive lá à noite — Poirot deixou escapar um gemido —, ameacei-o com a polícia, e ele riu, um riso desagradável e zombeteiro. “À vontade, querida Lady Millicent, faça como quiser”, ele me disse.

      — Não é mesmo um caso para a polícia — murmurou Poirot.

      — “Mas não creio que seja. tão tola”, ele acrescentou, “veja, nesta caixa de charão chinesa, aqui está sua carta”. Ele desdobrou a folha para que a pudesse ver bem. Tentei agarrá-la, mas ele foi mais rápido. Com um sorriso malévolo ele tornou a guardá-la na caixa de charão: “Aqui ela ficará em segurança, num esconderijo engenhoso que nunca o encontrará!” Olhei para o cofre de parede, mas ele sacudiu a cabeça e riu. “Tenho um cofre muito superior a esse!”, disse ele. Que homem odioso! Pode me ajudar, M. Poirot?

      — Tenha confiança no papai Poirot. Darei um jeito.

      Essas palavras tranqüilizadoras eram, sem dúvida, muito bonitas, pensei enquanto Poirot acompanhava nossa bela cliente à saída, mas na minha opinião, ele encontrara um osso duro de roer. Disse-o a Poirot quando ele voltou. Concordou, apreensivo.

      — É, a solução não é evidente. Esse Mr. Lavington está literalmente dando as cartas, no momento. Ainda não vejo como iremos baldar seus intentos.

      Naquela tarde recebemos a visita de Mr. Lavington. Lady Millicent com toda razão o descrevera como um homem odioso. Cheguei a sentir cócegas no pé direito no ímpeto contido de chutá-lo escadas abaixo. Provocador, agressivo, zombou das tímidas propostas de Poirot, mostrando-se senhor da situação. Não posso elogiar a atuação de meu amigo, Poirot parecia abatido e desencorajado.

      — Bem, cavalheiros, assim não chegaremos a um acordo — disse Lavington pegando o chapéu. — Eis minha última proposta: Farei um abatimento em deferência ao encanto de Lady Millicent. Dezoito mil libras. Vou a Paris hoje, tenho negócios a resolver. Voltarei na terça-feira. Se o dinheiro não estiver em minhas mãos até terça à noite, enviarei a carta ao duque. Não me venha com essa conversa de que Lady Millicent. não conseguirá arranjar o dinheiro. Se ela usar os argumentos certos, tenho certeza de que muitos de seus amigos estarão prontos a lhe conceder um empréstimo...

      O sangue subiu-me ao rosto, e dei um passo em sua direção, mas Lavington virou-se e desceu as escadas.

      — Meu Deus! — exclamei. — Precisamos fazer alguma coisa. Essa sua apatia me preocupa, Poirot.

      — Você tem um coração de ouro, meu amigo, mas suas células cinzentas não estão à altura. Não pretendia impressionar Mr. Lavington com atitudes enérgicas. Quanto mais fraco ele me julgar, melhor.

      — Por quê?

      — Não é curioso que eu tenha expressado o desejo de trabalhar do outro lado da lei, pouco antes da chegada de Lady Millicent?

      — Vai revistar a sua casa enquanto ele está fora? — eu prendi a respiração.

      — Por vezes os seus processos mentais são surpreendentemente rápidos, Hastings.

      — E se ele levou a carta?

      Poirot sacudiu a cabeça.

      — É muito pouco provável. Ele tem evidentemente um esconderijo em casa que considera perfeito.

      — Quando nós realizaremos essa... façanha?

      — Amanhã à noite. Sairemos daqui às onze horas.    

     

      Na hora marcada, eu estava a postos, com um terno e um chapéu escuros. Poirot sorriu.

      — Está vestido a caráter, não? — comentou. — Vamos pegar o metrô para Wimbledon.

      — E as ferramentas para forçar a porta?

      — Meu caro Hastings, Hercule Poirot não adota métodos tão primitivos!

      Calei-me, melindrado, mas minha curiosidade não diminuiu.

      Era exatamente meia-noite quando chegamos ao jardim de Buona Vista. A casa estava escura e silenciosa. Poirot dirigiu-se sem hesitar a uma das janelas dos fundos, abriu a veneziana com toda a facilidade e, com um gesto, convidou-me a entrar.

      — Como soube que esta janela estava aberta? — sussurrei espantado diante de uma tão assombrosa intuição.

      — Porque eu mesmo serrei o trinco hoje de manhã.

      — O quê?

      — Foi muito simples. Apresentei-me sob um nome fictício e mostrei um dos cartões do inspetor Japp. A Scotland Yard me enviara para instalar trincos à prova de roubos, a pedido de Mr. Lavington. A governanta recebeu-me com entusiasmo. Nesses últimos dias a casa foi assaltada duas vezes, sem que desaparecesse, entretanto, nenhum objeto de valor. Pelo jeito, outros clientes de Mr. Lavington tiveram idéias semelhantes às nossas, Hastings. Corri todas as janelas, preparei esta aqui, e proibi os criados de tocá-las até amanhã, pois estavam eletrificadas.

      — Poirot, você é mesmo genial!

      — Mon ami, foi muito simples. E agora, ao trabalho. Os empregados dormem no sótão. Não correremos o risco de os acordar.

      — Sabe onde está o cofre de parede?

      — Cofre? Bobagem, não há nada no cofre! Mr. Lavington é um homem inteligente, deve ter concebido um esconderijo muito mais inexpugnável do que um cofre, o primeiro lugar que ocorreria a qualquer um.

      Passamos uma revista minuciosa na casa inteira, mas várias horas de busca em nada resultaram. Vi sinais de irritação acumulando-se no rosto de Poirot:

      — Ah, sapristi, Hercule Poirot não será derrotado! Nunca! Vamos fazer uma pausa para refletir, vamos raciocinar. Enfin, vamos empregar nossas células cinzentas!

      Ficou silencioso alguns minutos até que a familiar luzinha verde acendeu-se em suas pupilas.

      — Sou um imbecil! A cozinha!

      — A cozinha? Impossível! E os criados?

      — Exatamente o que diriam noventa e nove pessoas em cem! Por isso mesmo, a cozinha é o lugar ideal, atulhada de objetos familiares. En avant, para a cozinha!

      Cético eu o segui e fiquei observando enquanto ele remexia sacos de pão, destampava panelas e enfiava a cabeça dentro do forno. Afinal, cansei-me e voltei ao salão. Estava convencido de que ali, e só ali encontraríamos o que procurávamos. Fiz nova e meticulosa busca até perceber que eram quatro e quinze. O dia se aproximava. Voltei à cozinha.

      Para meu espanto, encontrei Poirot dentro do depósito de carvão, com o terno claro completamente arruinado. Ele fez uma careta.

      — É contra todos os meus instintos macular minha elegância, mas era o jeito, meu amigo.

      — Acredita que Lavington escondeu a caixa embaixo do carvão?

      — Se olhasse com atenção, veria que o meu objetivo não é o carvão.

      Só então percebi umas toras de madeira empilhadas sobre uma prateleira por trás do depósito. Poirot, com gestos ágeis, as removia uma a uma. Subitamente deixou escapar uma exclamação.

      — Dê-me seu canivete, Hastings.

      Obedeci. Ele o inseriu numa fenda da madeira, e a tora abriu-se repentinamente ao meio. No interior oco, via-se uma caixa de charão com motivos chineses.

      — Bravos! — exclamei entusiasmado.

      — Fale mais baixo, Hastings, não faça tanto barulho. Vamos embora antes que o dia amanheça.

      Colocando a caixa no bolso, ele pulou para fora do depósito e limpou-se como era possível. Deixamos a casa pelo mesmo caminho por onde entráramos, e começamos a andar em direção a Londres.

      — Mas que esconderijo maluco! — protestei. — E se houvessem usado a tora?

      — Em pleno verão, Hastings? E aquela tora estava bem embaixo da pilha. Constituía um engenhoso esconderijo, sem dúvida Ah, aí vem um táxi. Vamos para casa e para um sono reparador, depois de um bom banho!     

     

      Após aquela noite de aventuras, dormi até tarde. Pouco antes da uma, dirigi-me à sala de estar e tive a surpresa de encontrar Poirot, com a caixa de charão sobre a mesa ao seu lado, calmamente entretido na leitura da carta comprometedora.

      Sorriu-me afetuosamente e disse:

      — Lady Millicent tinha razão, o duque nunca perdoaria esta carta. Ela contém as expressões de afeto mais extravagantes que já vi.

      — Ora, Poirot! — protestei aborrecido. — Na minha opinião você não devia ter lido a carta. Isso simplesmente não se faz!

      — Eu, Hercule Poirot, faço — retrucou imperturbável o meu amigo.

      — E outra coisa — acrescentei —, não creio que usar um cartão oficial de Japp esteja dentro das regras do jogo.

      — Não estou envolvido num jogo, Hastings. Estou resolvendo um caso.

      Encolhi os ombros. Pontos de vista não se discutem.

      — Há alguém subindo as escadas, deve ser Lady Millicent — disse Poirot.

      Nossa bela cliente entrou. Sua expressão de ansiedade transformou-se em alegria ao ver a carta e a caixa de charão nas mãos de Poirot.

      — Mr. Poirot! Que maravilha! Como conseguiu?

      — Por métodos repreensíveis, milady. Mas Mr. Lavington não apresentará queixa. Esta é sua carta, não?

      A moça correu os olhos pela folha.

      — É ela mesmo. Como poderei lhe agradecer? O senhor é um homem maravilhoso! Onde estava escondida a caixa?

      Poirot lhe contou nossas aventuras.

      — Que dedução inteligente! — disse ela estendendo a mão para a caixinha de charão. — Vou guardá-la como recordação.

      — Milady, gostaria de que me permitisse conservá-la, também como recordação.

      — Mandar-lhe-ei uma recordação muito superior a esta, M. Poirot. No dia do meu casamento verá que não sou ingrata.

      — O prazer de lhe prestar um favor me é mais precioso do que um cheque. Permita-me conservar a caixa.

      — Oh, não, M. Poirot, tenho que ficar com ela! — exclamou a moça. ainda risonha.

      Ela estendeu a mão. mas Poirot foi mais rápido. Sua mão fechou-se sobre a caixa.

      — Não — sua voz modificara-se.

      — O que significa isso? — ela não sorria mais.

      — Pelo menos permita-me conservar o seu conteúdo. Como vê, o fundo dessa gavetinha é falso. Em cima estava a carta comprometedora, e embaixo...

      Num gesto rápido ele estendeu a mão. Em sua palma re-fulgiam quatro enormes brilhantes lapidados e duas belíssimas pérolas.

      — Creio que são as jóias roubadas em Bond Street, há poucos dias atrás — murmurou Poirot. — Japp nos dirá.

      Para minha surpresa, a porta do quarto de Poirot abriu-se e o inspetor apareceu.

      — Um velho amigo seu — disse Poirot com uma mesura a Lady Millicent.

      — Com todos os diabos, me apanharam! — exclamou a moça num tom completamente diferente. — Seu velho demônio! — ela olhou para Poirot com admiração não isenta de afeto.

      — Bem, Gertie, minha querida — disse Japp —, desta vez você perdeu. Não pensava revê-la tão cedo! Apanhamos o seu cúmplice também, o falso Lavington que aqui esteve ontem. O verdadeiro, vulgo Crocker, vulgo Reed, foi morto na Holanda. Aliás gostaria de saber qual o componente do bando que enfiou uma faca nele. Pensaram que as pedras estavam em seu poder, não foi? Ele os traiu, e escondeu a mercadoria em sua própria casa. Depois que os seus amigos não conseguiram encontrar a caixa, você recorreu a M. Poirot, que a achou, com uma sorte estupenda.

      — Você gosta um bocado de falar, não é? — disse a ex-Lady Millicent. — Fique quietinho que eu irei bem comportadinha. Você não poderá dizer que não sou uma perfeita dama. Tchau para vocês!

      — Os sapatos dela não combinavam — disse Poirot enquanto eu estava por demais estupefato para falar. — Observei os costumes de seu país, sei que uma verdadeira dama, que tenha berço, é sempre exigente em relação ao seu calçado. Pode trajar um vestido modesto, mas os sapatos serão sempre de qualidade superior. Ora. esta Lady Millicent usava um vestido caro e elegante, e sapatos baratos! A verdadeira Lady Millicent não mora em Londres, e era pouco provável que você ou eu a conhecêssemos, e esta moça tem uma semelhança superficial com ela. Além dos sapatos que logo despertaram minha atenção, a sua história e os seus véus eram excessivamente melodramáticos, não concorda? O bando conhecia a caixa de charão com a falsa carta comprometedora, mas escondê-la na tora de madeira foi idéia exclusiva de Lavington!

      E meu amigo acrescentou com um ar de satisfação:

      — Espero que não torne a ferir meus sentimentos dizendo que as classes criminosas nem sabem de minha existência, Hastings. Ma foi, elas até recorrem a mim quando não conseguem seus objetivos!

 

Problema a Bordo

      — Coronel Clapperton! — e o General Forbes acrescentou à exclamação uma fungadela de desprezo.

      Miss Ellie Henderson inclinou-se para ele com um brilho divertido em seus olhos escuros. O vento brincava com seus cabelos prateados.

      — Mas ele tem um ar tão marcial! — disse ela com malícia, tentando conter os cabelos rebeldes.

      — Marcial? — protestou o General Forbes dando um violento puxão em seus próprios bigodes enquanto suas bochechas ficavam escarlates.

      — Ele comandou a Guarda Real, não foi? — acrescentou Miss Henderson num toque final à provocação.

      — Guarda Real? Que absurdo! Um sujeito que saiu do teatro de revista! Alistou-se durante a guerra e mandaram-no para a França, e ele ficou inventariando latas de presuntada até que os boches deixaram cair uma bomba lá pela cozinha. Ele acordou na Inglaterra com um ferimentozinho no braço, no hospital de Lady Carrington.

      — Então for assim que se conheceram...

      — Exatamente. Ele bancou o herói ferido pois Lady Carrington podia ser uma tola, mas tinha montanhas de dinheiro. O velho Carrington fora fabricante de armamentos, e ela enviuvara há seis meses quando esse sujeito a passou na conversa. Foi ela quem lhe arranjou um cargo qualquer no Ministério da Guerra. Hum! Coronel Clapperton, pois sim! — e o General fungou novamente.

      — Então antes da guerra ele era do teatro de revista... — murmurou Miss Henderson tentando fazer uma síntese entre a imagem do distinto oficial e a de um comediante vulgar dizendo piadas de duplo sentido.

      — Exatamente, foi o velho Bassington-french quem me contou, e sua fonte de informações foi o velho Badge Cotteril, que por sua vez soube da história por Snooks Parker.

      — Então não pode mesmo restar dúvida alguma! — afirmou Miss Henderson categórica.

      Um leve sorriso passou pelo rosto do homem baixinho sentado ao lado deles. Miss Henderson, muito observadora, notou o sorriso provocado por sua ironia, ironia esta que o General fora incapaz de perceber.

      O General, alheio a tudo isso, consultou o relógio, levantou-se e declarou:

      — Está na hora dos meus exercícios, preciso conservar-me em forma — e dirigiu-se para o convés.

      Miss Henderson virou-se para o homenzinho do sorriso, num discreto convite a uma conversa.

      — Ele tem um bocado de energia, não é mesmo? — disse o companheiro.

      — Costuma dar exatamente quarenta e oito voltas ao convés! E que velho fofoqueiro! Ainda dizem que as mulheres é que gostam de falar da vida alheia...

      — Que falsidade!

      — Os franceses são muito galantes — disse Miss Henderson sorrindo. Era quase uma pergunta.

      O homenzinho respondeu prontamente.

      — Sou belga, madame.

      — Ah, belga...

      — Hercule Poirot, às suas ordens.

      O nome lhe era familiar. Onde o ouvira?

      — Está gostando da viagem, M. Poirot?

      — Para ser franco, não. Foi uma tolice da minha parte ter-me deixado persuadir. Eu detesto la mer, suas águas não ficam paradas nem um único minuto.

      — No momento está bem calmo.

      Poirot admitiu o fato de má vontade.

      — No momento, está, e sinto vida nova, tornei a me interessar pelo que me cerca. Por exemplo, pela sua habilidade em lidar com o General Forbes.

      — Refere-se a... — Miss Henderson hesitou.

      — Seus métodos de desenterrar aquelas informações picantes foram admiráveis.

      Miss Henderson riu sem inibição.

      — Calculei que o velho pularia à menção da Guarda Real! — ela inclinou-se para ele e confidenciou-lhe: — Confesso que adoro mexericos, quanto mais picantes, melhor!

      Poirot fitou pensativo à silhueta esbelta, bem conservada, os penetrantes olhos escuros, e os cabelos grisalhos daquela mulher de quarenta e cinco anos que não se preocupava em esconder a idade.

      De repente, Ellie exclamou:

      — Agora me lembro! O senhor não é o grande detetive?

      — É muita amabilidade sua, mademoiselle — respondeu Poirot com uma mesura.

      — Que emocionante! Está investigando algum caso misterioso? Será que temos um criminoso entre nós, ou estarei sendo indiscreta?

      — Não, nem um pouco. Sinto desapontá-la, mas estou aqui para me divertir, como todos os outros.

      Ele fez esta declaração numa voz tão desanimada que Miss Henderson soltou uma gargalhada.

      — Bem, o senhor poderá obter algum alívio dando uma volta por Alexandria. Já esteve no Egito?

      — Não, mademoiselle.

      Inesperadamente Miss Henderson levantou-se.

      — Acho que vou imitar o General — ela anunciou.

      Poirot ergueu-se polidamente. Com um rápido cumprimento, ela saiu para o convés.

      Levemente intrigado, Poirot dirigiu-se à porta e espiou o tombadilho. Encostado à amurada, Miss Henderson conversava com um homem alto de aspecto marcial.

      Os lábios de Poirot contraíram-se num leve sorriso. Recuou diplomaticamente como uma tartaruga recolhendo-se a seu casco. O salão estava vazio. Uma situação transitória, conjeturou Poirot acertadamente, pois dali a instantes Mrs. Clapperton, com os imaculados cabelos platinados protegidos por uma rede e a silhueta conservada por massagens e dietas num elegante costume esporte, apareceu na porta do bar. Tinha o. ar seguro de alguém que sempre pudera oferecer o lance mais alto por um objeto desejado.

      — John...? — disse ela. — Ah, bom dia, M. Poirot. Viu John por acaso?

      — Ele está no convés de estibordo, madame. Deseja que eu...?

      Ela o deteve com um gesto.

      — Vou esperar aqui — e ela sentou-se a seu lado com a pose de uma rainha. A distância, ela aparentara uns vinte e oito anos, mas de perto, apesar da maquilagem perfeita e das sobrancelhas impecáveis, dir-se-ia ter cinqüenta e cinco. em vez dos seus verdadeiros quarenta e nove anos. Seus olhos azuis-claros, de pupilas diminutas, eram duros e secos.

      — Senti a sua falta no jantar de ontem — disse ela. — Mas o mar estava um pouco agitado, não é mesmo?

      — Précisément — Poirot concordou plenamente.

      — Eu nunca enjôo, felizmente — disse Mrs. Clapperton. — Digo felizmente porque se enjoasse poderia até morrei, com esse meu coração fraco.

      — Sofre do coração, madame?

      — Sofro. Preciso tomar o máximo cuidado. Todos os especialistas dizem que não posso me cansar. — E Mrs. Clapperton começou a discorrer, deliciada, sobre o fascinante tema de sua saúde precária. — John, pobrezinho, está sempre fazendo o possível para impedir que eu me canse. Vivo muito intensamente, sabe, M. Poirot.

      — Faço idéia, madame.

      — Ele está sempre me aconselhando: “Tente ser menos vibrante, Adeline”. Mas não consigo. A vida é para ser vivida. não concorda? Quando era mocinha, durante a guerra, trabalhei até quase a exaustão completa. Ouviu falar em meu hospital? Naturalmente tinha enfermeiras e auxiliares, mas quem dirigia tudo era eu — e ela deu um suspiro.

      — Sua vitalidade é admirável, .madame — disse Poirot cortesmente mas sem muita convicção.

      Mrs. Clapperton soltou uma risada juvenil.

      — Todos me acham tão jovem! E nunca tento negar meus quarenta e três anos — prosseguiu ela com falsa candura. — Muitos acham difícil de acreditar. “Você tem tanta vida, Adeline”, eles me dizem, Mas se não nos esforçarmos para viver, o que acontecerá, M. Poirot?

      — Morreremos — retrucou o detetive.

      Mrs. Clapperton franziu a testa, a resposta não lhe agradara. O homenzinho está tentando ser engraçado, ela pensou.

      — Preciso encontrar John — ela declarou levantando-se e deixando cair a bolsa, que se abriu espalhando o seu conteúdo. Poirot, galantemente, acorreu em auxílio. Dali a pouco, batons, estojos de pó, cigarreira, isqueiro e outras miudezas haviam sido devolvidos à dona. Mrs. Clapperton agradeceu-lhe educadamente e seguiu para o convés.

      — John! — era uma ordem.

      O Coronel Clapperton, entretido em animada conversa com Miss Henderson, virou-se e atendeu prontamente ao chamado da esposa. Debruçou-se sobre ela em atitude protetora. A espreguiçadeira estava em bom lugar? Não seria melhor...? Atencioso, cortês, era o protótipo do marido dedicado.

      Miss Ellie Henderson contemplou o horizonte como se este a desagradasse profundamente.

      Em pé, na porta do salão, Poirot observava.

      Uma voz rouca e poderosa comentou em suas costas:

      — Se eu fosse o marido daquela mulher, cortava-lhe o pescoço! — era um senhor venerando conhecido pela turma mais jovem como “o mais velho plantador de chá do mundo”. — Ei, rapaz! Traga-me uma dose de uísque — pediu o velho.

      Poirot abaixou-se para apanhar um pedaço de papel que sobrara dos pertences de Mrs. Clapperton. Era parte de uma receita contendo digitalina. O detetive colocou-a no bolso para devolvê-la mais tarde.

      — Aquela mulher é uma megera. Faz-me lembrar uma outra que conheci em Poona em 1887 — disse o velho.

      — Alguém cortou-lhe o pescoço? — perguntou Poirot.

      O companheiro sacudiu a cabeça, pesaroso.

      — Encheu tanto a paciência do marido, que ele acabou morrendo em menos de um ano. Clapperton devia se impor, dar menos trela à mulher!

      — Ela controla o dinheiro — explicou Poirot muito sério.

      O velho deu uma gostosa risada.

      — O senhor definiu muito bem o problema!

      Duas mocinhas irromperam sala a dentro, com a impulsividade da juventude, uma sardenta de cabelos ruivos e a outra de rosto redondo e linda cabeleira escura.

      — Serviço de Salvamento! — anunciou Kitty Mooney. — Pam e eu vamos salvar o Coronel Clapperton.

      — Das garras da esposa — concluiu Pamela Cregan.

      — Ele é um amor...

      — E ela é simplesmente horrorosa, não o deixa fazer nada!

      — E quando ele se livra dela, Ellie Henderson o agarra.

      — Ela é boazinha, mas tão velha...

      Elas saíram apressadas, anunciando entre risadinhas:

      — Serviço de Salvamento... Serviço de...

     

      À noite as moças demonstraram ter firmes propósitos de salvar o Coronel Clapperton. Pam Cregan, com a impunidade de seus dezoito anos, murmurou ao ouvido de Poirot:

      — Observe só, M. Poirot. Vamos pegá-lo bem no nariz dela e levá-lo para um passeio ao luar.

      O Coronel estava dizendo:

      — Admito que um Rolls Royce não é barato, mas é carro para uma vida inteira. O meu...

      — O carro de minha esposa, John — corrigiu a voz cortante de Mrs. Clapperton.

      Ele não se deu por achado. Aparentemente já se acostumara às indelicadezas dela, ou então...

      Ou então...? Poirot formulou algumas respostas mentais àquela pergunta.

      — Certamente, querida, o seu carro — Clapperton fez uma mesura à esposa e terminou a frase iniciada com perfeita compostura.

       Voilà ce qu’on appelle le pukka sahib, pensou Poirot. Mas na opinião do General Forbes ele não é um cavalheiro. O caso me intriga.

      Alguém sugeriu uma partida de bridge. Mrs. Clapperton, o General Forbes e um casal de narizes aquilinos acolheram a idéia com entusiasmo. Miss Henderson pediu licença e se dirigiu ao convés.

      — E seu marido? — perguntou o General hesitante.

      — John não joga. É uma das suas manias irritantes — disse Mrs. Clapperton arrumando suas cartas.

      Pam e Kitty cercaram o Coronel, e cada uma apoderou-se de um dos braços do oficial.

      — O senhor tem que vir conosco — disse Pam. — Vamos ver a lua no convés superior.

      — Não faça uma tolice destas, John. Vai apanhar um resfriado — interveio Mrs. Clapperton.

      — Conosco não há perigo — disse Kitty. — Somos muito esquentadas!

      Ele as acompanhou rindo. Ao chegar sua vez Mrs. Clapperton disse secamente:

      — Eu passo.

      Poirot saiu para o convés. Encostada à amurada, Miss Henderson virou-se esperançosa quando ele se aproximou, e seu rosto anuviou-se. Trocaram algumas frases amáveis e ele ficou em silêncio.

      — O que o preocupa? — ela perguntou.

      — As deficiências do meu inglês. Ao declarar: “John não joga” Mrs. Clapperton estava acaso querendo dizer que o coronel não sabe jogar?

      — Certamente ela considera o fato uma afronta pessoal — disse Ellie em tom seco. — Ele foi um tolo em desposá-la.

      Na escuridão Poirot sorriu.

      — Não acha possível que o deles seja um bom casamento? — ele arriscou.

      — Com uma mulher daquelas?

      Poirot encolheu os ombros.

      — Muitas megeras têm maridos devotados; é um dos enigmas da natureza. A senhorita precisa admitir que nada do que ela diz ou faz parece irritá-lo.

      Miss Henderson procurava uma resposta quando a voz de Mrs. Clapperton ecoou através da janela do salão;

      — Não, não estou com vontade de jogar outra partida, está muito abafado aqui. Vou apanhar um pouco de ar no convés superior.

      — Boa-noite. Eu vou dormir — disse Miss Henderson e retirou-se abruptamente.

      Poirot dirigiu-se para o salão de estar. A única mesa ocupada era a do coronel com as duas moças. Ele as entretinha com alguns truques de baralho, e observando a destreza com que ele manejava as cartas, Poirot lembrou-se das histórias do general sobre o teatro de variedades.

      — Vejo que apesar de não jogar bridge, gosta de baralho — comentou o detetive.

      — Tenho minhas razões para não jogar — disse Clapperton com um sorriso encantador. — Vou lhe mostrar. Vamos jogar uma partida — e ele deu as cartas com rapidez.

      — Que tal? — disse ele quando os companheiros arrumaram suas cartas, e deu uma risada ante a expressão estupefacta do rosto de Kitty. Colocou suas cartas na mesa e os outros o imitaram. Kitty tinha a seqüência completa de paus, M. Poirot a de copas, Pam a de ouros e ele próprio a de espadas.

      — Estão vendo só? — disse o coronel. — É melhor manter-me afastado das mesas de jogo. Meus parceiros podem implicar com a minha sorte excessiva!

      Kitty não se conformava.

      — Como conseguiu fazer uma coisa destas? Eu não percebi nada!

      — As mãos foram mais rápidas que os olhos — sentenciou Poirot.

      Os olhos do coronel mudaram de expressão, como se percebesse que havia, por alguns momentos, desafivelado a máscara.

      Poirot sorriu. O prestidigitador, escondido sob o disfarce do perfeito cavalheiro, aparecera.     

     

      Na madrugada seguinte o navio atracou em Alexandria. Quando Poirot subiu para o café, encontrou as duas moças prontas para desembarcar, conversando com o Coronel Clapperton.

      — Vamos logo — disse Kitty afobada. — Os funcionários da alfândega vão descer agora. O senhor virá conosco, não? Não vai nos deixar ir à terra sozinhas, vai? Pense nas coisas terríveis que podem nos acontecer...

      — Não devem mesmo descer sozinhas — concordou o coronel sorrindo —, mas acho que minha esposa não está com disposição de passear.

      — Que pena! — disse Pam. — Mas ela terá um dia inteirinho para descansar...

      O Coronel Clapperton hesitou. Evidentemente seu desejo de dar uma escapadela era bem forte. Viu Poirot.

      — Olá, M. Poirot, vai desembarcar?

      — Não, penso que não — respondeu Poirot.

      — Eu... vou falar com Adeline — decidiu-se o coronel.

      — Vamos também — disse Pam piscando um olho para Poirot. — Talvez possamos persuadi-la a vir — acrescentou muito séria.

      O coronel gostou da sugestão. Sua expressão era de alívio.

      — Venham, então, todos — ele disse jovialmente e dirigiu-se para o convés B.

      Poirot, cujo camarote ficava bem em frente ao do coronel, seguiu-o por pura curiosidade. O oficial bateu na porta com um pouco de nervosismo.

      — Adeline, querida, está acordada?

      A voz sonolenta de Mrs. Clapperton respondeu lá de dentro.

      — O’diabos, o que é?

      — Sou eu, John. Quer ir à terra?

      — De maneira alguma — a voz era estridente e categórica. — Dormi muito mal. Vou passar o dia deitada.

      Pam interveio prontamente:

      — Que pena, Mrs. Clapperton! Gostaríamos tanto de que nos acompanhasse! Tem certeza de que não está disposta?

      — Certeza absoluta — a voz de Mrs. Clapperton soou ainda mais estridente.

      O coronel virava a maçaneta sem resultado

      — O que é, John? Tranquei a porta, não quero ser incomodada pelos camareiros.

      — Desculpe, querida. Só queria meus cigarros.

      — Vai ter que passar sem eles — retorquiu Mrs. Clapperton. — Não vou me levantar. Vá logo embora, John, deixe-me em paz.

      — Pois não, querida, pois não — o coronel afastou-se de braços com Pam e Kitty.

      — Vamos logo. Felizmente seu chapéu está na cabeça. Nossa! E o passaporte? — disse uma das moças.

      — Para falar a verdade, está em meu bolso... — começou a dizer o coronel.

      Kitty apertou o seu braço.

      — Que maravilha! Vamos embora!

      Encostado à amurada, Poirot observou o trio descer as escadas para o cais. Alguém soltou uma exclamação a seu lado, e ele virou-se e deparou com Miss Henderson olhando na mesma direção.

      — Então eles vão à terra — disse ela.

      — E a senhorita não vai imitá-los?

      Ela trazia um chapéu de abas largas e uma bolsa elegante, próprios para um passeio. Entretanto, após uma ligeira hesitação, ela sacudiu a cabeça.

      — Não, não vou descer. Tenho algumas cartas para escrever — disse e retirou-se.

      Com a respiração ofegante, ao terminar sua quadragésima oitava volta, o General Forbes juntou-se a Poirot.

      — Ha! — exclamou ao ver o coronel na companhia das duas mocinhas. — Que malandro! Então as coisas estão nesse ponto, hem? E onde está a infeliz consorte?

      Poirot explicou que Mrs. Clapp pretendia passar o dia descansando.

      — Não acredito! — e o velho militar piscou um olho. — Daqui a pouco ela vai aparecer e se o miserável não estiver por aqui, vai haver uma encrenca dos diabos!

      Mas os prognósticos do general não se realizaram. Mrs. Clapp não compareceu ao almoço, e não havia se levantado ainda quando o coronel retornou às quatro da tarde.

      Poirot, em seu camarote, ouviu as tímidas batidas na porta em frente. As batidas se repetiram, alguém girou repetidamente a maçaneta, e afinal ouviu a voz do coronel chamando o camareiro:

      — Ei, venha cá. Ninguém responde, você tem uma chave?

      Poirot ergueu-se rapidamente de seu beliche e saiu para o corredor.    

     

      A notícia espalhou-se como fogo em capim seco pelo navio. Os passageiros ouviram, incrédulos e horrorizados, que Mrs. Clapperton fora encontrada morta em seu beliche com uma adaga nativa enfiada no coração. Um colar de contas marrons fora achado no chão do camarote. Os rumores multiplicaram-se. Todos os vendedores de quinquilharias que haviam subido a bordo naquele dia foram detidos e interrogados. Desaparecera uma grande quantia em dinheiro de uma gaveta do camarote! Haviam recuperado as notas! Não haviam recuperado as notas! Jóias valiosíssimas haviam sido roubadas! Que jóias, que nada! Um camareiro fora preso e confessara o crime!

      — M. Poirot, onde está a verdade? — perguntou Miss Ellie Henderson. Seu rosto estava pálido e angustiado.

      — Minha cara senhorita, como vou saber?

      — O senhor sabe, sim — disse Miss Henderson.

      Era quase meia-noite. A maioria dos passageiros havia-se recolhido. Miss Henderson conduziu Poirot para duas cadeiras no convés.

      — Conte-me agora — ela ordenou.

      Poirot a fitou, pensativo.

      — Este é um caso interessante — disse ele.

      — Roubaram mesmo jóias valiosas?

      Poirot sacudiu a cabeça.

      — Não, não roubaram jóia alguma. Mas algumas notas que estavam numa gaveta desapareceram.

      — Nunca mais me sentirei segura num navio — disse ela com um estremecimento. — Há alguma pista indicando qual daqueles vigaristas morenos a matou?

      — Não — disse Hercule Poirot. — O caso é muito estranho.

      — Que pretende dizer com isso? — Ellie foi incisiva.

      — Eh bien, vamos aos fatos. Quando encontraram o corpo de Mrs. Clapperton ela estava morta há pelo menos umas cinco horas. Desaparecera algum dinheiro. No chão do camarote, um colar de contas. A porta trancada, sem a chave. A janela, ouça bem, janela e não escotilha, dando para o convés, aberta.

      — E daí? — perguntou ela impaciente.

      — Não acha curioso um assassinato cometido nessas circunstâncias? Lembre-se de que os vendedores de cartões-postais, os cambistas e os camelôs que têm permissão para subir a bordo são bem conhecidos da polícia.

      — E mesmo assim, os camareiros trancam as portas dos camarotes — retrucou Ellie.

      — É verdade, para impedir a possibilidade de algum pequeno furto. Mas um assassinato é coisa diferente.

      — Onde quer chegar, M. Poirot? — a voz dela traía nervosismo.

      — Estou pensando na porta trancada.

      Miss Henderson refletiu.

      — Nada vejo de estranho nisso. O assassino saiu pela porta, trancou-a e levou a chave para retardar a descoberta do crime, uma providência inteligente, pois só descobriram o corpo às quatro da tarde.

      — Não, não, mademoiselle. Não está percebendo aonde quero chegar. O que me preocupa não é como ele saiu, mas como ele entrou.

      — Pela janela, naturalmente.

      — C’est possible. Mas ela é bem estreita, e há sempre gente passeando pelo convés.

      — Então ele entrou pela porta, ora — disse Miss Henderson já impaciente.

      — Mas mademoiselle se esquece de que Mrs. Clapperton trancou a porta por dentro antes do coronel sair do navio. Ele tentou abrir a porta e vimos que estava trancada.

      — Bobagem, provavelmente emperrou, ou ele não virou direito a maçaneta.

      — Não estamos nos baseando só nas palavras dele. Nós ouvimos Mrs. Clapperton dizer que trancara a porta a chave.

      — Nós?

      — Miss Mooney, Miss Cregan, o coronel e eu.

      Ellie Henderson bateu com a ponta do sapato elegante no chão. Ficou calada algum tempo, e então disse com ligeira . irritação:

      — Bem, e o que deduz daí? Mrs. Clapperton pode muito bem ter destrancado a porta depois.

      — Exatamente, exatamente — e Poirot voltou para ela o rosto sorridente. — E veja a que isto nos leva: Mrs. Clapperton abriu a porta e deixou o assassino entrar. Acha provável que ela tenha aberto a porta a um camelô qualquer?

      Ellie protestou:

      — Talvez ela não soubesse quem era. O criminoso bateu, ela levantou-se e abriu a porta, ele forçou a entrada e a matou.

      Poirot sacudiu a cabeça numa negativa.

      — Au contraire, ela estava pacificamente deitada quando a apunhalaram.

      Miss Henderson o encarou:

      — O que deduz daí? — ela perguntou abruptamente.

      O detetive sorriu.

      — Bem, fica-nos a impressão de que ela conhecia bem esta pessoa que bateu em sua porta...

      — Está querendo dizer que o assassino é um passageiro do navio? — disse Miss Henderson com alguma rispidez.

      — É o que parece — respondeu Poirot balançando a cabeça.

      — E o assassino tentou despistar-nos com o colar?

      — Exatamente.

      — E levou o dinheiro com o mesmo propósito?

      — Isso mesmo.

      Depois de alguns momentos de silêncio, Miss Henderson disse pausadamente:

      — No meu conceito Mrs. Clapperton era uma mulher muito desagradável, e não creio que algum passageiro simpatizasse com ela. Mas isso não é motivo suficiente para matar ninguém.

      — Talvez o marido tivesse um bom motivo — disse Poirot.

      — O senhor não acredita... — ela calou-se.

      — Na opinião geral dos passageiros, o Coronel Clapperton teria toda a razão “se lhe cortasse o pescoço”. Se não me engano, foi a expressão que ouvi.

      Ellie Henderson olhava para ele, à espera.

      — Mas devo confessar — prosseguiu Poirot — que não notei nenhum sinal de exasperação por parte do coronel, e o que é ainda mais importante, ele tem um álibi. Passou o dia inteiro na companhia das duas moças, e quando voltou para o navio às quatro, Mrs. Clapperton estava morta há várias horas.

      Após outro minuto de silêncio, Ellie Henderson disse baixinho:

      — Mas o senhor ainda pensa... num passageiro do navio?

      Poirot curvou a cabeça.

      Ellie Henderson soltou uma súbita gargalhada, desafiadora e impudente.

      — Será difícil provar sua teoria, M. Poirot. Há muitos passageiros a bordo.

      O detetive fez-lhe uma mesura:

      — Plagiando Sherlock Holmes, direi: “Tenho meus métodos, Watson.”

      Na noite seguinte, na mesa do jantar, cada passageiro encontrou um bilhete pedindo seu comparecimento a uma reunião no salão principal às oito e trinta. Quando o grupo estava completo o capitão subiu na plataforma da orquestra e dirigiu-lhes a palavra.

      — Senhoras e senhores, todos tomaram conhecimento da tragédia de ontem. Tenho certeza de que desejam cooperar para que o culpado desse monstruoso crime seja levado à Justiça — o oficial hesitou e pigarreou: — A bordo viaja M. Hercule Poirot, provavelmente conhecido de todos graças a sua ampla experiência em tais... assuntos. Espero que ouçam com atenção as suas palavras.

      Neste instante, o Coronel Clapperton, que não subira para o jantar, entrou e sentou-se ao lado do General Forbes. Muito abatido, parecia curvado sob o peso de uma grande tristeza, e não tinha absolutamente o aspecto de um homem aliviado. Ou era um ótimo ator, ou nutrira uma genuína afeição por sua desagradável esposa.

      O capitão cedeu o lugar ao detetive. Poirot tinha uma aparência um tanto ridícula ao cumprimentar a platéia:

      — Mesdames, messieurs — começou —, é muita indulgência de sua parte ouvirem o que tenho a dizer. M. le captaine falou-lhes sobre a minha experiência nesses assuntos. Essa experiência me sugeriu uma pequena idéia, que poderá nos levar à verdade — ele fez um sinal e um camareiro adiantou-se com um volume informe, envolto num lençol.

      — Talvez se surpreendam, e me considerem um excêntrico, talvez mesmo um louco — preveniu-os Poirot. — Entretanto, asseguro-lhes que há método em minha loucura, como costumam dizer na Inglaterra.

      Seu olhar cruzou-se com o de Miss Henderson e ele começou a desembrulhar o volume.

      — Tenho aqui, mesdames e messieurs, uma importante testemunha do assassinato de Mrs. Clapperton.

      Com um gesto rápido ele retirou o lençol revelando um boneco de madeira quase do tamanho de um homem adulto, vestido num terno de veludo com gola de renda.

      — Arthur — disse Poirot num inglês autêntico com um leve sotaque cockney —, você pode me contar alguma coisa a respeito da morte de Mrs. Clapperton?

      O pescoço do boneco oscilou, seu maxilar de madeira abriu-se e uma voz estridente e aguda de mulher disse:

      — O que é, John? Tranquei a porta, não quero ser incomodada pelos camareiros...

      Ouviu-se um grito abafado, uma cadeira caiu ao chão, um homem levantou-se, cambaleando, com a mão no pescoço, tentando falar, tentando... Subitamente seus joelhos dobraram-se e ele estatelou-se no chão.

      Era o Coronel Clapperton.     

     

      Poirot e o médico de bordo ergueram-se ao lado do corpo.

      — Tudo acabado, infelizmente. Coração — disse o médico, sucinto.

      Poirot balançou a cabeça.

      — Foi o choque de ter sido descoberto — disse ele e virou-se para o General Forbes: — O senhor, general, deu-me uma indicação valiosa quando mencionou o teatro de variedades. Fiquei pensando, até que me ocorreu uma idéia: imaginemos que Clapperton fosse um ventríloquo antes da guerra. Seria então perfeitamente possível que três pessoas ouvissem a voz de Mrs. Clapperton de dentro do camarote quando ela já estava morta...

      A seu lado Ellie Henderson voltou para ele os olhos escuros cheios de sofrimento:

      — O senhor sabia que o coração dele era fraco? — ela perguntou.

      — Adivinhei... Mrs. Clapperton queixou-se de deficiência cardíaca, mas deduzi que era do tipo de mulher que adora queixar-se da saúde. Achei uma receita rasgada com uma dose muito forte de digitalina, um remédio para o coração. . Mas digitalina dilata as pupilas, e as de Mrs. Clapperton eram normais. Mas quando observei os olhos dele, descobri imediatamente que a receita lhe pertencia.

      Ellie falou, e sua voz era um murmúrio:

      — Então o senhor sabia... que isto poderia acabar... assim?

      — Foi o melhor que poderia ter acontecido a ele, não acha, mademoiselle? — ele perguntou com brandura.

      Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

      — O senhor sabia... sabia o tempo todo... que eu gostava dele... Mas não foi por mim que a matou... Foram aquelas moças... a juventude delas... que o fizeram sentir sua escravidão. Ele queria libertar-se antes que fosse demasiado tarde... Sim, foi o que aconteceu... Como o senhor adivinhou que ele a matara?

      — O autocontrole dele era perfeito demais — disse Poirot com simplicidade. — Por mais exasperante que fosse a conduta da esposa, nunca o afetava. Podia ser uma indicação de que se acostumara ao fato, e não se irritava mais, ou então... Eh bien, concluí pela última alternativa... E eu estava certo. Na noite antes do crime ele fingiu revelar sem querer suas habilidades de prestidigitador. Mas um homem como Clapperton nunca age irrefletidamente, deveria haver uma razão para esse procedimento. Enquanto as pessoas julgassem que ele fora um mágico, não pensariam que pudesse ser um ventríloquo.

      — E a voz que ouvimos? A voz de Mrs. Clapperton?

      — Uma das camareiras tem uma voz semelhante à dela. Convenci-a a se esconder atrás do palco e a dizer aquela frase.

      — Foi um truque cruel! — exclamou Ellie.

      — Não aprovo assassinatos — disse Hercule Poirot.

 

Que Bonito é o seu Jardim?

      Após empilhar a correspondência metodicamente, Hercule Poirot pegou o envelope de cima, examinou o sobrescrito por algum tempo, e o abriu com o auxílio de um cortador de papéis que guardava sobre a mesa do café expressamente para esse fim. Extraiu um segundo envelope fechado com lacre vermelho e marcado “Particular e Confidencial”, e ergueu as sobrancelhas:

      — Patience! Chegaremos lá! — murmurou tornando-se a servir do cortador. Afinal, desta vez obteve uma carta escrita numa caligrafia trêmula e angulosa, com várias palavras sublinhadas com traços fortes.

      Hercule Poirot iniciou a leitura. “Confidencial”, avisava de saída a missivista. Seguia-se seu endereço: O Roseiral, Charman’s Green, Bucks, e a data, vinte e um de abril.

 

“Caro M. Poirot,

      Uma velha e querida amiga, sabendo as aflições e as tristezas por que tenho passado nos últimos tempos, recomendou-me o senhor. Ela não conhece, entretanto, os fatos que provocaram esses sentimentos. Tenho sido muito reservada, pois o assunto é estritamente confidencial. Minha amiga tranqüilizou-me quanto à sua discrição. Não desejo envolver-me com a polícia, mesmo que minhas suspeitas tenham fundamento. Esta solução não me agrada.

      É possível, entretanto, que eu esteja inteiramente enganada. Ultimamente, devido à insônia e por não ter ainda me recuperado de uma doença grave que me acometeu no último inverno, não me julgo com a lucidez necessária para investigar o caso sozinha. Faltam-me meios e capacidade. Por outro lado, devo insistir que se trata de um assunto de família, muito delicado, e por várias razões é meu desejo abafar o caso. Uma vez de posse dos fatos, desejaria resolver o problema sozinha. Espero ter sido suficientemente clara nesse ponto. Caso esteja disposto a encarregar-se da investigação, escreva ao endereço acima.

                                                Atenciosamente,

                                                             Amelia Barrowby.”

 

      Com a testa levemente franzida Poirot tornou a ler a carta. Afinal, deixando-a de lado, prosseguiu com o exame da correspondência.

      Precisamente às dez horas entrou na sala onde Miss Lemon, sua secretária particular, esperava suas instruções diárias. Miss Lemon era uma mulher de quarenta e oito anos, tão pouco atraente quanto um lote de ossos unidos ao acaso. Sua paixão pela ordem quase se igualava à de Poirot, e embora fosse capaz de ter idéias próprias, só empregava a faculdade de raciocínio se lhe ordenassem.

      Poirot entregou-lhe a correspondência matutina.

      — Mademoiselle, tenha a bondade de responder negativamente, nos termos adequados a cada caso, a todas essas cartas.

      Miss Lemon passou uma vista rápida pelo lote e marcou cada carta com um sinal misterioso de seu código particular: “resposta adocicada”, “ácida”, “mel puro”, “bem azeda”, e assim por diante. Concluída essa tarefa ela esperou novas instruções.

      Poirot passou-lhe a carta de Amelia Barrowby. Ela a retirou do envelope duplo, leu-a e olhou indecisa para o patrão.

      — E esta, M. Poirot? — perguntou com o lápis a postos.

      — Gostaria de ouvir sua opinião, Miss Lemon.

      Franzindo a testa, a secretária largou o lápis e releu a missiva. A correspondência só interessava a Miss Lemon dentro dos limites rígidos de suas atribuições profissionais. Cabia-lhe dar-lhe a resposta adequada, e o seu teor emocional não á tocava.

      Muito raramente seu patrão apelava para a sua intuição, e Miss Lemon sempre sentia um ligeiro aborrecimento nesses casos. Preferia ser a máquina perfeita, total e gloriosamente desinteressada dos problemas emotivos dos seres humanos. A verdadeira paixão de sua vida era o aperfeiçoamento de um sistema de arquivos que colocaria todos os já existentes no chinelo. À noite seus sonhos eram povoados por miraculosos arquivos. Entretanto Miss Lemon possuía bastante sensibilidade quanto aos problemas humanos, como Poirot já descobrira.

      — O que acha? — ele perguntou.

      Miss Lemon examinava o envelope duplo.

      — Foi escrita por uma velhinha muito preocupada, e tão discreta que não nos revelou nada.

      — Isso me chamou também a atenção — disse Hercule Poirot.

      Esperançosa, ela retomou o bloco de taquigrafia. Desta vez Poirot a satisfez:

      — Escreva-lhe que terei muito prazer em visitá-la quando lhe aprouver, a menos que prefira vir aqui. Escreva a mão, não a máquina.

      — Sim, M. Poirot.

      O detetive entregou-lhe outros envelopes.

      — Estas são contas.

      As mãos eficientes de Miss Lemon classificaram-nas rapidamente.

      — Pagaremos todas, menos estas duas.

      — Por quê? Há algum erro nelas?

      — Não, mas são de lojas onde abrimos contas recentemente. Dá má impressão saldar os débitos com muita presteza logo de início. Poderão pensar que estamos querendo impressioná-los porque somos na realidade maus pagadores.

      — Ah! — fez Poirot. — Curvo-me diante do seu conhecimento das excentricidades dos comerciantes ingleses.

      — Há pouca coisa sobre eles que eu desconheça — disse Miss Lemon carrancuda.     

     

      A carta para Miss Amelia Barrowby seguiu pelo correio seguinte, mas não obteve resposta. Talvez a velha senhora houvesse deslindado sozinha o seu enigma, pensou Hercule Poirot, estranhando entretanto não ter recebido uma carta delicada comunicando-lhe não mais precisar de seus serviços.

      Na semana seguinte, após receber suas instruções matinais, Miss Lemon disse-lhe:

      — Não admira que Miss Barrowby não tenha respondido sua carta, ela faleceu.

      — Ah, então faleceu? — disse Poirot lentamente. Parecia mais uma resposta do que uma pergunta.

      A secretária retirou um recorte de jornal de sua bolsa.

      — Vi isto aqui durante a viagem do metrô e rasguei o pedaço.

      Poirot notou com aprovação que, embora Miss Lemon usasse o termo “rasguei”, havia na realidade recortado cuidadosamente o anúncio fúnebre do Morning Post. O recorte dizia:

      “Amelia Jane Barrowby — falecida subitamente aos setenta e três anos de idade, no dia vinte e seis de março, no Roseiral, em Charman’s Green. A família pede que não sejam enviadas flores.”

      — “Subitamente...” — murmurou Poirot e deu uma ordem incisiva à sua secretária: — Vou ditar uma carta, Miss Lemon.

      Ela pegou rapidamente o bloco e começou a anotar, enquanto sua mente divagava sobre as complexidades dos sistemas de arquivos:

“Cara Miss Barrowby,

      Não tendo ainda recebido sua resposta, irei visitá-la na próxima sexta-feira, quando outros assuntos me levam a Charman’s Green. Poderemos assim discutir mais amplamente o problema mencionado em sua carta.

      Atenciosamente, ...”

      — Passe à máquina e coloque-a logo no correio. Assim estará em Charman’s Green hoje à noite.

      Na manhã seguinte Poirot recebeu pelo segundo correio uma carta tarjada de negro:

 

“Caro senhor.

      Em resposta à sua carta, devo-lhe informar que minha tia, Amelia Barrowby, faleceu no dia vinte e seis, e portanto o assunto que menciona não tem mais relevância.

                                                   Atenciosamente,

      Mary Delafontaine.”

 

      Poirot sorriu.

      — Não tem mais relevância, hem? Isso é o que veremos. En avant, para Charman’s Green.     

     

      O Roseiral era um nome bem adequado àquela propriedade, pensou Poirot, e não era sempre que os títulos correspondiam à realidade. O detetive, no portão do jardim, olhou com aprovação os canteiros floridos com margaridas, as primeiras tulipas e jacintos azuis. As viçosas roseiras prometiam uma bela colheita nos meses seguintes. Conchas demarcavam parcialmente um canteiro num toque romântico.

      — Como é mesmo aquele versinho que as crianças inglesas costumam cantar? — murmurou. Poirot e disse baixinho:

 

               “Senhorita, tão catita,

               Que lindo é o seu jardim!

               Com seixos e brancas conchas

               E raparigas sem fim...”

 

      E aí vem pelo menos uma bela rapariga para fazer jus ao cenário, pensou o detetive.

      A porta da frente se abriu e uma bonita criadinha, de touca e avental, examinava com um ar desconfiado o estrangeiro de fartos bigodes que falava sozinho no jardim. A mocinha tinha lindos olhos azuis-claros e faces rosadas.

      Poirot retirou o chapéu cortesmente e perguntou:

      — Pardon, é aqui a casa de Miss Amelia Barrowby?

      A criadinha prendeu a respiração e arregalou os olhos:

      — Oh, o senhor ainda não sabe? Ela morreu, de repinte, na terça-feira à noite.

      Ela hesitava, dividida entre dois fortes instintos: sua desconfiança natural pelos estrangeiros e o prazer próprio de sua classe de discorrer sobre casos de morte e doença.

      — Mas eu não sabia! — mentiu Poirot. — Tinha uma entrevista marcada com essa senhora hoje. Talvez eu possa falar com a outra senhora da casa.

      A criadinha ficou indecisa.

      — Com a patroa? Bem, eu não sei se ela o receberá.

      — Ela me receberá, sim — afirmou Poirot entregando-lhe um cartão.

      Seu tom autoritário produziu resultados. A criadinha de faces rosadas recuou e, deixando Poirot na sala de estar à direita do vestíbulo, retirou-se com o cartão para chamar a patroa.

      Hercule Poirot correu os olhos pela sala. A decoração era convencional, com papel de parede creme, estampados discretos, almofadas e cortinas rosas e grande número de bibelôs de porcelana. Nenhum detalhe no ambiente revelava uma personalidade marcante.

      Subitamente Poirot, muito sensível, sentiu que era observado. Voltou-se e viu uma moça pálida, de cabelos negros e olhos desconfiados, em pé junto à porta envidraçada que dava para o jardim. Cumprimentou-a com um aceno e ela perguntou sem preâmbulos:

      — O que veio fazer aqui?

      Poirot não respondeu. Limitou-se a erguer as sobrancelhas.

      — Não é um advogado, é? — o inglês dela era correto, mas ninguém a tomaria por uma inglesa.

      — Por que eu deveria ser um advogado, mademoiselle?

      A moça o encarou carrancuda.

      — Pensei que fosse. Pensei que tivesse vindo para dizer-me que ela não sabia o que estava fazendo, que eu a influenciei indevidamente. Mas não é verdade! Ela queria deixar o dinheiro para mim, e ele será meu. Preciso arranjar um advogado, o dinheiro é meu! Ela deixou escrito, e assim será — seu aspecto não era atraente, com o queixo erguido num desafio e os olhos brilhantes.

      A porta se abriu e uma mulher alta entrou.

      — Katrina!

      A moça recuou, ruborizou-se, e murmurando algumas palavras saiu pela porta envidraçada.

      Poirot virou-se para a recém-chegada que controlara tão eficientemente a situação com uma única palavra. Sua voz revelara autoridade, desprezo e uma disfarçada ironia. O detetive percebeu imediatamente que estava diante da dona da casa, Mary Delafontaine.

      — É M. Poirot? O senhor não deve ter recebido minha carta, não?

      — Estive fora de Londres nos últimos dias.

      — Ah, isto explica tudo. Sou Mary Delafontaine, e este é meu marido. Miss Barrowby era minha tia.

      Mr. Delafontaine entrara tão silenciosamente que. ele nem percebera sua chegada. Era um homem alto, grisalho, de aspecto indeciso. Acariciava o próprio queixo num tique nervoso, lançando freqüentes olhares à esposa. Obviamente esperava que ela tomasse todas as iniciativas.

      — Sinto tê-la incomodado nessa situação penosa — disse Hercule Poirot.

      — Não foi sua culpa — disse Mrs. Delafontaine. — Minha tia morreu terça-feira à noite, de uma forma inesperada.

      — Completamente inesperada — reforçou Mr. Delafontaine. — Foi um grande golpe para nós — ele observava a porta envidraçada por onde saíra a moça estrangeira.

      — Aceitem minhas desculpas — disse Poirot dando um passo em direção a porta.

      — Um momento — interveio Mr. Delafontaine. — O senhor tinha... uma entrevista marcada com a tia Amelia?

      — Parfaitement.

      — Talvez se nos disser do que se trata, possamos ajudá-lo — disse a mulher.

      — O assunto era confidencial — retorquiu Poirot e acrescentou: — Sou um detetive.

      Mr. Delafontaine derrubou uma pastora de porcelana que segurava. A esposa perguntou com uma expressão intrigada:

      — Um detetive? E o senhor tinha uma entrevista marcada com titia? Que coisa estranha! — ela o olhava admirada. — Pode nos adiantar mais algum detalhe, M. Poirot? É... tão fantástico!

      Poirot ficou em silêncio por alguns instantes. Afinal disse escolhendo as palavras com cuidado:

      — Não sei bem ainda o que devo fazer, madame.

      — Olhe aqui, ela não mencionou russos, por acaso? — perguntou Mr. Delafontaine.

      — Russos?

      — Sim, russos, bolchevistas, comunistas, coisas assim...

      — Não seja tolo, Henry! — disse a esposa.

      Mr. Delafontaine corou.

      — Desculpe, desculpe, foi só uma idéia...

      Mary Delafontaine encarou francamente Poirot. Seus olhos eram intensamente azuis, da cor de miosótis.

      — Gostaria de que pudesse nos dar alguns esclarecimentos. Tenho uma razão bem forte para lhe fazer esse pedido.

      — Cuidado, minha velha, pode não ser nada! — disse Mr. Delafontaine alarmado.

      Sua esposa fuzilou-o com um olhar.

      — O que nos diz, M. Poirot?

      Lenta e gravemente Poirot sacudiu a cabeça, com visível pesar.

      — Receio não poder dizer nada no momento, madame — e fazendo uma mesura, pegou o chapéu e dirigiu-se para a entrada. Mary Delafontaine acompanhou-o. Na porta ele voltou-se para ela:

      — A senhora tem muito amor pelo seu jardim, não, madame?

      — Eu? É verdade, entretenho-me muito com a jardinagem.

      — Je vous faits mes compliments — disse Poirot e despedindo-se atravessou o jardim. Ao fechar o portão percebeu um rosto pálido que o observava de uma janela do sobrado. Na calçada em frente, um homem ereto, de passo marcial, andava de um lado para o outro.

      Hercule Poirot balançou a cabeça.

      — Definitivement, nessa toca há coelho! — disse ele. Tomando uma decisão dirigiu-se ao correio mais próximo onde deu dois telefonemas. Em seguida andou até a delegacia de polícia de Charman’s Green e perguntou pelo Inspetor Sims.

      O inspetor era um homem alto e vigoroso, muito cordial.

      — É M. Poirot? Foi o que pensei. Acabo de receber um telefonema do chefe a seu respeito. Disse-me que o esperasse. Venha para o meu escritório.

      Fechando a porta o inspetor ofereceu uma cadeira a Poirot. Acomodou-se na sua e dirigiu um olhar interrogativo ao visitante.

      — O que despertou suas suspeitas, M. Poirot? Vem nos ver a respeito desse caso do Roseiral quase antes mesmo que tivéssemos certeza de se tratar de um crime.

      Poirot estendeu a carta de Miss Barrowby ao inspetor.

      — Muito interessante — disse o policial ao terminar a leitura. — O problema é que ela foi muito vaga. Se tivesse sido mais explícita nos seria de grande ajuda agora.

      — Ou talvez nossa intervenção nem fosse necessária.

      — O que quer dizer?

      — Que ela ainda poderia estar viva,

      — Suas suspeitas vão bem longe, não? E não me atreve a contradizê-lo.

      — Inspetor, dê-me os fatos. Não sei de nada.

      — Aí vai; a velha senhora começou a passar mal depois do jantar de terça-feira. Os sintomas eram alarmantes: convulsões, espasmos e tudo o mais. Chamaram logo o médico, mas quando ele chegou a velhinha já estava morta. A família pensou num ataque, mas o médico não estava tranqüilo. Embromou, desconversou, e terminou dizendo-lhes que não poderia assinar o certificado de óbito. Isto é tudo que os parentes sabem; estão aguardando o resultado da autópsia. Mas o médico nos comunicou imediatamente suas suspeitas e auxiliou o médico legista. O laudo é categórico. A velha morreu envenenada com uma forte dose de estriquinina.

      — Ah!

      — É, assassinato. O problema é quem a envenenou? A morte deve ter ocorrido pouco tempo depois da ingestão da droga! Primeiro pensamos no jantar, mas já abandonamos a idéia. Miss Barrowby, e Mr. e Mrs. Delafontaine tomaram uma sopa de aspargos servida na própria mesa, de uma sopeira. Em seguida um pastelão de peixe e uma torta de maçã. A moça de origem russa, que era uma espécie de enfermeira da velha, não comia junto com a família. Jantava depois sozinha. Há uma empregada, mas era sua noite de folga. Ela deixou a sopa na panela, o pastelão no forno e a torta já pronta. Todos comeram a mesma coisa. Além disso não creio que alguém engolisse estriquinina em pó misturada à comida, a droga é amarga como fel. Segundo o médico, é possível detectar o seu gosto numa solução de um para mil.

      — E no café?

      — No café seria mais provável, mas a velha nunca tomava café.

      — Estou vendo o problema. Aparentemente é uma dificuldade intransponível, não? O que ela bebeu na refeição?

      — Água.

      — Enigma interessante, não acha? A velha senhora tinha dinheiro?

      — Devia estar numa boa situação, mas ainda não conhecemos detalhes. Já os Delafontaine estão numa situação precária. A velha contribuía para a manutenção da casa.

      Poirot deu um leve sorriso.

      — Então suspeita do casal, não? Do marido ou da mulher?

      — Não disse que suspeitava deles, mas são os únicos parentes próximos e sem dúvida herdam uma bela quantia com a morte dela. E conhecemos bem a natureza humana!

      — É, muito pouco atraente, às vezes. A velhinha não comeu nem bebeu mais nada?

      — Bem, para sermos exatos...

      — Ah, voilà! Tive a intuição de que estava escondendo alguma coisa! Sopa, pastelão, torta, des bêtises! Vamos ao que importa.

      — Não posso assegurar nada. Mas a velha costumava tomar um preparado antes da refeição. Não era pílula, nem comprimido, mas aquelas cápsulas preparadas na farmácia contendo algum pó inofensivo para facilitar a digestão.

      — Excelente! Nada mais fácil do que encher uma delas com estriquinina e colocar entre as outras. A velha senhora a tomaria com um gole d’água e não sentiria gosto algum.

      — Tem razão. O problema é que foi a moça quem lhe deu a cápsula.

      — A moça russa?

      — Essa mesma. Katrina Rieger. Era uma espécie de acompanhante e enfermeira improvisada. Miss Barrowby a tiranizava. Vá buscar isso, vá buscar aquilo, esfregue minhas costas, prepare meu remédio, vá à farmácia, e assim por diante. Sabe como são essas velhas, não têm intenção de serem cruéis, mas são verdadeiras feitoras de escravos!

      Poirot sorriu.

      — Não consigo vê-la como assassina — prosseguiu o Inspetor Sims. — Por que a moça iria envenená-la? Com a morte de Miss Barrowby ela perdeu o emprego, e não será fácil conseguir outro, pois não é formada nem tem qualificações especiais.

      — Mas outras pessoas da casa podiam ter acesso à caixa de cápsulas — sugeriu Poirot.

      — Estamos investigando essa possibilidade, discretamente. E onde esteve guardado o remédio depois que a receita foi aviada pela última vez? Obteremos a resposta com paciência e trabalho de rotina. Amanhã mesmo tenho um encontro com o advogado de Miss Barrowby e com o gerente do seu banco. Há muito ainda por fazer.

      Poirot levantou-se.

      — Peço-lhe um obséquio, Inspetor Sims. Gostaria de que me desse uma palavrinha se surgirem novidades. Eis o número do meu telefone.

      — Ora, com certeza, M. Poirot. Duas cabeças pensam melhor do que uma. Além disso o caso também é seu. Foi a si que Miss Barrowby recorreu.

      — Obrigado, inspetor — Poirot apertou-lhe a mão e despediu-se.     

     

      No dia seguinte à tarde, o detetive recebeu um telefonema:

      — É M. Poirot? Aqui é o Inspetor Sims. Os fatos estão começando a se definir.

      — É verdade? O que aconteceu?

      — Em primeiro lugar, uma bomba: Miss Barrowby deixou uma pequena quantia para a sobrinha, e o restante de . todo o seu dinheiro pára Katrina, em reconhecimento à sua bondade e dedicação. É o que reza o testamento, e isto altera tudo.

      Uma imagem ocorreu instantaneamente a Poirot: um rosto obstinado e seu protesto veemente. “O dinheiro é meu. Ela deixou escrito, e assim será!” A herança não surpreenderia Katrina, ela tivera ciência do testamento.

      — Em segundo lugar — prosseguiu o inspetor —, só Katrina tocou naquelas cápsulas.

      — Tem certeza?

      — A própria moça admite o fato. O que pensa disso?

      — Extremamente interessante.

      — Só nos falta uma coisa: saber como ela obteve a estriquinina. Não deve ser difícil descobrir.

      — Mas até agora não conseguiu, não foi?

      — Mal comecei. O inquérito foi hoje de manhã.

      — Qual o resultado?

      — Foi adiado por uma semana.

      — E a jovem Katrina?

      — Vou detê-la por suspeita. Não quero correr riscos. Ela pode ter neste país algum amigo metido a engraçadinho que tente tirá-la daqui.

      — Não, não acredito que ela tenha amigos.

      — Por que diz isto, M. Poirot?

      — É só uma impressão. Há mais alguma coisa?

      — Nada de muita relevância. Miss Barrowby parece ter feito algumas transações más com seus títulos ultimamente. Deve ter perdido uma quantia razoável. São umas operações meio confusas, mas em nada afetam o nosso problema.

      — Bem, muito obrigado. Foi muita amabilidade sua telefonar-me.

      — De forma alguma. Cumpro o que prometo, e além disso vi que estava realmente interessado. Talvez ainda nos possa dar uma ajudazinha antes do caso terminar.

      — Isto me daria um enorme prazer. Seria de grande utilidade se eu pudesse encontrar um amigo de Katrina.

      — Pensei tê-lo ouvido dizer que ela não tinha amigos — retrucou o inspetor, surpreso.

      — Eu estava errado — disse Hercule Poirot. — Ela tem pelo menos um. — E desligou antes que o Inspetor Sims pudesse fazer mais qualquer pergunta.

      Com a fisionomia grave, voltou à sala onde Miss Lemon batia à máquina. À aproximação do patrão ela levantou as mãos do teclado e ficou à espera.

      — Quero que a senhorita use a sua imaginação — disse Poirot.

      Miss Lemon colocou as mãos no colo com um ar resignado. Gostava de bater à máquina, de pagar contas, arquivar papéis e marcar entrevistas. Mas usar a imaginação para colocar-se em situações hipotéticas era, na sua opinião, uma tarefa muito aborrecida.

      — A senhorita é uma moça russa — principiou Poirot.

      — Certo — disse Miss Lemon parecendo mais inglesa do que nunca.

      — Está só e sem amigos nesse país. Tem razões fortes pára não desejar retornar à Rússia. Está empregada como acompanhante de uma velha senhora. A senhorita é humilde e estóica.

      — Certo — disse Miss Lemon obedientemente, mas não conseguiu imaginar-se numa posição humilde diante de velha alguma.

      — Esta velha senhora se afeiçoa à senhorita e resolve deixar-lhe o seu dinheiro, e lhe fala de seu testamento.

      Miss Lemon repetiu:

      — Certo.

      — Então a velhinha descobre alguma coisa que a preocupa muito. Talvez seja ama questão de dinheiro, alguma desonestidade sua. Talvez seja algo ainda mais grave, como um remédio com um gosto estranho, ou alguma comida que lhe faça mal. De qualquer forma, ela começa a suspeitar da senhorita e escreve para um conhecido detetive, ou melhor, para o mais famoso de todos, eu! Ela está a minha espera, e as coisas vão ficar pretas, como dizem aqui. É preciso agir rapidamente. E então, antes que o grande detetive chegue, a velhinha morre, e o dinheiro é seu. Que tal, acha verossímil esta história?

      — Plenamente — disse Miss Lemon. — Isto é, tratando-se de uma russa. Eu pessoalmente nunca aceitaria um emprego de acompanhante. Gosto de tarefas bem definidas. Além disso nunca sonharia em matar ninguém!

      Poirot deu um suspiro.

      — Que falta me faz o meu amigo Hastings! Ele tinha tanta imaginação, um espírito tão romântico. Tirava sempre conclusões erradas, é verdade, mas até nisso me ajudava.

      Miss Lemon ficou em silêncio. Já ouvira falar muitas vezes no Capitão Hastings, e o assunto não a interessava. Olhou esperançosa para a máquina a sua frente.

      — Então achou razoável essa hipótese?

      — E o senhor, não acha?

      — Receio que sim — suspirou Poirot.

      O telefone tocou e Miss Lemon levantou-se para atendê-lo na outra sala. Voltou dali a um minuto:

      — É o Inspetor Sims outra vez.

      Poirot apressou-se a atender.

      — Alô, alô, o que disse?

      Sims repetiu a frase:

      — Encontramos estriquinina no quarto da moça, escondida embaixo do colchão. O sargento acaba de chegar com a polícia. É a prova de que necessitávamos.

      — Sim, é a prova de que necessitávamos — a voz de Poirot modificara-se, tornara-se subitamente confiante.

      Hercule Poirot sentou-se em sua escrivaninha e começou a arrumar os objetos mecanicamente. Falava sozinho:

      — Havia qualquer coisa errada, eu senti. Não, eu não senti, eu devo ter visto. En avant células cinzentas! Esforcem-se, vamos, reflitam. Estava tudo em ordem? A moça... sua preocupação com o dinheiro... Mme. Delafontaine... seu marido... sua imbecil menção de russos, mas ele é um imbecil... a sala... o jardim... Ah! O jardim!

      Ele ergueu a cabeça, uma luz verde brilhava em seus olhos. Levantou-se num pulo e dirigiu-se à sala contígua.

      — Miss Lemon, quer ter a bondade de interromper o seu trabalho e me acompanhar numa investigação?

      — Uma investigação, M. Poirot? Receio não ter muito jeito para isso...

      Poirot a interrompeu.

      — A senhorita disse outro dia que conhecia bem os comerciantes ingleses.

      — E conheço! — afirmou Miss Lemon.

      — Então não há problema. A senhorita deverá ir a Charman’s Green e descobrir uma certa peixaria.

      — Uma peixaria? — perguntou Miss Lemon surpreendida.

      — Precisamente. A peixaria onde a família do Roseiral comprava peixes. Quando a encontrar, quero que faça essa pergunta ao peixeiro — e Poirot lhe entregou um pedaço de papel.

      Miss Lemon leu o bilhete com interesse, balançou a cabeça em sinal de aquiescência e fechou a tampa da máquina.

      — Iremos juntos a Charman’s Green — disse o detetive. — A senhorita irá à peixaria e eu à delegacia de polícia. Levaremos só uma meia hora de Baker Street para chegar lá,    

     

      Na delegacia o Inspetor Sims mostrou surpresa ao vê-lo:

      — Ora, como é rápido, M. Poirot. Não faz nem uma hora que lhe telefonei.

      — Tenho um pedido a fazer. Gostaria de ver a moça Katrina. Qual é mesmo o nome todo dela?

      — Katrina Rieger. Bem, não tenho nenhuma objeção.

      A moça estava mais pálida e taciturna do que nunca. Poirot falou-lhe com brandura:

      — Mademoiselle, quero que acredite que não sou seu inimigo. Quero que me diga a verdade.

      Ela assumiu uma expressão de desafio.

      — Mas eu disse a verdade. Eu disse a verdade a todo mundo. Se a velha senhora foi envenenada, não fui eu quem a envenenou. Estão enganados, querem impedir que eu receba meu dinheiro — falava com aspereza. Parecia um miserável ratinho encurralado, pensou Poirot.

      — Fale-me sobre as cápsulas de digestivo, mademoiselle. Ninguém mais as manuseou?

      — Eu já disse que não, não disse? Foram aviadas na farmácia naquela mesma tarde. Eu as trouxe em minha bolsa, pouco antes do jantar. Abri a caixa e dei uma delas a Miss Barrowby com um copo d’água.

      — Ninguém mais tocou nelas?

      — Não.

      O ratinho podia estar encurralado, mas era corajoso!

      — E Miss Barrowby não comeu nada no jantar além da sopa, do pastelão e da torta?

      — Não — um não sem esperanças, um olhar angustiado que não via luz em parte alguma.

      Poirot colocou a mão no ombro dela.

      — Tenha coragem, mademoiselle. Ainda poderá obter a liberdade e o dinheiro, e uma vida tranqüila.

      Ela o olhou com desconfiança.

      Quando ele saiu, Sims lhe disse:

      — Não entendi bem as suas palavras ao telefone, algo a respeito da moça ter um amigo.

      — Ela tem um amigo: eu! — disse Poirot e deixou a delegacia antes que o inspetor pudesse se recuperar da surpresa.     

     

      No salão de chá, Miss Lemon foi direto ao assunto:

      — O nome do peixeiro é Rudge, M. Poirot. O senhor estava absolutamente certo, foi uma dúzia e meia, anotei tudo aqui — e ela estendeu-lhe uma folha de seu bloco.

      — Haha! — fez Poirot e seus olhos brilharam de satisfação.    

     

      Caía a tarde quando Hercule Poirot chegou ao Roseiral. Mary Delafontaine, entretida em seu jardim, surpreendeu-se ao vê-lo.

      — Está de volta, M. Poirot?

      — Sim, eu voltei — o detetive fez uma pausa e acrescentou: — A primeira vez que estive aqui lembrei-me daqueles versinhos:

               Senhorita, tão catita,

               Que lindo é o seu jardim!

               Com seixos e brancas conchas

               E raparigas sem fim.

      — Só que as conchas não são brancas, não é, madame? Estas conchas são de ostras — e Poirot apontou um dedo acusador.

      Mary Delafontaine prendeu a respiração e ficou imóvel. Só os seus olhos interrogaram o detetive. Ele balançou a cabeça.

      — Mais, oui, eu sei! A empregada deixou o jantar pronto, é certo. Ela e Katrina podem jurar à vontade que foi tudo o que comeram, mas a senhora e seu marido sabem que a senhora comprou uma dúzia e meia de ostras, um agradinho especial para la bonne tante. É tão fácil colocar estriquinina numa delas. Uma ostra engole-se de uma vez só, comme ça! Mas sobram as conchas. Não pode colocá-las na lata do lixo, pois a empregada as veria. E então a senhora resolveu demarcar um canteiro com elas, mas eram poucas, não foram suficientes para toda a volta. O efeito é desagradável, quebrou a simetria do seu encantador jardim. Essas poucas conchas são um detalhe pouco harmonioso, chamaram-me a atenção logo que as vi.

      — O senhor deve ter adivinhado pelas informações da carta dela não? Eu sabia que ela lhe havia escrito, mas não sabia o quê.

      Poirot mostrou-se evasivo:

      — Deduzi que era um problema de família. Se o caso fosse com Katrina não haveria necessidade de discrição e nem razão para abafar a questão. Creio que a senhora ou o seu marido jogaram com os títulos de Miss Barrowby, a sua revelia, para obter lucros, até que ela descobriu.

      Mary Delafontaine fez um sinal de aquiescência.

      — Há anos vínhamos fazendo isso, ganhando um pouco aqui, um pouco ali. Nunca pensei que ela fosse esperta o bastante para notar. Então soube que ela chamara um detetive, e que pretendia deixar o dinheiro para Katrina, aquela criaturazinha miserável.

      — E assim escondeu a estriquinina no quarto dela, não? A senhora livrava a si e a seu marido das conseqüências de suas ações e fazia uma criança inocente pagar pelo assassinato. Não sentiu piedade, madame?

      Mary Delafontaine encolheu os ombros. Seus olhos azuis como miosótis encararam Poirot. Ele lembrou-se da impecável performance dela naquele primeiro encontro, e dos movimentos desajeitados do marido. Era uma mulher bem acima da média, mas desumana.

      Ela disse:

      — Piedade? Por aquela miserável ratinha intrigante? — seu tom só continha desprezo...

      Hercule Poirot escolheu as palavras devagar:

      — Creio que a senhora só teve afeição por duas coisas em sua vida. Uma delas é seu marido.

      Os lábios dela tremeram.

      — E a outra é seu jardim — e Poirot correu os olhos em torno, parecendo pedir desculpas pelo que iria fazer.

 

                                                                                            Agatha Christie

 

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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